Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
ESPAÇONAVE ORION
A Patrulha das Estrelas
MAIS RÁPIDO QUE A LUZ
Vez por outra, o coronel Cliff Allistair McLane, comandante do cruzador espacial Orion VIII, chegava a ter uma certa simpatia pelo marechal, se bem que sempre houvesse um intervalo considerável entre as ocasiões em que isso acontecia. No entanto, continuava a achar menos simpático o indivíduo que atendia pelo nome Michael Spring-Brauner, ao qual bem que gostaria de pregar uma peça. Wamsler e seu ajudante estavam sentados à frente de Cliff McLane.
— Não há dúvida, comandante — disse Wamsler com certa compenetração. — O senhor tem todo motivo para estar aborrecido.
Cliff acenou várias vezes com a cabeça.
— É verdade — disse. — Trago a notícia de que, mais uma vez, Terra foi salva de um atentado por meio de vírus, e a única coisa que o senhor sabe fazer é mandar prender-me.
O belo Michael observou em tom mordaz:
— Coronel McLane, o senhor bem que poderia perder o hábito de usar este provérbio pouco adequado.
Cliff exibiu um sorriso azedo e respondeu:
— Meu caro, é bom saber que, por enquanto, sou eu quem decido quais são os hábitos que tenho de perder.
— Não se desvie do assunto — disse Wamsler com sua voz grave, que sempre parecia um pouco zangada. Envergando o uniforme preto, de gala, estava sentado numa pesada poltrona de couro que rangia e gemia sob seus movimentos.
— De forma alguma. Na minha opinião, o senhor devia voltar a pedir desculpas segundo todas as regras da etiqueta — respondeu Cliff.
Tinha certeza de que no fundo Wamsler o apreciava, mas também sabia que esse tipo de relacionamento mútuo encerrava um perigo.
Poucos dias se passaram desde a aventura com os colonos rebelados de Tareyton. E agora, uma nova missão o aguardava; era o que Cliff estava farejando.
— Bem. Acha que não basta que eu tenha pedido ao cônsul Halvorsen que remetesse setenta garrafas de Archer's Tears? E não basta que o senhor e sua tripulação, bem como Lydia van Dyke e Tamara Jagellovsk, tenham ficado fora de ação por vários dias, unicamente porque os vapores do álcool lhes saíam pelas orelhas como se fossem fumaça?
Um sorriso alegre surgiu no rosto de Cliff, que se reclinou.
— Não estivemos fora de ação — disse, mergulhado em recordações. — Pelo contrário. Até desenvolvemos uma ação muito útil. Mas seja como for: com as garrafas de bebida de Tareyton, o senhor reparou grande parte dos seus erros.
Wamsler bateu com a mão sobre a mesa. Spring-Brauner encolheu-se e levantou as sobrancelhas, numa expressão assustada.
— Não poderíamos esquecer isso de uma vez por todas, McLane? — exclamou Wamsler. — Ao que parece, o senhor gosta de guardar rancor.
— Faço tudo isto em legítima defesa, marechal — disse Cliff em tom sarcástico. — Se não procedesse assim, o senhor e o coronel Villa me maltratariam até a morte.
Michael Spring-Brauner, o homem mais vistoso da área da Base 104, situada sob o Golfo de Carpentaria, riu. Cliff lançou um olhar pensativo sobre o homem que, desde há muito, era seu inimigo particular. Depois, disse numa calma extraordinária:
— Um belo dia para usar o provérbio pela penúltima vez: ainda lhe pregarei uma peça. Acho que depois disso o senhor deixará de meter-se na minha vida.
Spring-Brauner sacudiu os ombros cobertos pelo uniforme impecável e respondeu:
— Não acredito, coronel.
— Quando chegar a hora, lembre-se das minhas palavras.
Cliff fez um gesto. Wamsler saiu de trás da enorme escrivaninha e parou bem à frente de Cliff.
— Peço desculpas — disse. — Prometo que nunca mais mandarei prendê-lo. Será que agora poderia ter a bondade de ouvir minha exposição? Do contrário atirá-lo-ei com estas mãos pela barreira de fluxos luminosos e arranjarei outro homem para o trabalho.
Cliff começou a balançar na cadeira, numa atitude insolente.
— Com o maior prazer, marechal. Pode falar.
— Conforme já sabe, o senhor e Sigbjörnson arrumaram as máquinas da Orion VIII a tal ponto que a nave tem de passar por uma revisão geral. Já se encontra no hangar de reparos. Quer dizer que o senhor está desempregado...
— Um momento! — interrompeu Cliff em tom enfático. — No início do Ano Galáctico o senhor foi arrancar-nos em meio às nossas férias. Fomos obrigados a entrar em ação contra nossa vontade.
— Não é verdade. Interromperam as férias, que lhes foram creditadas — disse Wamsler, sacudindo a cabeça.
Cliff resignou-se. Sabia perfeitamente que não poderia fazer nada contra ele. A palavra do marechal valia cem vezes mais que uma exposição escrita de um coronel. Recostou-se, notou o sorriso malicioso de Spring-Brauner e aguardou as revelações que estavam para vir. E vieram.
— Enquanto o senhor espera, a contragosto, que sua nave seja reparada, acontecimentos muito importantes já se verificaram. Construímos duas naves. As mesmas foram equipadas com um novo modelo de máquinas e com uma calculadora digital do dobro da dimensão das antigas. São duas naves formidáveis. Chamam-se Aztran Alfa e Aztran Beta. São naves gêmeas, absolutamente iguais até nos menores detalhes.
— Parece que não estamos falando dos comandantes, mas das naves — disse Cliff em voz baixa e em tom irônico.
— Bem, o comandante será o senhor.
— Muito interessante — respondeu Cliff. Será que alguém já me perguntou se quero ser o comandante?
Wamsler apoiou os enormes punhos nos quadris e berrou:
— Acho que o senhor não se esquivará quando o progresso de Terra estiver em jogo!
— Nem penso nisso — disse Cliff. — Será que a Aztran Alfa é movida por um mecanismo de relógio?
O rosto de Wamsler começou a enrubescer.
— Nem toda "rodinha" que gira ininterruptamente é responsável pelo mecanismo — disse Spring-Brauner em tom sarcástico.
— É bom que nunca se esqueça do que acaba de dizer — respondeu Cliff. — O que está havendo com essas naves?
Wamsler fez um gesto.
No mesmo instante, as luzes apagaram-se. Subitamente, uma nave espacial surgiu no enorme anel de projeção. Seu aspecto era semelhante ao da série à qual pertencia a Orion. Apenas, seus contornos eram mais arredondados, não possuía agulhas de arremesso e o emissor de raios Overkill havia sido modificado. Não se via nenhuma antena giratória e havia um único poço para as Lancets. De resto era uma nave-disco bela e de linhas aerodinâmicas, que emitia um brilho prateado sob a luz de inúmeras luminárias.
— Até que é bonita — murmurou Cliff.
— Pois esta coisa bonita custou alguns bilhões de dólares. Consegue ler as letras gravadas entre as duas cúpulas?
Cliff procurou enxergar melhor. No lugar em que a cúpula superior e a cúpula inferior se encontravam, havia uma faixa de cerca de um metro de largura. Entre as saliências semi-esféricas que abrigavam as lentes e as antenas, Cliff descobriu as palavras Aztran Beta escritas em letras douradas.
— Onde está a Aztran Alfa?
— É igualzinha a esta — explicou o marechal. — Não acha que seria uma ótima nave para McLane e sua excelente tripulação?
Cliff percebeu o tom bajulador e suspeitou com toda razão de que havia uma armadilha atrás daquilo.
— Em princípio, sim. Acontece que McLane e a Orion já se transformaram num "produto padronizado". Nosso amigo engraçado Pieter Paul Ibsen escreveu vários romances sobre isso. Acho que não devíamos dissociar os dois elementos da idéia básica.
Wamsler soltou uma risadinha.
— O coração dessas naves é formado pelas novas máquinas propulsoras. Foram testadas numa série enorme de experiências. Por enquanto não houve prova realizada em vôo de longa distância dentro de um sistema integrado numa nave. Por isso formulo a pergunta em caráter oficial: o senhor está disposto a realizar o primeiro vôo de teste?
Spring-Brauner pigarreou e disse em voz baixa:
— O senhor poderia levar Ibsen. Talvez queira descrever suas aventuras.
Cliff preferiu não dar a resposta que a observação merecia.
— Suponhamos que eu esteja interessado. O que ganharei?
Wamsler começou a contar nos dedos de sua mão carnuda:
— Glória, honra, mérito, uma anotação de primeira classe na sua ficha funcional...
— Preciso refletir — disse Cliff. — Quanto tempo me dá?
— Dez minutos — respondeu Wamsler em tom sério.
— O senhor está exagerando, marechal — disse Cliff em tom sombrio. — Uma decisão tomada exclusivamente por mim não abrangeria os membros da minha tripulação. Preciso consultá-los.
Wamsler desligou o quadro. As luzes voltaram a acender-se.
— Já pensamos nisso — disse. — Chegamos à seguinte conclusão: Se o senhor estiver disposto a aceitar a missão, teremos meio caminho andado. Se falar com os tripulantes, provavelmente conseguirá convencer os quatro a participarem do projeto. Se um deles não concordar, nós o substituiremos por outro voluntário.
Cliff já conhecia esse procedimento, e por isso não chegou a espantar-se. Era sempre a mesma coisa.
— Está bem. Aceito sob uma condição. Wamsler assumiu uma atitude oficial.
Respondeu prontamente:
— Qual é a condição?
— Preciso de três horas para tomar uma decisão como esta. Daqui a exatamente três horas telefonarei e darei minha resposta. Concorda?
Wamsler estendeu-lhe a mão.
— Excepcionalmente concordo. Se fosse qualquer outra pessoa, teria recusado. Três horas, comandante?
Cliff olhou para o relógio.
— Agora só faltam cento e setenta e nove minutos — disse. — O que acontecerá com a Aztran Alfa?
— Ficará aqui. Depois do teste operacional que será realizado pelo senhor, repetirá o vôo sob as mesmas condições. Antes que as naves da frota sejam equipadas com os motores garrards, queremos enxergar claro. As F.R.E.T. e os órgãos governamentais não costumam assumir riscos. Há mais um detalhe: durante o teste operacional a nave deverá sair da esfera de novecentos parsec. As outras informações lhe serão prestadas quando o senhor tiver tomado sua decisão. Pode retirar-se.
Cliff parou ligeiramente diante da projeção onde brilhavam as estrelas do império colonial terrano, as linhas que assinalavam as distâncias e a separação nos quatro setores do quadrante. Conhecia a periferia tão bem quanto o centro. Sabia, porém, que conhecia apenas uma fração dos mistérios que a esfera encerrava.
Já estava quase decidido.
— Não fique parado, McLane! Corra para a glória. Será o teste operacional número cinco mil.
Cliff virou-se e respondeu com a voz tranqüila:
— Não sabia que o senhor possui formação literária, marechal.
Saiu do gabinete. A barreira de fluxos luminosos voltou a acender-se atrás dele. Spring-Brauner sacudiu a cabeça, olhou para Wamsler e murmurou:
— Este McLane é um homem muito estranho. Talvez seja um elemento competente, mas o fato é que não gosto dele.
Wamsler respondeu em tom bastante enérgico:
— O coronel McLane é um esquisitão, um individualista, mas é de uma competência extraordinária. Se quero usar essa competência, tenho de conformar-me com suas peculiaridades. Cliff McLane é o melhor elemento que temos. É bom não esquecer-se disso.
Spring-Brauner registrou uma desaprovação.
E teve uma lembrança dolorosa. No dia anterior, Helga Legrelle, operadora de rádio da Orion VIII, encerrara seu chamado pelo videofone com uma frase inequívoca. Não podia conformar-se com a idéia de que alguém não o achasse encantador e muito competente. Ultimamente, sua autoconfiança sofrerá golpes muito rudes.
— O senhor está com a razão; não há dúvida — disse a meia voz.
— É claro que tenho razão — respondeu Wamsler. — Faça o favor de providenciar para que amanhã às seis da manhã a Aztran Beta esteja preparada na área de decolagem da Base 104. Além disso, faça o favor de preparar uma reunião com os tripulantes da Orion e os construtores da nave para daqui a cinco horas. Não se esqueça de convidar Silvan Rott.
— Naturalmente. Spring-Brauner pôs-se a trabalhar.
O teste fazia parte das comemorações do Ano Galático. Havia duas possibilidades. Tudo poderia sair errado, e nesse caso alguém teria que providenciar socorro espacial para a Aztran Beta; ou então o teste seria um êxito completo, e o tempo que se passaria entre a decolagem e o pouso de uma nave seria reduzido à metade. Uma coisa estranha... Ninguém se lembrou de uma terceira possibilidade. Nem os técnicos, que haviam construído o motor... Nem Silvan Rott, responsável pela montagem das instalações da nave... Nem Wamsler, Spring-Brauner e a comissão... Nem mesmo McLane. E isso foi um erro.
Muita gente conhecia Cliff como um homem elegante, altivo, firme na bebida, admirador da beleza feminina, e também como um elemento que desprezava as regras e as convenções. Pouca gente o conhecia como comandante responsável por um cruzador ligeiro. E esse papel não se harmonizava com a imagem que os telespectadores e os leitores de Ibsen faziam dele.
Naquele momento, Cliff sentia o peso da responsabilidade. E lutava consigo mesmo.
Caminhava pela sala de sua casa, e mergulhava no silêncio do ambiente. Calculava as vantagens e os riscos da oferta de Wamsler.
Cliff procurou um número em sua memória, encontrou-o e fez a ligação no painel de teclas. Ficou parado ao lado da poltrona, para que a lente pudesse captar sua imagem. Ingrid Sigbjörnson, esposa de Hasso, apareceu na tela.
— Cliff! — disse. — É um prazer revê-lo. Cliff sorriu e respondeu em tom sério:
— O prazer não vai durar muito, Ingrid. Pretendo raptar Hasso.
Ingrid poderia sentir qualquer coisa, menos entusiasmo.
— Trata-se de outra missão durante a qual atirarão contra vocês? — perguntou assustada. Cliff sacudiu a cabeça.
— Não. Desta vez é diferente. Trata-se de um assunto puramente técnico: um vôo de teste.
— Vou transferir a ligação — disse Ingrid, despedindo-se com um gesto. — Hasso está na sala de recreio.
— Obrigado.
Hasso encontrava-se sentado diante de uma gigantesca placa cheia dos mais diversos aparelhos. Lâmpadas acendiam-se, um computador funcionava, os fios estavam estendidos. Cliff não fazia a menor idéia do que significaria isso.
— Olá, chefe — disse Hasso, recuando a poltrona. — O que houve?
— É uma boa pergunta — disse o comandante. — Wamsler pretende mandar-nos para um vôo de teste. Trata-se de um novo modelo, equipado com máquinas novas. A tripulação será composta de voluntários. Ainda não resolvi. Você quer entrar no jogo?
— Cliff, não venha me dizer que se trata das novas máquinas garrard.
— Pois é isso. Poderei contar com a sua colaboração?
— Quando decolaremos?
— Amanhã de manhã, pois antes ouviremos os discursos quilométricos dos engenheiros. Você participará como voluntário?
— Participarei — disse Hasso. — E os outros?
— Por enquanto só falei com você — disse Cliff. — Afinal, seremos os elementos mais importantes a bordo da Aztran; ao menos é o que diz Wamsler. Tenho certeza de que os outros não deixarão de participar, quando souberem que você e eu concordamos.
— Quando e onde será?
Cliff lançou um olhar ligeiro para o relógio e respondeu:
— Daqui a duas horas, no gabinete de Wamsler. Entendido?
— Entendido, Cliff.
Hasso desligou uma série de botões, e todas as luzes que assinalavam sua experiência apagaram-se.
Com um ligeiro movimento do indicador, McLane interrompeu a comunicação.
— Já conseguimos dois quintos — murmurou. — Ainda faltam Helga, Atan e Mario. Vamos tentar a sorte.
Atan Shubashi, tenente-astronavegador, estava deitado na cama, lendo livros de sua especialidade. Cliff não levou mais de um minuto para convencê-lo integralmente. Atan entusiasmou-se, pois a operação lhe forneceria uma oportunidade de dar uma prova dos seus conhecimentos. Certamente haveria novos problemas de localização e de observação espacial. O emprego, segundo dizia, desviava-se tanto da rotina que não poderia deixar de participar. Cliff forneceu o tempo e lugar do encontro. A seguir, chamou Helga Legrelle. Seu rosto surgiu na tela.
— Helga, minha filha — disse Cliff em tom de lamentação. — Pela sua expressão deduzo que deve ter chegado bem mais perto do esclarecimento de uma questão de importância vital para você. Como vai Spring-Brauner?
O sorriso de Helga foi o de uma vencedora.
— Está esquecido — limitou-se a dizer.
— Não foi por isso que chamei — anunciou Cliff. — Quero formular uma pergunta: Você quer participar? Trata-se de um vôo experimental com uma nave. Estamos à procura de uma dama muito competente que possa cuidar do rádio. Está interessada?
Helga deu de ombros.
— Quem foi que já concordou, além de você?
— Todos, com exceção de Mario e você. Era esbelta e tinha cabelos negros que, conforme a incidência da luz, emitiam um brilho castanho. Sorriu e afastou uma mecha que lhe caía na testa.
— O senhor estaria disposto a levar-me, coronel? — perguntou em tom seco.
— Só se você se apresentar no gabinete de Wamsler dentro de cento e dezenove minutos — respondeu Cliff. — Ou melhor, na ante-sala do gabinete.
Helga contorceu o rosto.
— Será um prazer — disse Helga — desde que não me encontre com Spring-Brauner. Há uma provisão suficiente de Archer^ Tears a bordo?
Cliff soltou uma estrondosa gargalhada e respondeu:
— Acho que Wamsler tem uma objeção. Tenho que decepcioná-la.
— Que pena! Comparecerei.
Só faltava o chefe de cibernética, De Monti. O caso era problemático. Cliff receava ter de perturbá-lo numa das ocupações mais agradáveis que Mario sabia imaginar. Respirou profundamente e chamou o número. Em vez de Mario, uma moça esbelta de cabelo negro surgiu na tela.
— Que coisa linda! — disse Cliff. — Gostaria de falar com Mario de Monti. Está por aí?
A moça olhou Cliff com uma expressão enlevada e disse suspirando:
— O senhor deve ser o comandante McLane, não é?
— Sim, sou o coronel McLane — respondeu Cliff. — E como posso dirigir-me à senhora, belezinha?
Mario surgiu de lado no campo de visão das lentes.
— Deixe de pavonear-se, Cliff. Esta é Urlessa. Diga bom dia, que nem uma menina comportadinha.
— Bom dia — disse Urlessa. — Aí está De Monti.
— Chefe de cibernética e playboy. Desejo formular uma pergunta.
Mario balançou um cálice cheio de champanha e fez um gesto com a cabeça.
— Fale!
— O resto da tripulação da Orion resolveu decolar amanhã num vôo experimental muito interessante. Com a Aztran Beta. Haverá novos propulsores, uma gigantesca calculadora digital e outras coisas mais; precisamos de você. Será que há uma possibilidade?
— Como vê, estou prestes a estar ocupado — disse Mario com uma risadinha. — A decolagem não poderia ser adiada por três ou quatro dias?
— Dentro de duas horas haverá um grande discurso no gabinete de Wamsler. A decolagem será amanhã de manhã. Arranje-se como puder. Todos sentimos necessidade de ter você a bordo.
— O.K. Irei. Mas o caso exige um planejamento meticuloso, muita reflexão e...
— O problema é seu. Combinado?
O rosto de Mario expressava contrariedade.
— Você me julga capaz de deixar meus amigos na mão? — perguntou. — Serei pontual.
Urlessa cumprimentou com um gesto, e a tela apagou-se.
— Hum — resmungou Cliff. — Ainda bem que deu certo. Vamos partir em direção a Wamsler e ouvir o "grande discurso".
Ainda havia tempo de sobra. Eram sete horas da noite e, pelos cálculos de Cliff, ele e a tripulação teriam pouco tempo para dormir antes da decolagem. Quando viu os preparativos que haviam sido tomados, deu-se conta instantaneamente do risco que a tripulação da Orion acabara de assumir. Rott cumprimentou-o com um gesto. O sorriso dele parecia ser extremamente sério.
O marechal Wamsler viu os participantes do projeto Aztran ocuparem seus lugares. Algumas telas de videofone foram instaladas. A tribuna, com o respectivo equipamento, já havia sido montada. A tripulação da Orion, Silvan Rott, dois engenheiros e o dirigente do projeto estavam presentes. As barreiras de fluxos luminosos voltaram a levantar-se. Numa das telas, surgiu a imagem da Aztran.
— Meus amigos — disse Wamsler depois de uma pausa de alguns segundos. — Acho que devemos proceder metodicamente. Dessa forma, levaremos menos tempo. Antes de mais nada, deixemos que o técnico Kandron apresente seu relatório.
Kandron era o dirigente do projeto.
— Senhoras e cavalheiros — disse a meia voz. — Somos todos peritos. Por isso, só direi algumas palavras. Em primeiro lugar, as instalações internas das naves gêmeas Aztran Alfa e Beta são praticamente idênticas às das naves da classe Orion. Sempre que possível, utilizamos equipamentos iguais. Isso se aplica às poltronas, aos quadros, à disposição das peças, às teclas e às telas. Mas não pudemos evitar algumas alterações.
"Assim, por exemplo, há uma única Lancet, cujas máquinas são mais potentes. Não existem agulhas nem posto de arremesso. Em compensação há uma mira para o projetor Overkill. As provisões são mais reduzidas. Agora passaremos ao verdadeiro problema, que são as máquinas. Se funcionarem corretamente, as máquinas garrard deverão imprimir uma aceleração linear à nave. O campo especial criado por elas não deverá deixar que se rompa durante o vôo a ligação entre o hiperespaço e o espaço normal. Portanto, poderão ver constantemente as estrelas, embora de forma diferente. A manipulação será explicada no original, que já se encontra no hangar da Base 104. Os senhores realizarão um vôo orientado de duração indefinida. O objetivo é a estrela Epsilon Leonis."
— Epsilon Leonis — disse Atan Shubashi. — É uma estrela que fica a mais de mil e seiscentos anos-luz. Isso nos levará para além dos limites da esfera espacial.
O marechal confirmou com um gesto.
— Isso não importa. Os senhores serão mantidos sob observação durante todo o percurso, caso isso se torne possível. Passarão por Denebola, por Dela Leonis e, quando tiverem ultrapassado Epsilon Leonis, darão a volta e regressarão a Terra. É só isto. Os mapas, dados, catálogos e coordenadas já se encontram a bordo. Pois não, coronel Cliff.
— Se não me engano o senhor esqueceu-se de falar sobre a célula de segurança reforçada.
— A célula foi reforçada por um isolamento especial — explicou o engenheiro. — Enquanto se encontrarem na mesma, o resto da nave pode explodir ou fundir; pouco importa. Todo o equipamento de rádio foi montado no interior da célula. Se houver algum imprevisto, basta avisar pelo rádio, e a célula será rebocada.
— Isso me tranqüiliza bastante — disse Helga Legrelle, notando que Spring-Brauner evidentemente não se encontrava por ali.
A exposição prosseguiu. Foram exibidos inúmeros desenhos, fotografias e circuitos. O dirigente do projeto e os dois engenheiros responderam às inúmeras perguntas da tripulação. Uma hora passou-se. Aos poucos, os cinco adquiriam o controle de sua nova nave, sem que nela tivessem entrado. Viram-se obrigados a reconhecer que era uma construção excelente, muito bem concebida. Em todos os pontos havia dispositivos de segurança.
Quanto à rota: ao longo do percurso, uma série enorme de satélites retransmissores, naves e estações espaciais receberam ordem para supervisionar o vôo experimental no âmbito do Ano Galático. Os homens que aguardavam por lá não sabiam exatamente do que se tratava. Mas foram informados de que uma nova nave iria realizar o vôo experimental. Estavam prontos para intervir assim que fosse necessário.
Quanto aos instrumentos: todos os tripulantes notaram o quanto se assemelhavam as naves da classe Orion e as da nova série. O modelo recente não era estranho. Portanto, não houve problema psicológico ligado à adaptação. A tripulação sentir-se-ia bem no interior da nave, e isso evidentemente só poderia contribuir bastante para o êxito da missão. Num trabalho imenso o gigantesco computador digital fora programado e sua memória abasteceu-se de dados. Também neste ponto, Mario não enfrentaria maiores problemas, a não ser o de, conforme receava, não poder utilizar integralmente a capacidade do engenho.
— E a energia? — perguntou Hasso Sigbjörnson quando já se haviam passado quase duas horas.
— A geração de energia é realizada pela maneira convencional. Se quiserem, poderão suplementar as células energéticas, muito embora as quantidades tenham sido recalculadas tantas vezes que achamos pouco provável que isso se torne necessário. Afinal, os senhores tomaram conhecimento da situação dos vários postos de abastecimento por ocasião do caso de Sahagoon, se é que não foi antes.
— É exatamente isso que queremos evitar — disse Cliff. — Qual é o volume das reservas de energia?
— Correspondem ao triplo das reservas da Orion VIII — disse Kandron.
— Está bem — concluiu Cliff. — No momento não tenho outras perguntas. Podemos vistoriar a nave? Algum de vocês tem mais alguma pergunta? — Cliff dirigira estas palavras aos seus amigos.
— Não — disse Helga. — Tudo entendido. Talvez tenha de formular mais alguma pergunta quando estivermos a bordo. Por agora sei tudo quanto é preciso.
— Hasso.
— Tenho mais uma pergunta. Como agiremos em relação ao controle?
O técnico Kandron voltou a ligar a tela, na qual surgiu uma planta de ligações.
— Dê uma olhada na linha beta/22-A:6.
— Compreendo — falou Hasso. — Tem alguma fotografia disso?
— Naturalmente — disse Kandron, projetando o instrumento sobre a maior das telas.
A máquina seria ligada dez segundos antes da decolagem e registraria cada metro do vôo experimental, acompanharia os impulsos e as manobras e interpretaria os dados. A tripulação não precisaria dizer tudo que visse ou descobrisse a fim de gravar as palavras na fita ou no livro de bordo. O aparelho tornaria dispensável esse trabalho. As gigantescas fitas cobririam todo o tempo, desde a decolagem até o momento previsto para a aterrissagem, sem necessidade de trocas. Nelas, estaria registrado tudo que os técnicos e os dirigentes do projeto precisavam saber. Inclusive toda pane, toda falha...
— Onde está localizada a memória? — perguntou Mario.
— Na sala do computador digital, que é uma das células mais protegidas existentes no interior do compartimento de segurança — respondeu Kandron. — Será que podemos retirar-nos?
— Um veículo especial levou-os ao hangar. Diante deles, o portão pesado da comporta de segurança rolou para o lado. Dois agentes do SSG, pesadamente armados, estavam junto aos guichês, e só permitiram a passagem depois que todos se haviam identificado. Pretendia-se eliminar todo e qualquer risco. A Aztran Beta estava diante deles, brilhando, iluminada por inúmeras lâmpadas. Seu formato era arredondado e dava a impressão de atingir grande velocidade. Ao lado da comporta aberta, havia outro agente do SSG. Acompanhada dos dois engenheiros e do dirigente do projeto, a tripulação subiu a bordo.
A nave era esplêndida. Parecia ser tremendamente rápida, como se fosse um perigoso animal metálico cercado de mistério, que estivesse pronto para saltar. Dali a uma hora, os cinco tripulantes da Orion já se haviam familiarizado com o equipamento. Pela meia-noite voltaram às suas residências. Tiveram tempo para dormir cinco horas.
BASE 104, hangar II... Ao amanhecer, antes do início das decolagens e aterrissagens em massa. A disposição das sete pessoas correspondia à importância da operação Aztran. A hora havia sido escolhida para que tudo pudesse ser feito com a necessária calma. O dirigente do projeto e Cliff examinaram a lista de conferência. Cliff alisou sua jaqueta nova. A tripulação também recebera novos uniformes. Isso não causava efeito simplesmente ótico, mas assumia grande importância.
— De Monti chegará dentro de alguns minutos — disse em tom de escusa. — Existe a possibilidade de dano total?
— Não — disse Kandron em voz baixa. — Mas não assumiremos qualquer risco. Nas cinco jaquetas, estão as peças do minúsculo emissor de hiperespaço. Sua transmissão só dura três segundos, mas o sinal emitido é tão representativo que qualquer nave ou satélite poderá verificar sua posição. Temos certeza de que regressarão sãos e salvos. Mas tomamos todas providências para eliminar qualquer risco de que possa estar cercado o vôo experimental. Será que conseguirão arranjar-se com a nave?
— Naturalmente. Vamos assumir. Naquele momento, De Monti surgiu.
— Mario —- disse Cliff, que já se encontrava na poltrona — decolaremos dentro de quinze minutos. Inicie o programa do teste. Kandron, faça o favor de retirar-se da nave. Estamos preparados para a decolagem.
Cliff e o dirigente do projeto apertaram-se as mãos. Kandron chamou os engenheiros, e os três homens saíram da nave.
— Todas as comportas estão fechadas e travadas — disse Mario.
Uma atitude de vigilância tensa enchia a nave.
— Comandante da Aztran para sala de máquinas — disse Cliff, enfatizando as palavras. — Decolar. Aumentar desempenho antigravitacional, passar para pilotagem manual, inflar almofada magnética.
— Sala de máquinas para comandante. Ordem executada.
Mclane comprimiu um botão. Um alto-falante estalou e a voz do coronel foi ouvida no hangar.
— Aqui fala o comandante da Aztran. Peço evacuar o hangar e liberar a decolagem.
A Aztran flutuava sobre as almofadas antigravitacionais, tomando a direção da comporta. Os portões de sessenta metros de largura abriram-se e a nave seguiu na direção dos holofotes que se cruzavam nas paredes do gigantesco cilindro de aço. A Base 104 estava vazia.
— Meus amigos — disse Cliff, depois de ter desligado o alto-falante externo. Utilizava o sistema de intercomunicação de bordo. — Está começando a singular viagem da tripulação da Orion em nova nave. Tomara que no momento do pouso nossa disposição esteja tão alegre como agora.
Hasso sorriu de cima da tela para dentro da sala de comando.
— Sempre que nosso comandante diz palavras proféticas precipitamo-nos para a desgraça. Seria melhor que ficasse calado, McLane.
— Talvez você tenha razão — disse Cliff.
O sistema de supervisão de decolagem ligou-se automaticamente.
— Aztran. Controle de catapultagem para a nave-teste: a decolagem foi liberada.
Cliff contemplou o microfone cromado que se encontrava diante de seu queixo e disse:
— Obrigado, base.
A voz saída do alto-falante falava num tom frio e impessoal:
— Após a decolagem a Base 104 passará a transmitir para EA IV.
Alguns segundos, passaram-se.
— Tudo pronto para a decolagem. Aceleração de primeiro grau. Ligar máquinas garrards e mantê-las em ponto morto — ordenou Cliff.
Mais uma vez, teve início o velho jogo. Num vôo retilíneo, o disco seguia em direção à estrela que constituía o objetivo. Tratava-se de uma estrela da constelação de Leão, denominada Epsilon Leonis. Cliff passou a pilotagem para os dois instrumentos acoplados, ou seja, o piloto automático e o computador digital que exercia o controle de vôo. Depois desatou os cintos brancos e largos, e levantou-se.
Falou a meia voz:
— Permaneceremos no setor de segurança. As escotilhas que dão para a parte externa da nave permanecerão fechadas. Já temos atrás de nós seis horas de viagem.
Dentro de quatro horas acontecerá o contato pelo rádio. Neste meio tempo, deverá realizar-se a entrada no misterioso hiperespaço. Vamos aguardar os acontecimentos com toda tranqüilidade. Nossa Helga pode trazer alguns litros de café.
— Com prazer, comandante — disse Helga.
Naturalmente a cozinha de bordo também ficava no setor de segurança. Hasso, Mario, Atan e Cliff ficaram na sala de comando, e examinavam as telas e os indicadores. Não conseguiram livrar-se de certo nervosismo, mesmo sabendo tratar-se de um vôo experimental.
— Não conto com nada e conto com tudo, Atan — murmurou Cliff em tom sério. — É justamente o fato de que a relação entre o espaço normal e o hiperespaço será mantida que me deixa preocupado. Ficaremos pendurados, por assim dizer, entre os dois espaços, entre as dimensões. É claro que não posso dizer nada sobre a capacidade de resistência das máquinas.
— O que me deixa mais tranqüilo, dentro da expectativa de um possível naufrágio espacial, é o fato de que poderemos regressar com a força dos propulsores comuns do tipo da Orion. Se as máquinas garrards falharem, este quadro de comando permite o controle dos propulsores — disse Hasso.
Ainda não estavam vendo o perigo que viria de um setor totalmente diverso da área em que se moviam suas reflexões. Dali a quatro horas, houve o contato pelo rádio. Helga virou-se e disse em voz alta:
— Ao que parece, ainda não estamos perdidos. Uma nave estacionada junto à rota está a nossa espera. Comandante, querem falar como senhor.
— Transfira a ligação, Helga.
Na tela da nave experimental, surgiu o rosto de um comandante. Cliff levantou a mão a título de cumprimento e disse:
— Nave Aztran em teste para nave de vigilância. Decorridas exatamente seis horas da decolagem, não houve nenhum acontecimento extraordinário. As estrelas estão nas telas, todas as máquinas funcionam perfeitamente e a disposição de ânimo da tripulação não poderia ser melhor. Tem alguma ordem para nós, comandante?
O comandante da outra nave cumprimentou e respondeu:
— Tenho. Dentro de cento e oitenta minutos o senhor deverá responder a outro chamado. Desejo-lhe que prossiga em vôo tranqüilo, McLane.
A nave continuou na sua viagem vertiginosa. A velocidade aumentava cada vez mais.
Ultrapassou a velocidade da luz e os garrards mantiveram-na suspensa entre o espaço normal e o hiperespaço.
A velocidade aumentou. A estrutura especial das telas e dos sistemas de observação pseudo-ótica sofreu uma grande alteração. Cliff apoiou-se pesadamente sobre a quina da grande tela central e fitou o quadro. As lentes apontavam na direção em que a nave se deslocava pelo espaço normal. O centro teórico da tela devia corresponder à Epsilon Leonis.
— É uma loucura! — cochichou Cliff.
O astronavegador ficou parado a seu lado.
— Para ver uma imagem normal do espaço cósmico — disse, estremecendo ligeiramente — você terá que olhar para minhas telas de avanço. Nelas tudo é negrume. Apenas os ecos dos corpos que ficam na nossa trajetória projetam reflexos brancos.
Cliff sacudiu a cabeça.
— É estranho — disse. — Há alguns minutos tenho uma sensação má. É como se eu já não fosse eu mesmo.
Há decênios serviam-se do hiperespaço e não se abalavam. Mas esse estado, que ficava entre o real e o irreal, desgastava seus nervos.
— Aqui está o velocímetro — disse Atan. — Qual é nossa velocidade?
Cliff leu as cifras.
— Se tudo estiver funcionando direito, estamos desenvolvendo cem vezes a velocidade da luz. Isso significa que para percorrer um ano gastamos pouco mais que três dias e meio. É nossa velocidade atual, que aumenta constantemente.
— Está nervoso, Cliff? — perguntou Hasso. Os dois homens fitaram-se.
— Estou — respondeu Cliff. — Acontece que desde o dia em que pela primeira vez coloquei os pés a bordo da Orion I, nunca fiquei nervoso sem haver um bom motivo para isso. Não quero projetar o demônio espacial na parede, mas acredito que, dentro de pouco tempo, acontecerá alguma coisa da qual não vamos gostar.
A tensão nervosa a bordo aumentava cada vez mais. Não sabiam o que estava para acontecer, mas todos tinham a impressão de que algo se anunciava. Sessenta minutos passaram-se... A nave acelerava ininterruptamente. Os impulsos foram registrados, todo comando foi gravado no livro de bordo. A única coisa que permaneceu inalterada foi a estrela que aparecia no centro da tela. As cinco pessoas a bordo da nave em teste já sabiam de uma coisa: a construção da mesma ainda não havia "amadurecido". Outros sessenta minutos...
— Qual é a velocidade? — perguntou Hasso.
Imóvel à sua poltrona, Cliff fitava as telas e os instrumentos.
— Mil vezes a velocidade da luz.
— É a impressão que a gente tem — Respondeu Hasso.
Ficaram calados nos próximos cinqüenta e nove minutos. Depois, Cliff virou a cabeça e olhou para Helga.
— Livro de bordo. Comandante à operadora de rádio. O segundo chamado de controle.
Imediatamente Helga fez a ligação.
— Todos os canais abertos, comandante.
Cliff pegou o microfone e disse com a voz bem clara.
— Nave-teste Aztran chamando nave de vigilância número II. Segundo chamado para controle.
— Aqui nave-controle. Ainda não os esperávamos. Algo de extraordinário?
— Nada que deva causar preocupações — respondeu Cliff. — Gostaria de ter certeza. Segundo nossos instrumentos, encontramo-nos exatamente no quinto setor de deslocamento, cubo espacial 104. Isso confere com sua posição?
Dos alto-falantes saiu um assobio que passou por toda a escala sonora e morreu num zumbido grave.
— Aztran para nave-controle — disse Cliff em tom enérgico. — Ao que parece seu rádio deixou de funcionar.
Silêncio...
— O que houve, Helga? — perguntou Cliff.
A operadora de rádio deu de ombros.
— Não faço a menor idéia. A faixa de ondas continua aberta; devíamos ter uma recepção perfeita. Não sei dizer.
A Aztran percorria o espaço numa velocidade mil vezes superior à da luz. Passou pela nave que a aguardava, passou pelos planetas, pelos sóis, pelas luas, dirigindo-se a algum lugar. O rádio entrara em pane. Depois de uns trinta segundos, a operadora de rádio disse:
— Cliff!
Havia um tom de alarma em sua voz. Cliff virou-se abruptamente e fitou-a sem dizer uma palavra.
— Estamos isolados. Não conseguimos emitir qualquer mensagem, nem estamos em condições de recebê-la. Nem mesmo pelo hiper-rádio. Em torno da nave há uma zona de absorção que não deixa passar nada.
— Compreendo — disse Cliff, falando devagar. — É a interferência que esperávamos.
A nave prosseguia na sua corrida vertiginosa em direção à estrela-objetivo, cujas cores cambiavam constantemente no centro da tela ótica. Cliff sentiu que a situação começava a escapar ao seu controle.
— Livro de bordo. Comandante constatou que, treze horas após a decolagem, as comunicações pelo rádio foram interrompidas. A nave não está em condições de transmitir ou receber qualquer mensagem.
A falha dos aparelhos de rádio já havia sido anotada pelo registro de vôo. A velocidade da nave continuava a aumentar. As imagens da tela tornavam-se cada vez mais coloridas, confusas e difíceis de interpretar. E a estrela-objetivo crescia em proporção diminuta.
— Desde que as comunicações pelo rádio foram interrompidas você ficou bastante nervoso, Cliff — disse Hasso. Estava sentado na poltrona de espaldar alto e não tirava os olhos dos instrumentos. Sabia perfeitamente que a maior responsabilidade cabia a ele.
— É claro que num vôo experimental temos de contar com a possibilidade de que alguma coisa falhe ou de que surjam fenômenos desconhecidos. O que me deixa intrigado é que seja justamente o mecanismo simples da comunicação pelo rádio.
Cliff deixou-se cair na segunda poltrona.
— Como estão as máquinas? — perguntou.
— Estão bem — disse Hasso. — Já tive tempo para decorar os planos de ligações dos garrards. Se o sistema foi bem elaborado, Terra disporá de um meio de propulsão inteiramente novo e bastante aperfeiçoado.
Enquanto Hasso estava falando, uma coisa estranha aconteceu. Uma fila vertical de luzes de controle vermelhas acendeu-se, enquanto o tom cantante se transformava num chiado estridente. Cliff levantou-se, mas voltou a ser arremessado violentamente para a poltrona, pois a nave foi sacudida por um forte solavanco. Até parecia que um enorme meteoro acabara de bater contra os campos defensivos. Outro solavanco, e o chiado transformou-se num zumbido grave. Hasso Sigbjörnson agiu imediatamente. Moveu uma série de chaves, modificou a posição de uma alavanca vermelha e empurrou quatro reguladores para a posição zero.
— Segurem-se! — gritou.
Cliff agarrou-se nos encostos forrados da poltrona. Bateu contra o encosto e viu vagamente que Hasso estava desligando a outra máquina. Houve um último solavanco, seguido de uma série de abalos leves, como se a Aztran tivesse pousado na superfície da água e fosse atirada para o ar pelas ondas.
— Receio — fungou Cliff, erguendo-se lentamente — que você terá uma oportunidade de provar se realmente sabe de cor os esquemas de ligação que lhe ensinaram. Caso precise de mim, estarei lá em cima.
Segurou-se nas paredes e nos quadros de comando, deslocou-se até a escotilha e conseguiu subir à sala de comando. Tinha a impressão de que um projétil disparado por algum canhão misterioso havia atingido a nave em cheio.
— Cliff! Estamos no espaço normal! — gritou Atan Shubashi. Cliff correu para a frente, aproximou-se do seu quadro de comando e contemplou a tela. Notou que as lentes comuns voltaram a funcionar. A tela central mostrava as estrelas do contínuo espacial comum. Estava imóvel. Apenas um eco havia por perto. Era um sol distante.
— O que aconteceu? — perguntou Mario, agachado no chão, ao lado da poltrona. De Monti procurava levantar-se com o rosto contorcido de dor. Ao que parecia, recebera o primeiro impacto sem ter tempo de proteger-se. Apalpou a cabeça e resmungou uma praga.
— Ao que tudo indica uma das duas máquinas foi destruída — comentou Cliff.
— Qual foi a causa dos abalos?
Helga Legrelle não havia sido afetada pelos solavancos; estava protegida pelos cintos largos.
— Agora já me sinto mais tranqüilo — disse Cliff com um sorriso. — O desastre que aguardava aconteceu. Evidentemente estamos no espaço normal, e os próximos minutos hão de revelar o que devemos fazer. Aqui em cima alguma coisa entrou em pane?
— Não. Acho que o rádio está funcionando de novo. Quer que emita um pedido de socorro?
— Não — respondeu Cliff.
— Por quê? Pois estamos numa situação de emergência espacial — disse Helga em tom perplexo.
— Estamos realizando um vôo experimental — disse o comandante. — É muito importante que resolvamos nossos problemas sem auxílio externo.
Olhou para o velocímetro.
— Pouco menos que a velocidade da luz — disse estupefato. — E olhe que as máquinas foram desligadas.
Deslocando-se pelo espaço normal, a Aztran corria em direção ao objetivo, que voltara a ser uma estrela entre muitas.
— Atan, o que dizem suas telas? — perguntou Cliff.
— Dizem — respondeu o astronavegador — que estão em excelentes condições de funcionamento, e que, segundo um cálculo ligeiro, neste momento estamos no setor de distância número oito.
— É o setor número seis — disse Cliff, retificando a indicação.
Atan respondeu em voz alta:
— Se eu disse que estamos no oitavo setor, não me refiro ao sexto. Afinal, conheço os mapas.
Mario de Monti interveio.
— O cálculo de rota que realizei enquanto vocês estavam falando deu o mesmo resultado. Encontramo-nos no limite entre o oitavo setor de distância e o nono.
Cliff cocou a cabeça; parecia perplexo.
— Pane no rádio, pane numa das máquinas, um erro de cálculo...
Hasso interrompeu-o. Sua voz forte saiu do alto-falante do sistema de intercomunicação de bordo:
— ...e além de tudo temos os blocos energéticos esgotados, Cliff.
McLane fitou os olhos do engenheiro da nave.
— Não acredito que você tenha cometido um engano, Hasso — murmurou. — Todavia, peço-lhe o favor de fazer mais uma verificação.
Hasso fez um gesto fatalista.
— A verificação já foi feita. Não podemos dizer que nossa situação seja desesperadora, mas dois dos geradores de energia estão esgotados. Teremos que trocá-los. Não vejo outra chance.
Cliff sentiu saudades de um bom gole de Archer's Tears.
— Que diabo! — disse em voz alta.
— É isso mesmo — interveio Mario. — Permitam lhes dizer que estamos participando disto por nossa livre e espontânea vontade. E agora teremos oportunidade de dar provas de nossa habilidade.
Atan respondeu no lugar do comandante:
— Atenção! Eco! Ligarei a tela central.
— Duas naves!
— Correto — disse Atan. — Mario, vá ao computador.
Mario deu um salto e ativou o dispositivo de alimentação.
— O que houve, Shubashi? — perguntou.
— Fornecerei os números. Faça o favor de calcular a rota dos dois ecos energéticos em relação à nossa posição. No momento, prosseguimos pelo eixo...
Atan murmurou os algarismos com a velocidade de uma minicalculadora, enquanto o chefe de cibernética tocava as teclas de alimentação. Quando o computador iniciou o processo de cálculo, suas luzes começaram a brincar. Dali a alguns segundos:
— Os dois pontos só podem ser naves espaciais — disse Mario de Monti com a segurança do perito. — Decolaram de algum planeta ou acabam de deixar a órbita do mesmo. É o que se deduz dos números.
Cliff examinou os sinais projetados na grande tela.
— Estão acelerando, Mario?
— Estão — respondeu o imediato. — E se prosseguirem na mesma rota passarão a meia unidade astronômica da nossa posição. Ou, para sermos mais precisos, da posição que a nave Aztran Beta ocupará. A distância mínima será alcançada exatamente dentro de noventa segundos.
Coube a Atan enunciar em voz alta a surpresa maior daquele momento:
— Setor de vigilância espacial ao comandante — disse, enfatizando as palavras. — Os dois ecos energéticos provêm de naves não terranas. As emissões são desconhecidas.
— Desconhecidas? — disse Cliff em voz baixa, fitando os dois veículos espaciais que cresciam a olhos vistos.
— São totalmente desconhecidas. Jamais vi os modelos que acabo de medir. São naves vindas de fora da esfera espacial. Em outras palavras, são extraterranos.
— Helga! — o livro de bordo estava funcionando e a exclamação enérgica do comandante foi armazenada na fita. — Faça o favor de ligar os aparelhos de registro ótico. Atan, procure obter uma ampliação bem nítida das duas naves. Mario, ocupe o projetor Overkill.
— Não adianta, comandante — ponderou o engenheiro de bordo.
Cliff levantou os olhos e sacudiu a cabeça; não compreendia.
— Por quê, Hasso? — perguntou.
— Porque não temos energia para um tiro do Overkill. Só podemos fazer votos de que os desconhecidos não nos descubram e, se nos descobrirem, que nos deixem em paz.
— Ainda bem que pelo menos nos resta uma esperança — disse Cliff.
Atan Shubashi orientou as lentes e concentrou-se silenciosamente no trabalho com as telas. Seguiu as duas naves desconhecidas, captou-as e realizou uma forte ampliação.
— Obrigado.
As naves eram estranhas, desconhecidas e muito velozes.
Não viam a Aztran, ou então achavam preferível não lhe dispensar a menor atenção. As naves desconhecidas seguiam em sentido oblíquo, uma atrás da outra. Seus aspectos eram iguais. Tinham o formato de cilindros finos com três aletas elegantemente colocadas bem no centro. Uma cauda finíssima de partículas seguia-as como se as naves fossem dois cometas. Aproximaram-se da Aztran, foram crescendo e acabaram desaparecendo em meio às estrelas.
— Seguem a rota de Terra, não é? — perguntou Cliff.
— Isso mesmo. Não há dúvida de que seu destino é Terra.
Um silêncio deprimente enchia a sala de comando e caía sobre os nervos da tripulação. Ainda não sabiam o que pensar daquilo. Aquelas naves desconhecidas que corriam vertiginosamente em direção a Terra constituíam outro fator de perigo.
— Hasso — disse Cliff sem mudar de posição. — Faça o favor de vir até aqui. Vamos realizar uma conferência.
O rosto de Hasso, projetado na tela do videofone, exibiu um sorriso confiante. Desligou o aparelho e logo subiu no elevador.
— Bem, já vimos e sentimos alguma coisa. Vamos começar pelo mais importante: o que devemos fazer para colocar nossa nave em condições de navegabilidade? — interrogou Cliff e prosseguiu: — Até parece que é coincidência. No lugar de onde vêm as duas naves avistadas existe uma base. O planeta é totalmente desabitado, tem uma atmosfera e abriga um depósito que, neste meio tempo, talvez tenha sido saqueado pelos desconhecidos.
— Acho que isso é impossível — objetou Mario. — Se procurássemos localizar esse depósito sem conhecer sua posição, não o encontraríamos, ou pelo menos teríamos a maior dificuldade em encontrá-lo, por mais espertos que fôssemos.
— É verdade — disse Cliff. — O que vamos fazer?
— A única possibilidade é reparar as avarias — argumentou o engenheiro. — Mas acho preferível que, antes de qualquer outra coisa, pousemos e coloquemos os cubos energéticos a bordo. Se continuarmos a vagar pelo espaço, nossa situação poderá tornar-se bastante crítica.
Cliff confirmou com um gesto.
— Admitamos que cheguemos a essa base, encontremos o depósito e iniciemos os reparos. Quanto tempo durarão os mesmos?
Depois de um ligeiro cálculo, Sigbjörnson respondeu:
— Quatro dias se ninguém me ajudar. Se Mario também trabalhar, será um dia menos. Isto é, caso não falte energia.
— Uma pane no rádio, uma divergência entre a determinação da posição realizada através dos mapas e aquela resultante das medições efetuadas no espaço normal, uma falha nos garrards e duas naves localizadas junto a um planeta-depósito terrano... Não acham que é muita coisa de uma só vez?
Contemplou os rostos céticos da tripulação.
— Você tem razão, mas devemos procurar tirar o melhor de tudo isso — respondeu Helga. — Afinal, estamos num vôo experimental; não nos encontramos no Cassino Starlight.
Cliff não tinha por que refletir ainda mais. Só havia uma possibilidade lógica. Deviam reparar a nave, decolar de novo e prosseguir em velocidade mais reduzida na execução de sua tarefa.
— Colocaremos a nave nas proximidades do depósito. Os trabalhos serão iniciados imediatamente. As máquinas ainda conseguirão levar-nos até lá, Hasso?
— Naturalmente — respondeu o engenheiro.
Cliff girou a poltrona, atou os cintos e voltou a pilotar. Dali a três minutos, a Aztran aproximou-se do planeta, entrou em órbita e procurou descobrir a localização do depósito. Os dados constavam do manual. E a solução do mistério ficava a poucos quilômetros de distância...
TJADER II! O planeta era o segundo mundo que gravitava em torno desse sol. Não tinha lua; em sua superfície viviam muitas plantas e animais. Estava envolto por uma atmosfera que, embora não correspondesse aos padrões terranos, era respirável.O depósito ficava numa área eternamente coberta de areia, entre uma montanha bem assinalada e a periferia das matas virgens. Os homens não demoraram e verificar a posição e pousar. A Aztran desceu verticalmente pela atmosfera e parou acima da superfície arenosa. Um disco prateado pairava acima das areias douradas. Ouviu-se um estalido. Os componentes do elevador central abriram-se lentamente e o fundo da comporta tocou a areia.
— Chegamos, comandante! — disse Hasso.
Os dois homens usavam máscaras bem justas. Caminharam em direção à cúpula que se erguia abruptamente em meio às areias. Sua altura não ultrapassava um metro; a superfície polida evitava que os grãos de areia se prendessem à mesma. A cúpula ficava a trinta metros do envoltório externo da Aztran.
— Isto aqui parece abandonado — disse Cliff. Girou a máscara ligeiramente para trás e aspirou o ar do planeta; era mais rarefeito que o de Terra.
Aproximaram-se. O comandante caminhou em torno da cúpula. Descobriu a reentrância e encostou a chave de impulso. A fechadura emitiu um estalido e um leve zumbido soou embaixo da superfície. A areia começou a escorrer. A cúpula achatada que se encontrava entre Hasso e Cliff subiu na vertical. Cliff fez um gesto.
Outra porta-alçapão abriu-se e uma escada surgiu diante dos dois homens. Desceram os degraus. Um interruptor de luz fez um clique. A segunda escotilha da comporta também abriu-se, para dentro, deixando livre a entrada do recinto quadrangular. Luzes acenderam-se, iluminando as pilhas bem arrumadas de materiais que se distribuíam de acordo com as linhas demarcadas no solo. Hasso foi para a direita e examinou a lista. Leu os registros feitos pelos tripulantes de outras naves. Os depósitos eram acessíveis a qualquer nave terrana. Neles se encontravam quase todos os equipamentos, inclusive os grandes cubos com as células energéticas. As células haviam sido carregadas, pois uma grande pilha que continha ao menos quinze peças estava encostada à parede dos fundos. Com a voz fraca e assustada, Hasso chamou:
— Cliff! Venha cá.
O comandante, que se encontrava no centro do recinto, entre duas pilhas de caixas, ouviu o tom de pânico com que foram proferidas as três palavras.
— Já vou — disse e saiu correndo. Colocou-se ao lado de Hasso e fitou o ponto da lista assinalado pelo longo indicador do engenheiro.
— Deve ter havido um engano — sacudiu a cabeça.
Encontrou o olhar perscrutador do velho amigo.
— Um engano seria possível. Mas quatro enganos não. E esse tipo de lapso nunca seria cometido pela nave de abastecimento.
Cliff voltou a ler. Na lista estavam registradas quatro datas. Para andar bem seguro, Cliff voltou a examinar o indicador de data de seu valioso relógio. Ficou estarrecido. Entre as quatro datas havia um intervalo médio de cinco dias. Quatro naves haviam pousado no planeta. A primeira pousara amanhã; a segunda, cinco dias; a terceira, dez dias e a quarta vinte dias depois da nave de abastecimentos. Dali se concluía...
— Hoje é o dia dois — disse a voz rouca de Cliff sob a máscara.
— Correto — respondeu Hasso. — Segundo nosso sistema de referência. Segundo o sistema da nave Aztran Beta.
— Acontece que a última nave que passou por aqui pousou no dia vinte e dois e levou dois tubos para o hipertransmissor. Foi a Nash.
Aos poucos, Cliff começou a compreender o que havia acontecido.
— É um efeito com que não contávamos, não é? — perguntou Hasso com um sorriso.
— E você ainda é capaz de sorrir? — perguntou Cliff em tom indignado.
— Por que não? O que aconteceu foi apenas falha de uma das máquinas garrards que nos arremessou exatamente vinte dias para o futuro.
Vinte dias para o futuro...
— Sim, mas... isso significa que já faz vinte dias que saímos de Terra, embora na verdade só tenhamos feito um percurso de quinze horas.
Hasso pegou o instrumento magnético de escrita e, ao lado da data indicada em seu relógio, registrou a retirada de dez cubos energéticos, requisitados por McLane para serem usados na nave-teste Aztran. Cliff comprimiu sua plaqueta de identificação ao lado dos algarismos e dos números.
— E daí?
Cliff sacudiu a cabeça e disse a Sigbjörnson:
— Não perco as estribeiras com facilidade, mas não posso deixar de admirá-lo. Fomos arremessados para fora da estrutura temporal, e seu único comentário consiste num simples "e daí?" Isso é contra a natureza.
Hasso recostou-se contra a parede e respondeu em tom tranqüilo:
— Se pensar com calma, você me entenderá melhor. Afinal, assumimos o risco, e o caso não é tão trágico. Provavelmente retornaremos ao ponto exato no tempo, se frearmos ou realizarmos outra manobra. O engraçado é que só nós sabemos que nos encontramos no futuro. Não sei por que a situação deve deixar-nos nervosos.
Cliff baixou a cabeça e depois de uma pausa disse:
— Você tem razão. Tenho que acostumar-me à idéia.
Dali a uma hora, os grandes cubos haviam sido colocados na nave. Como nos compartimentos da mesma houvesse bastante espaço, não havia necessidade de carregar as células vazias para o depósito. As escotilhas das comportas voltaram a fechar-se. Cliff parou junto à cúpula e certificou-se de que esta realmente estava fechada. Depois voltou, pegou o elevador e subiu à nave. Ainda não conseguira acalmar-se. Vinte dias! E isso quando em Terra e no interior da nave só haviam passado cerca de quinze horas.
— Mario e eu repararemos o motor garrard — anunciou Hasso. — Gostaríamos de ser perturbados o menos possível. Solicitamos um abastecimento abundante de alimentos e música, esta fornecida pelo sistema de intercomunicação e, principalmente, sossego.
Cliff exibiu um sorriso vago, fez um gesto e prometeu:
— Concedido.
A nave mantinha-se imóvel sobre a superfície arenosa; as almofadas antigravitacionais a sustentavam. Há pouquíssimo tempo o sol nascera nesta parte do planeta. Cliff consultou o manual e verificou que o astro executava sua rotação no espaço de trinta horas.
— Vou tomar um banho — disse, dirigindo-se a Atan. — Depois poderei ser encontrado no meu camarote. Perturbe-me a qualquer hora, mas só se houver algo de importante. Entendido?
Atan levou os olhos às telas e disse:
— Perfeitamente, comandante. Estava rastreando as áreas adjacentes à nave. As imagens captadas pela luz infravermelha apenas retratavam as superfícies escuras. Correspondiam ao céu azul e à água de um lago. O céu e a água absorviam parte considerável das radiações. As folhagens das árvores provocavam um reflexo quase branco nas telas. Atan fez girar as lentes e deu busca pela periferia da mata. Viu um quadro semelhante ao de uma paisagem mergulhada no luar.
— Helga — disse Atan. — Poderia sentar ao meu lado? Sinto-me tão só!
Da parte inferior da nave vinham os ruídos causados pelas pesadas chaves. Hasso e Mario desmontavam as peças defeituosas da máquina.
— Com muito prazer. Afinal, o que está procurando?
Atan passou a mão pelo rosto e enrugou a testa.
— Aos poucos, estou ficando desconfiado que nem o chefe. Sei que os desconhecidos vieram daqui, e não me conformo com a idéia de ser surpreendido por eles no interior de uma nave indefesa. Estou procurando. Talvez descubra alguma pista deles, antes que seja tarde.
Helga limitou-se a acenar com a cabeça. A paisagem, transformada em quatro quadros diferentes sob a ação de quatro detetores, ia passando nas telas. Era a mata, a areia, clareiras, rochas e água, novamente a mata, uma montanha com um platô, nuvens, o sol e a floresta... um desfile monótono.
— Espere aí!
Helga sobressaltou-se.
— O que houve, Atan? Que susto! Sem dizer uma palavra Atan apontou para as quatro telas, sempre para o mesmo lugar. Suspendera o movimento de seu aparelho de busca. Helga olhou para o lugar indicado e viu os reflexos produzidos pelos raios do sol sobre o metal.
— Reflexos do sol — disse.
Atan recostou-se, levantou o volume pesado do manual e abriu a página assinalada.
— Olhe. Tjader II. Em todo este planeta desolado não existe nada que seja de origem terrana, além do depósito que se encontra junto à nave. Nada. Repito: absolutamente nada.
— Já decorei — disse Helga com um sorriso. — Nada.
O olhar de Atan assumiu uma expressão diabólica.
— É isso. E é praticamente impossível que de repente surja um reflexo numa clareira da mata. O sol está batendo em metal. O metal não é de nossa nave. Portanto, só pode provir de outra. Além de nós, só aquelas duas naves desconhecidas estiveram neste cubo espacial. Logo, o metal provém desses desconhecidos.
— É uma dedução muito sagaz — disse Helga. — Mas nem por isso se provou que os desconhecidos pretendem bombardear-nos.
— Não. Acontece que um homem prudente tem vida mais longa, e pretendo usufruir minha aposentadoria por muito tempo. Mas vamos falar sério. Será que devemos acordar o chefe?
Helga refletiu um pouco e respondeu:
— Devemos. Dormiu uma hora, e tenho a impressão de que o caso é importante. Vamos acordá-lo.
Ofereceu-se a descer para arrancar o comandante dos braços de Morfeu. A reação de Cliff foi bastante ruidosa.
— Não gosto disso — disse — mas não posso deixar de fazê-lo.
— Fico na nave — respondeu Helga. — Acho que esse tipo de jogo fica melhor a dois homens.
Os dois homens, Cliff e Atan, equiparam-se convenientemente. A distância que os separava do objeto metálico era de doze quilômetros. Cada homem levava duas armas: a HM-4 e as pistolas de pressão de gás com as agulhas paralisantes, levadas a título de recordação.
— Você poderia providenciar nossa decolagem? — perguntou Cliff.
— Naturalmente.
Desceram. Hasso e Mario já sabiam do que se tratava. Haviam aumentado a velocidade de seu trabalho. Helga parou na pequena câmara da Lancet, que tinha instalações muito modernas, e abriu a comporta. Cliff e Atan Shubashi entraram na nave auxiliar, cujo formato era igual às Lancets da Orion, embora seu equipamento fosse bem melhor. O comandante ligou as máquinas da Lancet e ativou as telas óticas. Colocou a nave auxiliar em posição de decolagem, fechou as comportas e atou os cintos. Atan fez um sinal por uma das cúpulas, viu o rosto de Helga atrás do vidro de segurança e com os dedos fez o sinal de "preparado".
— Vamos decolar, Helga! — o coronel soltou o microfone.
Helga comprimiu o botão de decolagem. A Lancet foi arremessada pára o alto com a aceleração de quatro G. Subiu em direção ao céu azul e parou vinte metros acima da superfície prateada da nave. Cliff freou o movimento, acelerou e manteve uma altura constante de dez metros sobre a superfície. Pegou a alavanca de pilotagem manual e tangeu a nave esférica em direção à floresta distante.
— São doze quilômetros. O que pretende fazer se alguém atirar contra nós? — perguntou Atan em tom desconfiado.
Cliff sacudiu a cabeça.
— Não nos verão chegar. O vôo das duas naves parecia provar que se sentiam muito seguros. Não voaremos diretamente para esse objeto. Vou...
Atan apontou para a montanha que ficava atrás deles. A Lancet descreveu uma curva. Agora a distância não era de doze quilômetros, mas de quinze.
— Será que isso é a impetuosidade de McLane, ou é um caso de curiosidade científica, Cliff? — perguntou o astronavegador.
Cliff girou o regulador de velocidade e parecia refletir sobre a resposta.
— Ambas as coisas, Atan — respondeu.
Os homens que se encontravam no interior da nave auxiliar respiravam o ar de um sistema fechado. Os óculos de vidros amarelos haviam sido levantados e as máscaras desligadas. As baterias de oxigênio permitiam o funcionamento ininterrupto por doze horas. As máscaras balançavam nos pescoços dos dois homens, entre as duas metades do colarinho em cujo forro estavam presas as cápsulas com soros, medicamentos e alimentos concentrados.
— Como vamos agir? — perguntou Atan.
Um riso petulante surgiu no rosto de Cliff.
— Agiremos com cautela, Atan — disse. — Com muita cautela.
— Compreendo. Você pretende colher informações.
Cliff voltou a dirigir a nave auxiliar para o lugar em que Shubashi havia localizado o reflexo luminoso. A Lancet deslizava silenciosamente sobre a superfície arenosa e depois sobre uma faixa de pequenas plantas amarelecidas que tinham o aspecto de papel. A seguir, sobre uma área de arbustos não muito altos.
A dois quilômetros do lugar em que se encontravam, a mata erguia-se como uma muralha verde. Em algum lugar, numa clareira dessa mata, havia algo ou alguém desconhecido.
— Sim, vamos colher informações. Mas, em hipótese alguma, devemos ser descobertos.
Atan fez um gesto de quem compreendia. A situação era perfeitamente clara. Teriam que descobrir se as naves desconhecidas representavam uma ameaça para Terra. Desvendariam esse ponto sem deixar a menor dúvida. E ainda averiguariam todos os detalhes ligados ao mesmo. Enquanto não fossem concluídos os reparos, a nave estaria imobilizada. Por isso, Cliff e Atan não poderiam deixar o menor rastro, quanto mais revelar a existência de sua nave no planeta Tjader II.
— Quer dizer que devemos agir em silêncio e reduzidos à invisibilidade — disse o astronavegador.
— Isso mesmo. E devemos ter cuidado para que a qualquer momento o caminho da fuga fique aberto.
A Lancet deslocava-se junto à mata. Movia-se devagar em direção ao sol. Cliff ligou mais uma tela e examinou com a maior atenção a paisagem que se estendia à sua esquerda. Procurava um lugar em que pudesse esconder a nave auxiliar.
— Consultei o manual — disse Atan. — Aqui existem animais que podem tornar-se perigosos.
Levantou a borda da jaqueta e pôs a mão sobre a pistola de gás. Atan estava febril de tão nervoso que se sentia, mas Cliff sabia que o pequeno astronavegador conseguiria controlar-se muito bem quando isso se tornasse necessário. Além disso, Atan era muito resistente.
— Aqui — disse Cliff e freou a Lancet.
Encontravam-se sobre uma área redonda. Era formada pelo leito seco de um riacho, que se alargara num certo ponto. A ilha branca de pedregulho era cercada pelas árvores, e a selva havia erigido uma muralha em torno da minúscula clareira. Um animal grande afastou-se velozmente em três ou quatro grandes saltos. A sombra assustara-o.
Cliff levantou a Lancet até um ponto em que podia levá-la pelo espaço situado entre as copas de duas árvores e soltou as quatro colunas de sustentação. As placas de apoio tocaram suavemente no pedregulho e afundaram trinta centímetros. McLane desligou as máquinas.
— Deixarei encostada a escotilha interna da comporta — disse. — A escotilha poderá ser aberta manualmente. Dessa forma, decolaremos num instante.
— Muito bem. Não se esqueça das luvas.
A escada saiu silenciosa da comporta e emitiu um rangido ao tocar no pedregulho. Cliff e Atan lançaram um olhar para os instrumentos. Estava tudo desligado. Verificaram o equipamento e calçaram as luvas. Os óculos cobriam os olhos, e as máscaras o nariz e a boca. Cliff levantou o braço.
— O projeto Comanche está sendo iniciado — disse por baixo da máscara.
Saíram da nave auxiliar. Cliff indicou a direção. Tentaram penetrar na mata. Com cinco passos, colocaram-se na sombra das árvores. Pássaros enormes levantaram vôo. Atan já tinha a arma na mão. Descobriu a abertura na muralha verde e fez um sinal para Cliff, que procurou gravar os detalhes do terreno. Penetraram na mata. Depois de terem percorrido em ziguezague dez metros de uma trilha de animal, Cliff pensou:
"Wamsler não aludira sequer remotamente a uma ação desse tipo no curso de um vôo de experiência garantido de todos os lados", sorriu e tropeçou em raízes, galhos, pedras e tubérculos semi-ocultos na terra fofa, seguindo seu astronavegador.
A distância entre a Lancet e o ponto suspeito era superior a setecentos metros. Eram setecentos metros que teriam de ser percorridos num planeta primitivo, em meio a uma fauna e flora desconhecidas, nas proximidades de inteligências estranhas. O trecho poderia tornar-se muito prolongado; e muito perigoso.
Levaram noventa minutos para percorrê-lo. E, pouco antes de chegarem ao destino, quase são mortos pela flora de Tjader II. Observando cuidadosamente os arredores, Cliff seguia atrás de Atan, percorrendo uma trilha que chegava a ser estreita demais para permitir a passagem de um único homem. O comandante trazia a arma na mão e andava meio virado para trás, a fim de garantir a retaguarda. Embora os animais desse planeta dificilmente pudessem ter visto um ser humano, todos pareciam ter fugido. Cliff acabara de ter essa idéia, quando algo aconteceu. No último instante, viu a esfera. Desceu com uma violência extraordinária. Passou assobiando a alguns milímetros de seu rosto e produziu um grande estrondo ao atingir o solo. Cliff atirou-se para a frente e sua mão espalmada empurrou Atan. O astronavegador saltou de lado para dentro da confusão de galhos e só assim escapou à segunda esfera, que foi arremessada do alto com uma força extraordinária. Cliff comprimiu o corpo contra o tronco de uma árvore e olhou para cima. Outras esferas estavam penduradas nos galhos. Eram amarelas, do tamanho de uma cabeça humana e estavam cobertas de espinhos. Uma árvore tentara matá-los.
— O que foi isso? — murmurou Atan com a voz confusa.
Cliff apontou para cima e guardou a arma. Tirou o radiador de impulsos térmicos e destravou-o. A árvore era uma planta carnívora. Suas grossas raízes aéreas encimavam a trilha como se fossem cobras. Eram centenas de cipós de boa grossura, que se uniam num tronco a cinco metros do solo. Lembravam um feixe de mangueiras de incêndio retorcidas. Desse tronco saíam os galhos nos quais estavam penduradas as esferas, que eram os frutos dessa planta mortífera. Uma trepadeira em forma de espiral segurava-os. De uma hora para outra, a pressão dessa trepadeira diminuía, e as esferas eram disparadas em direção ao solo. Cliff ergueu lentamente a arma e apontou para cima. A árvore parecia manter-se à espreita.
Percebeu que Atan se refugiara sob um galho e que Cliff se encontrava fora do alcance das gigantescas "nozes". Uma das trepadeiras voltou a estender-se, fechou-se numa mola natural. Com um disparo, Cliff cortou a trepadeira. A árvore respondeu com outras esferas, que atingiram o tronco acima da cabeça de Cliff. Este também separou estas esferas das trepadeiras. Subitamente viu os animais.
Estavam agachados em cima das "nozes" mortíferas e também se mantinham à espreita. Seus gigantescos olhos amarelos contemplavam as criaturas desconhecidas que se encontravam lá embaixo. Garras compridas e fortes dentes caninos brilhavam aos raios de sol que, vez por outra, rompiam a folhagem. Cliff tirou a máscara e disse apressadamente:
— Cortarei as nozes. Enquanto isto você brindará esses nossos amigos com uma série de tiros.
Cliff apontou cuidadosamente e disparou em rajadas ligeiras. O raio fino zunia ao queimar as plantas e os projéteis redondos da árvore despregavam-se. Enquanto isso, a arma de Atan chiava baixinho, sempre e sempre. Uma das nozes caiu ao solo, e o corpo de um dos animais semelhantes a macacos foi junto, rebolando enquanto batia de galho em galho. Finalmente o corpo chocou-se contra uma das raízes aéreas da árvore assassina.
Miando e choramingando, três ou quatro animais seguiram o companheiro morto, e desapareceram em meio à vegetação, lançando-se sobre seu semelhante. Cliff levantou os óculos, olhou atentamente para cima e derrubou a última das "nozes". Qualquer dessas frutas poderia ter esmigalhado seu crânio.
Os animais verdes desapareceram como por encanto. Cliff apontou para a frente.
— Vamos!
Agora estavam correndo. Cliff olhava não apenas para trás, mas também para os lados e para cima. Atan continuava a seguir à frente. Dali a alguns minutos, o terreno começou a clarear. Cliff parou.
— Procuraremos avançar até a periferia da clareira. Iremos milímetro após milímetro.
Saíram da trilha, penetraram na mata à direita e deixaram que a vegetação se fechasse atrás deles. Deslocaram-se devagar e com o maior cuidado. Prestavam atenção para descobrir eventuais barreiras ou surpresas mortais vindas de cima. A claridade ia aumentando à sua frente. Quem quer que tivesse aberto a clareira, devia ser uma criatura que não sabia viver sem luz. Sem fazer o menor ruído, o astronavegador e o comandante atingiram a periferia da clareira. Arrastando-se pelo chão, onde eram molestados por insetos semelhantes a besouros, os dois homens saíram da mata e puseram-se sob o abrigo de uma grande planta cujas raízes tinham a forma de arco. Ficaram deitados lado a lado. Cautelosamente, Cliff afastou as folhas.
— É uma nave! — cochichou o astronavegador numa observação totalmente supérflua.
A terceira nave espacial estava estacionada bem no centro da clareira. Das pontas das quatro aletas, desciam raios luminosos esverdeados que apoiavam o corpo da nave. A clareira fora aberta com um aparelho semelhante a um laser, que trabalhara pouco acima do solo. Os troncos e os arbustos traziam as respectivas marcas. A cinza fina, que circundava a nave como se fosse uma área arenosa, fazia concluir que as árvores derrubadas haviam sido queimadas.
— Ao que parece, está tudo vazio — disse Cliff.
Deitou de costas e olhou para cima. Era apenas uma impressão, ou realmente ouvira vozes?
Alguns vultos moviam-se sobre discos circulares de aço. E as palavras que Cliff ouvira tornaram-se mais fortes e nítidas. O ouvido do homem acostumara-se aos ruídos do mato e sabia filtrá-los.
— Ali, os seres.
Cliff não acreditava no que seus olhos viam. As estranhas criaturas pareciam ser formadas por um penacho e quatro hastes.
Procurou ver melhor. Aos poucos, foi reconhecendo os detalhes.
— Vanden... — disse uma voz que falava vinte metros acima dos dois homens. Pertencia a um dos penachos cinza-claros. Era um corpo esférico, no qual não se via o menor sinal da cabeça ou dos órgãos dos sentidos.
Cliff fitou os olhos de Atan e viu neles a mesma expressão de surpresa.
— ...vamos usar a linguagem culta, para que, em caso de necessidade, possamos falar melhor a mesma? — continuou o ser estranho.
— É a primeira informação — cochichou Cliff ao ouvido de Atan. Este compreendeu, embora Cliff não tivesse tirado a máscara. Confirmou com um gesto.
— É uma desgraça! — disse Vanden.
— Uma enorme desgraça — respondeu Plas, o outro ser.
Apoiaram os braços e as pernas, que pareciam ser feitos de fio grosso de várias cores, contra as amuradas filigranáticas.
— Como estão os trabalhos de conserto, Plas?
— Ainda faltam quinze kanguro, Vanden.
Os membros inferiores eram uma mistura de pernas de ema superlongas misturadas com esferas que ocupavam o lugar das juntas. E a cor do "pé" direito era diferente da do esquerdo. Por pouco, Cliff não solta uma risadinha de deboche. Aqueles estranhos eram tão esquisitos e falavam numa hipótese mais séria. Estavam reparando sua nave, o que por sua vez quase chegava a ser uma piada.
— Já temos alguma notícia de Marzal? — perguntou Vanden em voz alta.
Ao que tudo indicava, os desconhecidos sentiam-se perfeitamente à vontade neste planeta. Sabiam que estavam sós e por isso não precisavam submeter-se a quaisquer restrições. A nave, que se encontrava à sua frente, devia estar avariada.
— Não. Para atingir o planeta a que aludiu o astronauta nossos amigos levarão vinte kanguro.
"É impossível", pensou Cliff, "que qualquer astronauta que tivesse prestado declarações, evidentemente sob o efeito de drogas, tivesse aludido a qualquer planeta que não fosse a Terra."
— Vinte kanguro... depois disso teremos novos corpos. Serão lindos corpos, não este... como dizem mesmo estes amigos que ainda não nos conhecem?
— Este lixo e esta sucata — completou Plas.
— Não será este tipo de lixo. Serão corpos com cabeça, pescoço, dedos e pernas, onde se podem colocar anéis. Sinto-me muito ansioso.
Plas concluiu:
— Eu também, Vanden. E toda a tripulação.
Desencostaram da amurada, executaram certos movimentos que com certa dose de fantasia poderiam ser identificados com uma mesura, trocaram de lugar e voltaram a encostar-se.. Os movimentos pareciam fazer parte de um bale superfantástico.
— Os resultados do teste foram bastante esperançosos — disse Vanden de repente. — E já estou aprendendo todas as regras da linguagem de nossos futuros anfitriões.
— É uma língua bonita, mas difícil — disse Plas. — É linda como os corpos dos anfitriões, ou ao menos da maior parte deles. Uma vez que pertencemos ao comando avançado, poderemos escolher os corpos.
— Bem — respondeu Vanden. — Pelo que dizem, existem alguns milhões desses seres admiráveis. O número é mais que suficiente para todo o nosso povo.
Os dois seres soltaram alguns sons que poderiam ser identificados com uma risada. Para os ouvidos de um terrano, parecia uma mistura entre uma sereia em início de funcionamento e alguns copos que se quebravam.
— Será que Marzal acredita que a falha de nossos instrumentos de localização devem-se a causas naturais?
Cliff e Atan realmente estavam coletando informações. E os dados captados representariam contribuições muito valiosas. Por enquanto se esforçavam tanto em ouvir que ainda não puderam avaliar toda importância do fato.
— Sim. Já fiquei sabendo. Nossos novos anfitriões não mandaram instalar sistemas de advertência nem máquinas perturbadoras por aqui, longe do planeta central. Sua técnica ainda é deficiente.
Cliff bem que gostaria de apresentar sua técnica, e sabia com quê: a HM-4 representaria um excelente objeto de demonstração. Evidentemente controlou-se e continuou a prestar atenção. Ficava cada vez mais quente; o sol passava por cima das copas das árvores.-
— A pausa terminou — disse Vanden. — Vamos entrar no navio estelar.
Os pés finos de Plas executaram um movimento estranho e este respondeu:
— Vamos continuar com nosso trabalho.
Soltaram outra risadinha e atravessaram a escotilha oval, desaparecendo no interior da nave. Cliff percebeu a chance, tocou ligeiramente no braço de Atan e começou a rastejar para trás. Os dois homens ergueram-se e, sem dizer uma palavra, correram abaixados pela penumbra da mata.
— Depressa! — disse Cliff. — Para a Lancet.
— Vamos pelo caminho mais curto. Isto é... não encontro a palavra.
Cliff já segurava a arma de radiações e fez um gesto.
— Ninguém está pedindo que a encontre, Atan.
Tropeçaram pelo caminho de volta, seguindo seus próprios rastros. Chegaram à trilha, examinaram os arredores e saíram correndo.
Tinham certeza de que não se encontrariam com nenhum dos seres estranhos. Desta vez não levaram mais de uma hora para alcançar a margem do leito seco. Atan dispôs-se a escorregar pelo barranco de três metros. Cliff olhou em torno. Apenas viu uma trilha vazia. Os pequenos animais seguiram-nos quase por todo o caminho, mas sempre guardaram uma distância respeitosa. Atan encontrava-se entre a margem do leito seco e a Lancet.
O planeta voltou a golpear. Uma sombra negra e comprida aproximou-se, vinda da margem aposta. Cliff escorregou barranco abaixo, apoiou-se em ambas as mãos e reconheceu o perigo. Saltou para a frente, executou um rolamento e, assim que pôs os pés no chão, empunhava a arma. Atan virou-se em sua direção; Cliff atirou.
A pontaria fora muito apressada; corrigiu a mira e voltou a atirar. A arma que segurava na mão sacolejava ligeiramente. As agulhas impregnadas com o veneno paralisante atingiram o animal. Naquele momento, estava saltando sobre o astronavegador. Atingido em meio ao salto, bateu no ombro de Atan. Cliff disparou o terceiro tiro entre o amigo que caía e a coluna de sustentação da Lancet. Atan ergueu-se e virou-se apressadamente; não compreendera o que se passara, e não havia mais nada a fazer.
— Foi por pouco — disse Cliff. — Por muito pouco.
Examinaram o animal que era muito preto, tinha aproximadamente um metro de comprimento e parecia consistir numa estranha mistura entre um felino e uma cobra. Era um "lagarto" com um pêlo pouco brilhante e crânio triangular. Cliff levantou a máscara e disse em voz alta:
— Se ainda ficarmos muito tempo por aqui, Tjader II acabará matando-nos. Vamos logo para dentro da nave auxiliar!
Atan confirmou com um gesto e abaixou rapidamente o fecho manual da comporta. Os segmentos da placa da escotilha retraíram-se, a escada desceu e o astronavegador subiu ligeiro. Ligou as máquinas. Cliff seguiu-o e comprimiu os botões antes de acomodar-se no seu assento. A Lancet decolou no mesmo instante. Cliff ativou o rádio de bordo. A luz de controle verde acendeu-se.
— Aqui fala McLane de bordo da Lancet. É Helga?
— Aqui é a Aztran. Estou na recepção. O que houve?
— Encontramos nossos "futuros senhores" — respondeu Cliff numa calma pouco natural. — Isto é, serão nossos senhores se não fizermos nada. Daqui a alguns minutos, estaremos na nave. Faça o favor de abrir o poço de Lancet e ligue o raio de tração. E prepare-se para a pior surpresa de sua vida — recomendou Cliff. — Desligo.
— Você está exagerando, Cliff — disse Atan.
Cliff sacudiu a cabeça.
— Não — disse. — Não estou exagerando coisa alguma, Atan. Assim que tivermos analisado o que acabamos de ouvir, o perigo surgirá em suas verdadeiras dimensões.
Correram silenciosamente em direção à Aztran. E nem poderiam imaginar o que estava acontecendo em Terra, durante sua ausência...
— A ESTA hora não gostaria de estar no couro do dirigente do projeto — disse Hasso. Bastante cansado, encontrava-se na sala de comando, onde a tripulação conferenciava sobre os acontecimentos das últimas horas.
— Afinal, estamos afastados de Terra há vinte e um dias — disse Mario. — Isto na dimensão temporal.
Cliff fizera um cálculo complicado e já conhecia o resultado. Era perfeito demais, e, como sempre, isso o fez desconfiar.
— Segundo os relógios de bordo decolamos há vinte e duas horas — disse. — Nosso sistema é diferente. Em Terra passaram-se ao menos vinte dias. Se precisarmos de mais quatro dias para executar os reparos, e supondo que depois disso saiamos em disparada e façamos a volta por trás da estrela-objetivo, o que acontecerá?
Helga, Mario e Atan lançaram-lhe um olhar indagador.
— É quase certo que chegaremos mais ou menos ao mesmo tempo em que nossos amigos de "pernas de cegonha" irão se aproximar de Terra. Mataremos dois coelhos de uma cajadada.
— Mas isso sob uma condição — disse Mario. — Nossa velocidade até o momento do encontro terá de ser mais elevada que a máxima atingida até aqui.
— Assim espero — disse Hasso.
— Parece que o problema já foi esclarecido — disse Cliff, pensando em voz alta. — Os reparos serão concluídos logo?
— Sim; serão concluídos mais cedo do que supúnhamos. O trabalho de Mario é excelente. Trabalharemos mais uma hora, e depois cairemos na cama, mortos de cansaço. Mario, você pensa como eu?
De Monti fez que sim.
— Sim; é bem possível que dentro de três dias o trabalho esteja concluído. Apenas, o serviço nos vai deixar exaustos.
— Faremos uma votação — sugeriu Cliff. — Quem é tão otimista como eu? Sugiro o seguinte: vamos reparar os garrards. Depois repousaremos e prosseguiremos em nosso vôo. Não sobrecarregaremos os blocos energéticos como temos feito até aqui; dessa forma, o outro motor não entrará em pane. Contornaremos o objetivo e voltaremos o mais depressa possível a Terra. Posteriormente discutiremos o que deveremos fazer lá. Quem vota a favor do regresso imediato?
Face ao espírito ambicioso da tripulação, nem uma mão levantou-se. Um sorriso largo cobriu o rosto de Cliff.
— A proposta foi aceita por unanimidade — disse em voz alta. — Daqui a pouco, falarei para o diário de bordo. Direi que a tripulação decidiu por unanimidade levar o vôo experimental até o fim.
Voltou a sentar.
— Agora vamos tratar daquilo que descobrimos.
Cliff e Atan explicaram de modo ligeiro, alternando-se.
— Das suas palavras deduzo que esses estranhos estão em condições de apoderar-se dos corpos de outras inteligências. Cliff, você chegou à mesma conclusão?
O comandante fez um gesto afirmativo.
— Cheguei; Atan e eu tivemos a mesma impressão. Ouvimo-los falarem em nossa língua, para dominá-la melhor quando as coisas se tornarem sérias, segundo dizem.
Helga fez um gesto indeciso e perguntou:
— Parecem uma peteca com quatro penachos, cada qual com uma cor diferente. Esse já é seu segundo corpo, não é?
— Isso mesmo — respondeu Atan Shubashi. — Foi exatamente a impressão que tivemos.
Grande a ironia do destino! Justamente no planeta Tjader II encontraram-se duas naves. Pertenciam a povos diferentes, que se combateriam num futuro não muito distante; não havia a menor dúvida.
Ambas as naves apresentavam avarias sérias. A Aztran estava praticamente reduzida à imobilidade, e a dos desconhecidos em formato de pássaro pousara em virtude de uma falha dos instrumentos de observação. Só por isso a nave-teste não fora localizada. Assim, os dois amigos conseguiram aproximar-se da nave. Os reparos da Aztran consumiriam cerca de cinco dias. Depois teriam quinze dias para atingir as áreas espaciais adjacentes a Terra. Quinze dias na dimensão temporal reinante fora da nave. Quinze dias terranos.
— Marzal. Parece que este é o nome do chefe — disse Cliff. — Os desconhecidos não estão nada satisfeitos com o corpo que têm no momento. Em algum lugar viram um astronauta, conseguiram capturá-lo e agora nos invejam por nossos lindos corpos.
— Imagine só — cochichou Mario num entusiasmo fingido — se tivessem visto o meu corpo. Perderiam as penas de inveja.
— Seria bem mais provável que saíssem correndo da esfera espacial.
Atan riu no rosto de Mario.
— Além disso temos uma língua muito bonita — constatou a operadora de rádio. — Nunca notei isso a bordo da nave. Você deveria passar a recitar poesias para Atan.
Atan fez um gesto e um sorriso azedo surgiu em seu rosto.
— Poderia tentar a leitura em voz alta da literatura de Ibsen. Especialmente para as sentinelas, durante os vôos solitários.
Com uma expressão fascinada, Cliff contemplou um inseto verde e dourado que caminhava devagar pela tela central. Provavelmente o animal entrara na nave escondido no tecido de suas jaquetas. Resolveu que o bichinho seria a mascote da Aztran. De repente, Atan disse em voz baixa:
— Aludiram ao fato de que existem vários bilhões de homens. A quantidade bastaria para seu povo. Esse povo deve vir de fora da esfera espacial, pois do contrário já teria sido descoberto, que nem todos os seres que nos atacaram até agora. O número de habitantes pode ser bastante elevado.
Mario acrescentou:
— E o maior perigo para Terra reside em sua capacidade de passar de um corpo para outro, ao que tudo indica sem a menor dificuldade. É praticamente impossível matá-los. Podemos destruir uma nave, mas não temos meios de eliminar esta estranha forma de vida.
— Não vamos perder-nos em especulações estéreis, Mario — disse Cliff em voz alta. — É bem verdade que devemos pensar em todas as variantes possíveis. Você sabe que leio muito. Um ex-colega de Pieter Paul Ibsen, um terrano de nome Dürrenmatt, disse que uma história só é bem contada quando o fim é o pior possível. Não desejo que a história por nós vivida termine assim. Devemos ver o perigo, agir depressa e intervir sem demora. A responsabilidade é nossa.
— Muito bem, comandante — disse Sigbjörnson. — Uma vez que sou responsável pelos garrards, especialmente pela sua correta montagem, vou deitar um pouco. Dentro de oito horas, estarei em plena forma.
Levantou-se, fez alguns exercícios de descontração e colocou-se no interior do elevador. Assim que saiu, a atmosfera na sala de comando pareceu tornar-se gelada. A humanidade nem desconfiava do perigo que se aproximava sob a forma de duas naves carregadas de seres capazes de transportar sua mente, seu eu, de um corpo para outro.
— É aí que está o perigo — disse Cliff. — Por enquanto estamos presos aqui e somos os únicos que sabem do ataque que ameaça Terra. Somos apenas cinco pessoas numa nave avariada. Tenho certeza de que aquilo que vamos fazer é o mais correto.
Helga ligou o rádio para a emissão do sinal de alarma e pôs-se de pé numa atitude de expectativa.
— Não seria preferível decolarmos em direção a Terra assim que Hasso e Mario tiverem concluído o reparo das máquinas? — perguntou. Cliff foi o único a perceber que a moça esbelta estava com medo.
— Não — respondeu tranqüilamente. — Já vi inúmeras das minhas advertências serem consideradas como divagações fantásticas. Desta vez, surgiremos que nem um raio e atacaremos. Teremos motivo para atacar, e não haverá observações idiotas. Nunca se esqueçam de que gozamos da fama de sermos um bando "voluntarioso", apesar das honras e das promoções com que fomos agraciados.
Mario fez um gesto afirmativo; uma expressão amarga surgiu em torno de sua boca.
— É verdade — suspirou. — Infelizmente você tem razão.
— Por isso, é melhor concluirmos nosso vôo experimental pela forma que nos foi prescrita, para chegarmos a Terra na hora exata. Ao que parece, nossos coloridos amigos ornitólogos parecem fazer um juízo bastante desfavorável da nossa tecnologia. E é exatamente isso que representará nossa vantagem.
Mario levantou-se e contemplou seus dedos esfolados e sujos de óleo.
— Estou cansado — disse sem qualquer intróito. — Peço para tirarem-me fora da cama assim que Hasso aparecer. Entendido, comandante?
Cliff confirmou com um gesto. Olhou os rostos e sabia que também durante esta missão poderia confiar nos tripulantes.
— Assumirei o primeiro quarto de sentinela — disse. — Daqui a oito horas pedirei que alguém me substitua. De acordo?
Ninguém teve qualquer objeção. O comandante viu-se a sós. Tentou pôr em ordem o caos de idéias, reflexões, observações e quase-probabilidades. Dali a algumas horas, soube que tudo daria certo. Seu otimismo levara a melhor.
Mario e Hasso trabalharam como loucos. Cliff e Atan ajudaram-nos toda vez que entendiam do serviço. Helga mantinha um conjunto de objetivas de ampliação dirigido sobre o lugar da mata. Atrás desta, estava escondida a nave fusiforme dos desconhecidos. Não aconteceu nada. As peças da máquina garrard, que haviam suportado a viagem, foram reforçadas em sua segurança.
As horas passaram-se. A parte inferior da nave e a sala de máquinas pareciam um campo de batalha tecnológica. Os fios, os condensadores, o material de embalagem e refugo estavam jogados e empilhados por todos os cantos. Depois de algum tempo, Cliff cansou-se de tentar em vão pôr ordem em tudo aquilo. Atirou o refugo na comporta de emergência e, uma vez fechada a escotilha interna, puxou uma alavanca. Um montão de lixo surgiu na areia.
— Nave em ordem, comandante? — perguntou Mario com um sorriso e limpou as mãos enegrecidas.
— A ordem é a irmã de todo trabalho bem feito — contraveio Cliff. — Isto também se aplica numa nave-teste.
Trabalhavam, refletiam, recorriam aos planos de ligações, apertavam parafusos, faziam soldas e colocavam rebites...
Finalmente, quarenta e nove horas depois do pouso em Tjader II, a Aztran estava em condições de decolar. Ajudado por Helga, Cliff despejou outro monte de refugo na areia.
— Hasso — disse com uma seriedade extraordinária. — Peço-lhe que me deixe tranqüilo. Você sabe melhor do que eu qual é a capacidade de aceleração deste disco. Evite outra pane. Sabemos o que está em jogo.
Hasso acenou afirmativamente. As lâmpadas começaram a acender-se à sua frente. Fazia as ligações e comparava, observava as indicações dos instrumentos e seguia um grande ponto colorido que deslizava pela escala.
— Você cuidará da decolagem e da pilotagem da Aztran, e eu me encarregarei do controle de velocidade, Cliff — disse Hasso. — Combinado?
O coronel McLane fez um gesto afirmativo; parecia satisfeito.
— Excelente. Irei para cima e darei início às manobras.
A Aztran acelerou ininterruptamente, mas com uma intensidade menor que por ocasião da decolagem de Terra. Apesar disso, não demorou em ser colocada entre o espaço normal e o hiperespaço. A capacidade de carga e o desempenho das duas máquinas tinham sido aumentadas.
— Só tenho certeza de uma coisa — disse Cliff, enquanto comprimia o botão do interfone. — Dentro de vinte ou trinta horas, estaremos nas proximidades de Terra. E quando isso acontecer, teremos uma batalha. Ninguém sabe como transcorrerá, e nem lhe conhece o desfecho.
Soltou o botão. Isolada do hiperespaço e isolada do contínuo espacial comum, invisível para as telas de radar e inatingível por qualquer mensagem radiofônica, a nave-teste seguia. Inteiramente entregue ao colorido cambiante de suas próprias telas, a Aztran deslocava-se num campo energético-espacial próprio, em direção ao objetivo, mais depressa e mais depressa... O registro de vôo tiquetaqueava ininterruptamente. Anotara todas as fases, e também acompanharia o restante do vôo e reteria seus dados de forma eletrônica, através de um fluxo de informações.
O marechal Wamsler estava deitado. Depois de um dia trabalhoso, após uma série infindável de discussões entremeadas com a preocupação pela nave e sua tripulação, seguida de um jantar ligeiro que praticamente poderia ser considerado um café da manhã, o marechal finalmente teve tempo para descansar.
Achava-se na cama, em sua residência espaçosa de Groote Eylandt. Encontrava-se no estado agradável que fica entre a vigília e o sono. Deixou que os acontecimentos do dia desfilassem diante de sua mente. Subitamente sentiu sede.
— Que diabo! — disse para si mesmo.
— Essas estrelas. Ano após ano devoram homens e naves. E está mais do que provado que o perigo vem delas.
Dirigiu-se para a janela.
Numa das poucas oportunidades que se lhe apresentavam para refletir, viu as operações dos últimos anos diante de si. Os extraterranos, o sol que se deslocava em direção a Terra, a ameaça representada pela poeira mortífera e pelo profeta louco... e agora esperava-se a perda total da Aztran. Algumas estrelas cintilaram. Parecia um chamado. Um chamado?
A idéia aninhou-se em sua mente. Alguém o chamava. Alguma coisa que esperava entre as estrelas parecia estender-lhe a mão em pensamento. "Estaria me acariciando ou seria dotada de garras de aço?", pensou.
Descansou o copo e perguntou-se:
— Será que o destino da tripulação o preocupava a ponto de enxergar fantasmas.
O chamado tornava-se cada vez mais intenso.
Alguma coisa acontecia com a mente de Wamsler. Nos primeiros segundos — e eram segundos de que nunca mais se esqueceria — parecia que uma força estranha afastava sua mente, comprimia-a, empurrava-a para um canto secundário do cérebro.
O marechal Wamsler endireitou o corpo, contemplou as estrelas e sentiu na pele calafrios intercalados por ondas de calor. Com o pouco que lhe restava de lucidez, percebeu as modificações que lhe estavam ocorrendo. Essas modificações processavam-se lentamente, de dentro para fora. De repente, não sentiu mais nada. Perdeu a consciência. Não saberia dizer se aquilo demorou meio segundo ou meia hora.
Aquele que era o marechal Wamsler parecia não mais existir. Alguma coisa se apoderara de seu corpo e estava controlando todos os nervos. O processo de apossamento por uma inteligência estranha foi totalmente silencioso.
"Wamsler" levantou-se, foi para o quarto e mudou de roupa. Vestiu o uniforme preto, colocou a importantíssima plaqueta de identificação sobre o peito e olhou em torno, como se estivesse à procura de algo. Numa das gavetas do armário encontrou a arma mortífera de que, segundo acreditava, poderia precisar. Saiu da casa.
Wamsler deixara de existir. Ou será que ainda existia?
O carro oficial preto das F.R.E.T. aguardava junto ao portão do pequeno parque. "Wamsler" entrou, ativou a turbina, ligou os faróis e deu partida no veículo.
Era a melhor marionete existente.
O desconhecido vira o homem solitário junto à janela e apoderara-se de sua mente. A posse, a troca das mentes, foi um processo rápido e indolor. Depois da primeira tentativa tateante, o estranho introduziu-se sorrateiramente na mente de Wamsler, afastou o eu de sua pessoa e assumiu o controle do lindo corpo. O que restava de Wamsler dormia num canto escondido e só era chamado quando se precisava de alguma informação. Wamsler não era nenhum instrumento, não era um indivíduo dirigido por raios telenóticos: era o próprio desconhecido. Dirigiu-se ao elevador mais próximo, parou o carro e desceu até as cavernas e galerias da Base 104. Atravessou os corredores vazios. Com um gesto ligeiro, cumprimentou a ordenança que se encontrava na ante-sala. Depois abriu a barreira de fluxos luminosos. O primeiro desconhecido acabara de chegar.
Era o início do ataque.
Dentro de poucos segundos, o pseudo-Wamsler ou, na linguagem trazida das estrelas, Marzal, conseguiu orientar-se perfeitamente, recorrendo aos dados armazenados na memória de seu anfitrião. Sabia manipular o instrumental do setor sem recorrer ao auxílio de ninguém.
Contornou a pesada escrivaninha, ligou algumas lâmpadas e lançou um olhar pensativo para a projeção da esfera espacial de 900 parsec.
"O choque psicológico causado pela revelação da verdade paralisaria este mundo dentro de poucas horas", pensou Marzal.
Comprimiu o primeiro botão do painel em linha. A tela do videofone iluminou-se.
— Marechal Wamsler! A esta hora? O que posso fazer pelo senhor?
Marzal recostou-se, exibiu um sorriso gentil e disse:
— A senhora pode fazer uma série de ligações. Coloque todas nesta tela, para que não precise falar mais que uma vez.
A moça, uma futura operadora de rádio, retribuiu o sorriso.
— Com quem deseja falar?
Marzal procurou as informações na mente de Wamsler e utilizou-as.
— Quero falar com Spring-Brauner, Von Wennerstein, Kublai-Krim e Sir Arthur. E ainda Sherkoff. Depressa.
A cadete respondeu em tom cortês:
— No momento, Von Wennerstein realiza uma viagem de investigação no âmbito do Ano Galático. Está sendo substituído pelo Subsecretário de Estado Von Wennerström.
Fora um erro que não poderia ser repetido. E Marzal percebeu imediatamente. Bocejou ligeiramente e disse:
— Dormi muito pouco. É fácil confundir os dois nomes. Ligue-me com Von Wennerström.
— Muito bem. O que devo dizer?
Os dedos de Marzal tamborilaram um compasso impaciente na tampa da escrivaninha.
— Diga-lhes que se trata de uma mensagem de ordem alfa. Quero que compareçam o mais depressa possível ao meu gabinete. O destino de Terra está em jogo.
— Não devíamos chamar o chefe do SSG?
Marzal sobressaltou-se. Sacudiu tranqüilamente a cabeça. Depois disse em tom ressentido:
— Não pense, minha filha, mas faça a ligação.
Wamsler já conhecia o serviço noturno de seu gabinete e não devia espantar-se quando a jovem cadete respondeu:
— Seu humor não está nada bom, marechal. Posso levar-lhe uma xícara de café?
Marzal bateu com o punho fechado na mesa e gritou:
— Não tem nada a ver com o meu humor. Ligue-me com esses cavalheiros. E não se esqueça de uma coisa.
O sorriso que aparecia na tela do videofone tornou-se gelado.
— De quê, marechal?
— Não sou Wamsler?
Marzal desligou a tela e voltou a recostar-se. Não era um enviado que tinha vindo para negociar, mas um homem que iria entregar um ultimato.
O CORONEL Villa, um homem de meia-idade, chefe do Serviço de Segurança Galático, tirara uma lição do azar que tivera durante a invasão. Não confiava mais em si mesmo, e ainda menos nos outros. Todos os postos de importância estavam ocupados por gente de sua confiança. Um desses elementos acompanhou a conversa entre Wamsler e a ordenança, assustou-se e comunicou o fato ao chefe. Este chegou à conclusão de que a desconfiança tinha sua justificativa.
Villa saltou da cama.
— Pois não — murmurou, esforçando-se para reconhecer os detalhes da imagem que apareciam na tela ao lado de seu leito.
— Aqui fala o tenente Pirana, Sir. Suspeita-se de que esteja acontecendo algo de estranho com o marechal Wamsler, e o resultado do fenômeno talvez possa tornar-se perigoso. Achei que devia avisá-lo.
Villa espantou-se ao ouvir a notícia. Apesar das divergências de opinião que separavam os dois homens. Wamsler era um velho amigo de Villa e uma pessoa íntegra. E quanto à sua integridade não podia haver a menor dúvida. Parecia impossível. Todavia...
— Mal consigo raciocinar — disse Villa. — Estou morto de cansaço. Peço-lhe o obséquio de chamar o tenente Tamara Jagel-lovsk em meu nome e pedir-lhe que participe da reunião na qualidade de observadora. Onde será realizada a reunião?
O tenente Pirana ergueu as sobrancelhas e respondeu:
— No gabinete de Wamsler. Não será na pequena sala de sessões. Poderei voltar a incomodá-lo, se as coisas se tornarem mais sérias?
Villa deixou-se cair para trás e exclamou em tom martirizado:
— Pode!
— Aliás, Wamsler convocou a reunião sob a invocação de ordem alfa — acrescentou o tenente.
— De qualquer maneira procurarei dormir mais um pouco — disse Villa em tom obstinado.
A paciência do coronel havia chegado ao fim. Interrompeu a comunicação. Foi por causa disso que Tamara teve que interromper seu sono. Só ouviu o oitavo zumbido. Achava-se no centésimo décimo primeiro pavimento de uma máquina residencial de cento e cinqüenta andares situada em Groote Eylandt.
— Cliff? Já está de volta depois de trinta e nove dias de viagem? — perguntou em voz alta, vestiu apressadamente o robe vermelho e sentou à frente do videofone.
— Pois não.
Seus olhos sonolentos fitaram um colega.
— É o tenente Dieter Pirana! Por que me incomoda a esta hora?
Um sorriso impiedoso surgiu no rosto de Pirana, que disse no tom usual entre os colegas:
— Vista-se, enfie o vistoso uniforme de serviço e corra para o gabinete de Wamsler. Talvez a coisa seja muito enfadonha, ou talvez haja alguma surpresa. São ordens do chefe.
— Que Villa vá... — principiou Tamara em tom furioso, mas a meia voz, porque ainda estava sonolenta.
— Nada de injúrias verbais — recomendou o tenente. — Estou falando sério. Acabo de chamá-lo, e ele me incumbiu de pedir-lhe em seu nome para que compareça.
Tamara fez um gesto de resignação.
— Está bem. Irei. Qual é o motivo da convocação realizada pelo SSG? — perguntou Tamara.
— Ao que parece, Wamsler disse umas coisas confusas. Naturalmente falou de maneira a deixar nosso agente desconfiado. Por isso é bom que concentre seus interesses feminino e profissional sobre Wamsler. É aquele homem grande e gordo com o uniforme...
Tamara colocou o dedo sobre a tecla e concluiu a conversa:
— Tenente, o senhor está falando bobagem. Até logo.
Tamara passou pelo tapete branco que ladeava a cama redonda e dirigiu-se ao toalete. Pôs no bolso uma HM-4 e saiu do apartamento. Desceu no elevador expresso e chamou um táxi que, após dez minutos, a deixou perto de outro conjunto de elevadores. Os corredores continuavam vazios. As luzes noturnas estavam acesas e ouviam-se vozes. Tamara caminhou resolutamente em direção à ante-sala do gabinete de Wamsler e parou ao lado da cadete.
— Meu nome é Tamara... — principiou, mas a moça já a havia reconhecido.
— Sei. E do SSG. Quer entrar, não quer?
Tamara olhou para a tela do videofone, que estava ligada. Viu Sir Arthur, o Subsecretário de Estado e Kublai-Krim. Pareciam tresnoitados e mantinham-se quietos nas suas poltronas.
A cadete deu de ombros.
— Sim. Quero entrar ali. O que foi que Wamsler disse?
Uma certa admiração causada pelo fato de que mais alguém sabia uma coisa que só ela ouvira exprimia-se no rosto da moça.
— Como soube disso? — perguntou perplexa.
— O SSG sabe tudo — disse Tamara em tom frio. — O que foi que Wamsler disse?
— Disse textualmente: Não sou Wamsler!
Tamara mostrou um ligeiro sorriso e perguntou:
— Com ou sem ponto de exclamação?
— Com pelo menos três pontos de exclamação — disse a moça. — Parecia muito nervoso.
Tamara pousou carinhosamente a mão direita sobre o ombro esquerdo da jovem e perguntou num tom extremamente gentil:
— Há uma possibilidade de observar o que se passa lá dentro sem ser visto? Já deve saber que os agentes do SSG são obrigados a manter sigilo absoluto.
A ordenança hesitou por algum tempo. Finalmente fez um sinal para Tamara, que a seguiu para uma sala "recheada" com instrumentos eletrônicos.
Era o lugar para o qual convergiam todas as comunicações do setor. Havia um monitor e uma caixa de alto-falante. A sala estava fria e deserta. A ordenança apontou-lhe a única poltrona existente, bem à frente da tela.
— Se não contar para ninguém, poderá ficar aqui. Há um conjunto de lentes embutido no teto, que pode ser controlado com esta chave. E os microfones direcionais são tão sensíveis que se ouvem até os estalos do célebre estojo eletrônico.
Desta vez, o sorriso de Tamara era genuíno.
— Fico-lhe muito grata — disse. — Talvez tudo não passe de um falso alarma. Se não for, estou no lugar certo.
Enquanto o cadete feminino trancou a porta de fora e para maior segurança ainda passou a tramela, Tamara tomou lugar na poltrona e ativou a tela. Os homens que se encontravam no gabinete falavam baixo. Em poucos segundos, a agente do SSG ajustou as lentes e o microfone. Gastou menos tempo do que Michael Spring-Brauner levou para começar a falar. Nem sequer aguardou a permissão de seu superior imediato.
— Estamos muito interessados em saber por que motivo foi convocada a reunião, marechal Wamsler — disse.
"Wamsler" fitou-o demoradamente sem dizer uma palavra e falou num tom inconfundível de desprezo:
— Nunca mais me chame de marechal Wamsler.
Spring-Brauner parecia cair para trás. Nos rostos das outras pessoas que se encontravam no gabinete, surgiu uma tensão súbita. Levantaram-se de um golpe e viram-se diante de um quadro misterioso.
— Não sou Wamsler — repetiu o homem vestido de preto, colocando as mãos sobre a mesa. — Meu nome é Marzal.
Sir Arthur sacudiu a cabeça e soltou uma risada aborrecida.
— Parece que o ar das duas da madrugada lhe dá idéias muito esquisitas, marechal — disse. — Está brincando conosco?
Marzal-Wamsler respondeu sem a menor comoção:
— Não estou brincando. Para não pegá-los de surpresa, vou contar-lhes uma pequena história bastante instrutiva.
Fez uma pausa.
A inteligência peculiar aos agentes do SSG disse a Tamara que Wamsler acabara de dizer uma verdade toda especial. E agora estava notando melhor: embora nada tivesse mudado, Wamsler estava longe do que se passava ali. Sentia-o distante. Ao contrário do que costumava acontecer, parecia afastado de tudo.
— Existe um povo que, sem recorrer a qualquer auxílio, pode transportar sua mente, seu espírito, seu eu. Afinal, na língua de vocês há muitas expressões, nem todas adequadas. Podemos transferir-nos para qualquer ser inteligente e apoderarmo-nos de seu corpo. Numa das nossas expedições, descobrimos um setor espacial percorrido pelas naves dos senhores. Capturamos uma das naves, demos uma olhada nos homens e nas mulheres que trabalhavam na mesma e ficamos encantados com a beleza extraordinária de seus corpos.
Kublai-Krim estava quase sufocado, prestes a ter um ataque. Perguntou com a voz baixa e ofegante:
— Como é que os senhores são hoje? Que tipo de corpo ocupam neste instante?
Marzal sorriu. A expressão era a de Wamsler.
— Bem, não direi que é um corpo feio. É até um corpo bastante funcional. Mas com ele não se pode fazer tanta coisa como com este que estou ocupando.
Radiante de alegria, Marzal bateu na barriga e apontou para os outros homens.
— Como vêem, somos sinceros. O povo possuído por nós até agora será libertado.
Parte dele se lembrará de nós, outra parte não. Isso depende da intensidade da vivência.
Os cinco homens e Tamara pareciam petrificados. Marzal prosseguiu com a voz de Wamsler, como quem lê um relatório que não se reveste do menor interesse:
— Resolvemos assumir o controle deste planeta. O processo é rápido e silencioso. Posso garantir que o marechal Wamsler — apontou para si mesmo — não percebeu nada. Quando formos embora, o que provavelmente só acontecerá daqui a muitos séculos, seus corpos voltarão a pertencer aos senhores. Se um dos corpos morrer, mudaremos numa questão de segundos para outro. Ou melhor: para dentro de outra mente. Nossas naves estão estacionadas em algum lugar desta área.
— O senhor... o senhor está louco! — gritou Kublai-Krim. — Colocarei a frota em estado de prontidão.
Marzal não se perturbou. Respondeu com a maior calma:
— É uma coisa que o senhor pode fazer, ao menos em teoria. Acontece que somos muitos e podemos assumir o controle de qualquer homem importante que pretenda se opor ao nosso domínio. E os senhores não serão idiotas a ponto de acreditar que um indivíduo de sua raça poderá lutar contra meus semelhantes.
Marzal irrompeu numa estrondosa gargalhada e bateu animadamente nas coxas.
— O que nos impede de fazer isso? — perguntou Kublai-Krim.
— Eu — disse Marzal em tom tranqüilo. — Eu e isto aqui.
Colocou sobre a mesa a arma de radiações, com a agulha de projeção apontada para o chefe das Forças Espaciais. A outra mão apontava para a barreira de fluxos luminosos.
— Nós, os rovers, vamos assumir este planeta dentro de três dias — anunciou Marzal. — Se quiserem, podem tentar qualquer coisa. Por exemplo, defender-se. No momento em que uma nave inimiga se aproximar de nós, assumiremos o controle de seus ocupantes. É apenas isto. Poderão tentar fugir. Bloquearemos as bases e passaremos a ser os pilotos das naves. Cavalheiros, os senhores não têm qualquer alternativa.
O professor Sherkoff ainda não havia sido contaminado pelo pânico generalizado.
— De onde vêm os senhores? — perguntou em tom tranqüilo.
— Do grupo de planetas situado fora do setor dos novecentos parsec. Não podemos fornecer as coordenadas exatas. Temos uma armada de naves de potência inconcebível, que apenas aguarda meu sinal. Tudo sairá conforme já disse. É preferível que esperem para ver se gostamos de seus corpos ou não. Seu corpo, Spring-Brauner, por exemplo, me repugna bastante. Talvez algum elemento de graduação inferior da nossa tropa tenha pena do senhor.
Michael Spring-Brauner foi incapaz de fazer qualquer movimento ou dar uma resposta.
— O que vai acontecer com os seres que os senhores possuíram até agora? — perguntou Sherkoff.
— Não precisamos mais deles; provavelmente morrerão — informou Marzal em tom coloquial.
Sir Arthur remexia-se na poltrona. Parecia pedir que o desconhecido autoritário lhe desse um conselho.
— Isso é terrível! — lamentou-se. — O que vamos fazer? Não poderia avisar a frota?
Kublai forçou-se a dar um sorriso sarcástico.
— Posso tentar — disse. — Se escapar ao raio dessa arma, morrerei na barreira. Qual das duas alternativas o senhor prefere?
Voltou a recostar-se em sua poltrona.
— Não — disse Von Wennerström de repente. — Não é possível. Temos muitas naves.
— Sei exatamente quantas são — disse Marzal.
— O senhor não pode ocupar toda Terra ao mesmo tempo. Ninguém conseguiria isso; nem mesmo sua raça.
Marzal inclinou a cabeça e respondeu:
— Tem razão, senhor Subsecretário de Estado. Isso não seria possível. Ainda nos faltam algumas coisas. Mas podemos perfeitamente realizar um processo de seleção e ocupar os postos mais importantes. Afinal, nada lhes acontecerá. Por que estão com tanto medo?
Espalmou as mãos e fez um gesto apaziguador.
— O senhor é um demônio! — gritou Sir Arthur e pôs a mão na região do coração.
— Que é isso? Nada de ofensas, senhor Presidente. Um homem que ocupa sua posição não deve depreciar-se com um comportamento desse tipo.
Marzal tinha razão. Ninguém poderia fazer nada. Na verdade, poder-se-ia tentar, mas um grande número dos seres estranhos logo controlaria tudo. Seria inútil dar qualquer lance no jogo se a gente sabia que o adversário sempre responderia com um melhor. Terra poderia fazer o que quisesse. Mas as criaturas invasoras bloqueariam qualquer tipo de ação.
— Vamos organizar uma conspiração — disse Sherkoff com um sorriso. — Sempre que existe um regime de opressão, surgem os grupos conspiradores. Poderíamos capturar um dos seus, torturá-lo, matá-lo, obrigá-lo a abandonar o corpo...
O rosto de Marzal assumiu uma expressão petrificada, que retratava uma insensibilidade total.
— Antes de mais nada — disse — estamos em condições de mudar de anfitrião no momento em que formos capturados. Deslocamo-nos como alguém que salta sobre as pedras para atravessar uma grande poça de água. Se quisermos, eliminamos a sensação de dor. Nesta área, não existe nada que não possamos fazer. Não se entregue a ilusões.
Seguiu-se o silêncio da resignação final. Os homens que se encontravam no gabinete olharam-se como quem pede socorro. Não diziam nada. A situação não oferecia a menor esperança.
— Parece que estão compreendendo — disse Marzal, falando devagar. — Estão mesmo?
— Quem lhe deu o direito de agir assim? — interrogou Sherkoff.
Marzal mostrou um ligeiro sorriso, fez um gesto de desprezo que era característico de Wamsler e disse:
— No cosmos, nesta galáxia, não existe nenhum direito, a não ser aquele que conseguimos conquistar.
— Mas existem certos valores eternos — disse Spring-Brauner com a voz apagada.
— Isso não se aplica aos seres poderosos. Somos inexpugnáveis. Não precisamos reconhecer qualquer espécie de restrição.
— Será que não têm consciência? — perguntou Krim.
— O senhor tem consciência no momento em que está morrendo de fome e tira a comida do vizinho?
— Acontece que os senhores não estão morrendo de fome. Estão agredindo um planeta indefeso, por um simples capricho.
Sir Arthur refugiou-se nas recriminações.
— Nunca atacaríamos um planeta que tivesse meios de defender-se. Gostamos de viver.
Era uma explicação inatacável. E o caráter brutal lhe conferia lógica e clareza.
— Também gostamos de viver — disse Von Wennerström.
Numa explicação fidedigna e diplomática, Marzal disse:
— Esforçar-nos-emos para não destruir uma única vida durante a tomada dos corpos. Não costumamos matar nossos anfitriões, pois precisamos deles. O senhor costuma matar o cavalo que pretende montar?
O diálogo poderia prosseguir por horas a fio.
— O que pede de nós? — perguntou Kublai-Krim.
— Não compreendo. Não pedimos nada, nem exigimos coisa alguma. Apenas estamos colocando os senhores diante de uma série de fatos consumados. Dentro de três dias, este planeta estará sob nosso controle.
— Isso é um ultimato? Kublai-Krim levantou-se de um salto e
esteve a ponto de precipitar-se sobre Marzal. A arma de radiações evitou o ataque.
— É uma declaração. Sempre avisamos nossos anfitriões de que estamos chegando. Achamos que isso é uma imposição da ética.
O professor Sherkoff soltou uma risadinha histérica.
— O senhor é um engraçadinho — disse. — Reconhece certos valores que se harmonizam com seu procedimento tanto quanto a chuva se harmoniza com o vácuo. Afinal, pretende divertir-nos ou pretende assaltar-nos?
Marzal fitou-o prolongadamente e em silêncio.
— Não acredito que qualquer indivíduo de meu povo lhe fará o favor de aceitá-lo como anfitrião — disse depois de algum tempo. — Nestes casos somos muito esquisitos.
Sherkoff fez uma mesura irônica.
— Para mim será um prazer — respondeu. — Todavia, peço-lhe que responda a mais uma pergunta. O que devemos fazer nos três dias durante os quais deveremos aguardar sua chegada silenciosa e amável?
Marzal explicou em tom generoso:
— Prossigam nos seus trabalhos. Isso os distrairá um pouco. Posso garantir que não sofrerão qualquer dor. Depois de nos apossarmos de seus corpos, os mesmos serão tratados muito bem. Amamos esses corpos. A cultura e a civilização não sofrerão solução de continuidade. Basta dizer que estamos realmente apaixonados pelo idioma de vocês.
— Isso nos tranqüiliza bastante, Marzal
— vociferou Sir Arthur. — O que acontecerá com nossos filhos?
— Amamos as crianças — disse Marzal.
— Nosso amor por elas é tamanho que, poucas semanas após o nascimento, já ensinamos aos nossos descendentes como deverão proceder para assumir o corpo de outras inteligências. Fazem seu treino com animais de grande porte.
Kublai-Krim colocou as mãos diante do rosto.
— Meu Deus! — murmurou em tom sombrio. — Que criaturas são estas que nos atacam! Os extraterranos ao menos lutavam com armas.
— Nossas armas são as do espírito — disse Marzal em tom irônico. — Das recordações de meu anfitrião deduzo que este tipo de arma tem sido usado raras vezes por aqui. Sob o regime a ser instaurado por nós, isso mudará.
Levantou-se e ficou parado. Era grande e maciço e pleno de uma autoconfiança que ameaçava estourar o uniforme. Embora fosse o primeiro rover a pisar no planeta, já se considerava vitorioso.
A idéia de que os estranhos sempre venceriam roubara o ânimo dos terranos.
— Podem retirar-se — disse em tom indiferente.
Os homens saíram sem dizer uma palavra. Juraram que não revelariam uma palavra do que haviam ouvido, pois a loucura do pânico devastaria Terra. Marzal ficou para trás e refletiu intensamente. Para convencer o inimigo, tivera de recorrer ao blefe: os rovers não eram tão numerosos e seu poder não era tamanho. Acontece que ninguém sabia disso. Havia uma coisa que não faziam: não conseguiam estar em dois lugares ao mesmo tempo. Marzal decidiu retirar-se de circulação e regressar por algum tempo à nave capitania. Dali daria suas ordens. Saiu do gabinete e voltou à residência.
O vencedor deixou para trás o campo de batalha devastado.
De rosto bem feito, cabeleira cor de gelo e olhos cinzentos, a mulher esbelta sentava-se à sua frente. Entre o coronel Villa e Tamara Jagellovsk, uma mesinha oferecia-lhes um café reforçado. Villa, uma velha raposa versada em todas as tramóias do serviço secreto, retirara-se juntamente com Tamara.
— É claro que Marzal, o rover, está blefando — resmungou Villa e encheu a xícara de Tamara.
— Será?
Villa mostrou um sorriso irônico. As inúmeras rugas em torno de seus olhos contraíram-se e formaram uma série de triângulos.
— Não quero chamar-me de Villa, nem quero completar sessenta e dois anos no ano que vem, se não for assim — respondeu. — Agradeço pelo relatório e pelas fitas. Devemos resolver o que fazer. Aqui nunca seremos descobertos por Wamsler, ou melhor, por Marzal.
— Há um perigo real — ponderou Tamara.
— Sem dúvida. Uma idéia que acaba de passar pela minha cabeça provavelmente seria inexeqüível como tantas outras. Se atacássemos os seres estranhos com robôs, os invasores se transfeririam para o corpo daqueles que fazem a programação dos autômatos, ou para os comandantes das naves de interceptação, que seriam utilizadas num ataque contra a frota robotizada. Mas basta fazer um cálculo. Neste planeta vivem alguns bilhões de humanos. Se houvesse uma relação de um para um, as estrelas desapareceriam atrás de tantas naves.
— Foi o que eu pensei — respondeu Tamara. — Será que aqui estamos em segurança? — perguntou em tom desconfiado.
— Estamos tão seguros como se estivéssemos no regaço de Cliff McLane — disse Villa com um sorriso. — Como vai ele?
Tamara deu de ombros.
— Faz quase quarenta dias que não tenho notícias dele — disse. — Partiu num vôo experimental.
Villa sacudiu a cabeça.
— Isto talvez pareça uma frase barata, mas quase posso afirmar que McLane deve voltar dentro de poucas horas, pois Terra tem de ser salva. E estou certo de que voltará. Não se esqueça do que acabo de dizer.
Tamara sorriu para Villa. Compreendia o que queria dizer. Também ele estava convencido de que McLane não demoraria a regressar. Tinha a opinião de que a natureza toda especial do vôo experimental era a responsável pela ausência prolongada.
— Obrigada, coronel — disse.
Villa entrelaçou as mãos e disse com a maior tranqüilidade:
— No momento, somos os únicos membros do grupo de resistência. Portanto, vamos realizar um raciocínio lógico e minucioso, para descobrir as vantagens que possuímos.
— Antes de mais nada: os seres estranhos não podem ter muitas naves, pois do contrário nossos satélites nos avisariam em tempo. É bem verdade que Gordon não existe mais, mas as fortalezas de interceptação teriam entrado em ação antes que um número tão grande de naves pudesse atravessar a barreira — disse Tamara.
— Isso mesmo. Portanto, o número de pessoas que eles poderão assumir será bastante reduzido. É bem verdade que deverão seguir o princípio das ações sucessivas. Em outras palavras, irão assumir várias pessoas, uma após a outra. O primeiro passo seria fazer decolar todas as naves e expedir uma mensagem, ordenando àquelas que se encontram no espaço, realizando operações ligadas ao Ano Galático, que não pousem em Terra.
Tamara concordou.
— Basta que me dê um transmissor, e desencadearei esta operação — prometeu.
— Ainda temos tempo. Vamos pensar mais um pouco.
Tamara chegou a uma surpreendente conclusão, ligada às possibilidades dos seres estranhos. Em tom exaltado, disse:
— O senhor poderia matar-me a tiro sem que me visse, coronel Villa?
— Poderia, mas apenas em pensamento — respondeu Villa em tom seco. — Ah! Já sei onde quer chegar. Isso representa uma solução parcial do problema. Os seres estranhos não poderão assumir uma pessoa que não conheçam e não vejam, e a respeito da qual não descubram nada na memória do anfitrião. Não é isso?
Tamara esvaziou a xícara e descansou-a ruidosamente.
— É isso. Daí se conclui que a palavra de ordem para os elementos de cúpula da administração terrana deve ser: escondam-se!
— Vamos rebatizar a operação — respondeu Villa. — O nome será operação "avestruz".
Era um nome irônico para uma ação desesperada.
— As transmissões serão em cochicho?
— Isso mesmo — respondeu Villa. — Avisaremos as pessoas que mais conhecemos. E estas agirão com um baixo nível mental. Dessa forma, deveremos obter um bom resultado em amplitude.
Villa levantou-se e apontou para a estante divisória que se encontrava no meio da sala, como se fosse uma coluna repleta de livros, cassetes de leitura, fitas de som e aparelhos de reprodução. Olhou para o relógio e disse:
— São seis e quinze. Vamos começar logo, antes que os seres estranhos iniciem as posses das mentes. Venha comigo.
Foram até a coluna-estante.
Atrás, ficaram as duas poltronas e a mesa. Um pequeno robô emitiu um zumbido e começou a retirar a louça. Suas garras seguraram as peças de formato especial. A ordenança, que fugira com Tamara, dormia o sono da exaustão em algum lugar dos alojamentos secretos de Villa. O medo deixara-a completamente abatida.
— Isto é um dispositivo de segurança individual — disse Villa. — Não existe uma única pessoa, a não ser eu, que saiba manipular esta confusão criada pela tecnologia. Olhe!
Naquele momento, Villa conseguia superar sua desconfiança profissional. Tirou um livro-cassete e segurou-o na mão por alguns segundos. Tamara reconheceu o livro mais antigo da herança cultural de Terra. Villa deixou correr algumas páginas e parou a fita. Depois, disse em voz alta:
E subjugada foi a terça parte do sol e a terça parte da lua e a terça parte das estrelas, para que a terça parte das mesmas ficasse na escuridão e durante a terça parte do dia a luz não iluminasse a Terra.
"É um código que só Villa pode conhecer", pensou Tamara e viu dois lados da coluna abrirem-se para fora. A parede traseira era feita do aço cuja fabricação estava ligada aos acontecimentos que se desenrolaram em Sahagoon. O interior da coluna era uma obra-prima da eletrônica.
— Qual é a pessoa que a senhora sugere? — perguntou Villa, embora fosse a última pessoa a precisar desse tipo de conselho. Ao que parecia, uma tendência filantrópica apossara-se de sua mente.
— Lydia van Dyke, general das Formações Espaciais.
— De acordo — disse Villa e manipulou as chaves. Ao que parecia, sabia de cor uma parte de números.
Dali a trinta segundos, Van Dyke surgiu na tela do videofone.
— Bom dia — disse em tom áspero.
— Desejo-lhe a mesma coisa, colega — respondeu Villa. — Já deve estar informada sobre os últimos acontecimentos. Um perigo ameaça Terra; desta vez trata-se de um perigo silencioso.
Lydia limitou-se a fazer um gesto afirmativo. Aguardava a exposição de Villa.
— Precisamos tentar antecipar-nos aos seres estranhos — disse o chefe do SSG. — Acho que deveria ordenar a todas as naves que decolassem imediatamente com a tripulação completa. E cada nave levaria alguns membros do governo terrano. O problema consiste em descobrir as pessoas certas, isto é, aquelas que ainda não foram assumidas.
— Se não se traírem, isso será difícil — ponderou Lydia.
— Será impossível — respondeu Villa.
— Temos que calcular com certo percentual de perdas. Mande retirar de todas as naves o que seja supérfluo. E essas naves deverão fazer o possível para impedir o pouso de outras. Entendido?
O sorriso de Lydia estava marcado pela preocupação que sentia pelo destino de Terra; parecia muito triste.
— Há duas horas dei o alarma geral — disse. — Onde está o senhor, coronel?
Villa sacudiu a cabeça.
— Não posso dizer, por motivos de segurança — respondeu em tom sério. — Passe bem.
A tela apagou-se.
— O que vamos fazer depois do ciclo de chamadas? — perguntou Tamara durante a pausa.
— No poço de decolagem, que fica junto à minha residência, está guardada uma Lancet dotada de equipamento especial — disse Villa. — Sempre procuro calcular todas as eventualidades.
Tamara aprovou essa maneira de pensar.
— Chame os responsáveis, um por um. Provavelmente a senhora perceberá se alguma coisa estranha estiver acontecendo com um deles. Então faça com que a comunicação seja inutilizada.
Prosseguiram...
A lista foi diminuindo. Tamara chegou à conclusão de que até então só Wamsler fora assumido. Nenhuma das pessoas informadas, e cujas naves se dirigiram para os pontos mais afastados da esfera espacial, parecia encontrar-se nas garras do terror mental. Todos demonstraram medo e elaboraram planos desesperados para a salvação de Terra. Esses planos desfaziam-se diante da idéia de que o dom estranho daqueles seres frustraria qualquer operação. Todas as bases trabalhavam a plena potência.
As naves decolavam, aceleravam e, deslocando-se junto à superfície, dirigiam-se à face oposta do planeta, onde talvez não houvesse naves dos seres estranhos. O sistema de localização ainda funcionava parcialmente. Ao que parecia, as tripulações de alguns satélites haviam sido assumidas, enquanto os outros se mantinham em silêncio. Aos poucos, o caos se espalhou pelas instalações que formavam a barreira de proteção de Terra.
As naves decolavam uma após a outra, carregadas até o limite de sua capacidade. As unidades penetravam no hiperespaço o mais depressa que podiam e disparavam em direção aos seus destinos distantes, a qualquer lugar onde os seres estranhos não pudessem vê-las. Evidentemente, as naves estariam perdidas no momento em que um dos seus ocupantes fosse assumido.
Depois de duas horas cansativas, Villa recostou-se na poltrona. Os traços de exaustão marcavam seu rosto e os olhos estavam injetados de vermelho.
— Pronto! — disse em voz baixa. Tamara desligou o canal que restava e acenou com a cabeça. Respondeu, também em voz baixa:
— Fizemos o que estava ao nosso alcance. Agora podemos pensar em nossa salvação. Acho que o senhor não tem a intenção de passar para a história como mártir.
O gesto negativo do coronel Villa foi bastante débil.
— De forma alguma. Decolaremos na Lancet. Vamos aguardar para recuperar-nos um pouco.
Tamara desconfiava de que a demora poderia custar-lhes a vida. Sim, a vida, pois era mais que duvidoso que a existência sob o domínio dos seres estranhos pudesse ser considerada uma forma de vida. Os dois ainda não conheciam uma circunstância que se transformaria num importante fator de insegurança: os seres estranhos já estavam seguindo o princípio da ação sucessiva. Wamsler-Marzal revelara-lhes quem era Villa. E este devia ser posto fora de ação. Imediatamente, antes de qualquer outro.
PARADO ao lado de Hasso, Cliff McLane contemplava o besouro. Era um bichinho reluzente como ouro, cujas asas brilhavam num tom verde-escuro. Seu tamanho correspondia aproximadamente à metade de um polegar humano e suas oito pernas rastejavam tranqüilamente em direção à beira da tela central. As antenas trêmulas, em cujas pontas havia bolinhas negras, perscrutavam os arredores. Embaixo do besouro, que recebera o nome Sêneca — em virtude da calma imperturbável com que se deslocava sobre os véus coloridos projetados na tela — os astronautas viram a imagem característica. Cores, linhas, anéis e fragmentos. A Aztran Beta corria velozmente em direção a Terra. Agora seus instrumentos mais importantes eram os relógios. Os homens haviam programado um cálculo de relações e o introduziram no computador digital da nave. Os resultados eram evidentes.
— Dentro de uma hora, deveremos atingir a área adjacente a Terra! — resmungou Hasso.
Mais uma vez o centro da imagem foi tomado por uma estrela imóvel que assumia a forma de mancha azul, da qual saíam raios prateados semelhantes aos fragmentos de uma explosão filmada em câmara lenta.
— É o que diz o computador — observou Cliff.
Depois de várias horas de silêncio total, do isolamento completo de tudo que não se situasse no campo espaço-temporal específico, os membros da tripulação estavam voltando a seus lugares. Até aqui a nave havia sido dirigida pelo dispositivo automático composto do computador digital, do registro de vôo e do piloto automático. Hasso tivera o máximo de cuidado para evitar que alguns dos garrards falhassem. Até aqui tudo havia dado certo.
— Cliff— disse Hasso — eu lhe imploro! Conte ao menos a mim o que pretende fazer quando voltarmos ao espaço normal.
Um sorriso atrevido surgiu no rosto do coronel.
— Realizaremos uma manobra típica de McLane — disse. — Saltaremos que nem uma pedrinha que ricocheteia na superfície da água. Será um entra-e-sai, entra-e-sai. Durante as diversas fases, trabalharemos como poucas vezes temos trabalhado em nossa carreira.
— Poderia fornecer indicações mais precisas?
Cliff apontou para uma das poltronas vazias e disse:
— Faça o favor de sentar-se, Hasso.
Depois de ter dirigido Sêneca cautelosamente para outro rumo, McLane acomodou-se na poltrona do comandante.
— Nosso procedimento será mais ou menos o seguinte — explicou em tom tranqüilo. — Sairemos do campo temporal, transmitiremos uma única mensagem e pediremos resposta imediata. Será um ultimato implacável. Não poderão ver-nos nem localizar-nos. Portanto, estaremos seguros. Depois disso aguardaremos a reação deles. Se a resposta for satisfatória, tudo estará em ordem e pousaremos.
O rosto de Hasso exprimia preocupação.
— Por mais favorável que seja o critério de avaliação da situação, não me parece que os seres estranhos abandonarão Terra a uma simples ultimação nossa.
Cliff fez um gesto conhecido e mais do que temido. Hasso viu o perigo das operações que lhe pareceriam arriscadas demais. Mas o perigo silencioso que ameaçava Terra justificava qualquer plano, por mais louco que pudesse parecer.
— Provavelmente não sairão. Você tem. razão — disse Cliff.
Helga saiu do elevador, cumprimentou-os e sentou-se junto ao painel de rádio.
— Acontece que ficarão desorientados. Estão acostumados a vencer sem encontrar a menor oposição. E a resistência genuína e combativa roubar-lhes-á boa parte do seu moral. É nossa única chance.
— Compreendi — disse Hasso. — Pode prosseguir.
Sêneca parecia bastante interessado no centro do confuso jogo de cores. Parou e moveu as antenas como se fosse um helicóptero.
— Reagiremos à mensagem. Localizaremos as naves e utilizaremos o Overkill. Ali vem nosso perito.
Mario entrou, levantou os braços e sacudiu os punhos na pose de um boxeador que acaba de alcançar uma vitória.
— Trata-se de pôr à prova as minhas qualidades? — perguntou em tom alegre.
— As nossas qualidades; e todas as qualidades que possuímos — respondeu o coronel.
— Você ainda não concluiu, Cliff — disse Hasso em voz baixa. — Não se afaste do tema.
— Localizaremos as naves e atacaremos. Cada ataque deverá representar uma perda total da outra nave.
— Encontraremos duas naves na órbita de Terra — disse Mario. — Observamos duas naves.
— Caberá ao nosso pequeno localizá-las instantaneamente — disse Cliff.
Dos alto-falantes do sistema de intercomunicação de bordo, surgiu a resposta indignada:
— O pequeno as localizará mais depressa do que qualquer um de vocês pensa, seus bobalhões!
— Terra também tem seu problema. O que estarão fazendo nossos amigos que ficaram no planeta? A começar de Wamsler e Villa?
Cliff apoiou-se no espaldar da poltrona e disse, dirigindo-se a Helga:
— Tamara está em Terra, minha filha. Você acha que seria capaz de esquecê-la? Sou capaz de apostar que está fazendo alguma coisa. Se minhas suposições forem corretas, tomou suas providências juntamente com Villa. E os dois chegarão a conclusões idênticas à nossa. Atan, você terá mais uma tarefa a cumprir.
— Que tarefa é essa? — perguntou o astronavegador.
— Você não procurará apenas localizar duas naves estranhas, mas também terá que detetar a presença eventual de uma nave terrana. Tamara fará tudo para prevenir-nos.
— Compreendo, chefe.
Desenvolvendo os modelos de raciocínio ligados a todas as eventualidades, Cliff gastara as longas horas decorridas desde a decolagem. E agora sentia-se exausto. Sabia que esta operação, mais que qualquer outra, estaria entremeada de coincidências e de ocorrências indefiníveis. Eram três os participantes desta manobra: a tripulação, Terra e os seres estranhos. Todos conheciam certos detalhes da realidade. Ao que tudo indicava, os tripulantes conheciam o maior volume de fatos, já que chegaram a ter contato direto com a nave avariada dos seres desconhecidos.
Portanto, não precisariam determinar antecipadamente todo o curso dos acontecimentos. A decisão seria deixada a cargo do acaso, da improvisação. Cliff fez um gesto dramático e aproximou do rosto o pulso com o relógio.
— Mais quinze minutos, sócios! — disse em voz alta.
Novecentos segundos passaram-se rapidamente.
— É agora!
Hasso encontrava-se na sala de máquinas. Estava com os cintos atados. Diante de suas vistas, quatro telas achavam-se iluminadas. Suas mãos seguravam os controles das máquinas garrards. Numa das telas, estava retratada a mesma imagem projetada na tela central. Na segunda, via-se a sala de comando com o busto de Cliff. Na terceira, Mario, que se encontrava na câmara de pontaria do aparelho Overkill Na quarta, Atan Shubashi, que projetaria suas observações.
— É agora! — tornou a gritar Cliff. Hasso inverteu a marcha de ambas as máquinas. Ao mesmo tempo, ativou o dispositivo automático de absorção de gravitação. Logo sentiu nos movimentos, nas sacudidelas da célula de segurança, na movimentação das escalas e dos sinais, que a nave estava sendo freada. O processo era muito rápido. As linhas projetadas na tela principal desapareceram, as cores empastelaram-se, tornaram-se mais pálidas e nebulosas... Subitamente, a tela apagou-se.
— Obrigado! — disse Cliff com a voz penetrante. — Atan!
Atan trabalhava com três telas direcionais. Armazenou dados e descobriu as duas naves. Além disso constatou na face oculta da Lua um eco pouco intenso. Mediu os três ecos e bateu os resultados no computador de mesa.
— Helga!
As energias, que Hasso transferiu de uma hora para outra, foram utilizadas pelo rádio da Aztran, reforçando a potência da transmissão. As grandes antenas da nave-teste emitiram uma mensagem que faria tinir os alto-falantes do capacete de um astronauta. Ao mesmo tempo, a nave enviou o comunicado por vários outros canais, e na onda do hidrogênio estabilizado. Qualquer ser inteligente que conhecesse o espaço e a astronáutica entenderia dessa onda.
A fita começou a correr.
Aqui fala o couraçado espacial e porta-naves Aztran Beta. Estamos chamando os seres estranhos. Ordenamo-lhes que virem suas naves imediatamente e saiam deste setor espacial. Aguardamos a resposta por cento e oitenta segundos em qualquer das faixas por nós utilizadas. Se a resposta não vier, ou se for negativa, ambas as naves serão destruídas. Nossa exigência: abandonem Terra. Uma vez transmitido o texto, damo-lhes um minuto para ligar as máquinas. Não formularemos outras perguntas, apenas destruiremos. Desligo.
— Obrigado. Vamos voltar! — gritou Cliff.
Manipulou as chaves e ligou as máquinas. Hasso aumentou o desempenho dos garrards. Os motores produziam um zumbido. A máquina voltou a acelerar com a mesma energia de propulsão. Dentro de vinte segundos, tornou-se invisível e inacessível aos instrumentos de localização.
Cliff enxugou o suor da testa e olhou em torno.
— Três minutos. Confiram os relógios e prestem atenção.
Na tela que o ligava com a sala de comando, Mario fez o sinal de preparado. A nave, que neste meio tempo entrara numa órbita a grande distância de Terra, contornava o planeta a uma velocidade várias vezes superior à da luz. O campo espaço-temporal, envolvendo a Aztran, a protegia e eliminava a possibilidade de localização direta. Durante três minutos, o disco contornou Terra.
— Segundo estágio. Inicie a manobra de frenagem dentro de dez segundos, Hasso! — gritou McLane para dentro dos microfones.
— Sala de máquinas para comandante: bem entendido! — respondeu o engenheiro.
Esperaram bastante tensos. Agora três acontecimentos teriam que ser conjugados com a precisão das rodinhas de um relógio.
Helga procurou captar a resposta dos desconhecidos...
Hasso freou, transferiu a energia para o projetor Overkill e voltou a acelerar... Talvez Mario de Monti atirasse.
— Sete segundos... seis... cinco... quatro... três... dois... um. Já!
A reação de Hasso foi de uma rapidez surpreendente. Freou a nave exatamente com a intensidade necessária para que a mesma retornasse ao espaço normal à velocidade da luz. A estática chiou e as interferências causadas pelo sol estalaram nos alto-falantes. Dali a meio segundo, ouviu-se a resposta dos desconhecidos num terrano livre de sotaque. Helga acompanhou o texto:
Não adianta blefar. A Aztran é uma nave-teste. Nós a assumiremos ou destruiremos assim que aparecer.
— É o que está acontecendo neste momento — resmungou Cliff. Parecia uma fera que retesava os músculos para o salto decisivo.
— Atan! O alvo número um está na mira?
— Tudo pronto. Está na mira de Mario. O computador digital forneceu a Mario
as cifras relativas a distância, ângulo de deslocamento e dispêndio energético. Viu o alvo penetrar lentamente no círculo de mira. Sabia que tudo se passava numa fração de segundo, que parecia transformar-se numa eternidade. Comprimiu o botão que liberava a energia. A nave inimiga, que era um objeto fusiforme, esguio e com quatro aletas, dissolveu-se numa neblina fumarenta. O quadro ainda não havia saído da retina dos cinco tripulantes quando Hasso voltou a acionar rapidamente os controles. Retirou a energia do projetor Overkill, transferiu-a para as máquinas e voltou a conduzir a nave para a zona intermediária entre o espaço e o tempo.
— O perigo está reduzido à metade — disse Cliff. — Em virtude da surpresa, esperaremos dois minutos. Depois atacaremos a outra nave.
Os nervos da tripulação entraram em tensão enquanto aguardavam o golpe decisivo. Na nave, reinava um silêncio fúnebre, interrompido apenas pelo zumbido dos garrards. A Aztran deslocava-se em torno de Terra como se fosse um satélite metálico; ninguém percebia sua presença. Um minuto passou-se... um minuto que durou horas.
O coronel Villa fitou as duas moças que se encontravam à sua frente.
— Tentaremos alcançar a Lancet — disse o homem pequeno e grisalho sem a menor comoção, como quem está combinando um passeio. — É claro que não temos motivo para supor que Wamsler, ou melhor, Marzal, me deixará partir de boa vontade. Vejamos o que conseguiremos fazer.
Acenou para as duas mulheres a fim de que se afastassem do tapete branco e liso. Ligou a iluminação do teto, que dava a impressão de um série de olhos de inseto. Uma cascata de luzes brancas e cristalinas caiu sobre o tapete branco, transformando-o numa área de projeção.
— É outra brincadeira tecnológica — murmurou Villa.
Reconheceram os contornos de um bangalô. Viram os muros, as paredes divisórias e certo número de linhas cujo sentido não entendiam. Pequenos pontos negros moviam-se no interior das linhas e numa pequena área em volta da casa.
— Isto é uma planta do parque e da casa — explicou Villa. — Estamos vendo coisas notáveis. Estes pontos negros são pessoas. Retifico: são seres estranhos que devem ter assumido um punhado de agentes do SSG. Vamos contar. São nove. Vemos que Wamsler nos avalia corretamente: três contra um. Uma pergunta, senhorita.
Dirigiu-se para a ordenança do serviço noturno de Wamsler.
— A senhora sabe atirar?
— Mais ou menos.
— Muito bem. Daqui para frente, a senhora terá de acertar todo tiro disparado, se é que gosta da sua mente. Afinal, a senhora possui um corpo que os desconhecidos assumirão com todo prazer, assim que o virem.
Não se sabe como, mas a moça conseguiu enrubescer.
— A senhora devia sentir isso mais vezes — disse Tamara em tom sarcástico. — Fica-lhe muito bem. Apresentá-la-ei a Mario de Monti, encarregado da cibernética da Orion.
— Deixemos as brincadeiras de lado — disse Villa. — São nove homens. Estão à nossa procura; não há a menor dúvida. Sei que não encontrarão o lugar em que nos achamos. Porém temos de atravessar a casa. E, uma vez que procurarão impedir-nos, usarão a melhor arma de que dispõem.
Um silêncio ameaçador encheu o recinto. Os pontos projetados na tela moviam-se devagar e nervosamente.
— Procurarão ver-nos e assumir-nos — disse Tamara em voz baixa.
— Isso mesmo. É o que devemos evitar.
— Como, coronel? — perguntou a moça.
— Com manha e astúcia. Villa dirigiu-se a um armário que chegava até o teto. Apertou um botão e a coluna afundou no solo. Assim que sua mão alcançou um das gavetas, o movimento cessou. Villa tirou uma arma, depois outra e uma terceira. Sua calma era apavorante; Tamara pensou que a tensão do perigo talvez o tivesse colocado numa difícil situação psicológica...
— McLane trouxe estas armas de Tareyton — disse Villa, atirando uma pistola de pressão de gás para Tamara. — O cônsul Halvorsen não soube do presente, motivo por que resolveu presentear-me com mais duas. São modelos bastante luxuosos.
Enfiou a arma entre as bainhas magnéticas da jaqueta.
— Mandei adaptá-las às finalidades que tenho em vista — disse Villa. — O veneno para os nervos contido nas agulhas é mais rápido e inofensivo. A pessoa atingida desmaia imediatamente, mas recupera-se dentro de uma hora. Devemos atingir um total de nove homens corri estas agulhas, se possível de costas. Se nos virem, a saída da Lancet será frustrada. Sabem o que está em jogo.
Tamara explicou a maneira de lidar com a arma.
— Dê um tiro de experiência — disse Villa. — Procure acertar neste livro grosso de lombada de couro.
Um exemplar manuscrito da obra de Cirano de Bergerac, Viagem aos Reinos Lunares e aos Países do Sol foi atingido bem no meio. Além do texto, obteve outro elemento narcotizante.
— É formidável! — disse o coronel em tom seco. — A senhora tem boa pontaria.
Passaram a discutir os detalhes do plano de fuga...
A porta do congelador da cozinha robotizada do chefe do Serviço Secreto abriu-se sem o menor ruído. Villa passou o cano da pistola pela abertura e disparou. A arma apenas produziu um fraco chiado. A agulha atingiu o agente no ombro.
— Foi o número um — disse Villa em voz baixa. Depois, saiu do congelador meio agachado. As orelhas e a ponta do nariz já estavam azuis de frio. Fez um gesto com a mão.
Tamara e a cadete saíram furtivas da entrada lateral. Um dos homens virou-se, foi atingido em cheio pelo disparo de Tamara e caiu ruidosamente ao solo. A moça dirigiu-se para a direita e desapareceu. O barulho foi ouvido. A camarada aguçou o ouvido, percebeu o som de passos e aguardou, agachada atrás de uma poltrona que ficara mais próxima à passagem de uma sala para outra. Um agente aproximou-se correndo, estacou na porta e caiu. Fora atingido pelo disparo. Tamara mudou de posição. Mais dois agentes que seguiam o primeiro também foram atingidos antes que pudessem penetrar no recinto. Tamara voltou à cozinha e saiu correndo pela outra porta. Faltavam quatro.
— Queremos capitular — disse uma voz estranha. Tamara reconheceu um agente do SSG parado na porta, do lado oposto da sala. Comprimia-se junto à entrada; ao que parecia, esperava por alguém que se encontrava na sala. Segundo o plano, Villa devia achar-se naquela sala. Tamara fez pontaria e atirou.
Depois, atravessou a sala, foi à porta e espiou para a peça contígua. Viu Villa que se erguia junto a um enorme grupo de móveis estofados e disparava em direção ao terraço, acertando mais um. Tamara estalou os dedos. Villa virou-se instantaneamente, reconheceu-a e, levantou ligeiro a arma. A agulha produziu um estalido ao perfurar o teto. Villa levantou a mão e estendeu dois dedos. Faltavam dois agentes.
— Estão atrás das árvores.
Chegaram a um pequeno grupo de árvores sem que acontecesse qualquer coisa. Villa fez um sinal para a cadete. Quinze metros abaixo do lugar onde se encontrava, Tamara viu o grande carro do SSG que acabara de chegar. A porta estava aberta e um agente encostado à mesma olhava para a casa. Tamara apoiou o cano da arma a uma árvore, apontou cuidadosamente e disparou. O homem caiu sem emitir o menor ruído. O outro, saindo da casa, foi também atingido. Era a nona vítima.
O poço da decolagem foi avistado em meio às árvores.
— Vamos! — exclamou Villa a meia voz.
A cadete veio correndo da casa, parou perto de Tamara, esbaforida, e passou a mão pelos olhos.
— Que coisa horrível! — disse num cochicho. — A casa está cheia de homens inconscientes. É um quadro pavoroso.
Tamara respondeu em tom sério:
— Se um dos homens nos tivesse visto teria acontecido uma coisa realmente pavorosa. A esta hora, alguém dentre nós seria um dos desconhecidos. Estaríamos perdidos, e os seres estranhos já saberiam de nossos planos.
A moça não disse nada. Fez um gesto afirmativo e seguiu Tamara escada abaixo, em direção ao fundo do poço de decolagem. As máquinas da Lancet já estavam funcionando. Tamara foi a última a subir a pequena escada e entrar a bordo. A Lancet tomou o rumo sul.
Uma vez sobre o pólo sul, correu em direção à Lua e escondeu-se. Pairou sobre as montanhas lunares, tão próxima às mesmas que, observada de Terra, dava a impressão de se tratar de uma parte do satélite natural. Mas os ocupantes do pequeno veículo espacial reconheceram nas telas de ampliação o planeta Terra, EA IV e dois pontos que foram identificados como as naves inimigas. Atordoada, Tamara fechou os olhos e recostou-se na poltrona.
— Os desconhecidos, ou melhor, Marzal encarnado em Wamsler, realmente estavam blefando segundo todas as regras da arte — disse depois de algum tempo.
Villa pôs o dedo sobre a tela de localização que se encontrava diante do quadro de comando.
— São apenas duas naves. E não são muito grandes. É apenas a vanguarda deles. Neste momento, encontramo-nos longe de Terra e não podemos ser vistos. O que vamos fazer?
Deu de ombros.
— Esperar — disse Villa.
A jovem cadete feminina parecia sentir-se bastante aliviada. Olhou por uma das pequenas cúpulas transparentes, fitando o espaço. Viu a paisagem lunar recortada embaixo do lugar em que se encontrava. Enxergou Terra e dois pontinhos minúsculos que refletiam a luz do solo.
"Será que os olhos me pregam uma peça?" pensou. "Ou será que as naves podem ser vistas?"
A moça fechou os olhos, e quando voltou a abri-los, os pontinhos haviam desaparecido.
— O que vamos esperar? — perguntou Tamara.
— Vamos aguardar a iniciativa do general Lydia van Dyke. Provavelmente, dentro em breve, lançará um ataque por meio de naves robotizadas vindas do hiperespaço, que serão programadas de maneira a serem explodidas automaticamente, caso se torne necessário. Uma dessas naves poderá recolher-nos.
— Quem dera McLane estivesse aqui — disse a moça.
Tamara não pôde deixar de sorrir.
— McLane — disse em tom pensativo.
— Cliff McLane está perdido em algum lugar nesta maldita nave-teste e tem seus próprios problemas. Além disso, se aparecesse agora, cairia diretamente na armadilha.
— De qualquer maneira vamos esperar
— disse Villa.
— Quanto tempo?
— Nossas provisões são suficientes para três dias, pelo menos. Temos tempo de sobra para elaborar um plano. Em último caso, podemos pousar na Lua e ocupar uma das fábricas inteiramente robotizadas. Porém estaríamos sujeitos à influência dos desconhecidos.
Ficaram calados, perderam-se em pensamentos inteiramente estéreis e esperaram. Sentiam-se abatidos.
A primeira hora passou devagar, e a segunda começou. Tamara voltou a controlar-se, apontou para a tela do super-radar e perguntou em voz baixa:
— São duas naves, coronel. Qual é o número de ocupantes, pelos seus cálculos?
Villa bateu vários algarismos nas teclas da calculadora e disse:
— As naves têm pouco menos de cem metros de comprimento e, no lugar mais bojudo seu diâmetro é de trinta metros. Calculo que cada uma delas pode abrigar cento e cinqüenta indivíduos. Uma vez que tiveram de realizar um vôo muito longo, grande parte do espaço deve ter sido ocupado pelas máquinas e provisões. Tentam preparar Terra para a invasão com os trezentos egos. Não sei por que nos concederam um prazo de três dias.
Tamara olhou para a paisagem vazia e desolada do satélite natural e respondeu:
— Pois eu sei.
Villa e a moça prestaram atenção às suas palavras. Por enquanto as três pessoas, que se encontravam ali, possuíam uma esperança fundada na capacidade de agüentar durante setenta e duas horas.
— Queriam que o pânico se alastrasse. Um planeta seria uma presa fácil, caso os bilhões de habitantes estivessem numa ex-citação febril. Estão travando uma guerra psicológica. Uma vez que ocultamos a notícia funesta, conseguimos ao menos evitar os sofrimentos ligados a uma psicose de massa.
A risada de Villa tinha um tom mais que amargo.
— Os cavalheiros, que dirigem os destinos de nossos povos, apenas sentiram-se tomados de medo e não conseguiram fazer nada. Isso explica seu silêncio. Até agora a frota conseguiu salvar a situação. Por mais violenta que seja a luta, será o sustentáculo da resistência. Olhem! O que será isso? Relâmpagos?
Villa falou mais alto. Apontou na direção do planeta. Bem acima deles, a mais de mil quilômetros de distância, uma série de relâmpagos cortou o negrume do espaço. Parecia que uma enorme trovoada se descarregara entre Terra e a Lua. O negrume logo voltou a reinar.
— Coronel!
O grito fez com que Villa virasse abruptamente a cabeça. Viu a cadete feminina com a mão estendida, apontando para o pequeno radiorreceptor. Uma luz vermelha acendia-se a intervalos irregulares.
— Alguém está procurando contato pelo rádio... — murmurou Villa perplexo. — Quem...?
Comprimiu a larga tecla vermelha. A pequena nave auxiliar parecia estourar com o som saído do alto-falante, do qual saíram palavras mal articuladas. A mão de Villa logo girou o botão de regulagem de volume. Os ocupantes da Lancet não ouviram as primeiras palavras, mas o resto apresentava uma clareza que poderia ser considerada como ótima.
— ...virem suas naves imediatamente e saiam deste setor...
— É a voz de McLane! — gritou Tamara.
Sentiu que seu rosto estava ficando vermelho e abraçou a cadete.
— O vermelho do rosto fica-lhe muito bem, senhora — murmurou a moça com um sorriso.
— Se a resposta não vier, ou se for negativa, ambas as naves serão destruídas. Nossa exigência: abandonem Terra...
— Gostaria de saber como McLane ficou sabendo que... — começou Villa em tom exaltado.
Tamara sabia o que queria dizer, e interrompeu-o.
— Também gostaria de saber — disse em voz alta.
Agora a espera já não era inútil. E aquilo que viram deixou-os muito felizes.
DURANTE cento e vinte segundos, a Aztran Beta circulou em torno do planeta. Os tripulantes ficaram imóveis nos seus lugares. A moça e os quatro homens sabiam que teriam de agir com uma rapidez fulminante.
— Já se passou um minuto — disse Cliff.
— Um minuto de tempo de bordo — disse Hasso na sala de máquinas.
— Compreendo. Lá fora o tempo passa mais depressa. Foi um erro que cometemos na elaboração de nosso plano.
— Devíamos corrigi-lo, encurtando o tempo de espera — respondeu o astronavegador.
Mais uma vez, a nave voltou do estado superordenado para o espaço normal. A nave inimiga surgiu pouco à frente da Aztran. Todos os bocais de jato cuspiam fogo e precipitavam o veículo em direção à atmosfera terrana. Os desconhecidos fugiam em direção ao planeta onde, segundo acreditavam, estariam em segurança. Provavelmente, ainda antes do pouso, assumiriam alguns terranos e assim salvariam seu ego.
— Alvo na mira — disse Mario.
— Fogo.
O projetor Overkill voltou a entrar em ação. O feixe de raios fez com que a segunda nave dos desconhecidos se desmanchasse numa nebulosidade silenciosa. A Aztran foi freada, descreveu uma curva parabólica, voltou a sair para o espaço e cessou o vôo à velocidade da luz. As máquinas de compensação uivaram. Finalmente Hasso desligou de vez os garrards.
— Sala de máquinas para comandante — disse em voz alta. — Vôo experimental concluído.
Um ligeiro sorriso surgiu no rosto de Cliff. Virou a cabeça para Helga que, bastante nervosa, manipulava os controles do rádio.
— Para a sala de máquinas. Entendido. Vôo experimental ainda não foi concluído. Helga acaba de receber uma mensagem. Qual é o texto, minha filha?
Helga não disse uma palavra. Transferiu a ligação para os alto-falantes de bordo e a voz espalhou-se pela Aztran.
— Aqui fala o coronel Villa. Chamamos a nave que se encontra na órbita de Terra, que supomos ser a Aztran. Pedimos que nos recolham. Encontramo-nos numa Lancet e seguimos na direção de Terra.
Mario voltou à sala de comando e suspirou aliviado.
— Então, que tal me achou? — perguntou, sedento de glória.
— Foi exemplar e irreconhecível — resmungou Atan. — Graças ao auxílio que lhe dei. O que faz Villa numa Lancet junto à superfície da Lua? Será que foi o terceiro eco das nossas telas?
— Logo saberemos — disse Cliff em voz baixa. — Os microfones estão preparados?
— Microfones preparados — respondeu Helga.
— Nave Aztran para Villa, a bordo da Lancet — disse Cliff em voz alta. — Lançaremos nossa Lancet para recolhê-lo a bordo. O senhor está só, coronel?
A voz de Villa parecia irônica e enérgica como sempre.
— Não estou só, mas sinto-me solitário.
Estou em companhia de Tamara Jagellovsk, e ainda de uma moça gentil. Ao que parece, a pequena está com medo.
Mario resmungou para dentro do microfone:
— Essas tarefas me pertencem, chefe.
— Está bem — respondeu Cliff McLane. — Logo o alcançaremos, coronel Villa. Desligo.
A tripulação olhou-se com uma expressão de triunfo. As naves foram destruídas e, por ora, o perigo que ameaçava o planeta Terra estava afastado. Porém, uma terceira nave viria de Tjader II. E nenhum dos tripulantes da Aztran sabia quantos desconhecidos já se haviam "abrigado" no interior dos corpos de terranos.
— Apesar dos êxitos que já alcançamos ainda estamos no começo — disse Cliff em tom resoluto. — Por enquanto não devemos festejar a vitória. Antes de mais nada, vamos recolher a Lancet. Depois pediremos aos competentíssimos representantes dos órgãos de segurança para nos relatarem os acontecimentos.
— É o que devemos fazer — disse Hasso. — Voltei a ligar a pilotagem manual de velocidade inferior à da luz. Já sabe o que fazer, não sabe, Cliff?
— Sei. Obrigado, Hasso.
Os dois veículos espaciais aproximaram-se com a velocidade reduzida.
— Iniciar manobra de recolhimento — disse Cliff dali a pouco.
Mario ativou o raio de tração. O campo recolheu a Lancet de Villa e conduziu-a diretamente para a comporta. O veículo espacial desceu lento, repousou na parte inferior dos trilhos de. decolagem.
— Coronel, a tripulação da nave-teste, lhe dá as boas-vindas.
Uma escotilha se abrira e McLane estava apertando a mão do coronel Villa que, naquele instante, pisava o chão do poço de decolagem. A seguir, Cliff abraçou Tamara e sorriu para a ordenança feminina.
— Vamos para a sala de comando — disse em tom alegre. — Neste momento, está sendo servido o café.
Villa virou-se ligeiramente e, dirigindo-se a Cliff, que colocara o braço em torno do pescoço da camarada, disse em voz baixa:
— Temos muita coisa a relatar, McLane.
Cliff fez um gesto distraído.
— Vamos deixar isso para depois, coronel — murmurou.
A Aztran descrevia uma órbita de noventa minutos em torno de Terra. A tripulação se reunira na sala de comando, e três poltronas sobressalentes haviam sido atarraxadas ao solo. Villa, Tamara e a jovem cadete tomaram lugar nas mesmas. Mario começou a fazer jus à sua fama temível: pôs-se a flertar. O coronel Villa e Tamara apresentaram seu relato, completando mutuamente suas declarações.
Assim que concluíram, Cliff disse em tom perplexo:
— Se isso não fosse tão trágico, seria engraçado. Wamsler assumindo o papel de um ser estranho. Meus desejos mais recônditos se realizaram.
Mas logo voltou a tornar-se sério.
— E esses homens que estão no seu bangalô, coronel? O que lhes acontecerá? — perguntou o comandante.
Villa deu de ombros.
— Não sei, mas só podemos esperar que os desconhecidos se tenham retirado, perplexos e inseguros. Veremos. Se encontrarmos um grupo de agentes do SSG, muito surpresos, tudo estará esclarecido.
— Nesse caso o marechal Wamsler seria a única criatura assumida que restaria. O retorno é impossível, pois as naves foram destruídas. Acontece que a terceira nave se aproxima, e é ela que determinará nosso futuro procedimento.
Villa revelou que, com exceção de alguns agentes do SSG, perplexos e sem comando, dificilmente poderiam contar com qualquer auxílio. E, uma vez que a Base 104 era o centro da navegação espacial terrana, os desconhecidos se haviam fixado lá. Tiveram conhecimento desse fato por intermédio de um astronauta.
— Tem algum plano? — perguntou McLane em tom sombrio.
— Sim. Trata-se de uma ação psicológica e temporalmente coordenada, em três estágios. Preste atenção!
Expôs o plano que surgira durante o longo tempo de espera passado no interior da Lancet. Seus ouvintes mostraram-se entusiasmados. Mas, quando Villa concluiu, sabiam que um novo fator de risco surgira.
Apesar de sua arrogância, causada pela consciência do poder absoluto e pelo conhecimento das possibilidades de seu intelecto, a personalidade mental do estranho, que voltara a ser Marzal sob a máscara do marechal Wamsler, possuía um elevado grau de perfeição.
Marzal sentia-se só. No ambiente externo, essa solidão encontrava sua expressão na disposição da luz e da escuridão no interior do gabinete do chefe das Formações Espaciais. Parte da poltrona, da mesa reluzente e as mãos do homem estavam no círculo de luz. O resto ficava na escuridão. A barreira de fluxos, a tela do videofone, a esfera espacial e os botões do comando nas paredes produziam efeitos luminosos pouco relevantes. Marzal-Wamsler disse para si mesmo:
— Ao que tudo indica, perdemos a primeira batalha. Até hoje, os rovers nunca foram derrotados.
Calou-se e contemplou as imagens projetadas na tela do videofone. Eram coloridas e desenvolviam-se em três dimensões.
Mais uma vez, surgiu um quadro que se revestia de grande força simbólica. Um rio, não muito largo, estava sendo banhado pelos raios do sol. A ilha, no meio do curso dágua, era uma superfície de pedregulho: seca, branca e sem vida. A área coberta de pedrinhas achava-se cercada de juncos, nos quais se viam grandes aves. O cenário transmitia um sentimento de solidão. O lugar poderia servir de refúgio para uma pessoa que perdera quase todas as esperanças. A voz que comentava o quadro informou tratar-se da zona de Camargue, que ficava no interior de um dos parques naturais de Terra. Marzal recostou-se, retesou os músculos e começou a sentir medo.
— A terceira nave, que pousou em Tjader II — murmurou o invasor. — Dentro de poucos dias estará aqui. Quando isso acontecer, haverá duas alternativas.
Marzal estava sentado em meio à sua ilha de luz; o caçador transformara-se numa criatura perseguida. Era uma idéia amarga, mas ainda restava um fio tênue de esperança. Os sistemas de comunicação do gabinete haviam sido paralisados, e a maior parte dos humanos abandonara as cavernas, as galerias e os corredores da Base 104. Preferiram fugir e esconder-se. Marzal não conseguia ver ninguém, e por isso estava condenado a manter-se à espera no lugar em que se encontrava. Naquele momento, perguntou-se mais uma vez o que estava aguardando. Em meio ao silêncio do recinto, sua voz assumiu um tom irreal.
— Aguardo uma possibilidade de retirada.
Haviam decolado com três naves, para conquistar sem luta um planeta que seria utilizado por sua raça. Uma das naves sofrerá uma avaria e foi deixada para trás. Chegaria mais tarde; segundo ele esperava, em tempo para salvá-lo. Se conseguisse o salto para o interior da nave, estaria salvo e, num futuro não muito distante, poderia voltar a este mundo maravilhoso, a este planeta cheio de belos corpos. E retornaria com uma grande armada.
— Maldito McLane! — gemeu Marzal. "Suponhamos que a nave chegue em tempo", pensou. Nesse caso, poderia saltar e salvar-se.
Em cada nave, havia alguns seres que costumavam ser levados nas longas viagens a título de reserva para, no caso de algum acidente, garantir a imortalidade em potencial. Esses corpos de reserva estavam garantidos. O problema estaria solucionado.
De repente, a situação não lhe pareceu tão desesperadora. Agarrou-se a essa esperança.
"Mesmo que McLane", voltou a pensar, "este coronelzinho com sua maldita nave-teste, me obrigasse a uma reação rápida, poderia escapar e voltaria a golpear... um dia destes."
Os rovers haviam cometido dois erros. Eram erros insignificantes. E esses erros impediram mais um êxito de sua raça. Um sinal iluminou-se. Marzal ignorou-o. Em primeiro lugar, houve o confronto decente, no momento em que anunciou a tomada de Terra aos responsáveis pelo planeta. Depois, o prazo de espera de três rotações do planeta. Dentro de três dias o pânico seria tamanho que a tomada do planeta seria feita com a maior facilidade. Porém, todas essas suposições saíram erradas.
O excelente cérebro de Marzal, que se servia das células do ex-marechal, concebeu um plano bastante simples para garantir a salvação de sua pessoa e o regresso ao seu planeta. E, a seguir, uma armada seria posta em movimento.
O sinal continuava aceso. Marzal procurara dirigir a invasão silenciosa a partir desse lugar. Os terranos o haviam sabotado, cortando todos os canais de comunicação, com exceção de um único. Dessa forma, transformaram-no num ser solitário e perseguido, mas fizeram chegar a ele todas as notícias e informações. Acompanhara todas as fases do fracasso. Agora, as coisas pareciam ter chegado ao fim.
O sinal! Marzal já revolvera tantas vezes a memória de seu anfitrião, que conhecia o significado do mesmo. Alguém, que se encontrava na ante-sala, queria falar com ele. Uma indagação surgiu em sua mente, e, mais uma vez, o estranho teve um vago temor. Comprimiu a tecla. A projeção das imagens do planeta Terra foi interrompida, e alguns rostos surgiram na tela. Marzal-Wamsler reconheceu a cabeça do coronel McLane.
"Será que ele me visitaria pensando que era Wamsler?" pensou. "Ou saberia da verdade?"
— Pois não, McLane — disse o estranho com a voz de Wamsler. Cliff parecia reservado, mas não ameaçador.
— Queremos falar com o senhor, estranho — respondeu o coronel. — Faça o favor de deixar-nos entrar. Desative a barreira de fluxos luminosos.
Marzal pensou por algum tempo: "O coronel tem algum plano; a visita visa a um fim definido."
Atrás de McLane, Marzal reconheceu o coronel Villa, chefe do Serviço de Segurança, um agente do SSG que não conhecia e Hasso Sigbjörnson.
Onde estaria o resto da tripulação?
Não poderiam matá-lo; se tentassem, mudaria de anfitrião. Veria os visitantes; portanto, as coisas seriam muito simples. Seria inútil escapar pelos corredores vazios da base, e todas as possibilidades de sair da mesma haviam sido eliminadas pelos homens em fuga.
— Acho que veio por algum motivo, não veio? — perguntou Marzal.
Cliff McLane fez um gesto resoluto.
— O senhor tem razão, estranho. Abra. Dali a dez segundos, Villa, McLane e o agente viram-se diante da escrivaninha. Sigbjörnson mantinha-se de lado. Cliff abriu a palestra.
— Sabemos que o marechal Wamsler foi assumido pelo senhor — disse em meio ao silêncio ameaçador do gabinete. — Não pretendemos matá-lo, mas temos a intenção de travar um diálogo longo e justo com o senhor. Está de acordo?
Marzal fez um gesto afirmativo. Não conseguiu ler os pensamentos do astronauta, nem os do chefe do SSG. Se assumisse um deles... Suas reflexões foram interrompidas. Cliff McLane tirou uma arma grande e esquisita do bolso da jaqueta. Fora fabricada especialmente para a operação com a Aztran. Colocou a arma sobre a escrivaninha.
— Antes de tomar qualquer atitude, queira ouvir-me, estranho — disse McLane. — Conforme as circunstâncias poderá ser vantajoso para o senhor.
Marzal preferiu não procurar outro anfitrião. O saber do marechal lhe seria muito útil para a discussão que se aproximava.
— Está certo — disse Marzal. — Pode falar.
"Não estão inseguros e, por enquanto, nada têm de ameaçador", pensou, "mas uma aura de decisão parece irradiar deles. Sinto seus efeitos."
— Tivemos acesso ao gabinete — disse McLane, enfatizando as palavras — porque fomos identificados como homens. Em toda a base, não existe qualquer vestígio de vida humana. Atrás de nós, as barreiras voltaram a ser erigidas. Sem um sinal, que só eu conheço, não conseguiremos sair.
Marzal percebeu que os terranos não eram tolos. Refletiram muito bem antes de agir.
— Compreendo perfeitamente — disse a meia voz. — Nem eu poderei sair da base.
— Não. Ao menos pela forma desejada. Nunca sairá num corpo humano.
— Não compreendo.
Os outros homens não disseram uma única palavra. Como a um sinal, abriram as jaquetas e tiraram armas estranhas dos cintos.
— Estas armas são pistolas de pressão de gás, estranho — disse o coronel Villa em tom penetrante. — Uma carga de gás altamente comprimida existente em seu interior arremessa uma agulha para dentro do corpo da vítima. Numa fração de segundo, a vítima perde a consciência. Supomos que a transferência de um anfitrião para outro deve levar algum tempo. No momento em que o senhor tentar essa transferência, nosso diálogo terá chegado ao fim. O novo anfitrião será reconhecido e paralisado imediatamente. No momento em que a mente, o ego, não pode contar com o exercício de determinadas funções, estará imobilizado, amarrado. Nesse caso, o respectivo indivíduo será colocado numa câmara de frio até morrer, e com ele morrerá o ego do senhor. Reconhece a existência desta possibilidade?
Agora tinha certeza absoluta: os terranos haviam encontrado um caminho.
— Parece bem plausível — disse Marzal. — Prossiga. Precisarei de algum tempo para pesar as conseqüências.
Villa abriu a mão em direção a McLane.
— Faça o favor de prosseguir, coronel. Cliff fitou os olhos negros de Wamsler, onde uma consciência estranha se fixara.
— Neste recinto, existem cinco corpos humanos e um ego estranho. O senhor poderia tentar uma série de saltos sucessivos de um corpo para outro, a fim de acabar no meu. Pode tentar. Mas saiba que combinamos uma quarentena voluntária. Ficaremos aqui por cinco dias.
— Por que escolheram esse tempo?
— Por motivos de segurança — disse Sigbjörnson em voz alta.
— Daqui a uma hora, a terceira nave chegará às proximidades de nosso planeta. Pousou num planeta conhecido como Tjader II. Por coincidência, a Aztran Beta também pousou lá a fim de carregar novos blocos energéticos. Descobrimos a nave e ouvimos a conversa de dois indivíduos. Precisa de alguma prova?
Marzal refletiu por algum tempo e, falando devagar, disse:
— A coincidência parece tamanha que não consigo acreditar. Preciso de provas. Qual é o nome dos dois seres cuja conversa diz ter ouvido?
— Diz ter ouvido, não; ouvi — disse Cliff e apontou para Hasso.
— Vanden e Plas. Conversavam durante uma pausa no trabalho de conserto do sistema de comunicação da nave. Encontravam-se numa gôndola de aço presa à parte lateral do casco da nave. Os membros dos dois seres eram de cores diferentes. Deseja outros detalhes?
Marzal baixou a cabeça.
— Não — disse, dirigindo-se ao engenheiro de cabelo branco. — Acredito no que diz As provas são suficientes.
No recinto escuro, parecia haver uma única coisa importante: os cinco rostos, esculpidos pela luz. As respectivas expressões não deixavam perceber o que pensavam os terranos ou o estranho. E agora, surgia um silêncio que poderia ser o prenuncio de um curso decisivo dos acontecimentos. Finalmente Cliff McLane disse num tom duro e impiedoso:
— Deixe esse corpo e vá embora!
Por alguns segundos, Marzal refletiu em silêncio. Sua resposta foi proferida com a voz muito débil:
— Para onde?
— Volte para a terceira nave de sua raça. Estará aqui dentro de sessenta minutos. Uma vez que teve a gentileza de vencer a distância que vai da órbita de sua nave ao lugar em que Wamsler se encontrava, muito embora a imagem projetada por seus instrumentos não pudesse ser boa, o senhor não poderá deixar de encontrar o caminho de volta. Vá!
— É só isso? — perguntou Marzal. O coronel Villa começou a falar.
— O senhor já me conhece, estranho. Sou Villa, o organizador da resistência. O senhor tem medo de mim e das minhas possibilidades. Colocamo-lo diante de uma alternativa. Se dentro de uma hora não sair desse corpo, a terceira nave será destruída.
O coronel Villa fez uma pausa de efeito.
— Há mais um detalhe. Estamos falando sério. Se o senhor, estranho, conseguir ler na memória de seu anfitrião, meu amigo Wamsler, dificilmente poderá duvidar do que acabo de dizer.
Os terranos sentiram que o estranho estava sendo encurralado cada vez mais e não poderia deixar de percebê-lo. Marzal olhou para uma série de rostos implacáveis e, finalmente, perguntou:
— É impossível destruir nossas naves — disse. — Como conseguiram transformar duas delas em nuvens de gases?
Cliff apontou para a projeção da esfera espacial.
— Viemos do futuro e só nos tornamos visíveis por poucos segundos. Não houve tempo para localizar-nos e disparar contra nós e muito menos para assumir-nos.
— A terceira nave. É para lá que tenho de voltar?
— Isso mesmo — respondeu Hasso Sigbjörnson. — A Aztran Beta está circulando em torno de Terra com o restante da tripulação e sob o comando da tenente Tamara Jagellovsk. Mantém a velocidade inferior à da luz. A fim de evitar um deslocamento no tempo, só acelerará quando se aproximar da terceira nave dos senhores. Então se tornará invisível. Retornará em espaços incrivelmente curtos, e nessa oportunidade receberá notícias nossas. Tamara não terá a menor dúvida em destruir sua nave sem aviso prévio. Se o senhor subir a bordo, nada acontecerá à nave. Marzal olhou para o relógio.
— Faltam trinta minutos — constatou. — E se eu recusar?
— Já fizemos outra sugestão — disse o agente do SSG. — Poderíamos usar o senhor numa experiência na câmara fria. E ainda há outra possibilidade.
O agente fora um dos dez homens que havia cercado a casa de Villa. Ao recuperar a consciência, constatara que sua lembrança dos desconhecidos se transformara numa experiência pessoal. Desconfiava de que ele e seus companheiros haviam sido escolhidos para se transformarem nos assassinos de Villa, e isso causou um ódio infinito contra os estranhos. Sabia que o nome do estranho que havia assumido Wamsler era Marzal, e que sua raça era a dos rover.
— Outra alternativa?
— Exatamente. O senhor poderia ficar em Terra. Neste caso há de chegar o dia em que o senhor enlouquecerá. Será a criatura mais solitária da Galáxia, se resolver ficar conosco. Poderá apoderar-se de qualquer ser humano, mas sempre sentirá todos os martírios da solidão. Além disso, terei muito prazer em demonstrar que saberei ser bastante rápido para garantir a ocorrência de uma das primeiras duas hipóteses.
Com uma ligeireza impressionante, moveu o braço, pegou a arma, fez pontaria e atirou. A agulha passou zumbindo a poucos centímetros acima da cabeça de Wamsler e penetrou no revestimento da parede. Villa espalmou as mãos e disse num tom que quase chegava a ser conciliador:
— Tenho certeza de que o senhor terá bastante inteligência para compreender nosso ponto de vista, Marzal.
O estranho acenou lentamente com a cabeça.
— Neste caso, não poderá deixar de reconhecer que o abandono do corpo de Wamsler e a volta à nave é a única chance que lhe resta.
Marzal-Wamsler fez mais uma tentativa.
— Está bem; voltarei à nave. Mas quem me garante que não será destruída?
Pela primeira vez, nesta meia hora de palestra alguém sorriu. Foi o coronel McLane, mas seu sorriso era sarcástico e forçado.
— No momento, nós temos a força. E estamos dispostos a dar uma demonstração da mesma. Terá de contentar-se com nossa palavra. Não temos outra oferta.
— O senhor exige uma renúncia enorme — disse o estranho em tom furioso, através da voz de Wamsler.
— Conquistamos o direito que o senhor já teve. Vá logo e abandone este sistema para sempre e em alta velocidade. Daqui a vinte minutos, seu sonho de domínio de Terra terá chegado ao fim.
Marzal refletiu sobre as exigências.
Poderia tentar assumir estes seres, saltando de um para outro. Sabia perfeitamente que era o único rover neste planeta. Se assumisse qualquer dos homens que se encontravam ali, os outros o abateriam sem a menor contemplação. Poderia ter certeza de um fim prolongado numa câmara fria. Se saltasse de volta para um dos corpos mantidos de reserva não deixaria de ter uma chance, apesar do perigo indisfarçável representado pela nave invisível. Viu com os olhos da fantasia a gigantesca armada, que ocuparia o planeta numa ação rápida e silenciosa. Tomou uma decisão definitiva e não teve a menor dúvida de que as manobras no hiperespaço levariam sua nave para fora do alcance da Aztran.
— Faltam quinze minutos — disse em voz baixa. — Farei o possível para chegar à nave. Os senhores ganharam. Têm mais alguma coisa a declarar?
McLane respondeu em tom sarcástico:
— Espero que sua permanência neste planeta não tenha sido inteiramente vazia de belezas e emoções.
O agente do SSG levantou o braço e perguntou:
— O que vamos fazer?
Hasso Sigbjörnson apontou para o videofone:
— Já nos comunicamos com a tripulação da EA IV. Assim que a nave aparecer, seremos avisados. Ficarei junto à tela.
Levantou-se, virou a tela ótica e manipulou o pequeno número de controles que estabelecia ligação direta para a EA IV.
— Aqui fala Sigbjörnson — disse. — Senha: Tjader II. Mantenham o contato.
A voz do técnico descreveu a imagem de radar do cubo espacial em que ficavam Terra e a Lua.
— O contato está chegando ao gabinete de Wamsler.
— Faça o favor de projetar o eco da Aztran.
— Um instante.
Na tela, surgiu a imagem exata da reprodução tridimensional de um setor cósmico. A Aztran Beta corria em redor de Terra, numa velocidade pouco inferior à da luz.
— Obrigado. Esperaremos aqui mesmo.
Hasso sabia que mais uma vez tudo dependeria da excelente concatenação dos atos do restante da tripulação. Mario substituía-o no cuidado das máquinas, e Helga cuidava simultaneamente do rádio e das telas óticas. Atan encontrava-se na mira do projetor Overkill, enquanto Tamara ocupava o lugar de Cliff. Havia um tripulante a menos. Os terranos e o estranho permaneceram em silêncio e aguardaram quase sem o menor movimento. A tensão atingiu o estômago.
Dez minutos antes do segundo sinal, os homens pegaram as armas e sentaram de maneira a verem os rostos uns dos outros. Cinco minutos antes do instante em que era esperada a nave, os dedos de Hasso começaram a tremer. Apoiou a coronha da arma na parte superior da coxa. O cano apontava para Wamsler. Por enquanto, o estranho que se encontrava no corpo do marechal representava o alvo. Faltavam três minutos.
— Hasso, já discutimos todos os detalhes. Nossos homens sabem perfeitamente que só devem atirar a um comando bem definido?
Cliff formulou a pergunta sem tirar os olhos de Wamsler.
— Sabem — respondeu Hasso. — E conhecem os dois comandos que convencionamos. Um deles fará com que esperem, enquanto o outro representará a ordem de destruição. Conhecem-nos de cor, chefe.
Cliff expeliu o ar dos pulmões.
— Ainda bem — disse.
Dois minutos. Os homens controlavam-se com vontade de ferro. Porém, a cada instante, tornava-se mais difícil conservar a calma. Os segundos pareciam arrastar-se, e havia um estranho deslocamento no tempo. Hasso esforçou-se para não gritar.
— Eco — anunciou.
Wamsler levantou-se lentamente.
— Vôo experimental — disse Hasso em tom tranqüilo.
A ligação direta Terra — EA IV — Aztran fez com que a nave desaparecesse quase instantaneamente das telas. A nave-teste voltara a mergulhar no campo feito de espaço e tempo. A Aztran tornara-se invisível.
— Eco da Aztran desapareceu — comentou Hasso em tom contido.
Cliff levantou-se e disse:
— Vá logo, estranho. Abandone este corpo. Passe bem, se puder.
Por um momento Wamsler ficou quieto. Subitamente, seus olhos se arregalaram. Alguns segundos passaram. O marechal começou a cambalear de um lado para outro e apoiou o corpo maciço contra a mesa. Olhou os presentes. Piscou os olhos. Parecia não compreender nada e, falando com grande esforço, perguntou:
— O que está fazendo por aqui, McLane?
Cliff respondeu em tom tranqüilo embora sentisse as pernas tremerem:
— Estou esperando, estranho.
— Estranho? O que... já... começo a compreender. Estive... oh, que diabo!
Caiu na poltrona e cobriu o rosto com as mãos.
Hasso apontou a arma de pressão de gás contra o marechal, controlou a conduta dos outros terranos e disse:
— O eco da terceira nave começa a modificar-se. Inverteram o curso e estão acelerando aos poucos. Estão se distanciando... Acho que Marzal obedeceu.
Continuou a observar a tela. Enquanto isso, os canos de quatro armas estavam apontados para o homem que se mantinha em silêncio na semi-escuridão reinante no gabinete.
— Localização. EA IV. A nave desconhecida está acelerando. Seguem na direção da qual vieram. Qual é a mensagem que devo transmitir?
— Tjader II.
A voz de Cliff McLane foi perfeitamente nítida. Hasso estremeceu. Sabia o que aconteceria dali a pouco. Uma vez que as telas de radar estavam fixadas nas estações externas, a imagem projetada na tela transmitia a silhueta de Terra, o ponto representado pela nave que fugia, um círculo que era a Lua e, através do globo terrestre, o eco da nave Aztran. Esse eco não era real. Tratava-se apenas de uma ilusão criada por uma série de cálculos. Tjader II. Na estação EA IV, uma fita começou a correr. Irradiou a mensagem com grande dispêndio de energia. Era transmitida ininterruptamente, e por isso deveria ser captada pela nave-teste.
A mensagem saiu:
— Tjader dois... Tjader dois... Tjader dois... Tjader dois...
Os terranos sabiam o que significava. Mas esse conhecimento estava restrito a oito pessoas: o grupo que rodeava Wamsler e os tripulantes da nave-teste.
TAMARA Jagellovsk estava sentada na poltrona de Cliff, com os cintos bem atados, e procurou evitar que Sêneca a distraísse. O grande besouro verde-dourado zumbia em curvas cada vez menores em torno do centro da imagem. Uma vez que o centro projetado na tela mudava constantemente de posição, o vôo do besouro era confuso e distraía a atenção. Cinco segundos se tinham passado desde o mergulho na zona intermediária.
— Comandante-substituto para sala de maquinas. Salte de volta para o espaço normal, De Monti.
Aguardavam o texto da mensagem.
— Máquinas para comandante: entendido.
Dali a dois segundos, desapareceram as linhas coloridas que, durante o curto tempo de vôo, haviam perturbado os olhos da tripulação. Voltaram a ver o espaço com as estrelas, um setor de Terra e a foice lunar.
— Atenção! — disse Helga e procurou localizar a nave inimiga.
Identificou o eco num ponto situado bem acima do pólo norte de seu planeta. Os alto-falantes ligados num volume excessivo estalaram e tiniram, mas o texto da mensagem era inconfundível. Feriu os tímpanos dos tripulantes. O besouro continuou a zumbir.
— Tjader dois... Tjader dois...
A tripulação compreendeu a mensagem e soube interpretá-la. O sentido era apenas um: atacar.
— Comandante à sala de máquinas: volte à zona intermediária.
— Entendido — disse Mario de Monti e voltou a acelerar as máquinas garrards. Saltaram de volta por motivos de segurança. A distância que os separava da nave inimiga era bastante reduzida e, naquele instante, Atan ajustava a mira do projetor.
Mais uma vez, a Aztran abandonou a zona do mistério. Surgiu no espaço normal, e Tamara efetuou a correção de rota. Era mínima mas, como se deslocasse à velocidade da luz, bastava para realizar uma aproximação suficiente. A Aztran Beta precipitava-se sobre os estranhos, desenvolvendo quase a velocidade da luz. Atan puxou a alavanca. O alvo caminhou para o encontro do cruzamento das linhas e o raio do projetor Overkill estendeu-se em direção à nave. No lugar em que houvera um fuso esguio, uma nebulosa difusa se desfazia. A Aztran atravessou a névoa, fez uma abertura no círculo gasoso e foi freada.
— Comandante para máquinas: desligar garrards.
— Entendido.
Já não havia motivo para dizer mais nada. A ordem emitida por Villa e Cliff McLane fora executada. A terceira nave dos estranhos tinha sido destruída. Com um movimento resoluto, Mario moveu as alavancas uma após outra. Transferiu a energia para as máquinas que propiciariam o pouso da nave e liberou o canal principal para o quadro de comando da nave.
— Máquinas para comandante — disse. — Propulsão normal liberada.
Tamara freou o vôo vertiginoso da Aztran e contemplou o rosto sério de Mario de Monti. Lamentara que a ordenança tivesse regressado a Terra em companhia de Hasso e McLane, mas Tamara desconfiava de que haviam fornecido um ao outro o número dos respectivos videofones.
— Obrigada, Mario — disse. Ficaram em silêncio até que a nave
descansasse sobre os raios antigravitacionais, no interior do cilindro de aço da Base 104. Tamara atravessou os corredores vazios.
— O que está procurando? — perguntou um agente do SSG.
— Sou da tripulação da Aztran; procuro Cliff McLane — respondeu exausta.
— Eu a levarei ao lugar em que está — disse o guarda e pegou-a pelo braço...
Cliff McLane contemplou o marechal Woodrow Winston Wamsler com a fascinação do leigo que tem oportunidade de assistir ao fenômeno de uma modificação incontestável.
— Já compreendo — murmurou Wamsler em tom abalado.
As armas continuavam apontadas sobre ele.
— O que está compreendendo? — perguntou Cliff.
— Algum poder estranho deve ter-se apoderado de mim. Ou será que alguém me injetou uma droga?
Cliff e Villa viraram a cabeça. Fizeram um sinal de olhos para o agente do SSG. Esse homem se lembrava perfeitamente das sensações experimentadas ao despertar e, agora, participava do teste que Wamsler teria de realizar para que acreditassem nele.
— Não. Não foi usada nenhuma droga, nenhum medicamento — disse o homem do serviço secreto. — Wamsler, faça o favor de descrever o que está sentindo.
— Lembro-me de certa noite em que contemplava as estrelas e procurava ver esse maldito McLane. Aí, tive a impressão de que alguém me chamava.
— Obrigado — disse Cliff.
Prometeu a si mesmo que faria o marechal pagar pelo adjetivo que acabara de usar.
Wamsler não lhe deu a menor atenção.
— Daquele momento em diante, até poucos instantes atrás, fiquei submetido a um poder estranho. Lembro-me de ter visto um quadro. Tratava-se de uma comparação entre um ser esquisito feito de penas finas e um homem nu. Senti satisfação por possuir o corpo humano. Estou percebendo que a lembrança do tempo intermediário retorna com uma intensidade cada vez maior... Houve algo parecido com uma guerra, não houve?
Villa exibiu um sorriso frio e disse em tom irônico:
— Sim, algo parecido. Estas palavras retratam mais ou menos a verdade.
Wamsler gemeu.
— Fui o cabeça, o chefe de uma raça vinda em três naves, e que possuía a capacidade de transportar o próprio ego com apenas a força da mente.
Parecia não poder acreditar naquilo de que se lembrava. O agente do SSG fez um dos sinais convencionados. Parte das observações de Wamsler indicava que voltara ao normal, que era novamente o velho marechal que conheciam.
— E eu... oh, meu Deus! A terceira nave foi destruída?
— Não — disse Cliff. — Nossa luta é decente. A terceira nave tem permissão de voltar. Afinal, não somos assassinos!
— Oh, não!
Wamsler voltou a recostar-se na poltrona e cobriu o rosto com as mãos.
— Há algo de errado nisso? — perguntou Cliff em tom tranqüilo, embora ainda se encontrasse num estado de terrível tensão. Os próximos segundos poderiam ser decisivos.
— Esse Marzal que se fixou em meu corpo — disse Wamsler. — e fugiu naquela nave vai retornar com uma frota enorme. Serão milhares de naves cheias de demônios que se apossarão de nós.
Subitamente precipitou-se para a frente, pôs as mãos embaixo da tampa da escrivaninha, e as armas voltaram a concentrar-se sobre seu peito. Pegou um lápis e um bloco de papel, no qual anotou algarismos numa pressa vertiginosa. Era uma série de símbolos matemáticos bastante confusos.
— São as coordenadas do sistema dos estranhos! — exclamou.
— Isso tem algum valor para nós?
Cliff formulou a pergunta num tom extremamente tranqüilo. O fato de que Wamsler conhecia o plano do cabeça e o enunciava em voz alta, chegando mesmo a anotar as coordenadas do sistema, provava que realmente voltara a ser ele mesmo. Não estava mais submetido aos ditames do ego estranho.
Ao que parecia, só agora Wamsler estava vendo Cliff.
— Ah, o senhor está aqui, coronel — disse em tom de desespero. — Fico muito satisfeito. Quanto ao vôo experimental... Equipe uma frota e siga os estranhos. Dirija todos os projetores Overkill sobre a nave antes que desapareça. Não podemos permitir que escapem, pois jamais desistirão de seu plano.
— Quer que matemos os estranhos? Wamsler gritou numa exaltação tremenda:
— Vamos logo! Pegue a Orion ou essa nave maluca que serviu de teste e saia em disparada. É uma ordem oficial, McLane. Ordem alfa — berrava cada vez mais alto, embora de um momento para outro parecesse mais cansado.
— Decolarei — disse McLane. — O que aconteceu?
Wamsler moveu a mão em direção à tecla que desativava a barreira de fluxos luminosos. Parou instantaneamente quando o chefe do serviço secreto disse:
— Pare, Wamsler, senão terei que atirar.
Os dedos grossos do marechal pareceram recuar de susto diante da chave. A tela do videofone foi ativada por Hasso, que se deslocou rapidamente em torno da escrivaninha. Nela, surgiu o rosto de Tamara Jagellovsk, no qual se lia a expressão do esgotamento total.
Levantou a mão.
— Tjader II — disse. — Tudo resolvido, Cliff.
Era o sinal convencionado.
— Faça o favor de apertar o botão que desativa a barreira — ordenou Villa. — Já podemos tranqüilizá-lo, marechal Wamsler.
Wamsler fitou-o como se fosse um fantasma.
— Será? Como?
Villa permitiu-se um sorriso fugaz. Também estava próximo ao esgotamento.
Esperou até que Tamara se encontrasse ao lado de Cliff McLane, que travou a arma e voltou a guardá-la. Depois, disse em tom enfático:
— A terceira nave foi destruída. Wamsler acenou lentamente com a cabeça.
— Ainda bem. O que significa este ajuntamento? E as armas? Quem é o senhor?
O agente do SSG sorriu e disse:
— Obrigamos o chefe a abandonar seu corpo, marechal. Para isso, nossa presença foi indispensável. Usamos as armas para convencer Marzal da decisão com que Terra, representada por nós, se defenderia contra a ocupação total. Pode descansar, que o perigo passou.
— Não ficou ninguém?
— Ninguém — disse Hasso. — E se alguém se encontrasse aqui, não teria nenhum meio de voltar. Dentro de poucas horas, deverão retornar os elementos de cúpula do governo e da chefia militar, que foram evacuados à força. Terra está salva.
Sem o menor constrangimento, Cliff abraçou Tamara e beijou-a em público.
— No que diz respeito a mim — disse Hasso, desligando o videofone. — Vou ver minha mulher, tomar banho e dormir ao menos quinze dias sem parar.
Apertou a mão de Cliff, fez um gesto para Wamsler e Villa e afastou-se lentamente para a porta. A barreira deixara de existir.
Vários dias se passariam antes que todas as dúvidas pudessem ser esclarecidas. Mas o pior já passara. Por muito tempo, o coronel Cliff Allistair McLane admirou-se pela rapidez com que um sistema pode recuperar-se de um golpe, desde que as pessoas pertencentes ao mesmo possam voltar a seus lugares. Não se espantou tanto com a rapidez de sua recuperação. Não teve necessidade de cultivar equilíbrio resultante de uma boa quantidade de sono, alguns livros, alguns copos de bebida bem forte e várias horas de descanso. Esse equilíbrio foi produzido pelo emprego da terapia. Surgiu cinco dias depois do pouso da Aztran Beta.
Cliff estava só. Examinou o talhe impecável do uniforme, sorriu para sua imagem refletida no espelho e contemplou a caixa transparente em cujo interior Sêneca caminhava tranqüilamente sobre algumas porções de verde: deliciava-se com os vegetais. Ao que tudo indicava, o besouro parecia sentir-se bem. Tal qual Cliff; apenas, este não era cercado por qualquer envoltório transparente.
McLane saiu do bangalô, sentou ao volante do turbo-carro e foi a um dos elevadores. Dali a quinze minutos, viu-se na pequena sala de sessões do S.C.E. Na ante-sala, aconteceu o seguinte:
— Estão esperando o senhor — disse a moça loura, que trabalhava com um uniforme extraordinariamente elegante. — Mais uma vez, todos nós festejamos o senhor como o herói da semana.
Cliff respondeu com um sorriso sarcástico:
— Não conte a ninguém, mas sou o herói do ano. Do Ano Galático.
A cadete exibiu um sorriso cativante e ativou a tela que ligava a ante-sala à pequena sala de sessões.
A voz do marechal Wamsler, que já não permitia a menor dúvida de que o demônio estranho o abandonara em definitivo, saiu do alto-falante.
— Será que finalmente chegou esse McLane?
A barreira de fluxos luminosos desapareceu à frente de Cliff. Entrou lentamente na sala e tirou do bolso a caixa com o be-souro. Havia pouca gente em torno da mesa comprida: Wamsler, Spring-Brauner, Silvan Rott e o coronel Villa.
— Bom dia, cavalheiros — disse Cliff McLane.
Os rostos, que se voltaram em sua direção, pareciam exprimir benevolência. De qualquer maneira estavam descontraídos, embora nenhum dos homens tivesse subestimado por um segundo que fosse o perigo que ameaçara Terra.
— Antes de acusar-nos de não termos bastante objetividade para saber dar o devido valor aos seus serviços, permita-me cumprimentá-lo — disse Wamsler.
Voltara quase inteiramente ao estado anterior. Todavia, a expressão pensativa em torno dos olhos era inconfundível.
— Ficamos satisfeitos em notar que, mais uma vez, foi o senhor quem salvou a situação, juntamente com Villa — continuou Wamsler em voz alta. — Queira aceitar nossos agradecimentos. Ainda lhe devo meus agradecimentos pessoais porque o senhor colaborou numa ação decisiva que me livrou da influência dos estranhos, mais precisamente dos rovers. Nunca me esquecerei disso.
— Não agradeça a mim — disse Cliff numa falsa compenetração — mas à tripulação da Orion VIII, que teve uma atuação mais que decisiva. Todo mundo fez o melhor que pôde, marechal Wamsler.
— Não tenho a menor dúvida — disse Wamsler. — Aliás, por onde andou durante tanto tempo com a nave-teste, a Aztran?
Cliff teve a impressão de não ter compreendido bem.
— Como? — perguntou em tom incrédulo.
— Queremos saber onde esteve — respondeu Wamsler. — Afinal, esteve fora quase seis semanas.
— Estivemos no cosmos — disse Cliff. — E mantivemo-nos muito ocupados.
— Tiraram férias em algum planeta; já sei. Resolveram tirar as férias que foram interrompidas.
Cliff sabia quando Wamsler estava falando sério; empertigou-se.
— Marechal Wamsler — disse em tom penetrante. — Tenho certeza absoluta de que está brincando. Afinal, o procedimento de quem difama alguém que contribuiu para a salvação do planeta é bastante estranho. Não estivemos apenas no cosmos, mas no futuro.
Wamsler soltou uma gargalhada.
— Agora é o senhor quem está brincando, McLane.
Cliff dirigiu-se a Silvan Rott, que se encontrava ao lado de Villa e até então se mantivera em silêncio.
— Pode contar — disse Rott. — Ainda não tivemos oportunidade de examinar os registros de vôo.
— Durante o vôo, com a velocidade superior à da luz, o tempo a bordo da Aztran passou muito mais depressa que em Terra. Estivemos fora cerca de trinta horas; enquanto isso, por aqui se passaram seis semanas. Os dois sistemas diferem quanto à velocidade do tempo. Ainda pousamos em Tjader II, para reparar a nave. O fato será incluído no meu relatório. Porém, desde já, quero ressaltar que lá arriscamos a vida ouvindo a conversa dos estranhos. Wamsler levantou-se de um salto.
— Deixe as histórias utópicas por conta de Ibsen! O senhor deve ter realizado mais uma das suas manobras famosas. Ao que tudo indica, a tarefa do vôo experimental foi executada satisfatoriamente. Mas nos intervalos, o senhor deve ter tomado banhos de sol em algum planeta.
McLane sentia-se seriamente perturbado. Permaneceu calado, sacudiu a cabeça e pôs-se a refletir. Por fim, surgiu a idéia salvadora, mas não tinha certeza de que esta seria boa. Abriu a caixa.
— O que é isso? — perguntou Wamsler em tom penetrante.
— Um besouro venenoso, extremamente ágil — disse Cliff, falando lentamente. — Encontramo-lo em Tjader II e adotamo-lo como mascote da Aztran Beta. É um bichinho interessante. Só ataca pessoas desconfiadas. Ao que parecia, amava os que se encontravam a bordo.
Tinha o rosto sério, e seus olhos contraíram-se em forma de amêndoa.
— Pare com isso! — gritou Wamsler.
Cliff sacudiu a cabeça e, num movimento instantâneo, levantou a tampa da caixa.
Sêneca passou por cima da folha enorme da rosa, abriu as asas e saiu zumbindo. Tinha certa semelhança com uma Lancet em vôo ascendente. Voou em direção a Wamsler, circulou em torno da cabeça do mesmo e acomodou-se sobre o espaldar de sua poltrona. Wamsler levantou-se de um salto. Quase chegou a derrubar a poltrona. Espantou a mascote. O besouro continuou a zumbir.
— Chame esse besouro idiota de volta! — gritou Wamsler.
Villa continuou tranqüilamente sentado. Sorria.
— Está com medo, marechal? — perguntou em tom indiferente.
Wamsler debatia-se furiosamente.
— Nem um pouco! — asseverou em voz alta. — Acontece que estes bichos me deixam muito nervoso.
A resposta de Cliff veio em tom seco:
— Este é a mascote da Aztran, marechal. Tenho uma proposta que talvez possa ser considerada satisfatória para o senhor e para mim. Está disposto a ouvir-me?
Com um alívio imenso, Wamsler viu que o besouro se afastava em direção à projeção da esfera espacial, pousando sobre uma estrela.
— Estou. Pode falar.
Cliff respirou profundamente e principiou:
— Quero fazer uma aposta com o senhor, marechal. Aposto cem garrafas de Archer's Tears. Valeu?
Rott e Villa sorriam, mas Wamsler continuava sério.
— O que pretende fazer?
— Em primeiro lugar, pode interrogar minha tripulação sob juramento. Se quiser, o interrogatório poderá ser realizado pelos homens de Villa. Além disso, temos um diário de bordo, cuja existência o senhor parece ignorar. Por fim, a Aztran Beta possui um registro de vôo, que anotou cada minuto de viagem. Examine os três elementos. Depois, compreenderá por que estou disposto a apostar.
Wamsler levantou-se de um salto.
— Qual é a aposta?
— Cem garrafas de bebida de Tareyton — respondeu Cliff em tom frio. — Neste meio tempo, minha tripulação aprendeu a adorá-las.
— O senhor realmente quer que eu acredite que esteve no futuro?
— Claro. Enquanto a bordo, o decurso do tempo foi relativamente mais rápido do que em Terra e nos demais setores da esfera espacial, tivemos a idéia de liquidar ambas as coisas ao mesmo tempo, ou da mesma forma: o vôo experimental e a salvação de Terra. Sabíamos perfeitamente que conseguiríamos. Descontados os dias gastos nos reparos, nosso vôo durou cerca de trinta horas. O senhor não acredita, mas aposto que é isso mesmo.
— Hum — fez Wamsler. — Tenho certeza de que o senhor foi muito esperto, mas que tirou suas férias, tirou... e isso de forma ilícita. Como foi que ficou tão moreno?
— De raiva, marechal Wamsler!
— Quá-quá-quá! — fez Wamsler. — Talvez esteja disposto a fazer a aposta.
Cliff fez uma mesura.
— Será um prazer, marechal. Como sabe, costumo cumprir minha palavra.
Wamsler resmungou:
— É uma das raras qualidades do senhor. Qual é sua sugestão?
— Seremos honestos até o fim. A Aztran Beta chegou em perfeitas condições. A nave gêmea, Aztran Alfa, está no hangar. Ainda não foi tocada. Pegue uma tripulação de sua confiança e mande-a realizar um vôo com a segunda nave.
Wamsler sentou no espaldar da poltrona e olhou para Villa e Rott. O técnico fez um sinal de concordância.
— A interpretação do registro de vôo consumirá algum tempo, já que os impulsos terão de ser reconvertidos e decodificados. Por isso, a alternativa que acaba de ser sugerida é perfeitamente razoável, marechal Wamsler.
Cliff percebeu a concordância do técnico, que se limitou a uma piscada dos olhos. Ficou satisfeito.
— Qual será a tripulação? Wamsler apontou para Rott.
— A tripulação poderá ser recrutada entre os engenheiros do setor de testes do estaleiro. Ao que parece, gostam de realizar tarefas práticas. Quanto ao comando... — hesitou um instante e olhou para Spring-Brauner.
— Aqui está o comandante — disse Villa, ajudando Cliff à sua maneira. Apontou para o tenente-ordenança Michael Spring-Brauner. Este assustou-se e fez um rosto indignado.
— Spring-Brauner será mais incorruptível que dez relógios! — disse Cliff num falso entusiasmo. — Fará o registro imediato e detalhado de qualquer erro que tenha sido cometido por mim e pelos meus tripulantes. Michael, isso é uma tarefa para o senhor, e essa tarefa me poderá render grandes honras. Sinto-me feliz por ter sido justamente eu quem teve a idéia.
Exagerava desmedidamente e em alta voz. Wamsler parecia satisfeito.
— Está bem — disse. — Tenho o maior prazer em aceitar sua sugestão, McLane. O tenente Michael Spring-Brauner acompanhará o vôo como observador, na qualidade de representante das F.R.E.T. Garantirá o registro de todos os detalhes e a realização de um vôo ininterrupto. Enquanto a nave permanecer no espaço, o senhor estará de férias, McLane. Segundo suas informações, será um dia.
Wamsler soltou uma risadinha irônica.
— Aceito — disse Cliff. — Ainda aposto cem garrafas de que terei férias bem longas.
Wamsler bateu com a mão na coxa.
— Durante um ano terei oportunidade de tomar sua aguardente, coronel! — exclamou em tom alegre. — Está bem. Aceito a aposta.
O rosto de Spring-Brauner mereceria um estudo. Era um misto de perplexidade, raiva, resignação e temor que lhe inspirava a tarefa. Uma vez que a ordem oficial de seu superior direto não admitia outra interpretação, Spring-Brauner — furioso mas calado — conformou-se com aquilo que não podia remediar.
— Acompanharei o vôo — disse em tom solene. — Posso retirar-me para fazer meus preparativos?
Wamsler concordou com um gesto relaxado e satisfeito.
— Está bem. Pode retirar-se. Rott lhe dará uma ajuda. Está certo?
Silvan Rott levantou-se com um sorriso cujo significado só foi compreendido por Cliff e pelo coronel Villa.
— Fornecerei todos os detalhes de que precisar — disse, acompanhando o tenente-ordenança.
Os dois homens saíram em boa paz.
— Não se esqueça do que acaba de dizer — disse Cliff, levantando-se. — Ficarei de férias enquanto Spring-Brauner estiver no espaço. Enquanto isso pode arranjar as cem garrafas de bebida para minha tripulação.
Wamsler pôs as mãos nos quadris e apontou com o queixo na direção do coronel Villa.
— Temos testemunhas de primeira ordem, coronel — disse. — O arranjo satisfaz o senhor?
Cliff fez um gesto afirmativo; parecia satisfeito.
— Inteiramente, marechal — disse. — Estou muito satisfeito. Quando precisar de mim para outra incumbência especial, fique à vontade. Não se acanhe. Cliff McLane e seus tripulantes sempre estarão dispostos a salvar Terra, mesmo que além de um soldo reduzido só consigam colher a ingratidão, a desconfiança e a prisão. Afinal, isso nos diverte a valer.
Wamsler ameaçou-o com o dedo.
— Não seja impertinente, McLane! — esbravejou.
— De forma alguma — disse Cliff. — Posso retirar-me?
— Fique à vontade. Aproveite bem suas curtas férias. Transmita minhas recomendações aos seus comparsas.
Cliff virou-se. No mesmo instante, o besouro saltou da estrela e voou diretamente para Wamsler.
— Ei! — gritou este. — Leve seu besouro do inferno.
Falando por cima do ombro, Cliff disse em tom tranqüilo:
— Mais uma vez, vejo-me obrigado a decepcioná-lo, marechal. Sêneca é uma criatura inofensiva. Só pica pessoas que foram assumidas por um rover. Mas não tenha receio.
Enquanto atravessava a barreira de fluxos luminosos, ouviu a risada alegre do chefe do serviço secreto. Na ante-sala, encontrou-se com Michael Spring-Brauner. Silvan Rott encontrava-se um metro atrás do tenente. Um sorriso insolente cobria o rosto do técnico. Esse sorriso deixou Cliff satisfeito.
— O senhor me meteu numa boa — exclamou Apoio.
O sorriso de Cliff tornou-se amplo.
— Eu lhe prometi que um dia lhe pregaria uma peça — disse em tom penetrante. — Costumo cumprir minha palavra, sempre que possível. Desejo-lhe uma boa viagem. Se achar o vôo muito longo ou muito curto, não se esqueça de McLane e de sua excelente tripulação. Desfrute as maravilhas do espaço! Não deixe de voar.
Afastou-se em atitude digna, mas com certa rapidez. Dentro de pouco tempo, chegou ao seu bangalô.
— Tamara! — exclamou ao vê-la na gigantesca poltrona junto à piscina.
— Querido! Você parece tão alegre e descontraído! — exclamou Tamara e deixou que Cliff a beijasse. Este começou a rir.
— Acabo de iniciar um período de férias bastante prolongado — disse. — E este período de férias entrará na história.
— Conte logo.
Tomou lugar ao seu lado, com um cálice de champanha na mão, e disse:
— Wamsler realmente gosta de mim. Sente-se muito embaraçado porque testemunhei um momento de fraqueza dele. Parece uma troca de grosseria entre velhos amigos. Não é nada de importante.
Algo voou para dentro do cálice e molhou-o de champanha. Os dedos de Cliff pescaram uma coisa verde-dourada e deixaram secá-la ao sol.
— Sêneca! — murmurou com a voz comovida. — Você encontrou o caminho de volta para junto de mim.
O besouro abriu as asas, saiu zumbindo...
Hans Kneifel
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