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MANSFIELD PARK- P.2 / Jane Austen
MANSFIELD PARK- P.2 / Jane Austen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MANSFIELD PARK

Segunda Parte

 

As relações entre as duas famílias neste período estavam mais próximas de voltarem ao que haviam sido no outono, do que qualquer membro da antiga intimidade teria suposto possível. A volta de Henry Crawford e a chegada de William Price tiveram nisto grande influência, mas muito mais ainda era devido à maior tolerância por parte de Sir Thomas quanto aos ensaios de aproximação feitos pelos do Presbitério. Seu espírito agora livre dos cuidados que a princípio o haviam preocupado, estava mais afeito a reconhecer que os Grants e seus jovens parentes eram realmente pessoas com que valia a pena terem relações; e embora inteiramente longe de planejar ou imaginar qualquer possibilidade de matrimônio para alguém que lhe era muito querido, e desdenhando mesmo como uma mesquinhez a sua sagacidade nestes assuntos, ele não podia deixar de perceber, de uma maneira ampla e descuidada, que Mr. Crawford de um certo modo distinguia sua sobrinha – e, talvez por isso mesmo, (embora inconscientemente) não se opunha a consentir mais facilmente nos convites.

Sua presteza, porém, em aceitar o convite para jantar no Presbitério, quando finalmente sugeriram uma reunião geral, depois de muitos debates e muitas dúvidas sobre se valeria a pena, “porque Sir Thomas parecia tão pouco disposto e Lady Bertram era tão indolente!” proveio apenas da boa educação e boa vontade e nada tinha a ver com Miss Crawford; pois foi justamente durante esta visita que ele começou a pensar que, qualquer pessoa habituada a essas ociosas observações, teria pensado que Mr. Crawford era admirador de Fanny Price.

A reunião foi de modo geral muito agradável, estando bem proporcionada quanto àqueles que falavam e àqueles que ouviam; e o próprio jantar foi elegante e abundante, conforme era o estilo dos Grants e muito de acordo com os hábitos usuais de todos, para provocar qualquer estranheza; exceto, naturalmente, Mrs. Norris, que nunca podia ver nem a grande mesa nem o número de pratos servidos sem se sentir impaciente; que sempre imaginava sentir qualquer mal estar com a passagem dos criados por trás de sua cadeira e que sempre vinha com alguma nova convicção de ser impossível, com tantos pratos, que alguns não estivessem frios.

No serão ficou decidido de acordo com a determinação prévia de Mrs. Grant e sua irmã, que depois de organizarem a mesa de whist, ainda havia número suficiente para uma partida geral e estando todos perfeitamente submissos e sem escolha como geralmente acontece nestas ocasiões, ficou decidido jogarem speculation; e Lady Bertram logo se encontrou na crítica situação de escolher entre os dois jogos e se resolver se jogaria whist ou não. Ela hesitou. Felizmente Sir Thomas estava à mão.

– Que devo fazer Sir Thomas? Whist ou speculation? Qual dos dois me distrairá mais?

Sir Thomas, depois de refletir um momento, recomendou speculation. Ele próprio ia jogar whist e talvez não achasse muito divertido tê-la como parceira.

– Muito bem – respondeu Sua Senhoria resignadamente; – então Mrs. Grant, que seja speculation. Não entendo nada deste jogo, mas Fanny pode me ensinar.

Aí, porém, Fanny interpôs-se, protestando ansiosamente sua igual ignorância; ela nunca havia jogado nem visto jogar aquele jogo; Lady Bertram teve outro momento de indecisão; mas como todos lhe asseguraram que nada seria mais fácil, que dos jogos de carta aqueles era o menos difícil e como Henry Crawford, imediatamente pedisse permissão para se sentar entre Sua Senhoria e Miss Price para ensinar a ambas, assim se fez; Sir Thomas, Mrs. Norris, o Dr. e Mrs. Grant tendo-se sentado à mesa de whist, os seis restantes, sob a direção de Miss Crawford, arrumaram-se ao redor da outra. Foi um ótimo arranjo para Henry Crawford, que estava perto de Fanny, com as mãos muito ocupadas, tendo que manejar as cartas de duas pessoas além das suas próprias; pois, embora Fanny em três minutos já se sentisse senhora de todas as regras do jogo, ele ainda precisava orientar as suas jogadas, aguçar a sua avareza, controlar a sua sensibilidade, que, especialmente quando se tratava de qualquer competição com William, era trabalho difícil; quanto a Lady Bertram, ele teve que continuar a se encarregar de todo o seu jogo e da sua fortuna durante a noite inteira; e se com agilidade conseguia impedir que ela precisasse olhar as cartas no início da partida, ainda tinha que dirigi-la no que fosse preciso fazer com elas até ao fim.

Ele estava animadíssimo, fazendo todos os lances alegremente, com superioridade, recursos ágeis e jovial desenvoltura que honravam o jogo; e a alegre mesa redonda era um absoluto contraste da outra, onde imperavam a maior sobriedade, tranqüilidade e o silêncio.

Sir Thomas por duas vezes quis saber do sucesso e do divertimento de sua senhora, mas foi em vão; nenhum intervalo era suficientemente longo para o tempo que suas maneiras medidas exigiam; e muito pouco ficou sabendo da situação dela, até que Mrs. Grant, no final da primeira partida, pôde falar com Lady Bertram.

– Espero que Vossa Senhoria esteja satisfeita com o jogo.

– Oh sim! É muito divertido realmente. Um jogo muito estranho. Não entendo nada dele. Sei que não devo nunca ver minhas cartas; Mr. Crawford se encarrega do resto.

– Bertram – disse Crawford um pouco depois, aproveitando um pequeno esmorecimento no jogo – eu não cheguei a lhe contar o que me aconteceu ontem quando ia para casa. – Eles tinham andado caçando juntos e estavam no meio de um bom galope, a alguma distância de Mansfield, quando, descobrindo que seu cavalo havia perdido uma ferradura, Henry Crawford fora obrigado a desistir e voltar para trás. – Como eu lhe disse, perdi-me no caminho ao passar por aquela casa velha, porque eu não gosto de perguntar; mas não lhe contei que, com a minha sorte habitual – pois nunca faço uma coisa errada que não saia ganhando – encontrei-me justamente no lugar que tinha curiosidade de ver. De repente, ao virar uma curva, achei-me no meio de uma pequena vila abandonada, ao pé de umas montanhas que vão subindo suavemente; um regato à minha frente, uma igreja situada numa espécie de colina à minha direita – igreja esta espantosamente grande e bonita para o local e nenhuma casa; ou metade de casa de moradia à vista, exceto uma – que eu suponho ser o Presbitério – a uma curta distância da colina e da igreja de que falei. Em resumo, encontrei-me em Thorton Lacey.

– Parece – disse Edmund; – mas que caminho você tomou ao passar pela fazenda de Sewell?

– Não respondo a uma pergunta tão fora de propósito e tão insidiosa como esta; porque, mesmo que eu respondesse a todas as perguntas que me quisesse fazer durante uma hora, você nunca me poderia provar que aquele lugar não era Thorton Lacey – pois tenho certeza de que o era.

– Informou-se, então?

– Não, nunca peço informações. Mas disse a um homem que estava remendando uma cerca que aquele lugar era Thorton Lacey e ele concordou.

– Tem boa memória. Não me lembrava de lhe ter dito tanto sobre o lugar.

Thorton Lacey era o nome da paróquia que lhe estava prometida, como Miss Crawford bem o sabia; e o interesse dele na troca de um valete com William Price aumentou.

– Bem – continuou Edmund – e que tal achou o que viu?

– Muito bonito, na verdade. Você é um sujeito feliz. Haverá trabalho para no mínimo cinco verões, antes do lugar se tornar habitável.

– Não, não, não é tão ruim assim. Aquele galinheiro tem que ser mudado, é verdade; porém além disso, não vejo mais nada. A casa não é das piores e quando o galinheiro for removido, ficará com um pátio muito razoável.

– O galinheiro deve ser removido e o lugar inteiramente plantado, para tapar a vista da oficina do ferreiro. A casa deve ser virada para o nascente em vez de para o poente; isto é, a entrada e os quartos principais, devem ficar daquele lado, onde a vista é realmente magnífica. Creio que isto pode ser feito. E no lugar em que atualmente está o jardim, é que deve ser feito o pátio de entrada. Na parte que agora fica nos fundos da casa, você pode fazer um novo jardim, em declive para o sudoeste o que o tornará lindíssimo. O terreno parece que foi formado exatamente para isto. Subi até cinqüenta metros acima do caminho, entre a igreja e a casa, a fim de olhar em redor; e assim pude ver como poderia ficar tudo. Não há nada mais fácil. Os prados para além do que vai ser o jardim, bem como a parte onde ele agora está, estendendo-se do ponto onde eu estava para o nordeste, isto é, até a estrada principal que atravessa a vila, devem ser completamente aplainados, naturalmente; lindos prados aqueles, todo entremeados de árvores. Pertencem ao Presbitério, suponho; senão você os deveria comprar. E então o regato – é preciso fazer-se qualquer coisa com aquele regato; mas ainda não resolvi definitivamente o que será. Tive duas ou três idéias.

– Eu também tenho duas ou três idéias – disse Edmund – e uma delas é que muito pouca coisa do seu projeto para Thorton Lacey será posta em prática. Tenho que me contentar com menos ornamentações e beleza. Acho que a casa deve ser modificada para que fique confortável e tome um ar de distinção, sem muita despesa; e isso tem que ser suficiente para mim; e, espero, será suficiente para aqueles que se interessam por mim.

Miss Crawford, um pouco desconfiada e irritada por um certo tom de voz e um certo olhar que julgou ter acompanhado a última expressão da esperança dele, tratou de apressar suas trocas com William Price; e obtendo o valete dele a um preço exorbitante, exclamou:

– Aí está, arrisco minha última ficha, como uma mulher de coragem. Comigo não admito prudência. Não nasci para ficar parada e não fazer nada. Se eu perder a partida, não será por não ter lutado para ganhá-la.

Ela ganhou; apenas o lucro não lhe deu para pagar o que havia gasto para o conseguir. Distribuíram novas cartas e Crawford recomeçou a falar sobre Thorton Lacey.

– Talvez meu plano não seja o melhor; não perdi muito tempo para o idear; mas você pode fazer muita coisa. O lugar o merece e você próprio não ficará satisfeito com muito menos do que é possível fazer. (Desculpe, mas Vossa Senhoria não deve ver suas cartas. Assim, deixe-as ficar à sua frente). O lugar merece uma reforma, Bertram. Você fala em dar à casa um ar de distinção. Isso será feito com a remoção do galinheiro; pois independente daquele horror, nunca vi uma casa que tivesse mais o ar de distinção do que aquela, mais aparência de uma qualquer coisa acima de uma mera casa de paróquia; não é um ajuntamento de compartimentos pequenos e baixos, com tantos telhados como janelas; não é construída com aquela densidade vulgar de uma casa quadrada de fazenda; é uma casa sólida, ampla, que dá idéia de ter sido o lar de alguma antiga e respeitável família, de geração em geração, durante dois séculos no mínimo. – Miss Crawford ouvia e Edmund concordou. – Aquele ar de residência nobre, portanto, você não pode deixar de lhe dar, se é que pretende fazer qualquer coisa. Porém ela se presta a muito mais coisas. (Deixa-me ver, Mary; Lady Bertram aposta doze naquela dama; não, não, doze é mais do que ela vale. Lady Bertram não aposta doze. Ela não tem jogo nenhum. Pode continuar). Com alguns melhoramentos como os que eu sugeri (não estou realmente exigindo que você aceite meu plano, embora eu esteja certo de que ninguém faria outro melhor) – você pode dar à casa um aspecto mais nobre. De uma simples casa de moradia, pode transformar-se com melhoramentos adequados, na residência de um homem educado, de gosto, idéias modernas e boas relações. Tudo isto pode se estampar nela; aquela casa poderá tomar um tal aspecto que o seu dono será considerado por todos aqueles que passarem pela estrada, como o maior proprietário da paróquia; principalmente porque não existe por lá nenhuma casa nobre para lhe ser comparada; uma circunstância, aqui entre nós, que encarece acima de todos os cálculos, o valor de uma tal situação quanto ao privilégio e à independência. Concorda comigo, não é? – disse com a voz mais suave virando-se para Fanny. – Já conhece o lugar?

Fanny respondeu-lhe rapidamente que não e procurou disfarçar seu interesse pelo assunto, dando toda atenção ao irmão, que neste momento propunha uma troca, exigindo dela o mais que pudesse; mas Crawford intrometeu-se com um – Não, não, não deve se desfazer da dama. Comprou-a muito caro e seu irmão não oferece nem a metade do que ela vale. Não, não senhor, não toque, não toque. Sua irmã não se desfaz da dama. Ela está firmemente decidida. – Virando-se novamente para ela – Fanny, vai ganhar a partida, com toda certeza.

– E Fanny teria preferido que William ganhasse! – disse Edmund, sorrindo para ela. – Pobre Fanny! Não lhe permitem que se engane a si mesma, como o quer!

– Mr. Bertram – disse Miss Crawford alguns minutos depois – sabe como Henry é hábil nesses melhoramentos; creio que não deveria empreender coisa alguma nesse sentido, em Thorton Lacey , sem aceitar o auxílio dele. Basta pensar em como ele foi útil em Sotherton! Veja só que grandes coisas foram feitas depois que nós todos fomos lá, num dia quente de agosto, para examinar o terreno e ver o gênio de meu irmão se inflamar. Lá fomos e de lá viemos; e o que foi feito nem se pode dizer!

Os olhos de Fanny fixaram-se em Crawford por um momento com uma expressão mais do que grave – repreensiva mesmo; porém ao cruzarem-se com os dele desviaram-se imediatamente. Com qualquer coisa na consciência, Henry sacudia a cabeça para a irmã e respondeu rindo:

– Não posso dizer que se tenha feito muito em Sotherton; mas também o dia estava quente e nós estivemos todo o tempo perdidos, andando atrás uns dos outros. – Logo que uma algazarra geral lhe deu proteção, ele acrescentou em voz baixa, para que somente Fanny o ouvisse: – Ficaria muito triste se minha capacidade para projetar fosse julgada por aquele dia em Sotherton. Agora vejo as coisas de maneira inteiramente diversa. Não me julgue pelo modo como procedi naquele dia.

A palavra “Sotherton” chegou aos ouvidos de Mrs. Norris, que se achava justamente gozando do intervalo que se seguiu a uma vaza ímpar, favorável a ela e a Sir Thomas. E, exclamou, pois, de lá, com muito bom humor:

– Sotherton! Sim, aquilo é que é casa, e que dia encantador nós passamos lá! William, você está sem sorte; mas na próxima vez em que vier espero que Mr. e Mrs. Rushworth já estejam em casa e tenho a certeza de que será convidado amavelmente por ambos. Suas primas não são dessas pessoas que desprezam os parentes e Mr. Rushworth é um homem muito amável. Eles agora estão em Brighton, como sabe; estão numa das melhores casas de lá; a fortuna de Mr. Rushworth lhes permite este direito. Não sei exatamente a distância, porém, quando você voltar para Portsmouth, se não for muito longe, podia ir até Brighton e apresentar seus respeitos ao casal; e eu aproveitava para mandar por você uma encomenda para suas primas.

– Teria muito prazer, minha tia; mas Brighton é quase em Beachy Head ; e mesmo que eu pudesse ir até lá, não creio que seria bem recebido numa casa tão elegante como a deles – pobre, insignificante aspirante que sou.

Mrs. Norris ia começando a lhe assegurar, com grande entusiasmo, da afabilidade que encontraria, quando foi interrompida por Sir Thomas que disse com autoridade:

– Não o aconselho que vá a Brighton, William, porquanto não faltarão melhores oportunidades para vocês se encontrarem; minhas filhas, porém, terão prazer de estar com os primos em qualquer parte; e você achará Mr. Rushworth sinceramente disposto a considerar como seus próprios parentes todos os membros da nossa família.

– Preferia encontrá-lo como secretário particular do Primeiro Lord – foi a única resposta de William, dada em voz baixa para que não fosse ouvida na outra mesa, e o assunto terminou.

Até aí Sir Thomas ainda não havia observado nada para censurar no procedimento de Mr. Crawford; mas ao desfazer-se a mesa de whist no fim da segunda partida, tendo deixado o Dr. Grant e Mrs. Norris a discutirem a última jogada, começou a observar a outra mesa e descobriu que sua sobrinha era o alvo de atenções ou antes de declarações de um caráter um tanto acentuado.

Henry Crawford estava no primeiro ardor de um novo plano para Thorton Lacey; e como não se podia fazer ouvir por Edmund, detalhava-o para sua bela vizinha, com grande intensidade no olhar. Seu novo plano era alugar a propriedade no inverno seguinte, para poder ter sua própria casa na vizinhança; não seria apenas para usá-la na estação de caça (como estava dizendo à moça), embora isso fosse um dos motivos, visto que, apesar da enorme condescendência do Dr. Grant, era impossível acomodar os seus cavalos no lugar onde estavam agora, sem grande inconveniência; mas o que o prendia àquela redondeza não era somente um divertimento ou uma estação do ano; ele estava resolvido a conseguir por ali um lugar para onde pudesse vir a qualquer tempo, uma pequena casa de moradia à sua disposição, onde pudesse passar todas as suas férias do ano, o que lhe permitiria manter, cultivar e aperfeiçoar aquela amizade e intimidade com a família de Mansfield Park, à qual ele cada dia dava mais valor. Sir Thomas ouviu e não se sentiu ofendido. Não havia falta de respeito nas declarações do rapaz; e Fanny as recebeu com tanta dignidade e modéstia, tanta tranqüilidade e recato, que ele não viu motivo para a censurar. Ela pouco falou, concordava apenas com uma coisa ou outra, e não demonstrou haver tomado para sai qualquer parte no cumprimento nem tampouco ter encorajado os planos dele sobre Northamptonshire. Percebendo quem o observava, Henry Crawford dirigiu-se a Sir Thomas sobre o assunto num tom de voz menos empolgante, mas ainda comovido.

– Estou querendo ser seu vizinho, Sir Thomas, como o senhor, talvez, me ouviu dizer a Miss Price. Posso contar com o seu consentimento e a sua promessa de não influenciar seu filho contra um tal inquilino?

Sir Thomas maneou a cabeça com cortesia e respondeu:

– Esta é a única maneira pela qual eu não posso desejar vê-lo instalado como vizinho permanente; pois espero e acredito que Edmund ocupará sua própria casa em Thorton Lacey. Não é exato, Edmund?

Este, ao ser interpelado, teve primeiro de saber do que se tratava; mas ao tomar conhecimento da questão, não custou a responder.

– Certamente, meu pai, não penso em outra coisa. Mas Crawford, mesmo que eu o recuse como inquilino, você pode vir como amigo. Considere a casa como sua, todos os invernos; e nós poderemos aumentar as estrebarias conforme seu próprio projeto, e fazer todos os melhoramentos que lhe possam ocorrer durante a primavera.

– Confesso que sairemos perdendo – continuou Sir Thomas. – O afastamento dele, se bem que apenas numa distância de treze quilômetros, será uma abreviação indesejável no círculo de nossa família; eu ficaria, porém, profundamente desapontado se qualquer filho meu se furtasse a um dever. É muito natural que o senhor não tivesse pensado nisso, Mr. Crawford. Uma paróquia tem necessidades e direitos a que somente um pastor permanente poderá atender e às quais nenhuma delegação seria capaz de satisfazer com a mesma eficiência. Edmund poderia, por assim dizer, cumprir suas obrigações em Thorton, isto é, poderia pregar e ler seus sermões, sem sair de Mansfield Park; poderia ir todos os domingos para uma casa nominalmente desabitada e cumprir com o serviço divino; poderia ser pastor em Thorton Lacey de sete em sete dias, por três ou quatro horas, se isso o satisfizesse. Mas não o satisfaz. Ele sabe que a humanidade precisa de mais ensinamentos do que um sermão semanal poderia transmitir; e se ele não viver no meio de seus paroquianos e provar, pela atenção constante, ser para eles um conselheiro e amigo, fará muito pouco tanto pelo bem dos outros como pelo seu próprio.

Mr. Crawford concordou.

– Por isso repito – acrescentou Sir Thomas – que Thorton Lacey é a única casa nesta redondeza em que não gostaria de ver Mr. Crawford como ocupante.

Mr. Crawford agradeceu inclinando a cabeça.

– Sir Thomas – disse Edmund – sem dúvida conhece bem os deveres de um pastor. Esperamos que o filho possa provar que ele também os conhece.

Qualquer que fosse o efeito produzido em Henry Crawford pelo pequeno discurso de Sir Thomas, ele causou certas sensações de mal estar em duas outras pessoas, duas das suas mais atentas ouvintes – Miss Crawford e Fanny. Uma das quais, não tendo nunca sabido que Thorton seria tão proximamente e definitivamente a casa dele, estava ponderando com os olhos baixos o que seria não ver Edmund todos os dias; e a outra, arrebatada das agradáveis fantasias em que se estava embalando com a descrição de seu irmão, não podendo mais, como no quadro que ela havia formado de um futuro Thorton, fechar a igreja, suprimir o pastor e ver apenas a residência respeitável, elegante, moderna e transitória de um homem rico e independente, olhava para Sir Thomas com visível má vontade, considerando-o como o destruidor de tudo aquilo e sofrendo ainda mais pela paciência obrigatória que o seu caráter e educação exigiam, e por não se atrever a desabafar-se com uma tentativa de lançar no ridículo a discussão.

Todo o prazer que tivera no jogo se dissipou naquele momento. Era tempo de acabar com as cartas, se os sermões iam prevalecer; e achou bom dar fim à jogatina para poder refrescar o espírito com uma mudança de lugar e vizinho.

A maioria estava agora reunida ao redor da lareira, esperando o sinal de partida. William e Fanny eram os mais destacados. Permaneceram juntos na mesa de jogo então deserta, conversando muito à vontade sem pensar no resto das pessoas, até que alguém começou a pensar neles. Henry Crawford levou a cadeira para perto dos irmãos e sentou-se em silêncio, observando-os por alguns minutos; nesse meio tempo ele próprio era observado por Sir Thomas, que se achava de pé, conversando com o Dr. Grant.

– Hoje é a noite da Assembléia – disse William. – Se eu estivesse em Portsmouth, talvez fosse assistir.

– Mas você não queria estar em Portsmouth, William.

– Não, Fanny, isto não. Terei muito tempo para estar em Portsmouth e para dançar, também, quando não puder estar com você. E não sei se eu tiraria muita vantagem em ir ao baile da Assembléia, já que podia não encontrar com quem dançar. As moças de Portsmouth torcem o nariz a qualquer pessoa que não seja comissionada. Um aspirante de marinha não é nada. Não se é nada realmente. Você se lembra das Gregorys? Ficaram umas moças muito bonitas, mas agora mal falam comigo, porque Lucy está sendo cortejada por um tenente.

– Oh! Que vergonha! Mas não faz mal, William – suas faces estavam coradas de indignação enquanto falava – Não vale a pena preocupar-se. Isto não causa nenhum prejuízo; é o mesmo por que passaram, no seu tempo, todos os grandes almirantes. Você deve se lembrar disso, deve procurar se convencer de que é uma das penas por que todo marinheiro deve passar, como o mau tempo e as privações; e com a vantagem de que algum dia terá fim, e que tempo virá em que não suportará mais nenhum desses sofrimentos. Quando você for tenente! Pense somente, William, quando você for tenente, como você desprezará todas estas tolices.

– Já começo a pensar que nunca serei tenente, Fanny. Todo mundo é promovido, menos eu.

– Oh! Meu querido William, não diga isso; não seja tão pessimista. Titio não diz nada, mas eu estou certa de que ele fará tudo a seu alcance para conseguir a sua promoção. Ele sabe, tanto quanto você, a importância que há nisto.

Ela parou de falar ao perceber que o tio se achava mais próximo do que havia suposto, e ambos acharam conveniente mudar de assunto.

– Você gosta de dançar, Fanny?

– Gosto muito; mas me canso logo.

– Gostaria de ir a um baile com você, para a ver dançar. Em Northampton nunca há bailes? Gostaria de a ver dançar e se você quisesse, – já que aqui ninguém saberia quem eu era, – gostaria de ser seu par mais de uma vez. Antigamente costumávamos pular juntos, lembra-se? Quando o homem do realejo andava pela rua? Sou um ótimo dançarino, à minha moda, mas aposto que você é ainda melhor. – Virando-se para o tio que agora se achava ao lado deles: – Não é verdade que Fanny dança bem?

Fanny, atrapalhada por aquela pergunta inesperada, não sabia para que lado olhar e como se preparar para ouvir a resposta. Alguma grave censura ou, pelo menos, a mais fria expressão de indiferença, devia vir para desapontar seu irmão. Mas, ao contrário, o que ouviu foi isto:

– Sinto dizer que sou incapaz de responder à sua pergunta. Nunca vi Fanny dançar desde que era pequenina; entretanto, tenho a certeza de que se sairá como uma fidalga, quando tivermos oportunidade de a ver dançar, o que talvez, não demore muito.

– Eu já tive o prazer de ver sua irmã dançar, Mr. Price – disse Henry Crawford – e posso responder a todas as perguntas que quiser fazer sobre o assunto, para sua inteira satisfação. Creio, porém, (vendo que Fanny estava perturbada) que o teremos de deixar para outra ocasião. Há nesta sala uma pessoa que não gosta que se fale de Miss Price.

Era verdade que ele vira Fanny dançar uma vez; e era igualmente verdade que ele poderia agora afirmar que a moça se movera pelo salão, serena, elegantemente ágil num admirável compasso; mas o fato era que ele não poderia, de forma alguma, recordar-se de como ela havia dançado e ficou na dúvida se realmente a vira então, pois nem a notara.

Mas passou, contudo, por tê-la admirado; e Sir Thomas, de modo algum descontente, prolongou a conversa sobre dança em geral, ficando tão empolgado em descrever os bailes em Antigua e ouvir o sobrinho descrever as diferentes maneiras de dançar que havia observado, que nem ouviu anunciar a sua carruagem e só percebeu que ela os estava esperando pelo tumulto causado por Mrs. Norris.

– Vamos Fanny; Fanny que você está esperando? Nós já vamos. Não vê que sua tia já vai? Depressa, depressa! Não gosto de fazer o bom Wilcox esperar. Você não deve nunca se esquecer do cocheiro e dos cavalos. Meu caro Sir Thomas, resolvemos que a carruagem voltaria para buscar o senhor, Edmund e William.

Sir Thomas não discutiu, pois ele mesmo havia feito aquela determinação, que previamente comunicara à mulher e à cunhada; mas aquilo parecia ter sido esquecido por Mrs. Norris, que gostava de imaginar que ela própria tomara todas as providências.

A última sensação de Fanny nessa visita foi de desapontamento: o xale que Edmund tranquilamente ia tomar da empregada para trazer e lhe por nos ombros, foi arrebatado pelas mãos mais ágeis de Mr. Crawford e ela foi forçada a lhe agradecer mais aquela proeminente atenção.

 

O desejo manifestado por William de ver Fanny dançar, causou mais do que uma momentânea impressão sobre o tio. A esperança de uma oportunidade, que Sir Thomas lhe havia dado, não ficou esquecida. Ele continuava disposto a satisfazer tão amável sentimento; a satisfazer alguém mais, que poderia desejar ver Fanny dançar, e a proporcionar prazer ao pessoal jovem em geral; e tendo meditado sobre o assunto e tomado sua resolução com serena independência, o resultado surgiu na manhã seguinte à hora do almoço, quando, depois de recordar e elogiar o que o sobrinho havia dito, acrescentou:

– Não quero, William, que você deixe o Northamptonshire sem este prazer. Eu mesmo gostarei de os ver dançando. Você se referiu aos bailes de Northampton. Suas primas freqüentaram alguns deles, uma vez ou outra, mas esses não seriam convenientes para nós agora. Sua tia ficaria muito fatigada. Creio que não devemos pensar num baile em Northampton. Seria mais adequado se déssemos um baile em casa; e se...

– Ah, meu caro Sir Thomas! – interrompeu Mrs. Norris, – eu sabia o que estava para vir. Sabia o que ia dizer. Se Julia estivesse em casa ou a querida Mrs. Rushworth estivesse em Sotherton, para justificar o motivo, o senhor estaria tentado a dar um baile em Mansfield para divertir a gente nova. Sei que os haveria de dar. Se elas estivessem em casa para dar graça à festa, o senhor havia de dar um baile no Natal próximo. Agradeça a seu tio, William, agradeça a seu tio!

– Minhas filhas – respondeu Sir Thomas, interpondo-se gravemente – tem seus prazeres em Brighton e acredito que estejam muito contentes; o baile que pretendo dar em Mansfield será para meus sobrinhos. Se pudéssemos estar todos juntos, nossa satisfação seria, sem dúvida, mais completa, mas a ausência de uns não impede que os outros se divirtam.

Mrs. Norris não retrucou. Viu que ele estava decidido, e a sua surpresa, a sua humilhação foram tão grandes que, para se recompor, precisou ficar alguns minutos em silêncio. Um baile naquela época! Com as filhas ausentes e sem a consultar, a ela! Não tardaria, porém, a consolar-se. Teriam que contar com ela para fazer tudo: a Lady Bertram seria, naturalmente, poupado todo o esforço e inquietações e tudo recairia sobre seus ombros. Ela teria que fazer as honras do baile; e esta reflexão tão rapidamente lhe restaurou o bom humor que ela pôde se unir aos outros antes mesmo de eles chegarem a manifestar as suas alegrias e seus agradecimentos.

Edmund, William e Fanny, em suas diferentes maneiras, demonstravam e manifestavam pelo baile prometido um tão grande prazer quanto Sir Thomas teria desejado. Edmund estava contente por causa dos dois. Seu pai nunca havia concedido um favor ou demonstrado uma bondade que mais o alegrasse.

Lady Bertram ficou perfeitamente calma e satisfeita; não fez objeções. Sir Thomas comprometeu-se a não lhe dar muito trabalho; e ela garantiu que não receava o trabalho absolutamente e na verdade ela não imaginava que pudesse haver muita canseira.

Mrs. Norris prontamente ofereceu suas sugestões sobre as salas que deviam ser usadas, porém descobriu que já estava tudo determinado; e quando se arriscou a fazer conjecturas e insinuações sobre o dia, viu que o dia também já estava estabelecido. Sir Thomas divertira-se em formar um programa completo do sarau; e quando ela quisesse tranquilamente ouvir, ele poderia ler a lista das famílias a serem convidadas, nas quais ele calculava, com a possível redução motivada pela brevidade do convite, obter suficientes rapazes e moças para formar doze ou quatorze pares; e podia detalhar as considerações que o haviam induzido a fixar o dia 22 como o mais conveniente. William devia estar de volta a Portsmouth no dia 24; o dia 22 era, portanto, o último que passava em Mansfield; e como os dias eram muito poucos, não seria aconselhável marcar uma data mais cedo. Mrs. Norris foi obrigada a se contentar com a idéia de que tinha pensado exatamente a mesma coisa e que estava a ponto de propor ela mesma o dia 22 como o melhor para aquele fim.

O baile era, portanto, coisa estabelecida e, antes de escurecer, já todos os interessados estavam a par da novidade. Os convites foram encaminhados e naquela noite muita moça, do mesmo modo que Fanny, foi para a cama com a cabeça cheia de felizes inquietações. Para aquela, as inquietações quase ultrapassavam às vezes a felicidade; porque, sendo jovem e inexperiente, com pequena liberdade de escolha e não tendo confiança em seu próprio gosto, o “como devia vestir-se” era uma questão de dolorosa solicitude; e o único enfeite que possuía, uma linda cruz de âmbar que William lhe havia trazido da Sicília, era a sua maior aflição, pois não tinha senão um pedaço de fita onde amarrá-la; e não obstante já um dia a ter usado assim, seria permitido que o fizesse agora, quando supunha que todas as outras moças usariam ricos adereços? E contudo, como não usá-la? William lhe tinha querido comprar, também, uma corrente de ouro, mas o preço estava fora de seu alcance e, por esse motivo, se não usasse a cruz ele poderia ficar triste. Essas eram as suas ansiedades; suficientes para lhe abaterem o espírito, mesmo ante a perspectiva de um baile dado principalmente para sua satisfação.

Neste ínterim, os preparativos prosseguiam, e Lady Bertram continuava sentada em seu sofá, sem se incomodar com coisa alguma. Teve algumas conferências extraordinárias com a camareira e a dama de companhia estava apressada, fazendo-lhe um vestido novo; Sir Thomas dava ordens, Mrs. Norris corria de um lado para outro; mas nada disso a incomodava, e como ela havia previsto, “não havia, de fato, trabalho algum”.

Edmund andava por esse tempo cheio de inquietações; seu espírito estava profundamente perturbado com a idéia de dois acontecimentos importantes, agora muito próximos, dos quais dependiam sua vida futura – ordenação e matrimônio; – e esses acontecimentos eram de caráter tão sério que o baile, que seria seguido imediatamente por um deles, se tornava menos importante a seus olhos do que aos de qualquer outra pessoa da casa. No dia 23 iria visitar um amigo, nas proximidade de Peterborough, o qual estava na mesma situação que ele; e na semana do Natal ambos tomariam ordens. Uma parte do seu destino estaria então determinada, mas a outra parte poderia não ser tão facilmente obtida. Seus deveres estariam estabelecidos, mas a esposa que deveria compartilhar, animar e recompensar tais deveres, poderia ainda estar inacessível. Ele por si já se resolvera, mas nem sempre tinha a certeza de saber as intenções de Miss Crawford. Havia muitos pontos com os quais estavam inteiramente em desacordo; havia momentos em que ela parecia favorável; e embora confiasse inteiramente na afeição dele, a ponto de estar resolvido (ou quase resolvido) a tomar uma decisão dentro de pouco tempo, logo que seus negócios estivessem arranjados e ele soubesse o que tinha para lhe oferecer, passava por muitas inquietações, muitas horas de dúvida quanto ao resultado. Às vezes tinha forte convicção de que Mary o amava; podia recapitular toda uma série de estímulos e a imaginava tão perfeita na sua afeição desinteressada como em tudo mais. Outras vezes, porém, a dúvida e a inquietação se misturavam às suas esperanças; e quando pensava na decisiva preferência dela pela vida de Londres, na sua reconhecida aversão à intimidade e ao retiro, que poderia esperar senão uma recusa? Ou então um consentimento obtido através de súplicas, exigindo tais sacrifícios de situação e tais encargos de sua parte, que a consciência nunca lhos poderia permitir.

O resultado dependia exclusivamente de uma única questão. Será que Mary o amava bastante para esquecer o que para ela haviam sido pontos essenciais? Amá-lo-ia suficientemente para que esses pontos não fossem mais essenciais? E esta questão que ele não se cansava de repetir a si mesmo, embora muitas vezes fosse respondida com um “sim”, às vezes tinha o seu “não”.

Miss Crawford deveria, brevemente, deixar Mansfield e nesta circunstância o “não” e o “sim” estavam constantemente em alternativa. Ele percebera o brilho de seus olhos ao falar na carta da querida amiga, que lhe reclamava uma longa visita em Londres, e na bondade de Henry em comprometer-se a ficar onde estava até janeiro, a fim de a acompanhar até lá; ouvira-a falar dos prazeres desta viagem com animação na qual o “não” se traduzia em todos os tons. Mas isto ocorrera no próprio dia em que combinaram a viagem, dentro da primeira hora que se passou depois do arrebatamento de tal alegria, quando não via à sua frente senão os amigos que iria visitar. Depois disso ele a vira exprimir-se diferentemente, com outros sentimentos, com mais recato; ouvira-a dizer a Mrs. Grant que sentiria deixá-la; que começava a acreditar que nem os amigos nem os prazeres que iria encontrar a recompensariam do que deixava para trás, e que, embora sentisse que devia ir e soubesse que uma vez lá encontraria divertimento, já estava ansiosa para voltar a Mansfield. Não era isso tudo um “sim”?

Com todas essas questões para refletir, arranjar e rearranjar, Edmund não podia, por sua própria causa, pensar muito na noite que o resto da família esperava com tanto interesse. Independente do prazer que seus primos encontrariam, aquela noite não representava para ele maior interesse do que teria qualquer outra reunião das duas famílias. Em cada uma daquelas reuniões havia sempre a esperança de se confirmar a sua convicção sobre o afeto de Miss Crawford; mas o turbilhão de uma sala de baile, talvez, não fosse particularmente favorável à manifestação de sentimentos mais sérios. Comprometê-la previamente para as duas primeiras contradanças foi tudo em que se resumiu a sua felicidade individual e o único preparativo para o baile em que pensou, apesar de todo o tumulto que havia à sua volta, desde a manhã até à noite.

Quinta feira seria o dia do baile e na quarta feira de manhã Fanny ainda não tinha resolvido sobre o que deveria usar; decidiu procurar o conselho de pessoas mais experientes e dirigiu-se a Mrs. Grant e sua irmã, cujo reconhecido gosto a deixaria irrepreensível, e como Edmund e William haviam ido a Northampton, e ela tinha motivos para supor que Mr. Crawford estaria igualmente ausente, foi até o Presbitério sem receio de que lhe faltasse oportunidade para discutir sobre coisas íntimas; e a intimidade desta discussão era a parte mais importante para Fanny, que estava um pouco acanhada de sua própria ousadia.

Encontrou-se com Miss Crawford a poucos metros do Presbitério, indo justamente visitá-la; e como lhe pareceu que a amiga, embora insistisse delicadamente para voltarem, não estava com vontade de perder o passeio, Fanny lhe explicou imediatamente o assunto que levara a procurá-la e observou que se tivesse a bondade de lhe dar a sua opinião, a questão tanto poderia ser resolvida dentro como fora de casa. Miss Crawford mostrou-se lisonjeada com o pedido. E depois de um momento de reflexão, convidou Fanny para voltar, desta vez de um modo mais cordial do que antes, e propôs que subissem para seu quarto, onde poderiam conversar à vontade sem incomodar o Dr. e Mrs. Grant, que estavam no salão. Era justamente o que Fanny preferia; e com grande gratidão pela presteza e bondade com que era atendida, entraram, subiram e logo depois estavam profundamente interessadas no assunto. Miss Crawford, satisfeita com o apelo, deu a ela todo o auxílio de sua influência e bom gosto, facilitou tudo com suas sugestões e procurou tornar tudo agradável com a sua boa vontade. Tendo ficado o traje resolvido nos pontos principais, disse Miss Crawford:

– E o que você vai usar em matéria de colar? Não vai por a cruz de seu irmão? – E, enquanto falava, desfazia um pequeno embrulho que Fanny já lhe tinha observado na mão, no momento em que se encontraram.

Fanny confessou seu desejo e suas dúvidas a respeito; não sabia como resolver, se usar a cruz ou deixar de usar. A amiga respondeu pondo à sua frente uma caixinha de jóias e pedindo que ela escolhesse entre os vários colares e correntes de ouro. Tal embrulho era o que Miss Crawford trouxera e era o objeto de sua pretendida visita; e no momento, com a maior bondade insistia com Fanny para que escolhesse um para a cruz e que o guardasse como presente seu, dizendo tudo que lhe vinha à cabeça para convencer Fanny de que não tivesse escrúpulos em aceitar.

– Você vê a coleção que eu tenho – disse ela – muito mais do que eu jamais poderia ou pensaria usar. Não os ofereço como objetos novos. Não ofereço senão um colar já velho. Você deve desculpar minha liberdade e me fazer a gentileza de aceitar.

Fanny ainda hesitava. O presente era demasiado valioso. Mas Miss Crawford insistia e argumentava com tão afetuosa solicitude, sobre todos os tópicos, William e a cruz, o baile, ela própria, que finalmente conseguiu. Fanny foi obrigada a ceder, para que não fosse tomada por orgulhosa ou indiferente, ou outra qualquer mesquinhez, e com modesta relutância disse que aceitava e começou a escolher. Examinava um por um, desejando imensamente saber qual seria o menos valioso; finalmente decidiu-se por um colar que imaginou ser o que mais lhe estava sendo posto à vista. Era de ouro, lindamente trabalhado; e embora Fanny tivesse preferido uma corrente mais longa e mais simples, que pensava adaptar-se melhor ao seu fim, esperou, ao resolver-se por este, que estivesse escolhendo o que Miss Crawford tinha menos interesse em conservar. Miss Crawford sorriu demonstrando inteira aprovação e imediatamente completou o presente colocando-o no pescoço dela, fazendo-a ver como lhe ia bem. Fanny achou-o realmente muito bom e, com exceção do que permanecia dos seus escrúpulos, ficou excessivamente satisfeita com aquela aquisição feita tão a propósito. Preferia, talvez, dever esse favor a outra pessoa qualquer. Mas isto era um sentimento indigno. Miss Crawford havia antecipado seu desejo com uma tal bondade que provava ser uma amiga verdadeira.

– Sempre que usar este colar me lembrarei de você – disse ela – e de como você foi boa.

– Deve lembrar-se de outra pessoa também, quando usar este colar – respondeu Miss Crawford. – Deve lembrar-se de Henry, pois a idéia foi dele. Foi ele quem me deu esse colar e, com o presente, transfiro a você toda a obrigação de lembrar-se do doador original. Ficará sendo uma lembrança de família. A irmã não será lembrada por você, sem que se lembre também do irmão.

Muito confusa e admirada, Fanny teria devolvido o presente imediatamente. Aceitar o que havia sido presente de outra pessoa, ainda mais de um irmão, era impossível! Não devia ser feito! E com uma aflição e um embaraço que muito divertiam a companheira, colocou novamente o colar no estojo e pareceu resolvida a escolher um outro ou nenhum. Miss Crawford pensou que nunca havia visto uma consciência mais pura.

– Minha querida – disse ela rindo – de que você tem receio? Acha que Henry vai reclamar o colar como propriedade minha e pensar que você o roubou? Ou você está imaginando que ele vai ficar lisonjeado demais por ver, à volta de seu adorável pescoço, um ornamento que o dinheiro dele comprou há três anos passados, antes de saber que existia no mundo um tal pescoço? Ou talvez – fazendo-se irônica – você suspeita de que tenha havido conspiração entre nós e que isto que estou fazendo é com o conhecimento e por vontade dele?

Intensamente ruborizada Fanny protestou contra tal idéia.

– Bem – então respondeu Miss Crawford mais séria, mas sem acreditar nela absolutamente – para me convencer de que você não suspeita de mim e que é tão alheia a cumprimentos como eu sempre acreditei que o fosse, aceite o colar e não falemos mais nisso. Pelo fato de ser um presente de meu irmão, você não precisa ter a mínima preocupação, pois, de minha parte, asseguro que não tenho nenhuma em me desfazer dele. Henry está sempre me presenteando com uma coisa ou outra. Tenho tantos presentes dele que não é possível avaliar ou lembrar-me nem da metade. Quanto a este colar, creio que não cheguei a usá-lo seis vezes; é muito bonito, mas nunca o recordo; e embora eu tivesse o mesmo prazer se você tivesse escolhido qualquer um outro, aconteceu que você escolheu justamente o que, se eu pudesse optar, teria preferido me desfazer e ver em seu poder que qualquer dos outros. Não diga mais nada sobre isto. Uma bagatela como esta não vale tantas palavras.

Fanny não ousou nova oposição; e com renovados, mas menos espontâneos agradecimentos, aceitou novamente o colar, vendo no olhar de Miss Crawford qualquer coisa que ela compreendia bem.

Era-lhe impossível não ter percebido a mudança na atitude de Mr. Crawford. Há muito já a percebera. Evidentemente ele procurava agradá-la; era ousado, era atencioso, era qualquer coisa como havia sido para com as suas primas; queria, pensava ela, brincar com a sua tranqüilidade como havia brincado com a delas; e não teria ele alguma participação no presente daquele colar? Ela não se podia convencer de que não a tivesse, visto que Miss Crawford, complacente como irmã, era entretanto indiferente como mulher e como amiga.

Refletindo cheia de dúvidas, e sentindo que a aquisição do objeto que ela tanto desejara não lhe tinha trazido muito contentamento, dirigiu-se para casa, fazendo aquela caminhada agora com muito mais preocupações do que nunca.

 

Ao chegar em casa, Fanny subiu imediatamente, a fim de depositar a inesperada aquisição, o duvidoso presente do colar, em certa caixa favorita na sua sala de leste, onde guardava todos os seus pequenos tesouros; mas ao abrir a porta qual não foi a sua surpresa ao ver seu primo Edmund sentado à mesa, escrevendo! Tal aparição, antes nunca ocorrida, foi quase tão espantosa quanto bem acolhida.

– Fanny – disse ele logo, levantando-se e dirigindo-se a ela com qualquer coisa na mão – peço desculpa por estar aqui. Vim procurá-la e depois de esperar um pouco na esperança de que você viesse, estava escrevendo para explicar a minha visita. Há de encontrar o princípio de um bilhete; mas agora posso dizer pessoalmente que vim apenas pedir que aceite este presentinho; uma corrente para a cruz de William. Você já a devia ter recebido há uma semana, mas houve um atraso porque eu não contava que tão cedo meu irmão se ausentasse da cidade; e só agora a recebi de Northamton. Espero que goste da corrente, Fanny. Procurei consultar a simplicidade de seu gosto; de qualquer modo, porém, eu sei que você compreenderá minha intenção e a considerará como realmente é, uma lembrança de um de seus mais velhos amigos.

Enquanto assim falava ia saindo apressadamente, antes que Fanny, subjugada por mil sentimentos de dor e prazer, tivesse voz para falar; mas, impulsionada por um desejo soberano, ela conseguiu chamá-lo:

– Oh! Meu primo, espere um momento! Por favor, espere!

Ele voltou.

– Não sei como agradecer – continuou muito agitada; – os agradecimentos estão fora da questão. Eu sinto mais do que poderia exprimir. Sua bondade em pensar em mim dessa maneira está acima...

– Se isto é tudo que você tem a dizer, Fanny – disse ele sorrindo e virando-se novamente.

– Não, não é só isto. Preciso que você me aconselhe.

Quase inconscientemente abriu o pacote que ele lhe tinha posto na mão e deparando com uma corrente de ouro, muito simples e elegante, não pôde deixar de exclamar novamente:

– Oh! Esta é linda realmente! Esta é precisamente como eu queria!É o único enfeite que eu já tive o desejo de possuir, e exatamente o que se adapta à minha cruz. Devem ser e serão usados juntamente. E além disso, vem numa ocasião tão propícia. Oh, primo, nem sei como eu lhe agradeço.

– Minha querida Fanny, você exagera esses sentimentos. Fico muito contente por ter gostado da corrente e por ter ela vindo em tempo de ser usada amanhã; mas seus agradecimentos estão acima do necessário. Meu prazer é vê-la contente, pode acreditar. Sim, pode dizer com segurança, não há para mim prazer mais completo, mais puro. É espontâneo.

Depois de tal demonstração de afeto, Fanny poderia viver uma hora sem dizer uma palavra; mas Edmund, após esperar um momento, obrigou-a a voltar à realidade, perguntando:

– Mas sobre o que você queria me consultar?

Era sobre o colar, que ela agora estava aflita por devolver e queria saber se ele aprovava que o fizesse. Contou-lhe a história de sua recente visita e o seu entusiasmo todo esfriou; pois ao saber do ocorrido, Edmund ficou tão tocado, tão encantado com o que Miss Crawford havia feito, tão satisfeito com uma tal coincidência de procedimento entre eles, que Fanny não pôde deixar de reconhecer a superioridade que tinha sobre ele aquele prazer, embora o fizesse involuntariamente. Não foi sem custo que conseguiu chamar a atenção do primo para o seu projeto ou que obteve dele qualquer resposta ao seu pedido de opinião; ele estava entregue à doce meditação, proferindo apenas de vez em quando meias frases de louvor; mas quando despertou e compreendeu, foi decisivamente contra o que ela desejava.

– Devolver o colar! Não, querida Fanny, de modo algum. Ela ficaria muito aborrecida. Não existe sensação mais desagradável do que ver devolvido um objeto que se deu com a esperança de contribuir para a alegria de um amigo. Por que lhe estragar um prazer de que ela demonstrou ser merecedora?

– Se ele me tivesse sido dado com essa intenção – disse Fanny – eu não teria pensado em o devolver; mas sendo um presente do irmão dela, não é justo que se desfaça dele, quando eu já não preciso.

– Ela não deve, pelo menos, supor que você não precisa, que não o aceita; e que tenha sido originalmente um presente do irmão, não faz diferença; pois, uma vez que ela o quis dar, e que você o pôde aceitar apesar disso, não há motivo para que não o conserve. Não resta dúvida que é muito mais bonito do que o meu e muito mais adequado para um baile.

– Não, não é mais bonito, não é absolutamente mais bonito, nem é tão adequado para o meu fim. A corrente está, sem comparação, muito mais de acordo com a cruz de William do que o colar.

– Apenas por uma noite, Fanny, apenas por uma, se é um sacrifício – tenho certeza de que você, pensando bem, preferirá fazer esse sacrifício do que dar um desgosto a quem se interessou tanto pelo seu bem. A atenção de Miss Crawford para com você – não que você não o merecesse; eu seria a última pessoa a pensar tal – foi excepcional; e devolver o presente de modo a que pudesse ser tomado por ingratidão, apesar de eu saber que não seria isso, não está no seu temperamento, estou certo. Use o colar, como você prometeu usar, amanha à noite, e guarde a corrente, que não foi dada com essa intenção, para outras ocasiões. É este o meu conselho. Não desejaria a sombra da indiferença entre as duas pessoas, cuja intimidade eu tenho observado com o maior prazer e cujos caracteres se assemelham tanto em verdadeira generosidade e natural delicadeza, a ponto de as poucas e leves diferenças, resultantes principalmente da situação, não constituírem impedimento para uma perfeita amizade. Não desejaria ver a sombra da indiferença – repetiu ele com a voz um tanto comovida – entre as duas pessoas a quem mais quero neste mundo.

Saiu; Fanny permaneceu na sala, procurando tranqüilizar-se como pôde. Ela era então uma das duas mais queridas – isto deveria consolá-la. Mas a outra: a primeira! Ele nunca havia falado tão abertamente e embora isto não lhe dissesse mais do que ela há muito percebera, foi uma punhalada, porque demonstrava as próprias convicções e os pontos de vista de Edmund. Aquelas eram decisivas. Ele se casaria com Miss Crawford. Era uma punhalada, apesar de não ser novidade. Teve que repetir muitas vezes que ela era apenas uma das duas mais queridas, antes de o acreditar. Se ao menos acreditasse que Miss Crawford o merecia, poderia ser – oh! como seria diferente – como seria mais tolerável. Mas ele estava sendo enganado; atribuía-lhe qualidades que ela não tinha; seus defeitos continuavam a ser os mesmos, porém ele não os via mais. Enquanto muitas lágrimas não correram sobre a sua mágoa, Fanny não pôde subjugar a agitação; e o abatimento que se seguiu somente foi aliviado pela influência das fervorosas orações que fez pela felicidade dele.

A intenção dela era, como pensava que devia ser, procurar dominar tudo o que fosse excessivo, tudo que se aproximasse de egoísmo, em sua amizade por Edmund. Chamar ou mesmo imaginar que aquilo fora um desapontamento, seria uma presunção para a qual ela não tinha palavras suficientemente fortes que justificassem sua própria humildade. Pensar nele como Miss Crawford tinha o direito de pensar, em seu caso seria loucura. Para ela, ele nunca seria nada, em nenhuma circunstância; nada mais senão um amigo. Por que lhe teria ocorrido tal idéia, embora bastante para ser reprovada e proibida? Não deveria ter nem tocado nos confins da sua imaginação. Procuraria por uma sã inteligência e honestidade, ser razoável e merecer o direito de julgar o caráter de Miss Crawford e o privilégio da verdadeira solicitude por ele.

Portou-se com heroísmo e resolveu-se a cumprir o seu dever, mas não é de estranhar que, sendo tão jovem e de temperamento tão terno, ela, depois de tomar todas essas resoluções para se controlar, apanhasse o pedaço de papel onde Edmund tinha começado a escrever, como um tesouro fora do alcance de suas esperanças, lesse com a mais terna emoção as palavras “Minha querida Fanny, peço que você me faça o favor de aceitar” – e o guardasse juntamente com a corrente, como a parte mais valiosa do presente. Era a única coisa semelhante a uma carta que ela jamais recebera dele; talvez nunca recebesse outra; era impossível que jamais viesse a receber outra que lhe desse tanto contentamento, tanto quanto à ocasião como quanto ao estilo. Duas linhas mais estimadas jamais saíram da pena do mais célebre autor – e jamais foram completamente felizes as pesquisas do mais apaixonado biógrafo. O entusiasmo do amor de uma mulher está acima da descrição dos biógrafos. Para ela, o manuscrito em si, independente de qualquer coisa que ele exprima, é uma bem-aventurança. Nunca tais caracteres deram a outro ser humano tanta alegria como a que deram a Fanny as simples letras de Edmund. Esse bilhete, escrito às pressas como foi, não tinha um defeito; e havia uma tal felicidade no decorrer das quatro primeiras palavras, no arranjo da frase – “Minha querida Fanny”, que ela as poderia ficar contemplando toda a vida.

Tendo controlado os pensamentos e confortado os sentimentos com esta feliz mistura de razão e fraqueza, ela se sentiu capaz, em tempo, de descer e cuidar de seus usuais afazeres junto da tia Bertram e prestar-lhe as habituais considerações sem demonstrar um mínimo abatimento.

Chegou a quinta feira, dia predestinado para a esperança e a alegria; para Fanny o dia começou com maior felicidade do que oferecem os dias comuns, pois logo depois do almoço William recebeu um bilhete muito amável de Mr. Crawford, no qual informava que, como era obrigado a ir a Londres no dia seguinte, desejava encontrar uma companhia; e assim, esperava que William, caso se decidisse a deixar Mansfield um dia mais cedo do que havia pensado, aceitasse um lugar em sua carruagem. Mr. Crawford pretendia estar na cidade à hora habitual do jantar do seu tio. A proposta não poderia ser mais agradável ao próprio William, que antecipava o prazer de viajar numa carruagem com quatro cavalos e na companhia de um amigo tão bem humorado e alegre; e Fanny, por motivo diferente, estava excessivamente feliz; pois a idéia original era que William viajaria na noite seguinte, pela costa de Northampton, o que não lhe daria uma hora de descanso antes de tomar o coche para Portsmouth; e embora esse oferecimento de Mr. Crawford lhe roubasse muitas horas da companhia do irmão, ela se alegrou por ver William poupado da fadiga de uma tal viagem. Sir Thomas aprovou o projeto por outra razão. A apresentação de seu sobrinho ao Almirante Crawford poderia ser útil. O almirante, supunha ele, tinha influência. No total, o bilhete causou alegria a todos. Por causa disso Fanny passou parte da manhã muito animada, prevendo o prazer que lhe causaria a ausência do próprio autor do bilhete.

Quanto ao baile, ela estava demasiadamente agitada e receosa para gozar metade da alegria que devia ter tido, ou que era suposto terem outras tantas moças, esperando o mesmo acontecimento mais à vontade, porém, com menos interesse, menos curiosidade, menos satisfação íntima do que lhe seria atribuída. Miss Price, conhecida pela maioria das pessoas convidadas apenas pelo seu nome de batismo, ia agora ser oficialmente apresentada e deveria ser considerada como a rainha da festa. Quem poderia ser mais feliz do que Miss Price? Mas Miss Price não tinha sido educada para a idéia de ser “apresentada”; e tivesse ela compreendido a significação desse baile, em relação a ela própria, isso teria diminuído muitíssimo o seu conforto, aumentando os receios que já tinha de não saber como portar-se e de ser observada.

Toda a sua ambição, e o que parecia resumir a sua maior probabilidade de ser feliz, era poder dançar sem ser muito observada e sem grande fadiga, ter ânimo e parceiros pelo menos para metade da noite, dançar um pouco com Edmund e não muitas vezes com Mr. Crawford, ver William divertir-se, e poder escapar de sua tia Norris. Sendo essas as suas maiores esperanças, nem sempre poderiam elas prevalecer; e no curso daquela infindável manhã, passada principalmente na companhia das duas tias, ela esteve muitas vezes sob a influência de perspectivas muito menos animadoras. William, determinado a aproveitar o mais possível o seu último dia de folga, saíra para caçar; Edmund, supunha com muita razão, devia estar no Presbitério; ficando, pois, sozinha para suportar as amofinações de Mrs. Norris, que se exasperava porque a governanta queria resolver de seu próprio modo a ceia, Fanny acabou ficando tão cansada que atribuiu ao baile todo e qualquer aborrecimento; e quando foi vestir-se, encaminhou-se languidamente para seu quarto, sentindo-se tão incapaz de divertir-se como se não tivesse nada a ver com o baile.

Enquanto subia vagarosamente, ia pensando no dia anterior; tinha sido naquela mesma hora que ela voltara do Presbitério e encontrara Edmund na sala de leste. “E se eu hoje o encontrasse lá de novo?” pensava, dando-se ao luxo de uma fantasia.

– Fanny! – ouviu chamarem perto dela. Assustada e olhando para cima, viu o próprio Edmund, em pé, no vestíbulo onde ela acabava de chegar. O moço veio ao seu encontro. – Você parece estar cansada e abatida, Fanny. Aposto que esteve caminhando demais.

– Não, não saí.

– Então cansou-se dentro de casa, o que ainda é pior. Era melhor que tivesse saído.

Não querendo discutir, Fanny achou mais fácil não responder; e embora ele a olhasse com a bondade usual, percebeu que não estava mais pensando nela. Ele mesmo não parecia estar muito animado; qualquer coisa não relacionada com ela havia acontecido. Subiram juntos, pois seus quartos ficavam no mesmo andar.

– Vim agora da casa do Dr. Grant – disse então Edmund. – Você pode adivinhar o que fui fazer lá, Fanny? – E pela aparência dele, Fanny viu logo do que se tratava, o que a deixou em estado de não poder falar. – Fui pedir Miss Crawford que me concedesse as duas primeiras contradanças, – seguiu-se a explicação. Isto reanimou Fanny, a qual vendo que ele esperava uma resposta, murmurou qualquer coisa como uma pergunta sobre o resultado.

– Sim – disse ele – ela está comprometida comigo; mas (com um sorriso meio forçado) disse que seria a última vez em que dançaria comigo. Creio que está brincando, tenho esperança que ela não estava falando a sério; preferia, porém, não ter ouvido. Disse-me que nunca havia dançado com um pastor e que nunca haveria de dançar. Da minha parte preferia que não houvesse baile nenhum justamente agora – quero dizer, não esta semana, hoje; amanhã sairei de casa.

Fanny esforçou-se por falar e disse:

– Sinto muito que você tenha tido esse aborrecimento. Hoje deveria ser um dia só de prazeres. Pelo menos essa foi a intenção de titio.

– Oh sim, sim! E será um dia de prazeres. Tudo terminará bem. Fiquei aborrecido apenas por um momento. De fato não é que eu considere o baile como inoportuno; que significa um baile? Mas, Fanny, – fazendo-a parar, segurou-lhe a mão e disse baixo, muito sério: – você sabe o que isto tudo significa. Você sabe como é; e poderia, talvez dizer melhor do que eu, como e porque eu me sinto humilhado. Deixe-me falar um momento. Você é tão boazinha! Sofri esta manhã por causa do procedimento dela e não posso me conformar. Sei que o temperamento dela é tão meigo e perfeito como o seu, mas a influência das companhias que teve anteriormente, tornou-a... – deu à conversa dela, às suas opiniões, às vezes, qualquer coisa que não está certo. Não tem intenção de fazer mal, mas faz mal falando, faz de brincadeira; e mesmo sabendo que é brincadeira, isto me mortifica a alma.

– É o defeito da educação – disse Fanny suavemente.

Edmund teve que concordar.

– Sim, com aqueles tios! Eles estragaram uma das mais belas consciências deste mundo; pois às vezes, Fanny, confesso que o defeito me parece não ser só nas maneiras; parece-me que consciência também foi atingida.

Fanny percebeu que aquilo era um apelo à sua opinião e por isso, depois de refletir um pouco, disse:

– Se você quer apenas que eu ouça, meu primo, estou à sua disposição; mas não tenho capacidade para dar conselhos. Não me peça conselhos. Não tenho competência.

– Você tem razão, Fanny, de protestar quanto a tal ofício, mas não tenha receio. Neste assunto eu nunca pediria conselho; é um assunto sobre o qual melhor é não se pedir a opinião de ninguém; e raros, creio eu, são os que a pedem, a não ser que queiram ser influenciados contra a própria consciência. Eu apenas quero conversar com você.

– Uma coisa apenas. Desculpe a liberdade; mas tome cuidado de como você vai falar comigo. Não me diga nada agora de que mais tarde venha a se arrepender. Um dia virá que...

O sangue subiu-lhe às faces enquanto falava.

– Fanny, querida! – exclamou Edmund, beijando-lhe a mão, quase com tanto fervor como se tivesse sido a mão de Miss Crawford – você é tão prudente! Mas aqui não há necessidade. Nunca chegará esse dia. Nenhum dia como o que você alude virá. Começo a achar que isso é quase impossível; as probabilidades dia a dia diminuem; e mesmo que fosse o contrário, não haveria nada de que eu ou você tivéssemos receio de lembrar, pois eu nunca me envergonho de meus próprios escrúpulos; e se esses “algum dia” não tiverem razão de ser, será porque houve tais mudanças que somente poderão elevar mais o caráter dele, pela recordação de seus antigos defeitos. Você é a única criatura da terra a quem eu diria o que disse; você, porém, sabe o conceito que faço dela; você é testemunha, Fanny, de que eu nunca fui cego. Quantas vezes falamos sobre as pequenas faltas dela! Você não precisa recear por mim; eu quase já desisti de pensar nela seriamente; no entanto seria na verdade um tonto, se depois de tudo que me aconteceu, eu ainda pudesse pensar na sua bondade e simpatia sem a mais sincera gratidão.

Havia dito o bastante para abalar uma experiência de dezoito anos. Dissera o bastante para que Fanny se sentisse mais feliz do que se sentia ultimamente; e com um maior brilho no olhar, ela respondeu:

– Sim, meu primo, estou convencida de que você seria incapaz de fazer outra coisa, embora, talvez, outros o fizessem. Não receio ouvir tudo que me queira dizer. Pode ser franco. Diga-me o que tiver vontade de dizer.

Estavam agora no segundo andar e a presença de uma empregada os impediu de prosseguirem na conversa. Para o bem atual de Fanny, terminou, talvez, no momento mais feliz; se ele tivesse podido falar por mais cinco minutos, não se sabe se não teria eliminado todos os defeitos de Miss Crawford e o seu próprio desespero. Mas assim, separaram-se mostrando, do lado dele uma grata afeição e do dela, uma sensação muito doce. Gozou dessa sensação durante horas. Desde que se desvanecera a primeira alegria causada pelo bilhete de Mr. Crawford a William, ela havia ficado num estado absolutamente contrário; não recebera conforto de ninguém e sua esperança havia desaparecido. Agora tudo lhe sorria. Lembrou-se novamente da boa sorte de William, a qual lhe pareceu maior do que a princípio. O baile, também – quanto prazer à sua frente! Estava agora realmente animada; e começou a vestir-se com entusiasmo. Tudo ia bem; não se desgostou de sua própria aparência; quando chegou a vez do colar, de novo sua ventura pareceu completa, pois ao experimentar o de Miss Crawford, de modo algum conseguiu enfiá-lo pelo aro da cruz. Para agradar Edmund, tinha resolvido usá-lo; mas o colar era muito grosso. Teria, pois, que por a corrente dele; tendo com alegria reunido a corrente e a cruz – aquelas lembranças dos dois entes mais queridos, aqueles caros emblemas, formados um para o outro por tudo que era real e imaginário – colocou-as à volta do pescoço e, vendo e sentindo quão cheias estavam de William e Edmund, sentiu-se capaz, sem esforço, de usar, também, o colar de Miss Crawford. Reconheceu que o devia fazer. Miss Crawford tinha esse direito; quando não mais se tratava de usurpar, de interferir em outros direitos mais fortes, com a verdadeira bondade de outra pessoa, ela podia lhe fazer justiça até mesmo com prazer. O colar era realmente muito bonito; Fanny saiu do quarto, finalmente, satisfeita consigo mesma e com tudo que a cercava.

 Sua tia Bertram casualmente nesta hora lembrou-se dela. Ocorrera-lhe, de fato, espontaneamente que Fanny, preparando-se para um baile, poderia precisar de melhor auxílio do que as empregadas lhe poderiam dar e quando acabou de vestir-se, mandou sua própria dama de companhia para ajudar a sobrinha; muito tarde, naturalmente, para prestar qualquer auxílio. Mrs. Chapman tinha acabado de chegar ao patamar do segundo andar, quando Miss Price saía do quarto, completamente vestida e apenas foram trocadas amabilidades; Fanny, porém, reconheceu a atenção de sua tia, quase tanto quanto as próprias Lady Bertram e Mrs. Chapman.

 

Quando Fanny desceu, seu tio e as duas tias se achavam no salão de visitas. O primeiro, para quem ela era um objeto interessante, viu com prazer a elegância geral de sua aparência e observou que ela estava admiravelmente bela. Na presença de Fanny, porém, só elogiou a elegância e a propriedade do vestido; mas quando ela, logo depois, saiu do salão, o tio não se conteve, e falou sobre a beleza da sobrinha com os mais decisivos louvores.

– Sim – disse Lady Bertram – ela está muito bem. Mandei Chapman auxiliá-la a vestir-se.

– Se está muito bem! Ora, claro! – exclamou Mrs. Norris – não podia deixar de estar muito bem com todas as vantagens que goza; educada como foi no meio desta família, tendo como exemplo as maneiras de suas primas! Agora veja, meu caro Sir Thomas, que extraordinárias vantagens o senhor e eu lhe proporcionamos! O próprio vestido que acaba de elogiar, foi o generoso presente que o senhor lhe fez para o casamento da nossa querida Mrs. Rushworth. Onde estaria esta pequena a esta hora se nós não tivéssemos tomado conta dela?

Sir Thomas não retrucou; mas quando se sentaram à mesa, os olhares dos dois rapazes lhe deram a certeza de que o assunto poderia ser novamente tocado com mais suavidade, depois que as senhoras se ausentassem. Fanny percebeu que tinha sido aprovada, e a consciência de estar bem, fê-la parecer ainda melhor. Por muitos motivos ela se sentia feliz e em breve sentiu-se mais feliz ainda; porque, quando saiu da sala com as tias, Edmund, que estava segurando a porta, lhe disse ao passar:

– Você deve dançar comigo, Fanny; precisa guardar duas danças para mim; quaisquer que você quiser, exceto as duas primeiras.

Não podia desejar mais nada. Nunca havia, em sua vida, estado tão perto de delirar de alegria. A alegria que as primas, antigamente, sentiam num dia de baile não a surpreendia mais; ela reconhecia que na verdade um baile era um encanto e começou a praticar os passos de dança pelo salão, logo que se viu livre da presença de sua tia Norris, que estava inteiramente entregue a novos arranjos e injúrias por causa do grande fogo que o mordomo havia acendido na lareira.

Passou meia hora, que teria sido, no mínimo, lânguida em qualquer outra circunstância, mas a felicidade de Fanny ainda prevalecia. Só pensava nas palavras de Edmund; e que lhe importava a inquietação de Mrs. Norris? Que lhe importavam os bocejos de Lady Bertram?

Os homens reuniram-se a elas; e logo depois começou a doce expectativa da primeira carruagem, enquanto o bem estar geral e a alegria parecia derramar-se pelo salão e todos falavam e riam, e cada momento tinha seus prazeres e suas esperanças. Fanny julgou que Edmund lutava para mostrar-se alegre mas ficou contente por ver que o esforço dele era bem sucedido.

Quando as carruagens começaram realmente a se fazer ouvidas, quando os convidados começaram de fato a se reunir, sua alegria foi muito mais reprimida; a vista de tantas pessoas estranhas constrangeu-a; e além da gravidade e formalidade do primeiro grande círculo que nem as maneiras de Sir Thomas e Lady Bertram conseguiam suprimir, ela viu-se obrigada, de vez em quando, a passar por coisa ainda pior. Era apresentada aqui e ali por seu tio, e obrigada a falar, a cortejar e a falar de novo. Esta era a parte dura, e cada vez que a chamavam para nova apresentação, ela olhava para William, que se achava muito à vontade no fundo da cena, e desejava estar junto dele.

A entrada dos Grants e Crawfords foi um momento favorável. O constrangimento da reunião logo desapareceu diante de seus modos muito dados e suas intimidades mais amplas; formaram-se pequenos grupos e todos se sentiram à vontade. Fanny, livre das cerimônias da apresentação, poderia novamente sentir-se muito feliz, se não estivesse sempre o seu olhar acompanhando Edmund e Mary Crawford. Ela estava linda... e como acabaria tudo aquilo? Despertou da cisma ao perceber à sua frente Mr. Crawford, e seus pensamentos foram desviados para outro plano, quando o ouviu imediatamente lhe solicitar as duas primeiras contradanças. Sua felicidade, nesta ocasião, foi imensa, mas elegantemente refreada. Conseguir um par logo de início era um bem essencial, pois o momento de começar o baile estava seriamente se aproximando; e ela dava muito pouco valor à sua própria pessoa; e pensava que, se Mr. Crawford não a tivesse convidado, ela só conseguiria um par depois de uma série de solicitações e interferências, o que teria sido horrível; no entanto, ao mesmo tempo, sentiu no convite dele uma evidência de que gostou e viu os olhos do moço vagarem um momento sobre o seu colar com um sorriso – pelo menos ela assim pensou – que a fez corar e sentir-se feliz. E embora não tivesse havido senão aquele olhar para a perturbar, ela não conseguia vencer o embaraço, aumentado pela idéia de ter ele percebido o colar. E não voltou ao seu natural senão depois que a deixou, para falar com outra pessoa qualquer. Então Fanny pôde gradualmente voltar à pura satisfação de ter um par, um par voluntário, conseguido antes de começar a dança.

Quando começaram a movimentar-se para o salão de baile, ela encontrou-se pela primeira vez ao lado de Miss Crawford, cujos olhos e sorrisos como os do irmão, foram imediatamente e mais abertamente dirigidos para o colar, sobre o qual começou logo a falar. Porém Fanny, ansiosa para acabar com o assunto, apressou-se a dar explicações sobre o segundo colar: a verdadeira corrente. Miss Crawford ouvia; e todos os cumprimentos e insinuações que pretendia fazer a Fanny ficaram esquecidos; só pensava numa coisa; e seus olhos, embora tão brilhantes antes, mostravam poder ser ainda mais brilhantes, quando ela exclamou cheia de prazer:

– Ele fez isto? Edmund fez isto? Só ele mesmo. Nenhum outro homem teria tido esta lembrança. Não tenho palavras para exprimir minha admiração por ele.

E olhou em volta como se quisesse dizer isto ao próprio Edmund. Porém ele não estava perto, atendia a um grupo de senhoras, no outro lado da sala; e como Mrs. Grant veio juntar-se às duas moças, tomando um braço de cada uma, acompanharam os outros para o salão.

O coração de Fanny palpitava, mas não havia tempo para pensar nem mesmo nas emoções de Miss Crawford. Estavam no salão de baile, os violinos começavam a tocar e sua cabeça dava tantas voltas que não lhe era possível fixar-se em coisa alguma séria. Tinha que observar os preparativos e ver como tudo era feito.

Em poucos minutos Sir Thomas veio ter com ela e perguntou se já estava comprometida; e o “Sim, senhor, com Mr. Crawford” foi exatamente aquilo que ele quisera ouvir. Mr. Crawford não se achava muito afastado; Sir Thomas trouxe-o, dizendo qualquer coisa pela qual Fanny descobriu que ela devia abrir o baile; tal idéia nunca lhe havia ocorrido. Sempre que pensara nos detalhes da noite achava sempre como uma coisa natural, que o baile seria aberto por Edmund e Miss Crawford; e a impressão foi tão forte, que, embora seu tio dissesse o contrário, ela não pôde evitar uma exclamação de surpresa, uma insinuação de que não tinha idoneidade e mesmo uma súplica para ser dispensada de tal honra. Que ela ousasse opor-se à opinião de Sir Thomas, era prova de que chegara ao último extremo; mas tal foi o seu horror na primeira sugestão, que agora podia olhá-lo de frente e dizer que esperava poder ser dispensada; contudo, foi em vão; Sir Thomas sorriu, procurou animá-la e depois tornou-se muito sério, dizendo decididamente:

– Tem que ser assim, minha querida – de forma que ela não aventurou dizer mais uma palavra.

E, em seguida, viu-se conduzida por Mr. Crawford para a extremidade do salão e lá se reuniram aos outros dançarinos, par depois de par, de acordo com a formação.

Era quase inacreditável! Ser colocada acima de tantas moças elegantes! A distinção era grande demais! Era tratá-la igual às primas! E seu pensamento voou para as primas ausentes com sincera, verdadeira ternura, sentindo que não estivessem presentes para tomarem seus lugares no baile e gozarem sua parte de prazer que para elas teria sido tão intensa. Tantas vezes as ouvira referirem-se ao desejo de darem um baile em casa como a maior das felicidades! E justamente agora que estavam ausentes – e ela abrindo o baile – ainda mais com Mr. Crawford! Esperava ao menos que já não invejassem aquela distinção que lhe era feita; mas ao recordar-se do estado em que estavam as coisas no último outono, do que eles todos eram uns para os outros quando em outra ocasião haviam dançado naquela casa, não podia compreender sua situação atual.

Começou o baile. Foi mais honra do que prazer para Fanny, pelo menos na primeira dança: seu parceiro estava de excelente bom humor e procurou comunicá-lo à moça; ela, porém, estava demasiadamente assustada para poder sentir qualquer alegria, até que se pôde convencer de que não era mais observada. Jovem, bonita e gentil, porém, não havia acanhamento que lhe pudesse prejudicar a graça e houve poucas pessoas presentes que não se sentiram dispostas a elogiá-la. Era atraente, era modesta, era a sobrinha de Sir Thomas, e não demorou muito que dissessem ser ela admirada por Mr. Crawford. Bastava isso para que todos a olhassem com benevolência. O próprio Sir Thomas observava, complacente, seu progresso na dança; estava orgulhoso da sobrinha; e sem atribuir a beleza pessoal dela, como parecia fazer Mrs. Norris, à sua mudança para Mansfield, estava contente consigo mesmo por lhe ter dado tudo o mais: educação e modos.

Miss Crawford leu os pensamentos de Sir Thomas e como, apesar de todas as injustiças dele, tinha um desejo dominante de lhe agradar, aproveitou a oportunidade num intervalo da dança, para fazer um elogio a Fanny. Suas palavras foram ardentes e ele as recebeu como ela teria desejado, fazendo coro ao elogio com tanta intensidade quanto a discrição, a polidez e a sua fala descansada o permitiam. E certamente foi mais eloqüente do que a mulher, quando logo depois Mary, percebendo-a num sofá próximo, virou-se antes de começar a dançar, dando-lhe os parabéns pela beleza de Miss Price.

– Sim, ela está muito bem – respondeu Lady Bertram placidamente. – Chapman ajudou-a a vestir-se.

Não que ela não estivesse contente por ver Fanny admirada; mas sentia-se tão comovida pela sua própria bondade mandando Chapman auxiliá-la, que não podia tirar isto da cabeça.

Miss Crawford conhecia bem Mrs. Norris para pensar que ela ficaria lisonjeada pelos elogios que fizessem a Fanny; e lhe dirigiu a palavra na primeira oportunidade:

– Ah! Minha senhora, que grande falta as queridas Mrs. Rushworth e Julia fazem esta noite! – e Mrs. Norris recompensou-a com tantos sorrisos e cortesias quanto lhe permitia o tempo, no meio de tantas ocupações em que se encontrava, organizando as mesas de jogo, dando conselhos a Sir Thomas e procurando conduzir todas as chaperons para um lado melhor do salão.

Com a própria Fanny, Miss Crawford foi muito estouvada nas suas maneiras de agradar. Sua intenção foi dar àquele pequeno coração uma grande emoção e enchê-la de agradáveis sensações de importância; e interpretando mal o rubor das faces de Fanny, ainda pensava que tivesse conseguido o seu intento, quando, depois das duas primeiras danças, dirigiu-se a ela e disse com um olhar significativo:

– Você talvez possa me dizer por que meu irmão vai amanhã para a cidade? Diz que tem negócios lá, mas não me quer explicar o que é. É a primeira vez que não é franco comigo! Mas é a isto que todos nós chegamos. Mais cedo ou mais tarde, todos somos substituídos. Agora, tenho que me dirigir a você quando quiser uma informação. Por favor, que é que Henry vai fazer lá?

Fanny afirmou sua ignorância com tanta firmeza quanto permitia o seu embaraço.

– Bem, então – respondeu Miss Crawford rindo – devo supor que é puramente pelo prazer de conduzir seu irmão e falar de você durante o caminho.

Fanny ficou confusa, porém a sua confusão era de descontentamento; enquanto isso Miss Crawford se admirava de que ela não sorrisse e pensava que talvez estivesse demasiadamente ansiosa, ou a achava estranha ou outra qualquer coisa; só não supunha que Fanny fosse insensível às atenções de Henry. No curso da noite, Fanny teve muitos momentos de alegria; mas as atenções de Henry não eram responsáveis por isso. Ela preferia não ser convidada por ele tão em seguida e desejado não ser forçada a desconfiar que o interesse dele pela hora da ceia fosse com o fim de se assegurar da sua companhia durante aquela parte da noite. Mas não havia como o evitar; ele a fez compreender o seu objetivo; no entanto ela não poderia dizer que o tivesse feito desagradavelmente, que tivesse havido indelicadeza ou ostentação nas maneiras do rapaz; e, às vezes, quando falava de William, ele não era desagradável e demonstrava mesmo uma bondade que lhe dava crédito. Mesmo assim, as atenções de Mr. Crawford não tomavam parte na sua alegria. Sentia-se feliz toda vez que olhava para William e quando estava com ele nos intervalos, percebia, pela maneira com que falava nos seus sucessos, o quanto estava se divertindo; sentia-se feliz por se saber admirada; e sentia-se feliz por ter ainda a esperança de dançar duas vezes com Edmund, a qualquer hora que fosse, embora estivesse sendo tão requisitada toda a noite que seu compromisso com ele continuasse permanentemente em perspectiva. Sentiu-se feliz, mesmo quando afinal conseguiram dançar; não, porém, que ele tivesse demonstrado grande entusiasmo ou que tivesse usado de qualquer das meigas expressões com que a tornara venturosa durante a manhã. Ele estava abatido e a felicidade dela se baseou na convicção de ser ela a amiga em que ele podia confiar.

– Estou cansado de todas estas delicadezas. Tenho falado sem parar toda a noite e sem ter nada a dizer. Mas com você, Fanny, posso ficar calado. Você não fará questão de conversar. Vamos nos dar o luxo de ficar em silêncio.

Fanny mal pôde murmurar seu assentimento. Aquela lassidão produzida, provavelmente, em maiores proporções, pelas mesmas emoções que ele havia confessado de manhã, devia ser respeitada e eles prosseguiram juntos as duas danças com tanta tranqüilidade, que qualquer pessoa que os observasse se convenceria de que Sir Thomas não estava educando uma esposa para o seu segundo filho.

A noite deu pouco prazer a Edmund. Miss Crawford tinha estado muito alegre quando dançaram a primeira vez mas não era da alegria dela que precisava; sentia-se antes constrangido do que feliz; e mais tarde, pois ele ainda se animou a tirá-la novamente, ela o afligiu completamente pela maneira como se referiu à profissão que em breve abraçaria. Tinham falado e ficado em silêncio; ele havia se defendido e ela ridicularizado; e tinham-se, por fim, separado mutuamente aborrecidos. Fanny, que os observara, tinha percebido o suficiente para se sentir satisfeita. Era bárbaro sentir-se feliz quando Edmund estava sofrendo. Contudo, muito da sua felicidade nascia da própria convicção de que ele sofria.

Quando terminaram as duas danças ela estava esgotada; e Sir Thomas tendo percebido que a sobrinha mais andava do que dançava, sem fôlego, com a mão na cintura, deu ordem para que ela ficasse absolutamente parada. Desde aquele momento Mr. Crawford permaneceu, também, sentado.

– Pobre Fanny! – exclamou William quando a veio ver um momento, abanando-a com o leque de sua parceira, como se lhe quisesse dar vida, – como se cansa logo! Pois que, agora é que a festa está começando. Espero que ainda continue por mais duas horas. Não sei como você pode cansar tão depressa!

– Tão depressa! Meu bom amigo – disse Sir Thomas cautelosamente mostrando-lhe o relógio – são três horas e sua irmã não está habituada a deitar-se a estas horas.

– Bem, então, Fanny, você não deve se levantar amanhã quando eu sair. Durma quanto puder e não se preocupe comigo.

– Oh! William.

– Que! Pois ela pretendia levantar-se antes de você sair?

– Oh! Sim senhor – exclamou Fanny levantando-se ansiosamente, a fim de ficar mais perto do tio; – quero levantar-me e almoçar com ele; será a última vez, o senhor sabe; a última manhã.

– Era melhor não se levantar. Ele terá que almoçar e sair às nove e meia. Mr. Crawford, o senhor virá buscá-lo às nove e meia, não?

Mas o tio não pôde negar mais nada, – Fanny estava ansiosa e tinha os olhos cheios d'água, – terminou, pois, concordando:

– Bem, bem!

– Sim, às nove e meia – disse Crawford a William, quando o último ia deixá-los – e serei pontual, visto que não terei uma irmãzinha para se despedir de mim. – E num tom mais baixo para Fanny: – Não terei senão uma casa desolada para deixar. Amanhã seu irmão achará que as minhas idéias sobre o tempo são muito diferentes das dele.

Depois de curta consideração, Sir Thomas convidou Crawford para tomar parte no almoço deles, em vez de almoçar sozinho; ele próprio estaria lá; e a presteza com que o convite foi aceito convenceu-o de que a suspeita que (ele tinha de o confessar a si mesmo) lhe sugerira a idéia deste baile, não era infundada. Mr. Crawford amava Fanny. E Sir Thomas antecipava com prazer o que iria acontecer. Sua sobrinha, entretanto, não agradeceu o que ele acabava de fazer. Esperava poder ficar sozinha com William durante toda a manhã. Teria sido uma indizível bondade. Mas embora seus desejos fossem contrariados, ela não se revoltou. Ao contrário, estava tão acostumada a não ser consultada, ou a ver qualquer coisa acontecer sem estar de nenhum modo de acordo com os seus desejos, que ficou mais disposta a admirar-se e a rejubilar-se por ter defendido sua vontade até aquele ponto, do que a se rebelar pela contrariedade que se seguiu.

Logo depois Sir Thomas novamente interferiu um pouco na sua vontade, aconselhando-a a ir deitar-se imediatamente. “Conselho” foi a palavra que usou, mas foi um conselho indiscutível e ela não pôde senão levantar-se e, com o adeus muito cordial de Mr. Crawford, saiu mansamente; parou na porta do salão como a Lady de Branxholm Hall, “um momento só e nada mais”, para observar o cenário festivo e lançar um último olhar a cinco ou seis pares determinados, que continuavam dançando; então subiu vagarosamente a escada principal, perseguida pela infindável contradança, cheia de esperanças e receios, fatigada, com os pés doloridos, inquieta e agitada, mas achando, apesar de tudo, que um baile era na verdade um encanto.

Ao mandá-la subir, Sir Thomas talvez não estivesse apenas pensando em sua saúde. Talvez lhe tivesse ocorrido que Mr. Crawford já estava há muito tempo sentado ao lado dela ou talvez pretendesse recomendá-la como esposa, mostrando-lhe a docilidade.

 

O baile passou e o almoço, também, logo depois, passou; o último beijo foi dado e William havia partido. Mr. Crawford, como o prometera, tinha sido muito pontual; curta e agradável fora a refeição.

Depois de ver William até o último momento, Fanny voltou à sala do almoço com o coração apertado e ficou a meditar sobre a triste mudança; e ali o tio bondosamente a deixou chorar em paz, julgando, talvez, que as cadeiras onde um dos rapazes havia sentado poderiam influir sobre o seu terno entusiasmo e que as suas emoções se dividiriam entre os restos de carne e mostarda do prato de William e as cascas de ovo do prato de Mr. Crawford. Ela sentou-se e chorou “com amor” fraternal e não outro. Agora que William havia partido, ela se sentia como se houvesse perdido metade da visita do irmão em inúteis desvelos e solicitudes pessoais, que não diziam respeito a ele.

Fanny estava numa tal disposição de espírito que não podia nem mesmo pensar em sua tia Norris, na pobreza e melancolia de sua pequena casa, sem exprobrar por algumas pequenas faltas de atenção a ela na última vez em que estiveram juntas; muito menos podia seu sentimento absolvê-la de não ter agido, dito e pensado tudo por William, como o deveria ter feito durante toda uma quinzena.

O dia foi triste, pesado. Logo depois do segundo almoço, Edmund despediu-se deles por uma semana, montou em seu cavalo e partiu para Peterborough, e, então, todos tinham partido. Nada mais restava da última noite senão as lembranças, que ela não podia compartilhar com ninguém. Conversou com a tia Bertram, precisava falar com alguém sobre o baile; mas a tia tinha visto tão pouco do que se passara e era tão pouco curiosa, que a conversa não progredia. Lady Bertram não se lembrava do vestuário de ninguém, nem dos lugares que tinham ocupado na mesa da ceia, nem de coisa alguma, exceto o que se referia a si mesma. “Não podia lembrar-se do que foi que ouvira sobre uma das Misses Maddox, ou o que Lady Prescott havia notado em Fanny; não estava certa se o Coronel Harrison se referia a Mr. Crawford ou a William, quando disse que ele era o rapaz mais elegante do baile; alguém havia cochichado qualquer coisa em seu ouvido; esquecera de perguntar a Sir Thomas o que teria sido”. E essas eram as suas frases mais longas e as comunicações mais claras: o resto era apenas um lânguido “Sim, sim; muito bem; ah! você fez? Ele disse? Eu não notei isto; não faço diferença entre uma e outra”. A conversa foi péssima. Só foi melhor do que seriam as acerbas respostas de Mrs. Norris; e como esta havia voltado para casa com todas as sobras de geléias para os dar a uma empregada doente, houve paz e bom humor na pequena reunião das duas, se bem que tenha havido só isto.

O serão não foi menos pesado do que o dia:

– Não sei o que se está passando comigo – disse Lady Bertram, depois que a mesa do chá foi retirada. – Sinto-me inteiramente estúpida. Talvez seja porque me deitei tão tarde ontem. Fanny, você precisa fazer qualquer coisa para me conservar acordada. Não posso trabalhar. Traga as cartas; estou tão estúpida.

Veio o baralho e Fanny jogou com a tia até à hora de dormir; e como Sir Thomas estava lento, não se ouviu na sala durante duas horas, senão a contagem do jogo:

– E com esta são trinta e um; quatro na mão e oito no baralho. É a sua vez de jogar, titia; quer que eu jogue pela senhora?

Fanny não parava de pensar na diferença que vinte e quatro horas haviam feito naquele salão e em toda a casa. Na noite precedente houvera esperança e sorrisos, barulho e movimento, brilho, tanto no salão como fora e em toda parte. Agora era a tristeza e tudo apenas solidão.

Com uma noite bem dormida ficou mais animada. Já podia, no dia seguinte, pensar em William com menos tristeza; e como de manhã teve oportunidade de falar com Mrs. Grant e Miss Crawford sobre a noite de quinta feira, num estilo diferente e melhor, com todos os acréscimos de imaginação e as risadas pelas pilhérias que são tão essenciais aos comentários de um baile passado, ela pôde, depois disso, sem grande esforço, voltar ao seu natural e facilmente conformar-se com a tranqüilidade e a quietude da semana que corria.

Na verdade eles agora formavam um grupo muito menor do que ela jamais vira ali, no decorrer de um dia inteiro e ele, de quem principalmente dependiam o conforto e a animação de cada uma das reuniões da família, havia partido. A isto, porém, ela teria que se acostumar. Muito breve ele partiria para sempre; e ela agradecia ainda agora poder estar na mesma sala com o tio, ouvir a sua voz e mesmo responder às suas perguntas sem se sentir tão infeliz como antigamente.

– Nossos dois rapazes estão fazendo falta – observou Sir Thomas, tanto no primeiro como no segundo dia, quando, depois do jantar, se achavam num círculo muito reduzido; e em consideração aos olhos de Fanny que estavam cheios d'água, não se disse mais nada no primeiro dia, além de beberem a saúde dos ausentes; mas no dia seguinte o assunto se prolongou. William foi muito elogiado e falaram de sua promoção com grande esperança. – E não há motivo para supor – acrescentou Sir Thomas – que ele não nos possa visitar agora mais freqüentemente. Quanto a Edmund, temos que nos habituar a viver sem ele. Este inverno será o último que ele passará conosco.

– É – disse Lady Bertram – mas eu preferia que ele não fosse embora. Estão todos indo, parece. Preferia que ficassem em casa.

Este desejo se referia principalmente a Julia, que justamente havia pedido permissão para ir com Maria para a cidade; e como Sir Thomas achara melhor para cada uma das filhas que a permissão fosse concedida, Lady Bertram, embora por sua vontade não o tivesse impedido, lamentava-se pela mudança havida na projetada volta de Julia, que do contrário deveria por este tempo estar em casa. Sir Thomas expôs um grande número de motivos para convencer a esposa a concordar com a combinação. Tudo que um pai atento tinha que sentir foi exposto para convencê-la e tudo que uma mãe afetuosa devia sentir ao proporcionar alegrias a seus filhos foi atribuído ao temperamento dela. Lady Bertram concordava com tudo com um calmo “Sim” e no fim de um quarto de hora de muda consideração, observava espontaneamente:

– Sir Thomas, eu estive pensando – e estou muito contente por termos trazido Fanny para casa, pois agora que todos os outros estão fora é que podemos avaliar o bem que isto nos traz.

Sir Thomas imediatamente aperfeiçoou este cumprimento, acrescentando:

– É verdade. Mostramos a Fanny que a achamos uma boa moça, fazendo-lhe elogios na frente dela; ela agora é para nós uma companhia inestimável. Se fomos bons para ela, ela agora, por outro lado, nos é inteiramente necessária.

– Sim – respondeu Lady Bertram; – e é um consolo pensar que nunca a perderemos.

Sir Thomas calou-se, sorriu, olhou a sobrinha de soslaio e então respondeu seriamente:

– Espero que nunca nos deixe, até que seja convidada a morar em outro lugar que a torne mais feliz do que se sente aqui.

– E isto não é muito provável de acontecer, Sir Thomas. Pois quem a iria convidar? Maria talvez gostasse de a receber em Sotherton uma vez ou outra, mas nunca a pensaria em convidá-la para morar lá; estou certa de que ela aqui está muito melhor e, além disso, não posso passar sem Fanny.

A semana que passou tão tranqüila e pacífica na casa grande de Mansfield, teve um caráter muito diferente no Presbitério. Para cada uma das moças das duas famílias, pelo menos, trouxe emoções muito diferentes. O que para Fanny era tranqüilidade e conforto, para Mary era tédio e aborrecimento. Questão de diferença de temperamento e hábito; uma tão fácil de satisfazer, a outra desabituada a sofrer; mas alguma coisa mais podia ainda ser atribuída à diferença de circunstâncias. Em alguns pontos de interesse pessoal elas eram completamente opostas. Para Fanny, a ausência de Edmund, justamente por seu motivo e tendência, era realmente um alívio. Para Mary era dolorosa em todos os sentidos. Ela sentia a falta da companhia dele, todos os dias, quase todas as horas e irritava-se só em pensar no motivo por que ele havia partido. Edmund não teria podido inventar nada mais capaz de aumentar o seu prestígio do que esta semana de ausência, ocorrida, como foi, justamente na ocasião em que o irmão dela havia partido, que William Price também partira e completando aquela espécie de rompimento geral de um grupo que fora tão animado. Sentia amargamente. Eles eram agora um trio miserável, trancados dentro de casa por uma série de chuvas e neve, sem nada que fazer e nenhuma esperança. Zangada que estivesse com Edmund por ele seguir a própria vontade em desafio a ela (havia-se aborrecido tanto com ele que depois do baile se tinham separado quase como inimigos), assim mesmo, não podia deixar de pensar continuamente no moço ausente, estendendo-se sobre as suas qualidades e afeto, desejando de novo intensamente os encontros quase diários que tinham ultimamente. A sua ausência não deveria ser tão longa. Ele não devia ter planejado uma tal ausência; não deveria ter saído de casa, sabendo que ela mesma partiria de Mansfield dentro de poucos dias. Depois começava a culpar-se. Não lhe devia ter falado tão calorosamente na sua última conversa. Receava ter usado de algumas expressões muito fortes e desrespeitosas ao se referir ao clero e isto não era direito. Demonstrava falta de educação; estava errado. Desejava de todo coração poder desdizer tais palavras.

Seus aborrecimentos não terminaram com a semana. Tudo isto foi muito ruim, porém ainda passou por pior quando de novo chegou a sexta feira e Edmund não veio; quando chegou o sábado e ainda nada de Edmund, Mary ficou sabendo, através da breve comunicação obtida no domingo pela outra família, que Edmund havia escrito avisando que adiara a volta, tendo prometido ficar mais alguns dias com o amigo.

Se ela estivera impaciente e arrependida antes – se havia sofrido pelo que dissera e receara que o efeito sobre ele fosse demasiadamente forte – agora sofria e receava dez vezes mais. Tinha, além do mais, que enfrentar uma emoção desagradável e inteiramente nova para si – o ciúme. O amigo dele, Mr. Owen, tinha irmãs; ele talvez as achasse bonitas. De qualquer modo, ficar ausente numa ocasião em que, de acordo com todos os planos anteriores, ela devia mudar-se para Londres, significava qualquer coisa que não podia suportar. Se Henry tivesse voltado, como prometera, no fim de três ou quatro dias, ela estaria agora longe de Mansfield. Era imperioso que procurasse Fanny para saber alguma coisa mais. Não poderia viver um minuto mais nesta triste miséria; e encaminhou-se para o Park, atravessando mil dificuldades pelo caminho que julgara intransponível uma semana antes, só com o fim de poder ouvir um pouco mais, só com a esperança de, pelo menos, ouvir o nome dele.

A primeira meia hora foi perdida, pois Fanny e Lady Bertram estavam juntas e a menos que ficasse sozinha com Fanny, Mary não poderia esperar coisa alguma. Finalmente porém Lady Bertram saiu da sala e então, quase imediatamente, Miss Crawford começou, dando à voz, quanto possível, um tom natural:

– E você, como suporta uma ausência tão longa de seu primo Edmund? Sendo a única pessoa moça nesta casa, creio que é você a que mais sofre. Deve sentir muita falta! Não está admirada de que demore tanto?

– Não sei – respondeu Fanny hesitando. – Sim; não tinha realmente esperado isto.

– Talvez ele tenha o costume de sempre se demorar mais do que promete. É o que geralmente todos os rapazes fazem.

– Na última vez que Edmund foi visitar Mr. Owen, não fez isto.

– Deve ter achado o ambiente mais agradável agora. Demais, ele próprio é um rapaz muito – muito agradável. E eu não posso deixar de sentir pena por não o ver ainda antes de ir para Londres, como sem dúvida acontecerá. Estou esperando Henry todos os dias e logo que ele venha, nada me prenderá a Mansfield. Confesso que gostaria de o ver mais uma vez. Fica você encarregada de lhe transmitir minhas lembranças. Sim; creio que devem ser lembranças. Não acha, Miss Price, que falta alguma coisa no nosso idioma – uma palavra entre lembrança e saudades – que se adapte a esta sorte de camaradagem que tivemos? Tantos meses! Mas no caso são suficientes as lembranças. A carta dele foi muito longa? Ele lhe conta muitas coisas do que está fazendo? É por causa das festas de Natal que vai ficar?

– Só tomei conhecimento de uma parte da carta, que foi dirigida a meu tio; creio, porém, que foi muito curta; na verdade, penso que eram apenas algumas linhas. Tudo que ouvi foi que o amigo tinha insistido para que ele ficasse mais tempo e ele havia concordado. Poucos dias ou alguns dias a mais, não tenho bem certeza.

– Oh! Se ele escreveu para o pai – eu pensei que tinha escrito a Lady Bertram ou a você. Mas se escreveu para o pai, não admira que tenha sido conciso. Quem se atreveria a tagarelar numa carta para Sir Thomas? Se ele lhe tivesse escrito decerto havia mais detalhes. Você teria conhecimento dos bailes e reuniões, pois ele lhe mandaria uma descrição de tudo e de todos. Quantas são as Misses Owen?

– São três, já crescidas.

– Elas gostam de música?

– Não sei. Nunca ouvi dizer.

– Você sabe que é a primeira pergunta – disse Miss Crawford, procurando mostrar-se alegre e desinteressada – que qualquer mulher que sabe tocar, se lembra de fazer das outras. Mas é tolice fazer tal pergunta sobre essas moças – sobre essas três irmãs apenas saídas da infância; pois já se sabe, sem que seja preciso dizer, exatamente o que elas são: todas três muito prendadas e interessantes e uma muito bonita. Sempre há uma beleza em todas as famílias; é uma coisa natural. Duas tocam piano e uma harpa; e todas cantam ou cantariam se tivessem aprendido, e cantam justamente melhor porque não aprenderam; ou qualquer coisa semelhante.

– Não sei nada a respeito das Misses Owen – disse Fanny calmamente.

– Não sabe nada e ainda menos se interessa, como se costuma dizer. De fato, que interesse se pode ter por pessoas que nunca se viu? Bem, quando seu primo voltar, vai achar Mansfield quieto demais; todos os barulhentos estarão ausentes, seu irmão, o meu e eu mesma. Agora que o dia está perto, fico triste de deixar Mrs. Grant. Ela não se conforma com a minha partida.

Fanny sentiu-se obrigada a falar:

– Você não pode duvidar de que muita gente vai sentir a sua ausência – disse ela. – Vai nos fazer muita falta.

Miss Crawford olhou ao redor como se quisesse ouvir ou ver mais alguma coisa, depois disse rindo:

– Oh sim! Sentirão a minha falta como se sente a falta do barulho depois que ele se acaba; isto é, sentirão uma grande diferença. Não, não estou lançando a isca; não precisa me elogiar. Se alguém sentir a minha falta, logo se saberá. Aqueles que querem saber de mim, saberão me descobrir. Não sei estar em nenhum lugar desconhecido, nem distante, nem inacessível.

Fanny não achou o que responder e Miss Crawford ficou desapontada; pois que ela esperava ouvir alguma agradável afirmação de seu poder, da boca daquela que supunha bem informada, e seu espírito ficou novamente nublado.

– Por falar nas Misses Owen – disse ela logo depois; – suponha que você viesse a ver uma das Misses Owen instalada em Thorton Lacey: que tal acharia isto? Têm acontecido coisas tão estranhas! Não duvido que elas estejam tentando conseguir tal fim. E têm toda a razão, pois seria uma linda situação. Não me admiro nem as censuro absolutamente. A obrigação de todos é fazer tudo por si. Um filho de Sir Thomas é alguém; e Edmund, além disso, segue a carreira tradicional da família delas. O pai é pastor, o irmão é pastor, e todos eles juntos o são. Por direito ele lhes pertence; e é natural que lhes pertença. Você não fala, Fanny? Miss Price, você não diz nada? Diga, sinceramente, não acha que isto é mais provável do que o contrário?

– Não – disse Fanny com firmeza – não creio absolutamente que seja provável.

– Não crê absolutamente! – exclamou Miss Crawford com alacridade. – Admiro-me! Mas aposto que sabe exatamente – eu sempre imagino que você – que talvez você não acredite que ele algum dia se case.

– Não, não acredito – disse Fanny docemente, esperando não se ter enganado nem na crença nem na confissão desta.

Sua companheira olhou-a fixamente; e recobrando maior ânimo com o rubor que esse seu olhar havia produzido, disse apenas:

– Ele assim está melhor – e mudou de assunto.

 

Com essa conversa a inquietação de Miss Crawford diminuiu muito; e ela pôde voltar para casa num humor que se tivesse sido posto à prova, teria desafiado outra semana com o mesmo grupinho, o mesmo mau tempo; mas como naquela mesma tarde o irmão voltara de Londres com a sua usual alegria, Mary não precisou fazer grande esforço. A firme recusa de Henry em contar o que tinha ido fazer já era um motivo para divertimento; um dia antes ela se irritara, mas agora era uma boa brincadeira; suspeitava apenas que estivesse escondendo algum plano, para lhe dar uma agradável surpresa. E no dia seguinte veio a surpresa. Henry tinha dito que ia só fazer uma visitinha a Lady Bertram para saber como iam passando e que voltaria dentro de dez minutos; no entanto já estava lá há mais de uma hora; e quando a irmã, que o esperava para passearem juntos no jardim, afinal, já muito impaciente, o encontrou no caminho e exclamou:

– Henry, querido, onde esteve todo este tempo?

Ele disse simplesmente que estivera conversando com Lady Bertram e Fanny.

– Conversando com elas há uma hora e meia! – exclamou Mary admirada.

Mas isto foi apenas o começo.

– É, Mary – disse ele tomando-lhe o braço e andando pela área como se não soubesse onde estava: – Não pude sair mais cedo; Fanny estava tão linda! Estou resolvido, Mary. Não tenho mais a mínima dúvida. Isto a espanta? Não: você já deve saber que eu estou decisivamente resolvido a casar com Fanny Price.

A surpresa agora foi completa; pois, apesar do que os modos dele poderiam sugerir, nunca teria entrado na imaginação da irmã a suspeita de que Henry estivesse levando a sério o caso; e ela se mostrou tão realmente espantada que ele foi obrigado a repetir o que tinha dito, mais amplamente e com mais solenidade. Uma vez admitida, a sua determinação não foi mal recebida. Houve até prazer juntamente com a surpresa. Mary estava numa disposição de espírito capaz de alegrar-se por aquela ligação com a família Bertram e não ficou contrariada por seu irmão casar-se num nível social um pouco abaixo do seu.

– Sim, Mary – concluiu Henry. – Fui apanhado direitinho. Você sabe com que intenções eu comecei; mas agora terminou a brincadeira. Meus progressos na afeição dela (posso gabar-me) não são dos menores; mas pela minha parte, estou inteiramente firme.

– Pequena de sorte! – exclamou Mary logo que pôde falar; – que casamento para ela! Henry, meu querido, este tem que ser o meu primeiro sentimento; mas o segundo, que eu exponho com a mesma sinceridade, é que eu aprovo a sua escolha com toda a minha alma e prevejo a sua felicidade tão ardentemente como a desejo. Você terá uma meiga mulherzinha, toda gratidão e devotamento. Exatamente como você merece. Que espantoso casamento para ela! Mrs. Norris está sempre falando da sorte da sobrinha; que não dirá agora? A alegria de toda a família, na verdade! E ela tem na família alguns amigos verdadeiros! Como estes hão de ficar contentes! Mas conte-me tudo! Continue a falar. Quando é que começou a pensar nela seriamente?

Não havia coisa mais impossível do que responder a tal pergunta, embora nada pudesse ser mais agradável do que tal pergunta ter sido feita. “Como o amável flagelo se tinha apoderado dele”, não o poderia dizer; e antes de ter pela terceira vez manifestado o mesmo sentimento, com pequena variação, sua irmã o interrompeu exclamando:

– Ah, querido Henry, foi isto que o levou a Londres! Este era o seu negócio! Você quis consultar o Almirante antes de se decidir.

Isto, porém, ele negou firmemente. Conhecia o tio demasiadamente bem para consultá-lo sobre qualquer projeto de matrimônio. O Almirante odiava o casamento e não o perdoava num rapaz de fortuna independente.

– Quando ele conhecer Fanny – continuou Henry – ficará doido por ela. Ela é exatamente a mulher que poderá acabar com todos os preconceitos de um homem como o Almirante, porque é exatamente a espécie de mulher que ele pensa não existir no mundo. Fanny é exatamente a impossibilidade que ele descreveria, se na verdade meu tio pudesse agora exprimir as próprias idéias com delicadeza de linguagem. Contudo, até que tudo esteja definitivamente acertado – acertado acima de toda e qualquer interferência – ele não saberá de nada. Não, Mary, você está completamente enganada. Ainda não descobriu meu segredo.

– Bem, bem, estou satisfeita. Já sei a quem se refere e não tenho pressa de saber o resto. Fanny Price! Formidável, formidável! Que Mansfield tivesse feito tanto por... que você viesse encontrar seu destino em Mansfield! Mas tem razão, Henry; não poderia ter escolhido melhor. Não existe melhor rapariga no mundo, e você não precisa de fortuna; quanto aos parentes dela, não poderia ser mais bem escolhidos. Os Bertram, não há dúvida, são uma das primeiras famílias desta região. Ela é sobrinha de Sir Thomas Bertram; para a sociedade é o bastante. Mas continue. Diga mais alguma coisa. Quais são os seus planos? Ela já está ciente da própria felicidade?

– Não.

– Que está esperando?

– Por... Por um pouquinho mais de oportunidade. Mary, ela não é como as primas; mas acredito que não pedirei em vão.

– Oh não! Não é possível. Mesmo que você fosse menos agradável – supondo-se que ela já não o ame (o que, porém, não duvido muito) – você estaria seguro. A nobreza e a gratidão do caráter de Fanny fariam com que você a conquistasse imediatamente. Intimamente eu penso que ela não se casaria com você sem amor; isto é, se existe no mundo alguém capaz de não se influenciar pela ambição, creio que é ela; mas peça-lhe que o ame e ela não terá coragem de o recusar.

Logo que ela se acalmou e ficou em silêncio, ele começou a falar; e seguiu-se uma longa conversa, quase tão profundamente interessante para a irmã como para ele próprio, embora ele não tivesse o que relatar senão suas próprias emoções, nada senão os encantos de Fanny. A beleza do rosto e do porte de Fanny, as graças e a bondade de Fanny, era o assunto interminável. Dissertou ardentemente sobre a ternura, a modéstia e a meiguice do caráter dela; aquela meiguice que, na opinião dos homens, forma a parte mais essencial do valor de qualquer mulher, que é, embora, às vezes, imaginada onde não existe, eles nunca acreditam na sua inexistência. Quanto ao temperamento de Fanny, ele tinha motivos para se fiar nele e o elogiar. Viu muitas vezes quando tinha sido posto à prova. Havia alguém na família, exceto Edmund, que não tivesse, de um modo ou outro, continuamente provocado sua paciência e sua tolerância? Sua natureza era evidentemente afetiva. Vê-la com o irmão! Que coisa poderia provar mais deliciosamente que a bondade de seu coração era igual a sua meiguice? Que coisa seria mais animadora para um homem que tinha em vista o seu amor? E a sua inteligência viva e clara, que estava acima de qualquer suspeita; e as maneiras, que eram o reflexo da sua própria modéstia e delicada consciência. E isto não era tudo. Henry Crawford era bastante conscienciosos para não apreciar o valor dos bons princípios numa esposa, apesar de estar tão desacostumado a sérias reflexões que não os pudesse classificar por sua denominação legítima; mas quando ele se referia ao fato de Fanny ter uma tal firmeza e regularidade de procedimento, uma tão elevada noção de honra, uma tal consideração pelo decoro, que qualquer homem poderia confiar inteiramente na sua fé e integridade, manifestava o que lhe era inspirado pelo conhecimento de que ela era religiosa e bem educada.

– Sei que posso confiar inteira e absolutamente nela – disse ele – e isto é o que desejo.

– Quanto mais penso – exclamou a irmã – mais me convenço de que você tem razão; e embora eu nunca pudesse imaginar que Fanny Price fosse a moça capaz de o prender, já agora estou persuadida de que ela é justamente a única capaz de o fazer feliz. A sua maldosa intenção de lhe perturbar a paz transformou-se, realmente, num ótimo resultado. Vocês dois encontrarão a felicidade.

– Foi maldade, muita maldade minha ter aquela intenção contra uma criatura como essa; não a conhecia naquele tempo; e ela não terá razão de lamentar a hora em que aquela idéia me veio à cabeça. Hei de fazê-la muito feliz, Mary; mais feliz do que nunca o foi ou viu ser outra pessoa qualquer. Não a levarei a Northamptonshire. Arrendarei Everingham e alugarei uma propriedade na região; talvez Stanwix Lodge. Arrendarei Everingham por uns sete anos. Basta que o queira, arranjo logo um excelente arrendatário. Podia neste momento mencionar o nome de três pessoas que aceitariam minhas condições e ainda me agradeceriam.

– Ah! – exclamou Mary; – tenciona instalar-se em Northamptonshire! Que bom! Então ficaremos juntos.

Mal disse isso, arrependeu-se e quis desdizer; mas não havia necessidade; o irmão não a via senão como hóspede da Paróquia de Mansfield, e, respondendo, convidou-a amavelmente para vir à sua própria casa e reclamou os seus direitos sobre a companhia dela.

– Você deve ficar mais tempo conosco – disse ele. – Não posso admitir que Mrs. Grant tenha o mesmo direito que Fanny e eu, porque nós seremos dois a disputar a sua companhia. Fanny será uma irmã verdadeira para você!

Mary só teve que agradecer e afirmar as suas promessas; ela estava, porém, agora inteiramente resolvida a não ser hóspede nem do irmão nem da irmã por muitos meses mais.

– Você dividirá seu tempo entre Londres e Northamtonshire?

– Sim.

– Então está bem; e em Londres, naturalmente, terá sua própria casa; não ficará mais com o Almirante. Meu querido Henry, que vantagem para você ver-se livre do Almirante antes de ser contagiado pelas rudes maneiras dele, antes de contrair aquelas tolas opiniões ou se acostumar a sentar-se à mesa das refeições como se isto fosse a melhor coisa da vida! Você não pode avaliar o benefício disso porque a sua afeição por ele o cegou; mas na minha opinião, o casamento pode ser a sua salvação. Vê-lo imitar o Almirante, em palavras ou ações, em aparência ou gestos, ter-me-ia partido o coração.

– Bem, bem, neste ponto não estamos inteiramente de acordo. O Almirante tem seus defeitos, mas é um homem muito bom, e tem sido mais que um pai para mim. Poucos pais teriam me dado a metade da liberdade que eu tenho. Você não deve ter preconceitos contra ele. Quero que os dois se amem.

Mary absteve-se de dizer o que pensava, que não poderiam existir duas pessoas cujos caracteres e maneiras fossem mais discordantes; com o tempo ele haveria de descobrir; mas não pôde deixar de jogar esta indireta ao Almirante:

– Henry, eu dou tanto valor a Fanny Price que, se pensasse que a futura Mrs. Crawford tivesse a metade das razões que fizeram a minha pobre e maltratada tia abominar o próprio nome, impediria se o pudesse este casamento; mas conheço-o bem: sei que a esposa que você amar será a mulher mais feliz do mundo e que mesmo se depois não a amasse mais, ela ainda encontraria no marido a generosidade e a boa educação de um fidalgo.

A impossibilidade de não fazer tudo no mundo para tornar Fanny Price feliz, ou deixar de amar Fanny Price, foi, naturalmente, a base da eloqüente resposta dele.

– Se você a tivesse visto esta manhã, Mary – continuou ele – atendendo com a mais inefável doçura e paciência todas as exigências da estupidez da tia, trabalhando com ela e para ela, o rosto lindamente rosado enquanto se curvava sobre o trabalho; voltando depois ao seu lugar para terminar uma carta que começara a escrever antes, a mando daquela estúpida mulher, tudo isto com uma ternura sem pretensões, como se fosse a coisa mais natural não ter um único momento à sua própria disposição; os cabelos bem penteados como sempre, um pequeno cacho a cair-lhe da testa quando se curvou para escrever, o qual ela de vez em quando puxava para trás; e, no meio de tudo isto, encontrando ainda meios de me falar ou ouvir, como se estivesse gostando de ouvir o que eu dizia! Se a tivesse visto assim, Mary, você não acreditaria na possibilidade de jamais acabar o poder dela sobre o meu coração.

– Henry, meu muito querido – exclamou Mary, sorrindo-lhe – como fico contente por vê-lo tão apaixonado! Dá-me um prazer enorme! Mas o que dirão Mrs. Rushworth e Julia?

– Não me preocupo com o que elas digam ou pensem. Elas agora verão que espécie de mulher pode prender-me, – pode prender um homem de senso. Desejo que a descoberta lhes seja útil. Agora verão a prima tratada como devia ser e espero que fiquem bastante envergonhadas das suas próprias maldades e abominável indiferença. Ficarão furiosas – acrescentou ele num tom mais frio depois de um momento de silêncio; – Mrs. Rushworth vai ficar indignada. Será um amargo momento para ela; isto é, como uma pílula amarga, dará dois maus momentos, e então será engolida e esquecida; pois não sou tão pretensioso que suponha os sentimentos dela mais duráveis do que os de qualquer outra mulher, embora eu tenha sido o objeto desses sentimentos. Sim, Mary, minha Fanny verá a diferença; uma diferença diária, a toda a hora, no procedimento de todos aqueles que se aproximarem dela; e saber que eu sou a causa disso, é o que completa a minha felicidade; que eu serei a pessoa que lhe dará a importância a que ela tem tanto direito. No momento ela depende dos outros, está abandonada, sem amigos, desprezada, esquecida.

– Não, Henry, não por todos; não é esquecida por todos; não é sem amigos ou esquecida. Seu primo Edmund nunca a esquece.

– Edmund! É verdade, creio que ele, geralmente falando, é bom para ela e assim o é Sir Thomas, à sua maneira; na maneira de um tio rico, superior e arbitrário. Que comparação pode o que Sir Thomas e Edmund juntos poderiam fazer ou fazem pela felicidade dela, pelo seu conforto, honra, dignidade no mundo, com o que eu hei de fazer?

 

No dia seguinte de manhã muito cedo Henry Crawford voltou a Mansfield Park. As duas senhoras se achavam na sala de almoço e, para sua felicidade, Lady Bertram ia se retirando no momento em que ele entrou. Já tinha chegado quase à porta e, não se querendo dar a tanto incômodo sem proveito, prosseguiu em seu intento, depois de uma polida recepção e uma pequena frase de agradecimento pela visita e um “Avise Sir Thomas” a uma empregada.

Henry, radiante por vê-la sair, cumprimentou-a e, sem perder tempo, virou-se imediatamente para Fanny, exibindo algumas cartas e dizendo muito animado:

– Não posso deixar de ficar muito grato a quem me dá uma tal oportunidade de a ver sozinha: tenho desejado isso mais do que pode imaginar. Sabendo como eu sei como são os seus sentimentos de irmã, não poderia admitir que qualquer outra pessoa compartilhasse no primeiro conhecimento das notícias que lhe trago. Está tudo feito. Seu irmão já é tenente. Tenho a infinita satisfação de lhe dar os parabéns pela promoção de seu irmão. Aqui estão as cartas que a anunciam, recebidas neste momento. Talvez goste de as ler.

Fanny não podia falar, mas ele não queria que ela falasse. Era bastante ver a expressão de seus olhos, a mudança em seu semblante, o progresso das emoções, as dúvidas, confusão e felicidade. Tomou as cartas que ele lhe deu. A primeira era do Almirante, para informar ao sobrinho, em poucas palavras, que fora bem sucedido no objeto em que se havia empenhado, a promoção do jovem Price; incluía mais duas cartas, uma do Secretário do Primeiro Lorde a um amigo, a quem o Almirante encarregara de tratar do negócio; a outra, daquele amigo para ele próprio pela qual se via que Sua Excelência tivera muito prazer em atender à recomendação de Sir Charles; que Sir Charles estava muito contente por ter tal oportunidade de provar sua estima pelo Almirante Crawford e que a circunstância de ter sido concedida a Mr. William Price a comissão de Segundo Tenente da corveta de S. M. “Thrush”, causara contentamento geral num grande círculo de pessoas importantes.

Enquanto as mãos dela tremiam ao segurar estas cartas, seus olhos correndo de uma para outra, o coração palpitante de emoção, Crawford continuou com sincera impetuosidade a exprimir seu interesse pelo acontecimento:

– Não falo da minha própria felicidade – disse ele – grande que seja, pois só penso na sua. Comparado consigo, quem tem o direito de ser feliz? Eu quase chego a me odiar por ter tido conhecimento de uma coisa que Miss Fanny deveria ser no mundo a primeira a saber. Não perdi, porém, um minuto. O correio chegou tarde, hoje, mas desde a hora em que chegou não houve perda de um único instante. Não tento descrever a impaciência, a ansiedade, o interesse que tive pelo assunto; como fiquei aborrecido, como cruelmente me desapontou não o ter terminado enquanto estava em Londres! Aguardei dia após dia, na esperança de o ver concluído, pois nada menos caro para mim do que esta questão, poderia me deter a metade desse tempo afastado de Mansfield. Contudo, apesar de meu tio se ter interessado pelos meus desejos com todo o ardor e se ter movido imediatamente, havia dificuldades provenientes da ausência de um amigo e as ocupações de outro, e finalmente não pude mais suportar a idéia de ficar lá até o fim. Sabendo em que boas mãos deixava a causa, voltei na segunda feira, esperando que não se passariam muitos correios antes de eu receber estas cartas. Meu tio, que é o melhor homem do mundo, interessou-se, como eu tinha certeza, depois de ver seu irmão. Gostou muito dele. Ontem não me permiti lhe contar o quanto gostou nem repetir a metade do que o Almirante disse em favor dele. Deixei para dizer depois que os elogios dele ficassem provados como os de um amigo, como hoje está provado. Agora posso declarar que eu mesmo não poderia esperar que William Price provocasse maior interesse e que fosse alvo de tão calorosos votos e tão elevadas recomendações como os que meu tio, voluntariamente, lhe fez depois do serão que passaram juntos.

– Então foi o senhor que fez tudo isto? – exclamou Fanny. – Santo Deus! Como foi bondoso! Foi o senhor realmente – foi por seu desejo? Desculpe, mas estou perturbada. E o Almirante Crawford pediu? Como foi isso? Estou estupefata.

Henry teve a maior felicidade em explicar, começando pelo princípio e mencionando particularmente o que ele havia feito. Sua última viagem a Londres não tinha tido outro objetivo senão o de apresentar o irmão dela em Hill Street e insistir com o Almirante para se interessar como pudesse, a fim de lhe conseguir a promoção. Esse havia sido o seu negócio. Não o tinha dito à ninguém; não tinha deixado escapar uma única palavra, nem mesmo a Mary; enquanto não tivesse certeza do resultado, não poderia suportar que participassem de seus sentimentos; e ele falava com tal entusiasmo de sua solicitude e usava de tão vigorosas expressões, era tão abundante no “profundo interesse”, nos “duplos motivos”, nos “desejos maiores do que é possível dizer”, que Fanny não poderia ficar insensível às intenções dele, se lhe fosse possível correspondê-las; mas seu coração estava tão cheio e seus sentidos ainda tão perturbados, que não podia ouvir, nem o que lhe dizia de William, repetindo apenas quando ele fazia uma pausa:

– Que bondade! Como foi bom! Oh, Mr. Crawford, nós lhe ficamos infinitamente gratos! Querido, querido William! – pulou da cadeira e dirigiu-se apressadamente para a porta, exclamando: – Vou ver titio. Titio deve saber disso imediatamente.

Mas Henry não concordava com isso. A oportunidade era demasiadamente preciosa e sua impaciência grande demais. Interrompeu-lhe o caminho. – Ela não devia ir, devia conceder-lhe cinco minutos mais; tomou-lhe a mão reconduzindo-a ao seu lugar e estava no meio da sua nova explicação, sem que ela suspeitasse por que a tinha detido. Quando, porém, compreendeu e viu que ele esperava que ela acreditasse haver inspirado ao seu coração sentimentos que antes não conhecera e que tudo o que ele havia feito por William devia ser levado por conta do seu excessivo e único amor pela irmã, sentiu-se muito aflita e não pôde falar durante muitos minutos. Considerou tudo aquilo como uma fantasia, como uma mera frivolidade e galanteria, calculada apenas para a iludir no momento; não pôde senão sentir que a estava tratando com leviandade e desprezo, de uma maneira que ela não merecia; mas isso era bem próprio de Henry Crawford e inteiramente de acordo com o que ela havia visto antes; não se permitiu demonstrar nem a metade do desgosto que sentia, porque ele lhe havia concedido um favor, que nenhuma falta de delicadeza poderia fazê-la esquecer. Enquanto seu coração ainda estava transbordando de alegria e gratidão por causa de William, não poderia rigorosamente ressentir-se de qualquer injúria feita a ela própria; e depois de por duas vezes retirar sua mão das dele, depois de tentar em vão afastar-se, levantou-se e apenas disse muito agitada:

– Não, Mr. Crawford, por favor, não continue! Peço-lhe que não continue. Esta espécie de conversa me é muito desagradável. Tenho que sair. Não a posso suportar.

Ele porém ainda continuava a falar, descrevendo seu afeto, pedindo que o correspondesse e, finalmente, com expressões tão claras que não poderiam ser tomadas em outro sentido, até mesmo por ela, pediu que o aceitasse – que aceitasse sua mão, sua fortuna e tudo que possuía. Assim tinha sido; ele o tinha dito. O espanto e a confusão de Fanny aumentaram; e embora ainda não soubesse se o levaria a sério, dificilmente se podia manter em pé. Ele insistia por uma resposta.

– Não, não, não! – exclamou, escondendo o rosto. – Tudo isto é loucura. Não me aflija. Não posso ouvir mais. Sua bondade para com William torna-me mais obrigada a si do que eu poderia exprimir por palavras; mas não quero, não posso suportar, não devo ouvir uma tal... Não, não pense em mim. Mas o senhor não está pensando em mim. Eu sei que tudo isto não quer dizer nada.

Conseguira escapar-se dele e naquele momento ouviu-se a voz de Sir Thomas falando com um empregado, de caminho para a sala onde estavam. Não havia tempo para novas juras ou súplicas; no entanto, separar-se dele no momento em que a sua modéstia, apenas, parecia impedir a felicidade que ele procurava, era cruel. Fanny correu por uma porta oposta à em que o tio deveria entrar e já estava andando de um lado para outro na sua sala de Leste, na maior confusão de sentimentos contraditórios, antes de Sir Thomas acabar os cumprimentos e as desculpas, ou ter começado a tomar conhecimento da alegre notícia que o seu visitante tinha a lhe comunicar.

Ela sentia, pensava e tremia por tudo; agitada, feliz, miserável, infinitamente grata, absolutamente zangada. Tudo aquilo era inacreditável! Ele era indesculpável, incompreensível! Mas tal era o costume dele, não podia fazer nada sem por no meio alguma maldade. Primeiro fez com que ela se sentisse a criatura mais feliz do mundo e depois insultou-a – não sabia o que dizer – como classificar ou em que sentido tomar aquilo. Não acreditava que estivesse falando sério e contudo, que desculpa poderia ter o uso de tais palavras e oferecimentos, se é que isto não significava um gracejo?

No entanto William era tenente. Disso não tinha dúvida. Haveria de pensar nisso para sempre e esquecer o resto. Mr. Crawford certamente não a importunaria de novo; devia ter visto que ela não o desejava; e, neste caso, como ela haveria de lhe agradecer, de o estimar pela amizade que demonstrara para com William!

Não se arriscou a sair da sala de Leste senão depois de estar certa que Mr. Crawford havia ido embora; depois, porém, que se convenceu que ele saíra, ficou aflita para descer e falar com o tio, para gozar de toda a felicidade de sua mútua alegria, bem como do benefício das informações ou conjecturas dele quanto ao que seria de agora em diante o destino de William. Sir Thomas estava tão contente quanto ela esperava e muito bondoso e comunicativo; e Fanny teve com ele uma palestra tão agradável a respeito de William, que chegou a esquecer que lhe havia acontecido qualquer coisa aborrecida, até que quase no fim da conversa, ficou sabendo que Mr. Crawford estava convidado a voltar a jantar naquele mesmo dia. Não esperava por esta notícia, pois embora ele talvez não se referisse ao que se tinha passado, era-lhe doloroso vê-lo logo em seguida.

Procurou conformar-se; empenhou o maior esforço, quando se aproximou a hora do jantar, para se sentir e parecer como de costume; mas foi quase impossível não demonstrar o maior acanhamento e desconforto quando o convidado entrou na sala. Nunca teria suposto que justamente no dia em que soubera da promoção de William ela teria que passar por tão dolorosas sensações.

Mr. Crawford não só estava na sala – e imediatamente se pôs ao lado dela. Tinha um bilhete da irmã para lhe entregar. Fanny não o podia encarar, e na voz dele não havia sinal da loucura daquela manhã. Abriu o bilhete imediatamente, satisfeita por ter qualquer coisa para fazer, e feliz, enquanto o lia, de sentir-se um pouco abrigada pelo papel das agitações da tia Norris, que também jantava lá naquele dia.

 

“Querida Fanny – pois que agora a posso sempre chamar assim, para infinito alívio de uma língua que esteve tropeçando no ‘Miss Price’ durante pelo menos as últimas seis semanas – não poderia deixar de mandar por meu irmão algumas linhas de congratulações e manifestar o meu mais jovial consentimento e aprovação. Prossiga, minha querida Fanny, sem receio; não haverá dificuldades; quero crer que a certeza do meu consentimento vale alguma coisa; assim você lhe pode sorrir, com os seus mais doces sorrisos, esta tarde, e devolvê-lo para mim ainda mais feliz do que ele saiu daqui .

               Sua afetuosamente, M. C.”

 

Não seriam essas as expressões que teriam feito bem a Fanny; porque, não obstante as ter lido com demasiada pressa e confusão para compreender claramente a intenção de Miss Crawford, era evidente que ela pretendia lhe dar os parabéns pelo afeto do irmão e parecia mesmo acreditar que esse afeto fosse verdadeiro. Não sabia o que fazer nem o que pensar. Era uma desgraça pensar que seria sério; em todos os sentidos havia perplexidade e agitação. Afligia-se toda vez que Mr. Crawford lhe falava – e ele lhe falava freqüentemente; havia uma qualquer coisa na voz dele e na maneira como se dirigia a ela, muito diferente de como quando falava com os outros. Seu conforto durante o jantar daquele dia foi inteiramente destruído; não pôde comer quase nada; e quando Sir Thomas, muito bem humorado, observou que a alegria lhe tinha tirado o apetite, ela quase morreu de vergonha, pelo terror da interpretação de Mr. Crawford; pois, conquanto não se arriscasse por coisa nenhuma a virar os olhos para o lado direito, onde Henry estava sentado, sentiu que os olhos dele imediatamente se viraram para ela.

Ficou mais calada do que nunca. Não tomava parte na conversa, nem mesmo quando se tratava de William, pois que a promoção dele vinha também do lado direito e esta ligação lhe era penosa.

Achou que Lady Bertram permanecia à mesa mais tempo do que de costume e começou a ficar impaciente por sair de uma vez; finalmente encontraram-se no salão, onde ela pôde entregar-se aos seus próprio devaneios, enquanto as tias falavam à sua moda sobre a promoção de William.

Mrs. Norris parecia mais encantada com a economia que Sir Thomas faria do que com qualquer outra coisa. Agora William já se podia manter, o que faria uma grande diferença para o tio, pois ninguém sabia quanto ele lhe custava; e, na verdade, haveria também alguma diferença para ela. Estava muito contente de ter dado a William o que dera, quando ele partiu, muito contente realmente, por ter podido, sem inconveniência material, justamente naquela ocasião, lhe dar uma coisa de certo valor; isto é, para ela, com seus escassos meios, pois que agora tudo seria útil para preparar a cabine do rapaz. Sabia que ele teria de fazer alguma despesa, que teria de comprar muitas coisas, não obstante os pais o poderem auxiliar a comprar tudo muito barato; estava, porém, satisfeita por ter contribuído com aquele pequeno auxílio.

– Estou contente por você ter lhe dado um bom presente – disse Lady Bertram, com a maior calma – pois eu lhe dei apenas 10 libras.

– Verdade! – exclamou Mrs. Norris ficando muito vermelha. – Palavra de honra, ele deve ter ido com os bolsos recheados, principalmente não tendo despesa alguma na viagem.

– Sir Thomas me disse que 10 libras eram suficientes.

Não estando disposta a discutir se eram ou não suficientes, Mrs. Norris começou a levar a questão para outro ponto.

– É incrível – disse ela – como essa gente moça custa aos amigos, sem contar o que se gasta na educação deles e em encaminhá-los na vida! A eles pouco importa a procedência do dinheiro, ou o que custam aos pais, tios e tias no decorrer de um ano. Veja por exemplo os filhos de minha irmã Price; junte-os todos, e ouso dizer que ninguém creditaria o quanto custam a Sir Thomas a cada ano, sem falar no que eu faço por eles.

– É verdade, minha irmã, é como você diz. Mas pobres coitados! Não têm culpa; e você sabe que isto não faz grande diferença para Sir Thomas. Fanny: espero que William não se esqueça do meu xale se for para a Índia; aliás, pretendo lhe fazer outras encomendas de coisas que valham à pena. Desejo que ele possa ir para a Índia; só assim terei o meu xale. Creio que até encomendarei dois xales, Fanny.

Fanny, neste ínterim, falando somente quando não o podia evitar, estava tentando compreender quais eram as intenções de Mr. e Miss Crawford. Tudo no mundo, a não ser as palavras e as maneiras dele, dava a entender que não estavam agindo seriamente. Tudo que fosse natural, provável, razoável, era contra; todos os hábitos e maneiras de pensar deles e todos os seus próprios desmerecimentos. Como poderia ela ter inspirado séria afeição a um homem que já havia visto tantas, fora admirado por tantas e namorado tantas moças, infinitamente superiores a ela; que parecia tão pouco afeito a sérias impressões, mesmo se tratando de procurar um divertimento; que pensava tão levianamente, tão negligentemente, tão insensivelmente em todos os sentidos; que era tudo para todo o mundo e parecia não encontrar ninguém essencial para ele? E além do mais, como se poderia supor que a irmã dele, com todas as suas avançadas e mundanas noções sobre o matrimônio, estivesse protegendo uma coisa tão séria como aquela? Nada em ambos poderia ser menos natural. Fanny envergonhava-se de suas próprias dúvidas. Qualquer coisa seria possível menos um afeto sério, ou uma séria aprovação da parte dela. Estava inteiramente convencida disso quando Sir Thomas e Mr. Crawford se reuniram às senhoras. A dificuldade era manter absolutamente a convicção depois de Mr. Crawford estar presente; porque uma ou duas vezes ele lhe lançou um olhar que ela não soube como interpretar; se fosse qualquer outro homem, ao menos, teria dito que aqueles olhares tinham uma significação muito séria, muito marcada. Mas tratando-se dele, ainda tentou acreditar que aquilo não era senão o que ele havia freqüentemente manifestado por suas primas e outras cinqüenta mulheres.

Percebeu que ele lhe queria falar sem que os outros ouvissem. Imaginou que estava tentando isso desde que chegara, quando Sir Thomas saía da sala ou quando estava empenhado em alguma conversação com Mrs. Norris; e cautelosamente lhe recusava toda oportunidade.

Afinal – para o nervosismo de Fanny parecera um afinal, embora não muito tarde – ele começou a falar em partir; mas o alívio causado por aquela notícia foi estragado em seguida, visto que ele se virou para ela dizendo:

– Não tem nada para mandar a Mary? Não vai responder ao bilhete dela? Ficará desapontada se não receber resposta sua. Por favor, escreva, nem que seja apenas uma linha.

– Oh, sim! Certamente – exclamou Fanny, levantando-se depressa, a pressa do embaraço e da vontade de afastar-se. – Escreverei imediatamente.

Foi pois para a mesa onde costumava escrever a pedido da tia e preparou o material, sem saber absolutamente o que iria dizer. Tinha lido o bilhete de Miss Crawford apenas uma vez e responder a uma coisa que tão mal compreendera era quase impossível. Inteiramente desabituada a esta espécie de correspondência, se tivesse havido tempo para escrúpulos e receios quanto ao estilo, ela os teria tido em abundância; qualquer coisa, porém, tinha que ser escrita, e com um único pensamento, que era o de não parecer intencional em nada do que escrevesse, assim escreveu, com grande tremor tanto do espírito como da mão:

 

“Fico-lhe muito grata, minha prezada Miss Crawford, pelas suas amáveis congratulações, até onde se referem ao meu querido William. O resto de seu bilhete, eu sei, não significa nada; pois me considero tão incapaz para qualquer coisa dessa sorte, que espero me desculpará por lhe pedir que não insista no assunto. Conheço muito bem Mr. Crawford para não compreender as intenções dele; se ele me compreendesse bem também, acredito que procederia de modo diferente. Nem sei o que escrevo, mas seria um grande favor não mencionar o caso novamente. Com os agradecimentos pela honra de seu bilhete, sou, etc., etc.”

 

O final estava quase ilegível pelo aumento de temor, pois viu que Mr. Crawford, sob pretexto de receber a carta, vinha em direção a ela.

– Não pense que eu quero apressá-la – disse ele abaixando a voz, ao perceber a espantosa rapidez com que ela escrevia; – não pode pensar que eu tenha uma tal intenção. Peço que não se apresse.

– Oh, não! Muito obrigada; já escrevi, acabei de escrever; num momento estará pronta; fico-lhe muito obrigada se me fizer o favor de entregar isto a Miss Crawford.

A carta estava entregue e devia ser levada; e como Fanny desviava propositalmente o olhar quando voltou para junto da lareira onde os outros se achavam, ele não teve outra coisa a fazer senão sair na maior das aflições.

Fanny refletiu em que nunca havia tido um dia de maior agitação, tanto de tristezas como de alegrias; felizmente, porém, as alegrias não eram de sorte a morrer com o dia; pois cada dia que viesse havia de fortalecer o conhecimento dos progressos de William, enquanto que as tristezas, ela tinha esperança de que não voltariam mais. Não duvidava de que sua carta parecesse extremamente mal escrita, que as expressões não seriam dignas nem de uma criança, pois que, com a sua perturbação, não pudera cuidar da composição; ao menos, porém, havia de persuadir a ambos que ela não tinha ficado nem impressionada nem agradecida pelas atenções de Mr. Crawford.

 

Quando Fanny acordou no dia seguinte, ainda não tinha podido esquecer Mr. Crawford; mas lembrando-se dos dizeres de sua carta, não estava menos convencida do efeito que teriam, do que o estava na noite precedente. Se Mr. Crawford ao menos fosse embora! Era o que ela mais ardentemente desejava; que fosse e levasse a irmã consigo, como ia antes fazer e como fora o seu propósito ao voltar a Mansfield. E por que não o tinha já feito, não podia compreender, pois Miss Crawford certamente não queria outra coisa. No decorrer da visita da véspera, Fanny teve esperança de o ouvir mencionar o dia da partida; ele, porém, apenas se referiu à viagem como uma coisa ainda remota.

Convencida como estava do resultado que teria a sua carta, não pôde deixar de se espantar ao ver Mr. Crawford dirigir-se novamente para ali, numa hora tão matutina quanto a do dia anterior. Sua vinda talvez não tivesse nada a ver com ela, mas devia evitar de o ver, se possível; e como ia subindo para seu quarto, resolveu permanecer por lá enquanto durasse a visita, a menos que a chamassem, o que era pouco provável, visto que Mrs. Norris ainda se achava em casa.

Sentou-se durante muito tempo numa grande agitação, prestando atenção e tremendo com o receio de ser chamada a qualquer momento; mas como não ouviu aproximação de passos, gradualmente se foi acalmando, pôde começar a trabalhar e esperou que Mr. Crawford viesse e saísse sem que ela fosse obrigada a tomar conhecimento de nada.

Quase meia hora havia passado e Fanny já estava muito mais sossegada, quando de repente ouviu o ruído de alguém que se aproximava; um passo pesado, um passo desconhecido naquela parte da casa; era o andar do tio; conhecia-o tão bem quanto a sua voz; tinha tantas vezes tremido por causa dele que novamente começou a tremer, só com a idéia de que ele vinha para falar com ela, fosse qual fosse o assunto. Foi realmente Sir Thomas quem abriu a porta e perguntou se ela se achava ali e se poderia entrar. O terror que lhe causava as suas ocasionais visitas de antigamente àquela sala, parecia de todo renovado e Fanny sentiu como se o tio fosse novamente examiná-la em francês ou inglês.

Foi, contudo, cheia de atenções que lhe ofereceu uma cadeira e procurou demonstrar sentir-se honrada; e na sua perturbação esqueceu inteiramente as deficiências do seu compartimento até que ele, estacando-se na entrada, disse com surpresa:

– Por que não acendeu a lareira hoje?

Fora via-se o chão coberto de neve; Fanny estava sentada embrulhada num xale. Hesitou.

– Não estou com frio, titio; nunca fico aqui muito tempo nesta época do ano.

– Mas em geral, você costuma ter o fogão aceso, não?

– Não, senhor.

– Como é isso então? Deve haver algum engano. Pensei que você usasse esta sala para o seu perfeito conforto. No seu quarto de dormir, eu sei que não pode haver uma lareira. Mas aqui, deve ter havido algum mal entendido que precisa ser corrigido. Não é nada bom para você ficar, nem que seja meia hora por dia, num lugar onde não há fogo. Você não é forte; ao contrário, é sujeita a resfriados. Aposto que sua tia não tem conhecimento disso.

Fanny teria preferido ficar calada; mas já que era obrigada a responder, não se pôde abster, fazendo justiça à tia de quem gostava mais, de dizer qualquer coisa na qual as palavras “minha tia Norris” foram percebidas.

– Compreendo – disse o tio, recordando-se e não querendo ouvir mais: – Compreendo. Sua tia Norris sempre teve essa mania de achar que as crianças devem ser educadas sem condescendências desnecessárias; mas para tudo deve haver limites. Ela mesma tem muita saúde, o que, naturalmente, influencia as suas opiniões sobre as necessidades dos outros. E por outro lado, também, posso compreender perfeitamente. Sei quais foram sempre os sentimentos dela. O princípio em si foi bom, mas acredito que tenha sido levado muito acima dos limites no seu caso. Já percebi que tem havido às vezes, em alguns pontos, uma distinção injusta; contudo, conheço-a muito bem, Fanny, para acreditar que guarde ressentimento por causa disso. A sua sensibilidade a impedirá de receber as coisas apenas pela metade e julgar parcialmente pelos acontecimentos. Olhará para todo o passado, considerará o tempo, as pessoas, as probabilidades e sentirá que não podiam ser senão seus amigos aqueles que a estavam educando e preparando para a condição medíocre que parecia ser seu destino. No entanto, embora a cautela deles venha a ser eventualmente desnecessária, foi com boa intenção que a tomaram; e você pode ter certeza, que toda opulência que venha a ter será apreciada em dobro, por causa das pequenas privações e restrições que lhe tenham sido impostas. Estou certo de que você não prejudicará o juízo que faço de sua pessoa deixando algum dia de tratar sua tia Norris com o respeito e a atenção que lhe é devida. Bem, já falamos demais sobre isto. Sente-se, minha querida. Preciso lhe falar por alguns minutos mas não a deterei por muito tempo.

Fanny obedeceu, os olhos baixos e a cor lhe subindo ao rosto. Depois de um momento de silêncio, Sir Thomas, tentando conter um sorriso, continuou.

– Não desconhece, talvez, minha filha, que eu tenha tido uma visita esta manhã. Não estava há muito tempo em meu gabinete, depois do almoço, quando Mr. Crawford foi introduzido lá. O motivo da visita você provavelmente adivinha.

Fanny corava cada vez mais; e o tio, percebendo que ela estava embaraçada a um ponto que a tornava inteiramente incapaz de falar ou levantar os olhos, desviou a vista e sem outra pausa, prosseguiu na justificação da visita de Mr. Crawford.

Mr. Crawford tinha vindo com o propósito de se declarar apaixonado por Fanny, fazer-lhe uma proposta definitiva e solicitar a autorização do tio, que pensava estar no lugar dos pais dela; e tinha feito tudo tão bem, tão francamente, tão dignamente, que Sir Thomas, achando, além do mais, suas próprias respostas e suas próprias observações terem sido muito a propósito, e não percebendo o que se passava pelo espírito da sobrinha, imaginou que com tais detalhes estivesse satisfazendo mais a ela do que a si mesmo. Falou, portanto, por muito tempo sem que Fanny se atrevesse a interrompê-lo. Não chegava nem a desejar fazer isto. Seu espírito estava mergulhado numa grande confusão. Tinha mudado de lugar; e com o olhar intencionalmente fixo em uma das janelas, ouvia o tio na maior perturbação e desânimo. Por um momento ele parou de falar e ela mal o percebera; afinal Sir Thomas se levantou da cadeira e disse:

– E agora, Fanny, que cumpri uma parte da minha missão e expus todas as coisas com clareza e satisfação, devo executar o resto pedindo que você me acompanhe até embaixo, onde, embora não possa presumir que a minha tenha sido indesejável, devo admitir que encontrará uma outra a quem gostará ainda mais de ouvir. Mr. Crawford, como você talvez tenha adivinhado, ainda está aqui em casa. Ficou no meu gabinete e espera vê-la lá.

Ao proferir tais palavras, houve um olhar, um estremecimento, uma exclamação, que deixaram Sir Thomas admirado; mas qual não foi o seu espanto ao ouvi-la exclamar:

– Oh! Não senhor, não posso, na verdade não posso vê-lo. Mr. Crawford devia saber – ele devia saber isto; disse-lhe o bastante ontem para o convencer; falou-me sobre o assunto, e eu lhe disse francamente que isso me era muito desagradável e inteiramente fora de meu alcance retribuir o seu bom juízo.

– Não percebo o que quer dizer – exclamou Sir Thomas sentando-se de novo. – Fora de seu alcance retribuir o seu bom juízo? Que significa isto? Sei que ele falou com você ontem e (assim o compreendi) recebeu tanto encorajamento para prosseguir quanto uma moça ajuizada poderia permitir-se a dar. Fiquei muito contente com o que soube sobre o seu comportamento na ocasião; demonstra uma discrição muito louvável. Mas, já que ele se declarou tão digna e honradamente – quais são os seus escrúpulos agora?

– O senhor está enganado – exclamou Fanny, forçada pela ansiedade do momento até a contradizer o tio; – o senhor está completamente enganado. Como poderia Mr. Crawford dizer tal coisa? Não lhe dei nenhum encorajamento ontem. Ao contrário, disse-lhe, – não me posso recordar exatamente as minhas palavras, – mas tenho certeza de que lhe disse que não o queria ouvir, que isto era muito desagradável para mim em todos os sentidos, e lhe pedi para nunca mais me falar daquela maneira. Tenho certeza de que disse tudo isto e mais alguma coisa; e teria dito ainda mais, se estivesse certa de que ele estava falando a sério; porém não quis, não podia atribuir às suas palavras outra intenção que talvez não tivessem. Pensei que com ele tudo daria em nada.

Não podia continuar a falar. Estava quase sem fôlego.

– Devo compreender, então – disse Sir Thomas depois de um momento de reflexão – que você recusa Mr. Crawford?

– Sim.

– Recusa-o?

– Sim.

– Recusa Mr. Crawford! Sob que pretexto? Por qual motivo?

– Eu... Eu não posso gostar dele, titio, não posso gostar suficientemente para casar.

– Isto é muito estranho! – disse Sir Thomas num tom de tranqüilo descontentamento. – Deve haver qualquer coisa nisso que minha inteligência não alcança. Aí temos um rapaz desejando lhe fazer a corte, com tudo para recomendar; não apenas situação na vida, e caráter, mas ainda com um temperamento excelente, fora do comum, com maneiras e conversação que agradam a todos. E depois, não é um conhecido de ontem, já o conhece faz algum tempo. A irmã, além do mais, é sua amiga íntima e ele fez o que fez por seu irmão, o que eu supunha ser o suficiente para recomendá-lo, caso não houvesse outro motivo. Com o meu interesse não sei quando se poderia conseguir a promoção de William. No entanto ele já a conseguiu.

– É – balbuciou Fanny, baixando os olhos, cheia de vergonha; e sentia-se quase envergonhada de si mesma, depois do quadro que o tio havia pintado, por ela não gostar de Mr. Crawford.

– Você deve ter percebido – continuou Sir Thomas – deve ter percebido há algum tempo, uma particularidade no procedimento de Mr. Crawford a seu respeito. Não pode estar surpreendida. Deve ter observado as atenções dele; e conquanto as tenha sempre recebido muito dignamente (não tenho nada a censurar neste sentido), nunca percebi que lhe fossem desagradáveis. Estou meio inclinado a pensar, Fanny, que você não conhece bem os seus próprios sentimentos.

– Oh, sem senhor! Na verdade conheço. As atenções dele foram sempre – o que eu não gostava.

Sir Thomas olhou para ela profundamente admirado.

– Não entendo mais nada – disse ele. – Isto requer uma explicação. Jovem como você é e não tendo visto quase ninguém, é quase impossível que suas afeições...

Parou e olhou atentamente para a moça. Viu seus lábios formarem um “não”, embora o som não fosse articulado, mas as faces estavam escarlates. Aquilo, porém, numa moça tão modesta podia ser muito compatível com a inocência; aparentando, pois, ter ficado satisfeito, acrescentou logo:

– Não, não, eu sei que isto não é o caso absolutamente; é inteiramente impossível. Bem, não se fala mais no assunto.

E por alguns minutos ficou calado. Estava mergulhado em profunda meditação. Sua sobrinha, também, meditava profundamente, procurando preparar-se para novas perguntas. Preferia morrer a ter que dizer a verdade; e com um pouco de reflexão sentiu que se ficasse firme não chegaria a trair o seu segredo.

– Independentemente que a escolha de Mr. Crawford parecia justificar – disse Sir Thomas recomeçando com muita dignidade – o desejo dele de casar-se cedo eleva-o muito no meu conceito. Sou partidário dos casamentos cedo, desde que haja meios proporcionais e acho que todo rapaz, com renda suficiente, deve estabelecer-se logo que tenha oportunidade depois dos vinte e quatro anos. Sendo esta a minha opinião, para mim é um desgosto pensar quão pouco provável é o meu filho mais velho, seu primo, Mr. Bertram, casar-se cedo; presentemente, tanto quanto eu posso julgar, o matrimônio não faz parte dos planos e cogitações dele. Desejaria que se estabelecesse. – Neste ponto olhou para Fanny. – Edmund, pelo seu temperamento e hábitos, é mais provável que se case antes do que o irmão. Ele, na verdade, se não me engano, já encontrou a moça a quem poderia amar, enquanto que meu filho mais velho ainda nem pensou nisto. Estarei certo? Você concorda comigo, minha querida?

– Sim, senhor.

A resposta foi branda mas proferida calmamente e Sir Thomas ficou descansado a respeito dos filhos. Mas esse fato não auxiliou a sobrinha; à medida que a irredutibilidade dela se confirmava, o desgosto dele aumentava; levantando-se e andando de um lado pára outro da sala, com a testa franzida, como Fanny imaginava, embora não ousasse levantar os olhos, ele logo depois disse com a voz autoritária:

– Minha filha, você tem alguma razão contra o caráter de Mr. Crawford?

– Não senhor.

Teve vontade de acrescentar, “Mas tenho sim, contra os princípios”; mas desanimou ante a perspectiva de discussão, de explicação e talvez do fracasso em convencê-lo. A má opinião que fazia dele baseava-se principalmente em observações que fizera através das primas, mas não o ousava mencionar. Maria e Julia, especialmente Maria, estavam tão intimamente implicadas no mau procedimento de Mr. Crawford, que ela não poderia condená-lo sem as trair. Tivera a esperança de que, para um homem como seu tio, tão justo, tão honrado, tão bom, o simples conhecimento da sua antipatia, seria suficiente. Para seu infinito sofrimento viu que não era assim.

Sir Thomas chegou-se à mesa onde ela se achava, trêmula e infeliz, e com fria indiferença, disse:

– Percebo que não adianta falar com você. É melhor por um fim a esta humilhante conferência. Mr. Crawford não deve ficar esperando por mais tempo. Acrescentarei, porém, somente, pensando ser meu dever lhe manifestar a minha opinião sobre a sua conduta, que você desapontou todas as minhas esperanças e provou ter um caráter inteiramente diverso daquele que eu havia julgado. Pois eu tinha, Fanny, como penso ter demonstrado, formado um juízo muito favorável sobre você, desde o dia que voltei para a Inglaterra. Imaginava-a particularmente livre de obstinação, presunção, e toda aquela independência de espírito que tanto prevalece nos dias de hoje, até nas moças, e que, nas moças, é mais ofensiva e odiosa do que todos os defeitos comuns. E você acaba de mostrar que é obstinada e perversa; que pode e quer decidir por si mesma, sem qualquer consideração ou deferência por aqueles que certamente têm o direito de a guiar, sem mesmo pedir o conselho deles. Mostra-se muito, muito diferente de que a havia imaginado. A vantagem ou desvantagem da sua família, de seus pais e irmãos, não lhe passou pela cabeça numa ocasião como esta. O quanto eles lucrariam, o quanto eles haveriam de se regozijar com um tal casamento, para você não quer dizer nada. Só pensa em si mesma e porque não gosta de Mr. Crawford exatamente como a sua fantasia imagina ser necessário para a felicidade, resolve recusar a proposta dele imediatamente, sem mesmo desejar um pouco de tempo para a considerar, um pouco mais de tempo para refletir e para realmente examinar as suas próprias inclinações; e está, como uma tonta atirando fora uma tal oportunidade de se estabelecer na vida, vantajosamente, honradamente, nobremente, oportunidade que, provavelmente nunca mais lhe ocorrerá. Aí está um rapaz de juízo, de caráter, educado e rico, excessivamente afeiçoado a você e pedindo a sua mão da maneira mais bela e desinteressada; e, deixe-me dizer-lhe, Fanny, você poderá viver neste mundo mais outros dezoito anos sem ser cortejada por outro homem com a metade da fortuna de Mr. Crawford ou a décima parte das qualidades dele. De boa vontade lhe teria dado qualquer uma das minhas próprias filhas. Maria já está nobremente casada, mas se Mr. Crawford pedisse a mão de Julia, eu lha teria concedido com satisfação superior e mais sincera do que dei a de Maria a Mr. Rushworth. – Depois de uma curta pausa: – E ficaria bastante surpreendido se qualquer uma das minhas filhas, ao receberem uma proposta de casamento, que trouxesse apenas metade das vantagens que este traz, imediatamente se resolvesse a recusá-la, sem consultar o meu interesse e a minha opinião. Teria ficado muito surpreso e muito chocado com um tal procedimento. Consideraria esse ato como uma total violação dos deveres e respeitos. Mas você não pode ser julgada pelas mesmas regras. Você não me deve o respeito de uma filha. Contudo, Fanny, se seu coração a pode absolver da ingratidão...

Interrompeu-se. Fanny chorava tão amargamente que, por muito zangado que estivesse, não pôde continuar. O coração dela estava quase partido pelo juízo que o tio fazia, por aquelas acusações, tão graves, tão múltiplas! Independente, obstinada, egoísta, ingrata. Pensava tudo isto dela. Enganara as expectativas dele; perdera sua estima. Que seria dela?

– Sinto muito – soluçou por entre as lágrimas. – Estou realmente desolada.

– Desolada! Sim, espero que o esteja; e provavelmente terá motivo para o ficar por muito tempo, depois de tomar tal resolução.

– Se me fosse possível proceder de outra forma – disse ela com outro esforço; – estou, porém, absolutamente convencida de que nunca o faria feliz e que eu mesma me sentiria miserável.

Nova explosão de lágrimas; mas apesar dessa explosão, apesar daquela negra palavra “miserável” que a precedeu, Sir Thomas começou a achar que um pouco de enternecimento, uma pequena mudança de disposição, talvez fosse responsável por aquelas lágrimas; e começou, também, a ter mais esperanças. Sabia que ela era muito tímida e excessivamente nervosa; e não achou impossível que com o tempo, com um pouco de insistência, um pouco de paciência e um pouco de impaciência, uma hábil mistura de tudo por parte do pretendente, talvez desse algum resultado. Se o rapaz ao menos tivesse perseverança, se ele ao menos amasse bastante para perseverar, Sir Thomas podia ter esperança; e com essas reflexões, disse num tom de adequada severidade, mas menos zangado:

– Bem, minha filha, enxugue essas lágrimas. Não há necessidade de chorar; não adianta nada. Agora você deve descer comigo. Mr. Crawford está esperando há muito tempo. Você mesma deve lhe responder; não podemos esperar que ele fique satisfeito com menos; e só mesmo você poderá lhe explicar esse equívoco sobre os seus sentimentos, do qual, desgraçadamente, ele não se convenceu. Eu me sinto inteiramente incapaz.

Mas Fanny mostrou uma tal relutância, um tal acabrunhamento, à idéia de descer, que Sir Thomas depois de pequena consideração, achou melhor lhe fazer a vontade. Suas esperanças, por conseguinte, sofreram uma pequena depressão; mas ao olhar para a sobrinha e ver o estado em que as lágrimas tinham deixado o rosto dela, pensou que uma entrevista imediata só daria mais a perder do que a ganhar. Por isso, com algumas palavras sem significação alguma, saiu da sala, deixando a pobre Fanny sozinha para desabafar com lágrimas o que se havia passado.

O espírito dela estava todo em desordem. O passado, o presente, o futuro, tudo era terrível. Mas o desprezo do tio era o que lhe causava maior dor. Egoísta e ingrata! Ele a julgava assim! Nunca mais poderia ser feliz. Não tinha ninguém a seu favor, para aconselhar, para defender. Seu único amigo estava ausente. Ele talvez tivesse podido abrandar o pai; mas todos, talvez todos, a julgariam egoísta e ingrata. Teria que ouvir essa censura muitas vezes; teria que a ouvir, ver ou sentir a existência dela para sempre em tudo que se relacionasse consigo. Não podia deixar de sentir algum ressentimento contra Mr. Crawford; contudo, se ele realmente a amasse, e também estivesse sofrendo! – Tudo era uma miséria.

Cerca de um quarto de hora depois o tio voltou; quase desmaiou à vista dele. Ele falou calmamente, porém, sem austeridade, sem censura, e ela se reanimou um pouco.

– Mr. Crawford já foi: acabou de sair. Não preciso repetir o que se passou. Não quero aumentar seu sofrimento, com a narração do que ele sentiu. É suficiente saber que ele se portou com a maior distinção e generosidade e confirmou da maneira mais favorável a minha opinião sobre a sua inteligência, coração e caráter. Quando eu lhe expus o que você estava sofrendo, ele imediatamente e com a maior delicadeza, cessou de insistir para a ver no momento.

Neste ponto Fanny, que havia erguido os olhos, abaixou-os de novo.

– Naturalmente – continuou o tio – ele continua a desejar falar com você sozinha, seja apenas por cinco minutos; um desejo muito natural, um direito muito justo para ser negado. Mas não há dia marcado; talvez amanhã, ou quando você se sentir mais calma. No momento basta que se tranqüilize. Pare de chorar; só pode ficar exausta. Se, como eu quero acreditar, você deseja me demonstrar alguma obediência, não se abandonará a essas emoções mas, ao contrário, procurará raciocinar e adquirir melhor disposição de espírito. Aconselho-a a sair; o ar lhe fará bem; saia por uma hora; terá o jardim à sua disposição e com ar e exercício se sentirá melhor. E, Fanny, – virou-se novamente por um momento – não direi lá embaixo nada do que se passou; não direi nem mesmo à sua tia Bertram. Não há necessidade de espalhar a decepção; não diga nada você mesma.

Esta era uma ordem que seria obedecida com a maior alegria; e foi um ato de bondade que Fanny agradeceu de coração. Ser poupada às intermináveis censuras de sua tia Norris deixou-a cheia de gratidão. Qualquer outra coisa seria mais suportável do que tais censuras. Até mesmo falar com Mr. Crawford seria menos acabrunhante.

Saiu imediatamente como o tio havia recomendado e seguiu o seu conselho quanto pôde; conteve as lágrimas; tentou ansiosamente controlar o espírito e fortalecer a consciência. Queria provar que desejava lhe ser obediente e conquistar novamente os seus favores; não dando conhecimento do caso às suas tias, ele havia dado outro forte motivo para esforçar-se. Não provocar suspeitas pela sua aparência e seus modos, era agora o seu mais caro objetivo; e para escapar da tia Norris, ela estava disposta a submeter-se a quase tudo.

Ficou pasmada, inteiramente pasmada quando, ao entrar na sala de Leste depois do passeio, a primeira coisa que viu foi o fogo aceso e queimando. Um fogo! Parecia-lhe demais; conceder-lhe um tal favor, justamente naquela ocasião, era provocar até uma dolorosa gratidão. Admirava-se que Sir Thomas ainda tivesse tempo para pensar numa coisa como aquela; mas logo descobriu, por informação espontânea da arrumadeira, que aquilo agora aconteceria todos os dias. Sir Thomas havia dado ordens para que acendessem o fogo.

“Era preciso, na verdade, ser muito insensível, para realmente eu ser ingrata! – disse ela consigo mesma. Deus me defenda de ser ingrata!”

Não soube mais do tio nem da tia Norris, até que se encontraram na hora do jantar. O procedimento do tio para com ela foi tanto quanto possível o mesmo de antes; ela estava certa de que Sir Thomas não queria demonstrar nenhuma mudança e que a própria consciência é que estava fantasiando alguma; a tia, no entanto, não demorou a brigar com ela; e quando viu como e quão agradavelmente era tratado o simples fato de haver ela saído sem o conhecimento de Mrs. Norris, sentiu toda a razão que tinha em considerar como uma benção a bondade que a tinha salvo das mesmas censuras, relacionadas com um assunto de mais importância.

– Se soubesse que você ia sair, tê-la-ia mandado até lá em casa, levar um recado para Nanny, recado que eu mesma, com grande incômodo, fui obrigada a levar. Eu não tinha muito tempo para perder e você me poderia ter poupado o trabalho, se tivesse tido a gentileza de nos dizer que ia sair. Creio que não faria grande diferença para você andar pelo jardim ou ir até minha casa.

– Recomendei a Fanny que não saísse do jardim, por ser o lugar mais seco – interpôs Sir Thomas.

– Oh! – fez Mrs. Norris controlando-se um pouco – foi muita bondade sua, Sir Thomas, mas não sabe como o caminho para minha casa é seco. Fanny teria feito um passeio tão bom como o outro se fosse até lá, posso lhe afiançar. Ainda com a vantagem de ser útil e ser delicada para com sua tia: a culpa é toda dela. Se nos tivesse apenas dito que ia sair – mas já observei muitas vezes em Fanny uma qualquer coisa – ela gosta de agir por conta própria; não gosta de receber ordens; costuma sair quando bem quer e entende; não há dúvida que tem uma certa tendência para a reserva, a independência e o absurdo, que eu a aconselharia a corrigir.

Como reflexão geral sobre Fanny, Sir Thomas achou que nada poderia ser mais injusto, embora ele mesmo, não há muito tempo, houvesse exprimido os mesmos sentimentos, e procurou mudar de assunto; tentou várias vezes antes de o conseguir, pois Mrs. Norris não tinha suficiente sagacidade para perceber, nem agora, nem em outro qualquer tempo, a que ponto ele chegava na boa opinião que fazia da sobrinha e até quanto ele estava longe de desejar as qualidades de seus próprios filhos realçadas à custa da depreciação das qualidades dela. Mrs. Norris estava falando sobre Fanny, portanto, não compreendia que ele se tivesse retirado da mesa no meio do jantar.

Finalmente, porém, terminou; e o serão começou com mais calma para Fanny, e mais alegria do que ela teria esperado, depois de uma manhã tão tormentosa; no entanto, ela confiava, em primeiro lugar, que havia tido razão; que seu julgamento não a tinha enganado. Podia responder pela sinceridade de suas intenções; e em segundo, estava disposta a esperar que o desgosto do tio estivesse diminuindo e diminuiria ainda mais depois que ele refletisse sobre o assunto com mais imparcialidade e sentisse, como devia sentir um homem de bem, quanto era triste, imperdoável, inútil e perverso casar sem afeição.

Depois que passasse a entrevista, de que estava ameaçada para o dia seguinte, ela não poderia senão regozijar-se por ver o assunto finalmente terminado e por pensar que, tendo Mr. Crawford partido de Mansfield, logo tudo voltaria ao normal. Não queria, não podia acreditar que o amor de Mr. Crawford por ela durasse muito tempo; seu temperamento não era desses. Em Londres ele logo se curaria. Em Londres ele não demoraria a admirar-se da sua loucura e lhe agradeceria por tê-lo salvo de piores conseqüências.

Enquanto o espírito de Fanny se ocupava com essas esperanças, seu tio, logo depois do chá, foi chamado a outra sala; era uma ocorrência demasiadamente comum para lhe chamar a atenção e ela não percebeu nada até que o mordomo reapareceu, depois de dez minutos e, adiantando-se para ela, disse:

– Sir Thomas deseja falar-lhe no gabinete dele.

Então lhe ocorreu o que poderia ser; uma suspeita apossou-se de seu espírito deixando-a pálida; levantando-se, porém, instantaneamente, preparava-se para obedecer quando Mrs. Norris a chamou:

– Pode ficar, Fanny! Que está pensando? Aonde vai? Não seja tão apressada. Fique certa que não é a você que estão chamando e sim a mim – olhando para o mordomo – mas você está sempre tão aflita para se adiantar. Que poderia Sir Thomas querer de você? É a mim que ele chama, não Baddeley? Foi neste momento. Você se refere a mim, não é Baddeley? Sir Thomas precisa de mim e não de Miss Price.

Mas Baddeley ficou firme.

– Não senhora, é de Miss Price. Tenho certeza que é de Miss Price. – E com essas palavras disfarçou um sorriso que queria dizer, “Não acredito que a senhora servisse para o caso, absolutamente”.

Mrs. Norris, muito descontente, foi obrigada a voltar ao seu trabalho; e Fanny, saindo agitadamente, encontrou-se, como o pressentira, sozinha com Mr. Crawford.

 

A entrevista não foi nem tão curta nem tão conclusiva quanto a moça havia suposto. Henry não se conformava facilmente. Era tão perseverante quanto Sir Thomas desejaria que ele o fosse. Era vaidoso, o que muito contribuía para, em primeiro lugar, não acreditar que Fanny não o amasse, embora, talvez, sem se aperceber disso; e depois, forçado afinal a admitir que ela presentemente estava segura de seus próprios sentimentos, tinha a convicção de poder, com o tempo, modificar como quisesse aqueles sentimentos.

Estava apaixonado, muito apaixonado; e essa paixão, agindo sobre um espírito vivo, cheio de confiança, mais ardente do que delicado, duplicava a importância do amor que ela lhe recusava.

Não perdia a esperança; não desistiria. Tinha uma excelente base para uma sólida afeição; sabia que Fanny possuía todas as virtudes que justificariam as mais ardentes esperanças numa felicidade permanente; a conduta dela, naquele momento, ao demonstrar o desinteresse e a delicadeza de seu caráter (qualidades que ele julgava das mais raras), era de sorte a lhe aumentar todos os desejos e o confirmar em todas as suas resoluções. Não sabia que teria de enfrentar um coração já comprometido. Sobre isto não tinha suspeitas. Considerava-a como alguém que nunca houvesse pensado seriamente no assunto para estar em perigo; que estava protegida pela juventude, uma juventude de consciência tão adorável quanto a de pessoa; sua modéstia a tinha impedido de compreender as atenções do seu apaixonado, e que ainda estava esmagada pela rapidez das declarações, tão inteiramente inesperadas, e a novidade de uma situação em que a sua imaginação nunca cogitara.

Não seria pois de esperar que, depois que fosse compreendido, haveria naturalmente de vencer? Acreditava plenamente nisso. Um amor como o seu, num homem como ele, tinha que ser retribuído e não demoraria muito; e ele estava tão encantado com a idéia de a obrigar a amá-lo dentro de pouco tempo, que já nem se importava com que ela o não amasse. Uma pequena dificuldade para vencer não constituía desgraça para Henry Crawford. Antes o animava. Estava acostumado a conquistar corações com demasiada facilidade. Esta situação era nova e animadora.

Para Fanny, porém, cuja vida fora cheia demais de oposições para encontrar qualquer encanto em tal situação, tudo isto era incompreensível. Viu que Henry tencionava insistir; mas como poderia ele, depois das expressões a que ela se vira obrigada a usar? Ela não conseguia compreender. Disse-lhe que não o amava, que não o poderia amar e que estava certa de que nunca o poder amar; que era absolutamente impossível mudar; que o assunto lhe era muito doloroso; que ela lhe suplicava nuca mais o mencionar, pedira-lhe permissão para se afastar imediatamente, e pedira-lhe mais que considerasse a questão como terminada para sempre. E depois, ao ser novamente instada, acrescentava que, na sua opinião, havia entre eles uma tal incompatibilidade de gênio, que seria impossível qualquer tentativa de mútua afeição; que pela natureza, educação e hábitos, eles eram inteiramente diferentes. Tudo isso Fanny o dissera e com a mais veemente sinceridade; entretanto aquilo não fora o bastante, pois ele imediatamente negara que houvesse qualquer incompatibilidade entre os seus gênios ou qualquer ou qualquer coisa hostil nas suas situações; e positivamente declarara que ainda a amaria e ainda teria esperanças!

Fanny estava senhora das próprias intenções mas não podia julgar suas próprias maneiras. Ela era incuravelmente gentil; não percebia quanto as suas maneiras encobriam a severidade de seus propósitos. Sua modéstia, sua gratidão e delicadeza, faziam com que cada expressão de indiferença parecesse quase um esforço de abnegação; parecia, pelo menos, estar dando quase tanta pena a si própria quanto a ele. Mr. Crawford já não era o Mr. Crawford a quem, como clandestino, insidioso, pérfido admirador de Maria Bertram, ela havia abominado, a quem odiara ver ou falar, em quem ela não acreditava existir nenhuma boa qualidade e cujo poder, mesmo de sedução, ela mal reconhecera. Agora se transformara no Mr. Crawford que lhe falava com um amor ardente, desinteressado; cujos sentimentos se haviam transformado em tudo que há de mais honrado e leal, cujas perspectivas de felicidade se fixavam todas sobre um casamento por amor; que exaltava as qualidades dela, repetindo a descrição de seu afeto, provando, também, tanto quanto o poderia provar por meio de palavras, a linguagem, o tom e o espírito de um homem de talento, que a procurava por sua nobreza e bondade; e para completar, era agora o Mr. Crawford que havia conseguido a promoção de William!

Ele mudara, pois, completamente, e suas pretensões não poderiam senão surtir efeito! Poderia tê-lo desprezado com toda a dignidade de uma virtude ofendida nos jardins de Sotherton ou no teatro de Mansfield Park; mas agora aproximava-se dela com direitos que exigiam um tratamento diferente. Devia ser cortês, devia ter compaixão. Devia sentir-se honrada e, quer pensando em si própria ou no irmão, devia demonstrar uma grande gratidão. O resultado de tudo foi demonstrar-se tão compassiva e perturbada e misturar com a sua recusa palavras tão expressivas de gratidão e interesse, que, para um temperamento vaidoso e confiante como o de Mr. Crawford, a verdade, ou pelo menos a extensão da indiferença dela, poderia muito bem ser discutida; de modo que ele não se mostrou, na realidade, desarrazoado quanto Fanny o considerava, nos protestos de afeição perseverante, assídua e esperançada, com que terminou a entrevista.

Foi com relutância que a viu sair; mas no momento da separação não houve um olhar que desmentisse as suas palavras ou que desse à moça a esperança de ele ser menos extravagante do que se havia mostrado.

Ela agora estava zangada. Um certo ressentimento causado por aquela insistência tão egoísta e mesquinha. Ali estava novamente a falta de delicadeza e interesse pelos outros que a princípio a havia assombrado e desgostado. Ali estava novamente algo do mesmo Mr. Crawford que ela antes tanto condenara. Como era evidente a sua grande falta de sentimento e de humanidade, quando seu próprio prazer estava em jogo! Mesmo que seu coração estivesse livre, como talvez devesse estar, ele nunca teria podido prendê-lo.

Assim pensava Fanny, com toda sinceridade, quando se achava sentada, meditando junto ao fogo que a extravagante indulgência do tio fizera acender na sua sala; admirando-se do passado e presente; admirando-se do que ainda estaria para vir e numa grande agitação que não a deixava ver senão que jamais, em nenhuma circunstância, seria capaz de amar Mr. Crawford e que felizmente agora tinha uma lareira junto à qual podia sentar-se a refletir.

Sir Thomas foi obrigado, ou obrigou-se a espera até o dia seguinte para saber o que se havia passado entre os dois jovens. Então viu Mr. Crawford e recebeu as suas impressões. A sua primeira sensação foi de desapontamento; tinha esperado coisa melhor; pensara que uma hora de suplicas de um rapaz como Crawford não poderia operar tão pequena mudança sobre uma pequena dócil como Fanny; mas logo recobrou esperanças ante a determinação e ardente perseverança do pretendente; e ao ver a confiança que ele tinha de vencer, Sir Thomas também começou a contar com o sucesso.

De sua parte não omitiu cordialidade, cumprimentos e bondades que pudessem auxiliar o plano. A firmeza do caráter de Mr. Crawford foi glorificada, Fanny elogiada e a aliança era ainda a mais desejável do mundo. Em Mansfield Park , Mr. Crawford seria sempre bem recebido; só teria que consultar seu próprio julgamento e sentimentos quanto à freqüência de suas visitas no presente ou no futuro. Para todos da família e amigos da sua sobrinha não poderia haver senão uma opinião, um único desejo sobre a questão; a influência de todos que a amavam devia inclinar-se para um único lado.

Tudo que pudesse reforçar a coragem foi dito. Todo estímulo foi recebido com grato prazer e os dois cavalheiros se separaram na maior das amizades.

Certo de que a causa agora estava indo bem, absteve-se de novamente importunar a sobrinha e demonstrar francamente qualquer interferência. Para um temperamento como o dela, acreditou que a melhor forma de a conquistar seria por meio de bondade. As súplicas só poderiam caber de um único lado. A aprovação de sua família, com respeito a cujos desejos ela não poderia ter a menor dúvida, podia também, de outro modo, ser um meio dos mais certos para chegar ao fim. Baseado pois neste princípio, Sir Thomas aproveitou a primeira oportunidade de dizer a Fanny, com suave gravidade, calculada para a dominar:

– Bem, Fanny, estive novamente com Mr. Crawford e por ele soube exatamente como andam as coisas entre vocês. Acho-o um rapaz extraordinário e qualquer que seja o resultado, você deve sentir que inspirou um afeto muito pouco comum; embora, sendo jovem como é e pouco familiar com a natureza efêmera, inconstante, irregular do amor, que geralmente há por aí, você não se pode impressionar como eu com o que há de admirável numa perseverança dessa espécie, contra a sua indiferença. Ali, vê-se apenas uma questão de sentimento; não se gaba; talvez não tenha de se gabar. Contudo, tendo feito tão boa escolha, a constância dele se justifica. Se a escolha fosse menos excepcional eu o censuraria por insistir.

– Na verdade, meu tio – disse Fanny – sinto muito que Mr. Crawford ainda continue a... Sei que devo ficar muito honrada e assim me sinto, conquanto não o mereça; estou, porém, tão certa, como já lhe disse, a ele, de que nunca serei capaz.

– Minha querida – interrompeu Sir Thomas – não há necessidade disso. Estou tão a par de seus sentimentos quanto você deve estar de meus desejos e pesares. Não há mais nada a dizer ou fazer. De agora em diante não tocaremos mais no assunto. Você não tem nada a temer ou a afligir-se. Não suponha que eu seja capaz de procurar persuadi-la a casar-se contra sua vontade. Sua felicidade e vantagens são tudo que eu tenho em vista e nada mais lhe é pedido senão que suporte as tentativas de Mr. Crawford para convencê-la. Ele age por sua própria conta e risco. Você está em terreno seguro. Eu me comprometi, apenas, a fazer com que você o veja, sempre que ele vier aqui, como se nada disso houvesse acontecido. Você estará com ele na presença de todos nós, da mesma maneira e, tanto quanto possa, procurando esquecer qualquer coisa que lhe seja desagradável. Dentro de tão poucos dias ele deixará o Northamptonshire, de modo que mesmo este pequeno sacrifício não lhe será exigido muitas vezes. O futuro pode ser incerto. E agora, minha cara Fanny, o assunto está encerrado entre nós.

A prometida ausência foi tudo do que Fanny se lembrou com satisfação. As bondosas expressões e a paciência do tio foram reconhecidas com toda sinceridade. E ao considerar o quanto da verdade ele desconhecia, acreditou que não tinha o direito de admirar-se da linha de conduta que Sir Thomas seguia. Dele, que havia dado em casamento uma filha a Mr. Rushworth, não se poderia, certamente, esperar nenhuma delicadeza romântica. Ela devia cumprir com seu dever e esperar que o tempo o tornasse mais leve do que agora.

Embora apenas com dezoito anos, Fanny não podia acreditar que a afeição de Mr. Crawford durasse para sempre; não podia senão imaginar que se ela firmemente, continuamente o desanimasse, com o tempo tudo estaria terminado. E quanto tempo esperava ela que ele a esquecesse, já é outra questão. Não seria bonito inquirir sobre a exata avaliação que uma moça faz de seus próprios predicados.

Apesar de seu prometido silêncio, Sir Thomas viu-se, mais uma vez, obrigado a mencionar o assunto a sua sobrinha, a fim de a preparar para a notícia de que o caso seria comunicado às tias; medida essa que ele teria ainda evitado, se lhe fosse possível, mas que se tornara necessária em vista da idéia inteiramente contrária de Mr. Crawford, de não fazer segredo de seu procedimento. Ele não queria ocultar nada. No Presbitério, onde adorava conversar com as duas irmãs sobre o futuro, todos já conheciam os seus sentimentos e para ele era antes um prazer ter testemunhas do progresso de seus sucessos. Ao saber disso, Sir Thomas sentiu a necessidade de por, sem demora, a esposa e a cunhada a par do negócio, – conquanto ele quase temesse, como a própria Fanny, o efeito que essa comunicação ia causar sobre Mrs. Norris. Sir Thomas, na verdade, por esse tempo, não estava muito longe de classificar Mrs Norris como uma dessas pessoas bem intencionadas mas que estão sempre fazendo coisas erradas e muito desagradáveis.

Mrs. Norris, porém, o sossegou. Ele exigiu o mais estrito silêncio e paciência para com a sobrinha; ela não só o prometeu como o cumpriu. Apenas demonstrou maior má vontade. Furiosa ela estava; amargamente furiosa; mas se sentia mais aborrecida com Fanny por ter recebido tal proposta do que por a ter rejeitado. Aquilo era uma injúria, uma afronta a Julia, que deveria ter sido a escolhida por Mr. Crawford; e independentemente disso, odiava Fanny por que ela a havia esquecido; não teria permitido uma tal elevação a uma pessoa que sempre procurara deprimir.

Sir Thomas, na ocasião, deu mais crédito do que devia à discrição dela; e Fanny lhe ficou muito grata por ter apenas que sentir a sua cólera e não a ouvir.

Lady Bertram recebeu a notícia de modo diferente. Ela, durante toda sua vida, havia sido uma beleza e uma próspera beleza; e beleza e fortuna eram tudo que poderia interessá-la. O conhecimento de que Fanny havia sido pedida em casamento por um homem de fortuna, por isso, elevou-a muito em seu conceito. Por se ter convencido que Fanny era muito bonita, o que ela havia duvidado antes, e que faria um casamento vantajoso, fê-la sentir uma espécie de honra em se dirigir à sobrinha.

– Muito bem, Fanny – disse ela, logo depois que ficaram sozinhas (e realmente estivera impaciente por este momento, como demonstrava a extraordinária vivacidade de seu semblante). – Muito bem, Fanny, hoje de manhã, tive uma surpresa muito agradável. Só posso falar sobre isso uma vez; prometi a Sir Thomas que só falaria uma vez e depois não falarei mais. Desejo-lhe toda felicidade, minha querida sobrinha. – E olhando para ela com complacência, acrescentou: – Hein! Nós de fato somos uma família admirável!

Fanny corou e a princípio não soube o que dizer; depois, esperando atingi-la no ponto fraco, respondeu:

– Minha querida tia, a senhora não pode desejar que eu proceda de maneira diferente da que procedi. Tenho a certeza. A senhora não pode desejar que eu me case; pois iria sentir minha falta, não? Sim, tenho certeza de que sentiria demais a minha falta para desejar isso.

– Não, minha querida, não teria coragem de impedi-la, quando uma proposta desta ordem lhe é feita. Poderei passar perfeitamente sem você, desde que se case com um homem tão rico como é Mr. Crawford. E você deve saber, Fanny, que toda moça tem a obrigação de aceitar um pedido tão irrepreensível quanto este.

Essa foi talvez a única regra de conduta, o único conselho que Fanny recebeu da tia, no período de oito anos e meio. Ficou calada. Viu que seria inútil discutir. Se a tia se colocava contra ela, de nada adiantava procurar fazê-la compreender. Lady Bertram estava com uma grande loquacidade.

– E lhe direi mais, Fanny – disse ela – aposto que ele se apaixonou por você, na noite do baile; estou certa de que o mal começou naquela noite. Você estava muito bonita. Todos disseram. Até Sir Thomas. E você sabe, foi Chapman quem a ajudou a vestir-se. Fico contente por ter mandado Chapman ajudá-la. Vou dizer a Sir Thomas que tenho a certeza de que o negócio começou naquela noite. – E ainda prosseguindo nestes alegres pensamentos, acrescentou logo depois: – E vou lhe prometer, Fanny, uma coisa que não fiz com Maria: na próxima vez em que Pug tiver uma ninhada, você terá um filhote.

 

Edmund, ao voltar, soube de grandes novidades. Muitas surpresas o aguardavam. A primeira que ocorreu não foi de menor interesse: o encontro de Henry Crawford e da irmã passeando na vila quando ele ali chegou. Havia suposto – tinha acreditado que eles já estivessem muito longe dali. Tinha propositalmente prolongado a ausência por uma quinzena, para evitar Miss Crawford. Voltava para Mansfield com o espírito preparado para viver de melancólicas lembranças e ternas associações, e eis que deparava com a própria pessoa de Mary, apoiada no braço do irmão. Via-se acolhido com indubitável amizade por parte da mulher, que, dois minutos antes, pensara estar a cento e tantos quilômetros de distância e tão longe, muito mais longe do seu coração do que qualquer distância o poderia exprimir.

A recepção que ela lhe fez foi também inesperada, e o seria mesmo que contasse encontrá-la. Vindo, como veio, tendo realizado o objetivo que motivara a sua ausência, não teria esperado senão um olhar de satisfação e palavras de significação simples e agradáveis. Seriam o suficiente para lhe encher o coração de alegria e levá-lo para casa na melhor disposição de espírito para dar inteiro valor às outras alegres surpresas que o aguardavam.

Soube logo da promoção de William, com todos os seus particulares; e com a secreta provisão de conforto que tinha em seu próprio peito para lhe aumentar a alegria, encontrou naquela notícia uma fonte das mais agradáveis sensações durante todo o jantar.

Depois do jantar, quando ficou só com o pai, soube do caso de Fanny; e, então, todos os maiores acontecimentos da última quinzena e a atual situação dos negócios em Mansfield lhe foram relatados.

Fanny desconfiou do que se estava passando. Se eles permaneciam na sala de jantar muito mais tempo do que o usual é que estavam falando sobre ela; e quando, afinal, se reuniram para o chá e ela teve de enfrentar novamente Edmund, sentiu-se terrivelmente culpada. Ele aproximou-se dela, sentou-se ao seu lado, segurou-lhe a mão e apertou-a bondosamente; e naquele momento Fanny pensou que se não fosse estar ocupada e oculta pelo serviço de chá, teria traído uma emoção, cujo excesso não lhe seria perdoado.

Ele, porém, não tencionava com tal gesto, exprimir-lhe uma aprovação e um encorajamento sem reservas que as suas esperanças deduziram dele. Foi apenas para exprimir a sua participação em tudo o que a interessava e lhe dizer que havia ouvido uma coisa que muito o alegrava. Estava, de fato, inteiramente ao lado do pai naquela questão. Não se surpreendeu tanto quanto Sir Thomas ao saber que ela havia rejeitado Crawford, porque, longe de supor que Fanny o preferisse, ele havia antes sempre pensado o contrário; de modo que achou ter sido apanhada de surpresa e nem por isso deixou de reconhecer a vantagem de tal casamento. Para ele, o noivo tinha todos os predicados; e conquanto a louvasse pelo que havia feito sob o domínio da atual indiferença, com expressões ainda mais intensas do que as de Sir Thomas, ele era o mais confiado na esperança de que o casamento um dia se realizaria e que, unidos por mútua afeição, viriam algum dia a reconhecer que haviam sido feitos um para o outro, como ele próprio agora começava seriamente a considerá-los. Crawford havia sido demasiadamente precipitado. Não havia dado tempo para que ela se lhe afeiçoasse. Começara pelo lado oposto. Com o poder de sedução que tinha, porém, e ante uma docilidade como a dela, Edmund esperava que tudo chegaria a uma feliz conclusão. No entanto, percebia suficientemente o embaraço de Fanny para que escrupulosamente se abstivesse de a contrariar novamente, por qualquer palavra, olhar ou gesto.

Crawford apareceu no dia seguinte, e com o pretexto da volta de Edmund, Sir Thomas se sentiu mais do que justificado em o convidar para o jantar; era de fato uma atenção necessária. Ele, naturalmente, aceitou e Edmund teve então bastante oportunidade de observar como se portava para com Fanny e qual o grau de imediato encorajamento que poderia ser tirado do modo como a prima recebia as atenções dele. E foi tão pequeno, tão, tão pequeno (toda a chance, toda a possibilidade, repousando-se apenas no seu enleio; se não houvesse esperança na confusão dela, não havia esperança em mais nada), que estava quase inclinado a admirar-se da perseverança do amigo. Fanny era digna de tudo; ele achava que ela valia todos os esforços de paciência, todo o trabalho de consciência. Mas não acreditava que ele mesmo fosse capaz de prosseguir na aspiração por qualquer mulher sem ver alguma coisa mais para lhe dar ânimo do que a que seus olhos percebiam no da prima. Desejava muito que Crawford visse mais claramente; e foi esta a mais consoladora conclusão a que pôde chegar, diante de tudo que observara antes, durante e depois do jantar.

Durante o serão ocorreram algumas circunstâncias que lhe pareceram mais promissoras. Quando ele e Crawford entraram no salão, sua mãe e Fanny achavam-se sentadas trabalhando tão atentas e silenciosas, como se não houvesse mais nada em que pensar. Edmund não pôde deixar de notar a profunda tranqüilidade que aparentavam.

– Não estivemos assim caladas o tempo todo – esclareceu sua mãe. – Fanny esteve lendo para mim e só parou quando ouviu que vocês estavam vindo. – E realmente havia um livro sobre a mesa que estava com jeito de ter sido recentemente fechado: um volume de Shakespeare. – Ela sempre me lê esses livros; e estava no meio de um diálogo muito bonito daquele homem – como é mesmo, Fanny? – quando ouvimos os seus passos.

Crawford apanhou o volume.

– Deixe-me ter o prazer de acabar o diálogo para Vossa Senhoria – disse ele. – Posso encontrá-lo sem demora.

E deixando cuidadosamente o livro abrir-se por si, encontrou logo o trecho procurado, com a aproximação de uma ou duas páginas; e bastou para contentar Lady Bertram que, assim que Crawford mencionou o nome do Cardeal Wosley, afirmou logo ter ele encontrado o verdadeiro diálogo. Fanny não se prontificou a ajudá-lo nem com um olhar nem com oferecimento. Sua atenção concentrou-se no trabalho. Parecia determinada a não se interessar por mais nada. Mas o amor dos versos era demasiadamente forte nela. Não pôde abstrair o pensamento por cinco minutos; foi forçada a ouvir; a leitura dele era excelente e o prazer que ela sentia pelas boas leituras era extremo. No entanto estava acostumada a boas leituras; o tio lia bem, todos os seus primos, Edmund lia muito bem, mas na leitura de Mr. Crawford havia uma perfeição acima de tudo que ela conhecia. O rei, a rainha, Buckingham, Wosley, Cromwell, todos vieram por sua vez; pois com o maior talento, a maior arte de saltar e adivinhar, ele sempre conseguia, ao seu bel prazer, passar para as melhores cenas ou os melhores diálogos de cada um; e tanto fazia ser dignidade ou orgulho, ternura ou remorso ou o que quer que tivesse de ser enunciado, ele o podia exprimir com igual beleza. Era realmente dramático. A sua representação havia sido a primeira a fazer Fanny conhecer o prazer que uma peça poderia dar e a sua leitura trouxe-lhe novamente a lembrança da representação: não, talvez, com maior prazer, visto que vinha inesperadamente e sem o constrangimento que costumava sentir ao vê-lo no palco com Miss Bertram.

Edmund observava o progresso da atenção dela e divertia-se em ver que Fanny gradualmente afrouxava o trabalho de agulha que a princípio parecia ocupá-la totalmente; viu o bastidor lhe cair das mãos enquanto ela se tornava imóvel e afinal, os olhos que tinham parecido tão cuidadosamente evitar Henry durante todo o dia, viraram-se e fixaram-se nele; fixaram-se nele por minutos, fixaram-no em resumo, até a tração fazer com que Crawford pousasse os dele sobre ela; então o livro foi fechado e o encanto se quebrou. Fanny se encolheu novamente dentro de si mesma, corando e trabalhando mais do que nunca; mas foi o bastante para dar a Edmund ânimo por seu amigo e quando cordialmente agradeceu a leitura, teve a esperança de estar exprimindo também o secreto sentimento de Fanny.

– Essa peça deve ser a sua favorita – disse ele; – você a lê como se a conhecesse muito bem.

– Será a favorita, creio, desta hora em diante – respondeu Crawford; – não creio, porém, ter tido em minhas mãos um volume de Shakespeare desde os meus quinze anos. Vi uma vez representar Henrique VIII, ou ouvi alguém dizer que tinha visto, não estou bem certo. Mas a gente fica conhecendo Shakespeare não se sabe como. É uma parte da constituição inglesa. Seus pensamentos e encantos estão tão espalhados por todo o mundo que o encontramos em toda a parte; fica-se íntimo dele por instinto. Nenhum homem de alguma inteligência é capaz de abrir uma boa parte de uma de suas peças sem lhe cair imediatamente no fluxo dos pensamentos.

– Não há dúvida que Shakespeare nos é familiar até certo ponto – disse Edmund – desde a primeira infância. As passagens célebres são repetidas por todo o mundo; estão na maior parte dos livros que lemos e nós todos falamos com Shakespeare, usamos suas imagens, descrevemos com as suas descrições; mas isto é inteiramente diverso de lhe dar o sentido que você dá. Conhecê-lo por este ou aquele trecho é muito comum; conhecê-lo mesmo por todas as suas obras, não é, talvez, pouco comum; mas saber lê-lo alto é um talento que não se encontra todos os dias.

– Está me honrando muito – foi a resposta de Crawford, com um cumprimento de irônica gravidade.

Os dois cavalheiros olharam para Fanny, para ver se conseguiam extorquir dela uma palavra de louvor; ambos, porém, sentiram que aquilo não seria obtido. Seu louvor havia sido experimentado pela atenção que lhe dispensara; isto deveria contentá-los.

Lady Bertram, também, manifestou ardentemente sua admiração.

– Foi como se realmente estivesse assistindo à peça – disse ela. – Desejaria que Sir Thomas estivesse presente.

Crawford ficou excessivamente satisfeito. Se Lady Bertram, com toda a sua incompetência e languidez pôde sentir isso, a dedução do que a sobrinha, viva e instruída, devia ter sentido, era superior.

– O senhor tem uma grande queda para o teatro, Mr. Crawford – disse Sua Senhoria logo depois; – e digo-lhe mais, creio que ainda terá, qualquer dia, um teatro na sua casa em Norfolk. Quero dizer, quando o senhor estiver instalado lá. É na verdade o que eu penso. Acho que instalará um teatro em sua casa em Norfolk.

– A senhora acha? – exclamou ele. – Não, não, isto nunca acontecerá. Vossa Senhoria está inteiramente enganada. Teatro nenhum em Everingham! Oh não! – e olhou para Fanny com um sorriso expressivo, que evidentemente significava “essa senhora nunca permitirá um teatro em Everingham”.

Edmund percebeu tudo e viu Fanny absolutamente determinada a não ver nada; aquela rápida consciência de um cumprimento, uma tão pronta compreensão de uma insinuação, pareceu-lhe antes favorável do que desfavorável.

O assunto foi discutido ainda por algum tempo. Os dois rapazes eram os únicos a conversar; e ambos em pé junto ao fogo, comentavam o pouco que se cuida, na educação dos rapazes, de certas prendas sociais, tais como a leitura em voz alta; e o conseqüente embaraço em que se vêem homens sensíveis e instruídos, postos inesperadamente diante da necessidade de ler alto, dando exemplos de fracassos e fiascos, pela falta de controle da voz, de modulação adequada e ênfase, de previsão e julgamento, tudo proveniente da primeira causa: falta de traquejo na infância; Fanny ouvia de novo com grande interesse.

– Até mesmo na minha profissão – disse Edmund, com um sorriso – como se tem estudado pouco a arte de ler! Quão pouco se cuida em adquirir uma maneira clara, uma boa dicção! Falo mais do passado, porém, do que do presente. Agora existe em todo mundo um certo espírito de aperfeiçoamento; mas entre aqueles que se ordenaram a vinte, trinta, quarenta anos passados, a maioria, a julgar pelo seu desempenho, devia pensar que ler era ler e pregar era pregar. Agora é diferente. O assunto está sendo considerado com mais precisão. Sabe-se que a nitidez e a energia podem valer para recomendar as mais sólidas verdades; e além disso, há hoje mais observação geral e gosto e um conhecimento crítico mais difundido do que antigamente; em cada congregação há uma maior proporção dos que sabem um pouco do assunto e que podem julgar e criticar.

Edmund já havia uma vez, depois da sua ordenação, celebrado o santo ofício; e ao saber disso, Crawford lhe fizera uma infinidade de perguntas sobre as suas sensações e sucessos; perguntas que, feitas com a vivacidade de um interesse amável e fino gosto, sem qualquer traço daquele espírito de zombaria ou ar de leviandade que Edmund sabia ser dos mais ofensivos a Fanny, foram satisfeitas com verdadeiro prazer; e quando Crawford prosseguiu, pedindo a opinião dele e dando-lhe a sua quanto à maneira mais conveniente por que certas passagens do ofício deveriam ser pronunciadas, demonstrando ser este um assunto em que já havia pensado antes, Edmund ficou cada vez mais contente. Aquele era a maneira de conquistar o coração de Fanny. Ela não seria conquistada à força de galanterias e espírito; ou, pelo menos, não seria conquistada por esse meio senão depois de muito tempo, sem o auxílio do sentimento e do juízo, da seriedade em questões sérias.

– Nossa liturgia – observou Crawford, tem coisas lindas que nem mesmo o estilo descuidado da leitura pode destruir; mas tem, também, redundâncias e repetições nas quais é mister boa leitura, para que não sejam notadas. Por minha parte, ao menos, confesso que nem sempre presto tanta atenção como deveria prestar – aqui olhou para Fanny; – que dezenove vezes em vinte eu estou pensando como tal oração deveria ser lida e desejando poder eu mesmo lê-la. Disse alguma coisa? – Adiantou-se para Fanny e dirigiu-lhe a voz suavemente; e ao ouvi-la responder que “Não”, acrescentou: – Está certa de que não disse nada? Vi que seus lábios se moveram. Imaginei que ia dizer-me que eu deveria ser mais atento e não permitir que meus pensamentos se desviassem. Não ia dizer-me isto?

– Não, realmente, conhece demasiadamente bem seu dever para que eu... mesmo supondo...

Interrompeu-se sentindo que caíra numa complicação, e ninguém mais pôde persuadi-la a acrescentar uma única palavra, nem depois de vários minutos de suplica e esperas. Ele então voltou ao seu lugar primitivo e continuou como se não tivesse havido aquela terna interrupção.

– Um sermão bem pregado é ainda menos freqüente do que as orações bem lidas. Um bom sermão não é coisa rara. É mais difícil falar bem do que compor bem; isto é, as regras e os truques usados numa composição, são freqüentemente objeto de estudo. Um sermão inteiramente bom, inteiramente bem pregado, é uma satisfação perfeita. Eu nunca ouço um sermão assim sem sentir a maior admiração e respeito e uma certa inclinação para tomar ordens e pregar. Há qualquer coisa na eloqüência de púlpito, quando é realmente eloqüência, digna do mais elevado louvor e honra. O pregador que consegue tocar e afetar uma tão heterogênea massa de ouvintes, com temas tão limitados e já tão batidos por todos os pregadores; que consegue dizer qualquer coisa nova ou notável, qualquer coisa que chame a atenção, sem ofender o gosto e cansar os ouvintes, é um homem para cuja capacidade não existem bastantes elogios. Gostaria de ser tal homem.

Edmund riu.

– Gostaria, na verdade. Nunca em minha vida ouvi um pregador célebre, sem sentir uma espécie de inveja. Mas para isso, seria preciso que tivesse uma audiência em Londres. Não poderia pregar senão para pessoas educadas; para aqueles que fossem capazes de compreender minha oratória. E acho que não gostaria de pregar muito freqüentemente; uma vez ou outra, talvez, uma ou duas vezes na primavera, depois de ser ansiosamente esperado por meia dúzia de domingos; mas não constantemente; constantemente, não.

Nesse ponto, Fanny, que não podia deixar de ouvir, involuntariamente sacudiu a cabeça e Crawford imediatamente se pôs novamente a seu lado, pedindo que lhe dissesse o que estava pensando; e como Edmund percebeu, por vê-lo aproximar uma cadeira e sentar-se ao lado dela, que o ataque desta vez seria direto, que os olhares e as entonações de voz teriam de ser bem interpretados, retirou-se tão mansamente quanto possível para um canto, deu-lhes as costas e apanhou um jornal, sinceramente desejando que a sua querida Fanny pudesse ser persuadida a explicar a significação daquela sacudidela de cabeça, para inteira satisfação de seu ardente admirador; e ansiosamente procurou abstrair-se de todo caso com a leitura de vários artigos, tais como “O mais desejável Estado ao Sul de Gales”; “Aos Pais e Tutores”; e “Principal estação dos caçadores”.

Neste ínterim, Fanny, aborrecida consigo mesma por não ter ficado tão imóvel como estivera muda, e sentida por ver a intenção de Edmund, procurava por todos os meios ao alcance de sua natureza modesta e suave, repelir Mr. Crawford e evitar tanto seus olhares como suas perguntas; e ele, sem lhe perceber a repulsa, persistia em ambos.

– Por que sacudiu a cabeça? Que pretendia exprimir com isso? Desaprovação, talvez. Mas de que? Que disse eu que a desagradou? Acha que disse alguma coisa imprópria, leviana, irreverente, sobre o assunto? Diga-me apenas se o foi. Diga-me apenas se errei. Quero corrigir-me. Não, não, suplico-lhe; pare de trabalhar por um momento. Que significação teve aquela sacudidela de cabeça?

Em vão ela dizia:

– Por favor, não pergunte; por favor, Mr. Crawford.

E em vão tentou afastar-se. Com a mesma voz abafada e ansiosa, e a mesma proximidade, ele prosseguia, insistindo na pergunta. Ela foi ficando mais agitada e descontente.

– Como tem a coragem. O senhor me espanta; admiro-me de como pode...

– Eu a espanto? – disse ele. – Admira-se? Há alguma coisa nas minhas súplicas que não compreenda? Posso explicar-lhe imediatamente o que me faz insistir desta maneira, porque me interesso por tudo que você pensa ou faz, e o que excita a minha curiosidade. Não deixarei que se espante por mais tempo.

Sem querer, ela esboçou um sorriso, mas não disse nada.

– Você meneou a cabeça quando me ouviu dizer que não gostaria de cumprir com os deveres de um pastor continuamente. Sim, foi por causa dessa palavra. Continuamente: não receio a palavra. Poderia dizê-la, escrevê-la para qualquer pessoa. Não vejo mal nenhum nessa palavra. Acha que estou errado?

– Talvez – disse Fanny, forçada afinal a falar; – talvez eu ache que é uma pena o senhor não se conhecer geralmente tão bem como o demonstrou naquele momento.

Satisfeito por ter conseguido que ela falasse de qualquer forma, ele se decidiu a não deixar morrer a conversa; e a pobre Fanny, que esperava silenciá-lo com aquela extrema censura, viu-se enganada tristemente e percebeu que não provocara senão a troca de objetivo da curiosidade de Crawford e uma frase por outra. Queria sempre saber a explicação de tudo. A oportunidade não poderia ser melhor. Nenhuma como aquela havia ocorrido desde que a vira no gabinete do tio, nenhuma como aquela poderia talvez ocorrer novamente antes de ele partir de Mansfield. Lady Bertram, sentada justamente do outro lado da mesa, não era levada em conta, pois ela poderia quase sempre ser considerada como meio adormecida; Edmund não desistia de ler o jornal.

– Bem – disse Crawford, depois de uma série de rápidas perguntas e relutantes respostas: – Sinto-me mais feliz do que antes, porque agora compreendo mais claramente a sua opinião sobre mim. Acha que eu sou inconstante; facilmente influenciado pelo capricho do momento, facilmente tentado, facilmente aborrecido. Com uma tal opinião, não admira que... Mas veremos. Não será com protestos que procurarei convencê-la de que está enganada; não será lhe dizendo que minhas afeições são constantes. Minha conduta falará por mim. Eles provarão que, se alguém é digno de a merecer, esse alguém serei eu. Você é infinitamente superior a mim em qualidades; tudo isso eu seu. Você possui qualidades que eu até hoje não supunha existir em nenhuma criatura humana. Tem uma aparência angélica acima do que – não apenas acima do que se pode ver, porque ninguém jamais viu uma coisa assim – mas acima de tudo que se pode imaginar que exista. Mas mesmo assim não tenho receio. Não é por igualdade de méritos que será conquistada. Isto está fora da questão. Aquele que reconheça e adore seus méritos com mais intensidade, que a ame com maior devoção, é que terá o maior direito a ser correspondido. Nisso é que baseio a minha confiança. Por esse direito eu hei de merecê-la; e quando se convencer que minha afeição é tal como a descrevo, sei, por conhecê-la demasiadamente bem, que posso manter a esperança. Sim, minha muito querida, minha doce Fanny. Não – vendo-a afastar-se aborrecida – perdoe-me. Talvez não tenha ainda esse direito; mas por que outro nome posso chamá-la? Supõe que esteja presente na minha imaginação com um outro nome? Não, é como “Fanny” que eu penso em si todo o dia, sonho toda a noite? Deu a esse nome uma tal realidade de doçura que agora nada mais pode descrevê-la melhor.

Fanny dificilmente poderia permanecer sentada por mais tempo ou evitar pelo menos tentar afastar-se, apesar de toda a oposição que antevia, se não fosse o som da liberdade que se aproximava, o único som que ela tinha estado esperando e que se admirava estar demorando tanto.

A solene procissão, guiada por Baddeley, dos bules de chá, louças e pratos de bolo apareceu e tirou-a da dolorosa prisão em que achava, de corpo e alma. Mr. Crawford foi obrigado a afastar-se. Ela estava livre, estava ocupada, estava portanto protegida.

Edmund não ficou triste por ser novamente admitido entre aqueles que podiam falar e ouvir. Mas embora a conferência lhe tivesse parecido longa demais, e embora ao olhar para Fanny percebesse que ela estava bastante embaraçada, teve a esperança que tanto não poderia ter sido dito e ouvido sem que dali o orador tirasse algum proveito.

 

Edmund tinha resolvido deixar inteiramente a critério de Fanny, se a sua situação com respeito a Crawford deveria ser ou não mencionada entre eles; e se ela não o precedesse, ele nunca tocaria no assunto; mas depois de um ou dois dias de mútua reserva, ele foi induzido pelo pai a mudar de idéia e tentar o que a sua influência pudesse em favor do amigo.

Um dia, um dia muito próximo, foi finalmente fixado para a partida dos Crawfords; e Sir Thomas achou que seria conveniente fazer mais um esforço pelo rapaz antes de ele deixar Mansfield, para que todos os seus protestos e votos de afeição inabalável pudessem ser sustentados por tantas esperanças quanto fosse possível.

Sir Thomas estava cordialmente inquieto pela perfeição do caráter de Mr. Crawford naquele ponto. Desejava que ele fosse um modelo de constância; e imaginava que o melhor sistema de o conseguir seria não o por à prova por tempo demasiado.

Não foi difícil persuadir Edmund a tomar parte no negócio; ele queria conhecer os sentimentos de Fanny. Ela estava acostumada a consultá-lo em todas as dificuldades e o primo não se conformava em que ela agora não lhe fizesse confidências, esperava poder auxiliá-la, pensava que devia lhe ser útil; a quem mais poderia ela abrir o coração? Se não necessitava de conselho, devia ter ao menos necessidade de desabafar. Não era natural que Fanny estivesse estranha, silenciosa e reservada para com ele; era uma situação a que ele deveria por fim.

– Falarei com Fanny, papai. Aproveitarei a primeira oportunidade que tiver de falar com ela a sós – foi o resultado daquelas reflexões; e como Sir Thomas o informasse de que a prima se achava naquele mesmo instante passeando sozinha no jardim, ele imediatamente lhe foi ao encontro.

– Vim andar com você, Fanny – disse ele. – Posso? – E enfiando o braço dela no seu: – Faz muito tempo que não passeamos juntos.

Ela assentiu mais com o olhar do que com a palavra. Estava abatida.

– Mas Fanny – acrescentou ele – para que tenhamos prazer no passeio, é preciso alguma coisa mais do que simplesmente caminharmos juntos por esta alameda. Você deve conversar comigo. Sei que você tem qualquer coisa que a preocupa. Sei o que você está pensando. Não pode supor que eu não esteja informado. É possível que eu tenha de ouvir isso de todo mundo menos da própria Fanny?

Fanny sentiu-se logo aflita, desanimada; respondeu:

– Se você já ouviu da boca de todo mundo, meu primo, eu não tenho mais nada para lhe contar.

– Quanto aos fatos, talvez não; mas os sentimentos, Fanny? Ninguém, a não ser você mesma, os pode dizer. Não quero, porém, obrigá-la. Se esse não for o seu desejo, eu desisto. Pensei que lhe seria um alívio.

– Receio que nossas opiniões sejam demasiadamente diferentes para que eu possa encontrar qualquer alívio em lhe falar do que sinto.

– Você acha que nós pensamos diferente? Não tinha idéia disso. Ouso dizer que se compararmos nossas opiniões, acharemos que elas são tão semelhantes como sempre o foram; até o fim. Considero as propostas de Crawford muito vantajosas e desejáveis, caso você possa retribuir a afeição dele. Considero como muito natural que toda a sua família deseje que você a retribua; mas, já que você não o pode, acho que fez exatamente o que devia fazer, recusando-o. Existe neste ponto algum desacordo entre nós?

– Oh, não! Mas eu pensei que você me estava censurando. Pensei que você estivesse contra mim. Estou tão contente agora!

– Este contentamento, você já o teria tido há mais tempo, Fanny, se o tivesse procurado. Como pôde supor que eu estivesse contra você? Como pôde supor que eu fosse a favor de um casamento sem amor? E mesmo que eu fosse em geral indiferente a esses assuntos, como poderia você imaginar-me assim, quando era da sua felicidade que se tratava?

– Titio achou que eu não tinha razão e eu sei que ele esteve falando com você.

– Até agora, Fanny, acho que você está inteiramente com a razão. Posso ainda ficar triste, posso ainda me surpreender; embora isto seja difícil, porque você ainda não teve tempo de se afeiçoar; mas acho que você está perfeitamente certa. Pode isto admitir alguma dúvida? Seria uma desgraça para nós se o pudesse. Você não o ama; nada poderia justificar que o aceitasse.

Há muitos dias Fanny não se sentia tão feliz.

– Até agora a sua conduta tem sido impecável e inteiramente errados estão aqueles que desejarem outro procedimento de sua parte. Mas o caso não termina aqui. A afeição de Crawford não é uma afeição banal; ele persiste, com a esperança de criar uma estima que antes não havia criado. Isto, nós sabemos, deve ser uma questão de tempo. Mas – com um sorriso afetuoso – deixe que ele vença algum dia, Fanny, deixe-o vencer finalmente. Você provou que é leal e desinteressada, prove agora que é grata e carinhosa; e então será o modelo perfeito de mulher que eu sempre acreditei que seria.

– Oh! Nunca, nunca, nunca! Ele nunca me vencerá.

E falou com tanto ardor que Edmund ficou espantado; e ela corou, ao ver o olhar dele e ouvi-lo responder:

– Nunca! Fanny! Tão decidida e positiva! Não a estou reconhecendo.

– Quero dizer – disse ela – tristemente, corrigindo-se – que eu acho que nunca, tanto quanto se pode responder pelo futuro; acho que nunca hei de corresponder à estima dele.

– Pois eu espero coisa melhor. Eu sei, muito mais do que Crawford, que o homem que tencionar fazer você amá-lo (estando você ciente das intenções dele) tem que trabalhar muito, pois terá que lutar contra todos os seus hábitos e afeições de infância; e antes de conseguir conquistar seu coração, tem que o libertar de todos os laços que o prendem a coisas animadas e inanimadas, confirmados por tantos anos de crescimento e que no momento estão consideravelmente apertados justamente pela idéia da separação. Sei que a apreensão de ser forçada a deixar Mansfield é um dos motivos que durante algum tempo a está armando contra ele. Desejaria que ele não tivesse sido obrigado a lhe dizer o que estava procurando conseguir. Desejaria que ele conhecesse você tanto quanto eu a conheço, Fanny. Entre nós, creio que o teríamos conquistado. Meu conhecimento teórico juntamente com o conhecimento prático que ele tem, não poderia ter falhado. Ele deveria ter agido de acordo com os meus planos. Eu tenho, porém, esperança de que o tempo provando (como eu firmemente acredito) que pela constância do seu afeto ele a merece, dará a Crawford a recompensa. Não posso acreditar que você não tenha o desejo de o amar – o desejo natural da gratidão. Você deve sentir a sua própria indiferença.

– Nós somos tão diferentes – disse Fanny, evitando uma resposta direta – nós somos tão, tão diferentes em todas as nossas inclinações e maneiras de pensar, que eu considero como absolutamente impossível podermos ser razoavelmente felizes, mesmo que eu conseguisse amá-lo. Nunca houve duas pessoas tão desiguais. Não temos um único gosto em comum. Havíamos de ser desgraçados.

– Está enganada, Fanny. A desigualdade não é tão grande. Ambos são até bastante semelhantes. Vocês têm gostos em comum. Vocês têm gostos morais e literários em comum. Ambos têm o coração ardente e bons sentimentos; e Fanny, quem o ouviu ler Shakespeare e viu você ouvi-lo a noite passada, poderá achar que vocês não se combinam? Você se esquece: há realmente uma grande diferença nos seus temperamentos. Ele é espirituoso, você é séria; mas tanto melhor; o espírito dele sustentará o seu. Sua disposição é para desanimar-se facilmente e imaginar as dificuldades maiores do que realmente o são. Ele não vê dificuldades em coisa alguma: e a sua jovialidade e a alegria serão um constante auxílio para você. O fato de ambos serem tão diferentes, Fanny, não impede, absolutamente, que venham a ser muito felizes juntos; não o creia. Eu mesmo estou convencido de que esta circunstância é antes favorável. Estou perfeitamente persuadido de que os temperamentos devem ser diferentes: quero dizer, diferentes na expansão dos espíritos, das maneiras, no gosto por maior ou menor companhia, na propensão para falar ou ficar em silêncio, em ser séria ou alegre. Algumas oposições tais como essas, estou inteiramente convencido, são favoráveis à felicidade conjugal. Excluo, naturalmente, os extremos; e uma semelhança muito próxima em todos esses pontos, seria a mais provável a produzir um extremo. Uma certa incompatibilidade, suave e contínua, é a melhor segurança para as maneiras e a conduta.

Bem sabia Fanny onde estavam os pensamentos dele naquele momento, que a influência de Miss Crawford o estava dominando novamente. Desde que voltara para casa, não se cansava de referir-se a ela alegremente. A intenção de a evitar estava inteiramente esquecida. Havia jantado no Presbitério ainda no dia precedente.

Depois de o deixar por alguns minutos entregue aos seus mais felizes pensamentos, Fanny, pensando ser aquilo o seu dever, voltou a falar sobre Mr. Crawford:

– Não é somente quanto ao temperamento que eu o considero totalmente inconveniente para mim, embora, nesse ponto, acho a diferença entre nós demasiadamente grande, infinitamente grande; suas pilhérias em geral me oprimem; há, porém, nele alguma coisa que eu ainda faço mais objeção. Devo dizer, meu primo, que não posso aprovar o caráter de Mr. Crawford. Desde o tempo da representação que faço mau juízo dele. Naquela ocasião vi-o comportar-se tão inconveniente e insensivelmente – agora posso falar porque está tudo acabado – inconvenientemente para com o pobre Mr. Rushworth, não parecendo incomodar-se de como o expunha ou feria, fazendo corte à minha prima Maria, que a impressão se gravou em mim e nunca mais passará.

– Minha querida Fanny – respondeu Edmund, a custo ouvindo-a até o fim – não nos deixemos julgar, nenhum de nós, pelo modo como nos conduzimos naquele período de loucura geral. Foi um tempo que eu detesto recordar. Maria procedeu mal, Crawford também, todos nós andamos mal; mas ninguém andou pior do que eu. Comparando-se a mim, todos os outros foram irrepreensíveis. Eu fiz papel de bobo, conscientemente.

– Como espectadora – disse Fanny – talvez eu tenha visto mais do que você; e algumas vezes senti que Mr. Rushworth ficava com bastante ciúme.

– Possivelmente. Não admira. Nada poderia ser mais inconveniente do que todo o negócio. Fico envergonhado quando penso que Maria pudesse ser capaz de uma tal conduta; mas se ele pôde desempenhar tal papel, não podemos nos admirar dos outros.

– Antes da representação, se Julia estava pensando que ele lhe fazia a corte, eu devo estar muito enganada.

– Julia! Já ouvi alguém dizer que ele estava apaixonado por Julia; mas nunca percebi coisa alguma. E Fanny, não desfazendo das boas qualidades de minhas irmãs, creio muito possível que elas, – uma delas, ou ambas, – estivessem muito desejosas da admiração de Crawford e talvez tivessem mostrado esse desejo mais abertamente do que a prudência o exigia. Lembro que elas evidentemente eram loucas pela companhia dele; e com tal facilidade, um homem vivo e, talvez, um pouco inconsciente, como Crawford, podia ser levado a... Não poderia ser coisa muito notável, porque está claro que não tinha pretensões: o coração dele estava reservado para você. E devo dizer que essa inclinação dele por você o elevou inconcebivelmente na minha opinião. Só esse fato lhe dá grande crédito; demonstra o exato valor que ele dá à felicidade doméstica e à pura afeição. Prova que não foi corrompido pelo tio. Prova que ele é, em resumo, tudo que eu desejava acreditar que fosse e que temia não ser.

– Estou convencida que ele não leva em consideração, como devia, as coisas sérias.

– Diga, antes, que ele não pensou em coisas sérias, o que me parece ser uma grande parte do caso. Como poderia ser diferente, com uma tal educação e um tal conselheiro? Sob essas desvantagens que ambos tiveram não é, na verdade, admirável que ainda sejam o que são? Crawford, até aqui, estou pronto a reconhecer, tem se deixado guiar inteiramente pelos sentimentos. Felizmente esses sentimentos têm sido geralmente bons. Você lhe proporcionará o resto; e afortunado é o homem que se afeiçoou a uma tal criatura – a uma mulher, que, firme como uma rocha em seus próprios princípios, possui uma delicadeza de caráter tão propícia a recomendá-los. Ele escolheu a sua companheira, na verdade, com rara felicidade; ele a fará feliz, Fanny; sei que ele a fará feliz; mas você fará tudo dele.

– Não me proponho a tomar um tal encargo – exclamou Fanny – um tal encargo e uma tal responsabilidade!

– Como sempre, achando-se incapaz de tudo! Imaginando que tudo é demais para você! Bem, conquanto eu não seja capaz de persuadi-la a pensar de outra maneira, espero que você mesma se persuadirá. Confesso-me sinceramente ansioso por que mude. O interesse que tenho pelo bem estar de Crawford não é comum. Depois da sua felicidade, Fanny, é pela dele que eu mais me interesso. Você sabe que eu me interesso muito por Crawford.

Fanny sabia suficientemente bem, para encontrar o que dizer, e caminharam uns cinqüenta metros, ambos em silêncio e abstração. Edmund foi o primeiro a falar:

– Fiquei tão contente pela maneira como ela ontem falou sobre o assunto! Fiquei mais particularmente satisfeito, porque não havia julgado que ela tivesse um tão justo ponto de vista sobre a questão. Sabia que ela a estimava muito Fanny; contudo ainda receava que ela não avaliasse as suas qualidades em relação ao irmão, exatamente como o mereciam, que sentisse não haver ele escolhido alguma outra mulher de maior distinção e fortuna. Tinha receio da influência daquelas máximas mundanas que ela estava tão acostumada a ouvir. Mas foi diferente. Falou sobre você, Fanny, justamente como o devia. Ela deseja o casamento tão ardentemente quanto meu pai e eu próprio. Conversamos muito. Embora estivesse aflito para saber o que ela pensava, não teria tocado no assunto; mas não estava ainda há cinco minutos na sala, quando ela começou a falar sobre o caso com toda aquela franqueza agradável e pessoal, aquela arte espiritual que tanto a caracteriza. Mrs. Grant riu-se da pressa com que ela entrou no assunto.

– Mrs. Grant estava, então, na sala?

– Sim, quando cheguei encontrei as duas irmãs sozinhas; e não tínhamos ainda terminado de falar sobre você quando Crawford e o Dr. Grant entraram.

– Faz mais de uma semana que não vejo Miss Crawford.

– É, ela se queixou; contudo reconhece que deve ter sido melhor assim. Você, porém, a verá antes de ela ir. Está muito zangada, mas pode imaginar como é zangada. É o sentimento e a decepção de uma irmã, que pensa ter o irmão o direito a tudo que deseja logo que o manifesta. Ela está sentida, como você o estaria por William; no entanto ama-a de todo coração.

– Sabia que ela ficaria zangada comigo.

– Minha querida Fanny – exclamou Edmund – não se aflija com a idéia de ela estar zangada. É uma zanga mais para ser falada do que sentida. O coração dela é feito para o amor e para a ternura, não para o ressentimento. Queria que você tivesse ouvido como a elogiou; queria que você visse o semblante dela, quando disse que você seria a esposa de Henry. E observei que ela se referiu todo o tempo a você como a Fanny, o que não costumava fazer; e com a mais perfeita cordialidade de uma irmã.

– E Mrs. Grant, ela disse... ela falou... esteve presente todo o tempo?

– Sim, estava inteiramente de acordo com a irmã. A surpresa que a sua recusa causou, Fanny, parece ter sido sem limites. Não podem compreender que você rejeite um homem como Henry Crawford. Defendi-a como pude; mas, a falar a verdade, conforme elas expõem o caso – você, logo que o possa, tem que provar por uma conduta diferente, que não está privada dos sentidos; nada mais as contentará. Mas não quero aborrecê-la mais. Não direi mais nada. Não precisa fugir de mim.

– Eu teria suposto – disse Fanny, depois de um tempo de reflexão e esforço – que qualquer mulher deveria compreender a possibilidade de um homem não ser aprovado, não ser amado por qualquer outra mulher, fosse ele geralmente considerado agradável. Tenha ele, embora, todas as perfeições do mundo, creio que não deveria ser considerado como coisa certa que um homem tem que ser aceito necessariamente por toda mulher de quem por acaso venha ele a gostar. Mas mesmo supondo que assim o fosse, admitindo que Mr. Crawford tenha todos os direitos que lhe atribuem suas irmãs, como poderia eu estar prepara para lhe corresponder com sentimentos iguais aos seus? Ele me apanhou de surpresa. Não tinha a mínima idéia de que as atenções dele para comigo tivessem qualquer significação; e certamente não seria de esperar que eu me persuadisse a gostar dele, só porque ele estava, como parecia, se divertindo comigo. Na minha situação, teria sido excesso de vaidade nutrir esperanças sobre Mr. Crawford. Estou certa de que as irmãs dele, tendo na conta em que o tem, devem ter pensado isso, supondo que ele não tivesse nenhuma intenção. Como então eu poderia estar... estar apaixonada por ele, no momento que ele disse o estar por mim? Como poderia eu ter uma afeição para lhe servir, logo que ele a pediu? As irmãs deviam pensar também em mim. Quanto mais elevadas fossem as qualidades de Mr. Crawford, menos possibilidades havia de jamais eu pensar nele. E, e, – nós pensamos muito diversamente sobre a natureza das mulheres, se elas imaginam que uma mulher pode tão depressa retribuir um afeto, como esse caso parece indicar.

– Minha muito, minha querida Fanny, agora sei da verdade. Sei que esta é a verdade; e sentimento algum poderia ser mais digno de você. Já antes eu lho tinha atribuído. Pensei que a tinha compreendido. Você agora me deu a explicação exata, a mesma que eu me arrisquei a dar em seu nome à sua amiga e a Mrs. Grant e foi o que melhor as contentou, embora a sua afetuosa amiga ainda divagasse um pouco, dado o entusiasmo que tem por Henry. Eu lhe disse que de todas as criaturas humanas, você era uma sobre quem o hábito tinha a máxima influência e a novidade nenhuma; e que as próprias declarações de Crawford, por constituírem novidade, só podiam depor contra ele. Pelo fato de serem tão inesperadas, só lhe poderiam ser desfavoráveis; que você não tolerava coisa alguma a que não estivesse habituada; e fui por aí afora, para lhes dar uma demonstração do seu caráter. Miss Crawford nos fez rir com os projetos que fez para animar o irmão. Ela pretende insistir com ele para que persista na esperança de ser amado algum dia e de ver as homenagens dele recebidas com mais benevolência depois de cerca de dez anos de felicidade conjugal.

Fanny dificilmente pôde sorrir como ele esperava. Seu espírito estava em confusão. Receava ter dito demais, saindo da cautela que supunha necessária; ao procurar salvar-se de uma desgraça, tinha caído noutra; e o terem-lhe repetido a leviandade de Miss Crawford sobre o assunto fora mais um agravo.

Edmund percebeu o desânimo e a tristeza na fisionomia dela e imediatamente resolveu acabar com toda a discussão; e nem mesmo mencionar novamente o nome de Crawford, exceto quando tivesse ligação com o que devia ser agradável a Fanny. Com esse princípio, logo depois observou:

– Devem partir na segunda feira. Você, portanto, pode estar certa de ver a sua amiga ou amanhã ou domingo. Porém eles vão realmente na segunda feira; e pensar que eu quase me deixei persuadir a ficar em Lessingby até aquele dia! Quase cheguei a prometer! Que diferença teria feito! Esses cinco ou seis dias mais em Lessingby seriam sentidos toda minha vida.

– Você estava pensando em ficar por lá?

– Sim. Insistiram comigo tão amavelmente, que eu estava quase consentindo. Se tivesse recebido alguma carta de Mansfield, para dizer-me como vocês todos iam passando, creio que certamente teria ficado; mas não tinha notícias daqui há uma quinzena e achei que já estava ausente há bastante tempo.

– Você se divertiu muito lá?

– Sim; isto é, se não me diverti mais, é que o meu espírito não permitiu. São todos muito amáveis. Duvido que me julguem da mesma forma. Levei meu mal estar comigo e dele não consegui me ver livre senão depois que voltei para Mansfield.

– As Misses Owen, você gostou delas, não?

– Sim, muito. Amáveis, bem humoradas, simples. Mas eu estou estragado, Fanny, para a companhia feminina em geral. Essas moças boazinhas, simples, não servem para um homem que está habituado à companhia de outras mulheres de mais senso. São seres inteiramente diversos. Você e Miss Crawford me tornaram demasiadamente exigente.

Mesmo assim, Fanny continuava oprimida e desanimada; percebia-se pelo seu olhar, não era possível distraí-la; e não querendo mais tentar, ele a conduziu, com a amável autoridade de um guardião privilegiado, diretamente para casa.

 

Edmund, agora, acreditava-se perfeitamente a par de tudo que Fanny poderia dizer ou poderia deixar adivinhar de seus sentimentos, e ficou satisfeito. Crawford, como ele previra, havia sido demasiadamente precipitado, quando devia ter dado tempo para que a idéia, em primeiro lugar, se tornasse familiar e, então, agradável a Fanny. Ela tinha que se acostumar à noção de que ele a amava e então uma retribuição de afeto talvez não estivesse muito distante.

Deu ao pai a sua opinião sobre o que havia concluído da conversa; e recomendou que não lhe dissessem mais nada; nenhuma nova tentativa de a influenciar ou persuadir; que tudo fosse deixado por conta da assiduidade de Crawford e da ação natural da consciência dela própria.

Sir Thomas prometeu que assim se faria. Podia encontrar como justas as impressões de Edmund sobre a disposição de Fanny; supunha que ela tivesse todos aqueles sentimentos mas não podia deixar de considerar como um infortúnio que ela os tivesse; pois menos propenso do que o filho a confiar no futuro, receava que, se um tão longo tempo se tornava necessário para ela se habituar a uma idéia, talvez, quando chegasse a se persuadir a receber convenientemente as homenagens dele, a inclinação do rapaz já não existisse. Não havia, porém, coisa alguma a fazer senão submeter-se quietamente e esperar pelo melhor.

A prometida visita da “amiga”, como Edmund se referia a Miss Crawford, constituía uma formidável ameaça para Fanny e ela viveu num constante terror daquilo. Como irmã, tão parcial e tão zangada, tão pouco escrupulosa do que dizia e por outro lado, tão triunfante e segura, Miss Crawford era por todos os modos um doloroso alarma. Era terrível ter que defrontar-se com o desgosto, a penetração e a felicidade dela; e sua única esperança era que, quando viessem a encontrar-se, o resto da família estivesse presente. Afastava-se o menos possível do lado de Lady Bertram, evitava permanecer na sala de Leste e não passeava sozinha no jardim, para impedir qualquer ataque inesperado.

Teve sorte. Quando Miss Crawford chegou, ela estava a salvo na sala de almoço junto da tia, e tendo passado pelo primeiro perigo, como Miss Crawford falou e aparentou muito menos particularidade de expressões do que ela havia receado, Fanny criou alma nova e esperou que nada pior teria de suportar, além de meia hora de razoável agitação. Mas era esperar demasiadamente; Miss Crawford não era dessas que aguardam oportunidade. Estava decidida a falar com Fanny a sós e portanto foi logo lhe dizendo em voz baixa:

– Preciso falar com você um minuto, em qualquer outra parte.

Palavras estas que Fanny sentiu em todo o seu ser, em todos os seus nervos. Negar era impossível. Seu hábito de obedecer imediatamente, ao contrário, fez com que ela se levantasse quase no mesmo instante e a convidassem a saírem da sala. Sentia-se infeliz, mas era inevitável.

Mal tinham saído para o hall, Miss Crawford pôs de lado todo constrangimento. Imediatamente meneou a cabeça para Fanny, numa censura, ao mesmo tempo maliciosa e afetuosa, e tomando-lhe a mão, pareceu estar custando a conter-se para não entrar no assunto diretamente. Não disse mais, porém, senão:

– Triste, triste criatura! Não sei quando acabarei de a repreender – reservando, discretamente, o resto para quando estivesse garantido pela proteção de quatro paredes.

Fanny, naturalmente, levou-a para o apartamento que agora estava sempre em condições de ser por ela usado com conforto; abriu a porta, contudo, com o coração apertado, sentindo que a cena que a aguardava seria mais dolorosa do que qualquer outra que aquele compartimento jamais testemunhara. Mas a desgraça que estava para cair sobre ela foi, ao menos, retardada por uma súbita mudança nas idéias de Miss Crawford; pelo efeito produzido em seu espírito ao encontrar-se novamente na sala de Leste.

– Ah! – exclamou ela com repentina animação – aqui estou eu de novo? A sala de Leste! Só estive aqui uma vez; – e depois de olhar em volta como se quisesse recordar-se de tudo o que se havia passado, acrescentou: – apenas uma vez. Você se lembra? Vim para ensaiar. Seu primo veio também; e ensaiamos juntos. Você serviu de audiência e ponto. Um ensaio bem divertido! Nunca o hei de esquecer. Estávamos justamente neste canto; seu primo estava ali, eu estava aqui, e lá estavam as cadeiras. Oh! Por que essas coisas acabam?

Felizmente ela não exigia resposta. Estava inteiramente entregue aos próprios pensamentos, imersa em doces recordações.

– A cena que estávamos ensaiando era tão notável! O assunto era tão... tão... Como direi? Ele devia descrever e recomendar-me o matrimônio. Parece que o vejo agora, tentando fazer-se tão modesto e sereno como o devia ser no papel de Anhalt, repetindo os dois longos diálogos. “Quando dois corações se amam e se encontram junto ao altar, o matrimônio deve ser considerado como uma felicidade na vida”. Creio que não haverá tempo capaz de apagar a impressão que tive do olhar e da voz com que ele proferiu essas palavras. Foi curioso, muito curioso, que tivéssemos de representar uma tal cena! Se eu tivesse o poder de voltar a qualquer semana da minha existência, seria àquela semana – a semana da representação. Você pode pensar o que quiser, Fanny, seria aquela semana; pois nunca senti uma tão esquisita felicidade em nenhuma outra. O espírito dele, tão afeito a vencer, como foi vencido naquela semana! Oh! Não há expressões capazes de descrever tanta ternura. No entanto, ah! tudo foi destruído naquela mesma noite. Naquela mesma noite veio o seu mais que desagradável tio. Pobre Sir Thomas, quem ficou contente com a sua presença? Contudo, Fanny, não imagine que eu seria agora capaz de falar desrespeitosamente de Sir Thomas, não obstante o ter, certamente, odiado durante muitas semanas. Não, agora faço-lhe justiça. Ele é justamente o que deve ser um chefe para tal família. Nada mais tenho contra Sir Thomas, agora reconheço que amo a vocês todos. – Tendo dito isto, com uma ternura que Fanny nunca presenciara nela e que achava encantadora, Mary virou-se por um momento para recobrar a tranqüilidade. – Desde que entrei nesta sala, tive um pequeno acesso de loucura, você deve ter percebido – disse ela, depois, já sorrindo – mas está acabado; vamo-nos, pois, sentar e ficar a cômodo; porque, quanto à repreensão que eu pretendi fazer a você, Fanny, agora que chegou o momento, não tenho coragem. – E abraçando-a muito carinhosamente: – Boa, meiga Fanny! Quando penso que esta é a última vez, até não sei quando, que eu a vejo, sinto ser inteiramente impossível fazer outra coisa senão amá-la.

Fanny ficou comovida. Não tinha esperado por isso e seu coração raramente podia suportar a melancólica influência da palavra “última”. Chorou como se tivesse amado Miss Crawford mais do que lhe era possível; e Miss Crawford, mais tocada ainda por uma tal emoção, abraçou-a com mais ternura e disse:

– Detesto ter de deixá-la. Aonde vou não encontrarei ninguém de quem goste tanto. Quem dirá que nós ainda havemos de ser irmãs? Sei que o seremos. Sinto que nascemos para ser parentes; e estas lágrimas convencem-me de que você também o sente, querida Fanny.

Fanny levantou-se e respondendo apenas em parte, disse:

– Mas você vai apenas trocar um grupo de amigos por outro. Vai ver uma amiga muito íntima.

– Sim, é verdade. Mrs. Fraser é minha amiga íntima há anos. Mas não tenho a menor vontade de vê-la agora. Não penso senão nos amigos que vou deixar; minha excelente irmã, você e os Bertrams em geral. A afeição que se encontra entre vocês todos é muito maior do que a que se encontra pelo mundo afora. Vocês me dão a sensação de que posso ter confiança em todos, o que não se sente num meio comum. Desejava ter combinado com Mrs. Fraser só ir para lá depois da Páscoa, época muito melhor para se fazer visitas, mas agora não posso desapontá-la. E depois que estiver lá, tenho que ir para a casa da irmã, Lady Stornaway, porque esta era das duas, a minha amiga mais íntima; no entanto nesses três últimos anos já não me tenho interessado muito por ela.

Depois dessa conversa, as duas moças silenciaram por muitos minutos, cada uma entregue a seus próprios pensamentos. Fanny meditando sobre as diferentes espécies de amizades que havia no mundo. Mary sobre qualquer coisa de menos filosóficas tendências. Esta foi a primeira a falar.

– Como me lembro perfeitamente do dia em que resolvi procurá-la aqui em cima e saí para encontrar o caminho da sala de Leste, sem ter a mínima idéia de onde ficava! Como me lembro bem do que vinha pensando pelo caminho e quando a espiei e a vi aqui sentada trabalhando; e depois o espanto de seu primo quando, ao abrir a porta, deu comigo aqui! E pensar que seu tio voltou naquela mesma noite!

Seguiu-se outra curta meditação, depois, como que despertando, Mary dirigiu-se à companheira.

– Pois que, Fanny, você está absolutamente entregue ao devaneio! Pensando. Espero que seja na pessoa que está sempre pensando em você. Oh! Se eu pudesse transportá-la, um minuto que fosse, para o nosso círculo na cidade, para que pudesse compreender o que pensam lá do seu domínio sobre Henry! Oh! A inveja, o ódio, de dúzias e dúzias! A admiração, a incredulidade que manifestarão ao ouvir o que você fez! Pois quanto a segredo, Henry é bem como um herói de romance antigo, e se vangloria das próprias cadeias. Devia vir a Londres para poder avaliar a sua conquista. Se visse como ele é cortejado e como me agradam por causa dele! Agora, tenho certeza de que não serei tão bem recebida por Mrs. Fraser, em conseqüência da situação de Henry com você. Quando ela souber da verdade, muito provavelmente desejará ver-me novamente em Northamptonshire; porque existe uma filha de Mr. Fraser, do primeiro matrimônio, que ela está louca por ver casar e quer que Henry seja o marido. Oh! E tem feito tudo para conseguir isso. Inocente e tranqüila como você se acha aqui, não pode fazer uma idéia da sensação que irá causar, da curiosidade que terão em vê-la, da infinidade de perguntas a que eu terei de responder! Pobre Margareth Fraser, não descansará enquanto não souber bem como são os seus olhos, os seus dentes, como você penteia os cabelos e quem fabrica os seus sapatos. Para o bem de minha pobre amiga, desejava que Margareth não fosse casada, pois considero os Frasers tão mal casados como muitos casais que conheço. E contudo, na ocasião, parecia uma casamento muito desejável para Janet. Todos nós estávamos satisfeitos. Ela não podia deixar de aceitá-lo, visto que ele era rico e ela não tinha nada; no entanto ele se revelou malcriado e exigente, e quis que uma moça, bonita e de vinte e cinco anos tivesse tanta firmeza de caráter quanto ele. E minha amiga não soube manejá-lo bem; parece-me que não soube como tirar partido da situação. Houve uma certa irritação de parte a parte que, para não dizer nada pior, foi certamente muito indecorosa. Na casa deles eu hei de me lembrar com respeito das maneiras conjugais da Paróquia de Mansfield. Até mesmo o Dr. Grant sabe demonstrar uma perfeita confiança em minha irmã, uma certa consideração pelas opiniões dela, o que dá a entender que já houve afeição; com os Frasers não verei nada disso. Meu espírito estará para sempre em Mansfield, Fanny. Minha irmã como esposa, Sir Thomas Bertram como marido, serão os meus modelos de perfeição. Pobre Janet, foi tristemente enganada e no entanto não houve inconveniência alguma de sua parte; ela não se atirou ao casamento inconsideradamente. Não houve falta de previsão. Levou três dias para considerar sobre as propostas dele e durante esses três dias pediu conselhos a todo mundo que conhecia cujas opiniões eram dignas de ser ouvidas e dirigiu-se especialmente à minha querida tia, cujo conhecimento do mundo fazia com que o seu julgamento fosse geralmente e merecidamente observado por todas as pessoas jovens de suas relações; e minha tia foi decididamente a favor de Mr. Fraser. Isto dá a entender que não há nada capaz de assegurar a felicidade conjugal. Já da minha Flora não posso dizer tanto; pois Flora desprezou um excelente rapaz em Blues por causa daquele horrendo Lord Stornaway, que não tem mais senso, Fanny, do que Mr. Rushworth e é além disso muito mais feio e com um péssimo caráter. Eu tive minhas dúvidas na ocasião, pois ele não tem sequer um leve ar de distinção, e agora tenho certeza de que ela errou. E no entanto, Flora Ross ficou louca por Henry no primeiro inverno depois que foi apresentada. Mas se eu quisesse contar todas as mulheres que sei estarem apaixonadas por ele, nunca acabaria. Só você, apenas você, Fanny insensível, é quem pode pensar em Henry com indiferença. Será, porém, que você é tão insensível quanto pretende ser? Não, não, eu vejo que não o é.

De fato Fanny corou tão intensamente naquele momento, que qualquer espírito predisposto teria visto nisto um forte motivo para suspeita.

– Excelente criatura! Não quero aborrecê-la mais. Tudo que tiver de acontecer virá a seu tempo. Mas Fanny, querida, não pode admitir que não estivesse absolutamente preparada para receber a proposta, como o seu primo imagina. Não é possível que você já não tivesse pensado um pouco sobre o assunto, que tivesse alguma idéia do que poderia ser. Deve ter visto que ele procurava agradá-la por todos os meios ao seu alcance. Durante o baile, não esteve inteiramente dedicado a você? E mesmo antes do baile, a questão do colar! Oh! Você o recebeu justamente como ele pretendia. Estava tão consciente quanto era de desejar. Lembro-me perfeitamente.

– Quer dizer, então, que seu irmão sabia de antemão aquele negócio do colar? Oh! Miss Crawford, isto não foi correto.

– Se o sabia! Pois se foi idéia dele inteiramente! Envergonho-me de confessar que não me tinha ocorrido fazer aquilo, mas fiquei encantada de poder agir em favor de vocês dois.

– Não digo – respondeu Fanny – que não estivesse um tanto receosa, naquela ocasião, de que houvesse alguma combinação, pois percebi em seu olhar qualquer coisa que me assustou – mas não a princípio... A princípio não tive a menor suspeita – na verdade não tive. É tão verdade como eu estar sentada aqui agora. E se eu tivesse a mínima idéia, não teria de forma alguma aceitado o colar. Quanto ao procedimento de seu irmão, certamente que percebi uma certa particularidade; percebi-o faz algum tempo talvez há duas ou três semanas; mas considerei então que aquilo não passava de um divertimento. Tomei tudo como se fosse simplesmente um novo modo dele e estava tão longe de supor quanto de desejar que ele estivesse pensando seriamente em mim. Eu não pude deixar, Miss Crawford, de observar atentamente o que se passou entre ele e uma certa parte desta família durante o verão e o outono. Não falava, mas não era cega. Não podia deixar de ver que Mr. Crawford gostava muito de dispensar atenções que não queriam dizer nada.

– Ah! Não o posso negar. Ele de fato tem sido muito namorador e pouco tem se importado com os estragos nos corações de muitas moças. Muitas vezes censurei-o por isso, mas essa era a sua única falta; e, deixe que se diga, muito poucas moças têm afeições dignas de serem levadas em consideração. Por isso, Fanny, a glória está em prender alguém que tem sido cobiçado por tantas; em ter o poder de vingar o próprio sexo! Oh! Não acredito que mulher alguma tenha recusado esse triunfo.

Fanny balançou a cabeça.

– Não posso acreditar num homem que brinca com os sentimentos de outra qualquer mulher; e deve ter havido, muitas vezes, muito mais sofrimento do que uma pessoa alheia possa julgar.

– Não o defendo. Deixo-o inteiramente entregue à sua misericórdia e quando você estiver com ele em Everingham, pouco me importa quantos sermões lhe passe. Mas uma coisa posso dizer, que o defeito de Henry, fazendo com que as pequenas fiquem um pouquinho apaixonadas por ele, não é tão perigoso para a felicidade de uma esposa como uma tendência a apaixonar-se ele próprio, o que nunca lhe aconteceu. E eu, séria e sinceramente acredito que ele a ama de forma como nunca amou nenhuma outra mulher; que a ama de todo o coração e que a amará para sempre. Se existe algum homem capaz de amar uma mulher para sempre, acredito que seja Henry em relação a você.

Fanny não pôde evitar um pálido sorriso, mas não disse nada.

– Não acredito que Henry jamais tenha sido tão feliz – continuou Mary – como quando conseguiu obter a promoção de seu irmão.

Neste ponto levou uma grande vantagem sobre os sentimentos de Fanny.

– Oh! Sim, ele foi tão... Tão bondoso.

– Sei que ele deve ter empregado os maiores esforços, pois conheço as pessoas a quem teve de pedir. O Almirante odeia incomodar-se e não admite pedir favores; e existem pedidos de tantos rapazes para serem atendidos da mesma maneira que, a não ser por muita amizade e uma grande força de vontade, são facilmente esquecidos. Que feliz criatura William deve ser! Desejava poder vê-lo.

Pobre Fanny, seu espírito caiu na mais dolorosa das confusões. As lembranças do que havia sido feito por William era sempre a mais poderosa destruidora de todas as decisões contra Mr. Crawford; e ela ficou por muito tempo em profunda meditação, até que Mary, que a princípio a observava complacentemente, passando depois a devanear sobre outra coisa qualquer, subitamente lhe chamou a atenção dizendo:

– Desejaria poder ficar aqui conversando com você o dia todo. No entanto não podemos esquecer as senhoras lá embaixo; por isso, adeus minha querida, minha amável, minha excelente Fanny, pois que embora nós tenhamos que nos despedir oficialmente lá na sala de almoço, é aqui que eu quero me despedir de você. E me despeço, desejando que brevemente tenhamos a felicidade de nos reunir e esperando que quando isso se der, seja em circunstâncias que nos permitam abrir mutuamente nossos corações, sem nenhum remanescente ou nenhuma sombra de reserva.

Um abraço afetuoso acompanhou essas palavras.

– Brevemente verei seu primo na cidade; ele fala em ir lá dentro de pouco tempo; e Sir Thomas, quero crer, durante a primavera; o seu primo mais velho, os Rushworth e Julia, tenho certeza de que os encontrarei freqüentemente; todos, menos você. Tenho dois favores para lhe pedir, Fanny: um é que me escreva. Deve escrever-me. E o outro, que procure Mrs. Grant muitas vezes e procure consolá-la durante a minha ausência.

O primeiro desses favores, pelo menos, Fanny preferia que não lhe tivessem pedido; era-lhe, porém, impossível não aceder mais prontamente do que tinha vontade. Não havia como resistir a uma afeição tão aparente. Sua índole era de molde a dar especial valor a qualquer tratamento carinhoso por ter até então conhecido tão pouco tais tratamentos, mais cativa ficou pelo modo como Miss Crawford a tratou. Além disso, estava-lhe grata por ter tornado o tête-à-tête tão menos penosos do que os seus receios haviam predito.

Estava tudo acabado e ela escapara sem censuras e sem descobertas. Seu segredo ainda lhe pertencia; e enquanto assim o fosse, ela achava que nada mais importava.

À noite houve outra despedida. Henry Crawford veio e permaneceu algum tempo com eles; e o espírito de Fanny não estando prevenido, seu coração comoveu-se algum tempo, porque o moço realmente parecia sofrer. Inteiramente diferente do que costumava ser, ele quase não falou. Estava evidentemente oprimido e Fanny devia sofrer por ele, embora desejando não o ver nunca mais, até que estivesse casado com alguma outra mulher.

Quando chegou o momento da despedida, ele lhe tomou a mão; não permitiria que ela a negasse; não disse nada, porém, ou nada que ela ouvisse e quando saiu da sala, Fanny sentiu-se mais contente por aquele sinal de amizade ter sido dispensado.

No dia seguinte os Crawfords partiram.

 

Depois que Mr. Crawford partiu, o primeiro cuidado de Sir Thomas foi fazer com que a ausência dele fosse notada; e alimentou grande esperança de que a sobrinha encontraria um vácuo na perda daquelas mesmas atenções que na ocasião havia considerado, ou imaginado uma desgraça. Fanny experimentara o sabor da admiração em suas formas mais lisonjeiras; e ele esperava que a perda desse sabor, o mergulhar novamente no nada, haveria de lhe causar os maiores arrependimentos. Observava-a com esta idéia; mas dificilmente podia notar alguma mudança. Era difícil, realmente, saber se havia ou não alguma diferença no espírito da moça. Ela era geralmente tão suave e retraída, que as suas emoções escapavam à observação do tio. Não a compreendia; pelo menos assim pensava; e portanto dirigiu-se a Edmund para que ele lhe dissesse até que ponto ela estava afetada naquele momento, e se se sentia mais ou menos feliz do que antes.

Edmund não percebeu nenhum sintoma de arrependimento e achou que o pai não estava sendo muito razoável, ao supor que os três primeiros dias poderiam produzir qualquer mudança naquele sentido.

O que principalmente surpreendia Edmund, é que ela não mostrasse mais claramente sentir a falta da irmã de Crawford, a amiga e companheira, que fora tanto para ela. Admirava-se de que Fanny se referisse tão raras vezes a ela e que estivesse espontaneamente tão pouco a dizer sobre Mary depois daquela separação.

Ah! Essa irmã, essa amiga e companheira é que era agora a principal inimiga da tranqüilidade de Fanny. Se ela pudesse acreditar que o futuro de Mary estava tão desligado de Mansfield como ela sabia que estaria o do irmão, se pudesse ter a esperança de que a volta de Mary para ali estava tão distante quanto ela quase acreditava que estivesse a de Henry, sentir-se-ia na verdade descansada; mas quanto mais pensava e observava, mais profundamente se convencia de que mais do que nunca tudo agora caminhava a favor do casamento de Miss Crawford com Edmund. Do lado dele a inclinação era mais forte e do dela menos equívoca. As objeções e os escrúpulos do primo tinham se sumido, ninguém sabia como e as dúvidas e hesitações motivadas pela ambição dela tinham igualmente desaparecido; e igualmente sem motivo aparente. Só se fosse atribuído a um aumento de afeição. As boas qualidades dele e os defeitos dela se haviam rendido ao amor e tal amor devia uni-los. Ele deveria ir para a cidade, logo que alguns negócios referentes a Thorton Lacey estivessem concluídos, talvez, dentro de quinze dias; Edmund falava em ir, gostava de aludir a isso; e quando a visse novamente, Fanny não duvidava do resto. Tinha tanta certeza de que ela aceitaria quanto de que ele a pediria; contudo, subsistiam ainda certos defeitos que tornavam o futuro muito triste, mesmo, acreditava ela, independentemente de si mesma.

Na última conversa que tiveram, Miss Crawford, apesar de algumas ternas emoções e muita bondade pessoal, ainda continuava a ser Miss Crawford; continuava a mostrar um espírito perturbado, distraído. Ela talvez o amasse, mas não merecia Edmund por nenhum outro sentimento. Fanny não acreditava que houvesse um único pensamento em comum entre eles; e ela teria sido perdoada por qualquer filósofo mais antigo, por considerar como quase incrível a possibilidade de Miss Crawford vir a aperfeiçoar-se no futuro; pois que se a influência de Edmund, em plena estação do amor tinha feito tão pouco, que seria então depois de muitos anos de matrimônio!

A experiência teria esperado mais de qualquer pessoa jovem nestas circunstâncias e a imparcialidade não teria negado à natureza de Miss Crawford aquela parte da natureza das mulheres em geral que as leva a adotar as opiniões do homem que amam. Mas tal era a convicção de Fanny, que ela sofria muitíssimo com isso e nunca podia falar de Miss Crawford sem se sentir penalizada.

Neste ínterim, Sir Thomas continuava nutrindo suas próprias esperanças e prosseguindo nas suas próprias observações, achando ainda, de acordo com o conhecimento que possuía da natureza humana, que podia esperar ver um bom efeito no espírito de sua sobrinha, pela perda do poder e da importância, bem como das passadas homenagens do admirador, com o desejo de que tudo isso voltasse; e logo depois se convenceu de que não tinha, ainda, completa e indubitavelmente, notado essa mudança, em virtude da perspectiva de uma outra visita, cuja promessa era suficiente para erguer a moral do espírito que ele andava observando. William havia obtido licença de passar dez dias em Northamptonshire e vinha, o mais radiante dos tenentes, mostrar a sua felicidade e descrever o novo uniforme.

Um dia chegou; e teria gostado muito de mostrar, também, o uniforme, se não fosse o costume cruel que proibia o uso da farda a não ser em serviço. De forma que a farda ficou em Portsmouth e Edmund conjeturou que quando Fanny tivesse oportunidade de o ver já a sua frescura e o prazer do dono em usá-lo estariam muito diminuídas. Já traria em si a marca do desgosto; pois que coisa poderia ser mais indecente ou mais inútil, do que o uniforme de um tenente , que já foi tenente durante um ou dois anos, vendo outros passarem a comandante antes dele? Assim raciocinava Edmund, até que seu pai lhe confiou um projeto graças ao qual Fanny teria oportunidade de ver em toda sua glória, o segundo tenente do H.M. “Thrush”.

O plano consistia em Fanny acompanhar o irmão quando este voltasse para Portsmouth e lá passar algum tempo com a família. Ocorrera a Sir Thomas num de seus devaneios, que essa medida seria certa e desejável; antes de se resolver definitivamente, porém, consultou o filho. Edmund considerou o caso sob todos os pontos de vista e não encontrou nada que não fosse aconselhável. O plano em si era ótimo e não poderia ter sido feito em melhor época; tinha certeza, além do mais, que seria imensamente agradável a Fanny. Foi o bastante para Sir Thomas decidir-se; e um decisivo “então assim será feito” encerrou a primeira fase do negócio; Sir Thomas retirou-se com uma sensação de contentamento e a perspectiva de certas vantagens que não chegara a comunicar ao filho; pois o seu principal motivo em mandar a sobrinha, pouco tinha a ver com a conveniência de ela ver os pais e absolutamente nada com a idéia de lhe proporcionar um prazer. Ele com certeza desejava que ela fosse espontaneamente, mas também desejava que ela ficasse mortalmente aborrecida da casa antes de terminar o período da visita; que uma pequena abstinência das elegâncias e dos luxos de Mansfield Park lhe trouxesse mais lucidez ao espírito e a predispusesse a dar mais justo valor àquele outro lar de maior permanência e igual conforto que lhe era oferecido.

Era um plano de cura para a consciência da sobrinha que ele considerava presentemente enferma. A residência durante oito ou nove anos no meio da riqueza e da abundância, tinha posto um pouco em desordem a sua capacidade de julgar e comparar. A casa do pai, com toda a probabilidade, lhe ensinaria o valor de uma boa renda; e confiava que, por causa da experiência a que ele a submetia, ela viria a ser a mulher mais prudente e mais feliz para o resto da vida.

Se Fanny fosse sujeita a grandes entusiasmos, teria sofrido um forte ataque deles quando compreendeu o que pretendiam lhe fazer, quando o tio a primeira vez lhe perguntou se queria ir visitar os pais, os irmãos e irmãs, de quem ela estava separada quase a metade de sua vida; se queria voltar por um par de meses às cenas de sua infância, com William por protetor e companheiro durante a viagem e a certeza de continuar a ver William até o último momento em que ele permanecesse em terra. Houvesse ela jamais dado expansão às suas alegrias, teria sido naquele momento em que sentia tão alegre; mas a sua felicidade era calma, profunda, íntima e, conquanto nunca fosse muito faladeira, nos momentos em que seu sentimento era mais intenso, ela era justamente mais propensa ao silêncio. Na ocasião pôde apenas aceitar e agradecer. Depois, quando familiarizada com as perspectivas de divertimentos que tão subitamente lhe ofereciam, pôde falar mais à vontade a William e a Edmund sobre o que sentia; havia porém certas emoções de ternura que não poderiam ser exprimidas por palavras. A lembrança de todos os seus prazeres de infância, do que havia sofrido ao ser separada deles, veio-lhe com renovada intensidade; e lhe parecia que ao estar novamente em casa se sentiria curada de todos os sofrimentos causados pela separação. Estar novamente no meio daquele círculo, amada por tantos e mais amada por todos do que jamais havia sido; estimar sem receio ou constrangimento; sentir-se igual àqueles que a rodeavam; estar livre de toda referência aos Crawfords, salva de todo olhar de censura por causa deles – era uma perspectiva de ternuras que ela mal podia imaginar.

E Edmund também – ficar dois meses longe dele, (talvez ela pudesse conseguir ficar ausente por três meses) devia ser bom para ela. De longe, sem ver os seus olhos, sem receber as suas constantes atenções, livre da permanente irritação de observar-lhe as emoções, ou de fugir para lhe impedir as confidências, ela poderias, talvez, recobrar a serenidade, seria capaz de pensar nele e no que estaria fazendo em Londres, sem se sentir demasiadamente infeliz. O que teria sido duro de suportar em Mansfield, seria pequena desgraça em Portsmouth.

A única dúvida era se a tia Bertram poderia sem inconveniente dispensar a sua presença. Não era útil a mais ninguém; mas à tia, poderia fazer tal falta que nem gostava de pensar; e aquela parte do plano foi, realmente, a mais difícil para Sir Thomas acomodar que somente ele mesmo poderia ter acomodado.

Ele, porém, era o chefe de Mansfield Park. Depois de ter realmente resolvido sobre qualquer medida, infalivelmente a levava avante; e agora, depois de longa conversa sobre o assunto, explicando e repisando sobre o dever de Fanny ver, algumas vezes, a família, induziu a esposa a deixá-la ir; conseguiu-o, porém, mais por submissão do que por convicção, pois Lady Bertram não acreditava muito que Sir Thomas achava que Fanny devia ir e, por conseguinte, que ela fosse. Na tranqüilidade de seu quarto de vestir, na efusão imparcial de suas próprias meditações, livre dos embaraçantes argumentos, ela não podia se convencer de que houvesse necessidade de Fanny jamais visitar um pai e uma mãe que viveram tanto tempo e tão bem sem ela, enquanto que para ela própria era tão útil. E quanto a não lhe sentir a falta, o que na discussão era o ponto que Mrs. Norris tentava provar, ela própria se decidira firmemente a não admitir tal coisa.

Sir Thomas havia apelado para o seu juízo, sua consciência e dignidade. Dissera que era um sacrifício e exigiu de sua bondade e força de vontade. Mas Mrs. Norris quis persuadi-la de que ela poderia passar perfeitamente sem Fanny (ela estava pronta para lhe dedicar todo o seu tempo, logo que fosse pedido) e, em resumo, não poderia, realmente, precisar nem sentir falta da sobrinha.

– Pode ser que sim, minha irmã – foi tudo que Lady Bertram respondeu. – Acredito que você tenha razão; mas tenho certeza de que você sentirá a falta dela terrivelmente.

A fase seguinte foi comunicarem-se com Portsmouth. Fanny escreveu avisando; e a resposta de sua mãe, embora curta, foi tão bondosa – algumas poucas linhas, muito simples, exprimindo uma alegria tão natural, tão maternal, pela esperança de ver novamente a filha, que se confirmaram todas as perspectivas de felicidade da filha em estar com ela – convencendo-a de que agora encontraria uma amiga afetuosa e cordial na “mamãe”, que de fato antigamente não havia demonstrado muita ternura; mas isso ela facilmente supunha ter sido por sua própria culpa ou fantasia. Ela provavelmente havia afastado o amor com o seu temperamento fraco e tímido ou havia, injustamente, querido um quinhão maior do que cabia a qualquer um entre tantos filhos. Agora, porém, que já sabia como ser útil, como ser paciente e que a mãe já não estava tão ocupada pelas incessantes exigências de uma casa cheia de filhos pequenos, haveria mais tranqüilidade e mais gosto pelo bem estar e, em breve, elas seriam o que mãe e filha deviam ser uma para outra.

William estava quase tão radiante com a idéia quanto a irmã. Seria o maior prazer para ele estar a seu lado até o último momento de embarcar e talvez encontrá-la ainda lá quando voltasse de seu primeiro cruzeiro. Além disso, desejava tanto que ela visse o “Thrush” antes que saísse do porto (o “thrush” era sem dúvida a mais bela corveta em serviço); havia, também, várias reformas no cais que ele ardia de impaciência por lhe mostrar.

Não tinha mesmo escrúpulos em acrescentar que a permanência dela em casa por algum tempo seria de grande vantagem para todos.

– Não sei como é – disse ele; – mas parece que lá em casa a gente precisa um pouco dos seus modos distintos e metódicos. A casa está sempre em confusão. Quero crer que você dará um jeito em tudo. Você aconselhará mamãe e será tão útil a Susan, ensinará Betsey e fará com que os meninos a amem e respeitem. Que tranqüilidade será!

Quando chegou a resposta de Mrs. Price, restavam apenas muito poucos dias para ficar em Mansfield; e durante uma parte destes dias os jovens viajantes passaram alarmados sobre a questão da viagem, pois quando se falou na maneira como esta seria feita e Mrs. Norris viu que toda a sua ansiedade em economizar o dinheiro do cunhado era inútil e que apesar de seus desejos e insinuações de um meio dispendioso de condução para Fanny, ficou resolvido que eles viajariam pela costa; quando viu Sir Thomas entregar a William o dinheiro para esse fim, veio-lhe a idéia de que na carruagem havia lugar para uma terceira pessoa e subitamente sentiu uma grande vontade de ir com eles, para ver a sua pobre e querida irmã Price. Manifestou o seu pensamento. Devia dizer que estava quase resolvida a ir com os sobrinhos; seria um tão grande prazer para ela; não via a pobre e querida irmã Price há mais de vinte anos; e seria um benefício aos jovens durante a viagem terem uma cabeça mais velha para os controlar; e não podia deixar de pensar que sua pobre irmã Price acharia muito cruel de sua parte não aproveitar tal oportunidade.

William e Fanny ficaram aterrorizados com a idéia.

Toda tranqüilidade da sua viagem seria logo destruída. Olharam-se tristemente. Sua aflição durou uma ou duas horas. Ninguém interferiu para os animar ou dissuadir. Mrs. Norris ficou à vontade para resolver o caso por si mesma; e, para a infinita alegria dos sobrinhos, terminou por se lembrar que possivelmente naquele momento não poderia ser dispensada de Mansfield Park; que era demasiadamente necessária a Sir Thomas e a Lady Bertram para que os pudesse deixar nem que fosse por uma semana e, portanto, tinha que sacrificar todos os seus outros prazeres pelo de lhes ser útil.

De fato o que lhe ocorrera foi que embora não lhe custasse nada ir a Portsmouth, dificilmente lhe seria possível evitar as despesas da volta. Assim, a pobre e querida irmã Price tinha que se conformar com o desapontamento de Mrs. Norris não aproveitar tal oportunidade e um outro período de vinte anos, tinha, talvez começado.

Os planos de Edmund foram perturbados com essa viagem a Portsmouth, pela ausência de Fanny. Ele, também, tinha um sacrifício a fazer por Mansfield, como a tia. Tinha pensado em ir naqueles dias a Londres; mas não podia deixar os pais justamente quando todos os outros estavam viajando; e com um esforço, sentido mas não manifestado, adiou por uma ou duas semanas mais a viagem, na qual depositava todas as esperanças que tinha de assegurar a sua felicidade para sempre.

Pôs Fanny a par de seus projetos. Ela já sabia tanto que podia saber de tudo. Disso resultou um outro discurso confidencial sobre Miss Crawford; e Fanny ficou mais emocionada por pensar que essa ia ser a última vez em que o nome de Miss Crawford seria mencionado entre eles com certa liberdade. Uma vez, mais tarde, ele tornou a fazer alusão a ela. À noite, Lady Bertram estava dizendo à sobrinha que lhe escrevesse logo e freqüentemente, e prometendo ser ela própria uma boa correspondente; e Edmund, num momento oportuno, acrescentou em voz baixa:

– E eu também escreverei a você, Fanny, quando tiver alguma coisa que valha a pena escrever, qualquer coisa para dizer que eu creio que você gostará de ouvir, e que será a primeira a saber.

Mesmo que ela tivesse dúvida quanto à significação das palavras dele, a felicidade estampada em seu rosto quando olhou para ele tê-la-ia convencido.

Precisava preparar-se para uma tal carta. Que uma carta de Edmund fosse considerada um objeto de terror! Começou a acreditar que ela ainda não havia passado por todas as alterações de opinião e sentimento que o tempo e a variação de circunstância ocasionam neste mundo cheio de revezes. As vicissitudes da consciência humana não estavam ainda esgotadas para ela.

Pobre Fanny! Não obstante ir, como ia, espontaneamente, a última noite passada em Mansfield Park ainda teria de ser dolorosa. Seu coração estava completamente acabrunhado pela partida. Tinha lágrimas para cada um dos compartimentos da casa, muitas mais para cada um dos seus habitantes. Abraçou-se à tia, porque ela ia sentir a sua falta; beijou a mão do tio com estrangulados soluços, porque ela o havia desgostado; e quanto a Edmund, não podia falar, nem olhar, nem pensar, quando chegou o último momento de estar com ele; e não foi senão depois de tudo passado que percebeu que ele se despedia dela com um afetuoso adeus de irmão.

Tudo isso se passou no serão, pois a viagem começaria muito cedo na manhã seguinte; e quando o pequeno e disperso grupo se encontrou no primeiro almoço, William e Fanny foram mencionados como se já não fizessem mais parte da cena.

 

Depois que Mansfield Park ficou bem para trás, a novidade da viagem e a felicidade de estar junto de William não tardaram a produzir sobre o espírito de Fanny o seu efeito natural; e quando terminaram a primeira etapa e tiveram que deixar a carruagem de Sir Thomas, ela já se pôde despedir do velho cocheiro sem demonstração de tristeza, mandando por ele lembrança aos que ficaram.

Entre os dois irmãos o assunto não se esgotava. Para a imensa alegria em que se encontrava o espírito de William, tudo era motivo de divertimento e ele enchia com muitas brincadeiras e graças os intervalos das palestras mais sérias, que terminavam todas, se não tinham principiado, com elogios ao “Thrush”, conjecturas sobre como seria usado, planos de ação junto às forças superiores (supondo o primeiro tenente afastado, William não gostava nada do primeiro tenente), as quais o fariam subir de posto logo que possível. Ou então imaginavam ganhar na loteria muito dinheiro, que seria generosamente distribuído em casa, reservando apenas o suficiente para construírem uma confortável casinha, onde ele e Fanny passariam o resto da vida.

Os casos que interessavam diretamente a Fanny, desde que envolvessem o nome de Mr. Crawford, não fizeram parte da conversa. William estava a par do que se havia passado e sinceramente lamentava que a irmã fosse tão indiferente a um homem que ele considerava como sendo o primeiro caráter do mundo. No entanto, estava na idade em que se achava tudo amável e por isso não a podia censurar; e sabendo que ela não queria tocar no assunto, não lhe fez a menor alusão, a fim de não a afligir.

Ela tinha razão em supor que Mr. Crawford ainda não a tinha esquecido. Durante as três semanas que se passaram desde que eles haviam partido de Mansfield, a irmã não parava de mandar notícias e em cada uma de suas cartas vinha sempre algumas linhas dele mesmo, ardentes e positivas como era a sua linguagem. Uma correspondência que Fanny achava tão desagradável quanto a havia temido. O estilo de Miss Crawford, jovial e afetuoso, era em si uma perversidade, independente do que ela ainda era forçada a ler, escrito pelo irmão, pois Edmund não sossegava enquanto ela não lhe lesse a carta inteira; e então tinha que ouvir os elogios do primo à linguagem e às expressões de afeto que ela empregava. Havia de fato tanto subentendido, tanta alusão, tantas lembranças, tanto de Mansfield em cada uma de suas cartas, que Fanny não podia senão supor que haviam sido escritas intencionalmente para Edmund; e ver-se forçada a um encargo dessa espécie, constrangida a manter uma correspondência que lhe trazia as declarações do homem que ela não amava e a obrigava a fomentar a paixão adversa do homem que ela queria, era de uma crueldade inominável. Neste ponto a sua atual mudança também trazia vantagem. Quando estivesse longe de Edmund, ela esperava que Miss Crawford não encontrasse uma razão de escrever suficientemente forte para se dar a esse trabalho e que em Portsmouth a correspondência se reduzisse a nada.

Com estes pensamentos entre milhares de outros, Fanny prosseguia na viagem, tranqüila e feliz, e tão depressa quanto razoavelmente se poderia esperar no mês de fevereiro. Entraram em Oxford, porém ela não pôde senão dar uma rápida espiada à Universidade onde Edmund estivera, pois que passaram sem parar em lugar nenhum até chegarem a Newbury, onde, com uma ótima refeição, reunindo jantar e ceia, terminaram as alegrias e as fadigas do dia.

Na manhã seguinte continuaram a viagem muito cedinho; e sem acontecimentos nem demoras, prosseguiram regularmente, chegando aos arrabaldes de Portsmouth ainda com dia, proporcionando a Fanny o prazer de admirar os arredores e os novos prédios. Passaram a ponte levadiça e entraram na cidade; e estava começando a escurecer quando, guiados pela voz forte de William, foram conduzidos através de uma rua estreita, até High Street, parando em frente à porta da pequena casa habitada agora por Mr. Price.

Fanny estava cheia de ansiedade e alegria; cheia de esperanças e apreensões. No momento em que pararam, uma criança imunda, que parecia estar esperando à porta, adiantou-se e, mais interessada em dizer as novidades do que em auxiliá-los, imediatamente começou com um:

– Faz favor, Mr. William, o “Thrush” acaba de sair do porto e um dos oficiais esteve aqui para...

Foi interrompida por um belo rapaz de onze anos, que, saindo a correr de dentro da casa, empurrou a criada para o lado e enquanto o próprio William abria a porta da sege, gritou:

– Chegou mesmo na hora, William! Já estávamos esperando por você! O “Thrush” saiu do porto hoje de manhã. Eu vi! Foi uma beleza! Parece que vai ter ordem de partir daqui a um ou dois dias. E Mr. Campbell esteve aqui às quatro horas para perguntar por você; está num dos barcos do “Thrush” e vai voltar para bordo às seis; disse que esperava que você chegasse a tempo para voltar com ele.

Um ou dois olhares embasbacados para Fanny, enquanto William a ajudava a descer da carruagem, foi toda a atenção que este irmão lhe deu: não fez, porém, objeção a que ela o beijasse, embora ainda inteiramente ocupado em detalhar novos particulares sobre a saída do “Thrush”, pelo qual tinha todo o direito de se interessar, visto que nele começaria sua carreira de grumete justamente naquela ocasião.

Em seguida Fanny viu-se no estreito corredor de entrada da casa e nos braços de sua mãe, que ali a encontrou, demonstrando sincera afeição e cujas feições Fanny ainda mais adorou, porque lhe parecia estar vendo a tia Bertram; vieram também as duas irmãs, Susan, já crescida, uma esplêndida pequena de quatorze anos e Betsey, a menor da família, com cerca de cinco anos – ambas, à sua moda, contentes de a ver, conquanto demonstrassem certo acanhamento na maneira como a recebiam. Mas Fanny não queria formalidades. Era bastante que a amassem e estaria satisfeita.

Foi então levada para uma sala, tão pequena que a princípio estava convencida de que era apenas uma passagem para outra sala maior e ficou, por um momento, esperando que a convidassem para entrar; mas quando percebeu que não havia outra porta e que havia sinais de ter sido usada antes dela, compreendeu, reprovou-se e afligiu-se com receio de que o tivessem percebido. Sua mãe, contudo, não esteve presente muito tempo para suspeitar de coisa alguma. Tinha voltado para a porta de entrada, a fim de receber William.

– Oh! Meu querido William, como estou contente! Você já soube do “Thrush”? Já saiu do porto; três dias antes do tempo marcado; e não sei o que fazer para arrumar as coisas de Sam, nunca ficarão prontas em tempo, pois parece-me que vão partir amanhã. Tomou-me inteiramente de surpresa. E além disso, dessa vez vocês vão sair de Spithead. Campbell esteve aqui, está muito preocupado com você; e agora o que hei de fazer? Pensei que passaria um serão tão tranqüilo com vocês, e aí vem tudo em cima de mim de uma só vez.

O filho respondeu alegremente, dizendo-lhe que tudo havia de acabar bem, fazendo pouco caso da inconveniência para si próprio por ter de partir tão depressa.

– Sem dúvida, preferia que ainda estivesse no porto, para que pudéssemos passar tranqüilamente algumas horas juntos; mas como o barco está em terra, é melhor que eu vá de uma vez e para isso não há remédio. Em que ponto de Spithead está ancorado o “Thrush”? Perto de Canopus? Bem, não importa; Fanny está lá na sala e por que havemos de estar aqui no corredor? Venha mamãe, você quase que nem olhou para a sua Fanny.

Entraram ambos. Mrs. Price tendo de novo beijado bondosamente a filha, comentou um pouco o seu crescimento e depois começou com uma solicitude muito natural a informar-se sobre as suas fadigas e necessidades na viagem.

– Pobres coitados! Como devem estar cansados! E agora, que desejam comer? Já principiava a pensar que nunca mais chegassem. Betsey e eu há meia hora estamos esperando. Quando é que comeram? E que gostariam de comer agora? Não sabia se iriam preferir carne ou simplesmente um pouco de chá, do contrário teria arranjado qualquer coisa. Agora tenho receio que Campbell esteja de volta antes de dar tempo de preparar um assado, quanto mais que não há açougue aqui perto. É muito incômodo não haver açougue nesta rua. Na outra casa estávamos muito melhor instalados. Talvez vocês gostem de tomar um pouco de chá logo que possa ser feito?

Ambos declararam que preferiam chá a qualquer outra coisa.

– Então, Betsey, querida, corre até a cozinha e vê se Rebecca pôs água para ferver; e diz-lhe que ponha a mesa do chá logo que possa. É aborrecido a campainha não estar funcionando; mas Betsey é uma mensageirinha muito ativa.

Betsey saiu prontamente, orgulhosa de mostrar suas habilidades àquela nova irmã tão bonita.

– Meu Deus! – continuou a mãe ansiosamente – que triste fogo temos hoje! Aposto que vocês estão gelados! Aproxime a sua cadeira, minha querida. Não sei o que Rebecca anda fazendo. Tenho certeza de que a mandei trazer carvão há mais de meia hora. Susan, você devia ter tomado conta do fogo.

– Eu estava lá em cima, mamãe, arrumando minhas coisas – disse Susan, num tom de defesa, impávido, que espantou Fanny. – Pois não resolveu agora mesmo que eu e Fanny ficaríamos no outro quarto? E Rebecca não me quis ajudar.

A discussão foi interrompida por diversas interrupções; primeiro, o cocheiro que veio receber o pagamento; depois houve uma briga entre Sam e Rebecca por causa da mala da irmã que ele queria levar sozinho; e finalmente, a chegada de Mr. Price, a sua alta voz precedendo-o, numa espécie de blasfêmia, por ter tropeçado na mala do filho e na valise da filha que se achavam ainda no corredor, gritando para lhe levarem uma vela; não lhe levaram, porém, nenhuma vela e ele entrou na sala.

Fanny levantou-se com hesitação para o encontrar, mas sentou-se de novo, vendo que não percebiam no escuro e que não era esperada. Cordialmente apertou a mão do filho e com a voz impaciente, imediatamente começou:

– Ah! Seja bem-vindo, meu filho. Folgo muito em vê-lo. Já ouviu as novidades? O “Thrush” saiu do porto hoje de manhã. Com os raios, você chegou mesmo em tempo! O médico esteve aqui à sua procura; está num dos botes e deve sair para Spithead às seis horas; assim, é melhor você ir com ele. Falei com Turner sobre a sua comissão; está sendo preparada. Não me surpreenderei se vocês tiverem ordem de partir amanhã; mas não podem navegar com este vento, se forem para o ocidente; e o Capitão Walsh acha que certamente vão fazer um cruzeiro pelo oeste, com o “Elephant”. Com os raios, tomara que vocês vão! Mas o velho Scholey esteve me dizendo, ainda há pouco, que ele acha que vão primeiro ser mandados para o “Texel”. Bem, bem, estamos prontos para o que der e vier. Mas com os raios, você perdeu um espetáculo magnífico não estando aqui esta manhã para ver o “Thrush” sair do porto! Não teria perdido isso por mil libras. O velho Scholey veio correndo na hora do almoço para dizer que o navio estava largando âncoras para sair. Dei um pulo e não tive tempo de dar dois passos na plataforma. Se já houve sobre as águas uma beldade perfeita, essa é uma; estive duas horas na plataforma esta tarde, admirando-o. Está ancorado junto ao “Endymion”, entre ele e o “Cleópatra”.

– Ah! – exclamou William – seria este justamente o lugar onde o havia de por se fosse eu o piloto. É o melhor ancoradouro em Spithead. Mas, papai, aqui está minha irmã; aqui está Fanny, – virando-se e apresentando-a; – está tão escuro que o senhor mal pode vê-la.

Confessando tê-la esquecido inteiramente, Mr. Price recebeu a filha; e tendo-lhe dado um abraço muito cordial e observando que ela se havia tornado uma moça e que provavelmente logo havia de querer um marido, pareceu muito disposto a esquecê-la novamente.

Fanny encolheu-se novamente me seu lugar, com uma triste sensação de sofrimento ao ouvir a linguagem do pai e ao sentir o seu cheiro de álcool; ele falava apenas ao filho e somente sobre o “Thrush”, embora William, ardentemente interessado como estava no assunto, tentasse, mais de uma vez, fazer o pai pensar em Fanny, na sua longa ausência e fatigante viagem.

Depois de muito tempo trouxeram uma vela; e como não houvesse ainda sinal de chá, nem tampouco, a julgar pelas notícias que Betsey trazia da cozinha, havia esperanças de que estivesse pronto senão depois de muito tempo, William resolveu ir vestir-se e fazer os preparativos necessários para a sua imediata mudança para bordo, a fim de depois poder tomar o chá tranquilamente.

Logo que ele saiu da sala, dois meninos, de rostos rosados, sujos e esfarrapados, com cerca de oito e nove anos, entraram correndo, libertos naquele instante da escola e ansiosos para verem a irmã e contarem que o “Thrush” tinha saído do porto; eram Tom e Charles. Charles havia nascido depois que Fanny saíra de casa, mas de Tom ela muitas vezes ajudara a cuidar e por isso agora sentia um prazer particular em vê-lo de novo. Beijou ambos ternamente, mas quis conservar Tom ao seu lado, procurando descobrir nele as feições do bebê que amara, e que ninara. Tom, porém, não estava acostumado a um tal tratamento: não viera para casa para ficar quieto e conversar, mas para correr e fazer barulho; os dois meninos logo se escaparam dela e bateram a porta da sala até que sua cabeça começou a doer.

Tinha agora visto todos os que moravam em casa; restavam apenas dois irmãos entre ela e Susan, um dos quais era empregado numa repartição pública em Londres e o outro era grumete a bordo de um navio indiano. Não obstante, porém, ela ter visto todos os membros da família, não tinha ainda ouvido todo o barulho que eles costumavam fazer. Outro quarto de hora mostrou-lhe muito mais. Do primeiro lance do segundo andar William começou a chamar a mãe e Rebecca. Estava aflito por causa de qualquer coisa que havia deixado lá e que não podia encontrar. Faltava uma chave, Betsey foi acusada de ter mexido no seu chapéu novo, e notava a falta de algumas pequenas mas essenciais alterações no colete de seu uniforme que lhe haviam prometido fazer, e que foram inteiramente esquecidas.

Mrs. Price, Rebecca e Betsey, todas subiram para se defender, todas falando ao mesmo tempo, sendo Rebecca a que falava mais alto, e o conserto teve que ser feito de qualquer maneira e na maior pressa; William tentava em vão mandar Betsey de volta ou conservá-la quieta onde estava para que não atrapalhasse; toda a barulhada, como quase todas as portas da casa estavam abertas, podia claramente ser ouvida na sala, exceto quando era interrompida pelo barulho maior que fazia Sam, Tom e Charles perseguindo-se uns aos outros acima e abaixo da escada, saltando e gritando pela casa.

Fanny estava quase atordoada. O tamanho da casa e a pequena espessura das paredes faziam com que tudo parecesse tão perto dela que, acrescentado à fadiga de sua viagem e a todas as suas recentes aflições, ela mal sabia como poder suportar. Dentro da sala estava relativamente sossegado, pois tendo Susan desaparecido com os outros, só ficaram ali seu pai e ela mesma; e aquele tendo pegado um jornal, que costumava pedir emprestado ao vizinho, pôs-se a lê-lo, parecendo não se lembrar da existência da filha. A única vela estava colocada entre ele e o jornal, sem a mínima preocupação por qualquer possível inconveniência para Fanny; porém ela não tinha nada que fazer e gostou de que a luz estivesse encoberta e não atingisse a sua dolorida cabeça, enquanto aturdida, atormentada, contemplava o ambiente.

Agora estava em casa. Mas , ah! não era uma casa assim, não era um tal acolhimento que... – ela controlou-se; não estava sendo razoável. Que direito tinha de querer ser importante para sua família? Não poderia ter nenhuma importância, há tanto tempo longe da vista deles! O interesse de todos por William devia ser muito maior, e ele tinha a isso todo o direito. Contudo, que tivessem falado ou perguntado tão pouco sobre ela, que não tivessem nem perguntado por Mansfield! Era doloroso para Fanny que tivessem esquecido Mansfield; os amigos que haviam feito tanto por eles; os amigos muito, muito queridos! Mas ali uma questão absorvia todas as outras. Talvez tivesse de ser assim. O destino do “Thrush” devia ser preeminentemente interessante. Um dia ou dois mostraria a diferença. O único culpado era o navio. No entanto ela não teria pensado assim em Mansfield. Não, na casa do tio teria havido uma distinção para cada tempo e hora, uma ordem para cada assunto, uma propriedade, uma atenção para cada pessoa que não havia ali.

A única interrupção que teve essa meditação depois de quase meia hora, foi uma súbita exclamação de seu pai, de forma alguma calculada para tranqüilizá-la.

– Diabo leve esses cachorros! Como eles estão guinchando! Este rapaz só serve mesmo para mestre de equipagem. He! Você aí! Sam, pára com essa gaita infernal ou eu te arrebento.

Esta ameaça foi tão evidentemente desdenhada que, não obstante depois de cinco minutos os três garotos se terem precipitado juntos de sala a dentro e se terem sentado, Fanny não podia considerar isso como prova senão de já estarem derreados, como já mostravam os seus rostos vermelhos e respiração ofegante; especialmente porque continuavam a trocar socos e a gritar bem sob as vistas do pai.

Na próxima vez em que a porta se abriu, apareceu uma coisa mais convidativa; foi o serviço de chá, que ela já quase começava a duvidar que viria àquela noite. Susan e uma pequena ajudante, por cuja aparência inferior Fanny, com grande surpresa, percebeu que havia antes visto a empregada mais graduada, trouxeram tudo que era necessário para a refeição. Ao colocar a chaleira no fogo Susan olhou para a irmã como se o seu espírito estivesse dividido entre o agradável triunfo de mostrar as usas atividades e utilidade e o receio de ser considerada diminuída por tal serviço.

– Tinha estado na cozinha – informou ela – para apressar Sally e ajudar a fazer as torradas e espalhar a manteiga no pão; do contrário não sabia quando o chá ficaria pronto e ela tinha certeza de que a irmã devia precisar comer qualquer coisa depois daquela viagem.

Fanny ficou muito grata. Não pôde deixar de confessar que apreciaria muito um pouco de chá e Susan imediatamente se pôs a prepará-lo, muito satisfeita de se encarregar de tudo; e apenas com um pouco de barulho inútil e algumas tentativas sem propósito para manter os irmãos em melhor ordem do que podia, saiu-se muito bem.

Fanny sentiu-se tão reparada de espírito quanto de corpo; sua cabeça e seu coração logo melhoraram com essa demonstração oportuna de bondade. Susan tinha a fisionomia franca, sensível; era como William, e Fanny teve esperança de que ela fosse igual a William em temperamento e boa vontade para consigo.

Neste intervalo de mais tranqüilidade, William reapareceu, seguido logo depois da mãe e de Betsey. Ele, completamente metido no seu uniforme de tenente, parecendo, por isso, mais alto, mais firme e mais elegante, com o mais feliz sorriso estampado no rosto, caminhou diretamente para Fanny, que, levantando-se, ficou olhando para o irmão em muda admiração e depois lançou os braços em redor de seu pescoço, para desabafar chorando as suas várias emoções de sofrimento e prazer.

Não querendo parecer que se sentia infeliz, logo se recompôs; e enxugando as lágrimas, pôde ver e admirar todos os detalhes notáveis do uniforme dele; e, então, já reanimada, ouviu-o falar sobre a esperança que tinha de poder passar em terra uma certa parte de cada dia antes de partir e até mesmo levá-la a Spithead para ver o navio.

Novo tumulto foi causado com a vinda de Mr. Campbell, cirurgião do “Thrush”, rapaz muito bem comportado, que tinha ido buscar o amigo e para quem, com certa dificuldade, foi encontrada uma cadeira, uma xícara e um pires, lavados às pressas pela jovem encarregada do chá; e depois de outro quarto de hora de conversa apressada entre os homens, barulho sobre barulho, tumulto depois de tumulto, homens e meninos todos se movimentaram ao mesmo tempo, tendo, afinal, chegado o momento de partirem; estava tudo pronto. William despediu-se e todos eles saíram; pois os três meninos, apesar das ameaças da mãe, estavam decididos a acompanhar Mr. Campbell e o irmão até o porto; Mr. Price saiu ao mesmo tempo, para restituir o jornal do vizinho.

Podia-se agora esperar uma certa tranqüilidade; por conseguinte, quando conseguiram que Rebecca levasse as louças do chá e depois de Mrs. Price ter andado algum tempo pela sala à procura de um punho de camisa que Betsey havia tirado de uma gaveta na cozinha, o pequeno grupo das mulheres ficou relativamente calmo e a mãe, tendo mais uma vez lamentado a impossibilidade de preparar Sam em tempo, achou folga para pensar na filha mais velha e nos amigos que ela havia deixado.

Uma série de perguntas começou a ser feita; uma das primeiras foi:

– Como conseguia a irmã Bertram arranjar-se com as empregadas? Tinha a irmã tanta dificuldade quanto ela em arranjar uma empregada passável?

Logo em seguida seus pensamentos se desviaram de Northamptonshire e fixaram-se sobre suas próprias aflições domésticas e sobre o péssimo caráter de todas as criadas de Portsmouth, entre as quais as suas duas eram as piores. Os Bertrams foram inteiramente esquecidos enquanto ela detalhava os defeitos de Rebecca, contra quem Susan tinha também muito a depor e a pequena Betsey ainda mais, e que parecia tão completamente destituída de uma única recomendação, que Fanny não pôde deixar de modestamente sugerir que sua mãe a dispensasse no fim de um ano de serviço.

– Um ano de serviço! – exclamou Mrs. Price. – Espero ver-me livre dela muito antes de completar um ano, pois isso só se dará em novembro. As empregadas em Portsmouth, minha querida, estão de tal forma que é verdadeiro milagre conservá-las mais de um semestre. Já perdi a esperança de conseguir uma que preste; e se eu despedir Rebecca, só arranjaria uma ainda pior. E, no entanto, não creio que eu seja uma patroa muito difícil de agradar; o serviço não é muito, pois sempre tomo uma menina para ajudar e parte do trabalho muitas vezes sou eu quem faz.

Fanny ficou em silêncio; mas não que estivesse convencida de não haver um remédio para essas desgraças. Enquanto contemplava Betsey, não podia deixar de pensar particularmente numa outra irmã, uma linda menina, não muito mais criança, que havia deixado quando foi para Northamptonshire e que morrera alguns anos depois. Essa menina tinha qualquer coisa de especialmente adorável. Fanny naquele tempo preferia-a a Susan; e quando recebera em Mansfield a notícia da morte dela, ficou acabrunhada por algum tempo. A vista de Betsey trouxe-lhe novamente a imagem da pequena Mary, mas por coisa alguma no mundo faria a mãe sofrer fazendo alusão a ela. Enquanto assim contemplava Betsey, esta, a pouca distância, tinha na mão qualquer coisa que procurava mostrar-lhe, evitando ao mesmo tempo que fosse vista por Susan.

– Que é que tem aí, meu amor? – perguntou Fanny – venha aqui e deixe-me ver.

Era uma faca de prata. Susan logo pulou, reclamando-a como proprietária sua e procurando reavê-la; mas a menina correu para junto da mãe, à procura de proteção e Susan pôde apenas repreendê-la, o que fez muito vivamente e evidentemente esperando interessar Fanny em sua causa. Era incrível que ela não tivesse direito sobre a sua faca; a faca era dela; a irmãzinha Mary lha tinha deixado ao morrer e era justo que ela já a tivesse recebido há muito tempo. Mas a mãe a tinha escondido, e estava sempre deixando que Betsey a apanhasse; e o final de tudo era que Betsey ainda a havia de estragar ou se apoderar dela, apesar de a mãe ter prometido que não a daria a Betsey.

Fanny estava completamente escandalizada. Todo o seu sentimento de dever, de honra, de ternura fora ferido por aquelas palavras da irmã e da resposta da mãe.

– Ora, Susan – lamentou Mrs. Price desanimada – como pode você ficar tão contrariada? Você está sempre brigando por causa dessa faca. Gostaria que não fosse tão brigona. Pobrezinha de Betsey; Susan é tão má para você! Mas não devia ter tirado a faca quando mexeu na gaveta. Eu já lhe disse para não a tocar, porque Susan fica muito zangada. Preciso escondê-la de novo, Betsey. Pobre Mary, quando apenas duas horas antes de morrer me deu a faca pára guardar, mal sabia que ela ia ser um pomo da discórdia. Pobre alma! Quase não se ouvia o que ela falava quando disse: “Depois que eu morrer e estiver enterrada, quero que Susan fique com a minha faca.” Pobre queridinha! Gostava tanto desta faca, Fanny, que não se separou dela durante todo o tempo da doença. Foi presente da madrinha, Mrs. Almirante Maxwell, seis semanas apenas antes de ela adoecer. Pobre criaturinha! Bem, foi melhor assim, está livre de um dia vir a sofrer. Minha Betsey (acariciando-a) você não teve a sorte de arranjar uma madrinha tão boa. A tia Norris mora muito distante para pensar numa pessoa tão pequenina como você.

Fanny, de fato, não havia trazido nada de sua tia Norris, a não ser um recado para dizer que esperava fosse a afilhada muito boa menina e que estudasse muito. No salão de Mansfield Park tinha havido, em dado momento, um leve murmúrio a respeito de mandar à afilhada de Mrs. Norris um livro de orações; mas depois não se ouviu mais nada sobre isso. Mrs. Norris, contudo, com aquele fito, tinha ido em casa e trazido dois velhos livros de orações que haviam pertencido ao marido; mas ao examiná-los, perdeu o ardor da generosidade. Um deles era impresso em caracteres demasiadamente pequenos para os olhos de uma criança e o outro era pesado demais.

Cada vez mais cansada, Fanny deu graças a Deus quando a convidaram para ir deitar-se; e antes de Betsey acabar de chorar por não lhe terem permitido ficar acordada senão uma hora mais em honra da irmã, ela já havia saído, deixando embaixo novamente tudo em confusão: os meninos pedindo queijo assado, o pai gritando pelo seu rum com água e Rebecca desaparecida.

No seu quarto acanhado e mesquinhamente mobiliado que ela devia compartilhar com Susan, nada havia que contribuísse para lhe erguer a moral. A pequenez dos compartimentos, tanto em cima como embaixo e a estreiteza do corredor e da escada, na verdade, chocavam-na mais do que poderia imaginar. Naquela casa demasiadamente pequena para que alguém nela pudesse sentir conforto, Fanny não demorou a pensar com respeito em seu pequeno quarto das águas furtadas em Mansfield Park.

 

Se Sir Thomas pudesse avaliar os sentimentos da sobrinha, quando ela escreveu a primeira carta à tia, não teria desesperado; pois, não obstante uma boa noite de descanso, uma manhã agradável, a esperança de tornar a ver William dentro de poucos dias e a relativa tranqüilidade em que estava a casa pela saída de Tom e Charles para a escola, de Sam para qualquer negócio de seu próprio interesse, e do pai, para seu giro habitual, contribuíssem para que ela pudesse expressar-se alegremente sobre os assuntos de casa, ela teve ainda, para consolo de sua própria consciência, que reprimir muitas queixas. Se pudesse ter visto apenas a metade do que sentia antes do fim de uma semana, ele não duvidaria mais do sucesso de Mr. Crawford e teria ficado encantado com a sua própria sagacidade.

Durante a semana não houve senão decepções. Em primeiro lugar, William havia partido. O “Thrush” tinha recebido ordens, o vento mudara e ele partira quatro dias depois de ter chegado a Portsmouth; e durante esses quatro dias ela o tinha visto apenas duas vezes, numa visita curta e apressada, quando veio a terra em serviço. Não tinha havido palestras, nem passeios pelos arredores, nem visita às docas, nem conhecimento com o “Thrush”, nem nada de tudo que haviam planejado fazer. Ficou decepcionada de tudo naquele lugar, exceto da afeição de William. Seu último pensamento ao sair de casa foi dedicado à irmã. Voltou novamente até a porta para dizer:

– Mamãe, tome cuidado com Fanny. Ela é delicada e não está costumada como nós a ser tratada com aspereza. Encarrego-a de cuidar de Fanny.

William partira; e o lar que ele deixava, Fanny não podia esconder a si mesma, era, em todos os sentidos, exatamente o reverso do lar que ela desejava encontrar. Ali reinavam o barulho, a desordem, a inconveniência. Ninguém estava em seus lugares, nada era feito como devia ser. Ela não podia ter pelos pais o respeito que pensara ter. Nunca havia confiado muito no pai, mas agora via que ele era ainda mais descuidado da família, seus hábitos piores, suas maneiras mais rudes do que imaginara encontrar. Não que lhe faltasse talentos; mas ele não tinha curiosidade; não lhe interessava senão pela profissão; lia apenas os jornais e a lista de navios; só falava sobre docas, portos, Spithead e Motherbank; praguejava e embriagava-se, era sujo e grosseiro. Não se podia lembrar de que ele algum dia tivesse para com ela qualquer gesto que se parecesse com uma ternura. Só lhe restava uma impressão geral de aspereza e barulho; e agora mal notava a sua presença, a não ser para fazê-la alvo de qualquer grosseira brincadeira.

Seu desapontamento sobre a mãe foi muito maior; nela tinha esperado muito e não tinha encontrado quase nada. Todos os seus lisonjeiros sonhos de lhe ser necessária, logo caíram por terra. Mrs. Price não era má; mas em vez de conquistar sua afeição e confiança e tornar-se cada vez mais querida, a filha nunca obteve dela maior bondade do que a que lhe demonstrara no dia da chegada. O instinto maternal logo se satisfez e a afeição de Mrs. Price não tinha outra fonte. Seu coração e seu tempo já estavam inteiramente tomados; não lhe sobrava nem tempo nem afeição para dispensar a Fanny. Suas filhas nunca foram muito para ela. Gostava mais dos filhos, especialmente de William, mas Betsey era a primeira de suas filhas por quem ela jamais se interessara. Para com essa ela era indulgente demais. William era o seu orgulho; Betsey a sua querida; e John, Richard, Sam, Tom e Charles, ocupavam todo o resto de sua maternal solicitude, alternadamente suas preocupações e seus prazeres. Esses compartilhavam seu coração; a maior parte de seu tempo era empregado nos arranjos da casa e nas questões domésticas. Seus dias eram passados numa espécie de tumulto lento; sempre ocupada sem conseguir ir para diante; sempre atrasada e lamentando-se por isso, sem ter o ânimo de alterar seus métodos; desejando ser econômica sem, porém, tomar as medidas necessárias; descontente com as empregadas, sem ter a habilidade de as corrigir e se as ajudava, repreendia ou era indulgente com elas, não tinha nenhuma força para se fazer respeitada.

Das duas outras irmãs, Mrs. Price se parecia muito mais com Lady Bertram do que com Mrs. Norris. Dirigia a casa por necessidade, sem contudo ter a propensão e a atividade de Mrs. Norris. Seu temperamento era naturalmente calmo e indolente como o de Lady Bertram; e uma situação de idêntica comodidade e folga lhe seria mais adequada do que a esforçada e abnegada situação em que o seu imprudente casamento a havia colocado. Ela se teria tornado uma mulher importante tão boa quanto Lady Bertram, mas Mrs. Norris teria sido uma muito mais respeitável mãe de nove filhos com pequena renda.

Fanny não podia deixar de reparar muitas dessas coisas. Tinha escrúpulos de o exprimir em palavras, tinha que sentir e sentia que sua mãe era uma mãe parcial, injusta, uma criatura mole, negligente, que nem ensinava nem repreendia os filhos, cuja casa era a cena da desordem e do desconforto do princípio ao fim e que não tinha nem talento, nem conversação, nem estima por ela; nem curiosidade de a conhecer melhor, nem desejo pela sua amizade, e nem prazer com sua companhia.

Fanny esforçava-se por ser útil e por não parecer deslocada em sua própria casa ou de nenhuma forma incapacitada ou desinteressada, em virtude de sua educação afastada, de contribuir para que ela se tornasse mais confortável. E, portanto, pô-se logo a se ocupar em arrumar as coisas de Sam e trabalhando desde cedo até tarde, com perseverança e grande atividade, produziu tanto que o rapaz finalmente pôde embarcar com mais da metade do enxoval pronto. Conquanto ela sentisse grande prazer em ser útil, não podia conceber como eles se arranjariam se não fosse ela.

Barulhento e insuportável como era Sam, ela sentiu vê-lo partir, pois que ele era esperto e inteligente e estava sempre pronto a encarregar-se de qualquer incumbência na cidade; e, não obstante as constantes exprobrações de Susan, feitas com ardor inoportuno e sem autoridade, já começava a influenciar-se pelos serviços e suaves persuasões de Fanny; e viu que com ele se fora o melhor dos seus três irmãos mais moços; Tom e Charles, muito mais crianças do que ele, não estavam ainda em idade de compreender e raciocinar, o que teria sugerido a conveniência de fazê-los amigos e procurar que tornassem menos desagradáveis. Mas a irmã logo desanimou de causar qualquer impressão sobre eles; eram absolutamente indomáveis, quaisquer que fossem os meios que empregasse para os conquistar. Todas as tardes se repetiam as suas turbulentas brincadeiras pela casa, e ela não demorou a aprender a suspirar quando se aproximavam os meios dias de férias aos sábados.

A Betsey, também, uma criança estragada de mimos, acostumada a considerar o alfabeto como seu maior inimigo, deixada à vontade, entregue às criadas e então animada a relatar qualquer falta que essas cometessem, Fanny não se sentia com ânimo de amar ou ajudar; e quanto ao temperamento de Susan, ela tinha muitas dúvidas. Suas contínuas discussões com a mãe, suas brigas com Tom e Charles, sua petulância com Betsey, eram, ao menos, tão embaraçantes para Fanny que, mesmo admitindo que não eram feitas sem provocação, temia que a índole que os permitia até aquele ponto, estivesse longe de ser delicada e de lhe proporcionar qualquer repouso.

Tal era o lar que devia tirar Mansfield de sua cabeça e ensiná-la a pensar em seu primo Edmund com sentimentos mais moderados. Ao contrário, ela não podia pensar senão em Mansfield, seus queridos habitantes, seus dias felizes. A elegância, a dignidade, a regularidade, a harmonia e talvez, acima de tudo, a paz e a tranqüilidade de Mansfield, vinham-lhe à lembrança a todas as horas do dia, pela comparação de todas as coisas que ali se passavam.

A vida numa incessante balbúrdia era, para um físico e um temperamento delicados como os de Fanny, uma desgraça que nenhuma suplementar elegância ou harmonia poderia eliminar inteiramente. Em Mansfield nunca se ouvia uma discussão, uma voz alterada, nenhum passo precipitado nem ameaça de violência; tudo corria naturalmente numa alegre tranqüilidade; cada um tinha a sua justa importância; os sentimentos de cada um eram consultados. Se havia às vezes falta de ternura, o bom senso e a boa educação a compensavam; e quanto às pequenas implicâncias às vezes provocadas por sua tia Norris, essas eram pequenas, uma bagatela, uma gota d’água no oceano, comparadas com o incessante tumulto de sua presente residência. Aqui, todos eram barulhentos, todos falavam alto (excetuando-se, talvez, sua mãe cuja voz monótona se parecia com a de Lady Bertram, sendo apenas mais lastimosa). Tudo era pedido aos berros, as criadas respondiam berrando da cozinha. As portas estavam constantemente batendo, as escadas não tinham sossego, nada era feito sem estrépito, ninguém parava quieto e ninguém conseguia se fazer ouvir.

Passando em revista as duas casas, como elas lhe pareciam antes do fim de uma semana, Fanny foi tentada a lhes aplicar o célebre julgamento do Dr. Johnson sobre o matrimônio e celibato e a dizer que, embora Mansfield Park tivesse seus sofrimentos, Portsmouth não poderia oferecer nenhum prazer.

 

Fanny tinha bastante razão em não esperar carta de Miss Crawford com a mesma constância que havia principiado a sua correspondência; a carta seguinte foi escrita com um intervalo muito mais longo do que a última; mas não estava certa quando supôs que tal intervalo seria sentido como um alívio para si mesma. Aí estava uma nova revolução em seu espírito! Ela ficou realmente alegre quando recebeu a carta. Exilada e distante como estava agora da boa sociedade e de tudo que a interessava, uma carta de alguém que pertencera a um lugar onde estava preso seu coração, escrita com afeto e com certa elegância, era-lhe muito bem vinda. O aumento dos compromissos foi a usual desculpa por não lhe ter escrito antes; “e agora que comecei”, continuava ela, “não vale a pena você ler minha carta, pois que não haverá nenhum recadinho de amor no fim, nem três ou quatro linhas apaixonadas do muito dedicado H.C., porque Henry está em Norfolk, foi chamado a negócios em Everingham há dez dias passados ou talvez ele tenha inventado o chamado, só para poder viajar ao mesmo tempo em que você viaja. Enfim, lá está ele e, neste ínterim, a sua ausência pode suficientemente ser culpada de qualquer esquecimento por parte da irmã, pois que não tem havido o ‘Como é, Mary, quando vai escrever a Fanny?’. ‘Não está no tempo de você escrever a Fanny?’ para me lembrar. Finalmente depois de várias tentativas de encontro, consegui ver suas primas, ‘a querida Julia e a querida Mrs. Rushworth’; elas me encontraram em casa ontem e ficamos muito contentes em nos vermos novamente. Parecíamos muito contente por nos vermos; e creio mesmo que estivéssemos um pouco. Tínhamos muito que nos dizer. Devo dizer-lhe como Mrs. Rushworth ficou quando seu nome foi mencionado? Nunca pensei que lhe faltasse força de vontade, mas para a exigência de ontem a sua força de vontade não foi suficiente. No final das contas, Julia era a mais tranqüila das duas, pelo menos depois que você foi mencionada. Depois que falei em ‘Fanny’ e me referi a você como o teria feito uma irmã, não houve mais jeito de se lhe desanuviar o semblante. Mas o dia de esplendor de Mrs. Rushworth está para vir; recebemos convites para a sua primeira reunião no dia 28. Neste dia então ela brilhará, pois vai abrir os salões de uma das mais belas casas de Wimpole Street. Estive nessa casa há dois anos passados, quando ali morava Lady Lascelles, e a prefiro a qualquer outra casa que conheço em Londres, aí é que ela vai dar valor à fortuna que adquiriu. Henry não lhe poderia ter dado esse luxo. Espero que reconheça isto e fique satisfeita, tanto quanto possa, em fazer o papel de rainha num palácio, embora o rei fique melhor no segundo plano; e como não desejo atormentá-la, nunca mais a obrigarei a ouvir seu nome. Ela se conformará pouco a pouco. Por tudo que tenho ouvido e adivinhado, as atenções do Barão Wildenhein a Julia continuam, mas não sei se ele tem recebido muita animação. Ela devia escolher melhor. Um nobre arruinado não é vantagem e eu não posso imaginar que haja amor no caso, pois, tirando a sua gabolice, o pobre barão não tem mais nada. Seu primo Edmund ainda não apareceu; detido, talvez, pelos deveres da paróquia. Deve haver alguma velha em Thorton Lacey para ser convertida. Prefiro não ser esquecida por uma moça. Adeus! Minha muito querida Fanny, esta foi uma longa carta para ser escrita de Londres; escreva-me uma bem afetuosa para que Henry fique contente quando voltar, e mande-me uma lista de todos os soberbos e jovens capitães a quem você tem desprezado por causa dele.”

Havia muito em que meditar nesta carta, principalmente meditação desagradável; e contudo, com toda a inquietação que ela produziu, ligou-a aos ausentes, falou-lhe das pessoas e das coisas sobre as quais ela nunca havia tido tanta curiosidade como agora; e Fanny teria ficado contente se recebesse uma carta dessas cada semana.

Quanto às relações em Portsmouth que poderiam suprir as deficiências de sua casa, não havia no círculo de conhecidos de seus pais ninguém que lhe causasse o menor interesse; não via ninguém por quem pudesse desejar dominar o seu próprio acanhamento e a sua reserva. Os homens todos lhe pareciam rudes, as mulheres impudentes, todo mundo mal educado; e ela não só não tinha prazer como dava pouco prazer a qualquer novo ou velho conhecido que lhe era apresentado. As moças que dela se aproximavam a princípio com um certo respeito por causa de ela ter vindo da casa de uma família nobre, se ofendiam pelo que chamavam “ares”; pois como Fanny nem tocava piano nem usava bonitas peles, não podiam, depois de ulterior observação, admitir que ela lhes fosse superior.

A primeira consolação verdadeira que Fanny teve de suas desgraças em casa, a primeira que sua consciência aprovou inteiramente, e que prometeu certa durabilidade, foi ter feito um melhor conhecimento do caráter de Susan, esperando que pudesse lhe ser útil. Susan tinha sempre se portado jovialmente para com ela, mas o caráter positivo de suas maneiras em geral tinham-na alarmado e não foi senão depois de quinze dias que começou a compreender aquele temperamento tão inteiramente diferente do seu. Susan via que muita coisa em casa estava errada e desejava corrigi-la. Que uma pequena de quatorze anos, agindo apenas por seu próprio e único juízo, errasse no seu método de reforma, não era de admirar; e Fanny se tornou logo mais disposta a admirar a inteligência espontânea da criatura que com tão pouca idade era capaz de julgar com justiça, do que a censurar severamente os defeitos de conduta a que ela era levada por causa disso. Susan agia com sinceridade, e seguia o sistema que seu próprio juízo aconselhava mais que o seu temperamento, um pouco relaxado e indolente se recusava a sustentar. Susan procurava ser útil onde ela, Fanny, só teria fugido e chorado; e que Susan era útil se podia perceber; que as coisas ruins como eram, seriam piores se não fosse a sua intervenção; e que tanto sua mãe quanto Betsey eram refreadas em muitos excessos de indulgência e vulgaridades bastante desagradáveis.

Em todas as discussões com a mãe, Susan levava sempre vantagem e nunca houve carícia materna que a demovesse. A ternura exagerada que era causa de todos os males a sua volta, ela nunca a havia conhecido. Não tinha que agradecer por afeições passadas ou presentes que a fizessem suportar melhor os seus excessos nos outros.

Tudo isso veio gradualmente, e gradualmente colocou Susan na opinião da irmã como um objeto misturado de compaixão e respeito. Fanny não podia deixar de sentir que as maneiras dela eram incorretas, às vezes muito incorretas, suas medidas muitas vezes inoportunas e mal escolhidas, sua aparência e linguagem muitas vezes injustificáveis; começava, porém, a ter esperança de que tudo isso poderia ser corrigido. Susan procurava-a e pedia-lhe sua opinião; e conquanto fosse uma coisa inteiramente nova para Fanny demonstrar autoridade, ou imaginar-se capaz de guiar ou aconselhar alguém, ela se resolveu, uma vez ou outra, a aconselhar Susan e lhe dar mais justas noções sobre o que era devido aos outros e o que era mais prudente para ela, o que a sua própria educação, mais apurada, lhe poderia fornecer.

Sua influência, ou pelo menos a sua consciência e seu aproveitamento, começou por um ato de bondade feito a Susan, o qual, depois de muita hesitação imposta por sua delicadeza, decidiu executar. Tinha-lhe, há muito tempo, ocorrido que uma pequena soma em dinheiro talvez restaurasse a paz para sempre sobre o triste caso da faca de prata, debatido agora continuamente, e o dinheiro que tinha em seu poder, tendo seu tio lhe dado 10 libras na hora da partida, facultava-lhe o desejo de ser generosa. Mas estava tão desacostumada a fazer favores, a não ser a pessoas muito pobres, tão pouco habituada a remover as desgraças ou a dispensar bondades aos seus semelhantes e tão receosa de parecer que queria se fazer de grande benfeitora em casa, que custou a resolver se lhe convinha fazer tal presente. Finalmente, porém, o presente foi feito; uma faca de prata foi comprada para Betsey e aceita por esta com grande prazer; Susan tomou posse definitiva da outra faca e Betsey generosamente declarou que agora possuía uma muito mais bonita e que nunca mais queria aquela. Valeu a pena; uma das fontes de distúrbios domésticos estava inteiramente eliminada, e foi o meio de abrir para ela o coração de Susan e lhe dar alguma coisa mais para amar e por que se interessar. Susan mostrou ter delicadeza de espírito; contente como estava pela posse de um objeto pelo qual vinha há mais de dois anos lutando, estava, contudo, receosa de que a irmã a tivesse julgado mal e que uma censura lhe era designada por ter lutado tanto a ponto de se tornar necessária a compra para que houvesse tranqüilidade em casa.

Foi franca; reconheceu suas faltas, censurou-se por ter discutido tão acaloradamente; e desta hora em diante, Fanny, compreendendo o valor do temperamento dela e percebendo quanto Susan procurava a sua opinião e desejava guiar-se pelo seu julgamento, começou novamente a acreditar na afeição e a entreter a esperança de ser útil a uma consciência tão necessitada de auxílio e que tanto o merecia. Deu-lhe conselhos, conselho demasiadamente lógicos para não serem seguidos por uma sã inteligência e dados com tanta suavidade e consideração que não poderiam irritar uma índole menos perfeita; e teve o prazer de observar seus bons efeitos não poucas vezes. Mais não poderia ser esperado por uma pessoa que, conhecendo embora toda a obrigação e o hábito da submissão e da abnegação, via, também, com imensa simpatia, tudo que devia ser, a cada momento, desagradável a uma pequena como Susan. Sua maior admiração sobre o caso em breve foi – não que Susan tivesse por provocação faltado ao respeito ou mostrasse impaciência, mas que tanta ciência e tão justas noções fossem suas exclusivamente – que educada no meio da negligência e do erro, ela pudesse formar tão adequado juízo do que devia fazer; ela, que não tinha tido um primo Edmund para orientar seus pensamentos e fixar seus princípios.

A intimidade que se estabeleceu entre as irmãs trouxe pois uma vantagem material para ambas. Permanecendo juntas no andar de cima, evitavam um grande número de distúrbios em casa; Fanny ficava em paz e Susan aprendia a não considerar como infortúnio ficar tranqüilamente ocupada. Não tinham lareira; mas a esta privação até mesmo Fanny estava acostumada e sofria menos porque isso fazia lembrar-se de sua sala de Leste. Era o único ponto semelhante. Em tamanho, claridade, mobília e vista não havia a menor parecença entre os dois compartimentos; e ela muitas vezes suspirou ao lembrar-se de seus livros e caixas, várias outras comodidades que tinha lá. Pouco a pouco as duas moças passaram a ficar a maior parte da manhã no andar superior, a princípio apenas trabalhando e conversando, mas depois de alguns dias, a lembrança de seus livros se tornou tão poderosa e estimulante, que Fanny viu não lhe ser possível passar sem leitura. Em casa do pai não havia livro algum; mas a riqueza traz o luxo e a audácia e uma parte da sua “fortuna” foi desviada para um salão de leitura. Fez a inscrição; espantada de ser alguma coisa por sua própria iniciativa, espantada por agir por si mesma em todos os sentidos, de poder escolher seus livros! E ter em vista o aperfeiçoamento de alguém! Mas esse era o caso. Susan nunca tinha lido nada e Fanny encontrou grande alegria em fazê-la compartilhar de seu próprio prazer e lhe inspirar o gosto pelas biografias e poesias que tanto a deliciavam.

Nesta ocupação ela esperava, além do mais, encerrar certas recordações de Mansfield, as quais eram demasiadamente aptas a apoderar-se de seu espírito se somente seus dedos estivessem ocupados; e nesta ocasião, especialmente, esperava que os livros lhe fossem úteis para desviar seus pensamentos sobre Edmund em Londres, para onde, conforme a última carta da tia, sabia ter ele ido. Não tinha dúvida sobre o que ia acontecer. A prometida notícia estava suspensa sobre sua cabeça. A batida do carteiro na vizinhança estava começando a lhe trazer terrores diários e se a leitura lhe podia afastar essa idéia nem que fosse por meia hora, já era alguma vantagem.

 

Há já uma semana que Edmund deveria estar na cidade e Fanny ainda não recebera nenhuma notícia dele. Havia três conclusões a tirar do seu silêncio, entre as quais o pensamento da moça flutuava; e sucessivamente cada uma dessas conclusões lhe ia parecendo mais provável. Ou a sua partida fora ainda adiada, ou ele ainda não obtivera uma oportunidade de ver Miss Crawford a sós, ou então estava por demais feliz para escrever!

Uma manhã, por esse tempo, quando já fazia quatro semanas que Fanny viera de Mansfield (semanas que contara, dia a dia), ela e Susan se preparavam para subir ao andar de cima, como de hábito, mas pararam no meio, escutando uma batida à porta, anunciando um visitante; e elas não se poderiam furtar, à presença estranha, pois Rebecca já correra à entrada, sendo a porta um dever a que ela dava mais importância do que a todos os outros.

Ouviu-se a voz de um cavalheiro; uma voz que fez empalidecer um pouco Fanny, enquanto Mr. Crawford entrava na sala.

Apelou para todo o seu bom senso e equilíbrio; e conseguiu apresentá-lo à mãe, como um “amigo de William” pensando ao mesmo tempo em que antes nunca se acreditaria capaz de emitir uma sílaba em tais circunstâncias.

A consciência dessa qualidade dele de “amigo de William” foi a que lhe deu forças para agir; porque, depois da apresentação, quando já estavam todos sentados lhe voltaram os terrores de que aquela visita visava vencê-la, e Fanny teve que reprimir violentamente o seu desejo de fugir dali.

Enquanto ela tentava fingir uma animação que não sentia, o visitante, que ao entrar se aproximara de Fanny com mais vivacidade do que de costume, espalhava livremente o seu olhar por tudo, e dava-lhe tempo para se recobrar, dedicando-se inteiramente a Mrs. Price, falando-lhe, dirigindo-lhe amabilidades, escutando-a cortesmente, com aquele ar de amizade e interesse que emanava de suas maneiras perfeitas.

As maneiras de Mrs. Price também eram excelentes. Encantada pela idéia de se avistar com um amigo do filho, e desejosa de não aparecer mal diante de tal amigo, sentia-se inundada de gratidão – ingênua e maternal gratidão que nunca pode ser desagradável. Mr. Price não estava em casa, o que a mãe lamentava muito. Fanny já voltara a si o bastante para sentir bem que ela, Fanny, não poderia lamentar muito essa ausência. Além de todos os motivos de mal-estar que sentia, seria duro demais a vergonha que teria por ele encontrá-la em tal casa. Tentava censurar-se a si mesma por tal fraqueza, mas nenhuma censura surtia efeito. Sentia vergonha, e sentia mais vergonha ainda pelo pai do que por todo o resto.

Falaram sobre William; era um assunto sobre o qual Mrs. Price não se fatigava nunca. E Mr. Crawford era tão elogioso nas suas referências quanto o seu coração poderia desejar. Mrs. Price considerava que jamais, em sua vida inteira, encontrara um rapaz tão agradável; e ficava atônita ao saber que um cavalheiro tão importante e tão agradável viera a Portsmouth não para se avistar com o almirante do porto, nem com nenhuma das autoridades navais, nem com intenção de ir até à ilha, nem sequer para visitar os estaleiros. Nada do que ela estava acostumada a considerar como sinal de importância, ou emprego de fortuna, o trouxera a Portsmouth. Ele chegara na véspera, tarde da noite, demoraria um dia ou dois, instalara-se na hospedaria da Coroa, encontrara casualmente dois ou três oficiais de marinha de seu conhecimento, depois que chegara, porém não tinha nenhum objetivo fixo para a sua estadia.

Enquanto Crawford dava todas essas explicações, não seria desarrazoado que ele deixasse de olhar e mesmo falar com Fanny. E ela conseguiu toleravelmente bem ouvir, de olhos baixos, Mr. Crawford lhe dizer que passara mais de meia hora junto à irmã, na véspera de sua partida de Londres, que ela lhe mandara as mais carinhosas recomendações, apesar de não ter tido tempo para escrever; que ele próprio se considerava feliz por ter podido se entreter com Mary durante toda uma meia hora, pois fazia apenas vinte e quatro horas que ela estava em Londres, regressando de Norfolk. Que o seu primo Edmund estava na cidade, já lá estando, aliás, há vários dias. Que ele próprio não o vira, porém sabia que Edmund estava bem, deixara todos bem em Mansfield e devia ter jantado com os Frasers na véspera.

Fanny ouvia serenamente, até a menção desta última circunstância; e apesar de tudo foi um alívio para o seu espírito fatigado ter uma certeza àquele respeito. E as palavras “já agora está tudo dito” repercutiam profundamente nela, embora a sua única manifestação externa fosse um ligeiro rubor.

Depois de falar um pouco sobre Mansfield, assunto sobre o qual o seu interesse era apenas aparente, Crawford sugeriu a idéia de se dar um ligeiro passeio. – A manhã estava linda, e naquela época do ano uma linda manhã era coisa tão rara que ninguém devia perder a oportunidade de fazer um pouco de exercício. – E como tais insinuações não dessem nenhum resultado, Mr. Crawford declarou positivamente a Mrs. Price e às filhas que deveriam dar o seu passeio sem perda de tempo. Só então o compreenderam. Mrs. Price, ao que parecia, raramente atravessava a porta da rua, exceto aos domingos; e confessava que, com uma família tão grande, dificilmente tinha tempo para um passeio: – Não poderia ela então convencer as filhas a aproveitarem o bom tempo, e permitir a ele o prazer de as acompanhar? – Mrs. Price agradeceu, desvanecida. As filhas viviam muito recolhidas. Portsmouth era um lugar péssimo; e elas só raramente saíam e tinham várias coisinhas a fazer na rua, que lhes seriam muito agradável executar agora.

E a conseqüência de tal conversa foi que Fanny, por estranho que isso fosse, – estranho, desagradável e penoso, – viu-se, dentro de dez minutos, em companhia de Susan e de Mr. Crawford, passeando pela High Street.

Aquilo lhe trazia aborrecimento sobre aborrecimento, confusão sobre confusão; porque eles mal tinham chegado à High Street quando encontraram o pai, cuja aparência não era a adequada para um sábado. Mr. Price parou, e por menos que ele semelhasse a um gentleman, naquele momento, a moça foi obrigada a apresentá-lo a Mr. Crawford; ela não tinha nenhuma dúvida a respeito do choque que Mr. Crawford sentiria. Devia se sentir simultaneamente envergonhado e enojado. Desprezá-la-ia, perderia todo interesse em conquistá-la. E embora ela desejasse muito que ele se curasse da sua afeição, há uma espécie de cura que pode ser tão desagradável quanto o pior mal. E eu suponho que haja muito poucas moças em todo o Reino Unido que não prefiram ser a causa da desventura de um belo e agradável rapaz, do que afastá-lo graças à vulgaridade dos seus parentes mais próximos.

Mr. Crawford não poderia certamente olhar para o seu futuro sogro com nenhuma idéia de o tomar como um modelo de elegância masculina; porém (como Fanny, para o seu grande alívio, imediatamente o percebeu) seu pai era um homem muitíssimo diferente, um Mr. Price completamente diverso no seu procedimento com um estranho de cerimônia, do que era dentro de casa, com a família. Suas maneiras, embora não fossem polidas eram mais do que agradáveis; eram gratas, animadas, dignas; suas expressões eram as de um pai afetuoso e de um homem sensível; seu alto tom de voz ressoava ao ar livre, mas não deixou escapar uma única praga. Aquilo era uma espécie de cumprimento instintivo às boas maneiras de Mr. Crawford; e por conseqüência, os receios de Fanny acalmaram-se de todo.

O resultado das amabilidades trocadas entre os dois cavalheiros, foi um oferecimento feito por Mr. Price de conduzir o outro às docas. Mr. Crawford, desejoso de receber como um favor o que o outro lhe oferecia como tal, embora ele já conhecesse de sobra as docas e desejasse estar longe dali, com Fanny, declarou que apreciaria imenso ir até lá, caso Miss Price não receasse a fadiga. Porém foi-lhe garantido que as Misses Price não receariam a fadiga; resolveram pois ir às docas. Se não fosse por Mr. Crawford, Mr. Price se teria encaminhado diretamente para lá, sem nenhuma consideração pelos recados que as filhas deveriam fazer em High Street. Mas cuidou em que elas só visitassem as lojas onde tinham expressamente o que fazer; e isso não os atrasou muito e Fanny pouco deu a esperar ou esperou; e mal os cavalheiros, à porta, iniciavam uma palestra sobre as últimas leis navais ou faziam a conta dos navios de guerra em construção, suas companheiras apareciam, prestes a continuar a caminhada. Logo estavam prontas para irem às docas; e na opinião de Mr. Crawford, o passeio se arranjou de um modo singular. Mr. Price assumiu inteiramente a direção dele e as duas moças ou os acompanhavam ou não, segundo o podiam, enquanto os homens caminhavam sempre no mesmo rápido passo. Mr. Crawford absolutamente não queria caminhar à frente das pequenas; tentava improvisar alguma maneira de alterar essa ordem, mas não lhe aparecia nenhum auxílio; e só nalgum cruzamento, quando Mr. Price, virando-se para trás dizia:

– Venham, meninas! Venha, Fan, venha, Sue; tenham cuidado! – o moço as esperava e lhes prestava o seu auxílio.

Só próximo às docas foi que ele pôde contar com uma feliz conversa com Fanny, porque se juntou ao grupo um colega de Mr. Price, que ia para o seu serviço diário, e que provou ser muito melhor companhia do que ele próprio; e quase imediatamente, os dois oficiais, muito satisfeitos de andarem juntos, tratando de assunto de grande e nunca diminuído interesse, deixaram o povo jovem saltar sobre as vigas, no estaleiro, ou sentar-se sobre as pranchas de um esqueleto de navio que tinham ido ver de perto. Fanny ia procurando ficar atrás; Crawford não a poderia desejar mais fatigada ou mais ansiosa por sentar um pouco; ele também desejaria que Susan fosse embora; um diabrete da idade de Susan é o mais incômodo “tertius” que pode existir no mundo; totalmente diferente de Lady Bertram, era toda olhos e ouvidos. E não seria possível aludir ao assunto capital, à frente dela. O rapaz teve que se contentar em ser agradável em geral, deixando que Susan tomasse parte na conversa, e introduzindo sempre uma pergunta ou uma insinuação destinada à melhor informada e conscienciosa Fanny. Era sobre Norfolk que eles mais falavam: ele já estivera ali várias vezes e cada coisa do lugar crescia em importância aos seus olhos, dados os seus atuais projetos; as viagens e os conhecimentos do moço também foram utilizados, e Susan tomava parte numa palestra inteiramente nova para ela. Para Fanny, era dito algo mais do que a amabilidade acidental das reuniões a que ele estava presente. Para a aprovação dele foi explicado o motivo particular da sua presença em Norfolk naquele desusado período do ano. Tratava-se de um negócio real: do renovamento de um arrendamento que punha em risco o bem de uma grande e (ele assim o acreditava) laboriosa família; ele suspeitava de o seu procurador andar fazendo negociatas secretas, e tentar induzi-lo a uma injustiça; de forma que ele decidira vir ver pessoalmente a coisa e investigar os méritos da questão. Viera, fizera mais bem do que imaginara antes, fora mais útil do que o seu plano inicial previra, e agora poderia congratular-se consigo próprio, pois, ao mesmo tempo que cumprira com um dever, recolhera agradáveis recordações para si mesmo. Travara conhecimento com vários rendeiros que jamais havia visto antes; começara tomando conhecimento de vários cottages cuja existência real, apesar de serem propriedades suas, até agora fora desconhecida dele. Isso foi dirigido, e bem dirigido, a Fanny. Era-lhe agradável ouvi-lo falar tão sisudamente; ele estava agindo, ali em Norfolk, como sempre devera agir. Ser o amigo dos pobres e dos oprimidos! Nada poderia ser mais grato à moça. E ela estava a ponto de lhe lançar um significativo olhar de aprovação quando se sentiu subitamente aterrada: ele dizia agora que seu mais querido desejo era ter alguém que o auxiliasse, uma alma amiga que servisse de guia em cada plano de caridade ou utilidade para Everingham; alguém que transformasse Everingham num lugar mais querido do que jamais lhe fora antes.

Ela desviou os olhos, desejando que ele não falasse mais em tais coisas. Verificava que o rapaz possuía muito melhores qualidades do que o imaginara a princípio. Começou a sentir a possibilidade de que tais qualidades acabassem por dominar completamente a personalidade dele; porém o seu amor era e lhe devia ser inteiramente inadmissível, e não devia pensar nela.

Crawford compreendeu que já fora dito o bastante a respeito de Everingham, e que agora se deveria falar em outra coisa; passou pois a falar de Mansfield. Não poderia ter escolhido melhor: era assunto que prendia sempre a atenção e o olhar de Fanny, quase instantaneamente. Ela sentia uma propensão invencível para ouvir ou para falar de Mansfield. E agora, há tanto tempo afastada de todos que conheciam o local, pareceu-lhe quase ouvir a voz de um amigo, quando ele se referiu a Mansfield; e aceitou o caminho que lhe abriam, ajuntou às deles as suas exclamações de louvor às belezas e confortos de Mansfield, aos tributos que ele prestava aos seus habitantes; Crawford sentiu que ela tomava parte, de coração, nos seus ardorosos elogios, falando do tio do qual só enxergava a bondade e a retidão, falando da tia como do mais meigo temperamento como jamais conhecera.

Ele próprio tinha uma grande simpatia por Mansfield; disse isso e olhou-a, confiado, na esperança de passar bastante tempo, muito tempo lá; lá ou na vizinhança. Visionou especialmente um felicíssimo verão e um outono lá, naquele ano; sentiu que aquilo ia acontecer, contava com aquilo; um verão e um outono infinitamente superiores aos últimos. Tão animado como diverso do ponto de vista social, porém com indescritíveis circunstancias de superioridade.

 – Mansfield, Sotherton, Thorton Lacey – continuou ele – que sociedade pode ser compreendida nessas casas! E com Michaelmas, talvez, pode-se contar com mais uma quarta residência! Há excelentes cabanas de caça na vizinhança de cada uma; é verdade que para uma sociedade em Thorton Lacey, como certa vez Edmund Bertram propôs, num momento de bom humor, eu espero e antevejo duas objeções, duas ótimas, excelentes, irresistíveis objeções para esse plano.

Fanny estava agora duplamente silenciosa; depois de passado o momento, lamentou muito não se ter forçado a obter informações a respeito de um tema que a interessava, estimulando Henry Crawford a lhe dizer algo mais a respeito de sua irmã e Edmund. E a sua fraqueza para enfrentar tal assunto pareceu-lhe depois imperdoável.

Quando Mr. Price e o amigo haviam visto tudo que desejavam, ou julgaram que era tempo de voltar, os outros já também estavam prontos para o regresso; e no passeio de volta, Mr. Crawford diligenciou por obter um minuto de solidão com Fanny, a fim de lhe dizer que o seu único negócio em Portsmouth consistia em vê-la; que aquela fuga de alguns dias fizera-a por causa dela, – dela unicamente, – já que lhe era impossível suportar uma separação maior. Ela, ela sentia muito, realmente sentia muito. E mais, apesar disso, e de outras duas ou três coisas que ela preferia que ele não houvesse dito, pensava que Henry ganhara muito no seu conceito, desde que o conhecia melhor; mostrava-se muito mais atencioso, amável e gentil para com os sentimentos de outras pessoas do que antes o demonstrara em Mansfield; nunca o achara tão agradável, isto é, tão perto de ser agradável; seu procedimento em relação ao pai dela não a podia ofender, e ele fora particularmente delicado na forma como palestrara com Susan; decididamente ele melhorara muito. E Fanny desejou que o dia acabasse logo, desejou que Henry houvesse vindo apenas por um dia; porém a coisa não estava tão mal quanto ela o receava; porque o seu maior prazer, na presença de Mr. Crawford, fora falar a respeito de Mansfield.

Antes que ele partisse, ela ainda teve que lhe agradecer outro prazer, – e não num ponto trivial. O pai solicitou ao moço a honra de lhes participar do lombo de carneiro, ao jantar e Fanny teve bastante tempo para um sobressalto de horror, antes que Crawfords se declarasse preso a um compromisso anterior: prometera jantar com amigos naquele dia e no dia seguinte; travara relações com moços oficiais na hospedaria da Coroa, e agora não poderia anular os compromissos tomados; esperava porém ter ainda a honra de na manhã seguinte, etc, etc. Separaram-se então, Fanny sentindo-se num estado de felicidade absoluta por ter escapado, graças a ele, de tão diabólica ameaça.

Tê-lo em casa para jantar, testemunhando todas as deficiências da família: a cozinha de Rebecca, o serviço de Rebecca, os modos absolutamente livres de Betsey à mesa, empurrando os pratos depois de se ter servido, eram coisas a que a própria Fanny ainda não conseguira se habituar. E ela era fina apenas graças a uma delicadeza nativa, enquanto ele fora educado numa escola de epicurismo e de luxo.

 

Os Prices mal saíam de casa, em direção à igreja, no dia seguinte, quando novamente lhes apareceu Mr. Crawford. Chegou, e em vez de os fazer parar, para um cumprimento ligeiro, acompanhou-os; pediu permissão para irem juntos até Garrison Chapel, que era igualmente o seu destino. Saíram caminhando todos.

Naquele momento a família aparecia num ângulo muito favorável. A natureza lhes dera um grande quinhão de beleza, e os trajes claros de domingo lhes dava um encanto particular. O domingo sempre trouxera uma sensação de alegria a Fanny, sensação que, naquele domingo especial, era talvez maior. Sua pobre mãe não parecia agora tão diferente do que deveria ser uma irmã de Lady Bertram; muitas vezes seu coração se afligira ao pensar no contraste que havia entre as duas; a idéia que, se a natureza estabelecera tão pequena diferença entre ambas, as circunstancias, entretanto, haviam criado diferenças tão grandes, e que sua mãe, tão bonita quanto Lady Bertram, e muitos anos mais jovem, tivesse uma aparência tão mal vestida e desbotada, tão desmazelada, tão gasta. Porém o domingo lhe alterava inteiramente o aspecto; Mrs. Price caminhava junto a um lindo grupo de crianças, livre por algum tempo dos seus afazeres diários, perdendo um pouco a linha apenas quando via os pequenos correrem algum perigo, ou ao ver passar Rebecca com uma flor no chapéu.

Na capela, foram obrigados a dividir-se, porém Mr. Crawford tomou cuidado em não ser afastado do grupo feminino; e depois do serviço divino continuou em companhia delas, tomando parte no passeio que a família deu até as fortificações.

Mrs. Price, durante os domingos bonitos do ano, costumava dar o seu passeio semanal às fortificações, encaminhando-se para lá, muitas vezes, logo à saída da igreja e voltando apenas à hora do jantar. Era lá a sua praça pública, o seu centro social; lá se avistava com as conhecidas, ouvia as novidades, falava sobre as deficiências das criadas de Portsmouth, e cobrava ânimo para os trabalhos da semana a começar.

Chegaram afinal; Mr. Crawford sentindo-se feliz por ter ambas as Misses Price entregues ao seu cuidado particular; pois, percorrido uma parte do caminho, sem que Fanny pudesse dizer como aquilo se dera, sem acreditar no que via, as irmãs caminhavam de braço dado com ele, e ela não sabia absolutamente como poria fim àquela intimidade. Aquilo a incomodou um pouco, de início, – mas, afinal, eram liberdades do passeio, e depressa Fanny se convenceu disso, e tranqüilizou-se.

O dia era estranhamente bonito. Estavam de fato em março, porém o ar livre era abril; soprava uma brisa fresca, um lindo sol luzia, encoberto apenas de longe em longe por alguma nuvem. Tudo parecia lindíssimo sob a influência de tal céu; os efeitos de sombras perseguindo-se uns aos outros, nos navios do Spithead, ou em torno da ilha, as matizes cambiantes sempre variadas da cor do mar, o dorso rápido de uma vaga dançando sobre as águas e indo esmagar-se com fragor de encontro ao quebra-mar, formavam para o espírito de Fanny um tal conjunto de encantos, que a iam tornando cada vez mais descuidada das circunstancias sobre as quais se sentia. E até mesmo, tendo tentado caminhar sem o braço de Crawford, verificou que necessitava dele, pois aquelas duas horas de passeio a tinham fatigado, vindo assim, depois de uma semana de inatividade. Aliás Fanny estava começando a sentir os efeitos da falta de seu habitual exercício. Já não gozava a mesma saúde do tempo em que chegara a Portsmouth. E se não fosse o apoio de Mr. Crawford e a beleza do tempo, sentir-se-ia estafada.

O encanto do dia fazia com que o rapaz se sentisse quase como se sentia Fanny. Muitas vezes eles pararam, levados pelo mesmo sentimento e pelos mesmos gostos, demorando vários minutos sobre o muro da fortificação, olhando e admirando; e considerando que ele não era e nem podia ser Edmund, Fanny o julgava suficientemente aberto aos encantos da natureza e plenamente apto para exprimir essa admiração. A moça entregava-se de vem em quando a doces abstrações e ele aproveitava-se da vantagem que tais abstrações lhe concediam para lhe fitar o rosto sem rebuços; e constatava, por esses olhares, que, embora encantadora como sempre, a fisionomia de Fanny estava menos saudável do que deveria estar. Ela dizia se sentir muito bem, e não havia modos de provar o contrário; porém Crawford, intimamente, estava convencido de que a sua presente residência não lhe poderia ser confortável nem saudável, e sentia-se ansioso para que ela voltasse a Mansfield, onde a sua felicidade, e a dele, ao vê-la lá, seria muito maior.

– Miss Fanny está aqui há um mês, creio eu? – perguntou ele.

– Não, Ainda não faz um mês. Amanhã é que faz quatro semanas que eu deixei Mansfield.

– A senhorita é a calculadora mais minuciosa e honesta que conheço; porque eu chamaria a isso um mês.

– Só cheguei aqui terça feira à noite.

– E veio para uma estadia de dois meses, não?

– Sim. Meu tio falou em dois meses. Creio que não poderá ser menos.

– E como irá de volta para lá? Quem a acompanhará?

– Não sei. Minha tia não me disse nada a esse respeito. Talvez eu tenha que demorar mais um pouco. Talvez não seja conveniente eu ir embora logo que fizer exatamente dois meses.

Depois de um momento de reflexão, Mr. Crawford tornou:

– Conheço Mansfield, conheço o ambiente lá, conheço as faltas dos de lá para consigo, Miss Fanny. Sei do perigo que corre de ser esquecida por muito tempo, afastada do conforto, de que precisa, a pretexto da imaginária conveniência de uma demora maior no seio da família. Receio que a deixem aqui semana após semana, caso Sir Thomas não possa arranjar as coisas para a vir buscar ele próprio, ou mandar a criada de sua tia; basta que isso determine a menor alteração nas providências que devem ser tomadas para a próxima estação. E isso não deve acontecer. Dois meses já são uma estadia grande; creio mesmo que seis semanas seriam o bastante. Estou pensando na saúde de sua irmã – acrescentou ele dirigindo-se a Susan – porque acho que este isolamento em Portsmouth não lhe está fazendo bem. Ela precisa de exercício constante. Se você a conhecesse tão bem quanto eu, estou certo de quer também acharia que Miss Fanny não pode estar muito tempo afastada do ar livre e da liberdade do campo. Se por acaso – falou ele então, volvendo-se para Fanny – não se sentir bem aqui, e aparecerem dificuldades para o seu regresso a Mansfield, antes que os dois meses tenham acabado, isso não deve ser encarado como um obstáculo: basta que a minha irmã tenha conhecimento disso, que lhe dê a menor demonstração de que deseja ir, imediatamente ela e eu viremos aqui e a acompanharemos até Mansfield. Sabe a felicidade e o prazer com que faremos isso; sabe tudo o que sentiremos nessa oportunidade.

Fanny agradeceu e tentou dar uma risada.

– Estou falando muito sério – tornou ele. – Sabe muito bem disso. E espero que não vá esconder alguma indisposição que sinta. Sei que não fará isso; não estará em seu poder. Sempre que disser positivamente, em suas cartas a Mary “vou passando bem” eu, que a sei incapaz de afirmar uma falsidade, acreditarei que estará bem.

Fanny lhe agradeceu novamente, porém estava comovida e mortificada a tal ponto que lhe seria impossível falar muito, e aliás, não sabia bem o que deveria dizer. Isso se deu já ao fim do passeio. Ele as acompanhou até à porta de casa, recusando-se porém a entrar, alegando que um amigo o esperava para jantar.

– Espero que não esteja muito cansada – disse ele – retendo um pouco Fanny, depois que os outros entraram em casa. Desejo infinitamente que esteja se sentindo muito bem. Quer alguma coisa para a sua cidade? Estou com a idéia de ir logo para Norfolk. Não estou satisfeito com Maddison. Tenho a certeza de que ele quer agir à minha revelia o mais que puder, e tenciona por um primo morando num certo moinho que eu destino a uma outra pessoa. Preciso ir lá e me entender com ele. É preciso que ele saiba que eu não consentirei em ser embrulhado no lado sul de Everingham, como não o serei no lado norte; quero ser o dono do que é meu. Ainda não nos explicamos bastante a esse respeito, até agora. O mal que um administrador pode fazer tanto ao crédito do seu patrão quanto ao bem estar dos pobres é incalculável. Estou pensando na verdade em ir diretamente para Norfolk e lá arranjar as coisas de modo a que não possam ser facilmente alteradas. Maddison não é um mau sujeito; não o quero dispensar, mas preciso providenciar para que ele não tente me dispensar a mim. Era preciso ser tolo para me deixar lograr por um homem que não tem nenhum direito a isso; e mais do que tolo, se consentisse que me pusesse um sujeito qualquer como rendeiro, justamente no lugar que eu já mais ou menos prometi a um homem de bem. Não acha que seria realmente mais que tolice? Devo ir? Qual é a sua opinião?

– Minha opinião? O senhor sabe muito bem que é isso o que deve fazer.

– Sim. Quando você concorda, eu já sei que é direito. Seu julgamento é o critério de direito que sigo.

– Oh, não! Não diga isso. Em nós mesmos nós encontramos um guia muito melhor, se o queremos, do que o que outra qualquer pessoa possa nos dar. Adeus. Desejo que tenha um dia muito agradável amanhã.

– Então não quer nada para a cidade?

– Nada. Mas lhe agradeço muito.

– Não quer mandar um recado para ninguém?

– Muitas recomendações para sua irmã, por favor. E, se vir meu primo, – meu primo Edmund, espero que tenha a bondade de lhe dizer que estou esperando notícias dele.

– Conte com isso; e se ele for preguiçoso ou negligente, eu próprio lhe escreverei, mandando-lhe as desculpas.

Ele não pôde dizer mais nada, porque Fanny não quis demorar mais. Apertou-lhe a mão, olhou-lhe o rosto e foi embora. E então, em companhia de seus novos companheiros, esperou mais três horas pelo excelente jantar da hospedaria; enquanto ela, imediatamente, foi sentar-se à modesta refeição caseira.

Pudesse Henry Crawford suspeitar quantas privações, afora essa do exercício, era Fanny obrigada a suportar em casa do pai, admirar-se-ia de que seu rosto não estivesse muito mais abatido. Não havia diferença dos pudins de Rebecca para os picadinhos de Rebecca, atirados à mesa junto aos pratos meio lavados e aos talheres meio areados; e muitas vezes a moça adiava o jantar até à noite, para quando pudesse mandar um dos irmãos lhe comprar biscoitos ou bolos. Depois de se ter criado em Mansfield, era tarde demais para se habituar aos duros métodos de Portsmouth; e o próprio Sir Thomas, se por acaso tivesse conhecimento disso, vendo embora que a sobrinha, trilhando o mais prometedor caminho ao depauperamento físico e moral, daria agora um justo valor à fortuna e à companhia de Mr. Crawford, recearia levar a experiência avante, com medo de a matar com a cura.

Fanny ficou perturbada durante todo o resto do dia. Embora mais ou menos certa de não se avistar com Mr. Crawford, não pôde vencer o desânimo; ele, ao partir, assumira um pouco as qualidades de um amigo; e embora, por um lado estimasse vê-lo ir embora, parecia-lhe que agora estava desamparada por todos; parecia-lhe, hoje, ter sido novamente separada de Mansfield; e Fanny não podia pensar no regresso dele à cidade, convivendo com Mary e Edmund, sem sentir em seu coração sentimentos tão parecidos com a inveja, que a faziam odiar-se a si própria, por alimentá-los.

Seu desânimo não interessou ninguém em torno dela; um ou dois amigos do pai, como acontecia sempre que não saía ele próprio a procurá-los, passaram lá a infindável noitada. E desde seis horas até às nove e meia poucos intervalos houve entre a conversa e a bebida. Fanny sentia-se muito deprimida. O maravilhoso aperfeiçoamento que ela julgara perceber em Mr. Crawford , era a única coisa que poderia confortá-la, dentro da atual direção dos seus pensamentos. Sem pensar em quão diferente era o círculo em que o vira evoluir antes, nem que muito do efeito era devido ao contraste, Fanny estava inteiramente persuadida de que ele se tornara espantosamente mais amável e mais atento aos outros do que anteriormente. E se mudara nas pequenas coisas, por que também não nas grandes? Tão ansioso pela sua saúde e seu conforto, tão sensível quanto se mostrara, e realmente o parecia estar, talvez não fosse loucura imaginar que ele talvez não precisasse esperar muito para conseguir prendê-la.

 

Era de presumir que Mr. Crawford houvesse viajado no dia seguinte para Londres, pois não apareceu mais em casa de Mr. Price; e dois dias depois tal suposição era uma certeza para Fanny, graças à seguinte carta que recebera de Mary, carta aberta e lida com a mais ansiosa curiosidade.

“Devo informá-la, caríssima Fanny, de que Henry foi à Portsmouth apenas para vê-la; chegou contando ter feito no sábado um lindíssimo passeio em sua companhia, até aos estaleiros; e que domingo haviam passeado ainda mais agradavelmente pelas fortificações; e o ar balsâmico, o mar escumante, o seu doce rosto, suas doces palavras, alternavam-se na mais deliciosa harmonia, que ainda hoje lhe despertam sensações retrospectivas bem próximas do êxtase. Isto conforme o percebi, é o essencial da minha informação. Porque ele exige que eu lhe escreva, porém nada mais me disse em que eu lhe pudesse falar, senão a visita a Portsmouth, os supracitados passeios, e a apresentação dele à sua família, principalmente à uma irmãzinha de quinze anos, que, imagino, tomou no tal passeio às fortificações, em sua primeira lição de amor. Não tenho muito tempo para escrever; e esta carta eu a poderia chamar ‘de negócios’ pois deve ser portadora de uma notificação indispensável, que não poderia ser adiada sem perigo de dano. Minha queridíssima Fanny, se a tivesse aqui, como teria de que lhe falar! Você teria que me escutar até cansar-se, e teria que me aconselhar até ficar mais cansada ainda! Mas é impossível por no papel uma centésima parte das minhas preocupações; de forma que prefiro me abster de as contar e deixá-la conjecturar o que quiser. Não tenho tido notícias suas. Você aí tem relações, decerto; e seria maldade fatigá-la com a discriminação das pessoas e das festas com que tenho preenchido o tempo aqui. Deveria lhe ter mandado uma descrição da primeira festa dada por sua prima, mas tive preguiça na ocasião, e agora já faz muito tempo que a coisa se passou; basta que lhe diga, pois, que tudo correu como devia, em alto estilo, com grande satisfação de todos os convidados; e os trajes e as maneiras de sua prima lhe granjearam os maiores elogios. Conto, depois da Páscoa, ir fazer uma estadia em casa de Lady Stornaway; ela parece que vai muito bem, felicíssima. Creio que Lord S. é sempre muito bem humorado e agradável, no seio da própria família, e não creio que ele pareça tão abatido quanto eu, ou quanto alguém mais; – seu primo Edmund, por exemplo. Acerca desse herói, que lhe poderei dizer? Se eu evitar inteiramente qualquer referência ao seu nome, poderei provocar suspeitas. Dir-lhe-ei pois que nos avistamos umas duas ou três vezes, e que os meus amigos daqui apreciaram muito a sua aparência fidalga. Mrs. Fraser, (que não é mau juiz) declara que talvez não conheça na cidade três outros cavalheiros que se possam gabar de uma figura tão agradável, tanta distinção, tanta nobreza; e eu devo confessar que quando ele jantou aqui, outro dia, não havia ninguém com quem de pudesse compará-lo – e éramos dezesseis pessoas. Felizmente não é a roupa que faz o homem, hoje em dia porém... Sua, afetuosamente, etc.”

 “Tinha quase esquecido de aludir, (por culpa de Edmund: ele me vive na cabeça mais do que devia) da tal notificação em que lhe falei a princípio. Refere-se a um fato que tem preocupado a Henry e a mim: a sua volta. Minha queridinha, não fique em Portsmouth, perdendo suas boas cores. Essas cidades à beira mar são a ruína da beleza e da saúde. Minha pobre tia, bastava estar a dez milhas do mar para se sentir afetada, – coisa em que o Almirante não acreditava nunca, naturalmente, – mas que eu compreendia muito bem. Henry e eu estamos à sua disposição, ao menor sinal seu. Poderíamos fazer um pequeno circuito e à volta lhe mostrar Everingham. E talvez, se você não se importa que atravessemos Londres, veremos o interior de St. George, em Hanover Square. Apenas , peço-lhe que retenha o seu primo Edmund durante esse tempo; eu não o poderia avistar sem tentação. Que carta comprida! Uma palavra mais: Henry tem, creio eu, a idéia de ir a Norfolk para tratar de certos negócios que você aprova, porém isso não lhe será possível antes do meio da próxima semana; isto é, não estará livre até ao dia 14, porque nós daremos uma recepção nesse dia. Você não pode conceber a importância da presença de um homem como Henry numa dessas ocasiões; pode acreditar em mim quando lhe digo que é inestimável. Nessa reunião ele se irá encontrar com os Rushworths, o que eu não lamento, – pois tenho nisso até uma certa curiosidade. Ele também a tem, embora não o reconheça. – M”

 Aquilo era uma carta para ser percorrida com impaciência, para ser lida deliberadamente, dando matéria a muita reflexão, e deixando tudo mais suspenso do que nunca. A única certeza que se poderia deduzir de sua leitura é que nada de decisivo se sucedera. Edmund não falara ainda. Quais seriam os sentimentos reais de Miss Crawford, como tencionava ela agir, ou se agiria contra as suas intenções; se a importância dos seus sentimentos era exatamente a mesma de antes da última separação; se estavam em decadência, se tenderiam a cair mais, ou a recobrar-se, tudo isso era pretexto para conjecturas sem fim, que atravessaram aquele dia e os dias subseqüentes, sem resultarem em nenhuma conclusão. O pensamento que mais freqüentemente ocorria à moça era que Miss Crawford, depois de se por à prova ela própria, fria e deliberadamente, por uma volta aos seus hábitos londrinos, queria ainda fazer uma experiência da sua afeição por Edmund, tentando renunciar. Tentaria ser mais ambiciosa do que o seu coração. Hesitaria, modificar-se-ia, imporia condições, exigiria muito, porém acabaria aceitando.

Esta era a mais freqüente previsão de Fanny. Uma casa na cidade, isto, pensava ela, deveria ser impossível. Mas não jurava que Miss Crawford não o exigiria. O futuro do primo lhe parecia cada vez mais ameaçador. A sua amada falava nele, mas falava-lhe apenas na aparência. Que vergonhosa afeição! Uma afeição que carecia do apoio dos frívolos elogios de Mrs. Fraser! Ela, que o conhecera intimamente durante seis meses! Fanny sentia-se envergonhada pela outra. Os trechos da carta referentes a ela própria e a Mr. Crawford, a impressionaram relativamente muito pouco. Se Mr. Crawford ia ou não ia a Norfolk antes do dia 14, – ela não tinha nada com isso, embora, pensando bem, ele devesse ir lá, sem demora. E o fato de Miss Crawford diligenciar por provocar um encontro entre ele e Mrs. Rushworth, parecia-lhe uma péssima iniciativa, um erro grosseiro, um mau pensamento. Ela porém esperava que Henry não estivesse influenciado por nenhuma curiosidade degradante. Deveria bastar que ele negasse tal curiosidade para a irmã lhe dar crédito; aliás ela tinha obrigação de lhe atribuir melhores sentimentos que os seus próprios.

E, depois de receber essa carta, Fanny tornou-se mais impaciente por saber de notícias, do que o estava antes. Ficou tão suspensa a pensar no que poderia estar acontecendo, no que aconteceria, que suas habituais conversas e leituras com Susan foram muito interrompidas, durante vários dias. Não podia dirigir a atenção, como o desejava. Se Mr. Crawford dera o seu recado ao primo, seria provável, “mais que provável” que ele lhe escrevesse, contando tudo; e a coisa era ainda mais provável, dada a habitual solicitude dele; mas aos poucos ela se foi afastando dessa idéia, porque não apareceu nenhuma carta depois de três, quatro dias; e em cada dia a pobre pequena se sentia mais inquieta, mais ansiosa.

Por fim, conseguiu obter alguma serenidade. Era forçoso vencer as dúvidas, não a permitir que a dominassem de todo, inutilizando-a. O tempo fez alguma coisa, suas reprimendas íntimas o fizeram ainda mais, ela concentrou sua atenção em Susan, e conseguiu recuperar o mesmo interesse pela irmã.

Susan cada dia aprendia mais; e embora não encontrasse nos livros o profundo prazer que neles achava Fanny; embora muito menos inclinada que a irmã às meditações sedentárias, ou à indagação pelo mero prazer da indagação, Susan tinha um desejo tão forte de não parecer ignorante, o qual, junto a uma inteligência clara, a tornava a mais atenta, a mais proveitosa, a mais grata das discípulas. Fanny era o seu oráculo. As explicações de Fanny ou os seus comentários eram a parte mais importante de cada ensaio, de cada capítulo de história. O que Fanny lhe dizia sobre os tempos passados se lhe gravava muito mais na memória do que qualquer página de Goldsmith; e ela pegava os elogios da irmã preferindo o seu estilo ao de qualquer outro autor impresso.

As conversas das duas, entretanto, não tratavam exclusivamente de temas tão elevados quanto a história ou moral. Outros assuntos tinham a sua hora; mas nenhum outro aparecia tão freqüentemente nas palestras das irmãs nem tão longamente permanecia quanto Mansfield Park. Susan, que tinha uma predileção nata por tudo que era fino, distinto, estava sempre pronta para ouvir, e Fanny não podia senão condescender com os seus próprios sentimentos, abordando um tema tão amado. Esperava não estar fazendo mal. Porém depois de algum tempo, verificando a enorme admiração de Susan por tudo que fosse dito ou feito na casa do tio, e o seu ardente desejo de ir a Northamptonshire, censurou-se severamente por estar despertando sentimentos que não poderiam ser recompensados.

Pobre Susan, não se adaptava à sua casa muito melhor do que a irmã mais velha; e à medida que ia se confirmando essa convicção, Fanny começou a sentir que, quando se libertasse de Portsmouth, sua felicidade seria muito estragada pela idéia de lá deixar Susan. Desolava-a cada dia mais imaginar que uma rapariga tão capaz de aperfeiçoamento e progresso ficasse entregue a tais mãos. Como gostaria de ter sua própria casa para a levar para lá! Que coisa abençoada seria! E era bem possível que tal pensamento trabalhasse muito melhor para os interesses de Mr. Crawford, do que o cuidado dos seus próprios confortos e interesses.

Fanny já o considerava um ótimo caráter, e já o associava a planos de certo modo muito agradáveis.

 

Sete semanas, das oito que comporiam os dois meses, já se tinham passado quase, quando Fanny recebeu a primeira carta de Edmund, tão longamente esperada. Ao abri-la, ao lhe ver o conteúdo, preparou-se para um longo minuto de felicidade, e sentiu no coração uma maré montante de amor e gratidão pela criatura que era agora a senhora do seu destino.

Eis o que dizia a carta:

 

“Mansfield Park

Minha querida Fanny: Desculpe-me se não escrevi antes. Crawford me disse que você queria saber notícias minhas, porém julguei impossível escrever-lhe de Londres, e supus que você compreenderia o meu silêncio. Pudesse eu lhe ter feito apenas algumas linhas despreocupadas, você as teria recebido; mas coisas dessa natureza não estão em meu poder.

Voltei para Mansfield, num estado de muito maior insegurança do que saíra daqui. Minhas esperanças estão hoje ainda mais fracas; aliás você já devia ter imaginado isso. Miss Crawford, que lhe tem tanta afeição, naturalmente já lhe deu a perceber o bastante, a respeito dos seus próprios sentimentos, para lhe permitir fazer suficientes conjecturas a respeito dos meus. De maneira que eu não estaria me antecipando se lhe fizesse minhas próprias confidências. Nossa confiança em você não precisa ser posta à prova; não lhe faço perguntas. Basta o conforto que me dá a idéia de que temos ambos a mesma amiga, e apesar das infelizes divergências de opiniões que existem entre mim e elas, sentimo-nos unidos na afeição por você.

Será pois para mim um consolo contar-lhe como vão as coisas, e quais são meus planos atuais, – se posso dizer que tenho planos. Voltei desde sábado. Passei três semanas em Londres, e me avistei com ela muito freqüentemente (do ponto de vista de quem está em Londres). Fui tratado com tanta atenção pelos Frasers como seria de esperar razoavelmente. Digo ‘razoavelmente’ porque eram desarrazoadas as esperanças que eu levava de ter com ela o mesmo convívio que tínhamos em Mansfield. A diferença estava mais nos meus modos, aliás, do que na raridade dos encontros. O fato é que ela mudou radicalmente; a minha primeira recepção foi tão diferente do que eu tinha esperado, que quase me resolvi a deixar Londres imediatamente. Não quero entrar em minúcias. Você conhece o lado fraco do caráter dela, e pode imaginar os sentimentos e expressões com que me torturou. Cheia de verve e bom humor, via-se cercada por gente que estava sempre pronta a apoiar levianamente a sua vivacidade talvez excessiva. Não gostei de Mrs. Fraser. É uma mulher fria e frívola, que se casou apenas por conveniência, e que é evidentemente infeliz no casamento; mas em vez de atribuir sua infelicidade a desencontros de opiniões, de temperamento, ou à desproporção de idade, atribui-a apenas à falta de influência social; e vive a invejar a importância das amigas, especialmente a da irmã, Lady Stornaway, e é a protetora de todo mercenário e ambicioso que encontra, conquanto que seja suficientemente mercenário e ambicioso.

Considero a intimidade com essas duas irmãs a maior infelicidade tanto para a vida dela, como para a minha. Há anos que a procuram desencaminhar. Deus permita que ela possa se desligar de tal gente; e muitas vezes não desespero disso, porque a afeição me parece existir principalmente do lado das duas irmãs. São íntimas dela; mas tenho certeza de que Mary não gosta tanto das duas quanto elas gostam de si. Quanto penso no carinho sempre crescente que ela tem por você, na sua conduta judiciosa e correta como irmã, aparece-me como uma criatura completamente diversa, capaz de tudo que é nobre, e me maldigo a mim mesmo por ousar me queixar de alguma coisa. Não posso me desligar dela, Fanny. Ela é, no mundo inteiro, a única mulher que eu pensei tornar minha. Se eu acreditasse que Mary nunca olhara para mim, talvez não dissesse isto; porém acredito que me olhou. Tenho a certeza de que ela me prefere a outros; não tenho ciúmes de ninguém. O que me dá ciúmes é o círculo elegante e frívolo que a cerca; o que eu receio são os hábitos de luxo. Suas idéias não estão acima das garantias que lhe dá a sua própria fortuna, mas estão muito acima do que estaria a fortuna de nós dois, ela e eu. Aliás, isto me dá algum consolo; e recebo melhor a idéia de perdê-la porque não sou bastante rico do que por causa da minha profissão; e isto prova pelo menos que a sua afeição não é igual aos sacrifícios, que pensando bem, não tenho o direito de lhe pedir. Se eu for recusado, sei que será esse o motivo real. Seus preconceitos, bem o sei, não são tão fortes.

Você está recebendo os meus pensamentos tais como eles me vão brotando no coração, querida Fanny; talvez sejam às vezes contraditórios, mas nem por isso representarão uma pintura menos fiel do meu espírito. E já que comecei, dá-me prazer lhe contar tudo que sinto. Não posso me afastar dela; ligados como já estamos, e segundo o espero, como o estaremos mais ainda, afastar-me de Mary Crawford significaria afastar-me dos amigos que me são mais queridos; seria me exilar das casas e dos amigos que, em caso de quaisquer outros desgostos, eu procuraria para que me consolasse. A perda de Mary deve significar para mim a perda de Crawford e Fanny. Porém quando a sua recusa for um fato consumado, espero encontrar forças para tentar diminuir o poder que ela tem sobre meu coração, e talvez, dentro de alguns anos... mas estou escrevendo disparates. Mesmo que eu seja repelido, tenho que fazer uma tentativa perante ela, e enquanto não o sou, não posso deixar de pensar nisso; esta é a verdade. A única questão é: Como? Qual será a maneira melhor? Já pensei muitas vezes em ir ainda uma vez a Londres, antes da Páscoa; outras vezes julgo melhor não fazer nada até à volta dela a Mansfield. Agora mesmo em Londres falou-me com alegria em sua vinda a Mansfield em junho. Porém junho ainda está muito longe, e creio que talvez eu tente me corresponder com Mary. Estou quase resolvido a expor os meus sentimentos numa carta. Uma certeza qualquer será o melhor que me pode suceder; ando num estado miserável de aborrecimento. Considerando tudo, creio bem que uma carta será o melhor meio de explicação. Saberei escrever muitas coisas que não consigo dizer; e tendo ela tempo para refletir, antes de se resolver a me responder, tenho menos medo do que me dirá, do que se falasse sob um impulso apressado. Creio que será o melhor. O maior perigo que corro será se ela consultar Mrs. Fraser; e dada a distância, a dificuldade em que fico de defender minha causa. Uma carta está exposta aos perigos resultantes de uma consulta, quando quem a receber não está certo ainda de sua decisão e recorre a um conselheiro; um mau conselheiro pode, em certos momentos, nos levar a tomar decisões que mais tarde nos arrependemos. Devo também procurar resumir meus sentimentos em poucas linhas. Uma longa carta, cheia apenas de meus sentimentos e opiniões, pode cansar até a própria amizade de uma Fanny. A última vez em que vi Crawford foi na festa de Mrs. Fraser. Fiquei cada vez mais satisfeito com tudo que vi e ouvi dele. Não há uma sombra de dúvida; ele sabe perfeitamente o que quer, e age de acordo com as suas resoluções, o que considero uma qualidade inestimável. Não o pude ver junto à minha irmã mais velha, na mesma sala, sem pensar em tudo o que você me disse, e reconheço que não se encontraram como amigos. Notava-se uma marcante frieza da parte dela; pouco falaram, e surpreso, vi afastar-se. Lamentei muito que Mrs. Rushworth possa ressentir ainda os efeitos de uma leviandade praticada por Miss Bertram. Você gostará de saber a minha opinião sobre a vida de Maria como mulher casada. Não parecem infelizes, e espero que continuem dando-se bem juntos. Jantei duas vezes em Wimpole Street, e estive lá mais três vezes, porém confesso que é mortificante ter Rushworth como irmão. Julia parece divertir-se extraordinariamente em Londres.

Nós, aqui, não constituímos um grupo muito alegre. Sua falta é sentida enormemente. Eu então, sinto muito mais a sua ausência do que o poderia dizer. Minha mãe manda afetuosas lembranças e deseja receber logo suas notícias. Fala em seu nome constantemente, e fico muito triste só ao pensar em quantas semanas ainda ela estará sem você. Meu pai pensa em trazê-la ele próprio, o que, entretanto, não poderá ser senão depois da Páscoa, quando terá negócios a resolver em Londres.

Espero que você esteja contente em Portsmouth, porém a sua estadia aí não deve prolongar-se demais. Preciso de você em casa, e preciso de sua opinião a respeito de Thorton Lacey. Não desejo fazer lá grandes melhoramentos, senão depois que eu tiver a certeza de que a casa terá uma dona.

Penso realmente em fazer a tal carta. É coisa certa a ida dos Grants para Bath. Partem segunda feira de Mansfield. Estimo isso. Não estou disposto a conviver com ninguém, atualmente. Sua tia, entretanto, lamenta que um capítulo tão importante das notícias de Mansfield, me caia da pena, num fim de carta, em vez de ser aproveitado por ela. Seu sempre, minha queridíssima Fanny...”

– Nunca, nunca mais desejarei receber carta nenhuma – foi a declaração secreta de Fanny, quando acabou de ler a carta de Edmund. – Só me trazem desapontamento e tristeza! Só depois da Páscoa! Como suportarei isso? E a pobre titia, chamando por mim a toda hora!

Fanny fazia o possível para afastar esses pensamentos, mas não se passava um minuto sem que lhe ocorresse que Sir Thomas era tão mau para ela quanto para a tia. E o assunto principal da carta não contribuía em nada para acalmar essa irritação. Afligia-se com a cólera que sentia contra Edmund:

– Não vejo nada de bom nesta demora – dizia de si para si. – Por que não casa logo ele? Está cego, e nada lhe abrirá os olhos. Nada, nada, já que tantas verdades lhe foram em vão postas diante dos olhos. Quer casar com Miss Crawford, e ser pobre e infeliz. Deus permita que a influência dela não o estrague também!

Olhou de novo para a carta:

– Ela tem profunda afeição por mim! Que disparate! Ela só gosta no mundo de si própria e do irmão. Há anos que a procuram desencaminhar... Pode dizer que elas o conseguiram. Ou então que elas três se corromperam uma às outras: porém que elas gostem mais de Mary do que Mary delas, considero Miss Crawford a pessoa menos capaz de ser atingida por isso, a menos que não o seja pelas lisonjas. ‘Ela é, no mundo inteiro, a única mulher que já pensei tornar minha.’ Acredito firmemente nisso. É uma afeição que lhe influirá na vida inteira. Aceito ou recusado, o seu coração será sempre dela... ‘A perda de Mary deve significar para mim a perda de Crawford e Fanny’. Edmund, você não me conhece. Não haverá parentesco nenhum entre as famílias se não for você o responsável por ele. Oh, escreva, escreva! Acabe de uma vez! Ponha um fim a esta insanidade. Prenda-se, encarcere-se a si próprio.

Essas sensações emanavam diretamente do ressentimento que há muito vinha guiando os solilóquios de Fanny. Sentia-se cada vez mais fraca e mais triste. Seu ardente olhar, suas afetuosas expressões, seu tratamento confidencial tinham-na tocado profundamente. Ele era sempre tão bom para todos! Era uma carta, em suma, que ela não trocaria por nada no mundo, pois nada a equivale em valor.

Quem quer que se dedique à arte da correspondência, e não disponha de muitas coisas a contar – e isso inclui grande parte do mundo feminino, – deverá sentir, como Lady Bertram, que assunto tão importante entre as notícias de Mansfield, como a partida dos Grants para Bath, ocorresse num momento em que ela não o pudesse aproveitar; e deve-se admitir que haveria de ser muito mortificante para Sua Senhoria tal assunto ser presa do seu displicente filho, e tratado o mais concisamente possível no fim de uma longa carta, em vez de ser desenvolvido na parte principal de uma missiva escrita por ela própria. É verdade que Lady Bertram não brilhava muito no gênero epistolar: casara muito cedo, o que a impedira de dar a esse gênero o seu emprego mais usual; e Sir Thomas, devido à sua situação no Parlamento, assumira ele próprio o encargo da correspondência, deixando muito pouco o que fazer à mulher. É verdade que ela não ficou inteiramente sem nada que escrever; muitas vezes era-lhe forçoso traçar algumas linhas, – para a sobrinha, por exemplo. E ver-se privada dos sintomas de gota do Dr. Grant, e das dores matinais de Mrs. Grant, para suas necessidades epistolares, era realmente uma lástima.

Havia entretanto uma boa desforra preparada para Sua Senhoria. Chegou também a hora de sorte para Lady Bertram. Poucos dias depois de ter recebido a carta de Edmund, veio ter às mãos de Fanny uma carta da tia, que assim começava:

 

“Minha querida Fanny: Tomo da pena para lhe comunicar certas notícias alarmantes que recebemos e que, sem dúvida nenhuma, hão de lhe interessar”.

 

Isto era muito melhor do que tomar da pena para comunicar a Fanny as particularidades da futura viagem dos Grants, porque as presentes notícias eram de natureza a garantir ocupação para a pena por muitos dias seguidos, tratando-se – como tratava – de perigosa doença do filho mais velho da casa, da qual tinham recebido comunicação expressa poucas horas antes.

Tom partira de Londres para Newmarkett, em companhia de um rancho de rapazes; lá, uma queda mal tratada e uma bebedeira subseqüente lhe tinham trazido uma fortíssima febre; e quando o grupo foi embora, ele, incapaz de viajar, ficou na casa de um desses rapazes, tendo como único conforto a doença e a solidão, e como cuidados apenas os dos criados. E em vez de melhorar logo, como esperara, a fim de poder acompanhar os amigos, sua doença aumentou consideravelmente; o médico, alarmado, despachou uma carta para Mansfield.

 

“Essa alarmante notícia, como você bem o compreende”, observada Sua Senhoria, depois de narrar a substância do fato, “nos agitou extremamente; e não podemos esperar diminuição do nosso receio e alarme, com o estado do nosso pobre enfermo, pois, na opinião de Sir Thomas, tal estado deve ser dos mais críticos. Edmund, bondosamente, propôs-se a ir imediatamente assistir o irmão; e felizmente, Sir Thomas não se afastou do meu lado nesta dolorosa ocasião, o que seria duro demais para mim. Sentimos muitíssimo a falta de Edmund, no nosso círculo já tão pequeno, porém confio e espero que ele vá encontrar o nosso pobre doente numa situação menos alarmante do que o receamos, e o possa trazer brevemente para Mansfield, como é do desejo de Sir Thomas, que considera essa a melhor solução; tenho esperanças também de que o nosso pobre sofredor suporte a viagem sem inconveniências materiais e sem sofrimento. Se eu tivesse a menor dúvida sobre os seus sentimentos a nosso respeito, minha querida Fanny, nestas desoladoras circunstâncias, ter-lhe-ia escrito ainda muito cedo.”

 

Os sentimentos de Fanny, nessa oportunidade, eram com efeito muitíssimo mais ardentes e sinceros do que o estilo epistolar da tia. Sentiu profundamente o sucedido. Tom perigosamente doente, Edmund ausente para o assistir, o triste grupo ansioso para ficar em Mansfield, eram cuidados mais que capazes de expulsar quaisquer outros cuidados, ou quase todos os outros.

E Fanny mal conseguiu ter presença de espírito bastante para perguntar a si própria se Edmund teria escrito a Miss Crawford antes de receber as malfadadas novas; porque os sentimentos que prevaleciam no seu coração eram apenas pura afeição e desinteressada ansiedade.

A tia não a esqueceu; escreveu-a continuamente; recebiam freqüentes comunicações de Edmund, e essas comunicações eram regularmente transmitidas a Fanny, no mesmo estilo difuso, na mesma mistura de crenças, esperanças e receios, seguindo-se ao acaso uns aos outros. Era uma espécie de jogo aterrorizante. Os sofrimentos a que Lady Bertram não podia assistir tinham precário poder sobre sua imaginação; de forma que ela escrevia com muito pequeno incômodo a respeito de agitação e ansiedade, pobres doentes, até que Tom foi transportado a Mansfield e ela viu com os próprios olhos a alteração havida na aparência do filho. Nesse dia, então, a carta que anteriormente já estava sendo preparada para Fanny foi terminada num estilo muito diverso, na linguagem dum sentimento real e dum real alarme; a mãe escreveu como deveria ter falado: “Ele acaba de chegar, minha querida Fanny; levaram-no para cima. Tive um choque tão profundo ao vê-lo, que nem sei o que fazer. Tenho a certeza de que meu filho está muito mal. Pobre Tom! Estou aflitíssima por causa dele, e tão assustado quanto eu está Sir Thomas; como gostaria que você estivesse aqui, para me animar! Sir Thomas espera, entretanto, que Tom amanhã esteja melhor, e diz que temos que levar em conta a fadiga da viagem que o deve ter abatido mais.”

A solicitude real que despertara no coração maternal de Lady Bertram não se acalmou depressa. A impaciência excessiva em que estava Tom de ser removido para Mansfield, o seu desejo de sentir imediatamente no conforto da família e do lar – conforto que tão pouco nos preocupa quando gozamos de uma ininterrupta saúde, – fizeram com que ele viajasse mais cedo do que o deveria provocando a volta da febre; e durante mais de uma semana esteve num estado ainda mais alarmante do que antes. Todos em casa se sentiam seriamente assustados. Lady Bertram descrevia diariamente os seus terrores à sobrinha, que praticamente passou a viver de cartas, gastando o seu tempo entre os sofrimentos de hoje e esperando os de amanhã. Embora não sentisse nenhuma afeição particular pelo primo mais velho, sua ternura de coração não lhe permitia esquecê-lo, e a pureza dos seus princípios tornava sua solicitude ainda mais profunda, ao pensar em quão pouco útil e pouco altruísta fora a vida de Tom até então.

Susan era a sua única companheira e confidente. Susan sempre estava pronta para ouvir e compartilhar suas mágoas. Ninguém mais se poderia interessar por um desgosto tão remoto quanto uma doença numa família a mais de cento e sessenta quilômetros de distância. Nem mesmo Mrs. Price, que se contentava em fazer alguma pergunta rápida, quando via a filha com uma carta na mão, e uma vez ou outra, esta serena observação: “Minha pobre irmã Bertram deve estar numa grande atrapalhação.”

Há tanto tempo divididos, e situados a tão grande distância, os laços de sangue lhe eram pouco mais que nada. A afeição entre as irmãs, – afeição já de início tão tranqüila quanto os seus temperamentos recíprocos – tornara-se com o tempo meramente nominal. Mrs. Price sentiu por Lady Bertram exatamente o que Lady Bertram sentiria por Mrs. Price. Três ou quatro jovens Prices poderiam ser varridos deste mundo, ou mesmo todos eles, exceto Fanny ou William, e Lady Bertram pouco se preocuparia com isso; ou talvez aceitasse a hipócrita declaração de Mrs. Norris de que era uma felicidade o fato de ter a pobre e querida irmã Price tantos outros filhos para se consolar.

 

Cerca de uma semana depois de sua volta a Mansfield, o perigo mais imediato que ameaçava Tom já estava passado; e bastou que fosse ele declarado salvo para que a mãe ficasse completamente tranqüila. Estando já agora acostumada a vê-lo em estado desesperador, ao ouvir notícias de melhoras, e não se detendo nunca em examinar o que ouvia, sem disposições para alarmes nem aptidão para sofrimentos, Lady Bertram era a criatura mais receptiva deste mundo para declarações de médicos. A febre fora dominada; e a febre era o seu mal. Logo ele só poderia ir agora melhorando sempre. Lady Bertram não podia pensar nada além disso, e Fanny participou da segurança da tia, até receber algumas linhas da mão de Edmund, escritas propositalmente para lhe darem uma idéia mais clara da situação do irmão, e transmitir-lhe as inquietações em que ele e o pai estavam mergulhados em vista de fortes sintomas tísicos de que lhes falara o médico, – sintomas que agora, passada a febre, lhes monopolizavam receios.

Pai e filho julgaram melhor não alarmar Lady Bertram com tais receios, que segundo o esperavam, poderiam ser infundados. Mas não havia razão para que Fanny não conhecesse a verdade: estavam muito apreensivos quanto aos pulmões de Tom.

As poucas linhas de Edmund deram a Fanny uma visão muito mais nítida do doente e da sua alcova de enfermo, do que o tinham feito todas as folhas de papel escritas por Lady Bertram; Sua Senhoria, o máximo que podia fazer era deslizar em silêncio, e olhar para o filho; porque, quando ele já estava capaz de ouvir e conversar, ou de escutar uma leitura, era Edmund o seu companheiro preferido. A tia o apavorava com os seus cuidados excessivos, e Sir Thomas não sabia adaptar sua conversa e seu tom de voz ao nível que exigia a irritação e a fraqueza do doente. Era Edmund que servia para tudo; Fanny o percebeu bem, e sua estima pelo primo cresceu ainda mais, ao sabê-lo o assistente, o apoio, o estímulo do irmão enfermo. Porque não era apenas a debilidade decorrente da doença que ele assistia: era mais, como ela o compreendia agora, eram os nervos afetadíssimos de Tom; era ao seu espírito deprimido, que era mister acalmar e levantar. E a imaginação de Fanny lhe representava aos olhos o que deveria ser um cérebro perdido, precisando de ser novamente encaminhado.

Sabendo que a família não era predisposta à tísica, ela se sentia mais inclinada à esperança do que ao receio, em relação ao primo, salvo quando pensou em Miss Crawford; porque Miss Crawford lhe dava a impressão de ser uma filha dileta da fortuna, e para o egoísmo e a vaidade de Mary, seria uma sorte ficar Edmund como filho único.

Mesmo no quarto do doente, a feliz Mary não era esquecida. A carta de Edmund trazia um post-scriptum:

“A respeito do que lhe falei da última vez, posso lhe dizer que comecei uma carta, interrompendo-a entretanto por causa da doença de Tom. Mudei de idéia, porém, nestes dias, e pus-me de novo a recear a influência dos amigos. Quando Tom estiver melhor, irei lá.”

Era essa a situação de Mansfield, e assim continuou, com escassa diferença até a Páscoa. Uma linha acrescentada ocasionalmente por Edmund às cartas de Lady Bertram era o bastante para a informação de Fanny. A convalescença de Tom era assustadoramente lenta.

A Páscoa chegou particularmente tarde, naquele ano, e Fanny tristemente foi informada de que não teria probabilidades de deixar Portsmouth antes do fim dela. O fim chegou, e nada lhe falavam a respeito, nem mesmo na ida do tio para Londres, que deveria necessariamente preceder a sua viagem de volta a Mansfield. A tia, de vez em quando, aludia à falta que lhe fazia Fanny, porém nenhum recado, nenhum sinal lhe vinha do tio, de quem dependia tudo. Segundo Fanny supunha, Sir Thomas não podia abandonar o filho, mas para ela o adiamento era cruel, terrível. O fim de abril estava chegando; e brevemente se completariam não dois meses, mas três meses, que estava ausente de todos eles, e os seus dias se passavam como em penitência; porém Fanny os amava muito para os perturbar com as suas queixas; e quando teriam eles vagar para pensar nela e a trazerem de volta?

Seu ardor, sua impaciência, seus anseios por estar junto deles, trazia-lhe constantemente aos lábios uma linha ou duas do Tirocinium de Cowper: “Com que intenso desejo aspirava ela ao seu lar” murmurava constantemente; e Fanny não podia imaginar que nenhum coração de colegial pudesse sentir melhor que o seu a profunda veracidade daquela descrição.

Quando chegara a Portsmouth, gostara de chamar a casa dos pais de “seu lar” e de dizer que “viera para casa”. Agora, a palavra se tornara ainda mais querida para Fanny, porém aplicava-a a Mansfield. Lá, agora, é que era o seu lar. Portsmouth era Portsmouth. Mansfield era o lar. A mudança se operara dentro da indulgência das suas meditações secretas, e nada era mais consolador para a moça do que ver a tia usar uma linguagem idêntica: “não posso senão dizer que lamento muitíssimo a sua ausência de casa nestes infelizes dias, que tanto me têm dado que sofrer. Tenho a certeza, espero e sinceramente desejo que você não continue fora de casa por mais tempo”, eram os períodos mais deliciosos das cartas de Lady Bertram. Fanny entretanto fazia disso uma alegria secreta, pois seria indelicada para com os pais se traísse as suas preferências pela casa dos tios. E dizia: “Quando eu voltar para o Northamptonshire”, ou “quando eu voltar para Mansfield, farei isto e aquilo”; durante muito tempo não passou destas referências, porém depois a saudade foi aumentando e varrendo precauções, fazendo com que ela se surpreendesse a falar no que faria “quando voltasse para casa”, coisa que evitava cuidadosamente antes. Censurava-se a si própria, corava, e olhava assustada para o pai e para a mãe. Não tinha entretanto razão para se incomodar. Não via sinais de desprazer, nem mesmo de que a estavam escutando. Os Prices sentiam-se completamente livres de qualquer ciúme de Mansfield e recebiam muito bem o desejo da filha de estar onde deveria estar.

Fazia muita falta à saúde de Fanny os prazeres da primavera, que perdia. Antes ela não poderia imaginar os divertimentos que teria de perder passando março e abril na cidade. Só então compreendia como o aspecto do brotar e do crescimento da vegetação a deleitavam. Que animação, de corpo e de espírito, derivava daquela estação que, a despeito de sua caprichosa irregularidade, não podia deixar de ser apreciada, com o escrúpulo da beleza crescente das primeiras flores nas estufas do jardim de Lady Bertram, ou do rebentar das folhas tenras nas plantações do tio, ou o glorioso esplendor dos bosques de Mansfield.

Sentir-se privada desses prazeres já não era pouco; mas ser privada deles para estar entre o encerramento e o barulho, ter apenas isolamento, mau ar, mau cheiro em substituição à liberdade, frescura, fragrância e verdura, era infinitamente pior. Porém todas as causas de desgosto eram fracas, comparadas com as que lhe advinham do fato de estar fazendo falta aos seus melhores amigos, e a tristeza de não lhes ser útil quando precisavam dela!

Pudesse ela estar em Mansfield, e se poria a serviço de todas as pessoas da casa. Sentia bem que deveria ser útil a todos. Todos eles deveriam estar sentindo qualquer coisa. E afora qualquer outro cuidado, bastava a obrigação de amparar a tia Bertram dos perigos da solidão, ou do perigo ainda maior de uma companhia inquieta e oficiosa, sempre pronta a aumentar o perigo para enaltecer sua importância, sua valiosa influência no bem estar geral. Gostava de imaginar lendo para a tia, conversando com ela, procurando fazê-la aceitar corajosamente o que já acontecera, e lhe preparando o espírito para o que poderia acontecer, quantas subidas e descidas aos andares de cima lhe pouparia, quantos recados teria feito para ela!

Espantara-a que as irmãs de Tom pudessem se satisfazer em permanecer em Londres em tal época, através de uma doença que, em diferentes graus de perigo, já durava várias semanas. Elas deveriam ter voltado a Mansfield, como estava combinado. A viagem não poderia ser coisa difícil para elas, e Fanny não podia compreender como ambas ainda demoravam fora de casa.

Se Mrs. Rushworth supunha ter algum impedimento, Julia, essa, decerto poderia sair de Londres quando bem o quisesse. Segundo o que lhe contou a tia numa das cartas, Fanny inferiu que Julia se oferecera para voltar, caso precisassem dela, porém isso foi tudo. Era evidente que Julia queria absolutamente permanecer onde estava.

Fanny estava inclinada a crer que a influência de Londres era inteiramente contrária a todas as afeições respeitáveis. Via a prova disso em Miss Crawford, tanto quanto nas primas; a afeição dela para com Edmund era respeitável, o lado mais respeitável do seu caráter; sua amizade para com ela, Fanny, era ultimamente irrepreensível. E o que era feito de um outro desses sentimentos, agora? Já fazia tanto tempo que Fanny não recebia dela uma única carta, que tinha toda razão ao pensar ligeiramente numa amizade que durara tão pouco. Fazia semanas que não ouvia nada a respeito de Miss Crawford nem dos seus parentes, senão através de notícias recebidas de Mansfield, e ela estava começando a imaginar que nunca saberia se Mr. Crawford fora ou não a Norfolk, depois que se haviam encontrado, e supunha não receber mais nenhuma palavra da irmã, durante toda aquele primavera, quando chegou a seguinte carta, para lhe provocar novas sensações e reavivar velhas lembranças.

 

“Perdoe-me, minha querida Fanny, meu longo silêncio, e logo que lhe seja possível, prove diretamente que me perdoou. É este o meu modesto pedido e minha esperança, porque você é tão boa que eu tenho a certeza de que serei tratada melhor do que o mereço; escrevo pois agora pedindo resposta imediata. Desejo muito saber do estado em que estão as coisas em Mansfield Park, e você, sem nenhuma dúvida, está perfeitamente à altura de me dar tal informação. Só quem tivesse um coração de fera não se apiedaria dos desgostos por que eles têm passado; e segundo o que eu soube, o pobre Mr. Bertram tem poucas probabilidades de um completo restabelecimento. A princípio preocupei-me pouco com a doença dele. Sempre o imaginei dessa espécie de gente que faz espalhafato com qualquer doença insignificante, como espalhafato também deveriam fazer, dado a posição que ele ocupa, – todas as pessoas mais ou menos responsáveis por sua saúde. Porém garantiram-me confidencialmente que ele de fato está tuberculoso, que os sintomas são os mais alarmantes, e que parte da família estava prevenida disso. Se isso é certo, tenho a certeza de que você está incluída nessa parte – a parte que sabe a verdade, – e logicamente não se recusará a me dizer até que ponto minha informação é verídica. Você deve estar bem informada.

Não preciso dizer quanto ficaria contente se me desse um desmentido, porém o meu informante é tão digno de crédito que confesso o meu receio de não o receber. É triste ver um tão belo rapaz com os seus dias contados, na flor da vida. Pobre Sir Thomas, deve sentir mortalmente isso. Sinto-me na verdade absolutamente aflita com tudo. Fanny, Fanny, vejo o seu sorriso e o seu olhar malicioso, mas juro-lhe pela minha honra que nunca na minha vida subornei um médico. Pobre rapaz! Se ele morrer haverá a menos dois pobres rapazes neste mundo; e com a face desassombrada e a voz tranqüila, eu posso dizer que a fortuna e a posição de Tom podem passar para mãos mais merecedoras delas. Tudo o que Edmund fez no último Natal foi loucura. Porém o mal de poucos dias pode ser reparado depressa. Verniz e douraduras podem esconder muitas coisas. E podem até encobrir, para Edmund, a perda do Esquire depois do nome. E com uma afeição sincera, tal qual a minha, querida Fanny, muito mais pode ser esquecido.

Escreva-me pela volta do correio, pense na minha ansiedade e não brinque com ela. Diga-me a verdade, que você deve conhecer de fonte limpa. E por favor não se envergonhe nem se perturbe com os seus sentimentos ou com os meus. Acredite-me, tais sentimentos não são apenas naturais, são filantrópicos e virtuosos. Apelo para a sua consciência e pergunto-lhe se ‘Sir Edmund’ não fica muito mais de acordo com o proprietário de Mansfield Park do que com qualquer outro ‘Sir’. Se os Grants estivessem em casa, eu não a incomodaria, mas você é atualmente a única pessoa a quem posso perguntar a verdade, já que as irmãs dele não estão ao meu alcance. Mrs. R. está passando a Páscoa com os Aylmers em Twickenham (segundo soube) e ainda não voltou; e Julia está com uns primos que vivem perto de Bedford Square, porém esqueci o nome da rua. Aliás, porque me impressiona desagradavelmente a má vontade que eles manifestam em interromper os seus divertimentos por amor do irmão, e em fechar os olhos à verdade. Creio que as férias de Páscoa de Mrs. Rushworth não se prolongarão por mais tempo; é verdade que para ela todo tempo é de férias. Os Aylmers são pessoas agradáveis; e, com o marido longe, ela não pode senão divertir-se. Sei, e isso a honra, que foi ela a promotora da ida de Mr. Rushworth a Bath, a fim de trazer de lá a mãe; mas como se entenderão as duas, nora e sogra, dentro de casa?

Henry não tem andado visível, e por isso não lhe dou notícias dele. Você não saberá se Edmund pensa em vir a Londres logo, apesar da doença em casa?

Sua sempre, Mary”

 

“P.S. Estava fechando minha carta quando chegou Henry; ele porém não me trouxe nenhuma notícia que me evitasse a necessidade de lha enviar. Mrs. R., com quem ele esteve pela manhã, sabe que se receia uma tuberculose; sua prima deve voltar hoje para Wimpole Street, pois a sogra está para chegar. Agora não vá se aborrecer porque ele passou vários dias em Richmond; Henry faz isso todas as primaveras. Pode estar certa de que ele não pensa em ninguém senão em você. Neste mesmo instante está louco para vê-la, preocupado apenas em descobrir uma maneira de o conseguir, e o seu maior prazer seria acompanhá-la até aos seus. E insiste no convite que lhe fez em Portsmouth, a respeito da sua volta a Mansfield, convite ao qual eu me associo de todo coração. Querida Fanny, escreva imediatamente, e diga-nos se poderemos ir. Para nós será fácil e agradável. Ele e eu poderemos ir para o Presbitério, você bem o sabe, sem perigo de importunar nossos amigos em Mansfield Park. Eu gostaria imensamente de os rever, e um pouco de companhia talvez fosse infinitamente útil a eles todos. Quanto a você, deve saber que a sua presença é tão desejada lá que não pode, em sã consciência (coisa que não lhe falta) permanecer longe, uma vez que tem meios de regressar. Não tenho tempo nem paciência para lhe transmitir a metade sequer dos recados de Henry; contente-se em saber que o espírito de cada um deles, como de todos, traduz a mesma inalterável afeição.”

 

O imenso desgosto que causou a Fanny a maior parte dessa carta, junto à sua extrema relutância de reunir a autora dela a seu primo Edmund, tornou-a (segundo ela concluiu) incapaz de resolver se o oferecimento que lhe faziam deveria ser aceito ou não. Para ela própria, individualmente, era dos mais tentadores. Ver-se dentro de três dias, talvez, conduzida até Mansfield, era uma imagem da maior felicidade, contrabalançada porém pelo fato de tal felicidade ser devida a pessoas cujos sentimentos e conduta, até aquele momento, muito lhe tinham dado que condenar; os sentimentos da irmã, a conduta do irmão, a fria ambição dela, a fútil vaidade dele. Ter procurado de novo aproximar-se, flertar, talvez, com Mrs. Rushworth! Sentia-se mortificada. Pensara melhor dele. Felizmente, entretanto, não se deixou estar a pensar e decidir a respeito de suas inclinações contraditórias e de uma duvidosa noção de direito; não era momento para indagar se devia ou não afastar Edmund de Mary. Tinha uma regra para aplicar a si, regra que a guiava em tudo. O medo pelo tio, o receio de tomar com ele uma certa liberdade a que não tinha direito, instantaneamente lhe ensinaram o que devia fazer. Tinha a absoluta obrigação de declinar a proposta. Se o tio precisasse dela, chamá-la-ia; e mesmo a oferta de um fácil retorno a Mansfield não deveria justificar tal ousada iniciativa. Agradeceu a Miss Crawford, porém lhe mandou uma negativa decidida. “O tio, segundo sabia, pensava em vir buscá-la; e já há muito o primo estava doente, sem que precisassem dela; de maneira que supunha a sua volta desnecessária por ora, e talvez a sua presença lá fosse até atrapalhar.”

 Suas afirmações a respeito do estado do primo foram exatamente o que ela própria acreditava; e os seus receios estavam exatamente de acordo com os desejos em que ardia a imaginação de sua correspondente.

Seria perdoada a Edmund a sua qualidade de sacerdote, ao que parecia, em certas condições de fortuna. E isso, – suspeitava Fanny, era toda vitória sobre preconceito, vitória pela qual ela tão depressa se congratulara. Ela não aprendera a dar importância a nada, senão a dinheiro.

 

Embora Fanny estivesse certa de que a sua resposta seria portadora de um real desapontamento, tinha também a certeza, dado o seu conhecimento do temperamento de Miss Crawford, de que ainda seria interrogada. E apesar de não haver chegado nenhuma carta no período de uma semana, não se mudara a sua segurança de que tal carta chegaria.

Ao recebê-la, viu logo, pelo ligeiro conteúdo, que a sua correspondente desejava dar a entender que tinha escrito às pressas, para assunto de importância.

Esse assunto era indiscutível; e dois momentos eram bastantes para anunciar apenas a próxima chegada deles a Portsmouth em tal dia, e mergulhá-la em agitação e dúvida para decidir o que deveria fazer nessa conjuntura. Porém se dois momentos podem vir cercados de dificuldades, um terceiro pode dispersá-las; e antes de abrir a carta, a possibilidade de terem Miss e Mr. Crawford apelado para Sir Thomas e obtido sua permissão, fora afastada. Era esta a carta:

 

“Um escandalosíssimo, perverso e pavoroso boato acaba de me chegar aos ouvidos, e estou lhe escrevendo, minha querida Fanny, para avisá-la que evite dar crédito a tais notícias se lhe chegarem até aí. Não pode deixar de ser um equívoco qualquer, que dentro de um dia ou dois estará esclarecido; esclarecido a qualquer custo, pois Henry tem sido irrepreensível, e a despeito de alguns momentos de étourderie, não pensa senão em você. Não diga uma palavra a ninguém. Não ouça nada, não desconfie de nada, não murmure nada, até que eu lhe escreva novamente. Estou certa de que tudo será posto a limpo, e nada ficará provado, senão a loucura de Rushworth. Se eles partiram, aposto até minha vida que não foram senão até Mansfield Park, e que Julia foi com eles. Por que você não consentiu que a fôssemos buscar? Deus queira que não se arrependa por isso. Sua, etc.”

 

Fanny ficou aterrada. Nenhum boato escandaloso ou perverso lhe chegara aos ouvidos, e era-lhe impossível entender muita coisa daquela estranha carta. Pôde quando muito perceber que se referia a Wimpole Street e Mr. Crawford, e conjeturar que ocorrera qualquer grande imprudência, capaz de lhe despertar ciúmes – no entender de Miss Crawford, – se ela o escutasse. Porém Miss Crawford não precisava se alarmar a seu respeito. Ela sentiria apenas pelas partes implicadas e por Mansfield, se o boato a atingisse, porém esperava não chegar a ouvir nada. Se os Rushworths haviam ido para Mansfield, segundo se poderia inferir das palavras de Miss Crawford, não era provável que nada de desagradável ou houvesse precedido, ou pudesse dar essa impressão.

Quanto a Mr. Crawford, ela esperava que esse fato lhe desse conhecimento dos seus próprios sentimentos, que o convencesse de que ele não era capaz de se prender a nenhuma mulher no mundo, e o envergonhasse por sua persistência, impedindo-o de a procurar no futuro.

Era tão esquisito! Ela começava a pensar que ele realmente a amava, e a imaginar a sua afeição como algo diferente do comum; a própria irmã ainda dizia que ele não queria a ninguém senão a Fanny. Deveria ter mostrado atenções excessivas para com sua prima, deveria ter cometido alguma grave indiscrição, pois a sua correspondente não daria importância a alguma leve imprudência.

Sentia-se profundamente inquieta e deveria continuar assim, até receber novas notícias de Miss Crawford. Era-lhe impossível banir a carta dos seus pensamentos, e ela não podia se aliviar falando nos seus receios a nenhum ser humano. Miss Crawford não precisava lhe ter pedido segredo com tanto ardor; deveria ter confiado no seu bom senso, e no sentimento do que ela devia à prima.

O dia seguinte não trouxe nenhuma carta. Fanny ficou desapontada. De manhã, mal pôde pensar em outras coisas. Porém quando o pai chegou, à tarde, trazendo o jornal, como de costume ela estava tão longe de esperar qualquer elucidação por tal meio, que o assunto, por momento, lhe saíra da cabeça.

Estava mergulhada em uma cisma diferente. Ocorrera-lhe a lembrança de sua primeira noite naquela mesma sala, de seu pai, com o jornal. Não havia necessidade de vela, agora. O sol estava ainda uma hora e meia acima do horizonte. E ela pensou que, afinal de contas, já estava há três meses ali. E os raios do sol, caindo fortemente através da entrada, em vez de a alegrarem, tornavam-na ainda mais melancólica, porque a sua luz lhe parecia uma coisa completamente diferente na cidade e no campo. Sentou-se dentro de uma chama opressiva, numa nuvem de poeira luminosa, e os seus olhos não poderiam senão vaguear pelas paredes, marcadas pela cabeça do pai, pela mesa, cortada e manchada pelos irmãos, onde pousava o bule de chá, sempre mal lavado, as xícaras e pires rachados, o leite, o pão e a manteiga ficando a cada minuto mais gordurosos do que quando saíram das mãos de Rebecca. Seu pai lia o jornal, a mãe enquanto o chá corava, lamentava-se como de costume a respeito do tapete esfarrapado, e reclamando porque Rebecca não o remendava. Fanny despertou ouvindo que a chamavam; o pai, que lia com especial atenção um parágrafo do jornal, perguntou:

– Como é o nome dos seus primos que moram em Londres, Fan?

Um instante de recomposição tornou-a capaz de responder:

– Rushworth, meu pai.

– E eles não moram em Wimpole Street?

– Moram, sim senhor.

– Então o diabo anda à solta lá, ao que parece! Está aqui – e brandia o jornal. – Belos parentes tem você! Não sei o que pensará Sir Thomas dessas coisas. Ele deve ser um cavalheiro fino demais para fazer qualquer coisa com a filha... Mas, com todos os diabos! Se ela fosse minha filha, uma boa corda haveria de ensiná-la! Uma boa surra, tanto para moças como para rapazes é o melhor método para prevenir esses acidentes!

Fanny por seu turno leu o seguinte: “O jornal sentia infinitamente ter que anuncia ao mundo social um desastre matrimonial, ocorrido na família R., em Wimpole Street. A linda Mrs. R., cujo nome não fazia muito tempo entrara na lista do Himeneu, e que prometia tornar-se uma figura tão brilhante à frente da sociedade elegante, havia abandonado o teto conjugal, em companhia do conhecido e cativante Mr. C., amigo íntimo de Mr. R. Era completamente ignorado, até mesmo para o redator do jornal, o destino que haviam tomado os fugitivos.”

– Isto é um engano, meu pai – disse imediatamente Fanny. – Há de ser um engano, não pode ser verdade. Deve se referir a outras pessoas.

Falava sob o instintivo desejo de esconder a verdade, num ímpeto de desespero, porque ela própria não acreditava, não podia acreditar naquilo. Porém quando leu a notícia, teve o choque da convicção. A verdade irrompeu nela; e como pôde falar, depois daquilo, como pôde mesmo respirar, foi coisa que não podia compreender.

Mr. Price estava muito preocupado com a notícia para lhe dar uma resposta longa:

– Talvez haja alguma mentira – concordou – mas, atualmente, tantas lindas ladies têm levado o diabo por esse caminho, que a coisa já não surpreende ninguém.

– Com efeito, espero que seja mentiras – disse Mrs. Price, penalizada; – seria realmente horroroso! Será que ainda preciso falar com Rebecca a respeito desse tapete? Já lhe falei nisso pelo menos umas doze vezes, não Betsey? E é trabalho para dez minutos.

O horror de um espírito como o de Fanny, recebendo a convicção de tal crime, e tomando a sua parte nos horrores que deveriam seguir, não pode ser descrito. De início, era apenas uma espécie de estupefação. Mas cada momento ia lhe abrindo a percepção a respeito do horrível sucesso. Não podia duvidar, não podia acariciar nenhuma esperança de que a nota fosse falsa. A carta de Miss Crawford, que ela relera tantas vezes que a chegara a decorar, estava em apavorante conformidade com o jornal. Sua enérgica defesa do irmão, a sua esperança de que o caso fosse abafado, sua evidente agitação, constituíam as diversas peças de uma convicção terrível. E se havia no mundo uma mulher capaz de tratar como simples bagatela uma pecado de tal magnitude, que tentasse lhe diminuir a importância, que desejasse vê-lo impune, essa mulher seria Miss Crawford! Agora ela compreendia o seu próprio engano a respeito de “quem” partira, ou se dizia ter partido. Não se tratava de Mrs. e Mr. Rushworth, mas de Mrs. Rushworth e de Mr. Crawford.

Jamais Fanny havia sofrido um choque assim; não encarava mais a possibilidade de repouso. A noite toda passou, sem uma pausa na aflição, sem um momento de sono. E ela oscilava entre uma sensação de náusea e estremecimentos de horror; do calor da febre ao tiritar do frio. Os acontecimentos eram tão chocantes, que, por momentos, o seu coração se revoltava, declarando-o impossível. Que aquilo não se podia ter passado. Uma moça casada há apenas seis meses; um homem publicamente apaixonado, e até mesmo comprometido com uma outra; essa outra, uma parente próxima; toda a família, ambas as famílias ligadas como aquelas o eram por laço após laço; todos amigos, todos íntimos! Era confusão de crime horrível demais, uma demasiada grande complicação de malícia, para ser realizada por naturezas humanas já saídas do estado de barbárie. Porém o seu raciocínio dizia-lhe que o fato se passara realmente. De um lado, as inseguras afeições dele, vogando ao sabor da sua vaidade, e de outro, a paixão inegável de Maria, – sem ter sólidos princípios que a apoiassem, – tornavam tudo possível. E a carta de Miss Crawford confirmava tudo.

Quais seriam as conseqüências? Quem não seria ferido? Quais os planos que não seriam afetados? Qual a paz que não seria cortada para sempre? A própria Miss Crawford, Edmund... era perigoso, porém, arriscar-se nesse campo. E ela limitou-se, ou tentou limitar-se, a pensar apenas na vergonha e na desolação da família, que envolveria todos, se aquilo fosse realmente um crime confirmado e um escândalo público. Os sofrimentos da mãe, do pai; e Fanny estacava pensando neles; o sofrimento de Julia, de Tom, de Edmund; e Fanny fazia uma pausa maior ao evocá-los. O pai e Edmund seriam os dois mais terrivelmente afetados; a solicitude paternal de Sir Thomas, seu alto senso de honra e de decoro; e os severíssimos princípios por que se guiava Edmund, seu temperamento confiante, a lealdade dos seus sentimentos, tornavam-no praticamente incapaz de suportar a vida e a razão sob tal desgraça; e parecia a Fanny que a maior benção que poderia ser concedida aos infelizes parentes de Mrs. Rushworth seria um imediato aniquilamento.

Nada sucedeu no dia seguinte, nem no dia imediato, para lhe atenuar os terrores; dois correios chegaram, sem trazer nenhuma refutação, pública ou privada. Não chegou uma segunda carta de Miss Crawford para explicar o que fora meio dito na primeira. Não veio nenhuma notícia de Mansfield, embora já houvesse muito tempo para lhe chegar alguma linha da tia. Aquilo era um mau agouro. Fanny tinha uma sombra de esperança a lhe aliviar o espírito; e estava reduzida a um tal estado de trêmulo pânico que nenhuma mãe, ninguém, – só talvez uma mãe como Mrs. Price não o teria percebido quando no terceiro dia bateram à porta e uma carta foi posta nas mãos da moça. Trazia carimbo de Londres e o remetente era Edmund.

 

“Querida Fanny: Você já sabe da nossa desgraça. Possa Deus ajudá-la a carregar o seu fardo! Estamos aqui há dois dias, porém não há nada a fazer. Não há rastro deles. Você também deve ter sabido do último golpe: a fuga de Julia. Foi embora para a Escócia em companhia de Yates. Deixou Londres poucas horas antes de chegarmos aqui. Em outra qualquer oportunidade, teríamos sentido isso mortalmente. Agora, parece insignificante; e entretanto é uma agravação de desastres. Meu pai não está completamente aniquilado; e mais não se pode esperar. Ainda está capaz de agir e pensar. E eu escrevo, por ordem dele, a fim de lhe propor a sua volta para casa. Ele está ansioso para garantir a sua presença junto de minha mãe. Conto estar em Portsmouth no dia seguinte ao que você receber esta carta, e espero encontrá-la já pronta para o regresso a Mansfield. Meu pai deseja que você convide Susan para acompanhá-la durante alguns meses. Arranje isso como quiser; diga o que for necessário. Você pode calcular mais ou menos qual é o meu estado, neste momento. Não há de haver um fim, para a vergonha que caiu sobre nós. Você me há de ver amanhã cedo, pela diligência. Seu, etc...”

 

Nunca Fanny desejou tanto um cordial consolo. Nunca ela sentira o que lhe provocava o conteúdo daquela carta. Amanhã! Deixar Portsmouth amanhã! Ela se sentia, sabia que estava em grande perigo de se considerar estranhamente feliz, enquanto os outros continuavam mergulhados em tal sofrimento. A desgraça tornara-se quase um bem para ela! E a moça espantava-se ao descobrir até que ponto era insensível. Ir embora tão depressa, voltar, tão ternamente chamada, voltar ao conforto, e voltar podendo levar Susan consigo, parecia-lhe uma tal combinação de bênçãos, que lhe mergulhava o coração em êxtase, êxtase que, durante algum tempo, pareceu expulsar qualquer dor, tornando-a incapaz de compartilhar até mesmo a tristeza daqueles cujas tristezas a afetavam mais. A fuga de Julia, comparativamente, afetou-a pouco: ficara espantada e chocada; mas aquilo não pôde preocupá-la muito, não pôde se apoderar do seu espírito. Sentia-se obrigada a apelar para si mesma a fim de pensar nisso, para compreender quanto tal fato era igualmente terrível e vergonhosos – mas as felizes preocupações insidiosamente se insinuavam, entre um sermão e outro.

Não existe nada como uma ocupação, uma ativa e indispensável ocupação para afastar tristezas. Um trabalho, mesmo melancólico, pode afastar a melancolia, e o trabalho de Fanny não era melancólico. Tinha tanto o que fazer que a horrível história de Mrs. Rushworth (já agora confirmada até o último ponto) não podia afetá-la com a mesma intensidade do princípio. Durante vinte e quatro horas estava esperando partir. Tinha que falar com o pai e a mãe, preparar Susan, pôr tudo em ordem. Ocupação seguia ocupação; e o dia ainda era bastante longo. A felicidade que sentia em partir, o alegre consentimento do pai e da mãe à ida de Susan em companhia da irmã, a geral satisfação com que a partida de ambas parecia ser encarada, o êxtase de Susan, tudo isso servia muito para lhe amparar o espírito.

O desgosto dos Bertrams fora pouco sentido na família. Mrs. Price, durante alguns rápidos minutos, falou em sua pobre irmã, porém ocupava muito mais seus pensamentos a idéia de descobrir onde poria as roupas de Susan, pois Rebecca tinha o costume de se apropriar de todas as caixas que apareciam em casa; quanto a Susan, agraciada subitamente com a realização do seu mais querido sonho, – sem conhecer pessoalmente nem os que haviam pecado, nem os que estavam sofrendo, – apenas sentia alegria – e era o máximo que se pode exigir da virtude humana, aos quatorze anos.

Como nada foi realmente entregue à decisão de Mrs. Price ou aos bons ofícios de Rebecca, tudo foi racional e devidamente realizado, e, pela manhã, as raparigas estavam prontas. Foi-lhes entretanto impossível dormir bastante, para enfrentar a viagem. O primo, que viajara ao encontro delas, pouco pôde se inteirar dos seus agitados espíritos, – um dominado inteiramente pela felicidade, o outro entre as variações da mais indescritível perturbação.

Às oito da manhã chegou Edmund. As moças o ouviram entrar, e Fanny veio à porta. A idéia de o ir ver imediatamente, junto à consciência de que ele estava sofrendo, afastou-lhe quaisquer sentimentos a respeito de si própria. Ele tão perto, e tão infeliz! Estava prestes a cair quando entrou na saleta. Edmund estava só, e foi ao seu encontro imediatamente; e Fanny viu-se apertada contra o coração do primo, e ouvia apenas estas poucas palavras, mal articuladas:

– Minha Fanny, minha única irmã; meu único consolo, agora!

Ela não pôde falar nada, nem ele pôde dizer mais, durante vários minutos.

Edmund virou-se para recuperar a calma e quando novamente falou, embora sua voz ainda estivesse embargada, o seu todo atraía o domínio sobre si e a resolução de evitar qualquer alusão ulterior.

– Você já almoçou? Quando estaremos prontos? Susan vai? – eram perguntas que rapidamente se sucediam umas às outras.

O seu maior objetivo era partir o mais rapidamente possível. Quando pensava em Mansfield, considerava o tempo precioso; e no estado de espírito em que estava, só encontrava alívio no movimento.

Resolveu-se que ele poderia pedir a carruagem à porta para dentro de meia hora. Fanny responsabilizava-se para dentro de meia hora estarem almoçadas e prontas. Ele já se alimentara e recusou tomar parte na refeição. Queria dar um giro pelas fortificações, e viria buscá-la com o carro. E o rapaz saiu, satisfeito por se afastar até mesmo da presença de Fanny.

Parecia muito abatido; e evidentemente sofria violentas emoções que estava resolvido a recalcar. Fanny sabia que o seu dever era exatamente esse, mas aquilo lhe parecia terrível.

O carro chegou; e Edmund entrou em casa no mesmo momento que ele, exatamente a tempo de gastar alguns minutos com a família e testemunhar – é verdade que ele não via nada – o modo tranqüilo como partiram as filhas da casa, e exatamente em tempo de evitar que se sentassem à mesa do almoço que, dada a desusada atividade, fora adiado, e posto apenas no momento em que a carruagem chegava à porta. Desse modo, a última refeição de Fanny no lar paterno assumia o mesmo caráter que a primeira; e despediram-se dela tão hospitaleiramente quanto a haviam recebido.

Compreende-se pois facilmente que o seu coração rebentasse de alegria e gratidão, quando ultrapassou as barreiras de Portsmouth; e que o rosto de Susan exibisse o mais amplo dos sorrisos. É verdade que estava sentada na almofada da frente, e o seu sorriso, escondido pelo boné, não era visto por ninguém.

A viagem prosseguia silenciosa. O olhar profundo de Edmund muitas vezes procurava Fanny. Se ele estivesse sozinho com ela, ter-lhe-ia aberto o coração, a despeito das resoluções tomadas. Porém a presença de Susan o obrigava a fechar-se consigo próprio, e foi-lhe impossível prosseguir nas tentativas de falar sobre assuntos indiferentes.

Fanny o vigiava com uma incansável solicitude, e apanhando-lhe o olhar, devolvia-o com um sorriso afetuoso, que o confortava; mas o primeiro dia da viagem passou sem que ela ouvisse dele uma palavra a respeito daquele assunto que o esmagava. A manhã seguinte foi um pouco mais íntima. Pouco antes que eles saíssem de Oxford, enquanto Susan parava a uma das janelas, assistindo à partida da estalagem de uma grande família, ou outros dois ficaram em pé, junto ao fogo. E Edmund, particularmente impressionado pela alteração nas feições de Fanny, ignorando os detalhes da estadia da moça em casa dos pais, atribuindo indevidamente toda a mudança dela aos recentes acontecimentos, tomou-lhe a mão, e disse-lhe em voz baixa, mas expressiva:

– Não é de admirar... você deve sentir isso... deve sofrer... Como um homem que já a amou pode abandoná-la! Porém os seus... o seu olhar agora, comparado com... Fanny, pense em mim!

A primeira parte da jornada ocupara um longo tempo e os levara, quase estafados, a Oxford; porém a segunda parte estava terminada muito mais cedo. Estavam nas cercanias de Mansfield muito antes da hora habitual do jantar, e quando se aproximaram daquele amado lugar os corações das duas irmãs bateram um pouco mais. Fanny começou a pensar no seu encontro com Tom e as tias, sob tão pavorosa humilhação; e Susan, ansiosamente cogitava em que todas as suas boas maneiras, todos os seus recentes conhecimentos sobre os hábitos de Mansfield estavam no momento de serem postos em ação. Apareciam-lhe ante os olhos visões de boa e má educação, velhas vulgaridades e novas gentilezas; e meditava sobre garfos de prata, guardanapos e “lavandes”. Fanny, em toda parte, notava as diferenças ocorridas na região, desde fevereiro. Quando, porém, entrou no Park, suas percepções e seus prazeres atingiram um grau agudíssimo. Fazia três meses, três meses completos que ela partira dali, e entre eles o tempo passara do inverno para o verão. Seu olhar caía, em toda parte, sobre prados e plantações do mais lindo verde; e as árvores, embora ainda mal enfolhadas, estavam naquele belo momento em que a folhagem mais ampla se anunciava, na época em que, embora muito já esteja à vista, muito mais é sugerido à imaginação. Aquela alegria, entretanto, era apenas sua; Edmund não podia ver nada. Olhou para ele, mas este estava de costas à paisagem, mergulhado numa depressão mais profunda do que antes, com os olhos fechados, como se a visão da felicidade o oprimisse, quisesse afastar dos olhos as amáveis cenas do parque natal.

Essa visão tornou-a também melancólica. E a consciência do sofrimento que grassava naquela casa por mais moderna, arejada e bem situada que fosse, envolvia-a num melancólico aspecto.

Pelo menos por uma certa parte dos sofredores, eram os viajantes esperados com uma impaciência que aquela casa nunca conhecera antes.

Mal Fanny passara entre a solene ala de criados, Lady Bertram veio ao seu encontro, irrompendo a sala. Caminhava em passos sem indolência. E agarrando-se ao pescoço da moça, exclamou:

– Fanny querida! Agora vou ter consolo.

 

Formavam um desventurado grupo, cada um dos três se imaginando mais desditoso. Mrs. Norris, entretanto, a mais ligada a Maria, era quem sofria mais. Maria era o seu ídolo, a mais querida de todos. Aquele casamento fora idéia sua, pensar nele, ou nele falar enchia-lhe o coração de orgulho, e aquela conclusão quase a esmagava.

Transformara-se numa criatura diferente, silenciosa, estupidificada, indiferente a tudo que se passava. De nada lhe servia agora ter ficado cuidando da irmã e do sobrinho, com toda a casa sob sua responsabilidade. Sentia-se incapaz de dirigir ou ordenar nada, e até mesmo de se fingir de útil. Quando era realmente atingida pela aflição, toda a sua atividade ficava entorpecida, e nem Lady Bertram nem Tom receberam dela o menor amparo, ou sequer uma tentativa de amparo. Não fazia mais por eles do que eles faziam um pelo outro. Todos estavam solitários, desesperados, e igualmente desamparados; e agora a chegada dos outros estabelecia apenas para Mrs. Norris a sua superioridade na desgraça. Seus companheiros estarem aliviados porém nada lhe servia a ela. Edmund foi quase tão bem recebido pelo irmão quanto Fanny pela tia. Mas Mrs. Norris, em vez de procurar consolar-se com alguém, sentia-se ainda mais irritada ao contemplar a pessoa que, na cegueira do seu ódio, desempenhara no drama o papel de demônio. Houvesse Fanny aceito Mr. Crawford, e nada teria acontecido.

Susan, também, era um agravo. Não lhe concedeu senão uns poucos olhares de repulsa, porém via na pequena uma espiã, uma intrusa, uma sobrinha indigente, – qualidades todas odiosas. Pela outra tia, Susan foi recebida com serena bondade. Lady Bertram não lhe pôde dispensar muito tempo, nem muitas palavras mas a fez sentir, como irmã de Fanny, ter um título seguro à boa vontade de Mansfield, e estava pronta à beijá-la e a amá-la. E Susan sentia-se mais que satisfeita, pois já estava inteiramente ciente de que não deveria esperar senão mau humor da parte da tia Norris. E tinha em si uma tal provisão de felicidade, um tal contingente de alegria, um tal refúgio contra inevitáveis aborrecimentos, que teria afrontado impavidamente uma dose de indiferença muito maior do que a recebida.

Ficou entregue a si mesma, a fim de tomar conhecimento da casa e do jardim, como melhor o pudesse; e gastou alegremente vários dias nesse ofício, pois todos que poderiam se preocupar com ela estavam atarefados demais em cuidar das pessoas a seu cargo; Edmund, tentando abafar seus próprios sentimentos em palavras de estímulo ao irmão, e Fanny, inteiramente devotada à tia Bertram, voltando ao seu antigo encargo com mais zelo ainda que outrora, e pensando que nunca faria o suficiente para aquela que parecia tanto carecer do seu auxílio.

Todo o consolo de Lady Bertram consistia em falar com Fanny a respeito do terrível acontecimento, falar e lamentar-se. Ouvi-la e ampará-la, dizer-lhe em resposta palavras de simpatia e bondade era tudo o que Fanny podia fazer em seu benefício. Consolo de outra espécie estava fora de questão; o caso não o admitia. Lady Bertram não era capaz por si só de raciocinar profundamente a respeito de qualquer coisa; porém, guiada por Sir Thomas, pensava com justeza a respeito de vários pontos importantes; e via portanto, em toda a sua enormidade, o que acontecera, e de modo nenhum diligenciava, nem pedia a Fanny que a ajudasse a atenuar a importância do crime e da infâmia.

Suas afeições não eram agudas nem o seu espírito tenaz. Depois de algum tempo, Fanny já não considerava impossível guiar-lhe os pensamentos noutra direção, ou reviver o antigo interesse pelas suas ocupações habituais; mas enquanto Lady Bertram estava ainda fixada no caso, só podia enxergá-lo a uma única luz: a perda de uma filha, e uma vergonha que nunca poderia ser apagada.

Fanny soube por ela todas as particularidades que já haviam transpirado. A tia não era uma narradora metódica, porém com o auxílio de várias cartas escritas ou recebidas por Sir Thomas e com o que ela própria já sabia, e podia razoavelmente combinar, Fanny pôde em breve compreender tudo quanto desejava a respeito das circunstâncias referentes à história.

Mrs. Rushworth partira, para Twickenham, a fim de lá passar as férias da Páscoa, com uma família com a qual acabava de estreitar amizade; uma família de maneiras vivas e agradáveis, e provavelmente de moral e de discrição como seria de desejar, porque na casa deles Mr. Crawford tinha acesso constante, em qualquer tempo. Lá os dois conviviam, como vizinhos, do modo que Fanny já conhecia. Enquanto isso, Mr. Rushworth fora para Bath, para lá passar alguns dias em companhia da mãe, e trazê-la depois de volta para a cidade, deixando Maria em poder de tais amigos, sem nenhuma restrição, sem nem sequer a companhia de Julia; Julia voltara para Wimpole Street, há uma ou duas semanas atrás, em visita a alguns parentes de Sir Thomas; mudança essa que atualmente o pai e a mãe inclinavam-se a supor que fora feita para facilitar a aproximação com Mr. Yates. Pouco depois da volta dos Rushworths a Wimpole Street, Sir Thomas recebera uma carta de um velho e particular amigo seu, de Londres, o qual tendo ouvido falar a respeito de coisas seriamente alarmantes, recomendava a imediata ida de Sir Thomas a Londres, a fim de usar sua influência junto à filha contra uma certa intimidade que já a estava expondo a comentários desagradáveis, e que evidentemente colocavam mal Mr. Rushworth.

Sir Thomas preparava-se para agir de acordo com o que lhe recomendava a carta, sem ter comunicado o seu conteúdo a pessoa nenhuma de Mansfield, quando recebeu nova missiva, enviada pelo mesmo amigo, que lhe participava a quase desesperada situação em que estava o negócio do pessoal jovem. Mrs. Rushworth abandonara o teto conjugal; Mr. Rushworth estava em grande cólera e mortificação contra ele (Mr. Harding) pelo seu aviso; Mr. Harding, aliás, receava realmente ter cometido em suma, uma flagrantíssima indiscrição. A criada de Mrs. Rushworth (mãe) fazia ameaças alarmantes; ele fizera tudo que estava em seu poder para pacificar as coisas, com esperança na volta de Mrs. Rushworth, mas se sentia fortemente combatido em Wimpole Street graças à influência da velha Mrs. Rushworth; desse modo, as piores conseqüências eram de recear.

Essa terrível comunicação não pôde ser escondida do resto da família. Sir Thomas partiu, Edmund acompanhou-o e os outros ficaram num estado de horrorosa ansiedade, inferior contudo ao que se seguiu ao recebimento das cartas vindas de Londres. Tudo agora estava público; a criada de Mrs. Rushworth mãe, tinha conhecimento dos fatos todos, e, apoiada pela patroa, não silenciara nada. As duas senhoras, no curto espaço de tempo em que haviam vivido juntas, não se tinham estimado; e a amargura da sogra contra a nora era talvez muito mais devida ao pouco respeito com que fora tratada do que a sentimento pelo filho.

Por isso ou por aquilo, estava indomável; mas fosse a velha embora menos obstinada, e fosse menos dura com o filho, que sempre se deixava guiar pelo seu último conselheiro, o caso parecia sem esperanças, porque Mrs. Rushworth não aparecera ainda, e havia razão de sobra para se concluir que ela entrara em entendimento com Mr. Crawford, que também deixara a casa do tio, alegando uma viagem, no próprio dia em que Maria se ausentara.

Sir Thomas, apesar de tudo, continuava ainda um pouco mais em Londres, na esperança de descobri-la e arrebatá-la a novos destinos, embora tudo já estivesse perdido no que se referia ao seu bom nome.

Fanny podia bem imaginar qual seria o presente estado de espírito do tio. Não havia senão um dos seus filhos que não fosse para ele uma fonte de desventura. A doença de Tom piorara muito com o choque recebido graças à conduta da irmã; e a sua convalescença fora tão grandemente retardada, que a própria Lady Bertram se alarmara com isso, transmitindo fielmente ao marido todos os seus sustos.

E a fuga de Julia, o golpe adicional que o ferira justamente por ocasião de sua chegada a Londres, embora, dadas as circunstâncias do momento, a sua força se houvesse amortecido, Fanny sabia bem que o devia ter afetado profundamente. As cartas do tio exprimiam bem quanto ele o deplorava. Sob outras circunstâncias, não seria aquela uma aliança mal recebida; mas o fato de tê-la combinado tão clandestinamente, ter escolhido um tal período para a sua realização, colocava os sentimentos de Julia numa luz desfavorabilíssima, e agravava severamente a loucura da sua escolha. Sir Thomas considerava aquilo uma ação má, feita da pior maneira, e no pior tempo; e embora Julia fosse mais perdoável do que Maria, mais louca do que perdida, ele não podia deixar de considerar o passo que ela dera como a abertura das piores possibilidades, que a poderiam levar a um fim idêntico ao da irmã. E Fanny aliava-se ao tio, e compartilhava de sua apreensão.

Por isso, sofria mais agudamente por ele; o pobre pai só em Edmund poderia encontrar consolo. Cada um dos outros filhos lhe torturava o coração. Felizmente o desagrado do tio contra ela própria, Fanny o esperava, raciocinando ao inverso de Mrs. Norris, deveria ter desaparecido. Ela deveria estar justificada. Mr. Crawford confirmara amplamente, com sua conduta, a recusa de Fanny, porém isso, embora muito importante para ela própria, deveria ser um pobre consolo para Sir Thomas. O desgraçado do tio era terrível para ela; mas que poderiam fazer em seu benefício a justificação, ou a gratidão e o afeto da sobrinha por ele? Só Edmund é que poderia consolar.

Ela estava enganada, entretanto, quando supunha que Edmund não dava também desgostos ao pai, naquele momento. Eram desgostos de natureza muito menos pungente do que os proporcionados pelos outros; porém Sir Thomas pensava na felicidade do filho, tão profundamente atingida pela conduta da irmã e do amigo; via-se afastado para sempre da mulher a quem cortejava com indiscutível afeição e com fortes probabilidades de êxito; uma mulher que, em todos os pontos, menos ao que se referia ao seu desprezível irmão, representava uma escolha excelente. Sir Thomas tinha a certeza de que Edmund sofria por sua própria conta, em adição a tudo o mais, enquanto estavam ambos em Londres: vira ou adivinhara os sentimentos do filho; e tendo razão de pensar que se realizara uma entrevista com Miss Crawford, dessa entrevista decorrera para Edmund uma crescente tristeza; por isso o pai, ansioso por afastá-lo da cidade, pedira-lhe que levasse Fanny para a companhia da tia, visando não só aliviar à mulher como ao filho.

Fanny não estava no segredo dos sentimentos do seu tio, nem Sir Thomas no segredo do caráter de Miss Crawford. Houvesse ele assistido às conversas da moça com o filho, e não desejaria esse casamento, embora o seu dote de vinte mil libras subisse a quarenta mil.

Era assunto fora de dúvida, para Fanny, que Edmund deveria se considerar para sempre afastado de Miss Crawford; e embora ela soubesse que ele pensava da mesma maneira, a sua própria convicção era insuficiente. Ela pensava que ele devia proceder assim, mas quis ter a certeza. Se ele lhe falasse com a mesma ausência de reservas que empregava dantes, seria mais consolador; porém isso já não acontecia. Raramente o via; e nunca o via só. Ele provavelmente evitava ficar só em companhia da prima. Que poderia Fanny inferir daí? Que o espírito de Edmund estava inteiramente dominado pela sua parte especial e mais amarga naquela aflição de família; mas que esse sentimento era por demais profundo para ser tratado ligeiramente. Tal seria decerto o seu estado de espírito. Ele deveria gemer de dor, mas dessa espécie de sofrimentos dos quais não se pode falar. Tinha ainda que esperar muito para ouvir dos lábios de Edmund o nome de Miss Crawford, e para que se restabelecesse a onda de confidências que eles dantes mutuamente trocavam.

E aquilo durava. Haviam chegado a Mansfield na quinta feira e já estavam na noite de domingo, quando Edmund começou a lhe falar sobre o assunto. Sentado em companhia dela, durante toda a tarde do domingo, era uma oportunidade que qualquer pessoa aproveitaria, tendo um amigo ao alcance da mão, para abrir o coração e dizer tudo que havia a dizer. Ninguém mais estava na sala, só Lady Bertram que, depois de ouvir um sermão comovente, fazia questão de dormir. Era impossível deixar de falar. E Edmund começou a falar com os preâmbulos habituais, chegando dificilmente ao ponto que visava, depois da usual declaração de que só a importunaria por alguns poucos minutos, e nunca mais ocuparia sua boa vontade com o mesmo assunto; ela não deveria recear uma repetição; seria um assunto doravante inteiramente proibido entre eles; entrou depois num luxo de minúcias e sensações do máximo interesse para ele próprio e também para aquela com cuja afetuosa simpatia ele inteiramente contava.

Pode-se imaginar com que curiosidade Fanny o escutava, com quanta dor e quanta delícia, com que atenção lhe observava a voz, embora os olhos dela de fixassem cuidadosamente em qualquer outro objeto, menos no primo. O exórdio era alarmente. Ele vira Miss Crawford. Fora convidado a visitá-la. Lady Stornaway lhe mandara um bilhete, transmitindo-lhe o convite. E considerando essa entrevista como o último encontro amigável que eles poderiam ter, atribuindo-lhe todos os sentimentos de vergonha e desolação naturais naquele momento à irmã de Crawford, procurara-a num estado de espírito idêntico, tão enternecido, tão devotado, que nesse passo da narração foi impossível a Fanny não se assustar com o desenlace da entrevista. Mas quando ele prosseguiu na história, os seus receios se apagaram. Mary o recebera, com um ar sério, é bem verdade, – sério e agitado, porém antes que ele lhe pudesse dirigir uma palavra inteligível, ela entrara pelo assunto com uma desenvoltura que o chocara.

– “Soube que estava na cidade”, disse a moça, “Queria muito vê-lo. Precisamos falar sobre esse triste negócio. Que é no mundo que se pode igualar à loucura dos nossos dois irmãos?” Eu não pude responder – prosseguiu Edmund – porém creio que meus olhos falaram, e ela sentiu como eu a censurava. Como sente ela as coisas rapidamente! Com um olhar mais grave, acrescentou então: “Não pretendi defender Henry às expensas da sua irmã”. Pôs-se então a falar, embora o que ela dissesse não fosse inconveniente, seria difícil poder repeti-lo a você. Não me posso recordar das suas palavras. E se as recordasse, não gostaria de me demorar nelas. A substância do que me disse era sobre a sua cólera ante a “loucura” dos dois. Censurava a loucura do irmão fugindo com uma mulher de quem não gostava, abandonando a mulher a quem adorava; porém censurava ainda mais a loucura da pobre Maria, sacrificando uma situação como a que tinha, metendo-se em tais dificuldades, acreditando no amor de um homem que, entretanto, há tão pouco tempo claramente lhe mostrara a sua indiferença. Eu próprio deveria ter percebido isso. – Ah, Fanny, ouvir a mulher amada não achar para aquilo outro nome senão “loucura”! Descrever aquilo tão voluntariamente, tão friamente, tão livremente! Sem relutância, sem horror, sem timidez feminina, e, ousarei dizê-lo? sem modéstia nem repugnância! Eis o que o mundo faz de uma moça! Onde encontraríamos entretanto, Fanny, uma mulher tão ricamente dotada pela natureza? Corrompida! Corrompida!

Depois de um instante de reflexão, ele mergulhou numa espécie de calma desesperada.

– Quero contar tudo a você; depois o assunto ficará encerrado para sempre. Ela via no caso não só apenas uma loucura, mas loucura selada pelo escândalo. Lamentava a falta de discrição, de cuidado, a ida dele para Richmond, ao mesmo tempo em que ela fora para Twickenham; ter-se ela posto a mercê de uma criada; eram em suma esses erros, e não o crime, – oh, Fanny! – que Mary reprovava. Reprovava a imprudência que levara as coisas a tal extremidade, e obrigara o irmão a abandonar todos os seus mais queridos projetos, para acompanhá-la na fuga.

Edmund parou.

– E então – perguntou Fanny, supondo-se obrigada a dizer alguma coisa – que lhe disse você?

– Nada, nada de compreensível. Eu estava como um homem siderado. Ela então começou a falar em você, lamentando, tanto quanto o podia, a perda de... falou muito racionalmente. Mas fez justiça a você: “Ele foi desprezado”, disse ela, “por uma mulher como jamais tinha encontrado outra igual, antes. Ela o teria assentado, tê-lo-ia feito feliz para sempre”. Minha queridíssima Fanny, espero estar lhe dando mais prazer do que desgosto com esse retrospecto que deveria ser feito, mas que jamais será renovado. Você preferiria que eu calasse? Se o quer, basta que me lance um olhar, ou diga uma palavra, e eu me calarei.

Não lhe foi dado um olhar, nem uma palavra.

– Graças a Deus – continuou ele. – Sempre nos admiramos das coisas, mas me parece uma das mais misericordiosas decisões da Providência ter permitido que o coração que não conheceu malícia, também não sofresse. Ela falou a seu respeito com muito apreço e com a mais cálida afeição; mas mesmo nisso, havia um traço de maldade; porque, a meio do que dizia, ela exclamou: “Por que Fanny não o quis? Foi tudo culpa dela. Menina tola! Nunca a perdoarei. Se ela o houvesse aceito, como o devia, estariam agora prestes a casar, e Henry estaria tão feliz e tão entretido que não pensaria em mais coisa nenhuma. Ele, antes, não gastara o menor esforço para fazer as pazes com Mrs. Rushworth. Tudo teria terminado num flerte normal, durante futuras estadias em Sotherton e em Everingham”. Você imagina isso possível, Fanny? Porém agora o encanto está quebrado. Meus olhos se abriram.

– Mulher “cruel” – disse Fanny. – Alma crudelíssima! Num momento como esse, achar lugar para ironias, falar com leviandade, e principalmente a você! Crueldade consumada!

– Você acha isso crueldade? Pois divergimos nesse ponto. Não, ela não é de natureza cruel. Ela naturalmente não imaginava que iria chocar meus sentimentos. O mal jaz mais profundamente, jaz na sua ignorância total, na sua absoluta incompreensão da existência de tais sentimentos; na perversão de espírito que faz lhe parecer muito natural tratar um tal assunto da maneira como o tratou. Ela falou como costuma falar a respeito de outros temas, como imagina que qualquer outra pessoa falaria. Não há nisso nenhuma intenção maléfica. Ela não queria, voluntariamente, proporcionar desgostos desnecessários a ninguém, e, embora eu me engane, não posso pensar senão que quanto a mim, quanto aos meus sentimentos, ela... O que lhe falta, a ela, são princípios, Fanny; tem o sentimento da delicadeza embotado, o espírito corrompido, viciado. Talvez assim seja melhor para mim, porque a sua perda me causa muito menos desgosto. Digo menos desgosto, mas não sei; porque eu preferia sofrer desgostos dobrados, por perdê-la, do que pensar dela o que penso atualmente. E eu lhe disse.

– Você disse?

– Sim. Quando partia, disse-o.

– Quanto tempo vocês estiveram juntos?

– Vinte e cinco minutos. Ela começou a dizer que o que restava a fazer, era tentar casá-los aos dois. E falou nisso, Fanny, com uma voz tão firme que eu não a posso reproduzir aqui.

E Edmund foi obrigado a silenciar mais uma vez, para acalmar-se, e continuar depois:

– “Podemos persuadir Henry a casar com ela”, continuou Mary, “apelando para a sua honra; e se eu tiver a certeza de que ele afastou para sempre a idéia de Fanny, não desesperarei de obter isso. Ele tem que desistir de Fanny. Não acredito agora que mesmo ele possa ter mais êxito com uma moça da espécie dela, de modo que espero não encontraremos dificuldades insuperáveis. Minha influência, que não é pequena, será toda dirigida nesse sentido. E uma vez casados, e devidamente apoiados pelas famílias, – famílias respeitáveis, como todos nós somos – podem de certo modo recuperar a sua posição na sociedade. É verdade que nunca serão admitidos em certos círculos; mas, com bons jantares, grandes festas, haverá sempre muita gente que há de apreciar o seu convívio; nessas questões há hoje muito mais liberdade e condescendência que antigamente. Segundo eu soube, seu pai está calmo; não o deixe intervir para estragar a própria causa. Convença-o a deixar que as coisas sigam o seu próprio curso. Se ele, de qualquer forma, induzi-la a deixar a proteção de Henry, haverá então muito menos probabilidades de se casarem, do que se continuarem vivendo juntos. Eu sei que só dessa maneira ele pode ser influenciado. Faça com que Sir Thomas confie nos sentimentos de honra e compaixão do meu irmão, e tudo acabará bem; porém se ele procurar recuperar a filha, tudo estará estragado”.

Depois de repetir isso Edmund estava tão emocionado que Fanny, fitando-o silenciosa mas ternamente, chegava quase a lamentar que se tivesse falado em tal assunto. Afinal, ele continuou:

– Agora, Fanny, está quase tudo dito. Já lhe contei o principal do que ela me disse. Logo que pude falar, disse-lhe que ao entrar em sua casa, eu julgaria impossível que coisa alguma no mundo fosse capaz de me fazer sofrer mais intensamente do que eu sofria; porém cada uma das suas frases me havia vibrado um golpe mais profundo. Que, embora durante todo o tempo do nosso conhecimento eu houvesse observado que nossas opiniões freqüentemente divergiam, nunca chegara a supor que a divergência pudesse chegar a um tal extremo. O modo pelo qual ela tratava o terrível crime cometido por seu irmão e minha irmã (sobre a qual pesava a maior responsabilidade, eu não o pretendia negar), – o modo pelo qual ela ainda aludia ao próprio crime, censurando-o, mas justificando-o; considerando todas as suas dolorosas conseqüências apenas para estudar meios de afrontá-las e limitá-las, num desafio à decência, e a imprudência no erro; e no fim de tudo, e acima de tudo, recomendando-nos a nós todos cumplicidade, condescendência, aquiescência à continuação do pecado, em consideração a um casamento, que, sabendo o que sei de Crawford, deveria antes ser evitado do que desejado; tudo isso tristemente me convencia de que eu nunca a compreendera realmente antes, e que a moça a quem eu estava pronto a me prender para sempre, desde alguns meses atrás, não era Miss Crawford, mas uma criatura inventada por minha imaginação. Isso, talvez, era melhor para mim; teria menos a lamentar pela perda de uma amizade, sentimentos, esperanças, que de certo modo, me estariam agora atormentando. E entretanto eu devia e queria confessar, preferiria infinitamente ver de muito aumentado o meu desgosto ao partir, e tê-la no mesmo conceito em que a tinha antes, conservando o direito de lhe conceder a mesma estima e ternura. Foi isso o que eu disse, pelo menos o essencial do que disse; mas você há de imaginar que não falei calma e metodicamente como o estou repetindo aqui. Ela estava estupefata, inteiramente estupefata, – mais até do que isso. Vi a mudança de sua atitude. Ficou rubra; e eu imaginava ver se desenrolando nela num misto de sentimentos diversos, uma curta porém forte luta: em parte o desejo de gritar a verdade, em parte uma noção de vergonha; mas o hábito, o hábito venceu tudo. Ela queria rir, se o pudesse. E foi numa espécie de riso que me respondeu: “Fez-me uma boa leitura, palavra de honra. É parte do seu último sermão? Desse jeito, depressa o senhor converterá todo o mundo, em Mansfield Park e Thorton Lacey; e da próxima vez em que ouvir falar no seu nome, será como um famoso pregador, em alguma grande sociedade de metodistas, ou como missionário, nalgum país estrangeiro”. Tentou falar asperamente, mas não conseguia ser tão áspera quanto o desejava. Eu lhe respondi apenas que, do fundo do meu coração, desejava a sua felicidade; que espetava firmemente vê-la um dia pensando com mais justeza; que lhe devia o melhor dos conhecimentos que se pode adquirir: o conhecimento de mim mesmo e do meu dever, através das lições da aflição; e deixei imediatamente a sala. Mal eu tinha dado alguns passos, Fanny, quando ouvi abrirem a porta, atrás de mim. “Mr. Bertram!” Olhei para trás. “Mr. Bertram”, disse ela com um sorriso, mas o sorriso acompanhava mal a conversa que se travara entre nós – um sorriso provocante, destinado decerto a me subjugar; pelo menos foi isso que me pareceu. Eu resisti. No momento, era o meu impulso único resistir, e continuei a caminhar. Desde então, muitas vezes, lamentei não ter voltado atrás, porém sei que fiz bem, e que aquilo foi o fim de nossas relações. Que relações aquelas! Como me decepcionaram. Irmão e irmã me decepcionaram igualmente. Agradeço a sua paciência, Fanny. Esta conversa foi para mim um imenso alívio. Agora acabamos com o assunto.

E tal era a dependência de Fanny das palavras dele que, durante cinco minutos, pensou que o assunto estava acabado. Mas apesar disso, ele voltou ao tema, ou a algo muito parecido, e nada, senão o despertar súbito de Lady Bertram pôde realmente encerrar a conversa. Antes que isso acontecesse, puseram-se a falar de Miss Crawford, de como ela o prendera, de como a natureza a fizera encantadora, e que excelente criatura não teria sido se, a tempo, houvesse caído em boas mãos. Fanny, tendo agora a liberdade de falar abertamente, julgou-se mais que justificada em acrescentar ao atual conhecimento de Edmund sob o caráter real da moça, algumas explicações sobre o papel que teria desempenhado o estado de saúde de Tom sobre os desejos de uma completa reconciliação por parte de Mary. Aquilo não era uma insinuação agradável; e a natureza das criaturas sempre resiste a suspeitas dessa natureza. Sempre fora muito grato a Edmund o espetáculo do grande desinteresse de Mary na sua afeição por ele; porém sua vaidade não era forte bastante para lhe levar de vencida a razão. Ele acabou por admitir que a doença de Tom deveria tê-la influenciado – reservando para si apenas este pensamento consolador: que considerando-se as incompatibilidades recíprocas ela, decerto, afeiçoara-se muito mais a ele do que seria de esperar, e por essa razão estivera muito próxima de agir com correção. Fanny pensava identicamente; como ambos também ficaram inteiramente de acordo no irreparável efeito, na indelével impressão que aquele desapontamento deixaria no espírito de Edmund. O tempo, indubitavelmente, abranda muitos sofrimentos, mas havia naquela mágoa algo que nunca poderia ser vencido: jamais ele poderia encontrar outra mulher que... era-lhe impossível imaginar isso sem indignação. A amizade de Fanny seria a única coisa a que ele se apegaria, doravante.

 

Deixemos que outras penas descrevam o crime e o desgosto. Eu por mim abandono esses odiosos temas o mais rapidamente que posso, impaciente por restituir todos os que não foram propriamente pecadores a um tolerável bem estar.

No que se refere à minha Fanny, com efeito, tenho a satisfação de dizer que era feliz, a despeito de tudo. Ela tinha que ser uma criatura feliz, a despeito de tudo que sentia, ou através do que sentia pela infelicidade dos que lhe viviam ao redor. Tinha fontes naturais de alegria que lhe exigiam uma saída qualquer. Voltara a Mansfield Park, era feliz, era amada; livrara-se de Mr. Crawford; e quando Sir Thomas voltou, apesar do melancólico estado de espírito do tio, ela teve provas constantes de sua aprovação completa através dos contínuos olhares que lhe lançava. E por mais felicidade que isso tudo lhe trouxesse, Fanny se sentiria feliz sem nada disso, apenas graças à satisfação de imaginar que Edmund já não era mais o joguete de Miss Crawford.

É verdade que Edmund estava ainda muito longe de se sentir feliz. Ele sofria desapontamento e saudade, lamentando o que se passara e suspirando pelo que já não mais viria. Ela sabia o que era isso, o que lhe dava tristeza. Era porém uma tristeza baseada em satisfação, com tal tendência otimista, e tão mais em harmonia com outras sensações agradáveis, que quase se felicitava por ela.

Sir Thomas, pobre Sir Thomas, pai que era, e cônscio dos seus erros como pai, era o que mais intensamente sofria. Sentia que não devia nunca ter consentido no casamento; que o conhecimento que tivera dos sentimentos da filha era o suficiente para o tornar culpado pelo consentimento dado; que ao autorizá-lo, sacrificara o direito à conveniência, e se deixara dominar por motivos egoístas e de ambição mundana. Essas meditações requeriam bastante tempo para serem aliviadas. Porém o tempo faz quase tudo. E apesar do pequeno consolo que poderia ter, relativamente à Mrs. Rushworth e à desgraça que ela provocara, fora-lhe mais fácil acomodar as coisas em relação à outra filha. O casamento de Julia mostrou ser uma questão muito menos desesperadora do que parecera a princípio. Ela era humilde e desejava ser perdoada; e Mr. Yates, desejoso de ser realmente recebido na família, estava disposto a olhar menos para si, e decidido a deixar-se guiar. Não tinha um caráter sólido, mas havia esperanças de que se tornasse menos fútil, e se tornasse mais tolerável na intimidade, e mais discreto; de certo modo, foi um consolo descobrir que a sua fortuna era muito melhor, e suas dívidas muito menores do que se receara a princípio; e considerado e tratado como amigo, haveria de melhorar, decerto muito. O estado de Tom era também consolador: sua saúde voltava, sem que ele tornasse à negligência e ao egoísmo dos seus hábitos antigos. A doença o fizera melhor do que nunca o fora antes. Sofrera, e aprendera a pensar: duas vantagens que ele nunca conhecera outrora. E as censuras que fez a si mesmo por ocasião do deplorável acontecimento de Wimpole Street, no qual ele colaborara muito graças à perigosa intimidade proporcionada pelo seu injustificável teatro, impressionaram-lhe fortemente o espírito. Como tinha apenas vinte e seis anos, e não lhe faltavam inteligência nem boas companhias, os efeitos produzidos por essas reflexões e sofrimentos foras excelentes e duradouros. Tom tornou-se no que realmente deveria ser: útil ao pai, firme e austero, deixando de viver apenas para si próprio.

E ainda havia mais outra alegria. Porque, ao mesmo tempo que Sir Thomas progredia nesses caminhos de consolo, Edmund contribuía também para o seu alívio, melhorando singularmente no único ponto em que contristara o pai: mudando de estado de espírito. Depois de passear e de se sentar sob as árvores, em companhia de Fanny, durante todas as tardes do verão, ele por tal forma dominava o espírito, que já se podia mostrar toleravelmente alegre.

Eram essas as circunstâncias e as esperanças que gradualmente reanimavam Sir Thomas, destruindo-lhe a mágoa pelo que perdera, e reconciliando-o em parte com si próprio, pois verificava que o desgosto provocado pela convicção dos seus próprios erros na educação dos filhos não era inteiramente justificado.

Depressa começou a compreender como pode ser desfavorável ao caráter dos jovens o contraste entre os dois diversos tratamentos que Maria e Julia haviam recebido em casa: a excessiva indulgência e lisonja da tia em oposição constante à severidade paterna. Viu quão mal ele raciocinara, supondo vencer o que havia de errado no sistema de Mrs. Norris pelo seu sistema oposto; viu claramente que não fizera senão aumentar o mal, ensinando-as a se reprimirem em sua presença, mantendo-lhe desconhecidas as suas tendências reais, e entregando-as à indulgência de uma criatura que só seria capaz de prendê-las graças à cegueira de sua afeição e aos excessos de adulação.

Fora esse o erro mais ponderável; mas, por pior que fosse, Sir Thomas gradualmente começou a enxergar que não fora esse erro sozinho o principal engano do seu plano de educação. Algo faltara, ou fora destruído pelos maus efeitos do tempo. Ele receava que um princípio, um princípio ativo, houvesse faltado; elas nunca haviam propriamente aprendido a governar suas inclinações e temperamentos por amor a esse sentimento do dever que, só ele, pode suprir tudo. Haviam sido instruídas teoricamente na sua religião, porém nunca lhes haviam exigido uma prática religiosa diária; a distinção obtida graças à elegância e prendas – objetivo autorizado à juventude, – pode não ter influência útil nem efeito moral sobre o espírito. Ele quisera encaminhar bem as filhas, porém os seus cuidados se tinham dirigidos aos conhecimentos e às maneiras, e não aos sentimentos; e por necessidade de justificativa e humildade, o pai receava que jamais as filhas houvessem escutado, dos lábios de quem quer que fosse, algo que lhes pudesse servir moralmente.

Deplorava amargamente uma deficiência que dificilmente o poderia compreender agora como é que ela fora possível. E sentia, desgraçadamente, que apesar de todo o dinheiro e cuidados que gastara numa atenta e dispendiosa educação, ele afastara as filhas da compreensão dos seus deveres elementares e não aproveitara nem o seu caráter nem o seu temperamento.

O ardente espírito e as fortes paixões de Mrs. Rushworth, especialmente, só lhe chegaram ao conhecimento através dos seus maus resultados. Não houve como persuadi-la a deixar Mr. Crawford. Esperava a princípio casar-se com ele, e viveram juntos até que ela se convencesse que tal esperança era vã; o desapontamento e o desgosto que lhe trouxe tal convicção lhe azedaram por tal modo o gênio, e lhe encheram o coração de tanto ódio por ele, que durante algum tempo esse seu mau gênio constituiu a punição recíproca de ambos, e acabou por induzi-los a uma separação voluntária.

Ela vivera com ele sob a acusação de ter arruinado todas as suas esperanças de felicidade com Fanny, e ao deixá-lo, não levava consigo outra consolação senão de os ter separado. E que poderá superar a desventura de um espírito de uma mulher, em tal situação?

Mr. Rushworth não teve dificuldades em obter um divórcio; e assim viu terminado um casamento, do qual o melhor que poderia dizer era que felizmente fora cancelado. Ela o menosprezara, amara outro; e ele fora muito bem merecedor disso. As indignidades da estupidez e os desapontamentos de uma paixão como o egoísmo só podem provocar uma medíocre piedade. A punição lhe seguiu a conduta, e uma punição muito mais séria seguiu o crime muito mais sério da sua esposa. Ele porém não se sentia livre da obrigação de estar mortificado e infeliz, até que outra linda moça conseguiu atrai-lo; e tentando um outro casamento, ele contava, – e era de esperar – fazê-lo sob melhores auspícios do que o primeiro: se fosse enganado, que o fosse ao menos com bom humor e boa sorte; enquanto ela teve que lutar com sentimentos muito mais fortes, e ingressar numa vida de recolhimento, sob a censura geral, – males que não poderiam jamais ser aliviados por um novo florescimento de esperanças ou de caráter.

O lugar onde ela poderia viver tornou-se um motivo da mais melancólica e oportuna cogitação; Mrs. Norris, cuja afeição parecia aumentar na razão inversa dos méritos da sobrinha, pretendeu que ela fosse recebida em Mansfield, e respeitada por todos. Sir Thomas porém não lhe deu ouvidos; e o ódio de Mrs. Norris por Fanny aumentou, pensando que a residência dela, lá, era motivo da recusa. E insistiu em atribuir a Fanny a razão dos escrúpulos do pai, embora Sir Thomas lhe garantisse que mesmo que não tivesse uma moça em casa, mesmo que nenhuma pessoa da casa fosse ameaçada pelos perigos da convivência com Mrs. Rushworth, nunca insultaria a sua vizinhança com o espetáculo da sua presença lá. Como filha, – e como penitente, ele o esperava, – ela seria protegida por ele, teria o seu conforto assegurado, e apoiada por todo estímulo a que tivesse direito e que as suas situações respectivas admitissem; porém mais do que isso não poderia fazer. Maria destruíra sua reputação; e ele não iria, numa vã tentativa de reabilitar o que não poderia ser reabilitado, sancionar o pecado, ou tentar diminuir o seu opróbrio, arriscando outra família, mediante tal exemplo, a sofrer desgraça idêntica à sua.

Terminou a questão com a partida de Mrs. Norris, que deixou Mansfield resolvida a dedicar-se à infortunada Maria; ambas foram instaladas em outra região, longínqua e pouco conhecida, onde, freqüentando pouca gente, faltando afeição a uma, e à outra um juízo são, poder-se-ia razoavelmente supor que os seus temperamentos recíprocos seriam a sua recíproca punição. A mudança de Mrs. Norris de Mansfield foi um toque suplementar para o consolo da vida de Sir Thomas. Suas opiniões a respeito da cunhada tinham baixado muito, desde o dia de sua chegada de Antigua; em cada transação em que se haviam empenhado desde então, no convívio diário, em negócios, e até mesmo na palestra, ela fora sempre perdendo terreno na sua estima; convencera-se de que lhe superestimara o valor e se deslumbrara com as suas maneiras, outrora. Passara a considerá-la uma desgraça, que parecia não dever cessar senão com a vida; ela lhe parecia uma parte dele próprio, que ele deveria carregar consigo para sempre. E ver-se portanto aliviado de tal fardo, era uma felicidade tão grande, que não houvesse ela deixado tão amargas recordações após si, teria havido perigo que bendissesse o mal que lhe trouxera um tal benefício.

Mrs. Norris não deixava saudades a ninguém, em Mansfield. Nunca conseguira prender nem mesmo a quem mais amava, e desde a fuga de Mrs. Rushworth, seus nervos viviam num tal estado de irritação que constituíam um tormento para todos. Nem sequer Fanny teve lágrimas para a tia Norris, – mesmo quando ela partia para sempre.

O fato de Julia ter tido melhor sorte que Maria, era devido, em grande parte, a uma favorável diferença de disposição e circunstâncias; porém era também devido a ter sido ela querida da tia, menos adulada e menos estragada. Sua beleza e prendas só lhe tinham valido um segundo lugar. Ela própria já se acostumara a se considerar um pouco inferior a Maria. O seu gênio era naturalmente o melhor, entre as duas; seus sentimentos, embora vivazes, eram mais controláveis e a educação que recebera não lhe dera uma tão alta idéia da sua própria importância.

Recebera muito melhor o desapontamento que lhe causara Henry Crawford. Depois da primeira amargura, ao convencer-se que fora tratada levianamente, conseguira mais ou menos bem pensar em outras coisas e esquecê-lo; e quando o convívio se reatou, e a casa de Mr. Rushworth voltou a ser freqüentada constantemente por Crawford, ela teve o mérito de afastar-se dele, e escolheu esse tempo para pagar a visita a outros amigos, a fim de evitar ver-se de novo atraída pelo rapaz. Por essa razão fora para a casa dos primos. O entendimento com Mr. Yates não tivera nada em comum com isso; ela vinha há algum tempo recebendo as suas atenções, porém com pouca idéia de o aceitar; a conduta da irmã precipitara os fatos e o seu crescente terror pelo pai e pela volta à sua casa, em tais circunstâncias, fê-la imaginar que as imediatas conseqüências do fato seriam um aumento de severidade e restrições; por isso procurou de qualquer modo e a qualquer risco evitar tais horrores que a ameaçavam; se não fora isso, provavelmente Mr. Yates nunca teria obtido nada. Ela não fugira senão levada por esses alarmas do egoísmo: a fuga lhe aparecera como a única coisa que poderia fazer. O crime de Maria provocara a loucura de Julia.

Henry Crawford, arruinado por uma excessiva independência e pelo mau exemplo doméstico, entregou-se por um tempo mais longo aos caprichos da sua fria vaidade. Uma vez essa vaidade o guiara, embora imerecidamente, para os caminhos da felicidade; se se houvesse satisfeito com a amigável afeição de uma mulher, se houvesse encontrado em si mesmo estímulo suficiente para vencer a sua relutância, trabalhando para obter a estima e a ternura de Fanny Price, – teria tido todas as probabilidades de felicidade e êxito. Sua afeição já conquistara terreno. Sua influência sobre ele, já provocara, reciprocamente, alguma influência dele sobre ela. Houvesse servido melhor, e não há dúvidas que teria obtido muito mais, especialmente depois de realizado o casamento dando-lhe a assistência da consciência dela, dominando a primeira inclinação da moça, e unindo-se, e unindo-os para sempre. Tivesse ele perseverado, e Fanny teria sido o seu prêmio, e um prêmio voluntariamente concedido, depois de um razoável período após o casamento de Edmund e Mary. Houvesse ele feito o que pretendia, e houvesse cumprido o que devia, indo para Everingham depois de sua volta de Portsmouth, teria decidido o seu destino dum modo a lhe trazer felicidade. Porém ele não quis perder a festa de Mrs. Fraser; e a sua demora tivera as mais graves conseqüências, pois provocara o encontro com Mrs. Rushworth. Curiosidade e vaidade entraram em jogo, e a tentação de um prazer imediato era forte demais para um espírito jamais habituado a fazer sacrifícios ao dever; por isso Henry resolvera adiar a viagem a Norfolk; resolvera depois realizar seus propósitos por escrito, sem ir lá; e decidira afinal que tais propósitos não tinham importância, e ficou. Viu Mrs. Rushworth, foi recebido por ela com uma frieza que o deveria ter afastado e estabelecido para sempre, entre eles, uma aparente indiferença; ele porém se sentira mortificado, e não pôde suportar ver-se assim tratado pela mulher cujos sorrisos haviam sido seus; sentiu-se induzido a vencer aquele orgulho que mascarava um ressentimento; estava encolerizado por causa de Fanny; podia vingar-se disso, e transformar Mrs. Rushworth na antiga Miss Bertram.

Com tais idéias iniciou o ataque, e, perseverante, em breve restabeleceu-se a antiga troca de galanterias e de convívio íntimo, de flerte, a que se limitavam os seus desígnios; mas triunfando da discrição da moça, que, embora significasse ódio, poderia ser a salvação de ambos, Henry se pusera sob o domínio de sentimentos que, do lado de Maria, eram muito mais fortes do que ele o supusera. Maria o amava; e ele fora arrastado apenas pela vaidade, sem, durante um minuto sequer, afastar o seu pensamento de Fanny. O seu primeiro objetivo foi manter Fanny e os Bertrams na ignorância do que se estava passando. E para a reputação de Mrs. Rushworth, nada seria melhor do que aquele segredo, que ele procurava em benefício de si próprio. Quando Henry voltou de Richmond, gostaria de nunca mais se avistar com Mrs. Rushworth. Tudo o que se seguiu depois foi resultado da imprudência dela; e se ele concordou em fugir com Maria, ao fim de tudo, foi porque já não o poderia evitar; a todo momento lamentava a perda de Fanny, porém começou a lamentá-la muito mais quando o alarido do escândalo já se acalmara e vários meses já o haviam ensinado, pela força dos contrastes, a dar o mais alto valor à meiguice do seu gênio, à pureza do seu espírito, e à excelência dos seus princípios.

Aquela outra punição, a punição pública ao erro, embora numa medida justa aquinhoasse a parte dele no crime, não é, nós todos o sabemos, uma das barreiras com que a sociedade cerca a virtude.

Na sociedade raramente o castigo é proporcional ao crime; porém, sem exigir demais para o futuro, pode-se facilmente considerar que um homem de inteligência como Henry Crawford, angariara, por seu ato, uma volumosa provisão de vexame e de mágoa; vexame oriundo, na maioria das vezes, da censura íntima; mágoa e vergonha por ter desse modo pago a hospitalidade e ferido a paz de uma família; custara-lhe o seu ato a sua melhor, mais estimável, mais querida amizade, custara-lhe a perda da mulher que ele amara tão sincera e apaixonadamente.

Depois do que se passara, separando e envergonhando tanto as duas famílias, teria sido muito penosa a continuação daquelas íntimas relações de vizinhança entre os Bertrams e os Grants. Os Grants porém resolveram se afastar deliberadamente durante vários meses, afastamento que terminou, por felicidade, se transformando numa mudança definitiva. O Dr. Grant, que há muito perdera a esperança de ver realizada essa promessa, foi nomeado para um canonicato em Westminster, o qual, proporcionando-lhe uma oportunidade de deixar Mansfield, um pretexto para a sua atual residência em Londres, e um acréscimo de renda que justificava a mudança, era uma desculpa aceitável tanto para os que ficavam como para os que partiam.

Mrs. Grant, com um gênio que a destinava a amar e a ser amada, deveria se ter afastado com muitas saudades dos lugares e das pessoas a que já estava tão habituada; porém essas mesmas ditosas disposições tornavam-na apta a se sentir feliz em qualquer lugar, e em qualquer companhia; além disso, ela tinha ainda um lar para oferecer a Mary; Mary, que já estava farta dos seus amigos, farta de vaidade, ambição, amor e desapontamento com que se vira cercada nesses últimos seis meses, carecia bem do sincero coração da irmã e da ajuizada tranqüilidade de suas opiniões. Passaram a morar juntas; e quando o Dr. Grant morreu, vítima de uma apoplexia, em conseqüência de três jantares oficiais na mesma semana, continuaram juntas, ainda. Porque Mary, embora absolutamente determinada a não se prender jamais a nenhum outro filho segundo, custava muito a encontrar entre os elegantes e conhecidos ociosos herdeiros que viviam submetidos à sua beleza e ao seu dote de vinte mil libras, alguém que lhe satisfizesse o gosto apurado pelo convívio em Mansfield, alguém cujo caráter e cujas maneiras lhe dessem esperanças daquela felicidade doméstica que ela aprendera a apreciar, – alguém que afastasse definitivamente de sua lembrança a figura de Edmund Bertram.

Edmund tinha sobre ela uma grande vantagem, nessa questão. Fanny não teve que esperar, de coração vazio, por uma nova afeição, digna dela. Mal, um dia, começava a falar, diante de Fanny, das suas saudades de Miss Crawford e a lhe dizer como considerava impossível encontrar jamais outra mulher igual a ela, feriu-o de súbito uma dúvida: se uma mulher completamente diferente não seria a mesma coisa para o seu coração, ou talvez muito melhor; e se a própria Fanny não se estava tornando mais querida, mais importante para ele do que Miss Crawford nunca o fora, com seus sorrisos e suas opiniões ousadas. E se não seria realizável a empresa de a persuadir que o seu quente e fraternal olhar para o primo era uma base excelente para um grande amor conjugal.

Faço questão de me abster de datas, ao contar isso. Cada leitor deve ter a liberdade de fixar suas próprias datas, calculando para a cura de paixões infelizes, e a mudança de imutáveis afeições; a duração dessas coisas tem que variar muito, de pessoa para pessoa, de maneira que deixo a cada um a faculdade de pensar que a modificação sobreveio exatamente no tempo em que seria natural que ela se operasse; que Edmund, sem uma semana só de antecedência ao tempo devido, deixou de pensar em Miss Crawford , e começou a ficar tão ansioso de casar com Fanny quanto a própria Fanny o poderia desejar.

Com o olhar dela, é verdade, – o olhar com que ela há muito o olhava, onde se traduziam os mais ternos apelos da inocência e do carinho, que seria mais natural do que essa mudança?

Amando- a, guiando-a, protegendo-a como ele o fazia desde que Fanny tinha dez anos de idade, com o espírito em tão grande parte formado graças aos cuidados dele, seu consolo dependendo da bondade do primo, constituindo para ele um objeto de tão cerrado e singular interesse, mais querido por essa importância pessoal perante ela do que qualquer outra pessoa em Mansfield, não será preciso acrescentar senão que ele precisava apenas aprender a preferir uns meigos olhos claros a outros olhos de luz escura e ardente. E como vivia sempre na companhia dela, falando-lhe confidencialmente, com os seus sentimentos naquele estado favorável que um desapontamento traz, os olhos claros e meigos não demoraram muito a obter absoluta preeminência.

Realizado isso, nada mais haveria a detê-lo no caminho da felicidade: nenhuma dúvida sobre a nobreza de alma de Fanny, nenhum receio sobre incompatibilidades de gostos ou de temperamentos. O espírito dela, suas disposições, opiniões, hábitos não precisavam ser disfarçados a meio; não haveria decepções presentes, nem desconfianças para o futuro. Mesmo no auge da sua paixão anterior, nunca deixara de reconhecer a superioridade de espírito de Fanny. Imagine-se como sentia ele tal superioridade, agora! Ela era, naturalmente, boa demais para ele; porém como não havia mais ninguém suficientemente digno dela, prosseguia firmemente nos esforços para obter tal benção dos céus, e seria possível que o consentimento dela se fizesse esperar muito tempo. Tímida, medrosa, desconfiada de si como ela era, era contudo impossível que uma ternura como a de Edmund não percebesse a sua fortíssima esperança de êxito. Fanny, entretanto passou ainda algum tempo para lhe dizer toda a deliciosa e admirável verdade.

A felicidade dele ao saber que era há tempo amado por um tal coração deveria ser grande bastante para lhe garantir uma esplêndida eloqüência a fim de a descrever a Fanny ou a si próprio; e era realmente uma delirante alegria. Porém havia além da dele outra alegria que descrição nenhuma pode igualar. Imagine-se quais seriam os sentimentos de uma moça recebendo as juras de um amor sobre o qual nunca se permitira ter esperanças.

Ajustados os seus sentimentos, não havia dificuldades em torno, nenhum recuo devido a pobreza ou parentela. Era um casamento que os desejos de Sir Thomas haviam antecipado. Ferido por ambiciosas e mercenárias uniões, prezado cada vez mais o bem supremo que emana dos princípios e do espírito, e principalmente, ansioso por ligar por laços mais fortes o que lhe restava de felicidade doméstica, ele há muito cogitava com íntima satisfação na possibilidade de encontrarem os dois amigos mútua consolação ante os recíprocos desapontamentos que ambos haviam sofrido. E o seu alegre consentimento ao pedido de Edmund, a sua confiança de ter feito uma importante aquisição obtendo Fanny como filha, realizavam um contraste com as suas antigas opiniões a esse respeito, quando a pobre pequenina lhe chegara em casa; é próprio do tempo alterar os planos e decisões dos mortais, para o seu próprio aprendizado e divertimento dos outros.

Fanny era de fato a filha que ele desejava. Sua caridosa meiguice fora o primeiro consolo para o seu coração de pai, tão magoado. A liberalidade do nobre senhor foi pois ricamente paga, e a bondade de suas intenções para com ela não foram perdidas. Ele poderia ter feito a sua meninice mais feliz; porém um erro de julgamento dera-lhe um aspecto de rudeza, privando-o dos primeiros anos do seu carinho; e agora, quando ambos realmente se conheciam um ao outro, a sua afeição mútua tornou-se muito forte. Depois de a ter estabelecido em Thorton Lacey , com os mais ternos cuidados pelo bem estar dos filhos, o seu objetivo diário era ir até lá, visitá-la, ou trazê-la até Mansfield.

Egoísta como era a estima que tinha a Fanny, Lady Bertram não a pôde vir partir de coração alegre. Felicidade nenhuma da sobrinha ou do filho poderiam fazê-la desejar tal casamento. Porém foi possível realizar a separação porque Susan ficou para substituir a irmã. Susan tornou-se a sobrinha estacionária, e muito contente com isso. E era igualmente dotada para esse destino graças à correção do seu espírito, à sua prestabilidade natural, como Fanny o fora pela meiguice de gênio e fortes sentimentos de gratidão. Susan nunca pôde ser dispensada. Primeiro como companhia para Fanny, depois como auxiliar, no fim como sua substituta, estabeleceu-se em Mansfield sob as mesmas aparências da irmã e com igual permanência. Sua natureza menos tímida e nervos mais sólidos tornaram-lhe as coisas muito mais fáceis do que para a outra. Compreendeu rapidamente o gênio daqueles com quem ia conviver, e sem nenhuma timidez que a inibisse, depressa se tornou utilíssima a todos; e depois do casamento de Fanny, substituiu-a tão naturalmente junto à tia, que gradualmente se foi tornando talvez até a mais querida das duas. Ela era indispensável, Fanny era um anjo, William continuava sempre correto e subindo na carreira, e todos os outros membros da família eram em geral bem sucedidos, uns sempre auxiliando a ascensão dos outros; Sir Thomas só enxergava motivos para se felicitar pelo que fizera por todos, e reconhecia as vantagens de uma precoce disciplina e dificuldade de vida, e a consciência de se ter nascido para lutar e sofrer.

Baseada em tantas qualidades verdadeiras e tão verdadeiro amor, sem cobiça de fortuna nem de amigos, a felicidade dos primos casados merecia ser considerada como uma das coisas mais sólidas deste pobre mundo. Formados igualmente para a vida doméstica, amantes dos prazeres do campo, seu lar era a casa do amor e do bem estar. E para completar tanta ventura, a morte de Mr. Grant, e a conseqüente vacância da paróquia de Mansfield ocorreram justamente quando Edmund e Fanny já estavam casados a tempo suficiente para desejarem um aumento de renda, e considerarem uma inconveniência a distância em que viviam da casa paterna.

Mudaram-se então para Mansfield. E o Presbitério, do qual, sob os seus antigos donos, Fanny jamais se aproximara sem uma penosa sensação de constrangimento ou de alarma, depressa se tornou querido ao seu coração e tão perfeito aos seus olhos quanto o eram todas as coisas que viviam sob as vistas e o patrocínio de Mansfield Park.

 

                                                                                Jane Austen  

 

                      

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