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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MAR ME QUER / Mia Couto
MAR ME QUER / Mia Couto

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MAR ME QUER

 

Deus é assunto delicado de pensar, faz conta um ovo: se apertarmos com força parte-se, se não seguramos bem cai.

                  (Dito do avô Celestiano, reinventando um velho provérbio macua)

 

Sou feliz só por preguiça. A infelicidade dá uma trabalheira pior que doença: é preciso entrar e sair dela, afastar os que nos querem consolar, aceitar pêsames por uma porção da alma que nem chegou a falecer.

 

— Levanta, ó dono das preguiças.

 

É o mando de minha vizinha, a mulata Dona Luarmina. Eu respondo:

 

— Preguiçoso? Eu ando é a embranquecer as palmas das mãos.

 

— Conversa de malandro...

 

— Sabe uma coisa, Dona Luarmina? O trabalho é que escureceu o pobre do preto. E, afora isso, eu só presto é para viver...

 

Ela ri com aquele modo apagado dela. A gorda Luarmina sorri só para dar rosto à tristeza.

 

— Você, Zeca Perpétuo, até parece mulher...

 

— Mulher, eu?

 

— Sim, mulher é que senta em esteira. Você é o único homem que eu vi sentar na esteira.

 

— Que quer, vizinha? Cadeira não dá jeito para dormir.

 

Ela se afasta, pesada como pelicano, abanando a cabeça. Minha vizinha reclama não haver homem com miolo tão miúdo como eu. Diz que nunca viu pescador deixar escapar tanta maré:

 

— Mas você, Zeca: é que nem faz ideia da vida.

 

— A vida, Dona Luarmina? A vida é tão simples que ninguém a entende. É como dizia meu avô Celestiano sobre pensarmos Deus ou não-Deus...

 

Além disso, pensar traz muita pedra e pouco caminho. Por isso eu, um reformado do mar o que me resta fazer? Dispensado de pescar, me dispenso de pensar. Aprendi nos muitos anos de pescaria: o tempo anda por ondas. A gente tem é que ficar levezinho e sempre apanha boleia numa dessas ondeações.

 

— Não é verdade, Dona Luarmina? A senhora sabe essas línguas da nossa gente. Me diga, minha Dona: qual é a palavra para dizer futuro?

 

Sim, como se diz futuro? Não se diz, na língua deste lugar de África. Sim, porque futuro é uma coisa que existindo nunca chega a haver. Então eu me suficiento do actual presente. E basta.

 

— Só eu quero é ser um homem bom, Dona.

 

— Você é mas é um aldrabom.

 

A gorda mulata não quer amolecer conversa. E tem razão, sendo minha vizinha desde há tanto. Ela chegou ao bairro depois da morte de meus pais, quando herdei a velha casa da família.

 

Nessa altura, eu ainda pescava em longas viagens, semanas de ausência nos bancos de Sofala. Nem notava a existência de Luarmina. Também ela, logo que desembarcou, se internou na Missão, em estágio para freira. Ficou enclausurada nessas penumbras onde se murmura conversa com Deus.

 

Só uns anos mais tarde ela saiu dessa reclusão. E se instalou na casa que os padres lhe destinaram, bem junto à minha morada. Luarmina costureirava — era seu sustento. Nos primeiros tempos, ela continuava sem se dar às vistas. Só as mulheres que entravam em seus domínios é que lhe davam conta. No resto, me chegavam apenas os perfumes de sua sombra.

 

Um dia o padre Nunes me falou de Luarmina, seus brumosos passados. O pai era um grego, um desses pescadores que arrumou rede em costas de Moçambique, do lado de lá da baía de S. Vicente. Já se antigamentara há muito. A mãe morreu pouco tempo depois. Dizem que de desgosto. Não devido da viuvez, mas por causa da beleza da filha. Ao que parece, Luarmina endoidava os homens graúdos que abutreavam em redor da casa. A senhora maldizia a perfeição de sua filha. Diz-se que, enlouquecida, certa noite intentou de golpear o rosto de Luarmina. Só para a esfeiar e, assim, afastar os candidatos.

 

Depois da morte da mãe, enviaram Luarmina para o lado de cá, para ela se amoldar na Missão, entregue a reza e crucifixo. Havia que arrumar a moça por fora, engomá-la por dentro. E foi assim que ela se dedicou a linhas, agulhas e dedais. Até se transferir para sua actual moradia, nos arredores de minha existência.

 

Só bem depois de me retirar das pescarias é que dei por mim a encostar desejos na vizinha. Comecei por cartas, mensagens à distância. À custa de minhas insistências namoradeiras, Luarmina já aprendera as mil defesas. Ela sempre me desfazia os favores, negando-se.

 

— Me deixa sossegada, Zeca. Não vê que eu já não desengomo lençol?

 

— Que ideia, Dona vizinha?! Quem lhe disse que eu tinha essa intenção?

 

Todavia, ela tem razão. Minhas visitas são para lhe caçar um descuido na existência, beliscar-lhe uma ternura. Só sonho sempre o mesmo: me embrulhar com ela, arrastado por essa grande onda que nos faz inexistir. Ela resiste, mas eu volto sempre ao lugar dela.

 

— Dona Luarmina, o que é isso? Parece ficou mesmo freira. Um dia, quando o amor lhe chegar, você nem o vai reconhecer...

 

— Deixe-me, Zeca. Eu sou velha, só preciso é um ombro.

 

Confirmando esse atestado de inutensílio, ela esfrega os joelhos como se fossem eles os culpados do seu cansaço. As pernas dela, da maneira como incham, dificultam as vias do sangue. Lhe icebergam os pés, a gente toca e são blocos de gelo. E ela sempre se queixa. Um dia, aproveitei para me oferecer:

 

— Quer que lhe aqueça os pés?

 

Arrepiando expectativa, ela até aceitou. Até eu fiquei assim, meio desfisgado, o coração atropelando o peito.

 

— Me aquece, Zeca?

 

— Sim, aqueço mas... pela parte de dentro.

 

Tentava um deslize na defesa dela. Mas levei tampa. Eu estava como essoutro que foi lavar a mão e sujou o sabão. Ou aquele que queria acertar a unha e cortou o dedo. Com esta minha idade eu já devia conhecer os devidos procedimentos, as delicadas tácticas de abordagem. Mas não. Meu falecido avô sempre dizia:

 

— Em novos só nos ensinam o que não serve. Em velhos só aprendemos o que não presta.

 

Mas é pena eu e a vizinha não nos simetricarmos. Porque ambos somos semiviúvos: nunca tivemos companheiro, mas esse parceiro, mesmo assim, desapareceu. Sou mais novo que ela, mas já estamos ambos na encosta de lá em que a vida só mexe quando é a descer.

 

Hoje sei como se mede a verdadeira idade: vamos ficando velhos quando não fazemos novos amigos. Estamos morrendo a partir do momento em que não mais nos apaixonamos.

 

E até que Dona Luarmina, aliás Albertina da Conceição Melistopolous, já foi bela de espantar a homenzarrada. Sei isso porque testemunhei um flagrante dessa formosura dela. Foi uma certa vez que não fiquei só na varanda. Entrei em sua casa, sentei na sala grande com janela para o mar. Foi então que eu vi a fotografia. Era de uma moça de espantável beleza, corpo de aguar as mais mornas bocas.

 

— Quem é essa?

 

— Sou eu, quando era nova. Antes de chegar aqui...

 

Me levantei, já em vias de tocar a foto. Mas ela, secamente, emendou a visão minha, vertendo a moldura sobre a mesa. E ali ficou, para os restantes dias, aquele retrato deitado de costas para a luz. Eu bem tentava espreitar, da janela, a imagem da sua antiga beleza. Em vão.

 

Restava-me a presente figura de Luarmina, gorda e engordurada. A mulher, por razões de angústia, se deixara acumular, quilos sobre o peso. Eu entendo: uma boa maneira de esconder a tristeza é cobrirmo-nos de carne. O sofrimento é fatal quando atinge os ossos. Chegada aí, a tristeza se apressa em virar esqueleto. Sábio é dar cobertura ao corpo, intermediar gordurosas fronteiras.

 

Às vezes, ainda relampeja nela alguma infância. Então, ela tenta brincar-me, espicaçar-me uma ciumeira.

 

— Uma vez, um homem me chamou de dólingui.

 

— Dólingui?

 

— Dólingui ou darilingue. Era um estrangeiro de fora.

 

— O que é isso, darilingue? Tenho muitos nomes bastante melhores que esses, não quer ouvir Dona vizinha?

 

— Não quero. Desculpa, Zeca, mas agora já não quero. Me custa já ter um nome quanto mais muitos...

 

Já faz anos que rondopio à volta da viúva. Arrisco mesmo perder plumagens nessa insistência. Contudo estou arrastando asa em nenhum chão: minhas penas só roçam aragens. A estratégia é lhe contar minhas aventuras: invento feitos passados em minhas atribulações marinhas. Mas não são aventuras que a fazem sonhiscar. O que Dona Luarmina me solicita são exactas memórias. E isso é o que eu menos quero. Não é que me faltem lembranças. Estão é espalhadas em toda a minha substância, até nesse dedo que perdi nas fainas. Meu corpo foi-se tornando um cemitério de tempo, parece um desses bosques sagrados onde enterramos nossos mortos.

 

— Conte como foi, quero as coisas que foram e como foram. Essas que nos põem saudade...

 

Saudades, em mim, nunca têm pressa. Demoram tanto que nunca chegam. Só quando eu danço me liberto do tempo — esvoam as memórias, levantam voo de mim. Eu devia era dançar todo o tempo, dançar para ela, dançar com ela.

 

— Me fale sobre o seu passado.

 

Meu passado me pesa: minha infância morreu cedo, eu tive que carregar esse peso morto em minha vida. Aos seis anos tomei lugar de meu avô no barco, dois anos depois meu pai perdia o juízo e saía de casa, cego e louco. Minha mãe, antes de morrer, me entregou na igreja. O padre português Jacinto Nunes me educou em preceito de Deus e livro. Mas eu queria era regressar ao mar e cedo troquei livro por rede. Sempre entregando muito, recebendo pouco. Meu avô Celestiano culpava meu pai dessa má sorte.

 

— Esse meu filho Agualberto, cabisburro como é, meteu-se no mundo dos brancos, nem abençoou o barco dele. Abandonou os antepassados? Castigo é esse.

 

Insisto com Dona Luarmina: ela não me peça lembranças. Eu quero matar o passado, essa mulher tem que me deixar cometer esse crime. Caso senão é o passado que me mata a mim.

 

— Você, Zeca, tem raiva do passado, tem ciúme do futuro: vai viver só nos agoras?

 

Reformado das pescas, nem no presente tenho cabimento. Enquanto andava no mar, embalado em meu barco, eu não sofria o tempo. Porque essa ondeação era, afinal, uma dança. E a dança, já disse, é melhor maneira de fugir do tempo.

 

— Venha dançar, Doninha...

 

— Dançar, eu? Com este corpo?

 

Ela ri, envergonhada. Mas Luarmina não sabe: os que dançam ficam sem corpo. Esperta é a árvore que não mexe e dança a sombra dela no planeta inteiro.

 

— Dona Luarmina não se lembra a Maria Bailarinha?

 

E recordei essa moça do bairro, uma ajunta-brasas. Dançava que dava tontura no mundo, a homenzoada ficava zarolha do miolo. Os pés dela, todos descalços, machucavam o chão, eram pés de pilão mas nem poeira levantavam: a terra comovida parecia aprazida desse batimento. Maria Bailarinha dançava a pedido e a moeda. Lhe atiravam os dinheiros e ela, de imediato, deflagrava seu corpo. Mesmo o padre Jacinto Nunes comentava baixinho para a sua batina:

 

— Até Arquimedes haveria de flutuar, Santo Deus me valha!

 

Aconteceu que, uma noite, ao roçar junto da fogueira, a capulana da dançarina se fez em chama. Maria Bailarinha não parou de dançar. O povo começou a gritar, em aviso. O fogo em redor das vestes se adensou e ela não se detinha nem deixava que ninguém se achegasse. Estava possuída pela vertigem, dançava já com a própria morte. Até que estancou, semelhando estar intacta e inteira. Quando a primeira mão lhe tocou ela se desfez em cinza, poeirinha esvoando na brisa.

 

— Lembra a Maria Bailarinha?

 

Nada. Luarmina não responde. Terá sequer me escutado? Não há modo nem maneira: Dona vizinha desconfia de desventuras dos outros. Só lhe interessa as antiguidades de que fiz parte. E eu, para subterfugir, aldrabo umas lembranças, desenrasco uns pensamentos. Até, um dia, lhe perguntei:

 

— Por que só minhas lembranças, as pessoais?

 

A vizinha não respondeu. Antes, retrucou assim:

 

— Bom, se lhe custa, então, me conte uns sonhos...

 

Mas eu que nem lembro nunca dos sonhos que me visitam enquanto durmo! É que temos horários diferentes: eu e o sonho. E aviso:

 

— Hão-de ser sonhos falsificados...

 

— Não importa.

 

E teimei. Até porque traz má sorte recordar quem nos visitou durante o sono. Assim, eu iria dar umas demãos de invenção nos meus relatos. Quando não somos nós a inventar o sonho, é ele que nos inventa a nós.

 

— Não faz mal, Zeca Perpétuo. Hoje, eu até podia pagar para alguém me contar os sonhos.

 

Riu-se, em esboço. Mas era uma só tristeza molhada. Depois, deixei minha vizinha em seu assento e fui regressando, em passo lento, a minha casa. Luarmina se entranhou na sua pequena mania, como se descosturasse um pano nenhum:

 

— Mar me quer, bem me quer...

 

Este era o cantochão de Luarmina, o infindo rameramejar dela. Todos fins de tarde a mulata fica sentada, num degrau da varanda, e vai desfolhando infinitas flores. Ao fim de um tempo, todo o pátio está forrado a pétalas, o chão espantado a mil cores.

 

Lançamos o barco, sonhamos a viagem: quem viaja é sempre o mar.

(Dito de meu avô Celestiano)

 

Pois, lhe digo, minha Dona. É uma pena a senhora andar por aí fatigando seus olhos pelo mundo. Devia era, logo de manhã, passar um sonho pelo rosto. É isso que impede o tempo e atrasa a ruga. Sabe o que faz? Estende-se aí na areia, oblonga-se deitadinha, estica a alma na diagonal. Depois, fica assim, caladita, rentinha ao chão, até sentir a terra se enamorar de si. Digo-lhe, Dona: quando ficamos calados, igual uma pedra, acabamos por escutar os sotaques da terra. A senhora num certo momento, há-de ouvir um chão marinho, faz conta é um mar sob a pele do chão. Aproveita esse embalo, Dona Luarmina. Eu tiro boas vantagens desses silêncios submarinhos. São eles que me fazem adormecer ainda hoje. Sou criança dele, do mar.

 

— Lá criança, sim. Você há muito que esqueceu a idade.

 

— Sabe o que dava jeito? Era a gente os dois nos combinarmos, está a perceber, Dona Luarmina?

 

— Ajuíze-se, Zeca.

 

— Faz conta somos verbo e sujeito.

 

— Já conheço essa sua gramática...

 

— A senhora, minha boa Dona, nem sabe quanto enriquece minha retina.

 

Luarmina nem destroca resposta. E com razão. Sou um quem, eu? Um caçador de peixe que nem tem a quem contar suas aventuras. É verdade, Dona, não posso nem dar lustro nas minhas mentiras. Será que são mentiras? Se eu, que não testemunhei o que eu próprio relato, acabo me acreditando? O mar é que tem culpas — pois lá se esbatem os limites —, tudo ali pode ser. No mar não há palavra, nem ninguém pede contas à verdade. Como dizia o velho Celestiano: onde sempre é meio-dia, tudo é nocturno.

 

Volto à mulher, Dona Luarmina. Nunca ninguém foi tão vizinho. Porque ela quando não me está nas vistas está-me nos sonhos. Sempre e sempre essa polposa e carnudona mulher. O rabo foi quem mais lhe cresceu, cresceu mais que as nádegas. Em tempos, ela acendeu prontidões masculinas. Mas agora, está apagada. Não para mim que me acendo em sua presença e ardo em sua ausência.

 

Ao fim de cada tarde, me encaminho para sua casa. Engraçado o seu lugarzinho: só tem traseiras. Quase como a Dona. Porque a gente para o contornar nem tem que dar a volta. Chega-se lá e estamos logo atrás. Sento-me num velho tronco e fico olhando a mulher desfolhando-se:

 

— Mar me quer...

 

Depois, digo de mim para mim: quem dera eu meter a mão nos remetentes dela! Uma dessas noites, estendido na esteira, até sonhei que me aproximava do assento dela e lhe desenrolava falas, as seguintes:

 

— Me deixe apalpar nas suas nádegas, é um instantinho tão brevezito que a senhora nem precisa esquecer meu atrevimento.

 

— Qual?

 

— Como qual, Dona Luarmina?

 

— Qual das nádegas?

 

— A arbitrária, Dona. Então a senhora não recorda as contas da geometria, a soma dos factores é arbitrária?

 

Enquanto falava já minha mão viajava naquelas gorduras vivas dela, comboiozinho doido ondulando pelas topografias do seu assento. Eu andava de bicos de mãos pelas reentrâncias dela.

 

— Que é isto? O senhor ainda não foi autorizado.

 

— Essa minha mão, Dona Luarmina, pertence ao sector informal.

 

— Você, Zeca Perpétuo, é que é todo do sector informal.

 

— A senhora conhece o ditado, não conhece? Mais vale uma mão no pássaro...

 

— Você é um abusador...

 

— Isto são sonhos, só sonhos. Sabe o que sonhei ontem, Dona Luarmina? Pois lhe conto, não me corte as falas.

 

A senhora ia comigo ali ao Baixo da Nuvem e dançava comigo. Dançava de branco, toda respeitosa. Eu fechava os olhos e, de repente, você me dizia, baixinho, ao ouvido:

 

— Veja: estou nua como o peixe.

 

Eu me arrepiava. Nem tinha coragem de abrir os olhos. Sua voz zunzunava junto à minha orelha:

 

— Mas, veja bem: tenho tatuagem, aqui na barriga. Veja com sua mão. Sim, aí. Mais em baixo, também, na roda da anca, passe o dedo lá, sim. Isso mesmo, aí. São tatuagens para você não escorregar.

 

Tudo aquilo era bonito e fresco de inventar. Mas não pude continuar a lembrança do sonho. Dona Luarmina me interrompeu e me sacudiu com sua mão papuda.

 

— Cala-se, Zeca. Você já é velhotezito. Por que sonha ainda essas coisas?

 

— Sou velho, o caraças. A senhora que gosta tanto de aves me responda: penas de pássaro se gastam?

 

— Mas o senhor, agora, só voa rente ao chão.

 

— Aí é que está, Dona Luarmina: nos embaixos é que está a graça.

 

Luarmina não estava para as graças. De vez em quando, ela dispensava um sorriso. No resto, ela fechava uma tristeza de não ter tido filho. Quando eu lhe apelidava de flor ela, azeda, voltava à descarga:

 

— Não me chame de flor que me dói. A semente é a única pegada da flor. E eu não deixei filho neste mundo.

 

— Culpa não foi sua. Nenhum insecto certo lhe soube pousar. Fosse era eu.

 

— Caludas, Zeca.

 

— Escute o que eu falo: você, sim, é flor.

 

— Está, sou flor. Mas uma dessas que nunca serviu.

 

— Você serviu belezas, Luarmina.

 

— E para que servem as belezas? Para nada.

 

— Veja, exemplo, só: quem lustra mais o céu? Não é o arco-íris? E, pois, me diga: qual o serviço que tem o arco-íris?

 

— Nem sei lá.

 

— Tem o serviço só de fantasiar, de ensinar o céu a sonhar.

 

Mas ela voltava ao semimesmo. Eu que a desculpasse. Porque ela se tinha definitiva como a ruína. E falava:

 

— Perdi o tempo, mas o tempo, esse é que não se esquece de mim.

 

Assim dizia, apontando as peles envelhecidas do pescoço. E eu, no conforto: pois o tempo não lhe larga o pé, graças e desgraças a Deus. Porque sou eu e é o tempo, os dois lhe competindo, Dona Luarmina. Deixe que seja eu a ganhar. Por amor de Deus, Dona...

 

— Quer mesmo me apaladar?

 

— Se quero, Dona!

 

— Então me desfie uma memória sua, uma verdadeira...

 

A canoa se fez ao mar, um cisco entrou nos olhos de Deus.

(Dito do avô Celestiano)

 

Não sei por que Dona Luarmina chorou, quando lhe contei a história de meu velho. Se foi ela que me pediu! Eu lhe tinha avisado da tristeza dessa memória, mas ela insistiu. Foi só por isso que desatei as lembranças.

 

Meu pai se chamava Agualberto Salvo-Erro. Em tudo ele seria pessoa. Só um senão atrapalhava sua humanidade: meu velho tinha olhos de tubarão. Não que fossem olhos de nascença. Aconteceu-se quando, certa vez, ele saltou do barco para salvar sua amada. Era uma moça muito nova que ele encontrara em outras terras. Trazia-a sempre no barco, em companhia das pescas. Fim do dia, antes de trazer o peixe à praia, meu pai encaminhava o barco para além do horizonte para ir deixar a moça. Quem seria tal rapariga, de onde era? Mistério que ficou e há-de ficar com Agualberto.

 

Nessa tarde, meu pai pescava próximo da nossa praia. O tempo estava encabrinhado. Eu apurava as vistas, tentando espreitar a figura dessa que acompanhava meu pai. Minha mãe virava as costas ao oceano.

 

— Já viu o pai, lá?

 

Minha mãe nada não respondia. Estava ocupada nas lenhas, no fogo, no jantar. Fiquei assim na berma da praia, olhando o concho (Nota 1) Pequeno barco. (Fim da nota) alternando-se com o mar, visão e desaparência. Até que, de repente, notei um vulto tombando no mar. Era a moça. Meu pai, em aflição, saltou em socorro dela. Mergulhou na fundura das águas e ficou dentro do mar mais tempo que um peito autoriza. Saíram os restantes barcos, em salvação. Contaram-se segundos, minutos, lágrimas, suspiros. Só ao fim do dia, meu velho reapareceu na superfície. Já ninguém esperava que ele ressurgisse. Mas, para espantação e reza, meu pai golfinhou-se entre as ondas e gritou como se o céu inteiro lhe entrasse no peito. O povo clamava:

 

— Está vivo! Está vivo!

 

Os pescadores acorreram a recolher o ressurgido companheiro. Festejaram, dançando e cantando enquanto os barcos se faziam à praia. As mulheres xiculunguelavam (Nota 1) Ululavam, em manifestação de alegria. (Fim da nota). Minha mãe avançou e se perfilou perante o homem. Que se passaria por detrás daquela aparência dela? Afinal, essa mulher que meu pai tentara salvar era uma outra, rival e ilegítima. Mesmo assim ela enfrentou meu velho. Seus olhos subiram do chão até se fixarem no rosto dele. Foi quando ela gritou, tapando o rosto com as mãos. Os restantes se aproximaram de meu pai e um rumor se espalhou como nuvem fria.

 

— Os olhos dele!

 

Sim, os olhos de Agualberto não eram os mesmos. Ninguém conseguia olhar meu pai de frente. Porque aqueles olhos dele estavam da mesma cor do mar: azuis, de transparência marinha. Sua humanidade estava lavada a modos de peixe. Ele ficara muitíssimo demasiado tempo debaixo do mar. E se espalhou um murmúrio de que Agualberto tinha os olhos de tubarão, tal iguais aos grandes e dentilhados bichos.

 

A partir desse dia meu pai se adentrou em si mesmo, toda a hora sentado na praia contemplando o horizonte. Passavam gentes vindas de longe para espreitar de longe o preto com olhos da cor do mar. Minha mãe, certa vez, me afastou por um braço, e sussurrou uma angústia:

 

— Essa mulher, outra, será mesmo que morreu de vez?

 

Todos sabíamos que sim, que ela se irremediara nos fundos, lá onde os corais florescem em peixes. Todos sabíamos menos o velho Agualberto, desguarnecido de noção. Todas as tardes ele levava para dentro do mar cestos com comida e rações de água doce. Mergulhava e se deixava em permanência alongada. Depois, regressava à superfície, satisfeito de tudo, medidas as contas com a saudade. De cada vez que vinha à tona, porém, seus olhos se exibiam mais azuis. Um dia se lavariam de toda a cor, como as conchas que esbranquiçam. Aquilo parecia aplicação de um presságio, um mapa de seu pensamento: perder as vistas como perdera seu amor. E assim aconteceu: Agualberto ficou de olhos deslavados e nunca mais visitou as profundezas das águas.

 

Quando o azul lhe saiu dos olhos também meu pai se emboreou de casa. Foi-se. Eu era menino, acreditava que tudo tinha remédio. A saída de meu velho foi a primeira crença de que certas coisas, nessa vida, não têm reparo. No mesmo tempo, tive que atender também o desjuízo de minha mãe. Ela não se conformou com aquele abandono. Porque já meu velho se retirara há muito e ainda ela me dizia:

 

— Espera, Zeca. Primeiro vou pedir as licenças a seu pai!

 

Houvesse injúria ou lágrima ela sempre me consolava:

 

— Deixe que eu vou queixar a seu pai!

 

Como se a partida dele fosse simples atraso de pescaria. Faz parte dos mandos: nunca se diz a um menino que ele é órfão. Assim, minha mãe vestia ausência com panos de mentira.

 

— Esta semana já escreveu cartinha para ele?

 

Eu sorria, triste. Mas ela nem me dava tempo.

 

— Seu pai haveria de ficar contente em ler um papelinho seu. Ele havia ficar contente a pontos de lágrima.

 

— Mas, mãe...

 

— Sabe: um dia, uma lágrima dele caiu lá no mar. Ali mesmo, naquela onda onde tombou, a lágrima mudou-se num coral e foi ao fundo. Escreva a seu pai...

 

— Mas eu mãe... eu nem sei as letras como são.

 

— Por isso, você vai ter com o padre, frequentar na missão. Seu pai, depois, lhe há-de mandar uns dinheiros.

 

— Está bem, mãe.

 

Depois, ela entrava na casinha, parecia atravessar a fogueira bem pelo meio das chamas. Fazia lembrar Maria Bailarinha, modos como ela se antigamentou dançando com o fogo. Mas minha mãe caminhava sobre as fogueiras e nada lhe acontecia. Sem vontade do tempo, eu ficava na praia a passear os olhos pela noite. Minha mãe voltava, tempos depois, e me dizia:

 

— Vê as estrelas, Zeca? Sabe o que elas dizem?

 

— Não, mãe.

 

— Sabe, filho, a noite é uma carta que Deus escreve em letrinhas miuditas. Quando voltar da cidade você me há-de ler essa carta?

 

— Sim, mãe.

 

Chaminé que construísse em minha casa não seria para sair o fumo, mas para entrar o céu.

(Dito do avô Celestiano)

 

O dia começa sempre de mentira. Porque o sol só finge nascer. Aquela manhã acordou com vontade de esquentar e eu me decidi passear pela praia. Foi quando encontrei Luarmina mergulhada numa poça de água. Estava vestida e as roupas colavam-se no corpo. Aproximei e lhe perguntei a razão daqueles banhos. Ela respondeu que queria aquecer as pernas.

 

— A água está quentinha?

 

— Não recebo quentura da água. Quem me aquece são caracóis.

 

E explicou: havia uns certos caracóis que lhe lambiam as pernas, pastando nessas gorduras dela. Os bichos desqualificavam viscosas salivas sobre a vizinha e eu só pensava: mal empregadas as minhas próprias babas, com o devido respeito. E salvo seja.

 

— Dá licença eu entrar?

 

— Entrar onde?

 

— Nessa água onde a senhora está ser banhada.

 

Entrei, fui-me achegando perto da vizinha. Me entornei na água e fechei os olhos igual como ela. Minhas mãos fingiram ser caracóis, lesmas babadoiras lavrando nas coxas de Luarmina. Para meu espanto, a mulata não me repeliu. Meus dedos prosseguiram, cumprindo seu dever, pescando entre roupa e corpo. Espreitei pela esquina dos olhos: a gorda Luarmina estava flutuando, embevencida, parecia um navio repousando em desenho de criança.

 

De repente, porém, ela soltou um grito. Emendei minha malandrice, mãos atrás das costas.

 

— Susto, Dona! O que foi?

 

Luarmina apontou qualquer coisa sobre as águas. Eram peixes mortos boiando.

 

— Veja, Zeca, são peixes sem olhos!

 

Um arrepio me atravessou. Aquilo era um sinal. Alguém, da outra margem do mundo, me estava vigiando. Mania dos mortos é teimarem em ser humanos. E ali, entre mim e Luarmina, se vertia a mensagem dos divinos. A mulata estava mais aterrorizada que eu.

 

— O que é isso, Zeca?

 

— É melhor sairmos da água. Venha, eu lhe ajudo.

 

Luarmina tremia. Para espantar seu medo falei sem parar. Os peixes sabe o que são? Como apareceram? Então, sente e sossegue. Isso, assim. Lhe vou contar a versão de meu avô Celestiano. No antigamente não havia bicho dentro do mar. Só na terra e no ar. Muitos pássaros havia, vogando apenas sobre os continentes. Os deuses se contentavam de ver-lhes voar sobre as florestas, subir acima das montanhosas alturas. Uma vez, um pássaro se atreveu a pairar sobre as águas. E ele surpreendeu, no reflexo, a beleza do seu próprio voo. Regressou e contou aos outros:

 

— Já sei por que nos proíbem voar sobre o oceano.

 

E foram, aos milhares, bandos ansiosos por verem a sua imagem. Nunca, sobre o mar, se haviam formado tais nuvens: feitas de plumas, ágeis de suster peso. Foi então que estalou a tempestade, castigo dos divinos deuses. Os relâmpagos rasgavam as aves, como facas luminosas. Milhares de asas tombaram nas ondas e foram ganhando embalo das correntes, como se continuassem voagens em líquidas vagas. Assim, da asa nasceu a onda, da pluma nasceu a espuma.

 

— Da maneira como estou, Zeca, nem me apetece ouvir nenhumas histórias.

 

Luarmina não queria distracção. O braço da angústia puxava-a para o fundo. Melhor seria se fosse ela a falar:

 

— E você, Luarmina, lembra da sua família?

 

Mas ela não respondeu. Seu passado era como o futuro em nossas línguas: começava apenas quando acabava, como lagarto que fosse comido pela própria cauda. O resto se dissolvia em carimbos de tristeza.

 

— Enquanto tive dedo dedilhei panos, vesti gente.

 

Mas esse serviço de confeitar vestes não lhe enchia a vida. Ela queria ser outra coisa, queria crescer de si mais gente, ter filhos, nascer-se em outras vidas. Mas sem essa dádiva, entrar em sua casa, tão sem outros, não lhe dava vontade. Essa a razão por que vivia mais em varanda que dentro das paredes.

 

— É por causa disso que gosto de ouvir histórias de família. Vá, me conte mais sobre sua casa, sua família.

 

— Não peça isso, Luarmina.

 

— Sabe uma coisa, Zeca: esta noite, toda luarada, acho que vou tomar banho fora, no quintal.

 

— Nua? Quer dizer, despida?

 

— Quem sabe, Zeca?

 

— E a senhora me deixa espreitar?

 

— Se contar, eu deixo.

 

O mar tem um defeito: nunca seca. Quase prefiro o pequenito lago da minha aldeia que é muito secável e a gente sente por ele o mesmo que por criatura vivente, sempre em risco de terminar.

(Dito do avô Celestiano)

 

Meu velho, depois do incidente, ficou com juízo de mamba (Nota 1) Cobra venenosa. (Fim da nota). Ideia que se anichasse em sua cabeça crescia logo com dente. Alvoradamente se sucedia sem ruído, vivendo em lugar onde nem púnhamos vistas, para além dos pântanos onde o chão já não consente nem caminho nem construção.

 

Eu o avistava só de quando em enquanto. Nesses encontros meu coração sempre minguava. Miúdo que era lhe prestava receios, todo eu salamoleques. Porque o velho sarabandeava tudo e todos: suca (Nota 2) Sai! (Fim da nota), famba (Nota 3) Vai-te embora! (Fim da nota), vai-te-daqui. Agualberto passava com andamento vagaroso. No início, nos perguntávamos: estaria ele cego? Impossível, o homem andava que tresandava. Aqueles olhos vazos dele nos fitavam não o rosto, mas a alma. O bairro se unanimava:

 

— Esse gajo tem mais enxofre que o diabo.

 

Por maior medo que dele todos tivéssemos, não lhe podíamos prescindir. Porquê? Porque meu velhote abençoava os anzóis. Os pescadores faziam fila e ele atendia cada um à sua vez. Fazia-se silêncio, enquanto ele fechava os olhos. Agualberto Salvo-Erro aguardava vozes que lhe haveriam de desembocar. Em algum lugar, lá no longe, a maré está-se a virar, o oceano se cambalhota na mudança das marés. Enquanto não recebia sinal desse reviramento ele se mantinha sem nenhuns modos nem pestanejo. Quem sabe não fala, quem é sábio cala. Como dizia meu avô:

— Diferença entre o sábio branco e o preto sabe qual é? O branco responde logo-logo às perguntas. Para nós, pretos, o homem mais sábio é aquele que demora mais a dar resposta.

 

E assim, nessa imobilidade, esperava meu pai e esperavam os pescadores que queriam ser abençoados. Até que Agualberto fazia subir a mão e agitava os dedos como se chamasse invisibilidades. Desembrulhava um velho pacote de cigarro e dele retirava uns pós com parentesco de tabaco. Semelhavam cigarros mastigados pelo tempo e cuspidos pelo esquecimento. Os pós eram lançados sobre o anzol e a sorte se enroscava no anzol. Outras vezes ele anexava ao isco as variadíssimas coisas: pedaços de espelho, cartas, búzios. Tudo aquilo seguia, mar abaixo, a convocar as mais boas sortes.

 

Mas este homem, meu pai, como sobrevivia? De longe, eu me curiositava. O velho saía de casa todas as manhãs, raspava os olhos pelos muros das vizinhanças como se estudasse modos de os desolhar. Seguia em direcção ao cais. Ali se sentava na amurada, recebendo as infalíveis mensagens. Certeiramente, eu me destinava em seus arredores, quando me dirigia para minhas pescadorias. Às vezes, ele me parecia tristonho, peito sobrando das costelas. Chorava no ombro da paisagem? Estaria sendo pisado pelo passado? Ou seriam saudades da tal extinta moça?

 

Sentava-se na berma do cais, recebia as aragens do Índico. O homem nem causava palavra: apenas sons avulseados, cascas de fala. Quando falava parecia era lamber a própria língua. Balanceava o tronco como árvore ante a ventania. O corpo ponderava o contrário da cabeça? Para mim, ele rezava, acendia pavio de palavra, num eterno não-esquece-nem-lembra, com saudade de outras vidas.

 

Mas onde ele fazia seus dinheiros era na bênção dos anzóis, garantido êxito das pescarias. E todas as manhãs, os pescadores esperavam na muralha enquanto ele desembrulhava o mesmo velhíssimo pacote de cigarro e abria um saco cheio de oferendas. Eu me incluía nos caçadores de peixe. Aguardava na longa fila enquanto, lá por cima, estridentavam as gaivotas. Chegada a minha vez eu ficava tomado pelo medo e, num deslize, me afastava da fila. Vezes sem conta eu voltava a alinhar naquela demora. Mas sempre, chegado defronte ao velho, tropeçava em mim e abandonava o lugar.

 

Uma certa manhã, minha velha faleceu. Acabou-se assim mesmo como viveu, sem história, sem sobressalto. Só se queixou:

 

— O sol está puxar-me de mais, parece estou quente.

 

Aproximou-se do tanque e meteu os pulsos na água como se ganhasse fresco. Encostou-se no tronco da grande árvore e deixou os braços tombados no interior do tanque. Sem o sabermos ela estava já morrendo, aguando suas veias na eternidade da água. Tirámo-la como se apenas a fôssemos deitar. Em silêncio, como se aquele apagamento já tivesse ocorrido há muito tempo. Como se simplesmente levássemos a mãe a passear, numa tarde como as demais. Minha velha teve morte instantânea? Ou não será que toda a morte é instantânea?

 

No dia do funeral, o tempo mudou. Sem explicação, o céu se invernou. Manhã cedo, o frio escorria pelas frestas: ninguém iria pescar com tal tempo. Mas fui, mesmo assim. Minha alma condizia com o mundo, ventos e nuvens. Quem sabe o cais me desanublasse? Estava eu naquele abandono, segurando a linha como se minha alma estivesse espetada no anzol submerso.

 

Foi quando escutei passos. Virei-me, receoso. Entre as neblinas, me sustou o vulto de Agualberto Salvo-Erro. Fiquei, linha desaben-çoada pingando triste nas águas cinzentas. Será que ele me reconhecera, assim pelas costas?

 

Impossível, o velho estava completamente cego. Então, ele fez ouvir sua voz rouca:

 

— Maneira como assim? O peixe não vai picar...

 

Nem me virei. Segui, encolhido, governado só pelo medo. É que, naquele preciso momento, um esticão na linha me indicava a presença de um peixe namordiscando o anzol. Mas eu não queria contrariação com o adivinho, fingi nada acontecer. As sacudidelas na linha confirmavam-me que eu amarrara um peixão bem enfeitado de peso e tamanho. Mas eu, desatrevido, nem mexia nem bulia. Meu pai, não sei como, notou os estremeções na linha.

 

— Não vai puxar o peixe?

 

Eu sem saber nem acto nem palavra. Continuei olhando o nada, a fingir-me de falecido. O medo nasceu connosco, é o medo que nos aperta o nascimento a pontos de nos estrearmos com lágrimas.

 

— Vá, puxa a linha!

 

Se ele era cego como se apercebia dos puxões na linha? Pareceu adivinhar minha dúvida:

 

— Depois destes anos tantos nem preciso ter olhos para saber que está picar.

 

Sentou-se, a meu lado. Mesmo junto à berma do cais ele fez balancear as pernas. Eu tremia com medo da carantonheação dele. Sua voz desapropriava a minha:

 

— Onde está teu isco?

 

Sem dom de resposta, apontei as minhocas na lata. O homem enfiou dois dedos grossos na boca da lata e retirou o verme estremexente, reviravirando-se no vazio.

 

Falou na sua língua caseira sobre peixe e pescaria. Na língua do nosso lugar não há palavra exacta para dizer pescar. Diz-se «matar o peixe». Não há palavra própria para dizer barco. E oceano se diz assim: «o lugar grande». Somos gente de terra, o mar é recente.

 

— Estou abençoando, mas não é a isca.

 

— Então?

 

— Estou abençoando-lhe a si.

 

Meu pai: será que ele me reconhecia? Depois, me olhou com aquele fundo vazio que me impossibilitava de o encarar. E disse assim:

 

— Você, miúdo, vou lhe dizer uma seguinte coisa: sou cego para coisa vivente. Mas vejo bem do lado da morte. E estou ver sua morte...

 

— Minha morte?

 

— Você há-de morrer afogado em lençol faz conta os panos virassem ondas de água.

 

— O senhor sabe quem eu sou?

 

Ele acenou afirmativamente com a cabeça. Era por saber isso que ele estava ali, sentado a meu lado. Então, ele me perguntou:

 

— Vim aqui lhe pedir uma coisa: você sabe onde fica o Fundo do China?

 

— Esse fundão, lá no meio do mar?

 

— Eu quero que você vá lá, cada semana vá lá. E leve comida e água de beber. Deixe isso no fundo. Faça isso da minha parte. Promete?

 

— Prometo.

 

E explicou-me: única razão que lhe dava força para viver era essa lembrança. Nas funduras do Fundo do China se extinguira aquela que ele amara, aquela para que tivera olhos.

 

— Sabe? Esse anzol todo que abençoo. Tudo é mentira. Só finjo dar as boas sortes para que essa isca, essas coisas que ajunto nos anzóis, desçam lá nos fundos e não voltem.

 

— E as coisas que o senhor prende no anzol?

 

— São prendas que destino na falecida. É para ela. Tudo aquilo é para ela. São minhas prendas.

 

O caracol se parece com o poeta: lava a língua no caminho da sua viagem.

(Dito — mas não acredito — do meu avô)

 

Nessa tarde, eu me varandeava, olhando o oceano. Não é que eu olhasse aquele todo azul. O mar levava era os meus sonhos a passear. E eu ficava cego para lembranças, sempre recém-nascente. Assim, no velho degrau de minha varanda, não estava calado — eu era o próprio silêncio, embalado a Índico.

 

De repente, um piar de gaivota me alertou. Meus nervos ficaram em arco, disparei que nem flecha. A pedra saiu-me da mão com raiva.

 

— Ei, Perpétuo! Quase me acertava.

 

Era a vizinha. Dona Luarmina sempre quisera saber o motivo de eu me dedicar na matança das gaivotas. Coitados, dizia ela, são pássaros cheios de brancura, enfeitando o céu de sonhos marinhos. Mas porquê, Zeca, por que essa raiva? Sendo um homem de abarrotar coração, como podia empreender tamanha maldade nos inocentes bichos?

 

— Não posso explicar.

 

— E porquê?

 

— Porque é um segredo, Dona Luarmina.

 

— Pensei que só mulher escondia segredo.

 

Sorri. Aquilo era rasteira para fazer tropeçar machices. Um segredo o que é? Um segredo é uma laranja de um só gomo. A gente come aquele gomo e fica a casca forrando o vazio. Eu já havia experimentado aquele amargo de segurar um fruto sem dentro, cascas areiando entre os dedos.

 

Eu sabia quanto ela sofria com minha perseguição à passarada.

 

Com pena do gaivotame sabem o que ela fez? Fabricou uma gaiola onde meteu dezenas delas. Aquilo era uma azafameira, dia e noite. Não para Luarmina, que era mulher de pouco meximento. Mas para as miudagens que capturavam as aves e lhes traziam quilogramas de peixe para alimentar aquela biqueira toda.

 

Às noites, meu sono nem tocava o fundo. Dormiam só partes de mim, não eu todo, completo. Por causa a barulheira que vinha da gaiola da vizinha. Até que, numa dessas insónias, penetrei pelo escuro de gasolina, raiva e fósforo. O fogo é uma paixão: num segundo tudo se consome. As gaivotas, prisioneiras, pareciam lenços brancos acenando num poente. Se extinguiam, embrulhadas em chama e luz, demasiada luz para se manterem voando. Até que, não mais restando senão cinzas, me retirei, antes que fosse visto.

 

No dia seguinte, fui visitar a minha vizinha. Como previa, ela estava na varanda. Minha mão pousou como uma condolência na curva do seu ombro. Ela nem mexeu. Já tinha chorado tudo, estava exausta. Apenas uma lágrima teimava na redondura da face. Ainda fiz gesto para lhe oferecer um lenço. Mas lembrei certas palavras dela, em vez que ela chorara. Luarmina, nunca me esquecerei, disse assim:

 

— O senhor pode ter sido acarinhado por mão, por lábio, por corpo, mas nenhuma carícia lhe devolve tanto a alma como a lágrima deslizando.

 

— Como sabe isso, Luarmina?

 

— A lágrima é o mar acariciando a sua alma. Essa aguinha somos nós regressando ao primeiro ventre.

 

Lembrando as palavras dela emendei o lenço. Deixei a lágrima escorrer-lhe. Ficámos ali, calados. O silêncio dela estava completamente quieto, magoando mais que mil prantos.

 

Súbito, me deu vontade de limpar o que havia feito, devolver vida e voo à capoeira. Mas eu nem encontrava solução: se havia vassoura faltava o chão. Decidi confessar tudo. E lhe contei sobre Henriquinha.

 

Lhe conto, Dona — já fui casado, mais que casado. Era uma moça muito cheia de corpo, mas bem chanfrada da cabeça, diria mesmo transtorneada. No início nem dei conta de sua desviação. Henriquinha parecia toda compostinha, sem desfeição seja em corpo seja em espírito.

 

Aos domingos, em fecho de tarde, ela saía pelos atalhos rumo à Igreja de Nossa Senhora das Almas. Levava seu vestido preto, se afastava com passo de viúva. Olhando aquela mulher, da varanda, me atravessava um arrepio como se aquela marcha desenroscasse os fechos de minha alma. Depois, contemplando seu traseiro ceramicando a saia eu me conciliava comigo mesmo. Uma esposa assim belíssima e devotada a Deus era uma agradádiva.

Até que um dia me disseram que, afinais, ela não se dirigia a nenhuma missa. Ia, sim, ao cimo da Duna Vermelha e se despia aos olhos públicos, posta toda fora das roupas. O povo se juntava para tirar proveito daquela visão. Ainda hoje me custa lembrar quanto eu me insujeitava a tais vexames. A mulher andava a brincar ao gato sem rato? Que deveria eu fazer? Me deixei ficar quieto, sentado em sombra, sempre fingindo certificar-me do estado do mar, a ver se a cabeça carregava uma ideia.

 

Um feio dia me chegou a decisão. Eu lhe devia seguir, sem que ninguém notasse. Organizei assim: aldrabei o calendário. Arranjei um de um ano muito transacto, afixei ali nas vistas da parede da cozinha. Henriquinha, nessa manhã, me inquiriu o dia que era.

 

— Não sei, mulher. Veja no calendário.

 

Ela espreitou. A voz, admirada, chegou-me ao quarto:

 

— Afinal? Hoje é domingo!?

 

No princípio, ela insistiu que havia engano. Não podia ser domingo. É, respondi eu, os domingos são assim, são iguais aos dias de semana mas só que de gravata. É verdade, Henriquinha, a gente nem dá pela semana e já estamos numa outra. Que vida esta, de pescador, que não tem dias mas marés! E mais isto, menos aquilo. Falei muito para a distrair.

 

— Ainda você tem sorte, Henriquinha. Seu tempo começa sempre a horas certas, levanta e põe, deita e acorda. Agora, para mim, o meu sol é o mar. Sabe-se lá o quando dele?

 

Henriquinha parecia nem ouvir. Foi ao aguarda-fatos e retirou o cerimonioso vestido negro.

 

— Vai sair?

 

— Esqueceu que nos domingos sempre cumpro obrigação de Deus?

 

Cá dentro, sorri. Ela tinha caído. Ainda me ocorreu, por instante, um peso de culpa. Ainda pensei em desarmadilhar o momento.

 

Mas a alma foi-me mais forte que o sentimento. E lá fui atrás da mulher, em cuidadosa perseguição, atrás de muro, moita, arbusto. Até que chegámos ao barranco de terra vermelha. Henriquinha parou-se no limiar onde o abismo se despenha até à praia, bem junto à rebentação. Fiquei espreitando.

 

Àquela hora não havia ninguém. Talvez porque não era domingo, ninguém esperava o espectáculo dela àquele dia. Henriquinha então começou-se a ondear parecia uma dança, em baixo de uma música que só ela escutava. De costas para mim, ela rebolinhava-se de prazer, como se uma invisível chuvinha tombasse sobre ela. Começou de puxar o vestido até meio do corpo, a cintura dela espreitava entre a luz e as mãos. Depois, foi afastando os panos que lhe cobriam. Cada veste caía no chão parecia folha morta tombando na minha surpresa.

 

Me veio, então, junto com a raiva, um baboso desejo daquela mulher. Como se nunca lhe tivesse visto nem tocado, como se ela fosse mulher inatingível. Ainda pensei: vou lá, me despenteio com ela, desato um namoro de afiar carne. E fui, pé e ante-pé, até ficar por detrás de Henriquinha, até sentir o ofegar dela. Aquele respirar me criava ilusão que ela se havia cansado comigo, seu corpo aquecido em fogo de meu sangue. Precisava afastar, num súbito, aquela vertigem.

 

Empurrei-a. Não escutei nem grito nem baque do tombo, vindos das rochas em baixo. Apenas a estridência de gaivota roçando o barranco. Henriquinha tombou? Morreu? Foi engolida pelo mar?

 

Nos seguintes dias, regressei à Duna Vermelha, milimetrei grutas e areias à procura de um sinal do corpo de Henriquinha. Nada. Só ausência. Para mim aquilo doía mais que uma morte, dessas tratadas com enterro e cerimónia. Se eu fosse homem de inteiro juízo estaria ainda hoje retorturado, despedindo-me infinitamente de Henriquinha. Mas não. Para mim aquilo não se aconteceu. É como o futuro: existe, mas não há. Se sucedeu foi para, no mesmo instante, transitar para outra vida, outra memória que não me pertence.

 

Única coisa, Dona Luarmina: é esse grito de gaivota, no exacto despenho de Henriquinha. Me persegue essa aguda piação, me rasga as cicatrizes de uma ferida que nunca senti. A senhora me pergunta por que motivo eu ando perseguindo essas aves? Me entende, Dona Luarmina?

 

Todo aquele tempo, a vizinha escutara sem se mover, rosto tombado em sombra. Quando terminei ficou um silêncio até que Luarmina me perguntou:

 

— Era esse o seu segredo?

 

— Era.

 

Então, ela levantou o rosto e me enfrentou. Os olhos dela nem eram de raiva. Pareciam vazios, vagos. Como se minhas palavras lhe tivessem trazido incurável cegueira.

 

— Vá lá atrás, no quintal, ver o que você fez.

 

— Desculpe, Dona Luarmina, não posso ir.

 

Ela, então, se debateu com o próprio corpo, em esforço de se levantar. As madeiras do assento reclamaram. Com Dona Luarmina, todas cadeiras eram de balanço. Sem ajuda, ela lá se ergueu e, depois, me estendeu a mão:

 

— Venha comigo.

 

Contrariado, segui-a. Sem alma, fui atrás do andar custoso dela até à gaiola. À minha frente, escudando-me da culpa, estavam as costas de Luarmina. Seu volume encobria a visão do mundo.

 

— Veja.

 

Me mantinha por trás dela, feito um miúdo perante a chegada da sova. Ela insistia, mas eu, cabisbaixo, capinava o chão com a minha vergonha. Até que, súbito, escutei um rumorejar de asa. Aquele som chapinhou a minha alma de lembrança, como se fosse uma desabação de mundos. Fui erguendo os olhos, avistando primeiro as madeiras mastigadas, restos carcomidos de pássaros, penas de cinza, tudo jazendo em paz de deserto. A rede metálica mantinha-se intacta. Mas, à mistura daquela cinzentação, surgiu-me a aparição de uma ave vivente, toda branca, rendilhando repentinos voos. Como sobrara aquela gaivota de tão total fogareiro?

 

Dona Luarmina, lentamente, se retirou. Fiquei só com os restos da capoeira e uma lembrança de vazio, esvaziada de mim e de tudo. Minhas mãos tremiam quando abri a porta da gaiola.

 

O coração é uma praia.

(Provérbio macua, citado pelo velho Celestiano)

 

Da primeira vez, eu senti o braço molhado. Estava deitado, em meu leito, esperando o sono. De repente, um frio na pele me alertou: por ali se derramava um líquido, escapado de alguma fresta. Foi então que a visão me horrorizou: a água, afinal, vinha de todos lados, do chão, do tecto, a água acorria a me buscar, sua língua azul me vinha arrancar deste mundo. Não tardaria que perdesse respiração, cercado por dentro e por fora. Levantei-me e, conforme escapava pelo quarto, o chão se molhava. Alucinação, com certeza. Mas ficava, no alaguado do tapete, a prova de veracidade.

 

Foi apenas a primeira vez. Essa visão de afogamento passou a suceder sempre que adormecia. Às vezes me envolvia o mar, outras parecia me afogar no meu próprio sangue. Mar e sangue, sangue e mar. De onde vinham esses sinais? Passei em revista meus antigamentes, recordei meu velho me dizer, no dia em que, no barco, acidentei meu dedo:

 

— Chupa um pouco desse sangue.

 

Obedeci, como sempre fazia. Meu pai seguia meus gestos com atenção que ele nunca punha em mim.

 

— Diz lá agora: o sangue tem sabor de quê?

 

Eu olhei o mar, sem dar outra resposta. Meu pai, afinal, me estava dizer o quê? Que trazemos oceanos circulando dentro de nós? Que há viagens que temos que fazer só no íntimo de nós? Ficarei sempre sem saber. Lições que o velho Agualberto me deu sempre foram assim: esquivas e mal desenhadas. O sangue e o mar, suas parecenças me ressurgiam agora em punição de alguma desobediência.

 

Só compreendi, então, a completa razão daqueles pesadelos. Quando se sentiu morrer, meu pai se dirigiu a mim e pediu:

 

— Venha comigo me mostrar uns certos lugares.

 

Seus olhos já estavam todos brancos, como as conchas lambidas por muito sol.

 

— Quais sítios o senhor quer ir, pai?

 

— Senta, Zeca. Quero falar.

 

Agualberto Salvo-Erro nunca me chamou de filho. Aquela vez ainda pareceu hesitar. Mas adiantou-se, rápido, em assunto grave:

 

— Eu estou mais-quase-menos-quase para morrer.

 

— Não diga isso.

 

— Eu sei que me chegou a hora. Mas não quero morrer num só lugar. Não posso acabar todo inteiro num único lugar. Já tenho os sítios onde irei morrer, um bocadinho em cada um.

 

Seu pedido era esse: que o guiasse para esses lugares onde ele queria espalhar suas mortes. E partimos, primeiro rumo ao embondeiro de Ritsene. Ele se encostou no tronco, cansado. Ficou, deixado a respirar, até falar:

 

— Seu avô Celestiano tinha razão, filho.

 

— Dizia era o quê?

 

O avô condenava Agualberto por ele se entregar aos costumes dos brancos. O motivo de sua desgraceira residia em suas costas viradas contra o mundo mais antigo.

 

— Esta é a nossa igreja, disse meu pai, apontando a árvore. Ouviu, Zeca?

 

— Ouvi, pai.

 

— Diga ao padre Nunes que eu vim aqui, na árvore dos antepassados. Diga que eu vim aqui, não fui lá, ajoelhar na igreja dele...

 

Tirou da saca um coral preto. Anichou o konkuene (Nota 1) Coral. (Fim da nota) num oco da árvore, era sua dádiva aos antepassados.

 

— Só eu que tenho esse coral, sou único quem tenho um assim.

 

E nos afastámos, calcorrendo a margem do rio. Meu pai seguia direito a meu lado, parecia dispensar meus olhos. Será que, sem redondura nos olhos, ele ainda via?

 

— Ouço a luz da água, para onde ela vai...

 

— E vamos nós para onde?

 

— Agora vamos nessa florestinha onde esse barco nasceu.

 

Levei-o para o interior de um bosque onde ele carpinteirara as madeiras do seu primeiro e único barco. O velho rodou pela clareira, apalpou cada um dos troncos como se fosse corpo de mulher. E chamou cada uma das árvores por um nome.

 

— Essa se chama Esperança, essa outra torta se chama Subidora do Sol.

 

Tropeçou em arbustos, se enredou pelo chão. Ajudei a levantar-se. Mas ele preferiu restar sentado.

 

— Me deixe morrer um pouco aqui. Me arraste só um nada para esse lado. Sim, aqui está bom, aqui corre um raiozito de sol.

 

Ficou um tempo de olhos fechados. Voltou a tirar um pedaço de coral e pousou-o no chão. Era outra oferta aos deuses.

 

— E agora, pai?

 

— Agora vou para o outro lado do mar...

 

— Eu vou aprontar o barco e sigo com o senhor.

 

— Não. Você fica, eu vou sozinho.

 

Meti-o no barco mais seu velho saco. Fui empurrando até onde havia pé. Apontei a direcção certa e disse-lhe:

 

— Siga sempre a direito, não desvie...

 

— Estou no mar, meu filho, já não preciso condução.

 

E se afastou. Foi a única vez que me chamou de filho. Era, eu sabia, a despedida. Ouvir da boca dele essa palavra poderia ser uma infância nascendo. Mas era o adeus dela.

 

Quando sentiu que estava morrendo, meu avô Celestiano chamou a mulher e pediu-lhe:

— Deixa-me fitar teus olhos!

E ficou, embevecido, como se a sua alma fosse um barco deitado num mar que eram os olhos de sua amada.

— Tens frio?, perguntou ela vendo-o tremer.

— Não. És tu que estás a chorar.

— Chorar, eu? Começou foi a chover.

(Lembrança de minha avó sobre o último instante do velho Celestiano)

 

Minha doença piorou: já não me levanto da cama. Mais grave: não posso dormir sequer. Mal palpebrejo, a dobra do lençol se converte em água e, no instante seguinte, tudo se avermelha e eu desaguo em rios de sangue. Se durmo me afogo, se vigio me foge o juízo. Me faz falta o sonho, tudo quanto queria era sonhar.

 

Ouço ruído na porta. Devem ser ladrões, mas já isso não me importa. Que roubem o nada que eu tenho, me tirem a pouca vida que me resta. Até seria bem. Mas é Luarmina que espreita na porta.

 

— Venho-lhe visitar, Zeca.

 

— Verdade?, sorrio, incrédulo.

 

— Você sempre me visitou. Hoje sou eu a vir ter consigo.

 

Luarmina desembrulha um lençol novo. Ordena que a ajude a mudar as roupas da cama.

 

— Essas estão ensopadas, como é possível transpirar-se tanto?

 

Eu queria dizer-lhe que aquilo não era suor, era o próprio mar me castigando. Mas não entrei em atalho, fui directo no assunto:

 

— Ainda bem que veio, Luarmina. É que estou quase para morrer.

 

— Não fale disparate, Zeca. Você ainda me há-de atirar umas pazadas.

 

Pedi à vizinha o mesmo que o velho Celestiano pedira em seu último momento: que ela ficasse junto ao meu leito só para eu me distrair nos olhos dela.

 

— Lhe peço, vizinhinha: quero desfalecer a olhar os seus olhos.

 

Luarmina sorriu, indulgente como se eu me tivesse acriançado de vez.

 

— Se você continua com essa conversa, vou-me embora daqui.

 

— Então me faça um favor, Dona. Me conte uma história.

 

— Uma história, eu?

 

— Sim, eu já lhe contei tantas, vizinha.

 

— Mas eu não tenho história, eu tive pouca existência.

 

— Como é possível?

 

— Minha vida é muito pobre. Eu vivi tão poucochinho que já tenho pouco para morrer.

 

— Dona Luarmina, faça um esforço. É uma vergonha para um homem, mas eu queria que me embalasse até chegar a um sonho. É que preciso sonhar, preciso tanto sonhar!

 

Luarmina levantou-se, atrapalhada. Rondou para trás e para diante como se procurasse não uma ideia, mas coisa que estivesse perdida na desarrumação do quarto. De repente, parou junto à cama e deu uma estranha ordem:

 

— Levante-se, Zeca.

 

Me admirei. E recusei, incapaz de meximento. Mas ela insistiu, me repuxou, alavanqueando-me pelas axilas.

 

— Mas eu não aguento. Me deixe na cama.

 

— Deixe as conversas e me ajude a levantar-se, Zeca.

 

— Mas o que me quer fazer, Dona?

 

— O que eu quero fazer? Eu quero dançar consigo, homem.

 

Ironia do destino: toda a vida sonhei dançar com aquela mulher. Agora, que ela queria, eu não podia. Luarmina ainda me arrastou, como se eu fosse um saco cheio de coisa sem peso. Eu me esforçava, mas meus pés não se encontravam com os passos. Até que ela me depositou, fardo falecido sobre a cama.

 

— Desculpe, Dona Luarmina.

 

— Você está doente. Eu não devia ter forçado.

 

— Não é doença. Para nós doença é outra coisa, não é isso que vocês, brancos...

 

— Eu sou mulata, não esqueça.

 

— A senhora, para os indevidos efeitos, é branca. A verdade de minha doença é esta: estou sendo castigado por meu pai.

 

— Castigado?

 

— Porque não cumpri o pedido dele.

 

— Isso não pode ser motivo...

 

— Não pode? Se fui infiel com a promessa que deixei. Não se lembra do que lhe contei? Eu prometi que tratava dessa mulher dele, prometi que lhe levava água, alimento...

 

— Mas você fez tudo isso.

 

— Não, não fiz nada.

 

— Fez, sim.

 

Estranhei aquela insistência dela. O que sabia aquela mulher da minha vida, o que sabia ela da vida dos negros? Já me irritava aquela arrogância de Luarmina. Talvez, por isso, gritei:

 

— Nunca fiz, Dona. Nunca voltei lá.

 

A mulata se decidiu sentar, baixou a cabeça entre as mãos e disse, em suspiro:

 

— Essa mulher que seu pai levava no barco, essa mulher nunca morreu.

 

— Como nunca morreu?

 

— Ela foi arrastada, salvou-se agarrada em madeira...

 

— Como sabe?

 

— Porque eu sou essa mulher.

 

Fiquei, aberto da boca, alma escancarada. Luarmina estava brincando, acreditada que eu já não tinha réstia de razão? Mas ela prosseguiu com serenidade que me assustou:

 

— Sim, eu sou essa mulher. E você tratou de mim, todas essas conversas, todas as vezes que me visitou...

 

— Não é verdade...

 

— Você cumpriu a promessa, Zeca. Estou a dizer. Você não tem razão de doença.

 

Fiquei, imóvel. Podia ser verdade, assim tão fácil, fábula em fecho feliz? Fiquei olhando o rosto de Luarmina, como se ela sempre tivesse estado ali, como se fosse apenas mais uma das noites de uma inteira vida. Todas as vezes que a gorda mulata despetalou flores, nesse «mar me quer-bem me quer», afinal, era já o meu amor que desfiava aquele gesto dela?

 

— Mas agora, Luarmina, me restou uma doença.

 

— Que doença?

 

— Você. Você, Luarmina, é minha doença.

 

— Eu prometo, Zeca, eu regresso depois, a noite, para curar de vez essa doença.

 

— Mas Luarmina, jura que você é mesmo essa mulher do barco!

 

Ela se cala. Cabeça baixa, murmura:

 

— Vou deixar a porta aberta. Assim você escuta o mar...

 

Escutando o mar adormeci. Mas não era eu todo que adormecia. De igual maneira que meu pai morreu em porções, agora eu caía no sono às partes, uma de cada vez. Primeiro, foi a memória que tombou em abismo, inexistindo. Como se o mar ensinasse, por fim, minhas lembranças a adormecer. Como se a minha vida aceitasse o supremo convite e fosse saindo de mim em eterna dança com o mar.

 

                                                                                Mia Couto  

 

                      

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