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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MAMÃE NÃO PODE SABER / J. M. Simmel
MAMÃE NÃO PODE SABER / J. M. Simmel

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

     Turma II-B está ansiosa - O professor faz um discurso e ninguém percebe que Martin está chorando - Peter e Herbert também estão em apuros. - O Negro é culpado de tudo! - De tempos em tempos os alunos deveriam examinar os professores -Até pais divorciados têm seu lado bom - O pálido Martin bateu O recorde - Não é nenhum prazer ter um pai que é condutor de bonde - Martin Vê um médico e se lembra - O Dr. Gerber faz de um jovem seu confidente - Qualquer aborrecimento é veneno - Não é fácil mentir bem - Com O meu boletim não há problema! - Pelo amor de Deus, ela pode até morrer! - O bom Deus não atendeu - Só existe uma saída - Não sei para onde ir.
    Quando O professor se afastou da mesa para dizer algumas palavras finais, O silêncio na sala era tão grande que se podia ouvir um alfinete cair. Eram exatamente dez horas e vinte minutos do dia 28 de junho. Lá fora, diante da janela aberta, os passarinhos cantavam nas árvores do grande jardim da escola de primeiro grau. O sol brilhava. Era um lindo dia de verão, na Áustria, aquele 28 de junho. Era O dia do encerramento das aulas e do início das férias grandes.
    Mas, por enquanto, elas ainda não haviam começado. Por enquanto, ainda, os vinte e sete garotos da Turma II-B estavam sentados em suas carteiras, olhando para O professor que andava pela sala, de um lado a outro. Alguns garotos estavam felizes, outros muito preocupados. Todos tinham a mesma idade: onze anos. O motivo da alegria ou tristeza eram os boletins que seriam entregues naquele dia. A estona que vocês vão ler agora foi contada por um menino ao autor deste livro É uma estória que poderá se repetir sempre igual ou de modo semelhante, Pois um boletim com  bons conceitos é sempre motivo de alegria, enquanto um boletim com conceitos fracos e sempre motivo de tristeza. Nem precisa explicar mais vocês sabem disso melhor do que ninguém, não e? Os últimos instantes de um ano escolar são os de maior nervosismo.
    È agora que todos vocês já receberam os boletins - disse O professor -, está na hora de nos despedirmos Daqui a dez minutos quando vocês saírem daqui vocês se encontrarão em pleno sol das ferias de verão.

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    O sol das férias de verão!
    Ele entrava pelas amplas janelas da sala, desenhando imagens irrequietas nas paredes claras Us garotos escorregavam na cadeira, de um lado para O outro. Não se agüentavam mais de impaciência. Mas O professor ainda não havia terminado.
    - Nessas férias - disse ele - vocês devem descansar bastante, para voltarem dispostos e animados quando recomeçarmos nossas aulas no outono A maioria de vocês não voltará para minha classe. A maioria irá para novos professores, para novos amigos Existem, porém, alguns entre vocês que terão que ficar mais um ano aqui comigo. - O professor parou e sorriu. - Eu me refiro aqueles que não passaram de ano, e que terão que repetir a sexta série. São apenas três e eu tenho a certeza de que para O ano tudo será mais fácil para eles. Não é, Peter? - disse ele, afagando a cabeça de um garoto magro e louro, sentado à sua frente.
- É, sim, senhor respondeu O garoto louro, rindo para O professor. Não parecia se importar muito com O fato de ter sido reprovado - O insuficiente' em Matemática eu recupero com facilidade! -
   O professor, que se chamava Nansen, concordou.
    - Esperamos - disse ele, vagueando O olhar pela sala, até que seus olhos se fixaram em dois outros meninos sentados na última fila Um deles era gordo e sardento, e O outro, magro e pálido.
    - Bem, e vocês dois aí, Herbert e Martin - disse O professor -, agora, a vocês só resta estudar mais no próximo ano, não é?
    - Isso mesmo! - exclamou O gorducho sardento muito decidido, enquanto O pálido Martin permanecia calado.
    Ele estava sentado imóvel e mudo em sua carteira, O olhar perdido. Lentamente, uma pequena lagrima brilhante desceu por suas faces. O professor Nansen não a viu. Ninguém a viu. Ninguém percebeu nada em meio ao tumulto geral daquela última aula que antecedia às grandes, maravilhosas férias.
    O professor voltou para sua mesa.
    - Vocês nunca devem se esquecer - disse ele - que aqui na escola, quando nós damos notas baixas, não é para castigá-los, mas é para chamar a atenção de vocês, e dar-lhes força e segurança para enfrentar a vida. Afinal, vocês não estudam para mim, nem para a escola; mas para a vida futura de vocês mesmos. - O professor Nansen parou ao lado da mesa, virou-se e sorriu. - Muito bem, eu acho que é só isso. Agora vão, descansem bastante e tenham boas férias! Até a volta.
    Mal ele terminou de falar, e os vinte e sete garotos se ergueram de um salto, numa confusão tremenda, rindo e gritando, todos se apertando em volta do professor para lhe apertar a mão, para as despedidas.
    Quando chegou a vez do pálido e triste Martin se despedir, O professor bateu-lhe amigavelmente no ombro, dizendo:
    - Que é isso, Martin? Coragem! As coisas vão melhorar!
    Martin olhou para ele, fez um esforço para sorrir e depois murmurou, desanimado:
    - Eu sei, professor - Mas as palavras soavam como se ele mesmo não acreditasse nelas. Rapidamente, ele foi saindo da sala, segurando na mão seu péssimo boletim. Lá fora, no corredor da escola, a garotada corria de um lado para O outro. Havia também algumas mães esperando pelos filhos. Era uma confusão incrível!
    Ninguém esperava por Martin.
    Triste e silencioso, ele desceu as escadas no meio daquela multidão de crianças, que riam felizes, e ouvia muitas delas contarem os bons conceitos que haviam tirado em Matemática, Geografia ou História, e os elogios das mães. A ele ninguém iria elogiar, pensou Martin, e sentiu outra lágrima descendo lentamente por sua face.
     Lá embaixo, na entrada da escola, em pleno sol, Peter e Herbert esperavam por ele. Juntos, os três foram caminhando devagar pela rua. Finalmente, O gordo Herbert interrompeu O silêncio.
    - Vocês querem saber de uma coisa? - disse ele. - Eu estou pouco me importando! Afinal, O que é que tem? Para mim, O principal é que, graças a Deus, chegaram as férias!
    - Eu também não estou ligando - acrescentou O louro Peter. Não O dizia porém tão despreocupado e tão à vontade como O gordo Herbert. Percebia-se perfeitamente que ele estava ligando, e muito, mas ele continuou valente: - Aquele 'insuficiente' em Ciências foi uma safadeza! Eu não tenho a menor culpa, e vocês sabem muito bem disso. E tirei 'insuficiente' em Matemática só porque O Negro, no último teste, fez aquelas perguntas cretinas. - ('Negro' era O apelido do professor. Os alunos o chamavam assim porque no final das grandes férias ele sempre voltava preto, queimado do sol).
    O gordo Herbert só balançava a cabeça, concordando.
    - Claro - disse ele. - Você não tem culpa nenhuma. Afinal, qualquer um pode tirar um 'insuficiente', depende só das perguntas. Se eu quisesse, faria umas perguntas ao Negro, e ele também não saberia responder. Aliás, isto devia até ser instituído: de vez em quando, os alunos é que deviam ter O direito de examinar os professores. Aí vocês iam ver como aqueles sabichões iam tomar jeito! Não ligue pra isso, não! A culpa é dos professores! Tenho certeza que seus pais vão entender.
    - Eu espero - disse O louro Peter, mas não parecia estar muito convencido.
    - Claro! - exclamou Herbert. - Vou contar a mesma coisa ao meu velho. Ele acredita em tudo O que eu digo. Além do mais, ele vive viajando, e no fundo pouco se importa se eu fico mais um ano na escola ou não! Ele só fica satisfeito se eu não O incomodo.
    - E você? - perguntou Peter. Martin não respondeu e continuou andando ao lado dos amigos, perdido em seus pensamentos. As vozes de Herbert e de Peter lhe chegavam ao ouvido como vindas de muito longe.
    - Como você sabe, meus pais são divorciados - disse O gordo Herbert com certo orgulho. - Minha mãe vive na Inglaterra. Para ela, eu nem preciso dizer nada sobre meu boletim.
    Peter continuou mais alguns passos em silêncio e depois disse:
    - Eu prefiro que os meus pais não sejam divorciados e que ambos se preocupem com O meu boletim. - E ele balançou a cabeça confirmando. - Não posso dizer que me sinta muito bem quando penso no que eles vão dizer - acrescentou ele com franqueza -, mas acho que prefiro que seja assim.
    - A princípio, eu também preferia - disse Herbert pensativo -, mas depois fui-me acostumando com O fato da minha mãe ter ido embora e só me escrever de vez em quando Agora só digo uma coisa: tudo tem seu lado bom; mesmo pais divorciados!
    O magro e pálido Martin continuava mudo e O seu silêncio começou a preocupar O gordo Herbert. Ele cutucou com O cotovelo, perguntando:
    - O que é que há? Você perdeu a fala só porque O Negro lhe deu dois 'insuficientes'?
    Martin ia responder, mas demorou um instante, pois teve que umedecer primeiro os lábios. Depois, disse com voz rouca:
    - Que dois? Três! Houve um silêncio de espanto.
    - Puxa! - fez O louro Peter, finalmente impressionado. - Três?
     - É - confirmou Martin acabrunhado. - Um em Matemática, um em Alemão e um em Geografia.
    - Não diga! Pior ainda do que eu! - observou ele com admiração. - Pensei que O recorde fosse meu.
    Martin ficou calado, olhando para a calçada
    - Ora, O Negro não passa de um canalha! - disse O louro Peter querendo ajudar (nem reparou no que estava dizendo).
     Martin sacudiu a cabeça.
     - O Negro não tem culpa de nada - disse ele. - A culpa é toda minha. Só minha.
    - Mas como? - observou Herbert excitado. - Você sempre foi um sujeito esperto! Você não é nenhum idiota!
    - Realmente não sou - concordou Martin.
    - E então! Como é que você conseguiu tirar três insuficientes'?
    - E você, você não conseguiu também?
    - Ora, comigo foi outra coisa - respondeu Herbert, irritado. - Comigo foi sujeira do Negro.
    Martin deu de ombros, cansado
    - Como eu consegui, não sei - disse ele desanimado. - Eu entendo O que eu estudo; entendo até muito bem. Entendo tudo O que O Negro explica. Mas na hora em que ele pergunta, de repente dá um branco... Esqueço tudo
    - Comigo acontece a mesma coisa - afirmou Peter. - Mas ninguém acredita!
    - É realmente um absurdo! - concluiu O gordo Herbert, parando. Apontou para a casa em frente e disse:
    - Eu moro aqui - e, estendendo a mão, despediu-se: - Até logo, para vocês. E que tudo corra bem!
    - Olhou para uma janela no terceiro andar do prédio e franziu a testa. - Tomara que O meu velho tenha ido viajar de novo - disse ele esperançoso. - Seria bem mais rápido e simples.
    E com essas palavras separou-se dos colegas. Peter e Martin continuaram.
    - Esse aí tem uma pachorra! - disse Peter com admiração, sacudindo a cabeça. Agora que Herbert se despedira, também ele foi ficando com um certo receio de chegar em casa.
    - Com ele as coisas são diferentes - disse Martin com tristeza. - Ele tem um pai que cuida dele.
    Peter olhou para Martin de lado:
    - Ué! - fez ele. - E você não tem pai também?
     - Quando ele tem tempo - respondeu Martin.
    - Ele trabalha na companhia de bondes!
    - É condutor ou motorneiro?
    - Condutor - respondeu Martin.
    - E a sua mãe? Martin suspirou.
    - Aí é que está! - disse ele preocupado.
    - Aí é que está, O quê?
    - Minha mãe vive em casa - disse Martin baixinho, sem olhar para O colega. - Minha mãe está sempre de cama. Ela é doente, você entende?
    Peter balançou a cabeça, comovido.
    - Eu entendo - disse ele. - A minha mãe tem saúde, mas eu posso imaginar como você deve estar se sentindo com uma mãe doente.
    - É horrível - disse Martin. E eles continuaram um estirão em silêncio.
    - Se eu ao menos tivesse tirado apenas um insuficiente - disse Martin, finalmente. - Não seria lá grande coisa, mas afinal... é coisa que acontece. Mas três!... Três insuficientes' é uma verdadeira catástrofe Ela vai até ficar com febre.
    - Quem é que vai ficar com febre? - perguntou O louro Peter surpreso. (Na hora ele não entendeu logo.)
    - Minha mãe - esclareceu Martin. - Ela fica com febre à toa.
    - Hum - fez Peter, pois não sabia realmente O que dizer.
    Martin procurou se controlar.
    - Eu estou sempre falando de mim - disse ele. - Mas você está na mesma situação.
    - Que nada! - disse Peter. - A situação não é bem a mesma. Lá em casa não há ninguém doente. Um susto para eles não é coisa séria. E vai ser agora mesmo!
    - O que é que vai ser agora mesmo? - perguntou Martin. Agora era a vez de ele não entender nada.
    - O susto. Do pessoal lá de casa. - Ele parou apontando para um portão. - Eu moro aqui - e estendeu a mão para Martin.
    - Até logo - disse este.
    Até logo - respondeu Peter.
    - Boa sorte! - gritou ainda Martin, quando Peter já se afastava.
    - Estou precisando mesmo! - E, ao atravessar os trilhos do bonde, virou-se mais uma vez, gritando também: - Lembranças para sua mãe!
    - Obrigado! - gritou Martin de volta. Alguns pedestres se viraram surpresos, olhando para os garotos e sacudindo a cabeça. Martin continuou sozinho.
    Andava devagar. Passo a passo. Estava perdido em pensamentos.
    Lembranças para sua mãe...
    Para sua mãe...
    Martin respirou fundo, enquanto seguia em frente. Continuava a segurar na mão O maldito boletim, já todo amassado. Fazia calor e ele estava suando. Sua mãe...Martin fechou os olhos.
    O que iria dizer sua mãe?
    Parou. Estava na frente de uma grande vitrina de uma loja de brinquedos. Ficou olhando distraído para ela. Viu bonecas, ursos, carros e um conjunto completo de trem elétrico de brinquedo. No momento, no entanto, nenhuma daquelas maravilhas O interessava. O que prendia a sua atenção era um brinquedo pequeno, insignificante, lá atrás na vitrina. Era um boneco vestido de médico que usava terno preto, de óculos, com uma maleta preta na mão, e que estava no momento examinando a garganta de outro boneco, um menino.
    Martin, diante daquela loja de brinquedos, naquele dia de sol, não conseguia tirar os olhos do boneco. Aquele médico lembrava a ele um outro médico; um médico de verdade, e lembrava também uma conversa que O mesmo tivera com ele, não fazia muito tempo...
    Fora na noite anterior.
    Na casa de Martin.
    O médico de verdade chamava-se Dr. Gerber. Tinha vindo ver sua mãe, conforme fazia há muito tempo. Martin conhecia O Dr. Gerber muito bem. O menino permaneceu sentado na pequena e limpa cozinha, enquanto O médico examinava a mãe O pai estava no trabalho, e só ia voltar à noite.
    Martin, sentado na janela da simpática cozinha, olhava para O parque verde, ouvindo vagamente as vozes que vinham do quarto ao lado, a voz da mãe e a do médico.
    Finalmente, O médico entrou na cozinha.
    Martin ergueu-se de um salto, olhando assustado para ele.
    O médico fechou a porta do quarto.
    - Como está minha mãe? - perguntou O menino em voz baixa.
    O médico sentou num banco ao lado de Martin.
    - Preste bem atenção - disse ele amável - seu pai não está aqui, e por isso tenho que falar com você. - O médico era alto, simpático de olhos brilhantes. - Você já não é mais criança, não é mesmo?
    Martin concordou.
    - Que idade tem você?
    Vou fazer treze anos em agosto - respondeu O garoto.
    - Bem, então você já é quase um adulto - observou O médico.
    - É - fez Martin, e perguntou: - Mas como está a minha mãe?
    - Não está muito bem - disse O Dr. Gerber. Martin se assustou. O medicou percebeu.
    - Não precisa se assustar - disse ele, batendo nas costas do menino. - Sua mãe não está bem, mas já não está tão mal como há seis meses. Pelo contrário, ela começa realmente a melhorar. - Ele pigarreou. - Mas justamente este período de convalescença é uma fase muito perigosa.
    - Como? - perguntou Martin.
    - Bem - explicou O médico -, agora sua mãe conseguiu reagir definitivamente à doença. Foi uma luta longa e dura, e ela está completamente esgotada. Sua mãe está muito fraca. Eu anotei aí O nome de um remédio que ela deve tomar. - Ele entregou um papel a Martin. - Só que O remédio sozinho não basta - continuou O Dr. Gerber. - Sua mãe precisa agora de repouso. De repouso completo e absoluto.
    - Eu entendo - disse Martin.
    - Eu sabia. Você é um garoto inteligente, e eu sei que você vai fazer tudo para sua mãe conseguir repousar bastante, não é?
    - Sim, doutor.
    - Só repouso; mais nada, entendeu? Ela não pode se aborrecer de jeito nenhum! - e O Dr. Gerber levantou O dedo advertindo: - Aborrecimento é veneno para ela. Avise também a seu pai.
    - Pois não, doutor.
    - Se a sua mãe se aborrecer agora, a febre poderá voltar e ela pode ter uma recaída. Não seria, no entanto, uma recaída comum, pois, como já lhe disse, sua mãe está completamente esgotada de lutar contra a doença. Ela talvez não tenha nem forças para agüentar outra crise. Se ela se aborrecer agora, todo nosso esforço para salvá-la foi em vão. Ninguém pode prever O que poderá acontecer se ela se aborrecer.
   Martin olhou firme para O médico.
    - Pode deixar, doutor, não vou deixar que ela se aborreça.
    - Muito bem - disse O médico. E, chegando seu rosto de óculos brilhantes bem para perto do garoto, disse confidencialmente: - Há outra coisa ainda de que eu me lembrei agora: espero que você não fique zangado... Mas eu também tenho um filho e por isso me lembrei, entende? Pensei então que seria melhor que falasse com você antes de ir embora. Martin ficou olhando para ele, surpreso.
    - Como? - perguntou, sem entender.
    - Eu ia perguntar é se... - continuou O médico - se existe algum motivo para sua mãe se aborrecer com seu boletim?
    Martin baixou a cabeça e ficou calado.
    - Bem, isso afinal é coisa que pode acontecer - disse O Dr. Gerber, olhando inquiridor para Martin.
    Mas este já se controlara. Levantou a cabeça e olhou fixo para O médico. Era a primeira vez na vida que Martin conseguia encarar alguém com firmeza apesar de estar mentindo.
    - Não, doutor - disse ele, rapidamente. - O meu boletim não vai ser motivo de preocupação para ela.
    O médico ainda ficou olhando um instante para Martin, depois levantou-se e disse aliviado:
    - Graças a Deus. Então está tudo bem.
    Riu e bateu mais uma vez no ombro de Martin. Martin agüentou firme.
    - Não - confirmou ele com firmeza. - Com O meu boletim não há problema!
    Era nessa conversa que Martin estava pensando, enquanto olhava distraído para a vitrina da loja de brinquedos, onde um boneco vestido de médico examinava a garganta de outro boneco. Ontem, menti para O Dr. Gerber, pensou ele. Martin já sabia há muito que seu boletim estava muito fraco. Sabia também que a sua mãe ia ter mais do que razão para se aborrecer.
    Mas ele havia mentido.
    Ele mentira, porque não tivera coragem de dizer a verdade ao Dr. Gerber.
    Até O último instante ele ainda alimentava uma esperança.
    Quem sabe, pensava ele, quem sabe não acontece um milagre!
    Quem sabe, meu boletim nem está tão ruim assim, e eu não tiro nenhum 'insuficiente', apenas alguns 'suficientes'?
    Ele pensara nisso a noite inteira.
    Até rezara um pouco!
    Meu Deus, pediu ele, por favor, faça com que O meu boletim não esteja ruim. Não é por mim, é só para evitar que a minha mãe, tão doente, se aborreça. Por favor, meu Deus, me ajude. Amém.
   Mas parecia que O bom Deus não dera ouvidos a sua oração.
    O boletim fora fraco mesmo. E como! Não com um suficiente' nem com um 'insuficiente', nem com dois. Mas com três 'insuficientes'!
    E a sua mãe agora não podia deixar de se aborrecer...
    Martin continuava ainda diante da loja de brinquedos, mas nem se dava conta disso. Não via, nem ouvia nada do que se passava à sua volta. Só pensava em sua mãe que estava doente, e no que ia acontecer quando ele chegasse em casa.
    Era evidente que a mãe ia perguntar pelo boletim. Era a primeira coisa que ela ia fazer.
    E eu vou ter que mostrar.
    E ela vai ler.
    E ela vai se aborrecer!
    Não dava nem para prever ou para imaginar O quanto ela ia se aborrecer. Podia até ficar com febre! Seu estado podia até piorar. Era evidente que só podia piorar!
    E aí
    O que ia acontecer, então?
    Ninguém podia saber.
    Quem sabe ela ia ficar de novo tão doente quanto em fevereiro?
    Quem sabe podia até...
    Martin estremeceu.
    Depois, no entanto, se forçou a completar seu pensamento
    Quem sabe ela podia até morrer de aborrecimento!
    E se ela morrer, eu é que sou culpado de tudo! Eu e mais ninguém.
    Eu e O meu boletim...
    Martin continuava a olhar, perdido, para a vitrina.
    Pessoas passavam e esbarravam nele. Ele nem percebia.
    Se a mãe morrer, pensou ele em desespero, durante toda a minha vida eu vou ter que me culpar, a mim e três insuficientes; a mim e ao meu boletim fraco.
    Ele tinha que mostrar O boletim. Assim que chegasse em casa iam pedi-lo e ele teria que mostrar...
     De repente, O garoto pálido se retesou, seu rosto ficou corado, vermelho de excitação. Ele tivera uma idéia!
     Havia uma saída.
    Não era uma saída maravilhosa nem muito agradável, mas de qualquer modo era uma saída!
    Respirou aliviado...
    Se ele não fosse para casa, não teria que mostrar O boletim!
    O garoto magro e pálido ficou parado imóvel diante da grande vitrina.
    A idéia não O largava. Se eu não for para casa... se eu não for para casa... se eu não for para casa...
    E de repente Martin se virou, e começou a voltar pelo mesmo caminho por onde tinha vindo. O boletim que segurava na mão já estava todo manchado e amassado. Ele nem percebeu. Decidido e, com passos rápidos, foi descendo a rua.
    Não sabia O que ia acontecer agora.
    Não sabia O que iria fazer.
    Só sabia de uma coisa: Para casa, ele não podia voltar mais!
Capítulo 2
    Centenas de ruas, milhares de casas, dois milhões de habitantes - O que faço agora? - D. Mitzi vive irritada - Tenho que falar com você urgentemente - O gordo Herbert está mudo de espanto - É preciso contar a verdade ao pai - Mesmo as crianças, às vezes, encontram tesouros - Você é meu amigo você tem que me ajudar! - Martin escreve uma carta importante, e Herbert reconhece que ele é O mais fraco - O temporal se aproxima - Dois garotos na trilha do inimigo - Herbert entrega um recado - Tudo parece dar certo - Martin tem um encontro horrível.
    Viena, a cidade onde se passa a estória que estou contando, é uma cidade muito grande. Ela é atravessada por centenas de ruas. Nessas ruas existem milhares de casas. E nessas casas vivem dois milhões de pessoas É um número muito grande, mas Viena também é uma cidade muito grande. E a gente pode se sentir terrivelmente só e abandonado nela, quando não se sabe por qual das centenas de ruas seguir em qual das milhares de casas entrar, com quem, dos dois milhões de habitantes, falar. E Martin, que, de olhos baixos e boletim amarrotado ha mão, descia lentamente a Rua Waehringer, tinha a impressão de que a cada minuto aquela cidade tão grande ia se tornando maior ainda, que aquela rua tão comprida ia se tornando a cada minuto mais comprida ainda, que não terminava nunca...
    O sol estava quente e as pessoas procuravam andar pela sombra. O ar estava parado. A oeste, por eima do Bosque de Viena, erguia-se uma parede de nuvens negras. Um temporal parecia se armar. Martin, no entanto, não via as nuvens. Não percebia nada em seu redor. Esbarrava nas pessoas, e uma buzinada furiosa o arrancou de suas divagações, conseguindo ele, ainda a tempo, escapar de um caminhão que freou violentamente a seu lado.
    - Ora, droga! Vê se presta atenção! - gritou O motorista. Martin, porém, já seguia em frente, de cabeça baixa, perdido em pensamentos.
    Sua cabeça girava como uma roda de moinho. A roda girava em torno de si mesma, e seus pensamentos também. Ele não conseguia sair do lugar. A mesma idéia martelava sua cabeça.
    O que faço agora? pensava ele.
    A simples decisão de não voltar mais para casa, não bastava. Ele sabia apenas O que ele não podia fazer. Não sabia, no entanto, O que faria. Não tinha a menor idéia. Seus passos repetiam sempre a mesma coisa: Você não pode ir para casa, não pode ir para casa, não pode ir para casa...
    E a roda de moinho dentro de sua cabeça insistia em perguntar: E O que é que você vai fazer? O que é que você vai fazer? O que é que você vai fazer?
    E Martin Zohner, O garoto perdido numa das centenas de ruas da grande cidade de Viena, sozinho e abandonado no meio de milhões de pessoas, não sabia responder.
    Mas ele tinha que encontrar uma resposta!
    Ficar andando assim não levava a nada. Chegaria a hora em que teria que comer alguma coisa, teria que beber, teria que ter um lugar onde dormir.
    Ah, se ele pudesse ir para casa! Se a sua mãe não estivesse doente...
    Mas ela estava.
    Ele tinha que seguir em frente, tinha que imaginar um plano, tinha que decidir O que fazer. Precisava de alguém com quem falar, alguém com quem se aconselhar. Precisava de um amigo com quem discutir O assunto...
    Um amigo!
    Martin parou. Pela primeira vez durante as suas andanças, ergueu a cabeça e havia um pouco de esperança em seu olhar. Enfiou O boletim no bolso, remexeu e encontrou O que procurava: uma moeda.
    Olhou em volta. Lá no fim da rua viu uma cabina de telefone. Foi correndo até lá e entrou. Dentro fazia calor. Uma mosca zumbia, batendo contra O vidro. Cheirava mal. Martin abriu O grosso catálogo de telefones e começou a folheá-lo. Procurava O número do amigo Herbert. Era com ele que queria falar. Com ele iria se aconselhar,
    O sobrenome de Herbert era Radvany.
    Martin encontrou a página com R, e seu dedo indicador percorreu as longas filas de nomes e endereços. Radowsky... Radschitzky... Raducziner... Radulay...
    Logo depois encontrou O que queria:
    Radvany, Georg - comerciante, XVIII, Gentzgasse 32.
    Ao lado estava O número do telefone: 98-25-01.
    Com os dedos úmidos de suor, Martin colocou a moeda no aparelho, pegou O fone e discou.
    Uma voz de mulher atendeu.
    Alô
   Martin conhecia aquela voz. Era D. Mitzi. D. Mitzi era a cozinheira dos Radvany.
   - Bom-dia, D. Mitzi - disse ele educadamente.
    - Eu poderia falar com Herbert?
    - Quem está falando? - a voz de D. Mitzi era mal-humorada. Sua voz era sempre mal-humorada, não só ao telefone. D. Mitzi era uma mulher mal-humorada de mais de cinqüenta anos.
    - É Martin - disse O garoto na abafada cabina de telefone, com toda a paciência. Enxugou O suor da testa.
    - Um instante - disse D. Mitzi sempre mal-humorada. Ela não simpatizava muito com Herbert, muito menos com os amigos dele.
    Martin ouviu-a chamar Herbert, e em seguida este mesmo atendeu.
    - Alô - disse ele.
    - Tudo bem? - disse Martin, rapidamente. - Aqui é Martin Será que eu poderia falar com você?
    - Você, comigo?
    - E.
    - Quando?
    - Agora.
    A voz de Herbert ficou nervosa.
    - Claro que pode. Mas aconteceu alguma coisa?
    - Aconteceu, sim - disse Martin.
    - O que foi?
    - Não posso dizer pelo telefone. Seu pai está em casa?
    - Não - respondeu Herbert. - Ele só chega de noite. Estou sozinho com Mitzi.
    - Então está bem - disse Martin muito apressado. - Passo aí agora mesmo.
    - Mas O que foi que aconteceu? - quis saber Herbert muito curioso, mas Martin nem chegou a responder. Pendurou O fone e saiu depressa para a rua. Era estranho, mas depois dessa conversa ele se sentia melhor. Não tinha mais aquela sensação de abandono, de solidão, de desespero.
    Agora ele sabia para onde ia. Não vagava mais sem destino pelas ruas. Não estava mais só.
    Na porta pintada de branco havia uma placa de metal brilhante onde se lia: GEORG RADVANY
    No batente da porta havia uma campainha.
    Martin ajeitou O cabelo. Sua respiração ainda estava meio ofegante, pois subira correndo as escadas. Depois tocou a campainha. A porta foi aberta logo, em seguida, e D. Mitzi apareceu. Era alta e magra, de nariz muito branco e pontudo. Usava um vestido preto, um avental branco e uma touca de renda branca. Via-se logo que não era uma pessoa qualquer.
    - Ah, é você! -disse ela sem grande prazer. - Vá entrando. Herbert está lá dentro, no quarto.
    - Obrigado, D. Mitzi - disse Martin, enquanto passava por ela para entrar na casa. Ela não disse nada, apenas fechou a porta rapidamente, voltando para a cozinha. A sala era clara e simpática. Havia um grande espelho na parede, e diante dele um vaso com flores. Nas paredes viam-se quadros coloridos, e havia diversas portas de vidro que davam para os demais cômodos. Martin já sabia O caminho. Dirigiu-se à segunda porta e bateu.
    - Entra! - disse Herbert, que veio ao encontro de Martin.
    - Então O que houve? - perguntou ele estendendo a mão para Martin, e puxando-o para dentro do quarto. - Você se meteu em alguma encrenca ou seus pais botaram você para fora de casa?
Martin sacudiu a cabeça, mudo.
    - Anda, fala logo! - disse Herbert já nervoso.
    - Ninguém aqui pode me ouvir? - perguntou Martin, e Herbert olhou para ele muito espantado.
    - Claro que não!
    - E Mitzi?
    - Está lá na cozinha.
    - Tem certeza?
    - Certeza de quê?
    - De que ela está na cozinha?
    - Claro! - exclamou Herbert. - Mas O que é que está havendo com você?
    Em vez de responder, Martin foi na ponta dos pés até a porta, abrindo-a de repente. O corredor estava deserto.
    - Como é, seu maluco, você agora se convenceu? - perguntou Herbert, olhando espantadíssimo para Martin.
    Este fechou a porta de novo e balançou a cabeça afirmativamente.
    - Desculpe - disse ele. - Tenho que tomar muito cuidado.
    - Por quê? Aconteceu alguma coisa em casa?
    - Não - disse Martin. - Eu nem estive em casa ainda. - E, aumentando O tom de voz, acrescentou muito devagar: - E nem vou voltar para casa!
    Herbert ficou muito impressionado com essa declaração. Sentou-se num banco colorido, e, olhando com admiração para O amigo, disse:
    - Puxa!
    - Eu não posso ir para casa - continuou Martin rapidamente. - Minha mãe iria se aborrecer quando visse meu boletim. Ela ia ficar com febre. Ou ter uma recaída. E piorar. Eu sei lá! Você entende? Eu não posso ir para casa, porque ela não pode se aborrecer.
    Berbert Radvany tinha dois insuficiente no boletim, mas era um garoto inteligente. E por ser um garoto inteligente, perguntou logo:
    - E você por acaso acha que ela não vai se aborrecer, nem se preocupar se você não voltar?
    - Aí é que está - disse Martin, sentando perto de Herbert.
    - Aí está O quê? - perguntou este.
    - Aí é que está O problema. Foi por isso que vim falar com você - explicou Martin.
    - Por isso O quê?
    - Para perguntar a você O que eu devo fazer. Herbert arregalou os olhos.
    - E é a mim que você vem perguntar? Como é que eu vou saber O que você deve fazer?- Ele se levantou e começou a andar de um lado para outro. - Eu acho é que você devia ir para casa como eu.
    - Mas O seu caso é diferente - explicou Martin. - Sua mãe não está doente, ela está lá na Inglaterra; enquanto a minha está doente e está aqui em Viena.
    Herbert sacudiu a cabeça.
    - Uma coisa não tem a ver com a outra. Eu acho que você não pode fugir de casa de jeito nenhum... tanto faz sua mãe estar doente ou não. Eu, mesmo que estivesse no seu lugar, não fugiria!            - Ele parou e ficou olhando preocupado para Martin. - Você, por acaso, acha que eu estou me sentindo muita à vontade?
    - E por que não? Seu pai nem chegou em casa ainda!
    - Não chegou, mas telefonou - respondeu Herbert. - E a idiota da Mitzi, claro que contou logo tudo pelo telefone.
    - Sim, e aí?
    - Aí, nada. Ele só disse: a gente conversa de noite! - explicou Herbert. - Por aí, você já deve saber O que me espera.
    Martin insistiu.
    - Mesmo assim - disse ele. - Existe uma grande diferença entre O seu caso e O meu. Eu não posso voltar para casa e nem adianta a gente falar sobre isso. Eu sei muito bem O que tenho que fazer.
    - Mas seus pais vão ficar preocupados, se você não voltar para casa! - exclamou Herbert. - Eles vão ficar muito mais preocupados pelo fato de você desaparecer, do que ficariam com os seus três 'insuficientes'! E eu garanto que sua mãe vai piorar!
    Martin balançou a cabeça devagar.
    - Eu também já pensei nisso - disse ele. - E só vejo uma saída.
    - Qual é?
    - Tenho que contar a verdade a meu pai.
    - E você por acaso acha que seu pai vai deixar você ir embora depois que você lhe contar a verdade?
    - perguntou Herbert, exaltado.
    - Mas eu não vou dizer a verdade a ele pessoalmente - explicou Martin.
    - O que vai fazer então?
    - Vou escrever.
    O gordo Herbert ficou olhando, boquiaberto.
    - Como? - perguntou ele, espantado.
    - Ora, vou escrever uma carta - explicou Martin. - Na carta, eu conto toda a verdade. Para ele saber O que está acontecendo. Para ele saber por que eu não fui para casa. Para ele poder contar outra estória a minha mãe. Ele pode dizer que me convidaram para uma colônia de férias. Ou qualquer outra coisa! Sei lá! Ele vai ter que inventar alguma coisa!
    - Sim, e depois? - perguntou Herbert.
    - Depois O quê?
    - O que é que você vai fazer depois?
    - Aí eu posso me mandar - explicou Martin. - Espero até saber que a minha mãe ficou boa de novo, que não há mais perigo se ela se aborrecer... e aí conto-lhe a verdade.
   - E nesse tempo todo, O que é que você vai fazer? - quis saber Herbert.
   - Isso eu ainda não sei - disse Martin. - Talvez saia até da cidade.
   - E vai para onde?
   - Para qualquer lugar. Não sei. Vou tentar ganhar dinheiro. Se eu conseguisse ganhar um bom dinheiro, estaria tudo resolvido. Aí meus pais iam ver que, apesar dos 'insuficientes', eu presto para alguma coisa, e a minha mãe poderia ir para um bom sanatório, para ficar boa. Seria mais fácil ela me perdoar se eu tivesse ganho algum dinheiro, se tivesse conseguido ser alguma coisa.
    Herbert estava tão nervoso que deu um soco na mesa.
    - Ora, pare com essa besteira! - gritou ele.
    - Pssst! - fez Martin. - Não fale tão alto! Mitzi está na cozinha!
    - Mas pare de besteira! - insistiu Herbert, agora em voz baixa, porém muito nervoso. - Como é que você vai ganhar dinheiro? Afinal, O que é que você sabe fazer?
    - Pode ser que eu encontre algum trabalho. -
    Martin deu de ombros. - Ou, quem sabe, posso até encontrar algum tesouro.
    - Besteira! - gritou Herbert de novo.
    - Besteira, nada - contestou Martin. - Muita gente já encontrou tesouros. Há poucos dias ainda, li, um livro chamado A Ilha do Tesouro, onde algumas pessoas encontraram um tesouro imenso!
    - Adultos, talvez. Mas criança, nunca!
    - Criança também! Na Ilha do Tesouro também havia um garoto entre eles.
    Herbert percebeu que não adiantava falar.
    - Isso tudo que você pretende fazer é loucura - disse ele. - Se você me tivesse contado isso no telefone, eu nem teria deixado você subir Eu não quero me meter nisso!
    - Mas você é meu amigo! - exclamou Martin.
    - Sou, e daí? É justamente por ser seu amigo.
    - Mas você não vai ter que se meter - explicou Martin. - Eu só quero que você me dê uma ajuda na carta.
    - Na carta? Como?
    - Eu queria que você entregasse a carta a meu pai.
    Herbert estava fora de si.
    - Mas nem pensar! Para depois eu ser O culpado de tudo? Eu já tenho problemas demais!
    - Mas não é para levar a carta lá em casa - explicou Martin.
    - Para onde, então?
   - À estação de bonde em Gersthof. Você entrega a carta lá. Endereçada a meu pai. Sempre que ele sai do trabalho, ele passa por lá. Lá entregam a carta a ele. É só isso que eu quero de você!
    - E se eu não fizer?
    - Mas você tem que fazer!
    - Mas se eu não fizer?
    - Bem, aí meu pai não recebe a carta, vai se preocupar por minha causa, a minha mãe também, ela vai piorar e...
    - Pare com isso! - implorou Herbert. - Que horror! - Depois ele se lembrou de outra coisa.      - E por que você não manda a carta pelo correio?
    - Porque ia demorar muito - explicou Martin.
    - Além disso, ela ia cair nas mãos de minha mãe.
    - Por quê?
    - Porque de manhã, na hora em que O correio chega, meu pai já não está mais em casa.
    Herbert ficou calado. Não sabia O que dizer. Os dois amigos se entreolharam, mudos.
    - Como é? - perguntou Martin, finalmente.
    - Está bem - disse Herbert, suspirando fundo.
    - Mas eu continuo a dizer: O que você pretende fazer é uma loucura!
    - Não é loucura, não - disse Martin. - É a única saída. - Levantou-se, dirigindo-se para uma pequena escrivaninha junto à janela. - Você tem papel aí? - perguntou ele.
     - Para quê?
    - Para a carta - explicou Martin. Herbert se aproximou, furioso, e arrancou duas folhas pautadas de um caderno velho de escola.
    - Tome aí - disse ele.
    - Obrigado - respondeu Martin, sentando-se à mesa e suspirando fundo.
    Herbert se afastou, indo sentar-se no outro canto do quarto. Estava tão por conta que se virou de costas para Martin. Este ficou pensativo, mordendo a ponta do lápis que encontrara na escrivaninha, olhando para fora da janela. O sol brilhava. Em algum lugar, os sinos de uma igreja tocaram meio-dia. Martin começou a escrever na folha de papel pautado, muito devagar e com muito capricho:
   "Querido pai,
    Estou lhe enviando esta carta para que você não se preocupe comigo. Estou bem, mas não posso ir para casa. Junto a esta O meu boletim. Quando você tiver dado uma olhada, você vai entender O porquê. Desculpe-me por ter sido um aluno tão fraco. Ontem mesmo O Dr. Gerber me disse que mamãe não pode se aborrecer. Se eu chegar em casa com este boletim, ela certamente vai se aborrecer. Por isso, eu não vou. Você também não pode contar a ela por que eu não fui para casa. Você não pode contar nada. Nem de mim, nem do boletim. Diga a ela que você me deu licença para eu ir a uma colônia de férias. Que O trem saiu logo depois de terminarem as aulas, e que eu não tive tempo de me despedir, que você ainda vai me mandar a mala com a roupa. Por favor, me desculpe. Vou tentar ganhar algum dinheiro, e depois, quando tiver ganho bastante volto para casa, para vocês verem que O filho de vocês presta para alguma coisa. Vou escrever de novo. Não se preocupe comigo. E não diga nada à mãe.
    Seu filho que muito O ama, Martin
    P.S.: Esconda O boletim.
    Martin largou O lápis e releu O que havia escrito. Ficou muito triste, com pena de si mesmo. Mas trincou os dentes, firme. Agora, ele não podia enfraquecer!
    - Você tem envelope?
    - Lá na gaveta - respondeu Herbert. Ele não queria se meter naquela estória, e continuava furioso, de costas para Martin.
    Ao longe, de repente, roncou um trovão. Foi um ronco fundo e demorado.
    - O que foi isso? - perguntou Martin assustado.
    - É um temporal - disse Herbert apenas. Martin olhou pela janela. Realmente. A parede de
    nuvens negras por cima do Bosque de Viena aproximara-se. Soprava um vento fresco.
    - Temos que nos apressar - disse Martin, procurando um envelope na escrivaninha. Encontrou O envelope, colocou a carta dentro, fechando-o. Depois em letra maiúscula:
    PARA O SENHOR ROBERT ZOHNER (N°11521) EM MÃOS
     - Pronto - disse ele, colocando O lápis na escrivaninha. E, levantando-se, acrescentou: -Vamos.
    - Se me perguntarem qualquer coisa, vou dizer que você me forçou - declarou Herbert.
    - Pode dizer.
    - Vou dizer que tentei tirar a idéia de sua cabeça.
    - Se alguém me perguntar algum dia, eu confirmo, pode deixar - prometeu Martin. - Não precisa ter medo, não vai lhe acontecer nada.
    - Se eu não fosse tão gordo, eu lhe daria uma boa surra, trancava você aí e ia chamar seu pai - disse Herbert, que devia ter chegado a esta conclusão, enquanto Martin escrevia a carta. - Seria a melhor coisa. Mas, infelizmente, você é mais forte do que eu, apesar de ser mais magro.
    Nisso você tem razão - disse Martin. - Você não ia conseguir me trancar aí, nunca!
    - É - murmurou Herbert. - E se eu agora não for entregar a carta a seu pai, ele não vai nem saber O que aconteceu com você.
    - Exatamente - concordou Martin - Então, vamos logo.
    O gordo Herbert deu de ombros e abriu a porta do quarto.
    - Silêncio! - advertiu ele. - Mitzi não pode perceber nada.
    - Por quê? Você não pode sair?
    - Na verdade, não. - murmurou O gordo Herbert. - Estou de castigo até meu pai chegar.
    Os dois garotos saíram escondidos pela sala. Na cozinha, D. Mitzi cantava. Com voz alta e aguda, cantava uma canção sentimental, que dizia:
    "Não longe daqui, em uma verde mata, Havia uma garota junto a uma cascata. Ela era tão linda, alva e corada. E por um bandido estava apaixonada..."
    D. Mitzi esticava as palavras da canção O mais que podia. Ela cantava: "ma-ata", "casca-a-ta" e "apaixona-a-ada''.
    - Eu não sabia que ela cantava tão bem - murmurou Martin, enquanto Herbert abria a porta bem devagar.
    - Sempre que corta carne para ensopadinho ou quando bate bifes - explicou Herbert, também em voz baixa -, Mitzi canta árias de óperas. Ela tem muito bom ouvido.
    Ele fechou a porta e os dois estavam no corredor.
    - Vamos depressa! - disse Martin, e desceram a escada correndo.
    Lá fora, ainda fazia muito calor. O vento estava ficando cada vez mais forte, e a parede de nuvens se aproximava, ameaçadora. Saíram correndo pela rua.
    Martin segurava a carta na mão. Em quinze minutos, chegaram à estação de bondes de Gersthof. Martin parou, pucando Herbert para junto de si.
    - Chegamos - disse ele. Cauteloso, como um índio na trilha do inimigo, foi-se esgueirando para O outro lado da rua,aproximando-se passo a passo. A estação era um prédio de um andar, pintado de verde, com grandes janelas envidraçadas de todos os lados. Bem na frente, havia uma parada de bonde. Dentro do prédio estavam sentados os funcionários de folga, que descansavam, lendo jornal, dormindo ou simplesmente esperando pelo início do turno. Através das janelas, dava perfeitamente para olhar O interior.
    - Seu pai está lá? - perguntou O gordo Herbert, nervoso.
    Martin olhou com muita atenção.
    - Não - disse ele -, não está, não.
    - Graças a Deus! - observou Herbert. - O que é que você quer que eu faça?
    - Você está vendo aquele homem alto, lá na mesa, perto do corredor?
    Herbert se esticou na ponta dos pés.
    - Estou - disse ele.
    - Ele é O chefe - explicou Martin. - Você vai lá e entrega a carta a ele.
    - Só isso?
    - Só
    - E se ele fizer qualquer pergunta?
    - Ele não vai perguntar nada. Você vai lá entrega a carta, diz que é para meu pai, e pronto. E muito simples.
    - Se é tão simples, por que você mesmo não vai lá? - perguntou O gordo Herbert, acovardado.
    - Porque eu já vim aqui várias vezes, e todos os colegas do meu pai me conhecem. Talvez eles nem me deixem sair logo. Para mim é muito perigoso entrar lá. Já para você, não tem perigo nenhum.
    O gordo Herbert deu de ombros.
    - Muito bem - disse ele. - Eu levo a carta.
    - Tome aí - disse Martin. - Eu espero por você.
    - Está certo - disse Herbert. Afastando-se de Martin, que olhava ansioso para ele, atravessou a rua e se aproximou do prédio verde.
    Martin não O largava de vista.
    Herbert entrou no prédio.
    Aproximou-se do chefe.
    Falou com ele e lhe entregou a carta.
    Martin não conseguia ouvir O que ele dizia, mas podia ver O chefe balançar a cabeça e receber a carta.
    Herbert virou-se e veio caminhando para a entrada. Tudo tinha dado certo!
    Daqui a um minuto Herbert está aqui, pensou Martin. Aí eu tenho que agradecer a ele e...
    Mas não chegou a agradecer, pois naquele instante uma mão pousou no seu ombro, e uma voz simpática disse:
    - Olá, meu amigo, como foi O boletim? Martin virou-se, apavorado.
    Diante dele estava um senhor todo sorridente. Era O Dr. Gerber.
Capítulo3
     Preso! - O cordão do meu sapato desamarrou-se - Martin escapa, iniciando-se uma perseguição louca - Pega! Pega!
     - Raios, trovões e tromba d'água - Um táxi atravessa a cidade a toda velocidade - O suor brota da testa de Martin
     - Freios cantam e um motorista xinga - O sinal está vermelho - Um caminhão como última salvação - Minutos de perigo de vida - O Vingador do Texas" - A moça de vestido de seda vermelha - A tapeação do Proibido para Menores - Um homem ainda jovem, de roupa extravagante - Nova catástrofe - Vamos chamar a polícia agora mesmo! - A salvação no último minuto - Martin consegue um almoço!
    A primeira reação de Martin ao ver O Dr. Gerber foi fugir. Mas não pôde: a mão do médico continuava pousada em seu ombro, segurando-o. O Dr. Gerber olhava para ele comum sorriso amável.
    - Como é? - perguntou ele.- Você não ouviu? fiz-lhe uma pergunta.
    - Como? - balbuciou Martin (Ele ouvira muito bem O que O Dr. Gerber perguntara, apenas estava tentando ganhar tempo para poder pensar, e traçar um plano.)
    - Eu perguntei como foi seu boletim - explicou O médico, sempre segurando Martin pelo ombro.
    - Foi bom... Tudo bem, obrigado - respondeu Martin, hesitando e virando a cabeça para O lado. Ele viu que Herbert estava agora do outro lado da rua, fazendo sinais para ele. Os sinais queriam dizer: "E agora? O que é que eu faço?" Martin fez também um rápido sinal com a mão querendo dizer: "Some!"
    Herbert entendeu O sinal e sumiu. Correndo O mais rápido que as suas curtas e gordas pernas O permitiam, ele desceu a rua. Virou-se duas vezes. Depois, desapareceu em meio à multidão e aos carros.
    O Dr. Gerber era uma pessoa muito inteligente. É claro que ele percebeu O que Martin estava fazendo, e percebeu também que O garoto estava transtornado, nervoso e infeliz. E por ser uma pessoa inteligente, sabia também por que Martin estava transtornado, nervoso e infeliz. A explicação, pensou ele, só podia ser O boletim de Martin que não devia ter sido bom, muito pelo contrário, devia ter sido fraquíssimo, e O menino devia estar com medo de ir para casa.(Que sorte, eu ter encontrado com ele, pensou O Dr. Gerber. Pois assim eu posso acompanhá-lo até a sua casa e explicar tudo à mãe. Eu vou dar um jeito para que ela não se aborreça muito. Em último caso, eu lhe aplico uma injeção de calmante...)
    E em voz alta, ele disse:
    - Fico muito satisfeito por você ter tido um boletim bonito. Bem, então podemos ir juntos até a sua casa.
    Martin se assustou...
    - Para casa... Mas como?
    - Eu ia justamente fazer uma visitinha à sua mãe - disse O médico. - Foi bom até ter encontrado você aqui, Martin. (Meu Deus, pensou O garoto, e agora?)
    - Bem eu... eu na verdade ainda ia ... ia visitar um amigo antes de ir para casa - gaguejou Martin.
    - Ora - disse O Dr. Gerber, colocando-lhe novamente a mão no ombro, e começando a descer a rua com O menino -, por que você não vem comigo? Agora nas férias, você tem tempo de sobra, e a sua mãe já deve até estar esperando por você.
    Martin entrou em pânico. Ele não podia ir com O médico, não podia de jeito nenhum. Ele tinha que conseguir escapar dessa.
    De repente trovejou alto, e um súbito pé-de-vento levantou a poeira da rua.
    - Temos que nos apressar - disse Dr. Gerber. - Daqui a pouco vai cair uma chuvarada.
    A seu lado, Martin continuou mudo e cabisbaixo. Um bonde ultrapassou-os, com a campainha tocando. Mais abaixo, Martin viu uma parada de bonde. E agora! pensou ele.
    - Um instante - disse ele com voz rouca, parando.
    - O que foi? - perguntou O Dr. Gerber.
    - O cordão do meu sapato desamarrou-se - mentiu Martin.
    Abaixou-se como se fosse ajeitar O sapato, mas logo se ergueu de um salto, saindo em disparada pela rua.
   - Martin! - gritou O Dr. Gerber, depois de um segundo de surpresa. - Martin! Pare aí!
    Mas Martin não parou.
    Corria como louco em direção ao ponto para onde se dirigia O bonde. O Dr. Gerber seguiu atrás.
    - Pega! - gritava O médico. - Pega ele! Porém a ventania, que assoviava alto, abafou a sua voz.
    Um raio amarelo, cor de enxofre, riscou O céu negro. Logo em seguida ouviu-se O estrondo de um trovão. Martin arfava. O bonde, pensou ele. Tenho que tomar aquele bonde... Se eu não O conseguir O doutor me pega... Se eu não conseguir tomar aquele bonde, tudo está acabado...
    Correu como nunca em toda sua vida. O bonde já estava se pondo em movimento de novo. Martin ainda pegou O último vagão, e, agarrando-se no balaústre, pulou. Teria escorregado e caído, se um velho não O tivesse segurado pelo colarinho.
    - Você está querendo se arrebentar, seu moleque? - xingou ele, olhando furioso para Martin. Outros passageiros se meteram.
    - E um absurdo! - exclamou uma senhora.
    - Essa juventude de hoje! - observou uma outra.
    Martin nem ligou.
    Foi abrindo caminho até chegar à janela, e olhou para trás. O Dr. Gerber não conseguira pegar O bonde. Gesticulando violentamente, correu para um táxi, abrindo rapidamente a porta. Com as rodas rangendo, O bonde entrou numa curva, e Martin ainda viu O Dr. Gerber apontar com O dedo para O mesmo, entrar no táxi e O motorista arrancar.
    Martin se assustou.
    Vinham atrás dele.
    Meu Deus, e agora? Em alguns segundos O táxi ia ultrapassar O bonde... O bonde ia parar... Eles iam encontrá-lo... Martin respirava ofegante.
    O táxi naquele momento já dobrava a esquina, e Martin podia vê-lo novamente. Outro raio riscou O céu negro. Mais uma vez ouviu-se O ribombar de um trovão, e quase no mesmo instante começou a chover a cântaros. A rua ficou escura; chovia tanto que mal dava para ver a palma da mão na frente do nariz.
    Meu Deus, faça com que O táxi não nos alcance, rezava Martin. Por favor, meu Deus, faça com que ele tenha que parar!
     Sua oração, porém, não foi atendida.
    Através da grossa chuva, ele distinguia os contornos do carro preto que se aproximava. O motorista buzinava como um louco. As pessoas no bonde começaram a ficar inquietas.
    - O que será? - indagou O senhor que tinha impedido Martin de cair.
    - Deve ter acontecido alguma coisa - observou a senhora que antes dissera: "Que absurdo!"
    E a outra senhora que reclamara contra a juventude de hoje gritou de repente em voz estridente:     - Seu condutor! Seu condutor! Venha cá, por favor! Este garoto deve ter aprontado alguma!   
    O suor escorria pela testa de Martin.
    Raios riscavam O céu.
    Trovões roncavam alto.
    Chovia que parecia um dilúvio.
    De repente, todos os passageiros do bonde se viraram, fixando-o como se fosse algum animal perigoso, algum criminoso.
    O condutor veio se aproximando.
    - O que foi? - perguntou ele.
    - O senhor não está vendo? - perguntou a senhora de voz estridente, apontando para a janela.
    O condutor olhou para fora.
    O táxi vinha logo atrás do bonde. O Dr. Gerber tinha abaixado O vidro da janela; meteu a cabeça para fora e gritou qualquer coisa que ninguém ouviu.
    Também O condutor se esticou para fora.
    - O que é? - gritou ele.
    - O garoto! - berrou O Dr. Gerber. - O garoto aí a seu lado! Segure ele!
    O condutor se virou e olhou para Martin.
    - Eu não disse? - exclamou a senhora de voz estridente. - É para O senhor segurar ele! Sabe   Deus O que ele aprontou. - E repetiu mais uma vez: - Essa juventude de hoje!
    O condutor esticou O braço para agarrar Martin, mas este recuou.
    - O que é que está havendo com você? - perguntou ele.
    Nesse instante O bonde chegou a outro ponto de parada. Parou.
    Martin olhou em torno transtornado. Depois abaixou-se, esgueirou-se habilmente por baixo do braço do condutor e pulou para a chuva.
    Atrás dele cantaram os freios do táxi.
    O motorista xingava. Mais um metro e ele teria atropelado O garoto.
    - Martin! - gritou O Dr. Gerber,abrindo rápido a porta do carro. - Pare aí, Martin! Tenha juízo! - Mas Martin não parou. Martin não teve juízo. Saiu correndo como louco pela chuva, atravessando O cruzamento onde estava parado O bonde. O sinal estava vermelho. Martin nem percebeu. Como um louco, corria por entre aquele trânsito intenso, aqui, escapando por um triz de um carro, ali, entrando quase embaixo de uma bicicleta. O guarda que dirigia O trânsito apitou alto. Agora já não era mais apenas O Dr. Gerber que O perseguia. Já havia um monte de gente correndo atrás dele.
    As pessoas nem sabiam por que corriam. Algumas achavam que Martin devia ser um ladrão; outros achavam que se tratava de algum delinqüente juvenil; outros, ainda, corriam apenas porque havia gente correndo. E na frente de todos, corria O Dr. Gerber.
    Ele era O único que sabia por que estava correndo. E ele vinha se aproximando cada vez mais.
    Um caminhão imenso com reboque ia se arrastando rua acima. Seu motorista nem havia percebido ainda toda aquela caçada humana. Passou devagar por Martin.
    Este já estava quase sem fôlego. Levantou os olhos, e teve uma idéia. Juntando todas as suas forças, saiu correndo pelo meio da pista em direção ao caminhão. Lá atrás, por cima da placa, O reboque tinha uma alça de ferro. Martin se agarrou nela. Encolheu as pernas. O chão lhe foi arrancado debaixo dos pés. Ficou pendurado no ar, mas O caminhão O carregou!
    Seguia agora com ele.
    Devagar, com muito cuidado, ele se alçou. Seu pé direito encontrou apoio na placa do caminhão. Ele estava balançando a um metro do chão, apertado contra a parede traseira do reboque, equilibrado na fina placa de metal.
    Sua posição parecia muito precária e arriscada.
    E era.
    Alguns pedestres que viram O garoto gritaram, acenando para O motorista. Este, no entanto continuava a não perceber nada de seu jovem carona. Seguia calmamente O seu caminho.
    Martin virou a cabeça muito devagar, m muito cuidado, centímetro por centímetro. Tinha que ter muito cuidado, mexer-se muito vagar para não perder o equilíbrio e despencar dali.
    Todos os seus perseguidores foram ficando para trás, menos um.
    O Dr. Gerber.
    O táxi com o qual ele vina seguindo O bonde, emparelhou com O mesmo. O Dr. Gerber acabara de entrar novamente no carro, e O motorista acelerou.
    A perseguição continuou. .
    E O aguaceiro também continuava a cair. As roupas de Martin estavam coladas no corpo como mata borrão molhado O cabelo lhe caía na testa e por cima dos olhos. Ele arfava. Estava enjoado, sentia-se tonto. Eu não agüento mais aqui muito tempo, pensou ele.
    Passou mais um cruzamento.
    Outro.
    Carros.
    Gente.
    Pela segunda vez, O táxi quase emparelhou com O caminhão, mas no último instante foi retido pelo tráfego, ficando para trás. Buzinava sem parar. Os pedestres na calçada acompanhavam a caçada, agitando seus guarda-chuvas. Finalmente, também O motorista do caminhão percebeu que havia algo de errado.
    Freou.
    O caminhão parou.
    Martin olhou para trás. Depois saltou rápido. Do outro lado da rua viu um enorme cinema de porta aberta.
    Eles haviam justamente dobrado uma esquina, mas O táxi ainda não. Martin atravessou a rua, correndo em direção ao cinema, desaparecendo na entrada. Virou-se ainda uma vez.
    O táxi acabava de entrar na curva.
    Martin se encolheu rápido. O Dr. Gerber não O viu.
    Ele escapara.
    Mas tinha que tratar de sumir dali, e já!
    Na sua frente havia um grande cartaz colorido, em cores berrantes. O cartaz mostrava um homem trajado a rigor. O segundo homem (que estava sendo alvejado) apertava a mão contra O coração, e seu rosto estava contorcido de dor. Entre os dois homens via-se uma moça muito bonita, de vestido de seda vermelha, sentada imóvel, de pernas cruzadas. Levava entediada uma enorme piteira à boca. Parecia não se incomodar absolutamente com O que acontecia a seu redor. Abaixo do cartaz, lia-se:
    "O VINGADOR DO TEXAS" E para cima, em letras imensas: PROIBIDO PARA MENORES
    Naquele momento, no entanto, Martin não podia ligar para O aviso. Ele nem queria ver aquele filme, "O Vingador do Texas", queria apenas se esconder para que O Dr. Gerber não O encontrasse.
    Por isso, entrou correndo pelo hall escuro e refrigerado do cinema, que àquela altura estava completamente deserto (a sessão estava bem no meio).
    Apenas na bilheteria havia uma luz acesa, e a senhora loura atrás do guiché conversava animada com a lanterninha, que segurava a lanterna na mão.
    Nem a senhora loura, nem a lanterninha haviam percebido Martin, pois mesmo ali, no silencioso hall, ouviam-se muito alto O barulho da chuva e os roncos dos trovões.
    Martin passou na ponta dos pés pelo guiché iluminado, penetrando cada vez mais no hall.
    Na sua frente viu um letreiro luminoso com a palavra: ENTRADA.
    Abaixo do letreiro havia uma porta bem larga. Dirigiu-se rapidamente a esta porta. Abriu-a e entrou no salão escuro do cinema. A porta fechou sozinha atrás dele.
    Ninguém O havia percebido!
    A princípio não conseguiu enxergar nada, pois sua vista ainda não se acostumara ao escuro.
    Logo depois ouviu uma música alta e agitada. De repente, a música parou. Houve um silêncio profundo. No mesmo instante soaram seis tiros. Martin levou um susto tão grande que recuou até a porta.
    Olhou rapidamente em volta, e viu que a tela estava bem na sua frente.
    Os tiros tinham vindo da tela, onde O homem, que Martin já vira no cartaz, acabava de disparar O revólver. Ele agora já não estava mais vestido a rigor. Usava uma roupa de cow-boy e estava montado a cavalo, galopando através de um deserto de areia, sem fim
     Perseguia outro homem que se virava de vez em quando atirando para trás.
    Os dois continuavam sempre atirando, mas nenhuma daquelas dezenas de balas de seus revólveres atingia O alvo.
    Finalmente, O perseguido conseguiu escapar ao perseguidor.
    Este parou O cavalo, sorrindo como quem diz: "Pode deixar que eu te pego!" Os olhos de Martin já haviam se acostumado à escuridão. Muito devagar e com cuidado ele foi entrando no salão. De repente, tropeçou em alguém que estava sentado ali.
    - Desculpe! - disse Martin, assustado.
    - Não foi nada - respondeu a pessoa. Era um homem. Martin apertou os olhos para ver se conseguia distinguir seu rosto, mas estava escuro demais. Sentou-se ao lado da pessoa, olhando para a frente.
     Na tela, O cenário agora já era outro. Era um bar cheio de fumaça, muito alegre e barulhento. Havia gente bebendo, jogando, dançando e rindo. A moça do vestido de seda vermelha, que Martin já conhecia do cartaz, andava pelo bar cantando, com voz profunda e rouca, uma canção que falava de amor e luar, de fidelidade e beijos ardentes. A canção agradou imensamente à freguesia do bar, principalmente a uma pessoa. Agradou tanto a ele que puxou a moça do vestido de seda vermelha para a sua mesa. Ela relutou, começando a gritar como se tivesse acontecido alguma desgraça, como se ela estivesse em grandes apuros.
     A tela mostrava O rosto do homem bem de perto, e Martin viu que era a mesma pessoa que ele já conhecia do cartaz, e a quem "O Vingador do Texas" perseguira através do infindável deserto de areia. Devia ser O bandido, pois um ahhhh! de alívio soou pela sala escura, quando naquele instante "O Vingador", agora vestido a rigor, entrou no bar para ir socorrer a cantora em apuros.
    Primeiro deu uns socos no bandido, perseguindo-o através do salão. De passagem, os dois foram
destruindo dois terços das instalações, fazendo com que os assustados fregueses fugissem apavorados. O bandido então sacou a arma e começou a atirar no "Vingador do Texas". Este atirou de volta. Perseguiam-se, passando por baixo das mesas e cadeiras, um mostrando os dentes para O outro,sempre atirando alegremente. Meu Deus, quantas balas eles tinham! Martin achou que aquilo era realmente um filme muito sem graça. Sempre imaginara que os filmes onde via escrito "PROIBIDO PARA MENORES" fossem especialmente interessantes. Como é que gente adulta podia gostar daquilo? Todo aquele tiroteio sem pé nem cabeça, com aquela cantora muito idiota sentada entre aqueles dois homens resolvidos a se liquidarem, fumando seu cigarro como se tudo estivesse na maior paz de Deus... Essa gente não tinha mesmo O que fazer! Martin sacudiu a cabeça, decepcionado. Que coisa mais sem graça! No fim, como não podia deixar de ser, O "Vingador do Texas" acabou matando O bandido, e a moça do vestido de seda vermelha tirou a piteira da boca, atirando-se nos braços do mocinho. A música atacou alegre, e os adultos sentados nas filas na frente de Martin se levantaram.
    O espetáculo parecia ter chegado ao fim. Realmente, enquanto O "Vingador" ainda beijava a cantora, as luzes acenderam e a lanterninha, que Martin já tinha visto antes na bilheteria do cinema, conversando com a vendedora de bilhetes, entrou na sala. Novos espectadores a seguiam.
    - A saída é pela frente! - avisava ela. - Por favor, quem tiver entrado no meio do espetáculo queira apresentar a sua entrada! As entradas das onze horas já não valem mais!
    Ela começou a passar pelas filas. A maioria dos espectadores foi saindo (não eram muitos, aliás). Os outros apresentavam suas entradas ainda válidas, enquanto que os novos espectadores se instalavam.
    O homem em quem Martin havia tropeçado no escuro levantou-se igualmente. Era alto, magro e usava roupa extravagante. Vestia uma calça marrom, casaco de veludo verde, e usava uma gravata bem colorida com barcos a vela, mar, ilhas verdes e palmeiras. Era moreno, de bigodinho preto. Olhou um instante, pensativo, para Martin, e depois disse:
    - Dá licença? - Martin levantou-se.
    Era a oportunidade que tinha para sair de novo do cinema antes que a lanterninha lhe pedisse a entrada, pensou ele, seguindo logo atrás daquele homem, em direção à saída.
    Mas teve azar.
    A lanterninha estava justamente saindo de uma fila, quando percebeu Martin.
    - Como foi que você entrou aqui?- perguntou ela bem alto.
    Martin fingiu que não era com ele, e continuou seguindo em direção à saída.
    - Ei, você aí! - chamou a lanterninha, vindo em sua direção. Não adiantou. Desta vez não dava para fingir! O homem a sua frente parou também.
    - Como foi que você entrou aqui? - perguntou ela.
    Aproximara-se de Martin, e olhava para ele, severa.
    - Você não sabe que este filme é proibido para menores?
    - Sei - disse ele cabisbaixo.
    - E então?
    - Desculpe, moça, mas já estou saindo.
    - Como? Já está saindo? Eu estou é querendo saber como você entrou?
    O homem se aproximou, curioso, contemplando Martin com grande interesse.
    - Como é, vai responder?
   A lanterninha se inclinou para Martin, sacudindo-o ligeiramente.
    - Onde está a sua entrada?
    - Eu... eu não tenho.
    - Você não a tem? - E ela ficou nervosa. - Como foi então que entrou aqui?
    - Sem entrada - murmurou Martin.
    - Sem entrada? Você entrou escondido? Era só O que faltava! Eu vou chamar a polícia agora mesmo e...
    - Não! - gritou Martin. - A polícia não, por favor!
    - Vou chamar, sim! - insistiu a lanterninha furiosa. - Tenho que entregar você a um guarda. Assim ele leva você para casa e cobra a entrada a seus pais. Ou será que você pode pagar?
    - Eu não - balbuciou Martin infeliz. - Eu.. eu não tenho dinheiro... Mas, por favor, moça... por favor, deixe-me sair daqui!
    - Nada disso! - exclamou a moça. Era baixa e magra, de rosto pálido e óculos de armação barata e devia estar se achando muito importante. - Vocês, moleques, têm é que levar uma lição!
    Martin se sacudiu. Estava passando mal de nervoso. Meu Deus, pensou ele, meu Deus, quanta coisa tinha acontecido nessas duas últimas horas... Se eu tivesse podido prever tudo isso... não teria fugido nunca, nunca!
    Nesse momento O homem se meteu na conversa.
    - Moça - disse ele em voz alta -, não fique tão nervosa! Afinal, O pobre garoto não cometeu nenhum crime.
    - Como não? - gritou a moça. - Ele então não entrou aqui sem entrada?
    - Pode deixar que eu pago - disse ele.
    - Não, senhor! - gritava ela. - Ele que tem que pagar!
    - Tome aqui, por favor - disse O homem, piscando O olho e sorrindo. Esticou uma nota para a lanterninha, dizendo: - O troco é seu.
    A moça aceitou O dinheiro e, de repente, toda sua raiva desapareceu como por encanto.
    - Muito obrigada, senhor - disse ela. - Muito obrigada. - Inclinou-se várias vezes e foi-se retirando, enquanto O homem colocava a mão no ombro de Martin, acompanhando-o para fora.
    Martin olhou desconfiado para ele.
    - Muito obrigado - disse ele, em voz baixa.
    - Ora, não foi nada, meu filho - respondeu, sorrindo. - Agora vamos tratar de sair daqui. - E foi conduzindo Martin, rápido e decidido, pelas escadas acima, para a rua.
    Enquanto isso, lá fora, O temporal passara, a chuva cessara e O sol já brilhava de novo. Apenas as calçadas ainda continuavam molhadas. Martin olhou assustado em volta.
    Não havia nem vestígio do Dr. Gerber. 
    O homem continuou levando Martin em direção a um grande carro azul, estacionado na frente do cinema.
    Parou e destrancou a porta.
    - Pronto - disse ele amavelmente. - Entre aí!
    - Entrar - e Martin olhou para ele, surpreso. - Eu, entrar?
    - Você, sim - disse O homem. - Claro.
    - Mas eu não posso assim sem mais nem menos acompanhar O senhor... - e Martin sacudiu a cabeça.
    - Não pode, por quê? - perguntou O homem sempre sorrindo com jeito muito amável.
    - Ora, porque... porque... porque eu nem conheço O senhor! - exclamou Martin.
    - E daí? Eu também não conheço você!
    - Sim, mas O que é que O senhor quer de mim?
    - Eu De você? - O homem deu uma risada. - Eu quero conversar com você, mais nada. Você esta com cara de garoto que está em algum aperto. Quem sabe, eu posso ajudar você! Afinal, eu acabei de ajudar, ou não? _va muito sem graça. Por um lado, não queria ofender aquele homem tão gentil, mas, por outro lado, a mãe lhe proibira de tomar carona com estranhos. Não sabia O que fazer.
    - Vou lhe fazer uma proposta - disse O homem, ajeitando a gravata colorida. - Nós vamos dar uma volta, e depois almoçamos juntos. Ai você pode me contar seu problema, e eu vejo se posso ajuda-lo. depois do almoço, a gente vê O que faz. Como é, concorda?
    Ao ouvir a palavra 'almoço', Martin decidiu-se imediatamente. . ,
    Lembrou-se de que não comera mais nada desde O café da manhã. De repente, sentiu-se até tonto de tome. É, pensou ele, um almoço não e ma ideia... E, quem sabe, ele não pode até me ajudar mais ainda, desde que ele já ajudou uma vez... Eu agora preciso de alguém que me dê uma mão. Não tenho a menor idéia do que fazer para sair desta cidade, de como conseguir ganhar dinheiro e ficar rico.
    - Está certo - disse Martin. - Se O senhor quiser fazer O favor de almoçar comigo, eu agradeço muito Mas eu vou dizendo logo, dinheiro eu não tenho.
    Ora, nem fale nisso! - disse O homem, abrindo a porta do carro para Martin entrar.
    - Obrigado - disse este, entrando. O homem fechou a porta rapidamente, deu depressa a volta no carro, instalando-se, e O carro partiu.
     E foi assim que Martin, igualzinho como acontece nos contos de fada, atravessou Viena num carro elegante, apenas algumas horas depois de ter recebido aquele boletim horrível e ter decidido não mais voltar para casa...
Capítulo 4
     Porque teremos de deixar Martin de lado por algum tempo - O Dr. Gerber volta para Gersthof - O senhor viu O meu garoto? - A polícia é notificada - Um teletipo entra em ação - Procura-se Martin Zohner - Uma mãe surpreende dois homens - O Sr. Hermann lembra-se de sua infância e se compadece - Uma conversa de telefone decisiva, e uma viagem de carro louca - Afinal, para onde vamos? - A casa coberta de hera - Elfi quer ir caçar leões - Uma pele de leão por um milhão de xelins? - Tudo que Elfi diz é mentira - Três homens esperam por Martin na biblioteca.
    A essa altura de nossa estória temos que abandonar Martin por algum tempo. Vocês talvez achem que não deveríamos fazê-lo, que seria mais interessante continuar, para conhecermos logo as suas aventuras em companhia do homem de roupa extravagante. Infelizmente isso é impossível. Pois, além de Martin, nossa estória trata de outros personagens, que são igualmente importantes, e nem eles, nem O que se passa com eles, pode ser deixado de lado. Se O fizéssemos, nossa estória acabaria confusa, e não existe nada pior do que uma estória confusa em que, no fim, ninguém mais se entende. E aí, a estória, ao invés de emocionante, passa a ser uma estória completamente sem graça. Por esse motivo, vamos agora deixar Martin de lado (por algum tempo), e vamos voltar ao Dr. Gerber, que perdeu de vista O menino na frente do cinema.
    Quando Dr. Gerber verificou que Martin tinha desaparecido, voltou para O táxi, entrou, e durante alguns minutos ficou absorto, pensando.
    Depois, inclinou-se para O motorista e disse:
    - Por favor, me leve de volta para Gersthof.
    - Para a estação de bonde?
    - Isso mesmo. Por favor.
    Em quinze minutos ele estava lá.
    Pagou O motorista, entrando em seguida no prédio verde e redondo. Alguns funcionários olharam para ele distraídos, sem lhe dar maior atenção. Apenas um levantou-se rapidamente e veio correndo em sua direção. Era Robert Zohner, O pai de Martin.
    - Doutor! Doutor! -chamou ele aflito. O médico virou-se.
    - Boa tarde, Sr. Zohner - disse ele respirando, aliviado. - Que bom encontrá-lo aqui!
    O Sr. Zohner era um homem grande, muito corado e pesadão, e normalmente muito alegre. Hoje, no entanto, ele não estava nem corado, nem alegre. Seu rosto estava muito pálido e sua expressão muito séria.
    - Doutor - disse ele muito apressado -, O senhor viu O meu garoto?
    - Vi - murmurou O médico.
    - Onde? - quis saber O Sr. Zohner, muito nervoso.
    - Na rua. Há uma meia hora.
    - E onde está ele agora?
    - Fugiu de mim - respondeu O médico, acrescentando em voz baixa: - Infelizmente. - Em seguida, levou O Sr. Zohner para um canto sossegado e contou tudo que sabia.
    O Sr. Zohner volta e meia sacudia a cabeça preocupado, e uma vez assoou O nariz.
    - Meu Deus, meu Deus - murmurou ele, - que garoto bobo... Por que será que ele fez isso?
    - Só pode ser porque O boletim deve estar fraco - disse O médico.
    É - fez O Sr. Zohner, e em seguida contou O que sabia, O que estava escrito na carta que lhe havia sido entregue ao chegar à estação. Por fim, ambos se calaram e disse O médico depois. - Eu também sou responsável em parte
    - O senhor? perguntou O Sr. Zohner surpreso. O médico concordou. É - fez ele -, pois ontem eu lhe meti muito medo. Insisti com ele que a mãe agora não podia se aborrecer, que qualquer aborrecimento poder a trazer uma recaída. Tentei incutir isso na cabeça dele, e vai ver que hoje ele se lembrou das minhas palavras. Se eu não tivesse pintado a doença com cores tao negras, talvez ele hoje não tivesse tido tanto medo. Por isso acho que eu também sou culpado.
    O Sr. Zohner pigarreou. também
    - Bem, no caso - murmurou ele -, eu também tenho culpa. É claro. Pois eu quase não tenho tido tempo para me ocupar dele, e agora que a minha mulher ainda por cima ficou doente, ele ficou com todo O serviço da casa. Ele faz as compras, arruma, faz tudo, e com isso realmente não tem tempo para estudar.
      É- fez O médico. - E isso mesmo. Nos e que somos culpados por tudo que aconteceu embora na verdade, ele não devesse ter feito O que fez. Ele deveria ter tido mais confiança na gente. Imagine só, se as pessoas dessem para fugir de casa, so porque de repente estão com medo de enfrentar as coisas.
    O Sr. Zohner sacudiu a cabeça perdido
    - Bem, O senhor tem razão - disse ele. - Mas O fato é que O meu Martin fugiu.
     - Tenho certeza de que ele volta - disse O médico
Mas quando? - exclamou O Sr. Zohner. - Se eu ao menos soubesse onde ele se meteu
    - Só nos resta uma coisa - sugeriu O Dr. Gerber. - Ir à polícia.
    E foi O que fizeram.
    O Sr. Zohner falou com O chefe, e este lhe deu folga para O resto do dia. Em seguida, acompanhou O medico até O distrito policial mais próximo, para avisar que seu filho havia fugido. Fugira de medo. De medo por causa de um boletim ruim.
    O policial que recebeu a queixa sacudiu a cabeça.
    - Que coisa! - disse ele. - Hoje já é O sétimo caso que nos é comunicado. Será que essa garotada não consegue imaginar outra coisa? Mais cedo ou mais tarde eles acabam mesmo sendo encontrados, e aí terão que prestar contas aos pais de qualquer modo!
    - E O senhor acha que vai demorar muito até encontrarem meu filho? - perguntou O Sr. Zohner preocupado.
    - Isto eu não sei dizer - declarou O funcionário. - Às vezes demora mais, outras vezes menos. Como é seu filho, afinal?
     O Sr. Zohner descreveu O filho: a cor dos cabelos, a cor dos olhos, O feitio do rosto, a altura. Por fim, ainda disse que roupa ele usava de manhã quando saiu de casa.
    - Muito bem - declarou O funcionário. - Por enquanto, é só. Assim que soubermos qualquer coisa, nós lhe avisaremos.
    - Obrigado - disse O Sr. Zohner deixando a delegada em companhia do Dr. Gerber, enquanto O funcionário se instalava em frente a um aparelho de teletipo para enviar os dados de "Zohner, Martin, doze anos, que fugira por medo das conseqüências de um boletim fraco" para todos os distritos de polícia de Viena e para todas as repartições de polícia do país.
    A partir deste momento, Martin estava sendo procurado em todo O país.
    Mas ele não sabia de nada.
     Em seguida, O Sr. Zohner e O Dr. Gerber foram ver a mãe de Martin. No caminho, conversando, chegaram à conclusão de que seria melhor lhe dizerem a verdade. O Dr. Gerber achava que embora houvesse certo risco em fazê-lo, seria muito mais difícil agüentar O caso com mentiras, principalmente se a solução demorasse. De qualquer modo, enquanto Martin não voltasse para casa, ela iria se preocupar.
    Mesmo assim, O Sr. Zohner estava muito apreensivo ao se aproximar da cama de sua mulher.
    Esta olhou surpresa para ele.
    - Chegando tão cedo? - perguntou ela
    - Eu... é... aconteceu uma coisa, Hermínia - disse ele, hesitando.
    - Aconteceu O quê? - a mae de Martm teve um sobressalto.
    - Por favor, não Fique nervosa, bra. zonner - disse O médico. - Não é coisa grave. Pense na sua saúde. A senhora não pode se aborrecer.
    - Doutor - disse a mãe de Martin - eu prometo não ficar nervosa, mas, por favor, conte logo
    O que houve!
    - É... - começou O medico.
    - É alguma coisa com O Martin?
    - É - disse O Sr. Zohner, e, em seguida, contou à mulher, rapidamente e em poucas palavras, O que havia acontecido.
     Sacudindo a cabeça, a Sra. Zohner exclamou.
    - Meu Deus! Que garoto bobo, meu Deus! Como é que ele foi fazer uma coisa dessas?
    - Ele ficou com medo de assustar a senhora - explicou O médico. _ Assustar? A mim? Com que? - perguntou a mãe de Martin. .
    - Com O boletim. Estava muito fraco - explicou O pai de Martin.
    - Mas isso não era nada para me assustar - disse ela muito triste. - Eu já sabia disso há muito tem-
    Os dois homens olharam surpresos para ela.
    Você sabia? - perguntou O pai espantado.
    - A senhora sabia? - perguntou O medico. A senhora Zohner apenas balançou a cabeça.
    - Claro que sabia - disse ela em seguida. -
    - Claro que sabia - disse ela em seguida. - Vocês por acaso acham que eu não via como O pobre garoto se acabava aqui em casa porque eu não podia fazer nada? Vocês por acaso acham que eu não via que ele não conseguia estudar nunca? Este ano ele não poderia trazer um boletim decente - e ela sorriu. - Mas tudo vai mudar. Daqui a algumas semanas eu vou estar boa de novo, eu vou poder cuidar da casa e ele vai ter tempo de fazer os deveres da escola. - Ela suspirou. - Ah, se ele já estivesse aqui! - acrescentou ainda, num murmúrio.
    - Mas por que você nunca falou sobre isso comigo? - perguntou O Sr. Zohner.
    A mulher olhou para ele com carinho.
    - Eu não queria preocupar você com essas coisas - disse ela. - Você já trabalha tanto, tem tantos problemas...
    O Dr. Gerber estava em pé ao lado da cama, pensativo.
    - Quer dizer então que O Martin fugiu à toa? - disse ele, lentamente. - Ninguém está zangado com ele; ele poderia ter perfeitamente voltado para casa...
    - Poderia - disse a Sra. Zohner, e, olhando séria para O médico, acrescentou: - Nós três, na realidade, somos culpados de sua fuga.
    Vocês estão vendo, tudo isso tinha de ser relatado antes que eu pudesse contar O que aconteceu com Martin e com O seu novo conhecido de roupa extravagante.
    Evidentemente, Martin não sabia nada disso. Não sabia que a polícia O procurava, e nem que os pais já lhe haviam perdoado há muito. Se tivesse sabido, certamente teria ido diretamente para casa, e corrido para os braços de sua mãe.
    A vida, no entanto, é uma coisa muito complicada, muito confusa. A maior parte das coisas tristes, a maior parte das desgraças acontece apenas porque as pessoas sabem muito pouco a respeito umas das ou trás. E porque Martin também sabia muito pouco, ele não foi logo correndo para casa. Por isso, ele estava sentado com O homem simpático numa mesa de um restaurante elegante, comendo bifes à milanesa, e ainda iria ter que passar por muita coisa antes de poder rever seus pais...
    - Muito bem - disse O simpático homem de gravata colorida e casaco de veludo verde, limpando a boca no imenso guardanapo -, se eu entendi direito, você não pretende mais voltar para casa porque teve um boletim fraco e tem medo de causar aborrecimento a sua mãe, não é?
     Nesse meio tempo, enquanto almoçavam, Martin lhe confiara toda a sua estória, e agora ele sacudia a cabeça muito triste, murmurando:
    - É sim.
    - Hum - fez O homem. Perdido em pensamentos, passou mais uma vez O guardanapo pela boca, e de repente ficou muito sério. - Isso na verdade é coisa grave - disse ele muito devagar. - E a minha obrigação, na realidade, seria levar você agora diretamente para sua casa...
    - Não! - exclamou Martin apavorado, levantando-se de um salto.
    - Sente-se - disse O homem. Martin obedeceu.
    - Eu disse que deveria fazer - continuou ele. - Eu não disse que vou fazer.
    - O senhor não vai fazer, não?
    - Não - respondeu ele sacudindo a cabeça enquanto Martin olhava surpreso para ele.
    - E por que não? O homem suspirou.
    - Ah - fez ele -, é uma estória muito comprida. Aceita mais um bife?
    - Não, obrigado - disse Martin.
    - Ou salada?
    - Não, senhor - respondeu Martin - , não consigo comer mais nada!
    - Mas um pedaço de torta você aceita, não é? Martin ficou radiante.
    - Ah, isso eu aceito, claro! Torta eu consigo comer sempre!
    - Eu sabia - disse O homem fazendo sinal para um garçom. - Garçom - disse ele, dirigindo-se ao mesmo -, este moço aqui deseja um pedaço de torta para sobremesa.
    - Pois não - retrucou O garçom, solícito, inclinando-se diante de Martin. - (Não é que ele se inclinou mesmo!) Temos torta de morango com creme, torta de creme de chocolate, torta de café com creme, torta de nozes, torta de maçã, torta de banana, torta de...
    Martin fechou os olhos.
    - Eu quero torta de chocolate - disse ele com voz sumida.
    O garçom sorriu como se fosse um grande prazer para ele trazer um pedaço de torta para Martin, e desapareceu. O homem esperou para continuar sua estoria até que ele voltasse e Martin começasse a comer. Era um pedaço gigantesco de torta.
    - Bem - disse então O homem -, eu acho que antes de lhe contar a minha estória, eu devo me apresentar. Eu já sei O seu nome. O meu é Hermann Berger. Mas você pode me chamar de Hermann.
    - Está bem, Sr. Hermann - disse Martin com a boca cheia (tudo aquilo lhe parecia um verdadeiro conto de fadas, um sonho maravilhoso que a cada minuto ia ficando mais maravilhoso ainda, e ele mal conseguia entender O que estava acontecendo).
    - Você me perguntou há pouco por que eu não vou levar você para casa - disse O Sr. Hermann. - Quer saber de uma coisa eu não vou levar você para casa, porque entendo você perfeitamente. Melhor do que muita gente. Eu, um dia, quando tinha a sua idade, também recebi um boletim muito fraco e não tive coragem de ir para casa. E...
    - E O senhor também fugiu? - perguntou Martin, excitado.
    O Sr. Hermann concordou, balançando a cabeça.
    - Fugi - disse ele. - Escrevi uma carta a meus pais... exatamente como você fez... para que eles não ficassem preocupados, e depois fugi.
    - E fugiu para onde? - quis saber Martin.
    O homem fez um gesto meio indeciso com a mão.
    - Ora - disse ele, para muito longe. Para outro país. Fiquei lá muito tempo.
    - E O que O senhor fez lá... naquele outro país?
    - Ganhei dinheiro - disse O Sr. Hermann com humildade. - Tive que trabalhar muito, e aos poucos minha situação foi melhorando e por fim eu estava até muito bem de vida. Aí..
    - Aí O senhor voltou para casa, não foi?
    - Exatamente, Martin. Aí eu voltei para casa.
    - E os seus pais lhe perdoaram, Sr. Hermann?
    O Sr. Hermann balançou a cabeça, fazendo  que sim, e colocou um grosso charuto na boca.
    - Se me perdoaram? - disse ele, acendendo O charuto com um fósforo, e soprando grossas nuvens de fumaça. - Eles me beijaram e me abraçaram, e eu dei a eles um monte de dinheiro, e eles ficaram muito felizes.
    - E agora, O senhor mora de novo com eles?
    O Sr. Hermann tossiu, parecia que um pouco de fumaça lhe havia entrado pela garganta.
    -- Claro que moro com eles - declarou. - Durante a semana eu trabalho, e aos domingos passeamos de carro.
    Martin suspirou fundo.
    - É - disse ele, ansioso - eu também gostaria de poder fazer isso quando voltasse para casa...
    O Sr. Hermann sorriu com jeito simpático.
    - Eu sei que você também gostaria de fazê-lo - disse ele. - Você é um bom menino, que ama seus pais. Isso eu percebi logo. Por isso simpatizei com você.
    - E eu com O senhor também, Sr. Hermann,
    - Muito obrigado - disse este. - Agora você entende por que eu não levei logo você para casa.
    - Entendo, sim - disse Martin. - Ê porque O senhor se lembrou de sua juventude.
    - Exatamente. - O simpático homem tragava seu charuto, contemplando-o com carinho. - Você me contou que escreveu uma carta para seu pai. Quer dizer que ele sabe por que você fugiu. É bem verdade que eu era um pouco mais velho do que você, quando fugi de casa.
    - Que idade tinha O senhor?
    - Já tinha quinze anos.
    - Mas eu sou muito crescido para a minha idade - disse Martin.
    - Lá isso é. Mas, mesmo assim, eu não creio que você possa ficar fora de casa tanto tempo quanto eu fiquei.
    - Isso eu também acho - concordou Martin que, de repente, estava com saudade de casa. Olhou para O Sr. Hermann. - Mas eu não gostaria de voltar para casa antes de ter ganho algum dinheiro! - exclamou ele com voz chorosa.
     - Pst! - fez O Sr. Hermann imediatamente, pois novamente um senhor numa mesa ao lado se virara. - Não fale tão alto! Martin abaixou imediatamente a voz.
    - Nem precisa ser tanto dinheiro quanto O senhor ganhou - disse ele. - Eu não preciso de carro para meus pais, nem preciso de roupa de luxo. Eu só preciso de um pouco de dinheiro para que a minha mãe possa ser internada para ficar boa de novo, e para meu pai ver que, apesar do meu boletim, eu sou um garoto de valor.
    O Sr. Hermann sorriu.
    - Ora - disse ele -, mas dinheiro você vai precisar sempre, meu querido.
    Martin concordou tristonho.
    - É - fez ele -, eu sei disso. Só que não tenho a menor idéia de como ganhá-lo. - Olhou para O Sr. Hermann. - O senhor, que já me ajudou tanto, que foi tão bom para mim... será que O senhor não sabe de alguém para quem eu possa trabalhar?
    - O que é que você sabe fazer? - perguntou O Sr. Hermann.
    Martin se animou.
    - Eu sei arrumar, fazer pudim de chocolate, ovos quentes com espinafre e batata... Sei acender a lareira, fazer compras e cortar lenha, quando ela não é grande demais. Posso carregar malas, tirar pó, lavar louça...
    - Ora, mas isso tudo é serviço com que não se pode ganhar muito dinheiro assim depressa - disse O Sr. Hermann.
    - Bater tapetes eu também sei! - exclamou Martin. Ele tinha até esquecido.
    - Também isso não dá para ficar rico - retrucou
    O Sr. Hermann, jogando a ponta do charuto no cinzeiro.
    - É, mas além disso... eu não sei nada - respondeu Martin muito triste.
    Durante algum tempo ficaram em silêncio. Depois O Sr. Hermann disse:
    - Eu, pessoalmente, não tenho serviço para você, mas gostei de você, e talvez possa ajudá-.Vou telefonar para um amigo. Talvez ele tenha alguma ocupação para você que dê para ganhar dinheiro rapidamente.
    - Por favor, Sr., Hermann, telefone, sim! - exclamou Martin, de novo esperançoso.
    - Muito bem - disse O Sr. Hermann. - Eu não posso lhe prometer nada, mas vou tentar. Espere um instante. Volto já.
    Levantou-se, atravessou O elegante restaurante, indo em direção a uma cabina telefônica de vidro, onde entrou.
    Martin viu como ele tirou O fone do gancho, encostou-o no ouvido e discou um número. Depois viu que conversava com O amigo. A princípio, com muita calma, devia estar contando a estória de Martin Depois foi se animando; agitava O braço como para confirmar as suas palavras. No fim, estava tão excitado que fechou a mão em punho, socando O aparelho telefônico.
    Martin estava apreensivo.
    Estava também comovido por toda aquela dedicação do Sr. Hermann.
    Finalmente, este pendurou O fone e saiu da cabina. Veio andando em direção a Martin, que examinou, desconfiado, a expressão do Sr. Hermann. Teria ele obtido êxito? O que teria O amigo respondido? Martin mal conseguia esperar que O Sr. Hermann sentasse novamente a seu lado
    - Muito bem - disse ele assim que chegou junto à mesa. - Acho que estamos com sorte.
    - Muito obrigado! Muito obrigado! - exclamou
    Martin, radiante.
    O Sr. Hermann fez um sinal com a mão.
    - Um instante, O meu amigo quer falar com você pessoalmente. - Ele se chama Sebastian Gruneder, e temos que ir lâ agora mesmo.
    - Agora?
    - É - confirmou O Sr. Hermann. - Agora. Ele mora fora da cidade. São uns quarenta e cinco minutos até lá de carro, e por isso temos que nos apressar.
    - Sr. Hermann, nem sei como lhe agradecer por tudo que está fazendo por mim! - exclamou Martin, animado. - O senhor nem imagina O quanto lhe sou grato!
    - Está certo, meu filho - disse O Sr. Hermann, sorrindo -, mas não fale mais nisso. Você sabe muito bem que eu só estou fazendo isso porque você me fez lembrar a minha própria juventude. - E, tirando uma grossa carteira do bolso do paletó, ele chamou O garçom para pagar. Martin olhava para ele com admiração.
    A carteira estava recheada de grandes notas coloridas. Puxa, como ele era rico!
    Depois de ter pago, eles se levantaram e saíram do elegante restaurante. Dois garçons os acompanharam até a porta, e Martin se inclinou diante deles para retribuir as atenções.
    Lá fora fazia sol.
    O céu estava de novo todo azul, e fazia tanto calor quanto de manhã. O Sr. Hermann baixou a capota de seu imenso conversível e eles atravessaram a cidade. Martin só havia andado de carro três vezes na vida. Uma vez, quando contraiu febre escarlatina e teve de ser levado para O hospital; outra vez, num aniversário, quando seus pais fizeram um piquenique com ele; e outra vez ainda com O pai. Hoje era a quarta vez. E era um passeio maravilhoso!
    Martin sentia-se feliz ao lado do Sr. Hermann. De vez em quando, lembrava-se do pai e da mãe que esperavam por ele, e sentia uma pontada no coração, tão forte que aquele passeio de carro deixava de ter graça para ele.O Sr. Hermann dirigia O carro velozmente. Saindo do centro da cidade, alcançou os subúrbios de Viena.
    Martin começou a pensar para onde eles estariam indo. Casas desconhecidas e ruas desconhecidas passavam rápidas por ele. Nunca estivera por ali antes!
    Aos poucos, as casas foram rareando, a estrada foi ficando mais larga, começando a subir. À direita e à esquerda, Martin agora via pastos enormes, fábricas de chaminés imensas, e vacas pastando.
    E O Sr. Hermann continuava...
    O vento aqui soprava mais forte. Assoviava em volta do carro azul, soprando os cabelos no rosto de Martin.
    Depois chegaram ao ponto mais alto da estrada, de onde se avistava a imensa planície lá embaixo. Já estavam fora da cidade. De vez em quando passavam por uma casa isolada na beira da estrada, e, ao longe, já se viam outras montanhas, outras matas.
    Martin começou a ficar com um certo medo.
    - Ainda demora muito a chegar? - perguntou ele, gritando para se fazer ouvir no meio daquela ventania.
    O Sr. Hermann apenas riu.
    - Um pouco - respondeu ele depois, muito alegre e sorridente, pisando mais forte no acelerador, e fazendo com que O imenso carro andasse mais depressa ainda. Olhou para Martin de lado. - O que é? - perguntou ele. -Você por acaso está com medo?
    Se quisesse falar a verdade, Martin agora teria dito que sim. Mas lembrou-se do Sr. Gruneder, do dinheiro que ele queria ganhar para poder voltar para casa, e mentiu:
    - Não! - exclamou ele. - Não estou com medo, não.
    O Sr. Hermann apenas balançou a cabeça satisfeito.
    - Muito bem - disse ele. -Eu sabia que você era um garoto valente!
    E olhou novamente para a frente, para a imensa faixa clara da poeirenta estrada que vinha ao encontro deles.
    Martin olhou para O relógio no painel do carro. Eram três e meia.
    Às quatro horas, eles ainda estavam na estrada. Há muito já não se viam mais casas. Apenas árvores, pastos, campo, rebanhos de gado e, de vez em quando, à distância, um lugarejo.
    Bem na frente, uma estreita estrada se bifurcava da rodovia principal. Era ladeada de altas árvores, de ambos os lados. O Sr. Hermann entrou na bifurcação.
    - Agora estamos chegando - disse ele. E realmente, poucos minutos depois, surgiram diante deles, no horizonte, dois casarões. Eram casas elegantes, em meio a grandes jardins. Havia muitas flores nos jardins.
    - Ê lá na frente? - perguntou Martin.
    O Sr. Hermann balançou a cabeça, confirmando.
    - É lá, sim - disse ele.
    Uma das duas casas era coberta de hera de alto a baixo, parecia uma casa de conto de fadas, toda verde de folhagem. A casa ao lado era despida, de tijolos à vista. O Sr. Hermann parou diante da casa coberta de hera.
    - Pronto - disse ele - pode saltar. - Ele mesmo saltou pelo outro lado, fechando a porta do carro. - Vamos - disse então. Martin foi para perto dele, e juntos atravessaram um grande portão aberto, seguindo por um gramado que se estendia diante da casa. Algumas janelas estavam abertas. De uma delas ouvia-se uma bonita música clássica.
    Martin seguiu por um caminho de cascalho, em direção à casa. O jardim da casa ao lado era separado por uma cerca viva baixa, e Martin viu uma menininha que se levantou e veio se aproximando curiosa lá do outro lado da cerca. Era pequena ainda, de uns sete anos, talvez, e usava um imenso laço azul no cabelo.
    A menina acenou.
    O Sr. Hermann parou.
    - Muito bem - disse ele -, eu agora vou entrar para falar com O meu amigo. Primeiro tenho que explicar tudo a ele com toda a calma. Você me espera aqui até que eu O chame, está bem?
    - Sim, senhor - disse Martin. - Eu espero aqui, Sr. Hermann.
    - Ótimo - respondeu este, desaparecendo pela casa toda coberta de hera.
    Martin ficou parado onde estava, seguindo-o com os olhos.
    Meu Deus, rezava ele, faça com que este Sr. Gruneder me arrume dinheiro e serviço para que eu volte logo para casa.
    A menina de laço azul tinha chegado bem junto da cerca.
    - Ei! - chamou ela. Martin se virou.
    - Que é?
   - Vem cá! - chamou ela de novo.
    Martin, obediente, atravessou O gramado e foi até a cerca.
    - Meu nome é Elfi - disse ela. - E O seu?
    - Eu me chamo Martin - respondeu ele. A menininha ficou olhando curiosa para ele.
    - Você veio de visita? - perguntou ela. Martin balançou a cabeça.
    - Por muito tempo?
    - Não sei.
    - Que pena! - E Elfi fez beicinho.
    - Que pena, por quê? - quis saber Martin.
    - Porque se você ficasse aqui mais tempo, a gente podia ir caçar leões juntos - explicou Elfi.
    - Caçar O quê? - perguntou Martin surpreso.
    - Leões - repetiu a menina muito séria. Martin olhou para ela, incrédulo.
    - Ora que bobagem! - disse ele. - Como é que se pode caçar leões por aí? Aqui nem existe leão!
    - Existe sim. Claro que existe! - Elfi deu um pulo e bateu com a mão na barriga. - Você está vendo aquela mata lá atrás da casa? - perguntou la, apontando com O dedo. Martin olhou para onde ela apontava e viu realmente um pedaço de mata.
    - Estou - respondeu ele.
    - É ali! - exclamou ela. - É ali que moram os leões.
    - Não acredito! - declarou Martin. - Por aqui nem existe leão! Só no circo. Ou no jardim zoológico. Em outro lugar, não.
    - Mas se eu te digo que eles moram ali, é porque é, ora!
    - E você já viu algum
    - Se vi? - e Elfi riu com desprezo. - Semana passada mesmo meu pai matou um!
    - Matou? Como?
    Martin sacudiu a cabeça. Não acreditava em nada daquilo.
    - Com espingarda, é claro! -disse Elfi. - Puxa, mas você é bobo!
    - E O que foi que vocês fizeram com O leão? - perguntou ele.
    - Tiramos a pele dele - informou Elfi. - Depois cortamos ele em pedaços e comemos.
    - O leão inteiro de uma só vez? Elfi balançou a cabeça.
    - Foi. Num jantar. A gente estava com muita fome.
    - A gente, quem?
    - Eu, meu pai e minha mãe.
    - Vocês três comeram um leão inteiro no jantar?
    - Sim - respondeu ela muito séria. - E a pele nós vendemos. Ganhamos um milhão de xelins por ela.*
    - Quanto?
     -Um milhão de xelins! - exclamou ela. Martin riu.
    - Ora - disse ele. - Você acha que alguém vai acreditar nisso?
    -Mas é verdade! - insistiu ela.
    - E onde está seu pai?
    - Na cidade - disse ela. - Ele só volta à noite.
    - E sua mãe?
    - Também está na cidade.
    - Ah - fez Martin.
    - Ah, O quê? - perguntou ela zangada.
    - Ah quer dizer: bem que eu imaginava!
    - Imaginava O quê?
    - Que não há ninguém a qtiem a gente possa perguntar se isso tudo que você conta é verdade.
    - E você não acredita?
    - Eu acredito é que você é uma grande mentirosa! - declarou Martin.
    Elfi ficou vermelha de raiva.
   - Seu idiota! - exclamou ela. - Eu não sou mentirosa, coisa nenhuma! Eu dou minha palavra de honra de que tudo O que eu disse é a pura verdade!
    - Mesmo assim eu não acredito!
    - Ê palavra de honra de gente grande! Martin sacudiu a cabeça.
    - Chega! - disse ele. - Não adianta. Eu não consigo acreditar!
    Nesse momento ele ouviu a voz do Sr. Hermann chamando:
    - Martin! Virou-se.
    O Sr. Hermann vinha atravessando O gramado
    Xelim - unidade monetária da Áustria. Vale cerca de Cri 7,50. Logo, eles ganharam mais de sete milhões de cruzeiros pela venda da pele. (N. do T.) ensolarado, em sua direção.
    - Você já fez amizade com Elfi? - perguntou ele. Parecia conhecer a menina.
    - Já - respondeu Martin.
    - E ela andou contando alguma mentira? - perguntou O Sr. Hermann,
    Parecia que ele também conhecia aquele seu jeito estranho.
    - Mentiras horríveis! - disse Martin. - Contou que aqui havia leões. Que ela e os pais comeram um leão inteirinho no jantar. Que eles venderam a pele por um milhão de xelins!
    O Sr. Hermann riu alto.
    - Sim, senhora - disse ele -, que bruta mentira você andou inventando de novo, hein, Elfi?
    - Não é mentira, nada! - exclamou a garotinha do outro lado da cerca, muito zangada, batendo com O pé. - É a pura verdade!
    O Sr. Hermann continuou dando gargalhadas.
    - É - disse ele -, é a pura verdade! Mas vocês só ganharam um milhão pela pele? Por que não dois?Ou três?
    Aí, até Martin teve que rir. Elfi virou-se e saiu correndo.
    - Ora - gritou ela -, vocês dois são uns bobos! Martin ficou olhando para ela.
    - Ela é sempre assim? - perguntou ele.
    - Sempre - respondeu O Sr. Hermann. - Ela não diz uma palavra que não seja mentira. Nem virando ela do avesso. Ela é uma mentira só! Ou talvez excesso de fantasia, sei lá! De qualquer modo, não se pode acreditar em nada do que ela diz!
    Com um gesto amigo, pegou Martin pelo braço.
    - Vamos - disse ele. - Temos jcoisa mais importante a discutir. O meu amigo, O Sr. Gruneder, gostaria de falar com você agora. Martin se assustou.
    - Ele vai poder me ajudar? - perguntou ele.
    - Ele vai tentar - disse O Sr Hermann com muita cautela.
    Depois atravessou O gramado com Martin, se guindo em direção à grande casa coberta de hera.
    Ao entrar na casa, Martin sentia O coração bater descontrolado.
    Primeiro chegaram a um entrada imensa, um lugar fresco e na penumbra. Era uma entrada muito suntuosa, com belos móveis antigos e quadros na parede. Num canto havia até uma armadura de ferro de um cavalheiro.
    A bonita música que eles antes já tinham ouvido, vinda da janela, ouvia-se agora mais alta e mais bonita.
    O Sr. Hermann adiantou-se alguns passos e abriu uma das grandes portas do hall. Segurava-a aberta para Martin, e este entrou num cômodo cujas paredes eram cobertas por livros de alto a baixo. Os livros se enfileiravam, lombada encostando em lombada, ao longo de inúmeras prateleiras, chegando até O teto. Martin estava impressionadíssimo.
    O chão do cômodo era coberto por grossos tapetes, sobre os quais se andava sem fazer O menor ruído. Diante das paredes de livros havia algumas poltronas confortáveis, um grande castiçal e uma cadeira de balanço.
    Na frente da cadeira de balanço, em cima de uma mesinha, estava um toca-disco. Sobre ele girava um disco. Era dali que vinha aquela música bonita.
    Na cadeira de balanço estava sentado um senhor de idade com enormes óculos escuros. Segurava um cachimbo na boca, e seus joelhos estavam cobertos por um grosso cobertor. Quase não tinha cabelo, e vestia um roupão cômodo e macio. Balançava-se devagar na cadeira.
    Atrás dele, de cada lado da cadeira, estava em pé um homem. Eram moços como O Sr. Hermann, porém não tão bem vestidos quanto este.
    Um deles tinha um nariz completamente achatado, que mais parecia um imenso tomate, e O outro não parava de sorrir, como se estivesse constantemente se lembrando de alguma coisa engraçada.
    Quando Martin entrou, todos três olharam mudos e atentos para ele.
Capítulo 5
    Conhecimento com os ilustres senhores Gruneder, Wehmtà (Melancolia) e Weihrauch (Incenso) - A questão é: - Você sabe escalar? - Também O Sr. Gruneder tinha ido em busca de um tesouro - Aparece um tal de Thomas Maier - A estória do contrato - O caso dos diamantes - Martin é informado do que terá que fazer - 5.000 xelins de recompensa! - Mesmo nervoso, a gente consegue dormir - Elfiprecisa falar urgentemente com Martin - Ficará escuta é um hábito muito feio - Sua vida está em jogo! - Elfi mente sempre - Você tem que avisar à polícia! - Não quero mais saber de você! - Cretino! - Um jantar incrível-0 Sr. Weihrauch bebe da garrafa e é censurado - Martin ri alto e todos riem junto.
     - Meus senhores - disse O Sr. Hermann, empurrando Martin para dentro da imensa biblioteca. - Aqui está O meu amigo Martin Zohner de quem lhes falei.
    - Boa tarde - disse Martin.
    Os dois senhores atrás da cadeira de balanço apenas inclinaram a cabeça sem dizer nada. Somente O senhor de idade, de óculos escuros, inclinou-se na poltrona estendendo-lhe a mão.
    - Boa tarde, meu filho - disse ele com voz profunda e cordial. - É um prazer imenso conhecer você. Meu nome é Gruneder.
    - O prazer é todo meu, Sr. Gruneder - respondeu Martin.
    O senhor Gruneder apontou para os dois senhores atrás, apresentando-os.
    -. Este aqui é O Sr. Weihrauch (Incenso) - disse ele, indicando O senhor de nariz achatado - e este é O Sr. Wehmut (Melancolia). - E ele apontou para O que não parava de sorrir.
    - Boa tarde, Martin - disseram ambos em coro apertando também a mão do garoto.
    - O Sr. Wiehrauch e O Sr. Wehmut são dois grandes amigos meus - explicou O Sr. Gruneder sorrindo. - Não tenho segredos para eles, e você também não precisa ter. Podemos falar abertamente. Sente-se, por favor. - Martin olhou em volta e viu uma imensa poltrona atrás de si na qual ele se instalou, afundando nela e quase desaparecendo.
    O Sr. Gruneder O contemplava com simpatia e atenção.
    - Então, meu filho -, disse ele devagar solenemente -, meu amigo Hermann me contou qual era O seu problema. Eu devo lhe dizer, no entanto, que, para mim, O fato de você ter fugido de casa é coisa muito séria, mas eu entendo você. O que eu acho é que você deveria voltar O mais rápido possível para casa, assim que nós arranjarmos um meio para isso.
    - É O que eu quero, Sr. Gruneder - disse Martin bem alto.
    - Muito bem, meu filho. Fico muito feliz em ouvir você dizer isso. Eu já receava que esta aventura estivesse sendo um prazer e que você nem quisesse mais voltar para casa. Martin sacudiu a cabeça.
    - Eu gostaria muito de ir para casa, Sr. Gruneder -, disse ele, com voz abafada, pois de repente
sentia dificuldade em fala - Quanto antes, melhor: S6 que não gostaria de ir antes de ter ganho algum dinheiro.
    O Sr. Gruneder balançou a cabeça devagar e com dignidade. Tudo que ele fazia, aliás, era devagar e com muita dignidade.
   - Também a este respeito - continuou ele (devagar e solene) - meu amigo Hermann já falou comigo. Você está precisando de dinheiro. Você quer traba Ihar. Muito bem. É muito louvável. Você sabe fazer pudim de chocolate, ovos quentes e também espinafre com batatas. Sabe acender uma lareira, fazer compras e picar lenha quando ela não é grande demais. Sabe ainda tirar pó e bater tapetes.
    - Sim, Sr. Gruneder - respondeu Martin muito solícito. - Sei fazer tudo isso.
    O senhor de óculos escuros balançou a cabeça.
    - É. Só que eu não preciso de ninguém que saiba cozinhar, arrumar, acender lareira, fazer compras ou bater tapetes.
    - Não precisa, não? - exclamou Martin muito decepcionado. Estava realmente caindo das nuvens.
    - Não. Infelizmente, não - disse O Sr. Gruneder.
    - Mas então por que me mandou chamar? - disse Martin sem entender.
    - Porque eu gostaria de lhe fazer uma pergunta.
    - Uma pergunta?
    - Sim. Diga-me uma coisa, você sabe escalar? Martin olhou surpreso para ele.
    - Escalar?
   - É. Escalar - disse O senhor de idade. Martin teve que rir.
    - Que pergunta mais esquisita! - disse ele. - Claro que sei escalar. Qualquer garoto sabe. Isso não é nada de especial.
    O Sr. Gruneder sorriu, amável.
    - Fico muito satisfeito - disse ele. - E sabe escalar bem?
    - Sei.
    - Muito bem?
    - Acho que sim, Sr. Gruneder.
    O velho olhou para os dois senhores atrás dele e disse:
    - É bom ouvir isso, não acham?
    Ambos sorriram, concordando, e também O Sr. Gruneder sorriu satisfeito como se fosse um grande prazer para ele O fato de saber que Martin escalava bem.
    O Sr. Gruneder dirigiu-se de novo a Martin.
    - Bem - disse ele (devagar e solene) -, então eu realmente vejo O seu futuro mais cor-de-rosa. Então você talvez já possa até voltar muito breve para casa. E com dinheiro. Com muito dinheiro. Pois acontece que eu estou precisando urgentemente de um garoto que seja um bom escalador.
    Martin olhou ansioso para ele.
    - E para que O senhor precisa de um bom escalador. Sr. Gruneder? -perguntou ele logo em seguida.
    O velho se inclinou mais para O garoto.
    - É uma estória muito triste, meu amigo -, disse ele sensibilizado. - E O coração me dói, só de me lembrar. Mas, afinal, eu tenho que contar, para que você saiba e possa entender por que eu preciso de um garoto que saiba escalar bem,
    O Sr. Hermann se adiantou e explicou;
    - Eu já conheço essa triste estória, e foi por isso que, assim que O encontrei, eu me lembrei de que O
    Sr. Gruneder talvez pudesse precisar de você, você entende, Martin? Martin balançou a cabeça.
    - Entendo, sim - disse ele.
    O disco que estava tocando aquela bonita música chegara ao fim, e no silêncio repentino podia-se ouvir lá fora, no jardim de verão, O canto dos passarinhos.
    - Muito bem - disse O velho a Martin. - Preste  bem atenção. Eu hoje sou um homem doente e tenho que me poupar muito. Não posso mais trabalhar e há meses estou sentado aqui dentro de casa ouvindo minha música, lendo meus livros. Nada mais tenho a fazer. De vez em quando, como você está vendo, estes meus amigos vêm visitar-me e me fazer companhia, mas é só. Se não fossem eles, eu estaria completamente abandonado e perdido. - Comovido, O Sr. Gruneder assoou O nariz num grande lenço e continuou: - Mas nem sempre eu fui tão fraco e desamparado. Antes, faz poucos anos até, eu era um homem forte e sadio, e trabalhava muito. Naquela época, eu viajava para outros países para descobrir coisas, para achar tesouros.
    Martin arregalou os olhos.
    Achar tesouros?
    Quer dizer então que O Sr. Gruneder já tinha ido em busca de um tesouro! Há poucas horas ainda ele tentara convencer seu amigo Herbert que ainda existiam tesouros e pessoas que os procuravam e encontravam. E agora, ali, na sua frente, estava um homem que tinha feito isso. Que coisa maravilhosa!
    - O senhor já procurou tesouros? - balbuciou Martin com voz rouca.
    - Já, meu amigo - respondeu este.
    - E achou algum?
    - Achei - respondeu O Sr. Gruneder muito solene. - Eu não fui à procura de tesouros sozinho, você entende. Naquela época eu tinha um companheiro de nome Thomas Maier. Este Thomas Maier me acompanhava em minhas expedições. Eu dividi meu último pedaço de pão com ele, minha última gota d'água. Eu O considerava O meu melhor amigo...
    O Sr. Gruneder calou-se e sacudiu comovido a cabeça.
    Martin olhou para ele ansioso.
    - Mas ele não era meu amigo - continuou O Sr. Gruneder. - Não era mesmo! Era um patife, um traidor... - sua voz sumiu e ele se recostou na cadeira.
    - Sr. Gruneder - disse O Sr. Wehmut -, O senhor precisa se controlar!
    O velho se retesou.
    - É - disse ele. - Você tem razão. Pode deixar, já passou. - Olhou para Martin. - Desculpe, meu jovem amigo - disse ele.
    - Ora - fez Martin.
    E O Sr. Gruneder continuou.
    - Juntamente com este Maier eu encontrei, certo dia, um imenso tesouro em Sierra Madre.
    - Ouro? -quis saber Martin, com os olhos quase saltando das órbitas.
   - Diamantes - disse apenas O Sr. Gruneder. - Dezenas dos mais finos e mais preciosos diamantes.
   - Que maravilha! - sussurrou Martin.
    - E, meu amigo, foi maravilhoso - continuou O velho. - Só que, infelizmente, a maravilha durou pouco. Em breve tudo se transformou numa coisa horrível, numa infâmia, numa sujeira! - Mais uma vez ele se interrompeu, respirando com dificuldade como se só a muito custo conseguisse se refazer. Finalmente, continuou: - Escondemos O tesouro de diamantes, e, com muitas dificuldades, nós O carregamos através do deserto até a cidade mais próxima. Ali O depositamos no cofre-forte de um banco e...
    - Onde? - perguntou Martin.
    - Onde, O quê? - perguntou O Sr. Gruneder muito espantado.
    - Onde O senhor depositou O tesouro?
    - No cofre-forte - repetiu O Sr. Gruneder. - O cofre-forte é um cofre de dinheiro, enorme, de onde ninguém consegue roubar nada.
    - Ah - fez Martin.
    - Entendeu agora?
    - Entendi.
    - Muito bem - disse O Sr. Gruneder. - Então eu posso continuar a relatar a minha triste estória. Depois de termos levado O nosso tesouro para O banco, fizemos um contrato. O contrato dizia que eu, Sebastian
    Gruneder, e ele, Thomas Maier, meu amigo, havíamos achado juntos O tesouro e, portanto, ele pertencia a nós dois, cabia a cada um exatamente metade do tesouro, conforme era justo. E como prova de que ambos estávamos de acordo, assinamos O contrato.
    O Sr. Gruneder calou-se e ficou sugando O cachimbo que havia apagado.
    - E O que aconteceu depois? - perguntou Martin, excitado.
    - Depois, meu filho - continuou O Sr. Gruneder -, aconteceu algo horrível. Na primeira manhã, quando eu acordei meu amigo Thomas Maier havia desaparecido. Fui correndo para O nosso banco para perguntar se ali sabiam alguma coisa a seu respeito. E tomei conhecimento então do fato horrível, inacreditável...
    A voz do Sr. Gruneder vacilou, seus olhos atrás dos óculos escuros se encheram de lágrimas, ele colocou O cachimbo de lado.
    - Controle-se, Sr. Gruneder, controle-se - murmurava O Sr. Hermann.
    E O velho se controlou, balançando a cabeça.
    - E - fez ele -, tenho que me controlar, sim.
    - E O que aconteceu no banco? - perguntou Martin.
    - No banco, meu filho - continuou O velho - eu soube que O meu amigo Thomas Maier estivera lá antes de mim. O meu amigo Thomas Maier, O meu falso amigo, havia retirado todo O tesouro do cofre forte, e sumira. Desaparecera. Desaparecera sem deixar O menor vestígio!
    Martin estava horrorizado.
    - Mas como ele pôde fazer isso? - exclamou ele, revoltado. - Ele não tinha assinado O contrato que dizia que cada um dos senhores tinha direito à metade do tesouro?
    O Sr. Gruneder baixou a cabeça, suspirou alto, respirando com dificuldade.
    - É - disse ele -, tinha sim. - Mas mesmo assim, foi até lá e retirou tudo... Martin estava indignado.
    - Que sujeira! - exclamou ele. - E O senhor não deu parte imediatamente à polícia?
    - Claro que sim - murmurou O Sr. Gruneder com ar de derrota. - Fiz tudo O que pude para recuperar a parte do tesouro que era minha de direito. Iniciei até um processo contra O meu amigo. Eu O denunciei várias vezes; eu O segui até Viena. Tudo em vão... Perdi todos os processos.
    - Como, perdeu? - perguntou Martin, surpreso. - O senhor não estava no seu direito?
    - Sim - disse O Sr. Gruneder -, mas não tinha provas. Eu não tinha documentos...
    - Como não? - perguntou Martin. - Não foram feitas duas cópias do contrato, tendo cada um ficado com a sua? Não é assim que se faz nos contratos quando se compra alguma coisa a prestação? Eu já vi lá em casa!
    - Claro - disse O Sr. Gruneder.
    - Sim, e aí?
    - Nada. Você quer saber de uma coisa, meu jovem amigo? - disse O Sr. Gruneder com voz sufocada. - O contrato, O meu contrato, Maier roubou-o de mim, à noite, enquanto eu dormia. Assim ele acabou ficando com O meu e O dele. Se eu estivesse de posse do meu, eu teria ganho O processo. Se eu tivesse O meu contrato, eu poderia provar que estava dizendo a verdade. Se eu tivesse O meu contrato, eu conseguiria a minha parte do tesouro.
    Martin ficou calado, muito impressionado. Pensava.
    Depois perguntou:
    - E O senhor não tem como conseguir esse contrato
    O Sr. Gruneder sacudiu a cabeça.
    - Até hoje não consegui nada - disse ele.- Meu falso amigo construiu até uma casa aqui em Viena, uma casa imensa com muitas janelas. Todas as janelas, no entanto, têm grades, e a porta está trancada e ele não deixa ninguém entrar. Eu sei que O contrato está na escrivaninha dele, mas ele não deixa ninguém se aproximar dela, você entende? Martin balançou a cabeça.
    - Entendo - disse ele.
    Olhou com pena para O Sr. Gruneder. Pobre velho, pensava ele.
    - Eu venho observando a casa dele - disse p pobre velho. - Há muito venho pensando num jeito de entrar lá e apanhar O contrato. Meus amigos têm me ajudado, temos pensado juntos, e chegamos à seguinte conclusão: na imensa casa deste meu falso amigo Maier existe uma única janela que não tem grades. Esta janela é uma espécie de clarabóia. E esta clarabóia fica no último andar. É tão. pequena que só um garoto consegue passar por ela...- O Sr. Gruneder ficou observando Martin através de seus óculos eseuros. - Se, no entanto, um garoto conseguisse entrar por esta clarabóia, ele poderia destrancar a porta por dentro, e eu... ou os meus amigos... poderíamos entrar rapidamente, vasculhar a escrivaninha e achar O contrato. - O Sr. Gruneder levantou-se. (Era a primeira vez que ele se levantava, e mal conseguia se equilibrar.) É claro que teria de ser um garoto que soubesse escalar bem, para que pudesse chegar até lá em cima. - Apoiado no Sr. Hermann, ele se aproximou. - Você entende O que eu quero dizer? - perguntou ele.
    Martin balançou a cabeça devagar. - Sim -disse ele. - Entendo sim, Sr. Gruneder.
    - E você acha que é um desses garotos? - perguntou O velho.
    Martin confirmou, balançando a cabeça novamente.
    - E você acha que pode me ajudar a recuperar O que é meu?
    Pela terceira vez, Martin confirmou, em silêncio. Em seguida, ele disse com voz firme:
    - Posso sim, Sr. Gruneder.
    Com um suspiro de alívio, O Sr. Gruneder sentou-se novamente em sua cadeira de balanço, recostando-se.
    - Muito bem - disse ele.
    Mas Martin, de repente, sacudiu a cabeça.
    - Um momento! - exclamou ele. - E O que é que O Sr. Maier vai dizer se nós entrarmos assim na casa dele? Ele não vai chamar a polícia imediatamente? Nós vamos ser postos para fora na hora?
    O Sr. Gruneder sorriu amavelmente.
    - Não - garantiu ele. - Ele não vai fazer nada disso. Ele no momento nem mora na casa. Ele nem está em Viena.
    - Onde ele está? - perguntou Martin.
    - Está de férias - explicou O Sr. Gruneder. - Está em um elegante hotel junto a um imenso lago, e só deve voltar dentro de seis semanas.
    Aliviado, Martin concordou.
    - Então está bem - disse ele.
    O Sr Gruneder segurou-o pelo braço, puxando-o para junto de si.
    - Você estaria me fazendo um favor imenso se quisesse me ajudar - disse ele, devagar e com ar solene. - Você é O primeiro garoto com quem eu falo a respeito, e só O faço porque O Sr. Hermann me recomendou você. Espero que você não me decepcione.
    - Pode deixar, Sr. Gruneder - garantiu Martin.
    - Mas você não pode falar com ninguém a respeito - disse O velho. - Você promete?
    - Prometo, Sr. Gruneder - disse Martin muito sério.
    - Muito bem - disse O velho. E, depois de uma pausa, ele acrescentou: - Eu sei que você se encontra numa situação difícil, é evidentemente pretendo recompensar você por essa ajuda.
    - Isso é muito simpático de sua parte, Sr. Gruneder - disse Martin -, pois eu preciso urgentemente de dinheiro para poder ir para casa, e para poder mandar a minha mãe para um bom sanatório. Estou com muitas saudades de casa, e gostaria de voltar O mais cedo possível.
    - Isso eu imagino, meu filho - disse O Sr. Gruneder com ar muito sério. - Por isso eu prometo a você, aqui, diante dessas testemunhas, que você irá receber cinco mil xelins por sua ajuda. Martin achou que não devia estar ouvindo direito.
    - Quanto - murmurou ele
    - Cinco mil xelins - disse O Sr. Gruneder com voz alta e clara.
    Martin pôs as mãos na cabeça.
    - O senhor vai me dar cinco mil xelins para eu subir lá em cima, entrar pela clarabóia e lhe abrir a porta de entrada?
    - Ê, meu filho - respondeu O Sr. Gruneder. - Você acha pouco?
    - Pouco, não! É demais! - exclamou Martin.
    - Não é demais, não - disse O velho -, se você pensar quanto dinheiro representa para mim a posse desse contrato.
    Martin balançou a cabeça. Nisso ele não havia pensado.
    - Então, está bem disse ele. - Mas, e se O senhor não encontrar O contrato?
    - Por que não iria encontrá-lo?
    - Não sei. Pode até ser que O Sr. Maier O tenha levado junto. Ou quem sabe O contrato está tão bem escondido que O senhor não vai conseguir encontrá-lo...
    - Não vamos nem pensar nisso - disse ele. - Eu concordo que possam existir todas essas dificuldades, mas, mesmo assim, não vamos pensar dessa forma. Isso não tem nada a ver com a sua parte. Se você me ajudar e a meus amigos, se você abrir a porta, você receberá os seus cinco mil xelins, ou eu não me chamo Sebastian Gruneder. Você receberá O dinheiro, assim que abrir a porta. Eu mesmo vou estar lá para lhe entregar a quantia, e aí você pode voltar no mesmo nstante para junto de seus pais.
    O coração de Martin bateu alto quando ele perguntou
    - E para quando é isso tudo
    - Para hoje à noite - retrucou O Sr. Gruneder com ar solene.
    - Hoje à noite!
    O coração de Martin disparou.
    Isso queria dizer então que naquela noite ainda, ele ia voltar para casa! Que naquela noite ainda, ele iria dormir em sua cama! Que naquela noite ainda ia poder rever seus pais. Sentiu seus olhos se encherem de lágrimas. Mordeu os lábios, firme.
    - Sr. Gruneder - disse ele com muito esforço - estou muito feliz por ter encontrado O senhor. É um prazer eu poder lhe ajudar a recuperar O seu contrato e os seus direitos. O senhor pode contar comigo.
    - Muito obrigado, meu filho - disse O velho. - Quer dizer então que tudo está combinado?
   Martin balançou a cabeça.
    - Muito bem - disse O Sr. Gruneder -, eu lhe proponho então que você vá se deitar por uma hora e que durma, para que de noite você possa estar bem disposto.
    - Eu não vou conseguir dormir - disse Martin. - Estou excitado demais.
    - De qualquer modo não custa tentar - disse O Sr. Gruneder. - O Sr. Hermann vai me fazer O favor de levá-lo até O seu quarto.
    Martin agradeceu. Talvez fosse realmente bom ele se deitar um pouco. Tinha passado por tanta coisa naquele dia..
    O Sr. Hermann O conduziu até a porta. Passando pelos dois simpáticos senhores, Weihrauch e Wehmut, atravessaram O hall, sempre na penumbra,e subiram pela larga escadaria, entrando num quarto com preciosos móveis antigos. Junto de uma larga janela, que também dava para O jardim, via-se uma enorme cama.
    - Muito bem - disse O Sr. Hermann -, agora você vai deitar-se um pouco e descansar.
    Martin obedeceu.
    O Sr. Hermann ainda pegou uma colcha, cobrindo-o.
    - Durma bem - disse ele.
    Martin não ouviu mais essas palavras. Ele já estava dormindo.
    Quando acordou, O quarto estava na penumbra.
    Levantou-se de um salto, olhando assustado em volta.
    Onde estava ele?
    Que quarto era aquele?
    Devagar, ele foi se lembrando de tudo. Devia ter dormido muito tempo, pelo menos duas horas.
    O sol já desaparecera e soprava um vento fresco do anoitecer.
    Martin bocejou, esticou-se e se aproximou da janela. Lá embaixo, do outro lado da cerca, viu Elfi, a garotinha que lhe contara aquela estória incrível do leão. Ela O viu também e lhe fez um sinal.
    - Ei! - chamou ela.
    - Ei! - respondeu ele.
    - Venha cá! - chamou ela. - Tenho que falar com você!
    - Já vou! - respondeu Martin. E saiu rapidamente pela porta. Desceu a escada onde já havia luz acesa, e chegou à entrada. Ao passar pela porta, que dava para a biblioteca, ouviu gargalhadas altas lá dentro. O Sr. Gruneder e os amigos pareciam estar muito bem-humorados. Martin abriu a porta da entrada e saiu para O jardim.
    Era estranho, mas, de repente, ele se sentiu muito só e abandonado. Sentia frio. Tinha um gosto ruim na boca. E embora já soubesse de antemão que Elfi só iria lhe contar as maiores mentiras, estava satisfeito em conhecê-la, em poder ir conversar com ela. Sentia-se de repente muito só.
Elfi veio a seu encontro do outro lado da cerca.
    - Que bom que você está aí - disse ela, sussurrando e com ar muito misterioso.
    - Que bom, por quê? - perguntou Martin.
    - Fale baixo!
    Com olhar de conspiração, Elfi olhou para todos os lados.
    - Ande, fale logo! - disse Martin. A menina sacudiu a cabeça.
    - Aqui, não! - sussurrou ela.
    - Por que não?
    - Porque alguém pode ouvir.
    - Quem?
    - O pessoal lá de dentro - respondeu ela, puxando Martin pela mão. - Venha comigo!
    - Para onde?
    - Lá atrás das roseiras - disse ela pulando por cima da cerca, e conduzindo Martin.
    Martin seguiu-a de má vontade, mas, ao mesmo tempo, curioso.
    - O que é que você tem de tão importante para me dizer? - perguntou ele a Elfi.
    A menina olhou muito séria para ele.
    - É uma coisa horrível!
    - Coisa horrível? Elfi balançou a cabeça.
    - É - retrucou ela com os olhos tragicamente arregalados. - Uma coisa pavorosa!
    Martin, de repente, começou a ficar assustado. Sentiu um calafrio lhe correr pela espinha, mas se controlou.
     - Então, diga logo! - insistiu ele. Elfi balançou de novo a cabeça.
    - Já vai! - Eles tinham chegado às roseiras e se encolheram atrás delas na grama seca. Elfi segurou a mão de Martin.
    - Primeiro você tem de me prometer que vai acreditar no que eu vou lhe contar.
    Martin teve uma idéia, de repente. Sentiu-se aliviado.
- Ora - disse ele, rindo - É outra de suas invenções?
Elfi ficou vermelha.
- Não é invenção nenhuma! - disse ela, furiosa. - É a pura verdade!
Martin deu um risinho.
- Assim como a estória do leão, é?
- Exatamente - garantiu ela.
- Sinto muito - disse Martin - mas aí, eu, realmente, não posso prometer que vou acreditar em você.
- Muito bem. Então eu não conto nada!
- Ora se não quiser, não conte! - disse Martin.
- Você é quem sabe.
E ela lhe virou as costas, apoiou a cabeça nas duas mãos e ficou olhando com ar muito sério para a
casa coberta de hera. Estava ofendida.
- Olhe que seria muito importante você ouvir a minha estória! - disse ela depois de algum tempo.
- Importante, por quê?
- Porque a estória diz respeito a você. Martin riu.
- Não diga! Quer dizer então que a estória diz respeito a mim!
- Diz, sim - exclamou a menina, virando-se rapidamente. - É a sua vida que está em jogo!
- O quê?
- É a sua vida que está em jogo! - repetiu ela, balançando energicamente a cabeça a cada palavra.
Martin se levantou. Não sabia direito se devia continuar a rir ou levar a coisa a sério.
- É isso mesmo - disse Elfi, continuando sentada no gramado, e olhando indignada para ele. - Não fique com essa cara de bobo! Eu sei muito bem O que estou dizendo Você é que não acredita.
- Elfi- disse ele -, desculpe se eu magoei você. Mas eu não posso prometer que vou acreditar na sua estória. Mas conte, por favor. Ela deu de ombros.
- Está bem. Mas só porque você está pedindo
- Há pouco - começou ela então -, quando você entrou naquela casa, eu ainda fiquei brincando por aí um tempinho. Ouvi vocês conversando na biblioteca...
- Como?
- Como, O quê?
- Como é que você podia ouvir?
- Ora, porque as janelas estavam abertas - disse ela.
- E você entendeu de que falávamos?
- Claro - respondeu.
- Mas, como? - perguntou Martin, assustado.
- Você ficou escutando?
- Claro que fiquei - confessou Elfi com toda franqueza. - Eu sempre fico. Você, não?
- Nunca! - respondeu Martin muito indignado.
- Ficar escutando é um hábito muito feio. É nojento! Elfi deu uma risada.
- Eu acho muito divertido - disse ela. - Há pouco, achei divertidíssimo.
- O que foi que você ouviu?
- Tudo O que vocês falaram. Você não se lembra?
- Claro que me lembro, mas queria que você repetisse.
Elfi riu, rodando os polegares com os dedos entrelaçados.
- Ouvi O Sr. Gruneder contar do tesouro. Do amigo, O Maier, que roubou O tesouro. Do contrato que está na casa de Maier - e Elfi olhou triunfante para ele.-Viu como eu sei de tudo?
- Continue - disse Martin. - O que mais você ouviu?
-  Ouvi que você vai ganhar cinco mil xelins para entrar pela clarabóia da casa de Maier e abrir a porta por dentro.
Martin ficou olhando, mudo, para Elfi.
-  Sei também por que você está aqui e por que não quer ir para casa - continuou ela - Como você vê, eu sei de tudo!
- Porque você ficou escutando, ora. Ela balançou a cabeça, orgulhosa.
- Exatamente. Porque fiquei escutando. Se eu não tivesse ficado escutando, eu não saberia de nada.
- Seria muito melhor.
- Não.
- Não, por quê?
- Porque eu ainda ouvi mais coisas - disse ela. - Coisas de que você não tem a menor idéia.
- O quê, por exemplo?
-  Aquilo, por exemplo, que O Sr. Gruneder e os amigos ficaram conversando depois que você foi dormir.
- E de que eles falaram?
-  Primeiro, eles não falaram - disse Elfi. -
Primeiro, eles apenas riram. Eu ouvi perfeitamente, pois estava sentada debaixo da janela, escondida no meio da hera. Ouvi muito bem que eles riam.
- Riam de quê?
- De você!
- De mim?
- É. - E Elfi foi chegando de novo para perto dele. - Riram por ter conseguido enganar você tão bem!
- Enganar, como?
- Ora, com aquela estória do tesouro, do contrato e da casa que eles querem que você abra.
Martin não entendia.
- E O que tem isso de engraçado? - perguntou ele.
- Tem, porque é tudo mentira! - exclamou Elfi.
- Mentira?
- Palavra por palavra! - Elfi esfregou as mãos de satisfação. - Eles enganaram você. Do princípio ao fim. O Sr. Gruneder nunca teve nenhum amigo chamado Maier. Nunca achou nenhum tesouro que aigum amigo tivesse tirado dele. Contrato, também, é coisa que não existe. E...
- E a casa?
- A casa existe. Só que lá não mora ninguém de nome Maier.
- Como não?
- É outra gente... Não me lembro O nome. Martin botou as mãos na cabeça.
- Mas que loucura é essa? - exclamou ele. - Se Maier não existe, nem O tesouro, nem O contrato, por que então O Sr. Gruneder iria me dar cinco mil xelins para eu entrar na casa e abrir a porta para ele?
- Por que será? - perguntou Elfi, com uma risadinha, como se ela estivesse se divertindo muito com toda aquela conversa.
- Eu não sei! Eu é que pergunto. - E Martin começou a ficar irritado.
- Bem, já que você quer saber, eu vou lhe contar
- respondeu Elfi. Eles vão lhe pagar cinco mil xelins para poderem entrar na casa. E depois, quando estiverem lá dentro, vão carregar tudo.
-O quê?
- Vão roubar O que encontrarem lá dentro! Martin estava pasmo.
- Você por acaso está querendo dizer que O Sr. Gruneder e os amigos são ladrões?
- Isso mesmo! - disse Elfi muito satisfeita. - Ladrões e assaltantes!
Agora chegara a vez de Martin dar gargalhadas. Segurava a barriga e não conseguia mais parar de rir tão engraçado ele achava tudo aquilo que a menina contava.
- Pare de rir! - disse Elfi. Mas Martin continuava.
- Eu já disse! Pare de rir!
- Eu não posso! - exclamou Martin. - Não posso parar. O que você está dizendo é tão cômico que eu não posso parar de rir.
- Não é cômico. É a verdade! Martin parou de rir.
- Elfi, não diga isso!
- Mas é verdade!
- Não é!
- É.
- Não é
- É.
Aí, Martin ficou furioso.
- Escute - disse ele O Sr. Hermann já me preveniu. Ele me disse que quando você abre a boca só sai mentira. Aquela estória dos leões eu não levei a mal. Mas, agora, você está falando de pessoas que são meus amigos. E aí eu fico muito zangado com suas mentiras, entendeu?
- Mas eu não estou mentindo! - exclamou Elfi.
- Não está? E você pode provar tudo isso que está dizendo? Você pode provar que O Sr. Gruneder e os amigos querem roubar aquela casa?
- Diretamente, não.
- E O que você chama de "diretamente não"?
- Eles não disseram diretamente que iam roubar. Eles apenas riram. E aí O Sr. Gruneder disse: "Bem, este, nós enrolamos direitinho." Ao que O Sr. Hermann respondeu: "Ele acreditou em tudo O que O senhor disse, Sr. Gruneder, palavra por palavra." E um dos outros homens riu e disse: "Depois será tarde demais. Depois que conseguirmos entrar, não precisamos mais dele." - Elfi, parou, arquejando, pois tinha dito tudo de enfiada.
Martin se levantou, afastando-se em silêncio.
- Espere aí! - chamou ela. - Onde você vai?
- Eu vou embora - disse ele. - Com gente que mente desse jeito eu não quero ter conversa.
Elfi levantou-se de um pulo e foi correndo atrás dele.
- Não! - gritou ela. - Espere aí! Por favor, acredite em mim! Eu estou dizendo a verdade!
- Eu não acredito - disse ele e seguiu em frente.
Nesse meio tempo já escurecera
- Você tem que acreditar em mim! É a sua vida que está em jogo! - exclamou ela, implorando.
- Minha vida, como
- Eles vão matar você! - exclamou Elfi.
- É - fez Martin. - Eles vão matar a mim, depois a você, e depois vão botar fogo na casa, e ainda vão devorar O Sr. Maier na ceia. Exatamente como vocês fizeram com os leões. E a pele do Sr. Maier vai ser vendida. Como foi a pele do leão. Por um milhão de xelins!
- Deixe de bobagem! -exclamou Elfi. Ela continuou correndo ao lado de Martin, tentando segurá-lo, mas ele se esquivou. - Eu só quero lhe ajudar! Está certo, a estória do leão era mentira. Eu minto muito, realmente. Por isso muita gente não acredita mais em mim. Mas agora eu não estou mentindo. Agora eu estou dizendo a verdade! E você tem que acreditar!
- Não - declarou Martin.
- Você não pode ir com O Sr. Gruneder para a cidade! - insistiu a menina. - Você tem que fugir, falar com a polícia antes que seja tarde demais.
Eles tinham alcançado a casa. Pelas vidraças das enormes janelas, agora fechadas, penetrava a luz que iluminava O jardim. Martin se virou para Elfi.
- Eu não vou fugir, nem vou falar com a polícia - disse ele muito devagar e claramente. - Eu não acredito numa só palavra do que você está contando. Eu acho que você é uma grandissíssima mentirosa, e não quero mais saber de você. Boa noite.
E, dizendo isso, ele abriu a porta da casa e entrou rapidamente no hall.
- Martin! - chamou Elfi com voz abafada, correndo alguns passos atrás dele. Mas a porta se fechou no seu nariz, e ela parou. Estava quase chorando de raiva. Pensou um instante, deu um pontapé violento na porta, virou-se e saiu correndo no escuro em direção à cerca e a sua própria casa.
- Cretino! - murmurou ela, seguindo e tropeçando pelo gramado. Cretino! Cretino!... - e ela O repetia sempre de novo.
Enquanto isso, Martin batia à porta da biblioteca.
- Entre! - disse O Sr. Gruneder com sua voz profunda e simpática.
Martin entrou
Os quatro senhores, Gruneder, Hermann, Wehmut e Weihrauch, estavam sentados ao redor de uma mesa redonda, jogando cartas. No centro da mesa via-se uma garrafa e, na frente de cada um deles um copo.
Quando Martin entrou, todos se viraram, olhando alegremente para ele.
- Vejam só, aí está O nosso jovem amigo! - exclamou O Sr. Gruneder.
- Então, dormiu bem? - perguntou O Sr. Weihrauch, sorrindo como sempre.
- Como é? De novo bem disposto? - indagou O Sr. Weihrauch, O do nariz achatado.
O Sr. Hermann não disse nada. Quando Martin entrou, ele tinha acabado de tomar um imenso gole de seu copo, e estava de boca cheia. Mas acenou com a mão.
- Boa noite, meus senhores - disse Martin educadamente. - Espero não estar incomodando.
- Ora, que é isso? - exclamou O Sr. Gruneder, jogando as cartas na mesa e olhando para O relógio. - Foi até bom você ter vindo para nos tirar daqui. Já são sete horas.
O velho se levantou e se aproximou de Martin com passos inseguros.
- Vamos antes comer alguma coisa ainda - disse ele. - Lá na sala ao lado, temos um lanche pronto. Depois vamos tratar de ir andando. - Chegou junto de Martin e se apoiou em seu ombro. Juntos, seguiram em direção a uma segunda porta da biblioteca.
- Venham, por favor - disse O Sr. Gruneder muito devagar e com jeito solene. Os três homens se levantaram e seguiram atrás de Martin.
O Sr. Gruneder abriu a porta que eles haviam aicançado, e levou Martin para O outro cômodo onde também havia luz acesa.
Ao entrar naquela sala, Martin sentiu água na boca. No meio, sob um lustre de cristal imenso, estava uma mesa coberta por uma pesada toalha de linho branco. Na mesa, viam-se pratos, terrinas e travessas com as coisas mais gostosas que um garoto esfomeado poderia imaginar.
Havia presunto, queijo e saladas. Havia frios, pãezinhos e carne assada. Havia bolo, frutas e bombons. Havia garrafas com vinho, com cerveja e sidra. Havia gulodices para todos os gostos.
Martin engoliu em seco e lambeu os beiços.
- Graças a Deus estou com bastante fome - declarou ele.
Todos riram e se instalaram.
Também eles pareciam estar com fome. O Sr. Weihrauch estava tão faminto que nem usou faca ou garfo para preparar seus sanduíches Metia os dedos nas travessas e enfiava tudo diretamente na boca. Bebia a cerveja da garrafa.
Martin teve que rir.
O Sr. Gruneder, no entanto, não achou graça naquela voracidade do Sr. Weihrauch, e chamou sua atenção.
- Sr. Weihrauch - disse ele em voz bem alta -, será que O senhor poderia fazer O favor de tentar se comportar?
O Sr. Weihrauch baixou a cabeça e murmurou:
- Desculpe. - Depois pegou O garfo e a faca na mão. Segurava O talher muito desajeitadamente, olhando de esguelha para Martin, para ver como este O fazia. Martin sentiu-se muito orgulhoso.
Daí em diante O jantar transcorreu tranqüilo. Comiam e bebiam O máximo que cabia no estômago, e todos estavam animados e de bom humor.
Finalmente chegaram à torta e aos doces. O Sr. Gruneder abriu uma garrafa de vinho para si e os amigos, e uma garrafa de sidra para Martin.
Encheu os copos e fez um brinde:
- Ao sucesso desta noite, meus queridos! - disse ele com seu jeito solene.
Os copos tiniram. Depois de todos terem bebido, Martin, de repente, começou a rir.
- O que foi? - perguntou O Sr. Hermann.
- Nada, não - disse Martin, tentando parar de rir. Mas não conseguiu. Não dava para parar mesmo. - Ora - disse ele - que bobagem!
- Vamos, conte por que você está rindo, para que a gente possa rir também - pediu O Sr. Weihrauch.
Martin se sacudia todo, tão engraçado era O fato do qual se lembrara.
- Tenho a certeza de que os senhores vão rir também - disse ele. Agora que estamos todos aqui, juntos e tão alegres, desde que os senhores foram bons para mim, e já que eu estou tão feliz em poder voltar logo para casa, eu me lembrei de uma coisa...
- De que você se lembrou, meu filho? - perguntou O Sr. Gruneder com simpatia.
- Eu me lembrei de uma coisa que Elfi me contou lá fora no jardim.
- E O que foi que ela contou? - perguntou O Sr. Wehmut.
- Ela me contou que os senhores todos eram ladrões e assaltantes! - exclamou Martin às gargalhadas. - Contou que não existe tesouro nenhum, nem contrato, nem Sr. Maier. Que os senhores estão é querendo assaltar a casa. Isso não é engraçado? - E, sacudido por novo acesso de riso, ele quase derramou a gostosa sidra.
Os senhores Weihrauch, Wehmut e Hermann ficaram se entreolhando, mudos. Depois todos eles olharam em silêncio para O Sr..Gruneder.
Este olhou para Martin.
De repente, no entanto, O Sr. Gruneder começou a rir também. Batia com a mão na coxa, gargalhando.
- Há, há, há! - ria ele. - Isso é realmente engraçado!
Os três homens começaram a rir também. Dobravam-se nas cadeiras, às gargalhadas. Era um verdadeiro vendaval de risos que passara pela mesa.
- Hahahá! Hahahá! -riam todos. Riam de tanta alegria.
Capítulo 6
Martin agradece ao Sr. Hermann e a viagem se inicia - Ora, droga! A policia! - Continue, idiota! - A polícia foi avisada do desaparecimento - Nós até que tivemos sorte - Maier vive num local muito isolado - Como usar O cortador de vidro - Por acaso você está com medo? - Pense nos cinco mil xelins - Inicia-se a arriscada escalada- A escada balança como um vendaval - Missão cumprida! - Móveis velhos e tapetes cobertos de poeira -Martin abre a porta de entrada - Acontece algo horrível.
O jantar prolongou-se até às oito horas.
Logo depois, O Sr. Weihrauch, O Sr. Wehmut e O Sr. Gruneder se retiraram para apanhar os casacos e se prepararam para a viagem.
Martin foi com O Sr Hermann ajudar a fechar a capota do carro azul. Esfriara nesse meio tempo, e eles tinham um longo caminho pela frente.
Pelas janelas da casa vizinha via-se a luz acesa. Os pais de Elfi já deviam ter chegado. Martin olhou para a casa, rindo mais uma vez.
- Agora ela já deve estar contando mentiras de novo -disse ele
- Contando mentiras? Quem? - perguntou O Sr. Hermann, pois não entendera logo.
- Ora, Elfi... aos pais! - disse Martin.
- Ah - fez O Sr. Hermann apenas, dando de ombros-, não dê importância. Há muito que os pais não acreditam mais nela.
- Como é possível mentir tanto! - disse Martin, espantado.
- É inato - explicou O Sr. Hermann, ajeitando qualquer coisa no pára-brisa.
Martin aproximou-se dele.
- Sr. Hermann - disse ele -, daqui a algumas horas vamos nos separar novamente, e talvez eu não O veja nunca mais. Eu queria lhe agradecer mais uma vez por tudo que fez por mim.
- Ora - disse O Sr. Hermann. - Foi um prazer. Martin sacudiu a cabeça.
- Estou falando sério. O senhor nem sabe O quanto me ajudou. Eu já não agüento mais de saudades de casa. Agradeço unicamente ao senhor O fato de poder voltar para casa.
- Ora, ora - fez O Sr. Hermann.
- É, sim - garantiu Martin. - Se O senhor não me tivesse ajudado lá no cinema, eu estaria mal arranjado.
O Sr. Hermann estava tão ocupado com a capota do carro, que nem teve tempo de se virar para Martin. Murmurou qualquer coisa, que parecia muito comovedora, e depois entrou no carro.
Logo depois chegaram os outros.
- Muito bem - disse O Sr. Gruneder. - Aqui estamos. Eu, Martin e O Sr. Weihrauch sentamos atrás, e O Sr. Wehmut fica nafrente ao lado do Sr. Hermann.
Assim foi feito.
Martin ainda olhou mais uma vez para fora, antes do Sr. Gruneder fechar a porta do carro. Olhou para as duas casas, a coberta de hera é a de tijolo, onde morava Elfi, a contadora de mentiras. Olhou para O gramado, para as árvores, para O céu estrelado e pensou: Eu não vou ver nunca mais tudo isso aqui, pois daqui a algumas horas estarei em casa. - .
E por isso ele estava todo satisfeito quando seguiram pela alameda marginada de árvores, em direção à auto-estrada. O facho de luz dos faróis abria caminho na escuridão, e O motor do carro roncava, baixo e ritmado. O vento assobiava tristemente. Martin sentia-se muito confortável. Os homens seguiam calados. O Sr. Gruneder, que, mesmo à noite usava enormes óculos escuros, encheu O cachimbo e acendeu-o. Depois recostou-se novamente em sua poltrona, soprando grossas nuvens de fumaça para O alto.
Assim passou-se meia hora, e Martin já estava começando a ficar com sono, quando ouviu a voz do Sr. Hermann.
- Que droga! - dizia este. Martin teve um sobressalto.
Também O Sr. Gruneder tirou O cachimbo da boca e perguntou:
- O que houve?
O Sr. Hermann, que olhava fixo para a estrada em frente, disse uma única palavra:
- Polícia!
Martin ficou com medo.
Polícia? Talvez estivessem atrás dele!
Olhou para a frente.
Bem longe ainda, no meio da pista, estava um policial agitando um bastão luminoso. Junto a ele, ao lado de um carro, via-se um segundo policial.
- É uma blitz! - disse O Sr. Weihrauch com voz rouca.
- O garoto! - lembrou O Sr. Gruneder. - Vai ver que estão procurando O garoto!
- Quer que eu desvie? - perguntou O Sr. Hermann.
Eles estavam se aproximando cada vez mais da polícia.
- Você ficou maluco? - exclamou O Sr. Gruneder zangado, falando entre os dentes. (Era a primeira vez que Martin O via irritado.)
- Idiota, O que é que você acha que vai acontecer se você desviar O carro agora? Ande, siga em frente!
Martin estava tão excitado que nem percebeu que, de repente, O Sr. Gruneder tratava O Sr. Hermann por você.
O Sr. Hrmann calou-se e continuou em direção ao policial.
De repente O Sr. Gruneder pegou Martin pelo braço, dizendo
- Vamos, rápido. Entre aí, debaixo das minhas pernas!
E Martil se encolheu no chão do carro.
O Sr. Gruneder levantou as pernas.
O Sr. Wihrauch também fez O mesmo.
Tremendo Martin se deitou, esticado, no chão do carro que ficava. Os dois senhores baixaram as pernas novamente.
- Um cobertor, depressa! - Martin ainda ouviu dizer O Sr. Gruneder
- Já vai respondeu O Sr. Weihrauch. Logo depois um grosso cobertor de lã, que estava
- Pois não, seu guarda - disse O Sr. Gruneder. - O que houve?
- Estamos procurando um garoto - informou este. - Estamos parando todos os carros, mas já estou vendo que ele não está aqui.
- Não, senhor, seu guarda - disse O Sr. Gruneder. - Não temos nenhum garoto conosco. Mas O que foi que ele fez?
- Fugiu de casa - respondeu O policial.
- Que coisa! - observou O Sr. Weihrauch com ar de admiração. - Por quê?
- Porque O boletim dele estava muito fraco - informou O policial.
- Ora, O boletim estava fraco! Então isso lá é motivo para fugir de casa?
- É - fez O policial. - O senhor nem pode imaginar os absurdos que acontecem.
- E como foi que O senhor soube - perguntou O Sr. Hermann.
- Pelo próprio pai - informou O policial, sempre delicado. - Ele apresentou queixa à polícia.
O coração de Martin batia como louco.
Ele se mexeu, sem querer, mas imediatamente levou um chute do Sr. Gruneder e se encolheu de novo, imóvel.
O policial desculpou-se mais uma vez, e fechou a porta do carro.
O carro partiu.
- Pronto - disse O Sr. Gruneder. - Já pode sair.
Martin empurrou O cobertor para O lado e se levantou.
- Tivemos sorte - disse O Sr. Wehmut, enquanto Martin se instalava novamente entre-o Sr. Gruneder e O Sr. Weihrauch.
- Muito obrigado - disse Martin ainda sem fôlego.
- Não tem de quê, meu filho - disse O Sr. Gruneder.
- Mas como é que seu pai sabia disso?
- Eu escrevi uma carta para ele - explicou Mar-
- Foi? - disse apenas O Sr. Gruneder.
- Claro. E na carta eu disse que só voltaria para casa quando tivesse ganho algum dinheiro.
O Sr. Gruneder colocou novamente O cachimbo na boca, sugando-o com toda força.
- Bem, então temos que nos apressar - disse ele com um tom de voz um pouco irritado. - Do contrario, a polícia ainda acaba pegando você antes de conseguirmos fazer alguma coisa.
Martin balançou a cabeça sem responder.
Estava pensando no pai, na mãe, na sua casa. Olhava para fora, para a estrada escura que passava por eles como uma fita sem fim.
De repente, começaram a aparecer as primeiras casas e as primeiras luzes. Estavam na cidade. O carro começou a andar mais devagar. Num cruzamento maior havia um relógio. Ele marcava nove horas e dez minutos.
- Como foi rápido! - disse Martin, surpreso. Ele tinha a impressão de estar na estrada por muito tempo. A casa coberta de hera à beira da estrada, já estava tão distante...
- É - confirmou O Sr. Hermann , viemos rápido.
- Eu acho que nunca conseguiria encontrar O caminho de volta para a sua casa, Sr. Gruneder - disse Martin.
- Nem precisa, meu filho - respondeu O velho batendo seu cachimbo.
Dirigiam-se para O centro da cidade.
O tráfego ali era muito intenso. A quantidade de luzes na rua e os anúncios luminosos clareavam O carro até por dentro.
- O senhor tem certeza de que ninguém vai me ver quando eu for escalar até a clarabóia, Sr. Gruneder? - perguntou Martin com ar preocupado.
- Por que haveriam de ver? - perguntou O Sr. Gruneder.
- Tem tanta gente na rua! - disse Martin.
- A casa do Sr. Maier fica num lugar muito ermo - respondeu O velho. - Não precisa se preocupar. Ninguém vai ver você.
E realmente, quanto mais eles continuavam, mais silenciosas ficavam as ruas, menos gente eles iam encontrando. Até mesmo a iluminação da rua foi ficando mais escassa.
Os homens ao lado de Martin levantaram as golas dos capotes, olharam para fora da janela e pareciam nervosos.
Nem era para menos diante de uma aventura daquelas!
As ruas foram ficando cada vez mais desertas. Chegaram a um bairro residencial, com casas no meio de grandes jardins. Muito poucas entre elas ainda estavam iluminadas.
Dobraram uma esquina, entrando numa pequena rua escura onde havia apenas uma lâmpada debaixo de uma castanheira. Não se via ninguém por ali.
- Hermann - disse O Sr. Gruneder -, é bom parar por aqui.
- Sim, Sr. Gruneder - respondeu O Sr. Hermann, pisando no freio.
O carro azul ainda passou pela lâmpada debaixo da castanheira, parando na sombra de outra árvore. O Sr. Hermann apagou as luzes.
- Preste bem atenção, meu filho - disse O Sr. Gruneder, tirando do bolso um objeto que parecia um pequeno carimbo. - Quando você tiver chegado à clarabóia lá em cima, vai ter que usar isso aqui.
- O que é isso? - perguntou Martin.
- É um cortador de vidro, pequeno, um instrumento para riscar vidro - explicou O velho.
- Ah - fez Martin - eu já ouvi falar. Tem um diamante na ponta, não é?
O Sr. Gruneder balançou a cabeça. - Exatamente - disse ele. O diamante é mais duro do que O vidro, por isso ele corta O vidro. Experimente uma vez no vidro do carro. Mas só de leve. - Martin pegou O instrumento e passou O minúsculo diamante no vidro da janela. Ouviu um arranhão e O cortador deixou uma linha marcada no
- Isso mesmo - elogiou O Sr. Gruneder. - A mesma coisa você vai fazer na janela lá em cima. Você corta um quadrado, pega um lenço, empurra O quadrado para dentro, mete a mão pela abertura e abre O trinco. Entendeu?
Martin balançou a cabeça.
- É aqui - disse O Sr. Gruneder, metendo mais uma vez a mão no bolso. - Tome uma lanterna para você. - Ele a estendeu para Martin, mostrando como acendê-la. - Você vai precisar dela para andar por dentro da casa.
- Obrigado - disse Martin. E guardou os dois objetos no bolso.
O Sr. Gruneder olhou para os outros.
- Muito bem - disse ele. - Por enquanto, vocês ficam aqui, enquanto eu e Martin vamos saltar para dar uma olhada na casa.
Todos concordaram.
O Sr. Gruneder abriu a porta do carro e saltou com cuidado
Olhou em volta.
- Venha - disse ele. Martin seguiu-o.
Começaram a descer lentamente e em silêncio pela rua. Os outros ficaram no carro.
O silêncio era tão grande que seus passos ecoavam alto.
- É longe? - perguntou Martin.
- Pst! - fez O Sr. Gruneder com ar severo. Depois acrescentou, num sussurro: - Não. É na outra esquina.
Chegaram à esquina e entraram em outra rua. Ali, a escuridão era maior ainda. Não havia luz na rua, apenas árvores, escuridão, e uma ou outra casa no fundo de imensos jardins.
À distância, Martin ouviu a sineta de um bonde.
Um cachorro latiu.
Tudo ficou em silêncio novamente.
- Bem - disse O Sr. Gruneder, capengando. - Agora preste bem atenção. É a terceira casa do lado direito. A casa branca, grande. Nós vamos passar por ela, mas não pare. Dê uma olhada nela de passagem.
Martin apenas balançou a cabeça, mudo. O coração lhe batia fortemente.
A primeira casa.
A segunda casa.
Agora a terceira.
Era realmente muito grande, de dois andares e toda pintada de branco. Na frente havia seis janelas enormes, além da porta de entrada, à qual se chegava por alguns degraus de pedra A porta de entrada era de ferro. As janelas eram fechadas por grossas venezianas de madeira
A casa tinha um telhado plano. Do lado direito da fachada via-se uma espécie de escada, uma armação pela qual subiam trepadeiras até O segundo andar. A armação parecia estar presa à parede da casa, sendo feita de ripas de madeira verticais e transversais.
- Dá para você ver direito? - perguntou O Sr. Gruneder, enquanto eles passavam. Falava tão baixo que mais parecia um sussurro.
- Dá, sim - murmurou Martin de volta. Observou a casa com muita atenção, como nunca tinha observado nenhuma casa antes.
É por aquela armação que eu tenho de subir, pensou ele
Por aquela armação...
No final da armação estava a clarabóia. Era muito pequena e não tinha grades.
- Você está vendo a clarabóia? - sussurrou O Sr. Gruneder.
Martin balançou a cabeça.
O Sr. Gruneder deu meia-volta, e também Martin mudou de rumo. Voltaram pelo outro lado da rua.
Martin teve a impressão de que a clarabóia, dali, parecia mais alta ainda, e que toda a parede, aliás, crescera.
Ele balançou a cabeça e esfregou os olhos.
Bobagem, pensou ele, não pode ser.
O velho a seu lado contemplava-o atentamente.
- O que é? - perguntou ele.
- Nada - disse Martin.
- Tem certeza?
Eles já tinham quase chegado de novo à esquina da outra rua onde estava estacionado O carro.
- Não é nada - garantiu.
- Você está com medo?
- Um pouco - respondeu O garoto. (Não era verdade. Ele estava com muito medo.)
- Pense nos cinco mil xelins - disse O Sr. Gruneder.
- É O que eu estou fazendo - respondeu Martin.
- Assim que você abrir a porta para nós, você receberá seus cinco mil xelins - disse O velho -, e poderá ir logo correndo para casa. É nisso que você tem de pensar agora,entendeu?
- Sim, Sr. Gruneder.
- Não pense em mais nada, só no dinheiro. E na sua volta para casa.
- Sim, Sr. Gruneder.
- Muito bem - disse ele. Tinham chegado à esquina. O Sr. Gruneder parou e fez um sinal.
Logo, a porta do carro se abriu e os três homens saltaram. Rápidos e silenciosos eles se aproximaram do Sr. Gruneder.
- Tudo em ordem? - perguntou O Sr. Hermann.
O velho balançou a cabeça.
- Ajudem O garoto a passar por cima da cerca - disse ele.
O Sr. Weihrauch se encostou com as costas contra a tela da cerca e, entrelaçando os dedos, fez um estribo para Martin subir.
- Vamos - disse ele. Pise primeiro nas minhas mãos e depois no meu ombro.
- Está bem, Sr. Weihrauch - disse Martin. O Sr. Gruneder lhe estendeu a mão.
- Nós nos veremos depois - disse ele - Boa sorte.
- Obrigado - respondeu Martin.
Depois, segurando-se firme nos ombros do Sr. Weihrauch, ele foi subindo agilmente. Aquilo não era nenhum mistério. Ele já havia pulado muita cerca.
Do ombro do Sr. Weihrauch, ele passou para O alto da tela de arame, que balançou, e depois saltou para O outro lado, para O escuro, no meio de arbustos e gramado.
Ao cair, apenas arranhou levemente a mão esquerda, mais nada.
- Vamos - ouviu O Sr. Gruneder dizer.
Ele se ergueu e atravessou agachado O gramado, correndo em direção à casa. Ao se virar, viu que também os outros tinham pulado a cerca como ele.
Até O Sr. Gruneder
Martin nunca podia imaginar que O Sr. Gruneder fosse capaz de semelhante façanha. Ele ainda O viu pular no gramado, depois seguiu em frente.
De repente, ouviu um ruído.
Estremeceu e jogou-se no chão, imóvel.
O que era aquilo?
Martin trincou os dentes; respirava ofegante.
O ruído se repetiu. Era um ruído estranho. Qualquer coisa como: Iiiiaaauuu...
Depois, Martin viu um gordo gato branco passando devagar e majestoso pelo gramado.
Martin sorriu, tranqüilizado, e se levantou novamente.
Mais alguns passos e ele chegava até a parede.
Ali estava muito escuro.
Ele foi tateando até chegar à armação, que estava toda enrolada por trepadeiras, e esperou até que sua respiração se normalizasse.
Então começou a escalada.
Subia com muita cautela, mas rapidamente. Era bem mais simples do que ele imaginara. As ripas eram bastante largas, e era fácil segurar-se nelas.
Chegou à janela do primeiro andar.
Continuou em frente.
As trepadeiras iam ficando mais ralas. A armação estremeceu um pouco. Martin olhou para baixo. Teve uma ligeira tonteira e vacilou. Fechou rapidamente os olhos.
Que horror!
Isso ele não podia fazer de novo!
Tinha de olhar p ara a frente e continuar a subir. Tinha de chegar até a clarabóia e entrar na casa. Não faltava muito. Mais alguns minutos e estaria tudo terminado. Aí, ele receberia O dinheiro. Poderia voltar para casa. Para casa!
As lágrimas lhe vieram aos olhos, de saudades, ao se lembrar de casa, e ele continuou a subir rapidamente.
O segundo andar.
A armação agora balançava sensivelmente, mas resistia. Já não havia mais trepadeiras.
A pequena clarabóia estava quase ao alcance de sua mão.
De repente, ele ouviu O ruído de um carro.
Apertou-se contra a parede.
O ruído veio se aproximando.
Um carro atravessou a rua deserta..
Suas luzes passaram pela casa; passaram por Martin.
Meu Deus, me ajude para que ninguém me veja, rezava O menino, sentindo seus joelhos tremerem.
Ninguém viu Martin.
Ficou de novo escuro em torno dele, e O carro se afastou.
Martin respirou fundo. Em seguida, subiu as duas últimas ripas. Estava logo abaixo da clarabóia. Com uma das mãos segurou-se na armação, que tremia e, com a outra, tirou O cortador de vidro, apertando-o contra a vidraça.
Traçou uma linha e ouviu O vidro ranger.
Depois outra linha em ângulo reto.
Mais uma.
E agora a quarta.
Não tinha tempo para procurar um lenço. Virou O cortador ao contrário e, com O cabo, bateu contra a vidraça. Com um leve ruído de vidro que se estilhaça, O quadrado de vidro caiu para dentro.
Martin se esticou. A armação oscilava como numa tempestade.
Ele meteu a mão pela abertura, procurando O trinco que fechava a janelinha.
Encontrou O trinco.
Girou-o.
Pronto! Abriu a janela devagar.
Escancarou-a toda, e, agarrando-se na parte inferior da moldura, içou O corpo. Por um momento, ficou pendurado no ar, depois esgueirou-se pela abertura estreita, caindo pesadamente no chão, do lado de dentro da janela.
Ficou deitado por um segundo, imóvel.
O lugar cheirava a madeira e a roupa velha e estava em completa escuridão. Ergueu-se. Olhou através da janela para O jardim, viu os quatro homens vindo como sombras em direção à casa.
Martin sorriu.
Tirou a lanterna do bolso, acendendo-a.
O facho de luz passou pelo sótão. Os olhos de Martin levaram alguns segundos até se acostumarem ao escuro, até ele se situar. Depois, foi seguindo por entre móveis velhos, tapetes, utensílios de casa e sacos sujos até uma porta que ficava bem em frente a janelinha.
Chegando lá, apertou O trinco.
A porta estava aberta!
Ela dava para uma pequena área de onde descia uma escada em caracol. Martin foi seguindo na ponta dos pés. A escada em caracol era velha e rangia um pouco. Martin se assustou, mas logo se lembrou de que não havia ninguém na casa, portanto, não fazia diferença se ele fizesse um pouco de barulho.
Da escada em caracol, ele chegou à outra porta que abriu cuidadosamente. Ela dava para um hall revestido de madeira. De lanterna acesa na mão, Martin foi seguindo por um corredor com diversas portas, até uma escadaria mais larga que ia dar na entrada.
Mais uma porta. Desta vez de vidro.
Estava agora no hall de entrada, e já via a porta principal.
Iluminou-a.
Ela estava fechada com chave e com uma corrente. Os moradores deviam ter saído por outra porta para poderem passar a corrente.
Primeiro, Martin retirou a corrente de metal.
Depois, destrancou a porta.
Em seguida, girou a pesada maçaneta.
A porta abriu silenciosamente.
Lá fora estavam os quatro homens.
Martin sorriu satisfeito para eles.
Agora, pensou ele, vou receber a minha recompensa!
Mas aí aconteceu uma coisa horrível!
O Sr. Gruneder, falando baixo, mas em tom severo, disse:
- Cuidado com O garoto!
No mesmo instante, a mão pesada do Sr. Weihrauch tapou a boca de Martin como se quisesse sufocá-lo, e empurrou-o brutalmente para dentro da casa.
Capítulo 7
    Martin chora e O Sr. Hermann lhe dá um soco - O Sr. Gruneder está totalmente mudado - Mãos à obra! - Se você gritar, estará liquidado! - Martin, de repente, vê claro - O Sr. Gruneder tem um revólver, mas não tem consciência - Sem defesa, amarrado como um embrulho - Meu Deus, meu Deus, que idiota fui! - O cofre abre - Fiz tudo errado - Adeus, pequeno idiota! - Profundo desespero - Os quatro homens riem, mas não riem por último - Quem ri melhor é a polícia - Martin pensa no futuro e tem uma surpresa maravilhosa - A maluca da Elfi - Mãe! - Mas tudo acaba bem, só Elfi acha que está ficando velha.
   Martin quis gritar, mas a pesada mão do Sr. Weihrauch O impedia de fazê-lo. O Sr. Hermann acorre (seu amigo, ó Sr. Hermann!) e O agarra pelas pernas; Martin é logo suspenso e carregado às pressas através do hall de entrada, para dentro. Quando conseguiu a muito custo virar a cabeça, viu os outros dois homens correndo em sua direção.
    Ele não conseguia entender O que estava acontecendo.
    O que significava tudo aquilo? O que se passava ali? Aquilo então era jeito de tratá-lo? Os homens teriam enlouquecido?
    Martin arfava. Quase não conseguia respirar e esperneava violentamente. Um pontapé do Sr. Hermann O atingiu no estômago. O Sr. Hermann xingava alto, e com a mão em punho lhe deu um soco.
    O soco pegou no ombro.
    Os olhos de Martin se encheram de lágrimas.
    Seu amigo, seu amigo, O Sr. Hermann, que tanto lhe havia ajudado!
    Martin sentiu as lágrimas lhe correrem pela face, tamanho era seu desespero, sua perplexidade. O que significava tudo aquilo? O quê, meu Deus? Os dois homens, nesse meio tempo, O tinham levado para um quarto onde havia uma grande escrivaninha e alguns móveis velhos e escuros.
    Chegando aí, largaram-no no chão, de repente. Martin sentiu uma dor horrível.
    - Sr. Gruneder! - gritou ele, assim que conseguiu respirar de novo, levantando-se de um salto.
    No mesmo instante, a pesada manopla do Sr. Weihrauch tapou-lhe novamente a boca. Martin arfava. Os quatro homens O rodearam em silêncio. Subitamente, Martin sentiu-se mal e pensou que fosse desmaiar. Mas não desmaiou.
    As coisas pioraram ainda mais.
    O Sr. Gruneder, a quem ele havia chamado, apareceu. Com um movimento brusco, arrancou os óculos escuros, e, pela primeira vez, foi possível ver os seus olhos. Martin se assustou. O Sr. Gruneder, aquele simpático Sr. Gruneder, com aquela voz pausada e soIene, tinha uns olhos pequenos, de expressão fria, perigosa e má.
    Estava totalmente mudado. Já não capengava mais, não sorria mais e sua voz tinha um tom frio e cortante.
    - Mãos à obra - ordenou ele Os outros três homens saíram imediatamente. Ao fazê-lo, O Sr. Weihrauch largou Martin, e este agora poderia gritar ou fugir. Ele, no entanto, não gritou nem fugiu. Em pé, apertado contra a parede, olhava para O Sr. Gruneder tal qual uma lebre fixa uma cobra - imobilizado de pavor.
    Os três homens começaram a trabalhar numa porta quadrada, que ficava na parede, mais ou menos à altura  do peito. O Sr. Weihrauch havia tirado um grande molho de chaves do bolso. Juntamente com O Sr hehmut, que trouxera uma caixa da qual ele retirava objetos estranhos como pedaços de arame, limas, foi e um martelo enorme, começou a tentar abrir a porta Sr. Hermann estava em pé logo atrás dele, segurando  uma lanterna em cujo facho de luz os outros dois trabalhavam.  Martin não conseguia entender.
Aqueles homens então eram assaltantes! Eles esta tentando abrir aquela portinha na parede, porque ás dela, sem dúvida, estavam guardadas pedra preciosas ou dinheiro. Mas eles não lhe haviam dito Queriam apenas O contrato que estava na escrivaninha? E ele tinha acreditado neles! Ele acreditava  que se tratava de gente decente! E não passavam de criminosos ordinários! Mas O pior é que ele, Martin Zohner, tinha-os ajudado, e abrira a porta para que eles  pudessem entrar!
Martin já não lutava mais contra as lágrimas: Elas agora lhe corriam livremente pelo rosto. Olhou
para o senhor Gruneder... teve um sobressalto.
De repente, O Sr. Gruneder segurava um revólver na mão.
Você sabe O que é isso? - perguntou ele em em voz baixa
 Martin apenas balançou a cabeça. Não conseguia diz uma única palavra.
Se você gritar ou se tentar fugir, você está liquidado! - disse ele em tom frio e ameaçador . Ele liquidado!mas isso não era possível!
Isso não podia ser verdade! Ele não havia ajudado àqueles homens, e eles não tinham prometido uma recompensa? Não lhe haviam  prometido muito dinheiro para que ele pudesse ir para casa?... E agora queriam liquidá-lo?
   Sr. Gruneder - murmurou Martin com a voz embargada  pelas lágrimas -, O que é que O senhor está fazendo, pelo amor de Deus? Por que O senhor não me dá a minha recompensa e me deixa ir embora conforme O senhor me prometeu?
- Seu grande idiota! - disse O Sr. Gruneder com um sorriso mau. - Eu lá vou deixar você ir embora para você ir correndo direto à polícia?
- E a minha recompensa? - perguntou Martin, falando com dificuldade. O mundo estava desmoronando em volta dele!
- Mas que recompensa?
- A recompensa que O senhor me prometeu!
O Sr. Gruneder sacudiu a cabeça muito espantado.
- Eu nunca lhe prometi nada. Você deve estar enganado.
- O senhor prometeu me dar cinco mil xelins se eu lhe abrisse a porta para que O senhor pudesse apanhar O contrato que O seu amigo Maier roubou do senhor!
- Quanta besteira junta! - disse O Sr. Gruneder. - Você deve estar maluco! Eu nunca lhe prometi nada, eu nem conheço você!
- Como? O senhor não me conhece? Então eu não estive lá na sua casa?
- Você nunca esteve em minha casa - disse O Sr. Gruneder. - Você não passa de um pequeno idiota a quem eu nunca vi, e que está dizendo um monte de besteira!
- Eu não estou dizendo besteira! - gritou Martin, de repente. Eu estou dizendo a verdade! Vocês é que são criminosos! Mas eu devia ter percebido logo, assim que vi vocês; eu devia ter acreditado na pequenina Elfi que me disse que vocês eram ladrões e assaltantes! Assaltantes, é isso que vocês são! Assaltantes, eu...
Mas ele não conseguiu terminar a frase.
    Pois naquele momento, O Sr. Gruneder se atirou em cima dele com O rosto crispado de ódio, e lhe deu um soco no rosto. Martin caiu no chão.
Sua cabeça doía, parecia que ia estourar. O sangue lhe escorria do nariz. O Sr. Gruneder arrancou um lenço do bolso e enfiou-o na boca do garoto, amordaçando-o.
Martin sentia-se sufocar, teve vontade de vomitar, mas não vomitou. A muito custo conseguia respirar pelo nariz. Agora não conseguia mais falar! Tentou arrancar O lenço, mas não teve tempo. O Sr. Gruneder pegou seus braços, torceu-os para trás, amarrando-os nas costas, com um cordão comprido. Depois, jogou-o no chão de bruços, e amarrou também as pernas de Martin. E lá estava Martin, indefeso, amarrado como um embrulho! Não podia mais se mexer, não podia falar! Só podia ver e ouvir.
E ele ouviu O Sr. Gruneder dizer:
- Muito bem, agora até que enfim você sossega. Agora, finalmente, podemos trabalhar em paz. Claro que somos assaltantes! E é mais uma prova de sua idiotice O fato de você não O ter percebido logo, e ter acreditado naquela minha estória boba do tesouro e do contrato! - E, lembrando-se, O Sr. Gruneder teve que dar uma risada. - Realmente, a pequena Elfi foi mais esperta do que você - acrescentou ele. - Mas eu não quero ser mal-agradecido. Você, com a sua idiotice, nos prestou um grande serviço. Sem a sua ajuda, nunca teríamos conseguido entrar nesta casa. - Ele esfregou as mãos. - Atrás daquela porta lá na parede -- disse ele bem humorado - encontra-se um cofre. Você agora sabe O que é Naquele cofre há dinheiro e jóias no valor de muitos milhões de xelins. Vamos arrombar a porta e roubar as jóias e O dinheiro. E ninguém vai conseguir nos punir por isso, nunca!
Martin olhou para os três homens ocupados com a portinha. A luz da lanterna formava sombras sinistras na parede.
- Como é, meus amigos? - perguntou O Sr. Gruneder.
- Tudo em ordem, chefe - disse O Sr. Weihrauch - Mais alguns minutos e nós terminaremos.
Martin tentou se mexer, mas não conseguiu. Seus braços e pernas estavam fortemente amarrados.
- É - observou O Sr. Gruneder -, fique préstando bem atenção, você ainda pode até aprender alguma coisa!
Enfiou O revólver novamente no bolso, e apertou ainda mais a mordaça, de modo que Martin quase não conseguia respirar.
- Vamos deixar você por aqui mesmo - observou O Sr. Gruneder. - Mais cedo ou mais tarde alguém O encontrará. Ou, talvez, não. Quem sabe? Se você tiver sorte, será encontrado e poderá contar a sua estória. Pode ser até que acreditem em você. Nunca se sabe. Mas, mesmo que acreditem, você não nos verá nunca mais. Você não vai nem saber dizer à polícia onde fica a casa em que moramos. Porque você é idiota mesmo, e não sabe de nada. Não é à toa que você foi reprovado na escola!
Martin virou a cabeça, e as suas lágrimas chegaram a pingar no chão, ao ouvir essas palavras.
Reprovado!
Sim, ele fora reprovado E por que fora reprovado e não quisera voltar para casa, ele se metera nessa encrenca toda!
Martin tremia de medo.
O que seria dele se os homens O abandonassem lá? O que aconteceria se ninguém O encontrasse, se os donos da casa ainda levassem semanas para voltar? Ele iria morrer de fome e de sede...
Martin gemeu.
Meu Deus! Meu Deus, que idiota ele tinha sido! Por que ele tinha feito tudo aquilo? Por que tinha fugido de casa? Por que não tinha dado ouvidos ao Dr. Gerber e a seu amigo Herbert?
Por que acompanhara assim, sem mais nem menos, O Sr. Hermann, uma pessoa estranha a quem ele nunca tinha visto antes? Por que ele não se lembrara do que sua mãe vivia lhe dizendo: não se deve nunca acompanhar uma pessoa estranha, principalmente se ela vem com grandes promessas...
Martin sentia-se mais desesperado do que nunca.
Por que ele se deixara enganar pelo Sr. Hermann e pelo Sr. Gruneder? Por que havia acreditado neles e não na pequenina Elfi? Por quê? Por quê?
Só por que lhe haviam oferecido uma comida gostosa, e muito dinheiro, e lhe contaram estórias fantásticas, ele acreditara naqueles assaltantes; ele havia entrado na conversa deles sem perceber que estava sendo enganado.
E agora lá estava ele, amarrado, amordaçado com um lenço, sem dinheiro, abandonado e cercado de inimigos, sem grandes perspectivas de rever os pais.
Suas lágrimas corriam mais ainda.
Seus pais!
Por que não tinha ido logo para casa? Por que tivera medo de lhes apresentar aquele boletim fraco? Por que imaginara que sua mãe ia se aborrecer? Ela não ia se aborrecer muito mais quando soubesse O que lhe tinha acontecido? E será que ela algum dia ia saber? Será que ainda ia revê-la?
Meu Deus, pensou O pobre Martin, deitado no chão poeirento do grande quarto escuro, sem poder se mexer, me arrume um jeito de voltar de novo para casa, não importa como, sem dinheiro, sem nada, meu Deus, eu só quero voltar de novo para casa! Prometo que nunca mais volto a fazer isso, pois reconheço que errei; mas, por favor, meu Deus, me ajude a voltar para casa, por favor!
Tentou soltar a mordaça. Nada conseguiu.
Suspirou fundo.
Logo depois, os três homens diante do cofre começaram a dar gritos abafados de alegria.
A porta abrira!
Martin viu que dentro havia caixas, cédulas em gordos maços e jóias brilhantes.
Os olhos frios e maus do Sr. Gruneder brilharam.
Correu então para junto de seus amigos, e começaram a esvaziar O cofre.
Esvaziar!
Exatamente como Elfi havia profetizado.
- São ladrões e assaltantes! - ela tinha exclamado. - Eles vão levar tudo da casa e você ainda vai ajudar!
E era exatamente O que eles estavam fazendo. Ele tinha zombado de Elfi, não acreditara nela. Ficara surdo e cego diante da ridícula promessa de um bom jantar...
Os quatro homens na frente do cofre se portavam como uns loucos. Riam e falavam todos ao mesmo tempo, metiam as jóias e O dinheiro nos bolsos dos casacos, das calças, das camisas.
E Martin estava lá deitado no chão sem poder se mexer, tendo que olhar para tudo aquilo, sem poder impedir.
Por que não havia seguido O conselho de Elfi e chamado a polícia? pensou ele.
Mas não tinha dado ouvidos à menina.
Não tinha chamado a polícia.
Fizera tudo errado, e agora tinha que pagar por seus erros!
O Sr. Gruneder e os amigos haviam acabado de saquear O cofre. O Sr. Wehmut guardou as ferramentas e O Sr. Hermann apagou a lanterna.
O Sr. Gruneder aproximou-se de Martin, rindo com expressão diabólica.
- Então, adeus, seu garoto idiota - disse ele. - Espero que em breve alguém consiga encontrá-lo. Ficaria realmente com pena se você tivesse que ficar aqui, e morresse de fome.
Os outros três homens riram.
Martin achou que ia enlouquecer.
Isso eles não podiam fazer! Eles não podiam largá-lo ali, amarrado, amordaçado e sem poder se mexer, em uma casa estranha, escura e desabitada...
Em desespero, jogava-se de um lado para O outro.
Os homens riam mais alto ainda.
Pareciam achar aquilo muito engraçado.
O coração de Martin batia tão alto que parecia que ia arrebentar.
Não, isso não, por favor, isso não! Ao menos me levem junto! Façam de mim O que quiserem, mas não me deixem aqui sozinho!
Tudo isso ele pensou sem poder dizer nada, porque estava com um lenço enfiado na boca. Por isso também ninguém conseguia ouvi-lo. Os quatro homens saíram do quarto, sem ao menos se virarem de novo para ele.
O Sr. Hermann foi O último a sair.
Também ele não se virou.
Martin só ficou olhando.
Ouviu suas vozes no hall.
Depois ouviu quando abriram a porta de entrada.
A porta se fechou.
Ouviu ainda suas risadas no jardim.
Em seguida apenas seus passos.
Por fim, até O rumor dos passos desapareceu.
Tudo estava novamente mergulhado na maior escuridão e silêncio.
Martin estava amarrado e amordaçado no chão, em uma casa estranha, vazia, sinistra. As lágrimas lhe corriam em torrentes pelas faces...
Enquanto isso, os quatro homens passavam novamente pela cerca, saltando para a rua. Gruneder colocara novamente os óculos escuros.
- Tudo funcionou que foi uma beleza! - observou Weihrauch.
- Nunca na vida encontrei tamanho idiota, aiguém tão crédulo! - disse Gruneder.
Hermann sorriu.
- Vocês podem confiar em mim - disse ele. - Eu não disse logo no telefone que havia encontrado O garoto certo?
- Espero que ele durma bem - disse Gruneder, e os outros deram mais uma vez boas gargalhadas.
Chegaram à rua onde haviam deixado O carro, e olharam cautelosamente em volta. A rua estava deserta.
Rapidamente, encaminharam-se para O carro.
Gruneder chegou até a assoviar, tão bem disposto se sentia. Hermann abriu a porta do carro.
- Agora vamos tratar de sumir daqui - disse ele.
No mesmo instante, teve uma surpresa das mais desagradáveis. Uma mão pesada pousou em seu ombro e uma voz severa disse:
- Não se mexa, está preso!
Hermann virou-se.
Atrás dele estava um policial.
Olhou em volta, perdido.
Também seus amigos tiveram a mesma sorte.
De todos os lados, da escuridão, surgiram vultos uniformizados.
Eles não tinham como escapar.
Três outros policiais já estavam se encarregando dos amigos de Hermann. Tudo se passou muito rápido e sem grande alarido. Praticamente, ninguém falou alto.
Antes que pudessem dizer qualquer coisa, os policiais já haviam algemado os quatro assaltantes e revistavam seus bolsos. Surgiram pequenos montes de dinheiro e jóias.
- Vejam só - disse um dos policiais, satisfeito. O outro pegou Gruneder pelo ombro, virando-o
para que a luz da única lâmpada da rua incidisse sobre ele.
- Tem alguma coisa a nos dizer? - perguntou ele.
O homem apenas deu de ombros.
- Azares da profissão - disse ele, impassível.
Lá dentro, na casa imensa, tudo ainda estava em silêncio.
No chão, de olhos fechados, Martin refletia, desesperado.
Eu mesmo sou culpado de tudo que me aconteceu, pensou ele. Eu e mais ninguém. Tudo O que fiz foi errado. Eu não poderia ter fugido nunca. Se eu conseguir escapar daqui com vida, se me encontrarem a tempo e conseguirem me salvar antes que eu morra de fome, de sede, ou asfixiado, eu não vou fazer isso nunca mais. Vou passar a estudar direito, e, se por acaso, eu ganhar novamente um boletim fraco, ou mesmo péssimo, vou ter coragem de enfrentar O fato, e não ser um covarde e fugir.
Se eu conseguir escapar daqui, vou contar a todas as crianças O que me aconteceu. Vou contar como fui crédulo e idiota, covarde e sem juízo, para que as outras crianças possam aprender às custas de minhas aventuras.
Talvez eu até procure alguém que escreva livros, e lhe conte a estória, para que ele escreva um livro a respeito. Este livro vai poder ser lido por um número muito maior de crianças. É, acho que isso vai ser melhor...
Primeiro, no entanto, alguém tem que me achar e me tirar daqui. Porque se não me acharem, se não conseguirem tirar-me daqui, eu morrerei de fome e de sede. E, se morrer de fome ou de sede, não vou poder contar a minha estória a mais ninguém. Oh, meu Deus, por favor, ajude para que eu seja encontrado. Prometo que nunca mais farei isso!
Martin parou de pensar. Mas como suas intenções desta vez eram honestas e como aquilo que ele pensava era certo, Deus ouviu seu pedido. Como por milagre, Martin, de repente, ouviu ruídos em meio àquele silêncio profundo.
Mais uma vez a porta se abriu.
Mais uma vez passos e vozes se aproximaram.
De repente, a luz foi acesa.
Algumas pessoas entraram no quarto.
A primeira pessoa que Martin viu foi a pequenina Elfi. Ela vestia um casaco e seus olhos estavam fechando de sono.
Ela chegou perto dele e, fincando os braços na cintura, disse:
- Como é, seu idiota, agora você acredita que eu não estava mentindo?
Meia hora mais tarde todos estavam sentados na delegacia de polícia, no mesmo lugar em que O Dr. Gerber e O pai de Martin, horas antes, tinham comunicado a fuga do menino.
Lá estavam Martin, Elfi, os pais de Elfi e os quatro assaltantes.
Martin, Elfi e os pais mostravam-se radiantes.
Os quatro assaltantes estavam cabisbaixos.
Um policial fora avisar O pai de Martin, e, enquanto isso, Elfi contava sempre de novo sua fabulosa estória.
Ela era a heroína do dia.
Todos ficaram ouvindo, enquanto ela contava a um guarda, que anotava cada uma de suas palavras, tudo O que ela tinha feito.
- Bem - disse Elfi -, depois que Martin declarou achar-me uma grande mentirosa, eu fiquei tão por conta que nem sabia O que fazer. Depois, quebrei O vaso de flores da sala e me senti mais aliviada. Depois, pensei: Ora, se Martin não chamou a polícia, então eu tenho que ir. Aí, eu liguei para O distrito e contei tudo àquele senhor lá. A polícia acreditou que eu estava dizendo a verdade - disse ela, irônica, olhando para Martin - só você que não acreditou em mim! - Ela sorriu, triunfante. - Também a polícia é mais inteligente que você! A polícia veio logo de carro e seguimos vocês... só que vocês não perceberam nada. Eu tive licença de ir junto também, meus pais permitiram.
Corremos todo aquele estirão atrás de vocês, e, por fim, nos escondemos. Vimos tudo perfeitamente. Vimos você subir até lá em cima, entrar na casa e abrir a porta; vimos tudo. Depois foi muito simples. Quando os ladrões voltaram, a polícia os prendeu.
- Graças a sua ajuda, Elfi - disse O policial que anotara tudo.
Elfi estava radiante.
- Você ouviu? - perguntou ela a Martin.
Mas este não ouvira. Voltara-se para a porta que acabava de se abrir.
- Pai! - exclamou ele. O Sr. Zohner entrava naquele momento. Martin correu ao seu encontro. O Sr. Zohner se abaixou e, abrindo os braços, apertou O filho contra si. Por alguns minutos O silêncio foi total. Depois, Martin se retesou, ficou imóvel. Atrás do pai vinha mais alguém.
Sua mãe.
O Dr. Gerber a trazia pelo braço, ela ainda estava muito pálida e com aspecto cansado, mas sorria.
- Mãe! - disse Martin em voz baixa. Ela se aproximou, e O beijou.
- Meu garoto bobo - murmurou ela. - Como ficamos preocupados com você!
- Nunca mais eu faço isso - sussurrou Martin.
- É O que todos nós esperamos - disse O Dr. Gerber.
Martin olhou para ele com os olhos cheios de lágrimas.
- Estou tão arrependido por ter fugido, doutor! - disse ele.
- Ora - disse este -, contanto que você se convença de que estava errado...
Martin abaixou a cabeça.
- É, O senhor tem razão. - Depois, lembrou-se de mais uma coisa. - Mas por que você se levantou, mãe? - perguntou ele, nervoso. - Você precisa de descanso! Você não pode se aborrecer!
- Ora, não foi você mesmo que fez com que ela descansasse, com que não se aborrecesse? - disse O médico. E todos riram. (Com exceção dos quatro assaltantes. Estes não riram.) - Não se preocupe - continuou O médico -, sua mãe está resistindo muito bem. Agora ela vai ficar boa depressa.
O pai de Elfi, então, se levantou. Era um senhor baixo e gordo, de aspecto muito engraçado.
- Meus senhores - disse ele - eu já conversei com a minha mulher, e tomo agora a liberdade de lhes fazer uma proposta. Nós nos conhecemos por intermédio dos nossos filhos. E de uma maneira muito pouco comum. Proponho, pois, que este relacionamento continue. Minha mulher e eu os convidamos a passar as férias conosco. Nós moramos numa região muito bonita. Temos muitas frutas, leite e ar puro... e garanto que a Sra. Zohner vai restabelecer-se rapidamente. Como é, aceitam?
A Sra. Zohner olhou para O marido.
Este sorriu, satisfeito, mas meio sem graça.
- O senhor pergunta se aceitamos? Nós estamos felicíssimos, mas não queremos incomodá-los... Vamos ocupar tanto lugar...
- Ora, não é incômodo algum - declarou a mãe de Elfi. - E lugar é O que não nos falta.
- E Mesmo que tivéssemos pouco espaço, poderíamos muito bem ocupar a casa ao lado, pois ela deverá ficar desocupada por algum tempo, não é, senhor delegado?
- Quanto a isso não há dúvida - declarou O delegado. E todos riram.
(Todos, com exceção, mais uma vez, dos quatro assaltantes. Estes não riram. E pode-se entender muito bem que não estivessem achando nada engraçado a alusão feita pelo policial e pelo pai de Elfi.)
- Quer dizer, então, que podemos contar com vocês? - perguntou a mãe de Elfi.
- Sim - respondeu a Sra. Zohner, abraçando O filho.
- Viva! - gritou Elfi, entusiasmada. - Então vamos poder nadar juntos, andar de bicicleta e caçar elefantes. Lá atrás da nossa casa tem uma mata onde vivem centenas de elefantes, um maior do que O outro! São todos vermelhos de pintas verdes, e a gente consegue pegá-los com cebola! Ontem mesmo eu peguei um. Era do tamanho de uma casa de cinco andares...
Ela parou e olhou sem graça para Martin.
- O que foi? - perguntou ela. - Você não acredita?
- Não - disse ele. - Já vai começar de novo! Elfi abriu a boca para dar uma resposta, mas refletiu por um minuto.
- Está bem - disse ela. - Não é verdade, não. Naquela mata não há elefante, só coelho do mato, e eles não são vermelhos de pintas verdes, são cinzas, e pegá-los a gente não consegue mesmo.
O pai olhou para ela, perplexo.
- Elfi! - exclamou ele admirado. - O que está acontecendo com você? Você disse a verdade?
Elfi deu de ombros.
- O que é que se pode fazer? - disse ela. Acho que estou é ficando velha!

 

 

                                                                  J. M. Simmel

 

 

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