Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MANUSCRITOS DO MAR MORTO - P.2 / Adam Blake
MANUSCRITOS DO MAR MORTO - P.2 / Adam Blake

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Kennedy manteve o rosto perfeitamente inexpressivo quando parou de uma só vez diante de Combes. No poço estreito da escada, ele cons­tituía um bloqueio bastante efetivo. Ela decidiu deixá-lo falar primei­ro. Talvez tagarelasse até dar com a língua nos dentes e contasse a ela o que já sabia. Então ela poderia decidir quanto mais precisava lhe dizer — se é que diria algo.

Combes pareceu mais do que feliz em se adiantar.

Você veio aqui embaixo para olhar alguma evidência já registra­da — disse.

E daí?

E daí que, se tem a ver com as mortes do Rum, eu tenho o direito de perguntar o que é que você estava olhando e por quê.

As mortes do Rum? — ela repetiu. — E assim que estão sendo chamadas agora?

Estou falando sério. Você deveria estar trabalhando naquela faca e no lance do fórum on-line. Se tem novas informações ou uma nova opinião a respeito do que nós já temos, deveria ter colocado tudo no arquivo do caso e mandado uma cópia para a equipe.

Nada de novo — Kennedy disse. — Nada substancial, de todo jeito. Eu queria ver as coisas de Park Square.

Ah, é? — Combes nem se incomodou em esconder seu ceticismo agressivo. — Só porque te deu na telha? Nada a ver com aquele pacote que você acabou de receber?

Não faço nada só porque me deu na telha, Combes. Não tenho certeza de que pacote você está falando — nem porque você acha que é da sua conta.

 

 

 

 

Combes estivera segurando o envelope da FedEx atrás do corpo aquele tempo todo, ela percebia agora. Ele o mostrou e o brandiu diante do rosto dela.

Estou falando deste pacote — disse. — Lembrou agora?

O olhar de Kennedy ricocheteou do envelope rasgado da FedEx para o rosto ansioso de Combes.

Que comportamento curioso — ela disse. — Mexendo no meu lixo.

Combes ficou imperturbável.

Berryman Sumpter — ele disse. — A empresa de corretagem onde Ros Barlow trabalha. Eu tive que ir vê-la no escritório dela, Ken­nedy. Você achou que eu não lembraria mais, dois dias depois?

Eu achei que não era da sua conta — Kennedy respondeu. — E ainda acho.

Você não colocou isso no arquivo do caso.

O que deveria ser considerado uma indicação de que não é re­levante para o caso.

Mas bem que você arrancou a etiqueta para que ninguém pu­desse procurar no seu cesto de lixo e fazer a conexão.

Nisso ele a havia pego.

Tenho o direito de fazer o que eu quiser com correspondência particular — ela contemporizou.

E o que você fez foi vir correndo aqui embaixo pegar alguma das provas armazenadas. E uma baita coincidência.

Não, Combes. E uma coisa seguida da outra. E já que a segunda coisa tem a ver com meu trabalho, e aqui é onde eu trabalho, não é uma coincidência tão grande assim, né?

Ele não mordeu a isca. Sua expressão ainda era um meio sorriso maligno.

Você está aprontando alguma coisa, e o que quer que a Ros Bar­low tenha te enviado faz parte disso.

Você quer dizer... o que a Berrymen Sumpter me enviou.

—Ah, sim — ele zombou. — Desculpe. Foi só uma mensagem dos seus corretores, então? Novo portfólio de investimentos, alguma coisa assim?

Alguma coisa assim.

Só que não era portfólio coisa nenhuma. Não eram papéis. Era alguma coisa pequena e sólida, como um pendrive.

Isso — Kennedy disse. — Mas não estamos brincando de joguinho da verdade, né? Quer me deixar passar?

Combes não se moveu.

Não, ainda não. O que é que você estava olhando nas provas? E se disser que não é da minha conta eu vou direto para o escritório do chefe.

Kennedy realmente não queria que isso acontecesse. A verdade — ou trechos selecionados dela — pareceu a melhor opção, já que Com­bes poderia simplesmente descer e verificar o livro de registro.

Eu estava olhando as coisas que nós tiramos do bolso da Opie - disse.

— Ah, é? Por que exatamente?

Para o caso de termos esquecido alguma coisa. Qualquer coisa que pudesse nos dar uma pista a respeito do que ela estava fazendo na equipe do Barlow.

Só olhando as coisas dos bolsos dela. Aleatoriamente. Que bri­lhante trabalho policial.

Bom, eu tenho a esperança de um dia ser tão boa quanto você.

Li o que você colocou no arquivo depois que encontrou com a irmã do Barlow — Combes rosnou, meio que ignorando o que ela dissera. — Não dizia nada sobre ela te mandar um pacote.

Não — Kennedy concordou. — Não dizia. — Ela não conseguia ver razão para continuar tentando esconder o fato de que Ros fora a remetente. Seria ridiculamente fácil verificar isso. — A Barlow se lembrou de algo que não tinha me contado e me mandou um bilhete.

Via entregador? Usando uma terceira pessoa? — A voz de Com­bes gotejava escárnio. — Corta essa, Kennedy. Não sou idiota. E já te disse, eu vi você abrir o pacote: não tinha nenhum bilhete dentro dele. Então conte a verdade ou vou falar com o chefe e dizer a ele que você está pouco se lixando com as regras em relação aos relatórios. Talvez com as regras em relação às provas, também. Você quer me contar o que tirou das caixas aqui embaixo?

Em vez disso, Kennedy mostrou a ele. Ela abriu o bloco de notas na página onde escrevera e levantou-o, mostrando-o a ele. Combes o tomou de sua mão e leu: três linhas de poesia mutilada.

Oh what can ail thee, Knight at arms

Alone and palely loitering the sedge has withered

From the lake and no birds are singing.

Não entendi — Combes disse, devolvendo o bloco. — Que dia­bos é isso?

Quando dissemos à Sarah Opie que íamos colocá-la sob custódia, ela tirou uma folha de papel da mesa dela. Foi a última coisa que ela fez antes de sairmos. Ela disse que continha um lembrete para a senha dela - a senha que protegia os arquivos dela. E era isso que ela tinha escrito.

Combes balançou a cabeça negativamente.

Mas os arquivos na rede da universidade não estavam protegi­dos — ele disse. — Não precisamos de uma senha para abri-los.

Então ela devia estar se referindo a outros arquivos em algum lugar, não acha?

Nós verificamos todos os... — Combes se deteve abruptamente quando Kennedy ergueu a chave.

O Barlow herdou uma propriedade no campo dos pais dele — ela disse. — O nome é Pombal. Fazenda do Pombal. As palavras finais da Opie não foram "um pombal". Foram "no Pombal".

Combes olhou atentamente para a chave. Kennedy pôde vê-lo fa­zendo conexões mentais.

Tá legal — ele disse. — Então, você está achando o quê? Que o Barlow estava usando essa propriedade como um escritório reserva? Que os arquivos desse projeto Rum podem estar lá?

Sim.

Por quê?

Tirando as famosas últimas palavras da Opie? Porque eles não estavam em nenhum outro lugar, Combes. E porque os assassinos fi­zeram limpezas de sistema nos computadores do Barlow, mas ainda estavam preparados, esperando e vigiando quando fomos falar com a Opie. Tem alguma coisa que eles não querem que a gente veja e não conseguem garantir que a gente não a encontre. Então, talvez essa coi­sa ainda esteja por aí, e talvez o Barlow a tenha guardado na Fazenda do Pombal. Ou a Opie fez isso.

Combes disparou contra ela um olhar de claro desprezo.

E você achou que ia entrar lá de fininho e encontrar a coisa so­zinha, é? — ele disse. — Passar a perna no time e ficar com a glória?

Kennedy perdeu a paciência.

A Sarah Opie morreu por ter falado conosco, seu idiota! — ela gritou. — Eu queria garantir que isso não acontecesse com a Ros Bar­low. E no que diz respeito ao resto do time, vocês é que me puseram para escanteio. Eu não tive nenhuma outra escolha exceto ficar lá em cima sentada diante daquela mesa vendo a porcaria da vida passar!

Ela se projetara para a frente enquanto falava, sem ter tido a inten­ção de fazer isso. Seu rosto estava a poucos centímetros do de Com­bes e ele piscou rapidamente, várias vezes, diante de sua fúria direta. Então, houve uma pausa pelo que devem ter sido instantes difíceis. Finalmente, ele assentiu.

É isso mesmo — admitiu. — Para escanteio é exatamente onde você está agora. Mas você pediu por isso. Mesmo antes de ter provo­cado a morte do Harper, era o que você estava pedindo.

Kennedy não se deu ao trabalho de discutir isso.

Olhe, é só um pulo até Surrey — disse. — E não vou pedir para você ir comigo. Se eu estiver errada, o que perdemos?

Eu não perco nada — disse Combes, estendendo a mão com a palma virada para cima. — Me dê a chave.

Quê? — Kennedy não esperava por isso, embora, conhecendo Combes como o conhecia, provavelmente deveria ter esperado.

É assim que a coisa vai ser feita — disse Combes. — Eu vou até lá ver o que encontro. Você volta lá para cima e vai escrever sobre o pacote da Ros Barlow. O que escreveu ontem já está no sistema, né? Tá bom, então vai ter que dizer que a Barlow pensou a respeito da fazenda de­pois que foi para casa ontem à noite e mandou a chave para cá esponta­neamente — para a Divisão, eu quero dizer. Não diga que foi mandada para você. O fato, Kennedy, é que isso parece uma pista sólida. Só que eu é que vou atrás dela. Vou ferrar com você da mesma forma que você ferrou com o John Gates e o Hal Leakey. Se não gosta, reclame com o Summerhill. Só tenha em mente que, se fizer isso, ele provavelmente vai querer saber o que você estava fazendo quando foi ver a Barlow, para começo de conversa, depois que ele te mandou ficar aqui.

Como ela não entregasse a chave a ele, ele tentou tomá-la de seus dedos. Ela deu um tapa na mão dele, com força.

Isso não é negociável, Kennedy.

Ela cruzou os braços, colocando a chave bem fora do alcance dele.

Tem razão — ela disse. — Não é. Eu prometi à Ros que manteria isso em segredo. Fico feliz em deixá-lo vir também, se for mesmo ne­cessário. Mas vamos ficar fora do radar. Se encontrarmos algo, ótimo. Aí, voltamos, abrimos o jogo para a equipe e decidimos como vai ser jogado. Até lá, ninguém vai ouvir nenhuma palavra sobre isso. Nin­guém mais morre no meu turno, Combes.

Ele deixou escapar um suspiro alto e irritado, esfregando a parte de trás do pescoço enquanto olhava duramente para ela; um olhar que dizia: Que diabos vou fazer com você? Kennedy sentiu um forte desejo de acertá-lo entre as pernas com uma joelhada, mas percebeu que, lamen­tavelmente, esse podia não ser o melhor momento. Especialmente consi­derando que os dois estavam agora imersos numa discussão mutuamen­te incriminante quanto à melhor forma de falsificar o arquivo do caso.

Tá legal — ele disse. — Então façamos assim. Nós vamos até lá juntos — mas contamos ao Stanwick antes de irmos. Ele não registra nada no arquivo, mas sabe onde estamos caso aconteça alguma merda.

Kennedy ponderou a respeito da proposta — principalmente so­bre o "nós" e o "juntos". Essas palavras ficaram paradas em sua gar­ganta como espinhas de peixe, mas parecia não haver jeito de excluir Combes agora que ele sabia sobre a casa de campo e a chave. E era como se, a seu próprio modo condescendente, ele estivesse tentando fazer a coisa certa. O pronome no plural não podia ter sido mais fácil para ele do que era para ela.

Tá bom — ela disse por fim. — Eu concordo. Mas o Stanwick tem que ficar quieto. Se ele for falar com o Summerhill assim que a gente sair por aquela porta, ele ganha crédito com o chefe, nós ganhamos um castigo e a Ros Barlow talvez ganhe uma garganta cortada ou uma bala na cabeça. Tem certeza de que consegue fazê-lo ficar de bico fechado?

O Stanwick não é capaz nem de peidar sem minha permissão — Combes garantiu a ela. — Ele é um puxa-saco total. Não me diga que nunca percebeu.

Combes seguiu na frente enquanto subiam as escadas. Kennedy ficou tentada a perguntar por que ele empregava com Summerhill a mesma tática que desprezava em Stanwick, mas não queria pôr em perigo o precário acordo que eles pareciam haver alcançado.

Stanwick ainda continuava na sala comum, trabalhando com mais uma lista de hotéis europeus que poderiam já ter recebido Michael Brand como hóspede. Ele estava com o telefone na orelha e no meio de uma conversa barulhenta, provavelmente bilíngüe.

Bom, tem alguém aí que saiba falar... Não, tem alguém aí que fale inglês um pouco melhor do que... Quê? Não, eu sei que você fala inglês, senhor, mas seu sotaque... Se eu pudesse falar com...

Combes fez um gesto mandando-o desligar o telefone. Stanwick só hesitou por um momento. Então, recolocou o fone no gancho e fez um gesto obsceno.

Que se foda — ele disse. — Não tem a menor chance de esse cara ter usado o mesmo nome duas vezes.

Você pode acabar dando sorte — Combes disse, consolador. — Escute, Stanwick, a Kennedy recebeu uma pista da irmã do Barlow. Ela precisa que alguém vá com ela ver no que dá.

Kennedy não iria tão longe a ponto de dizer que precisava de Combes, mas olhou para a janela e manteve sua opinião só para si enquanto ele explicava a Stanwick sobre a Fazenda do Pombal. Stanwick realmente não parecia entender. Ele obviamente achava que, se Combes ia seguir uma pista até Surrey, o privilégio de ir no banco do passageiro pertencia a ele. Mas não disse isso: estava apenas implícito na forma como ficou perguntando — com somen­te pequenas variações de palavreado — o que ele deveria dizer se alguém lhe perguntasse a respeito disso, considerando que ele não sabia realmente nada do assunto.

Nada — Kennedy disse, interrompendo-os por fim. — Você não diz nada. Ainda não está no arquivo, Stanwick, tá bom? Não existe ainda. E essa a questão.

E se no final não for nada mesmo — Combes concordou num tom mais brando —, então, nunca existiu mesmo. Nada de mal acon­tece. Mas, se houver alguma coisa para descobrir, daí todos vamos compartilhar a glória. Em partes iguais, 25% para cada um.

Três vezes 25 são só 75 — Stanwick objetou.

Combes deu de ombros.

O chefe fica com a parte do leão, obviamente. Olhe, Stanwick, só precisamos de uma âncora aqui, só isso. Se tudo der certo, vamos voltar antes do final da tarde e ninguém vai saber. Então escrevemos a coisa para que aconteça em tempo real e levamos o tesouro para o Jimmy. Todo mundo fica feliz. Mas, se tivermos problemas, se entrar­mos numa encrenca por alguma razão, você sabe onde estamos.

Sim, mas como eu sei? — Stanwick questionou. — Como é que esse plano não vai se voltar contra mim?

Anotação na sua mesa — disse Kennedy, escrevendo enquanto falava na primeira folha do bloco de notas dele. — Ponha isto no seu bolso. E use se alguém tentar nos telefonar e nós não atendermos. — Ela entregou a Stanwick a anotação, que dizia: Fazenda do Pombal. Estamos seguindo a informação de um informante civil. — Tá bom? Assim você se safa, independente do que aconteça.

Mas não vai acontecer nada — Combes acrescentou. — E prova­velmente nem tem nada lá, para começo de conversa. Só precisamos riscar isso da lista.

Stanwick finalmente cedeu, conseguindo manter seus olhares ma­goados de cão sem dono sob algum grau de controle, e eles pegaram a estrada. Usaram o carro de Combes, um Vectra V6 cinza-escuro, e ele abriu a porta do passageiro para Kennedy com fria cortesia. Ela ignorou o gesto e foi para o banco de trás.

Então tá — disse ele.

Só nos primeiros quilômetros — Kennedy disse a ele. — Não me importa quão idiota isso pareça. Estou tentando permanecer in­visível. — Ela deitou ao longo do banco de trás e puxou sua capa de chuva — trazida com essa intenção — por cima do corpo. Se alguém estivesse vigiando a rampa de saída para a rua, ela não pareceria nada demais: um carregamento de roupas trazidas da lavanderia ou uma lona enrolada no banco de trás do carro.

Combes ligou o V6 e colocou-o em movimento. Kennedy fechou os olhos e forçou-se à imobilidade. Descobriu que não se importava com as condições incômodas, mas estar deitada no banco de trás alvo­roçava memórias poderosas. Dava-lhe a sensação de ser uma criança novamente, submetendo-se a uma jornada definida por alguém oni­potente. Ela levantou e sentou depois de uns dez minutos, e quando Combes parou diante de um semáforo que passou mais tempo do que o normal com a luz vermelha acesa ela usou a oportunidade para tro­car de lugar, ocupando o banco do passageiro.

Kennedy teria sido capaz de apostar dinheiro na idéia de que Com­bes relevaria ser o tipo de moleque que adora dirigir em alta velocida­de, que ela tanto desprezava. Mas, na verdade, ele era um motorista razoavelmente seguro, ficando só um pouco acima do limite de velo­cidade na maior parte do tempo e não usando a sirene nenhuma vez, mesmo em duas ocasiões nas quais ela própria teria ficado tentada a fazer isso. Talvez ele estivesse se comportando bem por causa dela.

Não conversaram muito até saírem da cidade. Combes dedicou a maior parte de sua atenção às manobras em meio ao trânsito, e quan­do o tráfego se tornou mais vazio ele pareceu se ocupar de seus pró­prios pensamentos. Kennedy ficou mais do que feliz em deixá-lo quie­to. Ela olhava no espelho retrovisor uma ou duas vezes a cada minuto, certificando-se de que não havia veículos colados na traseira deles, seguindo-os para o sul.

Quando chegaram à Estrada A3, Combes olhou de soslaio para o medidor de combustível e tocou-o com o polegar.

Aquele retardado do Stanwick deixou o tanque três quartos va­zio — disse ele. — Vou ter que parar para abastecer.

Beleza — Kennedy disse. — Vou ver se consigo arranjar um mapa da região. A Ros anotou algumas indicações, mas são um pouco vagas.

Seguiram em silêncio por algum tempo até Combes virar para en­trar num posto de gasolina que se autointitulava Porto dos Viajantes: um nome pomposo para uma cabana de tijolos de má qualidade e três bombas de gasolina. Enquanto Combes abastecia o carro, ela foi até o pequeno quiosque de pagamento e perguntou se o posto vendia mapas. O adolescente do outro lado do balcão balançou a cabeça rapi­damente, de olhos arregalados, como se ela tivesse perguntado se ele vendia pornografia infantil ou drogas pesadas.

Ela comprou goma de mascar e se virou para voltar ao carro. Quan­do estava quase lá, Combes pendurou a bomba de combustível e olhou para as duas mãos, erguidas diante do rosto.

Dá para você pagar lá? — ele perguntou. — Estou ensopado. Essa porcaria vazou.

Kennedy voltou ao quiosque e estendeu o cartão de crédito por cima do balcão.

Número três — ela disse. Estava digitando sua senha quando o som do motor do carro rugindo e voltando à vida a fez parar e virar-se novamente. Combes estava saindo do posto, voltando para a estrada, já se movendo rapidamente.

Filho da puta! — Kennedy gritou.

Ela começou a correr, mas então desacelerou e parou imediata­mente. Não havia a menor chance de ela o alcançar: o carro já estava quase fora de seu campo de visão.

Combes tivera tempo para pensar e decidira que não precisava da chave da porta do Pombal — só do endereço, que ela já havia lhe dado. E ele não precisava dela. Sabia que Kennedy não poderia recla­mar por ter excluída da ação: a única maneira de prejudicá-lo seria prejudicando a si mesma também. Ela não podia nem telefonar para alguém na Divisão e pedir socorro.

Com essa percepção, veio outra.

Tillman.

Ela teclou o número novo dele — aquele que havia anotado no próprio pulso. Tillman não atendeu e não havia correio de voz, mas enquanto Kennedy andava para a frente e para trás na estreita entra­da do posto, tentando imaginar um plano B, ele ligou para ela.

Desculpe — disse. — Eu estava trabalhando numa coisa. Que foi? Você já está na fazenda?

Nem cheguei perto. — Ela contou sobre o jogo sujo de Combes, preparada para receber comentários críticos, sarcásticos e cortantes. Sabia quão idiota havia sido — primeiro, ao ter deixado Combes dirigir e, depois, tendo caído na conversa meia-boca dele feito um cachor- rinho treinado que vai apanhar o graveto. Mas Tillman foi razoável.

Você quer deixá-lo cuidar disso? — ele perguntou.

Quero o quê?

Bom, ele é parte da sua equipe, né? Qualquer coisa que ele en­contre vai ser passada para você. Talvez a melhor aposta seja deixá-lo ir em frente. Sempre podemos voltar depois e dar mais uma olhada se acharmos que ele deixou de ver alguma coisa.

Não. — Kennedy teve a decência de sentir-se envergonhada, considerando quão pronta ela estivera a excluir Tillman daquela bus­ca, mas sabia que era capaz de examinar uma cena muito melhor do que Combes no melhor dia da vida dele, e pensar que ele poderia abrir o "baú do tesouro" do Pombal sozinho era mais do que ela podia suportar. — Não podemos impedir que Combes chegue lá primeiro, mas eu realmente quero dar uma olhada nesse lugar agora, enquanto ainda está "fresco". E, do jeito que as coisas são no departamento, eu não conseguiria permissão para sair depois que ele já tiver sido anali­sado. Essa pode ser minha última chance.

Novamente, Tillman não perdeu nenhum tempo discutindo a questão.

Tá legal. Vou pegar um carro e vou até aí te pegar. Onde você está?

Ela lhe disse como chegar ao Porto dos Viajantes e ele desligou com um rápido "até mais".

Kennedy teve um longo tempo para pensar, enquanto esperava, o que ele quisera dizer com "pegar um carro". Quarenta minutos de­pois, quando ele apareceu num veículo de 14 rodas, todo paramenta- do num uniforme verde vivo e amarelo, ela teve sua resposta.

Eles iam para a Fazenda do Pombal num caminhão roubado.

 

Cerca de 40 minutos depois que Kennedy e Combes saíram, o telefone da mesa de Kennedy na sala comum começou a tocar.

Stanwick ainda permanecia no recinto, assim como McAliskey e mais alguns detetives, que estavam ocupados com suas próprias tarefas. To­dos ignoraram o telefone, que parou de tocar depois de um tempo quando o telefonema caiu no correio de voz de Kennedy. Então ele tocou novamente. O procedimento se repetiu por cinco ou seis vezes.

Ninguém mais parecia disposto a anotar um recado, mas ocorreu a Stanwick que poderia ser a própria Kennedy ligando. Talvez precisas­sem de um terceiro homem, afinal, ou quisessem que ele convocasse a perícia ou apoio em TI. Ou talvez só quisessem verificar o ende­reço ou precisassem que ele obtivesse algum tipo de autorização do detetive-chefe.

Finalmente, ele atendeu.

Alô?

Uma voz culta, que soou ligeiramente estrangeira, disse:

Eu preciso falar com a sargento Kennedy, por favor.

De onde fala?

Whitehall Exchange. A sargento Kennedy pode verificar meu número e minha identificação: alfa zebra dezessete.

Stanwick ficou impressionado. Whitehall Exchange provavelmen­te significava MI5, o serviço de segurança britânico, embora também pudesse ser um dos braços da inteligência do Parlamento conduzindo um inquérito em nome de um comitê governamental ou uma quango. Poderia ser até coisa do Primeiro Ministro. O que quer que fosse, era assunto sério.

A sargento Kennedy não está na mesa dela — Stanwick disse. — Sou o detetive Peter Stanwick. Posso ajudar?

Creio que não. A sargento Kennedy está trabalhando num caso neste momento?

Sim, está.

O assassinato do professor Barlow.

Hã... eu realmente não tenho permissão para responder a isso, senhor.

Se for o assassinato de Barlow, não há nada no arquivo do caso que indique aonde ela foi ou o que está fazendo.

Stanwick estava ainda mais impressionado agora. Quem quer que estivesse falando com ele, o cara tinha entrada liberada em toda parte: acesso em tempo real a arquivos de casos era um privilégio dado a muito poucas pessoas fora da Divisão. O sujeito meio que precisaria ser Deus ou um amigo íntimo Dele. Subitamente, a posição do próprio Stanwick — bem na linha de fogo de Whitehall — estava começando a parecer um tanto hostil.

É... algo que acabou de aparecer — disse. — De repente. Ela e o sargento detetive Combes decidiram ir verificar imediatamente e eu... eu estou atualizando o arquivo do caso agora.

Por favor, faça isso — o outro homem disse bruscamente. — É possível que a sargento Kennedy e o sargento... Combes, você disse?... estejam invadindo uma operação que nós já organizamos. Isso seria extremamente inconveniente, e nós gostaríamos de fazer o possível para afastá-los de lá enquanto ainda há tempo.

Vou gerar a entrada no arquivo agora mesmo — Stanwick prome­teu. — A atualização pode levar alguns minutos para acontecer, mas...

Não estou preocupado com a atualização. Obrigado por sua as­sistência, detetive Stanwick. Vamos recorrer ao arquivo — e eu espero que não seja necessário telefonar novamente.

Stanwick esperava isso também, com imenso fervor. Ele amaldi­çoou Combes por colocá-lo nessa posição estúpida e a si mesmo por concordar em dar cobertura a eles naquela empreitadazinha particu­lar. Ele atualizou o arquivo indicando que eles estavam na Fazenda do Pombal, perto de Godalming, Surrey, seguindo uma sugestão feita por Rosalind Barlow num pacote trazido via entregador às 11h20. De­pois de hesitar por um momento, ele registrou o horário da entrada como 13h43. Os desgraçados já o tinham, se o queriam. Mas ele estava longe do epicentro de qualquer merda que fosse acontecer, e se ficasse de cabeça baixa talvez nem se sujasse.

Kuutma desligou o telefone e pensou.

Era uma grande felicidade que ele tivesse solicitado a seu pessoal que instalasse uma câmera oculta na Divisão de Detetives da New Scotland Yard, que incluía em seu campo de visão a mesa diante da qual a rhaka, Kennedy, passava a maior parte do tempo. Quando ela desaparecera do vídeo, mas não saíra do edifício (os seguidores de­signados para ela teriam reportado o fato), isso lhe provocara suspei­tas. Ele esperara por quase 45 minutos — ela deveria estar em algum outro lugar do edifício, muito embora todo o restante da equipe de investigação estivesse à vista —, mas finalmente chegara a uma decisão e fizera a ligação. Ele estava imensamente grato por tê-la feito.

Ligou para Mariam e deu a ela as boas-novas. A falha dela em eli­minar o alvo na última missão, contra Tillman na balsa, a deixara an­gustiada e envergonhada, e sua equipe, desmoralizada. Era parte do dever de Kuutma avaliar a adequação e a agudeza das ferramentas que usava, assim como afiá-las, sempre que pudesse, contra as arestas brutas do mundo.

Isso poderia ser bom para a equipe. Ela receberia a missão como uma bênção, o que de fato era.

 

— É aqui — Kennedy disse. — Na próxima à esquerda. Olhe lá a placa.

Mesmo no crepúsculo, era impossível não vê-la. A cerca de 4,8 qui­lômetros depois da última vila pela qual haviam passado, a placa era exatamente como Ros Barlow a havia descrito: as asas douradas sain­do da letra P de Pombal num floreio ridículo e melodramático, redu­zindo o efeito a um anti-clímax. A casa achatada, com teto de palha, e a série de celeiros arruinados espalhados mais além não poderiam fazer jus a essa declaração bombástica. Seria preciso fazer o deus Hermes descer de um céu claro, talvez pendurado em fios.

A pequena estrada de pedregulhos diante da casa de campo era curta demais para o caminhão. O Vauxhall Vectra cinza de Combes es­tava imediatamente visível, estacionado bem diante da casa num desa­fio aos bons protocolos de investigação e senso comum. Com a entrada bloqueada, Tillman virou à direita e dirigiu por entre o mato, que chegaria à altura da cintura até um espaço amplo e aberto à direita da construção principal, onde parou o caminhão. Kennedy olhou ao redor, procurando por Combes, mas ele parecia ainda estar lá dentro. Isso significava que encontrara algo: ele tivera uma vantagem de pelo menos meia hora sobre eles e provavelmente fizera um percurso mais rápido na estrada. Então, o que quer que restasse, parecia improvável que a Fazenda do Pombal fosse um beco sem saída.

Esforçando-se para conter a própria agitação, Kennedy desceu da cabine. Esquadrinhou o ambiente. A não ser pela faixa de pedregu­lhos, todo o espaço ao redor e entre a casa de campo e as constru­ções próximas dela havia sido tomado por capim e arbustos: não havia como identificar marcas de pneus ou pegadas deixadas ali, embora, se o tempo estivesse mais úmido, ela pudesse ter se ajoelhado, separado o capim com as mãos e dado uma boa olhada.

A casa de campo e os campos descuidados ao redor dela estavam absolutamente silenciosos. E não existiam outras casas nem constru­ções típicas de fazenda ao longe. O próprio Pombal tinha meia dú­zia de celeiros e pequenos depósitos de aspecto abandonado, que se amontoavam ao redor da estrutura principal como conspiradores. Se Barlow houvesse estabelecido nesse lugar uma base secreta de cam­po para seu projeto do Rum, ele escolhera muito bem. Também não deixara nenhum rastro: a julgar pelas aparências, eles — e Combes, é claro — poderiam ser as primeiras pessoas a pisarem ali em dez anos ou mais.

A casa de campo parecia tanto dilapidada quanto deserta. Todas as janelas, exceto uma, tinham tábuas brutas pregadas sobre elas. A que era risível estava quebrada. A madeira dos caixilhos estava enrugada, com a pintura descascada, e um telhado de varanda decorativo sobre a entrada principal havia desmoronado sobre si mesmo feito um estômago caído.

Tillman desceu do caminhão pela porta do motorista e, como Ken­nedy, ficou parado por um instante ou dois. Ao passo que ela exami­nava o chão em busca de rastros, ele esquadrinhava as pequenas casas em volta, presumivelmente procurando quaisquer sinais de vida. Lan­çou um olhar para ela, encolheu os ombros, balançou a cabeça muito levemente e dirigiu-se à porta. Kennedy foi atrás dele.

A porta parecia intacta, mas apenas à primeira vista. Depois de um momento de silêncio, Tillman apontou para o que Kennedy já havia visto: as lascas ao longo de uma área de mais ou menos dez centímetros, logo abaixo do nível da tranca. Alguém abrira a porta usando um pé de cabra ou talvez um macaco para carros e depois a havia fechado.

Kennedy empurrou a porta com o pé. Ela se abriu numa fresta com um rangido audível.

Você vai nos apresentar — Tillman resmungou em tom inex­pressivo — ou eu devo esperar no caminhão?

Entre. Já estamos tão fora do manual de operações agora que eu não acho que isso importe muito. Vamos compartilhar tudo o que encontrarmos, quer o Combes goste disso ou não — e ele tem tanta razão quanto eu para ficar calado em relação aos detalhes.

Kennedy empurrou a porta com o pé uma segunda vez, abrindo-a tanto quanto possível. O interior da casa estava completamente escu­ro mesmo nesse dia ensolarado, a entrada adiante parecia um sólido triângulo preto.

Combes! — ela chamou.

Nenhuma resposta e nenhum eco: a escuridão engoliu o som completamente.

Passando pela soleira, Kennedy aspirou um cheiro agudo e bolorento tão espesso quanto incenso. O cheiro da umidade trabalhando lenta e livremente no papel e no tecido em meio à escuridão. De forma pertur­badora, seu ombro pareceu roçar contra uma substância rija à esquerda e à direita — como se o espaço no qual ela estava entrando fosse mais estreito do que a própria porta. Um túnel em lugar de um vestíbulo.

Ela chamou mais uma vez o nome de Combes, agora mais alto. No­vamente, o som desceu estranhamente achatado e abafado.

Kennedy tateou ao lado da porta, esperando encontrar um inter­ruptor de luz. Seus dedos tocaram algo macio e frio e de bordas es­farrapadas. Quando a coisa farfalhou, ela a reconheceu como papel, e agora que seus olhos começavam a se ajustar um pouco à escuridão conseguia ver, também: uma porção de papel empilhado perfeitamen­te, chegando à altura dos ombros, logo do lado de dentro da porta.

Encontrou o interruptor imediatamente acima da pilha e pressio­nou-o, e a luz de uma lâmpada nua inundou a cena antes que eles entrassem. Parados ali, Kennedy e Tillman olharam.

— Que diabos? — Tillman murmurou.

Não era uma única pilha de papel, apenas a única que não ia do chão até o teto. Estavam olhando para um vestíbulo de uns três me­tros de comprimento, com duas portas, cada uma de um lado, e uma terceira no fim. Pilhas de papel se alinhavam em profusão às paredes, deixando um espaço entre elas que mal era largo o suficiente para uma pessoa passar andando. Em alguns pontos, claramente, seria ne­cessário virar-se ou inclinar-se para a frente para não esbarrar nas pilhas. Elas pareciam precárias, mas nenhuma havia caído. Provavel­mente o fato de estarem apoiadas tanto ao teto como ao chão, com as folhas bem apertadas umas contra as outras, ajudava nisso.

No único outro recinto que conseguiam ver, no final desse vestíbu­lo, mais papéis haviam sido empilhados a esmo em blocos que pare­ciam as camadas mal assentadas de uma pirâmide de degraus. Parecia que alguém andara enchendo o recinto com papel, no início de forma metódica, mas então finalmente o colocando onde quer que estivesse mais perto ou mais fácil.

Kennedy pegou a primeira folha de cima da pilha mais próxima — a que chegava só até a altura de seu ombro. Estava impressa com uma linguagem alfanumérica: só letras e números, as letras todas maiúscu­las, numa fonte sem serifa. Preenchiam a página completamente, ocu­pando um bloco ininterrupto da direita para a esquerda, com bordas estreitas. Não havia nem pausas nem recuos: nada que indicasse que esse era um documento único ou só uma página de um documento muito maior.

Kennedy mostrou a folha a Tillman. Ele a esquadrinhou breve­mente, depois olhou para ela.

Eu estava esperando que pudéssemos encontrar um disquete — ela disse.

Tillman riu: um rugido de incrédulo deleite.

Kennedy seguiu na frente, virando o corpo de lado de forma a não tocar as torres de papel invasoras. O ar estava sufocantemente quente, pesado daquele odor que lhes penetrara, e ela teve a sensação aflitiva de entrar num espaço orgânico — de ser engolida ou de estar nascen­do ao contrário. A idéia de parecer nervosa ou agitada diante da calma impassível de Tillman era desagradável. Ela atirou seus pressentimen­tos firmemente no fundo do cérebro e os trancou lá.

Seu palpite foi bom — ele disse, atrás dela. — Estou achando que isso tudo aqui é o projeto de pesquisa do Stuart Barlow.

Não sei — Kennedy murmurou. — Não vejo nada aqui que se pareça com um evangelho. — Nem nada que se pareça com aquele desgra­çado do Combes.

Eles seguiram em frente, devagar e atentamente. As tábuas nuas do chão rangiam debaixo de seus pés, e o cheiro ficava ainda mais forte à medida que deixavam a luz do dia para trás. A primeira porta à es­querda revelou-lhes outra sala cheia de papéis. O primeiro quarto à direita era a mesma coisa e o segundo estava vazio, exceto por um saco cheio até a metade com cimento e um punhado de tábuas de macieira no chão. A última porta à esquerda levava a um tipo de vestíbulo onde um lance de degraus estreitos e íngremes, de madeira, levava para cima. Mais duas portas fechadas abriam-se diretamente a partir desse espaço estreito, atrás do poço da escada, mas estavam trancadas.

Tillman colocou Kennedy de lado e chutou as portas, escancarando-as sem muita dificuldade: um único chute para cada, na altura da cintura. Uma delas era mais um depósito de papel, a outra, uma cozinha. Kennedy estava interessada na cozinha. Ela entrou e olhou ao redor. Uma chaleira estava perto da pia e, quando ela levantou a tampa dela, viu que ainda continha água. Um bule para chá, ao lado, tinha sido completamente tomado por bolor cinza e peludo.

Nesse momento, Tillman havia chegado à geladeira. Ele abriu a porta, encolheu-se e cobriu o rosto com a mão.

Dê só uma olhada nisso — disse a Kennedy.

Ela veio espiar ao lado do ombro dele. A geladeira estava cheia de coisas estragadas: leite verde, queijo cheio de pontos brancos, maçãs cujas superfícies vermelhas e frescas haviam sucumbido a chagas mar­rons de doença.

Quanto tempo leva para as coisas estragarem assim? — ele per­guntou. — Uns dois meses?

Talvez menos — Kennedy murmurou. — Sinta como está quente aqui, Tillman. Agora já faz seis semanas desde a morte do Barlow. Ele poderia ter vindo aqui regularmente até a noite em que foi morto.

E se tivesse vindo, ela pensou, significa que ele era melhor do que eu em despistar perseguidores. Eu levei a morte comigo até Park Square. Esse amador conseguiu manter seu grande segredo guardado apesar de tudo — e os assassinos dele ainda não o encontraram.

Esse pensamento trouxe outro em sua esteira. Se Combes havia estado ali, por que todas essas portas ainda estavam trancadas? Não parecia certo. A não ser que ele ainda estivesse ali, em algum lugar, e tivesse encontrado algo tão interessante que ainda não havia termina­do a busca nem ouvido a chegada deles.

Não tem mais nada aqui embaixo — Tillman disse. — Vamos dar uma olhada no andar de cima.

Me dê um segundo — Kennedy respondeu.

Ela voltou à porta, saiu e deu uma boa olhada ao redor — uma var­redura de 180 graus. Nada nem ninguém à vista, e o silêncio ainda era absoluto a não ser pelo crocitar de um corvo, suavizado pela distância.

Ela voltou para dentro, fechando a porta. Tillman ficou olhando para ela com expectativa no outro extremo da passagem. Ela balançou a cabeça positivamente para ele, que subiu a escada.

Seguindo na retaguarda, Kennedy fez questão de olhar atrás de cada porta e nos cantos dos depósitos de papel onde algo ou alguém poderia ter se escondido atrás das pilhas irregulares. Não encontrou nada. Mas no topo das escadas finalmente esbarraram na sorte.

Esbarraram em papel, também, é claro: mais florestas assassinadas reduzidas a jardas cúbicas de impressos, as mesmas linhas sem sentido de letras e números em cada folha que Kennedy pegava para exami­nar. Mas, quando ligaram a luz no quarto maior, que não continha uma cama, entre as pilhas de folhas A4 havia outra — de lajes plásti­cas cinzentas com o logotipo da Hewlett-Packard.

Parece uma torre de alta definição — Tillman grunhiu.

Servidores — Kennedy disse. — Usam equipamentos como esses para renderizar os efeitos em 3-D de filmes. Alguém aqui precisava de muito poder de processamento.

Ela apontou para uma mesa de cavalete junto à única janela do quarto. Um monitor e um teclado estavam sobre ela, conectados por um emaranhado de cabos de energia aos diversos servidores. Dos ser­vidores, os cabos se curvavam e seguiam pelo chão até uma carreira de adaptadores, onde se perdiam em intricadas conexões cruzadas, al­gumas das quais terminavam em tomadas na parede, enquanto outras seguiam para fora do quarto. Pelo menos uma erguia-se verticalmente até desaparecer num alçapão no teto. Não houvera pontos suficientes nesse quarto, obviamente, para acomodar todo o tráfego. Mesmo com adaptadores com três e quatro entradas, fora necessário usar as toma­das de outros recintos. Uma lona de um lado da mesa de cavalete fora jogada às pressas por cima de outra torre de formas irregulares, mas quadradas: mais componentes de computador, talvez, que ainda não haviam sido colocados para trabalhar ou haviam sido substituídos por serem inadequados.

Esse era o quarto que tinha a única janela não bloqueada, mas um tecido grosso e rústico havia sido colocado por cima dela, pendendo simetricamente de uma fila de pregos. Quem quer que houvesse tra­balhado ali parecia ter sido pego numa contradição — querendo a possibilidade de luz, mas desejando evitar a distração da vista pano­râmica do outro lado do vidro: ou, talvez, evitar que alguém do outro lado o visse.

Havia mais papéis sobre a mesa. Só uma dúzia de folhas, mais ou menos: quantidade bem modesta em comparação com o resto da casa. Também havia uma torre de CDs graváveis, ainda envoltos pela em­balagem de plástico transparente.

Kennedy cruzou o recinto até a mesa e ligou o computador. Foi recompensada pelo murmúrio e os cliques e ruídos abafados da ini­cialização, que soavam ainda mais abafados ali, já que as barricadas e escarpas de papel engoliam o som.

Ela voltou a atenção para os papéis sobre a mesa. Estava esperando as mesmas linhas infinitas de caracteres alfanuméricos, mas o que viu arrancou dela uma exclamação — um monossílabo que fez Tillman pegar a segunda folha para ver o que ela estava vendo.

O texto no papel ainda estava completamente desformatado: um jorro logorreico que corria ininterruptamente do topo ao final da pá­gina. A única diferença — a percepção que havia feito Kennedy xin­gar em voz alta — era que aqui havia palavras de verdade.

 

ejesusdeuaeleasbênçãosdesuasmãosqueeleretevedetodososoutros- seteaquelesqueoseguirameelelhedissesouchamadodesalvadormas- quemmesalvarásenhoriscariotesrespondeulhesefortuavontadeeujur-queteservireidetodamaneiraejesusdisseaiscariotestuserásomaisbaixoe- omaiselevadooalfaeoômegaosoutrosficaramzangadosporqueele

 

As maiúsculas quadradas e em negrito, assim como a ausência de espaços e pausas, faziam com que o fluxo de palavras soasse como um discurso feito aos urros por um beberrão. O final da página cortava-o no meio de uma palavra: o silêncio súbito e banal quando o fanfarrão percebe que o sentido lhe escapa e segue arrastando os pés pela noite.

O computador tinha acabado de iniciar nesse momento, entrando num modo que não se parecia com nenhuma interface que Kennedy já vira. ícones de pastas eram exibidos em branco sobre fundo negro, cada um com uma etiqueta: sistema, bios, segurança, dispositivos, pro­gramas, projetos.

Kennedy sentou-se à mesa. A cadeira tubular de aço era oscilante, então ela teve que se inclinar para a frente para mantê-la firme. Clicou em projetos, e aquela tela desapareceu, sendo substituída por outra lista. Esta continha apenas dois itens: diretório parental e rum.

Ela clicou em rum.

Uma janela de bordas vermelhas surgiu na tela. Senha, ela exigia.

Kennedy abriu a bolsa e tirou seu bloco de notas. Abriu-o na última página, onde havia copiado as palavras do papel de Sarah Opie.

Oh what can ail thee, Knight at arms

Alone and palely loitering the sedge has withered

From the lake and no birds are singing.

Ela digitou o número 2, depois, em rápida sucessão, 4334624. Cli­cou em Enter e nada aconteceu, exceto que a janela Senha piscou e apareceu mais uma vez, novamente vazia.

O que foi isso? — Tillman perguntou.

Eu tirei essas palavras de uma folha de papel que a Sarah Opie carregava quando morreu — Kennedy respondeu. — Ela disse que era um lembrete para a senha do computador dela. É de um poema do Keats, "La Belle Dame Sans Merci", ou "A Bela Dama sem Pieda­de". E é algo assim: "Oh, o que pode afligir-te, cavaleiro de armas/ Sozinho e pálido, andando vagaroso/ A sebe definhou junto ao lago/ E nenhum pássaro canta". Ela brincou com as pausas nas linhas de forma a ficar exatamente com oito palavras numa linha. Mexeu um pouco com as palavras, também.

Então, você está achando que é uma senha de seis dígitos — Till­man disse.

Sim. E acabei de experimentar a primeira linha, presumindo que a Opie estivesse só usando o número de letras de cada palavra.

Ela tentou usar a segunda e a terceira linhas também. Nada: a ja­nela era preenchida e depois piscava quando ela pressionava Enter, reaparecendo vazia e com a mesma exigência silenciosa.

Letras iniciais — Tillman sugeriu.

Kennedy tentou isso sem obter sucesso. Tentou, então, ambas as se­qüências — números de letras e iniciais — ao contrário. Ajanela piscava para ela, inescrutável, e se recusava a ceder. Ela xingou em voz baixa.

Tem que ser algo óbvio — Tillman afirmou. — Não seria um lembrete útil se ela tivesse que pensar demais nele.

Kennedy mordeu o lábio inferior, pensando furiosamente. Algo óbvio, mas não as letras iniciais nem o número de letras de cada palavra.

Por que três seqüências de oito palavras, em vez de apenas uma? Os blocos de oito indicavam uma senha de oito dígitos, mas talvez as três linhas significassem algo também. Ela selecionou cada terceira palavra e digitou os totais de suas letras:

can — knight — alone — loitering — has — the — no — singing.

3-6-5-9-3-3-2-7

O computador resmungou laboriosamente consigo mesmo por alguns instantes. Depois, a tela ficou completamente vazia antes de encher-se novamente com uma lista do que presumivelmente eram nomes de arquivos:

rum bruto 1, 1—7

rum bruto 2, 8-10

rum bruto 3, 11—14a

rum bruto 4, 14b—17

rum parcial 1, 1—7

rum parcial 2, 8—10

rum parcial 3, 11 — 14a

rum parcial L 4, 14b-17

rum completo 1, 1-7

rum completo 2, 8-10

rum completo 3, 1 1—14a

rum completo 4, 14b—17

Kennedy clicou no primeiro arquivo: rum bruto 1, 1—7. A tela piscou, houve outra série de ruídos secos e quitinosos do disco rígido e então ela mostrou uma lista diferente:

Dalath 2 reais

Waw 3 reais 1 espaço

Semkath 2 reais 2 espaços

He exato

Resh exato

Mim 1 real 1 espaço

Tau exato

Ela usou a barra de rolagem na direita da tela para ver quanto mais havia no arquivo. Parecia haver várias centenas de itens.

Fechou o arquivo e abriu um dos parciais. Esse era bem mais preenchido.

 

Ele    fai  dun [refer 7]    chall    whe [refer 4]    pode [6,7,2] veio

         sai   sun                 crall

         lai

que [refer 21]    wil [para?] [refer 3]    que    [21,4,6] ele teve [inserir 2]

 

 

dado [refer 5]   a eles    em get [hsem?]   ant   onde [eles?]

                                       no   bet                 ane   lá

                                               um

viu o sol [refer 18]                 deles   sand [deixar?]   a ele [refer 33]

         fol                                 tier     s and                 gim

                                               dier     t end                 lim

 

Alguma idéia? — Kennedy perguntou a Tillman, indicando o monitor com a cabeça.

Tillman estivera lendo por sobre o ombro dela.

Tradução — ele sugeriu.

O nome do arquivo dizia "parcial" — Kennedy volveu. — E todas essas listas de palavras são lugares em que eles não têm certeza de terem usado a palavra certa, em que estão listando possíveis alter­nativas. Eles estavam abrindo caminho num documento, traduzindo-o enquanto o percorriam.

O Códice do Rum.

Deve ser. Não, espere. O Rum já é uma tradução, né? Quero dizer, o verdadeiro manuscrito do Rum já está em inglês. Ninguém sabe qual era o documento fonte, nem em que língua estava, então não pode ser isso.

Kennedy pegou a primeira folha de papel novamente e percorreu com o olhar a superfície da agitada torrente verbal.

 

Entãonãodeixaivossoservotrabalharemvãosenhorsemrecompensa- arecompensaétudodadoavósserámaiordoquequalquerumjáconcebeue- maiordoquepodeisexpressarempalavrasentãoeleoconduziudaquelelu- garparaoutrolugardoqualtodasascoisasnoparaísoenaterraeramvisí-

seiseudeiaterraaadãoesuasementeoquedareiatiommsfielemaissubmissoeu- fareicomquesejasodiadoeinsultadomasdepoiseufa

 

No andar de baixo, dezenas de milhares de páginas de caracteres aleatórios; no de cima, umas poucas páginas de palavras reais. Sem formatação, sem pontuação, sem espaços, mas ainda assim uma verda­deira narrativa de certa espécie, com um distinto sabor bíblico.

Era um código — Kennedy disse, ponderando. — E eles o decifraram.

Ela se virou para olhar Tillman. Ele estava olhando para ela em silêncio, esperando por mais. E as peças desse todo estavam na mente dela, agora, mas ainda era difícil visualizar a forma fi­nal — como tentar descobrir qual era a imagem formada por um quebra-cabeça olhando para o verso dele, a face que não ostentava imagem nenhuma.

O Barlow corroborou evidências num caso de tribunal — ela disse.—Anos atrás. Um grupo de falsificadores vendiam documentos forjados que deveriam ser partes de um dos grandes achados bíblicos, o Nag Hammadi.

E daí?

Ele foi a testemunha especialista. Foi convocado a examinar bem atentamente os documentos verdadeiros e os falsos para poder atestá-los e provar que alguém estava colocando evangelhos suspeitos no mercado. Isso significou muito para ele. O cara tinha recortes de jornal emoldurados e pendurados nas paredes do escritório.

Ela olhou para a tela novamente. Para a lista de caracteres que tal­vez fossem aramaicos. Reais. Espaços. Exatos.

Centenas de estudiosos e historiadores devem ter examinado es­sas coisas. Talvez milhares. Mas o Barlow decidiu observá-los por um novo ângulo. Ele estava tentando decifrá-los, procurando por coisas que não se encaixavam. E... — Ela só conseguia ir até esse ponto. Não tinha idéia do que Barlow havia encontrado, mas tinha certeza de que havia sido um ponto de virada. — Tinha algo errado com os textos do Nag Hammadi. Algo que você só veria se estivesse esperando, em primeiro lugar, encontrar uma fraude.

Mas você disse que isso foi anos atrás — Tillman a lembrou. Ele havia pegado o pacote de CDs graváveis e o estava virando nas mãos, olhando para ele com desnecessária intensidade.

Kennedy vasculhou a memória.

Quinze anos — disse.

Então, se ele tivesse encontrado algo nessa época, por que espe­rar tanto? O que aconteceu durante esse tempo todo?

Ela não sabia, mas conseguia enxergar a forma das coisas que não conhecia. Tinham um contorno definido.

Ele encontrou algo. Ou suspeitava de algo. Saía do assunto e voltava a ele sob um novo ângulo. Saiu e estudou textos do Ve­lho Testamento — os Manuscritos do Mar Morto. Por cinco anos. Então, estudou as seitas gnósticas. Finalmente, foi ver o Códice do Rum em Avranches. Foi quando todas as peças se juntaram. É como... como se ele tivesse a chave, mas não soubesse onde estava a fechadura.

Acho que não entendi — Tillman disse.

Leo, pense nisso. O Rum é uma tradução medieval de um docu­mento que já existiu em algum lugar. Para começo de conversa, nin­guém consegue entender por que esse capitão português o comprou

— por que ele imaginou que valia a pena tê-lo. Mas o Barlow vai dar uma olhada no documento e enxerga...

Tillman franziu o cenho.

O quê?

Alguma coisa. Algo que ninguém mais viu. Tenho certeza disso. Havia um código no Rum. E o Barlow já sabia o suficiente na época para ser capaz de entender o que era. — Ela percebeu a falha em seu próprio raciocínio enquanto falava. — Mas o Rum é do Evangelho de João. Onde é que você esconde um código dentro de uma cópia de um documento que já existe?

Tillman não respondeu. Ele jogou o pacote de CDs de volta à mesa, mas ele chegou ã beira da mesa e caiu no chão, onde saiu rolando. Kennedy conseguia ver que ele estava zangado, mas demorou para compreender por quê. Ela continuou a especular, juntando todas as peças enquanto ainda as tinha frescas na mente.

Talvez não estivesse nas palavras. Ou talvez estivesse na mudança das palavras. Se você partisse da versão do Rei James, ou de qualquer outra versão que existisse na época, mas modificasse algumas coisas e as trocasse de lugar, poderia acabar com um código que alguém po­deria decifrar. Jesus Cristo, Leo. Eu estou certa. Sei que estou certa. O Barlow pegou uma mensagem codificada de séculos atrás e montou uma equipe para decodificá-la.

Maravilhoso — Tillman disse, inexpressivo.

— Sim, é mesmo. E maravilhoso. Mas eles precisavam de um es­pecialista em computadores para isso. Três historiadores e uma tecnóloga. Faz sentido agora. Eles estavam procurando alguns padrões muito, muito sutis no texto do Rum ou em algum outro documento. Padrões que você precisaria de algum tipo de algoritmo estatístico para identificar. Totalmente doido! Mas eis a pergunta à qual temos que responder agora. — Ela brandiu o pequeno maço de folhas de papel que estivera sobre a mesa. — Esta informação estava escondida desde a Idade Média. Por que alguém estaria disposto a matar por causa dela agora?

Foi nesse ponto que ela parou de repente, vendo no rosto de Till­man que ele não dava a mínima nem para a pergunta nem para a resposta. A expressão dele parecia tão dura e fixa como se ela tivesse atirado toda a sua corrente de raciocínio contra ele usando pregos.

Que foi? — ela perguntou.

Nada disso importa — ele disse com firmeza. — Nada disso, Kennedy.

O que quer dizer?

Não é... — Ele pareceu lutar para encontrar uma palavra que fosse forte o suficiente. — ... relevante. Isso não está nem perto do que eu estava procurando. Eu perdi minha família. Pensei que, se o Brand estivesse matando essas pessoas ou mandando que alguém mais as ma­tasse, seria porque elas haviam descoberto a verdade sobre ele. Porque haviam desenterrado os piores segredos dele.

Eu acho que elas fizeram isso, Leo. Encontraram algo que ele queria manter em...

Isso é história antiga. — Tillman praticamente cuspiu as palavras. Os punhos dele estavam cerrados agora. O rosto ficara vermelho.

Kennedy absorveu a violência daquela afirmação e manteve a pró­pria voz cuidadosamente neutra.

Todas as vítimas eram historiadores. Preciso dizer que obvia­mente estudavam história antiga.

Não tem a menor graça, Kennedy. Não para mim.

Nem para mim. Mas você está errado quanto a uma coisa: é relevante, sim. E a chave para todo o resto, de alguma forma, e, se descobrirmos como usá-la, vamos obter todas as respostas que esta­mos procurando.

Tillman abriu a boca para responder, mas não disse nada. Em vez disso, fungou.

Kennedy subitamente se deu conta do cheiro que estivera se arras­tando sob sua consciência por um minuto ou mais, mascarado pelo fedor da umidade e do pó.

Algo estava queimando.

 

Embora fosse a única mulher, e embora tivessem lhe ensinado, ao longo da vida, que as mulheres deveriam se submeter aos homens, Mariam era a líder da equipe. Isso não fora nem mesmo algo que alguém preci­sara decidir. Era o resultado de uma equação simples cujos três fatores eram a personalidade dela e de outros dois Mensageiros dos quais ela era parceira, Ezei e Cephas. Ninguém que conhecesse os três teria du­vidado por nem um segundo de qual seria o resultado do cálculo.

Então, quando Kuutma telefonou, e Ezei atendeu, ele passou o telefone silenciosamente para Mariam e ela conduziu sozinha o resto da conversa.

Sua caçada a Tillman — ele disse. — Acredito que vocês tenham sido bem-sucedidos. Encontraram-no outra vez?

Mariam manteve a expressão neutra e calma porque Ezei e Cephas a estavam observando, mas sentiu uma onda agridoce de emoção er­guer-se dentro de si. Estava orgulhosa do que fora capaz de obter, mas desesperadamente triste pelo caminho que a operação havia tomado.

Nós rastreamos as chamadas telefônicas de Tillman — ela disse. — Usamos o aparelho que tomamos dele na balsa. Havia um número na memória ligado a um nome que reconhecemos: um homem que lutou ao lado de Tillman quando ele trabalhava como mercenário: Benard Vermeulens. Falei com a equipe de Dovid, em Omdurman, e pedi que ele colocasse um grampo temporário em todos os números regis­trados desse Vermeulens. A partir daí, estabelecemos que Vermeulens só recebeu telefonemas de um único número na Inglaterra nos últimos dez dias. Foi muito fácil colocar um localizador GPS nesse número.

Você fez bem — Kuutma disse. — Mas não o confrontou ainda?

Mariam torceu os lábios. Foi o único sinal visível do que ela estava sentindo, mas foi o suficiente para fazer Ezei e Cephas olharem um para o outro com infeliz solicitude. Ezei fez o sinal do enforcado de forma um tanto imperfeita.

Nós tentamos — ela confessou. — Duas vezes, ambas na noite pas­sada. Na primeira, ele percebeu nossa emboscada e não se aproximou.

E na segunda vez?

O sinal do telefone se deslocou muito rapidamente durante duas horas, depois ficou parado. Quando fomos capazes de identificar a localização dele, fomos até lá. Estava dentro de um cano de esgoto no oeste de Londres, mas Tillman não estava lá. Ele havia jogado o telefo­ne num bueiro. Deve ter percebido que esse era o meio que estávamos usando para rastreá-lo.

A confissão terminara. Ela esperou pela punição: aguardou que a voz dura e preocupada do Tannanu lhe dissesse que ficara desaponta­do com sua atuação e estava convocando Mariam e sua equipe de volta a Ginat'Dania.

Tillman é um alvo difícil — Kuutma disse em vez disso. — Sua equipe está longe de ser a primeira a ser passada para trás por ele. Deixe-o de lado por enquanto. Preciso que vocês desempenhem outra tarefa, que no presente momento é mais urgente.

Mariam quase suspirou alto quando o alívio a fez soltar a respira­ção, que ela nem percebera estar prendendo.

Você sabe — Kuutma disse — que temos procurado por registros escritos ou digitais do assunto Rum. Eu acredito, com base em novas informações, que os arquivos relevantes foram guardados de forma discreta e isolada num local físico, em lugar de um núcleo na Internet. Vou lhe dar um endereço. Vocês irão até esse endereço e destruirão tudo o que encontrarem lá que possivelmente contenha informações.

Tendo escapado à censura de Kuutma, Mariam agora estava ansio­sa pela aprovação dele.

Tannanu — ela disse —, isso significaria destruir tudo.

Exatamente, filha. Fico satisfeito que você vá tão rapidamente à questão.

Mas, para nos certificarmos de destruir tudo, precisaríamos exa­minar o local cuidadosamente primeiro; poderia haver escritos talha­dos nas paredes que não necessariamente seriam obliterados pelo fogo ou mesmo por uma explosão. Poderia haver um depósito subterrâneo selado sob a construção, e assim por diante.

O fato de você propor essas questões, Mariam, me mostra que percebe rapidamente quão complexa e precisa essa tarefa é. Sim, você deve cuidar de todas essas coisas e garantir, com absoluta certeza, que nenhuma palavra ou sinal sobreviva. Só assim vamos ter segurança.

Mariam sentiu um desejo fervoroso de agradecer a Kuutma por dar a ela e a sua equipe essa chance de provarem seu valor. Haviam falhado terrivelmente no barco, ainda que tivesse parecido que tinham o inimigo

Tillman à sua mercê num espaço fechado sem nenhuma saída óbvia. E depois haviam falhado novamente em Londres. Receber a oportunida­de — e tão cedo! — de redimir a si mesma e a sua equipe dessa mácula era uma coisa maravilhosa. Mas ela sabia, também, que o Tannanu não esperava nem desejava agradecimentos. Estava entendido, entre eles, o que estava acontecendo: a significãncia do presente. Ela não disse nada.

Kuutma deu-lhe o endereço e ela o anotou. Ezei e Cephas o leram em silêncio, por cima do ombro dela, e trocaram olhares. Não havia nenhum engano quanto ao que isso significava.

Anotado — Mariam disse de forma sucinta. — Há mais alguma ordem?

Sim. — Houve uma curta pausa, como se Kuutma esperasse que ela perguntasse. Novamente, Mariam escolheu o silêncio acima da fala desnecessária. — A mulher detetive, Kennedy, vai estar lá com um colega, um homem. Mate os dois. Preferencialmente, de forma que in­cite o mínimo de investigação. Se a morte deles pudesse ser encarada como um acidente, seria ideal. Se houver evidência de violência, deve parecer violência casual, com nenhum rastro que aponte para além do próprio evento. Já estamos expostos demais nessa missão, Mariam. Com Tillman ainda vivo...

Ele deixou que a frase sumisse no ar. Mariam fechou os olhos e murmurou uma praga na qual o número 30 figurava de forma proe­minente. Ezei, que era capaz de ler lábios, abafou um suspiro de susto, chocado com a blasfêmia.

Compreendo o problema, Tannanu. Talvez possamos fazer com que pareça que o homem violentou e matou a mulher e então tirou a própria vida por vergonha.

É uma possibilidade, Mariam. Um tanto elaborada demais, tal­vez, mas uma possibilidade. Lembre-se, contudo, dos pecados que fo­ram perdoados. Proceda como lhe parecer melhor e depois venha até mim. Vou ouvir seu relatório pessoalmente.

Vou fazer isso, Tannanu. Aonde nós formos, nada vai resistir.

Acredito nisso. Adeus.

A linha ficou muda, e Mariam devolveu o telefone a Ezei. Os dois homens estavam olhando para ela, a excitação e antecipação fazen­do-os ficar de pé muito retos, como soldados em estado de atenção. Mariam sentiu uma onda de amor por eles e uma alegria tão profun­da que quase a fez rir.

Temos uma tarefa — ela disse simplesmente. — Primos, temos uma nova tarefa. Nesta mesma noite.

Isso é maravilhoso — Cephas disse.

—- Sim! Sim, é mesmo. — Mariam foi até o frigobar do quarto de hotel que eles haviam reservado sob um nome que não era Brand (Kuutma reservava essa convenção apenas para si, não para suas equi­pes) e tirou dele três seringas hipodérmicas junto com três ampolas. Ela as entregou a eles, tentando manter uma expressão solene en­quanto sentia como se estivesse distribuindo presentes.

O ritual em si exigia silêncio, então eles abriram as seringas, inse­riram as cápsulas e se injetaram com elas sem trocar uma palavra. So­mente os olhares fervorosos que os dois homens lançaram a ela mos­traram que compartilhavam a excitação de Mariam.

A droga atingiu o organismo dela com a sensação usual de lenta queimação: uma bolha surgindo no centro de seu ser, depois inchan­do até preenchê-la por completo e estourar espantosamente contra o lado de dentro de sua pele.

Beracha u kelala — Cephas murmurou, estremecendo enquanto o fármaco atingia seu sistema nervoso. Significava: tanto a bênção quan­to a maldição. O nome mais comum da droga, kelalit, reconhecia apenas a segunda parte dessa equação.

Mas, quando Mariam e sua equipe descessem sobre a Fazenda do Pombal e oferecessem a derradeira misericórdia sobre a sargento detetive Heather Kennedy, seria a bênção que se instalaria atrás dos olhos e das mãos deles.

 

A jornada foi rápida e sem percalços. Eles não possuíam um GPS, mas Ezei tinha grande facilidade com a leitura de mapas e os conduziu sem nenhum erro.

Identificaram a fazenda na mesma hora em que avistaram a placa pro­eminente cuja face se voltava para a estrada. Mariam dirigiu passando a casa, depois tomou uma estrada estreita que levava à região silvestre me­nos de um quilômetro adiante. De maneira fortuita, a estrada se dobrava para dentro, levando-os num arco até a parte de trás da propriedade, de forma que, na hora em que ela encontrou um local isolado para estacio­nar, invisível da estrada, eles quase haviam voltado ao ponto de partida.

O que devemos levar? — Ezei perguntou a Mariam.

Sicae e armas de fogo, só — ela decidiu. — Vamos entrar com leveza e rapidez. Qualquer outra coisa de que precisemos, um de vocês vai voltar para pegar.

O terreno da Fazenda do Pombal era fácil de encontrar e quase completamente aberto na parte de trás. Estacas de madeira sustentavam um único fio de arame farpado: uma cerca puramente simbólica, baixa o suficiente para que passassem por cima dela.

Aproximaram-se cautelosamente, mas a cem metros de distância, e mesmo no crepúsculo, ficou claro para seus olhos ultrassensíveis que tábuas haviam sido pregadas sobre as janelas da casa. Se sua presa já estivesse no interior do lugar, não haveria forma de saberem que os Mensageiros estavam se aproximando. E, se ainda estavam para che­gar, tanto melhor.

Ainda assim, Mariam foi cuidadosa. Não seguiu numa linha reta, mas numa diagonal de fora para dentro; os dois homens a seguiam sem questionar, de forma que, quanto mais perto chegavam da casa de campo, mais de seu exterior e dos depósitos ao redor eles podiam ver.

Avistaram o carro quando ainda estavam a alguma distância. Então, Kennedy e seu parceiro já haviam chegado e permaneciam do lado de dentro. Usando a linguagem gestual que todos os Mensageiros apren­diam, Mariam mandou que Ezei e Cephas se aproximassem da casa separadamente, de ângulos diferentes. De forma silenciosa e eficiente, eles examinaram todos os depósitos, um por vez. Era mais provável que os policiais estivessem dentro da casa de campo em si, mas seria bom não encarar nada como certo. A própria Mariam examinou o carro e encontrou-o trancado e vazio. Só depois de terem analisado cada centímetro do terreno ela convocou a equipe para junto de si, novamente com um gesto em lugar de uma palavra.

A casa tinha duas entradas, mas um rápido reconhecimento de­monstrou que a porta lateral estava emperrada contra sua moldura e seria difícil de abrir rapidamente. Mariam posicionou Cephas onde ele pudesse ver ambas as portas e o instruiu a atirar contra qualquer pessoa que saísse. Então, ela e Ezei foram até a frente.

Encontraram a porta entreaberta. O dano feito contra o batente mostrou que os detetives haviam forçado a abertura usando uma chave de fenda ou pé de cabra. Mariam gesticulou para que Ezei viesse atrás dela e se separasse caso o interior da casa tornasse isso necessário. Então, empurrou a porta muito levemente, expandindo a brecha uns poucos centímetros de forma a poder deslizar por ela. A madeira empenada e seca rangeu, mas o som foi baixo e não che­gou longe.

O labirinto de paredes de papel que recebeu os olhos deles veio como um choque. Eles haviam crescido num ambiente onde livros e figuras eram escassos, portanto não tinham precedente para essas pilhas de folhas brancas, repletas de caracteres inescrutáveis, que che­gavam à altura de sua cabeça. Pareciam ligeiramente indecentes. Ma­riam quase quis erguer as mãos e cobrir os olhos de Ezei, ainda que ele fosse mais velho do que ela. Ele sempre lhe parecera alguém que precisasse ser protegido contra as coisas do mundo profano.

A não ser pelo papel, no entanto, a disposição interior da casa de campo parecia ser muito simples. Eles rapidamente apuraram que não havia ninguém no piso térreo — e quase na mesma velocidade notaram que havia alguém no andar de cima, movendo-se de forma barulhenta e sem precaução.

Mariam novamente assumiu uma postura cautelosa enquanto eles se aproximavam da escada. Até o momento, seus movimentos haviam sido completamente silenciosos, mas ela pôde notar que as tábuas dos degraus — tão empenadas quanto a porta — rangeriam sob seus pés, não importava como ela tentasse distribuir seu peso. Então desamar­rou as botas silenciosamente, tirou-as dos pés e sinalizou para Ezei: mão erguida, mão caindo para a frente e então um aceno de cabeça em direção à escada.

Ele entendeu imediatamente. Ficando com as pontas das botas contra o primeiro degrau, ele se inclinou para a frente com cuidado. Estendeu as mãos, apoiando uma contra o ângulo formado entre o degrau e a parede e a outra contra o ângulo entre o degrau e o corrimão. Quando sentiu que estava apropriadamente equilibrado, ace­nou para Mariam com a cabeça. Ela pisou nas costas dele, colocando primeiro um pé descalço, depois o outro, sobre os ombros dele, e de lá pousou levemente sobre a primeira plataforma. A madeira abaixo dela afundou um pouco, com um leve rangido de protesto, mas ela já estava na metade do caminho escada acima e podia cobrir o resto com dois passos largos.

Gesticulando para que Ezei ficasse onde estava, Mariam olhou cau­telosamente ao redor da curva do poço da escada. Não viu ninguém, mas o barulho claramente vinha de dentro do quarto diretamente à frente dela, no final da escada. Eram os sons de movimentos decidi­dos. Alguém dentro do quarto estava andando de um lado ao outro, talvez movimentando objetos volumosos.

Ela usou os ruídos como cobertura, movendo-se quando havia mo­vimento dentro do quarto para mascarar quaisquer sons que pudes­se fazer. Em poucos passos calculados ela estava ao lado da porta do quarto — e, a essa altura, havia chegado a algumas conclusões a res­peito de quem estava lá dentro. Um único conjunto de passos pesados, distintos e sem variação; nenhuma conversa. Uma pessoa, provavel­mente um homem, sozinho.

Onde estaria a mulher, então? Esse era um problema que precisaria resolver, mas uma escolha tinha que ser feita agora: abater esse homem e depois procurar pela parceira dele, correndo o risco de alertá-la pelo som de uma luta, ou esperar e pegar os dois?

Mire no alvo que estiver diante de você, era uma máxima que Tannanu e seus outros professores haviam martelado sobre ela em muitas oca­siões. Sentia-se confiante em sua própria habilidade para matar ou incapacitar o homem sem dar tempo a ele para alertar ninguém.

Chegando a essa decisão, ela entrou no quarto. Ainda estava se movendo tão silenciosamente quanto possível, mas sabia que, a uma distância tão curta, até o movimento do ar poderia traí-la. Então, sua prioridade número um era a velocidade.

O homem — forte, de ombros largos, cuja massa provavelmente era o dobro da dela — estava no outro extremo do quarto, ajoelhado diante de uma extensão elétrica na qual estava inserindo ou tentando inserir vários plugues.

Com o canto do olho ele viu Mariam vindo na direção dele. Co­meçou a se levantar enquanto ela se aproximava, a boca aberta na primeira sílaba de um cumprimento ou desafio.

Mariam o chutou na garganta. Ela não tinha voltado a calçar as bo­tas, mas virou o pé de lado e fez contato usando o dorso do pé, o peso total de seu corpo alinhado atrás de suas pernas estendidas de forma que a força partiu do quadril para o joelho, para o tornozelo e de lá, sem mitigação, contra a pele desprotegida do esôfago do homem.

O que ele emitiu não foi som nenhum, mas uma vibração muda: a laringe arruinada pulsando momentaneamente contra a carne do pé dela. Então Mariam baixou aquele pé, ergueu o outro, fez uma meia pirueta e montou sobre ele. Foi fácil: o homem havia parado no meio do ato de se levantar e caíra de joelhos, as mãos erguendo-se para a garganta, não fazendo nenhum movimento de defesa ou contra-ataque. Mariam pinçou a cabeça dele entre suas pernas musculosas e, curvando-se para baixo, envolveu-a com os braços, pegando-a na altura das têmporas.

Uma meia torção nessa posição teria quebrado o pescoço do ho­mem facilmente, a não ser que ele soubesse o que viria e tivesse se protegido contra o golpe. Mariam aplicou um grau menor de torção, mas uma quantidade igual de força, fechando as vias respiratórias do homem sem danificar nenhuma das vértebras dele. Já estava admitin­do que seria necessário queimar toda a casa de campo, então, qual­quer dano que ela causasse ao tecido mole dele seria disfarçado pelo estrago muito maior causado pelas chamas.

O homem percebeu que morria, alguns segundos tarde demais para que essa noção pudesse beneficiá-lo. Da posição em que estava, a única forma de ele alcançar as mãos dela seria dobrando os braços para trás da própria cabeça. Mas a maior parte da força dele já se perdera na estranha contorção, enquanto a dela estava quase duplica­da pela kelalit que tomara. O homem estremeceu e enrijeceu debaixo dela, mas ela se posicionara bem e ele não foi capaz de lhe tirar o equilíbrio nem de se libertar. Os pés dele bateram contra as tábuas nuas do chão, a princípio com força, mas depois num rápido diminuendo enquanto as forças lhe escapavam.

Quando ele estava fraco o suficiente para que ela pudesse deslocar um pouco o próprio peso, Mariam inclinou-se para a frente para sus­surrar no ouvido do homem.

— Está tudo bem. Tudo bem. Está quase acabando. — Seu inglês não era bom, mas ela falou lenta e cuidadosamente e teve razoável certeza de que ele a compreendeu. Era um gesto pequeno, mas ainda assim importante. Nós disfarçamos nossa brutalidade com rituais para manter nossa própria natureza animal a distância. Mariam nunca era mais gentil ou atenciosa do que quando matava.

O último movimento consciente do homem foi fechar ambas as mãos em torno de um dos tornozelos dela. Era uma boa idéia, mas, novamente, chegou tarde demais: ele não era forte o suficiente para empurrar a perna dela e tirar-lhe o equilíbrio. O gesto não teve o me­nor efeito, o empurrão foi frágil e breve.

Mariam manteve o aperto por um minuto inteiro depois de o ho­mem parar de se mover, então separou as pernas e deixou-o cair. Ajoe­lhada ao lado dele, tateou-lhe a garganta em busca de pulso. Não ha­via nenhum. A face do homem se tornara vermelha com a agitação e ele a encarava com um olhar acusador e exoftálmico. Ela o ignorou: o espírito não se demorava o suficiente para guardar rancor e a carne nada significava.

Ela vasculhou o resto do andar superior rapidamente, não encon­trando vestígio nenhum da mulher. A essa altura, já não esperava encontrá-la: se alguém estivesse à escuta, o alvoroçar-se e o debater-se frenético do homem enquanto morria teriam atraído essa pessoa rapidamente.

Ela desceu os degraus, menos preocupada agora com as tábuas que rangiam, e encontrou Ezei ainda esperando por ela ao pé da escada.

— Um homem — ela resmungou enquanto calçava novamente as botas e apertava os cadarços. — Sozinho. Nova busca.

Os dois vasculharam cada centímetro da casa de campo, procurando por toda parte onde um corpo humano pudesse se espremer. Finalmen­te, Mariam se satisfez com a noção de que a mulher não estava no local. Se ela nunca tivesse vindo, tudo bem. Se estivera lá anteriormente, mas já partira, eles talvez tivessem uma janela de oportunidade muito estrei­ta para destruir aqueles registros — a outra parte de seu trabalho ali, e na verdade a tarefa que o Tannanu mencionara primeiramente.

Mariam mandou Ezei e Cephas voltarem ao carro para pegar al­guns equipamentos, incluindo o kit de incêndio. Ele incluía acelerado­res químicos impossíveis de rastrear e um tubo flexível que ela usaria para inserir fumaça nos pulmões do homem morto. A maior parte dos legistas não investigaria além disso antes de pronunciar um veredicto de morte por fogo.

Depois que os homens saíram, voltou ao quarto do computador. Suas instruções eram para destruir tudo o que havia ali, mas ela tinha consciência de que às vezes era possível extrair informações de CDs de computador e discos rígidos se eles não tivessem sido completamen­te danificados. Junto com os materiais de iniciação de incêndio, Ezei e Cephas trouxeram o limpa-tudo, um gerador portátil armazenado dentro de uma caixa do tamanho de uma maleta que produzia um campo magnético AC monstruosamente poderoso. Uma varredura de dez segundos feita com o dispositivo em carga total corromperia todos os arquivos do computador, de forma que qualquer coisa que se salvasse do fogo seria inútil. Levar o computador embora seria mais simples, é claro, mas os exporia ao risco de serem detidos e revistados enquanto ainda o tivessem consigo. A limpeza era melhor.

Mariam perguntou-se, no entanto, que segredo havia sido desco­berto nessa casa que ela e seus primos haviam sido encarregados de obliterar da consciência do mundo novamente. Ela cruzou o recinto até a mesa e pegou a primeira folha dentre os papéis ali. Lendo-a, experimentou uma onda de emoções confusas. As palavras na página eram inesperadamente familiares: tão familiares que ela poderia tê-las recitado de memória. Mas vê-las nesse lugar foi momentaneamente desorientador, como se ela tivesse aberto uma porta na casa de um estranho e encontrado seu próprio quarto atrás dela.

Nesse momento de estranha suspensão, um foco de luz brilhou pela janela e a iluminou perfeitamente.

Era uma ilusão, é claro. No mesmo instante em que seu treinamen­to a fez ficar parada no lugar, a luz passou por ela e foi substituída por uma segunda, movendo-se na mesma marcha que a anterior. O som do motor e o ruído dos pneus sobre o pedregulho a atingiu ao mesmo tempo. Faróis. Os faróis de um carro.

Era a mulher, então. Ou talvez mais alguém. Não importava, de todo modo: quem quer que fosse teria que morrer, e o trabalho de destruição tinha que ser completado. Assim que as luzes passaram, Mariam moveu-se para fazer o que era preciso. Rapidamente, arras­tou o corpo do homem pelo chão até uma pilha de caixas que estivera coberta por um pedaço de lona. Ela acomodou o corpo numa posição na base da pilha e rearranjou a lona de forma a escondê-lo de um olhar casual.

Onde estavam Ezei e Cephas? A essa hora, no caminho de volta do carro, certamente. Eles teriam visto os faróis e percebido que a situação mudara. Provavelmente ficariam onde estavam e espera­riam que ela os convocasse. Infelizmente, ela não podia nem sair nem chamá-los: não ainda. Precisava esperar pelo momento certo e precisava saber com quem estariam lidando agora.

Então se moveu até a janela e afastou as peças de tecido muito cuidadosamente. Abaixo e à esquerda, a uma curta distância da casa, um grande caminhão estava agora estacionado. Enquanto observava, as portas da cabine se abriram. Uma mulher saiu, depois um homem.

Eram apenas silhuetas no fim da tarde, difíceis de distinguir, ainda que, assim como sua força física e velocidade, a agudeza de sua visão fosse ampliada pela kelalit.

As duas figuras foram em direção à porta. Afastando-se da janela, Mariam considerou suas opções e decidiu-se pela mais direta e óbvia. Esperaria no quarto e mataria os dois quando entrassem. Talvez preci­sasse quebrar ossos, mas tentaria não fazer isso. Se os corpos sofressem danos visíveis, que o fogo não fosse capaz de esconder, ela poderia recorrer ao cenário de estupro que descrevera ao Tannanu. Ou pode­ria jogá-los pela janela, para que parecesse que os danos haviam sido causados quando os dois saltaram para escapar das chamas.

Ela caminhou silenciosamente até a porta do quarto. Podia ouvir as duas pessoas no vestíbulo abaixo agora: suas vozes vindo em direção à escada e depois passando por ela. Estavam na cozinha. Ela ouviu o ho­mem chamar a mulher de Kennedy, o que não foi nenhuma surpresa. Mas a resposta da mulher a pegou desprevenida.

— Sinta como está quente aqui, Tillman.

Tillman.

Os punhos de Mariam fecharam-se involuntariamente. O alvo que eles haviam errado tantas vezes. O homem que primeiramente esca­para de Ezei e Cephas, nos estreitos limites do banheiro da balsa, e depois acertara a faca dela com um tiro no ar. Que percebera a embos­cada deles a partir de sabe-se lá que pista quase invisível e assim esca­para. Que os mandara a um esgoto nojento em busca de seu telefone abandonado. Ele estava aqui. Ele estava aqui com a mulher.

Era sabido que a kelalit elevava certas emoções. Parte do treinamen­to de um Mensageiro incluía trancar essas emoções numa parte administrável e contida da mente: trabalhava-se ao largo delas, recusando-se a assumi-las até que, ignoradas, elas perdiam o poder de causar dano. Foi o que Mariam fez então: nem sequer olhou para as emoções que o nome e a presença de Tillman evocavam. Enlaçou-as entre véus anestésicos e as empurrou para baixo, além do limiar da percepção. Ao mesmo tempo, conduziu uma avaliação racional da situação. Tillman era um lutador treinado e havia sobrevivido a um ataque dos dois pri­mos dela. Havia uma chance real de que, se tentasse enfrentá-lo aqui, mesmo com a vantagem do elemento surpresa, ela falhasse.

Ouviu passos nos degraus agora: Tillman e a mulher estavam su­bindo. Movendo-se tão lentamente quanto possível, Mariam cruzou a plataforma superior e entrou no quarto oposto. Talvez seus inimigos entrassem lá primeiro, mas isso era improvável. Os computadores fi­caram visíveis pela porta aberta e atrairiam a atenção deles. A coisa lógica a fazer seria entrar e examiná-los imediatamente.

Os dois passaram a poucos passos dela. Mariam permitiu que se­guissem em frente. Embora suas mãos e pés formigassem com a imi­nência de movimentos súbitos e violentos, ela permaneceu parada.

O homem e a mulher entraram no quarto conversando.

Servidores — a mulher disse. — Usam equipamentos como esses para renderizar os efeitos em 3-D de filmes. Alguém aqui precisava de muito poder de processamento.

Estavam a três metros dela agora, depois a cinco. Se ela se movesse, e eles vissem o movimento, Tillman teria tempo para revidar: pos­sivelmente, para sacar e mirar. Mas a distância era tão pequena que ela não erraria o alvo com uma faca arremessada. Tirou uma sica do cinto e a sopesou na mão. Ergueu-a, pronta para atirar — mas só se a oportunidade perfeita se apresentasse.

A mulher passou entre ela e Tillman, bloqueando sua linha de vi­são. Matar Kennedy seria fácil, mas alertaria Tillman quanto à pre­sença de Mariam. Se ele fosse capaz de se entrincheirar no quarto e mantê-la do lado de fora, toda a missão poderia ser comprometida.

O momento passou. Ambos saíram de sua linha de visão, entrando mais fundo no quarto, sem dúvida dirigindo-se à mesa.

Mariam deixou seu esconderijo e desceu a escada. As vozes atrás dela eram altas o suficiente para mascarar os sons que seus movimentos faziam, mas ela manteve os passos sobre as bordas dos degraus para mi­nimizar o risco de a madeira velha resmungar e revelar sua presença.

Só quando estava no vestíbulo percebeu o ligeiro tremor em suas pernas e mãos: o componente pequeno, quase insignificante, daquela onda emocional que havia sido medo.

Em seguida saiu da casa de campo e virou-se para a parte de trás do terreno, mantendo-se próxima da parede. Uma vez fora de qualquer campo de visão, tanto da janela do quarto quanto da estrada, ela cami­nhou audaciosamente para dentro do mato alto. Ezei e Cephas levanta­ram-se diante dela, não desafiando — haviam percebido que era a líder mesmo no escuro —, mas reconhecendo-a e reportando-se a ela.

Tillman está aqui, assim como Kennedy — ela disse.

Ezei piscou, surpreso.

O que devemos fazer?

O que já decidimos — Mariam respondeu. — Vamos queimar o lugar. Se tentarem sair, atiramos neles. Se ficarem dentro da casa, nós os queimamos. Há três de nós e três lados da casa têm portas ou janelas. Mas, se trabalharmos rapidamente, podemos encurralá-los no andar de cima, e as portas e janelas não vão ajudá-los. Venham.

Cephas meneou a cabeça, concordando, e um segundo depois Ezei fez o mesmo. Mariam percebeu a hesitação momentânea e interpre­tou-a como o que era: uma pergunta insinuada. Se você os viu, por que ainda estão vivos ? Ela deu as costas aos primos e seguiu na frente deles até a casa.

Tinham dois cilindros cheios do acelerante, um preparado químico limpo que não possuía componentes detectáveis e praticamente não tinha cheiro — apenas um leve sopro de desinfetante floral —, mas queimava tão rápida e ferozmente quanto querosene.

Começaram na parte de trás da casa e espalharam a substância por todo o caminho até a porta: Ezei e Mariam derramavam o produto, untando os papéis empilhados, nas paredes e no chão. Cephas per­maneceu ao pé da escada até o último momento, com a arma erguida e pronta.

Ezei portava o dispositivo incendiário — um sinalizador, também impossível de identificar a partir dos produtos que o compunham — que iniciaria o fogo. Entregou-o a Mariam, que reconheceu o gesto de respeito com um meneio curto de cabeça. A hesitação anterior do primo ainda estava fresca na mente dela.

Ela apontou para Ezei e Cephas as posições que designara para eles, e os dois sumiram na escuridão. Não havia nada a ganhar com a espera, e tempo demais já fora perdido.

Mariam puxou a tira que mantinha os dois componentes químicos do sinalizador separados. Os produtos se misturaram e o dispositivo ganhou vida com um estalo na mão dela. Ela o jogou num arremesso baixo pelo vestíbulo, onde o objeto quicou uma vez antes de parar.

Houve um suave whump. A luz feroz empinou-se como um anjo no vestíbulo estreito, e o ar quente, em expansão, tocou a face de Mariam como a carícia de um amante urgente. Ela fechou a porta gentilmente e assumiu seu posto.

 

Alguém estivera queimando flores. O poço da escada era um caldei­rão de ar fervente que fedia a flores estragadas: um inferno em meio a uma campina tranqüila no verão. Tillman não era um homem de grande imaginação, mas imagens de sacrifícios e inocentes massacra­dos vieram-lhe à mente mesmo assim, súbitas demais para evitar. Era um cheiro do qual era preciso redimir-se.

A seu lado, Kennedy praguejou. Por um momento ela pareceu en­raizada no lugar. Então, caiu de joelhos. Ele pensou que ela estava rezando, depois percebeu que procurava algo. A detetive se levantou com um pacote de CDs de computador na mão.

Não dá tempo! — Tillman disse a ela.

Eu arranjo a porcaria do tempo — Kennedy rosnou, rasgando a embalagem de plástico.

Eles nem precisavam gritar: o fogo ainda não estava crepitando alto, apesar da ferocidade. Isso era ainda mais perturbador do que o cheiro: esse era um fogo que fazia o serviço com o mínimo alarde e o máximo efeito.

Tillman cruzou o recinto até a porta e saiu para o calor, que foi como empurrar uma presença física que preenchia o poço da escada. Foi só até a esquina, e além dali uma luz actínica e berrante, tão bran­ca quanto amarela, convulsionava feito uma coisa viva. Ele lançou um rápido olhar em volta, que foi suficiente para lhe dizer que não havia rota de escape entre as chamas. O vestíbulo inferior havia se tornado um forno, quente o suficiente para arrancar a carne dos ossos.

As janelas, pensou. Mas havia tábuas pregadas nas janelas. Exceto naquela do quarto dos computadores.

Correu escada acima e de volta ao quarto. Kennedy estava ocupada com a máquina, martelando o teclado, colocando um disco dentro do drive.

Kennedy! — ele berrou. — Heather! — Ela não respondeu. — Nós temos que ir!

É só o andar de baixo que está pegando fogo — Kennedy gritou por cima do ombro. — Ainda temos alguns minutos.

Tillman agarrou o braço dela e a fez se virar para encará-lo.

A fumaça vai nos matar antes — ele a lembrou. — Você sabe disso. Vamos.

Ela hesitou por um segundo, depois meneou a cabeça concordan­do, relutante.

Quebre a janela. Vou logo atrás de você.

Ele foi até lá rapidamente, olhando à sua volta em busca de algo que pudesse usar para estilhaçar o vidro e separá-lo da moldura. Ken­nedy ejetou o disco do drive, apanhou-o e o enfiou no bolso.

Tillman foi até a pilha de servidores de computador e suspendeu o de cima com as mãos. Fios o conectavam a outros, mas ele sacudiu e puxou a máquina até soltá-la.

Isso é evidência! — Kennedy gritou, angustiada.

Vai ser plástico derretido em três minutos — Tillman retrucou, sucinto.

Ele atingiu o vidro uma, duas, três vezes. O material se estilhaçou no primeiro impacto; os outros dois foram para arrancar os cacos serrilhados dos cantos da moldura de forma que pudessem passar por ali sem rasgar nenhuma artéria. Tillman estava posicionado para um quarto golpe quando algo mais acertou a madeira, vindo do exterior, batendo contra o caixilho da janela e fazendo-o explodir em fragmen­tos a centímetros do rosto de Tillman.

O estampido agudo de uma semiautomática seguiu um segundo depois. Tillman já estava mergulhando para trás, agindo por puro reflexo. O segundo tiro passou perto de sua orelha, perto o sufi­ciente para ele sentir o rastro do projétil no ar deslocado, e atingiu o reboco do teto, mandando uma chuva de pó por sobre a cabeça deles.

Kennedy olhou para o buraco no reboco e praguejou outra vez. Tillman pensou que ela estivesse congelando diante dele: as pessoas faziam isso às vezes, em momentos de crise, até mesmo pessoas capa­zes, e a melhor coisa a fazer nessa situação normalmente era empurrá-las para fora. Eram um problema menor como peso morto do que como estorvo ativo.

Mas estava enganado. Kennedy estava pensando. Ela esquadrinhou o quarto ao redor, detendo o olhar no cobertor de lona que escondia mais uma pilha de porcarias, e o agarrou. Isso a deixou desorientada por um instante, já que revelou um cadáver recente deitado no chão, oculto pelo tecido até agora.

— Seu pobre desgraçado — Tillman ouviu Kennedy murmurar. — Você devia ter... ah, meu Deus, Combes!...

A voz dela sumiu. Ela correu para fora do quarto, arrastando o cobertor atrás de si. Tillman a seguiu, adivinhando o que pretendia fazer. Não os salvaria, mas lhes daria tempo.

Encontrou-a no banheiro, onde ela já abrira as torneiras da pia e da banheira e estava tentando rasgar o cobertor em tiras. Ele tirou a faca de caça do cinto e ofereceu-a à detetive em silêncio. Com a faca, ela rapidamente cortou um triângulo irregular de um canto da lona. Tillman tomou-o dela e o colocou na água que enchia a pia, enquanto Kennedy cortava uma segunda tira para si.

Quando os pedaços rasgados estavam completamente encharca­dos, eles os amarraram em torno do rosto como bandanas. Isso man­teria a fumaça afastada por alguns minutos e adiaria o envenena­mento por monóxido. Deu-lhes espaço para manobras. Mas para que manobras?

O quarto estava se enchendo de fumaça densa agora, em meio à qual partículas de fogo dos papéis que queimavam abaixo flutuavam como lanternas num rio. O fogo também se tornara mais ruidoso ago­ra, rugindo como um demônio no poço da escada, tentando recu­perar o tempo perdido. Acrescentando a isso as máscaras, era quase impossível falar.

A escada estava fora de questão.

Do lado de fora, alguém esperava para matá-los se colocassem a cabeça na janela.

O que restava?

Kennedy tocou-o no braço, chamando-o. Ele a seguiu de volta ao quarto dos computadores. Ela apontou para cima, para o alçapão no teto. Tillman balançou a cabeça vigorosamente, fazendo um sinal de OK com os polegares para cima. Tá, vamos fazer isso.

Os dois empilharam caixas não abertas de papel para fazer uma escada. Ele impulsionou Kennedy para cima para que ela pudesse empurrar a porta e abri-la — não estava trancada, graças a Deus — e então elevar-se até o sótão acima. Tillman a seguiu, escalando a pilha precária de caixas e depois pulando e agarrando a borda do alçapão. A madeira rangeu alto o suficiente para ser ouvida por sobre o rugido das chamas, mas aguentou. Ele jogou os cotovelos para dentro e Ken­nedy o puxou por cima da borda.

O sótão estava tão cheio de fumaça cinza e opaca que parecia uma coisa sólida, apinhada ali em cordas e feixes. Mas, quando eles se mo­veram, deixaram buracos escuros na fumaça pendendo como rastros, túneis do tempo passado.

Uma clarabóia seria pedir demais, e, de todo modo, não precisa­vam de uma. As telhas eram do período pré-guerra, provavelmente do século XIX, cada uma dependurada num único pino de madeira pelo método tradicional, graciosamente equilibradas. Mas as ripas de abeto eram tão antigas e carcomidas que Tillman poderia desman- telá-las com as mãos. Trabalhando juntos, os dois conseguiram abrir um buraco irregular e rastejaram para fora, subindo para o telhado inclinado.

Foi como sair de um buraco no gelo de uma lagoa. A área ao redor da abertura que haviam feito ficara enfraquecida, de forma que se inclinava para dentro e claramente não suportaria o peso deles. Eles deslizaram para longe dela em direção à calha, que também não pare­cia uma aposta segura.

Tornou-se muito menos segura um segundo depois, quando uma das telhas na borda do telhado explodiu em estilhaços afiados que acertaram o rosto deles. Tillman ouviu o thup thup thup de pequenas armas de fogo: conseguiu até identificar a pistola dentro de uma razoá­vel margem de erro. A leve, porém robusta Sig-226, provavelmente numa versão Kellerman de ação dupla com carregador bifilar. O tipo de arma que uma policial como Kennedy poderia ter usado na época em que o calibre .40 ainda não era a lei.

Tillman afastou-se em direção ao topo do telhado, mantendo o cor­po tão colado às telhas quanto possível. A seu lado, Kennedy imitava sua ação: na verdade, ela começara a mover-se cerca de um segundo antes dele.

Mas não havia salvação no topo do telhado. Estariam apenas no ponto mais alto quando o teto desabasse, o que não poderia demorar mais que alguns minutos. Presumindo que não fossem baleados pri­meiro, ambos mergulhariam pelo telhado de volta àquela fornalha e, com sorte, quebrariam o pescoço na queda.

Isso não era o que Kennedy tinha em mente. Ela estava olhando para a esquerda de Tillman, em direção à parte de trás da casa, e quando seguiu a linha do olhar dela ele entendeu para o que a policial estava atenta, ou procurando; o mais próximo dos celeiros, talvez a quatro metros da casa e quase um metro mais alto que ela. Ele fica­va totalmente de frente para a casa e tinha um buraco quadrado na fachada onde antes havia existido uma janela. Os postigos de madei­ra haviam ficado permanentemente abertos, colados por gerações de pinturas preguiçosas, de cada lado da abertura: guias de aterrissagem para um vôo curto e sem impulso.

Perigoso, mas não impossível.

Kennedy começou a subir de pé para o topo do telhado. Pelo canto do olho, Tillman percebeu o movimento que vinha lá de baixo e a em­purrou para baixo novamente no mesmo momento em que as balas começaram a ricochetear nas telhas ao redor deles: uma chuva pesada e oblíqua que deixou uma profusão de estilhaços em seu rastro. Ele sacou seu Única e respondeu ao fogo, para ganhar algum tempo e avisar aos atiradores que não deveriam se afastar muito das paredes da casa em busca de uma mira melhor.

— Merda! — Kennedy berrou, raivosa e frustrada. — Isto aqui é uma matança total!

Tillman esvaziou o Única na escuridão abaixo, depois rolou de costas para recarregar a arma. Tinha dois carregadores rápidos de reserva, HKS 255s modificados, ambos já travados. Depois disso, não teria mais nada, nem mesmo munição avulsa. Ele retirou os cartu­chos usados da arma, encaixou nela o carregador e encheu as câmaras com uma rápida torção do pulso, tudo em poucos segundos, mas tal virtuosismo foi em vão. Atirando no escuro, iluminado por trás pelas chamas que começavam a dançar e revolutear entre os vãos das telhas, ele sabia que tinha pouca chance de acertar alguma coisa — de conse­guir algo além de fazer de si mesmo um alvo mais fácil. Talvez pudesse atrair para si os tiros dos assassinos ocultos enquanto Kennedy empre­endia sua fuga e saltava.

E depois eles correriam para o celeiro e a matariam a seu bel-prazer.

Ele precisava ter uma idéia melhor do que essa. Algo que oferecesse ao menos uma chance mensurável de sobrevivência.

Seu olhar passou pelo caminhão, depois voltou. Estourar o tanque de combustível? Ter considerado isso por apenas um segundo era um sinal do quão desesperado ele estava. Lendas urbanas à parte, fora provado várias vezes que não era possível fazer um tanque de gaso­lina pegar fogo simplesmente atirando nele. A bala não gerava calor suficiente, e a gasolina não era instável o bastante. Tirar uma faísca do metal do próprio tanque poderia causar isso, mas era uma chance menor do que uma em um milhão e não valia a pena apostar nela.

O que fazia com que lhes restasse uma façanha espetacularmente estúpida: o tipo de coisa para a qual a expressão "uma chance em um milhão" havia sido inventada.

Tillman vasculhou os bolsos e encontrou o que estava procurando: uma caixa de fósforos Swan Vestas que ele estivera trazendo consigo desde Folkestone. Abrindo o cilindro do Única novamente, ele o bateu contra a palma da mão e deixou uma bala cair nela.

Kennedy o observava, desnorteada.

Vá em direção ao celeiro — ele lhe disse. Ela não o ouviu atra­vés da máscara, então ele a puxou do rosto e jogou-a fora: o ar estava mais limpo ali fora, e de um jeito ou de outro provavelmente não morreriam por causa da fumaça agora. — Vá em direção ao celeiro — repetiu.

Eles vão me ver — Kennedy contrapôs.

Não importa. Vá para lá, chegue tão perto quanto puder, mas não pule ainda... bom, pule quando estiverem olhando para outro lado.

Para quê? Para que eles vão estar olhando?

Para as luzes bonitas — Tillman murmurou.

Ele voltou sua atenção para a bala. Uma Casull .454, que havia construído sua reputação no invólucro da Colt .45 e transformara o que já era um clássico das armas de fogo em uma pequena obra de arte. Casull e Fullmer, os designers, estavam tentando criar um cartu­cho para arma de fogo principalmente para uso em caçadas a grandes animais, então quiseram maximizar seu poder no ponto de impacto — de preferência, sem quebrar o braço do atirador. Então, casaram uma escorva de rifle com um cartucho de pistola, passando de 60 mil uni­dades de pressão quando disparado por um cano de testes, e capaz de acelerar uma bala de 15 gramas até quase 550 metros por segundo.

Para a arquitetura do Única, desenhado para ter pouco coice, era a bala perfeita. Tillman normalmente se atinha ao modelo-padrão de trabalho, mas ocasionalmente gerava o seu próprio usando cápsulas de latão Hornady e uma escorva que ele obtivera de uma velha receita irlandesa. Consequentemente, ele sabia que, se abrisse o invólucro da bala com os dentes, ela não explodiria arrancando toda a parte de baixo do rosto dele.

Kennedy afastava-se pouco a pouco dele ao longo do telhado, e as ba­las a seguiam. Estava achatada contra as telhas, oferecendo o menor alvo possível, mas uma bala perdida acabaria acertando-a mais cedo do que tarde. Até um tiro periférico provavelmente a faria escorregar e desabar pelo declive do telhado, e com o impulso rolaria da borda e cairia.

Nesse momento ela provavelmente estava se perguntando se Till­man só a estava usando como chamariz, pretendendo correr e pular ele mesmo do lado oposto do cume do telhado e confiar na sorte de não quebrar uma perna ou a coluna vertebral quando chegasse ao chão.

Abrindo a caixa de fósforos, Tillman arrancou com os dentes a ca­beça de umas duas dúzias deles. Ele as mastigou, transformando-as numa pasta grosseira, depois deixou a mistura amarga e repulsiva pin­gar dentre seus lábios para a base do invólucro da bala: um caldo bruto de fósforo vermelho e saliva. Soltou o invólucro, novamente usando os dentes para criar pregas nas bordas dele e colocá-lo no lugar. Mordeu com toda a força que tinha, até que seus dentes pareceram prestes a se despedaçar sob a pressão. Mesmo então, havia uma chance maior do que 50% de que a coisa bizarra e caseira simplesmente explodisse no cano da arma. Mas que se danasse. Agora era tudo ou nada.

Kennedy fora tão longe quanto pudera: estava fortemente pressio­nada contra uma chaminé larga que ficava a dois terços do caminho por sobre o telhado. Ela oferecia alguma cobertura, pelo menos, mas também bloqueava sua passagem, a não ser que ela ficasse de pé ou de joelhos, ereta, para contorná-la. Os atiradores a haviam seguido até lá e agora estavam mais ou menos livres para escolher o ângulo dos tiros. Continuavam completamente invisíveis na escuridão perfeita lá em­baixo, mas os clarões das armas mostravam sua posição a cada vez que atiravam. Tillman podia mirar nos clarões, é claro, mas sabia também que só um idiota ficaria parado enquanto atirava.

Era melhor ater-se ao plano A — A de Absurdo.

Ele contou mentalmente até três e se levantou de uma só vez. Mirou cuidadosamente, mesmo sabendo quão exposto devia estar agora, com a claridade do fogo às costas. Um tiro passou por cima de seu ombro, perto o bastante para senti-lo. Um segundo acertou as telhas entre suas pernas.

Mantendo presa a respiração, mantendo o alvo na mira, ele se iso­lou do mundo e apertou o gatilho.

Instantaneamente, a noite virou dia: especificamente, o dies irae, quando Deus perde a paciência e diz agora já chega.

 

Era o fim do jogo.

Tillman e a mulher estavam verdadeiramente encurralados na casa, que queimava completamente.

Mariam esperava que tentassem usar as janelas e estava preparada para forçá-los a voltar para dentro quando o fizessem. Na verdade, tinha quase certeza de que acertara Tillman quando ele aparecera na anela do quarto, para onde ela já mirava, e não teria ficado surpresa se eles não vissem mais nem ele nem a mulher.

Foi Ezei quem ouviu os sons do telhado primeiro. Ele assobiou — duas notas curtas, para chamar a atenção de Mariam — e apontou para cima. Viu o movimento lá, a princípio abstrato e depois subi­tamente mostrando a cabeça e os ombros da mulher. Ela atirou, e a mulher mergulhou para baixo, fora das vistas.

É claro, fora das vistas era apenas uma questão de geometria. Ma­riam não precisava dizer a Ezei e Cephas o que fazer. Em sincronia com ela, eles se afastaram das paredes da casa. Duas figuras se mo­viam no telhado agora, mas se mesclavam ao fundo na maior parte do tempo: era só quando alguma parte de um corpo ou do outro surgia em silhueta acima da linha do telhado e ficava contornada pelo brilho das chamas bruxuleantes que eles podiam ser vistos. Mariam ergueu a arma, apontando-a naquela direção, e esperou.

Por duas vezes algo se ergueu brevemente contra as chamas, e ela atirou. Da segunda vez, os tiros foram respondidos e ela teve que se jogar para junto da parede, saindo do campo de visão de Tillman.

Ela considerou, por um momento, deixar tudo como estava, permi­tir que os dois queimassem até a morte no momento certo, sem maiores complicações. Mas o telhado não era completamente isolado, e Tillman e Kennedy pareciam estar se movendo para a parte de trás, de onde talvez fosse possível saltar para o mais próximo dos depósitos ao redor.

Mariam assobiou, e Ezei olhou na direção dela outra vez. Para trás da casa, ela sinalizou, e o primo se deslocou imediatamente. Veloz, ela correu ao longo da frente da casa até poder ver Cephas do outro lado. Ele olhou em sua direção quando ela apareceu, que lhe deu a mesma instrução silenciosa.

Ela própria, Mariam decidiu, ficaria na frente. Parecia impossível agora que Tillman e Kennedy voltassem para dentro do lugar, cujo interior deveria ter se transformado numa massa indistinta de fogo, e tentassem sair pela janela outra vez — mas, se o fizessem, ou se ten­tassem o absurdo de correr até a porta, então Mariam estaria ali para abatê-los.

Observou com aprovação enquanto Ezei e Cephas circulavam o lu­gar, atirando enquanto se moviam. Por um instante, ela vislumbrou o ombro da mulher e parte das costas dela. Kennedy parecia ter per­corrido a maior parte do caminho em direção à traseira do cume do telhado, onde a abrupta forma vertical de uma chaminé estava em seu caminho, oferecendo alguma cobertura, desde que ela não tentasse passar daquele ponto. Mas, se ficasse onde estava, Kennedy teria cerca de um minuto até que o telhado desabasse, e nesse ínterim ela se sobressairia contra a chaminé pintada de branco a cada vez que mudasse de posição. Cephas fez mira — mas então, subitamente, decidiu atirar num alvo diferente, presumivelmente Tillman. Disparou dois tiros.

O terceiro tiro veio do telhado, e Mariam o viu ao mesmo tempo que o ouviu: uma faixa vermelha brilhante cortando o ar, desenhando a linha mais curta possível entre dois pontos. O primeiro ponto era Tillman. O segundo era o caminhão no qual ele chegara.

A explosão foi espetacularmente súbita e agonizantemente lumino­sa. O ar em chamas varreu Mariam, derrubando-a no chão. Uma trovoada súbita fez-se ouvir tanto tempo depois que pareceu pertencer a uma explosão inteiramente diferente.

Grogue, ela ergueu a cabeça e piscou em meio à fumaça turva. Seus ouvidos estavam zunindo, seus olhos, cegos e o ar quente que ela ins­pirava era uma sopa de gasolina cozida. Tentou gritar por Cephas e irrompeu numa tosse áspera que rasgou sua garganta seca como se ela estivesse mastigando vidro quebrado.

Então ela enxergou algo estranho: uma visão. O mundo havia se tornado preto e branco, e um homem delineado em fuligem e giz granulado estava fazendo uma ridícula dança de palhaço, com movimen­tos descontínuos e incertos. Ele caiu, como Charlie Chaplin costumava cair, com tanta energia na queda que rolou no chão quase até ficar de pé novamente, apenas para cair mais uma vez.

Era Cephas. E aquilo não era dança nem ato de comédia. Eram os espasmos de sua morte. O fogo cobrira todo o corpo dele, agarrando-o como um amante, a gasolina em chamas ensopando suas roupas e pele, arrancando a umidade de dentro de seu corpo e transforman­do-a em vapor para arremessá-la ao céu numa violenta e terrível transubstanciação.

Mariam gritou, e o grito doeu-lhe tanto que a mente dela quase se desligou. Ela tinha que lutar para continuar consciente.

Com os olhos lacrimejando, esforçou-se para ficar de pé. Viu Ezei correndo em volta da parte de trás da casa, depois parando abrup­tamente quando viu o que ela havia visto: Cephas transformado em uma oferenda a Deus.

— Ezei! — ela grasnou enquanto corria para ele. Teve que moldar o som com os lábios cheios de bolhas: — Ezei, não se...

Não se aproxime dele, era o que ela pretendia dizer. Não se aproxime da luz, você só se transformará num alvo. Mas a arma de Tillman soou ao mesmo tempo em que ela falava, e a espetacular iluminação permitiu que Mariam assistisse ao destino de Ezei com total clareza. A fumaça ao lado da cabeça dele revolveu-se e ficou vermelha: parte daquela fumaça eram o sangue e o cérebro de Ezei, escapando por um buraco feito por uma bala pesada a média ou curta distância. Ele cambaleou, parou, já morto, e caiu pesadamente no chão.

Mariam estava correndo antes que percebesse, correndo para o ce­leiro, porque era isso que eles fariam agora. Eles saltariam e ficariam vulneráveis quando o fizessem, vulneráveis quando aterrissassem. Ela ainda podia dar um fim a isso, ainda podia se vingar, ainda podia completar a missão.

As portas fechadas do celeiro pendiam das dobradiças. Ela puxou e as levantou até que se abrissem, deu um passo atrás e então se atirou na escuridão rolando verticalmente o corpo dobrado. Enrijeceu quan­do o desdobrou, a pistola numa mão, a sica na outra. Se ela o visse antes que Tillman a percebesse, usaria a faca. Se houvesse um tiroteio, confiaria na arma de fogo primeiro e rezaria para que ele vivesse o suficiente para ela se aproximar e cortar-lhe a garganta.

Do lado de fora veio um baque suave, depois um segundo. Eles haviam saltado para cima do celeiro, não para dentro dele.

Mariam gritou novamente — uma blasfêmia que ela nem mesmo teria admitido conhecer. Correu para o lado de fora, mas o caminhão em chamas, a casa incendiada e o ar supersaturado de fumaça tapa­ram seus olhos mais eficientemente do que uma venda. Houve passos correndo na escuridão além da luz dolorosa. Ela correu atrás deles, atirando naquela direção até o pente ficar vazio e o gatilho, travado.

Então tropeçou em algo no escuro e se esparramou no chão áspe­ro, rasgando a pele da palma das mãos. O fôlego foi arrancado dela de uma só vez. Sentia como se seu peito tivesse sido rasgado, aberto, e a pele de seu rosto queimado estivesse esticada sobre seu crânio feito uma máscara mortuária. Ela rolou de costas no mato alto, esgotada. Por um momento sentiu que estava morrendo. Mas a dor, que se in­tensificava a cada respiração, informou-a que ainda estava viva.

Em meio à agonia começou a vislumbrar os contornos vagos e in­certos da consolação. Deus ainda tinha planos para ela. E ela ainda tinha planos para os monstros que haviam extinguido a vida de seus amados primos.

 

Chegou um momento, na corrida, em que Tillman se perguntou do que era, exatamente, que eles estavam correndo.

Dos atiradores, obviamente. Mas havia derrubado dois deles, um com um tanque de gasolina explodindo, o outro de forma mais con­vencional, com uma bala. Ele tentara contar, enquanto estivera no te­lhado, e tinha quase certeza de que ao todo só poderia haver mais um ou dois além daqueles.

Mas isso significava um ou dois que haviam atirado: eles poderiam ter reforços prontos para agir e formas de colocá-los em uso muito rapidamente. Talvez o grito que haviam ouvido, depois de pularem do telhado do celeiro, fosse exatamente isto: uma convocação. Soara como uma voz de mulher, e ele se perguntou, de maneira irrelevante, se seria a mesma da balsa, que enterrara uma faca na coxa dele a 30 metros de distância. Não era uma mulher a ser enfrentada na escuri­dão com uma arma vazia.

Melhor correr, então, e avaliar direito a situação depois, do que ficar e lutar no que poderia ser uma última batalha prematura. Ken­nedy tinha o CD no bolso: eles haviam... conseguido alguma coisa ali, e os assassinos pálidos haviam se reunido para impedi-los de pegar. Então, valia a pena. Tinha que valer.

Kennedy o havia acompanhado, de início, e então, de repente, ela o havia ultrapassado. O quadril dele, ainda rígido por causa do feri­mento a faca, tornava-o mais lento. Colocou impulso extra na corrida, apesar da dor, e a alcançou quando chegaram a uma vala rasa que parecia estar no limite sudoeste da propriedade.

Passando por cima da vala, Tillman se deparou com uma cerca de arame farpado, mas era um único fio de metal, que provocou dano mínimo. Ele passou por cima da cerca e viu-se numa estrada de ter­ra que levava de volta à estrada distante fazendo um ângulo agudo. Olhou para trás, em direção a Kennedy, que estava lutando para pas­sar o arame farpado. Ela ou não viu que ele lhe oferecia a mão ou escolheu ignorá-lo.

Esse era um terreno neutro: não era a Fazenda do Pombal. Eles desaceleraram o passo a princípio, silenciosamente concordando que, por enquanto, já tinham corrido longe o suficiente. Kennedy dobrou o corpo para baixo, as mãos apoiadas nos joelhos, e gradualmente recuperou o controle sobre a respiração. Tillman continuou de pé, olhando para trás para ver se alguém os perseguia. Mas já teriam ou­vido qualquer perseguidor que não fosse um grupo de ninjas.

Para onde agora? — Kennedy perguntou, parando. — Esta­mos... no meio da... porcaria de lugar nenhum, e você explodiu o caminhão!

Pareceu uma boa idéia na hora — Tillman disse.

Kennedy riu — um som áspero que pareceu ser arrancado dela à força.

Funcionou — ela observou, sombria, e depois disse: — Como? Como você fez aquilo?

Foi um golpe de sorte, era a resposta. Deu certo simplesmente porque não encontrei um isqueiro para cauterizar minhas feridas, lá em Folkestone, e tive que me contentar com fósforos; e porque ouvi um fato engraçado numa aula de química décadas atrás.

Transformei uma bala comum numa bala incendiária — ele respondeu. — O ingrediente milagroso foi um monte de cabeças de fósforo amassadas. Elas são, na maior parte, fósforo vermelho cristali­zado. No ponto de ignição de 200 graus, por aí, que é mais ou menos o mesmo da gasolina no tanque. Mas você só tem que chegar a essa temperatura por uma fração de segundo, digamos com a fricção do impacto, e daí a coisa solta faíscas como uma doida porque é uma forma degradada de fósforo branco, que é um piróforo natural.

Ele parou de falar porque isso era tudo quanto sabia mesmo. Quan­do criança, fizera isso com balas de chumbinho, untando as pontas das pequenas balas com lama arenosa e vermelha e depois esperando que secassem. Então acertara latas cheias de fluído de isqueiro a cerca de dez metros e se maravilhara com o anjo de luz e calor que abrira as asas subitamente acima do pequeno quintal nos fundos da casa.

Kennedy olhou para ele, em silêncio, por um longo tempo, pa­recendo prestes a falar, mas nada dizendo. Tillman esperou mesmo assim, sabendo que algo viria.

São duas pessoas mortas — ela disse.

Perdão?

Duas pessoas mortas. Mortes extrajudiciais. Você as matou, Tillman.

Ele encolheu os ombros, genuinamente não entendendo que tipo de resposta ela queria.

E daí?

Daí que eu deveria te prender, porcaria. Isso é... errado. Não sou sua parceira, nem sua ajudante, nem sua... coisa nenhuma. Não pode­mos continuar nos encontrando desse jeito.

Ele soltou a respiração lentamente, seu próprio equilíbrio escapando-lhe. Aquela havia sido uma noite maluca mesmo para os padrões incomuns dele, e as mortes, relembradas, não lhe davam nenhuma sensação de triunfo.

Não — concordou. — Não podemos. Não por muito mais tem­po. Mas o trato continua, Kennedy. O que quer que você consiga com esse CD...

Sim? O que quer que eu consiga?

Bom, eu matei por essas informações. Então, são minhas também.

Ela olhou para ele em silêncio novamente, e novamente ele espe­rou que ela falasse. Dessa vez, não houve nada. Para o que quer que ela pensasse em dizer, não conseguiu encontrar as palavras certas. En­tão passou por ele caminhando, dirigindo-se para a estrada principal. Ele respeitou a indisposição dela, permitindo que ganhasse uma longa distância dele por todo o caminho.

 

O que havia acontecido na Fazenda do Pombal não podia ficar em segredo.

Kennedy ligou para a Divisão à beira da estrada, relatando o resul­tado da busca, a morte de Combes e seu encontro com os assassinos. Não deixou nada de fora — exceto que, em sua versão, ela seguira para a fazenda sozinha depois de ter sido separada de Combes, e estivera sozinha quando escapara do incêndio. Quanto a Tillman, ela ficou em silêncio.

Viaturas e ambulâncias, carros de bombeiro e vans com luzes de si­rene começaram a chegar na meia hora seguinte. Eles isolaram a área, apagaram as chamas que ainda se alimentavam espasmodicamente dos restos da casa e do caminhão e começaram a longa e complexa tarefa de examinar a cena. Kennedy desejou-lhes sorte.

O próprio Summerhill foi quase o último a chegar. Poderia haver muitas razões para isso, mas uma certamente era o fato de ter reanalisado os arquivos do caso antes de deixar a Divisão, procurando pelos dados que levavam a esse pandemônio, e deixando bem claro que ele não havia dado sua bênção para a missão.

Trocaram palavras brevemente. Kennedy usou a exaustão e a dor para manter Summerhill a distância e os paramédicos ocupados com suas tarefas. Ela lhe deu a mais crua das explicações, que degringolou decisivamente quando contou que um dos corpos ainda não identifi­cados era o do detetive Combes: outro homem abatido. Summerhill nem mesmo perguntou se ela conseguira recuperar alguma das evi­dências físicas, então ela não precisou mentir.

Bandagens temporárias foram aplicadas a seus cortes e queimadu­ras. Depois ela foi despachada para o Royal Surrey, o hospital mais próximo com um pronto-socorro. Antes de partir, pediu a Summerhill que mandasse uma viatura atrás dela. Se pretendiam medicá-la — tal­vez até deixá-la inconsciente —, ela queria registrar seu depoimento primeiro: não dava para saber o que esqueceria sob o efeito da aneste­sia. De má vontade, Summerhill concordou. Depois disso, no entanto, ordenou que ela não falasse com ninguém antes de falar com ele.

— Ninguém, Kennedy. Nem mesmo uma porcaria de padre.

Não conheço nenhum, Jimmy — ela crocitou. — Não freqüento esse tipo de ambiente.

Na verdade, a maior parte de seus ferimentos era superficial, e nin­guém sugeriu deixá-la inconsciente. Só precisou de analgésicos tópi­cos e de uso oral e um gel anestésico. Chegaram a sugerir que tomasse soro na veia, mas Kennedy recusou, assinando o formulariozinho afe­tado que dizia, efetivamente, que isso fora decisão dela.

Vinte e cinco minutos depois ela saiu pelas portas do pronto-socorro e encontrou a viatura esperando na rua em frente.

Preciso voltar à Divisão — ela disse ao policial ligeiramente es­pantado. — New Scotland Yard. Agora. Há provas que precisam ser registradas.

O policial esticou-se para apanhar o rádio do carro. Kennedy colo­cou uma mão no braço dele e ele parou.

É assunto do ATSA — ela disse. — Não pode ser discutido em canais abertos. Lamento.

O policial não argumentou nem fez perguntas. Era mentira, é cla­ro, mas as cláusulas do ATSA — Ato de Segurança Anti-terrorismo — eram uma carta muito útil no jogo, um conjunto disforme de poderes especiais invocados sempre que alguém da Divisão queria saltar algum obstáculo sem ter que parar para dar explicações.

Mas seria mentira mesmo? Certamente ela estava confrontando uma conspiração que tinha melhores recursos do que ela e conexões em outros países.

Depois que chegou à Dacre Street, ela mandou o policial embo­ra. Ele provavelmente se reportaria imediatamente, mas apenas a seu próprio superior. Não precisava se preocupar com nenhuma notícia chegando a Summerhill tão cedo.

Na sala comum, ela fez uma cópia do CD. Depois, colocou o origi­nal dentro de um envelope e o deixou endereçado no correio interno para Summerhill. Acrescentou uma breve nota explicando como a dor de suas queimaduras e o trauma de seu quase-encontro com a morte a fizeram esquecer momentaneamente que ela conseguira salvar um pequeno suvenir daquele inferno.

Kennedy reconhecia quão absurda era toda aquela intriga peri­férica. Mas sabia, também, que os próximos dias seriam duros: até mais pesados do que os que vieram antes. Outro oficial morto, e no­vamente o relatório mostraria que Kennedy tinha saído sem reforço apropriado. Dessa vez ela também ignorara a cadeia de comando e agira sem nenhuma autorização do encarregado do caso. Havia uma grande chance de que as acusações, suspensas no ar desde os eventos em Park Square, fossem atiradas contra ela com toda a força. Se isso acontecesse — se fosse enredada em comitês e pressionada em inqué­ritos —, queria ao menos ser capaz de avaliar o que havia encontrado e continuar envolvida na investigação tanto quanto pudesse. Ela devia isso a Harper — e a si mesma.

Copiou o disco mais uma vez, para Tillman. Enquanto esperava que seu drive velho e rangedor terminasse o trabalho, ela verificou seus e-mails. Entre eles, encontrou uma resposta de Quai Charles de Gaulle, Lyon. A Interpol.

Leu rapidamente o e-mail: Sua solicitação de informações sobre o acor­do recíproco firmado na Convenção das Nações Unidas... resultados positivos recentes o suficiente para serem relevantes para sua... seguem documentos que só devem circular internamente e sob a permissão do...

Havia um arquivo anexo. Ela clicou nele. E então olhou para a tela por um minuto sem nem mesmo piscar.

Então, pegou o telefone e ligou para o celular de Tillman, o núme­ro novo.

Tillman.

Kennedy. — Considerando o que haviam passado poucas horas antes, ele soou muito tranqüilo e prático. Ela se perguntou onde ele estaria. Num café de beira de estrada na A3? Num pub em Guildford? Ou já de volta a Londres, enfiado em algum quarto alugado lendo Armas e Munições?

Leo... — ela disse, e não seguiu adiante.

Você está bem? O que aconteceu quando o manda-chuva che­gou? Eu estava espiando o circo sendo armado a mais ou menos um quilômetro. Realmente não deu a menor vontade de chegar mais perto.

Eu... foi tudo bem — ela balbuciou. — Tudo bem até aqui. Não podem convocar um pelotão de fuzilamento até terem encontrado a munição — brincou.

Me avise quando a coisa ficar séria. Eu te ajudo como puder.

Leo, escute. Tem uma mensagem aqui da Interpol. Responde­ram ao meu C52.

Seu quê?

Solicitação de rotina. Informação que uma força dá a outra a respei­to de casos em aberto. Eu pedi a eles... perguntei sobre o Michael Brand.

E deram uma resposta positiva? — O tom da voz dele mudou instantaneamente. —Alguma novidade?

Eles me encaminharam uma montanha de coisas da América. PDFs de documentos de forças locais no Arizona e do FBI. — Ela en­goliu em seco, depois recomeçou. — Leo, tem outros caminhos que podemos tomar. Com o que obtivemos no Pombal, podemos...

Ele a interrompeu, lendo sua tensão acuradamente, querendo que ela dissesse tudo logo, o que quer que fosse.

Kennedy, desembucha de uma vez.

O Michael Brand...

Sim? Anda logo.

Ele caiu num acidente aéreo perto de uma cidade chamada Peason, no Arizona. Ele morreu, Leo. Morreu seis semanas atrás.

 

O rio Colorado era uma força esgotada atualmente. A extensa pilha­gem promovida pelo sul da Califórnia na via, algo conhecido como o Canal All-American (que patriota não pararia e saudaria um cur­so d'água com tal nome?), e pelos canais construídos para abrandar a sede das áreas rurais do Arizona, deixava-o sem fôlego em algum ponto ao sul de Yuma; então o rio se perdia nos arroios secos e nunca chegava a 160 quilômetros do oceano.

Isso tudo Kennedy aprendeu com o motorista de seu táxi, um sujeito conversador chamado John-Bird que alegava ter três quar­tos de ascendência indígena Mojave. Pegara Kennedy, conforme combinado, do lado de fora do terminal principal do Laughlin Bullhead, que se dizia um aeroporto internacional, mas ao qual somente se tinha acesso a partir de Londres após uma escala no Washington Dulles. Aquele fora um voo de 15 horas, e Kennedy já se sentia irritada antes mesmo de entrar no táxi. O calor não ajuda­va — a hora local era 11h50 e o sol estava cegante em seu zênite -—, embora John-Bird alegremente lhe informasse que aquele era um calor seco e não chegava nem perto de ser tão debilitante quanto o calor úmido que havia em certas partes menos civilizadas do mun­do. Ele ligou o ar-condicionado até o primeiro ponto, o que não causou nenhum efeito na temperatura, mas aumentou o barulho significativamente.

Pegaram a Rodovia 68 e passaram direto pela cidade, acompa­nhando o Colorado até virarem a leste em direção a Kingman e à dis­tante Flagstaff. O rio parecia bastante impressionante para Kennedy, um gigante sinuoso duas vezes maior do que o Tâmisa fluindo entre penhascos altos de rocha alaranjada. Ela não conseguia ver uma única nuvem de horizonte a horizonte.

— Go south, go clockwise, veer lef —John-Bird disse. — Sabe o que é isso? É a fórmula que a gente usa para se lembrar de todos os afluentes do Colorado — o Gila, o San Juan, o Green, o Aqueduto do Rio Colo­rado, o... o que é o V, o que é o V? Tá, isso, é o rio Virgin, e depois tem o Little. Legal, né? Parece que está explicando uma direção, mas não leva a lugar nenhum. São só as letras. Só um lembrete.

Muito útil — Kennedy concordou, carrancuda. Peason ficava a 45 minutos de carro e John-Bird parecia não estar com a menor pressa. Agora ele estava explicando que o nome do rio vinha do fato de que a água dele costumava ser colorada, tingida por um sedimento vermelho vivo, mas que atualmente toda aquela sujeira era filtrada pela Barra­gem Grand Canyon, então a cor era a mesma de qualquer outro rio.

Legal, né?

Para tirá-lo do assunto no qual era especialista, ela perguntou a respeito do acidente aéreo. Sim, acontece que ele estivera na estrada aquele dia, levando um passageiro de Grasshopper Junction, e chega­ra a ver o avião cair.

Foi uma coisa doida, de repente. Tipo, apareceu do nada. Nunca vi nada igual. Mas estava tão longe que nem fez barulho, quero dizer, não que eu pudesse ouvir. Foi bem silencioso. Foi isso que não con­segui esquecer depois: que caiu do céu e deve ter havido, tipo, uma explosão enorme, mas para mim foi o maior silêncio... sabe, como quando você liga a TV e deixa no mudo. Toda aquela gente morta e nenhum barulho.

Ele refletiu a respeito disso por mais ou menos um minuto, o que deu a Kennedy tempo para checar as instruções que o escritório do xerife havia enviado para ela. Mas foi uma curta meditação, e logo estava sendo regalada com mais fatos divertidos a respeito do rio mais amado do sudoeste. Não que John-Bird se limitasse ao Colorado: ele sabia todo tipo de coisa sobre o Lago Mead e o Lago Mojave, também. Recusou-se, no entanto, a falar sobre a Baía de Las Vegas:

Não é um lugar legal. Não é de família.

Atordoada de cansaço e quase fazendo associações livres, Kennedy tentou imaginar como aquele lugar sujo e nada familiar deveria ser. Talvez houvesse aditivos ilegais na água.

Quando finalmente chegou a Peason, ela fez John-Bird esperar en­quanto deixava suas malas no hotel, um EconoLodge construído em falso estilo colonial, para que ele pudesse levá-la em seguida ao escri­tório do xerife. Sabia que não estava em seu melhor momento, mas queria fazer contato e colocar as coisas em movimento de uma vez. Ela não tinha muito tempo hábil, então precisava ao menos fazer o melhor uso do que lhe restava.

O escritório do xerife era uma construção de apenas um andar bem na via principal de Peason, ao lado de uma imobiliária que oferecia apartamentos de luxo com o dobro da metragem. John-Bird deu a Ken­nedy um cartão de visitas. Ela solenemente o guardou na bolsa, mas prometeu a si mesma que só o usaria em último caso.

Atravessou a rua e entrou no escritório, enquanto John-Bird partia com um último aceno.

O interior do local cheirava a pot-pourri — mel, glicínia, talvez péta­las de rosa — e o ar-condicionado estava no máximo. A formidável mu­lher à mesa da recepção, com pele ruim, cabelo volumoso e um rosto tão achatado e belicoso quanto o de um buldogue, dava a impressão de ser a responsável pela manutenção da fibra moral do lugar, e parecia alguém que levava essa responsabilidade a sério. Atrás da mesa dela, a sala estava separada em duas por uma divisória de madeira na altura da cintura, na qual um pequeno portão havia sido instalado.

Pois não? — a buldogue disse a Kennedy. — Como posso ajudar?

Kennedy aproximou-se da mesa e estendeu as garantias de sua boa-fé: uma carta de apresentação da Polícia Metropolitana de Lon­dres em papel timbrado e a versão impressa de um e-mail enviado por alguém chamado Webster Gayle, convidando-a a aparecer quan­do quisesse, pois ele ficaria feliz em ajudar em tudo que pudesse.

Sou de Londres — ela explicou. — Eu deveria me encontrar com o xerife Gayle. Não marquei um horário nem nada, mas pensei em avisá-lo de que já cheguei.

A buldogue examinou ambas as folhas com concentração lenta e imperturbável.

Ah, sim — ela disse por fim. — O Web disse que você apareceria. Ele pensou que fosse amanhã, mas acho que é hoje, então. Tá bom, por que não vai sentar? Vou tentar avisar ao xerife que você chegou.

Kennedy aceitou a cadeira oferecida enquanto a buldogue pres­sionava teclas numa mesa telefônica e murmurava algo no interfone, baixo demais para ela ouvir. A voz do xerife, em contraste, soou dolo­rosamente alta do outro lado.

Obrigado, Connie. Diga para ela esperar um minuto, pode ser? Tenho que pentear o cabelo e enfiar a camisa dentro da calça para falar com uma moça inglesa. Ela é bonita, no geral? Ou parece com a rainha?

A buldogue fechou o canal e lançou a Kennedy um olhar inescrutável.

Ele já vem falar com você — disse.

Kennedy sentou e esperou, tentando não cochilar. Bebeu dois copos d'água do bebedouro, que estava quase dolorosamente fria e ajudou muito. Quando havia terminado o segundo, um homem do tamanho de um guarda-roupa veio caminhando em sua direção, destrancando o portão com mãos enormes e de aparência desajeitada, uma das quais ele estendeu para apertar a dela enquanto cobria o restante da distân­cia com duas passadas.

Kennedy identificou Gayle imediatamente como o tipo de homem grande que aprendeu a ter um tipo de cuidado e delicadeza naturais por precisar lidar o tempo todo com um mundo onde tudo eram vá­rios números pequenos demais para ele. Ele não embrulhou a mão dela ao cumprimentá-la, apenas a tocou levemente na palma e nas cos­tas dos dedos com a ponta dos próprios dedos, meneando a cabeça de forma educada no lugar de oferecer um verdadeiro aperto de mão.

Webster Gayle — apresentou-se. — Xerife do Condado. É sem­pre um prazer conhecer uma colega oficial da lei, sargento — e sua polícia tem uma ótima reputação.

Obrigada, xerife — Kennedy respondeu. — Ouça, acabei de chegar e estou mais morta do que viva. Mas, se o senhor tiver um tem­po amanhã, eu adoraria saber tudo sobre aquele assunto e talvez ouvir sua opinião sobre...

Amanhã? — Gayle mastigou a palavra como se fosse um pedaço dúbio de cartilagem. — Bom, sim, podemos conversar amanhã. Mas tenho tempo agora mesmo, e sei que seu orçamento só cobre cinco dias. Se estiver mesmo cansada demais, então, tudo bem, pode des­cansar e a gente se fala amanhã cedo. Mas, se achar que consegue ficar de pé por mais uma hora mais ou menos, então talvez já possamos conversar o básico: o que a senhora quer fazer enquanto está aqui e como podemos facilitar isso.

Claro. — Kennedy sorriu e concordou. Dependia inteiramente da boa vontade desse homem e sabia que não seria bom puxar as rédeas quando ele estava disposto a começar um trote. Além disso, Gayle esta­va certo em dizer que ela não tinha muito tempo: provavelmente ainda menos do que ele imaginava. — Com toda certeza, vamos começar já.

 

Kennedy sabia que essa conversa aconteceria e tinha um discurso todo preparado que esperava poder fazer com a convicção apropriada, ape­sar da fadiga da viagem. O discurso explicava, com uma boa quantidade de documentação de apoio, exatamente que crimes ela estava investi­gando, como haviam ido parar na jurisdição de Gayle, que protocolos internacionais e interagenciais poderiam ser invocados para justificar a presença dela e que nível de apoio ela queria que o xerife do Condado lhe fornecesse. Em outras palavras, estava pronta a preencher todas as lacunas do pedido oficial (ou, pelo menos, de aparência oficial) de ajuda entre forças e a colocar limites precisos no que, de outra forma, poderia ter parecido o pedido de um cheque em branco.

Mas acontece que Webster Gayle, como John-Bird, tinha um assun­to de estimação do qual ficava muito feliz em falar — e, misericordio­samente, não era o rio Colorado, mas o destino do Vôo 124 da Coastal Airlines. Em seu pequeno escritório, que era na verdade apenas um canto separado por divisórias em vez de paredes, ele começou a falar antes mesmo de ela ter sentado.

Erro humano — ele disse a Kennedy. — Foi o que disseram, no fim. Erro humano. — A ênfase dele foi pesada, quase sarcástica. — Acho que essa é uma das coisas que eles inventam quando não sabem mesmo o que mais podem dizer.

Achei que tivesse sido a porta — Kennedy disse. — Que a por­ta tinha se aberto no ar e eles tinham perdido a pressurização da cabine.

Isso mesmo — Gayle concordou. — Mas o mecanismo da porta era muito confiável. Então, eles não têm uma verdadeira explicação de por que ele estourou. Dizer "erro humano" é meio como bater em retirada, eu acho. Se nada mais deu errado, bom, então as pessoas é que erraram. É mais fácil do que dizer "nós simplesmente não sabe­mos" ou, quem sabe, manter toda a frota no chão enquanto verificam as portas de cada avião, como os australianos fizeram daquela vez com os superjumbos deles. Sabe, quando eles tiveram aquela explosão num motor? E, que diabos, aquilo nem matou ninguém.

Kennedy assentiu educadamente.

Mas agora é só especulação acadêmica, né? Eles fecharam a in­vestigação quando encontraram a caixa-preta.

Não, senhora. — O xerife foi enfático. —- Nunca acharam a tal da caixa-preta. Simplesmente pararam de procurar por ela quando o aparelho parou de emitir o sinal, que é algo que não deveria aconte­cer, aliás. Eu li sobre isso. A bateria deveria funcionar por três meses, e é impossível destruí-la mesmo que você tenha uma bomba. Faz sen­tido, não faz? Um avião cai do céu, isso é meio que como uma bomba, então a caixa teria que ser resistente a...

Ele parou abruptamente e seu rosto ficou inexpressivo. Kennedy achou que o xerife parecia estar se lembrando de algo muito específi­co ou muito vivido, embora tentasse não lembrar.

O senhor viu a queda, xerife Gayle?

O grandalhão se recompôs.

Não, senhora. Não vi. Mas vi o que veio depois. Os restos e tal. Não é algo que eu vá esquecer tão cedo. — Ele batucou na mesa, ti­rado dos eixos — ou pela pergunta ou por suas próprias memórias desordenadas. — Então, a caixa-preta — disse, por fim, pegando no­vamente o fio da meada. — Ela não deveria ser danificada e não pararia de funcionar a não ser que caísse dentro de um vulcão em erupção ou coisa assim. E, da última vez que chequei, não tínhamos nada disso no Condado de Coconino. Então, são dois mistérios. Como a porta se abriu e o que aconteceu com a caixa? Agora vou acrescentar um ter­ceiro à lista. Quantos sobreviventes houve?

Kennedy piscou — sem resposta e imaginando como a conversa fora parar tão rapidamente no território do Arquivo X.

Nenhum, foi o que eu ouvi — ela respondeu.

Nenhum, foi o que disseram — Gayle disse com algo que pa­recia satisfação. — Mas aí todas essas coisas estranhas começaram a acontecer.

Ele começou um detalhado resumo das aparições pós-morte, dos mortos ambulantes do Vôo 124, enquanto Kennedy — profundamen­te cética e incapaz de fingir qualquer tipo de interesse — fez o melhor para não responder. Quando Gayle parou de falar, ela se esforçou para fazer um comentário não comprometedor.

Bom, eu... acho que esse é um tipo de mistério diferente — dis­se. — Quero dizer, o que aconteceu no voo e o que aconteceu com a caixa-preta depois; para essas duas coisas você poderia encontrar uma resposta. Mas fantasmas são, sabe... nunca vai haver explicação para isso. As pessoas vão acreditar que viram o que viram, mas nunca vão poder provar que viram. Então, não há resposta. Vai ser só uma dessas coisas sem explicação.

Ela estava tentando arduamente não ofendê-lo. Gayle não pare­ceu ofender-se mesmo, mas dispensou a objeção dela com um sor­riso fácil.

Bom, senhora, acho que nesta vida é melhor manter a mente aberta. Às vezes, se uma coisa parece impossível, é só porque você está olhando pelo ângulo errado.

Maldito jet lag. Kennedy não estava nem um pouco disposta a esse tipo de discussão temerária.

Bom, como eu disse, meu foco vai ser nos...

Fatos que se relacionam com sua investigação. Sei disso. Mas, novamente, o que é relevante nem sempre é o que parece apontar na direção certa. Não preciso dizer isso à senhora, já que é detetive. — Ele foi jocoso e confiante, irradiando o tipo de avidez de quem tem certeza do que diz, e Kennedy percebeu por que ele concordara tão prontamente em vê-la e ajudar com a investigação: o oficial estivera esperando por alguém a quem pudesse contar todas essas coisas. Ela se perguntou, com fatalismo sombrio, quão longe precisaria animá-lo a prosseguir com sua obsessão de estimação para obter as respostas que ela buscava.

Certo — ela concordou, cuidadosamente.

Agora, não estou dizendo que a senhora deveria dar ouvidos a qualquer teoria cretina que alguém atire no seu caminho. Eu só valorizo uma mente aberta, como disse, e não acho que a senhora de­veria descartar uma coisa imediatamente só porque parece estúpida. Grandes coisas são inventadas como resposta a perguntas estúpidas, me parece. E se a gente colocasse veneno para rato nas veias de uma pessoa, em vez de remédio? Isso é varfarina, caso a senhora não saiba: um fármaco que impede que um monte de gente morra de ataques cardíacos. Ou... e se a gente fechasse os olhos e tentasse enxergar uma coisa só com os ouvidos? Isso é um radar. Então, comecei a pensar que poderia haver algo nesse caso, mas não imaginei que com certeza eu sabia o que esse "algo" era. E então falei sobre isso com uma grande amiga minha, a srta. Eileen Moggs, que escreve para nosso jornal local e é a pessoa mais inteligente que eu conheço. E ela disse que as pessoas sempre fazem isso depois de um desastre. Ela resumiu dizendo que é uma coisa chamada ciclo de notícias, e a forma como isso funciona é assim: se eles têm que noticiar uma história, mas nada aconteceu desde que essa história foi noticiada pela primeira vez, eles simplesmente inventam alguma coisa para falar. Tipo, as pessoas querem continuar ouvindo sobre essa história, e essa fome precisa ser alimentada. Enten­de qual é a idéia?

Sim — Kennedy respondeu. — Acho que sua amiga está certa.

Gayle pareceu satisfeito com a resposta. Ele balançou o dedo para ela:

Ah, mas aí mostrei à minha amiga todas as coisas que coletei, todas as notícias e notas que encontrei na Internet e em lugares as­sim, e ela começou a pensar nisso também. E me disse que dessa vez é diferente.

Diferente como, exatamente?

Bom, talvez a senhora possa ouvir essa resposta da própria Eileen, sargento Kennedy. Eu realmente gostaria de apresentar as duas, se a oportunidade surgir.

Já havia passado da hora, Kennedy decidiu, de ela começar a im­por sua própria pauta nessa reunião.

Bom, isso seria ótimo — ela disse. — Eu ficaria muito feliz em conhecer a srta... Moggs? Mas, como o senhor sabe, meu tempo aqui é curto. E minha principal preocupação é conseguir informações per­tinentes ã minha investigação sobre assassinato.

Do Stuart Barlow e adendos subsequentes. Sim, eu li o arquivo do caso que a senhora enviou. E um verdadeiro quebra-cabeça.

Esse é um jeito gentil de chamar o caso, xerife Gayle.

E a senhora diz que nossa investigação a respeito do acidente aéreo poderia ajudar nisso de alguma forma.

É o que eu espero, sim. Um dos passageiros do Vôo 124 era um homem que viajava usando o nome de Michael Brand.

Esse "usando o nome de" significa que não era o nome verda­deiro dele. É isso?

Não sabemos dizer com certeza. Estávamos fracassando comple­tamente em localizá-lo na Europa quando descobrimos que ele morreu aqui. Não sabemos mesmo muito sobre ele, exceto que teve uma car­reira de muitos anos e que incluiu crimes diferentes de assassinato.

Tais como?

Seqüestro, talvez. Contrabando de armas, talvez. Envolvimento em tráfico de drogas.

Tudo talvez?

A maior parte são rumores, e a fonte é um informante cujo nome não posso revelar. Mas as razões para eu estar aqui se relacionam inteiramente com o caso Barlow. Achamos que há material suficiente nesse caso para justificar nossa preocupação e nossa abordagem ao senhor com esse pedido.

Gayle coçou o queixo — uma pantomima de grandes e profundos pensamentos.

Sim, acho que tenho que concordar com isso. Seu homicídio múltiplo tem que contar como uma boa razão para bater em todas as portas que vocês possam imaginar. Andamos bem ocupados aqui, mas acho que posso dar à senhora uns dois dias pelo menos.

As implicações daquilo levaram um segundo para atingi-la.

Uns dois dias? — Kennedy repetiu, sem ânimo.

Depois disso vou ter que voltar aqui e fazer uns serviços de escritório.

Uns dois dias do seu tempo? Xerife, isso é muito mais do que eu jamais esperei. O senhor tem certeza de que pode...

Ele estava gesticulando para silenciá-la, sorrindo um largo sorriso de auto-depreciação.

Ficamos mais do que felizes em fazer o que podemos, sargento. Então, diga o que tem em mente.

Kennedy levou um segundo para organizar seus pensamentos. Ela pensara encontrar indiferença, se não hostilidade declarada. Em vez disso, encontrara um obsessivo amigável que queria fazer parte da investigação dela porque não lhe haviam permitido prosseguir com a dele. Era como ganhar um corcel premiado puro-sangue, e ela teve que lutar para não abrir a boca do cavalo e examinar-lhe os dentes.

Bom, o que eu esperava fazer — ela disse a Gayle —, antes de tudo mais, era descobrir se saiu algo da sua investigação aqui que pos­sa jogar alguma luz sobre as origens do Brand ou possivelmente al­guém associado a ele. Por exemplo, se alguma das roupas ou objetos dele foi recuperada e, se sim, se ainda estariam disponíveis para serem examinados por mim ou por meus colegas. E, da mesma forma, se algum dado de perícia foi obtido a partir do próprio corpo, ou se ele forneceu um endereço à sua autoridade de aviação civil quando com­prou a passagem. Qualquer coisa assim.

Gayle assentia com a cabeça enquanto ela desfiava essa lista.

Acho que nada disso vai ser problema. Posso dizer que não temos muita coisa, mas foi feita uma autópsia e deve haver fotos e relatórios pertinentes a isso. Roupas e objetos foram catalogados como evidências — tanto os que pudemos relacionar definitivamente com um corpo em particular como aqueles que tivemos que desistir de identificar. A maior parte dessas coisas foi parar ao norte daqui, num local de armazenagem que nós alugamos de Santa Claus.

Santa Claus? — O Papai Noel? Ela precisava policiar essa tendên­cia a fazer eco de tudo que ouvia.

O município de Santa Claus — Gayle esclareceu. — Desculpe, sargento, é que aqui isso não faz mais ninguém rir. Santa Claus é uma cidade a cerca de 16 quilômetros de Peason, ainda dentro dos limi­tes do condado. Uma cidade fantasma, ultimamente. Eles têm espaço para alugar por uma ninharia e estamos com falta de espaço, então usamos o lugar para guardar todo tipo de coisa que não caiba aqui. Tudo bem, que mais?

Dependendo do que eu encontre, se eu encontrar alguma coisa, então talvez o senhor possa agir como intermediário. Sabe, falando com outras agências ou instituições dos Estados Unidos, mandando pedidos de informações. Sei que estou pedindo muito, e se o senhor preferir posso falar com a Interpol em vez disso. Só que não tenho nenhuma jurisdição aqui e seria ótimo ter uma pista e poder simples­mente segui-la, se tivermos sorte suficiente para encontrar algo que valha a pena seguir.

Isso já seria um caso à parte — Gayle respondeu —, mas pode­mos provavelmente emprestar um policial e uma mesa à senhora, se for preciso.

É muita gentileza, xerife Gayle. Obrigada.

O prazer é meu. Agora, por que não deixo a senhora no seu ho­tel? Acho que já falei até a senhora quase pegar no sono, e a senhora provavelmente precisa de um descanso depois daquele vôo.

Kennedy opôs certa resistência simbólica e foi derrotada. O xerife Gayle levantou-se para sair e, enquanto ela o seguia para fora até a área da recepção, ele contou nos dedos os itens da pauta.

Então. Relatórios de autópsia. Objetos das vítimas. Papelada. É só isso por enquanto?

É só isso por enquanto, xerife.

Vamos fazer isso amanhã. Connie, vou levar a sargento Kennedy para o hotel dela. Volto em meia hora.

A buldogue olhou para Kennedy e depois para ele.

Tá bom — ela disse, depois de uma pausa ligeiramente longa demais. — O que digo à Eileen Moggs se ela ligar?

Kennedy detectou uma entonação maliciosa na pergunta, como se tivesse sido planejada para deixar o xerife levemente desequilibrado — para pegá-lo de surpresa. Se havia sido isso, não funcionara. Gayle simplesmente deu de ombros.

Diga que eu ligo para ela depois — respondeu. — Vou vê-la mais tarde, de todo jeito. Vamos, sargento.

Kennedy fez mais um protesto simbólico.

Posso pegar um táxi...

Não, não. Queremos que vá para casa com boas lembranças do Arizona.

Kennedy sorriu e concordou enquanto ele indicava a porta para ela. Intimamente, no entanto, pensou que querer que ela tivesse boas lembranças dali era pedir demais.

 

No hotel, Kennedy se aprontou para dormir abrindo uma garrafa de cerveja Dos Equis do frigobar do quarto e afundando-se num banho quente enquanto a bebia. Perversamente, a combinação a fez se sentir ligada e inquieta em vez de empurrar seu jet lag para longe de forma que ela pudesse dormir.

O dia ainda tinha muitas horas pela frente, e ela não conhecia nin­guém nessa região, nem um lugar específico aonde ir. Até mesmo a revista What's On in Peason? na mesa de cabeceira deu de ombros, vas­culhou os bolsos e ofereceu-lhe a resposta: nada a fazer. Ela acabara de perder a exibição de flores, aparentemente, e o próximo marco cultural era o Hardyville Days, em Bullhead, que só aconteceria em outubro e parecia apoiar-se fortemente na idéia de que homens feios vestidos de mulher eram um grande entretenimento. Ela planejava já ter partido há muito tempo quando o evento acontecesse.

Então, que tipo de diversão inocente poderia arranjar em seu quar­to de hotel?

Ela tirou o laptop da mala — na verdade, o computador de sua irmã Chrissie —, fez o login na rede wi-fi e acessou sua conta de e-mail. Ha­via quatro mensagens na caixa de entrada. As primeiras três eram de Jimmy Summerhill, cujo tom estava subindo na escala da indiferença profissional para uma estridência raivosa. Para a lata de lixo com elas: afinal, a conexão era paga por hora.

Também recebeu um e-mail de Izzy, que havia concordado em cui­dar do pai de Kennedy até que Chrissie viesse pegá-lo no fim de sema­na — presumindo que Kennedy ainda não tivesse voltado até lá.

Você foi embora tão de repente. Vou sentir saudade enquanto você está fora. E, sabe, espero que não haja nada errado.

Ela começou a escrever uma resposta e apagou-a, mas começou outra que se iniciava do mesmo jeito.

Tem muita coisa errada, acabou escrevendo. Mas ainda estou no caso. Talvez a gente possa sair pra beber alguma coisa e eu te conte sobre ele qualquer hora?

Depois disso, e sem nenhuma esperança real de obter uma res­posta, ela mandou um e-mail para Leo Tillman — o último de uma série —, contando-lhe onde estava e o que estava fazendo. Foi sucin­to, mas completo.

 

Leo, conforme expliquei na última mensagem, estou no Arizona caçando a conexão com Michael Br and. Nenhuma notícia até agora, mas fiz contato com um oficial da lei local e ele foi de grande ajuda. Espero ter muito mais a relatar amanhã. Enquanto isso, estou anexando DE NOVO a análise que o dr. Gassan me deu dos arquivos da Fazenda do Pombal. Talvez você já os tenha lido, mas, se ainda não leu, deveria. Essa coisa toda pode se revelar completamente se encontrarmos a chave certa — e tudo sugere que essa chave é o Brand. O trato continua. Me avise se você tiver algo a compartilhar.

Kennedy

 

Ela anexou os arquivos e clicou em Enviar. Não conseguia pensar em mais nada a fazer com Tillman agora, a não ser mantê-lo atualizado e esperar que, no fim, ela recebesse ao menos um vago eco de volta.

E agora, já que os arquivos estavam ali, ela mesma os abriu nova­mente. Sentia como se já conhecesse o conteúdo de cor, mas lê-los mantinha a informação fresca — levando-a de volta, toda vez, a seu primeiro e último encontro cara a cara com Emil Gassan, no esconde­rijo triste e dilapidado onde o estavam mantendo até terem certeza de que a vida dele não corria risco.

O encontro em que Gassan contou a ela sobre a tribo de Judas.

 

— Então, é um evangelho? — Kennedy perguntou, desnorteada.

Sim.

Quero dizer, a versão traduzida ainda é um evangelho? O Bar­low junta um time para decifrá-lo, dedica anos do tempo dele e, no final, sacrifica a própria vida para traduzir um evangelho na forma de outro evangelho?

Emil Gassan encolheu os ombros, um tanto impacientemente. Es­tavam sentados em uma sala nua e triste: quatro mesas, oito cadeiras, paredes pintadas de um tom de verde que não existe em nenhum outro lugar senão nos edifícios vitorianos que foram transformados em hospitais, delegacias de polícia ou asilos para lunáticos. Um pôs­ter na parede advogava o sexo seguro com a ajuda de um cartum de unicórnio usando um preservativo no chifre. A mão direita de Gassan repousava sobre um caderno de anotações fino, de capa preta, como se ele estivesse prestes a fazer um juramento sobre ele.

Foi dez dias depois do Pombal: dez dias depois do incêndio e da morte de Combes. Nove dias e algumas poucas horas, então, já que ela enviara sua própria cópia do CD do Pombal para Gassan e pedira a ele que transformasse os arquivos em algo que fizesse sentido. O preço de Gassan fora mínimo: ele quisera chocolate — Laranjas de Chocolate do Terry —, algumas garrafas de um bom Meursault francês e os últi­mos três números da revista Private Eye. Só para me lembrar de que ainda há um mundo lá fora, ele dissera a ela, essencialmente — e eu monto seu quebra-cabeça para você. Ao ouvir o tremor da avidez na voz dele, ela ti­vera a impressão de que poderia ter recusado cada um desses pedidos e ainda assim ele teria concordado.

Sim, sargento — Gassan disse com petulância. — Ele traduziu um evangelho para outro evangelho. Mas obviamente não consegui ser muito claro aqui. O que o Stuart fez foi... notável. Quase inacre­ditável, na verdade. E, se não fosse o fato de que os efeitos colaterais agora teriam incluído ficar morto, em vez de apenas ficar em Crewe, eu teria desejado de todo o meu coração ter dito sim quando ele me abordou. Além disso, não fosse pelo medo desses mesmos efeitos cola­terais, eu correria com esse achado a cada contato de jornal da minha agenda e mandaria que reservassem a primeira página para um futu­ro próximo. Não que eu tenha acesso à minha agenda neste lugarzinho esquecido por Deus. Ou mesmo um telefone.

Como se reclamar da rígida segurança o tivesse deixado consciente da ausência temporária dela, Gassan levantou, cruzou o recinto até a porta e a abriu. Um policial impassível parado logo do lado de fora cumprimentou-o com um educado aceno de cabeça, e o professor vol­tou a fechar a porta sem uma palavra.

Talvez fosse melhor estar morto — Gassan murmurou, como se para si mesmo. — Morto, famoso e relevante. Será isso preferível a um interlúdio sem duração definida? Eu não sei. Não sei.

Professor — Kennedy disse —, sei que tem sido duro para o se­nhor. Mas, como sabe, ainda estamos conduzindo o caso. Quanto mais o senhor puder me dizer, mais chances vamos ter de acabar com isso e devolver o senhor à sua vida normal.

Gassan ofertou-lhe um olhar de absoluto desdém.

Isso seria um grande consolo — disse ele acidamente —, não fos­se um absurdo completo. Essa gente vem e vai conforme quer e mata quem quer. A única coisa que está me mantendo vivo é eu ter dito não ao Barlow quando isso contava, e agora eles devem ter assinalado meu nome em alguma enorme tábua de pedra como "pode ser ignorado". Que Deus me ajude se um dia mudarem de idéia quanto a isso.

Eles não são onipotentes — Kennedy disse. O fatalismo do pro­fessor a enervava, chegava até a repugná-la, mas ela tentou manter a expressão e o tom neutros.

Podem muito bem ser. Alguém que eles tenham tentado matar ainda está vivo?

— Eu. Acho que eles me queriam morta. — E Tillman, é claro. Mas ela não colocaria Tillman nessa conversa.

Com todo o respeito, eles matam sábios. Pessoas que sabem e compreendem. Só arranjam encrenca com gente do seu tipo quando vocês acidentalmente cruzam o caminho deles.

O que pretendo fazer outra vez — Kennedy respondeu, carran- cuda. — E repito, quanto mais o senhor puder me dizer, mais chances vou ter de encontrá-los e puni-los. — Ela pretendia parar por ali. Foi a crueldade que a fez prosseguir. Estava exasperada, apesar do esforço para controlar-se, pela linha que Gassan desenhara entre as "pessoas que entendiam" e os policiais estúpidos e trabalhadores. — A única alternativa, professor, é o senhor passar o resto da vida em lugares como este, fugindo de um castigo que talvez nem aconteça. Como o Salman Rushdie ou o Roberto Saviano... só que eles estavam fugindo porque escreveram algo que causou impacto no mundo. O senhor não teria nem mesmo esse consolo.

Ela parou. Gassan estava olhando para ela, metade chocado, me­tade admirado. Ela pensou, por um momento ou dois, que ele sairia correndo do recinto e ficaria quieto em seu canto, como Tillman ha­via feito agora (com uma razão muito melhor), e a forçaria a se virar sozinha.

Em vez disso, o professor assentiu. E então, com uma calma im­pressionante, até mesmo com humildade, ele veio e se sentou diante dela novamente.

Você está certa — disse. — Se sou irrelevante, é porque agi de forma a me tornar irrelevante. Eu não deveria reclamar. E acabo sen­do parte do processo de qualquer forma, não é? O mínimo que posso fazer é agir como um secretário do Stuart Barlow, já que rejeitei todos os papéis mais glamorosos disponíveis. Vá em frente, sargento Kenne­dy, vá em frente. Me ensine. Me interrogue. Me intimide e me humi­lhe. Me bata, até, se quiser. Isso, pelo menos, seria novidade. Sim. O Barlow traduziu um evangelho para outro evangelho. Depois que 500 anos de estudos acadêmicos fracassaram em fazer isso.

Kennedy soltou a respiração num longo suspiro.

Mas esse novo evangelho — o que ele encontrou quando deci­frou o Códice do Rum — é algum que não era conhecido antes?

Exatamente. É único. Um evangelho jamais descoberto datan­do, provavelmente, do primeiro século depois de Cristo.

Dá para dizer isso com certeza? O Rum era medieval.

O próprio Rum era só uma tradução, como você já sabe. Quando o Stuart saiu procurando pelo documento fonte, o original a partir do qual a tradução foi feita, ele foi direto aos primeiros códices e aos ro­los que os precediam imediatamente — o Nag Hammadi e os Papiros de Rylands. E usou uma chave de código que já havia observado, em fragmentos minúsculos e torturantes, nos Manuscritos do Mar Morto. Ele obteve muito com que trabalhar. Na verdade, o problema dele era ter opções demais. Aqui. Já viu algo assim antes?

Ele abriu o caderno e folheou algumas páginas, depois o virou para ela. Kennedy viu-se lendo uma lista curta de itens.

P52

P75

NH II-1, III-1, IV-1

Eg2

B66, 75

C45

Sim — ela respondeu. — Essa lista estava escrita no verso de uma fotografia que o Stuart Barlow escondeu debaixo do piso do es­critório dele. O que significa?

Gassan fechou o caderno novamente, como se considerasse des­confortável que alguém mais examinasse seu conteúdo, ainda que ele tivesse prometido revelar a ela tudo o que obtivesse.

Todas essas letras e números são abreviações — ele disse — de rolos e códices em localizações específicas. O prefixo P indica os Papi­ros de Rylands, B indica Bodmer e C, a Coleção Chester. NH, é claro, é o Nag Hammadi. Imagino que você consiga adivinhar o que todos esses documentos específicos têm em comum. Ou será que estou es­perando demais?

Kennedy pensou no Rum.

São todos cópias primitivas do Evangelho de João — ela arriscou.

Exatamente. O Evangelho de João ou, em alguns casos, o Apó­crifo de João, um texto relacionado. Alguns são completos, alguns são parciais, e alguns de fato muito desconexos. Mas são todos de João. Não sabemos qual dos rolos que o Barlow examinou revelou ser a fonte do Rum, mas podemos inferir que era uma cópia do Evangelho de João — completo ou quase completo, datando do final do primeiro século ou do começo do segundo século da Era Cristã.

E é aqui que eu me perco — Kennedy admitiu. — Como é que passamos do Evangelho de João para esse outro texto?

Por meio de um código, é claro. — A resposta foi abrupta, afir­mando o óbvio. — Que era a razão do trabalho do Barlow e o âmago da descoberta dele.

Kennedy estava tentando pensar em uma maneira diferente de formular a mesma pergunta. Sabia que era um código: o que preci­sava entender era a mecânica desse código, o funcionamento básico do que estava sendo codificado ali. Gassan percebeu sua hesitação e suspirou.

Muito bem — ele disse. —Ab initio. Sargento Kennedy, acredito que expliquei a você, da primeira vez que nos encontramos, que um códice é um texto de múltiplas partes.

O senhor disse que dois ou três livros ou documentos separados poderiam ser costurados juntos num único códice — ela respondeu.

Exatamente. O mundo antigo não tinha um conceito de integri­dade ou separação da mensagem. O papiro era escasso e de fabrica­ção cara, então se usava o que se tinha. Se tal coisa significasse juntar assuntos completamente díspares, colocando um diálogo de Platão junto de um tratado bíblico, isso era feito sem o menor escrúpulo. Os escribas nem começavam uma nova página: simplesmente passavam de um documento direto para outro, escrevendo-os um atrás do ou­tro. Então, quando os estudiosos olharam para o Rum, foi isso que viram. O Rum era o Evangelho de João completo com sete versos de um evangelho diferente no final. Pareceu natural assumir que alguém havia pegado um códice em aramaico e começado a traduzi-lo, come­çando pelo começo e prosseguindo até que, por alguma razão, essa pessoa foi interrompida.

Certo.

Mas suponha que esses dois textos — ou o texto principal e o pequeno fragmento do segundo — tivessem sido juntados por uma razão diferente? Se você estivesse solucionando um anagrama, talvez escrevesse a versão original de forma a poder visualizar e deslocar as letras até encontrar a solução. Por exemplo, "esse poder" e em seguida a resposta, "desespero". Ou "senda de rei", e a resposta, "serenidade". E, de forma similar, alguém que receba uma mensagem codificada pode escrever a chave do código primeiro e a mensagem cifrada a seguir.

Então, o Evangelho de João era a chave?

Uma cópia específica do Evangelho de João era a chave. Como eu disse, não fui capaz de determinar qual cópia. Quem quer que te­nha escrito o Rum deve ter encontrado essa versão, essa cópia escrita de João, e alguém deve ter lhe dito como o código funcionava, ou en­tão o escritor conseguiu descobrir isso por conta própria. Ele -— muito provavelmente era um homem — anotou o significado aparente do texto e depois começou a decodificar a mensagem, a escrever o texto oculto nela. Mas descobriu que a tarefa era árdua: mesmo sabendo o que sabia, só teve sucesso em decodificar sete versos antes de desistir.

Ou, o que é igualmente possível, ele mudou para um pedaço de papel diferente. E já que não escreveu a chave do código, o resto da mensa­gem se perdeu.

Entendi — disse Kennedy.

Fico muito feliz. E por séculos depois esse status quo permaneceu inalterado. Até que o Stuart Barlow apareceu e, alertado por alguma pista ou algum salto de lógica ou intuição, começou a examinar bem de perto os textos do Nag Hammadi e esses outros documentos pri­mitivos. Ele encontrou a versão relevante de João. E encontrou, no próprio papiro, algum tipo de código de substituição que dependia de variações sutis, quase invisíveis, dos formatos-padrão das letras. Encontrou uma segunda mensagem codificada com os mesmos símbolos: um evangelho oculto sob o evangelho óbvio.

Gassan levantou-se e foi até a janela. Olhou para fora ansiosamen­te, embora não houvesse nada para ver: a janela dava para uma pe­quena área aberta no interior do edifício, um paredão de tijolos com 2,5 metros de um lado. Kennedy esperou um minuto ou dois e então se juntou a ele. Sabia quão frustrado Gassan estava por seu isolamento forçado — e, por baixo disso, quão aterrorizado se sentia porque, ao assumir o projeto Rum, fora contaminado como por uma maldição. Kennedy teria gostado de tranquilizá-lo, mas o único conforto que poderia oferecer era desesperador — que, depois de a Fazenda do Pombal ser varrida da face da terra e Josh Combes ser transforma­do numa oferenda em chamas, Michael Brand havia desaparecido no buraco que normalmente habitava, onde quer que fosse. Talvez todos estivessem a salvo agora simplesmente porque não ofereciam a Brand uma ameaça digna de crédito.

Ela olhou para o nada ao lado de Gassan.

Então, cada letra, cada símbolo no papiro era na verdade duas letras? — perguntou.

Essencialmente, sim. Cada letra tinha um significado-padrão e um significado codificado. — Ele não se virou para olhar para ela, mas seu tom de voz, indiferente no começo, tornou-se mais incisivo enquanto explicava as tecnicalidades. — O código usa uma combi­nação de dois aspectos que são completamente metatextuais. O pri­meiro é o número de traços adicionais usado para escrever as letras. Por exemplo, a letra aramaica heh. — Gassan desenhou a letra na condensação da janela. — E tipicamente desenhada como um único traço com um ângulo agudo e uma curva, depois um traço inferior separado. Dois movimentos separados do pincel ou buril, percebe? Mas é possível para o escriba erguer o instrumento de escrita do pa­piro duas vezes enquanto faz o traço complexo. Ou só uma. Ou ele pode fazê-lo como uma única forma contínua, sem erguer o pincel nenhuma vez. Isso nos dá três estados da mesma letra. E o próprio traço simples, de forma similar, poderia ser feito com um ou dois movimentos: a ferramenta poderia ser deixada em repouso na metade do caminho, criando um leve adensamento da linha. Isso nos dá três estados — duas vezes três.

"O outro aspecto é o comprimento relativo dos traços dentro de uma letra, em que os estados possíveis são, explicando de forma obje­tiva, curto, médio e longo. Em heh, o traço simples tipicamente desce mais do que os braços curvos do traço complexo de cada lado. Mas também pode parar no mesmo nível, ou não descer tanto, permane­cendo acima dos braços. Agora temos pelo menos dezoito estados da letra: provavelmente mais, já que a tabela de comprimento compara­tivo também traz uma distância comparativa entre um e outro aspecto da letra, ou possivelmente entre cada letra e a próxima."

Kennedy pensou a respeito dessa perspectiva ligeiramente vertigi­nosa, esforçando-se para compreendê-la.

E cada um desses... estados, como o senhor diz...

Corresponde, dentro do código, a um símbolo diferente. Então esse heh pode se tornar gamal, ou daleth, ou zain. Ainda seria lido como heh no texto de origem, mas seria outra coisa completamente diferente no texto decodificado.

Por que alguém faria isso? — Kennedy perguntou. — Um evan­gelho não deveria espalhar as palavras de uma religião? Se você escon­de o evangelho, então ele meio que perde o sentido, né?

Gassan bufou pelo nariz.

Há muitos textos estenográficos — mensagens ocultas — desse período, sargento. As primeiras seitas cristãs estavam em guerra umas contra as outras, e freqüentemente contra os governos locais também. Tinham todas as razões do mundo para esconder mensagens.

Mas esconder uma mensagem cristã dentro de outra...

... sugere que os cristãos, ou talvez um grupo específico de cris­tãos, eram o público-alvo aqui, não? Com um código como esse, você poderia disseminar um evangelho e escondê-lo ao mesmo tempo. E seus leitores poderiam levar a mensagem a todo lugar sem precisar temer pela própria vida. Qualquer um que examinasse o texto veria apenas o Evangelho de João: canônico, irrepreensível.

Ao passo que a mensagem oculta é uma heresia?

E seguro afirmar, sargento, que a mensagem oculta é heresia na escala mais excitante imaginável.

Então, que diabos ela diz?

Você não leu? — Gassan virou-se da janela finalmente para lan­çar a Kennedy um olhar de indignação horrorizada.

Li algumas das partes que já haviam sido ajustadas na forma de texto. Não pareciam ser nada de especial, só Jesus falando com os dis­cípulos, na maior parte do tempo. Não consegui me orientar com os arquivos; havia muitos e todos pareciam ter centenas de páginas.

Gassan hesitou: sua desaprovação por ter que fazer um resumo de tudo lutava contra seu desejo de subir ao palanque e fazer um discur­so. No final, era uma batalha vencida.

Você vai caçar essas pessoas? — ele perguntou. — As pessoas que mataram o Barlow e a Catherine Hurt e os outros?

Sim.

Então, suponho que precise saber o que vai enfrentar. Mas você vai perder. Tenho o dever de deixar isso claro desde o início.

Obrigada, professor. Pelo voto de confiança, quero dizer.

Acredite em mim, sargento, eu gostaria que fosse de outra for­ma. Se você pudesse derrotá-los, eu poderia voltar a viver uma vida digna de ser chamada assim. Mas então, é claro, se pudessem ser derrotados...

Ele caminhou de volta para o centro da sala, tocou a capa do cader­no negro e depois a mesa, como que para certificar-se de que tanto as palavras como o mundo ainda estavam onde ele os havia deixado.

Se pudessem ser derrotados?

Ele se virou para olhar para ela, a expressão desolada.

Bom, então eles não estariam por aí até hoje, não é? Não de­pois de todos estes séculos. Se fossem vulneráveis em qualquer aspecto concebível, alguém já teria acabado com eles.

 

O xerife Gayle pegou Kennedy na frente do hotel às 9 horas da ma­nhã seguinte. Na noite anterior, quando ele a levara de volta ao ho­tel, usara uma viatura policial. Agora, estava dirigindo um carro só um pouquinho menor do que uma quadra de futebol, em duas cores, igualmente dividido entre azul-celeste e marrom ferrugem. Em al­guns pontos havia verdadeiros buracos na lataria.

Vendo a expressão dúbia dela, Gayle apressou-se em assegurar que o carro os levaria aonde queriam ir.

— Ele nunca me deixou na mão até hoje, sargento. Se houvesse espaço para isso no cemitério, acho que eu pediria para ser enterrado com ele.

O cenário aqui era mais achatado e menos dramático do que ao longo das margens do Colorado, mas Kennedy experimentou a mes­ma sensação de que tudo tinha escala colossal enquanto saíam de Pea­son usando a Estrada Interestadual 93. Montanhas distantes à direita empilhavam-se, camada sobre camada como a arquibancada de pedra de um anfiteatro gigantesco. A esquerda, o horizonte formava uma única curva perfeita. A Estrada 93 desenhava a linha divisória, um ato humano de organização que rivalizava com o ato de Deus ao separar as águas acima das águas abaixo. Na maior parte da jornada, o carro deles foi o único na estrada.

A cidade de Santa Claus, no entanto, era o anti-clímax das aspira­ções humanas. Em seu auge, Gayle contou a ela, o lugar tivera uma população de dez mil pessoas: agora, era um punhado de chalés forçadamente graciosos como os de um filme da Disney que, aos poucos, era reivindicado pelo deserto. Haviam sido pintados de forma a pa­recer com casas de pão de gengibre: paredes com listras vermelhas e brancas; varandas rosa-bebê; postigos de um verde berrante com topo arredondado e permanentemente aberto. Tudo estava em decadência. Um Papai Noel leproso espiava de um alpendre cujas colunas inclina­vam-se para os lados como costelas rachadas. Tiras gêmeas de metal esmerilhado, unidas por uns poucos dormentes que restavam da linha férrea, estavam visíveis aqui e ali entre as construções arruinadas: pareciam ter sido instaladas para transportar uma mini-locomotiva

vermelha que agora jazia apoiada ao lado de uma casa, abandonada para sempre, com seu limpa-trilhos meio enterrado na areia.

De cada-lado da rua havia um outdoor publicitário perfeitamente cuidado. O do lado sul anunciava computadores, e o do norte — no qual o Papai Noel leproso fixava seu sorriso hediondo —, fraldas ge- riátricas. Logo além desse segundo painel, para onde o xerife Gayle estava apontando agora, havia uma fila de galpões com teto de alumí­nio, parecendo hangares de aeronaves em escala reduzida.

O terceiro é o nosso, sargento — ele disse. — A não ser que a senhora queira ir contar ao Papai Noel o que quer ganhar de Natal.

O que toda menina quer — Kennedy respondeu, colaborando com a piada. — Um pônei, uma Barbie e paz mundial.

Muito bem — Gayle disse, seguindo na frente. — Acho que o velhote piscou para você, então provavelmente há esperança. Tá bom, vamos ver o que temos aqui.

Ele tirara o pesado molho de chaves do cinto e estava procurando a chave certa, lenta e cuidadosamente. Por fim, selecionou uma grande de latão com uma concavidade vazia e inseriu-a no buraco da fechadu­ra, que era perfeitamente circular. Não a virou, apenas a pressionou e depois a tirou. Houve um som metálico de dois tons: tchik-clunk. Gayle empurrou a porta de metal para o lado em seus trilhos, e eles entraram num espaço escuro tão quente quanto o interior de uma fornalha.

Tem um aparelho de ar-condicionado aqui — Gayle disse, tatean­do em alguns interruptores na parede logo ao lado da porta. — E só esperar alguns minutos antes de entrar que ele vai funcionar.

Vou ficar bem — Kennedy respondeu. Quando as luzes se acen­deram, ela foi em direção ao espaço largo e sem separação entre cômo­dos. Era um único depósito, com longas estantes de metal dividindo-o em corredores. No canto mais próximo ela viu uma mesa com duas pastas em tamanho A4, uma azul e outra vermelha.

As prateleiras estavam cheias de caixas, sem dúvida compradas em massa de uma empresa de soluções em armazenagem cujo logo todas exibiam: EZ-Stack. Cada uma tinha também um número, e Gayle ago­ra folheava a pasta mais próxima sobre a mesa, a azul, para mostrar a ela a lista de itens.

Ele passou uma página ou duas, encontrou a letra B e percorreu a margem esquerda da página com o dedo.

Michael Brand, Michael Brand, Michael Brand — resmungou. — Aqui está. Caixa número 161.

As caixas haviam sido dispostas seqüencialmente, e cada uma delas estava no lugar certo, então encontrar a 161 foi tão simples quanto andar pelo segundo corredor até o ponto certo e tirá-la da prateleira. Gayle a trouxe para a mesa, onde a colocou, balançando a cabeça para Kennedy.

Fique à vontade, sargento.

Ela tirou a tampa do objeto e olhou seu interior.

Cada um dos itens ali havia sido embalado individualmente. A maior parte eram peças de vestuário: camisas, calças, casacos, cuecas e meias. Recobertos por plástico anódino, era como se — à primeira vista — ti­vessem acabado de vir da lavanderia. Mas a lavanderia havia feito um péssimo trabalho, deixando manchas de sangue vermelho-escuras aqui e ali em praticamente tudo.

No fundo da caixa, debaixo das roupas arruinadas, ela encontrou um parco sortimento de objetos. Um recibo de loja, também mancha­do de marrom-avermelhado num canto: relacionava um jornal e uma embalagem de chiclete Big Red, pagos em dinheiro numa das bancas da Walden Books no Aeroporto de Los Angeles. Um pente de plástico preto. Uma carteira, já esvaziada. Um saco separado contendo notas de dinheiro e moedas que haviam sido encontradas na carteira, no valor total de 89,67 dólares. Um pacote aberto de guardanapos de papel. Uma embalagem aberta de goma de mascar sabor canela, presumivelmente a que fora descrita no recibo. E era isto: a totalidade dos bens terrenos de Michael Brand.

Nenhum passaporte — Kennedy comentou. Não tivera grandes expectativas, mas se sentia um tanto desanimada mesmo assim.

As coisas do voo se espalharam por um longo pedaço de chão, sargento, e isto é um deserto. Provavelmente o passaporte ainda está em algum lugar lá fora. A não ser que alguém o tenha pegado e en­tregue numa delegacia de polícia local, ou guardado como suvenir, ou vendido. Mas o passaporte foi escaneado quando ele embarcou no voo. Toda a informação que continha está registrada.

Eu sei — Kennedy respondeu. — Não estava pensando exata­mente no passaporte em si.

Um canhoto de bagagem despachada?

Sim, isso.

Já fizemos a referência cruzada de todas essas coisas, trabalhan­do com as declarações de voo que a Coastal Airlines nos mandou. O Brand não despachou nenhuma mala. Não havia nada dele no bagageiro do avião.

Com a permissão de Gayle, Kennedy colocou luvas e examinou os resultados desapontadores. Ela virou o recibo, certificando-se de que o anverso estava em branco: nada de mensagens ocultas ou listas enigmáticas. Cutucou o fundo da carteira, procurando por pedaços de papel que tivessem passado despercebidos, costuras rasgadas nas quais algo poderia ter sido escondido, inscrições ou marcas no próprio couro da carteira. Não havia nada.

Alguém havia marcado uma das cédulas de dólares, contudo: três linhas paralelas desenhadas com caneta vermelha, indo do topo, no centro, até o canto inferior direito. Alguém havia tentado cruzar a face de Benjamim Franklin e errado por pouco mais que um centímetro. Kennedy refletiu acerca da nota por um tempo, depois desistiu dela.

E quanto às coisas que ninguém descobriu de quem eram? — ela perguntou a Gayle.

Tem muitas delas — ele respondeu. — Caixas e mais caixas, ocupando a maior parte do último corredor. Estamos falando de uns bons seis ou sete mil itens. Não acho que haja horas suficientes no dia para a senhora verificar tudo.

Há uma lista?

Definitivamente, temos uma. E a segunda pasta. A vermelha.

Kennedy leu a lista por cima, procurando por qualquer coisa que pudesse se destacar do resto. Um número de coisas chamava aten­ção por um momento, talvez um pouco mais: parte de um unicórnio de vidro; medalhão com caveira e folha de maconha; consolo decorado com estampa de estrelas e listras. Mas como ela poderia saber o que Michael Brand estivera carregando ou o que isso teria significado para ele? De forma mais relevante, ela notou cerca de três dúzias de telefones celulares cujos proprietários não haviam sido identificados — mas, quando chegou a essa página e ergueu o olhar para o xerife Gayle, ele balançou a cabeça negativamente antes que ela pudesse sequer formular a pergunta.

Não posso deixar a senhora ligar nenhum desses aparelhos, sar­gento — ele disse. — E ilegal fazer isso sem um mandado, e não há jei­to de eu conseguir um sem expor a causa provável — e não existe nem um pingo disso, na verdade, em relação a qualquer uma dessas pes­soas. Nem mesmo para o seu Michael Brand, para dizer a verdade.

Não — Kennedy concordou, relutante. — A maior parte disso é mais intuição do que qualquer outra coisa.

E intuição é uma coisa ótima. Eu não aceitaria que ninguém fa­lasse nada contra intuição — mas isso limita meu alcance, se entende o que quero dizer. Há coisas que posso e que não posso fazer.

Kennedy quase riu. Aquelas palavras poderiam ter saído da boca dela — antes de ter conhecido Tillman e mergulhado naquela encren­ca, indo tão longe que não conseguia mais ver terra firme.

Entendo totalmente, xerife — foi tudo o que disse, ainda segu­rando o saco plástico de prova que continha o dinheiro de Michael Brand. Ela o ergueu e o mostrou a Gayle. — Escute, será que posso tirar uma fotocópia desta nota aqui? A que tem as linhas vermelhas?

Certamente. Me deixe registrar a retirada dela aqui e podemos levá-la à cidade agora mesmo. A Coonie pode fazer a cópia para você enquanto vamos até o necrotério. Por que, está vendo algo de especial nessas linhas?

Um código, talvez. As pessoas com as quais estamos lidando pa­recem gostar de códigos. Pode acabar não dando em nada. Provavel­mente não vai. Mas quero analisar mesmo assim.

Gayle preencheu solenemente um formulário, que tirou da pri­meira gaveta da mesa, furou-o com um furador de papéis (segunda gaveta) e inseriu-o no arquivo de provas. Então — logo agora que o aparelho de ar-condicionado estava começando a exercer algum tipo de impacto sobre o ar hiperaquecido do grande hangar — eles saíram, de volta ao deserto.

 

— Então, quem o senhor diria que são os grandes vilões na Bíblia? — o professor Gassan perguntou. Ele estava de pé diante da mesa como se diante de um púlpito, ainda que as únicas pessoas na sala fossem eles dois. Velhos hábitos eram duros de matar: ou talvez fosse apenas sua forma de definir um status relativo a ela.

Kennedy estava com ainda menos vontade de ter uma sessão de estudos bíblicos do que estivera da primeira vez que conversaram. O brilho nos olhos do professor oprimia seu espírito mais ou menos da mesma forma que o de uma serpente supostamente paralisaria um coelho. Mas ela suspeitava que essa era a única forma que Gassan co­nhecia de lhe dar o que ela precisava saber — e a única forma de ele se manter funcional, apesar dos medos e conflitos interiores.

Caim — ela arriscou. —Judas. Pôncio Pilatos. Ou o senhor quis dizer tribos, como as que não conseguiam dizer "xibolete"?

Não, eu quis dizer indivíduos. E Caim e Judas eram os dois que eu tinha certeza de que você mencionaria. A maioria das pessoas men­cionaria esses dois nomes, acho. A maioria das pessoas, isto é, fora da tradição gnóstica. Já ouviu falar dos gnósticos, eu presumo?

Ele olhou duramente para ela, sinalizando que, apesar da impaciên­cia dela, ele chegaria à questão no momento que julgasse melhor.

Seita cristã primitiva — Kennedy respondeu. — O livro do Stuart Barlow, aquele do qual a pesquisa sobre o Rum acabou saindo, deveria ter sido um estudo sobre essa seita.

Exatamente. Mas digamos seitas, no plural. Havia muitas delas, com algumas crenças em comum. Os gnósticos eram a oposição. Ex­tremistas religiosos. E já eram assim muito tempo antes de Cristo sur­gir: ele apenas deu a eles um novo foco e um novo ímpeto. Abraçaram os ensinamentos de Jesus porque Jesus estava pronto para pôr a mão no vespeiro. Eles devem ter sentido que haviam encontrado um líder espiritual exatamente como eles.

"Os gnósticos partiam do princípio de que a maior parte da Bíblia — a Bíblia inteira, na verdade, da forma como foi entregue — era um completo absurdo. Os garranchos de pessoas que não entendiam realmente os milagres dos quais estavam falando. A palavra 'gnóstico' vem do grego gnosis, que significava 'conhecimento'. Essas seitas acreditavam que havia uma verdade oculta por trás de tudo: por trás do mundo e por trás da palavra. Quando Deus falou com o homem, como falou com Adão, depois com Moisés e mais tarde com os profetas do Novo Testamento como João Batista. Ele não pretendia, nunca, em nenhum momento, entregar verdades simples e inequívocas, pois o universo não é um lugar simples, e a verdade é uma coisa complexa que precisa ser escondida dos olhos e ouvidos dos vulgares."

Quando o senhor diz "verdade oculta" — Kennedy perguntou —, está falando de códigos? E essa a questão aqui?

Gassan ergueu uma sobrancelha austera com a interrupção. Uma pontada de valentia rastejou pela voz dele.

A questão, sargento Kennedy, é que seus inimigos — as pessoas que mataram seu parceiro e a equipe do Stuart Barlow — não com­partilham da sua visão do mundo. Estou tentando fazer com que você os veja como eles são, sem os erros de paralaxe que impõe com seus próprios valores. Não, não quero dizer códigos. Eles são apenas uma pequena parte do que estou dizendo. Os gnósticos realmente usavam chaves, e claramente a chave que o Barlow encontrou tem que ser in­terpretada nesse contexto. Mas essa gente via o todo do mundo criado como uma mensagem oculta colossal: a vontade e a palavra de Deus, expressada em outras coisas. E acreditavam que a maior parte das escrituras sagradas era somente... estimativas grosseiras de uma men­sagem que a grande massa de pessoas nasce sem a capacidade de com­preender. Estou dizendo isso porque o que vou dizer a seguir soaria estranho sem esse preâmbulo. Na tradição gnóstica, os heróis e vilões da Bíblia não são aqueles que você mais provavelmente identificaria.

Eles acham que Jesus foi para o lado negro da Força?

Não, a tradição gnóstica é muito gentil com Jesus. E com Deus que eles têm um problema.

Kennedy sorriu e deu de ombros: Estou ouvindo.

As seitas gnósticas acreditavam que o criador e soberano do nos­so mundo, normalmente adorado como deus supremo e fonte de toda a bondade, era na verdade um ser muito inferior — uma entidade falha às vezes conhecida como Laldabaoth. O verdadeiro deus está em algum outro lugar, muito acima das nossas percepções e do nosso plano de existência.

Espere — Kennedy pediu. — Se esses gnósticos eram cristãos renegados, ou judeus renegados, ou qualquer coisa assim, então eles tinham que acreditar que Deus fez o mundo. Isso está na Bíblia, mes­mo para quem não consegue ler mais que o capítulo 1.

Certamente, um deus fez o mundo. Mas qual deus? Lembre-se, essas são pessoas que têm orgulho de ler nas entrelinhas, de encontrar os significados que os ignorantes não percebem. Nos ensinamentos de­les, o Deus supremo é um ser de bondade e pureza transcendentes, que não habita pessoalmente o universo das coisas criadas. Dentro des­se universo — o nosso Universo —, há seres de grande poder: seres que seriam como formigas se comparados ao Deus supremo, mas ainda pareceriam deuses para nós. Um desses seres, como quer que você de­cida chamá-los, fez o mundo. E ele fica muito feliz em reivindicar nossa adoração, ainda que, na opinião dos gnósticos, ele não a mereça.

Por que não?

Por que não o quê, sargento? Por favor, formule suas perguntas como frases completas.

Kennedy rangeu os dentes, não gostando nem um pouco disso. Uma trilha de homens e mulheres assassinados não deveriam levar a uma sala de aula, especialmente uma em que era necessário levantar a mão antes de falar.

Por que o deus-que-fez-o-mundo não merece ser adorado? — perguntou ela friamente.

Porque ele fez um péssimo trabalho de criação. Porque ele fez o mal, a doença, a pobreza e a fome; o balanço imperfeito das estações, que faz com que a gente morra por excesso de frio ou de calor; en­chente e fogo e pestilência e todos os outros males. Francamente, os gnósticos consideravam o mundo uma obra grosseira e não estavam interessados em dar tapinhas nas costas do criador e dizer a ele quão maravilhoso era. Estavam olhando para cima, para longe dele, para a esfera de perfeição além — à qual chamavam, alguns deles, às vezes, quando a maculavam com um nome, de reino de Barbelo.

"Lida dessa forma, e com Yahweh encarado — na maior parte do tempo — como outro nome para o deus imperfeito, limitado e limita­dor do mundo decaído, a Bíblia se torna uma história muito diferente.

Essas figuras bíblicas que são modelos de obediência tornam-se tolos e vetores de insensatez, que devem ser evitados em vez de reveren­ciados. Adão é um covarde que se submeteu prontamente. Eva é uma alma valente que olha além da cortina e se atreve a quebrar as regras."

E é punida por seus pecados.

Ah, os dois são punidos, sargento. Assim como os filhos inocen­tes deles, e os filhos dos filhos, e por aí vai. Deus — o deus inferior, Laldabaoth — é um sádico e um psicopata: o fato de uma pessoa fazer como ele ordena não serve como defesa contra o senso de justiça ex­travagante dele. Então, os heróis do Gênese são a desobediente Eva, a sábia serpente que a ensinou e Caim, o filho rebelde. E, quando che­gamos a Jesus, a perspectiva moral muda ainda mais radicalmente.

O senhor disse que Jesus ainda era visto como herói.

Ah, sim.

O filho de Deus.

O filho de... ?

Kennedy expirou pesadamente.

O filho do deus grande e puro. Não do maldoso.

Exatamente, sargento. Jesus veio de Barbelo, trazendo sua pre­ciosa sabedoria para o mundo decaído. E embora ele tenha morrido por isso, a morte também era parte do plano. E bem parecido com o Novo Testamento que você já conhece e ama, eu imagino.

É familiar — Kennedy admitiu.

Bom, não fique confortável demais nessa noção. Em 1983, em Genebra, um intermediário profissional — não um receptador, falan­do estritamente, mas alguém que conhecia receptadores e fazia um trabalho amplamente similar ao deles — ofereceu para venda a corpos ou instituições interessadas um documento. Um códice. Uma antigüi­dade inestimável. Era um evangelho perdido.

O senhor me disse que havia centenas dessas coisas por aí, professor.

Não como esse. Esse era o Evangelho de Judas.

O Judas? O Judas Iscariotes vira-casaca? O homem que traiu o Messias?

Ou — disse Gassan, fazendo algo semelhante a um floreio teatral — o homem que se tornou o Messias.

Ele concedeu uma pausa de efeito dramático que provavelmente foi mais longa do que o necessário. Kennedy esperou que ele conti­nuasse, cansada do papel de coro que ele lhe destinara. Finalmente, com uma fungada austera, como um homem que estivesse jogando pérolas aos porcos, o professor prosseguiu:

O assim chamado Evangelho de Judas — O Códice Tchacos, para informar a designação oficial — é um documento pavorosamen­te danificado. E a maior parte do dano veio quando o idiota que o desenterrou e os amigos, agentes e dirigentes saíram arrastando o documento ao redor do mundo numa tentativa de vendê-lo e fazer fortuna. Fizeram tudo o que não se deve fazer com um papiro frágil, exceto, possivelmente, limpar o traseiro com ele. Eu perdoaria você se pensasse que alguns dos portadores temporários dele na verdade queriam destruí-lo em vez de preservá-lo.

"Então, o Evangelho de Judas, como o temos — como o temos no Códice Tchacos —, está numa forma muito fragmentada. Apenas treze páginas das trinta e uma originais sobreviveram, ainda que parcial­mente, e a decadência e desintegração foram extremas. Mesmo assim, sobrou o suficiente pra deixar claro que a obra em si deve ser de fato um documento assombroso."

Assombroso em que sentido? — Kennedy quis saber.

Ele fora o relacionamento entre Judas e Cristo — e retrata esse relacionamento como único e intenso. De fato, os outros onze dis­cípulos aparecem mais como alívio cômico. Não entendem nada da verdadeira missão de Jesus na terra, e a má interpretação por parte deles faz com que Jesus seja um tanto irritado e sarcástico com eles em diversos momentos. Judas, por contraste, entende — capta a men­sagem sem que ela seja dita. Ele é um gnóstico: um dos muitos tipos e variedades diferentes. Pertence a um culto já antigo e lê nas entre­linhas da Bíblia. Sabe que grandes verdades devem ser escondidas e sabe por quê. Consequentemente, é a Judas que Jesus confia a parte mais delicada do plano dele.

Quer dizer que Jesus na verdade queria...

Sim, sargento. Jesus pede a Judas que o traia. Isso era essencial para a missão dele. Jesus devia sofrer e morrer para que a mensagem nunca se perdesse. Devia ser atacado e destruído por alguém próximo a ele e em quem confiava: o poder dessa narrativa seria o veículo por meio do qual os ensinamentos dele seriam espalhados pelo mundo. Judas foi um colaborador ativo no plano completamente calculado de Cristo.

Tá bom — Kennedy disse. — Admito, é uma bela história. Im­pressionante, até. Mas não é algo que faria alguém matar, é?

Já foi. Irineu falou explicitamente contra o Evangelho de Judas em Adversus Haereses, do qual já falamos. Atanásio de Alexandria falou em termos mais sinistros a respeito de "limpar a igreja da corrupção" causada por textos como esse. Pessoas realmente morreram por ler e disseminar o Evangelho de Judas. Morreram em grande número, e elas — quando digo elas, quero dizer as igrejas gnósticas, aquelas que professavam a fé da serpente, de Eva, Caim e Judas — acabaram desaparecendo da história.

"No mundo moderno, contudo... Bom, o Evangelho de Judas, na for­ma truncada em que aparece no Códice Tchacos, já está em domínio pú­blico há muitos anos. A tradução que temos — tradução parcial, quero di­zer, com buracos pelos quais um ônibus poderia passar — data de 2006. Rodolphe Kasser e a equipe dele foram os autores, e o National Geogra- phic ajudou a financiar o trabalho. Ninguém nesse grupo, até onde eu sei, foi baleado, esfaqueado no coração ou atirado de uma escada."

Gassan parou novamente e sentou-se com um gesto de resignação, desistindo da charada. Talvez aquela referência à morte de Stuart Bar­low tivesse arruinado o prazer de exibir sua erudição.

Então, o que mudou? — Kennedy perguntou, enquanto Gassan fitava as próprias mãos, dobradas no colo dele.

O texto do Rum — o professor respondeu num tom de voz inteiramente diferente. — Ele é uma versão intacta do Evangelho de Judas. Além disso, tem anotações — instruções para quem quer que o levasse em relação ao que fazer, e ao que não fazer, com a mensagem.

Continue — Kennedy disse, pois naquele momento parecia que Gassan poderia finalmente chegar ao ponto principal do discurso e então se afastar dele, incapaz ou indisposto a elucidar o verdadeiro mistério.

Bom, entenda, sargento, se o plano de Jesus era morrer em agonia na cruz, o discípulo que entendia as necessidades dele bem o bastante para ajudar a executar esse plano era o maior de todos, e ele prestou um serviço infinitamente precioso à divindade. Se Cristo nos redimiu e nos salvou, foi por meio do sacrifício de Judas que ele foi capaz de fazer isso.

Sacrifício de Judas? — Kennedy repetiu, momentaneamente confusa. — O que é que Judas sacrificou?

Gassan encolheu os ombros como se a resposta fosse óbvia.

O respeito dos pares. A boa vontade do mundo inteiro. O veredito da história. E a vida dele, é claro, mas podemos imaginar que essa foi uma parte relativamente pequena da equação. Ainda assim, a morte de Judas se compara à de Cristo. E no evangelho completo — a versão do Rum, eu quero dizer, conforme traduzida pelo Barlow —, Judas recebe uma recompensa em troca do trabalho fiel que presta.

Trinta peças de prata?

Gassan sorriu ligeiramente.

Não. Esse é um evangelho diferente. O de Mateus, para ser preciso. Mas a figura de trinta realmente aparece, de forma a fazer parecer provável que Mateus estivesse se referindo a algo específico quando escolheu essa figura. Devo ler o texto para você?

Kennedy deu de ombros.

Desembuche — respondeu.

Gassan apanhou o caderno novamente.

Há uma versão digital — disse. — Um texto limpo, que vou mandar para você. Imagino que vá querer lê-lo inteiro antes de se aprontar e partir de novo para a batalha. Também mandei uma có­pia, com todas as anotações do Barlow e as minhas próprias, ao meu advogado, junto com uma carta dizendo a ele que publique tudo após minha morte. Depois disso não vou ter nada a perder, vou? E vou ter o direito de ter meu nome acrescentado à lista dos decodificadores do evangelho, se já tiver morrido por ele.

Ele se acomodou finalmente e leu em voz alta, de forma que boa parte da vivacidade tonai havia se esvaído:

"Então Judas disse a Ele: 'Tudo será feito como planejaste, oh, senhor'. E Jesus disse: 'Sim, ainda assim tudo será feito dessa forma. E tu serás insultado por aqueles que não te conhecem, mas serás elevado muito acima daqueles que te odeiam'.

'"E quando serei elevado, oh, senhor?'

'Jesus disse: 'Deste momento no qual falo contigo até o fim da se­mente de Adão, eles execrarão teu nome'.

'"Mas meu Pai deu o domínio à semente de Adão apenas por um certo tempo. E após esse tempo Ele os exterminará, para que o mun­do possa ser dado a ti e aos teus.'

"E Jesus deu a Judas trinta peças de prata, dizendo: 'Quantas prutahs de bronze te dei? Por muitos anos a semente de Adão desfrutará deste mundo: por muitos anos eles possuirão a terra. Mas depois se­rão abatidos, e o mundo pertencerá a ti e aos teus para sempre'."

O professor ergueu o olhar para Kennedy, talvez esperando uma pergunta. A única na qual Kennedy conseguiu pensar foi muito banal.

Qual é a resposta? — inquiriu ela. — Quantos sei lá o quês de bronze?

Três mil. Havia cem prutahs, ou moedas de bronze de baixo va­lor, num siclo. Três mil anos, depois é a vez de os filhos de Judas assu­mirem o comando.

Acho que ainda falta um tempo, pelo menos.

Gassan franziu o cenho.

Por que diz isso, sargento?

Mesmo que o evangelho tenha sido escrito logo depois que Jesus morreu — Kennedy respondeu, dando de ombros —, foram só 2 mil anos.

Verdade. Infelizmente, ninguém na Judeia daquela época conta­va os anos a partir de Cristo. Na Judeia e na Samaria, onde esse texto presumivelmente foi escrito, era costume contar os anos a partir da unificação das tribos, em 1.012 a.C. Três mil e vinte anos atrás, mais ou menos. Detesto jogar esse balde de água fria, mas nosso tempo acabou.

Kennedy fechou os olhos e os esfregou com o polegar e o indicador. A dor de cabeça ainda não havia chegado, mas ela podia sentir o come­ço de uma, formando-se como uma tempestade no topo de seu crânio.

Tá legal — disse ela. — Então, temos uma amostra da Bíblia gnóstica, e essa amostra já foi um grande segredo, muito tempo atrás. Estou acompanhando o senhor o tempo todo, professor. Mas tem uma coisa que ainda não entendi ao longo do caminho. Ninguém mata por uma palavra. Ou, pelo menos... não por uma palavra tão velha.

Os ânimos deprimidos de Gassan inflamaram-se em súbita irrita­ção, os braços abanando-se em arcos trancados e desairosos.

—Ah, pelo amor de Deus, sargento! Todo mundo mata por palavras! O que mais poderia motivar as pessoas a matar? Dinheiro? Dinheiro são as palavras de um governo dizendo que você vai ganhar ouro. Leis são palavras de juizes dizendo quem tem permissão para viver livre e quem não tem. Bíblias... Bíblias são palavras de Deus dizendo que você pode fazer todas as coisas horríveis, pavorosas que quiser, pois vai ser perdoada de todo jeito. Tudo se resume a palavras. E em todos os casos as pessoas que matam por elas são as que pensam que as possuem.

Ele pareceu perceber, subitamente, que sua voz estava alta demais na sala vazia e ecoante — quase um grito. Deu as costas para ela, en­vergonhado e ainda eriçado. Com um aceno vago de mão, ele indicou o caderno de anotações.

Leia — sugeriu. — Leia tudo. Não só o evangelho, mas as pa­lavras ao redor dele: as mensagens que o acompanham. Você precisa ver por si mesma.

 

O necrotério ficava longe, em Bullhead. Parecia que Peason não man­tinha nada dentro dos limites do município: era um tipo de cidade terceirizada.

Bullhead, no entanto, era diferente de Santa Claus. Era um centro urbano pequeno, mas movimentado, com um necrotério mais movi­mentado ainda. Kennedy mal pôde acreditar na quantidade de salas refrigeradas que o lugar possuía, quão ocupadas estavam e quantas portas já estavam marcadas como "lotadas". Entrando a partir do es­tacionamento, eles passaram por várias vans sem janelas com imensos equipamentos de refrigeração anexados a elas, e Kennedy já possuía horas suficientes em forças-tarefa diferentes para reconhecer o que eram: unidades móveis de refrigeração do tipo normalmente enviado para áreas de desastres com o objetivo de colocar um bocado de gente morta no gelo rapidamente e evitar a propagação de epidemias.

O que está acontecendo aqui? — ela perguntou a Gayle, quando passaram do asfalto escaldante para o frio do ar-condicionado.

Ele não entendeu o que ela queria dizer, então seguiu o olhar da detetive e grunhiu. Parecia prestes a falar, mas um assistente de jaleco branco que parecia ainda ser um adolescente já estava vindo na dire­ção deles, com um sorriso profissional e prestativo que aprendera com seu superiores e treinadores.

Te conto mais tarde — Gayle murmurou. — E meio que um assunto tabu por aqui.

Não estavam mais com o corpo de Brand naquele local, o assis­tente disse a eles sem necessidade. Fora liberado para o enterro três semanas atrás, embora, na verdade, as autoridades estaduais tivessem decidido cremá-lo, junto com os outros dois corpos do avião que ne­nhuma família viera reivindicar. Certamente o escritório do xerife já sabia disso, não?

Não viemos ver o corpo, filho — Gayle interrompeu-o. — Só o arquivo.

O arquivo é de acesso público. Está disponível via...

Sim, mas aquilo é só um resumo. Estou falando do arquivo com­pleto, com tudo a que tem direito, fotos e impressões e tudo mais. É da minha alçada, e o condado já aprovou, mas você vai querer checar com seu supervisor antes de nos deixar passar, e nós ficamos felizes em esperar enquanto você vai lá fazer isso, desde que não tire mais do que dois minutos do meu dia, que já é cheio.

Tendo o xerife roubado as falas do rapaz, este saiu apressadamente sem dizer mais nada. Kennedy ficou impressionada. O estilo de Gayle, cheio de um calor casual e nada de intimidação, mas com uma dureza implícita que aconselhava as pessoas a não mexerem com ele, parecera funcionar como um feitiço. Ela ficou feliz por não ter que atravessar aquele labirinto por conta própria.

O assistente voltou bem dentro de dois minutos. Ele os conduziu a um pequeno escritório sem janelas. Numa das paredes, o clássico pôster motivacional do gatinho segurando-se numa corda com a frase Agüente firme! fora pregado, com o acréscimo de uma mira de rifle sobreposta à cabeça do gatinho. Em vez da legenda original, o pôster trazia as palavras: Agüentar firme é bom demais para esse desgraçadinho. Necrotérios policiais tinham direito a praticar humor policial, que era sempre grosseiro.

O assistente usou seu login e senha para entrar nos arquivos di­gitais e pediu a eles — educadamente e sem jamais conseguir olhar Gayle diretamente nos olhos — que se restringissem ao material que haviam solicitado oficialmente. Com isso, deixou-nos.

Precisa que eu fique aqui? — Gayle perguntou a Kennedy.

Não — ela respondeu. — Obrigada, xerife. Eu dou conta.

Tá legal. Tenho um telefonema a fazer e acho que vou pegar um café lá fora. Quer que eu te traga um depois?

Kennedy pediu café com leite, sem açúcar, e Gayle saiu. Ela se vol­tou para o arquivo e mergulhou em suas frias certezas.

O cadáver de Brand, como a maioria dos que haviam caído com o avião, apresentava inúmeras lesões abrasivas resultantes do acidente, fragmentos devido ao atrito e traumas por despressurização. A lista chegava a uma página e meia, mas podia ser resumida em quatro pa­lavras: Brand estava um desastre. Com um corpo tão espetacularmen­te ferido, praticamente não fazia sentido estabelecer a causa da morte, embora as conclusões costumeiras, com as ressalvas costumeiras, hou­vessem sido determinadas. O tecido dos pulmões de Brand havia sido rasgado quando a cabine despressurizara subitamente. Concentrações de oxigênio em tecido venoso sugeriam que o ar preso havia entrado à força, pelos pulmões, na cavidade torácica do homem, onde o oxigê­nio havia formado bolhas tanto nos vasos sangüíneos maiores quanto nos menores. O coração teria parado rapidamente, mas o cérebro te­ria sido privado de sangue de qualquer forma. Inconsciência e morte deveriam ter se sucedido em tal velocidade que era quase impossível que Brand ainda estivesse vivo quando o avião chegara ao chão.

Nada de visualizar o "quadro maior", então. Os pequenos detalhes foram esboçados ligeiramente como comentários e especulações, geral­mente sem chegar a nenhuma conclusão firme. Escoriações nos nós dos dedos de Brand poderiam indicar um conflito físico com outro passa­geiro, possivelmente no momento de pânico no começo da descida for­çada. Unhas quebradas e danos ao tecido da ponta dos dedos de ambas as mãos eram mais difíceis de explicar: teria ele, quem sabe, arranhado uma janela ou porta, tentando escapar? Parecia provável, em todo caso, que Brand estivesse de pé quando a despressurização ocorrera, pois corpos soltos no avião exibiam mais traumas — distribuídos de forma mais ampla — do que aqueles fixos numa posição. Era possível afirmar com confiança que ele não estivera usando o cinto de segurança: passa­geiros sentados e com cintos afivelados, sem exceção, tinham um padrão de contusões em torno dos quadris causados por súbitas mudanças na velocidade do vôo, as quais empurravam os corpos fortemente contra o próprio cinto. Brand não apresentava essas marcas específicas.

Ele tinha uma porção de cicatrizes, porém. Quem quer que tivesse feito a autópsia fora meticuloso ao registrá-las. Marcas de bala, de faca e de impacto, todas resultantes de situações em que ele quase mor­rera, todas antigas o suficiente para estarem quase completamente curadas. Num ponto, uma facada mais recente havia cruzado a cicatriz de outra, mais antiga. Isso arrancara uma exclamação do legista, que devia ter tentado imaginar exatamente que estilo de vida Michael Brand estivera levando. Considerando a idade dele, o histórico de ferimentos anteriores é impressionante. Posso dizer honestamente que nunca vi, nem mes­mo num soldado de carreira a ponto de se aposentar, uma coleção tão variada e fascinante.

Considerando a idade dele? Kennedy voltou ao início do docu­mento e fez a referência cruzada dos dados do passaporte de Michael Brand incluídos como um adendo. Então passou às fotografias.

Havia diversas imagens do rosto inteiro, idênticas, até onde Ken­nedy podia perceber. Todas mostravam uma face inchada, manchada

e sarapintada em decorrência dos vasos sangüíneos rompidos. Po­deria ser um homem morto qualquer, em qualquer estágio da vida. Mas, sob todo aquele dano, qual era a idade dele? Quanto Michael Brand chegara a viver antes de cair do céu como ícaro, implodindo enquanto morria?

Não muito tempo, era a resposta. Ou tempo demais, dependendo de como se interpretasse a informação.

A porta abriu-se de supetão pelo lado de fora, batendo contra a pa­rede. Kennedy levantou-se enquanto se virava, as mãos voando para formar um bloqueio defensivo.

Era Gayle: ele havia usado o pé para abrir a porta com um chute porque tinha um copo de isopor cheio de café em cada mão.

Desculpe, sargento — disse ele, olhando para ela de forma preo­cupada. — Não pretendi espantar a senhora. Não conheço minha própria força.

Com o coração palpitando, Kennedy baixou as mãos. Quando acei­tou o café, viu pela expressão dele que Gayle podia perceber o tremor nos dedos dela, mas manteve um tom casual enquanto perguntava se ela já havia encontrado o que queria.

Eu encontrei... alguma coisa — Kennedy admitiu.

Fico feliz com isso. Algo de bom?

Acho que peguei o Michael Brand no meio de uma mentira. Uma bem grande, talvez. Posso ficar mais alguns minutos?

Não estamos atrasados para nada — Gayle respondeu tranqüila­mente. — Vá em frente. Vou ficar olhando a vida passar.

Kennedy terminou suas anotações. Estava fazendo isso pelo bem das formalidades e para permitir que a respiração e a pulsação voltas­sem ao normal, mas seu olhar captou um pequeno detalhe na descri­ção do cérebro. O dano extenso aos neurônios serotoninérgicos não pode ser explicado por ou vinculado a outros ferimentos, singular ou combinadamente. Acompanhado de diminuição do 5-HT no hipocampo, o dano neural sugere exposição prolongada e repetida a droga simpaticomimética tal como metanfetamina em doses extremamente altas.

O que faz pessoas chorarem sangue? Estresse ou drogas, Ralph Prentice havia dito. Ela acreditava estar vendo a parte relativa às dro­gas naquela equação. Michael Brand — assim como provavelmente os pálidos assassinos que ela já encontrara duas vezes — usara algu­ma substância da família da metanfetamina, talvez para aumentar a velocidade, a força e a capacidade de reação. Como policial, mesmo tendo muito pouco treinamento a respeito de narcóticos, estava sufi­cientemente informada a respeito do que aquele tipo de dano poderia significar. Era outro fato para o arquivo, abstrato e inútil no momento, mas talvez relevante mais tarde.

Ela fechou o arquivo de Brand e ergueu o olhar. Apesar da piada sobre ficar olhando a vida passar, Gayle estava na verdade olhando para ela, com uma expressão pensativa e talvez expectante.

Ele vinha sendo um exemplo de discrição profissional, mas tinha o direito de esperar que ela compartilhasse informações. Mas como ela poderia explicar a teoria que se formava em sua mente? Mais es­pecificamente, como poderia explicar a esse homem franco, amigá­vel e descomplicado, que parecia personificar aquele tipo de cortesia aprendida em casa que ela imaginara ter desaparecido do mundo?

Estou tendo umas idéias malucas — foi o que ela disse, quase como um pedido de desculpas.

Gayle ergueu as sobrancelhas, registrando a afirmação e convidando-a a dizer mais.

Acho que Brand pode ser a resposta para uma das suas pergun­tas. Acho que talvez ele tenha causado a queda do avião.

Gayle olhou para ela com ligeira perplexidade.

Por que acha isso?

Kennedy mostrou-lhe o que encontrara nos arquivos: a evidência de que Brand estivera em uma briga e os dados da ponta dos dedos dele — os quais ele poderia ter recebido ao tentar abrir a porta à força antes que o selo de pressão se rompesse. Não era nada demais, se pa­rasse para ponderar, mas Gayle assentiu, pensativo.

Brand embarcou atrasado — ele disse. — Foi esse o telefonema que acabei de dar — para a FAA. Ele comprou a passagem quando já estavam fazendo o embarque e passou pelo portão faltando um minu­to para o encerramento. Estava com pressa de chegar a Nova York, isso é certeza.

Ou talvez não — Kennedy respondeu. — Talvez ele só estivesse com pressa de embarcar nesse avião específico.

Para poder sabotá-lo?

Kennedy fez um gesto descompromissado.

Possivelmente. Sim. Eu acho que sim.

Por quê?

O avião tinha vindo do México, né?

Da Cidade do México.

Como é que eles vieram? Qual era o plano de vôo?

Não tenho nem idéia, sargento. Na maior parte das vezes as companhias aéreas gostam de fazer os aviões passarem por cima da água se for possível, então acho que o avião deve ter vindo passando pelo Golfo e talvez virado no canto sudoeste do estado antes de se virar para o oeste.

O que tem nesse local, xerife?

O deserto. Depois, Tucson. Depois, mais deserto.

Kennedy ponderou.

Será que podemos descobrir — ela se arriscou a dizer, afinal — se o 124 passou por alguma mudança no plano de vôo em algum ponto?

Acho que podemos. A FAA mantém todas essas coisas registradas por vinte anos, é o que eu lembro. Por quê? O que tem em mente?

O que estava na mente dela soava ridículo até mesmo para Ken­nedy. Balançou a cabeça, querendo dizer tanto Eu não sei quanto Não posso te contar.

De todo modo, Gayle pareceu aceitar o meneio de cabeça como a única resposta que poderia receber agora.

Ligo para eles lá do carro — respondeu, jogando o copo de café no cesto de lixo. — Vamos sair.

No caminho de volta a Peason, ela se lembrou de perguntar nova­mente sobre os veículos de refrigeração.

Gayle ruminou a questão em silêncio por um tempo, como se pen­sasse na melhor forma de responder a ela.

Bom, é uma coisa que acontece todo verão — disse, afinal. — Temos um monte de imigrantes ilegais vindos do México, passando a fronteira. Costumava ser um problema só na parte sul do estado. Sabe, lá perto de Tucson. Mas tem muito mais patrulhas atuando ago­ra, já que a legislatura do estado disse que temos que ser mais duros nessa questão. Então os coiotes — os traficantes de pessoas — têm que se manter mais longe das cidades, mais longe das estradas, e passar por muito mais área desértica até poderem fazer a entrega. Percor­rem uns dez quilômetros antes de se virarem para o leste. E isso é um monte de deserto. Então, todo ano, e principalmente no verão, muitos deles não sobrevivem.

Jesus. — Kennedy estava horrorizada. — Mas, se cada uma da­quelas vans carrega... o quê? Dez? Doze corpos? Isso quer dizer...

Mesmo aqui, no norte, achamos vinte ou até trinta num mês ruim. E ainda recebemos o excedente da região sul. São centenas, sargento. Talvez milhares. Milhares, todo ano. Os corpos se desgastam muito rá­pido no deserto, ficam cobertos de areia e pó. As vezes são comidos. Aí você não tem como saber se os ossos estão ali há um ano ou há uns dois séculos. Então ninguém consegue fazer uma contagem correta da coisa.

Kennedy não disse nada, mas algo flutuou até a superfície de sua mente: uma citação que ela lera num livro de história do colégio uma vez. Pobre México: tão longe de Deus, tão perto dos Estados Unidos.

O único lugar onde vi essas vans serem usadas... — ela se arris­cou, por fim.

Foi depois de um terremoto ou coisa assim. Um desastre. Com certeza. Bom, este é o nosso desastre, eu acho. O armagedom do Ari­zona. Só que acontece em câmera lenta.

O silêncio foi um tanto difícil de romper depois disso. Desistindo de manter a conversa amena, Gayle mandou Connie dar um segundo te­lefonema à FAA e transferi-lo para ele. Obviamente curiosa, a recepcio­nista ofereceu-se para conduzir o telefonema no lugar de Gayle e fazer quaisquer perguntas que ele propusesse. Gayle agradeceu a ela gentil­mente, mas disse que cuidaria do assunto sozinho, depois do quê Connie manteve um silêncio rabugento na linha enquanto cumpria a ordem.

Mas o telefonema fora uma perda de tempo. Não houvera nada anômalo a respeito do plano de vôo do CAI 24 no dia do desastre. Ele tinha vindo por cima da linha do Golfo, como Gayle havia imaginado, e passara a oeste de Tucson, voando por sobre Puerto Penasco e de­pois por sobre um monte de nada até virar em direção a Los Angeles na altura de Lake Havasu City.

Kennedy olhou pela janela do carro para o deserto através do qual a estrada corria como um cabo elétrico: ligando o Arizona ao resto do mundo, cuja existência, de outra forma, seria muito fácil de esquecer. O cheiro da sálvia silvestre entrou pela janela aberta, doce e forte.

Por que derrubar um avião? Por que abandonar o esquema de um assassinato por vez e adotar as hecatombes de mortos empilhados pe­rigosamente nas caixas de refrigeração de necrotérios já lotados?

Presumindo que ela estivesse certa quanto a isso, o que tornara o Vôo 124 digno dessas mortes?

 

Kennedy folheou as páginas — o que Gassan havia chamado de trans­crição completa — com um senso de irrealidade cada vez maior.

Tem algo... — ela disse, mas a frase que estava tentando formular não fazia sentido. Tinha que abandoná-la e começar outra vez. — O evangelho, ele não é... ele deixa de ser sobre Judas, aqui, e se torna...

E um tipo de metacomentário — Gassan concordou. Ele estava de pé diante da janela novamente, como se faminto pela parca luz que vinha de lá. O esconderijo não tinha janelas no nível do chão e as do alto eram mantidas fechadas sempre que o grau de segurança de seus ocupantes parecia requerer isso. — Há seções como essa no Velho Testamento. E no Corão também, acredito eu — instruções para como lidar com o próprio texto sagrado. Para ser completa, a mensagem deve incluir instruções criadas para garantir a própria sobrevivência. A receita explica não apenas o bolo, mas a receita para mais receitas.

Mas... — Kennedy estava lutando contra conceitos nada fami­liares, os quais ela nem mesmo queria entender. — As punições que estão anotadas aqui. O senhor não está sugerindo...

Gassan riu — um som oco, irritante.

Não estou sugerindo nada. Pense, entretanto, no que aconteceu quando aquele pregador americano, Jones ou qualquer que fosse o nome dele, ameaçou queimar uma cópia de um Alcorão no local dos ataques do 11 de setembro. Fundamentalistas islâmicos no Iraque bom­bardearam igrejas: dezenas de pessoas morreram. Alguns postularam que a interpretação inflexível da palavra de Deus é a própria essência do fundamentalismo. A palavra divina, para o fanático, é materializada — é uma coisa física, um fato da existência, e, já que é também a pedra fundamental da existência, deve ser reverenciada. Não parece haver um limite racional para quão longe as pessoas com essa mentalidade vão para se vingarem daqueles que elas encaram como inimigos da palavra.

O professor voltou o olhar para o maço de papéis na mão de Kennedy.

Eu presumo — disse — que você tenha chegado à passagem na página 41, que começa com: "Este testamento não será lido ou conhecido".

Kennedy assentiu, lendo a página em voz alta:

"Este testamento não será lido ou conhecido por ninguém fora da família, nem entregue a outros de forma alguma. Mas, se vierem a conhecê-lo, eles serão abatidos..."

Gassan continuou a recitar:

"... e suas bocas serão detidas, e seus dias, contados. Pois a bar­ganha Dele não foi para com eles, mas para conosco, que recebemos nossa vida de Judas, de Caim e da serpente, seu pai". — Gassan parou. Os cantos de sua boca entortaram-se para baixo, como se ele estivesse a ponto de chorar. — Essa foi a sentença de morte deles — murmu­rou. — O Barlow encontrou a resposta, e eles o mataram por isso.

Kennedy tinha consciência da raiva que crescia dentro dela, pode­rosa o suficiente, agora, para afetar o ritmo de sua respiração. Estivera lutando contra ela por algum tempo, mas sem grande efeito, pois não entendia realmente de onde vinha tal raiva. Agora, compreendia, mas isso em nada ajudava a frear seus sentimentos. Era a mesma raiva que Tillman devia ter sentido. Ela obtivera a resposta errada: essa expli­cação estéril e os pesadelos dentro dos quais vinha vivendo pareciam grotesca e horrivelmente descombinados.

Gnósticos — ela disse, como se a palavra nada significasse. — O senhor espera que eu acredite que gnósticos estão por aí matando pessoas porque a segurança deles está comprometida. Por conta de um texto de dois mil anos!

Seu tom fora furiosamente sarcástico, mas Gassan meramente ba­lançou a cabeça.

Duvido que eles se chamem de gnósticos hoje, sargento — ob­servou suavemente. — Se é que já se chamaram assim algum dia. Pen­se neles como o povo de Judas. Embora claramente aleguem possuir uma linhagem que remonta de Judas até a alvorada da raça humana — e devemos assumir que havia protomensagens deles embutidas nos Manuscritos do Mar Morto, o que fez o Stuart Barlow se desviar do curso. Eu pensei sobre isso.

Sério? — Kennedy riu, e a risada tinha um toque áspero, feio. — Pensou se por acaso não estava sonhando?

Eu pensei — Gassan repetiu —, quando eles falam de Caim e Ju­das, se tinham em mente uma linhagem física que os vincula a eles ou se era algo mais espiritual. De certo modo, qualquer um que se rebele contra Laldabaoth, o deus usurpador que reprime e tiraniza, seria o sucessor espiritual de Caim e de Judas, mas "recebemos nossa vida de" sugere uma interpretação mais literal. Uma tribo de Judas.

Eu repito. Um documento de dois mil...

Seus assassinatos, sargento — ele a interrompeu —, são um acontecimento muito mais do presente.

Exato! — Ela ergueu as mãos. — E por isso que não acho que tenham sido cometidos por gnósticos.

Gassan inclinou a cabeça um pouco para um lado -— um gesto con­descendente e enfurecedor, sugerindo que estava ouvindo os argu­mentos dela com um cuidado protocolar.

Você sabe — perguntou — o que o nome de Judas significava?

Judas? É só uma outra forma de Judá, né? "O leão"?

Judá não significava "o leão", significava "louvor". O leão era apenas o símbolo dele. Mas eu estava falando do outro nome de Judas. Iscariotes.

Não tenho nem idéia — Kennedy admitiu.

Há duas teorias. Uma é a de que o nome se referia a um lugar: uma cidade. Judas de Kerioth. A outra é de que denotava que ele era membro de um grupo específico. E esse grupo, por sua vez, recebeu o nome da sua arma favorita...

Voltando para Londres, mais tarde, Kennedy pegou-se revirando as palavras seguintes de Gassan de novo e de novo. Em algum ponto daquelas muitas repetições, a idéia do povo de Judas se cristalizava, ou — qual era a outra palavra que o professor usara? — se materializava para ela: tornava-se algo real, com o qual ela agora tinha que lidar.

... sua arma favorita, que era uma faca curta: uma sica. Judas Iscariotes poderia ter significado 'Judas Sicário". 'Judas, o homem da adaga." E sabe de que adaga estou falando, sargento Kennedy, porque eles a usaram em você e naquele pobre homem que traba­lhava com você. Eles têm um senso de tradição, veja só. Ou possi­velmente veem todas as suas batalhas como fases da mesma guerra, século após século.

Uma tribo perdida, então. Ou, não, não perdida, mas escondida: uma raça inteira que se retirara do mundo e jogara areia sobre as próprias pegadas para que ninguém soubesse que ainda existia. Mas saíam de seu esconderijo quando quer que fosse preciso. Nem todos eles, mas alguns. O golpe de misericórdia de Gassan, enquanto ela partia, tinha deixado isso claro.

Página 53, sargento. O povo de Judas manda dois tipos de emis­sários para o mundo, para fazer contato com a humanidade comum: os Elohim e os Kelim, os Mensageiros e os Recipientes. Não sei o que os Recipientes faziam, mas fica bem claro, pelo texto, para que ser­viam os Mensageiros. "Mande nossos Elohim aonde forem necessá­rios, para que ninguém atormenta ou persiga o povo. Que aqueles que fariam mal ao povo sejam detidos, e seus olhos selados, e a porta da sepultura fechada sobre eles. Aqueles que fazem tal coisa são con­sagrados e virtuosos aos olhos de Deus." Os Mensageiros eram assassi­nos santificados, sargento. E acho que ainda são. Acho que é com eles que você tem lidado.

Filhos da puta — Kennedy murmurou.

Gassan assentiu, concordando sombriamente.

Lembre-se de que traçam sua linhagem até muito além do avô Judas para o tetravô Caim.

Talvez por isso eles se sintam tão confortáveis com o assassinato. Está no sangue deles.

 

Gayle deixou Kennedy diante do EconoLodge. Ele tinha tarefas das quais cuidar em outro lugar, disse a ela, então teria que deixá-la se virar sozinha por um tempo, mas falaria com ela mais tarde naquele dia e seria seu chofer novamente se fosse preciso.

Em seu quarto, Kennedy ligou o laptop e mandou outro e-mail para Tillman. Então, por desencargo de consciência, telefonou — sa­bendo que ele não atenderia — e deixou uma mensagem no correio de voz dele.

Leo, tem algo que preciso te contar. Algo realmente importante. Algo que muda tudo e significa que sua trilha ainda não dá num beco sem saída. Me ligue. Ou então responda ao e-mail. Faça alguma coisa para me avisar que está na escuta e eu te conto tudo. Mas não vou ficar gritando no vazio e você sabe muito bem por quê. Me ligue. Por favor.

Planejava entregar-se a uma pesquisa realmente séria depois disso, mas ficou andando de um lado ao outro no quarto por uma boa meia hora, incapaz de acomodar-se, encontrando coisas nada importantes para fazer com as poucas posses que trouxera consigo.

Finalmente, fez mais uma ligação para o telefone de Tillman.

Eu de novo — disse. — Leo, o Michael Brand que morreu no avião tinha vinte e poucos anos, o que significa que era criança quando a Rebecca desapareceu. Ele não tinha a menor chance de combinar com a descrição que você ouviu naquela época. E um homem diferen­te. Acho que é sempre um homem diferente. Provavelmente nunca existiu um Michael Brand. E só um nome que eles usam quando saem para fazer esse tipo de trabalho. Eles têm umas pessoas que chamam de "Mensageiros". Talvez todos os Mensageiros sejam Michael Brand. Pelo amor de Deus, dá pra você me ligar? E, se não ligar, então leia a porcaria dos meus e-mails. Preciso de você!

A sensação após fazer isso foi um tanto catártica, pelo menos. Ela voltou ao laptop e começou a trabalhar. Primeiro, acessou alguns ma­pas do estado do Arizona. Encontrou websites inteiros dedicados ao assunto, oferecendo todo tipo de mapas e traçados — topográficos, econômicos, físicos e políticos. Também descobriu um site que lhe

permitia mudar de um mapa esquemático simplificado para uma série de fotografias de satélite, o que a ocupou por duas horas inteiras. Se­guiu a frota provável do Vôo 124, rastreando ambos os lados do Golfo da Califórnia e depois passando pelo deserto do México e do Arizona, chegando até o Lago Havasu, no norte.

Não admitiria para si mesma o que exatamente estava procurando, mas não encontrou nada: nada fora do comum, pelo menos. Nada misterioso ou inclassificável ou controverso: nada — diga de uma vez! — que pudesse ser um enclave secreto de assassinos dementes escon­didos do mundo no meio do deserto. Era o deserto, de toda forma, não era? Por que um grupo de dissidentes religiosos da antiga Judeia estaria vivendo no Arizona?

Talvez gostassem do calor seco.

Ou talvez eles fossem aonde ia o poder. Talvez tivessem vivido no Oriente Médio enquanto o local parecera o centro de alguma coisa, depois tivessem se mandado para o oeste, para a Europa, quando esta passara a ser o lugar onde as coisas aconteciam, e escapulido para o Novo Mundo durante os tempos brutais do colonialismo.

Isso é o que eu faria, Kennedy pensou, se eu fosse um maluco homicida que tivesse feito um acordo especial com Deus ? Considerando tudo, era di­fícil saber.

Ela experimentou uma tática diferente, usando diversos sistemas de busca e de metabusca on-line para vasculhar o sul do Arizona dire­tamente. Quais eram os principais marcos locais, os centros populacio­nais, os espaços mais remotos e os microclimas anômalos?

Aprendeu muito, ou pelo menos surfou numa onda de infor­mações, mas não obteve nenhum insight ou inspiração real. O ter­reno era rude, com partes inacessíveis, e ninguém poderia dizer que era densamente povoado. Com 50 e poucas pessoas por quilô­metro quadrado, o Arizona ficava em 33o lugar entre os 50 estados da União — e a maioria dessas pessoas estava aglomerada em uns poucos centros populacionais. Mas a região tinha boas estradas, es­tava situada numa porção de rotas aéreas e os satélites a vigiavam 24 horas por dia.

Kennedy estivera imaginando uma situação. O Voo 124 decola da Cidade do México. Alguém olha pela janela e vê algo que não deveria ter visto — algo que aponta para a existência da tribo de Judas. Um sinal de alarme toca em algum lugar, de alguma forma, e Michael

Brand — um dos Michael Brands — é enviado. Ele não pode fazer nada com o avião enquanto estiver voando, evidentemente, então, o melhor que pode fazer é ir até Los Angeles e embarcar nele durante a conexão, o que faz na última hora. Então, encontra uma forma de derrubar o avião, o que, com a combinação única de habilidades de combate e loucura espumando pela boca, é sopa no mel para ele.

Mas, quanto mais de perto Kennedy olhava para a teoria, menos gostava dela. Dependia de haver algo para ver: algo grande o suficien­te para ser visto da altitude a que o 124 voava (cerca de 8.200 metros, Gayle havia garantido), e não apenas visível, mas identificável, e, ao mesmo tempo, algo que fosse presumivelmente temporário, estando lá somente para ser visto nessa ocasião. Do contrário, os céus sobre o sul do Arizona e o México estariam repletos de aviões em queda como chuva de verão.

Ela não conseguia, por mais que tentasse, imaginar que coisa seria essa. E não conseguia, ainda, criar uma hipótese alternativa. Final­mente, chegou à conclusão óbvia de que isso não era algo que poderia fazer a partir de um quarto de hotel.

Quando Gayle telefonou, perto das 3 horas da tarde, ela contou seu plano a ele.

Quero ir dar uma olhada na área onde o avião caiu. Uma parte dela, pelo menos.

Gayle mostrou-se surpreso e claramente cauteloso diante da idéia.

É um bocado de chão — disse. — Por onde a senhora estava pensando em começar?

Não sei. A estrada interestadual, eu acho. A parte da rota que passa pelo Arizona é a mais acessível a partir daqui.

Claro. — Gayle não soou nada convencido. — Se bem que a dis­tância da Cidade do México até L.A. é de uns 2.500 quilômetros, mais ou menos. Talvez 2.600. E só um décimo disso provavelmente está dentro do Arizona. Não sei quanto vai dar para descobrir.

Bom, pelo menos vou ter uma noção da topografia do terreno — Kennedy respondeu. — De quão distantes são esses lugares e onde ficam um em relação ao outro. Isso pode gerar algumas idéias.

Enquanto falava, ela fazia o cálculo mentalmente: tentava, pelo menos. Dois mil e quinhentos quilômetros, e, a uma altura de 8.200 metros, provavelmente alguém teria um campo de visão que seria... o melhor que ela conseguia visualizar era um triângulo com lados de 8.200 metros. Seria possível ver — realmente ver com clareza, logo abaixo do avião — uma área que se estendia por pelo menos 1,5 quilô­metro de cada lado. Então, numa estimativa modesta, ela tinha 4.800 quilômetros quadrados para procurar. Levaria dias só para cobrir essa distância pela estrada. E quanto ela seria capaz de ver da estrada?

Eu só não quero ficar aqui parada — ela disse, carrancuda. — E não consigo pensar em nada melhor para fazer.

Houve um breve silêncio enquanto Gayle pensava a respeito disso.

Pegue o avião — disse.

 

Kuutma estava ouvindo música quando Mariam ligou. Isso era incomum, pois Kuutma odiava música.

Não, não era verdade. Mas era uma mídia à qual ele se mostrava indiferente. Não compreendia a estrutura ou o apelo. Quando mais jovem, ouvira certas melodias com algum tipo de prazer. Até se lem­brava de ter dançado uma. Tudo isso antes de se tornar um Men­sageiro e deixar Ginat'Dania. Depois disso, o curso de sua vida fora irrevogavelmente definido, e, de alguma forma, a música lentamente deixara de significar algo para ele.

Talvez fosse um efeito da droga. A kelalit alterava a percepção, ou, mais acuradamente, alterava a interface entre o usuário e o mundo. A realidade se tornava uma pantomima, banhada em sépia e movendo-se com a morosidade do melado. A mente ficava mais rápida, os movimen­tos, mais certeiros: a sensação geral era de uma consciência ampliada, e, mesmo assim, paradoxalmente, as coisas reais haviam perdido muito de sua vivacidade, sua "essência". Visões, sons, texturas, sabores: todas as coisas se nivelavam numa única dimensão, tornando-se — ele não conseguia pensar numa forma mais clara de expressar isso — como esquemas de si mesmas.

O toque do telefone veio, portanto, como uma distração bem-vinda para o enigma deprimente da música.

Alô — Kuutma disse.

Ela reservou uma passagem aérea, Tannanu. — A voz de Ma­riam soava perfeitamente firme, perfeitamente inflexível.

Para onde?

Cidade do México. Mas não acho que a questão seja o destino final. Ela vai tomar o Vôo 124.

Ah. Sim. — Kuutma considerou. Isso era bom em diversos as­pectos. Mostrava quão pouco, mesmo nesse estágio, a detetive conse­guira compreender. E oferecia oportunidades de finalizar o trabalho que ficara inacabado na Inglaterra. E ainda assim... Ainda assim. O negócio fora mal conduzido em cada estágio. Agir novamente agora e deixar mais pontas soltas à vista não seria aceitável.

Fora por isso que ele não ordenara a Mariam que agisse contra Till­man. Era a única razão, ele disse a si mesmo mais uma vez. Não havia outras. Em cada ocasião, uma vez que Tillman voltasse para a hospe­daria no oeste de Londres que já havia sido identificada pela equipe de Mariam, não houvera necessidade de agir. Ele se colocara nas mãos de Kuutma, que poderia ordenar sua morte a qualquer momento.

Kuutma lembrou-se de que isso removia a urgência da situação: na verdade, tornava a vigilância mais valiosa e útil do que a ação ime­diata. Matar Tillman agora talvez engatilhasse algum mecanismo de ação retardada: alguma informação que seria entregue a outrem e um novo perigo que surgiria.

Mas Kuutma não acreditava realmente nisso.

Ele viajara para Londres. Tomara o metrô, depois um ônibus, até o lamentável buraco onde Tillman agora se alojava. Alugara o quarto adjacente e, com cuidado infinitesimal, abrira um minúsculo orifício na parede, muito perto do chão, usando um verrumão sofisticada- mente afiado e levando várias horas. Através do orifício, inserira uma câmera espiã do tamanho de uma cabeça de alfinete numa guia de microfibra.

O que ele vira lhe dera considerável satisfação.

Ele não vai parar de procurar. Ele vai olhar nos seus olhos um dia, Kuutma, e um de vocês vai piscar.

Rebecca, não acho que vou ser eu.

Mas você não o conhece, eu sim.

Eu gostaria, querida prima, que você nunca tivesse precisado conhecê-lo. E alegra-me que não tenha mais que conhecê-lo.

Ah, mas eu não tenho mais que conhecer coisa alguma, Kuutma. Foi por isso que mandaram você.

Talvez ele devesse ter matado Tillman naquela época. Ou talvez, de qualquer forma, devesse tê-lo deixado como estava e não interferido mais. Não havia matado Tillman e não o havia deixado: não imediata­mente. Havia feito mais uma coisa que poderia ter — que certamente teria — conseqüências.

O que devo fazer, Tannanu? — A pergunta de Mariam arrancou Kuutma de seu devaneio, no qual ele nunca deveria ter caído.

Suprimindo as memórias, tanto as antigas quanto as recentes, ele revirou diversas idéias em sua mente e as examinou, à procura de falhas.

Por enquanto — respondeu ele —, não faça nada. Deixe a mu­lher ir e fazer o que quer. Siga-a se ela deixar o terminal do aeroporto no México. Dependendo de aonde vá, e de quem ela veja, pode ser necessário agir rapidamente contra um número maior de alvos. Por enquanto, porém, permita que se reúnam. E bom que eles se reúnam. Torna nossa tarefa muito mais fácil. Você conhece, Mariam, a grande regra que seguimos.

Não faça nada que não seja autorizado — Mariam citou. — Faça tudo o que for necessário.

E sempre — devemos assim inferir — reflita a respeito de em que ponto dessa linha nossas ações se encaixam.

— Eu entendo, Tannanu.

Mas você está de luto, Mariam, por seus primos. A mágoa que sente... Se a conheço bem, me aventuraria a dizer que essa mágoa, para você, é mais real e maior do que qualquer outra coisa neste mundo.

Não é maior, nem mais real, do que Deus, Tannanu.

Por isso mesmo — Kuutma respondeu gentilmente —, especifi­quei este mundo. Você os amava. Lutou ao lado deles e compartilhou com eles tudo de si que valia a pena compartilhar. O que você per­deu... Eu sei, acredite, quão grande é a perda. — Quando ela não res­pondeu, ele prosseguiu. — Se quisesse ir para casa agora, não haveria vergonha. Outra pessoa poderia terminar a missão, e você poderia se consolar na companhia de outros entes queridos.

Tannanu, me perdoe. — A voz dela adquiriu certa aspereza. — Se eu me esquivasse disso por causa de um sofrimento emocional, um ferimento imaginário em meu coração, como poderia não me enver­gonhar? Quando Ezei e Cephas deram tudo, como eu poderia pesar o que dei e dizer que é o suficiente, ou que é demasiado? O senhor me designou para um trabalho. Por favor, eu lhe imploro, não me mande para casa antes que minha missão se complete.

Ele curvou a cabeça num gesto de respeito por Mariam que ela não pôde ver e do qual jamais tomaria conhecimento.

Barthi, não farei isso.

Houve um silêncio.

O que é essa música? — Mariam perguntou, num tom mais brando, como se sua vitória sobre ele a tivesse exaurido.

Os Rolling Stones — ele respondeu. — Uma canção chamada "Paint it Black".

O som é agradável para o senhor, Tannanu? Kuutma sentiu-se embaraçado.

Não. E claro que não. E uma cacofonia monstruosa. Estou ou­vindo apenas para alinhar meus pensamentos com os de minha presa. Isto é Tillman. A música de Tillman. Ele a ouviu várias vezes desde o incêndio, e eu queria entender que emoções ela pode ter causado.

Encontrou uma resposta, Tannanu?

Kuutma estava num terreno mais firme nesse assunto.

Desespero, Barthi. Ele está sentindo desespero.

 

Kennedy havia temido que estar no Vôo 124 fosse uma sensação sinis­tra e enervante, mas depois dos primeiros cinco ou dez minutos era apenas um vôo. Ela pegara um assento junto à janela ao fazer a reser­va, recusara os drinques e pretzels de cortesia e se acomodara para observar o chão que se desenrolava abaixo dela.

Cidade, subúrbio, deserto, deserto, deserto. Uma pedreira, uma pequena cidade, uma represa e mais deserto. A medida que o avião ganhava altitude, ela ia ficando menos capaz de distinguir caracterís­ticas individuais no terreno. Depois de um tempo, só conseguia per­ceber as áreas construídas por causa da cor: faixas de cinza contra as faixas maiores de marrom-amarelado, marrom-escuro e verde-oliva.

A 8.200 metros de altitude, era difícil ter revelações.

Ela conseguia ver o litoral, obviamente, e os rios se destacavam cla­ramente. Estradas eram mais difíceis de enxergar, mas era possível adivinhar onde estavam às vezes, com a interrupção das linhas das montanhas ou nos pontos em que a área em torno delas havia sido limpa. Haveria uma estrada, quem sabe, onde não deveria estar? Uma estrada que não servia a nenhum destino óbvio?

Mas não podia ser. Qualquer coisa assim tão permanente seria vis­ta pelos passageiros de qualquer vôo que usasse essa rota. O que ela estava procurando — aquilo de que precisava — era algo transitório: teria sido um evento único. Então, o vôo podia dar-lhe uma noção da possível escala da coisa, mas só isso. Ela estava ali para brincar de adivinhação, e ainda estava na fase das perguntas como: "E maior que uma caixa de sapatos?".

Depois, estradas, mas nenhum tráfego nelas. Estruturas feitas pelo homem, visíveis se fossem muito altas ou razoavelmente extensas. Ou­tros aviões: viu muitos deles, passando pela área vagarosamente.

E luzes. Enquanto a noite caía, a paisagem adquiria a aparência de uma treliça, com algumas áreas acesas, outras em profunda escuri­dão. Certo, isso poderia resultar em algo: uma luz onde não deveria haver luz? Mas, é claro, à medida que escurecia, tornava-se mais difí­cil ver os traços salientes da paisagem, então ela tinha cada vez menos com o que se orientar. Como poderia saber onde uma luz não deveria estar ou onde estava em relação a todo o resto? O piloto saberia. E o co-piloto. Eles deveriam ter instrumentos para guiá-los, assim como a visão. Teria Brand derrubado um avião inteiro só para matar a equi­pe de bordo?

Ela observou uma das luzes lá embaixo ligando e desligando, pis­cando com periodicidade fixa: visível por três segundos, apagada por cinco. Estava próxima da costa, então imaginou que fosse um farol. Seria possível que o 124 tivesse registrado algum outro tipo de luz, acesa para mandar um sinal apenas para o povo de Judas? Afinal, eles amavam seus códigos: talvez se comunicassem uns com os outros na escuridão com tochas rutilantes ou com aqueles holofotes imensos, com grades, que o comando de bombardeio da Royal Air Force usara na Segunda Guerra Mundial.

Mas, na era do telefone celular, essa seria uma coisa muito asinina a fazer, não?

O avião começou a descer em direção à Cidade do México — depois da escassez do vasto deserto, um punhado de luzes dentro de luzes, tão densas quanto galáxias contidas umas nas outras —, e Kennedy admitiu finalmente que aquilo havia sido perda de tempo.

Ela tinha quase três horas vagas até tomar o voo de volta. Vagou pelo saguão do aeroporto como um fantasma lúgubre, encontrando a maior parte das lojas e cafés já fechada para a noite. Finalmente, encontrou um bar, sentou-se e pediu uma grande margarita. Quando em Roma, pensou, deve-se ao menos fazer um esforço simbólico para ser como os romanos.

Uma mulher no outro canto do bar a estava observando, de forma disfarçada e intermitente. Ela parecia jovem, talvez até bonita, tam­bém, mas usava maquiagem demais. Não era exatamente o tipo de Kennedy, que preferia curvas imensas, mas era interessante mesmo assim, com um corpo esguio e sem dúvida muito elástico. Vestia rou­pas muito casuais: blusa e calças em tons terrosos indeterminados, que teriam lhe caído bem se sua pele fosse um pouco mais bronzeada, mas ficavam totalmente sem graça em contraste com a pele muito clara dos braços dela.

Kennedy não estava com tesão nenhum, mas sentia-se terrivel­mente tensa e considerou, pela primeira vez num longo tempo, os possíveis efeitos restauradores de uma rapidinha. Como um primeiro passo exploratório em direção a isso, ela sustentou o olhar da mulher — de forma que, da próxima vez que ela lançasse um olhar furtivo a Kennedy, os olhos das duas se encontrassem.

O efeito não foi o que Kennedy esperava. Sem se mover, a mulher se retraiu. Não como se fosse tímida ou introvertida, mas como se ficasse tensa diante de um confronto. Cristo. Kennedy obviamente a interpretara errado. Talvez a mulher a tivesse percebido como policial ou coisa assim. Talvez tivesse algo contra policiais.

Kennedy estava prestes a terminar o drinque e ir embora, mas a mulher foi mais rápida. Colocou o copo sobre o balcão com um pouco mais de força que o necessário, chamou o barman e falou com ele por alguns segundos antes de colocar um maço de notas nas mãos dele. O barman encolheu os ombros, contou e assentiu. A mulher saiu, e Kennedy ficou olhando seu traseiro enquanto ela se afastava com uma pontada vestigial de pesar.

Ela se demorou com a margarita, permitindo que o álcool a levasse da excitação parcial até algo similar à calma, mas mais parecido com resignação. Fez um sinal para que o barman lhe trouxesse a conta, e ele balançou a cabeça negativamente.

Já foi, moça.

Já foi o quê?

Sua conta. A moça pagou seu drinque. E me mandou lhe entre­gar isto.

Ele colocou algo sobre o balcão diante de Kennedy. Parecia uma moeda de 25 centavos até ela apanhar o objeto e registrar primeiro seu peso, depois sua forma irregular e, por fim, as letras iniciais par­cialmente salientes ao longo da borda. Ela estava segurando a gêmea da moeda que levava na carteira, entregue a ela por Tillman no Crown and Anchor, na Surrey Street.

Largou o objeto e saiu correndo do bar. Cobriu todo o saguão num rápido trote, esperando, apesar das poucas chances, que pudesse es­barrar na mulher novamente. Havia pouca gente ao redor, e ela po­deria tê-la avistado de uma vez, mas é claro que a mulher não teria deixado a moeda se pretendesse ficar. Kennedy desacelerou até estar caminhando, sem fôlego, mais do que apenas por causa da corrida, o coração pulando no peito.

Aquilo tinha sido... o que tinha sido? Um insulto. Uma provocação. Uma promessa. A mulher no bar era uma das pessoas pelas quais ela estava procurando: o povo de Judas. E se deixara ver, como se quisesse

dizer a Kennedy que não importava quão fácil ou quão óbvio deixas­sem tudo para Kennedy, ainda assim ela não chegaria lá, ainda assim não conseguiria juntar todas as peças.

Ou, talvez, que não importava, mesmo se conseguisse.

A raiva havia varrido Kennedy como uma onda quente, mas agora se partia e ela se encontrava estranhamente calma. Quem quer que fosse a mulher, revelar-se dessa forma havia sido uma atitude negli­gente: vista dentro do contexto de séculos ou milênios de sigilo obses­sivo, era um erro inexplicável. Possivelmente a mulher o vira como uma exibição de poder, mas não era, não poderia ser. Era alguma emoção que não havia sido inteiramente capaz de controlar, operan­do através dela e distorcendo sua capacidade de decisão. Kennedy lembrou-se, de repente, da noite em que o Pombal queimara. Seria possível que aquela fosse a mesma mulher? Que ela tivesse cruzado o Atlântico para seguir Kennedy? Extremamente improvável. Se eles haviam estado tão prontos a matá-la naquela noite de sangue e fogo, por que se deteriam agora?

Era outra pessoa, então. Mas outra pessoa que queria que ela sou­besse que fora identificada: que estava sendo perseguida ao mesmo tempo que continuava sua própria perseguição.

Então, o verdadeiro confronto não demoraria a acontecer. E agora Kennedy estava avisada, se não se prevenisse, seria erro dela.

 

Eram 2 horas da manhã quando o segundo avião pousou em Bullhead, e passava das 3 horas quando ela chegou ao hotel em Peason. John-Bird foi seu motorista novamente, mas ela evitou as anedotas dele sobre o Colorado ao cair no sono instantaneamente no banco de trás do táxi. Ele continuou falando mesmo assim. Emergindo do cochilo vez ou outra, Kennedy experimentou a torrente de palavras como algo bizarramente confortante: era bom não estar sozinha naquele momento. Como forma de agradecimento, ela murmurava um "sé­rio?" em resposta a qualquer fato fluvial com o qual ele a estivesse regalando, depois voltava prontamente a pegar no sono.

Cambaleando para seu quarto, ela pretendia cair de cara na cama e dormir mais um pouco, provavelmente sem nem mudar de roupa. Mas a luz vermelha no telefone ao lado da cama estava piscando. Ela pegou o fone e teclou 3 para acessar o correio de voz, segurando o aparelho sob o queixo enquanto remexia os pés levemente inchados para livrá-los dos sapatos.

— Oi, sargento. — A voz de Webster Gayle, robusta, amigável e alta demais. — Espero que tenha conseguido alguma coisa na sua viagem para o sul da fronteira além de tequila barata. Mal posso esperar para ouvir como foi. Escute, não podemos mais adiar isso. A senhora tem que falar com a Moggs, assim as duas podem pensar juntas e atingir massa crítica. Prometo ficar bem longe do raio da explosão. Ela acorda bem cedo, então pensei que poderíamos tomar café da manhã juntos. Vou esperar pela senhora na porta do hotel às 7h30. Durma bem.

 

Uma margarita, Kennedy refletiu, exausta, enquanto rolava para a cama e puxava o cobertor até a metade do corpo. Uma margarita e nada a esperar senão café da manhã com fantasmas. Nada a ver com dormir bem.

Ficou claro para Kennedy, em menos de um minuto, que o relaciona­mento entre Eileen Moggs e Webster Gayle ia muito além do profissio­nal. Um minuto e pouco depois disso, ela também havia percebido que o homem e a mulher viam tal relacionamento por ângulos diferentes.

O xerife Gayle foi casual e prático ao apresentar Moggs, chaman­do-a de "uma grande amiga minha". A frase vinha do vocabulário dos talk-shows televisivos e significava, por si só, uma coisa totalmente sem importância. Mas o sorriso de Moggs quando ele disse isso parecia carregado, momentaneamente, tanto de orgulho quando de dor. Afir­mava que o xerife não tinha uma amiga mais importante do que ela e admitia, ao mesmo tempo, que não havia palavra melhor para o que ela era para ele.

As duas mulheres apertaram as mãos e mediram uma à outra.

Ah, você é policial mesmo — Moggs disse com um risinho.

Dou muita pinta? — Kennedy perguntou, infeliz.

Está na cara, querida, e pode aceitar isso como um elogio. Meu pai era policial, assim como meus dois irmãos. Qualquer um que tenha esse alinhamento de ombros, para mim, é como se fosse da família.

O que explica por que você está saindo com o xerife, Kennedy pensou. Ela deixou que Moggs a conduzisse, passando por uma cortina de miçangas, até a cozinha, onde waffles, ovos e bacon a esperavam. Esta­vam surpreendentemente bons, assim como o café e o suco de laranja — este, aparentemente, espremido à mão usando um antigo espreme­dor de frutas operado à manivela que ocupava o lugar de honra no balcão da cozinha. Kennedy estivera sentindo-se física e emocionalmente devagar, mas o desjejum a restabeleceu, e suas respostas às perguntas bem-intencionadas de Moggs tornaram-se seguramente menos monossilábicas.

Então, há quanto tempo Kennedy estava na Divisão de Detetives? Seis anos, mais ou menos.

E ela sempre quisera ser policial? Isso, sempre. Era uma tradição familiar ("Normalmente é", Moggs concordou).

Essa era sua primeira visita aos Estados Unidos? Não, a segunda. Kennedy passara uma semana em Nova York uma vez, com uma namorada — ou amiga, melhor dizendo; um dos muitos movimentos em falso num relacionamento que permanecera desconcertantemente platônico apesar de todos os sinais de que se transformaria em algo mais primordial e satisfatório. Kennedy não mencionou a garota: não tinha a menor idéia do que Moggs e Gayle achavam de homossexualidade e não queria acrescentar nenhum embaraço extra a uma situação que já estava degringolando.

Fui a Londres uma vez — Moggs confessou. — Mas foi uma porcaria. Era alto verão e chovia o tempo todo. Levei o mês seguinte todinho só para ficar seca de novo. Além disso, eu tinha que apontar o dedo para os pratos nos cardápios dos restaurantes porque descobri que não conseguia falar a língua... mesmo que aparentemente fosse a mesma língua!

Ela riu estrondosamente da própria piada. Kennedy riu junto.

Então, né — Moggs disse, subitamente séria. — Essa sua investiga­ção de assassinato... O Web não quer falar comigo sobre isso porque não quer abusar da posição dele, por eu ser jornalista e ele ser um oficial da lei, mas disse que talvez você quisesse falar sobre isso, e, se fosse o caso, ele não poderia impedi-la. Então eu pensei, ora, se eu te mostrar o meu, pode ser que você queira me mostrar o seu. O que me diz?

Kennedy decidiu-se pela honestidade objetiva:

Não posso responder a isso até saber o que é "o seu". — E, se forem mais fantasmas, provavelmente vou ter que dispensar sua hospitalidade, pensou.

Moggs reconheceu a razão dela com um sorriso.

Verdade. E bem verdade. Ouça, então. O Web é um bom ho­mem, né? Quero dizer, você acabou de conhecê-lo e aposto que já consegue perceber isso. Ele é tão bom que acha que todo mundo no mundo é bom também. Isso é meio que uma fraqueza num policial.

Ei! Eu estou ouvindo! — Gayle protestou.

Cale a boca, Web — Moggs devolveu a ele com afeto. Manteve os olhos em Kennedy o tempo todo, e talvez houvesse um brilho astucioso neles. — Mas eu sou uma caçadora de notícias, então sei que a maioria das pessoas é imunda. Imagino que você concorde com isso, né?

Eu diria cinqüenta por cento — Kennedy admitiu, desconfiada.

Bom — disse Moggs. — Eu não. Eu diria que as chances são muito maiores do que isso. Então, eis como a coisa funciona. O Web recebe uma mensagem de uma forasteira, uma colega policial, e é um pedido de ajuda. E a primeira coisa que o Web pensa é: Como posso ajudar essa pessoa? Enquanto a primeira coisa que eu penso é: Qual é o truque aqui? O que é que eu posso perder? O que esse caso vai parecer se eu andar um pouco ao redor dele e observá-lo de várias formas? Está me entendendo?

Kennedy percebeu a pergunta por trás da pergunta e soube, sem a menor sombra de dúvida, que ela havia sido pega no flagra.

Sim — disse. — Estou entendendo.

Então, enquanto o Web lhe estende o tapete vermelho e me con­ta todas essas coisas maravilhosas sobre você — como é esperta e como é educada e o sotaque maravilhoso e tudo mais —, não consigo deixar de pensar: então, quem é essa sargento Kennedy e qual exatamente é o motivo dela? Porque todo mundo tem um motivo, né?

Sim — Kennedy respondeu. — Suponho que seja verdade.

E o seu ângulo é que você não é mais policial. Foi mandada embora e voltou a ser civil, ou então pediu demissão — depende de a quem eu pergunte. Mas se esqueceu de mencionar isso ao Web quan­do pediu que ele ajudasse na sua investigação.

Kennedy ficou surpresa ao perceber que havia corado. Sabia que era só uma questão de tempo antes que alguém verificasse suas cre­denciais e descobrisse que elas não serviam. Não esperara que o mo­mento fosse tão doloroso quando viesse.

Ela se virou para Gayle.

Eu sinto muito, xerife — ela disse, sinceramente. — O senhor deve achar que eu o estava usando de uma forma totalmente cínica, e talvez eu estivesse. Mas o senhor não acreditaria no que já fiz para continuar com este caso. No que perdi. E eu não podia desistir. Mes­mo quando o caso deixou de ser meu, quando deixei de ser policial, não pude desistir.

Ela ficou de pé, pronta para sair, fosse sozinha ou sob custódia, mas Gayle irrompeu numa gargalhada diante da expressão hostil e solene dela.

Sente-se, sargento — ele disse. — Não vejo o que você disse exatamente como uma mentira. Na minha opinião, algumas pessoas são policiais antes mesmo de conseguirem o distintivo, e continuam sendo policiais depois que o devolvem. Ou elas nunca conseguem um distintivo, como a Moggs aqui, mas ainda têm os instintos e o jeito de olhar para o mundo.

Está no sangue — disse Moggs sem modéstia. — Sério, srta. Kennedy — acho que não devo chamá-la de sargento —, eu não esta­va tentando esfregar tudo isso na sua cara. Só estava lhe contando que nós sabemos. Descobrimos qual é a sua. Mas você não tem nenhuma jurisdição aqui, de todo jeito, e sei que de fato esteve trabalhando nesse caso até seu último dia como policial. Tudo o que fez de errado, aos olhos do mundo, foi não parar. E outra coisa, o Web não quebrou nenhuma regra ao ajudá-la. Tudo isso é coisa de domínio público, até o momento. O xerife do Condado pode falar com quem ele quiser a respeito de um caso em andamento, se alguém perguntar.

Embora ele normalmente não conte — Gayle interpôs. — Eu não gostaria que você pensasse que eu seria indiscreto com qualquer um que simplesmente viesse falar comigo, sargento.

Ora essa — Moggs disse —, a verdade é que você está trabalhan­do no seu terreno preferido, e é por isso que quisemos fazer esta reu­nião informal, e é por isso que quis dividir com você o que sabemos. Então, o que me diz?

Ela estendeu a mão. Ainda corada, Kennedy a aceitou — não num aperto de mãos formal, mas num cumprimento informal, com tapa e chave de polegar, que pareceu muito mais intenso e tranquilizador.

Vamos para a sala — Moggs disse — e eu te mostro o que tenho.

Ela foi na frente, passando pela cortina em direção a um vestíbulo estreito que levava a um espaço caloroso e acolhedor, cheio de mo­bília suave e cores do entardecer. Um enorme sofá exibia uma man­ta de crochê adornada com uma águia americana estilizada, porém esplêndida.

Na verdade — Moggs disse, assim que fez Kennedy sentar-se no sofá —, este pode ser o tipo de coisa para a qual precisamos nos forti­ficar com um pouco mais de café. Vou ferver mais um bule.

Ela foi correndo de volta à cozinha e depois de um minuto Gayle a seguiu, resmungando algo sobre ajudar a carregar a bandeja. So­zinha, Kennedy observou as paredes enquanto seus batimentos car­díacos voltavam ao normal. Estavam cobertas de fotografias, mas a própria Eileen Moggs não aparecia em nenhuma delas. Havia uma parede de retratos, alguns dos quais Kennedy reconheceu: Webster Gayle (duas fotos), George Clooney, Jesse Jackson, Bill Clinton, Bono Vox, Donald Rumsfeld fazendo uma carranca demoníaca. A parede oposta era ocupada por lugares: o Grand Canyon, a Rota 66 com sua placa icônica e a flotilha de motoqueiros, as ruínas dos anasazi, cactos, a sede do governo do estado cercada por manifestantes e uma imagem muito perturbadora de um assentamento no deserto onde um gru­po de policiais uniformizados, ou da força municipal ou da estadual (Kennedy não conhecia os uniformes bem o suficiente para ter certe­za) posavam solenemente em torno do corpo de um homem negro.

Gayle entrou carregando três xícaras numa bandeja, vindo de cos­tas e cabeça baixa pela cortina de miçangas. Moggs o seguiu com um prato de biscoitos e — de forma um tanto incongruente — uma gar­rafa de uísque Jim Beam. Gayle colocou a bandeja na mesa, e Moggs torceu a tampa da garrafa, abrindo-a.

Normalmente coloco uma dose disto no meu café — ela disse a Kennedy. — Só um pouquinho. É simbólico, na verdade, mas deixa as coisas pesadas mais leves.

Ela batizou a própria xícara com o uísque e olhou para Kennedy com a garrafa erguida e pronta.

Vamos falar de coisas pesadas?

Moggs sorriu.

Já não falamos?

Vá em frente — Kennedy disse, e Moggs serviu.

Eu passo — disse Gayle. — Preciso voltar ao trabalho depois disso.

Eu ainda estou trabalhando — rosnou Moggs.

Claro. Mas todo mundo espera que uma jornalista maluca esteja bêbada.

Eles cutucavam um ao outro com a intimidade fácil dos amantes. Não precisavam rir das piadas um do outro. Moggs foi até o outro lado de uma mesa enorme em forma de L num canto da sala e voltou com uma pasta de arquivo verde-oliva, muito grossa, que colocou na mesa entre eles, empurrando o prato de biscoitos para o lado para abrir espaço: o prato principal.

Tá legal — ela disse, com o ar de quem estava prestes a falar de algo muito sério. — Este é o nosso arquivo de mortos ambulantes.

Kennedy não estivera se sentindo vibrante de antecipação, mas ex­perimentou uma sensação de declínio mesmo assim.

Os fantasmas do Vôo 124? — perguntou.

Exatamente — Moggs confirmou. — Dê uma olhada. Eu prome­to revelações, sinais e prodígios.

Eu... não sou de acreditar nessas coisas — Kennedy protestou, desconfortável, mas sem muita firmeza.

Ah, nem eu, sargento. Mas leia mesmo assim. Daí a gente conversa.

 

Meia hora depois, Kennedy ainda estava lendo, observada por seus anfitriões indulgentes — mas os sinais e prodígios ainda não haviam aparecido. Na verdade, o conteúdo dos arquivos era exatamente o que ela teria esperado que fosse: uma sopa requentada de lendas ur­banas, histórias de terror com frases prontas e tristes auto-ilusões.

Todas as figuras de sempre estavam lá: o homem que manda e-mails cheios de uma algaravia indecifrável usando o computador de seu es­critório enquanto seu corpo está estendido numa prateleira num ne­crotério do Arizona; a mulher que sentiu a mão do marido morto em seu ombro e o beijo dele em sua bochecha no exato momento em que o avião caiu; o carro deixado atravessado em frente à casa no meio da noite ("As chaves da minha mulher estavam na ignição, mas ela estava com elas quando morreu, eu juro!"); as figuras de palitinhos de mãe e filho desenhadas na condensação da janela do quarto e a doce velhinha identificando-as sem hesitação, chorando, como trabalho de sua neta ("Ela sempre desenhava a si mesma com cabelo encaracolado, mesmo que tivesse perdido os cachos um ano atrás"). E assim por diante, e por aí vai, com variações menores e desinteressantes. As histórias que as pessoas contam umas às outras para convencer a si mesmas, contra todas as chances, de que a morte não é o fim.

Kennedy fechou o arquivo, lido apenas pela metade, para indicar que já havia terminado. O material servira para deixá-la mais ou me­nos convencida de que Gayle e Moggs eram evangelistas de uma das mais surreais igrejas americanas, e ela estava a ponto de ser obrigada a dizer-lhes que aquilo não servia para nada.

Como eu disse — repetiu em tom tão neutro quanto possível —, não acredito nesse negócio de vida após a morte. É interessante, mas realmente não é o meu tipo de...

Interessante? — Moggs estava incrédula. — Por que diria isso, srta. Kennedy? Ora, a maior parte disso é o mesmo lixo que as merdas dos grandes jornais tentam nos empurrar a cada dia da semana. Está longe de ser interessante. Não consigo ler nem seis páginas disso sem ter vontade de morrer.

Bom, então... — Kennedy titubeou. — Por que mostrar isso para mim?

Essa, sim, é a pergunta certa — Moggs disse. — E eu vou res­pondê-la com outra pergunta. O que você percebe em toda essa babo­seira? Qual é o padrão? — Havia algo um tanto furtivo ou presunçoso na voz dela: o tom de uma professora que já conhece a resposta certa e está esperando que a aluna dispare a resposta errada.

Kennedy voltou ao arquivo e repassou as primeiras páginas sem mais entusiasmo do que conseguira sentir da primeira vez.

Nenhum avistamento real — disse. — Nada que seja verificável. Nada que não possa ter sido falsificado ou imaginado. São as lorotas perfeitas dos tablóides: só os mínimos fatos e nomes, para que seja difí­cil verificar qualquer coisa, e espaço máximo para manobra. Histórias de uma agência pinçadas e polidas por outras...

Exatamente — Moggs disse. —Já vi tudo isso antes, srta. Kenne­dy. Escute, posso chamá-la de Heather? Obrigada. Já vi tudo isso an­tes, Heather, e parece que você, também. Mas, como dizem, é preciso procurar a exceção que comprova a regra — e, desta vez, e exceção é imensa e berrante.

Kennedy mostrou a palma das mãos.

Não estou vendo nada.

Percebia que Gayle estava ansioso para interromper, mas ele se re­freava — provavelmente, via este como o show de Moggs, não o dele.

A verdade é — disse Moggs, retrocedendo apenas um pouco — que eu levei um bom tempo para perceber isso, também. O Web estava me deixando doida com essa história. Mesmo quando ele não estava falando sobre isso, tinha aquela expressão que dizia exatamente o que estava pensando. Então comecei a colecionar essa pasta de re­cortes, basicamente para poder bater com ela na cabeça dele, mostrar a ele de várias formas diferentes que isso era coisa de doido. Foi aí que eu percebi — acho que porque estava tudo num só lugar e porque o Web tinha tentado dividir as notícias por data e hora e tudo mais. Essa era meio que a chave. Volte para o começo, Heather, e tenha em mente que o arquivo está em ordem cronológica.

O primeiro artigo dizia a respeito de um Peter Bonville, o funcioná­rio cuja rotina de trabalho era tão poderosa que a morte não conseguira impedi-lo de aparecer no escritório, servir-se de um copo de café, li­gar seu computador e verificar a caixa de entrada de seu e-mail. Algo incomodou Kennedy ligeiramente. Ela verificou a data: dia 5 de julho. Três dias depois que o CAI 24 caíra.

Esta não é a primeira — ela disse. — Tinha uma com data do dia 4.

Sylvia Gallos — Moggs confirmou, aprovando. — Certo. Isso me intrigou também, no começo — mas é um erro de paralaxe. Veja você, a Sylvia Gallos ligou para uma estação de rádio local, para um talk-show que vai ao ar tarde da noite, na mesma noite em que a coisa aconteceu. Então, não há lapso de tempo. Aconteceu no dia 4 e foi re­gistrado no dia 4. A história do Bonville apareceu um dia depois, mas aconteceu dois dias antes. Só que não virou notícia até alguém pensar em noticiar o caso.

Claramente, estavam chegando ao âmago da questão agora. Moggs não chegou a baixar a voz, mas inclinou-se para a frente como se o que estava prestes a dizer merecesse os atributos teatrais de uma conspiração.

Existem várias versões diferentes da história do Bonville, com uma gama absurda de detalhes a respeito do que ele supostamente fez quando chegou ao trabalho naquele dia. Tipo, que o Bonville bateu seu próprio cartão de ponto. Errado. Ninguém encontrou nenhuma prova de que ele tenha entrado ou saído. O Bonville serviu uma xí­cara de café para si e deixou bebida pela metade na mesa do cubículo dele. Errado. Até onde eu sei, só a área do escritório, que era aberta, recebeu uma visita: a copa ficava em outro lugar e estava intocada. O Bonville falou com alguns dos colegas de trabalho dele, que não sabiam estar falando com um fantasma até ser tarde demais. Errado. Ninguém o viu. Toda a evidência de que ele estivera lá veio do compu­tador dele, do posto de trabalho dele, que havia sido ligado e usado.

Usado para quê? — Kennedy perguntou. Sentiu um formigamento de tensão na nuca e nos antebraços. Haveria uma fagulha de verdade oculta sob aquelas várias camadas de histórias da carochinha gastas e repetitivas?

Bom, mais uma vez, isso tem versões diferentes — Moggs res­pondeu. — Algumas dizem que o Bonville ficou surfando em sites de pornografia. A maior parte diz que ele ficou mandando e-mails: ou cheios de uma bobageira aleatória ou de reclamações assustadoras sobre estar perdido num deserto em algum lugar onde o sol nunca nasce. Novamente, verifiquei tudo isso com os empregadores do Bon­ville, o Departamento de Obras Públicas de Nova York. Eles não eram obrigados a falar comigo, claro, não teriam sido obrigados a falar nem com o Web, se ele tivesse telefonado, porque a jurisdição dele termina na fronteira do condado. Mas queriam falar. Estavam meio que inco­modados com todas aquelas histórias malucas circulando e queriam dar a versão correta. Disseram que o programa de e-mails do Bonville não havia sido aberto, nem o navegador dele. Tudo o que ele fez — ou quem quer que fosse fez — foi acessar alguns arquivos e deletá-los. Então, presumiram que fosse algum ataque de rotina de hacker em vez de uma visita fantasmagórica.

Aquele formigamento preliminar tornara-se algo muito mais ur­gente agora, que fizera Kennedy inclinar-se para a frente também, como se ela estivesse a ponto de passar por cima da mesa e beijar Moggs — o que poderia fazer com que o xerife Gayle revisse sua boa impressão sobre ela.

Que arquivos? Sabemos o que continham?

Não, não sabemos. E eles também não sabem — porque o prin­cipal servidor do departamento foi atacado por uma grande infecção viral mais tarde, naquele mesmo dia, e todos os arquivos de segurança foram eliminados antes que pudessem fazer alguma coisa a respeito. Tudo o que sobrou foi uma tabela de registros com os nomes de al­guns arquivos, mas eles não são informáticos. Dados 1, Dados 2, Da­dos 3, coisas assim.

A primeira coisa em que Kennedy pensou foi óbvia: o Rum? Mas não, isso era absurdamente improvável. Se alguém na equipe de Stuart Barlow tivesse falado com um funcionário público de baixo escalão em Nova York, ela teria esbarrado nessa informação muito tempo atrás. Isso era diferente: não era o Rum. Mas era suficientemente parecido com o Rum para a resposta ser a mesma: Mandem Michael Brand.

Moggs ainda estava falando.

Então, não temos muito com o que trabalhar no final. Mas eis o que me fez continuar, sargento. Eu disse que esse foi o primeiro dos incidentes fantasmagóricos. Mas não contei quando exatamente acon­teceu. Aquela tabela de registros tinha marcações precisas das datas em que cada um dos arquivos fora modificado — de quando foram deletados. Eram momentos muito próximos, num período de cinco minutos, começando às 11h30 do dia 2 de julho. Em outras palavras, os arquivos foram eliminados enquanto o Vôo CAI 24 ainda estava no ar: uns bons dez minutos, mais ou menos, antes de o Peter Bonville virar um fantasma.

Kennedy verificou os horários ela mesma e depois manteve um mi­nuto de silêncio em honra ao trabalho de detetive de Moggs: ou cinco segundos de silêncio, pelo menos.

Você está certa — disse, cheia de admiração. — Está totalmen­te... Você pegou a essência da coisa, srta. Moggs. Eileen. Essa foi uma assombração preemptiva.

Moggs riu, claramente gostando tanto do termo quando do elogio.

Assombração preemptiva, depois dois dias de nada, depois todas essas outras histórias de fantasma apareceram. Então, no momento em que a supervisora do Bonville percebeu que alguns arquivos haviam desaparecido e contou ao superior dele, todos esses boatos já estavam começando a surgir. E foi assim que o caso foi reportado: como outro fantasma do Voo 124.

Kennedy assentiu lentamente, pensando para a frente e para trás ao longo daquela linha de raciocínio.

Na verdade, isso é muito inteligente — murmurou. — Você co­bre seu rastro indo tão longe quanto pode, mas, quando percebe que não cobriu bem o suficiente, joga um monte de pistas falsas para fazer com que o verdadeiro pareça não levar a lugar nenhum.

"As elaborações de um mau mentiroso" — sugeriu Moggs.

Soava como uma citação, mas Kennedy não entendeu de quem e não estava a fim de perguntar. Em vez disso, virou-se para Gayle:

Então, vocês acham que alguém tirou vantagem da ausência desse cara para entrar no computador dele e tirar algo de lá? E que, depois que ele morreu, em vez de voltar para o trabalho, inventaram uma história sobrenatural para acobertar o que fizeram?

É exatamente o que eu acho — Gayle concordou.

Eu acho que está errado, xerife.

Gayle piscou algumas vezes, acertado em cheio no rosto pelas duras palavras. Um momento atrás, todos eles haviam sido conspiradores — e caçadores de conspirações —juntos, agora, parecia que Kennedy não queria mais brincar.

Como assim? — ele perguntou.

Kennedy voltou-se para Moggs.

Tem a lista dos passageiros do 124? — perguntou.

Moggs assentiu.

Tenho cada pedacinho de informação que consegui obter legal­mente sobre essa coisa toda, e mais um pouco.

Pode trazer essa lista?

Moggs foi até sua mesa e ligou o computador. O xerife Gayle foi junto e ficou atrás dela enquanto ela digitava a senha. As mãos dele baixaram para os ombros dela, um gesto de proteção e solidariedade. Eles haviam mostrado seu bebê a Kennedy: será que ela o jogaria fora junto com a água da banheira?

Moggs pressionou algumas teclas e abriu um arquivo.

Tá legal — disse. — Achei.

Encontre o Peter Bonville.

Achei. Ele está quase no topo da lista, obviamente.

Tá bom, vou te dizer o número do assento dele.

Moggs lançou-lhe um olhar intrigado.

O quê, de memória?

Nunca ouvi o nome dele até agora há pouco.

Então, como pode saber o número do assento dele?

Talvez eu não saiba. De muitas formas, eu espero estar errada. Mas é o E29?

Os dois, em uníssono, leram a tela e depois se viraram para encará-la.

Como é que sabe disso? —- Gayle perguntou.

Kennedy enfiou a mão no bolso interno do casaco e tirou de lá um papel dobrado que Gayle havia dado a ela no dia anterior: a fotocópia da nota de dinheiro marcada que pertencera a Brand. Ela a estendeu. Gayle pegou-a e observou-a, mas Moggs percebeu primeiro:

As três linhas na nota — disse. — Passam exatamente por cima do número serial aqui, na parte de baixo.

Ora, raios me partam! — Gayle exclamou, impressionado, en­tendendo tudo um segundo depois. As três linhas vermelhas cruza­vam um 2, um 9 e um E.

A primeira coisa que pensei quando vi essa nota foi que pode­ria ser algum tipo de mensagem codificada — Kennedy disse. — As pessoas que eu tenho procurado... elas amam códigos e mensagens ocultas. Acham que são as pessoas mais espertas do mundo, penso eu, e que podem trabalhar bem debaixo do nosso nariz desde que usem uma cortina de fumaça por cima de toda comunicação. Isso parece bem coisa delas, até onde eu sei.

Então, como é que isso quer dizer que estamos errados? — Gayle perguntou.

Porque vocês estão presumindo que o ataque ao computador do Bonville foi oportunista. Não foi. Quem quer que tenha dado essa nota ao Brand estava dizendo a ele quem era o alvo. O que significa que o Brand subiu naquele avião com a intenção clara de matar Bon­ville. E, por razões que agora nós nunca vamos saber...

Ah, Jesus Cristo — Moggs murmurou.

... ele matou todo mundo. Todo mundo que estava a bordo. Completou a missão derrubando o CAI24.

 

Sob certos aspectos, depois disso, foi fácil.

Bonville não embarcara em Los Angeles. Ele estivera no 124 desde seu ponto de origem: o Aeroporto Internacional Benito Juárez, na Cidade do México. Kennedy pediu ao xerife Gayle — apesar das ques­tões de jurisdição que Moggs já havia mencionado — que fizesse uma ligação para a ex-supervisora de Bonville, uma mulher chamada Lucy Miller-Molloy, no Departamento de Obras Públicas de Nova York. O que Bonville estivera fazendo no México? E, já que estavam falando sobre isso, o que Bonville fazia? Qual era a função dele no departa­mento? Qual era a área de especialização dele?

Linhas de potência, era a resposta curta. A resposta ligeiramente mais longa: Bonville era um respeitado pensador no campo em ex­pansão da equalização de fluxo de retorno no horário de pico de uso. A própria Miller-Molloy sabia demais sobre o assunto para explicá-lo claramente para um leigo, mas disse a Gayle o suficiente para que ele pudesse fazer um resumo para Kennedy e Moggs sem se contradizer.

Digamos que você administre uma cidade e tenha um gerador que fornece eletricidade para ela — ele disse. — Às vezes você precisa de muita potência, outras vezes, não muita. Então, usa os intervalos para carregar geradores auxiliares — ou, digamos, para bombear água rio acima por alguns quilômetros, passando por uma barragem e uma usina hidrelétrica. Então, quando há um momento de pico, você tem essa carga extra na reserva como dinheiro no banco e pode se pagar de alguma forma — aumentar sua capacidade nos horários de pico.

Parecia haver muitas maneiras de fazer essa coisa de equalização de fluxo, alguns tão baratos cjuc pagavam a si mesmos. A função de Bonville era examinar os sistemas de potência e dizer:

Bom, aqui dá para fazer isso, isso e isso, e vai te custar tanto para cada erg de energia.

O Departamento de Obras Públicas de Nova York usara Bonville como consultor externo por algum tempo e depois passara a lhe pagar um salário — e uma agradável conseqüência disso fora que eles pu­deram gerar rendimentos extras ao enviá-lo sob aluguel para outras municipalidades. A Cidade do México fora a última dessas paradas.

Então, ele estava lá para dizer aos caras como economizar eletrici­dade — Gayle resumiu, quando voltou a falar com Kennedy e Moggs. — A idéia era que ele analisasse o uso de energia deles. Daí explicaria onde tinham capacidade extra no sistema e como poderiam usá-la.

A essa altura, já havia passado do meio-dia, eles estavam no quar­to bule de café e Gayle havia relaxado em suas restrições ao uísque. Estava tomando um trago da bebida agora num pequenino copo de vidro com um rótulo cujas letras vermelhas diziam Um Presente de Tijuana. Silhuetas de um sombrero e de um cacto forneciam a referên­cia adicional.

Não consigo ver como isso se encaixa no seu quadro — Moggs disse a Kennedy, repassando suas anotações sobre Bonville, às quais fizera acréscimos no decorrer da manhã. — Esse seu povo de Judas mata qualquer um que descubra algo a respeito da bíblia secreta deles, certo? Vamos presumir que Bonville esbarrou nesse tal Evangelho do Rum em algum lugar no México?

Kennedy estivera ponderando a respeito da mesmíssima coisa e encontrara algo semelhante a uma resposta.

Eu acho que eles abrangem uma área maior do que essa — disse, enquanto Mogss voltava à rápida digitação. — O motivo de as pessoas não poderem ver o Evangelho de Judas não é só uma questão de fé cega. Se fosse, eles teriam matado cada pessoa que tivesse lido a versão mutilada dele que apareceu alguns anos atrás, o Códice Tchacos. Acho que o motivo é que não querem que ninguém saiba que eles existem ou já existiram um dia. A versão completa do evangelho, a que Barlow obteve a partir do Rum, fala sobre as regras internas e as divisões da sociedade deles. Deixa claro que a devoção a Judas foi algo que definiu uma comunidade. Uma tribo. Isso parece ser o que querem manter em segredo.

Uma antiga tribo de Judas? Ainda não parece ter uma conexão lógica.

Bom — Kennedy disse —, talvez haja. Sabemos que o Bonville via­java pelo mundo, aconselhando pessoas — pessoas de governos locais, de agências públicas — a respeito do uso da energia. Então, ele tinha acesso a um monte de informações sobre um monte de coisas, sobre padrões de fluxo de potência e consumo de energia, em momentos diferentes, em lugares diferentes. Suponha que ele tenha encontrado algum dado que não se encaixava no padrão.

As mãos de Moggs, suspensas sobre o teclado, pararam. Ela se vi­rou para encarar Kennedy.

Consumo de energia onde não deveria haver nenhum — disse.

Exatamente. Ou simplesmente maior do que deveria ser num lugar específico e com uma densidade populacional espe­cífica. Ele poderia ter descoberto onde o povo de Judas se esta­beleceu, simplesmente com base nessas estatísticas. Bonville não teria sabido, necessariamente, o que havia encontrado. Mas teria começado a fazer as perguntas erradas ou a olhar para os lugares errados. E o apagaram antes que ele pudesse somar dois e dois e obter quatro.

Gayle lançou um olhar ansioso para o computador de Moggs. Ken­nedy pôde ler a mente dele.

Precisamos tomar muito cuidado com quem quer que converse­mos sobre isso — ela concordou. — Na verdade, estou achando que deveríamos manter a coisa só entre nós três por enquanto. Eileen, você tem um laptop?

Moggs assentiu.

Salve essas anotações num pendrive, coloque-as no laptop e mantenha o laptop desconectado da Internet. Se eles conseguiram invadir o computador do Bonville, podem invadir o seu.

Talvez eu deva desconectar meu computador principal também — Moggs murmurou. — Posso usar a máquina no escritório do Chronicler para acessar a Internet.

Kennedy balançou a cabeça negativamente.

Não, deixe sua máquina aqui conectada. Se eles decidirem me­xer nos seus arquivos, a gente quer que não encontrem nada fora do comum. Tudo do jeito que deveria estar, tudo parecendo totalmente inofensivo. Se souberem que estamos chegando, vão chegar a nós pri­meiro. Acredite, você não vai querer que isso aconteça.

Qual é o próximo passo? — Moggs perguntou.

Santa Claus — Gayle presumiu, antes que Kennedy pudesse pronunciar as palavras. — Vamos até o depósito de provas outra vez e ver se alguma coisa do Bonville está ou na caixa dele ou entre os objetos anônimos. Qualquer coisa que possa nos mostrar o que foi que ele encontrou.

É o que eu quero fazer também — Kennedy concordou. — E vamos agora mesmo. Se não acharmos nada lá, voltamos a falar com o escritório em Nova York e pedimos uma lista dos lugares aonde o Bon­ville foi no ano passado, digamos. Isso vai nos dar uma lista curta.

Pode nos dar mais do que isso — Moggs disse. — Se cruzarmos as referências dessa lista com os arquivos do servidor de Nova York, podemos acabar descobrindo que só houve uma discrepância — um único lugar a respeito do qual não há dados salvos.

Eles concordaram, por fim, em trabalhar em ambas as frentes ao mesmo tempo. Moggs ficaria no apartamento e daria esse telefonema. Gayle e Kennedy iriam até os depósitos em Santa Claus e procurariam por armas fumegantes lá. Essa foi exatamente a expressão que Gayle usou, o que fez Kennedy franzir o cenho.

Me faz um favor? — Kennedy pediu a ele. — A gente pode dizer simplesmente "procurar por provas"?

 

A auto-estrada 93 estava limpa até o horizonte, em ambas as direções, novamente. Ainda assim, Kennedy não conseguia parar de olhar no espelho retrovisor a cada minuto. Não confiava que o deserto perma­neceria vazio.

Isso vai exigir algumas explicações — Gayle considerou. — E, assim que começarmos a explicar, a coisa vai se tornar federal. Não sei se isso vai ser bom ou ruim. Essa gente tem todos os recursos, afinal. E imagino que, uma vez que o risco tenha se espalhado tanto, deixe de ser um risco. Não vai haver razão nenhuma para alguém vir atrás da gente se a coisa for feita abertamente. Mas os federais têm regras próprias e não têm essa de negociar com eles. Suas férias no Arizona podem acabar sendo um pouco mais longas do que esperava, sargento. Se eles acha­rem que podem precisar do que você sabe, vão querer mantê-la aqui, à mão. E sei que não pode recorrer à sua gente para defender você. Mas mantê-la fora dos registros... bom, isso seria bem difícil a esta altura.

Não precisa mentir por minha causa, xerife — Kennedy respon­deu. — Faça as coisas exatamente do jeito que acha que devem ser feitas e, se alguma regra tiver sido quebrada ou contornada ao longo do caminho, sinta-se livre para me culpar por isso.

Ora, eu não faria isso.

Beleza. Mas eu cheguei aqui mentindo para você — e a mentira está registrada. Ninguém além de nós precisa saber que a verdade foi descoberta. Você estava ajudando uma colega policial. Todo o resto partiu daí.

Tá bom — Gayle disse. — Dessa versão eu gosto.

O Byscaine soltou sua fumaça, o estouro soando como uma tossida envergonhada.

Eles saíram da estrada, estacionaram o carro e entraram no galpão de armazenamento. Era o meio da tarde agora, e o lugar estava ainda mais quente do que na primeira visita que haviam feito. Gayle ligou o ar-condicionado, e eles se refugiaram no Byscaine até que o aparelho pequeno e combativo pudesse começar a fazer alguma diferença.

Você e a Moggs estão juntos há muito tempo? — Kennedy perguntou.

Gayle chegou a corar um pouco.

Ah — ele disse —, isso é meio que... sabe, o que a gente escuta nem sempre é... — A voz dele sumiu, encontrando os limites da arti­culação, depois se recuperou na forma de uma pergunta. — E você? Existe um sr. sargento Kennedy, sargento Kennedy? Tem algum ho­mem especial na sua vida?

A atitude evasiva dele fez com que ela ficasse desconfortável com seus próprios subterfúgios.

— Sou lésbica — respondeu. — Mas não tem ninguém na minha vida agora. Já faz um tempo desde que tive alguma coisa séria por aí.

O rubor no rosto de Gayle se intensificou.

Tá certo — disse. — Bom... preferências diferentes para... — Essa era outra frase que estava destinada a nunca ser terminada. — Acho que já podemos entrar lá — disse por fim, e saiu do carro novamente.

Era verdade que o interior do galpão estava um pouco mais fresco agora. Foram diretamente para o corredor da direita, pegando a pasta vermelha no caminho.

Como um general, Gayle definiu o plano de ação deles. Trouxera dois pares de luvas de borracha, um dos quais entregou a ela, e uma embalagem de spray desinfetante.

Tudo começa aqui e vai até lá — disse, indicando com meneios de cabeça enquanto molhava as próprias mãos e as dela com o líqui­do. — Fizemos um esforço para agrupar tipos similares de coisas, mas, para ser honesto, dependeu de quem ia anotando. O Anstruther usou categorias próprias dele, que não fizeram muito sentido para mim, e o Scuff é um preguiçoso, então, acho que não podemos descartar muita coisa. — Ele estava vestindo as luvas enquanto falava. — Do 138 ao 197 são roupas, e a gente esvaziou todos os bolsos, então, vamos deixá-las por último. Provavelmente não vamos encontrar muita coisa nelas. O 198 está bem aqui, então temos... cinco unidades, ou sessenta caixas, mais ou menos. Acho que vou começar num canto, você pode começar no outro e a gente se encontra no meio.

Kennedy assentiu e foi para seu lugar, vestindo as luvas enquanto andava e ia ajeitando os dedos nos lugares. Enquanto ela se afastava, Gayle chamou-a.

Sargento?

Ela se virou.

Sim?

Não me importa quem você leva para a cama. E que me educa­ram para não falar dessas coisas. Não quis ofender.

Ele parecia imensamente sincero. Kennedy sorriu.

Não me ofendeu — ela disse.

Tá legal, então. Boa caçada.

Para você também, xerife.

O conteúdo das caixas era uma miscelânea tragicômica. Ela tivera um vislumbre dele, é claro, quando abrira a pasta vermelha pela pri­meira vez. Agora, tinha que vasculhá-lo a fundo, o que mostrou ser uma tarefa cheia de horror e tristeza, como tentar ler o futuro nas en­tranhas de crianças mortas. Mas era o passado que ela estava tentando ler, e não podia se dar ao luxo de ser melindrosa.

Os objetos em si eram banais. O que os tornava terríveis era sua es­pecificidade: uma carteira com fotos de duas crianças sorridentes, um menino e uma menina, esta ligeiramente estrábica; uma caneta-tinteiro de prata com a inscrição MG —por nossos 40 anos; um molho de chaves cujo pingente era um pedaço de cristal dentro do qual fora gravada a laser uma imagem tridimensional, o retrato de uma velha senhora aris­tocrática; um tocador de MP3 num estojo decorado com imagens de histórias em quadrinhos, no qual o nome Stu Pearce, ligeiramente bor­rado, fora escrito com caneta-marcador preta; os tocos de vida ceifada precocemente, agora que os gritos haviam cessado muito tempo atrás e os corpos estavam sob o chão.

Ela se endureceu contra as emoções que se erguiam dentro dela: serviriam apenas para retardá-la e dificultar seus pensamentos. Estava procurando por algo que pertencera a Peter Bonville e pudesse, de alguma forma, conter uma mensagem. Um CD, um pendrive, um gra­vador, um walkman, um diário. No devido tempo eles chegariam aos telefones celulares, e Gayle teria que lutar contra a Quarta Emenda à Constituição dos Estados Unidos e a própria consciência.

Mas foi Gayle quem afinal encontrou ouro, e provavelmente nem levou muito tempo, a contar pelo relógio. De forma subjetiva, cada mi­nuto passado entre aqueles túmulos de papelão era um dia inteiro.

Sargento.

Ela se virou para olhar Gayle. Ele estava segurando um bloco de notas: tamanho A5, ou talvez um pouco menor, com as palavras Walmart Value gravadas na capa vermelha.

Definitivamente? — Kennedy perguntou. — Ou só talvez?

Ele virou as páginas com imenso cuidado.

Bom, logo no começo tem uma lista de endereços encabeçada pelas palavras "Estações de chaveamento". Depois tem uma segunda lista de "Núcleos". Um monte de figuras em colunas, e depois mais isto: "Visitar: sábado: serviço de geração de energia da Siemens, Poniente, 116-590, Industrial Vallejo, estação de metrô Azcapotzalco, Ci­dade do México, Distrito Federal: questões emergentes". Eu diria que parece bem sólido.

Kennedy concordou. Ela se aproximou e leu por cima do ombro de Gayle enquanto ele virava as páginas. A maior parte era insondável, mas tudo cheirava a eletricidade. Medidas em amperes e volts, refe­rências ã capacidade de geração energética, médias de pico e queda, tolerância de resistores, flutuação por horário e distrito, onde os distri­tos tinham nomes como Azcapotzalco, Álvaro Obregon e Magdalena.

A três páginas do final ambos encontraram outra tabela com no­mes, encabeçada por ANOMALIAS EM XOCHIMILCO, em letras maiúsculas, e listas de números, alguns com múltiplos pontos de in­terrogação ao lado, como se desafiassem toda lógica e razão.

O que você acha? — Gayle perguntou.

Acho que isso vale ouro — Kennedy respondeu.

Precisavam decidir se continuariam com a busca ou não. Poderia haver mais: dados digitais sob alguma forma ou outra que pudessem corroborar ou confirmar essas anotações feitas à mão. Mas o que já ti­nham era suficiente para fazer barulho e convocar os federais, preen­chendo, por fim, todas as lacunas naquela trilha de evidências. Michael Brand levava a Stuart Barlow e também à sabotagem do Vôo 124. O Vôo 124 levava a Bonville e Bonville levava a... isso. Um lugar cha­mado Xochimilco. Um local no México, presumivelmente. Um lugar importante, de alguma forma, para a tribo de Judas, cuja existência poderia provar.

Kennedy pesou isso contra a perspectiva entorpecente de conti­nuar garimpando o conteúdo de caixas de restos mortais. A equação admitia somente uma resposta.

Os olhos dela encontraram com os de Gayle e ele assentiu, parecen­do reconhecer tudo o que ela havia pensado, mas não dito.

Já chega — ele disse. — Acho que é isso mesmo. Vamos passar o assunto para os poderosos e ver no que dá.

Da mesma forma que fizera com a nota de dólar de Michael Brand — que ele agora aproveitava a oportunidade para recolocar no devido lugar —, Gayle insistiu em seguir o protocolo de tratamento das pro­vas, assinando o caderno de registros. Kennedy esperou junto à por­ta, sentindo uma estranha sensação de calma descer sobre ela. Agora que tinha alguma coisa, alguma arma — por menor que fosse — com a qual mirar nos desgraçados que haviam matado Chris Harper, era como se ela só precisasse deixar-se levar e a gravidade a carregaria adiante. Sabia que isso não era verdade — que ainda teria um desafio a vencer no Reino Unido, muito em breve —, mas era um sentimento agradável ao qual ceder por um momento.

Tá legal — disse Gayle, fechando a pasta. — Acho que termi­namos.

Houve outra espera enquanto ele trancava o galpão. Depois, eles se dirigiram para o carro, Gayle ia alguns passos à frente.

Devemos ligar para a Eileen? — Kennedy perguntou a ele. — Eu queria saber como foi a conversa dela com o pessoal de Nova York.

Vou ligar para ela do carro, no viva voz — Gayle respondeu. — Vou ficar muito mais feliz assim que a gente...

Chegando simultaneamente com o próprio som — um estalo agu­do como o de um chicote —, a bala o acertou no ombro, perto do pescoço. Devia ter atravessado o corpo diretamente, pois, ao mesmo tempo que o sangue jorrava para a frente a partir do buraco de entra­da, Kennedy pôde ver um anel vermelho alargando-se nas costas da camisa branca de Gayle: expandindo-se e preenchendo-se como um sol que se ergue, depois caindo e perdendo a simetria como um reló­gio derretido numa pintura de Dali. O xerife soltou um grunhido de espanto e dor. Ele tombou de lado, dobrando-se de forma desajeitada quando atingiu o chão.

Kennedy estava chocada demais, aturdida demais, até mesmo para abaixar-se e procurar proteção, e de todo modo não havia onde se es­conder: o Byscaine era o ponto mais próximo, e estava a uns dez me­tros de distância, na mesma direção de onde o tiro viera. Afastando os olhos do corpo estatelado de Gayle, ela olhou para além do carro, em direção ao Papai Noel inclinado na varanda do chalé mais próximo.

O Papai Noel, porém, não era o atirador. A atiradora saía de trás dele agora, arma em riste na mão. Era a mulher do bar, no aeroporto Benito Juárez. A mulher que havia deixado a moeda de prata para Kennedy no balcão. Ela não usava maquiagem nenhuma agora, então a carne vermelha e queimada que arruinava a beleza de seu rosto es­tava horrivelmente distinta.

— Só você e eu — a mulher disse com um sotaque indecifrável, mas ainda assim distinto. — E assim que deveria ter sido da última vez, sua puta assassina. Mas quem sabe o que Deus quer de nós? Ele me fez esperar. E agora, finalmente, Ele fará você sangrar.

 

Dessa distância, em plena luz do dia, não havia dúvida do que a mu­lher era: sob as queimaduras, ela tinha a mesma palidez mortal dos outros assassinos, tanto os de Luton quanto aqueles que Tillman ma­tara no Pombal.

Desarmada e a céu aberto, Kennedy sabia que não tinha chances. Deu um passo para o lado e para trás, afastando-se da mulher, hesi­tante, insegura, como se fosse sair correndo, mas na verdade colocando-se um pouco mais perto do carro.

A mulher riu com verdadeiro deleite. Ela ergueu a mão, e algo prateado brilhou. Não uma moeda dessa vez, mas as chaves do Byscaine, que Gayle deixara na ignição, pois quem diabos viria roubá-los ali, no meio do nada? Ela jogou as chaves para o alto e fez menção de pegá-las, mas, no último momento, deixou que caíssem a seus pés e as pisoteou com os dois calcanhares.

— Não há para onde ir — a mulher disse. — Não sou tão estúpida. Mas veja. Agora vou fazer algo estúpido.

Ela baixou a arma, virou-a e bateu a palma da mão contra a trava do pente. O pente saiu, deslizando para a mão dela. Ela o puxou, reti­rando-o completamente da pistola, e jogou-o no chão. Então, atirou a arma por cima do ombro num gesto negligente. Olhou para Kennedy e encolheu os ombros de forma teatral. Bom, é agora.

A reação de Kennedy foi imediata e instintiva — errada, ela sabia, ao mesmo tempo que agia. Ela correu com toda a velocidade em di­reção à mulher pálida como barriga de peixe, que simplesmente ficou parada com os braços ao lado do corpo e deixou que ela viesse. Com um grito inarticulado, ela mandou um soco contra aquele rosto frio e desdenhoso. Seu punho teria se enterrado na garganta da mulher se tivesse feito contato.

A mulher pegou o pulso dela, virou-o e jogou-a — um movimento que pareceu quase improvisado, mas foi executado na velocidade do bote de uma cobra. Kennedy voou pelo ar num arco curto, pequeno, chocou-se contra o Papai Noel, partindo-o em pedaços, acertou a pa­rede atrás dele e caiu duramente no chão.

Começou o esforço para se levantar, mas um peso morto a aba­teu novamente. A mulher montou por cima dela, a mão direita e o antebraço esquerdo combinados para prender-lhe a garganta num nó agonizante, levantando a cabeça de Kennedy enquanto o joelho, posicionado exatamente entre as escápulas de Kennedy, mantinha o tronco da policial pregado contra o chão.

Isso vai machucá-la muito, muito mais do que você imagina — a mulher sussurrou, perto do ouvido dela. — E vai durar muito tempo. Seu amigo vai sangrar até morrer enquanto eu faço isso. Sua outra amiga, a jornalista, já está morta. E a arma que matou ambos vai ser encontrada na sua mão. A faca que vai matá-la vai para a mão do xeri­fe. Lute. Lute contra mim, sua coisa imunda, quebrada. Me deixe quebrá-la um pouco mais. Ofereço seu sofrimento a Deus, que o ama.

Ela bateu a cabeça de Kennedy contra as tábuas da varanda. Ator­doada, com os ouvidos zunindo, Kennedy tentou rolar de lado, o que inesperadamente conseguiu fazer, pois a mulher já se separara dela, tendo levantado e se afastado.

Kennedy cambaleou até ficar de pé. A mulher esperou por ela e então fez um meio giro para chutá-la no estômago com uma força devastadora. Kennedy dobrou-se e viu o soco tipo gancho de pá che­gando, mas não pôde esquivar-se e foi jogada para trás. Dessa vez ela atravessou a porta do chalé, a madeira ressecada explodindo na forma de pó e estilhaços.

A mulher passou pela porta caminhando logo depois de Kennedy e já estava por cima dela novamente enquanto ela ainda procurava se desvencilhar dos restos da porta. Ela era tão rápida. Kennedy tentou um bloqueio: as mãos da mulher agarraram o braço dela, uma aci­ma e outra abaixo do cotovelo, e ela se inclinou muito ligeiramente a partir da cintura. Uma pressão insuportável foi aplicada de repente sobre o osso do braço de Kennedy. Ela ouviu o estalo quando o osso cedeu. Abriu a boca para gritar, e o antebraço da mulher veio de bai­xo, fechando a mandíbula dela com uma martelada, então o som pro­duzido foi apenas um estalido surdo de dentes e língua e fôlego meio engolido.

Seja paciente — a mulher disse com severidade. — Contenha-se.

Uma chuva pesada de socos e golpes fez Kennedy retroceder um passo cambaleante após o outro, até ela se chocar contra uma parede interior. Com a visão embotada, viu a mulher mudar de posição para um novo ataque. Jogou-se de lado: o chute circular reverso passou cortando pelo espaço onde ela estivera. A viga de madeira, com 13 centímetros de espessura, partiu-se feito um graveto.

Havia dois lados bons nessa situação, do ponto de vista de Kenne­dy. O primeiro era que não era o pescoço dela que havia se partido. O segundo foi que o teto desabou sobre elas.

Era um teto com telhas de madeira, e a princípio ele se manteve íntegro, descendo feito uma raquete mata-moscas gigante. Atingiu a mulher primeiro, só porque ela estava de pé. Não veio com força su­ficiente para tirar-lhe os sentidos, mas bastou para feri-la e distraí-la. Kennedy teve cerca de um segundo para perceber o que acontecia e rolou para longe — a agonia irradiando-se pelo braço esquerdo que­brado quando o peso do corpo se apoiou sobre ele —, mas o teto esta­va desabando agora como uma geleira em queda, mandando chuvas de placas de madeira e tempestades de pó sobre as duas.

Kennedy afastou-se para a esquerda usando cotovelo e joelhos — am­bos os joelhos, mas só um cotovelo, o braço esquerdo arrastando-se inu­tilmente —, indo até a parede lateral, depois se ergueu e saiu correndo em direção à porta aberta, que ela conseguia ver em meio à nuvem de polpa de madeira, pó e escombros diversos.

Ela quase conseguiu.

A faca a acertou na parte de baixo das costas, do lado direito, e fincou-se profundamente. A sensação inicial foi a de um soco, depois o frio puro e perfeito espalhou-se a partir do ponto de impacto. Não era dor: era o arauto da dor, e trouxe a dor em seu rastro silencioso e agudo.

Apenas o impulso manteve Kennedy em movimento. Ela deu um passo, depois outro, e cambaleou através da porta em direção ao ar aberto e escaldante, mas caiu de joelhos e desabou da varanda para a areia.

Ouviu a mulher às suas costas, depois, a sombra da mulher pairou sobre ela.

— Sem veneno — ela disse, a voz áspera e dissonante. Ela tossiu uma vez, depois outra. Ótimo! pelo menos o maldito pó fizera mal a ela. — Não há veneno na lâmina. Nada que possa ser usado para vincular sua morte a qualquer outra. E vai ser mais devagar assim. Vamos nos sentar juntas, você e eu. E vou cantar para você enquanto morre.

Kennedy tentou rastejar, usando novamente só uma mão, os calca­nhares arrastando-se na areia, os pés e a mão direita não encontran­do apoio. Tentou outra vez, alavancou-se um pouco para a frente, afundou novamente de barriga, engolindo haustos breves. O lado do corpo não estava frio agora: pulsava com um tipo de fogo em ritmo desigual. Ela não se atrevia a olhar. Não queria saber quanto sangue estava perdendo.

A mulher começou a recolher suas coisas, apanhando a arma, o pente, as chaves. As chaves estavam a uns quatro ou cinco metros de distância e, quando ela se abaixou para pegá-las, ficou de costas para Kennedy por um momento.

Kennedy abandonou sua pantomima de imobilidade total e lançou-se num rastejar muito mais veloz, rapidamente cobrindo a dis­tância que a separava do corpo de Gayle. A mulher se virou, viu-a, começou a ensaiar um sorriso gelado e então percebeu, um instante depois, o que Kennedy pretendia fazer. Enquanto alcançava o xerife, a mulher empurrou o pente de volta para dentro de sua semi-automática, mirou e atirou num movimento único e fluido. Rápido demais: o cartucho enganchou-se enquanto entrava na câmara e a arma estalou sem disparar.

A mulher largou a pistola e correu na direção de Kennedy.

Kennedy puxou a faixa que prendia o coldre ao cinto de Gayle e sacou a FN Five-Seven dele. Não teve nem tempo de ver se o xerife ainda estava vivo, se ainda respirava. Destravou a trava de segurança da pistola enquanto rolava de costas. Aquilo era mesmo a trava? Era onde ela esperaria encontrar a trava, na parte de trás do cabo e à es­querda, mas talvez ela tivesse acabado de ejetar o carregador.

A arma parecia leve demais e feita de plástico, como um brinquedo de criança. O sol estava em seus olhos agora, mas o corpo da mulher, enquanto corria na direção de Kennedy, ocultou-o. Isso e a distância compensaram a mira desajeitada, feita com uma mão só, e o desfoque de sua visão. Ela estendeu o braço diretamente à frente e disparou.

As pessoas que gostam da Five-Seven ficam impressionadas com sua capacidade para 20 balas. As que a odeiam se sentem intimidadas pelo clarão que o cano dela emite às vezes, feito um holofote apontado bem na cara da gente. Em meio a estouros estroboscópicos que quei­mavam em preto e branco a retina, Kennedy puxou o gatilho de novo e de novo e de novo num ritmo firme e mecânico, movendo o pulso aos poucos para a direita e para a esquerda na intenção de despedaçar o alvo.

Finalmente, a arma ficou vazia e o gatilho não cedeu mais. Ela dei­xou a pistola cair de sua mão.

Quando conseguiu se mover novamente, a primeira coisa que fez — antes mesmo de rasgar a camiseta com a mão direita e os dentes para fazer torniquetes — foi verificar a condição da assassina. Acontece que apenas dois daqueles 20 tiros haviam acertado o alvo, e um causara só um ferimento superficial numa das panturrilhas da mulher.

O outro atravessara o lado esquerdo do peito dela, e, pelos sons que fazia, estava muito claro que havia perfurado um pulmão.

Não havia muito que Kennedy pudesse fazer por ela. Em todo caso, Gayle vinha primeiro. Estancar a ferida no ombro do xerife usando somente a mão direita e com os ossos do braço esquerdo rilhando um contra o outro a cada vez que ela se movia era como fazer malabaris­mo com motosserras usando luvas de arame farpado. Levou um longo tempo e, na hora em que ela terminou, o sangue em sua própria ferida estava fluindo lentamente, já começando a coagular. Ela não se atrevia a tirar a faca e fazer com que ele começasse a jorrar novamente, e não podia enfaixar o ferimento com a faca no lugar, então simplesmente a deixou onde estava.

A respiração de Gayle era tão superficial que o peito dele nem pa­recia mover-se. Kennedy só pôde detectá-la ao colocar a bochecha so­bre a boca dele e sentir a leve movimentação do ar.

Ela usou o rádio do Byscaine para relatar o incidente, provavel­mente sem fazer muito sentido a essa altura, já que sua mente estava começando a ficar à deriva. Ela ouviu Connie — a buldogue da recep­ção — gritar:

— O Web está bem? O Web está bem? — de novo e de novo. De­pois: — O Anstruther. O Anstruther vai para aí. — Depois, silêncio.

Na quietude, veio a voz de uma mulher: um coro obsceno de sons engasgados, gorgolejantes. Kennedy cambaleou na direção dela, en­contrando a face lívida da mulher pintada de vermelho como uma índia de filme hollywoodiano, com queimaduras e sangue.

Gayle deixara a jaqueta no banco de trás do Byscaine. Kennedy foi capaz de enrolá-la e colocá-la debaixo da cabeça e dos ombros da mulher, o que imaginou que poderia desobstruir parcialmente as vias respiratórias dela. Não pareceu fazer muita diferença, no entanto.

A mulher ainda estava tentando falar: de início, em alguma lín­gua estrangeira, cheia de fonemas bilabiais e líquidos (muito menos bonitos quando o líquido em questão era o sangue) e concatenações glotais ocasionais, mas depois em inglês e finalmente em algum tipo de lamento pré-linguístico.

Antes que ela morresse, seus olhos negros se fixaram no rosto de Kennedy com uma intensidade feral, e sussurrou um segredo.

Pareceu sentir algum conforto porque Kennedy ouviu — e porque Kennedy chorou.

 

 

                                                     GINAT'DANIA

 

O problema do desespero era que ele não se movia. Ficava exatamen­te onde estava, como um trem abandonado num ramal de ferrovia.

Tillman evitara o desespero por 13 anos simplesmente porque tive­ra uma programação. Havia coisas que precisavam ser feitas, e ele as fazia, cumprindo A, B e C com foco implacável e paciência inesgotável. Poderia até parecer impressionante para quem olhasse de fora — um tipo de realização, um grande ato da força de vontade —, mas, na ver­dade, era apenas seu refúgio, sua salvação.

Agora, de repente, ele não tinha nada a fazer. Michael Brand estava morto e o rastro, frio. Talvez Kennedy conseguisse manter a investi­gação dela a respeito do Rum viva extraindo algo daquele CD e dos papéis, mas parecia impossível agora que a trilha o levasse a qualquer ponto próximo de Rebecca e seus filhos.

Eles nem eram mais crianças. Grace, a mais jovem, estaria no cole­gial agora, descobrindo a maquiagem, o rock e os garotos. Na verda­de, ela já teria descoberto essas coisas: os limites mudavam de década para década, então meninas e meninos começavam a se tornar mulhe­res e homens muito mais cedo agora.

Rebecca estava velha. Ou morta. As crianças estavam adultas. Ou mortas. A ponte havia caído. O caso estava encerrado. Era o fim da linha.

E, no fim da linha, no exato lugar onde sempre havia estado, ficava aquele trem sem janelas. Ele nunca havia se movido, em todos aqueles anos. Apenas ficara ali no ramal, esperando que ele embarcasse.

Num quarto alugado num B&B úmido num subúrbio encardido do oeste de Londres, Tillman sentou-se na cama, a arma no colo. Ela tinha seis balas, mas apenas por força do hábito. Ele estava pensando em disparar só uma.

Havia levado algum tempo para chegar a esse ponto. Kennedy ligara freqüentemente para o telefone dele nos primeiros dias; e, nessa fase, que já parecia ter sido muito tempo atrás, ele atendera e falara com ela. Ela contara que havia sido suspensa e, depois, quase imediatamente, que pedira demissão. Fora a armação perfeita contra ela, pela forma como descrevera a coisa. Se tivesse ficado na força, a investigação a respeito da morte de Combes revelaria irregularidades de procedimento suficientes para justificar a entrega de um dossiê aos policiais e o pedido para que considerassem abrir um processo contra Kennedy por negligência criminal e, possivelmente, até mesmo ho­micídio. Se ela concordasse em se afastar e assinar um acordo de con­fidencialidade, seu detetive-chefe lhe havia dito, eles não a perseguiriam. Queriam livrar-se dela mais do que queriam feri-la. Muito mais do que as duas coisas, queriam acabar com a especulação da mídia e ganhar espaço para respirar.

Então, Kennedy dissera sim, e assinara, e depois usara seus últi­mos dias para trabalhar no que chamava de "cova dos leões", a sala comum, encerrando e distribuindo casos, limpando sua mesa, reali­zando os rituais fúnebres da morte de sua própria carreira. Ela tivera que lutar até mesmo por essa concessão: os altos escalões queriam que ela sumisse imediatamente e teriam preferido que ela cumprisse seus últimos dias em casa, mas Kennedy teimosamente insistira em passar por todos os pontos de seu calvário pessoal.

Assim, pelo menos, era como seus colegas detetives enxergavam sua contínua presença na divisão. E alguns lhe prestaram um respeito rancoroso por isso, mas só a distância, como convém a alguém que mandou dois parceiros para a cova em menos de 15 dias. Ninguém queria ajudar Kennedy a terminar suas tarefas e desaparecer.

Kennedy deixou que pensassem o que quisessem enquanto cobra­va alguns favores, abusava dos protocolos de relatório e assaltava os arquivos de outras pessoas numa taxa que teria sido suicida se houves­se alguma chance de ela ainda estar por ali quando as galinhas voltas­sem para o poleiro. Se alguém perguntasse, estava apenas arrumando suas coisas. Ela fez a quantidade exata de arrumação para sustentar essa história.

A coisa mais importante — e mais escandalosamente ilegal — que ela fez foi descobrir onde o professor Emil Gassan estava sendo manti­do e enviar a ele a cópia que fizera do CD do Pombal. Ela acrescentou uma breve carta explicativa na qual pedia que Gassan, se tivesse suces­so em desvendar qualquer sentido nos arquivos do CD, solicitasse uma reunião com ela. A solicitação precisava vir dele e precisava acontecer enquanto Kennedy ainda fosse nominalmente uma policial. Também tinha que vir através de Operações Especiais, o departamento que providenciara o esconderijo para o professor e estava cuidando dele lá.

Ao contrário da Central, Operações Especiais não necessariamente sa­beria que havia um machado pairando sobre a cabeça de Kennedy e não teria nenhum motivo particular para procurar informações sobre isso. Ela poderia esperar, pelo menos, que passariam a solicitação dire­tamente para ela, em vez de passar pelo Investigador-Chefe.

Tudo isso Tillman ouviu de Kennedy nas primeiras duas semanas depois da noite do incêndio no Pombal. Ele não conseguia lembrar, agora, o que ele próprio estivera fazendo durante aquelas duas sema­nas: não se lembrava do clima, nem das refeições, nem dos lugares, nem de nenhuma ação significativa que tivesse realizado. Ele estava perdendo o pique, usando as últimas energias estocadas que o haviam levado até ali.

Depois da segunda semana, parou de atender ao telefone. Kenne­dy continuou telefonando, continuou deixando mensagens. Ele colo­cou o telefone no modo silencioso e tirou-o de sua vista. Talvez o tenha metido numa gaveta. Alguém se moveu do lado de fora da porta de seu quarto, e pouco depois dentro do quarto ao lado. Ele ouviu um arranhar na base da parede, quase baixo demais para ser percebido. Não poderia ter sido Kennedy tentando verificar como ele estava, pois ele nunca dera a ela — nem a ninguém — um endereço. Mas ela era detetive, e muito boa no que fazia, então, talvez tivesse conseguido descobrir onde ele estava. Isso significava que ele deveria se mudar agora mesmo: se Kennedy conseguira encontrá-lo, seus inimigos po­deriam fazê-lo também.

Ele ficou onde estava e esperou. Não admitiu para si mesmo o que estava esperando até tornar-se claro que nada ia acontecer.

Ele esperava pela morte: que os pálidos assassinos estourassem a porta e cortassem sua garganta, ou atirassem nele, ou fizessem o que desejassem para tirá-lo do mapa. Isso teria sido bom e lógico, e o teria poupado do esforço de pensar e agir. Pensamento e ação pareciam estar muito além de seu alcance agora. Ou talvez tivesse lutado tanto, por tanto tempo, contra o óbvio, que, como um cancro que crescesse dentro dele, sua própria teimosia o tivesse congelado numa atitude de negação e desafio. Então, agora, quando tudo o que queria fazer era fechar os olhos para sempre, não conseguia forçar-se a dar os passos óbvios e necessários.

O tempo continuou passando, nada trazendo. Mais e mais nada, o nada empilhando-se ao redor e dentro dele, como se o quarto fosse o interior de sua mente e esta um continuum que seguia infinitamente, dentro dele, além dele, nível após nível. O homem sentado na cama: a vista se aproxima, fixa-se na superfície curva de sua retina e nela encontra o homem sentado na cama.

Seis balas na arma. O carregador rápido, vazio, em sua mão es­querda. Uma coisa melindrosa — era difícil encontrar esse dispositivo no tamanho certo para a configuração do Única. Ele esticou a mão para colocar o carregador sobre o criado-mudo. Calculou mal a dis­tância: o objeto caiu no chão a seus pés, rolou para baixo da cama e bateu contra alguma coisa ali.

Ergueu a arma e encarou o olho dela, único e negro.

Mas o carregador estava fora da vista agora. Estaria ausente. Perdi­do. Provavelmente nunca mais seria acoplado ao Única. Por que isso o incomodava? Estaria procurando uma desculpa para viver?

Lenta, pesadamente, como se tivesse que se lembrar de que forma deveria se mover, levantou da cama e se ajoelhou para tocar debaixo dela. Sua mão se fechou — não no carregador, mas no telefone. Então, era ali que o aparelho tinha ido parar. Ele olhou para a coisa, recor­dando uma vida passada na qual tivera uma função.

Incrivelmente, o telefone ainda tinha alguma carga na bateria. Na pequena tela embutida em sua tampa, uma figura dançava: um car­tum de unicórnio caminhando por cima de uma faixa onde se lia: Você tem novas mensagens.

De repente, a figura ficou desfocada. Tillman havia sido cegado pelas lágrimas, atacado por uma súbita e peremptória tristeza que o saqueava e o demolia. O sr. Neve havia se afogado. Assim como a garotinha que outrora havia se agarrado fortemente ao sr. Neve enquanto caía no sono, erguendo-o como um baluarte sujo contra as preocupa­ções e os medos do mundo. No final, ele a desapontara. No final, tudo a desapontara. Ele soube, então, com uma terrível certeza, que ela es­tava morta: que todos estavam mortos. Rebecca. Jud. Seth. Grace. Se estivessem vivos em algum lugar do mundo, ele os teria encontrado. Passara treze anos fugindo dessa única e simples percepção. Agora ela girava dentro dele num turbilhão de filamentos que eram como tinta negra na água, e, quando ficou de pé, quando se endireitou, aquele pequeno movimento tumultuou o negrume, espalhando-o por cada canto de seu ser.

Encostou a arma contra a testa.

Mas, com olhos agora ajustados à escuridão, viu o quarto de forma diferente. Ele viu, naquele momento fundamental, a anomalia, a no­vidade: era uma nota, deslizada por debaixo da porta. Ele caminhou até lá e a apanhou.

Não era uma nota. Era uma foto. Rebecca. Rebecca no final da adolescência ou começo da idade adulta. Ele a reconheceu na mesma hora, muito embora não a tivesse conhecido naquela idade. Rebecca sentada à mesa na varanda de um café, com pessoas caminhando ao fundo numa larga rua. A iluminação era estranha, acinzentada, como se uma tempestade estivesse se aproximando. Rebecca virava a cabeça de lado timidamente e sorria, escondendo-se da câmera, mas sabendo que a foto seria feita mesmo assim.

O disparo da máquina. A sincronicidade o atordoou.

Era como se ele ouvisse o obturador da câmera escarnecendo suges­tivamente enquanto cortava um momento do tempo, tirado da maré infinita, enquanto transformava o transitório em eterno e imutável.

Ele não ouviria o disparo do revólver, porém. A não ser que a cons­ciência aderisse ao tecido cerebral reduzido a uma pasta. A eternidade estava esperando, e a paciência dela estava quase no fim.

Virou a foto. No verso, numa letra pequena e bonita, seis palavras haviam sido escritas.

Ela disse que você não pararia.

 

Houve um ínterim. Do que consistiu, Tillman não sabia. Ele socou al­guma coisa: a parede, ou uma porta, ou uma peça de mobília. Socou-a repetidamente, até que batidas e gritos de protesto começassem a vir de cima, de baixo e do outro lado do corredor.

Não foi o suficiente. A dor em suas mãos estava começando a abrir caminho por entre a neblina e o negrume e o entorpecimento, mas a luz ainda estava longe demais. Ele precisava se reconectar com o mun­do antes que o mundo sumisse.

Socou a janela e escolheu um pedaço de vidro quebrado de um tamanho que pudesse convenientemente segurar. Usou-o para fa­zer incisões no braço e no peito, julgando a profundidade dos cor­tes criteriosamente para que nenhum nervo ou artéria principal fosse partido.

Houve algum progresso.

Ele ouviu gritos no corredor do lado de fora do quarto, e alguém bateu na porta por um longo tempo, mas finalmente desistiu e foi embora.

Tillman ergueu o vidro até a altura dos olhos e olhou para seu pró­prio sangue pingando da ponta. Usou esse mapa para encontrar a si mesmo: no vermelho e na desordem e na perigosa aglomeração, não na claridade do nada absoluto.

A foto. E o telefone. Você tem novas mensagens, dizia o sr. Neve. Você tem novas mensagens da sua esposa morta.

Encontrou o telefone novamente e pressionou a tecla do correio de voz. Surgiu a voz de Kennedy:

— Leo, tem algo que preciso te contar...

Depois que todas as mensagens tocaram, Tillman sentou-se em si­lêncio na cama, olhando para os talhos furiosamente vermelhos em seus braços.

A mensagem de Kennedy e o sorriso de Rebecca revoluteavam atrás de seus olhos: não era tinta agora, mas óleo e água. Óleo e água não se misturavam.

Kennedy dizia que Michael Brand era o símbolo cambiante de algo que perdurava. Não um homem, mas uma máscara que qualquer ho­mem poderia usar e depois deixar de lado.

Por meio das palavras na foto, Michael Brand havia dito: Venha me encontrar.

Tillman levantou-se com pernas que tremiam um pouco e come­çou, lenta, metodicamente, a fazer um número de coisas que precisa­vam ser feitas.

Encontrou o carregador e colocou-o de volta na bolsa esportiva onde carregava todo o seu armamento e munição que não estivesse carregando no próprio corpo.

Viu que havia, de fato, seis balas no Única. Tinha ficado tão distan­te por tanto tempo que não poderia ter certeza absoluta sem verificar a olho. Estava pensando que poderia viver, afinal, então, voltava a ser importante manter a arma em ordem.

Tomou um banho — estava fedendo feito uma coisa morta — e rapou aquela barba que já devia ter um mês.

Deixou o quarto alugado pela primeira vez em sabe-se lá quan­to tempo, achou um restaurante barato e comeu até não sentir mais fome. Não levou muito tempo: o apetite voraz que sentira ao sentar-se mostrou-se fácil de satisfazer com uns poucos bocados. Sua mão tre­mia um pouco enquanto comia. Precisava reconstruir suas forças, mas essa era uma questão prática e ele sabia como cuidar dela.

De volta ao quarto, leu os arquivos de Gassan que Kennedy havia lhe enviado e familiarizou-se com o que ela descobrira sobre a tribo de Judas.

Por último, pegou o telefone outra vez e fez uma ligação.

Leo!

Hoe gaat het metjou, Benny?

Poderia estar melhor, poderia estar pior. Não é a sua cara ficar com o mesmo número por tanto tempo, Leo. Você ainda está na In­glaterra? Como foram as coisas aí? Conseguiu encontrar o tal Brand cara a cara?

Ainda não, Benny. Mas talvez em breve. Talvez muito em breve.

Bom, talvez isso seja uma boa notícia, então. — O tom de Vermeulens era cauteloso.

Enquanto isso, eu estava esperando que você pudesse me fazer um favor.

Isso eu já tinha adivinhado, Leo.

Tillman descobriu-se envergonhado.

Quando tudo isso acabar — ele disse —, se acontecer de eu ainda estar vivo, vou te compensar, Benny. Estou perto de... alguma coisa. Algo grande. Mas tenho que viajar de novo, e a Suzie — Insurance — não quer me vender nada agora. Acho que, se você se oferecesse para comprar por mim, ela poderia abrir uma exceção.

Do que precisa?

Pacote básico. Um passaporte apropriado. Um cartão de crédito com o mesmo nome e uns dois mil prontos para saque. Histórico e documentos bons o suficiente para agüentar mais do que um primeiro exame.

Não é um favor pequeno, Leo.

Eu tenho dinheiro. Posso pagar adiantado fazendo uma transfe­rência eletrônica da conta na República Dominicana.

Não estou pensando no dinheiro. Estou pensando no meu emprego.

Ninguém nunca vai saber.

De você, talvez ninguém nunca saiba mesmo. Mas não pode dar as mesmas garantias em relação a mais ninguém.

Um silêncio pairou entre eles. Tillman não o pressionou: sabia que não havia nada que pudesse dizer para influenciar a decisão de Vermeulens e não queria constrangê-lo ainda mais do que já havia cons­trangido só por pedir.

Algo grande — Vermeulens disse, por fim. — Grande o suficien­te para que esse caso finalmente termine para você? Ou grande só no sentido de ser uma parada no meio do caminho para algo maior?

Tillman pensou na arma e na primeira bala da arma.

Vai terminar — ele disse. — De um jeito ou de outro, vai ser o fim.

Então vou fazer o que eu puder. Fique perto do telefone, Leo.

Obrigado, Benny.

Lembre-se de que você não me deve nada. Mas isso... talvez seja o último nada.

 

Em Ginat'Dania, não havia estações. Cada dia era igual ao outro, in­tocado por tempestades, imutável como a calma de Deus: um pedaço da eternidade, caído no mundo decadente, mas ainda assim perfeito, ainda assim miraculoso.

Havia cinco anos desde que Kuutma estivera em casa pela última vez. Ele se destacava agora, como um estranho, e, enquanto andava pela grande alameda até o Em Hadderek, todos os olhos se voltavam para ele. Para sua pele aberrantemente escura. Para seu porte, seus movimentos, as expressões que cruzavam seu rosto. Tudo estava er­rado nos modos indecentes e sutis, e, já que ele claramente não era uma mulher, não podia ser uma das Kelim: a iniqüidade marcava-o como uma coisa, e uma coisa apenas. Todos que por ele passavam cur­vavam-se a ele, ou o saudavam, ou murmuravam o Ha ana mashadr — "Nós o mandamos para fora" — quando ele passava, tocando seus ombros levemente com os dedos da mão direita. Kuutma considerou isso adequado e continuou andando.

Mas da mesma forma que viam sua estranheza, ele via a deles: sentiu a tensão crua no ar, a sensação de expectativa, meio temero­sa e meio encantada. Kuutma não gostava disso. Indicava mudança, aqui nesse lugar que era imune à mudança. Isso o perturbava e o envergonhava.

No Em Hadderek ele virou à esquerda, passando pelos galpões das fazendas e pelos cercados dos animais, as lojas de Talitha, depois o local de reunião. Logo além ficava o Sima, onde os anciãos se en­contravam. Kuutma caminhou diretamente até a porta do lugar, onde quatro homens de imensa compleição e músculos sólidos como rocha se postavam. Ele os saudou com as palavras rituais:

Ashna reb nim t'khupand am at pent ahwar — Eu retornei à casa da qual parti.

Deram-lhe a resposta apropriada, todos falando em uníssono, com solene formalidade:

Besiyata Dishmaya — com a ajuda dos céus.

Preciso falar com eles — Kuutma disse, mudando para o inglês, sendo a troca de linguagem um gesto de astúcia, de certa forma, que lembrava aos guardiões de onde ele vinha e o que havia feito. Tornava muito difícil para eles lhe dizer não. Ainda assim, não poderiam dei­xar que ele fosse até os anciãos sem primeiro anunciá-lo. Então, um deles entrou no Sima enquanto os outros mantinham a posição diante de Kuutma, num silêncio pesado, até que seu colega voltasse e indicas­se que ele devia entrar.

Nenhum dos guardas foi com ele, mas outros dois estavam de pé logo do lado de dentro, e cada um acertou o passo ao lado dele. Kuut­ma foi até o Kad Sima, a câmara de debate. O vasto espaço estava va­zio, a não ser pelos três homens sentados na plataforma central.

A guarda de honra de Kuutma esperou no limiar do recinto: eles não haviam sido convocados. O próprio Kuutma ajoelhou-se, fazendo o sinal do enforcado, depois desceu os degraus até o centro da sala.

Os três homens austeros, dois idosos e um ainda jovem, observaram-no chegar. Não sorriram ao vê-lo, mas aceitaram sua reverência com meneios curtos de cabeça. Por tradição, eram conhecidos como o Ruakh, o Sheh e o Yedimah: na linguagem que precedia, até a ver­dadeira língua, esses nomes significavam o Carvalho, a Cinza e a Se­mente do Porvir. Apenas o último papel, o do Yedimah, podia ser desempenhado por um homem com menos de 60 anos.

O Ruakh falou primeiro, como a tradução requeria.

Kuutma — ele disse, com voz aguda e um tanto trêmula em ra­zão da extrema idade. — Você lutou contra dificuldades tremendas.

Esse pareceu ser o limite do que ele queria dizer. Olhou de esguelha para seus parceiros, à direita e à esquerda, convidando qualquer um deles a tomar as rédeas.

Dificuldades sem paralelo — o Sheh concordou, seco e cáustico.

Nunca em nossa história duas ameaças de tal magnitude vieram lado a lado. Talvez, Kuutma, seja por isso que você tenha falhado em conduzir-se com a eficácia e a atenção aos detalhes que lhe são costumeiras. As coisas foram feitas de mau modo. As coisas foram feitas tardiamente. Algumas nem mesmo foram feitas, e ainda precisam de atenção.

Kuutma não teve alternativa senão curvar-se diante dos três e acei­tar a censura. Sentindo um tremor numa parte de si que não podia tremer fisicamente — sua alma, talvez —, Kuutma se ajoelhou.

Veneráveis — ele disse, olhos no chão —, cumpri meus deveres tão bem quanto fui capaz. Se não foi o suficiente, seu servo humilde­mente implora perdão.

Dos estudiosos na Inglaterra — o Sheh admitiu — você cuidou de maneira diligente. E ainda assim, ao que parece, deixou pontas sol­tas mesmo nessa questão. O homem, Tillman, você negligenciou até que se tornasse um cancro. O americano foi morto de forma a garantir escrutínio. Um avião inteiro derrubado, e centenas de mortos! O mais imperdoável é que a mulher —- a sargento da polícia de Londres — teve permissão de juntar todas essas coisas. Quando ela foi para os Es­tados Unidos, deveria ter ficado evidente para você, na mesma hora, que a morte dela se sobrepunha a todas as outras tarefas que então dependiam de você. Deveria tê-la matado pessoalmente, não entrega­do a tarefa à mais jovem e menos experiente de seus Elohim.

Ainda ajoelhado, Kuutma permitiu-se erguer o olhar para a face de seu acusador.

Eu recomendei, treze anos atrás, que Tillman fosse morto — ele afirmou. — Fui desconsiderado, Anciãos, porque seus predecessores não o viram como ameaça. A sobrevivência dele é o fator aleatório que tem atormentado tantas de nossas ações recentes. A mulher policial, por exemplo, teria morrido se não tivesse Tillman consigo. E há infor­mação de que Tillman permitiu que ela estabelecesse o vínculo com a operação na América. Quanto à queda do Vôo 124, não dei tal ordem. O agente que mandei para lidar com o americano tinha a tarefa de matá-lo antes que embarcasse no avião. Em vez disso, ele escolheu destruir o avião e a si mesmo com ele. Foi loucura.

O Yedimah falou pela primeira vez.

Talvez seu agente tenha sido instruído inadequadamente — ele disse com voz branda, mas sob o tom razoável Kuutma percebeu certa aspereza.

Nehor — disse Kuutma. — Nehor Bar-Talmai. Vocês hão de se lembrar, Anciãos, que eu lhes pedi para convocá-lo de volta a Ginat'Dania cinco meses atrás. Na ocasião informei que ele estava li­dando mal com o fato de estar no mundo e que eu sentia que a ade­quação dele à função de Mensageiro precisava ser reexaminada.

Nós nos lembramos — disse o Yedimah. — Decidimos que com o pastoreio adequado — com a orientação adequada — ele poderia cumprir o papel que determinamos para ele. Claramente, no fim, fal­tou-lhe essa orientação. Tivesse você dado a ele instruções mais claras e mais práticas sobre o que fazer com o funcionário americano, ele não teria improvisado tão desesperadamente e tomado uma decisão tão desastrosa. No final, acreditamos, tudo segue de volta a Kuutma — que é o Brand. Esse, afinal, é o significado do nome. A vontade de Kuutma é um fogo, e as marcas que ele deixa na mente de outrem são inscritas como se com ferro quente.

Kuutma sabia tão bem quanto o Yedimah que essa era uma falsa etimologia.[1] Sabia, também, que não poderia vencer essa discussão: não poderia nem iniciá-la.

Seu servo implora perdão — disse novamente.

O Sheh fez com a mão um gesto de bênção vago e nada convin­cente.

Concedido — disse ele. — Levante-se, Kuutma. Não pedimos a você nenhuma penitência.

O Yedimah ergueu uma sobrancelha ao ouvir isso, como se o Sheh tivesse ultrapassado os limites da própria autoridade.

Nós, no entanto — ele murmurou —, determinamos que essa foi a última vez que você saiu a campo como Kuutma. De agora em diante, suas habilidades serão empregadas mais perto de casa.

Kuutma não deixou que nenhuma emoção se exibisse em seu rosto: nem mesmo se retesou. Mas algo a um só tempo quente como brasa e afiado como metal correu por sua mente. Sentiu como se estivesse suspenso, sem peso.

Aqui em Ginat'Dania? — perguntou, para que não houvesse engano.

Em Ginat'Dania — disse o Sheh. — Mas não aqui. Estamos nos preparando para o mapkanah.

Era verdade, então. Kuutma soubera disso assim que passara pelo portão e sentira a tensão no ar: as pessoas estavam se preparando para desocupar aquele lugar que havia sido seu lar e encontrar um novo em um local distante. Isso não era feito havia dois séculos, e na época, como agora, fora porque a localização de Ginat'Dania havia sido com­prometida. Sob a dor, sob a vergonha que estava sendo jogada sobre ele, Kuutma sentiu a agitação de uma estranha alegria: a alegria das coisas juntando-se como finalmente deveriam.

Não cabe a mim decidir — ele murmurou, os olhos baixos novamente.

O Yedimah bufou pelo nariz, quase um esgar de indignação.

Não — concordou. — Não cabe. Kuutma, há algumas pessoas vivas que talvez saibam agora quem somos e onde estamos. A morte delas será providenciada, no devido tempo, mas neste momento essas mortes nem mesmo são uma prioridade. Tivemos que ir além de tais preocupações. Primeiro, antes de todo o resto, devemos proteger o povo.

Kuutma desnudou os dentes como se rosnasse, mas manteve a ca­beça curvada para que ninguém visse sua expressão.

O povo sempre foi minha preocupação, Yedimah.

Sabemos disso. E sabemos que você deve sentir isso como uma repreensão. Ainda assim, precisa ser feito, e nós devemos cuidar para que seja. Esperamos seu apoio nessa tarefa, como em todo o resto.

Kuutma ficou de pé. Falando estritamente, ele deveria ter espera­do permissão para se levantar, mas esse parecia ser um momento em que o protocolo se esvaía pelas gretas entre pensamentos e palavras, palavras e ações. Ele olhou para o Yedimah por um longo tempo, em silêncio, e o Yedimah esperou que ele falasse. Todos eles, o Carvalho e a Cinza e a Semente, esperaram pelas palavras do Brand.

Com o mapkanah vem o maasat, o pagamento do equilíbrio — Kuutma disse, afirmando o óbvio.

O Ruakh assentiu com a cabeça uma só vez.

Quando? — Kuutma quis saber.

Daqui a dois dias — disse o Ruakh.

Tão cedo?

Tão tarde — disse o Yedimah, rigidamente.

Kuutma fez o sinal do enforcado, cedendo à questão.

Eu quero ficar — disse. — Para obliterar meu fracasso, deixem-me ser aquele que segura os pratos da balança e garante que o equilíbrio seja pago. Concedam-me isso, Anciãos, e eu abandonarei meu posto como Kuutma com um coração leve.

Ele estava sustentando o olhar do Yedimah. Tantas coisas estavam ocultas dentro daquela sentença, não pronunciadas; tantos significa­dos retraídos, levianos. Como seria se eu falhasse em ceder meu posto? Ou se eu o fizesse com ressentimento e insatisfação ? Ele não disse nem uma pala­vra de ameaça, mas seus olhos prediziam.

Os sistemas são automáticos — o Yedimah disse. — Não é preci­so que ninguém fique aqui.

Uma máquina pode fazer justiça a um homem? — Kuutma en­toou com austera ferocidade. — Um botão ou alavanca pode respon­der, diante de Deus, dizendo: "Este é o equilíbrio, isto é feito correta­mente"? Anciãos, quando uma coisa se torna possível, ela não se torna, portanto, inevitável. Concedam-me isso. Deixem-me ficar.

Ele esperou que respondessem.

Um a um, eles se curvaram, o Yedimah depois de todos.

Você há de segurar os pratos da balança, Kuutma. Você pagará o equilíbrio.

Ele lhes agradeceu solenemente. Eles aceitaram graciosamente.

E então saiu daquele lugar, com uma terrível mágoa e uma terrível esperança guerreando em seu peito. Ele ainda era Kuutma: até que Ginat'Dania acabasse, e depois renascesse, teria seu nome nas mãos.

Seu nome e algo mais.

 

Tillman demorou um pouco mais para viajar até o Arizona do que qualquer outra pessoa. Havia coisas que precisavam ser feitas antes que ele pudesse embarcar nessa jornada, e nenhuma podia sair de forma imperfeita ou econômica.

Primeiro, teve que apanhar os documentos que Benny Vermeulens havia comprado para ele. Insurance havia cobrado uma comissão in­sana — 20 vezes mais alta do que normalmente teria pedido por um pacote como aquele — e exigira pagamento adiantado. Isso não fora problema: Tillman esvaziara suas várias contas e enviara o dinheiro. Mas os arranjos para a entrega foram mais problemáticos.

Benny entendia que Tillman não forneceria um endereço, nem mesmo apareceria numa agência dos correios para pegar o passa­porte, o cartão de crédito e as provas que os acompanhavam. Sabia, também, que o mercenário ficaria preocupado com quanta confian­ça poderia depositar nesses documentos, considerando a falta de boa vontade de Insurance.

Benny resolveu esses problemas viajando até Londres pessoalmente com o passaporte falso. Ele e Tillman eram fisicamente muito pareci­dos, então, tudo o que foi preciso para criar uma razoável semelhança foram tintura para cabelo e lentes de contato coloridas. Ele combinou que se encontraria com Tillman no Aeroporto de Heathrow, no Café Rouge da área de decolagem do Terminal 5. Tillman chegou primei­ro, pediu dois expressos duplos e sentou-se com as mãos dobradas no colo e o olhar fixo nas mãos, ponderando coisas imponderáveis. Quando a cadeira a seu lado rangeu, ele ergueu o olhar.

Benny empurrou um volumoso envelope por cima da mesa. Estava usando um terno de corte obviamente caro. De alguma forma, a rou­pa o fazia parecer mais perigoso e menos respeitável do que jamais pa­recera em trajes de combate. Ou talvez sua representação de Tillman é que fosse perturbadora.

Aqui, Leo — ele disse. — Feliz Natal.

Leo pegou o pacote sem examinar o conteúdo. Vermeulens havia merecido essa confiança uma centena de vezes.

Estamos em julho — comentou.

Benny balançou a cabeça. Seu rosto forte estava solene.

Dezembro — disse. — É o final de dezembro. A virada do ano, quando ninguém tem muita certeza de que o sol vai voltar a nascer.

Tillman sorriu desajeitadamente.

Não sabia que você era poeta, Benny.

Sou o homem menos poético vivo, Leo. Estou dizendo o que você já sabe. Você está indo para a guerra contra as forças das trevas e pensa que não vai voltar. Essa é a única razão pela qual está esbanjan­do o que tem desse jeito.

O dinheiro? Eu sempre posso arranjar mais dinheiro.

Não. Percebi pelo tom da sua voz quando me ligou. A expressão que estou vendo nos seus olhos agora que estou aqui. Leo, estou no ramo há mais tempo do que você. Já vi um monte de homens morren­do na linha de fogo porque acharam que era hora de eles morrerem. Eles agem de uma forma que... — ele gesticulou — ... é insustentável. Esquecem-se de vigiar a retaguarda e de garantir uma rota de fuga. Baixam a guarda porque acham que a guarda é irrelevante.

Já vi isso também — Tillman concordou. — Mas não sou assim, Benny. Vou entrar, fazer o serviço e depois sair. Como sempre.

Benny riu uma risada fúnebre.

E qual é o serviço?

Tillman não respondeu.

Não é a mesma coisa — Benny disse. — Não é a mesma coisa de sempre. Nem tente mentir para mim, Leo. Essa é uma missão de destruição total, e a última coisa que vai destruir é a si mesmo. Espero que valha a pena.

Leo virou o envelope nas mãos, sentindo o peso e a solidez.

Acho que sim — disse, por fim. — Acho que vai valer.

 

Depois, houve o abastecimento, a procura por equipamentos — não em Londres, mas em Los Angeles. Ele não confiaria isso a Insurance. Tinha seus próprios contatos na América, e, embora fizesse muitos anos que não falava com eles, ainda estavam lá quando ele telefo­nou. Armas? Armas de qualquer tamanho e especificação podiam ser obtidas. Explosivos? Mesma coisa. Itens eletrônicos de espionagem, mesmo de padrão profissional, estavam universalmente disponíveis atualmente, bem como dispositivos de controle de multidões como sprays de pimenta e gás lacrimogênio. Tillman fez uma longa lista, com pagamento a ser feito no ato da entrega.

Depois disso ainda teve a jornada. Normalmente, ele evitava aviões porque eram — por definição — espaços fechados sem saída. Voar co­loca o passageiro nas mãos de pessoas que poderiam desejar seu mal. Mas dessa vez ele não dedicou nenhum pensamento a essas preocu­pações. Elas pertenciam a uma vida na qual havia uma distinção a ser feita entre "seguro" e "perigoso".

Normalmente, Tillman também suportava bem o tédio das longas viagens: ficava parado, a mente trabalhando em enigmas logísticos que precisavam ser resolvidos. Dessa vez seus pensamentos estavam trava­dos numa única idéia: vingança. Passou todo o voo na contemplação dessa ambição monolítica, como um suplicante ajoelhado diante de um altar que ninguém mais podia ver.

Não pagara só por armas e munição, mas também por dados. En­tão, sabia que agora a polícia estadual do Arizona estava mantendo Heather Kennedy — ex-sargento — sob guarda no Hospital Kingman-Butler em Kingman, Arizona, acusada de homicídio qualificado, de exercício ilegal da profissão policial, de falsa representação e de uma porção de infrações menores. Ele fora informado das condições nas quais ela estava sendo mantida, assim como dos ferimentos que sofrerá e da possibilidade de ela estar consciente em qualquer dado momento do dia ou da noite.

Tillman saiu de Los Angeles num carro alugado sob o nome tem­porário que ele comprara de Insurance. Isso levou a maior parte do dia, com paradas ao longo do caminho, mas tinha a vantagem de tor­nar sua localização precisa difícil de determinar, mesmo que Insuran­ce tivesse informado o nome e os detalhes do cartão de crédito dele a terceiros.

De Bullhead City, ele ligou para o hospital e exigiu falar com Hea­ther Kennedy. Era um risco calculado. Teve que esperar enquanto a enfermeira o colocava na espera — para verificar com o policial que vigiava o quarto, ele imaginou —, depois ela voltou e perguntou qual era o assunto.

— Uma morte na família — Tillman disse. — A mãe dela. Deus proíba que a senhora esconda isso dela. Heather precisa saber, e tem o direito de saber.

Outra espera. Então, um rude policial estadual tomou a linha e fez mais algumas perguntas. Mecanicamente, com os pensamentos em outro lugar, Tillman inventou uma doença prolongada para a mãe de Kennedy, que havia passado por muitos percalços, mas permanecera viva por tempo suficiente para sussurrar uma mensagem final para sua única filha.

Única filha? — o policial grunhiu. — Nossa informação é de que ela tem uma irmã. Que negócio é esse?

Meia-irmã — Tillman respondeu. — Mesmo pai, mães diferentes.

E você é o quê?

Meio-irmão. Mesma mãe, pais diferentes. Ouça, alguma parte da sua lei estadual ou federal permite que você mantenha a Hea­ther incomunicável? Porque, se não, você deveria parar de fazer essas perguntas estúpidas e colocá-la na linha de uma vez. Estou gravando cada palavra desta conversa, policial... qual é seu nome mesmo?

Aparentemente, o nome dele era:

Só um instante.

Tillman esperou, e a próxima voz que surgiu ao telefone era a de Kennedy. Ela soava grogue e muito cansada, mas não sedada até o estupor.

Quem é? — ela perguntou. Havia um certo eco na voz dela: talvez fosse só uma linha ruim, ou um grampo ruim, instalado rápido demais para ter algum controle de qualidade.

É o Leo.

Um longo silêncio.

Tillman. — Mais silêncio. — Graças a Deus.

Então. Assassinato? E premeditado? É como se eu não te conhe­cesse mais, garota.

Lembra-se da Fazenda do Pombal?

Claro.

Lembra-se de ter ouvido uma mulher gritar?

Acho que sim.

Ela é quem cometeu assassinato, e premeditado. O xerife local poderia corroborar o que eu digo, mas ele está profundamente seda­do agora. Tem um ferimento de bala na parte de cima do tronco. Pode não sobreviver. Se ele morrer, lá se vai meu álibi. Havia uma mulher que poderia ter falado por mim, mas também está morta.

Parece que você se ferrou.

Não é?

Sentimos sua falta, Heather. Todos nós.

Todos vocês? — Ela soou desconfiada. Ele se perguntou se ela sabia que a linha estava grampeada. Teria que assumir que sim. Não havia tempo para criar muitas artimanhas.

Eu. O Freddie. O Jake. A Wendy, nossa vesguinha. Você está nos nossos pensamentos o tempo todo.

Eu... sinto a falta de vocês também.

Você só está sendo gentil — Tillman disse. — Não é segredo para ninguém que não fomos muito próximos nos últimos tempos. Quero que saiba que isso vai mudar.

Bom, você sempre diz isso.

Estou falando sério, Heather. Vou te ver de novo muito em bre­ve. Prometo.

Tá bom. Que seja.

Você acha que está pronta? Para me ver de novo?

A qualquer momento, Tillman. Diga o dia. Diga a hora. Ou me surpreenda.

Acho que vou te surpreender. Você, hã, recebe muitas visitas aí, Heather?

Não muitas, não. Só tem dois policiais enormes do lado de fora da porta para me fazer companhia, e mais dois no corredor principal, logo depois dos elevadores.

Não querem que você saia por aí e se perca.

Com certeza. Mas, caso eu me perca, ainda tem o localizador GPS preso no meu tornozelo.

Entendo. Bom, pelo menos está entre colegas policiais. Vocês todos podem sentar numa rodinha e ficar falando do trabalho.

Meu trabalho é num prédio em Queen's Park. O deles é num shopping a céu aberto em Monument Valley. Você ficaria impressio­nado com quão pouco...

A voz dela sumiu e a do policial surgiu novamente.

-— O limite é de cinco minutos de conversa — ele disse a Tillman.

Você pode ligar de novo amanhã, se quiser.

Eu nem contei a ela sobre a mamãe ainda! — Tillman retrucou.

Ainda estava preparando o terreno. Pelo menos me deixe...

Amanhã.

A linha ficou muda.

Tillman largou o telefone e continuou dirigindo, sua mente final­mente voltando a funcionar. Era um alívio ter algo prático em que pensar. E seria um alívio ainda maior, ele sabia, ter algo contra o qual pudesse jogar todo o peso de seu corpo — e empurrar.

 

A garota chamada Tabe vivia sozinha, embora fosse jovem demais, rigorosamente falando, para ter essa permissão. Antes, ela vivera no orfanato com os ajudantes. Sempre havia sido uma criança obediente e educada, mas, como os ajudantes diziam, beiena ke ha einanu, a alma dela trabalhava em silêncio. Ela parecia viver sozinha num mundo pequenino e autônomo, vagamente consciente das pessoas que habi­tavam a seu redor.

Isso não quer dizer que fosse egoísta. Tabe era generosa, e gentil, e até mesmo atenciosa, nas ocasiões em que emergia de seus próprios pensamentos por tempo suficiente para interagir com outrem. Mas era uma artista: cores e tons e texturas formavam as dimensões de seu mundo. Na maior parte do tempo, pintava naturezas-mortas. No passa­do, usara pessoas também, mas havia escandalizado os ajudantes ao lhes perguntar se poderia retratar um garoto, Aram, sem suas vestes. Esse havia sido o fim da carreira de Tabe como pintora da figura humana.

Agora, vivia sozinha num quarto no quarto andar de Dar Kuomet. Mas suas pinturas podiam ser vistas desde Tethem, em torno da al­vorada, até Va Ineinu, à noite. Ela parecia feliz sozinha. O garoto, Aram, estava prometido agora, e Tabe pintara os quartos combinados do casal com imagens de crianças alegres e dançantes. Parecia não guardar rancor do rapaz; seu interesse nele havia sido primariamente estético.

Em seu quarto em Dar Kuomer, Kuutma a encontrou. Ela estava desenhando com um bastão de pastel oleoso negro num lençol pre­gado à parede (nas outras paredes, pintados diretamente no reboco, havia murais de morangos e groselhas em tigelas de cerâmica). Levou algum tempo para perceber que não estava sozinha. Quando final­mente registrou a presença de Kuutma, curvou a cabeça para ele e murmurou:

Ha ana mashadr. — Ficou mais intensamente corada do que as frutas pintadas nas paredes.

Kuutma sinalizou para que Tabe sentasse.

Você me reconheceu como um dos Elohim — ele disse. — Foi pela minha compleição?

Tabe esfregou a ponta dos dedos uma na outra nervosamente: es­tava preta e engordurada do pastel. Mas olhou diretamente nos olhos de Kuutma.

Não só isso — respondeu. — Eu me lembro do seu rosto. Você veio nos visitar uma vez no orfanato e eu perguntei a uma das ajudan­tes quem você era. Ela disse que era Kuutma. O Brand.

Kuutma assentiu.

E eu sou. Até o mapkanah, pelo menos.

Ao ouvir essa palavra, os olhos dela se acenderam, o que o surpreen­deu um pouco. Mas, para os jovens, tudo o que é novo parece exci­tante apenas por ser novo. E, novamente, ela era uma artista: aonde quer que Ginat'Dania fosse a seguir, a luz seria diferente e haveria novas cenas para pintar. Para Tabe, o mapkanah poderia ser como um renascimento.

Quando fui até o orfanato — Kuutma disse —, foi para ver vo­cês: você e seus dois irmãos. Estava interessado em verificar pessoal­mente se estavam felizes lá. Conheci sua mãe, veja você.

A face da garota se anuviou por um instante.

Minha mãe... — ela começou, mas deixou a sentença por terminar.

Kuutma sentiu algo de amargo no tom de voz dela e franziu o cenho.

Você sabe que ela foi mandada para fora, como eu — disse.

Não como você — Tabe respondeu. Seu olhar era duro: não cedia terreno nem clemência.

A obra das Kelim é tão importante quanto o trabalho que os Elohim fazem — disse Kuutma. — Talvez até mais. Ambos trabalha­mos pela sobrevivência do povo: mas nosso trabalho é glorioso, e o delas é amargo e degradante. Nós somos honrados, e elas, insultadas.

Tabe deu de ombros, mas não forneceu outra resposta.

Eu gostaria que você pensasse nela com bondade — Kuutma disse, firmemente. — Em sua mãe. Gostaria que você fosse generosa com ela, em sua memória. Pense no que o sacrifício dela significou para você, assim como para nós.

Tabe olhava para os dedos enegrecidos agora. Pôde ver que ela estava desejando que ele fosse embora, para que pudesse voltar ao trabalho.

Conheço seu pai também — ele disse.

O olhar dela se ergueu novamente de supetão, e seus olhos, en­quanto miravam dentro dos dele, eram como duas feridas negras na brancura imaculada de seu rosto. Mas, para os Elohim, todas as coisas pareciam feridas. Kuutma fizera amor só umas poucas vezes na vida, atormentado o tempo todo pela idéia de que o sexo da mulher é como o local de uma ferida antiga, só parcialmente curada.

Ele esperou, permitindo à garota espaço para falar. Mas ela apenas o observou.

Você não me pergunta como ele é. Seu pai — ele disse por fim.

Não. — Tabe foi categórica. — Em que me ajudaria saber?

Ele é... um homem corajoso, a seu próprio modo. Um soldado, como eu. Mas é um soldado que luta contra nós. Nosso inimigo.

Tabe considerou isso.

Então você terá que matá-lo? — perguntou.

Kuutma sorriu com relutância.

Foi por isso que vim ver você hoje — admitiu, embora não ti­vesse a intenção, quando chegara, de contar tudo isso a ela. — Acho que matar seu pai pode ser a última coisa que farei como Kuutma. Eu tenho... — Ele hesitou, escolhendo as palavras com cuidado. — Con­sigo enxergar um caminho que nos leva ao encontro um do outro. E, quando isso acontecer, certamente terei que matá-lo. Eu teria sua bênção se fizesse isso?

O olhar negro de Tabe era decidido.

Ah, sim — ela disse. — E claro. Ha ana mashadr, Kuutma. Tudo o que você faz, faz em nosso nome. E claro que tem minha bênção. Ele é apenas o pai de minha carne, não de meu espírito. Mas, se for corajo­so como você diz, espero que ele não o machuque. Espero que morra rapidamente, sem desferir um único golpe contra você.

Kuutma viu a inocência radiante e a dedicação no rosto dela. Sen­tiu-se humilhado pela simplicidade dela — ele que, ao ter conhecido o mundo, tornara-se complexo e sutil como uma serpente. Mas ser­pentes eram sagradas também, é claro: serpentes eram mais sagradas que tudo.

Ele se ajoelhou diante dela.

Touveyhoun, filha — murmurou, a voz embotada de uma emoção que ele não suportaria examinar.

Touveyhoun, Tannanu — ela respondeu, mas ficou enervada com o equívoco que era ele se ajoelhar diante dela.

Ele percebeu que havia perturbado a calma dela e provavelmente arruinado a pintura que estivera fazendo. Com um pedido de descul­pas murmurado, deixou-a.

Tabe caminhou um pouco pelo quarto depois que Kuutma saiu, envolvendo-se fortemente com os braços e deixando impressões digi­tais negras na própria carne. Mas já estava acostumada a transformar emoções fortes em formas menos transitórias. Logo voltou a pegar o pastel e retomou seus esforços para retratar o ventre inchado e prenhe de uma tempestade no céu.

 

Tillman esperou o momento certo. Ele havia bolado um plano razoá­vel, mas que envolvia muitas peças em movimento, e precisava partir do princípio de que estava em território inimigo. Tirar Kennedy do hospital não seria uma tarefa difícil em si, mas a polícia do Arizona se mobilizaria rapidamente uma vez que ela escapasse. Nesse momento ele precisaria fazê-la desaparecer rápida e irrefutavelmente. De outra forma, a operação seria completamente arruinada.

Ele estacionou a um quarteirão do hospital e caminhou até o terre­no da instituição, onde fez um reconhecimento completo, movendo-se num passo veloz para não ser confrontado. Tinha plantas do local com as quais trabalhar, mas estas seriam inúteis se não pudesse conectá-las à realidade. Começou esse processo ao visualizar o edifício como um espaço tridimensional, com entradas e saídas físicas mapeadas nos dia­gramas esquemáticos que tinha em mente.

A boa notícia era a laje horizontal, três andares abaixo da janela do quarto de Kennedy, ou, pelo menos, abaixo do espaço que correspon­dia à Ala 20 nas plantas. A má notícia... bom, a má notícia era múltipla. Ele calculara em tempo a distância a partir do posto policial mais pró­ximo: em velocidade de perseguição, seria de três minutos, não mais. A laje horizontal estava no extremo do edifício oposto ao estaciona­mento, e ele não encontrara um acesso mais fácil. Tanto Bullhead City como Seligman possuíam heliportos policiais, e havia só duas estradas principais saindo da cidade — a Auto-estrada Estadual 40 e a Interestadual 93. O bloqueio de ambas seria feito em um minuto uma vez que o alarme soasse.

Ele pensou em como adaptar o plano, dada a disposição dos ele­mentos. Não conseguiu imaginar nem uma única solução elegante ou à prova de erros. Mas uma coisa levava à outra em virtude de ser in­tensamente confusa e caótica. Quando você não tiver nenhuma carta boa no jogo, tire uma da manga.

Tillman caminhou de volta ao carro e dirigiu até o hospital, estacio­nando não perto demais da viatura policial que ele já localizara logo no começo do estacionamento, e não muito longe da rua: um fino equilíbrio, do qual muita coisa ia depender.

Ele já selecionara e embalara seu kit, usando uma sacola ecológica com o nome e o logotipo de uma floricultura local gravado nela e as folhas de uma planta envasada aparecendo no topo. Entrou pela por­ta da frente, passou diretamente pelo balcão da recepção e continuou andando como um homem que já conhecesse seu destino.

No banheiro masculino do primeiro andar do edifício principal, Tillman abriu a sacola e se transformou num assistente hospitalar com um longo casaco branco e um crachá de aparência oficial. O crachá era falso, e nem era dos bons, mas enganaria alguém que não passasse o dia inteiro, todos os dias, olhando para um verdadeiro: um policial temporariamente servindo como guarda, por exemplo.

Num largo hall perto do elevador de serviço, ele encontrou — como esperava — uma maca vazia. Estivera pronto para perambular pelas alas mais um pouco até encontrar uma, mas, quanto menos tempo passasse andando por aí de jaleco, menos chance teria de ser confrontado.

Tillman subiu de elevador até o quarto andar e saiu empurrando a maca diante de si. Os dois policiais sobre os quais Kennedy havia lhe avisado — os dois primeiros — estavam esperando logo onde o corre­dor se subdividia. Pareciam durões, solenes e alertas. Tillman foi até eles e meneou a cabeça para indicar que pretendia passar.

— Transferência da Ala 22 — disse.

O mais próximo dos dois policiais verificou o crachá de Tillman, o qual ele, prestativo, esticou usando o polegar da mão esquerda. A mão direita repousava sobre um pequeno porrete que segurava abaixo da barra da maca, mas ele esperava não ter que usá-lo: improvisação num estágio tão inicial do plano poderia ser um mau presságio para toda a porcaria da empreitada.

O policial o deixou passar. Tillman empurrou a maca pelo corre­dor secundário que levava à ala de Kennedy, entre muitas outras.

Na Ala 22, ele abandonou a maca e o jaleco. O casaco comprido só serviria para atrapalhá-lo e, desse momento em diante, tinha que agir rápido. Do compartimento embaixo da maca, tirou sua sacola e deixou o vaso de planta de lado.

A ala de Kennedy, número 20, ficava após uma curva para a direita uns nove metros adiante. Tillman dobrou a esquina rapidamente e se viu indo direto de encontro aos dois outros policiais, que pareciam tão fortes e sérios quanto os primeiros.

Largou a sacola e ergueu as mãos em posição de tiro. Em cada mão, segurava uma embalagem de spray de pimenta, e seus dedos indicadores já estavam travados sobre os esguichos. Não era um spray de pimenta comum: era um produto de fabricação russa, derivado do ácido pelargônico, a coisa mais perversa daquele tipo que Tillman já encontrara, contendo 4,5 milhões de unidades de Scoville[2].

Os homens caíram agonizando, arranhando o rosto. Tillman co­locou rapidamente uma máscara cirúrgica e então, com cuidado e sem pressa, deixou os dois sem sentidos com um lenço embebido em desflurano. Também esfregou o rosto deles com uma mistura de leite e detergente que mitigaria a maior parte dos efeitos do spray. Não estava a fim de matar oficiais da lei nessa farra, nem mesmo acidentalmente.

Deixou os homens onde estavam e passou por portas duplas de vaivém, entrando na ala. O lugar havia sido subdividido em diversas seções, mas ele teve sorte: a cama de Kennedy estava na segunda des­sas áreas. Tillman a viu no mesmo instante em que uma enfermeira saía de outra seção mais além e percebia a presença dele. Um segundo depois, ela se deu conta do Única em sua mão: não exatamente apon­tado para ela, mas impossível de ignorar.

Volte para dentro — ele disse à enfermeira. — Não diga nem faça nada. Só espere.

Com um gritinho de pânico quase mudo, ela retrocedeu e sumiu de vista. Tillman voltou a atenção para Kennedy.

Tillman. É bom... te ver — ela grasnou. Parecia estar muito mal, o braço esquerdo engessado e preso ao lado do corpo, que também estava enfaixado por finas bandagens. Era ela mesma, porém, e me­lhor, era capaz de se mover. Ela se ergueu da cama com um grunhido de dor e esforço e foi ao encontro dele. Tillman já estava tirando o torquês da sacola.

Localizador GPS — disse sucintamente. — Qual perna?

Kennedy mostrou a ele, que se ajoelhou para cortar a tira. Estava

apertada o suficiente para ele poder inserir a lâmina do torquês em­baixo dela apenas até a metade, mas rompeu-se por inteiro num estalo quando ele aplicou pressão.

Abra a janela — disse a Kennedy. Jogou de lado o torquês e tirou da sacola uma corda de rapei, que desenrolou com uma torção do pulso.

O alarme interno de Kennedy disparou, e a preocupação transpa­receu em seu rosto quando ela viu a corda.

Tillman — disse, tensa —, não tem a menor chance de eu des­cer balançando pela porcaria da janela. Olhe para mim. Só tenho um braço funcionando!

Você não vai ter que agüentar seu próprio peso — ele respon­deu. — Vou te carregar. — Ele estava abrindo o arpéu, passando a corda pelo orifício, verificando o nó de fricção no cinto.

Kennedy não perdeu mais tempo discutindo. Destrancou a janela e a abriu. Uma trava de segurança impediu que ela cedesse mais do que uns poucos centímetros. Kennedy estendeu a mão para a arma de Tillman, a qual ele entregou com alguma relutância. Ela bateu na trava usando o cabo do Única, arrancando-a da moldura da janela com três golpes calculados, depois devolveu-lhe a arma. A essa altura, Tillman passara a corda duas vezes pelo nó de fricção e o arpéu estava firmemente preso na armação de aço da cama de Kennedy. Ele em­purrou a cama contra a janela para que ela não pudesse escorregar naquela direção quando o peso dos dois puxasse a corda.

Pronta? — perguntou a ela.

Kennedy assentiu. Tillman a ajudou a subir no peitoril e foi em seguida, o braço esquerdo em torno da cintura dela, o direito contro­lando a regulagem do nó de fricção. Demorou alguns segundos para encontrar um ponto firme o suficiente, mas sem apertar o braço feri­do dela. Inclinou-se para trás para testar o peso e Kennedy xingou, sem equilíbrio acima do abismo e não gostando nem um pouco disso.

Ouviram um alarme começando a soar dentro do quarto: ou a en­fermeira alertara a segurança ou alguém havia encontrado os dois policiais derrubados. De agora em diante, estariam contra o tempo, e Tillman teria que mensurar cada segundo dentro da versão perfeita e platônica do plano que tinha em mente.

Ele chutou a borda da janela e começou a descer pela parede do hospital numa série de pulos maiores e menores, cautelosos e desa­jeitados. Se fosse um paredão de rocha ou uma torre de escalada, teria coberto os três andares em três rápidos saltos, ricocheteando contra a superfície. Mas a maior parte da parede era de vidro. Se eles o atravessassem, o resultado seria imprevisível, poderiam sangrar até morrer, antes de os seguranças do hospital e os policiais do corredor os encontrarem e algemarem.

Assim, na hora em que chegaram à laje horizontal abaixo, cabeças já começavam a se espichar das janelas acima. Uma delas vinha acom­panhada de um braço, no final do qual havia uma arma.

Fiquem onde estão! — uma voz gritou. — Fiquem de joelhos e coloquem as mãos na cabeça!

Tillman mirou cuidadosamente com o Única e disparou um tiro. O policial escondeu a cabeça rapidamente e não respondeu ao tiro. Não ainda, pelo menos.

Tillman colheu Kennedy nos braços e cobriu correndo o curto espaço até a borda da laje, onde se atirou no espaço. Kennedy, que conseguira não emitir nenhum som durante a descida atemorizante do quarto andar, soltou um grito involuntário agora. Mas os pés de Tillman pousaram com um clangor metálico ressoante na tampa de uma grande lixeira que ele havia empurrado contra a parede naquele ponto exato, e de lá passaram ao chão em três passos — da lixeira para uma lata de lixo comum, para um tambor plástico cheio de resíduo hospitalar, e daí para o asfalto.

Consegue correr? — Tillman perguntou a Kennedy.

Consigo.

Então, vamos correr.

 

Os primeiros tiros soaram enquanto eles corriam rodeando o edifí­cio, através da parada das ambulâncias até o estacionamento prin­cipal. Desacelerando um pouco, Tillman foi na frente até o tercei­ro corredor, onde um Noble M15 vermelho vivo esperava por eles. Kennedy olhou horrorizada para o carro indecentemente notável: as saídas de ar laterais, escancaradas, lembravam-lhe as guelras de um tubarão.

Jesus — disse ela. — Tillman, eles vão nos pegar antes que a gente cubra uma porcaria de um quilômetro.

Entre aí — ele disse, sucinto.

Ela olhou de relance para as portas frontais do hospital. Nenhum perseguidor à vista ainda. Talvez, se saíssem do estacionamento para a rua antes que os policiais surgissem, tivessem alguma chance de fugir.

Ela puxou a porta do passageiro, abrindo-a, subiu e depois lutou para afivelar o cinto de segurança com uma só mão. Olhou para o lado do motorista, cheia de uma paciência efervescente.

Passaram-se 20 segundos completos antes que a outra porta se abrisse e Tillman entrasse, movendo-se sem nenhuma pressa.

Vai logo! — Kennedy gritou. — Anda com isso!

Tillman virou a chave e fez o motor roncar, mas continuou onde estava.

Tillman! — Kennedy berrou. — Pelo amor de Deus!

Espere para ver — ele murmurou, olhando por cima do ombro para as portas do hospital, de onde agora duas figuras de uniforme marrom saíam correndo. Tillman deixou que chegassem à metade do trajeto até o carro antes de dar a ré diretamente no caminho deles, forçando-os a saltar para a direita e para a esquerda. Fez os pneus cantarem enquanto se recompunham e foi até o fim da linha de carros enquanto eles sacavam e apontavam as armas. Os tiros que dispara­ram foram mais um aviso do que qualquer outra coisa.

Eles viram a gente — Kennedy resmungou. — Você deixou que vissem a gente.

Mas não nos acertaram — Tillman respondeu. — Isso nos dá muita vantagem. Abra o porta-luvas.

Kennedy o fez. Lá dentro, viu um bloco achatado de plástico preto com luzes de LED verdes e ambarinas na frente e as palavras Uniden Bearcat BC355C no canto inferior direito. Um emaranhado de fios na parte de trás sugeria que o objeto havia sido ligado à bateria do carro por alguma razão. Kennedy reconhecia um rastreador de rádio quando via um e, embora esse modelo fosse novo para ela, tinha uma idéia razoavelmente boa do que fazer com ele. Procurou o sintoniza- dor e encontrou-o já alinhado com a freqüência VHF, em torno de 155MHz. Um leve empurrar das chaves para cima e para baixo en­controu o cumprimento de onda da polícia local — na qual, de forma nada surpreendente, a fofoca era toda sobre eles.

... em perseguição, e temos contato visual — a voz de um homem dizia. — Estão na Oak, ao norte da 93, e estão indo para o leste. Repi­to, estão na Oak indo para o leste.

Entendido, quatro-sete — a voz de uma mulher respondeu. — Temos carros chegando pela Maple e pela Topeka e outra unidade vindo pela Andy Devine. Eles devem estar indo para a 1-93. Vamos bloquear a estrada na altura de Powderhouse Canyon.

Entendido. — Era a voz masculina outra vez — provavelmente o motorista da viatura que agora estava exatamente no meio do espelho retrovisor do carro, muito atrás, mas agarrada à perseguição como se fosse a própria vida.

Tillman virou à direita sobre duas rodas e disparou por uma estra­da mais estreita numa velocidade duvidosa. Era uma ladeira íngreme e Kennedy pensou, por um segundo, que a viatura passaria reto pela entrada, ou pelo menos perderia terreno, mas ela dobrou a esquina tão habilmente quanto Tillman fizera.

Eles viraram à direita — disse a voz do homem no rádio. — Es­tamos na 4th Street.

Entendido — a mulher respondeu. — Tá bom, estou vendo exata­mente onde vocês estão. Provavelmente eles vão virar à esquerda ou...

Passaram em disparada por um cruzamento importante, quase ar­rancando o para-lamas traseiro de um conversível verde que desfila­va no caminho deles. O grito da buzina de um carro os seguiu para o sul.

Tá, esqueça isso — a mulher resmungou. — Acho que não estão indo para a I-93, afinal. Carro cinco-zero, você ficou para trás. Eles simplesmente... cruzaram a Topeka e continuam indo para o sul. — Como diabos ela sabia disso? — Não estão tentando sair da cidade. Eles vão virar e voltar.

Outro homem, a voz incongruentemente lenta e lacônica:

É bom pensar em outro bloqueio na Estrada 40, então, e outro na 66. Não tem nenhum outro lugar aonde eles possam ir, a não ser que estejam querendo jantar no Mr. D'z antes de saírem daqui.

Certo — a mulher respondeu, e depois: — Temos um helicóp­tero no ar, saindo de Bullhead. Tempo de chegada estimado em seis minutos.

Kennedy xingou amarga e obscenamente. A viatura original con­tinuava visível no encalço deles, a mulher do rádio de alguma forma os rastreava. E agora, além de tudo, ainda teriam que lidar com uma câmera aérea.

Devíamos desistir — ela murmurou. — Se chegarmos a um des­ses bloqueios, eles com certeza vão atirar em nós. Pessoas vão morrer, Tillman... a começar por nós, provavelmente.

Ninguém vai morrer -— ele disse com uma confiança tão completa que Kennedy o fitou, surpresa, e ficou em silêncio por um instante.

O silêncio foi rompido pelo palavrório do rastreador.

Carro cinco-zero, onde você está agora?

Fingi que ia para o sul e estamos virando para a Hoover, agora mesmo, na 2nd Street. Onde eles estão?

Ainda ao norte daí. Isso é ótimo. Você pode ir para a 4th Street na frente deles e cortar o caminho deles. Repito, eles estão ao sul da Quarta, e você está com a vantagem.

Tillman enfiou o pé no acelerador: o motor de três litros do Noble fez um som estranhamente abafado, como um gigante tentando profe­rir um rugido de ameaça sem acordar uma criancinha. O carro saiu fei­to uma lancha, parecendo erguer-se totalmente da superfície da rua.

Atravessaram o próximo cruzamento ao que parecia ser uma ve­locidade próxima à do som. Um segundo carro de polícia vinha na direção deles a partir do oeste numa rapidez razoável, mas passaram em disparada diante do nariz dele, forçando o motorista a brecar para evitar um choque em cheio contra o carro que os perseguia original­mente, e que vinha logo atrás.

Passaram por nós! — o motorista do carro cinco-zero berrou.

Droga! Desculpe, cinco-zero, acho que calculei mal a distância. Quatro-sete, ainda está com eles?

Fiquei para trás. Estão muito à minha frente agora.

Cinco-zero, você vira e fica esperando na Estrada Old Trails. Eles estão indo para uma porcaria de um beco sem saída, e esse é o único caminho para fora, até onde posso ver. Quatro-sete, fique de olho neles, mas não se aproxime até receber reforços. O homem está armado.

Sei muito bem que ele está armado, Caroline. Ele atirou em mim lá na porcaria do hospital.

Não precisa falar assim, Leroy.

Preciso falar de algum jeito se quiser dizer alguma coisa a al­guém. Escute, estou perdendo o cara. Aquele carro é rápido pra ca­ramba. Quanto tempo leva para o helicóptero chegar aqui?

Dois minutos. Estão sobrevoando a 68 agora mesmo.

Tillman olhou no retrovisor, onde o carro de polícia agora parecia quase distante demais para ser visto. Ele desacelerou um pouco, deu uma guinada à esquerda, depois à direita, pegando uma rua paralela àquela onde haviam estado. Dois quarteirões para o sul, Kennedy viu uma ponte na qual essa via cruzava outra menor. Outro olhar no re­trovisor, e Tillman saiu do asfalto, dirigindo diretamente para a mar­gem. Por alguns segundos, ficaram derrapando no solo arenoso e na grama e nas moitas. Kennedy pensou que acabariam virando de lado e rolando de cabeça, mas Tillman de alguma forma manteve o carro sob controle e lutou para manter a velocidade baixa. No fundo do banco de areia, levou o veículo para baixo da ponte e parou. Direta­mente à frente deles havia um carro estacionado, a meio caminho do pavimento: um Lincoln sedan azul-marinho, um tanto enferrujado nos arcos acima das rodas dianteiras.

É a nossa carona — disse Tillman. — Você não tinha nenhuma bagagem, tinha?

Ele saiu sem esperar por uma resposta, cobriu a distância em dois passos e já estava atrás do volante do outro carro antes que Kennedy tivesse tempo de reagir. Empurrou a porta do passageiro para fora, abrindo-a, e chamou-a peremptoriamente.

Quando Kennedy veio, encontrou-o manuseando os controles de um rastreador de rádio idêntico, tirado do porta-luvas do Lincoln.

Eu os perdi! — Era o motorista do carro quatro-sete, em pânico.

Negativo, quatro-sete. Eles ainda estão à sua frente.

O quê? Onde?

No sul, na 5th Street. Estão no sul, na 5th Street, quatro-sete. Con­tinue nessa direção.

A ponte era uma construção em armação de aço, com concreto e asfalto por cima: ouviram a viatura passar por cima da própria cabeça como um trovão abafado.

Tillman esperou por um intervalo decente, depois colocou o carro em movimento para o leste. Depois de um tempo, ouviram o helicóp­tero chegando do oeste. Viraram numa rua à esquerda, colocando uma conveniente linha de prédios altos — torres de apartamentos de três e quatro andares — entre eles e o helicóptero.

Não estou vendo nada, Caroline, e já olhei a rua toda.

Você está bem acima deles, quatro-sete. Talvez já tenham saído do carro. Procure uma mulher andando a pé.

Procure uma mulher? Por que dizer isso em vez de uma mulher e um homem? Kennedy percebeu, então, o que Tillman havia feito, o que a mulher no rádio estava rastreando.

Puta merda — ela disse com admiração escandalizada. — Eles estão perseguindo meu localizador GPS, né? Onde você o colocou?

Prendi debaixo do carro deles — Tillman disse —, lá no esta­cionamento do hospital. Foi por isso que eu quis que nos seguissem — perto o suficiente para eles interpretarem mal o que estavam vendo pelo sinal. Essas bugigangas de rastreamento normalmente não são acuradas depois de uns seis metros de distância.

Kennedy afundou no assento, quase catatônica enquanto os efei­tos subsequentes da descarga prolongada de adrenalina atingiam seu organismo.

Puta merda — disse outra vez.

Tillman estava colocando óculos escuros, um bigode falso aceitável e um boné de beisebol dos Yankees, todos tirados do porta-luvas onde haviam sido guardados com o rastreador.

Ainda temos que passar por esse gargalo e ir para a Interesta­dual — murmurou ele. — Mas definitivamente vai nos ajudar o fato de que estão procurando na direção errada.

Um par de carros da polícia seguiu em direção ao sul pelas ruas de cada lado deles enquanto continuavam se dirigindo para o norte.

A propósito, aonde estamos indo? — Tillman perguntou, finalmente.

Cidade do México. Xochimilco.

Tillman suspirou pesadamente.

Que foi? — ela perguntou.

Além da fronteira. Vai complicar um pouco as coisas. Kennedy riu sem querer.

Ora, me arrancar do hospital e dar uma surra no departamento de polícia do Arizona não conta como complicado? Você colocou os pa­râmetros lá no alto, Leo. Levou os parâmetros até a porcaria da Lua!

 

Observado com o nível certo de imparcialidade, o mapkanah não era diferente do processo pelo qual a água gira descendo por um ralo. Um agrupamento, uma padronização, a substituição gradual da tur­bulência aleatória por um fluxo poderoso e direcional, o qual então se impõe, inexoravelmente, num continuum.

Kuutma sentia-se como uma rolha flutuando na superfície daque­le fluxo, leve demais para ser tocado por ele. Observou as pessoas embalando não as próprias posses — que já haviam sido empacotadas muito tempo antes —, mas a infraestrutura de seu mundo. Bai­xavam os tanques das plantas hidropônicas, drenadas e ainda pin­gando, das janelas superiores até o chão, onde equipes esperavam para levá-los até os compartimentos de carga. Um tear da fábrica têxtil passou numa carroça puxada com esforço por um único boi. Kuutma ouviu o condutor murmurar palavras tranquilizadoras ao ouvido do animal:

Só mais três depois deste, meu menino, e aí vamos trazer as má­quinas de cardar, que são muito mais leves.

Mais surreal que tudo, um homem robusto passou carregando la­boriosamente, sobre os ombros, o púlpito esculpido em madeira do Kad Sima. No rosto suado dele brilhava um orgulho infinito: era como carregar um pedaço da divindade.

A cidade estava empacotando tudo, achatando-se, num plano e de­pois em outro, até que finalmente ela desapareceria como se tragada por um buraco no chão.

Kuutma, enquanto isso, precisava ser treinado para suas novas res­ponsabilidades. Foi até a estação de bombeamento de água e apre­sentou-se à administradora do local, uma mulher chamada Selaa, que deveria ser uma década inteira mais jovem que Kuutma. Ela era suoma'ka, ruiva. Era um traço recessivo entre seu povo, e muito raro, de forma que aqueles que o possuíam passavam a vida cercados de olhares que ricocheteavam em suas figuras. Para Kuutma, com o man­to do mundo exterior ainda acima dele, tal coisa não merecia nem um olhar, nem um pensamento.

Sou Kuutma — disse, sabendo que ela já havia sido instruída.

Era uma mulher metódica, e claramente estava muito ocupada com a tarefa de desmantelar as partes da estação de águas que não seriam mais necessárias aqui: os purificadores, os relógios e pluviômetros, as duas maiores bombas. Contudo, ainda assim ela se curvou respeitosa­mente a Kuutma e tocou o ombro dele.

Ha ana mashadr — disse. — Já conhece o equipamento, Kuut­ma? Sei que muitas pessoas passam uma temporada na estação de bombeamento, quando são jovens, para aprender os fundamentos do trabalho.

Essa prática começou depois do meu tempo — Kuutma disse.

Mas sou bom com máquinas, de forma geral, e estou familiarizado com a teoria do que você faz.

É claro. — Ela assentiu. — E imagino que as únicas máquinas que vá precisar operar amanhã sejam as comportas.

Ela mostrou onde ficavam e o que faziam. Eram quatro, duas dra­gando água dos reservatórios de Cutzamala e duas diretamente do aqüífero abaixo da cidade, que era tudo o que restava do Lago Texcoco. Selaa tinha muito orgulho do sistema, e não sem razão.

Nas últimas décadas — ela se gabou —, a cidade exterior sofreu contínuas crises de armazenamento de água. Ela está afundando no leito do rio numa taxa de três polegadas por ano, Kuutma. Sabia dis­so? Isso mostra quão rapidamente a Cidade do México está esgotando os recursos de seu próprio lençol freático. Mas nosso fluxo de água nunca foi interrompido. Nunca sequer sofreu queda de pressão. As pessoas usam apenas aquilo de que precisam, como Deus permite.

Kuutma a trouxe de volta à conversa de natureza prática.

Uma dessas comportas foi modificada, eu presumo — disse ele.

Qual delas, e como funciona?

Não é uma comporta — respondeu ela. — E apenas um tan­que aqui — um dos tanques de purificação — que vai ser preenchido pelo fluxo da eclusa quando esta chegar à terceira estação. E por este painel de controle aqui que ela funciona. A água entra na primeira es­tação, corre pelo aqueduto sob Em Hadderek e sai por estes canais se­cundários. Mas todos os canais secundários vão estar fechados depois que partirmos. A água vai fluir direto para Cutzamala — de volta para o principal reservatório de água da Cidade do México. Tudo o que precisa fazer é abrir o portão da comporta com esta alavanca e, depois, quando estiver pronto, despejar o concentrado do tanque na água.

Ela fez o sinal do enforcado. Kuutma ergueu uma sobrancelha.

Lamento — Selaa disse, um tanto embaraçada. — Eu ficaria tris­te até mesmo com a morte desse número de animais.

Mas não pediria que Deus abençoasse a carcaça deles.

Não. Suponho que não.

Obrigado, administradora. Acredito que isso seja fácil. Mas não há um controle chamado tsa'ot khep?

Selaa pareceu intrigada.

A "Voz do Dilúvio"? Isso é um mecanismo de defesa, Kuutma. Não vai restar nada aqui que precise ser defendido.

Eu sei. Mas estou curioso. Por favor, mostre-me.

Com as maiores bombas removidas, esse mecanismo não vai fun­cionar de forma alguma. Não como deveria funcionar, pelo menos. É este controle aqui: as comportas foram subordinadas a esta alavanca, e os canais redirecionados para as rampas — dez deles, ao todo — deste lado.

Todos esses controles ainda vão funcionar amanhã?

Selaa assentiu.

A energia corre por toda a barragem —- disse. — Não posso des­ligar partes da estação de controle: ninguém nunca viu necessidade disso.

Não. É claro. Novamente, obrigado por seu tempo. Você deve estar muito ocupada. Presumo que tenha um molho de chaves para me entregar?

Ela entregou a ele seu próprio molho, tirado de uma laçada de seu cinto.

Há uma cópia de reserva em meu escritório — ela disse. — Mas estas devem ser as chaves que vão trancar as portas pela última vez: elas me foram entregues por Chanina, que era a administradora das águas quando eu cheguei. Por favor, mantenha-as consigo quando terminar, Kuutma. Eu ficaria muito feliz se fizesse isso. A não ser que ache que um suvenir como esse não teria utilidade.

Vou mantê-las comigo até morrer — ele prometeu. Curvou-se formalmente e então retirou-se.

Eu ficaria triste até mesmo com a morte desse número de animais. Era um pensamento sentimental, no entanto, e sentimentalismo era algo que ele pouco vira em Ginat'Dania. Parecia fraqueza — uma fraqueza que o povo, por causa de seu reduzido número, não podia se dar ao luxo de tolerar. Mas e quanto às fraquezas do próprio Kuutma? E quanto às falhas em sua própria armadura, causadas por emoções igualmente indefensáveis?

Ele estava prestes a matar 20 milhões de pessoas. E, no entanto, importava-se com apenas uma.

Nethqadash shmakh, oh, Senhor. Permita-me respirar um ar no qual só exista o Senhor.

 

Atravessar a fronteira provou ser mais fácil do que Tillman imaginara. Mas pensando nisso agora, em segurança, enquanto trilhava as estra­das vicinais de algum fim de mundo sem nome ao sul de Chihuahua, conseguia entender por que havia sido assim.

Os recursos do estado do Arizona eram dedicados a impedir que mexicanos viessem para o norte e cruzassem a fronteira. As patrulhas que viram — e ele sabia que havia muitas mais — estavam todas vi­giando o tráfego numa única direção, e não se mostravam inclinadas a lançar um olhar suspeitoso sobre um homem branco indo para o sul.

Um homem branco sozinho, pois Kennedy estava deitada no ban­co traseiro do Lincoln sob um cobertor, completamente fora de vista e dormindo na maior parte do tempo. Ela ainda estava num imenso desconforto por causa dos ferimentos. Tillman não tinha muito a ofe­recer para aliviar a dor dela, mas ainda possuía um pouco de desflurano. Quando a dor era demais, dava um pouco do produto para ela aspirar num guardanapo de papel, depois do quê Kennedy caía num sono profundo, assustadoramente imóvel.

Para cruzar a fronteira, ele a transferira, pedindo desculpas, para o porta-estepe no porta-malas. Kennedy tivera medo de que se dobrar naquele espaço estreito pudesse reabrir a ferida do lado do corpo, mas Tillman insistira. Não podiam arriscar a chance de ela ser encon­trada numa busca casual. Ele provara estar certo quando os guardas do posto de fronteira ao norte de Nogales abriram o porta-malas e remexeram na bagagem dele — nas partes inócuas, pelo menos, já que as armas e os explosivos continuavam dentro dos bancos traseiros, esvaziados e depois reconstruídos — antes de liberá-lo para continuar a viagem.

Ele parou assim que teve coragem, uns três quilômetros depois, e ajudou Kennedy a sair de sua clausura. As bandagens sangrentas do lado do corpo dela mostraram que seu medo se justificara. Tillman a fez tirar a blusa e trocou as bandagens rápida e habilmente. Admirou os seios dela enquanto fazia isso, pois eram impressionantes e estavam bem ali na frente dele, mas fez o melhor que pôde para editar essa memória depois, ou, pelo menos, para manter a mente ocupada com outras coisas. Normalmente, quando distribuía remédios para colegas do exército, eles não eram nem homens nem mulheres para ele: era necessário um alto nível de desprendimento para fazer reparos no corpo arruinado de alguém com quem estivera trocando piadas uma ou duas horas antes.

Esse parecia ser um bom momento para dar a Kennedy as roupas que comprara: calças jeans anônimas, uma camiseta preta, uma jaque­ta preta folgada e tênis confortáveis. Kennedy lutou para vestir tudo, com Tillman ajudando-a a manobrar o braço engessado. Nada lhe serviu perfeitamente, mas estava tudo mais ou menos no lugar, e não se podia negar que ela chamaria muito menos atenção agora como uma turista do norte da fronteira tentando parecer estilosa e casual, mas falhando em ambos os objetivos.

Acho que não vou agüentar — Kennedy grunhiu. — São mais de 11 mil quilômetros. É um dia inteiro na estrada — um dia e uma noite, provavelmente — e cada vez que a gente passa por alguma lom­bada é como se alguém enfiasse uma agulha de tricô nos meus rins.

Tome mais um pouco de desflurano — Tillman sugeriu. — Você pode dormir o caminho todo. Daí a gente descansa por umas duas horas quando chegar lá, para você se recuperar.

Kennedy balançou a cabeça enfaticamente.

Não. Preciso ficar acordada para isso — disse.

Um dia e uma noite — ele a lembrou. — Você não vai ficar acor­dada esse tempo todo, Heather. E, se a dor for demais, pode entrar em choque. Daí eu teria que levá-la a um hospital, onde provavelmente per­ceberiam que nós batemos com a descrição dos fugitivos que a polícia já deve ter espalhado. Só precisamos encontrar uma única pessoa que esteja acordada e nos reconheça para estarmos oficialmente ferrados.

Kennedy ruminou o que ele dizia.

Tá — respondeu afinal, carrancuda e relutante. — Tudo bem.

Ela se estirou no banco de trás do Lincoln, e Tillman a dopou no­vamente: uma dose mais forte dessa vez, mas ainda muito abaixo da linha vermelha do plano de dosagem que ele recebera junto com a droga. Afinal de contas, o desflurano era um anestésico de uso geral, e colocar Kennedy para dormir — num território onde ela precisaria de assistência mecânica até para respirar — era um perigo real.

Tillman baixou o olhar para ela, deitada inconsciente, e experimen­tou um peso pouco familiar na consciência. Teria arrastado Kennedy para a loucura dele ou os dois haviam se encontrado no momento exato em que ela ficara louca o suficiente para ressoar na mesma fre­qüência que ele? Cobriu-a com o cobertor e prendeu-a ao banco, no ombro e na cintura, com os cintos de segurança. Sentia-se feliz, de todo modo, por não ter lhe contado que sua cama improvisada estava quase toda recheada de explosivo plástico.

Manteve-se nas estradas vicinais, muito embora fossem mais irre­gulares e mais traiçoeiras. Quando a noite caiu, ligou os faróis altos e baixou a velocidade, um compromisso entre a necessidade de cobrir a distância antes que a busca por eles cruzasse a fronteira e a neces­sidade mais imediata de passar contornando os buracos da estrada, fundos como crateras, em vez de enfiar o carro neles.

A noite no deserto era larga como um continente, e eram seus úni­cos habitantes: uma lagarta fantasmagórica rastejando no escuro, com as luzes dos faróis como corpo, e o Lincoln sacolejando atrás dela como uma cauda. Tillman pegou-se devaneando: Rebecca e as crianças fala­vam com ele, ou pelo menos ele via o rosto delas e ouvia sons que su­geriam suas vozes. Não havia palavras reais, porém, nem necessidade de ele responder. A carga do que estavam dizendo era: logo.

Perto de Zacatecas, ainda faltando talvez 480 quilômetros a cobrir, ele procurou por um outdoor perto da estrada. Quando encontrou um, saiu do asfalto e levou o carro para trás dele, de forma que ficasse fora de vista a não ser que alguém realmente o estivesse procurando.

Nem se incomodou em deitar. Simplesmente inclinou o assento para trás alguns centímetros, fechou os olhos e dormiu atrás do volante.

Seus sonhos foram coisas disformes e hediondas, mas a face de Re­becca flutuava acima de todas elas, pedindo-lhe que fosse adiante.

 

Kennedy acordou em torno das 7 horas, com o sol à vista. Resmun­gou e virou-se, mas não conseguiu manter a luz longe dos olhos. Sua garganta estava tão seca que ela não conseguia engolir, seca a ponto da agonia, e a cabeça pulsava ao ritmo de seu próprio coração.

Eles ainda estavam se movendo, ou talvez movendo-se novamente: o carro sacolejava com seus amortecedores dilapidados feito um bote de borracha numa corredeira.

Jesus! — Kennedy grunhiu, com voz pastosa. — Onde... onde estamos?

Lopez Mateos — Tillman disse. — Entramos na área há mais ou menos 50 quilômetros, mas ainda não estamos propriamente na cida­de — e Xochimilco fica ao sul. Digamos mais uma hora.

Sem tirar os olhos da estrada, ele estendeu a mão para o banco de trás e entregou a Kennedy uma garrafa de água. Ela se sentou, grogue, para beber. Manteve o primeiro gole na boca, enxaguando-a, depois deixou a água descer muito aos poucos por sua garganta. Ain­da assim, sentiu o estômago protestar e a cabeça girar. Ela perseverou, enquanto Tillman dirigia em silêncio. Assim que as membranas incha­das de sua garganta cederam um pouco, ela conseguiu tomar goles maiores. Acabou esvaziando toda a garrafa. Isso não ajudou em nada para atenuar a dor em sua cabeça, mas ela se sentiu um pouco mais capaz de pensar apesar da dor.

Observou os subúrbios e barrios anônimos passarem, enquanto sua mente recuperava o foco aos trancos e barrancos. Quando Tillman estacionou, mais ou menos no meio do caminho ao longo de uma in­terminável fila de prédios de um andar feitos de tijolos cinzentos e ba­ratos, Kennedy não percebeu, a princípio, por que ele estava parando. Então, o cheiro de cozinha chegou a ela: ovos e pão e algo temperado. O estômago de Kennedy deu mais algumas piruetas ofendidas, mas sob toda aquela náusea descobriu que estava com fome.

Nos fundos da lanchonete lotada, comeram huevos rancheros e pe­quenas bisnagas de pão, ainda quentes do forno. Kennedy permane­ceu com a jaqueta, pendurada folgadamente sobre seus ombros para esconder o braço com a tipóia, e comeu com uma mão só. A comida era inesperadamente deliciosa, e Tillman deixou que ela devorasse o desjejum em silêncio. Quando ela finalmente parou para respirar, ele foi direto ao assunto.

Preciso saber aonde vamos — disse. — Xochimilco, você dis­se, e agora estamos quase lá. Mas tem um endereço? Algum lugar específico?

Não tem endereço — disse Kennedy, empurrando o prato vazio para longe de si. Ela engolira dois comprimidos de Tylenol com os ovos e as salsichas e, entre a comida e a dor amenizada, estava come­çando a se sentir mais como um ser humano. — Mas sei que fica na área servida por uma estação geradora de energia elétrica específica — e acho que vai acabar sendo algo grande. Como um prédio inteiro de escritórios ou uma fila de prédios empresariais.

Ela contou a Tillman sobre Peter Bonville e os soluços inexplicáveis no uso da energia que o haviam colocado no rastro da tribo de Judas pela primeira vez. Tillman franziu o cenho, concentrado, digerindo a informação. Esperou até que ela terminasse antes de fazer qualquer pergunta.

Isso tudo é recente?

Aconteceu uns dois meses atrás. O Bonville estava voltando da Cidade do México quando o Vôo 124 caiu — porque ele estava no avião. E a queda aconteceu no mesmo dia em que o Stuart Barlow foi assassinado.

Mas você acha que não há conexão?

Kennedy deu de ombros.

Não parece provável. Até onde sabemos, o Barlow e o Bonville nunca se encontraram nem se comunicaram. Eles não freqüentavam exatamente os mesmos círculos. A única conexão é que ambos repre­sentavam uma ameaça ao Michael Brand e... bom, o povo dele, acho. As pessoas que o puseram no mundo.

Ela ficou em silêncio, pensando nas palavras do Evangelho de Ju­das: os Elohim e os Kelim, os dois tipos de emissários que esse grupo de maníacos ninjas fanáticos mandavam para o mundo. Subitamente, ela fez uma conexão — provavelmente porque seu cérebro havia aca­bado de ligar e começara a trabalhar de formas ligeiramente diferen­tes de seu funcionamento usual.

Sua esposa — ela disse a Tillman. — Rebecca. Qual era o nome de solteira dela?

Kelly. Por quê?

Teve outra Kelly que desapareceu. Tamara? Talulah? Algo assim. Foi um dos casos que o Chris vinculou ao Brand antes de morrer.

Tillman olhou para Kennedy, esperando que ela completasse a explicação.

Você veio voando para cá — disse. — Quero dizer, para os Esta­dos Unidos. De Londres.

Sim.

Mas não usando seu próprio nome, né?

Tillman largou o garfo, os ovos que comia apenas semi-finalizados.

Normalmente eu compro documentos de viagem de uma mu­lher que é especialista em identidades falsas. Ela foi da CIA, tem ami­gos na comunidade de negócios mercenários e trabalha principalmen­te para pessoas do ramo. Espionagem, mas espionagem sendo feita um ou dois níveis abaixo daquela que o governo conhece. Heather, aonde você está tentando chegar?

O Brand sempre usa o mesmo nome — ela disse. — Isso torna o trabalho dele mais difícil, torna mais provável que alguém como você encontre o rastro dele, mas ele nunca, jamais usa um pseudônimo. Por quê?

Me diga você.

Talvez seja porque ele não queira mentir. E, se for isso... então, talvez...

Ela estava se sentindo zonza novamente, e os ovos, que haviam tido um sabor tão bom ao descer, ameaçaram subir catastroficamente. Till­man percebeu pela expressão dela que Kennedy estava passando por algum tipo de crise e estendeu a mão para tocar o braço dela.

Quer ir embora?

Estou bem — mentiu. — Tillman, o Emil Gassan disse que Elohim, em aramaico, significa algo como Mensageiros. Na Bíblia normal, os anjos são chamados assim. Eu me pergunto se talvez os matadores do Brand, a equipe de assassinos dele, não se veem como anjos da guarda do povo deles. Daí, esse seria o nome que usam.

Tá bom. Vá em frente.

Bom, se eu estou certa, os Kelim teriam que ser alguma outra coisa. — Ela esperava que ele completasse a linha de raciocínio para ela, mas Tillman não o fez. O que estava realmente dizendo era: e se os Kelim, como Brand, estivessem caminhando entre as pessoas comuns sem escrúpulos em mentir quanto ao que eram? E se eles es­colhessem um nome que alardeasse sua origem, ou seu propósito, ou sua natureza?

Rebecca Kelly.

Tamara Kelly.

Talvez uma porção de outras Kellys. Por que ela não fizera uma pesquisa sobre mulheres desaparecidas com esse sobrenome?

E se elas fossem as Kelim? Saindo para o mundo como Brand e a equipe dele para completar algum tipo de missão, depois desapa­recendo uma vez que essa missão tivesse sido cumprida. E se elas ti­vessem uma vida nesse ínterim e formassem uma família, a família voltaria com elas.

Provavelmente são só postos ou papéis específicos na organiza­ção — Tillman disse. — Provavelmente todos eles trabalham para o Brand. Mas acho que você tem razão quanto a ele não querer mentir. E por isso que deixa as moedas, também. Se há uma ligação com Ju­das — e você disse que esse evangelho menciona peças de prata em termos de um tipo de barganha que essa gente fez com Deus —, então as moedas poderiam ser uma referência a isso. Elas anunciam que um deles esteve num lugar. — Ele riu, um som tão em conflito com o hu­mor que ela experimentava agora que quase lhe deu um sobressalto físico. — Mas é uma desvantagem para um matador — não ser capaz de mentir. Não consigo entender por que eles atariam as próprias mãos dessa forma.

Kennedy descobriu que ela conseguia.

Por que os católicos se privam de confortos e luxos na Qua­resma? — perguntou reto ricamente. — E a mesma coisa aqui. Eles oferecem seu sofrimento a Deus — e o povo de Judas oferece, sei lá, sua veracidade. — Ao mesmo tempo que falava, veio-lhe à mente uma explicação melhor. — Ou talvez eles consigam absolvição anteci­pada, para pecados específicos — assim como os bispos costumavam abençoar os soldados que iam para a guerra. Mas só eram perdoados por assassinato, não por todo tipo de pecado que tivessem vontade de cometer. Então, eles têm que ser moralistas em outros aspectos e isso inclui não mentir.

Isso é insano — Tillman disse.

E você achou mesmo que estávamos lidando com gente sã aqui, Leo? Depois de tudo o que aconteceu?

Ele não respondeu. Em vez disso, acenou e assentiu para o garçom, sinalizando que estavam prontos para pagar.

Eles viveram como uma grande sociedade secreta por pelo me­nos dois milênios — Kennedy murmurou. — Mas, na verdade, essa é uma péssima definição para o que são. Porque também são uma raça. Uma raça secreta. Quase uma espécie secreta. Não se veem nem um pouco como o resto de nós — talvez nos achem até mais parecidos com macacos do que com eles. Eles se mantêm separados. Deveriam ter seu próprio país em algum lugar, mas o que têm, em vez disso, é...

Um prédio de escritórios na Cidade do México.

Ou coisa assim. Então, não espere sanidade, Leo. O que quer que a gente encontre no fim desta estrada, posso garantir com certeza que não vai ser nada são.

 

Prosseguiram em direção ao sul, passando por uma cidade que pa­recia chegar a eles na forma de ondas. Extensões sem fim de cortiços de adobe — o velho e o novo juntados à força em frio desacordo — deram lugar a distritos comerciais onde fortalezas de aço e vidro apu­nhalavam o céu. Mas depois disso a mesma coisa acontecia em reverso, as torres e baluartes brilhantes pereciam e havia mais avenidas de pó, tijolos baratos e desespero.

Finalmente, o mapa de bolso de Tillman — comprado num posto de gasolina enquanto Kennedy ainda dormia — informou-lhes que haviam chegado a Xochimilco.

Não era o que Kennedy estivera esperando. Sabendo o que sabia sobre a escala dos recursos disponíveis a Michael Brand — recursos suficientes para fazer equipes de assassinos cruzarem continentes in­teiros e derrubar aviões do céu —, ela imaginara que estaria se apro­ximando de algum centro de poder; uma daquelas torres que amea­çavam o céu parecia apropriada, ou então um complexo de edifícios dentro de um campus particular, como uma fortaleza moderna isolada da cidade que se espraiava a seu redor.

Xochimilco não tinha nada nem remotamente parecido com isso. Era um distrito fabril, quase todo arruinado. O mato crescia em pro­fusão através do asfalto das ruas largas, e os únicos carros estacionados junto ao meio-fio eram carcaças queimadas. Era como se estivessem passando por uma cidade que fora palco de um apocalipse particu­lar. Os edifícios que se erguiam de ambos os lados deles eram imen­sos, mas se tornaram apenas cascas: cada janela quebrada, cada porta aberta e escura e vazia como a boca de um homem morto.

Algo deu um puxão na memória de Kennedy, algo com nuances de morte e desastre.

Tillman foi virando esquinas a esmo.

Vai ser um trabalho longo sem um endereço — resmungou. — Não é como se houvesse pelo menos algum tipo de mapa ou a gente soubesse o que está procurando.

Estação de Geração 73 Sul — disse Kennedy. — Onde o Bonville encontrou os padrões esquisitos de uso de energia.

Tillman assentiu, mas sem convicção. Estacionou junto ao meio-fio, pegou o telefone e começou a teclar. Hesitou e olhou para Kennedy.

Um amigo — disse. — Mas ele não te conhece e tem ressalvas quanto a quem pode conhecer os negócios dele. Você se importa?

Vá em frente — ela respondeu. — Eu preciso mesmo esticar as pernas. — Saiu do carro surpresa ao descobrir que o ar estava fresco. Uma brisa soprara de algum lugar e havia uma grossa cobertura de nuvens no céu, mudando a luz para algo divino e cinza prata. Um trovão soou a distância. Um trovão de verão e uma chuva purificadora. Kennedy sentia-se repugnante até o âmago de seu ser e queria ser lavada em qualquer água, quente ou fria ou apenas morna, até que seu corpo voltasse a parecer seu.

Ela caminhou lentamente em direção ao fim da rua. Não conseguia ouvir nada. O silêncio era quase total ali, nessa cidade de mais de 20 milhões de almas. Aparentemente, nenhum desses 20 milhões vivia em Xochimilco. Ela foi até um café, ou ao menos a fachada de um, que chamava a si mesmo — com uma arrogância heróica — de El Paraiso. As janelas haviam sido fechadas com chapas de aço corrugado, e pare­cia improvável que as coisas gostosas anunciadas na placa (Enchiladas! Chilaquiles! Bisteca!) se materializassem.

O restaurante era um anão numa rua de monstros gigantescos, mas estava tão morto quanto eles: a crise do recente capitalismo mono­polista, como o anjo da morte, não poupa ninguém que não tenha o símbolo mágico do favor de Deus pintado em sua porta.

Kennedy chegou à esquina e parou. De frente para ela, do outro lado da rua — uma avenida de mão dupla larga o suficiente para ter uma fila de árvores plantada no meio dela, mas completamente vazia de tráfego — estava um complexo de depósitos. Uma única e imensa estrutura com incontáveis edifícios exteriores, todos feitos com o mes­mo concreto protendido e pintados no mesmo cinza-escuro. Viam-se umas poucas janelas pequenas no alto das paredes, tão profundas na alvenaria que não poderiam ter deixado entrar luz nenhuma. Uma cerca ainda sólida e um conjunto de portões ostentavam um gigan­tesco cadeado. Acima deles, ninhos salientes de câmeras de circuito interno de TV no alto de postes de aço vigiavam cada lado da rua.

Kennedy riu alto — de pura incredulidade.

Ouviu os passos de Tillman logo atrás de si e virou-se.

Tudo isso — ele disse, indicando a área ao redor deles com um amplo gesto de ambas as mãos. — A Estação 73 Sul serve tudo dentro de um raio de três quilômetros daqui. Vamos ter que tentar outra coisa, Kennedy. Talvez se o Bonville tiver falado com alguém aqui sobre o tra­balho que estava fazendo, ou tenha preenchido um relatório, nós possa­mos partir daí. Do contrário, acho que deveríamos tentar olhar em...

Ele se interrompeu, finalmente, vendo o que Kennedy estava apon­tando: do outro lado da rua, o grande depósito cinzento.

Chegamos, Leo — disse ela. — É isso.

Era o prédio da fotografia escondida debaixo do chão de Stuart Barlow — aquela atrás da qual ele escrevera a lista de rolos e códices que continham o Evangelho de João.

O fim da jornada deles fora escrito no início dela.

 

Tilman levou dez minutos para se assegurar de que todas as câmeras fossem desativadas.

Ele percebeu, antes de tudo, que estavam ajustadas em suportes móveis, criados para aumentar o arco de visão ao girar de um lado ao outro: mas todas haviam sido travadas numa posição, que não era nem mesmo a mais prática ou vantajosa. A da esquerda estava voltada mais ou menos diretamente para a frente, mas a correspondente à direita voltava-se para dentro, em direção à sua parceira. Efetivamente, ambas vigiavam a mesma área do chão, deixando um ponto cego à direita.

Isso poderia ser devido a um mau funcionamento mecânico, que deixaria as câmeras congeladas no lugar, mas ainda gravando. Till­man usou o ponto cego para esgueirar-se pela rua e colocar-se no canto próximo à base do poste de suporte mais próximo. Com um multímetro digital de seu kit, ele testou os cabos e não encontrou ne­nhuma corrente elétrica fluindo por eles.

Já que não havia mais necessidade de ser furtivo agora, ele cami­nhou diretamente de volta a Kennedy, fazendo um gesto de cortar a própria garganta com um dedo.

Nada — disse. — A energia está desligada. Ou ela foi desligada ou a área inteira sofreu um corte de eletricidade.

Kennedy apontou. Os primeiros postes de luz estavam piscando até alguns quarteirões além. Todas as lâmpadas mais próximas a eles haviam sido quebradas, mas, claramente, se houvera algum corte de energia, havia sido restrito àquele local.

Tillman considerou.

Acho que talvez seja aqui que a gente se separa — disse.

Quê? — Kennedy estava chocada. — Que diabo quer dizer com isso, Tillman? Estamos nisso juntos. Sei que não posso lutar, mas não cobri milhares de quilômetros para depois acenar para você fazendo tchauzinho e ainda te dar um beijo na bochecha. Vou entrar com você. Pode ter certeza.

Ele não pareceu tê-la ouvido. Afastou-se caminhando enquanto ela ainda estava falando, dirigindo-se de volta ao Lincoln. Kennedy come­çou a correr levemente para alcançá-lo.

Estou falando sério — disse. — Você pode sair correndo e me deixar para trás, mas não pode me impedir de te seguir a não ser que me amarre e me amordace ou coisa assim. E, se tentar isso, vou lutar tanto e fazer tanto barulho que vão perceber a gente a mais de um quilômetro. Eu repito, Leo: estamos nisso juntos. Até o fim.

A essa altura, haviam chegado ao carro. Tillman abriu a porta tra­seira, depois se virou para encontrar o olhar dela.

Você é policial, Heather — disse. — Você defende a lei.

Deixei de ser policial quando me fizeram pedir demissão, lembra?

Mas ainda é por isso que você está aqui. Porque pessoas foram mortas e é seu trabalho garantir que os assassinos paguem por isso.

Você não está ouvindo, Leo. — Kennedy esforçou-se para manter a calma. — Não é mais meu trabalho. Qualquer coisa que eu faça aqui vai ser ilegal de umas duas ou três formas diferentes. Está fora da minha jurisdição, eu estou fora da força e sou uma fugitiva procurada. Isso dei­xou de ser questão de lei há muito tempo. Agora, é questão de justiça.

O olhar dele ainda estava travado nela, esperando, avaliando-a, procurando algum sinal.

Que tipo de justiça?

Quê?

Tem a ver com que tipo de justiça, Heather?

Ela sustentou o olhar dele, desnorteada, e jogou para o alto o braço bom.

E tem mais de um tipo?

Tem vários tipos. E o que me interessa é o pior de todos eles. O mais imundo. Olho por olho. Eles mataram minha mulher e meus filhos. Tiraram tudo de mim — tudo. Mas não tiveram a decência de me matar. Treze anos. Estou há treze anos neste mundo que eles deixaram inabita- do. Tudo o que me resta agora é lhes devolver o que é deles por direito.

Ele se inclinou para o carro e arrancou com um puxão a capa do banco, revelando dois rifles automáticos, quatro pistolas, pentes de balas e cintos de munição empilhados e enrolados, e um número de sacolas plásticas negras e brilhantes, mais ou menos do tamanho e formato de tijolos, exibindo as palavras M1 12 carga de demolição C4.

A boca de Kennedy abriu e fechou. Ela se esforçou para pronun­ciar quaisquer palavras e, quando o fez, sabia que não eram o tipo de palavras capazes de fazer algum bem.

Leo... você está enganado. Está enganado quanto a isso.

Tillman não pareceu ofender-se. Apenas deu um sorriso triste.

O quê? Você acha que ainda existe chance de a minha família estar viva, Heather? Depois de treze anos?

E então, como um tipo de assassina sagrada, Kennedy mergulhou de cabeça na impossibilidade da mentira. Ela morreu em sua garganta.

Não — disse. — Eu não acho que ainda estejam vivos. Mas, se estivermos certos quanto a alguma coisa, esse prédio vai estar cheio de pessoas que não tiveram nada a ver com a morte da sua família. As famí­lias de outras pessoas, Leo. Você está com tanta sede de vingança contra o Michael Brand que está pronto para se transformar nele? Porque, se estiver, pegue logo essa pistola toda cheia de frescura e coloque-a na mi­nha cabeça, porque, eu juro por Deus, você vai ter que começar comigo.

Os dois ficaram encarando um ao outro na rua por um número incontável de segundos. Tillman retraiu-se, como se pensar nisso lhe causasse dor física.

Não vim aqui para matar crianças — disse.

Ótimo.

Os explosivos plásticos...

Sim, Leo? O que é que têm os explosivos?

Eu não tinha idéia do que encontraríamos aqui. Ou de como entraríamos. Eu queria estar pronto para qualquer coisa.

Kennedy assentiu.

Então, tudo bem — disse ela. — Estamos prontos.

Certo.

Mas estamos aqui por causa do Michael Brand, né? Todos os Michael Brands.

Não.

Não?

Tillman balançou a cabeça lentamente.

Alguém os enviou. Alguém os escolheu e os treinou e os equi­pou. Alguém disse a eles o que fazer comigo e com minha família. E com aquele seu amigo, o Harper. E Cristo sabe com quem mais. Va­mos apagar esses caras, Heather. Não só o Brand. As pessoas por trás do Brand. Vamos apagar cada um dos desgraçados.

Me passe uma dessas armas.

Tillman obedeceu. Kennedy sentiu uma ponta de déjà-vu quando a pegou. Era uma G22, idêntica àquela com a qual ela matara Marcus Dell. Mas aquilo havia sido em outro país e aquela Heather Kennedy agora estava oficialmente morta.

Ela gesticulou com a arma, erguendo-a com o cabo para cima exi­bindo a base vazia do pente. Tillman entendeu a mensagem, selecio­nou um pente do rico sortimento dentro do oco do assento esvaziado e colocou-o no lugar para ela.

Mais alguns — ela o instruiu.

Tillman pegou um em cada mão e os fez deslizar cuidadosamente para os bolsos da jaqueta dela. Kennedy agradeceu-lhe com um meneio de cabeça.

Em virtude da autoridade a mim outorgada como uma ex-po­licial muito longe de casa — ela disse a ele —, estou nomeando você. Sabe o que isso significa, Leo?

Ele parecia estar com medo de como as coisas estavam caminhan­do, de quanto de sua tomada de decisão estava confiando a ela. Mas o declive que haviam escalado se tornara tão íngreme que agora ne­nhum dos dois se atrevia a olhar para baixo. E a essa altura Kennedy sabia o que havia lá embaixo melhor do que Tillman, pois ouvira as últimas palavras da assassina em Santa Claus: palavras que ela estava determinada a nunca deixar que Tillman ouvisse.

Não, Heather. O que significa?

Ela guardou a arma no cós do jeans e puxou a jaqueta para cobri-la.

Significa que somos uma unidade de resposta armada. Vamos lá responder.

 

A maneira mais fácil de entrar no complexo de depósitos revelou ser pelo lado, onde um edifício adjacente — um tipo de galpão de um andar num lugar que já fora uma garagem de ônibus — ficava perto da cerca; pularam por cima dela.

Tillman foi primeiro, e, quando Kennedy pulou, ele a sustentou para que não caísse. Ela não percebera, até então, quão fraca ainda estava, apesar das longas horas de sono e da refeição. Seu lado parecia duro e inflamado, o braço quebrado chegava a doer mais do que a cabeça, e o anestésico ainda estava em seu organismo — entorpecendo seus pensamentos sem fazer nada para atenuar a porcaria da dor.

Tillman havia transferido uma porção de artilharia leve e pesada para uma mochila que agora carregava nas costas. Nas mãos, em lugar do Única, ele levava um rifle de assalto FA-MAS Clairon na configura­ção do exército francês, com baioneta e lança-granadas. Tal coisa ater­rorizava Kennedy: parecia uma espécie de canivete suíço da morte.

Seguiram junto à parede do prédio principal, procurando uma en­trada. A única porta que encontraram mostrou estar soldada à pró­pria moldura. Todas as janelas ficavam muito acima da cabeça deles, e, já que Kennedy não podia escalar, as cordas e os arpéus teriam que manter como último recurso.

Viram mais postes com câmeras ao longo da cerca: nenhuma delas moveu-se, e todas mostraram não ter corrente elétrica quando Till­man as testou com o multímetro.

Quando chegaram à frente do depósito, olharam cautelosamente para um trecho de asfalto grande o suficiente para comportar uma parada, a superfície esburacada e rachada, com o mato crescendo copiosamente e por toda parte. Mas havia estranhas anomalias, que eles apontaram um para o outro aos sussurros. A cerca parecia estar em perfeito estado, as correntes e os cadeados sólidos e sem ferrugem: e o mato dentro do complexo havia sido achatado contra o chão, como se pela passagem de tráfego recente e pesado.

Tillman estava relutante em sair a campo aberto, mesmo sabendo que não tinha nada a temer das câmeras. Contou um grande número de pontos de vantagem dos quais eles poderiam ser observados. En­tão, voltaram para trás do edifício, onde o asfalto, em alguns trechos, cedia ao pó e a terra, e onde espaços mais estreitos separavam a estru­tura principal dos outros edifícios satélites.

Explorando essas estruturas externas, descobriram que todas as portas estavam como a primeira que haviam visto: soldadas às moldu­ras e claramente fora de uso. Pelo menos, Kennedy encontrou rastros de pneus, claramente recém-feitos, e os seguiu de volta à porta de enrolar do que parecia ser uma garagem ou hangar. O lugar parecia surrado e fora de uso, mas os rastros sugeriam o contrário.

A porta estava trancada com um cadeado. Tillman tirou um pé de cabra da mochila e fez o ferrolho estalar num único movimento, grunhindo levemente pelo esforço. Ele empurrou a porta para cima, abrindo-a, e ambos olharam para o interior do prédio.

Kennedy levou um ou dois momentos para processar o que via. Eles estavam no topo de uma rampa que se estendia para baixo até a perfeita escuridão. Ela parecia ocupar toda a extensão do prédio, cerca de 12 me­tros, e sua inclinação era sutil, em cinco ou seis graus. Não ouviram nem viram mais nada. O prédio abrigava a rampa e nada mais: ou melhor, o que quer que contivesse estava abaixo deles, no outro extremo da rampa.

— Tem uma lanterna aí? — Kennedy resmungou, indicando a mo­chila de Tillman com um gesto de cabeça. A voz dela ecoou na quietude sinistra e levou um longo tempo para deixar de soar.

Tillman tirou duas robustas lanternas cilíndricas revestidas de borra­cha, com cerca de 45 centímetros de comprimento. Pareciam ter sido cria­das para servir tanto como porretes quanto como fontes de iluminação.

Kennedy apertou o botão e dirigiu o facho de luz forte e firme para a escuridão abaixo. Tillman fez o mesmo. Tudo o que isso fez foi lhes mostrar que a rampa se estendia para muito além do que haviam ima­ginado. Os fachos não alcançavam o fundo dela.

Tillman olhou para Kennedy, que assentiu. Não havia aonde ir se­não para baixo. A inquietação dela crescia a cada passo. Nenhuma situação que pudesse imaginar conciliava estabelecer tamanho grau de segurança e depois negligenciar tanto a supervisão. E quem viveria num fim de mundo como esse, afinal? Obviamente haviam encon­trado algum tipo de estação de suprimentos, em vez de — como ela pensara — o covil de seus inimigos.

A rampa se estendia cerca de 90 metros adiante e os levou para pelo menos nove metros abaixo do nível da rua. No final, uma porta de en­rolar feita de aço corrugado exibia-se de um lado ao outro da rampa, bloqueando o caminho. Kennedy lançou seu facho de luz à parede, procurando por controles, mas não achou nenhum: provavelmente estavam do outro lado da porta. Ela estava a ponto de sugerir que procurassem em outro lugar quando a luz de Tillman, apontada para o chão, revelou que o caminho na verdade não estava bloqueado: havia uns 30 centímetros de abertura entre o final da porta de aço e o chão.

Sem palavras, eles se abaixaram, apoiados nas mãos e nos joelhos — Kennedy grunhindo de dor quando os músculos já maltratados registraram o esforço — e escorregaram por baixo da porta.

Do outro lado, ficaram de pé, ainda na completa escuridão, mas Kennedy pôde perceber, pelo movimento do ar em seu rosto, que estavam num espaço muito amplo. Sua lanterna, que ela movimentou aleatoriamente ao redor de si, não captou nada próximo o suficiente para a luz tocar.

Tillman estendeu a mão para tocar desse lado da porta de aço e foi tateando por ela. Kennedy apontou a lanterna para o espaço à frente dele e, quando ele chegou lá, projetou uma luz perfeitamente centrali­zada sobre um painel de interruptores. Uma luz vermelha à esquerda do conjunto anunciava que ali, pelo menos, ainda havia energia elétrica.

Ela foi se juntar a ele, e os dois examinaram o painel juntos: havia três grandes controles deslizantes do lado esquerdo e depois quatro conjuntos de dez interruptores menores, nenhum etiquetado.

Se mexermos nesses controles — Kennedy sussurrou —, vai ser como levantar as mãos e gritar: "Ei, olhem pra gente!".

Ouça — Tillman sussurrou de volta.

Ela o fez. Não havia som nenhum em parte alguma: nem mesmo do tráfego distante que contavam como silêncio na maior parte das cidades, na maior parte do tempo. Tillman estava certo. O barulho que já haviam feito ao escorregar por baixo da porta — assim como o de seus passos sobre a rampa, embora tivessem feito tanto silêncio quanto possível -— teria se propagado longamente nessa quietude absoluta. Se houvesse alguém ali, a chegada deles certamente já não era segredo. Mas, se hou­vesse alguém ali, por que ainda não haviam sido confrontados?

Tillman não se incomodou em obter a aprovação de Kennedy dessa vez. Ele simplesmente empurrou todos os controles deslizantes para baixo e ligou toda a fila superior de interruptores, um de cada vez.

Os deslizantes não pareceram fazer muita coisa, mas quando Till­man pressionou os interruptores ele estava conduzindo uma sinfonia de luz: não com lâmpadas arredondadas ou tubulares ou holofotes, mas com imensos painéis embutidos nas paredes, do chão até o teto, os quais iam ganhando vida como uma cadeia de sóis nascentes ao redor deles.

Kennedy arfou.

Eles estavam num espaço tão alto quanto uma catedral, mas muito mais longo: uma avenida subterrânea cujas paredes eram blocos de brilho puro, quase doloroso. Kennedy cobriu os olhos com o antebra­ço direito, ofuscada, piscando entre lágrimas.

Espere — Tillman murmurou. — Tá bom. Consegui.

Isso acontecera porque ele havia baixado os controles deslizantes primeiro. Ele os elevou em cerca de dois terços do percurso no painel, e a luz reduziu-se a algo muito mais tolerável.

Os dois examinaram os arredores, e Kennedy foi lentamente per­cebendo que estavam, afinal, no lugar certo.

Era uma rua: uma avenida, isso, sim, com 9 metros de largura e 20 ou 25 de altura, espraiando-se a distância em ambas as direções. Peque­nas barracas de madeira, como as bancas de um mercado ao ar livre, alinhavam-se com a rua de ambos os lados, e atrás delas erguiam-se estruturas mais permanentes com suas próprias portas e janelas: uma via pública interna numa metrópole interna.

Dois pensamentos ocorreram a Kennedy de uma vez. O primeiro: que as bancas do mercado estavam todas vazias, uma ou duas delas desajeitadamente saqueadas. O segundo: que o espaço não poderia ser realmente tão alto assim, considerando que não tinham descido a uma profundidade suficiente. Ela olhou para o teto, analisando-o mais cuidadosamente. Fora pintado de forma a imitar nuvens e Arma­mento azul, e curvava-se num vasto arco. Ele era — tinha que ser — o teto interior do depósito. Estavam debaixo da estrutura principal, que havia sido feita em formato côncavo do lado de dentro para criar uma abóbada celeste para esse saguão subterrâneo.

— Esta é a coisa mais doida que já vi — Kennedy disse, a garganta subitamente seca.

Tillman nada disse, mas caminhou pela rua e gesticulou para que Kennedy o seguisse. Ela caminhou ao lado dele. Trocara a lanterna, agora inútil, pela G22, e a segurava com firmeza.

As barracas do mercado estendiam-se pelos primeiros 20 metros, mais ou menos, mas as estruturas atrás delas eram uma característica contínua. Algumas tinham janelas largas, como se em lojas, com prate­leiras e plataformas para expor mercadorias. Todas estavam vazias, ex­ceto onde havia algumas caixas espalhadas ou o saco plástico ocasional, e numa vitrine havia uma echarpe amarela pendurada no que, de resto, era uma prateleira de madeira polida. Havia placas acima das portas, escritas no que, para Kennedy, parecia hebraico. O enigma a atingiu mais uma vez: presumindo que o povo de Judas tivesse se erguido na antiga Judeia, como as adagas sica pareciam sugerir, por que sair da Terra Santa para vir ficar num ponto extremo da Cidade do México?

Provavelmente ela nunca saberia, mas teve certeza, de repente, de que isso não tinha nada a ver com as flutuações do poder secular. Vinte milhões de pessoas e uma área urbana que cobria quase 1.500 quilôme­tros quadrados — era como esconder um grão de areia num deserto. Talvez fizessem isso freqüentemente. Talvez a tribo de Judas fosse um povo nômade, indo aonde quer que pudesse encontrar a melhor ca­muflagem, ou algum outro tipo de recurso que eles procurassem obter.

E na esteira desse pensamento veio outra terrível possibilidade, à qual ela não ousou dar voz: Talvez nós os tenhamos perdido.

Estavam se aproximando do que deveria ser o limite norte do depósito. O teto acima deles era interrompido de uma vez pela li­nha vertical repentina da parede frontal, e as nuvens em trompe Voeil dobravam-se em ângulos agudos subitamente, como se tivessem bati­do em alguma barreira invisível e se partido.

Kennedy esperava que o vasto espaço se reduzisse agora, mas o golfo de ar que estivera sobre a cabeça deles foi substituído, inesperadamente, por outro que se abria sob seus pés: onde acabava o depósito e o teto se fechava, a grande avenida abria-se para baixo, mostrando uma vasta es­cadaria descendente, que depois se subdividia em lances de degraus indo para a direita e para a esquerda e para diante. Outras ruas partiam dessa, mas tinham degraus e seguiam ainda mais profundamente para baixo.

Tillman escolheu aleatoriamente uma escada, e os dois desceram para outra via pública, tão larga e quase tão alta quanto a anterior. Ali não havia lojas, mas, em vez disso, estruturas que se pareciam com casas. Filas e filas de janelas sucediam-se nas paredes, varandas nas quais cadeiras e mesas haviam sido dispostas, e urnas e esculturas ornamentais se alojavam nos cantos e nas balaustradas. Mas algumas das urnas haviam tombado e se despedaçado, e algumas das portas jaziam abertas, exibindo espaços inte­riores escuros. Alguém tivera um bocado de trabalho para fazer com que o imenso complexo interno parecesse singelo — e depois o havia saqueado.

O rosto de Tillman estava franzido numa carranca. Ele parou subi­tamente, o olhar dardejando para a esquerda e para a direita antes de finalmente pousar em Kennedy.

As pessoas não podem viver assim — resmungou, a voz carrega­da de algo como raiva. Ele devia estar com medo agora, assim como ela estava: medo de ter chegado tarde demais e de que solucionar o enigma não significasse nada.

E — ela respondeu, infeliz. — Acho que poderiam. Essas luzes nas paredes provavelmente incluem freqüências UV para que elas não ficas­sem malucas com o isolamento. Talvez pudessem subir à superfície de vez em quando, embora eu imagine que não fizessem isso com muita freqüên­cia. Elas viveram no subterrâneo por tempo suficiente para que a maior parte da melanina tenha se esvaído da pele delas, e é por isso que os agen­tes de campo desse povo são tão bronzeados quanto um tigre das neves.

Tillman não parecia estar ouvindo, então ela parou de falar. Ele tinha ido até um tipo de elemento decorativo pendurado na borda de uma sacada. Era um lençol branco no qual alguém havia pintado uma ima­gem notavelmente bela: o momento em que a luz do sol surge dentre as nuvens de uma tempestade, anunciando ou que a tempestade acabou ou que não virá. As nuvens de tempestade eram horrores negros, de ventre inchado; o raio de sol que irrompia delas era uma filigrana do mais delicado ouro, visível apenas quando se olhava para a pintura de um certo ângulo, e a luz se refletia na pintura do jeito certo.

Tillman arrancou o lençol e rasgou-o em dois.

Para o inferno com isso! — berrou. As palavras ecoaram de volta para ele vindo de cada parede e cornija, redobradas e fraturadas, um coral de exclamações que tropeçava nos próprios passos.

Leo... — Kennedy começou, mas ele a silenciou com um olhar furioso. Não queria compaixão nem condolências naquele momento, e ela realmente não tinha muito mais a oferecer. Sentia-se esvaziada, exausta além das palavras. Ter chegado tão longe apenas para encon­trar esse mausoléu era cruel demais.

Por fim, nada tendo a dizer, ela o deixou ali e voltou para o topo da escada. Todo o vasto complexo era como uma caixa de ressonância, e os movimentos da própria Kennedy retornavam a ela, encobertos em si mesmos em dissonâncias ainda mais complexas. Pensou na pintu­ra do Nu descendo uma escada, de Duchamp, derramando fragmentos angulares e estroboscópicos de seu próprio ser enquanto caminhava. Quanto de si ela deixaria nesse lugar? Parecia uma pergunta justa, considerando quanto precisara sacrificar para chegar aqui.

Não conseguiu alcançar o topo da escadaria em uma viagem só. Numa varanda pouco depois da metade do caminho, ela se debruçou na balaustrada e descansou. O lado do corpo estava doendo novamen­te, e o braço também. Deveria ter pedido a Tillman que colocasse uma embalagem de Tylenol em sua mochila junto com o pé de cabra, as armas, a munição e a pia da cozinha.

Ela o viu se movendo abaixo de si. Estava vasculhando algumas das casas, talvez para saber se alguém havia se escondido ali. Uma das por­tas não cedeu. Kennedy viu Tillman abri-la com um pontapé, o que emitiu um som como o de um trovão enclausurado pelo vasto espaço.

Mas o trovão cresceu, em vez de esmorecer. E agora ele parecia estar vindo de cima dela, em vez de debaixo. Kennedy fez o resto do caminho até o topo e olhou para o ponto de onde eles haviam vindo.

O corredor parecia estar derretendo, como cera sob a chama da vela. Então, ela viu que a massa movediça e ondulante era algo inde­pendente das paredes, do chão e do teto que imitava o céu. Era um aríete feito de água que preenchia todo o espaço do fundo até o topo.

Ele acertou Kennedy como se fosse Deus pregando-lhe um chute nos dentes, depois a pisoteou.

 

Kuutma manteve os portões da represa abertos por sete minutos. Os pri­meiros 30 segundos deram-lhe o volume de água necessário para mis­turar o concentrado. Depois disso, o único uso da água foi como arma.

Embora tivesse desligado as câmeras externas, manteve o sistema de segurança dentro da própria Ginat'Dania em total funcionamento, e as­sim foi capaz de observar enquanto a mulher e Tillman sucumbiam ao dilúvio. A mulher estava incapacitada, é claro, com um braço quebrado e apoiado numa tipóia, mas teria feito pouca diferença se ela estivesse em plena forma e com total mobilidade. A água seguiu pela grande avenida em direção ao Em Hadderek sob enorme pressão, movendo-se muito veloz. O mais forte dos nadadores teria sérios problemas ali.

A mulher submergiu, e enquanto afundava caiu de volta pelas esca­darias do Em Hadderek. O dilúvio preencheria o espaço abaixo, vasto como era, em um minuto, e não haveria nenhum ponto onde a rhaka poderia emergir a não ser que ela nadasse até o próprio Em Hadderek e reencontrasse o piso superior — ou seguisse adiante e encontrasse o Em Sh'dur. Nadando com um braço só, qualquer uma dessas coisas seria uma proeza.

Paradoxalmente, embora ele já estivesse naquele nível mais baixo, Tillman tinha uma chance de sobrevivência muito maior. Ele pôde ver a parede de água chegando, depois se rompendo e rugindo escadas abaixo como uma dúzia de tentáculos vasculhando e agarrando. Teve tempo de se preparar, agarrando-se a uma treliça de ferro numa sa­cada ornamental. A água o atingiu, mas ele se manteve firme e conti­nuou onde estava — no primeiro minuto.

Então, com os espaços inferiores enchendo-se velozmente e a pres­são da água afrouxando enquanto se acomodava, Tillman lançou-se para cima com braçadas lentas e poderosas. Ele perdera o rifle, mas ainda tinha a mochila presa às costas. Olhou ao redor, presumivelmen­te em busca da mulher, mas nesse momento todas as luzes se apagaram enquanto a água inundava ramais e caixas de fusíveis. Isso significava que Kuutma não poderia mais rastrear os movimentos do mercenário. Também significava que as chances de Tillman encontrar a mulher an­tes que ela se afogasse passavam de escassas a — efetivamente — zero.

Kuutma interrompeu o fluxo da água, depois foi juntar suas pró­prias armas e equipar-se para a tarefa vindoura. Seis adagas sica, três de cada lado do cinto, e a Sig-Sauer no coldre do ombro, com um pente completo e dois reservas nos bolsos da jaqueta. Seus movimen­tos eram metódicos e calmos. Ele sabia, muito além da lógica, que era assim que devia ser. Era por isso que Tillman sobrevivera por tanto tempo. Era por isso que ele próprio se adiantara, com sombria e terrí­vel misericórdia, para interromper o suicídio de Tillman.

Tillman não tinha o direito de acabar com a própria vida daquela maneira, e, além disso, havia algo que ele precisava ouvir antes de morrer: ouvir e entender. Um equilíbrio precisava ser restaurado, e Kuutma havia sido abençoado: o equilíbrio estava em suas mãos.

Ele trancou as portas da estação de bombeamento e desceu os de­graus até o nível do chão. Teria que voltar uma vez mais, é claro, para liberar a água no reservatório de Cutzamala. Essa seria a última coisa que faria antes de abandonar esse lugar para sempre e fechar as por­tas, deixando para trás tudo o que vivera até então.

Caminhou até a grande avenida. A imensa e imperiosa massa da água havia se escoado para os níveis mais baixos, mas poças profundas ainda restavam. Kuutma percebia isso pelos sons que seus pés faziam enquanto passava por cima delas: não conseguia enxergá-las, pois a avenida continuava na completa escuridão. Havia um sistema manual de fornecimento de luz em caso de quedas de energia, e ele sabia onde os controles ficavam. Foi até a mais próxima dessas estações, abriu um painel na parede e girou uma manivela que encontrou ali.

Muito acima, chapas do teto de aço do depósito — a concha que cobria Ginat'Dania — escorregaram das posições diagonais em que se sobrepunham para um ângulo quase vertical. O dia lá fora estava nu­blado: somente uma luz cinza filtrou-se para dentro, mas foi o bastante.

No outro extremo da grande avenida, o som de algo que chapinhava e esguichava anunciou que Tillman havia emergido, como uma baleia. Olhando naquela direção, Kuutma a princípio não conseguiu ver o homem. Mas então uma forma difusa ergueu-se no topo da esca­daria do Em Hadderek, ali onde era mais largo e mais belo: ergueu-se e caiu novamente, e rastejou com movimentos espasmódicos, descoordenados, para a terra firme da grande avenida.

Kuutma caminhou em direção a seu adversário, segurando em cada uma das mãos o peso familiar, primorosamente balanceado, de uma sica.

 

Quando as águas se fecharam sobre Kennedy, ela fez a maioria das coisas erradas.

Primeiramente, esqueceu-se de respirar. Cambaleando para trás em meio ao caos de espuma, fechou com força as mandíbulas, quando deveria ter engolido uma imensa lufada de ar para preservá-la até que retomasse o contato com o oxigênio.

Em seguida, ela lutou contra a onda irresistível que a reteve e a empurrou, desperdiçando suas forças num esforço inútil para irrom­per na superfície. A flutuabilidade natural de seu corpo acabaria carregando-a para cima de todo modo: ela precisava usar toda a força e agilidade que tivesse para evitar bater contra qualquer um dos prédios e estruturas em direção aos quais estava sendo carregada como um brinquedo na mão de uma criança que corria.

Kennedy bateu duramente contra uma parede e quase abriu a boca num arfar de choque e dor. Isso teria sido seu fim, ela sabia. Recupe­rando o controle sobre seus instintos, torceu-se e se esquivou até ficar de frente na mesma direção em que a enxurrada arremetia, e chutou a água para mover-se para a esquerda, depois para a direita, evitando mais duas colisões por uns poucos centímetros.

Era um pouco como voar, Kennedy pensou, confusa. Conseguia ver o piso de ladrilhos do nível inferior, as ruas e as casas internas, passando velozmente abaixo dela e, de ambos os lados, um borrão de espectro azulado em meio ao qual a claridade tremeluzia e cintilava numa louca refração.

Então, as luzes se apagaram, e ela soube que seus problemas ha­viam se agravado ainda mais.

Seus pulmões já estavam começando a protestar contra a ausência de ar, a exigir o direito de inflar novamente. Kennedy dispunha de talvez meio minuto, na melhor das hipóteses, para chegar a algum ponto onde houvesse ar, e não tinha a menor idéia de onde tal lugar poderia estar.

Partículas de luz dançavam e se expandiam na forma de sóis suba­quáticos diante de seus olhos na escuridão impetuosa, e Kennedy esta­va deslumbrada com elas, ainda que reconhecesse, objetivamente, que na verdade não estavam lá. Ela estava começando a perder os sentidos. Era a privação do oxigênio tangendo cordas soltas em seu cérebro.

Tentou pensar. Bolsões de ar formados dentro das casas? Pelo que se lembrava das aulas de física no colégio, isso parecia possível — mas não tinha tempo para procurar de casa em casa, e, de todo modo, não possuía um distintivo policial para mostrar e poder entrar.

Foco, Heather. Foco.

Lutar contra a correnteza ou seguir com ela?

Ir para cima, para baixo ou para os lados?

Provavelmente não faria muita diferença, mas parecia importante decidir. Seu pai sempre lhe dissera para se impor às situações. Sim­plesmente seguir a onda quase sempre era um erro.

 

Tillman esforçou-se para ficar de pé. Seus próprios batimentos cardía­cos soavam alto em seus ouvidos, mas não havia nenhum outro ruído, nem luz. A cabeça estava girando: também parecia estar se expandin­do e contraindo no ritmo dos batimentos cardíacos, como se seu cora­ção orquestrasse o coração pulsante do próprio universo.

Ele riu incredulamente. É um mundo pequeno, afinal, pensou. E eu estou bem aqui, no centro dele.

Mas seu estômago se revirou e de repente ele se sentiu enjoado. O entusiasmo megalomaníaco cedeu, e a náusea o fez cair de joelhos. Vomitou na última maré vazante: um fluxo fétido com gosto de chili e coentro, provavelmente porque continha os restos da refeição que ele e Kennedy haviam feito no caminho de... algum lugar.

Estava frio e escuro. Frio e escuro como a sepultura. Tillman es­tremeceu. Mas a luz desceu, abruptamente, de cima, suave e macia como plumas de ganso. Tillman tentou controlar o coração acelerado, a cabeça latejante, as mãos trêmulas. Não deveria estar se sentindo tão mal. Havia algo errado com ele.

E Kennedy. Precisava achar Kennedy, certificar-se de que ela estava bem.

Trincou os dentes, fechou os olhos e contou até dez. Ao menos, tentou. Mas mal se lembrava dos números.

E agora — disse uma voz gentil e refinada acima dele —, aqui estamos nós.

Um sólido impacto na lateral da mandíbula fez Tillman cair esta­telado, rolando de lado na água imunda. Ele arfou, debateu-se, ten­tou levantar-se novamente. Um segundo chute, nas costelas, e ele se dobrou sobre si numa bola apertada cujo centro era a dor súbita e violenta.

Por favor — a voz disse —, tire um momento para se orientar. Espero que não tenha engolido muita água. Eu detestaria que você morresse antes que tivéssemos tempo para conversar.

Tillman ficou deitado. Ficar deitado — desde que não houvesse novos ataques — permitiria a ele um momento para pensar, por mais distorcidos e vagarosos que fossem seus pensamentos agora. Algo na água? Parecia muito provável. Não se lembrava de ter engolido água, mas certamente não teria evitado que um pouco dela entrasse em seu organismo. E o que quer que houvesse nela talvez não precisasse ser engolido. Talvez entrasse no corpo por simples contato com a pele. Ou talvez evaporasse da água e ele estivesse respirando a coisa naquele exato instante.

Levante-se — disse a voz.

Tillman desenrolou-se lentamente, rolou, apoiando-se nas mãos e joelhos, e se ergueu numa reverência invertida.

O homem diante dele parecia ter mais ou menos sua idade. Muito alto, mas não muito largo nos ombros. Bastante musculoso, mas esbelto — o físico de um bailarino ou corredor. Tinha a cabeça raspada, o rosto esguio e moreno dividido em dois à luz turva pelo talho vertical de um nariz aquilino. Trazia em si a solenidade de uma estátua ou sacerdote oficiando uma cerimônia.

Michael... Brand — disse Tillman, a boca dormente modulando mal as palavras.

Sim — o estranho respondeu com algo semelhante a satisfação, a orgulho. — É quem eu sou. Michael é um nome hebraico. Significa "quem é como Deus?". E Brand, a marca — em nossa própria língua, kuutma —, é o sinal que Laldabaoth, o deus do mundo decaído, dei­xou sobre a fronte de nosso pai, Caim. Tento ser honesto, sr. Tillman. Tento nunca mentir. A mentira degrada o homem que a pronuncia, por mais nobre que seja o motivo. Eu sou Kuutma. Eu sou Brand. Eu sou a marca.

Com imenso esforço, Tillman conseguiu ficar de pé. Ele caminhou em direção ao homem à sua frente, os punhos fechados, erguidos.

As mãos do homem moveram-se rapidamente. Tillman sentiu um golpe de ar frio desferir-se contra seu baixo ventre, mas, quando seus dedos tocaram o local, havia um calor pulsante.

Ele baixou o olhar para a própria mão. Ela tentava conter uma cornucópia de sangue, que se preenchia novamente, infinitamente, enquanto se derramava entre os dedos desajeitadamente separados.

E agora — Michael Brand disse —, devemos conversar rapida­mente. Não lhe resta muito tempo, e há coisas que precisam ser ditas.

 

Simetria, Kennedy disse a si mesma. Não era muito, mas já era alguma coisa.

Tudo o que haviam visto aqui, tudo pelo que haviam passado, fora construído num esquema simples e elegante. A larga rua principal, sua localização sob o teto do depósito, os lances descendentes de es­cadas, que partiam da praça onde a rua terminava. Tudo simétrico, oferecendo aos habitantes desse mundo estragado e troglodita uma vista agradável e organizada.

Então, talvez no final do nível inferior houvesse outro lance de es­cadas e outra praça.

Kennedy nadou junto com o fluxo, usando mais as pernas do que o braço bom porque os movimentos do braço a jogavam de lado, sem controle. Estava com os olhos bem fechados, por alguma razão. Mas não havia luz para ajudá-la a enxergar, então, provavelmente não es­tava perdendo nada.

A pressão em seus pulmões e a escuridão em sua cabeça cresciam mais e mais. O teto do vasto corredor roçou sua cabeça. Kennedy chu­tou-o e impulsionou o corpo para baixo, aterrorizada pela idéia de ficar presa numa esquina ou de bater a cabeça contra uma cornija. Se isso acontecesse, estaria acabada.

Mas já estava acabada de todo jeito. Estava sem oxigênio e sem tem­po. Para cima ou para baixo, tanto fazia. Ela desistiu e deixou-se flutuar para cima, esperando que o teto pressionasse suas costas e seus mem­bros agitados, mantendo-a no lugar. Quando isso acontecesse, Kenne­dy abriria a boca, provavelmente num xingamento, e se afogaria.

Ela irrompeu na superfície com um estouro de água que rasgou a escuridão de lado a lado em sussurros infinitos. Foi como se houvesse dilacerado a abóbada celeste. Uma luz cinzenta descia de algum lugar e mostrava-lhe o lago interior no qual ela flutuava.

Kennedy não conseguiu se lembrar, por um momento, de onde es­tava. No Arizona, ela sabia. Mas não, isso tinha sido antes. Eles haviam vindo para o sul, para o México. Ali era a Cidade do México.

A Cidade do México era um lago de escuridão no qual ninguém pescava nem nadava. Exceto ela.

Ela se virou na água num círculo vagaroso, respirando em lufadas profundas e desiguais, como se estivesse arrancando pedaços do ar e mastigando-os, forçando-os garganta abaixo. As suas costas, uma só­lida parede se erguia, cravejada dos espaços escuros das janelas. Ela tinha vindo de debaixo daquele prédio, onde as ruas do nível inferior corriam invisíveis, inundadas do chão até o teto.

De cada lado, e à sua frente, múltiplas escadarias como aquelas par­tiam da outra praça. Kennedy não tinha idéia de para onde levavam. As distâncias se reduziam e depois avançavam na direção dela numa marcha sinistra. Seu cérebro era uma coisa vacilante, frouxa e satura­da dentro da qual os pensamentos se recusavam a fluir.

Mas, a uma grande distância, ela ouviu vozes.

 

— Ela morreu — Kuutma disse a Tillman. — Morreu muito tempo atrás.

As águas haviam retrocedido um pouco mais, e ele se sentara no alto da escada principal. Tillman estava de joelhos a certa distância, ambas as mãos agarrando com força a ferida. Apesar do que Kuutma havia lhe dito, o local do ferimento havia sido cuidadosamente escolhido, e o sangramento ainda levaria um bom tempo para matá-lo. A lâmina não havia sido ungida. O fluxo de sangue se desaceleraria gradualmente e talvez até parasse, desde que Tillman não se movesse. Naquele instan­te, ele parecia incapaz de realizar qualquer movimento.

Rebecca — ele murmurou. Sua voz estava fraca, irregular. A voz de algo profundamente arruinado.

Exatamente — Kuutma concordou. — Sua Rebecca. Eu a matei. Com uma adaga exatamente como esta. — Ele ergueu a sica para que Tillman pudesse vê-la, virando-a na mão para que a pouca luz a atin­gisse. Não houve lampejo na atmosfera crepuscular: a lâmina parecia uma coisa morta na mão dele. O mundo era um mundo em agonia, quase inabitado. — Mas não brinquei com ela, nem a atormentei como estou fazendo com você. Atingi-lhe o peito, entre a quarta e a quinta costelas, e parti o coração dela em dois pedaços. Ela morreu muito rapidamente.

Kuutma nem olhava para Tillman enquanto falava, mas viu com o canto dos olhos quando Tillman se levantou e se jogou na direção dele. Estivera esperando por isso, estivera até mesmo contando com isso.

Ficou de pé no momento em que Tillman o alcançou, a sica ainda na mão direita, mas usou a esquerda para bloquear o soco desajeitado de Tillman, depois o enganchou com o braço esquerdo e o pé direito e o arremessou sobre a escadaria com uma força que poderia facilmen­te ter partido a coluna do homem. Só então ele se inclinou e abriu a bochecha de Tillman com a lâmina: um único talho correndo da testa até o queixo.

Ótimo — disse ele, aprovando. — Me odeie como odeio você. Me odeie com cada fibra de seu ser, até que o ódio se torne denso o suficiente para asfixiá-lo. Era isso que eu queria de você.

Kuutma retirou-se para o outro lado da escadaria e sentou-se no­vamente. A violência trouxera-lhe certo alívio, mas também havia fei­to com que seu coração disparasse dentro do peito. Precisava encon­trar o coração calmo da violência e habitar nele, como fazia quando matava no mundo exterior. Mas aqui não era o mundo exterior, era Ginat'Dania. E essa não seria uma morte como nenhuma outra: era o pagamento do equilíbrio.

Kuutma observou o corpo decaído até que ele se contraísse e se agi­tasse, o que indicava que Tillman estava tanto vivo quanto consciente. Então, retomou a narrativa.

A morte era um direito de Rebecca — disse. — É um direito de todas as Kelim. Mas nunca imaginei que ela escolheria a morte. Eu disse a ela, quando veio a mim, que não havia necessidade. Para outras, sim, possivelmente, mas não para ela. Nunca, nem por um momento... — Ele parou. Não fora assim que pretendera começar: precisava manter sua mente no objetivo e operar de maneira lógica em direção à revelação que destruiria Tillman.

Matar a alma de seu inimigo e só depois liquidar seu corpo.

Kuutma recomeçou, embora a calma ainda lhe escapasse.

Vivemos separados — disse. — Esse é um dos mandamentos que nos foi legado. Mantemos nossa linha sangüínea pura. Não apenas desde Judas, mas desde o Éden, nós nos mantivemos à parte.

"Mas a pureza tem um preço. O povo conta com menos de cem mil pessoas e, numa comunidade tão pequena, certas doenças — doenças que vêm com o nascimento — espalham-se rapidamente. Conhece­mos a base genética disso agora, como o senhor provavelmente tam­bém conhece, sr. Tillman. Numa pequena comunidade endogãmica, genes duplos recessivos se emparelham com uma freqüência desastro­sa, e defeitos congênitos, fraquezas do coração, do corpo e da mente, tornam-se endêmicos. Sem um influxo periódico de novo material ge­nético, a comunidade não pode prosperar."

"Os Anciãos conferenciaram, muitos séculos atrás, e tomaram uma decisão. Uma sábia decisão. Não podíamos entregar nosso sangue à massa degradada de semi-animais que você chama de humanidade. Mas poderíamos tomar a força e o vigor deles, quando precisássemos. Podíamos enriquecer nossa linhagem com enxertos do que há de me­lhor na deles."

"As mulheres que foram enviadas foram chamadas de Kelim — recipientes. Enquanto os Mensageiros carregam a morte, saindo de Ginat'Dania para o mundo, as Kelim saem para o mundo e trazem de volta a vida. Esse é o sacramento delas. Sua glória."

Tillman estava parcialmente erguido agora, repousando sobre um cotovelo. Olhava para Kuutma com intensidade feral. Kuutma dei­xou a sica de lado e tirou a pistola do coldre. Da próxima vez que Tillman o atacasse, ele acertaria um dos joelhos do homem: o direito, provavelmente.

A água — Tillman resmungou.

A água? — Kuutma franziu o cenho perante a irrelevância do comentário. — A água está envenenada. Kelalit. O mesmo veneno que os Mensageiros recebem para conferir-lhes força e velocidade. Em concentrações maiores do que cinco partes por milhão, tal veneno pa­ralisa e mata. Você recebeu uma dose muito pequena porque, quan­do a água o atingiu, a comporta havia apenas acabado de começar a despejá-lo na água. Ela esteve despejando todo o resto enquanto conversávamos, e a concentração foi subindo a um nível de cem vezes a dose letal: o nível no qual um único gole pode matar dentro de um ou dois minutos. A Cidade do México vai se tornar um imenso cemitério. Quando o povo muda, não deixa nada para trás, Tillman. Semeamos a terra com sal e o céu com cinzas.

"Mas estávamos falando de Rebecca. Rebecca Beit Evrom."

Tillman ficou tenso e tentou se recompor. Ele agiria em breve, Kuutma tinha certeza disso. Mas nessa condição, entontecido pela ke­lalit difundida na água e enfraquecido pelos ferimentos, ele não repre­sentava ameaça.

As Kelim são escolhidas por loteria — disse Kuutma. Ele sentia como se estivesse construindo um cadafalso no qual enforcaria Till­man, um nó corrediço para o pescoço dele, um alçapão no qual os pés dele ficariam. — Elas saem para o mundo, com falsas identidades fornecidas pelos Elohim, e se casam. Acessamos os registros médicos de quaisquer maridos em potencial, investigando doenças na semente deles. Se não houver risco, a união é aprovada — apenas para procriação. Não é, é claro, um casamento no sentido religioso.

"As Kelim têm três filhos e, depois disso, retornam. O marido vai para uma casa vazia — a mulher, para seu verdadeiro lar, no seio do povo. O exílio dela finalmente termina. Como pode imaginar, esse dever, embora sagrado, é difícil de suportar. É uma provação terrível fingir amar alguém por três ou quatro ou cinco anos, vivendo por tanto tempo à sombra de uma mentira."

Não! — Tillman arfou. Ele conseguiu ficar de pé e deu um passo na direção de Kuutma. Kuutma ergueu a arma, e Tillman parou.

Foi um horrível infortúnio — Kuutma disse, com mais veemên­cia do que pretendera. — As probabilidades... eram de dois ou três milhões para um. Nunca imaginei que ela tiraria a bola vermelha do saco. Que seria escolhida. Mas, porque eu era Kuutma, pensei, não seria tão ruim para ela quanto foi para as outras. Eu cuidaria dela. Eu ainda estaria com ela, de certa forma, mesmo que não pudesse falar com ela.

"Eu a mandei para a Inglaterra. Ela conheceu você. Compartilhou sua cama e teve filhos seus. Judas, que na sua presença ela chamava de Jud. Seth. Grace. Eu os observei crescer e esperei minha hora. Até o último dia e o último momento, esperei minha hora. Até que, final­mente, chegou o dia em que tive permissão para mandá-la para casa. Meu Deus, Tillman, que momento amargo foi aquele!"

Kuutma percebeu que estava falando por entre dentes que trinca­vam, a voz áspera e pastosa.

Ela não cometeu nenhum pecado, entende? Não teve culpa. E ainda assim ela se espojava em seus braços ao final de cada dia e se entregava a... uma abominação. Eu lamentei por ela. Lamentei tanto por ela. Às vezes...

Por que estava dizendo isso? Por que havia se distanciado tanto das palavras que preparara?

Às vezes, as pessoas se esquecem disso. Não têm consciência do sacrifício que as Kelim fazem por nós — o sacrifício da própria carne. As vezes, as mulheres pensam, quando retornam, que ninguém as quer. Como esposas, quero dizer. Que ninguém quer se unir a elas. O reci­piente está limpo, a escritura diz, mas como é que algo pode permanecer limpo se é mergulhado noite após noite na imundície e na indecência por tantos anos? Você entende? É um mistério. Um mistério sagrado.

"Mas eu ofereci a ela... eu lhe ofereci a mim mesmo."

Kuutma piscou, afugentando lágrimas. Ele se levantou e deu um passo na direção de Tillman. Havia um magnetismo que o atraía: deveria atrair Tillman também, e levá-lo ao próximo estágio de sua demolição.

Eu lhe disse que nada havia mudado entre nós. Que a aceitaria e me casaria com ela, e criaria seus filhos. Mas ela escolheu a morte. Sentiu-se tão suja por seu toque, tão profundamente arruinada, que não conseguiu olhar novamente nos olhos de um homem honesto e aceitar o amor dele. Está me ouvindo, Tillman?

Estou ouvindo — Tillman balbuciou. — Seu imbecilzinho patéti­co. Ela te dispensou. Ela te dispensou porque ainda me amava.

Kuutma gritou. Não conseguiu conter-se. O som foi arrancado de uma parte dele que era profunda demais para ser tocada pela razão. Ele cobriu a distância entre si e Tillman em três passos e gol­peou com o cabo da pistola o osso nasal do homem, despedaçando-o. Tillman cambaleou e começou a cair, mas Kuutma girou como um dervixe e plantou um chute no meio do estômago dele antes mesmo que pudesse chegar ao chão. Enquanto Tillman se dobrava em dois, Kuutma o acertou novamente com a arma, do lado da cabeça, e fi­nalmente ele caiu.

Ela não amava você! — Kuutma berrou. — Nunca amou! Uma pessoa não se mata porque ama alguém!

Sem fôlego e impotente, Tillman ficou caído aos pés dele, apoiado nas mãos e joelhos. Kuutma colocou uma bala na câmara da Sig-Sauer e tirou a trava de segurança. Encostou a arma na parte de trás da ca­beça de Tillman.

Mas ele recuperou o autocontrole uma vez mais antes que pudesse puxar o gatilho. Estava quase pronto: quase. Mas não podia despachar Tillman para a escuridão em face daquele desafio absurdo e insultuoso. Precisava contar-lhe o resto da história e vê-lo chorar e arrastar a alma na lama.

Sua filha — Kuutma disse. — O nome dela não é Grace agora. É Tabe. Ela foi criada por estranhos — e ensinada a odiar você. Ela é tão feliz aqui, Tillman! Tão feliz conosco... É uma artista. Ela pinta. Há tanta beleza dentro dela que chega a se derramar de seus dedos para o mundo. Está me ouvindo? Sua filha ama a vida que eu dei a ela! Antes de vir até aqui, fui falar com ela. Contei-lhe que mataria você e pedi a bênção dela, o que ela me concedeu alegremente. "Por que eu deveria me importar com o que acontece com o pai de minha carne?", ela disse. E quando eu tiver terminado com você, Tillman, vou voltar para ela. Vou contar-lhe como você morreu e ela vai beijar minha mão e me abençoar outra vez.

Tillman estava tremendo. Por um momento, Kuutma pensou que era o medo que provocava essa reação, mas então percebeu que o semblante outrora poderoso do homem estava arruinado por lágri­mas que irrompiam à força.

Viva! — Tillman soluçou. —A Grace está viva! Minha Grace está viva!

Num acesso de fúria, Kuutma golpeou a ruína encolhida e indefesa diante de si de novo e de novo com o cabo da arma.

Ela odeia você! — berrou. — Não me ouviu? Ela odeia você!

As mãos do próprio Kuutma estavam tremendo agora, e havia pou­ca força em seus golpes. Agachado feito um rato sob a tempestade, Tillman suportou-os.

Kuutma acertou a nuca do homem mais uma vez com a Sig. Ele ainda possuía o argumento final, irrefutável. Fora um instinto subli­me, afinal, que o fizera começar com Rebecca e poupar o pior para o final.

Seus filhos... — ele começou.

Um movimento acima captou seu olhar. Algo caindo. Kuutma sal­tou de lado, e a urna ornamental, empurrada de uma balaustrada numa sacada muito acima de sua cabeça, estilhaçou-se no chão exata­mente onde ele estivera há pouco. Cacos de pedra cheios de mossas atingiram seu rosto e corpo.

Será que Deus ama você, Kuutma? — uma voz disse, falando no ar ao redor dele.

Era a voz de Rebecca.

 

Seis meses na Narcóticos: a permanência mais curta que uma pessoa poderia ter e ainda colocá-la no currículo como uma experiência váli­da. O que Kennedy não sabia sobre drogas lotaria bibliotecas inteiras.

Ironicamente, o que conhecia sobre metanfetamina vinha de um caso de homicídio. Uma mulher que matara enquanto dormiam as duas pessoas com quem dividia um apartamento — que também eram seus colegas de vício — com a parte denteada de um martelo para amaciar carne. De fato, ela os amaciara completamente. Também fica­ra feliz em explicar por quê: eles andavam tentando assassiná-la com micro-ondas e veneno embebido no tecido de seu travesseiro.

Um a cada cinco usuários regulares de metanfetamina acaba su­cumbindo a uma doença mental intratável conhecida clinicamente como psicose por anfetaminas. E Brand a estivera usando regular­mente por pelo menos treze anos. Ele deveria ser pelo menos um pouco louco, mesmo já considerando os problemáticos padrões extre­mistas de maníacos religiosos.

Kennedy desceu os degraus lentamente em direção a Brand — ou Kuutma, como ele parecia chamar a si mesmo — e Tillman. Ela perde­ra a arma que Tillman lhe dera, mas tinha uma perna de cadeira que havia apanhado no caminho. Mantinha-a próxima ao lado do corpo, onde esperava que fosse difícil de notar.

Estava improvisando desesperadamente. Tudo o que realmente queria era impedir que o desgraçado terminasse aquela frase. Mas pa­recia ter cativado a atenção dele, de todo modo: tudo o que precisava fazer agora era mantê-la.

Será que Deus ama você? — repetiu no mesmo tom duro e frio.

Kuutma não respondeu. Parecia incapaz de falar. Ele a fitou enquan­to ela vinha em sua direção e deu um passo involuntário para trás.

Para mim, parece — Kennedy disse — que Ele protege aqueles a quem ama. Ele dá aos fiéis ajusta recompensa na terra e castiga os brutos. É assim que funciona, não? E você é o braço que executa o castigo, então, acho que deve saber melhor do que ninguém.

Kuutma riu subitamente, o que não era de forma alguma a reação que Kennedy esperava — ou desejava.

É só você! — ele disse. — Por um momento, eu pensei... — Ele pareceu se recompor, escapando de um precipício interior, um tremor percorria seu corpo. — Deus ama o povo, rhaka. A aliança Dele é co­nosco. Só o decaído se importa com vocês.

Kennedy chegara ao pé da escadaria agora e estava a apenas três metros de Kuutma. Olhou para o relógio de pulso, depois encontrou o olhar dele e deu de ombros.

Ele está meio atrasado, né? — perguntou meigamente.

Os olhos de Kuutma se estreitaram.

Você vai morrer com uma blasfêmia nos lábios — disse.

Kennedy prosseguiu como se não o tivesse ouvido.

Mais de vinte anos atrasado. Era para vocês esperarem por trinta séculos e depois disso seriam os mandachuvas do mundo. Mas trinta séculos já passaram e vocês ainda estão vivendo aqui, no escuro, como baratas. Escondidos do resto do mundo. E ficam aí tapando buraco atrás de buraco porque o mundo fica menor a cada minuto. Vigilância por satélite, monitoramento de dados, passaportes biométricos e im­pressões digitais genéticas. Até suas contas de eletricidade entregam vocês, Kuutma. E vocês esperam, e esperam, e ainda assim Deus não aparece, até você começar a se sentir como a garotinha tímida no can­to do salão de baile, que nunca consegue ser convidada para dançar. E de que valem todos esses assassinatos, no final, se vocês não são sagra­dos? Se Deus não abençoou vocês nem mandou que lutassem, então como é que fica esse sangue todo na sua alma?

Não há sangue em minha alma — Kuutma respondeu. Ela havia parado de andar, e agora ele dera um passo na direção dela. Com a arma ainda na mão, e apontada para o coração dela, ele tirou uma daquelas facas perversas da cintura. — Eu estou perdoado.

Mas só pelas mortes — Kennedy o lembrou. — Não pelas men­tiras. Então, me conte a verdade sobre uma coisa, Kuutma, antes de me matar.

Segurando a faca na altura do peito, entre o dedo indicador e o médio, ele inclinou a lâmina num ângulo de seis graus e dobrou a mão em direção ao próprio corpo, pronto para atirar.

Pergunte — ele a convidou.

Todo este espetáculo lamentável foi só porque você não deu uns pegas na Rebecca Beit Sei-lá-qual-era-o-nome? Porque já ouvi falar em dor de cotovelo, cara, mas isso aqui é muito, muito triste mesmo.

Kuutma atirou a faca.

Kennedy tomou uma decisão impetuosa e jogou-se para a direita. Foi a direção errada, mas o movimento a salvou mesmo assim: o gesso de seu braço havia sido fixado ao redor de uma armação de aço, e a faca acertou um dos suportes, que ficou exposto. A lâmina talhou o rosto de Kennedy quando quicou para cima e sumiu na escuridão.

Kuutma atirou uma segunda faca. Kennedy jogou-se para a frente e, com um golpe violento da perna de cadeira, acertou a mão dele, fazendo-o soltar a arma. Assim restou só a Sig-Sauer. A pistola foi er­guida enquanto Kennedy ainda estava sem equilíbrio, e Kuutma havia começado a puxar o gatilho quando o estrépito ensurdecedor de uma explosão o fez baixar o olhar, em choque, para o próprio peito. Uma supernova de sangue expandiu-se ali, cobrindo todo o seu torso em dois segundos vertiginosos.

 

Tillman não havia confiado na própria mira: estava nauseado demais, tonto demais, as mãos sem firmeza nenhuma. O simples gesto de sa­car o Única do cinto e tirar a trava de segurança haviam exigido cada grama de concentração que ele fora capaz de aplicar.

Ele se arrastara laboriosamente até ficar de pé, enquanto Kuutma debatia teologia com Kennedy, que se movera na direção deles, um passo após o outro. Kuutma não parecera notá-lo, mas Kennedy sim. Ela mantivera a posição e continuara tagarelando, oferecendo o alvo mais fácil do mundo.

E Tillman havia erguido a arma finalmente, a escassos centímetros das costas da jaqueta de linho tecido à mão de Kuutma.

Havia segurado a arma na linha certa.

Havia apertado o gatilho.

Havia apertado com mais força, porque o gatilho não quisera ceder àquele primeiro aperto frouxo.

Havia disparado e perdido a arma no mesmo momento por cau­sa do coice inesperado de um recuo que ele normalmente suportava muito bem.

Mas um tiro foi tudo de que precisou. Kuutma caiu de joelhos, ain­da olhando para Kennedy com olhos cheios de espanto.

— Deus... — ele engasgou. — Deus é meu...

— Deus acha — Kennedy disse a ele, com a voz fria rangendo feito uma rocha arrastada pela borda de uma caverna — que você é um desgraçado mentiroso e assassino.

Kuutma abriu a boca para responder, mas a morte chegou primeiro.

 

INTERROGATÓRIO RESUMIDO COM O OFICIAL FELIPE JUAREZ, DEPARTAMENTO DE POLÍCIA DA CIDADE DO MÉXICO, CONDUZIDO PELO TENENTE JESUS-ERNESTO PENA, POLÍ­CIA FEDERAL.

HORA DE INÍCIO: 15H30.

 

TEN. PENA: O pedido de ajuda veio do local?

OFICIAL JUAREZ: Naquele momento eu pensei que sim, tenente. Mas o telefonema não foi registrado adequadamente, como o senhor sabe, e numa área com densidade populacional tão alta investigar os registros das companhias de celular acabou sendo... bom, não muito prático.

PENA: Foi um homem? Foi a voz de um homem que você ouviu?

JUAREZ: Sim.

PENA: E ele especificou uma localização em Xochimilco?

JUAREZ: Exatamente. Um depósito num local que já fora proprie­dade da United Fruit Company. Está sendo difícil determinar quem são os proprietários atuais. Aparentemente há um labirinto de empre­sas, a maior parte delas com sede na África ou no Oriente Médio. Uma baita confusão.

PENA: Conte o que você encontrou quando chegou ao local.

JUAREZ: Tenente, para mim é quase impossível descrever. Era um complexo subterrâneo, praticamente uma pequena cidade. Tinha sido inundado, mas ainda estava quase intacto. Uma coisa incrível. Se alguém tivesse me contado que um lugar como esse existia, eu teria rido na cara da pessoa.

PENA: Vi as fotos, oficial Juarez. E concordo, é impressionante. Acre­dito que você tenha encontrado duas pessoas lá quando chegou, sim?

JUAREZ: Um homem e uma mulher. Ambos feridos — o homem de forma grave. Ele tinha um ferimento no abdômen e outro no rosto. A mulher parecia ter sido espancada, e foi possível determinar que ela tinha um ferimento do lado esquerdo do corpo. Ela tinha uma jaqueta enrolada no braço esquerdo, então não pude ver direito.

PENA: Também havia um corpo.

JUAREZ: Sim, é verdade. Um segundo homem estava presente, morto. Havia um ferimento à bala atravessando a parte superior do tronco e disparado a uma distância muito curta. Minha suposição ime­diata foi de que uma daquelas pessoas ou ambas deviam tê-lo matado, então tentei efetuar a prisão delas. Mas não fui capaz de fazer isso. O homem me desarmou e me forçou a entregar minha arma.

PENA: Ele desarmou você. Apesar dos ferimentos dele?

JUAREZ: Tenente, ele foi rápido feito uma cobra. Esse homem já foi soldado. Não tenho a menor dúvida. O senhor viu as armas e a munição que ele deixou para trás — um arsenal inteiro. Além disso, ele parecia meio doido. Desequilibrado. Se eu tivesse levado reforços, talvez tivesse tido uma chance contra ele: contra os dois, eu deveria dizer. Sozinho, não tive nenhuma.

PENA: Então. Lá estava você com a arma no coldre e o cu na mão.

JUAREZ: A masturbação eu deixo para vocês, federais. Tento nun­ca competir com um especialista.

PENA: Quero que isso continue na transcrição.

TAQUÍGRAFO: A escolha é sua, tenente.

PENA: Conte o que aconteceu em seguida.

JUAREZ: Eles me levaram até uma escada e me mostraram que os níveis interiores do complexo haviam sido inundados. Explicaram que a água estava envenenada — com algum tipo de neurotoxina — e que não deveria, sob nenhuma circunstância, ser devolvida ao lençol freático. Ela tinha que ficar onde estava, sob guarda, até poder ser bombeada e descartada. Era verdade?

PENA: Isso é informação confidencial, oficial Juarez. Você não está na lista.

JUAREZ: Não. É claro que não. Mas sei que o local foi isolado por 19 dias. Uma área ocupando três quarteirões foi isolada com placas de "material perigoso" em cada esquina.

PENA: Confidencial.

JUAREZ: E as transmissões via satélite? Ouvi um rumor de que por dois dias antes disso centenas de caminhões chegaram a esse depósito e depois saíram. Mas ninguém sabe o que estavam carregando.

PENA: Confidencial.

JUAREZ: E que havia túneis levando a outros lugares, também em Xochimilco. Que havia casas e armazéns e despensas e piscinas e ginásios e...

PENA: Conte o que aconteceu em seguida.

JUAREZ: O que aconteceu em seguida? O homem e a mulher me contaram uma história incrível. Incrível em qualquer outro lugar, quero dizer. No lugar onde estávamos naquela hora, não pareceu tão difícil de acreditar. O homem havia perdido a esposa e os filhos. A mu­lher, o parceiro. O homem que eles mataram havia assassinado uma porção de gente e tinha tentado matar minha cidade. Minha família. Meus amigos. Todo mundo que eu conheço. Dá pra imaginar?

PENA: Sim. Dá pra imaginar. E depois?

JUAREZ: Depois eles amarraram minhas mãos, mas não muito apertado, e o homem disse que não seria bom para mim segui-los.

PENA: Você tentou segui-los?

JUAREZ: No fim, tentei. Mas já tinham ido embora. Não havia o menor sinal deles.

PENA: Quanto tempo havia se passado nesse momento?

JUAREZ: Talvez 15 ou 20 minutos.

PENA: Você levou 15 ou 20 minutos para soltar as mãos, quando havia uma faca — catalogada como item 21 — largada bem aos seus pés?

JUAREZ: Estava escuro. Eu não enxerguei a faca.

PENA: Até que fosse seguro enxergar.

JUAREZ: Estava escuro. Eu não enxerguei a faca.

PENA: Nem nenhuma das muitas outras facas, no cinto do homem morto, no saco catalogado como item 16?

JUAREZ: Estava escuro. Eu não...

PENA: Sim, obrigado, oficial Juarez. Acho que entendi. Vamos falar do boletim interforças 1217. E a respeito de uma mulher que escapou de um hospital em Kingman, Arizona, com a ajuda de um ho­mem que a fez descer pela parede do hospital numa corda de rapei.

JUAREZ: Sim. Eu li.

PENA: Olhe para as fotografias. Esses são o homem e a mulher que você viu?

JUAREZ: Entendo que as acusações contra a mulher foram retira­das diante da evidência apresentada pelo xerife do condado, que disse que a mulher na verdade o salvou de uma atacante.

PENA: O homem ainda é procurado. Olhe para as fotografias.

JUAREZ: Para mim, parece que, se a água foi mesmo envenena­da, o homem que morreu no depósito deve ter sido um filho da puta envenenador que merecia mesmo levar um tiro na parte superior do tronco disparado a uma distância muito curta.

PENA: Para mim, parece que, se eu quisesse sua opinião a respeito disso, eu pediria. Olhe para as fotografias.

JUAREZ: Esse não é o homem e essa não é a mulher. Quem dera eu pudesse ajudar, tenente.

PENA: Quem dera eu pudesse colocar suas bolas num torno.

JUAREZ: Tem tão pouca gente realmente feliz neste mundo.

 

Ela foi para casa.

Ela tinha uma casa para a qual voltar.

Era um quarto, no qual seu pai a esperava. Ela lhe contou a história de onde estivera e do que fizera, embora soubesse que ele não en­tendia. Ela também não entendia a história dele, aliás. O melhor que podia fazer era dar testemunho e ouvir quando tivesse a chance.

Havia mais alguém esperando, também, em outro quarto, não mui­to longe. Houve uma conversa sacana e, depois, outras coisas para as quais a conversa não era necessária.

Eu sempre, sempre, sempre pensei que você fosse hétero — Ken­nedy murmurou no ouvido de Izzy.

Credo, eu não. — Izzy soltou um risinho. — Não sou desde que tinha 15 anos.

Mas você engana tão bem no papo ao telefone...

Izzy montou sobre ela e sorriu — só para Kennedy — um sorriso capaz de derreter platina e abrir as pernas de um anjo.

Ah, o papo é universal, querida. É o ato que conta.

 

Ele foi para casa. A casa ainda estava vazia.

Mas o vazio era diferente agora. Ele sabia que a esposa havia mor­rido amando-o, pensando nele. Que ela não quisera deixá-lo e não pudera imaginar uma vida sem ele, assim como ele não fora capaz de construir uma sem ela.

Ele sabia que seus filhos estavam vivos, em algum lugar no mundo, e que estavam felizes.

Ele sentia que a solidão era um relicário no qual mantinha a mais sagrada das coisas: suas memórias do breve tempo que haviam pas­sado juntos como uma família, da qual ninguém mais vivera para se lembrar.

Porque ele estava vivo, era tudo verdade. Porque ele se lembrava, eles estavam com ele.

Perto disso, que mais importava?

 

— Carta para você, Web. Tem a cabeça da rainha desenhada no selo, então acho que é da Inglaterra. Quem você conhece na Inglaterra?

Connie passou a carta por cima da mesa para o xerife Gayle, depois ficou pairando por ali como alguém que ainda tivesse o que fazer e estivesse a ponto de fazê-lo em breve.

Obrigado, Connie — disse Gayle.

Ah, de nada — ela respondeu.

Mas ele não fez nenhum gesto para abrir a carta, na verdade, dei­xou-a de lado com ar negligente, então, por fim, Connie teve que se retirar, derrotada.

Depois que ela saiu, Gayle pegou o envelope novamente, abriu-o com o dedo mindinho deslizando pela aba e tirou de dentro a carta. Era de Heather Kennedy. Já adivinhara isso, porque ela era a única inglesa que ele conhecera na vida.

 

Querido Web,

Me desculpe por não ter conseguido ir ao funeral da Eileen. A ver­dade é que saí do México por um triz e tive receio de que, se voltasse para o Arizona, talvez não me deixassem ir embora. Sei que as acusa­ções originais foram retiradas, mas depois teve todo esse caos que o Tillman aprontou quando me tirou daí, e mais umas coisas no México que foram ainda mais doidas.

É por isso que estou escrevendo, na verdade. Acho que você tem o direito de saber como essa história terminou. Você perdeu mais do que eu nessa coisa toda, e foi uma perda que não poderá jamais ser repa­rada, então, isto — a história — é tudo o que posso lhe dar. Isso e meu agradecimento, de coração mesmo, por tudo o que fez por mim.

 

Gayle leu tudo por quase uma hora. Só parou quando Connie lhe trouxe café e pairou mais um pouco. Após ter esperado que ela saísse novamente, ele retomou a leitura de onde havia parado.

Era loucura, exatamente como Kennedy dissera. Um segredo fácil de guardar, já que, se contasse, ninguém acreditaria. Talvez essa fosse a melhor coisa que eles tinham a seu favor, esses caras de Judas: eram tão terrivelmente absurdos que as pessoas poderiam tropeçar neles e sair andando sem nem perceber o que tinham achado. Não poderia ter acontecido: estúpido demais, doido demais, ridículo demais para ter acontecido.

Mas que história teria sido para Moggs! Como ela daria um fino acaba­mento a tudo aquilo, com brilho cromado e asas e barbatanas e floreios!

Foi só quando chegou ao fim, à última página, que Gayle viu como as coisas realmente eram. Mudou de idéia quanto a uma série de ques­tões nesse momento. Não era de forma alguma um segredo fácil de guardar: não para Kennedy, pelo menos, que conhecia esse sujeito, Tillman, e devia a ele a própria vida. E Moggs jamais teria podido contar a história do jeito que era porque ela não seria, de forma algu­ma, cruel o suficiente para isso.

 

Voltei para a tradução do Gassan, Kennedy escreveu, e dei uma boa olhada em alguns detalhes. Tudo fez muito mais sentido depois que vi o lugar pessoalmente. Os filhos das Kelim mantêm o nome que rece­beram ao nascer, desde que esses nomes tenham sido escolhidos pela mãe. Se o pai escolheu, as crianças são batizadas outra vez pelo povo.

Acho que, no caso dos filhos da Rebecca, o Brand simplesmente quis apagar tudo o que pudesse do passado. Não havia nada de errado com os nomes que as crianças já tinham, mas ele os batizou com outros mesmo assim. E eu soube quais foram esses nomes. A mulher que qua­se matou a nós dois, lá em Santa Claus, me contou enquanto morria.

Grace, a menina, tornou-se Tabe.

Os meninos — Ezei e Cephas — morreram no Pombal.

 

Gayle dobrou a carta e colocou-a na gaveta da mesa. Depois, pen­sou melhor e passou-a pelo retalhador de papel do escritório. Em se­guida, teve uma idéia ainda melhor e usou o isqueiro de Anstruther para queimar as tiras com jeito de confete até que não restasse nada.

Olhando pelo vidro do escritório externo, Connie contemplou com cobiça uma belíssima fofoca na qual ela nunca poria as mãos.

 

 

[1] Brand, em inglês, é de fato a marca que se faz com ferro quente (em gado). Mas aparentemente não foi por esse motivo que o personagem usa tal nome. (N.T.)

[2] A escala de Scoville é usada para medir a ardência das pimentas. (N.T.)

 

 

                                                                               Adam Blake  

 

 

 

           Biblio"SEBO"

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades