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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MANSÃO THURSTON - P.2 / Danielle Steel
MANSÃO THURSTON - P.2 / Danielle Steel

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MANSÃO THURSTON

Segunda Parte

 

Às seis da manhã, montou no seu cavalo e foi até à mina. Queria dispor de algum tempo antes de falar com os homens. Leu tudo o que se encontrava em cima da secretária do pai, mas estava tão ao corrente de tudo que quase não descobriu nada que já não soubesse. A única surpresa foi uma carta por abrir escrita por uma rapariga de «uma casa» do Bairro Chinês de São Francisco. Agradecia a Jeremiah o generoso presente que ele lhe oferecera na última vez que lá estivera, mas Sabrina não ficou chocada. O pai tinha o direito de fazer tudo aquilo que lhe apetecesse. E deixara-lhe tudo em ordem nas minas. No dia anterior, o seu advogado lera-lhe o testamento. Era um documento muito simples. Jeremiah deixava todos os seus bens à sua única filha, Sabrina Lydia Thurston: os investimentos, os bens imobiliários, as casas, as terras e as minas. Referia especificamente que nenhuma outra pessoa podia herdar as suas propriedades ou fortuna. Deixava tudo a ela, e a veemência com que o pai expressara a sua última vontade deixou Sabrina algo perplexa. Quem mais poderia querer herdar algo dele? Ela era tudo o que ele tinha. Deixara igualmente duas boas somas em dinheiro a Hannah e a Dan, o que lhes proporcionou grande satisfação. Sabrina esperava que Dan estivesse mais calmo, de forma a comportar-se corretamente com ela. Precisava da sua ajuda. Imaginava a surpresa com que os mineiros receberiam a notícia de que desejava ocupar o lugar do pai. Sabrina sabia que tinha capacidade para isso. O muito que o pai lhe ensinara em dezoito anos dava-lhe plena confiança no êxito do seu propósito. Mas, agora, tinha de convencer toda a gente disso. Sabia que, para os homens, trabalhar para uma mulher podia parecer-lhes estranho, sobretudo tratando-se de uma mulher tão jovem como ela.

Não ignorava as contrariedades com que teria de se defrontar. Mas a reação por parte dos mineiros não podia ser pior. Fez soar a sirena da mina para chamá-los para o seu escritório. Três toques teriam significado que surgira uma emergência na mina. Quatro, um incêndio. Cinco, uma inundação. Seis, uma morte. Mas só deu um, e esperou tranquilamente a chegada dos homens no alpendre do escritório. Esperou um bom bocado e repetiu o toque. Finalmente, começaram a chegar em grupos, a cavaquear entre eles, com as picaretas e demais ferramentas. Àquela hora da manhã, estavam já sujos da cabeça aos pés, com aspecto daquilo que realmente eram: mineiros, com uma profissão extremamente árdua. Eram mais de quinhentos os homens que se concentraram diante do escritório para escutar Sabrina. Aquela gente, que agora trabalhava para ela, não oferecia um aspecto muito tranqüilizador, teve de reconhecer, ao mesmo tempo que sentia um calafrio percorrer-lhe a espinha. Nesse instante, o império era seu... as Minas Thurston...

- Bom dia a todos. - Estavam agora às suas ordens.

Trabalhavam para si, e ela estaria ao seu lado em tudo o que fosse necessário. Pareceu-lhe sentir uma onda de calor procedente daquela multidão. Faria tudo o que pudesse por aquela gente. Nunca os abandonaria. Era isso que ela queria dizer-lhes naquele momento. - Tenho algumas coisas para vos dizer. - Usava o mesmo megafone que o seu pai costumava usar em ocasiões semelhantes. Os homens apinharam-se à sua volta para a ouvir melhor. Dan Richfield observava-a do seu lugar. Sabia como eles reagiriam. Não engoliriam aquilo que Sabrina pensava dizer-lhes, pelo menos, assim esperava. Contava com eles para a realização dos seus planos. Primeiramente, quero agradecer a todos a presença, na semana passada, quando da minha chegada com o meu falecido pai. Teria significado muitíssimo para ele. - Fez uma pausa, tentando conter as lágrimas. - Vocês eram tudo para ele. E ele faria tudo por vós. - Os homens concordaram com a cabeça. - Agora vou dizer-vos uma coisa que talvez vos surpreenda. - Reparou que havia uma expressão de angústia nos rostos daqueles que se encontravam mais perto e, instantaneamente, adivinhou o que estavam a pensar.

- Vai vender as minas, não é? - Sabrina abanou a cabeça.

- Não, não vou vendê-las. - Estas palavras pareceram tranquilizá-los. Gostavam do seu trabalho e eram felizes nas Minas Thurston. Iria tudo correr bem. Richfield manteria a sua posição. A maioria deles assim esperava. Nos últimos dias, não se falara noutra coisa nos bares. Houve, inclusive, algumas apostas. E agora todos ansiavam ouvir o que Sabrina tinha para lhes dizer. - As minas vão continuar exatamente como estão, cavalheiros. Nada irá mudar. Cuidarei para que assim seja. Prometo. - As suas palavras foram acolhidas com vivas, aplausos e olhares de adoração. Sabrina levantou uma mão e sorriu. As coisas estavam a correr melhor do que imaginara. - Vou dirigir as minas pessoalmente, da mesma forma que o meu pai o fez. Com a ajuda do Dan Richfield, que também ajudou o meu pai a dirigi-las. Manterei a mesma política que ele...

Já não a escutavam. Começaram a gritar e a mofar dela.

- A menina a dirigir as minas? Pessoalmente? Está a tomar-nos por idiotas?

- Trabalhar às ordens de uma mulher?... Deve estar chalada!... Ela não passa de uma miúda!...

A gritaria transformou-se numa barafunda que afogou a confiança que alguém pudesse ter ainda nas palavras de Sabrina, que fazia todos os esforços para evitar um tumulto.

- Escutem-me, por favor!... O meu pai ensinou-me tudo aquilo que sabia... - Riram-se a bandeiras despregadas. Só alguns continuavam a escutar em silêncio, mais por incredulidade do que por respeito. - Prometo-vos...

Sabrina fez soar a sirena para impor o silêncio, mas o pandemônio era total, ao qual se juntara Dan Richfield. Desesperada, observou-os em silêncio durante alguns instantes e, depois de quinze minutos e tentativas frustradas para fazer ouvir-se, desistiu e retirou-se para o escritório. Sentou-se à secretária do pai, com os olhos inundados de lágrimas. «Não cederei! Jamais me darei por vencida!... Malditos sejam!...», sussurrou para si mesma. Estava resolvida a não se deixar derrotar por eles, nem que fossem todos trabalhar para outro lado.

Foi exatamente o que a maior parte deles fez no dia seguinte. Atiraram as picaretas e as ferramentas para dentro do escritório através das janelas. Sabrina encontrou um monte de escombros à volta da secretária, juntamente com uma folha de papel com os nomes dos desertores e que começava com as seguintes palavras: «Despedimo-nos. Não estamos para trabalhar para uma rapariga.» Desertaram trezentos e vinte e dois, ficando cento e oitenta e quatro para o trabalho em três minas, o que afetava gravemente a produção. Só restava o pessoal necessário para o funcionamento adequado de uma mina. As outras duas teriam de ser fechadas temporariamente. Se não houvesse outro remédio, era o que faria. Não se deixaria vencer. Havia outros mineiros que precisavam de trabalho e, com o tempo, acabariam por ver que ela sabia dirigir uma mina. Eles voltariam, mas, se não o fizessem, outros tomariam os seus lugares. De qualquer modo, era uma situação terrível. Pediu a cinco homens que se ocupassem da confusão que reinava no escritório, e teve de passar o resto do dia a atender uma fila interminável de mineiros que queriam receber antes de se irem embora. Era uma maneira horrível de começar, mas nunca se daria por vencida. Não era desse gênero, era filha de Jeremiah Thurston. Este, nas mesmas circunstâncias, também não teria abandonado o barco, e ficaria espantadíssimo se visse a filha a fazê-lo. Dan também sabia isso. Às seis da tarde, entrou no escritório de Sabrina e, cruzando os braços com expressão de descontentamento, afirmou:

- É uma sorte o teu pai não estar vivo para ver o que fizeste.

- Se ele estivesse vivo, estaria orgulhoso de mim. - Pelo menos, assim esperava. Era uma questão discutível. Se ele ainda fosse vivo, aquilo não estaria a acontecer. - Estou a fazer o melhor que posso, Dan.

- E não te saíste muito mal. Sempre pensei que demorasses mais tempo a rebentar com isto tudo. Só levaste dois dias. E que vais fazer agora com cento e oitenta e quatro homens?

- De momento, fechar duas das minas. Em breve, outros homens farão fila aí fora a pedir-nos trabalho - declarou, num tom algo nervoso, mas decidido. Era uma rapariga corajosa e, além disso, tinha toda a razão. O pai ter-se-ia orgulhado dela.

- Parabéns, miúda. Conseguiste transformar a maior mina do Oeste num circo. E fazes idéia de quem ficou a trabalhar para ti? Alguns velhos que o teu pai mantinha por mera caridade, mas ele podia dar-se a esse luxo, tinha centenas de outros que trabalhavam a dobrar; alguns miúdos que sabem tanto disto como tu, e uns quantos covardes que não podem permitir-se arriscar e meter-se à aventura porque têm demasiados filhos para alimentar...

Sabrina lançou-lhe um olhar fulminante.

- E tu estás incluído entre os últimos, não é, Dan? - Tocara-lhe no ponto fraco. - Por que razão ficaste? Talvez seja a altura de esclarecermos isso.

Dan corou e olhou-a com ar furioso.

- Estou em dívida para com o teu pai.

- Bem, julgo que podes considerá-la paga. Trabalhaste vinte e três anos para ele. É mais do que suficiente para pagar uma dívida. Concedo-te a liberdade, como Lincoln fez com os escravos. Queres ir? Podes sair agora mesmo por essa porta para nunca mais voltares. - Fez uma pausa, e o escritório ficou mergulhado no mais profundo silêncio. - Mas, se ficares, espero que permaneças do meu lado, que me ajudes a levar por diante tudo isto e a reabrir as outras duas minas. Não gostaria de ter de lutar também contigo.

Dan percebeu imediatamente o que Sabrina queria. Não havia nenhuma razão para contemporizar com ela. A rapariga nunca o deixaria dirigir as minas. Isso era claro. Era estúpida, e tão teimosa e ávida de poder como o pai. Pelo menos, era assim que ele agora a via. O sucedido durante aqueles dois últimos dias abrira-lhe os olhos. Há mais de vinte anos que se mantinha ali para um dia poder ficar à frente daquelas minas e, em dois dias, ela destruíra os seus planos por completo. Sabrina tinha de as vender. John Harte deixá-lo-ia dirigi-las. Foi o que lhe prometera, com a condição de o ajudar a fechar negócio com ela. Chegara, pois, o momento de tentar isso mesmo.

- Vende as minas ao John Harte, Sabrina. Eles nunca te permitirão que as dirijas pessoalmente. Perderás tudo quanto tens.

- Não, nem as venderei, nem perderei nada. O meu pai ensinou-me mais do que aquilo que pensas. E lamento que as coisas tenham tomado este rumo. Pensei que tu e eu pudéssemos trabalhar juntos, tal como trabalhaste para o meu pai.

- E porque achas que o fiz, minha tonta? Por amor a ele? Com os diabos, sempre pensei que um dia ficaria à frente de tudo isto, e não tu. - Não ia estar com papas na língua. Não tolerava a obstinação da rapariga. Se se tratasse de um filho de Thurston, o caso mudaria de figura. Mas aquela miúda...? E, ao fim e ao cabo, quem era ela? A filha de uma pega que abandonara Jeremiah, há dezessete anos. Diziam que ela morrera, mas ele nunca acreditara nisso. Ouvira rumores acerca de um amante que ela tinha na cidade; nessa altura, porém, Dan era criança e não se interessava por mexericos desse gênero. Lançou um olhar irado a Sabrina, os olhos transbordantes de ódio.

- Lamento que penses dessa maneira, Dan

- És louca. Vende as minas ao John Harte.

- Já me disseste isso, e sabes que não as vou vender a ninguém. Dirigi-las-ei pessoalmente, nem que tenha de ir para as galerias. Trabalharei até cair para o lado, mas vou ficar com aquilo que o meu pai criou. Serei tão justa e boa como ele, e as Minas Thurston continuarão a laborar dentro de cem anos, se ainda houver mercúrio. Não vou permitir agora que alguém como tu me assuste, nem vou vender nada ao John Harte, nem vou deixar-me abater porque um bando de idiotas me abandonou. Faz o que muito bem te apetecer, mas eu fico aqui.

Era exatamente como o pai, e Dan sentiu o desejo súbito de a esbofetear. Propusera-se tratá-la com calma, convencê-la delicadamente a vender as minas, mas ela tirara-lhe o tapete debaixo dos pés. Tomara as rédeas de tudo, cortara-lhe os tomates em público, mostrara a toda a gente que Dan Richfield não passava de um simples empregado a soldo. Todavia, ele não se resignaria tão facilmente à sua sorte. De súbito, cedendo a um irreprimível impulso, estendeu o braço e agarrou Sabrina pelos cabelos. Completamente descontrolado, sacudiu-a até ouvir-lhe os dentes a ranger, mas Sabrina não soltou qualquer grito. Então, enrolando os cabelos da rapariga na sua mão forte, obrigou-a a ajoelhar-se a seus pés.

- Sua putéfia. Sua rameira! Nunca mandarás aqui! - Com isto, agarrou-a pela garganta e, de repente, teve a percepção do que desejava fazer. Puxou de um golpe a blusa pelo colarinho e rasgou-a, ficando o corpo de Sabrina apenas coberto pelo espartilho, a saia, as meias, as bragas e as botas. Sabrina nunca desviou os olhos de cima dele. Dan olhava-a com ar malicioso, acariciando-lhe os seios com uma mão, enquanto a mantinha imobilizada com a outra, que ainda agarrava os longos cabelos escuros.

- Solta-me, Dan! - conseguiu dizer finalmente a rapariga, com uma voz muito mais calma do que aquilo que realmente sentia. Estava horrorizada com os propósitos que adivinhava naquele homem. E não havia ali ninguém que a pudesse ajudar. Eram as únicas pessoas que se encontravam na mina. Já não havia nenhum mineiro ali, e o vigilante noturno estaria demasiado longe para ouvir os seus gritos, além disso, não queria que ninguém a visse naqueles propósitos. Ela tinha de conquistar a confiança dos mineiros, mas, se eles a vissem a ser violada por Dan, estaria tudo acabado para ela.

- Se continuares a abusar de mim, vais passar o resto da vida na cadeia. E se me matares, enforcam-te.

- Vais contar a toda a gente que abusei de ti, querida Sabrina? - Dan olhava-a com ar alucinado. E já adivinhara os pensamentos de Sabrina. Se ele a violasse, como é que ela poderia denunciá-lo? Todos lhe perderiam o respeito, a culpa seria dela... e só Deus sabia quem é que voltaria a tentar... O que era uma perspectiva aterradora para a rapariga. De repente, fazendo apelo a todas as suas forças, conseguiu soltar-se de Dan, correu na direção da secretária e abriu uma gaveta. Sabia o que o pai guardava ali, e Dan também. Lutaram ambos pela posse da pequena pistola, que acabou por cair ao chão. Então, ficaram ambos paralisados, como se tivessem dado conta do que acontecera. Dan olhou-a com súbito horror, e ela levantou os olhos para ele, envergonhada e repugnada. Dan estivera prestes a violá-la, precisamente o homem que ainda uma semana antes era amigo dela e do pai.

- Quero que te vás agora mesmo daqui e nunca mais voltes. Estás despedido.

Por instantes, Dan pareceu aturdido, como se até então não tivesse tido plena consciência daquilo que fizera. Sem dizer palavra, dirigiu-se para a porta. Ainda teve vontade de a ajudar a vestir a camisa, mas não se atreveu a fazê-lo. Aquela rapariga acabava de destruir o sonho que alimentara durante duas décadas. Porém, isso não era desculpa. Dan não compreendia o que fizera, nem por que.

- Desculpa, Sabrina Estou... - Olhou-a com ar desesperado, envergonhado com o seu ato. Todavia, a pretensão de Sabrina de dirigir as minas pessoalmente era uma barbaridade. Nisso, ele tinha razão. Tens de as vender. Isto voltará a acontecer. Se não comigo, com outro qualquer. E é possível que esse outro não se detenha a tempo como eu.

Sabrina virou-se para Dan, indiferente ao aspecto que apresentava: os cabelos desgrenhados, os ombros nus.

- Nunca venderei as minas, Dan. Nunca E podes dizer isso ao teu amigo John Harte.

- Diz-lhe tu. Estou certo de que não te faltarão ocasiões.

- Não tenho que dar satisfações a ninguém. E vou contratar os homens que puder.

Sabrina desconfiava que Dan iria trabalhar para John Harte. Mas pouco lhe importava. Nunca mais queria voltar a ver Dan Richfield. Era um homem mau. O seu pai tê-lo-ia morto por aquilo que ele estivera prestes a fazer. Graças a Deus, detivera-se a tempo. Dan olhou-a uma última vez. Estava incrivelmente bonita com os sedosos cabelos caídos sobre o rosto e os enormes olhos, cheios de tristeza. Que difícil fora a sua entrada na idade adulta!

Depois de Dan ter partido, Sabrina vestiu a blusa rasgada, voltou a depositar a pistola na gaveta da secretária, deu uma pequena arrumação na sala, apagou as luzes e abandonou a mina. Sentir no rosto o ar frio da noite foi um verdadeiro alívio para ela, embora não pudesse evitar que um calafrio lhe percorresse todo o corpo. Quase fora violada por um homem que conhecera durante toda a vida. Nem sequer tinha forças para andar até ao sítio onde deixara o cavalo; como tal, teve de se sentar quase meia hora no alpendre. Quando, finalmente, subiu a custo para a sela e partiu rumo a casa, com o vento a bater-lhe nos cabelos, deixou escapar um soluço. Pela primeira vez, estava zangada com o pai. Como é que ele podia deixá-la só no mundo? Queria sair dali o mais rapidamente possível e ir para muito longe, mas a sua fiel montada levou-a para casa. Sabrina conduziu então o cavalo para o estábulo, onde desmontou e se deteve por instantes com o rosto apoiado no dorso do cavalo, perguntando-se como era possível que o pai a tivesse abandonado precisamente quando ela mais precisava.

- O Dan Richfield tem razão. - Sabrina deu um pulo ao ouvir a voz familiar. Hannah vira-a entrar no estábulo e viera ter com ela. Estás louca varrida.

- Obrigada. - Sabrina virou a cara para que Hannah não visse as lágrimas. - Já tivera a sua dose para um dia.

- O teu pai nunca mostrou intenções de seres tu a dirigir as minas.

- Então, deveria ter deixado outra opção. Uma vez que não deixou, eu sou tudo o que tenho.

Hannah olhou-a fixamente. Não estava para ouvir mais disparates.

- Tens o Dan.

- Já não.

- Foi-se embora? - Hannah pareceu surpreendida.

- Despedi-o. - Sabrina não contou que estivera prestes a ser violada. O casaco que envergava tapava a blusa rasgada.

- Então ainda estás mais louca do que aquilo que eu pensava.

- Toma atenção ao que te vou dizer, Hannah. - Sabrina depositou a sela no sítio do costume, e virou-se para a mulher que tratava dela desde que nascera. - Tu cuidas da casa, eu cuido das minas. As coisas não pareciam ir mal quando tu e o papá repartiam o trabalho dessa maneira. Porque não tentamos fazer o mesmo?

- Porque ele não era uma rapariga de dezoito anos. Meu Deus, que pensarão as pessoas quando te virem tentar dirigir as minas pessoalmente?

- Nem sei, nem me importa. E podes ter a certeza de que não lhes perguntarei. - Com estas palavras, apagou a luz do estábulo e dirigiu-se para casa em passo decidido.

No dia seguinte, quando Sabrina voltou ao escritório, havia um estranho ruído nas minas. A perda de trezentos e vinte e dois homens estava a fazer-se sentir. A meio da manhã, fez soar a sirena e anunciou que as duas minas mais pequenas iriam fechar. Redistribuiu os homens na rede de galerias mais importante da mina maior e disse-lhes exatamente o que esperava deles. Havia na sua voz uma energia que ninguém notara antes e que agora não passou despercebida aos mineiros. Um deles referiu isso ao regressarem ao trabalho, mas os outros encolheram os ombros. Tal como os homens que ainda tratavam dos vinhedos do pai, não se sentiam minimamente interessados pelo que ia na cabeça de Sabrina, desde que ela continuasse a pagar-lhes os salários a tempo e horas. Tinham ficado por essa razão. Não o haviam feito por amor a ela nem por devoção para com o velho. Consideravam que não deviam nada à nova patroa, precisavam do trabalho e eram bem pagos. A maioria não sentia a menor preocupação pela mudança de direção, embora, ao saberem que Dan Richfield também se fora embora, começassem a ficar preocupados

- Achas que ela sabe o que está a fazer.

- Saberá assinar um cheque?

- Suponho que sim. - Os homens sorriram entre dentes

- Então, fico. Paga melhor do que o John Harte, pelo menos, o pai pagava.

Na realidade, não houvera qualquer referência a nenhuma redução dos salários. Muito pelo contrário, Sabrina pensava aumentá-los na semana seguinte. O pai planejara o aumento para a primavera, mas, com menos dois terços do pessoal, tinha possibilidades de o fazer já. Agora, devia concentrar esforços na contratação de mais homens. Nessa tarde, encontrava-se a fazer alguns cálculos com esse fim, quando a porta do escritório se abriu. Levantou a cabeça e viu entrar John Harte em passada larga. Quando se deteve diante da secretária, Sabrina olhou-o fixamente. Não se moveu nem esboçou o menor sorriso.

- A não ser que deseje comprar mercúrio, Mister Harte, está a perder o seu tempo e a fazer-me perder o meu.

- Essa é uma das coisas que gosto em si - afirmou ele, sem se amedrontar. - Tem uma maneira afetuosa de receber as pessoas. Reparei nisso a primeira vez que nos encontramos.

Sabrina sorriu e, recostando-se na cadeira, fez-lhe sinal para se sentar.

- Desculpe. Têm sido uns dias muito complicados. Sente-se, por favor.

- Obrigado. - Ao fazê-lo, puxou um charuto do bolso da jaqueta. De repente, Sabrina lembrou-se da rapariga índia. Perguntou-se se ainda viveria com Harte, embora isso pouco lhe importasse. A jovem e bela índia não lhe saía da cabeça. Havia nela algo de tão delicado e sensual, que era estranho relacioná-la com aquele homem rude e cheio de rugas. - Ouvi dizer que teve uma semana muito interessante. Importa-se que fume? - Não lhe ocorrera perguntar logo. Era-lhe difícil encará-la como uma mulher. A rapariga vivia num mundo de homens e Harte esperava que ela se comportasse como um deles, apesar de ser uma rapariga muito bonita. Fosse como fosse, Sabrina metera-se numa tremenda embrulhada, e ele queria ajudá-la a sair dela.

- À vontade. Sim, têm sido dias muito interessantes.

- Disseram-me que saíram dois terços dos seus homens. - Ele não ia estar com rodeios com ela. Sabrina esboçou um sorriso cansado.

- Parece que sim. Imagino que boa parte deles esteja a trabalhar para o senhor. - Embora ele tivesse uma mina muito mais pequena.

- Alguns. Não precisava deles todos. Fiquei com os necessários. São boa gente.

- Do meu ponto de vista, não. - Sabrina dirigiu a Harte um olhar de desafio, e ele admirou a sua ousadia.

- Escolheu um cavalo muito difícil de domar, Miss Thurston.

- Sei disso. Mas pertencia a meu pai e agora é meu. E asseguro-lhe de que o dominarei antes que ele me mate primeiro, Mister Harte.

- Acha que vale a pena. - O olhar do homem era amável, mas agora não queria amabilidades de ninguém. Prosseguiria com a sua luta sem nenhum Dan Richfield, sem nenhum John Harte, sem ninguém. Estava completamente só. E lograria atingir os seus propósitos, por pouco ortodoxa que parecesse a sua postura.

- Para mim, sim, Mister Harte. Não vou render-me por nada deste mundo.

- Então, julgo que tem razão - sussurrou ele, com um sorriso malicioso.

- Sobre quê.

- Sobre o fato de eu estar a perder o meu tempo. - Harte pousou o charuto e inclinou-se para ela. Queria fazer-lhe ver as coisas do seu ponto de vista. Não queria roubar-lhe nada, mas sim fazê-la entrar na razão. O que ela estava a fazer era um erro. O próprio pai não teria aprovado, e ele estava preparado para lhe dizer isso mesmo. - Miss Thurston, é uma rapariga inteligente, honesta e encantadora, e julgo não me enganar se disser que era a menina dos olhos do seu pai

Sabrina franziu o sobrolho

- Está a perder o seu tempo

- Escute-me! - Desta vez as palavras foram duras. - Sabe muito bem o que quero. Quero comprar as minas. As três E pagarei uma bonita soma por elas. Se recusar, sobreviverei na mesma. O que tenho chega-me, e estou a fazer uma fortuna fabulosa. Por isso, estou-me nas tintas. Só não gosto de ver esbanjar recursos. Pouco lucro tirará da mina que manteve aberta, já fechou as outras duas, mas, mais importante do que isso, está a desgastar-se a si própria. Ainda é muito jovem. Olhou à sua volta, para a lúgubre sala. Que raio está a fazer aqui dentro? É isto que quer fazer na vida? Você não é um homem, é uma rapariga. Que quer provar? - Harte recostou-se na cadeira e abanou a cabeça. - Não tive a sorte de conhecer muito bem o seu pai, mas, pelo pouco que sei dele, posso dizer-lhe que isto não é nada do que ele queria para si. Ninguém no seu juízo perfeito o quereria. É uma vida solitária, desagradável, suja, cansativa, a partir pedra, a desenterrar as vítimas de aluimentos, a lutar contra fogos e inundações, a manter os bêbedos na linha. Como raio é que pensa dar conta do recado, se nem sequer já tem o Dan Richfield consigo? - Harte parecia sinceramente preocupado com Sabrina, mas esta estava desconfiada. Desconfiava de toda a gente.

- Como é que sabe? - Dan só fora despedido na noite anterior.

Harte preferiu ser franco com ela.

- Contratei-o hoje. É um bom homem. - Sabrina esboçou um sorriso de troça.

- Pelo menos, não tentará pôr a mão no senhor. - Instantaneamente, instalou-se um silêncio entre eles, e o olhar de Harte incendiou-se.

- Ousou fazer isso?

Depois de alguma hesitação, Sabrina fez um gesto afirmativo com a cabeça. Já não havia qualquer razão para o proteger, e sabia que John Harte não tentaria fazer a mesma coisa. Não era esse gênero de homem e, além disso, tinha a rapariga índia. John Harte abanou a cabeça e passou a mão pelo rosto antes de olhar de novo para ela.

- Se você fosse minha filha, matava-o.

Sabrina esboçou um sorriso de agradecimento, mas depois lembrou-se de quem tinha diante de si.

- Mas não sou, e o meu pai morreu. E parece que o senhor tem um novo encarregado-geral, Mister Harte. - Sabrina sabia falar com dureza quando era necessário. Pôs-se de pé e levantou a mão. Já ouvira o suficiente. - Obrigada pelo voto de confiança e pelo interesse que demonstra pelas minhas minas. Esteja descansado que eu aviso-o se resolver vendê-las.

- Não siga sozinha nesta empresa. - Harte fixou-a, olhos nos olhos. Estava a ser sincero. - Destroçar-lhe-á o coração e devorará toda a sua vida.

Sabrina perguntou-se se não seria isso que estava a acontecer com ele. Harte falava com alguma tristeza na voz. Mas esse problema não era seu e já tinha problemas que lhe chegassem.

- Aconselho-o a não voltar a procurar-me, Mister Harte. Não temos qualquer negócio a tratar. - Não queria ser grosseira com ele, mas não queria voltar a vê-lo de novo nas suas minas. Ainda se recordava da visita de apresentação de pêsames a semana anterior... Só passara uma semana? Nem queria acreditar. - As minhas minas não estão à venda, e não estarão por muitos e longos anos.

- Assim está a renunciar por completo ao matrimônio e a uma família. - Harte voltara à ofensiva, e Sabrina estava desejosa de o ver dali para fora.

- Esse problema não é seu - replicou Sabrina com olhar severo.

- Não conseguirá conciliar ambas as coisas.

- Farei o que me der na real gana! - ripostou Sabrina, ao mesmo tempo que contornava a secretária. E agora, saia-me daqui para fora, Harte!

- Muito bem, minha jovem senhora. - Fez-lhe uma reverência com o chapéu e encaminhou-se, em passo lento, para a porta.

John Harte não podia deixar de reconhecer a coragem de Sabrina, mas continuava a achar que ela estava a cometer um erro tremendo. Lamentava o fato de ela não querer vender-lhe as minas. Teria gostado de incorporar as Minas Thurston nas suas. Mas o que mais o preocupava era o que a rapariga dissera de Dan... «Pelo menos, não tentará pôr a mão no senhor»... Tentara violá-la? Estupor... Teria de prevenir Lua da Primavera. Não queria vê-lo em nenhum momento perto dela. A atitude de Dan... «pôr a mão» em Sabrina Thurston... deixara-o profundamente enojado. Por mais insensata e teimosa que a rapariga fosse ao pretender dirigir pessoalmente as minas do pai, fora uma canalhice ter querido aproveitar-se dela. Nessa tarde, quando voltou ao escritório, Harte mostrou-se inesperadamente brusco com o novo empregado, para surpresa deste, que não sabia o que podia ter feito para provocar a cólera do novo patrão. Dan sentia-se injustiçado, e enfureceu-se só de pensar em Sabrina. Se não fosse ela, estaria à frente das Minas Thurston

John Harte teve vontade de lhe dizer para nunca mais se aproximar de Sabrina, mas não o fez porque não queria dizer-lhe que sabia tudo o que sucedera. Assim, só preveniu Lua da Primavera, que desatou a rir.

- Não tenho medo dele, John Harte. - Tratava-o sempre dessa maneira, o que o fazia sorrir, mas não desta vez

- Toma atenção ao que te vou dizer. A mulher é feia e tem um ar anêmico, e tem um montão de filhos... É muito possível que procure um pedacinho mais tenro, como tu, por exemplo. Não sei nada desse homem. A única coisa que sei é que trabalhou duramente nas Minas Thurston nos últimos vinte e três anos. Mas, seja como for, não quero que ele te faça mal. Percebido. Afasta-te dele, Lua da Primavera

- Não tenho o menor medo. - Sorriu e, com um simples gesto, deixou cair da manga um afiado punhal e voltou a escondê-lo com tanta rapidez que John Harte mal conseguiu ver o brilho da lâmina.

- Às vezes, esqueço-me da tua astúcia, minha querida. - Beijou-a no pescoço e voltou para o trabalho. A sua mente foi então invadida pela recordação daquela rapariga que, sendo praticamente uma criança, se empenhara em dirigir pessoalmente as minas do pai, com um grupo de homens que não passava de uma sombra daquilo que fora. Lamentava não poder ajudá-la. Mas o seu plano não era esse. Já falara desse assunto com Dan mais de uma vez. Esperaria o tempo necessário, até que Sabrina fracassasse, e então comprar-lhe-ia as minas. Tanto ele como Dan sabiam que esse momento não demoraria muito, por mais que a rapariga achasse que sabia dirigir as minas do pai. Não passava de uma criança.

Duas semanas depois, Sabrina completou os dezoito anos. Dera já aos seus trabalhadores o aumento prometido, mas estes raramente lhe dirigiam a palavra. As duas minas mais pequenas estavam fechadas, como tal, tentava tirar o máximo proveito da principal. Além disso, promovera um dos novos homens a encarregado-geral, em substituição de Dan. Ele não lhe mostrava mais afeto do que os outros, mas estava satisfeito com o salário, e a Sabrina bastava-lhe isso. Tão-pouco lhe desagradava a promessa de novos aumentos que Sabrina lhe fizera se conseguisse recrutar os mineiros necessários para a reabertura da mina número dois. Conseguiu isso em novembro desse mesmo ano, mas a reabertura coincidiu com uma inundação e a morte de cinco dos novos mineiros. Sabrina não se afastou nem por um segundo do lugar do sinistro. Suportou a pé firme a persistente chuva e ajudou a resgatá-los de dentro das galerias inundadas. Foi ela que se ajoelhou ao lado das vítimas para lhes fechar os olhos, foi ela que, no dorso do seu cavalo, encharcada até aos ossos e completamente esgotada, levou a triste notícia às esposas, foi ela que os ajudou a enterrar, tal como o pai fizera tantas vezes, e foi ela que abriu a terceira mina na primavera. Levara um ano a recompor-se do golpe de perder mais trezentos homens, mas, agora, as três minas funcionavam sem problemas de pessoal e com uma excelente produção. Dan Richfield ficava furioso cada vez que pensava nisso.

- Tens de dar a mão à palmatória, Dan. É tão dura como o pai, e duas vezes mais esperta. - John Harte nem queria acreditar no que Sabrina conseguira.

- Essa puta de merda - limitou-se a dizer Dan, enquanto saía do escritório, batendo violentamente com a porta, perante o olhar atônito de Harte. Não se podia negar que aquele homem aprendera muito durante os vinte e três anos de trabalho nas Minas Thurston, mas não havia nele nada que fosse decente nem agradável. Harte não compreendia como é que Thurston o tivera tanto tempo ao seu serviço. Talvez nessa altura não fosse tão desagradável e malcriado. Vivera obstinado por um objetivo, que agora estava fora de questão. Aqueles pensamentos estimularam em John Harte o desejo de fazer uma segunda visita a Sabrina.

Um dia, entrou novamente no escritório de Sabrina, para surpresa desta. Durante o último ano, nem sequer voltara a pensar em Harte. Estava orgulhosa em relação ao trabalho por si desenvolvido nas minas do pai. Sabia que os homens não morriam de amores por ela, e provavelmente isso nunca iria acontecer, mas trabalhavam com afinco, merecendo inteiramente aquilo que ganhavam.

- Veio cumprimentar-me ou pedir-me trabalho, Mister Harte. - perguntou Sabrina, com os olhos a sorrir

- Nenhuma das duas coisas. Eu sou ainda mais atrevido. Ao contrário de si. - Ele admirava-a mais do que Sabrina imaginava, e reparou que a rapariga estava satisfeita consigo mesma. Tinha o direito de estar. A guerra ainda não acabara para Sabrina, mas ganhara a primeira batalha. Era certo que as minas voltavam a trabalhar a todo o vapor, mas a possibilidade de conseguir mantê-las ao mesmo ritmo durante muito tempo era outra questão. Harte duvidava disso, tal como Dan. Talvez fosse um erro ir visitá-la de novo tão cedo. Poderia ter esperado até que as coisas começassem a dar para o torto, mas preferira assim. Tinha previsto para aquele ano um plano de expansão que não lhe permitia esperar mais tempo. O projeto compreendia a compra de uma das minas de Sabrina, talvez duas. - Vamos diretos ao que interessa. Venda-me a mais pequena das suas minas.

Sabrina mirou-o como uma serpente pronta a morder a presa.

- Não. Nem uma nem nenhuma. - Por outro lado esboçou um sorriso cauteloso, ficaria encantada se me vendesse as suas, Mister Harte. - Acabava de fazer dezenove anos e parecia mais mulher. Fora um ano de longa e árdua luta, uma luta que tinha de prosseguir, e ninguém lhe iria dar tréguas. - Gostaria de comprar as suas, Mister Harte. Já considerou essa hipótese?

Harte sorriu perante tamanho desplante.

- Receio que não.

Então estamos empatados.

- É uma menina muito teimosa. Era assim quando o seu pai era vivo?

- Suponho que sim. - Sabrina sorriu, pensando na situação em que se encontrava um ano antes, parecendo-lhe que transcorrera toda uma vida. Talvez não tivesse muitas razões para ser. Lutara durante aquele tempo pela sua sobrevivência, sem o apoio de ninguém. E, como se fosse pouco, todas as noites, ao voltar para casa, tinha de escutar as repreensões de Hannah. Quase temia regressar a casa ao fim do dia, mas não tinha coração para, ao fim de todos aqueles anos, despedi-la. Por isso, ficava até altas horas da noite na mina, situação que a levara a perder muito peso. Até John Harte reparara, embora, naturalmente, nada lhe dissesse a esse respeito. Só sentia pena dela. Sabrina seria muito mais sensata se lhe vendesse as minas.

- Lamento que não reconsidere este ano.

- Já lhe disse. Nunca. As Minas Thurston só estarão à venda depois de eu morrer, não antes, Mister Harte. Sei que, para muitos, essa seria a melhor solução.

Sabrina expressara-se talvez com excessiva dureza, mas não falava por falar. Não tinha nenhum amigo ali. Alguns haviam começado a respeitá-la, mas ainda eram muito poucos. Voltava a ter mais de quinhentos homens às suas ordens, mas só um punhado deles se preocupava com a sua vida ou a sua morte. Eram os que haviam trabalhado ao lado dela quando da inundação ou os que a tinham visto interessar-se pessoalmente, no fundo das minas, por todos os aspectos do seu trabalho Mas não sentiam verdadeiro afeto por Sabrina, como o que haviam tido por Jeremiah só um ou dois anos antes. Olhava para John Harte com poucas ilusões. Crescera. E pagara um elevado preço por isso. Harte continuava a ter pena da situação de Sabrina. Estendeu a mão à rapariga e esta apertou-a, mas no olhar de Sabrina não se vislumbrava qualquer indício de afeto por ele. Eram demasiados os que a haviam ofendido no ano anterior, demasiados os que haviam tentado fazer-lhe mal, a começar por Dan. Também Harte não estava muito satisfeito com o comportamento do seu encarregado. A esposa de Dan morrera ao dar à luz no ano anterior e, desde então, ele ia para a pândega todas as noites, deixando os filhos com fome, sujos e mal vestidos. John Harte prevenira, mais uma vez, Lua da Primavera para ter cuidado com ele, mas ela respondera-lhe com um sorriso de confiança e fazendo reluzir o punhal.

- Lamento que pense dessa maneira - disse Harte, e hesitou antes de sair. - Não posso deixar de pensar que você viveria muito melhor sem esta carga. - Mas, para Sabrina, a frase pareceu outra suave tentativa de a convencer a desfazer-se das minas. Harte captou o olhar impaciente que Sabrina dirigiu para a porta e rematou. - Compreendo

Sabrina perguntou-se se ele realmente compreendera, mas desconfiava que não. Ele nunca conseguiria imaginar como ela lutara desesperadamente para chegar à satisfatória situação atual. Nunca abandonaria as minas. Nunca.

Os vinhedos prosperavam do mesmo modo. No ano anterior, juntara-se à cooperativa de vinicultores, e estava determinada a ajudá-los a melhorar a qualidade dos seus vinhos, apesar de, também ali, ser apenas tolerada. Mas já se habituara a isso. Habituara-se a ser mal acolhida em todo o lado, a que lhe dirigissem a palavra o menos possível, a que a evitassem, a ser a primeira a receber a fúria dos demais proprietários. Mas também sabia responder-lhes quando era necessário. O seu temperamento fortalecera-se bastante durante aquele último ano em que andara em constante stress, e John Harte acabava de observá-lo no seu rosto, verificando que ainda estava mais bonita do que no ano anterior. Havia algo nela que o fazia desejar estreitá-la entre os seus braços. Mas teria sido um ato carente de sentido. Era uma mulher que não queria ajuda de ninguém. Propusera-se escalar sozinha a montanha do êxito e, qualquer dia, ficaria sentada a meio da encosta, sem forças para prosseguir. Harte não podia alegrar-se com a situação de Sabrina, talvez porque, de certo modo, escolhera o mesmo caminho que ele próprio e que o pai. Nem ele nem Jeremiah tinham voltado a casar. Haviam decidido viver só para as suas minas. Harte, com Lua da primavera a seu lado, Jeremiah, com a filha, mas esta não contava com ninguém. Aquele pensamento consternou Harte, enquanto cavalgava em direção à mina. Sabrina não voltou a pensar nele, tinha muito que fazer. Raramente deixava vaguear a mente. A vida era uma luta constante de sobrevivência, e não fora por acidente que reabrira as duas minas inativas. Conseguira-o trabalhando duramente sem parar, durante meses e meses de suor.

E agora continuava a trabalhar quase com a mesma intensidade para fazer prosperar o negócio. Acabava de acordar a venda de setecentos frascos de mercúrio para uma firma do Este, e prometera uma gratificação extra aos homens quando fizesse o despacho da encomenda. Sabia como o pai dirigira as minas, a sua forma de lidar com o pessoal não tinha segredos para ela, de modo que, de acordo com a filosofia que ele sempre seguira, repartia os lucros com os seus homens quando tinha de lhes exigir um esforço suplementar E se, por acaso, não gostavam dela, consideravam-na, pelo menos, uma mulher justa. Não esperavam nada mais de Sabrina, nem esta esperava receber mais do que dava, ainda que nem sempre as coisas se passassem assim. Era agora muito mais exigente. Se algum homem lhe faltava ao respeito, em menos de uma hora estava na rua. Agora, podia permitir-se ser mais dura com eles, o que aumentava o respeito que tinham por ela.

- Continua a mesma putéfia e ranhosa de sempre - vociferou Dan Richfield, certa noite, num bar, perante alguns mineiros de Sabrina, precisamente no momento em que entrava John Harte, o qual se postou ao fundo do bar. - Ela pensa que lá por andar de calças já tem uma pica entre as pernas.

Os homens riram-se, mas as suas gargalhadas foram interrompidas pela voz serena de John Harte

- Era disso que andavas à procura quando tentaste violá-la o ano passado?

Instalou-se um súbito silêncio e Dan empalideceu, surpreendido por ver o patrão e, sobretudo, por descobrir que Harte sabia o que ele estivera prestes a fazer.

- Que quer dizer com isso?

- Não acho bem que fales nesses termos da Sabrina Thurston. Trabalha tão duramente como todos nós. E esses homens ainda estão ao seu serviço, se não me engano.

Um ou dois deles pareceram envergonhados. John Harte não era amigo de Sabrina, mas tinha toda a razão. Trabalhava que se fartava, isso ninguém podia negar. Pouco a pouco, os mineiros foram saindo, mas Dan Richfield ficou, os olhos a chispar, os punhos cerrados prontos a bater, mas não se atreveu a tanto. Em vez disso, bebeu o uísque, ao mesmo tempo que lançava um olhar fulminante a John. Mas era em Sabrina que ele queria pôr as mãos. Ela destruíra-lhe todos os seus sonhos. Além disso, agora que era viúvo, uma rapariga como ela vinha mesmo a calhar. Durante vários dias, esses pensamentos não lhe saíram da cabeça. Estava curioso por saber o que ela contara a John. Finalmente, na segunda-feira seguinte, à noite, depois de ter bebido no mesmo bar, resolveu aproximar-se das Minas Thurston. Ao passar diante do escritório, viu no exterior o cavalo de Sabrina. Eram nove da noite, e deduziu que a rapariga se encontrava no escritório. Deteve-se então, prendeu o cavalo, subiu as escadas do alpendre e ficou surpreendido por vê-la ali. Observou-a através da janela. Estava sentada à secretária, com a cabeça inclinada sobre o tampo e os cabelos negros puxados para trás. Escrevia com uma velocidade incrível. Costumava ficar ali até perto da meia-noite, pelo que ainda era cedo para ela. Dan sorriu entre dentes. Não tinha plena consciência, mas parecia estar disposto a terminar o que deixara por fazer no ano anterior, quando ela o despedira. Quando se dispunha a entrar, uma tábua do alpendre rangeu. Então, Sabrina, sem levantar a cabeça, abriu a gaveta da secretária e empunhou a pequena pistola antes de Dan chegar à porta. O primeiro disparo atravessou o vidro da janela e roçou o braço do surpreendido intruso, que ficou como que paralisado de olhos fixos em Sabrina.

- Se passas dessa porta, és um homem morto! - gritou a rapariga.

Dan compreendeu que ela não estava a brincar. Sabrina não parecia surpreendida nem assustada. Estava preparada para tudo, e não tinha medo dele. Levantou-se e manteve a pistola apontada à cabeça de Dan, que, sem dizer palavra, deu meia volta e se foi embora. Depois, Sabrina saiu para o alpendre e fez soar a campainha para chamar os vigilantes. Só tinham a missão de vigiar as minas. Não precisava deles onde trabalhava. Mas mandou-os fazer uma batida nas imediações para se assegurar de que Dan já não se encontrava por ali.

No dia seguinte, enviou uma nota de advertência a Harte, sugerindo-lhe que procurasse controlar melhor os seus homens. Dizia-lhe igualmente que, se voltasse a encontrar algum deles no recinto das minas, consideraria que ele o enviara para a assustar e a obrigar a vender, e matá-lo-ia de imediato. Informava também Harte de que, daquela vez, permitira que Dan se fosse embora, são e salvo, mas que não tornaria a fazê-lo. Harte não gostou de saber que Dan voltara a tentar molestá-la. Nesse mesmo dia, repreendeu Richfield, que escutou a advertência do patrão com os dentes cerrados e sem dizer uma só palavra. Quando ficou sozinho, Harte não conseguiu evitar um sorriso. Sabrina não era muito diferente de Lua da Primavera, sempre tão segura de si mesma e tão confiante na eficácia do punhal. Pelos vistos, Sabrina também confiava plenamente na pistola, e sabia como manejá-la. Harte só lamentava que tivesse sido obrigada a utilizá-la, mas ela vivia num mundo de homens. Nesse ano, John Harte não voltou a fazer-lhe nova oferta de compra das minas.

- Bem, rapariga, já tens vinte e um anos. Que pensas fazer agora? - Hannah olhou para Sabrina por cima do bolo de aniversário que ela própria fizera e teve vontade de chorar quando viu o rosto da rapariga. Sabrina era já uma mulher feita, muito bonita, mas dura que nem uma rocha. Dirigia pessoalmente um complexo mineiro em que trabalhavam quase seiscentos homens, seguindo as pisadas do pai, mas para quê? Já era bastante rica, mas agora levava uma vida solitária. Trabalhava sempre até à meia-noite, não parava de dar ordens aos seus homens e despedia de imediato aqueles que não as cumpriam. Mas estava a perder a sua amabilidade inata e Hannah suspeitava de que aquele tipo de vida começava a destruí-la. Amélia dissera-lhe o mesmo quando a viera visitar o ano anterior, mas ao ver que os seus conselhos não a fariam mudar de idéias, pediu a Hannah que não insistisse nas suas advertências e lhe desse tempo. «Acabará por se cansar e talvez então se apaixone por alguém», dissera Amélia a Hannah. Mas apaixonar-se por quem? Pelo cavalo? Na realidade, estava apaixonada, mas pelo trabalho. Quando não se encontrava nas minas a matar-se a trabalhar, enfrentava outras batalhas com os homens da cooperativa de vinicultores.

- Não consigo compreender como pudeste chegar a isto. - Hannah olhou-a com ar desesperado. - Nem mesmo o teu pai gostava tanto das minas como tu. Mostrava-se mais interessado em ti.

- Por isso estou em dívida para com ele. - Era a mesma resposta de sempre. Hannah abanou a cabeça e serviu-lhe uma fatia de bolo de chocolate. Há vinte e um anos que lhe fazia aquele bolo por ocasião do seu aniversário. Sabrina sorriu para a sua velha amiga. - Tu és muito boa para mim, Hannah.

- E tu deverias sê-lo contigo mesma. O teu pai nunca trabalhou tão duramente como tu. Pelo menos, sabia que ao chegar a casa te encontraria. Por que razão é que não vendes as malditas minas e te casas?

Sabrina desatou a rir. Com quem poderia casar-se? Com um dos mineiros? Com o novo encarregado-geral? Com o banqueiro da cidade? Nenhum deles lhe interessava, e tinha demasiadas coisas para fazer.

- Talvez me pareça mais com o papá do que aquilo que julgas. - Sorriu. Dissera a mesma coisa a Amélia. Afinal de contas, só se casou aos quarenta e quatro anos.

- Não podes esperar tanto tempo - resmungou a velhota.

- Porque não?

- Não queres ter filhos?

Sabrina encolheu os ombros... Filhos... que idéia esquisita... Naquele momento, só pensava nos setecentos frascos de mercúrio que tinha de enviar para o Este dentro de duas semanas... e nos duzentos e cinqüenta frascos para o Sul.. na papelada com que tinha de se ocupar... nos homens que tinha de despedir e pôr na ordem... nas inundações que podiam surgir a qualquer momento... ou nos incêndios que era preciso prevenir... Bebês? Como é que eles podiam ter lugar naquele esquema de vida? Não, não podiam, e provavelmente nunca teriam. Não conseguia imaginar-se com um filho. Nunca. Tinha muitas outras coisas em mente. Logo que acabou de comer o bolo, subiu para o quarto a fim de fazer a mala. Já dissera a Hannah que ia passar uns dias a São Francisco.

- Sozinha? - Era sempre a mesma pergunta.

- Quem é que achas que deveria acompanhar-me? - perguntou Sabrina, com um sorriso nos lábios. - Meia dúzia de mineiros a servirem de damas de companhia?

- És uma descarada.

- Já sei. - Ouvira aquele comentário muitas vezes. Levo-te comigo.

- Sabes bem que costumo enjoar nesse maldito barco.

- Então, terei de ir sozinha. - Fato que em nada a incomodava. As viagens até São Francisco proporcionavam-lhe sempre tempo para pensar, e era uma rara oportunidade de visitar a Mansão Thurston. Ainda lhe causava angústia entrar no quarto onde o pai falecera, mas a casa era muito bonita e lamentava que não estivesse habitada. Aí não teria qualquer criado. Como noutras ocasiões, abriria ela própria a casa e atenderia as suas próprias necessidades durante os poucos dias que a ocuparia. - Agora, Hannah, todos me têm por um bicho do mato. Mas, dentro de alguns anos, todos me aceitarão. Serei aquela velha que dirige pessoalmente as suas minas há vários anos. E ninguém estranhará que viaje sozinha, que apanhe um barco ou que vá à cidade sem uma criada. Poderei fazer aquilo que me der na real gana. - Riu-se e, por instantes, sentiu-se uma rapariguinha como qualquer outra. - Não vejo a hora de isso acontecer.

- Não faltará muito. - Hannah olhou para Sabrina com ar pesaroso. Não era aquilo que queria para a menina que criara. Não tarda que sejas velha, e terás desperdiçado os melhores anos da tua vida.

No entanto, para Sabrina, não eram anos desperdiçados. Sentia-se satisfeita com aquilo que fizera até então. Só dos outros é que raramente recebia o aplauso ou a reprovação. Achavam-na autoritária, independente e caprichosa, mas também já se acostumara a isso. Andava com a cabeça mais erguida do que nunca, e a língua mais afiada do que em qualquer outro momento da vida. Era tão rápida a replicar como a sacar da pistola de prata da gaveta da secretária. No fundo, sabia que trabalhara bem, e sentia-se satisfeita com aquilo que fizera. E, no seu íntimo, achava que o pai teria pensado o mesmo. Talvez não fosse aquilo que ele desejara para ela, mas teria olhado com respeito para tudo quanto a filha conseguira naqueles três longos anos. A própria Sabrina estava surpreendida com tudo o que alcançara, mas trabalhara muito para que tal acontecesse. Era nisso que pensava enquanto descia as escadas com uma maleta numa mão e a capa sobre o braço.

- Regressarei dentro de três dias. - Beijou Hannah na face e voltou a agradecer-lhe o bolo de aniversário. Hannah olhou para Sabrina com os olhos marejados de lágrimas, enquanto a rapariga punha o carro a trabalhar. Sabrina nunca saberia o que estava a perder. Por maiores que fossem a sua energia e a sua independência, havia um vazio na sua vida do tamanho dos estábulos. E Hannah lamentava que as coisas se desenrolassem assim. Aquela não era vida para ela, nem o fora durante os três últimos anos.

Sabrina conduziu o automóvel até Napa e deixou-o nos estábulos próximos do cais, como geralmente fazia. Fora uma das primeiras pessoas de Napa a ter carro, o que, como tudo o que fazia, foi objeto de comentários durante vários meses Mas ela não se importava, aquele meio de transporte proporcionava-lhe grande comodidade. Quase todos os dias ia ainda no seu velho cavalo até às minas, mas adorava usar o carro quando se dirigia a sítios mais afastados, sobretudo, quando ia a Napa apanhar o barco a vapor para a cidade. Poupava-lhe muito tempo. Dessa vez, depois de embarcar, passou quatro horas no camarote a ler os papéis que levara consigo. Queria falar com o seu banco sobre algumas terras que tencionava comprar, e sabia que antes de conseguir o seu propósito teria de escutar o habitual conselho de que seria melhor que vendesse os vinhedos e as minas ou que colocasse um homem experiente à frente de ambos os negócios. Esses que assim a aconselhavam nunca tinham entendido que havia muito poucos homens que conseguissem fazer aquilo que ela fazia. Mas já estava habituada a esse conselho. Sabrina limitava-se a sorrir e mudava de imediato o rumo da conversa para o negócio que tinha em vista. Eles ficavam sempre surpreendidos com a solidez das suas idéias. «Quem é que a aconselhou», perguntavam-lhe quase sempre. «Foi idéia do seu encarregado-geral?» Era inútil explicar-lhes que se tratava de uma idéia própria, o que estava para além da compreensão deles E sabia que no dia seguinte sucederia o mesmo de sempre. Mas passaria por cima de tudo isso e conseguiria aquilo que queria. Tinham aprendido a confiar nela ao longo de três anos, tal como os seus homens, embora raramente percebessem o que ela fazia e por que E aprendera tudo com Jeremiah

Fechou a maleta ao sentir o barco a atracar contra o cais. Desta vez, não saíra do camarote durante toda a viagem. Depois do fausto almoço de aniversário que Hannah lhe oferecera, não sentira necessidade de comer nada e tivera demasiado trabalho em que se embrenhar. Agora estava ansiosa por tomar um banho quente relaxante na Mansão Thurston. A água do depósito levaria algum tempo a aquecer, mas isso dar-lhe-ia tempo para se certificar de que, na casa, estava tudo em ordem. Há vários meses que não ia à cidade, e era sempre a única pessoa que entrava na casa, embora o banco estivesse autorizado a passar uma vistoria de vez em quando, tendo para esse efeito um jogo de chaves que ela lhes dera.

Depois de saltar da carruagem, Sabrina meteu a chave na fechadura. Primeiro, teve de abrir o enorme portão, depois a carruagem conduziu-a até à porta da mansão. Estava tudo às escuras. Ao entrar andou às apalpadelas até acender a luz. Quando o fez, levou a maleta para dentro e fechou a porta. Sentia-se cansada. Deteve-se por instantes a olhar à sua volta. De repente, sentiu os olhos ficarem inundados de lágrimas, algo que não acontecia há muito tempo. Tinha vinte e um anos e não partilhava a vida com ninguém, e aquela era a casa em que o pai morrera... Sentia-se mais triste do que das outras vezes, e mais só, e cada vez com mais saudades do pai. Quase lamentava ter vindo. Mais tarde, sentada na banheira da suíte, rememorou os três últimos anos, pensou nos momentos difíceis, nas pessoas que tinham sido injustas para com ela, que lhe haviam desejado mal e magoado; até Hannah fora muitas vezes grosseira e rezingona com ela. Ninguém compreendia o sentido do dever ou o afã que a impelia a continuar a dirigir as minas pessoalmente. Em vez disso, todos queriam vê-la fracassar ou tirar-lhe o fruto do seu trabalho. Pelo menos, John Harte nunca mais tentara comprar-lhe as minas, o que não deixava de ser um alívio. Perguntou-se se Dan Richfield ainda trabalharia para ele. Imaginava que sim, mas nunca mais fora importuná-la às minas, apesar de já ter decorrido muito tempo desde a noite em que Sabrina se vira obrigada a disparar contra ele. Aquele pensamento fê-la olhar para a sanita de mármore cor-de-rosa onde pousara a pistola de prata. Nunca a tinha muito longe dela e deixava-a sempre em cima da mesinha-de-cabeceira enquanto dormia. Podia escondê-la debaixo da almofada, mas o gatilho era demasiado rápido, como Dan Richfield tivera ocasião de comprovar. Na realidade, levava uma vida de constante tensão, mas já estava habituada. Por outro lado, se bem que não totalmente, sempre que ia a São Francisco esquecia todas as precauções. São Francisco era tão cosmopolita, tão urbana... Ali, quase ninguém sabia quem ela era. Não havia coscuvilhices e ninguém parava, de dedo apontado para ela, como faziam em Napa, em Calistoga e em Santa Helena. «Olha, é a mulher que está à frente das minas!... É a filha do Thurston... Está tolinha de todo.. É teimosa que nem um burro...» Para aquela gente, havia mil maneiras distintas de a descrever, e Sabrina ouvira-as todas. Mas ali, em São Francisco, ninguém se preocupava com ninguém. Podia, inclusive, ter a ilusão de ser outra pessoa, passeando pela Market Street ou pela Union Square, ou comprando uma rosa para pôr na lapela ou um ramalhete de violetas brancas para adornar o cabelo. Ali, não tinha de temer o que os seus homens diriam se a vissem assim nas minas. Podia, inclusive, fingir que era uma rapariga como outra qualquer. E foi o que fez ao voltar do banco. Veio em passo de passeio, comprou um ramo de fragrantes flores para pôr num vaso no seu quarto e, com um gesto instintivo, enquanto caminhava para casa, tirou os ganchos do cabelo e deixou que a longa cabeleira negra flutuasse ao sabor da brisa estival. Um sorriso iluminava-lhe o rosto. Viver ali era muito mais fácil, pensou com os seus botões, e ainda adorava a Mansão Thurston, apesar da tragédia que aí tivera lugar. Enquanto subia Nob Hill, mais feliz do que nunca, um automóvel parou subitamente à sua frente. O condutor ficou a olhar para ela, perplexo, depois, desatou a rir.

- Meu Deus, Miss Thurston. Nunca a teria reconhecido. É mesmo você? - Era John Harte que se encontrava ao volante da viatura. Também parecia estar a gozar alguns momentos de descontração

- Sim, sou eu. Roubou esse carro, Mister Harte?

- -Roubei. Quer uma boleia?

Encontravam-se ambos em terreno neutro. Sabrina olhou-o com um sorriso de felicidade estampado no rosto e resolveu aceitar a boleia. Se Harte voltasse a insistir em comprar-lhe as minas, tinha sempre a hipótese de sair do carro e continuar o percurso a pé. Ao fim e ao cabo, ele não ia raptá-la. Além disso, quem é que depois pagaria o resgate?

- Claro. - Estava divertida a olhar para o automóvel que John Harte comprara. Era o mesmo modelo T que ela tinha há dois anos, com a única diferença de que aquele era mais recente e melhor nalguns aspectos. Os construtores acrescentavam-lhe uma série de novos acessórios todos os anos. - Gosta do seu carro novo?

- Acho que estou apaixonado por ele. - Harte olhou para o pára-brisas antes de fixar a rapariga. - É bonito, não é?

Sabrina riu-se, incapaz de resistir à tentação de acabar com toda aquela bazófia.

- É quase tão bonito como o meu. - Sabrina sorriu ao ver a cara de surpresa de Harte, que acabou por soltar uma gargalhada.

- Tem um igual a este? - Sabrina riu-se.

- Sim. Quase nunca o utilizo em Santa Helena. O meu velho ruão é mais adequado. - Finalmente, vendera o cavalo preferido do pai. Nunca o montava e ele envelhecera. - Mas vou de carro quando tenho de me deslocar a um sítio mais afastado.

Harte olhava-a como se acabasse de vê-la pela primeira vez.

- Você é realmente uma rapariga muito peculiar. É pena que, de certo modo, sejamos inimigos. Caso contrário, seríamos bons amigos.

- Se perdesse a mania de querer comprar as minas sempre que nos encontramos, talvez pudéssemos sê-lo. - Perguntou-se então se a amante de Harte poria alguma objeção, mas não podia dizer-lhe uma coisa daquelas.

-Continua então empenhada em não vender nada, não é? - Harte sorriu. Já não parecia tão preocupado com aquela questão.

Sabrina abanou a cabeça.

- Já lhe disse. As Minas Thurston só serão postas à venda depois da minha morte.

- E que me diz dos vinhedos? - Harte falava mais por curiosidade do que por outra coisa. Estava encantado com o brilho que havia no olhar de Sabrina e com os cabelos soltos. De repente, sentiu o odor das flores que ornamentavam os cabelos da rapariga. Era muito bonita, e ele nunca se dera conta disso. Mas também era um osso duro de roer para qualquer homem. Harte tivera ocasião de comprovar isso mesmo. Seria um sério inconveniente para ela durante muitos anos. Imaginou o que poderia fazer aquela rapariga quando não estava a trabalhar nas minas. Observou-a com interesse enquanto ela lhe respondia.

- Os vinhedos também irão para a sepultura comigo.

- Ao que parece, não a preocupa não ter herdeiros a quem os deixar.

Sabrina encolheu os ombros e olhou para ele.

- Não se pode ter tudo na vida. Eu tenho as minas, as uvas, a terra. O meu pai adorava tudo isso. Sentir-me-ia indigna dele se me visse livre de alguma dessas coisas. Era o que ele mais adorava neste mundo. Vender qualquer uma dessas coisas seria como vender parte dele.

Era, pois, aquela a razão das suas muitas negativas. Se tivesse sabido disso antes, não teria perdido tanto tempo com as suas propostas de compra.

- Você devia ter uma grande devoção pelo seu pai. - Sabrina sorriu para Harte enquanto chegavam a Nob Hill

- Sim, sempre a tive E ele sempre foi muito bom comigo É, pois, justo que eu dê seguimento àquilo que ele começou.

Os olhos de Harte estavam fixos nos de Sabrina

Mas que penosa carga deve ter sido para si algumas vezes.

Sabrina fez um gesto de concordância com a cabeça, sentindo uma súbita necessidade de ser sincera com ele. Tinha que o dizer a alguém.

- Sim, às vezes é. - Soltou um suspiro e olhou para o amplo espaço que a rodeava. - Mas também há a compensação do sentimento de vitória que se experimenta ao sobreviver a tantas dificuldades e ao ver que se realizou um bom trabalho. Para dizer a verdade, aquele primeiro ano foi terrível. - A voz ficou algo embargada ao recordar-se disso. - Quando todos aqueles homens se foram embora e tive de despedir o Dan Richfield. - Encolheu os ombros e olhou para Harte. - Mas isso aconteceu há já três anos, e agora está tudo a correr bem. - Esboçou novo sorriso. - Por isso, não se iluda com a possibilidade de comprar-me o que quer que seja.

- Talvez volte a tentar um dia, Miss Thurston. É a natureza da besta.

Riram-se, e ela indicou-lhe o caminho da Mansão Thurston.

- Se quiser ouvir um novo não da minha boca. Já estou a habituar-me.

- Ótimo. É ali.

Sabrina apontou para o portão que ela tinha sempre fechado à chave, saiu do carro e foi abri-lo. Era esquisito encontrá-lo daquela maneira. Ali, o ambiente era menos tenso. Naquele momento, não eram rivais. Eram apenas dois seres normais que não tinham razão para se odiar. Ela trazia flores no cabelo e ele estava deleitado com o carro novo. Não eram as pessoas que costumavam ser. Sabrina olhava-o com ar despreocupado.

- Porque não me deixa levá-la até à porta de casa, Miss Thurston? - Harte estava a dar mostras de uma grande cortesia, elemento que nunca fizera parte das suas relações. Durante os últimos três anos, haviam sido arquiadversários, e agora o acaso reunira-os num sítio pouco adequado para se zangarem ou para pensarem nas minas. Napa encontrava-se muito longe dali, e Sabrina, com os seus vinte e um anos, sentia uma renovada alegria de viver.

- Muito bem. Já que insiste, Mister Harte. - Sabrina permitiu que ele a deixasse diante da porta principal. Então, voltou-se para ele com um sorriso e disse-lhe: - Se prometer não falar nas minhas minas nem fazer-me qualquer tipo de oferta, terei muito gosto em convidá-lo para uma xícara de chá ou um porto. Mas primeiro tem de prometer o que lhe pedi! - disse Sabrina, provocando-o.

Harte fez a promessa com toda a solenidade, o que provocou o riso de ambos. Sabrina entrou, seguida de Harte, que não estava preparado para ver o que surgiu diante dos seus olhos. Era a mansão mais esplêndida que vira em toda a sua vida, e nos seus quarenta e nove anos de vida já vira umas quantas; todavia, a Mansão Thurston era espetacular. Como todos os que a viam pela primeira vez, ficou extasiado debaixo da cúpula. Há três anos, Sabrina mandara recolocar os vitrais e reparar todos os estragos provocados pelo terremoto. Mudara, inclusive, a porta da entrada principal, que fora chamuscada pelo fogo antes de o vento, miraculosamente, ter mudado de direção.

- Deus meu, como consegue viver tão longe disto? - Sabrina sorriu. Haviam acordado não falar das minas, e não queria ser ela a quebrar esse pacto.

- Tenho outro peixe para fritar. - Harte riu-se da resposta.

- Lá isso é verdade. Mas se eu fosse dono desta casa, abandonaria tudo só para viver aqui.

Sabrina olhou-o com falsa consternação. Estava com um bom humor pouco comum nela.

- Está a tentar quebrar a promessa e fazer-me uma oferta, Mister Harte?

- Não. Mas nunca vi nada tão maravilhoso como esta casa. Quando é que foi construída?

Harte recordava-se vagamente de ter ouvido falar dela, mas nunca a vira, pelo que Sabrina lhe contou a sua história em traços gerais.

- O meu pai mandou-a construir em mil oitocentos e oitenta e seis, dois anos antes de eu nascer. - De repente, John Harte olhou-a com uma expressão de surpresa. - Disse alguma coisa de mal?

Ele abanou a cabeça.

- Não... só fiquei surpreendido de a ouvir dizer isso... Sabe o que é para um homem da minha idade dar-se conta de que a sua arqui-rival não tem mais de vinte e um anos? Tem vinte e um, não tem?

Sabrina sorriu.

- Desde ontem.

- Feliz aniversário, então - desejou Harte, com voz tão suave que parecia pressagiar o fim das hostilidades entre os dois.

- Obrigada.

Sabrina conduziu-o à sala de estar, onde se sentaram para tomar um xerez. A rapariga não tinha nada mais forte para lhe oferecer, mas Harte pareceu satisfeito com a bebida. Na realidade, estava radiante. Como há muitos anos não estava, tal como ela.

- Como é que celebrou o seu aniversário? - Harte olhou-a com crescente interesse. Aquela rapariga possuía tanta energia, tantas qualidades latentes, e uma profundidade interior que ele nunca divisara, mas que via agora com enorme clareza.

- De forma muito simples. Vim para a cidade. - Encolheu os ombros. - Não estava à espera que os mineiros me fizessem um bolo de aniversário, pois não? - Sabrina riu-se, mas Harte sentiu pena dela. De fato, aquela rapariga não tinha ninguém, exceto os homens que trabalhavam às suas ordens, e ele sabia o ressentimento que ainda lhe guardavam, e que sempre guardariam. Teria de morrer heroicamente num incêndio na mina para que eles a vissem com outros olhos. Menos que isso não seria suficiente.

John Harte observava-a em silêncio.

- É muito nova para carregar todo este peso às costas, Miss Thurston. Não sente às vezes vontade de abandonar tudo e fugir?

Sabrina olhou-o com ar sério.

- Sim. Isso sucede quando venho até aqui. Imagino que o mesmo aconteça consigo às vezes.

Harte fez um gesto afirmativo com a cabeça e sorriu. A sua vida fora muito mais longa e preenchida que a dela. Era injusto que Sabrina estivesse tão apegada às minas, atendendo à ingratidão dos seus homens. Harte continuava a saber tudo pelos comentários dos seus próprios mineiros e dos que ela despedia ou que se negara a admitir. Mas eles iam sempre às Minas Thurston primeiro porque ela pagava melhor. Como eles não gostavam de trabalhar para ela, Sabrina não tinha outro remédio senão pagar-lhes bem. Não se tratava de nada pessoal, mas sentiam-se feridos na sua dignidade pelo fato de trabalharem para uma mulher, e ainda para mais tão jovem. Harte voltou a sentir o desejo de a proteger. Ali estava Sabrina, na sua enorme e bela mansão. Tinha a casa na cidade, os vinhedos... tinha tudo e, no entanto, não tinha nada. A sua pequena índia, Lua da Primavera, tinha muito mais: paz, respeito, segurança e, quanto mais não fosse, tinha-o a ele.

- Quem diria agora que somos concorrentes? Sabrina sorriu e encolheu os ombros.

- Suponho que na vida deve ser tudo assim. Tudo tão casual, tão inesperado e estranho. Como o nosso encontro de hoje. E esboçou novo sorriso.

- Pois eu, à primeira vista, não a reconheci com os cabelos assim.

Sabrina riu-se.

- Também posso andar assim nas minas, mas já imaginou o que diriam os mineiros. - Soltou uma sonora gargalhada, à qual se juntou Harte. Havia momentos em que Sabrina parecia mais uma menina do que uma mulher. Mostrava-se maravilhosamente despreocupada, despretensiosa e realista, o que deixou Harte surpreendido, sabendo ele de quem se tratava. Havia uma série de facetas diferentes na sua personalidade, como se dentro dela coabitassem doze pessoas diferentes; no entanto, parecia ser uma pessoa simples e sincera. Era algo confuso e, ao mesmo tempo, delicioso, e que Harte achava encantador.

- Sabe uma coisa? Gosto de si assim - declarou Harte, sorrindo. E, instintivamente, estendeu a mão e tocou-lhe nos cabelos. Em Napa, nunca se atreveria a uma coisa dessas, mas, ali, Sabrina era uma rapariga diferente. E, além disso, não havia nenhum mal. Por instantes, esquecera-se por completo de Lua da Primavera

- Obrigada. - Sabrina corou ao articular a palavra.

A mão de Harte deslizou então dos cabelos para a face da rapariga, mas esta afastou, de imediato, a cabeça para trás. Não estava acostumada a que ninguém se aproximasse tanto dela, pelo menos, desde que o pai morrera, e aquele gesto perturbara-a. Levantou-se para voltar a encher o copo ao seu convidado, e os olhos deste seguiram-na Quando se sentou de novo, Harte disse-lhe numa voz meiga:

- Não queria assustá-la.

- Não, não se passa nada. É que eu... bem, não importa.. - Sabrina sentou-se e olhou-o com ar sério. - É difícil ser duas pessoas ao mesmo tempo. Tive de me tornar insensível para poder dirigir adequadamente as minas... Julgo que com isso me esqueci de quem era... que era uma simples criança.

Naquele momento, de fato, pouco mais era do que uma criança, e Harte notara isso mesmo; mas notara outra coisa o ar demasiado confiante e despreocupado que ela exibia. Harte tinha a vaga sensação de que não havia mais ninguém na casa.

Não vislumbrou o menor indício de criadagem. Por um lado, era tão cautelosa, por outro, confiara nele, coisa que não devia ter feito. Harte franziu o sobrolho e, com ar paternal, perguntou-lhe:

- Vai ficar sozinha na casa, Miss Thurston?

Sabrina sorriu. Sempre ficara, desde que o pai morrera.

- Não tenho medo. Gosto de vir para aqui sozinha. - Era uma rapariga estranha e solitária, mas Harte achava que era demasiada temeridade ficar sozinha na casa.

- Você não está no campo. É muito perigoso

- Sei defender-me. - Sabrina sorriu, mas Harte não estava tão confiante.

- Eu não arriscaria tanto. E se não tiver a pistola à mão quando precisar? - Lembrou-se do que ouvira acerca do disparo com que se defendera de Dan.

- Nunca está muito longe de mim, Mister Harte.

- Pelo menos, sempre dá uma certa tranqüilidade. - Harte sorriu e Sabrina soltou uma gargalhada.

- Desculpe. Não queria dizer...

- Porque não? - perguntou Harte, com ar sério. Nem em mim deveria ter confiado.

Sabrina olhou-o, imperturbável.

- Já nos zangamos muitas vezes, mas posso dizer que nunca foi incorreto comigo, Mister Harte. Ainda se lembrava da visita de pêsames que ele lhe fizera quando da morte do pai e da extrema delicadeza que mostrara então. - Julgo que ainda sei avaliar as pessoas com quem lido.

- Não devia ser tão confiante. Por que razão não traz a sua governanta consigo quando vem para São Francisco?

- Ela enjoa no barco. - Sorriu - o certo é que não temo nada. Se estou segura nas minas a trabalhar todas as noites sozinha até quase à meia-noite, que pode acontecer-me aqui.

Harte pareceu ficar algo preocupado.

- Os seus homens sabem que fica no escritório até tão tarde?

Sabrina encolheu os ombros.

- Alguns. Sempre trabalhei até tarde, como o meu pai. Há sempre muito trabalho e não quero que ele se acumule.

Harte fazia o mesmo, mas para Sabrina era mais perigoso. Não era de estranhar que Dan a tivesse ido importunar. Felizmente, não repetira a façanha, pelo menos, Harte achava que não, e não queria fazer essa pergunta à rapariga

- Acho que devia ter mais cuidado. Leve o trabalho para casa.

Sabrina sorriu, sensibilizada com a preocupação de Harte pela sua segurança. Além de Hannah, que não parava de lhe dizer o mesmo, ninguém se inquietava por ela, e foi isso mesmo que lhe disse.

- Embora me sinta segura, agradeço a sua preocupação por mim.

- Tudo seria mais fácil para si se um dia acedesse a vender-me as minas. - Uma chispa de cólera surgiu no olhar de Sabrina, e Harte levantou a mão. - Não foi uma oferta. Foi um comentário. Tudo seria mais fácil, e sabe bem que sim. Mas facilidades não parece ser aquilo que lhe interessa. - Levantou-se e fez uma reverência, tentando acalmar a ira de Sabrina. Dobro-me aos seus desejos.

Sabrina riu-se e, com alguma malícia, declarou:

- Lamento que não o tenha feito antes, Mister Harte

- Vá lá, vá lá, Miss Thurston. Tive de fazer uma tentativa. Mas agora, desisto. -Mas Sabrina, porém, ainda não sabia se havia de confiar nele. - Talvez assim possamos ser amigos.

- Teria muito gosto

Sabrina sorriu para Harte, que a fitou com ar sério. Este era, pois, o homem cujo filho morrera nos braços de seu pai, recordou-se a rapariga. Não era apenas um mineiro ambicioso que tentava comprar-lhe as minas. O seu pai sempre o tivera em boa conta, e era muito possível que Harte o merecesse. Sabrina não sabia muito bem que tipo de sentimentos é que tinha por ele. De momento, só um grande respeito. Era inteligente e conduzia os seus negócios com acerto e honestidade.

- Gostaria de ser seu amigo, Miss Thurston

Sabrina fez um gesto afirmativo com a cabeça e olhou-o com ar triste. Nunca tivera um amigo, para além das raparigas com quem fora à escola em Santa Helena. Mas já todas estavam casadas e tinham filhos e, além disso, não ousavam dirigir-lhe a palavra. Estavam escandalizadas pelo fato de ela dirigir as minas do pai. Precisava de um amigo, de alguém com quem pudesse conversar. Perguntou-se o que pensaria a rapariga índia se a visse chegar, de vez em quando, às minas de Harte para falar com ele. Sabrina ponderava esta situação, enquanto ele a fitava. Então, olhou-o com ar cauteloso.

- Eu também gostaria, Mister Harte. Mas pergunto-me se será possível quando nos encontrarmos de novo nas nossas respectivas minas.

- Poderíamos tentar um dia. Eu irei visitá-la. Concorda? - Sabrina não podia pedir opinião a ninguém. Não tinha mãe, nem pai, nem tia, nem dama de companhia. E Harte estava a perguntar-lhe uma coisa que ela não compreendia. Também ele não sabia se compreendia. Mas, ao vê-la naquela rua de São Francisco, ficara sem respiração. Há duas horas que conversavam como duas pessoas que se encontravam pela primeira vez. Harte estava de tal modo impressionado com ela que não a queria perder, fosse qual fosse a personalidade que adotasse quando voltasse para as minas. Sabia que a rapariga que tinha diante de si ficaria escondida dentro dela, e ele não queria esquecer a visão que, nessa noite, desfrutara dela. Sabrina não dissera nada de especial durante a conversa, mas o seu modo de olhar tocara fundo no coração de Harte. Havia nela algo de Matilda, mas esta não era tão bonita nem tão inteligente como Sabrina. Impressionava-o o fato de aquela rapariga, aos vinte e um anos, dirigir uma das maiores minas do país. A personalidade multifacetada da jovem deixara-o fascinado, mas, com muita pena sua, teve de se ir embora. Depois de fechar a porta, Sabrina ouviu arrancar o automóvel e sentiu uma agitação na alma que nunca sentira até então. No outro dia, enquanto descansava no jardim, ainda via o olhar de Harte e escutava as suas palavras num estado de verdadeiro êxtase. Nessa noite, ia apanhar o barco a vapor para Napa, e achou ridícula aquela fixação em Harte. Vira-o dezenas de vezes, inclusive em pequena, durante três anos detestara-o, e de repente... não conseguia tirá-lo da cabeça. Havia nele uma sutil energia, uma força, um ardor que lhe infundia segurança. E agora dava-se conta de que não era a primeira vez que experimentava aquela sensação, mas estivera extremamente ocupada e demasiado irritada com ele para lhe prestar atenção. No entanto, era ridículo estar sempre a pensar em Harte. Este não lhe saiu da cabeça durante toda a tarde, durante a viagem de barco para o Norte, enquanto se dirigia para casa no automóvel e enquanto conduzia, no dia seguinte, a caminho das minas. Harte também não conseguira deixar de pensar em Sabrina. Mas, quando chegou à mina, Dan deu-lhe uma desagradável notícia, a mesma que ela descobriu ao entrar no escritório e ao olhar para o quadro negro que se encontrava por cima da secretária. Houvera uma explosão no fundo da mina. A galeria não sofrera grandes danos, mas haviam perecido mais de trinta homens. Trinta e um, mais exatamente, como referiu, com ar pesaroso, a Harte, no dia seguinte, quando este foi visitá-la.

- Pelo menos, podiam ter-me enviado um telegrama. Não me disseram absolutamente nada. E, entretanto, lá andava eu, feita tonta, com flores no cabelo. - Tinha os olhos vermelhos e estava furiosa consigo mesma.

- Você tem direito a algo mais do que isto na vida. Eles vão para casa ao fim do dia. Têm mulher e filhos, e embebedam-se quando lhes dá na real gana. E que diabo faz você entretanto. - Harte estava revoltado por ela ser tão severa com ela própria.

- Sou responsável por todos eles - gritou-lhe Sabrina. Harte agarrou-a pelo braço.

- Também é responsável por si, Sabrina! - Era a primeira vez que a chamava pelo primeiro nome, e a rapariga não desgostou de ouvir o seu nome nos lábios de Harte. Tem de ser mais dona de si mesma do que deste montão de porcaria. Percebe, sua cabeça dura.

Sabrina sorriu. Algo estranho lhes acontecera durante as poucas horas passadas na Mansão Thurston. Ao fim de vários anos, haviam-se tornado amigos.

Os olhos dela voltaram a entristecer-se.

- O que percebo é que trinta e um dos meus homens morreram. E eu não estava cá.

- A sua presença teria alterado alguma coisa?

- Teria podido alterar a atitude dos outros relativamente a mim. - Mas sabia que não era verdade. Nada mudaria a idéia que tinham dela, e, em vez de lho dizer, Harte limitou-se a abanar a cabeça.

- Já lhes deu mais do que aquilo que eles merecem. Deu-lhes três anos da sua vida, muito mais do que se pode exigir a uma pessoa que está na sua situação. Por amor de Deus! Fiz a mesma coisa, mas sei que nunca irão agradecer-me. Quando eu morrer... tanto se lhes dá. - Sabrina sabia que não era verdade. Não se esquecera das filas de homens em posição de respeito quando ela chegara com o corpo do pai.

A rapariga falou com uma voz triste e suave.

- Eles lembram-se.

Os olhos de Harte encontraram os dela e assim se mantiveram durante alguns instantes.

- Nessa altura, é demasiado tarde. Quem é que se importará com isso? O seu pai estava-se nas tintas para isso. - Recordou. - Isso não significava nada para ele. Sabe qual era a coisa com que ele se preocupava mais no mundo? Com você. Deveria refletir nisso. Você era tudo para ele. - Harte sentiu um nó na garganta. Do mesmo modo que os meus filhos significavam tudo para mim.

Sabrina olhou para ele com ar compadecido.

- Foi por isso que não voltou a casar-se? Por causa deles?

Harte não o negou. Queria ser honesto com ela. Gostava demasiado dela para não o ser.

- Foi. - Sabia que Sabrina devia ter ouvido falar de Lua da Primavera, mas não queria discutir esse assunto com ela. Era uma questão de moral, e ele respeitava-a. - Fiz o possível para não me preocupar muito com a minha viuvez. Só procurei ter uma vida descansada. Não teria conseguido passar pela tragédia de perder alguém amado. - Os olhos umedeceram-se ao recordar o triste acontecimento. Há vinte e três anos que Matilda, Jane e Barnaby haviam morrido.

- Creio que o mesmo aconteceu com o meu pai depois da morte da primeira noiva. É o que a Hannah diz. Esteve dezoito anos para se casar.

- E eu parece-me que nem sequer chegarei a fazê-lo. - Harte olhou-a com ar sério. - Mas, pelo menos, tive o prazer de criar uma família. Você não a tem, nem a terá, se continuar aqui fechada.

Sabrina olhou-o, irritada

- Está a tentar falar-me das minas outra vez?

- Não, de modo nenhum, bolas! Mas estou a tentar dizer-lhe algo que é muito importante para si, pelo menos, deveria ser. Não dê a esta gente a única coisa que tem, Sabrina. Nunca lha devolverão. Dê-a a alguém que mereça... - Sentiu de novo um nó na garganta, sem saber muito bem por que. - Dê-a a alguém que ame... Encontre alguém que ame. Vá gozar a sua bela mansão de São Francisco, viva a sua vida. Não era isto que o seu pai quereria para si. Não é justo

Sabrina sentiu-se sensibilizada, tanto pelo olhar sincero daquele homem como por aquilo que ele lhe acabava de dizer. Fez um ligeiro gesto afirmativo com a cabeça, depois, foi ver os seus homens com o eco das palavras de Harte a ressoar nos ouvidos.

Um dos piores incêndios da história da indústria mineira foi o das Minas Harte, em agosto de 1909. Os danos provocados pelo fogo durante os cinco dias em que aquele inferno devorou tudo quanto apanhou pela frente eram indescritíveis. Muitos homens foram retirados do sinistro gravemente queimados, e não houve maneira de salvar muitos outros. A temperatura no interior das galerias era tão elevada que as equipes de salvamento se viam obrigadas a recuar de cada vez que tentavam chegar até aos mineiros aprisionados. Durante cinco dias, John Harte fez tudo o que pôde para os resgatar. Recebeu graves queimaduras nas mãos e nas costas, mas conseguiu salvar mais de vinte pessoalmente. Ao fim do segundo dia, Sabrina Thurston apareceu. Trabalhou ao lado dos homens de Harte, juntamente com as equipes de salvamento de outras cidades e os médicos que havia nas redondezas, e de Lua da Primavera, que aplicava ungüentos e emplastros nas queimaduras. Foram cinco dias intermináveis e angustiantes e quando, finalmente, as chamas se extinguiram, estavam todos esgotados devido às longas horas que haviam passado sem dormir. As equipes de salvamento começaram então a preparar-se para abandonar o local. O último dos feridos fora resgatado, e já não havia qualquer morto no interior da mina sinistrada. Sabrina sentou-se num tronco meio carbonizado, com a cara toda mascarrada e uma mão com queimaduras de alguma gravidade que fizera ao ajudar a apagar as chamas das costas de um mineiro, e olhou com ar exausto para John Harte quando ele se aproximou. Tinha os olhos tão vermelhos que mal conseguiu distinguir o sorriso que bailava no rosto enegrecido de Harte.

- Jamais poderei agradecer-lhe o que fez.

- Você faria a mesma coisa por mim, John, não faria?

Ele assentiu com a cabeça. Ambos sabiam que o teria feito. Sabrina mandara centenas dos seus homens em auxílio. Não houvera o menor protesto da parte deles. Nos momentos de aflição, estavam sempre dispostos a ajudar os seus irmãos, e responderam de imediato ao apelo de Sabrina. Haviam aparecido aos magotes, e agora, juntamente com os outros, preparavam-se para partir.

- Os seus homens foram maravilhosos.

Lua da Primavera também fora maravilhosa. Era uma boa conhecedora da natureza humana. Observara a atitude de Sabrina enquanto ia de um ferido para outro, e não escapara à sua argúcia que algo estava a nascer entre a jovem e John, algo que nem eles próprios compreendiam ainda. Mas a índia tivera ocasião de ver, mais de uma vez, como eles se olhavam, com uma ternura que Lua da Primavera atribuía aos primeiros rebentos do amor, e teve o pressentimento de que não tardariam a crescer. E não era em Lua da Primavera que John pensava naquele momento. Virou-se para Sabrina com ar preocupado.

- Vá para casa descansar, pequena. Passarei por lá mais tarde. Quero ver se essa mão está melhor. - Harte olhou de novo para a mão.

Sabrina esboçou um sorriso cansado. Aquele homem parecia inesgotável. Há cinco dias que não tinha um momento de descanso. Sabrina fora uma vez a casa tomar banho e mudar as roupas impregnadas de fuligem, cinza e fumo. Ainda se notava um cheiro a queimado nas roupas, na pele e nos cabelos, pelo que ansiava chegar a casa para tomar um banho. A perspectiva de se estender entre os lençóis lavados da cama era irresistível. Mal conseguia manter-se acordada no dorso do cavalo. Todavia, não parou de pensar em Harte durante todo o caminho. Era um homem extraordinário. Tinha quarenta e nove anos, mas era também um dos homens mais bem-parecidos que ela alguma vez vira. Quando, naquela tarde, se meteu na cama, quase a arrastar-se, sentiu uma inexplicável inveja de Lua da Primavera. Ainda estava a sonhar com ele ao anoitecer, quando Hannah bateu com força à porta do quarto. Sabrina sentou-se na cama, o rosto quase oculto pelos cabelos desgrenhados, e olhou com os olhos semicerrados para a velha governanta.

- O fogo reacendeu-se? - Estivera a sonhar com o fogo, John Harte, Lua da Primavera e todos os homens feridos, mas Hannah abanou a cabeça. Também parecia cansada. Tivera de cozinhar para os homens durante vários dias seguidos e praticamente não pregara olho.

- O John Harte está lá em baixo. Disse que veio ver como está a tua mão. Disse-lhe que estavas a dormir, então, pediu-me que viesse dar uma olhadela. - Observou a mão da rapariga e pareceu-lhe que estava com bom aspecto. Achava engraçado o fato de aquele homem se preocupar tanto por causa de uma queimadura tão pequena. A que ela fizera na cozinha era muito mais séria. De repente, começou a questionar-se das razões da vinda de John Harte. Não o tinha em muito boa conta. Há anos que vivia com a rapariga índia. E não ia começar agora a arrastar a asa a Sabrina... Não, provavelmente era mais outro dos seus truques para a fazer vender-lhe as minas. - Queres que lhe diga que estás bem?

Sabrina abanou a cabeça, saltou da cama e, depois de vestir o robe que tinha em cima de uma cadeira, desceu as escadas a correr e dirigiu-se para a sala principal, onde Harte se encontrava. Estava com ar esgotado, mas o rosto iluminou-se ao vê-la chegar.

- Sente-se bem, Sabrina?

- Estou ótima. Quer beber alguma coisa?

Harte começou por abanar a cabeça, mas mudou de idéias.

- Talvez não me fizesse mal um trago de algo forte para me reanimar o espinhaço.

A expressão fez sorrir Sabrina, que encheu um copo de uísque e ofereceu-lho.

- Em vez de andar por aí a tentar «reanimar o espinhaço», devia ir dormir.

- Tenho muito que fazer. - Era a canção de sempre, que ambos conheciam muito bem.

- E quem lhe valerá se cair do cavalo num recanto qualquer?

Harte esboçou um largo sorriso.

- Parece que está a querer-me dar as mesmas lições de moral que lhe dou a si.

- Ai, pois estou... - Sabrina sorriu. De repente, pensou nos homens que haviam morrido. Era o maior desastre a que ela alguma vez assistira, mas haviam salvo um bom número de mineiros. - Quem me dera ter salvo muitos mais, John - disse, levantando o olhar para ele, mas Harte abanou a cabeça.

- Foi impossível, Sabrina. Tentamos, todos... - Mas as condições em que a operação de salvamento decorrera haviam sido insuportáveis para qualquer ser humano e, além disso, os gases e o fumo acumulados nas galerias tinha provocado rapidamente várias mortes. As explosões eram incríveis.

- Tivemos a sorte de não perdermos mais homens. Dou graças a Deus por isso.

Sabrina sentia muita pena de Harte. Então, de repente, teve uma idéia divertida e virou-se para ele.

- John, já teve o seu quinhão de problemas. Porque não me vende as minas? - perguntou Sabrina para o provocar. Era exatamente o tipo de coisa que ele lhe teria dito um ano antes.

- Tenho uma idéia melhor - respondeu, com um sorriso estranho. - Porque não se casa comigo?

O coração de Sabrina parou. Ele só podia estar a brincar. Ela sabia disso, mas era uma sensação estranha ouvi-lo articular aquelas palavras... e, antes que ela pudesse responder, Harte beijou-a suavemente nos lábios. Era o primeiro beijo que recebia de um homem e, quando ele a estreitou entre os braços, Sabrina sentiu todo o corpo a derreter-se. Quando Harte a soltou, teve a sensação de que transcorrera uma eternidade. Olhou para ele, pasmada e, antes que tivesse tempo de reagir, Harte voltou a beijá-la. Ela empurrou-o então suavemente e, depois de recuperar o alento, fitou-o durante alguns instantes.

- O fumo não o terá afetado?

- É possível. - Harte riu-se e voltou a beijá-la Desta vez, quase a levantou no ar, fazendo com que o robe subisse e pusesse à mostra os bonitos tornozelos e os graciosos pés de Sabrina.

- Que está a fazer, John Harte? - Aquilo teria realmente acontecido? Tinha uma amante índia com quem vivia, e agora estava a fazer-lhe uma proposta de casamento. Só podia estar a brincar; mas o olhar que ele exibia dizia que falara a sério. Então, como de costume, Sabrina foi direta à questão.

- E Lua da Primavera?

Harte pareceu vacilar ligeiramente, mas os seus olhos não se apartaram dos de Sabrina. Há dias que pensava nisso. Lua da Primavera conhecia muito bem o homem com quem vivia.

- É uma questão sobre a qual teria preferido não ter de falar. Mas tem o direito de saber a verdade. Esta primavera, depois do nosso encontro em São Francisco e de eu começar a visitá-la, pedi à Lua da Primavera que se mudasse para outro lado. Agora, vive sozinha perto das minas, e voltará para junto do seu povo no Dakota do Sul, no final deste mês. Eu estava à espera que ela partisse para lhe fazer este pedido de casamento mas, depois de partilhar consigo estes últimos cinco dias, já não conseguia agüentar mais. Só desejava tomá-la entre os meus braços e afastá-la de todos os perigos E esta noite bem, não consigo viver sem você. - Os olhos umedeceram-se, e Sabrina perguntou-se se seria por causa do fumo. - Nunca pensei voltar a fazer uma coisa destas. Nunca quis voltar a abrir o coração depois da morte da Matilda. - Olhou-a e, por instantes, interpôs-se entre eles a lembrança da esposa e dos filhos perdidos, mas continuou a falar com voz suave. - Aquilo aconteceu há vinte e três anos, Sabrina, não posso fechar o coração por causa deles, e a Lua da Primavera foi muito boa para mim ao longo destes últimos anos, mas a vida não se pode resumir a isso. - Exatamente o que Jeremiah descobrira, também há vinte e três anos, quando conhecera Camille e abandonara Mary Ellen Browne. Sabrina ainda não respondera a John. Fitava-o, incrédula. - A Lua da Primavera é muito compreensiva.

Nessa tarde, antes de ir pedir Sabrina em casamento, tivera uma conversa triste e franca com Lua da Primavera. Enalteceu os anos que partilhara com ela e quis que fosse a primeira a saber da novidade. Choraram os dois, mas Harte sabia que o que sentia por Sabrina era amor verdadeiro, e Lua da Primavera tinha também plena consciência disso. Adorava-o o suficiente para lhe desejar o melhor para ele e para não lutar contra o destino.

- Por que razão é que quer casar comigo? - Sabrina continuava com um ar de espanto estampado no rosto. De repente, pensou nas minas. Precisamente agora que a mina de Harte ficara meio destruída, mas afastou a idéia da cabeça. - Não sei que dizer... Como é possível que eu... E se...

Harte imaginou todas as perguntas que fervilhavam naquele momento na cabeça da rapariga e, suavemente, puxou-a para si.

- Eu posso encarregar-me da direção das suas minas, ou, se fosse esse o seu desejo, pode continuar a dirigi-las pessoalmente. Não quero interpor-me no seu caminho, nem desejo tirar-lhe nada. As Minas Thurston serão suas até à morte, tal como me disse mais de uma vez. Nunca mais voltarei a tentar alterar essa situação. O que quero é algo muito mais importante do que as suas minas, Sabrina. - Baixou os olhos para ela e voltou a abraçá-la. Ainda cheiravam a fumo, mas nenhum dos dois se importou com esse pormenor. - É a ti que eu quero, meu amor. Só isso, até ao fim da vida. Talvez seja demasiado velho para ti, e sei que mereces algo melhor. Só posso dizer-te que tudo o que tenho é teu, Sabrina Thurston. As minhas terras, as minhas minas, a minha alma... a minha vida...

Harte olhou-a fixamente, e os olhos de Sabrina inundaram-se de lágrimas. E então foi ela quem o beijou. A barba sabia a fumo, mas isso não tinha a menor importância. Desatou a rir e, mal conseguindo articular as palavras, disse:

- Sempre te tive por meu inimigo... e agora... é o que vês...

Harte devolveu-lhe o beijo e estreitou-a de novo entre os braços, no preciso momento em que Hannah entrava na sala com uma bandeja com chá e bolachas na mão. E lançou um olhar furioso a John Harte e Sabrina.

- Agradeço que, nesta casa, se comportem como deve ser, Sabrina. - E, de dedo em riste, acrescentou. - Não me importo que dirijas uma mina sozinha e que mandes em quinhentos homens, mas, nesta casa, terás de te comportar como uma dama, e com um pouco de dignidade.

- Muito bem, minha senhora. Deverei seguir essas normas mesmo depois de casada? - Sabrina fitou angelicalmente a velha ama, mas Hannah não deu o braço a torcer.

- Quando estiveres casada, poderás fazer o que te dê na gana, mas entretanto... - De repente, fez uma pausa e olhou-os com ar surpreendido. - O quê?

Harte, radiante de felicidade, fez um gesto afirmativo com a cabeça, o que levou a velhota a soltar um grito prolongado e estridente, enquanto Sabrina a rodeava com os braços e ele as abraçava às duas. Então, de repente, Hannah recuou e fitou Harte.

E a rapariga índia? - Harte corou e riu-se

- Estou encantado com tanta discrição à minha volta.

- Deixe-se de brincadeiras. Se pensa que a vai manter por perto depois de se ter casado com a minha menina.

Sabrina, emocionada por Hannah a ter tratado por menina, riu-se e respondeu por John.

- Parte para o Dakota do Sul a semana que vem.

- Não tão depressa como seria desejável. Para mim, dez anos é muito tempo. - E de novo com as mãos nas ancas, sorriu. - Nunca pensei assistir a este dia. Perdi a esperança quando começaste a dirigir aquela maldita mina.

- Agora, também vais dirigir a minha. - Sabrina riu-se, e Hannah soltou novo grito.

- Não fará semelhante coisa! Ficará em casa comigo a criar os vossos filhos, John Harte. Não quero ouvir falar mais de minas por estes lados!

- Que dizes a isso? - sussurrou ele à futura esposa. Esta sorriu e respondeu-lhe no mesmo tom:

- Veremos. Talvez seja melhor que as dirijas tu. - Essas palavras eram uma incrível mudança de atitude por parte de Sabrina. Nem ela própria acreditava no que acabava de dizer. Disporia de mais tempo para cuidar dos vinhedos. Mas, na realidade, a idéia de Hannah era a que mais gostava: ficar em casa a criar os filhos. Que idéia perturbadora! - John leu no olhar de Sabrina o que ela estava a pensar e inclinou-se para a beijar nos lábios.

- Tudo a seu tempo, meu amor Tudo a seu tempo.

John não tinha ninguém a quem pudesse fazer o pedido de casamento. Depois de ele sair, Sabrina e Hannah falaram durante horas, quase como duas irmãs, e a velhota interrompeu várias vezes a conversa com abraços e soluços. Jeremiah teria adorado vê-las assim.

- Eu já tinha perdido todas as esperanças de que isto pudesse acontecer... Nunca pensei assistir a este dia.

- Também eu não - respondeu Sabrina, com um sorriso de felicidade. Todavia, ainda sentiu um arrepio de medo percorrer-lhe a espinha. Esperava estar a fazer aquilo que devia. Estava certa de que sim, mas era um enorme passo, e tinha de resolver tantas coisas relativamente às minas... Havia, naturalmente, a possibilidade de fundir as duas companhias, mas Sabrina não queria fazê-lo. Queria manter todos os seus negócios separados dos de John Harte. Casaria com ele, mas não misturaria os seus bens com os do marido. Por outro lado, se ele dirigisse as minas por ela, como ele dissera que poderia fazer, Sabrina ficaria com muito mais tempo para se dedicar aos vinhedos, coisa a que aspirava há muito tempo.

- Não achas que podias ficar em casa a costurar? - gracejou John, um dia, quando se encontravam sentados no alpendre. Estivera à espera que Sabrina chegasse no dorso do seu velho cavalo.

- Onde é que vamos viver? - Sabrina estivera a pensar no assunto. Não lhe agradava muito a perspectiva de ter de viver na casa onde haviam morrido a esposa e os filhos de John e onde ele vivera durante mais de dez anos com Lua da Primavera. A índia partiria para o Dakota do Sul daí a alguns dias, e Sabrina teve o cuidado de não abordar esse assunto. Não queria ser indelicada com ele. Todavia, ainda não haviam resolvido onde é que iriam viver, e ela não sabia se John gostaria de viver na casa da mulher com quem casava. - E se ficássemos a viver aqui?

John, depois de refletir durante alguns instantes, enquanto passava a mão pela barba, respondeu:

- Já sou demasiado velho para ir viver na casa de outro homem, Sabrina. A tua casa sempre me pareceria a casa do teu pai.

Sabrina concordou com a cabeça. Compreendia as suas razões, mas era um assunto de difícil resolução. John olhou-a, então, com o sorriso infantil. Apesar de ter mais vinte e oito anos que Sabrina, esta achava-o muito mais novo.

- E se fôssemos viver na Mansão Thurston? Seria estupendo, não achas? - Naquele instante, John parecia um miúdo travesso. Sabrina riu-se. A casa era sua, mas ninguém vivia nela há muito tempo. Seria como ir viver para um terreno neutro..

- Seria estupendo. E as minas? - Já para não falar dos vinhedos.

- Acho que poderíamos conciliar as coisas. Ao fim e ao cabo, não teríamos de viver sempre na cidade. Mas será uma boa mudança para os dois. - esboçou um sorriso malicioso, - logo que tenha as tuas minas de novo organizadas. Só Deus sabe as asneiras que cometeste.

Sabrina simulou que lhe ia dar uma bofetada, e ele riu-se. John já vira alguns dos livros de contas da rapariga e ficara surpreendido com a forma impecável como ela dirigia o negócio. Perguntou-se como é que Sabrina conseguira aprender tanta coisa. Havia, inclusive, alguns pormenores que ele podia aprender com ela, apesar de depois de vinte e sete anos a dirigir as suas próprias minas o pudesse fazer quase de olhos fechados. Ficara deveras impressionado com ela.

- Efetivamente, não és uma gestora medíocre, pequena. - Inclinou-se para a frente, beijou-a na face, tomou uma mão na sua, e Sabrina encostou-se a ele, ao ar da noite. Ela nunca imaginara que pudesse apaixonar-se por aquele homem. De repente, ali estava ele, e ela tinha a sensação de que nascera para ele.

Mais tarde, depois do jantar, Sabrina trouxe à baila a questão de Dan.

- Já pensei nisso. - John franziu o sobrolho. - Não posso negar o fato de que esse homem é bom naquilo que faz. Mas não o quero perto de ti. - Olhou-a com ar infeliz.

- É muito importante para ti, John?

- Muito menos importante do que tu, meu amor. – Baixou os olhos para ela, maravilhado com a intensidade dos sentimentos que Sabrina despertara nele. Acontecera tudo de forma tão inesperada, ao fim de tantos anos. E tanta certeza que ele tivera de que nunca mais sentiria o que estava a sentir... - Vou despedi-lo.

-Tens a certeza de que é isso mesmo que queres fazer?

- Tenho. - A voz era firme. - Não sou obrigado a dar-lhe satisfações. E também não está ao meu serviço assim há tanto tempo. - Havia três anos que abandonara as Minas Thurston, e trabalhara afincadamente para John desde então, mas este não podia mantê-lo por mais tempo. - Comunico-lhe a dispensa na semana que vem.

Sabrina franziu o sobrolho e olhou para John.

- Vai ser um rude golpe para ele.

- Deveria ter pensado nisso há muito tempo, quando te fez passar aquele mau bocado.

Sabrina riu-se.

- O engraçado é que tudo começou quando o Dan tentou convencer-me a vender-te as minas. E agora, em vez disso, vou casar-me contigo. - O que ambos sabiam não era a mesma coisa. - O que o Dan sempre desejou foi ficar à frente das minas, sem o meu pai ou eu por perto.

- Eu também não lhe dei tanta liberdade de ação como ele queria. Não sou esse tipo de homem. Já estou à frente da mina há muito tempo.

Sabrina compreendia-o perfeitamente. Pensava o mesmo relativamente às minas apesar de só há três anos cuidar delas. Gostava de fazer tudo sozinha e à sua maneira, e não lhe seria fácil passar as rédeas para as mãos de John Mas confiava nele, e sabia que, com o tempo, a sua confiança iria aumentar. Já haviam acordado que, durante os seis primeiros meses, Sabrina trabalharia em part-time. Mostraria a John os métodos que utilizava e apresentá-lo-ia aos seus homens. Não ia abandonar tudo de repente. Não podia fazê-lo. Entretanto, John começaria a alternar o seu trabalho entre as Minas Thurston e as suas. Sabia que o plano daria resultado.

- E quando as coisas estiverem encaminhadas, queres ficar na Mansão Thurston?

Sabrina não compreendia como é que teriam tempo para deixar Napa, mas John dizia com insistência que poderiam fazê-lo. E quando ele a beijou nessa noite, ao despedir-se dela no alpendre, estava segura de que John era capaz de conseguir tudo.

Os estragos provocados pelo fogo nas Minas Harte levaram várias semanas a reparar. Todos os homens tiveram de fazer horas suplementares, e até Lua da Primavera resolveu ficar mais umas semanas. Durante esse período, a índia comportou-se com a maior discrição, pareceu aceitar o seu destino, convencida de que a sua relação com John Harte chegara ao fim. Quando se cruzavam, nunca dizia nada a Sabrina, nem esta dava a menor mostra de hostilidade. Havia uma espécie de fascínio entre elas, e ambas faziam o possível por se ignorar. Mas a questão ficou definitivamente resolvida quando, um dia, John tirou Sabrina do sítio onde estava a prestar ajuda. Causava-lhe uma extraordinária intranqüilidade vê-las constantemente perto uma da outra.

- Quero que te mantenhas longe dela - disse John em tom de repreensão.

Sabrina, algo tímida, respondeu:

- É muito bonita. Sempre tive esta opinião. Julgo que o meu pai também achava o mesmo.

John sobressaltou-se ao ouvir aquelas palavras.

- Disse-te alguma coisa?

Sabrina deixou-se rir e abanou a cabeça.

- Não. Uma vez, tentei perguntar-lhe, mas não quis falar disso. Disse que era um assunto que não iria discutir comigo.

- Fez o que devia. - John corou até à raiz dos cabelos e olhou para ela. Então, disse algo que não devia dizer. Não queria falar de Lua da Primavera, muito menos com Sabrina. - És muito mais bonita do que ela, pequena.

- Como podes dizer semelhante coisa? Parecia chocada. É a mulher mais bonita que alguma vez vi.

John abanou a cabeça e aproximou-se dela.

- Não, meu amor, tu é que és.

Sabrina era, inclusive, mais bonita do que a primeira esposa de John. Aqueles cabelos negros e os enormes olhos azuis deixavam John completamente deslumbrado. Um ao lado do outro, ele, com os seus ombros largos, os cabelos ainda escuros, os olhos cintilantes e a barba proeminente, ela, com a sua beleza sem artifícios, formavam um casal simpático. John mal podia esperar pelo dia do casamento. Haviam começado a comunicar o compromisso aos amigos, e Hannah espalhara a notícia por toda a cidade. Quando, finalmente, o assunto chegou aos ouvidos dos mineiros, aos dele primeiro e aos dela depois, não se falou de outra coisa nas minas, sobretudo nas Minas Thurston, onde se interrogavam sobre as conseqüências que teria para eles aquele enlace matrimonial. Mas houve também outro homem que se perguntou o mesmo quando tomou conhecimento da novidade. E não tardou a saber o que lhe reservava o destino. Teve um verdadeiro ataque de fúria quando Harte lhe comunicou que não podia continuar ao seu serviço. Este não lhe disse por que razão o despedia, mas para Dan Richfield não havia qualquer dúvida sobre o motivo do sua demissão. Outra jogada de Sabrina. Mas desta vez ela iria ter o que merecia. John Harte concedera-lhe duas semanas para se organizar e fazer as malas, e Dan sabia que teria de deixar a cidade, porque, nas redondezas, não havia outras minas a não ser as de Harte e as de Sabrina. Há muito tempo que as minas de prata de Napa haviam ficado esgotadas, e não havia ali nenhuma mina que não estivesse controlada por Sabrina ou John. Dan não sabia para onde ir. Já fizera trinta e sete anos, e nenhum dos filhos tinha idade suficiente para se fazer à vida. Não queria levá-los consigo, de modo que pensava deixá-los em Santa Helena em casa de amigos. Mas não era nos filhos que pensava agora, enquanto andava de bar em bar e contava aos outros mineiros o que, segundo ele, se rumorejava:

- Ela já dormia com ele há algum tempo e não estranharia que formassem um trio com a índia do Harte. Reparem que ela ainda não se foi embora. - Ao fim de uma semana, todas as minas buliam de comentários sobre as indecências que Dan espalhara.

Um dia, ao ver sair Dan da mina, John Harte agarrou-o pelos colarinhos da camisa.

- Tens andado a falar da minha futura esposa? - Sabrina ainda estava atulhada de trabalho, mais do que de costume, porque ia casar-se dentro de dois meses e queria deixar tudo preparado para passar as rédeas a John. Isso contribuiu para que, durante aqueles dias, se vissem muito pouco. Dan Richfield, que tresandava a uísque, não pareceu assustar-se perante o gesto de Harte, um homem muito mais forte e corpulento que ele.

- Não é nada que não saiba já, Mister Harte. Ela sempre me tratou muito mal.

- Não foi isso que ouvi.

- Ou que quis acreditar.

Dan Richfield estava a ser insolente. Por instantes, John Harte ficou sem saber o que fazer. Então, com um gesto brusco, mandou-o embora.

- Desaparece daqui para fora, Dan. Recordo-te que só tens mais dois dias.

- Vou-me embora nessa altura.

John ficou satisfeito por tê-lo demitido. Nunca se dera conta de que ele bebia demasiado.

- Para onde é que vais?

- Para o Texas. Tenho lá um amigo que é dono de um rancho e alguns poços de petróleo. Far-me-á bem sair destas minas asquerosas. - Olhou por sobre o ombro para a mina onde trabalhara durante mais de três anos.

- Levas os miúdos? - Richfield encolheu os ombros, e John olhou-o com ar duro. - Bem, vê lá se desapareces daqui o mais depressa possível. - Não nutria qualquer amizade por aquele homem. Era evidente o ódio que Dan tinha por Sabrina, e John queria vê-lo bem longe dali. Agora, tinha muito que fazer, pelo que deixou de pensar em Dan para ir tratar da papelada que o esperava em cima da secretária e que ainda lhe iria roubar muito tempo.

E o mesmo fez Sabrina nessa tarde, nas Minas Thurston, até quase às sete da noite. Então, em pânico, olhou para o relógio. Prometera a John que iria jantar com ele. Ainda achava estranho a volta que a sua vida dera. Agora, havia sempre alguém à sua espera ao fim do dia, alguém a quem confiar os seus problemas, alguém com quem partilhar os seus êxitos; um homem que era meigo com ela quando estava cansada, que lhe acariciava o pescoço, que a beijava, e que lhe contava, por sua vez, as incidências do seu dia. Não compreendia por que razão é que resistira durante tanto tempo àquela nova forma de vida. Nunca acreditara que chegasse a casar-se algum dia, e evitara John porque pensava que ele só andava atrás das suas minas. Mas, agora, já não tinha de temer nada a esse respeito. O plano que ele lhe apresentara sobre a maneira de conduzir os negócios de ambos parecia-lhe perfeito. Ele dirigiria as Minas Thurston, mas estas continuariam a pertencer-lhe. John nem sequer lhe sugerira a fusão das duas companhias. Conhecia bastante bem o apego que Sabrina tinha pelas minas. Talvez um dia ela mudasse de opinião, mas, entretanto, respeitava as suas opiniões, fossem elas quais fossem. A ele, apenas Sabrina lhe interessava, e esta sabia-o bem. Ao saltar para a sela, Sabrina só tinha John no pensamento. Galopou a toda a velocidade através da noite, tomando os atalhos que conhecia. Passou, veloz, diante da sua própria casa e, em pouco menos que nada, chegou às minas do seu amado Mas, precisamente quando acabava de deixar para trás o poço principal, o cavalo perdeu uma ferradura.

- Bolas. - Já ia um pouco atrasada e, agora, para piorar a situação, tinha de desmontar, pois não podia continuar com o cavalo a coxear. Ainda pensou deixá-lo preso a uma árvore, mas receava que alguém pudesse roubá-lo, de modo que optou pela solução de andar com ele o resto do caminho até chegar a casa de John e prendê-lo. Para regressar, ele poderia levá-la no seu elegante automóvel ou emprestar-lhe um cavalo. Adorava andar de carro ao lado dele. Gostava de tudo o que aquela futura vida partilhada lhe oferecia.

- Precisas de carona? - Sabrina estremeceu ao ouvir uma voz procedente de detrás de uma árvore. Pouco depois, apareceu Dan Richfield, ligeiramente bêbado e o olhar lascivo e trocista. Ou queres que te leve o cavalo às costas.

Era um comentário atrevido, mas Sabrina fingiu não perceber. Não queria dar-lhe confiança. Sabia que ele se ia embora dentro de um ou dois dias, e até agora tinha-o evitado com sucesso. Não fazia sentido enfrentá-lo naquele momento

- Olá, Dan

- Não me venhas agora com finuras, sua pega. - Pelo menos, não fingia ter mudado de opinião acerca dela. Sabrina fitou-o e puxou o cavalo, tentando continuar o seu caminho, mas ele seguiu-a. Reparou que ele não tinha nem cavalo nem carro. Provavelmente, estivera sentado, atrás de uma árvore, a beber.

- Porque não segues o teu caminho, Dan? Já não temos nada para dizer um ao outro. - Sabrina dificilmente conseguia acreditar que conhecia aquele homem desde sempre. Era incrível que se tivesse tornado tão malvado e desleal. Ainda bem que o pai não vivera o suficiente para assistir àquilo em que ele se transformara. Queria mantê-lo à distância, e procurava não voltar-lhe as costas nem por um instante.

- Voltei a perder o emprego por tua culpa, sua cabra!

- Não perdeste nada por minha culpa.

Sabrina já não era a rapariguinha ingênua de outros tempos. A voz era dura, como muitas vezes acontecia quando falava com os mineiros. Aprendera a lição há muito tempo, na altura em que grande parte deles a abandonara. Agora, nunca os tratava como amigos. Eram mineiros que trabalhavam para ela, nada mais. Pagava-lhes bem e assumia todas as suas responsabilidades para com eles. Era uma forma de atuar que não estava em consonância com os seus bons sentimentos. Mas só John conhecia aquela sua faceta. Dan ignorava-a. Só a conhecera enquanto criança. Mas já era uma mulher. Precisamente a mulher que se voltou para ele para lhe dizer sem rodeios:

- Tu és o único culpado de tudo aquilo que perdeste. E perderás muito mais se não deixares de beber dessa maneira.

- Deixa-te de tretas! Não é por isso que o Harte me vai pôr na rua. E tu sabe-lo tão bem como eu. - Tropeçou, o que assustou Sabrina e o cavalo.

A rapariga puxou o freio do cavalo para continuar o seu caminho, mas Dan levantou-se e continuou a segui-la com ar obstinado. Sabrina estava a aproximar-se da primeira das cabanas, mas ninguém pareceu tê-los visto, e ainda faltava um bom bocado para chegar a casa de John. Ansiava que este aparecesse de repente e a livrasse de Dan, mas nem ele nem ninguém o fez, e Dan continuou a persegui-la quase sem alento.

- O Harte vai pôr-me daqui para fora por culpa tua!

- Não tenho nada a ver com isso.

Sabrina continuou a avançar, mas Dan alcançou-a e agarrou-a pelo braço com tal força que quase a deitou ao chão.

- Tens muito que ver. Sei que tens andado enrolada com ele e a puta índia... Não consigo imaginar como é que... Os três...

Sabrina ficou horrorizada e boquiaberta ao ouvir aquelas palavras. Intimamente, era ainda muito jovem.

- Como te atreves a dizer essas coisas? Que nojo! - Mas Dan apenas se riu e prosseguiu:

- Que vai ele oferecer-te como presente de casamento, sua pega? A Lua da Primavera?

- Pára de me insultares dessa maneira. - A voz de Sabrina tremeu ao subir de tom. - E não fales dele nesses termos! Tiveste uma sorte danada pelo fato de o John Harte te ter aceite depois de eu te ter despedido! - Os olhos da rapariga chispavam. Dan parecia deliciado com a situação. Há três anos que esperava aquela oportunidade.

- Tu não me despediste. Eu é que saí por minha vontade, com mais trezentos homens.

- Eles talvez tenham saído por sua vontade, mas tu, por aquilo que me lembro, comportaste-te como um miserável. Não precisava de lho recordar. - Dan olhava-a sem a menor ponta de remorso. - Porque não te vais embora e me deixas em paz? Isto não faz qualquer sentido, Dan. - Não queria continuar a discutir com ele. Aquelas recordações estavam a deixá-la amargurada; Dan, porém, mostrava-se determinado a não se ir embora.

- Por quê? Estás com medo. - Parecia divertido com a situação. Avançou para ela e barrou-lhe o caminho. Sabrina quase caiu para o lado ao sentir o bafo a uísque que ele exalava.

- Não tenho motivo para estar com medo

Sabrina optara por dar a impressão de manter a calma, coisa pouco fácil, dado que se encontrava numa parte muito escura e solitária do caminho que ia dar a casa de John. Não se via vivalma e, de repente, começou a ficar ligeiramente aflita. Era uma das poucas vezes que não trazia a pistola consigo. Saíra à pressa do escritório e deixara-a na secretária.

- Ai, não? Como é possível que não estejas com medo, sua pega? Ou é isto que queres?

Dan agarrou no cinturão como se fizesse tenções de o tirar. E, naquele instante, Sabrina ouviu um leve restolhar entre as árvores. Perguntou-se se seria um animal. O cavalo também se agitou a seu lado. Mas a rapariga continuou sem desviar os olhos dos de Dan.

- Não me impressionas, Dan. E se não sais da minha frente, passo por cima de ti. - E sorriu. Lembrava-se muito bem da noite em que o afugentara com um disparo, e estava certa de que ele não se esquecera disso. Desta vez, não trazia a pistola, mas ele não podia saber. - Meteu a mão no bolso da saia como se tivesse aí a arma e se preparasse para a empunhar. - O olhar de Dan dirigiu-se para a saia.

- Não me assustas. Não tens coragem de disparar de tão perto, pois não, pequena? Claro que não!

E, soltando uma gargalhada, agarrou, de súbito, o braço de Sabrina e tirou-lhe a mão do bolso. Ao comprovar que ela não tinha qualquer arma, empurrou-a violentamente contra uma árvore. Dan encostou a cara à da rapariga, que, com o constante roçagar do corpo dele sobre a sua saia, sentiu, de súbito, nos ouvidos, as palpitações do coração. Tentou dar uma joelhada nas virilhas do homem, mas este, antecipando-se, agarrou-a pela blusa e deitou-a ao chão. De imediato, pôs-se em cima dela. Enquanto com uma mão lhe rasgava a blusa e lhe apalpava os seios, com a outra tentava levantar-lhe a saia. Sabrina soltou um grito agudo, mas ele pregou-lhe uma bofetada com tanta força que a pôs a sangrar do nariz. A rapariga fulminou-o com o olhar ao sentir a mão do homem entre as pernas e tentou libertar-se rodando sobre si mesma. Mas ele voltou a imobilizá-la.

- Eu já devia ter feito isto há muitos anos, minha grande puta. Fodeste-me tudo aquilo que eu podia ter tido, agora vou eu foder-te... Trabalhei anos a fio para o cabrão do teu pai, desde puto, e que ganhei em troca?... Sua, sua puta, puseste-te a fazer aquilo que eu sempre quis fazer.

Sabrina voltou a gritar quando Dan lhe rasgou a saia de alto a baixo e deixou à vista as bragas que Hannah lhe fizera. A rapariga continuava a revolver-se na terra, sem deixar de gritar, mas ninguém a ouvia, e não conseguia sair de debaixo de Dan. Era incrível que, já perto do complexo mineiro, estivesse prestes a ser violada por um louco completamente bêbedo sem que ninguém a pudesse ajudar.

Dan rasgara-lhe já por completo a blusa e conseguira tirar-lhe o espartilho. Os seios jovens e firmes de Sabrina, de mamilos rígidos por causa do ar frio da noite e do medo, foram novamente apalpados, enquanto ela tentava defender-se às joelhadas Mas, desta vez, ele agarrou-a pelos cabelos e pressionou-lhe violentamente o rosto contra o solo. Rasgou-lhe então as bragas ao meio, deixando uma abertura mais do que suficiente para ele, e começou a tirar de novo o cinturão. De repente, porém, ficou imóvel, como se não estivesse certo de ser aquilo o que queria fazer. Olhou fixamente para Sabrina, soltou-lhe os cabelos e tirou a mão do cinturão, sempre com os olhos cravados nos da rapariga. Esta observou-o com olhar incrédulo, sem conseguir compreender o que lhe acontecera. Mas, ao vê-lo cair lentamente de cabeça para o chão e ficar com a cara virada para baixo, Sabrina percebeu por que razão é que ele perdera tão de repente o interesse nela. Tinha um punhal de aspecto assustador, com uma lâmina comprida e larga e o punho de marfim delicadamente cinzelado, cravado nas costas. Atrás dele, de pé, encontrava-se Lua da Primavera, que olhava para Sabrina em silêncio

- Oh!... - exclamou Sabrina, cobrindo os seios com as mãos e levantando-se a custo. Dan estava morto. Verificou isso mesmo pelo olhar que ele exibia. Ficou imóvel diante da índia, seminua, com as roupas rasgadas, um pé descalço, o rosto banhado em lágrimas, as gotas de sangue que lhe saíam do nariz a cair sobre o peito desnudado. Lua da Primavera fez-lhe sinal para a seguir. Não se aproximara demasiado da trêmula rapariga, nem lhe tocara. Os soluços não deixavam falar Sabrina, mas Lua da Primavera sabia o que devia fazer. Apanhou a saia rasgada do chão e deu-a à rapariga para que se cobrisse com ela, tomou, então, as rédeas do cavalo e fez-lhe novamente o mesmo sinal.

- Venha. Está muito frio aqui. Eu levo-a a casa do John. - Sabrina seguiu-a aos tropeções, perguntando-se o que aconteceria a Dan no sítio onde ficara, o que poderiam fazer. Começava a dar-se conta do que estivera prestes a acontecer-lhe, do que Lua da Primavera fizera e da boa estrela que pusera a índia no seu caminho. Sabrina compreendeu, então, que o ruído que ouvira atrás de uma árvore fora produzido por ela e não por um animal. O único animal ali fora Dan. Depois de percorrerem um bom trecho do caminho, Lua da Primavera parou num lugar escuro e, virando-se para Sabrina, que tremia da cabeça aos pés, disse-lhe:

- Não saia daqui. Vou buscar o John Harte. - Mas Sabrina, ainda assustada pelo que acabava de passar, pôs-se a tremer com maior intensidade que antes.

- Não me deixe aqui... Não posso... Não... Por favor... - Os olhos da índia eram jovens e selvagens. Então, estendeu a mão para Sabrina.

- Ele está ali. - A índia apontou para uma casa a poucos metros de distância, mas não queria que nenhum dos homens visse a rapariga. Tencionava trazer John até ali, até junto de Sabrina, depois desapareceria para sempre. Lua da Primavera possuía, entre outras qualidades, a da discrição.

- Se alguém se aproximar de si, grite. Aqui está segura. - O rosto era tão doce, e a voz tão meiga.

Sabrina só queria que os braços bronzeados de John a abraçassem e a acarinhassem. Então, de repente, lembrou-se das coisas que Dan Richfield afirmara e perguntou-se se mais alguém pensaria aquilo. Começou a chorar de novo. Já não era uma mulher. Agora, não passava de uma menina assustada, e não queria que John a visse naquele estado. Deixou-se cair de joelhos no chão, envolta na saia e sem deixar de soluçar. Lua da Primavera ajoelhou-se a seu lado.

- Agora, está segura. Com ele, estará sempre. - Eram palavras fortes. Sabrina olhou para a índia. Sabia que aquilo que ela dizia era verdade. Lembrou-se, então, de tudo aquilo a que Lua da Primavera se dispunha a abdicar. Parecia impossível que deixasse John de forma tão resignada. - Seja sempre boa com ele.

Sabrina fitou-a com os seus enormes olhos e, entre soluços, murmurou:

- Serei. Prometo. - A voz embargou-se-lhe. Fora a noite mais terrível da sua vida, à exceção, talvez, daquela em que morrera o seu pai. - Sim, serei boa com ele... Lamento... que tenha de partir...

Lua da Primavera levantou uma mão.

- Chegou a minha hora. Nunca fui esposa dele. Só sua amiga. Você é que irá casar com ele. O John precisa muito de si, pequena. - Era a mesma coisa que John lhe chamava. - Você dará uma boa esposa. Agora, vou buscá-lo.

E antes que Sabrina a pudesse deter, já desaparecera. Pouco depois, ouviu um ruído de passos. Meia dúzia de pessoas corriam na sua direção.

- Parem! Parem, todos! - Sabrina reconheceu a voz de John seguida do sussurro de várias vozes.

- Onde?... Muito bem, já podem ir-se embora... Oh, meu Deus..

Ouviu-se um novo ruído de passos e, de imediato, apareceu John. Sabrina continuava de joelhos, envolta na saia e a tremer. John trazia um cobertor, que Lua da Primavera lhe dera antes de indicar o sítio onde Dan Richfield se encontrava aos homens, que o foram de imediato procurar.

- Oh, meu Deus... - A voz de John soou com extrema doçura no ar da noite. Sabrina baixou os olhos. Não conseguia olhar para ele.

- Não... não... por favor... não... - queria pedir-lhe que não olhasse para ela, mas não foi capaz de articular as palavras adequadas. Só conseguia soluçar agarrada às pernas do homem; e, de repente, teve plena consciência do que estivera prestes a acontecer. Enquanto as lágrimas lavavam o sangue das faces, John envolveu-a no cobertor como se fosse uma criança pequena e pegou-lhe ao colo, aconchegando-a a si como fizera com a sua filha há muitos anos. Levou-a de imediato para casa, onde a depositou no sofá de couro da sala de estar. Observou as contusões no rosto de Sabrina e o olhar amargurado que ela exibia. Nesse instante, sentiu que se Lua da Primavera não tivesse morto Dan Richfield, ele próprio o teria feito. Mas a índia assegurara-lhe peremptoriamente que a rapariga não chegara a ser violada, e John deu graças a Deus por isso. Mas se o punhal não tivesse atingido o seu alvo ou tivesse levado um pouco mais a cravar-se na carne... Estremeceu só de pensar nisso, e ajoelhou-se no chão ao lado de Sabrina.

- Pequena, como pude permitir que te acontecesse uma coisa destas? Nunca mais irás sozinha a parte nenhuma. Prometo. Vou mandar sempre um guarda-costas para onde quer que vás. Eu serei o teu guarda-costas... Isto nunca mais voltará a acontecer-te... - Mas a principal razão de aquilo não voltar a acontecer era o fato de Dan Richfield já estar morto. Ao que parecia, o punhal atravessara-lhe o coração e Dan tivera morte instantânea. Lua da Primavera demonstrara a sua indiscutível destreza no manejo do punhal.

- Se não tivesse sido ela... - disse Sabrina, recobrando o alento. Começou a tomar o chá com uísque que John a obrigou a tomar, sem querer pensar na sua figura escondida debaixo do cobertor que ele lhe trouxera. Lua da Primavera fora buscar as roupas da rapariga e dera-as a John antes de desaparecer de novo. John fitava-a, sentindo-se como se tivesse estado prestes a perder o que mais queria no mundo. - E se Dan a tivesse assassinado? Era um pensamento difícil de suportar. Havia lágrimas nos seus olhos quando lhe disse: - Nunca permitirei que volte a acontecer nada semelhante. Nunca. Compreendes? Nunca mais voltarei a perder-te de vista...

Sabrina estendeu a mão trêmula e estreitou a dele na sua.

- A culpa não foi tua, foi minha. - Sabrina recomeçava a recompor-se, mas ainda não estava em condições de se levantar, os joelhos ainda demasiado trêmulos. - Tratou-se de contas antigas que o Dan tinha comigo. Poderia ter acontecido em qualquer lugar. O que me surpreende é que ele não tenha voltado a procurar-me no escritório. Tinha-me um ódio de morte, só isso... E sabes bem que o mesmo esteve prestes a acontecer noutra ocasião... Foi uma sorte não ter acontecido desta vez, como o foi o fato de a Lua da Primavera aparecer esta noite. - Lançou então um olhar inquisitivo a John. - Sabia que, pouco antes, alguns dos homens tinham vindo falar-lhe à porta de casa. - Está morto?

John anuiu com a cabeça.

- Está. O punhal atravessou-lhe o coração.

- E a ela, que lhe vai acontecer? - Sabia muito bem que o peso da justiça podia cair sobre a rapariga. Lua da Primavera matara para a defender. Mas tratava-se de uma índia e a justiça podia não fazer caso disso. No entanto, John já previra essa eventualidade.

Esta noite, partirá de comboio para o Dakota do Sul. E o corpo dele será encontrado amanhã... Tinha muito poucos amigos... - As palavras de John eram convincentes, e estava certa de que ele não iria ter complicações com a justiça. Confiariam na palavra de John. E, entretanto, o punhal já teria desaparecido. - Não tens nada que te preocupar. - Sabrina nunca o vira tão tranqüilo e seguro de si mesmo, o que a fez sentir-se mais protegida do que em qualquer outro momento da sua vida. - E ela também não tem nada a temer. Estão ambas seguras. Além disso, esse tipo teve exatamente o que merecia. Só lamento ter-lhe concedido tanta confiança.

- Foi o que aconteceu comigo. - Mil recordações passaram como um torvelinho pela mente de Sabrina, seguidos da hedionda imagem de Dan a rasgar-lhe as roupas. Não conseguiu evitar um nó na garganta e cerrou os olhos, mas John estreitou-a nos braços.

- Vou levar-te a casa.

Sem lhe tirar o cobertor que a envolvia, levou-a cuidadosamente até ao automóvel e conduziu-a a casa. Então, tomou-a de novo nos braços e levou-a até ao quarto. Hannah, que a aguardava, apertou os lábios e abriu os olhos de espanto ao vê-los entrar.

- Que lhe aconteceu? - Mostrava uma enorme preocupação.

- Está ótima. - John explicou-lhe o sucedido e a velhota ficou horrorizada.

- Esse filho da puta... Espero bem que o enforquem. - John não lhe dissera que ele já estava morto. Não tardaria a chegar-lhe a notícia. - Graças a Deus, alguém o deteve a tempo. Você tem bons homens.

- E bons amigos.

Havia outras mulheres que não se importariam que Sabrina tivesse sido violada. Lua da Primavera sabia que perdera o homem que amara durante anos, mas protegera a sua noiva como se de uma filha se tratasse, e ele estava-lhe imensamente grato. Dar-lhe-ia um bom presente e iria pô-la no comboio nessa mesma noite. Isso significava conduzir até ao amanhecer, mas era importante levá-la da cidade quanto antes, para a eventualidade de alguém dar com a língua nos dentes. Olhou para Hannah e deu-lhe uma pancadinha no braço.

- Cuide bem da minha menina. - Os vinte e oito anos que mediavam entre ambos faziam com que John a considerasse quase como uma menina; no entanto, também sabia que Sabrina era uma pessoa enérgica, forte e capaz. Não tardaria a recuperar do mau momento passado, e ele cuidaria da sua segurança durante o resto da vida. Era o que lhe prometera, e o que prometera a si mesmo.

E foi o que voltou a prometer, dois meses depois, no dia do casamento, enquanto Sabrina, diante do altar da igreja de Santa Helena, o olhava com expressão de imensa felicidade. Grande parte dos oitocentos mineiros que haviam vindo assistir à cerimônia apinhava-se no interior do templo, mais parecendo sardinhas em lata; outros, que não haviam conseguido entrar, tiveram de contentar-se em presenciar a cerimônia através das janelas. Até os que haviam abandonado Sabrina anos antes se encontravam ali, se não por amor a ela, por amor a John. Hannah chorou durante toda a cerimônia. E tanto os olhos de Sabrina como os de John se inundaram de lágrimas mais de uma vez.

Após a cerimônia religiosa, teve lugar um enorme banquete ao ar livre no recinto das Minas Thurston. Não teriam cabido em nenhum outro local, tendo em conta que todos iam acompanhados das esposas e filhos, pois Sabrina quisera convidar toda a gente.

- Uma pessoa só se casa uma vez - dissera Sabrina a John, a sorrir, enquanto faziam os seus planos, embora soubesse que semelhante afirmação não era válida para ele. Mas custava-lhe a acreditar que John tivesse sido casado com alguém anteriormente. Não chegara a conhecer a sua esposa, pois Matilda morrera mais de dois anos antes de ela nascer. Era estranho imaginar John casado e com dois filhos. Era quase como se ele fosse um homem diferente. Conseguia imaginá-lo melhor na companhia de Lua da Primavera, já que os vira várias vezes juntos ao longo dos anos, mas essas imagens haviam-se esfumado quase por completo da sua memória. Era como se John não tivesse pertencido a mais ninguém que não ela. E quando nessa noite apanharam o barco a vapor que os conduziria a São Francisco, ele disse-lhe, com um sorriso nos lábios:

- Que fiz para merecer uma menina como tu a meu lado, Sabrina Harte?

Sabrina gostou do som do seu novo apelido. E com um sorriso transbordante de felicidade, respondeu:

- Eu é que sou uma rapariga cheia de sorte, John Harte.

- -Isso é o que tu dizes.

John oferecera-lhe uma viagem para qualquer lugar do mundo que ela quisesse, mas Sabrina surpreendera-o ao dizer-lhe que a única coisa que queria era passar algum tempo na Mansão Thurston. E foi justamente o que planejaram fazer. John conseguira deixar tudo organizado nas minas de modo a poder passar um mês em São Francisco. Permaneceriam aí até às férias de Natal, e depois regressariam a Napa para voltar a tomar as rédeas dos negócios. Mas não era precisamente em negócios que pensavam quando chegaram à Mansão Thurston bastante depois da meia-noite. Sabrina pedira ao seu banqueiro que contratasse alguns criados para aquele período, e, ao entrarem em casa, encontraram-na resplandecente de luz. Na suíte principal, esperava-os a enorme cama com dossel ao lado do crepitante lume da lareira. Havia velas acesas e enormes jarrões de flores por todo o lado. Para Sabrina, a casa estava mais bonita do que nunca. Ao olhar para a cama que fora de sua mãe há muitos anos e depois dela, deu-se conta de que iria ser o leito da sua noite de núpcias. Então, com um olhar tímido, virou-se para John.

- Bem-vindo a casa! - disse Sabrina, numa voz sussurrante.

John tomou-lhe a mão e conduziu-a até ao piso inferior. Aí, beberam champanhe diante da lareira da sala de estar. Finalmente, John, ao ver que ela dissimulava um bocejo, levou-a ao colo até ao quarto e depositou-a em cima da cama. Sabrina já lhe mostrara a parte que lhe correspondia da suíte principal. Ele, depois de desaparecer por instantes nos seus aposentos, onde as malas já haviam sido desfeitas, apareceu de roupão vestido e com um sorriso meigo nos lábios. Envolta no seu robe de cetim rosa-pálido, parecia uma princesa de conto de fadas, e quando o deixou cair dos ombros, ao lado da cama, os cabelos pareciam puro ébano sobre a sedosa pele cor de marfim. Então, num ápice, John apagou as velas, e o quarto ficou iluminado pelo cálido resplendor do lume da lareira.

- Não te parece estranho estares aqui comigo? - perguntou John, enquanto se metiam na cama.

- Um pouco. Estou tão habituada a estar aqui sozinha... - Mas não era só isso. Nunca mantivera qualquer relação com homem algum, o único que beijara fora John, e o único que se aproximara dela para além deste fora, naturalmente, Dan. E agora, de repente, era a esposa de John na sua noite de núpcias. Toda a seriedade, toda a energia e habilidade que demonstrara na direção das minas de nada lhe serviam naquele momento. Era delicada e vulnerável, e estava bastante assustada perante aquilo que a esperava. Então, deu-se conta de que nunca falara com ninguém daquelas coisas, a não ser com a governanta, mas esta talvez também não lhe dissesse grande coisa. John abraçou-a, como se de uma criança se tratasse, mas aquilo que sentia por ela não tinha nada de amor paternal.

- Sabrina... - Não sabia como começar a perguntar-lhe o que queria saber. Lua da Primavera mostrara-se muito experiente nos seus primeiros contatos com ele. E houvera outras mulheres antes, mas nenhuma delas tão jovem... Matilda, naturalmente, era virgem quando se casara com ele... mas ambos tinham dezoito anos... e agora encontrava-se ao lado daquela rapariga... daquela rapariga... e ela era sua. Olhou-a com ar terno. - Ninguém falou contigo?

Sabrina esboçou um sorriso doce e ficou ligeiramente corada.

- Creio que sei o que... - Confiava plenamente em John, e sabia que continuaria a confiar durante toda a vida, que era o que deveria ter feito anos atrás.

- Mas... ninguém te explicou?

Sabrina abanou a cabeça, e ele beijou-lhe os lábios, as faces, os olhos, e de novo os lábios. Tinha de se controlar. A rapariga fizera nascer nele algo que nunca conhecera. - Sabrina, amo-te tanto - sussurrou-lhe John, entre os cabelos, e ela arqueou o corpo em direção ao dele.

- Então, é só isso que preciso saber.

E com a máxima delicadeza, John tomou uma mão de Sabrina e beijou a palma, depois o braço, a cintura, até chegar aos seios aveludados, possuindo-a então. Na manhã seguinte, continuavam enlaçados na cama da suíte principal da Mansão Thurston. Ele ensinara-lhe tudo quanto precisava saber sobre a arte do amor.

Regressaram a Santa Helena no dia de Ano Novo. Nessa altura, já sabiam onde viveriam. O mais simples seria mudarem-se para a casa que Jeremiah construíra para a sua primeira noiva, a que morrera antes de se casar. Os quartos do terceiro piso serviriam muito bem para quando chegassem os filhos; sobretudo, tendo em conta que Sabrina dizia insistentemente que queria ter, pelo menos, dois ou três filhos. John soltou um cômico grunhido e riu-se:

- Na minha idade? As pessoas pensariam que eram meus netos! Já não tenho pedalada para isso.

Sabrina olhou-o com ar cúmplice e sussurrou-lhe ao ouvido:

- Mas, ontem à noite, não tiveste qualquer problema em acompanhar a pedalada.

- Isso agora não vem ao caso. - John olhou-a, embevecido. Aquela rapariga era um sonho que se tornara em realidade.

- Nem queria acreditar que era eu própria.

Passavam a maior parte do tempo a rir e a falar dos muitos interesses que partilhavam. Sabrina mostrou-lhe tudo o que dizia respeito às Minas Thurston e apresentou-o aos seus homens. Reuniam-se três dias por semana no escritório dela, e nos restantes dias era ela que ia reunir-se com ele na mina. John tinha um excelente encarregado-geral nas Minas Harte, e só queria tomar a direção das minas de Sabrina. Também tinha previsto um encarregado para as Minas Thurston, o que lhe permitiria dedicar-se apenas às tarefas de supervisão de ambos os negócios.

- Assim, poderemos passar a maior parte do tempo na cidade.

Ambos pareciam gostar da idéia. Sabrina não sentia um interesse especial pela vida social que poderiam levar em São Francisco. Atraíam-na mais as coisas de índole cultural. Durante a lua-de-mel, além de terem desfrutado do esplendor da magnificente mansão que o pai de Sabrina construíra, haviam ido à ópera, ao ballet e ao teatro.

- Fico sempre triste quando penso no que aconteceu ao meu pai. Construiu-a para a minha mãe e esta morreu ao fim de dois anos e meio. A casa ficou vazia. Foi uma verdadeira desgraça.

John concordou com a cabeça, pensando no passado distante.

- O Jeremiah prestou-me uma grande ajuda quando a Matilda e os meus filhos morreram. - Aquelas recordações já não o deixavam tão amargurado. Passara já muito tempo E, além disso, agora tinha Sabrina e, possivelmente, voltaria a ter filhos. Era o grande desejo de ambos. - Fiquei tristíssimo quando soube que a esposa morrera, mas, depois disso, não quis ver ninguém. Fui visitá-lo uma vez e despachou-me. Fora um rude golpe para ele, e compreendi. - Sorriu e abanou a cabeça, pensando na sua própria juventude. - Nessa altura, eu não sentia uma grande simpatia por ele E o teu pai era um homem impecável. Simpático, inteligente e extremamente modesto - E ensinara essas mesmas virtudes à filha, mas John já vislumbrara isso nela antes de se casar. - Eu estava tão determinado a rivalizar com as minas dele, que me mantive totalmente distanciado do teu pai. Foi uma pena. Teria podido aprender muito com ele

- De qualquer modo, julgo que ele gostava de ti. - Sorriu, - És espantosamente parecido com ele

Sabrina já se apercebera daquela semelhança antes de se casar com John, mas, agora, tinha ocasião de o comprovar ao receber constantes mostras da sua paciência, do seu afeto e da sua ternura, qualidades aliadas a um espírito perspicaz. Ambos passavam bons momentos a visitar as minas um do outro. Além disso, Sabrina tentava ensinar ao marido o que sabia de vinicultura, mas ele não dispunha de tempo suficiente para isso. Gostava de provar os vinhos de Sabrina, mas cada vez havia menos garrafas. Caíra uma forte geada nos vinhedos e perdera mais de metade das cepas, embora outros vinicultores tivessem perdido mais. «Sorte maldita!», costumava ela exclamar, decepcionada, mas tinham muitas outras coisas para fazer, adequar a casa de Napa ao novo residente, mudar a orgânica das minas e abrir a Mansão Thurston e manter lá uns quantos criados para poderem lá ir quando lhe apetecesse.

Além disso, tinham de acostumar-se aos costumes um do outro, coisa que conseguiram muito facilmente, para grande surpresa de ambos. A única decepção, partilhada pelos dois, era o fato de, no verão seguinte, ainda não se encontrar nenhum bebê a caminho, apesar da freqüência e da intensidade com que faziam amor. Hannah chegou a questioná-la certo dia.

- Não andas a usar nada, pois não?

- Que queres dizer?

Sabrina pareceu algo confusa. Apesar do casamento com John, mantinha a mesma inocência, e só sabia aquilo que ele lhe ensinara. Não havia nem houvera ninguém que a pudesse instruir sobre aquelas questões. Talvez Amélia o tivesse podido fazer, mas há dois anos que Sabrina não a via, embora lhes tivesse enviado uma valiosa prenda de casamento. Naturalmente, Sabrina não fazia a mínima idéia do que Hannah estava a falar.

- Não estás a evitar a chegada dos bebês, pois não?

- É possível? - Sabrina pareceu surpreendida. Hannah franziu o sobrolho e concluiu que a ignorância da rapariga naquele aspecto era total, o que a deixou mais aliviada. Era uma rapariga decente, muito diferente da mãe. Ainda se recordava dos anéis de ouro que encontrara certo dia. - Não sabia... Pode-se...? - Sempre suspeitara que algumas mulheres o faziam... como as mulheres cuja profissão as expunha constantemente a isso, ou... - Que fazem elas? - Estava intrigada com aquilo que estava prestes a saber, embora não fizesse tenções de evitar a gravidez. Pelo contrário, tanto ela como John ansiavam por um filho.

- Algumas usam casca de olmo, como as mulheres daqui, mas há métodos mais requintados.

Sabrina fez uma careta de repulsa que provocou o riso de Hannah.

- As que têm possibilidades usam anéis de ouro. - Hannah fez uma pausa, perguntando-se se não estaria a falar demais, mas, caramba!, Sabrina já era uma mulher adulta. - Como a tua mãe.

- A minha mãe fez isso? Quando? - Perguntou Sabrina, surpreendida

- Antes de te ter. O teu pai pensava que ela tinha tanto desejo de ter um filho como ele, mas ele era muito mais velho do que ela. - A diferença de idades entre Sabrina e John era ainda maior. - Ela dizia-lhe que não sabia o que é que podia estar a correr mal. Estavam casados há mais de um ano quando os descobri na casa de banho... os malditos anéis... e entreguei-os ao teu pai. - Esboçou um sorriso malicioso. - Depois daquilo, apareceste num ápice. Já estava com enjôos quando voltaram para a cidade.

Aquela revelação deixou Sabrina preocupada. Tanto pela indiscrição que Hannah cometera contra a sua mãe, como pelo fato de esta ter tentado evitar ter filhos. De repente, o coração começou a bater mais depressa.

- E que disse o meu pai?

- Ficou que nem uma fera, mas nunca mais voltou a falar do assunto. Mostrou-se satisfeito logo que soube que vinhas a caminho. - Hannah parecia orgulhosa do que fizera e, por instantes, Sabrina, ao pensar na pobre mãe apanhada no seu ato pérfido, odiou a velhota por ter posto a sua progenitora em cheque. Não fora justo. Deveria ter permitido que a mãe tivesse sido mãe quando muito bem quisesse. Todavia, considerando que ela morrera pouco depois disso, talvez o destino tivesse escolhido bem... mas, vinte e três anos depois, a filha tinha pena dela. Sabrina fizera os vinte e dois nessa primavera.

- Que fez a minha mãe?

- Ficou abatida... irritou-se... - Hannah sabia que Camille nunca perdoara ao esposo, mas não referiu isso a Sabrina. - Era uma miúda meio amalucada, mas o teu pai casou-se com ela apesar de tudo. Ele tinha o direito de exigir que a sua esposa lhe desse filhos. Malditos anéis de ouro... O teu pai deitou-os fora e a tua mãe chorou que nem uma criança...

Sabrina ficou de coração destroçado... pobre rapariga... - à noite, contou tudo a John.

- Foi uma brutalidade por parte do meu pai. E acho que a Hannah agiu muito mal ao imiscuir-se no assunto. Não devia ter contado ao meu pai. Bastaria tê-la advertido e ela depois que se entendesse com o meu pai.

- Talvez andasse a enganá-lo.

- É o que a Hannah quis insinuar, mas não me atrevo sequer a pensar. De vez em quando, a Hannah diz coisas desagradáveis da minha mãe. Deve ter havido uma espécie de ciúmes entre elas. Quando a minha mãe chegou, há dezoito anos que a Hannah trabalhava para o meu pai. Julgo que isso teve uma certa influência.

- Fosse como fosse, ainda bem que ela encontrou esses anéis. - John sorriu e perguntou: O que a levou a contar-te isso?

Sabrina corou e sorriu-lhe.

- Perguntou-me se eu estava a usar alguma coisa para evitar... Nem sequer sabia que isso se podia fazer. - Parecia menos embaraçada. Não havia nada que ela não lhe pudesse contar. Era o seu melhor amigo. - Nunca me falaste disso.

- Pensei que fosse uma questão que não te interessasse.

John pareceu surpreendido por ela se mostrar tão curiosa em relação àquele assunto.

- Não, mas é interessante saber estas coisas. - John riu-se e deu-lhe um beliscão na bochecha.

- Minha inocentinha. Há mais alguma coisa que queiras saber?

- Há. - O semblante de Sabrina entristeceu-se por instantes. Mas receio que não tenhas a resposta, meu amor.

Sabia, naturalmente, que ele tivera dois filhos com a anterior esposa, por isso o problema não era dele. - Gostava de saber por que motivo é que ainda não engravidei?

- Só o tempo o dirá. Tens de ter paciência, meu amor. Só estamos casados há nove meses.

Sabrina olhou-o com ar triste.

- Nesta altura, já devia ter um bebê nos braços. - John sorriu.

- Bem, mas tens-me a mim. Não te basta de momento?

- Para sempre, meu amor.

John puxou-a para si e abraçou-a. Os seus lábios encontraram-se e Sabrina esqueceu tudo quanto Hannah lhe contara naquela tarde. Só voltaria a pensar nisso uma ou duas vezes durante os seis meses seguintes, mas o que esperava ainda tardava.

Ao chegar o mês de julho, quando levavam dezoito meses de casados e ela acabava de fazer vinte e três anos, Sabrina sentiu-se mal um dia, praticamente logo que se levantou. O calor era muito forte, e na tarde anterior estivera a trabalhar com John nas minas. Tiveram uma discussão - coisa rara entre eles - sobre a conveniência ou inconveniência de fundirem as minas Harte e Thurston. O conseqüente nervosismo e a alta temperatura quase não a haviam deixado dormir durante toda a noite.

- Sentes-te bem? - perguntou-lhe John quando ela se levantou da cama.

- Mais ou menos.

Ainda havia um clima frio entre eles que vinha da noite anterior. Então, Sabrina voltou-se para ele, mas antes de poder articular mais qualquer palavra, caiu redonda no chão. John saltou de imediato da cama e foi dar com ela inconsciente.

- Sabrina... Sabrina... querida... - Estava horrorizado. O espectro da temida gripe sempre o perseguira. Mandou chamar o médico imediatamente, mas o homem não descobriu nela nenhum sintoma preocupante.

- Provavelmente, está cansada. Talvez ande a trabalhar demasiado.

Nessa noite, John fez um sermão à esposa. Estava na altura de deixar o novo encarregado-geral sozinho. Ele próprio o supervisionaria, ela poderia entreter-se com os vinhedos, embora nos tempos que corriam não fosse uma tarefa muito divertida. A geada continuava a fazer estragos. Mas Sabrina parecia não lhe dar ouvidos. Estava sonolenta e não tardou a adormecer na cadeira de balanço. John levou-a ao colo para o quarto sem a acordar. Estava preocupado com o seu aspecto, e ainda mais ficou, no dia seguinte, quando Sabrina desmaiou de novo. Mas, desta vez, levou-a diretamente para Napa e reservou um camarote no primeiro barco a vapor com destino a São Francisco. Na manhã seguinte, Sabrina encontrava-se já no hospital e a ser observada por uma equipe de médicos, enquanto John passeava, impaciente, pelos corredores.

- Então? - perguntou ele ao primeiro homem que saiu da sala. O médico sorriu.

- Eu diria que para março, embora um dos meus colegas acredite que seja em fevereiro.

John ficou desconcertado, mas o sorriso enigmático que o médico esboçou pô-lo na pista do que estava a acontecer.

- Quer dizer que...

- Isso mesmo. Está grávida, meu amigo.

Os gritos de alegria do futuro pai deviam ouvir-se no outro extremo da cidade. Nesse mesmo dia, John comprou a Sabrina um anel com um enorme diamante e ofereceu-lho nessa noite quando voltaram para a Mansão Thurston. Haviam resolvido ter a criança ali, perto dos melhores médicos da cidade. Os médicos haviam-lhe dito que podiam ir para Napa até Dezembro. Ainda tinham muito tempo. O casal, delirante, passou a noite a falar do acontecimento, dos nomes para menino... para rapariga... da decoração do quarto do bebê e, de tempos a tempos, Sabrina abraçava John.

- Sou a mulher mais feliz do mundo! - Ele sorriu.

- Casada com o homem mais feliz do mundo.

No dia seguinte, quando chegaram a Napa, Hannah recebeu-os extasiada. Agora, Sabrina fazia exatamente aquilo que lhe diziam. Manteve-se afastada das minas quase todos os dias e deixou de andar a cavalo. Passou longas tardes de descanso na cama, à espera de John. E, ao chegar o outono, quando o bebê começou a dar as primeiras mostras da sua existência, ele apoiava a cabeça no ventre da esposa, esperando sentir os movimentos do bebê, mas ainda era muito cedo. Sabrina começou a senti-lo ao cair das primeiras folhas, precisamente uns dias antes de um dos seus homens bater ruidosamente à porta.

- Há fogo na mina!

Aquelas palavras, que romperam inesperadamente o silêncio da noite, foram ouvidas primeiro por Sabrina, que teve a suficiente presença de espírito para assomar à janela e perguntar:

-Em qual?

- Na sua!

Sabrina e John começaram a vestir-se apressadamente, mas ele pôs-lhe uma mão firme no braço.

- Tu ficas aqui, Sabrina. Não quero que faças nenhum disparate. Eu encarregar-me-ei de tudo.

- Tenho de ir. - Nunca ficara em casa em casos semelhantes. Poderia cuidar dos feridos ou, pelo menos, fazer ato de presença. Mas John foi firme.

- Não! Fica aqui! - E, sem lhe dizer mais nada, deu-lhe um beijo e deixou-a em casa, onde ela andou freneticamente de um lado para o outro durante seis horas. Na manhã seguinte, viu o céu cheio de fumo e, como ainda não tinha notícias do sucedido, não conseguiu agüentar mais tempo e meteu-se no automóvel. Dirigiu-se, então, a grande velocidade para as minas, enquanto Hannah lhe gritava do alpendre.

- Vais-te matar! Pensa no bebê!

Sabrina, porém, só pensava em John. Queria certificar-se de que ele estava bem. Além disso, as minas eram suas e não queria descartar a sua responsabilidade. Quando chegou, depararam-se-lhe por todo o lado os efeitos da destruição, mas não se via vivalma. Finalmente, apareceu o encarregado-geral e disse-lhe que o marido se encontrava numa das galerias a resgatar homens com uma equipe de salvamento que descera há mais de uma hora. Sabrina pôs-se, então, a olhar para o poço, com ar impaciente, à espera que saísse alguém, quando se ouviu uma explosão. Incapaz de agüentar mais tempo, precipitou-se para dentro da mina e viu que eles haviam ficado presos numa galeria. Saiu em busca de ajuda, os pulmões cheios de fumo, e uma dúzia de homens entraram de imediato na mina para os resgatar. Quando viu sair John, deixou-se cair de joelhos, dando graças a Deus, vencida pelo fumo. Levaram-na para o escritório, onde trabalhara durante mais de três anos, e o médico veio observá-la de imediato. Pareceu recuperada ao fim de alguns instantes, e John repreendeu-a. Pediu, então, a um homem que a levasse a casa. Nessa noite, quando chegou a casa, sujo e a tresandar a fumo, encontrou Hannah no alpendre. A velhota exibia um ar taciturno e, com os olhos banhados de lágrimas, deu-lhe a notícia. John precipitou-se pelas escadas acima e encontrou Sabrina na cama, desfeita em lágrimas, com ar pálido e de coração destroçado. Perdera o bebê uma hora antes.

- E sei que nunca mais poderei ter outro...

Ao vê-la completamente desesperada, John apertou-a contra si, enchendo-a de fuligem, mas nenhum dos dois se importou e, por instantes, as lágrimas dele misturaram-se com as dela.

- O médico disse-te isso? - Sabrina abanou a cabeça e soluçou. - Então, não penses nisso, meu amor. Teremos outro. - Olhou-a carinhosamente. E, da próxima vez, farás aquilo que te disser.

John não quis insistir nas suas observações. Sabrina já se sentia suficientemente culpada para que lhe recordassem a imprudência que cometera. Contudo, ao fim de dois meses voltou a ser a mesma de sempre, a rir das coisas que ele lhe dizia, perdendo o constante ar angustiado que a perseguia como uma dor torturante de que não conseguia escapar. Foi um Natal difícil para ambos, mas, em janeiro, John levou-a para Nova Iorque. Viram Amélia várias vezes e, de regresso, passaram por Chicago para visitar alguns amigos dele. Aquela viagem fez com que Sabrina recuperasse a felicidade que parecia ter perdido, o que deixou o marido muito mais aliviado. Todavia, estava preocupado com o fato de ela estar a demorar a engravidar outra vez. Só ao fim de dois anos a viu no mesmo estado: pálida, com ar doentio sem estar efetivamente doente. Há já algum tempo que haviam deixado de falar no assunto. Sabrina abandonara todas as esperanças. Há quatro anos que estavam casados, e foi precisamente no dia do aniversário do casamento que John reparou que havia algo anormal nela. Quando lhe ofereceu uma taça de champanhe, Sabrina ficou, subitamente, lívida e recusou-a.

- Deve ser de alguma coisa que comi... - Sabrina olhou para John e saiu precipitadamente da sala.

No dia seguinte, quando John opinou que o problema dela não tinha nada a ver com a comida, ela desatou a chorar e saiu da sala, fechando a porta com violência atrás de si. Nessa noite, quando regressou das minas, encontrou-a adormecida em cima da cama. Aqueles sintomas não lhe eram estranhos. Já a vira assim antes, mas não se lembrava quando. Então, daí a dias, percebeu, finalmente, o que se passava. E, quando todas as dúvidas se dissiparam da sua cabeça, disse-lhe que achava que ela estava grávida.

- Acho que estás enganado. - Sabrina tentou despachá-lo, continuando a ler os relatórios das minas que ele lhe trouxera. Ultimamente, andava estranhamente preocupada, apesar de John estar a dar bem conta de tudo e de as minas irem de vento em popa.

- Não creio. - John estava satisfeito consigo próprio e com ela. Estava certo de que havia boas razões para estar.

- Mas sinto-me muito bem. - Sabrina olhou-o, irritada, e saiu porta fora. Só nessa noite, quando se deitavam, é que ele voltou a tocar no assunto.

- Não tenhas medo, pequena. Porque não tiramos as dúvidas? Vou contigo.

Ela abanou a cabeça e os olhos inundaram-se-lhe de lágrimas.

- Não quero saber.

- Por que não? - John estreitou-a nos braços. Já sabia qual seria a resposta dela.

- Não quero voltar a alimentar ilusões. Que aconteceria se...? - balbuciou Sabrina, não conseguindo conter as lágrimas. - Oh, John...

- Vá lá, pequena. Temos de tirar as dúvidas. Desta vez, tudo correrá bem. - E esboçou um sorriso tranqüilizador

No dia seguinte, John levou-a ao hospital e viu confirmada a sua opinião sobre o estado de Sabrina. Escutaram, extasiados, a previsão do médico: o bebê nasceria em julho. Nem queriam acreditar na sua boa sorte. Desta vez, John quase não a deixou sair da cama, e Sabrina mostrou-se extremamente cooperante. Não queria voltar a correr nenhum risco, e ele tratava-a com todos os mimos. Voltaram para Napa em Janeiro, mas, em abril, mudaram-se para São Francisco para passar aí os últimos três meses. John queria-a perto dos médicos, e na Mansão Thurston ela tinha todas as comodidades, enquanto ele ia várias vezes por semana às minas. Comprou-lhe um Duesenberg e contratou um motorista para a conduzir pela cidade. Não queria que ela conduzisse. Sabrina seguia avidamente as notícias que chegavam da Europa, e ambos se perguntavam se a guerra não estaria prestes a rebentar. A situação parecia tensa, mas John acreditava que tudo voltaria à normalidade.

- E se a coisa piorar? - perguntou Sabrina, certa manhã de junho, olhando para o marido por cima do jornal.

Ele sorriu. Nessa altura, ela tinha o aspecto de um balão, e John adorava pôr a mão na barriga para sentir os pontapés do bebê. Seria um bebê vigoroso. Há trinta e dois anos, o seu filho Barnaby também era assim. Ainda se lembrava bastante bem- Mas sentia-se ainda mais exultante com este filho. Naquele momento, era impossível concentrar-se nas questões de política internacional que a esposa tentava abordar.

- E se estalar uma guerra?

- Não estalará. Pelo menos, para nós. Além disso - acrescentou, sorrindo, - se chegássemos a entrar nela, descobririas as vantagens de estares casada com um velho, meu amor. Já não tenho de me preocupar com essas coisas. Não me mobilizariam.

- Ótimo. Sorriu. Quero-te sempre aqui, comigo e com o nosso filho.

- Que te faz pensar que é um rapaz? - John tinha o mesmo pressentimento, que coincidia com o desejo de ambos, pelo menos, no que dizia respeito ao primeiro filho. Depois, prefeririam uma rapariga, se houvesse uma segunda oportunidade para isso. Apesar dos receios de Sabrina, a gravidez decorreu sem sobressaltos. Ainda era jovem. Acabava de completar vinte e seis anos, e apesar de se considerar velha, a sua idade permitiria um parto fácil. Pelo menos, era o que John esperava. Este queria que ela tivesse o bebê no hospital, mas Sabrina insistia em ter o bebê em casa. John ainda estava indeciso relativamente a essa questão. Olhou-a nos olhos e, com um sorriso nos lábios, repetiu a pergunta: - Por que um rapaz?

- Os pés grandes - respondeu Sabrina, apontando para a protuberância que sobressaía do grande balão em que o abdômen se transformara. - Às vezes, pergunto-me se ele terá a paciência suficiente para permanecer aqui dentro até ao fim do tempo. Está demonstrando uma impaciência incrível.

Todavia, quando a data prevista chegou e o vinte e um de julho passou sem novidade alguma, ficou provado que as suas previsões estavam erradas. Sabrina começou a impacientar-se.

- Porque será que está a atrasar-se tanto? - perguntou, uma noite, quando passeava com o marido pelos jardins da Mansão Thurston. - Já está com seis dias de atraso.

- -Talvez seja uma rapariga. As mulheres nunca chegam a horas a lado nenhum - gracejou John, dando-lhe uma palmadinha na mão com que ela se agarrava ao seu braço. Pouco depois, reparou que, naquela noite, o passo de Sabrina era mais lento e pesado do que de costume, e enquanto subiam lentamente a escada, pareceu mais ofegante do que nos outros dias. A preocupação de John aumentava à medida que a barriga de Sabrina crescia. «E se o bebê for demasiado grande», perguntara ao médico na semana anterior. «Então, fazemos-lhe uma cesariana, É uma operação muito simples hoje em dia». John esperava que a cesariana não fosse necessária, ainda que, segundo parecia, o bebê fosse enorme em comparação com a pequenez da futura mãe. Era estreita de ancas, o que fazia temer grandes dificuldades na hora do parto. Trinta e dois anos antes, Matilda passara um mau bocado, apesar de ser uma robusta e sã camponesa. Sabrina era muito mais frágil, mas ele já era mais velho e estava mais informado do que se passava à sua volta. O profundo amor que sentia pela esposa aos cinqüenta e quatro anos fazia-o ver motivos de preocupação em tudo.

- Queres que te vá buscar qualquer coisa para beber? - perguntou John a Sabrina, já a noite ia avançada, ao reparar que ela se contorcia na cama enquanto lia um livro. Estivera inquieta durante todo o dia. Fazia um calor terrível e o céu estava todo estrelado.

- Estou a ficar farta, meu amor - sussurrou Sabrina, com um sorriso nos lábios, apontando para o enorme balão que ocupava o lugar do que fora a sua cintura fina.

John tocou-lhe suavemente com a palma da mão e sentiu um vigoroso pontapé.

- Pelo menos, esta noite está em boa forma.

- É pena que não possa dizer o mesmo de mim. Doem-me as costas, doem-me as pernas, não consigo estar sentada nem deitada, custa-me a respirar.

John recordou ter ouvido algo parecido há muito tempo atrás, mas isso não impedia que agora, enquanto esfregava as costas a Sabrina pouco antes de apagar a luz, ela se sentisse tão angustiada como a primeira vez que passara por aquela experiência. Sabia que, naquela época, eram poucos os homens que partilhavam a cama com a esposa até tal ponto, mas não queria estar longe dela, e Sabrina dizia que não se importava de dormir com ele.

- Achas que as pessoas ficariam chocadas se nos vissem neste momento? - John tinha o braço à volta dela e Sabrina, a cabeça apoiada no peito dele, numa posição confortável.

- Que vissem. Sou feliz assim. E tu?

- Também.

Sabrina esboçou um sorriso e apagou a luz. Ao olhar para a janela, viu o céu todo estrelado. Estava uma noite magnífica... a do dia vinte e sete de julho de 1914. Mal adormeceu, de lado, virada para John, sentiu um forte pontapé na barriga, seguido de uma longa e dolorosa guinada. Abriu os olhos e olhou para John, que dormia profundamente e já ressonava. E aninhou-se ao lado dele. As costas doíam-lhe mais do que antes e, quando tentou mudar de posição, sentiu outra guinada. Uma hora depois, voltou a sentir as contrações que já não tinha há meses. Quando se sentou para conter a respiração, sentiu um súbito derrame entre as pernas e a cama ficou encharcada num instante. John acordou, acendeu a luz e, olhando-a com ar sonolento, perguntou:

- Entornaste alguma coisa? - Mas enquanto Sabrina abanava a cabeça, corada até à raiz dos cabelos, John deu-se conta do que acontecera e puxou-a suavemente para si. - Não te preocupes. Desta vez, vai tudo correr bem. - Levantou-se e voltou, pouco depois, com um monte de toalhas, chamou a criada e vestiu o roupão de seda azul. - Vou mandar a Mary mudar a cama. Entretanto, é melhor sentares-te aqui. Ajudou-a a sentar-se numa cadeira próxima e viu a sua cara de sofrimento quando voltaram as contrações. - Que sentes, amor?

Sabrina voltou a corar. Sentia-se mais segura ao lado de John do que de qualquer outra pessoa, inclusive o médico.

- Parecem cãibras. É normal? - Matilda nunca descrevera o que estava a sentir com tanto pormenor. Lembrou-se do bebê que Sabrina perdera, mas era demasiado tarde para que isso voltasse a acontecer.

- Não sei. Não tenho a certeza. O médico disse para o chamarmos quando as dores começassem.

- Achas que já chegou o momento?

Olhou para a cama encharcada e sorriu para a esposa.

- Eu diria que sim, mas não te preocupes. Pensa que dentro de horas, terás um bebê nos braços. - Era uma maravilhosa perspectiva que animou Sabrina.

Mary entrou para mudar as roupas da cama, e John foi chamar o médico. O médico ia mandar duas enfermeiras especialmente contratadas para a assistir. Além disso, recomendou a John que a mantivesse calma e deitada na cama, e não lhe desse nada de comer. Mas, ao fim de alguns minutos, ao entrar no quarto com uma xícara de chá na mão, encontrou-a sentada numa cadeira, com as mãos sobre a enorme barriga e os dentes cerrados.

- O médico está a caminho, querida. Agora tens de te deitar.

Agradeceu a Deus ir-se deitar, e mais agradecida ficou por ir ter o bebê em casa. Não quisera ir para o hospital porque, para ela, significava muito ter o bebê na Mansão Thurston. John acedera, mas estava preparado para a mandar para o hospital se fosse necessário. Quando, em menos de uma hora, as duas enfermeiras chegaram, disseram que tudo iria correr bem. Depois, fizeram sair John do quarto, o que deixou Sabrina a chorar.

- Não podes ficar? - Tinha plena confiança nele e queria-o ter a seu lado. Ao fim e ao cabo, era a sua casa, mas as duas enfermeiras não lhe deram ouvidos.

- Acho melhor não ficar.

John olhou-a carinhosamente antes de se retirar. Sabrina tinha o rosto coberto de suor e os olhos ligeiramente vítreos; o intervalo entre as contrações parecia ser cada vez menor. Saiu do quarto no momento em que Sabrina começava a gritar, e ficou à porta, a andar nervosamente de um lado para o outro. Pouco a pouco, os gritos foram deixando de se ouvir, mas voltaram a ouvir-se uma hora depois. Então, John, já impaciente, bateu à porta e a enfermeira mais velha repreendeu-o.

- Ela não deve ouvir barulho! - advertiu, com ar severo.

- Porque não? Ela não tem nenhum problema com os ouvidos.

Entretanto, Sabrina soltou outro grito, e ele, não conseguindo aguentar-se mais, irrompeu pelo quarto adentro e deu com ela deitada na cama com a enorme barriga à mostra, mas não se mostrou chocado. Acercou-se da cama e, antes que chegasse a contração seguinte, pegou-lhe na mão e falou-lhe com todo o carinho que sentia. As enfermeiras não sabiam que fazer, e o médico, que chegava naquele instante, ficou surpreendido por ver John no quarto com a sua paciente.

- Bem, que temos aqui? - O homem tentou dissimular a surpresa pela presença de John no quarto. Era evidente que queria ver aquele inoportuno marido dali para fora, mas Sabrina parecia estar colada a ele. Nem sequer se mostrava preocupada com o fato de só estar coberta por um fino lençol. Este saía frequentemente de cima dela quando estava a ter as contrações, mas ela não parecia dar por isso. Arquejava desesperadamente de cada vez que tal acontecia. Então, de repente, fez um movimento brusco para a frente e tentou sentar-se, contorcendo o rosto num esgar horrível. As enfermeiras empurraram-na de imediato contra os lençóis. O médico aproximou-se, puxou o lençol para trás e examinou as partes mais íntimas de Sabrina, enquanto ela chamava por John e soltava urros horríveis. De repente, o rosto de John Harte ficou coberto de suor. Tinha vontade de estreitar a esposa nos braços, mas não podia fazer nada. Sabrina continuava a contorcer-se em cima da cama. O médico fez-lhe então sinal de que queria falar com ele fora do quarto. Sabrina sentiu-se tomada de pânico ao ver que eles se iam embora, mas só depois de mais outra contração é que John se juntou ao médico no corredor e quis saber como é que o parto estava a correr.

O médico falou numa voz branda.

- Está tudo a correr bem, Mister Harte, mas tem de sair de ao pé dela. É um espetáculo demasiado penoso para um marido. Não posso permitir a sua presença, tanto por si como por ela. Tem de nos deixar trabalhar à vontade.

- Trabalhar? - John Harte olhou para o médico com ar irritado. - Mas é a minha esposa que está a fazer todo o trabalho! Além disso, ela prefere ter-me ao pé dela. Sou a única família que tem. Sou o melhor amigo... e ela é tudo para mim. Já estive em muitas herdades e sei como é que os bezerros e potros nascem.

O médico pareceu chocado.

- Trata-se da sua esposa, Mister Harte.

- Eu sei, doutor Snowe. E não quero que ela corra o menor perigo.

- Então, deixe-a nas nossas mãos. Creio que foi por isso que requisitou os nossos serviços.

John hesitou, sem saber o que fazer. Estava decidido a permanecer junto de Sabrina se fosse esse o seu desejo, mas retirar-se-ia se a sua presença a embaraçasse. John não se importava minimamente com o que as pessoas pudessem dizer, já era demasiado velho para se preocupar com esse tipo de coisas. Que se danasse o Dr. Snowe! Assim, olhando-o nos olhos, disse-lhe:

- Se ela me chamar, entrarei. Estou em minha casa, essa mulher é minha esposa e o meu filho está prestes a nascer.

O médico pareceu contrariado, mas limitou-se a franzir os lábios.

- Muito bem.

- Vai tudo correr bem?

- Eu diria que sim, mas creio que o nascimento é capaz ainda de demorar um pouco. A sua esposa tem de controlar as forças. Pode ser uma noite muito longa. - Olhou para o exterior e, ao ver o sol sobre o horizonte, retificou: - Bem... um dia longo. Não creio que o bebê nasça antes da hora do jantar. Deu uma olhadela ao relógio de bolso e sentiu-se alguma agitação no quarto

- Como é que sabe?

- Porque tenho experiência destas coisas. E já vi nascer muitos bebês. - «E você não», foram as palavras que ficaram por dizer.

- Mas ela parece que está quase..

- Não creio.

Quando o médico voltou a desaparecer no interior do quarto, John teve vontade de bater com a cabeça na parede. Durante as cinco horas seguintes, enquanto percorria a casa toda sem parar, teve a sensação de que ia dar em maluco. Acabou por tomar dois conhaques e um uísque, e teve vontade de dar um a Sabrina, mas isso teria provocado grande confusão. Finalmente, às duas da tarde, esgotado e desesperado, sentou-se na escada, debaixo da cúpula de vitrais, sem deixar de pensar em Sabrina. Entretanto, as enfermeiras haviam entrado e saído várias vezes do quarto, e o médico só o fizera uma vez para informá-lo de que estava tudo a correr bem, mas que o parto ainda se encontrava um pouco demorado. Finalmente, às quatro da tarde, John ouviu Sabrina dizer algo num tom agudo e soltar um grito lancinante de seguida. Como que movido por uma mola, correu para a porta do quarto e deteve-se aí. Escutou um gemido horrível e um grito abafado. Tinha vontade de bater à porta e chamar por Sabrina, mas não o fez com receio de assustá-la. Voltou a ouvir a voz da esposa, mas desta vez não foi um grito abafado. Sem conseguir suportar aquele martírio por mais tempo, entrou sorrateiramente no quarto. Ao princípio, ninguém o viu. As persianas estavam corridas e as cortinas não deixavam entrar a claridade do exterior. Havia uma luz brilhante em cima da mesinha-de-cabeceira e outra aos pés da cama, em cima de outra mesa. Sabrina jazia no leito, no meio de um calor sufocante. Tinha as pernas abertas e um lençol por cima. O rosto estava inundado de suor e os cabelos eram um verdadeiro emaranhado. De repente, sentiu nova contração e, revirando os olhos e agarrando-se desesperadamente ao lençol, soltou um grito agonizante. O médico levantou o lençol, e John pôde ver a aparição de uma cabecinha redonda. Ficou boquiaberto. Teve vontade de animá-la enquanto ela continuava a fazer força para expulsar o bebê. O sangue saía a jorros de uma ferida aberta entre as pernas, mas John nem sequer pensava nisso. O seu único pensamento era na cabecinha e na milagrosa mulher que a empurrava para fora. Sabrina voltou a gritar, e as enfermeiras incitaram-na a continuar a fazer força, enquanto o médico fazia girar o bebê sob o olhar choroso do pai. E, de repente, ali estava ele... um rapaz perfeito. Apesar de estar ensangüentado e molhado, Sabrina tomou-o nos braços, ao mesmo tempo que John, sem conseguir conter as lágrimas, os abraçava aos dois. O médico ficou surpreendido, mas, ao olhar para eles, sossegou. Havia sido um dos partos mais singulares que realizara. John e Sabrina talvez não fossem tão insensatos como pensara. O bebê fora concebido com amor, e agora nascia nos seus corações e nas suas mãos, enquanto ambos o beijavam carinhosamente. Eram cinco e catorze do dia 28 de Julho de 1914. Acabava de estalar a guerra na Europa.

Jonathan Thurston Harte foi batizado na velha Igreja de Santa Maria, na Califórnia Street, quando tinha seis meses de idade, em janeiro de 1915, quando a Europa se encontrava em plena guerra. Os pais ofereceram uma pequena recepção aos amigos na Mansão Thurston. Os Crockers, os Floods, os Tobins e os Devines estiveram presentes. Foi um grupo pequeno mas seleto que ergueu as taças e brindou por ele com champanhe. Nessa noite, o pai e a mãe repetiram o brinde na intimidade do quarto onde ele nascera.

- Que sorte temos tido, pequena!

- Sim, muitíssima

Sabrina possuía já tudo o que desejava na vida um marido que amava e um filho que adorava, as minas prosseguiam de vento em popa, embora ela continuasse a recusar fundi-las com as do marido, com o argumento de que elas tinham a sua própria identidade.

- Toda a gente sabe que estamos casados e que sou eu que as dirijo. Qual seria a diferença.

- Para mim, faria diferença. - Ela pertencia a John, mas as suas minas, não, e, por uma razão remota que ela própria não conseguia explicar, queria mantê-las assim, embora ele estivesse à frente delas e a realizar um trabalho excelente. Não tinha a menor queixa e, na realidade, com a chegada do pequeno Jon, perdera grande parte do interesse nas minas. Até as contínuas geadas nos vinhedos não lhe pareciam uma tragédia. Nada conseguia preocupá-la. Só pensava em coisas agradáveis, e não parava de dizer que Jon era parecido com John. Tinha os cabelos negros e os olhos cor de violeta, mas, de fato, não se parecia com nenhum dos dois. Hannah, pelo contrário, sabia muito bem com quem é que ele era parecido. Era a mesmíssima imagem de Camille, mas nunca quis dizê-lo a nenhum dos dois.

Permaneceram em Napa durante boa parte da primavera, e celebraram o vigésimo sétimo aniversário de Sabrina indo ao Grange Dance. Esse verão foi o mais maravilhoso de que ela se lembrava. John completara cinqüenta e cinco anos, e a única nota triste daqueles dias fora a chegada de uma carta com a notícia de que Lua da Primavera morrera num acidente, ao cair de uma ponte. Batera com a cabeça nas pedras e tivera morte imediata. A carta fora remetida pelo irmão e escrita por um qualquer conhecido seu que sabia escrever. Dizia que John devia saber da ocorrência, fato que deixou este comovido. Fora muito boa para ele. Quando Sabrina soube, também ficou triste. Seis anos antes, Lua da Primavera salvara-lhe a vida e evitara que perdesse a virgindade. Custava a acreditar que já se haviam passado seis anos. Pareciam ter passado a voar. Sabrina já não conseguia imaginar a vida sem John Harte. Era como se tivesse estado sempre a seu lado. As suas previsões haviam-se concretizado. No mesmo dia do nascimento de Jonathan, estalara a guerra na Europa, mas não havia indícios de que os Estados Unidos iriam entrar nela. Até mesmo depois de Jonathan completar os dois anos, não havia motivos para que os Estados Unidos viessem a envolver-se, pelo menos, era isso que os políticos diziam, mas Sabrina não era da mesma opinião.

- Como é possível que não entremos nela, John? Os aliados estão a morrer aos milhares. Achas que não acabaremos por lhes dar uma ajuda? O problema é que, se o fizermos, dirão que somos loucos e, se não o fizermos, ter-nos-ão pelas criaturas mais insensíveis que há ao cimo da Terra. Não sei qual será a melhor opção.

- Preocupas-te demasiado com a política. É o que sucede às mulheres que estão acostumadas a trabalhar. Quando param, não sabem o que fazer com elas próprias. - John adorava gracejar com o seu espírito inquieto.

Mas o certo era que o pequeno Jon lhe dava muito que fazer, tanto que, embora desejasse ardentemente ir até Nova Iorque, decidiu não acompanhar John. Este tinha negócios em perspectiva para os dois em Detroit e alguns investimentos para tratar em Nova Iorque.

- Poderíamos regressar pelo Sul, se quisesses. - John tentava convencê-la porque detestava viajar sozinho. Adorava a sua companhia, e passavam a maior parte do tempo juntos.

- Quanto tempo estaríamos fora?

John pensou durante alguns instantes

- Provavelmente, três semanas. Talvez quatro. Perderiam duas semanas só em ir e vir de um extremo ao outro do país. Sabrina abanou a cabeça.

- Não é possível. Achas que poderíamos levar o Jon? - John abanou a cabeça.

- Imaginas o que seria a nossa viagem com ele no comboio durante duas semanas.

Sabrina soltou um gemido e desataram a rir.

- Sim, imagino. Só não consigo imaginar quando é que voltaria a recuperar a minha sanidade mental. - Jon tinha dois anos e mexia em tudo o que via. Era uma criança sã e muito viva. Ainda assim, Sabrina tinha pena de não ter engravidado outra vez. Tentara desde que ele nascera, mas não conseguira. Todavia, essa possibilidade parecia-lhe menos importante à medida que passava o tempo e o pequeno ia crescendo. Por uma razão qualquer, que o médico desconhecia, tinha certa dificuldade em engravidar. Mas ambos eram felizes com o seu filho único. - Detesto ter de separar-me de ti durante tanto tempo, querido.

- Também eu. - Não parecia satisfeito. - De certeza que não queres deixar o Jon aqui com a Hannah?

- Não, não é possível. É demasiado traquinas para a pobre velhota - E não havia mais ninguém na Mansão Thurston a quem pudessem confiar tranquilamente o filho. - Desta vez, não posso acompanhar-te.

- Tudo bem.

John continuou a fazer os preparativos para a viagem e, a nove de setembro, Sabrina acompanhou-o à estação na companhia do pequeno Jon; deram-lhe um beijo de despedida e ele disse-lhes adeus com a mão da carruagem privada que reservara para a viagem. John dirigiu-se para o Este, enquanto Jon e Sabrina voltavam para a Mansão Thurston para esperarem aí pelo seu regresso. Tinha alguns negócios a tratar no banco e queria comprar cortinas, estofos e tapetes novos Isso iria mantê-la ocupada durante a ausência do marido, mas, desde o momento em que ele partira que se sentia terrivelmente só. Vagueou pela enorme casa, ansiosa por receber notícias, e ainda mais ansiosa pelo regresso dele, mas ainda faltavam várias semanas para que John regressasse. No dia seguinte, depois de brincar um bocado com o pequeno Jon, foi comprar tecidos que precisava para a decoração da casa. Ao sair de uma loja, perguntou-se onde é que John se encontraria naquele momento. Então, ao passar por um ardina, lançou o olhar para o título do jornal que ele exibia:

 

           DESCARRILAMENTO NA

           CENTRAL PACIFIC LINE

           CENTENAS DE MORTOS

 

Perplexa, abriu caminho por entre a multidão para ver o que o jornal dizia, arrancou-o praticamente da mão do rapaz e deu-lhe um dólar. Sentia o corpo todo a tremer. Não havia nomes, nem lista de vítimas, mas era o comboio em que viajava o marido. O descarrilamento ocorrera em Echo Canyon, a este de Ogden, no Utah. Num estado de total aturdimento, Sabrina começou a andar e deu consigo no banco, sem saber como lá chegara. Parou no vestíbulo, paralisada de medo, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces, até que alguém a reconheceu.

- Mistress Harte... em que posso ser-lhe útil?... - Conduziram-na até ao escritório do diretor, e Sabrina, sem dizer palavra e com o terror estampado no rosto, mostrou-lhe o jornal.

- John, o meu marido, partiu nesse comboio ontem. Há algum modo de saber... - Não se atreveu a terminar a frase. Era possível que John tivesse saído ileso, como também era possível que se encontrasse entre as vítimas. Nesse caso, partiria imediatamente para o lugar onde ele se encontrasse. Jonathan teria de ficar com alguém até ela regressar. Tratava-se de um caso de força maior. Então, olhou com ar suplicante para o diretor do banco. - Não consegue saber?

O homem fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- Telegrafaremos para a nossa sucursal de Ogden para que nos consiga essa informação.

O comboio ficara detido aí, pois os sérios danos que sofrera não lhe permitiam prosseguir viagem. Nessa tarde, sairia outro comboio de São Francisco para recolher os sobreviventes do sinistro.

- E se contatássemos a companhia de caminho-de-ferro? Eles devem ter uma lista das vítimas.

O diretor fez novo sinal afirmativo com a cabeça.

- Faremos tudo o que pudermos, Mistress Harte. Onde poderei encontrá-la.

Aguardarei por notícias em minha casa. Ou prefere que fique aqui?

- Não Mandarei um dos meus homens levá-la a casa e, logo que saiba mais qualquer coisa, comunicar-lhe-ei de imediato.

O homem mostrava-se extremamente abalado. Os Harte eram os seus melhores clientes, como o fora antes Jeremiah Thurston, e só esperava que Mr. Harte tivesse saído ileso do descarrilamento. Ajudou Sabrina a entrar no automóvel do vice-diretor, disse ao motorista que a conduzisse a casa e voltou para o escritório a fim de dar várias ordens urgentes. Telegrafou para a Central Pacific com pedido de resposta imediata, mandou um mensageiro ao chefe da linha de caminho-de-ferro, e aguardou no banco por notícias. E não foram boas notícias que chegaram. John Harte constava da lista de vítimas. Morrera numa das seis carruagens que descarrilaram e caíram numa ravina de várias centenas de metros de profundidade. Só poucas horas antes o seu cadáver fora resgatado do canyon, não se sabendo, ao princípio, qual era a sua identidade. Mas agora já se sabia de quem se tratava, e a sucursal do banco enviou também as suas mais sentidas condolências para a família enlutada. Ao fim da tarde, o diretor do banco, extremamente nervoso, dirigiu-se à Mansão Thurston, atravessou os portões e bateu à porta. Uma criada abriu a porta, e ele pediu para ver Mrs Harte, se possível. Sabrina veio logo, mal lhe disseram quem era, deixando Jon com uma das criadas. No seu semblante vislumbrava-se alguma esperança. Seguramente já sabiam que John andava a ajudar toda a gente. Estava tão acostumado aos desastres que ocorriam nas minas desde há vários anos, que se comportava maravilhosamente em ocasiões como aquela. Do alto da grande escadaria, Sabrina olhou para baixo, com um sorriso nervoso nos lábios, mas a expressão do rosto do banqueiro deixou-a especada no sítio onde se encontrava.

- John?... - sussurrou Sabrina sob a grande cúpula. – Ele... ele está bem, não está? - Desceu mais uns degraus e parou de novo quando o homem avançou para ela para lhe dar a mão, enquanto abanava a cabeça. - Ele não está?...

O banqueiro quisera dizer-lhe de outro modo; pelo menos, quando estivesse sentada, para que não desmaiasse nos seus braços. Por nada deste mundo queria ser ele a dar-lhe a notícia, mas não tinha alternativa. A tarefa coubera-lhe a ele, e olhou para ela com um ar angustiado. Tais coisas não deveriam acontecer a pessoas como aquelas, que se amavam tanto, que levavam umas vidas tão honestas e que, ao fim de tanto tempo, haviam descoberto que se amavam.

- Sinto muito, Mistress Harte. Acabamos de receber a notícia... - disse, suspirando profundamente. Não iria ser fácil para ela. - Morreu no descarrilamento. Recuperaram o corpo... - Custava-lhe dizer aquilo, mas agora já não podia voltar atrás - ...do fundo de uma ravina, precisamente esta tarde.

Sabrina deixou escapar um gemido gutural, como o que exalara no momento de dar à luz Jon, mas muito pior do que aquele, e não anunciava a chegada de um novo ser. John deixara de existir. Levantou os olhos para o diretor do banco; neles havia mais dor do que a que ele tivera ocasião de ver alguma vez na vida. Não sabia que mais dizer-lhe, e assim ficaram, imóveis, na grande escadaria da Mansão Thurston, debaixo da cúpula mandada construir pelo pai de Sabrina e reconstruída por ela depois da sua destruição, em 1906. Mas nenhum dos dois a via agora. Só viam os olhos um do outro. Os dela encheram-se de lágrimas. Sabrina acompanhou-o, então, até à porta. Não gritou, não chorou, não desmaiou, nem deu o menor sinal de histerismo. Limitou-se a conduzir o homem até à porta principal, com ar de quem sentia que o mundo chegara ao fim. E, para Sabrina, chegara.

 

                             OS ÚLTIMOS ANOS DE SABRINA

Não havia nenhum modo de explicar ao pequeno Jon Harte, de dois anos, que o pai morrera. Mal falava, e não existia qualquer maneira de o fazer compreender. Mas ninguém o ignorou; e, quando o corpo de John voltou para a cidade, realizou-se um serviço religioso na velha Igreja de Santa Maria, e o funeral em Napa, onde foi sepultado. Sabrina sentia-se como se tivesse morrido ao lado de John. Mandara abrir o caixão quando o corpo chegou, e ficou sentada, na biblioteca da Mansão Thurston, a olhar para ele, para as feridas e o pescoço partido, tirando-lhe com suavidade a areia que ainda havia no rosto, à espera que despertasse de um momento para o outro, para lhe dizer que tudo não passava de um pesadelo. Mas John Harte não se mexeu. A sua vida com ele chegara ao fim. Estavam casados há sete anos, e não conseguia imaginar como seria a sua vida dali para a frente. Nada na sua existência a deixara tão destroçada como aquela desgraça. Passava horas sentada no alpendre, de olhar perdido no espaço, depois, aparecia Hannah e, dando-lhe uma palmadinha no braço, recordava-lhe alguma tarefa que tinha de realizar ou que Jonathan reclamava a sua presença. Era como se a morte de John lhe tivesse esvaziado a cabeça. Não sentia nada, não via nada, não dizia nada a ninguém, e praticamente não fazia uma carícia ao filho. Já lhe tinham dito várias vezes que havia muitas coisas que precisavam da sua atenção em ambas as minas, mas não conseguia decidir-se a ir a nenhuma delas, nem às suas nem às dele. Por outro lado, ainda não compreendia por que razão é que se opusera tão obstinadamente à fusão de ambas as minas. Por que tanta teimosia? Já não se lembrava, nem mostrava o menor desejo de continuar a cuidar dos negócios.

- Mistress Harte, tem de vir - rogara-lhe o encarregado-geral uma meia dúzia de vezes, ao passar pela casa de Santa Helena. Ela dizia-lhe que sim com a cabeça, mas não ia no dia seguinte, nem no outro a seguir, nem em nenhum dos outros dias. E assim se passou um mês. Finalmente, já desesperados, os encarregados das minas foram ter com ela e, desta vez, ela sabia que não podia continuar a demitir-se das suas responsabilidades. Meteu-se no automóvel de John e, juntamente com eles, dirigiu-se primeiro às suas próprias minas. Ao entrar no escritório em que trabalhara durante tantos anos, teve a impressão de que retrocedera no tempo. Lembrou-se do primeiro dia em que ali fora depois da morte do pai, da enérgica alocução que dirigira aos seus homens através do megafone, do abandono da maior parte deles... da cena horrível com Dan... De repente, sentiu-se ainda mais só do que naqueles tempos, como se a dor fosse de ontem e não de uma década atrás. Olhou para os dois homens e desfez-se num mar de lágrimas. O encarregado, algo embaraçado, tomou-a nos braços.

- Mistress Harte... sei a dor que sente por voltar aqui... mas...

- Não, não. - Abanou a cabeça, olhando-o com ar desesperado. - Não compreende. Não consigo voltar a pegar nisto... não consigo... Já não tenho a força de outrora... - O homem não compreendeu. Então, suspirou e tentou recuperar o domínio sobre si mesma. Finalmente, sentou-se na cadeira que fora ocupada tantas vezes por John quando trabalhava ali. - Não estou em condições de voltar a dirigir as minas. Agora tenho um filho em quem pensar.

Os dois encarregados sabiam que ela já o conseguira fazer, o que fora uma verdadeira proeza, e que realizara um trabalho excelente, mas agora nenhum dos dois acreditava que ela voltasse a repetir a façanha.

- Não pretendemos que faça tal coisa, Mistress Harte. - Sabrina pareceu surpreendida e, por sua vez, aliviada, ao ouvir aquelas palavras. Então, deu-se conta de que aquilo era uma das coisas que mais temera no mês anterior: ter de enfrentar, completamente só, o lugar e o ambiente em que John trabalhara com tanto afinco. As minas estariam mais vazias sem ele. Não conseguiu suportar a idéia e levantou-se, tinha um nó na garganta.

- Quero que continuem a dirigir as minas da mesma forma que as têm dirigido até agora. Reunir-me-ei convosco regularmente para saber como é que as coisas estão a ir. E... - Acrescentou, para surpresa de ambos: - Quero fundir todas as nossas minas. Sabia que deveria ter feito isso em vida de John, e sentia-se culpada por se ter oposto aos seus desejos durante tanto tempo, como se não tivesse confiança nele. - Ao fim e ao cabo, toda a gente sabe que as duas funcionam como uma. Quero que se chamem Minas Thurston-Harte.

- Fique descansada.

Todos sabiam que o processo de legalização daquele projeto levaria algum tempo, por isso iam pô-lo já em marcha. Sabrina mostrou, então, um ligeiro indício da mulher que fora ao fazer uma série de anotações em duas folhas de memorando e entregou uma a cada um dos homens.

- Além disto, quero as minas dirigidas como até agora. Continuem tudo o que o meu marido fez. Que nada mude em nenhuma das minas.

Durante os meses seguintes, porém, Sabrina descobriu que havia problemas em ambas as minas, especialmente na dele. Os lucros das Minas Harte haviam baixado muito durante os últimos anos, mas John nunca se queixara disso, e demonstrara uma grande honestidade ao não cobrir nunca os seus prejuízos com os lucros das Minas Thurston. Sabrina tinha mais uma razão para estar agradecida ao seu defunto esposo, e sentiu uma mágoa imensa ao pensar nos apuros por que ele passara sozinho, sem nunca lhe dizer nada. Mas as preocupações sobre o que acontecera nas Minas Harte ficaram radicalmente alteradas quando, em 1917, os Estados Unidos entraram na Grande Guerra. De repente, a conseqüente necessidade de armas e munições originou uma enorme procura de cinábrio, isto é, sulfureto de mercúrio, e os lucros de ambas as minas aumentaram vertiginosamente. Nessa altura, já eram conhecidas como Minas Thurston-Harte, e Sabrina começou a fazer dinheiro a rodos, coisa a que não deu muita importância. A sua única preocupação, além de não ter superado ainda a dor pela perda do homem que tanto amara, era o seu filho Jon. Então, como que querendo encontrar uma parte perdida do esposo, começou a trabalhar de novo nas minas vários dias por semana. Isso afastaria da sua mente os pensamentos angustiantes que ainda a atormentavam, e mantê-la-ia ocupada durante as horas em que Jon estivesse na escola. Mas o aumento crescente dos pedidos que as minas iam recebendo obrigou-a a passar cada vez mais tempo nelas, ao ponto de começar a trabalhar com a mesma intensidade de outros tempos. Tinha de ficar no escritório até altas horas da noite e, muitas vezes, quando regressava a casa ao fim do dia, excessivamente cansada para pensar em comer ou fazer qualquer outra coisa, era já demasiado tarde para ver o filho.

Agora, raras vezes ia a São Francisco. A Mansão Thurston voltava a estar fechada. De vez em quando, ia lá passar uns dias, com Jon, desembaraçando-se sozinha como fizera depois da morte do pai. Passaram aí um Natal, mas a lembrança das horas felizes vividas com John e da noite em que nascera o seu filho foi de mais para Sabrina. Sabia como o seu pai sentira a morte da mãe, o que a ajudava a compreender a sua própria dor, tendo em conta que ela vivera muito mais tempo com John do que Jeremiah com Camille. Não conseguindo agüentar mais, voltou novamente para Napa para se sumir nas minas durante todo o dia

E, com o tempo, foi-se dando conta de que Jon detestava essa sua forma de viver

- Não fazes mais do que trabalhar nessas malditas minas e nunca estás ao pé de mim!

Sabrina sabia que Jon não gostava da constante atenção que dispensava aos negócios. Mas encontravam-se em 1926, e as minas passavam novamente por alguns problemas, desta vez as duas. Havia menos procura de cinábrio, e tivera de despedir muitos homens e encerrar várias galerias. Por outro lado, havia sete anos que a chamada «lei seca» estava em vigor, o que transformara os seus vinhedos em algo inútil. Tudo isso motivou que, pela primeira vez na vida, começasse a preocupar-se com a sua situação econômica, sobretudo tendo em vista que não queria privar Jon de nada. O rapaz só tinha doze anos e tencionava dar-lhe tudo o que ela tivera Em certos aspectos, era uma criança difícil. Não só se mostrava ressentido pelo duro trabalho, próprio de um homem, a que a mãe se entregava durante longas horas, mas também pelo fato de o pai ter morrido. Parecia culpar a mãe por isso

- A culpa não é minha, Jon! - dissera-lhe Sabrina, milhares de vezes, mas o problema era que, de certo modo, se sentia culpada pela morte de John, como se a sua obrigação devesse ter sido a de o acompanhar e morrer com ele. Todavia, se ela também tivesse morrido, que seria feito de Jon?

- Todos os meus amigos acham que és esquisita. Trabalhas muito mais do que os pais deles.

- Não posso evitar. Sou responsável por ti, meu filho, e vivemos tempos muito difíceis.

Em 1928, com o coração completamente destroçado, Sabrina vendeu a mina de John e investiu tudo o que recebeu da venda na bolsa de valores imobiliários, esperando que um dia as ações pudessem render uma fortuna para Jon. Mas aquele sonho transformou-se num pesadelo horrível no dia 29 de outubro de 1929, a tristemente célebre «Terça-Feira Negra». Perdeu tudo o que ganhara com a venda da mina de John. Sentia-se culpada do mau emprego que dera àquele dinheiro. Três anos depois, teve de enfrentar a necessidade de mandar John para a universidade. Enquanto não dormia a pensar na sua péssima situação econômica que o filho ainda desconhecia, Jon não parava de falar em ingressar em Princeton ou Harvard, em viajar para a Europa e no carro que queria que a mãe lhe comprasse antes de entrar para a universidade. Sem se dar conta do momento difícil por que ela estava a passar, não deixava de lhe fazer constantes exigências. Sempre fora um rapaz exigente e Sabrina permitira-lhe que o fosse dando-lhe tudo quanto podia, como se com isso conseguisse minorar o remorso que sentia pela morte de John, quando o seu filho só tinha dois anos, e pelo fato de trabalhar tão arduamente, privando-o da sua presença. Mas satisfazer todas as vontades de Jon não fez com que John voltasse à vida, só tornou a existência de Sabrina terrivelmente difícil no momento de escolher a universidade para o filho e, pior ainda, quando este foi aceite em Harvard, Princeton e Yale.

- Bem - disse Sabrina, contendo a respiração e tentando aparentar tranqüilidade. Ao longo dos dois anos e meio, desde que começara a Depressão, aprendera a dissimular aquele tipo de situações. - Para onde queres ir?

Como poderia ela pagar as propinas? Entretanto, as minas não lhe rendiam praticamente nada. Restava-lhe o recurso de vender a casa de Santa Helena. Haviam-se mudado para São Francisco quando Jon começara a preparar-se para a entrada na universidade, e obrigara Hannah a acompanhá-los, praticamente contra sua vontade, mas a velhota já regressara para a casa de Napa. Ali era mais feliz, e Sabrina lamentava ter de deixá-la sem o seu alojamento preferido, mas não lhe restava outra opção. Teria de vender a casa de Napa para poder mandar Jon para a universidade quando chegasse o outono.

- Talvez para Harvard, mamã - disse-lhe Jon, tão satisfeito consigo próprio que a fez sorrir.

- Estás satisfeito contigo próprio, não estás? - Fosse como fosse, Jon era bom rapaz, e, se era mimado, a culpa era só dela. Sabrina tinha consciência disso. - Na realidade, também estou satisfeita contigo. Até agora, as tuas notas têm sido excelentes. Mereces entrar numa dessas universidades. Achas que Harvard é a mais adequada para ti?

- Acho que sim. - Jon franziu o sobrolho. Quase se decidira por Yale, mas achava New Haven tão triste como Santa Helena. Queria mais atividade. Toda a gente dizia que Boston era uma cidade fabulosa, e Cambridge não era mais do que um prolongamento dela. Estava tão interessado pela vida social como pelas oportunidades que lhe oferecia o ambiente universitário, coisa que não era surpreendente ou despropositado num rapaz de dezoito anos. Despropositado fora o pedido que fizera à mãe antes de acabar a escola secundária nesse ano. Tinha quase dezoito anos, e Sabrina quarenta e quatro, mas, no modo de ver de Jon, a mãe poderia ter mais de um século. Muitas vezes, Sabrina parecia ausente, distraída, por razões que não partilhava com ele.

- Não te importas que compre um carro e o mande para o Este no comboio, pois não, mamã? Em Cambridge, vou precisar dele a toda a hora - afirmou Jon, com um sorriso angelical. Não lhe passava pela cabeça que a mãe dissesse não a algum dos seus caprichos. Sabrina raramente o fazia, mesmo que tivesse de se privar de alguma coisa. Mas, desta vez, nem sequer podia pensar em comprar outro carro. Ainda não vendera a casa de Santa Helena e começava a ficar desesperada. As propinas para o ano seguinte tinham de ser pagas em princípios de julho e, se não vendesse a casa de Napa, não fazia idéia de como poderia resolver o problema. - Creio que o melhor seria um pequeno Model A com assento suplementar. É o carro ideal, e se estiver muito frio... - Sabrina levantou uma mão e esboçou um olhar de pânico que Jon nunca vislumbrara nos seus olhos. Ele só pensava nele. A mãe, pelo contrário, só estava preocupada com as suas reservas de dinheiro que eram cada vez mais escassas. Mas agora eram praticamente estranhos. Sabrina tolerara-lhe demasiadas coisas.

- Não creio que neste momento seja uma boa idéia comprar um carro, Jon.

- Porque não? - Olhou-a, surpreendido. - Preciso de um carro.

Havia algo dentro dela que não lhe permitia contar a verdade. Provavelmente, o orgulho.

- Ao princípio, podes passar muito bem sem um carro, Jon. Por amor de Deus, só vais fazer os dezoito em julho, e não creio que todos os teus colegas cheguem à universidade ao volante de um Model A novinho em folha. - O tom seco com que ela lhe disse tudo isto deixou Jon horrorizado.

- Aposto que a maioria deles aparecerá com um carro de uma marca qualquer. Meu Deus, como é que queres que eu lá apareça?

- No primeiro período, poderias ir de bicicleta - disse Sabrina, engolindo em seco, ou a pé. Falaremos do carro no próximo ano.

Talvez então as coisas estivessem a correr melhor nas minas, embora ela não vislumbrasse a perspectiva de as coisas mudarem. No tocante aos vinhedos, há treze anos que estavam abandonados. Já perdera a esperança de os renovar, e estava a pensar vender os terrenos. A única coisa que sabia que nunca venderia seria a Mansão Thurston, e também decidira desfazer-se do menor número de terrenos possível. Sabia o que aquelas propriedades haviam significado para o pai quando construíra o seu império; como tal, queria manter o maior número possível para, um dia, deixar a Jon.

- Não compreendo a tua maneira de pensar - disse o rapaz, andando de um lado para o outro, visivelmente indignado. - Já me imaginaste em cima de uma bicicleta? Todos se ririam de mim!

- Isso é ridículo. - Sabrina sentia-se tentada a dizer-lhe qual era exatamente a sua situação econômica, mas sabia que nunca o faria. Não queria assustá-lo, e era demasiado orgulhosa. - Jon, metade da população do país encontra-se sem trabalho. As pessoas poupam o máximo que podem. Ninguém ficará chocado por querermos fazer algumas economias. Chocadas ficariam se te vissem chegar num carro novinho em folha. A depressão econômica faz-se sentir por todo o lado. Suponho que não queres parecer um patego emproado do Oeste.

- Tu é que estás a ser ridícula. Que nos importa essa maldita depressão? Não nos afetou, pois não? Por que preocuparmo-nos com isso?

Sabrina compreendeu que se equivocara ao oferecer-lhe uma imagem tão cor-de-rosa da vida. De certo modo, isso tornara-o irrealista e insensível. Ela era a única responsável por Jon não compreender os apuros por que a mãe estava a passar. Como poderia ele dar-se conta disso. Ela nunca lhe explicara nada E continuava sem querer dizer-lhe nada sobre a situação difícil em que se encontrava. Ocultara durante demasiado tempo os seus problemas para os revelar agora.

- Não deves ceder a atitudes irresponsáveis, Jon. Temos de ter cuidado.

Jon interrompeu-a

- Não estou a cometer nenhum ato irresponsável, bolas! A única coisa que quero é um carro.

Jon ainda estava amuado quando, no dia da sua partida para a universidade, a mãe o acompanhou até ao comboio para Boston. E, como noutras ocasiões semelhantes desde que John morrera, Sabrina sentiu um nó na garganta ao ver o filho subir para o comboio. Tivera vontade de o acompanhar, mas havia demasiado que fazer nas minas. Entretanto, conseguira vender a casa de Napa na altura certa. O dinheiro chegaria para pagar os estudos e a estada de Jon em Harvard, e só rezava para que as coisas melhorassem a tempo de poder continuar a permitir-se aqueles gastos. A venda da casa de Napa destroçara-lhe o coração. Fora propriedade da família de Jeremiah durante sessenta anos, e era a casa que ele construíra para a noiva que morrera de gripe, e para onde levara Camille depois de se casar com ela, além de ser a casa onde Sabrina nascera. Jonathan não considerou que tivessem perdido grande coisa com isso, pois achava Napa um lugar aborrecido. Entretanto, Hannah morrera dois anos antes, o que evitou que a velhota visse a casa que tanto amava passar para outras mãos. Hannah nunca tivera grande inclinação pela Mansão Thurston. Preferia a casa de Santa Helena, onde agora viviam estranhos, mas Sabrina tinha, pelo menos, o consolo de que Jon não se importava com isso. Queria dar-lhe a melhor educação possível, com ou sem depressão econômica. Por isso, ficou furiosa quando viu as primeiras notas. Estava com negativas a tudo e, segundo parecia, ia raramente às aulas, o que fez com que o repreendesse seriamente quando ele lhe telefonou no Dia de Ação de Graças. Amélia convidara-o para ir a Nova Iorque, mas ele preferira ficar em Cambridge com os amigos.

Amélia tinha então oitenta e seis anos, e embora Sabrina ainda a achasse uma pessoa elegante e extraordinária, Jonathan não conseguia suportá-la.

- É tão velha, mamã.

E era-o, inegavelmente, mas havia nela algo mais do que velhice. Sabrina lamentava que Jon fosse demasiado jovem para ver isso. Sentia alguma amargura pelo fato de ele não a apreciar, mas não valia a pena discutir com ele. Agora tinha, isso sim, de o repreender por causa das notas.

- Se não levares os estudos mais a sério, ver-me-ei obrigada a anular-te a matrícula. - O que teria sido um alívio para ela, mas a intenção era mais a de o assustar. Ele ainda lhe deveria querer falar do Model A, mas, depois do sucedido, não acreditava que o fizesse. - É melhor que comeces a ir às aulas. Caso contrário, terás de voltar e ir trabalhar para as minas comigo. - Para ele, aquilo era pior do que a morte. Detestava tudo o que estivesse relacionado com as minas, exceto o dinheiro que lhe proporcionavam e que lhe permitiam ter as coisas que o faziam sentir seguro e importante, como o carro que queria a toda a força ter. Contudo, desta vez, não podia ajudá-lo. Queria o carro para ser igual aos colegas. Afinal de contas, não tinha pai. Mas durante mais quanto tempo é que ela seria obrigada a sentir-se culpada por isso? Esse sentimento acompanhara-a durante anos, mas não fora capaz de lhe trazer o marido de volta. Espero que leves os estudos mais a sério e que as próximas notas sejam melhores. Veria as notas quando Jon viesse passar as férias de Natal em casa. A viagem implicaria um importante gasto, mas Sabrina não queria ficar sozinha no Natal e perder a oportunidade de ver o filho.

Não havia nada mais na sua vida a não ser Jonathan e a deprimente realidade de não conseguir agüentar as minas durante muito mais tempo. Se recebesse uma proposta de venda para os terrenos dos vinhedos, sabia que os venderia, embora não parecesse haver ninguém interessado neles. Eram inúteis. Durante algum tempo, dedicara-se à produção de ameixas, nozes, maçãs e uvas de mesa, mas não obtivera o menor lucro. Sempre tivera o sonho de produzir vinhos requintados, sonho esse que nunca se materializara, e perguntava-se se conseguiria tirar uma só gota de vinho das cepas.

Em dezembro de 1932, quando voltou a ver Jon, ficou surpreendida ao comprovar que durante os últimos meses passados em Harvard se transformara num homem. Parecia já uma pessoa adulta e demonstrava uma surpreendente maturidade ao falar. Todos os seus gostos eram os de um adulto, inclusive o que sentia por raparigas. Sabrina reparou que, quando saía com os amigos, voltava quase sempre de madrugada, mas ainda havia nele atitudes que não haviam mudado. Continuava à espera que a mãe lhe satisfizesse todos os seus caprichos e necessidades, e a única coisa que ele pagava eram as suas meninas

Conseguira melhorar as notas, o que tranqüilizara Sabrina, mas esta sabia que Jon voltaria a insistir naquilo que tanto temia. Só dois dias depois de ter chegado a casa, começou a importuná-la com a sua obsessão, e não o fez antes porque ela estivera ocupada até então.

- Bem, mamã... então, o carro?

- Tens as chaves lá em baixo, querido - Sabrina sorriu. - Nunca se opusera a que Jon conduzisse o carro, mas ficou surpreendida ao ver a cara dele.

- Não me refiro a esse carro, mas sim ao novo. - Sabrina ficou sem pinga de sangue. Acabara de verificar novamente as cifras do rendimento das minas, e eram desesperantes. Só uma boa guerra a poderia tirar daquele buraco. Sentia-se culpada por ter aqueles pensamentos, mas, na realidade, era o que aquele maldito país precisava naquele momento. Ninguém esperaria que uma mulher pensasse daquela maneira, mas ela sabia muito bem quais eram as molas da economia. Entretanto, começava a preocupá-la seriamente a possibilidade de ter de fechar as minas. Não conseguia suportar os gastos que acarretavam. Ainda vivia do dinheiro que recebera da venda da casa de Napa, e precisava do resto para pagar os estudos de Jon no ano seguinte. Agora, não necessitava de quase nada para ela. Vendera tudo o que considerava supérfluo, exceto o carro, e não mantinha nenhum criado na Mansão Thurston. Só conservara os terrenos dos vinhedos e, de momento, as minas que o pai lhe deixara. Perdera o resto na depressão de 1929.

- Não acho que precises de um carro neste momento. Não podia sequer pensar naquele gasto.

- Por que não? - Jon olhou-a furiosamente, com todo o vigor dos seus dezoito anos, e certo de que já era um homem.

- Temos de falar nisso agora? Não podemos esperar?

- Por quê? Vais a correr para o trabalho, como é teu hábito?

Na realidade, tinha de ir a Santa Helena tratar de alguns assuntos. O encarregado-geral continuava a dirigir quase tudo por conta dela, mas Sabrina passava ali muitas horas a tentar pôr as coisas nos eixos. Não queria deixar aquela responsabilidade nas mãos de ninguém. Não foi, pois, de estranhar que olhasse para Jon com a tristeza estampada no rosto.

- Não sei por que me dizes isso, Jon. Sempre estive aqui quando precisaste de mim.

- Quando? Enquanto eu dormia? Quando estavas demasiado cansada para falar ao voltar para casa?

Sabrina estava chocada com as coisas que Jon lhe dizia. Durante o resto das férias, continuou a aborrecê-la com o tema do carro, mas sem proveito. Finalmente, quando partiu de novo para o Este, Sabrina estava cansada dos contínuos ataques que ele lhe fizera e sentia-se mais culpada que nunca por não poder dar a Jon o que este lhe pedia. Como vingança, o filho escreveu-lhe a dizer que só voltaria para casa em julho. Um dos «homens» que conhecera na universidade convidara-o a ir a Atlanta, mas não referia o nome do rapaz nem dava qualquer pormenor sobre a família. Era a sua maneira de a castigar, pensou Sabrina, por não lhe ter comprado o brinquedo que queria.

Nesse verão, Jon voltou para casa em meados de julho, mas nesse ano não tinham sítio para onde ir. Já não possuíam a casa de Napa. Só lhes restava a Mansão Thurston. Sabrina falou-lhe na hipótese de irem até ao lago Tahoe, mas Jon ficou de tal modo furioso ao ver que ela ainda não estava disposta a comprar-lhe o Model A, que foi para o lago sozinho com os amigos. Ao fim e ao cabo, o rapaz tinha já dezenove anos, e Sabrina não podia andar atrás dele para todo o lado, mas desgostava-a o fato de ele desaparecer daquele modo do seu lado, deixando-a sozinha na Mansão Thurston.

Não por muito tempo, porém. Nesse Inverno, a situação piorou para Sabrina. As minas haviam deixado de render o suficiente para atender aos seus próprios gastos e aos de Jon. Na realidade, as minas começavam a ficar em situação deficitária, o que obrigou a que só uma galeria se mantivesse em funcionamento. Como resultado disso, a Jonathan, ao voltar à Mansão Thurston, no Natal, depararam-se-lhe quatro desconhecidos a viver lá. A mãe começara a alugar quartos, e, quando Jon se deu conta do que ela fizera, ficou fora de si

- Meu Deus, estás louca? Que pensarão as pessoas? - Sabrina compreendia a revolta de Jon, mas, nesse ano, a sua situação econômica chegara a ser desesperada, e não lhe ocorrera outra coisa para a aliviar um pouco. Pusera os vinhedos à venda, mas ainda não encontrara comprador. Naquele momento, o dinheiro que entrava nos seus cofres era muito pouco. Finalmente, chegara a hora de explicar tudo ao filho.

- Não pude fazer outra coisa, Jon. As minas estão praticamente paradas. Tinha de valer-me de algum meio para conseguir dinheiro. Tu sabes muito bem disso. Atualmente, os teus gastos são muito superiores aos meus.

A vida de Jon em Cambridge, na companhia dos seus novos e elegantes amigos, era uma festa contínua. Sabrina nunca se queixara disso, mas aquele era o preço que tinham que pagar.

- Já te deste conta de que agora não posso trazer nenhum dos meus amigos aqui? Meu Deus! Parece um bordel.

Sabrina não agüentou mais.

- Suponho, pelo dinheiro que andaste a estourar lá pelo Este, que visitaste muitos.

- Não me venhas agora com sermões! - gritou-lhe Jon, certa vez, a altas horas da noite. - Por acaso, não te transformaste na madame da casa de putas que é agora a Mansão Thurston?

Sabrina deu-lhe uma bofetada. Doeu-lhe ter de fazê-lo, mas as coisas entre os dois estavam impossíveis. Por isso, sentiu-se, até certo ponto, aliviada quando, no verão seguinte, Jon lhe disse que não viria passar nenhum dia em casa. Iria de novo para Atlanta veranear com os «amigos». A Sabrina desagradava-lhe ter de passar tanto tempo sem ver o filho, mas supunha que ele se encontraria entre gente decente. Bem vistas as coisas, era a melhor solução para ambos, pois ela também não teria conseguido suportar as impertinências do rapaz por causa do carro. Finalmente, e se bem que isso lhe cortasse o coração, decidiu vender as minas. Naquele momento, estavam quase esgotadas, pelo que teve de as vender pelo simples valor do terreno. Isso permitiu-lhe continuar a pagar os estudos do filho, embora dessa vez apenas durante um ano. Além disso, prescindira dos hóspedes, de modo que, quando Jon veio passar o Natal em casa, já não existia aquele motivo de desavenças entre eles. Dessa vez, a sua estada foi mais tranqüila, e não falou no carro. Tinha outros propósitos em mente, que ainda eram um problema maior para a sua mãe. Em junho, queria ir para a Europa com um grupo de amigos, e Sabrina não fazia a mínima idéia de como é que ele iria pagar aquelas férias. À exceção das jóias, não lhe restava mais nada para vender, mas estava a reservá-las para poder pagar o último ano de universidade de Jon. No entanto, aquela viagem parecia tão importante para o rapaz. Com um suspiro de cansaço, Sabrina sentou-se, uma noite, a conversar com ele

- Com quem irias.

Há muito tempo que Jon não ia a parte nenhuma com ela, mas tinha quase vinte e um anos e não era compreensível esperar isso dele Mas, às vezes, o fato de não saber com quem é que ele passava o tempo na escola deixava-a nervosa. Só esperava que se tratasse de gente respeitável, e não tinha razões para pensar o contrário. Havia tantas coisas que não sabia a respeito dele. Coisas que o pai teria querido saber a todo o custo. Sabrina, porém, não estava segura de qual era o seu lugar e não queria intrometer-se na vida do filho. Além disso, ele não se mostrava interessado em falar com ela. Aqueles anos foram muito difíceis para os dois. Jon queria tudo, e quando lhe apetecia. As relações que mantinha agora com ela baseavam-se em pedidos e necessidades. Há muito que expressões de amor entre mãe e filho haviam deixado de existir. Sabrina tinha saudades da criança que trepava para o seu colo para a abraçar. Era precisamente nisso que ela pensava enquanto o observava, sentada, na biblioteca.

- Bem, posso ir?

- Para onde? - Sabrina estava tão cansada e absorta que perdera o fio à conversa. Só lhe restava a casa em que viviam, os terrenos dos vinhedos e as jóias que haviam pertencido a Camille, mas nada daquilo dava rendimento algum nem oferecia uma perspectiva de tempos melhores. Durante aqueles últimos meses, Sabrina estivera a pensar na possibilidade de conseguir um emprego, mas não fazia idéia de qual poderia ser. Por outro lado, havia sociedades imobiliárias que queriam comprar-lhe os terrenos ocupados pelos jardins da Mansão Thurston, a fim de construir casas neles. Aquilo poderia ser a solução para os seus problemas financeiros, mas ainda não estava decidida a vendê-los. Ainda não se sentia assim tão senil, só tinha quarenta e seis anos

- Para a Europa, mamã.

- Mas ainda não me disseste com quem.

- Que importância é que isso tem? Nem sequer conheces os nomes.

- Por que não? - Talvez Amélia soubesse de quem se tratava. Ela tinha uma memória fantástica e, ao que parecia, conhecia toda a gente da costa este que era ou que tivesse sido alguém. - Por que motivo não me dizes os nomes dos teus amigos, Jon?

- Porque já não sou um menino de dez anos - resmungou, dando um salto da cadeira como que impelido por uma mola. - Deixas-me ir ou não? Já estou farto desta brincadeira.

- A que brincadeira te referes? - A voz de Sabrina era tranqüila e pausada, como fora sempre, e não revelava nada da dor e da tensão em que vivera nos últimos anos. Só quem soubesse ler-lhe o olhar se aperceberia da mágoa que lhe ia no coração e na alma. Amélia havia-se dado conta disso na última vez em que se encontraram e sentira imensa pena dela. Desde a morte de John Harte, dezoito anos antes, não houvera nenhum outro homem na vida de Sabrina, mas também era certo que, desde então, não conhecera nenhum outro que lhe chegasse aos calcanhares, e não o conheceria nunca. Levantou os olhos para Jon. Não se parecia com nenhum dos dois. Nem com ela nem com o pai. Faltava-lhe a disciplina, a paixão pelo trabalho árduo. Pelo contrário, gostava de divertir-se e procurava sempre a forma mais fácil de conseguir as coisas. Aquela tendência preocupava, por vezes, Sabrina. Tinha de conseguir as coisas por si mesmo, e talvez agora fosse a altura certa. Era precisamente nisso que Sabrina pensava, enquanto Jon andava nervosamente de um lado para o outro da sala.

- Jonathan, se tens tanta vontade de ir para a Europa, por que razão não arranjas um emprego em Cambridge por uns tempos?

Jon lançou-lhe um olhar entre o perplexo e o irado.

- E por que motivo não arranjas esse emprego, em vez de andares a lamentar-te que és pobre a toda a hora?

- É isso que faço? - Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Jon magoara-a profundamente. Procurara sempre não o massacrar com as suas queixas, mas ele sabia sempre quais eram os seus pontos fracos para a magoar. Sabrina levantou-se, cansada. Fora um dia longo para si, extremamente longo, e talvez ele tivesse razão. Talvez fosse ela quem devesse pôr-se a trabalhar. Naturalmente, não era a primeira vez que pensava naquela possibilidade. - Lamento que fales dessa maneira. E talvez tenhas razão. Talvez devamos ambos trabalhar. São tempos difíceis para toda a gente, Jon.

- Pois na universidade não é isso que acontece. Lá todos têm o que querem, exceto eu.

Outra vez o carro. Sabrina enviara-lhe tudo o que ele pedira e, como ambos sabiam, dispunha de uma generosa soma em dinheiro para atender aos seus gastos. Mas não tinha carro e agora havia uma viagem para a Europa. Não lhe restava outro remédio senão fazer algo para conseguir uma fonte de rendimento.

- Verei o que posso fazer

Logo que Jon partiu para a universidade, Sabrina começou a matutar na maneira de arranjar dinheiro. Era praticamente impossível procurar um emprego naquela altura. Encontravam-se em 1935, e há anos que a economia estava empobrecida. Além disso, não sabia escrever à máquina, não tinha experiência de ditado, não tinha os conhecimentos necessários para secretaria, e os postos de direção de minas de mercúrio não caíam das árvores. Deixou-se rir para evitar chorar de desespero. De qualquer modo, era a única coisa que sabia fazer. Entretanto, em março, recebeu uma carta de Amélia, escrita com mão trêmula, em que lhe dizia que um amigo seu ia visitar a Califórnia para comprar terras. Tratava-se de um homem chamado Vernay... De Vernay, mais exatamente. Sabrina sorriu perante aquele preciosismo de Amélia. Os vinhedos de Vernay produziam os vinhos mais requintados de França, e o homem, aproveitando o fim da lei seca, queria trazer algumas das suas cepas para os Estados Unidos. Amélia pedia desculpa por aborrecer Sabrina com tudo aquilo, mas, como sabia dos conhecimentos dela naquela área, gostava de saber se ela poderia aconselhá-lo.

Sabrina não se importava de fazer aquele favor à amiga, mas, de repente, lembrou-se de que ele poderia interessar-se pela compra dos seus vinhedos. Nesse momento, de nada lhe serviam. Além de estarem abandonados, não se encontrava em condições de voltar a dedicar-se à exploração vinícola. Por outro lado, a lei seca durara demasiado tempo. Catorze anos haviam sido mais do que suficientes para fazê-la desistir do seu sonho de um dia produzir o seu próprio vinho. Fora uma idéia um tanto ou quanto louca, e até John estava sempre a gracejar com ela por causa dos vinhos, embora estivesse pronto a reconhecer que eram bons. Chegara a ser uma perita na matéria, mas já esquecera grande parte dos seus conhecimentos. Só sabia de minas de mercúrio, e quem é que poderia interessar-se pelos seus serviços? Ninguém, como ela bem sabia. Não lhe restava outro consolo que o de pensar nos velhos tempos... quando dirigia pessoalmente as Minas Thurston... quando a maioria dos homens a abandonara... quando voltara a erguer o negócio. Então, teve vontade de dar uma reprimenda a si própria. Ainda era muito jovem para pensar só no passado. Naquela primavera, faria quarenta e sete anos e, coisa extraordinária, apesar de tudo por que passara, sabia que aparentava muito menos idade. Todavia, sentia o peso de cada ano que passava. Era nisso que Sabrina pensava um dia, enquanto se encontrava no jardim a aparar as sebes com uma enorme tesoura. Ao olhar para a rua, apercebeu-se da presença de um homem de cabelos grisalhos que lhe fazia sinal com a mão do outro lado do portão. Devia ser para entregar alguma encomenda, pensou, e acercou-se dele, levando a mão enluvada à testa para proteger os olhos do sol. O homem estava impecavelmente vestido, o que não se poderia dizer dela. Tinha um aspecto horrível. Envergava umas roupas velhas do filho, mas arregaçara as calças e pusera uma jaqueta por cima. O cabelo estava apanhado num carrapito, donde escapavam longas madeixas. Olhou para o homem de cabelos grisalhos e fato de bom corte e perguntou-se que estaria ele ali a fazer. Talvez se tivesse perdido, pensou, ao abrir o portão.

- Em que posso ajudá-lo? - perguntou Sabrina, com um sorriso.

O homem pareceu surpreendido, mas correspondeu à pergunta com um sorriso entre o amável e o divertido. Quando falou, Sabrina reparou que o fazia com sotaque francês.

- Mistress Harte?

Sabrina assentiu com a cabeça e ele sorriu.

- Sou André de Vernay, amigo de Mistress Goodheart, de Nova Iorque. Creio que ela lhe escreveu.

Por instantes, Sabrina não se lembrou de nada, mas não tardou a recordar a carta que Amélia lhe escrevera umas semanas antes, e olhou-o nos olhos, que eram quase da mesma cor que os seus.

- Entre, por favor. Segurou o portão, e o homem entrou, observando os extensos jardins que rodeavam a casa.

- Já mal me lembrava... foi há várias semanas...

- Saí de França mais tarde do que o previsto. - Era extraordinariamente cortês e tinha um aspecto elegantíssimo. Sabrina conduziu-o até à casa, enquanto ele se desculpava por não ter mandado avisá-la da sua chegada. E não conseguiu evitar a pergunta: - É a senhora que faz todos esses trabalhos de jardinagem? - Pareceu surpreendido.

Sabrina sorriu.

- Faço tudo. - Havia um certo orgulho naquelas palavras, mas era bem melhor quando não tinha de o fazer. - Acho que me faz bem. E riu-se. - Fortalece o caráter. - Fingiu contrair os músculos do braço e ele riu-se. - E também os bicípites. Não consigo viver sem ambas as coisas. - Atirou com a jaqueta para cima de uma cadeira, olhou para as calças ridículas que trazia e voltou a rir. - Bem, pensando bem, talvez tivesse sido boa idéia ter-me avisado. - Ele também se riu. - Toma uma xícara de chá?

- Sim. Não... isto é... - Os olhos pareciam arder ao olhá-la. Dava a sensação de que viajara para tão longe só para falar com ela, o que divertia Sabrina. Parecia que a cabeça lhe ia rebentar de um momento para o outro se não lhe dissesse quanto antes aquilo que tinha em mente. Enquanto ela preparava o chá, Vernay sentou-se numa cadeira da cozinha. - O que desejo, madame, é que me aconselhe. Madame Goodheart disse-me que a senhora conhece a zona melhor do que ninguém. Refiro-me à área de Napa. - Dava a impressão de estar a referir-se a uma parte de França, o que fez sorrir Sabrina.

- Creio que sim.

- Quero criar aí os melhores vinhos franceses. - Sabrina serviu-lhe o chá e sentou-se diante dele para servir o seu.

- Foi o que eu quis fazer há muito tempo.

- E o que a levou a mudar de idéias?

Vernay parecia preocupado. Sabrina fitou-o, em silêncio, perguntando-se por que motivo é que Amélia o mandara ter com ela. Era um homem surpreendente. Bem-parecido, alto, aristocrático e inteligente, dava a sensação, enquanto tomava o chá na cozinha, que estava ali por um motivo especial, por uma qualquer razão que Sabrina ainda não vislumbrara e que tentava adivinhar enquanto ele falava.

- Não mudei de idéias, Monsieur de Vernay, as circunstâncias é que me levaram a fazer outras coisas. Há vários anos, o míldio deu-nos cabo das cepas. Depois, com a lei seca, foi impossível sequer pensar, durante catorze anos, na vinicultura. Entretanto, os vinhedos ficaram em completo desleixo, e agora... não sei... creio que já é demasiado tarde. Mas desejo-lhe sorte. A Amélia diz que quer comprar terras. Seria uma boa ocasião para lhe vender as minhas. - Vernay deu imediato sinal de interesse e pousou a xícara em cima da mesa, mas Sabrina abanou a cabeça. - Não lhe faria uma coisa dessas. Está tudo tão desprezado que só com dinamite conseguiria limpar o terreno. Durante muitos anos, os meus interesses em Napa resumiram-se exclusivamente à exploração mineira. Os vinhedos sofreram com isso. Nunca tive tempo de fazer aquilo que realmente queria. Consegui alguns bons vinhos, mas não passei daí.

- E agora? - Vernay era extremamente dinâmico, e esperava que os outros também o fossem.

Sabrina sorriu e encolheu os ombros.

- Já vendi as minas. Fazem parte do passado.

- Que tipo de minas? Ficou intrigado. - Amélia falara-lhe de Sabrina, mas não o suficiente. Descrevera-a até num tom algo misterioso. «É uma rapariga fabulosa e sabe tudo o que se possa imaginar sobre o vale. Fale com ela, André. Não a deixe escapar.» Aquela recomendação parecera-lhe algo estranha, mas agora, diante dela, compreendia, até certo ponto, as palavras de Amélia, pois Sabrina mostrava-se bem mais esquiva, como se estivesse a esconder-se de toda a gente. - Que tipo de minas tinha, Mistress Harte? - insistiu.

- De mercúrio.

- Cinábrio - disse ele, sorrindo. - Sei muito pouco disso. Tinha alguém à frente delas? - Nos últimos tempos, assim fora, mas Sabrina desatou a rir e abanou a cabeça. Naquele momento, a expressão do seu rosto fê-la parecer muito mais jovem. Apesar do seu desalinho e do improvisado atavio de jardineira, era uma mulher bonita cuja idade era difícil de precisar. Sabrina pensava o mesmo a respeito dele.

- Por algum tempo, dirigi-as eu mesma. Durante um pouco mais de três anos, depois da morte do meu pai. - André de Vernay ficou impressionado. Não era tarefa fácil para uma mulher. Amélia tinha razão. Sabrina era uma mulher fabulosa, e devia ter sido também uma rapariga fabulosa. Sentia-o. - Depois, foi o meu marido quem ficou à frente das minas. A voz tomou um súbito tom de tristeza. - As coisas mantiveram-se assim até ele morrer. Então, voltei a tomar as rédeas das minas, tanto das minhas como das dele, para acabar por as vender há poucos anos.

- Deve ter saudades do trabalho.

Sabrina fez um gesto afirmativo com a cabeça, admitindo esse fato sem rodeios.

- Tenho.

Vernay tomou outro gole de chá e, esboçando um sorriso, perguntou:

- Quando poderei ver as suas terras, Mistress Harte? - Esta riu-se e abanou a cabeça.

- Oh, não, não lhe faria uma coisa dessas. Mas terei muito gosto em indicar-lhe as pessoas com quem poderá falar para comprar boas terras para vinhedos. Deve haver muitas à venda. - O semblante de Sabrina tomou um ar mais sóbrio. - As pessoas por estes lados estão a atravessar muitos problemas econômicos.

- Isso é assim em todo o lado, Mistress Harte. - As coisas não estavam melhor em França. Só na Alemanha, sob o regime de Hitler, a economia parecia dar mostras de melhorias, mas só Deus sabia o que esse louco viria a fazer. André não confiava nele, assim como a maioria das pessoas, embora os Norte-Americanos achassem que ele não representava qualquer ameaça. Vernay não partilhava dessa opinião. - Mas há muitos anos que tenho esta idéia na cabeça. E no meu modo de ver, este é o momento oportuno para a pôr em prática. Acabo de vender os vinhedos que possuía em França, e quero estabelecer-me aqui.

- Por quê? - Sabrina não conseguiu evitar a pergunta ao ouvir falar de planos tão arriscados.

- Não me fio no que está a acontecer na Europa neste momento. Vejo o Hitler como uma ameaça efetiva, embora muito poucas pessoas concordem comigo. Creio que estamos a precipitar-nos para uma nova guerra, e prefiro estar aqui.

- E se não houver nenhuma guerra? Regressa ao seu país?

- Talvez sim, talvez não. Tenho um filho e gostaria que ele também viesse para cá.

- Onde está agora?

- A esquiar na Suíça. - Riu. - Ah, a vida difícil da juventude!

Sabrina também se riu.

- Que idade tem?

- Vinte e quatro. Trabalha comigo nos vinhedos há dois anos. Estudou na Sorbonne; depois, voltou para trabalhar comigo. Chama-se Antoine.

- Sabrina notou o orgulho com que falava do filho e observou:

- Tem muita sorte. O meu filho faz vinte e um anos este ano, está a estudar numa universidade do Este, e duvido que queira voltar a viver em São Francisco. Parece ter-se apaixonado por aquela parte do país.

- Isso passará. Ao Antoine, ao princípio, acontecia-lhe a mesma coisa com Paris, e agora não pára de me dizer que Paris é um lugar horroroso e que é muito mais feliz em Bordéus. É tão provinciano que nem sequer quis vir comigo para Nova Iorque. Todos têm as suas idéias, mas, no final - esboçou um sorriso malicioso, - acabam por recuperar a humanidade perdida. O meu pai sempre disse que adora os filhos... depois de fazerem os trinta e cinco anos. Só temos de esperar mais uns aninhos.

Sabrina riu-se e serviu-lhe outra xícara de chá. Então, de repente, ocorreu-lhe uma idéia, e olhou para o relógio da cozinha. Vernay reparou no gesto e perguntou com súbita preocupação:

- Não estou a maçá-la, Madame Harte?

- Trate-me por Sabrina, por favor. Não, não me está a maçar, de forma alguma. Só estava a pensar que talvez pudéssemos ir agora até Napa no meu carro. Gostaria de mostrar-lhe pessoalmente algumas das terras mais interessantes. Como está a sua agenda para hoje? - Vernay ficou sensibilizado.

- Adoraria, mas tenho a impressão de que, por minha culpa, deixará coisas por fazer.

- Só deixarei de cortar a sebe. Além disso, há já muito tempo que não vou a Napa. Será um prazer para mim fazer a viagem na sua companhia. - Era o mínimo que podia fazer pela antiga amiga de seu pai. Amélia fora sempre tão boa para ela, durante tantos anos. - A propósito, como está a Amélia?

Sabrina pousou as xícaras no lava-louça, e André acompanhou-a até ao salão principal.

- Muito bem. Cada vez mais velha e caduca, naturalmente, mas, considerando que já fez os oitenta e nove, o estado das suas faculdades é notável. A mente tem a agudeza de uma lâmina afiadíssima. - Riu-se. - Adoro discutir com ela. Nunca ganho, mas é um desafio que sempre me deu muito gozo. Temos idéias políticas muito diferentes. - Sorriu para Sabrina... Corou, e ela sorriu.

- Creio que o meu pai sempre teve um fraquinho por ela. E ela foi sempre amorosa para mim. Em muitos aspectos, foi como uma mãe. A minha morreu quando eu tinha um ano.

Sabrina desculpou-se e foi mudar de roupa. Quando voltou, trazia um bonito vestido saia-casaco de tweed cinzento e azul e sapatos rasos. Os cabelos estavam puxados para trás. Vernay ficou impressionado pela natural elegância de Sabrina. O seu aspecto era muito diferente do que oferecia uns minutos antes, o que reavivou de novo na mente de Vernay a expressão «rapariga fabulosa». Amélia tinha razão. Sempre tivera. Em tudo... exceto em política, pensou ele, enquanto seguia Sabrina para o exterior da casa. A garagem estava oculta por árvores e sebes que se erguiam perto do portão por onde ele entrara. Sabrina tirou de dentro dela um Fora azul com seis anos, abriu a porta a Vernay e partiram. Já a caminho do Norte, Sabrina virou-se para o seu acompanhante e disse, por entre um sorriso:

- E eu que estava a pensar acabar de cortar as sebes hoje. - Mas o certo era que se sentia encantada por ir para Napa com ele.

Chegaram a Santa Helena duas horas e meia depois de terem saído de São Francisco, e Sabrina, ao voltar a respirar o fresco ar do vale e ao ter de novo diante dos seus olhos as verdes colinas, sentiu uma emoção como há muito não sentia. Não voltara a Napa desde que vendera a casa e as minas, mas agora dava-se conta do grande quinhão que aquelas paragens ocupavam no seu coração e da enorme paz de espírito que lhe proporcionavam Ao reparar que André de Vernay a observava, virou-se para ele, exalando um suspiro e com um sorriso nos lábios. Ela não precisava de dizer nada, ele compreendia perfeitamente o estado de ânimo de Sabrina.

- Compreendo como se sente. É o mesmo que sinto por Bordéus e o Médoc.

Aquele vale significava muito para ela. Durante muito tempo, fora parte integrante da sua vida. Com verdadeiro entusiasmo, ia indicando a André os pontos mais importantes. Oakville Rutherford, alguns dos vinhedos surgidos ultimamente. Indicou-lhe as colinas onde se situavam as suas antigas minas e, depois de deixar para trás o Silverado Trail, parou o carro e apontou para uma grande extensão de terreno. A quantidade de mato que o cobria evidenciava que não se cortava ou plantava nada desde há vários anos. Um poste com o letreiro «VENDE-SE» encontrava-se derrubado. Sabrina não tentara desfazer-se daquelas terras nem sabia que destino dar-lhes. Noutros tempos, sonhara que obteria delas excelentes colheitas de uvas. Virou-se, deteve o olhar nos olhos azuis de André e encolheu os ombros num gesto de desculpa.

- Isto aqui já foi muito bonito. - Depois, definiu-lhe os diferentes vinhos que obtivera, falou-lhe do míldio e do modo como a lei seca acabara de vez com os vinhedos. - Acho que nunca mais cultivarei nada aqui. Tinha uns oitocentos hectares ali e uns vinhedos mais à frente. - André falava pouco. Entraram nos terrenos, afastando os ramos que lhes impediam o caminho, enquanto ele ia fazendo uma idéia do que Sabrina possuía e comprovava a qualidade da terra agachando-se de vez em quando para apanhar punhados dela e a examinar. Por fim, olhou com ar sério para Sabrina e, com acentuado sotaque francês que a fez sorrir, disse:

- Tem aqui uma mina de ouro, Mistress Harte. - Estava a falar a sério.

Sabrina abanou a cabeça

- Pode tê-lo sido durante algum tempo, mas não agora. Como tudo o resto, perdeu valor. - Estava a pensar nas minas que tivera que fechar e nos vinhedos, outrora tão bem cuidados. Aquilo era uma espada de dois gumes. Aquele regresso ao lugar que ela e o pai tanto haviam amado enchia-a de agradáveis recordações, mas fazia-lhe ver que nada do que ali houvera existia já; o seu pai... John., até mesmo Jon quase desaparecera. Sabrina sentiu gravitar sobre ela todo o peso da juventude perdida. De repente, lamentou ter voltado ali. De que lhe serviria chorar sobre o passado? - Eu devia vender tudo isto num destes dias. Nunca cá venho, e as terras não me rendem nada.

- Eu poderia comprá-las - disse Vernay, mantendo a porta do carro aberta para que ela entrasse, - mas seria como roubar um filho. Julgo que ainda não se deu conta da excelente terra que tem aqui. - Era um solo tão rico como o do Médoc. Instintivamente, sabia que podia produzir maravilhas ali. - Sim, quero comprar terras aqui, Sabrina... - Semicerrou os olhos ao olhar para as colinas. Aquilo não era Bordéus, mas um lugar bonito, e podia ser feliz nele. Se conseguisse trazer Antoine e uns quantos dos seus melhores homens, poderia fazer coisas maravilhosas, mas primeiro tinha de saber com que terras poderia contar.

- Está a falar a sério. - Pelo olhar dele, Sabrina via que sim. Afinal de contas, oferecera-se para o ajudar. André não estava a pressioná-la para que lhe vendesse as terras. Além disso, conhecia todos os proprietários das redondezas. Levou-o à melhor agência de compra e venda de propriedades agrícolas, o que permitiu a André saber que havia uns mil e quinhentos hectares à venda junto às terras de Sabrina. O preço era baixo, e havia muito trabalho para fazer, mas André estava ansioso por vê-las antes de escurecer. Sabrina levou-o no carro.

Já as vira quando da primeira visita, mas então desconheciam qual a área que estava à venda. André percorreu os terrenos, examinou tudo meticulosamente, apalpou a terra, partiu várias vides secas, tocou numa infinidade de folhas e inspirou o ar como se quisesse saturar-se dele. Sabrina observava-o da estrada. Divertia-a a total entrega com que André fazia todas as coisas, a sua prudência e a sua seriedade. Todavia, quando voltaram a falar, havia uma certa malícia no olhar de André, mas não quando discutiram sobre cepas, sobre a sua remite, ou sobre aquelas terras, quando regressavam à agência. Estava imensamente satisfeito, e era visível um contagiante entusiasmo no seu olhar.

- Que diria, Sabrina, se lhe pedisse que me vendesse as suas terras?

- Em vez das que vimos? - Pareceu surpreendida.

- Além das que acabamos de ver. E ainda tenho uma idéia melhor. Podíamos ser sócios. Eu cultivaria as suas terras ao mesmo tempo que as minhas. Ficaríamos assim com uns magníficos vinhedos.

Por instantes, os olhos de Sabrina dançaram. Era o que sempre quisera fazer. Mas agora?

- Está a falar a sério.

- Claro que sim.

Voltaram ao escritório do corretor imobiliário, e André, num abrir e fechar de olhos, negociou o preço e fechou o negócio, para alívio do homem. A família iria comer bem com a comissão que ele receberia, e tinha quatro filhos para alimentar.

André virou-se para Sabrina.

- Que me diz?

Fez-se uma interminável pausa, durante a qual ambos contiveram a respiração. Sabrina sentiu uma emoção que não sentia desde há muito tempo. O entusiasmo pelos negócios, pelo trabalho, pelo patrimônio, pelas compras e as vendas. Solenemente, abanou a cabeça.

- Não lhe vendo as minhas terras, André. - Instintivamente, ele esperara aquela resposta.

- Permite-me, então, que cultive os seus vinhedos e que sejamos sócios? - Juntos, seriam donos de uns três mil hectares, uma propriedade enorme. Sabrina fez, então, um gesto de concordância com a cabeça, enquanto os olhos brilhavam tanto como os dele.

- De acordo

Selaram o contrato com um aperto de mãos, perante a curiosidade e olhar satisfeito do corretor, que tinha a sensação de que acabava de se fazer história, e não estava longe da verdade. Pouco depois, André passou-lhe um cheque como sinal da compra que acabava de realizar. E só então se lembrou de que precisava de uma casa.

Nem sequer pensara nisso. Olhou para Sabrina, algo desconcertado. Necessitava de alojamento para si e para o filho, decente, mas não muito grande. Para começar, poderia alugar uma pequena casa. Ia deixar o pequeno e elegante castelo que possuía em França, no Médoc Mas o seu desejo era deixar tudo. Havia algo dentro de si que lhe dizia que a Europa caminhava para o abismo E aquele era um novo país, um novo mundo, uma nova oportunidade. Era algo muito mais excitante do que ficar comodamente sentado na sua torre de marfim. Antoine também ficaria entusiasmado com tudo aquilo. De regresso, já passava um pouco das oito horas, pararam numa estação de serviço para tomar uma refeição ligeira. Devoraram com incrível apetite um par de hambúrgueres e beberam cerveja. Entretanto, Sabrina contou-lhe como era o vale de Napa noutros tempos.

- Nasci aqui, em Santa Helena, na casa do meu pai.

- Ainda a conserva?

-Vendi-a. - Olhou para André com ar franco, não tinha nada a esconder. - Vendi-a para conseguir pagar os estudos do meu filho. Quando, em mil novecentos e vinte e nove, a bolsa deu o estouro, o rapaz tinha quinze anos, e três anos depois mandei-o para uma universidade do Este. Estava em vias de perder as minas, perdi todas as ações que tinha na bolsa e já não precisava da casa de Napa. Há anos que vivemos na cidade. - Não se sentia muito orgulhosa de admitir os seus problemas perante ele, mas André era um homem muito compreensivo. A partir do momento em que haviam firmado, com um aperto de mãos, o acordo de cultivar juntos as suas terras, Sabrina sentira-se ligada a ele de um modo muito peculiar. Era como se se tivessem tornado amigos de um momento para o outro. Naturalmente, a recomendação de Amélia não fora alheia à confiança que André inspirara a Sabrina. - Ainda tenho de pagar os estudos do meu filho durante mais um ano. Então, quando acabar o curso - acrescentou, com um pequeno suspiro de alívio, - terei, pelo menos, a satisfação de ter-lhe dado tudo quanto pude.

- E você? Que lhe dá o seu filho?

Sabrina esteve quase a dizer «amor», mas não estava certa de que fosse isso. Supunha que Jonathan lhe dava algo: a sensação de não se sentir tão só quando ele vinha a casa, de que, nalgum lugar do mundo, havia alguém que a amava, ainda que o rapaz nunca o tivesse manifestado. Estava mais interessado no que a mãe lhe poderia dar.

- Não sei ao certo, André. Não sei bem o que os filhos nos dão, a não ser a alegria de saber que são nossos.

- Ah! - exclamou, meneando a cabeça num gesto muito francês. - Dê-lhe mais uns anos.

Sabrina riu-se ao pensar nalgumas das discussões que tivera com o filho.

- Oxalá tenha razão. E, quanto aos terrenos, que planos tem para eles? - Sabrina estava fascinada com a determinação que ele exibia sempre que falava deles. André estava decidido a deixar Bordéus e a mudar-se para ali. - Acha mesmo que as coisas vão assim tão mal em França, André?

- Cada vez pior. Estou absolutamente certo disso. Discuti essa questão com a Amélia a última vez que nos encontramos em Nova Iorque. Disse que os franceses são demasiado inteligentes para se deixarem vencer pelas circunstâncias, mas creio que, desta vez, está enganada. Politicamente, estamos debilitados, economicamente, não somos muito fortes e, além disso, temos aquele louco do Hitler a leste que não pára de nos agitar a bandeira nazi. Sinceramente, creio que chegou o momento de partir, pelo menos, durante uns tempos.

Sabrina perguntou-se se ele não estaria tomado de pânico. Talvez se devesse à idade. André dissera-lhe que tinha cinqüenta e cinco anos, e ela sabia que John se tornara mais conservador naquele momento da vida, e que começara a preocupar-se com a política como nunca o fizera. De repente, principiara a ver perigos por todo o lado, coisa que Sabrina também notara no pai naquela idade, sem que os seus receios viessem a confirmar-se. Não fez, pois, muito caso das apreensões de André, que a estava a olhar com ar pensativo. Depois de tomar o último gole de café, observou:

- É possível, Sabrina, que pense que não me encontro no meu perfeito juízo, mas não consigo deixar de pensar naquelas terras. Nas suas e nas minhas. São adequadíssimas para o que quero levar a cabo. Por outro lado, disse-me que noutros tempos também esteve muito interessada nos vinhedos. Por que razão, em vez de mos arrendar, não se converte num sócio ativo e começa o negócio comigo?

- Esses tempos já fazem parte do passado. Já não sou uma mulher de negócios, André. - Precisamente por sê-lo, pagara um elevado preço, a ira do filho.

- Não sei por que, mas não consigo pensar neste negócio sem a incluir nele. Parece-lhe uma loucura assim tão grande?

- Um pouco - afirmou Sabrina, enquanto a empregada voltava a encher-lhes as xícaras de café. André costumava bebê-lo em grandes quantidades e, com um grande tato, deixou entender que o de França era muito melhor, uma insinuação que fez rir Sabrina, mas estava curiosa por ouvir os projetos dele.

- Em que está a pensar, André?

Soltou um leve suspiro e voltou a pousar a xícara de café em cima da mesa.

- Gostaria de comprar a superfície necessária desses terrenos para que possamos considerar-nos sócios em igualdade de condições? Fifty-fifty em tudo.

Sabrina deixou escapar uma gargalhada ao ouvir aquele termo americano.

- Comprar, eu? André, vejo que ainda não se deu conta da minha situação. Mal tenho para manter o meu filho na universidade. Só me resta a casa de São Francisco e aquela selva que acabou de ver em Napa. Como poderia eu comprar esses terrenos em sociedade consigo? - Envolvia a compra de uns quatrocentos hectares, gasto que não podia permitir-se em absoluto.

André pareceu desiludido, mas ainda não se dava por vencido.

- Não sabia... só pensei... - Havia algo de francês nos olhos azuis, que encantava Sabrina. André era um homem bem-parecido, e a sua beleza e a sua agilidade faziam-no parecer mais jovem do que realmente era. Passava bem por um homem com menos vinte anos. - Então, não tem outros recursos? - Era uma pergunta excessivamente direta, mas feita sem más intenções. André estava ansioso por chegar a um acordo com Sabrina. Além da excelente impressão que tinha dela pelas extraordinárias coisas que Amélia lhe contara sobre o acerto e a habilidade com que dirigira as minas durante vários anos, acreditava que ela seria capaz de encontrar o meio de comprar os vinhedos conjuntamente com ele. E também estava convencido de que sabia mais de vinicultura do que lhe fizera crer.

- Há muitos anos que não presto atenção a essas coisas, André. Quando era jovem, acreditava que poderia produzir aqui vinhos tão bons como os franceses, mas há quantos anos é que isso foi? Quinze? Vinte e cinco? A minha experiência vinícola ser-lhe-ia de muito pouca utilidade. - Estava surpreendida com o fato de André ter chegado a propor-lhe a formação de uma sociedade, mas tinha de admitir que a idéia a intrigava. Todavia, sentia maior interesse por aquela proposta do que pelo simples arrendamento dos vinhedos. - Não nego que gostaria de colaborar consigo, mas deveria vender as terras que possuo em vez de comprar mais. - Suspirou ao pensar na situação. Ainda tinha de fazer frente às despesas de manutenção de Jonathan em Harvard durante mais um ano. Deveria efetuar o pagamento daí a meses e, para satisfazê-lo, só contava com o dinheiro que pudesse fazer da venda das terras de Napa, dos terrenos ocupados pelos jardins que circundavam a Mansão Thurston e das jóias da mãe, que nunca usava. Refletiu, por instantes, sobre o assunto, e voltou a fazê-lo nessa noite quando já estava na cama. André voltaria sozinho a Napa no dia seguinte para ver mais pormenorizadamente o terreno que comprara na véspera e falar com os proprietários sobre o negócio. Além disso, aproveitaria a viagem para ver se podia encontrar alojamento.

Ao pensar em André, Sabrina deu-se conta de que gostava cada vez mais dele, e desejava que ele tivesse o maior dos êxitos com os seus vinhos. Não podia deixar de admirar uma pessoa que, com a sua idade, abandonava o país de origem e todas as comodidades para começar de novo a onze ou doze mil quilômetros de distância. Era preciso algo mais do que espírito de aventura para levar a cabo uma empresa como aquela, e ela admirava-o. Quase tanto como André a admirava a ela. Ele sentia que Sabrina era dona de uma extraordinária força interior, em conformidade com aquilo que Amélia insinuara antes de se conhecerem. Carregava um pesado fardo. Não era difícil adivinhá-lo, ainda que o único indício disso fosse o que ela lhe dissera quando lhe propusera a compra das terras a meias E ainda estava a pensar na idéia de André, lamentando não poder comprar a parte do terreno que lhe correspondia, quando, na manhã seguinte, se sentou, de repente, na cama. Se vendesse os jardins que circundavam a Mansão Thurston, conseguiria arranjar o suficiente para pagar o último ano de estudos de Jon e ainda lhe sobraria dinheiro para outras coisas. Pensou na possibilidade de o pôr a render ou fazer um ou dois investimentos, mas a verdade era que não havia melhor investimento do que a compra de terras. O pai sempre lhe dissera isso, e, se se juntasse a André na compra dos vinhedos, não lhe restaria um único cêntimo, mas se, como parecia, ele sabia o que estava a fazer, os lucros não se fariam esperar. Tal decisão, dada a situação econômica do país, não deixava de implicar um tremendo risco, mas o coração dizia-lhe que não podiam fracassar. O sangue começara a correr-lhe nas veias com o mesmo ímpeto de outros tempos, quando conduzira as minas a um apogeu nunca antes alcançado. Além disso, era isso que desejara desde o primeiro momento. Já em menina, gostava mais dos vinhedos do que das minas. Pensou nisso durante todo o dia, perguntando-se se André teria comprado mais terrenos. Entretanto, fez duas ou três chamadas para oferecer a venda dos jardins e, quando André lhe telefonou nessa noite, estava tão entusiasmada que ele mal percebia o que ela dizia.

- Poderei fazê-lo consigo, André!

O corretor acreditava que, no dia seguinte, haveria uma oferta de compra dos jardins da Mansão Thurston. Há anos que duas companhias imobiliárias esperavam por aquela ocasião, e estavam dispostas a pagar um bom preço. O que significava que teria de viver com obras à sua volta, e nunca mais voltaria a gozar do isolamento que tivera até então, mas não se importava. Desde que pudesse entrar no negócio com André... Este mal percebia o que ela dizia e estava confuso.

- Quê?... O quê?... que disse?... Mais devagar, mais devagar... - André ficara contagiado com o entusiasmo de Sabrina, certo de que algo maravilhoso acontecera, mas não fazia a menor idéia do quê.

- Desculpe, não estou a explicar-me bem. Primeiro que tudo, como é que correram as coisas hoje?

- Muito bem. Maravilhosamente. - Também parecia entusiasmado. - E tive esta idéia: compro as terras, vendo-lhe quatrocentos hectares e paga-me quando puder. Pode fazê-lo dentro de cinco anos, se quiser. Nessa altura, o vinho ter-nos-á enriquecido aos dois. - André riu-se e Sabrina esboçou um largo sorriso.

- Não precisa de fazer isso. Tive uma idéia. - Ia a explicar-lha, mas pensou que mais valia fazer outra coisa. - Tive uma idéia excelente. Não quer vir tomar um conhaque? Gostaria de falar consigo sobre o assunto.

- Ah!... - André mostrava-se intrigado, e o conhaque era uma ótima idéia. - Não acha que já é muito tarde? Já passa das dez.

Sabrina estava impaciente por lhe comunicar os seus planos. Não podia esperar até ao dia seguinte. Parecera uma criança excitada durante toda a tarde, e André acedeu a sair do hotel e a apanhar um táxi. Cinco minutos depois, estava já a bater à porta principal. Sabrina voou pelas escadas abaixo para lha abrir. Tinha já o conhaque à espera dele na biblioteca, junto à lareira. Sabrina subiu apressadamente as escadas, seguida do recém-chegado, que, a rir, lhe perguntou:

- Que diabo se passa hoje consigo, Sabrina?

Ao ouvir o seu nome com sotaque francês, não conseguiu conter o riso. Serviu-lhe prontamente o conhaque e convidou-o a sentar-se.

- Tive uma idéia... sobre as terras de Napa.

O brilho no olhar de Sabrina provocou uma tremenda curiosidade em André, que se interrogou se seria por isso que ela o chamara. Talvez ela fosse fazer um milagre.

- Sabrina, acabe com esse mistério todo! - sussurrou. Sabrina olhou para André. O seu instinto feminino dizia-lhe que a sua vida estava prestes a dar uma volta, como já acontecera noutras ocasiões... como quando o pai morrera e ela tivera de tomar as rédeas das minas... como quando casara com John... como quando Jonathan nascera... E agora, de repente, a sua vida voltaria a dar uma volta importante. Teve plena consciência disso quando os seus olhos se cruzaram. Sempre acreditara que os seus dias de poder haviam terminado para sempre, mas agora sabia que estavam a começar de novo. Queria fazer sociedade com André. Era o seu maior desejo. E o seu outro instinto, o comercial, permitia-lhe ver algo pouco comum naquele homem. André de Vernay entrara na sua vida. E agora ela caminharia a seu lado. Podia confiar plenamente nele. A longa amizade de André com Amélia era garantia mais do que suficiente.

- Quero comprar os terrenos consigo.

Os olhares de ambos encontraram-se e detiveram-se por instantes.

- Pode fazê-lo? Eu pensava que...

- Estive toda a noite a pensar nisso, e hoje fiz alguns telefonemas. Bastará que venda os jardins que circundam a Mansão Thurston. Também preciso do dinheiro para pagar o próximo ano de estudos do meu filho em Harvard. - Estava a ser franca com ele. Se iam ser sócios, não lhe ia esconder nada, e nunca o faria. - Mas se receber um bom preço por eles, e creio que isso é possível, poderei comprar a minha parte dos terrenos. Seríamos sócios com partes iguais logo desde o início. - Os olhos brilhavam. André fitava-a, como se também se tivesse dado conta de que ia iniciar-se algo muito importante para os dois. Sabrina semicerrou os olhos. Olhou para ele, com o mesmo estado de espírito de quando decidira dirigir pessoalmente as minas. - Agora vejo tudo de forma muito clara.

- Também eu. - André fitou-a durante um longo instante, depois ergueu o copo. - Ao nosso êxito, madamme Harte. - Havia uma seriedade no seu olhar que ela raras vezes observara nele, e ergueu o copo.

Depois, o semblante de Sabrina voltou a mostrar preocupação. Não ignorava que tinha muito trabalho pela frente, mas estava disposta a não virar a cara à luta.

- Quem cultivará os vinhedos? Vai mandar vir gente de França?

- Vou trazer três homens e o meu filho. Ao princípio, nós os cinco faremos tudo o que seja necessário, e contrataremos mão-de-obra local quando precisarmos. Porque suponho que a minha amiga não se vai oferecer para apanhar uvas, pois não? - Tomou-lhe a mão e, olhando-a nos olhos, sorriu. - Está decidida a levar tudo isto para a frente?

- Nunca falei tão a sério. Sinto-me como se tivesse renascido. - As águas estagnadas da sua vida haviam começado a fluir de novo, e naquele instante deu-se conta das saudades que tinha de trabalhar, de dirigir as minas, de construir algo. A única coisa que fizera nos últimos anos fora ver tudo aquilo que conseguira com o esforço do seu trabalho desaparecer. E agora, de repente, graças a André, voltava à atividade. - Se isto der resultado, ficarei com uma enorme dívida para consigo, André.

- Ah, non, - protestou, abanando a cabeça. - Eu é que ficarei em dívida para consigo por toda a vida se comprarmos as terras. - E, cerrando os olhos, viu aparecer na sua mente a realização dos seus sonhos. - Teremos um enorme êxito... estou plenamente convencido disso... os nossos vinhos serão os melhores do mundo, inclusive de França... e talvez cheguemos a fazer um ou dois champanhes... - Sabrina tinha vontade de chorar. As palavras que ouvira enchiam-na de felicidade. Aquilo era precisamente o que desejava há vários anos, e agora ele estava a oferecer-lhe essa oportunidade. Amélia enviara-o como um mensageiro do destino que tivera a missão de a fazer reviver. Os três dias seguintes foram de autêntico frenesi para ambos. Falaram com os bancos, chegaram a acordo quanto aos terrenos que seria pertença de cada um deles, voltaram a inspecioná-los, puseram-se de novo em contato com os vendedores dos vinhedos e, finalmente, com as duas companhias imobiliárias interessadas na compra dos jardins da Mansão Thurston. E, milagrosamente, ao fim de uma semana, ambos os negócios estavam fechados. Vendera tudo o que tinha em Nob Hill, exceto a Mansão Thurston e um pequeno jardim situado atrás da casa E, em Napa, entre os terrenos comprados por ambos e os que Sabrina já possuía, já eram proprietários de quase seis mil hectares de vinhedos, mas, legalmente, pertencia metade a cada um. Os seus advogados andaram numa roda-viva durante vários dias, os banqueiros de Sabrina haviam querido comprovar a solvência de André, enviando telegramas para todo o lado, e Sabrina telefonara umas duas vezes a Amélia a agradecer-lhe tudo o que ela fizera. Foi a semana mais frenética da vida de Sabrina. E, quando, no final da semana, acompanhou o seu amigo à estação, antes de ele subir para o comboio com destino a Nova Iorque, despediram-se com um aperto de mãos e, desta vez, com um beijo que André lhe deu em ambas as faces.

- Somos um par de loucos, não acha? - Sabrina sentia-se de novo uma rapariguinha. Ele, por seu turno, ainda estava mais atraente depois das várias tardes que passara com Sabrina a passear pela propriedade, sob o sol de Napa. Mas, de tão entusiasmada que andava com tudo o que já haviam conseguido, ainda não prestara atenção a esse pormenor, e tinha ainda de encontrar uma casa para André e Antoine com, quiçá, um anexo para os três trabalhadores que viriam de França. - Quando volta, André?

Ele prometera telefonar-lhe de Nova Iorque e mandar-lhe um telegrama de Bordéus. Tinha muito que fazer ali, mas esperava poder regressar dentro de um mês.

- Dentro de quatro semanas. Cinco semanas, no máximo.

- Suponho que nessa altura já terei encontrado uma casa apropriada. Na pior das hipóteses, podem ficar na Mansão Thurston.

- Não me desagradaria. - E riu-se ao pensar nos seus trabalhadores do Médoc a vaguear pela elegante mansão de Nob Hill. - Transformamo-la numa quinta.

- Não vejo nenhum inconveniente em alojá-los em minha casa. - Enquanto o comboio se punha em marcha, Sabrina desejou boa sorte a André e fez-lhe adeus com a mão. Por instantes, sentiu um aperto no coração ao recordar-se do comboio que, dezenove anos antes, não chegara a Detroit.

Porém, a vida não podia voltar a ser tão cruel, e dessa vez não foi. Ao fim de cinco semanas, Sabrina encontrava-se de novo na estação para receber André, Antoine e os três homens. Havia alugado uma pequena casa de campo para eles, no terreno adjacente ao que eles haviam comprado. A seu tempo, André e Antoine poderiam mandar construir uma casa, mas de momento não era necessário. Dirigiram-se, então, para o vale de Napa. Antoine e os homens ficaram entusiasmados ao ver o que André e Sabrina haviam comprado. Ela ficou surpreendida perante o encanto de Antoine. Era um rapaz alto e magro, bem-posto, com os olhos azuis do pai e uma espessa melena ruiva. As suas maneiras eram as de um homem cortês e ponderado. Apesar de não se expressar bem em inglês, conseguia dizer a Sabrina tudo o que queria. Passaram a tarde do segundo dia a examinar os vinhedos e a falar como velhos amigos. André era muito diferente do filho, mas o que mais a surpreendeu em Antoine foi o seu bom caráter. Parecia querer ajudar toda a gente, relaxava o ambiente quando ficava tenso, o que acontecia muitas vezes dado o temperamento francês daqueles homens; parecia gostar da companhia do pai e mostrava-se cada vez mais amável e brincalhão com Sabrina. Esta estava curiosa por saber como se entenderia com Jon. Só queria que se dessem o melhor possível.

Jon regressou em junho, seis semanas depois da chegada de André e Antoine. Encontravam-se há alguns dias na Mansão Thurston pois tinham de se reunir com o banqueiro de Sabrina a fim de conseguir os empréstimos de que precisavam. A barafunda no exterior da casa era insuportável. Os operários preparavam o terreno para os edifícios projetados. O pequeno jardim com que Sabrina ficara nas traseiras da casa não tinha qualquer serventia. Voavam pedaços de cimento por todo o lado, o pó caía sobre eles em densas nuvens e as árvores eram arrancadas por potentes gruas. Sabrina assistia, com grande mágoa, a toda aquela destruição, e tentava não pensar no assunto. Entristecia-a ver tantas mudanças à sua volta, mas não havia fuga possível. Pelo menos, ficava-lhe o consolo de saber que estava a fazer algo apaixonante com André e Antoine. Conseguira pagar o último ano de estudo de Jon, e dava graças a Deus por o ter conseguido. Mas agora era muito pouco o que lhe restava. Queria entregar-se de corpo e alma, com André, aos vinhedos. Ia a Napa várias vezes por semana para observar, com satisfação, o curso dos trabalhos. E ele ia a São Francisco uma vez por semana e ficava alojado na suíte dos convidados da Mansão Thurston. E era aí que se encontrava na companhia de Antoine quando Jon chegou, que os fitou com ar hostil enquanto deixava a bagagem no vestíbulo.

- Mais hóspedes, querida mamã?

Sabrina teve vontade de lhe dar um par de açoites pelo tom insolente das suas palavras, mas contentou-se em lançar-lhe um olhar indignado.

- Não podes chamar-lhes isso, Jon. Apresento-te o André e o Antoine de Vernay. Não sei se te lembras do que te escrevi sobre o investimento que realizamos nos vinhedos de Napa.

- Tudo isso me parece um tremendo disparate

Jon era o oposto do filho de André, que a acolhera tão carinhosamente. Mas era evidente que, para Jon, aqueles intrusos representavam uma ameaça. A mãe voltava a embrenhar-se nos negócios, o que lhe trouxe à memória os tempos da sua juventude em que detestava vê-la trabalhar. Antoine estendeu-lhe a mão, que Jon apertou com indiferença. Tinha outras coisas em que pensar agora que estava na cidade. Na semana seguinte, chegariam dois amigos seus de Harvard, e iria para o lago Tahoe, e depois para La Jolla com amigos. Não era propriamente o Verão que planejara. Teria preferido ir para a Europa com o seu amigo Dewey Smith, mas, como a mãe insistira para que viesse a casa, iria vingar-se obrigando-a a prometer-lhe que o deixaria ir para a Europa no ano seguinte, quando acabasse o curso. Achava que merecia a viagem que quase todos os seus colegas faziam todos os anos. Por que motivo tinha de passar o verão em casa? Queria ir à Normandie quando fosse lançado à água. Considerava que, ao fim e ao cabo, merecia aquele prêmio. Não era todos os dias que se acabava um curso em Harvard. Mas não disse nada à mãe sobre os seus planos. Tinha muito tempo para a tentar convencer, e o que mais necessitava naquele momento era de um carro, para quando chegassem os seus amigos.

- Podes usar o meu quando eu estiver na cidade. Eu ando de carro elétrico.

André escutava-os enquanto fazia alguns telefonemas na biblioteca. Surpreendia-o a paciência que Sabrina tinha com o rapaz, mas era o seu único filho, e isso explicava tudo. O pai de Jon morrera quando este só tinha dois anos, e Sabrina dissera-lhe que sempre se sentira culpada por nunca lhe ter dado a devida assistência, pois passava horas intermináveis nas minas.

- Mas fê-lo por ele. Tive o mesmo problema com o Antoine quando a Eugenie morreu, mas ele teve de compreender. Eu era um homem. E você tinha uma enorme responsabilidade sobre os ombros. É provável que ele já tenha compreendido isso.

- Só compreende o que lhe interessa. - Sabrina sorriu para o seu sócio e amigo. Conhecia bem o filho, e, embora lhe causasse problemas às vezes, também sabia que, em parte, a culpa era dela, por tê-lo mimado tanto. Nesse instante, preocupava-a que a aborrecesse com o carro na presença de André.

- Por amor de Deus, mamã, não podemos comprar outro carro?

- Já sabes que, de momento, não nos podemos permitir tal luxo. - Sabrina tentou manter a voz baixa, mas ele não fez o mesmo.

- Por que diabo não podemos fazê-lo. Compras uma série de coisas, terras em Napa, vinhedos, e sabe lá Deus que mais.

Jon mostrava-se extremamente injusto. Há anos que a mãe não comprava nada para ela própria. Os vestidos, embora de bom corte, estavam fora de moda. André reparara nisso, e tinha plena consciência dos sacrifícios que aquela mulher fizera. E já quase não lhe restava nada do dinheiro da venda dos jardins da Mansão Thurston. Gastara-o todo na compra dos vinhedos e no pagamento dos estudos de Jon. Não dispunha de dinheiro para luxos, nem sequer para ela mesma, mas Jon parecia decidido a não aceitar a realidade da situação e continuava a pressioná-la.

- Jon, estás a ser injusto. Usa o meu carro, por amor de Deus.

Guardava o automóvel numa garagem que havia do outro lado da rua e que alugara a uns amigos. A sua fora deitada abaixo juntamente com a parte da propriedade que vendera às sociedades imobiliárias.

- E como é que queres que vivamos com toda esta barulheira? - gritou Jon.

Só à noite, quando os trabalhos pararam, é que Sabrina se deu verdadeiramente conta do barulho das obras. Depois de ouvir toda aquela barafunda durante um mês seguido, já se acostumara a ela. Contudo, segundo lhe haviam dito, aquela situação ainda duraria um ano.

- Lamento, Jon, mas isto é só durante algum tempo, além disso, estás quase sempre fora. - E esboçou um sorriso terno. - No próximo ano, quando voltares à universidade, já terão terminado.

Jon soltou um sonoro suspiro de enfado.

- Espero bem que sim. Agora, quanto ao carro, posso levá-lo esta tarde.

- Sim, claro

Jon queria sair com uma rapariga. Era amiga de um amigo e estudante do segundo ano na universidade feminina de Mills.

- Queres jantar conosco esta noite. - Estava acostumada a fazê-lo muitas vezes com Antoine e André, e queria que Jon os conhecesse melhor, mas este já tinha outros planos e levantou-se abanando a cabeça.

- Desculpa, não posso. - E, olhando para o amigo da mãe, que estava a falar ao telefone, acrescentou, supondo que ele não conseguiria ouvir. - Trata-se de um novo amor?

A inesperada pergunta fez com que Sabrina corasse, mas, pelo trejeito que deu à boca, foi visível que ficou pouco à vontade.

- Só é meu sócio. Mas gostaria que o conhecesses melhor, assim como o filho.

Jonathan encolheu os ombros. Eram, seguramente, um par de pategos franceses que não mereciam a sua atenção. Deduziu isso pelo interesse que mostravam nas terras, pelo fato de virem de Bordéus e pela simplicidade como trajavam. Naturalmente, ignorava que eram de linhagem nobre, e eles não haviam falado no castelo que acabavam de vender. Jon, porém, tinha outras preocupações, sobretudo agora que o carro da mãe estava à sua disposição. Ao fim de meia hora, já se fora embora, e só voltaria a altas horas da noite. Na manhã seguinte, pouco depois do amanhecer, Sabrina deixou a casa na companhia de Antoine e André e dirigiu-se para o vale de Napa, donde só regressou à noite, sendo ela própria a conduzir. Agora fazia-o continuamente, pois as idas e vindas entre a Mansão Thurston e os vinhedos eram constantes. Todavia, ainda havia muito que fazer.

- Como é possível que tenhas cometido tamanha loucura? - perguntou-lhe Jon, quando se encontraram nessa noite.

Sabrina apercebeu-se do ar acusador no olhar de Jon. Dava a impressão de que estava a recriminá-la por ter feito um mau investimento ou por passar tanto tempo fora, como quando dirigia as minas. Mas ele fizera já vinte e um anos e passava a maior parte do tempo na universidade, a quase cinco mil quilômetros de distância. E Sabrina tinha o direito de dedicar-se a algo que a entusiasmasse, como a exploração dos vinhedos. Era o que sempre quisera fazer na vida, e só tinha quarenta e sete anos. Não desejava ficar a um canto, à espera da morte, pelo simples fato de o filho ter atingido a maioridade. Aquilo era o melhor que lhe poderia ter acontecido, mas Jon via isso como uma ameaça, e não dissimulava a sua aversão por todos aqueles planos sempre que o assunto vinha à baila, como se lhe estivessem a tirar qualquer coisa.

- Vai tudo correr bem. Prometo-te. Vamos ter os melhores vinhos dos Estados Unidos.

Jon limitou-se a encolher os ombros.

- E então? De qualquer modo, prefiro beber um uísque. - Sabrina soltou um suspiro de exasperação. Às vezes, o filho era insuportável.

- Felizmente, nem todos pensam como tu.

Jon olhou-a com um ar de total indiferença e disse:

- A propósito, na próxima semana chegam uns amigos meus à cidade.

Sabrina franziu o sobrolho.

- Mas vais a Tahoe, não vais?

- Vou. Pensei que talvez pudessem passar por aqui só para te cumprimentar.

Era a primeira vez que Jon fazia a sua mãe uma sugestão daquela natureza, o que a fez suspeitar que se trataria de uma rapariga. Sabrina esboçou um sorriso tímido.

- É algum amigo especial para ti?

- É. - Mas, ao imaginar o que a mãe estava a pensar, abanou a cabeça. - Não, não é nada disso é só amizade. Não te preocupes, depois verás.

Sabrina teve a impressão de ver uma sombra de culpa nos olhos do filho, mas não tinha a certeza.

- Como se chama? perguntou-lhe, quando Jon já estava a sair de casa.

- Du Pré.

Sabrina ficou sem saber se se tratava de uma mulher ou de um homem, e esqueceu-se de lhe perguntar antes de ele partir para Tahoe, na semana seguinte.

Depois de Jon ter ido para o lago Tahoe com os amigos, Sabrina passou a maior parte do tempo em Napa, na companhia de André, Antoine e os trabalhadores franceses. Tinham muito trabalho pela frente. Havia muito mato para limpar, e nos seus próprios terrenos muitas vides para arrancar, outras para podar e ainda teriam de plantar as novas cepas que André trouxera de França. Só daí a um ano é que ele se consideraria satisfeito com o estado dos vinhedos, mas estavam todos preparados para isso. O projeto encontrava-se em andamento. Já tinham escolhido uma marca para os vinhos que produziriam. O vinho corrente levaria o nome de Harte-Vernay, e os de maior qualidade, o de Chateau de Vernay. Sabrina estava encantada com tudo. Regressou a São Francisco, depois de passar uma semana debaixo do sol tórrido de Napa, com a pele escura como o alcatrão e os olhos transformados em dois pedaços de resplandecente céu azul. Trazia as sandálias que André lhe trouxera de França, e calças. Começara a abrir o correio na Mansão Thurston, quando tocou o telefone do escritório e uma voz desconhecida de mulher lhe comunicou que queria falar com ela.

«Deve ser a amiga do Jon», pensou Sabrina. Estava curiosa por saber quem era, mas naquele momento sentia maior preocupação pela pilha de faturas que tinha na mão. A lista de coisas que havia para pagar era interminável, o que denotava que Jon não se privara de nada nas últimas semanas... três restaurantes... o clube... o alfaiate preferido...

- Sou a condessa Du Pré. - O Jon sugeriu-me que lhe telefonasse...

Sabrina franziu o sobrolho, mas lembrou-se, de imediato, do nome. Du Pré... Todavia, Jon não lhe dissera que se tratava de uma condessa. Talvez fosse a mãe de uma rapariga por quem Jon sentisse especial predileção. Sabrina afastou o bocal para soltar um suspiro de enfado. Não estava com disposição para falar com ninguém, e muito menos com uma mulher que se anunciava daquela maneira. O tom de voz era americano, teria jurado que do Sul, mas o seu nome era francês, tal como o sotaque. Era pena André e Antoine não se encontrarem na cidade. Mas prometera a Jon que atenderia a sua amiga.

- Suponho que o Jonathan lhe disse que eu telefonaria.

De fato, disse. Sabrina tentava ser amável com a desconhecida sem afastar o olhar do montão de faturas que tinha à sua frente.

- É um rapaz encantador.

- Obrigada. Vem visitar São Francisco? - Sabrina continuava a ignorar por que razão aquela mulher lhe telefonara, e não sabia o que dizer-lhe.

- Já estou na cidade.

- É pena que o Jon não esteja em São Francisco. Está nas montanhas com uns amigos.

- É ótimo para ele. Talvez tenha ocasião de o ver quando regressar.

- Sim... - Sabrina endureceu um pouco o tom de voz, mas tinha de cumprir o que prometera a Jon. - Posso convidá-la para um chá um dia desta semana? - Com a quantidade de coisas que tinha para fazer, a última que desejava era receber visitas, mas não lhe restava alternativa.

- Seria uma honra para mim. Adoraria conhecê-la, Mistress Harte. - Pareceu fazer uma pausa ao pronunciar o apelido de Sabrina, e esta pensou que quanto mais depressa recebesse aquela estranha, mais depressa se veria livre dela.

- Esta tarde?

- Com muito gosto.

- Também a receberei com muito gosto - mentiu Sabrina. - A minha morada é...

As suas palavras foram interrompidas por um suave risinho.

- Oh, não é necessário... O Jon deu-ma há muito tempo. - Sabrina não conseguiu descortinar se a desconhecida era velha ou jovem, se era uma grande dama ou uma namorada, ou simplesmente uma mulher que conhecera por acaso. Era uma situação absurda. Quando André lhe telefonou, mais tarde, e lhe pediu que fosse ao banco fazer-lhe um recado, teve de dizer-lhe que não podia ir.

- Que aborrecimento! O Jon pediu-me que recebesse uma amiga dele que está de passagem pela cidade, e vi-me obrigada a convidá-la a tomar chá. - Deu uma olhadela ao relógio. O serviço de chá estava preparado. Sabrina envergava um vestido de flanela cinzento com gola em veludo e um colar de pérolas que o pai lhe oferecera quando ainda era muito jovem. - Já devia ter chegado há dez minutos e, pela conversa dela, parece que não vai deixar-me tempo livre para ir a lado nenhum. Peço imensa desculpa, André.

- Não se preocupe. Isto pode esperar.

André imaginou-a tal como a havia visto no dia anterior: a abrir caminho por entre a selva em que se transformara o seu antigo vinhedo, com os cabelos desgrenhados, o rosto bronzeado e os olhos de um azul quase mediterrânico. Ao pensar que se preparava para tomar chá com uma convidada, não conseguiu conter o riso. Sabrina fez uma careta.

- Não sei o que quer essa mulher, mas o Jon pediu-me que a recebesse, e estou a cumprir o meu dever. Mas preferia estar aí com vocês. Como vão as coisas?

- Ótimas. - Mas antes de ele poder dizer o que quer que fosse, a campainha tocou.

- Bolas! Aí está ela. Tenho de desligar. Telefone-me se surgir algo de especial.

- Assim farei. A propósito, quando volta para aqui? - Sabrina queria ir trabalhar com eles, aproveitando a circunstância de Jon só voltar daí a uma semana.

- Amanhã à noite. Posso ficar na casa de campo convosco? - Era a única mulher do grupo, mas conseguia adaptar-se facilmente às incomodidades da vida rústica que levava em Napa. À noite, oferecera-se até para ajudar a fazer o jantar, embora não tivesse muito jeito para cozinhar. - Tenho de reconhecer, sei dirigir melhor uma mina do que cozinhar. - Sorriu ao lembrar-se do dia em que deixara queimar os ovos do pequeno-almoço. A partir daquele dia, eram eles que cozinhavam por Sabrina, mas, em compensação, ela fazia a parte de homem do trabalho, coisa nada estranha para ela. André admirava-a por isso. Na realidade, admirava-a por muitos aspectos.

- Claro que poderá cá ficar. Temos de construir quanto antes outra casa com melhores condições. - O plano consistia em construir uma casa simples para os trabalhadores, e outra mais elegante para ele e Antoine, numa das colinas, mas não seria para já. Tinham outras prioridades. - Então, até amanhã à noite, Sabrina. Conduza com cuidado.

- Obrigada.

Sabrina desligou o telefone e desceu as escadas a correr para abrir a porta principal. Diante de si encontrava-se uma mulher de olhar inquiridor. Trazia um vestido de lã preta bastante cingido ao corpo. Os cabelos eram negros como o carvão, dando a impressão de serem pintados, mas tinha uma cara bonita, e os olhos, que pareciam estar a examinar Sabrina centímetro a centímetro, eram de um azul brilhante. Entrou e levantou os olhos para a cúpula como se soubesse que a encontraria aí.

- Boa tarde... - Vejo que o Jon lhe falou da cúpula.

- Não. - Olhou para Sabrina e sorriu. Esta teve a estranha sensação de já ter visto aquela mulher antes, mas não se lembrava onde. - Não se lembra de mim, pois não? - Os olhos nunca se afastaram dos de Sabrina, que abanou ligeiramente a cabeça. - Não é possível que se recorde. - Sabrina voltou a notar o sotaque sulista. - Pensei que talvez visse alguma fotografia minha. Um calafrio percorreu a espinha de Sabrina ao ouvir dizer com voz sussurrante. - Chamo-me Camille du Pré... Camille Beauchamp... - Sabrina sentiu uma vaga de terror quando a mulher continuou a dizer no mesmo tom: - E também Camille Thurston, ainda que por pouco tempo...

- Não podia ser. - Sabrina ficou pregada ao solo com os olhos fixos nela. Era uma brincadeira. Tinha de ser. A sua mãe morrera. Sabrina deu um passo atrás como se tivesse recebido uma bofetada.

- Acho melhor que saia... - Sabrina sentia-se como se alguém estivesse a tentar sufocá-la. A voz era tensa. Não conseguia mexer-se do mesmo sítio, enquanto Camille continuava a observá-la, sem se dar conta da enormidade do golpe que acabara de desferir. Era como se a tivesse visto surgir do mundo dos mortos. Sabrina nunca vira nenhuma fotografia da mãe, graças ao cuidado de seu pai, mas, agora, percebia a quem Jon saía. Era a imagem da avó... os cabelos... o rosto... os olhos... a boca... os lábios... Sabrina sentiu uma vontade irresistível de gritar, mas, em vez de o fazer, deu outro passo atrás. - É uma brincadeira muito cruel... A minha mãe morreu há muito tempo... - Estava quase sem alento, mas havia algo que a não deixava pôr aquela mulher na rua, algo que a fascinava; sempre se perguntara como era a sua mãe, e agora... Seria possível?... Sentira tanta necessidade de uma mãe em pequena... e, de repente, aparecia aquela mulher... - Quem podia ser? - Sabrina deixou-se cair pesadamente numa poltrona sem tirar os olhos da recém-chegada. Camille Beauchamp Thurston du Pré fazia o mesmo. Estava satisfeita com o efeito que provocara.

- Não morri, Sabrina - disse a mulher, numa voz firme. - O Jon contou-me que foi isso que o teu pai te disse. Não foi justo da parte dele.

- Que deveria ele ter-me dito? - Sabrina não conseguia desviar os olhos dela. Era praticamente impossível compreender o que acontecera. A sua mãe saíra da sepultura para se atravessar na sua vida. Agora, ali estava, em carne e osso, dando mostras de grande tranqüilidade. Não compreendo.

Camille comportava-se como se aquela cena fosse a coisa mais natural do mundo. Passeou-se por debaixo da cúpula, explicando-lhe o que acontecera. Sabrina continuava sem acreditar no que via.

- Há muito tempo, o teu pai e eu desentendemo-nos.

Esboçou um sorriso apologético, como que a tentar seduzi-la, mas Sabrina estava demasiado chocada para bajulações.

- Nunca fui feliz nesta casa. - A recordação de Napa quase a fez estremecer. - E muito menos na outra. Napa nunca foi o meu lugar ideal para viver. - Tratava-se de uma versão deformada da realidade de cinco décadas atrás. - Então, fui para Atlanta, para a minha casa, porque a minha mãe estava doente. - Sabrina olhou, incrédula. Era a primeira vez que ouvia aquela história, e ficou atônita. Por que motivo lhe mentira o pai? - Antes de me ir embora, tivemos uma discussão terrível sobre a conveniência de ir para minha casa. E, enquanto me encontrava aí, escreveu-me a dizer que nunca mais voltasse. Foi então que descobri que ele tinha uma amante aqui, em São Francisco. - Sabrina esbugalhou os olhos de espanto. Seria verdade? - Não permitiu que eu regressasse a casa, nem que voltasse a ver-te... - Começou a chorar. - A minha única filha... Estava tão desconsolada que fui para França. - Ainda a fungar, voltou a cabeça para o lado, enquanto Sabrina a observava, pasmada. Se a mulher estava a mentir-lhe, então era uma verdadeira mestra nisso. Teria convencido qualquer pessoa da autenticidade da sua dor. - Levei anos a recuperar desse choque. A minha mãe morreu... Permaneci em França durante mais de trinta anos. E, desde então, tenho andado sem rumo certo... - Na realidade, fora para casa do seu irmão Hubert logo que Thibaut du Pré morrera, e aí vivera desde então, levando uma vida muito mais cômoda do que a que lhe permitira Du Pré. Até que o destino lhe pusera Jonathan no seu caminho.

O nome Beauchamp não significara nada para Jon. Sabia que tivera uma avó com aquele apelido, mas há muito tempo que morrera ou, pelo menos, assim pensava. Mas quando, durante umas férias no primeiro ano de estudos em Harvard, foi a Atlanta com o neto de Hubert, descobriu a sua avó aí e, durante dois anos, falaram várias vezes sobre a possibilidade de ela ir para a Califórnia com ele. Ao princípio, pensou que a mãe ficaria encantada, mas depois, instintivamente, chegou à conclusão de que não seria assim. Todavia, havia algo dentro dele que o impelia a fazer a surpresa a sua mãe, algo por que lutara durante tanto tempo: pôr Camille em contato com Sabrina. Ao fim e ao cabo, pouco lhe importava que a mãe fosse apanhada de surpresa. Naquele momento, estava aborrecido com ela. Achava que era cada vez mais exigente e menos compreensiva com ele. Nem sequer lhe comprara o carro por que há tanto tempo ansiava. Não devia nada à mãe, pelo menos, era essa a sua convicção. Finalmente, dissera a Camille que chegara o momento oportuno. «A minha mãe merece esse sobressalto», pensou Jon, recordando os tempos em que ela o deixava sozinho para ir trabalhar nas malditas minas. Jon não ignorava qual era o verdadeiro propósito de Camille, que consistia em ir viver para a Mansão Thurston. Ao fim e ao cabo, a casa era sua, e não de Sabrina Harte, mas não referiu tal coisa à filha. Esperaria alguns dias para fazê-lo.

Por outro lado, Camille prometera um carro ao neto. Mas, naquele momento, tinha outras coisas em que pensar. Sabrina fitava-a, desconfiada.

- Por que razão é que o meu pai me mentiria?

- Terias gostado de saber a verdade, que o teu pai expulsara a tua mãe de casa? Ele só te queria para ele, a ti e àquela bruxa que te criou. - Jon informara-a daquele fato como de tantos outros. A odiada Hannah vivera muito tempo com Sabrina, mas já não existia. - E não permitia que eu me imiscuísse nos seus assuntos. Tinha uma amante em Calistoga, sabias? - Aquelas palavras fizeram Sabrina pensar. Há muito tempo, ouvira histórias sobre o seu pai e uma tal Mary Ellen Browne, mas sempre supusera que aquela relação tivera lugar antes de se casar com Camille. Dizia-se até que tinham um filho, mas Sabrina nunca dera muito crédito a esses mexericos. E tinha outra mulher em Nova Iorque. Aquilo soou ligeiramente a verdade, mas Sabrina pôs de lado a idéia, pois nunca acreditara que o pai tivesse tido um caso com Amélia... talvez nos últimos anos de vida, mas não antes. A relação entre eles sempre lhe parecera tão pura... e terna... Sabrina olhou para Camille num estado de verdadeira confusão.

- Não sei que pensar. Por que razão não apareceu há mais tempo? Por que só agora?

- Porque não consegui encontrar-te antes.

- Nunca fui para lado nenhum. Vivo na mesma casa que ele construiu para si. - Aquelas palavras encerravam um tom de acusação, mas Camille pareceu não notar. - Poderia ter-me encontrado há muito mais tempo.

- Nem sequer sabia se eras viva. E, além disso, sabia que o Jeremiah continuava a viver contigo e não me teria deixado ver-te.

Sabrina esboçou um sorriso cínico.

- Tenho quarenta e sete anos. Poderia ter vindo ver-me quando muito bem entendesse, estivesse o meu pai vivo ou não. - Naquele momento, Jeremiah, se fosse vivo, teria noventa e dois, e não representaria qualquer ameaça para quem quer que fosse, e muito menos para aquela cínica que tinha diante de si. E agora, Sabrina já não conseguia sentir nada por ela, além de desconfiar de tudo o que ela dizia. E por que razão é que Jon conduzira Camille até ela sem a avisar? Aquela atitude do filho desconcertava-a. Porque não a prevenira da verdadeira natureza daquela visita? Odiava-a assim tanto? Ou seria aquela a idéia que Jon tinha de uma brincadeira? Por que razão é que só apareceu agora? Queria dissipar todas as dúvidas e pôr tudo em pratos limpos.

- Sabrina, minha querida, és a minha única filha. - A voz pareceu embargar-se-lhe.

- Isso já faz parte do passado. Já não sou uma criança.

Com a mais ingênua das expressões, Camille disse:

- É que não tenho para onde ir.

- Onde é que viveu até agora?

- Em casa do meu irmão, mas ele morreu há pouco, e não tive outro remédio senão ir viver com o meu sobrinho, que é o pai do amigo do nosso Jonathan. - Aquele «nosso» crispou os nervos de Sabrina. - Mas o ambiente aí não me é muito favorável. De fato, fiquei sem casa desde que o meu marido morreu... isto é... o meu amigo... - Camille corou. Dissimulou como pôde o deslize, mas Sabrina não o deixou passar em claro.

- Voltou a casar-se, Madame du Pré? - Enfatizou o apelido e ficou à espera que Camille se explicasse. Tinha a sensação de que a partir desse momento só iria ouvir coisas desagradáveis dos lábios daquela mulher.

Todavia, Camille conseguiu desconcertá-la de novo.

- Deves compreender, minha filha... que o teu pai e eu nunca chegamos a divorciar-nos. Era sua esposa quando morreu, e continuo a sê-lo agora. - Jonathan assegurara-lhe de que, embora não tivesse conhecido Jeremiah, sabia que este não voltara a casar-se. O seu avô morrera oito anos antes de ele nascer. - Legalmente acrescentou, com ar malicioso, sou a dona desta casa.

- Como? - Sabrina pôs-se em pé de um pulo, como se tivesse recebido uma descarga elétrica.

- Pois sou. Estivemos casados até ao fim, e ele construiu esta casa para mim, sabes?

- Por amor de Deus, como pode dizer uma coisa dessas? - Sabrina sentiu vontade de a estrangular. Depois de tudo o que sofrera, aquela mulher queria tirar-lhe a única coisa que lhe restava. Onde estava quando eu precisava de si? Quando tinha cinco anos, dez ou doze?... Onde estava quando o meu pai morreu?... Quando tive de ocupar o lugar dele à frente das minas?... Quando... Sentiu um nó na garganta e teve de fazer uma ligeira pausa. - Como se atreve a voltar nesta altura? Passei uma infinidade de noites sem dormir, curiosa por saber como fora a minha mãe, a chorar ao pensar que morrera, e ainda consigo lembrar-me da dor que o meu pai sentiu... e agora aparece-me aqui a dizer que foi cuidar da sua mãe e que ele não a deixou voltar. Pois bem, não acredito numa única palavra daquilo que me acabou de contar, está a ouvir? Numa única palavra sequer! E esta casa não é sua. Pertence-me a mim, e um dia pertencerá ao Jonathan. O meu pai deixou-ma em testamento, e eu deixá-la-ei ao meu filho quando morrer. Nada disto é seu. - Chorava e tremia de indignação, enquanto Camille a observava. - Entendido? Esta casa é minha, não é sua. Maldita seja! E não denigra a memória de meu pai. Há quase trinta anos, morreu nesta casa, uma casa que sempre foi um lugar sagrado para ele... E tem razão, construiu-a para si, mas, por uma qualquer razão que desconheço, você desapareceu. É demasiado tarde para voltar com essas pretensões.

Camille estivera ausente durante quase cinqüenta anos e voltara de repente. Todavia, mostrava-se estranhamente tranqüila. Não viera desprevenida, embora ficasse espantada com a veemência de Sabrina.

-Não percebes que não podes obrigar-me a sair? - retorquiu Camille, olhando com falsa doçura para a mulher que agora se atrevia a chamar de filha. Sabrina estava furiosa.

- Não posso?! Isso é o que vamos ver! - Deu um passo para ela. - Chamo a Polícia se não sair daqui imediatamente.

- Muito bem, então mostrar-lhes-ei esta certidão de casamento e outros documentos que trago comigo. Quer gostes, quer não gostes, sou a viúva do Jeremiah Thurston, e o Jonathan e eu vamos impugnar o testamento. Depois disso, serás tu que terás de pedir-me se podes ficar aqui, e não o contrário, como agora.

- Não pode estar a falar a sério.

- Podes ter a certeza que estou. Se te atreveres a pôr-me a mão em cima, eu é que chamarei a Polícia.

- E que tenciona fazer? Viver aqui durante os próximos cinqüenta anos.

Camille não permitiu que o sarcasmo a preocupasse. Estava habituada a levar a sua avante em situações mais difíceis E, além disso, planejara longamente tudo aquilo com Jonathan. Este hesitara durante muito tempo, mas acabara por ceder. Camille sabia que ele acabaria por ceder aos seus desejos, por isso, esperara pacientemente até àquele momento. Sabrina não iria ver-se livre dela com muita facilidade.

- Viverei aqui o tempo que me apetecer.

Todavia, tinha outro plano de que nem sequer falara a Jonathan Ficaria na Mansão Thurston durante uns meses, os suficientes para dar a sensação de que se apossara da casa e pôr Sabrina à beira do desespero. Então, talvez conseguisse chegar a um acordo com a filha que lhe permitisse voltar vitoriosamente, e com dignidade, para o Sul, com o dinheiro suficiente para comprar uma casa. Não tinha o mínimo desejo de ficar a viver definitivamente no Sul, mas, de momento, era a melhor solução para ela. Sabia muito bem quais eram os seus direitos. Tanto quanto sabia, Jeremiah nunca apresentara nenhuma ação de divórcio. Quando morrera, ainda estavam legalmente casados. Contudo, se ela impugnasse agora o testamento, a querela poderia levar muito tempo a resolver-se Mais do que estava disposta a esperar.

- Não pode mudar-se para aqui sem mais nem menos. - Sabrina olhava-a, horrorizada. - Não permitirei. - Mas enquanto Sabrina falava, Camille foi até à porta e fez sinal a alguém que esperava no exterior. Um moço de fretes carregou, então, meia dúzia de malas para o interior da casa. E ainda ficaram dois baús enormes à espera. Sabrina correu para o homem. - Leve essa porcaria daqui para fora! - gritou. Referia-se à bagagem e a Camille. E, apontando para a porta, levantou de novo a voz. - E já! - Era o tom que empregara noutros tempos nas minas, mas desta vez não surtiu efeito. Pelos vistos, tinha mais medo de Camille do que dela. - Ouviste, rapaz?

- Não posso... Sinto muito, madame.

O moço de fretes tremia que nem varas verdes enquanto Camille o conduzia, com ar impassível, pelas escadas acima.

Camille ainda se recordava de tudo: a suíte principal, a biblioteca, o toucador... e mandou o moço deixar as malas no quarto de vestir, enquanto Sabrina tentava arrastá-las daí para fora; Camille olhou-a com desprezo, como se ela fosse uma criança.

- Não vale a pena. Vou ficar aqui. Sou tua mãe, gostes ou não.

E era aquela a mãe com que Sabrina sonhara durante tanto tempo e por quem nutrira tanta ternura. De repente, os olhos inundaram-se-lhe de lágrimas de raiva e sentiu-se como uma criança desamparada. Não acreditava que aquilo estivesse a acontecer. Não era de estranhar que o pai a tivesse impedido de voltar para casa. Era uma bruxa, uma monstruosidade, mas como iria ver-se livre dela? Entrou na biblioteca, telefonou a André e explicou-lhe a situação aflitiva em que se encontrava.

- Estará louca?

- Não sei - disse Sabrina, a soluçar. - Nunca vi semelhante coisa. Instalou-se aqui em casa como se só tivesse saído dela para dar um passeio. - Assoou-se ruidosamente. André lamentava não se encontrar ali para a consolar. - E o meu pai nunca me disse nada... - Voltou a soluçar. - Não compreendo... sempre me disse que ela morrera quando eu tinha um ano...

- Talvez tenha fugido. Isso acabará por se saber. Alguém tem de saber a verdade. - Ambos pensaram ao mesmo tempo na mesma pessoa, mas foi André que disse o nome primeiro. - A Amélia. Telefone-lhe para Nova Iorque! Ela contar-lhe-á tudo. Entretanto, ponha-a na rua.

- Como? De rastos? Ela já pôs a bagagem no meu quarto de vestir.

- Então, tranque-a no quarto. Ela não pode espezinhá-la dessa maneira, não acha? - André também parecia nervoso, e Sabrina sentia-se em ânsias por telefonar para Amélia de imediato. Queria saber o que acontecera entre o pai e aquela mulher que dizia ter estado casada com ele. - Quer que eu vá já para aí? - perguntou André, oferecendo-lhe os seus préstimos antes de desligar. Com a Bay Bridge, a viagem era agora mais fácil e mais curta, mas, mesmo que não fosse, teria ido na mesma. Antoine poderia tomar conta das coisas durante a sua ausência.

- -Não faça nada ainda. Voltarei a telefonar-lhe. Primeiro, quero falar com a Amélia, depois, com o meu advogado.

Contudo, não foi possível. Amélia, segundo disse a governanta, tinha uma terrível dor de garganta, e era-lhe impossível falar ao telefone. Mas Sabrina também não a queria apavorar dando-lhe conta do desespero em que se encontrava. Quanto ao advogado, gozava alguns dias de férias. «Só voltará daqui a um mês», disse a secretária com indiferença. Sabrina voltou a enfrentar Camille num estado de autêntica histeria.

- Madame du Pré... condessa... seja lá quem for, não pode ficar aqui. Se quer reclamar algum direito sobre os bens do meu pai, e se essa reclamação tiver base legal, então, poderemos falar disso com o meu advogado quando ele regressar, dentro de um mês. Entretanto, terá de ficar num hotel.

Camille olhou por sobre o ombro para Sabrina, enquanto pendurava a roupa. Já pusera um monte de vestidos da filha em cima de um cadeirão. Sabrina teve um desejo enorme de a estrangular. Pegou nas suas roupas, empurrou Camille para o lado, e atirou furiosamente as roupas da mãe para o chão. E, a plenos pulmões, gritou:

- Fora daqui! Estou na minha casa e não na sua! - Camille, porém, sem perder a calma, olhou-a como se enfrentasse uma criança birrenta.

- Sei que é difícil para ti depois de tantos anos sem nos vermos. Mas tens de te controlar. O Jon espera encontrar-nos felizes quando voltar. Ele adora-nos, e precisa de um lugar onde reine a paz.

- Não acredito no que estou a ouvir. - Sabrina fitou-a com ar irado. Era uma das raras vezes na sua vida em que se encontrava completamente desamparada. Havia poucas coisas que não conseguira resolver até então, e aquela era uma delas. - Tem de sair daqui!

- Mas, por quê? Que diferença é que isso te pode fazer? A mansão é enorme. Há espaço mais do que suficiente para todos nós. - Camille reparou no olhar assassino que Sabrina lhe dirigia. Então, com ar de quem estava a fazer um grande favor, acrescentou: - Muito bem... Alojar-me-ei no quarto de hóspedes, e nem darás pela minha presença, minha querida. - Esboçou um sorriso divertido, pegou nas suas coisas, e o moço de fretes, de que Sabrina já nem se lembrava, agarrou novamente nas malas e nos baús e, em passo apressado, levou tudo para o novo destino. Camille tinha uma memória excelente. Conduziu o moço até à porta correta e, pouco depois, ele saiu.

Quando André telefonou a Sabrina, no final dessa tarde, ainda notou o mesmo tom histérico na voz da amiga.

- Que lhe disse a Amélia?

- Não pôde falar comigo. Tem febre e uma terrível dor de cabeça.

- Oh, meu Deus... Já pôs essa mulher na rua? Pode ser uma impostora. Estive a pensar nisso depois de ter falado consigo. - Mas Sabrina limitou-se a abanar a cabeça, em silêncio.

- Não creio que seja, André. Conhece esta casa na perfeição, ao fim de tantos anos.

- Talvez alguém a tenha instigado. Algum trabalhador que tenha despedido...

Havia, no entanto, ainda outra razão que fazia crer a Sabrina que se tratava efetivamente de Camille Beauchamp: a extraordinária parecença com Jon. Disse isso a André, e este escutou-a com evidente preocupação.

- Porque acha que ela voltou?

- Ela não fez qualquer segredo disso. - Os olhos de Sabrina inundaram-se novamente de lágrimas. - Quer a mansão, André.

- A Mansão Thurston? - perguntou, horrorizado. Embora conhecesse Sabrina ainda há pouco tempo, sabia o que a mansão significava para ela. - Isso é um absurdo!

- Espero que os tribunais sejam da mesma opinião. E o meu advogado estará fora da cidade até ao próximo mês. Que posso fazer entretanto? É mais teimosa do que uma mula, e instalou-se no quarto de hóspedes como se eu estivesse à espera dela. Como pode ela fazer-me tal coisa?

- Aparentemente, é fácil. Qual é o papel do Jon em tudo isso?

Ela própria não sabia, e não queria acusar falsamente o filho.

Mas, a julgar pelo pouco que ouvira de Camille, suspeitava que havia algo de hediondo em todo o assunto.

- Ainda não sei. - Era evidente que não queria dizer mais nada sobre o assunto naquela altura.

- Posso fazer alguma coisa por si, Sabrina?

- Pode. - Sabrina esboçou um sorriso amargurado. - Ponha-ma na rua. Faça-a desaparecer. Faça com que ela nunca mais apareça.

- Quem me dera poder.

Instalou-se um breve silêncio entre ambos.

- Sonhei tantos anos com ela, curiosa por saber como é que ela seria... Um dia, cheguei a entrar secretamente nesta casa, quando tinha doze ou treze anos, e encontrei algumas coisas dela... e agora, aparece, de repente, como uma mulher do mais vil e diabólico que se possa imaginar... Quem me dera nunca a ter visto, André, se ela for exatamente quem diz ser.

- Espero bem que não seja. - Ou talvez fosse quem dizia e poderiam chegar a um acordo. Embora isso fosse extremamente difícil. De qualquer forma, era demasiado tarde para isso. Ela aparecera e não arredava pé da mansão, e agora Sabrina tinha de a pôr na rua. Sabrina passou toda a noite sem pregar olho, no quarto, a pensar no que estava a acontecer, com o desejo de irromper pelo quarto dos hóspedes adentro e arrancá-la da cama... Em vez disso, encontraram-se na cozinha, na manhã seguinte, à hora do pequeno-almoço. Contudo, Sabrina teve de reconhecer que, considerando a idade, Camille ainda era bonita, e que, cinqüenta anos antes, quando o seu pai se casara com ela, ainda devia ser muito mais. Cinqüenta anos.. ou quarenta e nove. Sabrina, sentada diante dela, observou-a, por instantes, em silêncio, perguntando-se qual teria sido o problema que a levara a sair de casa e a nunca mais voltar. Quem seria Du Pré? Talvez a chave do problema estivesse aí. Mas não disse nada a Camille. Baixou os olhos para a mesa e bebeu o chá. Não conseguia acreditar que aquilo estivesse a acontecer. Como quando morrera John, tinha a sensação de que o mundo ficara de pernas para o ar. Entretanto, Camille parecia flutuar alegremente pela cozinha, como se se sentisse feliz por ter voltado finalmente para casa. Sabrina fitou-a de novo, sem perder o ar de assombro. Camille sentou-se diante da filha, e ambas as mulheres ficaram de olhos fixos uma na outra. Depois de se terem visto pela última vez, quarenta e seis anos antes, quando Sabrina tinha um ano, as circunstâncias, ou talvez a ambição, voltavam a juntar mãe e filha. Como teria sido o comportamento de sua mãe naqueles tempos remotos, perguntou-se Sabrina. Lembrou-se, então, daquilo que Hannah lhe contara há muito tempo atrás sobre uns anéis que Camille usara como contraceptivo... que a velhota descobrira... e que o pai ficara furioso... e Sabrina viera logo a seguir. De súbito, sentiu uma vontade incontrolável de lhe perguntar se ela e o pai haviam desejado o seu nascimento, mas já imaginava a resposta e, além disso, que importava agora esse pormenor? Fizera quarenta e sete anos e tinha um filho já crescido, o pai adorara-a e a mãe estava... morta, pensou Sabrina, em silêncio. Mas a mãe não morrera. Desaparecera.

- Por que razão é que o deixou? - perguntou Sabrina, quase involuntariamente. - Conte-me a verdade.

- Já te disse - respondeu Camille, evitando o olhar da filha. - A minha mãe estava muito doente. Morreu, pouco tempo depois. - Não parecia agradar-lhe falar do assunto com Sabrina.

- Quando a sua mãe morreu, estava com ela?

- Nessa altura, encontrava-me em França. - Por que mentir-lhe? Que importância é que isso tinha? O que interessava é que voltara para a mansão. Continuava a ser a esposa de Jeremiah Thurston, e Sabrina estava aterrorizada. Jon tinha razão: Camille era mais dura do que Sabrina. O forte fora tomado, praticamente sem luta. Camille estava orgulhosa de si mesma. As coisas haviam-lhe saído melhor do que imaginara, e quando Jon voltasse tudo seria ainda mais fácil. Um aliado seria sempre uma grande ajuda. E ele prometera-lhe o seu incondicional apoio.

- Viveu muito tempo em França?

- Trinta e quatro anos.

- É muito tempo. Voltou a casar-se? - Sabrina tentava fazê-la cair na armadilha, mas Camille, com um sorriso, respondeu:

- Não. Não voltei a casar-me, embora use um apelido diferente.

- Suponho que também não seja condessa de nascimento... e esse «Du Pré»?...

Camille fixou o seu olhar no de Sabrina.

- Era o meu patrono em França.

- Sim, claro. Então, era a amante dele. - Sabrina esboçou um sorriso cândido. - Pergunto-me até que ponto é que esse fato pode prejudicar as suas pretensões. Além disso, trinta e quatro anos é muito tempo.

- Durante o qual estive casada com o Jeremiah Thurston, e continuo a estar. Por mais que tentes, não podes alterar esse fato, Sabrina.

- Continuo a pensar no interessante que seria a sua vida com o seu... patrono... - Sabrina sublinhou a palavra com a intenção de a fazer corar, mas não o conseguiu.- E agora, aparece a querer apossar-se desta casa. Não teve má idéia. Já fez os seus planos para o Dia de Ação de Graças? Ou pensa decorá-la de novo? Não perca tempo. - Sabrina falava num tom malicioso que não era normal nela.

Pouco antes do meio-dia, chegou André. Camille descia a escadaria principal e sorriu-lhe. Era um homem muito atraente, e ficou encantada ao descobrir que era francês, mas o seu interesse por ele decaiu quando percebeu de que estava do lado de Sabrina e que faria tudo o que pudesse para a expulsar da casa. Tentou falar com ele de França. Segundo parecia, passara quase toda a sua vida numa pequena cidade do Sul, mas também residira em Paris. Camille deu a entender que vivera aí faustosamente, mas André percebeu que mentia e, com ar de enfado, virou-lhe as costas. Queria falar com Sabrina a sós.

- Já guardou a sete chaves a prata e as jóias? Pode ser uma ladra vulgar com muita astúcia...

Sabrina riu-se.

- As únicas jóias que tenho são as dela. Pelo menos, a maior parte. A julgar pela desfaçatez com que age, não tardará a exigir-me que lhas devolva.

- Mas, pelo amor de Deus, não lhas dê. Continuo a achar que devia chamar a Polícia. - Não gostava do aspecto daquela mulher. Mas quando telefonou para a Polícia e tentou explicar a situação, eles disseram-lhe para não se meter em assuntos familiares. Um telefonema para um advogado que conheciam foi igualmente desencorajador. Disse que teria de levar o assunto a tribunal e que, uma vez que já se encontrava instalada em casa, seria praticamente impossível pô-la na rua até à leitura da sentença, a não ser que eles a pusessem à força fora de casa. Nesse caso, ela teria direito a pôr-lhes uma ação em tribunal.

- Ontem, não deviam tê-la deixado entrar - -disse André.

- Está louco? Como é que eu poderia saber? Irrompeu pela casa dentro como uma divisão de tanques russos e a primeira coisa que fez foi tirar as minhas roupas do roupeiro e atirá-las para cima de um cadeirão. Ainda tive a sorte de ela aceitar mudar-se para a suíte de hóspedes, se não, seria eu quem teria de dormir lá.

- Como? - André tentou conservar a calma, mas era impossível. - Está a dormir no meu quarto! Ponha-a de lá para fora! - A indignação do francês fez rir Sabrina, mas os seus olhos estavam de novo inundados de lágrimas.

- Não compreendo, André. - Fora um choque tremendo. - Por que razão é que o meu pai não me disse nada?

- Só Deus sabe o que se teria passado entre eles. A julgar pelo aspecto e os modos dessa mulher, trata-se de uma pessoa sem escrúpulos, e não acredito em nada do que ela lhe contou. É pena a Amélia não poder falar ao telefone.

A impaciência de André era tanta que, mesmo correndo o risco de parecer descortês, insistiu para que Sabrina voltasse a telefonar a Amélia, e desta vez teve a sorte de a chamarem ao telefone. Tinha uma rouquidão tremenda e queixava-se de dor de garganta, mas, pelo menos, conseguiu pô-la ao corrente de tudo, contando-lhe a aventura de Camille com Du Pré, que a levara a abandonar o esposo e a filha.

- Lamento que ela tenha voltado para te atormentar dessa maneira. Ela já então era uma rapariga extremamente egoísta e com muito mau coração; pelos vistos, não melhorou com a idade.

Sabrina esboçou um sorriso amargo ao ouvir as palavras da amiga.

- Não creio que em nova fosse melhor do que agora. - Então, pensou no que Amélia lhe contara sobre a fuga de Camille. - O meu pai deve ter ficado de coração destroçado.

Agora compreendia melhor a relutância de ele falar dela. Nunca recuperara do choque.

- Sim, ficou muito magoado. Mas tinha-te a ti. - Amélia sorriu, recordando aqueles tempos. - Eras a alegria da sua vida. Creio que com o passar dos anos quase chegou a esquecê-la. O Jeremiah prosseguiu a sua vida. Mas os primeiros anos... foram muito duros.

Sabrina resolveu fazer-lhe uma pergunta.

- É verdade que o meu pai tinha uma amante e que essa foi a razão de ela o ter abandonado?

- De modo nenhum! - Amélia pareceu ficar ofendida.

- O Jeremiah sempre foi fiel à Camille. Isso posso eu garantir-te. De fato, andou um bocado preocupado por demorares tanto tempo a vir ao mundo. Não queria contar-lhe a perfídia com os anéis contraceptivos e, embora se lembrasse muito bem desse assunto, não quis referi-lo a Sabrina. Segundo parece, para grande desgosto do teu pai, a Camille teve algo a ver com esse atraso, mas não vale a pena falar disso agora, minha querida. Não permitas que tudo isto te preocupe. Tens mas é que a pôr no olho da rua.

- Quem me dera! Segundo parece, temos de levar o caso a tribunal.

- É uma autêntica desgraça que te caiu em cima, minha pobre menina. - Aos quarenta e sete anos, Sabrina já não era uma menina, mas as palavras de Amélia tocaram-na profundamente. - Essa mulher merecia levar um tiro. O Jeremiah deveria ter feito isso há muito tempo. Agora não terias tantos problemas.

- Talvez. - Sabrina sorriu, grata por ter alguém com quem desabafar. - Depois, conto-lhe como é que isto tudo acabou.

- Não te esqueças. A propósito, como está o André? Ouvi dizer que vocês os dois estão a reconstruir o mundo e o vão encher de bêbados.

- Um dia destes. Sabrina riu-se da descrição que a amiga fazia dos seus planos. - E você, como vai?

- Muito bem. Só esta dor de garganta não me larga. Não penso morrer por agora, não tenhas medo.

- Ótimo. Precisamos de si.

- Mas não precisam dela. E nunca precisaram. Por isso, ponham-na a andar quanto antes.

- Amém. - Sabrina agradeceu-lhe e desligou o telefone. Voltou-se, então, para André. Não poderiam fazer nada até levarem o caso a tribunal. Entretanto, Camille continuava a dar voltas pela casa com um vestido de seda branco e brincos com uns diamantes que Sabrina suspeitava não serem verdadeiros. Sabrina olhou para André, desesperada. - Que vou eu fazer?

A perspectiva de viver com ela até que os tribunais resolvessem o caso quase dava com ela em doida. Nada melhorou quando Jon chegou, no dia seguinte. Cumprimentou Camille como uma avó há muito esperada. Sabrina foi, então, até ao quarto dele e fechou a porta atrás de si. Encontrou-o sentado na cama. O rapaz não parecia ter muita vontade de falar, mas Sabrina não lhe deu hipótese de escolha.

- Quero falar contigo, Jon.

- Sobre o quê? - Ele sabia muito bem do que ela lhe queria falar, mas dava-lhe gozo pensar na fúria em que ela devia estar. Que diabo! Porque não? A mãe nunca lhe dera aquilo que ele mais desejava: a viagem para a Europa e o carro que lhe pedia há três anos. Não fazia mais do que lamentar-se da sua pobreza e de andar de um lado para o outro da casa a gemer. Pois bem, agora a avó tirar-lhe-ia a Mansão Thurston das mãos, e assim poderia ir viver para Napa com o agricultor francês com quem andava tão atarefada a plantar vides. E ele e a avó poderiam viver esplendorosamente na Mansão Thurston. E Camille prometera-lhe comprar um carro logo que as coisas estivessem a seu gosto. Iria ver cumpridos os seus desejos, e estava impaciente de os ver transformados em realidade. Com carro próprio, o seu último ano de estudos ia ser muito divertido... partindo do princípio de que ele e Camille conseguiriam a tempo o que haviam planeado. Depois, a viagem para a Europa, o prêmio pela licenciatura, como a avó também lhe prometera... Em seguida, iria para Nova Iorque, onde encontraria um bom emprego, razão por que pouco lhe importava quem iria ficar a viver na casa. Provavelmente, nunca mais voltaria a residir nela, a não ser por curtos períodos de tempo. Considerava que São Francisco era uma patética cidade provinciana. Depois de ter passado três anos em Cambridge, estava preparado para viver em Nova Iorque, embora não desgostasse de outros lugares... Boston... Atlanta... Filadélfia... Washington...

- Quero que me dês uma explicação.

Os agradáveis pensamentos de Jon viram-se interrompidos pelo olhar fulminante da mãe. Sabrina quase tremia de raiva. Não conseguia evitar. Mas já não podia fazer-lhe nada. A avó encontrava-se já em casa, e conseguira introduzir-se nela pelos seus próprios meios. Ao princípio, quisera que Jon a deixasse entrar numa altura em que Sabrina se encontrasse fora, mas ele recusara-se a ir tão longe. Então, Camille resolvera agir por sua conta e risco. Jon sabia que ela conseguiria. Ainda era mais dura do que Sabrina, mas parecia ter muito mais em comum com o neto. Como Sabrina receava, pensavam da mesma maneira, e era precisamente sobre isso que queria falar também com Jon.

- Que papel desempenhaste nisto tudo? - O olhar era fulminante.

- Que queres dizer?

- Não te faças desentendido. A tua avó disse-me que te conhece há três anos. Por que razão nunca me disseste?

- Pensei que ficarias chateada. - E desviou o olhar. Sabrina, sem conseguir conter-se, deu-lhe uma bofetada.

- Não me mintas!

Jon levantou os olhos para ela, desconcertado. A mãe nunca o olhara daquela maneira. O olhar doeu-lhe mais do que a bofetada, mas ela nunca se sentira tão atraiçoada; quanto mais pensava nisso, mais crescia a sua indignação.

- Bolas, que te interessa quem é que eu conheço! Tenho de te contar tudo o que faço?

- Ela é a minha mãe, Jon, e tu conheceste-a há três anos. Por que razão é que a ajudaste a cometer esta infâmia?

- Não a ajudei a fazer nada. - Encolheu os ombros. - E bem vistas as coisas, talvez tenha tanto direito a possuir esta casa como tu. Disse que quando o avô morreu estava casada com ele.

-Não podias ter-me avisado? - O rapaz não respondeu. Isso fez com que Sabrina lhe gritasse: - Não podias? Sabes o que é o pior de tudo isto, Jon? O que me fizeste. Ela nunca foi uma mãe para mim, mas tu és meu filho, e não só permitiste que acontecesse esta atrocidade, como também a ajudaste a cometê-la. Não tens vergonha?

O rapaz lançou-lhe um olhar hostil, e algo começou a morrer dentro de Sabrina ao ouvi-lo responder:

- Não sinto nada.

- Então, dás-me pena.

- Não preciso nada de ti - disse Jon, enquanto a mãe saía do quarto.

Sabrina não conseguia suportar o que estava a ver no filho. Era extremamente parecido com Camille. Durante anos, não conseguira achar-lhe parecenças com ninguém. Era muito diferente do avô, do pai, dela própria, mas agora sabia donde lhe vinham os genes. Era exatamente igual a Camille, e tão infame como ela. Depois de tudo o que fizera pelo filho, recebia como prêmio a sua infidelidade. Alguma vez, nalgum lugar, algo devia ter-se entortado nele, algo que jamais voltara a endireitar-se; e agora era já demasiado tarde para corrigir o mal. Sobretudo se Camille continuasse ali a estimular-lhe os seus piores instintos. Durante os dias seguintes, viu-os a colaborar e a conspirar, a cochichar coisas ao ouvido e a sair juntos. Sabrina sentia-se completamente abandonada pelo filho. Avó e neto haviam-se conluiado contra ela. Tinha muitas coisas que fazer, mas o estado de espírito em que se encontrava não lhe permitia concentrar-se em nada. E, por outro lado, não se atrevia a deixar a casa para ir a Napa ver André e o andamento dos trabalhos. Temia que, se saísse da mansão, lhe fizessem algo pior, como roubar-lhe tudo o que pudessem ou, quiçá, mudar as fechaduras das portas para que ela não pudesse voltar a entrar em casa.

- Não pode ficar aí, aterrada, durante os próximos meses. - André estava preocupado com ela.

- Acha que isto ainda vai levar assim tanto tempo?

- Talvez. Sabe o que disse o advogado.

- Acho que dou em doida antes disso.

- Não endoideça antes de cá vir ajudar-me a tomar umas decisões relativas aos vinhedos. - Então, teve uma idéia. - Sabe uma coisa? Vou mandar o Antoine dar uma espreitadela às coisas aí em casa enquanto você estiver aqui. E quando você regressar a casa, ele poderá voltar para Napa.

Era um plano bem estudado e funcionou. Aquilo foi exatamente o que fizeram durante os dois meses seguintes. Entretanto, o advogado de Sabrina regressou e tomou conta do caso, embora dissesse que era muito pouco o que podiam fazer de momento O assunto, naturalmente, teria de resolver-se em tribunal, o que poderia levar outros dois meses. Chegou o momento de Jon ter de voltar para a universidade e, quando isso aconteceu, a frieza que existia entre mãe e filho continuava igual. O rapaz foi jantar fora com Camille na noite anterior à sua partida, e Sabrina fez o mesmo na companhia de André e Antoine. O deplorável estado das relações entre Jon e a mãe era praticamente irreparável, ao ponto de Sabrina ter a sensação de ter perdido o filho E, em certo sentido, assim acontecia. De momento, era a única coisa que Camille conseguira. Prometera a Lua ao rapaz para quando conseguissem expulsar Sabrina da casa. Jon parecia guardar rancor à mãe e, inclusive, manter desejos de vingança contra ela, pela morte do pai e pela decisão de Sabrina dirigir pessoalmente as minas. Ele nunca lhe perdoaria essas coisas, e fá-la-ia pagar pelo resto da vida. Um dia, falou disso a André enquanto passeavam pelos vinhedos.

- Devo ter falhado com ele. Se o pai não tivesse morrido, eu não teria voltado a trabalhar. Eu não trabalhava a tempo inteiro, mas suponho que ele queria mais do que aquilo que eu podia dar-lhe.

- Talvez seja um eterno insatisfeito. Não se pode fazer nada para compensar esse tipo de pessoas.

- Gostaria de resgatá-lo das mãos de Camille. Ainda não viu aquilo que ela é, mas tenho a certeza de que isso acontecerá. Então, sofrerá uma grande desilusão.

André achava que o rapaz merecia sofrer essa desilusão pela sua perfídia. Não prestava como pessoa. André não gostava do rapaz, mas nunca diria a Sabrina. Era o seu único filho e, apesar da dor que lhe ia na alma, continuava a amá-lo. Era seu filho. Antoine também a tentava confortar. Consciente daquilo por que Sabrina estava a passar, mostrava-se extremamente amável e atencioso com ela. De vez em quando, trazia-lhe flores, cestos de fruta e outros pequenos presentes. Aquelas atenções significavam muito para ela, e sempre que as recebia contava a André, elogiando o caráter do filho. O homem ficava orgulhoso, e Sabrina invejava a amizade existente entre pai e filho. Esperava que, daí a alguns anos, quando Jon tivesse a mesma idade que Antoine, estivesse mais maduro e se aproximasse mais dela. Todavia, algo lhe dizia que aqueles sonhos não chegariam a transformar-se em realidade. Sempre que se sentia invadida por semelhantes pensamentos, orientava a sua mente para os vinhedos que estava a criar com André e para a ação que tinha em tribunal contra Camille. Sabia que a data da audiência estava próxima, o que não parecia apoquentá-la. Continuava a jogar bem as suas cartas. Quando faltava apenas uma semana para a audiência, bateu à porta da suíte de Sabrina. Era dia nove de dezembro e deviam comparecer perante o tribunal no dia dezesseis do mesmo mês,

- Sim?

Sabrina tinha o robe vestido e os pés descalços. Ainda não acreditava no que Camille lhe fizera. Há mais de cinco meses que aquela mulher residia na mansão. A vida de Sabrina era um interminável pesadelo do qual parecia nunca mais acordar. Camille andava sempre por perto, deambulando pela mansão como se fosse a dona. Muitas vezes punha os seus vestidos baratos e as peles velhas e ia pavonear-se pela cidade. De vez em quando, desaparecia um objeto valioso da casa, e Camille garantia que nada tinha a ver com isso, mas Sabrina sabia que não era verdade. Todavia, não podia evitar aqueles furtos, pois era-lhe impossível vigiá-la continuamente. Além disso, tal como confidenciara a André há algum tempo, Camille tentara reclamar as suas jóias, mas Sabrina não lhe dera ouvidos. Por uma ironia do destino, tinha de tolerar a presença daquela mulher em sua casa, mas era a única coisa que lhe permitia. E quando começaram a chegar faturas de Camille e Jon, negou-se a pagá-las. Ambos pareciam tentar tudo o que podiam para a arruinar, o que teriam conseguido se Sabrina tivesse pago a montanha de faturas referentes a coisas que compravam em seu nome. Deixou que as faturas se acumulassem e depois enviou-as por correio para Jon, que se encontrava na universidade. Já tinha vinte e um anos e, tal como Sabrina lhe dissera, se ele queria viver daquela maneira, teria de tomar a responsabilidade de todos os gastos. Mas a avó asseverara-lhe que ela própria se responsabilizaria por tudo logo que pusesse Sabrina fora da mansão, e, na sua opinião, já não faltava muito para isso. E também deixou que as faturas de Jon se acumulassem. Havia centenas delas, todas por pagar, em cima da secretária de Jon. Iria dá-las à avó quando voltasse a vê-la, tal como fazia com a mãe, noutros tempos, quando regressava a casa. Esses dias, porém, já faziam parte do passado, como a mãe lhe dizia constantemente. Graças a Deus, não tinha de a escutar com muita freqüência, pois encontrava-se a quase cinco mil quilômetros de distância. Mas Camille e Sabrina encontravam-se a apenas um metro de distância uma da outra quando esta última abriu a porta do quarto

- Que quer?

- Pensei que talvez pudéssemos falar.

Quando tinha um plano em mente, Camille costumava expressar-se num tom marcadamente sulista. E o que mais repugnava a Sabrina era a hipótese de continuar a pensar naquela voz durante o resto da sua vida... e a preocupação de poder parecer-se em algo a Camille ou comportar-se como ela... um simples gesto em comum teria sido repugnante O que não podia evitar era que Jon se parecesse tanto com a avó. Todavia, nada disso se manifestava agora no seu olhar.

- Falar? De quê? Não tenho nada para lhe dizer.

- Não preferias falar em vez de ir para os tribunais?

- Não necessariamente - respondeu Sabrina num tom frio. Cada vez estava mais convencida de que iria desmascará-la. O seu advogado dissera-lhe que quanto mais refletia sobre o caso, mais longe estavam as possibilidades de Camille ganhar. O testamento de Jeremiah excluía-a sem mencionar o seu nome. «quaisquer pessoas com quem possa ter casado.» Sabrina recordava-se que aquela cláusula lhe parecera estranha quando da leitura do testamento, mas estava tão transtornada nessa altura que não procurara esclarecer o assunto. Tinha todas as probabilidades de ganhar, mas a questão tinha de ser esgrimida em tribunal, por melhores que fossem as perspectivas. A não ser, claro, que Camille desistisse, coisa muito pouco provável depois de ter-se agarrado durante tanto tempo ao que considerava seu. - Não me importa ir para os tribunais. - Camille olhou-a com um sorriso nos lábios.

- Não quero tirar-te a mansão, minha filha.

Sabrina teve vontade de a esbofetear e de lhe bater com a cabeça no chão. Era possível que depois de a ter torturado quase seis meses, invadindo a sua vida e fazendo os possíveis por lhe roubar o filho, dissesse que não queria tirar-lhe a mansão? E atrevera-se a chamar-lhe «filha».

- Estou quase com cinqüenta anos, e não sou sua filha. Nunca o fui. Não tenho nada a ver consigo. Mete-me nojo. E, se dependesse de mim, punha-a a pontapé na rua agora mesmo.

- Partirei esta semana... - A voz era um insidioso sussurro - ...se me pagares o preço da minha renúncia.

Sem dizer palavra, Sabrina fechou-lhe a porta na cara.

Para André, era torturante ter de assistir ao sofrimento de Sabrina sem poder fazer nada. A dezesseis de dezembro, assistiu ao julgamento na companhia dela e, pela primeira vez, Camille estava com ar pálido e assustado. Fora longe demais, e deu-se conta disso quando tentou lisonjear o juiz, que ficou chocado tanto com a sua versão dos fatos como com o seu descaramento de se instalar na Mansão Thurston, atormentando Sabrina durante tanto tempo, depois de a ter abandonado quando ainda era criança. Amélia fizera um depoimento em Nova Iorque. Apesar da sua idade, tinha uma memória excelente, e descrevera com perfeita coerência os acontecimentos relacionados com o caso que haviam tido lugar uns quarenta e seis anos antes. Camille quase estremeceu ao olhar ao seu redor, na sala de audiências. Estava só, e comportara-se como uma louca. Nunca imaginara que as coisas chegassem tão longe. Sempre pensara que Sabrina lhe daria dinheiro para se livrar dela, e agora falava-se que tinha de pagar uma indenização à filha por perdas e danos e uma renda relativa aos seis meses de ocupação ilícita da mansão. Também vieram à baila as elevadas faturas, tanto dela como de Jon, que havia por pagar. E, quando tudo terminou, teve de dar graças a Deus por ter recebido apenas uma forte reprimenda do juiz. Este ameaçara mandá-la para a cadeia, e deu-lhe exatamente uma hora para, sob a vigilância de um ajudante do xerife, fazer as malas e sair da Mansão Thurston.

Sabrina nem queria acreditar que o pesadelo chegara ao fim. E, enquanto Camille descia a escadaria principal pela última vez, observou-a sob a suntuosa cúpula de vitrais. Não havia ódio nos olhos de Sabrina. Não havia absolutamente nada. Perdera demasiado durante aqueles últimos seis meses para sentir algo por Camille naquele momento. Perdera a paz de espírito e, pior ainda, o seu filho.

- Pensei que, depois de tudo terminado, poderíamos ser amigas - disse Camille com voz nervosa e hesitante. Brincara com o fogo e queimara-se E agora tinha de voltar para Atlanta com o rabo entre as pernas. Ver-se-ia obrigada a viver de novo com o jovem Hubert. Nunca pensara que voltasse a precisar dele, mas enganara-se

Falando com voz suficientemente forte e clara, de modo que o ajudante do xerife também pudesse ouvir, Sabrina disse para Camille.

- Não quero vê-la nem ouvi-la nunca mais. E, se voltar a importunar-me, chamarei a Polícia e comunicarei ao tribunal. Entendido? - Camille fez um mudo gesto afirmativo com a cabeça. - E mantenha-se afastada do meu filho.

Sabrina perdera aquela batalha. Pôde comprová-lo, no dia seguinte, quando, depois de ter recuperado a lucidez e tranqüilidade, telefonou a Jon e este lhe respondeu que não iria passar o Natal em casa. Estava a pensar apanhar o comboio para o Oeste no dia dezoito. Ia para Atlanta. O tom de voz era acusador.

- Ontem, falei com a avó. Disse que subornaste o juiz. Sabrina ficou perplexa. E, pela primeira vez desde que o juiz ordenara a Camille que abandonasse a mansão, os olhos inundaram-se-lhe de lágrimas. Seria possível que Jon nunca viesse a compreendê-la e que continuasse a odiá-la até ao fim da vida, e que fosse tão parecido com a avó.

- Jon, não fiz tal coisa. - Esforçou-se por conservar a calma. - Nem sequer creio que o tivesse podido fazer. O juiz era um homem honesto, e viu bem o tipo de pessoa que ela é.

- Ela é apenas uma velhota à procura de um lugar onde possa viver. Sabe Deus para onde é que irá agora.

- Onde é que estava antes?

- Em casa de um sobrinho, a viver da caridade das pessoas. Agora, não terá outro remédio senão voltar para lá.

- Esse é um problema dela.

- E tu estás-te nas tintas.

- Pois estou. Lembra-te de que ela tentou tirar-me esta mansão, Jon!

Porém, o filho negou-se a compreendê-la. E não parou de lhe chamar pega.

Nessa noite, Sabrina pôde, finalmente, descansar na cama, sozinha na casa que, novamente, voltava a ser sua. Mas tinha a perfeita consciência de que, depois de tudo, não ganhara. Camille Beauchamp Thurston é que ganhara: roubara-lhe Jon.

Esse Natal, sem Jon, teria sido desoladoramente solitário para Sabrina se não tivesse contado com a companhia de Antoine e André. Não a deixaram ficar sozinha. Apareceram na Mansão Thurston com um abeto e ponche de ovo que Antoine preparara, e brincaram com ela, fazendo os possíveis para a animar. Depois, foram à missa do galo e entoaram cânticos de Natal, enquanto as lágrimas corriam pelas faces de Sabrina. Os três formavam um grupo alegre e Sabrina estava-lhes grata por isso. Sem os dois homens, teria ficado sozinha em casa, a chorar e a pensar no sofrimento que Camille lhe fizera passar, mas, com os dois franceses ao seu lado, foi-lhe impossível ter um só instante de depressão. No dia de Natal, o seu estado de espírito melhorara muito, e Antoine regressou a Napa para voltar a reunir-se aos seus Mas André ficou com Sabrina para poderem ir juntos ao banco no dia seguinte. Embora estivesse tudo a correr bem, queriam pedir outro empréstimo para comprar o equipamento de que necessitavam. André mostrava grande habilidade e acerto na forma de conduzir as coisas. Nessa altura, já haviam limpo os terrenos.

- Até a minha selva me parece agora maravilhosa - gracejou Sabrina. - Já nem a reconhecia.

- Espere até provar o nosso vinho.

- André levara uma garrafa de Moet & Chandon. Quando Antoine saiu, sentaram-se ambos a contemplar em silêncio a árvore de Natal. André voltou-se, então, para Sabrina com o olhar transbordante de admiração. Sofrera imenso nesse ano. Mas, como Amélia lhe dissera há muito tempo, era uma mulher de uma fibra incrível. Extraordinária. Amável e afetuosa, mas mais forte do que qualquer outra mulher que conhecera. Talvez até mais do que Amélia. Esta era como Sabrina desejaria que fosse a sua mãe. Mas já não podia iludir-se. Sabia exatamente como era a mãe. Uma cadela, uma pega, que tentara despojá-la desonestamente de tudo o que tinha. Inclusive, antes de abandonar a mansão, roubara-lhe um pequeno quadro, escondendo-o numa das malas. Sabrina sentiu uma enorme sensação de alívio ao ver-se livre dela.

- Foi um ano impressionante, não acha? - perguntou Sabrina, com os olhos fixos na árvore.

- Se foi! - André riu-se dos termos que ela utilizou e da sua expressão de surpresa, mas Sabrina sorriu.

- Para mim, foi bom e foi mau. Você e Antoine foram os melhores presentes que eu podia ter. - André oferecera-lhe uma bonita camisola de caxemira vermelha e um chapéu a condizer. Sabrina comprara-lhe um casaco e um par de luvas. - Não foi mau de todo.

- Claro que não.

Porém, ambos sabiam que ela estava triste por causa de Jon. Embora Sabrina falasse pouco dele, era-lhe impossível esconder a tristeza que lhe ia na alma. Sendo algo demasiado penoso para fazer disso objeto de conversa naquele momento, optou por dissimular a sua dor gracejando com André.

No dia seguinte, depois da reunião no banco, partiram juntos para Napa, onde Sabrina passou o resto da semana. Já não tinha medo de deixar a Mansão Thurston sem vigilância. Mandara mudar as fechaduras no mesmo dia em que Camille partira, e nem sequer Jon tinha ainda as novas chaves. Sabrina dispunha agora dos seus próprios aposentos na casa de campo que André alugara oito meses antes. Ele e Antoine estavam já a planejar a construção da sua outra casa, mas, de momento, alojavam-se todos na única que tinham, o que não desagradava a Sabrina. Os homens demonstravam-lhe grande afeto, e ela começava já a arranhar o francês com eles.

Depois do dia de Ano Novo, André levou-a de novo para a Mansão Thurston. Atravessaram a Bay Bridge, subiram a Broadway Street, cortaram, então, para sul, para a Califórnia Street, depois, à direita, para a Taylor Street, chegando, finalmente, a Nob Hill. André estacionou o carro em frente da Mansão Thurston e levou as malas para dentro. Queria ficar um ou dois dias na cidade a trabalhar com Sabrina. Antoine podia tomar conta das coisas em Napa. Nessa noite, passaram várias horas na biblioteca a tratar de papelada. Partilhavam a responsabilidade do negócio e, de certo modo, aquela tarefa trouxe à lembrança de Sabrina os velhos tempos nas minas, depois da morte do pai. Ao referir isso a André, este disse-lhe:

- Deve ter sido uma época muito difícil para si.

- Se foi! - Sorriu. - Mas aprendi muito.

- Já me dei conta disso. Mas não se pode dizer que tenha sido uma maneira agradável de aprender.

- Talvez não estivesse destinada a aprender as coisas da maneira mais fácil.

Sabrina voltou a pensar em Camille e Jon e na decepção que lhe haviam causado. André mirou-a nos olhos e fez-lhe uma pergunta inesperada, sobre algo em que andava a matutar há muito tempo. Há já dez meses que eram bons amigos, mas nunca haviam falado de certas coisas. Sabrina raramente falava de John Harte, e eram poucas as vezes que André lhe falava da esposa. Ela morrera quando Antoine tinha apenas cinco anos, e este vivera sem companhia feminina durante muito tempo. Nos seus últimos tempos em França, apaixonara-se por uma mulher, mas agora tudo terminara. Numa carta recente, ficara a saber que ela se inclinara para outro homem. Mas a notícia não o deixou de coração destroçado. Já temia isso quando, ao deixar a França, ela não o quisera acompanhar até à América. Agora interessava-lhe muito mais a vida de Sabrina, e já tinha à-vontade suficiente para perguntar.

- Como era o seu marido? - Sabrina sorriu para o amigo.

- Maravilhoso. - E deixou escapar uma gargalhada. - Para dizer a verdade, ao princípio, não nutríamos muita simpatia um pelo outro. Ele andava sempre a tentar convencer-me a vender-lhe as minas. Era o dono de outra mina rival. - André riu-se ao imaginar as faíscas que isso devia ter provocado. - Mas acabamos... - Esboçou um sorriso nostálgico. - Acabamos por chegar a acordo. - O rosto retomou o ar sério. - Mas nunca permiti que fundíssemos as nossas minas, nem sequer nos últimos anos. Mas depois tive pena de não o fazer. Passou um mau bocado. E para quê? Depois da sua morte, acabei por as fundir. Foi uma estupidez não o ter feito antes.

- Por que razão não o fez?

- Julgo que queria provar-lhe algo: que era independente e não uma parte do meu marido. Ele fez-me a vontade e manteve as coisas como eu queria, mesmo sabendo que daquela maneira tudo ficava mais complicado. Tinha muita paciência. - Fitou André nos olhos. - O que então aprendi com ele permitiu-me ser agora uma melhor sócia sua.

- É uma mulher maravilhosa - disse ele, sorrindo, e depois fez uma careta. - Exceto a cozinhar e a falar francês!

- Como pode dizer uma coisa dessas? - Pôs-se a rir. - Na semana passada, fiz um omelete.

Era uma da manhã, e não se fartavam de rir, na biblioteca, apesar do cansaço que sentiam, unidos num ambiente de perfeita harmonia.

- E viu a indisposição que nos arranjou? - André adorava provocá-la, e puxou-lhe uma das tranças. Aos seus olhos, ela parecia muito mais jovem do que era. Quem não a conhecesse bem dar-lhe-ia menos uma dúzia de anos. - Parece uma índia. - Aquelas palavras fizeram com que Sabrina se recordasse de Lua da Primavera. E falou do fascínio que a rapariga índia lhe despertava e contou-lhe que ela a salvara de ter sido violada por Dan. - Não levou uma vida muito aborrecida. Não acha que o negócio dos vinhedos é demasiado calmo para si?

- É a melhor coisa a que posso dedicar-me neste momento. Julgo que não conseguiria voltar a suportar a intranqüilidade e os problemas daqueles tempos. Um dia, mais de trezentos homens despediram-se das minhas minas. Não queria voltar a passar por tudo isso.

- E não voltará. A partir de agora, a sua vida não poderá ser mais tranqüila. Prometo. - Sabrina esboçou um sorriso triste ao pensar que aquela paz era bem merecida.

- Oxalá a sua promessa se possa estender a todos nós - disse ela, pensando em Jon. - E você, André? Que mais pode desejar da vida que termos êxito com os vinhos? - Deu-lhe um beliscão na orelha e André voltou a puxar-lhe a trança.

- A coisa não é tão fácil para mim, ma vieille... Que mais desejo da vida? - O semblante tomou um ar sério. Tinha uma boa resposta para aquela pergunta, mas não se atreveu a expressá-la. - Não sei. Suponho que tenho tudo o que desejo. Aqui, só me falta uma coisa. - Aquelas palavras surpreenderam Sabrina. Parecia tão satisfeito.

- O que lhe falta?

- Companhia. Preciso de alguém com quem compartilhar a vida, além do Antoine, porque sei que não vou tê-lo sempre a meu lado. O natural é que um dia vá para o seu próprio lugar. Não sente também essa necessidade? - Há muito tempo que André estava só, há quase um ano. Sabrina já levava muito tempo de solidão, mas já se acostumara a ela. Desde John, não houvera outro homem na sua vida. Já referira isso a André noutra ocasião. Este achou notável, mas não o surpreendeu. Agora, conheciam-se bastante bem, e teria sabido se havia alguém na vida de Sabrina. - Como conseguiu ficar só durante tanto tempo? - Aquele fato impressionara-o. Dois anos depois da morte da sua esposa, tivera uma aventura séria, seguida de outras menos sérias e duradouras. Estava acostumado a ter uma mulher na sua vida, e agora era essa falta que sentia. - É possível que não ache a sua solidão insuportável? - perguntou André, intrigado.

Sabrina deixou-se rir.

- Não. A solidão, às vezes, é agradável. Também há momentos de desamparo, não o nego, mas basta não nos deixarmos arrastar e pormo-nos a pensar noutra coisa. É como ser freira - gracejou.

- Que desperdício. - André olhou-a com o seu ar tipicamente francês e riram-se. - Não estou a brincar. Você é uma mulher encantadora, Sabrina, e ainda é jovem.

- Eu não diria tanto, meu amigo. Faço quarenta e oito em maio. Não sou propriamente uma rapariguinha.

- Está na primavera da vida.

- Agora já sei que está louco, André.

- De modo nenhum!

A mulher com quem estivera envolvido em França era mais velha e muito menos bonita do que ela. Sabrina teria sido um presente requintado para qualquer homem. Era uma mulher muito especial e André tinha consciência disso. Nunca se teria aproximado dela apenas para se divertir. Sabrina significava muito mais para ele. Eram duas da manhã quando se separaram, e encontraram-se de novo ao pequeno-almoço, bem vestidos, com o aspecto de homem e mulher de negócios. Mas, desde a conversa mantida na noite anterior, sentiam-se mais unidos, Sabrina, mais à vontade para lhe falar de John, e ele de algumas das suas amizades femininas. Era como se estivessem a sondar-se. Inesperadamente, André disse-lhe que resolvera não regressar a Napa na quinta-feira, como previra e, em vez disso, convidou-a para jantar fora.

- Há algo para celebrar? - perguntou Sabrina, surpreendida. Estava fatigada. Fora uma semana muito longa, e ainda perdurava o cansaço do julgamento, que tivera lugar no mês anterior. Ficara praticamente de rastos, e pouco saíra desde então. Talvez lhe fizesse bem, pensou.

- Por acaso não podemos ir jantar fora pelo simples prazer de o fazer?

- Tem razão, André. - A idéia agradara-lhe. Retirou-se, então, para os seus aposentos, para se vestir. Quando, pouco depois, voltaram a encontrar-se ao fundo das escadas, sob a cúpula, Sabrina exibia um vestido negro que André nunca lhe vira.

- Está muito elegante, madame - gracejou André, enquanto a Sabrina não passou despercebida a beleza do francês. Haviam-se acostumado tanto um ao outro dentro de um trato simplesmente amistoso, que Sabrina poucas vezes reparava na beleza de André, mas, nessa noite, sentia-se extremamente feminina e atraente.

André levou-a no seu carro até ao restaurante e tomaram um aperitivo no bar. Pouco depois das oito, sentaram-se à mesa. Passaram um bom bocado. Ele, a contar coisas da sua vida em França; ela, a falar-lhe de pormenores da sua vida nas minas, assim como de si mesma. Depois, regressaram à Mansão Thurston. Mas, nessa noite, ela convidou-o para a sua sala de estar privada. Habitualmente, reuniam-se na biblioteca, mas aquela sala era mais confortável e mais íntima. Sabrina pôs lenha na lareira e acendeu-a antes de André ir buscar algo para beber. André encheu dois cálices de conhaque e beberam-no diante da lareira, com os olhos fixos no brilho das brasas. De repente, Sabrina voltou-se para ele.

- Obrigada por esta noite maravilhosa, André... obrigada por tudo. Você tem sido muito bom comigo. E esta saída fez-me muito bem.

André ficou sensibilizado com o que ouvira e, esticando o braço, acariciou-lhe a mão com os dedos.

- Faria qualquer coisa por si, Sabrina. Espero que saiba.

- Já fez.

Então, como se ambos tivessem estado à espera disso, André inclinou-se e beijou-a nos lábios. Nenhum dos dois pareceu surpreendido. Acharam o fato natural... e assim continuaram, sentados lado a lado, de mãos dadas, a beijarem-se, junto à lareira. Então, ao fim de alguns instantes, esboçou um sorriso terno.

- Parecemos um par de miúdos.

- E não somos? - E sorriu

- Não sei.

André apagou com um beijo as palavras de Sabrina, e esta sentiu surgir de dentro de si um desejo por aquele homem que até então não sabia existir no seu intimo. Tomou-a nos braços e, de imediato, deitaram-se no chão, diante da lareira André sentiu o seu corpo aquecer e as mãos começaram a percorrer a pele de Sabrina, que ficou surpreendida consigo própria por não se opor ao comportamento do amigo. Era como se ambos já estivessem à espera do que estava a acontecer. André esboçou, então, um sorriso confiante.

- Acha que devo continuar? - sussurrou-lhe André ao ouvido. Não queria fazer nada de que ambos se arrependessem mais tarde. Aquela mulher significava demasiado para ele, tanto como amiga como ser humano.

- Não sei - respondeu Sabrina, com um sorriso. - Que estamos a fazer aqui?

- Acho que estou apaixonado por si.

Sabrina não ficou surpreendida ao ouvir aquelas palavras. Deu-se conta de que estava apaixonada por André há já muito tempo, talvez desde o dia em que se tinham conhecido. Haviam construído algo de muito belo juntos, com os seus corações e as suas mãos, com grande empenho, e ele trouxera-a de novo à vida. O que estava agora a acontecer mais não era do que a continuação de tudo isso. Sabrina encolheu-se, então, entre os braços de André, que a levou para a cama, onde fizeram amor como se fosse algo natural entre eles. Finalmente, caíram nos braços um do outro, sonolentos, enquanto André lhe acariciava os cabelos sedosos com as pontas dos dedos e adormecia com os lábios colados aos dela.

Quando acordaram, no dia seguinte, André ficou aliviado ao ver que não havia qualquer ponta de arrependimento nos olhos de Sabrina. Beijou-a, então, nos olhos, nos lábios e na ponta do nariz, enquanto ela não parava de rir... e voltaram a fazer amor. Era quase como uma lua-de-mel. Sabrina não conseguia imaginar como tudo acontecera com tanta facilidade. Há quase vinte anos que não fazia amor com nenhum homem e, todavia, ali estava, radiante de felicidade, ao lado de André, que se mostrava louco por ela. De repente, inundou-a com o seu amor.

- O que é que nos aconteceu? - perguntou ela, com olhar sonolento, depois de ter voltado a fazer amor. Era sábado e, portanto, não tinham de ir a lado nenhum. Estavam sós e apaixonados.

- Deve ter sido de alguma coisa que comemos ontem à noite...

- Talvez o champanhe... temos de fazer o nosso como esse.

Então, com um sorriso nos lábios, adormeceu de novo. Acordou ao meio-dia, precisamente no momento em que ele entrava no quarto com uma bandeja cheia de comida.

- Isto é para que conserves as forças, meu amor - disse André. E bem precisou delas quando, mal acabaram o pequeno-almoço, ele a atacou de novo.

- Meu Deus, André! - Riu, feliz e satisfeita. - És sempre assim?

- Não - respondeu ele, com ar sério, enquanto voltava a encostar-se a ela. Estava insaciável. Era como se tivesse libertado todas as energias acumuladas de um ano. - Operaste em mim algo de maravilhoso.

- Posso devolver-te o cumprimento?

Dormiram e fizeram amor durante toda a tarde. Finalmente, às seis horas, levantaram-se, tomaram banho e vestiram-se para sair. Desta vez, iam ao Bal Tabaria na Columbus Avenue. Realmente era como uma lua-de-mel.

- Como é que isto nos aconteceu? - perguntou Sabrina, sorrindo por cima das sobremesas e de uma garrafa de champanhe.

- Não sei. - André fitou-a com ar sério. - Seja como for, merecemos, meu amor. Este ano trabalhamos muito.

- Que bela recompensa!

André pensou o mesmo quando, nessa noite, voltaram a fazer amor. Desta vez, havia lume na lareira do quarto de Sabrina. Era o quarto onde nascera Jon há quase vinte e dois anos, mas agora não pensava nisso. Pensava em André, em cujos braços dormiu profundamente até pouco depois do amanhecer. Olharam, então, um para o outro, para voltarem a adormecer de seguida, e fizeram novamente amor das duas vezes seguintes que acordaram. Então, André olhou-a com ar pensativo. Já havia pensado nisso no dia anterior, mas esquecera-se.

- Seria uma grosseria da minha parte se te perguntasse se tomas precauções para não engravidar, meu amor? - André deu-se conta de que durante aqueles dois dias não tomara nenhuma precaução. - Todavia, Sabrina não se mostrou preocupada.

- A próxima vez que correr o perigo de ficar grávida já terei oitenta anos. Não engravido com facilidade. Levei dois anos de cada vez que engravidei antes. Sou a mulher menos perigosa neste aspecto. E, agora, na minha idade, talvez me custe mais.

- Pelo menos, fico mais descansado. Mas tens a certeza de que é assim como dizes?

- Estou a falar a sério. De momento, não posso engravidar. Ainda não estava na menopausa, mas, no ano anterior, já tivera alguns sinais de que estava próxima.

- Não podes ter a certeza disso.

- Farei qualquer coisa na semana que vem. Entretanto...

André deixou de se preocupar e, ao chegar a noite de domingo, sentiam-se tão felizes que resolveram passar outra noite na Mansão Thurston antes de voltarem para Napa. Nenhum dos dois estava ansioso por acabar com aquela súbita lua-de-mel. Em dois dias, as suas vidas tinham dado uma volta completa, e nenhum deles lamentava o que haviam feito. Esse fato acrescentara uma nova dimensão à sua existência. No dia seguinte, quando regressaram a Napa, Sabrina, com os seus longos cabelos sobre as costas, os olhos tão brilhantes como os de uma rapariguinha, desatou a rir. Envergava a camisola de caxemira vermelha que ele lhe oferecera e calças de flanela cinzentas.

- Que faremos agora em Napa? Os homens vão ficar surpreendidos. - Ao fim e ao cabo, eles não tinham nada com isso. E, quanto a Antoine, Sabrina achava que ele não devia saber, pelo menos de momento.

- Parece que tenho de construir a minha casa quanto antes. Amanhã mesmo telefono ao arquiteto!

E riram-se. Nessa noite, André foi em bicos dos pés até ao quarto de Sabrina, e regressou do mesmo modo para o seu quarto ao amanhecer, com um sorriso de felicidade estampado no rosto. Tinha cinqüenta e cinco anos, e nunca fora tão feliz na vida como agora.

Durante as duas semanas seguintes, não pararam de andar em bicos dos pés de um quarto para o outro, e foram à cidade, pelo menos, uma vez por semana. Sabrina passava a maior parte do tempo na companhia de André e Antoine. André e Sabrina olhavam-se agora de maneira muito diferente. Havia um código secreto só entendido pelos dois, embora Sabrina já tivesse apanhado uma vez Antoine a olhar para eles e a voltar-se rapidamente para não dar a sensação de estar a meter-se em assuntos que não eram contas do seu rosário. Mais tarde, pareceu-lhe também que o rapaz os observava de sorriso nos lábios.

- Achas que ele sabe? - perguntou Sabrina, certa noite, enquanto sussurravam na cama dela, na casa de campo de Napa. André já fora falar com o arquiteto. A construção da nova casa teria início nessa Primavera. Portanto, teriam de continuar em bicos dos pés de um quarto para o outro durante mais algum tempo, até a casa ficar pronta.

- Não sei - respondeu André, enquanto lhe acariciava a cara ao luar. Nunca amara nenhuma mulher como Sabrina, e esta sentia por ele algo que nunca sentira por ninguém, nem mesmo por John. Então era muito mais nova e o seu amor não era tão profundo como agora. - Estou convencido de que, se ele soubesse, ficaria contente. Ontem estive quase a dizer-lhe.

Sabrina assentiu com a cabeça. Não se imaginava a dizer a mesma coisa a Jon. Ele já a acusara de ter relações íntimas com André há muito tempo atrás, e não queria dar-lhe razão, embora não tivesse havido outro homem na sua vida desde a morte de John. Mas sabia que ele não entenderia. Há um mês que não tinha notícias dele, nem de Camille, que regressara a Atlanta, mas Sabrina nem queria ouvir falar dela. E centrou de novo o seu pensamento em Antoine.

- Achas mesmo que ele não ficaria aborrecido? - Era tão diferente de Jon, e ela gostava tanto dele.

André sorriu.

- Por que razão é que iria ficar aborrecido? Pelo contrário, ficaria encantado.

Sabrina também presumia que sim. Nesses dias, mostrava-se extraordinariamente amável com os dois, e ajudava-os nos terrenos quando trabalhavam juntos, coisa que Sabrina via com agrado. E foi precisamente quando se encontrava acompanhada de Antoine nos vinhedos, algumas semanas depois, que, após passar um dia inteiro ao sol, cambaleou e caiu nos braços do rapaz, quase desfalecida. Este apressou-se a fazer uma compressa fria com o lenço e a água de um cantil que trazia consigo.

- Devia andar com um chapéu. - Antoine repreendeu-a como se fosse uma menina. Na realidade, Sabrina encontrava-se muito mal. Tudo parecia bambolear à sua volta e sentia um peso no estômago, mas conseguiu controlar-se e voltar para casa, em passo lento, pouco depois.

- Antoine... não diga nada disso ao seu pai... por favor.

Sabrina olhou-o com ar suplicante, mas ele franziu o sobrolho.

- Por que razão? Eu acho que ele deve saber, não acha?

Então, de repente, temeu pela vida dela. A mãe morrera de cancro quando ele tinha cinco anos. Ainda a recordava, do mesmo modo que não se esquecera da tristeza do pai. Olhou para Sabrina com olhos preocupados. - Não conto ao meu pai, se me prometer ir ao médico imediatamente.

Sabrina pareceu hesitar, mas Antoine insistiu, pegando-lhe num braço, impulsionado por aquelas remotas recordações, e, com olhar severo, disse-lhe:

- Estou a falar a sério, Sabrina. Caso contrário, digo-lhe já.

- Eu estou bem, eu estou bem. Isto foi do sol.

Mas Antoine não achava que ela estivesse bem, e reparou que, nos dias seguintes, comeu muito pouco. Voltou a perguntar-lhe se pensava ir ao médico, e ela ia dar-lhe uma desculpa qualquer, mas ele não iria permitir.

- Estou bem.

- Isso é que não está. - Antoine quase lhe gritara, mas aquela discussão nada tinha a ver com as que costumava ter com Jon. Era óbvio que ele estava preocupado com ela, o que a deixou extremamente sensibilizada. A preocupação do rapaz confirmou-se quando, pouco depois, por volta do meio-dia, Sabrina esteve prestes a sofrer novo desmaio. Antoine quase a levou de rastos para casa. Felizmente, André encontrava-se no escritório do arquiteto.

- Bem, telefona você ou telefono eu ao médico.

- Por amor de Deus... - Sabrina ficou algo desconcertada, mas Antoine estava disposto a levar a sua avante. Colocou-se junto ao telefone e olhou-a com ar ameaçador. Sabrina acabou por desatar a rir. - Ainda bem que não é meu filho, Antoine. Não teria a mínima chance contra si. - Mas Sabrina estava apenas a provocá-lo. Lançou-lhe um olhar de agradecimento e encaminhou-se para o telefone. Era bom saber que o rapaz se preocupava tanto com ela, além do pai. Telefonou ao médico e marcou a consulta para o dia seguinte. - E sabe o que o médico me vai dizer?

- Sei. - Antoine parecia intransigente. - Que trabalha demasiado. Deveria seguir o exemplo do meu pai. Também trabalha muito, mas dorme a sesta todos os dias. - Era um hábito que André trouxera de França La sieste, graças à qual se mantinha jovem e são.

- Não tenho paciência para isso

- Mas deveria dormir. - Antoine ficou satisfeito por ela ir ao médico. Pelo menos, já conseguira que ela fizesse qualquer coisa. - Quer que a leve à cidade amanhã?

- Não, não é preciso. Tenho outras coisas para fazer. - Sabrina não queria dar demasiada importância ao fato, para que André não ficasse curioso por saber o que se passava.

- Depois conta-me o que o médico lhe disser?- Sabrina voltou a ver a mesma expressão de medo nos olhos de Antoine. Parecia um miúdo. Sabrina aproximou-se dele e olhou-o nos olhos. Era muito mais alto do que ela. E, com ar protetor, asseverou-lhe:

- Não será nada de mal, Antoine. Estou de perfeita saúde e garanto-lhe que me sinto ótima. Suponho que tudo se deveu aos nervos que apanhei com o aparecimento da minha mãe, o julgamento e... - Ambos sabiam que ia acrescentar Jonathan à lista. - Julgo que tudo isso me esgotou, e agora estou a pagar as conseqüências.

- Fiquei tão triste com tudo aquilo que lhe fizeram. - Antoine fitava-a como se ela fosse sua mãe.

- Também eu. Mas, pelo menos, serviu para aclarar a situação de uma vez por todas. - Sabrina continuava a sentir que perdera o filho. Vira uma faceta dele que nunca mais esqueceria. - E agora, quero que deixe de se preocupar comigo. Prometo que lhe digo tudo o que o médico disser.

Todavia, no dia seguinte, no consultório do médico, viu que não poderia cumprir a promessa feita a Antoine. Sentada, de olhar fixo no médico, com a incredulidade estampada no rosto.

- Não pode ser... é impossível... a última vez levou... Pensei que agora... - Estava de olhos pregados no médico. Era inacreditável.

- É verdade, Sabrina. O teste não mente. Pelo menos, quando dá positivo. E deu. Você está grávida, minha querida.

- Mas não é possível. O ano passado, entrei na menopausa. Nunca mais tive o período desde aí... - Contou pelos dedos e olhou para o médico com cara de espanto. - Oh, não... - O médico tinha razão. Estava grávida de dois meses. Na realidade, não associara aquele fato a André. A felicidade que sentira nesses dias contribuíra para que não se preocupasse com o que pudesse vir a acontecer. - Nunca pensei... meu Deus, se não tivesse quase desmaiado o outro dia nos terrenos... Talvez tivesse demorado vários meses a inteirar-se do seu estado. - E, no entanto, continuava a não acreditar que fosse verdade. - É que das outras vezes demorei dois anos a engravidar, e pensava que...

O médico esticou o braço e deu-lhe umas palmadinhas na mão.

- Às vezes, as coisas mudam, minha querida. Além disso, tanto quanto sei, o problema estava no John.

- Oh, meu Deus...

O médico viu-a tão desesperada que lhe ocorreu um pensamento terrível.

- Sabe quem é o pai, não sabe?

- Claro que sim! - exclamou Sabrina, ainda mais surpreendida do que antes. - Mas não faço idéia de como é que ele vai encarar isto... Somos sócios e amigos, mas... na nossa idade... não fazíamos tenções de... nós... - Os olhos inundaram-se-lhe de lágrimas, que rolaram pelas faces. Como o destino era cruel! Porque não conhecera André quinze anos antes? Então, talvez... - E agora, que vou eu fazer? - Desatou a chorar, depois assoou-se ao lenço que o médico lhe dera. Então, olhando para o homem com olhos suplicantes, perguntou: - Pode fazer alguma coisa para interromper a gravidez? - Era uma pergunta atrevida, pois ambos sabiam que aquilo que ela propunha era ilegal. Mas o certo era que Sabrina não sabia como solucionar o problema. Aquele médico era o único que conhecia, além de um velhote de Santa Helena a que fora anos antes.

- Não posso fazer isso, Sabrina. Sabe bem que não.

- Tenho quarenta e oito anos. Não está a pensar que vou dar à luz esta criança, pois não? Nem sequer estou casada com o pai.

- Ama-o? - Sabrina fez um gesto afirmativo com a cabeça e assoou-se novamente. - Então, porque não casa com ele e tem a criança?

- Não posso fazer isso. Ambos temos filhos crescidos. Seríamos alvo de chacota. Ele tem cinqüenta e cinco anos. Eu, quarenta e oito. Por amor de Deus, nesta altura, já poderia ser avó!

- E então? Não seria a primeira mulher a dar à luz já com uma certa idade. Há dois anos, tive uma paciente que contava já cinqüenta e dois anos. Passara-se o mesmo que consigo, com a diferença de que estava casada. E, por acaso, ela e a filha deram entrada ao mesmo tempo na maternidade para darem à luz. Não será a primeira, Sabrina.

- Mas sentir-me-ia uma tolinha. E não quero obrigar o meu amigo a casar-se comigo... - Sorriu sem deixar de chorar. - Na minha idade, seria tão ridículo pretender que um homem se casasse comigo por causa de uma gravidez. - Olhou para o velho médico e começou a chorar. Então, com ar patético, acrescentou: - Desculpe, tenho a cabeça num caos.

- É compreensível. É um grande choque para qualquer pessoa. E tenho de reconhecer que, nas suas circunstâncias, a situação não é fácil. Trata-se de um bom homem, pelo menos. Seria feliz com ele.

- Claro que sim. - Mas nunca haviam falado de casamento, e André não tinha motivo nenhum para casar com ela. De momento, estavam bem conforme estavam. - Mas, perdoe-me que insista... um filho na nossa idade... - Pensou em Jon, e no bebê que perdera, e que, segundo lhe disseram, era uma menina. Nessa altura, já não era propriamente uma jovenzinha... mas aos quarenta e oito anos... era inconcebível... - Olhou novamente para o médico. Sabia o que tinha de fazer, embora ignorasse onde devia dirigir-se. Não consegue ajudar-me a encontrar alguém que me faça abortar? Não posso manter esta gravidez. Não é justo.

- Não pode arvorar-se em juiz nessa questão. - O médico franziu o sobrolho. - Pelo simples fato de ter acontecido, talvez seja justo. E talvez um dia descubra que foi a maior bênção que Deus lhe concedeu. - E levantou-se para indicar que a visita terminara. - Agora, quero vê-la de novo daqui a três semanas, Sabrina. E descontraia-se o máximo possível. Não há razão para que na sua idade não se possa dar à luz uma criança sã, mas terá de ter mais cuidado do que o que teve há vinte anos atrás.

- Vinte anos... que situação mais ridícula. - De repente, sentiu-se irritada com o médico, com ela própria e com André por a ter metido naquele imbróglio. - Por amor de Deus... Grávida aos quarenta e oito anos. - De fato, só os faria em maio, e nessa altura já estaria de quatro meses. - Que desastre!

Deixou o consultório do médico e dirigiu-se para casa com a cabeça cheia de tudo o que ele lhe dissera... sobre o bebê... e sobre André... que seria a maior bênção que Deus lhes poderia dar... mas negou-se a reconhecê-lo. Tinha de encontrar alguém que a ajudasse a abortar, e com a maior rapidez possível. Sabia que se adiasse a «operação» por mais algumas semanas poderia ser muito perigoso para si. E não fazia a mínima idéia a quem se dirigir. Como é que se encontrava uma pessoa que fizesse abortos? Nunca pensara que alguma vez viesse a precisar disso, e tentou puxar pela cabeça, mas, ao fazê-lo, recordou-se do bebê que perdera. Lembrou-se da sua dor e da de John. Como podia agora pensar em matar o seu bebê só porque as coisas não haviam saído da maneira que queria? Mas tinha alguma alternativa? Deitou-se na cama a pensar no assunto. Pouco depois, tocou o telefone. Era Antoine.

- Que disse o médico? - Estivera preocupado durante todo o dia. O pai fora comprar algumas coisas que precisava para o trabalho, e aproveitou a ocasião para telefonar a Sabrina antes que André voltasse.

- Não é nada. Estou ótima. É só cansaço. - Mas a voz estava algo tensa, inclusive para os seus próprios ouvidos, e Antoine não ficou convencido.

- Tem a certeza de que foi isso que ele lhe disse?

- Juro. - Mentiu. Que outra coisa poderia fazer? - Regressarei amanhã ou depois de amanhã.

- Pensei que regressava esta noite.

Antoine voltava a mostrar-se preocupado, como se fosse seu filho, e a emoção que Sabrina sentiu inundou-lhe os olhos de lágrimas. Tinha de fazer os possíveis por não deixar transparecer isso na voz. Ultimamente, tudo a fazia chorar.

- É que lembrei-me que ainda tenho de fazer algumas coisas na cidade. Tudo bem por aí, Antoine?

- Sim, muito bem. - Contou-lhe o que haviam feito durante todo o dia. - Tem a certeza de que não há nenhum problema consigo? - Pareceu um pouco mais aliviado. Não era o temido cancro.

- Positivo. - «Positivo» era precisamente a palavra adequada, e Sabrina esboçou um sorriso malicioso. Entretanto, André voltou e Antoine desligou.

- Como vão as coisas por aí, m’amie? - Às vezes, tratava-a assim, exceto quando estavam sozinhos, à noite. - Então, tratava-a por chérie ou mon amour.

- Encontrei tanto correio que tive de atrasar um pouco o meu regresso para poder atendê-lo. Talvez alguém mo possa mandar quando ficar em Napa mais dias do que de costume.

- Boa idéia. - Só ouvir a voz de André foi para Sabrina um alívio. Sentia uma vontade incrível de lhe contar o que o médico lhe dissera, mas não podia fazê-lo. Não queria pressioná-lo de modo algum. Era melhor não lhe dizer nada. Trataria de tudo sozinha, e ele nunca saberia. - Quando é que regressas? - Havia uma impaciência na sua voz que a fez sorrir. Amava-o, talvez mais do que nunca, e voltou a sentir pena daquilo não ter acontecido há quinze anos atrás. Nessa altura, provavelmente, ter-lhe-ia contado, ter-se-ia casado com ele e teria deixado viver a criança. Mas agora era impossível.

- Tentarei ir amanhã ou depois de amanhã. - Era o que estava a dizer ao Antoine. - Encontrei toneladas de correio.

- Não podes trazê-lo para aqui? - Não era costume demorar-se na cidade. - Há algum problema, Sabrina?

André conhecia-a demasiado bem; depois de um ano como sócios e de dois meses a partilharem a mesma cama, conhecia-a na perfeição, até ao ponto mais recôndito da sua alma. De certo modo, nunca conhecera ninguém tão bem como ela, apesar do curto tempo de amizade que levavam. O segredo estava em que eram duas almas gêmeas em todos os aspectos.

- Não, não, está tudo bem. - Mentiu-lhe, tal como fizera com Antoine. - É sério. - Teve de reprimir as lágrimas de novo.

- Soubeste alguma coisa do Jon?

- Não. Nada. Deve andar atarefado na universidade. É o último ano... - Estava sempre a arranjar-lhe desculpas.

André não queria fazer a pergunta, mas havia algo de estranho na voz de Sabrina.

- E da Camille?

- Não, graças a Deus. - Sorriu. Apesar de ainda há poucas horas se terem visto, já sentia imensas saudades dele. Tinha a sensação de que, naquele instante, precisava mais dele que nunca, mas não podia deixar transparecer nada.

- Bem, regressa o mais depressa possível. - André ter-se-ia oferecido para a acompanhar, mas naquele momento tinha demasiado trabalho. - Estou mortinho de saudades, chérie - sussurrou, enquanto as lágrimas rolavam pelo rosto de Sabrina, que fazia um verdadeiro esforço para dar um tom normal à voz.

- Também eu.

Sabrina ficou acordada durante quase toda a noite, alternando entre as lágrimas e uma férrea determinação. Na manhã seguinte, pegou na lista telefônica e escolheu o nome de um médico de uma zona pouco atrativa da cidade. Quando, por volta do meio-dia, chegou, de táxi, ao lugar indicado na lista telefônica, havia dois bêbedos a dormir na rua. Entrou cautelosamente no edifício, que tresandava a urina e a couves, e subiu por uns degraus que rangiam imenso. Respirou de alívio ao ver que a sala de espera estava irrepreensível, e, quando uma velha enfermeira a conduziu para dentro do consultório, viu um homem baixo, calvo e imaculadamente limpo, com um casaco branco vestido. Sabrina não sabia se se sentia aliviada ou decepcionada. Respirou fundo antes de falar, enquanto ele esboçava um sorriso tranqüilizador

- Doutor... eu... eu peço desculpa de antemão se o que vou pedir-lhe é uma afronta para o senhor.. - De olhos umedecidos, olhou para o médico. - Vim ter com o senhor porque estou desesperada..

O médico fitou-a, perguntando-se o que viria a seguir. Durante os quarenta anos que levava naquele consultório, já vira de tudo.

- Sim. Farei tudo o que estiver ao meu alcance.

- Preciso de abortar. Escolhi o seu nome na lista telefônica. Não sei a quem me dirigir, aonde ir... - Sabrina, com os olhos inundados de lágrimas, temia que o homem se levantasse de um pulo e lhe apontasse a porta da rua. Em vez disso, fitou-a compassivamente, enquanto parecia matutar nas palavras que ia dizer.

- Sinto muito. Sinto muito que ache que não pode ter essa criança, Mistress Smith. - Ao fazer a marcação, havia-o feito com o nome de Joan Smith e, enquanto o médico continuava a falar, recordou por que razão é que o médico a tratava assim. - Tem a certeza de que não há maneira de continuar com a gravidez?

O médico ainda não se negara a nada, o que, lentamente, fez renascer as esperanças de Sabrina. Afinal, talvez tivesse vindo parar ao lugar certo.

- Tenho quarenta e oito anos. Sou viúva e tenho um filho adulto que está a acabar o último ano da universidade. - Aquelas razões pareciam-lhe suficientes, mas não o foram para o médico.

- E o pai da criança?

- É meu sócio. Somos bons amigos. - Corou. - Como é óbvio. É sete anos mais velho do que eu, e o filho é mais velho do que o meu. Não fazemos tenções de casar... é impossível.

- Já lhe disse?

Sabrina hesitou e abanou a cabeça.

- Só ontem é que soube que estava grávida. Mas não quero pressioná-lo. Só quero fazer o aborto e voltar para casa.

- Vivem em lugares diferentes?

- Parte do tempo. - Foi intencionalmente vaga. Não queria que o médico soubesse quem era. Apesar de se esconder sob o nome de «Mrs. Smith», o médico teria conseguido deduzir qual era a sua verdadeira identidade, e ele não precisava de saber.

- Não acha que ele merece que a senhora lhe dê, pelo menos, uma satisfação? - Sabrina abanou a cabeça, e o médico olhou-a com olhos compreensivos. Não era a primeira vez que lhe solicitavam aquele tipo de ajuda, e sabia que não seria a última. - Acho que não está a agir bem, Mistress Smith. Ele também tem o direito de saber. E a sua idade não me parece um impedimento assim tão importante. Já houve mais mulheres com a sua idade a darem à luz. Pressupõe um risco ligeiramente maior, mas não se trata da sua primeira gravidez, o que reduz de modo considerável esse risco. Julgo que deveria seguir o meu conselho sem mais delongas. De quantos meses julga que está?

- Dois meses. - Sabia que não podia ser mais do que isso, porque apenas há pouco mais de oito semanas é que dormiam juntos. Na noite anterior, calculara cuidadosamente o tempo de gravidez.

O médico assentiu com a cabeça.

- Não lhe resta muito tempo para fazer o que quer que seja.

- Então, vai ajudar-me?

O homem hesitou. Não fazia abortos, embora os tivesse feito há muito tempo atrás, mas uma rapariga estivera às portas da morte, e ele jurara a si mesmo que deixaria aquela prática para sempre. Além disso, algo lhe dizia que seria um erro satisfazer os desejos daquela mulher.

- Não posso, Mistress Smith.

- Então, por quê... por quê... pensei que ao ouvir-me que...

- Prefiro convencê-la a ter a criança.

- Mas não quero tê-la! - Levantou-se de um pulo, desatando num pranto. - Se não mo quer fazer, faço-o eu mesma.

Por instantes, o médico pensou que ela seria mesmo capaz de fazer aquilo que dizia, o que o assustou.

- Não posso ajudá-la. Pelo seu bem, e pelo meu.

Ele poderia perder a licença e nunca mais poder exercer. Arriscava-se, inclusive, a ir parar à cadeia. Mas havia outra possibilidade. Já dera o nome de um indivíduo a uma mulher, e ela ficara satisfeita com o trabalho. Puxou, então, de um bloco e de uma caneta e, numa folha em branco, em que não figurava o seu nome, escrevinhou um nome e um número de telefone, e entregou-a a Sabrina.

- Telefone para este homem.

- Acha que ele me faz o aborto? - Os olhos de Sabrina fitavam-no com ar ansioso.

O médico, de semblante carregado, fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- Sem dúvida. Vive no Bairro Chinês. Era um grande cirurgião, mas foi apanhado nessas práticas. Já lhe mandei uma pessoa... - Olhou, com ar triste, para Sabrina, repetiu-lhe o que pensava. - Todavia, continuo a pensar que deveria ter essa criança. Se fosse pobre, ou estivesse doente... ou tivesse sido violada... ou fosse viciada em morfina... mas parece-me ser uma mulher decente, como o será, muito provavelmente o seu amigo. Poderia dar a essa criança um lar cheio de amor. - Reparara na boa qualidade da lã do vestido que Sabrina envergava. Era velho, mas devia ter sido caro. Talvez a sua situação econômica não fosse boa, mas uma mulher como aquela tinha de encontrar um modo de não cometer aquela barbaridade. - Pense bem, Mistress Smith. Talvez não volte a ter uma oportunidade como esta. E é muito possível que algum dia lamente não ter tido essa criança. Pense bem nisso. Pense bem antes de telefonar a esse médico. - E apontou para a folha de papel que Sabrina tinha na mão trêmula. Depois do fato consumado já não poderá voltar atrás, e ainda que um dia volte a ter outra criança, lamentará sempre não ter permitido o nascimento desta.

As palavras do médico recordaram a Sabrina a criança que perdera. Nem sequer Jon conseguira preencher esse vazio. Era um sonho que se desvanecera para sempre, e o mesmo sucederia agora... mas ela não podia permitir-se ter aqueles pensamentos. Não tinha alternativa. Levantou-se e abanou a cabeça.

- Obrigada por me ajudar. - Sentia-se aliviada. Pelo menos, agora sabia aonde se dirigir.

- Pense bem no assunto.

As palavras do médico ecoaram na cabeça de Sabrina ao sair. Quando chegou a casa, sentou-se à secretária e aí ficou largo tempo. Sentia-se indisposta e tremia violentamente. Finalmente, decidiu-se a telefonar. Teve de marcar três vezes o número antes de dar com o correto. Uma mulher com sotaque respondeu do outro lado da linha.

- Queria marcar uma consulta.

- Quem lhe deu o nome do doutor? - A voz era desconfiada, e Sabrina, toda a tremer, ganhou alento e disse o nome do médico a que acabara de ir. Instalou-se um longo silêncio, como se a outra pessoa estivesse a controlar a chamada. Então, a mulher respondeu-lhe: - Na próxima semana.

- Quando? - Nova pausa.

- Quarta-feira ao fim da tarde. - Sabrina achou estranho, mas não se tratava de uma consulta normal. - Às seis. Dirija-se à porta das traseiras. Bata duas vezes, faça uma pausa e volte a bater outras duas vezes. E traga quinhentos dólares em dinheiro. - A voz da mulher era áspera como as suas palavras, e Sabrina quase ficou sem alento, não pela quantia que lhe pediam, mas pela imagem que tudo aquilo sugeria.

- Ele faz-mo?

De nada servia fingir naquela altura. Ambas sabiam o que Sabrina queria dele. Talvez não se dedicasse a outra coisa. Mas por que à noite? Mas não lhe fazia diferença nenhuma. Perguntou-se quanto tempo é que duraria a intervenção.

- Sim. Mas se se sentir mal depois, não volte a telefonar-nos. Ele não poderá ajudá-la.

Ficara tudo esclarecido. Sabrina perguntou-se, então, a quem é que se poderia dirigir em caso de emergência. Talvez ao médico que lhe dera o nome do que a faria abortar. Ou talvez ao seu, ou... As perguntas revolteavam dentro da sua cabeça como morcegos e, quando desligou o telefone, teve vontade de vomitar, e vomitou mesmo. Sentia-se extremamente mal. De joelhos no chão da casa de banho, não fazia mais do que pensar na consulta que tinha marcada quarta-feira, ao fim da tarde: às seis. Ainda faltavam seis dias, e estava apavorada. Mas já não podia voltar atrás.

No dia seguinte, voltou para Napa, no seu carro, e fingiu que estava tudo bem consigo. Falou pelos cotovelos, trabalhou com afinco, como era seu hábito, e até se ofereceu para cozinhar, o que motivou algumas piadas da parte dos homens. Estes estavam habituados a cozinhar para ela, mas, quando lhe serviram a comida, não comeu quase nada, nem naquela noite, nem no dia seguinte. Apanhou Antoine a olhar para ela uma ou duas vezes, mas não voltou a perguntar-lhe mais nada sobre o médico. Entretanto, André parecia não ter dado conta de nada. Fizeram amor quase todas as noites, exceto na terça-feira, quando Sabrina se voltou de costas para o seu amigo e fingiu dormir. Quando acordou, pouco antes do alvorecer, André foi dar com Sabrina sentada à porta de casa, de olhos fixos nos campos e nas colinas, absorta em pensamentos. Foi em bicos dos pés até junto dela e sentou-se a seu lado. Ela voltou-se para ele com um sorriso nos lábios

- Que fazes já levantado, André?

- Ia perguntar-te a mesma coisa, m’amie. - Eram amigos, mas não naquilo que ocupava a mente de Sabrina naquele momento. Deu uma olhadela para o relógio da cozinha. Eram seis e cinco. Daí a doze horas estaria no Bairro Chinês, a pagar quinhentos dólares para matar o seu filho. Aquele pensamento fê-la vacilar e sentiu-se mal disposta.

- Que se passa. - André sentou-se ao lado dela, tomou-lhe a mão e beijou-lhe os dedos. - Sei que não tens andado bem ultimamente, mas não te disse nada pois preferi que fosses tu a tomar a iniciativa de me contar o que se passa. - O aspecto de Sabrina era pior do que o que tivera durante toda a semana. Estava quase verde. - Que se passa, meu amor? É aquela mulher a atormentar-te de novo? - Receava que Camille a estivesse a apoquentar.

Sabrina abanou a cabeça, sem saber o que dizer, enquanto tentava conter as lágrimas. Não queria mentir-lhe, mas não podia dizer-lhe o que se passava.

- Às vezes, André, há coisas que só a própria pessoa pode resolver. E esta é uma delas.

Era a primeira vez que se negava a responder a uma das perguntas de André. Este olhou-a com ar compreensivo, mas não contente com a explicação de Sabrina.

- Não consigo imaginar nada que eu não consiga compreender, m’amie. Além disso, já sabes que estou sempre disposto a ajudar-te em tudo, seja o que for. Tem a ver com o Jon? - Sabrina negou com a cabeça. - Problemas econômicos? - Sabrina repetiu o mesmo gesto.

- É uma coisa que só eu posso resolver. - Então, com um suspiro e endireitando as costas, acrescentou: - Tenho de ficar na cidade durante uns dias.

André perguntou, então, com voz temerosa:

Trata-se de algo relacionado conosco? Se é isso, diz-me. - Amava-a tanto. Precisava de saber. Era já demasiado velho para sofrer novo desgosto amoroso. Estás arrependida de... Mas Sabrina tranquilizou-o rapidamente com um beijo, enquanto esboçava um sorriso terno e lhe acariciava o rosto.

- Nunca. Nem pensar. É algo exclusivamente meu.

- Não há nada que seja exclusivamente nosso, que não possamos partilhar.

- Desta vez, não. - Com ar triste, Sabrina abanou a cabeça.

- Não estarás doente?

Sabrina voltou a abanar a cabeça.

- Não. Estou aborrecida, mas isto passa. Volto no sábado.

Sabrina concedera-se três dias para se recompor, e esperava que fosse suficiente. Três dias de amarga dor e pranto pela morte do seu bebê... por quinhentos dólares...

- Por que razão ficas lá tanto tempo?

- Porque vou deixar crescer a barba e rapar o cabelo - gracejou Sabrina, enquanto o céu ia ficando cinzento, depois cor de púrpura, à medida que o sol se ia elevando no firmamento.

- Porque não me contas o que se passa?

- Porque trata-se de uma dessas ocasiões em que uma mulher tem de cuidar de si mesma sozinha.

- Por quê? Não existe nada que eu não possa partilhar contigo.

Sabrina concordou com a cabeça. Pensava o mesmo. Mas desta vez não podia ser... embora tivesse de fazer um verdadeiro esforço para esquecer as palavras dos dois médicos... Ele tinha o direito de saber... devia dizer-lhe.. dar-lhe uma oportunidade...

- André, deixa-me tratar deste assunto sozinha. No sábado, já estarei de volta e já tudo terá passado.

De qualquer modo, Sabrina perguntava-se se conseguiria manter aquela atitude por muito tempo. Receava que ele suspeitasse que havia algum problema. Tentara, com grande esforço, mostrar boa cara, mas ele conhecia-a demasiado bem. Naquele instante, desceram dois trabalhadores franceses, e Sabrina subiu para o quarto a fim de se vestir. Havia um pequeno problema numa das máquinas, e chegara a peça nova. Antoine precisava da ajuda de André e, antes de voltarem a falar, Sabrina estava pronta para partir para a cidade. Eram duas horas. Se saísse naquele instante, teria tempo suficiente para passar pela Mansão Thurston, tomar banho, mudar de roupa e ir para o Bairro Chinês. Deu um beijo de despedidas a André e a Antoine, fingindo uma enorme jovialidade, que não convenceu nenhum dos dois, e entrou no carro.

- Até sábado... portem-se bem..

- Telefono-te logo à noite - gritou-lhe André, mas não pareceu satisfeito. Fora um dia horrível, e Sabrina não dava qualquer ajuda. Estava extremamente preocupado, e o seu olhar denotava isso mesmo, o que deixou Sabrina revoltada consigo mesma.

- Não te preocupes. Eu telefono-te.

Esperava falar com André quando chegasse à mansão. Não fazia a mínima idéia de quanto tempo poderia durar a intervenção, de como se sentiria e de como voltaria para casa. Resolvera fazer a viagem no seu próprio carro, e voltaria do Bairro Chinês da mesma maneira.

Sabrina partiu, então, deixando pai e filho preocupados.

- Passa-se alguma coisa - disse André, quase entre dentes.

- Acho que está doente.

André voltou-se para o filho como que movido por uma mola.

- Que te leva a dizer isso?

- Há mais de uma semana, nos vinhedos, esteve prestes a desmaiar nos meus braços.

- Porque não me disseste logo? - retorquiu, com aspereza. Todavia, era um alívio ter alguém com quem poder falar dela. Há dias que ambos andavam preocupados, e continuarem a fingir que não estavam só piorava a situação.

- Fez-me prometer que não te dizia nada. Disse-lhe que tinha de ir ao médico, caso contrário, eu mesmo a levaria.

- Já não foi mau, e depois...?

- Quando voltou, disse que o médico a encontrara de perfeita saúde. - Mas Antoine não ficara convencido e, por fim, resolvera falar claro, por mais que as suas palavras doessem; e as lágrimas assomaram-lhe aos olhos. Embora já fosse adulto, ainda havia nele algo de criança. Tinha o queixo a tremer quando se voltou para André. - Não creio que se encontre tão bem como diz, papá... já a ouvi vomitar... e, o outro dia, quase voltou a desmaiar.

- Merde. - André empalideceu. - E, apertando os punhos, perguntou a Antoine: - Sabes onde é que ela vai agora?

Antoine abanou a cabeça.

- Talvez a fazer análises? Ou à consulta... não sei. Só me disse que estava tudo bem.

- Mentirosa. Vê-se que não está. Há mais de uma semana que está doente e não me disse nada. - Então, com olhar resoluto, fez o que achava ser sua obrigação. Deixou cair a ferramenta que tinha na mão e, em passo largo, dirigiu-se para o carro.

- Ou vas-tu? - Antoine correu atrás dele, mas já sabia qual era o seu destino.

- Vou atrás dela. - André pôs o carro a trabalhar. Ainda tinha as mãos sujas de terra, mas pouco lhe interessava isso agora. Só lhe interessava a mulher que amava e, naquele momento, ia atrás dela.

Antoine despediu-se do pai agitando uma mão e sentiu-se aliviado quando o carro desapareceu ao longe. Sabrina só lhe levava vinte minutos de avanço, mas tinha fé no seu velhote. Sabia que iria até ao fundo da questão e obrigaria Sabrina a fazer o que fosse melhor para ela.

André carregou no acelerador durante todo o caminho. Teve de abrandar a marcha por instantes por causa de um pequeno engarrafamento de tráfego, depois, acelerou ao longo da Bay Bridge, dando graças por esta se encontrar aberta naquele momento. Pouco depois, entrou a toda a velocidade em Nob Hill, e divisou o carro de Sabrina, estacionado defronte da Mansão Thurston. Uma onda de alívio e gratidão invadiu-o então. A sua amada estava ali, encontrara-a. Finalmente, iria esclarecer todas as suas dúvidas. Mas, logo que entrou na rua que conduzia à mansão, viu-a sair, vestida com ar sombrio: a cabeça coberta com uma écharpe, um casaco velho que ele nunca lhe vira vestido e sapatos rasos. Com ar apressado, correu para o carro. Movido pelo instinto, André resolveu segui-la. Fez marcha atrás para não ser visto e iniciou a perseguição quando Sabrina pôs o carro em andamento. Virou para a Jackson Street e dirigiu-se para Este. André, que a seguia a uma distância segura, ficou surpreendido quando a viu parar no Bairro Chinês. Aquilo não fazia nenhum sentido, e era já hora de jantar. Por instantes, sentiu uma pontada no coração quando se interrogou se não haveria outro homem envolvido na história. Mas não parecia estar vestida para uma situação dessas. Depois de estacionar o carro, Sabrina atravessou apressadamente a rua, para se deter diante de uma porta em muito mau estado. Bateu, hesitou por instantes, voltou a bater, e a porta abriu-se. Houve uma breve troca de palavras e depois entregou um sobrescrito a alguém que se encontrava atrás da porta. Do sítio onde estava, André conseguia ver que Sabrina exibia um ar cadavérico, o que podia indiciar que se encontrava perante algum perigo, que lhe ia acontecer algo pouco agradável. Talvez a estivessem a ameaçar ou a chantagear. André quase pulou do carro, deixando-o estacionado numa passadeira de peões e correndo para a porta onde ela desaparecera. Não lhe importava os riscos que podia correr. Sabrina já passara muito na vida, e, se agora tentassem fazer-lhe mal, mataria os culpados. Bateu à porta, uma, duas vezes, mas ninguém respondeu. Então, começou aos murros à porta e a comprovar a sua solidez para ver se conseguia arrombá-la. Lamentava não ter trazido Antoine. Mas, enquanto teve aquele pensamento, a porta entreabriu-se.

- Obrigado - disse André, surpreendendo a mulher que aparecera da parte de dentro da porta e dando-lhe com esta na cara ao entrar de rompante. Deparou-se-lhe, então, um vestíbulo lúgubre, ao fundo do qual se viam umas escadas estreitas. A mulher quase pulou para cima dele.

- Não pode entrar aqui.

- A minha esposa acabou agora mesmo de entrar - mentiu. - Está à minha espera. - Ao olhar para a mulher, que trazia um roupão imundo vestido e sapatilhas, voltou a perguntar-se que teria ido fazer Sabrina àquele lugar. A menos que a sua intuição estivesse certa: - estavam a chantageá-la.

- Mistress Harte! Onde está?

- Não sei... não está cá ninguém... está enganado... - Sem perder mais tempo, empurrou a mulher contra a parede.

- Onde está a minha esposa? Diga-me já! - berrou para a mulher, e os olhos desta voaram para o cimo das escadas, mas não tão rápidos como os pés de André pelos degraus acima. A mulher seguiu-o aos gritos. Tentou evitar que o intruso abrisse a primeira porta do segundo piso, mas isso só tornou as coisas mais fáceis para ele. Depois de a abrir com um empurrão, entrou de rompante numa sala não maior do que uma cela, que tinha uma mesa comprida cheia de caruncho no centro. Ao lado, havia um tabuleiro de instrumentos cirúrgicos. Sabrina, meio despida, encontrava-se a um canto da sala. De repente, apareceu um homem alto, de aspecto andrajoso. Empunhava uma pistola. Sabrina e a mulher gritaram. André ficou cravado ao solo, mas olhou para Sabrina quando o médico lhe apontou a arma.

- Estás bem? - Sabrina assentiu com a cabeça. André voltou-se, então, para o homem que empunhava a arma. - Por que razão está ela aqui? Mas, instintivamente, já sabia a resposta.

- Ela veio por sua livre e espontânea vontade. É polícia? - retorquiu o médico, sem deixar de apontar a arma a André. Sabrina conteve a respiração.

- Não. - A voz de André tomou um tom estranhamente calmo. - Esta mulher é minha esposa e não precisa de si para nada. Cometeu um erro. Pode ficar com o dinheiro, mas vou levá-la para casa. - Parecia que estava a falar com uma criança. Percebera que o homem estava bêbedo. Só de pensar no que ele poderia ter feito a Sabrina, ficou todo arrepiado. Mas não podia pensar nisso agora. Então, voltou-se para Sabrina: - Veste-te! - ordenou, num tom ainda mais áspero do que aquele com que falava com o homem. Já sabia qual era o motivo da vinda dela ali. Vira um lugar daqueles em Paris, quando, aos vinte e um anos, lá levara uma rapariga por quem se apaixonara. Ela sobrevivera, mas ele jurara que nenhuma mulher que ele amasse passaria por aquilo, e assim foi. Pelo canto do olho, viu que Sabrina já se vestira. Fez-lhe sinal para a porta e olhou novamente para o homem. - Não sei o seu nome, nem quero saber. Nunca diremos a ninguém que estivemos aqui.

André empurrou Sabrina para a porta. O médico, depois de um momento de hesitação, baixou a arma e deixou-a passar, mas ficou a olhar para André. Admirou a coragem dele e teve vontade de os ajudar.

- Se quiser, faço-o num instante. Entretanto, pode esperar aí fora.

André sentiu-se enojado, mas disfarçou. Agradeceu ao médico e, agarrando Sabrina pelo braço, conduziu-a pelas escadas abaixo sem dizer palavra. Abriu a porta da rua por onde haviam entrado e empurrou a sua amiga para fora. Reinava o silêncio no interior do edifício. André respirou fundo e, sem dizer nada, conduziu Sabrina até ao lugar onde estacionara precipitadamente o carro dez minutos antes. Não fora mais do que isso, e se tivesse chegado cinco minutos depois... ou dez... Sentiu um arrepio na espinha... não olhou para ela enquanto a arrastava até ao carro, abriu a porta do veículo e empurrou-a com alguma rudeza para o interior do mesmo.

- André... - disse Sabrina, com voz trêmula. - Eu tenho o meu carro... eu posso...

André virou-se para ela, lívido de raiva.

- Não me digas nada! - gritou-lhe com voz tensa. Sabrina estava demasiado assustada, inclusive para chorar.

Sem dizer palavra, conduziu-a até à Mansão Thurston e estacionou o carro diante da casa. Sabrina tentou abrir a porta, mas as mãos tremiam-lhe de tal maneira que não conseguiu. André arrebatou-lhe as chaves da mão, abriu a porta e entrou. Esperou que ela também o fizesse e fechou a porta. Então, gritou-lhe:

- Meu Deus! Que diabo estavas tu lá a fazer? - Nenhuma palavra conseguiria exprimir o que lhe ia na alma. - Sabes que podias ter morrido em cima daquela mesa imunda? Sabes que ele estava bêbedo? Sabias...? Escuta... - Agarrou-a pelos ombros com ambas as mãos e sacudiu-a violentamente.

- Larga-me! - Empurrou-o, chorosa. - Que alternativa é que eu tinha? Que querias que fizesse? Que o fizesse sozinha? Pensei nisso! Não sei como...

Deixou-se cair de joelhos, a cabeça baixa, destroçada por todo o impacto do que estivera prestes a fazer. E agora ele sabia. Sabrina levantou, então, a cabeça. Estava lavada em lágrimas. Queria falar, mas os soluços impediam-na. Então, André puxou-a para si, estreitou-a nos braços, também com os olhos cheios de lágrimas, e afagou-lhe os cabelos.

- Como pudeste fazer semelhante coisa? Porque não me disseste? Então era isso... - André fitou-a, magoado por ela não ter confiado nele. - Porque não me disseste? Há quanto tempo é que sabias?

André puxou-a para um cadeirão e fê-la sentar-se ao seu colo como se fosse uma menina. Sabrina dava a impressão de ir desmaiar nos braços de André, mas este não se sentia muito melhor do que ela.

- Descobri a semana passada - disse Sabrina, com voz cansada e vacilante. André sentiu todo o seu corpo estremecer. De repente, Sabrina perguntou-se se, caso ele não tivesse aparecido, ainda estaria viva... Agora dava-se conta do erro que cometera... - Pensei que... devia solucionar o problema sozinha... não queria que te sentisses pressionado...

As lágrimas rolaram lentamente pelo rosto de André.

- Também é meu filho. Não achas que eu também tinha o direito de saber?

Sabrina fez um gesto de concordância com a cabeça, horrorizada, a voz embargada:

- Perdoa-me. Eu. - Não conseguiu prosseguir, vencida pelas lágrimas, e André envolveu-a de novo num abraço. - Só que já tenho demasiada idade., não somos casados.. não quis que te sentisses...

André afastou-a e olhou-a nos olhos.

- Por que razão é que achas que estou a construir a casa? Para o Antoine? Para que é que achas que a mandei fazer?

Sabrina fitou-o, desconcertada.

- Mas nunca me disseste.. - André revirou os olhos.

- Nunca pensei que fosses tão tonta. Claro que quero casar contigo. Talvez este ano. Pensei que soubesses.

- Como poderia eu saber? - balbuciou. - Nunca me disseste nada.

- Merde, alors. - Fitou-a, incrédulo. - És a mulher mais inteligente que conheço, e, às vezes, a mais tola. - Sabrina sorriu por entre as lágrimas, e André beijou-lhe os olhos. Então, o semblante deste tomou, de novo, um ar sério. Nenhum dos dois queria pensar no que sucedera uma hora antes. Fora a experiência mais horrível da vida de Sabrina, e talvez até de André. Estivera em risco de se perder uma vida, uma vida que ambos desejavam. Ela nunca teria sido a mesma, tanto mental como fisicamente. André arrepiou-se só de pensar nisso. - Bem, agora diz-me uma coisa. Querias mesmo livrar-te do bebê? - Era um problema que tinha de ser encarado. Ela devia estar desesperada para o querer fazer e suportar aquele pesadelo.

Todavia, para assombro de André, Sabrina negou com a cabeça.

- Não, mas quis fazê-lo por ti...

Era verdade. Nem sequer a sua idade parecia importar-lhe tanto como uma semana antes. Sabrina pensara muito no problema e chegara à conclusão de que deveria livrar-se do bebê por ele, para não lhe complicar a vida, para não dar a impressão de que queria obrigá-lo a casar-se com ela...

- Farias isso por mim? - Pareceu horrorizado, e sentiu as mãos de novo a tremer. - Podias ter morrido. Sabias? Já para não falar no nosso filho, que também o terias morto.

- Não digas isso. - Sabrina fechou os olhos. Ao fazê-lo, as lágrimas que os inundavam correram pelas faces. - Só pensei que... - André interrompeu-a. Não eram necessárias mais reprimendas nem justificações.

- Erraste. Queres ter o nosso filho?

- Pelo modo como fez a pergunta, quem é que não teria querido? - Sabrina fez um gesto afirmativo com a cabeça, de olhos fixos nele. - Quero. Não achas que é ridículo na minha idade? - Sabrina esboçou um tímido sorriso e André riu-se.

- Ainda sou mais velho do que tu e não me sinto ridículo. Na realidade - beijou-a no pescoço, - ainda me sinto jovem e forte. - Sabrina sorriu e beijaram-se.

- Queres o bebê, André?

- Claro que sim. Todavia, tenho de perguntar-te por que estavas tão segura de que era impossível engravidares... Lembro-me de que disseste que não havia nenhuma hipótese de isso acontecer... - gracejou André. O pesadelo do Bairro Chinês começava a dissipar-se.

- Errei. - E esboçou um largo sorriso. Exibia um ar quase vitorioso.

- Aparentemente. Aposto que ficaste espantada. É bem feito.

Sabrina revirou os olhos.

- Nunca saberás quanto.

As recordações fizeram-nos recuperar o ar sério. Quando André voltou a falar, fê-lo com ar severo.

- Aconteça o que acontecer nesta vida, Sabrina, por mais desagradável, horroroso, sórdido ou triste que seja, quero saber. Não tens de me esconder nada. Nada. Percebido?

- Sim. Desculpa... - Sabrina começou a chorar de novo e André apertou-a contra si. - Estive quase a... - Recomeçou a tremer e André embalou-a como um bebê.

- Não penses mais nisso. Tivemos sorte. Cheguei a tempo de poder seguir-te. - Sabrina parecia atônita. - Sem saber por que, meti-me no carro pouco depois de partires. Tive o pressentimento de que algo de estranho estava a passar-se. E não me enganei. Mas já acabou tudo. - E esboçou um sorriso radioso. - Vamos ter um bebê, meu amor. Não te sentes orgulhosa?

- Sim, e também um pouco ridícula. Sinto-me a avó do meu futuro filho.

- Mas não és.

- Como é que achas que o Jon e o Antoine vão encarar o fato?

André suspeitava que Jon iria aceitar mal; quanto a Antoine, talvez aceitasse melhor. Não estava bem seguro da reação dos rapazes. Mas tudo isso não tinha qualquer importância para ele. Só Sabrina e o seu futuro filho lhe interessavam.

- Se não aceitarem bem, tanto pior para eles. Trata-se da nossa vida e do nosso filho. Eles já são adultos e donos das suas vidas. Quando quiserem ter filhos, não nos pedirão opinião sobre a oportunidade de os pôr no mundo, como tal, também não lhes pediremos opinião.

Sabrina riu-se da simplicidade com que André encarava a questão.

- Ora, nem mais. Bem, assim fica tudo resolvido.

- De modo nenhum. - E riu-se. - Estás a esquecer-te de um pequeno pormenor. Não achas que devíamos fazer ao nosso bebê o favor de o legitimar? Sabrina, meu amor, queres casar comigo?

- Estás a falar a sério?

André voltou a rir e, apontando para o ventre ainda plano da sua amada, perguntou?

- E isto é algo sério?

- Claro. - riu-se. Ainda tinha os olhos vermelhos das lágrimas, mas parecia muito mais feliz. - Muito sério.

- Então, também estou a falar a sério. Que me dizes? - Sabrina atirou os braços à volta do pescoço de André.

- Sim, sim, sim... sim!...

André beijou-a com ardor na boca, levou-a ao colo pelas escadas acima, até à cama, e depositou-a carinhosamente no lado onde ela dormia. Sabrina tivera Jon naquela cama, mas ambos sabiam que, desta vez, não seria assim. A sua idade não lhe permitiria ter o filho em casa e André queria que fossem tomadas todas as precauções necessárias. Contudo, o pensamento que agora predominava nas suas mentes não era o nascimento mas o casamento.

- Quando queres casar, meu amor? - André sorriu e cruzou os braços. Sabrina achou-o mais encantador que nunca.

- Não sei... Talvez devamos esperar para quando o Jon vier passar as férias da primavera. Gostaria que ele cá estivesse.

Ao ouvir isto, André soltou uma gargalhada e apontou para a barriga da sua amada.

- Não estás a esquecer-te de nada? - Sabrina também se riu.

- Bem... és capaz de ter razão... Talvez não devamos esperar tanto.

- Quando é que nasce?

- O médico disse que em outubro.

Só faltavam sete meses. Ainda podiam fingir que nascera prematuramente. Na idade de Sabrina, era possível que um bebê nascesse dois meses antes do tempo normal... mas não antes que isso...

- Que tal este sábado?

Sabrina recostou-se nas almofadas e sorriu. Era a mulher mais bonita que alguma vez conhecera.

- Acho ótimo... mas... tens a certeza de que é o que queres fazer?

- Tenho querido fazê-lo desde o dia em que nos conhecemos... Só tenho pena de não nos termos conhecido há vinte anos atrás. - Sabrina também pensara o mesmo. Haviam perdido tanto tempo, mas talvez estivesse escrito que as coisas tinham de acontecer daquela maneira. - Como vês, o próximo sábado já não é assim tão breve como isso.

Sabrina, radiante de felicidade, perguntou:

- Telefonamos ao Antoine e dizemos-lhe?

- Telefono-lhe mais logo e explico-lhe tudo. Mas, primeiro, quero que descanses. O dia que passaste não foi precisamente o ideal para uma futura mamã. De hoje em diante, vou cuidar de ti. Percebido? - Olhou de relance para o relógio. Já passava das oito. - Vou preparar-te qualquer coisa para comeres. Agora, terás de comer por dois.

Inclinou-se e beijou-a mais uma vez. Depois, desceu as escadas a correr, foi até à cozinha e fez um dos omeletes de que ela tanto gostava, à la française. Mas, naquela noite, Sabrina não comeu nem por um. Entre o cansaço devido ao que haviam passado e o bebê que começava a crescer no seu útero, adormecera profundamente.

Na quinta-feira à tarde, Sabrina e André regressaram a Napa no carro deste e deixaram o dela em São Francisco. André pusera-o, ao princípio do dia, numa garagem que alugaram defronte da Mansão Thurston Antoine viu-os chegar quando voltava dos vinhedos. Estava um dia soalheiro. Sabrina, com um ar de incontida felicidade, parecia uma rapariga. Era difícil de acreditar que fosse a mesma mulher que saíra de casa no dia anterior. Antoine já percebera um notável alívio na voz do pai quando falara com ele ao telefone, na noite anterior. André não lhe explicara nada, mas Antoine tivera a sensação, confirmada agora, de que tudo terminara em bem. Nessa noite, serviu uma taça de champanhe ao filho e dispôs-se a dar-lhe a notícia

- Temos de dizer-te uma coisa.

Antoine sorriu ao vê-los tão divertidos. Pareciam duas crianças. Imaginava o que lhe iam dizer, ou, pelo menos, parte. De momento, ainda não lhe diriam nada sobre o bebê.

- Posso adivinhar. - gracejou. - Vejamos. - Enquanto Sabrina dava risadinhas como uma miúda pequena, André esboçou um largo sorriso.

- Bem, não puxes mais pelo caco. A Sabrina e eu casamo-nos no sábado.

- Tão depressa?

Foi a única coisa que o surpreendeu. Pensava que lhe iam dizer que estavam noivos. Então, desconfiou que algo mais se passava. Olhou para Sabrina com cautela, mas não conseguiu vislumbrar nenhum sinal delator Talvez ainda fosse muito cedo, pensou, mas, se fosse verdade, ficaria feliz por eles. Nunca lhe passara aquela idéia pela cabeça quando ela andava com ar doente. Agora, radiante de felicidade, beijou-os nas faces. André pediu-lhe que fosse o padrinho, e no sábado, na pequena igreja da povoação, lá estava Antoine ao lado de André, enquanto Sabrina avançava, sozinha, em direção ao altar. Só os trabalhadores assistiam à cerimônia. Quando o sacerdote pronunciou as palavras solenes, Sabrina não conseguiu evitar que as lágrimas lhe rolassem pelas faces. Depois de declarados marido e mulher, partilharam um suntuoso almoço preparado pelos próprios trabalhadores e uma caixa de champanhe, embora Sabrina só tivesse bebido uma taça. Na primeira oportunidade, Antoine abraçou calorosamente a recém-casada.

- Sinto-me muito feliz. Por si e pelo papá. O velho teve muita sorte.

- Eu é que tive uma grande sorte. Tenho-vos aos dois...

Quem lhe dera que Jonathan se tivesse mostrado tão carinhoso quando recebeu a notícia. Sabrina telefonou para a residência de estudantes para lha dar, e obteve como resposta, depois de um longo silêncio do outro lado da linha, umas palavras geladas.

- Qual foi a pressa?

- Pensamos... Querido, tenho imensa pena que não tenhas podido estar aqui... - Sabrina já esquecera a mágoa que ele e Camille lhe haviam causado.

- Eu não tenho pena nenhuma. Como é possível que tenhas querido casar com esse campônio?

- Não devias dizer uma coisa dessas. - As palavras do filho magoaram-na. Era precisamente esse o seu objetivo.

- De qualquer modo, felicidades!

- Obrigada. Queres cá vir passar a Páscoa, querido? Ter-lhe-ia pago a viagem.

- Não, obrigado. Vou para Nova Iorque com uns amigos. Mas, se quiseres, podes mandar-me para paris, em junho.

- Não é a mesma coisa, não achas? Pensava que gostarias de vir ver-nos a todos.

- Prefiro ver a França. Quando nos formarmos, alguns de nós pensamos fazer aí a nossa viagem de fim de curso. Que te parece? - Arrumara a questão do casamento e já estava a pensar só nele.

- Discutimos isso noutra ocasião.

- Por que não agora? Se for com eles, tenho de fazer os preparativos.

- Não gosto de ser pressionada. Falaremos disso mais tarde.

- Por amor de Deus!...

- Quando te formares, terás de começar a trabalhar. Não tinhas pensado nisso?

Se ele a pressionava, ela faria o mesmo. Tinha o mesmo direito, embora raramente o fizesse. Mas ficara furiosa com o comentário que ele fizera sobre André... um campônio de França... Quem pensava ele que era?

- Tenho a certeza de que o pai do Johnson me vai dar um emprego em Nova Iorque. - Sabrina sentiu um aperto no coração, mas já esperava algo parecido. - Alugaremos uma casa entre cinco.

- Isso será muito caro. Achas que terás condições econômicas para isso?

- Porque não? Tu tens a Mansão Thurston.

- Sim, mas não pago aluguel. - Embora, se Jon e Camille tivessem levado a sua avante, talvez estivesse a pagar. - A propósito, como está a tua encantadora avó?

- Está ótima. Recebi uma carta dela a semana passada. - Sabrina não disse nada. Limitou-se a suspirar. Não gostava que estivesse em contato com Jon nem da afinidade que este parecia ter com ela.

- Bem, vemo-nos no dia da tua formatura. - Esperava que Camille não estivesse lá nesse dia. Não queria voltar a vê-la, mas era possível que assistisse à cerimônia pelo fato de ser tia-avó de um rapaz que também se formava naquele dia. Sabrina não perguntou nada ao filho a esse respeito, mas ele insistiu com as perguntas sobre a viagem a França. - Vou pensar nisso e depois digo-te o que decidi.

Jon temia que ela fosse consultar André e que este a aconselhasse a dizer que não.

- Decide já!

- E se eu disser que não?

- Nesse caso, arranjarei outro meio de fazer a viagem.

- Talvez seja o melhor que tens a fazer. - Sabrina falava com voz tranqüila. Reconhecia todos os erros que cometera com Jon e não queria cometê-los de novo na educação do novo filho. Sentia o coração reconfortado só de pensar nisso... Estava à espera de bebê... outro filho... perguntou-se se seria menino ou menina... com quem se pareceria... Aqueles pensamentos fizeram-na sorrir.

- Bolas, mamã! Preciso de fazer esta viagem!

- Tu não precisas de a fazer. Tu queres fazê-la, o que é muito diferente.

Ao ouvir isto, Jon desligou o telefone sem se despedir da mãe, sem voltar a felicitá-la e sem mandar cumprimentos para André. E só voltou a telefonar um mês depois, para a pressionar de novo sobre a viagem. Desta vez, Sabrina consultara André e este dera-lhe a sua opinião sincera, apesar de saber que não iria ser do agrado de Jon.

- Queres saber o que penso disso? - Até então, abstivera-se de se pronunciar sobre aquela questão delicada. Considerava que o modo de ela lidar com o filho era da sua incumbência.

- Claro. Ele quer dar-me a sensação de que lhe devo essa viagem, mas não creio que uma prenda dessas seja boa para ele. Por outro lado, acaba o curso em Harvard e, claro, seria um prêmio maravilhoso... - Olhou para André sem saber o que fazer.

- Creio que é uma prenda demasiado bonita. Penso que, se queria fazer a viagem, deveria ter começado a poupar há muito tempo. Nunca pensou no que te custa satisfazer-lhe os caprichos. Acha que o teu dever é esse. É um modo perigoso de um homem pensar e, mais cedo ou mais tarde, terá um choque doloroso com a realidade. Não podes estar sempre a dar-lhe dinheiro. Quando sair da universidade, tem de aprender a sustentar-se sozinho.

- Concordo. - Pouco a pouco, a sua atitude fora endurecendo perante as constantes exigências de Jon. A sua má-criação levara-o longe de mais. - E a viagem?

- Eu dir-lhe-ia que não. - Sabrina suspirou.

- Penso o mesmo, mas temo dizer-lho.

André fez um gesto de compreensão com a cabeça. Sabia o mau bocado que Jon fizera a mãe passar e tinha imensa pena dela. Era um egoísta, um rapaz de mau caráter e sem sentimentos. E isso não se devia apenas ao fato de ter sido muito mimado. Havia algo mais. Parecia-se demasiado com a avó, e já devia ter nascido assim.

Era muito diferente de Antoine, que se mostrava extremamente simpático com Sabrina. Tinha quase vinte e seis anos e namorava com uma rapariga da cidade. Cada vez que olhava para Sabrina, pensava que as suas suspeitas não haviam sido infundadas, mas nenhum dos dois lhe dissera nada e ele não se atrevia a perguntar. Finalmente, num dia de Maio, olhou para Sabrina e sorriu.

- Posso perguntar-lhe uma coisa?

- Claro.

Sabrina sorriu-lhe. Gostava dele como se fosse seu próprio filho e, em muitos aspectos, era mais carinhoso do que Jon. A explosão provocada pela recusa de Sabrina em custear a viagem para a Europa abrira uma enorme brecha entre mãe e filho. Estivera um mês sem falar com ele, embora mantivesse o propósito de ir a Cambridge, em Junho, assistir à cerimônia de formatura de Jon.

- Sei que a pergunta talvez seja atrevida... - Antoine corou, realçando o tom bronzeado da sua pele. Era um homem de beleza esplendorosa. Perguntou-se qual seria o grau de relacionamento que mantinha com a rapariga com quem saía e se seria ela o motivo do que agora lhe queria perguntar, mas tratava-se de algo muito diferente. - Vai... vou ter um irmão ou uma irmã?

Antoine não conseguia agüentar aquela incerteza por mais tempo. Sabrina corou e, sorrindo, fez um gesto afirmativo com a cabeça. Ele reagiu levantando-a com os seus fortes braços e dando-lhe um beijo na face.

- Quando? - perguntou.

- Pensou dizer-lhe o que ela e André haviam acordado dizer a toda a gente, mas considerou que era melhor contar-lhe a verdade. Ao fim e ao cabo, fora o primeiro a saber, quando ela desmaiara nos seus braços nos vinhedos. Não era parvo e acabaria por saber. A única coisa que ela e André queriam era que ninguém mais soubesse.

- Em outubro - respondeu, sorrindo. - Mas, oficialmente, é dois meses mais tarde.

Antoine esboçou um largo sorriso, grato pela sinceridade de Sabrina.

- Também me parecia, mas não me atrevia a perguntar.- Ele sabia que o pai teria acabado por casar com ela. - O Jon sabe?

- Ainda não. Dizemos-lhe no mês que vem, quando formos para o Este.

- O papá está radiante, asseguro-lhe. - Desde que voltaram de São Francisco, uns dias antes do casamento, não tem parado de se pavonear por aí como um miúdo vaidoso

Não perguntou a Sabrina o que acontecera naquele dia na cidade, mas sabia que desde então tudo mudara para melhor. Era como se agora cada um dos dois tivesse plena consciência do que significava para o outro. E Antoine invejava-os por isso. Gostaria de encontrar uma rapariga que amasse tanto como o pai amava Sabrina, mas não conseguira até ao momento. A rapariga com quem saía era divertida e gostava dela, mas sabia que a relação não iria durar muito tempo. Não era muito inteligente. Nunca se ria das mesmas coisas que ele, o que era muito importante para Antoine.

- Sinto-me muito feliz por vocês os dois e... espero que seja uma menina.

E Sabrina, enquanto caminhavam, de mãos dadas, até casa, sussurrou-lhe:

- Também eu.

O seu estado já começava a notar-se quando andava de calças. A outra casa deveria estar acabada dentro de dois meses. Sabrina queria mudar-se para lá antes da chegada do bebê, embora o fosse ter em São Francisco. André insistia muito nisso. Queria que lhe dispensassem todos os cuidados possíveis, mas, até ao momento, não tivera qualquer problema com a gravidez. Nem sequer a viagem para o Este foi motivo de preocupação. Por outro lado, quando se encontrou com o filho, instalou-se uma atmosfera tensa entre os dois. Jon ignorou André e olhou para a mãe com ar hostil.

- Deves estar encantada com a notícia.

- Que notícia? - Sabrina ficou algo confusa.

- Escrevi-te a semana passada.

- Não recebi carta nenhuma. Deve ter chegado depois de termos partido.

Havia lágrimas nos olhos de Jon quando falou. Sabrina ficou atônita.

- A avó foi atropelada por um autocarro, a semana passada. Teve morte imediata.

Sabrina precisou de alguns instantes para perceber que se tratava de Camille. Então, fitou o filho, surpreendida com a mágoa que ele parecia sentir. Ela não sentiu nada, apenas um certo alívio.

- Sinto muito, Jon.

- Não sentes nada. Tu odiava-la.

Voltava a comportar-se como um garoto. André observava-o do sítio onde se sentara, junto da janela do quarto da residência onde Jon se encontrava alojado. Sabrina estava sentada na cama e o seu nervosismo era evidente. Aumentara de peso e já não conseguia usar as antigas roupas. Tivera de comprar vestidos mais folgados, como o de seda azul que usava naquele momento. Era da mesma cor que os seus olhos e André achava-a ainda mais bonita do que de costume.

- Não a odiava, Jon. Eu mal a conhecia. E o que cheguei a ver dela não me agradou mesmo nada. Terás de reconhecer que, comigo, não se comportou como uma mulher decente. Tentou pôr-me fora da minha própria casa, depois de me abandonar quando ainda era uma criança pequena e de ter permanecido quarenta e seis anos fora da minha vida

Jon encolheu os ombros. Era uma acusação difícil de negar. De repente, olhou para a mãe com ar de surpresa.

- Estás mais gorda. A vida de casada deve estar a fazer-te bem. - Era uma observação desprovida de tato e Sabrina riu-se.

- Sim, está a fazer-me bem, mas não é essa a causa do meu aumento de peso. - Tinha de dizer-lhe algum dia, e tão bom era aquele como qualquer outro. - Sei que vais ficar surpreendido. E, para dizer a verdade, também nos surpreendeu a nós. - Ganhou fôlego e prosseguiu: - Vamos ter um bebê no Natal, Jon.

- Vocês.. O quê? - Pôs-se em pé de um pulo e olhou-os com ar horrorizado. – Não... não é possível.

- É verdade. Vou ter um filho. - Sabrina continuou sentada tranquilamente. Olhou para André e depois pousou os olhos no filho. - Compreendo que seja um choque para ti, mas..

- Como pudeste ter cometido tamanha estupidez? Meu Deus... - Todos se rirão de mim! Tu já tens cinqüenta anos e sabe Deus quantos anos é que ele tem...

Apesar de Jon não se mostrar amável, Sabrina não conseguiu evitar um sorriso. Estava tão furioso que voltava a parecer um garoto. Exibia uma reação muito diferente da de Antoine, que fora a correr comprar o primeiro urso de pelúcia ao bebê. «E não se esqueça de lhe dizer que fui eu quem lho dei!» Não parava de dizer que ia ser uma menina, coisa que pouco importava a Jon, que não parava de andar de um lado para o outro, completamente fora de si.

- Estas coisas acontecem - disse André, tentando acalmá-lo. Lamentava o comportamento de Jon com a mãe, embora não lhe causasse a menor surpresa. Era um rapaz imaturo e extremamente mal-educado, que parecia andar sempre de machado em riste para a mãe.

- Acabarás por te habituar. Como nós. E como o Antoine. E ele é ainda mais velho do que tu. Quatro anos, para ser mais exata.

- Que diabo é que esse patego sabe? A única coisa que sabe fazer é plantar vides. Já sou um homem, por amor de Deus!

André levantou-se de um pulo, dominando a cólera com dificuldade.

- O Antoine é o meu filho. E agora é teu meio-irmão. Como tal, agradeço-te que fales dele com respeito, Jonathan.

Por instantes, os dois homens trocaram furiosos olhares. Jon desviou, então, o seu. Não era parvo e André não era para brincadeiras. Voltou-se, então, para Sabrina e fez-lhe sinal que estava na hora de se retirarem. Jon tinha planos para essa noite. No dia seguinte assistiriam à cerimônia de formatura e depois jantariam com ele e com um amigo. De seguida, André e Sabrina partiriam com ele para Nova Iorque. Jon embarcaria no Normandie três dias depois. André conseguira arranjar o dinheiro, que não era pouco, para pagar a viagem, fato que deixou Sabrina impressionada. De caminho, ela e André queriam ir visitar Amélia.

- Até amanhã, Jon.

Sabrina aproximou-se com a intenção de lhe dar um beijo, mas ele evitou-a. Quando André e a esposa saíram do quarto, Jon encontrava-se de costas voltadas para eles.

- Tenho pena que ele não tenha aceite bem a minha gravidez disse Sabrina para André, enquanto tomavam um táxi para voltar para o hotel.

- Esperavas outra coisa? Ainda é muito jovem. E deu-lhe umas palmadinhas na mão. Quatro anos significam muito nesta idade. O Antoine já é um homem. O Jon, nem pouco mais ou menos. Mas lá chegará. Talvez ache que o nascimento do nosso bebê seja uma ameaça para ele, em termos do que um dia herdará de ti... a mansão... as terras de Napa...

Sabrina ainda não pensara nisso, mas agora assentiu com a cabeça, perguntando-se se aquilo seria o que Jon pensava sobre o assunto.

- Talvez tenhas razão. Que estranho aquilo que aconteceu à Camille, não achas?

- Não se perdeu grande coisa. Era uma mulher tão ambiciosa, malvada e inútil. Devia ter morrido anos antes, como pretendia o teu pai.

André nunca perdoara a Camille aquilo que ela fizera à sua esposa. Durante todos aqueles meses, torturara Sabrina, enquanto ela esperava, impotente, a oportunidade de se defender perante os tribunais.

- É estranho. Não senti nada pela morte dela. O Jon, sim, ficou muito afetado.

- Não me admiro. Já se conheciam há quatro anos e, aparentemente, tinham muito em comum. - Para desgosto de Sabrina.

No dia seguinte, teve lugar a cerimônia de formatura, que decorreu sem o menor problema, e Sabrina chorou na altura em que Jon recebeu o diploma. Por pior que se tivesse portado com ela, sentia-se orgulhosa dele e do resultado de uns estudos que a haviam obrigado a vender as minas, a casa de Napa, os jardins em redor da Mansão Thurston... Ambos haviam conseguido o seu propósito. Tinham mais do que motivos para estarem orgulhosos e para celebrarem; como tal, jantaram juntos nessa noite. Jon embriagou-se, mas Sabrina e André mostraram-se compreensivos. Nessa noite, foi mais amável do que era habitual; muito mais amável do que no comboio para Nova Iorque. Tinha vergonha de ser visto com ela.

- Meu Deus, que pensarão as pessoas? - sussurrou a Sabrina, e esta, com um sorriso nos lábios, respondeu-lhe em voz baixa

- Diz-lhes que como mais do que a conta.

Depois, fizeram perguntas a Jon sobre as suas perspectivas de encontrar emprego. Segundo ele, começaria a trabalhar em setembro, quando voltasse, para o pai de um amigo seu. O nome do amigo era William Blake e quando foram despedir-se de Jon a bordo do navio, este apresentou-o a Sabrina Bill ia acompanhado de uma rapariga deslumbrante. Disseram-lhe que era irmã de Bill e que tinha dezoito anos. A rapariga não tirava os olhos de Jon. Evidentemente, estava mais do que apaixonada por ele. Ela mesma se apresentou a todos, quando soube quem eram.

- Olá, sou a Arden Blake. - Apertou a mão a Sabrina e a André, olhou despercebidamente para o folgado vestido vermelho que Sabrina trazia e pôs-se a tecer elogios a Jon, enquanto este parecia olhá-la com indiferença. - E o papá acha que ele vai fazer coisas extraordinárias. É por isso que vai mandá-lo para a Europa com o Bill, como uma espécie de bônus antes de começar a trabalhar.

Sabrina ficou furiosa ao ouvir aquilo, mas não o deixou transparecer. Jon dissera-lhe que conseguira o dinheiro com o seu próprio esforço, não que iria viajar em primeira classe no Normandie, já para não falar nos hotéis onde ficaria instalado. Sabrina sabia que o velho William Blake era o banqueiro mais importante de Nova Iorque. Fizera alguns negócios com ele antes de vender a mina de John, relacionados com uns investimentos que este realizara. Olhou para o filho com vontade de o estrangular, mas era demasiado tarde para discussões. Em vez disso, continuou a falar com Arden sobre futilidades, recordando-se, com assombro, que dirigia as minas do pai com a mesma idade. Era incrível pensar que aquela rapariga, com a sua doçura e o seu ar de inocência, estivesse tão entusiasmada por Jon

- A mamã, o papá e eu também iremos para a Europa no mês que vem e encontrar-nos-emos todos no Sul de França. A rapariga quase se desvanecia de ilusão ao pensar naquela perspectiva, o que fez sorrir Sabrina.

- Veja lá se o Jon se porta bem - disse em tom de aviso à bela loura de olhos verdes. - Não me fio no meu filho.

- A mamã diz que é o rapaz mais estupendo que conhece. Será o meu acompanhante na minha festa de dezembro.

Quando se ouviu o toque para que os visitantes abandonassem o navio, Sabrina viu Jon beijar Arden nos lábios e, depois, mais três raparigas. No grupo de estudantes que faziam a viagem, todos colegas de turma de Jon, havia quatro raparigas. Sabrina estava preocupada ao pensar nas complicações que podiam derivar daquele fato. Mas o que mais a inquietava era saber que não era Jon que pagava a viagem. Para cobrir aqueles gastos, teria de enviar um cheque com uma quantia elevada ao velho William Blake. Não podia permitir que Jon desfrutasse de umas férias tão caras como convidado de outra pessoa. Só Deus sabia que história dramática ele teria contado aos Blakes.

- Falamos disso quando regressares. - Olhou-o com ar sério e entregou-lhe um sobrescrito que era a prenda de fim de curso que pensara dar-lhe. Sentira-se tão orgulhosa pelo fato de o filho ter conseguido pagar a viagem com os seus próprios recursos, que resolvera oferecer-lhe mil dólares. De qualquer modo, ofereceu-lhos, com a sensação de que era mais uma despesa a juntar a tantas outras. - Sê bom com a Arden Blake - sussurrou-lhe. - É uma doçura. - Mas teve a desagradável sensação de que Jon iria aproveitar-se dela

- Ela é o meu passaporte para o êxito - afirmou, em voz baixa, e piscou o olho.

Sabrina sentiu náuseas ao ouvir aquelas palavras. Mais tarde, viu como a rapariga dizia adeus a Jon, agitando freneticamente a mão, sob o olhar da mãe. Teve vontade de prevenir Arden sobre o caráter do filho, mas como podia fazer semelhante coisa? Naquele momento, Jon encontrava-se na coberta do navio, defronte do seu luxuoso camarote, a sorrir para toda a gente. Sabrina achou-o mais bonito do que nunca. Era um homem alto e magro, de cabelos negros e olhar penetrante; tinha olhos azuis iguais aos de Camille e um rosto que faria morrer qualquer mulher. Pouco depois, quando o navio já se encontrava longe do cais, Sabrina voltou-se para André e, depois de exalar um suspiro, contou-lhe o que Jon dissera sobre Arden Blake. Também lhe explicou como é que ele financiara a viagem.

- Pelo menos, sabes que ele nunca morrerá de fome. É muito inteligente.

- É muito inteligente para o que lhe convém.

Às vezes, gostava que o Antoine fosse um pouco assim. A sua carência de sentido prático é incrível. Só pensa em princípios, ideais e intelectualices.

Sabrina esboçou um sorriso terno. André fizera a descrição perfeita do filho, mas Antoine era um rapaz atilado. Era inteligente, mas desprezava o lado prático da vida. Preferia ler filosofia a comer. Tinha mais tendência a perseguir idéias vagas e abstratas do que a conquistar as de caráter prático. De certo modo, era um sonhador, mas um sonhador brilhante.

- É um moço encantador, André. Devias estar orgulhoso dele.

- Já sabes que estou. - Ajudou-a a entrar no táxi e, quando se sentaram, olhou para a pequena protuberância e sorriu. - E como está o nosso amiguinho? - Sabrina sentira-o mover-se pela primeira vez, umas semanas antes, e agora parecia fazê-lo muito mais. - Anda aos saltinhos?

- Creio que vai ser bailarina. Faz muitas piruetas. - Era mais mexido do que Jonathan ou o bebê que perdera.

- Ou futebolista. - André sorriu.

Nessa tarde, foram visitar a sua velha amiga, que ficou encantada por vê-los. Ela achava que as suas preocupações a respeito da excessiva idade de ambos para ter um filho constituíam um disparate.

- Se eu pudesse, teria um! - Amélia tinha noventa anos e Sabrina ficou surpreendida ao ver o seu aspecto frágil. - Gozem todos os momentos de felicidade que ele vos proporcionar... É a melhor de todas as dádivas.

André e Sabrina olharam para Amélia, sabiam que ela tinha razão. A sua experiência, depois de ter vivido noventa anos de bem-estar econômico e de verdadeira riqueza intelectual e afetiva, era quase infinita em muitas coisas. Era um exemplo para toda a gente... em claro contraste com Camille. Sabrina falou um pouco dela com Amélia, depois tiveram de sair quando a enfermeira entrou no quarto. Era a hora da sesta.

Amélia já dava mostras de cansaço. Despediu-se de ambos com um beijo e, ao fazê-lo, olhou Sabrina nos olhos.

- És igual ao teu pai. Era um homem maravilhoso. Não herdaste nada da tua mãe. - Mas Jon herdara, o que Sabrina lamentava amargamente. Mas, naquele momento, não disse nada a esse respeito. - Dai graças ao Céu por essa criança. Não sei por que, mas tenho o pressentimento de que será uma menina. Pôs a mão na barriga de Sabrina e beijou-a de novo.

No dia seguinte, voltaram a apanhar o comboio para regressar a casa e Sabrina dispôs-se a passar o verão em Napa. Em agosto, ficou terminada a nova casa, para onde se mudaram de imediato. Mas, em Setembro, transferiram-se para a Mansão Thurston, para que Sabrina pudesse ficar perto do hospital. Quando Jon voltou da sua viagem à Europa, telefonaram-lhe. Disse que passara umas férias maravilhosas e referiu-se algumas vezes a Arden Blake. Já começara a trabalhar no seu novo emprego, que, na sua maneira de ver, era quase como um jogo, graças a Mr. Blake. Sabrina enviara a este um cheque para cobrir os gastos da viagem de Jon. Depois de ter devolvido o cheque uma ou duas vezes, foi finalmente aceite pelo banqueiro, que disse a Sabrina que, tal como toda a sua família, gostava muito de Jon, e este também parecia gostar dele.

- Vou passar as férias com eles em Palm Beach - grasnou Jon, para decepção de Sabrina.

- Pensei que virias a casa. Nessa altura, o bebê já terá nascido...

Mas Jon não estava interessado nisso.

- Não terei tempo de ir vê-los. Só disporei de duas semanas. Talvez o faça no próximo verão. Os Blakes vão alugar uma casa em Malibu e, provavelmente, passarei algum tempo com eles.

- Não tens de trabalhar?

- Trabalho o mesmo que o Bill. E tenho as mesmas férias que ele. É essa a combinação.

- Isso é extremamente cômodo.

- Por que não? Trabalho o mesmo que ele.

- Mas ele não estará em posição de vantagem?

- Talvez, e talvez também seja esse o meu caso. - Jon mostrava-se extremamente confiante. - A Arden está louca por mim e Mister Blake acha que sou o máximo.

- Parece que tiveste uma grande sorte ao encontrar esse emprego. Sem sombra de dúvida. - E quando Sabrina tentou discutir a forma como ele conseguira o dinheiro para a viagem, Jon ripostou de imediato.

- Não tinhas nada que a ter pago. Mister Blake disse que a pagava.

- Não podia permitir uma coisa dessas. E tu também não, Jon.

- Oh, por amor de Deus, mamã! Se vais fazer um discurso moralista, vou ter de desligar.

- Devias pensar no que fazes, Jon. Particularmente, no que se refere à Arden Blake. Não te aproveites dessa rapariga. É uma criança doce e ainda cheia de inocência.

- Por amor de Deus! Já tem dezoito anos!...

- Sabes bem o que quero dizer. - Jon sabia-o bem, mas recusava-se a admitir.

- Não te preocupes. Não vou violar ninguém.

- Há muitas maneiras de fazê-lo.

Sabrina continuava preocupada com ele, embora parecesse feliz em Nova Iorque, a julgar pelos postais que lhe mandava de tempos a tempos. Chegou Outubro, e Sabrina perdeu o interesse em tudo menos nela. O bebê estava cada vez maior e a futura mãe sentia-se cada vez mais desconfortável. Mal conseguia subir as escadas da Mansão Thurston, e quando o grande dia chegou sem que nada sucedesse, Sabrina e André começaram a dar grandes passeios a pé.

- Ela deve sentir-se bem lá dentro - sussurrou Sabrina. - Ou me engano muito ou não sairá tão cedo. - Olhou com ar triste para André e este riu-se. Mal podia andar. Tinha de sentar-se ao fim de alguns passos. Sentia-se uma velha de cem anos com cento e cinqüenta quilos, mas não perdera o sentido de humor.

- Que farás se for menino? Não paras de tratar o bebê por «ela».

- Já nascerá acostumado, pobrezinho.

Contudo, três dias depois do final do tempo, Sabrina acordou André do seu sono profundo, às quatro da madrugada, com o rosto iluminado por um radioso sorriso.

- Chegou a hora, meu amor.

- Como é que sabes? - Ainda estava meio adormecido e esperava que a coisa se prolongasse até ao dia seguinte. Ou pelo menos, até à manhã seguinte.

- Confia em mim. Eu sei.

- De acordo.

André virou-se penosamente, mas acabou de despertar por completo num ápice ao ver Sabrina dobrar-se, de repente, sobre si mesma. Saltou da cama, rodeou-a com os braços e, depois, conduziu-a cuidadosamente até um cadeirão, enquanto ela o olhava com o pânico estampado no rosto.

- Acho que esperei demasiado... - Arquejava ligeiramente e estava com um ar abatido. - Não queria acordar-te... Primeiro, não tinha a certeza... oh... - Agarrou-se ao braço do marido, que se sentiu subitamente aterrorizado.

- Oh, meu Deus... já telefonaste ao médico?

- Não... é melhor... oh, André... oh, meu Deus... telefona...

- O que se passa? - Com ar de pânico, conduziu-a de novo até à cama e pegou no telefone. - Que queres que lhe diga?

Sabrina deixou escapar um gemido e torceu-se na cama.

- Diz-lhe que já sinto a cabecinha... - continuou a gemer enquanto ele marcava o número. De repente, soltou um grito agudo.

André nunca se encontrara em semelhante situação. Quando Antoine nascera, esperara na sala do hospital durante várias horas até tudo ter terminado. Não chegara a ver a mulher em trabalho de parto.

O médico atendeu e André explicou-lhe o que Sabrina dissera.

- Sente uma forte pressão para baixo?

André tentou perguntar a Sabrina, mas esta não o ouvia. Agarrava-se desesperadamente ao seu braço e tinha o rosto crispado pela dor. Os acontecimentos haviam-se sucedido tão rapidamente que o desconcerto de André era absoluto.

- Sabrina, escuta-me... O doutor quer saber se... Sabrina... por favor...

O médico que os ouvia no outro extremo da linha, gritou, então, para André:

- Telefone para a Polícia! Vou já para aí.

- Para a Polícia? - André pareceu horrorizado, mas não tinha tempo de pensar nem de telefonar a quem quer que fosse. Sabrina rastejava, literalmente, pela cama e não parava de soluçar.

- Oh, meu Deus... oh, André... por favor...

- Que posso fazer?

- Ajuda-me... por favor...

- Querida...

André tinha os olhos inundados de lágrimas. Nunca se sentira tão desesperado. Fora mais fácil arrancá-la das garras do médico que se dispunha a fazê-la abortar sete meses antes. Aquilo só lhe exigira um pouco de sangue-frio e alguma coragem. Isto requeria conhecimentos especiais, de que ele não fazia a menor idéia. Mas quando Sabrina se voltou para ele com ar desamparado, contorcendo-se com dores, esqueceu-se, de repente, de tudo o que não sabia e, instintivamente, estendeu os braços para ela, agarrou-lhe as mãos e falou-lhe com voz meiga. Já sabia que não a levaria para o hospital. Sabrina acordara demasiado tarde e os acontecimentos haviam-se precipitado. Depois de se ter despido completamente, jazia só coberta por um lençol, tal como acontecera muitos anos antes, de modo que a situação não lhe era estranha. Era como se se tivesse esquecido de tudo e, de repente, se lembrasse perfeitamente desses instantes, como se fosse um sonho distante. Olhou para André e, pela primeira vez numa hora, quase lhe sorriu. Tinha o rosto com olheiras e coberto de suor. De repente, fez pressão com todas as suas forças, enquanto ele lhe segurava os ombros. Quando as dores abrandaram, levantou os olhos para ele e sorriu.

- Eu disse-te... eu queria... que o bebê... nascesse... nesta casa... - - Ao dizer estas palavras, fez força de novo e André segurou-lhe, uma vez mais, os ombros, de modo que tinha a mesma perspectiva que ela e não sabia o que estava a passar-se. Não conseguia ver nada e a única coisa que sentia era a tremenda tensão do corpo da esposa de cada vez que fazia força. Então, lentamente, Sabrina começou a gritar, num estado de profunda agonia, enquanto todo o corpo ficava em tensão; desta vez quase se sentou. - Oh, André... oh, meu Deus... oh, não... André...

Tomou-a entre os braços e, com os olhos cheios de lágrimas, acariciou-a. Sabrina soltou um grito agudo e depois outro, apoiando-se em André de cada vez que as dores aumentavam. De repente, ele sentiu que o ritmo das contrações estava a aumentar. Ele sabia... ele sabia... era como se sentisse o mesmo que ela.

- Vamos... continua... continua, querida... Sim, tu consegues...

- Não consigo!... - Sabrina gritava de dor.

André tinha vontade de tirar o bebê com as próprias mãos para acabar com o sofrimento de Sabrina.

- Tu consegues!

- Oh, meu Deus... oh, não... André...

Sabrina torceu-se de novo na cama, atirou violentamente o lençol para trás, agarrou-se à cama e fez força até não conseguir respirar, nem mexer-se, nem gritar... Subitamente, vislumbrou-se uma cabecinha redonda... e então quem gritou foi André.

- Oh, meu Deus... Sabrina!

André não conseguia acreditar no que via. A cabeça estava voltada para eles, como se já soubesse o que tinha de fazer. Ele passou, então, para o outro lado da cama e agarrou a cabecinha com extremo cuidado, enquanto Sabrina voltava a fazer força, deixando os pequenos ombros livres. E a criança chorou pela primeira vez na vida, enquanto André a ajudava a sair suavemente do útero da mãe. Sabrina tanto chorava como ria e, ao fim de alguns instantes, depois de um pequeno esforço final, André tinha o bebê nas mãos. Olhou para o novo ser como se se encontrasse perante um milagre. E, mostrando o bebê à mãe, exclamou:

- É uma rapariga! - André não conseguiu conter as lágrimas. Nunca vira nada tão bonito como a bebê que segurava nas mãos, nem como a mulher, que tanto amava. Foi até à cabeceira da cama, susteve os ombros de Sabrina para a ajudar a superar os tremores que ela sentia, voltou a cobri-la com o lençol e pôs-lhe o bebê nos braços. - Oh, é tão bonita!... Bonita como tu...

- Amo-te tanto... - O cordão umbilical ainda unia mãe e filha, e Sabrina sentia-se como se tivesse acabado de escalar o Evereste. Olhou para André com renovado amor e este beijou a mãe e depois a filha.

- És uma mulher extraordinária.

Era uma experiência que nunca esqueceriam. André, ao olhá-la, sabia que nunca a amaria tanto como naquele momento. Nunca vira imagem mais terna e bela do que Sabrina com a filha nos braços.

Então, lentamente, e ainda a tremer, sorriu para o marido com uma expressão de profunda alegria.

- Não foi assim tão mau para uma velha como eu, pois não, André?

Ele estava completamente apaixonado por ela e pela filha. Fora a coisa mais maravilhosa a que alguma vez assistira. E quando o médico chegou numa ambulância, dez minutos depois de o bebê ter nascido, André recebeu-o com um largo sorriso nos lábios.

- Boa noite, meus senhores.

Estava com um ar tão feliz e orgulhoso que o médico e a enfermeira que o acompanhava deram-se conta de que haviam chegado demasiado tarde. O médico precipitou-se, então, pelas escadas acima e encontrou Sabrina a embalar a filha.

- É uma rapariga! exclamou ela, radiante, e o pai e o médico riram-se.

Então, este fechou a porta, olhou para a mãe e para a filha, cortou o cordão umbilical e certificou-se do bom estado físico de Sabrina. Depois, algo estupefato, disse:

-Tenho de reconhecer que... Não esperava que as coisas corressem com tanta facilidade.

- Nem eu - proferiu ela, a rir. E, pegando na mão de André, disse-lhe, com um olhar de gratidão: - Não teria conseguido sem a tua ajuda.

Ele ficou surpreendido com aquele elogio imerecido.

- Limitei-me a assistir. Tu é que fizeste tudo. - Sabrina olhou para o bebê, que nesse momento dormia tranquilamente a seu lado.

- Foi ela que fez tudo sozinha. - Era um milagre ter a filha a seu lado.

O médico voltou a examinar a mãe. Ficou satisfeito. Por outro lado, a pequenina não podia estar melhor. Pesaria uns três quilos e meio, ou talvez mais. Tanto a mãe como a filha estavam ótimas.

- Eu devia levá-la para o hospital para descansar. O nascimento, porém, fora tão normal que não havia necessidade disso. - O que acha?

Sabrina não se mostrou muito agradada com a idéia.

- Prefiro ficar aqui

- Foi o que pensei. - O médico não se mostrou surpreendido.

- Bem... permito que fique em casa, mas avisem-me se surgir algum problema, algo anormal ou uma inesperada subida de temperatura. - E, agitando um dedo para Sabrina, acrescentou: - E, desta vez, não espere tanto para dar o alarme!

- Eu pensava que podia esperar mais. Não queria acordar toda a gente a meio da noite

Os dois homens riram-se. Acabara por acordar e de uma forma muito mais dramática. Naquele momento, eram só cinco e um quarto e ainda estava escuro. Dominique Amélie de Vernay acabava de fazer a sua entrada no mundo. Só se decidiram por «Dominique» depois de considerarem muitos outros nomes, mas há muito que estavam de acordo quanto ao segundo nome.

Quando o médico partiu na ambulância, André levou uma xícara de chá à esposa. A criada, que esperara pacientemente no rés-do-chão pelo nascimento da bebê, subiu para a lavar, devolvendo-a à mãe rapidamente. Depois, mudou a roupa da cama e lavou Sabrina. Quando estava de novo deitada a beber o chá e com Dominique ao peito, André, enquanto o céu empalidecia e o Sol fazia a sua ascensão no firmamento, contemplou-as com ar incrédulo. Subitamente, riu-se e disse:

- Bem, o que vamos fazer hoje, meu amor? - Olharam um para o outro, perplexos, e desataram a rir.

A espera fora longa, mas o desenlace não podia ter sido mais rápido e feliz. Sabrina estava a deixar-se vencer pelo sono, mas, antes de adormecer, recordou o lugar horroroso do Bairro Chinês... e viu André a falar serenamente com o homem que empunhava a pistola... a fuga de ambos pelas escadas abaixo... e agora, como que por milagre, encontrava-se na sua cama com uma bebê adormecida a seu lado e com o marido junto a ela.

Quando Sabrina acordou, telefonaram a Antoine. Ia a sair para os vinhedos e atendeu o telefone com ar distraído. André foi direito à questão.

- É uma menina!

- Já? - Antoine ficou emocionado. - Meu Deus, que maravilha!

- Chama-se Dominique, é muito bonita e tem duas horas e... - Olhou para o relógio. - E catorze minutos.

Antoine, radiante de felicidade, mal conseguia articular as palavras com alguma coerência.

- Oh, meu Deus... papá... C’est formidable!... Como está a Sabrina?... Está no hospital?

André riu-se do desconcerto do seu primogênito.

- As respostas a tudo isso são sim, muito bem e não. Sim, está. formidable, está ótima, e não se encontra no hospital. A bebê nasceu em casa. - Sabrina não parava de sorrir enquanto André explicava tudo ao filho. Nunca esqueceria como ele a ajudara e animara. Para Sabrina, tinha muita importância que André tivesse partilhado aqueles momentos com ele.

- Como? - Antoine ficou pasmado. - Em casa? Mas pensei que...

- Também eu. Mas a Sabrina pregou-me a partida. Não quis interromper o meu sono e avisou-me demasiado tarde. E... voilà, Mademoiselle Dominique chegou uns vinte minutos depois de eu acordar. E o médico chegou dez minutos depois disso.

- É incrível!

Com os olhos inundados de lágrimas, André tinha a sensação de estar a sonhar.

- Sim, monfils, é incrível. Foi a coisa mais bonita que vi em toda a minha vida.

André só desejava uma coisa a Antoine: uma mulher que lhe tivesse tanto amor como aquele que ele tinha por Sabrina e o nascimento de um filho partilhado com a esposa Ao fim e ao cabo, estava feliz por tudo ter ocorrido na sua presença. O parto fora muito mais difícil e muito mais fácil do que ele pensara. Fora o trabalho mais duro, mais doloroso, mais aterrador e mais bonito de quantos realizara na sua vida., e Dominique nascera quase por si mesma. Fosse como fosse, não se podia negar que, desta vez, Sabrina tinha tido muita sorte. Quando Antoine nascera, a mãe estivera em trabalho de parto durante dois dias.

- Tu fazes isso muito bem, sabes? - gracejou André, nessa tarde, enquanto estavam deitados lado a lado. Sabrina estava a comer e Dominique dormia profundamente no berço que fora de Jon, ornado com organdi branco e laços de cetim da mesma cor. Temos de repetir um dia destes.

Sabrina olhou, atônita.

- Olha lá... o parto não foi assim tão fácil... - Estava muito cansada e dorida, mas não surgira nenhum daqueles sinais de perigo indicados pelo médico. Não tenho muita vontade de voltar a tentar.

Ambos sabiam que, na sua idade, seria pouco provável que voltasse a ter outra oportunidade como aquela, mas davam graças a Deus pela dádiva recebida.

Ficaram algo desgostosos por Jon ter ido almoçar quando lhe telefonaram. Sabrina falou com a secretária que o filho partilhava com o jovem Bill Blake e Jon telefonou-lhe, mais tarde, para casa. Parecia um pouco embriagado e, ao princípio, não se mostrou muito interessado em saber qual a razão do telefonema. Todavia, quando ouviu a notícia, instalou-se tal silêncio fúnebre do outro lado da linha, que Sabrina pensou que a ligação caíra.

- Jon?.. Jon?... Jon?... Jon?... Oh, bolas... André, acho que... - E, então, Jon voltou a ouvir-se.

- Não acredito que tenhas levado a gravidez até ao fim. - Há quatro meses que não se viam. - Ao princípio, ainda pensei que não irias levar essa loucura até ao fim. Tinhas essa idéia fixa. - E soltou uma gargalhada de bebedolas que enojou Sabrina.

- Chama-se Dominique e é pequenina... e muito bonita. Espero que possas vê-la em breve...

Jon dera-se conta de uma coisa e, depois de contar pelos dedos, perguntou:

- Ouve lá... não esperavas a bebê só para dezembro, mamã? Suponho que só te casaste em abril, uma coisa dessas... - Jon não tinha nada de parvo.

- É verdade. Mas a menina chegou dois meses antes do previsto.

- Não me digas que o francês se aproveitou de ti antes do casamento? Não admira que tenham ficado surpreendidos, como me disseste em junho. Só podiam ter ficado! - Jon ria a bandeiras despregadas e Sabrina só tinha vontade de o estrangular.

- Bem, Jon, vê lá se vens ver a tua irmãzinha.

- Claro, mamã. Oh... e os meus parabéns aos dois... - Mas a voz não podia ser mais falsa.

Que diferente aquela conversa telefônica da que mantivera com Antoine, pensou ela ao desligar. Antoine recebera a notícia com uma alegria e uma emoção que o puseram à beira das lágrimas; Jon mostrara-se cínico, ofensivo e insinuara que o bebê fora concebido antes do casamento. Sabrina olhou para André com os olhos marejados de lágrimas e a alma dilacerada pela decepção.

- Não foi nada amável. Parecia uma menina pequena.

André deu-lhe umas palmadinhas na mão e beijou-a na face.

- Está com ciúmes. Foi filho único durante muito tempo. - Sabrina procurava sempre arranjar desculpas para o filho, mas estava cada vez menos de acordo com ele.

- Também o Antoine foi. O Jon é uma pessoa egoísta e de mau caráter, e espero que um dia tenha o que merece. Não se pode tratar as pessoas da maneira que ele o faz, sem se pagar o devido preço. - E, ao dizer isto, recordou-se de Arden Blake e desejou ardentemente que não viesse a sofrer às mãos de Jon.

Só voltaram a vê-lo no ano seguinte. Apareceu quando Dominique já tinha oito meses. Não lhe dedicou a menor atenção quando entrou na Mansão Thurston. Olhou à sua volta como se fosse o dono da casa. A mãe observou-o com certa surpresa. Estava ainda mais bonito do que no ano anterior, quando se formara. Com vinte e três anos fazia-os daí a um mês, era um jovem alto e magro, extremamente charmoso. Havia nele algo de tão sofisticado que quase parecia decadente. Sabrina enleou-o nos braços e, com um sorriso nos lábios, olhou-o nos olhos. Não o voltara a ver desde o dia em que, um ano antes, se despedira dele no Normandie, e estava muito contente em vê-lo de novo. Sabrina tinha a pequenina ao colo, que se riu ao ver Jon, mas este não lhe ligou a mínima importância

- Bom, que tal achas Miss Dominique? - Sabrina olhou para o filho com ar orgulhoso.

- Quem? Ah, essa...

Sabrina não gostou de tanta indelicadeza e repreendeu-o.

- Ouve, Jon, agradeço-te que não venhas com esses ares de homem importante e altivo. Lembro-me de quando tinhas esta idade, e não foi há muito tempo.

Jon sorriu e pareceu mais afável.

- Está bem... está bem... é muito bonita. Mas não são as raparigas dessa idade aquelas de que gosto mais.

- E de que idade é que gostas mais? - perguntou-lhe Sabrina, em tom de provocação, enquanto subiam as escadas e se dirigiam ao quarto dele. Nada mudara. Tinha sempre o quarto pronto para o receber, por pouco freqüentes que fossem as suas visitas.

- Oh, entre os vinte e um e os vinte e cinco.

- Suponho que isso deixa a Arden Blake fora das tuas preferências. - Ela não se esquecera do comentário que Jon fizera acerca do fato de Arden ser o seu passaporte para o êxito, o que a irritara. - Neste momento, não deve ter mais de dezenove anos.

- Boa memória, mamã. Dezenove anos, precisamente. Mas fiz uma exceção especial para ela.

- Pobre rapariga. - Sabrina revirou os olhos.

- Não te preocupes com isso A propósito, ela e o Bill regressam de Malibu na próxima semana. Podem cá ficar?

- Se se portarem bem, sim. Poderão, inclusive, ir conosco para Napa, se tu e o Bill não se importarem de partilhar o mesmo quarto. Podereis ocupar os dois quartos de hóspedes que aí temos. Adoraria que viessem - disse Sabrina, com um sorriso de felicidade. Era bom voltar a estar com ele, apesar das suas impertinências.

- Suponho que já não vives na mesma lixeira.

- Jon!

- Bem, era o que era.

- Foi um alojamento temporário, enquanto o André construía a casa nova. Há também um chalé para o Antoine.

- Ainda anda por aí? - perguntou ele, com ar de enfado.

- Dirige os vinhedos com o André. A propriedade não tem nada de pequena e as coisas começam a avançar de forma satisfatória. O André não conseguia tratar de tudo sem ele. - Sabrina lembrou-se de Jon lhe ter chamado «campônio francês», mas, desta vez, não dissera nada depreciativo.

- Talvez passemos uns dias lá, se tivermos tempo. Eles preferem passar a maior parte do tempo aqui, em São Francisco.

- Há muito que ver na cidade. Mas talvez também gostem de Napa.

Quando os irmãos Blake chegaram, mostraram-se encantados com o vale de Napa. Jon estava visivelmente aborrecido, mas Bill ficou maravilhado com a extensão dos vinhedos. Disse que o pai, noutros tempos, realizara importantes investimentos em vinhos, em França, e fizera uma fortuna com eles.

- Eu sei disse André, sorrindo. O vosso pai e eu saímo-nos bastante bem naquele negócio.

Bill ficou entusiasmado ao dar-se conta de quem era André. Voltou-se para Jon e explicou-lhe que André e o pai haviam-se conhecido há muitos anos. André recordou-se, então, que o velho Bill Blake não assistira, no ano anterior, à cerimônia de formatura de Jon, nem estivera a despedir-se dele e de Bill quando embarcaram para a Europa.

- A próxima vez que for a Nova Iorque, irei visitá-lo. Dá-lhe cumprimentos da minha parte.

- Assim farei.

Depois daquela conversa, Jon pareceu mostrar maior interesse por André, embora ignorasse Antoine por completo. Sabrina e Arden haviam ido dar um longo passeio com Dominique, levando a menina num carrinho que Sabrina descobrira numa loja de antiguidades. Percorreram, durante horas, os caminhos que ela conhecia desde pequena. Quando regressaram, encontraram os quatro homens deitados à volta da piscina. Arden cumprimentou André e Antoine, que ainda não tivera ocasião de conhecer. Sabrina reparou que os olhos de Antoine quase lhe saíam das órbitas quando apertou a mão da rapariga. Já não tirou os olhos dela o resto da tarde e, nessa noite, ficaram a falar durante horas, enquanto Bill e Jon foram jogar pool à cidade. Estavam habituados a deixar Arden em casa e nunca nenhum deles se preocupava com esse fato Antes de sair, Bill perguntou a Antoine se queria acompanhá-los, mas ele respondera que tinha coisas que fazer em casa, o que pareceu esquecer assim que eles partiram.

Nessa noite, depois de pôr a bebê no berço, Sabrina sorriu ao contar o sucedido a André. Nesse momento, Antoine e Arden estavam sentados no alpendre e falavam animadamente

- O Antoine está pelo beicinho. Não reparaste.

- Reparei - respondeu André, pensativo. - Achas que o Jon não vai gostar. Ele parece ter um leve fraquinho por ela.

- Não sei se o terá. - Sabrina sentou-se na cama. - O ano passado, disse uma coisa de que não gostei nada. Referiu-se a ela chamando-lhe o seu «passaporte para o êxito», e sempre tive a esperança de que não estivesse a falar a sério. - O fato de se casar com a Arden asseguraria a Jon um cargo permanente no banco do Bill Blake, mas não gostaria que o meu filho se aproveitasse dela dessa maneira. Não que Jon desse ouvidos àquilo que a mãe lhe dizia, e Sabrina também não tinha quaisquer ilusões a esse respeito. André não deu grande importância ao comentário da esposa.

- Não creio que dissesse com má intenção. Provavelmente uma gracinha que lhe saiu na altura.

- Oxalá que sim. De qualquer modo, o Jon não parece muito interessado nela. Demonstrava-o o fato de não ter tido a menor dúvida em deixá-la sozinha para ir jogar pool.

- O mesmo não posso dizer do Antoine - afirmou André, sorrindo.

Antoine acabara de romper com a rapariga da cidade e há alguns meses que dava a impressão de se sentir solitário, coisa que não se devia sentir naquela noite na companhia de Arden Blake. Os dois brincaram interminavelmente com a bebê, embalando-a, rindo e pegando-lhe ao colo. Ao contrário de Jon, Antoine parecia encantado com Dominique.

No dia seguinte, Arden levou a pequenina para a piscina e brincou com ela. Quando Antoine regressou depois de uma reunião na cidade com alguns distribuidores importantes, vestiu os calções de banho e juntou-se a Arden na piscina. Falaram e riram, brincaram com Dominique e, finalmente, entregaram-na a Sabrina, continuando a falar sem descanso, sob o olhar desta. Enquanto brincavam com a bebê, pareciam um casalinho recém-casado. E já tinham idade suficiente para isso. Havia algo de tranqüilo e de caloroso que emanava deles. Era como se tivessem saído do mesmo molde; até o louro dos cabelos tinha o mesmo tom. Pareciam o par ideal, embora nenhum dos dois se apercebesse disso. Ao contrário de Jon, que, depois de mergulhar na piscina, emergiu entre Arden e Antoine. Nessa noite, Jon e Bill levaram a rapariga ao cinema, mas não convidaram Antoine. Sabrina encontrou-o sentado no alpendre, perdido nos seus pensamentos, com um cigarro nos lábios e um copo de vinho da sua própria colheita na mão.

- Não te ocorre outra coisa melhor do que beber essa coisa? - gracejou Sabrina, sentando-se na cadeira de balanço que havia a seu lado. - Sentes-te mesmo bem, meu querido?

Sabrina estava sempre preocupada com ele. Era tão calado que nunca se sabia o que lhe ia na cabeça. Nunca queria aborrecer os outros e assumia demasiadas responsabilidades. Mas, precisamente por isso, era um maravilhoso chefe de operações para André e uma excelente ajuda para os dois.

- Estou bem. - Ainda conservava o mesmo sotaque francês do dia da chegada. Ça vá.

- É bonita, não é? - Ambos sabiam de quem falavam: Arden Blake.

- Mais do que isso - sussurrou. - É uma rapariga diferente das da sua idade. É muito compreensiva e tem grande profundidade de sentimentos. Sabia que o ano passado trabalhou durante seis meses com um missionário, no Peru? Disse ao pai que, se ele não a deixasse ir, sairia de casa. O homem teve de ceder. Fala fluentemente o espanhol e o francês. E sabe-se lá quantas coisas mais fervilham naquela adorável cabecinha loura. Suspeito que muitas mais do que o Jon imagina.

- Não acho que ele esteja interessado nela. - Sabrina continuava a achar que não, mas Antoine apercebera-se melhor da situação.

- Ele só está à espera da ocasião adequada. Neste momento, ele só quer brincar com ela, e a Arden é ainda muito jovem. - Antoine fitou-a com uma expressão de experiência e sabedoria que ela nunca vislumbrara nele e que naquele momento lhe provocou uma profunda tristeza. - Ele vai casar com ela um dia. A Arden ainda não sabe nada, mas estou seguro disso. Quer conservá-la em gelo até então, e se alguém se aproximar de mais... - Ambos pensaram na reação de Jon ao levar a rapariga consigo nessa noite, apesar de nem ele nem Bill terem o menor interesse em que ela os acompanhasse. Mas Antoine aproximara-se demasiado. - Sei que tenho razão.

Sabrina mostrou-se franca com ele.

- Se ele se casar com ela, será por razões obscuras, Antoine.

- Sei disso. - Esboçou um sorriso triste. - E estranho quando vimos o futuro dessa maneira. Às vezes, é tão fácil prever o que as outras pessoas farão. Podemos ter o desejo de as deter, mas não conseguimos.

- Neste caso, conseguirias, Antoine. - De repente, desejou que ele conseguisse o que queria obter da vida, doesse a quem doesse. Antoine não devia absolutamente nada a Jon e este nunca mostrara o menor apreço por ele. Sem saber exatamente por que, não queria que Jon conquistasse Arden Blake. Não por ele, mas pela rapariga. Sabia que a sua união seria um tremendo erro. - Vai atrás dela, se é esse o teu desejo.

- É demasiado jovem. - Suspirou, depois sorriu. - Além disso, está louca por ele. Ao que parece, desde os quinze anos. Não é fácil lutar contra isso. Talvez se dê conta da realidade dentro de alguns anos, mas não agora.

- Dará, com o tempo. - O Jon não se mostra muito afetuoso com ela.

- Isso só piora as coisas. As raparigas dessa idade têm algo de masoquistas. - Antoine exibia uma lucidez impressionante para a sua idade.

- Porque não passas algum tempo com ela?

- Já passei, hoje. E não creio que fique muito tempo por cá.

Então, Sabrina teve uma idéia e apresentou-a a André nessa noite.

- Não achas que deverias mandar o Antoine a Nova Iorque tratar do plano de vendas que discutimos?

André fitou-a.

- Por quê? Pensei que tínhamos combinado ir este outono.

- Porque não o deixas ir?

- Não queres ir?

- Podemos ir noutra altura.

André olhou-a, algo desconcertado, e esboçou um sorriso malicioso.

- Estás outra vez grávida?

- Não, só pensei que a viagem lhe faria bem.

- Aí há gato. Tu não me enganas. Que tens na manga, minha bruxinha?

André atraiu-a para si, mas ela pôs-se rígida.

- Pára. Estou a falar a sério.

- Eu sei. Mas de quê?

- Está bem, está bem... - E pô-lo ao corrente do interesse de Antoine por Arden Blake.

- Porque não o deixas tratar da sua vida sozinho? Tem vinte e sete anos e já sabe tomar conta de si próprio. Se quiser ir a Nova Iorque, pode pagar do seu bolso. - Recebia um excelente salário, mas aquele não era o fulcro da questão.

- Então, não irá. É demasiado cavalheiro para se interpor entre o Jon e a rapariga.

- Talvez ele tenha razão. Porque não há-de manter-se à margem do assunto? - André parecia preocupado, mas ela não estava disposta a ceder.

- É a rapariga ideal para o Antoine.

- Então deixa-o fazer as coisas à maneira dele.

- Caramba, és impossível!

Todavia, o que Sabrina acabava de dizer-lhe não caiu em saco roto. No dia seguinte, André, como que por acaso, falou com Antoine sobre Arden, e não disse nada quando ele desapareceu durante toda a tarde para voltar tostado pelo sol e com a alegria estampada no rosto, depois de um piquenique perto de um nacho que haviam descoberto Antoine deu-lhe a provar alguns dos vinhos. Provavelmente, beijara-a uma ou duas vezes e, nessa noite, enquanto Bill e Jon saíram atrás de umas coristas de que haviam ouvido falar, levou-a a dar um passeio tranqüilo E quando Arden deixou Napa na companhia de Bill, para voltarem para Malibu, disse que esperava voltar a ver Antoine. Jon só ficou mais alguns dias e depois foi reunir-se a eles. Mais tarde, Jon e Bill apanharam o comboio de regresso a Nova Iorque em Los Angeles Então, Antoine descobriu que tinha um assunto a tratar em Malibu e foi ter com Arden antes que ela partisse com a mãe. Mas disse muito pouco sobre aquela viagem a Sabrina e a André

- Bem, vais mandá-lo para Nova Iorque?

Sabrina, que vivia a situação como se fosse o próprio Antoine, observou um sorriso misterioso nos lábios do marido.

- Sim, mas só porque ele me pediu. Quer um pretexto para ir vê-la a Nova Iorque, embora não me tenha apresentado as coisas dessa maneira.

Entretanto, Jon telefonou de Nova Iorque. Parecia novamente interessado em Arden. Disse que a havia levado a uma série de sítios, a festas, ao teatro. Sabrina sabia que o filho andava a brincar com a rapariga. Antoine tinha razão. Queria conservá-la em gelo, guardá-la para ele, e Arden ainda era muito jovem para se aperceber disso. De qualquer modo, Antoine foi vê-la a Nova Iorque e voltou deprimido da viagem

- O que se passou? Ele disse-te alguma coisa? - perguntou Sabrina a André logo que pai e filho tiveram a primeira conversa

- Sim, que a rapariga está apaixonada pelo Jon.

- Não é possível. Parecia louca pelo Antoine quando cá esteve.

- O Jon tem andado a paparicá-la e a Arden até pensa que poderão ficar noivos. Disse ao Antoine que não seria justo não contar-lhe a verdade. E, desta vez, nem sequer o beijou. Agora não te atrevas a dizer-lhe que te contei isto.

- Claro que não. - Sabrina parecia tão deprimida como Antoine. - Merda. Esse rapaz é maquiavélico.

- Não digas essas coisas do teu filho. E aconselho-te a que te mantenhas à margem do assunto. O problema é entre eles os três. Se o Antoine a quer tanto, lutará por ela. Se o Jon andar a fingir, acabará por desistir. E se a Arden sabe o que quer, escolherá aquele de que mais gostar. O melhor que podes fazer é deixá-los em paz.

- É que não consigo agüentar esta incerteza.

Os dois acabaram por rir. Mas ela sabia que André tinha razão.

Passaram alguns meses sem que Antoine voltasse a falar em Arden. E Sabrina não viu chegar nenhuma carta dela, embora ele pudesse tê-las recebido enquanto ela se encontrava na cidade. E quando, no Natal, falaram com Jon ao telefone, Sabrina só teve vontade de lhe torcer o pescoço.

- Como está a Arden, querido?

- Quem?

- A Arden Blake. - «A rapariga que te apressaste a separar do Antoine», pensou, mas conteve-se. - A irmã do teu amigo Bill.

- Oh... claro. Está boa. Agora, ando com uma rapariga que se chama Christine.

- Donde é?

- Creio que de Manchester. - Riu-se. - É modelo aqui, em Nova Iorque. É inglesa, loura, muito alta... e muito sexy. Moreno como era, tinha um fraquinho por louras.

- É boa moça? - perguntou Sabrina, fazendo rir André, que se encontrava junto ao telefone para cumprimentar Jon. - Deixa lá. - Ficou encantada por saber que o filho deixara Arden e pensou que aquela informação podia ser útil a Antoine. - Não tens visto a Arden?

- Uma vez por outra. Vê-la-ei esta semana quando for passar uns dias com eles em Palm Beach.

- E quando é que cá vens?

- Provavelmente no próximo verão. Talvez leve a Christine. - Sabrina ficou entusiasmada. As notícias não podiam ser mais prometedoras para Antoine.

- Ótimo. Dá-lhe cumprimentos meus.

André estava desconcertado quando Sabrina desligou.

- De que lado estás?

- Que achas? - retorquiu ela, sorrindo.

Esperava que Antoine conseguisse, desta vez, aquilo que tanto desejava. Raramente o conseguia, ao contrário de Jon, que alcançava tudo a que se propunha. Já era altura de aprender a lutar por aquilo que queria e Sabrina sabia que, no fundo, ele não se importaria. Não queria que ele ficasse magoado, mas também não queria que ele magoasse outra pessoa e sabia que ele magoaria Arden Blake, perante essa oportunidade. No dia seguinte, comunicou a Antoine que Jon andava a sair com outra rapariga.

- Ótimo. - Pareceu não dar grande importância ao fato.

- Antoine! - Sabrina procurava dizer-lhe, com a maior delicadeza, que Arden estava livre e que tinha de aproveitar os ventos de feição. - Já não se encontra com a Arden.

- Isso também é ótimo. - Sorriu, embora sem o menor sinal de alegria no rosto.

- Ela já não te interessa? - «Estes miúdos!» Não percebia nenhum deles. Olhou, surpreendida, para Antoine e beijou-o na face.

 

- Continua a interessar-me e muito, querida mãe. - Agora, chamava-lhe quase sempre «mãe». - Mas é demasiado jovem e ainda não tem as idéias bem organizadas. E não quero meter-me no meio deles.

- Por que não?

Antoine respondeu-lhe com a maior franqueza.

- Porque sairia magoado da aventura.

- E depois? - Sabrina estava surpreendida. - A vida é assim. Pelo menos, luta por aquilo que queres. - Quase se enfureceu com Antoine, mas este pareceu não fazer caso.

- Não estou em condições de ganhar esta batalha. Acredite. Sei que não. A Arden é cega aos defeitos do Jon. - Olhou para Sabrina com ar resignado, mas ela não pareceu ligar. Sabia muito bem quem Jon era, melhor do que ninguém. - Quanto mais eu andasse atrás dela, mais ela iria atrás do Jon. - Tinha razão, mas Sabrina não conseguia suportar a idéia.

- Como pode ela ser tão tonta?

- Muito tonta. É da juventude. Irá crescer.

- E depois?

Antoine encolheu os ombros e disse, em tom filosófico:

- Acabará por se casar com o Jon. A vida tem destas coisas.

- E não te importas?

- Claro que me importo. Mas não posso fazer nada para o impedir. Vi com os meus olhos quando estive em Nova Iorque. Foi por isso que andei tão deprimido durante semanas. Mas não há nada que eu possa fazer. Seria uma luta inglória. O Jon é um rapaz insidioso e convincente, e ela acredita em tudo o que ele diz, pelo menos, superficialmente. Todavia, creio que, no fundo, tem tremendos receios e suspeitas sobre ele. O Jon mente-lhe constantemente sobre as outras raparigas e a Arden finge a si mesma que acredita naquilo que ele lhe diz. De qualquer modo, há uma parte dela que nunca ficará convencida. Não está suficientemente madura para confiar nos seus instintos e deixar de dar ouvidos a vozes enganosas. Um dia fá-lo-á. - Olhou com ar triste para Sabrina. - Provavelmente, muito tempo depois de se ter casado e de ter tido dois filhos. A vida, às vezes, era assim.

- E tu? - Essa era a sua principal preocupação. Se Arden era assim tão tonta, então tinha o que merecia. E Jon sabia cuidar de si. Mas Antoine... - Como é que isto vai acabar para ti?

- Com uma pequena cicatriz - respondeu, sorrindo, - e com uma valiosa lição para recordar. Além disso, tenho outras preocupações. Temos de cuidar do negócio e quero ir à Europa esta primavera.

Porém, quando o fez, ainda voltou mais deprimido. Estava absolutamente seguro de que a guerra iria estalar. Hitler mostrava-se demasiado poderoso e a inquietação reinava por todo o lado. Depois do seu regresso, Antoine e o pai falaram disso durante semanas e, pela primeira vez, André sentiu medo.

- Sabes o que mais me preocupa? - confessou à esposa, uma noite. - O que possa acontecer ao Antoine. É suficientemente jovem para se alistar, convencido da nobreza do seu gesto, por patriotismo, por todas essas porcarias, e ir entregar-se à morte... - Estremeceu só de pensar.

- Achas que o faria?

- Não tenho a menor dúvida. Disse-me mais de uma vez.

- Oh, meu Deus, não... - Sabrina pensou em Jon. Não o imaginava na guerra. Mas, quando falou com Antoine, todos os seus temores se confirmaram.

- A França continua a ser o meu país... sempre o será... por mais tempo que viva aqui. Se atacarem o meu país, irei defendê-lo. Tão simples quanto isso.

Todavia, a situação era mais complicada e aquela ameaça pairava sobre Sabrina e André sempre que ouviam as notícias. Ela só desejava que Antoine fosse atrás de Arden Blake. Talvez, se se casasse com ela, refreasse os desejos de ir defender a pátria. E o que ele dizia sobre a precariedade da paz começava a confirmar-se. Era praticamente impossível evitar a guerra. André e Sabrina só desejavam que não rebentasse tão cedo e que Antoine mudasse de idéias. Talvez conseguissem convencê-lo de que a sua presença era imprescindível para o bom andamento do negócio. Mas ela suspeitava que ele iria de qualquer maneira e André pensava o mesmo.

E, com o propósito de lhe tirar aquelas idéias da cabeça, André deu uma suntuosa festa na Mansão Thurston para celebrar o qüinquagésimo aniversário de Sabrina. Assistiram quatrocentos convidados. Pessoas que adorava, pessoas que gozavam do seu apreço, algumas que mal conhecia, mas foi uma noite encantadora. Nem sequer faltou a presença de Dominique. A ama trouxe-a para o salão e a pequenina deu uns passinhos com o seu vestido de organdi cor-de-rosa, os caracóis louros apanhados por uma fita de cetim da mesma cor, o sorriso angelical e os enormes olhos azuis. Era a alegria da vida dos pais. Gostavam cada vez mais dela. E Antoine estava tão louco por ela como eles. Também trouxe uma rapariga muito bonita à festa. Uma jovem inglesa que estava a estudar em São Francisco há um ano. Era estudante de Medicina e parecia muito séria, mas faltava-lhe o fervor, o espírito e a ingenuidade de Arden Blake. Sabrina não conseguiu deixar de perguntar-se o que seria feito dela. Jon não voltara a aparecer por ali, mas falara nela nesse Verão, quando voltara à Mansão Thurston. Referira apenas que voltara a sair com ela e também com Christine, e que, além disso, havia uma francesa, outra modelo, e uma fabulosa judia alemã que acabara de conhecer. Esta saíra da Alemanha antes que as coisas aquecessem demasiado. Jon tivera uma acalorada discussão com Antoine sobre política, na noite antes de partir. Jon insistia na idéia de que Hitler fora providencial para a economia alemã e que, provavelmente, faria muito bem ao resto da Europa, se todas as nações se soubessem comportar adequadamente, o que enfureceu de tal modo Antoine que partiu dois copos e uma xícara. A disputa chegou a angustiar Sabrina, que tentou entrar na sala de estar ao ouvir os gritos, mas André impediu-a.

- Deixa-os sozinhos. Faz-lhes bem. Já são crescidos.

- Devem ter bebido demasiado. Matam-se um ao outro.

- Não chegarão a esse ponto.

Finalmente, Antoine saíra a bufar da sala, e Jon, pouco depois, deitara-se no sofá. E, milagrosamente, no dia seguinte, despediram-se como grandes amigos, com uma cordialidade jamais vista. Antoine chegara a dizer que lhe telefonaria para o banco quando voltasse a Nova Iorque, coisa que ele nunca sugerira. Sabrina ficou pasmada e disse a André que tinha razão.

- Os homens são realmente muito estranhos. - Ainda estava atônita quando voltaram da estação, depois de se terem despedido de Jon. - Cheguei a pensar que iriam matar-se.

- Sim, mas nunca o farão.

A partir de então, o verão deixou-lhes poucos momentos de descanso. As uvas cresciam admiravelmente e, ao chegar o outono, Antoine e André encontravam-se constantemente ocupados na supervisão das vindimas. Pouco depois, Dominique fez dois anos. Então, chegou o Natal e Jon passou-o de novo em Palm Beach com os Blakes. Antoine nunca mais falara de Arden. Entretanto, chegou a primavera, depois, o verão, e Jon telefonou em julho, dizendo que iria vê-los dentro de um mês. Tinha intenção de chegar por volta do dia dezoito de Agosto. Falou tartamudeando e com muitos rodeios, e Sabrina só soube por que quando o viu descer do comboio. Vinha acompanhado da rapariga loura mais bonita que alguma vez vira. E quando a rapariga se dirigiu a eles, recebeu outra surpresa. A loura era Arden Blake, feita uma mulher. Já tinha vinte e um anos e há dois que Sabrina não a via. Que diferença entre ela e a Arden que conhecera. Agora, estava lindíssima, com um penteado sofisticado, maquiada na perfeição e o corpo mais esbelto que antes, mais na linha das preferências de Jon. Formavam um par verdadeiramente deslumbrante. E Arden continuava tão doce como antes.

- Que tal achas a minha surpresa? - perguntou Jon, olhando para Arden, e depois para a mãe, mal acabaram de jantar nessa noite, na Mansão Thurston.

Antoine também estava presente. Sabrina, mais de uma vez, surpreendeu-o a olhar fixamente para Arden, mas mostrava-se muito reservado. O jantar não estaria a ser muito agradável para ele.

- Acho uma ótima surpresa. Há muito que não víamos a Arden.

Sabrina olhou-a carinhosamente e ela corou, contrastando com o audaz vestido negro, que mostrava o início do peito. Isso não fez mais do que aumentar a inquietação de Antoine, embora Jon não desse por nada. Sabrina esperava que ele não fosse dormir com ela.

- Bem, mamã, ainda temos outra surpresa para ti disse Jon, sorrindo entre dentes. Arden olhou-o como se tivesse perdido o alento e Sabrina teve a sensação de que o coração deixara de bater. Adivinhando o que o filho ia dizer, olhou de relance para Antoine, com o desesperado desejo de o proteger. Jon notou o olhar, mas prosseguiu: - Vamo-nos casar no próximo mês de junho. Estamos noivos.

Sabrina olhou instintivamente para a mão esquerda de Arden, onde viu brilhar um bonito anel de safiras e diamantes.

- Posso contar com a tua aprovação.

Durante um longo instante, Sabrina ficou em silêncio, sem saber o que dizer. E foi André quem ocupou o vazio.

- Claro que sim. Estamos encantados com a vossa decisão.

Arden teria vinte e dois anos quando se casasse com Jon e este vinte e seis. Antoine perdera definitivamente a batalha. Mas nada se notou no seu rosto quando brindou por eles, depois de ter ido buscar uma garrafa do melhor champanhe da sua safra.

- Felicito-vos aos dois e desejo-vos uma longa vida e um amor eterno...

- À saúde! - exclamou André, secundando o brinde do filho, enquanto Sabrina tentava sair da surpresa inicial. Mas a noite foi extraordinariamente tensa, e só ficou mais aliviada quando todos se retiraram para os respectivos quartos e pôde ficar a sós com André para lhe dizer o que pensava de tudo aquilo.

O Antoine tinha razão.

Ocorrera exatamente aquilo que ele previra, mas também previra o divórcio do casal ao fim de cinco anos e Sabrina achou que era possível que também nisso ele não se enganasse. Por mais apaixonados que eles se mostrassem um pelo outro, Sabrina sabia instintivamente que aquelas aparências não coincidiam com a realidade. E foi isso mesmo que disse a André.

- O Jon não a ama. Eu sei. Vi nos seus olhos.

- Sabrina... - André olhou-a com firmeza. - Não podes fazer nada. A coisa mais sensata que poderás fazer é unir-te a eles na sua felicidade. Se estiverem a cometer um erro, deixa-os descobrir por eles. Só se casam daqui a dez meses. É para isso que servem os noivados. Podia revestir uma estrada desde aqui até ao Sião só com os anéis de noivado devolvidos.

- Espero que a Arden abra os olhos e junte o seu anel a esses outros que dizes.

Desejou isso ainda com mais ardor quando, dias depois, chegou aos seus ouvidos o rumor de que Jon saíra na noite anterior com duas coristas. Todavia, não lhe fez qualquer referência a esse fato. Jon dissera apenas que ia sair com velhos amigos e deixara Arden em casa. Mas Sabrina não podia aprovar aquele comportamento. Jon continuava a ser o mesmo de sempre. Tal como Antoine e os seus sentimentos para com a noiva de Jon. Ainda havia um fulgor no seu olhar de cada vez que a fixava, e Arden parecia perceber. Às vezes, os seus olhos encontravam-se e assim ficavam até Arden voltar a cara para o lado. Mas o verdadeiro choque teve lugar a três de Setembro, o dia antes de o par regressar a Nova Iorque, quando Antoine trouxe a notícia. Tivera uma reunião de negócios na cidade e, a caminho de casa, ouvira a rádio. As suas previsões estavam, mais uma vez, corretas. A Europa entrava em guerra. Quando chegou à Mansão Thurston, encontrou Sabrina estupefata. Também ouvira a notícia.

- Antoine... - Não conseguiu dizer mais nada e as lágrimas começaram a rolar-lhe pelas faces.

Pouco depois, chegou André, de semblante carregado.

- Ouviram as notícias?

Ambos assentiram com a cabeça, temendo o pior. Mas André surpreendeu-os.

- Por favor, não vás! - André falou com voz temerosa e entrecortada. Ficara aterrorizado ao ouvir a notícia e correra para casa para rogar ao filho que não se alistasse. Não podia deixá-lo ir para a guerra... Ainda era um miúdo... O seu filho primogênito... Quando Antoine, movido pela emoção, o abraçou, os olhos de André inundaram-se de lágrimas. Naquele momento, Arden descia lentamente as escadas e Antoine olhou para ela por cima do ombro do pai. Sabrina nunca soube se ela falou para a rapariga ou para todos eles.

- Tenho de ir. Tenho de ir... Não podia ficar aqui sabendo o que se está a passar.

- Porque não? Este também é o teu país - replicou Sabrina.

- Sim, mas o país onde nasci, a minha pátria, está do outro lado do oceano.

- Nós também somos a tua pátria - disse André e, pela primeira vez, Sabrina observou sintomas de velhice no esposo. - Monfils... - As lágrimas correram-lhe pelas faces e Sabrina reparou que Arden também chorava. Não desviava o olhar de Antoine, que se aproximou, lhe tocou no rosto e disse:

- Um dia, voltaremos a ver-nos, Arden. - Soltou um profundo suspiro e voltou-se para os restantes. - Telefonei para o consulado há poucos minutos. Trataram de tudo para eu apanhar um comboio esta noite. Irá diretamente para Nova Iorque, depois embarcarei para França. A esta hora, muitos terão já feito o mesmo. - Olhou para o pai. - Não tenho alternativa, papá. - Era uma questão de respeito por si mesmo. Educara-o demasiado bem, com demasiada integridade demasiado orgulho. Antoine nunca conseguiria ficar escondido, enquanto precisavam dele a dez mil quilômetros dali.

A partir daquele momento, tudo pareceu um pesadelo. À noite, depois de Antoine ter feito a mala, levaram-no à estação. Antes, falara durante duas horas com o pai sobre assuntos do negócio que abandonava e desculpara-se constantemente por isso, mas não podia esperar nem mais um dia. Até Jon achou o seu procedimento exagerado.

- Por que diabo não esperas até amanhã e vais conosco para Nova Iorque num comboio decente? Que perdes?

- Tempo. Precisam de mim agora. Não depois de me atulhar de comida durante quatro dias e de jogar às cartas na carruagem-salão. O meu país está em guerra.

Jon olhou-o ironicamente.

- Que esperem. Não vão suspender a guerra porque tu chegas uma semana depois.

No entanto, Antoine não estava para graças, nem os seus acompanhantes, às duas da madrugada, quando o viram subir para o comboio com outros rapazes que também se dirigiam para este. Só se ouvia falar francês no cais, no meio de um mar de rostos carregados, de um rio de lágrimas. Então, de repente, enquanto se despediam, Antoine viu-se com Arden nos braços. Beijou-a na face e fitou-a por instantes.

- Sois sage, mon amie. - Que podia traduzir-se por «sê boa» ou «sê sensata». Eram duas alternativas interessantes e, em breve, teria de optar por uma. Arden pareceu desconsolada quando o viu partir e chamou-o pelo nome quando o comboio se pôs em marcha. Jon pegou-lhe no braço e puxou-a para o carro. André soluçava, abraçado a Sabrina. Haviam deixado Dominique em casa. Aquela despedida teria sido demasiado pesada para a pequena e, além disso, não teria compreendido o que se estava a passar.

- Nunca pensei que ele fosse... Nem sequer nestas últimas horas, quando não parava de falar no assunto...

André mostrava-se inconsolável. Passou a noite a chorar nos braços de Sabrina. No dia seguinte, quando Jon e Arden partiram, foi outro tipo de agonia. Era como se a família tivesse ficado destroçada de um dia para o outro. Quando Sabrina beijou Arden, as duas desataram a chorar sem que ninguém soubesse por quê. Ambas choravam por Antoine, mas não podiam dizê-lo. Então, Sabrina voltou a beijar Jon.

- Cuidem de vocês... voltem o mais breve possível...

André não viera despedir-se deles ao comboio. Teria sido demasiado para ele. Nessa noite, quando se dirigiram para Napa, foi Sabrina que conduziu o carro. André não proferiu uma única palavra durante toda a viagem.

Antoine telefonou-lhes antes de embarcar para a Europa. E só voltaram a ter notícias dele quatro meses depois, em janeiro. Estava são e salvo, e encontrava-se em Londres, temporariamente destacado na RAF, e mostrava extrema admiração por De Gaulle Na sua carta, quase só falava dele Sabrina ia a correr todos os dias até à caixa do correio, com Dominique agarrada às saias. E quando havia uma carta de Antoine, voltava ainda mais depressa e entregava a carta a André. Enquanto tivessem notícias de Antoine, tudo estaria bem Mas pareciam viver em constante sobressalto. Nem sequer o enlace de Jon com Arden atenuou aquele contínuo temor. Foi uma cerimônia magnífica e teve lugar em Nova Iorque. André e Sabrina assistiram a ela. Bill Blake foi o padrinho e Dominique ajudou a segurar o véu da noiva. Havia doze damas de honra e quinhentos convidados na Catedral de São Patrício, no primeiro sábado de junho, mas Sabrina esteve absorta em pensamentos durante quase toda a cerimônia. Não parava de pensar em Antoine e de perguntar-se como e onde ele estaria naquele momento. Parecia que já tinha partido há um século, mas, ao fim de três meses, escreveu a dizer que vinha de licença. Sabrina sentou-se a chorar. Partira há treze meses e continuava vivo. Encontrava-se no Norte de África com De Gaulle, mas teria oportunidade de ir aos Estados Unidos. Só poderia passar uns dias com eles e, com um pouco de sorte, estaria em casa por ocasião do quarto aniversário de Dominique.

E assim foi. A alegria foi geral E desta vez, quando partiu, a despedida não foi tão dolorosa. Até André não estava tão deprimido. Foi como se, depois da sua partida, a sua aura se tivesse mantido no ar. Falaram interminavelmente sobre a marcha do negócio vinícola, Antoine andara com Dominique ao colo praticamente desde o momento da chegada até ao do regresso, e contara-lhe muitas coisas da guerra, e especialmente de De Gaulle, por quem tinha um profundo respeito.

- Os Norte-Americanos também entrarão na guerra muito em breve. - Estava absolutamente certo disso.

- Não é o que o Roosevelt - diz observou Sabrina.

- Pois mente. Ele está a preparar-se para a guerra. Lembre-se do que lhe digo.

Sabrina sorriu.

- Ainda continuas com as tuas previsões, Antoine?

- Nem todas se concretizam, mas sei que, desta vez, não me engano.

Antoine também perguntou por Arden e Jon, mas Sabrina não vislumbrou a menor emoção no seu rosto. Estava demasiado absorto na guerra, em De Gaulle e tudo o resto. Sabrina contou-lhe como fora bonita a cerimônia do casamento. Disse-lhe ainda que não pudera ver Amélia em Nova Iorque. Morrera alguns meses depois do nascimento de Dominique, com a idade de noventa e um anos. Desfrutara de uma vida longa, plena e feliz, e a sua hora chegara. Sabrina sentia imensas saudades dela.

Antoine tinha intenção de ir visitar Arden e Jon antes de voltar a embarcar em Nova Iorque, mas não teve tempo. Encurtaram-lhe a licença, e teve que partir três dias antes do previsto, na obscuridade da noite, num navio de transporte de tropas. Só teve tempo de lhes telefonar. Atendeu Arden, pois Jon não se encontrava em casa.

- Está num jantar de negócios com o Bill. Ficará com pena de não ter falado contigo. - Arden teve vontade de lhe dizer que teria gostado muito de vê-lo, mas estava casada e tinha de ter cuidado com o que lhe dizia. - Cuida de ti. Como estão a Sabrina e o André?

- Ótimos, mas atarefados. Foi bom vê-los. E a Dominique está enorme. - Riu-se, imaginando o rosto de Arden. - Esta fechou os olhos e sorriu, dando graças a Deus por ele ainda estar vivo. Pensava muitas vezes nele. Mas era feliz com Jon. Estava convencida de que fizera a escolha acertada. Há quatro meses que estavam casados. Esperava engravidar em breve.

- Devias ter visto a Dominique no casamento. Estava adorável. - Mas Antoine ainda sentia uma mágoa enorme ao pensar no enlace. Além disso, tinha de desligar. Havia muitos soldados à espera de usar os telefones que haviam sido instalados no cais, perto do navio.

- -Dá cumprimentos meus ao Jon.

- Eu dou... Tem cuidado...

Arden ficou longo tempo de olhos fixos no telefone depois de ter desligado. Tinha vontade de esperar por Jon, mas, como era costume quando saía com o irmão, nunca chegava a casa antes das três da madrugada.

No dia seguinte, disse-lhe que Antoine telefonara, mas, vítima de uma horrorosa dor de cabeça, Jon não pareceu dar grande importância à notícia.

- Só um louco se metia numa coisa daquelas. Graças a Deus que este país não entra naquelas loucuras.

- A França não tinha alternativa - declarou Arden, com ar irritado.

- Talvez, mas este país tem. Nós somos mais inteligentes do que os franceses.

E, no ano seguinte, expressou em Napa o mesmo ponto de vista, com total desaprovação de Sabrina.

- Não te iludas, Jon. Acho que o Roosevelt só nos está a atirar areia para os olhos. Entraremos em guerra dentro de um ano, se não tiver terminado antes.

- Uma ova é que entraremos. - Jon bebera demasiado vinho. Era a visita anual do jovem casal a Napa. Arden andara deprimida nos últimos dois meses. Perdera um bebê em junho, e comportava-se como se aquilo tivesse sido o fim do mundo. Não era mais do que um bebê, por amor de Deus!... Bolas! Nem sequer chegava a isso.

Mas Arden desatou a chorar, inconsolável, e Sabrina sabia muito bem o que ela sentia. Recordou a dor quando da perda do primeiro filho, assim como o tempo que demorara a engravidar antes e depois do aborto.

- Vais superar isso... Olha para mim!.. Tive o Jon.. e aí tens a Dominique. - Trocaram um sorriso, enquanto viam a pequenina a brincar com um cachorro no relvado. Tinha quase cinco anos e, para os pais, era a criança mais encantadora do mundo. - Terás outro. Às vezes, ao princípio, é um pouco difícil. Porque não arranjas qualquer coisa que te mantenha ocupada?

Arden encolheu os ombros com os olhos inundados de lágrimas. Só queria voltar a engravidar, mas Jon nunca se encontrava em casa e, quando isso acontecia, estava bêbedo ou cansado. Mostrava-se pouco cooperante, mas Arden não quis dizer isso a Sabrina.

- Há que dar tempo ao tempo. Eu demorei dois anos a voltar a engravidar e estou certa de que não terás de esperar tanto.

Arden sorriu, pouco convencida. Continuava a ter a impressão de que aquilo era o fim do mundo. Jon deixou-a em Napa durante todo o tempo que durou a visita. Entretanto, não parava de ir a São Francisco para ver antigos amigos seus, coisa que Sabrina não acreditava em absoluto.

- Ele deixa-te sozinha em casa muitas vezes? - perguntou à nora, um dia.

Arden hesitou antes de responder, depois acabou por fazer um gesto afirmativo com a cabeça. Nesse ano, embora tivesse perdido muito peso, ainda estava mais bonita do que das outras vezes. Ela era, efetivamente, muito mais atraente do que as modelos que Jon perseguia sem descanso.

- Sai muito com o Bill. Há uns meses, o meu pai advertiu o meu irmão precisamente sobre isso. Ele achava que, se o Bill não o desencaminhasse, o Jon portar-se-ia melhor. - Olhou com ar resignado para a sogra, mas Sabrina fez-lhe sinal para continuar. - Mas são amigos há muito tempo. Não há quem os separe. Nem sequer por uma noite. Creio que não sairia tanto se o Bill casasse. Mas o meu irmão diz que nunca se casará. - Sorriu. - E, por este caminho, cumprirá o que diz.

- A diferença é que o Jon já é casado. Ninguém lhe recordou isso? - perguntou Sabrina a André nessa noite, não conseguindo manter a indignação. Mas ele não quis intrometer-se naquele assunto.

- Já é adulto, Sabrina. É um homem casado. E não admitiria que eu o chamasse à atenção, como se fosse um miúdo. Acho que não devo dizer-lhe nada.

- Então, digo-lhe eu.

- É contigo.

E quando o fez, Jon mandou-a para o inferno.

- Já anda outra vez com as choraminguices? Que chata! O irmão tem razão. É uma miúda extremamente mimada. - Jon estava mal disposto, mais como conseqüência da horrível ressaca do que por aquilo que a mãe lhe dissera.

- A Arden é uma moça carinhosa, decente e encantadora, e é tua esposa.

- Obrigado, já me dera conta disso.

- A sério? A que horas vieste esta noite?

- Que é isto? A Inquisição? Que tens a ver com isso?

- Gosto dela. Só isso. E és meu filho. E sei do que és capaz para ir atrás de umas saias Por amor de Deus, Jon, és um homem casado. Comporta-te como um bom marido. Estiveste quase a ser pai há uns meses atrás..

Ele interrompeu-a.

- A idéia não foi minha. A culpa foi dela.

- Não querias o bebê, Jon? - A voz de Sabrina era agora mais suave, mas triste Perguntou-se se a previsão de Antoine estaria certa. As coisas pareciam não correr bem naquele casamento.

- Não, por agora, não quero nenhum. Desejo tanto ter um filho como ter um cavalo coxo. Por amor de Deus, tenho vinte e sete anos, ainda temos muito tempo para isso. - Jon tinha alguma razão, mas Arden ansiava por um filho. Então, Sabrina não conseguiu evitar fazer-lhe uma pergunta que não lhe saía da cabeça.

- És feliz com ela, Jon?

Jon olhou, com ar desconfiado, para a mãe.

- Ela pediu-te que me perguntasses isso?

- Não. Por quê?

- Porque isso é uma coisa que ela quer saber. Não pára de fazer perguntas estúpidas como essa. Diabos... Não sei. Estou casado com ela, não estou? Que mais quer ela?

- Talvez algo mais do que aquilo que lhe dás O casamento não é uma simples cerimônia. Requer carinho, compreensão, paciência e tempo. Quantas horas diárias passas com ela?

Jon encolheu os ombros.

- Não muitas. Tenho muitas coisas que fazer.

- Como passar o tempo com outras mulheres? - Jon olhou-a com ar de desafio.

- Talvez. E depois? Não lhe faz mal nenhum. Ainda chega para ela. Engravidei-a, não engravidei?

As atitudes de Jon indignavam-na.

- Por que razão é que te casaste com ela?

- Já te disse há muito tempo. - Jon olhou-a nos olhos sem pestanejar. - Foi o meu passaporte para o êxito. Enquanto estiver casado com a Arden, tenho emprego para a vida inteira.

Sabrina esteve prestes a gritar ao escutar aquelas palavras.

- Estás a falar a sério?

Jon encolheu os ombros e virou a cara para o lado.

- É boa miúda. E sei que sempre esteve louca por mim.

- Que sentes por ela?

- A mesma coisa que sinto por qualquer outra rapariga, às vezes mais, outras vezes menos.

- Só isso?

Sabrina olhou-o fixamente, perguntando-se quem era aquele homem repugnante, egoísta e sem sentimentos que há muito carregara no seu ventre? Quem era ele?... Era Camille, disse uma voz dentro de si... mas também lhe corria o sangue materno nas veias... porém, não tinha coração.

- Acho que cometeste um erro terrível - observou Sabrina, numa voz firme. - Essa rapariga merece muito mais do que isso.

- A Arden é feliz assim.

- Não, não é. Sente-se triste e solitária e, provavelmente, sabe que te preocupas menos com ela do que com os sapatos que calças.

Jon baixou a cabeça, depois olhou de novo para a mãe. Pouco mais podia dizer.

- Que queres que faça? Que finja? Ela sabia como eu era quando casou comigo.

- Foi uma tonta. E agora está a pagar um preço alto por isso.

- A vida é assim, mamã.

Jon fez uma careta e levantou-se. Sabrina reparou, uma vez mais, como ele estava bonito. Mas aquilo não bastava Pelo contrário, fê-la ter ainda mais pena de Arden. No dia em que partiram, quando se encontravam já na estação, Sabrina abraçou-a durante um longo instante

- Se precisares, telefona-me... - Olhou-a nos olhos. - Estou sempre aqui, pronta para te ajudar e receber.

Insistira para que Jon e Arden fossem passar o Natal com eles, mas ele queria ir para Palm Beach. Era mais divertido e, além disso, aí teria Bill como companheiro de farra. São Francisco começava a aborrecê-lo. Para ele, era uma cidade demasiado provinciana que não tinha comparação com Boston, Paris, Palm Beach ou Nova Iorque. Mas Arden sentia-se mais feliz em Napa, na companhia de Sabrina, André e Dominique.

- Veremos

Arden manteve-se agarrada a Sabrina até ao último momento e, quando o comboio se pôs em andamento, os olhos inundaram-se-lhe de lágrimas. Durante semanas, Sabrina sentiu um peso de toneladas no peito, sempre que se recordava do que o filho lhe dissera André reconheceu com horror a verdade que as angustiadas palavras da esposa encerravam.

- O Antoine tinha razão.

- Sempre achei que sim. Ele deveria ter lutado por ela.

- Talvez também tivesse razão em não o fazer. Sabia que não podia ganhar A Arden estava louca pelo Jon.

- Enganou-se redondamente. Ele destroçou-lhe a vida

Era horrível que uma mãe tivesse de falar daquela maneira, mas Sabrina dizia o que sentia. Só espero que não engravide outra vez. É só disso que precisa Assim, se algum dia se der perfeita conta da realidade, estará livre para refazer a vida.

Também era horrível para uma mãe desejar que a nora se divorciasse do filho, mas era o que pensava. Todavia, não disse nada a Antoine quando ele voltou a casa a gozar nova licença. Desta vez, ainda que por pouco, não chegou a tempo de celebrar com eles o aniversário de Dominique. Apareceu em finais de novembro e ficou uma semana. E precisamente no dia do seu regresso, quando se encontravam a caminho da estação com o rádio do carro ligado, ouviram a notícia da catástrofe de Pearl Harbor.

- Oh, meu Deus! - Sabrina parou o carro e olhou fixamente para Antoine. Estavam sozinhos. André decidira não voltar a assistir às partidas do filho. - Meu Deus... Antoine... Que quer isso dizer? - Mas ela sabia muito bem o que significava: a guerra... e, para ela... Jon... Antoine olhou-a com ar triste.

- Sinto muito, maman...

Com os olhos marejados de lágrimas, Sabrina pôs de novo o carro em andamento. Não queria que Antoine perdesse o comboio, embora fosse o que mais desejava na vida. O que se passaria a partir daquele momento? O mundo inteiro estava em guerra e ela e André tinham dois filhos com que se preocupar: um, com De Gaulle, no Norte de África; e só Deus sabia para onde mandariam Jon. Soube-o ao fim de uns dias. Alistara-se com Bill Blake na euforia da bebedeira que apanharam no dia em que ouviram a notícia. Agora, Jon estava louco de raiva. Bill seria destacado para perto de Fort Dix; Jon, para São Francisco. Depois, embarcariam para o seu destino definitivo. Jon iria trazer Arden consigo e esta poderia ficar com André e Sabrina na Mansão Thurston, enquanto ele ficaria destacado na base de São Francisco.

- Pelo menos, este ano passaremos o Natal juntos disse Sabrina.

Mas aquela perspectiva não agradava a Jon. Estava de péssimo humor quando chegou, irritado com tudo e com a sensação de estar só, sem a companhia de Bill. E era a esposa que pagava as suas desventuras... ao ponto de, na véspera de Natal, Arden sair da mesa em que estavam a celebrar a consoada, lavada em lágrimas, quando Jon atirou o guardanapo ao chão.

- Esta mulher dá-me vômitos! - Mas não por muito tempo. Quatro dias depois, recebeu a guia de marcha e embarcou para a Europa.

Sabrina, Arden, André e Dominique foram despedir-se ao porto. Havia uma multidão imensa por todo o lado... Choros, soluços, lenços e bandeiras a agitarem-se... no cais, uma banda a tocar... Tudo parecia irreal, a fingir. Mas a realidade fez-se sentir duramente quando chegou o momento da despedida e todos o beijaram. Sabrina agarrou-o, então, pelo braço.

- Adoro-te, Jon. - Há muito tempo que não lhe dizia tal coisa, pois Jon não era uma pessoa de fácil trato; mas, apesar de tudo, quis que ele soubesse o que ela sentia por ele.

- Também te adoro, mamã. - Os olhos umedeceram-se-lhe; depois olhou para a esposa com o seu irresistível sorriso ao canto da boca. - Cuida de ti, miúda! Escrevo-te de vez em quando.

Arden, lavada em lágrimas, sorriu e abraçou Jon com força. Era incrível que ele tivesse de partir. Mas, pouco depois, o navio zarpou. Arden pôs-se a soluçar convulsivamente. Sabrina rodeou-lhe o ombro com o braço e apertou-a contra si. André, com Dominique nos braços, pensava no filho, que, naquele momento, se encontrava tão longe. Eram tempos terríveis para toda a gente e só pedia a Deus que os dois rapazes voltassem sãos e salvos.

- Anda, vamos para casa.

Arden decidira ficar algum tempo com Sabrina e André. Quando chegaram à Mansão Thurston, a casa parecia um túmulo. Pensaram que o melhor era irem para Napa quanto antes e assim fizeram nessa mesma tarde Apesar de tudo, a vida aí era mais fácil de suportar. Ajudavam a isso a tranqüilidade, a verdura dos campos, o céu azul. Aí, era difícil imaginar o caos em que o mundo mergulhara.

E foi então que chegou o telegrama, cinco semanas depois da partida de Jon. Um dia, um homem de uniforme bateu à porta principal e entregou-o a André. Enquanto o abria para Sabrina, sentiu o coração parar, mas as lágrimas turvaram-lhe os olhos antes de conseguir ler o nome escrito no papel... Era o de Jonathan Thurston Harte... «Lamentamos informar que o seu filho morreu. » Sabrina gritou como um animal ferido, o mesmo grito que soltara quando ele nascera, vinte e sete anos antes. Deixara o mundo do mesmo modo que entrara nele: através do coração da mãe. Ela procurou, então, refúgio nos braços de André. Entretanto, apareceu Arden, em estado de choque, e Sabrina foi logo ter com ela; ficaram os três abraçados até altas horas da noite. Até Dominique chorou Compreendera o que se passava. O irmão morrera. E nunca mais voltaria.

- Qual foi? - perguntou com insistência a André, confusa.

- Foi o Jon, querida... o teu irmão Jon. - André apertou-a contra si, aconchegando-a no seu colo, sentindo-se injustificadamente culpado de que se tratasse de Jon e não de Antoine, mas também aliviado por não ter sido o seu primogênito. Aquele sentimento dominou-o de tal modo que, no dia seguinte, não conseguiu encarar Sabrina durante todo o dia. Mas ela notou. Conhecia-o demasiado bem.

- Não reajas assim. - O rosto estava praticamente irreconhecível por causa do sofrimento e das lágrimas. - Não foste tu que escolheste, foi Deus.

E, ao ouvir aquelas palavras, André lançou-se nos seus braços a soluçar e a pedir a Deus que não voltasse a escolher mais ninguém naquela casa. Não teria conseguido suportar a morte de Antoine. Pensou que talvez Deus tivesse levado Jon porque sabia que Sabrina era mais forte do que ele. De qualquer modo, fosse como fosse, nada daquilo fazia sentido. Ao longo dos anos, Deus não parara de dar e tirar, mas os homens jamais conseguirão compreender os seus insondáveis desígnios.

- Que fazes hoje? - perguntou Sabrina, olhando sobre o ombro para a nora, que brincava com Dominique

Arden resolvera ficar ali indefinidamente, sem saber por quê. Não voltara a casa desde a última vez que entrara na Mansão Thurston na companhia do marido. Corria o mês de junho de 1942 e Antoine vinha de licença em julho. Meses antes, fora atingido no braço esquerdo, mas o ferimento não era grave. Aquele percalço proporcionou-lhe a oportunidade de ser destacado para o quartel-general de De Gaulle, para grande alívio da família.

- Queres ir a São Francisco comigo ou ficas aqui? - Arden pensou por instantes e, sorrindo, respondeu à mulher que tanto adorava:

- Vou consigo. Que vai lá fazer?

- Tenho umas coisas para fazer na casa...

Não queria perturbar o espírito de Arden com nada. Já estava refeita do choque Depois da morte de Jon, descobriram que estava novamente grávida, mas desta vez perdeu o bebê quase de imediato. «Já estava escrito para ser assim», disse-lhe Sabrina. Mas não eram palavras fáceis de ouvir nem de dizer. Teria gostado de conhecer o filho de Jon... o seu único neto... mas já era demasiado tarde para continuar a chorar e todos estavam a recuperar lentamente do choque que haviam sofrido. O sol continuava a nascer todos os dias, as colinas mantinham a sua verdura e as uvas não podiam estar mais bonitas. Tudo começava a voltar à normalidade. Ao fim de certo tempo, a vida já não parecia tão dolorosa. Durante muito tempo, Sabrina sentira-se como se andasse aos tropeções, mas André ajudara-a a recuperar o ânimo. Além disso, tinha Dominique e Arden, que lhe alegravam o coração e a quem podia dar o seu amor.

- Há notícias do Antoine: -perguntou Arden, enquanto se dirigiam para a cidade. Levava Dominique ao colo. A criança adormecera. Adorava andar de carro com elas e adorava a tia Arden, como ela lhe chamava.

- Pouca coisa. Encontra-se bem. Conta umas coisas engraçadas de De Gaulle. - Sabrina franziu o sobrolho. Mas disse que vem na data prevista.

Arden olhou para os campos que iam deixando para trás, depois olhou para a pequenina adormecida ao seu colo.

- É um homem muito especial. - Era a primeira vez que Arden falava de Antoine desde a morte de Jon, e Sabrina perguntou-se se a rapariga não falava nele por possíveis sentimentos de culpa. Jon portara-se muito mal com ela, não podia negar-se. Não teria sido de estranhar que Arden tivesse desejado a sua morte uma ou duas vezes. Isso ter-lhe-ia tornado ainda mais duro o desaparecimento do marido... Há muito tempo, estive quase a apaixonar-me pelo Antoine.

Sabrina sorriu.

- Já sabia. - Depois, passando para um terreno mais delicado, acrescentou: - E creio que ele também esteve apaixonado por ti.

Arden fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- Eu sei. Mas andava tão louca pelo Jon...

- O Antoine sabia disso. Disse que te casarias com o Jon muito antes de o fazeres.

- Disse isso? - Pareceu surpreendida. - Como é que ele sabia?

Sabrina riu-se.

- Tu disseste-lhe. O Antoine é um homem muito especial.

As duas mulheres trocaram um sorriso enquanto atravessavam a nova ponte da cidade. Sabrina gostava da Golden Gate. Era uma ponte de linhas majestosas, muito mais elegante do que a Bay Bridge. Recordou os tempos dos vapores fluviais e dos comboios... Como o tempo passava!... Custava-lhe a crer que já tinha cinqüenta e quatro anos. Não se sentia assim tão velha. Porque é que a vida era tão curta? Porque não podia dispor de mais tempo?... Esses pensamentos recordaram-lhe Jon. Era o motivo que a levara naquele dia até à cidade. Fora ver a instalação da placa.

Num dos lados da casa, havia um pequeno fórnice que o pai de Sabrina mandara construir. Dissera à filha o destino que devia dar-se àquela concavidade do muro e Sabrina cumpriu os seus desejos começando por ele depois, John Harte e agora, Jon todos os que haviam vivido na Mansão Thurston, para que ninguém nunca os esquecesse para que estivessem todos juntos.

Os homens aguardavam a chegada de Sabrina, que mostrou a pequena placa de bronze a Arden. Depois, foram dar uma volta pelo jardim, que havia sido tão grande e que agora era tão pequeno. Sabrina deu uma olhadela às plantas e às flores, enquanto os homens instalavam a placa Agora havia três. Jeremiah Arbuckle Thurston, John Williamson Harte e Jonathan Thurston Harte. Causava tristeza ver os seus nomes ali, com as datas que haviam limitado as suas vidas.

- Para que fez isso? Arden olhou-a com ar triste.

- Para que ninguém os esqueça.

- Eu nunca esquecerei. - Os homens haviam partido. - Para mim, fará sempre parte desta casa.

Sabrina sorriu-lhe, fez-lhe uma festa na face, depois olhou para as placas que exibiam os nomes dos homens que amara.

- Para mim, também eles fazem parte da Mansão Thurston o meu pai, o John, o Jonathan. - Aqueles nomes trouxeram os respectivos rostos à sua mente. Parecia que tinham voltado à vida. Sabrina olhou, então, para Arden. - O meu nome também estará aqui um dia. O do André, o teu, o do Antoine. A única pessoa da família que desaparecera sem deixar rasto fora Camille. Não havia nenhuma placa com o seu nome. Preferira abdicar, e o seu nome fora apagado da memória de todos. - O passado é uma coisa importante. É-o para mim e tem-no sido para esta casa pelos motivos que foi construída. - Pensou, então, no pai Que a amou e a conservou. - Mas o presente também é importante. Essa parte pertence-te a ti. - Atreveu-se a dizer as palavras que traduziam a sua maior esperança. - Talvez o Antoine, talvez tu, irão viver aqui um dia. - Fez uma pausa e olhou para Dominique, que andava a saltitar dentro dos canteiros de flores. De repente, a pequenina parou, como se soubesse que a mãe estava a falar dela. - E o futuro pertence-lhe. A Mansão Thurston será dela, um dia... Espero que signifique tanto para ela como tem significado para nós. Nasceu nesta casa. - Sabrina sorriu ao recordar o nascimento da menina, com André a seu lado. - O meu pai morreu nesta casa. - Voltou-se para ela, para as salas que tanto amava e tão bem conhecia. Então, sorriu de novo para Dominique. - Era o legado que lhe deixava, ou deixaria um dia, das pessoas que por ela haviam passado, deixando a sua marca, o seu coração e o seu amor.

 

                                                                                Danielle Steel  

 

                      

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