Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MAMÃE E O SENTIDO DA VIDA / Irvin D. Yalom
MAMÃE E O SENTIDO DA VIDA / Irvin D. Yalom

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Crepúsculo. Talvez eu esteja morrendo. Formas sinistras cercam minha cama: monitores cardíacos, tubos de oxigênio, frascos de soluções intravenosas, espirais de tubos plásticos — as entranhas da morte. Fechando os olhos, mergulho na escuridão.

Em seguida, entretanto, pulo da cama, saio correndo do quarto de hospital e caio bem no meio do brilhante e ensolarado parque de diversões Glen Echo, onde passei muitos domingos de verão em décadas passadas. Ouço música de carrossel. Respiro a fragrância úmida e caramelada de pipoca e maçãs do amor. E ando direto para a frente — sem titubear no estande da Torta Gelada do Urso Polar, na montanha-russa dupla ou na roda-gigante — para tomar meu lugar na fila dos bilhetes para o trem fantasma. Comprado o bilhete, espero o carrinho seguinte fazer a curva e parar num solavanco à minha frente. Depois de entrar e abaixar a barra de segurança, para me prender confortavelmente no assento, dou uma última olhada ao redor — e lá, em meio a um pequeno grupo de pessoas, eu a vejo.

 

 

 

 

Aceno com os dois braços e chamo, alto o bastante para todo mundo ouvir: "Mamãe! Mamãe!" Nesse exato momento, o carrinho arranca e bate na porta dupla, que se abre num vaivém e revela a boca negra escancarada. Inclino-me para trás o máximo que posso e, antes de ser engolido pela escuridão, chamo novamente:

— Mamãe! Mamãe! Como me saí, mamãe? Como é que eu me saí?

Mesmo quando levantei a cabeça do travesseiro e tentei me desvencilhar do sonho, as palavras ficaram presas em minha garganta:

— Como me saí, mamãe? Mamãe, como é que eu me saí?

Mas mamãe está sete palmos embaixo da terra. Mortinha da silva há dez anos, num caixão de pinho comum num cemitério de Anacostia, nos arredores de Washington. O que resta dela? Apenas ossos, suponho. Não há dúvida de que os micróbios acabaram com todos os restos de carne. Talvez sobrem algumas mechas de cabelos finos e grisalhos — talvez alguns vestígios brilhantes de cartilagem continuem presos nas pontas dos ossos maiores, o fêmur e a tíbia. E, ah, sim, a aliança. Aninhada em algum lugar da poeira de ossos deve estar a fina aliança de casamento de prata filigranada, que meu pai comprou na rua Hester pouco depois de eles chegarem a Nova York, na terceira classe do navio, vindos de uma shtetl[1] russa a meio mundo de distância.

Sim, faz muito tempo que ela se foi. Dez anos. Morta e decomposta. Nada além de cabelos, cartilagem, ossos e uma aliança de casamento de prata filigranada. E a imagem dela, rondando minhas lembranças e meus sonhos.

Por que acenei para mamãe em meu sonho? Parei de dar adeusinho anos atrás. Quantos? Talvez décadas. Talvez tenha sido naquela tarde, há mais de meio século, quando eu tinha 8 anos e ela me levou ao Sylvan, o cinema do bairro, na esquina da loja de meu pai. Embora houvesse muitos lugares vazios, ela se plantou ao lado de um dos valentões do bairro, um garoto um ano mais velho do que eu.

— Esse lugar está reservado, minha senhora — rosnou ele.

— Sei, sei! Reservado! — retrucou minha mãe, com desdém, enquanto se instalava confortavelmente. — Esse aqui está guardando lugares, o manda-chuva! — anunciou para quem quisesse ouvir.

Tentei desaparecer na almofada do assento de veludo castanho. Mais tarde, no cinema às escuras, criei coragem e virei devagar a cabeça. Lá estava ele, agora sentado algumas fileiras atrás, ao lado de seu amigo. Não havia engano, os dois olhavam fixo e apontavam para mim. Um deles balançou o punho e moveu os lábios, baixinho:

— Depois!

Mamãe estragou o cinema Sylvan para mim. Ele passou a ser território inimigo. Fora do alcance, ao menos à luz do dia. Se eu quisesse acompanhar os seriados de sábado — Buck Rogers, Batman, O besouro verde, Fantasma —, tinha que chegar depois de o filme começar, ocupar meu lugar no escuro, bem na parte de trás do cinema, o mais perto possível de uma saída, e ir embora instantes antes de as luzes voltarem a acender. Em meu bairro, nada era mais importante do que evitar a calamidade máxima que era levar uma surra. Ser esmurrado, isso não era difícil de imaginar: um soco no queixo, e pronto. Ou tomar um trompaço, um tabefe, um chute, um corte — era a mesma coisa. Mas levar uma surra... ai, meu Deus! Onde é que isso acabava? O que restava da gente? O sujeito ficava fora do jogo, eternamente rotulado com a etiqueta "levou uma surra".

E acenar para mamãe? Por que eu haveria de acenar agora, quando, ano após ano, tinha convivido com ela em termos de uma inimizade ininterrupta? Ela era convencida, controladora, intrometida, desconfiada, rancorosa, extremamente obstinada e de uma ignorância abissal (mas inteligente — até eu conseguia ver isso). Não me lembro de ter compartilhado com ela um único momento caloroso, nem uma vez sequer. Nunca, jamais me orgulhei dela, nem pensei "fico muito feliz por ela ser minha mãe". Ela era dona de uma língua venenosa e dizia coisas maliciosas sobre todo mundo — exceto meu pai e minha irmã.

Eu adorava minha tia Hannah, irmã de meu pai; sua doçura, sua eterna amabilidade, seus cachorros-quentes grelhados, envoltos em fatias crocantes de mortadela, seu strudel incomparável (cuja receita, no que me diz respeito, está perdida para sempre, já que seu filho se recusa a mandá-la para mim — mas isso é outra história). Acima de tudo, eu adorava Hannah aos domingos. Nesse dia, sua delicatessen, perto do estaleiro da Marinha em Washington, ficava fechada, e ela punha jogos gratuitos na máquina de pinball e me deixava jogar por horas a fio. Nunca se opunha a que eu pusesse calçozinhos de papel sob os pés dianteiros da máquina, para diminuir a velocidade da descida das bolas e conseguir pontuações mais altas. Minha adoração por Hannah fazia mamãe ter acessos enlouquecidos de rancor contra a cunhada. Mamãe tinha sua ladainha sobre Hannah: a pobreza de Hannah, a aversão dela a trabalhar na loja, seu tino comercial precário, seu marido simplório, sua falta de orgulho e sua avidez por qualquer coisa de segunda mão.

A fala de mamãe era abominável: um inglês de sotaque carregado, recheado de termos em iídiche. Ela nunca ia a minha escola no dia em que os pais e mães eram homenageados, nem às reuniões da Associação de Pais e Professores. Graças a Deus! Eu tremia só de pensar em lhe apresentar meus amigos. Eu brigava com ela, desafiava-a, gritava com ela, evitava-a e, por fim, em meados da adolescência, rompi relações com ela completamente.

O grande quebra-cabeça da minha infância era: como é que papai a suportava? Lembro-me de momentos maravilhosos nas manhãs de domingo, quando nós dois jogávamos xadrez e ele cantava alegremente com os discos de música russa ou judaica, com a cabeça balançando ao ritmo da melodia. Cedo ou tarde, o ar matinal era sacudido pela voz esganiçada de mamãe, gritando do andar de cima: "Gevalt, Gevalt, já chega! Vay iz mir, chega de música, chega de barulho!" Sem dizer nada, meu pai se levantava, desligava o toca-discos e retomava nosso jogo de xadrez em silêncio. Quantas vezes eu rezei: "Por favor, papai, por favor, só dessa vez, dê um soco nela e a mande embora!"

Então, por que acenar? E por que perguntar, logo no fim da vida: "Como me saí, mamãe?" Seria possível — e essa possibilidade me deixou estarrecido — que eu houvesse passado minha vida inteira tendo essa mulher lamentável como minha platéia primária? A vida inteira procurei fugir, arrancar-me do meu passado — do shtetl, da terceira classe do navio, do gueto, do tallith,[2] dos cantos religiosos, da gabardina preta, da mercearia. Toda a minha vida eu me esforcei em busca de libertação e crescimento. Seria possível que não houvesse escapado nem do meu passado nem de minha mãe?

Os amigos que tiveram mães amáveis, refinadas, apoiadoras — como eu os invejo! E como é estranho que eles não fiquem amarrados a essas mães, não telefonem, visitem, sonhem ou mesmo pensem nelas com freqüência. Já eu tenho que tirar minha mãe da cabeça várias vezes por dia, e ainda hoje, dez anos depois de sua morte, muitas vezes, num ato reflexo, pego o telefone para ligar para ela.

Ah, consigo compreender tudo isso intelectualmente. Dei palestras sobre esse fenômeno. Explico a meus pacientes que os filhos que foram maltratados geralmente acham difícil desvencilhar-se de suas famílias disfuncionais, ao passo que os filhos crescem e se desligam com muito menos conflito de pais bondosos e amorosos. Afinal, não é essa a tarefa dos bons pais, habilitar os filhos a sair de casa?

Compreendo, mas não gosto. Não gosto que minha mãe me visite todos os dias. Odeio o fato de ela ter se insinuado tanto nos interstícios da minha cabeça que não consiga nunca arrancá-la de lá. Acima de tudo, odeio o fato de me sentir compelido a perguntar, no fim da vida: "Como me saí, mamãe?"

Pensei na poltrona superestofada de seu lar de idosos em Washington. Bloqueava parcialmente a entrada do apartamento dela e era ladeada por mesas que pareciam sentinelas, abarrotadas com pelo menos um exemplar, às vezes mais, de cada um dos livros que escrevi. Com mais de uma dúzia de livros e umas duas dúzias adicionais de traduções estrangeiras, as pilhas balançavam perigosamente. Bastaria, eu imaginava muitas vezes, um tremor de terra minimamente considerável para enterrar mamãe até o pescoço sob os livros de seu único filho.

Toda vez que lhe fazia uma visita, eu a encontrava instalada naquela poltrona, com dois ou três de meus livros no colo. Ela os pesava, cheirava, acariciava — fazia tudo, menos lê-los. Estava cega demais. Mesmo antes de sua visão falhar, entretanto, ela não teria conseguido compreendê-los: a única instrução que havia recebido fora nas aulas de naturalização para se tornar cidadã norte-americana.

Sou escritor. E mamãe não sabia ler. Mesmo assim, recorro a ela para buscar o sentido do meu trabalho. Para ser avaliado de que modo? Pelo cheiro, pelo simples peso de meus livros? Pelo desenho da capa, pela suave sensação de Teflon lubrificado da sobrecapa? Todas as minhas pesquisas esmeradas, meus rasgos de inspiração, minha busca meticulosa do pensamento correto, da frase elegante e fugidia: esses ela jamais conheceu.

O sentido da vida? O sentido da minha vida. Os próprios livros empilhados e balançando na mesa de mamãe continham respostas pretensiosas a essas perguntas. "Somos criaturas que buscam sentido", escrevi, "que têm de lidar com o inconveniente de serem lançadas num universo que, intrinsecamente, não tem sentido algum". E assim, para evitar o niilismo, expliquei, temos de embarcar numa tarefa dupla. Primeiro, inventamos ou descobrimos um projeto que dê sentido à vida e seja vigoroso o bastante para sustentá-la. Depois, precisamos dar um jeito de esquecer nosso ato de invenção e nos convencer de que não inventamos, e sim descobrimos, o projeto que dá sentido à vida — convencer-nos de que ele tem uma existência independente "lá fora".

Embora eu finja aceitar sem julgamento as soluções encontradas por cada pessoa, secretamente eu as classifico como sendo de bronze, prata e ouro. Algumas pessoas são instigadas pela vida afora por uma visão de triunfo vingativo; outras, imersas no desespero, sonham apenas com a paz, o desapego e o libertar-se da dor; algumas dedicam a vida ao sucesso, à opulência, ao poder ou à verdade; outras buscam a autotranscendência e mergulham numa causa ou em outro ser — um ente querido ou uma essência divina; outras, ainda, encontram o sentido numa vida de prestação de serviços, no pleno desenvolvimento pessoal ou na expressão criativa.

Precisamos da arte, disse Nietzsche, para que a verdade não nos destrua. Daí eu considerar a criatividade como a via regia e ter transformado minha vida inteira, todas as minhas experiências, todas as minhas fantasias, na mistura íntima a partir da qual tento modelar, de tempos em tempos, alguma coisa nova e bonita.

Mas meu sonho apontava numa outra direção. Dizia que eu tinha dedicado minha vida a um objetivo bem diferente — ganhar a aprovação de minha falecida mamãe.

Essa acusação do sonho era forte: muito forte para ser ignorada e perturbadora demais para ser esquecida. Mas aprendi que os sonhos não são inescrutáveis nem imutáveis. Durante a maior parte de minha vida, tenho trabalhado com eles. Aprendi o modo de domesticá-los, desmontá-los e recompô-los. Sei como extrair os segredos de um sonho.

E assim, deixando a cabeça cair novamente no travesseiro, saí vagando e rebobinei o carretel do sonho de volta ao carrinho do trem fantasma.

 

O carrinho parou com um tranco, atirando-me contra a grade de segurança. Um minuto depois, estava tomando a direção contrária, dando marcha a ré lentamente pelas portas de vaivém e tornando a sair para a luz do sol no Glen Echo.

— Mamãe, mamãe! — chamei, acenando com os dois braços. — Como é que eu me saí?

Ela me ouviu. Eu a vi abrir caminho na multidão, empurrando as pessoas para a direita e a esquerda.

— Oyvin, que pergunta! — disse, destravando a barra de segurança e me puxando para fora do carrinho.

Olhei para ela. Parecia ter uns 50 ou 60 anos, era forte e pesada, e carregava sem esforço uma sacola de compras bojuda, bordada à mão, com uma alça de madeira. Mamãe tinha um ar deselegante, mas não sabia disso, e andava com o queixo levantado, como se fosse bonita. Observei as conhecidas dobras de carne que pendiam da parte superior de seus braços e as meias enroladas e presas pouco acima dos joelhos. Ela me deu um grande beijo molhado. Fingi afeição.

— Você se saiu muito bem. Quem poderia pedir mais? Todos esses livros. Você me deixou orgulhosa. Ah, se seu pai estivesse aqui para ver!

— O que quer dizer com "você se saiu bem", mamãe? Como você sabe? Você não consegue ler o que escrevi, por causa da sua vista, quero dizer.

— Eu sei o que eu sei. Olhe para esses livros.

Abriu a sacola de compras, retirou dois de meus livros e começou a acariciá-los com ternura:

— Grandes livros. Bonitos livros.

Fiquei perturbado com seu jeito de manusear meus livros:

— O importante é o que está dentro dos livros. Talvez eles só contenham bobagens — eu disse.

— Oyvin, não diga narishkeit, asneiras. Lindos livros!

— Você carrega uma sacola de livros por aí o tempo todo, mamãe, até no Glen Echo? Está fazendo deles um relicário. Não acha...?

— Todo mundo conhece você. O mundo inteiro. Minha cabeleireira me contou que a filha estuda os seus livros na escola.

— Sua cabeleireira? Então é esse o teste final?

— Todo mundo, eu conto a todo mundo. Por que não contaria?

— Mamãe, você não tem nada melhor para fazer? Que tal passar o domingo com seus amigos: Hannah, Gertie, Luba, Dorothy, Sam, seu irmão Simon? Afinal, o que você está fazendo aqui no Glen Echo?

— Você tem vergonha por eu estar aqui? Sempre foi envergonhado. Onde mais eu deveria estar?

— Só quero dizer que nós dois já somos crescidos. Tenho mais de 60 anos. Talvez seja hora de termos nossos próprios sonhos particulares.

— Sempre com vergonha de mim.

— Eu não disse isso. Você não me escuta.

— Você sempre pensou que eu fosse burra. Sempre achou que eu não entendia nada.

— Eu não disse isso. Sempre disse que você não sabia tudo. É só a sua maneira de... o jeito como você...

— O jeito como eu o quê? Vá em frente. Você começou, agora diga; já sei o que você vai dizer.

— O que é que eu vou dizer?

— Não, Oyvin, você diz. Se eu lhe contar, você muda.

— É o seu jeito de não me escutar. A maneira como você fala de coisas que não entende.

— Escutar você? Eu não escuto você?. Diga, Oyvin, você me escuta? Sabe alguma coisa de mim?

— Tem razão, mamãe. Nenhum de nós dois tem sido muito bom para escutar o outro.

— Eu não, Oyvin, eu escutei direito. Ouvi o silêncio todas as noites quando chegava em casa, voltando da loja, e você nem se incomodava em sair do escritório e subir. Nem dizia "olá". Não me perguntava se eu tinha tido um dia difícil. Como é que eu podia ouvir, se você não falava comigo?

— Alguma coisa me impedia; havia uma parede enorme entre nós.

— Uma parede? Bonito dizer isso para sua mãe. Uma parede. Eu que construí?

— Eu não disse isso. Só disse que havia uma parede. Sei que me afastei de você. Por quê? Como posso me lembrar? Isso foi há cinqüenta anos, mamãe, mas eu sentia que tudo o que você me dizia era algum tipo de reprimenda.

— Vos? Encomenda?

— Quero dizer crítica. Eu tinha que ficar longe de suas críticas. Naqueles anos eu já me sentia mal o bastante a meu respeito, e não precisava de mais críticas.

— E o que você tinha para se sentir mal? Todos aqueles anos, papai e eu trabalhando na loja para você estudar. Até meia-noite. E quantas vezes você me telefonou para eu levar alguma coisa para você em casa? Lápis ou papel. Lembra do Al? Ele trabalhava na loja de bebidas. O que teve o rosto cortado num assalto, lembra?

— Claro que eu me lembro do Al, mamãe. A cicatriz que descia pelo nariz inteiro.

— Bem, o Al atendia o telefone e sempre saía gritando, bem no meio da loja cheia: "É o rei! O rei está no telefone! Deixe o rei sair para comprar os lápis dele. Um pouco de exercício faria bem ao rei!" O Al ficava com ciúme; os pais nunca tinham dado nada a ele. Nunca prestei atenção ao que ele dizia. Mas Al estava certo; eu tratava você como um rei. A qualquer hora que você ligasse, dia ou noite, eu deixava o papai com a loja cheia de fregueses e corria pelo quarteirão até a papelaria. Selos também, você precisava. E cadernos, e tinta. E depois, canetas esferográficas. Todas as suas roupas manchadas de tinta. Como um rei. Nenhuma crítica.

— Mãe, agora estamos conversando. E isso é bom. Não vamos acusar um ao outro. Vamos compreender. Digamos apenas que eu me sentia criticado. Sei que você dizia coisas boas a meu respeito para os outros. Gabava-se de mim. Mas a mim nunca disse isso. Na minha frente.

— Não era muito fácil falar com você, Oyvin. E não só para mim, mas para todo mundo. Você sabia tudo. Você lia tudo. Vai ver que as pessoas tinham um pouco de medo de você. Talvez eu também. Ver veys? Quem sabe? Mas me deixe dizer uma coisa para você, Oyvin: para mim era pior. Primeiro, você também nunca dizia nada de bom sobre mim. Eu cuidava da casa, cozinhava para você. Por vinte anos você comeu minha comida. Gostava dela, eu sei. Como é que eu sabia? Porque os pratos e as panelas ficavam sempre vazios. Mas você nunca me disse. Nem uma vez na vida. Hein? Uma vez na vida?

Envergonhado, só pude baixar a cabeça.

— Segundo, eu sabia que você não dizia nada de bom nas minhas costas; pelo menos você tinha isso, Oyvin, sabia que pelas costas eu me gabava de você com os outros. Mas eu sabia que você tinha vergonha de mim. Vergonha o tempo todo, na minha frente e pelas minhas costas. Vergonha do meu inglês, do meu sotaque. De tudo que eu não sabia. E das coisas que eu falava errado. Eu ouvia o modo como você e seus amigos faziam piada de mim: a Julie, a Shelly, o Jerry. Eu ouvia tudo, hein?

Baixei ainda mais a cabeça.

— Você nunca deixava escapar nada, mamãe.

— Como eu podia saber alguma coisa que estava nos seus livros? Se eu tivesse tido a chance, se pudesse ter ido à escola, quanta coisa podia ter feito com a minha cabeça, meu saychel!. Na Rússia, no shtetl, eu não podia ir à escola, só os meninos.

— Eu sei, mamãe, eu sei. Sei que você teria se saído tão bem quanto eu na escola, se tivesse tido a chance.

— Desci do navio com minha mãe e meu pai. Só tinha 20 anos. Seis dias por semana eu tinha que trabalhar numa fábrica de costura. Doze horas por dia. Sete da manhã às sete da noite, às vezes oito. E duas horas antes, às cinco da manhã, eu tinha que levar meu pai até a banca de jornal dele, perto do metrô, e ajudar a desempacotar os jornais. Meus irmãos nunca ajudavam. Simon foi cursar contabilidade. Hymie dirigia um táxi; nunca vinha em casa, nunca mandava dinheiro. Então eu me casei com seu pai e me mudei para Washington, e, até ficar velha, trabalhei ao lado dele na loja, 12 horas por dia, e também limpava a casa e cozinhava. E aí eu tive a Jean, que nunca me deu um minuto de problema. E depois tive você. E você não era fácil. E nunca parei de trabalhar. Você me via! Você sabe! Você me ouvia subir e descer as escadas correndo. Estou mentindo?

— Não, mamãe.

— E todos esses anos, enquanto eles foram vivos, eu sustentei Bubba e Zeyda. Eles não tinham nada... aqueles poucos trocados que meu pai ganhava na banca de jornais. Depois, abrimos uma loja de doces para ele, mas ele não podia trabalhar, os homens tinham que rezar. Você se lembra do Zeyda?

Assenti com a cabeça.

— Vagamente, mamãe.

Eu devia ter uns 4 ou 5 anos... uma cabeça-de-porco no Bronx, com um cheiro azedo... jogando migalhas de pão e bolinhas de papel cinco andares abaixo, para as galinhas do quintal... meu avô todo de preto, alto e de quipá preto, com a barba branca desgrenhada, suja de molho, os braços e a testa cheios de cordões pretos, resmungando orações. A gente não podia conversar, ele só falava iídiche, mas apertava minhas bochechas com força. Todas as outras pessoas, Bubba, mamãe, tia Lena, trabalhando, correndo para cima e para baixo nas escadas da loja o dia inteiro, desembrulhando e empacotando, cozinhando, depenando galinhas, tirando escamas de peixes, limpando o pó. Mas Zeyda não movia um dedo. Só ficava sentado, lendo. Feito um rei.

— Todo mês — continuou mamãe — eu pegava o trem para Nova York e levava comida e dinheiro para eles. Depois, quando Bubba foi para o asilo, era eu quem pagava tudo e visitava ela, semana sim, semana não; você se lembra? Às vezes eu levava você comigo no trem. Quem mais na família ajudava? Ninguém! Seu tio Simon aparecia a cada dois, três meses, e levava uma garrafa de Seven Up para ela, e, na minha visita seguinte, ela só falava do maravilhoso Seven Up do tio Simon. Mesmo quando ela já estava cega, ficava lá deitada, segurando a garrafa vazia de Seven Up. E não era só a Bubba que eu ajudava, era todo mundo da família: meus irmãos, Simon e Hymie, minha irmã Lena, a tia Hannah, seu tio Abe, aquele novato que eu é que trouxe da Rússia... todo mundo, a família inteira era sustentada por aquela lojinha schmutzig, aquela mercearia pequena e suja. Ninguém nunca me ajudou! E ninguém nunca me agradeceu.

Dando um longo suspiro, bem fundo, enunciei as palavras:

— Eu agradeço a você, mamãe. Obrigado.

Não foi muito difícil. Por que será que eu tinha precisado de cinqüenta anos? Segurei o braço dela, talvez pela primeira vez. Aquela parte carnuda logo acima do cotovelo. Era macia e quente, meio parecida com a massa morna de kichel que ela fazia, pouco antes de ir para o forno.

— Lembro-me de você contando a Jean e a mim sobre o Seven Up do tio Simon. Deve ter sido duro.

— Duro? Nem me diga! Às vezes ela bebia o Seven Up com um pedaço do meu kichel... você sabe o trabalho que dá para fazer kichel... e só conseguia falar do Seven Up.

— É bom conversar, mamãe. Esta é a primeira vez. Talvez eu sempre tenha desejado isso, e é por essa razão que você continua na minha cabeça e nos meus sonhos. Talvez agora seja diferente.

— Diferente como?

— Bem, poderei ser mais eu, viver para as causas e os objetivos que eu escolher para acalentar.

— Você quer se livrar de mim?

— Não. Bem, não dessa maneira, isto é, não de uma maneira ruim. Quero a mesma coisa para você. Quero que você possa descansar.

— Descansar? Algum dia você me viu descansar? O papai cochilava todos os dias. Alguma vez você me viu cochilar?

— O que eu quero dizer é que você devia ter seu próprio objetivo na vida, não /«o — disse eu, apontando para sua sacola de compras. — Não os meus livros! E eu deveria ter meu próprio objetivo.

— Mas eu acabei de explicar — replicou ela, passando a sacola de compras para a outra mão, para longe de mim. — Esses não são só seus livros. São meus livros também!

Seu braço, que eu ainda estava segurando, de repente ficou frio, e eu o soltei.

— O que você quer dizer com essa história de eu ter meu objetivo? — continuou ela. — Estes livros são o meu objetivo. Trabalhei por você e por eles. A minha vida inteira eu trabalhei por esses livros, meus livros. — Mamãe enfiou a mão na sacola de compras e tirou mais dois. Encolhi-me, com medo de que ela os levantasse e saísse exibindo-os para a pequena multidão de espectadores que haviam se juntado à nossa volta.

— Mas você não entende, mamãe. Nós temos que ser separados, e não atados uns aos outros. Isso é que é tornar-se uma pessoa. É exatamente sobre isso que escrevo nesses livros. É o modo como quero que meus filhos sejam, todos os filhos. Desatados.

— Vos meinen, desabados?

— Não, não, desatados: uma palavra que significa livre ou liberto. Não estou conseguindo me fazer entender, mamãe. Deixe-me dizer desta maneira: toda pessoa no mundo é fundamentalmente sozinha. É duro, mas é assim que as coisas são, e temos de encarar isso. Então, quero ter minhas próprias idéias e meus próprios sonhos. Você também deveria ter os seus. Mamãe, eu quero você fora dos meus sonhos.

Seu rosto se contraiu severamente e ela deu um passo atrás, afastando-se de mim. Apressei-me a acrescentar:

— Não é por eu não gostar de você, e sim porque quero o que é bom para todos nós, para mim e para você também. Você deve ter seus próprios sonhos na vida. Certamente você consegue entender isso.

— Oyvin, você continua a achar que eu não entendo nada e você entende tudo. Mas eu também olho para a vida. E para a morte. Entendo mais de morte do que você. Pode acreditar. E entendo de estar sozinha mais do que você.

— Mas, mamãe, você não enfrenta a solidão. Você fica comigo. Não me larga. Vagueia nos meus pensamentos. Nos meus sonhos.

— Não, filhote.

"Filhote": fazia cinqüenta anos que eu não ouvia essa palavra; tinha esquecido que era assim que ela e meu pai costumavam me chamar.

— Não é como você pensa, filhote — continuou ela. — Há coisas que você não entende, coisas que você virou de cabeça para baixo. Sabe aquele sonho, aquele em que eu fico lá no meio da multidão, vendo você no carrinho acenando para mim, me chamando, me perguntando como se saiu na vida?

— Sim, é claro que me lembro do meu sonho, mamãe. Foi onde isso tudo começou.

— Seu sonho? É isso que eu quero lhe dizer. O erro é esse, Oyvin, é você pensar que eu estava no seu sonho. Aquele sonho não era seu, filhote. Era o meu sonho. As mães também têm sonhos.

 

Viagens com Paula

Quando eu era estudante de medicina, ensinaram-me a refinada arte de olhar, ouvir e tocar. Olhei para gargantas vermelhas, tímpanos protuberantes e os sinuosos regatos arteriais da retina. Ouvi o sibilar dos murmúrios nutrais, as tubas gorgolejantes dos intestinos, a cacofonia dos roncos respiratórios. Apalpei as bordas escorregadias de baços e fígados, a tensão dos cistos ovarianos, a dureza marmórea do câncer de próstata.

Aprender sobre os pacientes — sim, esse foi o tema principal da faculdade de medicina. No entanto, aprender com os pacientes foi um aspecto de minha educação superior que veio muito mais tarde. Talvez tenha começado com meu professor John Whitehorn, que dizia com freqüência: "Escutem seus pacientes; deixem que eles os ensinem. Para adquirir sabedoria, vocês precisam continuar a ser alunos." E ele queria dizer muito mais do que a verdade banal de que o bom ouvinte aprende mais sobre o paciente. Ele queria dizer, muito literalmente, que devíamos deixar os pacientes nos ensinarem.

Homem formal, desajeitado e gentil, cuja careca brilhante era margeada por uma meia-lua meticulosamente cortada de cabelo grisalho, John Whitehorn foi o ilustre diretor do Departamento de Psiquiatria da Universidade Johns Hopkins durante trinta anos. Usava óculos de armação dourada e não tinha nenhum traço supérfluo — nem sequer uma ruga no rosto ou no terno marrom que usava todos os dias do ano (supúnhamos que devesse ter dois ou três idênticos no armário). Também não exibia expressões supérfluas: quando dava aulas, seus lábios se moviam; todo o restante — mãos, faces, sobrancelhas — permanecia notavelmente imóvel.

Durante meu terceiro ano de residência em psiquiatria, cinco colegas de turma e eu passávamos todas as tardes de quinta-feira fazendo rondas com o dr. Whitehorn. Antes disso, almoçávamos em seu consultório revestido de painéis de carvalho. A comida era simples e invariável — sanduíches de atum, fatias de frios e bolinhos de caranguejo à moda de Chesapeake Bay, seguidos de salada de frutas e torta de peca —, mas servida com elegância sulina: toalha de linho branco,bandejas de prata brilhantes, porcelana fina translúcida. A conversa do almoço era longa e sem pressa. Embora cada um de nós tivesse ligações para retornar e pacientes clamando por atenção, não havia como apressar o dr. Whitehorn, e, por fim, até eu, o mais frenético do grupo, aprendi a colocar o tempo em segundo plano. Nessas duas horas, tínhamos a oportunidade de perguntar qualquer coisa a nosso professor: lembro-me de fazer perguntas sobre assuntos como a gênese da paranóia, a responsabilidade do médico para com o suicida, a incompatibilidade entre a mudança terapêutica e o determinismo. Embora ele desse respostas completas, era claro que preferia outros assuntos: a precisão dos arqueiros persas, a comparação da qualidade entre o mármore grego e o espanhol, os principais erros da batalha de Gettysburg e sua tabela periódica aperfeiçoada (ele se formara originalmente em química).

Depois do almoço, o dr. Whitehorn começava a entrevistar os quatro ou cinco pacientes no consultório, enquanto observávamos em silêncio. Nunca se podia prever a duração de cada entrevista. Algumas duravam 15 minutos; muitas se prolongavam por duas ou três horas. Minha lembrança mais clara é dos meses de verão, do consultório fresco na penumbra, dos toldos de listras verdes e alaranjadas que bloqueavam o sol abrasador de Baltimore, dos suportes dos toldos circundados por trepadeiras de magnolia, cujas flores delicadas balançavam do lado de fora da janela. Da janela do canto, eu conseguia discernir a orla da quadra de tênis da equipe médica. Ah, como eu ansiava por jogar tênis naqueles dias! Ficava irrequieto e devaneava sobre aces e voleios, enquanto as sombras se estendiam inexoravelmente pela quadra. Só depois que o anoitecer engolia os derradeiros resquícios do tênis crepuscular é que eu abandonava todas as esperanças e dava inteira atenção às entrevistas do dr. Whitehorn.

Seu ritmo era vagaroso. Ele dispunha de muito tempo. Nada lhe interessava tanto quanto a ocupação e os passatempos dos pacientes. Numa semana, ele podia incentivar um fazendeiro sul-americano a falar por uma hora sobre cafeeiros; na semana seguinte, podia ser um professor de história discutindo o fracasso da armada espanhola. Seria de se supor que seu objetivo primordial fosse compreender a relação entre a altitude e a qualidade dos grãos de café, ou a motivação política quinhentista por trás da armada espanhola. Ele passava com tanta sutileza para áreas mais pessoais que eu sempre me surpreendia quando, de repente, um paciente desconfiado e paranóide começava a falar francamente de si mesmo e de seu mundo psicótico.

Ao permitir que o paciente lhe desse ensinamentos, o dr. Whitehorn se relacionava com a pessoa, e não com a patologia, daquele paciente. Sua estratégia invariavelmente propiciava o amor-próprio do paciente e sua disposição de se revelar.

Ele era, digamos, um entrevistador ardiloso — mas aquilo não era "ardiloso". Não havia nenhuma duplicidade: o dr. Whitehorn queria sinceramente aprender. Era um colecionador, e, desse modo, acumulara ao longo dos anos um assombroso reservatório de raridades factuais. "Vocês e seus pacientes sairão ganhando", dizia ele, "se vocês os deixarem ensinar-lhes o bastante sobre sua vida e seus interesses. Aprendam sobre a vida deles; vocês não apenas serão instruídos, como também acabarão aprendendo tudo o que precisam saber sobre a doença deles".

 

Quinze anos depois, no começo da década de 1970, o dr. Whitehorn havia morrido, eu me tornara professor de psiquiatria e uma mulher chamada Paula, com câncer de mama em estágio avançado, entrou em minha vida para dar continuidade a meu aprendizado. Embora eu não soubesse disso naquela época e ela nunca o tenha admitido, creio que desde o primeiro momento ela tenha atribuído a si mesma a tarefa de ser minha mentora.

Paula telefonara para marcar uma consulta depois de saber, por um assistente social da clínica de oncologia, que eu estava interessado em formar um grupo terapêutico de pacientes com doenças terminais. Quando entrou pela primeira vez em meu consultório, fui instantaneamente cativado por sua aparência: pela dignidade da postura, pelo sorriso radiante com que ela me acolheu, pela sedosa cabeleira branca e curta, com um corte exuberante de menino, e por algo que só posso chamar de uma luminosidade que parecia emanar de seus olhos sagazes e intensamente azuis.

Ela prendeu minha atenção já nas primeiras palavras:

— Meu nome é Paula West — disse. — Tenho câncer terminal. Mas não sou uma paciente de câncer.

E, de fato, em minhas viagens com ela ao longo de muitos anos, jamais a encarei como uma paciente. Ela prosseguiu descrevendo de maneira sucinta e precisa seu histórico médico: câncer de mama, diagnosticado cinco anos antes; remoção cirúrgica da mama; depois, câncer na outra mama, também removida. Em seguida, viera a quimioterapia, com seu conhecido cortejo: náusea, vômitos e perda total dos cabelos. E depois, radioterapia na dose máxima permitida. Mas nada diminuía o ritmo da propagação de seu câncer — para o crânio, a coluna e as órbitas oculares. O câncer de Paula exigia ser alimentado e, embora os cirurgiões lhe atirassem oferendas sacrificiais — os seios, os nódulos linfáticos, os ovários, as glândulas adrenais —, continuava voraz.

Quando imaginei o corpo nu de Paula, vi um peito marcado por cicatrizes, sem seios, carne ou músculos, como as tábuas de um galeão naufragado, e, abaixo do peito, um abdome repleto de cicatrizes cirúrgicas, tudo isso sustentado por quadris largos, desgraciosos, encorpados por esteróides. Em síntese, uma mulher de 55 anos sem seios, glândulas adrenais, ovários, útero e, tenho certeza, libido.

Sempre adorei mulheres com corpos firmes, graciosos, seios fartos e uma sensualidade prontamente visível. Mesmo assim, uma coisa curiosa me aconteceu quando encontrei Paula pela primeira vez: achei-a bonita e me apaixonei por ela.

Encontramo-nos semanalmente durante alguns meses, num arranjo contratual irregular. "Psicoterapia" diria um observador, pois inseri seu nome em minha agenda de consultas e ela se sentava na cadeira dos pacientes durante os cinqüenta minutos de praxe. Mas nossos papéis eram sempre meio confusos. A questão do pagamento, por exemplo, nunca veio à tona. Desde o início, eu sabia que aquele não era um contrato profissional comum e relutei em mencionar dinheiro na presença dela — teria sido vulgar. E não apenas o dinheiro, mas outras questões igualmente insípidas, como a carnalidade, o ajustamento conjugal ou as relações sociais.

Vida, morte, espiritualidade, paz, transcendência: eram esses os temas que discutíamos; eram essas as únicas preocupações de Paula. Na maior parte do tempo, falávamos sobre a morte. A cada semana, quatro de nós, em vez de dois, se encontravam em meu consultório — Paula e eu, a morte dela e a minha. Ela se tornou minha cortesã da morte: apresentou-me a ela, ensinou-me a pensar nela e até a ser amigável com ela. Acabei por compreender que a morte fora objeto de uma publicidade negativa. Embora tenha pouca alegria a oferecer, ela não é um ser monstruoso que nos arraste para um lugar terrível e inimaginável. Aprendi a desmitificá-la, a vê-la como ela é — um acontecimento, uma parte da vida, o fim de novas possibilidades. "É um acontecimento neutro" dizia Paula, "que aprendemos a colorir com o medo".

Toda semana, Paula entrava em meu consultório, abria o amplo sorriso que eu adorava, tirava o diário de sua grande bolsa de palha e o punha no colo, e compartilhava as reflexões e sonhos da semana anterior. Eu ouvia com atenção e tentava dar respostas apropriadas. Toda vez que eu manifestava dúvidas sobre estar ou não sendo útil, ela parecia intrigada; depois, feita uma pausa momentânea, sorria, como para me tranqüilizar, e se voltava novamente para o diário.

Revivemos juntos todo o seu encontro com o câncer: o choque e a incredulidade iniciais, a mutilação do corpo, a aceitação gradual e a habituação a dizer: "Estou com câncer." Ela descreveu o cuidado amoroso do marido e dos amigos íntimos. Isso foi fácil de entender: era difícil não gostar de Paula. (É claro que só declarei meu amor muito depois, numa época em que ela não tinha como acreditar.)

Depois, ela me descreveu os dias terríveis da récidiva do câncer. Essa fase fora o seu calvário, disse-me, e as estações da via-crúcis tinham sido as provações de todos os pacientes com as recorrências: quartos de radioterapia, com aqueles globos metálicos pendurados no alto, parecendo o dia do Juízo Final, técnicos impessoais e atormentados, amigos constrangidos, médicos distantes e, acima de tudo, o silêncio ensurdecedor do sigilo por toda parte. Ela chorou ao me contar sobre o telefonema para seu cirurgião, um amigo de vinte anos, apenas para ser informada pela enfermeira dele de que não haveria mais consultas, porque o médico nada mais tinha a oferecer.

— O que há de errado com os médicos? Por que não compreendem a importância da simples presença? — perguntou-me ela. — Por que não se dão conta de que o momento em que não têm mais nada para oferecer é exatamente quando são mais necessários?

O horror de saber que se tem uma doença fatal, como aprendi com Paula, intensifica-se muito com o afastamento dos outros. O isolamento do paciente terminal é exacerbado pela farsa ridícula dos que tentam encobrir a aproximação da morte. Mas a morte não pode ser ocultada; os indícios são onipresentes: as enfermeiras falam em tom velado, os médicos que fazem a ronda costumam prestar atenção às partes erradas do corpo, os estudantes de medicina entram pé ante pé no quarto, a família dá sorrisos corajosos, as visitas tentam mostrar-se animadas. Certa vez, uma paciente com câncer me contou que soube que a morte estava próxima quando seu médico, que antes sempre terminava o exame clínico dando-lhe um tapinha brincalhão no bumbum, concluiu o exame com um caloroso aperto de mão.

Mais do que a morte, a pessoa teme o extremo isolamento pelo qual ela é acompanhada. Tentamos levar a vida sempre a dois, mas todos temos que morrer sozinhos — ninguém pode morrer nossa morte conosco nem em nosso lugar. A evitação dos moribundos pelos vivos préfigura o abandono final absoluto. Paula me ensinou que o isolamento dos moribundos funciona de duas maneiras. O paciente se exclui do meio dos vivos, não querendo arrastar a família ou os amigos para seu horror, ao revelar seus temores ou seus pensamentos macabros. E os amigos se afastam, sentindo-se inúteis, desajeitados, inseguros sobre o que dizer ou fazer, e relutantes em chegar perto demais de uma prévia de sua própria morte.

Mas o isolamento de Paula estava chegando ao fim. Que mais não fosse, eu era constante. Embora outros a houvessem abandonado, eu não o faria. Que bom ela ter-me encontrado! Como é que eu podia saber, na época, que chegaria um momento em que ela me consideraria seu São Pedro, negando-a não uma, mas muitas vezes?

Paula não conseguia encontrar palavras adequadas para descrever a amargura de seu isolamento, período a que sempre se referia como seu Jardim de Getsêmani. Um dia, trouxe-me uma litografia desenhada pela filha, na qual diversas silhuetas muito estilizadas apedrejavam uma santa, uma mulher minúscula, agachada, cujos braços frágeis não a podiam proteger da chuva de granito. O quadro ainda está pendurado em meu consultório, e toda vez que olho para ele penso em Paula dizendo: "Sou aquela mulher, impotente diante da agressão."

Foi um sacerdote da igreja episcopal que a ajudou a encontrar a saída do Jardim de Getsêmani. Familiarizado com o sábio aforismo de Nietzsche, o Anticristo — "Aquele que tem um 'porque pode suportar qualquer como'" —, o padre reformulou o sofrimento dela: "Seu câncer é sua cruz; seu sofrimento é seu ministério."

Essa formulação — essa "iluminação divina", como Paula a chamou — mudou tudo. À medida que ela descrevia a aceitação de seu ministério e sua dedicação à tarefa de mitigar o sofrimento de outros indivíduos atingidos pelo câncer, comecei a compreender o papel que me cabia: ela não era meu projeto, eu era o dela, o objeto de seu ministério. Eu poderia ajudá-la, mas não por meio de apoio, interpretação, ou mesmo carinho, fidelidade. Meu papel era permitir que ela me educasse.

Será possível que alguém que tem os dias contados, cujo corpo está infiltrado pelo câncer, possa experimentar uma "fase áurea"? Paula pôde. Foi ela quem me ensinou que abraçar a morte com franqueza permite à pessoa experimentar a vida de maneira mais rica e mais satisfatória. Eu era cético. Suspeitava de que aquela conversa sobre "fase áurea" fosse um exagero, uma típica hipérbole espiritual dela.

— Áurea? É mesmo? Ora, vamos, Paula, como pode haver alguma coisa áurea em morrer?

— Irv — ela me censurou —, sua pergunta está errada! Tente entender que o que é áureo não é o morrer, e sim o fato de viver plenamente a vida diante da morte. Pense na pungência e na preciosidade das últimas vezes: a última primavera, o último esvoaçar da penugem dos dentes-de-leão, a última florada das glicínias. A fase áurea é também um período de grande liberação, um período em que a pessoa tem a liberdade de dizer não a todas as obrigações triviais, de se dedicar inteiramente a seja lá o que for que ela mais preze: a presença dos amigos, a mudança das estações, o balanço das ondas do mar.

Ela fazia intensas críticas a Elizabeth Kübler-Ross, a suma sacerdotisa da morte na medicina, que, por não reconhecer o estágio de ouro, tinha desenvolvido uma abordagem clínica negativista. Os "estágios" da morte definidos por Kübler-Ross — raiva, negação, barganha, depressão e aceitação — nunca deixaram de incitar a ira de Paula. Ela insistia, e tenho certeza de que tinha razão, em que essa categorização rígida das reações emocionais levava à desumanização de paciente e médico.

A fase áurea de Paula foi uma época de intensa exploração pessoal: ela sonhava estar vagando por enormes saguões e descobrir aposentos novos e inabitados em sua própria casa. E foi também um tempo de preparação: Paula tinha sonhos em que limpava a casa do porão ao sótão e reorganizava escrivaninhas e armários. Preparou o marido, de maneira eficaz e amorosa. Havia momentos, por exemplo, em que se sentia forte o bastante para ir às compras e cozinhar, mas se abstinha deliberadamente de fazê-lo, para que ele se habituasse a ser mais auto-suficiente. Uma vez, contou-me que estava muito orgulhosa dele, porque pela primeira vez o marido dissera "minha" aposentadoria, em vez de "nossa". Nesses momentos, eu arregalava os olhos de incredulidade. Ela estaria sendo sincera? Será que aquela virtude realmente existia, fora do mundo dickensoniano de Pegotty, a Pequena Dorrit, Tom Pinch e o casal Boffin?[3] Os textos de psiquiatria raramente discutem a "bondade" como traço de personalidade, a não ser para rotulá-la de defesa contra impulsos mais obscuros, então, a princípio, questionei a motivação de Paula, enquanto procurava, o mais discretamente possível, por defeitos e fissuras naquela fachada de santidade. Não encontrando nenhum, acabei por concluir que não se tratava de fachada e, desistindo da busca, deixei-me refestelar na graça de Paula.

A preparação para a morte era vital, achava ela, e exigia uma atenção explícita. Ao saber que o câncer se difundira para a coluna, Paula preparou o filho de 13 anos para sua morte, escrevendo-lhe uma carta de despedida que me levou às lágrimas. No último parágrafo, ela lembrou ao filho que os pulmões do feto humano não respiram e seus olhos não vêem. Assim, o embrião está sendo preparado para uma existência que ainda não pode imaginar. "Será que também não estamos sendo preparados", Paula sugeriu ao filho, "para uma existência além do nosso alcance, além até de nossos sonhos?"

 

Sempre fiquei perplexo com a crença religiosa. Até onde vai minha lembrança, sempre achei óbvio que os sistemas religiosos foram desenvolvidos para oferecer consolo e amenizar as angústias de nossa condição humana. Certo dia, quando eu tinha 12 ou 13 anos e estava trabalhando na mercearia de meu pai, falei de meu ceticismo quanto à existência de Deus com um soldado da Segunda Guerra Mundial, que havia acabado de retornar do front europeu. Como resposta, ele me deu uma imagem amassada e desbotada da Virgem Maria com Jesus, que tinha carregado consigo durante toda a invasão da Normandia.

— Vire o santinho — disse-me. — Leia o verso. Leia em voz alta.

— "Não existem ateus nas trincheiras" — li.

— Exato! Não existem ateus nas trincheiras — repetiu ele devagar, sacudindo o dedo para mim a cada palavra. — Deus cristão, Deus judeu, Deus chinês, qualquer outro Deus, mas algum deus, pelo amor de Deus! Não podemos passar sem ele.

Doada a mim por um completo estranho, aquela imagem amassada me fascinou. Tinha sobrevivido à Normandia e a sabe-se lá quantas outras batalhas. Talvez, pensei com meus botões, aquilo fosse um presságio; talvez a Divina Providência tivesse finalmente me encontrado. Durante dois anos, carreguei aquela imagem na carteira, pegando-a com freqüência e analisando-a. Então, um dia perguntei: "E daí? E se for verdade que não há ateus nas trincheiras? Isso só faz corroborar a postura cética: é claro que a fé aumenta quando o medo é muito maior. A questão é exatamente esta: o medo produz a crença; precisamos de um deus e queremos um deus, mas desejar não o faz existir. A fé, por mais fervorosa, pura e absorvente que seja, não diz absolutamente nada sobre a realidade da existência de Deus." No dia seguinte, numa livraria, tirei da carteira a imagem já impotente — fui cuidadoso, pois o santinho merecia respeito — e a inseri entre as folhas de um livro intitulado Peace of Mind [Paz de espírito], no qual talvez alguma outra alma conturbada pudesse encontrá-la e lhe dar um uso melhor.

Embora a idéia da morte tenha-me enchido de pavor durante muito tempo, passei a preferir o terror bruto a alguma crença cujo principal apelo resida em seu próprio caráter absurdo. Sempre detestei a irrefutável declaração "creio porque é absurdo". Entretanto, como terapeuta, guardo esses sentimentos para mim: sei que a fé religiosa é uma fonte poderosa de conforto e que jamais devo mexer numa crença se não tiver algo melhor para substituí-la.

Meu agnosticismo raramente vacilou. Ah, talvez algumas vezes, na escola, durante a prece matinal, eu me sentisse constrangido ao ver todos os meus professores e colegas de turma de cabeça baixa, sussurrando alguma coisa para o patriarca acima das nuvens. "Será que todo mundo ficou maluco, menos eu?", perguntava a mim mesmo. E havia também aquelas fotos de jornal do querido Franklin Delano Roosevelt freqüentando a igreja todos os domingos; essas me davam o que pensar: as crenças de FDR tinham que ser levadas muito a sério.

E o que dizer dos pontos de vista de Paula? O que dizer de sua carta ao filho, de sua crença no objetivo que nos espera e que não podemos prever? Freud se divertiria com a metáfora de Paula — e, na arena religiosa, sempre concordei inteiramente com ele. "Realização de desejo, pura e simples", ele teria dito. "Nós desejamos ser-, temos pavor de não ser, e inventamos adoráveis contos de fada em que todos os nossos desejos se tornam realidade. O objetivo desconhecido que nos espera, a alma eterna, o paraíso, a imortalidade, Deus, a reencarnação, tudo isso são ilusões, adoçantes para reduzir a amargura da mortalidade."

Paula sempre reagiu com delicadeza a meu ceticismo e me lembrava com meiguice de que, embora eu considerasse implausíveis as suas crenças, elas eram imunes à refutação. Apesar de minhas dúvidas, eu gostava de suas metáforas e ouvia suas pregações com mais tolerância do que jamais ouvira alguém até então. Talvez fosse uma simples troca: eu trocava uma pontinha de meu ceticismo por um aconchego maior na graça de Paula. Vez por outra, cheguei até a me ouvir murmurando frases como: "Quem sabe?", "Afinal, onde está a certeza?", "Será que podemos realmente saber?" Eu tinha inveja do filho dela. Será que ele percebia quanto era abençoado? Como desejei ser filho de uma mãe assim!

Mais ou menos nessa época, compareci ao funeral da mãe de um amigo, no qual o pastor ofereceu uma história como consolo. Descreveu um grupo de pessoas numa praia, dando adeus tristemente para um navio que partia. O navio ia diminuindo de tamanho até apenas a ponta do mastro ficar visível. Quando também esta desaparecia, os espectadores murmuravam: "Ele se foi" Naquele mesmo momento, porém, em algum lugar muito distante, outro grupo de pessoas esquadrinhava o horizonte e, vendo a ponta do mastro aparecer, exclamava: "Ele chegou!"

"Fábula idiota", eu poderia ter bufado, em meus dias anteriores a Paula. Mas já então me sentia menos desdenhoso. Ao correr os olhos pelas pessoas enlutadas à minha volta, por um breve instante senti-me em sintonia com elas, todos unidos na ilusão, iluminados pela imagem do navio aproximando-se das praias de uma vida nova.

Antes de Paula, ninguém fora mais rápido do que eu em ridicularizar a excêntrica paisagem californiana, aquele interminável horizonte da Nova Era: taro, I Ching, trabalho corporal, reencarnação, sufistas, comunicação mediúnica, astrologia, numerologia, acupuntura, cientologia, Rolfing, respiração holotrófica, terapia de vidas passadas. As pessoas sempre haviam precisado dessas crenças patéticas, eu costumava pensar. Elas atendiam a um anseio profundo, e algumas pessoas eram fracas demais para agüentar sozinhas. Pois que ficassem com seus contos de fadas, pobres crianças! Depois de Paula, passei a expressar minhas opiniões de maneira mais gentil. Frases mais amenas vinham a meus lábios: "Quem sabe ao certo?", "Pode ser!" "A vida é complexa e incognoscível".

 

Depois de Paula e eu nos encontrarmos por várias semanas, começamos a fazer planos concretos para formar um grupo de pacientes terminais. Hoje em dia, esses grupos são comuns e muito discutidos nas revistas e na televisão, mas, em 1973, não havia precedentes: morrer era algo sujeito a uma censura tão pesada quanto a pornografia. Por isso, tivemos que improvisar todos os passos do caminho. O começo levantava um grande obstáculo: como dar início a esse grupo? Como recrutar seus membros — com um anúncio nos classificados, dizendo "Precisa-se de pessoas em estágio terminal"?

Mas a rede de Paula, constituída por sua igreja, pelas clínicas hospitalares e pelas organizações de atendimento domiciliar, começou a produzir membros potenciais do grupo. A unidade de diálise renal de Stanford indicou o primeiro deles, Jim, um rapaz de 19 anos com uma grave doença renal. Embora ele devesse saber que sua expectativa de vida era pequena, até então tivera pouco interesse em aprofundar sua familiaridade com a morte. Evitava o contato visual com Paula e comigo — como evitava, aliás, qualquer forma de compromisso, com quem quer que fosse. "Sou um homem sem futuro", dizia, "quem iria me querer como marido ou como amigo? Para que continuar a encarar a dor da rejeição? Já falei o bastante. Já fui rejeitado o suficiente. Estou bem sem ninguém". Paula e eu só o vimos duas vezes; ele não voltou para a terceira sessão.

Jim era saudável demais, concluímos. A diálise renal oferecia um excesso de esperança, adiava a morte por tanto tempo que a negação criava raízes. Não, nós precisávamos dos condenados, daqueles que teriam um tempo curto no corredor da morte, dos sem esperança.

Foi então que Rob e Sal entraram por nossa porta. Nenhum dos dois se encaixava exatamente em nossas especificações: Rob negava com freqüência que estivesse morrendo e Sal afirmava já ter se entendido com sua doença e não precisar de nossa ajuda. Fazia seis meses que Rob, de apenas 27 anos, convivia com um tumor cerebral altamente maligno. Oscilando entre entrar e sair da negação, num momento ele insistia em que "vocês vão ver, daqui a seis semanas estarei andando pelos Alpes, de mochila nas costas" (não creio que o pobre Rob algum dia tivesse chegado ao leste do estado de Nevada), e noutro, minutos depois, amaldiçoava as pernas paralisadas por impedirem-no de procurar sua apólice do seguro de vida, e dizia: "Preciso descobrir se a indenização para minha mulher e meus filhos será cancelada se eu me suicidar."

Embora soubéssemos que o grupo não era grande o bastante, começamos com quatro membros — Paula, Sal, Rob e eu. Uma vez que Sal e Paula não precisavam de ajuda e eu era o terapeuta, Rob tornou-se a razão de ser do grupo. Mas ele se recusava obstinadamente a nos dar grande satisfação. Tentamos oferecer-lhe orientação e consolo, respeitando sua opção de negar. Mas sustentar a negação era um projeto insatisfatório e dúbio, sobretudo quando o que queríamos era ajudá-lo a aceitar a morte e a tirar o máximo proveito da vida que lhe restava. Nenhum de nós ansiava por nossas reuniões. Decorridos dois meses, as dores de cabeça de Rob tornaram-se mais intensas e, uma noite, ele morreu tranqüilamente durante o sono. Duvido de que lhe tenhamos sido úteis.

Sal recebia a morte de um modo muito diferente. Seu espírito se expandia, à medida que a vida ia chegando ao fim. A morte iminente lhe inundara a vida de um sentido que ele nunca havia conhecido. Ele sofria de mieloma múltiplo, um câncer extraordinariamente doloroso que invade os ossos; havia fraturado muitos deles e estava encaixotado num gesso de corpo inteiro, que ia do pescoço até as coxas. Tantas pessoas o amavam que era difícil acreditar que ele tivesse apenas 30 anos. Tal como Paula, ele fora transformado, na época de maior desespero, pela idéia surpreendente de que o câncer era seu ministério. Essa revelação havia determinado tudo o que fizera na vida desde então, até mesmo concordar em ingressar no grupo: ele tinha achado que isso poderia proporcionar um fórum para ajudar outras pessoas a encontrar um sentido transcendental na própria doença.

Embora tivesse entrado em nosso grupo seis meses antes da hora, quando o número de pessoas ainda era pequeno demais para lhe oferecer a platéia que ele merecia, Sal encontrou outras plataformas — sobretudo escolas secundárias, nas quais se dirigia a adolescentes problemáticos. "Vocês querem estragar o corpo com drogas? Querem matá-lo com bebida, com maconha, com cocaína?" trovejava sua voz no auditório. "Querem estraçalhar o corpo nos automóveis? Matá-lo? Atirá-lo da ponte Golden Gate? Vocês não querem esse corpo? Bem, então, podem dá-lo para mim! Deixem-me ficar com ele. Eu preciso dele. Eu fico com ele — eu quero viver!"

Era um apelo extraordinário. Eu tremia ao ouvi-lo falar. A força de sua oratória era multiplicada pelo poder especial que sempre atribuímos às palavras dos moribundos. Os alunos ouviam em silêncio, sentindo, como eu, que ele estava dizendo a verdade, que não tinha tempo para brincadeiras nem fingimento, nem medo das conseqüências.

A chegada de Evelyn ao grupo, um mês depois, proporcionou-lhe outra oportunidade de trabalhar em seu ministério. Aos 62 anos, amargurada e gravemente afetada pela leucemia, ela chegou ao grupo numa cadeira de rodas, com uma transfusão de sangue em andamento. Foi franca a respeito da doença. Sabia que estava morrendo: "Posso aceitar isso", disse, "já não vem ao caso. Mas o que realmente importa é minha filha. Ela está envenenando meus últimos dias de vida!" Evelyn atacou a filha, uma psicóloga clínica, chamando-a de "uma mulher vingativa e desprovida de amor". Meses antes, as duas tinham tido uma discussão violenta e fútil, depois que a filha, que vinha cuidando do gato de Evelyn, dera a ele a comida errada. Desde então, as duas não se falavam.

Depois de ouvi-la, Sal dirigiu-se a ela em termos simples e passionais: "Escute o que tenho a dizer, Evelyn. Também estou morrendo. Que importância tem o que o seu gato come? Que importa quem cede primeiro? Você sabe que não lhe resta muito tempo. Vamos parar de fingir. O amor da sua filha é a coisa mais importante do mundo para você. Não morra, por favor, não morra sem lhe dizer isso! Isso vai envenenar a vida dela, que nunca vai se recuperar e passará o veneno adiante para a filha délai Rompa esse ciclo! Rompa o ciclo, Evelyn!"

O apelo funcionou. Embora Evelyn tenha morrido dias depois, as enfermeiras de seu pavilhão nos contaram que, influenciada pelas palavras de Sal, ela tivera uma reconciliação cheia de lágrimas com a filha. Fiquei muito orgulhoso de Sal. Foi a primeira vitória de nosso grupo!

Vieram outros dois pacientes, e depois de vários meses Paula e eu nos convencemos de que havíamos aprendido o bastante para começar a trabalhar com um número maior de pessoas. E foi quando ela começou a recrutar para valer. Seus contatos com a Sociedade Norte-Americana de Câncer logo geraram algumas indicações. Depois de entrevistarmos e aceitarmos sete novas pacientes, todas com câncer de mama, abrimos oficialmente nosso grupo para trabalhar.

Em nossa primeira reunião com o grupo completo, Paula me surpreendeu, iniciando a sessão com a leitura em voz alta de um antigo conto hassídico:

 

Um rabino teve uma conversa com o Senhor sobre o paraíso e o inferno."Vou mostrar-lhe o inferno", disse o Senhor, e levou o rabino para um aposento em que havia uma grande mesa redonda. As pessoas sentadas em volta dela estavam famintas e desesperadas. No centro da mesa havia uma enorme panela de cozido, com um cheiro tão delicioso que a boca do rabino se encheu de água. Cada pessoa em torno da mesa segurava uma colher com um cabo longuíssimo. Mas, apesar de as colheres alcançarem a panela, seus cabos eram mais compridos que os braços dos candidatos a comensais: assim, incapazes de levar o alimento à boca, nenhum deles conseguia comer. O rabino viu que seu sofrimento era realmente terrível.

"Agora, vou mostrar-lhe o paraíso", disse o Senhor, e foram para outro aposento, exatamente igual ao primeiro. Lá estavam a mesma grande mesa redonda, a mesma panela de cozido. As pessoas, tal como antes, estavam munidas das mesmas colheres de cabo longuíssimo — mas lá, todas eram bem nutridas e cheinhas, riam e conversavam. O rabino não conseguiu entender."É simples, mas exige uma certa habilidade" disse o Senhor. "Nesta sala, como você vê, eles aprenderam a alimentar uns aos outros."

 

Embora a decisão independente de Paula de começar a sessão lendo a parábola tenha me tirado um pouco o equilíbrio, deixei passar. É o jeito dela, pensei, sabendo que ainda não havíamos definido nossos papéis e nossa colaboração no grupo. Além disso, seu julgamento fora impecável — o início desse grupo continua a ser, até hoje, o mais inspirado a que já assisti.

Que nome dar ao grupo? Paula sugeriu "Grupo da Ponte". Por quê? Por duas razões. Primeiro, o grupo criava uma ponte de um paciente canceroso para outro. Segundo, era um grupo em que colocávamos as cartas na mesa. Portanto, Grupo da Ponte. Um toque típico de Paula.

Nosso "rebanho", como Paula o chamava, cresceu depressa. Rostos novos e aterrorizados apareciam a cada semana, ou a cada duas semanas. Paula tomava os novos membros pela mão, convidava-os para almoçar, ensinava, encantava e os espiritualizava. Em pouco tempo, o número ficou tão grande que tivemos que fazer uma divisão em dois grupos de oito, e apresentei alguns residentes de psiquiatria como co-líderes. Todos os membros resistiram à cisão: ela ameaçava a integridade da família. Sugeri uma solução de compromisso: nós nos encontraríamos como dois grupos separados durante uma hora e 15 minutos, e depois nos juntaríamos, nos últimos 15 minutos, para que os dois grupos pudessem informar um ao outro os detalhes de suas reuniões.

Os encontros eram intensos e versavam, creio eu, sobre questões mais dolorosas do que em qualquer grupo que eu já tivesse me atrevido a encarar até então. Numa reunião após outra, os membros chegavam com novas metastases, novas tragédias, e em cada ocasião encontrávamos um modo de oferecer companhia e conforto a cada pessoa assustada. Vez por outra, quando alguém estava fraco demais, perto demais da morte para comparecer, fazíamos a reunião do grupo em seu quarto.

Não havia tema difícil demais para ser discutido pelo grupo, e Paula desempenhava um papel importante em todas as discussões cruciais. Certa reunião, por exemplo, começou com uma participante chamada Eva dizendo invejar uma amiga que, naquela semana, durante o sono, morrera de forma súbita e inesperada de um problema coronariano.

— É a melhor maneira de ir — proclamou Eva. Mas Paula discordou dela e sugeriu que a morte instantânea era trágica.

Fiquei sem jeito por Paula. "Por que", pensei comigo mesmo, "ela se sente impelida a se comprometer com essas posições absurdas? Quem poderia discordar da idéia de Eva de que morrer durante o sono é uma boa maneira de terminar a vida?" Com sua persuasão habitual, no entanto, Paula elaborou graciosamente seu ponto de vista de que a morte súbita era a pior de todas.

— Você precisa de tempo, de muito tempo, sem pressa — disse ela —, para preparar os outros para sua morte: seu marido, seus amigos e, acima de tudo, seus filhos. Precisa cuidar dos assuntos inacabados da vida. Isso porque, com certeza, seus projetos são importantes demais para serem descartados com displicência. Merecem ser concluídos ou resolvidos. Caso contrário, que sentido tem sua vida? Além disso — concluiu —, morrer faz parte da vida. Perder isso, passar por isso dormindo, é perder uma das maiores aventuras da vida.

Mas Eva, que era também uma presença marcante, ficou com a última palavra:

— Diga você o que disser, Paula, continuo com inveja da morte súbita da minha amiga. Sempre adorei surpresas.

 

O grupo não tardou a ficar famoso na comunidade de Stanford. Os alunos — residentes de psiquiatria, enfermeiros, turmas de graduação — começaram a observar as reuniões através de um espelho falso. Às vezes, a dor no grupo era grande demais para suportar, e os alunos saíam correndo em prantos da sala de observação. Mas sempre voltavam. Embora os grupos psicoterápicos freqüentemente permitam a observação por parte de alunos, essa permissão é sempre concedida com relutância. Mas não nesse grupo; ao contrário, os integrantes deram boas-vindas à observação. Tal como Paula, ansiavam pelos alunos; sentiam que tinham muito a ensinar e que sua sentença de morte lhes dera sabedoria. Haviam aprendido particularmente bem uma lição: que a vida não pode ser adiada; tem que ser vivida agora, e não suspensa até o fim de semana, até as férias, até que os filhos partam para a faculdade, até os anos reduzidos da aposentadoria. Ouvi mais de uma vez o lamento: "Que pena eu ter tido que esperar até agora, até meu corpo estar todo tomado pelo câncer, para aprender a viver."

 

Naquela época, eu era consumido pelo objetivo de ser bem-sucedido no mundo acadêmico, e minha frenética agenda de pesquisas, solicitações de verbas, conferências, atividades letivas e redação de textos limitou meu contato com Paula. Eu estaria com medo de me aproximar demais dela? Talvez sua perspectiva cósmica e seu desapego das metas cotidianas ameaçassem os alicerces de minha dedicação ao sucesso no mercado acadêmico. É claro que eu a via semanalmente no grupo, no qual eu era o líder titular e Paula — o que era ela? Não uma co-terapeuta, mas alguma outra coisa — uma coordenadora, uma co-facilitadora ou uma figura de ligação. Ela orientava os novos membros para o grupo, certificava-se de que eles fossem bem recebidos, compartilhava suas experiências pessoais, telefonava para eles durante a semana, levava-os para almoçar e ficava à disposição de todos os que estivessem em crise.

Talvez "consultora espiritual" seja a melhor maneira de descrever o papel de Paula. Ela elevava e aprofundava o grupo. Toda vez que falava, eu ouvia atentamente: ela sempre tinha percepções inesperadas. Ensinava os membros a meditar, a mergulhar dentro de si mesmos, a encontrar um centro de tranqüilidade, a conter a dor. Certo dia, quando uma reunião estava prestes a acabar, ela me surpreendeu retirando uma vela da bolsa, acendendo-a e colocando-a no chão. "Vamos nos aproximar mais", disse, estendendo as mãos para os membros de ambos os lados. "Olhem para a vela e meditem por alguns momentos em silêncio."

Antes de conhecer Paula, eu estava tão profundamente arraigado na tradição médica que não seria condescendente com um terapeuta que encerrasse suas sessões de grupo com os membros de mãos dadas e olhando silenciosamente para uma vela. Entretanto, a sugestão de Paula pareceu aos membros e a mim tão acertada que começamos a concluir todas as sessões dessa maneira. Passei a valorizar aqueles momentos de encerramento e, quando me acontecia estar sentado perto de Paula, ainda lhe dava um caloroso aperto na mão antes de soltá-la. Em geral, ela conduzia a meditação em voz alta, de improviso, sempre com grande dignidade. Eu adorava aquelas meditações, e até o fim da vida hei de ouvi-la instruindo-nos suavemente: "Libertem-se, livrem-se da raiva, livrem-se da dor, livrem-se da autocomiseração. Busquem seu centro nas tranqüilas e pacíficas profundezas de si mesmos e abram-se para o amor, para o perdão, para Deus." Era perturbador para um empirista rígido, um livre-pensador de formação médica!

Às vezes eu me perguntava se Paula teria alguma necessidade além da de ajudar os outros. Embora eu lhe perguntasse com freqüência o que o grupo podia fazer por ela, jamais obtive uma resposta. Havia ocasiões em que eu me admirava com sua atividade diligente — ela visitava diversos pacientes todos os dias. "O que a move?", eu perguntava a mim mesmo, "e por que só expõe seus problemas usando o verbo no passado?" Paula só nos oferecia suas soluções, nunca os problemas não resolvidos. Mas eu não teria que me fazer indagações por muito tempo. Afinal, Paula tinha câncer metastático em estágio avançado e havia superado até as estatísticas mais otimistas. Era cheia de energia, muito querida, extremamente amorosa, uma inspiração para todas as pessoas forçadas a conviver com o câncer. O que mais se poderia pedir?

 

Essa foi a fase áurea de minhas viagens com Paula. Talvez eu devesse ter deixado as coisas ficarem nesse pé. Mas um dia olhei em volta e observei como a empreitada estava ficando grande — líderes de grupo, ajuda de secretárias para transcrever os resumos das admissões e das sessões, professores para se reunirem com os observadores estudantis. Decidi que todo aquele tamanho necessitava de capital, e comecei a buscar verbas de pesquisa para manter o grupo em funcionamento. Como eu não queria pensar em mim mesmo como um profissional da morte, jamais cobrei de qualquer dos pacientes nem perguntei sobre seus planos de saúde. Mas vinha dedicando energia e tempo consideráveis ao grupo, e tinha uma obrigação moral para com a Universidade de Stanford, no sentido de ajudar a cobrir o salário que ela me pagava. Também achava que meu aprendizado clínico na liderança de grupos de pacientes com câncer estava chegando a uma conclusão; era hora de fazer alguma coisa com aquela iniciativa, de fazer pesquisas sobre ela, avaliar sua eficácia, divulgar nossos resultados, espalhar o assunto, incentivar programas similares em outras partes do país. Em suma, era hora de promover o grupo e de ser promovido.

Surgiu uma oportunidade quando o Instituto Nacional do Câncer divulgou um recrutamento de candidatos a bolsas para pesquisas sociocomportamentais sobre o câncer de mama. Candidatei-me com sucesso a uma verba que me permitiria avaliar a eficácia de minha abordagem terapêutica de pacientes terminais com câncer de mama. Era um projeto simples e direto. Eu confiava que minha abordagem terapêutica melhorava a qualidade de vida das doentes terminais, e só me faltava desenvolver um componente de avaliação: a aplicação de questionários antes de as pacientes entrarem no grupo e a intervalos regulares depois disso.

Observem como comecei a usar mais o pronome na primeira pessoa: "Eu decidi... eu me candidatei... minha abordagem terapêutica." Quando olho para trás e peneiro as cinzas de minha relação com Paula, suspeito que esses pronomes na primeira pessoa tenham pressagiado a deturpação de nossa amizade. Enquanto atravessava aquele período, porém, eu não tinha consciência nem mesmo do mais sutil estrago. Lembro-me apenas de que Paula me enchia de luz e que eu era sua rocha, o porto seguro que ela havia procurado antes de termos a sorte de encontrar um ao outro.

De uma coisa tenho certeza: foi pouco depois de se iniciar oficialmente a pesquisa patrocinada que as coisas começaram a dar errado. Primeiro vieram pequenas rachaduras, finas como fios de cabelo, depois as fissuras em nossa relação. Talvez o primeiro sinal claro de que alguma coisa ia mal tenha sido o fato de Paula me dizer, um dia, que se sentia explorada pelo projeto de pesquisa. Isso me pareceu uma observação curiosa, pois eu tinha tentado, de todas as maneiras possíveis, fazer com que seu papel no projeto fosse exatamente o que ela havia solicitado: Paula entrevistava todas as novas candidatas aos grupos, todas elas mulheres com câncer de mama metastático, e ajudava na elaboração dos questionários de avaliação. Além disso, eu me certificara de que ela fosse bem paga — muito acima do que recebia um assistente de pesquisa médio e muito mais do que ela havia pedido.

Algumas semanas depois, numa conversa perturbadora, Paula me disse estar esgotada pelo trabalho e ansiar por mais tempo para si mesma. Solidarizei-me com ela e tentei oferecer sugestões para reduzir seu ritmo frenético.

Pouco tempo depois, submeti à apreciação do Instituto Nacional do Câncer meu relatório escrito da primeira etapa da pesquisa. Embora me certificasse de colocar o nome de Paula como o primeiro da lista de assistentes, não tardei a ouvir rumores de que ela ficara insatisfeita com a quantidade de crédito que havia recebido. Cometi o erro de dar pouca atenção a esses rumores: aquilo parecia atípico em Paula.

Passado um breve período, apresentei como co-terapeuta a um dos grupos a dra. Kingsley — uma jovem psicóloga que, embora inexperiente no trabalho com pacientes de câncer, era extraordinariamente inteligente, bem-intencionada e dedicada. Paula não demorou a me procurar:

-— Essa mulher — censurou — é a pessoa mais fria e menos generosa que já conheci. Nem em um milhão de anos ela será capaz de ajudar qualquer das pacientes.

Fiquei espantado, tanto com seu erro grosseiro de avaliação da nova co-terapeuta, quanto com seu tom amargo e condenatório. "Por que está sendo tão dura, Paula?", pensei com meus botões. "Por que tão sem compaixão, tão pouco cristã?"

O patrocínio da pesquisa estipulava que, durante os primeiros seis meses de financiamento, eu teria que realizar um painel de dois dias para consultar seis peritos em tratamento de câncer, projetos de pesquisa e análise estatística. Convidei Paula e mais quatro outras participantes de grupos a comparecerem como consultoras, na condição de pacientes. O painel era pura fachada, um flagrante desperdício de tempo e dinheiro. Mas assim é a vida no campo das pesquisas financiadas por contratos com o governo federal: a pessoa simplesmente aprende a se adaptar a essas pantomimas. Paula, no entanto, não sabia se adaptar. Calculando o montante gasto no encontro de dois dias (aproximadamente 5 mil dólares), ela se enfureceu comigo a propósito da imoralidade do painel:

— Pense na ajuda que 5 mil dólares poderiam proporcionar a pacientes de câncer!

"Paula", pensei,"eu a adoro, mas como você sabe ser obtusa!"

— Você não vê — retruquei — que é preciso fazer concessões? Não há possibilidade de usarmos os 5 mil dólares no tratamento direto de pacientes. E, o que é mais importante, perderemos nosso financiamento se não seguirmos as normas federais sobre o painel de consultas. Se conseguirmos perseverar, concluir a pesquisa e demonstrar o valor de nossa abordagem de pacientes com câncer terminal, beneficiaremos mais pacientes, muito mais do que beneficiaríamos diretamente com os 5 mil dólares. Não vamos contar trocados nem ser perdulários, Paula. Faça uma concessão, por favor — supliquei —, só essa vez.

Pude sentir sua decepção comigo. Balançando lentamente a cabeça, ela replicou:

— Fazer uma concessão só uma vez, Irv? Não existe essa história de concessão única. Elas se reproduzem.

Durante o painel, todos os consultores deram a contribuição para a qual tinham sido recrutados (e pela qual eram bem pagos). Um deles discutiu testes psicológicos para medir a depressão, a ansiedade, as formas de enfrentamento e o locus de controle; outro falou sobre os sistemas de prestação de assistência médica, e outro, sobre os recursos da comunidade.

Paula mergulhou a fundo no painel. Presumo que tenha intuído que, quando se dispõe de pouco tempo, não se entra no jogo da espera. Ela personificou a provocadora socrática diante do solene painel de consultores. Por exemplo, quando eles discutiram índices objetivos de avaliação de formas desajustadas de enfrentamento, como quando a paciente não sai da cama, não se veste, retrai-se e chora, Paula argumentou que, para ela, às vezes essas atividades constituíam estágios de incubação que acabavam por inaugurar uma nova etapa, por vezes um período de crescimento. Ela rejeitou as tentativas dos peritos de convencê-la de que, quando se usa uma amostra grande o bastante, se agregam escores e um grupo de controle, pode-se lidar facilmente com essas considerações na análise estatística dos dados.

Veio então o momento em que se pediu aos participantes do painel que sugerissem variáveis antecedentes importantes, ou seja, fatores que pudessem predizer o ajuste psicológico de uma pessoa ao câncer. O dr. Lee, um oncologista, foi escrevendo esses fatores no quadro-negro, à medida que os participantes os enunciavam: estabilidade conjugai, disponibilidade de recursos ambientais, perfil de personalidade, histórico familiar. Levantando a mão, Paula sugeriu:

— E que tal a coragem? E a profundidade espiritual?

Deliberadamente, sem falar, o dr. Lee a fitou, jogando o giz para o alto e tornando a pegá-lo algumas vezes. Por fim, virou-se e escreveu as sugestões de Paula no quadro-negro. Embora eu não as considerasse irracionais, sabia — e sabia que todos os demais sabiam — que, enquanto observava a queda do giz, o dr. Lee estava pensando: "Alguém, qualquer um, por favor, tire essa senhora daqui!" Mais tarde, no almoço, referiu-se desdenhosamente a Paula como evangelizadora. Embora ele fosse um oncologista eminente, cujo apoio e indicações eram essenciais para o projeto, arrisquei-me a antagonizá-lo e defendi a paciente com firmeza, enfatizando sua importância crucial na formação e no funcionamento dos grupos. E, apesar de não conseguir alterar a impressão que o dr. Lee tinha de Paula, senti-me orgulhoso de mim mesmo por tê-la apoiado.

Naquela noite, Paula me telefonou. Estava furiosa.

— Todos os médicos do painel são autômatos, autômatos desumanos. Nós, os pacientes que lutamos com o câncer 24 horas por dia, o que nós somos para eles? Eu lhe digo: não passamos de "estratégias desajustadas de enfrentamento".

Passei muito tempo conversando com ela e fiz tudo o que pude para acalmá-la. Com gentileza, tentei sugerir-lhe que não estereotipasse os médicos e lhe pedi que tivesse paciência. Afirmando minha lealdade aos princípios com os quais havíamos iniciado o grupo, concluí:

— Lembre-se, Paula, nada disso faz a menor diferença, porque tenho meu próprio projeto de pesquisa. Não serei controlado pela visão mecanicista dessas pessoas. Confie em mim!

Mas Paula não estava ali para ser acalmada e nem confiaria em mim, como depois se viu. O painel envenenou-lhe a cabeça. Paula ruminou sobre ele durante semanas e por fim me acusou diretamente de me vender à burocracia. Apresentou um relatório minoritário de uma pessoa só ao Instituto Nacional do Câncer, e nele não faltaram vigor nem rancor.

Um dia, finalmente, Paula entrou em meu consultório e anunciou que tinha resolvido deixar o grupo.

— Por quê?

— Bem, estou cansada dele.

— Paula, há alguma coisa além disso. Qual é a verdadeira razão?

— Já lhe disse, estou cansada dele.

Por mais que eu a instigasse, ela continuou a insistir nessa desculpa, embora ambos soubéssemos que a verdadeira razão era que eu a havia decepcionado. Usei toda a minha astúcia (e, após todos os meus anos de prática, eu conhecia umas tantas maneiras de seduzir as pessoas), mas não adiantou. Todas as minhas tentativas, incluindo umas caçoadas irrefletidas e apelos a nossa longa amizade, foram recebidas com um olhar gélido. Eu já não tinha uma boa relação com ela e tive que suportar a tristeza de uma conversa mentirosa.

— É só que estou trabalhando demais. É demais para mim — fez ela.

— Não é isso que venho dizendo há meses, Paula? Reduza todas essas suas visitas e telefonemas às dezenas de pacientes da sua lista. Freqüente o grupo, simplesmente. O grupo precisa de você. E eu preciso de você. Com certeza, noventa minutos por semana não são demais.

— Não, não sei fazer as coisas aos bocadinhos. Preciso de um intervalo. Além disso, o grupo já não está mais onde eu estou. É muito superficial. Preciso ir mais a fundo, trabalhar com símbolos, sonhos e arquétipos.

— Concordo, Paula — respondi, já então muito controlado. — Também é isso que eu quero, e mal estamos entrando nesse terreno no grupo.

— Não, estou cansada demais, esgotada demais. Cada nova paciente me obriga a reviver minha própria época de crise, meu próprio calvário. Não, já resolvi: minha sessão da próxima semana será a última.

 

E assim foi. Paula nunca retornou ao grupo. Pedi-lhe que me ligasse a qualquer hora, se quisesse conversar. Ela retrucou que também seria possível eu lhe telefonar. Embora não estivesse sendo maliciosa, seu comentário modificou o panorama e me feriu fundo. Ela nunca mais me ligou. Telefonei-lhe algumas vezes e a levei para almoçar em duas ocasiões. O primeiro almoço (tão sofrido que se passaram muitos meses até que eu a convidasse para outro) começou de maneira desastrosa. Encontrando lotado o restaurante de nossa preferência, fomos ao Trotter's, do outro lado da rua, uma construção enorme e cavernosa, completamente sem graça, que já tivera muitas ocupações anteriores: uma re-vendedora Oldsmobile, uma mercearia de produtos naturais, um salão de dança. Agora, era um restaurante que exibia um cardápio de sanduíches "de dança" — o Valsa, o Twist, o Charleston.

Não, aquilo não estava bom; percebi que não estava bom quando me ouvi pedir um sanduíche Hula-Hula, e soube que não estava bom quando Paula abriu a bolsa, tirou uma pedra do tamanho aproximado de uma toranja pequena e a colocou na mesa entre nós.

— Minha pedra da raiva — disse ela. Desse ponto em diante, minhas lembranças são atipicamente fragmentadas. Por sorte, tomei algumas notas depois do almoço, porque minhas conversas com Paula me eram importantes demais para serem confiadas a minha memória.

— Pedra da raiva? — repeti, confuso, hipnotizado pelo pedregulho coberto de líquen postado na mesa entre nós.

— Levei tantos trancos, Irv, que fui engolida pela raiva. Agora aprendi a afastar a raiva. A enfiá-la nessa pedra. Tive que trazê-la hoje. Queria que ela estivesse aqui quando eu o encontrasse.

— Por que está com raiva de mim, Paula?

— Não estou mais com raiva. O tempo que me resta é curto demais para eu ficar com raiva. Mas fiquei magoada; fui abandonada quando mais precisava de ajuda.

— Eu nunca a abandonei, Paula — objetei, mas ela não registrou meu comentário e foi em frente.

— Depois do painel, fiquei dilacerada. Ao ver o dr. Lee parado lá, jogando aquele giz para cima, me ignorando, ignorando as preocupações humanas de todas as pacientes, senti o mundo inteiro desabar sob meus pés. As pacientes são humanas. Nós lutamos. Às vezes lutamos com grande coragem contra o câncer. É comum falarmos em ganhar ou perder a luta, e é uma luta. Ora mergulhamos no desespero, ora no simples esgotamento físico, e às vezes nos elevamos acima do câncer. Nós não somos "estratégias de enfrentamento". Somos muito, muito mais do que isso.

— Mas Paula, aquilo foi o dr. Lee, não eu. Não era assim que eu me sentia. Defendi você quando conversei com ele, mais tarde, e lhe contei isso. Depois de todo o trabalho que fizemos juntos, você é capaz de acreditar que eu não a considere nada além de uma estratégia de enfrentamento? Tenho tanto horror quanto você a essa linguagem e essa visão!

— Sabe, não vou mesmo voltar ao grupo.

— Não é essa a questão, Paula — retruquei. E não era. Para mim, já não era uma preocupação urgente que ela voltasse ao grupo. Apesar de Paula ter sido uma grande força nele, eu viera a perceber que ela fora quase poderosa demais e inspiradora demais: sua saída havia permitido que várias pacientes crescessem e inspirassem a si mesmas. — O mais importante para mim é que você confie em mim e se importe comigo.

— Depois do painel, Irv, passei um dia inteiro chorando. Liguei para você. Você não ligou de volta naquele dia. Depois, quando telefonou, não me deu nenhum consolo. Fui à igreja rezar e tive uma conversa de três horas com o padre Elson. Ele me ouviu. Sempre me ouve. Acho que ele me salvou.

Maldito padre! Fiz um esforço para me recordar daquele dia, três meses antes. Eu tinha uma vaga lembrança de ter falado com ela ao telefone, mas não de ela pedir ajuda. Tivera certeza de que ela havia telefonado para reclamar um pouco mais do painel, sobre o qual já tínhamos discutido várias vezes. Vezes demais. Por que será que ela não conseguia entender? Quantas vezes eu teria de lhe dizer que nada daquela porcaria tinha importância, que eu não era o dr. Lee, que eu não tinha jogado o giz para cima, que eu a havia defendido depois, indo contra ele, que eu levaria o grupo adiante do mesmo jeito, que nada iria mudar, exceto que as participantes seriam solicitadas a preencher alguns questionários a cada três meses? Sim, Paula tinha me ligado naquele dia, mas nunca me pedira ajuda, nem naquela ocasião nem em qualquer outra.

— Paula, se você tivesse dito que precisava pessoalmente de ajuda, acha que eu a teria recusado?

— Passei um dia inteiro chorando.

— Mas eu não sei ler pensamentos. Você me disse que queria conversar sobre a pesquisa e seu relatório pessoal.

— Passei um dia inteiro chorando.

E assim continuou, nós dois nos falando sem ouvir um ao outro. Fiz tudo que pude para estabelecer contato. Disse-lhe que precisava dela — por mim, não pelo grupo. E precisava mesmo. Havia uns problemas na minha vida me perturbando nessa época, e eu ansiava por sua inspiração e sua presença tranqüilizadora. Certa vez, meses antes, eu tinha ligado para ela uma noite, a pretexto de discutir nossos planos para o grupo, mas, na realidade, porque minha mulher estava fora e eu me sentia sozinho e angustiado. Depois da conversa telefônica, que havia durado mais de uma hora, eu me sentira muito melhor — se bem que ligeiramente culpado, por ter arranjado uma sessão terapêutica disfarçadamente.

Pensei naquela longa e reconfortante conversa telefônica com Paula. Por que eu não tinha sido mais franco? Por que não tinha dito, simplesmente: "Escute, Paula, posso conversar com você agora? Será que você pode me ajudar? Estou me sentindo ansioso, sozinho, atormentado. Estou com dificuldade para dormir." Não, não, isso estava fora de questão! Eu tinha preferido obter meu alimento em sigilo.

Que hipocrisia a minha, portanto, exigindo que Paula me pedisse ajuda abertamente! Quer dizer que ela me pedira socorro de um jeito dissimulado, usando uma história falsa sobre o painel? E daí? Eu devia ter tentado consolá-la sem insistir em que ela se ajoelhasse.

À medida que contemplava a pedra da raiva de Paula, eu percebia como era pequena a chance de resgatar nossa relação. Aquela decerto não era hora para sutilezas, e eu me abri com ela como nunca fizera antes:

— Preciso de você — afirmei, lembrando-lhe, como antes fizera muitas vezes, que os terapeutas também têm necessidades. — E pode ser que eu não tenha sido suficientemente sensível a sua aflição. Mesmo assim, não sei ler pensamentos, e por acaso você não passou anos recusando todas as minhas ofertas de ajuda?

O que eu queria dizer era: "Dê-me mais uma chance. Mesmo que daquela vez eu não tenha captado sua aflição, Paula, não vá embora para sempre." Mas eu já chegara perto demais de implorar nesse dia. Paula foi inflexível, e nós nos despedimos sem nos tocar.

Tirei-a da cabeça por vários meses, até que a dra. Kingsley, a jovem psicóloga com quem ela havia antipatizado de forma tão irracional, me falou de um encontro desagradável que tivera com Paula. A paciente havia retornado ao grupo liderado pela dra. Kingsley (já então tínhamos diversos grupos no projeto) e, falando como se fosse a "sra. Câncer", no dizer da psicóloga, havia monopolizado a sessão com um discurso. Telefonei imediatamente para ela e tornei a convidá-la para almoçar.

Fiquei surpreso ao ver como Paula pareceu satisfeita com meu convite, mas, assim que nos encontramos — dessa vez no Clube dos Docentes de Stanford, que não serve sanduíches Hula-Hula —, seu propósito ficou claro. Ela não conseguia falar de outra coisa senão a dra. Kingsley. Segundo Paula, a co-terapeuta dessa psicóloga a tinha convidado a se dirigir ao grupo, mas, mal ela começara a falar, a dra. Kingsley a havia acusado de tomar tempo demais.

— Você tem que repreendê-la — disse-me em tom urgente. — Você sabe que os professores podem e devem ser responsabilizados pelo comportamento antiprofissional de seus alunos.

Mas a dra. Kingsley era minha colega, não minha aluna, e fazia anos que eu a conhecia. Não só seu marido era meu amigo íntimo, como ela e eu havíamos liderado juntos muitos grupos: sabendo que ela era uma excelente terapeuta, tive certeza de que a descrição de seu comportamento feita por Paula estava muito distorcida.

Aos poucos, devagar demais, ocorreu-me que Paula estava com ciúmes: ciúme da atenção e da afeição que eu dedicava à dra. Kingsley, ciúme de minha aliança com ela e com todos os membros da equipe de pesquisa. Era natural que Paula houvesse resistido ao painel de especialistas, natural que houvesse desencorajado qualquer colaboração com outros pesquisadores. Ela resistiria a qualquer mudança. Tudo o que queria era voltar à época em que ela e eu ficávamos sozinhos com nosso pequeno rebanho.

O que eu podia fazer? Sua insistência em que eu escolhesse entre ela e a dra. Kingsley deixou-me num dilema impossível.

— Eu me importo com vocês duas, você e a dra. Kingsley, Paula. Como posso manter minha integridade e meu coleguismo e amizade com a dra. Kingsley, sem que você se sinta abandonada por mim, mais uma vez?

Embora eu tentasse me aproximar dela de todas as maneiras possíveis, a distância entre nós aumentou. Eu não conseguia encontrar as palavras certas e não parecia haver nenhum assunto seguro. Eu já não tinha o direito de fazer perguntas pessoais, e Paula não manifestou nenhum interesse em minha vida.

Durante todo o almoço, contou-me histórias sobre maus-tratos terríveis por parte de seus médicos:

— Eles ignoram minhas perguntas; seus remédios fazem mais mal do que bem — disse. E também me alertou sobre um psicólogo que andava conversando com algumas pacientes cancerosas que haviam participado de nosso grupo: — Ele está roubando nossos dados para usar em seu próprio livro. É melhor você se cuidar, Irv.

Era óbvio que Paula estava profundamente perturbada, e fiquei alarmado e triste com sua paranóia. Creio que minha aflição deve ter transparecido, porque, quando me levantei para ir embora, ela me pediu que ficasse mais alguns minutos.

— Tenho uma história para você, Irv. Sente-se aí e me deixe contar-lhe sobre o coiote e o gafanhoto.

Paula sabia que eu adorava histórias. Especialmente as dela. Ouvi-a, cheio de expectativas:

 

Era uma vez um coiote que se sentia esmagado pelas pressões da vida. Tudo o que conseguia ver era uma porção de filhotes famintos, caçadores demais, armadilhas demais. Então, um dia ele fugiu, para ficar sozinho. De repente, ouviu as notas de uma melodia suave, uma melodia de bem-estar e grande sensação de paz. Seguindo a canção até uma clareira na floresta, deparou com um grande gafanhoto que tomava sol no oco de um tronco e cantava. — Ensine-me sua canção — pediu o coiote ao gafanhoto. Não houve resposta. Ele tornou a pedir que lhe fosse ensinada a canção. Mas o gafanhoto cedeu calado. Por fim, quando o coiote ameaçou devorá-lo, o gafanhoto cedeu e repetiu a doce melodia inúmeras vezes, até o coiote aprendê-la de cor. Cantarolando sua nova canção, o coiote retomou o caminho de casa. De repente, um bando de gansos selvagens levantou vôo e o assustou. Quando se recobrou do susto, ele abriu a boca para tornar a cantar, mas descobriu que havia esquecido a melodia.

Assim, voltou à clareira ensolarada na floresta. Àquela altura, porém, o gafanhoto já havia passado pela muda, largara a pele vazia tomando sol no mesmo tronco e voara para um galho de árvore. O coiote não perdeu tempo em se certificar de que teria a canção para sempre dentro de si. De um só golpe, engoliu a pele do gafanhoto, achando que o bichinho ainda estava lá dentro. Ao retomar o caminho de casa, mais uma vez descobriu que não sabia a canção. Percebeu que não poderia aprendê-la por ter ingerido o gafanhoto. Seria preciso deixá-lo sair e forçá-lo a lhe ensinar a melodia. Pegando uma faca, deu um corte na barriga para soltar o gafanhoto. Cortou tão fundo que morreu.

 

— Por isso, Irv — disse ela, dando-me aquele seu sorriso adorável e beatífico, segurando minha mão e sussurrando em meu ouvido —, você tem que encontrar sua própria canção para cantar.

Fiquei muito emocionado: o sorriso, o mistério, o esforço para conquistar a sabedoria, essa era a Paula que eu tanto amava. Gostei da parábola. Era pura Paula, como se estivéssemos nos velhos tempos. Tomei o significado por seu valor aparente — eu deveria cantar minha própria canção — e afastei as implicações mais sombrias e perturbadoras da história, as que se referiam a minha relação com ela. Até hoje me recuso a examiná-las muito profundamente.

E assim, cada um de nós cantou separadamente sua canção. Minha carreira progrediu: conduzi pesquisas, escrevi muitos livros, recebi as recompensas e promoções acadêmicas que tanto ambicionava. Dez anos se passaram. Fazia muito tempo que o projeto do câncer de mama que Paula ajudara a deslanchar tinha sido concluído e que seus resultados tinham sido publicados. Havíamos oferecido terapia de grupo a cinqüenta mulheres com câncer de mama metastático e constatado que, comparando-as com 36 pacientes de controle, o trabalho no grupo havia acarretado uma imensa melhora na qualidade do resto da vida das pacientes. (Anos depois, num estudo de acompanhamento publicado na revista Lancet? meu colega dr. David Spiegel, a quem eu pedira muitos anos antes que fosse o principal pesquisador do projeto, acabou demonstrando que o grupo havia prolongado significativamente a vida das participantes.) Mas agora o grupo era passado; todas as trinta mulheres do primeiro Grupo da Ponte e as 86 do estudo do câncer de mama metastático haviam morrido.

Todas, menos uma. Um dia, no corredor do hospital, uma moça de cabelos ruivos e rosto corado cumprimentou-me e disse:

— A Paula West lhe mandou lembranças.

Paula!? Seria possível? Paula ainda estava viva? E eu que nem soubera! Estremeci ao pensar que me tornara uma pessoa que nem sequer sabia se um espírito como o dela ainda habitava a terra.

— Paula? Como vai ela? — gaguejei. — De onde você a conhece?

— Dois anos atrás, quando fui diagnosticada com lúpus, Paula foi me visitar e me apresentou a seu grupo de auto-ajuda de portadores da doença. Desde então, ela tem cuidado de mim, ou melhor, de toda a comunidade de pacientes de lúpus.

— Lamento muito saber da sua doença. Mas a Paula? Lúpus? Eu não sabia.

"Que hipocrisia", pensei. Como é que eu poderia saber? Por acaso havia ligado para ela pelo menos uma vez?

— Ela me disse que a doença foi causada pela medicação que lhe deram para o câncer.

— Ela está muito doente?

— Com a Paula, nunca se sabe. Com certeza, não está doente demais para começar um grupo de apoio de lúpus, convidar todos os novos pacientes para almoçar, para nos visitar quando estamos doentes demais para sair de casa, para arranjar uma série de oradores médicos que nos mantêm a par das novas pesquisas sobre o lúpus. E também não está doente demais para provocar uma investigação do conselho de ética médica sobre seus oncologistas.

Organizar, instruir, cuidar, agitar, iniciar grupos de auto-ajuda para pacientes de lúpus, punir seus médicos — aquilo com certeza era coisa de Paula.

Agradeci à moça e, um pouco depois, no mesmo dia, disquei o número de Paula, que eu ainda sabia de cor, embora fizesse uma década desde meu último telefonema. Enquanto esperava que ela atendesse, pensei em algumas pesquisas geriátricas recentes que haviam mostrado uma correlação positiva entre o estilo de personalidade e a longevidade: os pacientes rabugentos, paranoides, vigilantes e assertivos tendem a viver mais. Era melhor uma Paula irascível, irritante e viva, pensei eu, do que uma plácida e morta!

Ela pareceu contente com minha ligação e me convidou para almoçar em sua casa; o lúpus, disse-me, a havia deixado sensível demais ao sol para que se aventurasse a ir a restaurantes à luz do dia. Fiquei contente em aceitar. No dia do almoço, encontrei-a no jardim da frente de sua casa. Envolta em linho da cabeça aos pés e usando um enorme chapéu de praia de abas largas, ela estava retirando as ervas daninhas de um lindo canteiro de alfazemas altas e perfumadas.

— É provável que essa doença me mate, mas não vou deixar que me mantenha fora do meu jardim — disse Paula, segurando meu braço e me acompanhando para dentro de casa. Levou-me a um sofá de veludo roxo-escuro e, sentando-se a meu lado, começou imediatamente a tecer uma observação séria:

— Faz séculos que não o vejo, Irv, mas penso em você com freqüência, e sempre o trago em minhas orações.

— Gosto que você pense em mim, Paula, mas, quanto a suas orações, você conhece minhas deficiências nessa matéria.

— Sim, sim, eu sei que nessa área específica você ainda precisa ampliar seus horizontes. Isso me lembra — disse-me, sorrindo — que meu trabalho com você ainda não está completo. Lembra-se da última vez que falamos de Deus? Foi anos atrás, mas me lembro de você ter dito que meu sentimento do sagrado não era muito diferente das grandes eólicas de gases noturnas!

— Fora do contexto, isso soa grosseiro, até mesmo para mim. Mas não tive a intenção de ofendê-la. Só quis dizer que um sentimento é meramente um sentimento. Um estado subjetivo nunca poderá comprovar uma verdade objetiva. Um desejo, um medo, uma sensação de reverência, do assombroso, não significa que...

— Eu sei, eu sei — interrompeu-me Paula com um sorriso. — Conheço sua ladainha materialista linha-dura. Já a ouvi muitas vezes, e sempre me impressiona a dose de paixão, de devoção e de fé que você deposita nela. Lembro que, em nossa última conversa, você me disse que nunca tivera um amigo íntimo nem conhecera ninguém a quem respeitasse e que fosse um fiel devoto.

Concordei, balançando a cabeça.

— Bem, há uma coisa que eu devia ter-lhe dito naquela ocasião: você se esqueceu de uma amiga devota: eu! Como eu gostaria de apresentá-lo ao sagrado! E como é estranho que você tenha me telefonado agora, porque venho pensando muito em você nas últimas duas semanas! Acabei de voltar de um retiro de duas semanas da igreja nas Sierras, e gostaria muito de tê-lo levado comigo. Fique sentadinho aí e deixe que eu lhe fale dele.

"Uma manhã" prosseguiu, "pediram-nos para meditar sobre alguém que tivesse morrido, alguma pessoa amada de quem realmente não nos houvéssemos separado. Escolhi pensar em meu irmão, que eu amava muito e que morreu aos 17 anos, quando eu ainda era criança. Pediram-nos para escrever uma carta de despedida, dizendo a essa pessoa todas as coisas importantes que nunca disséramos. Depois, teríamos que procurar na floresta um objeto que simbolizasse essa pessoa para nós. Por fim, deveríamos enterrar o objeto juntamente com a carta. Escolhi uma pedrinha de granito e a enterrei à sombra de um junípero. Meu irmão parecia uma rocha: sólido, constante. Se tivesse continuado vivo, ele me daria apoio. Nunca me deixaria de lado."

Paula me olhou nos olhos ao dizer isso, e comecei a esboçar um protesto. Mas ela pôs o dedo em meus lábios e continuou:

— Naquela noite, à meia-noite, os sinos do mosteiro dobraram pela pessoa que cada um de nós havia perdido. Éramos 24 no retiro, e os sinos dobraram 24 vezes. Sentada em meu quarto, ao ouvir o primeiro dobre, senti, realmente senti a morte de meu irmão, e uma onda de tristeza indescritível desceu sobre mim, e pensei em todas as experiências que ele e eu tivéramos juntos, e também em todas as que nunca tivemos. E então aconteceu uma coisa estranha: à medida que os sinos continuaram a tocar, cada badalada trouxe à minha lembrança um membro do nosso Grupo da Ponte que havia morrido. Quando as badaladas terminaram, eu tinha lembrado de 21. E, durante todo o tempo em que os sinos dobraram, eu chorei. Chorei tanto que uma das freiras me ouviu e entrou em meu quarto, colocou os braços à minha volta e me abraçou. Irv, você se lembra deles? Lembra-se da Linda e da Bunny...?

— ...e da Eva, e da Lily — completei. Senti minhas próprias lágrimas aflorarem, ao juntar-me a ela na rememoração dos rostos, das histórias e do sofrimento dos primeiros membros de nosso grupo.

— ...e Madeline, e Gabby...

— ...e Judy, e Joan...

— ...e Evelyn, e Robin...

— ...e Sal, e Rob.

Abraçados um ao outro e balançando suavemente, Paula e eu continuamos nosso dueto, nossa marcha fúnebre, até sepultarmos numa urna os nomes de 21 componentes de nossa pequena família.

— Este é um momento sagrado, Irv — disse ela, soltando-se do abraço e me fitando nos olhos. — Você não consegue sentir a presença do espírito deles?

— Lembro-me deles com muita clareza e sinto a sua presença, Paula. Isso é sagrado o bastante para mim.

— Irv, eu o conheço muito bem. Guarde o que estou dizendo: chegará o dia em que você vai perceber quão religioso realmente é. Mas não é justo tentar convertê-lo enquanto você está com fome. Vou servir o almoço.

— Espere um instante, Paula. Minutos atrás, quando você disse que seu irmão era alguém que nunca a deixaria de lado, essa afirmação foi dirigida a mim?

— Uma vez — disse Paula, fitando-me com seus olhos luminosos —, num momento em que precisei desesperadamente de você, você me abandonou. Mas isso foi naquela época. Já passou. Agora você voltou.

Eu tinha certeza naquela época a que ela se referia: à ocasião em que o dr. Lee tinha jogado o giz para o alto. Quanto tempo havia demorado o vôo do giz? Um segundo? Dois? Mas aqueles breves momentos haviam ficado congelados em sua memória. Eu precisaria de um quebrador de gelo para arrancá-los de lá. E não era tolo o bastante para tentar. Em vez disso, voltei ao irmão dela.

— Sua afirmação de que seu irmão parecia uma rocha me fez pensar numa outra rocha, a pedra da raiva que um dia você pôs na mesa entre nós. Sabia que, até hoje, você nunca havia mencionado seu irmão para mim? Mas a morte dele me ajuda a entender algumas coisas sobre nós dois. Talvez tenhamos sido sempre um trio: você, seu irmão e eu, não é? Eu me pergunto se a morte dele terá sido a razão de você ter optado por ser sua própria rocha, a razão de nunca ter permitido que eu fosse a sua rocha. Será que a morte dele não a convenceu de que os outros homens se mostrariam frágeis e indignos de confiança?

Parei e esperei. Como Paula reagiria? Durante todos os anos em que eu a conhecia, aquela era a primeira vez que eu lhe fazia uma interpretação sobre ela mesma. Mas ela não disse nada. Continuei:

— Acho que estou certo, e acho que foi bom você ter ido a esse retiro, foi bom que tenha tentado dizer adeus a ele. Talvez agora as coisas possam ser diferentes entre nós dois.

Mais silêncio. Então, com um sorriso enigmático, ela se levantou e disse:

— Agora é hora de alimentá-lo — e saiu em direção à cozinha.

Seria aquela afirmação — "Agora é hora de alimentá-lo" — um reconhecimento de que eu acabara de alimentá-la? Diabo, como era difícil dar-lhe alguma coisa!

Um instante depois, quando nos sentamos para almoçar, ela me olhou diretamente e disse:

— Irv, estou com um problema. Quer ser minha rocha agora?

— Ë claro — respondi, alegre por reconhecer em seu apelo uma resposta a minha pergunta. — Apóie-se em mim. Que tipo de problema?

Mas meu prazer por ser finalmente autorizado a ajudar transformou-se depressa em desilusão, à medida que ela começou a explicar seu problema.

— Abri tanto o verbo a respeito dos médicos que acho que entrei na lista negra deles. Já não consigo mais um bom atendimento. Todos os médicos da Clínica Larchwood estão nessa. Mas não posso trocar de clínica, porque meu plano de saúde me obriga a receber tratamento lá. E, com as minhas condições de saúde, que outra seguradora poria as mãos em mim? Estou convencida de que eles me trataram de maneira antiética: o tratamento que me deram foi responsável por meu lúpus. Decididamente, houve negligência médica! E eles estão com medo de mim! Escrevem algumas observações da minha ficha médica em tinta vermelha, para poder identificá-las e retirá-las depressa do meu prontuário, caso haja alguma intimação. Estão me usando como cobaia. Suspenderam de propósito os esteróides, até ficar tarde demais. Depois, abusaram da dose. Sinceramente, acho que querem me ver pelas costas. Passei essa semana inteira escrevendo uma carta para denunciá-los ao conselho de medicina. Mas ainda não a enviei, principalmente porque comecei a me preocupar com o que pode acontecer com os médicos e suas famílias, se eles perderem suas licenças. Por outro lado, como posso deixar que continuem a prejudicar os pacientes? Não posso fazer concessões. Lembro-me de ter dito a você, um dia, que uma concessão nunca vem sozinha: ela dá crias e, em pouco tempo, a gente perde aquilo em que mais acredita. E o silêncio aqui, neste momento, é uma concessão! Tenho rezado para pedir orientação.

Meu desânimo aumentou. Talvez houvesse uma parcela de verdade nas acusações de Paula. Talvez alguns de seus médicos, como acontecera com o dr. Lee muitos anos antes, ficassem tão irritados com seu jeito de ser que a rejeitassem. Mas escrever prontuários com tinta vermelha, usá-la como cobaia em experiências, restringir a medicação necessária? Eram acusações absurdas, e eu tinha certeza de que eram sinais de paranóia. Eu conhecia alguns desses médicos e acreditava em sua integridade. Mais uma vez, Paula me pusera na situação de ter que escolher entre suas convicções sólidas e as minhas. Mais do que tudo, eu não queria que ela achasse que eu a estava abandonando. No entanto, como poderia ficar do seu lado?

Senti-me numa armadilha. Finalmente, depois de todos aqueles anos, Paula me fazia um apelo direto. Eu só via uma maneira de reagir: considerá-la uma paciente altamente perturbada e tratá-la — "tratá-la" no sentido obscuro e falso da palavra, no sentido de "manejá-la". Isso era o que eu sempre quisera evitar com Paula — com qualquer pessoa, aliás —, porque "manejar" alguém é relacionar-se com essa pessoa como um objeto e, portanto, é a antítese de estar com ela.

Assim, identifiquei-me empaticamente com seu dilema. Escutei, fiz sondagens delicadas e guardei minhas opiniões para mim. Por fim, sugeri que ela escrevesse uma carta mais branda ao conselho de medicina:

— Franca, porém mais branda — disse-lhe. — Assim, os médicos receberão apenas uma reprimenda, em vez de perderem a licença.

Tudo isso, é claro, foi dito sem sinceridade. Nenhum conselho de medicina do mundo levaria a sério sua carta. Ninguém acreditaria que todos os médicos da clínica estavam conspirando contra ela. Não haveria a menor possibilidade de reprimenda ou cassação da licença.

Paula ficou absorta em seus pensamentos, ponderando sobre meu conselho. Creio que sentiu que eu me importava com ela, e torci para que não percebesse que eu estava sendo falso. Por fim, balançou a cabeça em sinal de assentimento.

— Você me deu um bom conselho, Irv, um conselho sensato. Era exatamente disso que eu estava precisando.

Foi doloroso sentir a ironia de ter sido unicamente nessa hora, quando agi sem sinceridade, que ela me considerou útil e digno de confiança.

Apesar da sensibilidade ao sol, Paula insistiu em me acompanhar até o carro. Pôs o chapéu de praia, enrolou-se em seus véus e lençóis e, quando liguei a ignição, debruçou-se na janela do carro para me dar um último abraço. Ao me afastar, olhei para trás pelo retrovisor. Com a silhueta contra o sol, com o chapéu e os panos que a envolviam brilhando na luz, Paula parecia incandescente. Soprou uma brisa. Suas roupas esvoaçaram. Ela me fez lembrar uma folha trêmula, oscilando em seu ramo, preparando-se para o outono.

 

Nos dez anos anteriores a essa visita, eu me dedicara a meus escritos. Havia produzido um livro após outro — uma produtividade nascida de uma estratégia simples: eu punha o ato de escrever em primeiro lugar e não deixava que nada nem ninguém interferisse. Vigiando meu tempo com a ferocidade com que uma mãe ursa protege os filhotes, havia eliminado todas as atividades que não fossem absolutamente essenciais. Até Paula havia entrado na categoria dos não-essenciais, e eu não perdera tempo ligando novamente para ela.

Meses depois, minha mãe faleceu, e quando eu estava no avião, a caminho de seu funeral, Paula surgiu em minha cabeça. Pensei em sua carta de despedida para o irmão morto — a carta com todas as coisas que ela nunca lhe dissera. E pensei no que eu nunca tinha dito a minha mãe. Era quase tudo! Mamãe e eu, embora nos amássemos, nunca nos faláramos diretamente, numa conversa franca, como duas pessoas que se buscassem com as mãos limpas e a mente aberta. Sempre havíamos "manejado" um ao outro, falado sem escutar, cada qual temendo, controlando e enganando o outro. Tenho certeza de que foi por isso que eu sempre quis falar de maneira sincera e direta com Paula. E foi por isso que detestei ser forçado a "manejá-la" com falsidade.

Na noite seguinte ao funeral, tive um sonho marcante.

Mamãe e muitos de seus amigos e parentes, todos mortos, estavam sentados numa escada, imóveis. Ouvi a voz de minha mãe chamando — gritando — meu nome. Notei especialmente tia Minny, sentada no degrau superior, muito quieta. Então, ela começou a se mexer, a princípio devagar, depois cada vez mais depressa, até vibrar mais rápido do que uma abelha. Nesse momento, todos os que estavam na escada, toda a gente grande da minha infância, todos mortos, começaram a vibrar. Meu tio Abe estendeu a mão para beliscar minha bochecha, cacarejando "filhote querido" como costumava fazer. Depois, os outros procuraram minhas bochechas. A princípio afetuosos, os beliscões foram ficando fortes e doídos. Acordei aterrorizado, com as bochechas latejando, às três horas da manhã.

O sonho retratava um duelo com a morte. Primeiro, fui chamado por minha mãe morta e vi todos os defuntos da família sentados na escada, numa quietude sepulcral. Depois, tentei negar a placidez da morte, infundindo neles o movimento da vida. Notei especialmente minha tia Minny, que morrera no ano anterior, depois de um derrame cataclísmico que a deixara completamente paralisada por vários meses, incapaz de mover um só músculo do corpo, a não ser os olhos. No sonho, Minny começou a se mexer, mas logo fugiu de controle e entrou numa movimentação frenética. Em seguida, tentei aliviar meu pavor dos mortos, imaginando-os beliscando afetuosamente minhas bochechas. Mas o pavor voltou a irromper, os beliscões tornaram-se ferozes e malignos, e fui totalmente dominado pela angústia da morte.

A imagem de minha tia vibrando como uma abelha me atormentou por vários dias. Eu não conseguia afastá-la. Talvez, pensei comigo mesmo, fosse uma mensagem me dizendo que o ritmo frenético de minha própria vida não passava de uma tentativa desajeitada de aplacar a angústia da morte. O sonho estaria me dizendo para ir mais devagar e cuidar das coisas que eu realmente valorizava?

Essa idéia de valor me trouxe Paula de volta à lembrança. Por que eu não lhe havia telefonado? Ela era alguém que havia encarado a morte, olhando-a de cima. Recordei seu jeito de dirigir a meditação no fim de nossos encontros: os olhos fixos na chama da vela, a voz sonora conduzindo todos nós para regiões mais profundas e mais tranqüilas. Algum dia eu lhe dissera quanto aqueles momentos significavam para mim? Havia muitas coisas que nunca lhe tinha dito. Pois agora iria dizê-las. No vôo de volta para casa, ao retornar do funeral de minha mãe, decidi reatar minha amizade com ela.

Mas nunca a reatei. Havia muito o que fazer: mulher, filhos, pacientes, alunos, escritos. Eu escrevia minha página diária e ignorava todo o restante: amigos, correspondência, telefonemas, convites para dar conferências. Tudo, todas as outras partes da minha vida teriam que esperar até o livro estar terminado. E Paula também teria de esperar.

Paula, é claro, não esperou. Meses depois, recebi um bilhete de seu filho — o garoto que eu invejara por ter uma mãe como ela, o filho para quem, anos antes, ela havia escrito uma carta tão maravilhosa sobre a aproximação de sua morte. Ele escreveu, simplesmente: "Minha mãe morreu, e estou certo de que ela gostaria que eu lhe desse a notícia."

 

Consolo sulista

Investi meu tempo. Cinco anos. Durante cinco anos, conduzi um grupo diário de terapia numa enfermaria psiquiátrica. Todas as manhãs, às dez horas, saía de meu aconchegante escritório cheio de livros na Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford, ia de bicicleta até o hospital, entrava na enfermaria, estremecia ao respirar a primeira lufada pegajosa de ar recendendo a Lysol e tirava meu café cafeinado do recipiente da equipe médica (nada de cafeína para os pacientes, nem tabaco, álcool ou sexo — tudo parte de um esforço, suponho, para desencorajá-los de se instalar muito confortavelmente e por tempo demais no hospital). Depois, eu arrumava as cadeiras em círculo na sala multifuncional, tirava meu bastão do bolso e, durante oitenta minutos, conduzia uma sessão de terapia de grupo.

Embora a enfermaria tivesse vinte leitos, minhas reuniões eram pequenas, às vezes com apenas quatro ou cinco pacientes. Eu era meticuloso quanto à minha clientela e só abria as portas para pacientes de funcionamento melhor. O bilhete de ingresso? Orientação vezes três: tempo, lugar e pessoa. Os membros de meu grupo só tinham de saber que dia era, quem eram eles e onde estavam. Apesar de não fazer objeção a participantes psicóticos (desde que fossem calmos e não interferissem no trabalho dos outros), eu insistia em que cada membro fosse capaz de falar, de prestar atenção durante oitenta minutos e de reconhecer a necessidade de ajuda.

Todo clube de prestígio tem seus critérios de entrada. Talvez minhas exigências para o ingresso no conjunto de membros tornassem mais desejável o meu grupo terapêutico — o "grupo da agenda", como era chamado, por razões que explicarei adiante. Os que não tinham o ingresso — os pacientes mais perturbados e regredidos — iam para o "grupo da comunicação", o outro grupo da enfermaria, que realizava sessões mais curtas, mais estruturadas e menos exigentes. E, é claro, havia sempre os que estavam no exílio social, os pacientes com grande prejuízo intelectual, por demais perturbados, agressivos ou maníacos para serem acomodados em qualquer grupo. Muitas vezes, permitia-se que alguns pacientes agitados do exílio social participassem do grupo da comunicação, depois de serem acalmados pelos medicamentos, talvez em um ou dois dias.

"Permitido comparecer": essa frase provocaria um sorriso até no rosto do mais retraído dos pacientes. Não! Deixem-me ser franco. Nunca se viram, na história do hospital, pacientes perturbados socando as portas da sala de terapia de grupo, exigindo ser admitidos. Uma cena muito mais familiar era a reunião que precedia o grupo, com um destacamento de atendentes e enfermeiras vestidas de branco galopando pela enfermaria, arrancando os membros de seus esconderijos em armários, banheiros e chuveiros e levando-os para a sala do grupo.

O grupo da agenda tinha uma reputação que o distinguia: era rigoroso e desafiador e, pior, não tinha cantos — nenhum lugar para a pessoa se esconder. Nunca houve penetras na enfermaria. Um paciente de nível superior jamais se deixaria apanhar no grupo da comunicação. Vez por outra, um paciente confuso e de funcionamento deficiente entrava aos tropeços na sessão do grupo da agenda, mas, ao perceber onde estava, o medo brilhava em seus olhos e ninguém precisava acompanhá-lo até a saída. Embora fosse tecnicamente possível haver uma promoção do grupo de nível inferior para o superior, poucos pacientes, em qualquer época, ficaram no hospital por tempo suficiente para que isso acontecesse. Assim, a enfermaria era estratificada na surdina: todo mundo sabia qual era o seu lugar. Mas ninguém jamais falava disso.

Antes de começar a conduzir grupos no hospital, eu achava que os conjuntos de pacientes externos constituíam um desafio. Não é fácil conduzir um grupo de sete ou oito pacientes ambulatoriais necessitados, com grandes problemas de relacionamento uns com os outros, e, ao fim de cada sessão, eu me sentia cansado, muitas vezes esgotado, e me deslumbrava com os terapeutas que tinham energia suficiente para conduzir outra sessão logo em seguida. Entretanto, depois de começar a trabalhar com pacientes hospitalizados, eu relembrava com muita saudade os bons tempos do grupo terapêutico de pacientes ambulatoriais.

Imaginem um conjunto desses pacientes externos: uma reunião coesa de pacientes cooperadores e altamente motivados; uma sala tranqüila e aconchegante; nada de enfermeiras batendo na porta para arrastar pacientes para um ou outro exame laboratorial ou para uma consulta médica; nada de pacientes suicidas com os pulsos enfaixados; ninguém que se recusasse a falar; ninguém dopado pelos medicamentos, pegando no sono e roncando no grupo; e, mais importante, os mesmos pacientes e o mesmo co-terapeuta presentes a cada sessão, semana após semana, mês após mês. Que luxo! O paraíso do terapeuta. Em contraste, o cenário de meus grupos de pacientes internados era próximo de um pesadelo: a rápida e contínua rotatividade dos membros; os freqüentes surtos psicóticos; os participantes trapaceiros e manipuladores; os pacientes exauridos por vinte anos de depressão ou esquizofrenia, que nunca melhorariam; e o nível palpável de desespero na sala.

Mas o que era mesmo de arrasar, o demolidor desse trabalho, era a burocracia do hospital e da indústria de planos de saúde. Todos os dias, equipes de vigilância de agentes da HMO[4] vasculhavam as enfermarias, bisbilhotavam os prontuários médicos e ordenavam a alta de um ou outro paciente confuso, desesperado, que houvesse passado relativamente bem na véspera e cujo prontuário não trouxesse nenhuma observação, assinada pelo médico, dizendo explicitamente que ele era suicida ou perigoso.

Teria realmente havido uma época, não fazia muito tempo, em que cuidar do paciente era primordial, em que os médicos admitiam os doentes e os mantinham no hospital até que melhorassem? Tudo isso seria apenas um sonho? Já não falo muito desse assunto, já não arrisco os sorrisos condescendentes de meus alunos, tagarelando sobre os anos dourados em que o trabalho do administrador era ajudar o médico a ajudar os pacientes.

Os paradoxos burocráticos eram irritantes. Consideremos o caso de John, um homem de meia-idade, paranóico e levemente retardado. Depois de ser agredido uma vez num abrigo para os sem-teto, ele passara a evitar os abrigos mantidos pelo Estado e dormia ao relento. John conhecia as palavras mágicas que abriam as portas dos hospitais, e muitas vezes, nas noites frias e úmidas, geralmente por volta da meia-noite, cortava de leve os pulsos diante de um pronto-socorro e ameaçava fazer ferimentos mais profundo, se o Estado não lhe arranjasse um local seguro e privado para dormir. Mas nenhuma instituição tinha autoridade para lhe fornecer vinte dólares para um quarto, e, como o médico do pronto-socorro não podia ter certeza — isto é, certeza médica e jurídica — de que John não faria uma tentativa séria de suicídio se fosse obrigado a dormir num abrigo, ele passava várias noites por ano dormindo a sono solto num quarto de hospital com diária de setecentos dólares, por cortesia de um sistema desumano e inepto de planos de saúde.

A prática contemporânea de hospitalização psiquiátrica breve só funciona quando há um programa pós-hospitalar adequado para pacientes ambulatoriais. No entanto, em 1972, o governador Ronald Reagan, num golpe brilhante e ousado, aboliu a doença mental da Califórnia, não apenas fechando os grandes hospitais psiquiátricos, mas também erradicando a maioria dos programas públicos de tratamento pós-hospitalização. Como resultado, as equipes hospitalares foram forçadas, dia após dia, a se defrontar com a pantomima de tratar os pacientes e liberá-los de novo no mesmo ambiente nocivo que havia exigido sua hospitalização. Era como suturar soldados feridos e mandá-los de volta para a batalha. Imaginem esquentar o traseiro cuidando de pacientes — entrevistas iniciais de anamnese, rondas diárias, apresentações para os psiquiatras de plantão, sessões de planejamento da equipe, anamneses feitas pelos estudantes de medicina, anotação de receitas nos prontuários hospitalares, sessões diárias de terapia — sabendo o tempo todo que, dali a dois dias, não haveria alternativa senão mandá-los de volta para o mesmo ambiente maléfico que os havia expelido. De volta para famílias violentas de alcoólatras. De volta para cônjuges irados, que há muito haviam perdido o amor e a paciência. De volta para carrinhos de compras cheios de farrapos. De volta para a situação de dormir em carros decrépitos. De volta para a comunidade dos amigos enlouquecidos pela cocaína e dos traficantes impiedosos que os esperavam do lado de fora dos portões do hospital.

Pergunta: como é que nós, os responsáveis pelo tratamento, mantemos a sanidade? Resposta: aprendendo a cultivar a hipocrisia.

Então, foi assim que empreguei meu tempo. Primeiro, aprendi a ocultar minha dedicação — a própria chama que me conduziu a essa carreira. Depois, dominei os cânones da sobrevivência profissional: evite o envolvimento, não se importe demais com os pacientes. Lembre-se de que amanhã eles terão ido embora. Não se preocupe com seus planos após a alta hospitalar. Lembre-se de que o pouco é ótimo, conforme-se com metas pequenas, não se esforce demais, não se exponha ao fracasso. Se os pacientes de terapia de grupo simplesmente aprenderem que falar ajuda, que ficar mais perto das pessoas faz a gente se sentir bem, que eles podem ser úteis aos outros, já será muita coisa.

Aos poucos, depois de vários meses frustrantes em que conduzi grupos com novas chegadas e altas todos os dias, peguei o jeito da coisa e desenvolvi um método para tirar o máximo dessas sessões fragmentadas de grupo. Meu passo mais radical foi modificar meu esquema de tempo.

Pergunta: qual o tempo de vida de um grupo terapêutico na enfermaria psiquiátrica de um hospital? Resposta: uma sessão.

Os grupos de pacientes externos duram muitos meses, até anos; alguns problemas exigem tempo para emergir, para ser identificados e alterados. Nas terapias de longo prazo, há tempo para "elaborar" — para cercar os problemas e trazê-los repetidamente à tona (daí o termo jocoso cicloterapia). Mas nos grupos terapêuticos hospitalares não há estabilidade, não há retorno a tema algum, porque o elenco de personagens muda muito depressa. Nos meus cinco anos de enfermaria, raras vezes tive o mesmo quorum de membros em duas sessões consecutivas, nunca em três! E foram muitos, foram inúmeros os pacientes que só vi uma vez, que compareceram a uma única sessão e receberam alta no dia seguinte. Então me tornei um terapeuta de grupo no estilo utilitarista de John Stuart Mill e, em meus grupos de uma sessão, esforcei-me apenas por oferecer o máximo bem possível ao maior número de pacientes.

Talvez tenha sido por transformar a terapia hospitalar de grupo numa forma de arte que pude manter o compromisso com uma tarefa que se tornara ineficaz, em decorrência de forças que escapavam a meu controle. Acreditei moldar sessões de grupo maravilhosas. Reuniões belas e artísticas. Havendo descoberto desde cedo que não sabia cantar, dançar, desenhar nem tocar um instrumento, eu havia me resignado a nunca me tornar um artista. Mudei de idéia, porém, quando comecei a esculpir reuniões de grupo. Talvez eu tivesse talento, afinal; talvez fosse apenas uma questão de descobrir meu ofício. Os pacientes gostavam das reuniões; o tempo passava depressa; vivíamos momentos ternos e estimulantes. Eu ensinava aos outros o que havia aprendido. Os alunos que participavam como observadores ficavam impressionados. Eu fazia palestras. Escrevi um livro sobre meus grupos de pacientes internos.

E então, com o passar dos anos, fiquei entediado. As sessões pareciam repetitivas. Havia um limite para o que eu podia fazer numa única sessão. Era como estar permanentemente condenado aos primeiros minutos de uma conversa potencialmente rica. Eu ansiava por mais. Queria ir mais fundo, ter uma importância maior na vida de meus pacientes.

Assim, muitos anos atrás, parei de conduzir grupos de pacientes internos e me concentrei em outras formas de terapia. Mas, a cada três meses, quando novos residentes ingressavam no serviço, eu pedalava de meu escritório na Faculdade de Medicina até a enfermaria de pacientes hospitalizados, durante uma semana, num esforço de ensinar aos novos médicos como conduzir grupos terapêuticos com esses pacientes.

E era por isso que havia comparecido nesse dia, embora meu coração não estivesse lá. Eu me sentia pesado. Ainda estava lambendo minhas feridas. Fazia apenas três semanas que minha mãe tinha morrido, e a morte dela influenciou profundamente o que estava prestes a acontecer na minha sessão de grupo terapêutico.

 

Ao entrar na sala do grupo, olhei em volta e imediatamente distingui os jovens rostos ansiosos dos três novos residentes psiquiátricos. Como sempre, senti uma onda de afeição por meus alunos, e não havia nada que eu quisesse mais do que lhes dar alguma coisa — uma boa demonstração, o tipo de ensinamento e apoio devotados que eu havia recebido quando tinha a idade deles. Mas, quando examinei a sala de reuniões, fiquei desanimado. Não foi simplesmente porque a confusão da parafernália médica — dispositivos intravenosos, cateteres implantados, monitores cardíacos, cadeiras de rodas — lembrasse que aquela enfermaria específica era especializada em pacientes psiquiátricos com doenças graves e que, portanto, tendiam a ser especialmente resistentes à terapia da fala. Não, foi a visão dos próprios pacientes.

Havia cinco deles na sala, sentados em fila. A enfermeira-chefe havia descrito por telefone, sucintamente, a situação desses pacientes. Primeiro, havia Martin, um senhor numa cadeira de rodas, com uma grave doença degenerativa muscular. Estava preso à cadeira por um cinto e coberto até a cintura por um lençol que só permitia um vislumbre da parte inferior de suas pernas — duas varinhas descarnadas, cobertas por uma pele escura que lembrava couro. Um de seus antebraços estava todo enfaixado e apoiado num suporte externo: não havia dúvida de que ele cortara o pulso. (Depois eu soube que seu filho, exausto e amargurado por ter cuidado dele durante 13 anos, recebera essa tentativa de suicídio com esta frase: "Quer dizer que você também meteu os pés pelas mãos nisso.")

Ao lado de Martin estava Dorothy, uma mulher que ficara paraplégica fazia um ano, desde que tentara pôr fim à vida pulando de uma janela do terceiro andar. Encontrava-se em tal estado de estupor depressivo que mal conseguia levantar a cabeça.

Depois vinham Rosa e Carol, duas jovens anoréxicas, ambas ligadas a suportes de soro, que estavam sendo alimentadas por via intravenosa por causa do desequilíbrio químico do sangue, por causa da diarréia auto-induzida, e cujo peso estava perigosamente baixo. A aparência de Carol era especialmente perturbadora: seus traços faciais eram belíssimos, quase perfeitos, mas quase totalmente descarnados. Ao olhar para ela, eu via ora o rosto de uma criança surpreendentemente bonita, ora uma caveira sorridente.

Por último vinha Magnolia, uma negra desgrenhada e obesa de 70 anos, cujas pernas estavam paralisadas e cuja paralisia constituía um mistério médico. Seus grossos óculos de aros dourados tinham sido remendados com um pedacinho de fita adesiva, e uma pequenina e delicada touca de renda prendia seu cabelo. Fiquei impressionado, quando ela se apresentou, com o modo como sustentou meu olhar com seus doces olhos castanhos e com a dignidade de sua fala sulista:

— É um prazer cunhecê o sinhô, douto — disse ela. — Ouvi umas coisa bonita a seu respeito.

As enfermeiras me disseram que Magnolia, agora calma e pacientemente sentada em sua cadeira de rodas, agitava-se com freqüência e atacava insetos imaginários que se arrastavam por sua pele.

Minha primeira providência foi mover os participantes para que formassem um círculo e pedir aos três residentes que se sentassem atrás deles, fora de sua linha imediata de visão. Comecei a sessão de minha maneira habitual, tentando orientar os membros para a terapia de grupo. Apresentei-me, sugeri que nos chamássemos pelo primeiro nome e informei que estaria lá pelos próximos quatro dias.

— Depois disso, os dois residentes — cujos nomes forneci e para os quais apontei — conduzirão o grupo. O objetivo é ajudar cada um de vocês a aprender mais sobre a relação com os outros.

Olhando de relance para a devastação humana à minha frente — os membros murchos de Martin, o sorriso de máscara mortuária de Carol, as garrafas intravenosas que forneciam a ela e a Rosa os nutrientes vitais que as duas se recusavam a receber pela boca, o recipiente urinário de Dorothy, que continha a urina retirada com sonda de sua bexiga paralisada, as pernas paralíticas de Magnolia —, achei minhas palavras insignificantes e tolas. Aquelas pessoas precisavam de muitas coisas, e "ajudar nas relações" parecia lamentavelmente pouco. Mas de que adiantaria fingir que os grupos podiam fazer mais do que isso? "Lembre-se de seu mantra" disse a mim mesmo, e relembrei: "o pouco é ótimo — metas pequenas, pequenos sucessos".

Eu me referia a meu grupo de pacientes internos como "grupo da agenda" porque sempre começava a sessão pedindo que cada membro formulasse uma agenda — identificasse algum aspecto de si mesmo que gostaria de modificar. O grupo trabalharia melhor se as agendas dos participantes dissessem respeito a aptidões de relacionamento — sobretudo a coisas que pudessem ser trabalhadas no aqui-e-agora do grupo. Os pacientes hospitalizados por grandes problemas vitais sempre ficavam intrigados com o foco nas relações e não conseguiam perceber a importância da tarefa da agenda. Eu sempre respondia: "Sei que as relações conturbadas podem não ter sido a razão de sua hospitalização, mas constatei, ao longo dos anos, que todas as pessoas que enfrentaram uma aflição psicológica significativa podem se beneficiar da melhora de sua maneira de se relacionar com os outros. O importante é que tiremos o máximo desta sessão, concentrando-nos nas relações, porque é nisso que os grupos se saem melhor. Essa é a verdadeira força da terapia de grupo."

Formular uma agenda adequada era difícil e, mesmo depois de comparecer a algumas sessões, a maioria dos membros de um grupo raramente pegava o jeito da coisa. Mas eu lhes dizia que não esquentassem a cabeça com isso: "Minha função é ajudar vocês." Ainda assim, o processo geralmente consumia até metade do tempo da sessão. Depois disso, eu dedicava o restante do tempo a abordar tantas agendas quantas fosse possível. A distinção entre formular e abordar uma agenda nem sempre era nítida. Para alguns pacientes, formular a agenda era a terapia. O simples fato de aprender a identificar um problema e pedir ajuda já era terapia suficiente para muitos deles, em nosso breve período juntos.

Rosa e Carol, as pacientes anoréxicas, começaram. Carol afirmou que não tinha nenhum problema e não queria melhorar suas relações.

— Ao contrário — disse, em tom enfático —, o que eu quero é menos contato com os outros.

Só quando comentei que nunca havia conhecido ninguém que não quisesse mudar alguma coisa a seu respeito foi que, hesitante, ela ofereceu a informação de que muitas vezes se intimidava com a raiva dos outros, especialmente de seus pais, que tentavam forçá-la a comer. Junto com isso, Carol formulou uma agenda, com pouca convicção:

— Tentarei ser assertiva aqui nesta reunião.

Rosa também não desejava melhorar suas relações; também queria manter-se isolada. Não confiava em ninguém:

— As pessoas sempre me entendem mal e tentam mudar meu jeito.

— Por acaso seria útil para você — perguntei, tentando acrescentar a dimensão do aqui-e-agora à agenda — ser compreendida neste grupo, hoje?

Talvez — disse ela, mas me avisou que lhe era difícil falar muito em grupo. — Sempre achei que os outros são melhores, mais importantes que eu.

Dorothy, com a saliva pingando da boca e a cabeça profundamente curvada, para evitar qualquer contato visual, falou num sussurro desesperado e não me ofereceu coisa alguma. Disse estar deprimida demais para participar do grupo, e que as enfermeiras lhe haviam informado que bastaria ela simplesmente escutar. Percebi que ali não havia nada para trabalhar e me voltei para os outros dois pacientes.

— Não tenho nenhuma esperança de que alguma coisa boa volte a me acontecer — disse Martin. Seu corpo vinha sendo implacavelmente destruído; sua mulher, além de todas as outras pessoas de seu passado, havia morrido; fazia anos desde a última vez que ele falara com um amigo; e o filho estava farto de cuidar dele. — Doutor, o senhor tem coisas melhores para fazer. Não perca seu tempo. Vamos ser francos: estou além de qualquer ajuda. Houve época em que fui um bom marinheiro. Sabia fazer de tudo num navio. Vocês deviam ter-me visto escalar o mastro até o cesto da gávea. Não havia nada lá que eu não pudesse fazer, nada que eu não soubesse. Mas, agora, o que alguém pode me dar? O que eu posso dar a alguém?

Magnolia enunciou sua agenda:

— Eu queria aprende a ouvi mió nesse grupo. O senhor num acha que era uma coisa boa, douto? Minha mãe sempre me disse que era importante sê boa ouvinte.

Santo Deus! Seria uma sessão muito, muito longa. Como é que eu preencheria o restante do tempo? Enquanto tentava manter a tranqüilidade, eu sentia uma ponta de pânico se insinuando. Bela demonstração seria aquela para os residentes! Vejam o que eu tinha para trabalhar: Dorothy não falaria nada. Magnolia queria aprender a ouvir. Martin, cuja vida era desprovida de pessoas, achava que não tinha nada a oferecer a ninguém. (Registrei isso: ali havia uma pequena chance de abertura.) A agenda de Carol, de ser mais assertiva e não se deixar intimidar pelos conflitos, eu tinha certeza de que era vazia: ela só estava seguindo o roteiro e fingindo cooperar comigo. Além disso, para estimular a assertividade de alguém, eu precisaria de um grupo ativo, no qual pudesse solicitar a alguns pacientes que praticassem pedir a palavra ou expressar opiniões com franqueza. Nesse dia, haveria pouca coisa em oposição à qual Carol pudesse ser assertiva. Rosa me dera um minúsculo fio de esperança: sua convicção de ser mal compreendida e inferior aos outros. Talvez houvesse nisso alguma coisa em que me segurar; também fiz uma anotação mental.

Comecei pelo medo que Carol tinha da assertividade, pedindo-lhe que expressasse alguma crítica, por mais branda que fosse, sobre o modo como eu havia conduzido a sessão até aquele momento. Mas ela relutou, garantindo-me achar que eu era excepcionalmente simpático e habilidoso.

Voltei-me para Rosa. Não restava mais ninguém. Em resposta a minha sugestão de que falasse mais sobre os outros serem mais importantes do que ela, a moça me descreveu como havia estragado tudo: "Minha educação, minhas relações, todas as oportunidades da minha vida." Tentei trazer seus comentários para o presente (o que sempre aumenta o poder da terapia).

— Dê uma olhada pela sala — sugeri — e tente descrever em que os outros membros são mais importantes que você,

— Vou começar pela Carol — disse Rosa, aceitando a tarefa, — Ela é linda. Vivo olhando para ela. É como olhar para um lindo quadro. E tenho inveja do seu corpo. Ela é reta, é perfeitamente proporcional, enquanto eu... olhem só para mim, sou gorda e inchada. Olhem para isto — e beliscou o abdome, para nos mostrar uma ondulação de pele de um quarto de centímetro entre o polegar e o indicador.

Tudo aquilo era pura loucura anoréxica. Rosa, como muitos anoréxicos, era tão hábil em se embrulhar em camadas e mais camadas de roupas que era fácil esquecer seu emagrecimento. Ela pesava menos de 40 quilos. E também era loucura sua admirar Carol, que era ainda mais magra. Um mês antes, quando eu estivera de sobreaviso e haviam me bipado por causa de um desmaio de Carol, eu tinha chegado à enfermaria bem na hora em que as enfermeiras a carregavam de volta para a cama. Sua camisola hospitalar estava aberta, expondo suas nádegas, em cada uma das quais se projetava a cabeça do fêmur, quase perfurando a pele, o que me fizera lembrar umas fotos chocantes de sobreviventes libertados de campos de concentração. Mas não adiantava questionar a avaliação de Rosa de que ela era gorda. As distorções da imagem corporal dos pacientes anoréxicos são profundamente arraigadas — eu os havia interpelado sobre isso inúmeras vezes, em vários grupos, e sabia tratar-se de uma discussão que eu não podia vencer.

Rosa prosseguiu com suas comparações: Martin e Dorothy lidavam com problemas muito mais significativos que os dela:

— Às vezes — disse ela —, eu gostaria de ter alguma coisa visivelmente errada, como uma paralisia. Nesse caso, eu me sentiria mais verdadeira.

Isso instigou Dorothy a levantar a cabeça e fazer seu primeiro (e, aliás, único) comentário no grupo:

— Você quer pernas paralisadas? — ela sussurrou em tom rouco. — Pode ficar com as minhas.

Para meu grande espanto, Martin apressou-se em defender Rosa:

— Não, não, Dorothy... eu entendi o nome certo? É Dorothy, não é? Rosa não quis dizer isso. Sei que ela não quis dizer que queria as suas pernas ou as minhas. Olhe para minhas pernas. Olhe para elas, olhe só. Quem, em seu juízo perfeito, haveria de querê-las? — perguntou, e, com sua única mão boa, afastou o lençol que o cobria e apontou para as próprias pernas.

Horrendamente deformadas, elas terminavam em dois ou três cotocos nodosos. Os demais dedos haviam se deteriorado por completo. Nem Dorothy nem nenhum dos outros membros do grupo passaram muito tempo olhando para as pernas de Martin. Elas também me causaram repulsa, apesar de minha formação médica.

— Rosa estava apenas usando uma figura de estilo — prosseguiu Martin. — Ela só quis dizer que queria ter uma doença mais óbvia, algo que fosse visível. Não pretendeu minimizar nossa situação. Não é, Rosa? O nome é Rosa, certo?

Martin me surpreendeu. Eu havia deixado sua deformidade ocultar sua inteligência aguda. Mas ele não tinha terminado.

— Você se incomoda se eu perguntar uma coisa, Rosa? Não quero ser enxerido, então você não precisa responder se não quiser.

— Mande! — replicou Rosa. — Mas pode ser que eu não responda.

— Qual é a sua doença? Quer dizer, o que há de errado com você? Você é realmente magra, mas não parece doente. Por que está com esse dispositivo intravenoso? — perguntou, fazendo um gesto em direção ao soro.

— Eu não como. Eles me alimentam com esse negócio.

— Não come? Não deixam você comer?

— Não, eles querem que eu coma. Mas eu não quero.

Correndo os dedos pelos cabelos, Rosa parecia estar tentando arrumar-se.

— Você não sente fome? — insistiu Martin.

— Não.

Eu estava fascinado com esse intercâmbio. Como todo mundo sempre pisa em ovos no que diz respeito aos pacientes com distúrbios alimentares (muito defensivos, muito frágeis, usando muita negação), eu nunca tinha visto um paciente anoréxico ser confrontado com tanta ousadia.

— Eu estou sempre com fome — disse Martin. — Você devia ter visto o que comi hoje no café-da-manhã: umas 12 panquecas, ovos, dois sucos de laranja. — Fez uma pausa, hesitante, e insistiu: — Não come? Você nunca teve apetite?

— Não. Desde que eu me lembro, não. Não gosto de comer.

— Não gosta de comer?

Pude ver Martin lutando para entender esse conceito. Ele estava sinceramente perplexo — como se acabasse de encontrar alguém que não gostasse de respirar.

— Sempre comi muito. Sempre gostei de comer. Quando meus pais me levavam para passear de carro, sempre tinham amendoins e batatas fritas. Na verdade, esse era meu apelido.

— Esse qual? — perguntou Rosa, que tinha virado ligeiramente a cadeira na direção de Martin.

— Sr. Crisp. Mamãe e papai eram da Inglaterra, e chamavam as batatas fritas de crisps. Era assim que me chamavam, sr. Crisp. Eles gostavam de ir ao porto ver os grandes navios chegarem. "Vamos, sr. Crisp", diziam, "vamos todos dar uma volta". E eu saía correndo para nosso carro... tínhamos o único carro do quarteirão. Ê claro que eu tinha pernas boas naquela época. Exatamente como você, Rosa.

Martin inclinou-se para a frente na cadeira de rodas e deu uma olhada para baixo:

— Você parece ter pernas boas... mas são meio magrelas, quase sem carne. Eu adorava correr.

A voz de Martin foi desaparecendo. O espanto franziu seu rosto, enquanto ele puxava o lençol para se cobrir.

— Não gosta de comer — repetiu, como se falasse consigo mesmo. — Sempre gostei de comer. Acho que você perdeu uma grande diversão.

A essa altura, Magnolia, que, fiel a sua agenda, ficara escutando Martin atentamente, disse:

— Rosa, minha fia. Acabei de me lembra de quando o meu Darnell era pequeno. Às veiz ele tamém num queria cume. E sabe o que eu fazia? Mudava o cenário! A gente entrava no carro e ia pra Geórgia. A gente morava pertinho da divisa com a Geórgia. E ele ia cume na Geórgia. Nossa, como ele comia na Geórgia! A gente gostava de caçoa do apetite que tinha na Geórgia. Benzim — e, nesse ponto, Magnolia inclinou-se para Rosa e reduziu a voz a um sussurro alto —, vai vê que ocê devia sair da Califórnia pra cume.

Tentando tirar algo terapêutico dessa discussão, interrompi a conversa (no jargão psicológico, providenciei uma "verificação do processo") e pedi aos membros que refletissem sobre sua própria interação.

— Rosa, como você se sente a respeito do que está acontecendo agora no grupo, a respeito das perguntas de Martin e Magnolia?

— As perguntas, tudo bem, não me incomodo com elas. E gosto do Martin...

— Você poderia falar diretamente com ele? — pedi. Rosa virou-se para Martin:

— Gosto de você. Não sei por quê. Tornou a se virar para mim e acrescentou:

— Ele está aqui há uma semana, mas hoje, neste grupo, foi a primeira vez que falei com ele. É como se tivéssemos muita coisa em comum, mas sei que não temos.

— Você se sente compreendida?

— Compreendida? Não sei. Bom, é, de um jeito meio engraçado, sim. Talvez seja isso.

— Foi o que eu vi. Vi Martin tentando ao máximo compreendê-la. E ele não procurou fazer nada além disso. Não o ouvi tentando manipulá-la nem lhe dizer o que fazer, ou mesmo dizer que você deve comer.

— Foi bom ele não ter tentado. Não teria adiantado nada.

Nesse ponto, Rosa virou-se para Carol, e as duas trocaram sorrisos esqueléticos de cumplicidade. Detestei aquela conspiração horrenda. Tive vontade de sacudi-las com força, até seus ossos chacoalharem. Tive vontade de gritar: "Parem de beber aquelas Cocas diet! Fiquem longe daquelas malditas bicicletas ergométricas! Isso não é piada; vocês duas estão a dois ou três quilos da morte, e quando acabarem morrendo, sua vida inteira será descrita num epitáfio de três palavras: 'eu morri magra'."

Mas é claro que guardei esses sentimentos para mim. Eles não fariam nada além de romper qualquer tênue fio de relação que eu houvesse estabelecido com elas. Im vez disso, dirigi-me a Rosa:

— Você se dá conta de que, por meio de sua conversa com Martin, já cumpriu parte da sua agenda de hoje? Você disse que queria ter a experiência de ser compreendida por alguém, e Martin parece ter feito exatamente isso.

Virei-me para Martin:

— Como se sente a esse respeito?

Martin apenas me fitou. "Essa" pensei, "talvez tenha sido a interação mais vibrante que ele teve em anos".

— Lembre-se — recordei-lhe — de que você começou esta sessão dizendo que não podia mais ser útil a ninguém. Ouvi Rosa dizer que você foi útil para ela. Também não ouviu isso?

Martin assentiu com a cabeça. Vi que seus olhos brilhavam e que ele estava muito emocionado para continuar falando. Mas já era o bastante. Tendo apenas uma abertura minúscula, eu fizera um bom trabalho com Martin e Rosa. Ao menos não sairíamos de lá de mãos vazias (e confesso que eu estava pensando tanto nos residentes quanto nos pacientes).

Virei-me de novo para Rosa.

— Como se sente a respeito do que Magnolia lhe disse hoje? Não tenho certeza de que seja possível sair da Califórnia para comer, mas o que eu vi foi a Magnolia fazendo força para ajudá-la.

— Força? Fico surpresa por você dizer isso — fez Rosa. — Não penso na Magnolia como alguém que faça força. Dar é natural nela, como respirar. Ela é uma alma pura. Quem dera eu pudesse levá-la para casa comigo, ou ir para a casa dela.

— Benzim — disse Magnolia, dando-lhe um largo sorriso dentuço —, ocê num ia querê ir pra minha casa. Num tem jeito de dedetizá ela. Eles tão sempre vortando.

Aparentemente, Magnolia estava falando de suas alucinações com insetos.

— Vocês deviam contratar a Magnolia — disse Rosa, virando-se para mim. — Ela é a única que realmente me ajuda. E não é só a mim. A todo mundo. Até as enfermeiras procuram a Magnolia com seus problemas.

— Fia, ocê tá exagerando uma bobaginha à-toa. Ocê percisa de muitas coisa. É tão magrinha que é fácil a gente lhe dar qualqué coisa. E tem um grande coração. Faz as pessoa querê lhe dar coisas. É bom ajuda. Esse é o meu mió remédio. Esse é o meu mió remédio, douto — repetiu ela, olhando para mim. — É só deixa eu ajuda as pessoa.

Durante alguns momentos, não consegui dizer nada. Estava fascinado com Magnolia — com aqueles olhos sensatos, aquele sorriso cativante, aquele colo farto. E aqueles braços — exatamente como os braços de minha mãe, com aquelas dobras de carne generosas caindo em cascata e escondendo os cotovelos. Como seria ser abraçado, ser ninado naqueles braços macios feito travesseiros, cor de chocolate? Pensei em todas as pressões da minha vida — livros, aulas, consultas, pacientes, mulher, quatro filhos, compromissos financeiros, investimentos e, agora, a morte de mamãe. "Preciso de consolo", pensei. "Um consolo no estilo de Magnolia — é disso que eu preciso, de um pouco de consolo dos grandes braços de Magnolia." Veio-me à lembrança o refrão de uma velha canção de Judy Collins: "Too many sad times... Too many bad times... But if somehow... you could... pack up your sorrows and give them all to me... You would lose them... I know how to use them... Give them all to me."[5]

Fazia séculos que eu não pensava nessa canção. Anos antes, ao ouvir pela primeira vez a voz melodiosa de Judy Collins cantar "Pack up your sorrows and give them all to me", aquilo me despertara um desejo profundo. Tive vontade de entrar no rádio para encontrar aquela mulher e derramar minhas tristezas no seu colo.

Rosa me arrancou de meu devaneio:

— Dr. Yalom, antes o senhor perguntou por que eu achava que os outros aqui eram melhores do que eu. Bem, agora entende o que eu queria dizer. Está vendo como a Magnolia é especial. E o Martin também. Os dois se importam com os outros. As pessoas, meus pais, minhas irmãs costumavam dizer que eu era egoísta. E tinham razão. Eu não procuro fazer nada por ninguém. Não tenho nada para oferecer. Tudo o que eu quero mesmo é que as pessoas me deixem em paz.

Magnolia se inclinou para mim:

— Essa menina é munto astuciosa — disse.

"Astuciosa". Era uma palavra estranha. Esperei para ver o que ela queria dizer.

— O sinhô devia vê a manta que ela tá bordando pra mim na terapia ocupacioná. Duas rosa no meio e, em vorta, tá prendendo umas violetinha pequenininha, umas vinte, junto da borda toda. E ela fez as borda num desenho vermelho delicado. Meu bem — e voltou-se para Rosa —, num qué trazê aquela manta pro grupo amanhã? E tamém aquele retrato que ocê tava desenhando?

Rosa enrubesceu, mas concordou com a cabeça.

O tempo estava passando. De repente, percebi que não tinha explorado o que o grupo poderia oferecer a Magnolia. Ficara encantado demais com a promessa de sua generosidade e com a lembrança daquele refrão: "Você as deixaria... Eu sei como usá-las."

— Sabe, Magnolia, você também deveria obter algo do grupo. Você começou a sessão dizendo que o que queria do grupo era ser uma boa ouvinte. Mas estou admirado, muito admirado, com a boa ouvinte que você já é. E boa observadora também: veja os detalhes de que se lembra da manta de Rosa. Então, não acho que você precise de muita ajuda para aprender a ouvir. De que outra forma podemos ajudá-la neste grupo?

— Ah, eu num sei como que esse grupo pode me ajuda.

— Ouvi muitas coisas boas serem ditas hoje sobre você. Como se sente com isso?

— Bom, é natural isso me fazê bem.

— Mas, Magnolia, tenho um palpite de que você já ouviu isso antes: que as pessoas sempre a amaram pelo tanto que você dá de si. Ora, foi justamente o que disseram as enfermeiras antes de o grupo se reunir hoje: que você criou um filho biológico e 15 filhos adotivos, e nunca parou de se dar.

— Agora não. Agora eu num posso dá nada. Num consigo mexe as perna, e esses inseto... — De repente, ela estremeceu, mas o sorriso suave continuou lá:

— Num quero mais vortá pra casa.

— O que quero dizer, Magnolia, é que provavelmente não é muito útil para os outros eles lhe dizerem coisas que você já sabe a seu respeito. Se quisermos ajudá-la aqui, precisaremos dar-lhe alguma outra coisa. Talvez devamos ajudá-la a aprender coisas novas sobre você, dar-lhe algum retorno sobre seus pontos cegos, coisas que você talvez não saiba.

— Eu já disse pro sinhô, eu recebo ajuda ajudando as outras pessoa.

— Sei disso, e essa é uma das coisas que realmente me agradam a seu respeita Mas, sabe, ser útil aos outros é bom para todo mundo. Como o Martin: veja como foi importante para ele ajudar a Rosa, por ser compreensivo.

— Esse Martin é uma coisa! Num se mexe muito direito, mas tem uma cabeça e tanto em cima dos ombro, uma cabeça boa pra dana.

— Você ajuda mesmo os outros, e é boa nisso. Você é uma raridade, e concordo com Rosa, o hospital deveria contratá-la. Mas, Magnolia — hesitei, para dar mais impacto a minhas palavras —, seria bom para os outros eles também poderem ajudá-la. Ao se dar tão completamente, você não os deixa ajudarem a si mesmos, ajudando você. Quando a Rosa disse que gostaria de levá-la para casa, também pensei em como seria ótimo ser reconfortado por você o tempo todo. Eu também gostaria disso. Adoraria. Mas depois, quando pensei melhor, percebi que jamais conseguiria retribuir sua ajuda, ajudar você, porque você nunca se queixa, nunca pede nada. Na verdade — e voltei a hesitar —, eu nunca teria o prazer de lhe oferecer alguma coisa.

— Nunca num pensei nisso não, assim, desse jeito — Magnolia assentiu com a cabeça, pensativa. Seu sorriso havia desaparecido.

— Mas é verdade, não é? Talvez o que devamos fazer, aqui neste grupo, seja ajudá-la a aprender a se queixar. Talvez você precise da experiência de ser ouvida.

— Mamãe sempre falo que eu me colocava no úrtimo lugá.

— Nem sempre eu concordo com as mães. Na verdade, em geral não concordo com elas, mas, nesse caso, acho que sua mãe estava certa. Então, por que não exercitar a queixa? Conte-nos o que a machuca. O que você gostaria de mudar a seu respeito?

— Minha saúde num anda lá muito boa... essas coisa andando na minha pele. E estas perna aqui já num presta. Num consigo mexe elas.

— Já é um começo, Magnolia. E sei que esses são problemas reais na sua vida, e momento. Quem dera pudéssemos fazer alguma coisa sobre isso aqui neste grupo, mas os grupos não podem fazer isso. Tente queixar-se de coisas sobre as quais possamos ajudá-la.

— Eu me sinto mal com a minha casa. Tá um horrô. Eles num consegue, acho eles num quer dedetizá ela direito. Num quero vortá pra lá.

— Sei que você se sente mal a respeito da sua casa, suas pernas e sua pele. Mas coisas não são você. São apenas coisas sobre você, não a verdadeira você, a essência. Olhe para o seu centro. O que gostaria de mudar nele?

— Bom, num tô sastifeita de verdade cum a minha vida. Tenho minhas queixa. isso que o sinhô qué dizer, douto?

— Isso mesmo — assenti vigorosamente, balançando a cabeça. Ela continuou:

— Eu fui um vexame. Sempre quis sê professora. Era esse o meu sonho. Mas nunca consegui. Às veiz eu fico pra baixo e acho que nunca fiz nada.

— Mas, Magnolia — implorou Rosa —, veja o que você fez pelo Darnell ou por todos aqueles filhos adotivos. Você chama isso de nada?

— Às veiz parece que num é nada. Darnell num vai fazê nada da vida dele, num vai a lugá nenhum. É igualzinho ao pai.

Rosa interferiu. Parecia alarmada, com as pupilas enormes. Falou comigo como se eu fosse um juiz, e ela, uma advogada defendendo o caso de Magnolia:

— Ela nunca teve a oportunidade de receber instrução, dr. Yalom. Quando era adolescente, o pai morreu e a mãe simplesmente desapareceu por 15 anos.

De repente, Carol cooperou, também se dirigindo a mim:

— Ela teve que criar os sete irmãos e irmãs quase sozinha.

— Num foi sozinha, não. Eles me ajudo: o pastor, a igreja, muita gente boa. Ignorando a negação de Magnolia, Rosa se dirigiu a mim:

— Conheci Magnolia quando estávamos ambas no hospital, há mais ou menos um ano, e um dia, quando tivemos alta, fui buscá-la de carro e passeamos a tarde inteira, por Palo Alto, Stanford, Menlo Park, subindo as montanhas. Magnolia me ofereceu um passeio turístico. Foi me mostrando tudo, não só as coisas que são importantes agora, mas também como era todo esse condado, e tudo que aconteceu há trinta ou quarenta anos, em algum ponto especial. Foi o melhor passeio que eu já fiz.

— Como se sente com o que Rosa disse, Magnolia? Magnolia acalmou-se novamente.

— É bom, isso é bom. Essa garota sabe como eu gosto dela.

— Então, Magnolia — disse eu —, apesar de tudo, apesar de todas as contrariedades, você se tornou professora, afinal! E das boas!

Nesse momento, as coisas corriam céleres no grupo. Dei uma olhada orgulhosa para os residentes psiquiátricos. Meu último comentário — um belo exemplo de reformulação — tinha sido uma preciosidade. Torci para que o tivessem ouvido.

Magnolia ouviu. Pareceu profundamente comovida e passou vários minutos chorando. Honramos esse momento guardando um respeitoso silêncio. Mas seu comentário seguinte me pegou de surpresa. Era óbvio que eu não a havia escutado direito.

— O sinhô tá certo, douto. O sinhô tá certo.

E então, acrescentou:

— O sinhô tá certo, mas num tá certo. Eu tinha um sonho. Queria sê professora de verdade, ser paga que nem as professoras branca, tê alunos de verdade, sê chamada por eles de "sra. Clay". Era isso que eu queria dizê.

— Mas, Magnolia — insistiu Rosa —, olhe para o que você realmente fez, pense no Darnell e naqueles 15 filhos adotivos que a chamam de mamãe.

— Isso num tem nada a vê com o que eu queria, com o meu sonho — disse Magnolia, com a voz ríspida e imperiosa. — Eu tamém tinha sonhos, que nem os branco. Preto tamém sonha! E fiquei munto decepcionada com o meu casamento. Eu queria um casamento pra vida toda, e só arranjei foi um casamento de 14 meses. Eu fui uma idiota; escolhi o hômi errado. Ele gostava era do gim dele, munto mais do que de mim.

"Deus é testemunha", continuou ela, virando-se para mim, "de que nunca, até esta sessão aqui, nunca meti o pau no meu marido. Num quero que o meu Darnell escute nada de ruim sobre o pai dele. Mas, douto, o sinhô tem razão. O sinhô tá certo. Eu tenho minhas queixa. De um monte de coisa que eu queria e nunca consegui. Nunca realizei meu sonho. Às veiz eu fico munto amargurada."

As lágrimas rolavam por suas faces, enquanto ela soluçava baixinho. Depois, Magnolia desviou o rosto do grupo, pôs-se a olhar pela janela e começou a arranhar a pele, a princípio de leve, em seguida enfiando fundo as unhas, demoradamente.

— Muito amargurada mesmo. Muito amargurada — repetia.

Senti-me desorientado. Assim como Rosa, assustei-me. Eu queria a antiga Magnolia de volta. E aquela cavucação me perturbou. Será que ela estava tentando arrancar os insetos? Ou sua negritude? Tive vontade de segurar seus pulsos e aquietar suas mãos, antes que ela lacérasse a própria carne.

Uma longa pausa e, depois:

— E tamém tem umas outras coisa que eu podia dizer, mas aí é munto pessoal. Eu sabia que Magnolia estava preparada. Não tinha dúvida de que, com o menor estímulo, ela nos diria tudo. Mas já fora longe o bastante para o restante de nós. Longe demais. Os olhos aflitos de Rosa me diziam: "Por favor, por favor, já chega! Pare com isso!" E era o bastante para mim também. Eu havia retirado a tampa, mas, para variar, não queria olhar para o interior.

Passados dois ou três minutos, Magnolia parou de chorar, parou de se arranhar. Aos poucos, seu sorriso reapareceu e sua voz tornou a ficar suave:

— Mas aí, fico pensando que o bom Deus tem lá Suas razão pra dar um fardo pra cada um de nós. Num era munto prosa eu tenta descobri as razão d'Ele?

Os membros do grupo calaram-se. Aparentemente sem jeito, todos eles — incluindo Dorothy — desviaram os olhos, voltando-se para a janela. Isso é boa terapia, continuei tentando dizer a mim mesmo: Magnolia enfrentou alguns de seus demônios, e agora parece prestes a começar um importante trabalho terapêutico.

Apesar disso, senti que a havia profanado. Talvez os outros membros sentissem a mesma coisa. Porém, não disseram nada. Um silêncio pesado desceu sobre nós. Captei o olhar de cada participante e, sem falar, exortei-os todos a falar. Talvez eu tivesse visto demais da mãe-terra em Magnolia. Talvez somente eu é que houvesse perdido um ícone. Lutei para pôr meu sentimento de profanação em palavras que pudessem ser úteis ao grupo. Não me ocorreu nada. Minha mente estava em silêncio. Desistindo, resignei-me melancolicamente a um comentário batido e desgastado, que já enunciara inúmeras vezes em incontáveis sessões de grupo:

— Magnolia nos disse muitas coisas. Que sentimentos as palavras dela provocam em cada um de vocês?

Detestei enunciar essas frases, detestei seu caráter corriqueiro, sua banalidade técnica. Envergonhado de mim mesmo, afundei na cadeira. Sabia exatamente como os membros do grupo reagiriam e aguardei, desolado, seus comentários convencionais:

— Sinto que agora realmente a conheço, Magnolia.

— Agora me sinto muito mais próximo de você.

— Agora eu a vejo como uma pessoa real.

Até um dos residentes, aventurando-se a sair de seu papel de observador silencioso, interpôs:

— Eu também, Magnolia. Agora eu a vejo como uma pessoa completa, alguém com quem posso me identificar. Agora a vivendo em três dimensões.

Nosso tempo havia acabado. Eu tinha que resumir a sessão de algum modo, e fiz a interpretação óbvia e obrigatória:

— Sabe, Magnolia, esta foi uma sessão difícil, mas rica. O que percebo é que começamos pela questão de você não conseguir se queixar, talvez por não se sentir no direito de se queixar. Hoje seu trabalho foi incômodo, mas foi o começo de um progresso verdadeiro. O importante é que você tem muito sofrimento dentro de si e, se puder aprender a se queixar dele e a lidar com ele diretamente, como fez hoje, não terá que expressá-lo de maneiras indiretas, por exemplo, por meio de problemas com sua casa, ou suas pernas, ou até com a sensação de ter insetos na pele.

Magnolia não respondeu. Simplesmente me encarou, com os olhos ainda marejados de lágrimas.

— Entende o que eu quero dizer, Magnolia?

— Entendo, douto. Entendo munto bem — disse ela. Secou os olhos com um lencinho minúsculo. — Sinto munto tá chorando desse jeito. Eu não lhe disse antes, era mió tê dito, mas amanhã é o dia em que a mamãe morreu. Manhã faz um ano.

— Sei como é isso, Magnolia, perdi a minha mãe no mês passado.

Surpreendi a mim mesmo. Em circunstâncias normais, eu não falaria de modo tão pessoal com uma paciente a quem mal conhecia. Acho que estava tentando dar-lhe alguma coisa. Mas Magnolia não reconheceu meu presente. O grupo começou a se dispersar. As portas se abriram. As enfermeiras entraram para ajudar os pacientes a sair. Observei Magnolia arranhar-se enquanto era empurrada na cadeira de rodas.

 

Na discussão que se seguiu à sessão do grupo, colhi o fruto de meus esforços. Os residentes desmancharam-se em elogios. Acima de tudo, estavam devidamente impressionados com o espetáculo de ver emergir algo do que parecia não ser nada. Apesar do material escasso e da parca motivação dos pacientes, o grupo havia gerado uma interação considerável: ao fim da sessão, os participantes, antes quase todos alheios à existência de outros pacientes na enfermaria, mostravam-se engajados e interessados uns nos outros. Os residentes também ficaram admirados com a força de minha interpretação final para Magnolia: se ela pedisse ajuda explicitamente, tornaria seus sintomas obsoletos, pois eles eram gritos simbólicos e dissimulados de socorro.

— Como foi que o senhor conseguiu? — deslumbraram-se. No início da sessão, Magnolia parecera impenetrável. Não foi difícil, eu lhes disse. Encontrando a chave certa, pode-se abrir uma porta para o sofrimento de qualquer pessoa. Para Magnolia, essa chave tinha sido o apelo a um de seus valores mais profundos: o desejo de ser útil aos outros. Ao persuadi-la de que ela poderia ajudar os outros permitindo que esses outros lhe fossem úteis, eu minara rapidamente sua resistência.

Enquanto conversávamos, Sarah, a enfermeira-chefe, enfiou a cabeça pela porta para me agradecer por ter ido ao hospital:

— Você fez sua mágica de novo, Irv. Quer um calorzinho no coração? Antes de ir embora, vá dar uma espiada nos pacientes almoçando, veja todas aquelas cabeças juntinhas. E o que você fez com a Dorothy? Acredita que ela, o Martin e a Rosa estão conversando?

As palavras de Sarah ressoaram em meus ouvidos na volta de bicicleta para o escritório. Eu sabia que tinha todos os motivos para estar satisfeito com meu trabalho daquela manhã. Os residentes tinham razão: tinha sido uma boa sessão — uma sessão fantástica —, porque havia não apenas incentivado os participantes a melhorarem suas relações na vida, mas também, como sugeria o relato de Sarah, deixara-os mais plenamente engajados em todos os aspectos do programa terapêutico da enfermaria.

Acima de tudo, eu mostrara aos residentes que não existe essa história de paciente — ou grupo — entediante ou vazio. Há em cada paciente e em cada situação clínica a crisálida de um rico drama humano. A arte da psicoterapia consiste em ativar esse drama.

Mas por que meu bom trabalho me dava tão pouca satisfação pessoal? Eu me sentia culpado — como se tivesse feito algo fraudulento. O elogio que eu tanto buscava não me caíra bem nesse dia. Os alunos (disfarçadamente incitados por mim) me haviam atribuído uma grande sabedoria. A seus olhos, eu fizera interpretações "fortes", produzira minha "mágica", conduzira o grupo de forma presciente e segura. Mas eu sabia a verdade: sabia que, ao longo da sessão, tinha-me atrapalhado e improvisado loucamente. Os alunos e os pacientes me viam como algo que eu não era, como mais do que eu era, mais do que eu podia ser. Ocorreu-me que, nesse aspecto, Magnolia — a mãe-terra arquetípica — e eu tínhamos muita coisa em comum.

Lembrei a mim mesmo que o pouco é ótimo. Minha função era conduzir uma única sessão de grupo e torná-la útil para tantos membros do grupo quanto fosse possível. E não era isso que eu havia feito? Analisei o grupo pela perspectiva de cada um dos cinco membros.

Martin e Rosa? Sim, bom trabalho. Eu estava seguro com relação a eles. Suas agendas para a sessão, até certo ponto, tinham sido cumpridas: o desânimo de Martin, sua convicção de que não tinha nada de valor para oferecer, tinha sido efetivamente questionado; a crença de Rosa em que qualquer pessoa diferente dela — isto é, não anoréxica — não a compreenderia e tentaria manipulá-la tinha sido refutada.

Dorothy e Carol? Embora inativas, tinham parecido engajadas. Talvez elas houvessem se beneficiado da terapia do espectador: observar outra pessoa trabalhar com eficiência na terapia muitas vezes prepara o paciente para um bom trabalho terapêutico no futuro.

E Magnolia? Aí é que estava o problema. Será que eu a havia ajudado? Ela era passível de ajuda? Pelo resumo da enfermeira-chefe, eu ficara sabendo que ela não tinha reagido a um amplo espectro de psicotrópicos, e que todos, incluindo a assistente social que acompanhava seu caso fazia muitos anos, tinham desistido havia muito tempo de tentar interessá-la em qualquer psicoterapia orientada para a compreensão de si mesma. Sendo assim, por que eu resolvera tentar mais uma vez?

Eu a teria ajudado? Era duvidoso. Embora os residentes houvessem considerado "forte" a minha interpretação final, e embora, de fato, minhas palavras tivessem parecido assim ao serem proferidas, no fundo eu sabia que fora tudo uma farsa: minha interpretação não tinha nenhuma chance real de ser útil a Magnolia. Seus sintomas — a inexplicável paralisia das pernas, as alucinações com insetos na pele, o delírio de haver uma conspiração por trás da infestação de insetos em casa — eram graves e estavam muito além do alcance da psicoterapia. Mesmo nas condições mais favoráveis — com tempo ilimitado e um terapeuta habilidoso —, era provável que a psicoterapia pouco tivesse a lhe oferecer. E, naquela situação, as possibilidades favoráveis eram nulas: Magnolia não tinha dinheiro nem plano de saúde, e, com certeza, ao receber alta, seria mandada para um asilo precário, sem a menor chance de psicoterapia de acompanhamento. Meu argumento de que minha interpretação a prepararia para um trabalho futuro era pura ilusão.

Dadas essas circunstâncias, quão "forte" tinha sido minha interpretação? Forte para quê? O poder era uma fantasia; na verdade, minha retórica persuasiva fora dirigida não às forças que mantinham Magnolia presa, mas a minha platéia de alunos. Ela fora vítima de minha vaidade.

Nesse ponto, eu estava chegando mais perto da verdade. No entanto, minha inquietação persistia. Voltei-me para a questão de por que tinha feito um julgamento tão precário. Eu havia transgredido uma regra fundamental da psicoterapia: nunca eliminar as defesas de um paciente quando não se tem nada melhor para oferecer em seu lugar. E a força por trás de meus atos? Por que Magnolia havia assumido tamanha importância para mim?

A resposta a essa pergunta residia, desconfiei, em minha reação à morte de minha mãe. Repassei novamente o curso da sessão. Em que momento as coisas tinham começado a me afetar tão pessoalmente? Fora aquela primeira visão de Magnolia: aquele sorriso, aqueles antebraços acolchoados. Os braços de minha mãe. Como eles haviam me atraído! Como eu desejara ser envolvido e reconfortado por aqueles braços roliços e macios! E a canção, aquela canção de Judy Collins, como era mesmo? Tentei recordar as palavras.

Em vez da letra da música, no entanto, o que me veio à lembrança foram os acontecimentos de uma tarde há muito esquecida. Nas tardes de sábado, quando eu tinha uns 8 ou 9 anos e morava em Washington, meu amigo Roger e eu costumávamos ir de bicicleta fazer piqueniques no parque que cercava o chamado Asilo dos Veteranos. Um dia, em vez de assar cachorros-quentes, planejamos roubar uma galinha viva de uma casa à beira do parque e cozinhá-la numa fogueira que montamos numa clareira ensolarada do parque florestal.

Mas primeiro havia o abate — minha iniciação nos ritos da morte. Roger tomou a iniciativa e golpeou a galinha sacrificial com uma pedra enorme. Embora ensangüentada e meio esmagada, ela continuou a lutar pela vida. Fiquei horrorizado. Desviei os olhos, não suportando contemplar a pobre criatura. As coisas tinham ido longe demais. Eu queria desfazê-las. Ali, naquele momento, eu perdera o interesse em meu projeto de parecer gente grande. Queria minha mãe; queria pedalar para casa, para que ela pudesse me abraçar. Queria reverter o tempo, apagar tudo, recomeçar o dia. Mas não havia retorno possível, e não houve nada a fazer senão ver Roger agarrar a galinha pela cabeça esfacelada e girá-la no ar feito uma corda, até ela finalmente se imobilizar. Devemos tê-la depenado, limpado e colocado num espeto. Devemos tê-la assado na fogueira e comido. Talvez com grande prazer. Mas, embora eu me recorde com insólita clareza de haver desejado "desacontecer" toda aquela catástrofe, não me lembro de nada do que efetivamente fizemos.

Mesmo assim, a lembrança dessa tarde apoderou-se de mim, até eu conseguir libertar-me, perguntando a mim mesmo por que ela havia surgido naquele momento, depois de tantas décadas congelada. O que ligava a sala do grupo hospitalar, cheia de cadeiras de rodas, a acontecimentos ocorridos fazia tanto tempo, em torno de uma fogueira no bosque do Asilo dos Veteranos? Talvez a idéia de ir longe demais — como eu fora longe demais com Magnolia. Talvez uma apreensão visceral da irreversibilidade do tempo. Talvez o anseio, a saudade de uma mãe que me protegesse das realidades brutas da vida e da morte.

Embora persistisse o gosto amargo da sessão de grupo, senti-me mais perto de sua origem: sem dúvida, minha ânsia profunda de consolo materno, atiçada pela morte de minha mãe, encontrara um eco poderoso na imagem de mãe-terra de Magnolia. Eu teria despojado, secularizado essa imagem, obliterado seu poder, no esforço de superar minha ânsia de consolo? Aquela canção, aquela canção da mãe-terra... nesse momento, alguns trechos da letra começaram a voltar: "Embrulhe suas tristezas e me dê todas elas. Você as deixaria... sei como usá-las..." Palavras tolas e pueris. Só consegui ter uma vaga lembrança do lugar aconchegante, generoso e acolhedor a que um dia elas me haviam levado. Agora, essas palavras não funcionavam mais. Assim como pisco os olhos diante de um quadro de Vasarely ou de uma ilusão de óptica criada por Escher, para restabelecer a imagem alternativa, tentei levar minha mente de volta àquele lugar — mas foi em vão.

Será que eu poderia prescindir dessa ilusão? A vida inteira eu tinha buscado consolo numa variedade de mães-terra. Nesse momento, desfilei todas elas diante de mim: minha mãe moribunda, de quem eu havia desejado alguma coisa, não sei o quê, mesmo quando ela exalava seus últimos suspiros; as muitas empregadas negras amorosas, de nomes há muito desaparecidos da memória, que haviam me amparado quando bebê e quando criança; minha irmã, também muito querida, oferecendo-me sobras de seu prato; as professoras sempre ocupadas que me distinguiam com seus elogios; meu velho analista, que se sentara comigo lealmente — e silenciosamente — durante três anos.

Entendi então com mais clareza como todos esses sentimentos — vamos chamá-los de "contratransferência" — haviam tornado quase impossível que eu oferecesse uma ajuda terapêutica não conflitada a Magnolia. Se eu apenas a tivesse deixado em paz, se simplesmente houvesse me aquecido em seu calor, como fizera Rosa, se houvesse me conformado com pequenas metas, eu me condenaria por ter usado a paciente para meu próprio consolo. Do modo como correram as coisas, eu tinha questionado sua estrutura defensiva, e agora me condenava por ter bancado o importante e por tê-la sacrificado em nome de uma demonstração educativa. O que eu não soubera fazer, ou não fizera, tinha sido colocar todos os meus sentimentos entre parênteses, para ter um encontro verdadeiro com Magnolia — a Magnolia de carne e osso, não a imagem que eu lhe impusera.

No dia seguinte à sessão do grupo, Magnolia recebeu alta do hospital e tive oportunidade de vê-la aguardando no corredor, perto da janela da farmácia dos pacientes ambulatoriais. A não ser pela delicada touquinha de renda e pela manta azul bordada (presente de Rosa) que lhe cobria as pernas na cadeira de rodas, ela me pareceu comum — enfraquecida, com a roupa surrada, indistinguível da longa fila cinzenta de pedintes que se estendia à frente e atrás dela. Fiz-lhe um aceno com a cabeça, mas ela não me viu, e segui meu caminho. Minutos depois, pensei melhor e voltei para procurá-la. Ainda junto à janela, ela guardava os medicamentos da alta numa bolsa surrada em ponto de cruz que estava em seu colo. Vi-a mover a cadeira de rodas em direção à saída do hospital, onde ela parou, abriu a bolsa, pegou um lencinho, tirou os óculos grossos de armação dourada e secou delicadamente as lágrimas que lhe corriam pelo rosto. Fui até ela:

— Olá, Magnolia. Lembra-se de mim?

— Sua voz parece munto conhecida — disse ela, repondo os óculos. — Péra só um instantinho, pra eu dar uma olhada em ocê.

Olhou-me, piscou duas ou três vezes, e então abriu um sorriso caloroso.

— Douto Yalom, é claro que eu me lembro do sinhô! Foi gentileza sua para pra me vê. Eu tava mesmo querendo fala com o sinhô, assim, meio particular.

Apontou para uma cadeira no fim do corredor.

— Tô vendo um assento pro sinhô ali. O meu eu carrego comigo. Pode me empurra até lá?

Quando nos deslocamos e eu me sentei, Magnolia disse:

— O sinhô só vai tê que esquece minhas lágrima. Hoje eu num consigo para de soluça.

Na tentativa de calar meu medo crescente de que a sessão do grupo tivesse sido realmente destrutiva, eu disse com delicadeza:

— Magnolia, suas lágrimas têm alguma coisa a ver com nossa sessão de grupo de ontem?

— O grupo? — fez ela, fitando-me com incredulidade. — Douto Yalom, o sinhô num esqueceu do que eu disse no fim da sessão, esqueceu? Hoje é o aniversário da morte da mamãe: faz justo um ano.

— Ah, é claro. Sinto muito, estou meio devagar. Acho que há muita coisa acontecendo em minha própria vida, Magnolia.

Aliviado, retornei rapidamente a minha bagagem profissional:

— Você sente muita falta dela, não é?

— É. E o sinhô se lembra de que a Rosa lhe contô que a minha mãe foi embora quando eu tava crescendo... e aí, um dia apareceu, dispois de fica 15 anos sumida.

— Mas depois, quando voltou, ela cuidou de você, não foi? Deu-lhe muito colinho materno?

— Mãe é mãe. A gente só tem uma. Mas, sabe, a mamãe num cuidou muito de mim, não... foi o contrário... tava cum 90 anos quando morreu. Não, num foi nada disso... foi só que ela tava lá. Num sei... acho que ela fico por causa de umas coisa que eu precisava. O sinhô sabe o que eu quero dizê?

— Sei exatamente o que você quer dizer, Magnolia. Sei mesmo.

— Vai vê que num tá certo eu dizê isso, douto, mas acho que o sinhô é que nem eu: tamém sente farta da sua mãe. Os douto tamém precisa de mãe, que nem as mães precisa de mãe.

— Você tem razão nisso, Magnolia. Tem um bom sexto sentido, como disse a Rosa. Mas você disse que estava querendo falar comigo?

— Bom, como eu já disse, era sobre o sinhô senti farta da sua mãe. Essa era uma coisa. A outra era sobre a sessão de grupo. Eu só queria lhe agradece, só isso. Tirei muita coisa daquela sessão.

— Será que você pode me dizer o que tirou dela?

— Aprendi uma coisa urgente. Aprendi que pra mim acabo essa história de cria fio. Pra mim chega disso, pra sempre...

A voz dela foi sumindo e Magnolia desviou o olhar, examinando o corredor. Urgente? Para sempre? Aquelas palavras inesperadas me intrigaram. Eu queria continuar conversando com ela, e fiquei desapontado ao ouvi-la dizer:

— Ah, óia lá, é a Cráudia vindo me busca.

Cláudia empurrou a cadeira de rodas de Magnolia pela porta da frente e se dirigiu à caminhonete que a levaria ao asilo para onde ela fora encaminhada. Acompanhei-a até o meio-fio e a vi ser içada para dentro do veículo em sua cadeira, pelo elevador da traseira da caminhonete.

— Inté, douto Yalom — disse ela, acenando para mim. — Cuide bem do sinhô.

Como era estranho, meditei, vendo a caminhonete afastar-se, que eu, que havia dedicado a vida a captar o mundo do outro, não tivesse verdadeiramente compreendido, até Magnolia, que aqueles que transformamos em mitos também são carregados de mitos. Eles se desesperam, sofrem com a morte da mãe, buscam o que é glorificado; também eles se enfurecem com a vida, e podem precisar mutilar-se para parar de se doar.

 

Sete lições avançadas na terapia do luto

Muito tempo atrás, Earl, um amigo de muitos anos, telefonou para me dizer que seu amigo mais íntimo, Jack, acabara de ser diagnosticado com um tumor cerebral maligno e inoperável. Antes que eu pudesse manifestar comiseração, ele disse:

— Olhe, Irv, não estou telefonando por minha causa, mas por outra pessoa. É um favor, uma coisa realmente importante para mim. Escute, você pode tratar da mulher do Jack, a Irene? O Jack terá uma morte terrível, talvez a mais dura que a vida pode trazer. E o fato de Irene ser cirurgia não ajuda em nada: ela saberá coisas demais e viverá uma agonia, assistindo impotente enquanto o câncer devora o cérebro do marido. E depois, ficará com uma filha pequena e um consultório lotado. O futuro dela é um pesadelo.

Ao ouvir o pedido de Earl, tive vontade de ajudar. Quis oferecer tudo o que ele estava pedindo. Mas havia alguns problemas. A boa terapia exige fronteiras claras, e eu conhecia Jack e Irene. Não muito bem, é verdade, mas estivéramos juntos nuns dois jantares na casa de Earl. Eu também assistira com Jack ao Super Bowl, a final da Liga Nacional de Futebol Americano, e havia jogado tênis com ele algumas vezes.

Disse tudo isso a Earl e concluí:

— Tratar de uma pessoa que a gente conhece socialmente nunca deixa de ficar confuso. A minha melhor maneira de ajudar é encontrar a melhor indicação: alguém que não conheça a família.

— Eu sabia que você ia dizer isso — replicou ele. — Preparei Irene para essa resposta. Falei disso com ela uma porção de vezes, mas ela não quer consultar mais ninguém. É muito decidida e, embora tenha pouco respeito pelo campo da psiquiatria, de modo geral, cismou com você. Diz que tem acompanhado seu trabalho e está convencida, só Deus sabe por quê, de que você é o único psiquiatra inteligente o bastante para ela.

— Deixe-me pensar um pouco. Amanhã eu ligo para você.

O que fazer? De um lado, a amizade falava mais alto: Earl e eu nunca recusáramos nada um ao outro. Mas a invasão potencial da fronteira me deixava inquieto. Earl e a mulher, Emily, eram dois de meus confidentes mais íntimos. E Emily, por sua vez, era a melhor amiga de Irene. Eu já imaginava as duas num tête-à-tête, falando de mim. É, não havia dúvida: eu ouvia os sinais de alarme tocando. Mas diminuí bastante o volume. Arrancaria de Irene e Emily a promessa de construir um muro de silêncio em torno da terapia. Era uma coisa difícil e complexa. Mas, se eu era tão inteligente quanto ela achava, conseguiria lidar com isso.

Depois de desligar, perguntei-me por que estava tão disposto a ignorar os sinais de alarme. Percebi que o pedido de Earl, naquela conjuntura específica da minha vida, parecia predestinado. Um colega e eu havíamos acabado de concluir três anos de pesquisa empírica sobre o luto conjugai, estudando oitenta homens e mulheres que tinham enviuvado recentemente. Eu fizera longas entrevistas com eles e tratara de todos em grupos de terapia breve formados por oito pessoas. Nossa equipe de pesquisa havia acompanhado sua evolução durante um ano, coletado uma montanha de informações e publicado diversos artigos em periódicos especializados. Eu me convencera de que poucas pessoas conheciam melhor o assunto do que eu. Como medalhão em matéria de luto, como é que eu poderia, em sã consciência, recusar o pedido de Irene?

Além disso, ela dissera as palavras mágicas: que eu era a única pessoa inteligente o bastante para tratá-la. A tomada perfeita para eu encaixar minha vaidade.

 

Lição 1: O primeiro sonho

Dias depois, encontrei-me com Irene para nossa primeira sessão. Deixem-me dizer desde já que ela se revelou uma das mulheres mais interessantes, inteligentes, teimosas, angustiadas, sensíveis, imperiosas, elegantes, trabalhadoras, engenhosas, inflexíveis, corajosas, atraentes, orgulhosas, gélidas, românticas e irritantes que eu já havia conhecido.

A meio caminho da primeira sessão, descreveu um sonho que tivera na noite anterior:

Eu ainda era cirurgia, mas também era estudante de inglês na pós-graduação. Meus preparativos para uma cadeira incluíam dois textos diferentes, um antigo e um moderno, os dois com o mesmo nome. Eu estava despreparada para o seminário, porque não tinha lido nenhum dos dois. Em especial, não tinha lido o primeiro texto, o antigo, que me haveria preparado para o segundo.

— De que mais você se lembra, Irene? — perguntei, quando ela parou. — Você disse que os dois textos tinham o mesmo nome. Sabe qual era?

— Ah, sim, lembro-me claramente. Os dois livros, o velho e o novo, tinham o título A morte da inocência.

 

Enquanto a escutava, deixei-me levar por um devaneio. Esse sonho dela era ouro puro, ambrosia intelectual — uma dádiva dos deuses. Era a realização do sonho do detetive psicológico. A recompensa pela paciência, o prêmio por inúmeras e tediosas campanhas terapêuticas com engenheiros inibidos.

Era um sonho para fazer até o terapeuta mais irritadiço e mal-humorado ronronar de prazer. E como ronronei. Dois textos — um antigo e um novo. Ron-rom, ronrom. A necessidade do texto antigo para compreender o novo. Ronrom. Ronrom. E o título: A morte da inocência. Ronrom, ronrom, ronrom.

Não era só que o sonho de Irene prometesse uma esplêndida caçada intelectual ao tesouro, da melhor categoria; era também o primeiro sonho. Desde 1911, quando Freud o discutiu pela primeira vez, tem havido uma mística cercando o sonho inicial que o paciente relata em análise. Freud achava que esse primeiro sonho era pouco sofisticado e pouco revelador, porque os pacientes no começo do tratamento são ingênuos e ainda estão desprevenidos. Numa etapa posterior da terapia, quando fica evidente que o terapeuta tem uma capacidade minimamente refinada de interpretar sonhos, o tecedor de sonhos que reside em nosso inconsciente torna-se cauteloso, entra em alerta máximo e, a partir daí, toma o cuidado de fabricar sonhos mais complexos e obscuros.

Seguindo Freud, muitas vezes imaginei o tecelão de sonhos como um homúnculo gorducho e jovial, que leva uma boa vida numa floresta de dendrites e axônios. Dorme durante o dia, mas, à noite, reclinado numa almofada de sinapses zumbidoras, tece preguiçosamente seqüências de sonhos para seu anfitrião. Na noite que antecede a primeira ida à terapia, esse anfitrião adormece cheio de idéias conflitantes sobre a terapia que virá e, como de praxe, o homúnculo cuida de sua tarefa noturna, entremeando alegremente esses temores e esperanças num sonho simples e transparente. Depois, muito alarmado, o homúnculo descobre que o terapeuta interpretou habilmente seu sonho. Com graça, tira o chapéu para o adversário competente — o terapeuta que decifrou seu código onírico —, mas, desse momento em diante, toma o cuidado de enterrar cada vez mais fundo o significado do sonho num disfarce noturno.

Conto de fadas bobo. Típica antropomorfização oitocentista. O erro muito difundido de concretizar as estruturas psíquicas abstratas de Freud em elfos independentes, dotados de livre-arbítrio. Ah, se eu não acreditasse nisso!

Durante décadas, muitos consideraram o primeiro sonho um documento de valor inestimável, que representa a tradução, em linguagem onírica, de todo o conteúdo da neurose. Freud chegou ao ponto de sugerir que a interpretação completa de um sonho inicial coincidiria com a análise inteira.

O primeiro sonho de minha análise pessoal ficou gravado em minha memória, com todo o frescor, os detalhes e a sensação do dia em que o sonhei, já se vão quarenta anos, logo depois de iniciar minha residência em psiquiatria.

 

Eu estava deitado na mesa de exames de um médico. O lençol era pequeno demais para me cobrir direito. Vi uma enfermeira introduzir uma agulha em minha perna — na canela. De repente, houve um som explosivo, sibilante, gorgolejante — huuuch.

 

O centro do sonho — esse huuuch sonoro — ficou claro para mim no mesmo instante. Quando criança, eu era atormentado por uma sinusite crônica e, todo inverno, minha mãe me levava ao dr. Davis para uma drenagem e irrigação dos seios da face. Eu detestava os dentes amarelos e os olhos rnortiços do médico, que me fitavam pelo centro do espelho redondo preso à faixa que os otorrinolaringologistas costumavam usar na cabeça. Quando ele inseria a cânula em meu orifício, eu sentia uma dor aguda, depois ouvia um huuuch ensurdecedor, enquanto a solução salina injetada lavava os seios da face. Ao ver aquela sujeira trêmula e repulsiva na bacia cromada e semicircular da drenagem, eu achava que parte do meu cérebro tinha sido expelida, juntamente com o pus e o muco.

Como sugeriu Freud, meu primeiro sonho antecipou uma camada após outra de anos de trabalho analítico: meus medos de ficar exposto, de perder a cabeça, de receber uma lavagem cerebral, de sofrer uma lesão dolorosa (esvaziamento) de uma parte comprida e rija do corpo (retratada como o osso da canela).

Freud e muitos analistas posteriores advertiram contra a entrada demasiadamente precipitada no significado do primeiro sonho, para que uma interpretação precoce e a exposição ao material inconsciente não viessem a acabrunhar o paciente e a imobilizar por completo nosso homúnculo tecedor de sonhos. Essas advertências me pareciam menos orientadas para o aumento da eficácia terapêutica do que para a proteção dos interesses tacanhos da disciplina analítica, e sempre resisti a elas.

Entre as décadas de 1940 e 1960, imperou na terapia uma abordagem de pisar em ovos. A formulação precisa e delicada das intervenções era objeto de debates enigmáticos e intermináveis nos institutos analíticos. Bombardeados pela propaganda sobre a necessidade de interpretações primorosamente formuladas e introduzidas no momento oportuno, os novatos — cheios de reverência e temor — avançavam cuidadosamente pela terapia, na ponta dos pés, sufocando sua espontaneidade... e sua eficiência. Eu considerava contraproducente esse formalismo, porque ele interferia na meta maior de estabelecer uma relação empática e autêntica com o paciente. Para mim, a advertência freudiana de que não se trabalhasse com os sonhos até estar firmemente estabelecida a aliança terapêutica parecia uma estranha inversão: trabalhar juntos num sonho era uma forma excelente de construir a aliança terapêutica.

 

Assim, mergulhei de cabeça no sonho de Irene.

— Então, você não tinha lido nenhum dos textos — comecei —, especialmente o antigo.

— É, sim, eu esperava que você fizesse perguntas sobre isso. É claro que não faz sentido, eu sei. Mas foi exatamente assim no sonho. Eu não tinha lido o trabalho de casa: não lera nenhum dos dois textos, mas especialmente não lera o antigo.

— Aquele que a teria preparado para o texto novo. Alguma pista sobre o sentido desses dois textos na sua vida?

— Não é bem uma pista — respondeu Irene. — Sei exatamente o que eles significam.

Esperei que continuasse, mas ela ficou simplesmente sentada em silêncio, olhando pela janela. Eu ainda não conhecia esse traço irritante de Irene, que consistia em não oferecer voluntariamente nenhuma conclusão, a menos que eu a solicitasse de maneira explícita.

Aborrecido, deixei o silêncio persistir por um ou dois minutos. No fim, atendi-a:

— E o significado dos dois sonhos, Irene, é...

— A morte do meu irmão, quando eu tinha 20 anos, era o texto antigo. A morte iminente de meu marido é o texto moderno.

— Então, o sonho nos diz que talvez você não consiga lidar com a morte de seu marido enquanto não tiver lidado com a de seu irmão.

— Isso mesmo. Precisamente.

O exame desse sonho inicial antecipou não só o conteúdo da terapia, mas também seu processo, isto é, a natureza da relação terapeuta-paciente. Por exemplo, Irene era sempre franca e reflexiva. Eu nunca fazia uma pergunta sem receber uma resposta original e abrangente. Ela sabia o título dos dois textos? Certamente que sim. Tinha algum palpite sobre por que precisava ler o texto antigo para compreender o moderno? É claro, sabia exatamente o que isso significava. Até as perguntas rotineiras—"Como você entende isso?", ou "Em que está pensando agora, Irene?" — nunca deixaram, em cinco anos de terapia, de produzir uma colheita fértil. Muitas vezes, as respostas de Irene me exasperavam: eram rápidas demais, precisas demais. Faziam-me lembrar a srta. Fernald, minha professora da quinta série, que costumava dizer "Ande logo, Irvin" enquanto batia impacientemente com o pé, contava o tempo e esperava que eu parasse de devanear e desse andamento a algum exercício da aula.

Tirei a srta. Fernald da cabeça e continuei:

— E o significado que A morte da inocência tem para você?

— Imagine o que significou para mim, aos 20 anos, ver meu irmão, que eu esperava ter como companheiro pela vida afora, ser arrancado de mim por um acidente de carro. Depois, conheci o Jack. E imagine o que significa agora, aos 45 anos, perdê-lo. Imagine o que é ter meus pais vivos, na casa dos 70, e meu irmão morto e meu marido morrendo. Um tempo incoerente. Os jovens morrendo primeiro.

Irene me falou da relação abençoada que tivera com o irmão, Allen, dois anos mais velho. Durante toda a sua adolescência, ele tinha sido o protetor, o confidente, o mentor com quem toda menina sonha. E então, num momento de freios rangendo numa rua de Boston, Allen havia morrido. Ela me contou como a polícia havia telefonado para a casinha que ela dividia com colegas da faculdade, como cada detalhe daquele dia ficara para sempre cristalizado em sua memória.

— Eu me lembro de tudo: da campainha do telefone no térreo, de meu roupão de chenile, com as fileiras de tufinhos cor-de-rosa e branco, do arrastar de meus chinelos de pele de carneiro quando desci a escada até o vão próximo da cozinha, onde o telefone ficava pendurado na parede, e do corrimão de madeira muito lisa sob minha mão. Lembro-me de ter pensado que a madeira fora alisada por todas as alunas de Harvard e Radcliffe antes de mim. E aí veio a voz daquele homem, daquele estranho que tentava ser gentil, enquanto me dizia que o Allen estava morto. Passei horas sentada, olhando pelo vidro chanfrado da janela do vão. Até hoje vejo os montes de neve suja no pátio lateral, coloridos pelo arco-íris.

Inúmeras vezes, durante a terapia, retornamos ao sonho dos dois textos e ao significado de A morte da inocência. A perda do irmão a havia marcado pela vida afora. A morte destruíra sua inocência para sempre. Acabaram-se os mitos da infância: justiça, previsibilidade, um Deus benevolente, a ordem natural das coisas, pais protetores, a segurança do lar. Sozinha e desprotegida contra os caprichos da existência, Irene lutara para conquistar segurança. Allen poderia ter sobrevivido, achou ela, se tivesse recebido o tratamento médico certo na emergência. A medicina a chamou — oferecia a única esperança de controlar a morte — e, no funeral de Allen, de repente ela resolveu se candidatar à faculdade de medicina e se tornar cirurgia.

Outra decisão tomada por Irene na esteira da morte de Allen viria a ter enormes implicações em nosso trabalho na terapia.

— Descobri um jeito de evitar qualquer outro sofrimento: eu nunca mais sofreria uma perda daquelas, se nunca deixasse ninguém ter importância para mim.

— Que efeitos teve essa decisão na sua vida?

— Nos dez anos seguintes, não estabeleci nenhum laço, não corri riscos. Conheci muitos homens, mas rompia as relações depressa, antes que ficassem sérias e antes que eu sentisse alguma coisa.

— Mas, depois, alguma coisa mudou. Você se casou. Como foi isso?

— Eu conhecia o Jack desde a quarta série e, de algum modo, sempre tinha achado que ele seria o homem certo. Mesmo quando ele desapareceu da minha vida e se casou com outra mulher, eu sabia que voltaria. Meu irmão o conhecia e o respeitava. Acho que você poderia dizer que meu irmão abençoou o Jack.

— Quer dizer que a aprovação de Allen a Jack permitiu que você corresse o risco de se casar?

— Não foi tão simples assim. Levou muito, muito tempo, e, mesmo assim, eu me recusei a me casar com Jack, até ele me prometer que não morreria jovem.

Gostei da ironia de Irene e ergui os olhos com um sorriso, esperando encontrar seu sorriso de volta. Mas ela não sorriu. Não estava sendo irônica; falava com toda a seriedade.

Esse cenário se repetiria inúmeras vezes ao longo de nosso trabalho. Eu fora nomeado a voz da razão. E freqüentemente fisgava a isca: confrontava a irracionalidade dela, discutia; apelava para seu bom senso, tentava estimular sua mente precisa, treinada na ciência. Noutras ocasiões, eu apenas esperava. Mas o resultado era sempre o mesmo: Irene nunca cedia um milímetro, nunca abandonava sua postura. E eu nunca me acostumei com sua natureza dupla, com sua extraordinária lucidez, combinada com uma irracionalidade absurda.

 

Lição 2: A parede de cadáveres

Se o sonho inicial de Irene antecipou a natureza de nossa futura relação, um sonho que ela teve no segundo ano da terapia foi o inverso — um facho de luz voltado para trás, iluminando a trilha que já percorrêramos juntos.

 

Eu estava neste consultório, nesta cadeira. Mas havia uma parede estranha no meio da sala, entre nós. Eu não conseguia ver você. No começo, não pude ver a parede com clareza; era irregular, com uma porção de fendas e protuberâncias. Vi um pedacinho de tecido, xadrez vermelho; depois, reconheci uma mão; depois, um pé e um joelho. Aí eu entendi o que era — uma parede de cadáveres empilhados.

 

— E a sua sensação no sonho, Irene? — essa era quase sempre a minha primeira pergunta. É comum a sensação experimentada num sonho levar ao centro de seu significado.

— Desagradável, com medo. Minha sensação mais forte foi no começo, quando vi a parede e me senti perdida. Sozinha, perdida, assustada.

— Fale-me da parede.

— Quando a descrevo agora, ela parece horripilante, como uma pilha de corpos em Auschwitz. E aquele pedaço de xadrez vermelho... conheço aquele tecido, era do pijama que Jack estava usando na noite em que morreu. Mas, por algum motivo, a parede não era horripilante: simplesmente estava ali, era uma coisa que eu inspecionava e estudava. Talvez tenha até aplacado um pouco o meu medo.

— Uma parede de cadáveres entre nós. Como você entende isso, Irene?

— Não há nenhum mistério. Não há mistério no sonho inteiro. É só o que eu tenho sentido o tempo todo. O sonho diz que você não pode me enxergar de verdade, por causa de todos os cadáveres, de todas as mortes. Não consegue imaginar. Nunca aconteceu nada com você! Não houve nenhuma tragédia na sua vida.

As perdas na vida de Irene tinham aumentado. Primeiro o irmão. Depois o marido, que morrera no fim de nosso primeiro ano de terapia. Em mais alguns meses, o pai dela fora diagnosticado com um câncer de próstata em estágio avançado, o que fora seguido pouco depois pelo declínio de sua mãe com o mal de Alzheimer. E então, quando ela parecia estar progredindo na terapia, seu afilhado de 20 anos — filho único de sua prima, uma amiga íntima da vida inteira — afogou-se num acidente de barco. Foi em meio a sua amargura e desespero por essa última perda que ela sonhou com a parede de cadáveres.

— Continue, Irene, estou ouvindo.

— O que eu quero dizer é: como é que você pode me entender? A sua vida é irreal: calorosa, aconchegante, inocente. Como este consultório — e apontou para minhas estantes repletas de livros, às suas costas, e para o ácer japonês escarlate do lado de fora da janela. — Só faltam mesmo as almofadas de chintz, uma lareira e a lenha crepitando. Você é cercado pela família, todos na mesma cidade. Um círculo familiar ininterrupto. O que você entende realmente de perda? Acha que saberia lidar melhor com isso? Suponha que sua mulher ou um dos seus filhos viesse a morrer neste instante. O que você faria? Até essa sua camisa presunçosa de listrinhas, eu a detesto. Toda vez que você a usa, eu me encolho. Odeio o que ela revela!

— E o que ela revela?

— Ela diz: "Todos os meus problemas estão resolvidos. Fale-me dos seus."

— Você já falou desses sentimentos. Mas hoje eles estão muito intensos. Por quê? E o sonho, por que esse sonho agora?

— Eu lhe disse que ia conversar com o Eric, e ontem jantei com ele.

— E? — instiguei-a, depois de outra daquelas suas pausas irritantes, que implicava que eu deveria ser capaz de estabelecer a ligação entre Eric e o sonho. Irene só havia mencionado esse homem uma vez, dizendo que a mulher dele tinha morrido dez anos antes e que ela o conhecera numa palestra sobre o luto.

— E ele confirmou tudo o que eu vinha dizendo. Disse que você está completamente errado sobre eu elaborar a morte do Jack. Isso não se elabora. Nunca se supera. O Eric se casou de novo e tem uma filha de 5 anos, mas a ferida continua a sangrar. Ele fala com a mulher morta todos os dias. Ele me entende. E agora estou convencida de que só as pessoas que passaram por isso são capazes de compreender. Há uma sociedade clandestina silenciosa...

— Sociedade clandestina? — interrompi.

— De pessoas que realmente sabem... todos os sobreviventes, os que se viram privados de alguém. Esse tempo todo, você tem insistido em que eu me desligue do lack, em que me volte para a vida, para a criação de um novo amor... foi tudo um erro. É um erro da arrogância de pessoas como você, que nunca perderam nada.

— Quer dizer que só os que sofreram perdas podem tratar de quem sofreu perdas?

— Alguém que tenha passado por isso.

— Tenho ouvido essa conversa desde que entrei nesta área! — explodi. — Só os alcoólatras podem tratar de alcoólatras? Ou os viciados, de viciados? E será que você precisa ter um distúrbio alimentar para tratar a anorexia, ou ser deprimida ou maníaca para tratar distúrbios afetivos? Que tal ser esquizofrênica para tratar da esquizofrenia?

Irene sabia apertar os botões certos em mim. Tinha um talento insólito para localizar e acertar na mosca o que mais me irritava.

— Ah, não, não me venha com essa! — revidou ela. — Dirigi a equipe universitária de debates em Radcliffe e conheço essa estratégia: reductio ad absurdum! Mas não vai funcionar. Admita, você sabe que o que estou dizendo é verdade.

— Não, eu discordo. Você está desconsiderando por completo a formação dos terapeutas! É para isso que serve a formação na minha área, para a pessoa adquirir sensibilidade, empatia, para poder entrar no mundo de outra pessoa, vivenciar o que o paciente vivência.

Fiquei irritado, com certeza. E tinha aprendido a não me conter. Trabalhávamos muito melhor juntos quando eu simplesmente dava vazão a meus sentimentos.

Irene às vezes entrava em meu consultório tão deprimida que mal conseguia falar. Mas, quando tínhamos uma discussão sobre alguma coisa, ela inevitavelmente ganhava vida. Eu sabia estar assumindo o papel de Jack. Ele tinha sido a única pessoa a enfrentá-la. A postura gélida de Irene era intimidante para os outros (seus residentes em cirurgia referiam-se a ela como "a rainha"), mas Jack nunca se submetera a ela. Irene me contou que ele não fazia o menor esforço para esconder seus sentimentos e, muitas vezes, retirava-se da sala, resmungando: "Não tenho tempo para essa besteirada."

Não só me irritei com a insistência dela em que só os terapeutas que houvessem sofrido privações eram capazes de tratar de pacientes enlutados, como também fiquei com raiva de Eric por reforçar sua visão de que o luto era interminável. Essa idéia fazia parte de um debate permanente entre mim e ela. Eu adotava uma postura sólida, estabelecida desde longa data: a de que o trabalho do luto consiste num desligamento gradual da pessoa que morreu e no redirecionamento das energias para outros. Freud elaborou essa compreensão do luto pela primeira vez em 1915, em Luto e melancolia, e desde então essa abordagem foi corroborada por muitas observações clínicas e pesquisas empíricas.

Em minha própria pesquisa, concluída pouco antes de eu aceitar o caso de Irene, todas as viúvas e viúvos que estudei desvincularam-se aos poucos do cônjuge falecido e reinvestiram em outra coisa ou outra pessoa. E isso se aplicava também aos que tinham vivido os casamentos mais amorosos. Na verdade, encontramos fortes indícios de que muitos viúvos que tinham tido os melhores casamentos passavam pelo processo de luto e desligamento com mais facilidade do que aqueles cujo casamento tinha sido profundamente conflituoso. (A explicação desse paradoxo, ao que me parecia, estava no "arrependimento": para os que haviam passado a vida casados com a pessoa errada, o luto era mais complexo, porque eles também tinham que chorar por si mesmos, pelos muitos anos desperdiçados.) Como o casamento de Irene me parecia ter sido excepcionalmente amoroso e de apoio recíproco, eu tinha previsto, a princípio, uma elaboração relativamente descomplicada do luto.

Mas Irene era muito crítica a respeito das atitudes mais tradicionais em relação às perdas. Detestava meus comentários sobre o desapego e descartou prontamente minha pesquisa: "Nós, que sofremos perdas, aprendemos a dar as respostas que os investigadores querem ouvir. Aprendemos que o mundo quer que nos recuperemos depressa e que fica impaciente com as pessoas que se apegam por tempo demais a suas perdas"

Ela se ressentia profundamente de qualquer sugestão de que esquecesse Jack: dois anos depois da morte dele, os pertences pessoais do marido continuavam nas gavetas de sua escrivaninha, suas fotos penduradas por toda a casa, seus livros e revistas favoritos nos devidos lugares, e Irene continuava a ter longas conversas diárias com ele. Fiquei preocupado com a possibilidade de que a conversa com Eric fizesse a terapia retroceder meses, reforçando a idéia dela de quanto eu estava errado. Seria mais difícil do que nunca convencê-la de que ela acabaria por se recuperar do luto. Quanto a sua crença tola numa sociedade secreta e silenciosa de pessoas enlutadas, todas as quais concordavam com ela, essa era apenas mais uma de sua legião de idéias irracionais. Não valia a pena dignificá-la com uma resposta.

Mas, como sempre, alguns comentários de Irene atingiram o alvo. Conta-se uma história sobre o escultor suíço Alberto Giacometti, que quebrou a perna num acidente de trânsito. Enquanto ele estava deitado na rua à espera da ambulância, ouviram-no dizer: "Até que enfim, até que enfim aconteceu alguma coisa comigo" Sei exatamente o que ele queria dizer. Irene havia acertado na mosca, sim. Tendo lecionado em Stanford por mais de trinta anos, eu havia morado na mesma casa, vira meus filhos irem a pé para as mesmas escolas e nunca tivera que enfrentar uma desgraça. Não houvera mortes sofridas nem extemporâneas: meu pai e minha mãe haviam morrido idosos, ele com 70 anos, ela na casa dos 90. Minha irmã, sete anos mais velha do que eu, goza de boa saúde. Não perdi nenhum amigo íntimo e meus quatro filhos estão por perto e passam bem.

Para um pensador que abraçou um quadro de referência existencial, essa vida propícia e protegida é um risco. Muitas vezes, ansiei por me aventurar fora da torre de marfim da universidade e enfrentar as vicissitudes da vida real. Durante anos, imaginei passar uma licença sabática como proletário, talvez dirigindo uma ambulância em Detroit, trabalhando como cozinheiro num restaurante barato do Bowery,[6] ou fazendo sanduíches numa delicatessen de Manhattan. Mas nunca o fiz: o canto de sereia do apartamento de um colega em Veneza ou de uma bolsa de estudos em Bellagio, às margens do lago Como, foi irresistível. Nunca tive nem mesmo a experiência de uma separação conjugal e de enfrentar a solidão como adulto. Conheci Marylin, minha mulher, quando tinha 15 anos, e decidi no mesmo instante que ela era a ideal para mim. (Cheguei até a apostar cinqüenta dólares com meu melhor amigo que me casaria com ela — e recebi o dinheiro, oito anos depois.) Nosso casamento nem sempre foi tranqüilo — graças a Deus pelo Sturm und Drang —, mas, durante minha vida inteira, ela tem sido uma amiga amorosa, sempre a meu lado.

Vez por outra, invejei pacientes que viviam em situação precária e tinham a coragem de transformar radicalmente a vida, que se mudavam, abandonavam o emprego, trocavam de profissão, divorciavam-se, recomeçavam do zero. Inquieta-me a idéia de ser um voyeur, e eu me pergunto se incentivo disfarçadamente meus pacientes a darem mergulhos heróicos por mim.

Eu disse todas essas coisas a Irene. Não omiti nada. Disse-lhe que ela estava certa quanto a minha vida — até certo ponto.

— Mas você não tem razão ao dizer que não tenho nenhuma experiência com a tragédia. Faço todo o possível para trazer a tragédia para perto de mim. Concentro-me em minha morte. Quando estou com você, muitas vezes imagino como seria se minha mulher tivesse uma doença fatal, e sempre me sinto invadir por uma tristeza indescritível. Tenho consciência, plena consciência, de estar envelhecendo, de ter passado para outra etapa da vida. Todos os sinais do envelhecimento: a cartilagem destroçada de meu joelho, a visão deficiente, as dores nas costas, as placas neuríticas, a barba e o cabelo grisalhos, os sonhos com minha própria morte, me dizem que estou caminhando para o fim da vida.

"Durante dez anos, Irene, optei por trabalhar com pacientes terminais de câncer, na esperança de que eles me levassem para mais perto do núcleo trágico da vida. Isso de fato aconteceu, e voltei a fazer três anos de terapia, dessa vez com Rollo May, cujo livro Existência tinha sido muito importante para mim na formação psiquiátrica. Essa terapia foi diferente de qualquer outro trabalho pessoal que eu tivesse feito antes, e mergulhei a fundo na experiência de minha própria morte."

Irene assentiu com a cabeça. Eu conhecia aquele gesto — um conjunto característico de movimentos, composto por uma espichada firme do queixo, seguida por dois ou três acenos lentos, que era seu código Morse somático para expressar que eu dera uma resposta razoavelmente satisfatória. Eu havia passado no teste — momentaneamente.

Mas não dera o sonho por encerrado.

— Irene, acho que há mais coisas em seu sonho.

Consultei minhas anotações (praticamente as únicas notas que tomo durante as sessões são de sonhos, porque, por seu caráter evanescente, é comum os pacientes recalcarem ou distorcerem prontamente os sonhos) e li em voz alta a primeira parte do sonho dela:

— "Eu estava neste consultório, nesta cadeira. Mas havia uma parede estranha no meio da sala, entre nós. Eu não conseguia ver você." O que me impressiona — continuei — é essa última frase. No sonho, é você que não consegue me ver. No entanto, durante toda esta sessão, ficamos discutindo o inverso: que sou eu que não a vejo. Deixe-me fazer-lhe uma pergunta: minutos atrás, quando falei do meu envelhecimento, você sabe, da cirurgia no joelho, dos olhos...

— Sim, sim, eu ouvi isso tudo! — exclamou Irene, apressando-me.

— Você ouviu, mas, como de praxe, sempre que menciono alguma coisa sobre minha saúde, seus olhos ficaram vidrados. Como naquelas duas semanas depois da minha cirurgia ocular, quando era óbvio que eu estava vivendo um momento difícil e usei óculos escuros, e você nunca indagou sobre a cirurgia nem perguntou como eu estava passando.

— Não preciso saber da sua saúde. A paciente aqui sou eu.

— Ah, não, é muito mais do que isso, é mais do que falta de interesse, mais do que você ser a paciente, e eu, o médico. Você me evita. Você se proíbe de saber qualquer coisa a meu respeito. Especialmente alguma coisa que me diminua de algum modo. Desde o começo, eu lhe disse que, por causa do nosso relacionamento social anterior e de nossos amigos comuns, o Earl e a Emily, eu não poderia me esconder de você. No entanto, nem uma única vez você manifestou interesse em saber alguma coisa sobre mim. Não acha estranho?

— Quando comecei a vir aqui, não estava disposta a correr o risco de tornar a perder alguém importante para mim. Não podia passar por isso. Então, eu só tinha duas opções...

Como fazia tantas vezes, Irene parou, como se eu devesse poder adivinhar o restante de sua afirmação. Embora eu não quisesse instigá-la, era melhor, nesse momento, manter o diálogo fluindo.

— E essas duas opções eram...?

— Bem, não deixar que você tivesse importância para mim... mas isso era impossível. Ou não vê-lo como uma pessoa real, com uma história.

— História?

— É, uma história de vida, indo do começo ao fim. Quero mantê-lo fora do tempo.

— Hoje, como de hábito, você entrou em meu consultório e foi direto para sua cadeira, sem olhar para mim. Sempre evita os meus olhos. É isso que quer dizer com "fora do tempo"?

Ela acenou com a cabeça.

— Olhar para você o tornaria real demais.

— E as pessoas reais têm que morrer.

— Agora você entendeu.

 

Lição 3: A raiva do luto

Uma tarde, comecei uma sessão dizendo:

— Acabei de saber, Irene, que meu cunhado morreu há algumas horas. De repente. Trombose coronariana. Ê óbvio que estou abalado e não me sinto em plena forma — ouvi minha voz vacilar —, mas farei o melhor possível para estar presente com você.

Foi difícil de dizer, difícil de fazer, mas senti que não tinha alternativa.

Morton, o marido de minha única irmã, tinha sido um amigo querido e uma presença importante em minha vida desde meus 15 anos. Eu ficara atordoado com o telefonema de minha irmã ao meio-dia e, na mesma hora, fizera reserva no vôo seguinte para Washington, para ir ao encontro dela. Ao começar a cancelar meus compromissos dos dias seguintes, vi que teria uma sessão com Irene dali a duas horas, que ainda me deixaria tempo para pegar o avião. Deveria manter a consulta?

Em nossos três anos juntos, Irene nunca se atrasara nem faltara a uma sessão, nem mesmo durante o período de horror em que o tumor de Jack havia devastado o cérebro e a personalidade dele. Apesar do pesadelo de assistir à degradação implacável do marido, Irene sempre se mantivera fiel a nosso trabalho. E eu também. Desde nossa primeira sessão, na qual eu lhe prometera "Levarei isso até o fim com você" eu tinha assumido o compromisso de conversar com ela com toda a autenticidade possível. Por isso, nesse dia de tristeza, minha escolha pareceu clara: eu a encontraria e seria franco.

Mas Irene não respondeu. Depois de passarmos alguns minutos em silêncio, sondei-a:

— Por onde andam seus pensamentos?

— Eu estava pensando em quantos anos ele tinha.

— Setenta. Estava para se aposentar da medicina.

Fiz uma pausa e esperei. Pelo quê? Talvez apenas pela decência de condolências rápidas. Ou até uma expressão de agradecimento por minha disposição de recebê-la, apesar de minha tristeza.

Silêncio. Irene ficou sentada, muda, com os olhos aparentemente fixos numa pálida mancha de café no carpete.

— Irene, o que está acontecendo hoje no espaço entre nós?

Eu fazia infalivelmente essa pergunta em todas as sessões, seguindo minha convicção de que nada era mais importante do que explorar nossa relação.

— Bem, ele deve ter sido um bom homem — disse ela, ainda sem mexer os olhos. — Caso contrário, você não estaria tão triste.

— Ora, vamos, Irene. A verdade. O que está se passando na sua cabeça? De repente, ela ergueu os olhos fuzilantes.

— Meu marido morreu com 45 anos e, se eu posso entrar todos os dias na sala de cirurgia e operar meus pacientes, e cuidar do meu consultório e dar aulas a meus alunos, você com certeza pode vir aqui para me atender!

Não foram as palavras dela que me espantaram, mas seu tom. Aquele timbre ríspido e grave não era de Irene. Não era a voz dela. Parecia a voz fantasmagoricamente gutural da menina de O exorcista. Antes que eu pudesse tecer algum comentário, ela se levantou para pegar a bolsa.

— Vou embora! — disse.

Os músculos de minha panturrilha ficaram tensos — acho que eu estava me preparando para detê-la, se ela partisse em direção à porta.

— Ah, não vai não. Não depois disso. Você vai ficar aqui mesmo e falar disso.

— Não posso. Não posso trabalhar, não posso ficar aqui com você. Não estou em condições de ficar com ninguém.

— Só existe uma regra neste consultório: que você diga exatamente o que lhe passa pela cabeça. Você está fazendo seu trabalho. Nunca o fez melhor.

Soltando a bolsa no chão, Irene deixou-se desabar de novo na cadeira.

— Eu lhe disse que, depois da morte do meu irmão, sempre terminei meus relacionamentos com os homens do mesmo jeito.

— Como? Diga-me outra vez.

— Eles tinham um contratempo, um problema, podia ser que ficassem doentes, e eu me tornava insuportável e os cortava da minha vida. Uma rápida incisão cirúrgica! Um corte limpo. E fundo.

— Por comparar o problema deles com a imensidão da perda de Allen? Era isso que a deixava ressentida?

Irene assentiu com a cabeça.

— Isso era o grosso da história, tenho certeza. Além disso, eu não queria que eles tivessem importância para mim. Não queria ouvir falar de seus probleminhas insignificantes.

— E hoje, comigo?

— Furiosa! Com ódio! Tive vontade de atirar uma coisa em você!

— Porque foi como se eu estivesse comparando minha perda com a sua, não é?

— É. E depois pensei que, quando terminarmos a sessão, você levará sua perda pelo seu jardinzinho para sua mulher, que estará lá esperando, com o resto da sua vida arrumadinha e aconchegante. É aí que vem a raiva.

Meu consultório, situado a pouco mais de cinqüenta metros da minha casa, é um chalé confortável de telhado vermelho, envolto nos verdes e violetas exuberantes de lupinos, glicínias, plumérias e rosmaninhos. Embora Irene adorasse a serenidade do lugar, era freqüente tecer comentários sarcásticos sobre minha vida de livro de fotografias.

— Não é só de você que eu sinto raiva — continuou ela. — É de todo mundo cuja vida é intacta. Você me falou de viúvas que detestam não ter nenhum papel, detestam ficar sobrando nos jantares. Mas o importante não é o papel nem ficar sobrando: é detestar todas as outras pessoas por terem vida própria, é a inveja, é ficar cheia de rancor. Você acha que eu gosto de me sentir assim?

— Agora há pouco, quando se preparava para sair daqui, você disse que não estava em condições de ficar com ninguém.

— Bem, e estou? Você quer estar com alguém que o detesta porque a sua mulher está viva? Alguém quer esse tipo de pessoa por perto? Aquela gosma, lembra-se? Ninguém quer ser maculado, não é?

— Eu a impedi de sair, não foi?

Silêncio.

— Estou pensando em como você deve se sentir zonza por ter tanta raiva de mim e, no entanto, sentir-se tão perto, tão grata.

Ela acenou com a cabeça.

— Um pouquinho mais alto, Irene. Não ouvi direito.

— Bem, fiquei zonza pensando em por que você me falou do seu cunhado.

— Você parece desconfiada.

— Muito.

— Tem algum palpite?

— Mais do que um palpite. Acho que você estava tentando me manipular. Ver como eu reagiria. Aplicando um teste.

— Não admira que você tenha explodido. Talvez ajude se eu lhe disser exatamente o que se passou comigo hoje, depois que recebi a notícia da morte de Morton.

Contei-lhe que havia cancelado meus outros horários, mas decidira recebê-la, e disse por quê.

— Eu não podia cancelar a sessão, não depois da sua coragem de sempre vir aqui, houvesse o que houvesse. Mas continuava tendo que enfrentar a questão de como estar com você e lidar com minha perda, ao mesmo tempo. Então, que opções eu tinha, Irene? Ficar calado e evitar você? Isso seria pior do que cancelar a sessão. Tentar ficar próximo e ser franco com você, e não lhe contar nada? Impossível. Uma receita de desastre. Aprendi há muito tempo que, quando duas pessoas têm algo pesado entre elas e não falam nisso, também não falam de mais nada que tenha importância. Esta área aqui — fiz um gesto, apontando o espaço que nos separava —, nós precisamos mantê-la limpa e desobstruída, e isso é trabalho tanto meu quanto seu. Foi por isso que lhe contei francamente o que estava acontecendo comigo. Com toda a sinceridade possível, sem manipulação, sem teste, sem segundas intenções.

Mais uma vez, Irene assentiu com a cabeça, para me informar que eu tinha dado uma resposta razoavelmente inteligente.

Mais tarde, nessa sessão, pouco antes de terminarmos, ela pediu desculpas por seu comentário. Na semana seguinte, contou-me que tinha descrito o incidente a uma amiga, que ficara horrorizada com sua crueldade comigo, e tornou a se desculpar.

— Não precisa se desculpar — assegurei-lhe, e falei sério, muito sério, verdade, de uma forma curiosa, eu acolhera de bom grado o fato de ela me que eu com certeza podia atendê-la: tinha sido animador, tinha sido real, fizera com que eu me aproximasse mais dela. Fora a verdade do que ela sentia a meu respeito. Ou parte da verdade. E eu esperava que chegasse o momento de ouvir o resto dela.

A raiva de Irene, com a qual deparei pela primeira vez em nosso segundo mês de terapia, era profunda e penetrante. Embora só eclodisse abertamente de vez em quando, sempre fervia logo abaixo da superfície. No começo, não me preocupei muito com ela. Minha pesquisa me garantira que essa raiva não era mais inquiétante do que a culpa, o arrependimento ou a negação persistentes, e logo se dissiparia. Nesse caso, porém, como muitas vezes aconteceu em meu trabalho com Irene, a pesquisa foi enganosa. Constatei repetidas vezes que a verdade "estatisticamente significativa" (freqüentemente com as exceções — os "excluídos" — eliminadas do cálculo, por razões estatísticas) tinha pouca relevância para a verdade de meu encontro singular com a pessoa de carne e osso à minha frente.

Numa sessão de nosso terceiro ano, perguntei:

— Que sentimentos você levou da nossa última sessão? Pensou em mim durante a semana?

É comum eu fazer esse tipo de pergunta, como parte de minha campanha para concentrar a atenção terapêutica no aqui-e-agora — no encontro entre mim e o paciente.

Irene ficou em silêncio por algum tempo, depois perguntou:

— Você pensou em mim entre as sessões?

Embora essa pergunta dos pacientes, temida pela maioria dos terapeutas, não seja incomum, por alguma razão eu não esperava ouvi-la de Irene. Talvez não tivesse esperado que ela se importasse, ou, pelo menos, que admitisse se importar.

— Eu... eu... muitas vezes eu penso na sua situação — gaguejei. Resposta errada! Ela continuou sentada por um instante, depois levantou-se.

— Vou sair — disse, e se retirou pisando duro, não sem bater a porta com força.

Vi-a pela janela, andando de um lado para outro no jardim e fumando um cigarro. Fiquei sentado e aguardei. Para os terapeutas não interativos, pensei, como é fácil evitar uma pergunta como a dela com manobras como "Por que você quer saber?", ou "Por que agora?" ou "Quais são suas fantasias ou seus desejos a esse respeito?" Para os terapeutas que, como eu, têm um compromisso com uma relação mais igualitária, mutuamente transparente, não é muito fácil. Talvez porque a pergunta revele os limites da autenticidade terapêutica: por mais sinceros que os terapeutas procurem ser, por mais íntimos e francos, persiste um abismo intransponível, uma desigualdade fundamental entre terapeuta e paciente.

Eu sabia que Irene detestava que eu pensasse nela como uma "situação" — e que também odiava ter permitido que eu significasse tanto para ela. É claro que eu poderia ter sido mais sensível e usado uma palavra mais calorosa e pessoal do que situação. Mas creio que nenhuma resposta minha, ainda que apropriada, lhe teria dado o que ela queria. Irene queria que eu tivesse outros pensamentos — amorosos, de admiração, sensuais, ou talvez apaixonados. Sim, apaixonados, era essa a palavra.

Ao terminar o cigarro, ela tornou a entrar, com grande compostura, e se reacomodou em sua cadeira, como se nada de incomum tivesse acontecido. Continuei a apelar para seu senso de realidade.

— E claro — assinalei, sem sentimentalismo — que os pacientes pensam nos terapeutas com mais freqüência do que os terapeutas pensam neles. Afinal, o terapeuta tem muitos pacientes, enquanto o paciente tem apenas um terapeuta. Comigo aconteceu a mesma coisa quando eu estava em terapia, e será que isso não se aplica a seus pacientes cirúrgicos e a seus alunos? Você não tem um vulto maior na cabeça deles do que eles na sua?

Na verdade, a situação não é tão clara assim. Não comentei que os terapeutas de fato pensam nos pacientes entre as sessões — especialmente nos problemáticos, que os inquietam de um modo ou de outro. Os terapeutas podem ponderar sobre suas intensas reações emocionais a um paciente, ou refletir sobre a melhor abordagem técnica. (É claro que, quando o terapeuta fica exageradamente preso a fantasias enraivecidas, vingativas, amorosas ou eróticas a respeito de um paciente, ele deve procurar conversar com um colega, um consultor profissional ou um terapeuta pessoal.)

Naturalmente, eu não disse a Irene que pensava nela muitas vezes entre as sessões. Ela me intrigava. Deixava-me preocupado. Por que não estava melhorando? A grande maioria das viúvas de quem eu havia tratado começara a melhorar depois do primeiro ano; todas tinham mostrado melhoras significativas no fim do segundo ano. Mas não Irene. Seu desespero e seu desamparo continuavam a se aprofundar. Ela não sentia nenhuma alegria na vida. Depois de pôr a filha para dormir, chorava todas as noites; insistia em manter longas conversas com o marido morto; rejeitava todos os convites para conhecer outras pessoas e se recusava até mesmo a considerar a possibilidade de outro relacionamento importante com um homem.

Sou um terapeuta impaciente, e minha frustração aumentou. O mesmo se deu com minha preocupação com Irene: a magnitude de seu sofrimento começou a me assustar. Fiquei apreensivo com o suicídio — estou convencido de que ela teria acabado com a própria vida não fosse por sua filha. Em duas ocasiões, encaminhei-a a colegas meus para uma consulta formal.

Embora as grandes erupções de ira contra o luto em Irene exigissem muito de mim, era-me ainda mais difícil lidar com suas expressões mais brandas porém mais difundidas de raiva. Sua lista de queixas a meu respeito era longa e vinha crescendo, e raras vezes atravessávamos uma sessão sem uma expressão de raiva.

Irene sentia raiva de mim por eu tentar ajudá-la a se desvincular de Jack e a canalizar sua energia para outro lugar, e por incentivá-la a conhecer outros homens. E sentia raiva de mim por eu não ser Jack. Em conseqüência de nosso compromisso profundo, nossas conversas íntimas, nossas brigas e nosso cuidado mútuo, era comigo que ela mais se aproximava dos sentimentos que nutrira pelo marido. Assim, ao fim de cada sessão, ela detestava ter que voltar para uma vida sem Jack e sem mim. Era isso o que tornava tão tumultuado o término de cada sessão. Irene detestava o lembrete de que nossa relação tinha limites formais e, por mais que eu assinalasse que havíamos chegado ao fim do horário, era comum ela explodir, dizendo:"Você chama isso de relação verdadeira? Isso não é verdadeiro! Você olha para o relógio e me chuta, me põe porta afora!"

Às vezes, no fim da sessão, ela continuava sentada, lançando olhares furiosos e se recusando a se mexer. Os apelos à razão — assinalar a necessidade de horários, lembrar os horários que ela marcava com seus próprios pacientes, sugerir que ela consultasse o relógio e terminasse a sessão, repetir que meu encerramento da sessão não era um sinal de rejeição — caíam em ouvidos moucos. Não raro, ela saía enraivecida de meu consultório.

Irene tinha raiva de mim por eu ser importante para ela e por não fazer algumas coisas que Jack fazia: por exemplo, elogiá-la por todos os seus traços positivos — sua aparência, sua desenvoltura, sua inteligência. Muitas vezes, travávamos batalhas ferozes a respeito dos elogios. Eu achava que uma recitação de elogios a infantilizaria, mas ela depositava tanta ênfase nisso, era tão insistente, que várias vezes eu a atendia. Perguntava o que ela queria que eu dissesse e praticamente repetia suas palavras, sempre tentando incluir uma observação original. No entanto, o que para mim soava como uma pantomima bizarra levantava seu moral, de maneira quase infalível. Mas só por algum tempo: Irene era muito carente e, na sessão seguinte, insistia em que eu fizesse tudo de novo.

Ela sentia raiva de minha pretensão de compreendê-la. Quando eu tentava combater seu pessimismo, lembrando-lhe que ela estava no meio de um processo que tinha começo e fim, e procurando tranqüilizá-la com resultados de minhas pesquisas, sua reação enraivecida era: "Você está me despersonalizando. Está desconsiderando o que há de singular na minha experiência."

Qualquer otimismo que eu manifestasse quanto à sua recuperação era invariavelmente transformado numa acusação de que eu queria que ela esquecesse Jack.

Qualquer menção à possibilidade de ela conhecer outro homem era um campo minado. Na maioria das vezes, Irene desdenhava dos homens que conhecia e ficava com raiva quando eu lhe sugeria que revisse seus preconceitos. Qualquer sugestão de ordem prática oferecida por mim deflagrava uma grande erupção. "Se eu quiser marcar encontros", dizia ela, enfurecida, "posso descobrir o que fazer! Para que lhe pagar tanto dinheiro para ouvir conselhos sobre encontros amorosos, se minhas amigas podem me dar isso de graça?"

Irene se aborrecia quando eu oferecia sugestões concretas sobre o que quer que fosse: "Pare de tentar consertar' as coisas" dizia."Isso foi o que meu pai tentou fazer durante minha vida inteira."

Sentia raiva de minha impaciência com seu progresso lento e de eu não reconhecer os esforços que ela fazia para ajudar a si mesma (porém nunca falava isso para mim).

Irene queria que eu fosse forte e saudável. Qualquer sinal de fraqueza — um espasmo nas costas, uma lesão no joelho que exigia uma cirurgia no menisco, um simples resfriado, uma gripe — despertava grande irritação. Eu sabia que ela também ficava apreensiva, mas isso a paciente escondia muito bem.

Acima de tudo, ela sentia raiva de eu estar vivo, quando Jack estava morto.

Nada disso era fácil para mim. Nunca apreciei os confrontos raivosos e, em minha vida pessoal, geralmente evito as pessoas enraivecidas. Por ser um pensador e escritor contemplativo, e pelo fato de o confronto tender a tornar minhas idéias mais lentas, declinei de debates públicos ao longo de toda a minha carreira e desestimulei qualquer indagação sobre me tornar diretor de um departamento.

Sendo assim, como é que eu lidava com a raiva de Irene? Para começar, apoiava-me no velho adágio terapêutico que diz que é preciso separar o papel da pessoa. Com freqüência, grande parte da raiva do paciente pelo terapeuta relaciona-se com o papel que este exerce, não com sua pessoa. "Não veja isso como uma coisa pessoal", ensina-se aos jovens terapeutas. Ou, no mínimo, não tome tudo como coisa pessoal. Tente separar o que faz parte de sua pessoa e o que faz parte de seu papel. Parecia óbvio que grande parte da raiva de Irene tinha a ver com outras coisas — a vida, o destino, Deus, a indiferença cósmica —, mas ela simplesmente descarregava tudo no alvo mais próximo: eu, seu terapeuta. Ela sabia que sua raiva me oprimia, e me fazia saber disso de várias maneiras. Um dia, por exemplo, quando minha secretária telefonou para remarcar um horário, porque eu tinha que ir ao dentista, Irene retrucou: "Ah, bom, provavelmente ir ao dentista é um prazer para ele, comparado a me atender."

Mas talvez a razão principal de eu não ter sido esmagado pela raiva de Irene foi sempre ter sabido que ela mascarava sua profunda tristeza, seu desespero e seu medo. Quando ela me manifestava raiva, às vezes eu reagia, num reflexo, com irritação e impaciência, porém o mais comum era reagir com compaixão. Muitas imagens ou frases de Irene me obsedavam. Uma delas, em particular, instalou-se em minha mente e nunca deixava de abrandar minha reação a sua raiva pelo luto. Apareceu num de seus sonhos com aeroportos (nos primeiros dois anos depois da morte do marido, ela vagava constantemente por aeroportos em seus sonhos):

 

Eu estava correndo num terminal. Procurando o lack. Não sabia qual era a companhia aérea. Não sabia o número do vôo. Estava desesperada... vasculhando as listas de partidas em busca de uma pista... mas nada fazia sentido, todos os destinos estavam escritos em sílabas sem sentido. Aí surgiu uma esperança — consegui ler uma placa acima de um portão de embarque: "Mikado", dizia. Corri para o portão. Mas era tarde demais. O avião tinha acabado de partir, e acordei chorando.

 

— E esse destino, Mikado? Quais são suas associações com Mikado? — perguntei.

— Não preciso de associações — disse Irene, descartando minha pergunta. — Sei exatamente por que sonhei com Mikado. Eu cantava essa opereta quando era criança. Há dois versos nela de que nunca me esqueço:

 

Mesmo que a noite venha cedo demais,

Temos anos e anos de tardes.

 

Irene parou de falar e me olhou, com lágrimas brilhando nos olhos. Não adiantava dizer mais nada. Não para ela. Não para mim. Era impossível consolá-la. Desse dia em diante, a frase "temos anos e anos de tardes" reverberou em minha mente. Ela e Jack nunca tinham tido sua cota de tardes e, por causa disso, eu podia perdoar-lhe tudo.

Minha terceira lição avançada, a raiva do luto, revelou-se de grande valor em outras situações clínicas. Enquanto, no passado, em geral eu houvesse me desviado muito rápido da raiva, tentando compreendê-la e resolvê-la com toda a pressa possível, comecei a aprender a acolhê-la, a fazê-la emergir e a mergulhar nela. E o veículo específico dessa lição? É aí que entra a gosma negra.

 

Lição 4: A gosma negra

Na ocasião da morte de meu cunhado, ao ameaçar retirar-se e ao perguntar se eu queria estar com alguém que me odiava pelo fato de minha mulher estar viva, Irene tinha-se referido a uma gosma negra. "Lembra-se?" havia perguntado. "Ninguém quer ser maculado, não é?" Era uma metáfora que ela havia invocado em quase todas as nossas sessões nos dois primeiros anos de terapia.

O que era a gosma negra? Irene esforçou-se repetidamente por encontrar as palavras exatas:

— É uma substância negra, repulsiva e acre, que vaza de mim e se espalha numa poça a meu redor. A gosma negra é reles e daninha. Repele e enoja qualquer um que se aproxime de mim. E também macula as pessoas, colocando-as em grande perigo.

Embora a gosma negra tivesse muitos significados, expressava acima de tudo a raiva que Irene sentia de sua perda. Daí me odiar por eu ter uma mulher que estava viva. O dilema da paciente era terrível: ela podia ficar calada, sufocando em sua própria fúria e se sentir desesperadamente sozinha, ou podia explodir de raiva, afastar todo mundo e se sentir desesperadamente só.

Como a imagem da gosma negra estava profundamente arraigada em sua cabeça e não podia ser afastada pela razão nem pela retórica, usei essa metáfora para guiar minha terapia. Para dissolvê-la, eu não precisaria da palavra terapêutica, mas do ato terapêutico.

Assim, procurei manter-me perto dela em sua raiva, confrontar e dominar essa raiva — como fizera Jack. Tive que combatê-la, lutar com sua fúria, recusar-me a deixar que ela me afastasse. Sua raiva assumia muitas formas — Irene estava sempre me pondo à prova e preparando armadilhas para mim. Uma armadilha particularmente traiçoeira proporcionou uma oportunidade promissora para o ato terapêutico.

Após vários meses de agitação e desânimo agudos, um dia ela chegou a meu consultório inexplicavelmente calma e contente.

— É maravilhoso vê-la tão tranqüila — comentei. — O que aconteceu?

— Apenas tomei uma decisão importantíssima — disse ela. — loguei fora todas as expectativas de felicidade ou realização pessoais. Chega de ansiar por amor, sexo, companheirismo ou criação artística. De agora em diante, vou me dedicar inteiramente a cumprir as funções do cargo: ser mãe e cirurgia.

Irene disse tudo isso com ar de grande compostura e bem-estar.

Nas semanas anteriores, eu tinha ficado muito inquieto com a intensidade e a implacabilidade de seu desespero, e me perguntara quanto mais ela poderia suportar. Assim, apesar da estranha subitaneidade de sua mudança, senti-me tão grato por ela ter encontrado um modo, qualquer modo, de diminuir sua dor que optei por não fazer mais perguntas sobre sua origem. Em vez disso, encarei-o como uma bênção — não muito diferente da paz obtida por muitos budistas que, pela prática da meditação, aliviam o sofrimento, desligando-se sistematicamente de todos os anseios pessoais.

Para ser franco, eu não esperava que a transformação de Irene durasse, mas tinha esperança de que até um alívio temporário da dor implacável pudesse dar início a um ciclo mais positivo em sua vida. Se um estado de calma lhe permitisse parar de se atormentar, tomar decisões adaptativas, criar novas amizades, talvez até conhecer um homem adequado, achei que faria pouca diferença a maneira pela qual ela atingisse inicialmente esse estado de espírito: ela poderia simplesmente subir a escada e ascender ao nível seguinte.

Logo no outro dia, entretanto, ela telefonou, furiosa:

— Você se dá conta do que fez? Que tipo de terapeuta é você? Sua dedicação comigo! Tudo fingimento! Fingimento! A verdade é que você está disposto a relaxar e assistir calmamente à minha renúncia a tudo que é vital na minha vida, todo o amor, alegria, animação, tudo! Não, não, é muito pior do que apenas relaxar: você está disposto a ser cúmplice do meu assassinato de mim mesma!

Mais uma vez, Irene ameaçou abandonar a terapia, mas acabei convencendo-a a voltar na sessão seguinte.

Nos dias que se seguiram, ruminei essa seqüência de acontecimentos. Quanto mais pensava no assunto, mais raiva sentia. Mais uma vez, eu tinha bancado o cabeça-oca do Charlie Brown, tentando chutar a bola que Lucy invariavelmente afastava no último segundo. Quando chegou o dia de nossa sessão seguinte, minha raiva era equiparável à de Irene. Essa sessão pareceu menos terapia do que uma luta livre. Foi a briga mais séria que já tivemos. As acusações jorraram dela aos borbotões:

— Você desistiu de mim! Quer que eu faça concessões, matando partes vitais de mim!

Não fingi demonstrar empatia nem compreensão por sua postura.

— Estou farto de seus campos minados — disse-lhe. — Estou farto de você me submeter a provas em que quase sempre fracasso. E, de todas as provas, essa foi a mais suja, a mais traiçoeira. Temos trabalho demais para fazer, Irene — concluí, usando uma expressão de seu marido morto. — Não temos tempo para essa besteirada.

Foi uma de nossas melhores sessões. No fim (depois, é claro, de mais uma escaramuça sobre eu terminar na hora, e de ela me acusar de a estar expulsando do consultório), nossa aliança terapêutica estava mais forte do que nunca. Nem em meus livros didáticos nem em minhas supervisões, ou na sala de aula, eu jamais pensaria em recomendar a um aluno que brigasse furiosamente com um paciente; no entanto, era indiscutível que esse tipo de sessão levasse Irene adiante.

Foi a metáfora da gosma negra que orientou esses esforços. Ao estabelecer o contato, um contato emocional, ao me atracar com Irene (falo em termos figurados, embora houvesse momentos em que eu sentia que estávamos à beira de uma luta física), eu provava repetidas vezes que a gosma negra era uma ficção, que não me maculava, não me repelia nem me punha em perigo. Irene agarrava-se com tal força a essa metáfora que estava convencida, a cada vez que eu me aproximava de sua ira, de que eu a abandonaria ou morreria.

Por fim, num esforço para demonstrar de uma vez por todas que sua raiva não me destruiria nem me afastaria, estabeleci uma nova regra básica na terapia: "Toda vez que você explodir pra valer comigo, marcaremos automaticamente uma sessão extra na mesma semana." Esse ato revelou-se extremamente eficaz; em retrospectiva, considero que foi uma inspiração.

A metáfora da gosma negra foi particularmente potente, por ser sobredeterminada: era uma imagem única que satisfazia e expressava várias dinâmicas inconscientes diferentes. A ira pelo luto era um significado importante. Mas havia outros, como a crença em que ela era venenosa, contaminada, fatalmente azarada.

— Qualquer um — disse-me Irene numa sessão — que ponha os pés na gosma negra assina sua sentença de morte.

— Quer dizer que você não se atreve a amar de novo porque só pode oferecer um amor de Medusa, que destruiria qualquer pessoa que se aproximasse?

— Todos os homens que eu amei morreram: meu marido, meu pai, meu irmão, meu afilhado e Sandy, de quem eu ainda não tinha falado com você, um namorado doente mental que cometeu suicídio há vinte anos.

— Outra coincidência! Você tem que deixar isso de lado! — insisti. — É falta de sorte, e não tem nenhuma implicação no futuro. Os dados não têm memória.

— Coincidência, coincidência, esse é seu termo favorito! — zombou Irene. — O termo certo é carma, e ele me diz com clareza que não devo amar nenhum outro homem.

Sua auto-imagem de azarada me fez lembrar de Joe Bfstplk, o personagem da tirinha cômica Lil'Abner sobre cuja cabeça pairava eternamente uma sinistra nuvem negra.[7] Como poderia eu minar a crença de Irene num carma de maldição? Acabei por abordá-la da mesma forma que fizera com sua ira. Era preciso usar mais do que palavras: eu tinha que oferecer um ato terapêutico, e ele consistiu em desconsiderar suas advertências, aproximar-me dela repetidamente, entrar no espaço azarado e venenoso, e permanecer vivo e saudável.

Outro significado da gosma negra ligava-se, na cabeça de Irene, a um sonho que ela um dia tivera com uma bela mulher de olhos negros, que usava uma rosa no cabelo e se reclinava num sofá.

 

Quando cheguei mais perto, percebi que a mulher não era o que parecia: seu sofá era um esquife, os olhos não eram negros de beleza, mas de morte, e a rosa vermelha não era uma flor, e sim uma ferida sangrenta e mortal.

 

— Sei que eu sou essa mulher, e por isso, qualquer pessoa que se aproximar de mim será apresentada à morte, o que é mais uma razão para não chegar muito perto.

A imagem da mulher com a rosa vermelha no cabelo trouxe-me à lembrança a trama de The Man in the Maze,[8] um extraordinário romance futurista de Robert Silverberg no qual um homem é enviado a um mundo recém-descoberto para estabelecer contato com uma raça de seres avançados. Embora empregue todos os recursos imagináveis de comunicação — símbolos geométricos, invariáveis matemáticas, temas musicais, chamados, gritos, acenos com os braços —, ele é completamente ignorado. Mas seus esforços perturbam a tranqüilidade daqueles seres, que não deixam a insolência do homem ficar impune. Pouco antes de ele partir de volta para a Terra, os seres o submetem a uma misteriosa intervenção neurocirúrgica. Só muito depois ele compreende a natureza do castigo que recebeu: a cirurgia o impossibilita de conter sua angústia existencial. Ele não apenas é continuamente fustigado pelo pavor da pura contingência e de sua morte inevitável, como fica condenado ao isolamento, já que qualquer pessoa que se aproxime a menos de algumas centenas de metros expõe-se ao mesmo impacto devastador do medo existencial.

 

Por mais que eu insistisse com Irene em que a gosma negra era uma ficção, a verdade é que, muitas vezes, eu era apanhado nela. Em meu trabalho com essa paciente, eu sofria o destino dos que se aproximavam demais do protagonista de Robert Silverberg: era açoitado por minhas próprias verdades existenciais. Vez após outra, nossas sessões me confrontavam com minha morte. Embora eu sempre tenha sabido que a morte está à espera, vibrando de leve logo abaixo da membrana de minha vida, em geral consigo tirá-la da cabeça.

É claro que existem efeitos saudáveis em discorrer sobre a morte; compreendo que, embora a realidade (o aspecto físico) da morte nos destrua, a idéia da morte pode salvar-nos. Essa é uma sabedoria antiga: é a razão por que, durante séculos, os monges mantiveram caveiras em suas celas e Montaigne recomendou que se morasse num aposento com vista para um cemitério. Fazia muito tempo que minha consciência da morte servia para vitalizar minha vida, ajudando-me a banalizar o que é banal e a valorizar o que é realmente precioso. Sim, eu sabia dessas coisas intelectualmente, mas sabia também que não podia viver constantemente exposto à incandescência do pavor da morte.

Então, no passado, em geral eu tinha posto as idéias da morte num canto da consciência. Mas meu trabalho com Irene já não permitia isso. Repetidas vezes, minhas sessões com ela acentuavam não apenas minha sensibilidade à morte e minha visão do caráter precioso da vida, como também minha angústia de morte. Num número incontável de ocasiões, descobri-me ruminando o fato de que o marido dela fora abatido aos 45 anos, enquanto eu já havia passado dos sessenta. Eu sabia que estava na zona mortal, na fase da vida em que poderia extinguir-me a qualquer momento.

Quem disse que os terapeutas ganham demais?

 

Lição 5: Razão versus traição

Quando nosso trabalho entrou no terceiro ano, fui ficando cada vez mais desanimado. A terapia estava num atoleiro irreversível. Irene afundava-se tão profundamente na depressão que eu não conseguia fazê-la se mexer. Nem me aproximar dela: quando perguntei quão próxima ou distante ela se sentia numa sessão, ela respondeu:

— A quilômetros e quilômetros de distância; mal consigo enxergá-lo.

— Irene, sei que talvez você esteja cansada de ouvir isso, mas é absolutamente necessário considerarmos o uso de um antidepressivo. Temos que entender e resolver por que você se obstina tanto em se opor à medicação.

— Nós dois sabemos o que significa a medicação.

— Ah,é?

— Significa que você está desistindo, abrindo mão do seu trabalho terapêutico. Não estou em busca de uma cura rápida.

— Cura rápida, Irene? Três anos?

— O que eu quero dizer é que fazer eu me sentir melhor não é solução. Só faz adiar o momento de eu lidar com o que perdi.

Não importava que argumentos eu usasse, não conseguia dissuadi-la dessas convicções, mas ela acabou cedendo e deixando que eu lhe receitasse antidepressivos. O resultado foi o mesmo de nossa tentativa anterior, dois anos antes. Três remédios diferentes foram não só ineficazes, como resultaram em efeitos colaterais desagradáveis: sonolência acentuada, sonhos estranhos e assustadores, perda de toda a sexualidade e sensualidade, e a sensação assustadora de que nada tinha importância, de que ela estava longe de si mesma e de seus interesses. Quando lhe sugeri que consultasse um psicofarmacologista, Irene se recusou categoricamente. Em desespero, acabei por lhe dar um ultimato:

— Você tem que ir ao especialista e seguir as recomendações dele, caso contrário, não continuarei a trabalhar com você.

Irene me olhou sem pestanejar. Precisa e contida como de hábito, não deu nenhuma demonstração a mais na fala ou nos gestos.

— Vou pensar nisso e lhe darei minha resposta na próxima sessão — disse. Em nosso encontro seguinte, porém, ela não deu uma resposta direta ao ultimato.

Em vez disso, entregou-me um exemplar da revista New Yorker, aberto num artigo do poeta russo Joseph Brodsky, intitulado "Sobre luto e razão".

— Você encontrará aí a chave do que deu errado na terapia — disse-me. — Caso contrário, se ler e não encontrar a resposta, consultarei seu especialista.

É comum os pacientes me pedirem para ler coisas de seu interesse — um livro de auto-ajuda, um artigo sobre um novo tratamento ou teoria, um texto literário que se aproxima da situação deles. Mais de um paciente escritor já me entregou um longo manuscrito, dizendo: "Você aprenderá muita coisa a meu respeito lendo isto." Essa afirmação nunca se revelou válida: o paciente sempre poderia ter fornecido verbalmente o material, em muito menos tempo. E eles também não querem de mim uma opinião franca sobre seus textos — em geral, sou importante demais para os pacientes para ter a liberdade de oferecer um comentário objetivo. É óbvio que eles buscam outra coisa — minha aprovação e admiração —, e o terapeuta tem meios muito mais diretos e eficazes de lidar com essa necessidade do que passar longas horas lendo um manuscrito. Em geral, procuro uma forma delicada de recusar esses pedidos, ou, no máximo, de concordar em dar uma olhadela rápida. Valorizo e protejo o tempo que reservo para minhas leituras pessoais.

Mas não me senti oprimido ao começar a ler o artigo que Irene me dera. Eu tinha grande respeito não só pelo gosto dela, mas também por sua lucidez, e, se ela achava que esse artigo continha a chave de nosso impasse, eu estava convencido de que o tempo investido nisso seria bem gasto. É claro que eu preferiria uma comunicação mais direta, mas estava aprendendo a ser receptivo ao estilo de discurso indireto e muitas vezes poético de Irene — uma linguagem que ela havia aprendido com a mãe. Ao contrário de seu pai, um modelo de racionalidade lúcida que havia lecionado ciências numa pequena escola secundária do Meio-Oeste, sua mãe, pintora, costumava comunicar-se de forma sutil. Irene havia aprendido a reconhecer indiretamente os estados de ânimo da mãe. Nos dias alegres, por exemplo, esta podia dizer: "Acho que vou pôr uns íris no jarro azul e branco", ou transmitir seu estado de humor pela maneira como arrumava as bonecas na cama da filha todas as manhãs.

O artigo começava pela análise brodskyana das duas primeiras estrofes do poema "Come in" [Entre], de Robert Frost:

 

As I came to the edge of the woods,

Thrush music — hark!

Now if it was dusk outside,

Inside it was dark.

 

Too dark in the woods for a bird

By sleight of wing

To better its perch for the night,

Though it still could sing.[9]

 

Eu sempre havia achado que "Come in" era um simples e encantador poema bucólico, que eu havia decorado quando adolescente e recitava em voz alta ao andar de bicicleta pelos jardins do Asilo dos Veteranos, em Washington. Mas ali, numa brilhante análise verso a verso, palavra por palavra, Brodsky demonstrava que o poema transmitia um significado mais sombrio. Por exemplo, no primeiro verso, havia algo de sinistro no fato de o sabiá (o poeta, o próprio bardo) aproximar-se da orla do bosque e contemplar o interior tenebroso. E mesmo a segunda estrofe não parece muito mais do que uma melodia lírica? Com efeito, o que o autor queria dizer ao afirmar que era escuro demais no bosque para que um poeta,"by sleight of wing" [pela destreza das asas], melhorasse o poleiro em que passar a noite? Será que a "destreza das asas" se referia a um ritual religioso, talvez aos últimos sacramentos? Frost estaria lamentando ser tarde demais, lamentando estar marcado para a condenação eterna? De fato, as estrofes posteriores confirmavam essa visão. Em suma, Brodsky fez uma sólida defesa da idéia de que não só o poema era realmente melancólico, mas também de que Frost era um poeta muito mais sombrio do que muitos tinham percebido.

Fiquei fascinado. A discussão esclareceu por que esse poema, como muitos outros textos enganosamente simples de Frost, havia me atraído tanto na juventude. Mas qual era a ligação com Irene? Onde estava a chave de nossos problemas na terapia, que ela havia prometido? Continuei a ler.

Brodsky voltou-se em seguida para a análise de um longo poema narrativo, a sombria pastoral "Home Burial" [Enterro caseiro]. Esse poema, que tem por cenário uma escada com corrimão numa casinha de fazenda, é uma conversa, uma série de movimentos, um bale entre um lavrador e sua mulher. (Ê claro que pensei de imediato nos pais de Irene, que tinham morado numa fazenda do Meio-Oeste, e também na escada com corrimão que ela tinha descido, quase trinta anos antes, para atender o telefonema que lhe dera a notícia da morte de Allen.) O poema começa assim:

 

He saw her from the bottom of the stairs

Before she saw him. She was starting down,

Looking back over her shoulder at some fear.[10]

 

O lavrador se encaminha para a mulher e pergunta: "What is it you see/ From up there always — for I want to know." [O que você sempre vê/ Aí em cima? — eu quero saber]. Embora esteja apavorada e se recuse a responder, a mulher confia em que o marido nunca verá o que ela vê e o deixa subir a escada. Ao chegar à janela do segundo andar, ele olha para fora e descobre o que a mulher estivera fitando. Surpreende-se por nunca o haver notado até então.

 

"The little graveyard where my people are!

So small the window frames the whole of it.

Not so much larger than a bedroom, is it?

There are three stones of slate and one of marble,

Broad-shouldered little slabs there in the sunlight

On the sidehill. We haven't to mind those.

But I understand: it is not the stones,

But the child's mound..."

 

"Don't, don't, don't, don't", she cried.[11]

 

Com isso, a mulher passa apressadamente pelo marido, desce, lança-lhe "um olhar assustador" e se encaminha para a porta da frente. Intrigado, ele pergunta: "Can't a man speak of his own child he's lost?" [Não pode um homem falar do próprio filho que perdeu?]

"Você não!" responde a mulher. E talvez nenhum homem possa fazê-lo, ela acrescenta, pegando o chapéu.

O lavrador, desejoso de que a mulher o admita em seu luto, prossegue com estas palavras infelizes:

 

"I do think, though, you overdo it a little.

What was it brought you up to think it the thing

To take your mother-loss of a first child

So inconsolably — in the face of love.

You'd think his memory might be satisfied..."[12]

 

Quando a mulher continua distante, ele exclama: "God, what a woman! And it's come to this,/ A man can't speak of his own child that's dead." [Deus do céu, que mulher! E a que ponto chegamos!/ Não pode um homem falar do próprio filho que morreu].

A mulher responde que ele não sabe falar, que não tem sentimentos. Pela janela ela o vira cavar energicamente a sepultura do filho, "fazendo o cascalho dar saltos no ar". E, ao terminar de cavar, ele tinha entrado na cozinha. A mulher recorda:

 

"You could sit there with the stains on your shoes

Of the fresh earth from your own baby's grave

And talk about your everyday concerns.

You had stood the spade up against the wall

Outside there in the entry, for I saw it."[13]

 

A esposa insiste em não admitir que o luto seja tratado dessa maneira. E tampouco que seja levianamente descartado:

 

"No, from the time when one is sick to death,

One is alone, and he dies more alone.

Friends make pretense of following to the grave,

But before one is in it, their minds are turned

And making the best of their way back to life

And living people, and things they understand.

But the world's evil. I won't have grief so

If I can change it. Oh, I won't, I won't!"[14]

 

Em tom condescendente, o marido responde saber que ela se sentirá melhor por ter dito essas coisas. Está na hora de pôr fim ao luto, sugere. "Your hearts gone out of it: why keep it up" [(Seu) coração não está mais nele. Por que mantê-lo?].

 

O poema termina com a mulher abrindo a porta para ir embora. O marido tenta detê-la:

"Where do you mean to go? First tell me that.

I'll follow and bring you back by force. I will!..."[15]

 

Extasiado, li o texto até o fim e, ao terminar, tive que relembrar a mim mesmo a razão por que o estava lendo. Que chave da vida intima de Irene ele detinha? Primeiro me ocorreu seu sonho inicial, no qual ela precisava ler um texto antigo para poder ler o contemporâneo. Era óbvio que precisávamos trabalhar mais a perda de seu irmão. Eu já soubera que a morte dele havia desencadeado, como um dominó, muitas outras perdas. A casa de Irene nunca mais fora a mesma: sua mãe nunca havia se recuperado da perda do filho e ficara cronicamente deprimida; o relacionamento dos pais nunca mais voltara a ser harmonioso.

Talvez o poema fosse um retrato vivido do que tinha acontecido na casa de Irene depois da morte de seu irmão, em especial do choque entre os pais, à medida que cada um deles lidava com a perda de maneira diametralmente oposta. Essa situação não é incomum, depois da morte de um filho: marido e mulher vivenciam o luto de maneiras diferentes (tipicamente, seguindo os estereótipos dos gêneros: a mulher não raro expressa sua tristeza de forma franca e emotiva, enquanto o homem lida com o luto por meio da repressão e buscando ativamente desviar o pensamento). Em muitos casais, cada um desses dois padrões interfere ativamente no outro — e é exatamente por isso que muitos casamentos se desfazem depois da perda de um filho.

Pensei na ligação de Irene com outras imagens do poema "Home Burial", de Frost. A visão diferenciada do tamanho do cemitério é uma metáfora brilhante: para o lavrador, ele era do tamanho do quarto e tão pequeno que cabia na moldura da janela; para a mãe, era tão grande que ela não conseguia enxergar mais nada. E as janelas. Irene tinha atração por janelas. "Eu gostaria de passar a vida num apartamento de um prédio alto, olhando pela janela" ela dissera um dia. Ou então, imaginava mudar-se para uma ampla casa vitoriana à beira-mar, onde "eu dividiria o tempo entre olhar para o oceano pela janela e andar eternamente de um lado para outro na sacada, junto ao telhado".

O ressentimento com que a mulher do lavrador descartou os amigos, que, após uma rápida visita ao túmulo, voltavam imediatamente para sua vida cotidiana, era um tema conhecido na terapia de Irene. Uma vez, para ilustrar melhor esse ponto, ela levara para uma sessão uma reprodução de A queda de ícaro, de Pieter Brueghel. "Olhe só os camponeses" dissera, "fazendo o seu trabalho, sem se incomodarem em olhar para o menino que está caindo do céu". Irene levara também a poética descrição do quadro feita por Auden:

 

In Brueghel's Icarus, for instance: how everything turns away Quite leisurely from the disaster; the ploughman may Have heard the splash, the forsaken cry, But for him it was not an important failure; the sun shone As it had to on the white legs disappearing into the green Water; and the expensive delicate ship that must have seen Something amazing, a boy falling out of the sky, Had somewhere to get to and sailed calmly on.[16]

 

Haveria outros aspectos de Irene no "Home Burial", de Frost? O apego da mãe ao luto e a insensibilidade e impaciência do pai com ela, por ela não deixar aquilo passar: eu também ouvira minha paciente descrever isso em sua família.

Mas essas observações, por mais ilustrativas e informativas que fossem, não explicavam suficientemente por que Irene dera tanta importância a que eu lesse o artigo. "A chave do que deu errado na terapia": tinham sido essas as suas palavras, a sua promessa. Senti-me desapontado. Talvez eu a tivesse superestimado, pensei; para quebrar a rotina, ela não tinha acertado o alvo.

Em nossa sessão seguinte, Irene entrou no consultório e, como sempre, marchou direto por mim para sua cadeira, sem me olhar. Acomodou-se, pôs a bolsa a seu lado no chão e, em vez de passar uns minutos olhando pela janela em silêncio, como costumava fazer, virou-se prontamente para mim e perguntou:

— Leu o artigo?

— Li, sim, e é maravilhoso. Obrigado por tê-lo trazido.

— E daí? — sondou ela.

— E daí que foi cativante; eu tinha ouvido você falar da vida de seus pais depois da morte do Allen, mas o poema deixou isso claro para mim com uma intensidade extraordinária. Agora entendo com muito mais clareza por que você nunca pôde voltar a morar com eles e quanto se identificou com sua mãe, e com a luta dela com seu pai e...

Não pude prosseguir. A expressão de crescente incredulidade no rosto de Irene me fez parar. Seu olhar atônito era o de um professor que fitasse um aluno idiota e se perguntasse como é que ele podia ter sido aprovado para sua turma.

Por fim, sibilando entre dentes, ela disse:

— O lavrador e a mulher do poema não são meu pai e minha mãe. São nós: você e eu. — Fez uma pausa, controlou-se e acrescentou, um minuto depois, com a voz mais branda: — Quero dizer, eles podem ter características dos meus pais, mas, essencialmente, o lavrador e a mulher são você e eu neste consultório.

Minha cabeça rodou. É claro! É claro! No mesmo instante, todos os versos de "Home Burial" ganharam um novo sentido. Bracejei furiosamente. Minha cabeça nunca trabalhou tão depressa, nem antes nem depois desse momento.

— Então, sou eu que levo a pá suja para dentro de casa? Irene fez um rápido aceno com a cabeça.

— E sou eu que entro na cozinha com os sapatos enlameados, sujos da sepultura?

Irene tornou a assentir, dessa vez não sem certa compaixão. Talvez minha recuperação rápida ainda pudesse me redimir.

— E sou eu que a recrimino por se apegar ao luto? Que digo que você está exagerando, que pergunto "por que levar isso adiante, se a memória dele já deve estar satisfeita"? Sou eu que cavo a sepultura com tanta energia que o cascalho dá saltos no ar? Sou eu que profiro palavras continuamente ofensivas? E sou eu que tento me interpor à força entre você e seu luto? E sou eu, com certeza, que barro sua saída na porta e tento empurrar remédios contra o sofrimento por sua goela abaixo?

Irene acenou com a cabeça, enquanto as lágrimas lhe brotavam dos olhos e desciam por suas faces. Foi a primeira vez, em seus três anos de desespero, que ela chorou abertamente na minha presença. Entreguei-lhe um lenço de papel. E peguei um para mim. Ela estendeu a mão e segurou a minha. Estávamos juntos de novo.

 

Como é que havíamos nos distanciado tanto? Olhando para trás, percebo que havia entre nós um choque fundamental de sensibilidades: eu, um racionalista existencial, ela, uma romântica enlutada. Talvez o afastamento fosse inevitável; talvez nossas maneiras de lidar com a tragédia fossem intrinsecamente opostas. Qual é a melhor maneira de enfrentar as brutais realidades existenciais da vida? Creio que, no fundo, Irene achava que só havia duas estratégias, ambas igualmente impalatáveis: adotar alguma forma de negação ou viver com uma conscientização intoleravelmente angustiada. Não terá sido esse o dilema expresso por Cervantes, por meio da pergunta de seu imortal Dom Quixote? — "O que preferes: a loucura sábia ou a sanidade tola?"

Há em mim uma predisposição que afeta poderosamente minha abordagem terapêutica: nunca acreditei que a conscientização leve à loucura, ou a negação, à sanidade. Faz muito tempo que vejo a negação como o inimigo, e a questiono sempre que possível em minha terapia e na minha vida pessoal. Não só tento afastar todas as ilusões pessoais que me estreitam a visão e fomentam a pequenez e a dependência, como incentivo meus pacientes a fazer o mesmo. Estou convencido de que, embora o confronto honesto com a situação existencial possa despertar medo e tremor, ele é, no fim das contas, enriquecedor e curativo. Minha abordagem terapêutica, portanto, tem sua síntese num comentário de Thomas Hardy: "Se há um caminho para o Melhor, ele exige um olhar pleno para o Pior."

E assim, desde o início da terapia, falei com Irene com a voz da razão. Incentivei-a a reproduzir comigo os acontecimentos que cercaram e se seguiram à morte de seu marido:

"Como você tomará conhecimento da morte dele?"

"Estará com ele quando ele morrer?"

"O que você sentirá?"

"Quem vai chamar?"

E, do mesmo modo, ela e eu ensaiamos o funeral. Eu lhe disse que iria ao enterro de seu marido e que, se seus amigos não ficassem com ela junto ao túmulo, eu certamente o faria. Se os outros sentissem medo de ouvir suas idéias macabras, eu a estimularia a falar delas comigo. Tentei tirar de seus pesadelos o pavor.

Sempre que ela entrava num terreno irracional, era certo que eu a confortasse. Consideremos, por exemplo, a culpa que ela sentia por se divertir com outro homem. Irene considerava qualquer prazer na vida uma traição a Jack. Quando ia com um homem a uma praia ou um restaurante que ela e Jack houvessem visitado, achava que o estava traindo, por violar o caráter especial do amor dos dois. Por outro lado, ir a um lugar totalmente novo despertava a culpa dos sobreviventes: "Por que devo estar viva e desfrutar de experiências novas se Jack está morto?" Ela também se sentia culpada por não ter sido uma esposa suficientemente boa. Como resultado da psicoterapia, passou por muitas mudanças: tornou-se mais meiga, mais atenciosa e afetuosa. "Que injustiça com Jack", dizia, "eu poder dar mais de mim mesma a outro homem do que dei a ele".

Eu questionava repetidamente essas afirmações. "Onde é que está o Jack?" perguntava. E ela sempre respondia: "Em lugar nenhum, exceto na lembrança" — na memória dela e na de outros. Irene não tinha crenças religiosas e nunca defendeu a persistência da consciência, ou qualquer outra forma de vida após a morte. Então, eu a atormentava com a razão: "Se ele não é senciente e não observa os seus atos, como pode magoar-se com o fato de você estar com outro homem?" Além disso, eu lhe recordava que, antes de morrer, Jack tinha manifestado expressamente o desejo de que ela fosse feliz e voltasse a se casar. "Será que ele gostaria que você e a filha dele se afogassem na tristeza? Portanto, se a consciência dele ainda existisse, ele não se sentiria traído; ficaria contente com a sua recuperação. E, de qualquer modo", eu concluía, "independentemente de a consciência de Jack sobreviver ou não, conceitos como injustiça e traição não têm sentido".

Às vezes, Irene tinha sonhos vividos em que Jack estava vivo — um fenômeno comum no luto — e acordava com um choque, ao perceber que fora apenas um sonho. Noutras ocasiões, chorava muito por ele estar sofrendo "lá fora". Quando visitava o cemitério, às vezes chorava ante a "idéia terrível" de ele estar trancado num caixão frio. Sonhava que abria o freezer e deparava com uma miniatura de Jack, de olhos arregalados, fitando-a. De maneira metódica e persistente, eu lhe recordava sua convicção de que ele não estava lá fora, de que já não existia como um ser senciente. E também lhe relembrava seu desejo de que ele pudesse observá-la. Em minha experiência, todo cônjuge que perde o parceiro sofre com o sentimento de que sua vida não é observada.

Irene agarrava-se a muitos pertences pessoais de Jack, vasculhando com freqüência o conteúdo das gavetas de sua escrivaninha à procura de uma lembrança dele, sempre que precisava, por exemplo, de um presente de aniversário para a filha. Estava tão cercada de lembretes materiais de Jack que eu temia que viesse a ser como a srta. Havisham de Grandes esperanças, de Dickens, uma mulher tão aprisionada na tristeza (fora abandonada no altar) que passou anos vivendo nas teias de aranha do luto, sem nunca despir o vestido de noiva nem tirar a mesa preparada para o banquete de núpcias. Então, ao longo da terapia, insisti com Irene para que se afastasse do passado, retomasse a vida e afrouxasse seus laços com Jack: "Retire algumas fotografias dele. Redecore sua casa. Compre uma cama nova. Limpe as gavetas da escrivaninha, jogue coisas fora. Viaje para um lugar novo. Faça alguma coisa que nunca fez antes. Pare de conversar tanto com o Jack."

Mas o que eu chamava de razão, Irene chamava de traição. O que eu chamava de voltar à vida era, para ela, uma traição do amor. O que eu chamava de desprender-se dos mortos ela chamava de abandonar seu amor.

Eu pensava estar sendo o racionalista de que ela precisava; Irene achava que eu estava poluindo a pureza de seu sofrimento. Eu julgava estar reconduzindo-a à vida; ela achava que eu a estava obrigando a virar as costas para Jack. Eu supunha estar-lhe dando inspiração para que ela se tornasse uma heroína existencial; ela me julgava um espectador arrogante, que assistia a sua tragédia de camarote, em lugar seguro.

Eu ficava perplexo com sua obstinação. "Por que ela não entendia?", era o que perguntava a mim mesmo. Por que não entendia que Jack estava realmente morto, que sua consciência se extinguira? E que isso não era culpa dela. Que ela não era azarada, que não provocaria minha morte nem a morte do próximo homem que viesse a amar. Que não estava fadada a vivenciar a tragédia para sempre. Que se apegava a crenças enganosas por ter muito medo da alternativa: de reconhecer que vivia num universo absolutamente indiferente a sua felicidade ou infelicidade.

E ela se intrigava com minha obstinação. Por que o Irv não entende? Por que não vê que está desfigurando minha lembrança do Jack, profanando meu luto, arrastando lama da sepultura e deixando a pá na cozinha? Por que ele não compreende que só quero ficar na janela, olhando para o túmulo de Jack? Que fico furiosa quando ele tenta me arrancar de meu próprio coração? Que há momentos em que, apesar de minha necessidade dele, é absolutamente imprescindível que eu me afaste, que passe por ele na escada, respire ar puro? Que estou me afogando, estou me agarrando aos restos do naufrágio da minha vida, e ele continua tentando soltar meus dedos? Por que ele não entende que Jack morreu por causa do meu amor envenenado?

À noite, ao reexaminar mentalmente essa sessão, veio-me à lembrança uma outra paciente que eu havia tratado décadas antes. Durante toda a adolescência, ela ficara encerrada numa luta prolongada e ressentida com o pai, sempre negativo. Quando saiu de casa pela primeira vez, o pai levou-a de carro à faculdade e, como era típico, estragou a viagem, resmungando o tempo todo sobre o riacho horroroso e cheio de lixo que margeava a estrada. Ela, por sua vez, viu um lindo regato rústico de águas cristalinas. Anos depois, quando o pai já havia morrido, sucedeu a essa paciente refazer a mesma viagem, e então ela notou que havia dois riachos, um de cada lado da estrada. "Mas, dessa vez, era eu que estava dirigindo", disse-me com tristeza, "e o riacho que vi pela janela do motorista era tão feio e poluído quanto meu pai o havia descrito".

Todos os componentes dessa lição — meu impasse com Irene, a insistência dela em que eu lesse o poema de Frost, minha recordação da história do trajeto de automóvel de minha outra paciente — tinham sido profundamente instrutivos. Com espantosa clareza, compreendi então que era hora de eu escutar, de pôr de lado minha visão de mundo pessoal, de parar de impor meu estilo e minhas opiniões a minha paciente. Era hora de olhar pela janela de Irene.

 

Lição 6: Nunca procures saber por quem os sinos tocam

Um dia, no quarto ano de terapia, Irene chegou carregando uma pasta grande. Colocou-a no chão, desatou o laço devagar e dela retirou uma tela grande, mantendo-a de costas para mim, para que eu não pudesse vê-la.

— Eu lhe disse que estava fazendo aulas de pintura? — perguntou, num tom atipicamente jocoso.

— Não. É a primeira vez que ouço falar nisso. Mas acho ótimo.

E achava mesmo. Não me ressenti por eia só o mencionar de passagem; todo terapeuta está acostumado com o fato de os pacientes se esquecerem de mencionar as coisas boas de sua vida. Talvez seja um simples mal-entendido, a equivocada suposição dos pacientes de que, como a terapia se orienta para a patologia, os terapeutas só queiram ouvir falar de problemas. Mas outros pacientes, por se sentirem dependentes da terapia, optam por ocultar as ocorrências positivas, por medo de que o terapeuta conclua que eles já não precisam de ajuda.

Respirando fundo, Irene virou a tela. Diante de mim reluziu uma natureza-morta,[17] uma tigela simples de madeira em que havia um limão, uma laranja e um abacate. Embora me impressionasse com o talento gráfico de Irene, fiquei decepcionado com seu tema, tão prosaico e sem significação. Eu teria esperado alguma coisa mais importante para nosso trabalho. Mas fingi interesse e fui convincentemente entusiástico em meus elogios.

Mas não tão convincente quanto supus, como logo me dei conta. Na sessão seguinte, Irene anunciou:

— Estou me matriculando para mais seis meses de aulas de pintura.

— Que maravilha! Com o mesmo professor?

— É, mesmo professor, mesma turma.

— Uma turma que estuda naturezas-mortas?

— Você tinha a esperança de que não fosse, imagino. É óbvio que há alguma coisa que não está compartilhando.

— Como o quê? — indaguei, começando a me sentir pouco à vontade. — Qual é o seu palpite?

— Estou vendo que toquei num ponto sensível — sorriu Irene.—Você quase nunca recorre à prática terapêutica tradicional de responder a uma pergunta com outra.

— Você não perde uma, Irene. Está certo, a verdade é que tive duas sensações muito diferentes a respeito do quadro.

Nesse ponto, recorri a uma prática que sempre ensino a meus alunos: quando dois sentimentos opostos nos deixam num dilema, o melhor recurso é expressar os dois e o dilema,

— Primeiro, como eu disse, fiquei muito admirado. Não tenho o menor talento artístico e sinto um enorme respeito por trabalhos de tamanha qualidade.

Hesitei, e Irene me instigou:

— Mas...

— Mas... bem... hum... estou tão contente por você encontrar prazer na pintura que tenho medo de soar até mesmo levemente crítico, mas acho que esperava vê-la fazer com sua pintura alguma coisa que... hum... como dizer?... que tivesse mais ressonância com nossa terapia.

— Ressonância?

— Uma coisa que me agrada em nosso trabalho a dois é que você invariavelmente responde com substância toda vez que lhe pergunto o que está se passando na sua cabeça. Às vezes é uma idéia, mas é ainda mais comum você descrever uma imagem mental. Com seu extraordinário senso visual, eu esperava que você pudesse combinar a arte e a terapia de uma forma sinergística. Não sei, é possível que eu esperasse que o quadro fosse mais expressionista, ou catártico, ou esclarecedor. Talvez você pudesse até elaborar alguns problemas dolorosos na tela. Mas seu retrato da natureza, apesar de tecnicamente maravilhoso, é muito... muito sereno, muito distante do conflito e da dor.

Ao ver Irene revirar os olhos, acrescentei:

— Você perguntou o que eu tinha sentido, e foi isso. Não estou defendendo meus sentimentos. Na verdade, desconfio de que estou cometendo um erro ao criticar qualquer atividade que lhe proporcione um momento de paz.

— Irv, acho que você não entende muito de pintura. Sabe como os franceses chamam esse tipo de quadro?

Abanei a cabeça.

— Nature morte.

— Natureza-morta.

— Isso. Pintar uma natureza-morta é meditar sobre a morte e a decadência. Quando pinto frutas, não posso deixar de observar como meus modelos imóveis morrem e se decompõem, dia após dia. Quando pinto, fico muito próxima da nossa terapia, agudamente consciente da transição de Jack da vida para o pó, muito cônscia da presença da morte e do cheiro de decadência em tudo o que é vivo.

— Tudo? — arrisquei.

Ela fez que sim com a cabeça.

— Você? Eu?

— Tudo — ela respondeu. — Especialmente eu.

Até que enfim! Eu ansiava por esta última afirmação de Irene, ou algo parecido, desde o começo de nosso trabalho. Ela anunciou uma nova fase na terapia, como reconheci pelo sonho marcante que trouxe umas duas semanas depois:

 

Eu estava sentada a uma mesa, como uma mesa de reuniões de executivos. Havia outras pessoas também, e você estava sentado na cabeceira. Todos trabalhávamos em alguma coisa, talvez examinando propostas de subvenção. Você me pediu para lhe levar uns papéis. A sala era pequena e, para chegar até você, eu tinha que passar muito perto de uma série de janelas, que estavam abertas e iam até o chão. Seria fácil eu despencar de uma delas, e acordei com uma idéia muito vivida: Como é que você podia me expor a tamanho perigo?

 

Esse tema geral — ela correndo perigo e eu sem protegê-la — não tardou a ganhar fôlego. Algumas noites depois, Irene teve dois sonhos associados, um imediatamente após o outro. (Os sonhos associados podem transmitir a mesma mensagem. Nosso amigo, o homúnculo redator de sonhos, muitas vezes se diverte compondo diversas variações sobre um tema de interesse especial.)

 

Eis o primeiro:

Você liderava um grupo. Alguma coisa perigosa estava para acontecer — não sei ao certo o que era, mas você estava conduzindo o grupo pela floresta para um lugar mais seguro. Ou deveria estar. Mas a trilha por onde nos conduziu foi ficando mais pedregosa, mais estreita, mais escura. Depois, desapareceu por completo. Você sumiu, e nós ficamos perdidos e muito assustados.

 

E o segundo:

Nós — o mesmo grupo — estávamos todos num quarto de hotel, e lá também havia perigo. Talvez intrusos, talvez um tornado. Mais uma vez, você nos tirou do perigo. Conduziu-nos por uma escada de incêndio com degraus de metal preto. Fomos subindo, subindo, mas ela não levava a lugar algum. Acabava no teto, e todos tivemos que descer.

 

Seguiram-se outros sonhos. Num deles, Irene e eu fazíamos uma prova juntos, e nenhum dos dois sabia as respostas. Noutro, ela se olhava num espelho e via manchas vermelhas de decrepitude no rosto. Num terceiro, dançava coro um rapaz magro e musculoso, que de repente a largou na pista de dança. Ela se virou para um espelho e levou um susto, ao ver seu rosto coberto por uma pele despencada e vermelha, toda marcada por terríveis furúnculos e bolhas de sangue.

A mensagem desses sonhos era cristalina: o perigo e a decadência eram inescapáveis. E eu não era um salvador — ao contrário, era indigno de confiança e impotente. Pouco depois, um sonho particularmente intenso acrescentou mais um componente:

 

Você era meu guia turístico num local isolado, num país estrangeiro, talvez a Grécia ou a Turquia. Dirigia um jipe sem capota, e estávamos brigando sobre o que visitar. Eu queria ver umas lindas ruínas clássicas antigas, e você ficava querendo me levar para o centro moderno da cidade, cafona e superficial. Você começou a dirigir tão depressa que me deu medo. Depois, o jipe atolou e ficamos oscilando, balançando para a frente e para trás, na beira de um abismo enorme. Olhei para baixo e não vi o fundo.

 

Esse sonho, que envolveu a dicotomia entre lindas ruínas antigas e uma cidade moderna e deselegante, refletia, é claro, nosso debate contínuo entre "razão e traição" Que rumo tomar? As velhas e belas ruínas (o primeiro texto) de sua vida antiga, ou a vida nova e deploravelmente feia que ela via estender-se à sua frente? Mas o sonho também sugeriu um novo aspecto de nosso trabalho conjunto. Nos sonhos anteriores, eu era inepto: perdia a trilha na floresta, fazia Irene subir uma escada de incêndio que levava a um teto sem saída, não sabia as respostas da prova. Nesse sonho, porém, eu era não só inepto e incapaz de protegê-la, como era também perigoso — conduzia Irene à beira da morte.

Passadas algumas noites, ela sonhou que nós nos abraçávamos e nos beijávamos com delicadeza. Mas o que havia começado docemente transformou-se em pavor, quando minha boca se escancarou mais e mais e comecei a devorá-la. "Eu lutei e lutei", relatou Irene, "mas não consegui me soltar".

"Nunca procures saber por quem os sinos tocam; eles tocam por ti." Portanto, como havia observado John Donne há quase quatrocentos anos, nesses versos hoje conhecidos, os sinos fúnebres tocam não apenas pelos mortos, mas também por você e por mim — sobreviventes, sim, mas por um tempo limitado. Essa descoberta é antiga como a História. Quatro mil anos atrás, numa epopéia babilônica, Gilgamesh se deu conta de que a morte de seu amigo Enkidu era um prenuncio da sua:

"Enkidu transformou-se em trevas e não pode me ouvir. Quando eu morrer, acaso não serei como Enkidu? A tristeza me invade o coração. Tenho medo da morte." A morte do outro nos confronta com nossa própria morte. Será que isso é bom? Esse confronto deve ser incentivado na psicoterapia do luto? Pergunta: por que mexer no que não está incomodando? Por que atiçar as chamas da angústia de morte em indivíduos enlutados, já acabrunhados por sua perda? Resposta: porque o confronto com a própria morte pode gerar uma mudança pessoal positiva.

 

Reconheci pela primeira vez o potencial terapêutico do contato com a morte, na terapia do luto, algumas décadas atrás, quando um homem de 60 anos me descreveu o terrível pesadelo que tivera, logo na noite seguinte, ao saber que o câncer cervical de sua mulher fizera uma métastase perigosa e já não era tratável. No pesadelo, ele corria por uma casa decrépita — janelas quebradas, telhas caindo, vazamentos no telhado —, perseguido por um monstro semelhante a Frankenstein. Defendia-se: batia, chutava, esfaqueava, atirava o monstro pelo telhado. Mas — e essa era a mensagem central do sonho — o monstro era incontrolável: reaparecia no instante seguinte e continuava a perseguição. O monstro não era estranho ao paciente, pois invadira seus sonhos pela primeira vez quando ele tinha 10 anos, logo depois do enterro de seu pai. Passara meses a aterrorizá-lo e acabara sumindo, para reaparecer cinqüenta anos depois, com a notícia da doença fatal de sua mulher. Quando lhe perguntei o que pensava do sonho, suas primeiras palavras foram: "Também já rodei cem mil quilômetros." Naquele momento, compreendi que a morte do outro — primeiro a do pai, depois a morte iminente da mulher — o confrontava com sua própria morte. O monstro frankensteiniano era uma personificação da morte, e a casa decrépita significava o envelhecimento e a decadência de seu corpo.

Com essa conversa, julguei ter descoberto um esplêndido conceito novo, com implicações significativas para a psicoterapia do luto. Logo comecei a buscar esse tema em todos os pacientes enlutados, e foi para testar essa hipótese que, alguns anos antes de eu tratar de Irene, um colega, Morton Lieberman, e eu embarcamos em nosso projeto de pesquisa sobre a perda.

Dos oitenta cônjuges enlutados que estudamos, uma parcela significativa — quase um terço — relatou ter uma consciência acentuada de sua própria mortalidade, e essa consciência, por sua vez, teve uma correlação significativa com um surto de crescimento pessoal. Embora o retorno a um nível anterior de funcionamento costume ser considerado o ponto final do luto, nossos dados sugeriram que alguns viúvos faziam mais do que isso: como resultado de um confronto existencial, tornavam-se mais maduros, mais conscientes, mais sábios.

 

Muito antes de a psicologia existir como disciplina independente, os grandes escritores eram os grandes psicólogos, e há na literatura ricos exemplos de como a consciência da morte catalisa a transformação pessoal. Consideremos a terapia existencial de choque de Ebenezer Scrooge, em Um conto de Natal, de Dickens. A surpreendente mudança pessoal de Scrooge não resulta da animação natalina, e sim de ele ser forçado a confrontar sua própria morte. O mensageiro de Dickens (o espírito dos Natais futuros) usa uma poderosa terapia existencial de choque: leva Scrooge ao futuro, no qual ele assiste a suas horas finais, entreouve outras pessoas descartarem despreocupadamente sua morte e vê estranhos brigando por suas posses materiais. A transformação de Scrooge ocorre imediatamente após a cena em que ele se ajoelha no cemitério e toca as letras da lápide de seu próprio túmulo.

Ou então consideremos Pierre, de Tolstói, uma alma perdida que tropeça sem rumo pelas primeiras novecentas páginas de Guerra e paz, até que é capturado pelos soldados de Napoleão, vê os cinco homens alinhados à sua frente serem executados pelo pelotão de fuzilamento e recebe uma suspensão da execução no último instante. Essa quase-morte transforma Pierre, que marcha pelas últimas trezentas páginas com entusiasmo, objetivo e aguda apreciação do caráter precioso da vida. Ainda mais notável é o Ivan Ilitch de Tolstói, o burocrata mesquinho cuja aflição, quando ele agoniza com seu câncer abdominal, é aliviada por uma descoberta espantosa: "Estou morrendo tão mal porque vivi muito mal" Nos dias de vida que lhe restam, Ivan Ilitch passa por uma extraordinária mudança interna, atingindo um grau de generosidade, empatia e integração que nunca havia conhecido até aquele momento.

O confronto com a morte iminente, portanto, pode impulsionar o indivíduo para a sabedoria e para uma nova profundeza do ser. Dirigi muitos grupos de pacientes terminais que acolhiam de bom grado observadores estudantis, por acharem que tinham muito a ensinar sobre a vida. "Que pena", ouvi esses pacientes dizerem, "termos tido que esperar até agora, até ficarmos com o corpo tomado pelo câncer, para aprender a viver". Num outro ponto deste livro, no capítulo "Viagens com Paula", descrevi alguns indivíduos com câncer terminal cuja sabedoria aumentou ao se verem confrontados com a morte.

Mas, e quanto aos pacientes cotidianos, fisicamente sadios, que estão em psicoterapia — homens e mulheres que não enfrentam uma doença terminal nem um pelotão de fuzilamento? Como podemos nós, os clínicos, expô-los à verdade de sua condição existencial? Procuro não tirar proveito de certas situações urgentes, muitas vezes denominadas de "experiências limítrofes", que abrem uma janela para níveis existenciais mais profundos. É óbvio que enfrentar a própria morte é a mais poderosa das experiências limítrofes, mas existem muitas outras — doenças ou lesões graves, divórcio, fracassos profissionais, eventos marcantes (a aposentadoria, o momento em que os filhos saem de casa, a meia-idade, certos aniversários importantes) e, é claro, a experiência marcante da morte de um ente querido.

 

Então, minha estratégia original na terapia com Irene foi usar a alavanca do confronto existencial, sempre que possível. Tentei repetidas vezes fazê-la desviar a atenção da morte de Jack para sua própria vida e morte. Quando ela falava, por exemplo, em viver apenas para a filha, em acolher a morte de bom grado, em passar o resto da vida olhando pela janela para o cemitério da família, eu dizia, reflexivamente, algo como: "Mas, nesse caso, será que você não está optando por desperdiçar sua vida — a única vida que terá?"

Depois da morte de Jack, Irene tinha sonhos freqüentes em que uma calamidade — comumente um incêndio — tragava toda a sua família. Ela via esses sonhos como um reflexo da morte de Jack e do fim de sua família intacta. "Não, não, você está esquecendo uma coisa", respondia eu. "Esse sonho não é apenas sobre Jack e a família — é também um sonho sobre a sua própria morte."

Nos primeiros anos, Irene descartava prontamente esses comentários: "Você n entende. Tive perdas demais, traumas demais, mortes demais empilhadas." O alívio sofrimento era o que ela buscava, e a idéia da morte mais parecia uma solução do que uma ameaça. Não se trata de uma postura incomum: muitas pessoas aflitas consideram a morte um mágico lugar de paz. Mas a morte não é um estado de paz não é um estado em que se continue a viver sem dor: é a extinção da consciência.

Talvez eu não tenha respeitado o tempo dela. Talvez tenha cometido o erro, e como não me é raro fazer, de saltar à frente de meus pacientes. Ou talvez Irene simplesmente fosse uma pessoa incapaz de se beneficiar do confronto com sua condição existencial. Como quer que fosse, ao descobrir que não estava chegando a lugar nenhum, acabei abandonando esse caminho e buscando outras maneiras de ajudá-la. E então, meses depois, quando eu menos esperava, veio o episódio da pintura da natureza-morta, seguido por uma cascata de imagens e sonhos perpassados pela angústia de morte.

Esse era o momento certo, e ela se mostrou receptiva a minhas interpretações. Apareceu outro sonho, um sonho tão impressionante que ela não conseguiu tirá-lo da cabeça:

 

Eu estava na varanda telada de um frágil chalé de veraneio e via uma fera grande e ameaçadora, com uma boca enorme, esperando a uma pequena distância da porta de entrada. Fiquei apavorada. Tive medo de que acontecesse alguma coisa com minha filha. Resolvi tentar agradar a fera com um sacrifício e lhe atirei pela porta um animal empalhado, de xadrez vermelho. A fera pegou a isca, mas permaneceu lá. Seus olhos flamejavam. Estavam fixos em mim. A presa era eu.

 

Irene identificou prontamente o animal sacrificial, empalhado com uma roupa xadrez: "É o Jack. É a cor do pijama dele na noite em que ele morreu." O sonho foi tão intenso que permaneceu em sua cabeça durante semanas, e aos poucos ela compreendeu que, embora houvesse inicialmente deslocado para a filha sua angústia com a morte, realmente era ela a presa da morte.

— É a mim que a criatura observa com tanta ferocidade, e isso significa que só há uma forma de interpretar esse sonho — disse, e hesitou. — O sonho está dizendo que, inconscientemente, encarei a morte de Jack como um sacrifício, para que eu pudesse continuar viva.

Irene ficou chocada com sua idéia, e mais ainda com o reconhecimento de que a morte estava esperando não pelos outros, não por sua filha, mas por ela.

Usando esse novo quadro de referência, aos poucos reexaminamos alguns dos sentimentos mais persistentes e dolorosos de Irene. Começamos pela culpa, que a atormentava, como faz com a maioria dos cônjuges enlutados. Certa vez, tratei de uma viúva que raramente deixava a cabeceira do marido, durante as semanas em que ele permaneceu inconsciente num hospital. Um dia, nos poucos minutos que ela levou para dar uma fugida à loja de presentes do hospital e comprar um jornal, o marido morreu. A culpa por tê-lo abandonado atormentou-a durante meses. Irene tinha sido similarmente inesgotável em sua atenção para com Jack: cuidara dele com extraordinária dedicação e havia rejeitado todas as minhas recomendações de que tirasse uma licença ou proporcionasse algum descanso a si mesma, hospitalizando o marido ou contratando uma enfermeira. Em vez disso, ela havia alugado uma cama hospitalar, que pusera ao lado da sua, dormindo junto de Jack até a hora da morte dele. Mesmo assim, não conseguia livrar-se da idéia de que deveria ter feito mais:

— Eu nunca deveria ter saído do lado dele. Devia ter sido mais delicada, mais afetuosa, mais íntima.

— Talvez a culpa seja uma forma de negar a morte — insisti. — Talvez o sub-texto do seu "eu devia ter feito mais" seja que, se você tivesse feito as coisas de outra maneira, teria impedido a morte dele.

Talvez a negação da morte também fosse o subtexto de muitas de suas outras crenças irracionais: ela era a única causa da morte de todos os que a haviam amado; ela dava azar; uma aura negra, tóxica e mortífera emanava dela; ela era má, amaldiçoada; seu amor era letal; alguém ou alguma coisa a estava punindo por uma ofensa imperdoável. Talvez todas essas convicções servissem para obscurecer as realidades brutais da vida. Se de fato ela desse azar ou fosse responsável pelas mortes, disso deduziria que a morte não era inevitável, que tinha uma causa humana e evitável, que a vida não era caprichosa, que os indivíduos não eram todos atirados sozinhos na vida, que existia um padrão cósmico abrangente, embora incompreensível, e que o universo nos supervisionava e nos julgava.

Com o tempo, Irene pôde conversar mais abertamente sobre o medo existencial e reformular as razões que estavam por trás de sua recusa em estabelecer novos laços com outras pessoas, principalmente homens. Ela havia afirmado que evitava envolvimento, incluindo o envolvimento comigo, para prevenir a dor de outra perda. Mas começou a se dar conta de que não era só a perda do outro que ela temia, sim tudo o que lembrava a transitoriedade da vida.

Expus a Irene algumas idéias de Otto Rank sobre o indivíduo que tem fobia à vida. Ao escrever que "alguns indivíduos recusam o empréstimo da vida para evitar a dívida da morte", Rank, um discípulo de Freud com consciência existencial, tinha descrito com precisão o dilema de Irene. "Veja sua maneira de rejeitar a vida", repreendi "olhando sem parar pela janela, evitando a paixão, evitando o compromisso, mergulhando nas lembranças de Jack. Não faça uma viagem de navio", recomendei, "por sua estratégia tiraria a alegria dela. Para que investir em alguma coisa, para que fazer amigos, para que se interessar por alguém, se a viagem acabará terminando?"

A maior disposição de Irene de aceitar sua existência limitada pressagiou muitas mudanças. Enquanto, anteriormente, ela falava de uma sociedade secreta de pessoas que haviam perdido entes queridos, passou a propor uma segunda sociedade, superposta a essa, formada pelos indivíduos esclarecidos que, em suas palavras, estavam "cientes de seu destino".

Entre todas as suas mudanças, a mais bem-vinda foi sua maior disposição de se envolver comigo. Eu tinha sido importante para ela, quanto a isso não tinha dúvidas: houvera meses em que ela dissera viver apenas para nossas conversas. No entanto, por mais próximos que fôssemos, sempre me parecera que ela e eu só nos encontrávamos obliquamente, que sempre nos faltara um verdadeiro encontro "tu e eu". Ela havia tentado, como dissera no começo da terapia, manter-me fora do tempo, saber o mínimo possível a meu respeito, fingir que eu não tinha uma história de vida com começo e fim. Mas isso mudou.

No início da terapia, numa visita a seus pais, Irene havia deparado com um velho exemplar ilustrado de O mágico de Oz, de Frank Baum, que lera quando menina. Ao voltar, dissera-me que eu tinha uma insólita semelhança física com o Mágico de Oz. Agora, após três anos de terapia, ela tornou a olhar para essa ilustração e achou a semelhança menos marcante. Intuí que havia algo importante acontecendo, quando ela meditou: "Talvez você não seja o mágico. Talvez não exista mágico. Talvez" prosseguiu, falando mais consigo mesma do que comigo, "eu deva simplesmente aceitar a sua idéia de que você e eu somos apenas companheiros de viagem pela vida, ambos ouvindo os sinos tocarem".

E não tive dúvida de que se iniciava uma nova fase da terapia quando, uma tarde, em nosso quarto ano de trabalho, ela entrou em meu consultório olhando diretamente para mim, sentou-se, tornou a me olhar e disse: "É estranho, Irv, mas você parece ter ficado muito menor."

 

Lição 7: Seguir em frente

Nossa última sessão não foi digna de nota, exceto por dois fatos. Primeiro, Irene teve que telefonar para lembrar o horário. Embora nossos horários houvessem mudado muitas vezes, por causa da sua agenda de cirurgias, ela nunca os havia esquecido, nem uma única vez em cinco anos. Segundo, fiquei com uma dor de cabeça lancinante pouco antes da sessão. Como raramente tenho dor de cabeça, desconfiei de que esta se relacionava de algum modo com o tumor cerebral de Jack, que dera a conhecer sua presença pela primeira vez por meio de uma intensa dor de cabeça.

— Andei pensando numa coisa a semana inteira — começou Irene. — Você planeja escrever sobre algum aspecto do trabalho que fizemos juntos?

Eu não havia pensado em escrever sobre ela e, na ocasião, estava imerso no planejamento de um romance. Foi o que lhe disse, acrescentando:

— E, de qualquer modo, nunca escrevi sobre uma terapia tão recente quanto a sua. Em O carrasco do amor,[18] em geral esperei anos, às vezes uma década ou mais após o término da terapia de determinado paciente, para escrever sobre ela. E esteja certa de que, se um dia eu viesse a considerar a possibilidade de escrever sobre você, pediria sua permissão antes de começar...

— Não, não, Irv — ela me interrompeu —, não estou preocupada com a possibilidade de você escrever. Preocupa-me que você não escreva. Quero que minha história seja contada. Há muitas coisas que os terapeutas não sabem sobre o tratamento das pessoas enlutadas. Quero que você diga a outros terapeutas não só o que eu aprendi, mas o que você aprendeu.

Nas semanas seguintes ao término, não apenas senti falta de Irene, como também me flagrei, vez após outra, contemplando escrever a história dela. Meu interesse em outros projetos de redação não tardou a diminuir, e comecei a redigir um esboço, a princípio de maneira desconexa, depois com um compromisso cada vez maior.

Passadas algumas semanas, Irene e eu nos encontramos para uma última sessão de verificação. Ela lamentara a perda de nossa relação. Por exemplo, tinha sonhado que ainda nos encontrávamos; imaginara conversas comigo e julgara, por engano, ter visto meu rosto na multidão, ou ouvido minha voz dirigindo-se a ela. Quando nos encontramos, porém, a tristeza pelo término da terapia havia passado e ela estava aproveitando a vida e se relacionando bem consigo mesma e com outras pessoas. Mostrou-se particularmente impressionada com a mudança em sua percepção visual: tudo voltara a ganhar formas, quando, durante anos, seu meio lhe havia parecido um cenário bidimensional. Além disso, um relacionamento com um homem, Kevin, que ela havia conhecido nos últimos meses da terapia, tinha não apenas perdurado, como estava florescendo. Quando mencionei ter mudado de idéia e estar interessado em escrever sobre nossa terapia, Irene ficou satisfeita e concordou em ler os primeiros manuscritos, à medida que eu avançasse.

Semanas depois, mandei-lhe o manuscrito das primeiras trinta páginas e sugeri que nos encontrássemos para discuti-las num café em São Francisco. Senti-me inexplicavelmente tenso ao entrar e procurá-la. Vendo-a antes que ela me visse, demorei a me aproximar. Queria saboreá-la de longe — o suéter e a calça de tom pastel, sua postura desenvolta ao bebericar um cappuccino e folhear um jornal de São Francisco. Aproximei-me. Ao me ver, Irene levantou-se e nós nos abraçamos e trocamos beijos no rosto, como velhos e queridos amigos — o que de fato éramos. Também pedi um cappuccino. Depois de meu primeiro gole, Irene sorriu e estendeu a mão com o guardanapo, para secar a espuma branca em meu bigode. Gostei de ela cuidar de mim e me inclinei muito de leve, para sentir mais plenamente a pressão de seu guardanapo.

— Pronto — fez ela, ao terminar a limpeza —, assim está melhor. Nada de bigode branco; não quero que você envelheça prematuramente.

Depois, tirando meu manuscrito da pasta, disse:

— Gostei disso. É exatamente o que eu esperava que você escrevesse.

— E isso era o que eu esperava que você dissesse. Mas, primeiro, não conviria recuarmos um pouco e conversar sobre o projeto todo? — indaguei. Disse-lhe que, em minha revisão, eu me certificaria de ocultar sua identidade, para que nenhum de seus conhecidos pudesse identificá-la. — Como você se sentiria sendo retratada como um marchand?

Ela abanou a cabeça.

— Quero que isso me mostre como realmente sou. Não tenho nada a esconder, nada de que me envergonhar. Nós dois sabemos que eu não tinha nenhum distúrbio mental: estava sofrendo.

Havia uma coisa que vinha me preocupando nesse projeto, e resolvi desabafar.

— Irene, deixe eu lhe contar uma história.

Falei-lhe então de Mary, uma grande amiga minha, psiquiatra de grande integridade e compaixão, e de um paciente, Howard, de quem ela havia tratado durante dez anos. Howard sofrerá maus-tratos terríveis na infância e Mary fizera uma tentativa hercúlea de lhe oferecer uma nova relação parental. Nos primeiros anos de terapia, ele fora hospitalizado pelo menos uma dúzia de vezes por tentativa de suicídio, abuso de drogas e anorexia grave. Mary ficara a seu lado, fizera um trabalho maravilhoso e, de algum modo, levara-o a superar tudo, ajudando-o até a se formar no ensino médio e na faculdade de jornalismo.

— A dedicação dela foi extraordinária — disse eu. — Às vezes ela o recebia sete vezes por semana, e por honorários muito reduzidos. Na verdade, adverti-a muitas vezes para o fato de que ela estava investindo demais e precisava dar mais proteção a sua vida particular. O consultório dela era em casa, e seu marido objetava à intromissão de Howard nos domingos do casal, bem como à quantidade de tempo e energia de Mary que ele consumia. Howard era um caso excelente para o ensino, e todo ano Mary o entrevistava na presença de estudantes de medicina, como parte do curso básico de psiquiatria. Durante um longo tempo, talvez cinco anos, ela trabalhou num manual de psicoterapia em que a terapia de Howard desempenhava um papel importante. Cada capítulo baseava-se num aspecto (muito disfarçado, é claro) do trabalho que fizera com ele. E, no correr dos anos, Howard se mostrara grato a Mary e lhe dera plena permissão para apresentá-lo a estudantes e residentes de medicina e para escrever sobre ele.

"O livro estava finalmente concluído, prestes a ser publicado", prossegui, "quando Howard (já então jornalista, trabalhando no exterior, casado e com dois filhos) de repente retirou sua permissão. Numa carta breve, explicou apenas que queria deixar inteiramente para trás aquela parte de sua vida. Mary pediu uma explicação, mas ele se recusou a dar maiores detalhes e acabou interrompendo por completo a comunicação. Mary ficou extremamente perturbada, após todos aqueles anos dedicados ao livro, mas acabou não tendo alternativa senão abandoná-lo. Mesmo depois de muitos anos, continuou ressentida e deprimida."

— Irv, Irv, já entendi — disse Irene, dando um tapinha em minha mão para me acalmar. — Compreendo que você não queira passar pelo que a Mary passou. Mas deixe-me tranqüilizá-lo: não estou apenas dando permissão para que você escreva minha história, estou-lhe pedindo que a escreva. Ficaria decepcionada se você não a escrevesse.

— Essa é uma afirmação forte.

— E é verdade. Falei sério quando me referi a um sem-número de terapeutas que não têm a menor idéia de como tratar pessoas enlutadas. Você aprendeu com nosso trabalho conjunto, aprendeu muito, e não quero que isso termine em você. Notando minhas sobrancelhas erguidas, Irene acrescentou:

— Pois é, eu finalmente entendi. A ficha caiu. Você não estará aqui para sempre.

— Certo — fiz eu, pegando um caderno de notas. — Concordo em que aprendemos muito com nosso trabalho, e coloquei minha versão dele nessas páginas. Mas quero ter certeza de que a sua voz seja ouvida, Irene. Você faria uma tentativa de resumir os pontos centrais, as partes que não devo omitir?

Irene objetou:

— Você as conhece tão bem quanto eu.

— Mas quero sua voz. Minha primeira opção, como eu disse noutras ocasiões, seria nós escrevermos juntos, mas, já que você se recusa, faça um esforcinho agora. Só umas associações livres, o que primeiro lhe vier à cabeça. Diga-me qual foi, do seu ponto de vista, o verdadeiro centro, o núcleo do nosso trabalho.

— O engajamento — disse ela, de pronto. — Você estava sempre presente, estendendo a mão, chegando mais perto. Como quando eu limpei o cappuccino do seu bigode, agora há pouco...

— Na sua cara, você quer dizer?

— Exato! Mas no bom sentido. Não num sentido metafísico complicado. Eu só precisava de uma coisa: que você ficasse comigo e se dispusesse a se expor às coisas letais que irradiavam de mim, Era essa a sua tarefa.

"Em geral, os terapeutas não entendem isso", continuou. "Ninguém, a não ser você, seria capaz de fazê-lo. Meus amigos não podiam ficar comigo. Eles próprios estavam muito ocupados, chorando pelo Jack, ou se distanciando da gosma negra, ou sepultando o medo de sua própria morte, ou exigindo, e digo exigindo mesmo, que eu me sentisse bem depois do primeiro ano.

"Isso foi realmente o que você fez de melhor", prosseguiu Irene. Falava com rapidez e fluência, parando apenas para bebericar seu cappuccino. "Você teve uma boa capacidade de suportar. Agüentou firme, perto de mim. Mais do que apenas ficar perto, você continuou pressionando mais e mais, insistindo em que eu falasse de tudo, por mais macabro que fosse. E, quando eu não falava, você tendia a adivinhar, com bastante precisão, devo admitir, o que eu sentia. E os seus atos foram importantes; as simples palavras não teriam conseguido. Por isso é que uma das melhores coisas que você fez foi me dizer que eu teria que fazer uma sessão extra na semana, toda vez que ficasse realmente furiosa com você."

Quando ela fez uma pausa, ergui os olhos de minhas anotações:

— Outras intervenções úteis?

— Sua ida ao enterro do Jack. Ter telefonado para mim quando fazia viagens longas, para saber como eu estava passando. Segurar minha mão quando eu precisava. Isso foi precioso, especialmente na época em que Jack estava morrendo. Às vezes, eu tinha a sensação de que cairia no vazio, não fosse por sua mão me ancorando na vida. É engraçado, quase todo o tempo eu pensava em você como um mago, alguém que sabe de antemão exatamente o que vai acontecer. Essa sua imagem só começou a se desfazer alguns meses atrás, quando você começou a diminuir. O tempo todo, porém, eu tinha uma sensação oposta, "antimago", a sensação... a sensação de que você não tinha roteiro nenhum, nenhuma regra, nenhum processo planejado. Era como se estivesse improvisando, ali, na hora.

— E como foi essa improvisação para você? — perguntei, escrevendo depressa.

— Muito assustadora, às vezes. Eu queria que você fosse o mágico de Oz. Estava perdida, e queria que você soubesse o caminho de casa. Outras vezes, eu ficava desconfiada com a sua insegurança. Perguntava a mim mesma se a sua improvisação era real, ou se era só uma falsa improvisação, só o seu jeito de mago.

"Outra coisa", prosseguiu. "Você sabia quanto eu insistia em descobrir um modo de consertar as coisas sozinha. Então, eu achava que sua improvisação comigo era um plano, um plano cuidadoso e inteligente, para me desarmar. Outra coisa... você quer que eu vá falando assim, Irv?"

— Exatamente assim. Continue.

— Quando você me falava de outras viúvas, ou dos resultados da sua pesquisa, eu sabia que estava tentando me tranqüilizar, e, de vez em quando, era útil perceber que eu estava em meio a um processo, que passaria por certos estados mentais, como havia acontecido com outras mulheres. Mas, em geral, esse tipo de comentário fazia com que eu me sentisse diminuída. Era como se você me tornasse comum. Eu nunca me sentia comum quando improvisávamos. Nessas horas, eu era especial, única. Estávamos encontrando o caminho juntos.

— Alguma outra coisa útil?

— Coisas simples, mais uma vez. Você talvez nem se lembre, mas, no fim de uma de nossas primeiras sessões, quando eu ia saindo pela porta, você pôs a mão em meu ombro e disse: "Levarei isso até o fim com você." Nunca me esqueci dessa frase; foi um suporte e tanto.

— Eu me lembro, Irene.

— E ajudava muito quando, às vezes, você parava de tentar me curar, ou me analisar ou interpretar, e dizia alguma coisa simples e direta, como "Irene, você está vivendo um pesadelo, um dos piores que posso imaginar". E o melhor de tudo era quando você acrescentava, não com freqüência suficiente, que me admirava e me respeitava por minha coragem de perseverar.

Pensando em dizer alguma coisa sobre a coragem dela nesse momento, ergui os olhos e vi que ela estava consultando o relógio, e a ouvi dizer:

— Ai, querido, tenho que ir embora.

Portanto, ela estava terminando a sessão. Como haviam caído os poderosos! Por um instante, tive um impulso travesso de fingir um acesso de raiva e acusá-la de estar me expulsando, mas resolvi não ser tão infantil.

— Sei o que você está pensando, Irv.

— E o que é?

— Provavelmente, está achando divertida esta inversão: que seja eu, e não você, a terminar a sessão.

— Na mosca, Irene. Como sempre.

— Você ainda fica uns minutos aqui? Vou encontrar o Kevin ali adiante para almoçarmos, e posso trazê-lo até aqui para conhecê-lo. Eu gostaria de fazer isso.

 

Enquanto esperava que Irene voltasse com Kevin, tentei cotejar seu relato da terapia com o meu. De acordo com ela, eu a havia ajudado acima de tudo por me comprometer com ela, por não evitar nada que ela dissesse ou fizesse. E também havia ajudado ao segurar sua mão, ao improvisar, ao confirmar o horror de sua provação e ao prometer ir com ela até o fim.

Ressenti-me dessa simplificação. Minha abordagem da terapia com certeza era mais complexa e sofisticada! No entanto, quanto mais pensava no assunto, mais percebia que Irene tinha razão.

Pois é claro que estava certa a respeito do "engajamento" — o conceito-chave de minha psicoterapia. Desde o começo, eu havia decidido que o engajamento era a coisa mais eficaz que eu poderia lhe oferecer. E isso não significava simplesmente escutar direito, ou estimular a catarse, ou consolá-la. Significava, antes, que eu me aproximaria dela ao máximo, que me concentraria no "espaço entre nós" (expressão que usei em praticamente todas as sessões com ela), no "aqui-e-agora", isto é, na relação entre mim e ela aqui (em meu consultório) e agora (no momento presente).

Ora, uma coisa é enfocar o aqui-e-agora com pacientes que buscam a terapia por problemas de relacionamento, mas outra, completamente diferente, era eu pedir que Irene examinasse o aqui-e-agora. Pense bem: por acaso não era absurdo e grosseiro esperar que uma mulher em situação extrema (uma mulher cujo marido estava morrendo de um tumor cerebral, e que também estava de luto pela mãe, pelo pai, pelo irmão e pelo afilhado) voltasse sua atenção para as nuanças mais diminutas do relacionamento com um profissional que ela mal conhecia?

No entanto, foi exatamente isso que fiz. Comecei na primeira sessão e nunca desisti. Em todas as sessões, sem falta, eu indagava sobre algum aspecto de nossa relação. "Até que ponto você se sente sozinha nesta sala comigo?" "Quão distante ou próxima de mim você se sente hoje?" Quando ela dizia, como acontecia muitas vezes, "a quilômetros de distância", eu me certificava de abordar diretamente essa sensação. "Qual foi o ponto exato da nossa sessão em que você notou isso hoje pela primeira vez?" Ou: "O que eu disse ou fiz para aumentar a distância?" E, acima de tudo, "O que podemos fazer para reduzi-la?"

Eu procurava respeitar suas respostas. Quando ela dizia que "A melhor maneira de ficarmos próximos é você me dar o nome de um bom romance para eu ler", eu sempre respondia com um título. Quando ela dizia que seu desespero era esmagador demais para se expressar em palavras, e que o máximo que eu podia fazer era simplesmente segurar sua mão, eu aproximava minha cadeira e segurava a mão dela, ora por um ou dois minutos, ora por dez ou 15. Às vezes, sentia-me pouco à vontade ao segurar sua mão, mas não por todas as proibições legalistas que dizem que nunca se deve tocar o paciente; submeter o juízo clínico e criativo pessoal a preocupações dessa natureza é profundamente deturpador. Ao contrário, eu me sentia constrangido porque, invariavelmente, segurar a mão dela era eficaz: fazia com que eu me sentisse um mago, uma pessoa com poderes extraordinários que eu não compreendia. Por fim, alguns meses depois de sepultar o marido, Irene parou de precisar e de pedir que eu segurasse sua mão.

Durante toda a nossa terapia, insisti com obstinação no engajamento. Recusei-me a ser afastado pela paciente. Quando ela dizia "Estou entorpecida; não quero falar; não sei por que estou aqui hoje", eu respondia com um comentário do tipo "Mas você está aqui. Parte de você quer estar aqui, e é com essa parte que eu quero conversar hoje".

Sempre que possível, eu traduzia os acontecimentos em seus equivalentes no aqui-e-agora. Por exemplo, consideremos o começo e o fim das sessões. Freqüentemente, Irene entrava em meu consultório e andava depressa para sua cadeira, sem sequer me dar uma olhadela. Eu raras vezes deixava isso passar. Dizia, por exemplo: "Ah, quer dizer que hoje será uma daquelas sessões" e me concentrava na relutância dela em olhar para mim. Às vezes ela respondia: "Olhar para você o torna real, e isso significa que você terá que morrer logo", ou "Quando olho para você, isso faz com que eu me sinta desamparada e lhe dá poder demais sobre mim", ou ainda, "Se eu olhar para você, pode ser que queira beijá-lo", ou então, "Verei seus olhos exigindo que eu melhore depressa".

O término de todas as sessões era problemático: Irene detestava que eu exercesse tanto controle e relutava em sair de meu consultório. Todo término parecia uma morte. Nos períodos mais difíceis, ela não conseguia conservar as imagens na lembrança e temia que, se eu ficasse longe de seus olhos, deixasse de existir. Irene também considerava o fim das sessões um símbolo do pouco que ela significava para mim, de quão pouco eu me importava com ela, da rapidez com que eu era capaz de prescindir dela. Invariavelmente, minhas férias ou minhas viagens profissionais criavam problemas tão grandes que, em várias ocasiões, eu optava por telefonar, para manter o contato.

Tudo era material para o aqui-e-agora: os desejos dela de que eu a elogiasse, de que lhe dissesse pensar mais nela do que em meus outros pacientes, de que eu reconhecesse que, se não fôssemos terapeuta e paciente, eu a desejaria como mulher.

Comumente, o foco no aqui-e-agora na psicoterapia tem muitas vantagens. Confere à sessão terapêutica um caráter imediato. Proporciona dados mais exatos do que a dependência das visões imperfeitas e sempre mutáveis que os pacientes têm do passado. Como a forma de relacionamento da pessoa no aqui-e-agora é um microcosmo de sua maneira de se relacionar com os outros, passada e presente, seus problemas relacionais revelam-se prontamente, em cores vivas, à medida que se desdobra a relação com o terapeuta. Além disso, a terapia torna-se mais intensa, mais elétrica — uma sessão individual ou de grupo que se concentre no aqui-e-agora nunca é maçante. Do mesmo modo, o aqui-e-agora proporciona um laboratório, uma arena segura em que o paciente pode experimentar novos comportamentos, antes de tentá-los no mundo externo.

Ainda mais importante do que todos esses benefícios, a abordagem do aqui-e-agora também acelerou o desenvolvimento de uma profunda intimidade entre mim e Irene. A conduta externa dela — gélida, intimidante, competente e confiante — impedia os outros de se aproximarem. Foi exatamente o que aconteceu quando a coloquei num grupo terapêutico por seis meses, na época em que seu marido agonizava. Embora Irene tivesse conquistado rapidamente o respeito dos membros do grupo e dado uma ajuda considerável a outros, pouco havia recebido em troca. Seu ar de suprema auto-suficiência dizia aos demais integrantes que ela não precisava deles para nada.

Apenas seu marido havia perfurado a barreira de sua aparência poderosa; só ele a tinha desafiado e exigido um encontro profundo e íntimo. E só com ele Irene fora capaz de chorar e de dar voz à menina perdida que havia nela. Com a morte de Jack, ela havia perdido essa pedra angular de intimidade. Eu sabia que isso era pretensioso, mas queria transformar-me nessa pedra para ela.

Estaria tentando substituir seu marido? É uma pergunta densa, chocante. Não, nunca pensei em fazê-lo. Mas aspirava a restabelecer, durante uma ou duas horas por semana, uma ilha de intimidade, um lugar em que ela pudesse despir seu estado mental de supercirurgiã que consertava tudo e ser francamente vulnerável e insegura. Aos poucos, muito gradativamente, ela pôde reconhecer seus sentimentos de desamparo e se voltar para mim em busca de consolo.

Quando o pai de Irene morreu, não muito depois de seu marido, ela se sentiu oprimida pela idéia de pegar um avião e ir ao enterro. Não suportava a idéia de enfrentar a mãe, afetada pelo mal de Alzheimer, e de ver a sepultura aberta do pai ao lado da lápide do irmão. Concordei e fiz vivas recomendações de que ela não fosse. Em vez disso, marquei uma sessão para a hora exata do funeral e pedi que ela levasse fotografias do pai, e passamos a sessão recordando as lembranças que Irene tinha dele. Foi uma experiência rica e intensa e, mais tarde, Irene me agradeceu por ela.

Onde ficava a fronteira entre intimidade e sedução? Ela iria tornar-se excessivamente dependente de mim? Será que a poderosa transferência ligada ao marido se revelaria impossível de desfazer? Essa idéia me incomodava. Mas decidi me preocupar com ela depois.

O foco no aqui-e-agora nunca foi difícil de manter em meu trabalho com Irene. Ela era extraordinariamente trabalhadora e dedicada. Nunca, nem uma única vez, em todo o meu trabalho com ela, ouvi comentários resistentes e previsíveis, tais como "Isso não faz sentido", "É irrelevante", "O problema não é você", "Você não é a minha vida — só o vejo duas horas por semana, meu marido morreu há apenas duas semanas, por que está me pressionando sobre o que sinto por você?", ou "Isso é maluquice... Todas essas perguntas sobre minha maneira de olhá-lo, ou meu jeito de entrar no consultório, isso é banal demais para ser comentado. Há muitas coisas importantes acontecendo na minha vida". Ao contrário, Irene apreendeu de imediato o que eu estava tentando fazer e, ao longo de toda a terapia, pareceu grata por todas as minhas tentativas de fazer com que ela se engajasse.

Os comentários dela sobre minha terapia "de improvisação" me foram de grande interesse. Ultimamente, descobri-me proclamando: "O bom terapeuta deve criar uma nova terapia para cada paciente." É uma postura extrema, até mais radical do que a sugestão de Jung, há muitos anos, de que criemos uma nova linguagem terapêutica para cada paciente. Mas há de haver posturas radicais para estes tempos radicais.

O movimento contemporâneo de atendimento administrado, na assistência à saúde, representa uma ameaça mortal para o campo da psicoterapia. Consideremos suas diretrizes: (1) que a terapia seja de uma brevidade irreal, concentrando-se exclusivamente nos sintomas externos e não nos conflitos subjacentes que geram esses sintomas; (2) que a terapia seja irrealisticamente barata (o que é punitivo tanto para os profissionais, que investiram os anos necessários para obter uma formação profunda, quanto para os pacientes, que são obrigados a consultar terapeutas insuficientemente preparados); (3) que os terapeutas imitem o modelo médico e enfrentem a pantomima de formular metas precisas, de estilo médico, e de avaliá-las semanalmente; e (4) que os terapeutas empreguem apenas terapias empiricamente validadas, com isso favorecendo as formas cognitivo-comportamentais breves e aparentemente precisas que demonstrem alívio dos sintomas.

Mas, de todos esses ataques equivocados e catastróficos ao campo da psicoterapia, nenhum é mais prejudicial do que a tendência para a terapia orientada por protocolos. Assim, alguns planos de saúde e organizações de manutenção da saúde (HMOs) exigem que o terapeuta siga um plano prescrito para o curso da terapia, às vezes até uma tabela de itens a serem abordados em cada uma das sessões permitidas. Os executivos do atendimento à saúde, ávidos por lucros, assim como seus assessores profissionais mal orientados,presumem que a terapia bem-sucedida seja uma função das informações obtidas ou prestadas, e não o resultado da relação entre paciente e terapeuta. Esse é um erro deplorável.

Dos oitenta homens e mulheres enlutados que estudei em minha pesquisa, antes de atender Irene, nenhum era igual a ela. Nenhum sofrerá a mesma constelação de perdas recentes (e cumulativas) — marido, pai, mãe, amigo, afilhado. Nenhum fora traumatizado como Irene pela perda anterior de um irmão amado. Nenhum tivera a relação de interdependência que ela havia mantido com o marido. Nenhum havia presenciado a degradação paulatina do cônjuge, cruelmente devorado por um tumor cerebral. Nenhum era um médico que compreendesse perfeitamente a natureza e o prognóstico da patologia do cônjuge.

Não. Irene era única e exigia uma terapia singular, uma terapia que ela e eu tivemos de construir juntos. E não se tratou de que ela e eu construíssemos uma terapia e depois passássemos a utilizá-la, muito pelo contrário: o projeto de construir uma terapia nova e singular foi apropria terapia.

 

Consultei o relógio. Onde estava Irene? Fui até a porta do café e olhei para a rua. Lá estava ela, a um quarteirão de distância, andando de mãos dadas com um homem que devia ser Kevin. Irene e um homem, de mãos dadas. Seria possível? Pensei em todas as inúmeras horas que passara tentando assegurar-lhe que ela não estava condenada a ficar sozinha, que acabaria por haver outro homem em sua vida. Deus, como ela fora teimosa! E tinha havido uma legião de oportunidades: no começo de seu período de luto, houvera uma longa fila de pretendentes atraentes e adequados.

Ela rejeitara rapidamente cada um deles, por uma ou mais do que parecia ser uma lista infindável de razões. "Não me atrevo a amar de novo, porque não posso suportar outra perda" (essa atitude, sempre no topo da lista, resultava em rejeitar prontamente qualquer homem apenas ligeiramente mais velho, ou qualquer homem que não estivesse na melhor forma física possível). "Não quero ser a condenação de nenhum homem por amá-lo." "Eu me recuso a trair Jack." Irene fazia comparações sempre desfavoráveis entre os homens e Jack, que era seu parceiro perfeito e predestinado (ele havia conhecido sua família, tinha sido escolhido a dedo por seu irmão e representara o último vínculo com seu irmão morto, seu pai e sua mãe agonizante). Além disso, Irene estava convencida de que não havia nenhum homem capaz de compreendê-la, nenhum homem que não levasse a pá para a cozinha, como o lavrador de Frost. A não ser, possivelmente, alguém que tivesse aguda consciência de seu destino final e do caráter precioso da vida.

Exigência. Exigência. Exigência. Saúde perfeita. Atlético. Magro. Mais jovem do que ela. Em luto recente. Com extraordinária sensibilidade à arte, à literatura e às preocupações existenciais. Eu me impacientava com Irene e com os padrões impossíveis que ela estabelecia. Pensava em todas as outras viúvas com que havia trabalhado, que dariam qualquer coisa por qualquer atenção recebida de qualquer dos homens que Irene rejeitava sumariamente. Fiz o melhor possível para guardar esses sentimentos comigo, mas nada lhe escapava, nem mesmo meus pensamentos não-verbalizados, e ela se enfurecia com meu desejo de que se envolvesse com outro homem. "Você está tentando me obrigar a fazer concessões!" acusava.

Além disso, talvez Irene intuísse minha preocupação crescente de que ela nunca me deixasse. Parecia-me que seu apego a mim era um componente fundamental de sua recusa em estabelecer contato com um homem. Deus do céu, será que eu ficaria eternamente sobrecarregado com ela? Talvez esse fosse meu castigo por ter conseguido tornar-me tão importante para a paciente.

E então, Kevin entrou em sua vida. Desde o começo, Irene soube que ele era o homem que ela vinha buscando. Deslumbrei-me com sua certeza — sua presciência. Pensei em todos aqueles padrões impossíveis e ridículos que ela havia estabelecido. Bem, Kevin correspondia a cada um deles, e mais, até. Jovem, com a saúde perfeita, sensível — era até membro da sociedade dos secretamente enlutados. Sua mulher havia morrido um ano antes, então ele e Irene entendiam plenamente o luto um do outro e sentiam uma empatia recíproca. Tudo se encaixou de imediato, e fiquei radiante por ela — e por minha própria libertação. Antes de conhecer Kevin, Irene havia recuperado inteiramente seu alto nível de funcionamento no mundo externo, mas restavam uma tristeza e uma resignação íntimas, profundas e quase impossíveis de exprimir. Agora, também isso se resolvera com rapidez. Ela teria melhorado por conhecer Kevin? Ou será que fora capaz de ser receptiva a ele por ter melhorado? Um pouco dos dois? Eu nunca teria certeza.

E agora, ela estava trazendo Kevin para me conhecer.

Lá vinham eles, entrando no café. Andavam em direção a mim. Por que eu estava nervoso? Vejam só esse homem: era magnífico — alto, imponente, parecia praticar triatlo todos os dias, antes do café-da-manhã, e que nariz... incrível... onde é que se comprava um nariz daqueles? Chega, Kevin, largue a mão dela! Já chega! Tinha de haver alguma coisa para a gente não gostar naquele sujeito. Xi, eu teria que apertar a mão dele. Por que minhas mãos transpiravam tanto? Será que ele notaria? E que me importava que notasse?

— Irv — ouvi Irene dizer —, este é o Kevin. Kevin, Irv.

Sorri, estendi a mão e o cumprimentei com os dentes cerrados. "Miserável" pensei com meus botões, "é melhor você cuidar bem dela. E, diabos, é melhor que não morra".

 

Dupla revelação

— E é por isso, dr. Lash, que sinto vontade de desistir. Não há nenhum homem disponível. E, quando eles ainda estão solteiros na casa dos 40, é óbvio que há alguma coisa errada: são homens asquerosos, rejeitados, doentes, que outras mulheres não quiseram e chutaram para fora. E que elas também deixaram sem um tostão. Os últimos três homens com quem saí não tinham aposentadoria. Nadinha. Quem é que vai respeitá-los? O senhor respeitaria? Aposto que o senhor está fazendo uma boa reserva para sua aposentaria, não é? Ah, não se preocupe, sei que o senhor não vai responder. Estou com 35 anos. Acordo pensando: trintão mais cinco. Metade do caminho. Quanto mais penso no meu ex, mais me dou conta de que ele acabou comigo. Destruiu dez anos da minha vida, os dez anos mais importantes. Dez anos... não consigo tirar isso da cabeça. Foi um pesadelo e, agora que ele se mandou, eu acordo, olho em volta, estou com 35 anos e a minha vida acabou: todos os homens decentes foram fisgados.

[Alguns segundos de silêncio.]

— Por onde andam seus pensamentos, Myrna?

— Estou pensando em ter caído numa armadilha... pensando em ir para o Alasca, onde a proporção entre homens e mulheres é melhor. Ou para a faculdade de administração... lá a proporção é boa.

— Fique aqui na sala comigo, Myrna. Como foi estar aqui hoje?

— Que quer dizer?

— O mesmo de sempre. Tente falar do que está acontecendo aqui, entre nós.

— É frustrante! Mais uma paulada de 150 dólares, e não me sinto melhor.

— Então, hoje eu falhei de novo. Aceitei seu dinheiro e não a ajudei. Diga-me uma coisa, Myrna, veja se...

 

Com uma freada brusca, Myrna deu uma guinada para desviar de um caminhão que a fechara, entrando em sua faixa. Acelerou, ultrapassou-o e gritou:

— Babaca!

Parou a fita e respirou fundo algumas vezes. Meses antes, após os primeiros encontros, seu novo terapeuta, o dr. Ernest Lash, havia começado a gravar as sessões e a lhe dar a fita para ouvir antes da outra semana, quando ela estivesse a caminho da sessão seguinte. Toda semana ela devolvia o cassete e ele gravava a nova sessão sobre a antiga. Era uma boa maneira, dissera, de ela usar o tempo no trajeto entre Los Altos e São Francisco. Myrna não tinha tanta certeza. Para começar, as sessões tinham sido frustrantes, e ouvi-las pela segunda vez só trazia mais frustração. O caminhão, alcançando-a, piscou os faróis, pedindo passagem. Parando no acostamento, ela xingou o caminhoneiro, que lhe fez um sinal chulo. E se ela sofresse um acidente, por estar distraída ouvindo a fita? Poderia processar o terapeuta? Ferrá-lo num tribunal? Essa idéia lhe pôs um sorriso nos lábios. Inclinando-se, Myrna apertou a tecla de rebobinar por alguns segundos, depois a tecla play.

 

— Fique aqui na sala comigo, Myrna. Como foi estar aqui hoje?

— Que quer dizer?

— O mesmo de sempre. Tente falar do que está acontecendo aqui, entre nós.

— É frustrante! Mais uma paulada de 150 dólares, e não me sinto melhor.

— Então, hoje eu falhei de novo. Aceitei seu dinheiro e não a ajudei. Diga-me uma coisa, Myrna, veja se consegue repassar a sessão que fizemos e responder a esta pergunta: o que eu poderia ter feito hoje?

— Como é que eu vou saber? É para isso que o senhor é pago, não? E muito bem pago.

— Sei que você não sabe, Myrna, mas quero que mergulhe em sua fantasia. De que modo eu poderia tê-la ajudado hoje?

— O senhor poderia ter-me apresentado a um de seus pacientes solteiros e ricos.

— Você está vendo "Agência de Encontros" escrito na minha camiseta?

 

— Seu cretino — resmungou ela, apertando o botão stop. — Eu lhe pago 150 paus por hora para ter essa bosta de gracinha?

 

Apertou rewind e tornou a reproduzir o diálogo.

 

— ... eu poderia tê-la ajudado hoje?

— O senhor poderia ter-me apresentado a um de seus pacientes solteiros e ricos.

— Você está vendo "Agência de Encontros" escrito na minha camiseta?

— Não tem graça, doutor.

— Não, você tem razão. Desculpe. O que eu deveria ter dito é que você fica muito longe de mim, longe de dizer qualquer coisa sobre como se sente a meu respeito.

— O senhor, o senhor, o senhor. Por que são sempre os meus sentimentos a seu respeito? O problema não é o senhor, dr. Lash. Não vou namorá-lo, embora talvez pudesse tirar mais proveito disso que do que estamos fazendo.

— Vamos repassar as coisas, Myrna. Você me procurou, originalmente, dizendo que queria fazer alguma coisa a respeito de seus relacionamentos com os homens. Logo na primeira sessão, eu disse que a melhor maneira de ajudá-la a examinar suas relações com os outros seria nos concentrarmos em nossa relação, aqui mesmo neste consultório. Este espaço aqui do consultório é, ou deveria ser, um lugar seguro, onde espero que você possa falar com mais liberdade do que em outros lugares. E, neste lugar seguro, podemos examinar o modo como nos relacionamos. Por que isso é tão difícil de entender? Então, vamos examinar de novo os seus sentimentos a meu respeito aqui.

— Eu já disse: isso é frustrante.

— Procure tornar isso mais pessoal, Myrna.

— Frustrante é pessoal.

— Sim, de certo modo, é pessoal, porque me fala do seu estado interno. As coisas giram em círculos na sua cabeça, eu sei. E também giram em círculos quando você está aqui. E eu fico zonzo com você. E sinto a sua frustração. Mas a palavra frustrante não me diz nada sobre nós. Pense no espaço aqui entre nós. Tente permanecer nele por um ou dois minutos. Como está esse espaço hoje? Que tal seu comentário, minutos atrás, sobre tirar mais proveito de sair comigo do que da terapia?

— Eu já lhe disse; nada. O espaço está vazio. É só frustração.

— Isto, o que está acontecendo agora, neste momento, é exatamente a coisa a que me refiro quando digo que você evita um contato real comigo.

— Estou confusa, perdida.

— Nosso tempo está no fim, Myrna, mas experimente uma coisa antes de pararmos: o mesmo exercício que lhe pedi para fazer umas duas semanas atrás. Apenas por um ou dois minutos, pense em alguma coisa que você e eu poderíamos estar fazendo juntos. Feche os olhos; deixe aparecer uma cena, qualquer cena. Descreva-a à medida que for acontecendo.

[Silêncio.]

— O que você está vendo?

— Nada.

— Force um pouco. Faça acontecer alguma coisa.

— Está bem, está bem. Eu nos vejo passeando juntos. Conversando. Nos divertindo. Uma rua em São Francisco, talvez a Chestnut. Pego sua mão e o levo para um bar de solteiros. O senhor reluta, mas entra comigo. Quero que o senhor veja... que veja a cena... veja com seus próprios olhos que lá não há nenhum homem adequado. Ou são os bares para solteiros, ou os serviços de busca de parceiros na internet, que o senhor mencionou na semana passada. Internet... isso é pior do que os bares. Não podia ser mais impessoal! Nem acredito que o senhor tenha realmente sugerido uma coisa dessas! O senhor espera que eu crie um relacionamento na tela do monitor, sem sequer ver a outra pessoa, sem sequer...

— Volte para sua fantasia. O que você vê depois?

— Ficou tudo escuro, sumiu.

— Tão depressa! O que a impediu de continuar?

— Não sei. Eu me senti fria e sozinha.

— Você estava comigo. Segurou minha mão. Que sentimentos apareceram?

— Continuei a me sentir só.

— Temos que parar, Myrna. Uma última pergunta. Estes últimos minutos foram diferentes da primeira parte da sessão?

— Não. Foi a mesma coisa. Frustrante.

— Eu senti um envolvimento maior, menos espaço entre nós. Você não sentiu nada disso?

— Pode ser. Não sei direito. E continuo a não entender para que serve o que estamos fazendo.

— Por que continuo com a sensação de que há algo em você que luta contra a compreensão disso? No mesmo horário, na próxima quinta?

 

Myrna ouviu barulho de cadeiras, seus passos atravessando a sala, a porta fechando. Virou na rodovia I-280. "Uma perda de tempo e dinheiro", pensou. "Terapeutas. Ele é igual a todo o resto. Bem, não exatamente. Pelo menos, fala comigo." Por um instante, imaginou o rosto dele: risonho, estendendo-lhe os braços, convidando-a a chegar mais perto. "A verdade é que eu gosto do dr. Lash. Ele fica do meu lado — pelo menos, parece se importar com o que acontece comigo e é ativo: procura manter as coisas funcionando, dispõe-se a se comprometer, não me deixa sentada em silêncio, como os dois últimos terapeutas." Myrna afastou prontamente essas imagens. Ele vivia enchendo o saco dela, querendo que ela prestasse atenção a seus devaneios, especialmente os que ocorriam na ida para a terapia e na volta dela, e Myrna não estava disposta a lhe falar dessa baboseira piegas.

De repente, tornou a ouvir a voz dele na fita.

 

Alô. Aqui é o dr. Ernest Lash, retornando sua ligação. Lamento não tê-lo encontrado, Desmond. Por favor, tente ligar para mim no número 767-1735, entre oito e dez horas da noite de hoje, ou amanhã cedo, no meu consultório.

 

"O que está acontecendo?", pensou Myrna. De repente, lembrou-se de que, depois de sair do consultório no fim da sessão anterior e de andar meio quarteirão com o carro, notara que ele havia esquecido de lhe entregar a fita e tinha voltado para buscá-la. Estacionara em fila dupla em frente à casa vitoriana e subira correndo a longa escada para o consultório dele, no segundo andar. Como sua sessão tinha sido a última do dia, ela não se preocupara em interromper outro paciente. A porta do dr. Lash estava parcialmente aberta, e Myrna entrara direto e dera com ele ditando alguma coisa a um aparelho. Ao lhe dizer por que tinha voltado, ele havia retirado a fita do gravador que ficava na mesinha ao lado da cadeira dos pacientes e a entregara a ela. "Até a próxima semana", tinha dito. Estava claro que se esquecera de desligar o gravador depois de ela sair do consultório na primeira vez, e a gravação tinha prosseguido por algum tempo, até a fita acabar.

Aumentando todo o volume, Myrna ouviu uns ruídos ao fundo: possivelmente, xícaras de café batendo uma na outra, quando ele as tirou da escrivaninha. Depois, outra vez a voz dele, telefonando para alguém para combinar uma partida de tênis. Passos, um arrastar de cadeira. E então, algo mais interessante. Muito mais interessante.

 

Aqui é o dr. Lash, ditando notas para o seminário sobre contratransferência. Notas sobre Myrna, quinta-feira, 28 de março.

 

"Notas sobre mim? Não acredito." Fazendo um esforço para ouvir, tomada de angústia e curiosidade, ela inclinou o corpo, chegando mais perto do alto-falante. O carro deu uma guinada repentina e por pouco Myrna não perdeu o controle.

Parou no acostamento, ejetou a fita às pressas, tirou o walkman do porta-luvas, introduziu a fita, rebobinou-a, pôs os fones de ouvido, entrou novamente na auto-estrada e aumentou todo o volume.

 

Aqui é o dr. Lash, ditando notas para o seminário sobre contratransferência. Notas sobre Myrna, quinta-feira, 28 de março. Sessão típica, previsível, frustrante. Ela passou quase toda a sessão choramingando, como de hábito, sobre a falta de solteiros disponíveis. Fico cada vez mais impaciente... irritadiço; perdi a cabeça por um instante e teci um comentário inoportuno: "Você está vendo 'Agência de Encontros' escrito na minha camiseta?" Foi realmente grosseiro de minha parte, muito atípico em mim; nem me lembro da última vez que fui tão desrespeitoso com um paciente. Será que estou tentando mandá-la embora? Nunca lhe digo nada que lhe dê apoio ou seja positivo. Eu tento, mas ela torna isso difícil. Ela me irrita... muito maçante, exasperante, grosseira, tacanha. Só pensa em ganhar seus dois milhões de dólares em opções de compra de ações e em encontrar um homem. Nada mais... superficial, superficial, superficial... nada de sonhos, de fantasias, nenhuma imaginação. Sem profundidade. Será que algum dia ela já leu um bom romance? Disse alguma coisa bonita? Ou interessante... só uma idéia interessante? Meu Deus, eu adoraria vê-la escrever um poema — ou tentar escrever um poema. Isso seria uma mudança terapêutica. Ela me esgota. Sinto-me como uma grande teta. O mesmo material, vezes sem conta. Ela me dá pauladas na cabeça, repetidamente, por causa de meus honorários. Semana após semana, acabo fazendo a mesma coisa — fico entediado.

Hoje, como de hábito, incitei-a a examinar o papel que ela tem em sua situação, o modo como contribui para seu próprio isolamento. Não é um conceito muito difícil, mas foi como se eu falasse aramaico. Ela simplesmente não conseguiu entender. Em vez disso, acusou-me de não acreditar que o ambiente dos bares de solteiros é ruim para as mulheres. E aí, como faz muitas vezes, jogou uma indireta sobre como gostaria de poder sair comigo. Mas, quando tentei enfocar isso, examinar o que ela sente em relação a mim, ou o modo como se isola em sua solidão, aqui mesmo neste consultório, as coisas pioraram ainda mais. Ela se recusou a entender; recusa-se a se relacionar comigo e não reconhece que não se relaciona — e insiste em que isso não tem mesmo importância. Ela não pode ser burra. Formou-se na Universidade Wellesley — trabalho gráfico de alto nível; tem um salário polpudo, muito maior do que o meu; metade das empresas de software do Vale do Silício a disputa; mas é como se eu estivesse falando com uma pessoa tapada. Quantas malditas vezes terei de explicar por que é importante examinar nossa relação? E todas aquelas piadinhas sobre não receber o bastante pelo que paga... eu me sinto diminuído. É uma moça vulgar. Faz todo o possível para eliminar o menor resquício de proximidade entre nós. Nada do que faço é bom o bastante para ela. Ela mexe com tantas coisas...

 

A buzina de um automóvel que passava despertou Myrna para o fato de que seu carro estava costurando pelo trânsito. Seu coração disparou. Isso era perigoso. Ela desligou o walkman e dirigiu os poucos minutos que faltavam para a saída da auto-estrada. Entrou numa rua, estacionou, rebobinou a fita e ouviu:

 

... eu me sinto diminuído. É uma moça vulgar. Faz todo o possível para eliminar o menor resquício de proximidade entre nós. Nada do que faço é bom o bastante para ela. Ela mexe com tantas coisas em mim que tem que haver alguma coisa da minha mãe nessa história. Toda vez que lhe pergunto sobre nossa relação terapêutica, ela me lança um olhar desconfiado, como se eu estivesse passando uma cantada nela. Será que estou? Não há o menor vestígio disso quando examino meus sentimentos. Será que eu a paqueraria, se ela não fosse minha paciente? Sua aparência não é nada má; gosto de seu cabelo sedoso; ela tem uma bela postura; belíssimos seios, forçando os botões da blusa — decididamente, esse é um ponto positivo. Preocupo-me com a idéia de olhar fixo para seus seios, mas acho que não o faço — graças a Alice! Uma vez, no curso médio, eu estava conversando com uma garota chamada Alice, sem ter a menor idéia de que estava vidrado em seus seios, até que ela pôs a mão sob meu queixo, inclinou meu rosto para cima e disse: 'Ei, ei, eu estou aqui em cima!' Nunca me esqueci disso. Aquela Alice me fez um grande favor.

As mãos dela são grandes demais, o que corta o interesse. Mas gosto daquele grande chiado deslizante e sensual de suas meias quando ela cruza as pernas. É, acho que há algo de sexual nisso. Se houvesse topado com ela quando ainda era solteiro, será que eu a teria paquerado? É provável que sim; eu me sentiria fisicamente atraído por Myrna, até ela abrir a boca e começar a choramingar ou fazer exigências. Aí, iria querer me afastar depressa. Não há ternura, não há meiguice nela. Myrna é concentrada demais em si mesma, toda cheia de arestas — cotovelos, joelhos —, não sabe se dar...

[Um clique e a fita chegou ao fim.]

 

Aturdida, Myrna deu a partida no carro, rodou mais alguns minutos e virou à direita na Sacramento Street. Faltavam poucos quarteirões para o consultório do dr. Lash. Surpresa, notou que estava tremendo. O que fazer? O que dizer a ele? Depressa, depressa — faltavam poucos minutos para o desgraçado do relógio dele começar a marcar aquela hora de 150 dólares.

"Uma coisa é certa", disse ela a si mesma: "de jeito nenhum eu vou devolver essa fita, como geralmente faço. Tenho que ouvi-la de novo. Vou mentir, dizer que a esqueci, deixei-a em casa. Depois, posso gravar os comentários dele em outra fita e devolver a original, na próxima semana. Ou talvez eu simplesmente diga que perdi a fita. Se ele não gostar, que se dane!"

Quanto mais pensava no assunto, mais certa ficava Myrna de que não contaria ao psiquiatra que tinha ouvido seu texto ditado. Por que abrir o jogo? Talvez um dia ela lhe contasse, no futuro. Talvez nunca. Que cretino! Ela estacionou em frente ao consultório. Quatro horas. Hora de falar.

— Entre, Myrna, por favor.

Ernest sempre a chamava de Myrna, enquanto ela o chamava de dr. Lash, apesar de ele haver apontado muitas vezes essa assimetria e de tê-la convidado a tratá-lo por você e usar seu primeiro nome. Nesse dia, como sempre, ele estava de blazer azul-marinho e com o suéter branco de gola rulê. "Será que ele não tinha nenhuma outra roupa?", ela se perguntou. "E aqueles sapatos esporte surrados? Informal é uma coisa, desleixado é outra. Será que ele nunca ouviu falar em engraxate? E o paletó não esconde o pneuzinho na cintura dele. Se eu jogasse tênis com você", pensou Myrna, "ia matá-lo de tantos lobes. Botava essa banha do seu lombo para chacoalhar."

— Não tem problema — disse ele em tom afável, quando Myrna confessou ter esquecido a fita. — Traga-a na semana que vem. Tenho outra nova — e desembrulhou uma fita nova, introduzindo-a no gravador.

Depois disso, o silêncio habitual. Myrna deu um suspiro.

— Você está com um ar inquieto — comentou Ernest.

— Não, não — negou Myrna. "Fingido!" pensou com seus botões. "Que farsante! Fingindo estar todo preocupado. Você não se importa se estou inquieta. Não dá a mínima. Sei o que sente de verdade a meu respeito."

Mais silêncio.

— Estou sentindo uma grande distância entre nós — observou Ernest. — Você também está sentindo?

Myrna deu de ombros.

— Não sei.

— Estou curioso sobre a semana passada, Myrna. Você saiu daqui ressentida na semana passada, por causa da nossa sessão?

— Não houve nada fora do comum — ela respondeu. "Hoje quem está por cima sou eu" disse a si mesma. "Vou fazê-lo batalhar pelo seu dinheiro. Quero vê-lo suar. " Fez uma longa pausa antes de perguntar: — Era para ter saído?

— Como?

— Eu deveria ter saído ressentida da última sessão?

A surpresa transpareceu no rosto de Ernest, que olhou para Myrna. Ela retribuiu o olhar, sem se encolher.

— Bem — disse ele —, estava me perguntando se você teria sentido alguma coisa. Talvez uma reação ao meu comentário sobre minha camiseta e a agência de encontros.

— O senhor sentiu alguma coisa sobre esse comentário, dr. Lash?

Ernest se endireitou na cadeira — tinha uma sensação muito curiosa sobre o atrevimento dela nesse dia.

— Sim, senti uma porção de coisas — respondeu, hesitante. — E nenhum dos sentimentos foi bom. Acho que fui desrespeitoso com você. Imagino que esteja muito zangada comigo.

— Bom, eu fiquei zangada.

— E magoada?

— Sim, magoada também.

— Pense nesse sentimento de mágoa. Ele a leva para algum outro lugar? Alguma outra época?

"Ah, não, não me venha com essa, seu verme", pensou Myrna. "Tentando escapulir. E todas essas semanas me passando sermões sobre permanecer no presente."

— Será que podemos ficar com o senhor, dr. Lash, aqui neste consultório? — indagou, com seu novo jeito direto. — Eu gostaria de saber por que o senhor disse aquilo: por que foi desrespeitoso, como disse.

Ernest lançou outro olhar para Myrna. Mais demorado. Ponderou sobre suas opções. O dever para com os pacientes vinha primeiro. Nesse dia, Myrna finalmente parecia disposta a entrar em contato com ele. Durante meses, Ernest havia insistido, exortado, implorado para que ela se mantivesse no aqui-e-agora. "Portanto, estimule os esforços dela", disse a si mesmo. "E seja sincero."

Sinceridade acima de tudo. Ferrenhamente cético em todos os outros aspectos, Ernest acreditava com um fervor fundamentalista no poder curativo da sinceridade. Seu catecismo exigia a sinceridade — mas uma sinceridade bem dosada, seletiva. E responsável, cuidadosa: a sinceridade a serviço do cuidadoso. Ele nunca lhe revelaria, por exemplo, os sentimentos rudes e negativos — mas sinceros — que expressara em relação à paciente dois dias antes, ao apresentar o caso de Myrna em seu seminário sobre a contratransferência.

Esse seminário tivera início um ano antes, como um grupo de estudo quinzenal, formado por dez terapeutas que se reuniam para aprofundar a compreensão de suas reações pessoais aos pacientes. A cada reunião, um membro discutia um paciente, enfocando quase exclusivamente os sentimentos que esse paciente houvesse evocado nele durante as sessões de terapia. Quaisquer que fossem seus sentimentos a respeito de determinados pacientes — irracionais, primitivos, amorosos, odiosos, sexuais, agressivos —, os membros assumiam o compromisso de expressá-los com franqueza e examinar seus significados e suas raízes.

Entre os muitos propósitos a que o seminário servia, nenhum era mais importante do que o sentimento de comunhão que ele proporcionava. O isolamento é o principal risco ocupacional dos psicoterapeutas na clínica particular, e eles o combatem associando-se em organizações: grupos de estudo como esse seminário sobre a contratransferência, institutos de formação avançada, associações de equipes hospitalares e uma multiplicidade de organizações profissionais de âmbito local e nacional.

O seminário sobre a contratransferência tinha muito peso na vida de Ernest, que ansiava pelas reuniões em semanas alternadas — não só pela camaradagem, mas também pela orientação. No ano anterior, ele havia terminado uma longa experiência de supervisão com um psicanalista ortodoxo, Marshal Strider, e agora o seminário era o único lugar em que discutia os casos com seus colegas. Embora o foco oficial do grupo recaísse sobre a vida íntima do terapeuta, e não sobre a terapia, a discussão invariavelmente influenciava o curso desta. O simples fato de saber que se exporia o caso de um paciente exercia uma influência inevitável sobre a maneira como era conduzida a terapia. E, durante a sessão desse dia com Myrna, Ernest imaginou os membros do seminário observando-o em silêncio, enquanto ponderava a pergunta dela sobre por que tinha sido desrespeitoso. Tomou o cuidado de não dizer nada que viesse a relutar em transmitir ao grupo.

— Não tenho certeza de todas as razões, Myrna, mas sei que estava impaciente com você na sua última sessão quando disse aquilo. Você me pareceu teimosa. Tive a sensação de bater repetidamente em sua porta e de você se recusar a abri-la.

— Eu estava fazendo o melhor que podia.

— Acho que isso não ficou claro. Pareceu-me que você sabia por que era importante concentrar-se no aqui-e-agora, na relação entre nós, mas continuava fingindo não saber. Deus sabe que procurei explicitar isso muitas, muitas vezes. Lembra-se da nossa primeira sessão, quando você falou de seus terapeutas anteriores? Você disse que eles eram distantes demais, não se envolviam, não se importavam, não foi? E eu lhe disse que me comprometeria com você, e que grande parte da nossa tarefa aqui consistiria em estudar esse envolvimento. E você disse que acolheria isso de bom grado, lembra-se?

— Isso não faz sentido. O senhor acha que lhe faço oposição de propósito. Diga-me, por que eu haveria de vir aqui, semana após semana, enfrentando um longo trajeto e torrando 150 dólares por sessão? Cento e cinqüenta dólares! Isso pode ser um trocado para o senhor, mas para mim não é.

— Num certo nível, isso não faz sentido, Myrna, mas faz em outro. É assim que eu vejo a situação: você está insatisfeita com a sua vida, sente-se sozinha, sem amor e indigna de ser amada. Veio me procurar para pedir ajuda, com grande esforço, e é, sim, uma viagem longa. E também é caro; eu realmente a escuto, Myrna. Mas uma coisa estranha acontece aqui: acho que é medo. Acho que se aproximar deixa você constrangida, e então você recua, se fecha, descobre defeitos em mim, ridiculariza o que fazemos. Não estou dizendo que o faça de propósito.

— Se o senhor me entende tão bem, por que o comentário sobre a camiseta? O senhor ainda não respondeu à pergunta.

— Eu estava abordando isso quando mencionei que me senti impaciente.

— Isso não parece muito uma resposta.

Ernest tornou a olhar longamente para a paciente e pensou: "Será que a conheço mesmo? De onde veio essa rajada de franqueza? Mas é um vento bem-vindo, revigorante — e qualquer coisa é melhor do que o que vínhamos fazendo. Tentarei navegar com o vento o máximo possível."

— Entendo a sua colocação, Myrna. A piada sobre a camiseta não se encaixa em lugar nenhum. Foi um comentário estúpido. E ofensivo. Lamento tê-lo feito. Não sei ao certo de onde veio. Gostaria de conseguir resgatar o que o instigou.

— Eu me lembro, por causa da fita...

— Pensei que você não tivesse ouvido a fita.

— Não foi isso que eu disse. Eu disse que me esqueci de trazer a fita, mas a ouvi em casa. O comentário sobre a camiseta foi logo depois de eu dizer que o senhor poderia me apresentar a um de seus pacientes solteiros e ricos.

— Certo, certo, eu me lembro. Estou admirado, Myrna. Por algum motivo, eu tinha a sensação de que nossas sessões não significavam o bastante para que você se lembrasse tão bem delas. Deixe-me voltar a meus sentimentos naquela última sessão. De uma coisa eu me lembro, com certeza: esse seu comentário sobre eu apresentá-la a um de meus pacientes ricos realmente me incomodou. Pouco antes disso, acho que eu havia perguntado o que poderia oferecer a você, e sua resposta foi essa. Eu me senti diminuído: seu comentário me magoou. Eu deveria estar acima disso, mas tenho meus pontos sensíveis... e também meus pontos cegos.

— Magoado? O senhor não está sendo meio melindroso? Foi só uma piada.

— Pode ser. Mas talvez tenha sido mais do que uma piada. Talvez você estivesse externando seu sentimento de que tenho pouca coisa de valor a lhe oferecer: se tanto, uma apresentação a outro homem. Assim, eu me senti invisível. Desvalorizado. E acho que foi por isso que a afrontei.

— Coitadinho! — resmungou Myrna.

— Como?

— Nada, nada... outra piada.

— Não vou deixar que você me afaste com esse tipo de comentário. Na verdade, estou pensando se não deveríamos encontrar-nos mais de uma vez por semana. Por hoje, no entanto, temos que parar. Estamos passando da hora. Recomeçaremos deste ponto na próxima semana.

Ernest ficou contente por terminar a sessão de Myrna. Mas não pelas razões costumeiras: não estava entediado nem irritado com ela; estava exausto. Aturdido. Cambaleante. Imprensado na parede.

Mas Myrna ainda não havia acabado de esmurrar.

— O senhor não gosta mesmo de mim, não é? — comentou ela, ao apanhar a bolsa e começar a se levantar.

— Pelo contrário — disse Ernest, decidido a agüentar firme com a paciente. — Eu me senti particularmente próximo de você nesta sessão. Hoje foi assustador e difícil, mas foi um bom trabalho.

— Não foi exatamente isso que lhe perguntei.

— Mas é como eu me sinto. Há momentos em que me sinto mais distante de você, e momentos em que me sinto mais perto.

— Mas, na verdade, não gosta de mim, não é?

— Gostar não é um sentimento global. Às vezes você faz coisas de que não gosto; às vezes há coisas de que gosto muito em você.

"Sei, sei. Como meus seios grandes e o chiado das minhas meias", pensou Myrna, pegando a chave do carro. À porta, como sempre, Ernest estendeu a mão. Myrna sentiu repulsa. O contato físico com ele era a última coisa que queria, mas não viu como recusar. Apertou a mão dele de leve, soltou-a depressa e saiu sem olhar para trás.

 

Para Myrna, o sono demorou a chegar nessa noite. Ela ficou acordada, sem conseguir tirar da cabeça a opinião ditada pelo dr. Lash a seu respeito. "Choramingona", "entediante", "cheia de arestas", "superficial", "vulgar": as expressões dele giravam sem parar em sua mente. Palavras terríveis, mas nenhuma tão dolorosa quanto o comentário sobre ela nunca ter dito nada de interessante ou bonito. A esperança do terapeuta de que ela fosse capaz de escrever um poema feriu fundo, levou lágrimas aos olhos.

Um incidente há muito esquecido voltou-lhe à lembrança. Aos 10 ou 11 anos, Myrna havia escrito muitos poemas, mas guardara segredo disso, em especial do pai, rude e implacavelmente crítico. Antes de ela nascer, o pai fora demitido de sua residência em cirurgia por causa do alcoolismo, e havia passado o resto da vida como um médico semi-embriagado e desiludido de cidade do interior, que tinha consultório em casa e passava todas as noites em frente à televisão, bebericando bourbon num copo de uísque Old Granddad. Myrna jamais conseguira fazer com que o pai se interessasse por ela. Nunca, nem uma única vez, ele havia expressado abertamente o menor amor pela filha.

Quando criança, Myrna fora uma bisbilhoteira inveterada. Um dia, quando o pai estava fazendo atendimentos domiciliares, ela havia vasculhado os compartimentos superiores e as gavetas da escrivaninha de tampo corrediço usada por ele, e tinha encontrado, embaixo de uma pilha de prontuários de pacientes, um maço de cartas de amor amareladas, algumas de sua mãe e outras de uma mulher chamada Christine. Enterrados sob as cartas, ela ficara surpresa ao encontrar alguns de seus poemas, escritos num papel que parecia estranhamente úmido. Pegara-os de volta e, num impulso, roubara também as cartas de Christine. Dias depois, numa tarde nublada de outono, enfiara todas, junto com o restante dos poemas que havia escrito, no centro de um monte de folhas secas de sicômoro, e ateara fogo em tudo. Passara a tarde inteira sentada, vendo o vento fazer o que bem entendia com as cinzas de sua poesia.

A partir desse dia, um véu de silêncio descera entre ela e o pai. Era impenetrável. Ele nunca havia admitido ter violado a privacidade da filha. Ela nunca havia confessado ter violado a dele. O pai nunca mencionara as cartas desaparecidas, nem Myrna tinha falado de seus poemas sumidos. Apesar de nunca mais ter escrito outro poema, desde então ela se perguntara por que o pai havia guardado aquelas páginas de seus poemas e por que elas estavam úmidas. Em seus devaneios, às vezes o imaginava lendo-os e chorando diante da beleza do texto. Um dia, fazia poucos anos, a mãe lhe telefonara para dizer que seu pai tinha sofrido um grave derrame. Embora ela tivesse corrido para o aeroporto e tomado o primeiro avião para casa, tinha chegado ao hospital e encontrado o quarto do pai vazio, apenas com o colchão coberto por um lençol de plástico transparente. Minutos antes, os auxiliares de enfermagem do hospital haviam retirado o corpo dele.

Em seu primeiro encontro com o dr. Lash, Myrna ficara surpresa com a antiga escrivaninha de tampo corrediço que havia no consultório. Era igual à de seu pai e, muitas vezes, em seus longos silêncios, ela se pegava contemplando-a. Nunca havia falado com o dr. Lash sobre a escrivaninha e seus segredos, ou sobre os poemas que tinha escrito, ou sobre o longo silêncio entre ela e o pai.

 

Ernest também dormiu mal essa noite. Reviu mentalmente, repetidas vezes, sua apresentação sobre Myrna ao grupo de estudos sobre a contratransferência, que se havia reunido uns dois dias antes, na sala de terapia de grupo de um dos membros, na rua do Divã, como era comumente chamada a parte alta da Sacramento Street. Embora o seminário tivesse começado sem nenhum orientador, as discussões tinham-se tornado tão intensas e tão ameaçadoras em termos pessoais que, alguns meses antes, eles haviam contratado um consultor, o dr. Fritz Werner, um psicanalista já idoso que tinha contribuído com muitos artigos perspicazes para a literatura psicanalítica sobre a contratransferência. A apresentação de Myrna por Ernest havia provocado uma discussão particularmente animada. Apesar de elogiá-lo por sua disposição de se expor ao grupo com tanta franqueza, o dr. Werner também fizera duras críticas à terapia, sobretudo ao comentário sobre a camiseta.

— Por que tanta impaciência? — perguntara o dr. Werner, enquanto raspava o fornilho do cachimbo, enchia-o com fumo Balkan Sobranie, de cheiro acre, calcava-o e o acendia. Ao ser originalmente convidado, ele havia estipulado que seu cachimbo faria parte do trato. — Quer dizer que ela se repete, não é? — continuara. — E choraminga? E lhe faz pedidos impossíveis? Critica você e não se porta como uma boa paciente agradecida? Ora, meu rapaz, você só a atende há quatro meses! Isso dá quanto: um total de 15 ou 16 sessões? Ora, tenho atualmente uma paciente que, durante o primeiro ano inteiro, com quatro sessões por semana, o que dá duzentas horas, simplesmente se repetiu. Vez após outra, o mesmo lamento, o mesmo anseio por pais diferentes, amigos diferentes, um rosto diferente, um corpo diferente: o mesmo anseio pelo que nunca poderia existir. Acabou ficando farta de tanto se escutar, farta de seu próprio ciclo repetitivo. Ela mesma percebeu que estava desperdiçando não apenas as sessões de análise, mas sua vida inteira. Não se pode atirar a verdade no rosto dos pacientes: a única verdade real é aquela que descobrimos por nós mesmos.

"Atenção uniformemente suspensa, meu rapaz", dissera o dr. Werner, em tom firme. "É isso que você precisa dar ao paciente. Atenção uniformemente suspensa, palavras tão verdadeiras hoje como quando Freud as enunciou pela primeira vez. É isso que se exige de nós: que escutemos as palavras do paciente sem idéias preconcebidas, sem preconceito, sem reações pessoais que limitem nossa visão. Esse é o coração e a alma de toda a empreitada analítica. Retire isso e o processo inteiro vai à falência."

Nesse ponto, o seminário havia explodido, todos falando ao mesmo tempo. A crítica feita a Ernest pelo dr. Werner, como um relâmpago, tinha atraído para si a tensão que vinha crescendo fazia meses. Os participantes, todos ansiosos por aperfeiçoar suas habilidades, andavam irritados com o que percebiam como o elitismo arrogante de seu idoso consultor. Eles eram os soldados enlameados, sujos de cocô, que trabalhavam nas trincheiras. Dia após dia, enfrentavam as condições clínicas sumamente comprometidas que eram impostas pela força avassaladora das administradoras de planos de saúde [APS], e se inflamavam com a indiferença mais do que óbvia do dr. Werner às realidades de sua clínica. Como um dos afortunados que não tinham sido afetados pela catástrofe do atendimento administrado, o dr. Werner não aceitava planos de saúde; simplesmente mantinha sua prática de receber pacientes ricos em análise, quatro vezes por semana, e podia se dar ao luxo de trabalhar com vagar, de deixar a resistência do paciente se esgotar por si só. Os integrantes do seminário espinhavam-se com a forma intransigente com que ele endossava a linha psicanalítica ortodoxa. E a segurança e presunção dele, sua aceitação dos dogmas institucionalizados, sem nenhum questionamento, de tudo isso eles também se ressentiam, com o azedume e a inveja que os céticos angustiados sempre reservaram para os fiéis confiantes e animados.

— Como é que o senhor pode dizer que o Ernest só fez 14 sessões com ela? — um deles havia perguntado. — Tenho sorte quando um plano de saúde me autoriza oito sessões. E só quando consigo arrancar do paciente uma das palavras mágicas, suicídio, vingança, incêndio premeditado ou homicídio, é que tenho a chance de mendigar mais algumas sessões a um gerente sem formação clínica, cujo emprego depende de rejeitar o maior número possível dessas solicitações.

Outro havia afirmado:

— Não estou tão certo quanto o senhor, dr. Werner, de que o Ernest tenha agido mal. Talvez a piada sobre a camiseta não tenha sido um erro. Talvez tenha sido justamente o que essa paciente precisava ouvir. Já falamos aqui de a sessão de terapia ser um microcosmo da vida do paciente. Logo, se ela entedia e frustra o Ernest, sem dúvida faz a mesma coisa com todas as outras pessoas à sua volta. Talvez ele lhe esteja fazendo um favor ao informá-la disso. Talvez ele não disponha de duzentas sessões para deixar que ela se impaciente consigo mesma.

E outro:

— Às vezes, dr. Werner, esse processo analítico aprimorado é simplesmente um exagero, simplesmente preciosista demais, sem nenhum contato com a realidade. Essa história de o inconsciente empático do paciente sempre captar os sentimentos do terapeuta é uma coisa que eu não engulo. Em geral, meus pacientes estão em crise. Fazem uma sessão por semana, não quatro, como os seus, e ficam ocupados demais, sufocados demais por seus próprios problemas para entrar em sintonia fina com as nuances do meu estado de espírito. Essa captação inconsciente dos sentimentos do terapeuta, meus pacientes não têm tempo, não têm desejo disso.

O dr. Werner não pudera deixar passar essa observação:

— Sei que este seminário é sobre a contratransferência, não sobre técnicas terapêuticas, mas vocês não têm como mantê-las separadas. Uma ou sete vezes por semana, não faz diferença. O manejo da contratransferência sempre influi na terapia. Em algum nível, os sentimentos do terapeuta pelo paciente invariavelmente se transmitem. Nunca vi isso falhar! — dissera ele, agitando o cachimbo no ar para dar maior ênfase. — E é por isso que temos de compreender, elaborar e reduzir nossas reações neuróticas aos pacientes.

"Aqui, no entanto", continuara o dr. Werner, "nesse caso da camiseta, não estamos nem mesmo considerando nuanças; não estamos lidando com as percepções sutis do paciente sobre os sentimentos do terapeuta. O dr. Lash insultou abertamente a paciente, sem necessidade de qualquer trabalho de adivinhação sofisticado. Não posso fugir a minha responsabilidade de rotular isso de um flagrante erro terapêutico, um erro que ameaça as bases da aliança terapêutica. Não deixem que o espírito californiano do 'vale tudo, tudo é permitido', contamine a sua terapia. A anarquia e a terapia não são compatíveis. Qual é o seu primeiro passo na terapia? Vocês têm que estabelecer uma estrutura de segurança. Como é que, depois desse incidente, a paciente do dr. Lash poderá fazer associações livres? Como poderá confiar em que o terapeuta vá considerar suas palavras com a atenção uniformemente suspensa?"

— Será que a atenção uniformemente suspensa é possível para algum terapeuta? — perguntara Ron, um terapeuta muito barbudo e emotivo, e um dos amigos mais íntimos de Ernest; desde a faculdade de medicina, os dois se ligavam por seu iconoclasmo. — Para Freud, não foi. Veja os casos dele: Dora, o Homem dos Ratos, o Pequeno Hans. Ele sempre entrou na vida dos pacientes. Não creio que seja humanamente possível manter uma postura de neutralidade; é o que afirma o novo livro de Donald Spence. A gente nunca apreende realmente a experiência real do paciente.

— Isso não quer dizer que se deva desistir de tentar escutar sem deixar os sentimentos pessoais contaminarem a cena — retrucara o dr. Werner. — Quanto mais neutro é o terapeuta, mais ele se aproxima do sentido original do paciente.

— Sentido original? Descobrir o sentido original do outro é uma ilusão — replicara Ron. — Olhe para os furos nas vias de comunicação. Primeiro, alguns sentimentos dos pacientes se transformam em suas próprias imagens, depois, em seu vocabulário favorito...

— Por que você disse "alguns"? — perguntara o dr. Werner.

— Porque muitos dos sentimentos deles são inefáveis. Mas me deixe terminar. Eu estava falando de os pacientes transformarem imagens em palavras: nem mesmo esse processo é puro, porque a escolha das palavras é muito influenciada pela relação imaginária do indivíduo com a platéia. E essa é só a parte referente à transmissão. Depois tem que ocorrer o inverso: para apreenderem o sentido das palavras dos pacientes, os terapeutas têm que retraduzi-las em suas próprias imagens particulares e, em seguida, em seus sentimentos. No fim desse processo, que tipo de equiparação é possível? Qual é a probabilidade de uma pessoa realmente compreender a experiência de outra? Ou, dito de outra maneira, a de que duas pessoas diferentes escutem uma à outra da mesma maneira?

— É como naquela brincadeira de palavras chamada "telefone sem fio" — aparteara Ernest —, que fazíamos quando crianças. Uma pessoa dizia uma frase no ouvido de outra, e esta no de mais outra, e assim sucessivamente, até completar o círculo. Quando a frase voltava ao emissor, pouca relação tinha com a original.

— O que significa que escutar não é gravar — dissera Ron, calcando cada palavra. — Escutar é um processo criativo. É por isso que a pretensão analítica de que a psicanálise é uma ciência sempre me exaspera. Ela não pode ser uma ciência exata, já que a ciência exata exige a medição exata de dados externos confiáveis. Na terapia, isso não é possível, porque escutar é criativo: a mente do terapeuta distorce à medida que mede.

— Todos sabemos que erramos, a não ser que sejamos tolos a ponto de acreditar na percepção imaculada — interviera Ernest, animado. Desde que lera essa expressão em algum lugar, semanas antes, andava ansioso por usá-la na conversa.

O dr. Werner, que nunca fora de evitar o debate, não se deixara perturbar pela saraivada de seus estudantes, e havia respondido em tom confiante:

— Não se deixem cegar pelo falso objetivo da identidade absoluta entre as idéias do falante e as percepções do ouvinte. O melhor que podemos esperar é uma simples aproximação. Mas me digam, há alguém aqui, incluindo minha iconoclástica dupla de irmãos Katzenjammer[19] — e fizera um sinal na direção de Ron e Ernest —, que duvide de que um indivíduo bem integrado tem mais probabilidade de captar com precisão a intenção do falante do que, digamos, um indivíduo paranóico, que vê sinais de perigo pessoal em toda comunicação? Pessoalmente, creio que nos subestimamos com essa lamúria de mea culpa sobre nossa incapacidade de conhecer de fato o outro, ou de reconstruir seu passado. Essa humildade o levou, dr. Lash, à prática duvidosa de se concentrar exclusivamente no aqui-e-agora.

— Como assim? — perguntara Ernest, em tom frio.

— É que o senhor, de todos os nossos participantes, é o mais cético a respeito da recordação precisa e de todo o processo de reconstrução do passado da paciente. E creio que leva isso tão longe que chega a confundir sua paciente. Sim, não há dúvida de que o passado é impreciso, e de que muda de acordo com o estado de ânimo do paciente, e não há dúvida de que nossas convicções teóricas influem no que a pessoa recorda, mas ainda acredito que por baixo de tudo há um subtexto válido, uma resposta verdadeira à pergunta: "Será que meu irmão me bateu quando eu tinha três anos?"

— Um subtexto válido é uma ilusão antiquada — retrucara Ernest. — Não existe resposta válida a essa pergunta. O contexto, ou seja, se ele bateu de propósito ou de brincadeira, se deu um simples tapinha ou um murro para nocautear, está perdido para sempre.

— Isso mesmo — aparteara Ron. — Ou se ele bateu para se defender, reagindo a você ter batido nele no minuto anterior. Ou em defesa da sua irmã. Ou por ter acabado de ser castigado por sua mãe por alguma coisa que você fez.

— Não existe subtexto válido — repetira Ernest. — É tudo interpretação. Como Nietzsche já sabia, cem anos atrás.

— Será que não estamos nos desviando do objetivo desta reunião? — interrompera Barbara, uma das duas mulheres do grupo. — Da última vez que olhei, ela se chamava seminário sobre contratransferência — e se voltara para o dr. Werner. — Eu gostaria de fazer um comentário sobre o processo. O Ernest fez exatamente o que é para fazermos neste seminário, ou seja, relatou seus sentimentos mais íntimos sobre uma paciente, e depois foi bombardeado por causa disso. Como é possível?

— Certo, certo! — concordara o dr. Werner. O brilho de seus olhos azul-acinzentados mostrava que ele estava gostando da rebelião, do espetáculo de irmãos crescidos que suspendiam a rivalidade e se uniam numa campanha patricida conjunta. Na verdade, estava adorando. "Ora, imaginem só!" pensava com seus botões. "A horda primeva de Freud, viva e enfurecida, bem aqui na Sacramento Street!" Por um instante, considerara fazer essa interpretação ao grupo, mas havia pensado melhor. Os filhos ainda não estavam prontos para ela. Talvez mais tarde.

Em vez disso, tinha respondido:

— Mas guardem em mente que não critiquei os sentimentos do dr. Lash sobre a srta. Myrna. Qual é o terapeuta que já viveu sem ter idéias como essas sobre um paciente irritante? Não, não estou criticando o pensamento dele. Critico apenas sua incontinência, sua incapacidade de guardar seus sentimentos para si.

Isso havia desencadeado outra rodada de protestos. Alguns defenderam a decisão de Ernest de expressar abertamente seus sentimentos. Outros criticaram o dr. Werner por não construir um clima de confiança no seminário. Queriam sentir-se seguros ali. Decididamente, não queriam ter que se esquivar de ataques indiscriminados sobre sua técnica terapêutica, sobretudo quando a crítica se baseava numa abordagem analítica tradicional, que era inadequada a seu atual contexto clínico.

Por fim, o próprio Ernest havia sugerido que a discussão já não estava sendo produtiva e insistira em que o grupo voltasse ao tema de sua contratransferência. Alguns membros falaram então de pacientes similares, que os haviam esgotado e entediado, mas o comentário de Barbara era o que mais havia instigado o interesse de Ernest.

— Essa não parece ser uma paciente resistente qualquer — dissera a terapeuta.

— Você disse que ela o afeta como nenhuma outra pessoa, e que nunca tinha sido tão desrespeitoso com um paciente.

— É verdade, e não sei bem por quê — retrucara Ernest. — Várias coisas nela me exasperam. Fico furioso com os lembretes persistentes sobre o dinheiro que ela me paga. Ela transforma constantemente o processo numa transação comercial.

— E não é uma transação comercial? — interpusera o dr. Werner. — Desde quando? Você lhe presta um serviço e, em troca, ela lhe dá um cheque. Para mim, isso parece comércio.

— Bem, os fiéis de uma paróquia pagam dízimos, mas isso não faz do serviço da igreja um ato de comércio — dissera Ernest.

— Ah, faz sim! — insistira o dr. Werner. — Simplesmente, as circunstâncias são mais refinadas e sutis. Leia as delicadas letrinhas miúdas no fim dos devocionários: sem o dízimo, acaba não havendo serviço.

— Típico reducionismo analítico, minimizando tudo ao nível mais elementar — dissera Ernest. — Essa eu não engulo. A terapia não é comércio, nem eu sou comerciante. Não é por isso que estou neste campo. Se o dinheiro fosse o mais importante, eu teria escolhido outra coisa: direito, investimentos financeiros, até uma das especialidades médicas ricas, como a oftalmologia ou a radiologia. Vejo a terapia como outra coisa: chamo-a de um ato de caritas. Eu me alistei para uma vida de prestação de serviços. Pelos quais, aliás, também me sucede ser pago. Mas essa paciente vive batendo na minha cara com o dinheiro.

— Você dá e dá — ronronara o dr. Werner, com sua voz sonora e sumamente profissional, parecendo abrandar-se —, mas ela não retribui com nada.

Ernest assentira com a cabeça.

— Exato! Ela não retribui com nada.

— Você dá e dá — repetira o dr. Werner —, dá o que tem de melhor, e ela continua dizendo: "Dê-me alguma coisa que valha a pena."

— É exatamente isso que eu sinto — dissera Ernest, em tom mais suave. Esse diálogo havia ocorrido de modo tão afável que nenhum dos membros do seminário, talvez nem mesmo o próprio dr. Werner, se dera conta da transição dele para um tom profissional sedutor — ou, ao que parecia, da ânsia de Ernest de se aconchegar no calor do consolador terapêutico.

— Você disse que há algo da sua mãe nisso — observara Barbara.

— Dela eu também nunca recebi muita coisa.

— Será que o fantasma dela influi em seus sentimentos pela Myrna?

— Com minha mãe, era diferente. Era eu que procurava me afastar. Sentia vergonha dela. Não gostava de pensar que tinha nascido dela. Quando eu era pequeno, talvez com 8, 9 anos, me sentia sufocado quando ela chegava muito perto. Lembro-me de ter dito a meu analista que mamãe "sugava todo o oxigênio da sala". Essa frase se tornou um lema, um tema fundamental da minha análise: meu analista se referia repetidamente a ela. Eu costumava olhar para mamãe e pensar: "Tenho que amá-la como minha mãe, mas, se ela fosse uma estranha, nada nela me agradaria."

— Pois então — dissera o dr. Werner —, agora sabemos uma coisa importante sobre sua contratransferência. Embora convide sua paciente a chegar mais perto, você lhe transmite, sem intenção, uma mensagem simultânea de "não se aproxime demais". Ela se intrometeria demais, sugaria todo o oxigênio. E não há dúvida de que percebe essa segunda mensagem e está satisfazendo você. Mais uma vez, permitam-me repetir, não podemos esconder esses sentimentos dos pacientes. Vou dizer de novo: não podemos esconder esses sentimentos dos pacientes. Essa é a lição de hoje. Não há como enfatizar demais esse ponto. Nenhum terapeuta experiente pode duvidar da existência da empatia inconsciente.

— Há também muita ambivalência em seus sentimentos sexuais por ela — dissera Barbara. — Fiquei impressionada com sua reação aos seios dela, uma reação de anseio e repulsa. Você gosta dos botões da blusa sendo forçados, mas eles lhe trazem lembranças desagradáveis de sua mãe.

— Sim — acrescentara Tom, outro dos amigos mais íntimos de Ernest —, e aí fica constrangido, começa a se perguntar se estaria inadvertidamente grudando os olhos nos seios da moça. Isso acontece muito comigo.

— E essa sua atração sexual por ela, aliada ao desejo de fugir? Como você entende isso? — perguntara Barbara.

— É alguma fantasia primitiva e obscura de uma vagina com dentes dentro de mim, sem dúvida — respondera Ernest. — Mas, mesmo assim, há alguma coisa nessa paciente que desperta particularmente esse medo.

Pouco antes de adormecer, Ernest se perguntou mais uma vez se deveria parar de atender Myrna. "Talvez ela precise de uma terapeuta", pensou. "Talvez meus sentimentos negativos sejam profundos demais, arraigados demais." No entanto, quando ele fizera essa pergunta no grupo do seminário, todos, incluindo o dr. Werner, tinham dito: "Não, siga em frente." Os grandes problemas de Myrna, acharam eles, concerniam aos homens, e seriam mais bem abordados por um terapeuta do sexo masculino. "Lamentável", pensou Ernest: ele realmente gostaria de cair fora.

"No entanto", pensou, "e aquela sessão estranha de hoje?" Apesar de ter sido execrável como sempre, na maioria dos aspectos, até em suas referências aos honorários, pelo menos Myrna havia reconhecido a presença dele na sala. Ela o havia desafiado, perguntado se ele gostava dela, feito críticas a ele pelo comentário sarcástico sobre a camiseta. Fora estafante — mas, pelo menos, havia algo diferente, algo real acontecendo.

 

A caminho da sessão seguinte, Myrna tornou a ouvir o ditado odioso do dr. Lash e, em seguida, a fita da sessão anterior. "Nada mau", pensou — gostou do modo como se mantivera firme na última sessão. Gostou de fazer o cretino batalhar por seu dinheiro. Que delícia ele se sentir perturbado pelas farpas dela a respeito de seus honorários! "Vou me certificar", resolveu Myrna, "de lhe dar uma sarrafada sobre o dinheiro em todas as sessões". O longo trajeto passou voando.

— Ontem, no trabalho — começou Myrna —, eu estava sentada no banheiro e ouvi umas moças falando de mim perto da pia.

— É? E o que você ouviu? — perguntou Ernest, que sempre se intrigava com o drama de a pessoa ouvir conversas a seu respeito.

— Coisas de que não gostei. Que tenho obsessão de ganhar dinheiro. Que não falo de outra coisa, não tenho outros interesses. Que sou maçante e que é difícil estar comigo.

— Nossa, isso é terrível! Deve ter sido muito doloroso.

— É, eu me senti traída por gente que eu achava que se importava comigo. Foi um soco no estômago.

— Traída? Que tipo de relacionamento você tinha com elas?

— Bem, elas fingiam gostar de mim, importar-se comigo, ser minhas amigas.

— E as outras pessoas de seu escritório, como se sentem a seu respeito?

— Se não se importa, dr. Lash, tenho pensado no que o senhor costuma dizer sobre ficar aqui, neste consultório. Sabe, em nos concentrarmos em nossa relação. Eu gostaria de experimentar.

— Com certeza — disse Ernest, com o rosto perpassado por uma expressão de assombro. Mal conseguia acreditar no que estava ouvindo.

— Então, deixe-me perguntar — disse Myrna, cruzando as pernas com um chiado alto das meias. — É isso que o senhor sente a meu respeito?

— Isso o quê? — fez Ernest, ganhando tempo.

— O que acabei de dizer. O senhor me acha tacanha? Maçante? Difícil de agüentar?

— Nunca me senti de uma única maneira a seu respeito, ou de qualquer outra pessoa. Isso varia.

— Bem, digamos em geral — insistiu Myrna, que claramente não estava disposta a desistir.

Ernest sentiu a boca ressecar-se. Tentou engolir disfarçadamente.

— Bem, digamos assim: quando você me evita, quando fala de maneira repetitiva sobre certas coisas, por exemplo, suas opções de compra de ações, ou seu conflito permanente com o presidente da sua empresa, é nessas horas que menos me sinto em contato com você. Menos engajado, essa é a expressão melhor.

— Menos engajado? Isso não é "psicologuês" para entediado?.

— Hum, não... quer dizer, entediado, numa situação social, é uma coisa que realmente não cabe na situação terapêutica. O paciente, ou seja, você, não está aqui para me divertir. Eu me concentro em como meu paciente interage comigo e com os outros, para...

— Mas, com certeza — interrompeu Myrna —, o senhor acha alguns pacientes maçantes.

— Bem — disse Ernest, tirando um lenço de papel da caixa na mesinha lateral e amassando-o entre as palmas das mãos —, examino meus sentimentos o tempo todo, e quando fico... hum... menos engajado...

— Quer dizer, entediado?

— Bem, de certo modo. Quando me sinto... hum... distante de um paciente, não penso nisso como uma crítica. Penso nesse sentimento como um dado, e procuro descobrir o que está acontecendo entre nós.

A tentativa de Ernest de secar as palmas das mãos não havia escapado a Myrna. "ótimo", pensou ela. "Um suor de 150 dólares por hora."

— E hoje? Hoje eu estou entediando o senhor?

— Agora? Posso dizer com certeza que hoje você não está sendo cansativa nem difícil de agüentar. Eu me sinto engajado. Um pouco ameaçado. Tentando me manter receptivo, não defensivo. Agora, é sua vez de me dizer o que está sentindo.

— Bem, hoje está legal.

— "Legal"? Será que você pode ser um pouco mais vaga?

— Quê?

— Desculpe, Myrna. Foi uma tentativa precária de ser engraçado. Estou tentando dizer que você parece estar sendo evasiva e guardando para si o que sente.

O tempo havia acabado e, ao se levantar para sair, Myrna disse:

— Posso lhe falar de outra coisa que estou sentindo.

— Pois não?

— Sinto um certo receio de estar pressionando muito você. Fazendo-o trabalhar demais.

— E daí? Qual é o problema de eu trabalhar demais?

— Não quero que o senhor aumente o preço da sessão.

— Até a próxima semana, Myrna.

 

Ernest ficou lendo à noite, mas se sentiu cansado e preocupado. Embora tivesse recebido oito pacientes nesse dia, passou mais tempo pensando em Myrna do que nos outros sete juntos.

 

Nessa noite, Myrna sentiu-se cheia de vida. Depois de navegar pelos serviços de namoro da internet e de espiar uma sala de bate-papo para solteiros, deu um telefonema e teve uma conversa longa e satisfatória com sua irmã, com quem não falava fazia meses.

Quando finalmente adormeceu, sonhou que estava segurando uma mala e olhando pela janela. Um táxi esquisito se aproximou — um táxi alegre e chacoalhante de desenho animado. Na porta estava escrito "Companhia de Táxis Freud". No instante seguinte, ela viu as letras mudarem para "Companhia de Táxis Fraude".

Apesar de sua mágoa e da desconfiança de Ernest, a terapia tinha-se tornado mais interessante para Myrna; até no trabalho ela se pegou na expectativa da sessão seguinte.

"O truque de ter ouvido uma conversa no banheiro havia funcionado bem", pensou com seus botões, e ela pretendia continuar a inventar recursos que lhe permitissem usar em todas as sessões uma parte do ditado entreouvido. Na semana seguinte, seria o rótulo de "choramingona" que ele lhe dera.

— Outro dia, no telefone, minha irmã me disse — comentou maliciosamente — que muitas vezes meus pais me chamavam de "Dona Chorona", quando eu era pequena. Isso bateu fundo, por algum motivo. O senhor disse que eu devia usar este lugar seguro, aqui no seu consultório, para examinar coisas de que não posso falar em outros lugares.

Ernest assentiu vigorosamente com a cabeça.

— Então, eu estava pensando se o senhor acha que eu choramingo muito.

— Que quer dizer com "choramingar", Myrna?

— Bom, o senhor sabe, reclamar, falar com voz chorosa, falar de um jeito que faz as pessoas quererem distância de mim. Eu faço isso?

— O que você acha, Myrna?

— Acho que não. E a sua opinião, qual é?

Impossibilitado de adiar indefinidamente, ou de mentir, ou de dizer a verdade, Ernest ficou sem jeito.

— Se por "choramingar" você quer dizer que tende a se queixar da sua situação de uma forma repetitiva e improdutiva, nesse caso, sim, já a ouvi fazer isso.

— Dê um exemplo, por favor.

— Prometo lhe dar uma resposta — disse Ernest, decidindo que era hora de tecer um comentário sobre o processo —, mas primeiro me deixe dizer uma coisa, Myrna. Estou impressionado com a sua mudança nessas últimas semanas. Foi muito rápida. Você se dá conta disso?

— Mudança, como?

— Como? Em quase todos os sentidos. Veja o que você está fazendo: está sendo direta, concentrada, questionadora. Como você tem dito, está mantendo as coisas aqui na sala, falando do que acontece entre nós.

— E isso é bom?

— É ótimo, Myrna. Fico encantado ao ver isso. Para ser sincero, houve momentos, no passado, em que achei que você mal notava minha presença aqui na sala. Quando digo que é ótimo, quero dizer que você está no caminho certo. Mas ainda me parece muito... como é que eu vou dizer? Muito unilateral, muito... bem, cáustica, como se estivesse sempre aborrecida comigo. Estou errado?

— Não me sinto aborrecida com o senhor, apenas frustrada com toda a minha vida. Mas o senhor disse que me daria exemplos dos meus choramingos.

De repente, aquela mulher que fora lenta demais para ele estava ficando quase rápida demais. Ernest teve de concentrar toda a atenção no diálogo.

— Não tão depressa. Não aceito essa palavra, Myrna. Tenho a sensação de que você está tentando me rotular com ela. Eu disse "repetitiva", e vou lhe dar um exemplo disso: suas queixas sobre o presidente da sua empresa. Sobre como ele é ineficiente, como deveria enxugar mais a firma, despedir os funcionários incompetentes, sobre como o coração mole dele custará um dinheirão a você em suas opções de compra de ações, é a esse tipo de coisa que me refiro. Você discutiu isso repetidamente, uma sessão atrás da outra. Nessas sessões, acabei me sentindo menos envolvido com você, e também menos útil.

— Mas são essas as coisas que me preocupam, e o senhor vive dizendo para eu compartilhar o que estou pensando.

— Tem toda razão, Myrna. Eu sei, é um dilema, mas não é o que você diz, e sim como você diz. Mas não quero minimizar minha afirmação anterior. O simples fato de estarmos conversando com tanta franqueza reafirma o que eu disse há pouco: que você está diferente, trabalhando melhor e com mais afinco na terapia. Está na hora de interrompermos por hoje, mas vamos tentar recomeçar deste ponto na semana que vem. Ah, sim, aqui está a conta do mês passado.

— Hum — fez Myrna, descruzando as pernas, sem se esquecer de esfregá-las vigorosamente uma na outra, com um grande chiado, e de examinar a conta oferecida, antes de jogá-la na bolsa. — Que decepção!

— Que quer dizer?

— Continua a 150 por sessão. Não tenho desconto por ser uma paciente melhor?

 

Na semana seguinte, ao ouvir mais uma vez o texto ditado por Ernest sobre a contratransferência, a caminho da sessão terapêutica, Myrna resolveu direcionar a discussão para os comentários que ele fizera sobre sua aparência física e seus atrativos sexuais. Não foi difícil.

— Na semana passada — começou —, o senhor disse que deveríamos continuar de onde paramos.

— Isso mesmo. Onde vamos começar?

— No fim da última sessão, o senhor estava falando da minha choradeira sobre a situação dos solteiros...

— Opa! Você continua a me citar como se eu tivesse dito que você choramingava. Não foi essa a palavra que usei, repito, não foi. Eu disse alguma coisa sobre seus comentários circulares ou repetitivos.

Myrna, é claro, sabia que não era bem assim. Choramingar tinha sido exatamente o termo dele; ela o ouvira usá-lo na fita. Mas, ansiosa por ir em frente, deixou-o com sua mentirinha.

— O senhor disse que se entediava com a minha conversa sobre a situação dos solteiros. Como vou lidar com isso, se não falar do assunto?

— Com certeza você tem que falar das preocupações principais da sua vida. Como eu disse, a questão é a maneira como fala dessas coisas.

— O que significa "maneira"?

— Bem, você não parecia estar falando comigo. Eu me sentia excluído. Volta e meia, você me falava exatamente das mesmas coisas: a desproporção injusta, o clima de mercado sexual, a sacada geral de dez segundos nos bares de solteiros, a impessoalidade dos serviços de namoro da internet. E em todas as ocasiões você dizia isso como se estivesse falando comigo pela primeira vez, como se nunca pensasse em perguntar a si mesma se já tinha dito aquilo antes, ou o que eu poderia achar de você repeti-lo tantas vezes.

Silêncio. Myrna olhou para o chão.

— Como se sente com o que acabei de dizer?

— Estou digerindo. Tem um gosto meio amargo. Lamento não ter sido mais atenciosa.

— Myrna, não estou julgando você. É bom que o assunto tenha vindo à tona, e é bom que eu tenha respondido. É assim que a gente aprende.

— É difícil pensar nos outros quando a gente se sente aprisionada, sente que está rodando num círculo vicioso.

— Você ficará no círculo vicioso enquanto continuar pensando que é sempre culpa de outra pessoa. Do seu chefe incompetente, por exemplo, ou do panorama dos namoros, que é uma selva, ou das pessoas do marketing, que são umas idiotas. Não digo que essas coisas não sejam verdadeiras; o que estou dizendo — e, nesse momento, Ernest deu tudo de si, enfatizando com vigor cada palavra — é que nisso eu não posso ajudá-la. A única maneira de eu ajudá-la a romper o circulo vicioso é examinar seja o que for, em você, que possa originar ou agravar essas situações.

— Eu vou a eventos de solteiros e há dez mulheres para cada homem — disse Myrna, em tom mais hesitante, com a raiva deixando suas palavras —, e o senhor quer que eu me concentre na minha responsabilidade por isso?

— Espere! Interrompa a ação, Myrna! Estamos aqui de novo, de volta àquele espaço. Escute o que estou dizendo. Eu não discordo: o campo dos namoros é difícil. Ouça-me: eu não discordo. Mas nossa tarefa é ajudá-la a fazer mudanças em você que possam melhorar essa situação. Olhe, vou falar sem rodeios. Você é uma mulher inteligente e atraente, muito atraente. Se não ficasse atada por sentimentos perturbadores, como o ressentimento e a raiva, o medo e a competitividade, não teria nenhuma dificuldade em encontrar um parceiro adequado.

Myrna ficou abalada com a franqueza do dr. Lash. Embora soubesse que devia parar e responder à colocação dele, persistiu em seus planos.

— O senhor nunca tinha dito nada sobre eu ser atraente.

— Você não se considera atraente?

— Às vezes sim, às vezes não. Mas não recebo muita confirmação dos homens. Bem que poderia usar um feedback direto seu.

Ernest fez uma pausa. Quanto dizer? Saber que teria de repetir suas palavras no seminário sobre contratransferência, dali a poucas semanas, deu-lhe o que pensar.

— Tenho um palpite que, se os homens não estão sendo receptivos, não é por causa da sua aparência física.

— Se o senhor fosse solteiro, seria receptivo a minha aparência física?

— É a mesma pergunta; já a respondi. Eu disse há um minuto que você é uma mulher atraente. Portanto, diga-me: o que está realmente perguntando?

— Não, eu estou fazendo uma pergunta diferente. O senhor disse que eu sou atraente, mas não disse se o senhor reagiria a meus atrativos.

— Reagiria?

— Dr. Lash, o senhor está se esquivando. Acho que sabe o que quero dizer. Se me encontrasse não como paciente, mas num local para solteiros, e aí? O senhor me daria uma olhada de dez segundos e iria embora? Ou será que flertaria comigo, ou tentaria, quem sabe, uma transa de uma noite, planejando sumir depois?

— Será que podemos observar o que está acontecendo conosco hoje? Você está mesmo me colocando na berlinda. Por quê? Qual é a sua recompensa? O que está se passando aí dentro, Myrna?

— Mas não estou fazendo o que o senhor disse que eu devia fazer, dr. Lash? Falar da nossa relação, do aqui-e-agora?

— Concordo. Não há dúvida, as coisas mudaram aqui, e para melhor. Eu me sinto melhor com o modo como estamos trabalhando, e espero que você também.

Silêncio. Myrna recusou-se a enfrentar o olhar de Ernest.

— Espero que você também — insistiu ele, mais uma vez. Myrna fez um aceno quase imperceptível com a cabeça.

— Está vendo? Você me dá um aceno, esse aceno microscópico, embrionário! Três milímetros, no máximo. É disso que estou falando. Mal pude percebê-lo. É como se você quisesse me dar o mínimo possível. É isso que me intriga. Você me parece estar primordialmente perguntando, não falando, sobre nossa relação.

— Mas o senhor disse, e disse mais de uma vez, que a primeira etapa da mudança era receber um feedback.

— Receber e assimilar o feedback. Certo. Mas, nas nossas últimas sessões, você tem apenas colhido reações... é mais um estilo pergunta e resposta. Ou seja, eu lhe dou o feedback e você passa para uma outra pergunta.

— Em vez de fazer o quê?

— Em vez de uma porção de coisas. Por exemplo, em vez de olhar para dentro e examinar, discutir e digerir o significado da reação. Que sensação ela deu, se soou verdadeira ou não, com o que mexeu dentro de você, o que você sentiu por eu ter falado.

— Bom, está bem. Para ser sincera, fico realmente surpresa ao ouvi-lo dizer que me acha atraente. O senhor não age comigo como se pensasse assim.

— Eu a acho atraente, sim, mas, aqui neste consultório, estou mais interessado num encontro mais profundo com você: com a sua essência, com... sei que isto soa piegas, mas com a sua alma.

— Talvez eu não devesse insistir — disse Myrna, sentindo a energia fugir de sua pergunta —, mas minha aparência física é importante para mim, e continuo curiosa a respeito de como o senhor me vê... que traços da minha aparência o atraem, e também a respeito daquela outra pergunta, sobre o que aconteceria se nos encontrássemos socialmente, e não profissionalmente.

"Estou sendo crucificado", queixou-se Ernest consigo mesmo. Seu pior pesadelo sobre o aqui-e-agora se concretizara. Ele havia esgotado todas as suas opções. Sempre tivera medo de um dia ser imprensado na parede desse jeito. O terapeuta típico, é claro, não responderia à pergunta, e sim a devolveria à paciente e exploraria todas as suas implicações. "Por que você está fazendo essa pergunta? E por que agora? E quais são as suas fantasias subjacentes? E como gostaria que eu respondesse?"

Mas essa opção não estava ao alcance de Ernest. Como havia baseado sua abordagem terapêutica rigorosamente num engajamento autêntico, ele não poderia abandoná-la agora e voltar às convenções. Não havia nada a fazer senão se agarrar a sua integridade e mergulhar nas águas frias da verdade.

— Fisicamente, você é atraente em todos os aspectos: rosto bonito, cabelo maravilhosamente sedoso, um corpo sensacional...

— Por "corpo" o senhor se refere a meus seios? — interrompeu Myrna, arqueando quase imperceptivelmente as costas.

— Bem, sim, tudo... seu porte... a elegância... a graça... tudo.

— Às vezes o senhor parece olhar para os meus seios, ou para os botões da minha blusa. — Myrna sentiu uma onda de pena e acrescentou: — Muitos homens olham.

— Se eu olho, não me dou conta.

Aturdido demais para fazer o que sabia que deveria ser feito — encorajá-la a expressar a fundo o que achava de sua aparência, incluindo os seios —, Ernest tentou voltar, aos trancos e barrancos, para um terreno seguro:

— Mas, como eu disse, eu a considero atraente.

— Isso quer dizer que daria em cima de mim, digo, nessa situação hipotética?

— Bem, não estou no mundo dos solteiros... faz algum tempo que tenho um relacionamento..., mas, se me remeter de volta àquela época, eu diria que você seria aprovada em todas as minhas inspeções físicas. Mas algumas outras coisas que andamos discutindo me dariam o que pensar.

— Como o quê?

— Como o que está acontecendo aqui mesmo, neste momento, Myrna. Escute bem o que vou dizer. Você está colhendo e guardando. Está acumulando informações recebidas de mim, mas não está dando nada em troca! Acho que agora vem tentando se relacionar comigo de outra maneira, mas não sinto isso como um compromisso. Ainda não sinto que você se relacione comigo como uma pessoa... é mais como se me considerasse um banco de dados do qual vai fazendo saques.

— Quer dizer que não me relaciono por causa dos meus choramingos?

— Não, não foi isso que eu disse. Myrna, por hoje o nosso tempo acabou e temos que parar, mas, quando ouvir a fita desta sessão, eu gostaria que você escutasse atentamente o que eu lhe disse há um minuto sobre a sua maneira de se relacionar comigo, Acho que é a coisa mais importante que eu já lhe disse.

Depois da sessão, Myrna não demorou muito para colocar a fita no gravador e seguir as instruções de Ernest. Começando por "eu diria que você seria aprovada em todas as minhas inspeções físicas", ouviu atentamente:

 

Mas algumas outras coisas que andamos discutindo me dariam o que pensar. (...) Escute bem o que vou dizer. Você está colhendo e guardando. Está acumulando informações (...) mas não está dando nada em troca! Ainda não sinto que você se relacione comigo como uma pessoa... é mais como se me considerasse um banco de dados do qual vai fazendo saques. (...) quando ouvir a fita desta sessão, eu gostaria que você escutasse atentamente o que eu lhe disse há um minuto (...). Acho que é a coisa mais importante que eu já lhe disse.

 

Myrna trocou as fitas e tornou a ouvir o ditado sobre a contratransferência. Algumas frases calaram fundo:

 

Ela se recusa a se relacionar comigo e não reconhece que não se relaciona — e insiste em que isso não tem mesmo importância. (...) Quantas malditas vezes terei de explicar por que é importante examinar nossa relação? (...) Faz todo o possível para eliminar o menor resquício de proximidade entre nós. Nada do que faço é bom o bastante para ela. (...) Não há ternura (...) é concentrada demais em si mesma (...) não sabe se dar.

 

"Talvez o dr. Lash tenha razão", pensou. "Nunca pensei nele de verdade, em sua vida, sua experiência. Mas posso mudar isso. Hoje. Agora mesmo, a caminho de casa."

 

Mas não conseguiu se manter concentrada por mais de um ou dois minutos. Para esfriar a cabeça, recorreu a uma técnica útil de tranqüilização mental que aprendera anos antes, num fim de semana de meditação em Big Sur (que, em quase todos os outros aspectos, tinha sido uma tapeação). Mantendo parte da mente na estrada, imaginou com o restante uma vassoura que varresse para longe qualquer idéia solta que aparecesse. Depois, concentrou-se apenas em sua respiração, na inspiração do ar frio e na expiração do ar ligeiramente aquecido no ninho de seus pulmões.

Bom. Já com a cabeça mais calma, deixou que o rosto do dr. Lash aparecesse, primeiro sorridente e atento, depois franzindo o cenho e desviando o olhar. Nas semanas anteriores, desde que ouvira o ditado dele, os sentimentos de Myrna em relação ao terapeuta haviam chacoalhado loucamente. "Uma coisa eu tenho que dizer a favor dele", pensou: "o homem é persistente. Há semanas que venho imprensando o pobre sujeito na parede. Fazendo-o suar. Socando-o repetidamente com suas próprias palavras. Mas ele vem segurando a barra. Agüentando firme. Não joga a toalha. E não há nada de esquivo nele: nada de sair de fininho, nada de desvios suspeitos, nada de tentar se safar com mentiras, como eu faria. Bom, talvez uma mentirinha, como negar que disse 'choramingona. Mas pode ser que só estivesse tentando me poupar desse sofrimento."

Myrna saiu do devaneio bem a tempo de pegar o acesso à rodovia 380 e, em seguida, tornou a resvalar sem esforço para a fantasia. "O que ele deve estar fazendo agora? Ditando? Tomando notas sobre a nossa sessão? Guardando-as num compartimento da escrivaninha? Ou será que só está sentado junto à escrivaninha, pensando em mim, neste exato momento? Aquela escrivaninha. A escrivaninha do papai. Será que papai está pensando em mim? Pode ser que ele ainda esteja em algum lugar, talvez esteja me observando. Não, o papai virou pó. Uma caveira nua e brilhosa. Um monte de pó. E todas as idéias dele a meu respeito — pó também. E as lembranças, os amores, os ódios, o desânimo dele, tudo pó. Não, menos do que pó — são apenas pulsos eletromagnéticos desaparecidos há muito tempo, sem deixar vestígio. Sei que papai deve ter gostado de mim — dizia a todo mundo que me amava, disse à tia Eileen, à tia Maria, ao tio Joe, mas não conseguia dizê-lo a mim. Se ao menos eu pudesse ter ouvido suas palavras!"

Saindo da pista, Myrna estacionou num mirante cuja paisagem se estendia pelo vale, desde São José até São Francisco. Olhou para cima pelo pára-brisa. "Que céu", meditou. "Um céu grande. As palavras... com que palavras descrevê-lo? Vasto, majestoso, com porções de nuvens. Fitas translúcidas de nuvens. Não, diáfanas. Melhor assim, adoro essa palavra. Diáfanas... fitas diáfanas de nuvens. Ou uma tela de nuvens estriadas... nuvens como areia alvíssima, enrugada por suaves ondas de vento, quem sabe? Bonito. Bonito. Gosto disso"

Pegou uma caneta e rabiscou as frases no verso de um recibo cor-de-rosa de lavanderia que encontrou no porta-luvas. Dando a partida no carro, preparou-se para retomar o caminho, mas desligou o motor e pensou um pouco mais.

"Mas, vamos supor que papai tivesse dito as palavras, e aí? 'Myrna, eu amo você... Myrna, você me enche de orgulho... amo você... amo você... Myrna, você é a melhor, a melhor filha que um homem já teve.' E então? Ainda pó. As palavras se decompõem ainda mais depressa do que o cérebro."

"E daí que ele nunca as tenha dito? Algum dia houve quem as dissesse a ele? Seus pais? Nunca. As histórias que ouvi sobre eles... aquele pai que se encharcava de bourbon e morrera pálido e calado, e aquela mãe que repetira a dose duas vezes, casando-se com outros alcoólatras. E eu? Algum dia eu disse essas palavras a ele? Já as disse a alguém?"

Myrna estremeceu e saiu com um empurrão do devaneio. Como aquilo era estranho nela, aquelas idéias. A linguagem, a busca por palavras bonitas. E as lembranças do pai? Isso também era estranho: raras vezes ela o visitava mentalmente. E onde estava sua determinação de se concentrar no dr. Lash?

Tentou de novo. Por um instante, imaginou-o sentado diante da escrivaninha de tampo corrediço, mas outra imagem do passado superpôs-se. Alta madrugada. Fazia muito tempo que ela devia estar dormindo. Andando pé ante pé no corredor. Uma réstia de luz que vinha por baixo da porta de seus pais. Vozes sussurradas, íntimas. O nome dela murmurado: "Myrna." Eles deviam estar deitados sob a manta grossa e felpuda. Conversa de casal. Falando dela. Myrna estirada no chão, espremendo o rosto contra o linóleo frio, vermelho-beterraba, fazendo força para enxergar por baixo da porta, para ouvir as palavras secretas dos pais a seu respeito.

"E agora" pensou, olhando para o walkman, "capturei o segredo, sou dona das palavras. Aquelas palavras no fim da sessão, como foram mesmo?" Myrna colocou a fita, rebobinou-a por alguns segundos e ouviu:

 

...Myrna. Escute bem o que vou dizer. Você está colhendo e guardando. Está acumulando informações recebidas de mim, mas não está dando nada em trocai Acho que agora vem tentando se relacionar comigo de outra maneira, mas não sinto isso como um compromisso. Ainda não sinto que você se relacione comigo como uma pessoa (...) é mais como se me considerasse um banco de dados do qual vai fazendo saques.

 

Fazendo saques de um "banco de dados". Ela acenou com a cabeça. Talvez ele tivesse razão.

Deu a partida no motor e tornou a entrar na auto-estrada 101.

 

Myrna sentou-se em silêncio no começo da sessão seguinte. Impaciente como sempre, Ernest tentou instigá-la:

— Por onde andaram seus pensamentos nestes últimos minutos?

— Acho que eu estava pensando em como o senhor começaria a sessão.

— Qual seria a sua preferência, Myrna? Se um gênio lhe concedesse um desejo, como gostaria que eu começasse? Qual seria a afirmação ou pergunta perfeita?

— O senhor poderia dizer "Oi, Myrna, estou muito contente por vê-la".

— Oi, Myrna, estou muito contente por vê-la hoje — repetiu Ernest de imediato, escondendo seu espanto pela resposta da paciente. Nos últimos encontros com ela, essas tiradas iniciais inteligentes tinham sido um fracasso invariável, e nesse dia ele fizera a pergunta com pouca esperança de sucesso. Que maravilha ela ter-se tornado tão audaciosa! E o fato de ele estar realmente contente por vê-la, isso era ainda mais maravilhoso.

— Obrigada. Foi gentil da sua parte, apesar de o senhor não ter falado com perfeição.

— Como?

— O senhor acrescentou uma palavra — disse Myrna. — A palavra hoje.

— E as implicações são...?

— Lembra-se, dr. Lash, de que o senhor sempre me dizia que "uma pergunta não é pergunta quando se sabe a resposta"?

— Tem razão, mas seja tolerante comigo. Lembre-se de que às vezes o terapeuta tem privilégios na conversa.

— Bem, para mim parece claro que "hoje" implica que, muitas vezes, o senhor não ficou contente por me ver.

"Teria sido recentemente", pensou Ernest, "que considerei Myrna uma retardada interpessoal?"

— Continue — disse-lhe, sorrindo. — Por que eu não iria querer vê-la?

Myrna hesitou. Não era esse o rumo que queria que a sessão tomasse.

— Tente. Experimente abordar essa questão, Myrna. Por que você acha que nem sempre fico contente em vê-la? Faça associações livres, diga qualquer coisa que lhe vier à cabeça.

Silêncio. Ela sentiu as palavras se mexendo, inundando-a. Tentou escolhê-las, contê-las, mas havia palavras demais, todas jorrando depressa em sua cabeça.

— Por que o senhor não fica contente em me ver? — explodiu. — Por quê? Eu sei por quê. Porque sou indelicada, vulgar e de mau gosto...

"Não quero fazer isso", pensou com seus botões, mas não conseguiu parar, sentindo-se impelida a estourar a bolha, a limpar o espaço entre eles:

— ... e porque sou rígida e tacanha, e nunca digo nada bonito nem poético!

"Chega, chega!", disse a si mesma, tentando fechar a boca, trincar os dentes. Mas as palavras subiram com uma força a que Myrna não pôde resistir, e ela as vomitou:

— E não sou meiga, e os homens querem fugir de mim... tenho arestas demais, cotovelos, joelhos... e sou muito ingrata, e poluo o nosso relacionamento falando da conta, e... e... — interrompeu-se por um momento e concluiu, com um toque de capricho: — E meus peitos são grandes demais.

Esgotada, afundou na cadeira. Tinha dito tudo.

Ernest ficou perplexo. Dessa vez, foi ele quem ficou sem fala. Aquelas palavras — as palavras dele. De onde teriam vindo? Olhou para Myrna, que estava recurvada, segurando a cabeça nas mãos. Como reagir? A cabeça dele girava. Ernest teve um impulso malicioso de dizer "seus peitos não são grandes demais", porém, graças a Deus, não o fez. A piada não teria cabimento. Ele sabia que devia acolher as palavras de Myrna com a máxima seriedade e respeito possíveis. Agarrou-se ao colete salva-vidas do qual, nos mares mais tempestuosos, os terapeutas sempre dispõem: comentar o processo, isto é, comentar as implicações da relação, do dito do paciente, e não seu conteúdo.

— Há muita emoção nas suas palavras, Myrna — disse, baixinho. — Parece que você queria dizê-las há muito tempo.

— Acho que sim — fez ela, respirando fundo umas duas vezes. — As palavras tinham vida própria. Queriam sair.

— São um balde de raiva de mim... talvez de nós dois.

— Nós dois? Do senhor e de mim? É provável. Mas está diminuindo. Talvez seja por isso que pude dizer essas coisas hoje.

— É bom saber que você confia mais em mim.

— Na verdade, hoje eu queria falar de outras coisas.

— Tais como? — indagou Ernest, ávido por se agarrar a essa idéia: qualquer coisa para mudar de rumo.

Enquanto Myrna parava para respirar, ele refletiu sobre a estranha intuição da moça, sobre a explosão assustadora de suas palavras. Era incrível que ela houvesse captado tantas coisas a seu respeito! Como teria descoberto? Só havia uma possibilidade: empatia inconsciente. Exatamente como dissera o dr. Werner. "Quer dizer que Werner tivera razão o tempo todo", pensou. "Por que não me permiti aprender com ele? Que idiota, que panaca eu fui! Como foi que o Werner disse? Que eu sou um irmão Katzenjammer iconoclástico? Bom, talvez esteja na hora de eu deixar de lado um pouco da minha contestação juvenil e dessa história de desmascarar os mais velhos — nem tudo o que eles dizem é besteira, Nunca mais duvidarei do poder da empatia inconsciente. Talvez tenha sido esse tipo de experiência que fez Freud levar a sério a idéia de comunicação telepática."

— Por onde anda seu pensamento, Myrna? — finalmente perguntou.

— Há muito o que dizer. Não sei direito por onde começar. Aqui está um sonho que tive ontem à noite — e pegou um bloquinho em espiral. — Sabe, eu o anotei... está aí uma novidade.

— Você está levando nosso trabalho mais a sério.

— Tenho que fazer valer meus 150 paus. Xi! — e cobriu a boca com as mãos. — Não foi isso que eu quis dizer... desculpe... por favor, aperte a tecla de apagar.

— Tecla apertada. Você se pegou em flagrante, isso é ótimo. Talvez tenha ficado alvoroçada por eu lhe fazer um elogio.

Myrna fez que sim, mas se apressou a continuar e leu o sonho anotado no bloco:

 

Eu tinha feito uma plástica no nariz. Eles tiraram o curativo. O nariz estava legal, mas a pele tinha sido franzida ou puxada para cima, e minha boca não fechava, e era um buraco enorme, escancarado, que tomava metade do meu rosto. Dava para ver minhas amígdalas — enormes, inchadas, inflamadas, vermelhas. Aí entrou um médico com uma aura. De repente, consegui fechar a boca. Ele me fez perguntas, mas me recusei a responder. Eu não queria abrir a boca e mostrar a ele aquele buraco enorme, escancarado.

 

— Aura? — perguntou Ernest, quando ela parou.

— É, sabe... radiância, auréola sagrada, halo.

— Ah, certo. Sim, aura. E então, Myrna, o que lhe ocorre sobre o sonho?

— Acho que sei o que o senhor vai dizer.

— Fique com a sua experiência. Tente fazer associações. O que lhe ocorre de imediato, ao pensar no sonho?

— O buraco enorme no meu rosto.

— O que lhe vem à cabeça ao pensar nele?

— Cavernoso, abissal, abismal, negro como tinta. Quer mais?

— Continue.

— Gigantesco, vasto, estupendo, monstruoso, tartáreo.

— Tartáreo?

— É, sabe, infernal... ou o abismo nas profundezas do Hades onde os Titãs ficavam confinados.

— Ah, certo. Palavra interessante. Hum... mas, voltando ao sonho. Você disse que havia alguma coisa que não queria que os médicos vissem, e suponho que eu seja o médico, não é?

— É difícil contestar isso. Não quero que o senhor veja o grande buraco escancarado, o vazio.

— E, se você abrir a boca, eu o verei. Por isso você se resguarda, protege suas palavras. Ainda está vendo o sonho, Myrna? Ainda está vivido?

Ela acenou com a cabeça.

— Continue olhando para ele. Qual é a parte que chama a sua atenção agora?

— As amígdalas... há muita energia nelas.

— Olhe para elas. O que está vendo? O que lhe vem à cabeça?

— São quentes, escaldantes.

— Continue.

— Prestes a estourar, túrgidas, inflamadas, distendidas, intumescentes, turgescentes...

— Intumescentes, turgescentes? E aquela outra, "tartáreo"? E quanto a essas palavras, Myrna?

— Andei consultando um dicionário de sinônimos essa semana.

— Hum, eu gostaria de saber mais sobre isso, mas, por enquanto, vamos ficar com o sonho. Essas amígdalas: elas ficam visíveis quando você abre a boca. Assim como o vazio. E estão prestes a explodir. O que sairá delas?

— Pus, vileza, uma coisa odiosa, hedionda, repugnante, nojenta, execrável, abominável, repulsiva...

— Mais consultas ao dicionário?

Myrna fez que sim.

— Então, o sonho sugere que você está consultando um médico, eu; e que nosso trabalho tem revelado coisas que você não quer que sejam vistas, ou não quer que eu veja: um imenso vazio, e amígdalas prestes a estourar e a vomitar alguma coisa vil. De algum modo, as amígdalas vermelhas e escaldantes me fazem pensar em minutos atrás, quando todas aquelas palavras irromperam de você.

Ela tornou a assentir com a cabeça.

— Fico emocionado por você trazer esse sonho — disse Ernest. — É um sinal de confiança em mim e no que temos feito juntos. É um bom trabalho... verdadeiro, um ótimo trabalho.

Fez uma pausa e acrescentou:

— E agora, podemos falar do dicionário?

Myrna descreveu o fim incendiário de sua carreira de poetisa, quando menina, e seu desejo crescente de escrever um poema.

— Hoje de manhã, quando escrevi o sonho, eu sabia que o senhor perguntaria pelo buraco e pelas amígdalas, por isso procurei palavras interessantes.

— Parece que você queria alguma coisa de mim.

— Seu interesse, eu acho. Não queria mais ser entediante.

— A palavra é sua, não minha. Eu nunca disse isso.

— Mesmo assim, estou convencida de que é isso o que o senhor sente em relação a mim.

— Quero voltar a esse assunto, mas primeiro vamos examinar outra coisa no sonho: o halo em volta do médico.

— A aura... é, foi engraçado. Acho que agora o senhor entrou na categoria do bom-moço.

— Portanto, você tem uma opinião melhor de mim e talvez queira se aproximar mais, mas o dilema é que, se chegarmos perto, talvez eu descubra coisas vergonhosas a seu respeito: talvez um vazio interior, talvez outra coisa... uma raiva explosiva, uma repulsa por si mesma. — Ernest consultou o relógio. — Lamento termos que interromper. A hora passou correndo. Mais uma vez, ótimo trabalho hoje. Foi bom estar com você.

O trabalho prosseguiu com afinco, sólidas sessões terapêuticas, uma atrás da outra. Semana após semana, Ernest e Myrna atingiram novos patamares de confiança, Ela nunca havia se arriscado tanto; ele se sentia privilegiado por ser testemunha dessa transformação. Era por essas experiências que Ernest se tornara psicoterapeuta. Quatorze semanas depois de ter apresentado Myrna pela última vez no seminário sobre contratransferência, ele se sentou diante da escrivaninha, de microfone na mão, e preparou outra apresentação:

 

Aqui é o dr. Lash, ditando notas para o seminário sobre contratransferência. Nas últimas 14 semanas, minha paciente e o processo terapêutico passaram por uma mudança assombrosa. É como se eu pudesse dividir a terapia em duas etapas: antes e depois de meu comentário irrefletido sobre a camiseta.

Minutos atrás, Myrna saiu de meu consultório, e me dei conta de ter ficado surpreso com o fato de a sessão ter passado tão depressa. E lamentei que ela se fosse. Impressionante. Ela costumava me entediar. Agora, é uma pessoa viva e cativante. Faz semanas que não ouço um choramingo. Nos divertimos muito — ela é tão sagaz que tenho dificuldade de acompanhá-la. É franca, introspectiva, produz sonhos interessantes, até brinca com palavras interessantes. Acabaram-se os monólogos: ela tem plena consciência de minha presença na sala e nosso processo tornou-se harmoniosamente interativo. Anseio por estar com ela, tanto quanto com qualquer outro paciente — talvez mais.

A grande pergunta é: como foi que o comentário sobre a camiseta desencadeou essa transformação? Como reconstituir e interpretar os acontecimentos das últimas 14 semanas?

O dr. Werner teve razão ao dizer que o comentário sobre a camiseta foi um erro flagrante, que resultaria numa ruptura da aliança terapêutica. Mas errou completamente quanto a esta última afirmação. Minha tirada irrefletida e insensível revelou-se o incidente crucial da terapia!

Mas ele estava certo — como estava certo! — sobre a capacidade do paciente de captar a contratransferência do terapeuta. Myrna intuiu praticamente todos os sentimentos contratransferenciais que descrevi na última apresentação. E com uma precisão insólita. É o bastante para fazer de mim um kleiniano. Ela não deixou escapar nada, me pegou em todas. Não há um único comentário compartilhado por mim com o grupo, da última vez que a apresentei, que eu não tenha tido que admitir para ela explicitamente. Talvez haja alguma validade na parapsicologia, afinal. E daí se as pesquisas não tiveram resultados positivos? Um incidente notável como esse simplesmente demonstra a irrelevância das pesquisas empíricas.

Por que ela melhorou? Por que mais poderia ter sido se não pelo alerta do comentário sobre a camiseta? Para mim, esse caso demonstrou que pode haver lugar para a franqueza cruel, para o que Synanon chamava de 'amor bruto'. Mas o terapeuta tem que respaldá-lo, tem que ficar presente, tem que se manter franco com o paciente. Isso requer uma relação que precisa estar bem estabelecida, que permita ao terapeuta e ao paciente enfrentar a tormenta que se segue. E, nesses dias controversos, a coisa requer coragem. Na última vez que apresentei Myrna, alguém — creio que foi a Barbara — rotulou o comentário sobre a camiseta de"terapia de choque". Concordo: é exatamente o que ele foi. Mudou Myrna radicalmente e, no período pós-choque, passei a gostar mais dela. Admirei-a pelo modo como agüentou firme e continuou a insistir em minhas colocações francas. Ela tem muita coragem. Deve ter intuído minha admiração crescente. As pessoas gostam de si mesmas quando vêem uma imagem amorosa de si refletida nos olhos de alguém com quem realmente se importam.

 

Enquanto Ernest ditava suas notas para o seminário, Myrna voltava para casa, também pensando nas últimas sessões da terapia. "Um trabalho bom e sólido", dissera o dr. Lash, e era isso mesmo. Myrna estava orgulhosa de si. Nas semanas anteriores, tinha-se aberto como nunca fizera antes. Correra grandes riscos; havia externado e discutido todos os aspectos de sua relação com o dr. Lash. Exceto um, é claro: nunca tinha revelado que ouvira seu ditado.

Por que não? A princípio, tinha sido simplesmente para usufruir o prazer de atormentá-lo com suas próprias palavras. Para ser franca, ela gostara de lhe dar umas cacetadas com seu conhecimento secreto. Houvera momentos — especialmente quando ele parecia muito cheio de si, todo pretensioso e seguro de seu conhecimento superior — em que ela se divertira ao imaginar a expressão dele, quando finalmente lhe contasse a verdade.

Mas as coisas tinham mudado. Nas últimas semanas, à medida que ela se aproximara mais dele, metade da diversão tinha acabado. O segredo se transformara num fardo, num ouriço irritante que ela queria arrancar, e Myrna havia até ensaiado uma confissão. Em mais de uma ocasião, tinha entrado no consultório e respirado fundo, com a intenção de contar tudo. Mas nunca o fizera — em parte por vergonha de ter escondido aquilo por tanto tempo, em parte por se importar de verdade. O dr. Lash tinha feito um jogo franco: não havia negado nenhuma das coisas com que ela o confrontara — quase nada. Mostrara-se dedicado ao bem-estar dela. Por que constranger o pobre coitado agora? Por que lhe causar sofrimento? Essa era a parte do se importar. Mas havia também outra razão. Myrna gostava de ser adivinha, gostava da excitação do conhecimento oculto.

Seu pendor para os segredos vinha se expressando de um modo inteiramente imprevisível. De dicionário na mão, ela dedicava as noites a escrever poemas repletos de temas de trapaça, sigilo, escrivaninhas de tampo corrediço, compartimentos ocultos. A internet era a saída perfeita, e ela mandava muitos poemas para a sala de bate-papo singlepoet.com.

 

Levanto os olhos

para as bordas vedadas de compartimentos alveolados

túrgidos do néctar de mistérios.

Quando eu crescer

terei minhas próprias câmaras,

vou enchê-las de sigilo adulto.

 

O segredo que ela nunca revelara ao pai avultava em grandes proporções. Mais do que nunca, Myrna sentia a presença do pai. Seu corpo esguio e recurvado, seus instrumentos médicos e a escrivaninha com seus segredos exerciam um fascínio especial, que ela tentava expressar na poesia.

 

Presença de ombros caídos, ausente agora e para sempre

estetoscópio envolto em teias de aranha

cadeira rubi de couro rachado

os cubículos da escrivaninha transbordantes do mistério e do aroma

de queridos pacientes mortos

tagarelando no escuro

até as lanças do sol virem silenciá-los

penetrando na poeira

iluminando a mesa de madeira que,

como um prado que um dia teve pés dançantes

e agora reverdece, indolente,

relembra ainda o alvoroço dos tempos habitados.

 

Myrna não havia compartilhado esses poemas com o dr. Lash. Tinha muito o que falar nas sessões de terapia, e a poesia parecia irrelevante. Além disso, talvez seus poemas suscitassem perguntas sobre o tema do sigilo, e talvez levassem diretamente ao segredo da fita ditada. Às vezes ela temia que guardá-lo pudesse criar uma cunha entre os dois. Mas garantia a si mesma que poderia superar isso.

Além disso, não precisava da aprovação do dr. Lash para sua poesia. Havia encontrado afirmação suficiente em outros lugares. A sala de bate-papo da internet, singlepoet.com, estava repleta de homens solteiros que eram poetas.

A vida tinha se tornado empolgante. Acabaram-se as horas extras no escritório no Vale do Silício. Toda noite, Myrna corria para casa para abrir sua caixa de e-mail, entupida de elogios a seus poemas e sua franqueza revigorante. Talvez ela tivesse se precipitado ao descartar como impessoais os relacionamentos virtuais. Talvez a verdade fosse o inverso. Talvez as amizades eletrônicas — por não dependerem de atributos físicos superficiais — fossem mais genuínas e complexas.

Os pretendentes eletrônicos que elogiavam a poesia de Myrna nunca deixavam de incluir seus perfis pessoais e seus números de telefone. A auto-estima dela andava em alta. Ela lia e relia a correspondência dos fãs. Colecionava elogios, perfis, números de telefone, informações. Tinha uma vaga lembrança da advertência do dr. Lash sobre fazer saques de bancos de dados. Mas gostava de colecionar. Elaborou uma escala meticulosa de avaliação dos pretendentes, que ponderava o potencial de rendimentos, as opções de compra de ações, a influência empresarial e a qualidade da poesia, além de atributos pessoais como franqueza, generosidade e expressividade. Vários pretendentes da sala de bate-papo de poesia pleiteavam um encontro cara a cara — um café expresso à tarde, num bar do Vale do Silício, uma caminhada, um almoço, um jantar.

Ainda não. Ela queria mais dados. Mas não demoraria.

 

— Mas, diga-me, Halston, por que você quer interromper a terapia? Parece-me que mal começamos. Só nos encontramos o quê... três vezes? — e Ernest Lash folheou as páginas da agenda. — É, isso mesmo. Este é nosso quarto encontro.

Aguardando pacientemente a resposta, Ernest olhou para a gravata cinza do paciente, com sua estampa de lesmas, e para o colete cinza com seis botões, e procurou lembrar quando fora a última vez que tinha visto um paciente usar um terno completo, com três peças, ou gravatas estampadas.

— Por favor, não leve a mal, doutor — disse Halston. — Não é o senhor; é que há muitos imprevistos acontecendo. É difícil reservar tempo para vir aqui no meio do dia, mais difícil do que eu esperava... causa mais tensão... é um paradoxo,porque, afinal, o objetivo de consultá-lo era reduzir a tensão... E o dinheiro da terapia, não posso negar que isso seja uma das razões... ando com as finanças meio apertadas. Tenho a pensão alimentícia... três mil dólares de pensão por mês... e meu filho mais velho começa as aulas em Princeton no outono... trinta mil por ano... sabe como é. Pensei em cancelar direto a consulta de hoje, mas achei que a coisa certa, a que eu devia ao senhor, era vir para uma última sessão.

De repente, uma das expressões em iídiche usadas pela mãe de Ernest saiu furtivamente de alguma dobra cortical profunda, e ele murmurou para si mesmo: "Geh Gesunter Heit" (Vá com saúde), uma expressão semelhante à bênção que se profere quando alguém espirra. Mas Geh Gesunter Heit, tal como era usada por sua mãe, em tom zombeteiro, era mais um insulto do que uma bênção, e significava "Vá e fique bem longe", ou "Se Deus quiser, vai demorar muito para eu rever você".

"Sim, é verdade", admitiu Ernest para si mesmo, "eu não me importaria se Halston fosse para bem longe e ficasse por lá. Não consigo me interessar por esse homem". Deu uma boa olhada no paciente — um perfil parcial, porque Halston nunca o olhava de frente. Rosto comprido e pesaroso, tez negra como piche — era de Trinidad, trineto de escravos fugitivos. Se algum dia Halston tivera uma centelha, fazia muito tempo que ela havia se extinguido. Era um homem sem brilho, uma compilação de tons de cinza: cabelo grisalho, um cavanhaque perfeitamente aparado e rajado de cinza, olhos de pederneira, terno cinza, meias escuras. E uma cabeça cinzenta e fechada. Não, nenhum vestígio de cor ou animação avivava a mente ou o corpo de Halston.

Geh Gesunter Heit vá com saúde e fique bem longe. Não era isso que Ernest esperava? Uma "última sessão", dissera Halston. "Hum", pensou o terapeuta, "isso soa bem". Eu poderia viver com isso. Estava atolado nessa ocasião, com a agenda superlotada. Megan, uma antiga paciente que ele passara anos sem ver, tinha voltado. Havia tentado o suicídio duas semanas antes e vinha fazendo exigências extraordinárias de seu tempo. Para mantê-la segura e longe do hospital, Ernest precisava vê-la pelo menos três vezes por semana.

"Ei, acorde"!, cutucou-se."Você é terapeuta. Esse homem o procurou para pedir ajuda, e você assumiu um compromisso com ele. Não gosta muito dele? Ele não o distrai? É chato, distante? Parece ter engolido um garfo? Ótimo, esses dados são bons. Use-os! Se é assim que se sente em relação a ele, o mesmo deve acontecer com a maioria das pessoas. Lembre-se da razão para ele ter procurado a terapia, para início de conversa: um profundo sentimento de alheamento."

Era óbvio que Halston andava tenso por causa da mudança de cultura. Morara na Grã-Bretanha desde os 9 anos e só recentemente chegara aos Estados Unidos e à Califórnia, como diretor-gerente de um banco inglês. Mas Ernest achava que o deslocamento cultural era apenas parte da história — havia alguma coisa profundamente distante naquele homem.

"Certo, certo", pensou Ernest, aceitando seu próprio conselho, "não vou dizer, não vou nem pensar em 'Geh Gesunter Heit'". Voltou ao trabalho, escolhendo as palavras com cuidado, para atrair a atenção de Halston:

— Bem, certamente compreendo que você queira reduzir a tensão em sua vida, e não aumentá-la com novas pressões de tempo e dinheiro. Isso faz sentido. Mas, sabe, há uma coisa na sua decisão que me intriga.

— Sim, e é...?

— Bem, fui muito explícito sobre o tempo necessário e os honorários antes de começarmos nossas sessões. Não houve nenhuma surpresa nisso, certo?

Halston acenou com a cabeça.

— Não posso discordar. O senhor está inteiramente certo, doutor.

— Logo, parece lógico supor que há algo além da pressão de tempo e dinheiro. Será alguma coisa ligada a você e a mim? Será que você se sentiria mais à vontade consultando ura terapeuta negro?

— Não, doutor, o senhor errou o alvo. Está malhando em ferro frio, como vocês, americanos, costumam dizer. A diferença racial não é problema. Lembre-se de que passei anos em Eton e mais seis na Escola de Economia de Londres. Lá há pouquíssimos negros. Eu não me sentiria diferente, garanto, consultando um terapeuta negro.

Ernest resolveu fazer uma última tentativa, para nunca ter que se acusar de ter deixado de cumprir suas obrigações terapêuticas.

— Bem, Halston, deixe-me colocar as coisas de outra forma. Compreendo as razões que você deu. Elas fazem sentido. Não se pode censurá-las. Vamos presumir que sejam razões suficientes para interromper. Posso respeitar essa decisão. Mas, antes de darmos a sessão por encerrada, eu gostaria de saber se você consideraria mais uma pergunta.

Halston lançou-lhe um olhar cauteloso e, com um leve aceno da cabeça, fez sinal para que ele prosseguisse.

— Minha pergunta é: poderia haver mais alguma razão? Conheci muitos pacientes... isso acontece com todo terapeuta... que se esquivaram da terapia por razões que não eram lá muito racionais. Se isso se aplica a você, será que se disporia a verbalizar alguma dessas razões?

Fez uma pausa. Halston fechou os olhos. Ernest quase pôde ouvir os cilindros cinzentos da cognição entrando em movimento com um rangido. Será que Halston se arriscaria? "Talvez sim, talvez não", pensou. Viu o paciente abrir a boca, só um pouquinho, como se fosse falar, mas nenhuma palavra saiu.

— Não me refiro a nada de muito especial, Halston. Mas, quem sabe, uma coisinha, um indício de outras razões?

— Pode ser — arriscou-se o paciente — que eu não me encaixe nem na terapia nem na Califórnia.

Paciente e terapeuta fitaram-se, Ernest olhando para as unhas meticulosamente polidas e o colete cinzento de seis botões de Halston, e este, ao que parecia, para o bigode desalinhado e o suéter branco de gola rulê do terapeuta.

Ernest resolveu arriscar um palpite.

— A Califórnia é descontraída demais? Você prefere o formalismo de Londres? Na mosca! O aceno de Halston com a cabeça foi quase animado.

— E quanto a este consultório?

— Sim, aqui também.

— Por exemplo?

— Não se ofenda, doutor, mas estou acostumado a um profissionalismo maior quando consulto um médico.

— Profissionalismo?

Ernest sentiu-se revigorado. Até que enfim acontecia alguma coisa.

— Prefiro consultar médicos que ofereçam um diagnóstico claro e receitem um tratamento.

— E a sua experiência aqui?

— Não tenho a intenção de ofendê-lo, dr. Lash.

— Não me ofenderei, Halston. Seu único compromisso aqui é dizer livremente o que pensa.

— As coisas são... como dizer?... também são informais demais aqui... muito familiares. O seu desejo de que nos tratemos por "você", por exemplo.

— Você vê essa informalidade como uma negação de nossa relação profissional?

— Exatamente. Faz eu me sentir constrangido. Como se estivéssemos tateando e, de algum modo, fôssemos topar juntos com a resposta.

Ernest deixou rolar. Não havia nada a perder. O mais provável é que Halston fosse embora mesmo. "Bem que eu poderia dar-lhe alguma coisa que ele pudesse usar em sua próxima terapia" pensou.

— Entendo sua preferência por papéis mais formais — disse — e aprecio sua disposição de expressar o que sente sobre o trabalho comigo. Deixe-me tentar fazer a mesma coisa e compartilhar minha experiência de trabalhar com você.

Obteve toda a atenção de Halston. Poucos pacientes ficam indiferentes à perspectiva de saber das reações do terapeuta.

— Uma de minhas principais sensações é uma certa frustração... creio que a ver com você ser meio avarento.

— Avarento?

— Avarento... avarento com as palavras. Você não me dá muita coisa. Sempre lhe faço uma pergunta, você retribui com um telegrama conciso. Ou seja, você me dá o mínimo possível de palavras, de detalhes descritivos, de revelações pessoais. E foi justamente por essa razão que tentei estabelecer uma relação mais íntima entre nós. Minha abordagem da terapia depende de os pacientes compartilharem seus sentimentos mais profundos. Na minha experiência, os papéis formais tornam esse processo mais lento, e é essa a razão, minha única razão, para dispensá-los. E também é por isso que muitas vezes lhe peço para examinar o que sente a meu respeito.

— Tudo o que o senhor está dizendo é razoável... tenho certeza de que sabe o que faz. Mas não posso evitar... Essa cultura californiana da emotividade e da proximidade física me deixa com os nervos à flor da pele. É o meu jeito de ser.

— Uma pergunta quanto a isso: você está satisfeito com o seu jeito de ser?

— Satisfeito? — exclamou Halston, com ar perplexo.

— Bem, quando você diz que é o seu jeito de ser, creio que também está dizendo que é desse jeito que você escolhe ser. Por isso eu pergunto: está satisfeito com essa escolha? Com a manutenção dessa distância, com o manter-se tão impessoal?

— Não tenho certeza de que seja uma escolha, doutor. Esse é o meu jeito de ser — repetiu —, é minha constituição mais íntima.

Ernest considerou duas alternativas. Poderia tentar convencer Halston de sua responsabilidade por seu jeito distante, ou dar início a uma última grande investigação do ensimesmamento do paciente num episódio crucial e específico. Optou por esta.

— Bem, deixe-me voltar mais uma vez bem ao começo, à noite em que você deu entrada no pronto-socorro. Deixe-me contar-lhe o meu lado da história. Mais ou menos às quatro horas da manhã, recebi um telefonema do médico do pronto-socorro, descrevendo um paciente em estado de enorme pânico, desencadeado por um pesadelo. Instruí o médico a começar a medicá-lo para o pânico e providenciei um encontro com você duas horas depois, às seis. Quando nos encontramos, você não conseguiu lembrar-se do pesadelo nem de nenhum acontecimento da noite anterior. Em outras palavras, não tive nenhum conteúdo, nada de que partir.

— Mas foi assim; tudo que se refere àquela noite continua a ser um blecaute.

— E assim, tentei contornar a situação, e concordo com você: fizemos poucos avanços. Mas, em nossas três sessões juntos, fiquei impressionado com seu distanciamento geral dos outros, de mim e possivelmente de si mesmo. Creio que essa distância e o seu desconforto por eu questioná-la são a principal motivação do seu desejo de interromper a terapia.

"Deixe-me compartilhar uma segunda observação" prossegui. "Fico impressionado com sua falta de curiosidade a seu respeito. Tenho a sensação de ter que suprir a curiosidade por nós dois, de ter que arcar sozinho com todo o fardo de nosso trabalho."

— Não estou escondendo nada do senhor de propósito, doutor. Por que faria isso? É só o meu jeito de ser — repetiu Halston, no seu estilo rígido.

— Vamos tentar uma última vez, Halston. Colabore comigo. Quero que você examine mais uma vez os acontecimentos do dia que antecedeu a noite do pesadelo. Vamos passar um pente-fino nele.

— Como eu lhe disse, foi um dia normal no banco, e à noite, um pesadelo terrível, do qual me esqueci... e a ida para o pronto-socorro...

— Não, não, já fizemos isso. Vamos tentar outra abordagem. Pegue sua agenda. Vejamos — fez Ernest, consultando seu calendário —, nosso primeiro encontro foi no dia 9 de maio. Dê uma olhada nos seus compromissos da véspera. Comece pela manhã de 8 de maio.

Halston pegou a agenda, abriu em 8 de maio e apertou os olhos.

— Mill Valley — disse. — Ora, por que diabos fui a Mill Valley? Ah, sim, minha irmã. Agora me lembro. Não estive no banco naquela manhã, afinal. Estava investigando Mill Valley.

— O que quer dizer com "investigando"?

— Minha irmã mora em Miami, e a empresa dela vai transferi-la para a região da baía de São Francisco. Ela andou pensando numa casa em Mill Valley, e eu me ofereci para fazer um reconhecimento da cidade... sabe como é, como é o trânsito de manhã, estacionamentos, lojas, as melhores áreas residenciais.

— Ótimo. Excelente começo. Agora, conduza-me pelo resto do dia.

— Ê tudo estranhamente vago, quase sinistro. Não consigo me lembrar de nada.

— Você mora em São Francisco. Lembra-se de ter dirigido até Mill Valley cruzando a ponte Golden Gate? A que horas foi isso?

— Cedo, eu acho. Antes da hora do rush. Talvez às sete horas.

— E depois? Você tinha tomado café em casa? Ou foi em Mill Valley? Tente imaginar a cena. Deixe sua mente vagar livremente até aquela manhã. Feche os olhos, se isso ajudar.

Halston fechou os olhos. Após três ou quatro minutos de silêncio, Ernest perguntou se ele teria adormecido e, em voz baixa, instigou-o:

— Halston? Halston? Não se mexa, fique onde está, mas tente pensar em voz alta. O que está vendo mentalmente?

— Doutor — disse Halston, abrindo lentamente os olhos —, algum dia já lhe falei de Ártemis?

— Ártemis? A deusa grega? Não, nem uma palavra.

— Doutor — fez ele, piscando os olhos e sacudindo a cabeça, como para desanuviá-la —, estou meio abalado. Acabo de ter uma experiência estranhíssima, neste exato momento. Foi como se, de repente, uma fenda se abrisse na minha cabeça e deixasse brotar todos os acontecimentos estranhos daquele dia. Não quero que pense que escondi isso deliberadamente do senhor.

— Fique tranqüilo, Halston. Estou do seu lado. Você começou a falar de Ártemis.

— Bem, só estou pondo as coisas em ordem... é melhor começar pelo começo daquele dia maldito... o dia antes de eu ir parar no pronto-socorro...

Ernest adorava histórias e se reclinou na cadeira, cheio de expectativa. Tinha a viva sensação de que aquele homem, com quem passara três horas enigmáticas, estava prestes a revelar a chave de um mistério.

— Bem, doutor, o senhor sabe que estou sozinho há quase três anos, e sou meio cauteloso... mais do que meio cauteloso... a respeito de outra... hum... ligação. Eu lhe informei que fui profundamente ferido, em termos afetivos e financeiros, pela minha ex-mulher?

Ernest fez que sim. Deu uma espiada no relógio. Droga, restavam apenas 15 minutos. Teria que empurrar Halston, se quisesse ouvir sua história.

— E a tal de Ártemis?

— Bem, pois é, voltando ao assunto, obrigado. É engraçado, mas foi a sua pergunta sobre o café-da-manhã naquele dia que desencadeou alguma coisa. Agora está ficando claro... parei para tomar café num pequeno restaurante no centro de Mill Valley, e me sentei a uma mesa grande e vazia para quatro. Logo depois, o lugar ficou cheio e uma mulher perguntou se podia dividir a mesa comigo. Levantei os olhos e confesso que gostei do que vi.

— Como assim?

— Uma mulher de aparência extraordinária. Linda. Traços perfeitos, sorriso cativante. Da minha idade, acho, por volta dos quarenta, mas com um corpo ágil de adolescente. Um corpo, como dizem os filmes americanos, pelo qual um sujeito poderia morrer.

Ernest olhou para Halston, um Halston diferente e animado, e se sentiu mais receptivo ao paciente.

— Conte-me.

— "Nota dez." Como a Bo Derek. Cintura fina e um busto impressionante. Muitos dos meus amigos britânicos preferem mulheres andróginas, mas eu me declaro culpado de fetichismo em relação aos seios grandes... e não, doutor, não quero mudar isso.

Ernest deu um sorriso tranqüilizador. Mudar a adoração de Halston pelos seios — ou a dele mesmo — não estava em sua programação.

— E aí?

— Bem, comecei a conversar com ela. Seu nome era estranho, Ártemis, e ela parecia... como é que vou dizer? Bem... diferente, estilo Nova Era. Não era o tipo de cliente que costuma aparecer lá no banco. Imagine, passou abacate no pãozinho, depois tirou da bolsa a tiracolo uns pacotinhos plásticos de condimentos e borrifou tudo com sal e sementes de abóbora. E a roupa dela vinha direto da King's Road: blusa florida de camponesa, uma saia florida roxa, comprida, cinto de corda, uma porção de correntes de ouro e contas. Parecia uma hippie madura.

"Mas", continuou, com a história fluindo com mais força ainda, por ter sido represada, "na verdade, ela era pragmática, bem-educada e extremamente lúcida. Fizemos uma amizade instantânea e passamos horas conversando, até a garçonete vir pôr a mesa para o almoço. Eu estava fascinado pela mulher e a convidei para almoçar. E isso, apesar de ter marcado um almoço de negócios. E nem preciso lhe dizer, doutor, que foi uma coisa muito atípica em mim. Na verdade, quase tudo foi atípico. Sobrenatural".

—- Que quer dizer, Halston?

— Eu me sinto esquisito dizendo isto, porque vejo este consultório como um baluarte da racionalidade, mas havia alguma coisa muito estranha em Ártemis... alienígena não seria um termo forte demais... era como se eu estivesse enfeitiçado. Deixe-me prosseguir. Quando ela me disse que não poderia almoçar comigo, porque tinha um compromisso já marcado, perguntei: "E que tal jantarmos, mais tarde?"... de novo, sem nem verificar minha agenda. "É claro", disse ela, e me convidou para jantar em sua casa. Morava sozinha, disse, e estava planejando preparar um guisado de cogumelos, com uns chapéus-de-cobra que tinha colhido na véspera, na floresta do monte Tamalpais.

— E você foi?

— Se fui? É claro que fui! E foi uma das melhores noites da minha vida... pelo menos até um ponto específico.

Halston fez uma pausa, sacudindo a cabeça como fizera quando a lembrança lhe voltara a primeira vez, e continuou:

— Foi extraordinário estar com ela. Tudo fluiu com naturalidade. Um jantar memorável... que cozinheira maravilhosa! E eu tinha levado um vinho californiano de primeira, um cabernet Stag's Leap. E então, depois da sobremesa, um bolo inglês recheado de frutas, castanhas e creme, embebido em vinho, o primeiro que vi neste país... ela foi buscar um pouco de maconha. Hesitei, mas resolvi: "Na Califórnia, viva como os californianos", e dei a primeira tragada da minha vida.

Com uma expressão confusa no rosto, Halston parou de falar.

— E aí? — insistiu Ernest.

— E então, depois de lavarmos a louça, comecei a sentir um desejo quente, prazeroso.

Outra pausa, outra sacudida da cabeça.

— E?

— Foi então que aconteceu a coisa mais extraordinária: Ártemis me perguntou se eu queria ir para a cama com ela. Bem assim, da maneira mais prosaica. Foi muito natural, muito graciosa, muito... muito... sei lá... adulta. Nada daquele típico melodrama americano que eu detesto: "Será que ela quer ou não quer?"

"Santo Deus!" pensou Ernest. "Que mulher, que noite! Que homem de sorte!" E então, tornando a consultar o relógio, apressou Halston:

— Você disse que foi uma das melhores noites da sua vida, mas só até um ponto específico.

— Pois é; o sexo foi puro êxtase. Extraordinário. Diferente de tudo o que eu já tinha sequer imaginado.

— Como assim, extraordinário?

— A coisa ainda é meio vaga, mas me lembro de ela ter-me lambido feito um gatinho, cada centímetro quadrado, da cabeça aos pés, até cada poro do meu corpo se escancarar, implorando mais, formigando de prazer, receptivo ao toque dela, a sua língua, absorvendo o aroma e o calor dela... — e parou de falar. — Fico meio constrangido por expressar tudo isso, doutor.

— Halston, você está fazendo exatamente o que deve fazer aqui. Tente continuar.

— Bem, o prazer continuou numa espiral ascendente. Era uma coisa do outro mundo, acredite. A cabeça do meu... meu... como é que vocês dizem?... meu órgão... foi ficando cada vez mais quente, até eu ter um orgasmo absolutamente incandescente. E então, acho que desmaiei.

Ernest estava perplexo. Seria aquele o mesmo homem maçante e retraído com quem ele havia passado horas entediantes?

— E depois, o que aconteceu, Halston?

— Ah, esse foi o momento decisivo; foi aí que tudo mudou. Quando dei por mim, eu estava em outro lugar. Agora me dou conta de que deve ter sido um sonho, mas, na ocasião, foi tão real que eu era capaz de tocar, sentir e cheirar tudo o que havia nele. Está meio esmaecido, mas me lembro de ter sido perseguido numa floresta por um gato gigantesco e ameaçador... um gato doméstico do tamanho de um lince, mas todo preto, com uma máscara branca sobre os olhos vermelhos e brilhantes, uma cauda grossa e forte, presas enormes e garras de navalha. Ele me perseguia com uma insistência infernal! Ao longe, vi uma mulher nua, parada num lago. Parecia Ártemis, então pulei na água e nadei em direção a ela, em busca de ajuda. Mais de perto, vi que não era Ártemis, e sim um robô de seios enormes, dos quais jorravam jatos de leite. Depois, mais perto ainda, vi que não era leite, mas uma espécie de líquido radioativo reluzente. E então percebi, horrorizado, que eu estava afundado até a altura da coxa naquele troço corrosivo, que começava a devorar meus pés e minhas pernas. Nadei freneticamente de volta para a margem, mas lá, ainda sibilando e à minha espera, estava o maldito gato, agora maior, do tamanho de um leão. Foi nessa hora que pulei da cama e saí correndo, para salvar minha vida. Vesti a roupa enquanto descia a escada e ainda estava descalço quando liguei o carro. Não conseguia respirar, e liguei para meu médico pelo telefone do carro. Ele me instruiu a ir para o pronto-socorro, e foi então que me encaminharam ao senhor.

— E Ártemis?

— Ártemis? Nada. Eu nem quis mais chegar perto dela. Aquela mulher é um veneno. Ainda hoje, o simples ato de falar dela já começa a trazer de volta um pouco daquele pânico. Acho que foi por isso que enterrei toda essa história tão fundo na minha cabeça.

Halston verificou rapidamente sua pulsação e disse:

— Está vendo? Estou acelerado neste momento... 28 batimentos em 15 segundos, cerca de 112 por minuto.

Mas o que ela achou da sua fuga repentina?

— Não sei. Nem me importa. Ela dormiu direto enquanto aquilo tudo acontecia.

— Quer dizer que ela foi dormir ao seu lado, acordou com você desaparecido e não faz a menor idéia do motivo.

— E é assim que vai ficar! Estou lhe dizendo, doutor, aquele sonho veio de outro mundo, de outra realidade... do inferno.

— Halston, temos que interromper. Estamos passando da hora, mas é claro que há muita coisa com que trabalharmos. Em termos mais óbvios, os seus sentimentos em relação às mulheres: você faz amor com uma mulher, depois dá de cara com esse gato que personifica o perigo e o castigo, e depois a abandona sem uma palavra de explicação. E há também os seios que prometem alimento, mas, em vez disso, esguicham veneno. Diga-me, como está o seu desejo de interromper a terapia?

— Até para mim, doutor, é óbvio que há muita coisa para explorar. O mesmo horário está disponível na semana que vem?

— Sim. E parabéns pelo bom trabalho de hoje. Fico contente, Halston, sinto-me honrado por você ter confiado em mim o bastante para lembrar e me revelar todo esse incidente notável e assustador.

 

Duas horas depois, enquanto andava até o Jasmine, um restaurante vietnamita na Clement Street onde costumava almoçar, Ernest teve tempo para pensar em sua sessão com Halston. De modo geral, estava contente com a maneira como havia lidado com a inclinação do paciente a encerrar a terapia. Embora estivesse com os horários sobrecarregados, ele não ficaria satisfeito consigo mesmo se o tivesse simplesmente deixado sair porta afora. Halston estava lutando para entrar em algo importante, e Ernest sabia que sua tática interessada e metódica, mas não exageradamente agressiva, tinha salvado a situação.

Era notável, pensou, como, à medida que ele adquiria mais experiência, um número cada vez menor de pacientes interrompia prematuramente o tratamento. Quando jovem terapeuta, quantas vezes Ernest se sentira ameaçado pelas interrupções, encarando tudo como pessoal e vendo cada paciente que saía como uma derrota pessoal, uma marca de ineficiência, uma vergonha pública! E era grato a Marshal, seu ex-supervisor, por ter-lhe ensinado que esse tipo de reação era uma garantia de ineficácia. Toda vez que os terapeutas deixam seu orgulho ligar-se demais às decisões dos pacientes, toda vez que precisam dos pacientes para permanecer na terapia, é aí que perdem sua eficiência: começam a lisonjear, a seduzir, a dar aos pacientes exatamente o que eles querem — qualquer coisa para fazê-los retornar na semana seguinte.

Ernest também ficou contente por ter respaldado e cumprimentado Halston, em vez de externar dúvidas sobre a autenticidade da rememoração dramática da noite passada com Ártemis. Ele não sabia ao certo como avaliar o que acabara de ouvir. Sabia, é claro, do retorno repentino de lembranças recalcadas, mas tivera muito pouca experiência pessoal com esses fenômenos em seu trabalho clínico. Apesar de relativamente comuns nos distúrbios do estresse pós-traumático, para não falar dos retratos hollywoodianos da terapia, eles eram raros na psicoterapia cotidiana de Ernest.

Mas todos os seus impulsos autocongratulatórios passaram depressa, assim como todas as suas idéias benevolentes sobre Halston. O que realmente captou sua atenção foi Ártemis. Quanto mais pensava no assunto, mais ele se horrorizava com o comportamento de Halston em relação à mulher. Que tipo de monstro faria amor com uma mulher, de uma forma fantástica, e depois a abandonaria sem nenhuma explicação, sem um bilhete, um telefonema? Era inacreditável.

Ernest condoeu-se de Ártemis. Sabia exatamente o que ela devia ter sentido. Uma vez, 15 anos antes, ele havia marcado um encontro para um fim de semana com Judy, uma antiga namorada, num hotel em Nova York. Os dois haviam passado juntos uma noite encantadora, ou assim acreditara Ernest. De manhã, ele tinha saído para um compromisso rápido e voltado com um buquê de flores enorme, cheio de gratidão. Mas nada de Judy Ela se fora sem deixar vestígio. Fizera as malas e sumira — nenhum bilhete, nenhuma resposta aos telefonemas ou cartas posteriores que ele lhe mandara. Nunca tinha havido a menor explicação. Aquilo o deixara arrasado. A psicoterapia nunca havia apagado por completo seu sofrimento e, mesmo agora, passados tantos anos, a lembrança ainda doía. Acima de tudo, Ernest detestava não saber. Pobre Ártemis! Ela dera tanta coisa a Halston, correra tamanhos riscos e, no fim, tinha sido tratada com enorme desconsideração!

Nos dias que se seguiram, Ernest pensou em Halston de vez em quando, mas se deteve com freqüência em Ártemis. Em sua fantasia, ela se transformou numa deusa — bonita, generosa, acolhedora, mas muito magoada. Ártemis era uma mulher para reverenciar, honrar, valorizar; a idéia de depreciar uma criatura dessas mal lhe parecia humana. Como a mulher devia ter ficado atormentada por não saber o que tinha acontecido! Quantas vezes devia ter revivido aquela noite, tentando compreender o que teria dito ou feito para repelir Halston. E Ernest sabia estar numa posição privilegiada para ajudá-la. "Afora Halston", pensou consigo mesmo, "sou o único que conhece a verdade sobre aquela noite".

Muitas vezes, Ernest ficara imerso em fantasias heróicas de salvar donzelas em perigo. Sabia disso a seu respeito. Como poderia não saber? Vez após outra, sua analista, Olive Smith, e seu supervisor, Marshal Strider, haviam esfregado o problema na sua cara. As fantasias de salvação desempenhavam um papel em seus relacionamentos pessoais, nos quais lhe era comum não enxergar os sinais de alerta de incompatibilidades óbvias, e em sua psicoterapia, na qual sua contratransferência às vezes corria solta e o levava a investir exageradamente na cura de pacientes do sexo feminino.

Naturalmente, enquanto ele ponderava sobre a salvação de Ártemis, as vozes de sua analista e de seu supervisor lhe vieram à lembrança. Ernest ouvia e aceitava suas críticas — mas só até certo ponto. No fundo, acreditava que seu investimento exagerado o transformava num terapeuta melhor, num ser humano melhor. É claro que as mulheres deviam ser salvas. Isso era um truísmo evolutivo, uma estratégia de sobrevivência da espécie, incorporada a nossos genes. Muitos anos antes, ele ficara horrorizado, numa aula de anatomia comparada, ao descobrir que a gata que lhe coubera dissecar estava grávida e carregava no útero cinco fetos minúsculos, do tamanho de uma bola de gude. Similarmente, ele abominava caviar, que só se podia obter pela matança de fêmeas prenhes de esturjão e pela pilhagem de suas ovas. O mais horripilante de tudo tinha sido a política nazista de extermínio, que havia levado o terror às mulheres que abrigavam as "sementes de Sara".

Por tudo isso, Ernest nunca questionou sua decisão de persuadir Halston a reparar sua transgressão. "Pense no que ela deve ter sentido" pedia repetidas vezes ao paciente em sessões posteriores, ao que Halston respondia, irritado: "Doutor, o paciente sou eu, não ela." Ou então, recomendava insistentemente a Halston a sabedoria do oitavo e nono passos do programa de recuperação em 12 passos: Faça uma lista de todas as pessoas que você magoou e, sempre que possível, peça desculpas diretamente a elas. Mas nenhum de seus argumentos, por mais hábil que fosse sua formulação, conseguia comover Halston, que parecia inimaginavelmente egocêntrico e insensível. Uma vez, o paciente o repreendeu por sua insensatez: "O senhor não está romanceando demais esse encontro de uma noite? Aquele é o estilo de vida dela. Não fui o primeiro homem que ela abordou, e provavelmente não serei o último. Eu lhe garanto, doutor, que aquela moça sabe cuidar de si."

Ernest se perguntava se Halston vinha fincando pé por pura implicância. Talvez tivesse intuído o envolvimento exagerado do terapeuta com Ártemis e estivesse retaliando, rejeitando automaticamente toda a orientação de Ernest. Mas, de qualquer forma, aos poucos este percebeu que Halston nunca pediria desculpas a Ártemis e que ele, Ernest, teria que assumir esse fardo. Curiosamente, apesar de seus horários apertados, não se incomodou por aceitar a tarefa. Ela lhe pareceu um imperativo moral e passou a ser vista não como um fardo pesado, mas como sua obrigação. Também curiosamente, Ernest, que em geral era até exagerado na auto-analise, submetendo qualquer capricho e qualquer decisão sua a um escrutínio rigoroso e cansativo, não questionou uma única vez sua motivação. Entretanto, percebeu que estava assumindo uma missão pouco ortodoxa e ilegítima — que outro terapeuta já não tinha se encarregado de remediar pessoalmente os malfeitos de seus pacientes?

Apesar de reconhecer que havia necessidade de sigilo e delicadeza, seus primeiros passos foram desajeitados e transparentes:

— Halston, pela última vez. Vamos reexaminar seu encontro com Ártemis e o tipo de ligação que você estabeleceu com ela.

— De novo? Bem, como eu disse, eu estava num café quando...

— Não, tente pintar a cena de maneira vivida e precisa. Descreva o café. A hora. O local.

— Foi em Mill Valley, por volta das oito horas da manhã, numa dessas estranhas inovações californianas que combinam livraria e café.

— E o nome? — insistiu Ernest, quando Halston parou. — Descreva tudo sobre o seu encontro.

— Doutor, não estou entendendo. Por que essas perguntas?

— Atenda-me nisso, Halston. Pintar a cena da maneira mais vivida possível o ajudará a recordar todos os sentimentos que você vivenciou.

Em resposta aos protestos do paciente de que ele não estava interessado em recordar esses sentimentos, Ernest lhe lembrou que o desenvolvimento da empatia era o primeiro passo para aprimorar as relações dele com as mulheres. Por isso, relembrar suas experiências e o que Ártemis pudesse ter experimentado seria um exercício valioso. Era uma lógica pouco convincente, Ernest sabia, mas era plausível.

Enquanto o paciente tornou a contar todos os detalhes daquele dia movimentado, o terapeuta o escutou, mas descobriu apenas mais alguns detalhes novos. O café era o Book Depot, e Ártemis era amante da literatura; essa, julgou Ernest, poderia ser uma informação útil. Ela dissera a Halston estar no meio da releitura dos grandes romancistas alemães — Mann, Kleist, Böll —, e lhe contara que, justamente naquele dia, havia comprado um exemplar da nova tradução de O homem sem qualidades, de Robert Musil.

Dada a desconfiança crescente de Halston, Ernest diminuiu a pressão, por medo de que, a qualquer momento, o paciente pudesse dizer: "Escute, o senhor quer o endereço e o telefone dela?"

O que, é claro, era precisamente o que Ernest queria. Isso lhe pouparia um bocado de tempo. Mas agora ele tinha o suficiente para começar.

 

De manhã bem cedo, dias depois, Ernest foi a Mill Valley, estacionou o carro e entrou na Book Depot. Percorreu os olhos pela livraria comprida e estreita, que um dia fora um depósito ferroviário, e depois examinou o animado café anexo a ela e as cerca de 12 mesas ao ar livre que se aqueciam ao sol matinal. Não encontrando nenhuma mulher que se parecesse com a descrição de Ártemis feita por Halston, aproximou-se do balcão e pediu uma rosca com cobertura extra de cereais à garçonete, cujo nariz e lábios exibiam uma profusão de piercings.

Uma rosca com quê? — perguntou ela.

Ernest deu uma olhada no painel em que estava estampado o cardápio. Nada de abacate. Halston teria inventado? Por fim, resolveu aproveitar o ensejo para pedir uma porção dupla de pepino e couve-de-bruxelas com seu queijo cremoso temperado com ervas e cebolinha.

Quando se acomodava a uma mesa, viu-a entrar. Blusa florida sobre os seios fartos, saia comprida cor de ameixa — o tom favorito de Ernest —, contas, correntes e todo o resto: tinha que ser Ártemis. Mais bonita do que ele a havia imaginado. Halston não mencionara, talvez nem houvesse notado, o cabelo louro e sedoso da mulher, que ela usava num estilo da Europa Central, enrolado num coque e fixado acima da nuca com um prendedor de tartaruga. Ernest sentiu-se derreter: todas as suas encantadoras tias vienenses, os primeiros objetos de seus impulsos eróticos da puberdade, haviam usado o cabelo exatamente assim. Avaliou-a prontamente, enquanto ela fazia seu pedido e pagava no balcão. Que mulher! Encantadora em todos os aspectos: olhos azul-turquesa penetrantes, lábios carnudos, queixo com uma covinha fina, cerca de l,65m de altura, sandálias rasteiras e um corpo provocante, curvilíneo, perfeitamente bem-proporcionado.

Veio então o pedaço que sempre o embatucava: como iniciar uma conversa com uma mulher? Pegou o exemplar de O eleito, de Thomas Mann, que havia comprado na véspera, e o abriu sobre a mesa, com o título bem à mostra. Talvez ele fornecesse o ponto de partida para uma conversa — isso, é claro, se ela escolhesse uma mesa próxima. Ernest deu uma olhada nervosa para o café meio vazio. Muitas mesas disponíveis. Acenou com a cabeça quando ela passou, e Ártemis respondeu com outro aceno, encaminhando-se para uma mesa vazia. Mas então, mirabile dictu, passados uns dois segundos, ela deu alguns passos atrás.

— Ah, O eleito — comentou, inacreditavelmente. — Que surpresa! Fisgara, ela fisgara a isca! Mas Ernest não sabia ao certo como puxar o peixe.

— Hmm... ahn... perdão? — gaguejou. Estava em choque, o choque do pescador resignado com o fracasso, que fica atônito ao sentir o puxão na linha. Ele havia usado o livro como isca em inúmeras ocasiões, ao longo dos anos, e não houvera uma só fisgadinha, nem uma única vez.

— Esse livro — explicou a moça. — Ora, faz anos que li O eleito, mas nunca vi nenhuma outra pessoa lê-lo.

— Ah, eu o adoro, e volto a lê-lo a cada dois, três anos. Também gosto muito de alguns textos mais curtos de Mann, e estou começando a reler tudo que ele escreveu. Este é o primeiro,

— Acabei de reler As cabeças trocadas — disse Ártemis. — Qual é o próximo na sua lista?

— Eu os estou relendo na ordem que me é mais importante. O próximo será a tetralogia José e seus irmãos. E depois, talvez, Confissões do impostor Felix Krull. Mas, não quer sentar-se? — perguntou, erguendo-se parcialmente.

— E por último? — indagou Ártemis, pondo seu pãozinho e seu café na mesa e se sentando de frente para ele.

— A montanha mágica — respondeu Ernest, sem pestanejar, não revelando sem completo assombro por fisgar o peixe nem sua insegurança sobre como puxá-lo — Mas a esse o tempo não fez muito bem; hoje em dia, as conversas intermináveis de Settembrini me parecem maçantes. O Doutor Fausto também está no fim da lista. As preocupações musicológicas são técnicas demais, e receio que sejam chatas.

— Concordo inteiramente com você — disse Ártemis, enfiando a mão na bolsa a tiracolo e tirando um abacate maduro de casca escura e vários saquinhos plásticos de sementes —, embora nunca deixe de me fascinar com a ligação entre Nietzsche e Leverkühn.

— Ah, desculpe, não me apresentei... perdi-me na nossa conversa. Meu nome é Ernest Lash.

— E o meu é Ártemis — disse ela, descascando o abacate, espalhando metade dele no pão e cobrindo tudo com borrifos de vários temperos.

— Ártemis, um belo nome. Sabe, está ficando quentinho lá fora. Que tal pegarmos uma mesa e nos encontrarmos com seu irmão gêmeo?

Ernest fizera direitinho o trabalho de casa.

— Meu irmão gêmeo? — intrigou-se Ártemis, enquanto os dois se mudavam para uma mesa ao sol. — Irmão gêmeo? Ah, Apolo! A dourada luz solar do irmão Apolo. Você é um homem incomum... vivi a vida toda com o meu nome, e você é a primeira pessoa a me dizer isso.

— Mas, sabe — continuou Ernest, — devo confessar que posso deixar Mann de lado por algum tempo, para ler a nova tradução de Wilkins para O homem sem qualidades, de Musil.

— Que coincidência! — comentou Ártemis, arregalando os olhos. — Estou lendo esse livro neste exato momento — disse, tornando a enfiar a mão na bolsa e tirando um exemplar. — É maravilhoso.

Desse momento em diante, a mulher não tirou mais os olhos de Ernest. Na verdade, fixou o olhar de tal modo em sua boca que, a cada dois ou três minutos, Ernest limpava o bigode acanhadamente, para afastar qualquer migalha errante.

— Adoro morar em Marin, mas às vezes não é fácil ter uma conversa séria por aqui — disse Ártemis, oferecendo a Ernest uma fatia de abacate. — A última vez que falei desse livro foi com uma pessoa que nunca tinha ouvido falar em Musil.

— Bem, nem todos estão à altura de Musil — comentou Ernest. "Que pena", pensou ele, "que uma alma como a de Ártemis tivesse tido que agüentar, fosse pelo tempo que fosse, a companhia insossa de Halston".

Nas três horas seguintes, os dois vagaram alegremente pela obra de Heinrich Böll, Günter Grass e Heinrich von Kleist. Ernest olhou para o relógio: quase meio-dia! "Que mulher extraordinária!,"pensou. Embora houvesse desmarcado todos os compromissos da manhã, ele teria cinco sessões consecutivas a partir de uma da tarde. O tempo estava se esgotando, e ele se voltou para o verdadeiro propósito de sua ida ali.

— Logo terei que ir embora — disse —, muito a contragosto, mas meus pacientes me esperam. Nem sei dizer quanto apreciei nossa conversa. Ela realmente fez com que eu me abrisse. E eu precisava disso, neste momento da vida.

— Como assim?

— Tem sido uma fase ruim — suspirou Ernest, esperando que suas palavras, que tinha ensaiado várias vezes na noite anterior, parecessem espontâneas. — Há umas duas semanas, visitei uma antiga namorada. Fazia uns dois anos que não a via, e passamos 24 horas encantadoras juntos. Pelo menos, foi o que eu pensei. De manhã, acordei e ela havia sumido. Desapareceu. Sem deixar sinal de vida. Desde então, tenho andado mal. Muito mal!

— Isso é terrível — comentou Ártemis, mais interessada do que Ernest jamais teria esperado. — Ela era importante para você? Você esperava reatar o namoro?

— Bem, não — fez Ernest, pensando em Halston e em como a moça devia ter-se sentido por causa dele. — Não é bem isso. Ela era... bem, como direi?... era mais uma companheira, uma parceira sexual. Então não estou triste por perdê-la. A verdadeira dor é não saber. Será que o que a fez fugir foi alguma coisa que eu fiz? Será que a magoei de algum modo? Foi alguma coisa que eu disse? Será que fui desatencioso como amante? Será que fui inaceitável, de algum modo fundamental? Você sabe o que quero dizer. Isso mexe com uma porção de coisas ruins.

— Nisso estamos de acordo — comentou ela, balançando a cabeça com ar solidário. — Eu mesma passei por isso... e não faz muito tempo.

— Foi mesmo? É impressionante como parecemos ter coisas em comum. Não deveríamos tentar curar um ao outro? Continuar esta conversa em outro momento... digamos, no jantar, mais tarde?

— Sim, mas não num restaurante. Estou com vontade de cozinhar. Ontem colhi uns cantarelos lindos, que vou usar no preparo de um guisado húngaro de cogumelos. Quer me acompanhar?

 

As sessões terapêuticas nunca tinham demorado tanto a passar. Ernest não conseguia pensar em nada além de Ártemis. Estava encantado com ela. Cutucava-se seguidamente: "concentre-se! Preste atenção! Faça jus aos seus honorários! Tire essa mulher da cabeça!" Mas Ártemis se recusava a ser afastada. Tinha fixado residência em seu córtex frontal e lá ficara. Havia nela algo de misterioso e sedutor, que lhe trazia à lembrança a imortal e irresistível rainha africana que ele se recordava de ter conhecido no romance Ela, de Rider Haggard.

Não lhe escapou que ele estava pensando mais nos encantos de Ártemis do que em aliviar a aflição dela. "Ernest, preste atenção em suas prioridades", repreendeu-se. "O que você está fazendo? Todo esse projeto é suspeito demais, mesmo sem qualquer aventura sexual. Você já anda trilhando um terreno perigoso, espremendo o Halston para obter informações sobre como encontrar Ártemis, transformando-se num terapeuta itinerante não solicitado, que faz visitas domiciliares a uma estranha atraente. Você está sendo exibido", alertou-se. "além de antiético e antiprofissional. Cuidado, cuidado, cuidado!"

— Meritíssimo — imaginou a voz de seu supervisor, trovejando no banco das testemunhas —, o dr. Lash é um clínico excelente e ético, exceto quando, vez por outra, deixa-se pensar com a cabeça de baixo.

"Não, não, não!", protestou ele. "Não estou fazendo nada de antiético. O que tenho em mente é um ato de integridade, um ato de caridade. Halston infligiu de forma cruel uma dor terrível a outra pessoa, e não há como esperar que algum dia se disponha a corrigir o erro. Eu e somente eu posso reparar esse dano, e fazê-lo com rapidez e eficiência."

 

A casa de Ártemis — uma casinha estilo João e Maria, com telhado inclinado de cumeeira alta, adornado por guirlandas vistosas de madeira rendilhada, e cercada por uma densa fileira de juníperos podados — combinaria melhor com a Floresta Negra alemã do que com o Condado de Marin. Recebendo-o à porta com um copo de suco de romã recém-preparado, Ártemis pediu desculpas por não ter bebidas alcoólicas em casa:

— Aqui é uma zona livre de drogas — disse, e depois acrescentou: — Exceto pela maconha, a erva sagrada.

Tão logo se sentou no sofá, um canapé à Luís XVI, com forro de petit-point e sustentado por delicadas pernas acinzentadas, Ernest voltou ao tema do abandono. No entanto, por mais que usasse toda a sua habilidade prática para fazê-la se abrir, não tardou a ter que reconhecer que havia superestimado o sofrimento de Ártemis.

Sim, admitiu a moça, ela havia passado pelo mesmo tipo de experiência que Ernest, e não fora fácil. Mas tinha sido menos doloroso do que ela havia sugerido: na verdade, confessou, ela estava apenas sendo gentil. Fora somente para ajudar Ernest a falar de suas dificuldades que havia mencionado ter sido recentemente abandonada por um homem. Embora ele tivesse caído fora sem a menor explicação, ela não tinha ficado muito abalada com esse acontecimento. Não fora uma relação significativa, e Ártemis tinha certeza de que o problema era muito mais dele do que dela. Ernest a contemplou, admirado: aquela mulher era mais equilibrada do que ele esperaria ser algum dia. Relaxando, deu por oficialmente encerrado o seu trabalho de terapeuta e tratou de desfrutar o restante da noite.

A descrição entusiástica de Halston já o havia preparado para os acontecimentos seguintes. Mas logo ficou claro que o paciente fora discreto demais em seu relato e, provavelmente, em sua apreciação de tudo. A conversa com Ártemis foi um prazer,

O guisado de cantarelos, um pequeno milagre, e o restante da noite, um milagre muito maior.

Desconfiado de que a experiência de Halston pudesse ter sido induzida por drogas, Ernest recusou a maconha que Ártemis lhe ofereceu depois do jantar. Mesmo sem ela, porém, parecia haver algo de inusitado, quase surreal, acontecendo com ele. Durante o jantar, uma esplêndida onda de calor começou a invadi-lo da cabeça aos pés. Sensações agradáveis do passado inundaram-lhe o pensamento, cada qual entrando por um portal diferente. O cheiro dos biscoitos kichel de sua mãe, assando nas manhãs de domingo; o calorzinho dos primeiros segundos depois de urinar na cama; o primeiro beijo; o primeiro orgasmo, explosivo como um tiro de pistola, ao se masturbar na banheira e se imaginar despindo a tia Harriet; os bolos de sorvete com calda de chocolate quente da Hot Shoppe, na Georgia Avenue; a perda de peso durante as voltas na montanha-russa do parque de diversões Glen Echo; e o movimento da rainha, protegida por um bispo matreiro, enquanto ele dizia a seu pai:"Shah mott" (xeque-mate). Sua sensação de Hetmlichkeit[20] — a sensação cálida e úmida de estar em casa — foi tão intensa, tão envolvente, que por um momento ele perdeu a noção de onde estava.

— Quer subir para o quarto? — disse a voz suave de Ártemis, arrancando-o de seu devaneio. Para onde ele fora? Teria sido alguma coisa nos cogumelos? Se eu quero ir para o quarto? Eu seguiria essa mulher a qualquer lugar! Desejo-a como a nenhuma outra mulher que já tenha conhecido. Talvez não sejam a maconha nem os cogumelos, mas algum feromônio incomum. Será que é meu bulbo olfativo, associado ao cheiro de almíscar que ela exala, agindo pelas minhas costas?

Uma vez na cama, Ártemis começou a lambê-lo. Cada centímetro da pele de Ernest formigava e luzia, até ele sentir o corpo inteiro em brasa. Cada lambida o fazia subir mais alto, mais alto, até que ele explodiu — não com o estalar abrupto de um tiro juvenil de pistola, mas com o rugir de um morteiro poderoso. Num breve instante de lucidez, de repente ele notou que Ártemis cochilava a seu lado. Ernest fora tão arrebatado por seu prazer que praticamente a esquecera, não havia pensado no prazer dela. Estendendo a mão para tocar seu rosto, sentiu que as faces da mulher estavam úmidas com as lágrimas que rolavam. Em seguida, mergulhou no sono mais profundo que já tinha experimentado.

Algum tempo depois, o som de algo arranhando o despertou. A princípio, ele não conseguiu enxergar nada, no quarto escuro como breu. Mas compreendeu que havia algo errado, terrivelmente errado. Aos poucos, com a diminuição da escuridão, uma luz esverdeada e fantasmagórica iluminou o quarto. Com o coração aos pulos, Ernest saiu da cama, vestiu as calças e correu até a janela, para descobrir o que estava produzindo aquele som arranhado. Mas tudo o que conseguiu ver foi o reflexo de seu próprio rosto, fitando-o na vidraça. Virou-se para acordar Ártemis — mas ela havia sumido. O arranhar e raspar ficaram mais altos. Em seguida, houve um miiaaaaaau do outro mundo, como mil gatos no cio. O quarto começou a vibrar, primeiro de leve, depois com intensidade crescente. O som de algo arranhando ficou cada vez mais alto e mais áspero. Ernest ouviu o barulho de seixos batendo no chão, depois, pedras maiores, depois, uma pequena avalanche. O ruído parecia vir de trás da parede do quarto. Aproximando-se cautelosamente, Ernest viu surgirem rachaduras na parede; o revestimento começou a se soltar, caindo em pilhas no tapete. Logo em seguida, ele pôde ver o reboco e, por baixo dele, instantes depois, desnudaram-se os sarrafos de madeira que compunham a estrutura da casa. Craque! Uma pata gigantesca, com as garras espetadas, irrompeu pela abertura.

Ernest já vira o bastante. Era demais! Agarrando a camisa, partiu em direção à escada. Mas não havia escada, nem paredes, nem casa. À sua frente estendia-se uma escuridão estrelada. Ele começou a correr e logo se viu numa floresta de imensas coníferas. Ouvindo um rugido ruidoso, virou-se para trás e viu um gato monstruoso, de olhos vermelhos como brasas — parecia um leão, mas era preto-e-branco e muito maior. Do tamanho de um urso. Do tamanho de um tigre-dentes-de-sabre. Avistando um lago, Ernest rumou para ele. "Os gatos detestam água", pensou, e começou a nadar. Ao longe, no centro enevoado do lago, ouviu o som de água corrente. E então a viu: Ártemis, erguida no meio do lago, imóvel. Tinha uma das mãos erguida bem alto, como a Estátua da Liberdade, e a outra em concha sobre um dos seios enormes, do qual jorrou, quando a mulher o apontou em sua direção, um jato potente de água ou leite. Não, viu Ernest ao chegar mais perto, não era leite, e sim um líquido verde fluorescente. E a figura não era Ártemis, porém um robô de metal. E o lago não era de água, e sim de ácido, que lhe devorava os pés e as pernas. Ernest abriu a boca e tentou gritar, com todas as forças: "Mamãe! Mamãe! Me ajude, mamãe!" Mas não emitiu uma só palavra.

Quando deu por si, estava em seu carro, parcialmente vestido, pisando fundo no acelerador e zunindo pela Marin Drive para longe da casa de Ártemis na Floresta Negra. Tentou concentrar-se no que lhe havia acontecido, mas se sentiu invadir pelo medo. Quantas vezes havia pregado a pacientes e alunos que uma crise representava não apenas um perigo, mas uma oportunidade? Quantas vezes pregara que a angústia é uma trilha que leva ao entendimento e à sabedoria? E que, de todos os sonhos, o pesadelo é o mais instrutivo? No entanto, ao chegar a seu apartamento na Russian Hill, abriu a porta num tranco e correu não em direção ao bloco, para anotar o sonho, mas ao armário de remédios e a uma amostra grátis de comprimidos de dois miligramas de Ativan, um ansiolítico potente. Nessa noite, entretanto, o remédio não trouxe alívio nem sono. Pela manhã, Ernest cancelou os compromissos do dia inteiro e deu um jeito de encaixar os pacientes mais urgentes em horários livres da noite seguinte.

Passou a manhã inteira ao telefone, conversando sobre sua experiência com amigos íntimos, e, cerca de 24 horas depois, a opressão terrível e angustiante em seu peito começou a ceder. O processo de falar com os amigos, o simples ato de confissão, foi útil, embora nenhum deles parecesse capaz de compreender o que havia acontecido. Até Paul, seu amigo mais íntimo e mais antigo, que era seu confidente desde os tempos de residência médica, errou o alvo: tentou convencê-lo de que o pesadelo fora uma bênção, uma advertência para que Ernest fosse mais fiel aos limites de sua profissão.

Ernest defendeu-se com vigor:

— Lembre-se, Paul, de que a Ártemis não é amiga do meu paciente. E não usei meu paciente de propósito para que ele me arranjasse mulheres. E, em todo esse processo, minhas intenções foram nobres. Meu objetivo ao procurá-la não foi carnal, mas o simples intuito de reparar os danos causados por meu paciente. Não fui visitá-la para ter um encontro sexual... foi só que pareceu impossível impedir que isso acontecesse.

— Os promotores não veriam as coisas desse modo, Ernest — respondeu Paul, em tom grave. — Fariam picadinho de você.

O ex-supervisor de Ernest, Marshal, ofereceu-lhe um fragmento do discurso de advertência que fazia rotineiramente a seu grupo de escoteiros:

— Mesmo que não faça nada de errado, não se deixe envolver em situações em que uma foto sua dê a impressão de que você está agindo mal.

Ernest arrependeu-se de ter ligado para Marshal. A homília sobre a foto não o impressionou; ao contrário, pareceu-lhe ultrajante que alguém recomendasse às crianças uma conduta circunspecta, simplesmente para não serem malvistas pela mídia.

No fim, Ernest deu pouca atenção aos conselhos dos amigos. Eram todos covardes, preocupados com questões de aparência e processos potenciais por má conduta profissional. Analisando pela perspectiva interna, a única que importava, Ernest estava inteiramente convencido de ter agido com integridade.

Após 24 horas de recuperação, ele retomou o trabalho clínico e, quatro dias depois, se encontrou com Halston, que anunciou ter decidido suspender a terapia, afinal. Ernest sabia ter falhado com ele, que sem dúvida intuíra sua desaprovação. Mas a culpa por essa terapia precária durou pouco, porque, logo depois de se despedir de Halston, Ernest teve uma revelação estarrecedora: nas 72 horas anteriores, desde as conversas telefônicas com Paul e Marshal, ele se esquecera por completo da existência de Ártemis! Do café-da-manhã com ela e de tudo o que viera depois! Não tinha pensado na mulher uma única vez! "Meu Deus", pensou, "agi exatamente da mesma forma repugnante que Halston, abandonando-a sem uma palavra de explicação e nem me dando o trabalho de telefonar ou de procurá-la".

No restante desse dia e no que se seguiu, Ernest deparou com o mesmo estranho fenômeno: tentou repetidas vezes pensar em Ártemis, mas não conseguia manter a concentração; em poucos minutos, seu pensamento se desviava para assuntos sem importância. Na noite seguinte, já tarde, resolveu telefonar para ela, e foi só com extremo esforço — imaginou-se levantando um peso de quarenta quilos — que conseguiu discar o número.

— Ernest! É você mesmo?

— É claro que sou eu. Estou muito atrasado, com dias de atraso. Mas sou eu — e fez uma pausa. Havia esperado uma manifestação de raiva, e ficou desconcertado com o tom gentil de Ártemis. — Você parece surpresa — acrescentou.

— Muito surpresa. Nunca pensei que tornaria a ouvir sua voz.

— Preciso encontrá-la. As coisas parecem irreais, mas o som da sua voz está me acordando. Temos muito o que fazer: muitas desculpas a pedir e muitas explicações a dar, e você terá muito o que perdoar.

— É claro que me encontrarei com você. Mas com uma condição. Nada de explicações nem desculpas; elas não são necessárias.

— Jantar amanhã? Às oito?

— Ótimo. Eu faço a comida.

— Não — disse Ernest, recordando suas suspeitas sobre o guisado de cogumelos. — É minha vez. Deixe o jantar por minha conta.

Chegou à casa de Ártemis carregado de pratos para viagem comprados na Nanking, uma lojinha minúscula da Kearny Street que tinha a pior decoração e a melhor comida cantonense de São Francisco. Propenso por natureza a alimentar os outros, Ernest dispôs avidamente as várias embalagens na mesa, identificando cada uma para Ártemis. Ficou desolado quando ela lhe disse que era vegetariana e teria que dispensar vários pratos, incluindo os esplêndidos rolinhos de frango com alface e filé aos cinco cogumelos. "Graças a Deus pelo arroz, pelos brotos de ervilha no vapor e pelos bolinhos de legumes" entoou Ernest em silêncio.

— Tenho algumas coisas para lhe dizer e não sou de fazer rodeios — disse, enquanto os dois se sentavam à mesa. — Todos os meus amigos dizem que sou compulsivo nas revelações, então estou lhe avisando, lá vai...

— Lembre-se das minhas condições — disse Ártemis, pondo a mão no braço dele. — Não há necessidade de desculpas nem de explicações.

— Não tenho certeza de poder respeitar essas condições, Ártemis. Como eu lhe disse outro dia, levo muito a sério meu trabalho de terapeuta. Isso sou eu, é a minha vida, e não é algo que eu possa ligar e desligar. Portanto, estou absolutamente mortificado com a mágoa que lhe infligi. Agi de forma desumana. Depois de fazermos amor daquele jeito, um amor lindo, um amor que eu nunca imaginara ser possível, o fato de eu a ter abandonado sem dizer nada é indefensável, não tenho outra maneira de qualificá-lo. Agi de forma desumana. Minha desconsideração deve tê-la deixado arrasada. Você deve ter-se perguntado várias vezes que espécie de homem sou eu, e por que a tratei de maneira tão vil.

— Eu lhe disse antes que não me preocupo com essas coisas. Naturalmente, fiquei decepcionada, mas compreendi perfeitamente. Ernest — acrescentou, em tom grave —, eu sei por que você me deixou naquela noite.

— Sabe, é? — fez Ernest, em tom brincalhão, achando encantadora a ingenuidade dela. — Acho que você não sabe tanto quanto pensa sobre aquela noite.

— Tenho certeza — contrapôs ela, em tom enfático. — Sei muito mais do que você supõe.

— Ártemis, você nem poderia imaginar o que me aconteceu naquela noite. Como seria possível? Eu a deixei por causa de um sonho... um sonho terrível, uma visão muito pessoal. O que você poderia saber disso?

— Eu sei tudo, Ernest. Sei do gato e da água venenosa, e da estátua parada no meio do lago.

— Você está me deixando apavorado, Ártemis! — exclamou Ernest. — Aquele sonho foi meu. Os sonhos são um domínio muito privado, o santuário mais particular e soberano de cada pessoa. Como é que você pode conhecer meu sonho?

Ártemis se manteve calada, de cabeça baixa.

— E há muitas outras perguntas, Ártemis. A intensidade de meus sentimentos naquela noite... aquele brilho mágico, aquele desejo irresistível. Sem desmerecer você e seus encantos, aquele desejo teve uma intensidade antinatural. Teria sido químico? Provocado pelos cogumelos, talvez?

Ártemis baixou ainda mais a cabeça.

— E, quando estávamos na cama, toquei seu rosto. Por que você estava chorando? Eu me sentia maravilhosamente bem; achei que fosse recíproco. Por que as lágrimas? Por que o seu sofrimento?

— Eu não estava chorando por mim, Ernest, mas por você. E não foi pelo que havia acontecido entre nós... foi maravilhoso para mim também. Não, eu chorei pelo que estava prestes a lhe acontecer.

— Prestes a acontecer? Será que estou ficando louco? Isso está piorando cada vez mais. Ártemis, diga-me a verdade!

— Acho que a verdade não vai satisfazê-lo, Ernest.

— Experimente. Confie em mim.

Ártemis levantou-se, saiu da sala por alguns momentos e voltou com uma pasta de velino, da qual extraiu uma folha de papel amarelada e antiga.

— A verdade? A verdade está aqui — disse, estendendo a folha — nesta carta que minha avó escreveu há muito tempo para minha mãe, Magda. Data de 13 de junho de 1931. Quer que eu a leia para você, Ernest?

Ele fez que sim. E, à luz de três velas, enquanto a comida aromática aguardava em seus recipientes, o terapeuta ouviu a história da avó de Ártemis, a história por trás de seu sonho.

 

Para Magda, minha querida filha, em seu aniversário de 17 anos, com a esperança de que esta mensagem não chegue tarde demais nem cedo demais.

É hora de você saber as respostas às perguntas importantes de sua vida. De onde viemos? Por que você foi mandada tantas vezes de um lugar para outro? Quem é e onde está seu pai? Por que a mandei para longe, em vez de conservá-la a meu lado? A história da família, que escrevo aqui, é algo que você precisa conhecer e transmitir a suas filhas.

Cresci em Ujepest, situada a alguns quilômetros de Budapeste, nos arredores da cidade. Meu pai, Janos, seu avô, trabalhava como mecânico numa grande fábrica montadora de ônibus. Quando eu tinha 17 anos, mudei-me para Budapeste. Foram várias as razões. Para começar, Budapeste oferecia empregos melhores para as moças. Mas a razão principal, e sinto vergonha de lhe dizer isso sobre sua própria família, é que meu pai parecia um bicho, atacando a própria filha. Fez investidas repetidas contra mim, quando eu era pequena demais para me defender, e por fim me violentou, quando eu tinha 13 anos. Minha mãe sabia, mas fingia não saber e se recusava a me defender. Em Budapeste, fui morar com tio Laszlo, irmão de meu pai, e tia Juliska, que me arranjou um emprego de ajudante na casa em que trabalhava como cozinheira. Tornei-me cozinheira de forno e fogão e, anos depois, assumi o lugar de tia Juliska, quando ela ficou tuberculosa. Quando tia Juliska morreu, no ano seguinte, tio Laszlo passou a se comportar como meu pai e exigiu que eu ocupasse o lugar de minha tia ao lado dele, na cama. Não pude suportar isso e fui morar sozinha. Em toda parte, os homens eram predadores — como animais. Todos — os outros empregados, o entregador, o açougueiro — faziam comentários obscenos, lançavam olhares maliciosos e tentavam me tocar, toda vez que eu passava. Até meu patrão tentou enfiar a mão por baixo de minhas saias.

Mudei-me para o número 23 da Vaci, rua no centro de Budapeste, perto do Danúbio, e lá morei sozinha durante os dez anos seguintes. Os homens me olhavam com malícia e me apalpavam onde quer que eu fosse, e eu me protegia fechando meu mundinho à minha volta, tornando-o cada vez menor. Fiquei solteira e levava uma vidinha feliz com minha gata, Cica. E então, um monstro, o sr. Kovacs, mudou-se para o apartamento de cima com seu gato, Merges. Merges quer dizer "raivoso", em húngaro [Ártemis pronunciou o nome com uma entonação magiar, Mare-gesh], e era um bom nome para aquele bicho. Ele era um gato preto-e-branco perverso, medonho, saído diretamente do inferno, e aterrorizava a minha pobre Cica. Volta e meia ela chegava em casa cortada e sangrando. Perdeu um olho por causa de uma infecção, e metade de uma de suas orelhas foi arrancada.

E Kovacs me aterrorizava. À noite, eu erguia barricadas contra ele em minhas portas e fechava as venezianas, porque ele perambulava do lado de fora, em volta da casa, e espiava por todas as frestas. Toda vez que nos cruzávamos no corredor, ele tentava me dominar à força, então eu me certificava de evitar cruzar seu caminho. Mas eu estava desamparada, sem poder reclamar com ninguém: Kovacs era sargento de polícia. Um homem vulgar e predatório. Vou lhe contar que tipo de homem ele era. Um dia, deixei o orgulho de lado e lhe implorei que mantivesse Merges dentro de casa durante uma hora por dia, para que Cica pudesse sair em segurança. "Não há nada errado com o Merges", zombou ele. "Meu gato e eu somos iguais, queremos a mesma coisa: uma doce gatinha húngara." É, ele concordaria em manter o Merges dentro de casa, por um preço. E o preço era eu!

As coisas iam mal, mas, toda vez que Cica entrava no cio, ficavam ainda piores. Não só Kovacs fazia sua ronda habitual em volta de minhas janelas e batia em minha porta, como Merges enlouquecia: passava a noite inteira miando, uivando, arranhando a parede da minha casa e se atirando contra minhas janelas.

Como se Merges e Kovacs não fossem uma praga suficiente, Budapeste, nessa época, estava infestada de ratos-d'agua do Danúbio, que invadiam em bando o meu bairro, pilhavam os caixotes de batata e cenoura no porão e matavam as galinhas no quintal. Um dia, meu senhorio me ajudou a montar uma ratoeira no porão e, na mesma noite, ouvi guinchos terríveis. Ao descer a escada, à luz da vela, eu estava apavorada. Que faria com o rato ou os ratos que tivesse apanhado? Depois, sob a luz bruxuleante, avistei a gaiola com a ratoeira e, espiando por trás de suas grades, o maior e mais medonho rato que eu já tinha visto, ou mesmo imaginado em meus piores pesadelos. Voltei correndo escada acima e resolvi pedir ajuda mais tarde, quando meu senhorio acordasse. No entanto, passada uma hora, quando amanheceu, arrisquei-me a descer de novo e dar outra espiada. Não era um rato. Era pior — era Merges! Assim que me viu, ele sibilou, babou e tentou me arranhar por entre as grades da gaiola. Meu Deus, que monstro! Compreendi exatamente o que devia fazer, e foi com grande prazer que joguei um balde inteiro d'água em cima dele. O gato continuou a sibilar, e eu levantei a barra da saia e dei três voltas ao redor da gaiola, saltitando de alegria.

Mas, e depois? O que eu faria com Merges, que àquela altura soltava guinchos pavorosos? Alguma coisa dentro de mim tomou a decisão, sem que eu soubesse. Pela primeira vez na vida, eu adotaria uma postura firme. Por mim! Pelas mulheres de toda parte! Eu revidaria! Pus um cobertor velho sobre a gaiola, levantei-a pela alça, saí de casa — as ruas ainda estavam desertas, ninguém se levantara — e marchei para a estação ferroviária. Comprei um bilhete para Esztergom, a cerca de uma hora de lá, mas depois, achando que não era longe o bastante, continuei no trem até Szeged, a uns duzentos quilômetros de distância. Quando desci do trem, andei alguns quarteirões, parei, tirei a coberta da gaiola e me preparei para soltar Merges.

Quando o fitei, seus olhos me fustigaram, afiados como uma navalha, e estremeci. Havia alguma coisa tão cheia de ódio, tão implacável, naquele olhar feroz que eu soube no mesmo instante, com uma estranha certeza, que Cica e eu nunca nos livraríamos dele. É sabido que há animais que voltam para casa, atravessando continentes inteiros. Por mais longe que eu levasse Merges, ele voltaria. Desde os confins da terra, encontraria o nosso rastro. Peguei a gaiola e andei mais alguns quarteirões, até chegar ao Danúbio, Fui até o centro da ponte, esperei que não houvesse ninguém à vista e joguei a gaiola na água. Ela flutuou por um instante, depois começou a afundar.

Enquanto ia afundando mais e mais, Merges não parou de me olhar e sibilar. Por fim, o Danúbio o silenciou, e esperei até não ver mais nenhuma bolha, até ele chegar a sua sepultura no leito do rio, até eu ficar eternamente a salvo daquele gato infernal. E então peguei um trem para casa.

No trajeto de volta, pensei em Kovacs e em sua vingança, e fiquei apavorada. Quando cheguei, as janelas dele ainda estavam fechadas. Nessa ocasião, ele vinha trabalhando à noite, havia dormido durante a viagem de Merges e nunca, nunca saberia de meu ato de desafio. Pela primeira vez na vida, senti-me livre.

Mas não por muito tempo. Naquela noite, uma ou duas horas depois de adormecer, ouvi os miados de Merges do lado de fora. Era um sonho, é claro, mas um sonho tão vivido, tão palpável, que foi mais real do que minha vida quando acordada. Ouvi Merges arrastar as garras e cavar um buraco na parede do meu quarto. Enquanto fitava a parede lascada, vi a pata dele enfiar-se no quarto. Mais arranhões, reboco caindo por toda parte. E então, Merges irrompeu em meu quarto. Se antes já era um gato enorme, ele havia duplicado, talvez triplicado de tamanho. Encharcado, com a água suja do Danúbio ainda escorrendo pelo corpo, ele falou comigo.

As palavras da fera ficaram gravadas em minha mente. "Estou velho, sua cadela assassina", sibilou ele,"e já vivi seis das minhas sete vidas. Só me resta uma vida e, neste momento, juro dedicá-la à vingança. Viverei na dimensão dos sonhos e vou assombrar você e as suas descendentes por toda a eternidade. Você me separou para sempre de Cica, da enfeitiçante Cica, a grande paixão da minha vida, e agora vou me certificar de que você seja eternamente separada de qualquer homem que manifeste interesse por você. Eu os visitarei quando estiverem com você" — e, nesse ponto, Merges sibilou da maneira mais terrível — "e farei com que se afastem tão apavorados, que nunca mais voltarão: eles se esquecerão da sua própria existência".

No começo, senti-me exultante. Que gato idiota! Afinal, os gatos são animais simplórios, com cabeça de alfinete. Merges não tinha nenhuma compreensão real de mim. Que vingança brilhante: eu nunca mais conseguiria ficar duas vezes com o mesmo homem! Isso não era vingança, era uma bênção, uma bênção que só seria superada se eu fosse proibida de ficar com um homem uma única vez sequer. Nunca mais tocar nem ver um homem, isso seria o paraíso!

Mas logo constatei que Merges não era simplório, longe disso. Sabia ler pensamentos, tenho certeza. Sentou-se sobre as patas traseiras, passando a pata nos bigodes, e me fitou durante muito tempo com seus enormes olhos vermelhos. Depois proclamou, dessa vez com uma voz estranhamente humana, parecendo um juiz ou um profeta: "O que você sente pelos homens se alterará para sempre. Agora você conhecerá o desejo. Será como uma gata e, todo mês, quando seu cio chegar, seu desejo será irresistível. Mas nunca se realizará. Você satisfará os homens, mas nunca será satisfeita, e todo homem que satisfizer a deixará, e nunca mais voltará nem se lembrará de você. Você terá uma filha, e ela, a filha dela e a filha da filha dela saberão o que eu e Kovacs sentimos. Assim será para todo o sempre."

— Para todo o sempre? — perguntei. — Uma sentença tão longa?

— Para todo o sempre — ele respondeu. — Que crime pode ser maior do que me separar para sempre do amor da minha vida?

Abatida, comecei subitamente a tremer e a implorar por você, minha filha não nascida. — Por favor, castigue-me, Merges. Eu mereço, pelo que fiz a você. Mereço uma vida sem amor. Mas, por meus filhos e pelos filhos de meus filhos, eu lhe imploro — e me curvei diante dele, encostando a testa no chão. Só há uma saída para suas filhas. Nenhuma para você.

— Qual é a saída? — perguntei.

— Remediar a injustiça — disse Merges, já então lambendo, com uma língua maior do que minha mão, suas patas monstruosas, e limpando a cara medonha.

— Remediar a injustiça? Como? O que elas devem fazer? — e me aproximei do gato, implorando.

Mas Merges soltou um silvo e brandiu as garras descobertas. Enquanto eu recuava, ele foi desaparecendo. A última coisa que vi dele foram aquelas garras terríveis.

E foi essa a minha maldição, Magda. A nossa maldição. Ela me destruiu. Enlouqueci de desejo e passei a correr atrás dos homens. Perdi o emprego. Ninguém queria me contratar. Meu senhorio me despejou. Não tive como sobreviver, a não ser vendendo meu corpo. E, graças a Merges, eu não tinha nenhuma compensação. Os homens que ficavam comigo uma vez nunca mais me procuravam; não guardavam nenhuma lembrança de mim, apenas um vago pavor ligado a nosso encontro. Não demorou muito para que todos em Budapeste me desprezassem. Nenhum médico acreditava em mim. Nem mesmo o famoso psiquiatra Sándor Ferenczi pôde me ajudar. Ele falou da minha imaginação febril. Jurei que estava dizendo a verdade. Ele pediu provas, alguma testemunha, algum sinal. Mas que prova eu poderia dar? Nenhum homem que eu houvesse amado conseguia lembrar-se de mim ou do sonho. Eu disse a Ferenczi que ele teria sua prova se passasse uma noite comigo e visse por si mesmo. Eu o havia procurado por causa do boato de que ele praticava a "terapia do beijo", mas o psiquiatra não quis nada com meu convite. Por fim, em desespero, emigrei para Nova York, na vã esperança de que Merges não cruzasse o oceano.

O resto você sabe. Um ano depois, eu a concebi. Nunca soube quem era seu pai. Agora você sabe por quê. E agora sabe por que nunca pude mantê-la a meu lado e por que a mandei estudar longe de mim. Sabendo disso, Magda, você deve decidir o que fará quando se formar. Sempre poderá procurar-me em Nova York, é claro. Seja qual for a sua decisão, continuarei a lhe mandar dinheiro todos os meses. Nas outras coisas, não posso ajudá-la. Não posso ajudar a mim mesma.

Sua mãe, Klara

 

Ártemis dobrou cuidadosamente a carta, recolocou-a na pasta de velino e olhou para Ernest.

— Agora você conhece minha avó. E a mim.

Ernest estava fascinado com a história extraordinária que acabara de ouvir, e perturbado pelo aroma inebriante dos temperos chineses picantes que chegavam até ele. Durante a leitura, lançara olhares furtivos para o vapor que subia dos recipientes que esfriavam, mas, embora estivesse faminto, respeitara a etiqueta e havia resistido à comida. Agora já era demais. Passou os brotos de ervilha para Ártemis e mergulhou seus pauzinhos no filé aos cinco cogumelos.

— E quanto a sua mãe, Ártemis? — perguntou, mastigando contente um shiitake levemente crocante, mas maravilhosamente suculento.

— Ela ingressou num convento, mas foi expulsa alguns anos depois, por perambular durante a noite. Depois disso, seguiu a profissão de minha avó. Mandou-me estudar longe e, quando cheguei aos 15 anos, tirou a própria vida. Foi minha avó quem me entregou essa carta; ela viveu mais vinte anos, depois da morte de mamãe.

— A receita de Merges para suspender a maldição, remediar a injustiça... algum dia você descobriu o que isso significava?

— Minha avó e minha mãe se intrigaram com isso durante anos, mas nunca solucionaram o mistério. Minha avó consultou outro médico, o dr. Brill, um famoso psiquiatra de Nova York, mas ele achou que ela havia perdido o contato com a realidade. Psicose histérica, foi esse o seu diagnóstico, e ele recomendou que vovó fizesse o tratamento de repouso de Weir: um ou dois anos de repouso absoluto num sanatório. Pelas finanças de minha avó e a natureza da maldição de Merges, é óbvio que o dr. Brill é que tinha perdido o contato com a realidade.

Quando Ártemis começou a tirar a mesa, Ernest a deteve.

— Podemos fazer isso depois.

Com a voz tensa, Ártemis disse:

— Agora que terminamos o jantar, talvez você queira subir, Ernest. Agora sabe que não posso me impedir de lhe pedir isso — acrescentou.

— Com licença — disse Ernest, levantando-se e se encaminhando para a porta de entrada.

— Então, adeus — disse Ártemis. — Eu sei. Compreendo perfeitamente. Não há necessidade de desculpas. E sem culpa, por favor.

— O que você sabe, Ártemis? — perguntou Ernest, olhando-a da porta aberta. — Sabe aonde eu vou?

— Você está indo embora, o mais depressa possível. E quem pode culpá-lo? Sei por que vai embora. E compreendo, Ernest.

— Olhe, Ártemis, como eu já lhe disse, você não sabe tanto quanto pensa. Só vou me afastar por uns cinco metros, e buscar no carro a minha maleta para passar a noite.

Quando Ernest voltou, Ártemis estava no segundo andar, tomando banho. Ele tirou a mesa do jantar, guardou as sobras de comida e, de maleta na mão, subiu a escada.

A hora seguinte no quarto provou uma coisa: não tinha sido o guisado de cogumelo. Foi tudo como antes. O desejo ardente, exuberante, as lambidas de gato, a língua sensual, os fogos de artifício que cresceram devagar até seu clímax pirotécnico, as explosões de luz, o rugir do morteiro. Por alguns instantes, Ernest foi visitado por lembranças extraordinárias: todos os orgasmos de sua vida passaram-lhe pela memória, anos de espasmos trêmulos na palma da mão, em toalhas e pias, e depois a procissão de amantes de seios fartos, veículos encantadores de consolo, em que ele havia despejado as preocupações da vida. Gratidão! Gratidão! E depois, as trevas, quando ele mergulhou no sono dos mortos.

 

Foi despertado pelos uivos de Merges. Mais uma vez, sentiu o quarto sacudir; outra vez vieram o arranhar e o raspar nas paredes da casa. Houve um tremor momentâneo de medo, mas Ernest saiu da cama depressa e, sacudindo vigorosamente a cabeça e respirando fundo, escancarou a janela, com calma, debruçou-se sobre ela e chamou:

— Por aqui, por aqui, Merges. Poupe suas garras. A janela está aberta. Silêncio repentino. Em seguida, Merges pulou para dentro, rasgando e esfiapando as finas cortinas de linho. Sibilando, com a cabeça erguida, os olhos vermelhos chamejando, as garras reluzentes à mostra, deu uma volta ao redor de Ernest.

— Eu estava à sua espera, Merges. Não quer sentar-se, por favor?

Ernest acomodou-se numa cadeira maciça de sequóia ao lado da mesinha-de-cabeceira, para além da qual tudo era escuridão. A cama, Ártemis e o resto do quarto haviam desaparecido.

Merges parou de sibilar. Ergueu os olhos para Ernest, com a saliva pingando das presas, os músculos tensos.

Ernest estendeu a mão para a maleta.

— Quer comer alguma coisa, Merges? — perguntou, abrindo algumas embalagens do jantar que tinha levado para cima.

Merges examinou com cautela o primeiro recipiente.

— Filé aos cinco cogumelos! Detesto cogumelos. É por isso que ela sempre os prepara. Aquele guisado!

Proferiu essas últimas palavras num cantarolar zombeteiro e agudo, depois as repetiu;

— Guisado de cogumelos! Guisado de cogumelos!

— Pronto, pronto — disse Ernest, no tom monocórdio que às vezes usava nas sessões de terapia. — Deixe-me catar os pedaços de carne para você. Ah, meu Deus, sinto muito! Eu podia ter comprado a posta de bacalhau assada. Ou o pato à Pequim. Ou até as almôndegas à Hunan. Ou talvez o guisado de porco. Ou o frango do mendigo. Ou a carne à moda Ming. Ou...

— Está bem, está bem — rosnou Merges. Surrupiou os pedaços de carne e os devorou de uma só vez.

Ernest continuou a ladainha:

— Ou eu poderia ter trazido a Delícia Marinha, o camarão marinado, o siri assado, o...

— Poderia, poderia, poderia, mas não trouxe, não é? E, mesmo que os tivesse comprado, e daí? É isso que você pensa? Que umas sobras rançosas remediariam a injustiça? Que eu me contentaria com restos? Que não passo de um apetite bruto?

Merges e Ernest fitaram-se em silêncio por um momento. Em seguida, Merges acenou com a cabeça para a embalagem dos rolinhos de frango com coentro em taças de alface.

— E o que tem ali?

— São rolinhos de frango. Uma delícia. Pronto, deixe-me catar o frango para você.

— Não, pode deixar — disse Merges, tirando a embalagem das mãos de Ernest. — Gosto dessas coisas verdes. Venho de uma família de comedores de grama da Baviera. É difícil achar grama de boa qualidade que não esteja encharcada de xixi de cachorro.

Merges devorou o frango com coentro, depois lambeu as taças de alface.

— Nada mau. Quer dizer que você poderia ter trazido siri assado?

— Gostaria de tê-lo comprado, mas já trouxe carne até demais. Acontece que a Ártemis é vegan.

— Vegan'?

Uma vegetariana que não come nenhum produto animal, nem mesmo laticínios.

— Então, também é burra, além de ser uma vaca assassina. E quero lembrar-lhe mais uma vez que você também será um idiota, se pensa que vai remediar a injustiça agradando meu estômago.

— Não, Merges, não é isso que eu acho. Mas entendo plenamente que você desconfie de mim ou de qualquer pessoa que se aproxime de maneira amistosa. Você não foi bem tratado na vida.

— Vidas, não vida. Tive seis delas, e todas, sem exceção, acabaram do mesmo jeito: com uma crueldade indizível e um assassinato. Veja só a última! A Ártemis me assassinou! Meteu-me numa gaiola e, sem a menor cerimônia, jogou-me no rio e me viu afundar devagar, até a água imunda do Danúbio cobrir minhas narinas. A última coisa que vi naquela vida foi o risinho triunfante dela, quando soltei meu último suspiro numa bolha. E sabe qual foi o meu crime?

Ernest balançou a cabeça.

— Meu crime foi agir como um gato.

— Merges, você não é um gato comum. É um gato com uma inteligência fora do comum. Espero poder falar-lhe com franqueza.

Merges, que lambia as laterais da embalagem vazia de rolinhos de frango, rosnou seu assentimento.

— Preciso dizer duas coisas. Primeiro, é claro, você percebe que não foi a Ártemis que o afogou. Foi a avó dela, Klara, já morta há muito tempo. Segundo...

— Para mim, ela tem o mesmo cheiro: Ártemis é Klara numa vida posterior. Você não sabia?

Ernest foi pego de surpresa. Precisava de tempo para refletir sobre isso, então apenas continuou:

— Segundo, a Klara não odiava gatos. Na verdade, adorava uma gata. Não era assassina: foi no esforço de salvar a vida de Cica, sua gatinha querida, que ela agiu contra você.

Nenhuma resposta. Ernest ouviu a respiração de Merges. "Será que o estou confrontando demais, sem mostrar empatia suficiente?" pensou.

— Mas talvez nada disso venha ao caso — disse, em tom gentil. — Acho que devemos restringir-nos ao que você disse agora há pouco: que seu único crime foi agir como um gato.

— Exato! Fiz o que fiz porque sou um gato. Os gatos protegem seu território, atacam os outros gatos ameaçadores, e os melhores gatos, aqueles que transbordam de gateza, não deixam nada, nada atrapalhá-los, quando farejam aquele cheiro doce e almiscarado de uma gata no cio. Eu não estava fazendo nada além de exercer minha gateza.

O comentário de Merges fez Ernest pensar. Não estava o gato sendo fiel à máxima nietzschiana favorita do terapeuta, "Transforma-te naquele que és"? Merges não tinha razão? Não estava simplesmente realizando seu potencial felino?

— Certa vez, houve um filósofo famoso — começou —, ou seja, um sábio, ou um pensador...

— Sei o que é filósofo — interrompeu o gato, mal-humorado. — Numa de minhas primeiras vidas, morei em Freiburg e fazia visitas noturnas à casa de Martin Heidegger.

— Você conheceu Heidegger? — indagou Ernest, admirado.

— Não, não. A gata de Heidegger, Xanthippe. Ela era incrível! Fogosa! Por mais fogosa que fosse, a Cica não era nada comparada a Xanthippe. Foi há muitas vidas, mas eu me lembro bem do exército de valentões teutônicos pesos pesados que tive de enfrentar para chegar até ela. Vinham gatos desde Marburgo, quando a Xanthippe entrava no cio. Ah, aquilo é que eram bons tempos!

— Bem, deixe-me terminar o raciocínio, Merges — disse Ernest, tentando não se deixar distrair. — O filósofo famoso em que estou pensando, e que também era alemão, muitas vezes dizia que o sujeito tem que se tornar quem ele é, tem que cumprir a sina que lhe está predestinada, ou realizar seu potencial. Não foi exatamente isso que você fez? Você estava realizando seu potencial felino básico. Que crime há nisso?

Às primeiras palavras de Ernest, Merges tinha aberto a boca para protestar, mas voltara a fechá-la, aos poucos, ao perceber que o homem concordava com ele. Começou a limpar o pêlo com grandes lambidas.

— Mas há um paradoxo problemático nisso — prosseguiu Ernest —, um conflito fundamental de interesses, uma vez que Klara estava fazendo exatamente o mesmo que você: tornando-se ela mesma. Não havia nada no mundo que ela alimentasse e protegesse e de que cuidasse mais do que sua gata. Ela só queria proteger a Cica e mantê-la em segurança. Portanto, todos os atos de Klara foram praticados a serviço de realizar sua natureza amorosa fundamental.

— Hum! — zombou Merges. — Você sabia que a Klara se recusou a cruzar com meu dono, o Kovacs, que era um homem muito forte? Só porque detestava os homens, Klara presumiu que Cica também os detestava. Logo, não há paradoxo nenhum. Klara não agiu pelo bem de Cica, mas a serviço de sua ilusão sobre o que Cica queria. Pode acreditar, quando a Cica estava no cio, ela me desejava! Foi uma crueldade inominável da Klara nos manter separados!

— Mas Klara temia pela vida da gata. Cica tinha sofrido muitos ferimentos terríveis.

— Ferimentos? Ferimentos? Meros arranhões. Os machos intimidam e dominam as fêmeas. Os machos esfolam uns aos outros como o diabo. É assim que nós cortejamos. Isso é a gateza. Estamos sendo gatos. Quem é a Klara, quem é você para julgar e condenar o que é ser gato?

Ernest recuou. Por ali não havia jeito, decidiu. Tentou outra abordagem.

— Merges, há poucos minutos você disse que a Ártemis e a Klara eram a mesma pessoa, e que foi por isso que continuou a perseguir a Klara.

— Meu nariz não mente.

— Quando você morreu, numa de suas vidas anteriores, continuou morto por algum tempo, antes de entrar numa outra vida?

— Só por um instante. Depois eu renascia em outra vida. Não me pergunte como. Há coisas que nem os gatos sabem.

— Bem, mesmo assim, você tem certeza de que está numa vida, depois deixa de estar, e depois entra em outra. Correto?

— Sim, sim, vá em frente! — rosnou Merges. Como todos os portadores de sete vidas, tinha pouca paciência com discussões semânticas insignificantes.

— Mas, se durante alguns anos Ártemis e a avó, Klara, estavam vivas ao mesmo tempo, e falavam várias vezes uma com a outra, como é que Ártemis e Klara podem ser a mesma pessoa em vidas diferentes? Não é possível. Não pretendo questionar o seu nariz, mas talvez você estivesse farejando a ligação genética entre as duas.

Merges refletiu em silêncio sobre o comentário de Ernest, enquanto continuava a se limpar, lambendo uma das patas enormes e a esfregando, úmida, no focinho.

— Estive pensando, Merges, será possível que você não saiba que nós, os humanos, só temos uma vida?

— Como pode ter tanta certeza?

— Bem, é nisso que acreditamos. E não é isso que importa?

— Talvez vocês tenham muitas vidas e não saibam.

— Você diz que se lembra de suas outras vidas. Nós, não. Se temos vidas novas e não nos lembramos das antigas, isso continua a significar que esta vida, este eu que sou, esta consciência que existe aqui e agora, vai acabar.

— E daí? E daí? — rosnou o bicho. — Ande logo! Santo Deus, como você fala, fala, fala!

— E daí que a sua vingança foi maravilhosamente eficaz. Foi uma boa vingança. Destruiu o resto da única vida de Klara. Ela viveu em grande sofrimento. E o crime que cometeu foi apenas tirar uma das suas sete vidas. A única vida dela por uma das suas sete. Parece-me que a dívida dela já foi paga muitas vezes. A sua vingança está completa. A ficha está zerada. A injustiça foi corrigida.

Exultante com sua formulação convincente, Ernest reclinou-se na cadeira.

— Não — sibilou Merges, com o olhar ameaçador e batendo no chão com a cauda poderosa. — Não, não está completa! Não está completa! A injustiça não foi corrigida! A vingança continuará, sem parar! Além disso, gosto desta vida como está.

Ernest não se deixou vacilar. Descansou por um ou dois minutos, tornou a respirar fundo e recomeçou por outra perspectiva.

— Você diz que gosta de sua vida como está agora. Pode me falar da sua vida? Como é um de seus dias típicos?

O jeito sereno de Ernest pareceu tranqüilizar Merges, que parou de lançar olhares ameaçadores, acomodou-se nas patas traseiras e respondeu, calmamente:

— Um de meus dias? Sem incidentes. Não me lembro de muita coisa da minha vida.

— O que você faz o dia inteiro?

— Espero. Espero até ser chamado por um sonho.

— E entre os sonhos?

— Eu já lhe disse. Eu espero.

— Só isso?

— Eu espero.

— E essa é a sua vida, Merges? E você está satisfeito?

O gato fez que sim e disse, rolando graciosamente sobre o corpo e começando a lamber a barriga:

— Se a gente pensar na alternativa...

— A alternativa... Você se refere a não viver?

— A sétima vida é a última.

— E você quer que essa última vida continue para sempre.

— Você não iria querer? Não é o que todo mundo quer?

— Merges, estou impressionado com a incoerência do que você diz.

— Os gatos são seres lógicos. Nem sempre isso é reconhecido, por causa de nossa capacidade de tomar decisões com a rapidez de um raio.

— A incoerência é esta: você diz que quer que sua sétima vida continue para sempre, mas, na verdade, não está vivendo essa sétima vida. Está simplesmente existindo, numa espécie de estado de suspensão de suas funções vitais.

— Não estou vivendo minha sétima vida?

— Foi você mesmo quem disse: você espera. Vou lhe dizer o que me vem à cabeça. Um psicólogo famoso disse, certa vez, que algumas pessoas têm tanto medo da dívida da morte que recusam o empréstimo da vida.

— E isso significa o quê? Fale claro — disse Merges, que tinha parado de lamber a barriga e estava sentado sobre as patas traseiras.

— Significa que você parece ter tanto medo da morte que se recusa a entrar na vida. É como se tivesse medo de gastar a sua vida. Lembra-se do que me ensinou há pouco, sobre a essência da gateza? Diga-me, Merges, onde fica hoje o território que você defende? Onde estão os machos com quem luta? Onde estão as fêmeas lascivas e miadoras que você subjuga? E por que — continuou Ernest, enfatizando cada palavra — você deixa que suas preciosas sementes Merges de esperma apodreçam, sem ser usadas?

Enquanto Ernest falava, a cabeça de Merges baixou. Depois, meio tristonho, o gato perguntou:

— E você só tem uma vida? Quanto já viveu dela?

— Mais ou menos a metade.

— Como é que você agüenta?

Súbito, Ernest sentiu uma aguda pontada de tristeza. Pegou um dos guardanapos do jantar chinês e secou os olhos.

— Sinto muito ter-lhe causado sofrimento — disse o gato, com uma gentileza inesperada.

— Não foi nada. Eu estava preparado. Esse rumo da nossa conversa era inevitável. Você me perguntou como eu agüento. Bem, para começar, não pensando no assunto. E mais, às vezes até o esqueço. Na minha idade, isso não é muito difícil.

— Na sua idade? Que quer dizer?

— Nós, os seres humanos, passamos pela vida em etapas. Quando crianças pequenas, pensamos muito na morte; alguns de nós até ficam obcecados com ela. Não é difícil descobrir a morte. Basta olharmos em volta para ver coisas mortas: folhas, lírios, moscas e besouros. Os bichos de estimação morrem. Comemos animais mortos. Às vezes, tomamos conhecimento da morte de uma pessoa. E não demora para nos darmos conta de que a morte chegará para todos: a vovó, a mamãe e o papai, e até para nós mesmos. Remoemos essas idéias em particular. Nossos pais e professores, achando que é ruim as crianças pensarem na morte, silenciam sobre ela, ou então nos narram contos de fadas sobre o paraíso e os anjos, sobre a reunião eterna e as almas imortais.

Ernest parou, esperando que Merges estivesse acompanhando suas palavras.

— E depois? — perguntou o gato. Estava acompanhando, sim.

— Nós nos resignamos. Tiramos a idéia da cabeça, ou então desafiamos abertamente a morte, com grandes proezas temerárias. E aí, pouco antes de nos tornarmos adultos, voltamos a refletir muito sobre ela. Embora alguns não consigam suportar e se recusem a continuar a viver, a maioria de nós apaga a consciência da morte, mergulhando nas tarefas da idade adulta: a construção da carreira, a criação da família, o crescimento pessoal, a aquisição de bens, o exercício do poder, a vitória na corrida. É nesse ponto que estou na vida. Depois dessa etapa, entramos em outra fase, na qual a consciência da morte volta a emergir, e aí ela passa a ser nitidamente ameaçadora... iminente, na verdade. Nesse ponto, temos a opção de pensar muito nela e tirar o máximo proveito da vida que ainda nos resta, ou fingir de várias maneiras que a morte não virá nunca.

— E quanto a você, pessoalmente? Você finge para si mesmo que a morte não chegará?

— Não, eu não consigo. Como em meu trabalho como psiquiatra falo com muitas pessoas que têm problemas terríveis com a vida e a morte, sou obrigado a enfrentar a verdade o tempo todo.

— Então, deixe-me perguntar mais uma vez — insistiu Merges, cuja voz, agora baixinha e cansada, havia perdido todo o tom de ameaça —: como é que você agüenta? Como pode sentir prazer numa parte qualquer da vida, em qualquer atividade, tendo a morte avultando mais adiante e contando com apenas uma vida?

— Eu inverteria essa pergunta, Merges. Talvez a morte torne a vida mais vital, mais preciosa. A realidade da morte confere às atividades da vida uma pungência especial, uma qualidade agridoce. Sim, talvez seja verdade que viver na dimensão do sonho lhe confira imortalidade, mas a sua vida me parece imersa no tédio. Quando lhe pedi, agora há pouco, para descrevê-la, você respondeu com uma única frase: "Eu espero." Será que isso é vida? Será que esperar é viver? Ainda lhe resta uma vida, Merges. Por que não vivê-la na plenitude?

— Não posso! Não posso! — disse ele, baixando mais a cabeça. — A idéia de não existir mais, de não estar entre os vivos, de a vida continuar sem mim, é... é... simplesmente terrível demais.

— Então, o objetivo da maldição não é a vingança perpétua, é? Você usa a maldição para não ter que chegar ao fim da sua última vida.

— Acabar é simplesmente terrível demais. Não existir.

— No meu trabalho — disse Ernest, estendendo a mão para dar um tapinha na enorme pata de Merges —, aprendi que os que mais temem a morte são aqueles que se aproximam dela trazendo dentro de si muita vida não vivida. O melhor é usar a totalidade da vida. Não deixar nada para a morte senão restos, nada além de um castelo queimado.

— Não, não — resmungou Merges, abanando a cabeça. — É simplesmente terrível demais.

— Por que é tão terrível? Vamos analisar isso. Exatamente o que é tão temível na morte? Você já a experimentou mais de uma vez. Disse que, toda vez que sua vida acabava, havia um breve intervalo antes de começar a vida seguinte.

— Sim, isso mesmo.

— De que você se lembra desses breves momentos?

— De absolutamente nada.

— E não é esse o ponto, Merges? Grande parte do que você teme na morte é imaginar como seria estar morto e saber que não poderia mais estar entre os vivos. Mas, quando está morto, você não tem consciência. A morte é a extinção da consciência.

— E isso é para me tranqüilizar? — rosnou Merges.

— Você me perguntou como eu agüento. Essa é uma das minhas respostas. Também sempre me consolei com a máxima de um outro filósofo, que viveu há muito, muito tempo: "Onde a morte está, eu não estou; onde estou, a morte não está."

— E em que isso difere de "quando você morreu, morreu"?

— Há uma grande diferença. Na morte não há "você". "Você" e "morte" não podem coexistir.

— Esse negócio é brabo, muito pesado — comentou Merges, com a voz quase inaudível e a cabeça quase encostada no chão.

— Deixe-me falar-lhe de uma outra perspectiva que me ajuda, Merges, uma coisa que aprendi com um escritor russo...

— Esses russos... isso não será animador.

— Escute. Anos, séculos, milênios se passaram antes de eu nascer. Certo?

— Não há como negar — fez ele, com ar cansado.

— E milênios se passarão depois que eu morrer. Certo? Merges tornou a assentir com a cabeça.

— Por isso, eu imagino minha vida como uma centelha brilhante entre dois espaços vastos e idênticos de escuridão: a escuridão que existiu antes de eu nascer e a que se seguirá a minha morte.

Isso pareceu atingi-lo. Merges escutava atento, com as orelhas em pé.

— E você não fica perplexo, Merges, com o tanto que tememos a escuridão posterior e o tanto que somos indiferentes à anterior?

Súbito, Merges pôs-se de pé e abriu a boca num enorme bocejo, com as presas luzindo de leve ao luar filtrado pela janela.

— Acho que vou andando — disse, e se dirigiu à janela com um andar pesado, atípico num gato.

— Espere, Merges, tem mais!

— Por hoje, chega. Ê muita coisa para pensar, até mesmo para um gato. Da próxima vez, Ernest, o siri assado. E mais daquele frango com grama verde.

— Da próxima vez? O quer dizer com "da próxima vez", Merges? Não corrigi a injustiça?

— Talvez sim, talvez não. Eu lhe disse, é coisa demais para pensar de uma vez só. Estou indo!

Ernest tornou a afundar na cadeira. Estava exausto, com a paciência esgotada. Nunca tinha feito uma sessão mais enervante e cansativa, E agora, ver tudo acabado, em troca de nada! Ao ver Merges afastar-se, resmungou consigo mesmo: "Vá, vá!" E acrescentou "Geh Gesunter Heit", a expressão iídiche zombeteira usada por sua mãe.

Diante dessas palavras, Merges estancou e se virou para trás.

— Ouvi isso. Eu leio pensamentos.

"Sei", pensou Ernest. Mas manteve a cabeça erguida, olhando de frente para o gato que voltava.

— É, eu o ouvi. Ouvi o seu Geh Gesunter Heit. E sei o que isso significa. Você não sabia que falo bem o alemão? Você me abençoou. Mesmo sem imaginar que eu ouviria, desejou que eu me fosse com saúde. E estou comovido com a sua bênção. Muito comovido. Sei a que o submeti. Sei quanto você quer libertar essa mulher, não só por ela, mas também por você. No entanto, mesmo depois do seu tremendo esforço, e depois de não saber se havia conseguido reparar a injustiça, mesmo assim, você ainda teve a gentileza e a bondade de me desejar boa saúde. Talvez esse seja o presente mais generoso que já recebi. Adeus, meu amigo.

— Adeus, Merges — disse Ernest, vendo-o afastar-se, agora mais animado e com um gracioso andar felino. "Será minha imaginação", pensou, "ou Merges ficou consideravelmente menor?"

— Talvez nos vejamos de novo — disse o gato, sem interromper a caminhada. — Estou pensando em me instalar na Califórnia.

— Eu lhe dou minha palavra de honra, Merges, aqui você comerá bem. Siri assado e coentro, todas as noites.

De novo a escuridão. Quando deu por si, Ernest viu a luminosidade rosada do amanhecer. Agora sei o que significa "uma noite na batalha", pensou, enquanto se sentava na cama, espreguiçava-se e contemplava Ártemis, adormecida. Teve certeza de que Merges iria embora da dimensão onírica. Mas e o restante da maldição do gato? Nada daquilo fora discutido. Por alguns minutos, Ernest considerou a perspectiva de se envolver com uma mulher que, de tempos em tempos, seria sexualmente feroz e voraz. Em silêncio, esgueirou-se da cama, vestiu a roupa e desceu.

Ouvindo seus passos, Ártemis o chamou:

— Ernest, não vá embora! Alguma coisa mudou. Estou livre. Eu sei. Eu sinto. Não vá, por favor. Você não precisa ir.

— Volto já com o café. Dez minutos — respondeu ele da porta. — Estou sentindo uma necessidade urgente de um pãozinho integral com queijo cremoso. Ontem vi uma delicatessen ali adiante.

Já ia abrindo a porta do carro quando ouviu a janela do quarto suspender, e a voz de Ártemis:

— Ernest, Ernest, lembre-se de que sou vegetariana. Nada de queijo cremoso. Será que você pode trazer...

— Já sei, abacate. Está na minha lista.

 

Serão verdadeiras ou ficcionais essas seis histórias de psicoterapia? A primeira ("Mamãe e o sentido da vida") é uma fantasia autobiográfica verdadeira — ou seja, o sonho e os acontecimentos da história são reais, mas o texto exato da conversa é uma fantasia. As três seguintes ("Viagens com Paula", "Consolo sulista" e "Sete lições avançadas na terapia do luto") são pura não-ficção, com pequenos salpicos de ficção para disfarçar a identidade dos pacientes. E as duas últimas ("Dupla revelação" e"A maldição do gato húngaro") contêm um núcleo não-ficcional em torno do qual construí uma história de ficção.

Mas há uma confusão inerente a toda codificação de ficção/não-ficção. Não só a ficção tem sua própria verdade, como toda história, por mais "verdadeira" que seja, é uma mentira, porque omite muitas coisas. Em todas as narrativas, eliminei os detalhes cotidianos do encontro terapêutico. Essa poda rigorosa é necessária não apenas em nome do impacto dramático, como também da visão. Como dizia Nietzsche, devemos cegar-nos para muitas coisas para enxergar uma só. Então, para revelar as verdades subjacentes, temos de afastar as distrações ofuscantes. O estreitamento do foco, a mentira nuclear do contar histórias, é sempre uma tentativa de enxergar melhor — de obter uma visão mais clara e mais profunda do mundo.

Por que escrevi essas histórias específicas? Neste livro, como em todos os meus esforços de redação, fui impelido e puxado: impelido por forças inconscientes — por motivações egoístas primitivas e eventos sepultos de meu passado, que lutam para se expressar — e puxado pelo futuro: pelos ideais que construí e a que aspiro e pelas metas de esclarecer e entreter meu público. Nesta discussão das seis histórias, pretendo concentrar-me mais no puxar do que no impelir; minhas razões não apenas me são mais acessíveis, como são também de maior bom gosto.

A história-título, "Mamãe e o sentido da vida", originou-se num sonho, que reproduzi com exatidão nos parágrafos iniciais. Ao despertar desse sonho, fui atormentado durante o restante do dia pela frase onírica "Mamãe, como eu me saí?" Essa imagem me fez estremecer; parecia repleta de possibilidades e instigou muitas idéias sobre o sentido da vida. Voltei-me para o computador, a fim de anotar minhas ruminações, mas então aconteceu algo inteiramente diferente. Tive a estranha sensação autoral de ser apenas uma parteira ou um escriba diante de uma história que emergia rapidamente e insistia em se escrever.

O "impulso" para redigir essa história foi inequívoco: minha conversa com o fantasma de mamãe — uma conversa que, infelizmente, nunca tive na vida — foi a tentativa de resolver alguns assuntos inacabados e torturantes do passado. O mesmo tema reverbera, com um clamor um pouco mais fraco, também nos dois relatos seguintes, "Viagens com Paula" e "Consolo sulista". Neles, juntei-me a uma longa lista de autores que usaram descaradamente o seu veículo para elaborar conflitos pessoais. Até Hemingway, que não era um aficionado da busca interior e sempre denegriu a psicoterapia e seus praticantes "estéreis, de raciocínio equivocado" admitiu que sua Corona (isto é, sua máquina de escrever) era sua psiquiatra.

Pretendi que a segunda história, "Viagens com Paula", fosse uma homenagem a uma mulher notável, uma lembrança de meu aprendizado ao trabalhar com pacientes agonizantes e um guia para os clínicos que atendem pacientes com câncer. Ela é também um registro histórico do primeiro grupo terapêutico feito com esses pacientes. Embora sejam extremamente comuns hoje em dia,* tais grupos eram inteiramente desconhecidos quando Paula e eu embarcamos pela primeira vez nessa aventura. O leitor especializado poderá obter mais informações sobre esses grupos em meu livro Existential Psychotherapy (Basic Books, 1980). Recomendo esse texto aos leitores interessados em examinar todos os temas existenciais discutidos em Mamãe e o sentido da vida e em meus outros livros: O carrasco do amor, Quando Nietzsche chorou e Mentiras no diva.[21] Ele é o livro-matriz de todos os meus escritos literários. Apesar do título pesado, é de fácil leitura para leigos, porque fiz um grande esforço para evitar o jargão e escrever com lucidez. Muitos terapeutas o recomendaram a pacientes que lutam com problemas angustiantes na vida.

A terceira história, "Consolo sulista", examina o consolo obtido pela transformação do outro num ícone reconfortante, bem como os efeitos restritivos desse processo no transformado e no transformador. Ambientada num grupo terapêutico hospitalar de pacientes em estado grave e de rápida rotatividade, a história descreve as modificações radicais exigidas para a adaptação de um grupo às exigências feitas ao tratamento contemporâneo pelo atendimento administrado. Os condutores desses grupos têm que mudar seus valores, conformar-se com menos e se esforçar para oferecer alguma coisa em contatos breves e mais impessoais. Não é uma transição fácil para os terapeutas acostumados a metas mais ambiciosas e a relações mais íntimas de atendimento; muitos deles se tornam presas, como aconteceu comigo nessa história, do risco profissional das fantasias heróicas de salvação. (Para mais informações sobre a condução desses grupos de pacientes internos em estado grave, ver meu texto Impatient Group Psychotherapy, Basic Books, 1983.)

"Sete lições avançadas na terapia do luto", minha história mais longa e mais complexa, é um relato sem distorções de um tratamento (à parte a omissão de detalhes prosaicos e o disfarce da identidade) e contém uma profusão de temas de psicoterapia. O terapeuta como estudante e, inversamente, o paciente como professor, tema introduzido em "Viagens com Paula", é mais plenamente desenvolvido nessa história.

Há 25 anos, num ano sabático passado numa clínica de Londres, estudei com um eminente terapeuta de grupo que me contou a mais triste história de psicoterapia que já ouvi. Ele me descreveu uma sessão grupai em que os participantes (a maioria deles no grupo fazia dez anos!) examinaram o progresso do grupo e concluíram que todos os seus integrantes haviam passado por mudanças consideráveis, com exceção do terapeuta, que, decorridos dez anos, continuava exatamente o mesmo. Nesse momento, o terapeuta virou-se para mim, com os olhos reluzentes, e disse, batendo com o indicador na mesa, para dar mais ênfase: "Isso, meu rapaz, é a boa técnica!"

Sempre encarei essa história do terapeuta imutável como uma coisa triste, porque ela retrata um equívoco fundamental: a idéia de que os terapeutas são mecânicos que remendam o aparelho psíquico, mas permanecem fora do campo, ou então, são catalisadores químicos inertes, que facultam o processo de mudança, mas se mantêm pessoalmente intocados pela reação. Essas metáforas, sumamente enganosas, ignoram o vasto número de investigações do processo de mudança terapêutica que corroboram o axioma — e "axioma" não é um termo forte demais — de que é a relação que cura. A mudança terapêutica decorre de um compromisso genuíno, autêntico, e isso, por definição, implica a troca. Os terapeutas facilitam a mudança nos pacientes e, nesse processo, também se modificam. Os bons terapeutas são perpétuos estudantes, numa viagem interminável de autodescobrimento, e, à medida que se sentem mais seguros em sua pele e conseguem renunciar à imagem de autoridade, acolhem de bom grado, como uma bênção, os pacientes profundamente inteligentes, sensíveis e desafiadores, como Irene.

O quadro de referência existencial descrito ao longo de todo este volume postula que muitos pacientes entram em desespero por depararem com uma ou outra das preocupações supremas da existência. As preocupações particulares que mais se destacam no trabalho clínico são a morte, o isolamento, a liberdade e a falta de sentido — temas que constituem a espinha dorsal de meu livro Existential Psychotherapy. Visto que essas fontes de angústia são universais -— inerentes à condição humana —, os psicoterapeutas não podem fingir que só "eles" os pacientes, é que enfrentam tais ameaças; ao contrário, somos "nós", todos nós, que compartilhamos um destino comum. Assim, a metáfora dos "companheiros de viagem" descreve com mais propriedade a relação terapeuta-paciente pela qual luto em meu trabalho terapêutico.

Conheci Irene pouco depois de ter concluído três anos de pesquisa em que meus colegas e eu havíamos estudado a dinâmica e a evolução clínica de oitenta cônjuges que haviam ficado viúvos.*

Minha experiência de pesquisa revelou-se menos importante para a evolução do tratamento do que eu havia esperado; na verdade, houve muitas situações contraproducentes — momentos em que Irene achou, de maneira muito justificável, que minha confiança na experiência de outros indivíduos enlutados impedia minha apreciação de sua experiência singular. O terapeuta eficaz também deve estar apto a esvaziar sua mente das expectativas e estereótipos que obstruem a visão, a fim de facilitar o livre desdobramento da narrativa singular do paciente na relação. E o mesmo se aplica à técnica terapêutica. Não só nas "Sete lições avançadas na terapia do luto", mas também nas outras histórias, exorto o terapeuta a criar uma nova terapia para cada paciente. Por mais hiperbólico que isso possa soar, minha intenção sincera é dizer que a aventura terapêutica deve ser orgânica: terapeuta e paciente devem moldar juntos a forma da terapia; aliás, o processo conjunto de moldar o trabalho é parte integrante desse trabalho. A tendência contemporânea do atendimento administrado, que leva a terapias breves, prontas para usar e orientadas por protocolos, é uma mudança errônea, além de profundamente ameaçadora para toda a iniciativa terapêutica; baseia-se numa compreensão equivocada do processo de crescimento pessoal, a de que a terapia consiste em transmitir informações ou conselhos.

Ernest Lash, o terapeuta das duas últimas histórias — "Dupla revelação" e "A maldição do gato húngaro" —, já teve uma vida anterior como protagonista de meu romance Mentiras no divã. Seu reaparecimento pretende demonstrar que essas histórias são intensamente ficcionalizadas.

"Dupla revelação" é uma história do tipo "e se". Anos atrás, eu gravava sistematicamente as sessões de uma paciente que fazia um percurso de duas horas até meu consultório, e lhe entregava a fita para que ela a ouvisse no trajeto para a sessão seguinte. (É comum eu fazer isso com pacientes que vêm de grandes distâncias para se tratar comigo. Trata-se de um bom uso do tempo do trajeto, por preparar o paciente para a sessão seguinte. A terapia é sempre mais eficaz quando as sessões são contínuas, em vez de esporádicas — dou muita preferência às sessões que exploram temas permanentes em níveis cada vez mais profundos, em vez das que se voltam para fora, concentrando-se nos acontecimentos externos da semana anterior.) Pois bem, uma semana, me esqueci de dar a fita a minha paciente. Ela percebeu, 15 minutos depois, e voltou prontamente a meu consultório para buscá-la. No trajeto da semana seguinte, ela escutou a fita e levou um susto ao ouvir meu ditado da mesma sessão, que eu pretendia entregar a minha secretária para que o transcrevesse. (Eu não tinha percebido que o gravador havia continuado rodando.) Todas as vezes que contei esse incidente a colegas de profissão, eles ficaram sem fôlego — é um cenário potencial para um desastre. Tal como as coisas se desenrolaram na vida real, contudo, foi uma experiência benigna; meu ditado não continha nada de inquietante e a terapia prosseguiu sem se deixar afetar.

Mas, e se...? E se tivesse havido algo profundamente perturbador no texto ditado? Ou, pior ainda, se tivesse havido o conteúdo mais perturbador que se poderia imaginar: e se o terapeuta estivesse apresentando a paciente a uma conferência profissional voltada para a contratransferência, isto é, para todos os sentimentos profundamente pessoais, irracionais, obscuros, enraivecidos, lascivos e antiprofissionais do terapeuta em relação à paciente? Esse "e se" foi a estrutura ficcional em torno da qual se construíram os eventos e os sonhos dessa história.

"Dupla revelação" explora diversos temas, incluindo a contratransferência e o papel da causalidade na estrutura da teoria da psicoterapia. O conceito de causalidade, a idéia de que um evento que se segue cronologicamente a outro é percebido como sendo causado pelo anterior, é inerente ao aparelho neurológico, por meio do qual vivenciamos o mundo. Embora essas atribuições causais exerçam uma vasta influência em nossas explicações do comportamento, também são carregadas de erros. "Dupla revelação" examina a devastação causada à teoria pela presença de eventos que intervém invisivelmente na cadeia causai.

Mas esses são temas menos importantes. "Dupla revelação" pretende ser, primordialmente, uma rapsódia sobre a transparência do terapeuta — uma variação sobre o tema anteriormente explorado em meu romance Mentiras no diva. Ali examino várias questões que deixam os terapeutas muito tensos. Se afirmamos que a relação terapêutica ideal é de franqueza e autenticidade, o terapeuta não deveria ser uma pessoa real no processo terapêutico, tão real na sessão quanto fora dela? Será que só o paciente deve revelar-se? O que aconteceria se os terapeutas se revelassem mais? Ou — o que é uma pergunta ainda mais complicada — o que aconteceria se essa revelação ocorresse numa situação particularmente infeliz?

A incômoda questão da revelação pessoal do terapeuta pode descomplicar-se se analisarmos o conceito de revelação pessoal. Três categorias de revelação do terapeuta são particularmente compatíveis com o processo de terapia: a revelação sobre o mecanismo da terapia, a revelação sobre o aqui-e-agora e a revelação sobre eventos históricos pessoais da própria vida.

Revelar o mecanismo da terapia não constitui problema para Ernest Lash. Ele expõe sem hesitação a lógica que está por trás de sua abordagem terapêutica, porque está convencido de que o processo psicoterápico é tão intrinsecamente forte que não há necessidade de qualquer mistificação, de nenhum apelo à magia ou à autoridade.

Ele também revela muito da segunda categoria — o aqui-e-agora. Expõe abertamente sua experiência interna e seus sentimentos a respeito da paciente no momento imediato. Essa revelação do aqui-e-agora é de extraordinária importância e complexidade, e várias histórias deste volume contêm exemplos dela. (O aqui-e-agora é um foco anistórico; refere-se ao que está acontecendo no presente, no momento imediato de encontro entre duas pessoas, aqui no consultório, no espaço entre o terapeuta e o paciente.) O instrumento mais importante do terapeuta é sua própria pessoa, e aprender a usá-la de modo significativo e proveitoso no aqui-e-agora da terapia talvez seja a tarefa mais desafiadora na formação desses profissionais. Para compreender o uso apropriado do eu (e é esse o subtexto da discussão do seminário em "Dupla revelação"), devemos descartar os velhos papéis terapêuticos que deixaram de ter serventia — o terapeuta como "tela em branco" o médico distante de jaleco branco, o terapeuta como um cientista objetivo e não interativo. A terapia é uma relação entre duas pessoas, que exige a interação e a exploração dessa interação; os sentimentos reais e a revelação mútua dos sentimentos evocados na interação terapêutica são necessários. Hoje em dia, muitos institutos progressistas de psicanálise abandonaram o antigo modelo da tela em branco, em favor de um outro — a relação real entre duas pessoas —, e as investigações clínicas publicadas sobre esse fenômeno — a "intersubjetividade" ou a psicologia "de duas pessoas" — são hoje corriqueiras na literatura especializada.

Ernest Lash tem conflitos muito maiores, como convém que aconteça, quanto a revelar detalhes de sua vida pessoal, não restritos ao aqui-e-agora. Nessas histórias, expus a tese de que tal revelação só deve ser feita se servir à terapia. Os terapeutas devem facilitar a formação de uma relação de confiança entre parceiros de viagem, demonstrar compreensão e respeito pelo paciente e estabelecer um modelo que incentive a participação mais profunda deste último; se a revelação pessoal facilitar algum desses objetivos, o terapeuta eficaz não a evitará.

Embora "A maldição do gato húngaro" seja minha história mais ficcional e fantástica, ela é repleta de acontecimentos e problemas reais. A alegria do terapeuta quando um paciente cansativo e desagradável resolve interromper o tratamento, seu tédio com um determinado paciente e o uso posterior desse tédio como um guia na terapia, a mortificação do terapeuta diante dos danos infligidos por seus pacientes a terceiros, sua ânsia de reparar esses danos, os deslizes em que ele perde de vista o interesse de um paciente, suas fantasias grandiloqüentes de salvação, seu fascínio lascivo por tal ou qual personagem da vida de um paciente, seu dilema quanto a saber se há algum momento em que o terapeuta não esteja trabalhando, todos esses pontos fracos, e mais alguns, foram extraídos de minha experiência pessoal.

O diálogo final surrealista entre um homem e um gato com sete vidas pretende representar um tipo de verdade — a investigação terapêutica da preocupação suprema com a morte. Convém indicar algumas fontes dessa discussão: o psicólogo que disse que muita gente recusa o empréstimo da vida para evitar a dívida da morte foi Otto Rank. O filósofo antigo que disse que "Onde a morte está, eu não estou; onde eu estou, a morte não está" foi Lucrécio, fazendo uma exposição sobre Epicuro. E Nabokov foi o escritor russo que, em sua autobiografia, intitulada A pessoa em questão,[22] retratou a vida como um lampejo brilhante entre dois espaços vastos e idênticos de escuridão: a escuridão que existe antes do nascimento e a que se segue à morte. Essa mesma imagem é encontrada em Schopenhauer, com quem, sem dúvida, Nabokov estava familiarizado.

Disfarcei profundamente a identidade de todos os pacientes e conhecidos que aparecem nessas histórias. Alguns dos acontecimentos descritos ocorreram há muito tempo e vários personagens já morreram. Todas as pessoas que forneceram situações ou sonhos leram o manuscrito, em sua forma inicial e em sua prova final, e me deram permissão para publicá-lo.

 

 

                                                                  Irvin D. Yalom

 

 

 

[1] Termo iídiche que designa as antigas pequenas comunidades judaicas do Leste Europeu, especialmente da Rússia. (N. da T.)

[2] O xale de oração judaico. (N. da T.)

[3] Esses famosos personagens de Charles Dickens — Clara Pegotty, Amy Dorrit, Tom Pinch e o casal Boffin — aparecem, respectivamente, nos romances David Copperfield, A pequena Dorrit, Martin Chuzzlewit e Nosso amigo comum, e todos remetem a traços de bondade, abnegação e dedicação. (N. da T.)

[4] Health Maintenance Organization [Organização de Manutenção da Saúde], instituição norte-americana de planos de saúde. (N. da T.)

[5] Tradução livre: "Muitos momentos tristes... Muitos momentos ruins... Mas se, de algum modo... você pudesse... embrulhar suas tristezas e me dar todas elas... Você as deixaria... Eu sei como usá-las... me dê todas elas." (N. da T.)

[6] Bairro da cidade de Nova York na parte sul da ilha de Manhattan, conhecido em outras épocas por suas tabernas e sua criminalidade. (N. da T.)

[7] Publicada no Brasil sob o nome de "Ferdinando Busca-pé", essa história em quadrinhos, ambientada em "Brejo Seco", uma sátira contundente da sociedade norte-americana, foi criada na década de 1930 por Al Capp (1909-1979), considerado um dos maiores cartunistas de todos os tempos. (N. da T.)

[8] Publicado em português com o título O labirinto, trad. M. L. Medeiros, Lisboa: Publicações Europa-América,1980.(N.daT.)

[9] Tradução livre: "Quando cheguei à orla do bosque,/ Música de sabiás — escute!/ Se do lado de fora era ocaso,/ Dentro era a escuridão./ Escuro demais no bosque para que um pássaro/ Pela destreza das asas/ Melhorasse seu poleiro na noite,/ Embora ainda pudesse cantar."(N. da T.)

[10] Tradução livre: Ele a viu do pé da escada/ Antes que ela o visse. Ela começava a descer,/ Rosto voltado para trás, fitando um temor. (N. da T.)

[11] Tradução livre: "O pequeno cemitério em que está minha gente!/Tão miúdo que a janela o emoldura inteiro./ É pouco maior do que um quarto, não?/Três lápides de ardósia e uma de mármore./ Lajezinhas largas, banhadas de sol, ali/ Na colina. Com essas não temos de nos importar./ Mas compreendo: não são as lápides,/ E sim o túmulo do menino..."// "Não, não, não, não!" exclamou ela. (N. da T.)

[12] Tradução livre: "Mas acho que você exagera um pouco./ O que a fez pensar que era certo/ Carpir sua perda de mãe do primeiro filho/ De forma tão inconsolável — diante do amor?/ É de supor que a memória dele esteja satisfeita..." (N. da T.)

[13] Tradução livre: "Você conseguiu sentar lá, com os sapatos manchados/ Da terra recém-tirada do túmulo de seu próprio filho,/ E falar de seus assuntos cotidianos./Tinha deixado a pá encostada na parede,/ Bem ali na entrada, pois eu a vi." (N. da T.)

[14] Tradução livre: "Não, do momento em que adoece até a morte,/ A pessoa fica só, e morre mais só./ Os amigos fingem acompanhá-la à sepultura,/ Mas, antes que seu corpo baixe, o pensamento deles se afasta/ E percorre quase todo o caminho de volta para a vida/ E os vivos, e para as coisas que eles compreendem./ Mas o mundo é mau. Não deixarei que o luto seja assim,/ Se puder mudá-lo. Não, não deixarei!" (N. da T.)

[15] Tradução livre: "Aonde você pretende ir? Diga-me primeiro./ Eu a seguirei e a trarei de volta à força. Trarei!" (N. da T.)

[16] Tradução livre: "No Ícaro de Brueghel, por exemplo: como tudo desvia/ serenamente o olhar do desastre! O lavrador com o arado talvez / tenha ouvido a pancada na água, o grito desamparado/ mas para ele não era um fracasso importante; o sol brilhava/ como convinha nas alvas pernas que desapareceram no verde/ das águas; e a delicada e dispendiosa nau que devia ter visto/ algo espantoso, um menino despencando do céu/ tinha um destino a alcançar e continuou calmamente a navegar." (N. da T.)

[17] Para o que virá mais adiante, vale lembrar que o termo em inglês é still life, que se traduziria literalmente por "vida inanimada" ou "vida imóvel". (N. da T.)

[18] O carrasco do amor e outras histórias sobre psicoterapia, trad. Maria Adriana V. Veronese, Rio de Janeiro: Ediouro, 2007,(N.daT.)

[19] A história em quadrinhos "The Katzenjammer Kids" (depois rebatizada de "The Captain and the Kids" e conhecida no Brasil como "Os sobrinhos do capitão"), tida como a mais antiga do mundo, foi criada por Rudolph Dirks, em 1897, para o "American Humorist" suplemento famoso do New York Journal. Retratava as aventuras de Hans e Fritz, gêmeos e companheiros de batalha na guerra contra qualquer forma de autoridade. (N. da T.)

[20] Intimidade, familiaridade, aconchego doméstico. O termo alemão tem também, no entanto, a acepção de mistério, segredo, sigilo. (N. da T.)

* I. Yalom e C. Greaves, "Group Therapy with the Terminally III", American Journal of Psychiatry, 134:4, abril de 1977, p. 396-400; D. Spiegel e I. Yalom, "A Support Group for Dying Patients", International Journal of Group Psychotherapy, 28:2, abril de 1978; D. Spiegel, J. Bloom e I. Yalom, "Group Support for Metastatic Cancer Patients: A Randomized Prospective Outcome Study", Archives of General Psychiatry, 38, maio de 1981, p. 527-534.

[21] O carrasco do amor e outras histórias sobre psicoterapia, trad. Maria Adriana Veríssimo Veronese, Rio de Janeiro: Ediouro, 2007; Quando Nietzsche chorou, trad. Ivo Korytowski, Rio de Janeiro: Ediouro, 2000; Mentiras no divã, trad. Vera de Paula Assis, Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. (N. da T.)

* I. Yalom e S. Vinogradov, "Bereavement Groups: Techniques and Themes" International Journal of Group Psychotherapy, 38:4, outubro de 1988; I. Yalom e M. Lieberman,"Bereavement and Heightened Existential Awareness", Psychiatry, 1992.

[22] Vladimir Nabokov, A pessoa em questão: uma autobiografia revisitada, trad. Sergio Flaksman, São Paulo: Companhia das Letras, 1994. (N. da T.)

 

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades