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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MANSÁO DOS SEGREDOS / Candace Camp
MANSÁO DOS SEGREDOS / Candace Camp

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Há várias gerações, terras e títulos de nobreza foram concedidos à família Aincourt pela sua lealdade ao rei. A antiga abadia Darkwater, no entanto, veio com uma maldição: nenhum Aincourt que a possuísse conheceria a felicidade.

Devin Aincourt, conde de Ravenscar, jamais pediu permissão para ser o que é — um verdadeiro libertino. Renegado pelo pai, Devin é feliz em sua existência amaldiçoada, vivendo-a de forma hedonista, gastando todo o dinheiro herdado e não dando a menor atenção à administração de Darkwater, à beira da ruína. Até que um dia, sua mãe implora para que ele recupere a fortuna e o nome da família e se case com uma rica herdeira americana. Acreditando ser apenas uma união no papel, Devin concorda em casar-se com Miranda. No entanto, o que ele não imagina é que esta estrangeira decidida e autêntica tem seus próprios planos: restaurar Darkwater, tornar a propriedade rentável novamente, arrancar o conde das garras da amante e ganhar seu coração. Mesmo que para isso tenha de arriscar a própria vida diante de um inimigo desconhecido, sob o risco de se abater também sobre ela uma maldição eterna.

Em A mansão dos segredos, primeiro livro da Trilogia dos Aincourt, Candace Camp mistura drama e suspense com pitadas de humor e boas doses de paixão, presenteando o leitor com personagens marcantes em uma história de amor inesquecível.

 

 

 

 

 

 

Ela tentava alcançá-lo, os braços esticados, os olhos arregalados e suplicantes, a boca contorcida em um esgar fatal. Estava pálida, a pele alva exibindo um tom acinzentado, a água encobrindo sua pele e roupas. Algas marinhas enroscavam-se em seu dorso, parecendo puxá-la para baixo em águas turbulentas.

— Devi Ajude-me! Salve-me! — Suas palavras agudas ecoaram pela escuridão.

Ele inclinava-se para resgatá-la, mas suas mãos estavam a alguns centímetros das dela, e não conseguia deslocar-se para a frente. Esticava cada fibra de seu corpo, mas ela continuava de maneira frustrante fora de alcance.

Ela afundava nas águas escuras, os olhos se fechando.

— Não! — gritou ele, tentando resgatá-la em vão. — Não! Deixe-me ajudá-la!

Os olhos de Devin abriram-se bruscamente, a princípio desorientados, mas, aos poucos, adquirindo compreensão. Sonhara mais uma vez com ela.

— Deus! — tremeu, sentindo um calafrio, e olhou em volta. Demorou um instante para que percebesse onde estava. Cedera ao sono sentado em uma cadeira do quarto, vestido apenas com o robe-de-chambre. Uma garrafa de brandy e uma taça bojuda graciosamente inclinada repousavam na mesinha ao lado da poltrona. Ele serviu-se da bebida, as mãos tremendo de tal forma que a garrafa batia na borda da taça, produzindo um som agudo.

Sorveu rapidamente um bom gole, aquecendo-se ao sentir o líquido ardente descer pela garganta e explodir no estômago. Passou a mão pelos cabelos negros e densos e bebeu outro gole.

— Por que você não me contou? — murmurou ele. — Eu teria ajudado.

Ele ainda sentia frio, apesar da ajuda do brandy. Levantou-se e caminhou até a cama, um andar levemente instável. Quanto teria bebido ontem à noite? Não conseguia lembrar-se. Obviamente, fora o suficiente para fazê-lo dormir sentado e não percorrer os poucos passos que o separavam da cama. Não era para se espantar, pensou, que tivesse tido pesadelos.

Arrastou-se para a cama, as cobertas caprichosamente arrumadas por seu criado antes de ir embora na noite anterior, e enroscou-se sob elas. Gradativamente, sob o efeito do brandy e do calor das cobertas, a tremedeira diminuiu, até quase parar. Era junho, nem tão frio assim, até para uma pessoa vestida, mas Devin sabia que esse frio enregelante tinha mais relação com seu pesadelo mais persistente e frustrante do que com a temperatura.

Havia anos. Ele imaginara que o sonho já teria cessado a essa altura. Mas tinha como certa a recorrência eventual em alguns meses, pelo menos duas ou três vezes por ano. Devin fez uma careta. Não parecia ser capaz de manter um centavo nos bolsos, mas conseguia prender-se a um mesmo pesadelo por anos.

O tremor cessou de uma vez por todas, e seus olhos acabaram se fechando. Pelo menos, após todos esses anos, conseguia dormir depois do sonho ruim. Quando começou a tê-lo, ficava acordado o resto da noite. O tempo pode não curar todas as feridas, mas, aparentemente, com uma pequena ajuda de brandy, pode torná-las mais facilmente esquecíveis. Com um leve suspiro, caiu no sono.

Várias horas depois, o sol já no céu há algum tempo, o criado mexeu delicadamente em seu braço e sussurrou:

— Senhor. Senhor. Sinto acordá-lo, mas lady Ravenscar e lady Westhampton estão lá embaixo, perguntando pelo senhor.

Devin abriu um dos olhos e os revirou para focalizar o criado, com o olhar penetrante e ferino, permanecendo deitado num dos lados da cama.

— Vá embora — murmurou ele, sem rodeios.

— Sim, meu senhor, compreendo. É terrivelmente cedo. O problema é que sua senhoria está ameaçando subir aqui e acordá-lo. Acredito ser inapropriado deter sua mãe fisicamente.

Devin suspirou, fechando os olhos, e revirou-se, de barriga para cima.

— Ela está lamuriosa ou beligerante?

— Não há sinais de lágrimas, senhor — respondeu-lhe o criado, franzindo o cenho ao ponderar. — Diria mais... está determinada. E trouxe lady Westhampton com ela.

— Humm. Tudo fica mais difícil quando minha irmã junta forças com ela.

— Certo, senhor. Devo preparar suas roupas?

Devin resmungou. Sentia-se um trapo. A cabeça estava latejando, o corpo doía e a boca tinha um odor tão desagradável quanto o de uma lata de lixo.

— Onde estive ontem à noite, Carson?

— Certamente eu não saberia dizer, senhor — retrucou o criado com neutralidade. — Creio que o Sr. Mickleston o acompanhava.

— Stuart? — Devin trouxe à mente a fraca lembrança da visita de seu amigo de longa data. Parecia que Stuart fora atipicamente generoso. Isso explicava a ressaca. Eles devem ter visitado metade dos inferninhos de Londres na noite anterior, comemorando sua prosperidade e riqueza, e, sem dúvida, gastando pelo menos metade desta.

Ele sentou-se vagarosamente, lançando as pernas para fora da cama, e aguardou a ânsia de vômito cessar.

— Está bem, Carson. Prepare minhas roupas e providencie água para me barbear. Por acaso minha mãe mencionou o que desejava?

— Não, senhor. Falei eu mesmo com ela, que se mostrou bastante reticente sobre o propósito de sua visita. Disse apenas que era imprescindível que o visse.

— Sem dúvida. — Olhou para o criado. — Creio que uma xícara de chá forte me faria bem.

— Certo, senhor. Irei prepará-lo.

Trinta minutos depois, barbeado, impecavelmente vestido com o terno preto liso e a camisa branquíssima que favoreciam sua aparência, o nó da gravata cuidadosamente abaixo do queixo, Devin Aincourt abriu caminho escada abaixo, representando, em cada centímetro do seu ser, sua condição de sexto conde de Ravenscar.

Adentrou a sala de estar, decorada, com bom gosto em tons masculinos de bege e marrom, pela irmã que ali estava, agora, sentada. Uma mulher atraente, com quase 30 anos, de cabelos pretos, olhos verdes, feições bem-feitas características da beleza da família Aincourt, e ainda possuía uma covinha na face. Ela olhou para o irmão e sorriu.

— Dev!

— Rachel. — Ele retribuiu o sorriso, apesar do leve latejar na cabeça. Ela era uma das poucas pessoas que lhe eram caras. O sorriso murchou quando se virou para a mãe, uma mulher loira e esguia cujo excelente gosto para roupas e carruagens reais elevavam sua aparência para além de uma beleza ordinária. Devin inclinou-se formalmente para cumprimentá-la. — Mamãe. Um prazer inesperado.

— Ravenscar. — A mãe cumprimentou-o com um gesto de cabeça. Ela sempre preferiu a formalidade mesmo no relacionamento com a própria família, acreditando que um comportamento contrário iria diminuir-lhe a importância. E, mesmo levando-se em conta o que acontecera à família Aincourt no decorrer dos anos, eles eram importantes.

— Sinto-me aliviada por vê-lo vivo. —Lady Ravenscar prosseguiu, secamente. — Dada a reação de seus criados à idéia de receber-nos, comecei a imaginar onde estaria.

— Estava dormindo. Meus criados ficam compreensivelmente relutantes em tirar-me da cama.

A mãe levantou as sobrancelhas.

— É quase uma hora da tarde.

— Exato.

A velha senhora suspirou resignadamente.

— Você é um selvagem. Mas esta não é a questão agora.

— Presumo que não. Que assunto exatamente a traz a este covil de iniqüidade? Deve ser algo de extrema urgência.

Lady Ravenscar fez um pequeno muxoxo de desagrado.

— Suponho que esta seja sua idéia de gracejo.

— Muito fraca, tenho de admitir — disse Ravenscar, com um tom de voz entediado.

— O que me traz aqui é o seu casamento. As sobrancelhas dele se arquearam.

— Meu casamento? Sinto dizer, mas não estou ciente de qualquer casamento.

— Pois deveria — retrucou a mãe, secamente. — Você está precisando desesperadamente de um. Já deveria estar selecionando uma garota adequada no decorrer dos últimos anos. Mas como não tomou qualquer atitude a esse respeito, eu mesma encontrei uma para você.

Devin lançou um olhar para a irmã e murmurou:

— Et tu, Rachel?

— Dev... — começou Rachel, com um tom de voz desanimado, parecendo sem jeito.

— Não faça graça — interrompeu lady Ravenscar, abruptamente. — Falo sério, Devin. Você deve se casar, e logo, ou acabará preso por inadimplência.

— Ainda não estou rastejando — disse ele, calmamente.

— Você não está longe disso, se é que entendi corretamente essa expressão vulgar. Sua propriedade está em péssimo estado e Darkwater está literalmente caindo sobre nossas cabeças. Algo de que você teria conhecimento se fizesse o mínimo esforço para visitar suas terras.

— Ela fica muito distante e não gosto de visitar lugares que estão prestes a cair sobre minha cabeça.

— Ah, sim, é fácil para você fazer piada a respeito — retrucou lady Ravenscar, ressentida. — Não é você quem tem de viver lá.

— Você não tem de viver lá — argumentou ele. — Na verdade, creio que está residindo em Londres no momento, não é mesmo?

— Alugando uma casa para a estação — disse a mãe, com o tom de quem está sofrendo a mais grave humilhação. —Já tivemos uma casa na cidade, um lugar agradável onde podíamos dar as festas mais elegantes. Agora consigo alugar uma casa por apenas dois meses, e de tal tamanho que mal posso receber oito pessoas para jantar. Já não dou uma festa digna há anos.

— Você poderia morar comigo — disse-lhe Rachel.

— Já vivo o suficiente da caridade de seu marido. Devo a ele e a Richard as roupas que visto. Isso já é o bastante sem que Westhampton ainda tenha de me alojar também. A responsabilidade é de Devin. Ele é o conde de Ravenscar.

— Então devo me casar para dar a você uma casa na cidade?

— Não seja insensível, Devin. Não combina com você. Você tem um dever, comigo e com o seu nome. Com você mesmo. O que acontecerá a Darkwater? E ao nome Aincourt? É seu dever casar-se e dar-nos herdeiros. De que outra forma poderíamos dar seguimento ao nome e ao título? E a casa? Ela existe desde que a rainha Elizabeth era criança. Você vai deixar que desmorone em completa ruína?

— Tenho certeza de que o título continuará existindo.

— Ah, sim, se você não se importar que aquele Edward March, com cara de rato, o suceda em seu título. Um primo em terceiro grau. E ele não tem a menor idéia de como conduzir a si mesmo, garanto-lhe.

— Eu achava que você pensava que eu não tinha a menor idéia de como conduzir a mim mesmo.

A mãe lançou-lhe um olhar direto e demorado.

— Você não tem. Mas pelo menos é o seguinte na linha de sucessão. E não se parece com uma doninha. — Ela suspirou.

— Dói pensar em um Ravenscar roedor. Não importa o que digam por aí, pelo menos os condes de Ravenscar sempre foram criaturas belas.

— Então devo ser o cordeiro sacrifical no altar da família, é isso?

— Não há necessidade de ser dramático. Não é como se isso não acontecesse todos os dias. Pares amorosos são para as classes menos abastadas. Pessoas como nós fazem alianças. Foi o que seu pai e eu fizemos. E veja suas irmãs. Elas se casaram como deveriam. Não reclamaram. Simplesmente fizeram algo necessário para a família. Como chefe da família, não vejo como você poderia agir diferente.

— Ah, mas fazer diferente é algo em que sou notadamente bom.

— Você não vai desviar minha atenção com suas piadas — disse a mãe, apontando o indicador na direção dele.

—Já percebi — respondeu Devin, enfastiado.

— Você gastou toda sua herança desde que colocou as mãos nela — continuou lady Ravenscar, incansavelmente.

— Como ousa pensar que não deveria ser o responsável por recuperá-la?

— Mamãe, isso não é justo! — gritou a irmã. — Você sabe que todos os condes de que se tem notícia esbanjaram dinheiro. A culpa não deve ficar apenas nos ombros de Dev. Se você bem se lembra, foi papai quem, na verdade, vendeu a casa na cidade.

— Lembro-me bem, obrigada, Rachel. Você tem razão. Os Aincourt nunca foram bons com dinheiro. E por esse motivo sempre se casaram bem. — Tendo dado seu recado, ela pousou as mãos no colo e esperou, observando Devin.

Ele massageou a têmpora, onde o latejar havia aumentado tanto em velocidade como em intensidade.

— E quem é essa com quem deseja que me case? Não é aquela garota de dentes separados da Winthorpe, espero.

— Vivian Winthorpe! Devo dizer que não. Por ora, o acordo que o pai dela oferece faria pouco mais que pagar suas dívidas. Além disso, os Winthorpe jamais aceitariam associar o nome deles ao seu. Eles não toleram escândalo. Dificilmente pode-se esperar que um pai concorde em dar sua filha a um homem que... bem, que tem tido o tipo de amizades que você teve por anos. — Os lábios de lady Ravenscar apertaram-se expressivamente.

— Quem, então? Uma viúva, suponho.

— Estou certa de que você conseguiria envolver uma delas se se empenhasse nisso — concordou a mulher, com indiferença. — Mas seria preciso cortejá-la e, francamente, duvido que você conseguisse levar essa tarefa a cabo.

— Sua confiança em mim é impressionante. A mãe continuou, ignorando o sarcasmo:

— A garota em que estou pensando é perfeita. Sua fortuna é imensa, e o pai dela está entusiasmado com a união. Ele sonha com que a filha seja condessa. Você deveria ter visto o modo como seus olhos brilharam quando comecei a falar de Darkwater. Aparentemente, não há nada que ele queira mais na vida do que a oportunidade de restaurar a antiga mansão.

— Você está falando de uma burguesinha? — perguntou ele, surpreso.

— Não. Uma americana.

— O quê? — Ele a encarou, confuso. — Você quer que eu me case com uma herdeira americana?

— É a situação perfeita. O homem fez uma quantidade absurda de dinheiro com peles ou algo do gênero e está querendo gastá-lo na propriedade. Ele está enlouquecido atrás de um título. E, pelo fato de não morarem aqui, não sabem nada sobre sua reputação.

— Você me surpreende. Quer que eu me amarre à filha de um peleteiro qualquer, alguém que não sabe sequer falar inglês corretamente que, com certeza, não tem a menor idéia de qual talher usar à mesa e que, provavelmente, deve ter a aparência de quem veio do interior.

— Não tenho idéia de sua aparência ou de como age — respondeu lady Ravenscar —, mas tenho certeza de que Rachel e eu podemos dar um jeito nela. Se se mostrar um constrangimento completo... bem, estou certa de que ficará feliz vivendo em Derbyshire com o pai enquanto coloca Darkwater em ordem. Honestamente, Devin, você não percebe que qualquer pessoa conceituada neste país sabe que você está mergulhado em pecado? Dói em mim, como mãe, ter de dizer isso, mas nenhuma inglesa de respeito estaria disposta a se casar com você.

Devin não respondeu. Sabia tanto quanto sua mãe que as palavras dela eram a mais pura verdade. Desde o início da vida adulta, ele levara uma vida que escandalizava a maioria das pessoas de sua classe social. Havia várias anfitriãs que não o recebiam, e as demais só o faziam porque ele era, no fim das contas, um conde. Felizmente, não desejava conviver com o restante da nobreza, e a desaprovação desta não o afetava em nada. Há alguns anos, aceitara o fato de que sua mãe compartilhava a mesma opinião da sociedade a respeito dele — e seu pai, mais do que ninguém, o havia considerado uma alma perdida.

— Não sei por que você deveria se preocupar com as inabilidades sociais da americana — continuou a mãe. — Sou eu a única que poderia ter a reputação arruinada por uma nora rude.

— Deixe-me lembrá-la de que sou eu quem estará legalmente ligado a ela. Já posso até visualizá-la: simplória demais para arranjar um marido por lá, mesmo com todo seu dinheiro, usando roupas que já saíram de moda há dez anos e sem um único assunto interessante na mente.

— Francamente, Devin, tenho certeza de que você está exagerando.

— Estou? Por que, então, eles vieram para a Inglaterra à procura de um marido? Para encontrar alguém com uma propriedade em ruínas e uma fortuna desfeita, suficientemente desesperado para casar com qualquer uma, desde que endinheirada! Realmente, mãe, está fora de cogitação. Não farei isso. Encontrarei um modo de ajeitar-me. Sempre encontro.

— Apostando? — retorquiu a mãe. — Penhorando seu relógio e as abotoaduras de diamantes do seu avô? Ah, sim, sei como você tem se virado nos últimos meses. Você vendeu tudo o que podia ser vendido e que tivesse algum valor. Demitimos metade dos criados de Darkwater. Você tem levado uma vida decadente, libertina e extravagante, Devin, e essa é a conseqüência.

Devin virou-se na direção da irmã, que havia ficado em silêncio durante a maior parte da conversa.

— É isso o que você quer para mim, Rachel? Que eu me case com alguma caipira que nunca vi na vida? Ter o mesmo tipo de casamento feliz que você tem?

A irmã retesou-se, lágrimas brotando dos olhos.

— Isso é cruel e injusto! Tudo o que quero é sua felicidade. Mas como você vai ser feliz quando tiver de desistir desta casa e viver em um apartamento de um só cômodo? Você sabe quanto dinheiro costuma gastar, Devin. Ouso apostar que é mais do que o que Strong manda para você da propriedade, e que isso só vai diminuir cada vez mais. É preciso reinvestir parte desse dinheiro em suas terras se quiser manter a lucratividade delas, e nem você nem papai jamais fizeram isso. Sei que quando papai cortou relações com você, você se virou com suas habilidades nos jogos e com o dinheiro que Michael e Richard lhe deram. Mas não vai querer fazer isso para o resto da vida.

Ele desviou os olhos para longe dela, assentindo com seu silêncio.

— Sinto muito, Rachel — disse ele, por fim. — Eu não deveria ter dito isso. — Lançou um olhar para a irmã e um leve sorriso abrandou seu rosto. — Estou com uma dor de cabeça terrível, e isso me incita ao sarcasmo. Sei que você sacrificou sua felicidade em nome da família.

— Que bobagem — interveio lady Ravenscar, exasperadamente. — Rachel é uma das mulheres mais invejadas de Londres. Ela possui uma casa extraordinária, um guarda-roupa adorável e uma mesada bastante generosa. Um grande número de mulheres ficaria muito feliz de ter feito este tipo de "sacrifício".

Devin e Rachel entreolharam-se, e um brilho irônico reluziu nos olhos deles. Felicidade, para lady Ravenscar, consistia, mesmo, em tais detalhes.

— Quanto a você, Devin, não estou pedindo que peça a moça em casamento. Estou apenas pedindo que considere a proposta. Darei um jantar hoje à noite em minha casa e convidei-a. O mínimo que pode fazer é ir ao jantar e conhecê-la.

Devin deixou escapar um grunhido baixo. Um jantar na casa de sua mãe estava em sua lista de coisas menos interessantes a fazer quase na mesma posição de ser apresentado à herdeira americana.

— Também estarei lá — Rachel interveio, animadamente. — Diga que irá, Dev.

— Oh, está bem — disse ele, aborrecido. — Irei hoje à noite e conhecerei a garota.

A "garota" — para surpresa total de lorde Ravenscar, se soubesse — estava naquele mesmo instante ocupada em uma guerra verbal com sua família a respeito do mesmo assunto.

— Papai — disse Miranda Upshaw, com firmeza. — Não me casarei com um homem que nunca vi, não importa o quão ávido o senhor esteja para colocar as mãos em uma propriedade britânica. Isso é absolutamente medieval.

Ela cruzou os braços e olhou para o pai, de modo implacável. Miranda era uma mulher bonita, com olhos grandes e expressivos, em um tom de cinza, e com longos cabelos castanhos. A estatura era pequena e compacta, bem torneada pelo vestido azul de cambraia com cintura alta, mas a personalidade era tal que as pessoas quase sempre ficavam com a impressão de que Miranda era uma mulher alta.

Joseph Upshaw virou-se para contemplar a filha, os braços e o rosto posicionados como um reflexo dela no espelho. Ele era um homem de dorso robusto, não tão mais alto que a filha, cujo suave porte fora obviamente herdado da mãe. Estava acostumado às coisas do seu modo, da mesma forma que a filha, e por isso ficavam em pé de guerra com freqüência.

— Não estou pedindo que se case com ele amanhã — disse ele, ponderando. — Tudo o que tem a fazer é ir à casa da mãe dele hoje à noite para ser apresentada a ele. Depois, poderá levar o tempo que quiser para conhecê-lo melhor.

— Duvido que vá querer conhecê-lo melhor. Ele provavelmente tem pernas finas, é vesgo e... e tem pouco cabelo. Por que outro motivo sua família estaria tão ávida em casá-lo? Mesmo sem dinheiro, um conde é considerado um bom partido. Com certeza, deve haver ingleses ricos que estariam dispostos a vender as filhas por um título.

— Você está afirmando que eu a estou vendendo? — retrucou o pai, indignado. — Uma coisa muito boa de se dizer de um homem que está tentando dar a você um dos melhores e mais tradicionais nomes neste país. Se há alguma venda nessa história, sou eu que o estou comprando para você.

— Mas eu não o quero. — Miranda sabia tanto quanto o pai que o que ele mais queria era comprar um genro para ele, em vez de um marido para ela. Desde que podia se lembrar, Joseph era um anglofílico, lendo tudo o que podia sobre a aristocracia inglesa, seus títulos, suas histórias, suas propriedades. E era fascinado por castelos e mansões ingleses, e queria desesperadamente colocar as mãos em uma dessas.

— Como você pode recusá-lo sem nem tê-lo visto? — perguntou-lhe agora. — Ele é um conde. Você seria uma condessa! Pense em como Elizabeth se sentiria. Assim que ela estiver se sentindo melhor, contarei tudo para ela. Ela ficará encantada.

— Tenho certeza de que ficará — respondeu Miranda, secamente.

Sua madrasta, Elizabeth, uma inglesa, era bem mais apaixonada pela idéia de Miranda se casar com a nobreza inglesa do que Joseph. Ela mesma viera de uma "boa família", coisa que dizia com prazer a qualquer um disposto a ouvi-la; e o marido incauto e impetuoso que a trouxera para Nova York, que acabara cometendo o descuido de pegar um resfriado e morrer, deixando-a sozinha no Novo Mundo com uma filha pequena, viera de uma família ainda mais importante na escala social. Seu sonho era que a filha Verônica, agora com 14 anos, vivesse no mundo da aristocracia britânica para debutar lá, ficar íntima dos membros da sociedade e casar-se com um homem nobre. O método mais fácil de atingir esse sonho, decidira Elizabeth, seria Miranda se casar com alguém dessa aristocracia e, então, depois de alguns anos, apresentar Verônica à sociedade.

— Você sabe como gosto de Elizabeth — continuou Miranda. — Ela é a única mãe que conheci e tem sido sempre muito boa para mim. — Com uma natureza gentil, fácil de lidar e um tanto preguiçosa, Elizabeth nunca tratou mal sua enteada nem tentou tirar-lhe o controle da casa. Na verdade, Elizabeth preferia deixar que outra pessoa cuidasse de todos os detalhes incômodos relacionados à administração de uma casa grande, com inúmeros criados, porque isso permitia que ela se concentrasse em suas "doenças". — E eu também amo Verônica.

— Sei que você ama. — O pai deu um grande sorriso para ela. — Você sempre foi como uma mãe para aquela criança.

— Mas isso não significa — continuou Miranda, com firmeza — que vou me casar com alguém só porque Elizabeth quer que Verônica debute na sociedade londrina.

— Essa não é a única razão — protestou Joseph. — Há uma grande propriedade em Derbyshire. E uma casa. Não um castelo, garanto-lhe, mas quase tão grande quanto um. Darkwater. Eis aí um nome para você. Ele não evoca história? Romance? O conde de Ravenscar. Meu Deus, garota, seu coração está morto?

— Não, papai, ele não está. E eu serei a primeira a admitir que este é um nome muito romântico, ainda que, devo comentar, um pouquinho assustador.

— Tanto melhor. Deve haver fantasmas lá. — Seu pai pareceu animado com a idéia.

— Que ótimo.

— É mesmo, você não acha? —Joseph Upshaw estava imune a ironias naquele momento. Os olhos brilharam e o rosto se iluminou quando começou a falar da casa na qual passara a noite anterior conversando com lady Ravenscar. — A casa fora construída por um dos amigos e partidários mais chegados de Henrique VIII. Ele construiu a casa principal durante o reinado de Henrique. Depois, quando seu filho herdou-a e tornou-a ainda mais próspera, durante o império de Elizabeth, adicionou-lhe duas alas, compondo a clássica mansão elisabetana em formato de E. É grande, mas está completamente em ruína. Madeiras podres... tapeçarias rasgadas... pedras desabando. — Ele descrevia os problemas da casa com entusiasmo, e completou: — E nós podemos restaurá-la! Você imagina que oportunidade? A casa, os jardins, a propriedade. Nós poderíamos reconstruir tudo.

— Isso parece maravilhoso — concordou Miranda, sendo sincera.

Imóveis eram um de seus principais interesses. Durante os anos em que o pai lidou com John Jacob Astor — um senhor muito sagaz —, ela teve muitas conversas com ele e seguiu sabiamente seus conselhos, investindo muito dos lucros do pai em imóveis em Manhattan. Os riscos já tinham sido cobertos primorosamente, e Miranda estava certa de que iriam gerar mais lucro ainda no futuro. A especulação de comprar terras e vendê-las, no futuro, com um lucro alto, era divertida, mas o que ela gostava mais era de desenvolver projetos — comprar terra, construir algo nela e alugar para alguém, ou investir nos planos de expansão ou de criação de outra pessoa.

Assim, a idéia de restaurar uma mansão antiga para devolver-lhe a glória a seduzia, além de ter vivido com o pai tempo suficiente para desenvolver grande interesse pela história e arquitetura britânicas. Mas isso não queria dizer que o prazer de reformar uma propriedade inglesa chegasse ao ponto de ter de se casar para adquiri-la.

Com o olhar de quem dá a cartada final, seu pai continuou, orgulhoso:

— E há até uma maldição. Miranda arqueou as sobrancelhas.

— Uma maldição? Isso seria esplêndido, tenho certeza

— Oh, sim, é, de fato. É uma maldição maravilhosa. Havia uma abadia poderosa em Derbyshire, entende? Abadia de Branton. Durante a dissolução dos monastérios, quando Henrique VIII confiscou todas as terras e todos os bens da Igreja Católica, ele confiscou essa abadia e deu-a a seu bom amigo Edward Aincourt. Bem, o abade em Branton era um velho cabeça dura, e não saiu de lá assim, facilmente. Quando o colocaram à força para fora da igreja, ele amaldiçoou o rei e Aincourt. A maldição incluiu até mesmo as pedras da abadia, dizendo que nada jamais iria prosperar naquele lugar e "quem quer que vivesse sob aquelas pedras jamais conheceria a felicidade".

Ele olhou para a filha, triunfantemente.

— Bem. Essa é uma maldição impressionante — Miranda admitiu. Conhecia muito bem o amor de seu pai pelo drama e pelo romance para se surpreender com a idéia de que ele acharia uma casa arruinada e amaldiçoada o lugar perfeito para sua amada filha morar. Para Joseph Upshaw, um lugar como esse significava um tesouro.

— Não é mesmo? Dizem que Capability Brown fez os jardins originais. Miranda... como você pode deixar passar uma oportunidade como essa? Não são só a casa e os jardins que precisam de restauração, sabe? Aparentemente, toda a propriedade está arruinada financeiramente. Você poderia recuperar isso também. Poderia ser um de seus projetos.

Miranda riu.

— Isso tudo parece maravilhoso, tenho certeza, mas ainda há o fato de que, para colocar minhas mãos na casa, na propriedade e em todo o resto, eu teria de me casar com um completo estranho.

— Ele não teria mais de ser um estranho quando vocês viessem a se casar — observou Joseph. — Vocês poderiam ter um noivado longo, se desejassem. Nós poderíamos começar a trabalhar na casa nesse meio-tempo.

Miranda sorriu para o pai e balançou a cabeça.

— Não me casarei, papai, só porque você se sente entediado. Isso realmente é querer se engajar num projeto...

— Mas este seria o projeto de uma vida! E não é só porque estou entediado desde que vendi tudo para o Sr. Astor. Você sabe que tenho vontade de colocar minhas mãos em uma casa antiga e grande como aquela há anos. — Ele fez uma pausa, pensando nela, e então continuou com um tom lisonjeiro. — De qualquer maneira, Miranda, meu amor, não estou pedindo que se case com o rapaz hoje à noite. Tudo o que desejo é que o conheça. Que veja como ele é. Que considere as possibilidades.

— Sim, mas a seguir você vai me perguntar sobre como me sinto e dizer "Você não poderia dar ao homem uma outra chance?". Vai querer que eu vá conhecer essa Darkwater e...

O pai adotou uma expressão indignada.

— Miranda! Você diz coisas terríveis sobre mim. Como se eu fosse insistir com você...

Miranda arqueou uma das sobrancelhas para ele, e Joseph teve a simpatia de sorrir.

— Bom, está bem. Às vezes eu insisto com você. Admito. Mas não desta vez, prometo. Apenas conheça o homem. Você só terá de ir a um jantar elegante, conversar educadamente e dar uma olhada nele. Você não faria isso por Elizabeth e por mim?

Miranda suspirou.

— Oh, está bem. Acho que posso conhecê-lo. Mas não estou prometendo nada. Você entende?

— Claro, claro! — concordou Joseph, alegremente, indo na direção da filha e envolvendo-a com um abraço apertado.

— Ora, ora — disse uma voz suave, vindo da porta. — Qual é o motivo dessa alegria?

Os dois se viraram ao som da voz da Sra. Upshaw. Miranda sorriu para a madrasta, enquanto Joseph abriu um largo sorriso. Elizabeth Upshaw era uma mulher loira e baixa que agitava o ambiente ao andar — mãos, cabelos, laços, fitas, as pontas do xale. Quando Joseph a conheceu, ela era uma bela jovem, mas, com o passar dos anos, o tempo e o sedentarismo fizeram-na pagar o preço, alterando as linhas de seu rosto e de sua silhueta com gordura. Sempre com um chapéu matronal na cabeça e envolta em xales, parecia bem mais velha do que realmente era. Ainda que apenas dez anos as separassem, muitos achavam, após conhecê-las, que Elizabeth era mãe de Miranda.

— Elizabeth! — exclamou Joseph, pegando a esposa pelo braço e acompanhando-a até o sofá, como se estivesse muito fraca para andar. Há muito que Elizabeth sofria de uma série de doenças reais e imaginárias. Seu marido seguia fielmente a imagem que fazia de si mesma como uma mulher frágil. Miranda não conseguia compreender como Elizabeth gostava de passar a vida reclinada em sofás e camas, suportando as enfermidades com um sorriso brando. Mas se esse fora o modo que Elizabeth escolhera para viver, isso não a incomodava. Gostava muito da madrasta, cuja bondade no coração compensava a ladainha de queixas dóceis. — Algo espetacular aconteceu — continuou Joseph, ajeitando a esposa no sofá e certificando-se de que o xale de tricô e os vários travesseiros estavam bem arrumados em volta dela. — Não quis acordá-la esta manhã para contar-lhe, não do jeito como se sentia após cruzarmos o Canal.

— Entendo. Sempre fui tristemente afetada pelo mal de mer — concordou Elizabeth Upshaw com voz fenecente. — Tenho pavor de ter de voltar a Nova York por causa disso.

— Talvez você não precise voltar — disse Joseph, animadamente. — Ou pelo menos não por algum tempo.

— Por quê? O que quer dizer com isso?

— É bem possível que Miranda se case com um conde.

— Um conde! — exclamou Elizabeth, sentando-se tão ereta, movida por seu interesse, que seu xale escorregou dos ombros sem que ela percebesse.

— Papai! — disse Miranda, exasperada, colocando as mãos nos quadris. — Lá vem você de novo. Disse que iria conhecer o conde. Não tenho intenção alguma de me casar com ele.

— Mas um conde! — suspirou a madrasta, uma das mãos indo ao peito como se a notícia fosse demais para seu coração. Ela arregalou os olhos para Miranda. — Você poderia ser uma condessa. Oh, Miranda, isso é mais do que desejei na vida.

Miranda suspirou, desejando não ter deixado seu pai convencê-la a conhecer esse nobre. Joseph não precisaria insistir com ela depois dessa notícia; a madrasta cuidaria disso por ele.

Os olhos de Elizabeth brilharam, o rosto dela iluminou-se com uma animação fora do comum.

— Pense nas festas, no casamento. — Um pensamento lhe veio de súbito à mente, fazendo-a virar-se para o marido. — Eles têm casa na cidade?

— Não. A condessa contou-me ontem à noite que seu esposo teve de vendê-la. Creio que seu filho, o conde, mantém uma pequena casa de solteiro. Mas ela alugou uma para a estação. Esse pareceu ser um assunto delicado para ela.

Elizabeth balançou a cabeça, concordando com seriedade.

— Há de ser. Ter de desistir de uma casa, com certeza magnífica, e contentar-se com um aluguel a cada verão. E tendo consciência de que todos sabem... Pena não poder realizar a festa do casamento em uma mansão. — Ela se iluminou. — Mas você pode comprar uma, querido. Digo, nós precisaremos ter uma casa em Londres, se pretendermos ficar aqui por algum tempo e...

— Elizabeth, por favor — Miranda interrompeu, educadamente. — Não planejo me casar com o conde de Ravenscar. Eu apenas disse...

— O quê? — A madrasta encarou Miranda, o rosto ficando subitamente pálido e os olhos arregalados. — O que você disse? Quem?

— O conde de Ravenscar — completou Joseph. — Esse é o homem de quem estamos falando e com quem Miranda vai se casar, digo, conhecer. Devin Aincourt é seu nome.

— Oh, meu Deus — Elizabeth levantou-se, as mãos cruzadas. — Você não pode se casar com ele. Esse homem é o demônio!

 

Esse pronunciamento calou seus interlocutores. Miranda e o pai encararam Elizabeth. Diante de seus olhares, a madrasta ruborizou acanhada e recostou-se, de volta à posição anterior.

— Ah, bem, quer dizer, não acho que seria uma boa idéia Miranda se casar com ele. Ele é, digamos assim, ele tem uma... uma reputação ruim.

— Você o conhece, querida? — perguntou o marido.

— Oh, não. Eu não pertencia ao círculo dele, obviamente. Mas... ouvi falar dele. Todos ouviram falar dele. Possuía uma reputação infame. Isso foi antes de ser conde. Seu pai era o conde de Ravenscar na época.

— O que havia de errado com ele? — perguntou Miranda, curiosa. — O que ele fez?

— Ah, as coisas corriqueiras que jovens nobres fazem, imagino — respondeu Elizabeth, vagamente. — Nada que seja apropriado para seus ouvidos.

Miranda fez uma careta.

— Ora, Elizabeth, não seja convencional. Tenho 25 anos e não sou nem um pouco ingênua. Não vou ficar chocada.

— Sim, Elizabeth, o que ele fez? — Joseph atiçou.

— Bem, ele jogava e... associava-se com tipos inapropriados. Os dois continuaram na expectativa, e como Elizabeth não acrescentasse mais nada, Miranda perguntou, desapontada:

— Isso é tudo?

Elizabeth se mexeu, sem jeito.

— Dizem que ele era — sua voz ficou mais baixa — um dom-juan. Seduzia jovens mulheres, desencaminhava-as.

Ela ruborizou ao ser tão direta e começou a abanar o leque.

— Rá! — Joseph deixou escapar uma risada curta. — Gostaria de vê-lo tentar qualquer coisa com minha Miranda. Além disso, se eles se casarem, não há por que se preocupar com a possibilidade de ele arruinar a reputação dela.

— Suspeito que Elizabeth esteja mais preocupada com a deslealdade dele, papai — Miranda observou, sarcasticamente.

— Desleal? Com você? —Joseph uniu as sobrancelhas e repetiu: — Gostaria de vê-lo tentar! Confie em mim, minha querida, garantirei que saiba o que dele é esperado.

— Nada é esperado dele — afirmou Miranda, categoricamente. — Não me casarei com o conde.

— É claro, querida, que não; a menos que você queira — respondeu Joseph, complacentemente. E virou-se para Elizabeth: — Além do mais, Lizzie, isso aconteceu há muitos anos. Ele era um garoto à época. Muitos homens são fogosos na juventude, mas tomam jeito quando ficam mais velhos.

— Sim, eu sei — concordou Elizabeth, mas continuou com rugas de preocupação na testa.

— Além disso, nós garantiríamos que tudo estivesse perfeitamente acordado antes do casamento. Você sabe que não permitiríamos que um perdulário colocasse em perigo a fortuna de Miranda.

— Não era na fortuna dela que eu estava pensando — retrucou Elizabeth com um toque atípico de aspereza. — Era em sua felicidade.

— Eu sei. — Tocada pelo fato de a madrasta estar colocando sua felicidade acima do próprio desejo de vê-la casada com um membro da realeza, Miranda aproximou-se de Elizabeth e sentou-se a seu lado, pegando sua mão. — E agradeço. Sinceramente.

— Miranda pode se impor com qualquer homem — disse Joseph, confiante.

— Sim, eu posso — respondeu Miranda com um sorriso. — E isso inclui você... então não vá pensando que me dobrou. — E apertou a mão de Elizabeth. — Eu apenas concordei em conhecer esse conde, mas não tenho qualquer intenção de me casar com ele, garanto-lhe.

A madrasta manteve a expressão preocupada.

— Mas você ainda não o viu. Ele é, bem, o tipo que pode mudar a opinião de qualquer pessoa.

— Bonito, é? — perguntou Joseph. — Isso é bom, não é, Miranda?

— E charmoso. Pelo menos a meu ver — acrescentou Elizabeth.

— Isso foi há 14 anos — Miranda argumentou. — Quatorze anos de uma vida de excessos podem mudar bastante a aparência de alguém.

— É verdade. — Elizabeth se animou um pouco.

— De qualquer maneira, não me deixarei seduzir por um rosto bonito, fique ciente disso. Lembra-se de como aquele conde italiano tinha uma aparência angelical? E eu não fiquei nem um pouco tentada a aceitar sua proposta.

Elizabeth não pareceu se tranqüilizar muito, mas sorriu levemente para Miranda.

— Eu sei. Ainda posso ver a surpresa no rosto dele quando você o rejeitou.

— E esse vai ficar com a mesma expressão — disse Miranda, confiante. — Você verá.

Devin não conseguiu afastar da mente a história da herdeira americana depois que a mãe e a irmã foram embora. Por fim, pegou o chapéu e saiu de casa. Caminhou, esperando que o ar aliviasse a cabeça ainda dolorida e atordoada mas, ao chegar no apartamento de Stuart, alguns minutos mais tarde, sentia-se pouquíssimo melhor. O criado de Stuart atendeu a porta e mostrou-se um pouco surpreso quando Devin sugeriu que acordasse o patrão.

Com um suspiro de impaciência, Devin passou por ele e subiu as escadas, dois degraus de cada vez, na direção do quarto de Stuart. O criado correu para alcançá-lo, protestando, angustiado. O barulho despertou Stuart e, quando Devin abriu a porta e adentrou o quarto, ele estava sentado à cama, a touca de dormir caída de lado, parecendo ao mesmo tempo contrariado e desnorteado.

— Olá, Stuart.

— Meu Deus, Ravenscar — respondeu o amigo, sem demonstrar qualquer apreço por sua visita. — Que diabos está fazendo aqui? Que horas são?

— São duas da tarde, senhor — informou o criado, retorcendo as mãos. — Perdão, senhor, não consegui impedi-lo de entrar.

— Oh, pare. — Stuart fez um gesto com a mão para que o criado nervoso saísse do quarto. — Não culpo você. Ninguém consegue deixar Ravenscar de fora quando ele decide entrar. Vá preparar um chá para mim. Não, faça café. Bem forte.

— Muito bem, senhor. — O homem retirou-se servilmente do quarto.

— Quando você o contratou? — perguntou Devin, andando até a cadeira e deixando-se cair nela. — Sujeito nervoso.

— É, eu sei. Creio que irei dispensá-lo. Irei, sim — continuou Stuart, reflexivamente —, se ele não parar de estragar minhas "gravatas". Sinto falta de Rickman. Maldito Holingbroke por roubá-lo de mim.

— Não se pode dizer que o roubou — Devin argumentou, ponderando. — Creio que ofereceu até pagamento ao homem.

Stuart fez uma careta, resmungando.

— Nenhuma lealdade. — Esfregou as mãos no rosto e suspirou. — Diabos, Dev, o que está fazendo aqui? Estou com a mais cruel dor de cabeça.

— Humm. Também não me sinto muito bem. Mas minha mãe e minha irmã foram me visitar há uma hora.

— Nada que justifique castigar-me com sua presença — argumentou o amigo, racionalmente.

— Lady Ravenscar quer que eu me case. Stuart arqueou as sobrancelhas.

— Alguém em particular?

— Uma herdeira americana. A filha de um comerciante de peles ou algo do gênero.

— Uma herdeira, hein? Algumas pessoas têm toda a sorte do mundo. Qual o nome dela?

— Não tenho idéia. Não pretendo me casar com ela.

— Meu Deus, por que não? Você está nas últimas. Toda Londres sabe disso.

— Ainda não estou derrotado — protestou Devin. Stuart bufou.

— Você tem dívidas de jogo com pelo menos três cavalheiros de seu círculo de amizades. Sabe que seu nome vai ficar sujo se não lhes pagar logo. Noite passada tivemos de sair pela porta dos fundos de sua casa, se é que você se lembra, porque o maldito cobrador estava rondando a frente. Você não precisa pagar a dívida que tem com um comerciante, obviamente... isso não arruinará seu nome. Mas é um grande aborrecimento esbarrar com esses homens o tempo todo. Devin suspirou.

— Sei. Está pior do que antes quando papai cortou relações comigo. Pelo menos naquela época todos sabiam que eu receberia uma herança quando ele morresse. Entre jogatinas e embromações de pessoas, eu até que fui bem.

— Não é a mesma coisa agora, porém. Não há qualquer atenuante esperando-o no futuro. Vivo essa experiência há vários anos... filho mais jovem, eles sabem que não herdarei, nunca me dão folga. É injusto, mas é assim que as coisas funcionam. Os alfaiates são os piores. Como se não os levasse a vários novos negócios o uso que faço dos seus ternos.

Devin sorriu, desanimado, diante da lógica do amigo.

— Isso é fato. É terrivelmente egoísta da parte deles querer receber pagamento.

— Foi isso que disse ao Goldman, mas ele continuou insistindo em ser pago. Depois de muita insistência, acabei tendo de dar alguns guinéus para silenciá-lo. — Ele se animou um pouco. — Talvez eu lhe pague, agora que ganhei aquela aposta. — E parou, franzindo o cenho. — Pensando bem, há aquela vasilha de alça dourada que vi ontem... melhor gastar o dinheiro nela. Qual o propósito de pagar por algo que você já possui?

— Boa pergunta. Estou certo de que Goldman entenderá.

— Oh, não. — Stuart, não muito dado a sarcasmos, especialmente ao acordar, balançou a cabeça. — Ele vai reclamar. Vou ter de começar a procurar outro alfaiate. Pena. O homem sabe como fazer os ombros dos meus casacos exatamente como gosto.

— Com ombreiras? Stuart revirou os olhos.

— Por que, mesmo, você disse que veio aqui?

— A herdeira americana.

— Ah, sim. Você disse que está pensando em não aceitar a proposta?

— A última coisa que quero é uma esposa.

— Sim. Malditos aborrecimentos, geralmente. Ainda assim... Difícil brigar com a idéia de botar moedas em seu bolso. Mas o que mais poderia fazer? Você já gastou toda a sua fortuna. Você mesmo o disse.

— Assim foi. Os condes de Ravenscar têm sido negligentes há anos. Até meu pai, grande defensor que era, gastou dinheiro como água.

— Aí está. Você tem de fazer algo para refazer a fortuna da família. É seu dever como um Aincourt e tudo mais. Essa é a vantagem de ser o filho mais jovem, Não tem de se preocupar muito com as obrigações da família. O que em geral significa fazer algo entediante; as obrigações são assim.

— Sim. — Dev ficou em silêncio por um momento e depois falou, mansamente. — E sua irmã?

— Leona? — Stuart olhou para ele, sem compreender. — O que isso tem a ver com ela?

Dev arqueou uma sobrancelha e olhou para ele, expressivamente:

— Ah, isso. Bem, não faz diferença se você é casado, faz? Leona se casou com Vesey. Ela tem vivido assim desde então, não é? Por que você não haveria de se casar também? A filha desse peleteiro não vai mudar nada. Faça um herdeiro com ela, despache-a para Darkwater e aproveite seu dinheiro. — Olhou para a porta quando esta se abriu e o criado entrou com uma bandeja. — Ah, aí está você. Coloque isso na mesa e pegue meu robe. Dev, seja um bom rapaz e olhe dentro daquele armário. Deve haver algum uísque irlandês ali. Ele torna o café palatável.

— Claro. — Devin foi em direção ao pequeno armário oriental e vasculhou-o até encontrar uma pequena garrafa de uísque. Ele não sabia por que se preocupava com esse tipo de coisa, pensou, ao puxar a garrafa para fora e adicionar generosa quantidade de álcool às xícaras de café que o criado lhes servira. Stuart, e quase todos os outros que conhecia, não hesitariam um instante em se casar com essa mulher. E se hesitassem, seria apenas por causa da idéia de misturarem seu sangue azul com um tipo comum. Uma vez casados, ele teria, obviamente, controle sobre o dinheiro dela. Nada o impediria de deixá-la em Darkwater, como Stuart sugerira, e retomar sua vida em Londres... com Leona. E, tecnicamente, não estaria sendo desleal com Leona. Ela era casada, no fim das contas. E não se podia esperar que ele deixasse a linhagem dos Aincourt desvanecer só porque era apaixonado por uma mulher casada.

Seria tolice de sua parte deixar que isso o detivesse. Não é como se levasse a vida de um homem honrado. Ele vivia, como seu pai fizera questão de reforçar várias vezes, entre a escória da sociedade, associando-se a jogadores, trapaceiros, beberrões e alcoviteiras. Parecia absurdo hesitar em aceitar uma esposa por causa da amante — ou pelo fato de que faria infeliz essa rústica herdeira.

— Você tem razão, sem dúvida — disse para Stuart, tomando um gole do café generosamente batizado. Seu estômago estremeceu um pouco quando a forte mistura o atingiu, mas depois acalmou-se. O restante desceu suavemente.

— Claro que tenho. Você vai pedi-la em casamento?

— Não tenho certeza. Prometi a minha mãe que iria conhecê-la. O jantar na casa de lady Ravenscar é hoje à noite.

— Medonho. — Stuart fez uma careta só de pensar no assunto. — Melhor que venha conosco. Boly e eu vamos visitar o estabelecimento de Madame Valencia.

— Estou certo de que um bordel seria mais divertido — concordou Devin. — Mas eu tenho de conhecer essa fedelha, suponho.

— Bem, se você não a pedir em casamento, dê-me o nome dela — disse Stuart, sorrindo. — Fico com ela... Estrábica, pernas arqueadas, pele ruim e tudo mais. Estou sempre quebrado mesmo.

— Lembrarei de você — disse Devin, seriamente, e eles passaram a práticas muito mais interessantes como beber e conversar sobre uma corrida de cabriolé à qual tinham ido na semana anterior.

Miranda aproximou-se do pai e sussurrou em seu ouvido:

— Creio que esse jantar para conhecer lorde Ravenscar seria mais bem-sucedido se lorde Ravenscar houvesse comparecido.

— Miranda, meu amor — disse Joseph, esperançoso —, ele ainda pode chegar. São só... — olhou sorrateiramente em seu relógio de bolso — dez e meia.

— O convite era para as nove — lembrou-lhe Miranda. O grupo aguardou lorde Ravenscar por quase 30 minutos antes de iniciarem a refeição. Mas o jantar bem organizado e sortido havia agora chegado ao fim, e os convidados se encaminharam para a sala de música, onde uma mulher loira, um tanto dentuça, estava tocando Mozart sofrivelmente. — A menos que o homem tenha sido atropelado por uma carroça ou algo dessa magnitude — continuou Miranda, num sussurro —, ele é, no mínimo, muito mal-educado. Estou apostando que não aparecerá.

A pianista parou, e todos aplaudiram, educados. Felizmente, ela não se ofereceu para tocar outra peça. Lady Westhampton virou-se em seu assento, de maneira que ficasse de frente para Miranda, e sorriu.

— Srta. Upshaw, sinto tanto — disse ela, sendo delicada. — Devo pedir desculpas por meu irmão. Não consigo imaginar o que o teria detido.

— Pelo que ouvi dele, imagino que tenha sido um jogo de cartas — respondeu Miranda, asperamente.

— Miranda! — Joseph virou-se para Rachel. — Peço perdão, lady Westhampton. Minha filha não costuma ser assim tão... tão...

— Sincera? — interveio Miranda. — Não, sou assim sempre, papai. Mas, sinto muito, lady Westhampton, se a ofendi. Gosto de você. Você é, de longe, a mais simpática integrante da sociedade inglesa que conheci até agora.

Rachel sorriu.

— Obrigada, Srta. Upshaw. E tenho de admitir que compreendo perfeitamente seus sentimentos por meu irmão nessa hora. É muito deselegante da parte de Devin estar tão atrasado. — Ela parecia aflita. — Você deve estar pensando que ele não virá, e pode ser que esteja certa. Pode-se ver que ele precisa de alguém para guiá-lo.

— Não tenho dúvidas de que ele precisa disso. Entretanto, não estou à procura de um marido, muito menos de um que tenha de ser tratado como criança. Vim aqui apenas porque meu pai estava ansioso para que eu conhecesse lorde Ravenscar, e sinto ter feito o suficiente para satisfazer minha obrigação para com ele. Papai? — virou-se para Joseph. — Estou pronta para irmos agora.

— Oh, mas é certo que não — protestou Joseph, imediatamente. — Ora, há, humm...

— Carteado, mais tarde, na sala de visitas — completou Rachel. — Creio que lady Ravenscar prometeu a seu pai um jogo de uíste.

— Sim, isso. Uíste. Estou deveras ansioso por isso.

—Muito bem, então — disse Miranda, sensatamente. — Vou para casa com a carruagem e mando-a de volta para buscá-lo mais tarde.

— Por favor. — Rachel estendeu o braço impulsivamente e pegou a mão de Miranda. — Posso persuadi-la a ficar mais alguns minutos? Meu irmão é mal-educado, concordo, mas no fundo é um bom homem, garanto-lhe. Ele está, assim como sem dúvida você também, relutante em entrar nesse tipo de relacionamento.

— Devo estimá-lo por isso — concordou Miranda. — Entretanto, se ele está relutante e eu estou relutante, há pouco propósito em nosso encontro. Ele, sem dúvida, percebeu isso, e foi o que o manteve afastado esta noite. Portanto, neste caso, seria tolice de minha parte demorar-me mais aqui.

Rachel suspirou. Miranda apertou sua mão e sorriu. Ela gostara da irmã de lorde Ravenscar desde o momento em que a vira. A jovem tinha um rosto adorável, os olhos verdes com um toque de tristeza, e havia uma calma ternura em seus modos que fazia com que se tornasse acessível, apesar de sua beleza e do penteado moderno e enfeitado.

— Lady Westhampton, gosto sinceramente de você — continuou Miranda. — E admiro seu irmão por estar relutante em se unir a uma mera mulher rica que surge do nada. Entretanto, assim como ele, não desejo esse casamento e me parece inútil permanecer aqui.

— Gostaria que Devin a conhecesse. Agora que eu mesma a conheci, eu... estou ainda mais a favor do casamento. Ele é um homem muito charmoso, de verdade. Você não teria como não gostar dele. E ele ficaria tão sur... bem, tão feliz em conhecê-la.

— Surpreso, você ia dizendo? — perguntou Miranda, o lábio curvando-se num sorriso. — Por quê? Ele pensou que eu fosse uma campesina sem instrução.

As faces da outra mulher ficaram rosadas.

— E... bem... possível. Veja bem, nós não sabíamos. — Ela suspirou e levantou as mãos num gesto de rendição. — Sinto muito. Estou piorando ainda mais as coisas. Mas, admito, não esperava que você... se vestisse tão elegantemente ou que falasse tão bem, quase como uma inglesa.

— Minha madrasta é inglesa — respondeu Miranda. — Ela sempre fez de tudo para que falássemos corretamente e nos comportássemos com educação.

—Ah, entendo. — Rachel ruborizou um pouco mais.—Agora sinto-me mais tola ainda. Eu... sua madrasta está aqui? Não me lembro de tê-la conhecido. — Rachel correu os olhos pela sala.

— Não. Ela não estava se sentindo muito bem esta noite. Vive constantemente adoentada.

— Sinto muito. — Rachel olhou para ela por um instante e depois falou: — Srta. Upshaw, posso ser inteiramente franca, como o foi comigo há um instante?

— Assim prefiro.

— Receio que pareçamos muito diferentes a seus olhos, da forma como nos casamos por alianças em vez de por amor. Isso é um pouco frio, admito. Mas tem sido assim há muito tempo entre nós... a aristocracia, digo. Temos uma obrigação com nossa família, com nosso nome, com a casa na qual nascemos e com todas as pessoas que nela trabalham, que vivem nela. Nem sempre conseguimos fazer o que queremos. Eu, também, casei-me segundo os desejos de meus pais.

Miranda ficou imaginando, curiosa, como aquele casamento teria transcorrido. Ela não conhecera nenhum lorde Westhampton naquela noite.

Como se visualizasse o pensamento de Miranda estampado em seu rosto, Rachel acrescentou:

— Você não conheceu meu marido. Lorde Westhampton mora em nossa propriedade no campo a maior parte do ano. — Ela hesitou e, então, continuou: — Certamente você pode ver que, às vezes, é necessário casar bem, e não casar seguindo nosso próprio desejo. É possível que você encontre o mesmo tipo de situação nos Estados Unidos. Os negócios de seu pai exigirão que alguém tome seu lugar quando ele morrer, não é mesmo? Se você não tiver um irmão, ou um tio, ou quem quer que possa tocar o negócio, não se sentirá na obrigação de casar-se com alguém que possa assumi-lo?

— Não tenho irmão ou tio. Mas quando meu pai morrer, eu assumirei seus negócios. Não precisarei de um marido para isso.

Rachel olhou para ela por um longo instante.

— Você irá administrá-los?

— Irei, é claro. Não há quem saiba mais sobre eles do que eu. Venho ajudando meu pai em seu trabalho desde os sete anos. Calculava as quantidades e os preços das peles enquanto papai comerciava com os caçadores. Conheço o negócio de peles de cima a baixo, e agora que ele o vendeu para o Sr. Astor, francamente, tudo é mais meu do que dele. Invisto a maior parte de seu dinheiro em imóveis e negócios afins.

— Mas eu... Você me deixa sem palavras, Srta. Upshaw. Estou perplexa.

— Isso será meu um dia, meu e de Verônica. Seria tolice não conhecer tudo o que posso a respeito. Além disso, é mais interessante do que fazer visitas o dia inteiro. Oh, desculpe-me. Não quis dizer que...

— Que o que faço é inútil e entediante? — Rachel terminou a frase por ela. — Não se preocupe. Não fiquei com raiva. É a mais pura verdade. O que faço é um tanto inútil e, na maior parte do tempo, entediante. — Ela sorriu, uma covinha surgindo na face. — Mas receio que não teria a menor idéia de como administrar a propriedade ou de como conseguir dinheiro para reformá-la. E, além do mais, isso não seria considerado apropriado por aqui.

— Duvido que seja considerado apropriado onde moro — respondeu Miranda, alegremente. — Mas se vivesse a minha vida pelo que as matronas da sociedade consideram apropriado, raramente conseguiria fazer qualquer coisa de que gostasse. Eu não sou uma pessoa conveniente, sinto dizer, de modo que você pode ver que é bom que seu irmão não se case comigo, porque, sem dúvida, eu estaria sempre fazendo coisas que deixariam todos chocados.

Rachel sorriu.

— Mas a vida seria muito mais divertida para nós.

— Talvez. — Miranda retribuiu o sorriso e levantou-se para ir embora.

Lady Ravenscar aproximou-se ao sinal da filha, sorrindo de modo um tanto empertigado, e disse:

— Oh, não, você não pode nos deixar assim tão cedo, Srta. Upshaw. Por quê? Você ainda não conheceu meu irmão. Rupert... — Ela virou-se e fez um gesto na direção de um senhor idoso que estava em pé a alguns passos dali. — Venha cá e conheça a Srta. Upshaw. Este é meu irmão, Rupert Dalrymple, Srta. Upshaw.

Rupert Dalrymple era um cavalheiro afável, muito mais jovial que a irmã, um tanto corpulento, com a cabeça quase totalmente calva — que ele se empenhou em compensar cultivando um bigode branco exuberante que se curvava para baixo, para muito além de seu lábio superior. Ele, também, tentou bravamente convencer Miranda a ficar, oferecendo jogos de cartas e mais música como entretenimento e assegurando-lhe que seu sobrinho Dev tinha o costume de perder a hora... — "Não sendo qualquer insulto pessoal a você, posso garantir-lhe" — e que apareceria logo, logo.

Miranda sorriu, mas manteve-se resoluta e, alguns minutos depois, estava fora da casa de lady Ravenscar, esperando sua carruagem encostar.

A casa de lady Ravenscar, mesmo com todas as reclamações dela sobre as inadequações, era uma agradável casa branca no estilo Rainha Anne, e, ainda que não muito grande, ficava em uma rua em forma de meia-lua, no outro lado da qual havia um pequeno jardim que a resguardava de uma avenida maior. Depois que a carruagem estacionou e Miranda acomodou-se, eles seguiram em frente, contornando a meia-lua e adentrando a grande avenida, vazia de tráfego àquela hora da noite.

Miranda abriu a cortina para ver a noite. A maioria das pessoas preferia a privacidade das cortinas, mas em uma noite tão agradável como aquela, quente e sem chuva, era uma pena ficar sentada naquele ambiente abafado, fechado. Ela teria preferido andar alguns quarteirões até em casa e aproveitar melhor a noite perfumada, mas os sapatos finos de festa que usava não eram adequados para caminhadas, e, além disso, sabia que sua madrasta teria um colapso nervoso à idéia de ela sair andando sozinha à noite, em meio aos perigos de Londres.

Quando o cocheiro virou à direita na rua seguinte e entrou no quarteirão, Miranda viu um homem descendo a rua a pé, na direção deles. Estava usando um elegante traje de noite, o chapéu arrumado em um ângulo garboso na cabeça. Miranda notou que, enquanto andava, seus passos seguiam tudo menos uma linha reta. Ainda que não cambaleasse ou se desequilibrasse, ele estava, concluiu Miranda, definitivamente embriagado. Havia algo no modo cuidadoso com que caminhava, os passos indo sinuosamente em uma direção e depois em outra.

Um cavalheiro indo para casa, saído de seu clube, pensou ela, e ficou tentando imaginar se estaria caminhando na esperança de que o ar da noite o fizesse ficar sóbrio antes de encarar a esposa. Ela notara a propensão da aristocracia à ingestão de bebidas alcoólicas, mas era um pouco cedo para que um cavalheiro estivesse assim tão bêbado. Esse deve ter começado muitíssimo cedo.

O cavalheiro atravessou uma faixa escura que indicava uma passagem entre duas casas, e, ao fazê-lo, três homens surgiram do pequeno beco e lançaram-se em cima dele. Devido ao ataque, a queda foi imediata, os outros lançaram-se sobre ele. Aquilo não era uma luta justa, mesmo que o homem atacado estivesse sóbrio, e o senso de justiça inato de Miranda foi despertado. Colocando a cabeça para fora da janela, gritou para que o cocheiro acelerasse em direção àquela confusão de homens.

— Mas, senhorita! — exclamou o cocheiro, assustado. — Eles estão lutando. Não quer que...

— Faça o que digo — respondeu Miranda, asperamente. — Se quiser manter seu emprego.

Como era cocheiro da família Upshaw havia apenas uma semana, e tendo uma vaga noção de como as coisas funcionavam entre eles, o criado não hesitou em obedecer Miranda. Ele gritou com o cavalo, balançando as rédeas, e a carruagem avançou com alvoroço. Miranda olhou em volta à procura de uma arma, e seu olhar foi atraído para um guarda-chuva reservado para uma possível chuva. Ela pegou-o, jogou de lado o fino xale e, quando a carruagem parou, abriu a porta e pulou, gritando para que o cocheiro a seguisse.

Miranda correu para o bolo de homens que estavam rolando pela calçada, se socando e se chutando. Sem hesitar, levantou o guarda-chuva, agarrando a ponta com as mãos e, com o cabo virado para baixo, desferiu um forte golpe nas costas do agressor mais próximo. Ele soltou um grito de surpresa e dor, e girou, caindo de joelhos. Esse provou ser um movimento estúpido, já que fez com que a frente de seu corpo ficasse exposta sem dar a ele a vantagem estratégica da altura. Miranda rapidamente tirou vantagem desse movimento: ergueu o guarda-chuva, virando-o de modo que segurasse o pesado cabo curvo, e empurrou-o duramente contra o tronco do atacante. Sua expressão inicial de afronta foi logo seguida por uma de espanto, ao ver que recebera o golpe de uma mulher bem-vestida e, depois, por uma de intensa dor quando a extremidade pontuda do guarda-chuva espetou sua barriga.

O agressor se levantou com um grito de dor e tentou pegar o guarda-chuva, mas Miranda recuou com destreza e golpeou o braço esticado do homem com a ponta. Naquele instante, o cocheiro, tendo parado para amarrar os cavalos, chegou à briga carregando o pequeno e grosso bastão que sempre levava escondido sob o assento. Teve oportunidade de usá-lo agora, batendo-o na parte de trás da cabeça do oponente de Miranda na hora em que ele conseguira pegar a outra extremidade do guarda-chuva dela. Os olhos do rufião se reviraram, e ele tombou no chão sem emitir qualquer som.

Nesse ínterim, o cavalheiro bêbado desferiu um soco no estômago do terceiro homem, que rolou para o lado com dificuldade para respirar e com a mão na barriga, enquanto o cavalheiro conseguia se desvencilhar e se erguer. Ele se abaixou e pegou o homem pela gola da camisa, socando-o mais uma vez no estômago e finalizando com uma direita no queixo. O homem dobrou e caiu. O cavalheiro voltou-se para o primeiro agressor, assim como o cocheiro. O rufião, vendo que os dois vinham em sua direção, pôs-se rapidamente de pé e fugiu correndo.

O cavalheiro sorriu com a fuga do outro homem. Espanou a poeira da roupa, virando-se para o cocheiro.

— Muito obrigado, senhor. — Sua voz era grave e harmoniosa, apenas uma leve tremulação revelando a embriaguez. Passou pelo cocheiro para olhar Miranda e parou, uma expressão de surpresa cômica surgindo em seu rosto. — Uma dama! — Recuperando-se rapidamente do susto, fez-lhe uma elegante reverência. — Meus sinceros agradecimentos, madame, por vir em meu socorro. Você salvou minha vida.

Miranda não vira direito o rosto dele até então, e agora olhava-o fixamente, atordoada pelo impacto de sensações que se espalhavam por seu ser. Ela ficou ao mesmo tempo sem ar, com todo o corpo arrepiado, e tão alterada que sentiu vontade de rir. O homem era inquestionavelmente lindo. Os cabelos volumosos e negros, desgrenhados por causa da briga, balançavam na testa; isso, aliado ao brilho dos olhos, dava a ele uma aparência sem dúvida admirável. Seu rosto era forte, o queixo firme e de formato quadrado, com mandíbula afiada. No entanto, as linhas quase selvagens de seu rosto eram suavizadas por lábios carnudos e sensuais, curvados agora em um sorriso, e por cílios negros e grossos que emolduravam os olhos. Era alto, esbelto e musculoso, os ombros por baixo da casaca impressionantemente largos. Uma marca vermelha luzia em sua face no local em que um dos homens o havia acertado. O sangue pingava do lábio cortado, mas mesmo essas marcas não conseguiam diminuir a atração que ele exercia.

Mas não era só o fato de ele ser bonito que fez Miranda sentir-se como que atingida por um raio. Ela já vira homens belos antes. Só que jamais sentira aquele tremor de excitação, aquele impulso primário de luxúria — ou aquela conexão estranha e profunda, como se, de alguma forma, já o conhecesse. Por mais loucura que pudesse parecer, o pensamento que lhe cruzou a mente foi que aquele era o homem com quem queria se casar.

Aquilo, obviamente, era absurdo, sabia. Fora apenas um estranho rasgo de pensamento. Mas ele era, sem dúvida, intrigante. Não se parecia em nada com os aristocratas que conhecera até então no restante da Europa ou na Inglaterra. Era tão habilidoso com o punho quanto os homens que conhecera entre os caçadores no interior, e havia uma ironia travessa cintilando em seus olhos. Estava vestido elegantemente, mas sem os exageros de um almofadinha. O conjunto admirável de roupas em seu corpo valorizava ainda mais a firmeza de seus músculos do que os enchimentos de ombros e pernas que vira em outros cavalheiros. Claramente surpreso ao descobrir que fora salvo por uma mulher, conseguira se controlar para não estragar seu agradecimento com algum comentário sobre o descabimento do ato por parte dela.

— O senhor pareceu-me bastante hábil com os punhos — respondeu ela, feliz ao perceber que sua voz saíra mais casual do que previra.

— E, no entanto, eles me pegaram de surpresa. Confesso que não estou em minha melhor forma. — Mais uma vez o sorriso encantador iluminou seu rosto, encorajando-a a retribuir o sorriso. — Tenho sorte de você ter sido corajosa o suficiente para parar.

— Eu não poderia, de forma alguma, seguir em frente quando eram três contra um — argumentou Miranda. — Uma covardia.

— De fato. Acho que era essa a idéia.

— O senhor os conhecia? — perguntou o cocheiro, indo até um dos homens inconscientes e olhando-o no rosto. — Uma aparência malandra tem este aqui.

— Não. Nunca os vi na vida. — O homem deu de ombros.

— Sem dúvida, eram ladrões comuns escondidos, à espera do primeiro que aparecesse.

— Essa não costuma ser uma área freqüentada por ladrões — observou o cocheiro, olhando para as casas luxuosas em ambos os lados da rua.

— Não — concordou o homem, sem muito interesse. — Eles devem estar ficando mais ousados. — E espanou a poeira da casaca mais uma vez, sem muito sucesso. — Receio que meu criado ficará um tanto contrariado ao ver o que fiz a seu trabalho tão cuidadoso.

— O senhor está sangrando — observou Miranda, procurando o lenço rendado no bolso e dando um passo à frente para limpar o sangue que pingava da boca do homem.

Era aterrorizante ficar tão próxima a ele. Podia sentir o calor de seu corpo, o cheiro de bebida em seu hálito. Miranda olhou-o no rosto. Não conseguia ver a cor dos olhos com tão pouca luz, mas eram ternos e imperiosos... e, naquele instante, um tanto dispersos. Ele balançou um pouco, o que fez Miranda agarrar seu braço para equilibrá-lo.

— Senhor? Está tudo bem? Beldon... — Miranda chamou o cocheiro e ele veio para segurar o outro braço do homem com a mão enorme.

— Sim. Sim, estou bem. Só um episódio de tontura, só isso.

— Talvez você devesse deixar que o levássemos para casa — Miranda sugeriu. — Minha carruagem está logo ali.

— Senhorita.... — o cocheiro falou, em sinal de advertência.

— É, é, eu sei — disse Miranda, impaciente. — Não seria a coisa certa a fazer, dar uma carona a um estranho. Mas não creio que ele vá me causar qualquer dano. Digo, de verdade...

— Você é uma mulher terna e corajosa — disse o cavalheiro —, mas não precisa se preocupar. Conseguirei continuar sem ajuda. Só vou andar um ou dois quarteirões até a casa de minha mãe. — Ele olhou na direção de onde Miranda viera e, então, franziu o cenho. — Bem, talvez não. Estou um pouco atrasado. Receio ter ficado mais tempo do que deveria com meus amigos. E nessas condições... Mas também não estou tão longe assim de minha casa. Ficarei bem.

— Insisto em dar-lhe uma carona. O senhor foi atingido com golpes na cabeça. Mesmo possuindo uma cabeça dura, asseguro-lhe que isso deve tê-lo afetado.

Ele sorriu debilmente ao gracejo dela.

— Talvez esteja certa. Devo admitir que está começando a latejar... embora não esteja totalmente convencido se é devido aos socos ou a muito brandy.

O cavalheiro seguiu com os dois até a carruagem, mas, concordando com o cocheiro que não seria bom para uma dama andar na carruagem com um estranho, optou por subir e postar-se ao lado dele. Percorreram os poucos quarteirões até chegarem ao endereço que lhes dera e, enquanto isso, de dentro da carruagem, Miranda teceu considerações a respeito daquela situação. O homem dissera que estava indo para a casa da mãe e apontara na direção da casa de lady Ravenscar. Seria possível que o cavalheiro que salvara fosse o homem que deveria ter conhecido hoje à noite? Haveria alguma possibilidade de este homem bonito, charmoso e hábil com os punhos ser o conde de Ravenscar? Fazia sentido. E seu estado de embriaguez certamente explicaria o atraso, assim como combinaria com o que ouvira a seu respeito. E Elizabeth disse que ele era charmoso e bonito — ainda que simples palavras não fossem suficientes para expressar a intensidade de sua aparência. Houve um estranho momento em que todo o seu ser se entusiasmara por ele, quando chegou a pensar que pertencia a ele... Esse era o tipo de homem que poderia fazer uma mulher esquecer todo o resto.

Pararam em frente à casa dele: uma residência pequena e graciosa no bairro elegante, exatamente o tipo de casa em que um solteiro de posses e de família tradicional moraria. O cavalheiro desceu do coche com a ajuda de Beldon, e Miranda abriu a porta da carruagem, inclinando-se para fora.

— Boa noite, senhor. — Estava relutante em deixá-lo ir, percebeu, outra sensação que lhe era estranha. Se apenas soubesse se este era mesmo o conde de Ravenscar... Mas não queria apresentar-se. Se aquele era Ravenscar, não queria que soubesse que ela era a herdeira por causa de quem ele passara a noite bebendo na tentativa de evitá-la.

— Madame. — Fez nova reverência, mas Miranda notou que estava menos firme agora. — Você é um anjo dos céus.

— Isso é um exagero sem precedentes, mas agradeço — respondeu Miranda, sarcasticamente.

Ele virou-se e subiu as escadas da casa fazendo um caminho trançado. Um momento depois, a porta se abriu e ele entrou.

— Vamos para casa, Beldon — disse Miranda, e a carruagem seguiu caminho.

Indo para casa, seus pensamentos giraram em torno do homem que acabara de salvar. Seria ele Ravenscar? E o que teria acontecido se não houvesse se atrasado para o jantar hoje à noite? De uma coisa tinha certeza: se aquele homem houvesse estado lá, ela não teria saído mais cedo.

 

— Boa noite, senhor. — Carson, o criado de Devin, abriu a porta. Ele constatou o desalinho de seu patrão, mais alarmado pela gravata amarfanhada e pelo rasgo na casaca do que pelas marcas de luta no rosto de Ravenscar. — Digo, patrão, o senhor está bem? Algo aconteceu?

— Uma pequena briga — admitiu Devin. — Um pano úmido para meu rosto cairia bem.

— É claro, senhor. — O criado apressou-se em cumprir a ordem.

Devin suspirou e passou a mão nos cabelos. Ficou pensando se seriam mesmo simples ladrões, como assegurara sua bela salvadora. O cocheiro tinha razão quando disse que ali não era uma área em que ladrões e rufiões costumavam ficar. Havia um ou dois de seus credores que ele não se surpreenderia se descobrisse que estavam por trás do ataque. Devin suspeitava de que se seus salvadores não tivessem derrotados os três homens, eles teriam dito a ele que pagasse o que devia se não quisesse levar outra surra daquelas.

Teria de ser mais cuidadoso agora... carregar sua pistola, mas ela iria deformar o caimento da casaca. Carson protestaria.

Seus pensamentos voltaram-se para seus salvadores, arrancando-lhe um sorriso. Que tipo estranho de mulher! Estivera de certa forma distraído com sua própria luta, mas podia dizer quase com certeza que ela lançara-se na briga e batera em um dos malfeitores com o guarda-chuva. E parecia bonita, também. Teria sido melhor se houvesse mais luz... e se sua visão não estivesse tão debilitada pelo álcool. Os cabelos eram castanhos, mas não havia como determinar a cor dos olhos, que eram grandes e brilhantes. Tinha uma boca jovial, risonha. Lembrava-se com mais detalhes da curva generosa dos seios no decote do vestido. E também lembrava-se da reação inconfundível de seu corpo ao olhar para ela.

Ficou imaginando se ela faria parte do submundo. Falava e vestia-se como uma dama, mas ele não conseguia visualizar nenhuma dama de seu círculo de amizades lançando-se em uma luta daquele jeito. E havia algo diferente em sua fala. Não podia garantir, mas havia uma certa inflexão que destoava. Talvez houvesse aprendido a falar como uma dama. E uma atraente mulher da vida poderia muito bem ter uma carruagem e vestir-se bem. Isso explicaria aquelas ações, tão atípicas de uma mulher de criação aristocrática.

Brincou com a idéia de tentar descobrir o nome dela. Aquela mulher o intrigara. Normalmente, Leona não reclamava de seus divertimentos passageiros com outras mulheres. Ela sabia que ele nunca se afastaria muito. Mas, lembrou-se com um suspiro, havia a situação deprimente de suas finanças. Nunca poderia esperar atrair uma cortesã, tirando-a de seu obviamente generoso patrono, quando seus próprios bolsos estavam prestes a serem arrendados. E a forma de contornar isso estava na casa de sua mãe onde, suspeitava, ele devia ser persona non grata no momento.

Sua incapacidade de comparecer ao jantar naquela noite era algo que podia ser remediado, supôs, com algum esforço de sua parte. Mas, como sempre, se opôs a esse pensamento.

Algo dentro dele se retraía à idéia de passar o resto da vida casado com uma mulher por quem sentia, no mínimo, indiferença... e, no máximo, um profundo desgosto. Ele já vira muitos casamentos sem amor, arranjados em nome da tradição e da família — incluindo o dos seus pais, isso sem mencionar o de Rachel e o de Leona — para saber que não queria aquilo para si. Não era, assim esperava, um tolo romântico para desejar amor no casamento — ou, pelo menos, não o fora por muitos anos. Contudo, estava certo de que seria melhor não se casar do que viver o tipo de solidão silenciosa em que Rachel vivia.

Carson voltou, carregando um pano úmido e frio em uma pequena bandeja de prata. Devin pegou o pano e colocou-o sobre o corte no lábio, lembrando-se, ao fazê-lo, do modo como a mulher limpara seu sangue com o lenço. Ele pôde sentir de novo o leve perfume de rosas impregnado no lenço de algodão de borda rendada. Ficou imaginando se ela, também, cheirava a rosas.

— Chegou um bilhete para o senhor esta noite — disse Carson, dirigindo-se para a pequena mesa no vestíbulo, onde uma pequena bandeja abrigava um pedaço de papel branco; quadrado, dobrado e lacrado. "Ravenscar" era tudo o que havia escrito na frente, com a grafia forte e arredondada, que reconheceu imediatamente como sendo de Leona.

Uma sensação familiar de antecipação serpenteou-o ao pegar o bilhete da bandeja que Carson estendeu em sua direção. Rompeu o lacre e abriu o bilhete.

Querido,

Hoje, após a meia-noite. Tenho uma surpresa para você.

Era uma típica mensagem de Leona — breve, não assinada e ligeiramente misteriosa — e que tirou de pronto todos os pensamentos da mulher que conhecera há instantes.

— Que horas são, Carson?

— Onze e pouco, creio.

— Bom. Temos tempo. Preciso me arrumar antes que minha visita chegue.

Ambos sabiam quem era a visita, mas nenhum dos dois mencionaria o fato. Seu relacionamento com Leona corria por trás de um véu de sigilo — por mais fino que fosse esse véu. Mesmo todos os fofoqueiros da sociedade londrina sabendo a respeito dos dois e comentando em segredo o longo caso, este ainda podia ser considerado uma fofoca e um fato não comprovado enquanto mantivessem segredo. Lorde Vesey não se importava com o que a esposa fizesse — ambos seguiam caminhos distintos —, contanto que ele não fosse publicamente exposto ao ridículo.

Sendo assim, como acontecia há muitos anos, Devin só via Leona quando ela o visitava em segredo, ou então em público — em uma de suas festas, no teatro, na ópera, ou em um baile para o qual também fora convidada —, nunca, por palavras ou gestos, demonstrando serem nada além de amigos. Ele nunca ia à casa dela, exceto quando acompanhado de Stuart, irmão de Leona. Eles se encontravam no fim da noite, depois que ela saía de casa ou de qualquer festa na qual estivesse e, completamente encoberta por um manto com capuz, ia a cavalo para a casa dele, esgueirando-se pela lateral e entrando pela porta do jardim. Em dias como esses, Devin esperava por ela junto à lareira do quarto, como o faria hoje, com uma taça de brandy na mesinha diante de si, o coração palpitando em expectativa.

Havia noites em que ela não aparecia. Com Leona, ninguém sabia ao certo o que ia acontecer — e isso era uma das coisas que mantinha o relacionamento algo jamais previsível. Às vezes, ela não conseguia escapar. E, outras vezes, gostava simplesmente de deixar as coisas no ar. Com o decorrer dos anos, Devin atingiu o ponto em que as ausências dela não mais o levavam à loucura, mas nunca conseguiu se livrar dos grilhões do ciúme, da idéia de que ela não havia aparecido por causa de outro homem — de seu marido, que, apesar do desinteresse mútuo declarado, ainda possuía prioridade sobre ela, ou talvez de um novo namorado, algum jovem que esperava atrair a atenção da dama mais desejável de Londres. No início, Devin acertara contas com um ou dois deles. Agora seu sangue já não corria mais tão quente nem rápido, mas a idéia de Leona com outro homem, mesmo que apenas conversando, ainda lhe espetava o coração.

O segredo e o mistério, aquela pitada de ciúme, a incerteza de seus encontros, tudo servira para manter viva a emoção de seu caso esses anos todos.

Devin subiu as escadas de dois em dois degraus, o criado seguindo-o, e foi para o quarto. Não demorou muito para se arrumar, e, ainda que Carson fosse meticuloso, à beira do irritante, na amarração do nó da gravata, também era ágil nisso. Assim, vários minutos antes da meia-noite, estava impecavelmente vestido e asseado. Dispensou Carson e ajeitou-se diante da lareira para esperar, servindo-se de uma dose de brandy.

Esperou por um bom tempo. Era quase uma da manhã quando ouviu um leve barulho de sapato no corredor, e a porta do quarto se abriu. Devin levantou-se quando a mulher deslizou para dentro. Fechou a porta atrás de si e virou-se para ele, tirando devagar o capuz que lhe cobria o rosto. Da mesma forma como acontecera outras vezes, seu coração ainda batia acelerado. Leona olhou para Devin, um leve sorriso pairando em seus lábios.

Devin sempre achou que o nome Leona lhe caía muito bem. Com seus cabelos louros fulvos, os olhos castanho-dourados arredondados e espírito de leoa, Leona era uma criatura selvagem, pouco domada pelas regras e pela rigidez da sociedade inglesa. Ela só mantinha as aparências, nada mais, fazendo o que bem entendia quando na privacidade.

Devin a conhecera quando tinha 18 anos, em sua primeira vinda a Londres, saído direto da propriedade do pai. O mundo se abrira para ele então, a sofisticação da cidade substituindo a vida estéril de Darkwater. Em vez das orações e pregações morais do pai, o que encontrou foram jogatinas, companhias alegres e noitadas em clubes e tavernas. Em vez de lições diárias, encontrou horas livres para fazer o que quisesse. E, em vez de camponesas entediantes, ele encontrou... Leona.

A primeira vez que a viu foi em um baile na casa de lady Atwater. Ela usava um vestido dourado que se colava a cada uma de suas curvas. A pele brilhava sob a luz de velas, refletindo o brilho do vestido. Ele a quis com um arroubo de luxúria que nunca sentira antes. Ela brincou com ele, rapaz ingênuo que era. Pensando agora, Devin poderia ter se dado conta disso à época, mas, depois de todos esses anos, o fato de ela ter agido daquela forma o divertia. Ele se atrapalhara todo tentando levá-la para a cama, ao passo que ela o provocara e o iludira por mais de um ano, rejeitando-o até ele quase desistir. E, então, subitamente, reacendia seu desejo com um olhar, um roçar acidental do seio em seu braço, um beijo roubado no jardim.

O assédio à comprometida lady Vesey fora um escândalo, obviamente — uma das muitas coisas escandalosas que fizera na cidade e que provocara a ira recriminadora de seu pai, aumentando o abismo entre ambos. Mas ele não se importava com escândalos. A maioria das coisas de que gostava na vida, descobriu, era escandalosa. Como Leona já argumentara certa vez, eles não eram como as outras pessoas.

— Olá, Dev — disse Leona, com sua voz rouca característica.

— Leona. — Devin andou até ela, os olhos perscrutando o rosto e descendo do pescoço até o peito, onde seus seios se sobressaíam no decote do vestido. Leona, como algumas outras damas de estirpe "selvagem", costumava umedecer seus vestidos finos, de modo que eles colassem cada vez mais em seu corpo voluptuoso. Naquela noite, Devin conseguia ver os círculos escuros dos mamilos pelo tecido fino do vestido virginalmente branco de musselina. Seu sexo enrijeceu-se em reação àquela visão. Só Leona conseguia se vestir como uma virgem debutante e, ainda assim, parecer, de alguma forma, uma libertina.

Ele se inclinou e roçou os lábios nos dela.

— Você está adorável hoje.

Às vezes o surpreendia o modo como Leona conservara a boa aparência. Ele não fazia idéia da quantidade de horas e dinheiro gastos em cremes, cosméticos e hennas. Nem se deu conta de que, nos últimos dois ou três anos, quase não vira Leona durante o dia. Seus momentos juntos se limitavam a noites iluminadas pela luz suave de velas.

Ele encaixou a mão por baixo do seio dela e passou o polegar pelo mamilo, até este ficar duro e eriçado.

— Você usou isso em uma festa?

— Sim. Quase causei um tumulto durante a soirée na casa de lady Blanchette... ou ao menos me pareceu, pelo modo frio com que ela falou comigo. Mas os homens pareciam gostar.

— Estou certo de que gostaram. — Devin riu. Suas mãos desceram até a cintura dela, puxando-a para um beijo. Ele se retraiu levemente quando seus lábios se tocaram, e Leona recuou.

Ela olhou-o no rosto, dirigindo o olhar para o lábio dele.

— O que aconteceu? Dói? Ele deu de ombros.

— Alguns homens me atacaram, mas consegui escapar. Sangrei um pouco, mas está tudo bem.

Leona semicerrou os olhos sedutoramente, ficando na ponta dos pés até que seus lábios se mantivessem a um milímetro dos dele.

— Nunca me importei com um gostinho de sangue — murmurou ela, lambendo os lábios dele.

Devin puxou-a para si e beijou-a vigorosamente. Depois de um beijo longo e avassalador, ele a soltou. Leona inclinou-se para trás, olhando sedutoramente para o rosto dele.

— Humm. Tenho uma surpresa para você esta noite — murmurou ela.

O sexo dele enrijeceu.

— Tem? — As surpresas de Leona eram sempre sensuais e valiam a provocação que normalmente fazia antes de revelá-las. — Uma surpresa prazerosa, espero.

— Bastante prazerosa. — Ela sorriu, percorrendo com os dedos o tórax dele. Leona engatou a mão na cintura da calça de Devin e, em seguida, empurrou-o para longe. — Mas, primeiro, acho que um pouco de brandy viria bem a calhar.

— É claro. — Aprendera a gostar dos jogos tipo gato-e-rato de Leona, apreciando o prazer e a antecipação crescentes, às vezes até mesmo a frustração, sabendo que isso levaria a um intenso prazer. Virou-se calmamente e serviu a taça dela com brandy.

Ela pegou a taça da mão dele e fez um gesto para que se sentasse na cadeira. Devin assim o fez. Leona sentou-se em seu colo, virando-se de lado. Tomou um gole da bebida e depois colocou-a de lado. Começou a brincar frivolamente com os botões da camisa dele, desabotoando-os vagarosamente um após o outro e deslizando as mãos por dentro da abertura da camisa.

— Ouvi a respeito de sua herdeira americana — disse ela, depois de um instante, retorcendo um dos mamilos dele.

— O quê? Eu não tenho uma herdeira, americana ou de qualquer outra nacionalidade.

— Não foi o que ouvi. Não se falava de outro assunto na casa de lady Blanchette. A filha de um vendedor de roupas, creio.

— Ele lida com peles. — Devin sorriu. — Com ciúmes, meu amor?

— Eu? Ciúmes da filha de um comerciante de peles? — perguntou Leona com desdém. — Nem um pouco. Só curiosa. Ela quer realmente se casar com você?

— De acordo com minha mãe, o pai dela está louco por isso. Quer colocar as mãos na propriedade de um conde. — Devin pegou a bebida de Leona sobre a mesinha ao lado da cadeira e bebeu-a. — Eles estão, aparentemente, nadando em dinheiro. Poderiam salvar Darkwater.

— Oh, Darkwater. — Leona desdenhou a propriedade com um movimento de mão. — Eles poderiam nos salvar.

— Nos salvar? — Devin olhou para ela, um tanto surpreso ao ouvir tais palavras.

— Sim. Da ruína financeira. — Leona alongou-se, arqueando as costas de modo que seus seios impeliram-se ainda mais atrevidamente contra o tecido delicado do vestido. Então deslizou a mão por dentro da camisa de Devin e acariciou-lhe livremente o peitoral enquanto falava. — Vesey diz que não vai pagar mais nenhuma das minhas dívidas de jogo. Diz também que nem o rei Croeso poderia dar conta de meus hábitos dispendiosos. — Os dedos dela pararam no mamilo dele, acariciando-o e apertando-o, circulando-o provocativamente. — Lembrei-lhe de que não foi por seu charme que me casei com ele. Vesey deveria me fornecer fundos, enquanto eu acobertaria suas verdadeiras inclinações sexuais. Mas ele disse que nenhum comportamento da parte dele poderia valer as quantias que gasto.

A boca carnuda de Leona formou uma intumescência luxuriosa.

— Você acha que este vestido é um desperdício de dinheiro? — Ela roçou os dedos pelo decote do vestido.

— Não em você — respondeu ele, os olhos seguindo o movimento dos dedos dela. A mão de Devin subiu pelo corpo de Leona e rodeou-lhe o seio, acariciando-o, os olhos faiscando de desejo quando viu o mamilo endurecer em resposta a seu toque.

— Mas, então, nada com mais de 14 anos atrai a atenção de Vesey — acrescentou Leona com um dar de ombros. — Quero dizer, na verdade... acho um estudante excitante agora e depois... há algo um tanto estimulante naquele ardor inocente. Mas fazer disso uma dieta regular? — Ela balançou a cabeça. — Mas estou fugindo do assunto. — Esticou-se para roçar os lábios nos dele. — Estávamos falando da sua herdeira americana.

— Já lhe disse, ela não é minha herdeira americana — respondeu Devin. — Não tenho qualquer desejo de me casar com ela.

— Claro que não tem. Não seja tolo. Quem quereria se casar com alguma fedelha enfadonha saída do fim do mundo? Mas... a necessidade obriga.

— A necessidade obriga? — repetiu Devin, incrédulo. Sua mão subiu até o queixo dela, inclinando-o de modo a fazer com que o olhasse nos olhos. — Você está dizendo que acha que devo me casar com essa garota?

— É claro — respondeu Leona, racionalmente. — O que mais você faria? O que mais nós faríamos? Por mais que eu ame o seu gosto, meu bichinho de estimação, nós não podemos viver disso. Precisamos de dinheiro para sobreviver. Você não tem um centavo. Você me disse que seu tio falou isso da última vez em que você quis saber sobre a propriedade. Ela é dispendiosa e tem sido assim por vários anos. Seus fundos já se exauriram há tempos. O que você vai fazer... Trabalhar?

— Eu sei que tenho pouco dinheiro — resmungou Devin. — Todos têm sido bastante gentis em me lembrar disso. Certamente, o casamento resolveria esse problema. Mas, com isso, eu teria uma esposa.

— Um inconveniente menor. — Leona balançou a mão vivazmente, minimizando o problema. — Muitos homens têm esposas, e há quem nem saiba disso. Mande a caipira sem graça para Darkwater e deixe-a por lá. Ela sem dúvida vai ficar bastante feliz em morar lá... afinal, já passou boa parte da vida morando em um lugar atrasado. Ela quer ser lady Ravenscar, e será. Ao possuir seu pequeno "domínio", a pobre criatura ingênua vai pensar, provavelmente, que está levando a vida da sociedade inglesa. Céus, Dev, duvido que ela seja capaz de viver em algum lugar que não seja enclausurada em Darkwater. Não deve conseguir manter um minuto de diálogo sobre algum assunto que não envolva os cuidados com a casa ou algo do gênero. Ela ficaria perdida tentando entender o que fazer com um talher para ostras. Você pode se imaginar apresentando a fedelha para a sociedade? Deixe sua mãe levá-la para Darkwater e supervisionar a educação dela.

— Esta talvez não seja a vida que ela imagina — argumentou Devin, levantando-se abruptamente e deixando Leona de lado. — E se ela quiser viver em Londres e infiltrar-se na sociedade em toda a sua glória rústica? — perguntou Devin. — Será que vou agüentar ver minha esposa ridicularizar o nome Aincourt?

— Não fale bobagem. Qual é o problema se isso acontecer? Uma vez casado com ela, o dinheiro será seu. Você será seu marido, mestre e senhor. Ela fará o que você mandar.

— Humm. Da mesma forma que você faz o que seu mestre e senhor manda.

— Que absurdo... me comparar com a filha de um comerciante de peles. — Leona riu, o fino lábio superior retraindo-se charmosamente sobre dentes brancos perfeitos. — Francamente, Dev, você me faz rir.

— Fico feliz em saber que você acha isso tão engraçado — respondeu Devin, irritado. — Eu pensei que ao menos você, dentre todas as pessoas, não me encorajaria a casar com essa fedelha. Não a incomoda nem um pouco pensar em mim tendo uma esposa? Em mim na cama com ela e gerando herdeiros?

— Sério, Dev, não seja tão plebeu. A possibilidade de você gerar alguns pestinhas com uma vaca insípida não tem nada a ver conosco. Que diferença isso faria? — Leona foi até Devin, deslizando os braços na cintura dele e apoiando a cabeça em seu peito. — Sou capaz de me lembrar de mais de uma vez em que você esteve com outra mulher... até ao mesmo tempo. Pelo que me lembro, ambos achávamos isso um tanto estimulante.

— Aquela foi uma situação muito diferente — disse ele mal-humorado, sua mente voltando involuntariamente à noite devassa que ela mencionara. E ficou excitado com a lembrança. — Eu não me casei com a outra mulher. Não tinha qualquer obrigação com ela, nenhum laço nos unia além do dinheiro.

— E o que une você a essa a não ser o dinheiro? — retrucou Leona, deslizando as mãos pelas costas dele até as nádegas, apertando-as com os dedos. — Chega de conversa, vamos. Creio que está na hora da minha surpresa, não acha?

Ele inclinou-se e beijou-a, em concordância. Leona desvencilhou-se de seus braços e foi até a porta, abrindo-a. Colocou a cabeça para fora e voltou. Um instante depois, uma figura envolta em uma capa com capuz entrou no quarto. A pessoa era de baixa estatura; Devin deduziu, por esse detalhe, que se tratava de uma mulher. A única outra coisa que se podia ver era que seus pés eram pequenos, bronzeados e estavam descalços.

Enquanto ele processava a cena incomum, Leona trancou a porta que dava para o corredor e voltou para Devin, pegando-o pela mão e levando-o para a cama. Ambos tiraram os sapatos e subiram na cama alta, na qual Leona instruiu-o a deitar-se de lado. Aninhou-se por trás dele, apoiando-se no cotovelo para que pudesse ver.

A mulher encapuzada deslizou até a lateral da cama, ocupando um espaço a alguns centímetros deles. Desamarrou a capa e retirou-a, revelando-se uma mulher negra e pequena vestida com um ínfimo top que cobria apenas os seios, e uma calça larga feita de um tecido vaporoso, presa nos tornozelos. Finas correntes douradas pendiam na cintura desnuda e em volta do pescoço, fazendo voltas no estreito top. Sininhos estavam presos em uma linha na base do top e na cintura da calça. Eles estavam dependurados em uma fita entrelaçada nos densos cabelos negros e em pulseiras e tornozeleiras. A cada movimento que ela fazia, eles tilintavam. Por cima de suas vestimentas finas, lenços de várias cores se enrolavam, todos do mesmo tecido fino. Só de olhar para ela, Devin sentiu um impulso de desejo na virilha.

Ela olhou para baixo de maneira quase envergonhada quando levantou os braços acima da cabeça e começou a estalar os dedos produzindo um som metálico e rítmico com pequeninos címbalos. Então seus quadris começaram a se mexer em um movimento ondulante, fazendo os sinos soarem. Começou a dançar, os pés e os quadris movendo-se ritmicamente. Ela se mexia em um espaço restrito, balançando-se, contorcendo-se e enroscando-se.

— Excitante, não acha? — sussurrou Leona no ouvido dele, a respiração dela provocando calafrios em Devin. Ela colocou a ponta da orelha do amante entre os dentes e mordiscou-a suavemente. Enquanto a garota dançava, a mão de Leona deslizou pelas laterais abertas da camisa de Devin e começou a alisar o peito dele. A combinação daquela visão erótica com o toque de Leona fez a pulsação retumbar em sua cabeça.

A garota continuou a dançar, requebrando os quadris, balançando os seios, fazendo tocar todos os sininhos ao dançar, tudo isso pontuado pelo batimento rítmico dos címbalos. E Leona o acariciava, os dedos provocando-o no peito e na barriga, depois mais embaixo, por cima do tecido da calça. Ela deixou escapar uma risada baixa e gutural ao sentir o intumescimento dele pressionando o tecido.

— Você quer mais? — sussurrou Leona em seu ouvido. — Talvez você queira vê-la em mais detalhes. — Levantando-se um pouco, bateu as mãos uma vez.

A dançarina de cabelos negros suspendeu a mão, sem parar o movimento de quadris, e tirou um dos lenços. Deixou-o cair, descendo vagarosamente por suas pernas até cair a seus pés. Pouco a pouco, enquanto se contorcia e se revirava, ondulando sob o ritmo dos címbalos, ela soltou os lenços, um por um.

Devin observou-a despir-se, a respiração áspera em sua garganta, o calor descendo internamente enquanto Leona o acariciava, deslizando a mão por dentro da calça dele e envolvendo-o.

— Humm — murmurou ela. — Ainda duro, como quando era rapaz. Gosto disso. — A língua de Leona contornou as voltas das orelhas de Devin, enviando um longo tremor pelo corpo dele. — O que importa você arrumar uma esposa se nós ainda teremos isso? Quem se importa se uma camponesa qualquer vinda das colônias puder reivindicar o fato de ser sua esposa? Vá a Darkwater uma vez por ano e deite-se com ela para gerar um herdeiro e depois volte para mim... e para todos os prazeres aos quais está acostumado.

— Leona... — Devin deixou escapar uma risada de incredulidade e virou-se para olhar diretamente seu rosto. — Não acredito que até você... esteja me seduzindo para que eu peça outra mulher em casamento.

— Estou pedindo que você torne possível continuarmos como sempre fomos. — Leona afastou-se, os olhos acesos. — Eu já lhe disse que Vesey está me limitando a uma mesada mesquinha. Se meu amante também está sem fundos... Devin semicerrou os olhos.

— Você está ameaçando arranjar outro amante? Ele não vai durar muito se eu desafiá-lo para um duelo.

— Não fale bobagem. Eu faria o que fosse preciso. Porque você se recusa a fazer o que deve fazer.

— Diabos, Leona, se você ousar...

— Eu não substituiria você, querido. Você teria sempre um lugar na minha cama. Eu só teria de dedicar menos tempo a você.

— Deus! Você fala como uma meretriz. — Devin afastou-se dela, ficando de pé.

A dançarina parou e deu um passo atrás, insegura, levantando os olhos e observando a expressão repentinamente inflexível de Devin.

— Oh, Dev, pare de agir como uma criança mimada. — Leona saiu da cama também, fazendo um rápido gesto com a mão para que a dançarina continuasse.

A mulher recomeçou a dançar. Leona andou até ela e, enquanto a garota ondulava lentamente o corpo, deslizou a mão pelo seio dela, agora escorregadio pela transpiração, e soltou outro lenço. Leona olhou para cima, para Devin, a expressão desafiadora, os olhos sensualmente iluminados.

— Venha, Dev, meu amor, você sabe quem eu sou. Nunca fingi ser nada diferente.

Enquanto falava, acariciava o corpo da mulher, lançando ao chão um lenço após o outro, até ela ficar apenas com a calça fina, o ínfimo top e as delicadas correntes douradas.

— Eu sou perversa — Leona continuava. — E você também.

Você gosta disso, assim como eu. Da mesma forma como gosta de todas as coisas que fazemos... coisas das quais nenhuma pessoa decente gosta.

Ele a observava, tão incapaz de desviar o olhar daquela cena erótica quanto de suprimir a pulsação quente em seu membro. Seus olhos estavam fixos nos dedos ágeis de Leona, desabotoando o top e lançando-o para longe, deixando apenas as correntes douradas penduradas sobre os seios pequenos e bronzeados da mulher. Ela os acariciou delicadamente, fazendo círculos com o indicador em cada mamilo.

— Você não quer possuí-la agora, Dev? — sussurrou Leona. — Você não quer penetrá-la? Eu gostaria de ver isso. Você gostaria que eu assistisse, não gostaria? Você acha que isso é normal? É perverso. Perverso do modo como você e eu somos.

Com um movimento abrupto e feroz, Leona deu um puxão na cintura da calça fina e bufante da dançarina, abrindo-a e deixando-a cair-lhe aos pés.

— O que você me diz, Dev? Vai possuí-la? — Leona afastou-se da mulher. — Ou preferiria me possuir?

Desabotoou a frente do vestido e empurrou-a para trás, revelando os seios, firmes e volumosos, com os centros marcados por mamilos grandes e escuros, eriçados pelo desejo. Ela tirou as alças do vestido dos ombros e deixou-o cair no chão, revelando o corpo nu. Passando as mãos de cima para baixo pelo corpo de maneira provocativa, olhou para Devin, arqueando uma das sobrancelhas.

— Então, Dev, você me quer? Ou talvez queira a nós duas. Ou você é puritano demais, como seu pai?

— Maldita — resmungou ele, alcançando-a e puxando-a para si. — Você sabe que eu a quero.

Leona sorriu e roçou seu corpo no dele.

— Então admita. Admita que você é perverso. Você não dá a mínima para aquela fedelha americana tola ou para o fato de ela gostar de viver em Darkwater. Você não dá a mínima para o nome Aincourt. Não, contanto que possa ter muito dinheiro. E isso. — Ela enroscou uma perna na dele, roçando-se, sugestivamente. — E, então, Dev, você dá importância a isso?

— Você sabe que não — respondeu ele secamente, pegando-a no colo e jogando-a nada gentilmente na cama. — Você está certa. Nós estamos mergulhados em pecado — disse ele, enquanto desabotoava as calças e se despia. — Vou me casar com a maldita herdeira, se é isso o que você quer.

 

Miranda ajeitou os óculos no nariz e conteve um suspiro. Pela primeira vez, as contas à sua frente a entediavam mais do que nunca. Ela vinha se sentindo ligeiramente melancólica o dia todo. Sabia que aquele sentimento tinha algo a ver com o estranho que conhecera na noite anterior. Quanto mais pensava no assunto, mais se convencia de que o homem agredido era o mesmo que o pai queria que conhecesse. Foi sorte o fato de aquele homem ser o primeiro a despertar seu interesse desde que chegara na Inglaterra. Mas era ao mesmo tempo deprimente, já que ele estava tão certo em rejeitá-la que nem compareceu ao jantar da mãe no qual iria conhecê-la. É claro que Miranda sentira mais ou menos a mesma coisa, de modo que não podia usar isso contra o homem. Na verdade, aquilo demonstrava que ele não era o tipo fraco e superficial que achou que fosse. No entanto, não podia evitar sentir-se um tanto ofendida, não importa o quão tolo esse sentimento parecesse.

Obviamente, ela jamais admitiria algo do gênero para quem quer que fosse. De fato, nem mesmo contara ao pai que acreditava ter conhecido o esquivo conde de Ravenscar na noite anterior. Se o pai soubesse que achara o candidato a marido intrigante, jamais abandonaria sua campanha em fazê-la se casar com ele. E, certamente, não tinha qualquer intenção de fazer nada parecido, não importa o quão atraente tenha achado o conde. Ela ainda mantinha suas convicções. Não seria capaz de se casar com um homem que não amava. Queria o mesmo tipo de casamento que seu pai e Elizabeth tinham — eles se devotaram um ao outro desde o dia em que se conheceram. E mesmo não sendo nem de perto o tipo de mulher dependente e pegajosa que a madrasta era, queria viver o mesmo tipo de sentimento estável, duradouro.

Queria que seus olhos brilhassem a cada vez que visse o marido, da mesma forma que os olhos de seu pai brilhavam quando Elizabeth entrava na sala. Queria sentir saudade quando ele estivesse longe e recebê-lo com prazer sincero quando voltasse, da mesma forma como vira Elizabeth fazer com o pai. Do contrário, qual seria o propósito do casamento? Podia se virar muito bem sem um marido. Estava acostumada a tomar conta de tudo sozinha, além de possuir enorme fortuna. Não precisava se casar, como a maioria das mulheres, e com certeza não sentia, como lady Westhampton dissera sobre si mesma, que deveria se casar para cumprir um dever com a família. Até poderia querer agradar o pai, mas, se não o fizesse, isso não o prejudicaria, nem ao nome Upshaw.

Miranda convencera-se de que estava sendo tola em relação ao caso do homem que salvara na noite anterior. Assim, depois de ter tocado levemente o café-da-manhã, decidiu passar o resto do dia fazendo algo útil — e também algo que normalmente a mantinha absorta. Então, prendera o cabelo em um coque simples e sóbrio e enfiou-se em um dos vestidos retos, velhos e desbotados que estava acostumada a usar quando fazia a contabilidade ou redigia correspondência comercial. Era sempre provável que deixasse cair tinta na roupa quando trabalhava, por isso não usava um de seus melhores vestidos. Desta forma, seguiu para o escritório, colocou os óculos pequenos e redondos que usava quando a tarefa exigia e sentou-se para trabalhar com o assistente do pai, Hiram Baldwin.

Para seu espanto, verificou que nada parecia modificar seu ânimo. E o pior é que não conseguia se interessar pelas folhas com números que Hiram colocara diante dela. Normalmente, ela e Hiram compartilhavam um interesse permanente por assuntos financeiros, mas hoje a voz dele era como um zumbido impiedoso. A atenção de Miranda vagava de volta aos acontecimentos da noite anterior. O tempo todo tinha de pôr a cabeça no lugar e se concentrar nos negócios à sua frente.

Foi um alívio quando a porta se abriu, no início da tarde, e seu pai entrou agitado, sorrindo de orelha a orelha. Miranda sorriu em retribuição; era difícil não fazê-lo, quando o pai aparecia com aquela expressão no rosto. Além disso, estava mais do que pronta para aproveitar um verdadeiro motivo para distrair-se do trabalho.

— Olá, papai — cumprimentou-o. — Você está parecendo o gato que comeu o canário.

— Estou? — O sorriso do pai aumentou ainda mais. — Bom, tenho motivos para isso, minha menina. Estive conversando com um cavalheiro, e parece que ele gostaria de fazer-lhe a corte. Disse-lhe que estava de acordo, obviamente.

— O quê? — Miranda ficou de pé. — Do que você está falando? Que cavalheiro? Papai, o que você fez? Se encontrou outro nobre petulante para tentar casar-me com ele eu juro que...

— Não, não — Joseph apressou-se em tranqüilizá-la. — Não se trata de um novo cavalheiro. É o mesmo. Lorde Ravenscar.

Miranda ficou pasma.

— O quê? Aqui? — Sua mão voou para o cabelo. Devia estar um horror! O penteado não lhe caía nada bem, o vestido que usava era tão velho e fora de moda que ficaria constrangida em ser vista com ele. — Papai! Não! Eu não posso... ele não deve.

— Que nada, menina — respondeu Joseph, alegremente.

— Já disse a ele que poderia falar com você. Não seria educado mandá-lo embora agora. Não vai levar nem um minuto.

— Virou-se e caminhou até a porta. — Venha, Hiram, é melhor que você e eu deixemos a menina sozinha.

Hiram, lançando um olhar perplexo para Miranda, que estava paralisada como se fora transformada em pedra, enfiou a pena de volta no pote de nanquim e seguiu o chefe porta afora.

— Não, espere! — Miranda correu até a porta. Não podia deixar que Ravenscar a visse daquela forma! Mas nem chegara ao portal quando este foi preenchido por um cavalheiro alto e bem-vestido.

O primeiro pensamento de Miranda foi de que estava certa. O homem parado à sua frente, bonito e alto, era o mesmo que ela ajudara a escapar dos agressores na noite anterior. Seu segundo pensamento foi imaginar o que teria acontecido a todo o charme do homem.

O rosto que via agora trazia uma expressão ligeiramente entediada e marcada por traços de soberba aristocrática. Com certeza era bonito, de porte esguio e musculoso em trajes de caimento perfeito, mas os olhos verdes não possuíam qualquer graça ou excitação agora que flutuavam de modo frio pelo cômodo e pararam brevemente nela.

— Srta. Upshaw — balbuciou ele, ao fazer uma reverência elegante em sua direção.

— Lorde Ravenscar — respondeu Miranda, com um tom de voz tão frio e distante quanto o rosto dele. Ficou se perguntando se a excitação da noite anterior teria danificado seu cérebro, o que explicaria ter se sentido atraída por este homem. O conde de Ravenscar parecia com qualquer outro nobre arrogante que conhecera... senão pior.

Devin olhou rapidamente para Miranda de novo. Ele odiava estar ali. Era humilhante, aviltante. Consumia sua alma ser reduzido a isso. Apesar do modo como Leona e Rachel definiam essa situação, ainda significava estar se vendendo pelo dinheiro dessa mulher. Era uma prova, sabia, de quão fundo no poço chegara. Mas, como Leona argumentou, ele estava na lama agora. Vinha se atolando há muitos anos. Por que não chafurdar completamente nela?

Ainda assim, era difícil fazer aquilo. Ficara constrangido ao falar com o pai da garota; estava ainda mais constrangido agora, olhando-a diretamente. Mas ainda havia lhe sobrado orgulho suficiente para deixar que percebessem como a humilhação marcava sua alma. Sua família, lembrou, se relacionara com reis; não deixaria que um comerciante de peles qualquer ou sua filha o vissem humilhado. Levantou o queixo e lançou outro olhar para a criatura simplória diante dele.

Ela era exatamente como imaginara: desleixada, com o vestido fora de moda e sem formas definidas, o cabelo esticado para trás em um coque deselegante, um par de óculos empoleirado no nariz. Era, sem dúvida, uma solteirona, uma mulher comum com quem alguém só se casaria por dinheiro.

Com certeza, o jeito de falar e os modos deveriam ser tão pobres quanto a aparência — um sotaque americano desagradável e nenhuma idéia sobre o que fazer ou dizer quando em companhia de alguém educado.

Seus olhos se desviaram de novo, tão rapidamente quanto a focalizaram. Não conseguia mais olhar para ela depois disso, portanto fixou um ponto acima do ombro esquerdo da mulher e começou a falar.

— Srta. Upshaw, pedi permissão a seu pai para cortejá-la, e ele gentilmente concedeu-me essa permissão. — Suspirou e continuou: — Seria um grande prazer para mim se me desse a honra de consentir em ser minha esposa.

Ele fez uma pausa, esperando. Miranda encarou-o por um longo instante, sem acreditar no que acabara de ouvir. Estava tão furiosa que mal conseguia formular uma frase coerente.

Por fim, sem rodeios, ela disse:

— Não.

O queixo dele caiu comicamente, e pela primeira vez encarou-a diretamente.

— O quê?

O olhar de espanto dele era tão grande que Miranda deu uma risadinha.

— Eu disse que não, lorde Ravenscar — ela repetiu.

— Você está recusando o meu pedido? — E como se não bastasse, a ordinária ainda tinha a petulância de rir dele!

— Sim, estou.

— Santo Deus, mulher! — ele explodiu. — Espero que não pense que vai receber uma oferta melhor!

— Caro senhor — disse Miranda, asperamente —, qualquer oferta teria sido melhor do que a que o senhor acabou de fazer.

Ela tirou os óculos e andou para a frente, até ficar a poucos centímetros dele. Olhou para cima, provocativamente, para seu rosto.

— Nunca ouvi uma frase tão sem graça em toda a minha vida. Posso garantir-lhe que não há mulher na Terra que se casaria com o senhor se a abordasse dessa forma. Quem pensa que é? Acha que qualquer mulher cairia de joelhos em agradecimento por você ter permitido que ela seja sua esposa? Você é o homem mais rude e arrogante que tive a infelicidade de conhecer. Prefiro viver o resto da vida sozinha, morrer sozinha, a me unir a um tipo como você!

Dev olhou para baixo, para os olhos verdes arregalados, loucos de raiva, e teve a segunda grande surpresa daquela tarde.

— Você! Você é a mulher que...

— Sim — respondeu Miranda, asperamente. — Sou a mulher que salvou sua pele ontem à noite. Se não fosse tão arrogante e convencido, sem dúvida teria percebido isso antes. E, pensando bem, estou começando a me arrepender de ter me dado o trabalho. Uma sova nas mãos daqueles rufiões teria feito um bem enorme a você. Na verdade, estou propensa a imaginar que talvez eles houvessem sido contratados por alguma outra mulher a quem você insultou com um pedido de casamento.

— Insulto! — exclamou Devin, a raiva crescendo dentro dele. Não sabia ao certo o que o incomodava mais... se o desdém daquela mulher ou o fato de que seu corpo, repentina e vividamente, se lembrara da excitação que sentira na noite passada quando olhou para ela. — Você ousa dizer que a insultei ao pedi-la em casamento? Sou o sexto conde de Ravenscar. Sou capaz de descrever minha linhagem a partir do século XII. Posso jurar que você mal saberia dizer quem foi seu avô.

— Esse argumento é uma tolice sem precedentes — disse Miranda, indiferente. — Os antepassados de todas as pessoas remontam a essa época. O fato de você saber os nomes dos seus não significa nada, exceto que a família guarda registros. Só Deus sabe que tipo de homem foi esse seu antepassado... poderia muito bem ter sido o homem mais diabólico da época. E isso não diz nada sobre seu caráter. Esta é uma qualidade que você constrói sozinho, e, pelas coisas que ouvi, não tem feito um bom trabalho.

— Você ousa... — Ravenscar olhou para ela com os olhos semicerrados. — Santo Deus, se você fosse homem, eu a desafiaria para um duelo. — Chegou ainda mais perto, encarando-a com um olhar penetrante.

— Outro detalhe por demais tolo de se mencionar, já que obviamente não o sou — observou Miranda, mantendo-se firme. Não estava disposta a deixar que ele a intimidasse, impondo-se dessa forma. Seu humor se alterara e estava gostando de sua postura. Este homem merecia que lhe domassem a petulância, e Miranda estava bastante feliz por ser a pessoa a fazer isso. Levantando o queixo em desafio, ela o encarou de volta, a apenas alguns centímetros de seu rosto.

— Sua desaforada... — Ravenscar interrompeu suas palavras e, repentinamente, segurou-lhe os braços com força. Puxou-a para cima, levando a boca em direção à dela.

Miranda ficou paralisada por um instante, incapaz de se mover. Nunca fora tratada daquele modo, agarrada tão bruscamente ou beijada com tanta intensidade. Nenhum outro homem teria a arrogância — ou a coragem. Um lapso de indignação tomou conta dela. Mas, ao mesmo tempo, todo seu ser estremeceu com as sensações que experimentou. A boca dele era quente e exigente; e aquele gosto a inebriou. Os lábios de Devin pressionaram os dela, ferventes, aveludados, flamejantes. Então a língua dele entrou em sua boca, invadindo-a. Um tremor de excitação percorreu-lhe o corpo, uma vibração que chamuscava cada terminação nervosa de um modo que ela jamais sentira — que, na verdade, jamais imaginara existir.

Sentiu uma pressão na parte baixa do abdômen, quente e latejante, insistente. Ela cedeu, entregue ao calor e ao prazer, a raiva e a indignação extintas pelo desejo que a preenchia. Sentiu os seios cheios e macios, os mamilos salientes e ansiosos. Percebeu que queria sentir as mãos dele em seus seios, que a tocasse por inteiro. Ela tremeu, emitindo um gemido que foi engolido pela boca voraz que a beijava.

De repente, e para a surpresa de Miranda, Devin se afastou. Ele chegou para trás e olhou para baixo, para o rosto suavizado pela paixão. Os olhos dele brilharam, verdes como a água do mar.

— Pronto — sussurrou, largando os braços dela. — Agora você sabe o que poderia ter tido, mas foi muito tola para conseguir.

Aquelas palavras cáusticas romperam a névoa de prazer. A espinha de Miranda enrijeceu-se. Uma ira e uma feroz aversão a si mesma a dominaram. Levantou a mão e deu-lhe um tapa na cara com toda a força.

— Saia daqui — ela explodiu. — Saia desta casa e nunca mais apareça aqui novamente.

— Com muito prazer — respondeu ele, num tom sarcástico, virando-se para deixar o recinto.

Os joelhos de Miranda ficaram de repente muito fracos para se firmarem, e ela desabou na cadeira mais próxima. Meu Deus, o que acabou de acontecer?

Em um instante, sua vida inteira virara de cabeça para baixo. Ela agiu com uma fúria, uma indignação e um fogo completamente novos para ela. A mão ardia do tapa que dera. Ficou feliz por tê-lo dado; chegou a desejar que Devin voltasse para que pudesse bater nele de novo. Mas, ao mesmo tempo, estava confusa, quente e sedenta. Queria sentir mais uma vez o prazer que surgira dentro de si quando ele a beijou.

O homem era arrogante e rude — não, ele era mais do que isto; era tão irritante e provocador que não conseguiu achar um nome que o definisse. Ela o odiava, e o odiava ainda mais por tê-la excitado daquela forma com o beijo. Sentira vontade de encostar-se luxuriosamente nele, desejara que aquilo durasse para sempre. Adorou o beijo, ainda que todo o seu ser lhe gritasse para não gostar. Desejara-o com uma ferocidade e urgência como nunca sentira por outro homem. E era enfurecedor o fato de que ele a fizera sentir-se daquele jeito contra sua vontade.

O homem era o demônio em pessoa, pensou, e desejou nunca mais vê-lo. Mas, não, logo percebeu, isso não era verdade. Desejava vê-lo de novo, sim — e logo —, para que pudesse dizer-lhe o quanto o desprezava!

Devin desceu a rua a pé, os passos seguindo o mesmo ritmo da torrente de confusão que tomava conta de sua mente. Que audácia da vadia! Dar-lhe um tapa, dizer que ele não era bom o bastante para ser seu marido! Quem ela pensa que é? Ele é um Aincourt de Darkwater; ela é uma ninguém, cheia de empáfia só porque seu pai fizera uma pilha de ouro vendendo peles de animais — como se isso a tornasse alguém importante!

Pensou em uma dúzia de injúrias que deveria ter lançado sobre ela. Deveria ter dito como sua recusa era sem importância. Para começar, não queria pedi-la em casamento — só o fez porque todos o pressionaram. Deveria ter dito que ela não era um troféu para homem algum, muito menos para um conde. Mas, raios, a sensação dela em seu corpo fora tão suave e dócil. Seus lábios tinham gosto de mel; o perfume de rosas impregnado em seu corpo penetrou-lhe as narinas de forma encantadora e inebriante.

Devin resmungou de frustração, assustando um passante e fazendo com que o homem fosse rápido para o outro lado da rua. Parecia bizarro demais, absurdo demais, que ela pudesse ser a mulher encantadora que o salvara na noite anterior. Ele estava bêbado, é claro, ficara apenas com uma vaga lembrança do rosto da mulher, mas se lembrara daqueles olhos cinza grandes e expressivos, da forma como brilharam com alegria e excitação. Como poderia aquela mulher ser esta criatura monótona e enervante, a quem se forçou a pedir em casamento esta tarde?

Fora a mulher de ontem à noite que correspondera ao seu beijo. Sentira o ardor e a excitação nela, a mesma paixão que a impelira ontem para o meio de uma briga. Sorriu ao pensar no beijo, lembrando-se do calor dos lábios dela e de sua doce avidez. Não sabia ao certo por que fizera aquilo — quis dar o troco de alguma forma. Ela fora tão enervante, tão fria e controlada, tão desdenhosa, que quis mostrar-lhe quem estava no controle da situação. E conseguira isso, apesar do tapa. O tapa só serviu para mostrar como atingira um ponto fraco; suspeitava que ela estava mais furiosa por corresponder ao beijo do que por qualquer outro motivo.

Sabia, também, que era capaz de fazê-la corresponder novamente. Diabos, se se esforçasse, poderia fazê-la se apaixonar. Devin sabia que podia ser encantador. Muitas mulheres em seu passado sucumbiram a seu charme — até algumas consideradas recatadas demais para ter qualquer relacionamento com um libertino como Devin Aincourt. Geralmente, não perdia tempo cortejando uma mulher que resistia a ele; muitas outras iriam para sua cama de bom grado... e havia, é claro, Leona, que sempre ocupava o primeiro lugar em seus afetos.

Mas agora, pensou, parecia que ia valer a pena. Então a vadia americana o considerou um pretendente de baixa qualidade... Qualquer proposta teria sido melhor do que a dele. Imaginou como Miranda se sentiria a respeito depois de alguns dias de cortejo insistente. Nada dócil foi o sorriso que lhe veio aos lábios ao pensar nisso. Ele seria encantador e atencioso; iria seduzi-la com todo o carinho e ternura. Não seria difícil, não com o tipo de paixão que sentira nela esta tarde. E quando estivesse completamente apaixonada, dizendo-lhe que desejaria casar-se com ele mais do que tudo na vida... bem, então ele sorriria e diria que sentia muito, mas não costumava pedir alguém em casamento uma segunda vez.

Só de pensar na cena, sentiu enorme satisfação. No fundo, pensou, era um homem perverso, como Leona dissera na noite anterior. Partir o coração da fedelha americana o atraía muito mais do que se casar com ela.

Mudou de direção, indo para a casa da irmã, uma imponente propriedade que ocupava a maior parte de um quarteirão em Mayfair. O lacaio o conhecia e cumprimentou-o com uma reverência quando passou por ele e subiu as escadas até a sala de estar, no andar de cima. Ficou aliviado ao encontrá-la sozinha, concentrada em um bordado, em vez de recebendo visitas.

Rachel levantou os olhos ao som dos passos dele; um sorriso brotou em seu rosto.

— Dev! — Levantou-se rapidamente e foi em direção a ele, estendendo ambas as mãos. — Estou tão feliz em vê-lo... ainda que devesse repreendê-lo pelo que fez ontem à noite, ou, devo dizer, não fez. Aquilo foi muito constrangedor. Eu me senti uma tola tentando dizer à Srta. Upshaw que, no fundo, você era um bom homem.

— Não precisa mentir a meu respeito, Rachel — disse Devin com um sorriso, cumprimentando a irmã com um beijo no rosto. — Você sabe que sou tudo menos um bom homem.

— Bem, todo mundo na cidade dirá isso a ela. Eu estava tentando defendê-lo. Mas ficou um pouco difícil pelo fato de você não ter tido nem a cortesia de aparecer.

— Mas eu compensei isso hoje. Fui à casa da americana e pedi a mão dela ao pai.

— Dev! — Os olhos verdes de Rachel, uma versão terna e feminina dos olhos do irmão, brilharam de satisfação. — Você não fez isso! Verdade? Oh, estou tão feliz. Gostei da Srta. Upshaw assim que a vi. Acho que ela será uma esposa maravilhosa. Sei que isso é a coisa certa... vocês serão muito felizes.

— Não se a minha felicidade depender de um casamento com ela. A Srta. Upshaw recusou meu pedido.

— Recusou seu pedido? Devin riu.

— Bom, aplaca meus sentimentos feridos ver que você está indignada com isso. Estou certo de que nossa estimada mãe dirá que é bem-feito para mim.

— É, provavelmente é — admitiu Rachel. — Mas não, isso é tão desapontador. Eu, na verdade, esperava...

— Não perca a esperança, meu amor. Tenho um plano.

— Um plano? — Rachel lançou-lhe um olhar com uma ponta de suspeita. — O que isso significa? Um plano para quê?

— Para virar o jogo com a Srta. Ricaça — respondeu Devin. — Eu pretendo cortejar a fedelha. Fazê-la voltar atrás na recusa.

Rachel franziu o cenho.

— Mas por quê? Achei que você não queria se casar com ela. Imaginei que você teria ficado feliz por ela tê-lo rejeitado.

— Feliz por ouvir de uma americana qualquer que não sou bom o suficiente para ela? — perguntou Devin, friamente. — Creio que não, cara irmã. Não estou contente de casar-me com ela, mas isso não significa que me sinto bem em ser rejeitado.

Rachel franziu ainda mais o cenho.

— Devin...

— O quê? — Olhou para ela com ares inocentes. — Achei que você ficaria feliz por eu dar um empurrãozinho para chamar a atenção dela.

— Ficaria se pensasse que você estaria levando isso a sério. Mas essa parece ser uma jogada para você, e uma jogada cruel, diga-se de passagem.

— Não se preocupe com a americana. Pense somente em todo aquele dinheiro maravilhoso à espera de o agarrarmos.

— Devin! Você fala como se fôssemos tão...

— Tão o quê? Mercenários? Mas não somos? Não fomos sempre impulsionados na direção do dinheiro? Este não foi o objetivo maior de seu casamento? E o de Caroline? Eu não fui sempre o indolente que não cumpriria o dever familiar não me casando com uma herdeira? Os cofres dos Aincourt são, afinal, um poço sem fundo.

— Odeio quando fala desse jeito — disse Rachel, agora com o semblante entristecido. — Caroline e Richard se amavam. Ele está com o coração partido desde a morte dela, você sabe disso.

— Sei. — Suas feições suavizaram-se um pouco. — E eu sou vil ao lembrar-lhe de seu próprio sacrifício. Sobretudo quando fui sempre egoísta demais para fazer o mesmo.

— Não quero que você sacrifique sua vida, Dev. Quero sua felicidade. É só com isso que me importo.

— Bem, ficarei muito feliz em conquistar a Srta. Upshaw. E é por isso que quero que você dê uma festa e a convide.

— Dar uma festa?

— Sim. Uma festa à qual eu comparecerei... e na qual me esforçarei para reparar o dano que causei à opinião da Srta. Upshaw a meu respeito.

Rachel lançou um olhar demorado e ponderador. O brilho inflexível nos olhos dele a assustavam um pouco. Perguntou-se se estaria prestando um grave desserviço à americana ao ajudar Devin na tentativa de seduzi-la a aceitá-lo. Mas então lembrou da Srta. Upshaw e da conversa que tiveram na noite anterior, ocorrendo-lhe que Miranda Upshaw era capaz de se virar com qualquer um, até mesmo Devin.

— Está bem — disse ela, por fim. — Vou dar um baile para a Srta. Upshaw. Ela não poderá se recusar a comparecer a uma festa realizada para apresentá-la à sociedade.

— Obrigado, irmã querida. — Devin fez uma reverência brincalhona. — Estou eternamente em dívida com você.

— Farei com que se lembre disso — retrucou Rachel no mesmo tom de voz e acrescentou, mais reflexivamente: — Será interessante ver qual dos dois sairá vencedor. Talvez, e com sorte, os dois saiam.

 

Miranda virou-se primeiro para um lado, depois para o outro, olhando o reflexo no espelho. Atrás dela estavam sentadas a madrasta e a meia-irmã, observando-a. O pai andava de lá para cá pelo corredor, enfiando a cabeça pelo portal de tempos em tempos para ver como as coisas progrediam.

— Você está linda — disse Verônica, olhando para Miranda com brilho nos olhos.

— Ela tem razão — concordou Elizabeth. — Este verde-água combina perfeitamente com seus cabelos. Estou tão satisfeita por termos decidido comprá-lo.

— Eu também — admitiu Miranda. O vestido era adorável. Feito em camadas de um tecido transparente e verde bem claro, tinha um corte ondulado que fazia parecer que Miranda estava emergindo do mar. Amarrado com uma fita prateada larga abaixo do busto, acentuava a firmeza de seus seios, o decote baixo e arredondado favorecendo o colo. Nos ombros, havia uma faixa de prata tão fina que parecia nem existir. Seus cabelos castanhos estavam artisticamente arrumados em uma cascata de cachos pendentes, entre os quais havia, entrelaçada, uma fita no mesmo tom de prata. Estava mais bonita do que nunca, pensou com um sorriso de satisfação. Lorde Ravenscar não a encontraria comum ou desleixada esta noite.

Este, sabia, era o principal motivo que a fizera aceitar comparecer ao baile de lady Westhampton esta noite. Quando recebeu o convite, dissera secamente ao pai que não iria.

— Isso é apenas uma manobra para me forçar a encontrar lorde Ravenscar de novo, e nada vai me obrigar a isso — dissera ela, ignorando a expressão suplicante de Joseph.

— Nós não sabemos se é isso o que vai acontecer.

— E por que outro motivo lady Westhampton teria nos convidado? Obviamente, ela ama muito seu irmão, apesar do fato de ele ser um cretino. Deve esperar que ele seja capaz de me persuadir em uma segunda tentativa. Ou talvez pense que pode me deslumbrar com uma prova da vida reluzente da sociedade londrina, torcendo para que eu me case com ele só para comparecer a festas como essa.

— Estou certo de que não foi esse o motivo. Ela gosta de você. Você não disse que gostou dela?

— Sim. Mas não o bastante para me casar com seu odioso irmão.

— Vamos, Miranda, meu amor, ele era assim tão mau? — perguntou Joseph.

— Ele foi o homem mais rude e arrogante com o qual tive a infelicidade de conversar. Ele mal me olhou por todo o tempo em que falava. Ficou bem claro que me considerava muito inferior a ele e que fazia o pedido só porque estava desesperado. Se eu tivesse de viver com um homem como esse, um de nós seria encontrado morto em um mês.

— Talvez estivesse nervoso — Joseph sugeriu. — Pedir a mão de uma mulher costuma causar isso em um homem.

— Nunca vi um homem menos nervoso.

Miranda não contara ao pai sobre o modo como lorde Ravenscar a agarrara e a beijara à força. Não entendia ao certo por quê. Sabia que uma revelação como essa acabaria na hora com os questionamentos e apelos do pai. No entanto, percebeu que estava relutante em dizer isso a ele. Era constrangedor: mal podia pensar no incidente que ruborizava. E, também, não tinha certeza de como o pai reagiria. Ele não era um homem destemperado, mas um insulto como aquele à filha era algo que poderia provocar um acesso de fúria. E, se isso acontecesse, estava quase certa de que ele poderia fazer algo impensado, como ir até a casa do conde e agredi-lo. Embora aquele homem merecesse, tendo visto o conde em ação na noite anterior, imaginou que o pai estaria em desvantagem numa briga, e certamente não queria vê-lo machucado.

Mas Miranda sabia que havia mais do que isso impedindo-a de revelar o comportamento escandaloso de Ravenscar. Não sabia ao certo a razão; apenas queria guardar a informação para si. O beijo a deixara confusa e insegura, uma condição à qual não estava acostumada, e relutava em permitir que alguém o percebesse.

Ela não gostava nem um pouco do homem, exatamente como dissera ao pai. Sentia que poucos minutos na companhia dele a deixariam furiosa de novo. O que não revelava, entretanto, era que não conseguia parar de pensar no beijo, que havia algo dentro dela que ansiava com igual intensidade senti-lo mais uma vez. Não queria dizer isso a Joseph, claro, mas sabia lá no fundo que estava intrigada com a idéia de encontrar Ravenscar mais uma vez.

Lorde Ravenscar não encontraria uma garota desleixada e de óculos aquela noite, pensou e sorriu para si mesma, dando uma última olhada no espelho antes de se afastar para calçar as luvas compridas. A noite inteira valeria a pena só para ver a expressão no rosto dele.

Joseph apareceu no quarto novamente, com luvas em uma das mãos e o relógio de ouro na outra.

— Hora de ir — disse, depois parou, olhando para a filha.

— Veja! Terei de lutar para mantê-los afastados hoje à noite, garanto-lhe.

Miranda riu.

— Obrigada, papai.

— Não há nada que possa colocar neste decote para cobri-la um pouco? — continuou ele, franzindo o cenho. — Um babado, uma renda ou algo assim?

— Este é um vestido de festa, papai. É assim que eles devem ser.

— Sim, querida — concordou Elizabeth serenamente, de sua poltrona. — Essa é a última moda.

—Achei-o absolutamente magnífico—acrescentou Verônica, suspirando. — Gostaria de poder ir com vocês. Só de pensar em conhecer todas aquelas pessoas... as mais ricas e enaltecidas da sociedade inglesa.

— As mais falsas e tolas seriam uma descrição melhor — respondeu Miranda, e passou a mão carinhosamente nos cabelos castanhos da menina. — Sua hora chegará.

— Sim, sua irmã cuidará do seu debut — prometeu Joseph. — Assim que estiver estabelecida na sociedade.

— Papai...

— Sabe, Joseph, você não deveria pressioná-la — Elizabeth interveio, delicadamente. — Ela não precisa se casar com lorde Ravenscar. Na verdade, você sabe que eu acho que ela não deveria fazer isso.

— Eu sei, Elizabeth — disse Miranda à madrasta, com um sorriso. — Acredite, não tenho qualquer intenção em concordar em me tornar lady Ravenscar.

— Acho esse um nome maravilhosamente romântico — disse Verônica, dando outro suspiro de admiração. — Ravenscar. Ele soa tão... tão selvagem e exótico.

— Humm. — Miranda pegou o leque de cima da mesa a seu lado. — Selvagem e exótico demais para uma pessoa simples como eu, com certeza. Tudo certo, papai, estou pronta.

— Finalmente. — Ele foi em direção à esposa e inclinou-se para beijá-la no rosto. — Gostaria que fosse conosco, Elizabeth. É uma pena estar perdendo todas essas festas.

— Não tem importância. Não estou nem mesmo com vontade de sair hoje. Quero ir à ópera daqui a alguns dias.

— Tenho certeza de que será mais divertido... e muito menos cansativo — concordou Miranda, indo também até a madrasta e beijando-a.

O pai ofereceu-lhe o braço, Miranda apoiou a mão nele, e ambos saíram, descendo as escadas para a carruagem que os esperava do lado de fora. Joseph ficou atipicamente silencioso no caminho até a mansão Westhampton, olhando pensativo pela janela. Por fim, disse:

— Sabe, eu não gostaria que você fizesse nada que a tornasse infeliz.

— Sei disso, papai. — Miranda esticou o braço e afagou seu joelho.

— Talvez Elizabeth esteja certa... Só estou pensando em mim, não em você.

— Bem, sou bastante capaz de pensar em mim, e, acredite, você não vai conseguir me coagir a fazer algo que eu não queira. — Ela sorriu. — Com certeza, não acha que me tornei frágil e dócil nos últimos dias, acha?

Um sorriso se abriu no rosto do pai quando ele girou a cabeça para olhar para a filha.

— Não, não acho.

— Então, não há nada com que se preocupar. Sou tão cabeça-dura quanto você, portanto pode discutir comigo o quanto quiser que não conseguirá me desviar do que desejo fazer. Agora, Verônica é outro caso.

— Verônica! — O pai pareceu surpreso. — Eu nunca tentaria coagir Verônica a fazer nada. Ela, bem, ela o faria só para me satisfazer e então seria totalmente infeliz.

— Vê? Você sabe que comigo não tem de se preocupar.

— Você tem razão. — Ele pegou a mão da filha com um sorriso. — É um alívio, para mim, saber que você não leva em consideração nada do que falo.

Miranda riu e apertou a mão dele.

No instante em que chegaram, a mansão Westhampton estava cheia de gente. Miranda ficou para trás de propósito, agitando o vestido como nunca o fizera porque queria fazer uma entrada majestosa. Ficou desapontada, no entanto, ao lançar-se na grande escadaria no braço do pai e perceber que Ravenscar não estava ali para assistir à sua descida. O homem conseguira uma vantagem sobre ela, pensou, contrariada, enquanto seus olhos perscrutavam rápida e discretamente pelo grande salão de baile. Ela não o via em lugar algum. Será que essa festa era apenas puto de uma irmã esperançosa? Será que Devin não havia planejado tentar cortejá-la?

Esse foi um pensamento deprimente. Miranda estivera contando, a semana toda, com uma nova oportunidade de dar o troco àquele homem arrogante. Mesmo assim, com a melhor expressão no rosto possível, cumprimentou Rachel, que estava recebendo os convidados ao pé da escadaria, com um sorriso.

— Srta. Upshaw! — Os olhos verdes de Rachel brilharam, e ela pegou as mãos de Miranda, cumprimentando-a amistosamente.

Agora que conhecera o irmão, Miranda pôde identificar a semelhança entre eles. Como Devin, Rachel era alta. Os ombros largos faziam com que as roupas caíssem lindamente nela. Seus cabelos cheios e brilhosos eram negros, como os dele, e os olhos, do mesmo tom de verde. Mas uma ternura fazia os olhos dela mais doces e convidativos e dava um toque amigável a seus traços, o que não acontecia com o rosto de lorde Ravenscar.

— Estou tão feliz por ter comparecido hoje. Fiquei com medo de que o comportamento intolerável de meu irmão a afastasse. Posso garantir-lhe que ele se arrepende profundamente.

Miranda tinha sua própria opinião a respeito. Duvidava que o conde de Ravenscar se arrependesse de algo, mas não se podia culpar a irmã por não enxergar seu verdadeiro caráter.

Rachel também cumprimentou o pai de Miranda calorosamente. Para além dela estava sua mãe, lady Ravenscar, que relaxou apenas o suficiente para sorrir para eles, apesar de o gesto não ter se estendido ao olhar. Ela, pensou Miranda, era mais como o conde... odiando a idéia de ter de se rebaixar para permitir que meros campesinos entrassem na família. Miranda cumprimentou lady Ravenscar com o mesmo calor e entusiasmo exibidos pela senhora. Então começou a se movimentar com o pai em direção aos convidados.

Mas Rachel não a deixaria escapar assim, tão facilmente. Foi para o lado deles e deu o braço a Miranda.

— Deixe-me apresentá-la a algumas de minhas amigas — disse-lhe, guiando Miranda na direção de um grupo de jovens matronas.

Rachel apresentou-a a todas as mulheres. Algumas eram tão amáveis quanto Rachel em seus cumprimentos, outras eram mais frias. Miranda podia ver os olhos delas percorrendo seu vestido, avaliando estilo e custo. Sabia que fora feito por um dos melhores estilistas de Londres, então não havia com o que se preocupar. Sem dúvida alguma, quem quisesse encontraria algo para criticar em seus modos e em seu jeito de falar, mas Miranda não se incomodava. Sabia que estava vestida para apenas uma pessoa ali, naquela noite... e, aparentemente, tudo fora em vão. Não havia sinal do conde de Ravenscar em lugar algum.

Tinha consciência de que as pessoas estavam falando dela. Viu os olhares de esguelha e ouviu os murmúrios por trás de mãos e leques enquanto Rachel a conduzia, apresentando-a a uma vertiginosa fila de garotas vestidas de branco, matronas em vestidos magníficos e ricas viúvas vestidas de negro enfileiradas em poltronas encostadas na parede. De vez em quando, assim que Rachel se virava para falar com outra pessoa, Miranda podia ouvir fragmentos de diálogos:

"(...) tão selvagem que só uma americana se casaria com ele..."

"(...) nada além de antros de jogatina e casas de má reputação..."

"Bem, o que você poderia esperar? Ele gastou toda a fortuna (...) cartas, bebida e mulheres."

"(...) bonito como o próprio Lúcifer, é claro."

"Graças a Deus ele nunca jogou charme para minha Marie."

"Bem, ela se arrependerá."

Aquilo era quase o suficiente para fazer qualquer um sentir um pouco de piedade pelo homem, pensou Miranda... mas só para alguém completamente desavisado a respeito dele. Também achou irritante todos parecerem acreditar que ela aceitaria o pedido de casamento, como se uma americana fosse ficar feliz em desposar um aristocrata britânico, não importando o quão baixo e vil ele fosse. Esta era uma atitude com a qual deparara várias vezes durante sua estada ali. Em sua terra, ela e sua família faziam parte da mais alta sociedade; aqui, pareciam ser meramente tolerados como uma curiosidade grotesca. Achou peculiar que o sucesso na vida contasse tão pouco em relação ao nome que alguém trazia.. Exatamente a mesma atitude que Ravenscar demonstrara; o desgosto e o desprezo de ter de pedir em casamento uma simples mulherzinha da ex-colônia transpareceram em sua fala e em seus modos. Ela supôs que houvesse sido inevitável para ele, tendo crescido no meio dessas pessoas, tornar-se assim tão arrogante.

Miranda já estava ali por quase uma hora agora, o que parecia muito mais, considerando os diálogos fúteis dos quais tivera a infelicidade de participar. Se o homem não aparecesse logo, pensou, iria para casa mais cedo e descansaria com um bom livro. Com certeza, seria mais divertido que tudo aquilo.

Naquele momento, uma voz grave soou atrás dela e de Rachel.

— Minha cara irmã — Ravenscar começou. — Uma reunião bem-sucedida, como sempre.

— Olá, Dev. — Miranda sentiu o braço tenso de Rachel contra o dela, mas já sabia quem era pela voz. Era o tom grave e distorcido do homem que salvara, com um toque de leveza e graça colorindo sua voz, não o balbuciar arrogante do Ravenscar que a pedira em casamento. Miranda virou-se, como Rachel o fizera, para olhá-lo.

— E quem é essa... — Devin tropeçou nas palavras obsequiosamente ao colocar os olhos em Miranda, que percebeu seu arregalar de olhos e a maneira rápida com que varreram seu corpo de cima a baixo. Nesse instante, soube que o vestido e o penteado haviam causado o efeito desejado. - adorável senhorita — continuou, disfarçando o pequeno tropeço de suas palavras. — Ah, mas eu a reconheço agora, Srta. Upshaw. É um prazer revê-la.

— Não poderia ser um prazer menor do que o foi da última vez em que nos vimos — respondeu Miranda, com um tom igualmente suave. — Como vai, lorde Ravenscar?

— Melhor agora, que a vi. — E virou-se ligeiramente na direção da irmã. — Rachel, roubarei sua convidada. Você já monopolizou-a por muito tempo. Uma valsa está para começar, Srta. Upshaw. Se me der a honra...

Ele estendeu-lhe a mão, os olhos desafiadores no rosto bonito. Devin sabia que Miranda preferiria dizer não, mas essa atitude teria sido excessivamente rude para com sua irmã, a anfitriã da festa, que estava em pé ao lado deles.

— Eu mal tive oportunidade de conversar com lady Westhampton — Miranda mentiu, fazendo uma tentativa de esquivar-se do convite.

Mas Rachel foi mais rápida.

— Oh, não se incomode comigo, Srta. Upshaw. Estou negligenciando meus convidados. Apreciei bastante o tempo que conversamos. Vá em frente e dance com Dev. Posso assegurar-lhe, sejam quais forem seus defeitos, ele é um exímio dançarino. Nós duas teremos chance de conversar mais tarde.

— É claro. — Não havia nada que Miranda pudesse fazer agora, com todos olhando para eles, exceto aceder graciosamente.

Botou a mão no braço que Devin lhe ofereceu e caminharam juntos até o salão de dança. Viraram-se de frente um para o outro, e ele pegou-lhe a mão, deslizando a outra suavemente em torno da cintura dela. Miranda olhou para cima, para o rosto dele, seu coração batendo mais rápido do que gostaria. O homem era inegavelmente lindo.

Ele rodopiou-a pelo salão assim que começaram as primeiras notas da valsa, e, nos momentos seguintes, não se falaram, apenas movimentando-se ao som da música, concentrados em coordenar os passos. Era fácil dançar com ele, constatou Miranda. Devin era, como a irmã dissera, um excelente dançarino — movimentando-se com graça e conduzindo-a com leveza, em nada parecido com os puxões de um lado para o outro que alguns homens costumavam fazer. Depois que entraram no ritmo da dança, Devin sorriu para ela, um tanto ironicamente.

— Bem, uma bela transformação, devo dizer.

— Nem tanto... se o que importa é olhar por baixo da superfície das coisas.

— Ah, um soco direto, Srta. Upshaw. Você me pegou. Eu não demonstrei consideração no outro dia.

— Você foi rude — Miranda corrigiu-o asperamente. — Arrogante, rude e profundamente desagradável.

— Sim. Confesso que fui tudo isso. E logo após você ter vindo em meu socorro na noite anterior. Foi muito grosseiro de minha parte.

Aquela pronta admissão de sua falta de modos pegou Miranda de surpresa. Ela esperava que ele discutisse, ou negasse suas afirmações... ou que simplesmente as ignorasse. Não estava preparada para que concordasse com ela. Aquilo deixou-a, percebeu, sem palavras.

Ele sorriu ao ver a expressão em seu rosto.

— Veja, pelo menos sou honesto. Pode me dar o crédito por isso.

— Isso conta um pouco, suponho... Um pouquinho.

— Pelo menos tenho algo a partir do qual posso trabalhar. Talvez possa redimir minha falta de modos naquele dia.

— Não tenho certeza se isto é possível. Sempre poderia achar que seus modos educados são apenas fachada, e que por trás disso está o mesmo homem que se comportou tão mal.

— Nenhum pedido de desculpas será suficiente, então? Não se pode dar a uma pessoa a oportunidade de melhorar?

— Melhorar é uma coisa boa, contanto que seja de verdade.

— Você, obviamente, duvida da minha capacidade... ou da minha veracidade.

— Não o conheço bem o suficiente para responder, lorde Ravenscar. As situações nas quais o vi...

— Eu sei. Não me apresentei na minha melhor forma. — Um sorriso levantou um dos cantos de sua boca. — Ainda que haja muitos que diriam que não tenho nada de bom.

— Fala sério? Até agora você não está apresentando uma defesa muito boa de si mesmo.

— Não, não estou, não é? Acho que deve ser você, Srta. Upshaw. Normalmente sou muito mais articulado. Você me deixa sem palavras.

— Deixo? Fico impressionada por ter tal poder sobre você. Especialmente pelo fato de ser o sexto conde de Ravenscar, enquanto sou apenas uma simples provinciana que mal sabe quem era o avô. — Ela sorriu afavelmente para ele. Ravenscar deixou escapar um gemido.

— Você não vai me deixar esquecer isso, vai?

— Não, creio que não.

— Deixe-me pedir desculpas, Srta. Upshaw.

— Certo. — Ela olhou para ele, à espera. — Vá em frente. Peça desculpas.

As palavras dela pareceram aturdi-lo. Ele desviou o olhar, dizendo:

— Bem, ah...

Miranda deduziu que pedir desculpas era algo que o homem raramente fazia.

— Sim?

— Desculpe-me — disse ele, por fim, e olhou de novo para ela. — Eu não deveria ter agido do modo como agi ou dito as coisas que disse. Não há justificativa, exceto... francamente, eu estava com raiva, e lamento ter descontado em você.

Ravenscar pareceu ligeiramente surpreso, como se não houvesse esperado dizer o que disse — ou talvez não tenha se dado conta da verdade até aquele momento. Hesitou um instante, e então disse:

— Podemos conversar?

— Achei que era isso o que estávamos fazendo.

— Não, quero dizer... — ele a conduziu para o canto do salão e parou —... vamos dar uma caminhada, pegar um pouco de ar fresco. E conversar.

— Certo — concordou Miranda. Ela não sabia ao certo quais eram as intenções de Ravenscar ou exatamente por que sentira essa necessidade repentina de conversar. Deduziu que estava de algum modo engajado em fazê-la aceitar seu pedido de casamento. Não descartava a possibilidade de ele preparar-lhe uma armadilha para fazê-la casar-se com ele — como, por exemplo, arruinar sua reputação —, mas estava confiante de que podia ser mais esperta do que ele. E estava interessada em descobrir o que ele havia maquinado para convencê-la — ou forçá-la — a aceitar a proposta.

Apoiou a mão no braço dele e caminhou a seu lado pelo perímetro da sala até chegarem às largas portas duplas abertas para o terraço da mansão. Havia outras pessoas ali, fugindo do ar quente e confinante do salão de baile. Alguns caminhavam, assim como eles, e outros formavam grupos de conversa. Miranda viu mais de um par de olhos deslizar em sua direção e depois desviar. Também percebeu de relance uma mesma quantidade de mãos levantadas para disfarçar sussurros. Tinha certeza de que todos estavam falando deles. Não sabia ao certo que comentários estavam fazendo ou o quanto os conhecidos de Ravenscar sabiam a respeito de seu pedido de casamento, mas era óbvio que houvera rumores.

Ravenscar guiou Miranda cortesmente para longe das pessoas do terraço e desceram os degraus de uma das passarelas do jardim iluminada por lanternas dispostas aleatoriamente por entre as árvores.

— Eu não queria ter de me casar — disse a Miranda. — Eis por que estava com raiva... e constrangido. Então agi como um tolo. — Lançou-lhe um olhar de soslaio. — Se soubesse quem você era, teria sido completamente diferente.

— Teria? — respondeu Miranda, friamente. Se ele achava que aquilo era um pedido de desculpas aceitável, ainda tinha muito o que aprender.

Ele parou de andar, de modo que ela teve de parar também. Virou-a de frente para si. Miranda olhou-o nos olhos, escurecidos pela pouca luz do jardim, e sentiu os joelhos ficarem repentinamente fracos. Talvez esse pedido de desculpas tenha sido o suficiente, no fim das contas. Ela sentiu uma onda de sensações que não tinham nada a ver com o fato de estar ressentida com ele.

— Sim. A mulher misteriosa que veio de modo tão ousado em meu socorro... a mulher bonita que vejo diante de mim... como não haveria de ficar intrigado?

— Além de ser tudo isso — respondeu Miranda —, sou também a americana insignificante com quem sua mãe está forçando você a se casar.

Os olhos dele se acenderam.

— Eu não estou sendo forçado por minha mãe a me casar com você. Ela não tem esse poder.

Miranda virou-se, escondendo um sorriso. Era fácil demais provocá-lo. Ela já percebera que, quando subestimada, era muito mais fácil manipular os outros. Isso funcionava sempre a seu favor quando lidava com homens que pensavam que era incompetente só por ser mulher. Era igualmente fácil com esses aristocratas britânicos, que achavam que não era sofisticada e que a consideravam até mesmo idiota, só por ser americana.

— Desculpe-me. Eu deveria ter dito que você está sendo forçado a se casar para escapar... como é que se costuma dizer por aqui?... do laço das dívidas?

— Se é assim que deseja se referir a isso — disse ele, a irritação tornando sua voz áspera. Miranda manteve o rosto virado para baixo, mais para esconder o humor em seus olhos do que por timidez. Ravenscar colocou a mão em seu queixo e suspendeu-o, de modo que ela olhasse diretamente para seu rosto.

— Agi de forma precipitada com você — disse ele, sorrindo levemente. — Perdão. Não costumo ser tão amedrontador assim. Por favor, aceite minhas desculpas e permita-me cortejá-la.

Ele pegou o braço de Miranda, elevando-o e inclinando-se para pousar um beijo suave na parte de dentro do pulso dela.

— Deixe que lhe mostre o homem que posso ser. Dê uma chance a mim. Dê uma chance a nós.

Enquanto falava, seus lábios se moviam em pequenos beijos percorrendo o braço de Miranda até o cotovelo. O charme estudado de suas palavras a irritaram, mas ela não conseguiu conter a profunda onda de prazer que sentia ao toque daqueles lábios em sua pele. Não sabia como o mais leve beijo na pele sensível do braço poderia fazer seu abdômen inundar-se de calor e a pele formigar.

— Senhor — disse ela, constrangida ao perceber que a voz tremia —, isso não me parece apropriado. Estamos sozinhos no jardim.

— Sim, estamos. — A voz dele era rouca. Suas mãos deslizaram para a cintura dela e puxaram-na delicadamente mais para perto.

— As pessoas vão...

— Ao inferno com as pessoas. — Ele baixou a cabeça e beijou-a.

O desejo percorreu o corpo dela como se fosse a primeira vez que ele a beijava, estarrecendo-a e alarmando-a ao mesmo tempo em que se derretia. Devin abraçou-a, pressionando o corpo contra o dela. O físico dele era firme e masculino, deliciosamente diferente do seu. Miranda nunca sentira a força e o poder do corpo de um homem dessa forma; nenhum dos homens que conhecia jamais ousaria ser tão presunçoso. O fato de esse homem não se sentir intimidado por ela aumentava de alguma forma o tremor de pura luxúria que a atingia. Sentiu sua boca, quente e faminta, e o calor que emanava de seu corpo. Tremeu, os dedos se fechando nas lapelas da casaca de Devin, segurando-se a ele em um mundo repentinamente instável,

Devin emitiu um som baixo e trouxe-a mais ainda para junto de si, aquele beijo cuidadosamente calculado transformando-se de repente em um beijo de paixão. Seus lábios atacaram os dela, e Miranda correspondeu com igual entusiasmo, surpreendendo-o com uma explosão de desejo profundo. Ele quisera seduzi-la, manipulá-la para que o desejasse. De repente, tudo o que queria era senti-la nua sob si.

Ele deslizou as mãos pelas costas de Miranda e por suas nádegas arredondadas, apertando-a e levantando-a. Ela pôde sentir o volume teso de Devin e, embora não tivesse experiência nesses assuntos, soube instintivamente o que era, e esse pensamento provocou um ardor em sua virilha. Seus braços enlaçaram o pescoço dele, e ela se curvou. Devin gemeu, as mãos acariciando selvagemente suas costas e quadris.

Miranda se pendurou nele sem prestar atenção em nada que não fosse o intenso prazer que sentia. Os seios ansiavam e formigavam de uma forma inimaginável, e seu sexo latejava intensamente. Queria envolvê-lo com as pernas e aliviar o vazio que crescia ali. Queria sentir as mãos dele em seus seios e pernas... por todos os lugares. O corpo dele parecia uma fornalha, o hálito quente em seu rosto, e tal sensação multiplicou seu desejo.

Devin afastou a boca, o que quase fez com que Miranda soluçasse pela perda. Então começou a descer com os lábios pelo pescoço, acariciando-a e mordiscando-a delicadamente. Sua mão subiu deslizando pela frente, entre seus corpos, e ele segurou um dos seios, surpreendendo-a e excitando-a. O polegar roçou o mamilo por cima do tecido, endurecendo-o e enviando um fervor de desejo tão intenso por todo o corpo de Miranda que fez com que deixasse escapar um gemido alto.

Foi o som de sua própria voz, descontrolada e estranha, que a trouxe de volta a si e a fez sair do transe de desejo no qual Ravenscar a colocara. Miranda se deu conta, com uma onda de vergonha, de onde estavam e o que estavam fazendo. Ela planejara desmascarar o conde arrogante e, em vez disso, ele a seduzira tão facilmente quanto a uma mulher de taverna da pior categoria, deixando-a ardente e ofegante de desejo por ele, ávida por sentir seu toque, seu beijo... e tantas coisas mais, que ficou ruborizada só de pensar.

— Não! — Desvencilhou-se dele que, assustado, soltou-a. Devin ficou parado observando-a, os braços inesperadamente vazios, o fogo queimando, insatisfeito, por suas veias.

Miranda alisou o vestido e levantou a mão para colocar uma mexa de cabelo solto de volta no lugar.

— Francamente, lorde Ravenscar — disse ela, tentando passar toda a calma que podia na voz. Não podia deixar que ele percebesse como conseguia abalá-la com facilidade; isso seria humilhante demais, — Esta não é a hora nem o lugar. Qualquer um pode se aproximar de nós a qualquer momento.

— Eles não irão. — Sua voz era baixa e, ficou surpreso ao perceber, quase trêmula com a intensidade de seu desejo. — Nós podemos ir mais para adiante. Conheço um lugar... — Devin parou abruptamente, percebendo horrorizado que estava quase implorando.

Uma raiva comedida transpassou Miranda pelo fato de que ele conhecia o melhor lugar perfeito para seduzir uma mulher no jardim da irmã.

— Sim — disse ela, friamente. — Tenho certeza de que você teve uma vasta experiência ali adiante. Entretanto, não tenho a intenção de ser mais uma de suas amantes.

Miranda virou-se para encará-lo, os olhos cinza brilhando, prateados de raiva.

— Não há mesmo necessidade dessa farsa, senhor. Nós dois sabemos o que quer de mim, portanto é tolice fingir uma paixão que nenhum de nós sente. — Seu sorriso era frio. — Você não conseguirá me seduzir para que aceite o pedido de casamento.

Suas palavras foram como sal na ferida aberta da frustração sexual de Devin. Ele sentira paixão — um volume alarmante dela, na verdade —, em óbvio contraste à ausência pia de paixão por parte dela. Ficou muito irritado com o fato de que ele, que planejara seduzi-la, houvesse sucumbido ao desejo, enquanto Miranda estava ali, fria e desdenhosa.

— Não pretendo me casar com você. Nunca pretendi, mesmo antes de seu pedido sem graça — continuou Miranda, sentindo-se novamente controlada. Foi assustador o modo como quase perdera o controle. E pensar que chegara tão perto de cair como uma menina ingênua na falsa sedução deste canalha! — Não estou interessada em um casamento arranjado... ainda que, é claro, possa ver as vantagens de um.

— Mesmo. — Devin cruzou os braços, olhando irritado para Miranda.

— Oh, sim, mesmo. Para você, é claro, há o meu dinheiro. Para mim, bem... Eu poderia apresentar minha irmã Verônica à sociedade londrina do jeito que minha madrasta deseja. Isso agradaria tanto a Verônica quanto a minha madrasta, ambas muito queridas para mim. E seu nome, obviamente, é tradicional e respeitado, apesar de você tê-lo manchado com suas práticas perdulárias.

— O quê? — Ele arregalou os olhos e fechou as mãos, os braços esticados ao lado do corpo. — Como ousa?

Miranda olhou para ele com ar inocente.

— Mil perdões. Essa não é a verdade? Foi o que ouvi. Mas talvez os comentários não lhe tenham feito justiça. Você não gastou toda a sua fortuna? Não anda em má companhia e passa seu tempo em inferninhos de jogatina e casas de má reputação?

Ele apertou os lábios, um rubor surgindo em seu rosto firme.

— Então? — Miranda provocou-o. — Trata-se de um falso rumor?

— Você não deveria nem saber da existência de tais coisas, muito menos mencioná-las — falou ele, contrariado. — É vergonhoso.

— É vergonhoso eu mencioná-las, mas não o é você praticá-las? Francamente, lorde Ravenscar, não sou tola, se é isso o que você pensa a respeito daqueles que vivem além da reverenciada costa da Inglaterra. Também não sou surda. Não imaginou que eu ouviria os rumores? Só esta noite, ao andar pelo salão, ouvi que você envergonhou o nome de seu pai, desperdiçou...

— Cale-se! Você não sabe do que está falando.

— Ah, sei sim. Promiscuidade, depravação, bebedeiras... essas coisas são como vento no moinho dos boatos. Todos falam a respeito. Estou certa de que nenhuma das pessoas aí dentro se importa se uma americana desprezível vá ter a infelicidade de se casar com um homem com sua reputação. Mas isso conta pontos contra você, pelo que sei. E, obviamente, nenhum dos seus deixará que se case com uma de suas filhas. À parte, é claro, da afeição natural que sentem por elas, nenhum deles desejaria aliar seus nomes a um outro tão manchado por escândalos. É por isso que você deve se contentar com uma herdeira que não é da nobreza... até mesmo uma não-britânica. Sua reputação deve ser realmente muito ruim.

O rosto de Devin parecia feito de pedra ao encará-la com uma expressão fria e dura nos olhos, que pareciam bolas de gude. Miranda sabia que ele gostaria de poder lançar sua ira sobre ela, mas não podia, porque tudo o que tinha dito era verdade.

— Obviamente, uma mancha em seu nome não incomodaria tanto a nós, americanos. Meus conterrâneos parecem estranhamente apaixonados por títulos. Suponho que isso se deva ao fato de termos nos livrado de tais detalhes sem sentido há muito tempo. O que criou um vazio para os muito orgulhosos, sabe. De modo que conheço alguns americanos abastados que comprariam maridos aristocratas para suas filhas, só para que pudessem ter um título na família. Eu, no entanto, tenho pouco interesse em ser "lady" Ravenscar. Ele soa como um título vazio, e, francamente, prefiro meu próprio nome. Ainda que — acrescentou ela, com um olhar pensativo — a idéia de restaurar sua propriedade de certa forma me atraia. Gosto de colocar as coisas em ordem e funcionando, e tenho certeza de que ela tem sido negligenciada. Sinto-me atraída por construções antigas, a arquitetura elizabetana é uma das minhas favoritas, assim como de papai. Sei que Darkwater é um exemplo espetacular de mansão do início do período elizabetano. E, é claro, a história que a cerca é intrigante. A maldição e tudo mais. É verdade que Darkwater foi feita com pedras tiradas...

— Para o inferno com Darkwater! — Ravenscar explodiu. — O maldito lugar pode apodrecer, pelo que me diz respeito. Este aqui é um nobre inglês que não está à venda para você ou para qualquer outra americana rica. Prefiro que a propriedade inteira caia em ruínas ao meu redor. Prefiro morrer na pobreza a me casar com uma bruxa ordinária e insensível como você! Boa noite, Srta. Upshaw. E até logo.

Devin passou por ela com um esbarrão e foi embora.

 

— Bem! — Miranda ficou olhando enquanto Ravenscar desaparecia por uma das passarelas do jardim. — Isso foi interessante.

Ela pretendera provocar uma reação nele, mas aquela explosão fora algo bastante diferente do que esperara. Irritação, ira contida, frustração e desgosto — era isso o que esperara causar no conde. Mas a fúria inflamada e o orgulho ferido que haviam brilhado nos olhos dele foram muito mais do que ela poderia antecipar. Da mesma forma que o pronunciamento seco de que ele não estava à venda. Era o suficiente para imaginar que talvez, no fim das contas, houvesse algo mais naquele homem.

Miranda caminhou até um banco de pedra, estrategicamente colocado para que se pudesse dali admirar um canteiro de flores, e sentou-se. Os joelhos, honestamente, estavam um pouco trêmulos. A noite fora... bem tumultuada. Devin Aincourt a surpreendera mais de uma vez esta noite, e isso a intrigara. Seus beijos a haviam derretido. Era honesta demais para admitir o contrário. Nenhum outro homem a fizera sequer vislumbrar tais sensações, e — continuando na mesma linha de honestidade — gostaria de sentir tudo de novo. Por que o único homem que a fizera sentir esse deleite ligeiramente assustador tinha de ser um de tão pouco caráter? Por que não poderia ser alguém correto e honesto? Por que era esse o homem cujos beijos eram tão doces, cujos lábios podiam fazê-la sentir como se o mundo tivesse parado, cujos olhos eram tão verdes como uma folha nova e cujas mãos eram...

Miranda balançou a cabeça para organizar os pensamentos. Era tolice ficar sentada ali pensando em alguém tão claramente inadequado como o conde de Ravenscar. E, ainda assim... não o favorecia o fato de ter rejeitado tão veementemente a idéia de se vender como marido? Ravenscar tinha orgulho — e não apenas o orgulho movido por vaidade como o de muitos aristocratas, mas uma confiança mais profunda em si mesmo. Ela vira isso em seus olhos enquanto ele a enfrentava. Havia dor ali, um certo desgosto consigo mesmo. Ele sentira raiva, não somente dela, mas de si mesmo, por fazer o que achava que deveria. O dinheiro não fez com que valesse a pena desistir de seu orgulho, e ela gostou disso. Talvez, pensou, pudesse querer ver o conde de Ravenscar novamente.

Miranda levantou-se e caminhou de volta ao terraço, a cabeça entregue aos pensamentos.

— Srta. Upshaw?

Miranda levantou a cabeça e viu lady Westhampton em pé no terraço, as mãos enroladas nas pontas do xale que colocara nos ombros, o semblante marcado por ansiedade.

Miranda sorriu.

— Olá, lady Westhampton.

Rachel relaxou visivelmente ao cumprimento tranqüilo de Miranda. Como vira o irmão adentrar feito um raio o salão de baile alguns minutos antes, ficara com medo de que algo ruim houvesse acontecido entre eles. Mas, aparentemente, não havia nada perturbando Miranda. Rachel ficou se perguntando se o irmão apenas estaria chateado, ou se a Srta. Upshaw era boa em dissimulações.

— Espero que você tenha gostado da festa — começou Rachel, vacilante.

— Sim, foi realmente divertida.

— De verdade? — Rachel observava Miranda um pouco inquieta. — Eu, ah, eu espero que nada tenha acontecido... digo, que meu irmão não tenha, bem... ofendido você.

Um sorriso malicioso brotou no rosto de Miranda.

— Não. Na verdade, creio que foi o contrário. Eu ofendi lorde Ravenscar.

Rachel riu.

— Não consigo imaginar isso, Srta. Upshaw. Devin não se ofende facilmente.

— Não? Sério? Tive uma impressão diferente dele. Parece-me que é bastante orgulhoso e que se ofende muito facilmente.

— Oh, minha querida. — Rachel sentiu um aperto no coração. — Ele fez algo, não fez? Ou disse algo?

— Bem, ele disse que preferia ver Darkwater cair em ruínas a seu redor do que se casar comigo. Mas, veja bem — acrescentou Miranda honestamente —, eu fui um tanto direta e, bem, até um pouco má.

— Oh. — Rachel olhou para ela, confusa. — Você foi má com Devin?

— Sim. Eu posso ser má, sabe. Há alguns homens em Nova York que ficam aterrorizados quando chego.

Rachel riu e então olhou para ela com um ar duvidoso.

— Você está brincando, não está?

— Não de todo — admitiu Miranda. — Não suporto desonestidade. E fui um tanto abrupta com um ou dois homens que pensavam que podiam me ludibriar com suas trapaças. Bom, fiquei irritada com lorde Ravenscar porque ele estava sendo desonesto.

— Devin? Ele normalmente é o contrário... Direto, a ponto de ser rude.

— Verdade? Prefiro assim. Ofensivo como foi no outro dia, quando me pediu em casamento. Creio ser preferível daquela forma. Ele foi arrogante e rude, mas pelo menos foi honesto. Hoje ele tentou me seduzir para que me casasse com ele.

— Oh, minha querida — disse Rachel com a voz enfraquecida.

Miranda olhou para ela e viu o rubor em seu rosto.

— Sinto muito. Agora eu a constrangi. Quase esqueci que ele é seu irmão. Você pode não gostar de que falem dele dessa forma.

— Não — concordou Rachel, honestamente. — Mas tenho ouvido muitas coisas ruins a respeito de Dev todos esses anos, infelizmente.

— Bem, eu preferia que ele me dissesse a verdade, que odeia a idéia de se casar comigo mas que fará isso pelo dinheiro, do que fingir um interesse que não sente.

Miranda hesitou, percebendo enquanto falava que o que estava dizendo não era totalmente verdade. Ela não achava que Ravenscar não havia sentido nada daquele desejo que expressara. Sentira o calor de seu corpo e outras manifestações inconfundíveis da paixão em um homem. O problema é que ele tinha arquitetado a ocasião para tentar levá-la a dizer sim. E, era bastante honesta para admitir, grande parte de sua raiva se devia ao medo que tinha de ele não ter sentido o desejo no nível surpreendente que ela sentira. Entretanto, não podia explicar tais detalhes para a irmã dele, daí limitou-se à superfície dos fatos.

— Então apontei algumas das desvantagens em me casar com ele, como os rumores e coisas assim. Isso o deixou com raiva, acho.

— Oh, minha querida — disse Rachel com uma voz baixa, triste. — Eu esperava que você não tivesse ouvido esses comentários.

— Ouvi a maioria deles esta noite. As pessoas gostam muito de rumores.

— E Dev torna essa prática mais fácil. — A voz de Rachel estava carregada de amargor. — Eu o amo, Srta. Upshaw. Do fundo do coração. Mas, às vezes, parece que ele tem prazer em tornar isso mais difícil. O que você ouviu?

Miranda olhou para lady Westhampton, que parecia tão pálida e infeliz que não poderia repetir as coisas que ouvira.

— Nada que você já não tenha ouvido, tenho certeza — disse, gentilmente. Num impulso, esticou a mão e pegou a de Rachel. — Por favor, não fique triste. Você não pode consertar a vida de seu irmão, sabe. Somente ele pode fazer isso.

— Não tem sido fácil para ele — disse Rachel. Ela olhou para Miranda com olhar suplicante. — Por favor, não o julgue pelo que outras pessoas dizem dele. Sim, a maioria do que falam pode ser verdade, mas não é isso o que Dev é, no fundo. Por dentro ele é um bom homem. Sei disso. Ele sempre foi muito bom para mim e para Caroline, desde a infância, e... — Ela interrompeu sua fala e suspirou. — Às vezes, acho que a maldição é verdade. Os Aincourt estão fadados à miséria. Nenhum de nossos ancestrais jamais foi bom em manter nosso dinheiro. Nós o desperdiçamos e o perdemos em tolas empreitadas. A família já estaria sem um único centavo, se não fôssemos talentosos em arranjar bons casamentos... casamentos lucrativos, devo dizer. Os Aincourt têm boa aparência e, muitas vezes, charme. Nós atraímos cônjuges abastados, mas raramente temos sido felizes em nossos casamentos.

Estavam andando pelo terraço enquanto conversavam. Miranda afastou calmamente Rachel para longe das outras pessoas e do salão de baile.

— Minha irmã e eu casamos como era esperado que fizéssemos — continuou Rachel. — Caroline parecia ter dado sorte. Seu marido era um bom partido, um duque, nada menos, e ele a amava muito. Eles eram felizes. Tiveram uma filha. Então, há quatro anos, ela e sua filha morreram em um acidente de carruagem. Richard tentou salvá-las, mas não conseguiu.

— Sinto muito. — Fizeram uma curva, fora da visão dos convidados. Miranda guiou Rachel até um banco de pedra e sentaram-se.

— Obrigada. — Rachel deu a ela um sorriso lânguido. — Eu era a outra filha obediente. Casei-me com um homem que meu pai escolheu. Ele é um bom homem, um homem gentil. Mas... — Suspirou, e então continuou: — mas eu não o amava. Eu amava outro homem. Eu achei que Michael sabia disso, aceitava isso, que esperava um casamento que fosse uma relação formal e nada mais. Depois descobri que não. Quando ele soube que eu amava outro, pensou que eu o tinha enganado de propósito. Ele... bem, nós vivemos separados. Ele me dá tudo que eu preciso... é um homem generoso. Ele e Richard sustentam minha mãe, também. Mas nenhum de nós é feliz.

— Sinto muito.

— É tarde para mim e para Caroline. Mas Dev... Dev ainda pode encontrar a felicidade. Foi por isso que quis que você se casasse com ele. Acho que seria capaz de mudar de vida com a mulher certa. Ele é, no fundo, um bom homem, um homem honrado. Mas ele e meu pai não se davam bem. Ele não conseguia fazer nada certo aos olhos de nosso pai. Dev não era nada parecido com ele. Dev não era calmo e obediente, como eu e Caroline. Discutia com papai, o que o deixava furioso. Meu pai era um homem rígido. Era muito religioso e odiava quando Dev jogava, bebia e... outras coisas. Sempre achei que foi por isso que Dev ficou tão rebelde. Ele seguiu esse caminho porque isso deixava nosso pai enraivecido. Meu pai também odiava as pinturas de Dev. Dizia que não era algo apropriado para um nobre, que Dev agia como se possuísse sangue camponês, ao querer pintar. Ele achava inútil e inferior, mas Devin amava aquilo. Então eles brigavam por causa disso também. Quando Dev fez 18 anos, veio para Londres, como a maioria dos jovens faz. E tudo piorou aqui. Ele era livre, por fim, e só fazia o que lhe dava prazer. Trabalhava em sua arte, conheceu outros artistas, que meu pai considerava má influência para ele. Mas eles não eram o pior. Ele se misturou com um grupo de pessoas que eram, bem... não eram boas pessoas. E o encorajaram a levar o pior tipo de vida possível.

— O que seu pai fez?

— Ele ficou furioso. Vivia escrevendo para Dev, dizendo que tinha de abandonar aquela vida perversa e voltar para casa. É claro que isso só fez com que Dev ficasse ainda mais teimoso. Papai ameaçou cortar relações com ele. Então, um tempo depois houve um escândalo, pior do que todos os outros, e papai rompeu de vez com Dev. Ele o teria deserdado, mas não pôde. Como a propriedade é vinculada, não tinha poderes para isso. Mas suspendeu a mesada. Não sei como Dev conseguiu viver nessa época. Tenho certeza de que Michael, Richard e outros lhe deram dinheiro. Ele pode ser bastante sedutor e, bem, nós o amamos. Eu lhe dei o quanto pude. Richard me contou certa vez que Dev ganhava dinheiro jogando cartas. Deduzi que conseguia se manter desta forma. Ele e papai nunca fizeram as pazes. Um pouco antes de papai morrer, mamãe nos escreveu dizendo que ele estava muito doente, e eu voltei. Fiz Dev ir comigo, mas quando chegamos lá, papai se recusou a vê-lo. Não deixou nem que entrasse no quarto. Dev pegou um dos cavalos e voltou para Londres. E se recusou a ir ao enterro de papai. Não sei se ele voltou a Darkwater desde então. Ela parou e suspirou.

— Ele não teria acabado assim se papai não tivesse sido tão rígido. — Sua voz ficou mais áspera. — E se não fosse por seus... amigos. Sei que se ele tivesse sido afastado da influência deles, se tivesse alguma paz e felicidade na vida, teria sido um homem diferente. Quero isso para ele. É por isso que estava torcendo para que... você sabe, para que você se casasse com ele.

— Não tenho certeza se o casamento comigo faria Ravenscar feliz. — Miranda observou, secamente. — Não nos damos muito bem, você sabe.

— Sei. Mas... mulheres sem graça não o atraem. Achei que uma pessoa forte como você, uma pessoa boa, poderia tornar a vida dele diferente.

O silêncio imperou por um instante. Miranda olhou, pensativa, para as mãos.

— Você mencionou pintura... Ele é artista?

— Ah, sim! É incrivelmente talentoso. Gostaria de ver alguns de seus trabalhos?

— Sim, gostaria.

Intrigada, Miranda levantou-se e seguiu lady Westhampton até a porta dos fundos, entrando por ela e subindo uma escada estreita que, deduzira, devia ser a escada dos criados. As duas andaram por um corredor até a galeria da frente, que seguia ao longo da casa.

— Não dá para ver direito agora, infelizmente — disse Rachel, fazendo um gesto na direção da parede externa, na qual se alinhavam grandes janelas. — Durante o dia, há luz suficiente, mas à noite...

Todos os candeeiros na parede oposta às janelas estavam acesos, pois toda a casa fora preparada com luzes flamejantes para a festa, mas, mesmo assim, havia sombras.

— Posso ver o suficiente — disse Miranda, indo mais perto para olhar o primeiro quadro. — Todos eles são de Ravenscar?

— Estes três primeiros são. Há mais do outro lado. — Ela sorriu, languidamente. — Tive de abrir espaço para alguns dos ancestrais dos Westhampton.

A primeira pintura era um retrato de Rachel. Ela estava postada ao lado de um pedestal alto, o antebraço apoiado, olhando para o observador com um sorriso tênue nos lábios. Tratava-se de uma Rachel mais jovem e mais alegre. Os tons eram esverdeados e claros, por cima dos quais uma Rachel de cabelos negros com um vestido branco simples se destacava vividamente. Os olhos verdes sorriam; parecia à beira de revelar um segredo divertido. E fora pintado, pensou Miranda, por um especialista. A mulher no retrato tinha vida; mais do que simplesmente uma semelhança física, o quadro irradiava sua personalidade, terna e convidativa.

— É lindo — disse Miranda, sendo honesta.

— Eu tinha 17 anos quando ele o pintou — disse Rachel, serenamente. — Ele o deu de presente a Michael quando nos casamos. — Continuou andando. — E esta é Caroline. Isso foi alguns anos antes. Dev tinha uns, ah, 17 ou 18 anos. Caroline devia ter 15.

Miranda olhou com interesse para a jovem, um tipo sonhador com grandes olhos azuis e os cabelos densos e negros dos Aincourt presos para trás com um laço, caindo em camadas nos ombros. Ela usava um manto azul sobre o vestido branco, um dos lados atirado para trás, e trazia um gato sobre o braço. Cada detalhe era rico e luminoso. Miranda fechou as mãos, os dedos fincando as palmas para conter a excitação que a arrebatava ao olhar para as pinturas. Passou para a próxima, agora uma paisagem de um campo árido, salpicado de pedras, belamente cru e inundado pela luz do sol. Ela quase podia sentir o calor.

— Eles são lindos! — Miranda virou-se para Rachel, não conseguindo conter o prazer que crescia por dentro. Fora seduzida pelos museus e galerias que visitara na Europa. Olhando para muitas das esplêndidas obras de arte, com freqüência antigas, arrebatara-se pelo mesmo tipo de excitação, até mesmo alegria, que preenchia seu ser agora. — Ele é um artista maravilhoso! Você disse que há mais?

Rachel fez que sim com a cabeça, sorrindo.

— Na outra extremidade do corredor, no meu quarto e na sala de visitas.

Rachel levou-a pela galeria, onde mostrou-lhe quatro outros quadros que seu irmão pintara, e depois pelo corredor até uma sala de visitas grande e ricamente mobiliada. Ali, e na extensão do quarto, havia outras seis pinturas. Uma delas mostrava uma casa de pedra de cor esmaecida e formidavelmente grande, ainda que graciosa, construída no formato de um E.

— Esta é Darkwater? — arriscou Miranda, e Rachel respondeu que sim. — Por algum motivo imaginei que seria escura e soturna. A ilustração no livro a retratava mais escura.

— Oh, não... o nome vem de um pequeno lago perto dela. O lago é preto como carvão. Mas a casa é linda e clara. Pelo menos a distância. De perto, vê-se que está caindo aos pedaços. Mas com dignidade. É calcário. Quando o sol a ilumina assim, parece dourada.

Fora desse modo que Devin a pintara, com uma luz dourada cascateando sobre as pedras quase como água, as janelas de vidro em formato de diamante brilhando.

— Ele a pintou de memória — continuou Rachel. — Isso foi depois que saiu de casa. Esta é uma pintura do lago.

Ela apontou para um outro quadro menor, o de um lago negro localizado no meio de rochas cinzentas. Era uma pintura mais escura, sombreada e nebulosa, com um único raio de sol caindo do céu como uma espada, sua luz engolida pela escuridão do lago. Miranda sentiu um calafrio involuntário. Era tão vívido, de sua própria maneira, quanto as pinturas mais claras, mas sua riqueza criava uma cena quase assustadora, silenciosa e soturna, a penetrante luz do sol em guerra com a paisagem. As outras pinturas eram cruas: uma, de uma cama escura com dossel ao lado de uma janela, os lençóis brancos amarfanhados, pano de fundo para um vívido vestido de veludo vermelho jogado por cima dela; a outra, de uma bacia e de um jarro brancos sobre uma cômoda de madeira escura, uma rosa vermelho-sangue murchando ao lado dele em um salpico de cor. Mas em todas as pinturas havia a mesma riqueza de textura e cores, a mesma mão especializada nos detalhes.

— Posso vê-las durante o dia, em outra ocasião? — perguntou Miranda, virando-se para Rachel, sua avidez aparente. — Adoraria observá-las sob uma luz mais apropriada.

— É claro. Você gostou?

— São magníficas. Eu... — Ela voltou ao quadro da cama com o vestido vermelho vívido jogado sobre os lençóis amarfanhados. A pintura era profundamente sensual, quase erótica, e mexeu com Miranda de uma maneira primitiva, primordial. — Não sei o que dizer. Estas são recentes?

O rosto de Rachel anuviou-se.

— São mais recentes do que as outras na galeria. Mas ele não pinta mais. Já não pinta há vários anos.

— Ele não pinta! — disse Miranda, pasma, demonstrando uma surpresa quase cômica. — Você quer dizer que ele parou? Ele não pinta mais nada? Nem desenha?

Rachel fez que não com a cabeça.

— Nada.

— Mas por quê?

— Não sei. Já fiz esta pergunta uma ou duas vezes, mas ele sempre dá de ombros. Diz que cansou, ou que a pintura começou a parecer tolice. É tudo culpa da vida que leva. — De novo, um tom de amargura surgiu em sua voz. — Seus amigos... a bebida, a jogatina e... — Sua voz foi ficando desanimada, e ela deu de ombros.

— Não posso acreditar. Isso é um pecado! — Os olhos de Miranda se voltaram para as pinturas.

— Eu sei. — Lágrimas brilharam nos olhos de Rachel. — Só queria que Dev se desse conta do dom que possui, do talento. Ele não enxerga a beleza que há dentro dele.

Miranda franziu o cenho ao seguir Rachel para fora do cômodo e descer as escadas na direção do salão de baile. Ela e o pai partiram logo depois. Ficou desalentada, na carruagem, por todo o caminho até chegar em casa. Seria possível, indagou-se, apaixonar-se por um homem por meio de um trabalho artístico tocante e de alguns beijos igualmente emocionantes — embora em uma área diferente? Parecia absurdo. Mesmo assim, Miranda não podia negar que começava a experimentar um novo e maravilhoso sentimento.

No entanto, era inteligente o bastante para guardar para si seus pensamentos. Sabia que se contasse ao pai que estava considerando a mais leve possibilidade de se casar com o conde de Ravenscar, ele iria importuná-la até não poder mais. Não queria ter de lidar com seus argumentos enquanto ainda estivesse indecisa sobre o assunto.

Ela permitiu que o pai lhe mostrasse os papéis que adquirira desde que ouvira falar pela primeira vez da elegibilidade do conde de Ravenscar. Neles havia a contabilidade do estado lastimável de suas finanças, enviado pelo consignatário, tio de Ravenscar, Rupert, assim como uma descrição fornecida pelo gerente da propriedade listando toda a miríade de problemas do local e enumerando os reparos necessários para que a mansão voltasse a ficar em boas condições. Tratava-se de uma triste lista de desastres que teria afugentado a maioria das pessoas; Joseph conhecia o suficiente da filha para saber que tal confusão financeira a deixaria ansiosa. Miranda sabia da intenção dele, e admitia que era uma situação tentadora. Mas, ao mesmo tempo em que era um consolo pensar que teria muito com que se ocupar se se casasse com Ravenscar, isso não era o suficiente para impeli-la a dar este passo.

Assim como não o era suficiente a beleza da arte que o homem produzira, mesmo que a houvesse novamente enchido de admiração e de um prazer túrgido quando visitou Rachel na manhã seguinte para ver as pinturas à luz do dia. Sua arte era ainda mais bela sob bastante luminosidade, pois permitia que se visse o poder total de seu trabalho. Rachel foi sábia em deixá-la sozinha e à vontade para que pudesse examinar os quadros pelo tempo que desejasse. Miranda sentou-se em um banco forrado de veludo de frente para os quadros na galeria e ficou imaginando, com uma perplexidade lúgubre, como o homem que os pintara poderia ter desistido deles. E ainda que sentisse como se estivesse quase vendo o interior da alma dele — como poderia vê-lo senão por meio de sua arte? —, Miranda sabia também que essa não era a única fonte do novo sentimento alegre e ligeiramente assustador que trazia no peito.

Aquele sentimento tinha muito a ver com os beijos tórridos à meia-luz no jardim e, talvez mais, com a sensação estranha, quase estonteante, que sentiu ao olhá-lo nos olhos, como se estivesse de pé à beira de um precipício e quisesse jogar-se impetuosamente no vazio.

Miranda era uma mulher acostumada a confiar em seus instintos. Sagaz e intuitiva, suas primeiras reações significavam, em geral, a coisa certa a fazer, e ela confiava muito em suas decisões. Entretanto, essa era uma área com a qual não tinha familiaridade. Miranda nunca se apaixonara. Não passara por aquele estágio de risadinhas e olhos piscantes que a maioria das outras mulheres de seu círculo vivenciara, parecendo se apaixonar a cada duas semanas quando jovens. Ela estivera ocupada à época, comprando propriedades na ilha de Manhattan.

Isso não significava que não tivera alguma experiência com homens. Levava uma vida social intensa em Nova York. Flertava com rapazes, dançava com eles e até permitia que alguns a cortejassem. Mas nunca se sentiu apaixonada por nenhum. Será que esse estranho aperto no peito que sentia quando pensava em Devin Aincourt significava estar apaixonada? Será que o fato de não parar de pensar nele queria dizer que deveria se juntar a ele para toda a vida?

O que quer que significasse, sabia que estava gostando disso. E sabia que queria ver Ravenscar de novo.

A primeira chance surgiu duas noites depois, na ópera. Seu pai comprara um camarote para a temporada, já que planejavam ficar em Londres por várias semanas, mas esta foi a primeira oportunidade que tiveram para ir. Elizabeth ficou tomada pela excitação ao sentarem em seus assentos no camarote extravagante. Até mesmo Hiram, o assistente do pai, que normalmente trazia uma mesma expressão estóica no rosto, parecia feliz em estar ali. Miranda, sentada ao lado de Hiram e munida de um binóculo de ópera, perscrutava a platéia. Visualizou a mãe de Devin, sentada em um camarote com Rachel e outras duas mulheres da idade de lady Ravenscar, assim como uma dupla de homens ligeiramente entediados. No entanto, não havia sinal de Ravenscar. Miranda ficou se perguntando se a ópera era algo que Ravenscar evitava; ele não parecia ser o tipo que compareceria só porque a mãe ou a irmã o pressionariam.

Rachel viu que Miranda as observava e sorriu na direção de seu camarote. Miranda retribuiu o sorriso, baixando o binóculo.

Ela lançou outro olhar pela fila de camarotes. De frente para o seu, e mais perto do palco, um grupo acabava de ocupar um dos camarotes. Havia uma mulher com um vestido verde-esmeralda e, com ela, três homens com trajes preto e branco. Miranda respirou fundo. Mesmo afastada, reconheceu um dos homens como sendo Devin.

Quase como se houvesse lido seus pensamentos, o homem virou-se e passou os olhos pela extensão do teatro. Quando viu o camarote de Miranda, parou e olhou-a diretamente. Ele não a cumprimentou. Só levantou de leve as sobrancelhas e então virou-se para o lado contrário. Miranda sorriu. A rejeição orgulhosa dele não a incomodou. Isso só mostrava como o atingira na outra noite, e gostou de ele ter se rebelado perante a idéia de se casar por dinheiro.

Mas quem seria a mulher que o acompanhava? Pela primeira vez na vida, Miranda sentiu uma pontada de ciúme. Chegando rapidamente a cadeira para a lateral do camarote, e um pouco mais para trás, onde podia se esconder nas sombras, levou o binóculo de volta aos olhos e estudou a mulher no camarote de Devin.

Era muito bonita. Miranda sentiu um aperto no peito e segurou o binóculo com firmeza. A mulher parecia dourada — os cabelos loiros de um tom de mel, os olhos grandes e arredondados de um marrom-dourado surpreendente. Até mesmo a pele pálida não era tão branca quanto a mais clara tonalidade de ouro. Estava vestida de acordo com a última moda — talvez até além da última, concluiu Miranda, ao analisar todos os detalhes do vestido. Aquele era o decote mais ousado que já vira, mergulhando perigosamente próximo aos mamilos da mulher. Ela possuía seios fartos e luxuriantes, com certeza merecedores daquela exibição, os quais ameaçavam saltar de dentro do vestido a qualquer momento. Esmeraldas brilhavam nas orelhas e no pulso, um pingente no pescoço completava o conjunto, direcionando o olhar para o ponto em que roçava nos seios. Os cabelos estavam presos para trás com uma fita larga de cetim verde, de onde cascateavam em um trançado de cachos fartos e grossos. Sua fisionomia chegava à beira da perfeição, prejudicada apenas por um lábio superior um tanto fino — mas até a falha parecia favorecer sua aparência, porque lhe emprestava um quê decididamente sensual.

Enquanto Miranda a observava, a mulher virou-se, olhou para Ravenscar e sorriu. Foi um sorriso secreto, tentador, e por conta daquele olhar peculiar Miranda soube que aquela mulher significava mais para Devin do que apenas uma simples conhecida que o acompanhara até a ópera. Seria sua amante? Ele a amava? Estas perguntas ardiam em Miranda. Depois que a ópera começou, deu-se conta de estar estudando o camarote deles tanto quanto assistia ao espetáculo que se desenrolava no palco.

Eles receberam, durante o intervalo, a visita de lady Ravenscar e seu irmão, sir Rupert Dalrymple. Miranda o conhecera brevemente no jantar frustrado na casa de lady Ravenscar, e achou-o um interlocutor bastante agradável e divertido. Porém, naquela noite, teve muita dificuldade em prestar atenção no que ele dizia. Só havia uma pessoa na qual estava interessada, não conseguindo evitar olhar de tempos em tempos pela porta aberta do camarote, esperando poder vê-lo por ali.

Foi ao levantar os olhos para ver lady Westhampton adentrando o camarote, seguida por seu irmão, que seu estômago se revirou e ela deixou cair o leque.

— Olá, mãe. Tio Rupert. — Os olhos de Ravenscar passaram por Miranda, e então pararam, sem se demorar em nenhum dos dois. Miranda conteve um sorriso, sabendo que ele demonstrara novamente, sem falar, que vê-la o perturbava.

Ele continuou e cumprimentou o pai dela, que por sua vez apresentou-o à Sra. Upshaw. Elizabeth ruborizou de leve e abriu o leque, elevando-o para que cobrisse uma risadinha tola que deixou escapar. Apesar dos protestos contra ele, pensou Miranda ligeiramente irritada, a madrasta não se mostrara indiferente à aparência dele, como de resto qualquer outra mulher.

Ravenscar cumprimentou-a e virou-se na direção de Hiram, as sobrancelhas arqueadas interrogativamente. O pai de Miranda falou, imediatamente:

— Ah, este é meu assistente, Hiram Baldwin. Você o conheceu na minha casa no dia em que, bem, ah... — A voz de Joseph foi sumindo ao perceber, tarde demais, que a lembrança que Ravenscar tinha do dia em que Miranda recusou seu pedido de casamento deveria ser tudo, menos prazerosa.

— Oh, estou certa de que lorde Ravenscar não se lembra, papai. Ele mal viu alguém de nós naquele dia — Miranda provocou.

Ravenscar virou-se na direção dela:

— Srta. Upshaw. Com certeza lembro-me de você.

— Fiquei imaginando o contrário, já que não me cumprimentou ao entrar — disse Miranda, placidamente.

— Esse menino não tem educação — interveio o tio de Ravenscar com uma risada jovial. — Você deve perdoá-lo, Srta. Upshaw.

— Devo? — respondeu Miranda suavemente. Ainda que estivesse falando com o tio, seu olhar estava em Ravenscar. Os olhos dele permaneceram igualmente fixos nela.

— Estou certo de que a Srta. Upshaw não está surpresa, tio — balbuciou Ravenscar com um tom de voz irritantemente aristocrático. — Ela está bastante ciente do bárbaro que sou.

Miranda abriu um sorriso com falsa doçura. O conde virou-se, despedindo-se abruptamente.

— Devo ir agora. Sr. Upshaw, Sra. Upshaw, prazer em conhecê-la. Baldwin. Srta. Upshaw. — Pronunciou o sobrenome dela com grande precisão, virando-se para ela e acrescentando um cumprimento tão cortês que foi por si só uma declaração de seu sarcasmo.

—Meu senhor. Encantada em vê-lo, como sempre. — Miranda retribuiu-lhe o gesto com uma cortesia igualmente exagerada.

Devin trincou os dentes com tanta força que Miranda pôde ver o músculo do maxilar saltar. Então virou-se e saiu do recinto, ignorando o olhar de protesto lançado por sua irmã.

Rachel foi até Miranda, dizendo em voz baixa:

— Sinto muito. Não sei o que há de errado com Devin esta noite. Ele está excessivamente azedo desde o momento em que foi ao camarote de mamãe. Foi ele quem sugeriu acompanhar-me a seu camarote. Não pensei duas vezes, já que estava tão aborrecido e zangado. E então ele chega aqui e age de maneira rude.

— Não se preocupe, isso não me incomoda — respondeu Miranda com total candura.

A verdade era que o encontro com Ravenscar a fizera sentir-se mais revigorada. A revelação de Rachel de que fora ele quem quisera ir visitá-la em seu camarote era ainda mais encorajadora. Houve algo em seus olhos, quando se virou para encarar Hiram, que Miranda teria identificado, em qualquer outro, como ciúme, o que a fez sorrir internamente ao pensar que talvez Ravenscar tenha decidido ir ao camarote deles para descobrir quem exatamente era o homem sentado ao lado dela.

— Queria falar com você, lady Westhampton — disse-lhe, dando o braço à irmã do conde.

— Rachel.

— Está bem, Rachel. Por que não damos uma volta no corredor?

— Claro.

Rachel saiu com a curiosidade obviamente despertada. Chegando no grande corredor, Miranda olhou em volta e levou Rachel para a área menos movimentada que pôde encontrar, baixando a voz e aproximando a cabeça bem perto da de Rachel.

— Agora — disse Miranda —, fale-me sobre a mulher que veio à ópera com Ravenscar.

 

A expressão de espanto com que Rachel virou-se para Miranda foi quase cômica.

— Quem?

— A mulher com quem seu irmão veio, a loira bonita.

— Ah. Ah, sim. Ela não é ninguém, na verdade. Lady Vesey é seu nome.

— Ela é amante de Ravenscar? Rachel se exasperou.

— Miranda!

— Então? — Miranda fixou um olhar ameno, mas determinado, na outra mulher. — Você não me conhece, portanto já vou adiantando que vou acabar extraindo de você tudo o que sabe a respeito dela. Então pode ser mais fácil começar a falar tudo agora.

Rachel olhou para ela, parecendo incomodada.

— Eu realmente... você não deveria...

— Se você pensa que contar o que sabe arruinará a possibilidade de me casar com seu irmão, garanto-lhe que não fará a menor diferença. Bem, não, isso não é verdade. Veja bem, preciso saber tudo o que posso a respeito de uma empreitada antes de envolver-me nela, seja a compra de uma propriedade, a encomenda de um vestido... ou um casamento. Quero saber tudo... o lado bom, o ruim e todas as variações disso. Sem todos os detalhes, não vou poder tomar uma decisão consciente. Por isso, acho muito improvável que possa me casar com seu irmão sem ter descoberto como é o relacionamento dele com lady Vesey.

Rachel deixou escapar um gemido.

— Prometo a você que não sou ingênua — continuou Miranda. — Sei que as pessoas daqui gostam de pensar que os americanos não são sofisticados. Talvez não o sejamos mesmo, em alguns aspectos. Mas quando se trata de escândalos, diria que estamos tão atualizados quanto os europeus. Sei que os homens, com freqüência, têm amantes. Não esperaria que um homem, sobretudo como seu irmão, não tivesse, bem, como posso dizer, envolvimentos amorosos? Mas tenho de saber com o que estou lidando. O que lady Vesey é para ele? Ele a ama? Não seria justo comigo, você tem de admitir, entrar às cegas em algo como um casamento.

A acompanhante lançou-lhe um olhar agoniado.

— Não, você está certa. É extremamente injusto de minha parte não querer que você saiba. Mas eu receio que... oh, por favor, não culpe Dev. Ele era muito jovem quando a conheceu... e aquela mulher é uma feiticeira! Uma usurpadora! Ela colocou as garras nele e jamais o soltou.

Rachel parou e suspirou. Em seguida, continuou, com a voz mais calma:

— O nome dela é Leona e é considerada uma das mais belas damas da sociedade desde que veio para Londres, há muitos e muitos anos — acrescentou ela, felinamente. Rachel abriu um sorriso depreciativo. — Bem, não sei ao certo quantos anos tem, mas deve ser muito mais velha que Dev. Ela já era uma beleza constituída e esposa de lorde Vesey antes de Dev vir para Londres. Quando ele chegou aqui, associou-se a artistas e a outros jovens que meu pai não aprovava, jovens cujo estilo de vida era bastante livre e fácil. Ele jogava, sim, bebia e seduzia mulheres. Ele havia feito esse tipo de coisas até mesmo quando estava em casa, o que sempre desencadeava uma grande guerra com papai. Chego até a pensar que essa era a razão de Dev agir assim: pretendia antagonizar papai. Creio que lhe contei que em Londres ele se tornou ainda mais selvagem, mas, ainda assim, não acho que fosse muito pior do que a maioria dos jovens de sua idade.

— Que gostam de farrear — disse Miranda, encorajando-a a continuar.

— Sim, você sabe como é — disse Rachel, agradecida pela compreensão da outra. — Na verdade, ele conheceu Leona em casa, em Darkwater. A propriedade do marido dela não é distante da nossa, e ele a viu ali. Obviamente, nada teria acontecido lá, porque Leona pouco visita Vesey Park. Mas, então, Devin veio para Londres. E viu Leona mais uma vez. Bem, você sabe como é a aparência dela. E pode imaginar como era bonita na época, na juventude. Dev apaixonou-se por ela. Ficou perdidamente apaixonado. Uma mulher de boa índole o teria desencorajado. Uma mulher gentil o teria dispensado após um caso fugaz. Mas Leona não é boa nem gentil. Ela é perversa, e levou Dev para os mesmos caminhos de perversidade que seguia.

— Foi por causa de Leona que seu pai o renegou?

— Não. Pelo menos creio que não. Papai soube que Dev estava atrás de Leona e desaprovou o caso com firmeza, mas eu... eu acho que foi alguma outra coisa. Não creio que ele estivesse, bem.... envolvido com Leona quando teve a briga com papai. Eu ainda era muito jovem na época, tinha apenas 14 anos, nem papai nem mamãe jamais falaram conosco a respeito. Só sei que foi um escândalo terrível. Depois desse episódio, qualquer que tenha sido ele, Dev ficou completamente enredado no grupo de Leona. Não sei tudo o que têm feito. As pessoas tentam me proteger, sabe. — Ela abriu um leve sorriso para Miranda. — Confesso que não quis saber de verdade. Não sou tão forte quanto você.

— Provavelmente me sentiria da mesma forma se estivéssemos falando de meu irmão — Miranda mentiu, para ser gentil. Sabia que, na verdade, se fosse seu irmão nas garras de uma mulher perversa, se afogando em um mar de pecados, não só descobriria o que pudesse a respeito, como também faria algo para acabar com tudo aquilo. Mas, a bem da verdade, sabia que pouco teria a fazer porque seu pai logo tomaria uma atitude: tiraria o filho da lama e não o renegaria, como o fez o pai de Devin.

— Acho que ele a ama — Rachel admitiu, com tristeza na voz. — Pelo menos tem se mantido fiel a ela por todos esses anos... do seu jeito. As pessoas não valorizam o que há de bom nele, mas Devin é uma pessoa muito leal. Ele faria qualquer coisa por mim ou por qualquer um que ame, e sei que sente o peso da responsabilidade. Acho que, às vezes, ele se odeia pela vida que vem levando. Há pessoas tão cruéis que chegam até a culpá-lo pela morte de nosso pai... e não foi culpa dele! Ele não teve nada a ver com isso. Papai não falava com ele há anos. Mas espalhou-se o boato de que papai não o veria nem em seu leito de morte. Só que a lealdade de Dev com Leona o magoava. Ela o arrastou para a lama.

"Quando me casei e vim para Londres, Dev já estava bastante mergulhado em pecado. Nem ele nem Leona eram recebidos pelas pessoas, exceto pelos grupos mais imorais.

Ficava surpresa e magoada quando dava festas e poucas matronas decentes vinham, quando, na verdade, eram sempre agradáveis comigo em outras festas. Foi então que Michael me contou, com o máximo de delicadeza que conseguiu, que elas não compareciam porque Dev estava nas festas, muitas vezes com Leona, o irmão dela, Stuart, e seus amigos. Disse a Michael que jamais excluiria meu próprio irmão de minhas festas, e não o fiz, mas acho que Michael deve ter falado com Dev porque, depois disso, ele parou de freqüentar as minhas festas. E então as matronas mais idôneas voltaram a freqüentá-las e a levar as filhas.

— Isso deve ter sido muito difícil para você — disse Miranda, solidária.

Rachel anuiu com a cabeça, lágrimas brotando-lhe nos olhos. Ela as enxugou, impaciente.

— Foi. Eu preferia ter Dev lá do que todas as mulheres. Fiquei com raiva por Michael ter interferido. Mas ele sabia, assim como Dev, que se eu continuasse a agir daquela forma, em pouco tempo seria considerada parte do grupo deles e seria excluída do resto da sociedade, assim como eles. Dev não queria que isso acontecesse comigo, então parou de freqüentar minha casa, exceto às tardes e em outras ocasiões. Nem a fofoqueira mais impertinente poderia esperar que eu não permitisse que meu irmão me visitasse. — E acrescentou com um sorriso tênue: — Também é possível que Dev tenha se cansado das minhas festas. Estou certa de que estava acostumado a eventos muito mais animados.

Elas se viraram e começaram a andar de volta para o camarote dos Upshaw. Rachel ficou em silêncio por um instante e, então, disse:

— Leona é uma mulher má. Acho que prendeu Dev a ela com seus ardis. Isso, aliado à forte lealdade dele, o manteve ao lado dela. Leona o encorajou a fazer as coisas perversas que tem feito. Sei que foi ela quem o influenciou a parar de pintar. Ela não gosta de nada que prenda o interesse e a devoção dele da forma como a pintura o fazia. Se você a conhecesse, veria que tipo de pessoa ela é... Dissimulada e mentirosa...

— Talvez eu deva conhecê-la — Miranda sugeriu.

— Não! Nem pense em uma coisa dessas! — Rachel virou-se para Miranda com uma expressão de horror. — Tenho certeza de que ela faria algo para magoá-la. É provável que fique com medo de perder Dev se ele se casar com você. A menos que seu orgulho tenha se inflado a ponto de descartar a possibilidade de ele se apaixonar por outra pessoa.

— Bem, no fim das contas, eu sou apenas uma herdeira americana — Miranda observou com um sorriso.

Rachel retribuiu com outro sorriso.

— Só espero que ela se sinta assim. Do contrário, se se sentir ameaçada, bem, ela é capaz de qualquer coisa.

— Não se preocupe. Acho que lady Vesey poderá encontrar em mim uma oponente mais formidável do que imagina. Isso se eu for me casar com seu irmão.

Rachel olhou para ela com uma ansiedade pouco contida.

— Você vai? Casar-se com Dev, digo? Miranda deu de ombros.

— Tenho considerado a possibilidade.

— Oh, Miranda! — Os olhos de Rachel brilharam. — Considere direito, por favor. Quanto mais fico a seu lado, mais sinto que você seria capaz de mudar a vida de Dev. Foi por isso que insisti em que ele a pedisse em casamento. Achei que se ele tivesse uma esposa, alguém por quem se apaixonasse, se devotasse, talvez fosse capaz de se libertar da influência de Leona. Se pudesse ser afastado daquela mulher diabólica, sei que Dev seria diferente. Melhor. Pelo menos mais feliz. Ela não o faz feliz. Sei disso. Ela o mantém nervoso e inseguro. É parte de sua estratégia para segurá-lo. Mas você... se ele se casasse com você, bem, poderia mudar. Poderia perceber que a felicidade está a seu alcance. E é isso o que eu tanto quero para ele.

— Sei disso.

— Devo parecer um tanto egoísta a seus olhos. Mas acho que Dev poderia fazê-la feliz também. Se tivesse um lar e uma família, seria um homem diferente.

— Pelo homem que é, já é bastante charmoso — Miranda confessou.

Rachel riu.

— Ele é mesmo, não é?

— Mas você não deve contar para ele o que eu disse.

— Oh, não — Rachel prometeu com um sorriso. — Eu não faria isso. Confie em mim. Mas estou extremamente feliz por você achá-lo charmoso.

Devin voltou para o camarote de Leona carrancudo. Teve a impressão de que a Srta. Upshaw estava rindo dele, e não gostara nada dessa sensação. Na verdade, não gostara nada do modo como se sentira a noite toda. Para começar, não queria ter ido à ópera. Estava de mau humor há vários dias, desde que Miranda Upshaw afirmara, da maneira mais displicente, que ele estava à venda, como um cavalo ou uma mobília. Desde então, Devin passara o tempo todo dizendo a si mesmo que preferiria morrer a ter de se casar com aquela nova rica americana — ou melhor, o tempo todo quando não estava pensando em como a sentira em seus braços, os lábios dela indulgentes unidos aos seus, imaginando como teria sido avançar para o degrau seguinte, que consistia em tirar as roupas daquele corpo docemente curvado e explorado cada delicioso centímetro.

Não que gostasse daquela garota petulante nem que estivesse interessado nela — especialmente em não se casar com ela. Mas teria ficado satisfeito em tê-la dominado, acariciado e beijado até que ficasse ofegante por ele, implorando para que a possuísse, o que ele, obviamente, faria, mas não até que a tivesse feito ansiar por ele como nunca ansiara por nenhum outro homem. Toda vez que imaginava esse fim alternativo para aquela noite — em vez da realidade, ou seja, quando saíra como um trovão da casa da irmã tomado por uma fúria insana — ficava excitado, e era apenas ele quem acabava ansiando por ela. Isso apenas o fazia odiar ainda mais a americana. Ele não gostava nem de pronunciar o nome dela. Miranda. Que presunção, como se ela fosse uma heroína encantadora de Shakespeare, um papel para o qual ele não conseguia imaginar ninguém menos apropriado.

Por isso recebera com mau humor o bilhete de Leona dizendo que a visitasse esta noite. O tom peremptório da correspondência o irritara ainda mais. Quando Devin chegou lá, Leona exigiu que contasse todos os detalhes do progresso do noivado com a herdeira americana. Quando ele lhe relatou que não houvera qualquer noivado, e que nunca haveria, ela deu um ataque e ficou amuada. Por fim, para agradá-la, concordou em acompanhá-la à ópera, mesmo sabendo que ela pretendia usar aquele tempo para exercer seus poderes de persuasão sobre ele novamente.

Fora bastante astucioso, pensou, ao chamar Stuart e outro amigo para acompanhá-los, prometendo que haveria uma dançarina que iria interessá-los. Enquanto se congratulava por sua astúcia, percorreu com os olhos o teatro e o olhar parou em Miranda. Sentiu como se um carregamento de tijolos houvesse caído sobre sua cabeça. Ficou paralisado por um instante, atordoado, incapaz de desviar o olhar, amaldiçoando a má sorte pelo fato de ela estar ali enquanto ele estava com Leona. Então pensou que não havia razão para se sentir culpado por estar com Leona. No fim das contas, não estava noivo de Miranda, nem pretendia ficar. Não tinha qualquer obrigação.

Então avistou o homem sentado ao lado dela, e algo dentro dele o incomodou. Será que a bruxa já teria passado para a próxima vítima? Ele virou-se e sentou, ignorando-a acintosamente, mas sua mente não conseguiu se desligar. Por todo o primeiro ato, ficou pensando no homem e imaginando quem seria ele. Achava ser capaz de reconhecer a maioria dos homens de sua idade. A menos, é claro, que se tratasse do filho de Cavendish, mas todos diziam que a razão pela qual ninguém nunca vira o homem era o fato de ele ser deficiente mental. Dev começou a imaginar que talvez o homem não fosse um aristocrata, mas algum caçador de fortunas esperto fingindo ser o lorde Alguém. Isso seria perfeito para aquela miserável!

No intervalo, a curiosidade o instigara a descobrir quem era o homem. Assim, pediu licença apressado, ignorando o olhar surpreso de Leona, e encaminhou-se para o camarote da mãe. Rachel mostrara-se mais do que disposta a acompanhá-lo ao camarote dos Upshaw, mas, quando chegaram lá, ele sentiu-se um completo tolo. Assim que Miranda olhou para ele com aqueles olhos cinza penetrantes, teve a certeza de que ela achou que tinha vindo vê-la. O que, a propósito, não era verdade. Ou não exatamente. Então, quando descobriu que o homem era apenas o assistente de Upshaw, sentiu um grande alívio, uma reação que era ainda mais tola do que a anterior. Era quase como se ele tivesse sentido ciúme, percebeu, e isso, é claro, era completamente absurdo. Não queria nada com Miranda Upshaw e não se importava nem um pouco com quem ela se casaria.

Ele pareceu, com certeza, tolo e inarticulado. Ela, obviamente, permaneceu fria, sentada ali olhando para ele daquele modo divertido e superior. Isso o fez sair de dentes trincados até o camarote de Leona.

Então, assim que se sentou, Leona começou:

— Ravenscar... — disse ela, sorrindo do seu jeito felino. — O Sr. Wyndham me disse que aquele camarote no qual você esteve é o da herdeira americana. É verdade?

— Sim. Rachel insistiu para que eu a acompanhasse.

— E aqui estava eu orgulhosa de você. Achei que estava dando uma investida. — Leona pegou o binóculo e usou-o para espiar o camarote em questão, da mesma forma que o fizera a cada dez segundos desde que Wyndham disse que os Upshaw estavam lá.

— Não seja ridícula.

— Droga! Não consigo vê-la. Está sentada à sombra. Por que não chega um pouco para a frente? Raios. Agora as luzes estão se apagando.

Devin ficou aliviado, mas o início do segundo ato da ópera não deteve Leona. Ela chegou a cadeira mais para perto de Ravenscar e recostou-se nele, sussurrando por trás do leque.

— Sabe, você deveria ter aproveitado a oportunidade, Dev. Por que outro motivo teria ido lá?

— Shhh. A música está começando.

— Oh, tolice! Como se você ou qualquer outro aqui dentro se importasse com a música. As pessoas só vêm à ópera para serem vistas pelas outras. Todo o resto é bobagem. A menos, é claro, que se faça algo interessante. — Ela sorriu no escuro e se mexeu de forma que sua perna roçasse na de Devin.

Ele afastou a perna, impaciente.

— Não, Leona.

— Por que está tão mal-humorado? — perguntou ela, irritada. — Será que é porque a herdeira lhe escapou? Mesmo que tenha escapado, você sabe que pode reverter isso. Use seu charme.

— Eu não a quero! — Ele se exaltou.

— Oh, Dev... Por mim? — Leona fez um biquinho.

— Se você tivesse conhecido essa mulher, não seria tão insistente — resmungou ele.

— Sério... você está me dizendo que eu deveria sentir ciúmes dessa galinha dos ovos de ouro colonial? — Leona deu uma risada sonora e confiante. — Acho que posso lidar com a competição. — Ela colocou a mão na coxa de Devin. Seus dedos começaram a subir pela perna dele. — Não seria agradável ter todo aquele dinheiro? — Sua mão rastejante chegou ainda mais perto do colo dele.

— Pro inferno com tudo! — Devin levantou-se num salto e saiu do camarote, deixando os demais estarrecidos.

Miranda viu Ravenscar deixar abruptamente o camarote de lady Vesey. Intrigada, levantou-se e saiu furtivamente de seu camarote. Viu-o descendo as escadas ao final do corredor e seguiu-o em silêncio. Assistiu quando ele empurrou uma das enormes portas do teatro e saiu para a rua. Miranda não sabia ao certo o que a movia, mas foi até a porta e abriu-a. Algo dentro de si quis chamá-lo, trazê-lo de volta, mas conseguiu manter os lábios fechados, contendo seu impulso.

Enquanto o observava, viu que Dev parou a alguns passos de uma jovem sentada nos últimos degraus com duas cestas de flores, uma a cada lado. Ela era florista e estava exercendo seu ofício ao fim da ópera, esperando influenciar alguns cavalheiros a comprarem ramalhetes para suas acompanhantes. Era jovem, não tinha mais do que dez ou 12 anos, arriscaria Miranda, extremamente magra, os cabelos sem forma, escorridos pelas laterais do rosto, os tornozelos finos aparecendo por baixo do vestido. Miranda sentiu um pouco de pena dela, como sempre sentia pelos floristas e vendedores de frutas.

Dev botou a mão no bolso e tirou algumas moedas. Miranda ficou imaginando, com uma pontada de ciúmes, se pretendia comprar um buquê de flores para levar para lady Vesey. Mas ele apenas jogou as moedas na cesta da garota e continuou seu caminho. Miranda sorriu, contente por ter tido pena da menina.

Naquele momento, outro homem, bem-vestido e obviamente ébrio, veio descendo torto as escadas do teatro num rumo que cruzaria o de Dev. Ao aproximar-se da florista, ele tropeçou e bateu na cesta da garota, fazendo com que todas as flores caíssem nos degraus. A menina chorou, consternada, com a perda do objeto do seu sustento. O bêbado não prestou atenção, e simplesmente passou pisoteando as flores esparramadas, destruindo a maioria delas.

Miranda sentiu revolta ao ver a destruição das flores causada pelo homem, enquanto começou a sair pela porta, prestes a gritar com ele. Mas então viu Dev percorrer os poucos passos que o separavam do homem e pegá-lo pelo colarinho. Ele virou o homem, e, ainda que Miranda não conseguisse ouvir, viu-o dizer algo breve ao bêbado, gesticulando na direção dos ramalhetes amassados. O homem olhou para a bagunça que criara e zombou.

Ravenscar desferiu um direto no estômago do outro, o que fez com que se dobrasse ao meio. Devin endireitou-o pelo colarinho e falou novamente. Desta vez o homem botou a mão no bolso, tirou uma nota e entregou-a à menina. Dev balançou a cabeça e soltou-o. O homem continuou seu caminho. A garota pegou a nota e enfiou-a rapidamente no bolso, agradecendo a Ravenscar. Devin apenas sorriu para ela e continuou em frente.

Miranda ficou observando-o enquanto se afastava até perdê-lo de vista, os olhos iluminados e um sorriso arqueando seus lábios. Então virou-se e juntou-se novamente à sua família no camarote.

 

A irritação levou Dev a vários quarteirões de distância do teatro antes mesmo que se desse conta de onde estava indo. Com certeza, não queria voltar para casa. Stuart e um de seus amigos permaneceram na ópera com Leona — Meu Deus, terei de pagar caro por tê-la deixado sozinha —, e mesmo que estivessem disponíveis, Dev não queria vê-los. Nem a hipótese de um de seus esconderijos usuais — tavernas, jogatinas, antros, bordéis — o atraía. Ele simplesmente não estava com vontade de se divertir. Queria... mas não sabia ao certo o quê. Libertar-se dos demônios que o assombravam, supôs. O espectro da pobreza e da desgraça, a ameaça de um casamento sem amor com uma mulher que o desprezava, a possibilidade de seguir esse caminho estéril em sua vida para sempre...

Talvez tenha sido a tristeza de seus pensamentos que o fez mudar de direção e seguir para a residência palacial do cunhado. Em pouco tempo alcançou o portão da mansão, que, com uma área que mais parecia um parque cercado por um muro, ocupava uma enorme faixa da área nobre de Londres.

Há centenas de anos, esse muro e esse portão eram guardados pelos soldados do duque de Cleybourne. Agora, apenas um lacaio saía da pequena guarita de dentro do portão e o examinava pelas barras de ferro.

— Oh! Meu senhor. Faz algum tempo que não o vejo por aqui. Só um instante, senhor.

O homem saiu agitado com um molho de chaves e abriu a fechadura, empurrando o largo portão para trás, o suficiente para que Dev passasse.

— Sua Excelência ficará muito feliz em vê-lo, meu senhor — disse o criado, prestativo. Os empregados de Richard gostavam muito dele e lhe eram leais. A mãe de Devin detestava a intimidade com que a tratavam, mas Devin até que gostava. Era um tanto estranho que Richard, que possuía um dos mais antigos e importantes títulos daquelas terras, fosse o nobre menos esnobe de que Devin tinha notícia.

O lacaio que lhe abriu a porta da frente também o conhecia e cumprimentou-o com mais alegria ainda, acompanhando-o imediatamente ao escritório de Richard. Devin encontrou o cunhado sentado ao lado da lareira, olhando para as chamas. Como não havia outra iluminação no cômodo, a luz do fogo iluminava o rosto de Richard de uma maneira estranha, lançando sombras profundas em sua face, dando a ele uma aparência ainda mais taciturna do que o normal.

Ao som dos passos de Devin, ele virou-se, dizendo, mal-humorado:

- O que diabos você... — Parou quando viu Devin, e um sorriso brotou em seus lábios. — Dev! Entre, entre. — Ele ficou de pé, gesticulando para o lacaio. — Acenda alguns dos candeeiros, Harper.

— Sim, Excelência — respondeu Harper feliz, encaminhando-se para acender os candeeiros de parede, assim como a lamparina a óleo na mesinha ao lado da poltrona do duque.

Naquele momento, Devin compreendeu a razão da alegria do criado ao vê-lo; obviamente, Richard estava mergulhado em uma de suas crises de melancolia aquela noite, e o lacaio esperava que a visita de Devin o tirasse daquele estado. Richard fora um homem que aproveitara a vida — de uma maneira mais circunspecta que Devin, claro, mas ainda o tipo de homem que gostava de festas ou de uma noite percorrendo tavernas com os amigos. Entretanto, desde a morte da esposa há quatro anos ele se tornara um recluso. Evitava a propriedade no campo, na qual ocorreu o acidente fatal, e passou a morar na mansão ducal de Londres. Mas, apesar de estar em uma cidade efervescente, quase não saía, nem via pessoa alguma, exceto pelas vezes em que algum amigo ou parente se aventurava em ir vê-lo. Muitas vezes, até se recusava a receber visitas, o que preocupava bastante seus criados.

Dev deu-se conta, com um pouco de culpa, que não visitava Richard havia várias semanas. Lembrava-se agora de que Rachel dissera, com o cenho franzido, que Richard parecia estar piorando, não melhorando, com o passar dos anos. Richard, como a maioria dos homens do círculo de Devin, não era do tipo que falava de seus pesares. Conseqüentemente, ele e Devin quase nunca traziam à tona o assunto da morte de Caroline, ainda que fossem os dois homens que mais a amaram na face da Terra.

Devin olhou involuntariamente para o quadro com o retrato da irmã. Ele o pintara algumas semanas antes do casamento de Caroline com Richard. Ela encomendara a pintura para dar de presente ao futuro marido. O quadro costumava ficar pendurado acima da lareira no salão principal da mansão do casal no campo, mas Richard o trouxera para cá, onde ocupava uma parede do escritório. Na pintura, Caroline estava sorrindo daquela forma sonhadora e quase sonolenta que lhe era característica. Uma jovem no início da vida adulta, esperando aproveitá-la ao máximo. Ela usava o vestido elegante de cetim que pôs no casamento e tinha no pescoço o famoso conjunto de esmeraldas Cleybourne: um círculo de esmeraldas e diamantes que pendiam do pescoço, com uma enorme esmeralda como pingente; brincos de esmeralda rodeados de diamantes; uma pulseira de esmeraldas encadeadas e até uma tiara de diamantes decorada com cinco esmeraldas primorosas. Parecia um exagero tantas jóias, algo que teria sobrepujado a jovem que as usasse, mas Caroline era alta, como a maioria dos Aincourt, e possuía uma beleza vivaz. Aninhadas em seus cabelos negros e acariciando sua pele extremamente branca, complementando o azul brilhante de seus olhos, as jóias pareciam magníficas e apropriadas.

Devin capturou a felicidade da irmã e até mesmo aquele toque de convencimento no sorriso e nos olhos a demonstrar que Caroline sabia que estava se engajando num casamento esplêndido com um homem que a amava mais do que a tudo na vida. A pele resplandecia na luz pálida que a iluminava pela janela ao lado. Os olhos eram tão vivos que quase se podia esperar ouvir a risada jovial que lhe era peculiar.

— Este é o mais belo retrato que tenho dela — disse Richard, seguindo o olhar de Devin. — Por isso o mantenho aqui, onde posso vê-lo mais. — Ele olhou para além do retrato, na direção de um outro menor, de uma menina, ao lado dele. — Eu só queria ter pedido a você um de Alana. O artista não conseguiu lhe fazer justiça... ela ficava se mexendo o tempo todo, sabe.

Devin também olhou para o retrato da sobrinha. Ela devia ter uns quatro anos; não fora pintado muito antes do acidente.

Richard tinha razão. O artista retratara as feições corretamente, mas o brilho que a criança animava não estava presente, tampouco o sorriso que iluminava qualquer lugar em que ela entrasse. Devin a teria pintado ao ar livre, banhada pela luz do sol, rindo e brincando com um dos cães ou gatos. Mas, à época, ele já havia abandonado a pintura.

— Você já pensou em retomar? — perguntou Richard.

— A pintura? — Devin olhou para ele, surpreso. — Não. Já passei dessa fase. Era só um hobby. Algo de que gostava quando era jovem.

— Sério? Aceita um vinho do Porto? — Richard virou-se para o corredor e levantou ligeiramente a voz. — Harper! Suponho que você ainda esteja rondando aí pelo corredor. Traga-nos uma garrafa de vinho do Porto e dois copos.

Richard virou-se novamente para Devin e fez um gesto em direção a duas poltronas diante da lareira.

— Eu pensei que, às vezes, você pudesse ter vontade de desenhar um rosto particularmente interessante, ou deparar com uma cena que o arrebataria e o faria sentir vontade de pintá-la.

Devin deu de ombros, os pensamentos fluindo, estranhamente, para o rosto de Miranda Upshaw — um maxilar forte demais e uma boca muito larga para serem considerados belos, mas, com aqueles olhos cinza chamativos e uma feição tão resoluta, era difícil não notá-la. Seria difícil, se não impossível, retratar aqueles olhos corretamente.

— Receio ter perdido o interesse — disse Devin, desconversando. — Com certeza, a habilidade também, a essa altura. Como papai costumava dizer, uma ocupação nada apropriada para um cavalheiro.

— Ah, sim. Do modo como a bebida e o jogo o são.

Devin lançou-lhe um olhar grave. Richard o estava observando, com um leve sorriso nos lábios, e Devin teve de rir.

— Você me conhece. E, não, não creio que meu pai considerasse isso uma ocupação própria de um cavalheiro também. A idéia dele de vida correta era rezar de manhã, ao meio-dia e à noite, com um pouco de punição aos pecadores, e três boas refeições entre elas. Papai era, se você bem se lembra, um homem que gostava de comer, razão pela qual raramente se dirigia ao Criador de joelhos. Ele precisava da ajuda de dois criados para levantá-lo quando o fazia.

— Sim. Lembro-me bem do velho tirano. Certa vez ele me disse que eu era muito mundano para me casar com a filha dele, mas, felizmente, a doença do meu pai significou que eu ascenderia logo ao título, e isso pareceu compensar meus pecados.

— Estou certo de que compensou. E, mais ainda, seus cofres bem-abastecidos.

Naquele momento Harper voltou ao cômodo, carregando a bandeja com o vinho e os copos. Ele apoiou a bandeja na mesinha ao lado do duque e dirigiu-se para a porta.

— Ah, Harper... feche a porta quando sair, e pode ir dormir. Não há necessidade de ficar de guarda aí no corredor. Garanto que não planejo pôr fim à minha existência, pelo menos não enquanto Ravenscar estiver aqui.

— Fico aliviado em ouvir isso, Excelência — respondeu Harper, um pouco desgostoso. Fez uma reverência ao sair do quarto, fechando a porta.

Devin olhou para Cleybourne, as sobrancelhas arqueadas.

— Eles estão achando que sua vida terá fim em breve? Richard fez uma careta e serviu o vinho.

— Eles estão com o tempo sobrando e usam esse tempo para criar medos absurdos. Infelizmente, agora plantaram essa semente na cabeça de sua irmã. Rachel me visitou três vezes nas duas últimas semanas, geralmente sem qualquer motivo. Suspeito que Baldock, o mordomo, decidiu confidenciar seus medos a ela.

Devin ficou em silêncio por um instante, sorvendo um gole da bebida. Por fim, disse, a voz cuidadosamente indiferente:

— Você está planejando uma morte iminente? Ir a um enterro iria atrapalhar meus planos, devo alertá-lo.

Richard sorriu, desanimado.

— Não. Não lhe causarei esse transtorno.

— Bom.

Eles esvaziaram os copos, e Richard os encheu novamente. Ergueu o seu em direção a Devin.

— Quase esqueci... Parabéns, Dev. Devemos brindar a seu casamento.

— Meu casa... — Devin o encarou, com o copo a meio caminho da boca. — Como diabos ficou sabendo disso? Ah, Rachel, é claro.

— Obviamente. Ela veio aqui na segunda-feira e me contou tudo sobre a estimável Srta. Upshaw.

— Bem, não haverá casamento, então você pode guardar o brinde para outra ocasião.

— Verdade? Rachel soou tão esperançosa.

— Ela está. Assim como minha mãe. Mas receio que ambas estejam fadadas ao desapontamento.

— Por quê? Parecia ser uma boa coisa para você. Quero dizer, ela é americana, não vem de uma família tradicional e tudo mais, porém...

— Sei disso. Na minha posição, não se pode dar ao luxo de querer escolher muito. O dinheiro se sobrepõe a tudo.

— Na verdade, eu ia dizer que me pareceu que a Srta. Upshaw daria excelente esposa.

— Humm. Se eu quisesse me casar com uma ranzinza.

— Minha nossa. Isso não se parece em nada com a descrição que Rachel fez da mulher.

— Não é Rachel que terá de se casar com a leviana. A Srta. Upshaw é fria, manipuladora e totalmente desprovida de sentimentos.

— Verdade? — Richard bebeu um gole, observando Devin com interesse através do copo. — Isso soa como se ela tivesse causado má impressão em você.

— Ela me acusou de estar me vendendo pela maior oferta. Bem, não acusou assim, exatamente, porque não parecia ter problema algum com isso. Como se fosse natural para um nobre inglês ir a leilão. "Vários americanos estão comprando nobres para se casarem com suas filhas. Meus conterrâneos são bastante fãs de títulos" — disse ele, fazendo uma imitação grosseira de Miranda. — Foi quando lhe disse que esse britânico aqui não estava à venda. — Ele suspirou, olhando para baixo, para o copo, entristecido. — Obviamente, isso é de enfurecer ainda mais porque eu estou à venda. Um título, com um homem de brinde, por um preço suficiente para me fazer viver do jeito que estou acostumado.

— E salvar Darkwater — acrescentou Richard. — E esta é uma questão importante. Sua propriedade está em mau estado, pelo que ouvi, e esse não é só um problema da casa. Há várias pessoas dependendo de você e de sua família. Receio que os americanos têm dificuldade em entender o conceito de dever para com a família e para com as pessoas que dependem da família há anos. Há um compromisso feudal nisso que escapa a eles.

— Não sou santo, Richard. Você sabe disso. — Devin bebeu o restante da bebida e levantou-se para servir-se de outra dose. — Se me casasse com ela, seria porque não consigo me imaginar preso por inadimplência.

— Creio que também não conseguiria. Você sabe, Dev, se precisar de algum dinheiro...

— Sei. Você é um homem generoso. Mas atingi um estágio irremediável. Uma ajuda temporária não será suficiente. — Ele suspirou. — Tio Rupert me assegurou que a propriedade secou. Não está mais dando dinheiro. Na verdade, está perdendo dinheiro. E precisaria de investimentos maciços para torná-la lucrativa para as próximas gerações. A casa está ruindo e os jardins estão sufocados por ervas daninhas e mato alto.

— Ah. Assim fala o homem que só está preocupado com o estado de seu próprio bolso.

Devin fez uma careta.

— Eu não dou a mínima para Darkwater. Mas mamãe me atormenta com isso até não poder mais.

— Então, por que não se casar com a garota? Você vai ter seu dinheiro e lady Ravenscar vai parar de atormentá-lo. Não há outra opção com quem se casar, há?

— Não. E você não precisa me dizer que ninguém de boa família se casaria comigo. Todos adoram me lembrar disso.

— Rachel me disse que a americana é atraente e charmosa.

— Atraente? Sim. Charmosa? Não diria isso. Ela é imbecil, irritante e completamente impossível.

Richard arqueou as sobrancelhas e tomou rapidamente um gole para encobrir o sorriso que lhe veio aos lábios.

— De fato? Bem, obviamente, ela tornaria sua vida um inferno.

Devin deu de ombros.

— Eu posso mandá-la para Darkwater. É isso o que eles me dizem para fazer.

— Eles quem?

— Leona, Stuart, até tio Rupert. Mas...

— Mas o quê? Vai contra sua consciência pegar o dinheiro da moça e depois enclausurá-la em Darkwater?

— Um pouco — admitiu Devin. — E eu teria de fazer isso, porque você sabe que eu não poderia viver com a bruxa.

— Por que exatamente? O que ela faz?

Devin se mexeu, sentindo-se desconfortável e, então, explodiu:

— Diabos, não sei, Richard! Ela me faz sentir... ela olha para mim com desprezo. Diz coisas que ninguém diria em companhia de uma pessoa educada. Ela é completamente fria.

— Bem, você não teria de ocupar a mesma cama que ela com tanta freqüência — Richard argumentou.

Devin ficou chateado e, ao mesmo tempo, involuntariamente excitado ao ouvir as palavras do cunhado.

— Ela não é fria nesse sentido. Na verdade, é bastante... — Ele sacudiu a cabeça como se para apagar o pensamento. — Ela me confunde, me atormenta. Fico pensando nela. Hoje a vi na ópera, e ela me olhou de uma forma... como se me achasse engraçado. Ela possui olhos que podem ver dentro de você. É de enlouquecer. Tenho certeza de que brigaríamos constantemente. Brigamos todas as vezes em que estivemos perto um do outro. Ela me rejeitou, sabe. Eu a pedi em casamento, mas ela simplesmente me olhou e disse, daquela maneira seca:

"Não." Então, na vez seguinte, disse-me que via as vantagens de se casar com alguém com o meu nome... havia Darkwater para recuperar, o título, ainda que não se importasse muito com isso, e, obviamente, o motivo mais importante: ela poderia apresentar a irmã à sociedade londrina. Ah, é claro, ela também disse que eu não poderia esperar nada melhor do que uma americana sem tradição, sendo o devasso, bêbado e conquistador que sou. Richard engasgou com a bebida e começou a tossir.

— Ela disse isso mesmo?

— Disse. Eu lhe falei, ela diz qualquer coisa que lhe vem à cabeça. Sem dúvida, provocaria uma síncope na minha mãe. — Ele sorriu. — Embora pudesse valer a pena ver isso acontecer.

— Humm. Você não deveria deixar essa moça escapar. Pense na confusão que ela poderia causar no Almack's.

Devin riu, e os dois ficaram em silêncio por um instante, bebendo, absortos em seus próprios pensamentos.

— Sabe, Dev — disse Cleybourne, por fim —, o casamento não precisa ser uma coisa terrível, mesmo em se tratando da Srta. Upshaw.

— Você espera que o casamento me torne um homem decente? É isso o que Rachel espera... ainda que tente expressar isso de um modo mais tácito, claro.

— Não — respondeu Richard, serenamente. — Acho você um homem decente, não importando o quanto você tenta convencer as pessoas do contrário. Mas você poderia achar a vida mais... interessante com uma esposa como a Srta. Upshaw.

— Então você também acha que eu deveria me casar com ela?

— Acho que você deveria fazer o que é melhor para você. — Richard deu de ombros. — Obviamente, nessa situação, não creio que possa decidir alguma coisa, já que ela o rejeitou.

Devin lançou-lhe um olhar de soslaio.

— Eu poderia mudar isso no momento em que quisesse. Richard deixou escapar uma risada curta.

— O pior é que é provável que você possa.

— Chega dessa conversa sombria — disse Devin, acabando com o líquido do copo. — Beba, e eu o desafiarei para um jogo de Écarté.

— Ah, então você vai logo poder pagar suas dívidas, já que sem dúvida vai me limpar. Passemos à sala de jogos. — Cleybourne ficou de pé, pegou a garrafa e eles deixaram o escritório para se entregarem a uma longa noite de bebida e jogatina.

Para sua surpresa, Miranda encontrou a irmã encolhida em uma poltrona, em sono profundo, quando voltou da ópera aquela noite.

— O que você está fazendo aqui a essa hora? — perguntou ela, jocosamente, tocando o ombro de Verônica para acordá-la.

Verônica deu um pulo, assustada, e olhou para Miranda, piscando os olhos.

— Eu estava esperando você. Queria saber tudo o que aconteceu na ópera. — Ela se espreguiçou, passando a mão na nuca. — Eu não faço nada divertido! Mamãe diz que não posso ir à ópera antes de ser apresentada à sociedade.

— Tenho certeza de que sua mãe sabe tudo sobre essas coisas, melhor do que eu.

— Mas também não consegui ir ao baile. Você sabia que sequer vi o tal de Ravenscar? E você não me contou nada sobre o baile. Então decidi esperar por você para saber das últimas. Só que acabei dormindo.

— Tudo bem — disse Miranda com um sorriso. — Você fará o trabalho da minha criada hoje, para não termos que acordar Rosie. E eu lhe contarei tudo sobre a ópera.

— E sobre o baile.

— E sobre o baile.

Verônica levantou num salto para desabotoar o vestido da irmã pelas costas. Miranda descreveu o teatro e a música, os adornos cintilantes de jóias e vestidos de todas as mulheres que lá estavam. Também fez o maior esforço para se lembrar dos detalhes do baile — os arranjos de flores, os vestidos, as luzes flamejantes de todos os lugares, a música que fora tocada. Verônica ouvia avidamente, os olhos faiscavam ao imaginar tudo o que Miranda descrevia.

— E o conde? — perguntou, quando Miranda fez uma pausa, parecendo ter terminado o relato. — Não pare. Conte-me tudo sobre o conde de Ravenscar. Você o viu hoje à noite? Dançou com ele no baile?

— Sim e sim.

— Não pare! — Verônica gritou.

— O que você quer saber? Ele é um homem razoavelmente bonito.

— Você pode fazer melhor que isso.

— Está certo. Ele tem olhos verdes como vidro à luz do sol, os cabelos são negros como o carvão. Há uma pequena cicatriz por aqui na face dele, perto dos olhos. É alto e tem os ombros largos, além de ser imoralmente bonito. Não é nem um pouco o tipo de pessoa com quem jovens como você deveriam estar sonhando.

— Mas você vai se casar com ele? — Verônica pressionou. Miranda fez uma pausa, olhando para o nada por um momento, depois de novo para a irmã.

— Sabe... acho que eu até que poderia fazer isso.

 

— Senhor... senhor... — O som destas palavras repetidas suavemente acabaram acordando Devin.

Ele abriu um dos olhos e viu o mordomo, que parecia uma miragem, torcendo as mãos e franzindo o cenho. Devin resmungou algo incompreensível e sentou-se.

Ao sentar-se, percebeu duas coisas ao mesmo tempo: o corpo estava incrivelmente dolorido, em especial no pescoço; e a cabeça latejava violentamente. Já sabia a razão para esta última sem ter de raciocinar muito. A cabeça estava como sempre ficava quando consumia uma quantidade excessiva de álcool durante a noite — inchada e sensível, como se mil minúsculos duendes estivessem martelando-a de dentro para fora.

Levou algum tempo para entender a razão daquela rigidez incomum. Estava sentado à mesa do escritório, e não deitado na cama. Caíra no sono à mesa, a cabeça acomodada em um dos braços da cadeira, resultando em um pescoço torto e em mão e braço dormentes, não conseguindo mexê-los.

Piscou ao ver a luz e grunhiu, tentando se lembrar do que estivera fazendo no escritório e por que caíra no sono ali.

— Meu senhor — começou o mordomo novamente, mas Devin levantou a mão advertindo-o.

— Não.

O mordomo parou, mexendo-se nervosamente, olhando para o patrão, depois para a porta, e de volta para Devin.

— Dê-me um minuto para ter certeza de que estou vivo — continuou Devin. — Acho que posso estar em um dos círculos do purgatório.

— Perdão, senhor? — O mordomo acrescentou uma expressão confusa à de ansiedade. Este não era o homem que fora o mordomo de Devin por vários anos, o boa-praça que recebera uma oferta de melhor salário em outro lugar. Este homem trabalhava nos afazeres domésticos do conde há apenas dois meses, e achara o trabalho ao mesmo tempo pouco exigente e inconstante. Ainda não decidira se a informalidade com que o patrão o tratava valia a pena em relação a seus horários estranhos e às pessoas pouco respeitáveis que entravam e saíam.

— Esqueça. Preciso de um copo d'água. Não, espere, café. Talvez os dois.

— Sim, meu senhor. Mas, primeiro, há a questão da... Devin deixou escapar um grunhido. Estava recuperando a memória aos poucos. Lembrou-se da ópera na noite passada e de ter deixado Leona de mau humor e, depois, de ter ido à casa de Richard. Eles jogaram cartas, tomaram uma garrafa de vinho do Porto inteira e abriram outra antes de ele, por fim, ir embora. Era muito cedo, recordava-se, quando tomara o caminho de casa, já que o céu mostrava sinais de claridade ao leste. Um homem sensato teria ido direto para a cama àquela altura, mas ele não. Carregara a segunda garrafa de vinho do Porto, que ainda continha algum líquido, levara-a para o escritório e continuara a beber.

E também decidira, arrependido ao lembrar, testar suas habilidades artísticas. As palavras de Richard incutiram nele o desejo de desenhar, de ver se ainda era capaz de retratar um rosto no papel. Foi uma tentativa absolutamente inútil, claro, mas a verdade é que sempre embarcava em atitudes absolutamente inúteis quando estava sob os efeitos da bebida. Desenterrou papel e lápis e perdeu uma ou duas horas tentando desenhar rostos — bem, um rosto em particular. Não conseguira tirar o semblante da Srta. Upshaw de sua mente, e tentara exorcizá-la recriando-a. Fora particularmente malsucedido, um fato que podia ser atestado pelo número de folhas de papel amassadas na lixeira e espalhadas em volta dela. Mesmo tendo tentado com empenho, não fora capaz de capturar a aparência exata da inteligência penetrante e da espirituosidade inerente que marcavam o rosto de Miranda.

Em algum momento do processo, obviamente, acabara pegando no sono. Agora recostava-se na cadeira e fixava o olhar implacável no mordomo.

— Eu disse café. Esqueça todo o resto.

— Mas é a senhorita, senhor... Não sei o que fazer.

— A senhorita? — Devin afundou a cabeça sensível nas mãos. — Que senhorita?

— A senhorita que está aí fora, senhor. Ela insiste em vê-lo e parece bastante determinada. Disse-lhe que o senhor não estava disponível, mas ela recusou-se a acreditar em mim, senhor. Eu... Eu não soube o que fazer.

— Mande-a embora.

— Eu o teria feito, senhor, mas ela... bem, eu reconheci as formas inconfundíveis de madame Ferrier em seu vestido e peliça, senhor, e o jeito de falar, os modos, bem... — Ele baixou a voz, quase como se fosse contar um segredo. — Ela parece ser uma dama.

— Você é um idiota.

— Não, ele não é — disse uma voz através da porta.

Tanto Devin quanto o mordomo viraram rápido para olhar para a porta, um movimento que fez com que o estômago de Devin sacudisse perigosamente.

— Srta. Upshaw! — exclamou o mordomo, surpreso. Devin grunhiu e deixou a cabeça afundar nas mãos.

— Eu já deveria saber.

— Perdão — disse Miranda, dirigindo-se ao mordomo e não a Devin. — Mas eu estava me sentindo entediada de ficar plantada ali no corredor, e, francamente, tive medo de que você não tivesse coragem de acordar lorde Ravenscar. Achei que poderia precisar da minha ajuda.

— Meu Deus — grunhiu Devin —, serei atormentado por você em todos os lugares, até na minha própria casa?

— Virou a noite, hein? — disse Miranda, entrando ainda mais no cômodo. Virou-se para o mordomo: — Ele precisa de café, suponho, Sr... qual o seu nome?

— Simmons, senhorita. Só Simmons.

— Tudo bem, Simmons. Traga um bule de café o mais rápido que puder. E acho que também lhe faria bem se preparasse um copo do meu remédio. Funciona que é uma maravilha. O Sr. Hoskins, representante comercial de papai na região noroeste, confiava cegamente nele. Pobre homem. Ele era dado a beber, e sempre que chegávamos lá, o encontrávamos de ressaca. Foram a solidão e a neve, sabe, que o levaram a beber. Sempre preparava um copo do remédio, o que o fazia melhorar em poucos minutos. Primeiro você pega um ovo cru, depois adiciona uma pitada de pimenta-do-reino moída, uma...

Devin deixou escapar um gemido lamuriento.

— Não, por favor, imploro, sem mais descrições. Estou certo de que o cozinheiro iria embora se fosse obrigado a fazer tal preparado. Simmons, faça o café. Eu atendo a Srta. Upshaw.

Devin levantou-se, usando a escrivaninha como apoio, e encarou Miranda. Ajeitou o cabelo para trás e desenrolou as mangas da camisa, só então percebendo que estava sem o paletó e o colete. Ele os jogara em uma das poltronas mais cedo naquela manhã. A gravata estava com o restante, deixando-o em um estado completamente desgrenhado e impróprio — camisa para fora, o botão de cima aberto — para estar recebendo visita, quanto mais uma visita feminina.

— Srta. Upshaw, sinto dizer-lhe, mas isto é extremamente inapropriado — ele começou. — Não sei como vocês fazem na América, mas em Londres uma dama não entra na casa de um solteiro sem estar acompanhada, a menos que seja paren... — A voz dele esmoreceu quando seus olhos pousaram na pilha de papéis amassados ao lado da lixeira. Às pressas, chutou alguns deles para baixo da escrivaninha.

— Também não seria apropriado nos Estados Unidos, lorde Ravenscar. — Miranda assegurou-lhe, o olhar seguindo o dele na direção das bolas de papel dentro e em volta da lixeira. O olhar nervoso e quase culpado no rosto do homem a intrigou. Miranda ficou tentando imaginar o que haveria naqueles papéis. — No entanto, havia algo que precisava falar com você, e não vi sentido em ficar sentada esperando que aparecesse em minha casa de novo, ou que o encontrasse na ópera, no teatro ou em alguma festa.

— Você poderia ter enviado um bilhete solicitando que eu a visitasse.

— E você teria ido? — Miranda arqueou uma sobrancelha em descrédito. — De qualquer modo, odeio esperar. Gosto de tomar as rédeas do meu próprio destino, e não colocá-lo nas mãos de outros. Por isso, decidi visitá-lo. Suspeito que seja um pouco cedo para você, já que são apenas meio-dia e meia, mas quis encontrá-lo antes que saísse.

— Saísse? Para onde?

— Não sei. Para qualquer lugar. Sair para fazer algo fora, digo. Sério, meu senhor, tem certeza de que não quer que eu vá até a cozinha e prepare aquele remédio? Você parece estar tendo dificuldade em manter um diálogo.

Devin a observava irritado.

Miranda encarava-o de volta, sem modificar sua expressão agradável. O homem estava em frangalhos, pensou. Era quase o suficiente para fazê-la mudar de idéia. Mas Miranda não era do tipo que mudava de idéia assim tão facilmente. Tendo tomado uma decisão, como a que tomara esta manhã depois de uma noite quase sem dormir pensando a respeito, não costumava questioná-la. Estava confiante e pronta para ir em frente. Foi por isso que decidiu ir diretamente até a casa do conde e dar o primeiro passo.

Ela sabia o que queria, e por quê. O único problema agora era iniciar o assunto. Mas Miranda estava confiante de que seria capaz de persuadir Ravenscar.

— Srta. Upshaw, permita que eu seja tão direto quanto parece gostar de ser.

— Por favor, seja.

— O que está fazendo aqui?

— É muito simples. Vim dizer-lhe que decidi aceitar a proposta. Vou me casar com você.

Devin ficou calado, simplesmente olhando para ela. Ocorreu-lhe que talvez seus ouvidos estivessem lhe pregando peças.

No fim das contas, ingerira uma grande quantidade de bebida alcoólica na noite anterior.

— O que disse?

— Disse que mudei de idéia a respeito do casamento. Aceito sua proposta.

— Você não pode fazer isso — ele protestou. — Já lhe disse, não me casaria com você nem para me salvar da prisão por inadimplência.

— Você me pediu em casamento.

— E você recusou o meu pedido.

— Uma mulher tem a prerrogativa de mudar de idéia — Miranda argumentou. — Além disso, não se pode retirar o pedido. Seria um ato de extrema falta de cavalheirismo.

— Não, não, não — disse Devin, dando a volta na escrivaninha e aproximando-se dela. — Um pedido, uma chance. É isso. Você recusa e o pedido perde o valor.

O mordomo adentrou o cômodo exatamente naquela hora e quase saiu ao ver a aparência feroz no rosto do patrão. Mas Miranda parou-o com um olhar e um gesto.

— Ah, o café. Coloque-o na mesa, Simmons. Quer que eu sirva?

— Não! — Devin encarou o mordomo com raiva. — Coloque a bandeja na mesa ao lado do sofá, Simmons. Eu servirei.

— Sim, meu senhor. — Simmons fez como Devin o instruiu e bateu em retirada, conseguindo com muita habilidade deixar uma fresta na porta ao fechá-la.

Miranda seguiu-o até a porta e fechou-a direito. Devin virou-se para a mesa e serviu-se de uma xícara de café quente. Miranda aproveitou a oportunidade para andar silenciosamente até a escrivaninha e alcançar, puxando com o pé, uma das bolas de papel que Devin se esforçara tanto para esconder. Enquanto ele ainda estava de costas, ela abaixou-se rapidamente e pegou a bola, enfiando-a no bolso. Quando ele se virou, ela o estava olhando placidamente, com as mãos cruzadas.

— Posso oferecer-lhe uma xícara de café, Srta. Upshaw?

— Não, obrigada. Tenho certeza de que precisa mais dela do que eu.

Devin tomou um gole do café e aguardou um instante. Como seu estômago não se rebelasse, tomou outro gole. Quando havia bebido o conteúdo de uma xícara inteira, achou que talvez estivesse pronto para lidar com Miranda.

— Agora... — Devin tentou esboçar um sorriso agradável, apesar da cabeça ainda latejante. — Srta. Upshaw. Não tenho certeza do que a levou a essa reviravolta, mas, se pensar um pouco, vai perceber que é completamente improvável de funcionar. Nós nunca nos demos bem. Não conseguimos ficar cinco minutos no mesmo ambiente sem iniciarmos algum tipo de discussão. Não poderíamos nos casar.

— Você deve conhecer algum casal que vive um tipo muito diferente de casamento para pensar que se dar bem é uma exigência da vida conjugal.

— Você me despreza!

— Agora isso foi um pouco radical. Nunca disse que o desprezava — afirmou Miranda, cuidadosamente. — Eu o acho arrogante e um tanto antipático, admito, mas não é pré-requisito do casamento gostar sinceramente do cônjuge. Tenho certeza de que seus sentimentos em relação a mim são os mesmos que os meus em relação a você.

— Se este é o caso, então é provável que um de nós vá estar morto antes do fim da lua-de-mel — comentou Devin, secamente. Miranda abriu um sorriso lânguido.

— Asseguro-lhe, meu senhor, que não tenho tendências homicidas. E também sou bastante capaz de cuidar de mim mesma.

— Isto é absurdo. — Devin colocou de lado a xícara de café vazia.

— Não. Asseguro-lhe de que não é. Foi muito bem pensado. Passei a noite anterior inteira considerando a hipótese. E digo-lhe que raramente chego a conclusões erradas.

— E por falar em arrogância... — murmurou Devin. Ele se apoiou na beirada da escrivaninha, esticando as longas pernas à sua frente e cruzando os braços no peito, e encarou Miranda com um olhar paciente, ainda que um tanto inflamado. — Está bem. Deixe-me ouvir essas considerações bem pensadas.

— Como lhe disse naquela noite — continuou Miranda —, comecei a perceber as vantagens do tipo de casamento arranjado que me propôs. Não foi o que planejei para minha vida, por isso demorei a me acostumar com a idéia. Para você, as opções são óbvias, não importando o quanto gosta ou não delas. Vi seus relatórios financeiros, sabe, e está bastante claro que você está à beira da ruína.

— Viu meus relatórios financeiros? — perguntou ele, espantado.

— Seu tio foi gentil o suficiente para enviá-los para nós.

— Que consideração da parte dele.

— É, também achei. De qualquer forma, se espera sobreviver, e se quer salvar as propriedades de sua família, precisa se casar por dinheiro. E logo. Sou sua melhor oportunidade. Até mesmo uma maria-ninguém das colônias é melhor que passar seus dias na prisão.

— Não serei preso.

— Oh, não, tem razão. Você tem uma irmã e uma mãe das quais pode sugar algo. — Miranda ignorou o olhar furioso de Ravenscar. — Ainda assim, não acho que elas possam lhe dar o estilo de vida ao qual está acostumado, apenas com o dinheiro que ganham para gastar com roupas. Você acha?

— Há outras opções.

— Quais? Apostar? Ou talvez pretenda receber alguma comissão por conduzir desavisados às casas de jogos. Não, acho que o casamento é a única forma de ganhar a quantia de que vai precisar. E você acabou com todas as suas opções aqui na Inglaterra. Um cavalheiro abastado não tem interesse em fazer parte de um escândalo. Não é verdade? Há quaisquer outras herdeiras dentre as quais escolher?

— Você sabe que não há.

— Diria que isso me torna não apenas sua melhor esperança, mas a única.

— Você tem um jeito tão sutil de se expressar.

— Achei que apreciaria uma conversa direta. Nós estamos, afinal, discutindo os detalhes de um arranjo de negócios. Não é verdade? Papai e eu vamos aplicar um bocado de dinheiro em você. Uma quantia não muito grande, sinto dizer, por causa de sua conhecida propensão a, bem, gastar dinheiro com muita facilidade. Pagaremos suas enormes dívidas e, é claro, você também receberá uma mesada mensal generosa. Pagarei as despesas das casas, papai e eu cuidaremos da restauração de Darkwater. Sei que a propriedade está em mau estado, também, e vou, obviamente, encarregar-me de colocá-la de volta em bom estado. Não ficarei surpresa se começar a dar lucro em pouco tempo. Sou muito boa nesse tipo de coisa, sabe?

— Srta. Upshaw. — Devin ficou de pé, os olhos semicerrados. — Enquanto está fazendo planos para meu futuro, devo lembrar-lhe de que você não terá controle sobre nada disso depois que nos casarmos. Após o casamento, todo seu dinheiro será meu. Você nem mesmo terá direito à propriedade. Serei eu quem decidirá a respeito de mesadas e somas de dinheiro. Você, minha cara, ficará sob meu poder. — Ele chegou mais perto, projetando-se sobre ela com o rosto carrancudo. — Os maridos mandam na Inglaterra, e você fará o que eu digo. Pensou nisso quando fazia seus planos? Eu poderia trancá-la em Darkwater e voltar para Londres e me divertir gastando seu dinheiro.

Os olhos dele eram ferozes, a postura, ameaçadora, mas Miranda não se intimidou.

— Lorde Ravenscar, devo dizer-lhe que, certa vez, quando estava com papai comprando peles numa região selvagem, estive frente a frente com um enorme urso. Sua tentativa de intimidação é fraca em comparação a isso. — Ela desviou um passo e se afastou. — Não importa o que pense — disse ela, calmamente, virando-se para encará-lo a alguns passos de distância —, não sou idiota. Nem meu pai o é. Primeiramente, o grosso da fortuna da família pertence a meu pai. Ele pagará pelo que lhe convier e como lhe convier. Pagará suas dívidas e restaurará Darkwater. Posso assegurar-lhe de que fará exatamente o que quiser nesse sentido. Você parece ter a noção errônea de que os americanos são burros. Ou talvez seja o jeito amigável dele que o engane. Mas, acredite, você nunca tirará um centavo de meu pai além do que ele quiser dar-lhe. Com relação à minha fortuna pessoal, se acha que eu abriria mão do dinheiro que trabalhei para acumular nos últimos dez anos só pelo prazer de me casar com você, está muito enganado. Antes de me casar, o dinheiro será colocado em um fundo administrado por meu pai, por meu advogado e por Hiram Baldwin. Como pode imaginar, eles investirão como eu ordenar e distribuirão o dinheiro como eu mandar. Se você for tolo a ponto de tentar me trancar em algum lugar, ou sortudo a ponto de consegui-lo, creio que se verá rapidamente sem recursos financeiros.

Os olhos de Ravenscar faiscaram e seu corpo se enrijeceu de fúria.

— Você acha que pode me controlar dessa forma? Que pode me fazer dançar conforme sua música só porque tem dinheiro?

Devin cruzou o espaço que os separava em duas passadas rápidas. Segurou os braços dela, com os olhos em chamas. Chegou tão perto que Miranda pôde sentir o calor do corpo dele. Sua respiração arranhava a garganta. Sua intensidade e fúria eram quase uma força tangível.

— Eu não me submeto a ninguém, muito menos a você. Um arrepio percorreu o corpo de Miranda. Normalmente, era ela quem intimidava os homens; havia algo excitante em encarar um que não a temia. Ela o enfrentou, olho no olho, com o corpo teso.

— Você acha que está segura porque pode criar fundos? — continuou ele. — Porque seu pai e todos os homens que conhece correm para fazer o que diz? Não sou um deles. Talvez ninguém tenha se dignado a mencionar que, em meio a todas as minhas falhas, há algumas coisas para as quais tenho talento. Sou um exímio atirador, Srta. Upshaw. Miranda lançou-lhe um olhar de igual para igual.

— Está me ameaçando, lorde Ravenscar? Talvez um dia possamos competir. Quando acompanhei meu pai em expedições comerciais, fomos a alguns dos lugares mais ermos do continente norte-americano. Lugares em que não havia lei e nos quais jamais houve lei. Aprendi a usar armas com pouca idade. Na verdade, fui ensinada por um dos melhores caçadores do país.

Devin ficou olhando para ela e, então, de repente, começou a rir. Baixou os braços e afastou-se, dizendo:

— Aposto que foi, Srta. Upshaw. Qualquer coisa diferente disso não seria característico de sua pessoa. A seguir me dirá que também é mestre na arte da briga de punhos.

— Não. Isso eu não faço. Sempre fiquei em desvantagem por causa de meu tamanho e de minha força. No entanto, aprendi com os caçadores a usar facas para cortar peles e retirá-las, e a matar também. — Olhou para ele com um semblante brando.

— Touché! — Ele balançou a cabeça. — Você é, sem dúvida, a mulher mais incomum que já conheci.

— Vou tomar isso como um elogio — disse Miranda, rapidamente. Sua respiração ainda estava um pouco irregular. Irritava-a o fato de ele afetá-la tanto, mas não deixaria que ele percebesse isso. — Acho que talvez você tenha entendido mal. A verdade é que não desejo controlá-lo. Meu único limite é o seu gasto do meu dinheiro, e você achará esse limite nada oneroso. Não forço as pessoas a fazerem o que quero. Normalmente, consigo isso argumentando.

Ele riu.

— Ainda assim, consegue tudo do seu jeito.

— Quase sempre — admitiu Miranda. — Entretanto, não insisto, e certamente não em um casamento. Mas gosto tão pouco de ser controlada por outra pessoa quanto você, por isso tomei medidas preventivas. Só isso.

— Entendo. — Devin anuiu com a cabeça.

— Isso o ofende?

— É claro. — Um brilho de humor reluziu nos olhos dele.

— Na verdade, já que as afrontas acabaram, acho que me sinto... aliviado. Sou, como você pode imaginar, um terror com dinheiro. Veja minha atual condição.

— Isso é compreensível. Você é um artista. Devin deixou escapar um som de escárnio.

— Nada disso. Não, receio ser apenas um cavalheiro dado aos prazeres da vida. Não sou bom em nada além do que em alguns interesses "cavalheirescos". Equitação, caça, carteado.

— Oh, mas há lugares em que essas coisas lhe seriam úteis — observou Miranda. — Então, meu senhor Ravenscar, deseja rescindir a oferta? Ou vai aceitar esse "contrato" de casamento?

Ele achou graça ao pensar no que Leona acharia quando descobrisse como sua herdeira era de fato.

— Sem qualquer dominação de um sobre o outro, certo? — disse ele, pensativo.

— Correto.

— Acho que conseguiria viver com isso. — Seria, pensou consigo, a única coisa sensata a fazer. Sua relutância era motivada por nada mais que um orgulho grande demais para as atuais circunstâncias. Ele tinha de se casar, e, por mais irritante que a Srta. Upshaw fosse, bem, como Richard observou, pelo menos a vida ao lado dela não seria monótona. E fazer um herdeiro com ela seria tudo menos uma tarefa onerosa.

— Bom. Odiaria ter de me engajar em outra procura por um marido apropriado — disse Miranda.

— Isso não será necessário — respondeu Devin brevemente, um pouco surpreso ao perceber como o desagradava a idéia de ver Miranda se casando com outra pessoa. — Minha proposta está de pé. Quer se casar comigo, Srta. Upshaw?

— Sim, meu senhor, quero — respondeu Miranda de pronto, e então continuou: — Acho que devemos nos casar logo, não acha? Não há muito sentido em esperarmos. Precisamos começar a saldar as dívidas e a restaurar a propriedade. Creio ser preferível um noivado breve.

— Está bem. — Ele se sentiu um pouco aturdido pelo jeito direto e comercial dela. Um noivado deveria envolver algo mais... alguma comemoração, um beijo, pelo menos...

Ele se aproximou, mas Miranda virou-se com destreza e afastou-se, dizendo:

— Agora, vamos aos detalhes... Pensei num casamento distante de Londres, você concorda? Sem dúvida já haverá bastante rumores assim, sem darmos a eles várias semanas para confabular.

Devin voltou à posição anterior, na escrivaninha, e observou-a pensativo. Será que ela antecipou o beijo e evitou-o habilmente, ou será que não percebeu o que estava prestes a fazer?

— Você sabe, Srta. Upshaw — ele começou —, eu me pergunto. Isso tudo é muito bom para mim. As vantagens de me casar com você são óbvias. Mas por que quer se casar comigo? Considerando o fato, afinal, de me achar arrogante e... qual era o outro defeito? Antipático?

— É mais a idéia de um casamento arranjado que me atrai — explicou Miranda, calmamente, sentando numa poltrona de frente para ele. — No início, não gostei da idéia, como sabe. Mas, depois, quando comecei a pensar no assunto, pude ver a sensatez de me casar não por amor ou paixão, mas por razões práticas. Como mencionei naquela noite, gostaria de restaurar sua propriedade. A casa e os jardins. Gosto de lidar com propriedades. Não há nada tão divertido quanto pegar um pedaço de terra e torná-lo rentável.

— De fato? — Ele parecia desconfiado. Miranda riu.

— Isso me atrai. Eu gostaria de dar a Darkwater sua antiga forma e beleza. E gostaria de ver o que pode ser feito para transformar a propriedade, modernizá-la, o que quer que seja necessário fazer para levá-la a produzir de novo.

— Estranhos motivos para um casamento. Suponho que poderia simplesmente comprar uma casa antiga e restaurá-la.

— Ah, mas aí não seria minha casa. Eu não teria qualquer conexão real, pessoal com ela. Isso a torna muito mais especial. Além disso, há o atrativo de sua posição social. Minha madrasta adoraria ver Verônica fazer seu debut aqui em Londres. Seria bom poder fazer isso por ela. Verônica vai gostar disso.

— Então você está se casando comigo para apresentar sua irmã à sociedade em alguns anos, fazendo assim sua madrasta feliz, e para restaurar Darkwater.

— Em parte. Mas, como lhe disse antes, essas coisas não eram suficientes para me fazer querer casar com você. Depois pensei melhor e percebi quão libertador era todo esse arranjo.

— Libertador? — Ele pareceu intrigado.

— Sim. Veja, eu tenho sido assediada por caçadores de fortunas, tanto aqui quanto no meu país. Nunca sei se um homem gosta de mim de verdade ou se só quer botar as mãos no meu dinheiro. Com um casamento arranjado, não há dúvidas. Sei que você não gosta de mim... Na verdade, acho que já concluímos que você me acha estranha e inoportuna. Isso é mais fácil do que ouvir declarações de amor e ficar me perguntando constantemente se são falsas. Prefiro negociar às claras.

— Prefere que seja sem amor?

— Prefiro saber onde piso. Odeio mentiras. Odeio pessoas que tentam me enganar, me ludibriar. Uma emoção honesta é sempre melhor que uma decepção, creio, mesmo se a emoção em questão não for a mais agradável. Pelo menos sei como lidar com isso, como agir. E não me sinto uma tola depois de descobrir a verdade. Além disso, não tenho a intenção de viver sem amor. É só que, em tais circunstâncias, o amor, se conseguir encontrá-lo, virá de fora do casamento.

— O que foi que disse?

— Disse que o amor vem separado do matrimônio quando se trata de um casamento arranjado, e isso é muito mais fácil, não acha? Ao pensar a respeito, vi que o modo europeu é muito mais prático. Nós nos casamos por razões práticas, e então, no dia-a-dia, seguimos caminhos separados. Você faz o que quiser, vive como quiser, e eu também. Aí não teremos nada dos ciúmes e dos sentimentos mesquinhos que podem contaminar um casamento por amor. Você terá suas amantes e eu terei os meus. Você vai...

— O quê?! — Devin saltou de sua posição tranqüila, relaxada, tornando-se carrancudo. — Como assim, você terá amantes?

— Exatamente como disse. Algum problema? Estava falando do tipo de casamento arranjado no qual estamos entrando. Não era isso o que havia planejado? Que se casaria comigo, mas manteria uma amante para o seu deleite? Ou para amar?

— Bem, sim — retrucou ele, e depois parou, ao perceber como aquela afirmação havia soado.

Miranda arqueou uma sobrancelha.

— Você espera que eu me comporte de maneira diferente do que espera se comportar?

— Bem, sim — admitiu ele, parecendo um pouco desconfortável. — Isso é uma coisa para um homem, mas para uma mulher...

— Sim?

— Bem, mulheres não saem por aí tendo casos fora do casamento.

— Não? Mas, pelo que ouvi, lady Vesey é casada.

— Leona? Leona não tem nada a ver com isso.

— Pelo que entendi, ela é sua amante.

— O quê? — Ele pareceu estupefato. — Como você.., Onde ouviu isso?

— De lady Westhampton.

— Rachel? — Ele ficou boquiaberto. — Minha irmã? O que a fez dizer a você...

— Oh, ela não me contou espontaneamente. Eu perguntei. Quando o vi junto a lady Vesey, suspeitei ser esse o caso, então perguntei a sua irmã. Ela não conseguiu negar.

— Não vejo por que não! — retorquiu Devin. — Rachel deveria saber como agir em situações delicadas.

As sobrancelhas de Miranda se arquearam novamente.

— Isso significa que eu não sei como agir?

— Não. Não quando sai por aí fazendo esse tipo de pergunta às pessoas. Em especial à própria irmã de um cavalheiro. Deus do céu, você não deveria falar sobre essas coisas comigo, quanto mais com Rachel.

— Por que não?

— Isso simplesmente não se faz.

— Ora! — Miranda fez um gesto de desdém com a mão frente a objeção dele. — Que bobagem. Achei que devíamos ter abertura e ser honestos um com o outro. Parceiros de negócios, por assim dizer. Certamente estamos acima de fingir que o que todos sabem ser verdade não é.

— Essa não é a questão — resmungou Devin.

— Então, qual é a questão? — perguntou Miranda, calmamente.

— Você não pode sair por aí tendo casos! Não vou admitir que o nome Aincourt seja manchado. — Devin enfureceu-se. — Lady Ravenscar não tem casos amorosos. O nome de minha esposa não passará de boca em boca nos ambientes de fofoca de Londres.

— Mas eu seria discreta — assegurou-lhe Miranda. — Não faria nada que prejudicasse o nome Aincourt, o qual você tem preservado tão cuidadosamente por todos esses anos.

— Tudo bem, pode zombar se quiser. Admito que não tenho sido um modelo de conduta. Tenho sujado o nome e a reputação de minha família. Mas é diferente!

— Porque é você?

— Porque sou homem — disse, com os dentes trincados. — Essa é uma questão completamente diferente para uma mulher.

— Por quê?

— Por quê? Como você pode perguntar isso? Todos sabem.

— Sabem o quê?

— Que as mulheres são... que elas...

— São mais moralistas que os homens? Seguem padrões mais elevados?

Ele pressionou os lábios por um instante, sentindo-se frustrado, e, por fim, explodiu.

— Ninguém se importa se um homem tem um ou dois filhos bastardos, mas a infidelidade de uma mulher põe em risco a sucessão.

— A sucessão? — Miranda riu. — Você soa como se estivesse falando do reinado.

— Você sabe do que estou falando. Eu nunca teria certeza se um herdeiro seria meu herdeiro de verdade se...

— Eu disse que seria totalmente discreta. E tomaria precauções também. Você não teria com o que se preocupar.

— Eu teria com o que me preocupar sim, se tivesse de desafiar homens para duelos para defender sua honra!

— Bobagem. Não haveria qualquer motivo para desafiar ninguém. Não consigo entender por que você está fazendo tanto alarde a esse respeito. Quer dizer, não é que você goste de mim.

— Certamente que não.

— Então, por que deveria se importar com o que faço? Sei que você é um homem muito justo para esperar que eu viva diferente de você e lady Vesey.

— Você poderia parar de mencionar o nome dela nessa conversa?

Miranda deu de ombros e continuou insistindo.

— E com certeza você não espera que continuemos celibatários depois de nos casarmos.

— Celibatários! Deus, não. De onde tirou essa idéia?

— Bem, quero dizer, em um casamento como o nosso, onde não há amor conjugal, nenhuma afeição verdadeira, se não procurássemos prazer em outro lugar, teríamos de ser celibatários. E sei que você não pretende fazer isso.

— Claro que não pretendo. Não pretendi nada ainda. Não tenho a mais vaga idéia de como você chegou a qualquer uma dessas coisas que está dizendo. — Devin passou os dedos nos cabelos, desarrumando-os ainda mais, e olhou para ela descomposto.

— Sem dúvida, você precisa de algum tempo para pensar nisso — disse-lhe Miranda, delicadamente.

— Vou precisar mais do que de tempo. Você está dizendo que eu e você não vamos... que nós não vamos...

— Dividir o leito matrimonial? — Miranda ajudou. — É isso mesmo. Esta é parte da atração por este tipo de casamento. Nós não temos de consumá-lo. Se você tivesse de fingir me amar e me cortejar, então teria de ir até o fim, e isso seria algo muito difícil de se fazer quando não se ama o outro, eu diria. Mas, dessa forma, quando se entra nisso honestamente, sem todas as armadilhas e mentiras, quando é simplesmente um acordo de negócios, puro e simples, nenhum de nós terá de fingir que quer consumar o casamento. Estou certa de que essa idéia o atrai tão pouco quanto a mim.

Ele olhou para ela, atordoado, e murmurou, por fim.

— Sim, obviamente.

— Pronto. Esta foi uma das razões pelas quais percebi que esse acordo era excelente. Teremos camas separadas e levaremos vidas separadas.

— Mas... mas e os herdeiros? — Devin se animou. — Afinal de contas, este é um dos meus principais deveres como conde de Ravenscar, garantir que o título tenha um herdeiro.

— Bem, depois de um tempo, suponho, se isso é tão importante, teremos de lidar com essa questão então — disse Miranda, pensando no assunto. — Faremos algum tipo de combinação. Mas isso é algo para depois. Não há motivo para nos preocuparmos agora.

— Claro que não. — Devin deu a volta na escrivaninha e afundou na cadeira. Sentia-se como se tivesse atravessado um redemoinho de vento. Não, era mais a sensação de ter sido passado para trás por um trapaceiro, mas de uma maneira tão hábil que não saberia dizer exatamente quando e como isso havia ocorrido.

— Bom, então está tudo acertado — disse Miranda rapidamente, ficando de pé. — Meu pai ficará maravilhado, assim como sua mãe, tenho certeza. Devemos iniciar os procedimentos. Verá que serão indolores e rápidos. Agora talvez deva se deitar com uma compressa de lavanda na testa. Parece-me um pouco indisposto.

Miranda saiu do cômodo, deixando Devin para trás com uma aparência estupefata. Saiu da casa e desceu os degraus em direção à carruagem que a aguardava. Só depois que se acomodou no assento de pelúcia foi que permitiu que um sorriso se abrisse em seu rosto.

Ela contara uma quantidade enorme de mentiras lá, pensou, mas esse pensamento não parecia fazê-la sentir o menor remorso. Na noite anterior, enquanto ficara acordada, elucubrando, chegou a uma importante conclusão: contra toda razão e lógica, Devin Aincourt era o homem que queria. Uma vez estando certa disso, todo o resto encaixou-se naturalmente. Miranda não costumava desconfiar de seus instintos. Ela se casaria com ele, e não tinha a menor intenção em dividi-lo com lady Vesey ou qualquer outra. Sabia que ele a queria; sentiu isso em seus beijos, em seu abraço. Também tinha certeza de que ele se casaria com ela. Além disso, dependeria dela fazer com que a amasse.

E foi para esse fim que passara o restante da noite planejando sua estratégia. Até agora, tudo acontecera exatamente de acordo com o plano. Deixou Devin confuso, ligeiramente enciumado e completamente frustrado. Foi, pensou, um bom começo. O próximo passo seria levá-lo o mais rápido possível para Darkwater, para o casamento, longe de Londres e das garras de lady Vesey. Sabia que podia confiar em seu pai e na ávida lady Ravenscar para fazer isso ocorrer o mais breve possível.

Botando a mão no bolso, pegou o pedaço amassado de papel que Devin se preocupou tanto em esconder debaixo da mesa quando ela entrou. O tempo todo em que estiveram conversando ficou curiosa para saber o que era. Agora tirou-o do bolso e abriu-o, desamassando cuidadosamente a página enrugada. Era um desenho de seu rosto, pela metade, mas facilmente reconhecível.

Olhou para ele por alguns momentos. Devin dormira à mesa do escritório na noite passada porque ficara tentando desenhar seu rosto. Miranda se lembrou da pilha de papéis amassados que ele chutara para debaixo da mesa. A lixeira também estava cheia deles. Sorriu com satisfação e inclinou a cabeça para trás, apoiando-a na almofada. Tudo estava indo ainda melhor do que o planejado.

 

O pai de Miranda ficou, como era de se esperar, satisfeito com o anúncio da filha de que decidira se casar com o conde de Ravenscar. Verônica também achou a notícia tremendamente empolgante. A madrasta de Miranda, entretanto, pareceu menos feliz. Ainda que Elizabeth desejasse toda a felicidade para a enteada, como era de bom-tom, seu rosto ficou marcado por um leve franzir de cenho. Ela pegou a mão de Miranda, olhou em seus olhos e perguntou seriamente:

— Você tem certeza de que é isso o que deseja fazer? Joseph pode encontrar outra casa, outro aristocrata, tenho certeza.

— Não. Decidi que é esse aristocrata que eu quero — respondeu Miranda, com um sorrisinho secreto. — Não se preocupe comigo, Elizabeth. É muito gentil de sua parte estar preocupada com minha felicidade, mas, de verdade, estou bastante certa de que é isso o que quero fazer. Você já me viu vacilar?

— Não — respondeu Elizabeth, honestamente. — Você é sempre muito confiante. Mas às vezes... bem, o conde de Ravenscar é muito mais... sofisticado que você. Ele é mais velho e tem levado uma vida devassa. Estou com muito medo de ele a ter ludibriado e de que você esteja acreditando que ele é um homem diferente do que realmente é. Estou com medo que você se magoe.

Miranda sorriu para a mulher mais velha com afeição e se aproximou para dar-lhe um abraço.

— Querida Elizabeth... Acho que tenho uma percepção bastante clara de como é o conde de Ravenscar. Não entrarei nesse casamento às cegas. Nem estou fazendo isso para o bem de papai. É isso o que quero. Acredite em mim e não se preocupe.

A madrasta aquiesceu, ainda parecendo um pouco perturbada.

Como imaginara, Joseph entrou imediatamente em ação, indo até seu advogado em Londres e marcando uma reunião com o advogado de Devin. Miranda deixou os detalhes do negócio com o pai, porque estava bastante ocupada com a miríade de tarefas associadas ao casamento, mesmo sendo uma cerimônia familiar, como determinara que fosse. A mais importante delas era fazer um vestido de noiva e preparar o enxoval em tão pouco tempo. Era essencial que estivesse absolutamente fabulosa no casamento e nos primeiros dias de casada. Mesmo já tendo comprado vários vestidos novos ao chegar em Londres — e tendo antes visitado os melhores costureiros de Paris —, não possuía nada de estilo adequado e adorável para cada momento do dia por duas ou três semanas.

Rachel ficou mais do que feliz em ajudá-la nessa tarefa, da mesma forma que Verônica e sua madrasta, que deixou de lado suas reservas em relação ao casamento em nome da diversão em escolher roupas novas e lindas. Havia também os vestidos que deveriam ser feitos para cada uma delas para o evento. Passaram horas no ateliê de madame Ferrier, debruçadas nas ilustrações de modelos em seus livros e debatendo sobre tecidos e cores. Madame Ferrier ficou tão excitada com a oportunidade de criar tantos vestidos para uma cliente que pagava bem e pontualmente que em vários momentos seu sotaque francês se transformava em um sotaque puramente britânico. Uma vez escolhidos os vestidos, madame Ferrier pôde ocupar-se atazanando as costureiras para que os aprontassem no prazo. Agora tinham de encontrar todos os acessórios necessários— bolsas, xales, fitas, sapatos, chapéus, sombrinhas... a lista parecia interminável.

Dois dias após Miranda ter dito a Devin que pretendia se casar com ele, lady Ravenscar deu uma festa para anunciar o noivado. Tratava-se, por força das circunstâncias, de uma celebração íntima; por um lado, porque não tinha tempo de preparar uma festa grande e, por outro, porque esperava que um evento com as pessoas mais próximas ajudaria a conter a boataria. Seria impossível esperar que a sociedade não comentasse sobre o casamento, é claro, mas queria limitar esses comentários a um mínimo.

Então a festa foi pequena, elegante e extremamente entediante. Miranda, espremida entre lady Ravenscar e seu filho, que parecia estar ainda mais entediado do que ela, sorria de maneira educada e cumprimentava as pessoas a quem lady Ravenscar a apresentava, desejando estar em outro lugar. Quando os convidados pararam de chegar e lady Ravenscar permitiu que saíssem da fila de cumprimentos, Miranda teve uma idéia.

Virando-se para Devin, cobriu a boca com o leque e sussurrou:

— Você acha que alguém daria falta de nós se saíssemos? Devin lançou-lhe um olhar, as sobrancelhas arqueando-se na primeira expressão de interesse que vira durante toda a noite.

— Eles vão achar que morremos de tédio, imagino. Por quê? Você tem algo em mente?

—Já ouvi muito a respeito de Vauxhall Gardens desde que cheguei aqui — Miranda começou, colocando a mão no braço de Devin. Eles começaram a se afastar dos convidados.

— Dizem que não se pode deixar de ir, mas que uma dama não pode ir desacompanhada.

— Por Deus, não — concordou Devin. — É aceitável, obviamente, se a dama estiver acompanhada de um parente ou, digamos, de um noivo.

— Foi o que pensei. — Miranda olhou para Devin, sorrindo com os olhos.

Devin lançou um olhar para trás, para o salão. Ninguém parecia estar prestando a menor atenção neles. A maioria dos amigos de lady Ravenscar estava agrupada à sua volta.

Devin escapou com Miranda para fora do salão e percorreram o corredor até a porta da rua. Um lacaio impassível, já bastante acostumado ao comportamento típico do filho de lady Ravenscar, abriu a porta para eles. Rindo como crianças que burlavam aula, Devin e Miranda desceram correndo os degraus até a rua, onde Devin chamou uma charrete que passava.

— Você tem de ter uma capa e uma máscara — disse-lhe Devin, mas essas necessidades foram facilmente satisfeitas com uma parada na casa dele antes de continuarem em direção a Vauxhall.

Vauxhall Gardens era tudo o que Miranda ouvira a seu respeito — espalhafatoso, animado e colorido. Camarotes ladeando o largo corredor, cheio de freqüentadores, a maioria mascarada, assim como eles. Mulheres de um tipo que Miranda deduziu serem tudo, menos virtuosas, passavam por ali, sendo cortejadas pelos jovens nos camarotes e retribuindo seus chamados com risadinhas, piscadas e acenos. Miranda viu mais de uma dessas moças ser atraída para um camarote e ser beijada descaradamente.

Miranda assistia a tudo aquilo fascinada. Casais escapavam para outros corredores mais escuros e menos movimentados para propósitos que Miranda não tinha dificuldade em imaginar. Vauxhall Gardens era claramente cheio de encontros secretos.

Devin procurou um camarote do qual pudessem assistir ao desfile e aos fogos de artifício da meia-noite. Miranda lhe fez perguntas sobre as pessoas que viam e sobre as coisas que estavam fazendo, a maioria das quais o fez rir pela desfaçatez.

Ele virou-se e olhou para ela num determinado momento, dizendo:

— Você me surpreende, Srta. Upshaw.

— Por favor, me chame de Miranda. Parece o mais apropriado, já que vamos nos casar, não acha?

— Está certo, Miranda. Você me surpreendeu esta noite.

— Por quê? Porque quis sair da festa de noivado? Ele anuiu com a cabeça.

— Pensei que era exatamente por esse tipo de coisa que você estava se casando comigo.

Miranda riu.

— Nem de longe. Posso encontrar sozinha um número infinito de ocasiões sociais entediantes em Nova York. Já lhe disse, o que me interessa é a liberdade que o casamento oferece.

Ele olhou para ela ponderando, e então inclinou-se e beijou-a.

— E quanto a isso? Faz parte da sua idéia de casamento? Miranda conseguiu dar um sorriso jovial, determinada a não deixar que ele percebesse que o beijo havia arrepiado todo seu corpo.

— Por quê? Deveria? — argumentou ela, e ficou de pé. — Gostaria de dar outro passeio. Vamos?

— É claro. — Ele se levantou, não falando nada sobre a forma rápida com que ela interrompera aquela cena romântica.

Percorreram mais uma vez o amplo corredor por entre os camarotes. Dessa vez, ao chegarem ao fim e ao estarem prestes a virar e andar para o outro lado, um homem surgiu da escuridão e veio na direção deles. Não estava mascarado. Miranda viu claramente seu rosto sob a luz vinda do corredor. Mas foi o que ele carregava na mão enquanto avançava na direção deles que a fez tomar um susto — uma pequena faca que reluziu à luz das lanternas.

Devin viu a faca ao mesmo tempo que ela, e desviou-se do homem, puxando Miranda para trás. A faca cortou o tecido da capa de Devin sem atingi-lo. Devin soltou a mão de Miranda e avançou para o homem, segurando-lhe o pulso. Mas o camarada girou o corpo e fugiu.

Devin começou a persegui-lo, mas então olhou para trás, para Miranda, e parou, o rosto um modelo de frustração. Miranda sabia que ele queria seguir o patife para puni-lo, mas não poderia deixá-la sozinha em um lugar como aquele.

— Acho que é hora de voltarmos — disse Devin, sobriamente, ao pegar a mão dela e conduzi-la para fora de Vauxhall.

— Esse tipo de coisa acontece sempre com você? — perguntou Miranda, com calma, enquanto entravam na charrete que Devin chamara.

Ele olhou para ela, e deixou escapar um riso, balançando a cabeça.

— Qualquer outra mulher que conheço estaria histérica agora.

— Você quer que eu fique histérica? — perguntou Miranda, educadamente. — Acho que poderia ficar.

— Não. Assim é muito melhor, acredite.

— Você não respondeu à minha pergunta — Miranda observou. — Você tem o hábito de ser atacado por ladrões?

— Nem sempre. Talvez tenha algo a ver com você. Miranda olhou para ele com um quê de ironia.

— Você não vai se livrar assim tão facilmente. Acha que era um de seus credores? Nós poderíamos dizer ao papai que pague a esse primeiro.

Devin caiu na gargalhada ao ouvir suas observações ponderadas.

— Teria sido mais útil se ele houvesse nos dito a quem representava. Desse jeito, não tenho como saber.

— Então suponho que seja bom mesmo você estar indo para Darkwater em alguns dias.

— Sim. — Ele olhou para ela. — Você acha que consegue se manter longe de encrencas enquanto eu estiver fora?

— Meu caro senhor, acredito que sim, já que aparentemente é você quem me bota em tais situações.

Os Aincourt foram para Darkwater dois dias depois. Rachel e sua mãe tinham de se certificar de que a casa fosse colocada na melhor ordem possível para o casamento, e uma sugestão velada feita a Rachel garantiu que Devin as acompanhasse. Isso era parte do plano de Miranda para afastá-lo o mais que podia de Londres e de Leona. A propriedade da família em Derbyshire se encaixava como uma luva às suas necessidades. Além disso, Devin era dispersivo demais. Precisava de toda sua vivacidade ao lidar com ele, o que era difícil quando tinha tantas coisas a fazer. Do jeito que estava, pensando nele constantemente quando devia estar concentrada em outras coisas, já acarretara problemas suficientes.

As duas semanas em que ela e sua família permaneceram em Londres, depois que os Aincourt partiram, passaram rapidamente. Além das provas dos vestidos para o casamento, que tomavam bastante seu tempo, e das numerosas expedições em busca de acessórios nas lojas, havia também suas rotineiras atividades de negócios — cartas a serem escritas, contabilidade a ser revisada. Ainda que Hiram fizesse grande parte do trabalho, havia coisas que requeriam sua atenção pessoal, já que o pai estava quase sempre ocupado em reuniões com os advogados tratando do acordo nupcial. Miranda também tinha de coordenar a tarefa de fazer as malas da família inteira para a viagem até Darkwater e comprar os presentes de casamento para o futuro marido, tanto os presentes formais, e de alguma forma impessoais como era de praxe, quanto o mais pessoal que tinha em mente.

Dois dias antes de partirem para Darkwater, Miranda estava sentada à mesa no escritório, repassando a lista final de itens das malas com o mordomo, quando um dos lacaios entrou e entregou-lhe um cartão em uma pequena bandeja, dizendo que havia um cavalheiro ali que gostaria de vê-la.

— Quem é ele? — perguntou Miranda, franzindo o cenho ao olhar para o cartão. — Elizabeth ou papai não podem cuidar dele?

— Não, senhorita. O Sr. Upshaw está fora, e a Sra. Upshaw está lá em cima, dormindo. Está se sentindo mal hoje. — O jovem fez uma pausa, e depois acrescentou: — Ele disse que é importante. Avisei que a senhorita estava ocupada, mas ele respondeu que esperaria a tarde toda se fosse preciso. Parece determinado.

— Oh, droga. Tudo bem. Leve-o até a sala de visitas.

Ela percorreu o corredor até a sala de jantar formal, desenrolando as mangas e abotoando os punhos. Mal entrara no cômodo quando o lacaio apareceu novamente, com o homem atrás dele.

— Sr. Caulfield — ele anunciou, e saiu do cômodo, deixando Miranda sozinha com o estranho.

Os dois ficaram em silêncio por um momento, analisando-se mutuamente. O visitante era um homem de idade, de cabelos brancos e mãos trêmulas. Estava bem vestido, em um estilo antiquado, e se portava com aprumo, o chapéu e uma bengala de ponteira dourada na mão. Os olhos eram azuis e tinham um brilho penetrante que deixaram Miranda um tanto desconfortável.

— Srta. Upshaw — começou ele, com a voz surpreendentemente firme para sua idade. — Vim aqui para alertá-la.

— Alertar-me? A respeito de quê? Perdão, Sr. Caulfield, mas nem sequer o conheço.

— Você não me conhece — concordou ele, avançando na direção dela. — É muito atrevimento de minha parte aparecer assim em sua porta, sei, mas precisava alertá-la. Não podia deixar que se casasse com aquele demônio.

— O que o senhor disse?

— Lorde Ravenscar. Soube que iria se casar com ele. As notícias correm e chegam até Brighton, em especial quando se trata do conde de Ravenscar. Não podia deixar que fizesse isso. Não podia deixar outra jovem inocente ser sacrificada.

— Sr. Caulfield — a voz de Miranda era ausente de sentimentos —, agradeço sua preocupação, mas não posso ficar aqui parada permitindo que difame meu futuro marido. Acho que seria melhor se o senhor fosse embora agora.

— Não até dizer o que vim para dizer! — ele explodiu, e seus intensos olhos azuis ficaram com uma aparência ainda mais feroz. Ele bateu a bengala com força no chão para enfatizar. — O homem é um assassino!

Miranda ficou olhando para ele. Sentiu os joelhos fraquejarem de repente e sentou-se à cadeira mais próxima. Por um instante, parecia não encontrar fôlego para falar.

— A-rá! Vejo que agora obtive sua atenção, como deveria — disse o velho homem com um toque de satisfação.

— Perdão. — Miranda encontrou novamente a voz, uma indignação crescente dando-lhe forças. — Esta é uma séria acusação contra lorde Ravenscar. Está afirmando que ele matou alguém?

O velho homem fez um ar de escárnio.

— Oh, ele não sujou as mãos, não. Não fez nada que as autoridades pudessem punir. Mas o importante é que matou minha neta, assassinou-a como se a tivesse jogado no mar com as próprias mãos.

— Sr. Caulfield — disse Miranda rispidamente, ficando de pé —, eu não ficarei aqui sentada permitindo que fale de meu noivo dessa maneira. O senhor diz que ele é um assassino, mas que não matou alguém de fato. Do que exatamente o senhor está falando? De que o está acusando?

— Ele a seduziu, foi isso o que fez! E ela não suportou a vergonha. Atirou-se no mar. Por causa dele! — Os olhos de Caulfield brilharam de raiva, e ele balançou a cabeça. — Eu fui confrontar o covarde, mas ele nem mesmo me recebeu.

Miranda foi acometida de pena.

— Sr. Caulfield, sinto muito por sua perda. Mas me parece que sua neta se matou. — Ela ficou se perguntando o quanto da história do velho seria verdade e o quanto ele teria elaborado em sua mente para mitigar seu próprio luto e culpa. Ela sabia que se o velho tinha mesmo ido confrontar Devin, foi pena, e não covardia, o que fez Devin recusar-se a recebê-lo.

— Por causa dele! Ele a levou a isso. Ela era uma boa menina até conhecê-lo. Ele a deixou desamparada.

Miranda não sabia o que dizer. Mal podia compreender como alguém, ao deparar com uma crise, poderia escolher escapar do problema com a morte, deixando as pessoas que a amam sofrendo como este homem estava. Instintivamente, não podia acreditar que Devin havia seduzido uma jovem virtuosa e se recusado a casar-se com ela ao engravidá-la — porque, lendo nas entrelinhas da história de Caulfield, isso seria o motivo para alguém se matar. Até mesmo uma menina tola não escolheria a morte simplesmente por ter cometido um erro tão humano, a menos que sua vergonha fosse estar sendo exposta ao avô e ao mundo. Ela sabia que, como dissera Rachel, lá no fundo Devin era um homem leal e honrado, apesar de sua rebeldia aparente. Não era o tipo de homem que viraria as costas para uma mulher que carregasse seu filho no ventre, quanto mais uma jovem que, até conhecê-lo, era pura. Nem, francamente, Devin parecia ser o tipo que saía por aí seduzindo jovens virtuosas. Pelo que diziam, passara seu tempo com mulheres sofisticadas e astutas, como Leona Vesey, não com jovens damas acanhadas.

Só podia imaginar que a neta do Sr. Caulfield não era a dama virtuosa que ele acreditava ser. Entretanto, não podia dizer isso ao homem, assim como não podia dizer que duvidava que a jovem teria se matado se acreditasse que o avô era um homem gentil e clemente.

— E agora, minha jovem — continuou o velho, com o dedo em riste, sacudindo-o na direção de Miranda em sinal de advertência —, ele está atrás de você. Porque é uma herdeira. Ele quer botar as mãos no seu dinheiro. E o que você acha que vai acontecer depois que conseguir isso? Hein? Ele não precisará mais de você. Você terá sorte se ele simplesmente deixá-la e voltar para suas moças fáceis em Londres. Porque ele pode decidir que não quer agüentar o tédio de se ter uma esposa!

Uma raiva feroz dominou Miranda.

— É o bastante, Sr. Caulfield. Tentei ser respeitosa porque o senhor está obviamente transtornado por sua perda. Mas isso já foi longe demais. Lorde Ravenscar não tem planos mortais para mim. Estou certa disso. E o senhor não tem o direito de vir aqui e tentar me assustar com seu desvario.

— Estou tentando ajudá-la! — gritou ele, batendo com a bengala no chão mais uma vez, o rosto tornando-se assustadoramente vermelho.

—Não. O senhor está tentando ferir Ravenscar. Há uma diferença. Agora, por favor, é melhor ir embora antes que passe mal. O senhor está muito exaltado.

Ela andou até a corda da sineta e puxou-a rispidamente, solicitando um criado. Por trás dela, Caulfield começou a bradar quase incompreensivelmente seu ódio por Ravenscar e avisos temerosos do que poderia acontecer se se casasse com ele.

O lacaio que trouxera Caulfield para dentro logo apareceu à porta. Seus olhos arregalaram-se quando viu o velho colérico.

— Por favor, leve o Sr. Caulfield até a porta — instruiu-lhe Miranda, asperamente.

— Claro, senhorita. Sinto muito, senhorita, não o teria deixado entrar se tivesse percebido...

— Não se preocupe. Você não tinha como saber. Aliviado, o criado pegou o velho pelo braço e conduziu-o com firmeza para fora do cômodo. Miranda seguiu-os até o hall de entrada para se certificar tanto de que o velho raivoso fora embora quanto de que o lacaio não o trataria mal. Ficou olhando enquanto ele botava o homem para fora e fechava a porta. Miranda virou-se para voltar para o escritório, embora estivesse com pouca vontade de continuar com a lista de itens das malas. O velho a havia aborrecido. Estava certa de que o que dissera não podia ser verdade, mas também não conseguia ignorar, dada a reputação de Devin, e o turbilhão de emoções deixou-a um pouco indisposta.

Olhou para cima e deparou com a visão da madrasta em pé no corrimão do alto da escadaria, os olhos esbugalhados e a pele pálida.

— Quem era aquele? — perguntou Elizabeth com um tom de voz apavorado.

— Um senhor que estava, bem, transtornado. Mas ele já se foi. Não há nada com o que se preocupar. — Miranda subiu as escadas na direção dela.

— Mas por que ele estava aqui? O que disse? — questionou Elizabeth, aproximando-se de Miranda e segurando-lhe o braço com força. — Ele parecia bastante irritado.

Miranda afagou o braço da madrasta, acalmando-a. Não podia dizer a Elizabeth o que o velho contara sobre Devin: ela já estava com muitas dúvidas a respeito do casamento de Miranda. As acusações do Sr. Caulfield, sem dúvida, a levariam a um frenesi de preocupações.

— Não foi nada, sério. Acho que talvez ele seja um pouco desequilibrado. Não consegui mesmo entender sobre o que estava falando. Mas não há com o que se preocupar. Posso assegurar-lhe que os criados não o deixarão entrar novamente. — Ela sorriu. — Agora, preciso do seu conselho. Eles entregaram hoje o restante dos vestidos de madame Ferrier, e não tenho certeza se a fita que compramos combina mesmo com o vestido verde de cambraia.

— O verde? Oh, não, eles são tons bastante complementares, minha querida. Mostre-me. — Elizabeth pareceu aliviada, quase satisfeita por ter sido distraída, e as duas caminharam pelo corredor na direção do quarto de Miranda.

Foi uma viagem de três dias de Londres a Darkwater, porque viajavam com uma carroça de bagagem além da caleça onde iam. Elizabeth tinha a tendência de enjoar no caminho, o que significou que pararam com freqüência e andaram a uma velocidade menor para evitar sacolejá-la. Joseph passou a maior parte do tempo cavalgando ao lado da carruagem. Como havia comprado outro cavalo, Verônica ou Miranda sempre se juntavam a ele, o que tornava o percurso mais tolerável. Mesmo assim, a viagem era longa demais para os nervos impacientes de Miranda. Já havia quase duas semanas que vira Devin pela última vez, por isso estava ávida por vê-lo novamente. Entretanto, este era um sentimento que não podia revelar; uma frase que escapasse de um membro de sua família para Devin sobre essa avidez, seus planos iriam por água abaixo. Então precisava conter os sentimentos e fingir uma calma e um relaxamento que não sentia, um fingimento que só fazia com que ficasse mais frustrada.

Foi um grande alívio quando a caleça rangeu pela estradinha que levava a Darkwater. Miranda inclinou-se para tentar ver a grande e antiga mansão pela janela. Eles fizeram uma curva e ali estava a casa, em cima de uma pequena elevação, a maioria das árvores em frente tendo sido cortadas há muitos anos para apresentá-la em toda sua glória.

Miranda suspirou quando a viu. O pai parou o cavalo e simplesmente ficou sentado ali, olhando para a casa. O sol poente lançava raios dourados nas paredes de mármore, dando à pedra um cálido tom de mel e cintilando nas pequenas vidraças em losango nas janelas emolduradas. Era uma casa de uma simetria harmoniosa, apesar do tamanho, construída em formato de E, uma concepção popular durante os anos do reinado da rainha Elizabeth, ornamentada com parapeitos, janelas projetadas e chaminés elaboradas. Era adorável, pensou Miranda, apaixonando-se de imediato. Àquela distância e sob a luz agradável os problemas da casa não eram tão óbvios. Simplesmente parecia antiga e magnífica.

— Você já viu alguma casa igual a essa, Miranda? —Joseph apareceu na janela da caleça, o rosto repleto de admiração e prazer. — Não é magnífica?

— Sem dúvida, papai. É linda. — Ela percebeu, com um quê de orgulho e prazer que não esperara sentir, que esta linda casa antiga era agora seu lar. O interesse um tanto indiferente que sentira em recuperar o lugar se transformara em ânsia.

Verônica, que também estava cavalgando ao lado da carruagem, chegou perto deles.

— É um castelo! Nós vamos morar aqui de verdade? Mamãe, olhe!

Elizabeth, que estava sentada ao lado de Miranda, empurrou a cortina do outro lado da carruagem e olhou para fora. Arregalou os olhos, e sua face ficou até rosada.

— Oh, meu Deus. — Ela tomou fôlego. — Nunca imaginei...

— Ela não é magnífica? — continuou Verônica, animada.

— Não parece o lar de um rei? Elizabeth anuiu com a cabeça.

— Sim, parece.

— Mal posso esperar para ver meu quarto — continuou Verônica. — Miranda, posso escolher meu quarto?

— Sim, acho que sim... mas você deve ficar pelo menos esta noite onde lady Ravenscar a colocou, por educação. Depois disso, não vejo por que não poderia escolher o quarto que preferir.

— Quero janelas viradas para este lado. Quero ver todos os que se aproximarem pela estrada. Dessa forma, quando der festas, e antes de eu ter idade para comparecer a elas, poderei observar todos chegando da minha janela. Você vai dar muitos e muitos bailes? Na casa deve haver um salão de bailes, não acha?

— Estou certa de que há. Entretanto, não sei quantas pessoas há por aqui para comparecer a "muitos e muitos bailes" — respondeu Miranda, sorrindo complacente para a irmã.

— Vou poder participar de algumas festas aqui, não vou? Mamãe contou que quando ela vivia no campo, as meninas podiam comparecer a pequenas festas de vez em quando, mesmo antes de serem apresentadas à sociedade.

— Não vejo por que não — concordou Miranda. — Tenho certeza de que sua mãe é muito mais entendida nesses assuntos do que eu. — Como fora Elizabeth a anfitriã das festas de seu pai quando Miranda tinha 15 anos, não se podia dizer que vivera de acordo com as regras sociais mais apropriadas.

Verônica ficou para trás e apareceu do outro lado da caleça, perto da mãe, para insistir nesse assunto que era de seu interesse. Miranda foi deixada com seus pensamentos, olhando para a casa enquanto se dirigiam para a porta. Sua mente passou da casa para o futuro marido. Ele estivera em sua mente durante toda a viagem desde Londres. Agora que estava prestes a vê-lo de novo, uma alegria quase incontrolável surgia dentro dela. Daria tudo para saber se ele havia pensado nela também — e se ficara esperando por ela nesses últimos dias, tentando adivinhar impacientemente quando chegaria. Não podia esperar tanto, disse a si mesma; tinha de ir com calma. Mas não conseguia evitar que seu coração alimentasse esperanças.

A caleça deles estacionou na frente da casa, enquanto um lacaio apressava-se em abrir a porta e em ajudá-los a descer. Assim que Miranda desceu e pisou no chão, olhou para a esquerda. Um cavalo e um cavalheiro deslizaram por uma sebe e avançaram até eles. O coração de Miranda acelerou ao reconhecer a silhueta de Devin, com seus ombros largos. Ele diminuiu o passo, ladeando o jardim da frente, e parou a alguns metros deles.

— Miranda! — Ele desceu do cavalo com agilidade, atirando as rédeas para o lacaio. — Quero dizer, Srta. Upshaw.

Ele andou em direção a eles, os olhos em Miranda. A pulsação dela era tão forte que latejava em seus ouvidos, fazendo com que quase não pudesse ouvir mais nada. Ali, sob a luz do sol, com o vigor do esforço físico, os olhos verdes acesos, era ainda mais bonito do que se lembrava. O que a fez sentir uma fraqueza nas pernas.

— Lorde Ravenscar — respondeu ela, feliz pela voz ter saído inalterada. Com certeza, sua cavalgada desenfreada para recebê-los era um bom sinal.

— Vi sua carruagem se aproximando e tentei alcançá-los. — Ele parou à frente dela e olhou-a por um longo instante. Assim de perto, na clara luz do dia, podia ver que os olhos verdes tinham uma auréola dourada em volta da pupila, como os raios de sol, e ela achou este detalhe cativante. Tirando as luvas de montaria, ele se aproximou. Miranda conseguiu reunir forças suficientes para estender a mão. Ele pegou-a e levou-a aos lábios, dando-lhe um beijo na parte de trás da mão. — Bem-vinda a Darkwater. Estávamos tentando imaginar quando viriam. Mamãe esperava que chegassem ontem. Rachel estava preocupada que não chegaria a tempo para o casamento.

— E você?

Ele deu um sorriso encantador.

— Sabia que você chegaria exatamente quando houvesse de chegar, nem com tanta antecedência, nem tão atrasada, já que é a responsável pela organização de tudo.

Miranda riu. Ele continuou a segurar sua mão por mais tempo do que o recomendado, mas ela não queria que a soltasse.

— Sua fé em mim é tocante, meu senhor.

— É conhecimento, Srta. Upshaw, não apenas fé. — Com um aperto final na mão, ele soltou-a e virou-se para o restante do grupo. — Sra. Upshaw. Sr. Upshaw. Bem-vindos a Darkwater. — Seus olhos foram para Verônica, que ainda estava sentada em seu cavalo. — E quem é essa adorável senhorita?

— Sou Verônica — respondeu ela, com irreverência. — Sou quem você nunca vê porque sou muito jovem.

— Muito bonita — corrigiu ele com um sorriso, dando um passo à frente para ajudá-la a descer do cavalo. — Seus pais sem dúvida estão com medo que alguém a arrebate cedo demais.

Verônica deu uma risadinha. Miranda sabia que Ravenscar conseguira um lugar permanente na lista de favoritos de Verônica ao prestar atenção nela, como poucos adultos o faziam. E, Miranda tinha de admitir, aquilo também elevara sua estima por ele. Ficara com medo de ele bancar o aristocrata arrogante perante sua família, como o fizera diante dela, e estava particularmente ansiosa a respeito dos sentimentos suscetíveis e sensíveis de Verônica. Mas Ravenscar a tratara com o tom certo de lisonja e cordialidade.

— Estou surpreso em vê-la cavalgando em vez de estar na caleça — disse a Verônica.

— Oh, eu amo cavalgar — disse Verônica, entusiasmada.

— E aqui fora é lindo demais para ficar confinada dentro de uma caleça abafada.

— Você está certa em relação a isso — concordou Ravenscar.

— Se gosta de cavalgar, vai ficar muito contente aqui. Há muito espaço e, mesmo sob o risco de soar arrogante... — ele lançou um olhar irônico para Miranda —, nossos estábulos são um dos melhores do país, garanto-lhe.

— Oh! Posso ver os cavalos? — perguntou Verônica, animada.

— É claro. Vou levá-la em um tour particular amanhã.

Os cavalariços se aproximaram para cuidar dos cavalos, e o lacaio estava esperando para abrir a porta, o que fez Devin conduzir o grupo para dentro de casa. Eles entraram e encontraram uma fila altiva de criados, todos de uniforme engomado, enfileirados no hall de entrada.

Devin inclinou-se para sussurrar no ouvido de Miranda.

— Ávidos para conhecer a nova madame. Estão se perguntando quão rígida como supervisora você deve ser. Não quis adiantar-lhes que você é uma tirana.

Miranda olhou para ele, indignada.

— Eu não sou... — Parou, ao ver o brilho nos olhos dele. — Sou muito gentil com os criados — sussurrou ela de volta, com retidão. — É com os que ocupam posições superiores que costumo ser rigorosa.

— Estou tremendo de medo. — Seu sorriso desmentia qualquer verdade em suas palavras.

Ele virou-se para o primeiro homem da fila.

— Cummings. Srta. Upshaw, deixe-me apresentá-la à criadagem. Este é Cummings, nosso estimado mordomo. E a Sra. Watkins, a governanta.

Ele prosseguiu pela fila de criados, apresentando cada um deles. Miranda ficou surpresa e impressionada por Devin saber os nomes de todos, à exceção dos mais novos e recém-contratados do grupo. Miranda esperava que um homem como ele não conhecesse ninguém abaixo do mordomo e da governanta, sobretudo por ter ido tão pouco a Darkwater nos últimos anos. Comentou o fato ao se afastarem dos criados, depois de ele ter apresentado o restante da família.

— Quer dizer que me acha arrogante demais para saber os nomes das pessoas com as quais cresci? Você tem uma opinião estranha a meu respeito, Srta. Upshaw.

— Estou feliz em perceber que esta opinião está errada. Ele deu de ombros.

—Temo que meu relacionamento com os criados nunca tenha sido considerado uma qualidade. Papai sempre achou que fosse mais uma das manifestações de meu caráter essencialmente baixo. Eu passei mais tempo com o chefe dos cavalariços e com o encarregado dos jogos e seus filhos na infância do que com os filhos e filhas opressivamente maçantes da aristocracia local.

— Isso parece razoável.

— Não para papai.

A mãe e a irmã de Devin aguardavam por eles na solene sala de visitas, um cômodo amplo e decorado no estilo branco e dourado do século anterior. Era uma sala elegante. Foi preciso um segundo olhar para reparar que os pesados drapeados azuis e os estofados de veludo também azul de cadeiras e sofás estavam ficando rotos, assim como o tapete persa sob seus pés estava quase completamente gasto em alguns pontos.

Os ocupantes da sala ficaram de pé assim que Miranda e seus familiares adentraram. Rachel aproximou-se para cumprimentar Miranda calorosamente, e ela, assim como o irmão, deu uma atenção especial a Verônica. Lady Ravenscar foi formal mas educada, da mesma forma como o fora todas as vezes em que Miranda esteve a seu lado, e só deu uma atenção limitada a Elizabeth e a Verônica. Miranda não pôde deixar de sentir que a mulher estava fazendo um esforço enorme para tratá-los bem porque iriam resgatá-la da pobreza, mais do que por qualquer apreciação verdadeira. Duvidou que fosse sentir-se próxima de Lady Ravenscar algum dia.

Havia uma terceira pessoa na sala, um homem alto, esbelto, com cabelos loiros e olhos acinzentados, bonito de um jeito bastante sutil. Ele abriu um sorriso e deu um passo à frente quando Devin disse:

— Srta. Upshaw, permita-me apresentá-la a meu cunhado, lorde Westhampton.

— Como vai? — perguntou Miranda, intrigada. Este era o marido de Rachel, com quem mantinha um casamento formal, distante.

—Muito bem, obrigado. É um prazer conhecê-la, Srta. Upshaw. — E sorriu para ela, amavelmente. — Lady Westhampton fala muito bem de você.

— Obrigada.

—Vocês devem estar querendo se recompor depois de sua longa viagem, talvez descansar antes da ceia — disse lady Ravenscar.

— Rachel, por que você não mostra os quartos para os Upshaw.

— É claro.

— Eu acompanharei a Srta. Upshaw — disse Devin, casualmente, para sua irmã, oferecendo o braço a Miranda.

Rachel conduziu os outros para fora da sala e pela escadaria até os quartos que lhes foram designados. Devin e Miranda vieram por último. Era difícil apreender todos os detalhes da magnífica casa, ainda mais com a distração que a presença de Devin lhe causava, estando tão perto. Era difícil manter a atitude fria e casual que queria.

No alto da escadaria, Rachel virou-se para a direita para levar Verônica e os demais para seus quartos, mas Devin foi na direção oposta.

— Seu quarto é por aqui. Já que o casamento acontecerá em poucos dias, não havia sentido fazer você trocar de quarto. — Ele parou na porta de um quarto espaçoso. — Este é o aposento da condessa.

Miranda olhou para dentro, confusa.

— Você quer dizer, o quarto de sua mãe?

Ele sorriu para ela de um modo que fez com que sua pulsação acelerasse.

— Não, minha querida Srta. Upshaw. Quero dizer que este é o quarto interligado ao meu.

Miranda pôde sentir um rubor surgindo em sua face.

— Oh. — Ela passou por Devin e entrou no quarto para disfarçar sua reação.

Era um quarto grande, com duas janelas altas que davam para os jardins dos fundos. Havia uma saleta com sofá e cadeira em um canto do quarto, e, mais adiante, nessa mesma parede, uma lareira com consolo de mármore. Entre os dois havia uma porta. O quarto era mobiliado com peças pesadas de mogno, a mais predominante de todas era uma grande cama com dossel e cortinas verde-escuras de veludo. Uma enorme tapeçaria medieval desbotada pendia da parede. Era um quarto impressionante, formal, digno de uma condessa e no qual Miranda podia bem imaginar lady Ravenscar tendo morado ali. Não era do tipo que a atraía muito.

— Obviamente, imagino que você vá querer mudar algumas coisas — continuou Devin, entrando no quarto atrás dela e fechando a porta.

Miranda anuiu de leve com a cabeça. Parecia estranho pensar que iria viver neste quarto daqui por diante, exceto quando viajassem para Londres ou para algum outro lugar. Havia uma permanência, uma gravidade nesse pensamento que quase a fez ficar sem fôlego. Ela lançou um olhar para Devin. Mal o conhecia, pensou. Moraria na casa de um estranho, em uma terra estranha. Perguntou-se se todas as noivas sentiam essa pequena onda de pânico, ou se era por causa das circunstâncias comerciais de seu casamento.

Em parte para esconder essa repentina e incomum alteração nos nervos, Miranda passeou pelo quarto, olhando os armários e as cômodas. Abriu a porta que ficava na parede ao lado da lareira. Adiante havia um outro quarto, ainda maior do que esse, e obviamente ocupado por um homem.

— Meus aposentos — disse Devin, aproximando-se por trás. Miranda deu um pulo, surpresa, e fechou a porta rapidamente.

— É claro.

Teria saído dali na hora, mas Devin estava parado à sua frente. Ele botou a mão na porta, bloqueando essa direção, e se inclinou mais para perto dela.

— Tenho pensado nessas duas últimas semanas. Tive bastante tempo para isso, sabe. E parece absurdo que esse casamento seja um embuste.

— Não é um embuste, meu senhor. Eu o considero algo bastante real. Ele só não é... romântico.

— Também não há razão para isso — respondeu ele. — Sinto-me atraído por você. E você não pode negar que se sente atraída por mim. Senti o desejo em você. Então, por que negar o que ambos sentimos?

Aproximou o rosto. Miranda teve dificuldade de respirar... ou até mesmo de pensar de forma coerente. Seus lábios tocaram os dela suavemente, provocando um formigamento delicioso em Miranda.

— Nós temos uma porta interligada — murmurou ele. — Parece-me que poderíamos fazer uso dela.

Por um instante, suas bocas ficaram próximas. Miranda pôde sentir a respiração dele em seu rosto, o calor de seu corpo. Sua pele se arrepiou. Tudo em que conseguia pensar, tudo o que queria, era o beijo dele.

Um instante antes de seus lábios se tocarem, ela afastou-se para o lado. Seu coração estava batendo tão rápido e tão forte que era um milagre Devin não ouvi-lo, pensou, e suas mãos estavam trêmulas.

— Acho que não, meu senhor. Seria tolice incluir emoções em nosso acordo. Tudo funcionará perfeitamente como está.

Ela deu um sorriso mecânico e, com uma das mãos para trás, fechou o trinco da porta de ligação.

— Pronto. Este quarto será suficiente.

 

Devin entrou no escritório e fechou a porta com um estrondo retumbante. Do outro lado do cômodo, Michael, lorde Westhampton, levantou os olhos do livro que estava lendo e encarou Devin com uma expressão ligeiramente inquisidora.

— Dia ruim?

Devin fez uma careta.

— Oh, olá, Michael. Não sabia que estava aqui. Pensei que todos já estivessem deitados.

Era quase meia-noite e a casa estava escura. Devin, deitado em seu quarto, não conseguira dormir pensando na porta fechada do quarto de Miranda e saíra para dar uma volta.

— Só estou lendo um pouco antes de dormir — respondeu Michael. — Desculpe-me. Não tive a intenção de invadir seu escritório. Devo sair? Ou essa expressão em seu rosto significa que prefere ter alguém para ouvi-lo?

— Preferiria mudar minha vida — disse Devin, aborrecido. Andou até o gabinete de teca que havia entre as janelas e abriu a porta. — Uísque? Tenho brandy, se preferir.

— Uísque está bom — respondeu Michael. — E o que exatamente mudaria em sua vida?

— O ato de vivê-la. Não sei. Oh, Deus. — Ele serviu dois copos de cristal fino, estendeu um para o cunhado e então bebeu metade do outro em um único gole. E suspirou. — Por que estou fazendo isso, me casando com aquela mulher? Devia estar fora de mim quando concordei.

— Tive a impressão de que você não tinha escolha — assinalou Michael, calmamente. — Além do mais, bem que gostei da sua futura esposa. Ela é um tanto... diferente.

Devin fez uma cara feia.

— É uma forma de se ver.

— As teorias dela a respeito de mulheres tendo acesso a estudo com certeza serviram como um assunto estimulante no jantar.

Um sorriso se abriu no rosto de Devin ao se lembrar do olhar no rosto da mãe durante a ceia, quando Miranda defendeu que as mulheres deviam ser aceitas nas universidades.

— Foi um jantar mais animado que o normal — admitiu ele. — Mas, veja bem, ela está aqui desde as quatro da tarde, nem mesmo a metade de um dia, e já causou a maior agitação. Essa mulher é uma ameaça.

— Se está tão convencido disso, talvez devesse reconsiderar.

— Reconsiderar! Você está louco? O casamento é daqui a dois dias. Além do mais, um cavalheiro não pode voltar atrás, você sabe disso.

Michael arqueou as sobrancelhas.

— Sim, posso imaginar como isso prejudicaria sua reputação. Devin lançou-lhe um olhar crítico.

— Oh, raios, Michael, você sabe que não posso. Eu preciso do dinheiro. Os Aincourt nunca se deram ao luxo de se casar por amor.

— Sim, eu sei — respondeu Michael, serenamente.

— É claro que você sabe. Digo, você e Rachel. Vocês tiveram o mesmo tipo de casamento arranjado. Mas é diferente. Vocês dois são racionais, civilizados. Podem viver em harmonia. Fazer o que quiserem, levar vidas separadas.

— Sim, nós conseguimos.

— Mas Miranda! Ela é uma criatura estranha. Tem idéias esquisitas em relação a certas coisas.

Michael anuiu com a cabeça, esperando. Devin tomou o restante do uísque e botou o copo na mesa com um estrondo.

— Raios, ela quer um casamento platônico! Michael piscou.

— O que foi que disse?

—Já ouviu uma coisa dessas? Ela diz que nós não nos amamos e que, por isso, devemos seguir caminhos separados, fazer o que quisermos.

Michael hesitou e então disse:

— Eu pensaria que uma esposa obsequiosa o atrairia.

— Obsequiosa? Eu nunca conheci ninguém menos obsequiosa que Miranda. Ela acha que devemos sair por aí tendo casos com outras pessoas.

— Entendo. E você é contra?

— A condessa de Ravenscar, tendo casos com deus-sabe-quem? É claro que sou contra.

— Então é a favor de viverem um casamento de verdade, sendo fiéis e...

Devin olhou fixamente para ele.

— Não caçoe de mim, Michael. Você sabe que nunca tive a intenção de ser fiel a ela, Claro que quero fazer o que desejar, ter casos... eu só... bem, não esperava que ela quisesse isso também. Ela é tão atrevida e descarada quanto uma mulher da vida.

— Sério? Ela me pareceu refinada. Um pouco loquaz, mas isso é revigorante. Nem um pouco grosseira.

— É claro que não é grosseira. Por Deus, Michael, por que você pensaria isso?

— Bem... "atrevida e descarada" como uma mulher fácil — lembrou-lhe lorde Westhampton.

— Você sabe o que eu quis dizer. — Devin levantou-se e serviu-se de outra dose. — Ela quer reformar a casa. É nisso que está interessada. Quer colocar a propriedade em ordem. Por isso quer se casar comigo. Perguntei-lhe onde queria passar a lua-de-mel. Em Paris? Na Itália? Você sabe o que ela disse? "Oh, eu não faço questão de uma lua-de-mel, meu senhor" — disse Devin com a voz em falsete. — "Quero começar logo os trabalhos na casa. Papai e eu já agendamos um arquiteto para vir olhá-la." Agora, isso soa como algo que qualquer mulher que você conhece diria?

— Não — Michael admitiu.

— Outras mulheres exigem lua-de-mel. Elas querem bebês, roupas, festas e algo do gênero. Ela quer consertar coisas. Isso não é natural.

Devin jogou-se pensativo em sua cadeira. Defronte a ele, lorde Westhampton escondia um sorriso.

— Ela trancou a porta de ligação — disse Devin, de repente.

— O que disse?

— Entre nossos quartos. Eu não estava acreditando nela de verdade. Achei que mudaria de idéia. — Devin deu de ombros e bebeu um gole, mais devagar dessa vez. — Isso é parte da idéia dela de "vidas separadas". Disse que seria a solução perfeita. Nós não teríamos de fingir estarmos apaixonados. Não teríamos de nos dar ao trabalho de consumar o casamento. Poderíamos levar vidas completamente separadas.

— E não é isso o que você quer?

— Bem, e quanto a herdeiros? Não haverá nenhum, certo?

— Não. E sei o quanto um herdeiro é importante para você. Devin olhou para ele, com desconfiança.

— Você está me gozando?

— Não. Bem, só um pouquinho. Eu não entendo, Dev. Se você não gosta da mulher, na verdade parece exatamente o contrário, então por que se incomoda se ela não lhe favorece na cama? Nunca o vi demonstrar preocupação com um herdeiro antes. Contanto que ela seja discreta...

— Mas ela nem se importa! Ela não carrega um fio de ciúme em todo o corpo — resmungou Devin. — Agora, pergunto-lhe, isso é normal?

Michael deu de ombros.

— Algumas mulheres não têm ciúme.

— Sim, quando não gostam. Michael desviou o olhar.

— Quer que ela goste de você?

— Claro que não. — Devin fez uma careta. — Oh, diabos! Eu só não quero que ela me rejeite.

— Uma questão de orgulho. Entendo.

— É muito frustrante. Ela é a mulher mais obstinada que já conheci. E não é nem bonita.

— Não — concordou Michael. Devin lançou-lhe um olhar afiado.

— Você não a acha bonita?

Michael pressionou os lábios por um instante, limpou a garganta e disse:

— Sim, acho-a bonita. Mas não uma beldade.

— Porém, há algo nos olhos dela. Você reparou? Eles são acinzentados e... e penetrantes. Às vezes, quando olha para mim é como se pudesse ver dentro da minha alma.

— Desconcertante.

— Sim, mas...

— Mas o quê?

— Intrigantes, também, você não acha? E os cabelos têm uma bela cor.

— Sim. Meio castanhos. Muito bonitos.

— Já lhe falei que a conheci quando veio em meu socorro? Michael engasgou com a bebida e começou a tossir. Depois de alguns minutos, a tosse cessou e ele perguntou, com a voz meio fraca:

— O que você disse?

— Três homens me atacaram. Ela estava em sua carruagem e viu. Então fez com que o cocheiro parasse e foi correndo me ajudar. Bateu num dos camaradas com um guarda-chuva.

— Curioso.

— Nunca conheci uma mulher como esta.

— Não, devo acreditar que não.

— O problema é que ela... me atrai. — Dev olhou para o cunhado. — O lógico seria eu ficar aliviado em não ter de dormir com a mulher com quem me casei só por dinheiro. Mas eu... não consigo parar de pensar nela. Durante essas duas semanas aqui, fiquei pensando nela. Digo, é compreensível. Darkwater é extremamente entediante. Mas... bem, o que quero dizer é, por que ela? E parece que quanto mais sei que não preciso tê-la, mais a quero. Isso faz sentido?

— Sinto dizer, mas faz.

— Não achei que fosse durar. Não achei que ela fosse persistir nessa idéia.

— Até trancar a porta.

— Correto.

— Sem dúvida você achou que poderia jogar seu charme e conseguir o que queria.

— Bem, sim. Quero dizer, não é como se eu fosse um ogro. As mulheres gostam de mim.

— Então estamos falando de orgulho ferido. Devin hesitou.

— Sim... suponho que sim. Digo, não poderia ser nada além disso.

— Tenho certeza que não. — Michael tomou rapidamente um gole para esconder um. sorriso. — Sabe, Dev, acho que este será um casamento muito interessante.

— É uma forma de descrevê-lo. Infernal seria a descrição mais apropriada.

— Eu ia voltar para casa assim que a recepção terminasse — continuou Michael, pensativo. — Mas, sabe, acho que poderia ficar um pouco mais.

Lorde Westhampton era a única pessoa presente na sala de jantar quando Miranda adentrou na manhã seguinte. Ele olhou-a e sorriu.

— Srta. Upshaw. Então gosta de acordar cedo?

— Um hábito lamentável — disse Miranda, com um sorriso. — Receio não conseguir me livrar dele. Bom dia, lorde Westhampton.

Ele se levantou e deu a volta na mesa para puxar-lhe a cadeira.

— Há comida no aparador. E um bule de chá. Devo chamar um criado para lhe trazer café? Sei que muitos americanos o adoram.

— Sim, e eu sou um deles. Seria muito gentil de sua parte chamar o criado. — Miranda levantou-se e passou ao longo do elegante aparador, analisando os vários pratos. — Se eu comesse assim todas as manhãs, logo andaria rolando como uma bola pelo corredor.

Ela pegou uma pequena quantidade de cada um dos pratos, sem tocar apenas no fígado, do qual não conseguia gostar. Levou o prato de volta para a mesa e sentou-se logo que o lacaio entrou com uma travessa com torradas. Ele depositou-a ao lado de Miranda e voltou para pegar o bule de café.

— Pode estar certa de que amanhã o café estará pronto e esperando por você — disse-lhe Michael. — Cummings comanda um serviço eficiente. Tenho certeza de que doeu muito nele todos esses anos não ser capaz de dotar esta casa com uma equipe apropriada.

— Sim. Devo falar com ele depois. Há tantas coisas a fazer... reparos na casa, nos jardins, na propriedade. — Miranda sorriu, parecendo não estar de forma alguma intimidada com a tarefa que a aguardava.

— Ravenscar me disse que você está muito interessada em recuperar a propriedade.

— Oh, sim. Papai também está, provavelmente mais do que eu.

— Se eu puder ser de qualquer ajuda a vocês, fique à vontade para pedir. Tive de fazer alguns reparos na minha casa no decorrer dos anos.

— Que gentil de sua parte. Mas, devo preveni-lo, se disser isso ao papai, ele alugará seu ouvido por horas.

— Eu não me importaria. É raro conseguir achar qualquer pessoa interessada no assunto.

Eles conversaram por alguns minutos sobre os problemas de casas muito antigas. O lacaio reapareceu com um bule de café para Miranda, e, depois que ele saiu, houve um breve silêncio.

Então Michael disse:

— Sabe, Srta. Upshaw... lorde Ravenscar é, bem, ele não é exatamente o que parece ser.

— Mesmo? — Miranda olhou para o homem com candura.

— Não, ele... bem, ele é uma pessoa muito melhor do que a maioria das pessoas pensa. Gosto muito dele e odiaria pensar que ele pudesse ser magoado.

Miranda olhou-o diretamente.

— Sabe, lorde Westhampton, qualquer pessoa que observasse nosso casamento, vendo nós dois, não se preocuparia com lorde Ravenscar sendo magoado.

— Sim, você está certa, claro. Devin não é, de forma alguma, ingênuo ou inocente. Mas também não é um patife. Ele tem um coração, o qual tenta ao máximo manter escondido, e pode ser ferido. Por outro lado, com a mulher certa, ele poderia ser muito feliz.

— Bem, isso é bom, não é? Algumas pessoas, pelo que sei, não conseguem ser felizes, não importando as circunstâncias. — Miranda apoiou o garfo no prato. — Não tenho certeza de onde quer chegar, lorde Westhampton. Se acha que não sou a mulher certa para lorde Ravenscar, então sinto muito por se sentir assim, porque não é algo que seja exatamente de sua conta. Por outro lado, se está tentando se certificar de que sou a mulher certa para ele, só posso dizer que não sei. Aprendi na vida que devemos esperar e ver o que acontece. Não estou acostumada a virar as costas para algo só porque há riscos envolvidos. Suponho que haja uma terceira coisa que está tentando dizer. Que devo mudar se espero fazer Devin feliz. É improvável que isso aconteça. Ele é o que é, eu sou o que sou. Respondi a seus receios, meu senhor? Michael sorriu.

— Sim, Srta. Upshaw. Diria que respondeu a meus receios mais do que o suficiente. Sempre achei que seria preciso uma mulher muito especial para combinar com Devin. Acho que talvez ele a tenha encontrado.

Miranda retribuiu o sorriso.

— Gostaria de pensar que sim.

Depois disso, passaram a falar de outras coisas. Miranda descobriu que lorde Westhampton era um homem muito inteligente e culto, com amplos conhecimentos em uma grande variedade de assuntos. Ele possuía uma inteligência mordaz e irônica, por vezes tão sutil que ela demorava alguns instantes para perceber com exatidão que havia redirecionado um assunto.

Ele estava no meio de uma descrição de como havia atacado o cupim que comera a maior parte dos corrimões e balaustradas de sua casa quando olhou para cima e parou de falar de repente. Algo se passou em seu rosto, muito rapidamente para que Miranda pudesse dizer o que era.

— Minha querida — disse ele, e ficou de pé, os trejeitos um pouco duros e formais. — Bom dia. Não quer se juntar a nós?

Miranda virou e viu Rachel parada na porta. Ela estava, pensou Miranda, especialmente bonita aquela manhã. Usava um vestido simples, verde, que ressaltava a cor de seus olhos, e havia um toque de rosa em sua face. Miranda não sabia ao certo se era o ar do campo que fazia bem a ela, se o motivo de sua boa aparência era a felicidade por causa do casamento do irmão, ou se haveria alguma outra razão.

— Olá — respondeu Rachel, o tom de voz igualmente formal. — Espero não estar atrapalhando vocês.

— Não, é claro que não. Lorde Westhampton e eu estávamos apenas trocando idéias sobre recuperação de casas antigas. Eu estava achando a conversa muito interessante, mas ele, tenho certeza, adoraria ser resgatado — disse Miranda, com um tom alegre.

— Tenho certeza de que isso não é verdade. — Rachel sorriu para Miranda e então olhou para o marido.

— Oh, não — protestou lorde Westhampton, e o sorriso que dera de forma relaxada e amigável há alguns momentos agora parecia forçado. — Lady Westhampton pode confirmar que gosto muito de várias coisas que outras pessoas consideram entediantes. Foi muito gentil de sua parte deixar-me tagarelar.

Parecia estranho, pensou Miranda, que duas pessoas tão agradáveis estivessem casadas — por vários anos, pelo que entendeu — e ainda ficassem tão pouco à vontade uma diante da outra. Ela ficou se perguntando se Rachel contara a história toda quando descrevera a condição distanciada de seu casamento.

Michael deu a volta para puxar a cadeira de Rachel e então disse:

— Bem, devo deixar as damas a sós, para conversarem. Bom dia, Srta. Upshaw. Rachel. — Ele fez uma pequena reverência e saiu porta afora.

— Seu marido é muito simpático — disse Miranda. — Gostei de conversar com ele.

Rachel sorriu timidamente para ela.

— Sim. Ele é. Sempre se pode contar com Michael. — Ela se levantou de novo e foi servir-se, dizendo: — Você dormiu bem a noite passada?

— Sim, obrigada. — Miranda respeitou a mudança de assunto.

— Gostaria de repassar os preparativos para o casamento? — perguntou Rachel. — Ou nós poderíamos ir até a igreja, se você quisesse vê-la.

Nenhuma das sugestões em particular atraiu Miranda.

— Estou certa de que o que você e sua mãe decidiram estará ótimo. — Rachel olhou para ela de um modo estranho, e Miranda continuou: — Não que eu não esteja interessada. É claro que adoraria repassar os preparativos. Talvez mais tarde. Acho que Devin planeja mostrar a casa para mim e papai esta manhã.

— Esta manhã? — Rachel pareceu surpresa.

— Sim. Creio que sim.

— Ora, ora. Você já produziu efeitos positivos nele. Miranda riu.

— Na verdade, acho que é tédio. Ele me disse que decidiu seguir os horários do campo porque não havia muita coisa a fazer.

— Bem, eu não o vi acordado e circulando antes do meio-dia desde que chegamos aqui.

Miranda considerou secretamente que era possível que ele não aparecesse. Mas antes de Rachel terminar o café-da-manhã, Devin adentrou o cômodo. Os olhos dele pareciam um pouco vidrados, era verdade, e ele disse com um tom de voz surpreso:

— Esse é o horário que você costuma acordar? — Mas ele estava lá quando disse que estaria.

— Na verdade, eu já estaria trabalhando a essa hora — respondeu Miranda, com uma risada. — Estou conversando com lorde e lady Westhampton há quase uma hora.

— Bom Deus! — Ele parecia espantado com a idéia e foi servir-se de uma xícara de chá.

Depois do café-da-manhã e de duas ou três xícaras de chá, Devin mostrava-se mais alerta e saíram à procura do pai de Miranda. Rachel livrara-se da expedição de exploração da antiga casa.

Miranda optou por conhecer o gerente da propriedade antes de começarem o tour. Por isso, a primeira parada foi no escritório dele, que ficava do outro lado do jardim lateral em frente à pequena casa de pedra na qual ele vivia.

— Lorde Ravenscar! — disse ele, parecendo surpreso, quando Devin bateu à porta e entrou.

— Olá, Strong. — Devin passou os olhos pelo escritório.

— Se o senhor houvesse enviado um bilhete, eu teria ficado feliz em visitá-lo na casa principal, meu senhor — continuou o gerente da propriedade nervosamente, apressando-se e tirando arquivos de uma cadeira e arrastando outra mais para perto. Ele era um homem baixo, atarracado, calvo na parte de trás da cabeça, de tal forma que parecia que estava usando a tonsura de um monge.

— Srta. Upshaw desejou conhecer seu escritório — explicou Devin. — Srta. Upshaw, este é o Sr. Strong, o gerente da propriedade. Strong, esta é a futura lady Ravenscar, Srta. Upshaw.

— Como vai, senhorita? É um prazer conhecê-la. — Strong disfarçou rapidamente sua primeira expressão de surpresa e sorriu para ela, batendo o lenço para tirar a poeira do assento da cadeira com encosto.

— Obrigada. — Miranda aproximou-se e cumprimentou-o com um aperto de mãos. — E este é meu pai, Joseph Upshaw. — Ela se sentou na cadeira enquanto o pai apertava a mão do homem.

Strong voltou para trás da mesa, lançando um olhar para Devin. Miranda suspeitou que ele não estivesse acostumado a lidar com condessas que cumprimentavam gerentes de propriedades com apertos de mão.

— Parabéns pelo casamento, meu senhor — disse ele. — Desejo que seja feliz, madame.

— Obrigada. Estou certa de que serei — disse Miranda, secamente. — Gostaria de falar com você sobre a propriedade ainda esta tarde, depois que terminarmos o tour pela casa. Só para ter uma idéia geral de quais são as áreas problemáticas e o que será preciso fazer para que volte a ser rentável. Depois do casamento, devo me aprofundar mais no assunto, é claro.

Strong olhou para ela, confuso. Ele piscou. Por fim, disse:

— A senhorita quer... quer falar comigo, Srta. Upshaw?

— Sim. — Miranda ficou se perguntando se o homem era um pouco limitado. Se fosse, não era de se estranhar que a propriedade tivesse decaído nos últimos anos. — Sobre a situação das posses de lorde Ravenscar.

— Mas... mas... — gaguejou ele, olhando na direção de Devin em busca de ajuda.

— Eles vão consertar o lugar — explicou Devin. — Ninguém lhe falou isso?

— Bem, sim, seu tio me escreveu. Quero dizer, eu entendi que haveria, humm... — Seus olhos se viraram para Miranda, e ele fez uma pausa, indeciso.

— Uma injeção de capital? — perguntou Miranda, educadamente.

— Sim, haverá. Mas primeiro temos de ver o que precisa ser feito, não temos?

— Eu... Eu... mas certamente Sr. Dalrymple é a pessoa com quem tem de falar sobre isso. Digo, sendo ele o administrador e tudo mais, é quem cuidará do dinheiro. Ele chegará esta tarde, certo?

Miranda lançou um olhar para Devin, que disse:

— Sim, ele chegará esta tarde. Mas, Strong, a verdade é que tio Rupert não será mais a pessoa com quem você vai lidar. Daqui por diante, será a Srta. Upshaw. Ou, melhor, lady Ravenscar, num futuro próximo.

O gerente da propriedade ficou de queixo caído e encarou Miranda como se nela tivesse crescido de repente uma segunda cabeça.

— Devemos começar devagar — assegurou Miranda ao homem, pensando que talvez tivesse de trazer Hiram Baldwin para ajudar Strong, pelo menos por um tempo. O homem parecia que ia desmaiar. — Esta tarde só quero repassar algumas coisas genéricas. Não precisarei olhar números ainda. Mas não sei nada sobre a propriedade. Que tipo de terra é, como está sendo utilizada, se está sendo aproveitada da melhor forma. Mais tarde poderemos entrar em detalhes. Aí então precisarei de mapas e de registros dos últimos anos. É possível que precisemos rever alguns anos mais para trás. E, é claro, vou querer andar pela propriedade e ver tudo em primeira mão.

— A propriedade inteira? — arregalou os olhos.

— Bem, não de uma só vez, claro — disse Miranda com o que esperava ter sido um tom de voz tranqüilo. — Primeiramente, vamos olhar a casa e os jardins. Devin irá mostrá-los para nós agora.

— Lorde Ravenscar? — Strong parecia tão incrédulo quanto estivera ao ouvir que Miranda pretendia tocar a propriedade.

Miranda encobriu um sorriso quando Devin disse:

— Eu me lembro onde estão todas as coisas, sabe?

— Oh, é claro, meu senhor, eu não quis dizer... — Strong começou a esfregar as mãos ansiosamente. — Estou certo de que fará um excelente trabalho.

Os três se levantaram e saíram do escritório. Miranda suspeitou que, assim que a porta se fechou atrás deles, o Sr. Strong correu para servir-se de uma bebida forte.

Virou-se para Devin, pensativa, e disse:

— O Sr. Strong é um pouco lento? Ele parecia ter dificuldade em entender o que eu queria.

Devin abafou um riso.

— Creio que você é um pouco... digamos assim, intimidadora... para o homem comum, Miranda. Ele não está acostumado a uma condessa entrando e dizendo que gostaria de ver os livros contábeis. Tenho certeza de que ele ficará bem assim que se acostumar com você. Dê a ele algum tempo para se recuperar do choque. Talvez ele fique melhor após falar com tio Rupert.

Primeiro, visitaram os arredores da casa. Exploraram os jardins negligenciados e examinaram o exterior da mansão. Devin apontou para onde ficava o jardim de ervas na lateral da cozinha, assim como para os jardins elegantes e formais no terraço atrás da casa. Flores ainda cresciam ali, as rosas dispostas em um emaranhado selvagem, as vinhas da vereda alastravam-se e esparramavam-se pela entrada. Havia um quê de beleza descuidada e rústica nas flores do jardim, mas as cercas vivas não podadas na parte baixa do terraço pareciam uma mata de arbustos selvagens, e os caminhos de cascalho eram lamacentos e esburacados.

— Somente o Sr. Pettigrew e seu neto cuidam disso há alguns anos. Não há como darem conta de tudo. Já vi até o Cummings cuidando das rosas uma vez ou outra, tentando retirar as ervas daninhas de modo que ainda pudesse colher rosas para os vasos — disse Devin. — Quando eu era garoto, lembro-me de que havia um labirinto ali naquele lado do terraço. — Apontou na direção da área que estava com grama alta agora. — Tinha de ser podado com cuidado e, no decorrer da última geração, acabou completamente encoberto. Ele tinha medo de que uma das crianças acabasse entrando ali e ficasse presa para sempre.

— Li que o paisagismo foi feito por Capability Brown — disse Joseph. — É verdade?

— É o que dizem. Os olmos e as faias que se alternam ao se aproximar do caminho foram plantados por ele. E ali... — Apontou na outra direção, depois do labirinto, onde árvores invadiam os jardins. —... aquele já foi um pomar primoroso, pelo menos foi o que meu pai me disse. Árvores frutíferas ordenadas em fileiras, plantadas pelo avô dele. É lindo na primavera, um tapete espesso de flores brancas e rosas.

— Chamei um paisagista para vir aqui na semana que vem — disse Joseph, com satisfação. — Logo botaremos tudo em ordem. Você não possui mais os projetos originais, possui?

Devin deu de ombros.

— Não sei. Suponho que devam estar na biblioteca ou em meu escritório. Vou procurá-los. — Virou-se e olhou para a casa, protegendo os olhos do sol com a mão na testa. — A fachada está em bom estado, apenas algumas lascas e fendas aqui e ali, alguns entalhes de pedra que caíram. O telhado precisa de muitos reparos, com certeza. A ala oeste está totalmente fechada por causa dos danos causados pela água. A maioria das chaminés não funciona como deveria. Há cupim na maior parte dos balaústres e corrimãos. Podre e ressequido. Podre e úmido. Há alguns pisos na ala oeste que nem sei se são seguros. Olhou de Joseph para Miranda e de volta ao pai.

— Ainda interessado em restaurar o mausoléu?

— Você deve estar brincando. O apetite de papai só aumentou — disse Miranda, com uma risada. — Continue.

Entraram e andaram pela casa, para dar o que Miranda classificou como uma olhada rápida. O grande salão original do meio da ala fora transformado na entrada da casa, cujo detalhe central era uma escadaria elegante que subia até o patamar, curvando-se dali em ambas as direções até o segundo andar. Os degraus eram de mármore, assim como o chão da entrada; os balaústres, feitos de carvalho inglês. Miranda já havia reparado, ao descer pela manhã, que o corrimão estava cheio de pequenos buracos, indicando a presença de cupim.

— Pelo menos não há besouros-da-figueira aqui — disse Devin, quando começaram a passar ao lado da escada. — Ou pelo menos não temos ouvido o barulho deles. — O besouro maior, que era ainda mais destrutivo do que o cupim, era conhecido pelo som de sapateado que fazia por dentro da madeira.

— Isso é bom.

— Aquelas são peças maravilhosas. — Devin apontou para a enorme tapeçaria desbotada que decorava a parede do salão, junto a enormes retratos pintados de ancestrais, a maioria escurecida pelo tempo. — Mamãe tirou os melhores dos outros cômodos e trouxe-os para cá, onde poderiam ser vistos primeiro.

Em seguida, levou-os até as amplas cozinhas e aos corredores de pequenas despensas e alojamento dos empregados. Depois seguiu com eles para o salão de baile principal, uma grande área de piso de mármore que ocupava a maior parte da asa central do térreo. Então, subiram as escadas e começaram do alto, abrindo as janelas do sótão para olhar por sobre as telhas de ardósia do telhado, muitas das quais quebradas ou deslocadas. Observaram também o dano causado pela água. Desceram, percorrendo corredores, examinando todos os cômodos, de modo que quando chegaram ao segundo andar, onde ficavam os quartos principais, já havia passado da hora do almoço. Estavam todos famintos, além de empoeirados.

Entretanto, Joseph e Miranda queriam concluir o tour. Desta forma, Devin guiou-os pelo corredor, mostrando o que costumava chamar de sala matinal, toda forrada em couro vinho-escuro cordovão com tachas de latão, agora desbotado e quebradiço. A seguir, veio a sala de música, e, do outro lado do corredor, havia o que ele intitulava de pequeno salão de baile — um cômodo mais ou menos da metade do tamanho do salão de baile principal abaixo. Mais adiante ficava a biblioteca, um cômodo amplo e lúgubre.

Devin foi até as janelas e puxou para o lado as pesadas cortinas, revelando um conjunto de janelas altas que davam para o sul, permitindo a entrada de uma agradável claridade que revelou um cômodo com dois andares de altura, repleto de livros.

— Oh, meu Deus... — suspirou Miranda. — Que ambiente maravilhoso! — Duas mesas e algumas cadeiras estofadas estavam dispostas no meio do cômodo, assim como um grande globo terrestre em um suporte. Outro suporte exibia uma Bíblia enorme e muito antiga. Estantes embutidas de dois metros e meio de altura estendiam-se por toda a biblioteca. As fileiras duplas de janelas ocupavam um grande espaço da parede lateral. Acima das estantes, em duas das outras paredes, havia mais tapeçarias e retratos pintados. Na quarta parede, uma passarela de madeira com mais ou menos um metro de largura, a que se podia chegar por uma escada de madeira. Essa parede também estava repleta de estantes.

Miranda percorreu todo o cômodo, admirando tudo, pensando em como decoraria o ambiente e o tornaria bonito e confortável. Esse, sabia, seria um cômodo no qual passaria bastante tempo.

— Adorei este lugar.

Ela subiu a escada de madeira até o mezanino da biblioteca, observando que o balaústre também tinha os pequenos buracos que indicavam presença de cupim. Quando chegou ao andar de cima, começou a andar e a admirar os livros.

— Olhem! — gritou ela. — Aqui estão livros que falam sobre a casa. Não consigo ler todos os títulos. Será que há um mapa dos jardins em algum deles? — Deu um passo atrás para ter uma visão melhor das prateleiras mais altas. — Vou precisar de um banco.

Ficou na ponta dos pés, esticando-se para ver melhor. Arqueou-se para trás a fim de se equilibrar segurando o corrimão. A balaustrada cedeu sob sua mão e Miranda, perdendo o equilíbrio, viu-se caindo irremediavelmente para trás, no vazio.

 

Miranda gritou, contorcendo-se e tentando segurar-se em algo enquanto caía. Com uma das mãos, conseguiu segurar um dos corrimãos estreitos, agarrando-se nele com toda sua força. Miranda pôde ouvir o pai gritando seu nome e o som de passos rápidos, abaixo de onde ela estava. Sentia como se o braço estivesse prestes a ser arrancado do ombro. Aos poucos os dedos escorregavam do corrimão. Tentava agarrar desesperadamente com a outra mão para se suspender, mas não encontrou nada além de chão liso de madeira. Foi então que o corrimão partiu-se, fazendo-a despencar em direção ao solo.

Contudo, os segundos que passara pendurada no corrimão foram suficientes para que Devin conseguisse chegar abaixo dela e ampará-la quando caiu. Assim, em vez de chocar-se com a madeira sólida, bateu de encontro ao peito de Devin, o que o fez perder o equilíbrio em conseqüência da força da colisão. Ambos caíram, um sobre o outro, no chão. Por um instante ficaram ali deitados, perplexos. Os braços de Devin estavam fechados em torno de Miranda, tão apertados que ela mal conseguia respirar. E, no instante seguinte, percebeu que estava agarrada a ele de forma igualmente forte. Fechou os olhos e um tremor percorreu seu corpo. Por um momento, achou que tinha morrido.

— Miranda! Você está bem? Meu Deus, pensei que estivesse morta! — O pai, que correra para a escada para alcançá-la, agora corria para onde os dois estavam deitados.

— Eu... Eu estou bem — disse Miranda, com a voz abafada pela camisa de Devin.

Joseph abaixou-se e pegou-a pelo braço, ajudando-a a levantar-se, e Devin soltou-a. Miranda ficou de pé, ajeitando o vestido com as mãos. Queria debulhar-se em lágrimas, percebeu, jogar-se nos braços de Devin e entregar-se a um choro convulsivo. Mas não era de seu feitio. Além do mais, disse a si mesma, Devin acabara de salvá-la; não deveria retribuir transformando-se em uma mulher chorona, dependente.

Segurou as mãos para disfarçar o tremor e virou-se para Devin. Tentou sorrir para ele, mas não conseguiu.

— Obrigada. Você salvou minha vida.

— Não há de quê. Eu... Quase morri de susto.

— Eu também — confessou Miranda, agora mostrando um sorriso. — Deveria ter sido mais cuidadosa. Sei que o lugar está infestado de cupim.

Devin anuiu com a cabeça e lançou um olhar para a parte vazia de onde havia caído o corrimão.

— Não sabia que estava tão ruim assim.

Olhou para o mezanino por um bom tempo e depois franziu o cenho.

— Creio que um descanso seria o melhor para você, minha querida — disse Joseph, colocando o braço nos ombros da filha. — Venha comigo, eu a levarei a seu quarto.

— Mas eu deveria me encontrar com o Sr. Strong depois — começou a protestar Miranda.

— Não se preocupe com Strong. Ele provavelmente vai gostar da oportunidade de se recuperar do choque que foi conhecê-la — disse-lhe Devin, com um sorriso. — Vou mandar um bilhete para ele dizendo que o verá mais tarde. Este lugar está entregue às traças por anos. Não fará diferença se você levar um ou dois dias a mais para colocá-lo em ordem.

As pernas de Miranda começaram a tremer em conseqüência do susto. Ela teve medo de que um tremor se iniciasse pelo corpo todo se continuasse ali por mais tempo. Por isso concordou com um gesto de cabeça e deixou o pai guiá-la para fora do cômodo.

Devin ficou onde estava por um instante, olhando para o vão da porta. Seu coração ainda estava batendo descontroladamente. Jamais iria esquecer a visão de Miranda despencando do mezanino. Por um momento, parecia que o mundo havia parado.

Virou-se e subiu a escada, andando pelo mezanino até chegar no espaço vazio por onde Miranda caíra. Olhou para baixo, pela fenda na madeira, primeiro de um lado, depois do outro. Os lados tinham o mesmo tamanho — cuidadosamente serrados quase por completo, apenas o final partido e serrilhado. Alguém preparara uma armadilha, e Miranda caíra nela.

Miranda recusou-se a adiar o casamento por conta da queda. Naquela tarde, depois que algumas horas de sono acalmaram-lhe os nervos, sentiu-se um pouco constrangida por causa da preocupação de todos, porém assegurou-lhes de que estava bem.

— Quem se machucou foi meu orgulho — disse ela, com um sorriso. — Não há razão para não continuarmos com o casamento como planejamos. O pior que aconteceu comigo foi uma pequena luxação no pulso.

Assim, na tarde seguinte, Devin e Miranda se casaram na igreja da vila. A cerimônia foi simples e breve, como Miranda solicitara, mas o ar da igreja estava tomado pelo aroma das diversas rosas brancas de cada lado do altar; a velha igreja estava aconchegante e banhada pela luz dourada do sol de fim de tarde. Aquele foi um belo momento para Miranda, doce e profundo. As palavras que o vigário pronunciou ressoaram dentro dela. Era isso o que queria. Era assim que devia ser.

A mão de Devin estava quente e firme segurando a sua. Miranda olhou para ele. Tinha uma expressão neutra, o que a fez perguntar-se em que estaria pensando, se estava feliz ou triste, ou assustado com a perspectiva de perder a liberdade. Imaginou se estaria pensando em Leona e desejando que fosse ela, em vez de Miranda, ali ao lado. Resoluta, Miranda jurou para si mesma que um dia apagaria a imagem de Leona da mente de Devin.

Voltaram para Darkwater em uma carruagem aberta e, por todo o caminho, as pessoas da vila viravam-se para acenar, sorrir e gritar seus votos de felicidades e parabéns. Haveria naquela noite uma grande festa para todos no pátio lateral em Darkwater, enquanto os amigos dos Aincourt e toda a família se reuniriam para celebrar o casamento no pequeno salão de baile.

Ela olhou para Devin, que olhou de volta e piscou.

— Tudo isso é um pouco medieval, você não acha? Miranda riu.

— Você leu meus pensamentos. Mas tenho certeza de que papai está se deleitando com isso.

— Satisfazer seu pai deve ser algo muito importante para você.

— Eu o amo. Mas não faria absolutamente nada só para satisfazê-lo.

— Ainda assim se casou para agradá-lo.

— Eu me casei para agradar-me. — As palavras escaparam antes mesmo que Miranda refletisse sobre elas.

— De fato? — Devin semicerrou os olhos. — Então espero ser capaz de fazer isso acontecer.

— Fazer o que eu quero me agrada — explicou Miranda. — Percebi que a vida é muito mais fácil para uma mulher casada do que para uma solteira, mesmo tendo um pai de idéias avançadas como o meu. Uma mulher casada pode ir aonde quiser, sem precisar de ninguém para acompanhá-la, e ninguém acha isso errado. Não há restrições tolas a respeito do uso de branco, tons pastel e cores fortes. O mundo não reage com horror se ela está sozinha com um homem. E, é claro, há aqueles outros motivos sobre os quais lhe falei no dia em que ficamos noivos.

— Eu me lembro. — Devin observou-a por um momento. — Você é uma mulher estranha. A maioria das mulheres, quando cita o casamento, fala de amor.

— Muitas mulheres sentem a necessidade de tirar o máximo proveito de uma situação ruim — respondeu Miranda, secamente.

Devin surpreendeu-se rindo.

— Minha cara lady Ravenscar, você é irremediavelmente impudente.

— É muito estranho ser chamada assim — disse Miranda, suavemente.

— É melhor se acostumar.

— Acho que sim.

Devin analisou a expressão pensativa de Miranda.

— Já está arrependida?

— Não. — Ela olhou-o e sorriu. — Só estou pensando. Imagino como serão nossas vidas.

— Fora do comum, diria.

— Você deve estar certo.

Ao chegarem na casa, subiram para o pequeno salão de baile, onde um farto repasto fora servido em comemoração ao casamento. Familiares e amigos estavam lá, incluindo todas as pessoas da localidade consideradas de nível social suficiente para comparecer ao casamento campestre do conde de Ravenscar. Miranda fora levada a crer que um casamento na cidade, ou uma cerimônia planejada com meses de antecedência, teria sido algo muito diferente. Convites teriam sido disputados, e muitos dos nobres inferiores que estariam lá hoje não fariam parte da elite. Miranda teve dificuldade em entender o certo e o errado de quem poderia ou não ser convidado, as regras parecendo uma salada de considerações sobre dinheiro, tradição familiar, proximidade e ligações sociais. Miranda concordou quando lady Ravenscar tentou explicar-lhe tudo isso e disse-lhe que poderia deixar tudo por conta dela.

Miranda e Devin fizeram a fila de cumprimentos na entrada da do salão de baile, ao lado da mãe de Devin, de tio Rupert, de Rachel e seu marido, alinhados em uma ordem esotérica que todos pareciam compreender sem questionar. A família de Miranda ocupava o final da fila, obviamente. Miranda estava espremida entre Devin e a mãe, um detalhe pelo qual estava grata, pois eliminava a necessidade de conversar com ele. Devin a apresentava a todos que compareciam — ou, quando não se lembrava quem era, o que acontecia algumas vezes, sua mãe vinha sutilmente em seu socorro e apresentava-lhe o convidado.

Miranda estava dizendo algumas palavras ao médico quando sentiu Devin retesar-se a seu lado. Quase ao mesmo tempo, do outro lado, o braço de lady Ravenscar moveu-se em um espasmo. Curiosa, Miranda olhou para os recém-chegados. Uma senhora estava em pé ali, sorrindo para Devin, e atrás dela havia a mulher com quem vira Devin na ópera. A amante de Devin comparecera à recepção do casamento.

— Sra. Vesey — disse Devin, com uma voz tensa, inclinando-se ligeiramente para apertar a mão da senhora. — Que prazer revê-la. Já faz algum tempo.

— É mesmo. Não tenho saído muito ultimamente. Fiquei tão feliz quando lady Vesey se ofereceu para me acompanhar. Você conhece lady Vesey, não conhece? A esposa de meu sobrinho?

— Sim. Conheço lady Vesey. — A voz de Devin era fria e controlada, mas Miranda pôde sentir a intensa emoção que irradiava de seu corpo. Gostaria de poder saber exatamente o que ele estava sentindo.

Não tinha dúvidas sobre o que a mãe dele estava sentindo. Lady Ravenscar estava tão tensa quanto uma corda de violino. Miranda suspeitou de que ela teria gostado de poder pular no pescoço de Leona e dar-lhe um tapa.

Leona, por sua vez, parecia rejubilar-se. Estava lindamente arrumada, com um vestido convencional de seda verde-claro, nada parecido com o vestido decotado que usara na ópera. Entretanto, caía-lhe tão bem, favorecendo a cor dos olhos e dos cabelos, que chamava tanta atenção quanto o vestido de gala. Estava estonteante — cabelos, olhos, pele —, e sua beleza era tão deslumbrante de perto quanto o era a distância. Miranda não pôde deixar de sentir um frisson de incerteza ao olhar para o rosto perfeitamente modelado dela. Como poderia querer competir com essa mulher pela afeição de Devin?

— Ravenscar e eu somos velhos amigos — disse Leona, não somos, meu senhor? Espero que não se incomode por eu ter me convidado para a comemoração. A tia de Vesey precisava de um acompanhante. Se não fosse por isso, eu jamais teria imposto minha presença.

— É claro que não — disse a mãe de Devin, friamente. — Uma dama jamais faria uma coisa dessas. Olá, lady Vesey.

O olhar de Leona passou para lady Ravenscar, e, ao fazê-lo, parou em Miranda. Seus olhos se arregalaram um pouco, e Miranda pensou ver a mulher retesar-se antes de sorrir para ela. Miranda sentiu um rasgo maravilhoso de prazer ao pensar que sua aparência havia desconcertado a mulher. Obviamente, lady Vesey esperara um tipo diferente de mulher.

— Permita-me apresentá-la à esposa de Devin — continuou lady Ravenscar. — Miranda, esta é lady Vesey. A propriedade de seu marido não fica muito longe daqui. Nós os vemos muito pouco, no entanto. — Fez uma pausa antes de acrescentar. — Eles estão quase sempre em Londres.

Miranda ignorou seu instante de incerteza e estendeu a mão para a mulher.

— É um prazer conhecê-la, lady Vesey. Estou adorando conhecer os amigos de lady Ravenscar. Se soubéssemos que estava por aqui, teríamos lhe enviado um convite.

Leona ofendeu-se um pouco à sugestão de que possuía idade próxima à da mãe de Devin, mas não havia como refutar essa afirmação. Então sorriu, atribuindo a observação ao modo simplório de Miranda, com certeza.

— Obrigada. Você está tão bem, minha querida. Lady Ravenscar deve ter gostado de abastecer-lhe com roupas.

Miranda sorriu entre dentes.

— Você faz uma imagem interessante de mim antes de conhecer lady Ravenscar.

— Sinto não ter tido tempo para acompanhar Miranda em suas expedições às compras — disse a mãe de Devin, continuando o duelo com Leona. — Felizmente, ela tem um gosto maravilhoso para roupas e uma compreensão do que é e do que não é apropriado.

Miranda gostou de ver o leve rubor surgir na face de Leona. Lady Ravenscar dera um golpe certeiro com sua última afirmação. Demonstrando enorme ingenuidade, Miranda continuou:

— Você deve vir nos visitar, lady Vesey. Adoraria falar com você de novo. Tenho certeza de que vou precisar de todos os conselhos possíveis de damas como você, que estão casadas há alguns anos.

A mesma expressão instável estampou o rosto de Leona, uma mistura de insulto e incerteza se Miranda sabia que a estava insultando ou se era simplesmente muito ignorante para perceber o que dissera.

— Sim. Adoraria visitá-los.

— Não seria ótimo? — disse a velha Sra. Vesey, e Miranda sorriu para ela com uma amabilidade sincera.

— Deve vir também, Sra. Vesey.

— É claro, minha querida. Desejo que seja muito feliz, lady Ravenscar.

Leona acrescentou:

— Sim, é claro. Muito feliz. — Ela hesitou.

Miranda suspeitou de que Leona havia começado a dizer seu nome como a tia dissera, mas as palavras ficaram presas na garganta. Imaginou que Leona viera porque queria causar um reboliço, assim como dar uma olhada na noiva e lembrar a Devin quem ele realmente amava. Mas deduziu que lady Vesey não havia considerado a possibilidade de ter de cumprimentar e parabenizar a esposa de seu amante.

— Muito obrigada, lady Vesey — respondeu Miranda, tornando tudo mais difícil para ela.

— Lady Ravenscar. — As palavras saíram rascantes de sua garganta, e então Leona virou-se e seguiu a tia do marido ao longo da fila.

Tio Rupert falou pouco com Leona, dando-lhe apenas um olhar de espanto, enquanto Rachel dispensou à mulher um olhar gélido. Lorde Westhampton foi protocolarmente correto. Para diversão de Miranda, entretanto, seu pai cumprimentou lady Vesey com a mesma alegria incontida que demonstrara a noite toda. Conversou com a tia e apertou a mão de Leona enquanto se dirigia a ela, falando do seu jeito amável sobre sua filha, Ravenscar e Darkwater.

Devin lançou um olhar de soslaio para Miranda, analisando sua reação. Inclinou-se para chegar mais perto dela e sussurrou:

— Sinto muito. Não tinha a menor idéia...

— Não. Tenho certeza de que você não sabia. — Miranda respondeu placidamente e sorriu para ele, despreocupada. Não tinha a menor intenção de dar vazão a seus ciúmes, muito menos na frente de Devin.

Não havia mais muitos convidados para cumprimentar depois disso. Quando a fila se desfez, Devin pegou Miranda pela mão e guiou-a até o salão. Todos os olhares voltaram-se para eles, em expectativa, e os convidados chegaram para trás para abrir-lhes espaço. Devin fez um gesto com a cabeça para os músicos que estavam no fundo do salão, quando então começaram a tocar uma valsa. Ele virou-se para Miranda e ofereceu-lhe a mão, que ela aceitou, indo para os braços dele ao começarem os passos da dança.

Ela sentiu-se um pouco ostentosa, rodando pelo salão, só eles dois, mas aquela também era uma sensação maravilhosa, estar nos braços de Devin, sentindo a mão dele em suas costas, acompanhando-o com tanta naturalidade quanto o ato de respirar. Pensou, com maliciosa onda de prazer, em Leona tendo de assistir à dança. Leona, esperava, obteve algo diferente do que aguardara quando decidiu invadir a recepção do casamento naquela noite.

Enquanto todos observavam os recém-casados bailando graciosamente pelo salão, lady Ravenscar virou-se para a filha, puxou-a de lado e murmurou:

— Você tinha alguma idéia de que essa mulher estava planejando vir aqui hoje à noite?

— Não! — Rachel pareceu assustada. — É claro que não. Eu teria dito aos criados para não a deixarem entrar. Eu nem mesmo sabia que ela estava em Vesey Park.

— Então não devia estar aqui há muito tempo — respondeu a mãe de Rachel. — Ela em geral causa um grande alvoroço quando se digna a visitar a propriedade. Com certeza, foi o que fez da primeira vez que veio. — Seus lábios apertaram-se, formando o mais próximo de uma careta que lady Ravenscar se permitia.

Rachel sabia que a mãe estava se referindo à primeira vez que Devin vira Leona, quando ele ainda era um jovem de 17 anos e se apaixonara com toda a intensidade e urgência de que só um adolescente é capaz.

— Bem, pelo menos a moça não sabe nada sobre ela — disse lady Ravenscar. — Eu comecei a dar um passa-fora naquela bruxa, mas sabia que isso causaria em Miranda a sensação de que havia algo errado com relação a lady Vesey. Aquilo foi um insulto a Miranda, é claro, mas enquanto ela não souber que foi insultada, não lhe fará mal.

Rachel, por sua vez, estava ciente de que Miranda sabia, sim, quem Leona era e da importância que tinha na vida de Devin, de modo que assim que a dança terminou, ela dirigiu-se a Miranda.

A noiva foi rodeada por convidados ávidos por lhe desejar felicidades assim que ela e Devin saíram do salão e ele fez o cumprimento formal, soltando sua mão e virando-a para os convidados. Miranda, voltando ao normal com alguma dificuldade depois daquela dança romântica, controlou-se para não olhar Devin se retirando e conferir se ele estava indo direto para a amante. Conversou com os estranhos o melhor que pôde, aliviada quando Rachel apareceu e pegou-a pelo braço, sorrindo para os outros e dizendo que devia roubar deles sua nova irmã.

Rachel conduziu-a agilmente para fora do salão passando pelo corredor até um ambiente afastado, que tinha um assento abaixo da janela.

— Sinto muitíssimo — disse a Miranda, assim que ficaram fora do alcance auditivo dos outros convidados. — Não sabia que ela estava por essas redondezas. Nem sonhava que Leona teria a audácia de vir aqui hoje à noite!

— Está tudo bem — tranqüilizou-a Miranda, demonstrando uma calma maior do que a que sentia. — Creio que foi tudo bem até aqui. — Sorriu para a nova cunhada. — E a dança foi divina. Estou muito feliz agora para me preocupar com lady Vesey.

— Você está? — perguntou Rachel, encantada. — Você está feliz de verdade?

— Estou. Embora não tão feliz quanto espero ficar no futuro.

— Você gosta dele, não gosta? — disse Rachel, colocando a mão no braço de Miranda. — Você não se casou com ele por causa disso tudo, casou? — Ela abanou a mão em um movimento amplo.

Miranda riu alegremente.

— Não. Tudo isso pode ser comprado. Um marido exige muito mais do que um pagamento. Eu não me ligaria a alguém para o resto da vida por causa de uma casa, mesmo sendo assim tão espetacular.

— Eu sabia! — Rachel parecia radiante. — Tenho certeza de que você fará Devin feliz.

— Não posso garantir isso — Miranda ponderou e depois acrescentou, com um sorriso: — Mas vou fazer o melhor que puder.

Seu marido estava atravessando a sala naquele momento, fazendo o possível para parecer que conversava casualmente com os convidados, o tempo todo olhando em volta à procura de Leona e planejando o jeito melhor e menos chamativo de separá-la dos outros e levá-la para fora dali. Por fim, avistou-a do outro lado do salão, de pé ao lado de uma das portas. Ela o estava observando. Quando seus olhares se cruzaram, fez um gesto com a cabeça em direção à porta e saiu. Devin pediu desculpas à prima do vigário, que o havia parado para parabenizá-lo, e seguiu Leona.

Ele atravessou a multidão e saiu pela mesma porta. Não viu sinal de Leona, mas havia uma escadaria no final do corredor que levava ao jardim da parte de trás da casa. Então ele seguiu seu palpite de que Leona teria ido por ali. Desceu correndo os degraus e saiu pela porta dos fundos. Como era de esperar, ali estava Leona, aguardando-o com um sorriso sedutor, malicioso, no rosto.

— O que diabos você pensa que está fazendo? — Devin explodiu, os olhos flamejando. Andou até ela e agarrou-a pelo pulso.

— Qual é o problema? — perguntou Leona, fazendo um bico. — Você não está feliz em me ver?

— Este é o meu casamento! — Devin olhou em volta, e então empurrou-a para trás de uma das cercas vivas crescidas que haviam se espalhado por todo o jardim. — Você enlouqueceu? O que está fazendo aqui?

— Oh, Dev, não fique com raiva de mim. — E sorriu, uma das mãos acariciando o peito dele de forma a amansá-lo. — Só queria ver você.

Como ele não reagiu a sua frase com um sorriso, mas continuou a encará-la de um jeito insensível, Leona deu um passo atrás, arqueando uma das sobrancelhas, com um brilho raivoso nos olhos.

— E de que outra forma eu poderia vê-lo senão vindo aqui? — perguntou ela, mordaz. — Você nem foi me visitar antes de partir. Você me enviou um bilhete!

— Você se recusou a me ver quando fui visitá-la, se não se lembra — respondeu Devin. — Fui dispensado três vezes por seu mordomo. Fiquei cansado.

— O que você esperava depois de ter me abandonado na ópera? — lembrou-lhe Leona. — E com Stuart e Geoffrey lá para testemunhar isso! Foi humilhante. — Ela fez uma pausa e depois acrescentou: — Você costumava ser mais persistente. Sabe que eu acabaria cedendo.

— Sim, bem, eu tinha de partir para Darkwater, por isso não tinha tempo para joguinhos. Foi por isso que lhe enviei um bilhete, dizendo o que estava fazendo. Nunca imaginei que fosse aparecer aqui.

— O que mais eu poderia fazer? Queria ver sua noiva. Além disso, achei que você poderia gostar de um pouco de... diversão depois de duas semanas trancado em Darkwater. Então decidi descansar por alguns dias na propriedade de Vesey. Foi lá que nos conhecemos, sabe. Lembra-se disso? — Ela se aproximou novamente dele, sorrindo de uma maneira convidativa.

Para surpresa de Leona, Devin não amoleceu, nem sorriu de volta. Apenas disse:

— Claro que me lembro. Mas você tem de perceber como... como foi errado vir aqui hoje. Você está exibindo nosso relacionamento na frente de todo mundo.

— E desde quando você e eu nos preocupamos com o que é certo e o que é errado? — Ficou na ponta dos pés e roçou os lábios nos dele. — Vamos, Devin, não fique com raiva. Então eu dei a todos algo sobre o que falar. Nós sempre fizemos isso, não fizemos? E nós poderíamos... amenizar seu tédio, se você quiser. — Deslizou a mão pelo peito dele na direção do cós da calça.

— Diabos, Leona! — Devin afastou-se para longe. — Você está louca? Nossa casa está repleta de convidados. Qualquer um poderia vir aqui e nos encontrar. Já é um insulto para minha esposa você estar aqui.

Leona semicerrou os olhos.

— Nossa, nossa, como estamos repentinamente zelosos da esposa! Quando você se tornou tão provinciano?

— Por Deus, Leona, ela é lady Ravenscar agora. Não posso permitir que seja insultada em minha própria casa. O que esperava? Foi você quem quis que eu me casasse com ela, se bem se lembra.

— Eu não esperava que você se tornasse de repente um marido dedicado! — atacou Leona. — Não achei que fosse sair correndo para Darkwater, deixando-me sem saber quando retornaria. Ou que ficaria daquele jeito, sorrindo como um tolo porque estava apresentando alguma colonazinha insípida como sua esposa. A idéia era você se casar com ela e depois voltar para mim e para nossa vida em Londres.

— Eu sei. E é isso o que estou fazendo. Casei-me com ela, e depois de uma estada decente aqui voltarei para Londres. — Devin percebeu, ao pronunciar estas palavras, que a idéia de abandonar Miranda e voltar para Londres o deixara estranhamente desconfortável.

— Estada decente? — repetiu Leona. — Não posso acreditar no que estou ouvindo! Quando começou a se preocupar com o que é decente e aceitável? Quando passou a ser idôneo e respeitável?

— Idôneo? Respeitável? — Devin teve de rir. — Leona, minha querida, acho que você está sendo um pouco exagerada. Eu não queria me casar. Foi você que insistiu nisso. Mas, agora que me casei, tenho de continuar com isso. Não poderia deixá-la na igreja e ir correndo para Londres.

— Houve um tempo em que o faria — disse-lhe Leona. Devin ficou calado. Sabia que o que Leona disse era verdade. Anos atrás, até mesmo poucos meses atrás, ele ficaria ansioso para escapar de Darkwater. Teria passado as duas últimas semanas sonhando com Leona e em voltar para Londres. A verdade era que não pensara em nenhuma das duas coisas; a maioria dos seus pensamentos ficara ocupada com a extremamente irritante Srta. Upshaw.

— Você me disse que odiava essa garota — Leona continuou.

— Ela é a mulher mais irritante que já conheci — respondeu ele, candidamente, mas suas palavras foram acompanhadas por um suavizar de expressão, um leve sorriso se insinuando em seus lábios.

Leona franziu o cenho.

— Qual é o problema? Não me diga que você desenvolveu uma ternura por aquela mulher insípida!

Devin riu novamente.

— Insípida é a última palavra que se poderia usar para descrever Miranda. Não seja ridícula. Não desenvolvi ternura por ela. Não conseguimos ficar no mesmo cômodo por dois minutos sem discutir.

Ele achou melhor não mencionar o fato de que não conseguira dormir à noite porque não parava de pensar nela dormindo do outro lado de uma porta, ou de que descera todas as manhãs ávido por outro encontro com Miranda. Leona nunca se preocupou com seu interesse por outras mulheres. Mas, por algum motivo, dessa vez achou que ela não seria tão compreensiva.

Sua risada acalmou Leona. Ela conhecia a intensidade do desejo de Devin; fora o objeto desse desejo por 14 anos. E não podia imaginá-lo rindo de uma mulher que era o objeto daquela luxúria selvagem.

Leona deu uma de suas risadas guturais, inclinando a cabeça para trás para olhá-lo.

— Bem, você sabe onde me encontrar... a qualquer hora que se cansar de cortejar sua herdeira.

— Sim. Eu sei. Agora... você poderia, por favor, pegar sua tia e voltar para Vesey Park?

Leona foi acometida por nova irritação. A noite saíra completamente diferente do que planejara. A americana não era a garota acanhada e retraída que deduziu que fosse. Não era bonita, claro, do jeito que ela mesma o era — mas não parecia nada intimidada por Leona, mostrando-se à vontade em seu vestido elegante, em pé ao lado do esposo. E então Devin a seguira até o lado de fora. Em vez de ansiar por ela e de exclamar o quanto estava feliz em vê-la ali, o quanto a queria, ficara enfurecido porque ela ousara vir à recepção do casamento e "insultara" sua odiosa esposa.

— Sim, eu irei — falou, irritada. — Se é dessa forma que você vai agir, eu bem poderia voltar para Londres. Tenho certeza de que há vários homens lá que ficariam felizes em me manter distraída enquanto você está aproveitando os ares do interior!

Ela virou-se e saiu impetuosamente, satisfeita por ter fomentado um ciúme que faria com que Devin não demorasse nada para decidir visitá-la em Vesey Park.

Leona teria sido tomada pelo ódio se soubesse que o primeiro pensamento de Devin fora o desejo de que ela cumprisse a ameaça em vez de ficar lá para tentar criar problemas. Após esperar alguns minutos, ele voltou para a casa e foi procurar por Miranda.

Não sabia ao certo o que esperar do estado de espírito de Miranda ao retornar — mas, com certeza, não era a criatura risonha que encontrou conversando com Michael e sua irmã e que se virou para ele sem o menor ressentimento ou desconfiança, sorrindo e dizendo:

— Ah, aí está você, Devin. Fiquei imaginando onde teria se metido.

A ausência de ciúme e de raiva parecia tão surrealista que, por um instante, ele imaginou que talvez Miranda não soubesse nada sobre Leona. Mas depois lembrou-se da menção a Leona feita por ela durante aquele bizarro pedido de casamento, o que o deixou ainda mais intrigado por sua falta de animosidade. A maioria das mulheres, tinha certeza, estaria louca diante da idéia de a amante do marido aparecer em seu casamento. Foi então que percebeu que ela realmente não se importava se ele tinha casos ou se tinha amante. Esse raciocínio o deixou amargurado.

Sabia que deveria estar feliz com isso. Não poderia ter esperado um arranjo mais apropriado. O que sentia, no entanto, estava mais próximo do ressentimento do que da felicidade.

Na verdade, Miranda ficou aliviada ao vê-lo — tanto que isso sobrepujou qualquer irritação ou ciúme, tornando fácil ser agradável e calma. Estivera procurando Devin pelo salão de baile desde que ela e Rachel retornaram; e sua ausência havia disparado uma preocupação e um temor dentro de si que não estava acostumada a sentir. Ficara com medo de que ele houvesse escapado da festa com a amante, de que estivesse tão possuído de desejo e de amor por Leona que desaparecera para algum esconderijo com ela. O medo aumentou quando também não conseguiu ver Leona. Sabia que Rachel ficara preocupada com a mesma coisa pela ligeira opressão no olhar da cunhada e pelo modo como observava o salão disfarçadamente.

Agora Devin estava ali. Miranda podia abrir os punhos e permitir que seus ombros relaxassem. Ela não seria uma noiva realizada esta noite, mas pelo menos não seria uma noiva abandonada em público.

O sorriso de Rachel indicava o quão aliviada estava, também, por Devin ter reaparecido.

— Devin, você apareceu na hora certa. Não acha que chegou o momento de os recém-casados partirem?

—Já? — Miranda pareceu um tanto surpresa. — Mas a festa ainda está tão animada.

— Sim, mas a noiva e o noivo sempre partem muito antes do fim — disse Rachel, com firmeza.

— Oh! — Miranda suspeitou que Rachel estava fazendo o melhor que podia para afastá-los da presença de lady Vesey. Queria se certificar de que Miranda não se deparasse com a mulher uma segunda vez aquela noite.

Miranda suspeitava de que Leona, tendo alcançado seu objetivo, já havia ido embora. Também suspeitava de que a razão pela qual não conseguira localizar Devin era porque ele estava se despedindo de Leona. Entretanto, preferia não pensar nisso. Ele não fora embora com ela, e isso era tudo o que Miranda precisava saber no momento.

Não se importava em sair da festa, de qualquer modo. Manter uma aparência animada e agradável nos últimos minutos fora um desafio. Já estava pronta para fugir de todos aqueles estranhos e se retirar para o conforto e para a segurança do seu quarto.

— Vamos, então? — Devin virou-se para Miranda. — Podemos escapar sem ninguém perceber e evitar todo o alvoroço.

— Isso parece ótimo — respondeu Miranda, honestamente.

— Eu já escapuli daqui muitas vezes — assegurou-lhe Devin. — É fácil. Primeiro, temos de pegar um prato de comida.

— Tudo bem.

Conseguiram passar pela multidão, sorrindo e acenando para todos os convidados, mas evitavam habilmente parar por completo. Na mesa do bufê, encheram os pratos e atravessaram mais uma vez o mar de gente.

—Aja como se estivesse procurando um espaço vazio para sentar e comer — sussurrou Devin. — Agora estamos quase na porta. Não olhe em volta nem aja como se estivesse fazendo algo errado. Do contrário, alguém irá flagrá-la. Ande como se estivéssemos indo na direção daquelas cadeiras e agora... para a porta.

Miranda passou pela abertura da porta, com Devin logo atrás.

— A escadaria dos fundos é logo ali. — Ele fez um gesto para adiante. — Venha, faremos um piquenique. Estou morrendo de fome, e não consegui chegar perto da comida a noite toda. E você?

Miranda concordou com a cabeça.

— Para onde iremos?

— Conheço um lugar. — Ele guiou-a escada acima e pelo corredor até um grande cômodo. Entregando seu prato a ela, acendeu uma lamparina no cômodo com um dos castiçais do corredor e a pôs para dentro. Fez um gesto largo mostrando o quarto. — Mesas, cadeiras...

— O quarto das crianças!

— Admito que são um tanto pequenas, mas daremos um jeito. — Ele pegou os pratos e colocou-os na mesa, depois puxou uma das cadeirinhas com um gesto majestoso. — Se minha dama quiser sentar-se.

Miranda sorriu.

— Ficaria honrada, meu senhor.

Sentou-se, enquanto Devin ocupou o lugar em frente a ela, que abafou um risinho ao vê-lo sentado com os joelhos quase no queixo. O conde fingiu contrariedade.

— Eu sou o senhor da mansão, saiba a senhora. Não se pode fazer troça de mim.

— Jamais faria uma coisa dessas — assegurou-lhe Miranda, solenemente. Pegando o garfo, começou a comer com entusiasmo. Seu estômago estivera muito contraído para que conseguisse comer mais cedo, e agora, percebeu, estava esfomeada.

Enquanto comiam, Devin distraiu-a com histórias sobre sua infância, apontando para o armário onde se escondera quando criança para abrir a porta de supetão e assustar as irmãs, mas caíra no sono e fora dado como perdido, com toda a criadagem procurando por ele.

— Apenas a primeira de muitas desventuras — disse-lhe com um sorriso cansado.

Conversaram e riram, sentados ali, incompativelmente com seus trajes finos de núpcias, mas aquele parecia ser o jantar de casamento mais feliz que Miranda poderia ter tido.

Mais tarde, foram até a antiga galeria de músicos medievais, um pequeno cômodo com uma tela que se projetava acima do salão de baile. Através da treliça, podiam ver a festa e ouvir o som misturado da música, dos risos e das conversas que subiam por ela.

— Rachel, Carol e eu costumávamos fugir para cá depois que a babá dormia. Daqui assistíamos às festas dos nossos pais — disse Devin. — Elas não eram tão interessantes, mas assim nos pareciam. Mais porque eram proibidas.

— Isso sempre torna as coisas mais divertidas — concordou Miranda.

Ele pegou a mão dela, e aquilo pareceu a coisa mais natural do mundo, agradável e terna, bem de acordo com o clima leve e alegre do "piquenique". Mas havia uma corrente subliminar de excitação no toque, também, uma percepção da pele dele tocando a dela, seu calor, seu cheiro — este homem era quase um estranho para ela, e ainda assim seu marido, também.

Percorreram o corredor até o quarto dela e Devin abriu a porta, chegando para o lado para deixar que ela entrasse. Ela virou-se para dizer boa noite, mas ele já estava entrando pela porta também.

— O que... o que você está fazendo?

Devin fechou a porta atrás dele, e seus olhos se fixaram nos dela.

— Hoje é nossa noite de núpcias. — Ele deu um passo à frente e colocou as mãos nos ombros dela. — E eu sou seu marido.

 

A respiração de Miranda ficou presa na garganta e ela foi incapaz de fazer qualquer coisa a não ser ficar olhando Devin enquanto ele se aproximava, botando as mãos em seus ombros e virando-a devagar.

— Sua criada não virá esta noite. Eu serei seu criado.

As mãos dele começaram a abrir os botões que se estendiam pela parte de trás do vestido. Ao fazê-lo, seus dedos roçaram a pele de Miranda, provocando nela um tremor. Miranda lutou para organizar seus pensamentos.

— Não acho que isso seja necessário. Se eu chamar a criada, tenho certeza de que virá.

— Muito provavelmente. Ainda assim... é muito mais fácil se eu o fizer.

Miranda pôde sentir os dois lados do vestido se abrindo e descendo de suas costas, expondo a pele nua acima da combinação. Botou a mão nos seios para segurar o vestido. Devin pressionou os lábios na pele nua, aveludada e quente das costas. Ela sentiu a força da respiração dele na pele sensível.

— Devin... — O nome dele saiu rouco, e Miranda parou para limpar a garganta. Endireitou-se e afastou-se do toque prazeroso da boca dele. — Não. De verdade. Isso é o bastante.

Devin deslizou as mãos pelas costas de Miranda, empurrando o vestido pelo braço, e acariciou-lhe os ombros. Ela sentia como se todos os lugares em que ele tocava formigassem, ganhando vida.

— Não é o bastante. — Contestou as palavras dela, inclinando-se para fazer um caminho de beijos da clavícula até o ombro. — E não será o bastante até que eu a tenha. Por inteiro.

— Isso é exatamente o que concordamos que não aconteceria — disse ela, tentando impor um tom de censura na voz, que saiu ofegante demais para seu gosto.

— Não. Isso é o que você concordou que não aconteceria. Nunca concordei com isso.

Ele passou as mãos por dentro das laterais abertas do vestido, deslizando pelas costas até a barriga, nada separando a pele de Devin da dela, exceto a fina combinação. Miranda suspirou ofegante. Ele fez um som baixo e passou o nariz pelo pescoço.

Um longo tremor percorreu o corpo de Miranda, que não conseguiu impedir um gemido.

— Isso é o certo. Você pode sentir — murmurou ele, a respiração estimulantemente irregular na pele dela. — É assim que deve ser.

Devin subiu as mãos para segurar os seios dela, pressionando-os e acariciando-os enquanto provocava com a boca o pescoço e a orelha. Um desejo arrebatou Miranda, de uma maneira quase assustadora devido a sua intensidade. Assim ela percebeu que tudo o que queria era passar a noite na cama dele, ser apresentada às delícias da paixão nas mãos dele. Seria fácil se entregar, fácil experimentar o prazer.

Fácil, também, perder a única coisa que mais queria.

— Não. — Falou com a voz firme e afastou-se, virando o rosto para olhá-lo. — Não. Isso não faz parte do nosso acordo.

Os olhos dele estavam cegos de paixão, a expressão carregada de desejo.

— Esqueça nosso acordo. Não temos de cumpri-lo. Não importa.

— Importa, sim. Essa era a base do nosso casamento. Não nos deixarmos envolver... ficarmos livres para perseguir nosso próprio...

Ele interrompeu estas palavras puxando-a para seus braços e beijando-a apaixonadamente. Miranda entregou-se a ele, o desejo tomando conta de seu corpo.

Devin parou o beijo e começou a passar a boca pelo pescoço, beijando-o devagar e esquentando a pele sensível.

— Não há nada errado em ter paixão no casamento — murmurou ele persuasivamente, as pontas dos dedos roçando de leve os braços dela para cima e para baixo. — Deixe-me mostrar como pode ser bom. Deixe-me...

A persuasão em suas palavras e carícias trouxeram Miranda à consciência de repente, e ela se afastou, retesando a coluna.

— Não, senhor, acho que não. Você é um sedutor experiente e isso está óbvio. Mas não sou tão fácil de ser persuadida. Não estou interessada em um casamento que alie intimidade e casos extraconjugais. Não funcionaria, pelo menos não para mim. Creio que seja melhor manter as duas coisas em separado. Nosso casamento é um acordo de negócios e devemos buscar prazer em outro lugar.

A expressão no rosto dele se fechou.

— Raios! Não há motivo...

— Há motivo sim — respondeu Miranda, asperamente. — Sua reação emocional em si já é motivo suficiente. Nosso casamento não tem espaço para emoções.

— Nem todos aqui são tão frios e racionais como você!

— Não, receio que não — respondeu Miranda, como se ele a tivesse elogiado. — Mas tenho certeza de que quando você se acalmar e pensar a respeito, vai perceber que estou certa. Com a paixão vem o sentimento, e com o sentimento vem todo tipo de emoção misturada. Ciúme, mágoa, raiva. Bem, obviamente, não iria funcionar. É preferível ter isso com um amante do que com um marido.

Uma fagulha acendeu nos olhos de Devin, e ele agarrou os punhos de Miranda. Por um momento, ela pensou que ele iria ter um acesso de fúria. Mas, então, deu um passo atrás, os dentes trincados, e disse:

— É claro. Se isso é o que deseja. Posso ver por que preferiria não sentir qualquer emoção por seu marido. Seria mais difícil fazer com que todos seguissem suas ordens, não seria? De fato, é preferível manter tudo na base dos negócios. Empregados não podem se dar ao luxo de reclamar muito.

— Não é isso! — gritou Miranda.

— Não?

— É claro que não. Esse também era o tipo de casamento que você queria.

— Foi você quem...

— Eu concordei com o tipo de casamento que você propôs. Você queria manter a amante. Queria ser independente. Não queria ficar preso a uma esposa. Ou isso mudou de uma hora para outra?

— Não, é claro que não.

— Bem, é isso o que eu quero também — contra-argumentou Miranda. — Só estou falando para nos atermos ao acordo que fizemos. Um casamento só no nome.

— Isso não significa que não possamos aproveitar, ao mesmo tempo, certos aspectos do casamento — argumentou Devin. — Um casamento pode ser fonte de prazer e ainda ser uma ligação livre.

Miranda olhou para ele, irritada.

— Não para mim. Ou o casamento é real ou é uma farsa. O nosso pertence à última categoria. Se você trouxer paixão para dentro dele, tudo muda. Não conseguirei mais ser objetiva. Não estarei mais acima do ciúme e da dor. Quando eu gosto, gosto de um modo profundo. E não tenho a intenção de passar a vida imaginando onde você está e com quem está, enquanto fico em casa sentada, sentindo mágoas que só eu posso ver. Sendo assim, a única solução é não gostar de você.

Devin ficou ali, olhando para ela, por algum tempo. E então fez um cumprimento rápido com a cabeça.

— Boa noite, Miranda. Virou-se e saiu porta afora.

Miranda passou uma noite interminável e solitária. Mais de uma vez, desejou não ter rejeitado Devin; em determinado momento, até considerou a possibilidade de se levantar e ir até a porta que ligava seus quartos para dizer-lhe que cometera um erro. Mas conseguiu ater-se a sua decisão. O que dissera a Devin era verdade — exceto por não ter revelado o quanto já gostava dele. Havia mais do que estratégia na promessa de não consumar o casamento. Ela sabia que, ao fazê-lo, ligaria seu coração ao de Devin de uma forma tão irrevogável que não poderia mais viver sem ele.

Quando acordou na manhã seguinte, recuperara a confiança e o otimismo de praxe, e desceu pronta para trabalhar. O paisagista chegaria aquela tarde, e o arquiteto viria no dia seguinte. Decidiu então ir adiante com os trabalhos relacionados à propriedade. Enviou um bilhete para o Sr. Strong, pedindo que a encontrasse na biblioteca, onde decidira que seria seu escritório. Seu pai estava lá, e ela também convidou o tio de Devin, mais como um ato de cortesia do que qualquer outra coisa. Devin gostava do tio, mas, devido ao estado da propriedade de Ravenscar, Miranda não pôde evitar achar que nem Strong nem tio Rupert foram muito habilidosos em sua administração.

Para sua surpresa, Devin adentrou enquanto o grupo estava se acomodando em volta da mesa da biblioteca e sentou-se a seu lado.

Ele percebeu aquele olhar de surpresa e deu um sorrisinho.

— Eu estava entediado — explicou, em um aparte, ao sentar-se. — Era isso ou crochê com mamãe e Rachel na sala de estar.

— Estou contente em vê-lo aqui — respondeu Miranda. — Trata-se de sua propriedade, no fim das contas.

— Bom dia, meu garoto — disse tio Rupert, afavelmente. — Esta é a primeira vez que o vejo se oferecer para olhar suas finanças. — Ele piscou. — Deve ser por causa do atrativo de uma mulher presente.

— Torna a reunião mais agradável do que se tivesse de olhar só para você e para o Strong — concordou Devin, calmamente. — Agora conte-nos, Miranda, o que planeja fazer.

— Não esperava que houvesse tantas pessoas presentes — confessou Miranda. — Ia apenas repassar os números com o Sr. Strong. Você trouxe as informações que eu requisitei?

— Eu... Eu fiz o que pude, madame.

— Tenho certeza, Ravenscar, que você e o Sr. Dalrymple também poderão acrescentar informações a meus questionamentos sobre a propriedade — ela continuou, olhando primeiro para Devin e depois para o tio.

— Ficarei feliz em ajudá-la com tudo o que estiver a meu alcance, senhorita... desculpe-me, lady Ravenscar — respondeu o tio de Devin.

— Por favor, me chame de Miranda. Somos parentes agora.

— E você deve me chamar de tio Rupert, como Devin o faz — respondeu ele, com um brilho nos olhos. — Mas, confesso, estou meio perdido. Exatamente o que estamos fazendo? Strong veio a mim meio confuso, ontem, dizendo que você ia tocar a propriedade. Disse-lhe que isso não fazia o menor sentido, mas...

— Oh, eu não vou acompanhar o dia-a-dia — assegurou-lhe Miranda. — Isso tomaria muito tempo, e tenho certeza de que o Sr. Strong pode garantir que tudo correrá na mais perfeita ordem. Só irei supervisionar, é claro.

Tio Rupert olhou para ela da mesma forma que o gerente o fizera no dia anterior.

— Você vai supervisionar? — perguntou ele, cautelosamente, como se não houvesse ouvido direito. — Mas... mas você é uma garota.

— Obrigada. Entretanto, tenho de admitir que sou um pouco mais velha do que uma garota.

— Miranda... posso assegurar-lhe de que seu dinheiro vai nos ajudar a colocar a propriedade em ordem. Não há por que se preocupar. Você deveria estar aproveitando a vida. Afinal de contas, não é todo dia que se torna uma esposa. Sem dúvida, há muitas coisas na casa às quais você vai gostar de ser apresentada primeiro.

—Oh, eu vou me reunir com a Sra. Watkins e com Cummings, claro, mas eles parecem ter tudo sob controle. Quando se tem uma boa governanta e um bom mordomo, os afazeres domésticos demandam pouco tempo e energia. Isso, com certeza, não vai me impedir de colocar a propriedade em ordem. Não se preocupe comigo, tio Rupert. Estou acostumada a trabalhar. Nunca administrei um negócio desse tipo antes, mas já tive bastante experiência com outros. Estou confiante de que serei capaz de adaptar-me aqui.

— Mas... — Rupert virou-se confuso para o sobrinho. — Devin... não compreendo. — Ele olhou de volta para Miranda. — Talvez você não tenha entendido que eu sou o administrador dos fundos da propriedade de Devin. Obviamente, ficarei feliz em tentar explicar tudo sobre ela a você, mas...

— Bem, senhor, na verdade não é o administrador dos fundos — disse Miranda, tão delicadamente quanto pôde. — Sei que vem tocando a propriedade para Devin já há um bom tempo, e tenho certeza de que ele lhe é muito grato por isso, mas o fato é que os fundos da propriedade dele terminaram há cinco anos. Não existe mais um administrador.

Foi esse tipo de controle descuidado que Miranda receou ter levado a propriedade a sua derrocada final. Tio Rupert parecia ter boa vontade e boas intenções, mas ainda não percebera muitas evidências de sua sagacidade. Aquela era uma situação delicada porque Devin gostava muito do tio, mas Miranda não via como poderia permitir que o homem permanecesse encarregado de um trabalho para o qual era totalmente inadequado.

— Suponho que, tecnicamente, isso seja verdade — Rupert admitiu.

— Foi muito gentil de sua parte continuar nessa função por tanto tempo — continuou Miranda. — Mas tenho certeza de que preferiria não ter de ficar com essa responsabilidade e nem de ter esse trabalho. Não é mesmo?

— Bem, sim, é claro, mas o dever me chamou, sabe. — Ele tossiu, contrariado.

— Se você puder fazer a gentileza de me agraciar com sua experiência e seus conselhos, eu lhe seria bastante grata. Como disse, nunca lidei com esse tipo de negócio em particular. A maior parte dos meus investimentos tinha relação com terra não-cultivada e terrenos urbanos. E, obviamente, houve o negócio do canal, no qual entrei na Pensilvânia. — Mediante o olhar confuso dele, Miranda continuou: — Criar uma conexão entre os campos de carvão e seus mercados na Filadélfia e em Nova York. Um negócio que vai revolucionar a indústria. Mas isso não é relevante.

— Ah... — Rupert parecia levemente atordoado. — É claro que ficarei feliz em lhe ser de alguma ajuda, minha querida. Na verdade, pensando bem, você está certa. Será um alívio não ser mais responsável pela propriedade. — Sua expressão ficou visivelmente relaxada mediante esse pensamento. — Foi bastante difícil vê-la decair assim, ano após ano, e não ter os recursos para impedi-lo.

— Imagino que sim — disse Miranda, mostrando-se compreensiva. — Esta é uma propriedade enorme, não é?

— Quase 10 mil acres — acrescentou Strong. — É claro que muito disso está situado nos rochedos. É pedregoso e praticamente imprestável.

— Os rochedos?

— Sim. Uma região miserável — disse tio Rupert. — É o final dos montes Peninos. Acidentado e pedregoso. Inútil para qualquer coisa, como disse Strong.

— É atraente — comentou Devin. — De um jeito estranhamente especial. Podemos ir até lá a cavalo um dia desses para você conhecer, se quiser.

— Sim, quero. — Miranda sorriu para ele. — Quero percorrer toda a propriedade. Quero ver exatamente com o que estou lidando. Conhecer seus arrendatários.

— Tudo bem.

— Será um prazer levá-la para uma volta, Miranda — disse tio Rupert. — Por que não vamos todos? Podemos ir pela margem do rio, não é, Dev? É um local lindo. Podemos fazer um piquenique.

— Claro — concordou Devin.

— Excelente. — Miranda deu um sorriso para o tio de Devin e então virou-se para o gerente da propriedade. — Agora, Sr. Strong, primeiro gostaria de ver os mapas das terras. Preciso saber qual é a principal fonte de renda. Deduzo que seja relacionada à agricultura.

— Sim, madame. Os aluguéis dos arrendatários. Eles têm diminuído constantemente nos últimos anos. Em conseqüência, as terras não têm produzido muitas colheitas.

— Entendo. Temos de ver o que podemos fazer para recuperá-las. Sabe, o Sr. Jefferson tem escrito muito sobre os métodos modernos de cultivo que usou em Monticello. Terei de encomendá-los. E, com certeza, deve haver ingleses experimentando o mesmo tipo de técnicas. Além disso, gostaria de ver os livros de registro da contabilidade. Trarei nosso assistente, Hiram Baldwin, para ajudá-lo com isso. Precisaremos analisar vários anos, imagino, para identificar os problemas. Deve ser o suficiente para começar.

— Sim, madame — concordou Strong, com desânimo na voz. Tio Rupert riu e virou-se para o sobrinho.

— Pois bem, Dev, sua esposa provoca vendavais.

— Sim. — Dev olhou para ela, e um sorriso brotou em seus lábios. — Pode-se dizer que sim.

Miranda adaptou-se à vida em Darkwater com uma facilidade que até a surpreendeu. Tanto o arquiteto quanto o paisagista chegaram, e participaram de reuniões com ela sobre a restauração de Darkwater. Ficou feliz por Devin comparecer com freqüência às reuniões e se envolver, em mais de uma ocasião, na discussão do que deveria ser feito. Quando demonstrava surpresa com sua participação, ele respondia, daquela forma casual, que estava entediado. Mas Miranda podia garantir que o marido possuía mais interesse pela antiga casa do que se dispunha a demonstrar, e com certeza sabia mais sobre o assunto do que teria imaginado.

Ela também examinava as finanças da propriedade, embora tenha logo percebido que sua presença deixava o pobre Sr. Strong tão nervoso que tinha de pedir a Hiram Baldwin para fazer grande parte das pesquisas e conversar mais tarde com ela sobre suas descobertas. Aparentemente, o problema consistia numa desgastante sucessão de colheitas fracassadas e terra exaurida, em arrendatários falidos e aluguéis não pagos.

Mas, apesar de tantas reuniões, Miranda tinha tempo disponível para visitar Rachel, de quem estava gostando mais e mais a cada dia, e de andar ao acaso, explorando as terras com Verônica. Devin as acompanhava em algumas ocasiões, o que tornava as excursões mais divertidas. Era gentil com Verônica, provocando-a e fazendo-a rir. Sempre aparecia com algo interessante para fazerem, mesmo quando deparavam com um dia chuvoso e triste que os prendia em casa o tempo todo.

Não mencionou mais o acordo que fizeram para as noites, nem tentou seduzi-la de novo, um fato que a preocupava um pouco e que quase sempre a deixava se sentindo inquieta e insatisfeita. Devin parecia ter aceitado sua decisão com muita facilidade, para seu gosto. Às vezes, Miranda se perguntava se ele sentia pouco desejo por ela a ponto de não se incomodar em se manter a distância. E, sabendo que Leona estava a poucos quilômetros de distância, em Vesey Park, Miranda também não podia conter o medo de que Devin estivesse buscando saciar suas necessidades masculinas em outro lugar. Nenhuma das possibilidades era encorajadora.

Todavia, quando às vezes olhava para Devin — na sala de música depois do jantar, durante uma caminhada à tarde, ou até mesmo sentada do outro lado da mesa à refeição —, capturava certa expressão em seus olhos, o vislumbre de uma ardência, um fogo velado que a excitava. Nesses momentos, o ar parecia ficar canalizado entre eles. Miranda tinha então certeza de que ele não estava indiferente a ela.

Teria se sentido melhor se soubesse que Devin, na verdade, além de não estar indiferente, estava a cada dia que passava sendo mais consumido de desejo por ela. Primeiro decidira acatar sua decisão. Queria levá-la para a cama, mas, no fim das contas, já tivera e teria quantas mulheres quisesse. Não precisava desta em particular. Ser rejeitado com tanta facilidade era um pouco irritante, mas sabia que ela estava certa — não estava interessado em nenhum tipo de casamento que fosse diferente do que Miranda descreveu, ele sendo livre para fazer o que quisesse e para dormir com quem quer que fosse. Depois de um tempo, ele deixaria Darkwater e voltaria para Londres, para Leona e para sua vida normal. Darkwater e seu casamento ainda não haviam começado a entediá-lo de todo, mas sabia que isso aconteceria. E quando acontecesse, iria embora. Deitar-se com Miranda seria divertido, mas não era importante, e a última coisa que queria era que ela se prendesse a ele e se transformasse em uma mulher chorosa e pegajosa que se chateava a cada vez que partia.

No entanto, não tentara seduzi-la de novo. Mas descobrira, estranhamente, que ficar longe dela estava tornando-se mais difícil. Sua mente ocupava-se com pensamentos a respeito dela. Ele queria vê-la, estar com ela. Quando não estava por perto, pensava nela, e mais de uma vez pegou caneta e papel para tentar esboçar seu rosto, descobrindo com frustração que não conseguia dar aos olhos dela o toque que o fascinava tanto.

De noite era pior. Ficava deitado na cama, acordado, pensando nela, com apenas uma porta a separá-los, e seus pensamentos iam se tornando mais e mais febris, até que ele se levantava da cama e começava a andar pelo quarto, muitas vezes terminando no escritório, no andar de baixo, bebendo para esquecê-la. Incomodava-o não conseguir eliminar o desejo por ela e o fato de que, quanto mais tentava não pensar nela, mais o fazia.

Ele a procurava com freqüência, acompanhando-a em suas caminhadas, guiando-a pela vila ou indo às reuniões com o arquiteto. Ele até se pegou, para seu horror, brincando de mímica com ela e a meia-irmã certa tarde, com Michael e Rachel. Devin sabia que se algum de seus companheiros habituais o visse engajado em tais ocupações prosaicas e banais, riria até as lágrimas. Mas, de alguma forma, estando Miranda envolvida, nada parecia chato ou prosaico. Ela sempre tinha um pensamento interessante ou um comentário zombeteiro para abrilhantar a ocasião — e ainda havia o prazer de olhar para ela e lembrar-se da sensação daquele corpo em seus braços. Devin também se lembrava do gosto daquela boca, da textura macia da pele, do cheiro doce que lembrava o de rosas — eram esses pensamentos que o atormentavam à noite, impelindo-o a sair da cama e a buscar qualquer consolo que pudesse encontrar nos livros ou em garrafas de bebida.

O turbilhão de emoções que o acometiam era exacerbado pela leve, mas persistente, sensação de culpa que o atormentava desde que pedira para Leona deixar a recepção do casamento. Tivera de fazê-lo, é claro; não poderia ter permitido que ela arruinasse o dia do casamento de Miranda. O que o incomodava era o fato de ter sentido vontade de mandá-la embora. Teve raiva dela, o que não era incomum; houve vezes em que ela o irritara além do imaginável, fazendo-o até mesmo se enfurecer com ela. Mas antes havia um quê de luxúria perpassando a situação, um desejo que batia em seu peito por Leona. De fato, a raiva quase sempre surgia por causa de um desejo que ela havia frustrado de alguma forma, ou pelo ciúme que sentia quando a via com seu marido ou testemunhava seu flerte com outro homem. Qualquer que fosse a emoção em torno dela, sempre havia paixão envolvida.

Mas, naquela noite, não a quisera. Mesmo quando ela agiu sedutoramente, permanecera frio. A raiva fora intensa e fria, não sentira qualquer desejo por Leona. Só sentira a necessidade de proteger Miranda do insulto que Leona representava.

Pela primeira vez desde que conseguia se lembrar, colocou outra mulher à frente de Leona, e, mesmo Miranda sendo sua esposa, sentia-se culpado por isso. O que, obviamente, não significava que não amasse Leona. Amara-a por muitos anos, não imaginava a possibilidade de deixar de amá-la.

O que sentiu por Miranda foi uma obsessão momentânea, do tipo que se dissiparia tão logo dormisse com ela. Já sentira algo assim por outras mulheres, e sempre acontecia dessa forma. Ele via uma mulher; ela o intrigava; ele a perseguia e a conquistava. E então acabava. Isso nunca mudou o que sentia por Leona, nem mesmo modificou o desejo que tinha por ela.

A diferença, o estranho nessa obsessão por Miranda, era não apenas o fato de ser mais profundo e mais intenso do que o que normalmente sentia, mas também porque parecia de alguma forma encobrir seus sentimentos por Leona. Devin sabia que ela o esperava em Vesey Park, e tinha bastante tempo livre para fazê-lo. Ninguém o questionaria sobre onde houvesse ido à tarde, muito menos Miranda, que parecia irritantemente despreocupada com o que ele fazia. E, mesmo assim, não foi. A idéia passava por sua mente de tempos em tempos, mas o que sentia quando isso acontecia era uma grande relutância.

E esse detalhe o incomodava — e o incomodava também o fato de que, mesmo que ainda desejasse Miranda, evitara procurá-la porque ela dissera que não queria que ele o fizesse. Devin não era do tipo que se impunha a uma mulher, mas certamente nunca parara de tentar seduzir uma delas só porque parecia relutante. Porém, havia algo nos olhos de Miranda na noite em que dissera que, quando gostava, gostava de um modo profundo. Naquele momento, Devin vislumbrou nela a possibilidade de amor e traição. Sabia que se a seduzisse e a fizesse amá-lo, poderia magoá-la profundamente. E, desde então, mesmo que a paixão ainda queimasse por dentro, decidiu não tentar despertar nela esse mesmo tipo de paixão.

Ele jamais ponderara dessa forma com qualquer outra mulher de que se podia lembrar. Mas, quando pensava em conquistar Miranda e em se satisfazer com ela, havia sempre o pensamento do que aconteceria quando se cansasse dela e voltasse para Leona, como sabia que faria. Então ele ficava rondando, pensou, como um tolo, desejando-a e não a possuindo, e ainda assim sendo incapaz de desistir dela completamente. Havia momentos em que ele se perguntava se o casamento havia afetado sua inteligência; Devin, com certeza, não vinha sendo ele mesmo nos últimos dias.

Primeiro, convencera-se de que a razão principal dessa tola obsessão por Miranda era tédio. Não havia quase nada para se fazer em Darkwater, exceto ficar sentado pensando. Não era de estranhar que seus pensamentos se voltassem com freqüência para o desejo que Miranda despertava nele. Quanto mais pensava nela, mais intenso esse desejo se tornava. Quando tentava desviar os pensamentos fazendo algo, esse algo quase sempre acabava envolvendo a presença dela, o que não ajudava muito a apaziguar o desejo que o arrebatava.

Mais ou menos uma semana depois do casamento, a mãe convidou o vigário, sua esposa e o médico local para um jantar. Em Londres, a mãe teria achado tais companhias, como a de um médico e de um vigário, escolhas bastante pobres, mas no campo tinha de se contentar com o que havia disponível. Devin já estava de mau humor, e assistir a Miranda passando a maior parte da tarde em uma conversa empolgada com o Dr. Browning não ajudava a deixá-lo mais feliz.

O Dr. Browning era o filho do médico que trabalhava na vila quando Devin era jovem. O velho Dr. Browning tinha repassado ao filho sua clientela há alguns anos e agora dedicava a maior parte do tempo cuidando de seu jardim de rosas. O Dr. Browning, filho, tinha uns trinta e poucos anos e era bonito de um jeito limitado. Trajava-se sem muita preocupação com a moda; Devin sabia que seu mordomo teria empalidecido diante do modo como a gravata do médico estava arrumada. Ele era um homem grande, e Devin deduziu que algumas mulheres achavam suas características físicas — os cabelos loiros, os olhos azuis e o maxilar definido — atraentes. Miranda, certamente, não parecia ver nada nele que a desagradasse.

O Dr. Browning estava sentado ao lado dela na mesa de jantar, quando começaram a conversar ali. No final do jantar, estavam tão envolvidos na conversa que a continuaram na sala de estar, para onde se dirigiram todos após a refeição.

Devin ficava tentando imaginar sobre o quê estariam conversando que poderia interessar tanto a Miranda. Ocorreu-lhe que talvez esse médico fosse exatamente o tipo de homem que Miranda acharia atraente, um homem que dedicara sua vida a algo, que era inteligente e culto, e que fizera algo de útil com sua vida. O Dr. Browning, obviamente, tinha idéias, idéias novas, que ela achava fascinantes. E sua aparência ficava acima da média. Nem mesmo o fato de ele ser apenas um médico, embora ela agora fosse uma condessa, deteria Miranda se gostasse dele. Como muitos norte-americanos, ela não parecia entender de verdade a diferença de classes.

No fim das contas, o médico poderia ser exatamente o tipo de homem que Miranda escolheria para um dos casos que parecia tão determinada a ter. Devin perguntou-se se ela estaria pensando o mesmo àquela altura. Parecia-lhe bastante injusto o fato de um médico ser tão jovem e tão bonito. Os médicos deveriam, pela ordem natural das coisas, ser velhos — bem, pelo menos de meia-idade.

Ele olhara com raiva para eles durante a maior parte da noite. Num dado momento, levantou-se abruptamente e saiu da sala.

Miranda viu Devin sair, e ficou se perguntando por que ele tinha partido tão de repente sem sequer despedir-se. Estava ficando cansada da conversa com o Dr. Browning—ou, melhor, de ouvi-lo, já que era do tipo verborrágico — e tinha esperanças de que Devin pudesse animar o ambiente sugerindo um jogo de cartas ou algo que fosse mais interessante do que a descrição do Dr. Browning de suas consultas na vila. Ela cometera o erro de se engajar em uma conversa educada com ele durante o jantar, perguntando sobre sua carreira, o que o animou a se aprofundar no assunto. Contou-lhe tudo sobre ter crescido admirando o pai, depois sobre seus estudos e agora sobre as muitas doenças com as quais tinha contato na vila.

Foi um grande alívio quando a esposa do vigário disse que eles tinham de deixá-los, já que o religioso tinha de preparar um sermão, e o médico, felizmente, percebeu que também já permanecera por lá tempo demais. Michael, que partiria na manhã seguinte, decidiu que deveria se recolher cedo, e quase todos os outros concordaram que deveriam fazer o mesmo — entediados, deduziu Miranda, a ponto de ficarem sonolentos.

Ela subiu para o quarto e deixou que a criada a ajudasse a trocar de roupa e a vestir a camisola. Começou a se preparar para deitar-se, mas sabia que não conseguiria dormir assim tão cedo. Então colocou o robe, os chinelos e, pegando um lampião, desceu até a biblioteca. Ao andar em direção ao cômodo, reparou que a porta do escritório de Devin estava aberta, um feixe de luz iluminando o tapete do corredor. Curiosa, encaminhou-se para lá em vez de para a biblioteca.

Devin estava sentado à escrivaninha, uma garrafa de uísque e um copo à sua frente. Havia tirado a casaca e a gravata; a camisa estava desabotoada no pescoço, as mangas enroladas. Estava jogando dados displicentemente, primeiro com uma das mãos, depois com a outra. Tomou um grande gole do copo enquanto Miranda o observava. Então transferiu os dados para a outra mão e os lançou.

— Droga — murmurou suavemente, olhando para a mão esquerda. — Você é um caso perdido. Já está 150 pontos atrás.

— Falando sozinho? — perguntou Miranda, delicadamente, entrando no cômodo.

Devin olhou para ela, assustado.

— Miranda! O que está fazendo aqui?

A visão dela parada ali arrebatou-o com uma luxúria violenta e renovada. Ela estava vestindo um robe-de-chambre, a gola da camisola aparecendo por cima da lapela, branca e suavemente feminina. Os cabelos estavam escovados e caíam sobre os ombros, longos e sedosos, convidando-o ao toque. Ele a queria com tamanha intensidade que não se lembrava de ter tido tanto desejo por outra mulher.

— Eu só desci para pegar um livro — respondeu Miranda. — Vi a luz acesa, e pensei em ver o que estava fazendo.

—Jogando dados, uma das mãos contra a outra. A esquerda tem uma sorte assombrosa. — O modo como os olhos dele percorreram seu corpo fizeram com que Miranda se desse conta de que estava usando apenas um robe sobre a camisola muito fina, que a estilista em Londres fizera para usar na lua-de-mel. — Você está acordada até tão tarde.

— Nem tão tarde assim. Todos se retiraram cedo, depois que o vigário e a esposa foram embora. O médico também, é claro.

— Estou certo de que você ficou relutante em ver o médico ir embora — disse Devin, sarcasticamente, esvaziando o copo e pegando a garrafa para servir-se de outra dose.

Miranda observou-o enquanto o fazia. Sua mão estava ligeiramente trêmula.

— Você esteve aqui, bebendo, durante todo esse tempo? — perguntou ela.

Devin deu de ombros.

— Mais ou menos.

— Por quê? Por que saiu da festa?

— Da festa? É assim que você chama aquilo? Parecia-me tão animado quanto um funeral. Obviamente, eu não fui convidado à conversa fascinante do bom doutor.

Miranda olhou para ele, surpresa.

— O que foi que disse?

— O médico. Não tive o prazer de conversar com ele a noite inteira, como você teve.

— Não se pode dizer que foi um prazer — Miranda começou, pronta para compartilhar com ele o que realmente sentia, mas Devin a interrompeu.

— Com certeza, parecia muito prazeroso. — Ele olhou para Miranda, um brilho raivoso ardendo em seus olhos.—Você estava interessada em cada palavra que ele dizia.

As sobrancelhas de Miranda arquearam, mas não falou nada que o contradissesse. Devin parecia estar com ciúme. Ela não achou a idéia nada desagradável.

— Ele estava me contando sobre seus pacientes — disse ela, dizendo a verdade com cuidado.

— Então era isso? Achei que talvez você estivesse combinando um encontro.

— O quê? Vamos, Dev, isso está indo longe demais.

— Não acho que tenha ido longe o suficiente — disse Devin com uma voz sedosa e, por algum motivo, assustadora. Ele levantou-se devagar e inclinou-se para a frente por cima da escrivaninha, apoiando-se nos punhos. — Diga-me, ele será sua primeira aventura? Devo dizer que acharia o médico local uma opção próxima demais de casa. Você não acha?

— Na verdade, não cheguei a pensar nisso — respondeu Miranda, sendo sincera.

— É desse tipo que você gosta? — continuou ele, com a mesma voz calma, implacável. Ele empurrou a cadeira para trás e saiu de trás da escrivaninha. — Um cidadão sóbrio, diligente? Alguém capaz de fasciná-la com as histórias de suas boas ações?

— Ele realmente passa os dias em tarefas mais frutíferas do que bebendo e jogando dados — retorquiu Miranda, com um toque de aspereza na voz. A proximidade dele a deixou ligeiramente sem fôlego, mas não permitiria que ele percebesse isso.

Devin riu, sem humor.

— Ah, minha cara esposa. Então você o escolheu como primeira incursão fora do casamento. Bem, boa sorte. Aposto que é tão enfadonho na cama como o é fora dela.

— Você acha? Bem, suponho que terei de descobrir, certo?

A mão de Devin voou e segurou o braço dela, cravando-se dolorosamente nele.

— Não, você não vai, senhora!

— O que foi que disse? Está me dizendo quem eu posso ou não posso ver?

— Estou dizendo que você não vai para a cama com aquele homem estúpido bem debaixo do meu nariz. — Os olhos dele flamejaram, em um verde iluminado por sua fúria. — Não vai me fazer de bobo, madame. Você pode achar que está no comando por causa de sua bolsa cheia de dinheiro, mas não vai fazer isso.

Miranda não pôde evitar a excitação com o calor do sentimento nos olhos dele, ainda que pudesse se indignar com o tom autoritário. Não tinha qualquer intenção, é claro, de fazer nada com o Dr. Brovming, exceto fugir de sua conversa da próxima vez em que o visse, mas não ia deixar que Devin soubesse disso.

— Você está mandando em mim?

— Estou, sim — respondeu Devin, chegando mais perto e passando a mão no pescoço dela. Sentiu a pele macia e sedosa na palma da mão, e a intensidade de seu desejo o abalou. — Não deixarei que ele a toque. Você entendeu?

A respiração de Miranda estava irregular, os pensamentos dispersos. Toda sua percepção estava focada naquela parte do corpo na qual jazia a mão dele, queimando-a com sua intensidade.

— Entendo que você está quebrando nosso acordo.

— Pro inferno com nosso acordo! Você acha, realmente, que eu permitiria que você dormisse com outro homem? Você acha que eu seria assim tão baixo? Tão fraco?

— O que devo fazer: então? — perguntou Miranda, calmamente.

— Isso — respondeu ele, enquanto introduzia a mão furtivamente por baixo da gola do robe e sua boca tocava a dela.

 

Ele a beijava com voracidade. Sua mão causava um ardor na pele dela ao roçar o alto dos seios. A gola do robe impedia seus progressos. Então fechou a mão, segurando-o, puxou-o para baixo e o tecido fino cedeu com o som de rasgado. Devin encaixou a mão no seio exposto pelo rasgo, gesto que arrancou um murmúrio dos lábios dela. Ele trocou a inclinação de sua boca na dela, pressionando os lábios ainda mais, a língua explorando a boca de Miranda. Com uma suavidade contrária à maneira violenta com que seus lábios a consumiam, acariciou-lhe o seio com os dedos, pressionando-o e alisando-o, encontrando o mamilo e provocando-o com a ponta dos dedos, até que endureceu.

— Miranda... — Ele sussurrou seu nome quando seus lábios se separaram e percorreu com a boca o caminho da face até a orelha. — Deixe-me... por favor, posso mostrar-lhe como pode ser bom. — Ele pegou o lóbulo da orelha entre os dentes e o mordiscou, enviando pontadas de calor por todo o corpo de Miranda.

Sua boca moveu-se para baixo. Todo lugar em que tocava parecia incendiar-se. Miranda tremeu, soltando-se no braço dele, duro como o ferro, em suas costas.

— Dev...

Ao ouvir seu apelido da boca de Miranda, Devin sentiu um tremor de desejo pelo corpo. Havia um tom de intimidade ali, uma afeição, que nunca acreditou que Miranda sentia por ele. Desatou-lhe a faixa do robe e abriu-o, deslizando as mãos por dentro dele, puxando Miranda para cima e de encontro a seu corpo. Ela estava entregue, os mamilos tesos de desejo. Devin percorreu as costas e os quadris dela com as mãos, apertando as nádegas com os dedos e pressionando-a de encontro a seu membro intumescido.

O fogo lambeu em suas veias, fazendo com que o calor se irradiasse por eles. Miranda chegou os quadris para a frente, consciente apenas de uma necessidade profunda e primitiva de fazê-lo. A respiração dele fremiu. Ele mordiscou suavemente a junção entre o pescoço e o ombro de Miranda, provocando-a com a mordida e depois lambendo-a.

Devin envolveu-a com o braço, levantando-a e virando-se para carregá-la de volta para a escrivaninha. Instintivamente, Miranda enlaçou as pernas na cintura dele. Sentou-a na mesa, jogando no chão tudo o que havia ali em cima e apoiando as costas de Miranda nela. O corpo de Devin estava deliciosamente duro e pesado sobre o seu, a marca de sua paixão queimando em seu abdômen. Ele pôs as mãos sob os seios dela, os polegares acariciando os mamilos. Dev olhou-a por um instante, apreendendo o modo como seus olhos obscureciam com paixão e seu rosto tornava-se suave e doce quando suas mãos a acariciavam.

Dev inclinou-se e beijou um dos mamilos, em seguida passou a língua em torno dele, fazendo um círculo vagaroso, provocante. Miranda arqueou o corpo, gemendo. Aquilo abalou seu controle quase a ponto de perdê-lo. Ele parou por um instante, lutando contra a onda de desejo.

Olhando diretamente nos olhos dela, perguntou:

— Não é isso o que você quer? Isso não é o suficiente para você?

Naquele momento, era, Miranda sabia, mas ela conseguiu reunir o resto de seu autocontrole e disse:

— É o suficiente para você?

Ele ficou tenso, os olhos ainda presos nela.

— O quê?

— Você está dizendo que quer ser meu marido de fato?

— Sim.

— Nós dois inteiramente fiéis um ao outro?

Ele quase disse sim, mas pensou em Leona. A expressão de seu rosto mudou subitamente. Miranda deixou escapar um suspiro.

— Ah. Entendo. Eu serei fiel. Você não.

Ela sentou-se, ele deu um passo atrás, sem impedi-la, ainda que sentisse uma vontade quase incontrolável de empurrá-la de volta à mesa e possuí-la ali mesmo. Miranda puxou as laterais do robe e amarrou a faixa com firmeza.

— Acho que devemos nos ater a nosso acordo atual — disse ela, e saiu do cômodo, tomando cuidado para não ceder e sair correndo.

Na manhã seguinte, tio Rupert desceu mais cedo do que o normal para o café-da-manhã e anunciou que era hora de levar Miranda ao tour que lhe prometera.

— Você já está aqui há uma semana e não conheceu quase nada da propriedade, só a vila e algumas fazendas ao redor da casa. Nós poderíamos cavalgar à margem do rio — disse ele. — Um lindo lugar, não acha, Dev? Depois da nossa noite infrutífera de ontem, merecemos um agrado.

— Parece uma ótima idéia — disse Miranda. Teria preferido ficar e trabalhar em uma das múltiplas tarefas que devia realizar, mas sentia que precisava fazer um esforço extra no que dizia respeito ao tio de Devin, cujos sentimentos, suspeitava, tinham sido levemente feridos por ter sido retirado da administração da propriedade.

— O que você me diz, Joseph? — continuou ele, virando-se para o Sr. Upshaw. — E você, Dev? E, é claro, qualquer pessoa que queira vir...

Michael e Elizabeth, que também estavam lá, fizeram que não com a cabeça, mas Joseph ficou ansioso por ir, e Devin foi quase tão rápido quanto ele ao concordar.

— Direi ao cozinheiro que prepare uma cesta de piquenique para o almoço — continuou Rupert. — Podemos parar em Chasenford. É lindo lá.

Eles combinaram de se encontrar um pouco antes das 11, horário do qual saíram do pátio dos estábulos em direção ao rio Dove. Muito do que Miranda vira da região consistia em vistas magníficas de pântanos ou montanhas onduladas, majestosas e verdes, e quase sem árvores. Não estava preparada para a visão do rio quando percorreram o caminho sinuoso até ele, que corria tortuosamente raso e vagaroso na base de altos penhascos brancos de calcário. Estes se erguiam em uma superfície abrupta, assombrosa, com alguns buracos que Dev explicou serem as entradas para cavernas que se perdiam pela rocha porosa. O rio estreito era contornado com margens gramadas, pontuadas por grandes pedaços de rocha calcária. Álamos e freixos graciosos cresciam ao longo de sua borda, projetando sombras pela água verde-escura. Era um lugar adorável, pacífico e sossegado, exceto por sua presença.

Como as margens eram estreitas, dividiram-se em pares para cavalgar ao longo dela. Dev foi à frente para conversar com o tio. Joseph seguia ao lado de Miranda, apontando com entusiasmo para todas as coisas bonitas que viam. E foram ficando gradualmente para trás.

Miranda estava observando Devin, sem prestar muita atenção no que o pai fazia. Joseph virou-se para olhar para cima, para o penhasco erguido acima deles, e uma expressão de horror estampou-se de repente em seu rosto.

— Cuidado! — gritou ele, esporeando o cavalo à frente e se esticando para bater no flanco do cavalo da filha.

Miranda virou-se surpresa quando o cavalo pulou para a frente. Um instante depois, tão próximo que pôde até sentir o ar deslocado pela queda, um grande pedaço de calcário colidiu contra o chão atrás dela. O barulho fez com que seu cavalo se assustasse e saísse em desabalada carreira, desequilibrando Miranda e fazendo-a cair no chão, de costas, deixando-a sem ar.

Ficou deitada no solo, olhando para o céu, lutando para respirar, tentando assimilar o que acabara de acontecer. Ouviu gritos vindos de sua frente, depois o som do tropel dos cavalos. Um instante depois, Devin surgiu sobre ela. Ajoelhou-se a seu lado, o rosto marcado pelo medo.

— Miranda! Meu Deus, o que aconteceu? Você está bem? — Ele a suspendeu em seus braços, segurando-a de encontro ao tórax. Miranda podia sentir o tremor do corpo dele.

Por fim, e felizmente, seus pulmões relaxaram e o ar voltou a circular. Ela fez que sim com a cabeça, um tanto incerta, sussurrando:

— Acho que sim.

— Aquela pedra quase a matou. Se você tivesse se demorado um segundo a mais...

— Papai...?

— Ele está bem. Está apenas tentando controlar seu cavalo. Tio Rupert foi atrás da égua. — Ele passou a mão pelas costas de Miranda, para cima e para baixo. — Diabos! Você poderia ter morrido.

— Miranda! — Ela virou a cabeça e viu o pai trotando pela margem na direção deles, conduzindo seu cavalo. — Você está bem? Por Deus, quando olhei para cima e vi aquela pedra despencando... — Ele ajoelhou-se também, sem a mesma agilidade, ao lado da filha.

— Você salvou minha vida.

Os braços de Devin a apertaram ainda mais. Ela sentiu o beijo dele em seu cabelo. Miranda ainda estava tremendo, e agarrou-se a Devin.

Tio Rupert veio até eles conduzindo a égua de Miranda e desmontou rapidamente, aproximando-se do grupo.

— Ela está bem? — Seu olhar passou de Miranda para a grande pedra que agora jazia na margem achatada atrás deles, partida em dois pela força da queda.

— Meu Deus! Foi aquilo que quase a atingiu? Que milagre você não ter morrido! Esse é o problema com o calcário. Ele quebra e cai. Mas isso só costuma acontecer depois de muita chuva. Nunca teria imaginado... Peço desculpas. Sinto muito mesmo. Nunca deveria tê-la trazido para este lado.

— Você não tinha como saber — disse Joseph, rangendo ao levantar-se. — Graças a Deus, Elizabeth não estava conosco. Ela estaria histérica agora.

— Acho que estou perto disso — disse Miranda, ensaiando um sorriso,

Devin emitiu um som bruto.

— Você não reconheceria uma histeria se a visse. Meu coração está prestes a pular do peito e você está tão controlada.

— Bem, estou viva. Vejamos se consigo ficar de pé, Devin levantou-se, colocando-a de pé, o braço ainda em volta de seu corpo para dar-lhe firmeza. Sentia-se bem daquela forma, pensou Miranda, e demorou-se um pouco mais do que o necessário antes de se afastar e de bater a terra da roupa de montaria.

— Vamos voltar para casa agora — disse tio Rupert, começando a montar.

— Não por mim — protestou Miranda. — Estou bem, de verdade. O pior que aconteceu comigo foi ter sido lançada do cavalo, e isso já me aconteceu antes. Não quebrei nenhum osso. Perdi o fôlego por um momento, mas já estou respirando normalmente. Não há motivo para encurtar nossa expedição por causa de um pequeno acidente.

— Um pequeno acidente! — exclamou tio Rupert, encarando-a com os olhos arregalados.

— Já lhe disse, tio, ela não é como as outras mulheres — disse Devin, com um tom de voz risonho, — Miranda, não há necessidade de continuarmos. Não é importante.

— Também não há motivo para voltarmos — argumentou Miranda. — Temos nosso almoço... a menos que o cavalo do cavalariço tenha desembestado também.

— Não, ele está aqui — disse Rupert, com um tom desanimado na voz. — A comida também.

— Bem, eu gostaria de terminar o tour. Acho muito improvável que outra pedra caia sobre nós, não é?

— Bem, acho que sim.

— Bom. — Miranda tirou a terra da blusa. — Então, vamos continuar.

Continuaram até a curva do rio, um cenário verdejante e idílico, onde sentaram-se para almoçar. Tio Rupert e seu pai engajaram-se em uma discussão sobre as propriedades do calcário, uma das quais aparentemente era ser quebrável. Miranda mal ouvia, contente de estar sentada, beliscando sua comida e deixando que os nervos se acalmassem. O fato de Devin estar a seu lado ajudava.

— E pensar que eu achava Londres perigosa... — disse ela, delicadamente.

Devin virou-se e olhou para ela, os olhos semicerrados.

— O que quer dizer com isso?

— Bem, dois acidentes desde que me mudei para cá. Não consigo me lembrar de quando fui tão exposta a acidentes antes.

— Entendo. — Ele balançou a cabeça, analisando a expressão dela. — Qual seria o motivo disso, na sua opinião?

Miranda deu de ombros.

— Não tenho certeza. Da primeira vez, tenho de admitir, não fui cuidadosa. Apoiei-me num corrimão de madeira apesar de saber que a maior parte da madeira da casa fora comida pelos cupins. Esse foi um erro tolo e impulsivo. Mas hoje... não consigo imaginar como poderia ter evitado a queda de uma rocha. Você acha que eu deveria estar prestando mais atenção às coisas?

— Graças a Deus seu pai viu a pedra a tempo. Não vejo como você poderia tê-la evitado, exceto permanecendo atenta a tudo. Calcários se soltam e caem periodicamente. É sempre prudente não ficar muito perto de suas bordas, acho.

— Não acredito em sinais ou presságios, ou de estar sob uma maré de azar, ou o que quer que se chame... mas isso é muito estranho.

— Bem, o mais seguro é tomar todo o cuidado possível — disse ele, com um sorriso relaxado. — Só para o caso de haver alguma nuvem malévola pairando sobre nós. Olhe sempre antes de dar um passo à frente. Darkwater é velha e está ruindo de várias maneiras. E antes que seja restaurada, é provável haver muitas oportunidades para acidentes. Você precisa ser cuidadosa. Se sair para cavalgar com Verônica ou sozinha, só vá se eu for junto, ou seu pai, ou tio Rupert. Ou um cavalariço, se não houver ninguém disponível.

Ela olhou para Devin de um jeito estranho.

— Você parece estar falando muito sério.

— Estou falando sério. Você poderia ter morrido hoje. Prometa-me que vai tomar um cuidado extra.

Miranda sentiu-se muito bem ao pensar que Devin estava preocupado com ela.

— Tudo bem — concordou, sorrindo. — Prometo que serei cuidadosa.

Quando Miranda foi para a cama naquela noite, já se acalmara. Tivera medo de ser difícil pegar no sono ou de ter pesadelos como resultado do acidente, mas a verdade é que adormeceu muito rápido e continuou dormindo tranqüilamente até o meio da noite.

E então, de repente, voltou à consciência no escuro, os olhos se abrindo, o coração disparando. Não sabia ao certo o que a acordara. Ficou deitada por um instante, ouvindo e olhando em torno. Então ouviu um grito e deduziu que fora algo assim que devia tê-la acordado.

Um grito de homem veio de trás da porta que ligava seu quarto ao de Dev.

— Não!

Miranda saltou da cama, impelida pelo tom de urgência e horror naquela voz. Atravessou o quarto correndo, sem nem mesmo parar para colocar o robe ou as sandálias, e abriu a porta.

O quarto de Dev estava escuro, mas a luz da lua penetrava pelas cortinas o suficiente para que vislumbrasse os contornos de Dev na cama. Ele estava se mexendo, inquieto, os lençóis emaranhados nele. Miranda correu para seu lado. Ainda estava dormindo, mas obviamente no meio de um pesadelo. Ele gemia, o rosto contorcido e suando, e estirou a mão de repente, fazendo-a pular.

Ela segurou a mão dele com as suas e disse:

— Devin, Devin, acorde!

Os olhos dele se abriram, e, por um instante, ele olhou para ela sem focá-la, o peito subindo e descendo em uma respiração arfante.

— Devin, sou eu, Miranda. Acorde. Você está tendo um pesadelo.

Seus olhos mudaram e conseguiram se focar. Olhou para ela, e um longo tremor percorreu seu corpo.

— Miranda? O que você...?

Ele sentou-se atordoado, apoiando as costas na enorme cabeceira. Miranda sentou-se na cama a seu lado, ainda segurando sua mão.

— Você estava tendo um pesadelo. E me despertou.

— Oh. — Ele passou a mão no rosto. — Entendi. Desculpe-me.

— Não precisa se desculpar. — Ela sorriu. — Todos nós temos pesadelos de vez em quando. Você está bem?

Ele anuiu com a cabeça.

— Sim. Eu... Só estou um pouco desorientado.

— Com o que estava sonhando? Devin deu de ombros.

— Tenho esse pesadelo com freqüência. É... — Ele passou a mão no cabelo e suspirou. — Estava sonhando com uma garota que matei.

Miranda encarou-o, assombrada.

— O que foi que disse?

— Bem, eu não a matei, literalmente. Não peguei uma faca e transpassei seu coração, mas é como se o tivesse feito. Ela se matou por minha causa.

— Oh! — Miranda lembrou-se do senhor que praguejara contra Devin em sua casa em Londres e da triste história que contara. Obviamente, ele não era o único assombrado pelo incidente. — O que aconteceu?

— Eu a seduzi — disse Devin, com desprezo na voz. — Eu estava em Brighton, fugindo de meus credores, acho. E conheci Constance. Achei que era uma mulher experiente. Era amiga de Leona, mais velha do que a maioria das outras garotas. Eu deduzi... bem, nunca imaginei que fosse uma donzela. Era bonita, e eu a quis. Leona estava brincando comigo naquela época... me provocando e jogando a isca e depois fingindo desinteresse.

Fez uma pausa e olhou para Miranda, sentindo-se culpado.

— Peço-lhe desculpas. Esse não é o tipo de coisa que deveria estar dizendo a você.

— Por que não? Sou sua esposa.

— Não é uma conversa apropriada para uma dama.

— Ah, mas você se esquece de que não sou uma dama de verdade. Por favor, continue. Quero ouvir o que aconteceu.

Ele fez que sim com a cabeça e recomeçou, desviando o olhar para outro lado.

— Eu estava me sentindo frustrado, ela estava lá e era atraente. E eu a desejava. Desisti de Leona. Pensei que nunca a teria de novo. Oh, diabos, meus motivos eram ainda mais baixos... Eu esperava, no fundo, que se escolhesse outra mulher, isso faria com que Leona me notasse. Faria com que percebesse que estava perdendo sua chance. Então, cortejei Constance. Eu a seduzi. Achei... achei que ela entendia o jogo, que ela havia feito isso antes. Até que se deitou comigo. Foi então, é claro, que percebi o erro que cometera. Eu deveria ter parado ali, mas não o fiz. — A boca dele se contorceu. — Era muito mais fácil ceder ao prazer. Aí Leona veio a mim. Meu esquema funcionou, suponho. Ela me queria, e eu parei de ver Constance. Mais uma evidência da minha fraqueza. Um homem honrado a teria pedido em casamento, por ter tirado a virgindade de uma garota virtuosa. Mas eu, não. Tudo em que pensava, tudo o que via ou sentia, era Leona.

Miranda sentiu um aperto no coração ao ouvir o relato da paixão dele por Leona, mas deixou esse sentimento de lado. A dor de Devin era mais importante agora.

— Então, certa manhã, Leona levou-me uma carta. Ela fora visitar Constance, mas esta havia desaparecido. — Ele fez uma pausa, dando um suspiro trêmulo, e seu olhar encontrou o de Miranda, marcado pela angústia. — Ela dizia que estava grávida e que não conseguiria viver com essa vergonha. Escreveu que iria atirar-se no mar e poupar a si e ao bebê da vergonha de ter nascido fora do casamento.

— Oh, não! — Miranda apertou a mão dele. — Que horror. Ele anuiu com a cabeça, uma expressão grave no rosto.

— Fui correndo até lá como um louco, mas ela não estava, como Leona dissera. Eles a procuraram, mas nunca encontraram o corpo. Só acharam o local nas pedras em que havia tirado o xale e os sapatos. Seu avô ficou desolado. Quase enlouqueceu de pesar. Ele me culpou, é claro. Todos me culparam. Leona foi a única que ficou ao meu lado. Não sei o que teria feito sem ela. Esse foi o escândalo que provocou a ruptura final com meu pai. Ele disse que havia perdoado muitos dos meus pecados antes, mas não podia perdoar o fato de eu ter seduzido uma garota inocente e tê-la levado à morte.

— Como ele pode tê-lo culpado sozinho? — perguntou Miranda, levando a mão dele ao peito e aconchegando-a. — Você não era a única pessoa envolvida. Constance também foi responsável pelo que aconteceu.

— Por que ela não me procurou?—As palavras saíram repletas da dor de tantos anos. — Eu não teria virado as costas para ela. Eu não a amava, mas teria cumprido meu dever se soubesse que estava grávida. Teria me casado com ela. Juro que teria.

— É claro que teria — concordou Miranda, com firmeza. — Seu pai não o conhecia direito, ou saberia disso.

— Ele foi apenas mais um dos que acreditaram na minha culpa — disse Devin, arrasado. — As coisas que eu tinha feito, o tipo de homem que eu era... todos acharam muito fácil acreditar que teria agido como um canalha. Obviamente, Constance não pensou nem por um instante que eu teria feito a coisa certa e mais honrada. — O canto de sua boca arqueou-se numa tentativa de sorriso. — Agora você sabe com que tipo de homem se casou.

— Eu já conhecia o tipo de homem com quem me casei — respondeu Miranda. — E isso não muda minha opinião. Você cometeu erros... quem de nós não os comete? Mas você não é uma pessoa má.

— Não sei como suporta olhar para mim. Às vezes, não consigo nem olhar para mim mesmo, no espelho.

Num impulso, Miranda se inclinou para a frente e pegou Devin em seus braços, encostando a cabeça na dele e abraçando-o.

— Não há por que continuar se martirizando por isso. O que você fez foi errado, sem dúvida, mas você não estava sozinho. Não a forçou. Constance era uma mulher feita, mais velha do que a maioria das mulheres, você disse. Sabia o que estava fazendo e o que poderia acontecer. Também poderia ter contado a você. Nem lhe deu a chance de fazer a coisa certa. Ela deveria ter ido até você. No mínimo, devia isso ao bebê. E ainda havia o avô. Poderia ter ido até ele para buscar ajuda. Em vez disso, decidiu matar a si e à criança. Isso não é uma atitude de uma mulher sã. Você não pode se culpar por ela ter agido como uma pessoa desequilibrada. Você não merece o fardo dessa culpa individualmente.

Devin deu-lhe um abraço apertado, enfiando o rosto no cabelo dela.

— Você é uma mulher fora do comum, Miranda. Poucas saberiam perdoar assim.

— De que eu tenho de perdoá-lo? — Miranda ponderou. — Isso não diz respeito a mim. Isso é entre você e Deus, e acho que você já se puniu mais do que deveria por todos esses anos.

Eles ficaram sentados assim por um bom tempo, abraçados, e Miranda pôde sentir o corpo tenso dele relaxar conforme a dor se esvaía. Aos poucos, percebeu a intimidade da posição em que estavam, naquele abraço apertado, sentados na cama dele. Estava só de camisola, uma barreira tênue entre o peito nu dele e sua própria pele. Aquela ternura entre eles começou a mudar e esquentou. De repente, o que havia sido apenas consolo e solidariedade agora estava carregado de sexualidade.

Miranda soltou Devin e afastou-se rapidamente. Olhou para ele e viu, refletida em seus olhos, a mesma consciência da situação. A face dela ruborizou. Não tinha reparado até aquele momento que Devin estava vestido com pouca roupa. Acima do lençol, seu peito estava nu. Miranda não estava acostumada a ver tórax desnudos de homens, e não pôde evitar que seus olhos percorressem aquela pele morena e musculosa. Teve de fechar as mãos para conseguir resistir ao forte desejo de estendê-las e tocar a estrutura ressaltada dos ombros e da clavícula, os músculos acentuados dos braços.

Ela limpou a garganta.

— Bem, arrã... Devo voltar para a cama agora.

—Miranda... — Ele colocou a mão no braço dela. Passou o polegar pela pele, tentando encontrar as palavras certas. Com um suspiro, soltou-a e balançou a cabeça. — Nada não. Obrigado. Foi um ato muito bondoso de sua parte vir aqui para me ajudar.

— Não foi nada. Boa noite.

Miranda saiu da cama e atravessou o quarto, passando pela porta que levava ao seu. Mas quando fechou a porta atrás de si, não a trancou.

 

Miranda e Devin estavam na biblioteca no dia seguinte, ela debruçada em mapas antigos da propriedade e ele contemplando o caimento daquele vestido sobre os quadris quando se esticava sobre a mesa, no momento em que um dos lacaios entrou.

— Minha senhora, um pacote chegou em seu nome. Um pacote grande, de Londres. A senhora disse que era para avisá-la...

— Sim, é claro. — Miranda endireitou-se, os olhos brilharam e um sorriso largo brotou em sua boca. — Traga-o.

Ela virou-se para Devin, animada. Estavam sozinhos no cômodo, para variar. O pai e o paisagista estavam do lado de fora andando pelo jardim devastado, o arquiteto estava no andar de cima fazendo suas anotações e Hiram repassava os livros de registro da contabilidade com Strong no escritório deste. Devin não pôde controlar um sorriso ao ver a alegria no rosto de Miranda; era contagiante. Mas não conseguia imaginar que tipo de pacote a teria deixado tão excitada.

— O que é? Vestidos de Londres?

— Não. Melhor que isso. Pelo menos, espero que sim. Espero que você goste. É meu presente de casamento.

— Seu presente de casamento? Mas você já me deu um. — Sua mão foi automaticamente para o alfinete de ouro com rubi em sua gravata, parte de um conjunto com abotoaduras que lhe dera no dia do casamento.

— Sim, mas isso foi diferente. Foi um presente formal. Um... sei lá, algo que você já esperava. Este é meu presente pessoal.

Intrigado, ele levantou-se quando o lacaio entrou, quase escondido pela enorme caixa que carregava. Com cuidado, o criado colocou-a no chão e saiu do cômodo, fechando a porta. Devin olhou para Miranda.

— Vá em frente — disse ela. — Abra. Se não gostar, prometo que não vou chorar. É só um presente de... de possibilidade.

— Sério. — Ele cortou a fita que amarrava o pacote e abriu a caixa. Ficou parado, olhando para os objetos dentro dela. Virou-se para Miranda com uma expressão interrogativa, e então botou a mão dentro da caixa, puxando um cavalete. Indo mais fundo com a mão, tirou uma caixa de madeira contendo tubos de tinta e potes de vidro para botar as tintas depois de misturadas, e então uma paleta, uma caixa de pincéis, blocos de papel, uma caixa de lápis de carvão, garrafas de terebintina e óleo de linhaça, até que, por fim, a mesa da biblioteca estava quase inteiramente coberta com materiais de pintura.

Devin ficou em pé olhando para os itens na mesa. Passou os dedos em um tubo de tinta, tocou os pêlos macios de um pincel. Miranda esperou, observando-o, imaginando o que estaria pensando.

— Você não precisa usá-los se não quiser — disse ela, por fim. — Só achei... que você devia sentir falta. Durante sua estada aqui, poderia querer pintar. Pelo menos para passar o tempo.

Devin virou-se e olhou para Miranda, balançando a cabeça, perplexo.

— Como soube? Quero dizer... Já faz tempo que parei.

— Vi seu trabalho na casa de sua irmã — Miranda explicou. — Ela me contou que você era um artista.

Ele fez uma careta.

— Eu lambuzava.

— Não. Você é muito talentoso. Vi suas pinturas. Sua utilização da luz, das cores... — Seu tom de voz se modificou um pouco por causa da excitação. — Não acreditei quando as vi. Percebi, então, que você não era só aquilo que aparentava ser.

— Um perdulário, você quer dizer?

— Bem, para ser franca, sim. Devin sorriu, levemente.

— Sempre se pode contar com você quando se trata de ser honesta.

Ele olhou novamente para as coisas em cima da mesa.

— Não acredito... Não sei se sou capaz de fazer isso de novo. Já faz alguns anos. Perdi o interesse.

— Você pode estar enferrujado, mas não creio que seu talento tenha morrido. Ainda está aí. — Miranda fez uma pausa e depois continuou: — Rachel me mostrou o cômodo na ala oeste, o que você usava para pintar. Já cuidei para que fosse limpo. Você pode usá-lo novamente.

— Ali há uma boa iluminação à tarde — concordou ele, despretensiosamente. Mesmo quando tentara fazer um esboço do rosto de Miranda, não considerara de verdade a possibilidade de pintar seu retrato. Assumira que jamais pintaria de novo. Mas, agora, de repente, ficou tentado com a idéia. Recordou o cheiro das tintas, a sensação do toque dos pincéis nos dedos, o modo como a luz entrava pelas janelas do cômodo. Pensou mais uma vez nos esboços do rosto de Miranda que fizera em segredo.

— Por que você comprou isso tudo? — perguntou. — Digo, por que se importa?

— Odeio ver um talento desperdiçado, e acho que você tem um talento enorme. E pensei que poderia... encontrar algo que perdeu.

Eles ficaram se entreolhando por um bom tempo. Por fim, ele disse:

— Se eu decidir pintar, você posaria para mim? Miranda arregalou ligeiramente os olhos, surpresa. Mas disse apenas:

— Sim. Eu posaria.

— Então talvez eu pinte.

Devin não achava que iria retomar a pintura. Perdera o hábito há muitos anos, como o pai esperara que fizesse. Aqueles utensílios foram um gesto gentil por parte de Miranda e que o haviam sensibilizado muito, mas não tinha certeza se queria usá-los.

No entanto, mais tarde naquele mesmo dia, pegou-se indo em direção ao cômodo que Miranda mencionara, o cômodo amplo, arejado e bem iluminado pelo sol que fora seu estúdio quando ainda morava naquela casa. Estava limpo, como mencionou Miranda, e todos os utensílios haviam sido carregados para lá e arrumados em uma mesa velha manchada de tinta. A mobília ali era mínima — além da mesa, havia apenas uma cadeira, um banco e um sofá desbotado.

Devin foi até a caixa e abriu-a novamente, tirando os tubos de tinta um por um e dispondo-os na mesa, acrescentando os pequenos vidros. Se fosse pintar, misturaria as tintas com o óleo de linhaça e as colocaria nos vidros. Então pensou na mistura dos óleos na paleta, nas cores que combinaria, em que tons usaria para obter a cor exata do cabelo de Miranda. Que combinação de branco e preto seria necessária para atingir o cinza dos olhos dela... e como adicionar-lhes o toque de prata.

Quase sem pensar, abriu a tampa de um dos tubos e apertou um pouco de tinta para dentro de um dos vidros...

Já haviam se passado quatro horas quando um dos criados finalmente o encontrou, de pé no estúdio, lampiões acesos em volta dele, sem a casaca e com a camisa branca manchada e borrada de tinta.

— Ah, meu senhor... lady Ravenscar enviou-me para encontrá-lo — disse o lacaio, meio receoso, nunca tendo visto o elegante conde em tal estado antes. Ele o vira um pouco embriagado, é claro, os botões nas casas erradas ou desabotoados, a gravata amassada e desarrumada. Mas como só trabalhava ali há cinco anos, nunca o vira com uma mancha marrom na parte de trás da mão e outra de cor cinza na face. Nem com aquele olhar diferente e distante, do tipo que olha e não vê.

— O quê? — O conde franziu o cenho. — Miranda?

— Não, meu senhor. A viúva lady Ravenscar.

— Ah. Por quê?

— Já passou da hora do jantar, senhor. Os outros estão prontos para sentar à mesa.

— Ah. Diga-lhes que continuem. Traga meu jantar aqui em cima, em uma bandeja. E traga-me mais lampiões. A luz está muito fraca aqui dentro.

O lacaio viu pouco sentido em argumentar que já era noite e que havia pouca probabilidade de se obter uma boa iluminação. Concluíra há muito que a aristocracia era toda louca, e essa última visão do conde de Ravenscar somente confirmou sua opinião.

Quando o lacaio repassou a informação para lady Ravenscar, ela congelou.

— Não devemos esperar por ele. Pelo menos... — Virou-se para Miranda, dando-se conta de que ela era agora a dona da casa - isso é o que eu recomendaria, Miranda.

— Sim. Imagino que esteja certa. — Mas Miranda, ao contrário da sogra, sorriu ao dizê-lo, e o olhar que trocou com Rachel trazia um quê de prazer triunfante.

Devin pintou durante a maior parte da noite, indo para a cama exausto e descontente por suas habilidades estarem enferrujadas. Jamais recuperaria a destreza com que pintava antes, pensou, embora soubesse que continuaria tentando.

Na manhã seguinte, quando acordou, estava se sentindo menos desesperançado e, dando uma nova olhada no que fizera à luz do dia, pensou que, mesmo não sendo digno de ser guardada, a pintura pelo menos não estava tão horrível quanto parecera na noite anterior.

Desceu para a biblioteca, onde encontrou Miranda em uma discussão sobre números com Hiram Baldwin. Devin estava ficando mais e mais aflito com sua incapacidade de reproduzir o rosto dela da forma exata. Foi então que lhe lembrou de que ela prometera posar para ele. Miranda levantou-se, sorrindo, e acompanhou-o sem um murmúrio sequer de desacordo, deixando Hiram suspirar e voltar sozinho para o problema que o estava incomodando.

Durante o curso dos poucos dias que se seguiram, Devin ficou fechado em seu estúdio a maior parte do dia. Miranda posava para ele duas horas por dia, uma de manhã e outra à tarde, o máximo que conseguiria ficar sentada, parada, disse-lhe. O restante do tempo ele praticava com esboços, cores, naturezas-mortas e paisagens — o que lhe desse vontade. Estava tomado por uma ânsia, não como as febres obsessivas que o acometiam com freqüência quando era mais jovem, mas ainda assim uma necessidade de criar que afastou todas as outras coisas.

Como Miranda soube que essa necessidade ainda vivia nele? Nem ele mesmo sabia disso.

Se parasse para pensar, teria ficado um pouco surpreso ao perceber quão pouco sentia falta da agitação de Londres e dos propósitos aos quais se entregara por tantos anos. Consumido pela excitação da pintura, pela necessidade de fazê-lo, nem se lembrava mais das jogatinas ou das saídas à noite em busca de diversão. Até mesmo o consumo de bebidas foi reduzido com a diminuição do tédio. Surpreendeu-se ao descobrir os prazeres de acordar de manhã sem sentir a cabeça pesada e sem estar com o raciocínio nebuloso. Quando queria diversão e animação, os pensamentos voltavam-se naturalmente para Miranda. Há alguns meses, teria rido diante da idéia de que uma noite jogando cartas com a esposa e com a irmã, ou até mesmo ficar sentado, apenas conversando com ela, seria mais interessante do que uma noite de libertinagem e bebidas, mas essa era a realidade agora.

Algo que descobriu, no entanto, foi que o desejo súbito de pintar não diminuiu o desejo — que só aumentava — por Miranda. Ele nunca imaginara que seria possível ficar duplamente obcecado assim, mas, estranhamente, parecia que os dois desejos se alimentavam um do outro. Pintou o rosto e a silhueta de Miranda na tela, tentando satisfazer essa necessidade que havia dentro dele, tentando desgastar o fascínio do rosto dela, mas, ao fazê-lo, acabava olhando para ela — a imagem e a realidade — a maior parte de suas horas de trabalho. À noite, por mais cansado que estivesse, não conseguia parar de pensar nela, que estava do outro lado da porta, macia e quente, esperando por ele.

Desde aquela noite na biblioteca Devin soube que Miranda deixaria que ele dormisse com ela. Ela não mostrara desinteresse, não fizera nenhuma declaração ponderada de que era mais sábio seguir vidas separadas. Tudo o que pedira fora sua fidelidade. Se lhe desse isso, sabia que a teria.

Sabia que seria fácil dizer isso. Não era como se não houvesse mentido milhares de vezes, como se não houvesse dito a incontáveis mulheres que as amava, quando na verdade mal gostava delas. Mas, de alguma forma, com Miranda, não conseguia mentir. Não podia olhar naqueles olhos claros e penetrantes de um tom cinza e dizer algo que sabia não ser verdade. No momento, tudo o que queria era ela. Mas não sabia se isso ia se manter assim. Uma vez tendo dormido com Miranda, poderia se cansar dela, como acontecera com qualquer outra mulher que conheceu, exceto Leona.

E como poderia dizer-lhe que seria fiel, quando Leona o esperava? Leona era, no fim das contas, o amor de sua vida. Ele sentiu isso aos 18 anos, e continuou assim por 14 anos. O estranho desinteresse que sentia por Leona agora era temporário, tinha certeza. Era algo gerado por sua irritação com ela, por querer que se casasse com outra, e aumentado por suas obsessões duplas por Miranda e por sua arte. Ele sofria com a culpa por esse desinteresse, não importando o quanto dissesse a si mesmo que era temporário. Não poderia concordar honestamente em desistir dela para ter Miranda. Seria um insulto a Leona, mesmo que nunca soubesse disso. E seria um insulto a Miranda, também, dormir com ela motivado por luxúria, sabendo que não poderia lhe dar seu coração.

Miranda merecia muito mais que isso. Merecia alguém melhor que ele. Ela havia de alguma forma devolvido a ele seu amor pela pintura. Ela o havia consolado, dado forças a ele. Mesmo com todo o seu jeito estranho e irritante, conseguira conquistar sua afeição. Devin não podia se permitir ser nada menos que o homem que Miranda pensava que ele era.

Achou particularmente incômodo que suas nobres intenções não fossem tão fáceis de ser mantidas. Era, na verdade, terrivelmente difícil deitar-se toda noite sabendo que Miranda estava do outro lado da porta, e que só o seu recém-adquirido senso de honra o impedia de entregar-se aos prazeres do corpo dela. Seria apenas justo, achava, que fosse de alguma forma mais suportável abdicar do prazer tendo a consciência de que estava fazendo a coisa certa.

Em vez disso, todas as noites ficava deitado, desperto, lembrando do gosto dos lábios de Miranda, da doce entrega de seu corpo em seus braços, seu tremor em resposta às carícias em sua pele. Aquilo crescia, e ficava mais difícil dormir a cada suspiro que dava. Ele se imaginava despindo-a, beijando-a, acariciando-a — e era amaldiçoado por uma imaginação sensualmente vívida de artista, de modo que cada pensamento era quase real, exceto pelo fato de não satisfazê-lo.

Durante o dia, ao olhar para ela, posando para seu retrato, os mesmos pensamentos o invadiam, pairando sobre seus diálogos inócuos, tingindo sua arte com uma atmosfera inegável de sexualidade. Sua respiração se tornava mais pesada e rápida; sua pele ficava quente; seu pulso se acelerava. Ele a queria, mas sabia que não poderia se permitir tê-la, e essa combinação o estava lentamente levando à loucura.

A pior noite ocorreu em uma festa oferecida pelo magistrado local, um tipo ascético, magro, de nome Breakthorpe, cuja esposa era o contrário dele, uma mulher alegre, gorducha, falante. A festa foi restrita, incluindo mais uma vez o médico, o vigário e sua esposa, assim como a família Breakthorpe e todos os que estavam hospedados em Darkwater. No entanto, depois do jantar, quando uma das filhas da anfitriã começou a tocar piano, a Sra. Breakthorpe decidiu, depois de uma enorme insistência das filhas, permitir que dançassem, enquanto Catherine, a mais jovem e serena das Breakthorpe, tocava o piano.

Devin não poderia ter imaginado que a noite acabaria sendo tudo, menos entediante. Em vez disso, passou a última hora da noite dançando quase exclusivamente com sua esposa, o que foi a mais pura expressão da combinação de paraíso com inferno que jamais vivenciara. Sentia o aroma de rosas com que ela perfumara as têmporas e o colo; olhava para baixo e via seus seios cremosos, balançando por cima do decote; segurava o corpo dela com os braços e sentia sua pele roçando a dele. E sentia o desejo pulsando, perigosamente.

Por causa da quantidade de pessoas em seu grupo, levaram duas carruagens. A madrasta de Miranda foi para casa mais cedo, queixando-se de dor de cabeça, e Joseph a acompanhou, mas isso fez com que o restante do grupo tivesse de se apertar na outra carruagem quando deixaram o solar. O resultado foi que Miranda acabou sentando no colo do marido, a perfeita solução na opinião de todos os outros. Devin, com certeza, não podia negar que tinha adorado o trajeto, mas ao final dele, depois de quase 40 minutos da vibração ruidosa da carruagem, do constante roçar das nádegas de Miranda em seu corpo, do toque e do cheiro dela tão próximos, Devin estava enlouquecido e desesperado para satisfazer tal desejo.

Ele sofria. Sua mente só conseguia se fixar nas imagens de Miranda nua e se contorcendo em sua cama. Seus dedos ansiavam em deslizar por aquela pele desnuda. Devin olhou pela janela, para a noite escura, preso em seu inferno de prazeres particular enquanto as vozes dos outros o rodeavam, ininteligivelmente.

Depois que chegaram em casa, ele foi direto para o estúdio, onde tomou duas doses de brandy de um só gole. Aquilo não pareceu ajudar muito, então subiu as escadas, cruzando no caminho com a criada de Miranda. Isso significava que Miranda fora despida e estava só de camisola, os cabelos soltos, caindo em suas costas.

Devin recordou a noite em que ela fora a seu quarto, quando tivera o pesadelo; os cabelos estavam soltos, encostando nos ombros, nos seios e nas costas, luxuriantes e cheios. Ficou excitado só de lembrar. Perguntou-se se a criada teria escovado os cabelos dela também, ou se Miranda estaria, naquele exato momento, sentada à penteadeira, escovando-os em mechas sedosas e longas, lustrosas, à fraca luz das velas. Ele engoliu um gemido baixo ao pensar nisso. Era difícil demais agüentar.

Devin foi até o quarto, ainda que sua mão estivesse ansiosa para bater na porta do quarto de Miranda. Tirou a casaca, entregando-a a seu valete, e então dispensou-o, dizendo que faria o resto sozinho. Não achava que poderia suportar nem mais um instante na companhia de outra pessoa. Arrancando a gravata de uma forma que, sabia, faria seu valete tremer, lançou-a sobre o encosto de uma cadeira. Tirou as abotoaduras e arregaçou as mangas, e então desabotoou a camisa, esperando assim aliviar o calor sufocante. Não foi o suficiente.

Andou até a janela e abriu um pouco o postigo, deixando entrar o ar frio da noite. O ar passou por seu rosto e por seu peito, esfriando a pele, embora não conseguisse abrandar o fogo que queimava por dentro. Não estava, pensou, disposto a passar por aquela prova de fogo. Era um hedonista, por Deus, não um monge! Não sabia o quanto mais poderia conviver com aquilo.

Ficou ali, em pé, por um bom tempo, olhando para a noite, e então finalmente virou-se com um suspiro e foi para a cama vazia.

Miranda acordou, os olhos pesados, e chamou a criada. A noite anterior, pensou, tinha sido a última gota. Não tinha certeza de quanto mais agüentaria esse tipo de casamento. Esperara provocar, espicaçar e tentar Devin para querê-la tanto que ficaria disposto a ser um marido de verdade. Mas, de alguma forma, acabara sendo vítima da própria armadilha.

A paixão crescia dentro dela desde o dia do casamento, transformando todos os seus planos cuidadosos em uma grande confusão. A cada dia desejava Devin mais e mais. Ainda assim, ele permanecia afastado, nem mesmo tentando beijá-la. Miranda tinha até mesmo atingido o ponto vergonhoso em que se roçara "por acidente" nele na esperança de que isso o faria tomar uma atitude. Mas ele continuara insuportavelmente estóico.

A noite anterior fora a pior de todas... dançar com ele a noite inteira, voltar para casa em seu colo, sentir os músculos fortes e os ossos de encontro a seu flanco, o desejo dele pulsando embaixo dela. Ficara abalada até a alma. Enquanto a criada a despia, tudo em que conseguia pensar era na mão de Devin em seu corpo, os lábios pressionando os dela. Ela escovara os cabelos o tempo todo alerta para os passos de Devin no corredor, esperando e torcendo para que ele abrisse a porta que separava seus quartos e entrasse. Miranda já não trancava a porta de ligação há muito, muito tempo.

Mas ele não entrara em seu quarto. Nunca o fazia, e isso a estava desorientando. Estava começando a pensar que ela é quem teria de ceder. Pensou em ir até ele e dizer-lhe que não exigia mais fidelidade, que estava disposta a dividi-lo com Leona e com quem quer que fosse, contanto que fizesse amor com ela. Mas todo o seu ser se retraía diante de tal idéia, claro. Não estava disposta a dividi-lo. No entanto, se nunca fosse conhecer a doçura de fazer amor com ele de outra forma, tinha medo de ter de aceitar o acordo, não importando como se sentisse a respeito.

De manhã, ao descer para o café-da-manhã, não havia ninguém lá. Ela acordara além do horário habitual, depois da dificuldade que teve em dormir na noite anterior. A maioria dos outros já devia ter feito o desjejum. Miranda tomou um café-da-manhã rápido e solitário, serviu-se de uma xícara de café e saiu com ela para o terraço. Bebeu-o, olhando para os jardins à sua frente.

O paisagista já havia feito um grande progresso no jardim, podando as cercas vivas e eliminando as ervas daninhas, derrubando e tirando arbustos e plantas que haviam crescido desordenadamente. Ainda não era uma paisagem maravilhosa, porque estava muito pobre, e muitas vezes os arbustos haviam sido cortados em meros galhos. Mas os caminhos estavam sendo restaurados e dispostos novamente de acordo com os projetos originais. Logo iriam começar a replantar em todos os lugares que pudessem. Algumas das plantas e flores teriam de esperar pelo outono, obviamente, ou até mesmo pela próxima primavera, para serem plantadas.

Com muitas das cercas vivas maiores arrancadas ou podadas, era possível ver muito mais além agora, quase por toda a extensão até o pomar ainda descuidado. Em algum momento, ele também seria domesticado, mas devolver a todos os jardins suas formas originais era uma tarefa que levaria anos para ser cumprida.

Enquanto estava ali, um vislumbre de movimento na base do jardim capturou sua visão. Uma mulher havia pisado fora do emaranhado de árvores que era o pomar, e Miranda percebeu, surpresa, que era sua madrasta. Não era comum Elizabeth caminhar pelo terreno, particularmente no limite do jardim. Mais estranho ainda, um homem saiu do meio das árvores por detrás dela. Miranda ficou parada olhando, com um primeiro pensamento assustador de que Elizabeth estaria tendo um encontro clandestino com um amante.

Mas logo percebeu, entretanto, que não se tratava de dois amantes conversando, mas de uma pessoa de um nível mais elevado falando com uma de um nível social mais baixo. O homem fez que sim com a cabeça depois de Elizabeth lhe dizer algo, olhando para baixo mais vezes do que diretamente para ela. Estava vestido com roupas simples e de serviço, as roupas de um trabalhador. Miranda relaxou, repreendendo-se por ter considerado tal hipótese a respeito de sua madrasta.

Elizabeth era perdidamente apaixonada por Joseph, assim como ele o era. Miranda teve certeza de que a razão pela qual essa idéia surgira em sua mente era porque estava muito ocupada nos últimos dias com pensamentos sexuais.

Enquanto Miranda continuava a olhar, Elizabeth anuiu com a cabeça para o homem e começou a andar de volta na direção do terraço. O homem ficou parado ali por mais um instante, vendo Elizabeth retornar, o que permitiu Miranda ver claramente seu rosto. Era comum, de alguma forma familiar, mas não conseguiu lembrar quem era. Então ele se virou e foi embora, encolhendo-se pelo meio das árvores e sumindo de vista.

Miranda sentou-se no corrimão e terminou o café. Mais ou menos na hora em que pousou a xícara no pires, Elizabeth chegou perto o suficiente para ver Miranda sentada ali. Ela parou e acenou, continuando pelo novo caminho de cascalho até os degraus do terraço.

— Olá, minha querida — disse, aproximando-se e beijando Miranda na face. — O que está fazendo aqui fora?

— Bebendo uma última xícara de café e observando as mudanças no jardim.

— Sim, está bastante diferente — concordou Elizabeth, virando-se para olhar para ele também. — Um tanto árido agora, receio.

— Mas vai ficar bem melhor em pouco tempo. O Sr. Kitchens assegurou-me disso.

— Realmente espero que sim.

— Quem era aquele homem?

— O quê? — Elizabeth virou-se para ela. — Que homem?

— Aquele com quem você falava lá no pomar. Ele me pareceu familiar.

— Oh! É porque ele é um dos jardineiros. Não sei seu nome. Estava perguntando a ele sobre as árvores frutíferas. Não sabia ao certo de que tipo eram. Tinha expectativas de que houvesse cerejas ali, e fiquei me perguntando quando estariam maduras. Sinto muita falta da torta de cereja de Hannah, você não sente?

— Sim, sinto. — Miranda sorriu. — E o que ele disse?

— Perdão?

— Há cerejas ali? E quando ficarão maduras? — retrucou Miranda. Ela estava começando a ficar preocupada com a madrasta.

Elizabeth estava agindo estranhamente desde que tinham vindo para Darkwater. Ficava no quarto, queixando-se de dores de cabeça e de estômago, além de vários outros tipos de sintomas, com muito mais freqüência do que no passado. Estava sempre debilitada de alguma forma, mas nunca tanto assim. Gostava muito de comer e raramente perdia uma refeição, mas, nas últimas semanas, comera seu jantar no quarto com a mesma freqüência que na mesa de jantar. Miranda mais de uma vez a encontrara sentada no quarto, ou em algum outro lugar, absorta, olhando fixamente para o chão ou para o vazio, com o cenho franzido. Toda essa história do jardineiro também era estranha. Não combinava com ela vagar pelo jardim e procurar um dos jardineiros para perguntar-lhe sobre cerejas. De fato, ela amava torta de cereja, mas não era muito dada a exercícios. Teria sido mais simples, e teria envolvido muito menos caminhadas, se houvesse enviado um dos lacaios para fazer a pergunta, ou simplesmente mandado um bilhete para o cozinheiro solicitando uma torta de cereja.

— Oh — disse Elizabeth. — Sim, há cerejas, e já estão maduras.

— Bom. Direi ao cozinheiro para fazer torta de cereja uma noite dessas esta semana.

Elizabeth sorriu.

— Você é um doce. — Num impulso, deu um passo à frente e abraçou Miranda fortemente. — Eu já lhe disse o quanto a amo? Você é como uma filha para mim.

Miranda abraçou-a com intensidade.

— Sim, já me disse isso algumas vezes, e eu agradeço. Amo você do fundo do coração, também. No entanto, é muito jovem para ter uma filha da minha idade. Vejo você como uma irmã mais velha.

Elizabeth sorriu.

— Está bem. Serei uma irmã mais velha muito querida. Elas se deram os braços e caminharam para dentro da casa.

— Vou para a biblioteca. Quer vir comigo? — perguntou Miranda.

A expressão de horror no rosto de Elizabeth foi tal que fez Miranda rir.

— Oh, não, eu não posso. Eu, ah...

— Não tem importância, você não precisa inventar uma desculpa. Sei que não é muito fã de ler. Está tudo bem. Vejo você na hora do almoço.

— Miranda... — Elizabeth olhou para ela, arqueando as sobrancelhas. Parecia estar querendo dizer algo, mas acabou sorrindo e afagou o braço dela. — Não é nada. Vá em frente.

Ela virou-se e saiu andando.

Miranda ficou observando-a caminhar, intrigada, e então deu de ombros e foi para a biblioteca.

Strong estava esperando por ela, parecendo vagamente desconfortável, como costumava ficar quando Miranda estava por perto. Em geral, deixava Hiram cuidar da maior parte das coisas que envolviam Strong, porque parecia incapaz de lidar com uma mulher na hora de discutir detalhes de negócios. Ele não ficava com a língua presa quando estava com Hiram, o que era uma sorte, já que muitas de suas anotações precisavam ser completadas verbalmente, sendo elas, no máximo, esboços.

— Pelas conversas que tive com ele — disse Hiram —, acho que o homem conhece seu trabalho. O problema é que não é muito bom na escrita.

Essa observação pareceu um problema, pela ótica de Miranda, em se tratando de um gerente de uma propriedade tão grande. Perguntara certa vez ao tio de Dev que qualificações o Sr. Strong possuía para o trabalho, e ele olhara para ela, confuso, e dissera apenas:

— O pai dele era o gerente da propriedade antes dele — como se isso fosse o suficiente.

Como Devin estava com eles na hora e não disse nada, só concordando com um gesto de cabeça, ela deduziu que para a aristocracia britânica esta era uma razão aparentemente adequada para alguém exercer uma função. Miranda suspeitava que, assim que começasse a tentar reverter a situação da propriedade, teria de substituir o homem. Se levasse em consideração a reação de Rupert e Dev, talvez tivesse que deixá-lo como gerente e inventar um novo título para dar a alguém que supervisionasse Strong. Compreendendo a reação do homem, pensou, talvez ele intuísse a opinião dela a seu respeito e isso motivava aquele desconforto quando estava por perto.

— Olá, Sr. Strong — disse Miranda, colocando no rosto o sorriso mais cativante e tranqüilizante que podia. — O Sr. Baldwin tem alguns assuntos de meu pai para resolver hoje, então achei que você poderia me tirar algumas dúvidas.

— Sim, lady Ravenscar.

— Bom. Eu estava olhando outro dia para um mapa topográfico da área. — Ela pegou um mapa enrolado e abriu-o em cima da mesa, fixando os quatro cantos com livros. — Essa é a área da propriedade.

— Sim. A montanha Apworth e as terras em torno. — Ele anuiu com a cabeça.

— Como é exatamente esse local? Ele pareceu confuso.

— Bem, lá há rochas, senhorita... quero dizer, minha senhora. É montanhosa e pedregosa. Não me parece ser boa para nada.

— Ela é parte dos rochedos, que por sua vez são o final dos montes Peninos.

— Correto.

— Essa área tem sido usada para quê?

— Usada? Para nada, minha senhora. Ou melhor, as pessoas vão lá para vê-la. É um tanto majestosa, de certa forma, mas não é boa para nada de que eu tenha notícia.

— Sabe, costuma-se encontrar depósitos minerais nesse tipo de terreno.

— O que foi que a senhora disse?

— Carvão, minério de ferro, até mesmo minerais preciosos. Alguém já tentou fazer mineração lá?

— Não, minha senhora, não que eu saiba. — Ele olhou para ela, incerto.

— É algo que quero pesquisar. Seria ótimo se fôssemos capazes de adicionar algo aos rendimentos dos arrendatários.

— Sim, minha senhora.

Miranda suspirou diante da passividade do homem.

— Está bem, vamos olhar os livros de registro da contabilidade. Dei uma olhada no relatório que Hiram preparou para mim, e definitivamente estou começando a ver um padrão. Veja esse lugar chamado Bigby...

As duas horas seguintes passaram devagar. A criada veio por volta do fim desse período, trazendo a xícara de chocolate quente que costumava ser a recompensa de Miranda após algumas horas de trabalho. Ela tomou um gole e chegou à conclusão de que, mesmo sendo delicioso, não era nem de longe uma compensação pela conversa com o Sr. Strong.

Devin chegou nessa hora, propiciando uma pausa bem-vinda. Parecia cansado, com olheiras, e ela ficou se perguntando se ele teria passado a noite anterior tão insone quanto ela. Iria até as ruínas da abadia para pintar, disse-lhe, e ficaria por lá pelo restante do dia, voltando para casa depois da hora do chá. Miranda concordou, pensando que adoraria ir com Devin, mas ele não a convidou.

Ficou se perguntando se a frustração sexual crescente entre os dois iria destruir a aproximação que vinham desenvolvendo nas últimas semanas. Recordou os pensamentos que tivera mais cedo naquela manhã: de que não deveria exigir fidelidade antes de dormir com ele. Até mesmo um casamento pela metade como esse seria melhor do que Devin passar a odiar tê-la por perto.

Ele saiu, e ela voltou à contabilidade, tomando um gole do chocolate quente.

Houve uma batida hesitante na porta da biblioteca. Um instante depois, Elizabeth entrou de esguelha. Olhou de Miranda para o Sr. Strong enquanto cruzava e descruzava as mãos. Miranda ficou de pé, preocupada.

— Elizabeth? Você não está se sentindo bem? — Andou até a madrasta rapidamente e segurou seu braço. — Aqui, sente-se. Sr. Strong, o senhor poderia fazer a gentileza de servir um copo d'água para minha madrasta?

O Sr. Strong levantou-se rápido para ir até o aparador, onde estavam uma jarra e copos. Ele serviu água em um copo e apressou-se a entregá-lo à Sra. Upshaw, sua testa franzida em preocupação.

— A senhora está se sentindo bem, madame? — perguntou.

— Sim, sim, estou bem. Tanta preocupação por nada. De verdade. Oh, isso é chocolate quente? Talvez um gole disso.

— Sim, é claro. — Miranda entregou a xícara para a madrasta, e Elizabeth deu um gole.

Ela colocou a xícara de volta no pires e deu um sorriso forçado para Miranda.

— Sinto muito. Não queria interromper. Só achei que poderíamos conversar um pouco. Posso voltar outra hora.

— Não. É claro que podemos conversar agora. — Esse era exatamente o tipo de comportamento estranho que Elizabeth passara a exibir. As duas haviam estado juntas menos de uma hora antes, e naquele momento Elizabeth indicara que não tinha interesse em conversar. Agora aqui estava ela, com ares de quem iria morrer se não falasse com a enteada.

Miranda virou-se para o Sr. Strong.

— Por que não volta ao trabalho, Sr. Strong? Preciso conversar por um instante com minha madrasta.

— É muita gentileza sua, querida — disse-lhe Elizabeth, enquanto o Sr. Strong a cumprimentava e recolhia os livros debaixo do braço, saindo do cômodo. — Mas não precisava. Eu poderia ter voltado numa outra hora.

— Está tudo bem — assegurou-lhe Miranda. — Você poupou o Sr. Strong de mais uma hora de sofrimento, isso é tudo. Considere-se o anjo da guarda dele.

— Pobre homem. Ele parece estar sempre tão... estressado.

— Eu sei. Ele acha que eu sou um ogro. Estou descobrindo que as pessoas na Inglaterra não confiam no que é novo.

— Sim, sem dúvida — concordou Elizabeth, meio distraída. Passou os olhos pelo cômodo, olhando para cima, para a plataforma, e desviou rapidamente o olhar.

— Então — disse Miranda —, o que a levou a vir me ver? Sei que não gosta da biblioteca.

— Bem, não posso evitar pensar, todas as vezes que entro aqui, em você caindo. — Elizabeth acenou em direção à plataforma, onde um novo e robusto corrimão fora instalado. — É tão pavoroso.

— Nada de ruim aconteceu.

— Talvez, mas mesmo assim... pensar no que poderia ter acontecido! Sinto calafrios no corpo. — Ela tremeu ao tomar outro gole da xícara.

— Sei. Mas você não deve se preocupar. Nada acontecerá de novo, garanto-lhe. Isso só acontece uma vez na vida.

— Talvez. É só que... não gosto muito daqui, Miranda. Joseph está tão feliz com as restaurações, mas, bem, você não acha um pouco entediante? Sem festas, bailes, óperas ou teatros.

— Sim. É um pouco rural — concordou Miranda. — Sinto muito por você estar entediada. Papai e eu estamos ocupados trabalhando nas reformas. Eu não havia chegado a pensar que você teria tão pouca coisa a fazer.

— Está tudo bem. Não é sobre isso que gostaria de falar-lhe. Eu estava em meu quarto, pensando. Miranda... — Ela pousou a xícara e chegou mais perto de Miranda, colocando a mão no braço da enteada, olhando fixamente em seus olhos.

— Minha querida, você está feliz?

— O quê? Sim, é claro. — Miranda sorriu para ela e afagou a mão que Elizabeth havia colocado em seu braço. — Por que não estaria?

— Não sei. Estou preocupada. Você parecia tão... cansada e melancólica esta manhã quando conversávamos.

— Eu parecia? — disse Miranda, surpresa. — Sinto muito. Não percebi...

Elizabeth anuiu seriamente com a cabeça.

— Isso me deixou preocupada. Subi para continuar aquele bordado que comecei outro dia, mas vi que não conseguia me concentrar. Fiquei pensando na sua expressão. Ele... ele está fazendo você infeliz?

— Devin? Oh, não, Elizabeth, de forma alguma. Você não deve pensar isso. Estou muito satisfeita por ter me casado com Devin.

— Sério? — Elizabeth pareceu em dúvida. — Receio ter sido um erro. E que Joseph a induziu a isso.

— Elizabeth, você sabe que ninguém me induz a nada. Casei-me com Ravenscar porque quis. E estou bastante feliz. Só estou um pouco cansada por causa da festa de ontem à noite.

— Sim. Confesso que também estou um pouco cansada. Não dançava tanto assim há muitos anos. Mas não pude dizer não para aquele jovem e agradável médico, e, é claro...

— ela sorriu como uma estudante confidenciando um segredo —, é sempre uma sensação mágica dançar com seu pai.

Miranda, que dançara muitas vezes com o pai, interpretou como uma indicação representativa do amor de Elizabeth o fato de achar que dançar com ele era algo mágico.

Elizabeth tomou mais um gole do chocolate. Ela havia tirado um lenço do bolso da saia, e estava mexendo com ele por entre os dedos, torcendo, puxando e embolando o lenço. O olhar de Miranda foi atraído para o pobre pedaço de pano tão maltratado.

— Há algo mais, não há? Não foi só isso o que a trouxe até aqui.

— Bem... oh, querida. Não sei como dizer isso.

— Diga simplesmente.

— Sei que você dirá que estou sendo tola.

— Não direi. Prometo.

— Bem, eu... eu... eu estou muito preocupada! — Falou finalmente, e Miranda percebeu espantada que os olhos da madrasta estavam cheios de lágrimas.

— Elizabeth, por favor... — Miranda inclinou-se e pousou a mão nas da madrasta, para aquietá-las. — Você está em apuros?

— Não! — Elizabeth riu, um pouco estridente. — Não sou eu que estou em apuros. É você!

— Eu? O que você quer dizer com isso? Estou muito bem, posso garantir-lhe.

— Não. Você não está. Miranda, eu acho... — Ela levantou as mãos e agarrou as da enteada, apertando-as como se fossem um salva-vidas. Encarou Miranda, o olhar cheio de dor e de um medo penetrante. — Miranda, ele está tentando matá-la!

 

Miranda olhou para a madrasta, confusa.

— O quê? Quem? Do que você está falando?

— Do seu marido. Lorde Ravenscar.

Miranda ficou boquiaberta. Será que Elizabeth perdera completamente o juízo?

— Dev? — Ela finalmente desengasgou.

— Sim. Dev. Miranda, pense! — O brilho nos olhos de Elizabeth eram um pouco enervantes. Involuntariamente, Miranda recordou o senhor perturbado que fora à casa deles em Londres, praguejando sobre Devin ter assassinado sua neta, e sentiu um calafrio.

— Já houve vários ataques contra sua vida desde que chegamos aqui — continuou Elizabeth seriamente.

— O quê? Elizabeth, do que está falando?

— Você caiu da plataforma.

— Porque fui tola o suficiente para me apoiar em um corrimão corroído por cupins. Só isso.

— E o que me diz de quando saiu para cavalgar e aquele pedaço de rocha quase matou você e Joseph.

— Aquilo também foi um acidente — disse Miranda, em um tom apaziguador.

— Como pode dizer isso? — perguntou Elizabeth, agitada. Terminou de beber o chocolate quente, as mãos tremendo tanto que a xícara tilintava no pires quando a colocou de volta. — Você poderia ter morrido em ambas as vezes.

— Sim, mas não morri. E não há nada que indique que não foram simples acidentes.

— Dois "acidentes" seguidos! — O tom de voz de Elizabeth elevou-se em um ganido. — Você não vê? Ele está tentando machucá-la. Livrar-se de você. O homem é mau!

— Elizabeth! — Miranda endireitou-se, a expressão no rosto ficando calma mas firme. — Não posso permitir que fale dessa forma de meu marido.

— Ele cegou você em relação às falhas dele. Sabia que faria isso. — Lágrimas escorriam dos olhos da madrasta.

— Elizabeth, por favor... — disse Miranda mais delicadamente, colocando a mão no braço da madrasta num gesto tranqüilizador. Sabia que não deveria permitir que a irritasse com seus comentários sobre Devin. Era óbvio que algo estava afetando a mente de Elizabeth, e Miranda disse a si mesma que deveria ser gentil com ela. — Você está se chateando por nada. Sei que Dev tem má reputação, mas ele não é assim. É um bom homem. Tenho certeza. Ele não tentaria me matar.

— Você não sabe. Você não o conhece!

— Nem você — argumentou Miranda. — Além disso, acho que o conheço muito mais do que você imagina.

— Sabia que você não iria me ouvir. — Elizabeth afundou o rosto nas mãos.

— É claro que estou ouvindo você — insistiu Miranda. — Entendo que está muito chateada, e sinto muito por isso. Mas não há nada a temer. De verdade. Esses dois acontecimentos foram acidentes. Sei que é um pouco estranho dois acidentes ocorrerem assim, seguidos, mas essas coisas existem. Você nunca reparou como se pode parecer suscetível a acidentes durante vários dias seguidos? Eu estou assim. O corrimão estava velho. Todos sabemos o quão infestadas por cupins estão as madeiras em Darkwater. Não há nada de estranho nelas se quebrarem com a pressão. E rochas de calcário se quebram e caem com freqüência. Todos os que vivem í; aqui dizem isso. Nenhum desses acidentes foi incomum.

— Sim, ele é esperto. — Elizabeth suspirou, parecendo fatigada.

— Além disso, Devin não poderia ter empurrado a pedra em cima de mim. Ele estava cavalgando conosco.

— Ele poderia ter comparsas no alto do penhasco para deslocar a pedra e empurrá-la para baixo.

— Colocando-o em risco também?

— Ele estava cavalgando a seu lado? Miranda fez uma pausa, pensando.

— Bem, não, ele estava alguns metros à frente, conversando com o tio.

— Vê? — exclamou Elizabeth, triunfante. — Você e Joseph foram quase mortos, enquanto Ravenscar estava livre do perigo.

— Elizabeth, por favor, não sei por que você odeia tanto Devin. Você mal o conhece. Talvez devesse descer para jantar mais vezes, sentar conosco depois da refeição. Conversar com ele. Sei que veria que ele é uma pessoa muito melhor do que tudo que dizem por aí.

— Oh, sei que ele é encantador. Esta não é a questão. — Elizabeth bocejou, cobrindo a boca por educação. — Sinto muito. De repente fiquei... muito cansada.

— Sim, sem dúvida você precisa descansar — concordou Miranda.

— Não. Não até você entender... — Suas palavras foram interrompidas por outro bocejo. — Oh, céus.

— Por favor, por que não sobe para o quarto e dorme? — sugeriu Miranda, ávida por tirar a madrasta dali. — Estará muito melhor ao acordar. Verá que se preocupou por uma bobagem.

— Não, não vou. — Elizabeth passou a mão pelo rosto, parecendo confusa.

Miranda franziu o cenho, preocupada.

— Você está se sentindo bem, Elizabeth? Está enjoada? Deixe-me chamar uma criada para ajudá-la a ir para seu quarto.

— Oh, não, querida, não seja tola. Não preciso de ajuda. Naquele momento um lacaio entrou no cômodo, tossiu baixinho para chamar a atenção delas, e anunciou:

— Lady Vesey e a Sra. Vesey estão aqui para vê-la.

— Lady Vesey? — Miranda olhou para o lacaio, surpresa.

— Leona! — exclamou Elizabeth. Ficou claro pela expressão em seu rosto, pensou Miranda, que alguém contara para sua madrasta o que lady Vesey era para lorde Ravenscar.

O criado entrou com a pequena bandeja de prata na qual havia dois cartões de visita. Um para a tia solteirona e um para Leona. Um leve sorriso brotou nos lábios de Miranda. Nunca se recusava a enfrentar um desafio.

— Ah, sim — disse ao criado. — Leve lady Vesey até a sala de visitas.

Quando o criado saiu do cômodo, Elizabeth virou-se para Miranda, os olhos esbugalhados.

— Minha querida, você acha que deve recebê-la? Soube por lady Ravenscar que ela é, bem, não costuma ser aceita nos melhores círculos.

— Sim, Elizabeth, sei disso. Entretanto, tenho interesse em falar com lady Vesey. Tenho certeza de que recebê-la não irá manchar minha reputação. Você quer vir?

— Acho que vou subir e deitar, como você sugeriu — disse Elizabeth, rapidamente. — Odeio pensar no que lady Ravenscar dirá a respeito disso...

— Não se preocupe — Miranda assegurou-lhe. — Não será nada com que eu não possa lidar.

A madrasta levantou-se e começou a andar em direção à porta, depois parou, olhando para trás, para Miranda.

— Querida... por favor, você terá cuidado, não terá? Prometa-me?

— Sim, é claro que terei.

Elizabeth anuiu com a cabeça, ainda parecendo estar insatisfeita, e saiu da biblioteca. Miranda ajeitou o vestido e saiu para o corredor, parando em frente ao espelho que havia a alguns passos dali para verificar como estava seu cabelo. Sua face estava rosada e os olhos faiscavam por antecipação da cena que a aguardava, então tinha poucas dúvidas sobre sua aparência.

Continuou pelo corredor até chegar na solene sala de visitas. Entrou e encontrou Leona Vesey de pé junto à tia de lorde Vesey no centro do cômodo, olhando para uma lady Ravenscar rígida, exibindo uma expressão de desaprovação. Rachel, sentada ao lado da mãe, parecia mais em fúria que em desaprovação.

Estava claro que a mãe de Devin havia questionado a presença de Leona ali, porque assim que Miranda chegou, Leona estava dizendo:

— Com a aprovação de lady Ravenscar. Da nova lady Ravenscar, digo.

— Olá, lady Vesey — disse Miranda, alegremente, aproximando-se e pegando a mão da outra mulher para cumprimentá-la.

Leona recuou um pouco ao tirar a mão da de Miranda.

— Lady Ravenscar.

Miranda virou-se para Rachel e para a sogra, e cumprimentou-as, alegremente.

— Fico muito feliz por terem recepcionado lady Vesey até minha chegada. Por favor, sente-se lady Vesey. Sra. Vesey. — Ela pegou o braço da mulher mais velha e guiou-a até a cadeira. — É tão agradável quando um vizinho vem nos visitar. Confesso que esperava que mais pessoas viessem, mas então deduzi que ninguém queria nos incomodar... e à nossa vida de recém-casados, sabe. — Ela sorriu de forma reservada, satisfeita, fazendo o possível para ruborizar um pouquinho.

Leona semicerrou os olhos.

— Sim. É claro. Estou muito feliz por vocês estarem se acomodando em Darkwater.

— Obrigada. Tem sido muito agradável aqui. Obviamente, a felicidade de uma mulher depende de seu marido. Não concorda, lady Vesey? Felizmente, Devin é o melhor marido do mundo.

— De fato. — Leona sorriu, levemente. — Confesso — disse ela, com um tom de gracejo na voz — que nunca consegui imaginar Devin como um homem casado. Ele era sempre tão... como poderia dizer? Livre.

— Sim, e um homem tão atraente — concordou Miranda, olhando para Leona com olhos inocentes e bem abertos. — Tenho certeza de que muitas mulheres ficaram desoladas quando Devin passou a ser um homem casado.

— Sem dúvida. — Leona olhou em volta. — Onde está ele, a propósito? Com certeza, o homem não saiu e deixou sua esposa sozinha, assim, tão cedo.

Os olhos de Rachel flamejaram de raiva, mas ela conseguiu controlar seus nervos e se manteve em silêncio.

— Ele saiu para pintar — disse Miranda.

— Pintando! — Leona arqueou as sobrancelhas e deixou escapar uma risadinha estridente. — Oh, Deus, ele está fazendo isso de novo? Achei que havia se cansado de se lambuzar com tintas.

— Ele parece ter se desviado do caminho por alguns anos, mas está pintando freneticamente agora.

— Coitadinha de você — disse Leona, de forma condescendente. — Deve ser horrível seu marido ficar fora o tempo todo, pensando em sua própria satisfação.

— Eu não me importo.

— De verdade? Que mente liberal você tem, por não se importar. Eu realmente não consigo imaginar por que Devin retomou essa prática. Suponho, é claro, que isso ofereça a ele uma fuga, ou algo assim. — Seu tom de voz era doce, mas o olhar que lançou para Miranda foi significativo.

— Obviamente, então, você não deve conhecer tão bem Devin — disse Miranda, com um tom de voz tão doce e um olhar tão inocente que Rachel teve de cobrir a boca para camuflar uma risadinha. — Ele é um excelente artista. Não me surpreenderia se, um dia, ficasse famoso no mundo todo.

Leona lançou um olhar desconfiado para a anfitriã, como se não conseguisse ter certeza se estava sendo provocada.

— Talvez você queira ver alguns dos esboços dele — interveio Rachel. — Ele tem feito uma grande quantidade de esboços de Miranda.

Leona trincou os dentes.

— Oh, não, eu não faria vocês saírem para ir buscá-los.

— Não há problema algum — assegurou-lhe Miranda, levantando-se de pronto. —Tenho certeza de que Devin não vai se importar se formos lá em cima em seu estúdio para vê-los.

Andou até Leona e colocou a mão sob o braço dela, fazendo-a levantar-se. Leona ficou de pé um tanto hesitante, e Miranda deu-lhe o braço.

— Rachel? Lady Ravenscar?

Os olhos de lady Ravenscar brilharam, maldosamente.

— Ah, sim, eu realmente adoraria ver isso.

Leona não tinha como fugir agora, e as três Aincourt a carregaram para o andar superior e percorreram o corredor até o estúdio de Devin. Leona botou o pé lá dentro e parou, abruptamente. Seus olhos se arregalaram ao percorrerem o cômodo. Um retrato pintado semi-acabado estava apoiado em um cavalete no centro do estúdio. Dois outros já terminados, um pequeno e um grande, estavam apoiados na parede. Uma meia dúzia de esboços de Miranda em carvão estava espalhada pela mesa e dois esboços dela em aquarela, apoiados no chão para secar.

Os olhos de Leona arregalaram-se ainda mais e seu rosto ficou um pouco mais pálido, de tal forma que Miranda pensou que a mulher fosse desmaiar.

— Você está bem, lady Vesey? — perguntou ela, solícita. Lady Ravenscar observava Leona atentamente, um leve sorriso nos lábios. Rachel sorriu sem disfarçar.

— Sim. Estou bem. — Leona falou entre dentes, puxando o braço do de Miranda. — Dev tem estado bastante ocupado, não é?

— Sim. Ele redescobriu sua antiga paixão — disse Miranda, contente. — Tenho certeza de que se arrepende por ter chegado a desistir disso.

Leona sorriu para ela, irritada, e saiu do cômodo de súbito, deixando que as outras mulheres a seguissem. Rachel olhou para Miranda e sorriu.

Quando se juntaram novamente a lady Vesey, esta já havia recuperado sua atitude amena, embora Miranda, descendo as escadas a seu lado, pudesse sentir a tensão que emanava dela.

— Então agora Dev está em busca de outros objetos para pintar? — perguntou a Miranda.

— Sim, o restante do dia. Só consigo posar durante uma ou duas horas por dia. Mais do que isso é cansativo.

Leona sorriu mostrando os dentes.

— Sem dúvida. E onde ele está pintando hoje?

Lady Ravenscar, do outro lado, fez um barulho, mas Miranda ignorou-a. Olhando diretamente para Leona, com um brilho desafiador nos olhos, disse:

— Nas ruínas da abadia. Lá é um lugar muito pictórico.

— Sim. É claro.

Leona foi embora assim que retornaram para a sala de visitas, praticamente puxando a tia idosa de Vesey da cadeira e botando-a porta afora. Miranda teve certeza de que ela se livraria da tia em tempo recorde e logo estaria cavalgando de Vesey Park até a abadia.

Um instante depois de Leona partir, Miranda pediu licença para ir ver a madrasta, e saiu do cômodo, cantarolando.

Lady Ravenscar olhou para a filha com um sorriso, o mais largo que seus lábios se permitiam esboçar.

— Devo dizer, Rachel, que ir ver as pinturas de Devin foi uma sugestão esplêndida. Não tinha nem idéia de que ele havia feito tantas pinturas de Miranda.

— Eu tinha. — Rachel sorriu, extremamente satisfeita.

— Muito esperto de sua parte. Eu só queria, no entanto, que Miranda não tivesse dito a ela onde Dev estava pintando hoje. Você sabe que a bruxa com certeza irá até lá.

— De alguma forma — comentou Rachel, confiante —, suspeito que nossa Miranda sabia exatamente o que estava fazendo.

Miranda não estava tão confiante quanto o demonstrara na frente de Leona. A verdade era que tinha dúvidas sobre o que Devin faria se Leona aparecesse na abadia. Sabia que tinha arriscado ao dizer a Leona onde Dev estava, mas precisava saber o que ele faria. Tinha de deixar acontecer, não importando as conseqüências.

Mas a visita de lady Vesey a animara. Miranda não sabia ao certo se Devin tinha ou não ido visitar Leona em Vesey Park desde o casamento, ainda que, pelo tempo que passara pintando, não via como poderia ter administrado isso. Mas o fato de Leona ter vindo aqui, demonstrando estar à procura dele, indicava que não vira sua ex-amante nenhuma vez. Tamanha falta de interesse era encorajadora, mesmo se se devesse mais a sua paixão pela arte do que a uma paixão por ela.

Miranda subiu até o quarto da madrasta para vê-la, como disse às outras que faria. Encontrou uma criada saindo silenciosamente pela porta, assim que se aproximou.

— Oh! — A criada parou de repente quando viu Miranda e inclinou-se fazendo-lhe cortesia. — Minha senhora.

— A Sra. Upshaw está dormindo? — perguntou Miranda.

Sua madrasta não parecera estar bem quando se separaram mais cedo. Além do mais, andava agindo muito estranhamente. Miranda estava um pouco preocupada com ela.

— Ainda não, madame. Agora deve estar quase pegando no sono. Estava passando muito mal quando subiu, madame. O café-da-manhã não ficou no estômago.

— Oh, Deus. — Miranda passou pela garota e entrou no quarto de Elizabeth.

Ela estava deitada na cama, o rosto exibindo um tom de cinza contra o branco total do travesseiro, os olhos fechados. Eles se abriram assim que Miranda chegou a seu lado, e Elizabeth observou-a, grogue.

— Miranda...

— Soube que você passou maus momentos aqui — disse Miranda, pegando a mão dela e apertando-a. A pele da madrasta estava fria.

— Sim, fiz uma enorme sujeira — murmurou Elizabeth, tropeçando nas palavras. — Uma tolice. Não estava me sentindo mal esta manhã. Mas, de repente, assim que entrei no quarto... — Ela tremeu.

— Talvez agora você vá se sentir melhor — disse-lhe Miranda, confiante. — Tenho certeza de que cochilar um pouquinho vai ajudar.

— Sim. Mal consigo manter os olhos abertos. Espero conseguir dormir. Não creio que haja mais nada para pôr para fora.

Miranda afagou a mão dela e sentou-se na lateral da cama. Elizabeth virou-se de lado, sorrindo fracamente, e cruzou os dedos nos de Miranda. Logo caiu no sono.

Miranda olhou para a madrasta com um leve franzir de cenho. Normalmente não se preocupava muito com as doenças de Elizabeth; estava sempre sofrendo com uma queixa ou outra, mas estas costumavam ser breves e não muito graves. Entretanto, hoje, Elizabeth parecia bem doente.

— Acho que vou ficar sentada aqui ao lado dela por um instante — disse Miranda à criada. — Até que esteja se sentindo melhor.

Devin cavalgou até as ruínas da abadia primeiro e deixou lá os blocos de desenho e as tintas. Ele voltaria depois e faria alguns esboços. De alguma forma, era importante que o que dissera a Miranda não fosse totalmente mentira.

Odiava enganá-la, omitir o importante fato de onde mais ele planejava ir hoje. Mas não podia dizer-lhe seu verdadeiro destino.

Cavalgou na direção oposta à da abadia, e em mais 45 minutos estava entrando na fileira dupla de limoeiros que levavam à entrada de Vesey Park. Sentiu um estranho tremor percorrer-lhe o corpo ao olhar para a frente da casa. Fora lá muitas vezes naquele verão quando tinha 18 anos, loucamente apaixonado pela nova esposa de lorde Vesey e incapaz de se manter a distância.

Apeou na porta da frente, e um cavalariço veio pegar o cavalo. Um lacaio abriu a porta, cumprimentando-o, mas quando Devin perguntou por Leona, o lacaio surpreendeu-o ao informar-lhe que sua senhoria não estava em casa. Leona não tinha, Devin sabia, amigos naquela região; era considerada por demais aventureira pelas damas das redondezas, começando pela própria mãe. O criado esclareceu sua dúvida ao informá-lo do fato de que ela fora ver a tia de lorde Vesey.

Essa revelação deixou Devin surpreso. Sabia que Leona achava aquela senhora terrivelmente enfadonha. Era evidente que Leona fora à recepção do casamento com ela só porque era a única maneira de conseguir entrar. Deve ter sido levada a visitar a Sra. Vesey por puro tédio; Leona não suportava viver no campo. Devin estava impressionado por ela permanecer ali esse tempo todo. Imaginava que tivesse partido para Londres logo após o casamento.

Então decidiu esperar por Leona, deduzindo que logo ficaria cansada da tia idosa e voltaria para casa. O lacaio acomodou-o na sala de visitas formal para que pudesse aguardá-la.

Como antecipara, ficou lá apenas alguns minutos quando Leona adentrou, dando-lhe um sorriso cintilante e estendendo as mãos para ele. Estava linda, com um vestido verde que realçava de forma admirável sua tez dourada. O tecido colava em seus quadris e pernas, o decote redondo revelava o volume superior de seus seios fartos.

— Devin! Até que enfim. Eu não o vejo mais. — Ela contraiu a boca fazendo um biquinho em provocação. — Poderia quase achar que você não gosta mais de mim. — Ela se aproximou dele, os lábios se curvando em um sorriso convidativo, os olhos brilhando, dourados.

Para seu espanto, Devin deu um passo atrás. Leona parou, arqueando uma sobrancelha, e disse, com irritação:

— Qual é o problema, Dev? Está com medo de mim?

— Não, é claro que não. Leona... — Ele fez uma pausa. Era extremamente difícil dizer-lhe por que estava ali.

Leona não esperou que ele continuasse. Virou-se, dizendo com um tom de voz desdenhoso:

— A sua monótona esposinha me disse que você voltou a pintar. Francamente, Dev, achei que você tinha desistido dessa brincadeira com as tintas.

— Miranda? — perguntou ele, admirado e confuso ao ouvir essas palavras. — Você falou com Miranda?

— Sim. Tia Vesey e eu fomos visitá-la. Era lá que eu estava até agora. Ela me disse que você estava fora, pintando nas ruínas da abadia. — Leona lançou-lhe um olhar irônico e repreendeu-o com humor. — Já mentindo para a esposa? É claro que o entendo completamente. Você deve estar desesperado para fugir da fedelha provinciana. Meu Deus, pobre Dev... Está muito zangado comigo por persuadi-lo a se casar com ela?

Devin trincou os dentes e um brilho ardeu em seus olhos.

— Não. Não estou zangado com você por isso. Pelo contrário, Leona. Você me fez um favor. Estou mais feliz agora do que estive em muitos anos.

Leona arregalou os olhos; e então relaxou e deixou escapar uma risadinha.

— Ah, você está brincando. Quase acreditei em você. — Ela voltou para perto de Devin, colocando uma das mãos em seu braço e olhando para o rosto dele de um modo que nunca falhou em seduzi-lo. — Por que não tem me visitado? Eu teria aliviado seu tédio.

— Eu não estava entediado — respondeu ele, e deu novamente um passo atrás. — Eu não poderia visitá-la, Leona. As coisas estão diferentes agora que estou casado. Seria um insulto a Miranda se eu viesse até aqui para visitar minha amante.

— Ah, ela — disse Leona, desinteressadamente. — Qual é o problema se ela for insultada? Ela é uma maria-ninguém vinda da América.

— Ela não é uma maria-ninguém. — Devin se irritou. — Ela é minha esposa. Não posso permitir que fale dela assim.

Leona o encarou, silenciada pelo espanto.

Devin suspirou.

— Sinto muito. Mas Miranda é minha esposa agora. — Como Leona continuasse a encará-lo, ele continuou, irritado: — Você não imaginou como seria? Você foi quem me induziu a casar.

— Para obter o dinheiro do qual nós dois precisávamos desesperadamente! — Leona atacou-o de volta. — Não para virar um matuto pedante. O que aconteceu com você?

Ele deu de ombros.

— Não sei, Leona. Eu só... eu mudei. — Ele fez uma pausa e então disse: — Estou diferente agora. Minha vida é diferente. Você e eu...

Leona pôs a mão na boca dele, silenciando-o.

— Shhh. Você não sabe o que está falando. Toda essa vida bucólica afetou seu cérebro.

Ela chegou ainda mais perto de Devin, o corpo roçando o dele, a mão deslizando da boca para acariciar a face e o pescoço.

— Conheço você, Dev — disse ela, com um tom de voz baixo e íntimo. — Conheço você melhor que ninguém. Você não consegue me enganar. Você ainda é o mesmo Devin, o homem que eu amo.

Pegou uma das mãos dele e guiou-a até o decote do vestido, segurando a mão dele no volume exposto de seus seios.

— Sei do que gosta... — continuou Leona, roucamente. — Por que não vamos lá para cima, para que eu possa lembrar-lhe do que está perdendo?

Levantou a mão dele até sua boca, beijando as pontas dos dedos, prendendo a ponta do polegar entre os dentes.

Devin olhou para ela. Os olhos eram dourados, iluminados por um brilho sedutor; os lábios eram carnudos de uma forma que, com certeza, faria um homem querer beijá-los. Os seios eram fartos. E ele estava, surpreendentemente, imóvel. Pela primeira vez que podia se lembrar em quase 15 anos, não sentiu qualquer desejo por Leona. Apesar do que viera dizer-lhe, não antecipara isso.

— Leona, não. — Ele puxou a mão de volta e saiu de perto. — Não posso fazer isso. Sou um homem casado agora. É diferente.

Ele se virou, o rosto e o tom de voz formais.

— Deixe-me dizer-lhe o que vim aqui para dizer. Eu mudei, Leona. Não sei exatamente como ou por que, mas é verdade. Não posso desfazer isso. Não quero desfazer isso. Não posso ser do modo como costumava ser, do modo como era com você. Não posso fazer as coisas que fazia nem agir da mesma forma. Não quero mais. Não posso ser o marido de Miranda e ter você como amante. Não seria justo com nenhuma das duas. — Ele fez uma pausa e disse as palavras que nunca pensou que iria proferir. — Não posso mais ver você.

Leona empalideceu com o choque. Devin sentiu-se culpado ao observá-la. Amara-a por muitos anos, e era quase tão inacreditável para ele como para Leona que finalmente tivesse deixado de amá-la. Mas percebeu, olhando para ela, que já não a amava mais. Ele tomara a decisão, na noite anterior, de romper com Leona, mas pensava que ainda a amava. Imaginara que seria mais difícil terminar o relacionamento, que se veria em um conflito maior. Esperara se sentir dividido ao se decidir por Miranda. Mas tudo o que sentia neste momento era alívio. Leona parecia quase uma estranha para ele agora, um tanto exagerada com sua vestimenta e trejeitos provocativos, suas lembranças dela e de seu amor por ela embaçadas pela névoa de álcool na qual passara a maior parte do tempo.

Ocorreu-lhe, surpreendendo-o, o quão pouco tempo passara com Leona todos esses anos e o quão pouco realmente a conhecia. Seus momentos juntos foram sempre breves e furtivos, tingidos pela excitação do proibido e anuviados pela quantidade de álcool que sorvera. Não houvera momentos em que ficassem juntos conversando e rindo, como os que vivenciara com Miranda nas últimas semanas. Ele poderia dizer milhares de coisas sobre o passado de Miranda, mas, mesmo com todos esses anos em que estivera enamorado de Leona, só sabia que ela não gostava das duas irmãs e que raramente as via.

— Sinto muito — disse ele. — Mas não posso mentir para você. Você não vai querer isso.

— Eu não quero isso! — A raiva contorceu a expressão de Leona, transformando as linhas delicadas e sensuais em traços duros, e ela fez um gesto impetuoso com o braço. — Você está me deixando por aquela... aquela., estúpida, insossa, vadia americana?

— Ela não é uma vadia! — Devin ficou enfurecido.

— Como ousa? — Leona ganiu. — Eu sou Leona Vesey! Metade dos cavalheiros da sociedade inglesa me quer! Você deveria se sentir honrado por eu tê-lo deixado usufruir da minha cama. Não consigo acreditar... depois de todos esses anos que passei com você! Eu poderia ter tido qualquer um, sabe, e escolhi você. Há uma lista de homens que quiseram tomar seu lugar no decorrer dos anos. Tudo o que tenho a fazer é estalar os dedos e eles virão correndo.

— Tenho certeza de que isso é verdade — disse Devin, freando sua irritação. — Qualquer homem quereria você.

— Não seja condescendente comigo! — O lábio de Leona se apertou e as palavras jorraram de sua boca, como ácido. — Você é um tolo, Dev. Não sei por que fico surpresa com isso. Os homens são sempre uns tolos. Você encontrou um novo brinquedo. Ela requebrou os quadris e revirou aqueles olhos, o tempo todo fingindo achar que suas pinturas idiotas são verdadeiras obras de arte. Agora você pensa que será um bom marido e ficará aqui em Derbyshire, pintando e copulando com aquela americana parva. Arrá! Em dois meses você estará morrendo de tédio. Vai acordar certa manhã e perceber o que fez. E vai me querer de volta. Não vai conseguir me tirar do seu sangue. Eu possuo você, Dev. Eu o possuo desde que tinha 18 anos e era um sem-graça vindo do interior. Devin olhou para ela, os olhos frios e insensíveis.

— Você nunca me possuiu, Leona. Eu a amava. Há uma diferença.

— Oh, por favor. Você teria feito qualquer coisa que eu pedisse, e sabe disso. Porque você queria estar em minha cama.

— Isso é tudo o que você pensa que era? Leona lançou-lhe um olhar expressivo.

— O único motivo pelo qual se casou com ela, se bem se lembra, foi porque eu quis que o fizesse. Eu o provoquei e o instiguei de um jeito que você teria feito qualquer coisa que eu dissesse. Pense, Devin. Sua senhorazinha insípida não será capaz de satisfazê-lo como eu sou. Você vai sentir falta. Sabe que vai. E vai se arrepender. Você voltará para mim de joelhos. Mas sabe do que mais? Eu não estarei aqui. Você terá perdido sua chance.

Devin olhou para ela, olho no olho.

— Não, Leona. Não voltarei.

Virou-se e saiu da casa. Montando em seu cavalo, seguiu de volta para Miranda.

 

Miranda não viu Devin quando ele voltou para casa aquela tarde. Ainda estava no quarto de Elizabeth, cuidando da madrasta. Para sua surpresa, era fim de tarde e Elizabeth ainda não acordara, de modo que Miranda continuou ao lado da cama. Sua ansiedade aumentou quando anoiteceu e Elizabeth ainda dormia profundamente.

Verônica rendeu Miranda por algumas horas, mas, como só tinha 14 anos, era difícil ficar parada por muito tempo. Então Miranda voltou para sua vigília. Não entendia por que Elizabeth ainda não acordara, mas isso não parecia ser um bom sinal. Convenceu-se de que o ato de vomitar a deixara exaurida. É bom dormir quando se está passando mal; isso dá ao corpo a chance de se recuperar. Mas ela não podia deixar de sentir que havia algo errado com o sono prolongado de Elizabeth.

Miranda chamou a criada para levar o jantar no quarto de Elizabeth. Mais tarde, para sua surpresa, houve uma batida na porta e ela se abriu. Era seu marido quem carregava a bandeja contendo o jantar, não a criada.

— Devin! — exclamou Miranda com prazer, levantando-se e indo até ele. — O que está fazendo aqui?

— Quando me disseram que você não desceria para jantar, decidi trazer a bandeja eu mesmo. Não a vejo desde hoje de manhã.

Ele colocou a bandeja em uma mesa baixa e olhou para a cama onde Elizabeth jazia, imóvel.

— A Sra. Upshaw está passando muito mal?

— Não tenho certeza. Acho que não. Estou preocupada por ela não ter acordado ainda. Pensei em ficar aqui até ela acordar. — Sorriu para Devin e estendeu as mãos para pegar a dele. — Mas sentirei falta de vê-lo no jantar.

Ele sorriu e levou a mão dela aos lábios.

— Eu também.

Miranda ficou curiosa para saber se Leona o visitara na abadia, mas não poderia perguntar, assim, diretamente.

— Como foi seu trabalho hoje? — perguntou, esperando que isso o levasse a mencionar a visita de Leona.

— Foi bem, depois que comecei. — Devin começou a dizer algo mais, e então hesitou e olhou para a madrasta adormecida. Levou a mão dela aos lábios de novo e beijou-a, dizendo: — Não incomodarei vocês. Só queria vê-la. Falo com você depois.

— É claro.

Ele saiu do quarto e Miranda suspirou, frustrada. Gostaria de saber o que ele esteve prestes a dizer. Gostaria de saber se vencera o desafio lançado a Leona, ou se o perdera — e a Dev — no processo.

Lá pelas dez horas, a madrasta acordou, murmurando palavras incoerentes. Olhou em volta demonstrando estar confusa. Miranda levantou-se e foi para o lado dela.

— Elizabeth? Como está se sentindo? Elizabeth piscou, meio grogue.

— Eu... onde... por que está aqui? Oh, me lembro. Eu estava passando mal, não estava?

— Sim, e você dormiu a tarde toda. Está se sentindo melhor agora?

— Não sei ao certo, — Elizabeth fechou os olhos de novo como se fosse muito difícil mantê-los abertos. — Estou tão cansada.

— Você quer algo para comer? Uma sopa, talvez? Mas Elizabeth já estava dormindo de novo.

O fato de a madrasta ter acordado deixou Miranda mais tranqüila. Ela não tinha perdido a consciência de vez, como Miranda começara a temer. Sem dúvida, o enjôo daquela tarde a derrubara completamente. O sono era, acima de tudo, o melhor remédio.

Seu pai veio depois disso para saber do estado de saúde da esposa. Elizabeth acordou ao som da voz dele e disse algumas palavras. Sentindo-se confiante agora que a madrasta estava melhor, Miranda decidiu que não teria de dormir em um catre no quarto de Elizabeth aquela noite, como começara a desconfiar que teria de fazer. Seria o suficiente que uma das criadas ficasse lá.

Então, depois de chamar a criada e instruí-la a acordá-la se houvesse alguma mudança alarmante no estado geral de Elizabeth, Miranda foi para o próprio quarto. A criada estava lá e já trouxera uma banheira e a estava enchendo com água morna, antecipando o desejo de Miranda. Ajudou-a a se despir e a entrar na banheira. Depois de um longo banho de imersão, Miranda se sentia muito melhor, embora ainda estivesse preocupada com a questão de Leona ter ou não visitado a abadia aquela tarde. Se Devin não falara nada a respeito, o que isso significava?

Vestiu a camisola pela cabeça, escovou os cabelos e deitou-se na cama. Já estava quase dormindo quando a porta do quarto de Devin se abriu.

Prendeu a respiração e ficou tensa. Devin parou na porta. Trazia uma vela que lançava uma luz tremeluzente em seu rosto. Seus olhos estavam escuros, a face assombreada. A camisa estava desabotoada, aberta e solta na frente. Miranda observou, imóvel, quando colocou a vela na mesa e atravessou o quarto em sua direção.

Parou ao lado da cama e ficou olhando para ela por um bom tempo. As cortinas da janela estavam abertas e a luz da lua iluminava o rosto dele.

Devin inclinou-se para baixo e botou a mão no colo dela. Sua carne estava quente e levemente arrepiada, e tremia um pouco com a batida de seu coração. Miranda não precisou perguntar o que ele queria. Ela sabia.

Miranda respondeu sem palavras, alcançando-o e colocando a mão no punho dele, e então deslizando-a para cima.

— Quero você. — Sua voz era baixa e rouca. — Não creio que jamais tenha desejado alguém como a desejo.

A mão dele começou uma jornada lenta e instigante para baixo, pelo tórax dela, deslizando pelos seios até chegar na região plana de seu abdômen. Miranda não falava, mal respirava. Queria que ele continuasse. Naquele momento, não se importava mais com seus planos futuros relacionados a seu casamento, ou com o fato de ele se comprometer com ela exclusivamente, ou com o que havia acontecido hoje na abadia. Agora, sabia, concordaria com quase tudo, contanto que significasse que ele passaria a noite em sua cama. Esse era o futuro mais distante em que podia pensar.

Ele abriu a palma da mão no abdômen de Miranda, abarcando toda aquela dimensão com a mão. Depois deslizou-a para o quadril e para a perna, voltando para cima e cruzando para o outro lado.

— Eu quero um casamento de verdade — disse ele. — Não quero que vivamos um acordo de "negócios" ou que levemos vidas separadas. E não vou dividir você com nenhum outro homem. Eu quero você... e só você. — Ele fez uma pausa, e então acrescentou. — Rompi com Leona hoje.

Miranda deu um suspiro agudo.

— Devin...

— Você vai me deixar tentar ser um marido de verdade? Sua mão escorregou de volta para a frente e Miranda não pôde conter um gemido trêmulo.

— Sim — foi tudo o que conseguiu proferir. — Sim... Eles se uniram com voracidade, arrancando as roupas e jogando-as de lado, as semanas de desejo contido repentinamente liberado em uma torrente de paixão. A boca dele estava sedenta; a dela, não menos. Beijaram-se e acariciaram-se, os corpos ávidos rolando pela enorme cama. Devin não conseguia se saciar de Miranda — o gosto, a sensação, o cheiro dela. Ele ansiara por ela por semanas, e agora ela estava em seus braços, dócil, quente e tão ávida por ele quanto estava por ela. Devin beijava-a sem parar, seus lábios passando pelo rosto, pelo pescoço e descendo até o tórax, parando por fim naquele sublime monte macio. Ele segurou o seio de Miranda com a mão e explorou o mamilo com a boca, provocando-o com a língua, os lábios e os dentes, fazendo Miranda gemer e arquear o corpo, cravando os dedos nos ombros dele.

Um calor tomou conta do abdômen de Miranda, o desejo úmido entre as pernas. Ansiava por ele. As mãos dela vasculhavam Dev, querendo sentir todas as suas texturas — a ossatura sólida das costelas, a curva tesa dos músculos das costas, a pele macia do abdômen que tremia quando os dedos dela o acariciavam, o pêlo grosso, crespo no tórax que descia em uma linha fina até o abdômen, e depois para baixo... Cada parte dele era instigante, intrigante, e Miranda seria capaz de continuar explorando-o por horas não fosse pela contínua contração do nó que urgia em sua virilha, a dor prazerosa entre suas pernas que ansiava ser preenchida.

Murmurou o nome dele, que o sorveu com um beijo intenso. Enquanto a beijava, Dev deslizou a mão lentamente pelo corpo dela. Seus dedos iam do abdômen para a coxa, depois voltavam, acariciando e provocando, chegando cada vez mais perto do centro fogoso de sua paixão, até que, finalmente, quando Miranda achou que não iria mais agüentar, a mão dele deslizou por entre suas pernas, encontrando seu centro quente e úmido. Um gemido escapou de Miranda, e ela tremeu, espantada pelo prazer, maior do que qualquer um que jamais sentira. Ainda assim, por outro lado, aquilo não era o suficiente. Os dedos dele abrandavam sua ânsia ao mesmo tempo em que a aumentavam, tanto amansando-a quanto estimulando-a, até que Miranda pensou que enlouqueceria com o prazer selvagem e quente que Devin criava nela.

Seus dedos separaram os lábios escorregadios de sua feminilidade, explorando e acariciando, deslizando para dentro dela e depois saindo. Ela movia os quadris de encontro a ele, clamando pela consumação, mas ele continuou suas carícias eróticas com uma lentidão enlouquecedora. Uma sensação crescia dentro de Miranda, selvagem e furiosa, um nó que contraía e aumentava a cada carícia, levando-a quase aos soluços. Eis que então algo explodiu dentro dela como uma fogueira. Miranda perdeu o fôlego e arqueou os quadris para cima, os músculos se contraindo enquanto era tomada por um prazer que vinha em ondas. Por fim, desfaleceu, ofegante e saciada pelo prazer mais luxuriante que jamais sentira.

— Devin... — Seu nome era um sussurro em seus lábios. Olhou para ele com ar sonhador.

O desejo transpassou-o com aquela reação. Devin não podia mais esperar. Moveu-se por entre as pernas de Miranda e deslizou para dentro. Ela prendeu a respiração diante dessa nova sensação. Pensara que não conseguiria sentir mais prazer depois da torrente que tomara conta dela há alguns instantes, mas descobriu agora que era capaz de sentir muito mais. Ele a preenchia, produzindo a consumação e a saciedade que ela nem imaginava existir. Os dois estavam unidos, eram um só, e pela primeira vez Miranda entendeu a unidade do amor. Ele lhe pertencia, e ela a ele.

Abraçou Devin com as pernas e os braços, segurando-o firmemente enquanto ele começava a se mover dentro dela. Sua respiração fremia quando ele entrava e saía, fazendo crescer novamente aquele nó de desejo. Não podia acreditar que estava acontecendo de novo, só que, dessa vez, a sensação era ainda mais maravilhosa, porque ele estava dentro dela enquanto sentia as ondas de prazer explodirem de novo. E, ao aproximar-se do ápice de sua paixão, ele se juntou a ela, estremecendo e abafando seu grito de paixão no pescoço de Miranda.

Eles ficaram agarrados, esquecidos do restante do mundo, lânguidos e realizados.

Devin despertou lentamente. Ele se sentia, pela primeira vez na vida, total e completamente em paz. Virou a cabeça e olhou para a mulher que estava deitada a seu lado. Miranda ainda estava dormindo, os cílios negros fazendo sombra na face, a expressão inocente e vulnerável do sono, os cabelos um emaranhado vibrante sobre o travesseiro. Ela era bonita, pensou, e se perguntou como poderia ter pensado que era algo menos que isso. A noite passada havia sido a primeira vez para ele, assim como para Miranda. Nunca sentira tanta sede e desejo, tanto prazer, tanta satisfação e alegria. Mesmo todos os subterfúgios sedutores de Leona nunca o fizeram explodir com felicidade, ao mesmo tempo em que alívio.

Tocou a face de Miranda com o dedo, descendo vagarosamente até o queixo. Ela acordou e olhou para ele meio sonolenta, um sorriso brotando nos lábios.

— Bom dia — murmurou ela.

— Bom dia. — Ele se inclinou sobre ela e beijou delicadamente seus lábios. — Como se sente?

— Bem. — O sorriso de Miranda abriu-se ainda mais. — Melhor do que isso, na verdade. Estou me sentindo maravilhosa.

— Isso você é mesmo — concordou ele e beijou-a de novo, mais demoradamente dessa vez.

O desejo tomou conta de Devin mais uma vez, sem aquela agudeza cortante que sentira nas últimas semanas, mas de um jeito profundo e intenso. Ele gostou da sensação, sabendo que agora seria satisfeita. Esta manhã, já tendo saciado sua ânsia mais premente, Devin poderia aproveitar o tempo, explorar e conhecer seus segredos femininos, ensinar-lhe a opulência de prazeres guardados dentro dela.

Pôde sentir o sorriso de Miranda por baixo de seus lábios quando ela cruzou os braços por trás do pescoço dele e entregou-se ao prazer. Os dois se mexeram em um ritmo vagaroso esta manhã, dando e recebendo, aproveitando cada nuance de sua paixão. E, quando atingiram o ápice do desejo, a explosão que os sacudiu foi ao mesmo tempo familiar e nova, tão poderosa quanto a que haviam sentido na noite anterior.

Era uma maneira adorável, pensou Miranda depois, de começar o dia.

Depois disso ficaram deitados conversando por algum tempo. Falaram sobre assuntos sem importância, mas era uma delícia deitar assim, repassando os momentos comuns de suas vidas. Eles falaram sobre as pinturas das ruínas da abadia e das limitações de Strong, o gerente da propriedade. Miranda observou que ainda havia muitas coisas que precisava ver, como a parte da propriedade que ficava nos rochedos e algumas das fazendas agrícolas, isso sem mencionar partes da ala oeste destruídas e os porões da casa.

— Os porões? — repetiu Devin, com um pequeno riso. — Por que você iria querer vê-los?

— Eu quero ver tudo — respondeu, simplesmente, Miranda. — Todas as partes da casa.

— Eles são enormes. Se estendem por baixo de quase toda a parte central de Darkwater. E são velhos. Não tenho certeza se são seguros.

— Há calabouços? Ele riu novamente.

— Falou a filha do seu pai. Pelo que sei, eram usados apenas para armazenar coisas. Grandes quantidades de coisas. Entretanto, há alguns cômodos pequenos trancados...

— Sério? — Miranda deitou-se de lado para olhar para ele, intrigada.

— Sim, sério. Mais cômodos de armazenagem, onde guardavam munições e bens de valor, sinto dizer.

Miranda fez uma careta.

— Você não tem qualquer senso de romantismo.

— E eu que achava que era terrivelmente romântico. — Ele sorriu, preguiçosamente, passando o dedo pelo pescoço dela em direção ao tórax.

Um pequeno frêmito atravessou o corpo de Miranda.

— Bom, em alguns aspectos você é... Ele a beijou, dando um fim à conversa.

Só algum tempo depois desceram para o café-da-manhã. Todos os demais já haviam comido e seguido seus caminhos, de modo que os dois ficaram sozinhos. Foi quando já estavam quase terminando que Miranda lembrou-se, culposa, de que a madrasta estava doente e que ainda não havia verificado seu estado de saúde naquela manhã.

Assim que Devin saiu para as ruínas da abadia, Miranda subiu as escadas até o quarto de Elizabeth. A criada estava obedientemente sentada ao lado da madrasta, da mesma forma como Miranda a deixara na noite anterior. Elizabeth, por sua vez, estava desperta e sentada na cama com uma grande quantidade de travesseiros apoiados em suas costas. Parecia estar bem melhor do que no dia anterior, embora a pele ainda estivesse pálida, os lábios ressecados, e sob seus olhos houvesse grandes olheiras escuras que contradiziam as longas horas de sono que dormira no dia anterior.

— Como se sente, Elizabeth? — perguntou Miranda, aproximando-se e fazendo um gesto com a cabeça para liberar a criada.

— Miranda. Minha querida. Estou melhor, acho. — Elizabeth balançou a cabeça. — Ainda um pouco zonza, no entanto. É muito estranho. Não lembro de ter me sentido assim antes. Ficava acordando toda hora durante a noite e pegando no sono novamente. Não conseguia manter os olhos abertos por mais que alguns segundos. Meu estômago dói... e minha cabeça. — Ela suspirou.

— Bom, graças a Deus isso parece ter passado e você está se recuperando — disse Miranda, animada.

Elizabeth estendeu as mãos e pegou a de Miranda.

— A criada estava me dizendo que você ficou sentada ao meu lado ontem o dia todo. Que nem mesmo desceu para comer. Você é uma menina tão adorável.

— Eu estava preocupada com você — respondeu Miranda, honestamente. — Você dormiu demais.

Elizabeth franziu o cenho.

— Sim. Dormi. É estranho.

Miranda ficou lá por mais alguns minutos, conversando, mas sentia que estava deixando Elizabeth cansada. Então saiu para que a madrasta pudesse voltar a dormir, indo para a biblioteca, para trabalhar.

Achou que ia ser difícil concentrar-se nos livros de contabilidade e nas explicações nada claras do Sr. Strong sobre o funcionamento da propriedade. Então, aquela tarde, Miranda foi aos estábulos, pediu que lhe fosse selado um cavalo e cavalgou até as ruínas da abadia. Ela e Devin haviam cavalgado até a abadia antes; este era um dos seus lugares favoritos em toda a propriedade. Mas hoje tinha um atrativo especial.

Devin estava lá, pintando, mas parou prontamente ao ver Miranda. Ela trouxera uma pequena cesta de piquenique com um almoço que o cozinheiro preparara a seu pedido. Comeram sentados à sombra de uma das paredes ainda intactas.

A abadia era um lugar perturbador, árido e em ruínas, com paredes pela metade e chão de laje coberto por grama e ervas daninhas. Muitas das pedras nas paredes da construção tinham sido retiradas e transportadas para Darkwater para construir a mansão Aincourt. Duas paredes da catedral central — uma com a janela lindamente arquitetada, sem o vidro — permaneciam intactas, grandes e imponentes, com os arcos medievais de costume, mas as outras duas paredes estavam reduzidas a escombros. Partes da abadia eram identificáveis apenas por uma fila de pedras enterradas pela metade no chão, demarcando os formatos dos cômodos. Em outros lugares havia escadas que levavam a um patamar superior inexistente, ou então buracos vazios sem fundo no chão onde o piso caíra porões abaixo.

E, ainda assim, possuía uma beleza singular, pensou Miranda, ao mesmo tempo rígida e pacífica, derrotada mas também inconquistável. Depois de todo esse tempo e de tudo o que se havia feito com ela, a abadia ainda estava ali, anos e anos após a morte dos homens que a destruíram. Quando olhou para a pintura de Devin da abadia, viu que ele fora capaz de capturar a eternidade do lugar, sua grandeza fantasmagórica. Pôs a mão em cima da dele e a apertou, sorrindo para o marido.

Naquele momento, não achava que poderia haver mulher mais feliz no planeta.

Nos dias que se seguiram, nada aconteceu que a fizesse mudar de opinião. Miranda passou a maior parte do tempo com Devin. Estava negligenciando o trabalho, sabia, mas não se importava. Seu pai era suficientemente capaz de lidar com todos os aspectos da restauração da casa. Ele e Hiram poderiam lidar com quaisquer contratempos que surgissem em relação aos negócios. No que se referia ao restante da propriedade de Devin, bem, isso poderia esperar mais alguns dias; já esperara por muitos anos. Prometeu a si mesma que retomaria logo o trabalho, mas mexer na negligência de tantos anos era uma tarefa melancólica demais para quem estava se sentindo daquele jeito, fervilhando de alegria a cada minuto do dia.

Todos repararam a mudança de Devin e de Miranda. Seu pai sorriu secretamente, como se quisesse dizer que estivera certo todo o tempo. Certa noite, durante o jantar, ele observou, jovialmente:

— Estou surpreso que vocês dois não tenham decidido viajar em lua-de-mel. Vão a Viena ou a algum lugar assim.

— Isso mesmo — concordou tio Rupert. — Ficar a sós por um tempo. É muito bom, diria. Sem desenhos enfadonhos, também.

Devin sorriu.

— Sugeri isso a Miranda. Mas ela preferiu ficar aqui e vasculhar a velha casa mofada.

— Isso não é verdade. Eu disse que adoraria ir, mas primeiro tenho de colocar a propriedade em ordem novamente. Papai pode cuidar da supervisão da "velha casa mofada" sendo restaurada. Mas ainda preciso me reunir com os arrendatários e visitar as fazendas maiores.

Devin lançou-lhe um olhar carinhoso.

— Então creio que nossa lua-de-mel será uma viagem aos rochedos, ao que tudo indica. Miranda deseja conhecer nossas terras por lá.

— Você se refere à montanha Apworth? — perguntou lady Ravenscar, espantada. — Por que quereria ver aquilo, Miranda?

— Ela é bonita de um jeito todo particular, mamãe — argumentou Rachel.

— Mas não há lugar para ficar — disse Rupert, unindo-se em coro com a irmã.

— Não é verdade, tio — disse Devin. —Já fui até lá muitas vezes. Bert Jones sempre fica feliz em me deixar ficar em sua casa, com sua família. Ele ficaria duplamente feliz se eu levasse uma linda esposa comigo. Daqui até Apworth é uma cavalgada tranqüila.

— Bert Jones? — As sobrancelhas de lady Ravenscar se arquearam ainda mais. — Você vai alojar sua esposa em uma casinha de sapé?

— Estou certa de que já fiquei em lugares piores, lady Ravenscar — disse-lhe Miranda, animada. — Mas é claro que poderíamos também armar uma barraca. Devin me contou que tem uma.

Lady Ravenscar pareceu que ia desmaiar.

— Minha querida... acampar...

— Seria um lugar maravilhoso para pintar — continuou Devin, empolgando-se com a idéia.

— Francamente, Devin, você não pode sair arrastando sua esposa pelo interior inóspito só para pintar uma paisagem.

— Mas eu quero vê-la — assegurou-lhe Miranda. — Estou interessada em todas as áreas da propriedade.

Tio Rupert deu de ombros.

— Pessoalmente, acho que escolheria Viena para uma lua-de-mel, mas cada um sabe de si.

— Nós iremos a Viena também — garantiu-lhes Miranda. — E à Itália. — A idéia de uma viagem com vagar por Florença, Roma e Veneza com Devin a atraía muito. Ela olhou para ele e seu coração se encheu de emoção. — Mas temos a vida inteira para isso.

Devin saiu cedo na manhã seguinte para o pequeno lago Darkwater. Acabara uma série de esboços das ruínas da abadia um ou dois dias antes e decidira passar para o lago negro que emprestara seu nome à casa. Miranda acordou tarde e desceu para a biblioteca. Precisava terminar algumas cartas para seu gerente em Nova York, e então, pensou, iria pedir ao Sr. Strong que a levasse para conhecer algumas das fazendas arrendadas. Estivera lendo uma grande quantidade de informações sobre métodos aperfeiçoados de cultivo e queria conhecer mais a terra para ter uma idéia melhor do que teria de fazer.

Mas quando chegou à biblioteca, encontrou um bilhete na mesa, esperando por ela, que a fez tirar todos os pensamentos relacionados a Strong e às fazendas arrendadas da mente. Seu nome estava rabiscado na parte de fora do bilhete. Miranda sorriu. Vira a assinatura de Devin poucas vezes, mas reconheceu imediatamente as letras pontudas como sendo sua caligrafia característica. Rompeu o lacre e leu o breve bilhete:

Minha amada,

Encontre-me na entrada do porão que há na parte de trás da casa, à uma hora da tarde. Tenho algo para mostrar-lhe.

Estava assinado apenas com um grande R. Abaixo da mensagem havia um mapa tosco mostrando a localização da entrada do porão. Miranda leu o bilhete uma segunda vez, intrigada. Não conseguia imaginar o que Devin queria lhe mostrar ou por que teria escolhido um local tão estranho. Ela nem mesmo reparara que havia uma entrada de porão localizada ali. Além disso, ele não estaria lá hoje. Disse que iria para o lago Darkwater. Miranda ficou se perguntando se ele teria mudado de idéia ou se o lago fora um pretexto para alguma surpresa que havia preparado. Um sorriso brotou em seus lábios em antecipação. O que quer que Dev tenha planejado, tinha certeza de que seria muito mais divertido do que cavalgar pela propriedade com Strong.

Enviou uma mensagem ao homem dizendo que o encontraria no dia seguinte. Em seguida, sentou-se para trabalhar na correspondência, querendo terminá-la antes de seu encontro com Devin. Foi difícil, porque sua mente ficava divagando para o encontro com o marido.

Ficou pensando no que iria vestir. Será que teria de se trocar e pôr um vestido velho, mais apropriado para uma visita aos porões sem dúvida imundos? Ou deveria deduzir que os porões eram meramente um artifício e que ele tinha algum outro destino em mente e, com isso, deveria continuar com o que estava usando, que era um dos vestidos preferidos de Devin?

Finalmente se decidiu pela opção mais vaidosa e não subiu para pôr um vestido velho. Em vez disso, à uma da tarde, saiu pela porta dos fundos e caminhou, seguindo as instruções do mapa, na direção oeste. A quase meio caminho do muro de trás da casa, Miranda viu a pequena porta embutida do porão, exatamente onde o mapa a mostrara. Parecia estranho que não a houvesse visto antes. Então reparou que a hera em volta da porta havia sido aparada recentemente. Percebeu que isso é o que deveria ter escondido a porta até agora e que Devin a retirara especialmente para esta tarde.

Com um sorriso nos lábios, botou a mão na maçaneta e empurrou a porta. Piscou os olhos, olhando para a funesta escuridão interior, incapaz de distinguir qualquer coisa dentro do porão por seus olhos estarem acostumados à luminosidade do sol do verão.

— Dev? — chamou, hesitante, dando um passo para dentro, ainda segurando a porta com o braço esticado. Ela espreitava a escuridão. — Você está aí? Não consigo ver nada.

Naquele momento, a mão de alguém emergiu e segurou seu braço, empurrando-a para dentro, na escuridão. Ela tropeçou, dando um grito de protesto por causa daquela brutalidade. No instante seguinte, essa mão empurrou-a no meio das costas e Miranda caiu para a frente, em um espaço vazio e escuro.

 

Devin só voltou do lago Darkwater quando a luz do dia começou a diminuir. Tivera um dia longo e satisfatório. Ao cavalgar para casa, antecipou com prazer o momento de mostrar para Miranda os esboços preliminares que fizera do lugar. Quando chegou à casa, entregou o cavalo a um cavalariço e foi direto para a biblioteca. Ela estava vazia, exceto pela presença de Hiram, que trabalhava em uma pilha de papéis.

— Você sabe onde está Miranda? — perguntou a Hiram, que olhou para ele, sem entender. — Miranda — repetiu, depois de um instante, perguntando-se o que haveria de errado com o homem. — Você sabe onde ela está?

— Mas, eu... Bem, eu pensei que ela estava com você.

— Comigo? Não. Estive fora o dia todo no lago. Por que pensou que estava comigo?

— Eu... Bem, deduzi que era com você. Ela terminou uma carta para seu banqueiro em Nova York, entregou-a a mim e disse que tinha um compromisso. Algo no jeito como sorriu, eu, ah, pensei que significava que era com você.

— Não. — Devin olhou para ele. — Deve ter sido com o pai dela ou com o arquiteto.

O outro homem deu de ombros, mas havia uma expressão duvidosa em seu rosto.

— Suponho que sim, meu senhor. Ela não chegou a dizer. Devo ter interpretado erradamente.

Devin virou-se e subiu as escadas. Verificou primeiro em seu quarto, mas ela não estava lá. Alguma coisa na expressão estranha de Hiram disparara um alarme dentro dele. O homem tivera certeza de que Miranda se referira a ele. Por quê? Porque agiu do modo como agia quando falava dele. Foi isso o que Hiram quis dizer. Que outro homem a faria agir dessa forma? Com certeza, não o seu pai... ou qualquer outro em que Devin conseguia pensar naquela casa.

Sua mente voltou-se automaticamente para o jovem médico da vila, e, por um instante, o ciúme tomou conta dele. Mas a razão preponderou. Devin sentia tanta confiança em Miranda quanto ela sentia nele — provavelmente mais ainda. Se houvesse decidido arranjar um amante, teria dito isso a ele sem rodeios. Convenceu-se de que Hiram deveria ter se confundido, mas não conseguiu domar o medo que brotava em seu peito. Tornara-se confiante nas últimas semanas porque nada que incomodasse havia acontecido. E, de qualquer forma, nunca imaginara que o perigo ameaçava alguém senão ele mesmo...

Deu voltas pelo quarto e saiu abruptamente. Primeiro, foi ao quarto dos Upshaw, no qual encontrou Joseph e a esposa.

— Miranda? — disse o pai, surpreso. — Não, não a vejo desde a hora do almoço. Você olhou na biblioteca?

— Ela já saiu de lá há algum tempo.

— Onde está ela? — Elizabeth ergueu a voz, histericamente. — Aconteceu algo a ela?

Ele olhou para a mulher. Raramente via a madrasta de Miranda, que ficava sempre no quarto, mas, ao olhar para ela agora, uma sensação estranha tomou conta de Devin. Logo depois essa sensação passou, tão rápido quanto surgiu, e ele viu apenas uma mulher assustada na sua frente.

— O que você fez com ela? — continuou Elizabeth, sua voz quase um ganido.

— Elizabeth! Querida, o que está dizendo? —Joseph virou-se para a esposa com uma expressão horrorizada. Colocou as mãos nos braços dela e virou-a, levando-a até uma cadeira. — Por favor, tenho certeza de que não há nada com o que se preocupar. Miranda sabe tomar conta de si mesma. Sempre sai por aí sozinha. Ela voltará antes do jantar.

Joseph voltou até Devin, dizendo em voz baixa:

— Peço desculpas. Minha esposa não está se sentindo bem e se preocupa muito com as meninas. Ela tem estado muito ansiosa nas últimas semanas. Não sei exatamente por quê. Vamos sair e ver se conseguimos encontrar essa menina.

Mas Elizabeth não seria deixada para trás. Insistiu em ir com eles procurar Miranda. Primeiro foram no quarto de Verônica, no qual descobriram que ela não vira a meia-irmã o dia todo. Devin foi de porta em porta por toda a casa, um medo crescendo a cada momento que passava e em que ele abria e fechava portas de cômodos vazios. Algo acontecera a ela. Ele fora descuidado, inconseqüente, e Miranda pagara o preço.

O grito de Miranda atravessou o ar quando foi arremessada para a frente na escuridão total. Por um instante de cegueira e pânico teve certeza de que estava morta. Então bateu de encontro a uma parede dura e escorregou por ela, os pés tropeçando nos degraus de pedra. Suas pernas prenderam-se por debaixo dela. Miranda caiu violentamente de joelhos, batendo com o lado do corpo na parede mais uma vez. Parou, encolhida contra a parede, e ficou imóvel por um bom tempo, estupefata.

Gradualmente, a dor em várias partes do corpo sobrepôs-se ao choque que a havia dominado. A cabeça doía, as pernas estavam cruzadas em uma posição insustentável por baixo dela; as palmas das mãos ardiam, assim como o braço esquerdo. Ela se moveu cuidadosamente, levantando a mão para encostá-la na parede que não podia ver enquanto esticava primeiro uma perna, depois a outra. Miranda deu um suspiro de alívio quando seus pés acharam degraus de pedra, e não apenas ar, abaixo deles. Um pouco mais confortável, recostou-se na parede, cruzando os braços numa tentativa de parar a tremedeira que tomara conta de seu corpo.

Alguém a atacara! Levou algum tempo para que chegasse a pensar nisso. Mas alguém claramente a havia atraído para esta entrada de porão com um bilhete. Depois a puxara para dentro e a empurrara escada abaixo. Essa pessoa deve ter achado, obviamente, que Miranda morreria na queda. E isso teria acontecido, se o empurrão que deram nela não a tivesse jogado para o lado, além de para a frente, de modo que foi de encontro à parede ao lado dos degraus, em vez de direto para a frente e para baixo.

Miranda desejava poder parar de tremer. Estava frio e úmido no porão, e isso, combinado ao calafrio de medo, a estava congelando. Enroscou-se de encontro à parede no escuro, tentando pensar. Como aquilo acontecera? Mais do que isso, quem a queria morta?

Seus pensamentos voltaram-se automaticamente para os avisos que a madrasta dera no outro dia. Miranda não os levara em consideração, deduzindo que eram simplesmente fruto do tipo de ansiedade infundada da qual Elizabeth sofria com freqüência. Mas agora não tinha como deixar de pensar nisso, de trazer à memória e considerar o que fora dito. O bilhete fora escrito por Dev, levando-a a este lugar propício à morte. E quem mais se beneficiaria com sua morte? Bem, seu pai e Verônica, verdade seja dita, mas Miranda acreditaria que eles seriam capazes de matá-la tanto quanto ela seria de voar. Dev, ainda que não herdasse toda sua fortuna, teria direito a uma grande soma em testamento, o suficiente, como argumentara Elizabeth, para valer a pena se livrar dela — sobretudo se isso também significasse se livrar do fardo de ter uma esposa.

Lágrimas correram dos olhos de Miranda, e ela deixou escapar um soluço engasgado. Seria possível que Dev estivesse apenas representando um papel nas últimas semanas, fingindo ser feliz ao lado dela, fingindo ter rompido com Leona, tudo para que não parecesse suspeito quando ela fosse encontrada morta na base da escadaria do porão?

Miranda levou a mão trêmula à boca, à beira de se render à histeria. Ficou quieta por um instante, cada fibra do seu corpo tensionada. Não era Dev! Simplesmente não poderia ter sido Devin!

Rangeu os dentes e controlou suas emoções. Não iria sucumbir. Recusava-se a se entregar a esse momento passageiro de dúvida e medo. Era forte demais para isso.

Rispidamente, afastou seu medo contido, Não tinha sido Dev quem fizera aquilo com ela. Isso era ridículo. Sabia em seu coração, mesmo que sua mente houvesse entrado em pânico por um instante. Conhecia Devin. Ele não mentira para ela. Nunca mentira para ela. Fora honesto desde o início, quando lhe disse que não queria se casar com ela. Não agira falsamente com ela nas últimas semanas. Tinha certeza disso. Qualquer um poderia ter feito isso com ela, menos ele.

Estava agindo como uma tola, sentada ali, tremendo e duvidando de Devin. Nem tentara ainda subir as escadas para ver se conseguia abrir a porta e sair.

Levantou-se com cuidado, ciente do fato de que do outro lado da escada poderia haver também um vazio indo até o fundo do porão. Mantendo ambas as mãos na parede, começou a percorrer centímetro a centímetro seu caminho de volta para cima, tateando com o pé antes de dar cada passo e deslizando parede acima. Estava totalmente escuro, exceto pela pequena linha de luz que aparecia entre a parte de cima da porta e o portal, o suficiente para indicar onde estava a porta. Cada passo que dava a fazia lembrar-se de suas dores. A manga do vestido estava em farrapos no lado esquerdo, onde Miranda raspara ao longo da parede áspera de pedra. Também havia um grande rasgo no lado esquerdo da saia. O antebraço estava esfolado e ardia intensamente, porque o arranhara na parede salvadora. Parecia que todos os seus músculos e ossos doíam da queda bruta. Miranda sabia com certeza que, no dia seguinte, estaria cheia de manchas pretas e roxas.

Por fim, alcançou a porta e procurou a maçaneta. Tudo o que encontrou foi um aro de ferro. Enganchou a mão nele e puxou-o, mas, como imaginara, a porta não se moveu. Quem a empurrara escada abaixo trancara a porta ao sair. Seria tolice não fazê-lo, claro.

Recostou-se na porta de madeira maciça, lutando contra outra onda de pânico. Quanto tempo levaria até que alguém a encontrasse? Não dissera a ninguém onde estava indo, apenas disse a Hiram que tinha um compromisso. E passariam horas até que alguém percebesse que ela estava desaparecida, devido ao tamanho da mansão. Só poderiam começar a se preocupar à noite, quando não aparecesse para jantar. E aí não teriam nem idéia de onde procurar. Colocara o bilhete no bolso; não havia esperanças de que alguém o encontrasse e a seguisse até o porão. E quem suspeitaria que fora para lá que havia ido?

O pânico crescia dentro de Miranda de novo. Começou a bater na porta e chutá-la, gritando a plenos pulmões. Depois de alguns minutos, deixou-se cair no chão, exausta. Seus esforços mostraram-se inúteis. A porta era muito velha, mas compacta, feita com grossas tábuas de madeira; os porões eram de pedra ainda mais espessa. Tinha certeza de que todo o barulho que fez fora imediatamente absorvido. Inspirou algumas vezes para se acalmar e tentou não se entregar ao desespero.

Devin viria procurar por ela quando não a encontrasse em casa. Não descansaria até que a casa e os arredores fossem inteiramente esquadrinhados. E havia uma casa cheia de gente e de criados que poderiam procurar por ela. Acabaria sendo encontrada. Poderia levar algum tempo, e não era nada agradável ficar sentada ali no porão escuro e úmido, mas podia agüentar. Era apenas uma questão de tempo.

Nesse meio-tempo, decidiu, ela ocuparia sua mente tentando imaginar quem teria feito aquilo com ela.

O bilhete fora uma armadilha, era óbvio. Parecia com a letra de Devin, mas ele trazia apenas umas poucas palavras. Miranda ainda não estava tão familiarizada com a caligrafia dele, tendo visto apenas alguns poucos casos. Era uma escrita característica, provavelmente fácil de copiar, com suas letras grossas e pontudas. Alguém lhe enviara um bilhete falso e esperara que viesse correndo, contando com seu amor por Devin. Mas quem? E por quê?

Ninguém ganharia mais com sua morte do que seu pai, Verônica e Devin, mas se recusava a acreditar que teria sido algum deles. Devia haver alguma outra explicação. Embora não conseguisse pensar em nenhuma.

Recostou-se na porta, apoiando os cotovelos nos joelhos e enterrando o rosto nas mãos. Dev viria salvá-la, disse a si mesma. Ele viria.

Miranda não sabia dizer há quanto tempo estava sentada na escuridão fria e úmida. Parecia uma vida. Passou da determinação ao desespero, indo e voltando várias vezes. Pensou em sua vida, em sua família, em Dev. Lembrou-se de quando o conheceu e de todas as vezes em que estiveram juntos desde então. Retrospectivamente, não parecia muito tempo. E, ainda assim, ela o amava como nunca amara ninguém mais. Soube disso instintivamente, pensou, desde a primeira vez em que o viu. Lembrou-se do repentino frio na barriga quando olhou em seus olhos e da estranha sensação de já conhecê-lo. Reconhecera-o em algum outro nível que lhe dizia que esse era o homem certo para ela, o homem que amava.

Outras pessoas sem dúvida lhe teriam dito que era loucura casar-se com ele como o fez, baseada apenas naquele instinto. Diriam que ela fora levada pela boa aparência e que era paixão, não amor, o que sentia. Mas Miranda sabia que não era verdade. Ela o amou, senão à primeira vista, pelo menos na noite da festa de Rachel, quando ele a deixara tonta com seus beijos e quando olhara suas pinturas e vira sua alma. Soube, naquele instante, que não havia ninguém melhor para ela. Tudo o que acontecera desde então só fizera aumentar seu amor por ele.

Miranda só não estava tão certa do amor do marido por ela. Ele a queria, sabia. E havia se comprometido com ela. Mas não chegou a dizer que a amava. Essa emoção, receava, ainda era reservada a Leona.

Mas algum dia, pensou, ele perceberia que era a ela quem amava. Miranda apagaria a imagem de Leona da cabeça de Devin e a substituiria pela sua. Contanto que conseguisse sair daquele porão, é claro, lembrou-se, fatigada.

Estava recostada na porta quando ouviu um barulho. Levou um momento até se dar conta; então empertigou-se, sentando-se ereta. O barulho estava abafado, mas com certeza era o som de uma voz.

Miranda ficou de pé rapidamente, retraindo-se pela dor no tornozelo. Começou a bater na porta de novo, gritando. Fez uma pausa para recuperar o fôlego, e, ao fazê-lo, ouviu um chamado abafado do lado de fora da porta. Era Devin. Era seu nome que ele gritava.

Miranda gritou em resposta. Um segundo depois algo pesado bateu na porta. E bateu de novo, e de novo, mas a porta mal sacolejou. Fora construída para durar uma era. Ouviu a voz de Devin mais uma vez, praguejando energicamente, e ela sorriu. Alguns minutos depois houve um rangido, metal contra metal, e ela percebeu que ele devia ter girado uma chave na fechadura.

Miranda deu um passo para o lado bem a tempo antes de a porta se abrir com um solavanco. Por um instante, a silhueta de Devin ficou emoldurada na porta, enquanto enfiava a cabeça para dentro, e logo estava no degrau com ela, abraçando-a fortemente.

— Miranda — sussurrou ele em seus cabelos. — Miranda, graças a Deus. Graças a Deus. Achei que havia perdido você para sempre.

— É minha culpa — disse Devin, andando de um lado para o outro em seu quarto.

Três horas já haviam se passado. Miranda estava encoberta na cama larga e acolhedora de Devin, tendo tomado um banho e comido, já tratada com curativos feitos em seus vários cortes e arranhões. Devin insistiu que ela bebesse um brandy reconfortante, de modo que agora se sentia agradavelmente aquecida e levemente zonza ao observá-lo andar de um modo agitado. Eles passaram algum tempo contando um para o outro o que havia ocorrido naquele meio-tempo, Miranda mencionando o bilhete e o empurrão escada abaixo e Devin explicando como uma das empregadas a vira por acaso andando atrás da casa perto da porta, o que fez com que economizassem horas e horas de procura por ela — e reduzindo a espera de Miranda no frio e no escuro. Devin olhou o bilhete que estava no bolso de Miranda e declarou logo que era uma falsificação, mas Miranda já havia deduzido isso. Infelizmente, não levava a nenhuma pista. Era só um pedaço de papel, que poderia ser encontrado em qualquer lugar da casa — ou mesmo em qualquer outra casa. Não havia como dizer quem o escrevera, ou mesmo se a pessoa vivia na casa com eles — uma idéia perturbadora — ou se era um estranho completo que, de alguma forma, conseguira penetrar na casa.

— Mas por que alguém iria querer pôr fim à minha vida?

— perguntou Miranda, sensatamente.

A resposta de Devin foi a afirmação sucinta de que a culpa era dele.

— O que você quer dizer com isso? — perguntou Miranda.

— Como pode ser culpa sua?

— Eu sabia que havia algo errado — disse ele, sendo direto. — Eu deveria ter tomado mais cuidado. Deveria ter vigiado você melhor. O problema é que achei que era de mim que eles estavam atrás.

— Quem?

— Não sei quem. Quem quer que tenha feito isso... e o corrimão na biblioteca... e a pedra no penhasco.

Miranda sentiu um calafrio.

— Então você acha que todas essas coisas foram planejadas também? — Durante suas horas longas e frias de espera, fora forçada a concordar com a análise da madrasta sobre os "acidentes".

— É claro. Pedras caem de penhascos de calcário. Já as vi caídas antes. Mas quão provável é que uma tenha resolvido cair exatamente quando você estava cavalgando debaixo dela. Especialmente logo depois de o corrimão na biblioteca ter sido serrado para que você caísse?

— Ele foi serrado? Não era só madeira podre que quebrou?

— Não. Aquela madeira é bastante sólida. Eu estava certo disso, porque estive lá na plataforma alguns dias antes, olhando a madeira, e sabia que não havia nenhum cupim lá. Foi por isso que subi para verificar o buraco depois que você saiu. E descobri que ele havia sido serrado quase completamente dos dois lados.

— Por que não disse nada? — perguntou Miranda. Por que não me contou?

— Não queria assustá-la. E não percebi que você estava em perigo. Achei que tinha sido um acaso ter sido você quem se apoiara no corrimão. Deduzi que o ataque era direcionado a mim.

— Por quê?

— Por causa dos outros ataques. Aqueles em Londres. Na noite em que nos conhecemos e da outra vez em Vauxhall Gardens. Em ambas as vezes, vieram atrás de mim. Então, quando o corrimão foi sabotado, achei que queriam machucar a mim. Exatamente como quando a pedra caiu lá de cima. Eu estava no mesmo grupo que você, por isso deduzi que haviam sido incompetentes e empurraram-na tarde demais para me atingir. Tentei tomar conta de você porque estava com medo de que pudesse se machucar só por estar a meu lado, como esteve naquelas duas vezes, mas não percebi que você era o alvo. Ainda não tenho a mais vaga idéia de quem vem fazendo isso ou por quê. Eu estava errado? Estavam atrás de você nas outras vezes? Ou era a mim que queriam machucar e depois decidiram que poderiam me atingir machucando você?

— Mas quem quereria causar algum dano a você? — perguntou Miranda.

Ele sorriu com pesar.

— Um número grande de pessoas, acho. Naquela primeira noite, achei que se tratava de um cobrador exaltado. Alguns rufiões que alguém a quem eu devia dinheiro enviara para me assustar e me obrigar a pagar a dívida. Porém, o segundo homem pareceu muito mais determinado a me matar, e não sei como isso beneficiaria um cobrador. — Ele fez uma pausa, olhando para Miranda. — O que foi? Qual é o problema?

— Nada — respondeu Miranda. — Por que a pergunta?

— Não sei. Você ficou com uma expressão estranha por um momento.

— Oh. Bem, acho que é porque eu estava pensando no homem que nos atacou com uma faca.

Miranda esperava que sua voz houvesse saído normalmente. A verdade era que quando Devin mencionara o homem que saíra do escuro para atacá-los com uma faca, aquilo a atingiu como um raio: o homem que os atacou naquela noite era o mesmo com quem vira sua madrasta falando há alguns dias no velho pomar!

Ela sentiu frio, como se todo o seu sangue houvesse sido drenado para fora do corpo. Teve de fazer força para prestar atenção no que Devin estava dizendo.

— Mas eu ofendi muita gente no decorrer dos anos — continuava ele. — Poderia ser qualquer um deles. Eu não levava uma vida exemplar. Mas o que não consigo entender é por que algum deles esperaria até agora para tentar acabar comigo. Por outro lado, se é atrás de você que estão, por que aqueles homens me atacaram na primeira noite? Você não estava comigo. Eu nem a conhecia. Mais ainda, por que alguém quereria matá-la?

Miranda não respondeu. A resposta, pensou, estava na sua frente. Se Miranda morresse, a propriedade iria para o pai e para a meia-irmã. Elizabeth não herdaria nada diretamente, mas estaria dando um presente e tanto para a filha. E sem Miranda, quando Joseph morresse, Elizabeth e a filha herdariam todo o dinheiro dele, não apenas parte.

Mas não podia acreditar que a madrasta contratara alguém para matá-la. Elizabeth era o mais próximo de uma mãe que Miranda havia conhecido. Será que a madrasta estava fingindo amá-la por todos esses anos? Será que desejava secretamente tirá-la do caminho? Lembrou-se de como Elizabeth a abordara outro dia, precavendo-a contra Devin. Que maneira melhor de desviar qualquer suspeita que pairasse sobre ela?

Não podia acreditar nisso. Devia haver outra explicação. Elizabeth não podia ser má. Talvez o homem tivesse sido contratado por outra pessoa e estava lá fingindo ser um jardineiro para que pudesse estar perto de Miranda e achar uma oportunidade de matá-la. Nesse caso, Elizabeth só o conheceria mesmo como jardineiro. Ou então... Bem, ela não conseguia pensar em nenhuma outra possibilidade no momento, mas, com certeza, se se dedicasse, poderia chegar a algo. A mãe de Verônica não poderia ser a suspeita. Seu pai não podia estar casado com uma assassina. Isso era totalmente absurdo.

Olhou de soslaio para Devin. Queria contar-lhe seus pensamentos, mas sabia que não podia. Ele assumiria de imediato que a madrasta estava tentando matá-la e faria o que fosse preciso para impedi-la. Miranda não podia suportar a idéia de ver Elizabeth sendo exposta como uma criminosa e enviada para a prisão. Isso acabaria com seu pai. A vergonha perseguiria Verônica pelo resto da vida. Sabia que teria de resolver a questão da culpa de Elizabeth sozinha.

— Até que cheguemos a uma conclusão, temos de fazer algo para protegê-la — dizia Devin, e Miranda concordou, distraidamente. — Você tem de me prometer que não vai sair de casa sozinha — continuou ele. — Pretendo estar a seu lado durante todos os momentos possíveis, mas se eu não estiver aqui, você não deve sair para cavalgar sozinha, nem mesmo sair para caminhar no jardim. Entendido?

Miranda anuiu com a cabeça.

— Entendido. Devo esperar por você aqui dentro como a mais vulnerável das fêmeas.

— Preciso tirá-la daqui. Há muitos locais propícios para um ataque dentro e em torno de Darkwater. Obviamente, o homem não tem dificuldade alguma em entrar na casa. Acho que devemos ir para a montanha Apworth logo que pudermos. Não há qualquer chance de alguém a atacar lá sem que eu saiba.

— Mas como vamos poder descobrir quem é a pessoa responsável pelos ataques se ficarmos presos lá? — argumentou Miranda, sensatamente.

— Você tem razão. — Ele observou-a, o rosto assumindo uma expressão pensativa. — Talvez... talvez possamos preparar uma armadilha para nosso agressor.

— Uma armadilha? — Miranda animou-se. A idéia de tomar uma atitude que os levasse ao assassino a atraía muito mais do que a de se esconder passivamente. A menos, é claro, que o assassino que pegassem na armadilha fosse Elizabeth...

— Sim. — Devin sorriu levemente, entusiasmando-se com a idéia. — Se dissermos a todos que vamos partir para Apworth, para nos protegermos depois do seu infortúnio no porão, então o assassino vai pensar que estamos lá sozinhos, vulneráveis, desavisados, e poderá vir atrás de nós. Tentar nos matar sem que haja testemunhas por perto e fazer parecer como se fosse mais um daqueles acidentes. Só que não estaremos sozinhos, nem desavisados, nem vulneráveis. Estaremos esperando por ele. Posso combinar com o encarregado dos jogos e seu filho que nos encontrem lá. Confio plenamente neles. Eles podem ficar secretamente de guarda. Quando o assassino chegar, disparam a armadilha.

— Está certo — concordou Miranda.

Ela só esperava que as coisas acontecessem de modo que pudessem pôr em prática o plano de Devin. Mas antes, amanhã, pretendia ter uma conversinha com Elizabeth.

 

Para sua surpresa, Miranda encontrou a madrasta esperando por ela quando entrou na biblioteca na manhã seguinte. Fez uma pausa na soleira da porta, rapidamente reorganizando seus planos.

— Miranda! — Elizabeth ficou de pé de pronto. Seu rosto estava pálido e determinado. — Eu... eu queria falar com você.

— Bom — respondeu Miranda. — Eu também queria. Olhando para a madrasta, era difícil acreditar em qualquer um daqueles pensamentos que passaram por sua cabeça na noite anterior. Ainda assim, não havia como fugir do fato de que Elizabeth estivera falando com o homem que os atacara.

— Sei que você não vai gostar de ouvir isso, mas tenho de dizê-lo — começou Elizabeth, resoluta.

— Está bem. — Miranda andou até a mesa da biblioteca e sentou-se, os olhos fixos no rosto da madrasta.

Elizabeth engoliu em seco.

— Eu... eu espero que o dia de ontem a tenha feito pensar no que eu lhe disse outro dia. Sobre sua segurança.

— Sim. Me fez pensar bastante em minha segurança.

— Alguém a fez ir até o porão, onde você poderia ter quebrado o pescoço. Ou ter ficado machucada e sangrando por vários dias... ou quem sabe por quanto tempo! — A voz de Elizabeth falhou, e ela fez uma pausa, visivelmente lutando para controlar suas emoções.

— Sim, eu sei. — Miranda impediu que a pena instintiva que sentia por Elizabeth viesse à tona e encarou-a friamente.

— Você acredita em mim agora? Vê como Ravenscar é...

— O dia de ontem não me fez suspeitar de Devin — disse Miranda, categoricamente. — Além do mais, foi ele quem liderou a busca por mim.

— Sem dúvida, achou que você já estava morta depois da queda, ou quase morta, e desviaria as suspeitas de si ao parecer que estava procurando desesperadamente por você, preocupado sobre onde estaria. — Elizabeth parou, e então acrescentou: — E esse não foi o único atentado ocorrido recentemente. Naquele dia, quando bebi seu chocolate quente, lembra? Passei muito mal e fiquei sonolenta depois. Estava tão grogue que mal conseguia abrir os olhos. Quase dormi enquanto subia as escadas até meu quarto. Aquilo não era uma coisa normal. Não sabia o que pensar. Mas ontem comecei a somar dois mais dois. Percebi que havia sido um outro atentado contra a sua vida. Alguém colocara algo em seu chocolate, mas o plano foi frustrado porque você deu a xícara para mim.

Miranda sentiu um calafrio ao considerar as palavras da madrasta. Lembrou-se de como tentara acordar Elizabeth sem sucesso e de como se preocupara com o estado de saúde dela. No entanto, aquilo lhe dava um raio de esperança. Se a madrasta fora drogada, então não poderia ser a pessoa responsável por tentar matá-la. Ou talvez Elizabeth estivera realmente doente e tirara proveito disso como forma de afastar de si a suspeita.

— Mas você só dormiu — argumentou Miranda. — Quero dizer, você passou mal, mas isso obviamente não a matou. Deve ter sido um sonífero... Se é que foi alguma coisa.

— Talvez ele pretendesse fazer algo com você estando nesse estado entorpecido. E, também, você sabe como meu estômago é fraco. Se bem se lembra, vomitei quase tudo o que bebi. Então talvez não tenha ficado o suficiente no meu estômago para me matar. Você, por outro lado, teria sido capaz de absorver toda a dose. Poderia ter sido o bastante para matá-la.

— Elizabeth, Devin não tentou me matar. Sei disso.

— Por quê? — Elizabeth gritou com um tom de voz inflamado. — Porque lhe disse que não? Não se deixe enganar por ele. Devin é um mentiroso. Um enganador!

Miranda encarou Elizabeth, estupefata, quando esta começou a andar de um lado para o outro no cômodo, agitadamente. Com as mãos na cintura, o rosto contorcido, ela parecia estar lutando com algum tipo de demônio interior enquanto andava.

— Elizabeth, pare com isso — disse Miranda, asperamente, indo até ela, pegando-a pelo braço e virando a madrasta para que olhasse para ela. — Você está contra Devin desde o início. Você me diz que ele é mau, um mentiroso. Mas eu acho que é você quem me deve explicações.

— O quê? — Elizabeth afastou-se de Miranda o máximo que pôde, olhando para ela, hesitante. — O que está dizendo?

— Eu vi você, Elizabeth — disse Miranda, secamente. — Vi você com aquele homem no pomar outro dia. No primeiro momento, não consegui saber de onde o conhecia. Só sabia que parecia familiar. Mas ontem à noite me lembrei de onde o havia visto antes. Era o homem que nos atacou em Londres. — Ela sacudiu o braço de Elizabeth. — O que você estava conversando com o homem que nos atacou?

— Não! — Elizabeth gritou em choque. — Não a você! Não era para ele atacar você!

Elizabeth percebeu, no momento em que acabou de pronunciar tais palavras, que se entregara. Parou abruptamente, o sangue se esvaindo de seu rosto.

Miranda soltou o braço da madrasta, olhando para ela como se nunca a houvesse visto antes.

— Então você o contratou? Você o enviou?

— Não era para ele assustar você — disse Elizabeth, agitada. — Muito menos atacá-la. Eu nunca a machucaria... você tem de acreditar nisso. Era só a Devin.

— Só a Devin? — repetiu Miranda. — Elizabeth! Por quê?

— Eu estava tentando impedir que se casasse com você! Da primeira vez, ele tinha só de evitar que Ravenscar aparecesse no jantar. Eu sabia o quão encantador ele era. Tinha medo de que, se o conhecesse, acabasse concordando em se casar com ele. Então conheci Hastings. Ele disse que podia evitar que Ravenscar aparecesse na casa da mãe dele aquela noite. Então, da segunda vez, eu sabia que tinha de fazer algo mais. Hastings devia assustar Devin, dizer-lhe que tinha de se afastar de você senão morreria. Eu não queria machucá-lo. Só queria impedir que se casasse com você! — gritou Elizabeth. — Oh, Deus! — Ela colocou as mãos nas têmporas, as lágrimas escorrendo de seus olhos. — Eu fui tão idiota. Transformei tudo numa grande confusão. Estava errada, tão errada. Devia ter dito a você antes, mas tive tanto medo! Não podia suportar que você e Joseph soubessem a verdade. Mas isso quase provocou sua morte. E agora você pensa que eu... que eu sou a pessoa que está querendo matá-la.

— Então você está dizendo que contratou esse homem para.... afastar Dev, mas que não foi ele quem me levou para o porão ontem?

— Não! Não, é claro que não! — Elizabeth levantou a cabeça, deixando cair suas mãos, e encarou a enteada, atentamente. Seus olhos estavam vermelhos e ardentes. Por um instante Miranda sentiu um frêmito de medo. — Eu lhe disse. Jamais a machucaria. Amo você tanto quanto amo Verônica. Eu só estava tentando protegê-la de Ravenscar. A razão pela qual Hastings está aqui em Darkwater é para protegê-la depois desses dois "acidentes". Ele tem observado você... obviamente, não o suficiente, considerando o que aconteceu ontem.

— Mas por quê? — perguntou Miranda, delicadamente, estendendo a mão para acalmar a madrasta. — Eu não entendo.

— Não. Você não entenderia. Não poderia entender. Você não tem idéia de quem sou. Do que fiz. — A madrasta deu um suspiro longo e tremido e endireitou as costas. Olhando diretamente nos olhos de Miranda, disse: — Tudo o que sabe sobre mim é mentira. Minha vida inteira é uma mentira. Eu não sou a viúva de Roddy Blakington. Na verdade, Roddy Blakington nunca existiu. Eu não fui casada antes de conhecer seu pai. Verônica é... bastarda. E seu pai é Devin Aincourt.

Miranda sentiu como se tivesse perdido o chão. Sua cabeça começou a girar. Não conseguiu pensar em nada coerente para dizer. Depois de um bom tempo, só conseguiu dizer, fracamente:

— O quê?

Elizabeth deixou-se cair, sentando-se abruptamente em uma cadeira.

— Nunca quis que ninguém soubesse — disse ela, suavemente. — Estou tão envergonhada. Eu não era leviana... Juro que não era. Mas um dia conheci Dev e... jamais fui a mesma. Eu levava uma vida resguardada. Nunca havia conhecido alguém tão urbano e charmoso, tão sagaz e... bonito. Perdi o bom senso. Apaixonei-me perdidamente por ele e fui tola e licenciosa o suficiente para dormir com ele. Eu achei... achei que ele me amava da mesma forma que eu o amava. Não percebi que era apenas um joguete nas mãos dele, uma aventura fugaz enquanto passava o verão em Brighton. Quando Devin soube que eu estava grávida, descartou-me como um sapato velho. Ele se recusou a se casar comigo.

Miranda botou a mão na testa.

— Eu... eu não posso acreditar...

— Você acha que estou mentindo? — perguntou Elizabeth, ferozmente. — Acha que eu revelaria algo sobre mim assim só por diversão? O homem é perverso!

— Não, é claro que não acho que esteja mentindo — protestou Miranda. — É só que... deve haver alguma outra explicação. Isso é tudo...

— Constance! — A voz assustada de Dev veio da porta da biblioteca, e as duas mulheres viraram o rosto na direção dele.

— Dev! — Miranda não o ouvira entrar e se perguntou há quanto tempo ele estaria ali. Era óbvio que ouvira pelo menos a última parte da conversa, pela sua expressão de assombro.

— Sim — respondeu Elizabeth, levantando o queixo e olhando-o nos olhos. — Eu sou Constance. Tive medo que você me reconhecesse. Tentei me manter fora de sua vista.

Miranda lembrou-se de quão freqüentemente a madrasta se queixara de mal-estar em vez de descer para jantar; e em como costumava parecer sumir no espaço quando Dev estava por perto. Ela raramente olhava diretamente para ele. Nunca passou pela mente de Miranda que a madrasta estava agindo dessa forma porque o conhecia e tinha medo que ele a reconhecesse. Elizabeth continuou, com um tom amargurado na voz:

— Mas está claro que eu não deveria ter me dado ao trabalho. Eu não era importante o suficiente para você se lembrar.

— Mas... como pode... você está morta! — ele desabafou, por fim.

Elizabeth levantou as sobrancelhas.

— Talvez fosse isso o que você esperava.

— Não! Por Deus. — Ele virou-se para Miranda. — Esta é a mulher de quem lhe falei. A garota que engravidei e que se matou, me deixando um bilhete suicida.

— O quê? — Elizabeth explodiu desdenhosamente. — Essa é a história que você contou para essa menina inocente?

— Foi o que aconteceu! Por que escreveu aquele bilhete para mim? Por que fugiu e fingiu que havia morrido? Por que não veio a mim e...

— Só um minuto. — Miranda virou-se para a madrasta, cujos olhos estavam iluminados por uma chama ofensiva. — Você conhecia aquele homem, Elizabeth? Aquele que foi me visitar alguns dias antes de deixarmos Londres?

— Sim, claro que o conhecia. Ele era... — O tom voz de Elizabeth ficou irritadiço. — Ele era meu avô. Ele me criou depois que meus pais morreram, mas eu o envergonhei perante o mundo. Não deveria ter me surpreendido por ele não ter ido atrás de mim. Eu destruí toda a confiança que possuía em mim. Fui uma tola ao achar...

— Espere. Aquele homem veio me dizer para não confiar no conde de Ravenscar. E a razão que ele deu para isso foi porque Ravenscar havia seduzido sua neta e ela havia se matado.

— O quê? — Elizabeth piscou, confusa.

— Foi isso o que ele me disse. Ele também acredita que você está morta.

— Você deixou bilhetes, Elizabeth! — Devin aproximou-se dela. — Eu... Você escreveu um bilhete para mim dizendo que eu havia arruinado sua vida e que você me desprezava. Disse que preferia morrer a viver com a vergonha de carregar um filho ilegítimo. Você desapareceu. Eles procuraram seu corpo por vários dias. E eu fiquei tão... tão furioso por você não ter nem mesmo vindo a mim e me contado sobre a criança. Você acha honestamente que eu não teria me casado com você?

— Do que está falando? — Elizabeth levantou-se e elevou a voz histericamente. — Você me rejeitou! Você negou ser o pai da criança. Disse que levaria testemunhas contra mim para provar que eu fora promíscua se tentasse forçá-lo a se casar comigo. Você...

— Eu não fiz nada assim! Como pode dizer isso? Você nunca me contou!

— É claro que contei!

— Quando? Onde? Eu estava sempre bêbado, mas sei que não teria esquecido.

— Eu não lhe disse isso cara a cara. Não tinha coragem. Tive medo, estava envergonhada. E você tinha... tinha parado de vir me ver. Então escrevi uma carta e entreguei-a a Leona, para que fizesse chegar a você.

— Leona? — O rosto de Devin ficou branco. — Você deu a carta a Leona?

Elizabeth fez que sim com a cabeça.

— Sim. Ela era minha amiga, assim como sua.

— A única carta que ela me entregou foi o bilhete que você deixou dizendo que ia se jogar no mar para evitar a vergonha do que havia feito.

Houve um longo silêncio. A boca de Elizabeth começou a tremer, e ela se encolheu na cadeira.

— Meu Deus...

— Como você soube que Dev rejeitou a você e a seu filho? — perguntou Miranda categoricamente.

— Leona... — A voz de Elizabeth soou como um sussurro. — Ela era minha amiga. Foi tão gentil comigo desde a hora em que chegou em Brighton. Era tão deslumbrante e sofisticada, e eu estava feliz por ter reparado em mim. Eu era uma simples menina do campo. Não podia contar a meu avô sobre a gravidez. Não podia encarar Dev. Então, fui até ela e contei tudo. Ela disse que entregaria um bilhete a Dev se eu o escrevesse. E foi o que fiz. Na tarde seguinte, ela voltou e se sentou comigo na sala de música. Lembro que estava estudando piano. E ela me disse muito delicadamente que Dev lera meu bilhete, mas depois rasgara e jogara na lareira. Disse que ele partiria para Londres e que eu não devia ir atrás dele. Ele disse que... as coisas que já falei, que negaria tudo e que me constrangeria se eu insistisse no assunto. Fiquei arrasada.

— Claro que sim. — Miranda foi até a madrasta e ajoelhou-se ao lado dela, pegando suas mãos. — Qualquer uma teria ficado.

— Eu não sabia o que fazer. Leona disse que minha única saída era partir. Sugeriu que eu fosse para a América ou para a índia, ou para alguma outra colônia, onde ninguém saberia quem eu era. Ela me deu dinheiro porque era minha amiga e sentia pena de mim. E disse que em outro país ninguém me reconheceria. Eu poderia mudar de nome, poderia fingir ter ficado viúva recentemente. Ninguém saberia a verdade. Foi tão gentil! Ajudou-me a arrumar as malas e partir. Até alugou a chaleça para mim e enviou sua criada para me ajudar.

— É mais provável que tenha feito isso para garantir que você não mudasse de idéia e decidisse voltar — corrigiu Miranda. — E para roubar um xale e deixá-lo perto do mar.

— Eu... suponho que sim. Meu Deus... — Lágrimas encheram-lhe os olhos e rolaram pelo rosto. — Mesmo depois de tanto tempo, isso dói. Achei que era minha melhor amiga, mas ela me traiu.

— Ela traiu todo mundo. — A voz de Miranda estava carregada de ódio. — Seu avô quase ficou louco de pesar. Esteve de luto por todos esses anos. Todos pensaram que você havia morrido. As pessoas culparam Devin por sua morte. Foi um escândalo terrível. O pai de Dev o renegou. Leona destruiu três vidas sem a menor consideração. — Miranda ficou de pé, os olhos acinzentados ficando duros. — E eu sei por quê. Ela queria Devin só para si. Como a cortejava, ela o instigava e dispensava, mas sempre quis tê-lo, tenho certeza disso. No entanto, quando você contou a ela que estava grávida, Leona sabia que Devin faria a coisa certa e se casaria com você. Ela o perderia, mas claro que não queria que isso acontecesse. Seus planos iriam por água abaixo. Então Leona mentiu para você. E mentiu para ele. Aliás, mentiu para todos.

Miranda virou na direção de Devin. Ele estava pálido de emoção. Havia uma dor aturdida em seus olhos que partiu seu coração. Miranda pensou que se

Leona estivesse ali naquele exato instante, ela teria apertado suas mãos no pescoço daquela mulher sem coração.

— Verônica é minha filha? — perguntou Devin, os olhos passando de Miranda para Elizabeth.

Elizabeth anuiu com a cabeça, enxugando as lágrimas que ainda escorriam por seu rosto.

— Sim. Ela... ela não faz idéia. Sempre lhe disse que seu pai era Roddy Blakington. Um homem maravilhoso que eu inventei. Ela... eu... — Seus olhos encheram-se de pânico. — Vocês não vão contar para ela, vão? — Ela olhou de Devin para Miranda, e de volta para Devin, as mãos agarrando nervosamente a saia. — Não sei como Verônica reagiria a isso. Eu... ela poderia me odiar.

— Tenho certeza de que não a odiaria — começou Miranda, apaziguadoramente.

— Não direi a ela — acrescentou Devin, a voz embargada de emoção. — Manter segredo é o mínimo que posso fazer depois de toda a dor que lhe causei. Que causei a todo mundo. Mas também cuidarei dela como um pai o faria, prometo-lhe. — Hesitou por um instante, e então continuou: — Constance... Elizabeth, sinto muito. Sei que não há palavras que possam compensar o sofrimento pelo qual você passou. Por favor, acredite em mim, eu não sabia. Eu não teria... Sei que nunca fui um modelo de cavalheiro, mas não teria agido tão desonradamente.

Elizabeth anuiu com a cabeça, a mão pressionando a boca, lágrimas rolando pelo rosto. Miranda olhou para ela, preocupada.

— Deixe-me levá-la até seu quarto, Elizabeth. Um bom descanso lhe fará bem, não acha? Chamarei sua criada para colocar uma compressa de alfazema em sua testa.

— Sim — disse Elizabeth. — Por favor. Eu... eu preciso ficar sozinha.

Miranda fez o que havia sugerido, pegando Elizabeth pelo braço e ajudando-a a levantar-se e a sair da biblioteca. Levou-a escada acima até o quarto e colocou-a na cama, e em seguida chamou a criada.

— Eu fui uma tola — sussurrou Elizabeth. — Fui uma tola naquela época e ainda sou uma tola agora.

— Você não é tola. Simplesmente confiou na pessoa errada. Isso é tudo. Estou certa de que muitas mulheres teriam feito exatamente o que você fez.

— Não você.

— Eu não teria tanta certeza assim. A maioria das pessoas não age com muita sabedoria quando se trata de amor.

— Você não se casou por amor. Foi muito prática a esse respeito.

Miranda sorriu.

— Você acha que não?

— Está dizendo que o ama? Que o amava antes de se casar com ele?

Miranda fez que sim com a cabeça e pegou a mão da madrasta.

— Ele é um bom homem, Elizabeth. Essas coisas que você pensou a respeito dele todos esses anos eram falsas.

— Eu sei. Mas eu... eu o odiei por tanto tempo que vai demorar um pouco até que sinta algo diferente. Oh, Miranda! Você vai me perdoar algum dia? Quase enlouqueci de medo nas últimas semanas. Tinha tanto medo que ele a magoasse, mas não podia nem pensar em contar a verdade. E enviei Hastings para acertá-lo! Tenho agido como uma tola, uma covarde e... Você vai me perdoar?

— Claro que vou. Sei que você tem estado... bem, sei que não tem estado no seu juízo normal.

Naquele momento, a criada de Elizabeth entrou. Miranda deixou a madrasta sob os cuidados dela. Elizabeth não era a única em estado de choque e precisando conversar agora. O mundo de Devin parecia que havia virado de cabeça para baixo.

Foi em direção às escadas para descer até a biblioteca, mas encontrou Devin sentado no último degrau, esperando por ela.

— Miranda. — Ele levantou-se e virou o rosto para ela. Havia uma expressão sombria naquele rosto que partiu seu coração. Ela foi até ele e abraçou-o pela cintura, recostando-se em seu peito. Os braços dele a envolveram, dando-lhe um abraço apertado.

— Deus, Miranda! Que estúpido eu fui! — despejou ele, ecoando as palavras de Elizabeth. — Todos esses anos... Leona mentiu para mim. Brincou comigo.

Os braços de Miranda o apertaram involuntariamente. A dor de Devin a magoava, e magoava ainda mais a dor dele originar-se de seu amor por Leona. Mas Miranda colocou suas emoções de lado por um momento.

— Vamos para o meu quarto. — Pegou-o pela mão e levou-o pelo corredor até seu quarto. Devin sentou-se em uma cadeira com um suspiro, inclinando-se para a frente e apoiando os cotovelos nos joelhos, as mãos no queixo.

— Isso tudo aconteceu quando ela me deixou possuí-la — disse ele, olhando para o nada em direção à parede, quando seus pensamentos se voltavam para aquela época, 15 anos antes. — Eu já estava assediando Leona havia mais de um ano. Ela me provocava, oferecia mais e nunca dava.

Quando fui a Brighton, ela me apresentou a Constance. Leona sabia que eu estava errado a respeito de Constance ser uma mulher experiente, mas não esclareceu o fato. Acho que desejava ver o que aconteceria. Leona vinha ao meu apartamento tarde da noite e queria saber o que havia acontecido com Constance. Era um tipo de triunfo para ela saber que o meu relato me deixava mais enlouquecido de desejo do que qualquer coisa que eu e Constance tínhamos feito.

Balançou a cabeça de um lado para o outro e enterrou os dedos nos cabelos.

— Sinto muito. Eu não deveria estar contando essas coisas para você.

— Você pode me contar qualquer coisa — disse Miranda, calmamente, apesar da raiva ardente contra Leona que queimava dentro dela.

— Mas eu acho que quando Cons... quando Elizabeth contou a ela que estava grávida, Leona percebeu que a diversão e os joguinhos haviam acabado. Eu a repreendera por não me contar que Constance era virgem, e ela deve ter suspeitado que eu iria me casar com Constance mesmo que a amasse. Ela não queria isso. Então inventou aquelas mentiras... convenceu Elizabeth a fugir para a América, fazer o restante de nós acreditar que estava morta, de modo que não tentássemos encontrá-la.

Ele fez uma pausa, e, quando falou novamente, sua voz estava áspera.

— Acho que ela queria fazer com que eu me sentisse culpado pela morte de Constance. Sabia que se me afundasse cada vez mais na perversão, me ligaria ainda mais a ela. Isso me faria ter mais afinidades com ela e menos com minha família e com outras pessoas que eu conhecia. Quanto mais me separasse do resto do mundo, mais ficaria preso a ela. Isso faz sentido? Miranda fez que sim com a cabeça.

— Sim. Ela não compreendia suas características positivas, e isso a assustava. Sabia que era a bondade que havia dentro de você que o faria querer abandoná-la.

— Leona arruinou a vida de Elizabeth sem pensar duas vezes. — Ele balançou a cabeça. — Ficou assistindo ao meu sofrimento por causa da culpa. Ficou ao meu lado enquanto meu pai e eu rompemos relações por causa da morte de Elizabeth. Nunca mais falei com ele depois disso. Ele morreu me desprezando. E Leona nunca me disse uma palavra sobre o que realmente aconteceu. — Ele olhou para Miranda, lágrimas brotando em seus olhos. — Como pode ter sido tão cruel?

Miranda sentiu um nó na garganta e só conseguiu sussurrar:

— Não sei.

— Ela nunca me amou de verdade — continuou Devin.

— Não acredito que Leona seja capaz de amar — concordou Miranda.

— Não é de espantar que nunca tenha sentido ciúme. Seu coração nunca esteve ameaçado. Tudo o que importava a ela era ter poder sobre mim. Ela até mesmo me pressionou a me casar com você. Ela não imaginou... — Devin parou abruptamente e olhou para Miranda. — Deus do céu...

— O quê? Qual é o problema?

— É claro. É ela quem...

— Quem o quê? Devin, do que você está falando?

— É Leona quem está tentando matar você.

— O quê? Por quê? O que ela ganharia com isso?

— Tudo. Você não vê? Você interferiu no poder dela sobre mim muito mais do que Constance jamais o fez. Eu disse a ela outro dia que não iria vê-la novamente. Mesmo antes disso, era fácil ela perceber que estava perdendo seu controle sobre mim. Não estive com Leona desde que ficamos noivos. Ela me perdeu. — Devin fez uma cara feia. — Mais importante para ela, sem dúvida, é o fato de que perdeu a chance com o seu dinheiro.

— O quê?

— Eu lhe disse, ela queria que eu me casasse com você. Pensava, assim como eu, que seu dinheiro ficaria sob meu controle. E sem dúvida ainda pensa isso. Não contei a ela que seria diferente. A idéia de Leona era que eu gastaria o seu dinheiro com ela e com as coisas que gostávamos de fazer. Ela me contou que Vesey estava restringindo seus gastos. De modo que, sob sua ótica, ela achara que perdera muito dinheiro. Se você morresse, porém, ela achava que eu herdaria seu dinheiro. E com você fora do caminho, tenho certeza de que pensa que pode voltar a me enfeitiçar. Sem dúvida, foi ela quem preparou esses "acidentes" para você.

— Você acha mesmo?

— Quem mais? Faz sentido agora. — Devin ficou de pé. Seus olhos brilhavam com uma luz irada. — Vou até lá. Vou garantir que nada de mau acontecerá com você.

— Dev!

Mas ele já tinha se virado e saía do quarto a passos largos.

 

Devin cavalgou até Vesey Park, impelido por uma fúria incontida. Apeou na frente da casa, entregando o cavalo para um cavalariço, e foi bater na porta. Um lacaio assustado abriu-a, e então, rapidamente, deu um passo atrás quando Devin abriu passagem, adentrando.

— Onde está ela? — bramiu, e quando o lacaio começou a gaguejar uma resposta, ele gritou. — Leona! Leona! Onde diabos você está?

— Senhor! — O lacaio olhou para ele, boquiaberto. — Devo anunciá-lo, se o senhor...

Devin nem se dignou a olhar para o homem e atravessou o hall de entrada até a escada, subindo-a de dois em dois degraus, rugindo o nome de Leona. O lacaio correu atrás dele, contorcendo as mãos e gritando "Senhor!", sem efeito.

Leona surgiu de uma porta no meio do corredor. Um sorriso brotou em seus lábios e ela caminhou até Devin, acenando para o lacaio.

— Está tudo bem, Portman. Eu receberei lorde Ravenscar. Esperou por Devin, os braços cruzados abaixo dos seios, um sorriso convencido estampado no rosto.

— Bem, bem, Devin, muito antes do que eu imaginava... Eu disse que você voltaria correndo para mim, não disse? Agora, a pergunta é: o quanto devo fazê-lo rastejar antes de aceitá-lo de volta?

— Não se gabe. — Devin pegou-a pelo braço e arrastou-a até a sala de estar.

— O que você... — Leona ganiu, em protesto. — Se acha que assim irá me reconquistar, saiba que está redondamente enganado!

— Não estou nem um pouco interessado em reconquistá-la. Vim aqui para dizer-lhe que sei dos seus truques. E juro que se fizer mal a um fio de cabelo de Miranda, não descansarei enquanto não a encontrar e acabar com você.

Leona ficou boquiaberta, a primeira impressão caindo por terra.

— O quê? Miranda? Como ousa!

— Ah, eu ouso! — disparou ele. — Não pense que pode me manipular de novo. Conheço você. Sei tudo o que você fez. As mentiras que contou para mim. Os joguinhos que arquitetou.

— O quê? Não seja ridículo. Não sei do que está falando. Devin abriu a boca para explicar tudo sobre Elizabeth, mas conteve-se. Não ia dar a Leona qualquer arma que pudesse usar contra Miranda ou contra qualquer pessoa ligada a ele. Teria adorado revelar o que pensava dela e o que ela fizera tanto a ele quanto a Elizabeth, mas sabia que Leona não deveria saber quem era Elizabeth nem que Verônica era sua filha ilegítima. Então engoliu sua ofensa e disse apenas:

— Ah, sim, acho que sabe sim. Você me fez de tolo por muitos anos, Leona. E pode achar que eu nunca faria mal a você por ter sido seu cachorrinho durante tanto tempo. Mas não sou mais. Você já viu o que eu faço com quem me trai. Sabe do que sou capaz.

— Só sei que você ficou completamente louco — atacou Leona, tentando soltar o braço da garra de Devin.

— Não, ainda não. Mas prometo que vou ficar louco se algo acontecer à minha esposa.

— Você continua boquejando sobre ela! Não sei do que está falando.

— Os acidentes que você vem preparando para ela, é disso que estou falando. Concluí que é você que estava por trás disso. Então vim dizer que isso não a beneficiará de forma alguma. Jamais voltarei para você, não importa o que aconteça com Miranda. Só a idéia de tocá-la de novo me causa arrepios. E se algo acontecer a Miranda, saberei que foi você quem o causou e garantirei que pague por isso. Fisicamente, socialmente, de todas as formas possíveis. Fui claro?

— Perfeitamente! — Leona espumou. — Agora solte-me. Eu odeio você!

Ele a soltou de repente, e ela cambaleou um pouco para trás.

— A recíproca é verdadeira — disse Devin, com amargor. — Lembre-se do que lhe disse. Deixe Miranda em paz.

— Eu não encostaria um dedo em sua preciosa esposa! — Leona gritou, a voz falhando de raiva. — Agora saia da minha casa.

— Com prazer. — Devin sabia que havia arrumado uma inimiga implacável, mas também sabia que Leona era bastante interessada em sua auto-preservação para não levar a sério suas palavras.

Ele lançou-lhe um olhar demorado, tentando entender como achou, por tanto tempo, que a amava. Então virou-se e saiu.

Depois que Devin saiu, Miranda desceu para a biblioteca. Tinha sido um dia pesado, e ela estava contente em buscar o conforto de seu trabalho. Hiram não estava lá, mas no andar de cima com Joseph e o arquiteto, repassando os gastos com a renovação da casa. O Sr. Strong, por sua vez, estava lá, e Miranda recordou que dissera para ele no dia anterior que a encontrasse uma hora mais cedo. Ele ficou de pé de pronto quando ela entrou.

— Minha senhora.

— Oh, sinto muito, Sr. Strong. Esqueci nosso compromisso.

— Está tudo bem, minha senhora — disse Strong com vivacidade, levantando-se. — Volto outra hora.

— Não, vamos prosseguir — disse Miranda. — Preciso acabar antes de lorde Ravenscar e eu irmos para a montanha Apworth.

— Para a montanha Apworth, minha senhora? Tem certeza? Quero dizer, ainda está pensando em ir depois daquela, bem, provação de ontem?

— É claro. Por que não? Agora, onde estávamos? No último grupo de livros?

— Sim, minha senhora. Mas, ah, eu estava pensando. Talvez possamos cavalgar até uma ou duas das fazendas arrendadas hoje. Você disse que estava querendo conhecê-las.

— É verdade. — Miranda considerou a idéia. Era tentador pensar em cavalgar em vez de ficar trancafiada em casa. E agora que Devin concluíra que Leona era a culpada pelos acidentes, ela supôs que não haveria problema em sair de casa. Suspirou. — Não, melhor não. Preciso acabar logo com isso porque senão vou achar difícil aproveitar nossa excursão.

— É claro. — Ele já ia se sentar, quando parou. — Ah, espere. Deixei parte dos papéis em meu escritório. Se me der licença um minuto.

— Está bem. — Miranda sentou-se à mesa e puxou para si o livro-mestre quando ele saiu da sala.

Dez minutos depois Miranda estava absorta no exame das contas quando a porta se abriu novamente.

— Ah, aí está você — começou ela, virando-se para olhar Strong. Para sua surpresa, era o tio de Devin quem entrava no cômodo. — Oh! Tio Rupert. Eu pensei que fosse o gerente.

— Não. Desculpe. — Ele sorriu. — Como está passando, minha querida? Já se recuperou do susto de ontem?

— Ah, sim. — Ela sorriu. — Sou bastante resistente.

— Sim, sou testemunha disso. Eu ia sair para cavalgar e pensei em parar e ver se gostaria de ir comigo. Até as ruínas da abadia, talvez?

— Não, melhor não. Estou esperando o Sr. Strong voltar. Temos de terminar com os livros da contabilidade hoje.

— Mas isso pode esperar — disse o homem idoso, num tom jovial. — Está um lindo dia para um passeio a cavalo.

— Não. Sinto muito. Não posso.

— Oh. Pena. — Tio Rupert botou a mão no casaco e, para assombro de Miranda, sacou uma pistola. Mirou nela. — Receio que terei de insistir, minha querida.

Miranda o encarou, sua mente repentinamente paralisada. Tio Rupert?

— É você? — perguntou ela. — É você quem...

Ela interrompeu sua fala, virando-se quando a porta se abriu e Strong entrou.

— Sr. Strong! — gritou, aliviada. — Ajude-me.

Mas Strong apenas olhou para ela, nervoso, e depois para Rupert.

— As pessoas verão a arma — disse ele, agitado.

— O senhor não pode sair daqui com ela na mão.

— Você está certo, Strong. — Tio Rupert aproximou-se de Miranda.

Miranda olhou para os dois, petrificada. Os dois estavam nisso juntos! De repente, a verdade a atingiu como um soco no estômago.

— A propriedade! — gritou ela. Era a única coisa que ligava os dois homens. — Vocês vêm enganando Devin a respeito da propriedade!

Tio Rupert suspirou.

— Este é o problema com você, não vê? É esperta demais para sua própria felicidade.

Ele parou ao lado dela, e antes que Miranda se desse conta do que Rupert estava prestes a fazer, ele levantou a pistola e bateu forte com o cabo em sua cabeça. Tudo ficou escuro, e ela caiu no chão, inconsciente.

Estava completamente escuro quando Miranda voltou a si, e, por um instante, pensou aterrorizada estar de volta no terrível porão. Mas então percebeu que havia luz passando por enormes fendas no telhado. E sabia que o porão não era assim.

Sua cabeça estava estourando. Ela sentou-se cuidadosamente e olhou em volta. Havia um pouco mais de luz do que houvera ontem no porão, e ela podia ver que estava sentada em um chão de terra batida, com paredes também de terra batida em todo o seu redor. A luz de cima vinha em quatro linhas no formato de um retângulo. Uma vaga silhueta de uma escada subia até o retângulo. Ela estava novamente no subsolo, pensou, dessa vez com um alçapão em vez de uma porta normal e paredes de terra batida, em vez de pedra. Supôs que poderia se tratar de outra parte dos porões, ou talvez de alguma outra construção em Darkwater.

Ou poderia estar nas ruínas da abadia.

Esse pensamento tomou conta de sua mente, e quanto mais pensava, mais achava que a abadia era a resposta mais provável. Eles não quereriam arriscar que fosse encontrada de novo, como o fora no dia anterior. Sem dúvida, acharam melhor afastá-la da casa. Mas como conseguiram carregá-la, inconsciente, para fora sem que ninguém notasse?

Ficou sentada por mais um tempo, recuperando as forças. Sabia que teria de tentar abrir o alçapão, mas nesse exato instante se sentia mal e estava fraca para fazer algo, por causa da coronhada que recebera de Rupert.

Suspirando, recostou-se na parede. Rupert a acusara de ser muito esperta. A verdade, pensou, é que não fora esperta o suficiente. Depois de semanas analisando os livros e os assuntos relacionados aos negócios da propriedade, não percebera o fato de que Rupert e o gerente estavam roubando Devin. Sem dúvida, eles tinham um conjunto falso de livros que mostraram para ela. Deviam estar arrecadando mais dinheiro em arrendamentos do que mostravam nos livros e embolsando a diferença. A propriedade não devia estar na situação terrível que os dois apresentaram.

Lembrava-se agora de seu questionamento a respeito de uma das fazendas arrendadas e de como parecia mais próspera do que indicavam os números. Por que não deduziu o que isso significava? Fora tola demais ao acreditar na explicação de Strong.

O fato era que estava muito distraída para dar a atenção devida à propriedade. Havia a renovação da casa e dos jardins, é claro; essas coisas tomaram muito seu tempo. Mas a maior distração era Devin. Estivera muito ocupada tentando fazê-lo se apaixonar por ela, para conseguir notar qualquer outro detalhe.

Infelizmente, parecia que ia ter de pagar com sua vida por essa desatenção.

Lembrou-se do primeiro "acidente". Ele acontecera imediatamente depois de ter sido apresentada ao gerente da propriedade. Recordou a surpresa dele quando dissera que passaria a cuidar dos negócios. Sem dúvida, até aquele momento, ele e tio Rupert esperaram poder continuar com o mesmo esquema que praticavam na propriedade de Devin há tanto tempo. Talvez tivessem até pensado que disporiam do dinheiro dela. Ao ouvir a verdade, Strong deve ter se apressado em preparar o primeiro "acidente", sabendo que ela iria explorar a biblioteca naquela tarde.

Quando isso falhou, tio Rupert convidou-a para um passeio a cavalo pela trilha na qual uma rocha de calcário poderia convenientemente partir sua cabeça. Então transcorreram algumas semanas sem acidentes. Talvez, quando os livros da contabilidade passaram pela inspeção dela, tenham decidido que um assassinato não seria mais necessário. Mas, na última semana, eles já haviam tentado matá-la três vezes: a droga no chocolate quente, que Elizabeth tomara, o porão e, agora, isso. Algo os assustara e os levara a agir de novo. E se perguntava o que teria sido.

O mais importante agora, obviamente, era saber quando Devin voltaria para casa e quando organizaria outra busca por ela. Como ele se convencera de que Leona era a culpada, Miranda tinha dúvidas se chegaria a se preocupar com sua ausência em casa. Tudo o que poderia fazer era esperar que ele se preocupasse. Mas, mesmo se começasse a procurá-la, como chegaria à conclusão de que estava na abadia?

Não, pensou, não poderia se fiar no resgate de Devin. Tinha de fazer planos independentes. A primeira providência seria achar uma arma que pudesse usar contra eles quando voltassem — considerando que planejavam voltar e que não a tinham simplesmente jogado ali para morrer de sede e de fome. Miranda deixou de lado esse pensamento desencorajador e começou uma lenta exploração do seu cárcere. Com uma das mãos apalpando a parede de terra batida, ela andou, varrendo o chão a seu lado com um dos pés, procurando sob uma iluminação quase inexistente algo que pudesse transformar em arma. Algumas vezes deparou com pedras pequenas, que guardou no bolso, mas depois de rodar e cruzar todo o ambiente, aquilo era tudo o que possuía.

Miranda sentou-se no primeiro degrau e examinou seus achados: três pedras, duas um pouco maiores que cascalhos e uma do tamanho da palma de sua mão. Pensou por um instante e tirou o lenço do bolso do vestido. Estendendo-o em seu colo, dispôs as três pedras no meio do lenço e amarrou-o cuidadosamente, ficando com um saquinho com as pedras apertadas dentro dele, e, portanto, maior e mais pesado do que se as usasse separadamente, com a vantagem de ter um nó de tecido abaixo das pedras pelo qual podia segurar e manejar a arma improvisada. Talvez não fosse a arma mais perigosa que poderia ter — ela desejava sinceramente ter decidido carregar uma pistola ou uma faca presa na perna —, mas era melhor do que ficar desarmada. Além disso, teria o elemento-surpresa a seu favor. Tio Rupert e Strong não esperariam que tivesse uma arma; ela, com certeza, não era o tipo de mulher com o qual estavam acostumados.

Miranda ouviu um som acima de sua cabeça e permaneceu imóvel, escutando. Houve o relinchar de um cavalo e depois o som distante de uma voz. Pensou em gritar — afinal, poderia ser um estranho, ou até mesmo Devin procurando por ela. Mas o bom senso lhe disse que era ou Rupert ou Strong, ou ambos, vindo terminar o trabalho, e o melhor que podia fazer a seu favor era parecer o mais fraca e indefesa possível.

Portanto, apressou-se em voltar para a parede onde estivera quando recuperou a consciência e estendeu-se no chão, escondendo a arma na mão fechada e enfiando-a no bolso.

No alto da escada, o alçapão abriu-se e caiu para trás com um barulho. Um momento depois, as pernas de um homem apareceram, e a seguir o restante de seu corpo. Era Rupert, carregando uma lamparina que iluminava o pequeno cômodo úmido. Descendo a escada por trás dele vinha Strong, aparentando estar bastante descontente.

— Não sei por que não podemos simplesmente deixá-la aqui — dizia Strong, sua voz quase um choramingo. — Ela morrerá sem nossa ajuda.

— Sim, mas e se meu sobrinho põe na cabeça que tem de procurar na abadia? — Rupert se irritou. — Isso parece exatamente o tipo de coisa que ele faria. Nós não podemos arriscar que alguém a encontre antes que tenha tido tempo de morrer. Ela poderia contar a todos sobre nós. Nós já discutimos isso, Strong.

— Sim, mas...

— Ande logo, homem — continuou Rupert, impaciente. Ele atingira agora a base da escada e direcionou a luz da lamparina para Miranda. — Bem. Posso ver que está desperta.

Ele não parecia feliz com isso. Miranda supôs que teria sido muito mais fácil acabar com ela se não estivesse desperta e assistindo a tudo. Ela sentou-se, tentando parecer mais zonza do que se sentia.

— Tio Rupert...

— Oh, não tente me enrolar ao se fazer de frágil agora — disse ele, com um tom de voz rabugento. — Se você fosse como as outras mulheres, isso nunca teria acontecido. Não entendo por que tem de ser do jeito que é. Sempre examinando e se intrometendo em tudo. Se tivesse deixado tudo de lado, não teria havido qualquer problema.

— Verdade — respondeu Miranda, secamente. — Você teria continuado a roubar Devin sem que ele descobrisse. Sem dúvida, esperava poder fazer o mesmo com minha fortuna.

— Bem, não é como se ele fosse reparar... ou se importar — argumentou Rupert, petulantemente. — Devin nunca teve a menor idéia do que acontecia aqui.

— O que certamente tornava mais fácil defraudá-lo — disse Miranda, sarcasticamente. — Mas, sabe, acho que você foi longe demais dessa vez, Rupert. Devin vai acabar notando que algo está errado quando sua esposa morrer em decorrência de outro acidente misterioso. Ele vai começar a investigar que motivo alguém teria para me matar. Você não acha que ele vai acabar descobrindo?

— Bobagem. Ele será o principal suspeito. Quem mais quereria matar a esposa rica que o marido? Tenho certeza de que é nele que o Sr. Upshaw vai se concentrar.

A mão de Miranda apertou ainda mais as pedras.

— Então você não só está satisfeito em roubar seu sobrinho, como também pretende fazer com que ele seja mandado para a prisão por assassinato?

Por trás de Rupert, Strong fez um barulho, ficando lívido. Rupert franziu o cenho.

— Não. É claro que não. Com sorte, ninguém suspeitará de nada. Isso não teria sido necessário se você não fosse uma mulher intrometida e cabeça-dura. Tirando-me do caminho. Assumindo o controle. Tendo de ir ver as fazendas arrendadas com seus próprios olhos. E ir até a montanha Apworth! Quem poderia imaginar que você quereria ir ver aquele lugar desgraçado!

— A montanha Apworth. — Miranda encarou-o. — Quer dizer... que você tem de me matar para impedir que eu veja a montanha Apworth? É isso?

— É claro — respondeu Rupert, impertinente. — Devin não sabe de nada sobre a negociação. Até mesmo ele acabaria reparando nas minas.

— As minas? Meu Deus, é claro! Eu estava certa. Há minério lá, não há? E vocês vinham fazendo mineração. E Devin nem sonha com isso.

— Oh, pare de resmungar — disse Rupert, irritado, inclinando-se para agarrá-la pelo punho e levantá-la. — Como se Devin merecesse qualquer coisa de lá. Ele é um perdulário...

Miranda não opôs resistência ao puxão do velho em seu braço. Em vez disso, usou o puxão para se erguer, impulsionando-se à frente com toda força, tirando a mão do bolso e lançando-a para cima. O saco de pedras acertou Rupert bem na cabeça. Ele emitiu um som grotesco e foi ao chão, caindo para trás devido à força do movimento dela.

Miranda passou por ele e subiu as escadas, deparando com um Strong surpreso nos degraus sem corrimão. Ele cambaleou para trás e caiu na lateral da escada, aterrissando com um estrondo no chão alguns centímetros abaixo. Miranda não ficou para ver o que acontecera a nenhum dos dois. Ela já transpusera a escada e chegara ao solo.

A forte luz do sol a cegou. Cambaleou para a frente, fazendo sombra com as mãos nos olhos. Onde estavam os cavalos que ouvira? Escutou um barulho e virou-se. Dois cavalos estavam parados logo atrás da pequena parede de pedra, com as amarras frouxamente presas a um arbusto. No entanto, devido à aparição súbita de Miranda, eles começaram a se mexer nervosamente. Quando ela deu meia-volta e se apressou em ir na direção deles, os cavalos partiram em retirada, soltando-se dos arreios mal amarrados. Miranda correu atrás deles sem sucesso, condenando-se por ter se projetado com tanto ímpeto na direção dos animais. Foi então que ouviu um barulho atrás de si e percebeu que tio Rupert deveria estar de pé, e perseguindo-a.

Começou a correr, pulando a pequena parede de pedra e dando a volta em uma outra um pouco mais alta. Não demorou muito para que ficasse completamente perdida naquelas ruínas. Parou, ofegante, e recostou-se em uma parede, atenta para os ruídos produzidos por seu perseguidor. Não ouviu nada, e olhou cuidadosamente por trás da parede. Se ao menos conseguisse escapar da abadia e entrar na floresta, sabia que conseguiria despistar Rupert e Strong.

Entretanto, ao deslizar por um canto, ela ouviu um grito Virou-se e viu Strong a distância, correndo em sua direção. Rupert não estava muito atrás. Miranda desatou a correr. Estava no amplo quadrado aberto que certa vez fora o pátio da abadia. Adiante surgiu uma parede caída pela metade, e, depois desta, havia um campo extenso e devastado que a separava dos esconderijos que a floresta proporcionava. Imaginou que fosse conseguir correr mais que tio Rupert, que era, no fim das contas, mais idoso e que também fora golpeado na cabeça. Strong, no entanto, era uma questão completamente diferente.

Transpôs a parede e correu a toda velocidade. Atrás de si podia ouvir Strong gritando. Foi quando então, a distância, avistou a silhueta de um cavaleiro se aproximando. Uma onda de alegria tomou conta dela.

— Devin!—gritou, e correu para ele em vez de para a floresta. O cavalo arrancou para a frente, correndo em sua direção.

Miranda caiu de joelhos, tentando recuperar o fôlego. Sentiu o deslocamento de ar quando o cavalo passou por ela, e virou-se para ver Devin se lançar para fora do ginete e cair direto em cima de Strong.

Depois disso, tudo acabou em uma questão de minutos. A força da colisão dos dois homens fez Strong perder o ar. Devin completou com um soco no queixo do homem que o fez perder os sentidos. Ele levantou e correu para o tio, que decidiu virar e correr na direção oposta. O que não deu em nada. Devin o alcançou logo, e ele, também, foi para o chão, inconsciente.

Miranda conseguiu ficar de pé enquanto Devin voltava correndo para ela, envolvendo-a com os braços.

— Você está bem? — perguntou ele, abraçando-a com tanta força que ela mal conseguia respirar, e beijando-a em todas as partes do rosto. — Oh, meu Deus, Miranda! E pensar que quase a perdi! Diga-me que está tudo bem.

Rindo, sem fôlego, ela conseguiu responder afirmativamente.

— Sim. Estou bem. Graças a Deus você chegou aqui a tempo. Mas como descobriu? Como chegou até aqui?

Abraçou-a e afastou-a à distância de um braço para verificar seu estado e certificar-se de que estava tudo bem. Logo depois, puxou-a para si novamente.

— Quando cheguei em casa e você não estava, deduzi que havia algo errado. Já concluíra, enquanto cavalgava até em casa, que estava enganado a respeito de Leona, digo, do fato de ela estar tentando matar você. Ela pareceu totalmente perplexa quando a acusei disso. Leona é mestre na dissimulação, mas sei que aquela expressão era verdadeira. Não sabia mesmo sobre o que eu estava falando. Então, interroguei os criados e um deles se lembrava de ter visto Strong e Rupert indo para a parte de trás da casa com um tapete enrolado, que colocaram em uma carroça. Aquilo soou muito estranho; mais estranho ainda quando um cavalariço me contou que voltaram com a carroça e o tapete, e depois partiram de novo, montados em cavalos. Eu os segui. E, quando cheguei perto o suficiente, vi você correndo. O que aconteceu?

Ele a segurou novamente à distância de um braço e olhou-a.

— O que está acontecendo? Por que diabos tio Rupert e Strong estavam querendo matar você?

— Bem, é uma longa história.

Devin olhou para os dois corpos caídos no chão.

— Está tudo bem. Acho que temos algum tempo até que esses dois retomem a consciência. Conte-me.

Rápida e concisamente, Miranda relatou o que acontecera aquela manhã depois que ele saíra para Vesey Park para confrontar Leona. Devin ouviu a tudo estupefato.

— Mas por quê? — perguntou, quando Miranda acabou de contar como Rupert a ameaçara com uma arma, a deixara inconsciente com um golpe na cabeça e a levara para a abadia. — Por que tio Rupert quereria machucá-la?

— Eles acharam que eu estava prestes a descobrir o segredo deles, embora eu tenha sido tão estúpida com relação a isso que fico me perguntando se teria mesmo descoberto tudo. Em resumo, eles o estavam traindo, Dev. Creio que devem estar desviando dinheiro da propriedade há anos e fingindo que ela não era rentável. O fato é que só você estava ficando sem recursos.

Ele a encarou.

— Não acredito. A propriedade era próspera, no fim das contas?

— Acho que sim. Eu sabia que os registros estavam incompletos. Pensei que era devido às limitações do Sr. Strong... por ele ser um mau gerente. Na verdade, ele era muito esperto. Talvez eu o tivesse pego se não estivesse tão, bem, concentrada em você, mas não sei ao certo. De qualquer modo, eles estavam com medo de que eu descobrisse tudo. E não queriam que visitássemos a montanha Apworth.

— O quê?

— Foi algo que Rupert disse quando estava falando sobre por que tinha de me matar. Ele construiu minas em sua propriedade a respeito das quais você não tem o menor conhecimento.

— Não consigo absorver tanta informação.

— Eu sei. É tão bizarro. — Miranda tremeu. — É impressionante até onde as pessoas podem chegar por dinheiro. Rupert pretendia me matar. — Ela recostou-se no peito de Devin. — Mas então, felizmente, você apareceu e me salvou.

— Era o mínimo que eu podia fazer, meu amor — disse ele, suavemente, afastando-a e olhando-a nos olhos. — Afinal, você me salvou.

Devin baixou o rosto para beijá-la e, com um suspiro de felicidade, Miranda rendeu-se aos lábios dele.

 

Miranda levantou-se e alongou o corpo. Empurrando a cadeira para trás, saiu do escritório do gerente e trancou a porta. Atravessou o jardim e seguiu em direção à casa principal. Estava tudo quieto em Darkwater agora que o dia estava terminando e os martelos e serrotes dos trabalhadores haviam cessado. A restauração da casa ia muito bem, mas Miranda tinha de admitir que ficaria feliz quando ela e Devin fossem em lua-de-mel para a Itália e não tivesse mais de ouvir os barulhos dos trabalhadores reconstruindo a casa. Os dois já teriam ido há algum tempo se ela não tivesse sentido necessidade de passar o último mês certificando-se de que os assuntos relacionados à propriedade estavam todos em ordem.

Mas agora estava tudo organizado, pensou, e pôde desviar sua atenção para a arrumação das malas. Além disso, Joseph e Elizabeth haviam voltado no dia anterior de sua viagem à Escócia. Desta forma, o pai poderia se ocupar das restaurações agora, enquanto Miranda e Devin passavam os quatro meses seguintes viajando.

O tempo, sabia Miranda, curaria todas as feridas. Poderia e iria perdoar Elizabeth pelos ataques a Devin. Mas tudo havia sido muito menos estranho com Elizabeth fora no último mês. Seria mais fácil para todos, também, lidar uns com os outros após mais alguns meses. Devin passara o mês conhecendo melhor a filha, ainda que, obviamente, não houvesse dado sequer uma dica para Verônica — e jamais o faria — de que ela fosse algo além de sua cunhada mais jovem.

Rupert e Strong foram para a prisão. Miranda sugeriu que os deixassem emigrar para uma das colônias para evitar escândalo na família, mas Devin insistiu em entregá-los às autoridades.

— Eles tentaram matá-la — disse-lhe, os olhos claros e inflexíveis como pedras. — Se não fossem para a prisão, eu não poderia deixá-los viver. — Miranda então concordou rapidamente que a prisão era a solução.

Subiu as escadas e percorreu o corredor até o estúdio de Devin. Era lá que costumava ser encontrado. Ele se virou ao ouvir o som dos passos da esposa e sorriu.

— Miranda. Venha ver. Terminei seu retrato.

Miranda sorriu e aproximou-se obedientemente para olhar. Era o quinto retrato que ele acabava e, de acordo com Devin, este era seu favorito. Ficaria pendurado, ele decidira, no hall de entrada da casa. Na pintura, Miranda usava um vestido vermelho-sangue, destacado sobre sua pele alva. Assim como todas as pinturas de Devin, esta era repleta de luzes e cores, o que fazia com que parecesse mais bonita do que realmente era, pensou Miranda. No entanto, nunca reclamava com Devin a respeito de suas pinturas nesse sentido.

— É adorável — disse-lhe Miranda, passando o braço na cintura dele.

— Ainda não consegui capturar aquela qualidade — disse ele, analisando a pintura.

— Que qualidade?

— A qualidade que é única em você. — Ele sorriu para ela. — É por isso que continuarei tentando.

— As pessoas vão acabar se cansando de você pintando meu rosto sem parar — provocou ela.

— Ah, mas veja bem, essa é a beleza nisso tudo. Eu não me importo. Não tenho de vender minhas pinturas. Sou, no fim das contas, um homem rico. Você mesma me disse isso.

— De fato, você é — concordou Miranda. — Creio que coloquei todos os assuntos da propriedade em ordem agora.

— Bom. O que significa que podemos partir para a Europa em breve.

— Você quer ouvir o valor total de seus bens? — perguntou Miranda.

Devin sorriu para ela.

— Isso não ia significar muito para mim. Acho que devo deixar tudo nas suas hábeis mãos.

— Foi esse tipo de atitude que o colocou em maus lençóis, para começo de conversa — brincou Miranda.

— Ah, mas a diferença é que posso confiar em você.

— É.

— Amo você — disse ele, simplesmente, e inclinou-se para beijá-la.

Miranda pegou sua mão e eles saíram do estúdio, percorrendo o corredor para se vestir para o jantar.

— Sabe, o lado irônico de tudo é que Strong era, na verdade, um bom gerente. Sua propriedade prosperava como não o fazia havia anos. As fazendas estavam produzindo aluguel suficiente para você viver bem. E ele fez um contrato com uma empresa de carvão para minerar suas terras, o que fez de você um homem muito rico.

Eles chegaram ao quarto de Miranda e entraram. Miranda virou de costas para Devin e ele começou a desabotoar seu vestido.

— Você já se deu conta de algo? — perguntou ela. — Você tinha dinheiro suficiente. Nunca foi de fato necessário que se casasse comigo.

— Ah, sim, foi sim — ele a contradisse, inclinando-se para dar um beijo na base de seu pescoço. — Foi muito necessário... para minha felicidade. Eu poderia ter todo o dinheiro do mundo mas, se não me casasse com você, jamais teria conhecido o amor.

Miranda virou-se e olhou para ele, deixando o vestido deslizar por seus braços e cair no chão a seus pés.

— E você o conhece agora?

— Ah, sim. — O sorriso dele era brando e promissor. — Tenho uma intimidade muito grande com o amor agora.

— Então, por que não me mostra? — perguntou Miranda, elevando os braços pela frente da camisa dele e envolvendo-os no pescoço.

Devin puxou-a mais para perto, baixando os lábios nos dela.

— Será um prazer.

 

 

                                                                  Candace Camp

 

 

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