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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MALVA / Máximo Gorki
MALVA / Máximo Gorki

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Picada por uma brisa leve, a vaga espreguiçava-se indolentemente, crivando a superfície da água de pequeninas rugas que refletiam os deslumbramentos cálidos do sol, como outras tantas bocas prateadas haurindo a luz.
Para os lados do cabo sentia-se o barulho ensurdecedor das ondas, rolando a sua massa revolta até à ponta arenosa do promontório. O ruído e a luz do sol, fortemente reverberada pela água, uniam-se num frémito vivo de alegria. O céu e o mar como que se abandonavam num mútuo desprendimento amoroso; o céu enviando-lhe a luz; o mar refletindo-a na carícia doce dos seus sorrisos.
Participando das fortes vibrações da luz, o oceano inflamava o peito acetinado e curvo, numa dolência mórbida de cansaço, embalsamando o ar com o aroma das suas emanações salinas.
Àquela hora as ondas estiravam-se, encalmadas, pela praia lisa e ampla, desfazendo a espuma branca das suas cristas, com uma monotonia surda de folhas que se agitam...
A estreita língua de terra do cabo parecia uma torre enorme estendida desde a costa até ao mar. À sua ponta afilada perfurava a água como uma lâmina rígida, e do lado da terra mal se lhe percebia a base oculta na neblina que começava a levantar-se.
Naquele extremo e àquela distância, sentia-se ainda o cheiro nauseabundo e infeto que vinha das armações de pesca.
Na areia do cabo, salpicada de pequeninas escamas de nácar, tinham plantado estacas para suspender as redes, cujas sombras projetando-se no chão faziam lembrar enormes aracnídeos repousando. Ao longo da margem alinhavam-se, paralelamente, as barcas destinadas à pesca, que a fímbria das ondas em loucas correrias vinham beijar, parecendo convidá-las a fazerem-se ao largo.
Escotas, remos, velas, cordames, cestos e barris dispersavam-se numa grande extensão da praia, como destroços de algum naufrágio recente. A pouca distância da água e no meio daquela confusão de apetrechos marítimos, erguia-se uma barraca tosca, feita de troncos e pranchas de madeira, colmada com ramos densos de salgueiro. No alto de uma forquilha tinham posto um par de botas a secar e na extremidade aguda de um mastro tremulava um pedaço de pano vermelho.
À sombra de uma das barcas estiraçava-se indolente, o corpo pesado de Basílio Legostev, guarda do cabo e encarregado da armação do mercador Grebentchicov.
De costas, com as mãos cruzadas por baixo da cabeça, servindo-lhe de apoio, fixava insistentemente o mar, detendo a vista na linha longínqua e quase impercetível da costa. No horizonte distinguia-se, balouçando sobre as ondas, um pequeno ponto negro que Basílio via aproximar-se com mal contida impaciência. E desviando os olhos, cegos pelo reflexo da água, sentia-se estremecer numa forte comoção empolgante, adivinhando, tão longe estava ainda a barca, o vulto adorável de Malva caminhando para ele.
Parecia-lhe ouvir já aquele riso claro e argentino de pássaro contente, que lhe fazia arquejar o seio forte de mulher moça.
Enervava-o a ideia de que ela ia em breve estreitá-lo nos seus braços robustos e mórbidos, entre carícias e beijos longos, ao passo que lhe iria relatando os acontecimentos mais em dia na costa. O que lhe agradava sobretudo era a intimidade confortável e carinhosa que ela ia levar ao seu isolamento de selvagem, tendo-a na barraca, comendo ambos a suculenta sopa de peixe, regada a fartas libações de aguardente, até que ao findar do dia, depois do chá habitual, o repouso viesse juntá-los, numa deliciosa comunidade de gozo. Eram momentos só, mas que importava?
Ao romper da alvorada separar-se-iam amigos e felizes, acompanhando-a ele na barca até ao outro lado da costa. Ainda sonolenta, Malva costumava sentar-se à popa, enquanto ele remava, esquecido de tudo, absorto na contemplação idólatra do seu corpo soberbo. Era naquela ocasião que ela se mostrava mais tentadora e graciosa, cheia de fadiga e languidez como uma gatinha farta que se lambe ainda.

 

 

 

 

 


Neste dia até as gaivotas pareciam voar preguiçosamente, exaustas pelo calor. Às vezes pousavam na areia com o bico aberto e as asas estendidas, outras vezes balouçavam-se na crista das vagas sem o ruído habitual dos seus gritos.

A barca vinha-se aproximando. Entretanto, afigurava-se a Basílio que Malva não vinha só. Seria aquele danado de Serejka que às vezes se lembrava de a acompanhar também? E levantando meio corpo, com as mãos por cima dos olhos, em pala, pôs-se a observar atentamente os vultos da barca, sentindo uma cólera surda por aquele intruso que lhe vinha transtornar o dia.

Era Malva que vinha ao leme; na barca remavam com força, mas desastradamente, sem aquela perícia de Serejka que tornava desnecessário o auxílio da moça.

— Eh, lá! — gritou Basílio impaciente.

As gaivotas assustaram-se fugindo para o largo.

— Eh, lá! Eh, lá! — replicou Malva com voz sonora.

— Com quem diabo vens tu?

Na barca soou uma gargalhada estrídula.

— Velhaca! — rosnou Basílio a meia voz.

Atormentava-o uma curiosidade inquieta e perturbante. Examinava a nuca e os ombros do remador, todo curvado nos esforços que fazia para impulsionar a barca. O ruído da água fendida pelos remos tornava-se cada vez mais distinto, e a areia crepitava debaixo dos pés do guarda, participando da agitação nervosa da água.

— Com quem vens tu, Malva? — perguntou de novo Basílio já preso no sorriso jovial da moça.

— Espera que vais ver — disse ela galhofando.

O guarda franziu os sobrolhos parecendo ter reconhecido o remador que levantara a cabeça para o olhar.

— Rema com mais força — ordenou Malva.

O impulso foi tão violento que a barca, saltando na crista de uma vaga, pousou ligeiramente em terra enquanto a onda se retirava para dentro do mar.

— Bons dias, pai! — disse o remador saltando para fora da barca.

Beijaram-se três vezes na boca e nas faces. Diante daquela aparição súbita, o mau humor de Basílio converteu-se num misto de surpresa e de alegria.

— Ah, eras tu, Iakov... bem me parecia! Tinha cá um palpite... Mas porque vieste? Logo vi que não podia ser Serejka. És tu, hein?

Basílio, titubeante, afagava a barba com as mãos, visivelmente aturdido. Os olhos do filho cravavam-se nele, persistentes, interdizendo-lhe o rosto encantador de Malva que o atraía.

Contudo um sentimento ainda não extinto comovia-o e perturbava-o diante daquele rapaz que não via há tanto tempo. Mas a presença de Malva, tentadora e provocante, dominava-lhe o orgulho de possuir assim um filho, forte e desempenado como um mastro.

Fazia-lhe atabalhoadamente perguntas sobre perguntas, sem atender nas respostas do moço, e as ideias embrulhavam-se-lhe de tal modo que a moça acabou por lhe dizer chocarreira:

— Não te desfaças em alegria, homem! Leva-o antes para a barraca e oferece-lhe alguma coisa.

Basílio atreveu-se a olhá-la de frente. Nos lábios dela contraía-se um sorriso de ironia; e, coisa inexplicável, pareceu-lhe que aquele corpo fresco e apetitoso não lhe causava já as mesmas tentações de sempre.

Malva fixava, ora no pai, ora no filho, os seus olhos verdes, petulantes e maliciosos, trincando pevides de melancia nos pequeninos dentes de pérola.

Durante alguns momentos calaram-se, constrangidos, sem acharem nada que dizer.

— Volto já — interrompeu bruscamente o guarda, saindo da barraca. — Não estejam ao sol; vou buscar água e tratar da sopa. Vais ver, Iakov, o que é uma sopa de peixe feita no mar! Não me demoro nada, é um instante...

Pegou numa marmita e afastou-se desaparecendo por detrás das redes suspensas.

Malva e Iakov seguiram-no.

— Então eis-te junto de teu pai. Estás satisfeito? — perguntou a moça aproximando-se dele.

O moço inclinou para ela o rosto emoldurado numa barba ruiva e frisada, replicando:

— É verdade... cá estou! Mas que bonito mar.

— Magnífico, sim. E acha-lo velho, muito acabado?

— Não, não... Julguei encontrá-lo já encanecido e apenas lhe alvejam alguns cabelos brancos. Está ainda forte.

— Há quanto tempo o não vias?

— Uns cinco anos. Quando saiu da aldeia ia eu fazer dezassete.

Entraram na barca. O calor e o cheiro enjoativo do peixe tornavam a atmosfera interior irrespirável. Malva sentou-se num molho de sacos e Iakov imitando-a atirou-se para cima de um tronco. Separava-os uma barrica serrada pelo meio, cujo tampo servia de mesa ao guarda. Examinavam-se a espaços, sem falarem; foi ela quem rompeu o silêncio.

— Vens trabalhar para cá?

— Não sei. Se achar trabalho talvez fique.

— Mas hás de encontrar — replicou Malva com firmeza, acariciando-o com os olhos.

Ele tinha a cabeça baixa e limpava o suor com a manga da blusa.

— Ia apostar em como tua mãe te incumbiu de certas coisas... — inquiriu ela maliciosamente.

Iakov teve um gesto de enfado.

— Mas de quê?

— Ora, nada — replicou Malva com um ar falso de indiferença.

Começavam a desagradar-lhe os modos irrequietos da moça. Invadia-o uma sensação vaga de aborrecimento, de repulsão mesmo, ao lembrar-se das palavras que a mãe lhe dissera, grave e triste, no dia em que ele saíra da aldeia.

— Em nome do céu, Iakov, diz-lhe: «Pai, a nossa mãe está sozinha na aldeia... os anos passam... daqui a pouco está velha e inutilizada pelas fadigas. Conta-lhe tudo, filho, conta-lhe tudo!» — E cobrira o rosto com o avental chorando silenciosamente.

Iakov, que não se comovera então diante daquelas súplicas, experimentava agora um sentimento piedoso de compaixão, e fixando Malva com o semblante carregado tinha vontade de lhe dirigir insultos grosseiros.

— Pronto, vai-se arranjar num instante — exclamou Basílio, aparecendo com um peixe ainda vivo numa das mãos e empunhando na outra uma faca comprida.

Olhava os hóspedes com uma expressão aparentemente tranquila, posto que o embaraço se lhe traduzisse ainda no modo trôpego de andar.

— Agora toca a fazer fogo! Falaremos depois... Estás forte que nem um touro, Iakov.

Desapareceu de novo.

Malva continuava a mastigar pevides, contemplando familiarmente Iakov que debalde se esforçava por desviar os olhos dela.

Entretanto o moço pensava: «Deve passar-se aqui magnificamente. Que boa aparência que eles têm!»

Depois, intimidado pelo silêncio, disse alto:

— Esqueceu-me o saco na barca, vou buscá-lo.

Levantou-se e saiu.

Passados alguns momentos voltou Basílio, e aproximando-se de Malva disse-lhe rapidamente ao ouvido:

— Que ideia foi essa de o trazeres contigo? Que lhe hei de dizer de ti?

— Veio, acabou-se! Que queres que lhe faça?

— Mas não vês que é uma vergonha, estúpida criatura? O que lhe hei de dizer? Sim, o que lhe hei de dizer? Com a outra lá em casa! Que loucura!

— E que me importa a mim? Tenho eu porventura medo de vocês? — perguntou ela com um modo desprezível nos olhos fulvos. — Mas que cara tu fizeste ao vê-lo! Deu-me mesmo vontade de rir!

— Achaste-lhe graça, hein? E dizes-me isso assim descaradamente?

— Podias ter suposto que ele vinha.

— Como querias tu que eu adivinhasse, sem me prevenirem de nada?

Fê-los interromper o ruído da areia pisada por Iakov. O rapaz entrou, atirando o saco para um canto e lançando um olhar furtivo à moça.

Malva continuava muito preocupada a descascar pevides, e Basílio sentando num tronco pôs-se então a fazer perguntas ao rapaz, com um ar constrangido:

— Que lembrança foi essa de vires até cá, assim de imprevisto?

— Mas escrevemos, prevenindo-te.

— Quando? Não recebi nenhuma carta!

— Não recebeste? Pois crê que te escrevemos.

— Perdeu-se provavelmente a carta. O diabo a leve! É sempre assim. Coisas que interessam sempre levam extravio.

— Desse modo não sabes nada dos nossos negócios — inquiriu Iakov, desconfiado.

— Pois não te disse que não recebi coisa nenhuma! Eh, que desgraça, lá se me está a ir a sopa embora!

E deitando a correr, pôs-se a tirar vagarosamente com uma colher a espuma do ao-de-cima do caldo, refletindo nas coisas extraordinárias que acabara de ouvir. Aquela história do filho, longe de o comover, fizera antes irritá-lo contra ele e contra a mãe. Quanto dinheiro lhes não mandara durante aqueles cinco anos? E não tinham sabido aproveitá-lo. Se Malva não estivesse presente, ele lhe teria falado! Abandonar a aldeia sem licença sua e deixar as terras sem amanho, ao desamparo. E os campos que o filho desprezara nesses cinco anos de vida solta pareciam-lhe agora uma goela insaciável onde o seu dinheiro se subvertera irremediavelmente. Basílio suspirava, remexendo o caldo com a colher.

À luz do sol, a chama da fogueira tornava-se mortiça e pálida. O fumo azulado e transparente erguia-se suavemente em longas espirais, curvando-se depois até ao encontro das ondas. Basílio contemplava-o, perplexo e desalentado, afigurando-se-lhe que dali em diante a vida não teria para ele os mesmos encantos do que até aquele dia lhe dera a gozar. Iakov adivinhara já com certeza quem era Malva: o que pensaria ele?

Entretanto na barraca a moça continuava a fazer perguntas frívolas ao moço.

— Deixaste provavelmente alguma namorada na aldeia, é certo?

— Sim, talvez! — replicou ele, maldizendo-a interiormente.

— E é bonita? — inquiriu curiosa.

Iakov não respondeu.

— Porque te calas? Diz, é mais bonita do que eu?

Iakov, sem querer, pôs-se a contemplá-la detidamente. Tinha as faces morenas e carnudas, e os lábios, um pouco grossos, tremiam-lhe abertos num sorriso quente de sensualidade. Uma blusa de percal cor-de-rosa comprimia-lhe os ombros roliços, desenhando-lhe numa linha firme e inteiriça os contornos do peito alto e elástico. Desagradavam-lhe, porém, os seus olhos verdes e turbulentos.

— Porque me perguntas isso?

— Pois de que queres tu que eu fale? — casquinou ela num riso claro.

— De que te ris?

— De ti.

— Fiz-te mal? — retorquiu ele de mau humor. E de novo os seus olhos se baixaram, humildes e trémulos, diante do sorriso tentador de Malva, que não respondeu.

Iakov, percebendo as relações que a ligavam ao pai, sentia-se constrangido na presença dela. Mas não havia razão para estranhar aquilo; tinham-lhe dito que todos faziam o mesmo e compreendia que um homem robusto como seu pai não poderia passar sem uma mulher. Todavia repugnavam-lhe aqueles amores obscenos recordando a outra, a pobre mulher, que envelhecia na fadiga rude dos campos.

— A sopa está pronta, traz as colheres, Malva — disse Basílio assomando ao portal.

Iakov ruminou consigo: «Ela que sabe tão bem os cantos à casa é porque deve voltar aqui frequentemente.»

Malva, pegando nas colheres, afastou-se dizendo que ia lavá-las ao mar, e de caminho trazer a aguardente que ficara na barca.

Mal se viu sozinho com o filho, Basílio perguntou-lhe:

— Como a encontraste tu?

— Perguntei-te no correio. Dirigiu-se-me esta moça dizendo: «Olhe, vou também hoje visitá-lo, escusa de se cansar a pé, venha comigo na barca». E assim foi.

— Que tal a achas?

— Não é feia — respondeu o moço indiferente.

— Que queres, não pude evitá-lo — disse Basílio, gesticulando. — Quis a princípio resistir; impossível! Depois, quando se é casado, o hábito... Demais, trata-me da roupa... Olha, fica sabendo: há duas coisas a que não podemos fugir: das garras da morte e da mulher.

E sentiu tirar-se-lhe um enorme peso dos ombros ao pronunciar sentenciosamente aquelas palavras.

— Mas eu nada tenho que te dizer — replicou Iakov — isso é lá contigo. Não vim cá para julgar o teu procedimento.

E intimamente pensava que desejava antes tê-la encontrado a remendar-lhe as calças.

— Tenho quarenta e cinco anos — continuou o guarda. — Ainda não estou velho... Daí, custa-me pouco dinheiro, que diabo! Afinal de contas é minha mulher para todos os efeitos.

— Certamente — afirmou o rapaz. E pensou lá consigo: «Em que dinheirão te não ficará ela.»

Malva voltou logo trazendo uma garrafa de aguardente e bolos.

Sentaram-se imediatamente a comer.

Silenciosos, iam sugando as espinhas, cuspindo-as depois na areia ao pé da porta. Iakov devorava sofregamente com grande agrado de Malva que via entumecerem-se aquelas faces tostadas pelo sol. Basílio comia pouco e devagar, para poder examiná-los furtivamente e refletir na atitude que lhe convinha tomar.

O azul do céu enternecia de húmido e claro, naquele dia. À música alegre e acariciadora das ondas juntava-se o grito das gaivotas. Diminuíra o calor, e às vezes chegava um bafejo de ar quente impregnado dos aromas salinos da água.

Iakov depois de comer sentiu-se pesado, com uma sonolência mórbida premindo-lhe as pálpebras. Sorria estupidamente, dirigindo a Malva olhares tão provocantes que Basílio achou prudente dizer-lhe:

— Iakov, encosta-te um pouco até à hora do chá... depois te acordaremos.

— Sim, sim! — titubeou ele deixando-se cair sobre uma esteira. — E vocês para onde vão? Hein? Para onde, seus...

Basílio, perturbado, voltou-lhe as costas, saindo rapidamente. A moça, escandalizada, respondeu-lhe em tom severo:

— Não te intrometas em negócios alheios, percebeste?

— Quem, eu? Esperai que eu já lhes digo... mas que bonita que ela é! Olha...

Disse ainda algumas palavras desconexas, depois adormeceu profundamente com um sorriso de bêbado no rosto congestionado.

Entretanto o guarda enterrara três estacas na areia e, reunindo-as pelas extremidades, lançou-lhes uma esteira por cima, abrigando-se em seguida debaixo daquela tenda improvisada.

Malva, que acabava de chegar, estendeu-se na areia ao lado dele. Basílio, amuado, voltou-lhe as costas desdenhosamente.

— Mas que é isso? — perguntou a moça sorridente. — Não estás porventura satisfeito de tornares a ver teu filho?

— Não vês como ele me trata? E tudo por culpa tua — replicou Basílio sombriamente.

— O quê! Por minha culpa? — respondeu ela com um ar falso de admiração.

— Pois é claro!

— Sinto-o bastante. O que me resta então a fazer? Não voltar? Pois bem, não voltarei.

— Pois vai-te, velhaca! — exclamou ele. — Ah, são todos assim! Aqueles por quem mais nos afeiçoamos são sempre os que pior nos tratam.

Prostrara-se de novo dominado por um grande desalento. Malva, abraçando os joelhos, balanceava o corpo esbelto com uma graça felina e desenvolta, e estendendo a vista para o largo sorria com um desses sorrisos triunfantes que possuem as mulheres conhecedoras da sua beleza.

Um barco de vela deslizava no mar alto como um pássaro triste de voo pesado e lento. Largara há muito a costa e ganhando a linha longínqua do horizonte ia em breve sumir-se como uma pequenina nuvem que se desfaz.

— Porque estás assim calada? — perguntou Basílio, contemplando-a.

— Penso...

— Em quê?

— Sei lá!

E depois de um momento de silêncio acrescentou:

— É um belo moço, o teu filho.

— Que tens tu com isso? — perguntou Basílio, ciumento.

— Faz mal perguntar-te?

— Olha, é melhor mudares de conversa — disse Basílio lançando-lhe um olhar de desconfiança. — Não brinques comigo... Sou muito prudente; se me fazes porém exaltar... — E cerrando os punhos acrescentou por entre os dentes: — Desde que chegaste não fazes outra coisa senão intrigar. Não compreendo o que diabo tu queres; mas asseguro-te que é melhor que eu não chegue a compreender... És um poço de malícia! Acautela-te! Eu sei como proceder no caso de...

— Não me metes medo, Basílio — disse ela com um sorriso desdenhoso.

— Pois bem, não me irrites!

— Pensas que me assustas com esses modos?

— Olha que se me fazes desesperar é um instante em quanto danças na corda — ameaçou Basílio com exaltação.

— Pois atreves-te a bater-me?

— Então, quem julgas tu que és para que te não possa bater?

Aproximando-se de Basílio a moça replicou-lhe arrogantemente com o semblante desfigurado pela cólera:

— Parece-me que não sou tua mulher. Tinhas por costumes desancares a que lá tens na aldeia, por qualquer insignificância; julgas que farás o mesmo comigo? Estás muito enganado! Sou livre, só dependo de mim mesmo e ninguém no mundo é capaz de dominar a minha vontade. Já não sucede o mesmo contigo. Receias do teu filho e ainda há pouco observei como te humilhavas diante dele; atreves-te ainda a ameaçar-me?

Aqueles modos altivos da mulher nova e soberba resfriaram a cólera momentânea de Basílio. Nunca a vira assim tão bela e dominadora.

— Vá, começa agora para aí a grasnar — disse ele submisso, completamente desarmado.

— E muito tinha que te dizer. Gabavas-te a Serejka que não poderia abandonar-te, que me eras tão necessário como o pão. Pois enganas-te! Talvez não te ame... E se a única coisa que eu amasse fosse esta imensa plaga? O que me atrai aqui é talvez a solidão; só há mar e céu; o mais são tudo seres vis. Que tu estejas aqui ou não pouco me importa. És como o tributo que se paga por atravessarmos um certo lugar... Se fosse Serejka, seria com Serejka; se fosse teu filho seria com teu filho. Um ou outro, que me importa? Melhor fora que não existissem; vocês todos causam-me nojo. E se um dia me lembrar, bonita como sou, posso arranjar um marido que valha mais do que vocês todos juntos.

— Ah, tu pensas assim? — rugiu Basílio, agarrando-a pela cintura e sacudindo-a furiosamente.

Malva, com o rosto congestionado e os olhos injetados de sangue, não oferecia nenhuma resistência, limitando-se a pôr as mãos na mão de ferro que lhe apertava a cinta.

— Então tu pensas assim e não me dizias nada? Eram, pois, falsos os teus desejos e as tuas carícias? Espera que eu te governo, grande desavergonhada!

E num repelão deitou com ela em terra.

Os seus punhos caíam brutalmente sobre a nuca da moça, experimentando uma sensação agradável ao tocar-lhe na carne mole e elástica.

— Anda, serpente, toma! Toma! — exclamava ele, fustigando-a desalmadamente.

Tranquila, sem uma palavra de queixume, Malva deixou-se cair de costas, com os cabelos em desalinho e uma grande vermelhidão incendiando-lhe o rosto. Os seus olhos verdes brilhavam-lhe sob as pálpebras com um fulgor impercetível de cólera.

Basílio, anelante por ter desabafado a sua raiva, não atendeu no olhar frio e rancoroso que ela lhe dirigiu; e inclinando-se para a sua vítima, vencedor e desdenhoso, surpreendeu-lhe nos lábios um sorriso calmo de benevolência e de perdão.

— Que tens tu, víbora? — perguntou-lhe ele, puxando-lhe vivamente pela manga da blusa.

— Foste tu que me bateste, Vasia? — murmurou Malva humildemente.

Ele contemplava-a pasmado, sem saber que dizer. Fora-se-lhe a raiva diante daquela resignação dócil de mulher vencida.

— Amas-me então muito? — insinuou Malva.

Basílio estremeceu, ouvindo aquela voz onde palpitavam carícias de amor.

— Bom, agora já não há remédio — disse com aspeto sombrio. — Estás satisfeita?

— Vasia! E eu que julgava que tu já me não tinhas amor! Pensava comigo: agora que tem cá o filho abandonar-me-á.

E lançou uma gargalhada bastante ruidosa para ser natural.

— Tonta! — disse Basílio, sorrindo involuntariamente.

Sentia-se culpado, cheio de remorsos; mas recordando-se dos motivos porque a sovara, acrescentou rudemente:

— Isso não tem nada que ver com meu filho. Se te bati a culpa foi tua... Não te atrevesses a zombar de mim!

— Era de propósito para te experimentar! — E roçava-se por ele, provocantemente, como uma gata desejosa.

Basílio deitou um olhar para a barraca e apertou Malva nos braços, beijando-a.

— Vês o resultado da experiência?

— Deixá-lo — retorquiu Malva, revirando os olhos. — Amavas-me e bateste-me... hei de lembrar-me sempre...

E contemplando-o durante um momento, disse com intenção reservada:

— Nunca me há de esquecer!

Basílio interpretou estas palavras favoravelmente.

— Sim?

— Verás — respondeu Malva, serenamente e com um tremor impercetível nos lábios.

— Ah, minha querida — exclamou Basílio apertando-a de novo nos braços. — Sabes? Parece-me que te amo agora mais! Sinto-te mais minha!

As gaivotas voavam junto deles, sem receio, soltando os seus gritos agudos. A brisa do mar irrequieto e saltitante, refrescava-lhes os rostos afogueados pela alteração. O rumor monótono das ondas embalava-os como uma doce paz que descesse do alto.

— Ah, a vida! O que a vida é!! — exclamou Basílio, acariciando com uma expressão sonhadora o corpo da mulher que se lhe abandonava. — É assim o mundo. O que nos proíbem é o que mais tentações nos causa. Não imaginas: às vezes penso na vida e tenho um medo terrível, sobretudo de noite quando não posso dormir. Diante de mim estende-se a vastidão imensa da água; por cima o céu desdobra a sua cúpula azulada... E tudo o mais tão negro, tão pesado, dá-me a impressão de um monte de chumbo em cima do peito. Parece-me então que me anulo e torno num desprezível nada sobre a terra que se agita debaixo dos meus pés... Se nesses momentos estivesses comigo, ao menos seríamos dois.

Malva, com os olhos cerrados, extática, abraçara-se aos joelhos de Basílio. A cara rude e bondosa do guarda, tostada do sol e mordida do vento, inclinava-se para ela, roçando-lhe o colo branco e descoberto com a sua barba comprida. Malva não se movia. Era uma estátua onde somente arquejavam os peitos altos aos impulsos rítmicos da respiração. Basílio ia-lhe explicando quantas canseiras lhe custava aquela existência solitária de renegado, como eram dolorosas as suas longas noites de insónia e de pesadelos, cheias de ideias melancólicas sobre a vida. E beijando-lhe a boca demoradamente, sorvia-lhe os lábios com um desejo frenético de os devorar.

Permaneceram assim horas esquecidas, até que, atentando no sol que estava quase a esconder-se, Basílio exclamou de repente, com modos bruscos:

— É preciso tratar do chá. O nosso hóspede deve ter já acordado.

Malva separou-se dele com a indolência de uma gata lânguida. Basílio encaminhou-se apressadamente para a barraca enquanto a moça se levantava, experimentando, ao vê-lo afastar-se, uma agradável sensação de alívio.

Três horas depois estavam os três reunidos à mesa tomando o chá e palestrando em amável convívio sobre as coisas do passado.

O sol no poente acendia reflexos vermelhos na água. No horizonte as cristas das vagas resplandeciam como geleiras enormes em movimento.

Basílio, que bebia o chá por uma xícara de louça, interrogava o filho sobre as coisas do campo, evocando lentamente as suas recordações da vida na aldeia. Malva escutava as suas intermináveis tiradas sem o interromper.

— Todos os lavradores passam bem.

— Sim, menos mal, vivem como podem — replicou o rapaz.

— Nós, os rústicos, de pouco necessitamos. Um abrigo, o pão quotidiano e um pouco de aguardente ao domingo, quando há, é tudo quanto basta... Se eu tivesse cabeça não teria deixado a aldeia. Ali todos somos iguais e senhores de nós, enquanto aqui não se passa de um escravo.

— Mas aqui não há fome e o trabalho fatiga menos.

— Não é tanto assim. Às vezes os ossos doem-nos como se no-los estivessem triturando. Na aldeia há a vantagem de se trabalhar para nós; aqui trabalha-se sempre para os outros.

— Mas em compensação ganha-se mais — retorquiu Iakov.

Basílio reconhecia que o filho tinha razão. No campo a existência era incomparavelmente mais penosa; todavia não gostava que o filho lho fizesse sentir. Assim, replicou-lhe com severidade:

— Sabes quanto se ganha aqui? Na aldeia...

— É como se estivéssemos encerrados num cárcere — interrompeu Malva. — As mulheres sobretudo sofrem de uma maneira horrível.

— A vida da mulher é igual em toda a parte, como igual é a luz do sol — replicou Basílio mal humorado.

— A quem o dizes — respondeu Malva. — Na aldeia quer se queira quer não, não há outro remédio se não casar-se a gente. E uma mulher casada é uma escrava sem remissão. Tem que fiar, tem que tecer, tem que cuidar do gado e dos filhos... um inferno! E o que lhe resta depois disto? As pancadas do marido.

— Não julgues que é sempre assim!

— Pelo contrário, aqui eu não dependo de ninguém. Sou livre como uma gaivota. Vou para onde me apetece e ninguém tem direito de me tocar.

— E se te tocassem? — perguntou Basílio, irónico, aludindo à questão de há pouco.

— Haviam de mas pagar! — disse Malva com um estranho fulgor nos olhos.

Basílio sorriu bonacheironamente.

— És atrevida e fraca como todas as mulheres. No campo a mulher é necessária para a vida; aqui serve somente para dar prazer. — E acrescentou depois de um breve silêncio: — E para o pecado!...

Iakov desviou o sentido da conversa, lançando a vista para o largo e exclamando:

— Dir-se-ia que o mar não tem limites. — Puseram-se os três a contemplar a plaga imensa. — Ah! — exclamou de súbito o rapaz. — Se tudo isto fosse terra, leiva negra, para se poder lavrar!

— Isso é que é falar — disse o pai com um gesto de aprovação.

Parecia-lhe sentir nas palavras do filho esse entranhado amor pela terra que o arrastaria novamente para a aldeia, para fora das tentações irresistíveis.

— Perfeitamente, Iakov, é assim que deve falar um camponês. Toda a sua força provém da terra. É feliz enquanto está em contacto com ela, morre se porventura a deixa. O camponês sem terra é como uma árvore sem raízes: faz-se dele o que se quiser, porque já não vive, apodrece. Falta-lhe a antiga majestade de ser independente e livre; corta-se, serra-se, faz-se em pedaços, já não parece o mesmo... Tens razão, Iakov!

O mar reverberava os últimos reflexos do sol.

— Parece-me que sinto a alma fundir-se-me quando respiro em pleno sol.

— Deveras? — perguntou Basílio.

O olhar de Iakov perdia-se na amplidão da água. Durante muito tempo permaneceram silenciosos, absortos no crepúsculo que descia vagarosamente. O poente tomava as colorações roxas da refração, passando do sanguíneo vivaz ao alaranjado claro de oiro fosco. A praia cobria-se de sombras; tinham desaparecido completamente as gaivotas. Um silêncio pesado caía do alto onde começavam a tremeluzir as primeiras estrelas. As ondas rumorosas e vivas, impregnavam-se daquela sombra que começava a envolver os contornos das coisas.

— Porque estou eu ainda aqui? — disse Malva. — São horas de me retirar.

Basílio dirigiu um olhar vesgo para o filho.

— Que pressa é essa? — perguntou ele descontente. — Espera que a lua nasça.

— Faz-me alguma falta a lua? Não sou medrosa. Tampouco era a primeira vez que saía assim com a escuridão.

Iakov cerrava os olhos para ocultar um sorriso de ironia.

Malva observa-o também.

— Pois então, vai-te! — disse o velho de repente.

Malva ergueu-se, despediu-se em poucas palavras, tomando a ourela do mar para não se perder nas sombras. As ondas vinham beijar-lhe indolentemente os pés. No alto começavam a desenhar-se as constelações. A blusa clara de Malva era como uma pequenina mancha impercetível. Cerrara-se completamente a noite.


Oh, meu amor vem depressa

Gozar um pouco em meu peito...


Cantava Malva com voz clara e timbrada.

Parecia-lhe a Basílio que aquela voz tinha súplicas enternecidas que o chamavam, tentando-o. E cuspindo com raiva exclamou:

— É para me fazer criar água na boca, a maldita!

O vulto de Malva escurecia pouco a pouco no fundo sombrio.


Põe as mãos nos meus peitos

Que são como cisnes brancos.


E a voz desfalecia-lhe no mar.

— Ah — respirou Iakov, estendendo-se na areia e olhando na direção onde gemia a doce voz da moça.

— É provável que não aprendesse aquilo tratando das terras — insinuou Basílio com expressão contrariada.

Iakov, admirado, levantou-se, olhando de revés.

Absorvidas pelo marulho das ondas mal se percebiam as últimas palavras ardentes da canção:


Ai, terei de dormir só,

Que longa vai ser a noite.


— Que calma! — exclamou Basílio ofegante. — E é de noite... maldita região!

— É que a areia absorve o calor do sol — explicou o rapaz, vacilando entorpecido, ao erguer-se.

— Que é isso? Estás a brincar comigo? — observou-lhe rudemente o pai.

— Eu? De quê? — perguntou Iakov surpreendido.

— Não vejo nada que dê lugar a zombarias.

Calaram-se.

Através da sombra chegaram ainda, cheios de carinhosas promessas, os cantos longínquos da moça.


***


Quinze dias depois, também domingo, estava outra vez Basílio Legostev estirado na areia à espera que Malva viesse. Sorria o mar vibrante de luz àquela hora deserta. As ondas vinham de longe em vagalhões enormes desfazer-se na areia branca da praia, e deixando a espuma revolta das suas cristas, voltavam de novo a confundir-se no ar. A mesma paisagem se desenrolava diante dos olhos: o mar imenso, longínquo, e a ponta do cabo estendida como uma torre, onde as vagas escachoavam orladas de branco. Basílio, que da outra vez esperava Malva na certeza dela vir, olhava agora os longes do mar dominado por uma inquietação devorante. Tinha faltado no domingo anterior, não faltaria hoje com certeza. Confiava nela; todavia impacientava-se já pela demora, posto que fosse ainda cedo. Iakov não os estorvaria agora. Dois dias antes, passando com uns marítimos para recolher as redes, dissera-lhe que ia naquele domingo à cidade comprar umas blusas. Ganhava agora quinze rublos por mês. Trabalhava havia uma semana como pescador e adquirira já o aspeto forte e alegre dos que lidam com as fúrias do mar. Andava esfarrapado como os outros e com esse cheiro a salmoura característico dos operários das armações. Entretanto Basílio suspirava pensando nele.

«Resistirá o moço? Se se habitua ninguém é capaz de o arrastar daqui; e eu terei que...»

Deserto o mar. Somente as gaivotas rasavam a superfície da água em bandos ruidosos e alacres. No ponto em que o mar se separava do céu pela estreita faixa da areia da praia, apareciam de quando em quando, pontos negros que passavam e se desfaziam rapidamente como pequeninas manchas de fumo. Era já meio dia e nada de aparecer a barca. Os raios do sol ardentíssimos caíam quase perpendicularmente sobre o mar.

Duas gaivotas lutavam furiosamente e com tanta raiva que as penas lhes voavam em torno como uma chuva de pétalas brancas. Os seus pios agudos perturbavam o ruído monótono das ondas, tão constante e rítmico como se nascesse da união do mar com os beijos harmoniosos da luz. As duas aves ora desciam abraçadas revoluteando em giros incessantes, uma por debaixo da outra, ora se erguiam para o alto, enraivecidas e loucas, sem deixarem de perseguir-se. As outras, sem fazerem caso da luta, procuravam peixes, mergulhando as cabeças na água e agitando ruidosamente as asas quando a presa se contorcia nos seus bicos fortes.

Basílio entristecia, observando o furor das duas gaivotas. Porque se guerreavam assim? Não tinha o mar tantos e tantos peixes? Também da mesma sorte os homens procuravam estorvar-se uns aos outros. Bocado que um apanhasse era logo disputado por outro. Porque sucedia isto? Não chegava então a vida para todos? Para quê tirar a outrem aquilo que de direito lhe pertencia? E eram quase sempre as mulheres a origem destas disputas. Um homem possui uma mulher alheia quando há tantas igualmente belas e livres? Estava então isto organizado só para provocar a desordem?

O mar permanecia deserto. A mancha escura da barca tão conhecida e desejada não dava sinal de se querer mostrar.

— Não vens? — disse Basílio em voz alta increpando o mar. — Melhor, não preciso de ti para nada, mesmo para nada!

E cuspiu na direção da praia com o rosto assombreado de desespero e de raiva.

Sorria o mar...

Basílio dirigiu-se para a barraca com intenção de preparar a comida; como não sentisse fome voltou novamente para o seu posto de observação.

«Se ao menos viesse Serejka», pensou; e esforçava-se para evocar unicamente Serejka. «É um veneno, esse diabo nojento. Brinca de tudo e zomba de todos. É forte, sabe ler e tem corrido muito; mas é um grandessíssimo ralaço. Todas as mulheres o querem com exceção de Malva... E a maldita sem aparecer! Provavelmente odeia-me depois da sova que apanhou. Mas ela deve estar acostumada; outros lhe terão batido; e quem sabe, talvez não seja a última vez que lhe chegue...»

Assim, pensando no filho, em Serejka e mais amiudadas vezes em Malva, Basílio mordia-se de impaciência.

Aquela vaga inquietação a princípio convertera-se em suspeita que ele não tinha ânimo de confessar a si próprio.

Ia já escurecendo e nada se distinguia no horizonte.

Afinal, Malva não veio.

Ao atirar-se para cima da cama, Basílio maldisse a escravidão daquele serviço que lhe não deixara tempo para ir ao outro lado da costa. Meio adormecido sobressaltava-se parecendo-lhe ou vir o barulho dos remos cortando a água. Erguia-se, vinha para fora; mas tudo estava silencioso e quieto, o mar escuro como um grande mistério desolador. Só ao longe ardiam as fogueiras da armação.

— Deixa estar, grande velhaca, deixa estar! — ameaçou ele num rugido.

E adormeceu pesadamente.


***


Eis o que sucedera na armação.

Iakov levantara-se cedo, muito antes de nascer o sol, e dirigira-se à praia para se lavar, aspirando com delícia a brisa fresca da manhã, quando de repente avistou Malva sentada na proa de uma barcaça, penteando os fartos cabelos húmidos e com os pés suspensos sobre a água.

Tinha a blusa de percal entreaberta mostrando o seio branco e provocante.

As ondas faziam agitar a barca; e nos seus vaivéns demorados o corpo gentil da moça balouçava-se indolentemente cortando por vezes a água com os seus pés finos e descalços.

— Estiveste a banhar-te? — perguntou ele.

Malva olhava-o maliciosamente, continuando a pentear os cabelos.

— É verdade, banhei-me. Porque te levantaste tão cedo?

— E tu não te levantaste cedo também?

— Mas eu não sirvo de exemplo a ninguém.

Iakov não respondeu.

— Se vivesses como eu, estavas arranjado — acrescentou ela.

— Ih, que medo! — replicou o rapaz com ar de troça.

Depois, agachando-se, pôs-se a chapinar o rosto.

Com as mãos em concha tomava a água, atirando-a ruidosamente à cara, experimentando uma agradável sensação de frescura. Depois, enxugando-se à blusa, disse para Malva:

— Porque gostas tu tanto de me assustares?

— E tu, para que estás sempre a comer-me com os olhos?

Iakov, que não se lembrava de a ter olhado diferentemente das outras mulheres, replicou:

— É que te acho... apetitosa.

— Se teu pai chega a saber, verás como se te vai logo o apetite — ameaçou ela com um sorriso provocante nos olhos claros.

Iakov subiu para a barca.

— Que me importa a mim saber de meu pai? — exclamou ele aproximando-se-lhe. — Porventura comprou-te ele?

Pousava os olhos nos seus ombros roliços e brancos, sentindo subir-lhe o desejo por aquele seio descoberto, pelo seu corpo, por toda a sua pessoa fresca e saudável cheirando a salgado.

— Pareces-me um esturjão branco — disse ele com voz melíflua.

— Que não é para os teus dentes — sorriu ela maliciosamente.

Adiante alargava-se o mar imenso, iluminado pelos raios matutinos do sol. As ondas que a brisa fazia levantar embalavam a barca sonolentamente. Ao longe descobria-se o cabo arenoso como uma cicatriz no peito acetinado do mar. E mais distante, na linha do horizonte erguia-se um mastro esbelto em cuja extremidade flutuava um trapo vermelho.

— Sim, meu fedelho — começou Malva, sem o olhar — posto que ninguém me comprasse nem tão pouco pertença a teu pai a minha pele não é para os teus beiços. Só eu mando na minha pessoa. E não tentes amar-me porque não quero malquistar-te com teu pai. Nada de rixas, nada de disputas! Percebeste?

— Mas o que tenho eu feito? — perguntou ele com ar de surpresa. — Não te procurei nunca! Nunca te toquei com a ponta de um dedo!

— É porque não te atreves!

A expressão da moça era tão desdenhosa e irónica que Iakov sentiu revoltar-se nele o homem e o macho.

Fuzilou-lhe nos olhos uma chama de desafio.

— E porque não me atreveria? — chasqueou, aproximando-se dela.

— Não, não te atrevas a tocar-me.

— E o que farias se eu te tocasse?

— Experimenta!

— O que fazias, diz?

— Atirava-te um soco que ias para a água de cabeça para baixo.

O rapaz envolveu-a num longo olhar acariciador e estreitando-a de lado, cingiu-lhe fortemente os ombros e o peito.

O contacto daquele corpo ardente e robusto inflamou a moça, que sentiu como que um nó preso na garganta.

— Pronto! Bate-me agora, anda!

— Deixa-me, Iakov — disse ela serenamente, fazendo esforços para se voltar.

— E o mergulho prometido?

— Larga-me, senão... Toma cuidado.

— Bah!

E aconchegando-a mais a si, tocou-lhe os lábios ardentes na pele macia da face.

Ela desatou a rir às gargalhadas como a desafiá-lo. De repente, agarrando os braços de Iakov, deu um impulso tão grande que os dois corpos tombaram para diante como uma massa compacta, desaparecendo por debaixo de uma nuvem de espuma. Dali a pouco surgia impetuosamente a cabeça do rapaz, ao lado dela nas águas agitadas. Malva balanceava como uma gaivota à flor das ondas.

Iakov chapinava desesperadamente, praguejando com a voz rouca enquanto a moça, fazendo zaragata, nadava à roda dele, atirando-lhe água para o rosto tumefacto e esquivando-se sempre que os braços dele se lhe aproximavam do corpo.

— Oh, diabo — gritava Iakov — olha que me afogo... como a água amarga... Ai, que lá vou para o fundo.

Malva tinha-o deixado e nadava para a margem com grandes braçadas de homem.

Logo que chegou a terra tornou a subir para a barca, fazendo caretas a Iakov que nadava direito a ela. Os vestidos encharcados da moça desenhavam-lhe as formas elásticas, desde os ombros até aos joelhos, tão provocantemente que o rapaz, subindo para a barca, sentiu invadi-lo mais ardente e dominador o desejo de possuir aquele corpo de mulher que quase se lhe abandonava.

— Que estás tu para aí a arranhar! Salta de uma vez, minha foca — disse ela entre gargalhadas, ao mesmo tempo que lhe estendia uma das mãos, firmando-se com a outra no rebordo da barca.

Iakov agarrou-se-lhe à mão, gritando exaltadamente:

— Espera que mas vais pagar! Agora sou eu que te faço dar um mergulho.

Com a água até aos ombros puxou-a violentamente, arrastando-a para si. As ondas passavam-lhe por cima da cabeça, salpicando a cara da moça. Malva caiu-lhe em cima com todo o seu peso, fazendo-lhe perder o pé.

Agitaram-se como dois grandes peixes marulhando as águas estrepitosamente. O sol contemplava-os com o seu riso claro e penetrante. As vidraças da armação espalhavam reflexos ardentes, cegando-os. As ondas zombavam das fúrias dos seus braços robustos e as gaivotas, assustadas pelo insólito combate daqueles dois corpos humanos, voavam aos gritos sobre as suas cabeças que de vez em quando desapareciam debaixo das águas revoltas.

Finalmente, cansados, fartos de água salgada, dirigiram-se ambos para a margem, deitando-se na areia para enxugarem os corpos.

— Hi! — exclamou ele. — Que horror de água! E então que me fartei de beber nela!

— O mal abunda nesta terra... rapazes por exemplo. Quantos não há por aí?

Malva retorcia os cabelos compactos como uma massa dura.

— Foi por isso que escolheste um velho — insinuou ele tocando-lhe no cotovelo.

— Há velhos que valem mais do que os moços.

— Se o pai é bom, melhor será o filho.

— Deveras?

— As moças da aldeia diziam que eu não era nada feio.

— E o que percebem elas disso? Deveriam antes perguntar-me a mim...

— Tu não és moça!

Malva, vendo-o sorrir com modos insultantes, respondeu muito séria:

— Era-o antes de ter um filho.

— Bem dito e mal feito — exclamou ele, soltando uma gargalhada.

— Estúpido — respondeu ela bruscamente.

Iakov, intimidado, calou-se.

Permaneceram assim mais de meia hora, dando voltas na areia para se enxugarem.

Nas barcaças, construções vastas, mas cheias de imundície, começaram a despertar os operários. De longe assemelhavam-se todos, sujos, descalços... chegavam até à praia as suas vozes enrouquecidas; um deles malhava como pancadas tambor. Duas mulheres insultavam-se, gritando desalmadamente; ladravam cães.

— Começam a despertar — disse Iakov — e eu que queria estar cedo na cidade... Foi-se-me o tempo contigo...

— De mim não há nada bom a esperar — disse Malva entre séria e zombeteira.

— Que mania tens tu de assustares a gente!

— Verás o melhor quando teu pai...

— Qual pai nem meio pai! — replicou ele rudemente. — Estás sempre a ameaçar-me com o meu pai. Julgas que sou ainda alguma criança? Estou por acaso nalgum convento? Nem eu sou cego, nem ele é santo para se privar daquilo que lhe apetece. Deixa-me pois em paz!

Malva perguntou-lhe com curiosidade:

— O que tencionas tu fazer?

— Eu? — E alteando os ombros num arranco de quem se esforça por levantar um grande peso. — Eu sou capaz de muito. Já sacudi a poeira do campo.

— Não te custou muito — replicou ela com ironia.

— hei de desagarrar-te de meu pai, sabes?

— Tu?

— Julgas que tenho medo?

— Deveras?

— Olha — ameaçou ele, encolerizado por aquele desafio — não me provoques, senão...

— Senão, o quê? — perguntou ela com indiferença.

— Nada!

Iakov fez um gesto arrogante e pimpão, como de quem desdenha alguma coisa.

— Que valente! O inspetor tem um cão negro, já o viste? Pois pareces-te com ele. De longe ladra e faz que quer morder; ao pé roja-se e começa a ganir.

— Ah, sim — exclamou ele desvairado pelo insulto. — Espera que vais ver quem eu sou!

Malva ria-lhe na cara.

Avançava para eles, lentamente, um homenzarrão alto e teso, de musculatura saliente e grande cabeleira vermelha. A blusa da mesma cor, desatada na cintura, estava rota nas costas até quase ao pescoço; e para que as mangas o não estorvassem tinha-as arregaçadas até os ombros. As calças tinham mais buracos que pano. Trazia os pés descalços. No rosto coberto de sardas brilhavam-lhe dois olhos azuis, grandes e irrequietos; o nariz largo e arrebitado imprimia à sua expressão qualquer coisa de altivo e arrogante. Ao chegar junto deles soprou com grande ruído e pôs-se a examiná-los detidamente e com um ar desdenhoso.

— Aqui o Serejka bebeu ontem de mais e está sem cheta nos bolsos. Emprestas-me vinte kopeks? E fica já sabendo que não tos pago.

Ouvindo aquelas palavras, Iakov desatou às gargalhadas enquanto Malva examinava curiosamente o recém-chegado.

— Dá-mos e caso-os por vinte kopeks. Querem?

— Que engraçado! És porventura bispo?

— Imbecil! Em Uglitch fui criado de um bispo. Dá-me os vinte kopeks.

— Não quero casar-me — disse Iakov.

— É o mesmo, dá-mos! Não direi a teu pai que lhe andas a cortejar a dama — acrescentou Serejka, passando a língua pelos lábios ressequidos e gretados.

— Quem acreditaria em ti?

— Quando falo todos acreditam em mim; senão...

— Julgas que me metes medo?

— Pois então vou-te para cima — disse ele, revirando os olhos.

Iakov não queria dar-lhe os vinte kopeks. Tinham-no advertido que se acautelasse com aquele homem. Não era grande coisa o que ele exigia; mas se recusasse, ou armava desordem ou tinha forçosamente de lhos entregar. Optou pelo último caso, metendo as mãos no bolso para tirar o dinheiro.

— Assim mesmo é que é! — disse Serejka, estiraçando-se na areia. — Os prudentes obedecem-me sempre... E tu — disse ele, dirigindo-se a Malva — quando te resolves a casar comigo? Vê se te apressas que eu não gosto de esperar.

— Estás esfarrapado como um pelintra — disse Malva. — Manda concertar a farpeia, depois falaremos.

Serejka olhou tristemente os seus andrajos e disse:

— Dá-me uma saia das tuas; é melhor.

— Isso! Isso! — exclamou ela, rindo.

— Dá-me alguma usada se tiveres.

— Era melhor que comprasses umas calças.

— Prefiro antes beber quartilhos.

— Sim, é melhor isso — interveio Iakov, que tinha ainda na mão os vinte kopeks.

— O bispo afirma que o homem não deve preocupar-se exclusivamente com o corpo, mas atender também às aspirações da alma. Ora a minha alma pede-me aguardente e não calças. Dá-me os vinte kopeks... Não direi nada a teu pai.

— Pois diz-lhe — replicou decididamente o outro, deitando o olhar a Malva e tocando-lhe num ombro.

Serejka, que observara o movimento, cuspiu, dizendo com ar de ameaça:

— Não perderás pela demora, descansa! Na primeira ocasião... e há de ficar-te na memória.

— Porquê? — interrogou o outro com inquietação.

— Eu cá sei... Então, quando é que nos casamos, Malva?

— Diz-me primeiro como é possível fazê-lo e de que viveremos em seguida. Então pensarei nisso — respondeu ela muito séria.

Serejka ficou um momento perplexo contemplando o mar; depois, lambendo os beiços, disse:

— Ora! Não faremos nada, passearemos.

— E como se arranja o sustento?

— Bah! — disse Serejka com um gesto de desprendimento. — Raciocinas como minha mãe: «Porquê? Como?» Que aborrecimento vocês me causam! Sei-o eu porventura? Bom! Toca a beber uma pinga! — Levantou-se e partiu sem se despedir, acompanhado de um sorriso estranho de Malva e de um olhar hostil do rapaz.

— Que farsante! — exclamou ele, logo que o viu a distância. — Na minha aldeia não mandaria tanto o valentão. Já teria apanhado a sua conta. Aqui todos o temem.

Malva mediu-o dos pés à cabeça, replicando:

— Não sabes quanto ele vale.

— Destes a cinco kopeks o cento.

— Isso é o que tu vales — replicou ela com desdém. — Tem visto muitas terras, percorreu todo o mundo e não tem medo de ninguém.

— E eu tenho por acaso medo de alguém? — disse Iakov, fanfarrão.

Malva não respondeu. Observava os movimentos da barca que parecia desejosa de se atirar à água, indignada contra o cabo que a retinha à costa.

— Porque te não vais embora? — perguntou Malva.

— Para onde queres tu que eu vá?

— Não disseste que tencionavas ir à cidade?

— Já não vou.

— Então vai ter com teu pai.

— E tu?

— O quê?

— Vais também?

— Não.

— Pois eu também não vou.

— Ficarás aqui todo o dia agarrado às minhas saias?

— Enganas-te se pensas que preciso de ti.

E, levantando-se, afastou-se rapidamente. Enganava-se agora que a não tinha ao pé. Descontente, sentia ganas de romper com o pai. De onde lhe viera aquela má vontade? Não a sentira antes daquele encontro da madrugada com Malva. Pensava agora que o pai o tinha sempre maltratado, mas quando estivera longe, naquela língua de terra que mal se distinguia. Era certo que Malva temia o pai. Se assim não fosse mostrar-se-ia ela tão reservada? Como lhe apetecia o seu corpo depois daquela rude peleja na água!

Caminhava pela praia, olhando os que passavam com modos aborrecidos e uma vontade cega de altercar.

Serejka está sentado em cima de um tonel à sombra de uma barraca. Roça as unhas pelas cordas de uma balalaica e canta com gestos desvairados:


Procura municipal

Toma cuidado, atenção!

Que antes de me recolher

Terei caído no chão.


Rodeiam-no uns vinte operários esfarrapados, fedendo a marisco e salitre. Quatro mulheres imundas, de cócoras na areia bebem chá que vazam de uma cafeteira de ferro. Um operário, já embriagado, apesar da hora matutina, escabuja no chão, fazendo esforços desesperados para se levantar. Outra mulher, mais longe, chora e ri ao mesmo tempo; ouve-se o som irritante de um acordeão desafinado. Por toda a parte reluzem escamas de peixe.

Pela hora do meio-dia, Iakov, descobrindo um lugar assombreado por montões de barricas, deixou-se cair preguiçosamente, adormecendo até ao anoitecer. Mal despertou, pôs-se a caminho, distraidamente, ao acaso, sentindo contudo que alguma coisa desconhecida o atraía. Depois de vagabundear durante duas horas, foi encontrar Malva, longe da armação, junto a um bosque de salgueiros. Estava estendida de lado e tinha nas mãos um livro velho, muito estragado. Sorria, vendo aproximar-se Iakov.

— Oh, lá! Onde tu estás! — exclamou ele, sentando-se-lhe ao lado.

— Procuravas-me há muito?

— Se te procurava? Que ideia! — replicou ele, lembrando-se, mau grado seu, que uma força estranha o impelira para ali.

— Sabes ler? — perguntou ela.

— Sim, mas esqueci já há muito.

— Também eu... Andaste na escola?

— Sim, na municipal.

— Eu aprendi sozinha.

— Deveras?

— Sim. Fui em Astrakan cozinheira de um advogado. O filho dele ensinou-me alguma coisa.

— Então não aprendeste sozinha!

Malva perguntou:

— Desejas ler livros?

— Creio que sim.

— Pois eu também gostava... Pedi este volume à mulher do inspetor e tenho estado a lê-lo.

— O que é?

— A história de santo Aleixo, um santo varão.

E contou-lhe depois, com muita seriedade, que um rapazito, filho de pais nobres e ricos, abandonara-os uma vez, com risco da fortuna e da posição elevada que o esperava, deitando-se a peregrinar por esse mundo fora. Voltara muitos anos depois, esfarrapado e mendigo, dando-se a conhecer somente à hora da morte. Malva terminou perguntando carinhosamente a Iakov:

— Que ideia o levaria a fazer aquilo?

— Sei lá! — retorquiu ele com indiferença.

Em torno elevavam-se montículos de areia que o vento ora fazia, ora desfazia. Vinha da armação um rumor surdo e confuso. O sol que começava a pôr-se acendia reverberações nas neblinas densas do poente. Os salgueiros enfezados agitavam brandamente as folhas ao vento fresco do mar.

Malva permanecia calada, com o pensamento errante nalgum mundo misterioso.

— Porque não foste hoje ao cabo? — perguntou ele.

— Tens muito interesse em sabê-lo?

Iakov pegou numa folha e pôs-se a mastigá-la lentamente. Contemplava a jovem de soslaio com desejos de lhe dizer tudo o que sentia por ela; mas não sabia por onde começar.

— Olha, quando estou sozinha na presença de uma tarde tão formosa como esta, dá-me vontade de chorar e de cantar ao mesmo tempo. O pior é que não sei canções decentes e envergonha-me chorar.

Iakov escutou aquela voz acariciadora e meiga como ainda a não ouvira, e que lhe acendia cada vez mais os desejos.

— Ouve! — disse ele de repente, como impulsionado por uma força interior. — Escuta o que te vou dizer... Sou moço...

— Doido! Doido... — replicou Malva, abanando a cabeça.

— Bem! — retorquiu ele, animando-se. — Para que preciso de juízo? Sou doido, está bem. Mas escuta! Se tu quisesses...

— Não digas mais... Cala-te!... Não quero!

— Porquê?

— Porque não.

— Não sejas tonta — disse ele, abraçando-a suavemente. — Escuta...

— Vai-te, Iakov! — ordenou com voz ríspida. — Vai-te!

Iakov levantou-se e deitou a vista em redor.

— Bem, não queres? Acabou-se. Pouco se me dá. Mulheres não faltam. Crês que não há outras tão bonitas como tu?

— Não passas de um fraldiqueiro — exclamou ela, levantando-se e sacudindo a areia das saias.

Voltaram para a armação ao lado ou do outro, silenciosos, enterrando-se nas dunas de areia.

De repente, já próximo das barracas, Iakov agarrou-lhe bruscamente num braço.

— Porque me excitas? Que ganhas tu com isso?

— Deixa-me, anda!

Serejka saltou de trás de uma barraca, com a cabeleira ondulando.

— Pegaram-se? Folgo com isso.

— Vai para o diabo! — exclamou Malva.

Iakov postara-se diante do outro, fixando-o com ares provocantes. Permaneceram assim alguns momentos, frente a frente, como dois carneiros dispostos a acometerem-se. De súbito afastou-se cada um para seu lado sem trocarem palavra.

O mar estava tranquilo e avermelhado pelos clarões ardentes do poente em sangue. Ouvia-se um ruído surdo na armação. Uma voz arrastada de mulher bêbeda entoava com um gemido de histérica, uma canção destrambelhada e sem sentido:


Ta agarga, metagarga,

Matanitcka a mim

Bêbeda e espancada

Com os cabelos caídos...


Aquelas palavras asquerosas, fedendo a obscenidade, ouviam-se por toda a parte, saindo do fundo lôbrego das barracas à mistura com o cheiro infeto a sal e peixe podre.


***


Acordava suavemente o mar envolto ainda nas brumas espessas dos primeiros alvores da madrugada. No cabo os pescadores concertavam os tresmalhos de pesca, pendendo ainda de sono.

Aquela faina que tão habitual se lhes tornara, executavam-na eles com rapidez e silenciosamente.

A massa cinzenta das redes estendia-se desde a areia até à barca onde se amontoava em grandes rolos pesados.

Serejka, descoberto e quase nu, como de costume, estava sentado à proa dando ordens com a voz rouca da bebedeira da noite anterior. O vento agitava-lhe os farrapos da blusa e os molhos cabeludos do largo peito.

— Onde estão os remos verdes, Basílio? — perguntou uma voz.

O guarda, sombrio como um dia de outono, ia enrolando as redes na barca, de costas para Serejka, que lambia os beiços com ganas de beber.

— Tens aguardente? — perguntou.

— Sim! — disse Basílio num grunhido impercetível.

— Bem, então fico em terra.

— Solta a amarra! — comandou Serejka, pulando para fora da barca. — Vão vocês que eu fico. Procurem bem o vento para não empecilharem as redes... Cuidado, não se façam nós... Toca a andar!

Os pescadores saltaram para dentro da barca, erguendo os remos no ar.

— Ala!

Os remos caíram de jato, impelindo a embarcação para o largo.

— Uma! Duas! — comandava o timoneiro.

A barca assemelhava-se a uma enorme tartaruga agitando automaticamente as suas patas.

— Uma! Duas!

Na praia, cuidando das outras redes, tinham ficado Basílio, Serejka e mais três homens.

Um destes deitou-se na areia, dizendo:

— Se pudéssemos dormir um bocado!

Os outros imitaram-no, estiraçando-se os três na areia em um montão informe.

— Porque não vieste domingo passado? — perguntou Basílio ao companheiro.

— Não pude vir.

— Embebedaste-te?

— Não, estive entretido a observar os requebros de teu filho com a madrasta — declarou Serejka fleumático.

— Já é uma ocupação — replicou Basílio com um sorriso forçado. — Afinal de contas já não são ambos crianças!

— Pior ainda. Ele é um imbecil; ela é uma cabra.

— Porque lhe chamas isso? Acha-la doida? — perguntou Basílio com o olhar inflamado.

— Sim.

— E desde quando?

— Sempre a tenho considerado como uma tresloucada. Crê, irmão Basílio, que a sua alma não é para aquele corpo. Compreendes o que quero dizer?

— Parece-me compreender... É a sua alma que é vil.

— Vil? Ah! Tu não percebes nada da vida. És como os mais. Tenha a mulher uns peitos grandes, que importa o caráter? Ora o que distingue os seres humanos é o caráter. Uma mulher sem caráter é como um pão sem sal. Que prazer pode dar uma balalaica sem cordas? Estúpido!

— Estás ainda bêbedo, meu amigo.

Basílio tinha vontade de interrogá-lo acerca do que ele sabia de Malva e Iakov. Faltava-lhe, porém, a coragem para se lhe dirigir abruptamente.

Entrando na barraca ofereceu-lhe um grande copo de aguardente pura, na esperança de que ele se abrisse em confidências sobre o caso.

Mas Serejka, depois de beber, tossiu e sentou-se à porta da barraca espreguiçando-se.

— Quando bebo parece-me que engulo fogo — disse ele.

— A verdade é que tu sabes beber — replicou Basílio, admirado da presteza com que ele emborcava o copo de aguardente.

— Sim — replicou o outro abanando a cabeça. E enxugando os bigodes com as costas das mãos, acrescentou doutoralmente: — É verdade, sei pegar num copo... Tudo faço com limpeza e sem vacilar, sem titubear... Caminhar direito, sempre em frente, eis a questão. Pouco importa onde se vá dar... Não se pode sair da terra...

— Desejavas ir ao Cáucaso? — perguntou Basílio para o fazer dar à língua.

— Irei quando me der na gana. Desejando uma coisa, é dito e feito! Uma, duas, ala! Obstáculo que se me depare salto por cima dele... É muito simples.

— Muito simples... O pior é que a falta de senso pode causar inconvenientes.

— Como tu és inteligente e esperto!... Quantas vezes te açoitaram em público? — replicou Serejka maliciosamente.

Basílio não respondeu.

— Muitas vezes, talvez... E de que te valeu o teu bom senso? Olha, cá estou eu que não me preocupo com coisa nenhuma, faço aquilo que muito bem entendo, e com certeza hei de ir parar mais longe que tu.

— É possível. Talvez consigas ir parar à Sibéria.

— Ora aí está! É isso mesmo — rompeu Serejka às gargalhadas.

O maldito não se embebedava como Basílio supunha. Não lhe queria dar mais aguardente; mas Serejka, na dúvida, emborcou novo copo sem esperar que o camarada lho oferecesse.

— Porque não me perguntas por Malva?

— Que tenho eu com ela? — respondeu Basílio, aparentando indiferença.

— Como não te apareceu no domingo devias procurar saber o que era feito dela. Bem sei que tens ciúmes.

— Ora! Há muitas como ela.

— Muitas? Deveras? Vocês são todos uns labregos. Acham tão doce o mel como o alcatrão!

— Porque estás tu agora a defendê-la. Tens ideia de ma propores para casamento? Por fortuna que há já muito que me casei com ela — disse Basílio com ironia.

Serejka, depois de alguns momentos de silêncio, colocou-lhe a mão no ombro e pôs-se-lhe a falar com intimidade.

— Julgas que não sei? Ela está amuada contigo. Não queria desconsolar-te; mas como vejo que teu filho Iakov lhe anda a arrastar a asa, julgo um dever prevenir-te. Chega-lhe, ouviste? Senão chego-lhe eu! Tu és robusto, posto que um pouco estúpido... Olha que não te tenho nunca estorvado!

— Pensarás nisso agora? — perguntou Basílio surdamente.

— Se tivesse essa ideia, podes ter a certeza de que já os tinha separado um do outro. Importa-me lá saber dela!

Basílio olhava-o ainda com desconfiança. Compreendia perfeitamente diante daqueles modos francos que Serejka nenhum caso faria de Malva.

Todavia acrescentou:

— Mas não deixas de te interessar por ela. Porque é isso?

— Talvez o diabo o saiba... Afinal de contas, é uma mulher... picante. Distrai-me e às vezes... causa-me lástima.

— Se fosse honesta tinhas motivo para lastimá-la. Mesmo assim...

O outro não respondera, entretido a observar as voltas que a barca dava para atracar à margem. O rosto vermelho de Serejka tinha uma expressão de sinceridade comovente.

— Tens razão — disse Basílio — é uma pobre moça com a diferença de ser um pouco leve de cabeça, como tu dizes... Ah, Iakov, terás notícias minhas, cão!

— Não gosto dele, cheira a torrão, que é coisa com que embirro.

— E o velhaco anda atrás dela? — perguntou Basílio entre dentes e dando puxões à barba.

— Julgo que sim. Verás tu como ele se coloca entre vocês à laia de tabique.

— Mas é que o racho se ele se atreve a tanto. Aconselha-o que não experimente.

Subitamente, abriu-se no horizonte um grande leque de luz emergindo acima da superfície do mar. Através do marulho das ondas chegou uma voz longínqua vinda da barca.

— Puxem!

— Eh, lá! Arriba! À corda — comandou Serejka, levantando-se.

Os cinco homens puxaram rapidamente a rede. A outra ponta estava presa na barca que corria velozmente sobre as ondas, balanceando a verga para a direita e para a esquerda. O sol deslumbrante e soberbo resplandecia sobre o mar como um grande globo de ouro.

— Se encontrares Iakov, não te esqueças de lhe dizer que venha ver-me — recomendou Basílio.

— Sim, fica descansado.

A barca abicou à margem, deitando-se os pescadores à água para acabarem de puxar as redes. Os dois grupos iam-se aproximando pouco a pouco, reunindo os extremos da rede, cujas boias de cortiça flutuavam, formando um semicírculo regular.


***


Ao anoitecer daquele dia, quando já os operários da armação tinham acabado de cear, Malva, cheia de cansaço e de aborrecimento, sentara-se numa barca velha de quilha para cima, contemplando o mar que começava a envolver-se nas sombras do crepúsculo.

Brilhava ao longe uma fogueira que Malva adivinhava ser de Basílio, e onde os seus olhos pousavam arrastados involuntariamente para aquele clarão. A chama perdida no horizonte erguia-se umas vezes para o ar, soprada pela brisa, outras vezes chegava quase a desaparecer, tornando-se um pequenino ponto luminoso.

Sentia-se oprimida diante daquele ponto vermelho abandonado no deserto, palpitando como uma coisa viva entre o infatigável murmúrio das ondas.

— Que fazes tu aqui? — perguntou a voz de Serejka, erguendo-se detrás dela.

— Que tens tu com isso? — replicou ela secamente.

— É curioso — monologou ele, acendendo um cigarro e sentando-se na barca ao lado dela.

Percebendo a indisposição de Malva, disse-lhe, amaciando a fala:

— Que mulher extraordinária que tu és! Tão depressa foges de todos como te entregas a qualquer que te apareça.

— A ti talvez!

— A mim não, mas Iakov que o diga.

— Mete-te inveja?

— Olha, queres que te fale claro?

— Pois fala — respondeu ela.

— Rompeste com Basílio?

— Não sei. Porque mo perguntas?

— Por curiosidade.

— Estou zangada com ele.

— Porquê?

— Bateu-me.

— A sério, bateu-te? E tu consentiste? Essa não está má! — exclamou ele pasmado, fixando com insistência o rosto de Malva.

— Se eu quisesse não me tinha batido — afirmou ela com expressão sombria.

— Então como te arranjaste?

— Fui eu que não quis defender-me.

— Tanto estimas esse gato cinzento — disse Serejka, atirando um punhado de areia. — E eu a julgar que tu valias mais do que ele!

— Não quero nenhum de vocês — disse Malva com indiferença, revolvendo a areia com as mãos.

— Estás a mentir.

— Para que havia de mentir? — perguntou ela, soberba.

Serejka compreendeu pelo timbre da sua voz que efetivamente Malva falava verdade.

— Se não gostas dele para que o deixaste bater-te?

— Que sei eu... Olha, deixa-me sossegada!

— Tem graça — disse Serejka pensativo.

Calaram-se. A noite aproximava-se, estendendo as suas sombras pelo mar. As ondas bramiam com força.

A fogueira extinguira-se completamente. Serejka continuava a examinar a jovem, cujos olhos se fixavam insistentemente no sítio longínquo onde o clarão brilhava há pouco.

— Escuta — disse ele. — Sabes porventura o que queres?

— Se o soubesse! — replicou ela com amargura.

— Não sabes. Pois é mau isso — afirmou Serejka sentenciosamente. — Eu cá sei-o sempre. — E acrescentou com um acento de tristeza: — Mas raramente sucede que eu queira alguma coisa.

— Mas raramente sucede que eu queira alguma coisa — repetiu Malva. — Quero... o quê? Nem eu sei. Às vezes quisera meter-me numa barca e perder-me ao longe na vastidão infinita das ondas. Outras vezes desejaria que os homens se transformassem em piões e dessem voltas sem descanso. Alegrar-me-ia vê-los assim. E tão depressa sinto lástima de todos, sobretudo de mim própria, como sinto desejos de matar todos e a mim própria dar uma morte horrível. Quero rir e aborreço-me, porque, afinal, todos os homens não merecem um pouco de atenção; são volúveis como piões.

— De madeira podre — acrescentou Serejka. — Bem dizia eu: Não és gato, nem pássaro, nem pez... És um pouco de tudo... Em nada te pareces com as outras mulheres.

— Graças a Deus — replicou ela, sorrindo.

À sua esquerda, por detrás de uma cordilheira de colinas arenosas apareceu subitamente a lua, inundando de um jato luminoso a planície deserta.

Redonda e suave, erguia-se majestosamente no azul, empalidecendo as estrelas com a sua claridade melancólica.

— Pensas de mais, eis o teu mal — sentenciou Serejka com convicção, atirando a ponta do cigarro. — Quando se pensa demasiadamente, aborrece-se a gente de viver... É preciso estar-se sempre em ação e sentir-se a vida girar em torno de nós. Agita-te para todos os lados, move-te em todas as direções, não repouses um momento e verás como te não aborreces.

Malva replicou:

— Talvez seja verdade o que tu dizes. Às vezes parece-me que me divertiria muito, se pusesse fogo às barracas.

— Assim! Assim! — exclamou Serejka entusiasmado, dando-lhe palmadas no ombro. — Era isso o que eu queria dizer... Nós dois podíamos fazer uma partidinha engraçada, queres?

— O que é? — perguntou Malva com animação.

— Aqueceste bem Iakov?

— Arde que nem uma fogueira.

— Pois atiça-o contra o pai. Verás o bonito! Vão agarrar-se como dois ursos... Açula o velho e depois o outro, e toca a lançá-los para a dança!

Malva atentava naquele rosto comido de sardas e que, iluminado pela lua, parecia agora com menos manchas.

Não sentia ódio nem rancor; animava-se, porém, pensando nas eventualidades daquela aventura.

— Porque os odeias tu? — perguntou ela.

— Eu? O Basílio é um bom homem, mas o filho não vale nada. Embirro com os labregos: são todos matreiros. Fingem-se desgraçados para lhes darem esmolas. Fui cocheiro de vereador. Tive ocasião de conhecer muitos camponeses. Vagabundeei muito tempo. Quando chegava a um povo perguntavam-me logo: Quem és? O que fazes? Deixa cá ver o teu passaporte! Bateram-me muitas vezes sem motivo. Prenderam-me injustamente. Lastimavam-se a dizer que não podem viver possuindo muitas vezes terras. Que mal lhes tinha eu feito?

— Não és camponês?

— Sou cidadão do Uglitch — replicou Serejka com orgulho.

— Pois eu sou de Pavlicha — disse por sua vez Malva.

— Assim ninguém me protege, ao passo que os camponeses têm o município que os auxilia.

— O que é um município?

— Um município? O diabo me leve se eu sei que isso é! É o conselho deles... Mas deixemos isso. Falemos antes do que nos interessa. Queres preparar esse enredo? Não resultará mal nenhum. É só para vê-los pegados um pouco. O Basílio bateu-te? Pois bem, o filho que lhe devolva as pancadas com que te mimoseou.

— E porque não? — disse Malva, sorrindo com a ideia.

— E que belo é verem-se duas pessoas engalfinhadas só por uma palavra, só por um olhar nosso! Basta dar um pouco à língua.

Serejka instigava-a, mostrando-lhe os encantos do papel que ela representaria naquela contenda entre pai e filho.

Às vezes falava meio sério, meio zombeteiro, chegando a entusiasmar-se pelo que dizia.

— Ah, se eu fosse uma mulher formosa que zaragata não armava agora! — concluiu ele. E apertando a cabeça nas mãos fechou os olhos e calou-se.

Ia já a lua alta quando se separaram os dois.

A noite tornava-se cada vez mais encantadora. A lua faiscava cintilações, ardentes, formando como que uma estrada luminosa, vinda do seio do mar até à margem onde se desfaziam as ondas. As barracas longínquas, sob os vapores brancos da noite semelhavam esquifes negros repousando. Os salgueiros agitavam levemente as suas folhas. E um silêncio enorme, impregnado de luz, caía sobre as coisas como a bênção serena de um Deus.


***


Pai e filho estavam ambos sentados na barraca em frente um do outro, bebendo aguardente que o último trouxera para amansar o velho. Serejka prevenira Iakov que o pai estava danado com ele por causa de Malva, ameaçando desancá-lo se a moça se atrevesse a dar-lhe trela. Iakov suspeitava e Serejka confirmara que Malva o não queria com medo de alguma sova tremenda.

Serejka fartara-se de caçoar com ele: «Olha que o velho chega-te deveras. Puxa-te as orelhas até ficarem do comprimento de um palmo. O melhor que te pode acontecer é não te encontrares com ele.»

As palavras do pele vermelha tinham provocado em Iakov um grande ressentimento contra seu pai. Era por causa dele que Malva não queria entregar-se-lhe. Ora lhe prometia, ora lhe negava, acirrando-lhe os desejos até à loucura.

Iakov resolveu-se a ir ter com o pai. Afigurava-se-lhe um obstáculo erguido no seu caminho que era necessário saltar, desse por onde desse. Sentindo-se forte contra o seu adversário tinha tentações de lhe dizer: «Toca-me, anda, se te atreves!»

Tinham já bebido três copos cada um sem tocarem mormente em assunto de importância, limitando-se a insignificantes observações acerca da vida que se levava na armação. Sozinhos à beira de água, acumulavam no interior um ódio que ambos adivinhavam estar prestes a rebentar.

As esteiras das barracas entrechocavam-se agitadas pelo vento, e o trapo vermelho, que flutuava na extremidade do mastro, parecia murmurar alguma coisa incompreensível. Aqueles ruídos eram tímidos e vagos como o cicio de uma reza. As ondas mugiam soltas e impacientes.

— Continua a embebedar-se esse diabo do Serejka? — perguntou Basílio bruscamente.

— Todas as noites apanha a sua tachada — respondeu Iakov, deitando aguardente no copo do pai.

— há de acabar mal. Eis a que nos leva uma vida desregrada. E tu vais pelo mesmo caminho!

O filho, que detestava Serejka, replicou:

— Nem quero ter parecenças com ele.

— Não? — pronunciou Basílio de sobrecenho carregado. — Eu cá sei o que digo... Há quanto tempo estás tu aqui? Há já dois meses. Brevemente tens que te pôr a caminho. Quanto poupaste já?

— Em tão pouco tempo não me é possível juntar dinheiro — objetou o moço judiciosamente.

— Estás-te a tornar fino... O melhor que tens a fazer é voltares para a aldeia.

Iakov sorriu.

— Que significa esse riso? — perguntou Basílio irritado pela fleuma do rapaz. — Então tu zombas do que te diz teu pai? Julgas-te já livre e senhor de ti? Tenho de pôr-te novamente a cabeçada.

O rapaz encheu o copo e bebeu. Aquelas palavras grosseiras ofendiam-no, despertando nele uma cólera súbita. Mal se continha ocultando a raiva para não enfurecer o pai. Começava a sentir-se intimidado diante daquele rosto severo e ameaçador.

Basílio acabou por desesperar completamente, notando que o filho não lhe deitara aguardente.

— Então teu pai diz-te «Vai para casa!» e tu pões-te a rir das suas palavras? Bem! Não tenho outro remédio senão falar-te de outra maneira. Pede a féria no sábado e marcha! Ouviste?

— Não vou — disse Iakov com firmeza.

— O quê? — exclamou Basílio, apoiando as mãos no tonel e levantando-se. — Ouviste o que te disse? Ah, cão, que ladras contra teu pai! Esqueceste-te que posso fazer de ti o que quiser?

Congestionava-se-lhe o rosto.

— Não esqueci nada — replicou Iakov humilde. — E tu não esqueceste porventura nada?

— Pois tu atreves-te a dar-me lições de moral? Espera que eu te governo.

Iakov mal teve tempo de suster a mão do pai, que desabava sobre a sua cabeça. Sentindo invadi-lo uma cólera selvagem, rugiu por entre os dentes:

— Não me toques! Olha que não estamos na aldeia!

— Cala-te! Em toda a parte sou teu pai!

— Aqui não me poderás açoitar; cantam as coisas de outra maneira — disse Iakov levantando-se.

Estavam diante um do outro como dois tigres medindo-se. Basílio com os olhos injetados de sangue atirou um copo à cara do filho, que se afastou rapidamente, adivinhando os movimentos do velho. Entre um e outro erguia-se o tonel que servia de mesa.

— Pensas que não sou capaz de te zurzir? — regougou Basílio com voz vibrante, agachando-se à semelhança de um gato para preparar o salto.

— Aqui todos somos iguais. Eu sou um operário, tu és outro.

— Ah, sim?!

— É assim mesmo. Porque me ameaças?

— Julgas que eu te não percebo? Foste tu que começaste a implicar...

Basílio soltou um grito, levantando o braço tão rapidamente que Iakov não teve tempo de desviar-se. Um formidável murro caiu na cabeça do rapaz, que vacilou como que atordoado, recuando.

— Espera! — continuava o velho, cerrando os punhos.

— Espera tu!

— Pois atreves-te a falar assim a teu pai, ladrão?

Começou a luta dentro da barraca. Iakov, pálido e coberto de suor, com os dentes cerrados e os olhos fuzilando, recuava lentamente às arremetidas do pai, que bramia de raiva como um javali danado.

— Basta, basta! — gritava Iakov, contendo-se e saltando para fora da barraca.

O velho adiantava-se, rugindo e descarregando golpes que Iakov aparava nos braços.

— Toma! Toma!

Iakov zombava afinal daquela fúria, sentindo-se mais forte do que o pai.

— Espera, espera um pouco!

O moço de um pulo chegou até à beira da água. Basílio seguia-o com a cabeça baixa e os braços estendidos; mas, encontrando qualquer obstáculo, deixou-se cair de bruços. Sentou-se com as mãos apoiadas na areia. Completamente extenuado por tamanhos esforços, pôs-se a gemer com raiva impotente, sentindo a dolorosa consciência da sua fraqueza.

— Maldito sejas! — exclamou com a boca suja de espuma.

Iakov recostara-se na barca, contemplando-o com atenção. Apalpava a cabeça, enxugando o suor que lhe escorria do peito branco e luzente como se estivesse humedecido de azeite. Sentia desprezo por aquele homem derrubado que ameaçava baldadamente e sorria com essa indulgência ofensiva que sente o forte pelo mais fraco.

— Raios te partam! Maldito sejas tu para sempre!

Basílio lançou aquela maldição com tanta ânsia e com tanta força, que os olhos do moço involuntariamente se dirigiram para a armação como se ali pudessem tê-lo ouvido.

Depois, cuspindo desdenhosamente, disse para o pai:

— Grita! Grita com mais força! Julgas que me metes medo? Desembucha para aí tudo o que tiveres a dizer.

— Cala-te! Vai-te para longe da minha vista!

— Não voltarei para o campo! hei de passar aqui o inverno — replicou o rapaz sem se importar com as suas palavras e espreitando-lhe todos os movimentos. — Está-se aqui melhor. O trabalho fatiga menos e há muito mais liberdade... Ali mandarias em mim como num escravo: experimenta fazê-lo aqui.

Fez-lhe uma carantonha tão provocante que Basílio, recobrando o ânimo, pegou num remo, deitando a correr para ele.

— Fazes isso a teu pai? Espera aí! Ah, hei de matar-te!

Quando chegou junto da barca, já Iakov estava longe. Atirando-lhe o remo num último esforço, deixou-se cair junto da barca, arranhando furiosamente a madeira, enquanto o outro lhe gritava de longe:

— Pois não te envergonhas disto? Um velho pôr-se em tal estado por causa de uma mulher perdida... Não, não vou para a aldeia! Vai tu, se quiseres... Nenhuma falta ficas fazendo...

— Cala-te, Iakov — ordenou Basílio, cobrindo as palavras do filho. — hei de matar-te, cão!

Iakov afastava-se lentamente, rindo daquelas ameaças vãs.

Basílio olhava-o como louco. Via o seu vulto desaparecer pouco a pouco por detrás das dunas. Primeiro as pernas, depois os ombros, finalmente a cabeça. Numa curva apareceu novamente Iakov já muito longe, atirando-lhe palavras que o outro não entendia.

— Maldito! Maldito sejas para sempre!

Iakov fez um último gesto, tornando a ocultar-se por detrás dos grandes montes de areia.

Basílio ficou ainda por muito tempo com o olhar fixo no ponto onde o filho desaparecera. Depois levantou-se, vacilante e trémulo, sentindo os membros pesados e doridos. Entrando na barraca viu que tudo ali ficara em desordem. Sacou a garrafa de aguardente oculta numa ruma de sacos, aproximando-a da boca com sofreguidão. A garrafa tremia-lhe nos dentes, entornando o líquido pela barba e ao longo do peito descoberto. O álcool parecia-lhe água.

Embrulhavam-se-lhe as ideias, palpitava-lhe o coração desordenadamente e doíam-lhe as costas como se lhe tivessem malhado em cima.

— Estou velho! Já não presto para nada — murmurou ele profundamente desalentado. Deixou-se cair na areia junto da porta da barraca. Diante dele estendia-se o mar a perder de vista, forte e soberbo, com o peito arquejante mordido do sol.

Riam as ondas murmuradoras e inquietas. Basílio contemplava a vasta superfície das águas, lembrando-se das palavras do filho: «Se tudo aquilo fosse terra para lavrar...» Friccionou o peito com força e, lançando a vista em redor, suspirou profundamente, ao mesmo tempo que o invadia um sentimento horrível de tédio e de amargura. Inclinava-se para a terra como se tivesse um grande fardo sobre as costas. Tossiu e persignou-se, olhando o céu, absorto num pensamento estranho que lhe surgiu.

Porque se metera ele com uma perdida, abandonando a mulher com quem vivera honradamente mais de quinze anos?

Era agora o Senhor que castigava com a rebeldia do filho! Sim, era o castigo do Senhor! O filho desprezara-o, arrancara-lhe o coração e nem era bastante a morte para lhe fazer pagar as suas injúrias. E tudo por uma prostituta! Que pecado tão grande esquecer a mulher, o filho, por causa dela!

E o senhor, na sua justa cólera, lembrara-lhe o seu crime, servindo-se do filho para o ferir em pleno peito. Sim, era justo! Era o castigo do Senhor!

O sol desaparecera por detrás da curva das águas. Um crepúsculo azulado descia suavemente, envolvendo as coisas de mistério.

A brisa acariciava o rosto do velho inundado de pranto e transfigurado pelo arrependimento numa súbita revelação inexplicável.


***


Iakov partiu no dia seguinte com um grupo de marinheiros. Iam pescar o esturjão para o mar alto a bordo de uma barca que um vapor rebocava. Ao cabo de cinco dias, veio sozinho a terra buscar mantimentos num barco de vela, desembarcando à hora do meio-dia quando os operários estavam a descansar. Fazia um calor horrível. A areia e as espinhas feriam-lhe os pés, arrependendo-se agora de ter vindo descalço. Não se decidia a voltar para o barco, sentindo um grande desejo de ver Malva. Durante as longas horas que passara no mar, tinha-se lembrado muitas vezes dela. Ansiava por saber se ela se tinha tornado a encontrar com o pai, e o que teriam ambos dito dele. Talvez o velho a tivesse zurzido! Melhor... Estaria mais dócil e com menos vontade de provocar.

Dormitava a armação. As barracas, com as janelas abertas de par-em-par, pareciam não poder com tanto calor. Nas oficinas, o inspetor tosava um rapazelho. Ouviam-se vozes cochichando por detrás dos montões de barricas.

Iakov dirigiu-se para aquele lado. Parecia-lhe ter ouvido a voz de Malva. Deteve-se, porém, dando com a vista num grupo de pessoas.

À sombra estiraçava-se Serejka com as mãos cruzadas por baixo da nuca; a seu lado conversavam Basílio e Malva.

Iakov pensou: «Porque estará ele aqui? Abandonaria o lugar para vigiá-la melhor? Velho gaiteiro! Se minha mãe soubesse de todos estes enredos! Não era talvez melhor ir-se embora?»

— É isso — dizia Serejka. — Temos de nos despedir. Estás então disposto a ir arranhar nos torrões?

Iakov estremeceu de alegria.

— É verdade, vou-me embora! — respondeu o velho.

Ouvindo aquelas palavras, o moço apresentou-se.

— Bons dias!

O pai deitou-lhe um olhar sereno. Malva ficou indiferente enquanto Serejka, estendendo uma mão, disse, adoçando a voz:

— Eis o nosso querido Iakov que chega de longes terras! — E acrescentou depois em tom natural: — Temos que esfolá-lo vivo e fazer tambores da pele.

Malva sorria suavemente.

— Que calor! — bufou o rapaz, sentando-se ao lado dela.

Basílio contemplava-o de novo, mau grado seu.

— Desde ontem que te espero aqui, Iakov. O inspetor disse-me que tu vinhas hoje.

Tinha a voz mais fraca e a figura completamente abatida.

— Vim buscar provisões — disse ele pedindo um cigarro a Serejka.

— Não dou tabaco a imbecis — replicou Serejka.

— Volto para casa, Iakov — disse Basílio com voz grave, remexendo a areia.

— Porquê?

— Não te importes. E tu... ficas?

— Se fico? O que faríamos os dois em casa?

— Bem, como quiseres. Já não és criança. Mas lembra-te que mal posso trabalhar: perdi o hábito. Lembra-te também de tua mãe.

Custava-lhe muito falar. Mal pronunciava as palavras, afagando a barba com as mãos trémulas.

Malva olhava para ele sem dizer nada. Serejka observava de revés o moço que tinha os olhos baixos para ocultar o seu contentamento.

— Não te esqueças de tua mãe, Iakov! Lembra-te de que és tu o seu único filho.

— Sim, bem o sei — replicou o moço, encolhendo os ombros.

— Folgo de que o saibas — disse Basílio com um olhar de desconfiança. — Que o não esqueças nunca!

— Está bem — replicou Iakov.

Basílio suspirou profundamente. Estiveram momentos sem trocar palavra quando Malva lembrou de repente:

— Está prestes a tocar a sineta.

— Bem, vou-me embora! — disse Basílio, levantando-se. Os outros imitaram-no. — Adeus, Serejka... Se fores alguma vez ao Volga, não te esqueças de ir ver-me. Distrito de Simbirks, povo de Maslo, próximo de Nicolo-Likovsk.

— Está dito — respondeu Serejka.

E apertou entre as suas a mão que aquele velho lhe estendera inchada de veias e coberta de pelos vermelhos. Sorriu ao ver a expressão contristada de Basílio.

— Nicolo-Likovsk é uma vila muito conhecida. Fica a quatro verstas da minha aldeia — explicava Basílio.

— Bem, irei até lá quando passar por esses sítios.

— Adeus.

— Adeus, amigo.

— Adeus, Malva! — murmurou o velho, desviando os olhos.

Malva, limpando os lábios, deitou-lhe os braços ao pescoço, beijando-o três vezes na boca e nas faces.

Basílio perturbava-se, murmurando palavras confusas. Iakov, de cabeça baixa, dissimulava um sorriso de ironia.

Serejka disse-lhe:

— Vais apanhar muito calor, Basílio.

— Não importa... Adeus, Iakov.

— Adeus.

Estavam diante um do outro confrangidos, sem saberem o que dizer. Aquela triste palavra «adeus» tantas vezes pronunciada despertou na alma do rapaz um sentimento de compaixão que não sabia como manifestar. Beijá-lo-ia como Malva ou limitar-se-ia a estender-lhe a mão como fizera Serejka?

Aquele embaraço fazia sofrer o velho, que se sentia envergonhado, lembrando-se da cena do cabo e dos beijos de Malva.

— Pensa em tua mãe!

— Sim, já sei — replicou o moço com expressão agradável. — Não tenhas receio...

— Sejam felizes. Que Deus os proteja... Não guardem ressentimentos de mim. Serejka, a cafeteira está enterrada na areia ao pé da porta da barraca.

— Para que diabo quer ele a cafeteira? — perguntou bruscamente Iakov.

— Fica no cabo em meu lugar — explicou Basílio.

Iakov deitou a Serejka um olhar invejoso e, fixando Malva, baixou subitamente os olhos.

— Adeus, irmãos, adeus!

Malva saiu atrás dele.

— Acompanho-te um pouco.

Serejka estendeu-se no chão, agarrando numa perna de Iakov, que começou fazendo esforços por se soltar.

Serejka apanhou-lhe a outra perna.

— Senta-te aqui.

— Que maluquice é essa?

— Não é maluquice; senta-te!

Iakov obedeceu, perguntando por entre os dentes:

— O que queres tu?

— Espera... Deixa-me refletir primeiro. Depois falarei...

O moço submeteu-se por fim com docilidade. Malva e Basílio afastaram-se silenciosos e comovidos. Os olhos de Malva tinham um brilho estranho. Basílio, dominado por sombrias apreensões, caminhava aos solavancos, enterrando-se desastradamente na areia.

— Vasia?

— O que é?

— Fui eu que te malquistei com teu filho, mas não foi propositadamente, crê. Poderiam ter vivido aqui ambos em paz — disse ela com voz tranquila, sem sombra de arrependimento.

— Para que o fizeste então?

— Não sei... por nada. — E encolheu os ombros, sorrindo.

— Bonito modo de proceder!

Malva continuava silenciosa.

— hás de perder meu filho de todo, desgraçada! Não temes Deus, não temes coisa nenhuma... O que vai tu fazer agora?

— Que vou fazer? Sei lá! — respondeu Malva com uma sombra de despeito.

— Sim, diz-me, o que vais tu fazer de meu filho?— interrogou Basílio com veemência.

Sentia um violentíssimo desejo de lhe bater, de lhe espicaçar o peito e de a enterrar depois na areia. Uma cólera surda fazia-lhe ranger os dentes e ia talvez atirar-se a ela quando, ao voltar-se para trás, avistou Serejka e Iakov que os observavam.

— Vai-te, senão esmago-te! — murmurou ele com voz sufocada.

Tinha os olhos injetados de sangue. As mãos tremiam-lhe convulsivamente na ânsia de agarrar os cabelos de Malva e arrastá-la como um farrapo pelo chão.

Subitamente acalmou-se.

— Merecias que te matasse! Mas não faltará quem o faça um dia.

Malva sorriu com benevolência e, respirando profundamente, disse:

— Então? Basta já... Adeus!

E voltou-se bruscamente, afastando-se dele. Basílio continuava a cobri-la de injúrias.

A moça tranquilamente pôs-se a caminhar ao longo da praia, apagando propositadamente as pegadas de Basílio.

Chegando ao pé das barricas, Serejka perguntou-lhe:

— Despediste-o já?

A moça fez um sinal afirmativo sentando-se junto dele.

— Chorou? — inquiriu Serejka.

Malva não respondeu, limitando-se a perguntar-lhe:

— Quando partes para o cabo?

— Esta tarde.

— Vou contigo.

— Está bem.

— Eu vou também — exclamou de repente Iakov.

— Convidou-te alguém, para vires cá meter-te? — perguntou Serejka.

Na armação tocaram a sineta, dando sinal para recomeçar o trabalho. O som parecia vir de muito distante amortecido pelo barulho das ondas.

— Convida-me ela — disse Iakov, contemplando-a com um olhar insolente.

— Eu? Preciso de ti para alguma coisa?

— Falemos a sério, Iakov — disse Serejka com tranquilidade. — Se lhe tocas com a ponta de um dedo esmago-te a cabeça. E eu então que tenho uma perícia nessas coisas!

Iakov retrocedeu um passo e disse com voz sumida:

— Não te adiantes, que ela é...

— Cala-te que é melhor. Não serás tu, cão, quem há de devorar o cordeiro. Contenta-te com os ossos e já é muito... O que estás tu a olhar?

Os olhos verdes de Malva fixaram Iakov com um grande desdém; o seu belo corpo aproximou-se de Serejka com um ar tão provocante que o moço sentiu passar-lhe uma nuvem diante dos olhos, mordido de ciúme e desespero.

Afastaram-se os dois, abraçados, zombando do aspeto trágico do moço.

Iakov enterrou com força um pé na areia e permaneceu assim muito tempo com o peito ofegante e o olhar incendiado.

Ao longe, sobre as dunas imóveis, agitava-se uma figura humana, tornando-se cada vez mais pequena com a distância. Iakov via o homem sacudir a cabeça com movimentos bruscos, talvez para fazer cair as lágrimas — lágrimas de humilhação e de dolorosa incerteza. À sua direita brilhava o sol arrancando faíscas do aço polido do mar. Para a esquerda erguiam-se as dunas de areia, desertas e uniformes, até aos confins ilimitados do horizonte.

Na armação começava a ativar-se o trabalho. Iakov ouviu a voz de Malva, elevando-se por sobre a das outras mulheres, dizer:

— Quem me tirou a minha faca?

Murmuravam as ondas, irradiava o sol, sorria o mar...

Picada por uma brisa leve, a vaga espreguiçava-se indolentemente, crivando a superfície da água de pequeninas rugas que refletiam os deslumbramentos cálidos do sol, como outras tantas bocas prateadas haurindo a luz.
Para os lados do cabo sentia-se o barulho ensurdecedor das ondas, rolando a sua massa revolta até à ponta arenosa do promontório. O ruído e a luz do sol, fortemente reverberada pela água, uniam-se num frémito vivo de alegria. O céu e o mar como que se abandonavam num mútuo desprendimento amoroso; o céu enviando-lhe a luz; o mar refletindo-a na carícia doce dos seus sorrisos.
Participando das fortes vibrações da luz, o oceano inflamava o peito acetinado e curvo, numa dolência mórbida de cansaço, embalsamando o ar com o aroma das suas emanações salinas.
Àquela hora as ondas estiravam-se, encalmadas, pela praia lisa e ampla, desfazendo a espuma branca das suas cristas, com uma monotonia surda de folhas que se agitam...
A estreita língua de terra do cabo parecia uma torre enorme estendida desde a costa até ao mar. À sua ponta afilada perfurava a água como uma lâmina rígida, e do lado da terra mal se lhe percebia a base oculta na neblina que começava a levantar-se.
Naquele extremo e àquela distância, sentia-se ainda o cheiro nauseabundo e infeto que vinha das armações de pesca.
Na areia do cabo, salpicada de pequeninas escamas de nácar, tinham plantado estacas para suspender as redes, cujas sombras projetando-se no chão faziam lembrar enormes aracnídeos repousando. Ao longo da margem alinhavam-se, paralelamente, as barcas destinadas à pesca, que a fímbria das ondas em loucas correrias vinham beijar, parecendo convidá-las a fazerem-se ao largo.
Escotas, remos, velas, cordames, cestos e barris dispersavam-se numa grande extensão da praia, como destroços de algum naufrágio recente. A pouca distância da água e no meio daquela confusão de apetrechos marítimos, erguia-se uma barraca tosca, feita de troncos e pranchas de madeira, colmada com ramos densos de salgueiro. No alto de uma forquilha tinham posto um par de botas a secar e na extremidade aguda de um mastro tremulava um pedaço de pano vermelho.
À sombra de uma das barcas estiraçava-se indolente, o corpo pesado de Basílio Legostev, guarda do cabo e encarregado da armação do mercador Grebentchicov.
De costas, com as mãos cruzadas por baixo da cabeça, servindo-lhe de apoio, fixava insistentemente o mar, detendo a vista na linha longínqua e quase impercetível da costa. No horizonte distinguia-se, balouçando sobre as ondas, um pequeno ponto negro que Basílio via aproximar-se com mal contida impaciência. E desviando os olhos, cegos pelo reflexo da água, sentia-se estremecer numa forte comoção empolgante, adivinhando, tão longe estava ainda a barca, o vulto adorável de Malva caminhando para ele.
Parecia-lhe ouvir já aquele riso claro e argentino de pássaro contente, que lhe fazia arquejar o seio forte de mulher moça.
Enervava-o a ideia de que ela ia em breve estreitá-lo nos seus braços robustos e mórbidos, entre carícias e beijos longos, ao passo que lhe iria relatando os acontecimentos mais em dia na costa. O que lhe agradava sobretudo era a intimidade confortável e carinhosa que ela ia levar ao seu isolamento de selvagem, tendo-a na barraca, comendo ambos a suculenta sopa de peixe, regada a fartas libações de aguardente, até que ao findar do dia, depois do chá habitual, o repouso viesse juntá-los, numa deliciosa comunidade de gozo. Eram momentos só, mas que importava?
Ao romper da alvorada separar-se-iam amigos e felizes, acompanhando-a ele na barca até ao outro lado da costa. Ainda sonolenta, Malva costumava sentar-se à popa, enquanto ele remava, esquecido de tudo, absorto na contemplação idólatra do seu corpo soberbo. Era naquela ocasião que ela se mostrava mais tentadora e graciosa, cheia de fadiga e languidez como uma gatinha farta que se lambe ainda.

 


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Neste dia até as gaivotas pareciam voar preguiçosamente, exaustas pelo calor. Às vezes pousavam na areia com o bico aberto e as asas estendidas, outras vezes balouçavam-se na crista das vagas sem o ruído habitual dos seus gritos.

A barca vinha-se aproximando. Entretanto, afigurava-se a Basílio que Malva não vinha só. Seria aquele danado de Serejka que às vezes se lembrava de a acompanhar também? E levantando meio corpo, com as mãos por cima dos olhos, em pala, pôs-se a observar atentamente os vultos da barca, sentindo uma cólera surda por aquele intruso que lhe vinha transtornar o dia.

Era Malva que vinha ao leme; na barca remavam com força, mas desastradamente, sem aquela perícia de Serejka que tornava desnecessário o auxílio da moça.

— Eh, lá! — gritou Basílio impaciente.

As gaivotas assustaram-se fugindo para o largo.

— Eh, lá! Eh, lá! — replicou Malva com voz sonora.

— Com quem diabo vens tu?

Na barca soou uma gargalhada estrídula.

— Velhaca! — rosnou Basílio a meia voz.

Atormentava-o uma curiosidade inquieta e perturbante. Examinava a nuca e os ombros do remador, todo curvado nos esforços que fazia para impulsionar a barca. O ruído da água fendida pelos remos tornava-se cada vez mais distinto, e a areia crepitava debaixo dos pés do guarda, participando da agitação nervosa da água.

— Com quem vens tu, Malva? — perguntou de novo Basílio já preso no sorriso jovial da moça.

— Espera que vais ver — disse ela galhofando.

O guarda franziu os sobrolhos parecendo ter reconhecido o remador que levantara a cabeça para o olhar.

— Rema com mais força — ordenou Malva.

O impulso foi tão violento que a barca, saltando na crista de uma vaga, pousou ligeiramente em terra enquanto a onda se retirava para dentro do mar.

— Bons dias, pai! — disse o remador saltando para fora da barca.

Beijaram-se três vezes na boca e nas faces. Diante daquela aparição súbita, o mau humor de Basílio converteu-se num misto de surpresa e de alegria.

— Ah, eras tu, Iakov... bem me parecia! Tinha cá um palpite... Mas porque vieste? Logo vi que não podia ser Serejka. És tu, hein?

Basílio, titubeante, afagava a barba com as mãos, visivelmente aturdido. Os olhos do filho cravavam-se nele, persistentes, interdizendo-lhe o rosto encantador de Malva que o atraía.

Contudo um sentimento ainda não extinto comovia-o e perturbava-o diante daquele rapaz que não via há tanto tempo. Mas a presença de Malva, tentadora e provocante, dominava-lhe o orgulho de possuir assim um filho, forte e desempenado como um mastro.

Fazia-lhe atabalhoadamente perguntas sobre perguntas, sem atender nas respostas do moço, e as ideias embrulhavam-se-lhe de tal modo que a moça acabou por lhe dizer chocarreira:

— Não te desfaças em alegria, homem! Leva-o antes para a barraca e oferece-lhe alguma coisa.

Basílio atreveu-se a olhá-la de frente. Nos lábios dela contraía-se um sorriso de ironia; e, coisa inexplicável, pareceu-lhe que aquele corpo fresco e apetitoso não lhe causava já as mesmas tentações de sempre.

Malva fixava, ora no pai, ora no filho, os seus olhos verdes, petulantes e maliciosos, trincando pevides de melancia nos pequeninos dentes de pérola.

Durante alguns momentos calaram-se, constrangidos, sem acharem nada que dizer.

— Volto já — interrompeu bruscamente o guarda, saindo da barraca. — Não estejam ao sol; vou buscar água e tratar da sopa. Vais ver, Iakov, o que é uma sopa de peixe feita no mar! Não me demoro nada, é um instante...

Pegou numa marmita e afastou-se desaparecendo por detrás das redes suspensas.

Malva e Iakov seguiram-no.

— Então eis-te junto de teu pai. Estás satisfeito? — perguntou a moça aproximando-se dele.

O moço inclinou para ela o rosto emoldurado numa barba ruiva e frisada, replicando:

— É verdade... cá estou! Mas que bonito mar.

— Magnífico, sim. E acha-lo velho, muito acabado?

— Não, não... Julguei encontrá-lo já encanecido e apenas lhe alvejam alguns cabelos brancos. Está ainda forte.

— Há quanto tempo o não vias?

— Uns cinco anos. Quando saiu da aldeia ia eu fazer dezassete.

Entraram na barca. O calor e o cheiro enjoativo do peixe tornavam a atmosfera interior irrespirável. Malva sentou-se num molho de sacos e Iakov imitando-a atirou-se para cima de um tronco. Separava-os uma barrica serrada pelo meio, cujo tampo servia de mesa ao guarda. Examinavam-se a espaços, sem falarem; foi ela quem rompeu o silêncio.

— Vens trabalhar para cá?

— Não sei. Se achar trabalho talvez fique.

— Mas hás de encontrar — replicou Malva com firmeza, acariciando-o com os olhos.

Ele tinha a cabeça baixa e limpava o suor com a manga da blusa.

— Ia apostar em como tua mãe te incumbiu de certas coisas... — inquiriu ela maliciosamente.

Iakov teve um gesto de enfado.

— Mas de quê?

— Ora, nada — replicou Malva com um ar falso de indiferença.

Começavam a desagradar-lhe os modos irrequietos da moça. Invadia-o uma sensação vaga de aborrecimento, de repulsão mesmo, ao lembrar-se das palavras que a mãe lhe dissera, grave e triste, no dia em que ele saíra da aldeia.

— Em nome do céu, Iakov, diz-lhe: «Pai, a nossa mãe está sozinha na aldeia... os anos passam... daqui a pouco está velha e inutilizada pelas fadigas. Conta-lhe tudo, filho, conta-lhe tudo!» — E cobrira o rosto com o avental chorando silenciosamente.

Iakov, que não se comovera então diante daquelas súplicas, experimentava agora um sentimento piedoso de compaixão, e fixando Malva com o semblante carregado tinha vontade de lhe dirigir insultos grosseiros.

— Pronto, vai-se arranjar num instante — exclamou Basílio, aparecendo com um peixe ainda vivo numa das mãos e empunhando na outra uma faca comprida.

Olhava os hóspedes com uma expressão aparentemente tranquila, posto que o embaraço se lhe traduzisse ainda no modo trôpego de andar.

— Agora toca a fazer fogo! Falaremos depois... Estás forte que nem um touro, Iakov.

Desapareceu de novo.

Malva continuava a mastigar pevides, contemplando familiarmente Iakov que debalde se esforçava por desviar os olhos dela.

Entretanto o moço pensava: «Deve passar-se aqui magnificamente. Que boa aparência que eles têm!»

Depois, intimidado pelo silêncio, disse alto:

— Esqueceu-me o saco na barca, vou buscá-lo.

Levantou-se e saiu.

Passados alguns momentos voltou Basílio, e aproximando-se de Malva disse-lhe rapidamente ao ouvido:

— Que ideia foi essa de o trazeres contigo? Que lhe hei de dizer de ti?

— Veio, acabou-se! Que queres que lhe faça?

— Mas não vês que é uma vergonha, estúpida criatura? O que lhe hei de dizer? Sim, o que lhe hei de dizer? Com a outra lá em casa! Que loucura!

— E que me importa a mim? Tenho eu porventura medo de vocês? — perguntou ela com um modo desprezível nos olhos fulvos. — Mas que cara tu fizeste ao vê-lo! Deu-me mesmo vontade de rir!

— Achaste-lhe graça, hein? E dizes-me isso assim descaradamente?

— Podias ter suposto que ele vinha.

— Como querias tu que eu adivinhasse, sem me prevenirem de nada?

Fê-los interromper o ruído da areia pisada por Iakov. O rapaz entrou, atirando o saco para um canto e lançando um olhar furtivo à moça.

Malva continuava muito preocupada a descascar pevides, e Basílio sentando num tronco pôs-se então a fazer perguntas ao rapaz, com um ar constrangido:

— Que lembrança foi essa de vires até cá, assim de imprevisto?

— Mas escrevemos, prevenindo-te.

— Quando? Não recebi nenhuma carta!

— Não recebeste? Pois crê que te escrevemos.

— Perdeu-se provavelmente a carta. O diabo a leve! É sempre assim. Coisas que interessam sempre levam extravio.

— Desse modo não sabes nada dos nossos negócios — inquiriu Iakov, desconfiado.

— Pois não te disse que não recebi coisa nenhuma! Eh, que desgraça, lá se me está a ir a sopa embora!

E deitando a correr, pôs-se a tirar vagarosamente com uma colher a espuma do ao-de-cima do caldo, refletindo nas coisas extraordinárias que acabara de ouvir. Aquela história do filho, longe de o comover, fizera antes irritá-lo contra ele e contra a mãe. Quanto dinheiro lhes não mandara durante aqueles cinco anos? E não tinham sabido aproveitá-lo. Se Malva não estivesse presente, ele lhe teria falado! Abandonar a aldeia sem licença sua e deixar as terras sem amanho, ao desamparo. E os campos que o filho desprezara nesses cinco anos de vida solta pareciam-lhe agora uma goela insaciável onde o seu dinheiro se subvertera irremediavelmente. Basílio suspirava, remexendo o caldo com a colher.

À luz do sol, a chama da fogueira tornava-se mortiça e pálida. O fumo azulado e transparente erguia-se suavemente em longas espirais, curvando-se depois até ao encontro das ondas. Basílio contemplava-o, perplexo e desalentado, afigurando-se-lhe que dali em diante a vida não teria para ele os mesmos encantos do que até aquele dia lhe dera a gozar. Iakov adivinhara já com certeza quem era Malva: o que pensaria ele?

Entretanto na barraca a moça continuava a fazer perguntas frívolas ao moço.

— Deixaste provavelmente alguma namorada na aldeia, é certo?

— Sim, talvez! — replicou ele, maldizendo-a interiormente.

— E é bonita? — inquiriu curiosa.

Iakov não respondeu.

— Porque te calas? Diz, é mais bonita do que eu?

Iakov, sem querer, pôs-se a contemplá-la detidamente. Tinha as faces morenas e carnudas, e os lábios, um pouco grossos, tremiam-lhe abertos num sorriso quente de sensualidade. Uma blusa de percal cor-de-rosa comprimia-lhe os ombros roliços, desenhando-lhe numa linha firme e inteiriça os contornos do peito alto e elástico. Desagradavam-lhe, porém, os seus olhos verdes e turbulentos.

— Porque me perguntas isso?

— Pois de que queres tu que eu fale? — casquinou ela num riso claro.

— De que te ris?

— De ti.

— Fiz-te mal? — retorquiu ele de mau humor. E de novo os seus olhos se baixaram, humildes e trémulos, diante do sorriso tentador de Malva, que não respondeu.

Iakov, percebendo as relações que a ligavam ao pai, sentia-se constrangido na presença dela. Mas não havia razão para estranhar aquilo; tinham-lhe dito que todos faziam o mesmo e compreendia que um homem robusto como seu pai não poderia passar sem uma mulher. Todavia repugnavam-lhe aqueles amores obscenos recordando a outra, a pobre mulher, que envelhecia na fadiga rude dos campos.

— A sopa está pronta, traz as colheres, Malva — disse Basílio assomando ao portal.

Iakov ruminou consigo: «Ela que sabe tão bem os cantos à casa é porque deve voltar aqui frequentemente.»

Malva, pegando nas colheres, afastou-se dizendo que ia lavá-las ao mar, e de caminho trazer a aguardente que ficara na barca.

Mal se viu sozinho com o filho, Basílio perguntou-lhe:

— Como a encontraste tu?

— Perguntei-te no correio. Dirigiu-se-me esta moça dizendo: «Olhe, vou também hoje visitá-lo, escusa de se cansar a pé, venha comigo na barca». E assim foi.

— Que tal a achas?

— Não é feia — respondeu o moço indiferente.

— Que queres, não pude evitá-lo — disse Basílio, gesticulando. — Quis a princípio resistir; impossível! Depois, quando se é casado, o hábito... Demais, trata-me da roupa... Olha, fica sabendo: há duas coisas a que não podemos fugir: das garras da morte e da mulher.

E sentiu tirar-se-lhe um enorme peso dos ombros ao pronunciar sentenciosamente aquelas palavras.

— Mas eu nada tenho que te dizer — replicou Iakov — isso é lá contigo. Não vim cá para julgar o teu procedimento.

E intimamente pensava que desejava antes tê-la encontrado a remendar-lhe as calças.

— Tenho quarenta e cinco anos — continuou o guarda. — Ainda não estou velho... Daí, custa-me pouco dinheiro, que diabo! Afinal de contas é minha mulher para todos os efeitos.

— Certamente — afirmou o rapaz. E pensou lá consigo: «Em que dinheirão te não ficará ela.»

Malva voltou logo trazendo uma garrafa de aguardente e bolos.

Sentaram-se imediatamente a comer.

Silenciosos, iam sugando as espinhas, cuspindo-as depois na areia ao pé da porta. Iakov devorava sofregamente com grande agrado de Malva que via entumecerem-se aquelas faces tostadas pelo sol. Basílio comia pouco e devagar, para poder examiná-los furtivamente e refletir na atitude que lhe convinha tomar.

O azul do céu enternecia de húmido e claro, naquele dia. À música alegre e acariciadora das ondas juntava-se o grito das gaivotas. Diminuíra o calor, e às vezes chegava um bafejo de ar quente impregnado dos aromas salinos da água.

Iakov depois de comer sentiu-se pesado, com uma sonolência mórbida premindo-lhe as pálpebras. Sorria estupidamente, dirigindo a Malva olhares tão provocantes que Basílio achou prudente dizer-lhe:

— Iakov, encosta-te um pouco até à hora do chá... depois te acordaremos.

— Sim, sim! — titubeou ele deixando-se cair sobre uma esteira. — E vocês para onde vão? Hein? Para onde, seus...

Basílio, perturbado, voltou-lhe as costas, saindo rapidamente. A moça, escandalizada, respondeu-lhe em tom severo:

— Não te intrometas em negócios alheios, percebeste?

— Quem, eu? Esperai que eu já lhes digo... mas que bonita que ela é! Olha...

Disse ainda algumas palavras desconexas, depois adormeceu profundamente com um sorriso de bêbado no rosto congestionado.

Entretanto o guarda enterrara três estacas na areia e, reunindo-as pelas extremidades, lançou-lhes uma esteira por cima, abrigando-se em seguida debaixo daquela tenda improvisada.

Malva, que acabava de chegar, estendeu-se na areia ao lado dele. Basílio, amuado, voltou-lhe as costas desdenhosamente.

— Mas que é isso? — perguntou a moça sorridente. — Não estás porventura satisfeito de tornares a ver teu filho?

— Não vês como ele me trata? E tudo por culpa tua — replicou Basílio sombriamente.

— O quê! Por minha culpa? — respondeu ela com um ar falso de admiração.

— Pois é claro!

— Sinto-o bastante. O que me resta então a fazer? Não voltar? Pois bem, não voltarei.

— Pois vai-te, velhaca! — exclamou ele. — Ah, são todos assim! Aqueles por quem mais nos afeiçoamos são sempre os que pior nos tratam.

Prostrara-se de novo dominado por um grande desalento. Malva, abraçando os joelhos, balanceava o corpo esbelto com uma graça felina e desenvolta, e estendendo a vista para o largo sorria com um desses sorrisos triunfantes que possuem as mulheres conhecedoras da sua beleza.

Um barco de vela deslizava no mar alto como um pássaro triste de voo pesado e lento. Largara há muito a costa e ganhando a linha longínqua do horizonte ia em breve sumir-se como uma pequenina nuvem que se desfaz.

— Porque estás assim calada? — perguntou Basílio, contemplando-a.

— Penso...

— Em quê?

— Sei lá!

E depois de um momento de silêncio acrescentou:

— É um belo moço, o teu filho.

— Que tens tu com isso? — perguntou Basílio, ciumento.

— Faz mal perguntar-te?

— Olha, é melhor mudares de conversa — disse Basílio lançando-lhe um olhar de desconfiança. — Não brinques comigo... Sou muito prudente; se me fazes porém exaltar... — E cerrando os punhos acrescentou por entre os dentes: — Desde que chegaste não fazes outra coisa senão intrigar. Não compreendo o que diabo tu queres; mas asseguro-te que é melhor que eu não chegue a compreender... És um poço de malícia! Acautela-te! Eu sei como proceder no caso de...

— Não me metes medo, Basílio — disse ela com um sorriso desdenhoso.

— Pois bem, não me irrites!

— Pensas que me assustas com esses modos?

— Olha que se me fazes desesperar é um instante em quanto danças na corda — ameaçou Basílio com exaltação.

— Pois atreves-te a bater-me?

— Então, quem julgas tu que és para que te não possa bater?

Aproximando-se de Basílio a moça replicou-lhe arrogantemente com o semblante desfigurado pela cólera:

— Parece-me que não sou tua mulher. Tinhas por costumes desancares a que lá tens na aldeia, por qualquer insignificância; julgas que farás o mesmo comigo? Estás muito enganado! Sou livre, só dependo de mim mesmo e ninguém no mundo é capaz de dominar a minha vontade. Já não sucede o mesmo contigo. Receias do teu filho e ainda há pouco observei como te humilhavas diante dele; atreves-te ainda a ameaçar-me?

Aqueles modos altivos da mulher nova e soberba resfriaram a cólera momentânea de Basílio. Nunca a vira assim tão bela e dominadora.

— Vá, começa agora para aí a grasnar — disse ele submisso, completamente desarmado.

— E muito tinha que te dizer. Gabavas-te a Serejka que não poderia abandonar-te, que me eras tão necessário como o pão. Pois enganas-te! Talvez não te ame... E se a única coisa que eu amasse fosse esta imensa plaga? O que me atrai aqui é talvez a solidão; só há mar e céu; o mais são tudo seres vis. Que tu estejas aqui ou não pouco me importa. És como o tributo que se paga por atravessarmos um certo lugar... Se fosse Serejka, seria com Serejka; se fosse teu filho seria com teu filho. Um ou outro, que me importa? Melhor fora que não existissem; vocês todos causam-me nojo. E se um dia me lembrar, bonita como sou, posso arranjar um marido que valha mais do que vocês todos juntos.

— Ah, tu pensas assim? — rugiu Basílio, agarrando-a pela cintura e sacudindo-a furiosamente.

Malva, com o rosto congestionado e os olhos injetados de sangue, não oferecia nenhuma resistência, limitando-se a pôr as mãos na mão de ferro que lhe apertava a cinta.

— Então tu pensas assim e não me dizias nada? Eram, pois, falsos os teus desejos e as tuas carícias? Espera que eu te governo, grande desavergonhada!

E num repelão deitou com ela em terra.

Os seus punhos caíam brutalmente sobre a nuca da moça, experimentando uma sensação agradável ao tocar-lhe na carne mole e elástica.

— Anda, serpente, toma! Toma! — exclamava ele, fustigando-a desalmadamente.

Tranquila, sem uma palavra de queixume, Malva deixou-se cair de costas, com os cabelos em desalinho e uma grande vermelhidão incendiando-lhe o rosto. Os seus olhos verdes brilhavam-lhe sob as pálpebras com um fulgor impercetível de cólera.

Basílio, anelante por ter desabafado a sua raiva, não atendeu no olhar frio e rancoroso que ela lhe dirigiu; e inclinando-se para a sua vítima, vencedor e desdenhoso, surpreendeu-lhe nos lábios um sorriso calmo de benevolência e de perdão.

— Que tens tu, víbora? — perguntou-lhe ele, puxando-lhe vivamente pela manga da blusa.

— Foste tu que me bateste, Vasia? — murmurou Malva humildemente.

Ele contemplava-a pasmado, sem saber que dizer. Fora-se-lhe a raiva diante daquela resignação dócil de mulher vencida.

— Amas-me então muito? — insinuou Malva.

Basílio estremeceu, ouvindo aquela voz onde palpitavam carícias de amor.

— Bom, agora já não há remédio — disse com aspeto sombrio. — Estás satisfeita?

— Vasia! E eu que julgava que tu já me não tinhas amor! Pensava comigo: agora que tem cá o filho abandonar-me-á.

E lançou uma gargalhada bastante ruidosa para ser natural.

— Tonta! — disse Basílio, sorrindo involuntariamente.

Sentia-se culpado, cheio de remorsos; mas recordando-se dos motivos porque a sovara, acrescentou rudemente:

— Isso não tem nada que ver com meu filho. Se te bati a culpa foi tua... Não te atrevesses a zombar de mim!

— Era de propósito para te experimentar! — E roçava-se por ele, provocantemente, como uma gata desejosa.

Basílio deitou um olhar para a barraca e apertou Malva nos braços, beijando-a.

— Vês o resultado da experiência?

— Deixá-lo — retorquiu Malva, revirando os olhos. — Amavas-me e bateste-me... hei de lembrar-me sempre...

E contemplando-o durante um momento, disse com intenção reservada:

— Nunca me há de esquecer!

Basílio interpretou estas palavras favoravelmente.

— Sim?

— Verás — respondeu Malva, serenamente e com um tremor impercetível nos lábios.

— Ah, minha querida — exclamou Basílio apertando-a de novo nos braços. — Sabes? Parece-me que te amo agora mais! Sinto-te mais minha!

As gaivotas voavam junto deles, sem receio, soltando os seus gritos agudos. A brisa do mar irrequieto e saltitante, refrescava-lhes os rostos afogueados pela alteração. O rumor monótono das ondas embalava-os como uma doce paz que descesse do alto.

— Ah, a vida! O que a vida é!! — exclamou Basílio, acariciando com uma expressão sonhadora o corpo da mulher que se lhe abandonava. — É assim o mundo. O que nos proíbem é o que mais tentações nos causa. Não imaginas: às vezes penso na vida e tenho um medo terrível, sobretudo de noite quando não posso dormir. Diante de mim estende-se a vastidão imensa da água; por cima o céu desdobra a sua cúpula azulada... E tudo o mais tão negro, tão pesado, dá-me a impressão de um monte de chumbo em cima do peito. Parece-me então que me anulo e torno num desprezível nada sobre a terra que se agita debaixo dos meus pés... Se nesses momentos estivesses comigo, ao menos seríamos dois.

Malva, com os olhos cerrados, extática, abraçara-se aos joelhos de Basílio. A cara rude e bondosa do guarda, tostada do sol e mordida do vento, inclinava-se para ela, roçando-lhe o colo branco e descoberto com a sua barba comprida. Malva não se movia. Era uma estátua onde somente arquejavam os peitos altos aos impulsos rítmicos da respiração. Basílio ia-lhe explicando quantas canseiras lhe custava aquela existência solitária de renegado, como eram dolorosas as suas longas noites de insónia e de pesadelos, cheias de ideias melancólicas sobre a vida. E beijando-lhe a boca demoradamente, sorvia-lhe os lábios com um desejo frenético de os devorar.

Permaneceram assim horas esquecidas, até que, atentando no sol que estava quase a esconder-se, Basílio exclamou de repente, com modos bruscos:

— É preciso tratar do chá. O nosso hóspede deve ter já acordado.

Malva separou-se dele com a indolência de uma gata lânguida. Basílio encaminhou-se apressadamente para a barraca enquanto a moça se levantava, experimentando, ao vê-lo afastar-se, uma agradável sensação de alívio.

Três horas depois estavam os três reunidos à mesa tomando o chá e palestrando em amável convívio sobre as coisas do passado.

O sol no poente acendia reflexos vermelhos na água. No horizonte as cristas das vagas resplandeciam como geleiras enormes em movimento.

Basílio, que bebia o chá por uma xícara de louça, interrogava o filho sobre as coisas do campo, evocando lentamente as suas recordações da vida na aldeia. Malva escutava as suas intermináveis tiradas sem o interromper.

— Todos os lavradores passam bem.

— Sim, menos mal, vivem como podem — replicou o rapaz.

— Nós, os rústicos, de pouco necessitamos. Um abrigo, o pão quotidiano e um pouco de aguardente ao domingo, quando há, é tudo quanto basta... Se eu tivesse cabeça não teria deixado a aldeia. Ali todos somos iguais e senhores de nós, enquanto aqui não se passa de um escravo.

— Mas aqui não há fome e o trabalho fatiga menos.

— Não é tanto assim. Às vezes os ossos doem-nos como se no-los estivessem triturando. Na aldeia há a vantagem de se trabalhar para nós; aqui trabalha-se sempre para os outros.

— Mas em compensação ganha-se mais — retorquiu Iakov.

Basílio reconhecia que o filho tinha razão. No campo a existência era incomparavelmente mais penosa; todavia não gostava que o filho lho fizesse sentir. Assim, replicou-lhe com severidade:

— Sabes quanto se ganha aqui? Na aldeia...

— É como se estivéssemos encerrados num cárcere — interrompeu Malva. — As mulheres sobretudo sofrem de uma maneira horrível.

— A vida da mulher é igual em toda a parte, como igual é a luz do sol — replicou Basílio mal humorado.

— A quem o dizes — respondeu Malva. — Na aldeia quer se queira quer não, não há outro remédio se não casar-se a gente. E uma mulher casada é uma escrava sem remissão. Tem que fiar, tem que tecer, tem que cuidar do gado e dos filhos... um inferno! E o que lhe resta depois disto? As pancadas do marido.

— Não julgues que é sempre assim!

— Pelo contrário, aqui eu não dependo de ninguém. Sou livre como uma gaivota. Vou para onde me apetece e ninguém tem direito de me tocar.

— E se te tocassem? — perguntou Basílio, irónico, aludindo à questão de há pouco.

— Haviam de mas pagar! — disse Malva com um estranho fulgor nos olhos.

Basílio sorriu bonacheironamente.

— És atrevida e fraca como todas as mulheres. No campo a mulher é necessária para a vida; aqui serve somente para dar prazer. — E acrescentou depois de um breve silêncio: — E para o pecado!...

Iakov desviou o sentido da conversa, lançando a vista para o largo e exclamando:

— Dir-se-ia que o mar não tem limites. — Puseram-se os três a contemplar a plaga imensa. — Ah! — exclamou de súbito o rapaz. — Se tudo isto fosse terra, leiva negra, para se poder lavrar!

— Isso é que é falar — disse o pai com um gesto de aprovação.

Parecia-lhe sentir nas palavras do filho esse entranhado amor pela terra que o arrastaria novamente para a aldeia, para fora das tentações irresistíveis.

— Perfeitamente, Iakov, é assim que deve falar um camponês. Toda a sua força provém da terra. É feliz enquanto está em contacto com ela, morre se porventura a deixa. O camponês sem terra é como uma árvore sem raízes: faz-se dele o que se quiser, porque já não vive, apodrece. Falta-lhe a antiga majestade de ser independente e livre; corta-se, serra-se, faz-se em pedaços, já não parece o mesmo... Tens razão, Iakov!

O mar reverberava os últimos reflexos do sol.

— Parece-me que sinto a alma fundir-se-me quando respiro em pleno sol.

— Deveras? — perguntou Basílio.

O olhar de Iakov perdia-se na amplidão da água. Durante muito tempo permaneceram silenciosos, absortos no crepúsculo que descia vagarosamente. O poente tomava as colorações roxas da refração, passando do sanguíneo vivaz ao alaranjado claro de oiro fosco. A praia cobria-se de sombras; tinham desaparecido completamente as gaivotas. Um silêncio pesado caía do alto onde começavam a tremeluzir as primeiras estrelas. As ondas rumorosas e vivas, impregnavam-se daquela sombra que começava a envolver os contornos das coisas.

— Porque estou eu ainda aqui? — disse Malva. — São horas de me retirar.

Basílio dirigiu um olhar vesgo para o filho.

— Que pressa é essa? — perguntou ele descontente. — Espera que a lua nasça.

— Faz-me alguma falta a lua? Não sou medrosa. Tampouco era a primeira vez que saía assim com a escuridão.

Iakov cerrava os olhos para ocultar um sorriso de ironia.

Malva observa-o também.

— Pois então, vai-te! — disse o velho de repente.

Malva ergueu-se, despediu-se em poucas palavras, tomando a ourela do mar para não se perder nas sombras. As ondas vinham beijar-lhe indolentemente os pés. No alto começavam a desenhar-se as constelações. A blusa clara de Malva era como uma pequenina mancha impercetível. Cerrara-se completamente a noite.


Oh, meu amor vem depressa

Gozar um pouco em meu peito...


Cantava Malva com voz clara e timbrada.

Parecia-lhe a Basílio que aquela voz tinha súplicas enternecidas que o chamavam, tentando-o. E cuspindo com raiva exclamou:

— É para me fazer criar água na boca, a maldita!

O vulto de Malva escurecia pouco a pouco no fundo sombrio.


Põe as mãos nos meus peitos

Que são como cisnes brancos.


E a voz desfalecia-lhe no mar.

— Ah — respirou Iakov, estendendo-se na areia e olhando na direção onde gemia a doce voz da moça.

— É provável que não aprendesse aquilo tratando das terras — insinuou Basílio com expressão contrariada.

Iakov, admirado, levantou-se, olhando de revés.

Absorvidas pelo marulho das ondas mal se percebiam as últimas palavras ardentes da canção:


Ai, terei de dormir só,

Que longa vai ser a noite.


— Que calma! — exclamou Basílio ofegante. — E é de noite... maldita região!

— É que a areia absorve o calor do sol — explicou o rapaz, vacilando entorpecido, ao erguer-se.

— Que é isso? Estás a brincar comigo? — observou-lhe rudemente o pai.

— Eu? De quê? — perguntou Iakov surpreendido.

— Não vejo nada que dê lugar a zombarias.

Calaram-se.

Através da sombra chegaram ainda, cheios de carinhosas promessas, os cantos longínquos da moça.


***


Quinze dias depois, também domingo, estava outra vez Basílio Legostev estirado na areia à espera que Malva viesse. Sorria o mar vibrante de luz àquela hora deserta. As ondas vinham de longe em vagalhões enormes desfazer-se na areia branca da praia, e deixando a espuma revolta das suas cristas, voltavam de novo a confundir-se no ar. A mesma paisagem se desenrolava diante dos olhos: o mar imenso, longínquo, e a ponta do cabo estendida como uma torre, onde as vagas escachoavam orladas de branco. Basílio, que da outra vez esperava Malva na certeza dela vir, olhava agora os longes do mar dominado por uma inquietação devorante. Tinha faltado no domingo anterior, não faltaria hoje com certeza. Confiava nela; todavia impacientava-se já pela demora, posto que fosse ainda cedo. Iakov não os estorvaria agora. Dois dias antes, passando com uns marítimos para recolher as redes, dissera-lhe que ia naquele domingo à cidade comprar umas blusas. Ganhava agora quinze rublos por mês. Trabalhava havia uma semana como pescador e adquirira já o aspeto forte e alegre dos que lidam com as fúrias do mar. Andava esfarrapado como os outros e com esse cheiro a salmoura característico dos operários das armações. Entretanto Basílio suspirava pensando nele.

«Resistirá o moço? Se se habitua ninguém é capaz de o arrastar daqui; e eu terei que...»

Deserto o mar. Somente as gaivotas rasavam a superfície da água em bandos ruidosos e alacres. No ponto em que o mar se separava do céu pela estreita faixa da areia da praia, apareciam de quando em quando, pontos negros que passavam e se desfaziam rapidamente como pequeninas manchas de fumo. Era já meio dia e nada de aparecer a barca. Os raios do sol ardentíssimos caíam quase perpendicularmente sobre o mar.

Duas gaivotas lutavam furiosamente e com tanta raiva que as penas lhes voavam em torno como uma chuva de pétalas brancas. Os seus pios agudos perturbavam o ruído monótono das ondas, tão constante e rítmico como se nascesse da união do mar com os beijos harmoniosos da luz. As duas aves ora desciam abraçadas revoluteando em giros incessantes, uma por debaixo da outra, ora se erguiam para o alto, enraivecidas e loucas, sem deixarem de perseguir-se. As outras, sem fazerem caso da luta, procuravam peixes, mergulhando as cabeças na água e agitando ruidosamente as asas quando a presa se contorcia nos seus bicos fortes.

Basílio entristecia, observando o furor das duas gaivotas. Porque se guerreavam assim? Não tinha o mar tantos e tantos peixes? Também da mesma sorte os homens procuravam estorvar-se uns aos outros. Bocado que um apanhasse era logo disputado por outro. Porque sucedia isto? Não chegava então a vida para todos? Para quê tirar a outrem aquilo que de direito lhe pertencia? E eram quase sempre as mulheres a origem destas disputas. Um homem possui uma mulher alheia quando há tantas igualmente belas e livres? Estava então isto organizado só para provocar a desordem?

O mar permanecia deserto. A mancha escura da barca tão conhecida e desejada não dava sinal de se querer mostrar.

— Não vens? — disse Basílio em voz alta increpando o mar. — Melhor, não preciso de ti para nada, mesmo para nada!

E cuspiu na direção da praia com o rosto assombreado de desespero e de raiva.

Sorria o mar...

Basílio dirigiu-se para a barraca com intenção de preparar a comida; como não sentisse fome voltou novamente para o seu posto de observação.

«Se ao menos viesse Serejka», pensou; e esforçava-se para evocar unicamente Serejka. «É um veneno, esse diabo nojento. Brinca de tudo e zomba de todos. É forte, sabe ler e tem corrido muito; mas é um grandessíssimo ralaço. Todas as mulheres o querem com exceção de Malva... E a maldita sem aparecer! Provavelmente odeia-me depois da sova que apanhou. Mas ela deve estar acostumada; outros lhe terão batido; e quem sabe, talvez não seja a última vez que lhe chegue...»

Assim, pensando no filho, em Serejka e mais amiudadas vezes em Malva, Basílio mordia-se de impaciência.

Aquela vaga inquietação a princípio convertera-se em suspeita que ele não tinha ânimo de confessar a si próprio.

Ia já escurecendo e nada se distinguia no horizonte.

Afinal, Malva não veio.

Ao atirar-se para cima da cama, Basílio maldisse a escravidão daquele serviço que lhe não deixara tempo para ir ao outro lado da costa. Meio adormecido sobressaltava-se parecendo-lhe ou vir o barulho dos remos cortando a água. Erguia-se, vinha para fora; mas tudo estava silencioso e quieto, o mar escuro como um grande mistério desolador. Só ao longe ardiam as fogueiras da armação.

— Deixa estar, grande velhaca, deixa estar! — ameaçou ele num rugido.

E adormeceu pesadamente.


***


Eis o que sucedera na armação.

Iakov levantara-se cedo, muito antes de nascer o sol, e dirigira-se à praia para se lavar, aspirando com delícia a brisa fresca da manhã, quando de repente avistou Malva sentada na proa de uma barcaça, penteando os fartos cabelos húmidos e com os pés suspensos sobre a água.

Tinha a blusa de percal entreaberta mostrando o seio branco e provocante.

As ondas faziam agitar a barca; e nos seus vaivéns demorados o corpo gentil da moça balouçava-se indolentemente cortando por vezes a água com os seus pés finos e descalços.

— Estiveste a banhar-te? — perguntou ele.

Malva olhava-o maliciosamente, continuando a pentear os cabelos.

— É verdade, banhei-me. Porque te levantaste tão cedo?

— E tu não te levantaste cedo também?

— Mas eu não sirvo de exemplo a ninguém.

Iakov não respondeu.

— Se vivesses como eu, estavas arranjado — acrescentou ela.

— Ih, que medo! — replicou o rapaz com ar de troça.

Depois, agachando-se, pôs-se a chapinar o rosto.

Com as mãos em concha tomava a água, atirando-a ruidosamente à cara, experimentando uma agradável sensação de frescura. Depois, enxugando-se à blusa, disse para Malva:

— Porque gostas tu tanto de me assustares?

— E tu, para que estás sempre a comer-me com os olhos?

Iakov, que não se lembrava de a ter olhado diferentemente das outras mulheres, replicou:

— É que te acho... apetitosa.

— Se teu pai chega a saber, verás como se te vai logo o apetite — ameaçou ela com um sorriso provocante nos olhos claros.

Iakov subiu para a barca.

— Que me importa a mim saber de meu pai? — exclamou ele aproximando-se-lhe. — Porventura comprou-te ele?

Pousava os olhos nos seus ombros roliços e brancos, sentindo subir-lhe o desejo por aquele seio descoberto, pelo seu corpo, por toda a sua pessoa fresca e saudável cheirando a salgado.

— Pareces-me um esturjão branco — disse ele com voz melíflua.

— Que não é para os teus dentes — sorriu ela maliciosamente.

Adiante alargava-se o mar imenso, iluminado pelos raios matutinos do sol. As ondas que a brisa fazia levantar embalavam a barca sonolentamente. Ao longe descobria-se o cabo arenoso como uma cicatriz no peito acetinado do mar. E mais distante, na linha do horizonte erguia-se um mastro esbelto em cuja extremidade flutuava um trapo vermelho.

— Sim, meu fedelho — começou Malva, sem o olhar — posto que ninguém me comprasse nem tão pouco pertença a teu pai a minha pele não é para os teus beiços. Só eu mando na minha pessoa. E não tentes amar-me porque não quero malquistar-te com teu pai. Nada de rixas, nada de disputas! Percebeste?

— Mas o que tenho eu feito? — perguntou ele com ar de surpresa. — Não te procurei nunca! Nunca te toquei com a ponta de um dedo!

— É porque não te atreves!

A expressão da moça era tão desdenhosa e irónica que Iakov sentiu revoltar-se nele o homem e o macho.

Fuzilou-lhe nos olhos uma chama de desafio.

— E porque não me atreveria? — chasqueou, aproximando-se dela.

— Não, não te atrevas a tocar-me.

— E o que farias se eu te tocasse?

— Experimenta!

— O que fazias, diz?

— Atirava-te um soco que ias para a água de cabeça para baixo.

O rapaz envolveu-a num longo olhar acariciador e estreitando-a de lado, cingiu-lhe fortemente os ombros e o peito.

O contacto daquele corpo ardente e robusto inflamou a moça, que sentiu como que um nó preso na garganta.

— Pronto! Bate-me agora, anda!

— Deixa-me, Iakov — disse ela serenamente, fazendo esforços para se voltar.

— E o mergulho prometido?

— Larga-me, senão... Toma cuidado.

— Bah!

E aconchegando-a mais a si, tocou-lhe os lábios ardentes na pele macia da face.

Ela desatou a rir às gargalhadas como a desafiá-lo. De repente, agarrando os braços de Iakov, deu um impulso tão grande que os dois corpos tombaram para diante como uma massa compacta, desaparecendo por debaixo de uma nuvem de espuma. Dali a pouco surgia impetuosamente a cabeça do rapaz, ao lado dela nas águas agitadas. Malva balanceava como uma gaivota à flor das ondas.

Iakov chapinava desesperadamente, praguejando com a voz rouca enquanto a moça, fazendo zaragata, nadava à roda dele, atirando-lhe água para o rosto tumefacto e esquivando-se sempre que os braços dele se lhe aproximavam do corpo.

— Oh, diabo — gritava Iakov — olha que me afogo... como a água amarga... Ai, que lá vou para o fundo.

Malva tinha-o deixado e nadava para a margem com grandes braçadas de homem.

Logo que chegou a terra tornou a subir para a barca, fazendo caretas a Iakov que nadava direito a ela. Os vestidos encharcados da moça desenhavam-lhe as formas elásticas, desde os ombros até aos joelhos, tão provocantemente que o rapaz, subindo para a barca, sentiu invadi-lo mais ardente e dominador o desejo de possuir aquele corpo de mulher que quase se lhe abandonava.

— Que estás tu para aí a arranhar! Salta de uma vez, minha foca — disse ela entre gargalhadas, ao mesmo tempo que lhe estendia uma das mãos, firmando-se com a outra no rebordo da barca.

Iakov agarrou-se-lhe à mão, gritando exaltadamente:

— Espera que mas vais pagar! Agora sou eu que te faço dar um mergulho.

Com a água até aos ombros puxou-a violentamente, arrastando-a para si. As ondas passavam-lhe por cima da cabeça, salpicando a cara da moça. Malva caiu-lhe em cima com todo o seu peso, fazendo-lhe perder o pé.

Agitaram-se como dois grandes peixes marulhando as águas estrepitosamente. O sol contemplava-os com o seu riso claro e penetrante. As vidraças da armação espalhavam reflexos ardentes, cegando-os. As ondas zombavam das fúrias dos seus braços robustos e as gaivotas, assustadas pelo insólito combate daqueles dois corpos humanos, voavam aos gritos sobre as suas cabeças que de vez em quando desapareciam debaixo das águas revoltas.

Finalmente, cansados, fartos de água salgada, dirigiram-se ambos para a margem, deitando-se na areia para enxugarem os corpos.

— Hi! — exclamou ele. — Que horror de água! E então que me fartei de beber nela!

— O mal abunda nesta terra... rapazes por exemplo. Quantos não há por aí?

Malva retorcia os cabelos compactos como uma massa dura.

— Foi por isso que escolheste um velho — insinuou ele tocando-lhe no cotovelo.

— Há velhos que valem mais do que os moços.

— Se o pai é bom, melhor será o filho.

— Deveras?

— As moças da aldeia diziam que eu não era nada feio.

— E o que percebem elas disso? Deveriam antes perguntar-me a mim...

— Tu não és moça!

Malva, vendo-o sorrir com modos insultantes, respondeu muito séria:

— Era-o antes de ter um filho.

— Bem dito e mal feito — exclamou ele, soltando uma gargalhada.

— Estúpido — respondeu ela bruscamente.

Iakov, intimidado, calou-se.

Permaneceram assim mais de meia hora, dando voltas na areia para se enxugarem.

Nas barcaças, construções vastas, mas cheias de imundície, começaram a despertar os operários. De longe assemelhavam-se todos, sujos, descalços... chegavam até à praia as suas vozes enrouquecidas; um deles malhava como pancadas tambor. Duas mulheres insultavam-se, gritando desalmadamente; ladravam cães.

— Começam a despertar — disse Iakov — e eu que queria estar cedo na cidade... Foi-se-me o tempo contigo...

— De mim não há nada bom a esperar — disse Malva entre séria e zombeteira.

— Que mania tens tu de assustares a gente!

— Verás o melhor quando teu pai...

— Qual pai nem meio pai! — replicou ele rudemente. — Estás sempre a ameaçar-me com o meu pai. Julgas que sou ainda alguma criança? Estou por acaso nalgum convento? Nem eu sou cego, nem ele é santo para se privar daquilo que lhe apetece. Deixa-me pois em paz!

Malva perguntou-lhe com curiosidade:

— O que tencionas tu fazer?

— Eu? — E alteando os ombros num arranco de quem se esforça por levantar um grande peso. — Eu sou capaz de muito. Já sacudi a poeira do campo.

— Não te custou muito — replicou ela com ironia.

— hei de desagarrar-te de meu pai, sabes?

— Tu?

— Julgas que tenho medo?

— Deveras?

— Olha — ameaçou ele, encolerizado por aquele desafio — não me provoques, senão...

— Senão, o quê? — perguntou ela com indiferença.

— Nada!

Iakov fez um gesto arrogante e pimpão, como de quem desdenha alguma coisa.

— Que valente! O inspetor tem um cão negro, já o viste? Pois pareces-te com ele. De longe ladra e faz que quer morder; ao pé roja-se e começa a ganir.

— Ah, sim — exclamou ele desvairado pelo insulto. — Espera que vais ver quem eu sou!

Malva ria-lhe na cara.

Avançava para eles, lentamente, um homenzarrão alto e teso, de musculatura saliente e grande cabeleira vermelha. A blusa da mesma cor, desatada na cintura, estava rota nas costas até quase ao pescoço; e para que as mangas o não estorvassem tinha-as arregaçadas até os ombros. As calças tinham mais buracos que pano. Trazia os pés descalços. No rosto coberto de sardas brilhavam-lhe dois olhos azuis, grandes e irrequietos; o nariz largo e arrebitado imprimia à sua expressão qualquer coisa de altivo e arrogante. Ao chegar junto deles soprou com grande ruído e pôs-se a examiná-los detidamente e com um ar desdenhoso.

— Aqui o Serejka bebeu ontem de mais e está sem cheta nos bolsos. Emprestas-me vinte kopeks? E fica já sabendo que não tos pago.

Ouvindo aquelas palavras, Iakov desatou às gargalhadas enquanto Malva examinava curiosamente o recém-chegado.

— Dá-mos e caso-os por vinte kopeks. Querem?

— Que engraçado! És porventura bispo?

— Imbecil! Em Uglitch fui criado de um bispo. Dá-me os vinte kopeks.

— Não quero casar-me — disse Iakov.

— É o mesmo, dá-mos! Não direi a teu pai que lhe andas a cortejar a dama — acrescentou Serejka, passando a língua pelos lábios ressequidos e gretados.

— Quem acreditaria em ti?

— Quando falo todos acreditam em mim; senão...

— Julgas que me metes medo?

— Pois então vou-te para cima — disse ele, revirando os olhos.

Iakov não queria dar-lhe os vinte kopeks. Tinham-no advertido que se acautelasse com aquele homem. Não era grande coisa o que ele exigia; mas se recusasse, ou armava desordem ou tinha forçosamente de lhos entregar. Optou pelo último caso, metendo as mãos no bolso para tirar o dinheiro.

— Assim mesmo é que é! — disse Serejka, estiraçando-se na areia. — Os prudentes obedecem-me sempre... E tu — disse ele, dirigindo-se a Malva — quando te resolves a casar comigo? Vê se te apressas que eu não gosto de esperar.

— Estás esfarrapado como um pelintra — disse Malva. — Manda concertar a farpeia, depois falaremos.

Serejka olhou tristemente os seus andrajos e disse:

— Dá-me uma saia das tuas; é melhor.

— Isso! Isso! — exclamou ela, rindo.

— Dá-me alguma usada se tiveres.

— Era melhor que comprasses umas calças.

— Prefiro antes beber quartilhos.

— Sim, é melhor isso — interveio Iakov, que tinha ainda na mão os vinte kopeks.

— O bispo afirma que o homem não deve preocupar-se exclusivamente com o corpo, mas atender também às aspirações da alma. Ora a minha alma pede-me aguardente e não calças. Dá-me os vinte kopeks... Não direi nada a teu pai.

— Pois diz-lhe — replicou decididamente o outro, deitando o olhar a Malva e tocando-lhe num ombro.

Serejka, que observara o movimento, cuspiu, dizendo com ar de ameaça:

— Não perderás pela demora, descansa! Na primeira ocasião... e há de ficar-te na memória.

— Porquê? — interrogou o outro com inquietação.

— Eu cá sei... Então, quando é que nos casamos, Malva?

— Diz-me primeiro como é possível fazê-lo e de que viveremos em seguida. Então pensarei nisso — respondeu ela muito séria.

Serejka ficou um momento perplexo contemplando o mar; depois, lambendo os beiços, disse:

— Ora! Não faremos nada, passearemos.

— E como se arranja o sustento?

— Bah! — disse Serejka com um gesto de desprendimento. — Raciocinas como minha mãe: «Porquê? Como?» Que aborrecimento vocês me causam! Sei-o eu porventura? Bom! Toca a beber uma pinga! — Levantou-se e partiu sem se despedir, acompanhado de um sorriso estranho de Malva e de um olhar hostil do rapaz.

— Que farsante! — exclamou ele, logo que o viu a distância. — Na minha aldeia não mandaria tanto o valentão. Já teria apanhado a sua conta. Aqui todos o temem.

Malva mediu-o dos pés à cabeça, replicando:

— Não sabes quanto ele vale.

— Destes a cinco kopeks o cento.

— Isso é o que tu vales — replicou ela com desdém. — Tem visto muitas terras, percorreu todo o mundo e não tem medo de ninguém.

— E eu tenho por acaso medo de alguém? — disse Iakov, fanfarrão.

Malva não respondeu. Observava os movimentos da barca que parecia desejosa de se atirar à água, indignada contra o cabo que a retinha à costa.

— Porque te não vais embora? — perguntou Malva.

— Para onde queres tu que eu vá?

— Não disseste que tencionavas ir à cidade?

— Já não vou.

— Então vai ter com teu pai.

— E tu?

— O quê?

— Vais também?

— Não.

— Pois eu também não vou.

— Ficarás aqui todo o dia agarrado às minhas saias?

— Enganas-te se pensas que preciso de ti.

E, levantando-se, afastou-se rapidamente. Enganava-se agora que a não tinha ao pé. Descontente, sentia ganas de romper com o pai. De onde lhe viera aquela má vontade? Não a sentira antes daquele encontro da madrugada com Malva. Pensava agora que o pai o tinha sempre maltratado, mas quando estivera longe, naquela língua de terra que mal se distinguia. Era certo que Malva temia o pai. Se assim não fosse mostrar-se-ia ela tão reservada? Como lhe apetecia o seu corpo depois daquela rude peleja na água!

Caminhava pela praia, olhando os que passavam com modos aborrecidos e uma vontade cega de altercar.

Serejka está sentado em cima de um tonel à sombra de uma barraca. Roça as unhas pelas cordas de uma balalaica e canta com gestos desvairados:


Procura municipal

Toma cuidado, atenção!

Que antes de me recolher

Terei caído no chão.


Rodeiam-no uns vinte operários esfarrapados, fedendo a marisco e salitre. Quatro mulheres imundas, de cócoras na areia bebem chá que vazam de uma cafeteira de ferro. Um operário, já embriagado, apesar da hora matutina, escabuja no chão, fazendo esforços desesperados para se levantar. Outra mulher, mais longe, chora e ri ao mesmo tempo; ouve-se o som irritante de um acordeão desafinado. Por toda a parte reluzem escamas de peixe.

Pela hora do meio-dia, Iakov, descobrindo um lugar assombreado por montões de barricas, deixou-se cair preguiçosamente, adormecendo até ao anoitecer. Mal despertou, pôs-se a caminho, distraidamente, ao acaso, sentindo contudo que alguma coisa desconhecida o atraía. Depois de vagabundear durante duas horas, foi encontrar Malva, longe da armação, junto a um bosque de salgueiros. Estava estendida de lado e tinha nas mãos um livro velho, muito estragado. Sorria, vendo aproximar-se Iakov.

— Oh, lá! Onde tu estás! — exclamou ele, sentando-se-lhe ao lado.

— Procuravas-me há muito?

— Se te procurava? Que ideia! — replicou ele, lembrando-se, mau grado seu, que uma força estranha o impelira para ali.

— Sabes ler? — perguntou ela.

— Sim, mas esqueci já há muito.

— Também eu... Andaste na escola?

— Sim, na municipal.

— Eu aprendi sozinha.

— Deveras?

— Sim. Fui em Astrakan cozinheira de um advogado. O filho dele ensinou-me alguma coisa.

— Então não aprendeste sozinha!

Malva perguntou:

— Desejas ler livros?

— Creio que sim.

— Pois eu também gostava... Pedi este volume à mulher do inspetor e tenho estado a lê-lo.

— O que é?

— A história de santo Aleixo, um santo varão.

E contou-lhe depois, com muita seriedade, que um rapazito, filho de pais nobres e ricos, abandonara-os uma vez, com risco da fortuna e da posição elevada que o esperava, deitando-se a peregrinar por esse mundo fora. Voltara muitos anos depois, esfarrapado e mendigo, dando-se a conhecer somente à hora da morte. Malva terminou perguntando carinhosamente a Iakov:

— Que ideia o levaria a fazer aquilo?

— Sei lá! — retorquiu ele com indiferença.

Em torno elevavam-se montículos de areia que o vento ora fazia, ora desfazia. Vinha da armação um rumor surdo e confuso. O sol que começava a pôr-se acendia reverberações nas neblinas densas do poente. Os salgueiros enfezados agitavam brandamente as folhas ao vento fresco do mar.

Malva permanecia calada, com o pensamento errante nalgum mundo misterioso.

— Porque não foste hoje ao cabo? — perguntou ele.

— Tens muito interesse em sabê-lo?

Iakov pegou numa folha e pôs-se a mastigá-la lentamente. Contemplava a jovem de soslaio com desejos de lhe dizer tudo o que sentia por ela; mas não sabia por onde começar.

— Olha, quando estou sozinha na presença de uma tarde tão formosa como esta, dá-me vontade de chorar e de cantar ao mesmo tempo. O pior é que não sei canções decentes e envergonha-me chorar.

Iakov escutou aquela voz acariciadora e meiga como ainda a não ouvira, e que lhe acendia cada vez mais os desejos.

— Ouve! — disse ele de repente, como impulsionado por uma força interior. — Escuta o que te vou dizer... Sou moço...

— Doido! Doido... — replicou Malva, abanando a cabeça.

— Bem! — retorquiu ele, animando-se. — Para que preciso de juízo? Sou doido, está bem. Mas escuta! Se tu quisesses...

— Não digas mais... Cala-te!... Não quero!

— Porquê?

— Porque não.

— Não sejas tonta — disse ele, abraçando-a suavemente. — Escuta...

— Vai-te, Iakov! — ordenou com voz ríspida. — Vai-te!

Iakov levantou-se e deitou a vista em redor.

— Bem, não queres? Acabou-se. Pouco se me dá. Mulheres não faltam. Crês que não há outras tão bonitas como tu?

— Não passas de um fraldiqueiro — exclamou ela, levantando-se e sacudindo a areia das saias.

Voltaram para a armação ao lado ou do outro, silenciosos, enterrando-se nas dunas de areia.

De repente, já próximo das barracas, Iakov agarrou-lhe bruscamente num braço.

— Porque me excitas? Que ganhas tu com isso?

— Deixa-me, anda!

Serejka saltou de trás de uma barraca, com a cabeleira ondulando.

— Pegaram-se? Folgo com isso.

— Vai para o diabo! — exclamou Malva.

Iakov postara-se diante do outro, fixando-o com ares provocantes. Permaneceram assim alguns momentos, frente a frente, como dois carneiros dispostos a acometerem-se. De súbito afastou-se cada um para seu lado sem trocarem palavra.

O mar estava tranquilo e avermelhado pelos clarões ardentes do poente em sangue. Ouvia-se um ruído surdo na armação. Uma voz arrastada de mulher bêbeda entoava com um gemido de histérica, uma canção destrambelhada e sem sentido:


Ta agarga, metagarga,

Matanitcka a mim

Bêbeda e espancada

Com os cabelos caídos...


Aquelas palavras asquerosas, fedendo a obscenidade, ouviam-se por toda a parte, saindo do fundo lôbrego das barracas à mistura com o cheiro infeto a sal e peixe podre.


***


Acordava suavemente o mar envolto ainda nas brumas espessas dos primeiros alvores da madrugada. No cabo os pescadores concertavam os tresmalhos de pesca, pendendo ainda de sono.

Aquela faina que tão habitual se lhes tornara, executavam-na eles com rapidez e silenciosamente.

A massa cinzenta das redes estendia-se desde a areia até à barca onde se amontoava em grandes rolos pesados.

Serejka, descoberto e quase nu, como de costume, estava sentado à proa dando ordens com a voz rouca da bebedeira da noite anterior. O vento agitava-lhe os farrapos da blusa e os molhos cabeludos do largo peito.

— Onde estão os remos verdes, Basílio? — perguntou uma voz.

O guarda, sombrio como um dia de outono, ia enrolando as redes na barca, de costas para Serejka, que lambia os beiços com ganas de beber.

— Tens aguardente? — perguntou.

— Sim! — disse Basílio num grunhido impercetível.

— Bem, então fico em terra.

— Solta a amarra! — comandou Serejka, pulando para fora da barca. — Vão vocês que eu fico. Procurem bem o vento para não empecilharem as redes... Cuidado, não se façam nós... Toca a andar!

Os pescadores saltaram para dentro da barca, erguendo os remos no ar.

— Ala!

Os remos caíram de jato, impelindo a embarcação para o largo.

— Uma! Duas! — comandava o timoneiro.

A barca assemelhava-se a uma enorme tartaruga agitando automaticamente as suas patas.

— Uma! Duas!

Na praia, cuidando das outras redes, tinham ficado Basílio, Serejka e mais três homens.

Um destes deitou-se na areia, dizendo:

— Se pudéssemos dormir um bocado!

Os outros imitaram-no, estiraçando-se os três na areia em um montão informe.

— Porque não vieste domingo passado? — perguntou Basílio ao companheiro.

— Não pude vir.

— Embebedaste-te?

— Não, estive entretido a observar os requebros de teu filho com a madrasta — declarou Serejka fleumático.

— Já é uma ocupação — replicou Basílio com um sorriso forçado. — Afinal de contas já não são ambos crianças!

— Pior ainda. Ele é um imbecil; ela é uma cabra.

— Porque lhe chamas isso? Acha-la doida? — perguntou Basílio com o olhar inflamado.

— Sim.

— E desde quando?

— Sempre a tenho considerado como uma tresloucada. Crê, irmão Basílio, que a sua alma não é para aquele corpo. Compreendes o que quero dizer?

— Parece-me compreender... É a sua alma que é vil.

— Vil? Ah! Tu não percebes nada da vida. És como os mais. Tenha a mulher uns peitos grandes, que importa o caráter? Ora o que distingue os seres humanos é o caráter. Uma mulher sem caráter é como um pão sem sal. Que prazer pode dar uma balalaica sem cordas? Estúpido!

— Estás ainda bêbedo, meu amigo.

Basílio tinha vontade de interrogá-lo acerca do que ele sabia de Malva e Iakov. Faltava-lhe, porém, a coragem para se lhe dirigir abruptamente.

Entrando na barraca ofereceu-lhe um grande copo de aguardente pura, na esperança de que ele se abrisse em confidências sobre o caso.

Mas Serejka, depois de beber, tossiu e sentou-se à porta da barraca espreguiçando-se.

— Quando bebo parece-me que engulo fogo — disse ele.

— A verdade é que tu sabes beber — replicou Basílio, admirado da presteza com que ele emborcava o copo de aguardente.

— Sim — replicou o outro abanando a cabeça. E enxugando os bigodes com as costas das mãos, acrescentou doutoralmente: — É verdade, sei pegar num copo... Tudo faço com limpeza e sem vacilar, sem titubear... Caminhar direito, sempre em frente, eis a questão. Pouco importa onde se vá dar... Não se pode sair da terra...

— Desejavas ir ao Cáucaso? — perguntou Basílio para o fazer dar à língua.

— Irei quando me der na gana. Desejando uma coisa, é dito e feito! Uma, duas, ala! Obstáculo que se me depare salto por cima dele... É muito simples.

— Muito simples... O pior é que a falta de senso pode causar inconvenientes.

— Como tu és inteligente e esperto!... Quantas vezes te açoitaram em público? — replicou Serejka maliciosamente.

Basílio não respondeu.

— Muitas vezes, talvez... E de que te valeu o teu bom senso? Olha, cá estou eu que não me preocupo com coisa nenhuma, faço aquilo que muito bem entendo, e com certeza hei de ir parar mais longe que tu.

— É possível. Talvez consigas ir parar à Sibéria.

— Ora aí está! É isso mesmo — rompeu Serejka às gargalhadas.

O maldito não se embebedava como Basílio supunha. Não lhe queria dar mais aguardente; mas Serejka, na dúvida, emborcou novo copo sem esperar que o camarada lho oferecesse.

— Porque não me perguntas por Malva?

— Que tenho eu com ela? — respondeu Basílio, aparentando indiferença.

— Como não te apareceu no domingo devias procurar saber o que era feito dela. Bem sei que tens ciúmes.

— Ora! Há muitas como ela.

— Muitas? Deveras? Vocês são todos uns labregos. Acham tão doce o mel como o alcatrão!

— Porque estás tu agora a defendê-la. Tens ideia de ma propores para casamento? Por fortuna que há já muito que me casei com ela — disse Basílio com ironia.

Serejka, depois de alguns momentos de silêncio, colocou-lhe a mão no ombro e pôs-se-lhe a falar com intimidade.

— Julgas que não sei? Ela está amuada contigo. Não queria desconsolar-te; mas como vejo que teu filho Iakov lhe anda a arrastar a asa, julgo um dever prevenir-te. Chega-lhe, ouviste? Senão chego-lhe eu! Tu és robusto, posto que um pouco estúpido... Olha que não te tenho nunca estorvado!

— Pensarás nisso agora? — perguntou Basílio surdamente.

— Se tivesse essa ideia, podes ter a certeza de que já os tinha separado um do outro. Importa-me lá saber dela!

Basílio olhava-o ainda com desconfiança. Compreendia perfeitamente diante daqueles modos francos que Serejka nenhum caso faria de Malva.

Todavia acrescentou:

— Mas não deixas de te interessar por ela. Porque é isso?

— Talvez o diabo o saiba... Afinal de contas, é uma mulher... picante. Distrai-me e às vezes... causa-me lástima.

— Se fosse honesta tinhas motivo para lastimá-la. Mesmo assim...

O outro não respondera, entretido a observar as voltas que a barca dava para atracar à margem. O rosto vermelho de Serejka tinha uma expressão de sinceridade comovente.

— Tens razão — disse Basílio — é uma pobre moça com a diferença de ser um pouco leve de cabeça, como tu dizes... Ah, Iakov, terás notícias minhas, cão!

— Não gosto dele, cheira a torrão, que é coisa com que embirro.

— E o velhaco anda atrás dela? — perguntou Basílio entre dentes e dando puxões à barba.

— Julgo que sim. Verás tu como ele se coloca entre vocês à laia de tabique.

— Mas é que o racho se ele se atreve a tanto. Aconselha-o que não experimente.

Subitamente, abriu-se no horizonte um grande leque de luz emergindo acima da superfície do mar. Através do marulho das ondas chegou uma voz longínqua vinda da barca.

— Puxem!

— Eh, lá! Arriba! À corda — comandou Serejka, levantando-se.

Os cinco homens puxaram rapidamente a rede. A outra ponta estava presa na barca que corria velozmente sobre as ondas, balanceando a verga para a direita e para a esquerda. O sol deslumbrante e soberbo resplandecia sobre o mar como um grande globo de ouro.

— Se encontrares Iakov, não te esqueças de lhe dizer que venha ver-me — recomendou Basílio.

— Sim, fica descansado.

A barca abicou à margem, deitando-se os pescadores à água para acabarem de puxar as redes. Os dois grupos iam-se aproximando pouco a pouco, reunindo os extremos da rede, cujas boias de cortiça flutuavam, formando um semicírculo regular.


***


Ao anoitecer daquele dia, quando já os operários da armação tinham acabado de cear, Malva, cheia de cansaço e de aborrecimento, sentara-se numa barca velha de quilha para cima, contemplando o mar que começava a envolver-se nas sombras do crepúsculo.

Brilhava ao longe uma fogueira que Malva adivinhava ser de Basílio, e onde os seus olhos pousavam arrastados involuntariamente para aquele clarão. A chama perdida no horizonte erguia-se umas vezes para o ar, soprada pela brisa, outras vezes chegava quase a desaparecer, tornando-se um pequenino ponto luminoso.

Sentia-se oprimida diante daquele ponto vermelho abandonado no deserto, palpitando como uma coisa viva entre o infatigável murmúrio das ondas.

— Que fazes tu aqui? — perguntou a voz de Serejka, erguendo-se detrás dela.

— Que tens tu com isso? — replicou ela secamente.

— É curioso — monologou ele, acendendo um cigarro e sentando-se na barca ao lado dela.

Percebendo a indisposição de Malva, disse-lhe, amaciando a fala:

— Que mulher extraordinária que tu és! Tão depressa foges de todos como te entregas a qualquer que te apareça.

— A ti talvez!

— A mim não, mas Iakov que o diga.

— Mete-te inveja?

— Olha, queres que te fale claro?

— Pois fala — respondeu ela.

— Rompeste com Basílio?

— Não sei. Porque mo perguntas?

— Por curiosidade.

— Estou zangada com ele.

— Porquê?

— Bateu-me.

— A sério, bateu-te? E tu consentiste? Essa não está má! — exclamou ele pasmado, fixando com insistência o rosto de Malva.

— Se eu quisesse não me tinha batido — afirmou ela com expressão sombria.

— Então como te arranjaste?

— Fui eu que não quis defender-me.

— Tanto estimas esse gato cinzento — disse Serejka, atirando um punhado de areia. — E eu a julgar que tu valias mais do que ele!

— Não quero nenhum de vocês — disse Malva com indiferença, revolvendo a areia com as mãos.

— Estás a mentir.

— Para que havia de mentir? — perguntou ela, soberba.

Serejka compreendeu pelo timbre da sua voz que efetivamente Malva falava verdade.

— Se não gostas dele para que o deixaste bater-te?

— Que sei eu... Olha, deixa-me sossegada!

— Tem graça — disse Serejka pensativo.

Calaram-se. A noite aproximava-se, estendendo as suas sombras pelo mar. As ondas bramiam com força.

A fogueira extinguira-se completamente. Serejka continuava a examinar a jovem, cujos olhos se fixavam insistentemente no sítio longínquo onde o clarão brilhava há pouco.

— Escuta — disse ele. — Sabes porventura o que queres?

— Se o soubesse! — replicou ela com amargura.

— Não sabes. Pois é mau isso — afirmou Serejka sentenciosamente. — Eu cá sei-o sempre. — E acrescentou com um acento de tristeza: — Mas raramente sucede que eu queira alguma coisa.

— Mas raramente sucede que eu queira alguma coisa — repetiu Malva. — Quero... o quê? Nem eu sei. Às vezes quisera meter-me numa barca e perder-me ao longe na vastidão infinita das ondas. Outras vezes desejaria que os homens se transformassem em piões e dessem voltas sem descanso. Alegrar-me-ia vê-los assim. E tão depressa sinto lástima de todos, sobretudo de mim própria, como sinto desejos de matar todos e a mim própria dar uma morte horrível. Quero rir e aborreço-me, porque, afinal, todos os homens não merecem um pouco de atenção; são volúveis como piões.

— De madeira podre — acrescentou Serejka. — Bem dizia eu: Não és gato, nem pássaro, nem pez... És um pouco de tudo... Em nada te pareces com as outras mulheres.

— Graças a Deus — replicou ela, sorrindo.

À sua esquerda, por detrás de uma cordilheira de colinas arenosas apareceu subitamente a lua, inundando de um jato luminoso a planície deserta.

Redonda e suave, erguia-se majestosamente no azul, empalidecendo as estrelas com a sua claridade melancólica.

— Pensas de mais, eis o teu mal — sentenciou Serejka com convicção, atirando a ponta do cigarro. — Quando se pensa demasiadamente, aborrece-se a gente de viver... É preciso estar-se sempre em ação e sentir-se a vida girar em torno de nós. Agita-te para todos os lados, move-te em todas as direções, não repouses um momento e verás como te não aborreces.

Malva replicou:

— Talvez seja verdade o que tu dizes. Às vezes parece-me que me divertiria muito, se pusesse fogo às barracas.

— Assim! Assim! — exclamou Serejka entusiasmado, dando-lhe palmadas no ombro. — Era isso o que eu queria dizer... Nós dois podíamos fazer uma partidinha engraçada, queres?

— O que é? — perguntou Malva com animação.

— Aqueceste bem Iakov?

— Arde que nem uma fogueira.

— Pois atiça-o contra o pai. Verás o bonito! Vão agarrar-se como dois ursos... Açula o velho e depois o outro, e toca a lançá-los para a dança!

Malva atentava naquele rosto comido de sardas e que, iluminado pela lua, parecia agora com menos manchas.

Não sentia ódio nem rancor; animava-se, porém, pensando nas eventualidades daquela aventura.

— Porque os odeias tu? — perguntou ela.

— Eu? O Basílio é um bom homem, mas o filho não vale nada. Embirro com os labregos: são todos matreiros. Fingem-se desgraçados para lhes darem esmolas. Fui cocheiro de vereador. Tive ocasião de conhecer muitos camponeses. Vagabundeei muito tempo. Quando chegava a um povo perguntavam-me logo: Quem és? O que fazes? Deixa cá ver o teu passaporte! Bateram-me muitas vezes sem motivo. Prenderam-me injustamente. Lastimavam-se a dizer que não podem viver possuindo muitas vezes terras. Que mal lhes tinha eu feito?

— Não és camponês?

— Sou cidadão do Uglitch — replicou Serejka com orgulho.

— Pois eu sou de Pavlicha — disse por sua vez Malva.

— Assim ninguém me protege, ao passo que os camponeses têm o município que os auxilia.

— O que é um município?

— Um município? O diabo me leve se eu sei que isso é! É o conselho deles... Mas deixemos isso. Falemos antes do que nos interessa. Queres preparar esse enredo? Não resultará mal nenhum. É só para vê-los pegados um pouco. O Basílio bateu-te? Pois bem, o filho que lhe devolva as pancadas com que te mimoseou.

— E porque não? — disse Malva, sorrindo com a ideia.

— E que belo é verem-se duas pessoas engalfinhadas só por uma palavra, só por um olhar nosso! Basta dar um pouco à língua.

Serejka instigava-a, mostrando-lhe os encantos do papel que ela representaria naquela contenda entre pai e filho.

Às vezes falava meio sério, meio zombeteiro, chegando a entusiasmar-se pelo que dizia.

— Ah, se eu fosse uma mulher formosa que zaragata não armava agora! — concluiu ele. E apertando a cabeça nas mãos fechou os olhos e calou-se.

Ia já a lua alta quando se separaram os dois.

A noite tornava-se cada vez mais encantadora. A lua faiscava cintilações, ardentes, formando como que uma estrada luminosa, vinda do seio do mar até à margem onde se desfaziam as ondas. As barracas longínquas, sob os vapores brancos da noite semelhavam esquifes negros repousando. Os salgueiros agitavam levemente as suas folhas. E um silêncio enorme, impregnado de luz, caía sobre as coisas como a bênção serena de um Deus.


***


Pai e filho estavam ambos sentados na barraca em frente um do outro, bebendo aguardente que o último trouxera para amansar o velho. Serejka prevenira Iakov que o pai estava danado com ele por causa de Malva, ameaçando desancá-lo se a moça se atrevesse a dar-lhe trela. Iakov suspeitava e Serejka confirmara que Malva o não queria com medo de alguma sova tremenda.

Serejka fartara-se de caçoar com ele: «Olha que o velho chega-te deveras. Puxa-te as orelhas até ficarem do comprimento de um palmo. O melhor que te pode acontecer é não te encontrares com ele.»

As palavras do pele vermelha tinham provocado em Iakov um grande ressentimento contra seu pai. Era por causa dele que Malva não queria entregar-se-lhe. Ora lhe prometia, ora lhe negava, acirrando-lhe os desejos até à loucura.

Iakov resolveu-se a ir ter com o pai. Afigurava-se-lhe um obstáculo erguido no seu caminho que era necessário saltar, desse por onde desse. Sentindo-se forte contra o seu adversário tinha tentações de lhe dizer: «Toca-me, anda, se te atreves!»

Tinham já bebido três copos cada um sem tocarem mormente em assunto de importância, limitando-se a insignificantes observações acerca da vida que se levava na armação. Sozinhos à beira de água, acumulavam no interior um ódio que ambos adivinhavam estar prestes a rebentar.

As esteiras das barracas entrechocavam-se agitadas pelo vento, e o trapo vermelho, que flutuava na extremidade do mastro, parecia murmurar alguma coisa incompreensível. Aqueles ruídos eram tímidos e vagos como o cicio de uma reza. As ondas mugiam soltas e impacientes.

— Continua a embebedar-se esse diabo do Serejka? — perguntou Basílio bruscamente.

— Todas as noites apanha a sua tachada — respondeu Iakov, deitando aguardente no copo do pai.

— há de acabar mal. Eis a que nos leva uma vida desregrada. E tu vais pelo mesmo caminho!

O filho, que detestava Serejka, replicou:

— Nem quero ter parecenças com ele.

— Não? — pronunciou Basílio de sobrecenho carregado. — Eu cá sei o que digo... Há quanto tempo estás tu aqui? Há já dois meses. Brevemente tens que te pôr a caminho. Quanto poupaste já?

— Em tão pouco tempo não me é possível juntar dinheiro — objetou o moço judiciosamente.

— Estás-te a tornar fino... O melhor que tens a fazer é voltares para a aldeia.

Iakov sorriu.

— Que significa esse riso? — perguntou Basílio irritado pela fleuma do rapaz. — Então tu zombas do que te diz teu pai? Julgas-te já livre e senhor de ti? Tenho de pôr-te novamente a cabeçada.

O rapaz encheu o copo e bebeu. Aquelas palavras grosseiras ofendiam-no, despertando nele uma cólera súbita. Mal se continha ocultando a raiva para não enfurecer o pai. Começava a sentir-se intimidado diante daquele rosto severo e ameaçador.

Basílio acabou por desesperar completamente, notando que o filho não lhe deitara aguardente.

— Então teu pai diz-te «Vai para casa!» e tu pões-te a rir das suas palavras? Bem! Não tenho outro remédio senão falar-te de outra maneira. Pede a féria no sábado e marcha! Ouviste?

— Não vou — disse Iakov com firmeza.

— O quê? — exclamou Basílio, apoiando as mãos no tonel e levantando-se. — Ouviste o que te disse? Ah, cão, que ladras contra teu pai! Esqueceste-te que posso fazer de ti o que quiser?

Congestionava-se-lhe o rosto.

— Não esqueci nada — replicou Iakov humilde. — E tu não esqueceste porventura nada?

— Pois tu atreves-te a dar-me lições de moral? Espera que eu te governo.

Iakov mal teve tempo de suster a mão do pai, que desabava sobre a sua cabeça. Sentindo invadi-lo uma cólera selvagem, rugiu por entre os dentes:

— Não me toques! Olha que não estamos na aldeia!

— Cala-te! Em toda a parte sou teu pai!

— Aqui não me poderás açoitar; cantam as coisas de outra maneira — disse Iakov levantando-se.

Estavam diante um do outro como dois tigres medindo-se. Basílio com os olhos injetados de sangue atirou um copo à cara do filho, que se afastou rapidamente, adivinhando os movimentos do velho. Entre um e outro erguia-se o tonel que servia de mesa.

— Pensas que não sou capaz de te zurzir? — regougou Basílio com voz vibrante, agachando-se à semelhança de um gato para preparar o salto.

— Aqui todos somos iguais. Eu sou um operário, tu és outro.

— Ah, sim?!

— É assim mesmo. Porque me ameaças?

— Julgas que eu te não percebo? Foste tu que começaste a implicar...

Basílio soltou um grito, levantando o braço tão rapidamente que Iakov não teve tempo de desviar-se. Um formidável murro caiu na cabeça do rapaz, que vacilou como que atordoado, recuando.

— Espera! — continuava o velho, cerrando os punhos.

— Espera tu!

— Pois atreves-te a falar assim a teu pai, ladrão?

Começou a luta dentro da barraca. Iakov, pálido e coberto de suor, com os dentes cerrados e os olhos fuzilando, recuava lentamente às arremetidas do pai, que bramia de raiva como um javali danado.

— Basta, basta! — gritava Iakov, contendo-se e saltando para fora da barraca.

O velho adiantava-se, rugindo e descarregando golpes que Iakov aparava nos braços.

— Toma! Toma!

Iakov zombava afinal daquela fúria, sentindo-se mais forte do que o pai.

— Espera, espera um pouco!

O moço de um pulo chegou até à beira da água. Basílio seguia-o com a cabeça baixa e os braços estendidos; mas, encontrando qualquer obstáculo, deixou-se cair de bruços. Sentou-se com as mãos apoiadas na areia. Completamente extenuado por tamanhos esforços, pôs-se a gemer com raiva impotente, sentindo a dolorosa consciência da sua fraqueza.

— Maldito sejas! — exclamou com a boca suja de espuma.

Iakov recostara-se na barca, contemplando-o com atenção. Apalpava a cabeça, enxugando o suor que lhe escorria do peito branco e luzente como se estivesse humedecido de azeite. Sentia desprezo por aquele homem derrubado que ameaçava baldadamente e sorria com essa indulgência ofensiva que sente o forte pelo mais fraco.

— Raios te partam! Maldito sejas tu para sempre!

Basílio lançou aquela maldição com tanta ânsia e com tanta força, que os olhos do moço involuntariamente se dirigiram para a armação como se ali pudessem tê-lo ouvido.

Depois, cuspindo desdenhosamente, disse para o pai:

— Grita! Grita com mais força! Julgas que me metes medo? Desembucha para aí tudo o que tiveres a dizer.

— Cala-te! Vai-te para longe da minha vista!

— Não voltarei para o campo! hei de passar aqui o inverno — replicou o rapaz sem se importar com as suas palavras e espreitando-lhe todos os movimentos. — Está-se aqui melhor. O trabalho fatiga menos e há muito mais liberdade... Ali mandarias em mim como num escravo: experimenta fazê-lo aqui.

Fez-lhe uma carantonha tão provocante que Basílio, recobrando o ânimo, pegou num remo, deitando a correr para ele.

— Fazes isso a teu pai? Espera aí! Ah, hei de matar-te!

Quando chegou junto da barca, já Iakov estava longe. Atirando-lhe o remo num último esforço, deixou-se cair junto da barca, arranhando furiosamente a madeira, enquanto o outro lhe gritava de longe:

— Pois não te envergonhas disto? Um velho pôr-se em tal estado por causa de uma mulher perdida... Não, não vou para a aldeia! Vai tu, se quiseres... Nenhuma falta ficas fazendo...

— Cala-te, Iakov — ordenou Basílio, cobrindo as palavras do filho. — hei de matar-te, cão!

Iakov afastava-se lentamente, rindo daquelas ameaças vãs.

Basílio olhava-o como louco. Via o seu vulto desaparecer pouco a pouco por detrás das dunas. Primeiro as pernas, depois os ombros, finalmente a cabeça. Numa curva apareceu novamente Iakov já muito longe, atirando-lhe palavras que o outro não entendia.

— Maldito! Maldito sejas para sempre!

Iakov fez um último gesto, tornando a ocultar-se por detrás dos grandes montes de areia.

Basílio ficou ainda por muito tempo com o olhar fixo no ponto onde o filho desaparecera. Depois levantou-se, vacilante e trémulo, sentindo os membros pesados e doridos. Entrando na barraca viu que tudo ali ficara em desordem. Sacou a garrafa de aguardente oculta numa ruma de sacos, aproximando-a da boca com sofreguidão. A garrafa tremia-lhe nos dentes, entornando o líquido pela barba e ao longo do peito descoberto. O álcool parecia-lhe água.

Embrulhavam-se-lhe as ideias, palpitava-lhe o coração desordenadamente e doíam-lhe as costas como se lhe tivessem malhado em cima.

— Estou velho! Já não presto para nada — murmurou ele profundamente desalentado. Deixou-se cair na areia junto da porta da barraca. Diante dele estendia-se o mar a perder de vista, forte e soberbo, com o peito arquejante mordido do sol.

Riam as ondas murmuradoras e inquietas. Basílio contemplava a vasta superfície das águas, lembrando-se das palavras do filho: «Se tudo aquilo fosse terra para lavrar...» Friccionou o peito com força e, lançando a vista em redor, suspirou profundamente, ao mesmo tempo que o invadia um sentimento horrível de tédio e de amargura. Inclinava-se para a terra como se tivesse um grande fardo sobre as costas. Tossiu e persignou-se, olhando o céu, absorto num pensamento estranho que lhe surgiu.

Porque se metera ele com uma perdida, abandonando a mulher com quem vivera honradamente mais de quinze anos?

Era agora o Senhor que castigava com a rebeldia do filho! Sim, era o castigo do Senhor! O filho desprezara-o, arrancara-lhe o coração e nem era bastante a morte para lhe fazer pagar as suas injúrias. E tudo por uma prostituta! Que pecado tão grande esquecer a mulher, o filho, por causa dela!

E o senhor, na sua justa cólera, lembrara-lhe o seu crime, servindo-se do filho para o ferir em pleno peito. Sim, era justo! Era o castigo do Senhor!

O sol desaparecera por detrás da curva das águas. Um crepúsculo azulado descia suavemente, envolvendo as coisas de mistério.

A brisa acariciava o rosto do velho inundado de pranto e transfigurado pelo arrependimento numa súbita revelação inexplicável.


***


Iakov partiu no dia seguinte com um grupo de marinheiros. Iam pescar o esturjão para o mar alto a bordo de uma barca que um vapor rebocava. Ao cabo de cinco dias, veio sozinho a terra buscar mantimentos num barco de vela, desembarcando à hora do meio-dia quando os operários estavam a descansar. Fazia um calor horrível. A areia e as espinhas feriam-lhe os pés, arrependendo-se agora de ter vindo descalço. Não se decidia a voltar para o barco, sentindo um grande desejo de ver Malva. Durante as longas horas que passara no mar, tinha-se lembrado muitas vezes dela. Ansiava por saber se ela se tinha tornado a encontrar com o pai, e o que teriam ambos dito dele. Talvez o velho a tivesse zurzido! Melhor... Estaria mais dócil e com menos vontade de provocar.

Dormitava a armação. As barracas, com as janelas abertas de par-em-par, pareciam não poder com tanto calor. Nas oficinas, o inspetor tosava um rapazelho. Ouviam-se vozes cochichando por detrás dos montões de barricas.

Iakov dirigiu-se para aquele lado. Parecia-lhe ter ouvido a voz de Malva. Deteve-se, porém, dando com a vista num grupo de pessoas.

À sombra estiraçava-se Serejka com as mãos cruzadas por baixo da nuca; a seu lado conversavam Basílio e Malva.

Iakov pensou: «Porque estará ele aqui? Abandonaria o lugar para vigiá-la melhor? Velho gaiteiro! Se minha mãe soubesse de todos estes enredos! Não era talvez melhor ir-se embora?»

— É isso — dizia Serejka. — Temos de nos despedir. Estás então disposto a ir arranhar nos torrões?

Iakov estremeceu de alegria.

— É verdade, vou-me embora! — respondeu o velho.

Ouvindo aquelas palavras, o moço apresentou-se.

— Bons dias!

O pai deitou-lhe um olhar sereno. Malva ficou indiferente enquanto Serejka, estendendo uma mão, disse, adoçando a voz:

— Eis o nosso querido Iakov que chega de longes terras! — E acrescentou depois em tom natural: — Temos que esfolá-lo vivo e fazer tambores da pele.

Malva sorria suavemente.

— Que calor! — bufou o rapaz, sentando-se ao lado dela.

Basílio contemplava-o de novo, mau grado seu.

— Desde ontem que te espero aqui, Iakov. O inspetor disse-me que tu vinhas hoje.

Tinha a voz mais fraca e a figura completamente abatida.

— Vim buscar provisões — disse ele pedindo um cigarro a Serejka.

— Não dou tabaco a imbecis — replicou Serejka.

— Volto para casa, Iakov — disse Basílio com voz grave, remexendo a areia.

— Porquê?

— Não te importes. E tu... ficas?

— Se fico? O que faríamos os dois em casa?

— Bem, como quiseres. Já não és criança. Mas lembra-te que mal posso trabalhar: perdi o hábito. Lembra-te também de tua mãe.

Custava-lhe muito falar. Mal pronunciava as palavras, afagando a barba com as mãos trémulas.

Malva olhava para ele sem dizer nada. Serejka observava de revés o moço que tinha os olhos baixos para ocultar o seu contentamento.

— Não te esqueças de tua mãe, Iakov! Lembra-te de que és tu o seu único filho.

— Sim, bem o sei — replicou o moço, encolhendo os ombros.

— Folgo de que o saibas — disse Basílio com um olhar de desconfiança. — Que o não esqueças nunca!

— Está bem — replicou Iakov.

Basílio suspirou profundamente. Estiveram momentos sem trocar palavra quando Malva lembrou de repente:

— Está prestes a tocar a sineta.

— Bem, vou-me embora! — disse Basílio, levantando-se. Os outros imitaram-no. — Adeus, Serejka... Se fores alguma vez ao Volga, não te esqueças de ir ver-me. Distrito de Simbirks, povo de Maslo, próximo de Nicolo-Likovsk.

— Está dito — respondeu Serejka.

E apertou entre as suas a mão que aquele velho lhe estendera inchada de veias e coberta de pelos vermelhos. Sorriu ao ver a expressão contristada de Basílio.

— Nicolo-Likovsk é uma vila muito conhecida. Fica a quatro verstas da minha aldeia — explicava Basílio.

— Bem, irei até lá quando passar por esses sítios.

— Adeus.

— Adeus, amigo.

— Adeus, Malva! — murmurou o velho, desviando os olhos.

Malva, limpando os lábios, deitou-lhe os braços ao pescoço, beijando-o três vezes na boca e nas faces.

Basílio perturbava-se, murmurando palavras confusas. Iakov, de cabeça baixa, dissimulava um sorriso de ironia.

Serejka disse-lhe:

— Vais apanhar muito calor, Basílio.

— Não importa... Adeus, Iakov.

— Adeus.

Estavam diante um do outro confrangidos, sem saberem o que dizer. Aquela triste palavra «adeus» tantas vezes pronunciada despertou na alma do rapaz um sentimento de compaixão que não sabia como manifestar. Beijá-lo-ia como Malva ou limitar-se-ia a estender-lhe a mão como fizera Serejka?

Aquele embaraço fazia sofrer o velho, que se sentia envergonhado, lembrando-se da cena do cabo e dos beijos de Malva.

— Pensa em tua mãe!

— Sim, já sei — replicou o moço com expressão agradável. — Não tenhas receio...

— Sejam felizes. Que Deus os proteja... Não guardem ressentimentos de mim. Serejka, a cafeteira está enterrada na areia ao pé da porta da barraca.

— Para que diabo quer ele a cafeteira? — perguntou bruscamente Iakov.

— Fica no cabo em meu lugar — explicou Basílio.

Iakov deitou a Serejka um olhar invejoso e, fixando Malva, baixou subitamente os olhos.

— Adeus, irmãos, adeus!

Malva saiu atrás dele.

— Acompanho-te um pouco.

Serejka estendeu-se no chão, agarrando numa perna de Iakov, que começou fazendo esforços por se soltar.

Serejka apanhou-lhe a outra perna.

— Senta-te aqui.

— Que maluquice é essa?

— Não é maluquice; senta-te!

Iakov obedeceu, perguntando por entre os dentes:

— O que queres tu?

— Espera... Deixa-me refletir primeiro. Depois falarei...

O moço submeteu-se por fim com docilidade. Malva e Basílio afastaram-se silenciosos e comovidos. Os olhos de Malva tinham um brilho estranho. Basílio, dominado por sombrias apreensões, caminhava aos solavancos, enterrando-se desastradamente na areia.

— Vasia?

— O que é?

— Fui eu que te malquistei com teu filho, mas não foi propositadamente, crê. Poderiam ter vivido aqui ambos em paz — disse ela com voz tranquila, sem sombra de arrependimento.

— Para que o fizeste então?

— Não sei... por nada. — E encolheu os ombros, sorrindo.

— Bonito modo de proceder!

Malva continuava silenciosa.

— hás de perder meu filho de todo, desgraçada! Não temes Deus, não temes coisa nenhuma... O que vai tu fazer agora?

— Que vou fazer? Sei lá! — respondeu Malva com uma sombra de despeito.

— Sim, diz-me, o que vais tu fazer de meu filho?— interrogou Basílio com veemência.

Sentia um violentíssimo desejo de lhe bater, de lhe espicaçar o peito e de a enterrar depois na areia. Uma cólera surda fazia-lhe ranger os dentes e ia talvez atirar-se a ela quando, ao voltar-se para trás, avistou Serejka e Iakov que os observavam.

— Vai-te, senão esmago-te! — murmurou ele com voz sufocada.

Tinha os olhos injetados de sangue. As mãos tremiam-lhe convulsivamente na ânsia de agarrar os cabelos de Malva e arrastá-la como um farrapo pelo chão.

Subitamente acalmou-se.

— Merecias que te matasse! Mas não faltará quem o faça um dia.

Malva sorriu com benevolência e, respirando profundamente, disse:

— Então? Basta já... Adeus!

E voltou-se bruscamente, afastando-se dele. Basílio continuava a cobri-la de injúrias.

A moça tranquilamente pôs-se a caminhar ao longo da praia, apagando propositadamente as pegadas de Basílio.

Chegando ao pé das barricas, Serejka perguntou-lhe:

— Despediste-o já?

A moça fez um sinal afirmativo sentando-se junto dele.

— Chorou? — inquiriu Serejka.

Malva não respondeu, limitando-se a perguntar-lhe:

— Quando partes para o cabo?

— Esta tarde.

— Vou contigo.

— Está bem.

— Eu vou também — exclamou de repente Iakov.

— Convidou-te alguém, para vires cá meter-te? — perguntou Serejka.

Na armação tocaram a sineta, dando sinal para recomeçar o trabalho. O som parecia vir de muito distante amortecido pelo barulho das ondas.

— Convida-me ela — disse Iakov, contemplando-a com um olhar insolente.

— Eu? Preciso de ti para alguma coisa?

— Falemos a sério, Iakov — disse Serejka com tranquilidade. — Se lhe tocas com a ponta de um dedo esmago-te a cabeça. E eu então que tenho uma perícia nessas coisas!

Iakov retrocedeu um passo e disse com voz sumida:

— Não te adiantes, que ela é...

— Cala-te que é melhor. Não serás tu, cão, quem há de devorar o cordeiro. Contenta-te com os ossos e já é muito... O que estás tu a olhar?

Os olhos verdes de Malva fixaram Iakov com um grande desdém; o seu belo corpo aproximou-se de Serejka com um ar tão provocante que o moço sentiu passar-lhe uma nuvem diante dos olhos, mordido de ciúme e desespero.

Afastaram-se os dois, abraçados, zombando do aspeto trágico do moço.

Iakov enterrou com força um pé na areia e permaneceu assim muito tempo com o peito ofegante e o olhar incendiado.

Ao longe, sobre as dunas imóveis, agitava-se uma figura humana, tornando-se cada vez mais pequena com a distância. Iakov via o homem sacudir a cabeça com movimentos bruscos, talvez para fazer cair as lágrimas — lágrimas de humilhação e de dolorosa incerteza. À sua direita brilhava o sol arrancando faíscas do aço polido do mar. Para a esquerda erguiam-se as dunas de areia, desertas e uniformes, até aos confins ilimitados do horizonte.

Na armação começava a ativar-se o trabalho. Iakov ouviu a voz de Malva, elevando-se por sobre a das outras mulheres, dizer:

— Quem me tirou a minha faca?

Murmuravam as ondas, irradiava o sol, sorria o mar...

Picada por uma brisa leve, a vaga espreguiçava-se indolentemente, crivando a superfície da água de pequeninas rugas que refletiam os deslumbramentos cálidos do sol, como outras tantas bocas prateadas haurindo a luz.
Para os lados do cabo sentia-se o barulho ensurdecedor das ondas, rolando a sua massa revolta até à ponta arenosa do promontório. O ruído e a luz do sol, fortemente reverberada pela água, uniam-se num frémito vivo de alegria. O céu e o mar como que se abandonavam num mútuo desprendimento amoroso; o céu enviando-lhe a luz; o mar refletindo-a na carícia doce dos seus sorrisos.
Participando das fortes vibrações da luz, o oceano inflamava o peito acetinado e curvo, numa dolência mórbida de cansaço, embalsamando o ar com o aroma das suas emanações salinas.
Àquela hora as ondas estiravam-se, encalmadas, pela praia lisa e ampla, desfazendo a espuma branca das suas cristas, com uma monotonia surda de folhas que se agitam...
A estreita língua de terra do cabo parecia uma torre enorme estendida desde a costa até ao mar. À sua ponta afilada perfurava a água como uma lâmina rígida, e do lado da terra mal se lhe percebia a base oculta na neblina que começava a levantar-se.
Naquele extremo e àquela distância, sentia-se ainda o cheiro nauseabundo e infeto que vinha das armações de pesca.
Na areia do cabo, salpicada de pequeninas escamas de nácar, tinham plantado estacas para suspender as redes, cujas sombras projetando-se no chão faziam lembrar enormes aracnídeos repousando. Ao longo da margem alinhavam-se, paralelamente, as barcas destinadas à pesca, que a fímbria das ondas em loucas correrias vinham beijar, parecendo convidá-las a fazerem-se ao largo.
Escotas, remos, velas, cordames, cestos e barris dispersavam-se numa grande extensão da praia, como destroços de algum naufrágio recente. A pouca distância da água e no meio daquela confusão de apetrechos marítimos, erguia-se uma barraca tosca, feita de troncos e pranchas de madeira, colmada com ramos densos de salgueiro. No alto de uma forquilha tinham posto um par de botas a secar e na extremidade aguda de um mastro tremulava um pedaço de pano vermelho.
À sombra de uma das barcas estiraçava-se indolente, o corpo pesado de Basílio Legostev, guarda do cabo e encarregado da armação do mercador Grebentchicov.
De costas, com as mãos cruzadas por baixo da cabeça, servindo-lhe de apoio, fixava insistentemente o mar, detendo a vista na linha longínqua e quase impercetível da costa. No horizonte distinguia-se, balouçando sobre as ondas, um pequeno ponto negro que Basílio via aproximar-se com mal contida impaciência. E desviando os olhos, cegos pelo reflexo da água, sentia-se estremecer numa forte comoção empolgante, adivinhando, tão longe estava ainda a barca, o vulto adorável de Malva caminhando para ele.
Parecia-lhe ouvir já aquele riso claro e argentino de pássaro contente, que lhe fazia arquejar o seio forte de mulher moça.
Enervava-o a ideia de que ela ia em breve estreitá-lo nos seus braços robustos e mórbidos, entre carícias e beijos longos, ao passo que lhe iria relatando os acontecimentos mais em dia na costa. O que lhe agradava sobretudo era a intimidade confortável e carinhosa que ela ia levar ao seu isolamento de selvagem, tendo-a na barraca, comendo ambos a suculenta sopa de peixe, regada a fartas libações de aguardente, até que ao findar do dia, depois do chá habitual, o repouso viesse juntá-los, numa deliciosa comunidade de gozo. Eram momentos só, mas que importava?
Ao romper da alvorada separar-se-iam amigos e felizes, acompanhando-a ele na barca até ao outro lado da costa. Ainda sonolenta, Malva costumava sentar-se à popa, enquanto ele remava, esquecido de tudo, absorto na contemplação idólatra do seu corpo soberbo. Era naquela ocasião que ela se mostrava mais tentadora e graciosa, cheia de fadiga e languidez como uma gatinha farta que se lambe ainda.

 


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Neste dia até as gaivotas pareciam voar preguiçosamente, exaustas pelo calor. Às vezes pousavam na areia com o bico aberto e as asas estendidas, outras vezes balouçavam-se na crista das vagas sem o ruído habitual dos seus gritos.

A barca vinha-se aproximando. Entretanto, afigurava-se a Basílio que Malva não vinha só. Seria aquele danado de Serejka que às vezes se lembrava de a acompanhar também? E levantando meio corpo, com as mãos por cima dos olhos, em pala, pôs-se a observar atentamente os vultos da barca, sentindo uma cólera surda por aquele intruso que lhe vinha transtornar o dia.

Era Malva que vinha ao leme; na barca remavam com força, mas desastradamente, sem aquela perícia de Serejka que tornava desnecessário o auxílio da moça.

— Eh, lá! — gritou Basílio impaciente.

As gaivotas assustaram-se fugindo para o largo.

— Eh, lá! Eh, lá! — replicou Malva com voz sonora.

— Com quem diabo vens tu?

Na barca soou uma gargalhada estrídula.

— Velhaca! — rosnou Basílio a meia voz.

Atormentava-o uma curiosidade inquieta e perturbante. Examinava a nuca e os ombros do remador, todo curvado nos esforços que fazia para impulsionar a barca. O ruído da água fendida pelos remos tornava-se cada vez mais distinto, e a areia crepitava debaixo dos pés do guarda, participando da agitação nervosa da água.

— Com quem vens tu, Malva? — perguntou de novo Basílio já preso no sorriso jovial da moça.

— Espera que vais ver — disse ela galhofando.

O guarda franziu os sobrolhos parecendo ter reconhecido o remador que levantara a cabeça para o olhar.

— Rema com mais força — ordenou Malva.

O impulso foi tão violento que a barca, saltando na crista de uma vaga, pousou ligeiramente em terra enquanto a onda se retirava para dentro do mar.

— Bons dias, pai! — disse o remador saltando para fora da barca.

Beijaram-se três vezes na boca e nas faces. Diante daquela aparição súbita, o mau humor de Basílio converteu-se num misto de surpresa e de alegria.

— Ah, eras tu, Iakov... bem me parecia! Tinha cá um palpite... Mas porque vieste? Logo vi que não podia ser Serejka. És tu, hein?

Basílio, titubeante, afagava a barba com as mãos, visivelmente aturdido. Os olhos do filho cravavam-se nele, persistentes, interdizendo-lhe o rosto encantador de Malva que o atraía.

Contudo um sentimento ainda não extinto comovia-o e perturbava-o diante daquele rapaz que não via há tanto tempo. Mas a presença de Malva, tentadora e provocante, dominava-lhe o orgulho de possuir assim um filho, forte e desempenado como um mastro.

Fazia-lhe atabalhoadamente perguntas sobre perguntas, sem atender nas respostas do moço, e as ideias embrulhavam-se-lhe de tal modo que a moça acabou por lhe dizer chocarreira:

— Não te desfaças em alegria, homem! Leva-o antes para a barraca e oferece-lhe alguma coisa.

Basílio atreveu-se a olhá-la de frente. Nos lábios dela contraía-se um sorriso de ironia; e, coisa inexplicável, pareceu-lhe que aquele corpo fresco e apetitoso não lhe causava já as mesmas tentações de sempre.

Malva fixava, ora no pai, ora no filho, os seus olhos verdes, petulantes e maliciosos, trincando pevides de melancia nos pequeninos dentes de pérola.

Durante alguns momentos calaram-se, constrangidos, sem acharem nada que dizer.

— Volto já — interrompeu bruscamente o guarda, saindo da barraca. — Não estejam ao sol; vou buscar água e tratar da sopa. Vais ver, Iakov, o que é uma sopa de peixe feita no mar! Não me demoro nada, é um instante...

Pegou numa marmita e afastou-se desaparecendo por detrás das redes suspensas.

Malva e Iakov seguiram-no.

— Então eis-te junto de teu pai. Estás satisfeito? — perguntou a moça aproximando-se dele.

O moço inclinou para ela o rosto emoldurado numa barba ruiva e frisada, replicando:

— É verdade... cá estou! Mas que bonito mar.

— Magnífico, sim. E acha-lo velho, muito acabado?

— Não, não... Julguei encontrá-lo já encanecido e apenas lhe alvejam alguns cabelos brancos. Está ainda forte.

— Há quanto tempo o não vias?

— Uns cinco anos. Quando saiu da aldeia ia eu fazer dezassete.

Entraram na barca. O calor e o cheiro enjoativo do peixe tornavam a atmosfera interior irrespirável. Malva sentou-se num molho de sacos e Iakov imitando-a atirou-se para cima de um tronco. Separava-os uma barrica serrada pelo meio, cujo tampo servia de mesa ao guarda. Examinavam-se a espaços, sem falarem; foi ela quem rompeu o silêncio.

— Vens trabalhar para cá?

— Não sei. Se achar trabalho talvez fique.

— Mas hás de encontrar — replicou Malva com firmeza, acariciando-o com os olhos.

Ele tinha a cabeça baixa e limpava o suor com a manga da blusa.

— Ia apostar em como tua mãe te incumbiu de certas coisas... — inquiriu ela maliciosamente.

Iakov teve um gesto de enfado.

— Mas de quê?

— Ora, nada — replicou Malva com um ar falso de indiferença.

Começavam a desagradar-lhe os modos irrequietos da moça. Invadia-o uma sensação vaga de aborrecimento, de repulsão mesmo, ao lembrar-se das palavras que a mãe lhe dissera, grave e triste, no dia em que ele saíra da aldeia.

— Em nome do céu, Iakov, diz-lhe: «Pai, a nossa mãe está sozinha na aldeia... os anos passam... daqui a pouco está velha e inutilizada pelas fadigas. Conta-lhe tudo, filho, conta-lhe tudo!» — E cobrira o rosto com o avental chorando silenciosamente.

Iakov, que não se comovera então diante daquelas súplicas, experimentava agora um sentimento piedoso de compaixão, e fixando Malva com o semblante carregado tinha vontade de lhe dirigir insultos grosseiros.

— Pronto, vai-se arranjar num instante — exclamou Basílio, aparecendo com um peixe ainda vivo numa das mãos e empunhando na outra uma faca comprida.

Olhava os hóspedes com uma expressão aparentemente tranquila, posto que o embaraço se lhe traduzisse ainda no modo trôpego de andar.

— Agora toca a fazer fogo! Falaremos depois... Estás forte que nem um touro, Iakov.

Desapareceu de novo.

Malva continuava a mastigar pevides, contemplando familiarmente Iakov que debalde se esforçava por desviar os olhos dela.

Entretanto o moço pensava: «Deve passar-se aqui magnificamente. Que boa aparência que eles têm!»

Depois, intimidado pelo silêncio, disse alto:

— Esqueceu-me o saco na barca, vou buscá-lo.

Levantou-se e saiu.

Passados alguns momentos voltou Basílio, e aproximando-se de Malva disse-lhe rapidamente ao ouvido:

— Que ideia foi essa de o trazeres contigo? Que lhe hei de dizer de ti?

— Veio, acabou-se! Que queres que lhe faça?

— Mas não vês que é uma vergonha, estúpida criatura? O que lhe hei de dizer? Sim, o que lhe hei de dizer? Com a outra lá em casa! Que loucura!

— E que me importa a mim? Tenho eu porventura medo de vocês? — perguntou ela com um modo desprezível nos olhos fulvos. — Mas que cara tu fizeste ao vê-lo! Deu-me mesmo vontade de rir!

— Achaste-lhe graça, hein? E dizes-me isso assim descaradamente?

— Podias ter suposto que ele vinha.

— Como querias tu que eu adivinhasse, sem me prevenirem de nada?

Fê-los interromper o ruído da areia pisada por Iakov. O rapaz entrou, atirando o saco para um canto e lançando um olhar furtivo à moça.

Malva continuava muito preocupada a descascar pevides, e Basílio sentando num tronco pôs-se então a fazer perguntas ao rapaz, com um ar constrangido:

— Que lembrança foi essa de vires até cá, assim de imprevisto?

— Mas escrevemos, prevenindo-te.

— Quando? Não recebi nenhuma carta!

— Não recebeste? Pois crê que te escrevemos.

— Perdeu-se provavelmente a carta. O diabo a leve! É sempre assim. Coisas que interessam sempre levam extravio.

— Desse modo não sabes nada dos nossos negócios — inquiriu Iakov, desconfiado.

— Pois não te disse que não recebi coisa nenhuma! Eh, que desgraça, lá se me está a ir a sopa embora!

E deitando a correr, pôs-se a tirar vagarosamente com uma colher a espuma do ao-de-cima do caldo, refletindo nas coisas extraordinárias que acabara de ouvir. Aquela história do filho, longe de o comover, fizera antes irritá-lo contra ele e contra a mãe. Quanto dinheiro lhes não mandara durante aqueles cinco anos? E não tinham sabido aproveitá-lo. Se Malva não estivesse presente, ele lhe teria falado! Abandonar a aldeia sem licença sua e deixar as terras sem amanho, ao desamparo. E os campos que o filho desprezara nesses cinco anos de vida solta pareciam-lhe agora uma goela insaciável onde o seu dinheiro se subvertera irremediavelmente. Basílio suspirava, remexendo o caldo com a colher.

À luz do sol, a chama da fogueira tornava-se mortiça e pálida. O fumo azulado e transparente erguia-se suavemente em longas espirais, curvando-se depois até ao encontro das ondas. Basílio contemplava-o, perplexo e desalentado, afigurando-se-lhe que dali em diante a vida não teria para ele os mesmos encantos do que até aquele dia lhe dera a gozar. Iakov adivinhara já com certeza quem era Malva: o que pensaria ele?

Entretanto na barraca a moça continuava a fazer perguntas frívolas ao moço.

— Deixaste provavelmente alguma namorada na aldeia, é certo?

— Sim, talvez! — replicou ele, maldizendo-a interiormente.

— E é bonita? — inquiriu curiosa.

Iakov não respondeu.

— Porque te calas? Diz, é mais bonita do que eu?

Iakov, sem querer, pôs-se a contemplá-la detidamente. Tinha as faces morenas e carnudas, e os lábios, um pouco grossos, tremiam-lhe abertos num sorriso quente de sensualidade. Uma blusa de percal cor-de-rosa comprimia-lhe os ombros roliços, desenhando-lhe numa linha firme e inteiriça os contornos do peito alto e elástico. Desagradavam-lhe, porém, os seus olhos verdes e turbulentos.

— Porque me perguntas isso?

— Pois de que queres tu que eu fale? — casquinou ela num riso claro.

— De que te ris?

— De ti.

— Fiz-te mal? — retorquiu ele de mau humor. E de novo os seus olhos se baixaram, humildes e trémulos, diante do sorriso tentador de Malva, que não respondeu.

Iakov, percebendo as relações que a ligavam ao pai, sentia-se constrangido na presença dela. Mas não havia razão para estranhar aquilo; tinham-lhe dito que todos faziam o mesmo e compreendia que um homem robusto como seu pai não poderia passar sem uma mulher. Todavia repugnavam-lhe aqueles amores obscenos recordando a outra, a pobre mulher, que envelhecia na fadiga rude dos campos.

— A sopa está pronta, traz as colheres, Malva — disse Basílio assomando ao portal.

Iakov ruminou consigo: «Ela que sabe tão bem os cantos à casa é porque deve voltar aqui frequentemente.»

Malva, pegando nas colheres, afastou-se dizendo que ia lavá-las ao mar, e de caminho trazer a aguardente que ficara na barca.

Mal se viu sozinho com o filho, Basílio perguntou-lhe:

— Como a encontraste tu?

— Perguntei-te no correio. Dirigiu-se-me esta moça dizendo: «Olhe, vou também hoje visitá-lo, escusa de se cansar a pé, venha comigo na barca». E assim foi.

— Que tal a achas?

— Não é feia — respondeu o moço indiferente.

— Que queres, não pude evitá-lo — disse Basílio, gesticulando. — Quis a princípio resistir; impossível! Depois, quando se é casado, o hábito... Demais, trata-me da roupa... Olha, fica sabendo: há duas coisas a que não podemos fugir: das garras da morte e da mulher.

E sentiu tirar-se-lhe um enorme peso dos ombros ao pronunciar sentenciosamente aquelas palavras.

— Mas eu nada tenho que te dizer — replicou Iakov — isso é lá contigo. Não vim cá para julgar o teu procedimento.

E intimamente pensava que desejava antes tê-la encontrado a remendar-lhe as calças.

— Tenho quarenta e cinco anos — continuou o guarda. — Ainda não estou velho... Daí, custa-me pouco dinheiro, que diabo! Afinal de contas é minha mulher para todos os efeitos.

— Certamente — afirmou o rapaz. E pensou lá consigo: «Em que dinheirão te não ficará ela.»

Malva voltou logo trazendo uma garrafa de aguardente e bolos.

Sentaram-se imediatamente a comer.

Silenciosos, iam sugando as espinhas, cuspindo-as depois na areia ao pé da porta. Iakov devorava sofregamente com grande agrado de Malva que via entumecerem-se aquelas faces tostadas pelo sol. Basílio comia pouco e devagar, para poder examiná-los furtivamente e refletir na atitude que lhe convinha tomar.

O azul do céu enternecia de húmido e claro, naquele dia. À música alegre e acariciadora das ondas juntava-se o grito das gaivotas. Diminuíra o calor, e às vezes chegava um bafejo de ar quente impregnado dos aromas salinos da água.

Iakov depois de comer sentiu-se pesado, com uma sonolência mórbida premindo-lhe as pálpebras. Sorria estupidamente, dirigindo a Malva olhares tão provocantes que Basílio achou prudente dizer-lhe:

— Iakov, encosta-te um pouco até à hora do chá... depois te acordaremos.

— Sim, sim! — titubeou ele deixando-se cair sobre uma esteira. — E vocês para onde vão? Hein? Para onde, seus...

Basílio, perturbado, voltou-lhe as costas, saindo rapidamente. A moça, escandalizada, respondeu-lhe em tom severo:

— Não te intrometas em negócios alheios, percebeste?

— Quem, eu? Esperai que eu já lhes digo... mas que bonita que ela é! Olha...

Disse ainda algumas palavras desconexas, depois adormeceu profundamente com um sorriso de bêbado no rosto congestionado.

Entretanto o guarda enterrara três estacas na areia e, reunindo-as pelas extremidades, lançou-lhes uma esteira por cima, abrigando-se em seguida debaixo daquela tenda improvisada.

Malva, que acabava de chegar, estendeu-se na areia ao lado dele. Basílio, amuado, voltou-lhe as costas desdenhosamente.

— Mas que é isso? — perguntou a moça sorridente. — Não estás porventura satisfeito de tornares a ver teu filho?

— Não vês como ele me trata? E tudo por culpa tua — replicou Basílio sombriamente.

— O quê! Por minha culpa? — respondeu ela com um ar falso de admiração.

— Pois é claro!

— Sinto-o bastante. O que me resta então a fazer? Não voltar? Pois bem, não voltarei.

— Pois vai-te, velhaca! — exclamou ele. — Ah, são todos assim! Aqueles por quem mais nos afeiçoamos são sempre os que pior nos tratam.

Prostrara-se de novo dominado por um grande desalento. Malva, abraçando os joelhos, balanceava o corpo esbelto com uma graça felina e desenvolta, e estendendo a vista para o largo sorria com um desses sorrisos triunfantes que possuem as mulheres conhecedoras da sua beleza.

Um barco de vela deslizava no mar alto como um pássaro triste de voo pesado e lento. Largara há muito a costa e ganhando a linha longínqua do horizonte ia em breve sumir-se como uma pequenina nuvem que se desfaz.

— Porque estás assim calada? — perguntou Basílio, contemplando-a.

— Penso...

— Em quê?

— Sei lá!

E depois de um momento de silêncio acrescentou:

— É um belo moço, o teu filho.

— Que tens tu com isso? — perguntou Basílio, ciumento.

— Faz mal perguntar-te?

— Olha, é melhor mudares de conversa — disse Basílio lançando-lhe um olhar de desconfiança. — Não brinques comigo... Sou muito prudente; se me fazes porém exaltar... — E cerrando os punhos acrescentou por entre os dentes: — Desde que chegaste não fazes outra coisa senão intrigar. Não compreendo o que diabo tu queres; mas asseguro-te que é melhor que eu não chegue a compreender... És um poço de malícia! Acautela-te! Eu sei como proceder no caso de...

— Não me metes medo, Basílio — disse ela com um sorriso desdenhoso.

— Pois bem, não me irrites!

— Pensas que me assustas com esses modos?

— Olha que se me fazes desesperar é um instante em quanto danças na corda — ameaçou Basílio com exaltação.

— Pois atreves-te a bater-me?

— Então, quem julgas tu que és para que te não possa bater?

Aproximando-se de Basílio a moça replicou-lhe arrogantemente com o semblante desfigurado pela cólera:

— Parece-me que não sou tua mulher. Tinhas por costumes desancares a que lá tens na aldeia, por qualquer insignificância; julgas que farás o mesmo comigo? Estás muito enganado! Sou livre, só dependo de mim mesmo e ninguém no mundo é capaz de dominar a minha vontade. Já não sucede o mesmo contigo. Receias do teu filho e ainda há pouco observei como te humilhavas diante dele; atreves-te ainda a ameaçar-me?

Aqueles modos altivos da mulher nova e soberba resfriaram a cólera momentânea de Basílio. Nunca a vira assim tão bela e dominadora.

— Vá, começa agora para aí a grasnar — disse ele submisso, completamente desarmado.

— E muito tinha que te dizer. Gabavas-te a Serejka que não poderia abandonar-te, que me eras tão necessário como o pão. Pois enganas-te! Talvez não te ame... E se a única coisa que eu amasse fosse esta imensa plaga? O que me atrai aqui é talvez a solidão; só há mar e céu; o mais são tudo seres vis. Que tu estejas aqui ou não pouco me importa. És como o tributo que se paga por atravessarmos um certo lugar... Se fosse Serejka, seria com Serejka; se fosse teu filho seria com teu filho. Um ou outro, que me importa? Melhor fora que não existissem; vocês todos causam-me nojo. E se um dia me lembrar, bonita como sou, posso arranjar um marido que valha mais do que vocês todos juntos.

— Ah, tu pensas assim? — rugiu Basílio, agarrando-a pela cintura e sacudindo-a furiosamente.

Malva, com o rosto congestionado e os olhos injetados de sangue, não oferecia nenhuma resistência, limitando-se a pôr as mãos na mão de ferro que lhe apertava a cinta.

— Então tu pensas assim e não me dizias nada? Eram, pois, falsos os teus desejos e as tuas carícias? Espera que eu te governo, grande desavergonhada!

E num repelão deitou com ela em terra.

Os seus punhos caíam brutalmente sobre a nuca da moça, experimentando uma sensação agradável ao tocar-lhe na carne mole e elástica.

— Anda, serpente, toma! Toma! — exclamava ele, fustigando-a desalmadamente.

Tranquila, sem uma palavra de queixume, Malva deixou-se cair de costas, com os cabelos em desalinho e uma grande vermelhidão incendiando-lhe o rosto. Os seus olhos verdes brilhavam-lhe sob as pálpebras com um fulgor impercetível de cólera.

Basílio, anelante por ter desabafado a sua raiva, não atendeu no olhar frio e rancoroso que ela lhe dirigiu; e inclinando-se para a sua vítima, vencedor e desdenhoso, surpreendeu-lhe nos lábios um sorriso calmo de benevolência e de perdão.

— Que tens tu, víbora? — perguntou-lhe ele, puxando-lhe vivamente pela manga da blusa.

— Foste tu que me bateste, Vasia? — murmurou Malva humildemente.

Ele contemplava-a pasmado, sem saber que dizer. Fora-se-lhe a raiva diante daquela resignação dócil de mulher vencida.

— Amas-me então muito? — insinuou Malva.

Basílio estremeceu, ouvindo aquela voz onde palpitavam carícias de amor.

— Bom, agora já não há remédio — disse com aspeto sombrio. — Estás satisfeita?

— Vasia! E eu que julgava que tu já me não tinhas amor! Pensava comigo: agora que tem cá o filho abandonar-me-á.

E lançou uma gargalhada bastante ruidosa para ser natural.

— Tonta! — disse Basílio, sorrindo involuntariamente.

Sentia-se culpado, cheio de remorsos; mas recordando-se dos motivos porque a sovara, acrescentou rudemente:

— Isso não tem nada que ver com meu filho. Se te bati a culpa foi tua... Não te atrevesses a zombar de mim!

— Era de propósito para te experimentar! — E roçava-se por ele, provocantemente, como uma gata desejosa.

Basílio deitou um olhar para a barraca e apertou Malva nos braços, beijando-a.

— Vês o resultado da experiência?

— Deixá-lo — retorquiu Malva, revirando os olhos. — Amavas-me e bateste-me... hei de lembrar-me sempre...

E contemplando-o durante um momento, disse com intenção reservada:

— Nunca me há de esquecer!

Basílio interpretou estas palavras favoravelmente.

— Sim?

— Verás — respondeu Malva, serenamente e com um tremor impercetível nos lábios.

— Ah, minha querida — exclamou Basílio apertando-a de novo nos braços. — Sabes? Parece-me que te amo agora mais! Sinto-te mais minha!

As gaivotas voavam junto deles, sem receio, soltando os seus gritos agudos. A brisa do mar irrequieto e saltitante, refrescava-lhes os rostos afogueados pela alteração. O rumor monótono das ondas embalava-os como uma doce paz que descesse do alto.

— Ah, a vida! O que a vida é!! — exclamou Basílio, acariciando com uma expressão sonhadora o corpo da mulher que se lhe abandonava. — É assim o mundo. O que nos proíbem é o que mais tentações nos causa. Não imaginas: às vezes penso na vida e tenho um medo terrível, sobretudo de noite quando não posso dormir. Diante de mim estende-se a vastidão imensa da água; por cima o céu desdobra a sua cúpula azulada... E tudo o mais tão negro, tão pesado, dá-me a impressão de um monte de chumbo em cima do peito. Parece-me então que me anulo e torno num desprezível nada sobre a terra que se agita debaixo dos meus pés... Se nesses momentos estivesses comigo, ao menos seríamos dois.

Malva, com os olhos cerrados, extática, abraçara-se aos joelhos de Basílio. A cara rude e bondosa do guarda, tostada do sol e mordida do vento, inclinava-se para ela, roçando-lhe o colo branco e descoberto com a sua barba comprida. Malva não se movia. Era uma estátua onde somente arquejavam os peitos altos aos impulsos rítmicos da respiração. Basílio ia-lhe explicando quantas canseiras lhe custava aquela existência solitária de renegado, como eram dolorosas as suas longas noites de insónia e de pesadelos, cheias de ideias melancólicas sobre a vida. E beijando-lhe a boca demoradamente, sorvia-lhe os lábios com um desejo frenético de os devorar.

Permaneceram assim horas esquecidas, até que, atentando no sol que estava quase a esconder-se, Basílio exclamou de repente, com modos bruscos:

— É preciso tratar do chá. O nosso hóspede deve ter já acordado.

Malva separou-se dele com a indolência de uma gata lânguida. Basílio encaminhou-se apressadamente para a barraca enquanto a moça se levantava, experimentando, ao vê-lo afastar-se, uma agradável sensação de alívio.

Três horas depois estavam os três reunidos à mesa tomando o chá e palestrando em amável convívio sobre as coisas do passado.

O sol no poente acendia reflexos vermelhos na água. No horizonte as cristas das vagas resplandeciam como geleiras enormes em movimento.

Basílio, que bebia o chá por uma xícara de louça, interrogava o filho sobre as coisas do campo, evocando lentamente as suas recordações da vida na aldeia. Malva escutava as suas intermináveis tiradas sem o interromper.

— Todos os lavradores passam bem.

— Sim, menos mal, vivem como podem — replicou o rapaz.

— Nós, os rústicos, de pouco necessitamos. Um abrigo, o pão quotidiano e um pouco de aguardente ao domingo, quando há, é tudo quanto basta... Se eu tivesse cabeça não teria deixado a aldeia. Ali todos somos iguais e senhores de nós, enquanto aqui não se passa de um escravo.

— Mas aqui não há fome e o trabalho fatiga menos.

— Não é tanto assim. Às vezes os ossos doem-nos como se no-los estivessem triturando. Na aldeia há a vantagem de se trabalhar para nós; aqui trabalha-se sempre para os outros.

— Mas em compensação ganha-se mais — retorquiu Iakov.

Basílio reconhecia que o filho tinha razão. No campo a existência era incomparavelmente mais penosa; todavia não gostava que o filho lho fizesse sentir. Assim, replicou-lhe com severidade:

— Sabes quanto se ganha aqui? Na aldeia...

— É como se estivéssemos encerrados num cárcere — interrompeu Malva. — As mulheres sobretudo sofrem de uma maneira horrível.

— A vida da mulher é igual em toda a parte, como igual é a luz do sol — replicou Basílio mal humorado.

— A quem o dizes — respondeu Malva. — Na aldeia quer se queira quer não, não há outro remédio se não casar-se a gente. E uma mulher casada é uma escrava sem remissão. Tem que fiar, tem que tecer, tem que cuidar do gado e dos filhos... um inferno! E o que lhe resta depois disto? As pancadas do marido.

— Não julgues que é sempre assim!

— Pelo contrário, aqui eu não dependo de ninguém. Sou livre como uma gaivota. Vou para onde me apetece e ninguém tem direito de me tocar.

— E se te tocassem? — perguntou Basílio, irónico, aludindo à questão de há pouco.

— Haviam de mas pagar! — disse Malva com um estranho fulgor nos olhos.

Basílio sorriu bonacheironamente.

— És atrevida e fraca como todas as mulheres. No campo a mulher é necessária para a vida; aqui serve somente para dar prazer. — E acrescentou depois de um breve silêncio: — E para o pecado!...

Iakov desviou o sentido da conversa, lançando a vista para o largo e exclamando:

— Dir-se-ia que o mar não tem limites. — Puseram-se os três a contemplar a plaga imensa. — Ah! — exclamou de súbito o rapaz. — Se tudo isto fosse terra, leiva negra, para se poder lavrar!

— Isso é que é falar — disse o pai com um gesto de aprovação.

Parecia-lhe sentir nas palavras do filho esse entranhado amor pela terra que o arrastaria novamente para a aldeia, para fora das tentações irresistíveis.

— Perfeitamente, Iakov, é assim que deve falar um camponês. Toda a sua força provém da terra. É feliz enquanto está em contacto com ela, morre se porventura a deixa. O camponês sem terra é como uma árvore sem raízes: faz-se dele o que se quiser, porque já não vive, apodrece. Falta-lhe a antiga majestade de ser independente e livre; corta-se, serra-se, faz-se em pedaços, já não parece o mesmo... Tens razão, Iakov!

O mar reverberava os últimos reflexos do sol.

— Parece-me que sinto a alma fundir-se-me quando respiro em pleno sol.

— Deveras? — perguntou Basílio.

O olhar de Iakov perdia-se na amplidão da água. Durante muito tempo permaneceram silenciosos, absortos no crepúsculo que descia vagarosamente. O poente tomava as colorações roxas da refração, passando do sanguíneo vivaz ao alaranjado claro de oiro fosco. A praia cobria-se de sombras; tinham desaparecido completamente as gaivotas. Um silêncio pesado caía do alto onde começavam a tremeluzir as primeiras estrelas. As ondas rumorosas e vivas, impregnavam-se daquela sombra que começava a envolver os contornos das coisas.

— Porque estou eu ainda aqui? — disse Malva. — São horas de me retirar.

Basílio dirigiu um olhar vesgo para o filho.

— Que pressa é essa? — perguntou ele descontente. — Espera que a lua nasça.

— Faz-me alguma falta a lua? Não sou medrosa. Tampouco era a primeira vez que saía assim com a escuridão.

Iakov cerrava os olhos para ocultar um sorriso de ironia.

Malva observa-o também.

— Pois então, vai-te! — disse o velho de repente.

Malva ergueu-se, despediu-se em poucas palavras, tomando a ourela do mar para não se perder nas sombras. As ondas vinham beijar-lhe indolentemente os pés. No alto começavam a desenhar-se as constelações. A blusa clara de Malva era como uma pequenina mancha impercetível. Cerrara-se completamente a noite.


Oh, meu amor vem depressa

Gozar um pouco em meu peito...


Cantava Malva com voz clara e timbrada.

Parecia-lhe a Basílio que aquela voz tinha súplicas enternecidas que o chamavam, tentando-o. E cuspindo com raiva exclamou:

— É para me fazer criar água na boca, a maldita!

O vulto de Malva escurecia pouco a pouco no fundo sombrio.


Põe as mãos nos meus peitos

Que são como cisnes brancos.


E a voz desfalecia-lhe no mar.

— Ah — respirou Iakov, estendendo-se na areia e olhando na direção onde gemia a doce voz da moça.

— É provável que não aprendesse aquilo tratando das terras — insinuou Basílio com expressão contrariada.

Iakov, admirado, levantou-se, olhando de revés.

Absorvidas pelo marulho das ondas mal se percebiam as últimas palavras ardentes da canção:


Ai, terei de dormir só,

Que longa vai ser a noite.


— Que calma! — exclamou Basílio ofegante. — E é de noite... maldita região!

— É que a areia absorve o calor do sol — explicou o rapaz, vacilando entorpecido, ao erguer-se.

— Que é isso? Estás a brincar comigo? — observou-lhe rudemente o pai.

— Eu? De quê? — perguntou Iakov surpreendido.

— Não vejo nada que dê lugar a zombarias.

Calaram-se.

Através da sombra chegaram ainda, cheios de carinhosas promessas, os cantos longínquos da moça.


***


Quinze dias depois, também domingo, estava outra vez Basílio Legostev estirado na areia à espera que Malva viesse. Sorria o mar vibrante de luz àquela hora deserta. As ondas vinham de longe em vagalhões enormes desfazer-se na areia branca da praia, e deixando a espuma revolta das suas cristas, voltavam de novo a confundir-se no ar. A mesma paisagem se desenrolava diante dos olhos: o mar imenso, longínquo, e a ponta do cabo estendida como uma torre, onde as vagas escachoavam orladas de branco. Basílio, que da outra vez esperava Malva na certeza dela vir, olhava agora os longes do mar dominado por uma inquietação devorante. Tinha faltado no domingo anterior, não faltaria hoje com certeza. Confiava nela; todavia impacientava-se já pela demora, posto que fosse ainda cedo. Iakov não os estorvaria agora. Dois dias antes, passando com uns marítimos para recolher as redes, dissera-lhe que ia naquele domingo à cidade comprar umas blusas. Ganhava agora quinze rublos por mês. Trabalhava havia uma semana como pescador e adquirira já o aspeto forte e alegre dos que lidam com as fúrias do mar. Andava esfarrapado como os outros e com esse cheiro a salmoura característico dos operários das armações. Entretanto Basílio suspirava pensando nele.

«Resistirá o moço? Se se habitua ninguém é capaz de o arrastar daqui; e eu terei que...»

Deserto o mar. Somente as gaivotas rasavam a superfície da água em bandos ruidosos e alacres. No ponto em que o mar se separava do céu pela estreita faixa da areia da praia, apareciam de quando em quando, pontos negros que passavam e se desfaziam rapidamente como pequeninas manchas de fumo. Era já meio dia e nada de aparecer a barca. Os raios do sol ardentíssimos caíam quase perpendicularmente sobre o mar.

Duas gaivotas lutavam furiosamente e com tanta raiva que as penas lhes voavam em torno como uma chuva de pétalas brancas. Os seus pios agudos perturbavam o ruído monótono das ondas, tão constante e rítmico como se nascesse da união do mar com os beijos harmoniosos da luz. As duas aves ora desciam abraçadas revoluteando em giros incessantes, uma por debaixo da outra, ora se erguiam para o alto, enraivecidas e loucas, sem deixarem de perseguir-se. As outras, sem fazerem caso da luta, procuravam peixes, mergulhando as cabeças na água e agitando ruidosamente as asas quando a presa se contorcia nos seus bicos fortes.

Basílio entristecia, observando o furor das duas gaivotas. Porque se guerreavam assim? Não tinha o mar tantos e tantos peixes? Também da mesma sorte os homens procuravam estorvar-se uns aos outros. Bocado que um apanhasse era logo disputado por outro. Porque sucedia isto? Não chegava então a vida para todos? Para quê tirar a outrem aquilo que de direito lhe pertencia? E eram quase sempre as mulheres a origem destas disputas. Um homem possui uma mulher alheia quando há tantas igualmente belas e livres? Estava então isto organizado só para provocar a desordem?

O mar permanecia deserto. A mancha escura da barca tão conhecida e desejada não dava sinal de se querer mostrar.

— Não vens? — disse Basílio em voz alta increpando o mar. — Melhor, não preciso de ti para nada, mesmo para nada!

E cuspiu na direção da praia com o rosto assombreado de desespero e de raiva.

Sorria o mar...

Basílio dirigiu-se para a barraca com intenção de preparar a comida; como não sentisse fome voltou novamente para o seu posto de observação.

«Se ao menos viesse Serejka», pensou; e esforçava-se para evocar unicamente Serejka. «É um veneno, esse diabo nojento. Brinca de tudo e zomba de todos. É forte, sabe ler e tem corrido muito; mas é um grandessíssimo ralaço. Todas as mulheres o querem com exceção de Malva... E a maldita sem aparecer! Provavelmente odeia-me depois da sova que apanhou. Mas ela deve estar acostumada; outros lhe terão batido; e quem sabe, talvez não seja a última vez que lhe chegue...»

Assim, pensando no filho, em Serejka e mais amiudadas vezes em Malva, Basílio mordia-se de impaciência.

Aquela vaga inquietação a princípio convertera-se em suspeita que ele não tinha ânimo de confessar a si próprio.

Ia já escurecendo e nada se distinguia no horizonte.

Afinal, Malva não veio.

Ao atirar-se para cima da cama, Basílio maldisse a escravidão daquele serviço que lhe não deixara tempo para ir ao outro lado da costa. Meio adormecido sobressaltava-se parecendo-lhe ou vir o barulho dos remos cortando a água. Erguia-se, vinha para fora; mas tudo estava silencioso e quieto, o mar escuro como um grande mistério desolador. Só ao longe ardiam as fogueiras da armação.

— Deixa estar, grande velhaca, deixa estar! — ameaçou ele num rugido.

E adormeceu pesadamente.


***


Eis o que sucedera na armação.

Iakov levantara-se cedo, muito antes de nascer o sol, e dirigira-se à praia para se lavar, aspirando com delícia a brisa fresca da manhã, quando de repente avistou Malva sentada na proa de uma barcaça, penteando os fartos cabelos húmidos e com os pés suspensos sobre a água.

Tinha a blusa de percal entreaberta mostrando o seio branco e provocante.

As ondas faziam agitar a barca; e nos seus vaivéns demorados o corpo gentil da moça balouçava-se indolentemente cortando por vezes a água com os seus pés finos e descalços.

— Estiveste a banhar-te? — perguntou ele.

Malva olhava-o maliciosamente, continuando a pentear os cabelos.

— É verdade, banhei-me. Porque te levantaste tão cedo?

— E tu não te levantaste cedo também?

— Mas eu não sirvo de exemplo a ninguém.

Iakov não respondeu.

— Se vivesses como eu, estavas arranjado — acrescentou ela.

— Ih, que medo! — replicou o rapaz com ar de troça.

Depois, agachando-se, pôs-se a chapinar o rosto.

Com as mãos em concha tomava a água, atirando-a ruidosamente à cara, experimentando uma agradável sensação de frescura. Depois, enxugando-se à blusa, disse para Malva:

— Porque gostas tu tanto de me assustares?

— E tu, para que estás sempre a comer-me com os olhos?

Iakov, que não se lembrava de a ter olhado diferentemente das outras mulheres, replicou:

— É que te acho... apetitosa.

— Se teu pai chega a saber, verás como se te vai logo o apetite — ameaçou ela com um sorriso provocante nos olhos claros.

Iakov subiu para a barca.

— Que me importa a mim saber de meu pai? — exclamou ele aproximando-se-lhe. — Porventura comprou-te ele?

Pousava os olhos nos seus ombros roliços e brancos, sentindo subir-lhe o desejo por aquele seio descoberto, pelo seu corpo, por toda a sua pessoa fresca e saudável cheirando a salgado.

— Pareces-me um esturjão branco — disse ele com voz melíflua.

— Que não é para os teus dentes — sorriu ela maliciosamente.

Adiante alargava-se o mar imenso, iluminado pelos raios matutinos do sol. As ondas que a brisa fazia levantar embalavam a barca sonolentamente. Ao longe descobria-se o cabo arenoso como uma cicatriz no peito acetinado do mar. E mais distante, na linha do horizonte erguia-se um mastro esbelto em cuja extremidade flutuava um trapo vermelho.

— Sim, meu fedelho — começou Malva, sem o olhar — posto que ninguém me comprasse nem tão pouco pertença a teu pai a minha pele não é para os teus beiços. Só eu mando na minha pessoa. E não tentes amar-me porque não quero malquistar-te com teu pai. Nada de rixas, nada de disputas! Percebeste?

— Mas o que tenho eu feito? — perguntou ele com ar de surpresa. — Não te procurei nunca! Nunca te toquei com a ponta de um dedo!

— É porque não te atreves!

A expressão da moça era tão desdenhosa e irónica que Iakov sentiu revoltar-se nele o homem e o macho.

Fuzilou-lhe nos olhos uma chama de desafio.

— E porque não me atreveria? — chasqueou, aproximando-se dela.

— Não, não te atrevas a tocar-me.

— E o que farias se eu te tocasse?

— Experimenta!

— O que fazias, diz?

— Atirava-te um soco que ias para a água de cabeça para baixo.

O rapaz envolveu-a num longo olhar acariciador e estreitando-a de lado, cingiu-lhe fortemente os ombros e o peito.

O contacto daquele corpo ardente e robusto inflamou a moça, que sentiu como que um nó preso na garganta.

— Pronto! Bate-me agora, anda!

— Deixa-me, Iakov — disse ela serenamente, fazendo esforços para se voltar.

— E o mergulho prometido?

— Larga-me, senão... Toma cuidado.

— Bah!

E aconchegando-a mais a si, tocou-lhe os lábios ardentes na pele macia da face.

Ela desatou a rir às gargalhadas como a desafiá-lo. De repente, agarrando os braços de Iakov, deu um impulso tão grande que os dois corpos tombaram para diante como uma massa compacta, desaparecendo por debaixo de uma nuvem de espuma. Dali a pouco surgia impetuosamente a cabeça do rapaz, ao lado dela nas águas agitadas. Malva balanceava como uma gaivota à flor das ondas.

Iakov chapinava desesperadamente, praguejando com a voz rouca enquanto a moça, fazendo zaragata, nadava à roda dele, atirando-lhe água para o rosto tumefacto e esquivando-se sempre que os braços dele se lhe aproximavam do corpo.

— Oh, diabo — gritava Iakov — olha que me afogo... como a água amarga... Ai, que lá vou para o fundo.

Malva tinha-o deixado e nadava para a margem com grandes braçadas de homem.

Logo que chegou a terra tornou a subir para a barca, fazendo caretas a Iakov que nadava direito a ela. Os vestidos encharcados da moça desenhavam-lhe as formas elásticas, desde os ombros até aos joelhos, tão provocantemente que o rapaz, subindo para a barca, sentiu invadi-lo mais ardente e dominador o desejo de possuir aquele corpo de mulher que quase se lhe abandonava.

— Que estás tu para aí a arranhar! Salta de uma vez, minha foca — disse ela entre gargalhadas, ao mesmo tempo que lhe estendia uma das mãos, firmando-se com a outra no rebordo da barca.

Iakov agarrou-se-lhe à mão, gritando exaltadamente:

— Espera que mas vais pagar! Agora sou eu que te faço dar um mergulho.

Com a água até aos ombros puxou-a violentamente, arrastando-a para si. As ondas passavam-lhe por cima da cabeça, salpicando a cara da moça. Malva caiu-lhe em cima com todo o seu peso, fazendo-lhe perder o pé.

Agitaram-se como dois grandes peixes marulhando as águas estrepitosamente. O sol contemplava-os com o seu riso claro e penetrante. As vidraças da armação espalhavam reflexos ardentes, cegando-os. As ondas zombavam das fúrias dos seus braços robustos e as gaivotas, assustadas pelo insólito combate daqueles dois corpos humanos, voavam aos gritos sobre as suas cabeças que de vez em quando desapareciam debaixo das águas revoltas.

Finalmente, cansados, fartos de água salgada, dirigiram-se ambos para a margem, deitando-se na areia para enxugarem os corpos.

— Hi! — exclamou ele. — Que horror de água! E então que me fartei de beber nela!

— O mal abunda nesta terra... rapazes por exemplo. Quantos não há por aí?

Malva retorcia os cabelos compactos como uma massa dura.

— Foi por isso que escolheste um velho — insinuou ele tocando-lhe no cotovelo.

— Há velhos que valem mais do que os moços.

— Se o pai é bom, melhor será o filho.

— Deveras?

— As moças da aldeia diziam que eu não era nada feio.

— E o que percebem elas disso? Deveriam antes perguntar-me a mim...

— Tu não és moça!

Malva, vendo-o sorrir com modos insultantes, respondeu muito séria:

— Era-o antes de ter um filho.

— Bem dito e mal feito — exclamou ele, soltando uma gargalhada.

— Estúpido — respondeu ela bruscamente.

Iakov, intimidado, calou-se.

Permaneceram assim mais de meia hora, dando voltas na areia para se enxugarem.

Nas barcaças, construções vastas, mas cheias de imundície, começaram a despertar os operários. De longe assemelhavam-se todos, sujos, descalços... chegavam até à praia as suas vozes enrouquecidas; um deles malhava como pancadas tambor. Duas mulheres insultavam-se, gritando desalmadamente; ladravam cães.

— Começam a despertar — disse Iakov — e eu que queria estar cedo na cidade... Foi-se-me o tempo contigo...

— De mim não há nada bom a esperar — disse Malva entre séria e zombeteira.

— Que mania tens tu de assustares a gente!

— Verás o melhor quando teu pai...

— Qual pai nem meio pai! — replicou ele rudemente. — Estás sempre a ameaçar-me com o meu pai. Julgas que sou ainda alguma criança? Estou por acaso nalgum convento? Nem eu sou cego, nem ele é santo para se privar daquilo que lhe apetece. Deixa-me pois em paz!

Malva perguntou-lhe com curiosidade:

— O que tencionas tu fazer?

— Eu? — E alteando os ombros num arranco de quem se esforça por levantar um grande peso. — Eu sou capaz de muito. Já sacudi a poeira do campo.

— Não te custou muito — replicou ela com ironia.

— hei de desagarrar-te de meu pai, sabes?

— Tu?

— Julgas que tenho medo?

— Deveras?

— Olha — ameaçou ele, encolerizado por aquele desafio — não me provoques, senão...

— Senão, o quê? — perguntou ela com indiferença.

— Nada!

Iakov fez um gesto arrogante e pimpão, como de quem desdenha alguma coisa.

— Que valente! O inspetor tem um cão negro, já o viste? Pois pareces-te com ele. De longe ladra e faz que quer morder; ao pé roja-se e começa a ganir.

— Ah, sim — exclamou ele desvairado pelo insulto. — Espera que vais ver quem eu sou!

Malva ria-lhe na cara.

Avançava para eles, lentamente, um homenzarrão alto e teso, de musculatura saliente e grande cabeleira vermelha. A blusa da mesma cor, desatada na cintura, estava rota nas costas até quase ao pescoço; e para que as mangas o não estorvassem tinha-as arregaçadas até os ombros. As calças tinham mais buracos que pano. Trazia os pés descalços. No rosto coberto de sardas brilhavam-lhe dois olhos azuis, grandes e irrequietos; o nariz largo e arrebitado imprimia à sua expressão qualquer coisa de altivo e arrogante. Ao chegar junto deles soprou com grande ruído e pôs-se a examiná-los detidamente e com um ar desdenhoso.

— Aqui o Serejka bebeu ontem de mais e está sem cheta nos bolsos. Emprestas-me vinte kopeks? E fica já sabendo que não tos pago.

Ouvindo aquelas palavras, Iakov desatou às gargalhadas enquanto Malva examinava curiosamente o recém-chegado.

— Dá-mos e caso-os por vinte kopeks. Querem?

— Que engraçado! És porventura bispo?

— Imbecil! Em Uglitch fui criado de um bispo. Dá-me os vinte kopeks.

— Não quero casar-me — disse Iakov.

— É o mesmo, dá-mos! Não direi a teu pai que lhe andas a cortejar a dama — acrescentou Serejka, passando a língua pelos lábios ressequidos e gretados.

— Quem acreditaria em ti?

— Quando falo todos acreditam em mim; senão...

— Julgas que me metes medo?

— Pois então vou-te para cima — disse ele, revirando os olhos.

Iakov não queria dar-lhe os vinte kopeks. Tinham-no advertido que se acautelasse com aquele homem. Não era grande coisa o que ele exigia; mas se recusasse, ou armava desordem ou tinha forçosamente de lhos entregar. Optou pelo último caso, metendo as mãos no bolso para tirar o dinheiro.

— Assim mesmo é que é! — disse Serejka, estiraçando-se na areia. — Os prudentes obedecem-me sempre... E tu — disse ele, dirigindo-se a Malva — quando te resolves a casar comigo? Vê se te apressas que eu não gosto de esperar.

— Estás esfarrapado como um pelintra — disse Malva. — Manda concertar a farpeia, depois falaremos.

Serejka olhou tristemente os seus andrajos e disse:

— Dá-me uma saia das tuas; é melhor.

— Isso! Isso! — exclamou ela, rindo.

— Dá-me alguma usada se tiveres.

— Era melhor que comprasses umas calças.

— Prefiro antes beber quartilhos.

— Sim, é melhor isso — interveio Iakov, que tinha ainda na mão os vinte kopeks.

— O bispo afirma que o homem não deve preocupar-se exclusivamente com o corpo, mas atender também às aspirações da alma. Ora a minha alma pede-me aguardente e não calças. Dá-me os vinte kopeks... Não direi nada a teu pai.

— Pois diz-lhe — replicou decididamente o outro, deitando o olhar a Malva e tocando-lhe num ombro.

Serejka, que observara o movimento, cuspiu, dizendo com ar de ameaça:

— Não perderás pela demora, descansa! Na primeira ocasião... e há de ficar-te na memória.

— Porquê? — interrogou o outro com inquietação.

— Eu cá sei... Então, quando é que nos casamos, Malva?

— Diz-me primeiro como é possível fazê-lo e de que viveremos em seguida. Então pensarei nisso — respondeu ela muito séria.

Serejka ficou um momento perplexo contemplando o mar; depois, lambendo os beiços, disse:

— Ora! Não faremos nada, passearemos.

— E como se arranja o sustento?

— Bah! — disse Serejka com um gesto de desprendimento. — Raciocinas como minha mãe: «Porquê? Como?» Que aborrecimento vocês me causam! Sei-o eu porventura? Bom! Toca a beber uma pinga! — Levantou-se e partiu sem se despedir, acompanhado de um sorriso estranho de Malva e de um olhar hostil do rapaz.

— Que farsante! — exclamou ele, logo que o viu a distância. — Na minha aldeia não mandaria tanto o valentão. Já teria apanhado a sua conta. Aqui todos o temem.

Malva mediu-o dos pés à cabeça, replicando:

— Não sabes quanto ele vale.

— Destes a cinco kopeks o cento.

— Isso é o que tu vales — replicou ela com desdém. — Tem visto muitas terras, percorreu todo o mundo e não tem medo de ninguém.

— E eu tenho por acaso medo de alguém? — disse Iakov, fanfarrão.

Malva não respondeu. Observava os movimentos da barca que parecia desejosa de se atirar à água, indignada contra o cabo que a retinha à costa.

— Porque te não vais embora? — perguntou Malva.

— Para onde queres tu que eu vá?

— Não disseste que tencionavas ir à cidade?

— Já não vou.

— Então vai ter com teu pai.

— E tu?

— O quê?

— Vais também?

— Não.

— Pois eu também não vou.

— Ficarás aqui todo o dia agarrado às minhas saias?

— Enganas-te se pensas que preciso de ti.

E, levantando-se, afastou-se rapidamente. Enganava-se agora que a não tinha ao pé. Descontente, sentia ganas de romper com o pai. De onde lhe viera aquela má vontade? Não a sentira antes daquele encontro da madrugada com Malva. Pensava agora que o pai o tinha sempre maltratado, mas quando estivera longe, naquela língua de terra que mal se distinguia. Era certo que Malva temia o pai. Se assim não fosse mostrar-se-ia ela tão reservada? Como lhe apetecia o seu corpo depois daquela rude peleja na água!

Caminhava pela praia, olhando os que passavam com modos aborrecidos e uma vontade cega de altercar.

Serejka está sentado em cima de um tonel à sombra de uma barraca. Roça as unhas pelas cordas de uma balalaica e canta com gestos desvairados:


Procura municipal

Toma cuidado, atenção!

Que antes de me recolher

Terei caído no chão.


Rodeiam-no uns vinte operários esfarrapados, fedendo a marisco e salitre. Quatro mulheres imundas, de cócoras na areia bebem chá que vazam de uma cafeteira de ferro. Um operário, já embriagado, apesar da hora matutina, escabuja no chão, fazendo esforços desesperados para se levantar. Outra mulher, mais longe, chora e ri ao mesmo tempo; ouve-se o som irritante de um acordeão desafinado. Por toda a parte reluzem escamas de peixe.

Pela hora do meio-dia, Iakov, descobrindo um lugar assombreado por montões de barricas, deixou-se cair preguiçosamente, adormecendo até ao anoitecer. Mal despertou, pôs-se a caminho, distraidamente, ao acaso, sentindo contudo que alguma coisa desconhecida o atraía. Depois de vagabundear durante duas horas, foi encontrar Malva, longe da armação, junto a um bosque de salgueiros. Estava estendida de lado e tinha nas mãos um livro velho, muito estragado. Sorria, vendo aproximar-se Iakov.

— Oh, lá! Onde tu estás! — exclamou ele, sentando-se-lhe ao lado.

— Procuravas-me há muito?

— Se te procurava? Que ideia! — replicou ele, lembrando-se, mau grado seu, que uma força estranha o impelira para ali.

— Sabes ler? — perguntou ela.

— Sim, mas esqueci já há muito.

— Também eu... Andaste na escola?

— Sim, na municipal.

— Eu aprendi sozinha.

— Deveras?

— Sim. Fui em Astrakan cozinheira de um advogado. O filho dele ensinou-me alguma coisa.

— Então não aprendeste sozinha!

Malva perguntou:

— Desejas ler livros?

— Creio que sim.

— Pois eu também gostava... Pedi este volume à mulher do inspetor e tenho estado a lê-lo.

— O que é?

— A história de santo Aleixo, um santo varão.

E contou-lhe depois, com muita seriedade, que um rapazito, filho de pais nobres e ricos, abandonara-os uma vez, com risco da fortuna e da posição elevada que o esperava, deitando-se a peregrinar por esse mundo fora. Voltara muitos anos depois, esfarrapado e mendigo, dando-se a conhecer somente à hora da morte. Malva terminou perguntando carinhosamente a Iakov:

— Que ideia o levaria a fazer aquilo?

— Sei lá! — retorquiu ele com indiferença.

Em torno elevavam-se montículos de areia que o vento ora fazia, ora desfazia. Vinha da armação um rumor surdo e confuso. O sol que começava a pôr-se acendia reverberações nas neblinas densas do poente. Os salgueiros enfezados agitavam brandamente as folhas ao vento fresco do mar.

Malva permanecia calada, com o pensamento errante nalgum mundo misterioso.

— Porque não foste hoje ao cabo? — perguntou ele.

— Tens muito interesse em sabê-lo?

Iakov pegou numa folha e pôs-se a mastigá-la lentamente. Contemplava a jovem de soslaio com desejos de lhe dizer tudo o que sentia por ela; mas não sabia por onde começar.

— Olha, quando estou sozinha na presença de uma tarde tão formosa como esta, dá-me vontade de chorar e de cantar ao mesmo tempo. O pior é que não sei canções decentes e envergonha-me chorar.

Iakov escutou aquela voz acariciadora e meiga como ainda a não ouvira, e que lhe acendia cada vez mais os desejos.

— Ouve! — disse ele de repente, como impulsionado por uma força interior. — Escuta o que te vou dizer... Sou moço...

— Doido! Doido... — replicou Malva, abanando a cabeça.

— Bem! — retorquiu ele, animando-se. — Para que preciso de juízo? Sou doido, está bem. Mas escuta! Se tu quisesses...

— Não digas mais... Cala-te!... Não quero!

— Porquê?

— Porque não.

— Não sejas tonta — disse ele, abraçando-a suavemente. — Escuta...

— Vai-te, Iakov! — ordenou com voz ríspida. — Vai-te!

Iakov levantou-se e deitou a vista em redor.

— Bem, não queres? Acabou-se. Pouco se me dá. Mulheres não faltam. Crês que não há outras tão bonitas como tu?

— Não passas de um fraldiqueiro — exclamou ela, levantando-se e sacudindo a areia das saias.

Voltaram para a armação ao lado ou do outro, silenciosos, enterrando-se nas dunas de areia.

De repente, já próximo das barracas, Iakov agarrou-lhe bruscamente num braço.

— Porque me excitas? Que ganhas tu com isso?

— Deixa-me, anda!

Serejka saltou de trás de uma barraca, com a cabeleira ondulando.

— Pegaram-se? Folgo com isso.

— Vai para o diabo! — exclamou Malva.

Iakov postara-se diante do outro, fixando-o com ares provocantes. Permaneceram assim alguns momentos, frente a frente, como dois carneiros dispostos a acometerem-se. De súbito afastou-se cada um para seu lado sem trocarem palavra.

O mar estava tranquilo e avermelhado pelos clarões ardentes do poente em sangue. Ouvia-se um ruído surdo na armação. Uma voz arrastada de mulher bêbeda entoava com um gemido de histérica, uma canção destrambelhada e sem sentido:


Ta agarga, metagarga,

Matanitcka a mim

Bêbeda e espancada

Com os cabelos caídos...


Aquelas palavras asquerosas, fedendo a obscenidade, ouviam-se por toda a parte, saindo do fundo lôbrego das barracas à mistura com o cheiro infeto a sal e peixe podre.


***


Acordava suavemente o mar envolto ainda nas brumas espessas dos primeiros alvores da madrugada. No cabo os pescadores concertavam os tresmalhos de pesca, pendendo ainda de sono.

Aquela faina que tão habitual se lhes tornara, executavam-na eles com rapidez e silenciosamente.

A massa cinzenta das redes estendia-se desde a areia até à barca onde se amontoava em grandes rolos pesados.

Serejka, descoberto e quase nu, como de costume, estava sentado à proa dando ordens com a voz rouca da bebedeira da noite anterior. O vento agitava-lhe os farrapos da blusa e os molhos cabeludos do largo peito.

— Onde estão os remos verdes, Basílio? — perguntou uma voz.

O guarda, sombrio como um dia de outono, ia enrolando as redes na barca, de costas para Serejka, que lambia os beiços com ganas de beber.

— Tens aguardente? — perguntou.

— Sim! — disse Basílio num grunhido impercetível.

— Bem, então fico em terra.

— Solta a amarra! — comandou Serejka, pulando para fora da barca. — Vão vocês que eu fico. Procurem bem o vento para não empecilharem as redes... Cuidado, não se façam nós... Toca a andar!

Os pescadores saltaram para dentro da barca, erguendo os remos no ar.

— Ala!

Os remos caíram de jato, impelindo a embarcação para o largo.

— Uma! Duas! — comandava o timoneiro.

A barca assemelhava-se a uma enorme tartaruga agitando automaticamente as suas patas.

— Uma! Duas!

Na praia, cuidando das outras redes, tinham ficado Basílio, Serejka e mais três homens.

Um destes deitou-se na areia, dizendo:

— Se pudéssemos dormir um bocado!

Os outros imitaram-no, estiraçando-se os três na areia em um montão informe.

— Porque não vieste domingo passado? — perguntou Basílio ao companheiro.

— Não pude vir.

— Embebedaste-te?

— Não, estive entretido a observar os requebros de teu filho com a madrasta — declarou Serejka fleumático.

— Já é uma ocupação — replicou Basílio com um sorriso forçado. — Afinal de contas já não são ambos crianças!

— Pior ainda. Ele é um imbecil; ela é uma cabra.

— Porque lhe chamas isso? Acha-la doida? — perguntou Basílio com o olhar inflamado.

— Sim.

— E desde quando?

— Sempre a tenho considerado como uma tresloucada. Crê, irmão Basílio, que a sua alma não é para aquele corpo. Compreendes o que quero dizer?

— Parece-me compreender... É a sua alma que é vil.

— Vil? Ah! Tu não percebes nada da vida. És como os mais. Tenha a mulher uns peitos grandes, que importa o caráter? Ora o que distingue os seres humanos é o caráter. Uma mulher sem caráter é como um pão sem sal. Que prazer pode dar uma balalaica sem cordas? Estúpido!

— Estás ainda bêbedo, meu amigo.

Basílio tinha vontade de interrogá-lo acerca do que ele sabia de Malva e Iakov. Faltava-lhe, porém, a coragem para se lhe dirigir abruptamente.

Entrando na barraca ofereceu-lhe um grande copo de aguardente pura, na esperança de que ele se abrisse em confidências sobre o caso.

Mas Serejka, depois de beber, tossiu e sentou-se à porta da barraca espreguiçando-se.

— Quando bebo parece-me que engulo fogo — disse ele.

— A verdade é que tu sabes beber — replicou Basílio, admirado da presteza com que ele emborcava o copo de aguardente.

— Sim — replicou o outro abanando a cabeça. E enxugando os bigodes com as costas das mãos, acrescentou doutoralmente: — É verdade, sei pegar num copo... Tudo faço com limpeza e sem vacilar, sem titubear... Caminhar direito, sempre em frente, eis a questão. Pouco importa onde se vá dar... Não se pode sair da terra...

— Desejavas ir ao Cáucaso? — perguntou Basílio para o fazer dar à língua.

— Irei quando me der na gana. Desejando uma coisa, é dito e feito! Uma, duas, ala! Obstáculo que se me depare salto por cima dele... É muito simples.

— Muito simples... O pior é que a falta de senso pode causar inconvenientes.

— Como tu és inteligente e esperto!... Quantas vezes te açoitaram em público? — replicou Serejka maliciosamente.

Basílio não respondeu.

— Muitas vezes, talvez... E de que te valeu o teu bom senso? Olha, cá estou eu que não me preocupo com coisa nenhuma, faço aquilo que muito bem entendo, e com certeza hei de ir parar mais longe que tu.

— É possível. Talvez consigas ir parar à Sibéria.

— Ora aí está! É isso mesmo — rompeu Serejka às gargalhadas.

O maldito não se embebedava como Basílio supunha. Não lhe queria dar mais aguardente; mas Serejka, na dúvida, emborcou novo copo sem esperar que o camarada lho oferecesse.

— Porque não me perguntas por Malva?

— Que tenho eu com ela? — respondeu Basílio, aparentando indiferença.

— Como não te apareceu no domingo devias procurar saber o que era feito dela. Bem sei que tens ciúmes.

— Ora! Há muitas como ela.

— Muitas? Deveras? Vocês são todos uns labregos. Acham tão doce o mel como o alcatrão!

— Porque estás tu agora a defendê-la. Tens ideia de ma propores para casamento? Por fortuna que há já muito que me casei com ela — disse Basílio com ironia.

Serejka, depois de alguns momentos de silêncio, colocou-lhe a mão no ombro e pôs-se-lhe a falar com intimidade.

— Julgas que não sei? Ela está amuada contigo. Não queria desconsolar-te; mas como vejo que teu filho Iakov lhe anda a arrastar a asa, julgo um dever prevenir-te. Chega-lhe, ouviste? Senão chego-lhe eu! Tu és robusto, posto que um pouco estúpido... Olha que não te tenho nunca estorvado!

— Pensarás nisso agora? — perguntou Basílio surdamente.

— Se tivesse essa ideia, podes ter a certeza de que já os tinha separado um do outro. Importa-me lá saber dela!

Basílio olhava-o ainda com desconfiança. Compreendia perfeitamente diante daqueles modos francos que Serejka nenhum caso faria de Malva.

Todavia acrescentou:

— Mas não deixas de te interessar por ela. Porque é isso?

— Talvez o diabo o saiba... Afinal de contas, é uma mulher... picante. Distrai-me e às vezes... causa-me lástima.

— Se fosse honesta tinhas motivo para lastimá-la. Mesmo assim...

O outro não respondera, entretido a observar as voltas que a barca dava para atracar à margem. O rosto vermelho de Serejka tinha uma expressão de sinceridade comovente.

— Tens razão — disse Basílio — é uma pobre moça com a diferença de ser um pouco leve de cabeça, como tu dizes... Ah, Iakov, terás notícias minhas, cão!

— Não gosto dele, cheira a torrão, que é coisa com que embirro.

— E o velhaco anda atrás dela? — perguntou Basílio entre dentes e dando puxões à barba.

— Julgo que sim. Verás tu como ele se coloca entre vocês à laia de tabique.

— Mas é que o racho se ele se atreve a tanto. Aconselha-o que não experimente.

Subitamente, abriu-se no horizonte um grande leque de luz emergindo acima da superfície do mar. Através do marulho das ondas chegou uma voz longínqua vinda da barca.

— Puxem!

— Eh, lá! Arriba! À corda — comandou Serejka, levantando-se.

Os cinco homens puxaram rapidamente a rede. A outra ponta estava presa na barca que corria velozmente sobre as ondas, balanceando a verga para a direita e para a esquerda. O sol deslumbrante e soberbo resplandecia sobre o mar como um grande globo de ouro.

— Se encontrares Iakov, não te esqueças de lhe dizer que venha ver-me — recomendou Basílio.

— Sim, fica descansado.

A barca abicou à margem, deitando-se os pescadores à água para acabarem de puxar as redes. Os dois grupos iam-se aproximando pouco a pouco, reunindo os extremos da rede, cujas boias de cortiça flutuavam, formando um semicírculo regular.


***


Ao anoitecer daquele dia, quando já os operários da armação tinham acabado de cear, Malva, cheia de cansaço e de aborrecimento, sentara-se numa barca velha de quilha para cima, contemplando o mar que começava a envolver-se nas sombras do crepúsculo.

Brilhava ao longe uma fogueira que Malva adivinhava ser de Basílio, e onde os seus olhos pousavam arrastados involuntariamente para aquele clarão. A chama perdida no horizonte erguia-se umas vezes para o ar, soprada pela brisa, outras vezes chegava quase a desaparecer, tornando-se um pequenino ponto luminoso.

Sentia-se oprimida diante daquele ponto vermelho abandonado no deserto, palpitando como uma coisa viva entre o infatigável murmúrio das ondas.

— Que fazes tu aqui? — perguntou a voz de Serejka, erguendo-se detrás dela.

— Que tens tu com isso? — replicou ela secamente.

— É curioso — monologou ele, acendendo um cigarro e sentando-se na barca ao lado dela.

Percebendo a indisposição de Malva, disse-lhe, amaciando a fala:

— Que mulher extraordinária que tu és! Tão depressa foges de todos como te entregas a qualquer que te apareça.

— A ti talvez!

— A mim não, mas Iakov que o diga.

— Mete-te inveja?

— Olha, queres que te fale claro?

— Pois fala — respondeu ela.

— Rompeste com Basílio?

— Não sei. Porque mo perguntas?

— Por curiosidade.

— Estou zangada com ele.

— Porquê?

— Bateu-me.

— A sério, bateu-te? E tu consentiste? Essa não está má! — exclamou ele pasmado, fixando com insistência o rosto de Malva.

— Se eu quisesse não me tinha batido — afirmou ela com expressão sombria.

— Então como te arranjaste?

— Fui eu que não quis defender-me.

— Tanto estimas esse gato cinzento — disse Serejka, atirando um punhado de areia. — E eu a julgar que tu valias mais do que ele!

— Não quero nenhum de vocês — disse Malva com indiferença, revolvendo a areia com as mãos.

— Estás a mentir.

— Para que havia de mentir? — perguntou ela, soberba.

Serejka compreendeu pelo timbre da sua voz que efetivamente Malva falava verdade.

— Se não gostas dele para que o deixaste bater-te?

— Que sei eu... Olha, deixa-me sossegada!

— Tem graça — disse Serejka pensativo.

Calaram-se. A noite aproximava-se, estendendo as suas sombras pelo mar. As ondas bramiam com força.

A fogueira extinguira-se completamente. Serejka continuava a examinar a jovem, cujos olhos se fixavam insistentemente no sítio longínquo onde o clarão brilhava há pouco.

— Escuta — disse ele. — Sabes porventura o que queres?

— Se o soubesse! — replicou ela com amargura.

— Não sabes. Pois é mau isso — afirmou Serejka sentenciosamente. — Eu cá sei-o sempre. — E acrescentou com um acento de tristeza: — Mas raramente sucede que eu queira alguma coisa.

— Mas raramente sucede que eu queira alguma coisa — repetiu Malva. — Quero... o quê? Nem eu sei. Às vezes quisera meter-me numa barca e perder-me ao longe na vastidão infinita das ondas. Outras vezes desejaria que os homens se transformassem em piões e dessem voltas sem descanso. Alegrar-me-ia vê-los assim. E tão depressa sinto lástima de todos, sobretudo de mim própria, como sinto desejos de matar todos e a mim própria dar uma morte horrível. Quero rir e aborreço-me, porque, afinal, todos os homens não merecem um pouco de atenção; são volúveis como piões.

— De madeira podre — acrescentou Serejka. — Bem dizia eu: Não és gato, nem pássaro, nem pez... És um pouco de tudo... Em nada te pareces com as outras mulheres.

— Graças a Deus — replicou ela, sorrindo.

À sua esquerda, por detrás de uma cordilheira de colinas arenosas apareceu subitamente a lua, inundando de um jato luminoso a planície deserta.

Redonda e suave, erguia-se majestosamente no azul, empalidecendo as estrelas com a sua claridade melancólica.

— Pensas de mais, eis o teu mal — sentenciou Serejka com convicção, atirando a ponta do cigarro. — Quando se pensa demasiadamente, aborrece-se a gente de viver... É preciso estar-se sempre em ação e sentir-se a vida girar em torno de nós. Agita-te para todos os lados, move-te em todas as direções, não repouses um momento e verás como te não aborreces.

Malva replicou:

— Talvez seja verdade o que tu dizes. Às vezes parece-me que me divertiria muito, se pusesse fogo às barracas.

— Assim! Assim! — exclamou Serejka entusiasmado, dando-lhe palmadas no ombro. — Era isso o que eu queria dizer... Nós dois podíamos fazer uma partidinha engraçada, queres?

— O que é? — perguntou Malva com animação.

— Aqueceste bem Iakov?

— Arde que nem uma fogueira.

— Pois atiça-o contra o pai. Verás o bonito! Vão agarrar-se como dois ursos... Açula o velho e depois o outro, e toca a lançá-los para a dança!

Malva atentava naquele rosto comido de sardas e que, iluminado pela lua, parecia agora com menos manchas.

Não sentia ódio nem rancor; animava-se, porém, pensando nas eventualidades daquela aventura.

— Porque os odeias tu? — perguntou ela.

— Eu? O Basílio é um bom homem, mas o filho não vale nada. Embirro com os labregos: são todos matreiros. Fingem-se desgraçados para lhes darem esmolas. Fui cocheiro de vereador. Tive ocasião de conhecer muitos camponeses. Vagabundeei muito tempo. Quando chegava a um povo perguntavam-me logo: Quem és? O que fazes? Deixa cá ver o teu passaporte! Bateram-me muitas vezes sem motivo. Prenderam-me injustamente. Lastimavam-se a dizer que não podem viver possuindo muitas vezes terras. Que mal lhes tinha eu feito?

— Não és camponês?

— Sou cidadão do Uglitch — replicou Serejka com orgulho.

— Pois eu sou de Pavlicha — disse por sua vez Malva.

— Assim ninguém me protege, ao passo que os camponeses têm o município que os auxilia.

— O que é um município?

— Um município? O diabo me leve se eu sei que isso é! É o conselho deles... Mas deixemos isso. Falemos antes do que nos interessa. Queres preparar esse enredo? Não resultará mal nenhum. É só para vê-los pegados um pouco. O Basílio bateu-te? Pois bem, o filho que lhe devolva as pancadas com que te mimoseou.

— E porque não? — disse Malva, sorrindo com a ideia.

— E que belo é verem-se duas pessoas engalfinhadas só por uma palavra, só por um olhar nosso! Basta dar um pouco à língua.

Serejka instigava-a, mostrando-lhe os encantos do papel que ela representaria naquela contenda entre pai e filho.

Às vezes falava meio sério, meio zombeteiro, chegando a entusiasmar-se pelo que dizia.

— Ah, se eu fosse uma mulher formosa que zaragata não armava agora! — concluiu ele. E apertando a cabeça nas mãos fechou os olhos e calou-se.

Ia já a lua alta quando se separaram os dois.

A noite tornava-se cada vez mais encantadora. A lua faiscava cintilações, ardentes, formando como que uma estrada luminosa, vinda do seio do mar até à margem onde se desfaziam as ondas. As barracas longínquas, sob os vapores brancos da noite semelhavam esquifes negros repousando. Os salgueiros agitavam levemente as suas folhas. E um silêncio enorme, impregnado de luz, caía sobre as coisas como a bênção serena de um Deus.


***


Pai e filho estavam ambos sentados na barraca em frente um do outro, bebendo aguardente que o último trouxera para amansar o velho. Serejka prevenira Iakov que o pai estava danado com ele por causa de Malva, ameaçando desancá-lo se a moça se atrevesse a dar-lhe trela. Iakov suspeitava e Serejka confirmara que Malva o não queria com medo de alguma sova tremenda.

Serejka fartara-se de caçoar com ele: «Olha que o velho chega-te deveras. Puxa-te as orelhas até ficarem do comprimento de um palmo. O melhor que te pode acontecer é não te encontrares com ele.»

As palavras do pele vermelha tinham provocado em Iakov um grande ressentimento contra seu pai. Era por causa dele que Malva não queria entregar-se-lhe. Ora lhe prometia, ora lhe negava, acirrando-lhe os desejos até à loucura.

Iakov resolveu-se a ir ter com o pai. Afigurava-se-lhe um obstáculo erguido no seu caminho que era necessário saltar, desse por onde desse. Sentindo-se forte contra o seu adversário tinha tentações de lhe dizer: «Toca-me, anda, se te atreves!»

Tinham já bebido três copos cada um sem tocarem mormente em assunto de importância, limitando-se a insignificantes observações acerca da vida que se levava na armação. Sozinhos à beira de água, acumulavam no interior um ódio que ambos adivinhavam estar prestes a rebentar.

As esteiras das barracas entrechocavam-se agitadas pelo vento, e o trapo vermelho, que flutuava na extremidade do mastro, parecia murmurar alguma coisa incompreensível. Aqueles ruídos eram tímidos e vagos como o cicio de uma reza. As ondas mugiam soltas e impacientes.

— Continua a embebedar-se esse diabo do Serejka? — perguntou Basílio bruscamente.

— Todas as noites apanha a sua tachada — respondeu Iakov, deitando aguardente no copo do pai.

— há de acabar mal. Eis a que nos leva uma vida desregrada. E tu vais pelo mesmo caminho!

O filho, que detestava Serejka, replicou:

— Nem quero ter parecenças com ele.

— Não? — pronunciou Basílio de sobrecenho carregado. — Eu cá sei o que digo... Há quanto tempo estás tu aqui? Há já dois meses. Brevemente tens que te pôr a caminho. Quanto poupaste já?

— Em tão pouco tempo não me é possível juntar dinheiro — objetou o moço judiciosamente.

— Estás-te a tornar fino... O melhor que tens a fazer é voltares para a aldeia.

Iakov sorriu.

— Que significa esse riso? — perguntou Basílio irritado pela fleuma do rapaz. — Então tu zombas do que te diz teu pai? Julgas-te já livre e senhor de ti? Tenho de pôr-te novamente a cabeçada.

O rapaz encheu o copo e bebeu. Aquelas palavras grosseiras ofendiam-no, despertando nele uma cólera súbita. Mal se continha ocultando a raiva para não enfurecer o pai. Começava a sentir-se intimidado diante daquele rosto severo e ameaçador.

Basílio acabou por desesperar completamente, notando que o filho não lhe deitara aguardente.

— Então teu pai diz-te «Vai para casa!» e tu pões-te a rir das suas palavras? Bem! Não tenho outro remédio senão falar-te de outra maneira. Pede a féria no sábado e marcha! Ouviste?

— Não vou — disse Iakov com firmeza.

— O quê? — exclamou Basílio, apoiando as mãos no tonel e levantando-se. — Ouviste o que te disse? Ah, cão, que ladras contra teu pai! Esqueceste-te que posso fazer de ti o que quiser?

Congestionava-se-lhe o rosto.

— Não esqueci nada — replicou Iakov humilde. — E tu não esqueceste porventura nada?

— Pois tu atreves-te a dar-me lições de moral? Espera que eu te governo.

Iakov mal teve tempo de suster a mão do pai, que desabava sobre a sua cabeça. Sentindo invadi-lo uma cólera selvagem, rugiu por entre os dentes:

— Não me toques! Olha que não estamos na aldeia!

— Cala-te! Em toda a parte sou teu pai!

— Aqui não me poderás açoitar; cantam as coisas de outra maneira — disse Iakov levantando-se.

Estavam diante um do outro como dois tigres medindo-se. Basílio com os olhos injetados de sangue atirou um copo à cara do filho, que se afastou rapidamente, adivinhando os movimentos do velho. Entre um e outro erguia-se o tonel que servia de mesa.

— Pensas que não sou capaz de te zurzir? — regougou Basílio com voz vibrante, agachando-se à semelhança de um gato para preparar o salto.

— Aqui todos somos iguais. Eu sou um operário, tu és outro.

— Ah, sim?!

— É assim mesmo. Porque me ameaças?

— Julgas que eu te não percebo? Foste tu que começaste a implicar...

Basílio soltou um grito, levantando o braço tão rapidamente que Iakov não teve tempo de desviar-se. Um formidável murro caiu na cabeça do rapaz, que vacilou como que atordoado, recuando.

— Espera! — continuava o velho, cerrando os punhos.

— Espera tu!

— Pois atreves-te a falar assim a teu pai, ladrão?

Começou a luta dentro da barraca. Iakov, pálido e coberto de suor, com os dentes cerrados e os olhos fuzilando, recuava lentamente às arremetidas do pai, que bramia de raiva como um javali danado.

— Basta, basta! — gritava Iakov, contendo-se e saltando para fora da barraca.

O velho adiantava-se, rugindo e descarregando golpes que Iakov aparava nos braços.

— Toma! Toma!

Iakov zombava afinal daquela fúria, sentindo-se mais forte do que o pai.

— Espera, espera um pouco!

O moço de um pulo chegou até à beira da água. Basílio seguia-o com a cabeça baixa e os braços estendidos; mas, encontrando qualquer obstáculo, deixou-se cair de bruços. Sentou-se com as mãos apoiadas na areia. Completamente extenuado por tamanhos esforços, pôs-se a gemer com raiva impotente, sentindo a dolorosa consciência da sua fraqueza.

— Maldito sejas! — exclamou com a boca suja de espuma.

Iakov recostara-se na barca, contemplando-o com atenção. Apalpava a cabeça, enxugando o suor que lhe escorria do peito branco e luzente como se estivesse humedecido de azeite. Sentia desprezo por aquele homem derrubado que ameaçava baldadamente e sorria com essa indulgência ofensiva que sente o forte pelo mais fraco.

— Raios te partam! Maldito sejas tu para sempre!

Basílio lançou aquela maldição com tanta ânsia e com tanta força, que os olhos do moço involuntariamente se dirigiram para a armação como se ali pudessem tê-lo ouvido.

Depois, cuspindo desdenhosamente, disse para o pai:

— Grita! Grita com mais força! Julgas que me metes medo? Desembucha para aí tudo o que tiveres a dizer.

— Cala-te! Vai-te para longe da minha vista!

— Não voltarei para o campo! hei de passar aqui o inverno — replicou o rapaz sem se importar com as suas palavras e espreitando-lhe todos os movimentos. — Está-se aqui melhor. O trabalho fatiga menos e há muito mais liberdade... Ali mandarias em mim como num escravo: experimenta fazê-lo aqui.

Fez-lhe uma carantonha tão provocante que Basílio, recobrando o ânimo, pegou num remo, deitando a correr para ele.

— Fazes isso a teu pai? Espera aí! Ah, hei de matar-te!

Quando chegou junto da barca, já Iakov estava longe. Atirando-lhe o remo num último esforço, deixou-se cair junto da barca, arranhando furiosamente a madeira, enquanto o outro lhe gritava de longe:

— Pois não te envergonhas disto? Um velho pôr-se em tal estado por causa de uma mulher perdida... Não, não vou para a aldeia! Vai tu, se quiseres... Nenhuma falta ficas fazendo...

— Cala-te, Iakov — ordenou Basílio, cobrindo as palavras do filho. — hei de matar-te, cão!

Iakov afastava-se lentamente, rindo daquelas ameaças vãs.

Basílio olhava-o como louco. Via o seu vulto desaparecer pouco a pouco por detrás das dunas. Primeiro as pernas, depois os ombros, finalmente a cabeça. Numa curva apareceu novamente Iakov já muito longe, atirando-lhe palavras que o outro não entendia.

— Maldito! Maldito sejas para sempre!

Iakov fez um último gesto, tornando a ocultar-se por detrás dos grandes montes de areia.

Basílio ficou ainda por muito tempo com o olhar fixo no ponto onde o filho desaparecera. Depois levantou-se, vacilante e trémulo, sentindo os membros pesados e doridos. Entrando na barraca viu que tudo ali ficara em desordem. Sacou a garrafa de aguardente oculta numa ruma de sacos, aproximando-a da boca com sofreguidão. A garrafa tremia-lhe nos dentes, entornando o líquido pela barba e ao longo do peito descoberto. O álcool parecia-lhe água.

Embrulhavam-se-lhe as ideias, palpitava-lhe o coração desordenadamente e doíam-lhe as costas como se lhe tivessem malhado em cima.

— Estou velho! Já não presto para nada — murmurou ele profundamente desalentado. Deixou-se cair na areia junto da porta da barraca. Diante dele estendia-se o mar a perder de vista, forte e soberbo, com o peito arquejante mordido do sol.

Riam as ondas murmuradoras e inquietas. Basílio contemplava a vasta superfície das águas, lembrando-se das palavras do filho: «Se tudo aquilo fosse terra para lavrar...» Friccionou o peito com força e, lançando a vista em redor, suspirou profundamente, ao mesmo tempo que o invadia um sentimento horrível de tédio e de amargura. Inclinava-se para a terra como se tivesse um grande fardo sobre as costas. Tossiu e persignou-se, olhando o céu, absorto num pensamento estranho que lhe surgiu.

Porque se metera ele com uma perdida, abandonando a mulher com quem vivera honradamente mais de quinze anos?

Era agora o Senhor que castigava com a rebeldia do filho! Sim, era o castigo do Senhor! O filho desprezara-o, arrancara-lhe o coração e nem era bastante a morte para lhe fazer pagar as suas injúrias. E tudo por uma prostituta! Que pecado tão grande esquecer a mulher, o filho, por causa dela!

E o senhor, na sua justa cólera, lembrara-lhe o seu crime, servindo-se do filho para o ferir em pleno peito. Sim, era justo! Era o castigo do Senhor!

O sol desaparecera por detrás da curva das águas. Um crepúsculo azulado descia suavemente, envolvendo as coisas de mistério.

A brisa acariciava o rosto do velho inundado de pranto e transfigurado pelo arrependimento numa súbita revelação inexplicável.


***


Iakov partiu no dia seguinte com um grupo de marinheiros. Iam pescar o esturjão para o mar alto a bordo de uma barca que um vapor rebocava. Ao cabo de cinco dias, veio sozinho a terra buscar mantimentos num barco de vela, desembarcando à hora do meio-dia quando os operários estavam a descansar. Fazia um calor horrível. A areia e as espinhas feriam-lhe os pés, arrependendo-se agora de ter vindo descalço. Não se decidia a voltar para o barco, sentindo um grande desejo de ver Malva. Durante as longas horas que passara no mar, tinha-se lembrado muitas vezes dela. Ansiava por saber se ela se tinha tornado a encontrar com o pai, e o que teriam ambos dito dele. Talvez o velho a tivesse zurzido! Melhor... Estaria mais dócil e com menos vontade de provocar.

Dormitava a armação. As barracas, com as janelas abertas de par-em-par, pareciam não poder com tanto calor. Nas oficinas, o inspetor tosava um rapazelho. Ouviam-se vozes cochichando por detrás dos montões de barricas.

Iakov dirigiu-se para aquele lado. Parecia-lhe ter ouvido a voz de Malva. Deteve-se, porém, dando com a vista num grupo de pessoas.

À sombra estiraçava-se Serejka com as mãos cruzadas por baixo da nuca; a seu lado conversavam Basílio e Malva.

Iakov pensou: «Porque estará ele aqui? Abandonaria o lugar para vigiá-la melhor? Velho gaiteiro! Se minha mãe soubesse de todos estes enredos! Não era talvez melhor ir-se embora?»

— É isso — dizia Serejka. — Temos de nos despedir. Estás então disposto a ir arranhar nos torrões?

Iakov estremeceu de alegria.

— É verdade, vou-me embora! — respondeu o velho.

Ouvindo aquelas palavras, o moço apresentou-se.

— Bons dias!

O pai deitou-lhe um olhar sereno. Malva ficou indiferente enquanto Serejka, estendendo uma mão, disse, adoçando a voz:

— Eis o nosso querido Iakov que chega de longes terras! — E acrescentou depois em tom natural: — Temos que esfolá-lo vivo e fazer tambores da pele.

Malva sorria suavemente.

— Que calor! — bufou o rapaz, sentando-se ao lado dela.

Basílio contemplava-o de novo, mau grado seu.

— Desde ontem que te espero aqui, Iakov. O inspetor disse-me que tu vinhas hoje.

Tinha a voz mais fraca e a figura completamente abatida.

— Vim buscar provisões — disse ele pedindo um cigarro a Serejka.

— Não dou tabaco a imbecis — replicou Serejka.

— Volto para casa, Iakov — disse Basílio com voz grave, remexendo a areia.

— Porquê?

— Não te importes. E tu... ficas?

— Se fico? O que faríamos os dois em casa?

— Bem, como quiseres. Já não és criança. Mas lembra-te que mal posso trabalhar: perdi o hábito. Lembra-te também de tua mãe.

Custava-lhe muito falar. Mal pronunciava as palavras, afagando a barba com as mãos trémulas.

Malva olhava para ele sem dizer nada. Serejka observava de revés o moço que tinha os olhos baixos para ocultar o seu contentamento.

— Não te esqueças de tua mãe, Iakov! Lembra-te de que és tu o seu único filho.

— Sim, bem o sei — replicou o moço, encolhendo os ombros.

— Folgo de que o saibas — disse Basílio com um olhar de desconfiança. — Que o não esqueças nunca!

— Está bem — replicou Iakov.

Basílio suspirou profundamente. Estiveram momentos sem trocar palavra quando Malva lembrou de repente:

— Está prestes a tocar a sineta.

— Bem, vou-me embora! — disse Basílio, levantando-se. Os outros imitaram-no. — Adeus, Serejka... Se fores alguma vez ao Volga, não te esqueças de ir ver-me. Distrito de Simbirks, povo de Maslo, próximo de Nicolo-Likovsk.

— Está dito — respondeu Serejka.

E apertou entre as suas a mão que aquele velho lhe estendera inchada de veias e coberta de pelos vermelhos. Sorriu ao ver a expressão contristada de Basílio.

— Nicolo-Likovsk é uma vila muito conhecida. Fica a quatro verstas da minha aldeia — explicava Basílio.

— Bem, irei até lá quando passar por esses sítios.

— Adeus.

— Adeus, amigo.

— Adeus, Malva! — murmurou o velho, desviando os olhos.

Malva, limpando os lábios, deitou-lhe os braços ao pescoço, beijando-o três vezes na boca e nas faces.

Basílio perturbava-se, murmurando palavras confusas. Iakov, de cabeça baixa, dissimulava um sorriso de ironia.

Serejka disse-lhe:

— Vais apanhar muito calor, Basílio.

— Não importa... Adeus, Iakov.

— Adeus.

Estavam diante um do outro confrangidos, sem saberem o que dizer. Aquela triste palavra «adeus» tantas vezes pronunciada despertou na alma do rapaz um sentimento de compaixão que não sabia como manifestar. Beijá-lo-ia como Malva ou limitar-se-ia a estender-lhe a mão como fizera Serejka?

Aquele embaraço fazia sofrer o velho, que se sentia envergonhado, lembrando-se da cena do cabo e dos beijos de Malva.

— Pensa em tua mãe!

— Sim, já sei — replicou o moço com expressão agradável. — Não tenhas receio...

— Sejam felizes. Que Deus os proteja... Não guardem ressentimentos de mim. Serejka, a cafeteira está enterrada na areia ao pé da porta da barraca.

— Para que diabo quer ele a cafeteira? — perguntou bruscamente Iakov.

— Fica no cabo em meu lugar — explicou Basílio.

Iakov deitou a Serejka um olhar invejoso e, fixando Malva, baixou subitamente os olhos.

— Adeus, irmãos, adeus!

Malva saiu atrás dele.

— Acompanho-te um pouco.

Serejka estendeu-se no chão, agarrando numa perna de Iakov, que começou fazendo esforços por se soltar.

Serejka apanhou-lhe a outra perna.

— Senta-te aqui.

— Que maluquice é essa?

— Não é maluquice; senta-te!

Iakov obedeceu, perguntando por entre os dentes:

— O que queres tu?

— Espera... Deixa-me refletir primeiro. Depois falarei...

O moço submeteu-se por fim com docilidade. Malva e Basílio afastaram-se silenciosos e comovidos. Os olhos de Malva tinham um brilho estranho. Basílio, dominado por sombrias apreensões, caminhava aos solavancos, enterrando-se desastradamente na areia.

— Vasia?

— O que é?

— Fui eu que te malquistei com teu filho, mas não foi propositadamente, crê. Poderiam ter vivido aqui ambos em paz — disse ela com voz tranquila, sem sombra de arrependimento.

— Para que o fizeste então?

— Não sei... por nada. — E encolheu os ombros, sorrindo.

— Bonito modo de proceder!

Malva continuava silenciosa.

— hás de perder meu filho de todo, desgraçada! Não temes Deus, não temes coisa nenhuma... O que vai tu fazer agora?

— Que vou fazer? Sei lá! — respondeu Malva com uma sombra de despeito.

— Sim, diz-me, o que vais tu fazer de meu filho?— interrogou Basílio com veemência.

Sentia um violentíssimo desejo de lhe bater, de lhe espicaçar o peito e de a enterrar depois na areia. Uma cólera surda fazia-lhe ranger os dentes e ia talvez atirar-se a ela quando, ao voltar-se para trás, avistou Serejka e Iakov que os observavam.

— Vai-te, senão esmago-te! — murmurou ele com voz sufocada.

Tinha os olhos injetados de sangue. As mãos tremiam-lhe convulsivamente na ânsia de agarrar os cabelos de Malva e arrastá-la como um farrapo pelo chão.

Subitamente acalmou-se.

— Merecias que te matasse! Mas não faltará quem o faça um dia.

Malva sorriu com benevolência e, respirando profundamente, disse:

— Então? Basta já... Adeus!

E voltou-se bruscamente, afastando-se dele. Basílio continuava a cobri-la de injúrias.

A moça tranquilamente pôs-se a caminhar ao longo da praia, apagando propositadamente as pegadas de Basílio.

Chegando ao pé das barricas, Serejka perguntou-lhe:

— Despediste-o já?

A moça fez um sinal afirmativo sentando-se junto dele.

— Chorou? — inquiriu Serejka.

Malva não respondeu, limitando-se a perguntar-lhe:

— Quando partes para o cabo?

— Esta tarde.

— Vou contigo.

— Está bem.

— Eu vou também — exclamou de repente Iakov.

— Convidou-te alguém, para vires cá meter-te? — perguntou Serejka.

Na armação tocaram a sineta, dando sinal para recomeçar o trabalho. O som parecia vir de muito distante amortecido pelo barulho das ondas.

— Convida-me ela — disse Iakov, contemplando-a com um olhar insolente.

— Eu? Preciso de ti para alguma coisa?

— Falemos a sério, Iakov — disse Serejka com tranquilidade. — Se lhe tocas com a ponta de um dedo esmago-te a cabeça. E eu então que tenho uma perícia nessas coisas!

Iakov retrocedeu um passo e disse com voz sumida:

— Não te adiantes, que ela é...

— Cala-te que é melhor. Não serás tu, cão, quem há de devorar o cordeiro. Contenta-te com os ossos e já é muito... O que estás tu a olhar?

Os olhos verdes de Malva fixaram Iakov com um grande desdém; o seu belo corpo aproximou-se de Serejka com um ar tão provocante que o moço sentiu passar-lhe uma nuvem diante dos olhos, mordido de ciúme e desespero.

Afastaram-se os dois, abraçados, zombando do aspeto trágico do moço.

Iakov enterrou com força um pé na areia e permaneceu assim muito tempo com o peito ofegante e o olhar incendiado.

Ao longe, sobre as dunas imóveis, agitava-se uma figura humana, tornando-se cada vez mais pequena com a distância. Iakov via o homem sacudir a cabeça com movimentos bruscos, talvez para fazer cair as lágrimas — lágrimas de humilhação e de dolorosa incerteza. À sua direita brilhava o sol arrancando faíscas do aço polido do mar. Para a esquerda erguiam-se as dunas de areia, desertas e uniformes, até aos confins ilimitados do horizonte.

Na armação começava a ativar-se o trabalho. Iakov ouviu a voz de Malva, elevando-se por sobre a das outras mulheres, dizer:

— Quem me tirou a minha faca?

Murmuravam as ondas, irradiava o sol, sorria o mar...

 

 

                                                                  Máximo Gorki

 

 

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