Graça Aranha
Esta peça foi representada pela primeira vez em paris em 19 de fevereiro de 1911 no Théâtre de l'Oeuvre.
PERSONAGENS: MALAZARTE DIONÍSIA EDUARDO A MÃE ALMIRA FILOMENA O CREDOR O ADVOGADO RAIMUNDO
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ATO I À tarde, num jardim um pouco em desordem, para o qual dá a varanda de uma casa. A varanda mobiliada modestamente serve de sala de jantar. Nas grades e nos varais vêm-se trepadeiras, parasitas e um canário numa gaiola. No jardim um caramanchão, bancos, e no fundo um poço de bordas guarnecidas de plantas. O jardim é cercado de grade, com um portão que abre para a rua.
(Na varanda a mãe examina papéis de família, que estão numa caixa aberta sobre a mesa, e Militina faz renda) A MÃE Sempre que vejo estes papéis, o cordão se me aperta. São as minhas relíquias! Aqui está toda a minha vida, a nossa vida... Quando ele era vivo, quantas vezes na sua ausência não me fechava no meu quarto, e sozinha não revia todas estas lembranças, não aspirava este cheiro antigo e saudoso!... Hoje que ele é morto, quase me falta o ânimo de abrir este relicário. Parece-me um sacrilégio tocarem coisas alegres com a alma triste...
MILITINA É espalhar cinza num canteiro de flores.
A MÃE (continuando a examinar os papéis) Estacaria... Oh! foi da nossa primeira separação depois de casados... Ele me escrevia assim, Militina: “— Como são longos e ásperos os dias da saudade! Eu te vejo em tudo; mas, quando te busco, tu não estás nestas coisas estranhas que me cercam. Sejamos fortes na tristeza, e sobretudo na alegria, quando nos reunirmos de novo. Faço esta viagem em tão angustiosa recordação de ti que muitas vezes me esqueço de que temos um filho...”
MILITINA Pobre Eduardo!
A MÃE Por quê? Ele tinha o seu logar.
MILITINA Sempre o esquecido, o último... O amor de marido e mulher abafava no coração de ambos o amor pelo filho. Deus Nosso Senhor não podia consentir nisso toda vida.
A MÃE Aqui estão as relíquias desse amor! A morte nos puniu pelo que esquecemos na vida.
MILITINA A Dudu não faltou mãe.
A MÃE Sim, ele te deve tudo, e hoje eu te invejo, Militina.
MILITINA Do coração dele estou certa como da luz que me alumia. Assim devia ser. Um menino que amamentei nos meus peitos como o filho do meu ventre, que velei dias e noites, que embalei no berço e na rede, anos e anos, a quem contei tantas histórias à noite até um de nós dois cabecear de sono, que conduzi à escola como meu companheiro, meu amiguinho, meu anjo da guarda na terra, então não é meu filho?
A MÃE Ele é teu filho... Mas, depois da morte do pai, eu me sinto tão agarrada a ele... A tristeza gerou em mim um sentimento que não conhecia nos tempos felizes. O filho nasce na dor e o meu acaba de renascer para mim. Agora é tarde, é amor de velha. E ainda assim, que não farei para pagar em ternuras os anos de esquecimento! Eu o quero comigo, sempre ao meu lado; quero que a sua existência seja a minha, que ele sinta e compreenda a força da minha afeição; no entanto, parece-me que lhe sou tão estranha que os meus sofrimentos não são os seus... Nestes seis meses do nosso luto, em que me vejo desamparada, eu o quisera mais atento a mim... Eduardo já é um homem.
MILITINA Para que o atormentar tão cedo?
A MÃE Temos de salvar os nossos bens, de nos arranjar com os credores e de fazer juntos todo este trabalho da reconstrução da nossa vida.
MILITINA Os filhos pagam pelos pães... Que culpa tem Dudu desta aflição a que chegaram?
A MÃE Se ficamos nesta extremidade, foi pelo bem que praticamos. E tu sabes, Militina, que não me arrependo. Que casa foi mais hospitaleira que a nossa? Quem foi o pai da pobreza, o verdadeiro santo desta cidade? Ele nos deixou sem nada, mas só queria o nosso bem em ações que contam para Deus. E a sua memória ainda é mais venerada do que se me tivesse deixado rica, com a lembrança do mal ame torturar o coração. E ninguém podia imaginar que se fosse tão depressa. Eu só quero que o filho lhe siga os passos na vida. Porque, se assim não fosse, tudo seria uma grande desordem...
(Ouvem-se cantos de Natal)
MILITINA Que triste Natal!
A MÃE Estes cantos me entristecem ainda mais. Quem diria no ano passado que estaríamos assim! Nós, tão alegres, de casa em casa, visitando os presépios, e talvez os mesmos cantos cantando à nossa porta. Tu vês, eles não param aqui. A tristeza os espanta.
(As duas mulheres escutam os cantos, que se vão afastando)
MILITINA Louvado seja o menino Jesus!
A MÃE Deus proteja meu filho... Militina, vai chamar Eduardo.
MILITINA (desce ao jardim e chama) Eduardo? Dudu? Meu filho?
A VOZ DE EDUARDO Titina! Titina! (Eduardo, no esplendor da mocidade, aparece, e acariciando Militina)— Ah! minha bruxa, ela vai vir, e eu estava a colher-lhe flores. (Militina sorri, maravilhada)
A MÃE Ouve, meu filho. Daqui a pouco, virá o nosso credor por causa da hipoteca da casa, que se vence brevemente. Além do capital, temos amortizações e juros atrasados a pagar. Nada nos resta... Pensei em contrair um empréstimo com alguns dos nossos derradeiros amigos e evitar talvez assim a catástrofe. Mas para isso é preciso empenhares o teu futuro. Tu és afinal o homem da casa, e a tua mocidade não é uma escusa.
EDUARDO Minha mãe... Como quer que eu tome a mim tamanho encargo?
A MÃE Oh! Eduardo! Então sou eu sozinha que devo tudo salvar? Eu, que estou mais para a morte do que para a vida?
EDUARDO Para que falar com essa exaltação? A vida, oh! mamãe, não é triste! Eu sei que a nossa situação é aborrecida, mas para que nos ocuparmos agora disso, quando ainda falta tanto tempo? Hoje, véspera de Natal! Oh! que vontade eu tive de ir cantando nesses bandos que passaram! A vida aumenta de beleza e cresce na alegria, minha mãe!
MILITINA Vai, Dudu.
EDUARDO Estou à espera de Almira, que passará por aqui, para que a vejam. Como deve estar linda, vestida de pastora! Aqueles cabelos negros cacheados, os olhos pretos e ardentes, a boca rubra e risonha, o porte, a cabecinha erguida e altiva... Dize, Titina, se há outra mais bonita.
MILITINA Ela deve trazer sempre uma figa.
EDUARDO Que tolice! Ninguém lhe fará mal, ela é minha, e eu quero realizar o nosso sonho, Militina.
MILITINA Dudu não fará mais caso de mim.
EDUARDO Eu? Quantas vezes não digo a Almira que te levaríamos para a nossa casa, se não fosse mamãe ficar sozinha.
A MÃE (continuando a examinar os papéis) Eu conto tão pouco...
EDUARDO Oh! minha mãe! Tu, Militina, nos contarias as histórias dos outros tempos; e como te faria bem viver na atmosfera do amor...
A MÃE Aqui estão os títulos da hipoteca. É preciso que leias isto e vejas se há meio de fazer qualquer proposta e de obter alguma concessão...
EDUARDO Basta que você os tenha examinado. Deixemos essas coisas enfadonhas.
A MÃE Atende, meu filho, há tempo para as outras coisas; agora pensa em mim.
EDUARDO Eu penso, e por isso quero que você saiba quanto sou feliz. Esse amor profundo me encanta e exalta, e sou amado, mamãe. Esta manhã bem cedo andamos à beira do mar; Almira vinha do banho, gotejante, fresca e rosada. Em torno de nós tudo parecia entorpecido de sono. A baía espreguiçava-se num grande repouso, e a luz do sol na alegria do nascer estendia-se de leve sobre as ondas mansas... A carícia que me vinha da voz de Almira e dos seus gestos lentos e brandos, era cheia de langor. Era um grande afeto meigo e sereno... Para que pensar em tristeza, mamãe, quando a vida é tão doce? Eu vi o sol iluminar o mundo, o vento refrescar a terra e o mar como um desejo de amor!
MILITINA A vida nasce do mar...
A MÃE E por isso devemos temê-la mais.
EDUARDO Temer a vida seria temer o amor, porque viver é amar. E será para mim uma tortura esperar...
A MÃE Não te agonies, meu filho. E, se não te posso valer, Deus ama os que se amam.
EDUARDO Por Almira vencerei. Ela vai chegar, tudo se transformará, e nós sairemos enamorados, por esta noite de Natal...
MILITINA Eu velarei, esperando-te.
A MÃE Nosso pobre Natal!
MILITINA Mas sempre Natal; e ainda haverá doces para vocês, meus filhos.
(Militina entra na casa, a mãe e Eduardo descem ao jardim)
A MÃE Não há mais Natal para nós, Eduardo.
EDUARDO É o mesmo e perpétuo renascimento no amor, e o próprio Deus é infante, porque ele é o amor, o fruto tenro do amor. Tudo é amor!
A MÃE Ouvi um dia essa mesma voz...
EDUARDO Não vê, mamãe, como tudo em volta de nós se confunde amorosamente? A luz se mistura aos cantos, os pássaros às árvores, as borboletas às flores... É que a natureza toda é divina e indivisível.
A MÃE Esse sortilégio torna a desgraça infinita.
EDUARDO Ele faz a natureza eterna revelar-se pelo amor. Foi aqui dentro desta luz benfazeja, neste jardim, que Almira me apareceu e me encantou para sempre. Estas árvores, estas plantas foram as companheiras das nossas primeiras ternuras, e quando aqui repousamos maravilhados ou passamos unidos, elas nos enlaçam com os seus ramos floridos. O nosso amor viverá. Este é o delicioso jardim do mistério, e estas flores que viram o amor, Almira vai oferecê-las ao menino Deus. (Eduardo e a mãe vão pelo jardim apanhando as flores, e desaparecem. Malazarte, como um mito florestal, surge dentre os bambus. Traz uma viola e um urubu atado ao pé por uma corrente. Malazarte vem até à varanda, e não vendo ninguém, bate com o cacete, chamando. Continuando tudo em silêncio, ele volta para o jardim e deita-se num dos bancos meio oculto pela folhagem. O urubu fica pousado no encosto do banco, fúnebre, fantástico. Malazarte fecha os olhos e parece dormir. Militina chega à varanda com um prato de comida, que vai pôr sobre a mesa, vê Malazarte, espanta-se e murmura inquieta) Cruz, credo, este demônio por aqui? (Chamando timidamente) Malazarte! Malazarte! (Malazarte não responde, parecendo sempre dormir. Militina esconde os pratos no armário, vai buscar outros, sempre desconfiada, espreitando Malazarte. Este percebe tudo e continua a simular que dorme. Militina senta-se na varanda e prossegue o seu trabalho de renda)
O CREDOR (entrando pela porta do jardim, sem ver Malazarte dirige-se a Militina) Onde está a sua patroa?
MILITINA Ela está no jardim. Vou chamá-la. Faça o favor de entrar...
(O credor examina a casa com atenção e cupidez. A mãe de Eduardo aparece apressada)
O CREDOR Não me esperava?
A MÃE Sim. Enquanto não chegava, dava uma volta pelo jardim...
O CREDOR A terra aqui me parece boa. As árvores crescem bem e há uma excelente exposição ao sol para as flores... A horta ainda está como dantes? Que horta e que pomar, um regalo!
A MÃE Com os nossos pequenos recursos, pouco podemos fazer; apenas conservamos o jardim. A horta que meu marido tanto zelava, já não é a mesma coisa; o pomar está abandonado...
O CREDOR Como? Que está me rezando aí? Então deixaram tudo se devastar! E não sabiam que isto não lhes pertence?
A MÃE Tudo isto ainda é nosso, podemos fazer o que nos apraz.
O CREDOR E eu então? Quando se trata de conservar a propriedade, não se lembram de mim; mas quando me querem arrancar prorrogações de prazos e outras chicanas, então é aquela choradeira, e eu sou um coração de ouro e o resto da ladainha... Ah! isto não vai mais assim!
A MÃE Para que nos humilhar? A nossa pobreza não nos envergonha.
O CREDOR É isto mesmo... Quem deve ter vergonha, sou eu, de ter dinheiro para emprestar. Sou o agiota, o sovina, unhas de fome; mas em outro tempo, quando seu marido quis dinheiro e me propôs este embrulho, eu era o salvador, a providência. São todos da mesma fazenda.
A MÃE Queira respeitar a memória de meu marido.
(Eduardo, trazendo flores, entra seguido de Militina)
EDUARDO Militina, estas flores com o calor vão morrer, e seria uma grande tristeza. Põe-nas em um jarro d'água.
MILITINA Para que tanta flor?
EDUARDO Para a pastora Almira oferecer esta noite ao menino Jesus.
O CREDOR Não vim aqui para tratar de flores nem de meninos Jesus... Querem me embrulhar, não há dúvida. Desta vez não admito mistificações. De hoje a dois meses vence-se o prazo da hipoteca, e eu preciso saber se posso contar com o dinheiro, sem um real de menos. É o meu direito.
EDUARDO Ainda falta tanto tempo!
O CREDOR Esta agora é fresca. Então, a sessenta dias do prazo de uma dívida, velha de cinco anos, o credor não sabe se pôde ou não contar com o seu dinheiro? E esta!
A MÃE Tenha paciência, nós temos as melhores intenções...
O CREDOR Boas intenções! Olhem o inferno! Deixemos de discussão inútil. Paga ou não paga no prazo?
A MÃE Não sei ainda. Vou tentar um empréstimo com alguns amigos...
O CREDOR Não faltava mais nada. Amigos nesta época! Ora, amigos!
A MÃE E se não for possível, cumpra-se a vontade de Deus.
(O credor não dá mais atenção; continua a examinar a casa)
EDUARDO (que estava absorto e alheio à discussão) Não ouvi hoje cantar o canário.
A MÃE Oh! Eduardo!
EDUARDO Parece triste, e Almira vai ficar inconsolável, se ele não cantar mais.
O CREDOR (examinando a casa) Não sei mesmo se vale a dívida. Vinte contos de capital, doze por cento de juros ao ano, amortizações, juros atrasados, vai tudo em quarenta contos, e isto não me parece valer tanto, talvez só a metade; estou roubado.
A MÃE (a Eduardo) Minha casa, a primeira, a única da minha vida de casada, vendida, em mãos de outros! Ser expulsa deste lar, onde foi toda a minha felicidade. Este teto, estas paredes, estes aposentos são relíquias de outros tempos, consolo da minha solidão. Tudo aqui me falado passado... Entrei noiva por uma noite tão bela; aqui nasceste e cresceste, meu filho. Pensei ser o meu túmulo, onde foi o meu paraíso. Teu pai morreu na casa que fundou, ao passo que eu serei corrida deste canto da terra, separada das minhas lembranças, errante, miserável. (Ao credor) Tenha piedade, deixe-me este lar! Longe de tudo, onde amei, vivi, sofri, longe destas árvores plantadas pelas nossas mãos descuidadas e amorosas, que será de mim?
(Ouvem-se cantos de Natal. Silêncio na casa e no jardim)
A MÃE Pela grande noite de hoje, piedade!
O CREDOR Estragaram-me o pomar, tudo destruído, como se lhes pertencesse; não se lembraram de mim, que afinal sou o dono verdadeiro, e agora lágrimas, choradeira...
(Vai pelo jardim, bisbilhotando tudo; a mãe o acompanha implorando. Eduardo, um pouco abstrato, isola-se, dá umas voltas pelo jardim. Ouve-se a voz de Malazarte)
MALAZARTE (fingindo acordar) Não há nada que se coma?
EDUARDO Malazarte! Que foi feito de ti?
MALAZARTE Vogando por este mundo a dentro... Venho do sertão. Depois que pela última vez estive aqui, encontrei uns boiadeiros, que me propuseram ir com eles lá para as chapadas, e como nada me prende, fui, andei pastoreando o gado. Sol de rachar! E que pastarias sem fim! Sempre a cavalo, puxando a boiada de restinga em restinga, de açude em açude, quando era seca, e de teso em teso quando era tempo de chuva. Vida como esta, nem de frade! Desde a noitinha a viola cantava e dançava-se debaixo das ramadas. Mulher era fartura por aquelas bandas, e bem feitas e sacudidas. Quantas não levei à garupa do meu cavalo pelo sertão grande! E se algum cabra, por ciúme ou danação, queria batalhar comigo, encontrava homem. Deixei muitos estirados no campo; a ponta da minha pajeú bebeu muito sangue... Cansado de batalhar com o gado, embrenheime na mata a derrubar madeira. Não houve jequitibá, nem aroeira, nem pau d'arco que me resistisse. Ah! que gosto ver uma árvore bruta, um pau de respeito cair ao peso do machado! Eu parecia um raio rachando aqueles gigantes de meio a meio, e depois arrastavase a madeira até ao rio. E sobre esses paus, sobre essas árvores feitas balsas, pelas águas a baixo, eu vinha cantando...
EDUARDO Malazarte, tu és um destruidor!
MALAZARTE Que importa destruir, se tudo renasce e não se acaba, nem pelo fogo, nem pela água. Olha, eu vi no sertão uma seca terrível, o sol tinha chupado todos os rios, todas lagoas e poças, o gado e a gente não tinham o que beber, o povo andava amedrontado e rezava pedindo misericórdia... Um belo dia, desabou uma chuva, e que chuva! Foi um dilúvio, os rios transbordaram, os campos alagaram, os açudes rebentaram, e o povo implorou de novo misericórdia... Tudo isto não é pavor de criança? Por que este temor, se tudo vem e vai, se tudo nasce e morre, tudo morre e nasce? A minha existência não tem propósito nem fim. Andei peregrinando por estes mundos... Subi ao alto das montanhas para matar o gavião no ninho, cacei nas florestas a anta, desci ao fundo das minas para arrancar o ouro, dormi ao relento na face da terra, no sertão das onças contei as estrelas do céu, e sempre caminhando, sempre mudando, fiz a volta de todas as coisas, e aqui estou de novo... Basta de conversa fiada, minha gente... Não há o que comer?
EDUARDO (chamando) Militina? Militina? (Militina aparece da varanda) Malazarte voltou e quer comer.
(A mãe e o credor vêm chegando do fundo do jardim)
MILITINA Não há nada.
MALAZARTE Está bom... Então vamos por aí afora caçar de comer. (Simula partir, segura o pé do urubu que grasna) Que é que estás dizendo, guloso? É mentira tua. Militina já disse que não há nada. Paciência, meu negro. Vamos para adiante, vagando, a ver se apanhamos qualquer coisa.
O CREDOR (curioso e intrigado) Como? Urubu fala?
MALAZARTE Este não só fala, como adivinha o que está mais escondido.
O CREDOR (desconfiado) Se fala e adivinha, que lhe disse ele?
MALAZARTE Vá lá... Não creio... porque, quando se trata de comida, este urubu é tão guloso que chega a mentir. Tu vais ser apanhado, moleque... Ele disse que naquele armário há um prato de carne e muita farinha escondida.
O CREDOR (a Militina) E Verdade?
MILITINA (fazendo uma cruz com os dedos e cuspindo) Cruz, credo, capeta!
O CREDOR É verdade?
MILITINA É... sim senhor... T'arrenego, urubu do inferno.
EDUARDO Dá alguma coisa a Malazarte e ao urubu que adivinha...
(Militina sai resmungando)
O CREDOR (maravilhado) Que prodígio! Onde descobriu essa preciosidade?
MALAZARTE Numa batida de onça... Eu vinha seguindo o rasto de uma pintada, quando dei com a bicha já morta e sobre Ela fazendo carniça um bando de urubus. Fiquei danado de ter perdido meu tempo e disparei a arma.
O CREDOR Sobre os urubus?
MALAZARTE Não, porque urubu não se mata... Só para espantar... Os bichos remontaram para o céu, e só ficou um, que me olhava com olhos tão compridos e tão tristes e fazendo uma cara de meter pena... Cheguei-me a ele, e o bicho, coitadinho, me deu o pé...
O CREDOR Como papagaio...
MALAZARTE ...me deu o pé e eu fui trazendo-o desta maneira pelo caminho; quando cansava, largava o urubu, que vinha voando, acompanhando-me. Assim andamos dias e noites, atravessamos matas, campos, rios e alagadiços; o urubu sempre junto, calado, agourento.
O CREDOR (enternecido) Coitado! Talvez seja encantado.
MALAZARTE Eu acredito. Mas ele é muito reservado a este respeito, não diz palavra... Quando havia de comer, repartíamos; quando não havia, jejuávamos como camaradas de desgraça... E fui notando o que ele ia resmungando na sua linguagem, e em pouco tempo aprendi-lhe o segredo. Tem-me servido de muito; nunca mais me faltou nada, porque este urubu sabe de histórias e de coisas do arco da velha. As aves negras têm partes com o diabo... Hein! rapaz? estás ouvindo? Olhem só esta cara!
MILITINA (trazendo um prato de comida) Aqui tem carne e farinha.
MALAZARTE (ao urubu) Vamos à boia, camarada. (Come)
EDUARDO Sem vergonha...
MALAZARTE (ao urubu) Que é, meu negro? Cala este bico. Basta o que já nos deram.
(O urubu grasna)
O CREDOR Que diz ele?... Que diz ele?
MALAZARTE Ele está dizendo que nós não podemos acabar o jantar sem doce, e que naquele armário há um bolo...
MILITINA Agouro do inferno!
A MÃE Dá logo tudo.
MILITINA Não faltava mais nada... (Sai indignada)
O CREDOR Mas este bicho é um tesouro... Quer vendê-lo?
MALAZARTE Ninguém lhe dá o preço, e quem possuir esta joia, tem a fortuna feita. Como já lhes contei, não preciso trabalhar para comer. Ele descobre tudo, as coisas mais escondidas, até dinheiro...
O CREDOR Dinheiro? Oh! quanto quer pelo urubu?...
MALAZARTE Uma feita, nós íamos pela rua, quando ele começou a me falar na sua língua; eu não dei atenção e fui andando. O urubu, que tem um gênio do diabo, ficou bravo e entrou a me picar feio e forte... Parei e ele me disse: Levanta essa pedra, que aí tem dinheiro escondido. Arranquei a pedra, era verdade: achei uma porção de moedinhas de ouro, douradinhas como estreitas. (Mostra uma moeda) Aqui tem uma.
O CREDOR Ouro estrangeiro, que não se encontra aqui; devia ser um tesouro. Diga quanto quer pelo bicho, abra preço...
MALAZARTE (cantarolando)
Não se vende. Urubu xenxém! Que faz ganhar vintém...
O CREDOR Duzentos mil réis...
MALAZARTE Nem um conto de réis...
O CREDOR (ao urubu) Urubu real, Para Portugal Quem passa, meu louro?
MALAZARTE Urubu não é papagaio... A carne acabou, a farinha ficou. Mais carne!
MILITINA Desaforo...
A MÃE Ora, Militina, dá... (Militina entra na casa)
O CREDOR (a Malazarte) Mas, como se compreende o que ele diz?
MALAZARTE Isto, meu amigo, é meu segredo.
MILITINA (trazendo comida) Aqui tem mais carne.
MALAZARTE Agora a farinha acabou, mais farinha para a carne que ficou.
O CREDOR Quatrocentos mil réis...
MALAZARTE Vossemecê tem muita vontade no passarinho, está se vendo... mas quatrocentos mil réis é pouco dinheiro na verdade.
O CREDOR Quinhentos e à vista.
MALAZARTE Enfim, eu largo para lhe fazer gosto... desde que bate o cobre.
O CREDOR Aqui o tem... (Entrega o dinheiro)
MALAZARTE Trate bem do meu camarada, ele tem um gênio danado, às vezes embirra em não querer falar, não se lhe arranca uma palavra cristã. Se, porém, daqui a um mês ele não der de língua, há um remédio... Vossemecê é casado?
O CREDOR Sou... E por quê?
MALAZARTE Se este urubu, que é muito seu, não falar, sua mulher que molhe a cabeça dele, como ela sabe... Eu apareço um dia destes para lhes ensinar a linguagem dos urubus...
O CREDOR (com o urubu na mão) Como minha mulher vai ficar contente com esta raridade, com esta estranha maravilha... Adeus... (Ao partir, volta-se para Eduardo e a Mãe) Já sabem as minhas condições. Não cedo nada. Comigo ninguém brinca... Ninguém me embaça. (Sai triunfante)
EDUARDO (a Malazarte)
Onde apanhaste aquele urubu e aquela moeda, patife?
MALAZARTE O urubu, apanhei-o ainda há pouco na praia. Eu estava sem um vintém, então fui caçar urubu para ganhar dez mil réis no matadouro... E fui tão feliz que apanhei esse... Quando vinha pelo cais, encontrei uns marinheiros ingleses, que me circundaram e arremeteram de soco... Eu respondi com uma rasteira... E foi godam, para aqui, cabeçada para ali. Afinal fizemos as pazes e entramos a beber numa venda... jogamos dados e eu ganhei aos beefs a moeda de ouro...
A MÃE Deus te perdoe, Malazarte. (Retira-se acompanhada de Eduardo)
(Malazarte, só, conta entusiasmado o dinheiro e bebe de uma garrafa que trazia escondida no bolso)
FILOMENA (entrando pela porta do jardim) Malazarte! Oh! meu rapaz!
MALAZARTE A Filoca! Tão catita sempre, tão sedutora, tão cheirosa!
FILOMENA Pensei que já tinhas ido para o outro mundo... Nunca mais deste sinal de vida...
MALAZARTE Muitas saudades minhas?
FILOMENA Pudera não. Tu eras a nossa alegria, a nossa alma, ninguém te iguala na dança e na viola. Quem puxa um desafio como tu? E sempre rei da vida! Toda esta rapaziada por aqui é mofina, ninguém te vale. Quando me lembro do que tu és, todo meu corpo estremece. Depois que te foste, tudo ficou tão triste... As nossas festas parecem enterros, é como se fossem velórios. Vem conosco esta noite, vamos por aí cantando um reisado, de presépio em presépio, e acabemos por dançar um samba ao batuque do tambor...
MALAZARTE (querendo abraçá-la) Vamos... e depois do samba...
FILOMENA (desviando-se) Ouve, meu velho, eu vim encontrar-me com o meu noivo... De verdade, eu vou me casar...
MALAZARTE Casar? E esta! Quem é o pamonha?
FILOMENA O filho da velha Militina.
MALAZARTE Raimundo? Só mesmo esse pascácio. E porque tu, uma rapariga livre e fresca, vais te casar?
FILOMENA Porque é a moda. Anda por aqui um bando de frades a casarem a torto e a direito. Raimundo me arrastava a asa e, como eu sempre o tive no seco, vai um dia ele me propõe esse casório. Por que não?
MALAZARTE E nós então?
FILOMENA Como dantes, atrevido... Quem não pôde, não inventa modas... Isto de casamento triste como de gente graúda não é comigo: a arraia miúda deve continuar na sua liberdade.
MALAZARTE Como tu és sabida, minha Filó!
FILOMENA Eu sou como tu, como os nossos, comer, beber, amar. E tudo é belo!
MALAZARTE Dá-me este cheiro do mato, das plantas e das flores queimadas pelo sol, e que tu espalhas dando o desejo e o amor... Nesta noite verei de novo este corpo dançar; basta que tu andes, já é a dança...
FILOMENA (ri, inebriada) Malazarte!
MALAZARTE O teu riso abre o coração... Que saudades desse riso lá na mata!...
FILOMENA Toca as cantigas do sertão.
MALAZARTE E tu, dança, Filoca!
(Malazarte toca e Filomena dança)
RAIMUNDO (entrando pela porta do jardim, olha-os um instante) Bravo, Filomena! Bravo, Malazarte!
MALAZARTE Viva!
RAIMUNDO Que fim levaste?
MALAZARTE Dei a volta das coisas e aqui estou.
FILOMENA Malazarte vai conosco esta noite, e como ele não tem igual na viola, nem no canto o nosso reisado será o primeiro.
RAIMUNDO Será uma noite cheia... E depois, de manhãzinha, vou à pesca, porque peixe anda em cardume por aí...
MALAZARTE Tu sempre na pesca?
RAIMUNDO Não queres vir comigo?
MALAZARTE Depois de tanto tempo de mato, tenho vontade do mar.
RAIMUNDO Está feito. Tu tocas a viola para chamar o peixe.
FILOMENA (supersticiosa) E a sereia canta para apanhar os pescadores... Tenho medo de pescaria em noite de Natal. Nesta noite de alegria, em que tudo renasce, matar os pobres peixes que também são criaturas de Deus...
RAIMUNDO Pareces minha mãe com as tuas abusões... E eu aqui a perlengar, esquecendo a velha... (Entra na casa) Malazarte, não te metas em pescaria em noite de Natal! Nosso Senhor vai nascer e vocês vão matar...
MALAZARTE Tu tens medo de matar? Que me importa a morte? Vida e morte, para mim tudo é o mesmo. Olha, a noite está chegando; numa noite como esta, eu pensei em ti, eu te desejei lá no sertão... (Estreita Filomena nos braços e a beija)
(Ouvem-se cantos de Reis, que se aproximam da casa)
FILOMENA São eles! Vamos. Raimundo? Mundico?
RAIMUNDO (vindo da casa) Vamos.
(Malazarte arrebata Filomena e saem num imenso entusiasmo. Raimundo segue-os. No alto da varanda Eduardo e Militina os vêm partir. Os cantos vão cessando ao longe)
EDUARDO Oh! alegria!
MILITINA Alegria atrevida, que não respeita a tristeza desta casa. Tudo vem desse maldito Malazarte. E lá foi ele carregando Filomena, e o meu pobre Raimundo, embeiçado por esta ventoinha, atrás dos dois como um carneiro. Em toda a parte sopra este espírito mau; se não é o próprio capeta, tem partes com ele. Ninguém sabe de onde veio; um belo dia apareceu por aqui, fazendo todos os ofícios, metendo-se em todas as casas, e cheio desta alegria infernal que se não acaba nunca. Dudu, Deus Nosso Senhor não ama gente que não tem a sua hora de tristeza e não chora. E esse demônio ri a todo o instante, dança, canta, mente, furta, seduz as mulheres, enfeitiça todo mundo. Não é o próprio demônio, que veio para nos tentar?
EDUARDO (sorrindo) O demônio? É a vida, a força, o entusiasmo, Militina... Vocês vivem no vale de lágrimas e não perdoam a alegria. Malazarte é a vida esplendida, é uma expressão maravilhosa da própria natureza, nas suas transformações infinitas: ontem sol, árvore, mar, vento, leão, e hoje homem...
MILITINA Até tu, Eduardo! Não disse que é feitiço que pegou em toda a gente?... Menos em mim, com a graça de Deus. (Benze-se) Quando eu te juro que Malazarte é o diabo, é porque já tive uma visão. Tu ris? Uma noitinha, eu estava rezando sentada na minha rede e apenas com a luz da lamparina diante de Nossa Senhora, quando vi o diabo, que vinha caminhando para mim com pés de pato e olhos de fogo, e fazendo caretas para me aterrar... Continuei a rezar, e ele foi chegando, e quando esbarrou com o santo terço, deu um estouro; nisto eu ouço uma gargalhada: o diabo tinha desaparecido e diante de mim estava Malazarte a me arrancar o rosário... Então?
EDUARDO Como o terror faz inventar histórias! Melhor que essa, eram as outras tão belas, que me contavas quando eu era pequenino, à noitinha mesmo, para me adormecer.
MILITINA Naquele tempo tudo aqui era tranquilo. Com que devoção rezavas na tua caminha, com medo dos encantados, dos gênios e dos lobisomens!
EDUARDO Que medo, e que nunca mais me deixou de todo! Tudo ainda rola na minha cabeça. As histórias que me contaste, Militina, não se apagaram ainda, estão frescas como me chegaram à imaginação de criança... Nelas está toda a minha meninice... Foste tu, minha mãezinha, que me criaste a imaginação, e eu te devo esta maravilha que cada um de nós tem no fundo da alma e vai carregando como um tesouro pelo tempo adiante. Foste tu que me fizeste ver os encantos dos jardins de Bagdá; tu me mostraste as grutas, as pedras preciosas, as moradas dos gênios; tu me deste a lâmpada de Aladim, e o Oriente fabuloso passou aos meus olhos como uma fantasia. Nos teus contos recolhi a alma antiga, assisti aos combates dos cavaleiros, batalhei ao flanco de Roldão e chorei dos tristes amores de Isolda. Ah! Militina, como tu me encantaste a infância! Tudo o que aprendi depois, não vale as fábulas com que encheste a minha cabecinha de criança. São elas, grandes, famosas ou humildes, quase ignoradas, as geradoras do meu espírito, e não o que recebi depois, tão árido e triste. Oh! entranhada e longínqua poesia da raça! Como me sinto nos outros tempos, quando escuto dentro de mim a melancolia do mar e do destino que se canta na Nau Catarineta.
MILITINA (cantando) Acima, acima, gajeiro, Acima, ao tope real, Olha se enxergas Espanha, Areias de Portugal!
EDUARDO E a alma das nossas florestas que me revelaste... O curupira tenebroso, diabólico, terrível, astuto e misterioso, eu o sinto dentro de mim como a divindade das matas, e ele me apavora... E o triste carão que chora por não mudar as penas, perpetuamente as mesmas... E a pele do jurupari, que numa fome atroz devora faminta o próprio corpo que ela reveste... A própria vegetação chora nesses contos, os cabelos se mudam em plantas que se lamentam...
MILITINA Jardineiro de meu pai, Não me cortes os cabelos, Minha mãe me penteou, Minha madrasta me enterrou... Chô, chô, passarinho!
EDUARDO Por que todos esses cantos do povo são tristes?
MILITINA Porque vêm do coração.
EDUARDO É o longo sofrimento. O canto acompanha sempre a vida.
MILITINA O diamante também é uma lágrima! (No portão aparece Almira, que Militina vê) Para ti, tudo é diferente, meu filho; tu tens o Amor...
ALMIRA (radiante, vestida de pastora para as festas do Natal)
Que amores são esses?
EDUARDO Oh! minha pastora!
MILITINA Benza-te o menino Jesus.
ALMIRA Toda a gente está tão alegre nas ruas, e eu só ouvi me chamar bela pastorinha!
EDUARDO Faceira!
MILITINA Como vocês são felizes, meus filhos!
ALMIRA E por que não esta velhinha querida, que nos conta tão belas histórias?
EDUARDO Nós recordávamos as histórias...
ALMIRA Militina, minha velha feiticeira, conta uma história; eu fico quietinha...
MILITINA A noite ainda não está fechada. Não se conta história de dia. Não quero criar rabo...
ALMIRA Que tolices! Má! Que estavas contando a Dudu?
MILITINA Não era nenhuma história: falávamos de encantamentos... Mas vocês estão muito sabidos, não acreditam em mais nada, pensam que tudo é um punhado de mentiras...
ALMIRA Eu acredito em encantados. Ah! se eu encontrasse uma fada...
EDUARDO Que lhe pedirias?
ALMIRA A sua varinha de condão para ter de repente uma casinha cheia de pássaros, uma fonte, muita árvore, muita flor e muita fruta...
EDUARDO Para quê?
ALMIRA Que tolo! Para nos casarmos hoje mesmo...
MILITINA Essas fadas foram-se... Só resta a mãe d'água.
ALMIRA A mãe d'água! É verdade, Dudu?
EDUARDO Quando eu era pequeno, eu a vi muitas vezes a esta hora, sentada à beira do poço. Depois nunca mais a vi.
MILITINA Ela anda por aí... E tomem tento, que é traiçoeira... às vezes canta: tapem os ouvidos e fujam, é o canto da sereia que atrai os marinheiros e faz perder os barcos... mãe d'água gosta de amor de homem, e quantos ela não tem carregado para o fundo do poço! Ela é traiçoeira, eu estou dizendo, e quem lhe ouviu o canto ou lhe viu os olhos, está enfeitiçado e perdido de amores. Basta, meus filhos, já tagarelei muito, vou rezar. (Ela sobe à varanda e, fitando Eduardo e Almira que estão silenciosos e cismando, murmura) Amor, Amor, que melancolia!
(Militina ilumina um presépio que está na varanda. Sobre a manjedoura descem os raios da estreita do Oriente)
ALMIRA É a esta hora que a mãe d'água aparece?
EDUARDO Era... Mas há muito que ela não vem...
ALMIRA Quem sabe se não voltará um dia? Era bela, muito bela mesmo, a que tu vias?
EDUARDO Oh! muito. Toda dourada, os cabelos imensos envolviam-lhe o corpo, os olhos eram verdes...
ALMIRA Da cor do mar...
EDUARDO ...a pele muito alva... Ela se penteava com um pente de ouro, e as gotas d'água desciam-lhe sobre o corpo...
ALMIRA Como diamantes... EDUARDO ...e o sol já morrendo as bebia sôfrego...
ALMIRA Eu quisera ser a mãe d'água...
EDUARDO Para quê? Uma visão!
ALMIRA Para me amares mais...
EDUARDO Amo-te como és. O teu amor me sustenta e encanta. Como tu és cada dia mais linda! Almira, nesta hora em que tudo em volta de nós se abranda, tudo serena, em que a crueldade da natureza se atenua, os teus traços se iluminam, a tua forma se espiritualiza. Tu anuncias em mim a vida nova.
ALMIRA Oh! Eduardo, como te amo!
EDUARDO Eu só quero a tua meiguice, a tua voz... Daqui a pouco cântaras para mim diante do presépio...
ALMIRA Eu cantarei te amando, eu dançarei te olhando... Não é hora de partir?
EDUARDO Vamos. A noite vem vindo, e que noite! Iremos e voltaremos por ela muito unidos.
(Abraçam-se estreitamente)
ALMIRA E as minhas flores para o menino Deus?
EDUARDO Vou buscá-las.
(Eduardo entra na casa para buscar as flores. Almira fica só, cisma, e depois de alguma hesitação vai até à beira do poço e fita-o no fundo, absorta)
EDUARDO Almira, aqui estão as tuas flores... Que estás a ver?
ALMIRA Como é fundo este poço! A água lá em baixo é pura como um espelho. (Eduardo se aproxima e olha. Almira envia beijos às sombras que eles veem n’água do poço) As nossas imagens ficam tão grandes e os beijos que te envio, parecem sem fim...
EDUARDO É a miragem, que tudo engrandece...
ALMIRA Eu gosto de nos ver no espelho da água, abraçados assim e beijandonos. (Beijam-se, voltados para a boca do poço) O nosso amor cresce ainda mais...
EDUARDO Ele é imortal!
ALMIRA Ver o próprio amor aumenta-lhe a doçura e faz estremecer... E no fundo sombrio do poço, que mistérios!
EDUARDO A água do poço só reflete o céu... O céu nos envolve de todos os lados...
ALMIRA Assim as nossas imagens se refletem no céu, enlaçando-se.
(Eduardo atira uma flor dentro do poço)
EDUARDO Esta flor é para a Almira do céu.
ALMIRA E a Almira do céu te retribui assim. (Beija-o ardentemente)
EDUARDO Vou encher a tua cesta de flores.
(Almira fica mirando o poço)
ALMIRA (falando, como em sonho) Quem me dera ser a mãe d'água, para morar na água que é o espelho do céu! Lá no fundo está o seu palácio de cristal...
EDUARDO Aqui estão as flores... mas a cesta não ficou bem cheia... Felizmente, há ainda muita rosa no jardim. (Vai, apanhando flores)
ALMIRA E a mãe d'água não vem... E hoje eu quisera que Ela viesse, porque estás comigo. Que ciúme não teria de me ver nos teus braços! Dudu, se ela ama tanto, por que dá a morte no amor? O amor não é a vida? E porque o amor e a morte são inseparáveis? (Eduardo desaparece no jardim. Almira põe-se em pé sobre a borda do poço, possuída de um encanto mágico) Oh! mãe d'água, canta. Eu te dou as minhas flores para que tu cantes; eu quero essa voz de sedução infinita, que repetirei ao meu amado, e ele será eternamente meu. Ensina-me o teu segredo... Toma esta rosa, mais esta... Vem... vem... eu te desejo ardentemente; oh! tu que és invencível no amor, eu quero o teu sorriso. Canta... Dáme o teu mistério, mãe d'água... Ah! eu te vejo... Enfim! Eduardo! Ela sobe n'água... ela me sorri... ela me chama...
(Almira, atraída pelo mistério, desaparece no poço. Eduardo vem do fundo do jardim carregado de flores e vê à beira do poço a mãe d'água, que lhe sorri)
ATO II Numa sombria sala de visitas, Eduardo está só. Alguns instantes depois, sua mãe, vestida para sair, vem do interior da casa. Ela para diante da mesa onde, numa gaiola, jaz morto o canário de Almira.
EDUARDO Morto também! Tudo é morto...
A MÃE Andava tão triste...
EDUARDO Entristeceu no dia de Natal, mas um pouco antes de nos...
A MÃE A morte dá aviso... Só nós não entendemos.
EDUARDO Estamos tão distantes da natureza que caminhamos como cegos e surdos.
A MÃE É assim a fatalidade nos surpreendeu! Nenhum dos três que restavam nesta casa, foi poupado!
EDUARDO Onde está Militina?
A MÃE Foi à igreja pôr uma vela por alma do filho. Vou ao seu encontro.
EDUARDO Por que a deixou sair só?
A MÃE Por alguns momentos não há perigo. E inofensiva... Metida na sua dor, não vê o mundo, e ninguém lhe faz mal; todos a conhecem.
EDUARDO Ela está louca, e a loucura mete medo. Minha pobre Militina! E sempre as mesmas alucinações, a visão persistente e horrível do filho afogado naquela fatídica pescaria! Tivemos o mesmo Natal.
A MÃE Militina acusa Malazarte da morte de Raimundo.
EDUARDO No entanto, foi o acaso. A canoa virou, e os dois tiveram de lutar com as ondas. Raimundo perdeu as forças e se afogou. É a história trágica e simples dos pescadores. O mar é um espanto. Malazarte venceu as ondas.
A MÃE E a triste Militina enlouqueceu...
EDUARDO A sua loucura vem do pavor contínuo e implacável que cada um de nós procura esconder e disfarçar. A loucura nos circunda a vida, espreita-nos a menor imprevidência, a mais ligeira desatenção. Precisamos de uma energia imensa e de uma astúcia formidável para nos defendermos; a mesquinha e frágil velhinha não teve forças para esse combate, e sucumbiu.
(A mãe fica silenciosa. Eduardo põe sobre um ramo de flores o passarinho morto)
A MÃE São as flores para a sepultura de Almira?
EDUARDO São; vou levá-las à tarde, e o canário vai como uma flor morta neste túmulo de flores... Ele tem a cor do sol: era a lembrança radiante que nos restava de Almira. Tudo morre vertiginosamente. É uma corrida fantástica para a morte. No entanto, tudo se transforma, e essas penas douradas vão se mudar em palhetas de luz, como o canto se misturou à vibração sonora do universo... Almira também tornou-se imortal nas expressões da natureza, na luz, na cor, no som, nas fôrmas etéreas; mas eu quisera que ela fosse sempre a minha Almira, a companheira da minha alma, o desejo deste meu ser. E ela não me voltará mais! Que importa que esteja transmudada em coisas eternas, mas sem a nossa carne, sem o nosso coração, e por isso distantes, longínquas e aborrecidas! A natureza é poderosa, é a força que destrói, que separa, que transforma, mas que não restitui... Eu a odeio...
A MÃE Refugia te em Deus, meu filho!
EDUARDO Deus ou natureza é a mesma coisa: a dor me separou de ambos e de todos os outros seres. Eu vejo cada um de nós num angustioso isolamento. Viver é tremer e nada é mais trágico do que a não conformidade com as outras coisas. Tudo se me torna estranho e hostil.
A MÃE Eu não te quero ser estranha e hostil.
EDUARDO Oh! mamãe, tu és a ilusão que me resta, de que sou ligado à vida realmente e não como eu imagino às vezes.
A MÃE Meu filho, vive dentro dessa realidade tangível e estreita que é o teu destino, e não nessas imaginações em que te agitas. Vive das tradições da tua terra e realiza no futuro os sonhos e as esperanças da tua raça; fica ao meu lado, nós somos inseparáveis, e se tudo se desenraiza em torno de nós, permaneçamos aqui neste santuário das nossas alegrias e das nossas dores.
EDUARDO Mãe, tudo se desmorona e me aterra.
(O advogado aparece aporta, Eduardo e a mãe o recebem inquietos)
A MÃE Temos uma decisão favorável do credor?
O ADVOGADO A proposta não foi aceita. O meu constituinte não quer absolutamente transigir. Não admite nenhuma prorrogação do contrato; e depois daquela história do urubu, está intratável.
A MÃE Sempre Malazarte!... Que desgraça, Eduardo!
EDUARDO Eu dizia, mãe, tudo se desmorona... Deixe-me cumprir o meu dever; isto já seria superior às suas forças. Vá ver Militina, estou inquieto pelo que lhe possa acontecer sozinha na rua.
(A mãe saúda o advogado e retira-se)
EDUARDO Toda a ideia de acordo malograda! No entanto, a nossa proposta era razoável nas circunstâncias fatais em que estamos, pela morte tão imprevista de meu pai.
O ADVOGADO Nada mais é possível. O meu constituinte quer liquidar de uma vez o contrato.
EDUARDO Então, é irremediavelmente a penhora, a execução, a nossa expulsão desta casa?
O ADVOGADO São as instruções que recebi, e o credor julga que a propriedade não representa sequer a metade do valor da hipoteca. Enfim, veremos na ocasião oportuna.
EDUARDO Mas isto é uma extorsão de usurário!
O ADVOGADO É conforme o direito. Ele tem por si a lei.
EDUARDO E a isto se reduz todo o sistema de leis: à proteção do capital e à manutenção da autoridade, seja aquela a mais prepotente e esta a mais odiosa. É uma vasta e revoltante opressão inscrita nos códigos... São as leis do pavor... A propriedade e a autoridade são os dois fetiches que somos obrigados a temer e a venerar! O resto é insignificante; a própria vida, a honra, o pensamento e tudo o que faz a beleza da existência humana, não merece senão frágeis disposições legais, e tão débeis que ninguém lhes atende.
O ADVOGADO As leis encerram uma grande sabedoria. Elias são as mesmas de todos os tempos, nos seus princípios imutáveis. São eternas. Sem autoridade, sem propriedade, não poderia haver coexistência humana. São os alicerces da construção que nos veio do passado, e que é admirável.
EDUARDO Vivemos em uma sociedade que, baseada em tais leis, é o campo de batalha entre ricos e pobres, entre governantes e governados. Tudo é violência e aniquilamento da parte daqueles que têm a autoridade e a riqueza.
O ADVOGADO É o direito, ele é o termo da relação entre os homens, como o espaço é a relação entre os corpos. O direito é o companheiro da nossa existência, e o maior mal que pôde acontecer à sociedade, é a revolta contra a ordem jurídica.
EDUARDO Como isto é artificial e fora da natureza! Cada um vive dentro do seu mundo especial e não vê o mundo. A esta concepção fundamental de uma ordem jurídica, um matemático opõe o conceito do número e da geometria do universo; um biólogo não vê na vida senão a luta das espécies, a seleção, a mutação e as fatalidades da herança e do destino. Na verdade, todos esses pontos de vista em que cada um se coloca, não exprimem uma degradação da inteligência? No entanto, há outra vida que não é esta, dentro das muralhas da sociedade. Há uma vida universal, que se reflete na arte, na filosofia e na religião. É a consciência do infinito, a vida suprema acima dos códigos e dos gestos do terror, e que faz do mundo uma maravilha.
O ADVOGADO Seria a vida sem o princípio moral, que inspira o direito.
EDUARDO O princípio moral não passa de uma fantasia, de uma conjectura, que o homem inventa para a sua falsa escravidão. O homem é um aspecto da natureza como os demais seres. Não é possível dentro do universo estabelecer-se um princípio para regular diferentemente o destino de seres que são tão fatais como os outros. Seria preciso que houvesse liberdade na natureza e que o homem fosse capaz de determinar o seu destino. A contingência das coisas, o livre arbítrio, o acaso, tudo isso não passa de artifícios da nossa ignorância. Há uma fatalidade infrangível no universo.
O ADVOGADO Se tudo é fatal, a própria sociedade, que é a categoria dos homens, e o direito, que é a relação entre eles, são necessários e irremediáveis. Devemo-nos submeter a essas forças.
EDUARDO Esta é a agonia indizível do meu espírito. Ver a fatalidade de todas as coisas, agitar-me dentro deste mundo execrado e de que não me posso libertar! A virtude fundamental é perseverar na sua personalidade até ao extremo, e nesta tragédia suprema do próprio ser toda a violência é legítima e bela.
O ADVOGADO A sociedade também se defende e esmaga, e justifica-se diante desse princípio.
EDUARDO Tudo isto eu sinto e vejo e não tenho a força de me opor. Há uma grande covardia inicial no espírito humano, que nos entibia para sempre... A minha vida é esta tortura: compreender a inutilidade de todo o esforço... Como poderei salvar este patrimônio de família, que se terá de perder em minhas mãos? É muito pesado o fardo que nos lega o passado...
O ADVOGADO Eu o vejo esclarecido quanto à sua responsabilidade. Posso retirarme. (Sai)
(Eduardo fica só, meditando longo tempo, e Malazarte)
MALAZARTE Sempre só! Tu tremes? Causo-te medo?
EDUARDO Tu invades a minha solidão.
MALAZARTE E por que esta solidão?
EDUARDO É a minha separação de tudo. Vejo as coisas na sua tristeza...
MALAZARTE Mas eu sempre te mostrei a alegria.
EDUARDO Agora tu me fazes horror.
MALAZARTE Tu não me podes fugir.
EDUARDO Por que, se tudo me afasta de ti?
MALAZARTE Desde muito longe acompanho a tua vida. Eu te fui a felicidade e a indiferença benfazeja. Os nossos rumos foram diversos, mas as nossas naturezas foram as mesmas. Havia entre nós uma atração, que não se devia quebrar.
EDUARDO Nesse tempo eu era outro. Hoje não posso suportar a tua indiferença. Oh! que desespero para mim a tua impassibilidade diante da vida!
MALAZARTE Para que compreender a vida? Basta-me viver.
EDUARDO Há um mistério implacável que nos cerca.
MALAZARTE Eu sou um mistério, tu és outro mistério.
EDUARDO É isto que nos separa.
MALAZARTE Tu querias que eu passasse a existência como tu, em lamentações? Não! O tempo é rápido, não perdoa nem espera. Se eu não vivesse livremente, olhando tudo como de passagem, seguindo as coisas, rindo, gozando, amando, vivendo enfim, estaria também solitário, imóvel, triste como um penedo.
EDUARDO Eu vivo no espaço angustioso que a dor me traçou. Não posso ir além. Essa tua alegria me aterra... A série dos infortúnios é crescente e infinita. Desde aquela tua aparição na noite de Natal, tudo é tristeza em torno de nós.
MALAZARTE Tu também me responsabilizas pelas desgraças que aconteceram aqui?
EDUARDO Estás sempre envolvido na fatalidade.
MALAZARTE É esse o meu quinhão. Posto em face de gente triste, enferma e pusilânime e ser responsável pelo seu destino! Por toda a parte, essa maldição dos covardes que precisam responsabilizar alguém pelas misérias que lhes veio da própria natureza... A minha presença é funesta! Sou eu que altero as coisas e torno em maldades os benefícios que eles esperavam para a sua vida mesquinha. Sou eu que faço nascer o sofrimento e a expiação. Eu sou a praga! Sou o personagem sinistro que tudo incita como um flagelo formidável. Se o sol os abrasa, eu sou o sol; se o vento os derruba, eu sou o vento; se o raio os fulmina, eu sou o raio; se o mar os traga, eu sou o mar... Ah! miseráveis, que eles olhem para si mesmos e vejam se são dignos de viver. O próprio mal, que trazem em si, revolta-se e os destrói. E o ódio deles se ergue contra a minha serenidade... Eu continuo impassível e zombo dessa cólera que me amaldiçoa. Outros se alegram em mim, os fortes, os grandes, os que não temem e sabem que tudo é fatalmente belo, e fazem do mundo um encanto e um prodígio. Para esses é que eu existo, e toda a minha energia, o meu sangue, a minha alma é para lhes dar a alegria e a beleza.
EDUARDO Alegria?
MALAZARTE A alegria é o bem, a tristeza é o mal. Tu te diminuis na agonia. Vem comigo, vamos desta prisão, fujamos de tudo isto... Eu te mostrarei outros mundos e de novo estaremos unidos. Não te deixarei mais.
EDUARDO Nada me demove daqui, fico na solidão e nela me conforto. Viverei com as minhas saudades. Os meus pensamentos são espectros, eles saem da sepultura onde enterrei para sempre a minha inconsciência.
MALAZARTE Tu te afastas da vida e morrerás de tristeza e dor, enquanto eu irei seguindo o meu fado, alegre hoje, descuidado amanhã, vendo desaparecer, diante de mim tudo que vai morrer e me fita no último instante com espanto e terror. Se não fores comigo, se não tiveres de novo a tua liberdade, se não juntares a tua natureza à minha, não terás mais repouso... Os espectros te matarão.
EDUARDO Eu amo os espectros.
MALAZARTE Fica na tua solidão.
EDUARDO Ficarei.
(Malazarte sai Eduardo fica na trágica solidão da consciência que fragmenta o Universo e separa o homem de todas as coisas. Ouve-se um grande tumulto de gente que entra em desordem e em algazarra pelo jardim)
AS VOZES Mãe da lua! mãe da lua!
(Dionísia entra na sala protegendo Militina, que ê perseguida por garotos)
DIONÍSIA Fora, miseráveis!
OS GAROTOS Mãe da lua! mãe da lua!
DIONÍSIA Rua, canalha!
OS GAROTOS (vão saindo, murmurando e escarnecendo) Mãe da lua! mãe da lua!
(Dionísia os expulsa numa atitude de domínio. Militina refugiasse junto de Eduardo)
DIONÍSIA (a Militina)
É aqui a tua casa, minha pobre velhinha?
EDUARDO Sossega, estou ao teu lado.
MILITINA (desvairada e não reconhecendo Eduardo) Meu filho! Raimundo, vai dançar, ouve o reisado, leva atua Filoca... Eu também quero dançar. Oh! Malazarte, não mates meu filho. (Apercebendo-se do seu engano) Não é meu filho... Malazarte carregouo para o fundo do mar e o afogou. O mar é sangue... Quem és tu, mulher? A Outra, a do meu Raimundo, era escura como ele, era o fogo ardente, e tu trazes o mar nos olhos. — Vai, vai, volta! Aqui é a minha casa... Eles me quiseram matar e tu me salvaste. Por que me salvaste? Não te conheço, minha branca...
EDUARDO Sossega, Militina. Ninguém te fará mal.
MILITINA E Malazarte?
EDUARDO Nem Malazarte; e se foi ele que matou teu filho, serás vingada.
MILITINA Ah! Dudu, meu filho não morreu... Uma mulher o levou. (A Dionísia) Fala tu, que me salvaste ávida, e com certeza escondes o meu Raimundo, fala, demônio... Oh! tu és bela como uma santa... Meu anjo da guarda! S. Miguel Arcanjo!
DIONÍSIA Minha velhinha, agora eu te deixo e vou tranquila. (A Eduardo) Não consinta que saia sozinha à rua. Poderão fazer-lhe mal. Ainda há pouco, vi o seu vulto magrinho, vacilante, a correr pelas ruas, e atrás esse bando de garotos vagabundos, numa gritaria furiosa. Atiravam-lhe pedras... Deixa ver, minha mãezinha, se alguma te apanhou. (Examina carinhosamente Militina) Não, não estás ferida... Mas como está variando!
EDUARDO Não é de medo. Este desvario lhe veio depois da morte do filho.
DIONÍSIA Seu filho morreu?
EDUARDO Não sabia? Como assim? um fato tão conhecido, um processo...
DIONÍSIA Eu não sei nada.
EDUARDO Não é daqui?
DIONÍSIA Sou do outro lado da baía.
MILITINA Ela cheira ao sal do mar!
EDUARDO O mar! Como é triste o mar!
MILITINA Meu filho... Mundico, tu estás no céu... Ele é a lua, e a luz da noite é triste porque vem da lua morta. Eu sou a mãe da lua! (Sai, cantarolando, plangente) mãe da lua! mãe da lua!
DIONÍSIA Que casa triste!... Por que tanta tristeza?
EDUARDO A morte e o amor...
DIONÍSIA O amor não é triste... Lá do outro lado do mar, da minha praia imensa, eu sou a que os homens amam e que sempre lhes sorri. Sou eu que lhes teço as redes com que eles pescam, e eu teço cantando. Sou eu que os desperto à madrugada, quando dá a preamar e nós saímos na barca a pescar pelas águas cheias de luz... e eu canto para atrair os peixes... às tardes de tormenta, eu me sento sobre a praia e canto ainda para o mar. A minha voz se mistura com o vento, com o rumor das vagas, com o clamor do mar livre, e na força do meu canto pareço subir, subir... Outras vezes, tudo é silêncio, e eu venho à noite sozinha ouvir o suspiro do mar, e quando ele se banha na luz do luar. Uma noite que eu estava sentada assim na praia ardente, os homens me viram toda nua e disseram que eu era uma sereia e eu os beijei a todos. Eu os beijei; e enquanto o meu corpo branqueado pela claridade do luar se abraçava aos corpos dos homens, o mar bramia exaltado e o vento soprava furiosamente. Foi uma grande exaltação a daquela noite! A minha boca não se fartava de beijar. Eu dei a alegria e a vida... Eu sou um mar de amor!
EDUARDO E quem te conduziu até aqui? Que te trouxe da praia luminosa a esta casa triste?
DIONÍSIA As ondas do mar... Os meus companheiros saíram hoje de madrugada para o mar, e eu com eles. A maré era grande, a água não muito fria, e tudo prometia uma excelente pescaria. Fomos assim mar afora, quando de repente começou a soprar forte, e como o mar crescia e vinha sobre nós, os pescadores não ousaram afrontar as ondas bravas; e como manobrassem muito depressa e com violência para voltarem ao porto, rasgou-se a vela. Ficamos boiando sobre as águas bravias. Aterrados, eles me disseram: “Dionísia! Dionísia! canta.” E eu cantei para espantar o medo... O mar se foi acalmando, e as vagas nos trouxeram para este lado da baía. Atracamos. Em terra eles me mandaram comprar pano para concertar a vela. Eu sou mulher de pescadores.
EDUARDO Vocês são mais resignados que as ondas, mas sempre vagando como elas. Como é bom estar longe desta cidade! Oh! fora de tudo isto!
DIONÍSIA Como é estranha a cidade aqui dentro! De lá, do outro lado, é tão linda, toda branca, recebendo o sol e espalhando a luz. Delia levantam-se árvores, palmeiras enfileiradas como uma floresta em marcha, ou então uma palmeira solitária se ergue para o céu, como um desejo que subisse da terra amorosa... Á noite, parece que as estrelas baixam à terra e um clarão de braseiro ilumina o mundo quieto. De vez em quando, luzes como vaga-lumes correm por entre outras luzes paradas... Outras vezes, são fogos que dançam...
EDUARDO Nunca eu a vi assim. É preciso ir lá fora para ter essa miragem. O espetáculo só é belo de longe, de muito longe.
DIONÍSIA Venha uma noite...
EDUARDO Uma noite? Talvez!... Não.
DIONÍSIA Sim, à noite. Não imagina como é lindo! As grandes manchas verdes muito sossegadas recolhem a luz estrelada do céu e da terra e espalham uma cor que é a do fundo do mar.
EDUARDO O fundo do mar?
DIONÍSIA E à noite os montes e as pedras são gigantes fantásticos. Como metem medo! A mim não, mas aos homens que imaginam... A água da baía cerca brandamente a cidade e é uma água que tem luz e canta em surdina. As pequenas ilhas são como bosques verdes encravados num areal de prata.
EDUARDO Aqui dentro tudo é diferente!
DIONÍSIA Agora de manhã eu vi as casas e a gente. Os caminhos não têm aquela luz, estão cheios de lama; as casas são prisões. E como tudo é feio e sinistro! há medo do sol, há medo do céu, há medo e terror por toda a parte. É a cidade do espanto. Vi templos para proteger os homens, vi deuses de sofrimento, deuses que têm lágrimas nos olhos como escravos supliciados. Ouvi cantos de morte, um grande lamento por toda a parte, vi gente famélica de olhos faiscantes, vi gente apavorada gritando e espantando os outros. E tudo tão feio! E os corpos deformados e mulheres amortalhadas como múmias, para esconder a nudez... Aquilo, mulheres! Vi o amor. Eu sei bem que é o terror que o faz assim. O terror é o vosso criador... Oh! a miragem! a miragem! Eu volto ao mar e de lá continuarei o sonho!
EDUARDO E tu sabes o caminho?
DIONÍSIA O caminho do mar? Eu o tenho nos meus olhos, que só vêm o mar.
EDUARDO Os teus olhos... e por eles se vê a maravilha que está no fundo das águas. Como tudo aqui é sombrio e fechado!
DIONÍSIA Lá tudo é luminoso e livre.
EDUARDO Aqui é o meu destino. Volta para a imensidade. Volta enquanto há sol; depois as trevas baixarão. Não deixes que a escuridão te envolva...
DIONÍSIA As sombras chegam... Vou-me embora.
EDUARDO E eu fico separado de tudo.
DIONÍSIA Lá nós somos um com tudo o que existe. Os meus homens são como rochedos, toscos, ásperos, e os rochedos são como os homens do mar, rudes, calados, meditabundos, às vezes, dentro da luz, sobre o mar calmo, os barcos parecem pássaros de asas abertas, são gaivotas ou cisnes; outras vezes os cisnes e as gaivotas abrem as asas e são barcos...
EDUARDO Tudo se transforma, Dionísia.
DIONÍSIA E que alegria em tudo! Quando o mar geme, é um canto ao belo que esquecemos ser uma lamentação... E eu me rio das desgraças do mar. Se um pássaro canta lúgubre à noite, nós gozamos do som puro e da clara melodia que nos enchem os ouvidos. Eu só vejo a beleza e não a dor! Só há alegria na vida...
EDUARDO Eu só conheço a dor.
DIONÍSIA É preciso fugir a este desespero em que vós todos viveis. Deixe esta cidade de terror.
EDUARDO Para ir além?
DIONÍSIA Atravessar o mar.
EDUARDO O mar! Sabes?... o mar me espanta. É um pavor que me ficou desde criança e que não me deixa... Meteram-me medo e um terror tão grande que gerou fantasmas em meu espírito. Quando eu era pequeno, da janela que dá para este jardim, eu via à noitinha sair do fundo do poço uma mulher loura, com um pente de ouro com que penteava os longos cabelos, e ela me sorria... Era tão bela! E eu ainda vejo dentro dos meus olhos essa mulher... Era loura como tu, os cabelos eram assim, tinham dentro deles o sol... Como os teus olhos também são verdes! É que tu também vens do mar... Ela sorria assim... Oh! apaga esse brilho dos teus lábios...
DIONÍSIA Eu sorrio sempre.
EDUARDO Eu quisera a tua força para vencer o mar. Dá-me a tua alegria... Tu és forte e bela. A tua cabeça espalha a luz do sol.
DIONÍSIA Lá tudo é belo e tudo é luz!
EDUARDO Raio de sol que se fez mulher! os teus lábios têm a frescura e a carne das flores nuas.
DIONÍSIA Lá eu sou toda nua...
EDUARDO Oh! esplendor da nudez... Nesse corpo vive toda a natureza e por ele eu me sinto em comunhão profunda com as outras coisas.
(Beijam-se demoradamente e Eduardo desperta para a nova vida)
DIONÍSIA Eu te sorrirei sempre.
EDUARDO Tu és eterna, Dionísia!
DIONÍSIA Vem... Vamos... Eu te cantarei os cantos do mar. Tudo é um só e inextinguível canto: mar, vento, aves, plantas, e nos búzios da praia, tu ouvirás ainda a minha voz. Não é o canto das águas, é o meu canto: guardado para os que amo, o canto que te espera, canto de saudade e de amor... São as vozes dos meus profundos desejos.
EDUARDO Eu ouço esse canto na tua voz... e a alegria se apodera de mim...
DIONÍSIA Vamos dentro da luz.
EDUARDO Sim, vamos... Não há senão luz e vida. Eu sinto que a dor morreu ao poder do teu encanto invencível...
DIONÍSIA O nosso mundo é imenso como o mar e cheio de alegria.
EDUARDO Esse mundo nasce em mim. És tu nas mil fôrmas, és tu, raio do sol, mulher! És tu, Amor! Toda criação é um mistério de amor.
DIONÍSIA Vamos para o meu recanto secreto, onde tudo é tão belo, tão tranquilo, e onde tu serás meu. Tudo te espera, a água do mar, o sol, as árvores, os próprios rochedos calados... Vamos!...
EDUARDO Aqui tudo é sombrio.
DIONÍSIA Lá tudo é radiante.
EDUARDO Dionísia, eu quero ávida, o amor...
(Enlaçados vão deixando a casa)
DIONÍSIA Eu sorrio, eu canto, eu sou um mar de amor.
(Desaparecem lentamente. A mãe chega e os vê)
ATO III A praia da Boa-Viagem, na baía do Rio de Janeiro. Dionísia, de cabelos soltos, ligeiramente vestida, de pés descalços, deitada sobre um pequeno rochedo, escuta num búzio os seus cantos de amor e sorri maravilhada. Depois de alguns momentos, aproxima-se lentamente da praia uma barca em que vem Malazarte. Ao tocar a praia, Malazarte salta em terra e amarra a barca. Malazarte vai seguindo pela praia, quando vê Dionísia, e radiante dirige-se a ela.
MALAZARTE Que estás ouvindo aí?
DIONÍSIA (misteriosa e faceira) Nada...
MALAZARTE Nada? Sim... Conheço essa velha história... Tu queres ouvira maré que vem buzinando de longe... É o que ensinam os pescadores... O mar sopra no búzio antes de soprar na praia. Acreditas nisso? Que o mar canta?
DIONÍSIA Não é o que eu estou ouvindo...
MALAZARTE Que é então?
DIONÍSIA Cantos de amor!
MALAZARTE Cantos de amor... Quais?
DIONÍSIA Os meus... os que eu canto quando estou apaixonada e sozinha guardo aqui para os meus namorados...
MALAZARTE Deixa-me ouvir.
DIONÍSIA Não, tu não és meu amante.
MALAZARTE Mas posso ser... se tu quiseres... hein? Como tu és bela! Como és dourada e cor de rosa... Dá-me o búzio...
DIONÍSIA Nunca... Não foi para ti que eu cantei. Ele estava bem escondido e eu vim buscá-lo para quem tu sabes.
MALAZARTE Mas eu o quero para mim. Dá-me...
(Ele persegue Dionísia, que risonha corre. Alguns instantes depois, Malazarte apodera-se do búzio)
DIONÍSIA (inquieta) Ah! não escutes, Malazarte!
MALAZARTE (escutando no búzio) Eu ouço um murmúrio longínquo. Não é o vento nem o mar. É uma voz de doçura e de carícias, uma voz de mulher, sim, murmúrios de amor... Assim cantou para mim a minha primeira namorada, quando eu me fazia homem... há tanto tempo já! Ainda guardo o som dessa voz. São de verdade os teus cantos, Dionísia?
DIONÍSIA (voluptuosa e sedutora) São os meus suspiros e os meus desejos. Por que descobriste o mistério?
MALAZARTE O mistério da voz... Agora te conheço melhor: não é somente por essa voz profunda e secreta que tu seduzes, Dionísia. Tudo em ti é amor!
DIONÍSIA O amor é a minha vida, Malazarte.
MALAZARTE Tu és o amor. Os teus olhos têm uma luz ardente e meiga, e os teus cabelos são ouro e fogo. Deixa-me tocá-los. (Ele toma nas mãos os cabelos de Dionísia) Como são vivos!
DIONÍSIA Sempre em desordem.
MALAZARTE Quem pôde reter as chamas?
(Malazarte acaricia os cabelos de Dionísia que, de novo reclinada sobre o rochedo, sorri num voluptuoso encantamento)
DIONÍSIA Tu... somente tu... As tuas mãos queimam, mas apaziguam... Que força em tuas mãos! E, no entanto, não me fazes nenhum mal. É extraordinário! Dizem que és terrível, violento e mau...
MALAZARTE Eu?
DIONÍSIA Contam tanta coisa a teu respeito...
MALAZARTE Mas, enfim, o quê?
DIONÍSIA Cousas interessantes, mas tão inquietadoras! Dize lá o que se passou ultimamente contigo e as filhas de um sujeito que tem uma roça e foi teu patrão...
MALAZARTE Ora, pouca coisa...
DIONÍSIA Conta...
MALAZARTE A história foi que esse endemoniado roceiro tinha três filhas: Catarina, Rita e Benedita. Logo que entrei para o serviço, as caboclas se inflamaram e começaram a me grelar cada olho... Fiquei logo assanhado... mas o difícil era escolher entre as danadinhas. Se Catarina tinha olhos de veada, Rita tinha os cabelos cacheados, que me faziam cócegas, e Benedita, amais cafuza, tinha um corpinho de amor... Não havia dúvida, eu precisava das três... Mas como havia de ser?... Como havia de ser? A velha andava arrepelada e espionava as pequenas. Ora, um dia entre os dias, eu estava com o patrão tratando do gado, quando a este se meteu na cabeça que era tempo de lua e ocasião de fazer uma boa plantação. Quando chegamos à horta, não estavam as ferramentas. Então, volta-se o patrão e diz: “Pedro Malazarte, vai buscar a enxada, a foice e a pá, todas três!” — Eu pus sebo nas canelas e fui voando, imaginando comigo mesmo: “Chegou o momento de pegar as pequenas e embrulhar a velha candongueira...” Chego à casa e topo as bichinhas com a mãe tecendo rede, sossegadinhas que era um gosto. Sem mais aquela, fui dizendo: “Patroa, o patrão quer as filhas dele lá embaixo para ajudarem a plantação. Elias têm boa mão e hoje é lua.” A velha rosnou; oh! diabo! — Eu repeti a mensagem. A megera disse que bastava ir uma. As coitadinhas, que deliciosas criaturas e espertinhas! tinham entendido e me miravam. Criei ânimo e gritei com toda a força dos meus peitos para o patrão: “Todas três, senhor meu amo?— E a voz do velho chegou fraquinha: “Sim, todas três, Malazarte.” — A velha resmungou, mas obedeceu. E eu parti com as três pequenas. Uma feita no caminho, a casa se escondeu, e nós tomamos pela estrada grande afora...
DIONÍSIA E depois... que fizeste?
MALAZARTE O que tu farias no meu caso... Ah! tu não...
DIONÍSIA Todas três?
MALAZARTE Sim. Por que não?
DIONÍSIA (salta aos joelhos de Malazarte e abraça-o) Que belo! Gosto disso...
MALAZARTE E eu então? Mas não há nada de espantar, porque a velha Militina, que sabia histórias do tempo antigo, me contou que um rei teve trezentas numa noite... Que sorte!
DIONÍSIA É mentira... Eu te afirmo.
MALAZARTE Porque não há assim tanto dessa fazenda, mesmo naqueles tempos...
DIONÍSIA Tu serias capaz?
MALAZARTE Tu vales mais que trezentas... Mas deixemos estas histórias. Vamos pelo mar afora, a barca está aí; vamos, Dionísia... Toma este anel! Vem.
DIONÍSIA (encantada e hesitante) Quem te deu? Uma mulher... eu juro.
MALAZARTE Não... Furtei.
DIONÍSIA Ladrão, oh! eu te conheço!
MALAZARTE Mas dessa vez furtei de ladrões.
DIONÍSIA Onde?
MALAZARTE Numa fazenda velha, onde eu trabalhava.
DIONÍSIA Que trabalhador!
MALAZARTE Quando não há outro meio de arranjar de comer... depois, varia-se um pouco.
DIONÍSIA Mas vamos à história do anel...
MALAZARTE Sim, no tempo em que eu trabalhava no campo, só se falava de uma quadrilha de ladrões, e havia um pavor dos diabos. E o que intrigava o povo, era que ninguém descobria os salteadores, nem onde eles escondiam os furtos, e tudo andava saqueado. Um espanto geral. Ora, uma noite fui à caça e trepei numa árvore, para fazer uma espera, porque o bicho devia dar de madrugada. E assim fiquei quieto, e quando o dia já vinha vindo, ouvi um barulho estranho no mato. Parecia uma tropa de soldados marchando com cautela. Desconfiei que a função era comigo e preparei a arma para me defender... A gente tem sempre negócios com a polícia... Pus-me à espreita, e que vi? Uma dúzia de homens, que lá do alto me pareciam anões, carregando caixas, malas e sacos pesados. Os camaradas caminhavam com dificuldade debaixo da carga. Enfim, passado algum tempo, eis os patifes debaixo da minha árvore. São os ladrões! Eles contam as façanhas daquela noite. Alguns tinham apenas devastado galinheiros; outros, porém, traziam dinheiro e joias. “Oh! lá, diz um deles, que era o chefe, escondam tudo isso e vamos comer.” Os companheiros obedecem e, levantando uma pedra, descem debaixo da terra por um buraco e aí escondem tudo, salvo a comida. Depois voltam acima, e principia uma cena de feitiçaria, rezas e cantos lúgubres... “A mesa”, manda o chefe, e todos começam a devorar. Oh! que fome canina! Oh! que lobisomens! Comem as aves cruas, quase vivas, aos pedaços sangrentos. Fazia nojo, e eu, danado, em cima, com vontade de lhes mandar chumbo. De repente, um deles, farto e cansado, com a boca cheia a escorrer sangue, com os olhos acesos, grita: “Água! —Água? Escarnecem os outros. — Água? bebe sangue...” Então eu lá de cima lhes mando água... Atordoados, olham para o alto, e que espanto, que pânico naquelas caras medonhas. Agitam-se todos e berram: “O céu chove uma chuva fedorenta!” — Espavoridos, correm pela negrura da mata a dentro... Então eu desci e, sem mais aquela, apanhei o dinheiro e as joias, e fiquei rico por muito tempo. Só resta este anel. Toma-o e dá-me o búzio.
DIONÍSIA (hesitando) Nunca...
MALAZARTE (apodera-se do búzio num voluptuoso entusiasmo) Eu quero esse canto de amor... dá-me... Eu o busco também, porque aí tu cantaste e amaste como o mar, a floresta, o sol e tudo o que tem vida eterna. Oh! como é delicioso ! Esta concha é a tua boca, cheia de amor e de doçura. (Beija loucamente o búzio e, de repente, como um Tritão, sopra ardente e radiante)
DIONÍSIA (inquieta e amorosa)
Que fazes?
DIONÍSIA (sorrindo, lânguida e amorosa) Vem, Eduardo. Como é doce e estranho o amor nesta liberdade e nesta luz! Tudo aqui é o infinito, nada nos impede de nos pertencermos um ao outro, como o sol e a onda do mar. E que irradiação em teu ser, quando te aperto ao meu seio... Gosto tanto de acariciar os teus cabelos!
EDUARDO Tu acalmas e iluminas!
DIONÍSIA Eu te acalmo! Como amo loucamente os teus olhos, quando eles têm este fogo da vida que está no teu coração abrasado! (Beija-o).
EDUARDO E da tua boca recebo o sopro misterioso da minha vida nova. Dá-me ainda... sempre.
DIONÍSIA (beijando-o febrilmente) Toma, toma!
EDUARDO Os teus beijos e as tuas carícias são para mim a vida. A vida eterna! Dionísia, eu me sinto como as outras coisas inconscientes e felizes. Em ti, meu amor, tudo, tudo!
DIONÍSIA É o divino esquecimento...
EDUARDO Nos teus braços, na tua boca, nos teus olhos, em todo o teu corpo, o meu ser se desperta. Os teus gestos de amor são infinitos como as expressões da Natureza.
DIONÍSIA Deixa mirar-me no fundo dos teus olhos maravilhados... São como um poço sombrio, e lá em baixo a água... Eu aí me vejo estranha e outra... Eu me vejo!... Tu me amas!
EDUARDO Parece que há muito tempo aí guardo a tua imagem. Como és bela e singular! (Beija-a e depois contempla-a docemente, vê o búzio, sorri e vai apanhá-lo. Dionísia o impede vivamente)
DIONÍSIA Não. Deixa-o... Está tudo acabado.
EDUARDO Acabado? O quê?
DIONÍSIA Vim aqui buscá-lo. Os meus cantos aí não estão mais, aqueles que te esperavam... Malazarte soprou dentro do búzio. Foram-se!
EDUARDO Malazarte?
DIONÍSIA Ele passou neste instante e soprou dentro do búzio como um furacão... Que força, que entusiasmo, e como ele mente!
EDUARDO Oh! é um farsista, um trapaceiro... eu o conheço.
DIONÍSIA Talvez... mas como sabe inventar, e que histórias tão divertidas conta!
EDUARDO Mentiras.
DIONÍSIA Mas tão belas! Quem me dera mentir como ele! Sim... A mentira é mais verdadeira do que a verdade de toda a gente. Não sei me explicar, ela tem mais vida, mais sangue, mais cor. Vale mais do que a verdade, porque representa as coisas que deviam ser e que não são por culpa nossa.
(Eduardo fica silencioso, a cismar)
DIONÍSIA (carinhosa) Não penses mais nisso... Se eu não te posso dar aqueles cantos que tu ouvirias toda a vida, dar-te-ei coisa melhor...
EDUARDO Quê? misteriosa!...
DIONÍSIA O meu tesouro... As maravilhas do mar, pérolas, estrelas, corais, e flores do fundo do oceano, que jamais tu viste... Esse tesouro vem da mãe d'água! A água, como todas as coisas, tem mãe... Ela é eternamente viva, porque é a fonte da existência e a renova perpetuamente. É infinita e se multiplica sem se fatigar. Está na origem de tudo... Desce dos céus e torna a voltar das profundezas da terra e gera as nuvens errantes. Corre sobre a face do mundo, que ela embeleza, e das entranhas da vida sobe aos olhos dos homens para os consolar... (Ela vai buscar o tesouro)
EDUARDO (seguindo-a) Dionísia!
DIONÍSIA Espera-me aí. Não quero que ninguém descubra os meus segredos... (Sai. Na praia chega a mãe de Eduardo, que o busca. Eduardo fica comovido e atônito, ao vê-la)
A MÃE Meu filho... Enfim!
(Eduardo continua silencioso)
A MÃE Não me conheces? Que te fiz?
EDUARDO (lenta e dolorosamente) Que me queres? Por que vens com esse ar sombrio, com esses olhos tristes? Por que turbas o mistério do amor e da vida? Volta!
A MÃE Há meses que me abandonaste... Todos os nossos bens foram vendidos. Tomaram-me a casa... E por que me deixaste? Que te fiz, a ti, meu único filho? Devias ser o meu arrimo e a minha consolação... Por que fugiste de mim?
EDUARDO Não sei... Deixei a morte e a dor...
A MÃE Eu te faço horror... Ah! compreendo. Tu fugiste à minha tristeza... Se eu adivinhasse, meu filho, teria feito da minha vida outra coisa, teria ocultado as minhas aflições; eu as teria enterrado bem no fundo do coração e no meu rosto enrugado verias brilhar a alegria! Que não faria por ti, para te guardar sempre ao meu lado, ligado eternamente a mim, como o filho é ligado à mãe nas suas entranhas...
EDUARDO Agora conheço a felicidade.
A MÃE E a mim esqueceste!
EDUARDO Fui atraído pela força do Amor! Encerrado em nossa vida sombria, angustiado, mãe, parti para matar esta sede de felicidade, que é a minha tortura.
A MÃE Eu sou tua mãe e não te quisera jamais privar do teu quinhão de felicidade... Perdoa, se o não te pude dar...
EDUARDO Tu me esqueceste, mãe!
A MÃE Nós nos esquecemos um do outro... A dor se apoderou de nós... Eu tinha todas as minhas angústias, e tu a saudade da morta...
EDUARDO Vivíamos no sofrimento.
A MÃE Dize... Encontraste ao menos a felicidade?... Não sei; temo que não sejas feliz, meu filho...
EDUARDO Mãe, sou feliz...
A MÃE E essa mulher?
EDUARDO Dionísia?
A MÃE Não a conheço... Apenas a vi... Em que horrível instante! Parecia que ela me levava a vida... Nesse dia fiquei só, a noite foi chegando...
EDUARDO (depois de algum silêncio, e como num sonho) Por ela possuo toda natureza, por ela eu me confundo com o Universo... É a inconsciência suprema que dá o amor... A sociedade nos oculta a natureza, e o amor a revela... É o êxtase e o esquecimento... E tu vês, mãe, como os meus olhos estão cheios de beleza... Oh! o espetáculo maravilhoso não é somente a beleza, é a vida toda!
A MÃE Não é uma vida consciente a tua... É um delírio!
EDUARDO A consciência fez-nos monstros a ti e a mim. Estamos em frente da natureza como fantasmas amedrontados. Tudo nos espanta: as forças do Universo, a beleza, a vida, a alegria, e nós fizemos da sociedade uma organização contra a natureza... É preciso matar ávida! É o pacto de aliança... e nós nos enchafurdamos nesta lama... Oh! os seres livres!... Vê Malazarte, vê Dionísia; eu quero a inconsciência deles. São forças, vivem, brilham, porque só fazem os gestos da natureza. Passam, transformam-se como as nuvens e a luz... E nós, mãe? E eu? Jamais serei um com o Universo... Para sempre a separação. A sociedade me deu esta consciência... Eu posso afrontar a sociedade, mas, oh! mamãe, temo a natureza. Bem no fundo do meu ser há um sentimento remoto, uma lembrança que se não apaga, e que me separa das forças do Universo, e que me diz que ele é ele, e que eu sou eu até à morte... E depois outras agonias vieram... Arranca-me esta consciência, filha do terror...
A MÃE Meu filho, não te compreendo; e que posso fazer para esse sofrimento de mim desconhecido?... Vem comigo... Vem para o meu lado...
EDUARDO Não, eu fico, quero ir até ao extremo. Escuta, tenho necessidade de tudo te dizer... Mamãe, por que estas coisas em nossa alma? Tu és mãe, deves saber mais do que eu, conheces os mistérios da vida que se passa em ti, e por ele estás ligada às origens da criação...
A MÃE Eu sou uma pobre mulher.
EDUARDO Ah! se soubesses o que é a minha alma... Trago em mim todos os terrores antigos e profundos... São os espectros vagos, informes, mas quanto poderosos! São os criadores! Tira-me tudo isto do espírito. É o teu dever... Foste tu, mãe, que me transmitiste o maior dos males, porque por ele estou morto e jamais vivi... Arranca-me tudo isto... e serás abençoada. Será a remissão do pecado inicial... Ah! tu não podes! Só Dionísia pôde!
A MÃE Eduardo, é a loucura, o desespero da felicidade que te dá o delírio. A vida é ainda outra coisa... Olha em torno de ti, meu filho. Há um dever para com os outros... há o sofrimento humano. É o teu dever...
EDUARDO O dever para com o sofrimento? Sou eu que não compreendo a tua linguagem... A Natureza conhece esse dever? Pergunta ao sol se ele faz o seu dever, dando-nos o calor e a luz? Interroga a Natureza em tudo. Oh! quando seremos nós, verdadeiramente, as simples expressões da vida?
A MÃE E a consciência, desgraçado?
EDUARDO Devíamos viver na inconsciência absoluta, como os astros e as árvores; mas se, por fatalidade da nossa inteligência nasce a consciência da vida, então que ela nos dê o sentimento do nosso lugar no Universo, e faça a natureza ostentar-se como um espetáculo divino e que todo o nosso ser seja uma expressão da vida imortal, numa perpetua transformação... Então, não haveria mais pavor...
A MÃE Haverá sempre, meu filho, o mistério, que só Deus conhece.
EDUARDO Mãe, vejo que estamos separados para sempre. Volta ao teu mundo engendrado pelo Terror...
A MÃE Eduardo, tu és meu filho.
EDUARDO Libertei-me de ti e de tudo o que representas... Dionísia, Dionísia, vem!...
(Na praia vem chegando Militina, guiada por Malazarte)
EDUARDO Militina! aqui!
A MÃE Pobre louca, procurando sempre na praia o filho...
MALAZARTE Vem, minha velha... O vento está quente e a areia queima. Procuremos um pouco de sombra, e deixa o mar tranquilo... Ele não tem teu filho, o mar... Tu não o conheces, ele mata, mas é muito soberbo para guardar os cadáveres. Ele os restitui à terra, que come os mortos...
MILITINA Não, ainda não restituiu meu filho, mas ele o fará... Suplicarei tanto que terá piedade de mim. (Dirigindo-se ao mar) Por que tomaste meu filho? Era tão bonito! Não o comas... Quiseste te vingar, porque ele apanhava os teus peixes? Era para mim, sua mãe! Eu gosto tanto de peixe... E o meu Raimundo era um bom filho, que queria muito bem à sua mãezinha, e que lhe cantava às noites as mesmas cantigas de pescador, que ele te cantava. Onde está agora? Responde... O pobrezinho deve estar com fome... (Começa a deitar ao mar a comida que trouxe na cesta) Tu não me voltas, mas tu comes... E se estás morto, tua alma não terá fome... Toma mais! Como tens fome, meu filho! Faz frio aí em baixo d'água? Hein? Dize à tua mãezinha... Não ouço nada, fala mais alto! Ah! ele não quer que tu saias da água e venhas aos meus braços? Ele não quer... Ah! tu és mau, furor de Deus! tu me queres pôr maluca? Cala-te, maldito, enganador daqueles que te amam... Dá-me meu filho, ou então... então não cessarás nunca de te agitar de dia nem de noite... não terás repouso nem calma; por meus soluços e maldições, serás o espanto eterno, a separação dos homens e das terras, serás castigado pelas rodas dos vapores e retalhado pelas quilhas... Ah! sofres dessas feridas? Gemes?... E o meu coração não sofre? não sangra também? (Ri horrivelmente. A mãe e Eduardo se agrupam aterrados. Malazarte torna-se impassível)
MILITINA (a Eduardo) Tu estás aí, Dudu? Eu te conheço... tu és bom, tu vieste também buscar o teu companheiro, o teu irmão de leite... Vem... ajuda-me... Sabes? ele não morreu... ele está no fundo do mar... (Silêncio) E se ele está morto! Virgem Santíssima, mãe dos homens e das águas! Nossa Senhora dos Navegantes, piedade de sua alma! Ele está morto... Morreu sem a Santa Luz! Na escuridão... horror! Aqui está uma vela, que o alumiará na eternidade. (Acende uma vela dentro de um rochedo) Luz bendita, alumia meu filho! Afasta dele as mães d'água perversas, que moram nestas grutas...
A VOZ DE DIONÍSIA Eduardo! Eduardo!... A estrela (Dionísia aparece), as pérolas, o coral! Todo o meu tesouro! Para o filho da Terra as maravilhas do mar!
MILITINA Ah! A mulher loura! Eu te reconheço... É aí que tu moras... Foste tu que levaste meu filho... Tu o enfeitiçaste, pérfida!
EDUARDO Ela salvou a tua vida.
MILITINA Ela tomou a de meu filho... Eu a conheço, ela é bela... Tem o olhar das esmeraldas... É o mar... Malvada! Dá-me meu filho. (Dionísia sorri)
EDUARDO Oh! basta... Por que tu vieste, tu também? Por que me trouxeram até aqui os clamores dos vossos desesperos?...
MILITINA Eu quero meu filho... que ela mo restitua... (Avança para Dionísia e recua) Não me olhes assim, fecha os teus olhos ou eu os arranco... Fecha esses olhos, bruxa!
A MÃE Eduardo, meu filho, vem... Esta mulher... Oh! mãe Santíssima, misericórdia! (Ela senta-se acabrunhada numa pedra)
(Militina continua pela praia a implorar o mar e desaparece)
MALAZARTE (a Eduardo) Tu és cruel!
EDUARDO Separei-me de tudo e vim muito longe. Ide à vossa vida, chorai, ficai no sofrimento...
MALAZARTE Eu estou em toda a parte.
EDUARDO Eu sei.
MALAZARTE E por que me queres meter num círculo como um peru? Eu rio e posso chorar também. Não sou nunca o mesmo. Para mim, viver é mudar. Estas pobres mulheres sofrem, e eu tenho pena...
EDUARDO Estou longe dessas tristezas... Tudo é alegria e esquecimento... São lamentações muito distantes de mim...
MALAZARTE Entretanto, tão próximas...
EDUARDO (a Dionísia, que durante esse tempo contemplava absorta o mar) Dionísia, que estás a olhar?
DIONÍSIA Eu vejo o mar e sobre ele o vento que passa. É a alegria, e ela faz estremecer... O mar sofre?
MALAZARTE Ele se lamenta também... Que importa? Olha as ondas que correm e brincam como pássaros...
DIONÍSIA Que beleza, Malazarte!
MALAZARTE Que vontade de me ir pelo mar afora... Gosto dele assim, fremente! Sobre ele fica-se alegre como o vento e as vagas...
DIONÍSIA Sobre o mar canta-se sempre... Sonha-se, ama-se, domina-se...
MALAZARTE A terra me fatiga, porque é sempre tranquila... O mar remexe-se, tem nervos como nós...
DIONÍSIA Ele espanta e atrai.
MALAZARTE A minha barca está aí... vem...
DIONÍSIA Eu? partir?... (Olha profundamente Eduardo)
EDUARDO Tu tremes, Dionísia... O mistério te tenta. Desejas a perpetua mudança...
DIONÍSIA Quero ficar contigo... Nós somos inseparáveis e unidos para sempre...
A MÃE (saindo do seu profundo silêncio) Tudo é separação e dor!
MALAZARTE Oh! diabo... eu ia partir esquecendo as pobres criaturas... Vamos... Voltem para a casa... Mas onde anda Militina? (Chama-a) Militina!
MILITINA (errante pela praia, vê um osso, apanha-o e contempla-o) Ainda um... É preciso procurar os outros... São de meu filho ou de outros mortos, de que ele devorou a carne e rejeitou o esqueleto na praia. E os animais do mar, e as aves do céu fizeram carniça!... Pobre filho! juntarei os teus ossos e tu te levantaras radiante no dia da ressurreição... Tu ressuscitarás, Raimundo.... Eu te verei... eu te verei...
MALAZARTE Vamos, deixa-te disso, vem rezar em casa; isso consola a gente velha...
(Malazarte conduz as duas mulheres pela mão)
A MÃE (olhando dolorosamente o filho) Eduardo!
(Eduardo fica triste, cismando. Dionísia tem um movimento de revolta e exclama estranhamente)
DIONÍSIA Ah! a maluca! Tu sabes? ela me divertiu... (Imitando Militina) Eis aqui um osso, mais outro... Olha: ela esqueceu um, o seu morto não será perfeito... Será capenga no dia da ressurreição... Isso alegrará a companhia...
EDUARDO Dionísia, deixa essa brincadeira cruel...
DIONÍSIA Que tens? Ainda há pouco estavas tão forte...
EDUARDO Deixa em paz os mortos...
DIONÍSIA Os mortos? Estes ossos? Os mortos?
EDUARDO Há sempre qualquer coisa de sagrado que fica... Esses ossos talvez sejam de náufragos...
DIONÍSIA E eu que te julgava livre! Não, tu estás ainda preso a estas ideias contra a vida. Este osso te espanta. Vai, (fala ao osso) volta à terra, e alimenta com a tua cal benfazeja as plantas e as flores. Tu não te levantarás num esqueleto no dia do Juízo. A tua vida é contínua e eterna, não estás morto, és vivo e dás a vida. Vai, nada é morto, tudo é vivo... (Arremessa o osso)
EDUARDO Eu sei que nada é morto.
DIONÍSIA E nada espera a ressurreição... Crê que eu sorrio quando dizem que no último dia a carne se transformará gloriosa... Eu me olho... Aqui tens o meu semblante, os meus olhos e a minha boca... Aqui tens o meu corpo... Estou morta?
EDUARDO A carne é gloriosa!...
DIONÍSIA Há um dia final? Aquele que vive nos ardores da carne, está transformado... Para ele os dias se sucedem intermináveis e belos no frenesi do amor!...
EDUARDO Eu esqueço a dor e a vida, Dionísia eterna! Tudo se desperta...
DIONÍSIA É a ressurreição do corpo... Por tanto tempo martirizado, ele se ostenta... Começa a sua liberdade e recebe da luz a vida que transmite aos outros seres... Tudo estremece de novo, como outrora. O véu sombrio que envolvia as coisas, despedaçou-se pela força do sol, e os corpos erguem-se dos túmulos, onde o terror do pecado e do castigo os havia sepultado... É a festa divina da natureza... Não há bem nem mal... Tudo que é belo, é o bem... O Universo é belo em suas representações que passam e se transmudam... Como és belo agora que és livre e transfigurado... E eu não tenho receio de te desvelar o meu corpo... Ser nua como o sol! Oh! os corpos se levantam graciosos como palmeiras... Oh! alegria, oh! delírio! A carne do homem e a carne da mulher são como suntuosas flores nuas... Ressurreição! Ressurreição!
(Eduardo fica inquieto da exaltação de Dionísia)
DIONÍSIA Eu te atormento e te faço medo...
EDUARDO Esqueçamos tudo e amemo-nos, Dionísia.
DIONÍSIA Tu não tens a força de esquecer. Estás ainda neste mundo ao qual te arranquei, mas aonde voltam os teus pensamentos...
EDUARDO Eu sou livre. Separei-me desse mundo.
DIONÍSIA A tua separação não é a libertação absoluta.
EDUARDO Ela será... mas fiquemos aqui; por que ir mais longe?...
DIONÍSIA É preciso que eu continue.
EDUARDO Aonde vais tu?
DIONÍSIA Não sei...
EDUARDO Aonde vamos nós?
DIONÍSIA Para que saber?
EDUARDO Todo o desconhecido me espanta...
DIONÍSIA Como és covarde!...
EDUARDO Dionísia?
DIONÍSIA Não me conhecias quando partiste comigo... O resto é como eu, incerto e misterioso... Não sabes que nada é eterno na vida imortal?
EDUARDO Há sempre este terror que nos vem do fundo da consciência... Somos bem mesquinhos. Precisamos da sociedade, necessitamos destas casas, das leis, de tudo o que oculta e protege o homem... Para sermos livres e felizes, precisamos de baluartes...
DIONÍSIA Eu não vejo esses baluartes, estou fora dessas ilusões...
EDUARDO Tu és feliz!
DIONÍSIA Eu te quisera igual à luz... em toda a parte e na origem das coisas...
EDUARDO Tu és a luz...
DIONÍSIA Eu te quisera inconsciente como o vento que sopra e no entanto acaricia... como a água abundante e fresca, como a cor infinita das coisas que creia a magia para os nossos olhos...
EDUARDO Eu vivo da tua magia, Dionísia...
DIONÍSIA Sim, a luz, o sol, a cor, o mar... Ser tudo isso e não ser nada disso.
EDUARDO Minha alegria!
DIONÍSIA Eu quisera desaparecer na tua natureza como a luz desaparece docemente nas trevas poderosas... Tu carregas o fardo do passado e o espanto do futuro... Só Malazarte é estranho ao tempo... é o espelho do universo, sempre eterno, sempre vário...
MALAZARTE (entra num grande júbilo) Ao mar! ao mar!
EDUARDO Onde as deixaste?
MALAZARTE Quem?
DIONÍSIA As velhas! É em que ele pensa...
MALAZARTE Levei-as durante um quarto de hora... mas era muito conduzi-lo as até à casa. Elias conhecem o caminho. Os velhos são como os cegos e os cães: não se enganam de estrada. Agora, para o mar!... O vento anda por aí, vai soprar e nós vamos dançar na barca...
DIONÍSIA (rindo, comandando o mar) Move-te, agita-te, espanta, mar! sopra, vento!... eu quero o mar grosso, eu quero cantar e rir no temporal!
MALAZARTE Não te canses; aí vem o temporal, que tu chamas...
EDUARDO Fiquemos aqui tranquilos.
MALAZARTE Tomemos a barca... quero mostrar-lhes uma coisa muito linda...
DIONÍSIA O quê?
MALAZARTE Outro dia, estava sozinho na barca, o vento era fresco, pus a embarcação no bom rumo e me deitei, olhando as nuvens que brincavam lá em cima... Assim fiquei até que dormi. De repente, um choque... Despertei e vi que ia de encontro a um rochedo, que seguramente lá não estava antes... Oh! se eu conheço o mar por aqui!...
DIONÍSIA Onde esse rochedo? Na imensidade das águas?...
MALAZARTE Sim, muito longe... na imensidade das águas... À vista do rochedo, virei a barca e aproximei-me o mais de leve possível da ilhota. Naquela água funda, naquele oceano escuro, a ilha era como uma flor vermelha, aberta sobre o mar. Atraquei, pulei em terra, e a maravilha aumentou: toda a ilha era um palácio de coral.
DIONÍSIA O palácio de coral!
MALAZARTE A água cerca-o de todos os lados... Entrei. No interior estão aberturas por onde o sol penetra... À noite a lua deitada sobre o leito de coral dorme um sono cor de rosa...
DIONÍSIA E depois? Desapareceu tudo?
MALAZARTE Não. Tudo ali permanece para sempre.
DIONÍSIA Oh! eu quero ver... eu quero...
MALAZARTE Ele é teu, Dionísia! Vem vê-lo!
DIONÍSIA Vou... Eduardo, é preciso ir...
EDUARDO É preciso ficar, Dionísia.
MALAZARTE Dionísia!... O palácio de coral...
DIONÍSIA O meu palácio!... O meu sonho, que se realiza. Alguma coisa que estava em mim e que vem de ti, Malazarte!
MALAZARTE É tarde! Vem!
DIONÍSIA Eu o desejava sem saber. Eram todos os meus desejos, inquietos e desenfreados... Eu errava sobre a terra e o buscava... O meu palácio estava no fundo das águas... Ele sai das águas... Sinto em mim, no mais remoto do meu ser, como um retorno...
EDUARDO Não, Dionísia. Escuta, é uma mentira que ele nos conta... É a tua última invenção, impostor? Vai-te, bandido!
MALAZARTE Tu te zangas, homem da verdade? Vem vera mentira...
DIONÍSIA E, no entanto, ele existe!
EDUARDO Existe? Mentira! ilusão, desgraçada!
(Durante alguns momentos, Dionísia vê o palácio de coral... Ela olha Eduardo e, dissimulando a sua visão e a sua fé, quer atraí-lo para o mar)
DIONÍSIA Eu vou contigo... Cantarei enquanto atravessarmos o mar...
EDUARDO Nunca!
DIONÍSIA Vem... tu és o meu domínio, o meu reino; em teu sangue e em tua alma vivo na força da minha natureza... Vem... É no mistério do mar, e diante de todos os mistérios, que devemos realizar a união absoluta dos nossos seres...
EDUARDO Tu me aterras!
DIONÍSIA Covarde, covarde! É assim que sois, apavorados diante da mais simples coisa da natureza, diante da água...
MALAZARTE Deixa-o... Tu és livre e forte. A barca está pronta, e se o vento nos ajudar, tu verás abrasado pelo sol o teu palácio de coral!
DIONÍSIA O meu palácio de coral!... Não, eu não devo. O sonho é belo, mas este sonho me matará... Sinto que não serei mais eu... (A Eduardo) que sem ti a minha vida se acabará; o sonho vai desaparecer, e tudo entrará na inconsciência profunda... (Fitando Malazarte) O sonho é belo, a natureza é a vida eterna...
MALAZARTE Vem à imensidade das águas...
DIONÍSIA Quero a ilha de coral, quero a magia da luz, a cor e a água banhando a minha morada...
EDUARDO Não... Fica nesta terra, que foi a do nosso amor... Não me fujas...
DIONÍSIA Quem se pôde reter na violência do desejo? há sempre alguma coisa além que é necessária aqueles que vivem do absoluto... Dá-me a eternidade! Tu não podes!
MALAZARTE (na barca) Vem, Dionísia... Tu serás a voz do mar! Vem!
DIONÍSIA Eu serei essa voz eterna... Eu serei o murmúrio infinito do amor e do desejo... Oh! alegria, se Dionísia morrer...
MALAZARTE A voz do mar cantará eternamente.
(Dionísia entra na barca, que parte lentamente, levando Malazarte e Dionísia. Na praia, Eduardo fica só. Tudo ê separação e dor!)
Graça Aranha
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