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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Marcador / Robin Cook
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Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

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Na madrugada do dia 2 de fevereiro, uns chuviscos frios e contínuos embebiam os pináculos de betão da cidade de Nova Iorque, envolvendo-os numa densa espiral de nevoeiro de um tom rosa violáceo. À exceção de umas quantas sirenes suaves, a cidade que nunca dorme encontrava-se num estado de relativa calma. Contudo, precisamente às três horas e dezessete minutos da manhã, tiveram lugar, em lados opostos do Central Park, dois acontecimentos quase simultâneos, sem relação entre si, mas idênticos em essência, e que se revelariam fatalmente ligados. Um deles ocorreu a nível celular e o outro a nível molecular. Embora as conseqüências biológicas dos dois acontecimentos fossem opostas, os acontecimentos em si estavam destinados a fazer com que os perpetradores - todos estranhos - colidissem com violência em menos de um mês.

O acontecimento celular sucedeu num momento de grande ventura e envolveu a pujante injeção de um pouco mais de duzentos milhões e cinqüenta mil espermatozóides numa abóbada vaginal. Tal como um grupo de maratonistas ansiosos, os espermatozóides mobilizaram-se rapidamente, nutriram-se do fornecimento de energia encerrado em si e encetaram uma corrida verdadeiramente hercúlea contra a morte: uma corrida de esforço e perigo notáveis que apenas poderia ser vencida por um deles, relegando os restantes para uma vida de frustrante futilidade.

A primeira tarefa consistia em penetrar o revestimento de mucosa que obstruía a cavidade uterina em colapso. Apesar da formidável barreira, os espermatozóides depressa triunfaram como grupo, apesar de se ter tratado de uma vitória pírrica. Dezenas de milhões de gametas da vaga inicial se perderam numa forma de auto-sacrifício necessária para a libertação das enzimas que continham, de modo a tornarem possível a passagem dos demais.

A provação seguinte que esperava essa horda de minúsculas entidades vivas consistia em atravessar a extensão uterina, relativamente imensa, quase equivalente em distância e perigo a um pequeno peixe que nadasse ao longo de todo o Grande Recife de Coral. Mas até esse impedimento, aparentemente intransponível, foi ultrapassado quando uns milhares de espermatozóides sortudos e robustos chegaram à entrada dos dois ovidutos, deixando atrás de si centenas de milhões de infelizes baixas.

Porém, o árduo trabalho ainda não chegara ao fim. Uma vez no interior das ondulantes pregas dos ovidutos, os afortunados que haviam entrado no tubo correto foram então incitados pela quimiotaxia do fluido descendente de um folículo ovariano que irrompera. Algures mais adiante, para além de uns doze centímetros tortuosos e arriscados, encontrava-se o Cálice Sagrado dos espermatozóides, um óvulo libertado e coroado por uma nuvem de células de apoio agrupadas.

Progressivamente estimulado pela irresistível atração química, um contingente de gametas masculinos realizou aquilo que seria aparentemente impossível e cercou o seu alvo. Quase exaustos por força de tanto nadar e de evitar os macrófagos predadores que haviam tragado muitos dos seus congêneres, o número era agora inferior a cem e diminuía rapidamente. Lado a lado, num empate, os sobreviventes acercavam-se do pobre óvulo haplóide numa corrida pelo primeiro lugar.

Depois de um período de tempo incrivelmente curto de uma hora e vinte e cinco minutos, o espermatozóide vencedor desferiu um desesperado golpe final com o seu flagelo e colidiu de cabeça nas células agrupadas que rodeavam o óvulo. Enterrou-se freneticamente entre as células para que o acrossoma entrasse em contacto direto com a pesada cobertura protéica do óvulo, estabelecendo uma ligação. Nesse instante, terminou a corrida. Num último ato mortal, o espermatozóide vencedor injetou no óvulo o material nuclear que continha para formar o pronúcleo masculino.

Os outros dezesseis espermatozóides que tinham conseguido chegar ao óvulo segundos depois do vencedor viram-se incapazes de aderir à camada protéica do óvulo, que sofrera uma alteração. Com as reservas de energia esgotadas, os flagelados não tardaram a emudecer. Não havia segundo lugar e, em breve, os vencidos seriam varridos, engolidos e destruídos pelos mortíferos macrófagos maternais.

No interior do ovo agora fertilizado, o pronúcleo feminino e o pronúcleo masculino migraram em direção um ao outro. Após a dissolução dos seus invólucros, o seu material nuclear fundiu-se para formar os necessários quarenta e seis cromossomas da célula somática humana. O ovo tinha-se metamorfoseado em zigoto. No espaço de vinte e quatro horas, dividiu-se num processo designado de segmentação, o primeiro passo de uma seqüência de acontecimentos programada que haveria de começar a formar um embrião dentro de vinte dias. Nascia uma vida.

O acontecimento molecular quase simultâneo também envolveu uma pujante injeção. Dessa feita, uma massa de mais de um trilhão de moléculas de um sal simples chamado cloreto de potássio dissolvido no volume de um cálice de água esterilizada foi injetada numa veia periférica do braço. O efeito foi quase instantâneo. As células que revestiam a veia experimentaram uma difusão rápida e passiva dos ions de potássio no seu interior, que lhes interferiu com a carga eletrostática necessária à sua função e à vida. As delicadas extremidades nervosas entre as células enviaram rapidamente mensagens urgentes de dor ao cérebro como aviso de uma catástrofe iminente.

Numa questão de segundos, os restantes ions de potássio fluíam ao longo das artérias em direção ao coração, onde foram propulsionados a cada batida para a vasta ramificação arterial. Embora tenha ocorrido uma progressiva diluição no plasma, a concentração continuava a ser incompatível com a função celular. Particularmente preocupantes eram as células especializadas do coração responsáveis por iniciar o ritmo cardíaco, as do bolbo raquidiano responsáveis pelo impulso respiratório e os nervos e os fusos musculares que transportavam as mensagens. Todos eles foram afetados de modo adverso. O ritmo cardíaco diminuiu rapidamente e as batidas cardíacas enfraqueceram. A respiração tornou-se leve e a oxigenação inadequada. Passados instantes, o coração parou totalmente, dando início a uma progressiva morte celular ao nível de todo o corpo, bem como a uma morte clínica. Perdia-se uma vida. Num golpe final, as células moribundas derramaram o seu depósito de potássio no sistema circulatório estagnado, dissimulando de modo eficiente a original massa letal.

 

O som do gotejar era metronômico. Algures na escada de incêndio e alimentadas pela chuva incessante, as gotas de água salpicavam uma superfície metálica. Para Laurie Montgomery, o som parecia quase tão ruidoso como um timbale no apartamento de Jack Stapleton, que de outro modo se encontraria num silêncio total, levando-a a estremecer ao antecipar cada salpico. O único concorrente durante as longas horas fora o compressor do frigorífico, que ora girava ora parava, o zumbido e o baque do radiador quando o calor aumentava e o som longínquo e distante de uma sirene ou de uma buzina, ruídos esses tão típicos de Nova Iorque que as mentes das pessoas os ignoravam instintivamente. Mas Laurie não tinha essa sorte. Depois de ter passado três horas a dar voltas na cama, tornara-se hipersensível a qualquer som em seu redor.

Laurie virou-se uma vez mais e abriu os olhos. Uns anêmicos dedos de luz alcançaram as margens ensombradas da janela, proporcionando-lhe uma melhor visão do apartamento árido e, se não fosse isso, totalmente pardo de Jack. A razão pela qual ela e Jack se encontravam ali, em lugar de no apartamento dela, era a dimensão do quarto dela: era tão pequeno que a maior cama que podia acomodar era uma de solteiro, o que fazia com que dormirem juntos fosse problemático. E depois havia também de se levar em conta o desejo que Jack sentia de estar perto do adorado campo de basquetebol situado nas redondezas.

Laurie deu uma vista de olhos ao rádio despertador. À medida que os números digitais avançavam de modo implacável, Laurie foi se sentido progressivamente zangada. Sabia por experiência própria que se não dormisse muito haveria de se sentir incapaz no gabinete de médico-legista nesse dia. Perguntava-se como diabo resolvera essa questão durante o curso de Medicina e o internato, períodos em que a privação de sono havia sido a palavra de ordem. Laurie sentia, contudo, que a sua presente incapacidade de adormecer não era a única coisa que a deixava irada. Na verdade, a sua cólera seria provavelmente a razão pela qual não conseguia dormir.

Estavam a meio da noite quando Jack lhe lembrara inadvertidamente de que o aniversário dela se aproximava, ao perguntar-lhe se queria fazer alguma coisa para o celebrar. Laurie sabia tratar-se de uma pergunta inocente, feita assim à luz crepuscular que se segue a fazer-se amor, mas desfizera-lhe a elaborada defesa de viver um dia de cada vez para evitar pensar no futuro. Parecia impossível, mas faria quarenta e três anos em breve. A dada altura por volta dos trinta e cinco, o lugar-comum acerca do relógio biológico tornara-se verdade para ela - e agora o seu fazia soar o alarme.

Laurie soltou um suspiro involuntário. Na sua solidão, à medida que as horas iam passando, inquietara-se com o pântano social em que se via aprisionada. No que dizia respeito à sua vida privada, as coisas não corriam bem desde o segundo ciclo. Jack estava satisfeito com o status quo, como testemunhavam a sua silhueta descontraída e os ruídos do seu ditoso sono, o que apenas contribuía para piorar as coisas para Laurie. Ela queria uma família. Sempre partira do princípio de que haveria de ter uma, mesmo durante os seus vinte anos e inícios dos trinta, selvagens, em comparação com o presente e, no entanto, ali estava ela, quase com quarenta e três, a viver num mísero apartamento num bairro periférico de Nova Iorque; a dormir com um homem incapaz de se decidir a casar e a ter filhos.

Suspirou outra vez. Antes, tentara evitar, de forma consciente, perturbar Jack, mas agora já não se importava com isso. Decidira que ia tentar falar com ele de novo, embora soubesse que esse assunto era algo que ele preferia ignorar zelosamente. Mas desta vez ia exigir-lhe uma mudança. Afinal, porque é que haveria de assentar numa vida miserável num apartamento que seria mais apropriado a um casal de estudantes universitários na penúria que a patologistas forenses certificados, como era o caso dela e de Jack, numa relação em que as discussões acerca de casamento e de filhos eram verbalizadas unilateralmente?

Mas nem tudo corria mal. Em termos de carreira, as coisas não podiam ser melhores. Adorava o seu trabalho como médica-legista no Gabinete do Médico-Legista Superior de Nova Iorque, onde trabalhava havia treze anos e sentia-se afortunada por ter um colega como Jack, com quem podia partilhar as suas experiências. Sentiam ambos reverência pelo estímulo intelectual que a patologia forense lhes oferecia; aprendiam algo novo todos os dias. E viam uma série de questões da mesma forma: ambos toleravam mal a mediocridade e viravam costas às necessidades políticas de fazer parte de um sistema burocrático. Contudo, por mais compatíveis que fossem em termos laborais, isso não compensava o seu florescente desejo de ter uma família.

Subitamente, Jack agitou-se e virou-se de barriga para cima, com os dedos entrelaçados e as mãos juntas sobre o peito. Laurie contemplou o perfil adormecido. Era aos seus olhos um belo homem, de cabelo muito curto castanho claro e com mechas grisalhas, sobrancelhas espessas e feições fortes e bem definidas, exibindo geralmente um sorriso irônico, até quando repousava. Achava-o agressivo, mas amigável, confiante, mas modesto, provocador, mas generoso e, acima de tudo, brincalhão e divertido. Com o seu espírito rápido, a vida nunca se tornava aborrecida, especialmente com a sua tendência de adolescente para correr riscos. Do lado negativo, podia ser insuportavelmente obstinado, em especial relativamente ao casamento e aos filhos.

Laurie inclinou-se para Jack e observou-o com maior atenção. Estava definitivamente a sorrir, o que lhe agravou a irritação. Não lhe parecia justo que ele estivesse satisfeito com o status quo. Embora ela se sentisse relativamente segura de que o amava e acreditasse que ele a amava, a sua incapacidade em comprometer-se estava literalmente a deixá-la confusa. Ele dizia-lhe que não se tratava de medo do casamento ou de ser pai per se, mas antes da vulnerabilidade que um tal compromisso produzia. A princípio, Laurie fora compreensiva: Jack sofrera a tragédia de perder a primeira mulher e as duas jovens filhas num acidente envolvendo um vôo regional. Sabia que ele sentia o peso da dor e da responsabilidade, uma vez que o acidente tivera lugar na seqüência de uma visita familiar enquanto ele passava por um novo processo de formação em Patologia noutra cidade. Sabia também que após o acidente ele se debatera com uma grave depressão reativa. Mas agora já se haviam passado mais de treze anos desde a tragédia. Laurie sentia que fora sensível às suas necessidades e tinha sido paciente quando começaram por fim a namorar a sério. Só que agora, passados quase quatro anos, Laurie sentia que chegara ao limite. Afinal, também ela tinha as suas necessidades.

O zumbido do alarme de Jack estilhaçou o silêncio. O seu braço foi disparado esmagar o botão snooze e depois recolheu ao calor das cobertas. A paz regressou ao quarto por cinco minutos e a respiração de Jack recobrou o seu ritmo lento, profundo e adormecido. Tratava-se de uma parte da rotina matinal que Laurie nunca via, uma vez que Jack se levantava invariavelmente antes dela. Laurie era uma notívaga que adorava ler antes de apagar a luz, muitas vezes ficando a pé mais tempo do que deveria. Quase desde o primeiro dia da sua vida em comum, Laurie aprendera a não acordar com o alarme, sabendo que Jack trataria dele.

Quando o alarme tocou pela segunda vez, Jack desligou-o, atirou as cobertas para trás, sentou-se e pousou os pés no chão, voltando-se de costas para Laurie. Ela viu-o espreguiçar-se e ouvia-o a bocejar ao mesmo tempo em que esfregava os olhos. Jack levantou-se e foi a patear até à casa de banho, inadvertido da própria nudez. Laurie colocou as mãos atrás da cabeça e observou-o; apesar da irritação que sentia, era uma visão agradável. Ouviu-o a usar a sanita e depois a puxar o autoclismo. Quando reapareceu, estava uma vez mais a esfregar os olhos enquanto se aproximava do lado de Laurie na cama para a acordar.

Jack estendeu o braço para abanar o ombro de Laurie como habitual, mas deu um sobressalto ao ver que ela tinha os olhos abertos, apontados para ele, e a boca contraída numa expressão de irritada determinação.

—Estás acordada! — Disse Jack, cujas sobrancelhas se arquearam num gesto inquiridor. Soube imediatamente que se passava algo de errado.

— Não tornei a adormecer depois do nosso encontro a meio da noite.

— Com que então foi assim tão bom? — Brincou Jack, na esperança de que o humor pudesse neutralizar o notório melindre dela.

— Jack, temos de falar — disse Laurie sem demonstrar emoção, sentando-se e apertando o cobertor contra o peito. Prendeu-lhe o olhar com uma expressão de desafio.

— Não é isso que estamos a fazer? — Inquiriu Jack. Adivinhou imediatamente as intenções de Laurie e não conseguia evitar o sarcasmo que a sua voz deixava transparecer. Embora soubesse que o seu tom era contraproducente, nada podia fazer. O sarcasmo era uma forma de proteção que desenvolvera ao longo da década anterior.

Laurie começou a responder-lhe, mas Jack levantou a mão:

— Desculpa. Não quero parecer insensível, mas tenho uma suspeita secreta acerca de onde esta conversa nos vai levar e este não é o momento adequado para isso. Desculpa, Laurie, mas temos de estar na morgue dentro de uma hora e nenhum de nós tomou banho, nem se vestiu, nem comeu.

— Jack, nunca é o momento.

— Bem, ponhamos então as coisas desta forma: deve ser a pior altura possível para uma discussão séria e emocional. São seis e meia da manhã de segunda-feira, depois de um grande fim-de-semana, e temos de ir trabalhar. Se tinhas isso em mente, teria havido dezenas de outros momentos durante os últimos dias em que podias ter levantado a questão, que de bom grado a teria discutido contido.

— Ah, tretas! Não nos vamos iludir, tu nunca queres falar sobre o assunto. Jack, vou fazer quarenta e três anos na próxima quinta-feira. Quarenta e três! Não me posso dar ao luxo de ser paciente. Não posso ficar à espera que decidas o que queres fazer. Nessa altura já eu estarei em pós-menopausa.

Jack fitou os olhos azuis-esverdeados de Laurie durante alguns segundos. Era claro que ela não seria aplacada facilmente.

— Está bem — disse ele, expirando ruidosamente como que fazendo-lhe a vontade. Desviou os olhos para os seus pés descalços.

— Falamos sobre isso hoje à noite ao jantar.

— Preciso falar sobre o assunto agora! — Disse Laurie com ênfase. Estendeu a mão e ergueu o queixo de Jack para lhe prender o olhar de novo. — Estive aqui numa angústia por causa da nossa situação enquanto dormias. Adiar o assunto não é solução.

— Laurie, vou para a casa de banho tomar um duche. Estou a dizer-te que neste momento não temos tempo para isso.

— Eu amo-te, Jack — disse Laurie depois de lhe ter agarrado o braço para o deter. — Mas preciso de mais. Quero casar e ter uma família. Quero viver num sítio melhor.

Soltou-lhe o braço e fez um gesto amplo com a mão em redor do quarto indicando-lhe a tinta a estalar, a lâmpada despida, a cama sem cabeceira, as duas mesinhas de cabeceira que consistiam em caixas de vinho vazias de madeira postas de pé e uma única cômoda.

— Não tem de ser o Taj Mahal, mas isto é ridículo.

— E eu que durante todo este tempo julguei que quatro estrelas te serviam.

— Poupa-me o sarcasmo — disse Laurie rispidamente. — Um pouco de luxo não nos faria mal, tendo em conta que trabalhamos tanto. Mas não é essa a questão. O que está em causa é a nossa relação, que parece estar ótima para ti, mas não me basta. É esse o cerne da questão.

— Vou tomar duche — disse Jack. Laurie lançou-lhe um pérfido meio-sorriso.

— Muito bem. Vai lá tomar duche.

Jack anuiu e começou a dizer qualquer coisa, mas mudou de idéia. Virou-se e desapareceu no interior da casa de banho, deixando a porta entreaberta. Passado um instante, Laurie ouviu a água a correr e o som das argolas da cortina de banho a rasparem no varão.

Laurie expirou. Tremia por força de uma mistura de cansaço e stress emocional, mas estava orgulhosa de si mesma por não derramar quaisquer lágrimas. Detestava chorar em situações emocionais. Não fazia idéia de como o evitara nesse momento, mas estava satisfeita por tê-lo conseguido. As lágrimas nunca serviam de ajuda e muitas vezes deixavam-na em desvantagem.

Depois de ter deslizado para o interior do roupão, Laurie foi ao armário buscar a mala. Na verdade, o confronto com Jack fez com que se sentisse aliviada. Ao ter reagido exatamente como ela antecipara, Jack justificou a decisão que ela tomara ainda antes de ele ter despertado. Laurie abriu as gavetas da cômoda que lhe pertenciam, retirou de lá as suas coisas e começou a fazer a mala. Estava a sua tarefa quase terminada quando ouviu o chuveiro parar e, passado um minuto, Jack surgiu à porta, enxaguando energicamente o cabelo com a toalha. Quando viu Laurie e a mala, parou de forma abrupta.

— Mas que raio estás a fazer?

— Parece-me perfeitamente claro o que estou a fazer— respondeu ela.

Jack permaneceu em silêncio durante um minuto, observando simplesmente Laurie, que continuava a fazer a mala.

— Estás a levar as coisas longe demais — disse ele por fim. — Não tens de te ir embora.

— Acho que tenho — respondeu Laurie sem erguer os olhos.

— Ótimo! — Exclamou Jack passado um instante, numa voz cortante. Tornou a introduzir-se na casa de banho através da porta aberta para terminar de se enxaguar.

Quando Jack saiu da casa de banho, Laurie entrou, levando consigo a roupa para esse dia. Fez questão de fechar a porta, embora em manhãs normais ela ficasse aberta. Quando Laurie saiu, totalmente vestida, Jack estava na cozinha. Laurie juntou-se a ele para tomar o pequeno-almoço de cereais frios e fruta. Nenhum deles se deu ao trabalho de se sentar à minúscula mesa de vinil. Foram ambos corteses e as únicas palavras que trocaram foram "com licença" e "desculpa", enquanto dançavam em redor um do outro para abrir e fechar o frigorífico. Graças às estreitas dimensões do espaço, era-lhes impossível moverem-se sem se tocarem.

Às sete horas estavam prontos para sair. Laurie enfiou os produtos cosméticos na mala e fechou-a. Enquanto a fazia rolar até a sala, viu que Jack retirava a bicicleta de montanha da grade na parede.

— Não vais nessa coisa para o trabalho, vais? — Perguntou-lhe.

Antes de viverem juntos, Jack usara a bicicleta no percurso de casa para o trabalho, bem como para tratar de assuntos pela cidade. Laurie sentira-se sempre aterrorizada com isso, num receio constante de que um dia chegasse à morgue "na horizontal". Quando começaram a ir juntos para o trabalho, Jack deixara de usar a bicicleta, uma vez que não havia maneira de persuadir Laurie a fazer o mesmo.

— Bem, parece-me que vou estar sozinho quando regressar ao meu palácio.

— Por amor de Deus, está a chover!

— A chuva torna a viagem mais interessante.

— Sabes, Jack, já que estou numa de ser sincera esta manhã, acho que te devo dizer que considero esta tua maneira adolescente de correr riscos, não só inconveniente, como também egoísta, como se fizesses pouco dos meus sentimentos.

— Que interessante! — disse Jack com um sorriso sarcástico. — Bem, deixa-me que te diga uma coisa: o fato de eu andar de bicicleta nada tem que ver com os teus sentimentos. E, para ser honesto, a tua sensação de que tem parece-me bastante egoísta.

Lá fora, na 106th Street, Laurie caminhou para ocidente até a Columbus Avenue para apanhar um táxi, ao passo que Jack foi a pedalar para oriente em direção ao Central Park. Nenhum deles se virou para acenar ao outro.

 

Jack esquecera-se do regozijo que sentia ao guiar a bicicleta de montanha Cannondale, de um púrpura escuro, mas a sensação regressou-lhe num ápice ao descer uma das colinas depois de ter entrado no Central Park, perto da 106th Street. Dado que o parque estava quase deserto, com exceção de um ou outro raro indivíduo a fazer jogging, Jack soltara-se, e tanto a cidade como as suas próprias ansiedades reprimidas desapareceram como por magia na floresta brumosa que envolvia a cidade. Com o vento a assobiar-lhe nos ouvidos, lembrava-se como se tivesse sido ontem de descer a Dead Man's Hill em South Bend, Indiana, na sua adorada Schwinn vermelha e dourada e de pneus largos. Recebera a bicicleta no seu décimo aniversário depois de ter visto um anúncio na contracapa de um livro de banda desenhada. Tornada mito como símbolo da sua infância feliz e despreocupada, convencera a mãe a conservá-la e continuava a acumular pó na garagem da casa da sua família.

A chuva continuava a cair, mas não o suficiente para molhar a experiência de Jack, embora ouvisse as gotas a rebentarem na fronte do capacete da bicicleta. O maior problema que enfrentava era tentar ver através das lentes riscadas pela umidade dos óculos de sol aerodinâmicos de ciclismo. Por forma a manter o resto do corpo razoavelmente seco, usava o poncho de ciclismo impermeável, que possuía umas engenhosas proteções para os polegares.

 Quando se inclinou para a frente com as mãos a segurarem o guiador, o poncho produziu uma cobertura semelhante a uma tenda. Evitou a maioria das poças e quando não o conseguia, erguia os pés dos pedais para seguir ao sabor do vento até alcançar um pavimento mais seco.

No canto sudeste do Central Park, Jack penetrou nas ruas urbanas da baixa, que formavam já um coágulo de tráfego matinal de hora de ponta. Tempos houvera em que adorara desafiar o trânsito, mas isso fora na altura em que era, segundo palavras suas, um pouco mais louco. Fora também uma altura em que se encontrava numa forma física significativamente melhor. Uma vez que não andara muito de bicicleta ao longo dos últimos anos, já não tinha, nem de longe, a mesma energia. O fato de jogar basquetebol com freqüência ajudava, mas esse desporto não envolvia o mesmo exercício aeróbico contínuo exigido pela bicicleta. Contudo, não abrandou, e quando desceu a rampa para o parque do gabinete do médico-legista, na 30th Street, os seus quadríceps queixavam-se. Depois de ter desmontado a bicicleta, permaneceu de pé por um instante, encostado ao guiador para permitir que a circulação alcançasse os níveis de oxigênio exigidos pelos músculos das pernas.

Uma vez suavizada a dor hipóxica das coxas, Jack içou a bicicleta sobre o ombro e começou a subir as escadas do parque. Ainda sentia as pernas como borracha, mas estava ansioso por descobrir o que se passava na morgue. Quando passara à frente do edifício vira uma série de camiões da televisão satélite estacionados na beira do passeio com os geradores a rugirem e as antenas esticadas. Avistou também um grupo de gente na área de recepção logo a seguir à entrada. Estava ali alguma coisa a fermentar.

Jack acenou uma saudação a Robert Harper pela janela do gabinete de segurança. O polícia fardado saltou da cadeira e enfiou a cabeça em redor da jamba da porta aberta.

—De volta aos velhos truques, Dr. Stapleton? — Chamou Robert. — Não via essa sua bicicleta há anos.

Jack acenou por cima do ombro ao mesmo tempo em que transportava a bicicleta para as profundezas da cave da morgue. Passou pela pequena sala de autópsias usada para examinar cadáveres em decomposição e virou à esquerda mesmo antes da massa central de câmaras frigoríficas onde os corpos eram armazenados antes de serem autopsiados. Teve de arranjar um espaço para a bicicleta na área reservada aos caixões de pinho de Potter's Field, usados para defuntos não-identificados e indesejados. Depois de ter guardado o casaco e a parafernália da bicicleta no cacifo da sala usada para mudarem de roupa, Jack dirigiu-se às escadas. Passou por Mike Passano, o técnico mortuário do turno da noite, que estava ocupado a concluir os relatórios no gabinete mortuário. Jack fez um aceno, mas Mike estava demasiado embrenhado no trabalho para dar por ele.

Ao sair para o corredor central no primeiro piso, Jack avistou de novo a apinhada área de recepção principal. Até das traseiras do edifício ouvia o murmúrio das conversas plenas de excitação. Passava-se alguma coisa e a sua curiosidade foi atiçada. Um dos aspectos mais emocionantes de ser médico-legista era o fato de nunca saber de um dia para o outro aquilo que o esperava. Ir para o trabalho era estimulante, até mesmo excitante, o que estava bem longe da forma como Jack se sentira na sua vida anterior como oftalmologista, altura em que os seus dias eram confortáveis, mas inteiramente previsíveis.

A carreira oftalmológica de Jack terminara abruptamente em 1990, quando o seu trabalho fora abarcado pela AmeriCare, um gigante da gestão de cuidados médicos em fase de expansão agressiva. A oferta da AmeriCare para contratar Jack como seu funcionário foi um balde de água fria. A experiência obrigou Jack a reconhecer que a medicina da velha escola, a remuneração por assistência, assente em relações próximas entre médico e paciente, nas quais as decisões se baseavam exclusivamente nas necessidades dos doentes, estava a desaparecer a olhos vistos. Uma tal epifania conduziu-o à decisão de procurar uma nova formação como patologista forense, na esperança de se libertar da prestação de cuidados médicos, que ele sentia ser mais um eufemismo para "negação de cuidados". A ironia final foi que a AmeriCare reemergira para perseguir Jack, apesar dos seus esforços por se distanciar. Graças a uma proposta de baixos custos pelos seus seguros, a AmeriCare ganhara recentemente um competitivo contrato para funcionários do município. Jack e os colegas tinham agora de procurar a AmeriCare para as suas próprias necessidades de assistência médica.

Querendo evitar a multidão dos media, Jack pôs-se a caminho, pelas traseiras, do gabinete de identificação, onde tinha início o dia de trabalho na morgue. Segundo uma organização por turnos, um dos médicos-legistas mais experientes chegava cedo para rever os casos que tinham dado entrada durante a noite, decidir quais deles precisavam ser autopsiados e distribuir serviço. Jack também tinha o hábito de ir cedo para o trabalho, mesmo que não fosse a sua vez de ser o programador, por forma a poder bisbilhotar os casos e conseguir que lhe fossem atribuídos os mais desafiantes. Jack sempre se perguntara por que motivo os restantes médicos não faziam o mesmo, até compreender que a maioria dos outros estava mais interessada em evitá-los. A curiosidade de Jack fazia com que invariavelmente ficasse com a maior carga de trabalho. Não se importava porém com isso; o trabalho era o ópio de Jack para amansar os seus demônios. Durante o tempo em que ele e Laurie tinham vivido praticamente juntos, fizera com que ela fosse com ele cedo, o que não havia sido de somenos, tendo em conta o quão difícil era para ela levantar-se de manhã. A recordação fê-lo sorrir. Também fez com que se perguntasse se ela já teria chegado.

Jack deteve-se de súbito. Até então mantivera deliberadamente afastado da mente o confronto dessa manhã. Mergulharam-lhe na consciência pensamentos relacionados com Laurie, bem como memórias de acontecimentos horrendos do seu próprio passado. Perguntou-se com irritação por que motivo sentira ela a necessidade de terminar um belo fim-de-semana num tom tão deprimente, especialmente tendo em conta que as coisas estavam a correr tão bem entre eles. Em geral, ele sentia-se quase satisfeito, um extraordinário estado de alma para quem achava que não merecia estar vivo, muito menos ser feliz.

Foi perpassado por uma onda de cólera. A última coisa de que precisava ser lembrado era da dor e da culpa intensas que sentia em relação à mulher e às filhas falecidas, coisa que sucedia com qualquer conversa acerca de casamento e de filhos. A idéia de compromisso e da vulnerabilidade que lhe era inerente, especialmente face à constituição de uma nova família, era aterrorizadora.

— Controla-te! — murmurou Jack para com os seus botões.

Fechou os olhos e massageou rudemente o rosto com ambas as mãos. Para além da irritação e da frustração relativamente a Laurie, sentia o despertar da melancolia, uma memória indesejada das lutas passadas contra a depressão. O problema era que gostava realmente dela. Era ótima, com exceção da persistente questão acerca dos filhos.

— Sente-se bem, Dr. Stapleton? — Perguntou uma voz de mulher.

Jack espreitou por entre os dedos. Janice Jaeger, a investigadora forense do turno da noite, uma mulher pequena, fitava-o enquanto pegava no casaco para ir para casa, com um ar exausto. As suas lendárias olheiras levaram Jack a perguntar-se se alguma vez chegaria a dormir.

— Estou bem — disse Jack. Retirou as mãos do rosto e encolheu os ombros, consciente da sua aparência. — Por que é que pergunta?

— Creio que nunca o vi parado, especialmente no meio do corredor.

Jack tentou pensar numa resposta espirituosa, mas não lhe ocorreu uma. Em vez disso, mudou de assunto perguntando-lhe de modo pouco entusiasta se tivera uma noite interessante.

— Isto aqui foi uma loucura! — comentou Janice. — Mais ainda para o médico de ronda e até para o Dr. Fontworth que para mim. O Dr. Bingham e o Dr. Washington já aqui estão a fazer uma autópsia, com o Dr. Fontworth a assisti-los.

— A sério! — Exclamou Jack. — Que tipo de caso?

Harold Bingham era o diretor e Calvin Washington era o subdiretor. Geralmente, qualquer um deles só aparecia bem depois das oito da manhã e era raro que fizessem uma autópsia antes do início do dia de trabalho. A história tinha de ter contornos políticos, o que explicava a presença dos media. Fontworth era um dos colegas de Jack e estivera de serviço durante o fim-de-semana. Os médicos-legistas não iam ali de noite a não ser que houvesse problema. Os internos da área da Patologia eram contratados como "médicos de ronda" para cobrir procedimentos rotineiros que exigissem a presença de um médico.

— Trata-se de um ferimento provocado por uma arma de fogo, mas é um caso de polícia, razão pela qual Fontworth teve de ficar com ele. Pelo que me é dado perceber, a polícia cercou um suspeito que se encontrava sob a proteção da namorada. Quando tentaram prendê-lo, assistiu-se a um verdadeiro fogo de barragem. Há a questão do uso excessivo de força. O Doutor pode achar o caso de interesse.

Jack estremeceu no seu íntimo. Os casos de ferimentos por armas de fogo podiam ser complicados em situações de múltiplos tiros. Embora o Dr. George Fontworth trabalhasse havia mais oito anos que Jack no Gabinete do Médico-Legista Superior, ou GMLS, era, na perspectiva de Jack, negligente.

—Acho que vou ficar de fora, uma vez que o chefe está envolvido no caso — disse Jack. — Em que é que esteve a trabalhar? Alguma coisa de relevância?

— O costume, mas houve um caso no Hospital Manhattan General que sobressaiu entre os outros. Um homem jovem que tinha sido operado ontem de manhã a uma fratura exposta na seqüência de uma queda enquanto andava de patins em linha no Central Park no sábado.

Jack estremeceu de novo. Com a sensibilidade à flor da pele graças a Laurie, a sua resposta era negativa à mera referência feita ao Hospital Manhattan General. Outrora centro acadêmico de renome, era agora um hospital gerido pela AmeriCare, depois de ter estado na mira do gigante da gestão de cuidados médicos, uma mina de ouro, e por ela ter sido tomado. Embora soubesse que o nível geral de medicina praticado pela instituição era bom, a ponto de, se ele caísse mal da bicicleta e acabasse na unidade de traumatismos desse hospital, que seria onde provavelmente o levariam devido ao novo contrato com o governo local, seria bem tratado, a instituição não deixava de ser uma empresa de gestão de cuidados médicos gerida pela AmeriCare, e ele sentia um ódio visceral por ela.

— O que é que fez com que o caso se destacasse? — Inquiriu Jack tentando ocultar a emoção que sentia. Mudando o tom para o sarcasmo, acrescentou: — Terá sido uma charada no diagnóstico ou envolvia um qualquer tipo de tarado indecente?

— Nenhuma dessas coisas — suspirou Janice. — Foi apenas o impacto que o caso teve sobre mim. Foi só... bastante triste.

— Triste? — Perguntou Jack. Foi apanhado de surpresa. Janice trabalhava como investigadora forense havia mais de vinte anos e já vira a morte em todos os seus inglórios cambiantes. — Para me dizer que é triste, tem de ser realmente triste. Qual é a história, em meia dúzia de palavras?

—Tinha apenas vinte e muitos anos e não tinha historial médico; mais especificamente, não sofria de problemas cardíacos. A história que eu ouvi foi de que ele tocou no botão para chamar uma enfermeira, mas quando elas chegaram junto dele, passados cinco ou dez minutos, isto segundo as enfermeiras, estava morto. Por isso deve ter sido um problema cardíaco.

— Não foi feita qualquer tentativa de reanimação?

— Ah, sem dúvida que o tentaram reanimar, mas sem qualquer sucesso. Nem sequer conseguiram um único pulsar no eletrocardiograma.

— O que é que faz dessa história uma coisa tão triste? A idade do homem?

— A idade foi um fator, mas não é a história toda. Na verdade, não sei porque é que me incomodou tanto. Talvez tenha a ver com o fato de as enfermeiras não terem respondido a tempo e eu pensar que o pobre sujeito sabia que estava com problemas, mas não conseguia arranjar ajuda. Todos nós nos podemos identificar com esse tipo de pesadelo hospitalar. Ou talvez tenha algo a ver com os pais do doente, com quem é tão fácil simpatizar. Vieram de Westchester para ir ao hospital, depois vieram para aqui de modo a ficarem junto do corpo. Estão completamente destroçados. Fico com a sensação de que o filho era toda a sua vida. Creio que ainda aqui estão.

— Onde? Espero que não estejam para ali presos naquela multidão de jornalistas?

— Da última vez que soube deles estavam na sala de identificação, a insistirem para que se fizesse outra identificação, embora ela já tivesse sido feita. Para se mostrar atencioso, o médico de ronda pediu a Mike que avançasse com mais um conjunto de Polaroids. E como que na esperança de que tudo não passasse de um erro, insistiram em ver o próprio corpo.

Jack sentiu o pulso acelerar. Conhecia demasiado bem a devastação emocional de perder um filho.

— Não pode ser esse o caso que está a agitar aquela gente toda dos media.

— Ah, céus, não! O tipo de caso de que falo nunca chega ao público, o que é parte do motivo por que é tão triste. Uma vida desperdiçada.

— Foi o caso de polícia que trouxe os media.

— Foi o que os trouxe originalmente. Bingham anunciou que ia fazer uma declaração depois da autópsia. O médico de ronda disse-me que a comunidade espanhola de Harlem está revoltada com o incidente. Aparentemente, houve qualquer coisa como cinqüenta tiros disparados pela polícia. Ecos do caso Diallo em South Bronx alguns anos atrás. Mas, para lhe dizer a verdade, creio que aquilo em que os media estão mais interessados neste momento é o caso de Sara Cromwell, que chegou já depois deles.

— Sara Cromwell, a psicóloga com a coluna no Daily Newst?

— Sim, a diva dos conselhos, capaz de dizer a qualquer um e a todos como endireitar a vida. Também era uma celebridade televisiva, sabe? Estava batida na maioria dos talk shows, incluindo o da Oprah. Era famosa que se fartava.

— Foi um acidente? Por que esta algazarra?

— Não foi um acidente. Parece que foi brutalmente assassinada no seu apartamento em Park Avenue. Não conheço os pormenores, mas são assim para o macabro, segundo o Dr. Fontworth, que também teve de lidar com o caso. Olhe que ele e o médico de ronda estiveram fora a noite inteira. Depois de Cromwell, ocorreu um suicídio duplo numa mansão da 84th Street, depois um homicídio numa discoteca. Depois disso, o médico de ronda teve de atender a um caso de atropelamento e fuga em Park Avenue e duas overdoses.

— Então, e o suicídio duplo? Velhos ou novos?

— De meia-idade. Monóxido de carbono. Tinham o seu Escalade a funcionar com a porta da garagem fechada e duas mangueiras de vácuo ligadas do tubo de escape ao interior do carro.

— Humm... — murmurou Jack. — Havia algum bilhete suicida?

— Ei, não é justo — queixou-se Janice. — Está-me a espremer em relação a casos de que não tratei. Tanto quanto sei havia apenas uma nota, da mulher.

— Interessante — comentou Jack. — Bem, é melhor eu descer até a sala de identificação. Parece-me que vai ser um dia atarefado. E é melhor que a Janice vá para casa ver se dorme um pouco.

Jack estava satisfeito. A antecipação de um dia interessante punha de lado alguma da irritação que tornara a vir à superfície relativa a essa manhã. Se Laurie queria regressar ao seu apartamento por alguns dias, muito bem! Ia ficar à espera do momento adequado, pois não queria sentir-se emocionalmente assaltado.

Jack passou apressado pelo gabinete dos investigadores forenses, cortou pelo gabinete administrativo, com os seus montes de arquivos, e entrou no gabinete de comunicação logo a seguir. Sorriu aos telefonistas do turno da manhã, mas não obteve resposta. Estavam preocupados em organizar-se. Acenou ao sargento Murphy quando passou pelo gabinete do detetive da NYPD*, mas Murphy estava ao telefone e também não lhe respondeu. "Mas que boas-vindas", pensou.

Ao entrar no gabinete de identificação, recebeu o mesmo tratamento. Havia três pessoas na sala e todas o ignoraram. Duas delas escondiam-se por detrás dos respectivos matutinos, ao passo que a Dra. Riva Mehta, a colega de gabinete de Laurie, se ocupava a percorrer a considerável pilha de casos potenciais para organizar o plano de autópsias. Jack tirou uma chávena de café do bule comum e depois dobrou-se sobre a extremidade do jornal de Vinnie Amendola. Vinnie era um dos técnicos mortuários e companheiro freqüente de Jack na sala de autópsias. A presença regular e madrugadora de Vinnie significava que Jack podia começar a trabalhar na sala de autópsias muito antes de qualquer outra pessoa.

— Como é que não estás lá em baixo na cova com Bingham e Washington? — Inquiriu Jack.

— Não faço a mínima — disse Vinnie, puxando o jornal para o libertar do colega. — Parece que chamaram Sal. Já estavam em ação quando lá cheguei.

— Jack? Stá bem?

Surgiu uma terceira pessoa por detrás do jornal, mas a pronúncia denunciou-o. Tratava-se do tenente detetive Lou Soldano, dos Homicídios. Jack conhecera-o anos atrás, quando integrara o Gabinete do Médico-Legista Superior. Convicto da enorme contribuição da patologia forense para a sua linha de trabalho, Lou era um visitante assíduo do GMLS. Era também um amigo.

Com um pouco de esforço, o atarracado detetive levantou-se da cadeira de recosto de vinil, agarrando o jornal na mão carnuda. Com a gabardina envelhecida, a gravata lassa e o botão de cima da camisa aberto, parecia uma personagem com mau aspecto num velho filme noir. O seu rosto exibia aquilo que poderia ter sido uma barba de dois dias, embora Jack soubesse por experiência que fosse de apenas um.

Cumprimentaram-se com um discreto gesto de "dá cá mais cinco" que Jack aprendera no campo de basquetebol nas proximidades e que, jocosamente, ensinara a Lou. Fazia com que ambos se sentissem mais "na onda".

— O que é que te fez sair da cama assim tão cedo? — Quis saber Jack.

— Sair da cama? Ainda não fui para a cama — troçou Lou. — Foi uma noite daquelas. O meu capitão está preocupado de morte com este alegado caso de brutalidade policial, dado que a polícia distrital vai sentir a coisa a aquecer se a história dos polícias envolvidos não for corroborada. Espero conseguir logo um grande furo, mas a coisa está feia, com o Bingham a tratar do caso. Vai provavelmente andar para ali às voltas durante a maior parte do dia.

— Então e o caso de Sara Cromwell? Também estás interessado nesse?

— Pois claro! Como se tivesse escolha! Viste os media todos lá fora na recepção?

— Teria sido difícil não reparar neles — respondeu Jack.

— Infelizmente, já aqui estavam por causa dos disparos da polícia. É garantido que muito se vai falar nos jornais e na televisão acerca daquela psicóloga esquelética, provavelmente vai receber mais atenção do que receberia se eles não andassem por aqui. E sempre que um assassínio faz correr muita tinta nos media, sei que me vão pressionar a valer de cima para produzir um suspeito. Portanto, dito isto, faz-me um favor e trata do caso.

— Estás a falar a sério?

— É claro que estou. És rápido e minucioso, as duas qualidades que preenchem os meus requisitos. Além disso, não te importas que eu fique a ver, coisa que não posso dizer acerca de toda a gente por aqui. Mas se não estiveres interessado, talvez consiga pôr a Laurie a fazê-lo, embora conhecendo a inclinação dela para os ferimentos por arma de fogo, provavelmente há de querer envolver-se no caso de polícia.

—Também está interessada num dos casos do Manhattan General — disse Riva numa voz sedosa e com uma pronúncia britânica, o que contrastava completamente com o timbre nasalado de Nova Iorque.

— Já pegou na pasta e disse que quer tratar desse primeiro.

— Viste Laurie esta manhã? — Perguntou Jack a Lou.

Ele e Lou partilhavam a estima por Laurie Montgomery. Jack sabia que em tempos Lou até saíra com Laurie, mas não tinha dado certo. Segundo aquilo que o próprio Lou admitia, o problema fora a sua falta de confiança em termos sociais. Foi graciosa a forma como passou a ser um grande defensor de Jack e Laurie como casal.

— Sim, há cerca de quinze ou vinte minutos.

— Falaste com ela?

— Claro. Que pergunta é essa?

— Pareceu-te normal? O que é que ela te disse?

— Ei, mas que interrogatório é este? Não me lembro do que ela disse, foi qualquer coisa do tipo "Oi, Lou, 'tás bom?", ou algo parecido. E no que diz respeito ao seu estado mental, estava normal, até entusiasmada. — Lou lançou um olhar a Riva. — Foi isso que te pareceu, Dra. Mehta?

Riva anuiu.

— Eu diria que estava ótima, talvez um pouco excitada com toda a azáfama por aqui. Parece que tinha estado a conversar com Janice acerca do caso do Manhattan General. Era por isso que o queria.

— Ela disse alguma coisa acerca de mim? — Perguntou Jack a Lou, inclinando-se para a frente e baixando a voz.

— O que é que se passa contigo hoje? — Inquiriu Lou. — Está tudo bem convosco?

— Bem, há sempre uns altos e baixos pelo caminho — disse Jack vagamente. O fato de Laurie estar "entusiasmada" adicionava um toque de insulto à sua mágoa, nas presentes circunstâncias.

— E que tal atribuíres-me o caso Cromwell? — Pediu Jack a Riva.

— Faz favor — disse Riva. — Calvin deixou uma nota a dizer que queria tudo tratado o mais depressa possível.

Tirou a pasta da pilha "para autópsia" e pousou-a no canto da secretária. Jack agarrou-a e abriu-a, revelando uma ficha de caso, uma certidão de óbito parcialmente preenchida, um inventário de registros de casos médico-legais, duas folhas para notas da autópsia, um aviso telefônico da morte tal como recebido pelo departamento de comunicações, um formulário de identificação completo, um relatório de investigação ditado por Fontworth, uma folha para o relatório da autópsia, uma tira de papel de uma análise ao HIV e uma indicação de que se tinha feito um raio-X e se tinham tirado fotografias ao cadáver quando chegara ao GMLS. Jack puxou para si o relatório de Fontworth e leu-o. Lou fez o mesmo por cima do ombro de Jack.

— Assististe à cena? — Perguntou Jack a Lou.

— Não, ainda estava em Harlem quando esta deu entrada. Os rapazes daqui começaram por tratar do assunto, mas quando reconheceram a vítima chamaram o meu colega, o tenente detetive Harvey Lawson. Desde então já falei com todos eles. Disseram todos que foi uma porcaria. Havia sangue pela cozinha toda.

— O que é que eles acharam?

— Tendo em conta que estava seminua, com a aparente arma do crime espetada da coxa mesmo abaixo das partes íntimas, julgaram tratar-se de uma violação fatal.

— Partes íntimas! Mas que comedido!

— Não foi bem assim que mo descreveram. Estou a traduzir.

— Obrigado por mostrares tanta consideração. Fizeram referência ao sangue na porta do frigorífico?

— Disseram que havia sangue por toda a parte.

— Mencionaram o fato de haver sangue no interior do frigorífico, em especial no pedaço de queijo, como é aqui descrito no relatório de Fontworth?

Jack premiu o indicador no papel. Estava impressionado. Apesar das experiências anteriores com o trabalho incoerente de Fontworth, o relatório era minucioso.

— Tal como eu disse, relataram que havia sangue por toda a parte.

— Mas dentro do frigorífico com a porta fechada... é um bocado esquisito.

— Talvez a porta estivesse aberta quando ela foi atacada?

— Então ela guardou cuidadosamente o queijo? Isso é mais que esquisito a meio de um homicídio. Diz-me: eles falaram de pegadas no chão ao lado das da vítima?

— Não, não falaram.

— O relatório de Fontworth diz especificamente que não havia, mas havia algumas da vítima. Isso é ainda mais esquisito.

Lou esticou as mãos e encolheu os ombros.

— Então, o que é que achas?

— Parece-me que neste caso a autópsia vai ser relevante, por isso vamos lá arregaçar as mangas.

Jack foi até junto de Vinnie e bateu-lhe no verso do jornal, fazendo saltar o técnico.

— Vamos lá, Vinnie, meu velho — disse Jack alegremente. — Temos trabalho para fazer.

Vinnie resmungou qualquer coisa entredentes, mas pôs-se de pé e espreguiçou-se. À porta do gabinete de comunicações, Jack hesitou, virou-se para trás, para Riva, e disse:

— Se não te importas, também gostaria de tratar daquele suicídio duplo.

— Eu ponho lá o teu nome — prometeu Riva.

 

— Que tal assim? — sugeriu Laurie. — Ligo-lhe logo que termine a dizer-lhe o que descobri. Sei que não lhe vai trazer o seu filho de volta, mas talvez saber o que se passou lhe possa dar algum conforto, especialmente se formos capazes de aprender com esta tragédia, de impedir que torne a acontecer a outra pessoa. Se por uma improvável eventualidade continuarmos sem respostas depois da autópsia, telefono-lhe depois de ter tido oportunidade de fazer a análise ao microscópio e de lhe dar respostas definitivas.

Laurie sabia que aquilo que estava a sugerir era extraordinário e que introduzir discretamente a Srª. Donnatello no gabinete de relações públicas e fornecer-lhe informações preliminares haveria de irritar Bingham e Calvin, que eram ambos papistas em relação às regras, se um passarinho lhes dissesse. Laurie sentiu, contudo, que o caso McGillin justificava essa alteração no protocolo.

Bastou ter falado com eles apenas por um curto espaço de tempo para ficar a saber que Sean McGillin pai era médico reformado e que exercera durante muitos anos a especialidade de medicina interna em Westchester County. Ele e a esposa, Judith, que fora enfermeira no seu consultório, eram não apenas profissionais médicos seus colegas, como também extremamente simpáticos. Os McGillin projetavam uma honestidade e uma amabilidade superiores que fizeram com que Laurie gostasse imediatamente deles. Fizeram também com que lhe fosse impossível deixar de sentir a dor deles.

— Prometo manter-vos a par — continuou Laurie, esperando que a sua garantia permitisse que os McGillin fossem para casa. Tinham passado horas a fio no gabinete do médico-legista e era evidente que estavam ambos exaustos. — Vou encarregar-me pessoalmente do caso do vosso filho.

Laurie teve de desviar o olhar depois desse último comentário, sabendo tratar-se de algo deliberadamente enganador. Tornou a avistar o grupo de jornalistas na área da recepção, embora tentasse ignorá-los, e ouviu a alegria abafada que acompanhava a chegada de café e dos donuts. Laurie estremeceu. Infelizmente, enquanto os McGillin sofriam a sua dor privada, tinha lugar um circo dos media na sala ao lado. O fato de ouvirem gracejos e risos tornava necessariamente as coisas mais difíceis para os McGillin.

— Não é justo que não seja eu deitado ali em baixo naquele compartimento refrigerado — disse o Dr. McGillin sacudindo tristemente a cabeça. — A vida correu-me bem. Tenho quase setenta anos. Já fui submetido a duas cirurgias de bypass e tenho o colesterol demasiado elevado. Por que é que ainda estou aqui e o meu filho Sean está ali em baixo? Não faz sentido; ele sempre foi um rapaz saudável e ativo e ainda nem sequer fez trinta anos.

— O seu filho também tinha níveis elevados de desidrogenase láctica? — Perguntou Laurie. Janice não incluíra coisa alguma acerca disso no relatório do investigador forense.

— Nem por sombras — disse o Dr. McGillin. — Certifiquei-me no passado de que ele fazia análises uma vez por ano, e agora que a firma de advogados dele fez um contrato com a AmeriCare, que exige exames anuais, sei que continuava a ser controlado.

Depois de uma rápida espreitadela ao seu relógio, Laurie olhou os McGillin nos olhos, passando de um para o outro. Estavam sentados direitos como fusos no sofá castanho de vinil, de mãos entrelaçadas no colo, segurando as polaroids de identificação do filho morto. A chuva salpicava ininterruptamente o vidro. O casal fazia-lhe lembrar o homem e a mulher no quadro American Gothic. Irradiavam a mesma constância e virtude moral, juntamente com um toque de tacanhez puritana.

O problema de Laurie era que ela estava protegida a nível organizacional do lado emocional da morte e, como conseqüência, tinha uma experiência dela limitada. Lidar com as famílias de luto, bem como ajudá-las a passar pelo processo de identificação, era feito por outros. Sentia-se protegida também por uma espécie de distância acadêmica. Como patologista forense, via a morte como um puzzle a ser resolvido por forma a auxiliar os vivos. Havia ainda o fator de aclimatização: embora a morte fosse um acontecimento raro para o público em geral, ela via-a diariamente.

— O nosso filho ia casar-se na primavera — disse de súbito a Sra. McGillin. Não proferira palavra desde que Laurie se apresentara, quarenta minutos atrás. — Esperávamos vir a ter netos.

Laurie acenou. A referência aos filhos tocou-lhe um nervo sensível da sua própria psique. Tentou pensar em algo a dizer, mas foi salva quando o Dr. McGillin se pôs subitamente de pé. Pegou na mão da mulher e puxou-a para que se levantasse.

— Tenho a certeza de que a Drª. Montgomery tem de ir trabalhar — disse o Dr. McGillin. Anuiu como que concordando consigo mesmo, ao mesmo tempo em que reunia todas as polaroids e as metia no bolso. — É melhor irmos para casa. Deixamos Sean aos cuidados da doutora. — Retirou depois um pequeno bloco de papel e uma caneta do bolso interior do casaco. Depois de ter escrito nele, rasgou do bloco a primeira folha e estendeu-a a Laurie. — É o meu número particular. Ficarei a aguardar a sua chamada. Esperarei recebê-la antes do meio-dia.

Surpreendida e aliviada com a repentina reviravolta na situação, Laurie levantou-se. Pegou no papel e olhou para o número de forma a certificar-se de que estava legível. Tinha o indicativo 914, de Nova Iorque.

— Ligo assim que possa.

O Dr. McGillin ajudou a mulher a vestir o casaco antes de vestir o seu. Estendeu a mão para Laurie, que lha apertou, reparando que estava fria.

—Trate bem o nosso rapaz — disse o Dr. McGillin. — É o nosso único filho.

Com essas palavras, virou-se, abriu a porta da área de recepção e instou a mulher a avançar em direção à multidão de jornalistas.

Desesperados por notícias, os jornalistas mergulharam instantaneamente num silêncio cheio de expectativa quando surgiram os McGillin. Antecipando uma conferência de imprensa, todos os olhos seguiram o trajeto do casal. Tinham atravessado metade da área de recepção a caminho da porta principal quando alguém quebrou o silêncio e gritou:

— São da família Cromwell?

O Dr. McGillin abanou simplesmente a cabeça sem abrandar o passo.

— Estão relacionados com o caso da detenção policial? — Exigiu uma outra voz.

O Dr. McGillin tornou a abanar a cabeça.

Depois disso, os jornalistas voltaram a sua atenção para Laurie. Parecendo reconhecê-la como fazendo parte da equipa de médicos-legistas, alguns deles chegaram a esgueirar-se para o interior da sala de identificação. Seguiu-se uma avalanche de perguntas.

Começando por ignorar os jornalistas, Laurie elevou-se sobre as pontas dos pés para ver os McGillin saírem do GMLS. Só então olhou para as pessoas que se comprimiam em seu redor.

— Lamento — disse ela empurrando microfones. — Nada sei acerca desses casos. Terão de esperar pelo chefe.

Felizmente um membro do pessoal da segurança do GMLS surgira, vindo da área de recepção, e conseguiu reconduzir os jornalistas para o local de onde haviam saído.

Regressou um relativo silêncio à sala de identificação uma vez fechada a porta de ligação. Por um instante, Laurie manteve-se imóvel e os braços pendiam-lhe inertes junto ao corpo. Tinha a pasta de Sean McGillin numa mão e o número de telefone do pai rabiscado num papel na outra. Lidar com o pesaroso casal fora fatigante, especialmente dado sentir-se ela mesma frágil a nível psicológico. Havia porém um lado positivo. Conhecendo-se como se conhecia, sabia que era útil estar envolvida numa situação emocionalmente arrebatadora, porque isso conferia uma outra dimensão aos seus problemas. Manter a mente ocupada era um bom travão contra uma recaída naquilo que reconhecia agora como sendo um status quo inaceitável.

Fortalecida até certo ponto, Laurie encaminhou-se do gabinete de identificação enquanto guardava o número de telefone do Dr. McGillin no bolso.

— Onde é que está toda a gente? — Perguntou a Riva, que continuava ocupada com o processo de planificação.

—Tu e o Jack são os únicos que se encontram aqui de momento, Para além de Bingham, Washington e Fontworth.

— Referia-me ao detetive Soldano e a Vinnie.

— Jack chegou aqui e levou-os a ambos para a cova. O detetive pediu a Jack que tratasse do caso Cromwell.

— É curioso — fez notar Laurie. Geralmente, Jack evitava casos que atraíssem muita atenção dos media e por certo o caso Cromwell inseria-se nessa categoria.

— Pareceu genuinamente interessado no caso — disse Riva, como que lendo o sorriso de Laurie. — Também pediu o do duplo suicídio, coisa que eu não esperava. Fiquei com a sensação de que tinha um motivo por trás, mas não faça idéia do que possa ter sido.

— Por acaso não sabes se já está cá algum dos restantes técnicos? Gostava de começar com o caso McGillin.

— Vi Marvin há uns minutos. Foi buscar café e desceu.

— Ótimo! — disse Laurie. Gostava de trabalhar com Marvin. Estivera a trabalhar de noite, mas recentemente mudara para o turno de dia. — Estarei na cova se precisares de mim.

— Vou ter de te atribuir pelo menos mais um caso. Trata-se de uma overdose. Desculpa. Bem sei que disseste ter tido uma noite má, mas hoje temos um horário completo.

— Está bem — assegurou-lhe Laurie. Avançou para ir buscar a pasta da overdose.  — O trabalho é uma boa maneira de manter a mente afastada dos meus problemas.

— Problemas? Que espécie de problemas?

— Nem me fales! — Disse Laurie com um aceno de rejeição. — É a velha história, a velha história com Jack, mas esta manhã falei abertamente com ele. Sei que pareço um disco riscado, mas desta vez é a sério. Vou mudar-me para o meu apartamento. Ele vai ter de tomar uma decisão, num sentido ou no outro.

— Isso é ótimo para ti—respondeu Riva. — Talvez me dê forças.

Além de partilharem um gabinete, Laurie e Riva tinham-se tornado amigas. O namorado de Riva resistia tanto aos compromissos como Jack, mas por razões distintas, de modo que ela e Laurie tinham muito sobre o que conversar.

Depois de ter ponderado por um momento se deveria ou não tomar café e ter acabado por decidir não o fazer, por receio de ficar com tremores, Laurie saiu para ir procurar Marvin. Embora fosse descer apenas um andar, dirigiu-se ao elevador. Estava exausta por não ter dormido, tal como soubera que ficaria quando se vira incapaz de tornar a adormecer nessa manhã. Contudo, em lugar de se sentir irritada consigo mesma, sentia-se satisfeita. Certamente não estava feliz, devido aos seus sentimentos por Jack, e sabia que se iria sentir sozinha, mas sentia que fizera o que tinha de fazer e, nesse sentido, estava satisfeita.

Quando Laurie passou pelo gabinete dos investigadores forenses, espreitou para o interior e perguntou se Janice já se fora embora. Bart Arnold, o investigador chefe, respondeu-lhe afirmativamente, mas perguntou-lhe se a poderia ajudar. Laurie respondeu que falaria com ela noutra ocasião e prosseguiu o seu caminho. Queria apenas informar Janice da conversa que tivera com os McGillin. Pensou que Janice estaria interessada. O fato de o caso ter penetrado as defesas emocionais de Janice, geralmente bastante fortes, fora o que começara por intrigar Laurie.

Marvin encontrava-se na sala mortuária debruçado sobre a porção que lhe competia de infinita papelada que inundava o GMLS. Já vestira o material verde antecipando a descida à "cova", o termo que todos gostavam de usar referindo-se à principal sala de autópsias, para ir trabalhar. Ergueu os olhos quando Laurie surgiu à porta. Era um afro-americano de aspecto atlético com a pele mais imaculada que Laurie já vira. Quando o conhecera, Laurie sentira-se imediatamente invejosa.

Laurie era sensível no que dizia respeito à sua tez. Juntamente com a sua coloração loura, tinha uns salpicos de sardas na cana do nariz, bem como algumas outras imperfeições espalhadas pelo rosto que só ela via. Embora tivesse herdado o cabelo castanho com reflexos ruivos do pai, a pele quase transparente e os olhos azuis-esverdeados eram da mãe.

— Estás pronto para a ação? — Perguntou Laurie num tom jocoso. Sabia por experiência própria que se sentiria melhor se não agisse com cansaço.

— Alinho, amiga! — respondeu Marvin. Laurie entregou-lhe as pastas.

— Quero tratar primeiro de McGillin.

— Não há problema — disse Marvin, consultando o registro para saber a localização do cadáver.

Laurie foi primeiro à sala dos cacifos para recolher o material verde e depois ao armazém para vestir o "fato lunar", que era o termo usado pelo pessoal para descrever o equipamento protetor necessário para fazer as autópsias. Eram fabricados com um material completamente impermeável, com toucas e máscaras de rosto inteiro anexadas. O fato recebia o ar através de um filtro HEPA com um ventilador incorporado que funcionava a bateria, a qual tinha de ser carregada todas as noites. Os fatos não eram populares, uma vez que dificultavam o trabalho, mas todos aceitavam a inépcia em troca de paz de espírito, exceto Jack. Sabia que quando Jack estava de serviço aos fins-de-semana era freqüente dispensar o fato lunar em certos casos em que sentia que o risco de ser contaminado por um agente infeccioso era baixo. Nessas circunstâncias, retomava os tradicionais óculos de proteção e a máscara facial cirúrgica. Os técnicos pareciam não se importar em manter o segredo. Se Calvin viesse a descobrir, haveria muitas contas a prestar.

Depois de ter vestido o equipamento, Laurie fez o caminho de regresso ao corredor central, dirigindo-se de seguida até a porta da antecâmara, onde se lavou e calçou as luvas. Assim preparada, entrou na sala de autópsias.

Mesmo trabalhando para o GMLS havia treze anos, Laurie continuava a sentir o formigueiro de excitação ao entrar no que considerava ser o centro da ação. Não seria por certo a experiência visual, pois nesse aspecto, a sala ladrilhada e desprovida de janelas, com as suas luzes fluorescentes de um branco azulado, era um desconsolo. As oito mesas de aço inoxidável estavam ameigadas e manchadas graças a incontáveis autópsias. Pendia sobre cada uma delas uma antiquada balança de mola. Ao longo das paredes, estavam em exposição canos, antiquados quadros para ver raios-X, velhos armários de portas de vidro contendo uma série de instrumentos medonhos e lavatórios de esteatite lascados. Mais de meio século antes, fora um laboratório de vanguarda e o orgulho do GMLS, mas agora sofria de falta de fundos, quer para se modernizar, quer para uma manutenção adequada. No entanto, a planta física do edifício não perturbava Laurie. A sua mente nem sequer registrava o cenário. A sua reação baseava-se no fato de saber que haveria de aprender algo de novo de cada vez que entrasse na sala.

Das oito mesas, três estavam ocupadas. Uma delas suportava o cadáver de Sean McGillin, ou assim inferia Laurie, uma vez que Marvin andava por ali às voltas nas preparações finais. Os outros dois, mais perto do local onde Laurie se encontrava, continham cadáveres a meio do processo. Diante de si, estava deitado um homem corpulento e de tez escura. Quatro pessoas que usavam “fatos lunares” idênticos ao de Laurie trabalhavam nele. Embora os reflexos projetados das máscaras de plástico curvas de rosto inteiro dificultassem a identificação, Laurie reconheceu Calvin Washington. A sua estatura de dois metros de altura e cento e quinze quilos de peso era difícil de ocultar. Em relação ao outro, julgou tratar-se de Harold Bingham, devido à sua contrastante estatura baixa e atarracada. Os restantes dois teriam de ser George Fontworth e Sal D'Ambrosio, o técnico mortuário, mas como eram aproximadamente da mesma estatura, não conseguia distingui-los.

Laurie avançou para os pés da mesa. Mesmo à sua frente havia um cano que emitia um grosseiro ruído de sucção. A água corria continuamente pela superfície da mesa por baixo do cadáver para limpar quaisquer fluidos corporais.

— Fontworth, mas onde raios é que aprendeste a usar o bisturi?— Resmungou Bingham.

Era agora óbvio qual das figuras cobertas era George. Encontrava-se à direita do paciente com as mãos algures no espaço retro-peritoneal do defunto, tentando aparentemente seguir o rasto de uma bala. Laurie não conseguia evitar sentir uma ponta de solidariedade para com George. Sempre que Bingham ia à sala de autópsias gostava de adotar o papel do professor, mas ficava invariavelmente impaciente e irritado. Embora Laurie soubesse que podia sempre aprender com ele, não gostava das ofensas que isso implicava. Era demasiada pressão.

Sentindo que o ambiente em torno da primeira mesa era excessivamente pesado para que fizesse perguntas, Laurie avançou até a segunda mesa. Não teve qualquer dificuldade em reconhecer ali Jack, Lou e Vinnie. Sentiu imediatamente que a atmosfera ali era o oposto, com algum riso semi-reprimido que esmoreceu quando ela chegou. Laurie não estava surpreendida. Jack era famoso pelo seu humor negro. O cadáver era de uma mulher de meia-idade, magra, quase emaciada, de cabelo louro descolorado e quebradiço. Laurie partiu do princípio de que se tratava de Sara Cromwell. Particularmente relevante era o punho de uma faca de cozinha saliente de um ângulo agudo e apontado para a extremidade anterior do corpo a partir da sua posição na superfície superior externa e anterior da coxa direita. Laurie não estava surpreendida por ver que o utensílio ainda se encontrava no lugar. Em casos desses, os médicos-legistas preferiam que tais objetos fossem deixados in situ.

— Espero que estejas a demonstrar um razoável respeito pelos mortos — escarneceu Laurie.

— Nem um instante de enfado — respondeu Lou.

— E eu não sei por que é que continuo a rir das mesmas piadas — queixou-se Vinnie.

— Diga-me, Drª. Montgomery — disse Jack num exagerado tom profissional. — Na sua opinião profissional, consideraria que esta penetrante perfuração na coxa seria um ferimento mortal?

Inclinando-se ligeiramente de forma a melhor poder aceder ao ponto de perfuração, Laurie observou a faca com maior atenção. Parecia tratar-se de uma pequena faca de cozinha, cuja lâmina ela calculava que deveria ter uns dez centímetros de comprimento, que se enterrara até ao cabo na parte lateral do fêmur. Mais importante ainda, a entrada era inferior ao osso ilíaco anterior, mas alinhada com ele.

— Seria obrigada a dizer que não fora fatal — respondeu Laurie. —A sua localização sugere que a artéria femoral teria sido poupada, de modo que a hemorragia teria sido mínima.

— E, Dra. Montgomery, o que é que o ângulo de entrada da arma sugere?

— Seria obrigada a dizer que se trata de uma maneira pouco ortodoxa de se esfaquear uma vítima.

— Ora aí está, cavalheiros — comentou Jack com um ar convencido. — Temos a confirmação da minha avaliação pela eminente Drª. Montgomery.

— Mas havia sangue por toda a parte — lamentou-se Lou. — De onde raio é que ele veio? Não há mais ferimentos.

— A-hã! — Disse Jack, mudando para uma pronúncia francesa exagerada, de dedo espetado no ar. — Creio que o veremos dentro de poucos instantes. Monsieur Amendola, le couteau, si vous plait!

Apesar do clarão projetado de cima pelas luzes fluorescentes na máscara facial de Vinnie, Laurie viu-o a revirar os olhos enquanto passava o bisturi para a mão de Jack, que aguardava. Ele e Jack tinham uma relação curiosa. Embora se baseasse num respeito mútuo, fingiam que era o oposto.

Deixando os três por sua conta, Laurie avançou. Sentia uma ligeira decepção por Jack ser tão descontraído e frívolo. Não conseguia evitar sentir que não se tratava de um sinal particularmente bom, como se ele não se importasse com isso.

Laurie esforçou-se por afastar da mente os problemas com Jack ao aproximar-se da mesa seguinte. Estirado na sua superfície ligeiramente angular encontrava-se o corpo de um homem bem musculado na casa dos vinte, com a cabeça escorada num bloco de madeira. Deu início ao exame externo por instinto. O indivíduo parecia saudável. A pele visível do corpo, apesar de ser do branco de mármore da morte, não apresentava quaisquer lesões.

Tinha o cabelo espesso e escuro e os olhos fechados como que em repouso. As únicas anomalias visíveis eram uma incisão suturada com um tubo retido na parte inferior da perna direita, a extremidade tapada de fio intravenoso que lhe corria o interior do braço esquerdo e um tubo endotraqueal que lhe saía pela boca, ali deixado na seqüência da tentativa de reanimação.

Com Marvin ainda ocupado a colocar rótulos em frascos de amostras para análise, Laurie verificou o número e o nome de registro do cadáver. Convicta de que estava a lidar com Sean McGillin, prosseguiu com o exame externo, inspecionando cuidadosamente o local da injeção intravenosa. Parecia completamente normal, sem qualquer inchaço ou outros indícios de perda de sangue ou de fluído intravenoso. Olhou mais cuidadosamente para a ferida suturada na operação da tíbia e fíbula fraturadas. Também não havia aí qualquer inchaço ou descoloração, o que sugeria não haver infecção. O tubo estava suturado no sítio com um único ponto solto de seda negra e havia indícios de uma descarga mínima de líquido seroso. A perna propriamente dita era idêntica à outra, sem quaisquer sinais externos de trombose venosa ou de coágulo.

— Não vi nada de relevante a nível externo — disse Marvin ao regressar com uma mão cheia de seringas esterilizadas e frascos de amostras para análises, alguns deles contendo conservantes e outros não. Colocou-os a todos na berma da mesa para os tornar imediatamente disponíveis.

— Até agora, terei de concordar — foi a resposta de Laurie.

Eram trocados muitos comentários entre os técnicos e os médicos, embora variassem de acordo com as personalidades. Laurie incentivava sempre os comentários e as sugestões, especialmente por parte de Marvin. No que lhe dizia respeito, os técnicos eram uma abundante fonte de experiência.

Marvin foi até ao armário de portas de vidro para ir buscar os instrumentos. Apesar do zumbido do ventilador, Laurie ouvia o som de um assobio. Ele estava sempre bem-disposto, que era outra das coisas que apreciava nele.

Depois de ter procurado sinais de uso de drogas intravenosas e não os ter encontrado, Laurie usou um espéculo nasal para observar o interior do nariz de Sean. Não havia qualquer indício de uso de cocaína. No caso de uma morte misteriosa, a hipótese das drogas tinha de ser considerada, apesar daquilo que os pais dele tinham dito em contrário. Em seguida, abriu-lhe as pálpebras para lhe examinar os olhos. Pareciam normais, sem qualquer hemorragia na esclerótica. Abriu-lhe a boca para se certificar de que o tubo endotraqueal se encontrava na traquéia e não no esôfago. Laurie observara esse fenômeno em algumas ocasiões, com os resultados desastrosos previstos.

Completados todos os seus preparativos, Marvin regressou à parte lateral da mesa, frente a Laurie, e ali permaneceu, expectante, a aguardar o início da parte interna da autópsia.

— Muito bem! Vamos a isto! — Disse Laurie estendendo a mão enquanto Marvin lhe passava o bisturi.

Embora Laurie tivesse realizado milhares de autópsias, sempre que começava uma sentia um formigueiro de excitação. Iniciar a autópsia propriamente dita era como abrir um livro sagrado, cujos mistérios estava prestes a descobrir. Com o dedo indicador a pressionar a parte superior do bisturi, Laurie realizou a habitual incisão em forma de Y com perícia, começando das extremidades dos ombros, indo encontrar-se a meio do esterno e continuando depois até o púbis. Com o auxílio de Marvin, dobrou rapidamente para trás a pele e o músculo antes de remover o esterno com um cortador de osso.

— Parece uma costela partida — comentou Marvin apontando para um defeito do lado direito do peito.

— Não há hemorragia, por isso foi posterior à morte, provavelmente resultante da tentativa de reanimação. Algumas pessoas entusiasmam-se com as compressões no peito.

— Uau! — Exclamou Marvin em solidariedade.

Na expectativa de encontrar coágulos de sangue ou outras embolias, Laurie estava ansiosa por examinar as artérias que conduziam ao coração, o próprio coração e as artérias pulmonares, onde geralmente se encontravam coágulos fatais. Mas resistiu a essa tentação. Sabia que o melhor era seguir um protocolo normal, para que nada fosse esquecido. Examinou cuidadosamente todos os órgãos internos in situ, usando depois as seringas que Marvin lhe apresentava para retirar amostras de fluido para testes toxicológicos. Tinha de ser considerada a hipótese de uma reação fatal a uma droga, a uma toxina ou até a um agente anestésico. Tinham passado menos de vinte e quatro horas desde que o defunto levara uma anestesia.

Laurie e Marvin trabalharam juntos em silêncio, certificando-se de que cada amostra era colocada no recipiente corretamente rotulado. Uma vez obtidas as amostras dos fluidos, ela começou a remover os órgãos internos. Manteve diligentemente a seqüência normal e só um pouco mais tarde conseguiu finalmente centrar a sua atenção no coração.

— Será que nos vai sair a sorte grande? — Brincou Marvin.

Laurie sorriu. Era com efeito no coração que ela esperava encontrar a patologia. Com uns quantos golpes hábeis, o coração foi retirado. Ela espreitou para a extremidade cortada da veia cava, mas não havia coágulos. Ficou decepcionada, dado que reparara já que as artérias pulmonares se encontravam limpas ao remover os pulmões.

Laurie pesou o coração, e depois, com uma faca de lâmina comprida, encetou um exame interno. Para grande contrariedade sua, nada havia de incorreto. Não havia qualquer coágulo e até as artérias coronárias pareciam perfeitamente normais. Os olhares de Laurie e de Marvin cruzaram-se.

— Raios! — Desabafou Marvin.

— Estou surpreendida — disse Laurie. Respirou fundo. — Bem, vê tu as entranhas enquanto eu levo as minhas micro-amostras, e depois verificamos o cérebro.

— Com certeza — disse Marvin. Levou o estômago e os intestinos para o lavatório e lavou-os.

Laurie retirou múltiplas amostras de tecido para estudo microscópico, em especial do coração e dos pulmões.

Marvin devolveu o intestino a Laurie, que o analisou cuidadosamente, retirando amostras à medida que ia prosseguindo com o trabalho. Entretanto, Marvin começou pela cabeça, dobrando para trás o couro cabeludo. Quando Laurie terminou os intestinos e o estômago, Marvin estava preparado para que ela inspecionasse o crânio. Ela levantou o polegar quando terminou e ele içou a serra de motor vibrante para cortar o osso mesmo acima das orelhas.

Enquanto Marvin se ocupava do crânio, Laurie pegou num par de tesouras e abriu a ferida suturada na parte inferior da perna. Tudo parecia em ordem no espaço da cirurgia. Abriu depois as compridas veias das pernas, percorrendo por inteiro o seu percurso desde os tornozelos até ao abdômen. Não havia coágulos.

— O cérebro parece-me normal — comentou Marvin.

Laurie anuiu. Não havia qualquer inchaço ou hemorragias e a cor era normal. Palpou-o com o seu dedo experiente. Era também normal ao toque.

Passados uns minutos, Laurie retirou o cérebro e deixou-o cair numa bacia que Marvin segurava. Verificou as extremidades cortadas das artérias carótidas. Tal como tudo o resto, eram normais. Pesou o cérebro. O peso encontrava-se dentro dos limites normais.

— Não estamos a encontrar nada — disse ela.

— Lamento — disse Marvin.

Laurie sorriu. Além das outras boas qualidades que possuía, demonstrava compreensão.

— Não precisas de lamentar. A culpa não é tua.

— Seria bom encontrarmos alguma coisa. O que é que estás a pensar? Não parece haver motivo para a sua morte.

— Não faço a mínima idéia. Espero que o microscópio nos esclareça, mas não estou muito otimista. Parece tudo tão normal. Por que é que não começas a coser enquanto eu corto o cérebro em seções? Não consigo pensar em nada mais que fazer.

— Com certeza — disse Marvin alegremente.

Tal como Laurie antecipara, o interior do cérebro era semelhante ao exterior. Ela pegou nas amostras adequadas e foi juntar-se a Marvin para suturar o cadáver. Com os dois a trabalhar, foi uma questão de uns minutos.

— Gostaria de tratar do meu próximo caso o mais depressa possível — disse Laurie. — Espero que não te importes.

Receava que caso se sentasse, a fadiga a atingisse com força renovada. Nesse momento, sentia-se melhor do que esperara.

— De modo nenhum — disse Marvin. Já se estava a endireitar.

Laurie olhou em redor da cave. Estivera tão embrenhada que nem vira toda a agitação por ali. Nesse momento, estavam a ser usadas as oito mesas, com pelo menos duas pessoas, e por vezes mais, à volta de cada uma. Olhou de relance para a mesa de Jack, que estava inclinado sobre a cabeça de outro cadáver de mulher. Aparentemente já terminara Sara Cromwell e Lou partira. Para lá da mesa de Jack, Calvin continuava a trabalhar com Fontworth no mesmo cadáver de antes. Aparentemente, Bingham saíra para dar a sua conferência de imprensa.

— Quanto tempo demoram os resultados a sair? — Perguntou Laurie a Marvin enquanto ele levava os recipientes com amostras.

— Pouco.

Laurie deambulou na direção de Jack com uma mistura de sentimentos. Não estava preparada para uma nova dose da frivolidade dele, mas depois da anterior provocação relativa a Cromwell, estava curiosa acerca do que teria ele descoberto. Laurie deteve-se aos pés da mesa. Jack estava intensamente concentrado a fazer um molde de uma lesão na testa da mulher, mesmo junto à linha do cabelo. Laurie permaneceu ali por um instante, esperando que ele desse pela sua presença. Vinnie erguera imediatamente o olhar e fizera-lhe pelo menos um aceno contido.

— O que é que descobriste no teu primeiro caso? — Perguntou Laurie por fim.

Parecia improvável que ele não a tivesse visto, mas tinha de ser esse o caso. Ela não queria pensar de outra forma.

Passaram mais uns minutos sem que Jack lhe respondesse. Olhou para Vinnie, que estendeu as mãos, de palmas para cima, e encolheu os ombros como que indicando que não havia explicação para o comportamento de Jack. Laurie manteve-se ali durante mais um instante, insegura em relação ao que fazer antes de continuar. Embora estivesse ciente de que Jack tinha a capacidade de se deixar absorver a ponto de esquecer tudo o que o rodeava, era humilhante para ela permanecer ali.

As coisas não corriam muito melhor na mesa de Fontworth. Embora Bingham tivesse partido, Calvin continuava a massacrar o pobre Fontworth com o mesmo veneno à medida que o caso se arrastava interminavelmente. Depois de uma rápida olhadela para as outras cinco mesas, Laurie desistiu de sociabilizar e regressou para dar uma mãozinha a Marvin.

— Posso ir buscar um dos outros técnicos para nos ajudar — disse Marvin. Fora buscar uma marquesa e colocara-a ao lado da mesa.

— Não me importo — disse Laurie.

Noutros tempos, não havia muito, os examinadores ter-se-iam levantado entre casos para irem, ou à sala de identificação, ou à cantina para um café rápido e discussões espontâneas. Porém, com o aparato de proteção mais elaborado que lhes era exigido usarem, isso dava muito trabalho.

Uma vez colocados os restos mortais de Sean McGillin na câmara frigorífica com entrada direta, Marvin conduziu Laurie ao compartimento apropriado para o caso seguinte, o de um homem chamado David Ellroy. No instante em que Marvin puxou a gaveta para expor o cadáver de um afro-americano magro, subnutrido, de meia-idade, Laurie recordou-se de que se tratava de uma presumível overdose. O seu olho clínico avistou imediatamente as cicatrizes e os vestígios do seu hábito intravenoso nos braços e nas pernas. Embora Laurie estivesse habituada a casos de overdose, continuavam a ter a capacidade de produzir em si uma reação emocional. Com menos controlo sobre os seus pensamentos do que era costume, a sua mente arrastou-a para um dia fresco, nítido e ventoso do mês de outubro de 1975 quando correra do liceu, a Escola Langley para Raparigas, para casa. Vivia com os pais num apartamento grande, anterior à guerra, em Park Avenue. Era a sexta-feira anterior ao fim-de-semana alargado do dia de Colombo e estava entusiasmada porque Shelly, o único irmão, chegara na noite anterior de Yale, onde era caloiro.

Quando Laurie saíra do elevador no seu átrio privado, sentiu uma quietude perturbadora. Nenhum dos sons habituais era emitido através da abertura na porta da divisão da lavanderia. Entrou no apartamento propriamente dito e chamou Shelly pelo nome enquanto arrecadava os livros na consola situada na sala de estar antes de atravessar a cozinha. Como não viu Holly, sentiu-se momentaneamente aliviada, lembrando-se de que era o dia de folga da empregada. Tornou a gritar o nome de Shelly enquanto espreitava o cantinho atrás da sala de estar. A televisão estava ligada sem som, o que aumentava o seu desconforto. Viu durante um instante as palhaçadas de um concurso televisivo que passava ao meio-dia e perguntou-se porque é que a televisão haveria de estar ligada sem som. Retomando a ronda pelo apartamento, chamou uma vez mais pelo nome de Shelly, convicta de que tinha de estar alguém em casa. Ao passar pela sala de jantar formal começou a deslocar-se com maior rapidez, sentindo uma secreta urgência.

A porta de Shelly estava fechada. Ela bateu, mas não obteve resposta. Bateu de novo antes de tentar abri-la. Estava destrancada. Empurrou-a, abrindo-a, e viu o adorado irmão estendido sobre o tapete, somente em cuecas. Para seu horror, gotejava-lhe da boca uma espuma ensangüentada e a sua cor geral era pálida como a porcelana de osso no centro da sala de jantar. Tinha um garrote apertado frouxamente em redor do braço. Havia uma seringa perto da mão semi-aberta. Em cima da secretária encontrava-se um envelope transparente, que Laurie calculou conter speedball, uma mistura de heroína e cocaína de que ele fizera alarde na noite anterior. Laurie assimilou tudo instantaneamente antes de cair de joelhos para tentar ajudá-lo.

Com alguma dificuldade, Laurie arrastou-se de volta ao presente. Não queria pensar acerca da sua vã tentativa de reanimar o irmão. Não queria recordar-se de como os seus lábios eram frios e sem vida quando lhes tocou com os seus.

— Podes ajudar-me a pô-lo na marquesa? — pediu-lhe Marvin. — Não é muito pesado.

— Claro — disse Laurie, feliz por poder ajudar.

Pousou a pasta de David e ajudou-o. Passados alguns minutos, estavam de regresso à sala de autópsias. Lá dentro, quando Marvin manobrava a marquesa para a colocar junto da mesa, um dos outros técnicos ajudou Marvin a passar o cadáver para a mesa. Laurie via os vestígios secos de uma espuma ensangüentada que brotara da boca de David e essa imagem arrastou-a de novo para as suas perturbantes memórias. Não era a tentativa fracassada de auxiliar o irmão que lhe ocupava os pensamentos, mas antes o confronto com os pais que tivera de sofrer algumas horas mais tarde.

— Sabias que o teu irmão se drogava? — perguntara-lhe o pai. Tinha o rosto purpúreo de raiva e estava a uns meros centímetros do rosto de Laurie. Os seus polegares cravaram-se na pele dela nos pontos onde ele lhe agarrou os braços. — Responde-me!

— Sim! — explodiu Laurie por entre lágrimas. — Sim, sim.

— Também te drogas?

— Não!

— Como é que soubeste que ele se drogava?

— Por acidente: encontrei uma seringa que ele retirara do teu escritório no saco de toilette dele.

Deu-se um silêncio momentâneo enquanto os olhos do pai se estreitavam e os seus lábios se esticavam numa linha fina e cruel.

— Por que é que não nos contaste? — Grunhiu ele. — Se nos tivesses contado, ele estaria vivo.

— Não podia — soluçou Laurie.

— Por que? — Berrou ele. — Diz-me por que!

— Porque... — Laurie chorava. Fez uma pausa e acrescentou: — Porque ele me pediu que não o fizesse. Obrigou-me a prometer. Disse-me que nunca mais me tornaria a falar se eu contasse.

— Bem, essa promessa matou-o! — silvou o pai. — Matou-o tanto como a maldita droga!

Uma mão agarrou o braço de Laurie e ela deu um salto. Virou-se e viu Marvin.

— Há algo de especial que queiras para este caso? — perguntou Marvin, designando com um gesto o cadáver de David. — A mim parece-me bastante evidente.

— Apenas o costume — disse Laurie.

Enquanto Marvin ia buscar o equipamento necessário, Laurie respirou fundo para se controlar a si mesma. Sabia intuitivamente que teria de manter a mente ocupada para evitar desenterrar más recordações. Abriu a pasta que tinha na mão, vasculhou os papéis até encontrar o relatório de investigação forense de Janice e começou a lê-lo. O cadáver fora encontrado juntamente com uma parafernália associada ao consumo de drogas num Dumpster[1]' sugerindo que David teria morrido numa casa de chuto e sido atirado fora com o resto do lixo. Laurie suspirou. Lidar com casos desses era o lado negativo do seu trabalho.

Passada uma hora, e usando de novo as roupas de sair, Laurie entrou no elevador das traseiras. O caso de overdose fora de rotina. Não tivera surpresas; David Ellroy revelara os habituais sinais de morte por asfixia com edema pulmonar espumoso. As únicas descobertas ligeiramente interessantes eram múltiplas lesões minúsculas e discretas em vários órgãos, que sugeriam que ele sofrera numerosos episódios de infecções provocadas pelo vício.

Enquanto o antiquado elevador subia a tinir em direção ao quinto piso, Laurie pensava em Jack. Quando ela terminara o seu trabalho em David Ellroy, já ele iniciara o terceiro caso. Entre o segundo e o terceiro, saíra da sala, empurrando a marquesa com Vinnie a orientá-la.

Mesmo do local onde estava postada, Laurie podia ouvir as habituais brincadeiras. Cinco minutos mais tarde reapareceram ambos, trazendo consigo o novo caso, ao mesmo tempo em que prosseguiam com o mesmo comportamento de dizer piadas. Transferiram depois o cadáver para a mesa e fizeram os preparativos antes de começar a operação. Jack não fez, em nenhum momento durante todo esse processo, qualquer tentativa de se aproximar da mesa de Laurie, meter conversa com ela ou até de olhar na sua direção. Laurie encolheu os ombros. Quer ela o quisesse admitir, quer não, tornava-se óbvio que ele a estava a ignorar ativamente. Tal comportamento era-lhe pouco característico. Conhecia-o havia nove anos e, ao longo de todo esse tempo, nunca ele fora agressivo-passivo.

Antes de ir para o seu gabinete, Laurie parou no laboratório de histologia. Levava consigo, além das pastas dos casos, um saco de papel castanho contendo as amostras de tecido e de toxicologia de McGillin. Não tardou a localizar Maureen O'Conner, a supervisora. A mulher ruiva encorpada e de grandes seios estava sentada ao microscópio, a verificar uma fileira de lamelas. Ergueu o olhar quando Laurie se aproximava. Vislumbrou-se um sorriso astucioso no rosto carregado de sardas.

— Que temos nós aqui agora? — Perguntou Maureen com o seu marcado sotaque irlandês. — Deixa-me adivinhar: amostras de tecido cujas lamelas precisas desesperadamente para ontem.

Laurie sorriu com uma expressão de culpa.

— Serei mesmo assim tão previsível?

— É sempre a mesma história contigo e com o Dr. Stapleton. Sempre que vocês os dois aqui entram precisam ter as lamelas imediatamente. Mas permite-me que te lembre uma coisa, amiga: os teus pacientes já estão mortos. — Maureen riu-se com gosto e alguns dos outros técnicos de histologia que a ouviram juntaram-se-lhe.

Laurie deu por si a rir também por entre dentes. A exuberância de Maureen era contagiosa e nunca variava, apesar de o laboratório estar cronicamente carente de pessoal devido às restrições de orçamento do GMLS. Laurie abriu o saco, retirou de lá as amostras de tecido e alinhou-as junto do microscópio de Maureen.

— Talvez servisse de ajuda se eu te contasse porque é que gostaria muito de as ter o mais cedo possível.

— Da maneira como andamos atarefados por aqui, dava-nos mais jeito umas mãos adicionais que conversa, mas força.

Laurie procurou por todos os meios explicar-se, sabendo que não havia qualquer razão profissional para aquilo que estava a pedir. Começou por descrever como era fácil criar empatia com o Dr. McGillin e a sua esposa e como o seu filho morto parecia ter sido a razão de viver deles. Referiu-se até ao iminente casamento do filho e à esperança dos pais em terem netos. Admitiu de seguida ter prometido ao casal que lhes diria a causa de morte do filho nessa manhã para os ajudar no seu luto. O problema era que a autópsia fracassara em confirmar a causa da morte. Assim sendo, ela precisava das lamelas, na esperança de que as respostas não tardassem. Aquilo que não explicou foram as suas razões pessoais para levar a cabo essa mini-cruzada.

— Bem, é uma história bastante comovente — disse Maureen suavemente. Respirou fundo e reuniu as amostras. — Vamos ver o que podemos fazer. Prometo-te que vamos tentar.

Laurie agradeceu-lhe e apressou-se a sair do gabinete de histologia. Olhou de relance para o seu relógio. Já passava das onze e ela queria telefonar ao Dr. McGillin antes do meio-dia. Pelas escadas, desceu um andar e dirigiu-se ao laboratório de toxicologia. Ali, a atmosfera era diferente da do laboratório de histologia. Em lugar da tagarelice de vozes, ouvia-se o zumbido contínuo do equipamento sofisticado e, na sua maioria, automatizado. Laurie precisou de uns instantes para conseguir localizar alguém. Para seu alívio, viu Peter Letterman, o assistente do diretor. Se tivesse visto John DeVries, o diretor do laboratório, Laurie ter-se-ia ido embora. Ela e John tinham começado com o pé esquerdo quando Laurie precisara desesperadamente de resultados mais rápidos numa série de casos de overdose de cocaína e aborrecera o homem. Isso tivera lugar treze anos antes, quando Laurie estava a começar no GMLS, e John agarrara-se a sua animosidade como um cão a um osso. Havia muito que Laurie Desistira de tentar remediar as coisas.

—A minha médica-legista preferida! — disse Peter alegremente ao avistar Laurie.

Era um homem magro e louro com traços andróginos e quase sem barba. Usava o cabelo comprido preso num rabo de cavalo e, embora se aproximasse dos quarenta anos, ainda podia passar por adolescente. Ao contrário de John, dava-se lindamente com Laurie.

— Tens alguma coisa para mim?

— Sem dúvida que sim — disse Laurie. Entregou-lhe o saco enquanto procurava cautelosamente John com o olhar.

— O Fuhrer está lá em baixo no laboratório geral, por isso podes descontrair.

— É o meu dia de sorte — comentou Laurie.

Peter deu uma vista de olhos aos frascos de amostras.

— Qual é o assunto? Para que é que estou a olhar e por que? — Laurie transmitiu-lhe uma versão mais breve da mesma história que contara a Maureen. No final, acrescentou: — Não estou realmente à espera que encontres alguma coisa, mas tenho de olhar para tudo, especialmente se o microscópio nada me mostrar.

— Vou ver o que posso fazer — disse Peter.

— Agradeço-te — respondeu Laurie.

Depois de ter tornado a subir o único lanço de escadas, Laurie seguiu pelo corredor em direção ao seu escritório. Passou pelo de Jack, cuja porta estava entreaberta, mas nem Jack nem Chet McGovern, o seu colega de gabinete, se encontravam no gabinete. Laurie partiu do princípio que ainda estariam ambos lá em baixo na cova. Ao entrar no seu escritório, avistou imediatamente a mala que levara de casa de Jack. Embora não tivesse esquecido o confronto dessa manhã, ver a mala trouxe-lhe o episódio à memória com uma desagradável clareza. Também não ajudava o fato de se sentir desapontada por não ter encontrado algo de conclusivo durante a autópsia a Sean McGillin. Quanto mais pensava sobre isso, mais surpreendente lhe parecia. Como poderia morrer um homem aparentemente saudável de vinte e oito anos de idade sem que a causa se tornasse evidente graças à combinação do historial médico detalhado com a autópsia? Em alguns aspectos, o caso abalava ligeiramente a sua fé na patologia forense.

— É bom que o microscópio revele alguma coisa! — pronunciou Laurie em voz alta ao sentar-se à secretária.

Era convincente, mas não sabia bem como haveria de reagir perante a ameaça do fracasso do computador em realizar as suas expectativas. Dobrou-se para a frente e adicionou as pastas dos casos dessa manhã à considerável pilha de casos inacabados. Era tarefa sua comparar, para cada caso, todo o material da autópsia, dos investigadores forenses, dos laboratórios e de qualquer outra fonte de que necessitasse para a identificação de uma causa e um modo de morte. O significado de "causa" era evidente, ao passo que "modo" se referia a se a morte fora natural, acidental, suicida ou homicida, cada um dos quais com as respectivas ramificações legais específicas. Por vezes eram necessárias semanas para que todo o material ficasse disponível. Quando ficava, Laurie tinha de se decidir acerca da causa e do modo com base numa preponderância de indícios, o que significava que tinha de estar pelo menos cinqüenta e um por cento segura. É claro que na vasta maioria dos casos, ela se encontrava perto dos cem por certo de certeza.

Laurie retirou do bolso a folha de papel que continha o número de telefone do Dr. McGillin e alisou-a em cima dos registros à sua frente. Embora sentisse relutância em telefonar-lhe, sabia que tinha de cumprir a sua promessa. O problema era que Laurie não tinha jeito para qualquer espécie de confronto. Era ponto assente que ele se iria sentir ainda mais desapontado, uma vez não existir, até ao momento, qualquer causa aparente para a morte prematura do filho.

Com os cotovelos sobre a mesa, inclinou-se para massagear a testa ao mesmo tempo em que fitava o número de Westchester. Tentou pensar no que dizer, na esperança de mitigar o impacto. Por um brevíssimo instante considerou a hipótese de entregar a situação ao departamento de relações públicas, como era suposto que fizesse, mas depressa a excluiu, dado que se oferecera especificamente para ser a própria a fazer a chamada. Enquanto a sua mente se debatia com as palavras a dizer, deu por si a pensar no nome próprio da vítima, Sean, pois era o nome de um namorado seu dos tempos da faculdade.

Sean Machenzie fora um animado colega de curso na Wesleyan University que apelara ao lado rebelde de Laurie. Embora não fosse propriamente um marginal, passara um pouco das marcas com a moto, com a sua loucura artística e comportamento desordeiro, que incluía o uso moderado de drogas. Nessa altura, esse conjunto entusiasmara Laurie e deixara os seus pais perplexos, o que fazia parte da atração. Contudo, a relação pára-arranca revelara ser doentiamente volátil desde o início e Laurie acabara por lhe pôr um fim mesmo antes de ingressar no GMLS. Agora que a sua relação com Jack era posta em causa, pensou vagamente em ligar a Sean, uma vez que sabia que ele vivia na cidade e se tornara um artista com bastante êxito. Depressa rejeitou a idéia. Não queria reabrir, de modo algum, a caixa de Pandora.

— Um tostão pelos teus pensamentos? — perguntou-lhe uma voz.

A cabeça de Laurie levantou-se num sobressalto. A figura atlética, de dois metros, de Jack enchia-lhe o espaço aberto da porta. Ele era a personificação da informalidade descontraída na sua confortável camisa de cambraia, gravata de malha e jeans coçados.

— Vamos lá aumentar isso para vinte cêntimos — acrescentou.

— Houve uma significativa inflação desde que aprendi essa expressão e sei como os teus pensamentos são valiosos. — Um sorriso afetado e malandro fez-lhe umas covinhas nas faces. Tinha os lábios comprimidos numa linha fina.

Laurie contemplou o amigo de pelo menos uma década e amante de quase quatro anos. A alegria e o sarcasmo dele podiam ser esgotantes por vezes e esta era uma delas.

— Então agora dignas-te a falar comigo? — perguntou num tom igualmente afetado.

O sorriso de Jack vacilou.

— É claro que vou falar contigo. Mas que raio de pergunta é essa?

— Com exceção daquele breve joguinho professoral quando cheguei à sala de autópsias, tens-me ignorado ao longo de toda a manhã.

— Ignorar? — Inquiriu Jack de sobrolho carregado. —Acho que devo recordar-te de que viemos para o trabalho separados, que foi mais uma decisão tua que minha, chegamos a horas diferentes e, desde então, cada um de nós tem trabalhado nos respectivos casos.

— Como fazemos na maior parte dos dias, mas nos comunicando de forma quase contínua, especialmente quando estamos na mesma sala. Até fui junto da tua mesa durante o segundo caso e fiz-te uma pergunta direta.

— Não te vi nem te ouvi. Palavra de escoteiro. — Jack estendeu o indicador e o dedo médio em forma de V. Regressou-lhe o sorriso.

Laurie ergueu as sobrancelhas e encolheu os ombros. Provocava-o ao sugerir que não acreditava nele, mas não queria saber.

— Que maravilha! E agora temos mais que fazer. — Voltou de novo a atenção para o papel com o número de telefone de Westchester.

— Sem dúvida — disse Jack recusando-se a morder o anzol ou a ser mandado embora. — Como foram os teus casos esta manhã?

Laurie ergueu os olhos, mas não para Jack.

— Um deles foi rotina e bastante desinteressante. O outro foi uma decepção.

— Em que aspecto?

— Prometi a um casal cujo filho morreu no Manhattan General que descobria a causa da morte e os informava imediatamente, mas a autópsia estava limpa; não havia qualquer tipo de patologia grave. Agora tenho de lhes telefonar a dizer que teremos de ficar à espera que o microscópio fique disponível. Sei que vão ficar desiludidos, e eu também.

— Janice informou-me acerca desse caso — disse Jack. — Não encontraste nenhuma embolia?

— Nada!

— E o coração?

Laurie olhou Jack.

— O coração, os pulmões e as artérias estavam completamente normais.

— Aposto que encontras alguma coisa no sistema circulatório, ou talvez micro-embolias no bolbo raquidiano. Tiraste amostras adequadas para toxicologia? Seria essa a minha segunda opção.

—Tirei — disse Laurie. —Também tive em conta o fato de ele ter levado uma anestesia menos de vinte e quatro horas antes.

— Bem, lamento que os teus casos tenham sido uma desilusão. Os meus foram o oposto. Na verdade, terei de dizer que foram divertidos.

— Divertidos?

—Verdadeiramente! Aconteceu serem ambos o absoluto contrário daquilo que todos pensavam.

— Como assim?

— O primeiro caso era de uma psicóloga famosa.

— Sara Cromwell.

— Era suposto tratar-se de um assassínio brutal durante uma violação.

— Eu vi a faca, lembras-te?

— Foi isso que baralhou toda a gente. Sabes, é que não havia outro ferimento e ela não tinha sido violada.

— Como é que todo aquele sangue descrito vinha daquela facada única e não-fatal?

— Não vinha.

Jack fitou Laurie com um ligeiro sorriso de expectativa. Laurie retribuiu-lhe o olhar. Não estava com disposição para jogos.

— Então de onde é que vinha?

— Algum palpite?

— Por que é que não me contas e pronto?

— Creio que serias capaz de adivinhar se pensasses no assunto por um instante. Quer dizer, tu viste como ela era esquelética, não viste?

— Jack, se queres contar-me, conta. De outro modo, tenho uma chamada a fazer.

— O sangue vinha-lhe do estômago. Acontece que ocorreu uma ingurgitação fatal de comida que lhe causou uma ruptura no estômago e na parte inferior do esôfago. É evidente que a mulher sofria de bulimia e ultrapassou os limites. Dá para acreditar? Estava toda a gente convencida de que se tratava de homicídio e afinal foi acidental.

— Então e a faca espetada na coxa?

— Isso é que foi o verdadeiro quebra-cabeça. Infligiu o golpe a si mesma, mas não de propósito. Nos instantes finais de vida, enquanto vomitava sangue e guardava o queijo, escorregou no próprio sangue e caiu sobre a faca que segurava. Não é de mais? Digo-te que isto vai ser um bom caso para apresentar na nossa conferência de quinta-feira.

Laurie fixou por um instante o olhar no rosto satisfeito de Jack. A história tocara-lhe num nervo sensível da sua vida íntima. Houve um tempo em que ela sofrera de problemas de auto-estima depois da morte do irmão, o que a levara a viver uma breve experiência de anorexia e bulimia. Tratava-se de um segredo que nunca partilhara com ninguém.

— E os meus dois casos seguintes foram igualmente intrigantes. Foi um duplo suicídio. Ouviste falar do caso?

— Vagamente — respondeu Laurie. Ainda estava a pensar na bulimia.

— Olha que tenho de dar algum crédito ao nosso velho Fontworth — disse Jack. — Sempre o considerei pouco meticuloso, mas pareceu fazer um trabalho de cinco estrelas ontem à noite. No caso do suicídio duplo, encontrou uma pesada lanterna Mag-Lite no banco da frente do jipe, juntamente com as vítimas, e foi inteligente o suficiente para a trazer com os cadáveres. Também reparou que a porta do condutor estava entreaberta.

— O que é que havia de relevante com a lanterna? — Inquiriu Laurie.

— Muita coisa — foi a resposta de Jack. — Em primeiro lugar, deixa-me que te diga que fiquei um pouco desconfiado por haver apenas uma nota de suicídio. Nos casos de suicídios duplos é habitual haver duas notas ou uma escrita pelas duas partes. Quer dizer, faz sentido, uma vez que o estão a fazer juntos. De qualquer modo, isso foi o sinal de alarme. Uma vez que a nota era presumivelmente da mulher, decidi autopsiá-la primeiro. Aquilo que eu esperava descobrir depois do fato era algo de toxicológico, tal como uma droga que os deixasse inconscientes, ou algo do gênero. Não esperava encontrar nada de importante, mas encontrei. Ela tinha um corte literal na testa mesmo acima da linha do cabelo e que fazia uma curva curiosa. Jack fez uma pausa. O sorriso regressou-lhe aos lábios.

—— Não me digas que a lanterna e o corte combinavam!

— Isso mesmo! Uma combinação perfeita! Parece que aquilo tudo foi uma elaborada encenação levada a cabo pelo marido, que preparara a cena e provavelmente até escreveu a nota. Depois de ter deixado a mulher inconsciente, de a ter metido no lugar do morto no jipe e de ter ligado a ignição, provavelmente regressou a casa para aguardar. Quando julgou que já passara bastante tempo regressou para se certificar de que a mulher estava morta, mas não percebeu o quão rapidamente se pode sucumbir ao monóxido de carbono se o nível for suficientemente elevado. Ao colocar-se detrás do volante, perdeu rapidamente a consciência e acabou por se juntar à mulher.

— Que história! — Comentou Laurie.

— Não é irônico? Quer dizer, era suposto ser um suicídio duplo, mas em vez disso, o modo de morte acaba por ser homicídio para a mulher e acidental para o marido. Não há dúvida de que a patologia forense consegue surpreender.

Laurie anuiu. Lembrava-se nitidamente de ter pensado o mesmo antes de ter começado com o caso da overdose.

— Até o caso de polícia está a revelar ser o oposto do que se esperava.

— Como assim? — Perguntou Laurie.

— Toda a gente partia do princípio de que se tratava de um caso de homicídio justificado por parte da polícia, uma vez que esta admitiu ter disparado contra ele algumas vezes, mas Calvin acabou de me dizer que, tanto quanto conseguem perceber, foi suicídio. Conseguiram apurar que a vítima disparou contra o próprio coração antes de ter sido alvejada por qualquer um dos disparos da polícia.

— Isso há de ajudar a sossegar o bairro.

— Assim esperamos — disse Jack. — Bem, foi uma manhã interessante, para dizer o mínimo, e pensei que ias gostar de saber que tivemos uma série de casos esta manhã nos quais o modo de morte foi o oposto do esperado. Dito isso, vais dar um pulo até lá abaixo para almoçar em breve?

— Não sei. Não sinto muita fome e tenho imenso que fazer.

— Bem, talvez te encontre lá em baixo. Caso contrário, vejo-te mais tarde.

Laurie acenou a Jack enquanto ele desaparecia pelo corredor. Centrou a atenção no número de telefone do pai de Sean McGillin. Pensou naquilo que Jack lhe dissera acerca das surpresas forenses e refletiu acerca do que isso poderia significar para Sean McGillin. Esperara que o modo de morte dele fosse natural, um coágulo fatal ou uma embolia provocada por um glóbulo de gordura, ou até uma anomalia congênita. Uma vez que nada encontrara desse tipo, pelo menos até ao momento, ponderava agora que a causa de morte poderia ser acidental, tal como uma inesperada complicação tardia com a anestesia. Todavia, para ser verdadeiramente o oposto, como nos casos descritos por Jack, a causa de morte teria de ser o homicídio.

Laurie deixou amadurecer a idéia. Parecia rebuscada, mas depois pensou em Sara Cromwell e em como apenas uns minutos antes teria julgado inteiramente improvável que o modo da sua morte tivesse sido acidental. A autópsia de Sean McGillin já a surpreendera com a falta de indícios. Poderia porventura o caso tornar a surpreendê-la? Duvidava, mas, afinal, não podia pôr a idéia completamente de parte.

 

Apesar das preocupações de Laurie, o contato telefônico com o Dr. McGillin acabou por se revelar surpreendentemente cortês. Ele aceitara que a autópsia fracassara em demonstrar qualquer patologia com uma inesperada equanimidade. Era como se tivesse aceite a informação como sendo um elogio ao filho adorado, corroborando a idéia de que o rapaz era efetivamente perfeito, por dentro e por fora.

Tendo esperado ser culpabilizada com cólera por não ter cumprido a promessa, ou, no mínimo, antecipando o fato de ter de suportar uma decepção agressiva-passiva, Laurie sentiu-se ainda mais em dívida para com o homem quando ele manteve a compostura. Fora até ao ponto de lhe agradecer os esforços respeitantes ao filho e por perder tempo com eles naquela hora de necessidade. Se já anteriormente se sentira disposta a contornar as regras fornecendo ao homem a causa do falecimento do filho, decidia-se agora a conseguir-lhe essa informação.

Terminado o telefonema ao pai de Sean, Laurie passou algum tempo a ponderar o caso enquanto fitava inexpressivamente o quadro de cortiça diante de si, com uma variedade de notas, advertências e cartões de visita. Tentou pensar numa maneira de acelerar o processo, mas estava de mãos atadas. Tinha de esperar por Maureen e por Peter, na esperança de que eles respondessem ao seu apelo.

O tempo escoava-se rapidamente. Riva entrou e disse-lhe olá enquanto deixava umas pastas em cima da secretária e se sentava. Laurie retribuiu-lhe a saudação por reflexo e sem se virar. Por essa altura, os seus pensamentos tinham-se voltado para Jack e a sua jovialidade irritantemente despreocupada e para aquilo que isso significava para a relação de ambos. Embora detestasse admiti-lo, tornava-se progressivamente evidente que ele estava contente por ela ter decidido partir.

De um modo circular, pensar sobre Jack fê-la lembrar-se de novo do caso de Sean, ao recordar-se dos comentários que Jack fizera acerca da ciência forense revelar ocasionalmente que a causa e o modo de morte eram o oposto daquilo que se assumia. Laurie tornou a ponderar a possibilidade de a morte de Sean poder ter sido um homicídio. Não conseguia evitar lembrar-se de vários episódios infames de homicídios em série que haviam ocorrido em instituições de saúde, em particular um bastante recente que se mantivera por detectar durante um período de tempo excessivamente longo. Um tal cenário tinha de ser levado em conta, embora ela reconhecesse que todos os pacientes envolvidos nessa série eram idosos, indivíduos cronicamente doentes e que havia uma suspeita de um motivo imaginável, se bem que doentio. Nenhuma das vítimas fora um indivíduo saudável e vigoroso de vinte e oito anos de idade com toda uma vida à sua frente.

Laurie tinha a certeza de que um homicídio era pouquíssimo plausível e não haveria de se preocupar com isso, especialmente dado que o exame toxicológico de Peter haveria de detectar uma dose excessiva de insulina, de digoxina ou de outra droga potencialmente letal parecida com aquelas implicadas em homicídios institucionais anteriores. Afinal de contas, era para isso que servia o exame de toxicologia. Na sua mente, a morte de Sean tinha de ser ou natural, que era o mais provável, ou acidental. Porém, o que haveria ela de fazer se as análises microscópicas e toxicológicas fossem negativas? Uma tal preocupação parecia razoável, tendo em conta que a própria autópsia não revelara surpreendentemente quaisquer indícios. A sua experiência dizia-lhe que era raro não encontrar uma patologia, mesmo em alguém de vinte e oito anos e mesmo que as anomalias não estivessem ligadas à morte.

Com o intuito de se preparar para uma tal eventualidade, Laurie precisava de toda a informação possível. Embora o método habitual num caso desses fosse esperar pelos resultados microscópicos e toxicológicos, decidiu ser pró-ativa para poupar tempo. Agarrou impulsivamente no auscultador e ligou para o gabinete do investigador forense. Bart Arnold atendeu ao segundo toque.

— Examinei um Sean McGillin esta manhã — disse Laurie. — Esteve internado no Manhattan General. Gostaria de receber uma cópia do gráfico do hospital.

— Estou a par do caso. Não recebemos aquilo de que precisavas?

— O relatório do investigador forense está ótimo. Para ser honesta, ando aqui numa expedição a tentar pescar alguma coisa. A autópsia foi negativa e estou um bocado desesperada. Há uma certa pressão de tempo.

— Vou dar entrada ao pedido imediatamente.

Laurie pousou o auscultador no lugar, ao mesmo tempo em que puxava pela cabeça na esperança de se lembrar de outra coisa que seria útil se tudo desse negativo.

— O que se passa? — perguntou Riva. Fizera girar a cadeira da secretária depois de ter escutado a conversa de Laurie com Bart. — Sabendo como andas cansada, pensei que te tinha dado casos simples. Desculpa.

Laurie assegurou à colega que ela não precisava de se desculpar. Laurie admitiu que estava a criar um problema onde na verdade não existia um, provavelmente para evitar uma obsessão com a sua vida social.

— Queres falar acerca disso?

— Referes-te à minha vida social?

— Refiro-me a Jack e àquilo que fizeste hoje de manhã.

— Nem por isso — respondeu Laurie. Fez um aceno com a mão como que enxotando uma mosca inexistente. — Não há muito a dizer que tu e eu não tenhamos já esmiuçado ad nauseam. A verdade é que eu não quero ficar presa a uma relação de terra-do-nunca, que é aquilo que eu aceitei durante estes últimos anos. Quero uma família. É muito simples. Creio que o que me está mesmo a aborrecer é o fato de Jack estar a ser tão parvo a agir de modo tão manifestamente alegre.

— Já reparei — concordou Riva. — Acho que isto é uma encenação.

— Sabe-se lá — respondeu Laurie. Riu-se para consigo. — Sou patética! Seja como for, deixa-me contar-te o caso McGillin.

Laurie relatou-lhe rapidamente toda a história, incluindo os pormenores das conversas que tivera com os pais e depois com Jack.

— Não vai ser homicídio — disse Riva enfaticamente.

— Humm... Eu sei! — concordou Laurie. — Aquilo que neste momento me preocupa é o fato de não ser capaz de manter a promessa que fiz aos pais. Tinha tanta certeza de que seria capaz de lhes dizer hoje o que vitimou o filho e agora tenho de ficar de braços cruzados à espera de Maureen e de Peter. O meu caráter compulsivo está a dar comigo em doida.

— Se te serve de consolação, a minha opinião é que o Jack tinha razão acerca de o microscópio ser a chave. Creio que vais encontrar a patologia no coração, em especial com uma história familiar de elevada desidrogenase láctica e de doença cardíaca.

Laurie começava a emitir algo em concordância quando o telefone tocou. Torceu-se para o lado e atendeu-o, esperando alguma informação acerca de um dos seus casos, que era no que consistia a vasta maioria dos telefonemas que recebia. Em lugar disso, ergueu as sobrancelhas de espanto. Tapou o bocal, redirecionou o olhar para Riva e sussurrou:

— Nem vais acreditar! É o meu pai!

O rosto de Riva refletia igual descrença. Apressou-se a executar um gesto para que Laurie descobrisse o motivo do telefonema. O contato telefônico restringia-se à mãe de Laurie e raramente se verificava.

— Desculpa incomodar-te — disse o Dr. Montgomery. Falava com uma voz ressonante com um toque de pronúncia inglesa, apesar de nunca ter vivido na Grã-Bretanha.

— Não me incomodas — respondeu Laurie. — Estou sentada à secretária.

Sentia-se muitíssimo curiosa sobre as razões do pai para lhe telefonar, mas resistiu à tentação de lhas perguntar diretamente, temendo que a questão parecesse demasiado antipática. A relação de ambos nunca fora nada de especial. Como cirurgião cardiologista Que era, absorto nos seus próprios pensamentos e viciado no trabalho, que exigia a perfeição a todos, incluindo a si mesmo, mostrara-se emocionalmente distante e geralmente indisponível. Laurie tentara em vão chegar até ele, procurando distinguir-se na escola e em outras atividades, que era o que ela pensava que ele queria. Infelizmente, nunca resultava. Depois surgiu a morte do irmão, de que Sheldon a culpava. A pouca relação que tinham deteriorara-se mais ainda.

— Estou no hospital — disse ele. O seu tom era factual, como se lhe falasse do tempo. — Estou aqui com a tua mãe.

— O que está a mãe a fazer no hospital? — quis saber Laurie. Para Sheldon, estar no hospital não era nada de extraordinário.

Embora estivesse reformado do exercício da medicina a nível privado, agora que já passara dos oitenta, continuava a ir freqüentemente ao hospital. Laurie não tinha idéia do que iria ele lá fazer. Dorothy, a mãe, nunca ia ao hospital, apesar de ter um papel ativo em várias atividades de angariação de fundos para hospitais. A última vez que Laurie se lembrava de a mãe ter estado no hospital foi por altura do segundo lifting facial que fizera, quinze anos atrás e, mesmo então, Laurie soubera que a mãe dera lá entrada depois de ela o ter feito.

— Foi operada esta manhã — disse Sheldon. — Está bem. Na verdade, sente-se bastante animada.

Laurie endireitou-se um pouco na cadeira.

— Operada? O que se passou? Foi uma emergência?

— Não, foi uma intervenção marcada. Infelizmente, a tua mãe foi submetida a uma mastetomia devido a um cancro da mama.

— Meu Deus! — Conseguiu Laurie dizer. — Eu não fazia idéia. Falei com ela no sábado. Não fez referência a coisa alguma relacionada com cirurgia ou com cancro.

— Tu conheces a tua mãe, sabes como ela gosta de ignorar assuntos desagradáveis. Foi particularmente insistente quanto ao fato de te pouparmos preocupações desnecessárias até tudo estar ultrapassado.

Laurie olhou para Riva, incrédula. As suas secretárias estavam tão próximas no pequeno gabinete que Riva conseguia ouvir ambos os lados. Riva revirou os olhos escuros e abanou a cabeça.

— Em que fase estava o cancro? — Perguntou Laurie zelosamente.

— Numa fase muito inicial, sem aparente envolvimento de nódulos — disse Sheldon. — Vai ficar tudo bem. O prognóstico é excelente, embora ela tenha de ser submetida a um tratamento posterior.

— E dizes tu que ela está bem?

—Muito bem mesmo. Já comeu e regressou ao seu estado normal mostrando-se genuinamente exigente.

— Posso falar com ela?

— Infelizmente, isso seria muito difícil. É que, sabes, neste momento não estou no quarto. Estou na sala das enfermeiras. Estava com esperanças de que pudesses vir vê-la esta tarde. Há um aspecto relacionado com tudo isto que eu gostaria de discutir contigo.

— Vou já para aí — disse Laurie. Desligou o telefone antes de se virar para Riva.

— É verdade que não fazias idéia de nada disto? — Inquiriu Riva.

— Não fazia a mínima. Não houve sequer a mínima pista. Não sei se deva estar zangada, magoada ou triste. Na verdade, é patético! Que família mais disfuncional! Não posso acreditar nisto. Tenho quase quarenta e três anos e sou médica e a minha mãe continua a tratar-me como se eu fosse uma criança no que diz respeito a doenças. Imaginas uma coisa destas? Queria poupar-me a preocupações desnecessárias.

— A nossa família é o oposto. Toda a gente sabe tudo acerca de toda a gente. É o extremo oposto, mas também não o advogo. Creio que o melhor será um meio-termo.

Laurie levantou-se e espreguiçou-se. Esperou que lhe passasse a tontura. A fadiga regressara com força renovada depois de ter estado sentada à secretária. Foi depois buscar o casaco atrás da porta. Quando refletiu acerca das diferenças entre a sua família e a de Riva, pensou que escolheria a da colega, embora certamente que não escolheria viver em casa como Riva. Tinham ambas a mesma idade.

— Queres que atenda o teu telefone? — Perguntou Riva.

— Se não te importares, em especial se for Maureen ou Peter. Deixa mensagens no meu quadro de cortiça. — Laurie pegou num bloco de post-its e deixou-o cair em cima do livro de registros. Tenho de regressar aqui. Não levo a mala.

Laurie entrou no corredor e considerou por breves instantes a idéia de descer até ao gabinete de Jack para lhe contar as notícias acerca da mãe, mas depois decidiu não o fazer. Embora estivesse certa de que no fundo ele seria solidário, já estava farta da sua frivolidade e não queria arriscar-se a ter de lidar com mais.

No primeiro piso, Laurie fez um rápido desvio até ao gabinete da administração. Calvin tinha a porta entreaberta. Sem que as duas secretárias atarefadas lhe apresentassem qualquer obstáculo, Laurie espreitou para dentro para ver o subdiretor curvado sobre a secretária. Uma banal caneta parecia uma miniatura na sua enorme mão. Bateu à porta aberta e Calvin levantou o rosto intimidador; e os seus olhos negros como o carvão penetraram Laurie. Tempos houvera em que Laurie chocara com o subdiretor, dado que ele era papista em relação às regras e um indivíduo politicamente sábio e disposto a contornar ocasionalmente essas regras. Na perspectiva de Laurie, tratava-se de uma combinação insustentável. As ocasionais exigências políticas de se ser médico-legista era a única parte do trabalho de que Laurie não gostava.

Laurie disse-lhe que ia sair mais cedo para visitar a mãe no hospital. Calvin acenou-lhe para que fosse sem uma única pergunta. Laurie não tinha de esclarecer esse tipo de coisa com ele, mas ultimamente tentava ser um pouco mais sensível em termos políticos, pelo menos a nível pessoal.

Lá fora, a chuva parara finalmente, fazendo com que fosse mais fácil parar um táxi. A viagem para a alta da cidade foi rápida e em menos de uma hora estava nas escadas de entrada do Hospital Universitário. Ao longo da viagem tentara imaginar aquilo que o pai quisera dizer com "um aspecto relacionado" com a doença da mãe que queria discutir. Não fazia realmente idéia. Tratava-se de uma afirmação tão oblíqua, mas ela assumira que se trataria de algumas limitações à atividade da mãe.

Na entrada do hospital vivia-se a habitual agitação da tarde, no auge dos horários das visitas. Laurie teve de esperar numa fila para o guichê de informações para saber o número do quarto da mãe, criticando-se por não o ter conseguido mais cedo. Armada com a informação, tomou o elevador adequado até ao piso em questão e passou pela sala das enfermeiras, onde uma série de pessoas se ocupava do seu trabalho. Ninguém ergueu os olhos para ela. Tratava-se de uma ala VIP, o que significava que o corredor era alcatifado e havia quadros a óleo originais e doados pendurados nas paredes. Laurie deu por si a espreitar, como um voyeur, para o interior dos quartos ao passar, o que lhe lembrava o primeiro ano de internato clínico.

O quarto da mãe tinha a porta entreaberta, tal como a maioria dos outros, e Laurie entrou diretamente. A mãe encontrava-se numa típica cama de hospital com as grades protetoras subidas e uma injeção intravenosa a correr-lhe lentamente pelo braço esquerdo. Em lugar das habituais roupas de hospital, usava um robe de seda cor-de-rosa. Estava sentada com uma série de almofadas atrás de si. O seu cabelo de comprimento médio e grisalho como a prata, que normalmente fazia ondas no cimo da cabeça, estava calcado como uma antiquada touca de banho. Tinha uma tonalidade cinzenta sem a maquiagem, a pele parecia repuxar mais que o costume sobre as maçãs do rosto e os seus olhos tinham-se retraído como se estivesse ligeiramente desidratada. Tinha uma aparência frágil e vulnerável e embora Laurie soubesse que ela era pequena, parecia particularmente minúscula na grande cama. Também parecia mais velha do que uma semana antes, quando Laurie se encontrara com ela para irem almoçar. Não houvera qualquer conversa acerca de cancro ou de uma iminente hospitalização.

— Entra, minha querida — disse Dorothy, acenando com a mão livre. — Puxa para aqui uma cadeira. Sheldon disse-me que te telefonou. Eu não ia incomodar-te até estar em casa. Isto é tudo um grande disparate. Não vale a pena todo este aborrecimento por causa disto.

Laurie olhou de relance para o pai, que estava a ler o Wall Street Journal numa cadeira baixa junto à janela. Ele ergueu os olhos, fez um pequeno aceno e um sorriso pálido e depois retomou a leitura do jornal.

Avançando para a parte lateral da cama, Laurie pegou na mão livre da mãe e fez-lhe uma festa. Tinha os ossos delicados e a pele fria.

— Como estás, mãe?

— Estou ótima. Dá-me um beijo e senta-te.

Laurie levou a bochecha à da mãe. Depois puxou uma cadeira para o lado da cama. Como a cama de hospital estava levantada, tinha de olhar para cima, para a mãe.

— Lamento que isto te tenha acontecido.

— Não é nada. O médico já aqui esteve e disse que está tudo ótimo, que é mais do que posso dizer acerca do teu cabelo.

Laurie teve de reprimir um sorriso. O estratagema da mãe era transparente: sempre que não queria falar acerca de si, passava à ofensiva. Laurie usou ambas as mãos para afastar do rosto o cabelo de reflexos acobreados. Dava-lhe pelos ombros e embora geralmente o usasse preso em cima com um gancho ou uma travessa, soltara-o para o escovar depois das suas tarefas matinais no "fato lunar" e não tornara a penteá-lo para cima. Infelizmente, o seu cabelo fora freqüentemente um alvo para a mãe desde a sua adolescência.

Depois da conversa acerca do cabelo e de uma breve pausa em que Laurie tentou fazer uma pergunta acerca da cirurgia da mãe, Dorothy mudou para outro alvo conveniente ao dizer que a roupa de Laurie era demasiado feminina para trabalhar numa morgue. Foi com alguma dificuldade que Laurie reprimiu uma resposta a essa nova crítica. Fazia questão de usar esse tipo de roupa. Era parte da sua identidade e ela não via qualquer conflito entre ela e o seu local de trabalho. Laurie sabia também que parte da reação da mãe se devia ao seu descontentamento relativamente à escolha de carreira da filha. Embora ambos os pais tivessem amadurecido até certo ponto a sua opinião e tivesse até chegado a reconhecer, de má vontade, os méritos da prática forense resultantes do trabalho de Laurie, tinham ficado desiludidos a partir do momento em que ela anunciara a sua decisão de se tornar médica-legista. Em determinada altura, Dorothy chegara a dizer a Laurie que não fazia idéia do que dizer quando os amigos lhe perguntavam que espécie de médica Laurie era.

— E como está Jack? — Perguntou Dorothy.

— Está ótimo — disse Laurie, sem qualquer desejo de expor os seus problemas.

Dorothy prosseguiu então descrevendo alguns acontecimentos sociais próximos a que esperava que Laurie e Jack comparecessem.

Laurie ouviu sem prestar grande atenção enquanto olhava de soslaio para o pai, que acabara de ler o Wall Street Journal. Ele tinha consigo uma grande pilha de jornais e revistas. Levantou-se e espreguiçou-se. Embora estivesse na casa dos oitenta, continuava a ser uma figura imponente, com mais de um metro e oitenta, e uma aparência aristocrática adquirida. O seu cabelo grisalho sabia o seu lugar. Como era habitual, usava um fato cuidadosamente engomado, de corte clássico e tecido de xadrez estreito com uma gravata a condizer e um bolso quadrado. Dirigiu-se ao lado oposto da cama de onde Laurie se encontrava e esperou que Dorothy fizesse uma pausa.

— Laurie, importas-te de ir comigo ao corredor por um instante?

— De modo nenhum — disse Laurie. Pôs-se de pé e fez uma festa na mão da mãe através da grade de proteção da cama. — Já venho.

— Agora não vás preocupá-la por minha causa — ralhou Dorothy ao marido.

Sheldon não lhe respondeu, antes, apontou para a porta com a palma aberta.

Lá fora, no corredor, Laurie teve de sair do caminho de uma marquesa que transportava um paciente do pós-operatório de regresso ao quarto. O pai surgiu atrás de si. Dado que tinha quase mais trinta centímetros que ela, Laurie teve de erguer os olhos para o rosto dele. Tinha o rosto bronzeado, graças a uma viagem em janeiro às Caraíbas, e surpreendentemente isento de rugas, tendo em conta a sua idade. Laurie não albergava quaisquer maus sentimentos em relação a esse homem, uma vez que havia muito que ultrapassara a sua raiva e frustração face à sua distância emocional. A sua maturidade fizera-a compreender que o problema era dele, não dela. Ao mesmo tempo, não existia qualquer sentimento de amor. Era como se ele fosse pai de outra pessoa qualquer.

— Obrigado por teres vindo tão depressa — disse Sheldon.

— Não há razão para me agradeceres. Estava fora de questão não vir imediatamente.

— Eu receava que poderias ficar mais perturbada com o fato de as novidades surgirem assim do nada. Quero assegurar-te de que foi por insistência da tua mãe que não foste informada acerca do seu estado.

— Percebi isso pelo que me disseste ao telefone — disse Laurie.

Estava tentada a comentar como era ridículo que tal informação lhe fosse ocultada, mas não o fez. Não fazia sentido dizê-lo. A mãe e o pai não iam mudar.

—Ela nem sequer queria que te telefonasse esta tarde, preferindo esperar chegar a casa amanhã ou no dia seguinte, mas tive de insistir. Respeitei os seus desejos até hoje, mas não me sentia confortável a adiá-lo por mais tempo.

—Adiar o quê? De que é que estás a falar? — Laurie não conseguia evitar reparar que o pai olhava para um lado e para o outro do corredor, como que preocupado que alguém o ouvisse.

— Lamento ter de te dizer isto, mas a tua mãe tem um marcador para uma mutação específica do gene BRCA1.

Laurie sentiu que o rosto lhe enrubescia de calor. Embora soubesse que era suposto as pessoas empalidecerem com notícias perturbadoras, acontecia-lhe sempre o contrário. Como médica, Laurie tinha conhecimento do gene BRCA1, que na sua forma mutada estava associado ao cancro da mama. Mais perturbador ainda, sabia que tais mutações eram hereditárias de maneira dominante e com elevada incidência, o que significava que haveria provavelmente uma percentagem de cinqüenta por cento de hipóteses de ela ter o mesmo genótipo!

— É importante que tenhas esta informação, por razões óbvias — continuou Sheldon. — Se eu tivesse pensado que o adiamento de três dias teria qualquer relevância para ti, ter-te-ia dito imediatamente. Agora que o sabes, tenho de dizer-te que a minha opinião profissional é de que deverias fazer o teste. A presença de uma tal mutação aumenta a probabilidade de desenvolveres cancro da mama em qualquer altura antes de completares oitenta anos.

Sheldon fez uma pausa e tornou a olhar para um lado e para o outro do corredor. Dava a idéia de estar genuinamente desconfortável com o fato de revelar um segredo de família em público.

Laurie tocou na face com as costas da mão. Tal como temia, tinha a pele quente ao toque. Sendo que o pai não demonstrava qualquer emoção, como habitual, sentia-se constrangida por ser explícita.

— É claro que é contigo — recomeçou Sheldon. — Mas devo lembrar-te de que caso se descubra que o resultado é positivo, há coisas que podes fazer para diminuir as probabilidades de desenvolver um tumor até noventa por cento, tais como mastetomias bilaterais profiláticas. Felizmente, as implicações de uma mutação do BRCA não são as mesmas que com o gene coréia de Huntington ou com outras doenças que não têm tratamento.

Apesar do seu evidente embaraço, Laurie fitou os olhos escuros do pai. Até deu por si a abanar imperceptivelmente a cabeça. Ainda que a relação de ambos fosse tensa, especialmente após a morte do irmão, ainda que ele não se comportasse como seu pai, não conseguia acreditar que ele lhe pudesse estar a dizer aquilo sem um pouco mais de calor humano. No passado, atribuíra o seu distanciamento geral a uma necessidade de um mecanismo de defesa contra o stress de ter literalmente nas mãos os corações dos seus pacientes e, portanto, as suas vidas, diariamente. Tendo sido auxiliar de cirurgia durante o primeiro ano de internato, ela conhecia um pouco desse stress. Tinha também consciência de que os pacientes dele haviam manifestamente apreciado o seu distanciamento, parecendo interpretá-lo como uma confiança suprema e não como sendo defeito de uma personalidade narcisista. Laurie, contudo, detestava-o.

— Obrigada por esta consulta de esquina tão útil — conseguiu dizer Laurie, incapaz de esconder da voz o sarcasmo.

Obrigou-se a sorrir antes de se afastar do pai e regressar para reivindicar o seu lugar à cabeceira da mãe.

— Ele aborreceu-te, querida? — perguntou Dorothy depois de ter olhado para Laurie. — Tens a cara vermelha como um tomate.

Laurie ficou um instante sem responder. Tinha a boca comprimida para impedir o queixo de tremer. As suas emoções ameaçavam vir à superfície, uma fraqueza que ela sempre desprezara, especialmente na presença do seu impassível pai.

— Sheldon! — chamou Dorothy quando ele tomou a cadeira junto à janela. — O que é que disseste a Laurie? Eu disse-te que não a aborrecesses por minha causa.

— Não estive a falar com ela acerca de ti — disse Sheldon ao pegar no The New York Times. — Estive a falar acerca dela.

 

Jack pousou a caneta e virou-se para olhar para Chet McGovern, curvado sobre a secretária. Chet era um colega, também médico-legista, e partilhava o gabinete com Jack. Embora fosse cinco anos mais novo que Jack, tinham começado a trabalhar no GMLS quase ao mesmo tempo e davam-se lindamente. Jack gostava de partilhar o espaço com Chet por causa do convívio, mas continuava a achar ridículo que o município não lhes providenciasse gabinetes individuais. O problema residia numa contínua contenção orçamental que impedia que as instalações fossem melhoradas; o GMLS era um alvo fácil para os políticos num município onde os fundos escasseavam. O edifício fora adequado quando abrira, havia quase meio século, mas agora era um pouco como um dinossauro, tendo o espaço a prêmio. Dado que Jack sabia que os dinossauros tinham vivido na Terra durante cento e sessenta milhões de anos, esperava que o edifício não tivesse uma esperança de vida tão longa com a sua presente configuração.

— Não acredito nisto! — gritou Jack. —Acabei. Nunca antes tal me acontecera.

Chet andava por ali às voltas. Tinha um rosto de rapaz encimado por um tufo de cabelo louro consideravelmente mais comprido que o de Jack, mas num idêntico estilo descuidado. Tal como Jack, também dava a impressão de ser atlético, mas tal devia-se às suas visitas quase diárias ao ginásio, e não ao basquetebol de rua. Estava na casa dos quarenta, mas parecia consideravelmente mais novo.

— O que queres dizer com isso? Acabaste o quê?

Com as mãos cerradas em punhos, Jack esticou os braços por cima da cabeça.

— Todos os meus casos. Resolvi todos.

— Então o que é que estão todas essas pastas a fazer na tua caixa? — Chet usou o indicador para apontar para uma pilha de dimensões consideráveis que ameaçava desmoronar-—se.

— Esses são casos que aguardam a chegada de material do laboratório.

—Grande coisa! — escarneceu Chet com uma risada desdenhosa antes de regressar ao trabalho.

— Ei, é uma grande coisa para mim! — disse Jack.

Levantou-se, tocou com as palmas no chão e manteve-as assim por um instante. Depois da invulgar ida de bicicleta para o trabalho dessa manhã, sentia os tendões tensos. Depois de ter alongado as costas, olhou para o seu relógio:

— Céus! São só três e meia. Será que os motivos de espanto não terminam nunca? Talvez consiga entrar no primeiro jogo no campo.

— Se estiver seco — disse Chet sem erguer o olhar. — Porque é que não vens comigo ao Sports Club LA? Lá, o campo estará seco. Se fosses esperto, haverias de me seguir até a aula de localizada. Experimentei-a na sexta-feira passada e, digo-te, as miúdas são incríveis. Havia uma que era do outro mundo. Tinha um fato de corpo inteiro, preto e justo como uma segunda pele, que não deixava nada para a imaginação.

— Miúdas para comer com os olhos! — troçou Jack. — Um destes dias vais acordar e olhar para trás para estes difíceis anos de puberdade e rir-te de ti mesmo.

— No dia em que deixar de olhar para as mulheres vai ser o dia em que estarei pronto para uma daquelas caixas de pinho lá em baixo.

— Nunca fui grande adepto de ver desportos — zombou Jack. — Deixo isso para vocês, os maricas.

Jack pegou no casaco que estava nas costas da cadeira e saiu do gabinete a assobiar. Fora um dia interessante e estimulante. Quando chegou ao gabinete de Laurie, espreitou, perguntando-se se ela estaria inclinada a mudar de idéias acerca de não regressar a casa dele nessa noite. O gabinete estava vazio, mas reparou numa pasta aberta em cima da secretária de Laurie.

Jack entrou de modo descontraído e verificou o nome. Tal como adivinhara, tratava-se de Sean McGillin. Sentia-se curioso quanto à razão pela qual Laurie e Janice pareciam tão embrenhadas naquilo que a ele lhe parecia um caso rotineiro. Geralmente não era pessoa para estereotipar as mulheres, mas parecia-lhe estranho que ambas tivessem demonstrado aquilo que lhe parecia ser uma emotividade bem pouco profissional. Abriu a pasta com um estalido e folheou-a até encontrar o relatório de Janice. Leu-o rapidamente. Nada lhe saltou à vista. Para além do fato de a vítima ter apenas vinte e oito anos, as circunstâncias não eram especialmente dignas de nota. Podia ter sido triste e uma tragédia para a família e para os amigos da vítima, mas não era triste para a espécie humana, nem para o município, nem mesmo para a cidade, já agora. Havia muitas tragédias individuais numa metrópole da dimensão de Nova Iorque.

Jack fechou rapidamente a pasta e esgueirou-se do gabinete como se tivesse estado a fazer algo de sub-reptício e receasse ser apanhado. Sentiu-se imediatamente menos inclinado a saber se Laurie quereria reconsiderar a sua decisão de se mudar para o seu próprio apartamento por medo de ter de lidar com demasiada emoção. Pensar em tragédias familiares não era um passatempo a que ele quisesse entregar-se. Vivera demasiadas experiências pessoais.

Lá em baixo, no primeiro piso, Jack resgatou a parafernália da bicicleta, bem como a própria bicicleta. Acenou ao segurança da tarde, Mike Laster, ao transportar a bicicleta para o parque e depois para o pavimento. Parara de chover e estava significativamente mais frio que quando da sua chegada pela manhã. Sentia-se grato pelas luvas ao montar na bicicleta e atravessou a pedalar a 30th Street até a First Avenue.

Ao contrário da viagem dessa manhã, à tarde Jack divertiu-se com os ziguezagues por entre os carros, os táxis e os autocarros ao seguir rapidamente para norte, correndo por entre o tráfego de maneira temerária. Cortou por fim para a Madison Avenue, aproveitando a curta passagem sobre a cidade como um período para permitir que a circulação sanguínea lhe aliviasse os doridos quadríceps. Dirigindo-se de novo para norte, recuperou a velocidade. Nas raras vezes que teve de parar devido aos semáforos, perguntou-se brevemente entre inspirações por que razão estava a gostar de desafiar o trânsito, quando tal não sucedera nessa manhã. Pressentindo que tinha algo que ver com coisas em que não queria pensar, desistiu de tentar compreender e limitou-se a saborear a experiência.

Na Grand Army Plaza, com o Hotel Plaza de um lado e o Hotel Sherry-Netherland do outro, Jack entrou no Central Park. Era sempre a sua parte favorita do trajeto para casa. Com a temperatura a baixar continuamente, estava agora suficientemente frio para que o seu hálito formasse uma nuvem de vapor a cada expiração. Por cima de si, o céu escurecera e era agora de um tom purpúreo profundo, exceto à esquerda, na direção do poente. Aí, via-se um tom escarlate ainda rico, mas que depressa esmorecia, que formava um espantoso fundo cor de sangue para os pináculos dentados dos edifícios que ladeavam o Central Park WeSaint.

Os candeeiros de rua tinham sido ligados no parque e Jack seguia por entre esferas de luz e as suas penumbras cruzadas. Havia mais pessoas a fazer jogging que de manhã e Jack manteve a velocidade baixa. Acima da 80th Street, o número de joggers começou a decair precipitadamente. Por essa altura, já a noite havia dominado o céu. Para piorar as coisas, parecia a Jack que a distância entre os candeeiros de rua aumentara. Como estava muito escuro, teve de abrandar ocasionalmente até uma velocidade de caminhada entre áreas iluminadas, dado que não conseguia ver o piso e tinha de prosseguir com base na fé de que não existiriam obstáculos no seu caminho.

Quando passou pela 90th Street escureceu mais ainda, especialmente na zona de encostas onde sentira um tal regozijo nessa manhã. Pelo contrário, sentia agora um presságio a agitar-se dentro de si. As árvores despidas amontoavam-se no caminho. Já não conseguia ver os edifícios ao longo de Central Park West e, excetuando a ocasional buzina distante de um táxi, poderia ter estado a andar de bicicleta numa qualquer floresta vasta e isolada. Quando se aproximou de um candeeiro de rua, a sua luz fez com que os ramos interpostos e sem vida parecessem teias de aranha gigantes.

Ao sair do parque na 106th Street, Jack sentiu alívio. Quando premiu o botão dos semáforos, teve de se rir da sua imaginação e perguntar-se o que o teria incitado a tal. Embora não andasse no parque à noite havia anos, fizera-o um considerável número de vezes ao longo dos anos. Não se lembrava de que o tivesse afetado desse modo. Até ele reconhecia o absurdo de não ter sentido medo um pouco antes, no tráfego, onde havia realmente perigo, ao passo que sentia arrepios por cruzar o parque deserto de bicicleta. Sentia-se um miúdo de dez anos impressionável que atravessasse um cemitério no Halloween.

Quando a luz do semáforo mudou, Jack atravessou o Central Park West e seguiu pela 106th Street. Chegado à beira do campo de jogos do bairro, deteve-se. Sem retirar as biqueiras dos pedais da bicicleta, agarrou-se à elevada vedação de rede e olhou para o campo de basquetebol. Estava iluminado por uma série de lâmpadas de vapor de mercúrio que ele pagara. Na verdade, Jack pagara pela reabilitação de todo o campo. Originalmente, oferecera-se apenas para reconstruir o campo de basquetebol, pensando que o bairro ficaria louco de alegria, mas para sua surpresa foi obrigado por uma comissão do bairro ad hoc a considerar a hipótese de mandar reconstruir o parque inteiro, incluindo a área infantil; isto se queria que lhe concedessem o privilégio de melhorar a seção de basquetebol. Jack precisou apenas de uma noite para se decidir a tratar do espaço todo. Afinal de contas, que haveria ele de fazer ao dinheiro? Isso acontecera seis anos antes e Jack mais do que reavera o seu dinheiro.

— Vens p'aqui p'ó jogo, dótor? — gritou um dos jogadores.

Encontravam-se ali apenas cinco homens, todos eles afro-americanos, a lançar a bola de forma casual no cesto distante para aquecer. Em sinal de deferência para com o frio, estavam todos vestidos com diversas camadas de roupas hip-hop da berra. Um deles detivera-se ao avistar Jack. O médico soube pela voz que se tratava de Warren, um homem de quem Jack se tornara próximo com o passar dos anos. Warren era um atleta dotado e de constituição pujante, bem como o líder efetivo da gangue local. Ele e Jack haviam desenvolvido um grande respeito mútuo. Na verdade, Jack dava até crédito a Warren por lhe ter salvo a vida.

— É essa a minha intenção — berrou Jack em resposta. — Vai aparecer mais alguém ou vai ser três contra três?

— Choveu-nos em cima ontem à noite, por isso vai aparecer a gangue toda. Arranja pica e vamos lá a arrastar já esse rabo branquela p'aqui. Senão, vais ficar p'aí agarrado ao pau. Manjas?

Jack levantou o polegar da mão cerrada. Tinha manjado tudo. Haveria bem mais de dez tipos, o que significava que os primeiros dez a chegar teriam hipótese de jogar, enquanto os outros seriam obrigados a improvisar para entrar nos jogos seguintes. Tratava-se de um sistema complicado que Jack levara anos a compreender. Segundo os padrões da maioria das pessoas, não era democrático nem justo. A vitória era conseguida pelo décimo primeiro tipo a aparecer, que depois escolhia os outros quatro que queria na sua equipa. Nessa fase, a ordem de chegada deixava de ter importância. Com efeito, por vezes um dos membros da equipa perdedora era selecionado por ser um jogador particularmente bom. Nos tempos em que Jack acabara de chegar ao bairro, demorara meses a entrar no primeiro jogo, e isso só sucedeu quando percebeu finalmente que tinha de chegar cedo.

Motivado pelo fato de não querer ficar por ali no banco ao frio, Jack atravessou a rua a pedalar rapidamente, agarrou na bicicleta ao ombro e subiu a correr os degraus que conduziam à porta principal do seu prédio. Contornando uns sacos do lixo grandes e verdes, abriu a porta. Logo à entrada estavam dois indigentes que partilhavam uma garrafa de vinho barato. Afastaram-se do caminho enquanto Jack subia disparado as escadas. Foi cuidadoso devido aos restos espalhados pelos degraus.

Jack vivia nas traseiras do quarto andar. Teve de pousar a bicicleta enquanto se debatia com as chaves.

Sem se importar sequer em fechar a porta do apartamento, Jack encostou a bicicleta à parede da sala de estar, sacudiu os sapatos para se descalçar e despiu o casaco e a camisa, tirou a gravata e atirou-os para as costas do sofá. Usando apenas os boxers, enfiou-se na casa de banho para ir buscar o equipamento de basquetebol, que geralmente estava pendurado sobre a cortina de banho.

Jack deteve-se. Em lugar dos calções e das calças de fato de treino, estava a olhar para um par de collants de Laurie. Esquecera-se de que não tinha jogado na noite anterior e Laurie tinha-lhe dobrado o equipamento e guardado no armário.

Jack sacou as collants do varão da cortina e segurou-os na mão. Lentamente, ergueu os olhos para se olhar no espelho. Estava sozinho e o seu rosto descuidado refletia a realidade que evitara durante todo o dia: Laurie não estaria ali quando ele terminasse o jogo de basquetebol. Não haveria os habituais gracejos inteligentes. Não haveria as inevitáveis gargalhadas. Não desceriam a Columbus Avenue para trincarem qualquer coisa num dos muitos restaurantes de Upper West Side. Em lugar disso, iria regressar a um apartamento vazio, tal como fizera ao longo de todos aqueles anos depois de ter chegado à cidade. Esses tempos tinham sido deprimentes e estes também o eram.

— És um inútil — disse num tom de menosprezo.

Tornou a olhar para as collants, sentindo um misto de emoções que incluía raiva de si e de Laurie. Às vezes a vida parecia tão complicada.

Dobrou as collants com um zelo desnecessário e levou-as para o quarto. Abriu uma das gavetas agora vazia que Laurie usara e guardou cuidadosamente a peça no seu interior. Fechou a gaveta e sentiu um módico alívio por ter longe da vista aquela peça que o fazia recordar. Correu depois para o armário para ir buscar o equipamento desportivo.

Para grande alívio de Jack, regressou ao campo antes de terem chegado dez pessoas, e Warren selecionou-o para fazer parte da sua equipa. Jack aqueceu lançando uma série de lances do perímetro. Sentia-se preparado quando o jogo teve início, passados alguns minutos, mas, infelizmente, não o estava. Jogou mal e foi um fator de relevo para que perdessem. Com outra equipa preparada para o jogo, Warren, Jack e o resto da equipa de Warren foram relegados para a linha lateral, ficando a tremer ao frio. Nenhum deles estava contente.

— Mano, estiveste mal — disse Warren a Jack. — Deste cabo de nós. Com'é?

Jack abanou a cabeça.

— Estou distraído, acho eu. Laurie quer-se casar e ter um filho.

Warren conhecia Laurie. Ao longo dos últimos anos, ele e Natalie, a namorada, saíam com Jack e Laurie quase uma vez por semana. Tinham até chegado a fazer uma aventurosa viagem a África sete anos atrás.

— Então a tua miúda quer amarras e um puto? — Disse Warren num tom trocista. — Ei, meu, onde 'tá a novidade? Tenho o mesmo problema, mas não me vês a perder o raio da bola nem a deixar um passe perfeitamente bom passar-me pela testa. Tens que te controlar, senão não vens p'rá minha equipa. Quer dizer, é tudo uma questão de organizares as tuas prioridades, 'tás a ver?

Jack anuiu. Warren tinha razão, mas não bem da maneira implícita nas suas palavras. O problema era que Jack não sabia se era capaz de organizar as suas prioridades, uma vez que não sabia bem quais eram.

 

Com o tornozelo a manter a insistente porta do elevador aberta, Laurie conseguiu levar a mala para o quinto andar. Foi um pouco custoso, dado que o nível do piso era alguns centímetros mais elevado que o da cabine do elevador. De seguida, saiu ela mesma e deixou que a porta se fechasse. Podia ouvir o zunido do mecanismo do elevador no telhado enquanto a cabine descia de imediato. Era evidente que alguém estivera a premir o botão de chamada.

Aproveitando as rodas da mala, levou-a para junto da porta sem ter de a tornar a levantar. Quanto mais se debatia com ela, mais pesada lhe parecia. Sabia que a culpada era a caixa dos cosméticos, do xampu, do condicionador e do gel de banho que tivera de levar para casa de Jack. Nenhum deles era de tamanho de viagem. É claro que o ferro de engomar também não ajudava. Recuou para ir buscar o saco das compras.

Enquanto remexia na mala à procura das chaves de casa, ouviu a porta do apartamento em frente abrir-se quando a correia de segurança atingiu o limite com um clique definitivo. Laurie vivia num edifício na 19th Street que tinha dois apartamentos por andar. Enquanto ela ocupava o apartamento das traseiras, que dava para um atafulhado quintal do tamanho de um selo, uma inquilina solitária de nome Debra Engler residia na parte da frente. Tinha o hábito de abrir uma frincha da porta e espreitar para fora sempre que Laurie se encontrava no corredor. A sua bisbilhotice irritava Laurie na maioria das vezes, por ser uma intromissão na sua privacidade, mas nesse momento não se importava. Era uma reconfortante familiaridade que a acolhia no regresso a casa.

Uma vez no interior, Laurie ativou todas as trancas, ferrolhos e correntes que o inquilino anterior instalara. Depois olhou em redor. Não ia ao apartamento havia mais de um mês e não se lembrava da ultima vez que lá tinha dormido. Todo o apartamento precisava de uma boa limpeza e o ar cheirava um pouco a mofo. Era mais pequeno que o de Jack, mas muito mais aconchegante e confortável, com mobília a sério, incluindo um televisor. As cores dos tecidos e da pintura eram quentes e convidativas. Havia uma série de reproduções emolduradas de Gustav Klimt do Met[2]. A única coisa que ali faltava era Tom 2, o gato, que ela entregara um ano atrás a uma amiga que vivia na ilha de Shelter. Perguntou-se se teria lata para pedir o animal de volta depois de tanto tempo.

Laurie arrastou a mala para o minúsculo quarto e passou meia hora a organizar as coisas. Depois de um duche rápido, vestiu o roupão antes de preparar uma salada simples. Embora não tivesse almoçado, não se sentia especialmente com fome. Levou a salada e um copo com vinho para a secretária na sala de estar e ligou o portátil. Enquanto esperava que ele iniciasse, permitiu-se por fim pensar acerca do que soubera pelo pai. Tivera de fazer um esforço para evitar pensar acerca do assunto, mas quisera estar sozinha e ter acesso à Internet, bem como controlar melhor as emoções. Estava ciente de que não sabia o suficiente para ser capaz de pensar com clareza.

O problema consistia no fato de que os progressos na Medicina se faziam a uma velocidade vertiginosa. Laurie freqüentara a faculdade de Medicina em meados dos anos oitenta e aprendera uma significativa quantidade de coisas acerca da Genética, uma vez que essa fora a época dos estonteantes avanços no ADN recombinante. No entanto, desde então, essa área havia florescido geometricamente, tendo o seu auge na seqüência de 3,2 mil milhões de pares de base do genoma humano, tal como anunciado com grande fanfarra no ano 2000.

Laurie fizera questão de se manter razoavelmente a par do conhecimento sobre genética, em especial naquilo que dizia respeito à sua especialidade na área forense. Porém, o ADN interessava à prática forense somente enquanto método de identificação. Descobrira-se que certas áreas não-codificantes, ou áreas destituídas de genes, revelavam enormes especificidades individuais, a ponto de até parentes próximos possuírem seqüência divergentes. Os testes que tiram proveito dessas especificidades são designados de "impressões digitais de ADN" Laurie estava bem ciente do fato, que a deixava satisfeita por ser uma poderosa arma forense.

Contudo, a estrutura e a função dos genes eram outras questões inteiramente diferentes, uma área para a qual Laurie se sentia sem preparação. Tinham surgido duas novas ciências: a genômica médica, que tratava do fluxo de informação extremamente complexo no interior de uma célula, e a bioinformática, que consistia na aplicação de computadores a essa informação.

Laurie bebeu um gole de vinho. A tentativa de compreender a informação que recebera do pai, nomeadamente de que a mãe possuía um marcador para o gene BRCA1 e de que Laurie tinha cinqüenta por cento de hipóteses de ter esse mesmo marcador, era um processo desanimador. Estremeceu. Havia algo de desconcertante e perverso acerca de saber que poderia ter algo potencialmente letal escondido no centro do seu corpo. Sempre considerara, ao longo da vida, que ter informação era algo bom por si só. Agora já não tinha a certeza. Talvez houvesse coisas que seria melhor não se saber.

Logo que se ligou à Internet, procurou "gene BRCA l" no Google e encontrou quinhentos e doze sites. Comeu uma garfada de salada, clicou no primeiro site e começou a ler.

 

— E-lá! — murmurou Chet McGovern em tom de elogiosa homenagem à figura feminina que observava pelo canto do olho.

Era a mulher que referira a Jack nessa tarde e que usava o fato preto que lhe descrevera. Calculou que estaria perto dos trinta anos, mas não sabia ao certo. Aquilo que sabia era que ela tinha um dos melhores físicos que ele já vira. Nesse momento, ela estava deitada de bruços sobre um banco, a usar uma máquina para trabalhar os músculos da coxa e das nádegas. A acentuada curva que tinha ao fundo das costas e a ondulação rítmica das suas nádegas enquanto repetia o exercício fizeram com que um arrepio de prazer lhe perpassasse o corpo.

Chet estava a cerca de seis metros de distância, a usar habilmente os pesos em frente de uma parede espelhada, de modo a poder aproximar-se sem levantar suspeitas. Vira-a na aula de localizada, que ele fizera na sexta-feira, mas desta vez, estimulado depois de ter feito referência a Jack, seguira-a até a sala dos pesos, onde havia ainda uma mão cheia de pessoas apesar de já passarem das nove da noite. A intenção de Chet era estabelecer contato com ela e convidá-la para tomar uma bebida, na esperança de conseguir o seu número de telefone. A maioria dos casos de Chet era com mulheres que conhecera nos múltiplos health clubs que freqüentava. Para ele, olhar para as mulheres não era apenas um desporto de bancada.

A mulher terminou os exercícios na máquina que estivera a usar. Sem perder tempo, levantou-se, ergueu os olhos para o relógio de parede e apressou-se para a máquina seguinte, onde ia exercitar os peitorais. Aparentemente com pressa, começou de imediato. Chet observara-a através do espelho e, ao fundo da sala, avistou um dos empregados do ginásio a entrar na sala. Chet conhecia-o razoavelmente bem dos lançamentos de basquetebol e tinha a idéia de que seria um tipo esperto, até porque tinha um qualquer papel de supervisor. Chamava-se Chuck Horner. Esticando-se para as colunas de guardar os pesos, Chet depositou os que estivera a usar e dirigiu-se ao funcionário.

— Olá, Chuck! — disse Chet em sotto voce. — Conheces aquela miúda na máquina dos peitorais?

Chuck estendeu o pescoço para olhar em volta de Chet.

— Aquela brasa? Aquela com cara de fada e um corpo de dar volta ao miolo?

— Essa mesmo.

— Sim, conheço-a. Quer dizer, sei o nome dela, já que passa aqui a vida tratei da sua inscrição.

— Como é que se chama?

— Jasmine Rakoczi, mas chamam-lhe Jazz. Tem cá um corpo, não achas?

— Um dos melhores — admitiu Chet. — Que espécie de nome é “Rakoczi”?

— E engraçado que perguntes, porque eu perguntei-lhe a mesma coisa quando ela se inscreveu. Disse-me que era húngaro.

— Anda enrolada com alguém que conheças?

— Não faço idéia, mas posso dizer-te que é uma bomba. Anda por aí num Hummer preto. Deixa-me que te avise: não é lá muito social, pelo menos por aqui. Estás a pensar meter-te com ela?

— Estou a pensar nisso — condescendeu Chet num tom casual. Virou-se para ver Jazz a exercitar os peitorais. Não estava ali a brincar. O suor reluzia-lhe na testa bronzeada como pequenos diamantes.

— Uma nota de cinco em como não passas da primeira fase.

Chet virou-se para olhar para Chuck. Estampou-se-lhe no rosto um sorriso irônico. O fato de lhe pagarem para fazer algo que queria fazer era um bom incentivo para ultrapassar a sua hesitação.

— Está apostado!

De regresso às colunas dos pesos, Chet retirou vários. Estava agora empenhado em abordar Jazz, mas não sem uma certa dose de ansiedade, em especial depois das dicas desencorajadoras de Chuck. Na verdade, Chet não era tão ousado como gostava de se fazer passar.

Enquanto estava de pé em frente ao espelho a levantar os pesos, Chet tentou pensar numa maneira de abordar a mulher que lhe proporcionasse uma saída caso precisasse dela. Infelizmente não era capaz de se lembrar de nada inteligente e, receando que ela pudesse terminar de repente e desaparecer nos balneários das mulheres, deu o primeiro passo.

Na verdade, não foi bem um "passo" de todo. Aproximou-se simplesmente dela quando julgou que ela estava quase a acabar os exercícios na máquina onde se encontrava de momento. Por essa altura, tinha a boca seca e o coração a saltar-lhe do peito. O fato de ter conseguido aproximar-se no momento certo foi animador. Quando se pôs em frente dela, a rapariga parou e retirou os braços dos apoios da máquina. Tirou a toalha de cima dos ombros e limpou a testa usando as duas mãos, cobrindo o rosto e respirando profundamente devido ao esforço.

— Olá, Jazz! — disse Chet alegremente, confiante de que ela se iria sentir curiosa de imediato em relação ao fato de ele saber o seu nome.

A única resposta de Jazz foi baixar lentamente a toalha, revelando assim de modo progressivo as suas feições. Cravou os olhos ardentes e profundos em Chet. De perto, não se parecia nada com uma fada. Sob um capacete de cabelo negro, úmido por força do exercício, as suas feições possuíam um toque de exotismo. Aquilo que Chet julgara ser um bronzeado era na verdade uma tez naturalmente escura, que fazia com que os seus dentes parecessem especialmente brancos. Os olhos eram ligeiramente amendoados e o nariz tinha uma curva aquilina quase imperceptível. Tudo isso teria sido aceitável para Chet, com exceção das maçãs do rosto ligeiramente encovadas e a sua expressão. Essas maçãs conferiam-lhe um ar malévolo, ao passo que a sua expressão era desafiadora e intimidante, como as dos retratos dos recrutas fuzileiros.

Chet não se sentia incentivado, especialmente porque Jazz não lhe respondia.

— Pensei em apresentar-me — disse Chet tentando manter um ar despreocupado, o que era difícil, tendo em conta que ela o fitava.

Os pesos também o estavam a incomodar, puxando-lhe os ombros para baixo. Chet escolhera uns pesados na esperança de impressionar a mulher bem musculada. Para além dos mamilos, podia ver-lhe os abdominais bem definidos sob o tecido elástico.

Jazz continuava sem responder. Nem sequer pestanejava.

— Sou o Dr. Chet McGovern — acrescentou.

Usava o título de doutor como trunfo para abordar mulheres, embora nunca referisse o tipo de médico que era a não ser quando pressionado a tal. Na sua experiência de saídas com mulheres, o papel de médico-legista não tinha o mesmo valor que o de um clínico.

A situação estava rapidamente a tornar-se crítica. Não só Jazz nada dissera acerca do fato de ele ser médico, como a sua expressão passara de desafiadora a desdenhosa. Chet tentou encolher os ombros, mas achou-o difícil com os pesos nas mãos. Sentindo-se desesperado, disse:

— Estava com esperança de que, talvez, se não estivesse muito ocupada, pudéssemos beber qualquer coisa ou assim no bar depois de ter terminado o seu treino. — Infelizmente, o seu tom de voz saíra mais agudo do que aquilo que até ele esperara.

— Faz-me um favor, paspalho — disse Jazz num tom verrinoso. — Vaza!

"Que parvalhão!", pensou Jazz enquanto observava o rosto de Chet a descair depois de ela lhe ter cortado as pernas com o seu comentário amargo. Fugira então com o rabinho entre as pernas. Vira-o na aula de localizada na sexta-feira e agora outra vez. Em ambas as ocasiões, agira como se julgasse ser espertinho com os olhares furtivos na direção dela. Como se isso não tivesse bastado, nesse dia seguira-a até a sala dos pesos, importunando-a de morte ao mirá-la, quer através do espelho, quer pelo canto do olho, enquanto ela realizava a sua rotina, fingindo durante todo esse tempo que estava a usar os pesos para poder manter-se numa relativa proximidade. Era um tarado e, além disso, um bobo. Não conseguia conceber como é que alguém no seu juízo perfeito poderia prostituir-se usando roupas de desporto na moda com os nomes dos estilistas em etiquetas espalhadas por elas. Parecia mais um jogador de pólo! Deus do céu! Na sua opinião, era tão foleiro que chegava a ser vulgar.

Jazz levantou-se e dirigiu-se à plataforma inclinada para fazer abdominais. Não sabia aonde é que Chet tinha ido e estava satisfeita por se encontrar longe do seu olhar lascivo. Detestava tipos Ivy League[3] e certamente que Chet fora um deles. Reconhecia-os a milhas. Pavoneavam-se com os seus belos canudos e não sabiam puto. O fato de Chet ter considerado, por um minuto que fosse, que ela haveria de querer beber um copo com ele era um balde de água fria.

Depois de mais uma rápida olhadela ao relógio para se assegurar de que tinha tempo suficiente, Jazz fez os seus cem abdominais, certificando-se de que mantinha a respiração sincronizada. O único problema com o health club — ou disso se convencera, sem explicar por que motivo gostava de usar aquela roupa sugestiva — consistia no fato de ter de aturar diariamente homens como Chet. A maioria deles dizia que lhe queriam pagar um copo, mas ela sabia que não era isso que queriam. Queriam sexo, como todos os homens. Nos seus tempos de liceu, ou mesmo do ciclo, ter-se-ia provavelmente mostrado disposta a dar-lhe uma hipótese pelo seu dinheiro, dando-lhe um pouco de Ecstasy e aproveitando-se depois dele.

Mas isso era no tempo em que ela considerava o sexo como uma diversão, quando ele lhe dava uma sensação de poder e deixava os pais doidos. Agora já não precisava disso. Na verdade, era uma grande dor de cabeça, com todo aquele disparate que necessariamente o acompanhava. Era uma perda de tempo, especialmente porque era muito mais fácil e muito mais rápido tratar de si mesma quando sentia disposição para tal.

Terminados os abdominais, Jazz pôs-se de pé e mirou-se ao espelho. Esticou completamente a sua estatura esguia, musculada, de um metro e oitenta. Gostava daquilo que via, em especial da definição dos braços e das pernas. Estava em melhor forma do que depois do acampamento dos recrutas navais, quando o conceito de exercício lhe fora apresentado pela primeira vez.

Com a toalha numa mão, debruçou-se para pegar na garrafa de água. Tinha apenas um restinho, que ela bebeu de um trago. Iniciou de seguida o percurso para o balneário. Enquanto caminhava, podia ver que a maioria dos homens a seguia com olhares maliciosos. Teve o cuidado de evitar olhar para eles e manteve uma expressão de desdém no rosto, o que era fácil, tendo em conta que era isso mesmo que sentia. Também avistou o Sr. Ivy League a falar com o cabeça de abóbora que lhe processara a papelada quando ela se inscrevera no ginásio um mês antes. O louro Sr. Pólo tinha agora as mãos nas ancas e uma expressão triste, de carneiro mal morto. Jazz viu-se obrigada a reprimir um sorriso quando se lembrou dele a gabar-se do fato de ser médico, como se isso a fosse impressionar! Jazz conhecia imensos médicos e eram todos uns idiotas.

Atirou a garrafa de água vazia para o caixote do lixo junto da porta antes de sair da sala dos pesos. Ao passar pela secretária principal da recepção, viu que já era quase um quarto para as dez, o que significava que o melhor que tinha a fazer era dar corda aos sapatos e pôr-se a andar, uma vez que gostava de ter a opção de ir cedo para o trabalho caso tivesse a sorte de conseguir outra missão. Tinha havido uma certa calmaria antes da missão da noite anterior, que ela esperava ter sido o início de toda uma nova série. Não podia contudo queixar-se da calmaria, porque, em geral, tinha sem dúvida sorte. Por vezes perguntava-se como é que eles a teriam descoberto, mas não ficava a matutar no assunto. Já era altura de as coisas começarem a funcionar, tendo em conta todo o seu esforço, em especial a sua chamada formação formal ao sair das forças militares. O fato de ter sido obrigada a freqüentar a faculdade local juntamente com todos aqueles atrasados mentais de modo a passar de socorrista a enfermeira certificada fora a maior provação da sua vida.

Logo à entrada dos balneários havia uma mesa com uma grande tina contendo refrigerantes gelados. Jazz serviu-se de uma Coca-Cola, puxou a argola e bebeu um satisfatório gole. Junto à tina encontrava-se um bloco de mola com um pequeno sinal que lhe pedia que escrevesse o seu nome e indicasse aquilo que retirara de modo a que lhe pudessem pôr a despesa na conta. Enquanto bebia mais um trago da lata e se dirigia à secção VIP, onde tinha o cacifo que lhe fora destinado, perguntou-se que espécie de idiota haveria de escrever efetivamente o seu nome no registro, mas, afinal, bem sabia que nascia um idiota a cada minuto.

Para Jazz, o duche era uma coisa rápida. Depois de se ensaboar, incluindo o xampu, gostava de permanecer de olhos fechados durante alguns minutos, deixando que a água lhe tamborilasse na cabeça e lhe percorresse os sulcos do seu corpo bem tonificado. Fechar os olhos tinha a vantagem adicional de a proteger da visão dos corpos das outras mulheres, algumas das quais tinham nádegas do tamanho de pequenos países e peles que faziam lembrar a superfície lunar. Jazz nem queria acreditar que alguém sentisse tão pouco respeito por si mesmo que se permitisse chegar a um estado tão patético.

Terminado o duche, o seu capacete curto precisava apenas de uma breve ação do secador. Quando era mais jovem, o cabelo fora uma tortura para ela, mas ter estado no serviço militar curara-a. Também a curara da preocupação de longa data com cosméticos. Agora, tudo o que usava era um pouco de batom, e fazia-o mais para impedir os lábios de secarem que para outra coisa qualquer.

Seguia-se o equipamento verde, sobre o qual vestiu uma bata branca de comprimento médio com um estetoscópio atafulhado no bolso lateral. O bolso do peito ostentava uma coleção de canetas, lápis e outra parafernália de enfermagem.

— É enfermeira de urgências? — perguntou uma voz.

Jazz olhou em redor. Uma das mulheres de rabo grande estava sentada no banco em frente ao cacifo dela, envolta numa toalha como uma salsicha. Jazz refletiu sobre se deveria ou não ignorá-la. Geralmente, Jazz situava-se acima das habituais baboseiras de balneários, preferindo ser expedita no duche. Porém, o estereótipo implícito no comentário estava a pedir uma resposta.

— Não, sou neurocirurgiã — disse Jazz.

Retirou o enorme casaco militar verde-azeitonado cacifo e vestiu-o. Tinha bolsos fundos como minas de ouro. O conteúdo dos bolsos embatia-lhe nas coxas, especialmente na direita.

— Neurocirurgiã! — A mulher deixou-se maravilhar, com uma expressão incrédula. — A sério?!

— A sério — disse Jazz em eco num tom que não era convidativo a mais conversa.

Enfiou o fato suado no saco desportivo e depois fechou e trancou o cacifo. Embora não olhasse para a mulher que falara com ela, sentia que a outra a observava. Jazz não queria saber se a mulher acreditava ou não. Não importava.

Sem trocar mais uma palavra que fosse, Jazz atravessou os balneários até a porta e saiu para o corredor principal. Depois de ter premido o botão para descer do elevador, enfiou a mão no bolso direito do casaco e brincou com o seu pertence preferido, uma Glock de nove milímetros subcompacta. A sua coronha de molde compósito conferiu-lhe uma reconfortante sensação de poder, despeitando nela, em simultâneo, fantasias recorrentes de ser abordada por pelintras como o Sr. Ivy League no parque de estacionamento. Aconteceria tudo de forma tão rápida que a cabeça do sujeito haveria de andar à roda. Num instante, ele estaria a tecer um qualquer comentário vazio e, no instante seguinte, estaria a olhar para o cano do supressor da arma. Jazz fizera o esforço de equipar a arma com um silenciador porque outra das suas fantasias ativas era apagar um dos seus supervisores de enfermagem.

Jazz suspirou. Fora sobrecarregada a vida inteira com o fardo do pessoal de autoridade incompetente. Tudo começara no liceu. Lembrava-se como se tivesse sido ontem da altura em que fora chamada ao gabinete do orientador escolar. O palhaço tinha-lhe dito que estava perplexo porque ela se distinguira nos testes de inteligência, mas estava a sair-se tão mal. Qual era a causa?

— Dã-ã! — Disse Jazz em voz alta ao lembrar-se do incidente.

O tipo era tão lento mentalmente que não conseguia compreender que nove décimos dos professores vinham do mesmo refugo no lago genético que ele. Ir para o liceu era uma perda de tempo. Ele avisara-a de que ela não conseguiria entrar na faculdade se continuasse a agir daquela maneira. Bem, pouco se importava. Sabia que a única saída genuína da fossa que era a sua vida era o serviço militar.

O problema era que o serviço militar não era muito melhor. A princípio estava bem, porque ela tinha um longo caminho a percorrer, Para ficar em forma e tudo isso. Os testes de aptidão tinham supostamente apontado no sentido de se vir a tornar socorrista no hospital, o que era uma piada, dado que sempre mentira nesses estúpidos testes. Contudo, lá jogou o jogo; tornar-se socorrista parecia-lhe bem, especialmente a idéia de estar por conta própria.

Finalmente, optou por se tornar socorrista independente nos fuzileiros. No entanto, quando acabou por ser nomeada para o cargo, as coisas começaram a desabar. Alguns dos oficiais com quem tinha de lidar eram uns imbecis, especialmente lá no Kuwait, quando o esquadrão dela se infiltrou na linha da frente no Kuwait em fevereiro de 1991. Tinha tido alguma pica a matar iraquianos até que o comandante lhe retirou a carabina como se não fosse suposto que ela passasse um bom bocado. Ordenou-lhe que restringisse as suas atividades às necessidades médicas dos homens a sério. Tinha sido constrangedor.

As coisas atingiram o cúmulo em San Diego quase um ano depois. O mesmo oficial cretino foi a um bar onde ela e alguns dos soldados regulares emborcavam umas cervejas. Ficou com os copos e apalpou-a quando ela não estava a olhar. Como se isso não bastasse, chamou-lhe "fufa anormal" quando ela rejeitou uma oferta sua para que fosse com ele de carro até a extremidade de Point Loma para se enrolarem. Fora a gota de água e Jazz golpeara-lhe a perna com a baioneta. Não lhe fizera pontaria para a perna, mas ele percebeu ainda assim a mensagem. É claro que isso fora o fim da sua carreira militar, mas não se importava. Já estava farta.

Passar da marinha para a faculdade local acabou por ser como passar da frigideira para o lume. Todavia, Jazz mostrara perseverança. Julgara que conseguir o certificado de enfermeira seria uma arma para si, porque havia tanta falta de enfermeiras e ela poderia ter assim a faca e o queijo na mão. Infelizmente, a realidade final não era diferente daquela que experimentara na marinha no respeitante a supervisores, que a haviam forçado a saltar de trabalho em trabalho na vã esperança de que as coisas fossem melhores em diversas instituições. Mas nunca o eram. Agora já não importava.

Quando o elevador parou no parque situado no nível superior, Jazz saiu do elevador vidrado e dirigiu-se ao seu pertence que estava em segundo lugar nas suas preferências: um H2 Hummer novinho em folha, brilhante e preto como o ônix. Percorreu a parte lateral do 92 veículo com os dedos em jeito de apreço, vendo o seu reflexo nas janelas. Com exceção do pára-brisas, todos os vidros eram esfumados, a ponto de parecerem negros. Antes de abrir a porta recuou para uma visão de conjunto das linhas retangulares do veículo e da sua postura atarracada e ameaçadora, as quais lhe conferiam a aparência de um sistema de arma preparado para fazer das ruas de Nova Iorque o seu campo de batalha.

Jazz subiu para o carro, atirou o saco desportivo para o lugar do passageiro e tirou o Blackberry do casaco, mas deixou-a no regaço. Ligou a ignição. O rugido suave emitido pelos tubos de aspiração contribuíam para o fascínio do carro. Não conseguiu evitar um sorriso. Entrar no carro provocava em si uma emoção semelhante à de cheirar coca, só que melhor. Também lhe recordava como fora recompensador o dia em que o Sr. Bob se aproximara dela. Continuava sem saber o nome dele completo, o que era uma estupidez. Ele disse-lhe que se tratava de uma questão de segurança, coisa que na altura ela questionara, mas que agora não lhe importava. Nesse primeiro encontro, ela vira-o pelo canto do olho aproximar-se dela e julgou que ia ser outro típico incitamento masculino, mas não o foi. Chamou-lhe imediatamente a atenção ao tratá-la por "doutora J. R.", que era a alcunha que os fuzileiros do seu primeiro esquadrão lhe haviam dado. Não ouvia esse nome havia vários anos, ficando portanto surpreendida, e calculou que o próprio Sr. Bob teria sido fuzileiro. Aguardara que ela saísse do hospital em Nova Jersey, onde trabalhava no turno das três às onze da noite. Disse-lhe que tinha uma proposta de negócios para ela e perguntou-lhe se estaria interessada em ganhar dinheiro extra; muito dinheiro extra.

Sentindo que lhe saíra finalmente a sorte grande, Jazz aceitou o convite para entrar com ele no seu H2 Hummer, que era a cópia chapada do seu. Antes de ter entrado no veículo certificou-se de que não estava mais ninguém lá dentro. Certificou-se também de que tinha a mão perto da Glock, aninhada no seu bolso. Nessa altura a pistola não tinha silenciador acoplado, por isso era fácil de sacar. Caso o Sr. Bob fizesse algo de inconveniente, teria disparado para onde quisera disparar quando agrediu o oficial dos fuzileiros. Não acreditava em ameaças. Se a arma saísse do bolso, seria usada.

Porém não precisava de se ter preocupado. O Sr. Bob estava exclusivamente interessado em negócios. Acabaram num bar pequeno e repleto de fumo na baixa de Newark, onde o Sr. Bob se condoeu com as experiências dela na vida militar e até pediu desculpas pelo tratamento que ela recebera e pela dispensa injustificada. Disse-lhe que era precisamente devido aos seus serviços exemplares que estava a ser recrutada para uma importante missão, pela qual haveria de ser adequadamente compensada. O Sr. Bob prosseguiu dizendo que eles (Jazz ainda estava para saber quem "eles" eram) reconheciam nela qualidades únicas para lhes fornecer o serviço de que necessitavam. Perguntou-lhe depois se estaria interessada.

Jazz riu-se ao fazer marcha atrás com o Hummer e ao sair do seu lugar de estacionamento no parque. Ao pensar em retrospectiva, tinha sido uma loucura da parte dele perguntar-lhe se ela estaria interessada antes que ela soubesse exatamente o que ia fazer, e foi o que lhe disse na altura. A partir de então, ele deixara-se de rodeios. Disse-lhe que precisavam de pessoas como Jazz para se livrarem da incompetência médica, que ele dizia ser desmedida, embora difícil de investigar por força de uma conspiração de silêncio por parte dos profissionais médicos. Foi então que Jazz se deixou convencer de que era a pessoa adequada para ajudar. Era especialista em reconhecer a incompetência, uma vez que encontrara exemplos dela em cada instituição a que estivera ligada. O Sr. Bob disse-lhe que o trabalho dela consistiria em comunicar-lhe por correio eletrônico todos os episódios de resultados adversos, em especial quando relacionados com anestesias, obstetrícia e neurocirurgia, mas sublinhou que não eram esquisitos. Queriam tudo aquilo que ela encontrasse. Pagar-lhe-iam duzentos dólares por caso pelos seus esforços, com um bônus adicional de mil dólares por cada caso que resultasse num processo por negligência e quinhentos dólares extra se a sentença fosse a favor do queixoso.

Fora então assim o princípio. Seguindo as recomendações do Sr. Bob, mudou da tarde para noite, o que foi fácil, porque o turno da noite era o menos popular. A vantagem era que durante a madrugada havia menos supervisão, o que fazia com que percorrer os pisos, verificar os gráficos e geralmente apanhar os mexericos, era muito mais fácil que durante o dia, ou mesmo ao fim da tarde. O Sr. Bob fornecera-lhe ainda outras recomendações úteis, que, tal como lhe explicou, derivavam de um fundo de experiência que haviam acumulado ao longo décadas. Disse-lhe que ela ia juntar-se uma grande organização clandestina de elite.

Jazz distinguira-se desde o início. A natureza furtiva da operação era uma vantagem adicional, que até fazia com que ir para o trabalho fosse divertido. O dinheiro era canalizado para uma conta offshore que fora aberta para ela por quem quer que "eles" fossem. Engordou rapidamente e engordou isenta de impostos. O único problema era que para usar o dinheiro, tinha de ir às Caraíbas, necessidade essa que dificilmente lhe pareceria uma imposição.

Mas então, depois de quatro anos e de várias mudanças para diversos hospitais, tendo o último sido o de São Francisco, no Queens, as coisas tornaram-se ainda melhores. O Sr. Bob apareceu a dizer que, como conseqüência do seu excepcional trabalho, fora nomeada, juntamente com um grupo muito exclusivo, para subir de posto na força de missões ocultas. Iria agora participar numa missão ainda mais importante, pela qual a sua compensação seria largamente aumentada. Ao mesmo tempo, também o seria o nível de sigilo. Tratava-se de uma operação altamente confidencial cujo nome de código era: "Operação Peneira".

Jazz lembrava-se de que ele se rira depois de lhe ter dito o nome. Dissera-lhe que não era de modo algum responsável pela escolha, uma vez que o fazia pensar em "ter peneiras". Contudo, depressa se extinguiu o seu riso e ele tornou a sublinhar o caráter secreto da missão. Dissera-lhe:

— Não pode haver ondinhas na superfície.

Perguntou a Jazz se ela compreendia. Era claro que compreendia. O Sr. Bob prosseguira explicando-lhe que as circunstâncias seriam opostas do combinado com os "resultados adversos", que ela deveria continuar também. Com a Operação Peneira, ela iria receber o nome de um paciente via correio eletrônico. Depois, seguindo um protocolo cuidadosamente concebido, que ela teria de seguir à letra, iria sancionar o paciente.

Deu-se uma pausa nesse momento. A princípio, Jazz não percebeu a intenção dele. Sentia-se confundida com a palavra "sancionar", até que finalmente se fez luz. Quando tal aconteceu, sentiu um arrepio de expectativa.

— Este protocolo foi concebido por profissionais e é completamente infalível — dissera o Sr. Bob. — Não há hipótese de vir a ser descoberto, mas tem de o seguir exatamente como especificado. Está a compreender?

— É claro que estou a compreender — respondera Jazz. — Mas não me disse qual era a compensação.

— Cinco mil por caso.

Jazz lembrava-se do sorriso que lhe aflorara o rosto. Pensar que ia receber cinco mil dólares por fazer algo de desafiante e divertido era quase bom de mais para ser verdade. E acabou por ser melhor do que ela imaginara. Depois das primeiras cinco missões, que decorreram sem qualquer dificuldade, graças ao protocolo fornecido, o Sr. Bob surgira na companhia do Hummer.

— É um sinal do nosso agradecimento — explicara a Jazz ao entregar-lhe as chaves e os documentos. — Pense nele como sendo a antítese do Cadillac oferecido por aquela empresa de cosméticos. Goze-o em boa saúde!

Jazz saiu do parque de estacionamento do health club para a Columbus Avenue. Ao parar no primeiro semáforo vermelho, ativou o Blackberry. Sabia por experiência própria que o sinal era diminuto no interior do parque. Foi recompensada com uma mensagem do Sr. Bob. Abriu-a com crescente excitação. Era um novo nome!

— Yes! — Gritou Jazz com uma careta de determinação semelhante a um atleta que tivesse acabado de executar um movimento perfeito, ao mesmo tempo em que dava um soco no ar.

Não tardou porém a dominar a sua reação. A formação militar entrou imediatamente em ação devolvendo-a a uma calma pró-ativa. O fato de ter recebido outro nome depois de ter recebido um na noite anterior sugeria que ela estava prestes a encetar outra série. Embora os nomes chegassem em intervalos irregulares, tinham tendência a estar agrupados. Não fazia idéia por que.

Jazz estendeu o braço e colocou o Blackberry na saliência semelhante a um tabuleiro no tablier por cima do porta-luvas. O movimento fê-la hesitar quando o semáforo passou a verde. O táxi à direita de Jazz deu um solavanco em frente com a intenção de se meter na faixa de rodagem de Jazz de modo a evitar um táxi parado na sua faixa. Jazz carregou no acelerador para libertar toda a potência do V-8 do Hummer. O jipe disparou em frente e ultrapassou a dianteira do táxi num ápice, obrigando o condutor a carregar a fundo nos travões. Jazz espetou-lhe o dedo ao avançar disparada.

Depois de mais alguns acidentes evitados por um triz com táxis ao longo do Central Park South, Jazz abriu caminho para o East Side e depois para norte da Madison, em direção ao Hospital Manhattan General. Eram dez e um quarto quando estacionou no gigantesco parque do recinto. Uma das outras vantagens de fazer o turno da noite era a fartura de lugares para estacionar mesmo ao pé da entrada do parque para o hospital, no segundo piso. Pegou no Blackberry e fê-lo deslizar para o interior do bolso esquerdo do casaco, depois atravessou a passagem para peões e entrou no hospital.

Tal como planeara, estava um pouco adiantada. Foi diretamente para o sexto piso, que lhe fora destinado. Era um piso de cirurgia geral e estava sempre movimentado. Tendo guardado o casaco em lugar seguro, sentou-se num dos terminais de computador e teclou de modo casual "Darlene Morgan". A secretária administrativa da tarde ignorou-a, atarefada como estava a acabar as coisas para se poder ir embora.

Jazz ficou satisfeita por saber que Darlene Morgan se encontrava no quarto 629, no piso de Jazz, o que facilitava bastante a missão. Podia sempre ir a outros pisos durante os intervalos e à hora do almoço, coisa que fizera em missões anteriores, mas havia sempre o ligeiro receio de que chamasse a atenção.

Deixando o sexto piso, desceu no elevador até ao primeiro, onde se dirigiu às emergências. Tal como era habitual, estava um verdadeiro pandemônio. O início da noite era a altura mais movimentada e a sala de espera estava apinhada de gente com bebês a chorar e com todas as formas de doenças e de ferimentos. Era o tipo de caos com que Jazz contava. Ninguém a questionou quando entrou no armam onde se guardavam os líquidos parenterais, ou intravenosos, embora não esperasse qualquer interferência, ainda que fosse vista. Olhou mesmo assim em redor para se certificar de que não estava a ser observada. Era um reflexo seu. Quando se tornou claro que ninguém a via, estendeu a mão para a caixa de cartão contendo as ampolas de cloreto de potássio concentrado, retirou uma e fê-la deslizar para o interior do bolso do casaco. Tal como o Sr. Bob lhe dissera, nunca dariam pela sua falta na agitada sala de emergências.

Completada a primeira parte da sua missão, Jazz regressou ao sexto andar para esperar pelo relatório da enfermagem e para o início do turno da noite. Mais por curiosidade que por outra razão qualquer, pegou no processo de Darlene Morgan para ver se havia nele algo de interessante ou, já agora, alguma explicação. É claro que não se importava se havia ou não havia.

 

— Mamã, quero que venhas para casa esta noite — choramingou Stephen.

Darlene Morgan fez uma festa no cimo da cabeça do filho de oito anos e trocou um olhar preocupado com o marido, Paul. Stephen era grande para a idade e por vezes agia de maneira razoavelmente madura, embora não fosse esse o caso nesse momento. Estava genuinamente nervoso com o fato de a mãe estar no hospital e não lhe largava a mão. Darlene ficara espantada quando Paul surgira com o pequenito a reboque, dado que as regras hospitalares ditavam que as visitas tinham de ter doze ou mais anos de idade, e Stephen podia ser grande, mas não aparentava ter doze anos. Contudo, Paul explicara-lhe que Stephen lhe suplicara que o deixasse ir, a ponto de Paul se ter mostrado disposto a arriscar na insignificância dessa regra restritiva da idade de doze anos e na hipótese de as enfermeiras fecharem os olhos.

A princípio, Darlene ficara contente por ver Stephen, mas agora estava preocupada com a perspectiva de uma birra se Paul tratasse da questão da partida de modo pouco apropriado. Paul estava a tentar ir-se embora havia meia hora e sentia-se compreensivelmente frustrado. Foi com alguma dificuldade que Darlene soltou a mão e esticou um braço para com ele cingir o filho pela cintura e puxá-lo para o lado da cama.

— Stephen — disse ela baixinho. — Lembras-te daquilo que discutimos ontem. A mãe teve de ser operada.

— Por quê?

Darlene ergueu os olhos para Paul, que revirou os seus. Ambos sabiam que Stephen considerava a situação ameaçadora e não ia facilitar as coisas. Darlene explicara-lhe tudo durante o fim-de-semana, mas era evidente que ele não compreendera.

— Tiveram de me tratar do joelho — disse Darlene.

— Por quê?

— Lembras-te de que no verão passado me magoei a jogar tênis? Bem, parti uma coisa no joelho que se chama "ligamento". O doutor teve de me fazer um novo. Agora tenho de passar aqui a noite. Amanhã à noite já vou estar em casa, está bem?

Stephen enrolou a ponta do lençol nos dedos, evitando os olhos da mãe.

— Stephen, já há muito que passou a tua hora de ir para a cama. Vai para casa com o pai e quando acordares vai ser o dia em que vou para casa.

— Quero-te em casa esta noite!

— Eu sei que sim — disse Darlene.

Inclinou-se para abraçar o filho. Depois retraiu-se e soltou um pequeno gemido por ter deslocado a perna operada um pouco mais do que planeara. Tinha a perna parcialmente imobilizada num aparato motorizado que lhe fletia, lenta mas continuamente, a articulação.

Paul avançou, pousou as mãos nos ombros do filho e instou-o a afastar-se. Stephen deixou-se ser arrastado para trás. Ouvira o queixume da mãe.

— Estás bem? — Perguntou Paul à mulher.

— Estou — conseguiu Darlene dizer. Reajustou-se na cama. — Só tenho que manter a perna quieta. — Fechou os olhos e respirou profundamente, e a dor diminuiu.

— Isto é que são umas instalações — disse Paul acenando para o aparato todo. —Temos de agradecer à nossa estrelinha por termos aderido à AmeriCare neste outono. Senão tudo isto teria sido um rombo na conta.

— Não estás a sugerir que eu não deveria ter sido operada, pois não?

— De maneira nenhuma! Estou só a pensar que o nosso antigo seguro não tinha cobertura para tudo. Lembras-te daqueles complicados descontos e de todo aquele absurdo sempre que tentávamos reivindicar alguma coisa? Ei, estou simplesmente contente por este cobrir tudo!

O pequeno episódio da dor pareceu ter um enorme efeito sobre Stephen. Assustou-o o suficiente para o convencer de que a mãe precisava de estar no hospital. Passados apenas alguns minutos, quando Paul repetiu que tinham de se ir embora, ele foi sem se queixar.

De repente, Darlene deu por si sozinha. Durante a tarde, houvera uma atividade constante no corredor, mas agora reinava a calma. Ninguém passou pela sua porta. O que ela não sabia era que todas as enfermeiras e auxiliares do turno da tarde, bem como os do turno da noite, estavam a receber os seus relatórios. O único som que ouvia era o bip distante, quase inaudível, de um monitor cardíaco algures ao fundo do corredor.

Os olhos de Darlene varreram a sala, observando o mobiliário simples do quarto, as flores aparadas de Paul na cômoda, a pintura das paredes verde-aipo e a reprodução emoldurada de um Monet. Estremeceu ao pensar nas lutas entre vida e morte a que aquelas paredes tinham assistido ao longo dos anos, mas depois tentou afastar rapidamente essa idéia da mente. Não era fácil. Não gostava de hospitais e, com a exceção de quando dera à luz, nunca estivera na posição de paciente. Dar à luz tinha sido diferente. Havia uma sensação de felicidade e de expectativa que impregnava a ala do hospital. Agora era diferente e bem mais intimidante.

Ao virar a cabeça e erguer o olhar, observou as gotas que caíam silenciosamente do saco de líquido intravenoso para uma parte dilatada do fio intravenoso. O ato de o contemplar era hipnotizador e, passados alguns minutos, foi preciso algum esforço para desviar os olhos. O lado reconfortante era que, encavalitada no fio de líquido intravenoso, havia uma pequena bomba que continha morfina, o que significava que, até certo ponto, se podia automedicar. Até então só o fizera por duas vezes.

Havia um televisor suspenso por cima dos pés da cama e ela acendeu-o, mais para lhe fazer companhia que por qualquer outra razão.

Estava a dar o noticiário local da noite. Baixou o som, preferindo apenas olhar, com a mente confundida com uma mistura da anestesia da manhã e da medicamentação narcótica contra as dores. A máquina continuava a fletir-lhe a perna, mas estava estranhamente desligada desse fato, como se se tratasse da perna de outra pessoa.

Foi sem esforço que passou uma hora num estado algures a meio caminho entre o sono e a plena consciência. Era mais semelhante ao sono quando se lembrava de permanecer quieta e mais como a vigília se mexia a perna. Estava vagamente consciente do fato de as notícias locais terem dado lugar ao programa de Letterman.

Quando deu por si, estava a ser abanada para acordar por uma auxiliar de enfermeira. Darlene cerrou os dentes porque contraíra inadvertidamente o músculo da perna ao ser incomodada.

— Já urinou depois da operação? — perguntou a auxiliar. Era uma mulher com excesso de peso e cabelo ruivo e escasso.

Darlene tentou pensar. Na verdade, não se lembrava, e foi o que disse.

— Creio que se lembraria se o tivesse feito, por isso tem de o fazer agora. Vou buscar a arrastadeira.

A auxiliar desapareceu na casa de banho e regressou com um recipiente de aço inoxidável. Colocou-o na beira da cama, contra a anca de Darlene.

— Não tenho vontade — disse Darlene.

A última coisa que queria fazer era deslocar-se para cima da arrastadeira. Só de pensar nisso, retraía-se. O cirurgião dissera-lhe que poderia sentir algum desconforto depois da operação. Que eufemismo!

—Tem de o fazer — declarou a auxiliar. Verificou o seu relógio, como se não houvesse tempo para discussões.

Uma mistura da atitude da auxiliar com o estado drogado de Darlene fez com que a sua irritação aumentasse.

— Deixe a arrastadeira. Faço-o mais tarde.

— Querida, vai fazê-lo agora. Tenho ordens vindas de cima.

— Diga lá a quem quer que esteja lá em "cima" que vou fazê-lo mais tarde.

— Vou chamar a enfermeira e, deixe-me que lhe diga, ela não tolera oposição.

A auxiliar tornou a desaparecer. Darlene abanou a cabeça. "Oposição" era uma palavra que ela associava a miúdos na idade pré-escolar. Afastou a arrastadeira, fria como o gelo, da anca.

Cinco minutos mais tarde, a enfermeira irrompeu pelo quarto com a auxiliar a reboque, provocando um sobressalto em Darlene. Ao contrário da auxiliar, a enfermeira era alta e esguia e tinha uns olhos exóticos. Debruçou-se sobre Darlene de mãos nas ancas.

— A auxiliar diz-me que se recusa a urinar.

— Não me recusei. Disse que o faria mais tarde.

— Vai fazê-lo agora, ou vamos fazer descer a urina. Julgo que saberá o que isso significa.

Darlene tinha uma idéia e não era nada apelativa. A auxiliar contornou a cama até ao outro lado. Darlene sentiu-se cercada.

— É a sua deixa, irmã — acrescentou a enfermeira quando Darlene não reagiu. — O meu conselho é que levante esse rabo no ar.

— Podia mostrar um pouco mais de empatia — sugeriu Darlene ao preparar-se para erguer as costas, pressionando as palmas contra a cama.

—Tenho demasiados pacientes para mostrar empatia acerca de libertar um pouco de urina — disse a enfermeira. Verificou o fio de líquido intravenoso enquanto a auxiliar colocava a arrastadeira no sítio.

Darlene inspirou um suspiro de alívio. Colocar-se sobre a arrastadeira não fora tão difícil como imaginara, embora o metal frio fosse horrível. Urinar era outra questão. Precisou de alguns minutos de concentração antes de conseguir começar. Entretanto, a enfermeira e a auxiliar tinham saído. Libertou mais urina do que pensara conseguir, o que a levou a reconhecer que a provação fora necessária. Ao mesmo tempo, fê-la lembrar-se da razão por que não gostava de hospitais.

Terminada a tarefa, teve de aguardar. Conseguia mover a pélvis para cima e para baixo sem sentir desconforto, mas, para retirar a arrastadeira de baixo de si, teria de levantar uma das mãos da cama, o que significaria contrair músculos que lhe magoavam o joelho, de modo que estava presa. Passados cinco minutos, as costas começaram a queixar-se, por isso cerrou os dentes e conseguiu deslocar a arrastadeira para o lado. Quase como que respondendo a uma deixa, reapareceram a enfermeira e a auxiliar.

Enquanto a auxiliar tratava da arrastadeira, a enfermeira deu a Darlene um comprimido para dormir e um pequeno copo de plástico com água.

— Acho que não preciso disso — disse Darlene. Com todos os medicamentos que tomara ao longo do dia, sentia-se a flutuar.

— Tome—o — ordenou a enfermeira. — Foi receitado pelo seu médico.

Darlene ergueu os olhos para o rosto da enfermeira. Não sabia dizer se a expressão dela denotava desafio, tédio ou desdém. Fosse o que fosse, parecia-lhe pouco apropriado. Fez com que Darlene se perguntasse por que razão teria aquela mulher seguido enfermagem. Darlene tomou o comprimido, engoliu-o e empurrou-o com água. Devolveu o copo à enfermeira.

— A senhora podia ter melhores modos.

— As pessoas têm aquilo que merecem — foi a resposta da enfermeira, que pegou no copo e o amachucou na mão. — Volto mais tarde para ver como está.

"Deixe lá", pensou Darlene, mas não o disse. Em lugar disso, limitou-se a fazer um aceno de cabeça quando a enfermeira e a auxiliar saíram. Reconhecendo que se encontrava numa posição de necessidade e de vulnerabilidade, não queria que lhe saísse o tiro pela culatra. Com a perna dobrada para cima na máquina de flexão e sentindo tantas dores como quando mexia o joelho, dependia completamente do pessoal da enfermaria.

Darlene deu a si mesma uma dose da medicamentação para as dores para adormecer o desconforto, semelhante a uma dor de dentes, depois da provação da arrastadeira. Não tardou a sentir-se calma e tranqüila. As emoções trazidas a lume pelo desentendimento com a enfermeira e com a auxiliar desvaneceram-se em insignificância. O que era importante era que a cirurgia já terminara. A ansiedade que sentira na noite anterior era coisa do passado. Estava agora a caminho da convalescença e, segundo o médico, podia esperar jogar tênis dentro de seis meses, ou aproximadamente isso.

Sem ter consciência da transição, Darlene caiu num sono drogado, profundo e sem sonhos. Não estava ciente da passagem do tempo até ter sido bruscamente trazida de volta à consciência por uma dor lancinante que lhe subiu pelo braço esquerdo. Escapou-se-lhe um gemido dos lábios ao mesmo tempo em que os seus olhos se abriram. O televisor estava desligado e o quarto estava pouco iluminado, apenas com uma única luz de presença de baixa voltagem junto ao chão. Por um instante, Darlene sentiu-se desorientada, mas recuperou-se depressa. Com a dor a subir-lhe agora até ao ombro, precipitou-se para o botão de chamada. Contudo, não o alcançou. Em lugar disso, sentiu uma mão agarrar-lhe o pulso. Ao erguer os olhos, viu uma figura branca postada junto da cama, de rosto perdido nas sombras. Darlene abriu a boca para falar, mas as palavras ficaram-lhe presas na garganta. O quarto escureceu e começou a andar à roda antes de Darlene se sentir a mergulhar nas trevas.

 

— Cuidado, Shelly! — berrou Laurie. — Pára!

Para seu grande horror, o irmão estava a correr a toda a velocidade em direção a um lago estagnado, cuja margem consistia numa orla de lama fatal capaz de engolir um elefante. Não conseguia acreditar naquilo. Tinha-o avisado do perigo, mas não havia maneira de ele a ouvir.

— Pára, Shelly! — repetiu o mais alto que conseguia.

Plena de uma agonizante frustração de impotência face a um desastre iminente, Laurie começou a correr. Embora soubesse que tal seria inútil a partir do momento em que Shelly encontrasse a lama, não podia ficar ali, deixando que a tragédia se desenrolasse diante dos seus olhos sem tentar fazer alguma coisa. Enquanto corria, procurava freneticamente um pau comprido ou um cepo que pudesse estender ao irmão quando ele fosse apanhado pela lama, mas a paisagem circundante era árida e nada mais nela havia que pedra nua.

Então, de súbito, Shelly deteve-se a cerca de trinta centímetros da orla lamacenta, semelhante a areias movediças, do lago. Virou-se e ficou de frente para Laurie. Sorria da mesma maneira mordaz quando era miúdo.

Aliviada, Laurie parou. Esbaforida como estava, não sabia se deveria sentir-se grata ou zangada. Em seguida, antes que ela pudesse dizer coisa alguma, Shelly virou-se e recomeçou a sua louca corrida em direção à calamidade.

— Não! — gritou Laurie.

Todavia, dessa vez Shelly alcançou o lago e correu o mais que pôde até as pernas estarem irremediavelmente atoladas na lama. Tornou a olhar para trás, só que dessa vez o seu sorriso desaparecera. Em seu lugar, havia um olhar de terror. Estendeu a mão para Laurie, que correra até ao limiar da terra seca. Procurou de novo algo que pudesse usar para lhe estender, mas nada havia. Rápida e inexoravelmente, o irmão afundava-se na lama, com os seus olhos suplicantes fixados nos de Laurie até desaparecerem naquela imundície. Tudo o que dele restava era uma mão que procurava inutilmente agarrar o ar, mas também ela não tardou a desaparecer de vista, engolida pela lama envolvente.

— Não! Não! Não! — bradou Laurie, mas a sua voz era abafada pelo estrépito vibrante que a arrancava às profundezas do sono.

Estendeu rapidamente o braço e calou o velho alarme de corda. Deixou-se cair de novo na cama e ficou de olhos postos no teto. Estava a suar e tinha a respiração acelerada. Tratava-se de um pesadelo antigo, que, felizmente, não tinha havia anos.

Laurie sentou-se e deixou que os pés ficassem pendurados da parte lateral da cama. Sentia-se pessimamente. Na noite passada ficara a pé até tarde, a limpar compulsivamente o apartamento sujo apesar da exaustão que sentia. Sabia que tinha sido uma estupidez, mas fora uma terapia simbólica. Tinham sido limpas as teias de aranha literais e figuradas.

Não conseguia acreditar em como a sua vida mudara em quarenta e oito horas. Apesar de estar convicta de que manteria uma forte amizade com Jack, a sua relação de intimidade com ele estava provavelmente terminada. Tinha de ser realista em relação às suas próprias necessidades e à realidade dele. A acrescentar a tudo isso havia as preocupações a respeito da mãe, bem como as inquietações acerca da sua própria saúde.

Laurie pôs-se de pé, dirigiu-se à minúscula casa de banho e começou a sua rotina matinal de tomar duche, lavar e secar o cabelo e pintar-se com a pequena quantidade de maquiagem que se habituara a usar. Restringia-se a um toque de blush tom de coral, um pouco de eye-linerehâton de um tom natural. Quando acabou de se arranjar, olhou-se ao espelho. Não estava satisfeita. Tinha uma aparência cansada e estressada, apesar dos seus esforços por ocultá-la, e nem com um pouco de blush adicional e uns toques de anti-olheiras ficou com melhor aspecto.

Laurie sempre fora saudável e tomava a saúde como coisa garantida, com exceção de um episódio de bulimia no liceu. Subitamente, a ameaça de encerrar em si o marcador para uma mutação BRCA1 mudou radicalmente essa perspectiva. A idéia de que, no interior de cada uma das suas células, poderia residir secretamente um conluio genético era assustadora e perturbante. Muito embora tivesse esperado que a busca da noite anterior se revelasse tranqüilizadora, não o fora. Sabia agora muito mais acerca do problema do BRCA1 de um ponto de vista acadêmico, nomeadamente, que o gene normal agia como supressor de tumores, mas na sua forma mutada, agia de maneira oposta.

Infelizmente, informação erudita não era uma grande ajuda quando pensava na questão a nível pessoal, em especial quando associava aquilo que descobrira com o seu desejo de ter filhos. Perder os seios como medida profilática era suficientemente mau, mas perder os ovários era muito pior: era uma castração. Para seu horror, ficara a saber que, caso tivesse o marcador para o BRCA1, tinha não só hipóteses acrescidas de desenvolver cancro da mama antes dos oitenta anos, como hipóteses acrescidas de cancro do ovário! Por outras palavras, o seu relógio biológico batia agora ainda com mais estrépito e rapidez do que pensara.

Era tudo muito deprimente, especialmente combinado com o fato de ter dormido pouco. A questão era: deveria ela fazer o teste ao marcador BRCA? Não sabia. Por certo que não consentiria em que lhe extraíssem os ovários, pelo menos até ter tido um filho. E os seios? Julgava que também não o permitiria, por isso qual seria a lógica de se submeter ao teste? A seu ver, esse dilema era o problema atual dos modernos testes genéticos: ou não existia cura para a doença em questão, ou a cura era demasiado horrenda.

Depois de um rápido pequeno-almoço de fruta e cereais, saiu do apartamento apenas quinze minutos mais tarde do que teria gostado. A Srª. Engler não a desiludiu. Respondeu à deixa abrindo uma fresta da porta e olhou para Laurie com os seus olhos raiados de sangue enquanto ela premia repetidas vezes o botão do elevador na esperança de o apressar. Laurie sorriu e acenou à mulher, mas a única resposta que obteve da Srª. Engler foi a porta fechada com um clique.

O percurso pela First Avenue foi calmo. Fazia mais frio que nos dias anteriores, mas Laurie não fez qualquer tentativa de chamar um táxi. Com o fecho do casaco puxado até ao pescoço, sentia-se suficientemente quente. Também apreciava a distração que a cidade pulsante lhe proporcionava. Nova Iorque tinha para ela um dinamismo que nenhum outro sítio no planeta possuía e os seus problemas recuaram, felizmente, para o fundo da mente. Em seu lugar, vieram à superfície pensamentos acerca do caso McGillin e a esperança de obter os resultados das lamelas de Maureen e um relatório de Peter. Deu ainda por si a perguntar-se que espécie de casos receberia nesse dia. Esperava que a absorvessem e distraíssem tanto como o de McGillin.

Laurie entrou no GMLS pela porta principal. Ao contrário da manhã anterior, a área da recepção encontrava-se deserta. A área da administração à esquerda também estava deserta. Acenou a Marlene Wilson, a recepcionista, que desfrutava da sua solidão e folheava o matutino. Acenou-lhe com uma mão em resposta, ao mesmo tempo em que com a outra fazia um gesto a Laurie para que entrasse na sala de identificação. Laurie deslizou para fora do casaco ao entrar na sala.

Kevin Southgate e Arnold Besserman, dois dos médicos-legistas mais antigos, estavam sentados em cadeiras de repouso em vinil, embrenhados na conversa. Acenaram ambos a Laurie sem interromperem o diálogo. Laurie retribuiu-lhes o gesto. Reparou que Vinnie Amendola não se encontrava no lugar habitual, escondido atrás do jornal. Aproximou-se da secretária onde Riva se ocupava a estudar os casos que tinham dado entrada durante a noite. Riva ergueu os olhos, espreitando para Laurie por cima dos óculos. Sorriu.

— Dormiste mais ontem à noite? — Perguntou.

— Não muito mais — confessou Laurie. — Estive a limpar o apartamento quase até as duas.

— Já passei por isso — disse Riva com uma risadinha de compreensão. — O que é que aconteceu no hospital?

Laurie contou-lhe acerca da visita e disse-lhe que a mãe estava bem. Falou-lhe brevemente do pai, mas não fez referência à questão relacionada com o BRCA1.

— Jack já está lá em baixo na cova — disse Riva.

— Foi o que calculei ao notar que Vinnie não estava aqui a ler a página desportiva.

Riva abanou a cabeça.

— Jack já aqui estava a vasculhar os casos quando cheguei, antes das seis e meia. É demasiado cedo para se estar aqui. É patético. Disse-lhe que arranjasse vida própria.

Laurie riu-se.

— Isso deve ter-lhe caído bem.

— Também lhe contei acerca da tua mãe. Espero que não te importes. Perguntou-me onde é que tinhas ido ontem à tarde. Parece que tinha passado aqui pelo gabinete logo depois de teres saído para ires ao hospital e de eu ter ido lá a baixo falar com Calvin.

—Tudo bem — disse Laurie. —Agora que sei, já não é segredo.

— Pois é — disse Riva. — Não compreendo como é que a tua mãe não queria contar-te. De qualquer modo, o Jack ficou surpreendido, bem o vi.

— Disse alguma coisa em particular?

— Acerca da tua mãe, não. Ficou calado durante uns minutos, o que não é nada dele.

— Que tipo de caso está ele a tratar? — Inquiriu Laurie.

— Um caso feio — respondeu Riva. — Ele é incrível. Tenho de lhe dar crédito por isso. Quanto mais difícil for o caso, quer emocional quer tecnicamente, mais ele gosta dele. Este era particularmente problemático do ponto de vista emocional. Tratava-se de um bebê de quatro meses que tinha o corpo todo em carne viva e foi levado para as urgências já morto. O pessoal das urgências estava num rebuliço de indignação, uma vez que os pais tentaram dizer que não faziam idéia do que sucedera. Chamaram a polícia e agora os pais estão presos.

— Meu Deus! — proferiu Laurie com um tremor.

Apesar dos treze anos como médica-legista, continuava a ter problemas em lidar com casos de crianças, em especial bebês e casos de violência.

— Fiquei num impasse quando li o relatório da investigação — admitiu Riva. — Não havia dúvida de que o bebê tinha de ser submetido a autópsia, mas não havia ninguém com quem antipatizasse o suficiente para lhe atribuir o caso.

Laurie tentou rir-se, porque sabia que Riva estava a brincar, mas conseguiu apenas esboçar um sorriso. Riva gostava de toda a gente e vice-versa. Laurie também sabia que Riva teria ficado com o caso se Jack não se tivesse oferecido como voluntário.

— Antes de descer, Jack mencionou outro caso — disse Riva procurando os ficheiros antes de pegar num deles. — Disse que tinha tido o seu habitual tetê-à-tête com Janice ao entrar e que ela lhe contara que tinha havido um caso de outra adulta jovem no Manhattan General, notoriamente idêntico ao de McGillin. Disse que provavelmente haverias de o querer e que to deveria atribuir. Estás interessada?

— Completamente — disse Laurie.

Franziu o sobrolho ao pegar na pasta. Abriu-a e folheou as páginas em busca do relatório da investigação. O nome da paciente era Darlene Morgan; idade, trinta e seis anos.

— Tinha um filho de oito anos — disse Riva. — Que tragédia para o miúdo!

— Céus! — pronunciou Laurie ao ler por alto o relatório. — Parece semelhante... incrivelmente semelhante. — Ergueu os olhos. — Sabes se Janice ainda cá está?

— Não faço a mínima idéia. Estava quando passei pelo gabinete da assistente pessoal, mas isso foi antes das seis e meia.

—Acho que vou verificar—disse Laurie. — Obrigada pelo caso.

— O prazer é todo meu — disse Riva, mas Laurie já se encontrava a caminho.

Laurie mexeu-se depressa. Tecnicamente, Janice saía às sete, mas era freqüente ficar até mais tarde. Era compulsiva em relação aos seus relatórios e muitas vezes podia ficar por ali até às oito. Eram sete e quarenta quando Laurie passou pelo gabinete da administração. Passado um minuto, debruçava-se para o interior da porta do investigador. Bart Arnold ergueu os olhos da secretária. Estava ao telefone.

— A Janice ainda está por aqui? — Perguntou Laurie.

Bart espetou o polegar por cima do ombro para apontar para o fundo da sala. Janice esticou a cabeça por detrás do monitor. Estava sentada à secretária no canto mais ao fundo.

Laurie entrou e agarrou uma cadeira, que puxou até a secretária de Janice e onde se sentou. Esperou até que Janice terminasse um bocejo esforçado.

— Desculpa — disse Janice quando se recuperou. Usou um dos nós dos dedos para limpar a zona por baixo dos olhos, que estavam úmidos.

— Tens legitimidade para o fazer — disse Laurie. — Foi uma noite atarefada?

— Em termos de volume de trabalho foi o habitual. Nada como a noite anterior, embora tenha havido aí uns casos de partir o coração. Não sei o que é que se passa comigo. Não costumava ser assim tão sensível. Espero que não me esteja a afetar a objetividade.

— Já ouvi a história do bebê.

— Dá para acreditar? Como pode haver gente assim? É uma coisa que me ultrapassa por completo. Talvez esteja a amolecer demasiado para este trabalho.

— É quando estes casos deixam de te afetar que deves ficar preocupada.

— Calculo que sim — disse Janice com um suspiro de exaustão. Endireitou-se na cadeira como que recobrando a compostura. — Bem, que posso fazer por ti?

— Acabei de dar uma vista de olhos pelo teu relatório sobre Darlene Morgan. O caso espanta-me por ser de uma perturbante semelhança com o de Sean McGillin.

— Foi precisamente o que eu disse ao Dr. Stapleton quando deparei com ele esta manhã.

— Há alguma coisa que me possas dizer e que não esteja aqui? — inquiriu Laurie, acenando com o relatório no ar. — Impressões com que possas ter ficado ao falar com as pessoas envolvidas, como as enfermeiras e os médicos, ou mesmo os familiares. Estás a ver, um passo para além dos fatos. Alguma coisa que tenhas pressentido de maneira intuitiva.

Janice manteve os olhos castanhos colados aos de Laurie enquanto pensava. Passado um minuto, abanou ligeiramente a cabeça.

— Nem por isso. Eu sei onde queres chegar, uma espécie de impressão subliminar. Mas não me ocorre nada. Foi apenas mais uma tragédia hospitalar. Uma mulher aparentemente saudável, uma jovem a aproximar-se da meia-idade, cuja hora chegou. — Janice encolheu os ombros. — Quando uma pessoa assim morre de súbito, não há dúvida de que és levada a perceber que estamos todos por um fio.

Laurie mordeu o lábio, ao mesmo tempo em que se esforçava por pensar que mais poderia perguntar.

— Não falaste com o cirurgião, falaste?

— Não, não falei.

— Foi o mesmo cirurgião que operou McGillin?

— Não. Foram dois tipos diferentes da Ortopedia e fiquei com a impressão, pela conversa com o interno, que são os dois tidos em grande conta.

— Parece que os dois pacientes morreram por volta da mesma hora de manhã. Pareceu-te estranho?

— Nem por isso. A minha experiência diz-me que o período de tempo entre as duas e às quatro da manhã é bastante popular para a ocorrência de mortes. É a altura do meu turno em que tenho mais trabalho. Certa vez, um médico sugeriu-me que tinha algo que ver com os níveis hormonais circadianos.

Laurie anuiu. Aquilo que Janice estava a dizer era provavelmente verdade.

— O Dr. Stapleton disse-me que autopsiaste Sean McGillin. A razão pela qual me fazes esta pergunta é não teres encontrado muitas patologias?

— Não encontrei nenhuma — admitiu Laurie. — Então, e a anestesia? Alguma semelhança nesse ponto, como por exemplo, o mesmo pessoal ou os mesmos agentes?

— Tenho de confessar que não prestei atenção a isso. Deveria tê-lo feito?

Laurie encolheu os ombros.

— Em ambos os casos, tinham passado cerca de dezoito horas da operação, por isso deveriam ambos conservar vestígios da anestesia. Creio que vamos ter de olhar para tudo, incluindo toda a medicamentação que tomaram, por que ordem e que dosagem. Pedi a Bart que me arranjasse o relatório de McGillin. Também vou precisar do relatório de Morgan.

— Posso fazer o pedido antes de me ir embora — disse Janice. Laurie levantou-se.

— Agradeço-te. Espero que não consideres a minha vinda aqui como um reflexo negativo do teu relatório de investigação, porque é bem o oposto disso. Os teus relatórios são sempre de qualidade superior.

Janice enrubesceu.

— Bom, obrigada. Eu tento. Sei como pode ser importante ter todas as informações, especialmente em casos misteriosos como estes quatro.

— Quatro? — Inquiriu Laurie com espanto. — O que queres dizer com isso, "quatro"?

— Se bem me lembro, há duas semanas houve outros dois, ambos no Manhattan General, que eram semelhantes quanto aos meus resultados.

— Semelhantes, como? Eram pacientes no primeiro dia de pós-operatório, como McGillin e Morgan?

— É isso que guardo na memória. Aquilo de que me lembro por certo é que eram jovens e em geral de boa saúde, de modo que foi uma surpresa desagradável para todos que tivessem sofrido paragens cardíacas. Também me recordo de que foram ambos descobertos pela auxiliar de enfermagem enquanto fazia as medições rotineiras pós-operatórias da temperatura e dos ritmos cardíacos, tal como Darlene Morgan foi encontrada morta, o que sugeria que tivessem sofrido uma qualquer percalço médico de relevo. Quer dizer, não houve qualquer aviso. Pelo menos no caso de Sean McGillin, ele teve a hipótese de premir o botão de chamada. E, também, tal como com McGillin e Morgan, a equipa de reanimação teve sorte nula. Ou seja, nada conseguiram a não ser uma linha plana.

— Isso pode ser muito importante — disse Laurie, satisfeita por ter ido procurar Janice.

— De qualquer forma — disse Janice — planeava ir fazer cópias dos relatórios de investigação, mas ainda não tive tempo.

— Eram casos de Ortopedia?

— Não me lembro com precisão a que tipo de cirurgia tinham sido submetidos, mas será fácil descobrir. Se tivesse de dar um palpite, diria que se trataram ambos de casos de cirurgia geral, e não ortopédica. Queres que vá buscar os relatórios de investigação?

— Não vale a pena. Sem dúvida que vou querer ter as pastas completas. Lembras-te qual foi o médico que os autopsiou?

— Creio que nunca o soube. Não tenho muito contacto com os médicos, para além de si e do Dr. Stapleton.

—Lembras-te qual foi a causa final, a oficial, de morte? — inquiriu Laurie.

— Lamento — admitiu Janice. — Nem sequer sei se os casos já foram resolvidos. Por vezes acompanho casos que me interessam, mas não foi o que se passou com esses dois de que estamos a falar. Tenho de admitir que na altura me pareceram dois casos bastante rotineiros de inesperados problemas cardíacos sérios. Penso que dizer que alguma coisa é rotineira e inesperada é um símoro, por isso talvez "rotineiro" não seja a palavra certa. Quer dizer, as pessoas morrem no hospital, por mais trágico que isso seja, e muitas vezes não morrem devido ao problema que as levou inicialmente ao hospital. Só hoje, quando estava a escrever sobre o caso Morgan e a pensar na intervenção da auxiliar de enfermagem, é que me lembrei deles.

— Como é que se chamavam? — quis saber Laurie.

Sentiu um arrepio de excitação. Esse pedaço de informação curioso e inesperado e, todavia potencialmente importante, era precisamente a razão por que quisera falar com Janice. Fê-la sentir com maior intensidade que os colegas médicos-legistas que ignoravam a experiência e a perícia dos investigadores forenses e dos técnicos mortuários o faziam por seu próprio risco profissional.

— Solomon Moskowitz e Antonio Nogueira. Escrevi os nomes com os respectivos números de registro.

Janice entregou o papel a Laurie.

Laurie pegou no papel e olhou para os nomes. Não sabia se estaria a procurar ativamente uma grande distração dos seus problemas pessoais. Aquilo que sabia era que encontrara uma.

— Obrigada, Janice — disse Laurie com sinceridade. — Tenho de te dar crédito por isto. A associação entre estes casos pode ser importante.

Um dos problemas de haver oito médicos-legistas no GMLS era o fato de associações desse tipo poderem escoar-se por entre os espaços. Havia uma conferência às quintas-feiras à tarde onde os casos eram examinados num fórum aberto, mas geralmente envolviam apenas os casos mais interessantes a nível acadêmico, ou até os mais macabros.

— De nada — disse Janice. — Pensar que faço realmente parte da equipa e que estou a dar o meu contributo faz-me sentir bem.

— Sem dúvida que estás — respondeu Laurie. — Ah, e a propósito, quando fizeres o pedido dos relatórios de Morgan, não te importas de pedir também os de Moskowitz e de Nogueira?

— De bom grado o farei — disse Janice. Tomou nota num post-it, que colocou na parte lateral do monitor.

Laurie saiu apressada do gabinete do investigador forense, com as idéias num turbilhão, e tomou o elevador para o quinto piso. As preocupações relativas ao BRCA1, e até a Jack, foram remetidas para segundo plano na sua mente. Não conseguia tirar os olhos dos dois nomes escritos no papel que Janice lhe dera. Ir de um caso curioso para quatro era um grande pulo. A questão era simplesmente se estariam, com efeito, os quatro casos relacionados. A seu ver, era nisso mesmo que consistia ser-se médico-legista. Se os casos estivessem ligados por uma droga ou por um procedimento comum e se ela conseguisse descortiná-lo, teria então a recompensadora oportunidade de impedir mais mortes. É claro que tal informação lhe diria também se essas mortes tinham sido acidentais ou homicidas e essa idéia causou um arrepio a Laurie.

Ao entrar no gabinete, Laurie pendurou rapidamente o casaco atrás da porta e depois sentou-se ao computador. Teclou os números de registro dos dois casos, ficando a saber que nenhum deles tinha ainda sido concluído. Ligeiramente desapontada, conseguiu os nomes dos dois médicos que tinham feito as autópsias: George Fontworth tinha autopsiado Antonio Nogueira, e Kevin Southgate, Solomon Moskowitz. Como já vira Southgate na sala de identificação, pegou no telefone e marcou a extensão dele. Deixou o telefone tocar cinco vezes antes de desligar.

Laurie regressou ao elevador, desceu ao primeiro piso e seguiu o percurso até a sala de identificação. Estava com esperança de que Kevin ainda se encontrasse nesse local a falar com Arnold e não ficou desapontada. Aguardou pacientemente uma pausa na animada conversa de ambos. Aqueles dois discutiam política incessantemente: Kevin, o inveterado liberal democrata, e Arnold, o equivalente republicano conservador. Estavam ambos no GMLS havia quase vinte anos e tinham acabado por se tornar parecidos. Tinham ambos excesso de peso e uma tez pálida e eram descuidados com a higiene pessoal e com as roupas. Na opinião de Laurie, eram ambos médicos-legistas estereotípicos de velhos filmes de Hollywood.

— Lembras-te de ter autopsiado um tal Solomon Moskowitz há cerca de duas semanas? — Perguntou Laurie a Kevin depois de ter pedido desculpa por interromper.

Tal como habitual, pareciam ambos apenas relutantes em trocar golpes. Frustravam-se mutuamente, dado que nenhum deles tinha qualquer hipótese de mudar as sólidas opiniões do outro.

Depois de ter dito a brincar que nem se lembrava dos casos que tratara no dia anterior, o rosto pálido de Kevin contraiu-se, num sinal de reflexão.

— Sabes, acho que me lembro de um Moskowitz — disse ele. — Sabes se era um caso do Manhattan General?

— Foi isso que me disseram.

— Então, lembro-me. O paciente sofreu uma aparente paragem cardíaca. Se é aquele em que estou a pensar, não havia muito na autópsia. Não creio que já a tenha concluído. Calculo que ainda deva estar à espera dos resultados das análises do microscópio.

"Pois, claro", pensou Laurie. Nem nas alturas mais movimentadas se demorava duas semanas a obter os resultados das lamelas do microscópio. Não estava porém surpreendida. Kevin e Arnold eram famosos por não terem os casos prontos na altura devida.

— Lembras-te se o paciente tinha sido submetido a uma cirurgia recente?

—Agora já estás a abusar da sorte. Olha, porque é que não passas pelo meu gabinete, que eu deixo-te dar uma vista de olhos à pasta?

— Parece boa idéia — respondeu Laurie.

Foi distraída por um instante ao ver George entrar pela porta na sala de identificação, enquanto despia o casaco. Deixando que Kevin e Arnold regressassem à sua querela, Laurie foi juntar-se a George na máquina de café.

George estava no GMLS havia quase tanto tempo como Kevin e Arnold, mas não apanhara nenhum dos seus hábitos pessoais. Tinha uma aparência significativamente mais elegante, com calças engomadas, uma camisa lavada e uma gravata colorida, sendo todas razoavelmente modernas. Era assim que gostava de se apresentar. Também parecia bastante mais jovem por evitar o usual aumento de peso característico da meia-idade. Embora Laurie soubesse que Jack não tinha George em grande estima a nível profissional, ela sempre considerara que era fácil trabalhar com ele.

— Ouvi dizer que o teu caso de ontem do tiroteio teve um desenlace surpreendente — disse Laurie.

— Mas que provação! — queixou-se George. — Se Bingham alguma vez se oferecer para colaborar comigo noutro caso, lembra-me de recusar com delicadeza.

Laurie riu-se e falou sobre o caso durante alguns minutos antes de mudar de assunto para aquilo que de fato lhe interessava. Tal como falara com Kevin acerca de Moskowitz, perguntou a George se ele se lembrava de ter autopsiado Antonio Nogueira cerca de duas semanas antes.

— Dá-me uma pista — respondeu George.

— Estou a pôr-me a adivinhar os pormenores, uma vez que não os sei com certeza —disse Laurie — mas creio que ele era relativamente novo, fora operado no Manhattan General cerca de vinte e quatro horas antes e teria havido a suspeita de ter sofrido um qualquer tipo de complicação cardíaca.

— Muito bem, lembro-me do caso: um verdadeiro quebra-cabeça. Não encontrei indícios relevantes na autópsia e nada a que me agarrar com os resultados do microscópio. Tenho a pasta na secretária, à espera que possa surgir alguma pista da toxicologia. De outro modo, serei obrigado a concluir o caso como tendo sido uma fibrilação ventricular espontânea ou um ataque de coração ocorrido de forma tão súbita e global que não houve tempo para que se desenvolvessem patologias. É claro que isso significa que, fosse o que fosse que o tivesse provocado, desapareceu forçosamente como que por magia. De uma forma ou de outra, o coração parou. Quer dizer, não pode ter sido a respiração a parar, dado que não se registrou cianose.

— Encolheu os ombros e fez um gesto de impotência com as mãos.

— Então o microscópio não mostrou grande coisa nas artérias coronárias?

— Coisas mínimas.

— E o músculo do coração propriamente dito parecia normal? Quer dizer, havia qualquer indício capaz de provocar uma súbita arritmia letal? Havia algum sinal de inflamação?

— Não! Estava completamente normal.

— Importas-te que eu dê uma vista de olhos na pasta esta tarde? — perguntou Laurie.

— Faz favor! Por que esse interesse? Como é que ouviste falar no caso?

— Soube dele pela Janice — disse Laurie. — Estou interessada porque tive um caso surpreendentemente idêntico ontem.

Laurie sentiu-se ligeiramente culpada por não fazer referência aos outros dois casos, mas não o suficiente para os trazer para a conversa. Para começar, a sua suspeita de que houvesse uma relação entre eles era puramente especulativa e depois, numa etapa ainda tão precoce, não conseguia evitar sentir-se proprietária daquilo que lhe começava a parecer ser um qualquer tipo de série.

Depois de ter deixado a sala de identificação, Laurie desceu um piso e foi à procura de Marvin. Encontrou-o na sala mortuária. Tal como esperara, ele já tinha vestido o material usado para as autópsias.

— Estás pronto para a ação? — perguntou Laurie. Estava ansiosa por começar.

— Claro, colega! — disse Marvin, como se esse dia fosse uma repetição do anterior.

Laurie forneceu-lhe o número de registro de Darlene Morgan antes de ir para a sala dos cacifos vestir o material verde. Estava entusiasmada. Era a primeira vez na sua carreira de médica-legista que esperava não encontrar coisa alguma na autópsia, ou seja, que o caso de Morgan fosse idêntico aos de McGillin, Nogueira e Moskowitz. Quanto mais tempo persistisse a idéia da série, maior seria a distração e menos apta se sentiria para ficar a agonizar acerca dos seus aborrecimentos pessoais.

Saiu da sala dos cacifos, dirigiu-se ao armazém e de lá retirou a bateria do carregador. Quinze minutos mais tarde, tinha o fato lunar vestido e entrava na cova, saída da antecâmara onde calçara as luvas. Havia apenas um caso a ser tratado. Não teve dificuldades em distinguir Jack e Vinnie, dado que Vinnie era mais baixo e consideravelmente mais franzino. Jack espreitava por um visor de máquina fotográfica assente num tripé. Laurie tentou não olhar para o bebê pequenino e nu estendido sobre a mesa. Pestanejou em reflexo quando o flash da máquina disparou.

— És tu, Laurie? — Chamou Jack. Endireitara-se e virara-se na direção dela em resposta à porta que se fechava.

— Sou — disse Laurie.

Como não encontrava Marvin na sala das autópsias, voltou-se para olhar pelo vidro encaixado em arame na porta que dava para o corredor. Marvin aproximava-se com uma marquesa a reboque, cuja outra extremidade era empurrada por Miguel Sánchez, outro técnico mortuário. Laurie calculou que tivesse havido um problema. Marvin era habitualmente super-eficiente e esperava invariavelmente por ela.

— Vem cá! — Disse Jack com algum entusiasmo. —Tenho uma coisa para te mostrar. Este caso é espantoso!

— Não duvido — respondeu Laurie. — Mas creio que vou deixar que mo contes depois de acabado. Bem sabes que autópsias de crianças não são as minhas preferidas.

—— Tenho a certeza de que este caso é outro como os de ontem — explicou Jack. — Tenho mais de noventa por cento de certeza que a causa e o modo de morte vão surpreender toda a gente. Ouve o que te digo, é material para um livro de estudo!

Apesar da aversão a lidar com crianças na sala de autópsias, a sua curiosidade profissional incitou-a a seguir Jack. Foi com alguma dificuldade que se obrigou a baixar os olhos para a infeliz criança. Tal como Riva lhe descrevera, a pobre menina parecia escoriada, abrasada e queimada em grande parte do seu corpo pequenino, incluindo o rosto. O horror da imagem fez com que Laurie vacilasse ligeiramente, como se estivesse tonta. Esticou os pés para estabilizar o corpo. Ouviu atrás de si o som da porta a abrir-se, seguido do ranger de rodas de uma velha marquesa a ser empurrada.

— E se te dissesse que o raio-X de todo o corpo desta criança foi inteiramente negativo quanto a fraturas, antigas ou recentes? Isso influenciaria a tua idéia sobre este caso?

— Nem por isso — disse Laurie.

Tentou olhar para o rosto de Jack, mas era difícil, com as luzes por cima das suas cabeças refletidas na máscara facial de plástico. Não se viam nem se falavam havia quase vinte e quatro horas e, quando se encontraram pela primeira vez nessa manhã, ela esperara outra coisa que não uma repetição do papel professoral e brincalhão.

— E se eu te dissesse que, além de o raio-X não mostrar nada de anormal, o frênulo está intacto?

— Por certo que não haveria de negar aquilo para que estou a olhar — respondeu Laurie.

Apesar da repugnância que sentia, Laurie dobrou-se e olhou com maior atenção para as lesões epidérmicas, em especial para o local onde Jack fizera uma pequena incisão numa das escoriações. Não havia sangue nem edemas. Soube subitamente aquilo que Jack queria dizer ao apontar para sinais que sugeriam que não se tratava de maus tratos.

— Vermes! — exclamou ela de repente. Endireitou-se.

— Dêem um prêmio a esta senhora! — disse Jack num tom teatral. — Tal como previa, a Drª. Montgomery corroborou com perícia a minha impressão. É claro que Vinnie não está convencido, por isso temos de pé uma aposta de cinco dólares para encontrar provas não específicas de uma morte por asfixia quando fizermos a parte interna da autópsia, e todos sabemos o que isso implica.

Laurie anuiu. Havia boas hipóteses de que a criança que se encontrava diante de si tivesse morrido da síndrome de morte súbita infantil, ou SMSI, que revela sinais de morte por asfixia na autópsia. Embora à primeira vista ela tivesse pensado que todas as lesões epidérmicas tivessem sido infligidas antes da morte, intuía agora que se tratariam de danos pós-morte provocadas por uma variedade de vermes, como formigas, baratas e, possivelmente, ratos ou ratazanas. Se se provasse ser esse efetivamente o caso, então o modo de morte não seria homicídio, mas acidente. É claro que isso não diminuía a tragédia de se perder uma vida jovem, mas tinha certamente implicações muito diferentes.

— Bem, é melhor apressar-me — disse Jack enquanto desprendia a máquina fotográfica do tripé. — Esta criança foi vítima de circunstâncias de pobreza, não de maus tratos. Tenho de fazer com que os pais sejam libertados da prisão. Mantê-los lá é uma injustiça.

Laurie aproximou-se de Marvin, que estava a alinhar a marquesa junto a uma das mesas de autópsias, tentando não ficar presa à decepção de ver a animada reação de Jack e a sua aparente determinação. Também não conseguia evitar pensar se não seria o caso de Jack outra extraordinária pista para lhe lembrar que as coisas nem sempre eram bem aquilo que pareciam à primeira vista.

— Tiveste algum problema? — perguntou Laurie a Marvin quando os dois técnicos deslocaram o cadáver para a mesa de autópsias. Marvin colocou a cabeça sobre um bloco de madeira.

— Um pequeno obstáculo — admitiu Marvin. — Mike Passano deve ter-se enganado ao escrever o número do compartimento, mas com a ajuda de Miguel depressa encontramos o cadáver. Há alguns requerimentos especiais para este caso?

— Deveria ser simples — disse Laurie ao verificar o número de registro e o nome. — De fato, espero que se revele uma cópia do primeiro caso de que tratamos ontem.

Marvin lançou-lhe um olhar perplexo enquanto ela dava início ao exame externo.

O olho clínico de Laurie começou a registrar as observações feitas. Tratava-se do cadáver de uma mulher caucasiana, na casa dos trinta, de cabelo castanho, e que parecia ter gozado de boa saúde, embora revelasse um ligeiro excesso de peso, com tecido adiposo adicional no abdômen e na zona lateral das coxas. A sua pele possuía a habitual palidez da morte e não apresentava quaisquer lesões, com exceção de uns quantos sinais inócuos. Não havia cianose. Não registrava sinais de consumo de drogas. Apresentava duas incisões recentemente suturadas nas superfícies laterais do joelho esquerdo e não revelava indícios de inflamação ou infecção. Um fio intravenoso aberto percorria-lhe o braço esquerdo, sem qualquer derrame de sangue ou de fluído no local. Projetava-se-lhe da boca um tubo endotraqueal corretamente posicionado na traquéia.

"Por enquanto, tudo bem", disse Laurie para com os seus botões, o que significava que o exame externo era comparável com o de Sean McGillin. Pegou no bisturi oferecido por Marvin e encetou a divisão interna. Trabalhava rápida e atentamente. A atividade decorrente no resto da sala afastou-se da sua consciência.

Após quarenta e cinco minutos, Laurie endireitou-se, depois de ter traçado as veias das pernas até a cavidade abdominal. Não encontrara coágulos. Para além de várias fibroses uterinas sem significado e de um pólipo no intestino grosso, não encontrara patologias de relevo, e certamente nada que tivesse explicado o falecimento da mulher. Tal como no caso de McGillin, teria de aguardar pelos exames microscópicos e toxicológicos caso quisesse encontrar a causa de morte.

— Um caso limpo — comentou Marvin. — Tal como querias.

— É muito curioso — disse Laurie.

Sentia-se recompensada. Olhou em redor da sala, que praticamente enchera durante a sua intensa concentração. A única mesa que não estava a ser usada era aquela imediatamente adjacente ao local onde Jack estava a trabalhar. Ao que parecia, ele tinha terminado e saíra sem dizer uma palavra. Laurie não estava surpreendida. Parecia em consonância com o seu comportamento recente.

Na mesa do outro lado da dela, Laurie julgou reconhecer a figura diminuta de Riva. Quando Marvin saiu para o corredor para ir buscar uma marquesa, Laurie avançou para se certificar. Era Riva.

— Algum caso interessante? — inquiriu Laurie. Riva ergueu o olhar.

— Não especialmente, do ponto de vista profissional. Trata-se apenas de um atropelamento e fuga em Park Avenue. Era uma turista do Midwest e segurava a mão do marido quando foi atingida. Ele estava apenas um passo à frente dela. Espanta-me sempre que os peões não sejam mais cuidadosos nesta cidade, tendo em conta a velocidade a que o trânsito circula. E o teu caso?

— Extremamente interessante — disse Laurie. — Quase nenhuma patologia.

Riva olhou de esguelha para a colega de gabinete.

— Interessante e sem patologia? Isso não parece nada teu.

— Explico-te mais tarde. Entretanto, tenho mais algum caso?

— Hoje, não — disse Riva. — Achei que estavas a precisar de um descanso.

— Ah, estou bem, a sério! Não quero tratamento especial.

— Não te preocupes. É um dia relativamente leve. Já tens muito com que te entreter.

Laurie anuiu.

— Obrigada, Riva — disse ela, embora tivesse preferido manter-se ocupada. — Vejo-te lá em cima.

Laurie regressou à mesa, e quando Marvin retornou com a marquesa, agradeceu-lhe a ajuda e disse-lhe que estava a terminar por esse dia. Passados dez minutos, depois do habitual processo de limpeza, pendurou o fato lunar e acoplou a bateria ao carregador. Com o plano de se dirigir à histologia e à toxicologia, ficou espantada por ver que Jack lhe obstruía a saída do armazém.

— Posso oferecer-te um café? — perguntou-lhe ele.

Laurie ergueu o olhar para os olhos cor de melaço dele e tentou calcular-lhe a disposição. Estava farta da sua frivolidade. Tendo em conta as circunstâncias, era bastante humilhante. Não havia, no entanto, qualquer sorriso malicioso e endiabrado como o que esboçara na tarde anterior, quando surgira à porta do gabinete. A sua expressão era séria, quase solene, coisa que ela apreciava, uma vez que era mais apropriada ao que se estava a passar entre ambos.

— Gostava de falar — acrescentou Jack.

— Adorava um café — respondeu Laurie.

Foi com alguma dificuldade que ela tentou dominar as expectativas acerca daquilo que Jack tinha em mente. Parecia ser um comportamento quase demasiado apropriado para ele.

— Podíamos ir para a sala de identificação ou para a cantina — disse Jack. — Como quiseres.

A cantina era no segundo andar. Era uma sala ruidosa com um chão antiquado de linóleo, paredes de betão despidas e um conjunto de máquinas de vender comida e bebida. A essa hora da manhã estaria consideravelmente apinhada, com o pessoal do secretariado e da manutenção na sua pausa.

— Vamos tentar a sala de identificação — sugeriu Laurie. — Devemos ter o sítio só para nós.

— Tive saudades tuas a noite passada — disse Jack enquanto esperavam pelo elevador.

"Meu Deus!", pensou Laurie. Apesar das suas preocupações, as esperanças de ter uma conversa importante aumentaram. Não era habitual que Jack admitisse os seus sentimentos de forma tão direta. Ela ergueu os olhos para o rosto dele para se certificar de que não estava a ser sarcástico, mas não tinha a certeza, já que o rosto dele se desviara. Estava absorto a contemplar o indicador do piso por cima da porta do elevador. Os números decresciam com a sua habitual lentidão agonizante. O elevador das traseiras era usado para carga e deslocava-se a uma velocidade quase imperceptível. A porta abriu-se e eles entraram na cabina.

— Também tive saudades tuas — admitiu Laurie.

Preocupada com o fato de se estar a deixar cair numa armadilha que seria a sua perdição, sentiu-se constrangida e inibida, evitando agora que os seus olhos se encontrassem. Do seu ponto de vista, estavam os dois a agir como um par de pré-adolescentes.

— Fui um caso perdido no campo de basquetebol — disse Jack. — Não fui capaz de fazer nada como deve ser.

— Lamento — disse Laurie, mas quis logo retirar o que disse. Parecia que se estava a desculpar, quando na verdade estava apenas a ser solidária.

— Tal como eu esperava, o exame interno do meu caso era consistente com o SMSI — disse Jack para mudar de assunto. Era evidente que também ele se sentia desconfortável.

— Ah, sim? — Foi a resposta de Laurie.

— Como é que foi o teu? — Perguntou Jack quando o elevador começou a descer. — Quando deparei com Janice, ela mencionou que parecia idêntico ao teu caso McGillin, por isso disse a Riva que provavelmente irias querê-lo.

— Agradeço-te — disse Laurie. — Queria-o mesmo. E tinhas razão. Era exatamente como o de McGillin, a ponto de ser desconfortável.

— O que queres dizer com "desconfortável"? — perguntou Jack.

— Começo a pensar que a tua sugestão de ontem acerca das ciências forenses estabelecerem um modo de morte contrário ao esperado pode ser aplicada aqui. Penso que posso estar a lidar com homicídio, como o caso Cromwell, mas ao contrário. Por outras palavras, posso ter deparado com o trabalho de um assassino em série. Não consigo deixar de pensar em alguns dos infames assassinos em série de instituições médicas, em especial naquele recente em New Jersey e na Pensilvânia.

Laurie não sentia com Jack as mesmas reservas que sentira com Fontworth quanto a mencionar as suas suspeitas.

— Eh, pá! — Exclamou Jack. — Quando falava acerca das ciências forenses proporcionarem algumas surpresas, referia-me a algo em geral. Não estava a sugerir nada acerca dos teus casos.

— Creio que estavas — disse Laurie.

Jack abanou a cabeça, ao mesmo tempo em que a porta do elevador se abria no primeiro piso.

— De modo nenhum. E devo dizer que acho que estás a dar um grande salto ao passares de causa natural para homicídio no caso que me descreveste. Porque te ocorreu essa idéia? — Fez um gesto para que Laurie saísse antes de si.

— Porque autopsiei agora em dias sucessivos duas pessoas relativamente jovens e saudáveis que morreram de repente, sem no entanto terem uma patologia associada à morte. Nem uma!

— O teu caso de hoje não mostrava indícios de nenhuma embolia ou evidentes anormalidades cardíacas?

— Absolutamente nenhuma. Estava limpo! Bem, havia umas quantas fibroses uterinas, mas era tudo. Tal como McGillin, tinham-se passado vinte e quatro horas da cirurgia com anestesia geral. Tal como McGillin, estivera completamente estável, sem complicações, e depois... bingo! Sofre uma paragem cardíaca e é totalmente impossível reanimá-la! — Laurie estalou os dedos para dar ênfase às suas palavras.

Passaram pelo gabinete de comunicações. As secretárias estavam agrupadas a conversar. De momento, as linhas telefônicas estavam mudas. Depois do caos das viagens matinais para o trabalho, a morte fazia geralmente uma pausa na cidade.

— Dois casos não fazem uma série — declarou Jack. Estava pasmado com a sugestão que Laurie fizera do assassino em série.

— Creio que são quatro casos, não dois — disse Laurie. — São demasiados para se tratar de uma coincidência.

Enquanto bebiam café, Laurie descreveu-lhe as suas conversas com Kevin e com George. Enquanto falava, ela e Jack sentaram-se nas duas cadeiras de descanso de vinil em que Kevin e Arnold tinham estado sentados mais cedo.

— Então, e a toxicologia? — inquiriu Jack. — Se no final não houver patologia grave ou a nível histológico, então a resposta há de vir da toxicologia, quer tenha havido algo de estranho, quer não.

— George diz que continua à espera dos resultados da toxicologia para o seu caso. É evidente que ainda tenho de esperar muito tempo pelos resultados. Seja como for, estamos aqui a lidar com um curioso conjunto de circunstâncias.

Jack e Laurie bebericaram das respectivas chávenas, olhando-se mutuamente por cima dos óculos. Estavam ambos cientes da determinação do outro quanto à teoria de Laurie sobre o assassino em série. A expressão de Laurie era de desafio, ao passo que Jack refletia a sua sensação de que ela estaria a ser pouco ortodoxa.

— Se queres a minha opinião — disse Jack por fim. —Acho que estás a deixar a imaginação à solta. Talvez estejas inquieta por causa dos nossos problemas e procures uma distração.

Laurie sentia que uma onda de irritação se apoderava de si. Derivava de uma mistura entre o fato de Jack ser condescendente, por um lado, e de ser correto, por outro. Desviou os olhos e inspirou.

— De que querias falar? Estou certa de que não seria dos nossos respectivos casos.

— Riva contou-me sobre a tua mãe ontem — disse Jack. — Estive tentado a telefonar-te ontem à noite para te perguntar por ela e manifestar-te o meu apoio, mas, tendo em conta as circunstâncias, achei melhor falar pessoalmente.

— Obrigada pela preocupação. Ela está bem.

— Fico contente — disse Jack. — Será apropriado enviar-lhe umas flores?

— Isso é inteiramente da tua conta.

— Então vou fazê-lo — disse Jack. — Fez uma pausa, agitou-se e disse com hesitação: — Não sei se deveria levantar esta questão acerca da tua mãe...

"Então não o faças", disse Laurie para consigo. Estava desiludida. Permitira-se deixar-se apanhar, afinal de contas. Não queria falar sobre a mãe.

—... mas estou certo de que estás ciente da existência de um caráter hereditário em relação ao cancro da mama.

— Sim — disse Laurie. Olhou para Jack exasperada, perguntando-se até onde iria ele conduzir a conversa.

— Não sei se a tua mãe fez o teste aos marcadores que indicam as mutações do gene BRCA1, mas os resultados seriam significativos para o tratamento. E o que é mais importante para ti, seriam significativos para a prevenção. De uma forma ou de outra, creio que deverias definitivamente fazer o teste. Quer dizer, não quero alarmar-te, mas seria prudente.

— A minha mãe é positiva em relação à mutação do BRCA — admitiu Laurie.

Alguma da sua cólera, embora não a desilusão, foi mitigada ao compreender que Jack estava a ser solícito em relação à saúde dela e não apenas à da sua mãe.

— Isso é uma razão ainda maior para seres submetida ao teste — disse Jack. — Já pensaste nisso?

— Pensei nisso — admitiu Laurie. — Mas não estou convencida de que teria grande peso e poderia apenas contribuir para aumentar a minha ansiedade. Não vou submeter-me à remoção dos seios e dos ovários.

— A mastetomia e a ooforectomia não são as únicas medidas de prevenção disponíveis — disse Jack. — Ontem à noite fui à Internet ler sobre tudo isto.

Laurie deu por si quase a sorrir. Perguntou-se se ela e Jack teriam visitado os mesmos sites.

— Fazer mamografias com maior freqüência é outra das opções — acrescentou Jack. — Podes até chegar a pensar num tratamento de tamoxifeno. Mas isso é lá mais para a frente. Bem, o essencial é que faz sentido. Quero dizer, se esta informação de prognóstico se encontra disponível, deverias fazê-lo. Na verdade, gostaria de te pedir que o fizesses. Não, retiro o que disse. Gostaria de te suplicar que o fizesses... por mim.

Para surpresa de Laurie, Jack inclinou-se para a frente e agarrou-lhe no antebraço com uma força inesperada para sublinhar o seu empenho na causa.

— Estás mesmo convencido? — inquiriu Laurie, deixando-se maravilhar com a parte "por mim".

— Sem dúvida! Nem se põe isso em causa! — Respondeu Jack.

— Mesmo que o único efeito seja que fiques mais predisposta a fazer check-ups regulares. Isso teria um enorme efeito positivo. Laurie, por favor!

— É uma análise ao sangue? Nem sequer sei.

— Sim, é uma simples análise ao sangue. Tens um médico de família no Manhattan General, onde somos agora obrigados a ir?

— Ainda não — admitiu Laurie. — Mas posso telefonar à Sue Passero, a minha velha amiga da faculdade. Ela faz parte do pessoal da medicina interna. Tenho a certeza de que trataria do assunto.

— Perfeito — disse Jack. Esfregou as mãos. — Será que devo telefonar, para me certificar de que o fazes?

Laurie riu-se.

— Vou fazê-lo.

— Hoje!

— Ah, por amor de Deus, está bem! Vou fazê-lo hoje.

— Obrigado — disse Jack. Soltou o braço de Laurie, que estivera a agarrar firmemente. — Agora que temos isso tratado, quero perguntar-te se poderemos fazer algumas cedências quanto ao fato de te mudares do meu apartamento.

Por um instante, Laurie ficou perplexa. Precisamente no momento em que julgava que Jack já não tocaria no assunto da relação, ele fê-lo.

— Tal como disse — continuou ele. — Senti a tua falta ontem à noite. Pior de tudo, o meu jogo de basquetebol foi um desastre. As defesas que eu tinha cuidadosamente erigido contra a tua ausência foram corroídas pelo fato de ter deparado, antes do jogo, com um par de collants teus.

— Que collants? — quis saber Laurie, levantando guarda de novo.

Propositadamente, não se riu da alteração do tom de Jack para um espirituoso sarcasmo. Para ela, nada havia de engraçado na sugestão de que a destreza de Jack no campo de basquetebol fosse um fator determinante para que ela se mudasse para o apartamento dele.

— Um par que deixaste na casa de banho. Mas não te preocupes, estão guardadas a salvo na cômoda.

— O que é que queres dizer com "cedências? — inquiriu Laurie, duvidosa.

Jack mexeu-se na cadeira. Era evidente que se sentia desconfortável com a questão. Laurie deixou que ele demorasse todo o tempo de que necessitava. Finalmente, ele executou um gesto que denunciava uma certa perturbação ao curvar os ombros para a frente e estender a mão livre, com a palma para cima.

— Concordamos discutir os assuntos numa base regular.

Isso partira o coração de Laurie.

— Isso não é uma cedência — disse ela com uma voz que exprimia o seu desânimo. — Jack, ambos sabemos quais são os assuntos. Neste ponto, mais conversa não vai resolver nada. Eu sei que isto parece contrário àquilo que normalmente digo acerca da importância da comunicação. O fato é que eu tenho feito cedências desde o início e, em particular, durante o último ano. Julgo compreender onde queres chegar e estou solidária contigo, que é o que me tem mantido numa situação que não tem satisfeito as minhas necessidades. Na verdade, é tão simples quanto isso. Acredito que nos amamos um ao outro, mas estamos numa encruzilhada. Já não tenho vinte e cinco anos. Preciso de uma família; preciso de um compromisso. Para usar uma das tuas expressões, a bola está nas tuas mãos. A decisão é tua. Neste ponto, falar é supérfluo. Não vou tentar convencer-te, coisa que, nesta fase, começaria a parecer-se com conversa. E uma questão final: não parti num momento de melindre. Era uma coisa que se vinha a arrastar há muito tempo.

Durante alguns minutos, fitaram-se mutuamente, imóveis. Foi por fim Laurie quem se mexeu. Dobrou-se para diante e fez uma festa na coxa de Jack, logo a seguir ao joelho.

— Isso não quer dizer que eu vá deixar de falar contigo — disse ela. — Não quer dizer que não sejamos amigos. Quer simplesmente dizer que, a não ser que façamos verdadeiramente cedências, estarei melhor no meu apartamento. E, entretanto, regresso à minha distração.

Laurie levantou-se, sorriu para Jack sem rancor e depois atravessou o gabinete de comunicações em direção ao elevador.

 

Com um possante bocejo que lhe fez vir lágrimas aos olhos, Laurie pousou o lápis, espreguiçou-se e depois observou o seu trabalho. Criara uma matriz, num pedaço de papel milimétrico, que tinha do lado esquerdo da página os nomes dos quatro pacientes da suposta série. Desde a parte superior da página e formando colunas, estavam apontados todos os parâmetros que ela julgava poderem ser importantes, incluindo a idade do paciente, o seu sexo, o tipo de cirurgia envolvida, o nome do cirurgião, o anestesista e o agente anestésico usado, o sedativo e os analgésicos empregues, a zona do hospital em que foi acomodado o paciente, como foi o paciente descoberto e por quem, a hora a que o encontraram, quem fez a autópsia, quaisquer patologias potencialmente relevantes e os resultados da toxicologia.

Atualmente, Laurie tinha entradas preliminares em todas as caixas da matriz, exceto para os nomes dos cirurgiões e dos anestesistas, o tipo de anestésico e de drogas usadas, os resultados da toxicologia para os dois casos que autopsiara e qualquer possível patologia relevante sobre Darlene Morgan. Para preencher as entradas vazias, precisava dos relatórios do hospital e da contínua cooperação de Peter e Maureen. Laurie escrevera nas duas entradas relativas à toxicologia dos casos autopsiados por Kevin e George: rastreio toxicológico negativo, testes adicionais pendentes.

A matriz já destacara uma informação que ela julgava importante e ligeiramente prejudicial para a sua teoria de um assassino em série: as mortes não tinham ocorrido na mesma ala do hospital. Dois pacientes tinham estado no piso de cirurgia geral, ao passo que os outros dois tinham estado no piso da ortopedia e da neurocirurgia. Uma vez que nenhum dos pacientes fora submetido à neurocirurgia, Laurie já telefonara para o gabinete de admissão do Manhattan General a pedir uma explicação. Essa explicação acabou por ser simples: dado que o hospital funcionava a quase plena capacidade, as camas tinham muitas vezes de ser distribuídas sem ter em conta o tipo de cirurgia.

Desde o momento em que deixara Jack na sala de identificação, Laurie revelara-se um dínamo humano relativamente à investigação dos quatro pacientes. A sua motivação era dupla. Havia a contínua necessidade de uma distração para evitar ficar obcecada com os seus problemas, tal como Jack deduzira. Isso não se alterara. O que mudara fora um estranho desejo de provar a sua crença intuitiva de que esses casos não representavam uma coincidência. A animada rejeição da idéia por parte de Jack fora simultaneamente depreciativa e irritante.

Em primeiro lugar, ela tinha ido à histologia para ver Maureen que, com agrado, a presenteara com um tabuleiro de seções microscópicas de McGillin coradas com hematoxilina e eosina em menos de vinte e quatro horas. Com o fardo do processamento de oito mil autópsias por ano, era inaudito o apuramento de resultados pelo serviço de análise histológica no dia seguinte ao pedido das análises. Laurie agradecera-lhe profusamente os seus esforços e levara as lamelas de imediato para o gabinete com o intuito de as estudar com rigor. Tal como suspeitara, não encontrou qualquer patologia em geral e, em específico, verificou que o coração estava inteiramente normal. Não havia quaisquer sinais de inflamação tratada do músculo cardíaco ou das artérias coronárias e não observou quaisquer anomalias nas válvulas ou no sistema circulatório.

Dirigira-se de seguida ao laboratório de toxicologia, no quarto andar, onde deparara com um pequeno contratempo ao encontrar John DeVries por acaso. Graças às más relações entre ambos e à territorialidade de John, exigiu saber o que estava ela ali a fazer, deambulando pelo laboratório dele. Não querendo arranjar sarilhos a Peter com o patrão, Laurie teve de ser criativa. Calhava estar de pé ao lado do espectrômetro de massa, por isso disse que nunca compreendera bem a espectrometria de massa e esperava aprender algo sobre o assunto. Mitigado até certo ponto, John fornecera-lhe alguma literatura antes de se ter desculpado para descer ao laboratório de serologia.

Laurie encontrara Peter no seu gabinete liliputiano e desprovido de janelas, e os olhos dele iluminaram-se ao vê-la. Embora Laurie não se lembrasse de Peter antes de integrar a equipa do GMLS, Peter lembrava-se dela da época em que ambos freqüentavam a Wesleyan University, no início dos anos 80. Ele andava dois anos atrás dela.

— Fiz um rastreio toxicológico a McGillin — dissera Peter. — Não encontrei nada, mas tenho de te alertar para o fato de que, por vezes, os compostos passam despercebidos na leitura, em especial quando os níveis de concentração são muito baixos. Seria uma grande ajuda se me desses uma pista daquilo de que andas à procura.

— É justo — dissera Laurie. — Uma vez que as autópsias destes indivíduos sugerem que sofreram uma morte muito rápida, os seus corações tiveram de deixar de bombear sangue subitamente. Quer dizer, num minuto estava tudo bem e no minuto seguinte cessou a circulação. Isso significa que teremos de eliminar toxinas cardíacas como a cocaína, a digitalina e quaisquer outras drogas passíveis de provocar alterações do ritmo cardíaco, quer afetando o centro que dá início à batida, quer afetando o sistema circulatório, que espalha os impulsos em redor do coração. A acrescentar a isso, temos até de excluir todas as drogas usadas para tratar ritmos cardíacos anômalos.

— Eh pá! Isso é uma lista muito comprida — comentara Peter. — Eu teria visto a cocaína e a digitalina, porque sei onde procurar na leitura, e teriam de ser doses grandes para fazerem aquilo de que estás a falar. As outras, não sei, mas vou procurar.

Por essa altura, Laurie indagara acerca de Solomon Moskowitz e Antonio Nogueira, cujas autópsias tinham sido realizadas várias semanas antes. Disse a Peter que os casos eram cópias do de McGillin. Recorrendo ao teclado em frente do monitor e à sua palavra-passe, Peter acedeu à base de dados do laboratório. Ambos os exames toxicológicos tinham tido resultados normais, mas ofereceu-se para os verificar de novo, agora que fazia uma idéia aproximada daquilo que ela procurava.

— Mais uma coisa — dissera-lhe Laurie quando estava prestes a partir. — Vi mais um caso esta manhã cujas amostras devem estar a caminho. Uma vez mais, era espantosa a sua semelhança com os outros, o que me diz que se está a passar algo de esquisito no Manhattan General. Dado que não consigo encontrar nenhuma patologia, receio que o fardo de descobrir do que se trata vai recair sobre os teus ombros.

Peter disse que daria o seu melhor.

Depois da sua visita à toxicologia, Laurie subira até ao gabinete de George para dar uma vista de olhos à pasta de Antonio Nogueira. George surpreendera-a por ter para ela cópias das partes de maior relevância. Kevin não tinha sido assim tão prestável, mas não se importava que Laurie fizesse cópias. Tendo levado o material para o seu gabinete, Laurie estudara-o em pormenor, preenchendo a sua matriz à medida que prosseguia.

Pegou no papel que continha a matriz e, torcendo a cadeira para um lado e para o outro, esperou que Riva terminasse o telefonema com um médico local acerca do caso de atropelamento e fuga dessa manhã.

— Vê-me lá isto! — disse Laurie, estendendo o papel milimétrico à colega de gabinete quando ela pousou o auscultador.

Riva pegou no papel e analisou-o, olhando depois para Laurie.

— Estás a ser muito aplicada. É uma forma excelente de organizar a informação.

— Sinto-me fascinada com este puzzle — admitiu Laurie. — E estou empenhada em resolvê-lo.

— Calculo que tenha sido essa a razão do teu contentamento por não teres encontrado qualquer patologia em Morgan, pois significava que tinhas outro caso.

— Precisamente!

— Então, qual é a tua idéia neste momento? — perguntou Riva.

— Com todo este trabalho, deves ter uma idéia melhor.

— Creio que tenho. Começa a tornar-se bastante claro para mim que o mecanismo de morte foi fibrilação ventricular nos quatro casos. A causa é outra conversa, tal como o modo.

— Sou toda ouvidos.

— Tens a certeza de que queres ouvir? Falei das minhas idéias a Jack e ele foi irritantemente desdenhoso.

— Põe-me à prova!

— Muito bem! Em meia dúzia de palavras: a partir do momento em que decidi que o mecanismo de morte foi fibrilação ventricular ou paragem cardíaca, e dado que os corações se têm revelado normais, a causa de morte tem de ser uma qualquer droga que provoque arritmia.

— Parece-me bastante razoável — disse Riva. — Então e o modo de morte?

— Essa é a parte mais interessante — disse Laurie. Inclinou-se para a frente e baixou a voz, como se tivesse medo que alguém a pudesse ouvir. — Ando cá a pensar que o modo de morte é homicídio! Por outras palavras, creio ter tropeçado na obra de um inteligente assassino em série no Manhattan General.

Riva começou a dizer qualquer coisa, mas Laurie ergueu a mão e moderou a voz.

— Logo que consiga os relatórios do hospital poderei preencher o resto da minha matriz, que vai incluir as drogas pré-operatórias, o agente anestésico, bem como a medicamentação pós-operatória. Falaremos de novo e veremos qual será a tua resposta. Pessoalmente, não creio que a informação adicional vá fazer qualquer diferença. A ocorrência de quatro casos de fibrilação ventricular fatal que não responde a reanimação em pessoas jovens e saudáveis submetidas a cirurgias programadas no mesmo hospital é uma coincidência demasiado grande.

—Trata-se de um hospital muito movimentado, Laurie! — disse Riva simplesmente, sem querer uma discussão.

Laurie expirou forçosamente. No seu estado sensível, interpretou o tom de Riva como condescendente e não assim tão diferente do de Jack. Laurie estendeu o braço e arrancou a matriz da mão de Riva.

— É só a minha opinião — disse Riva, sentindo a reação de Laurie.

— O problema não está em ti — disse Laurie sem olhar para trás. — Tenho andado um bocado com os nervos à flor da pele nos últimos dias. — Tornou a virar-se e ficou de frente para Riva. — Mas deixa-me que te diga o seguinte: o que fez com que os incidentes anteriores que envolveram assassinos em série em instituições de saúde se prolongassem por tanto tempo foi o baixo índice de suspeita.

— Acho que tens razão — disse Riva.

Sorriu, mas Laurie não lhe retribuiu o gesto conciliatório. Em vez disso, girou sobre os calcanhares e pegou no telefone. Podia ter considerado desagradável partilhar as suas idéias com Jack e com Riva, mas o processo de lhes dar voz tornara tudo mais nítido e servira para fazer com que se sentisse ainda mais confiante no fato de estar certa. As objeções dos amigos em nada tinham contribuído para lhe abalar as convicções. Sentia-se agora ainda mais empenhada no seu cenário de assassínio em série. Assim sendo, compreendeu que, mesmo que fosse prematuro, no sentido de não ter provas definitivas, incumbia-lhe certificar-se de que haveria alguém informado no Manhattan General. Infelizmente, sabia por amarga experiência própria que não lhe competia tomar uma decisão dessas. Tinha de partir da administração e passar pelas relações públicas. Daí ter marcado a extensão de Calvin e ter pedido a Connie Egan, a secretária dele, um instante do tempo de Calvin.

— O subdiretor tem de sair para um almoço formal do Conselho Consultivo dentro de alguns minutos — disse Connie. — Se quer tentar apanhá-lo, aconselho-a a descer imediatamente. De outro modo, terá de esperar até depois das quatro, e mesmo isso depende do fato de ele aqui regressar, coisa de que não há garantias.

— Vou já descer — disse Laurie. Pousou o auscultador e pôs-se de pé.

— Boa sorte — disse Riva, que ouvira a conversa.

— Obrigada — disse Laurie sem grande sinceridade. Pegou na matriz.

— Não fiques desapontada se o Calvin se mostrar ainda mais duvidoso que eu — gritou Riva nas suas costas. — E ele pode dar-te uma resposta perante essa sugestão de criminalidade. Lembra-te de que ele tem um fraquinho pelo Manhattan General, uma vez que estagiou lá nos seus tempos de estudante de Medicina e durante o internato, nos tempos em que o hospital era um hospital universitário de relevo.

— Não me vou esquecer disso — gritou Laurie.

Sentia-se um pouco culpada pelo seu comportamento para com Riva. Estar de tão mau humor não era característico de Laurie, mas não conseguia evitá-lo. Não perdeu tempo, por receio de já não conseguir encontrar Calvin. Apanhou o elevador principal e, em menos de cinco minutos, estava a caminhar para a área da administração. Havia uma série de pessoas sentadas num sofá comprido, a aguardar para ver o diretor, cuja porta do gabinete estava fechada e era guardada por Gloria Sant’ford, a secretária. Laurie lembrava-se de ter estado ali sentada algumas vezes, à espera de ouvir uns gritos por ter feito algo que agora evitava indo falar com Calvin. Laurie era bastante mais obstinada, bem como apolítica, quando começara a trabalhar no GMLS.

— Pode entrar já — disse Connie quando Laurie se aproximou da sua secretária.

Calvin tinha a porta entreaberta. Estava ao telefone, com as pernas pousadas no canto da secretária. Quando Laurie entrou, fez um gesto com a mão livre para que ela se sentasse numa das cadeiras de frente para ele. Laurie passou os olhos pelo gabinete familiar. Tinha menos de metade da dimensão do de Bingham e não tinha ligação com a sala de conferências. Era, ainda assim, gigantesco, comparado com o espaço que Laurie tinha de partilhar com Riva. As paredes estavam cobertas com a habitual disposição de diplomas, prêmios e fotografias tiradas com políticos importantes da cidade.

Calvin terminou a sua conversa, que Laurie percebeu que tinha a ver com a agenda do almoço da Comissão Consultiva que se seguiria. A Comissão Consultiva tinha sido formada pelo presidente da câmara havia quase vinte anos, para tornar o GMLS menos dependente, quer do departamento executivo, quer do cumprimento das leis.

Calvin deixou que as suas pesadas pernas pousassem no chão. Espreitou Laurie pelas lentes progressivas sem aros, que adquirira recentemente. Laurie sentia-se tensa. Graças a um problema ligeiro e persistente com figuras de autoridade masculinas desde tenra idade, Calvin sempre a intimidara, mais ainda que o diretor. Era uma mescla da imponente presença física dele, dos seus olhos negros, frios e resolutos, do seu lendário temperamento tempestuoso e do seu ocasional machismo. Ao mesmo tempo, sabia que ele era capaz de ter um comportamento caloroso e cavalheiresco. Aquilo que sempre a preocupava em qualquer encontro era qual dos lados seria dominante.

—Em que posso ajudá-la?— começou Calvin. — Infelizmente, tem de ser rápido.

— Só demora um instante — garantiu-lhe Laurie. Entregou-lhe a matriz que preparara. Depois fez-lhe um breve resumo da história dos quatro casos, tal como se tinham desenrolado, e em seguida apresentou as suas idéias quanto aos possíveis mecanismo, causa e modo de morte. Demorou apenas uns minutos e, quando terminou, ficou em silêncio.

Calvin continuava a estudar a matriz. Finalmente, ergueu os olhos. Tinha as sobrancelhas arqueadas. Recostou-se no assento, que se queixou com um rangido, ergueu os indicadores com os cotovelos sobre a secretária e abanou lentamente a cabeça. O seu semblante denotava um ar confuso.

— Creio que a minha primeira pergunta terá de ser por que é que me está a contar tudo isto numa fase tão inicial? Nenhum destes casos foi ainda concluído.

— Simplesmente porque pensei que quisesse avisar alguém no Manhattan General acerca daquilo que pensamos, para aumentar o índice de suspeita.

— Correção! — rugiu Calvin. Deu uma olhadela ao seu relógio, coisa que não passou despercebida a Laurie. — Estaria a avisá-los daquilo que você pensa, não eu. Laurie, estou surpreendido consigo. Está aqui a usar dados muitíssimo inadequados para tirar uma conclusão ridícula e prematura. — Bateu na matriz com as costas da mão livre. — Está a sugerir que eu comunique pura especulação, o que poderia ser extraordinariamente prejudicial para o Hospital Manhattan General se fosse parar a mãos erradas, coisa que acontece com demasiada freqüência. Poderia até provocar o pânico. Aqui, no GMLS, lidamos com fatos, não com suspeitas fantasiosas. Que raios, poderíamos vir a perder toda a credibilidade!

— Tenho uma forte intuição quanto a isto — retorquiu Laurie.

Calvin bateu com a enorme palma na superfície da secretária. Uns quantos papéis flutuaram no ar.

—A minha paciência para a intuição feminina é zero, se é a isso que isto se resume. O que é que acha que isto é, um clube de costura?   Somos uma organização científica. Lidamos com fatos, não com palpites e adivinhas.

— Mas estamos a falar de quatro casos essencialmente por explicar num período de duas semanas — disse Laurie, lamentando-se intimamente. Parecia que tinha despertado o machismo adormecido de Calvin.

— Sim, mas lidam com milhares de casos no Manhattan General. Milhares! Por acaso, sei que têm uma taxa de mortalidade baixa, bem inferior ao indicador de três por cento. Como é que sei? Trabalho para o conselho. Regresse com fatos da toxicologia ou com provas infalíveis de eletrocussão de baixa voltagem e então hei de ouvi-la, e não com uma história disparatada de um assassino em série sem mais nem menos, sem fatos que a suportem.

— Não foram eletrocutados — disse Laurie.

Considerara essa hipótese a dada altura, uma vez que os 110 volts padrão podiam provocar fibrilação ventricular. Rejeitara porém a idéia porque os pacientes não foram submetidos a descargas elétricas de modo rotineiro. Talvez um deles pudesse ter sido exposto a uma peça de equipamento aberrante, mas certamente que não quatro, em especial porque nenhum deles fora monitorizado.

— Estou só a dar um exemplo! — berrou Calvin. Levantou-se abruptamente, fazendo com que a cadeira se deslocasse para trás com as suas rodinhas e fosse embater na parede. Entregou o papel a Laurie. — Vá arranjar fatos, já que está assim tão motivada! Não tenho tempo para estes disparates. Tenho de ir a uma reunião onde lidamos com problemas a sério.

Envergonhada por ter sido repreendida como uma menina de escola, Laurie saiu disparada da área da administração. A porta do gabinete de Calvin estivera aberta durante aquela troca de palavras e as pessoas que esperavam para falar com Bingham observaram a partida dela com rostos inexpressivos. Não conseguia imaginar o que pensariam acerca do que tinham ouvido. Ficou aliviada por tomar um elevador vazio para se poder recompor. Tal como dissera a Riva, sabia que nesse momento tinha os nervos à flor da pele e, em circunstâncias normais, poderia provavelmente ter-se recusado a ouvir a resposta torta de Calvin.

Porém, a reação de Calvin, combinada com a de Jack e com a de Riva, fê-la sentir-se uma Cassandra dos tempos modernos. Não conseguia acreditar que pessoas que respeitava eram incapazes de ver aquilo que era claro para ela.

De regresso ao gabinete, atirou-se à cadeira e, por um instante, mergulhou a cabeça entre as mãos. Sentia-se frustrada. Precisava de mais informações, mas estava paralisada por ter de esperar que os gráficos chegassem do Manhattan General através dos canais habituais. Não havia maneira de acelerar o sistema. Além disso, tinha de esperar que Peter fizesse um passe de magia com a cromatografia de gás e com o espectrômetro de massa. Na improbabilidade de conseguir um caso idêntico no dia seguinte, pelo qual não ansiava, nada havia a fazer.

— Sou obrigada a partir do princípio de que o teu encontro com Calvin não foi tão auspicioso como esperavas — disse Riva.

Laurie não respondeu. Sentia-se ainda mais temperamental que antes. Desde que era menina, procurara sempre a aprovação de figuras de autoridade, e quando não a conseguia, sentia-se terrivelmente. A reação de Calvin era um caso ilustrativo, fazendo-a sentir que todos os segmentos díspares da sua vida se deslindavam. Primeiro, fora a situação com Jack, depois a mãe e o problema do BRC A l, e agora parecia que até o seu emprego estava num caos. A acrescentar a tudo isso, sentia-se fisicamente exausta por ter dormido pouco duas noites seguida.

Laurie suspirou. Tinha de se recompor. Ao pensar no problema do BRCA1 lembrou-se de que concordara com Jack em fazer o teste ao marcador e telefonou a Sue Passero, a sua antiga companheira de casa durante a faculdade. Laurie não fora inteiramente sincera na altura, uma vez que ainda não se decidira por completo a fazê-lo, de modo que esse seu conhecimento servira mais para satisfazer a inesperada insistência dele que para uma real decisão. Porém, subitamente, viu a idéia a partir de uma nova perspectiva, dado que afastar-se do GMLS, ainda que apenas por umas horas, lhe parecia uma boa idéia. Também lhe ocorreu a idéia de que poderia matar dois coelhos de uma só cajadada. Conhecendo Sue tão bem, Laurie sentia-se confiante de que, enquanto estivesse a fazer o teste, lhe poderia contar as suas preocupações quanto à possibilidade de existir um assassino em série, o que daria ao hospital uma razão para ser vigilante sem a necessidade de se citar, ou ao GMLS, como fonte.

Laurie pegou na agenda para ver o número do consultório de Sue e fez a chamada. Tinham sido chegadas durante os tempos de faculdade e do curso de Medicina e, como acabaram por exercer na mesma cidade, encontravam-se mais ou menos uma vez por mês para jantar. Prometiam sempre que se encontrariam com maior freqüência, mas, por alguma razão, tal nunca sucedia.

Laurie foi atendida por uma das secretárias do local onde Sue trabalhava e perguntou por ela. A intenção de Laurie era deixar simplesmente uma mensagem a Sue para que ela lhe retribuísse a chamada numa altura conveniente, mas quando a secretária perguntou quem falava e Laurie lhe respondeu "A Drª. Montgomery", a secretária saiu de linha antes que Laurie se pudesse explicar. Quando deu por si, estava a falar com a amiga.

— Mas que agradável surpresa — disse Sue alegremente. — O que se passa?

— Tens um minuto para conversar?

— Um minuto, o que é que tens em mente?

Laurie disse que precisava fazer o teste ao BRCA por razões que lhe explicaria mais tarde. Também lhe contou que lhe tinham mudado o seguro de saúde para a AmeriCare, mas ainda não fizera as diligências necessárias para ter um médico de família.

— Não há problema. Vem a qualquer altura. Posso preencher um formulário para te fazerem uma marcação e indicar-te onde fica o laboratório.

— Que tal hoje?

— Hoje está ótimo. Vem até cá! Já almoçaste?

— Ainda não. — Laurie sorriu. Iam ser três coelhos de uma só cajadada.

—Bem, mexe esse rabo e vem até cá, miúda! A comida da cantina não é por aí além, mas a companhia vai ser boa.

Laurie desligou e pegou no casaco, que estava pendurado atrás da porta.

— Acho que fazeres o teste é a coisa certa — disse Riva.

— Obrigada — respondeu Laurie. Olhou para a secretária para se certificar de que não se esquecia de coisa alguma.

— Espero que não estejas chateada comigo — disse Riva.

— É claro que não — respondeu Laurie. Fez uma festa tranqüilizadora no ombro de Riva. — Tal como já disse, sei que ando hipersensível e tudo me incomoda mais do que deveria. Seja como for, e sei que não és minha secretária, ficava-te agradecida se tomasses nota das mensagens outra vez, especialmente as de Maureen ou de Peter. Depois compenso-te.

— Não sejas tonta. Atendo—te o telefone com agrado. Regressas esta tarde?

— Com certeza. Vai ser um almoço rápido e uma simples análise ao sangue, embora talvez passe também pela minha mãe para lhe dar um beijinho. De qualquer modo, vou ter o telemóvel comigo, caso precises de me telefonar.

Riva fez-lhe um aceno e regressou ao trabalho.

Laurie saiu do GMLS pela entrada que dava para a First Avenue. O frio era cortante. A temperatura baixara à medida que o dia decorria, de modo que estava mais frio do que quando fora para o trabalho nessa manhã. Enquanto descia as escadas da entrada para o passeio, puxou o fecho até ao queixo. De pé no passeio, tremia ligeiramente ao erguer a mão para chamar um táxi.

A viagem até ao Manhattan General foi um pouco mais demorada que a viagem que fizera no dia anterior até ao University Hospital. Ambas as instituições estavam situadas no Upper East Side e aproximadamente à mesma distância para norte do GMLS, mas o General era mais para ocidente e estendia-se ao longo do Central Park. Ocupava mais de um quarteirão com vários caminhos para peões que atravessavam as ruas circundantes e efetuavam a ligação a edifícios independentes que faziam parte do hospital. O recinto fora construído em pedra cinzenta, entre avanços e recuos ao longo de quase um século, de modo que as diversas alas tinham uma estrutura arquitetônica ligeiramente diferente entre si. A ala mais recente, com a silhueta mais moderna, e que recebera o nome do seu benfeitor, Samuel B. Goldblatt, destacava-se das traseiras da estrutura principal em ângulos retos. Era a ala VIP, o equivalente ao local onde a mãe de Laurie fora alojada no University Hospital.

Uma vez que já estivera no Manhattan General por diversas vezes, incluindo de visita a Sue, Laurie sabia onde dirigir-se, o que era útil, dado que o hospital estava sempre apinhado de gente. Encaminhou-se diretamente para o edifício de consultas externas Kaufman.

Chegada ao interior, atravessou a seção de medicina interna e perguntou pela amiga no balcão de atendimento principal. Quando Laurie lhe disse o seu nome, a secretária entregou-lhe um envelope. No seu interior, encontrava-se um formulário preenchido para um teste ao marcador BRCA1, bem como uma nota de Sue. A nota informava-a da localização do laboratório de genética, no segundo piso do edifício central. Continha também instruções para que Laurie fosse primeiro registrar-se. Como nova segurada da AmeriCare, tinha de ter um cartão do hospital. A linha final na nota dizia que Laurie deveria ir diretamente para a cafeteria quando terminasse e que Sue se encontraria lá com ela.

Conseguir o cartão do hospital demorou mais tempo que fazer a análise ao sangue. Teve de esperar numa fila para falar com um dos representantes do serviço a clientes. Ainda assim, tomou-lhe apenas quinze minutos e não tardou a subir ao laboratório, no segundo piso. As indicações de Sue eram claras, e Laurie encontrou sem dificuldades o laboratório de diagnóstico genético. O seu interior era surpreendentemente sereno em comparação com o resto do hospital. Ouvia-se música clássica gravada através dos altifalantes nas paredes. Alinhadas nas paredes, havia reproduções do quadro Nenúfares, de Monet, do Museu de Arte Moderna. Não se encontravam quaisquer pacientes na sala de espera quando Laurie entregou o formulário de Sue ao recepcionista. Era evidente que a procura de testes genéticos não era ainda muito comum, mas Laurie sabia que tal em breve mudaria e, por conseqüência, a medicina em geral.

Sentada na sala de espera, Laurie foi de novo forçada a confrontar a realidade daquilo que poderia ocultar-se no íntimo do seu ser. Pensar que era possível que transportasse consigo um instrumento da sua morte sob a forma de um gene mutado era uma revelação perturbante. Era uma espécie de suicídio inconsciente ou de um mecanismo de autodestruição incorporado, e essa era por certo a razão pela qual estivera ativamente a evitar pensar sobre o assunto. Seria o resultado positivo ou negativo? Não o sabia, e estar no hospital fazia com que se sentisse uma jogadora, posição em que nunca se sentira confortável. Não tivesse Jack insistido com ela, e o mais provável seria que tivesse protelado o teste indefinidamente. Todavia, agora estava ali, iriam tirar-lhe sangue e depois haveria de se esquecer do assunto, uma característica que Laurie partilhava com a mãe.

Depois de lhe terem tirado sangue, um processo de uma simplicidade ilusória, Laurie regressou ao primeiro piso e esperou na fila para o balcão de informações principal. Não fazia idéia da localização da cafeteria no extenso recinto. Chegada a sua vez, o voluntário de avental cor-de-rosa perguntou-lhe se queria saber onde ficava a cafeteria principal ou a cafeteria do pessoal. Indecisa por um instante, Laurie respondeu que queria deslocar-se à cafeteria do pessoal e recebeu as indicações.

As direções eram complicadas, mas foram facilitadas pela derradeira sugestão do voluntário: devia seguir a linha roxa no chão. Depois de uma caminhada de cinco minutos, Laurie deu por si na cafeteria do pessoal. Como era meio-dia e um quarto, o local estava a rebentar pelas costuras. Laurie não fazia idéia de que o pessoal do Manhattan General era tão numeroso, especialmente considerando que a multidão representava apenas uma parte de um turno de três.

Laurie olhou em redor para os numerosos rostos, tanto sentados às mesas, como à espera na fila da comida fumegante. O burburinho de conversas ressoantes lembrava-lhe o ruído de um santuário de uma zona úmida numa noite de fim de verão. Com uma tal multidão, Laurie não conseguia evitar sentir-se pessimista em relação a encontrar-se com Sue. O plano lembrava uma tentativa de encontrar um amigo no Times Square na passagem de ano.

Precisamente quando Laurie se preparava para se dirigir à caixa com o intuito de pedir um telefone para poder mandar um bip à amiga, tocou-lhe uma mão no ombro. Para deleite de Laurie, era Sue, que a envolveu num grande abraço. Sue era uma mulher de cor, atlética e de constituição robusta, que na universidade se destacara no futebol e no softball. Laurie sentiu-se minúscula no seu abraço. Tal como habitualmente, Sue tinha uma aparência atraente. Em contraste com a maioria das colegas, usava um vestido de seda elegante e que a favorecia e, por cima, um casaco branco muito bem engomado. À semelhança de Laurie, gostava de satisfazer o seu lado feminino com o vestuário.

— Espero que não estejas com muito apetite — provocou Sue enquanto fazia um gesto na direção da fila da comida. — Mas, brincadeiras à parte, a comida não é assim tão má.

À medida que iam avançando na fila e escolhiam o que queriam comer, mantiveram uns gracejos superficiais acerca dos respectivos papéis profissionais. Enquanto esperavam na fila para a caixa, Laurie perguntou a Sue pelos seus dois filhos. Sue casara-se logo depois de ter terminado o curso de medicina e tinha um rapaz de quinze anos e uma rapariga de doze. Laurie não conseguia evitar sentir inveja.

— Tirando a agonia da adolescência, está tudo fixe — disse Sue.

— Então e tu e o Jack? Alguma luz ao fundo do túnel? Parece-me que tens de te despachar, cachopa! Vais fazer quarenta e três não tarda. E eu estou quase.

Laurie sentiu o rosto enrubescer, juntamente com uma pontada de irritação por ser incapaz de esconder fosse o que fosse. Podia ver que Sue captara a reação e uma vez que eram amigas havia quase vinte e seis anos, tinha-lhe confiado o seu desejo de ter filhos e a situação com Jack, especialmente nos últimos dois anos. Laurie não iria conseguir safar-se com lugares-comuns.

— A minha relação com o Jack já passou à história — disse Laurie, decidida a mostrar-se mais direta e não tanto a contar o que realmente sentia, pelo menos em termos íntimos.

— Oh, não! Mas o que é que se passa com aquele rapaz?

Laurie enrugou a testa e encolheu os ombros demonstrando que não fazia idéia. Não queria entrar numa longa conversa, emocionalmente esgotante, no seu presente estado.

— Olha, sabes uma coisa... ainda bem que te vês livre disso. Tens sido mais que paciente com esse palerma indeciso. Devias receber uma medalha, porque ele não vai mudar.

Laurie anuiu e teve de se refrear para não defender Jack, apesar daquilo que Sue estava a dizer ser verdade.

Sue não deixou que Laurie pagasse o seu almoço e insistiu em pôr tudo na sua conta. Com os tabuleiros na mão, conseguiram arranjar uma mesa para dois à janela. Tinham a vista de um pátio interior com uma fonte vazia. No verão, havia uma exuberância de flores e a água jorrava dos múltiplos orifícios da fonte.

Conversaram de forma casual durante mais alguns minutos sobre a situação com Jack. Sue falou a maior parte do tempo. Insistiu depois na idéia de que haveria de encontrar alguém mais adequado para Laurie e ela provocou-a, desafiando-a a que tentasse. A conversa depois centrou-se nas razões pelas quais Laurie queria fazer o rastreio ao BRCA1. Laurie contou-lhe a história da mãe e o fato de, como era habitual, ela lhe ter ocultado a informação. Sue apenas comentou que iria arranjar um oncologista de primeiro plano para Laurie, caso o teste fosse positivo.

— E que tal um médico de família? — perguntou Sue depois de uma breve pausa. — Agora que estás oficialmente registrada, vais precisar de um.

— E que tal tu? — Sugeriu Laurie. — Estás a aceitar novos pacientes?

— Seria uma honra — respondeu Sue. — Mas tens a certeza de que te sentirias confortável tendo-me a mim como tua médica?

— Inteiramente — disse Laurie. — Também vou ter de mudar de ginecologista.

— Também te posso ajudar quanto a isso — disse Sue. — Há pessoas fantásticas entre o pessoal, incluindo a mulher que é a minha própria ginecologista. É rápida, delicada e sabe o que está a fazer.

— Parece-me uma boa recomendação. Mas não há pressa; o meu check-up anual é só daqui a seis meses.

— Isso pode ser verdade, mas penso que deveríamos meter mãos à obra. A mulher em que estou a pensar é muitíssimo popular. Tanto quanto sei, tem uma lista de espera de seis meses para a primeira consulta. É boa a esse ponto.

— Então, claro que sim! — disse Laurie.

Concentraram-se ambas na comida durante alguns minutos. Laurie quebrou o silêncio.

— Há outra coisa importante acerca da qual queria falar contigo.

— Sim? — comentou Sue, pousando a chávena de chá. — Conta!

— Queria falar contigo acerca da SMSA.

O rosto de Sue contraiu-se numa expressão de completa confusão.

— Que raio é a SMSA!? — Laurie riu-se.

—Acabei agora mesmo de o inventar. Já ouviste falar da SMSI, a síndrome da morte súbita infantil.

— Mas é claro! Quem não ouviu?

— Bem, acabei de cunhar SMSA para síndrome da morte súbita de adultos, que é um bom termo para um problema que tem vindo a ocorrer aqui, no Manhattan General.

— Sim? — inquiriu Sue. — Acho que é melhor explicares-me isso.

Laurie inclinou-se para diante.

—Antes de o fazer, tenho de te dizer que o fato de ser eu a fonte da informação que estou prestes a contar-te tem de ser mantido no mais rigoroso sigilo. Sugeri ao nosso subchefe que alguém aqui do Manhattan General deveria ser avisado, mas rebentou-lhe a tampa, sustendo que tudo não passava de mera especulação sem quaisquer provas e, como tal, poderia danificar a reputação do hospital. No entanto, sinto-me como o investigador preso no dilema de levar a cabo um estudo às cegas em relação a um procedimento que pode salvar vidas e que rapidamente sugeriu o seu valor. Embora estivesse a destruir a integridade do estudo, o que pode impedir a FDA[4] de aprovar o tratamento, tenho de comunicar os resultados, para que as pessoas que recebem o placebo possam ser salvas.

Laurie recostou-se e riu-se de si mesma.

— Eh pá! Estou a ficar melodramática ou quê? Mas é verdade que não tenho provas específicas em relação àquilo de que estou a falar, sobretudo porque ainda não terminei de investigar os casos. Ainda nem sequer tenho as cópias dos relatórios hospitalares dos pacientes em questão. Só que tenho uma intuição forte e alguém tem de saber isto, antes cedo que tarde. De qualquer maneira, este tipo de política médica faz-me trepar pelas paredes. É a única coisa má em relação ao meu trabalho.

— Agora fizeste disparar a minha curiosidade. Muito! Vá lá! Deita tudo cá para fora!

Tornando a inclinar-se para a frente e baixando a voz, Laurie continuou a contar a história segundo a cronologia que a desvendara, começando com McGillin, acrescentando depois os dois casos autopsiados por Kevin e George e terminando com o seu caso dessa manhã. Falou acerca da fibrilação ventricular e sobre o fato de as autópsias se terem mostrado completamente limpas. Contou de seguida a Sue que, sem qualquer patologia óbvia ou os resultados do microscópio, as hipóteses de quatro casos acontecerem por acaso eram aproximadamente as mesmas de o sol não nascer no dia seguinte.

— O que é que estás a dizer, exatamente? — inquiriu Sue, duvidosa.

— Bem... — disse Laurie com hesitação. Conhecendo bem Sue, estava ciente de que dizer-lhe o que estava prestes a dizer-lhe seria o equivalente figurado de lhe dar uma estalada. — Embora calcule que exista uma hipótese minúscula de que a causa destas mortes seja acidental, sob a forma de uma complicação tardia causada pela anestesia, ou talvez por um inesperado efeito secundário de um medicamento, sinceramente, duvido que assim seja. E quando digo minúscula quero dizer infinitamente pequena, porque até agora os nossos exames toxicológicos foram negativos. Enfim, tudo se resume a isto: estou preocupada com a hipótese de estas mortes serem homicídios.

Durante alguns minutos, nem Laurie nem Sue proferiram palavra. Laurie sentia-se contente por deixar a informação mergulhar na mente de Sue. Sabia que a amiga era extremamente rápida intelectualmente e levava muito a peito todas as questões que envolviam o Manhattan General. Tinha feito toda a sua formação interna naquele hospital.

Sue acabou por aclarar a voz. Era evidente que aquilo que Laurie lhe dissera a perturbara muitíssimo.

— Deixa-me ver se percebo. Achas que temos uma espécie qualquer de ceifeiro da morte a vaguear pelas nossas alas à noite?

— De certa forma, sim. Pelo menos, é o que temo. Antes de rejeitares a idéia de imediato, lembra-te só daqueles casos nas notícias nos últimos anos, em que profissionais da saúde enlouquecidos estavam a despachar pacientes sob os seus cuidados. Lembras-te deles, não lembras?

— É claro que me lembro — disse Sue, sentindo-se aparentemente ofendida com a comparação. Endireitou-se na cadeira. — Mas nós aqui não estamos no fim do mundo, nem a gerir uma enfermaria rasca. Trata-se de um centro médico da maior importância, com muitas normas de supervisão. E estes pacientes que me tens estado a descrever não se encontravam presos às camas, nem às portas da morte.

Laurie encolheu os ombros.

— É difícil argumentar com os fatos de que não dispomos, nomeadamente, de nenhuma explicação para as quatro mortes. Se bem me lembro, pelo menos algumas das instituições envolvidas nesses casos de assassínios em série eram muito reputadas. A dupla tragédia é terem continuado por tanto tempo.

Sue respirou fundo e deixou que os seus olhos vagueassem pelo espaço, inexpressivos.

— Sue, não estou à espera que faças, pessoalmente, alguma coisa acerca disto — disse Laurie. — Nem te deverias sentir na defensiva quanto ao Manhattan General. Sei que é uma excelente instituição e certamente que não estou a tentar manchar a sua reputação. Aquilo de que estava à espera era que soubesses quem tu ou eu deveríamos informar para tentar prevenir que as coisas acontecessem no futuro. A sério, fico contente por dizer a esse indivíduo exatamente aquilo que te contei a ti, desde que a minha identidade fique fora de tudo isto, pelo menos até que o GMLS interfira no caso.

Sue ficou visivelmente mais descontraída. Soltou uma gargalhada breve e melancólica.

— Desculpa! Acho que levo a peito qualquer crítica feita a este lugar. Sou uma tonta!

— Conheces alguém como a pessoa que te descrevi: alguém numa posição próxima da administração? Ou que tal o responsável pelas anestesias? Talvez deva falar com ele.

— Não, não, não! — repetiu Sue, para dar ênfase. — Ronald Havermeyer tem um ego do tamanho de uma placa tectônica, com as erupções vulcânicas que geralmente lhe são associadas. Deveria ter sido cirurgião. Não fales com ele! Haveria, decididamente, de levar a coisa a peito e de se querer vingar do mensageiro. Sei disso porque já estive com ele em diversas comissões hospitalares.

— Então e o presidente do hospital? Como é que ele se chama, mesmo?

— Charles Kelly. Mas é tão mau como Havermeyer, talvez até pior. Nem sequer é médico e é evidente que pensa em toda esta operação como sendo um negócio. Nunca seria sensível à tua situação e haveria de ir à procura de um bode expiatório imediatamente. Não, tem de ser alguém com um pouco de tato. Talvez um membro da comissão de morbilidade/ mortalidade.

— Por que é que dizes isso?

— Simplesmente porque lidar com uma coisa destas é da sua responsabilidade e a comissão reúne uma vez por semana para não perder de vista aquilo que se passa.

— Quem faz parte dessa comissão?

— Eu fiz parte durante seis meses. Uma pessoa da vertente clínica faz parte dela numa base rotativa. Os membros permanentes são o responsável pela gestão de riscos, o diretor do controlo de qualidade, o consultor chefe do hospital, o presidente do hospital, o supervisor da enfermagem e o chefe do pessoal médico. Espera um segundo!

Sue investiu com o braço por cima da mesa e agarrou o antebraço de Laurie com tanta rapidez que ela saltou. Os olhos de Laurie varreram a sala, como se esperasse uma ameaça física iminente.

— O chefe do pessoal médico! — repetiu Sue com entusiasmo. Largou o braço de Laurie e fez um gesto amplo com as mãos. — Por que é que não pensei nele antes? Ah, meu Deus, é perfeito!

— Como assim? — inquiriu Laurie, tendo recuperado do seu susto momentâneo.

Foi então a vez de Sue se inclinar sobre a mesa e baixar a voz num tom de conspiração.

— Está perto dos cinqüenta anos, é solteiro e janota. Só cá está há uns três ou quatro meses. Todas as enfermeiras solteiras andam malucas atrás dele e, se eu não estivesse feliz e irrevogavelmente casada, também andaria. É alto e esguio e tem um sorriso que faz derreter o gelo. Tem um nariz bastante comprido, mas nem se nota. E melhor que tudo isso, tem um Q.I. na estratosfera e uma personalidade a condizer.

Laurie não conseguiu evitar um sorriso oblíquo.

—Parece encantador, mas não é disso que ando à procura. Preciso de alguém numa posição de poder que saiba ser discreto. É muito simples.

— Já te disse, é chefe do pessoal médico. Que pessoa com mais poder é que podes desejar? E quanto a ser discreto, é a definição do termo. Estou a dizer-te, tens de lhe arrancar informações pessoais a saca-rolhas. Levou-me um quarto de hora na festa de Natal só a descobrir que, antes de ter vindo para aqui, esteve nos Médicos Sem Fronteiras, o que o levou pelo mundo todo. Tive de morder a língua quando a Gloria Perkins, a enfermeira-chefe do serviço de ortopedia meteu o bedelho e o convidou para dançar.

— Sue, acho que me estás a contar mais do que preciso saber. Não preciso conhecer a história desse tipo. Tudo o que quero saber é se pensas mesmo que ele vai ouvir o que tenho a dizer, se agirá e não referirá o meu nome até haver uma palavra oficial por parte do GMLS. É isso que achas?

—Já te disse que ele é a discrição em pessoa. E, em minha opinião, acho que vocês os dois se vão dar às mil maravilhas. E a única coisa que te peço em troca é que dês o meu nome ao teu primeiro filho. Estou a brincar, claro. Bem, vamos ver se ele está por aqui.

Horrorizada ao compreender subitamente as intenções românticas de Sue, Laurie estendeu o braço e puxou-—lhe com insistência o casaco branco.

— Espera! Isto não é a altura nem o local para me tentares arranjar um bom partido.

— Xiu, miúda! — disse Sue, enxotando a mão de Laurie enquanto continuava a perscrutar o espaço. — Desafiaste-me a encontrar alguém adequado e este tipo é certeiro. Bem, mas onde diabos estará ele? Está sempre aqui com mulheres à volta dele como se usasse

papel mata-moscas. Ah, ali está ele, e não admira que não conseguisse vê-lo. Está instalado na mesa ao fundo.

Sem um segundo de hesitação e esquecida dos apelos de Laurie em contrário, Sue afastou-se a passo largo. Laurie viu-a seguir o seu caminho através das mesas apinhadas. A quase quinze metros de distância, bateu no ombro de um homem de cabelo castanho médio. Ele levantou-se e, sendo mais alto que Sue, Laurie pensou que devia ter aproximadamente a altura de Jack. Sue falou com ele por um instante, executando profusos gestos que terminavam com os dedos a apontarem na direção de Laurie. Laurie sentiu-se corar e baixou os olhos para o tabuleiro. A última vez que experimentara este tipo de humilhação social tinha sido no segundo ciclo e, embora esse episódio tivesse acabado razoavelmente bem, agora não se sentia confiante.

Os minutos que se seguiram custaram a passar. Laurie tornou a contemplar a fonte vazia, do outro lado da janela, perguntando-se se deveria fugir. Quando se deu conta, Sue estava a tocar-lhe no ombro e a chamá-la pelo nome. Com um sentimento de resignação, Laurie virou-se e deu por si a olhar para o rosto irregular e sorridente de um homem atraente e com uma aparência vigorosa, que se encontrava ao lado da amiga. Poderia ter sido marinheiro ou alguém que tivesse passado muito tempo ao sol. Estava cuidadosamente vestido, usando um fato azul escuro com uma camisa branca e uma gravata colorida. Por cima das roupas, tinha um casaco branco muito bem engomado, semelhante ao de Sue. No geral, deixava transparecer uma aura urbana, refinada e até elegante, que sobressaía marcadamente entre os demais médicos, na sua maioria desmazelados.

— Quero apresentar-te o Dr. Roger Rousseau — disse Sue. A sua mão agarrou o ombro dele.

Laurie pôs-se de pé e apertou a mão estendida para si. Era quente e enérgica. Ao olhá-lo nos olhos, ficou surpreendida por ver que eram de um azul pálido. Depois de se ter atrapalhado com as palavras, dizendo que era um prazer conhecê-lo, Laurie estremeceu internamente. Sentiu que agia como nos tempos do segundo ciclo durante aquela primeira apresentação constrangedora.

— Por favor, trate-me por Roger—disse o homem calorosamente.

— E a mim por Laurie — acrescentou Laurie, recuperando a compostura.

Reparou no sorriso do homem que Laurie lhe tinha descrito e achou-o atraente.

— Sue disse-me que tinha uma informação confidencial que estaria disposta a partilhar comigo.

—Tenho — disse Laurie simplesmente. — Calculo que também tenha referido que tem de permanecer anônima. Uma fuga de informação poderia colocar em risco o meu emprego. Infelizmente já tive más experiências no passado.

—Não tenho qualquer problema com a sua necessidade de sigilo. Dou-lhe a minha palavra. — Olhou em redor da movimentada cafeteria. — Não é o melhor sítio para uma conversa confidencial. Posso convidá-la para o meu modesto, mas pelo menos privado gabinete? Não teremos de gritar e por certo não seremos ouvidos.

— Está muito bem — disse Laurie.

Olhou de relance para Sue, que lhe piscou o olho, fez simultaneamente um sorriso malicioso e acenou em jeito de despedida. Quando Laurie começou a pegar no tabuleiro, Sue fez-lhe um gesto para que o deixasse, dizendo-lhe que trataria dele.

Laurie seguiu Roger enquanto ele abria caminho pela entrada da cafeteria, que se encontrava agora mais apinhada ainda que quando Laurie chegara. Mesmo atrás da multidão, Roger deteve-se e esperou que Laurie o alcançasse.

— É só subir um lanço de escadas. Geralmente uso as escadas. Importa-se?

— Céus, não! — disse Laurie. Ficou surpreendida por ele ter sequer perguntado.

— Sue disse-me que fez parte dos Médicos Sem Fronteiras — disse Laurie enquanto subiam.

— Efetivamente, sim — disse Roger. — Durante cerca de vinte anos.

— Estou impressionada — disse Laurie, que conhecia alguma da obra levada a cabo pela organização, pela qual tinha recebido um prêmio Nobel. Pelo canto do olho, reparou que Roger subia os degraus dois a dois. — Como é que ingressou nessa organização?

— Quando terminei o meu internato em doenças infecciosas, em meados dos anos 80, estava à procura de aventura. Também era um idealista, um liberal de extrema esquerda que queria mudar o mundo. Parecia uma boa oportunidade.

— Encontrou desafios?

— Sem dúvida nenhuma e tive formação em administração hospitalar. Mas encontrei também alguma desilusão. A necessidade até dos cuidados mais básicos em grande parte do mundo é chocante. Mas não me dê corda.

— Onde é que esteve?

— Primeiro, no sul do Pacífico, depois na Ásia e, finalmente, em África. Certifiquei-me de que dava a volta ao mundo.

Laurie recordou-se da sua viagem com Jack à África Ocidental e tentou imaginar como seria trabalhar lá. Antes que pudesse mencionar a sua experiência, Roger apressou-se à sua frente e abriu a porta ao cimo das escadas.

— O que é que o fez abandonar a organização? — perguntou Laurie enquanto percorriam o corredor principal a caminho da área da administração. Laurie ficou impressionada com a quantidade de pessoas que o saudavam pelo nome ao passarem por ele, dado que Roger era um funcionário relativamente novo.

— Em parte, a desilusão por não ser capaz de mudar o mundo e, em parte, porque senti necessidade de vir para casa, assentar e ter uma família. Sempre me vi como um homem de família, mas isso não ia acontecer no Chade nem na região da Mongólia.

— Que romântico! — disse Laurie. — Então o amor fê-lo regressar das regiões selvagens de África.

— Não foi bem isso — disse Roger, enquanto segurava a porta aberta que conduzia ao reino alcatifado e tranqüilo dos gabinetes da administração. — Não havia aqui ninguém à minha espera. Sou como uma ave migratória que voa de regresso e instintivamente ao ninho na esperança de encontrar uma parceira. — Riu-se enquanto acenava às secretárias que não estavam a almoçar.

— Então é de Nova Iorque — comentou Laurie.

— De Queens, para ser mais preciso.

— Onde é que tirou o curso de medicina?

— No College of Physicians and Surgeons, da Universidade de Columbia — disse Roger.

— Não me diga! Que coincidência! Também eu. Em que ano terminou?

— Mil novecentos e oitenta e um.

— Eu terminei em oitenta e seis. Por acaso conhecia um Jack Stapleton na sua turma?

— Conheci. Era um dos melhores jogadores de basquetebol na residência universitária Bard Hall. Conhece-o?

— Conheço — disse Laurie sem desenvolver a questão. Sentia-se estranhamente desconfortável, como se estivesse a trair a sua relação com Jack apenas ao mencionar o seu nome. — É meu colega no GMLS — acrescentou com insegurança na voz.

Entraram no gabinete de Roger que era, tal como ele dizia, modesto. Situava-se na área interna da ala da administração e, assim sendo, não tinha janelas. Em lugar disso, as paredes estavam forradas com fotografias emolduradas de inúmeros locais por todo o mundo onde ele trabalhara. Algumas delas eram fotografias de Roger, quer com dignitários locais, quer com pacientes. Laurie não conseguia deixar de reparar que Jack estava a sorrir em todas elas, como se cada fotografia tivesse registrado um momento de celebração. Era particularmente evidente, dado que as outras pessoas se mostravam inexpressivas ou mesmo de sobrolho franzido.

— Sente-se, por favor! — sugeriu Roger.

Ele colocou uma pequena cadeira de espaldar direito num ângulo em frente à secretária. Depois de ter fechado a porta para o corredor, Roger sentou-se à secretária, recostou-se e cruzou os braços.

— Ora, então, conte-me o que lhe vai na cabeça.

Laurie tornou a sublinhar a necessidade de não mencionar o seu nome e Roger assegurou-lhe que ela nada tinha a temer. Com um grau de confiança razoável, Laurie contou-lhe a história tal como a contara a Sue. Desta vez, usou o termo "assassino em série". Quando terminou, estendeu o braço e colocou exatamente à frente dele um cartão com os quatro nomes.

Roger permanecera em silêncio ao longo do monólogo de Laurie, fitando-a com crescente intensidade.

— Não acredito que me esteja a dizer isto — disse ele por fim. — E estou-lhe muitíssimo grato por fazer este esforço.

— A minha consciência ditou-me que alguém deveria saber — explicou Laurie. — Talvez depois de ter conseguido os gráficos ou se a toxicologia apresentar alguma coisa de surpreendente, eu me veja obrigada a engolir as minhas palavras. Isso seria ótimo e ninguém se sentiria mais feliz do que eu. Mas até lá, tenho medo que se esteja a passar algo de esquisito.

— A razão por que estou tão espantado e grato é porque tenho sido aqui o melga desdenhado, tal como você no GMLS, e pelas mesmas razões. Levei cada um destes casos à reunião da comissão de morbilidade/mortalidade. Na verdade, a última vez foi esta manhã, com Darlene Morgan. E, de cada vez, deparei com rejeição, até cólera, em especial da parte do próprio presidente. É claro que não gozei da vantagem adicional dos resultados das autópsias, uma vez que ainda não os recebemos.

— Nenhum dos casos foi concluído — explicou Laurie.

— Seja como for — disse Roger. — Estes casos deixaram-me preocupado desde o primeiro, o do Sr. Moskowitz. Contudo, o presidente fez uma moção de censura contra o simples fato de os discutirmos, quanto mais permitir uma fuga de informação para os media, colocando em questão a eficácia do nosso programa de reanimação cardiopulmonar. Os médicos de serviço nem sequer conseguiram uma batida fraca em nenhum destes casos.

— Foi levada a cabo alguma espécie de investigação?

— Nada, o que é uma afronta às minhas tenazes recomendações. Quer dizer, investiguei pessoalmente as coisas até certo grau, mas estou de mãos atadas. O problema é que a nossa taxa de mortalidade é muito baixa, inferior a dois por cento. O presidente disse que faríamos alguma coisa quando chegasse aos três por cento, o habitual nível de preocupação. O resto da comissão concorda, em especial o sujeito do controlo de qualidade, o da gestão de riscos e o maldito advogado. Estão todos convencidos, sem sombra de dúvida, de que estes acontecimentos não passam de meras complicações infelizes e inevitáveis no ambiente inerentemente arriscado de um centro de cuidados terciários. Cá para mim, estão a enfiar as cabeças na areia.

— Quando investigou o caso descobriu alguma coisa?

— Não. Os pacientes estiveram em pisos diferentes, foram assistidos por auxiliares e médicos diferentes. Mas ainda não desisti.

— Ótimo! — disse Laurie. — Fico satisfeita por estar a par do assunto e fico satisfeita por ter tido a oportunidade de tranqüilizar a minha consciência.

Levantou-se, mas desejou não tê-lo feito no preciso momento em que o fez, mas não poderia tornar a sentar-se por medo de se sentir constrangida. O problema era Jack. Com efeito, ultimamente parecia que o problema era sempre Jack. Tinha gostado de conversar com este homem e essa sensação deixou-a desconfortável.

— Bem, obrigada por me ter ouvido — acrescentou ela, estendendo a mão a Roger numa tentativa de recobrar um mínimo de controlo. — Foi um prazer conhecê-lo. Tal como lhe referi, vou receber cópias dos relatórios e tenho o nosso melhor perito em toxicologia a trabalhar no caso. Aviso-o se surgir alguma coisa.

— Gostaria muito — disse Roger apertando-lhe a mão, mas depois segurando-a. — E agora, será que lhe posso fazer umas perguntas?

— É claro — disse Laurie.

— Importava-se de se tornar a sentar? — pediu-lhe Roger. Soltou-lhe a mão e fez um gesto indicando a cadeira que Laurie acabara de vagar. — Preferia que se sentasse, para não ter de me preocupar com a hipótese de fugir disparada porta fora.

Algo confusa graças ao último comentário de Roger e quanto à razão pela qual poderia querer fugir, Laurie tornou a sentar-se.

— Confesso que tenho uma segunda intenção ao ser tão fluente na resposta a questões pessoais, coisa que não me é característica. Se me desse esse prazer, gostaria de lhe colocar algumas questões pessoais, uma vez que Sue fez questão de me dizer que era solteira e descomprometida. Isso é tudo, ou em parte, correto?

Laurie sentiu imediatamente a umidade nas palmas das mãos. Era descomprometida? Ser colocada naquela situação por um homem atraente e interessante que esperava uma resposta fez-lhe acelerar o pulso. Não sabia o que dizer.

Roger debruçou-se para a frente e inclinou a cabeça para tentar olhar Laurie nos olhos. Ela tinha baixado os olhos em resposta à sua própria confusão emocional.

— Peço desculpa se a incomodo — disse Roger.

Laurie endireitou-se, respirou fundo e sorriu languidamente.

— Não me está a incomodar — mentiu. — Só não esperava que me fizesse esse tipo de pergunta, especialmente nesta missão, potencialmente kamikaze em termos de carreira, que me trouxe ao Manhattan General.

— Então, uma resposta não seria má idéia — insistiu Roger. Laurie sorriu de novo, sobretudo para si mesma. Estava outra vez a agir como uma adolescente.

— Sou solteira e maioritariamente descomprometida.

— O advérbio "maioritariamente" é uma escolha interessante, mas aceito-o como valor nominal, já que vivemos todos numa rede social duvidosa. Vive na cidade?

Passou-lhe pela mente uma imagem efêmera e constrangedora do seu minúsculo apartamento, com a entrada desmazelada.

— Sim, tenho um apartamento na baixa. — E depois, para dar dele uma imagem melhor do que a real, acrescentou: — Não fica longe do Gramercy Park.

— Parece bem.

— E você?

— Só regressei há pouco mais de três meses, por isso não tinha a certeza de qual seria hoje em dia o melhor local para viver na cidade. Arrendei um apartamento por um ano no Upper West Side: na Seventieth Street, para ser preciso. Gosto dele. Fica perto do novo clube Sports L.A., do museu, do Centro Lincoln, e ainda tenho o parque ali à mão de semear.

— Parece bem — disse Laurie. Ela e Jack tinham freqüentado restaurantes nessa área ao longo dos últimos anos.

— A minha próxima questão é se gostaria de jantar comigo hoje.

Laurie sorriu intimamente quando pensou no aforismo: "Cuidado com o que desejas, que ainda se pode concretizar". Ao longo dos últimos anos com Jack, percebera progressivamente como apreciava o poder de iniciativa num companheiro, coisa de que Jack carecia na vida privada. Roger, por outro lado, parecia ser o oposto. Até neste breve encontro sentia que a sua personalidade personificava o termo.

— Não tem de ser uma longa noite — acrescentou Jack quando Laurie hesitou. — Pode ser um restaurante da sua escolha, mesmo na esquina da rua onde vive.

— Que tal no fim-de-semana? — Sugeriu Laurie. — Não tenho coisas combinadas.

— Isso poderia ser considerado um bônus caso se divertisse esta noite — disse Roger com entusiasmo, tomando a sugestão de Laurie como uma resposta auspiciosa. — Receio que tenha de insistir com esta noite, desde, é claro, que esteja livre. Isso proporciona-lhe uma boa fuga, já que pode sempre dizer que está ocupada. Mas espero que não esteja. Tenho de admitir desde já que não fiquei impressionado com as mulheres interessantes e talentosas desta cidade e tenho as antenas ligadas.

Laurie sentia-se lisonjeada com a persistência de Roger, especialmente quando comparada com a indecisão de Jack e, como ele lhe tinha sido apresentado por Sue, sentiu que não havia razões para não aceitar. Estivera à procura de uma distração e esta era a mais saudável.

— Muito bem — disse ela. — Temos um encontro!

— Ótimo! Onde? Ou prefere que seja eu a escolher?

— Que tal um restaurante no SoHo chamado Fiamma — sugeriu Laurie. Queria manter-se afastada de qualquer lugar que ela e Jack tivessem freqüentado, ainda que houvesse uma probabilidade pequena de deparar com ele. — Eu telefono a fazer uma marcação para as sete.

— Parece-me bem. Devo ir buscá-la a casa?

— Encontramo-nos no restaurante — disse Laurie, quando lhe veio à idéia uma imagem breve e rápida do olhar raiado de sangue da Sr. Engler a espreitar por trás da porta. Não queria submeter Roger a isso. Não nesta fase.

Passados quinze minutos, Laurie saiu do Hospital Manhattan General com uma ligeireza categórica no passo. Sentia-se surpreendida e emocionada perante aquilo que lhe parecia uma paixão de adolescente. Era um tipo de excitação que não experimentava desde o nono ano, na Escola Langley para Raparigas. Sabia por experiência própria que esses sentimentos eram prematuros e que provavelmente não resistiriam ao teste do tempo, mas não se importava. Haveria de desfrutar a euforia enquanto ela durasse. Merecia-o.

De pé no passeio, olhou para o seu relógio. Com tempo de sobra e o University Hospital nas proximidades, decidiu ir até lá fazer uma rápida visita à mãe antes de regressar ao GMLS.

 

Cinco semanas mais tarde

Jasmine Rakoczi estava razoavelmente segura da presença de pelo menos dois franco-atiradores posicionados no telhado do triste edifício à sua direita. Imediatamente à sua frente havia um espaço, que não tinha mais de quatro metros e meio e conduzia a um edifício mais elevado que a posição do franco-atirador. O plano dela era simples: atravessar a divisão a correr, mergulhar no edifício e dirigir-se depois ao telhado. Nessa altura, poderia despachar os franco-atiradores, penetrar mais no interior da cidade assolada e cumprir a sua missão.

Esfregou as mãos na expectativa do seu disparo através do espaço aberto e preparou-se o mais possível. Tinha o coração acelerado e a respiração rápida e ofegante. Recorrendo à sua formação militar de base, acalmou-se, respirou fundo e depois avançou.

Infelizmente, as coisas não correram como planeara. A meio caminho do espaço aberto, e mesmo quando estava totalmente exposta, hesitou quando algo lhe chamou a atenção pelo canto do olho. O resultado era previsível. Foi atingida e, tendo sido atingida, certamente não seria promovida.

Jazz proferiu alguns palavrões que tinha aprendido nos fuzileiros e sentou-se; retirou as mãos do teclado e esfregou vigorosamente o rosto. Com o papel de suplente numa recruta russa na batalha de Estalinegrado, concentrara-se intensamente durante várias horas enquanto jogava o jogo de computador Call of Duty. Portara-se maravilhosamente até ao presente desastre, o que significava que teria de começar de novo. O objetivo consistia em completar progressivamente missões mais difíceis e ser promovida, subindo de posto até alcançar o de comandante de tanque. Agora, isso já não ia acontecer. Pelo menos, não esta noite.

Deixou que as mãos lhe caíssem sobre o colo e olhou para o lado do ecrã do computador para ver o que é que a fizera estragar tudo. Fora uma janela pequena, a piscar, que ela programara para surgir quando recebia um e-mail. Calculando que se haveria de sentir ainda mais zangada quando encontrasse uma qualquer solicitação pornográfica estúpida ou publicidade ao Viagra, Jazz clicou no ícone. Para seu deleite, era uma mensagem do Sr. Bob!

Um arrepio de excitação percorreu-lhe a espinha como um choque elétrico. Não recebia notícias do Sr. Bob havia mais de um mês e começava a pensar que a Operação Peneira tinha terminado. Na semana anterior estivera deprimida ao ponto de se sentir tentada a usar o número de emergência que o Sr. Bob lhe dera, embora ele tivesse deixado claro como a água que o número era apenas para uma emergência da parte dela. Como tecnicamente não era esse o caso, ela resistira a fazê-lo, mas à medida que os dias passavam e o seu desânimo aumentava, começara a pensar nessa idéia. Afinal de contas, estava a chegar ao ponto em que poderia ter de se mudar do Hospital Manhattan General, o hospital onde o Sr. Bob lhe pedira especificamente que se empregasse.

A razão pela qual Jazz começava a pensar em mudar-se devia-se ao fato de a sua relação com Susan Chapman, a enfermeira chefe do turno da noite, se ter deteriorado até ao ridículo, tal como sucedera com a sua relação com o resto das enfermeiras. Jazz desenvolvera a convicção de que o turno da noite era o período no qual se concentravam os incompetentes da enfermagem. Não fazia idéia de como Susan alguma vez conseguira ficar à frente de fosse o que fosse, muito menos do piso de cirurgias no General. Susan era não só uma gorda balofa, como não sabia puto e estava sempre a dar ordens a Jazz para que fizesse isto ou aquilo e a descobrir falhas em tudo que ela fazia, o que era fácil, uma vez que as outras enfermeiras continuavam a fazer queixinhas acerca de tudo e mais alguma coisa, especialmente quando se enfiara na sala das traseiras para descansar as pernas por uns momentos e ler uma revista.

Pior que tudo, Susan atribuía-lhe sempre os piores casos, como se gozasse com ela todas as noites, deixando que as outras enfermeiras ficassem com os fáceis. Susan chegou a ter a lata de se queixar a Jazz por esta andar a enfiar o nariz nos relatórios dos casos que não lhe tinham sido atribuídos e a questioná-la por ir com tanta freqüência ao piso da obstetrícia quando devia estar a almoçar. Susan dissera-lhe que a enfermeira chefe da obstetrícia lhe telefonara a queixar-se.

E nessa altura, Jazz mordera a língua e resistira à tentação de dizer das boas a Susan, como ela merecia que fizesse, ou, melhor ainda, de a seguir a casa e usar a Glock para se livrar dela de uma vez por todas. Em lugar disso, Jazz inventou uma explicação envolvendo a sua necessidade de continuar a estudar... blá, blá, blá. Era tudo tanga, mas parecia ter resultado, pelo menos temporariamente. O problema terá que Jazz precisava de ir à obstetrícia e à neurocirurgia quase todas as noites, uma vez que era essa a única forma de se manter a par daquilo que tinha lugar nessas especialidades. Embora Jazz não tivesse tido quaisquer pacientes para sancionar, continuara a registrar resultados adversos, que na sua maioria tinham lugar na obstetrícia; implicavam drogadas a dar à luz bebês todos lixados. Infelizmente, esses registros não eram lá muito desafiantes nem divertidos, e o dinheiro era uma ninharia, comparado com o pagamento por sancionar pacientes.

Sustendo a respiração, Jazz abriu o e-mail do Sr. Bob.

— Yes! — Gritou enquanto esmurrava o ar por cima da cabeça com as duas mãos, como um ciclista profissional ao vencer uma etapa de uma grande volta.

O e-mail consistia simplesmente no nome Stephen Lewis, o que significava que Jazz tinha mais uma missão! Subitamente, ir para o trabalho não seria a experiência cinzenta que se tornara. Aturar Susan Chapman e o resto dos imbecis não seria mais fácil, mas, pelo menos, havia uma razão para o fazer.

Jazz não cabia em si de contente e acedeu rapidamente à sua conta bancária offshore. Por um agradável momento, limitou-se a fitar o saldo. Trinta e oito mil novecentos e sessenta e quatro dólares e uns cêntimos. A melhor parte era que no dia seguinte teria mais cinco mil dólares na conta.

Para Jazz, a idéia de ter dinheiro no banco significava poder. Mesmo que não fizesse nada de especial com ele, sabia que poderia fazê-lo. O dinheiro dava-lhe opções. Nunca tivera dinheiro no banco. O dinheiro que lhe chegava às mãos era gasto no que quer que desejava no momento, numa tentativa vã de obscurecer a realidade da sua vida. Do segundo ciclo ao secundário, isso significara drogas.

Em criança, Jazz crescera em condições de semi-pobreza num minúsculo apartamento com um quarto apenas no Bronx. Geza Rakoczi, o pai, filho único de um lutador pela liberdade húngaro que emigrara para os Estados Unidos em 1957, tivera-a aos quinze anos. Mariana, a mãe, tinha a mesma idade e provinha de uma grande família porto-riquenha. Por razões religiosas, os jovens foram obrigados pelas respectivas famílias a deixar a escola e a casar. Jasmine nasceu em 1972.

Para Jasmine a vida fora uma luta desde o início. Ambos os progenitores se afastaram da Igreja, a que atribuíam as culpas da situação em que se encontravam. Tornaram-se ambos alcoólicos e consumidores de drogas e discutiam quase continuamente quando estavam suficientemente sóbrios. O pai trabalhava intermitentemente em várias ocupações manuais, por vezes desaparecia durante semanas e cumpria tempo na prisão por diversos delitos e mau comportamento, incluindo violência doméstica. A mãe fazia uma série de biscates, mas estava constantemente a ser despedida por absentismo ou mau desempenho provocado por embriaguez. Por fim, tornara-se extraordinariamente obesa, o que limitava aquilo que podia fazer.

A vida de Jasmine fora de casa não era melhor que no interior. O bairro e as escolas eram apanhados numa rede de violência e drogas relacionada com gangues que abarcava a escola primária. Até os professores do jardim de infância passavam mais tempo a lidar com problemas comportamentais que com o ensino.

Introduzida à força num mundo precário e perigoso onde a única coisa consistente era a constante mudança, Jasmine aprendeu a lidar com as coisas através da experiência e do erro. Nunca sabia o que esperar quando chegava a casa da escola. Um irmão que nascera quando ela tinha oito anos e que ela pensava que seria a sua alma gêmea morreu aos quatro meses, de síndrome de morte súbita.

Ao olhar para o saldo de quase quarenta mil dólares da conta offshore, lembrou-se da única outra altura em que considerara ter muito dinheiro. No ano seguinte ao da morte do pequeno Janos, nevara o suficiente para que a neve se acumulasse. Com uma velha pá de carvão que Jazz encontrara na cave da casa, andara pelo bairro a cavar caminhos. Às cinco horas tinha acumulado uma fortuna: treze dólares.

Com uma sensação de orgulho, regressou a casa com o rolo de moedas de um dólar apertado na mão. Em retrospectiva, deveria ter calculado melhor as coisas, mas na altura não conseguira evitar fazer alarde da riqueza recentemente adquirida como prova do seu valor. O resultado era previsível, tal como Jazz agora sabia. Geza sacara-lhe o dinheiro, dizendo que já era altura de ela começar a contribuir para as despesas familiares. Na verdade, usara o dinheiro para comprar cigarros.

Esboçou-se um ligeiro sorriso no rosto de Jazz quando ela se recordou da sua vingança. A única coisa de que o pai gostava na altura era de um cão vadio do tamanho de uma ratazana e com pêlo comprido que alguém do local onde estava a trabalhar temporariamente lhe oferecera. Enquanto Geza estava a beber cerveja e a ver as lutas na televisão, ela levara o cão para a casa de banho, onde a janela estava sempre aberta para minorar o cheiro proveniente da sanita estragada. Lembrava-se como se tivesse sido ontem da expressão no focinho do animal quando ela o segurou pelo cachaço do lado de fora da janela enquanto ele tentava furiosamente agarrar o peitoril. Quando o soltou, ele deixou escapar um pequeno latido antes de mergulhar ao longo de quatro pisos até ao cimento, lá em baixo.

Mais tarde, Geza acordara-a rudemente para lhe perguntar se sabia alguma coisa acerca da morte do cão. Jazz negara-o com veemência, mas foi espancada, tal como Mariana, que com mais verdade negou saber como é que o cão caíra da janela da casa de banho. No entanto, Jazz sentira que a tareia valera a pena, embora na altura estivesse aterrorizada. Era claro que ficava sempre aterrorizada quando o pai lhe batia, o que no total sucedia demasiadas vezes, até Jazz ser suficientemente grande para lhe retribuir a violência.

Jazz fechou a janela da conta offshore e verificou as horas. Era demasiado cedo para ir trabalhar, mas não tinha tempo suficiente para ir ao ginásio. Quanto a começar outra sessão do Call of Duty, sentia-se demasiado impaciente para ficar parada. Em lugar disso, decidiu descer a rua até à mercearia coreana de bairro, aberta vinte e quatro horas por dia, para comprar alguns produtos básicos. Não tinha leite e sabia que ia querer um pouco na manhã seguinte, quando regressasse do hospital.

Ao pegar no casaco, a sua mão introduziu-se instintivamente no bolso direito para afagar a Glock. Retirou-a facilmente, apesar do silenciador comprido, e fez pontaria a si mesma no pequeno espelho que se encontrava na parede, ao lado da porta. O buraco na extremidade do cano parecia a pupila de um maníaco com um olho só. Jazz soltou uma risadinha ao baixar a arma e verificou compulsivamente o tambor. Estava carregado, como sempre. De seguida, pegou no saco de lona que usava para as compras e alçou-o.

Lá fora, estava um tempo razoavelmente ameno. Era assim o mês de março em Nova Iorque. Um dia, podia parecer primavera, mas no dia seguinte podia ser como um dia em pleno inverno. Jazz caminhava de mãos enfiadas nos bolsos, a agarrar a Glock de um lado e o Blackberry do outro. Segurar os seus haveres conferia-lhe uma sensação de conforto.

Uma vez que pouco passava das oito e meia da noite, havia um razoável número de peões nos passeios, bem como tráfego de veículos na rua lateral, à medida que Jazz se dirigia à Columbus Avenue. Ao passar pelo adorado Hummer, deteve-se por um momento a admirar-lhe a superfície reluzente. Aproveitara a desculpa do tempo ameno nessa tarde para o lavar. Ao prosseguir, deixou-se maravilhar, como tantas vezes lhe sucedia, com a sorte que tivera ao encontrar por acaso o Sr. Bob.

A Columbus Avenue estava ainda mais movimentada, com muita gente e imensos autocarros, táxis e carros que competiam por espaço. Os ruídos dos motores a gasóleo, as buzinas estridentes e os pneus a chiar poderiam ter sido esmagadores se Jazz tivesse parado para os ouvir, mas estava habituada ao barulho geral. O dossel de céu que se avistava por entre os edifícios era de um cinzento sombrio devido às luzes da cidade refletidas. Eram apenas visíveis algumas das estrelas mais brilhantes.

A loja ocupava parte do passeio com prateleiras repletas de frutos, vegetais, flores cortadas e uma vasta gama de outros produtos. Tal como a própria avenida, o interior estava apinhado com uma fila de clientes à espera para a única caixa registradora. Jazz deu uma volta e fez as suas escolhas, incluindo pão, ovos, algumas barras energéticas Power Bars e água mineral, além do leite. Quando já tinha aquilo que queria, e com um toque de tensão estimulante, vagueou até ao passeio e fingiu examinar a fruta. Quando julgou ser o momento mais oportuno, estando o dono embrenhado na caixa registradora e a sua esposa ao fundo à procura de algo, Jazz limitou-se a virar-se e a começar o caminho para casa. Quando se encontrava longe o suficiente para saber que não seria abordada e obrigada a inventar uma qualquer desculpa pouco convincente para o fato de se ter ido embora, riu-se para consigo por os proprietários serem tão tolos. Com múltiplas entradas para a loja, era tão fácil sair sem pagar. Perguntava-se por que motivo havia pessoas que se davam ao trabalho de o fazer. Quanto a si, não se recordava da última vez que o fizera.

De regresso ao apartamento, Jazz arrumou as compras no frigorífico e verificou as horas. Ainda era muito cedo para ir para o trabalho. Foi nesse instante que avistou o ecrã do computador. Ali, sobre o fundo do ecrã, piscava a janela que lhe anunciava que chegara um e-mail.

Temendo que a missão de Stephen Lewis pudesse ter sido cancelada, embora tal situação nunca tivesse sucedido no passado, Jazz sentou-se rapidamente e clicou na janela. A sua preocupação atingiu o pico ao ver que se tratava de uma segunda mensagem do Sr. Bob. Foi com um certo tremor que abriu o e-mail. Para espanto e deleite seus, tratava-se de um segundo nome: Rowena Sobczyk.

— Yes! — Explodiu Jazz enquanto comprimia os olhos com força, fazendo uma careta e cerrando os punhos de excitação.

Tendo passado mais de um mês sem receber qualquer nome, receber dois na mesma noite era incrível. Nunca antes sucedera. Estava quase a desmaiar por reter a respiração quando reabriu os olhos e tornou a olhar para o monitor. Queria certificar-se de que não estaria a fantasiar, e não estava. O nome continuava ali, arrojadamente destacado do fundo branco. Perguntou-se vagamente que espécie de nome seria Sobczyk, uma vez que a sobreposição de consoantes lembrava-lhe vagamente o seu.

Jazz levantou-se e começou a despir a roupa que vestira para sair enquanto se dirigia ao roupeiro. Ainda era muito cedo para ir para o hospital, mas não queria saber. Ia, de qualquer modo. Estava demasiado excitada para ficar ali sentada sem fazer coisa alguma. Pensou que poderia pelo menos verificar o terreno no hospital e fazer um plano geral de ataque. Foi buscar as vestes verdes e vestiu-as. Seguiu-se o casaco branco. Enquanto se vestia, pensava na conta offshore. Na noite seguinte por essa altura, o saldo estaria perto dos cinqüenta mil dólares!

Uma vez no Hummer, Jazz acalmou-se rapidamente. Nada havia de errado no fato de ter estado eufórica durante algum tempo, mas agora era altura de ficar séria. Compreendeu que despachar dois pacientes seria mais que duplamente difícil em relação a despachar um. Considerou por breves instantes que talvez devesse tratar deles em noites sucessivas, mas abandonou a idéia. Se fosse esse o modo como o Sr. Bob queria as coisas, teria enviado e-mails em noites seguidas. Era óbvio para Jazz que era suposto sancioná-los de uma só vez.

A caminho do hospital, Jazz nem sequer desafiou os táxis. Estava determinada a manter-se serena e concentrada. Estacionou o Hummer no local habitual no segundo piso e caminhou para o hospital. Depois de ter guardado o casaco no lugar do costume, desceu ao primeiro piso e deambulou pela sala das emergências. Estava contente por ver que reinava o caos habitual. Tal como sucedera em todas as missões anteriores, recolheu as duas ampolas de cloreto de potássio sem qualquer problema. Com uma em cada bolso da bata branca, regressou aos elevadores e subiu ao sexto piso.

Comparado com a sala de urgências, o piso cirúrgico parecia tranqüilo, mas Jazz bem via que estava movimentado. Dando uma olhadela à grelha de registro ficou a saber que todos os quartos do piso estavam ocupados, e uma espreitadela à área de serviço deserta significava que todos os enfermeiros e auxiliares de enfermagem estavam nos quartos dos pacientes. Em noites calmas, por essa altura, as enfermeiras do turno da noite já estavam reunidas na sala das traseiras, a dar palpites e a preparar-se para o relatório para passarem o testemunho para as mãos do pessoal da noite. A única pessoa à vista era Jane Attridge, a recepcionista da ala, que estava atarefada a colocar um monte de relatórios de laboratório nas pastas corretas. Jazz olhou para o interior da despensa de medicamentos para se certificar de que Susan Chapman ainda não andava por ali. Chegava sempre cedo.

Jazz sentou-se diante de um monitor e teclou "Stephen Lewis". Ficou satisfeita por saber que o quarto dele era o 424, na ala Goldblatt. Embora nunca lá tivesse estado, sentia que era algo de auspicioso. Como era a parte VIP e luxuosa do hospital, sabia que haveria menos atividade de enfermagem que nos pisos regulares, o que sem dúvida lhe facilitaria as coisas. A única coisa que teria de verificar era se o tipo tinha uma enfermeira de serviço privado, coisa de que duvidava, porque o paciente tinha apenas trinta e três anos e o que ali o levara fora tão somente um problema na articulação do pulso.

Depois de ter inserido o nome de Stephen, Jazz teclou o nome de Rowena Sobczyk. Logo que o fez, espalhou-se-lhe um sorriso pelo rosto. Rowena estava no quarto 617, mesmo ao fundo do corredor. Pensou que seria irônico se lhe atribuíssem o caso, que era uma possibilidade diferente, e se tal lhe sucedesse, tornaria a sanção muito mais fácil. Por outro lado, estava confiante de que tratar dos dois ia ser como matar dois coelhos de uma só cajadada.

— Chegou cedíssimo — troçou uma voz.

Os olhos de Jazz esbugalharam-se e a adrenalina disparou-lhe pelas veias. Deu por si a olhar para o rosto rechonchudo de Susan Chapman, com as feições arredondadas demarcadas por uma ligeira erupção seborréíca. A expressão de Susan era mais de desafio que de simpatia quando olhou por cima do ombro de Jazz para o ecrã do monitor. Jazz detestava a maneira como ela usava o cabelo puxado para trás num carrapito apertado e fora de moda. Jazz não conseguia evitar pensar que ela parecia uma espécie qualquer de enfermeira anacrônica, especialmente com os sapatos antiquados de atacadores e sola em pele, com tacões de dois centímetros.

— Posso saber o que é que está a fazer? — Exigiu Susan.

— Estou só a tentar familiarizar-me com os nossos casos — conseguiu dizer Jazz. Engolindo a sua raiva contra a mulher, obrigou-se a sorrir. — Parece que temos casa cheia.

Susan fitou Jazz durante segundos que pareceram minutos antes de falar.

— Quase sempre temos casa cheia. O que é que se passa com essa Rowena Sobczyk, conhece-a?

— Nunca a vi — respondeu Jazz. Conservava o sorriso no rosto, mas agora parecia mais real, uma vez que recuperara do alarme inicial por ter sido descoberta a aceder ao registro de Rowena. — Estava a tentar dar uma espreitadela a todos os pacientes novos para começar a noite.

— Creio que ver os pacientes novos é o meu trabalho — disse Susan.

— Está muito bem — disse Jazz. Fez desaparecer os resultados da sua busca do ecrã e levantou-se.

—Já falamos acerca disto—disse Susan bruscamente. —Temos uma regra neste hospital que protege a confidencialidade do paciente. Terei de dar parte de si se a vir fazer isto no futuro. Estou a ser clara? Os registros consultam-se apenas em caso de necessidade.

— Terei de saber se me atribuem pacientes.

Susan expirou audivelmente, como que exasperada. Fitou Jazz de mãos nas ancas como uma professora primária irada.

— É curioso — disse Jazz quebrando o silêncio. — Seria levada a pensar que a Susan e o resto do pessoal incentivassem a iniciativa individual. Vendo que não o fazem, vou antes até a cafeteria.

Arqueou as sobrancelhas numa expressão inquiridora e esperou um segundo pela resposta de Susan. Como ela não respondeu, Jazz esboçou mais um dos seus sorrisos amarelos e dirigiu-se aos elevadores. Sentia os olhos de Susan cravados nas suas costas enquanto caminhava. Abanou a cabeça de modo imperceptível. Estava a aprender a detestar aquela mulher.

Jazz desceu até ao primeiro piso, para o caso de Susan estar a observar o indicador dos andares no elevador, seguiu pelos corredores sinuosos, passando pelas clínicas de dia, agora encerradas, e caminhou até a entrada da ala Goldblatt. Poderia ter saído no quarto piso, o da pediatria, e ter seguido a partir daí até a ala Goldblatt, mas preocupava-a que Susan começasse a desconfiar demasiado das suas voltas.

Até no primeiro piso, a ala Goldblatt era diferente em todos os aspectos do resto do hospital. As paredes eram embutidas a mogno e os corredores alcatifados. Havia quadros pendurados por baixo das respectivas lâmpadas. Os visitantes que desembarcavam dos elevadores e saíam vestiam-se com garbo, e as mulheres reluziam de diamantes. No exterior, havia limusines e criados pessoais.

Apesar do elaborado dispositivo de segurança à entrada, ninguém questionou a entrada de Jazz. Ficou de pé junto aos elevadores, à espera de um, com algumas outras enfermeiras que vinham para o serviço. Reparou que se vestiam como Susan Chapman, com vestes antiquadas de enfermeiras. Algumas delas até usavam chapéu.

Jazz foi a única pessoa a sair no quarto piso. Tal como a entrada lá em baixo, era alcatifado, tinha madeira embutida e estava decorado com arte de qualidade. Uma série de visitantes que estavam de saída ficaram à espera de um elevador que descesse. Vários deles sorriram a Jazz, que retribuiu o sorriso.

Mal parecia um hospital. Os seus tênis de desporto quase não produziam som ao bater na alcatifa. Ao olhar para os quartos dos pacientes, via que estavam decorados de uma maneira igualmente refinada, com mobiliário estofado e cortinados. O horário das visitas estava a terminar e as pessoas despediam-se. Quando se encontrou ao lado do quarto 424, abrandou. Cerca de metro e meio mais adiante estava a sala central das enfermeiras, um farol de luz brilhante comparado com a iluminação tênue do corredor.

A porta do quarto 424 estava entreaberta. Jazz olhou para um lado e para o outro do corredor para se certificar de que passava despercebida. Ao pisar a entrada do quarto, teve uma visão completa do interior. Tal como esperara, não havia qualquer enfermeira privada de serviço. Também não se encontravam ali visitantes. O paciente era um afro-americano enfaixado pela cintura. Tinha uma grande ligadura enrolada à volta do ombro direito e um fio intravenoso introduzido no braço esquerdo. Estava sentado na cama do hospital com as costas elevadas, a olhar para um televisor suspenso do teto sobre os pés da cama. Jazz não conseguia ver o ecrã, mas, pelo som, percebia que se tratava de um evento desportivo.

Os olhos de Stephen afastaram-se do televisor e fixaram-se em Jazz.

— Deseja alguma coisa? — Perguntou.

— Estou só a certificar-me de que está tudo bem — disse Jazz, o que era verdade.

Estava satisfeita. Seria como uma brincadeira de crianças.

— Estaria melhor se os Knicks jogassem como deve ser—disse Stephen.

Jazz anuiu, acenou ao doente e retirou-se, de volta ao elevador. Completada a sua tarefa de reconhecimento, regressou ao primeiro piso e foi até a cafeteria. Estava satisfeita.

A primeira metade do turno da noite correu como esperado. Jazz ficara como enfermeira responsável de onze pacientes, um a mais que as restantes enfermeiras, mas não se queixou. Recebeu como equipa as melhores auxiliares de enfermagem, o que nivelou as coisas. Infelizmente, não lhe fora atribuída Rowena Sobczyk e, atarefada como estava, não tinha oportunidade de fazer fosse o que fosse pelo Sr. Bob até a hora de almoço, que começara nesse momento.

Jazz desceu de elevador com as duas outras enfermeiras e as duas auxiliares que partilhavam o período de almoço, mas certificou-se de que as despistava na cafeteria. Não queria ficar presa à tagarelice delas e ter dificuldades em escapar-se. Em lugar disso, devorou um sanduíche e bebeu apressadamente meio litro de leite magro sem se sentar. Tinha apenas trinta minutos e muito que fazer.

No decorrer do turno, Jazz adicionara umas seringas às ampolas de potássio que tinha nos bolsos do casaco. Ao deixar a cafeteria, enfiou-se na casa de banho das senhoras. Uma rápida verificação por baixo das portas persuadiu-a de que estava sozinha. Para ter mais alguma privacidade, entrou num dos compartimentos e fechou a porta. Retirando as ampolas, uma de cada vez, quebrou-lhes as pontas e encheu cuidadosamente as duas seringas. Com a proteção da agulhas de novo posta, as seringas regressaram às profundezas dos bolsos do casaco.

De volta à área principal dos lavatórios, Jazz enrolou rapidamente as ampolas vazias numa série de quadrados de papel. Ainda não entrara qualquer pessoa. Colocou o rolo no chão ladrilhado e esmagou-o com o tacão do sapato. O vidro produziu um débil ruído de algo a rebentar. Atirou depois o maço de papel, agora plano, e o vidro para o interior do caixote de lixo.

Jazz mirou-se ao espelho. Passou os dedos pela franja do cabelo, alisou o casaco e ajustou o estetoscópio pendurado ao pescoço. Satisfeita, começou a andar para a porta, agora armada e pronta para a ação. Fora assim tão simples. Começava a apreciar a eficácia de tratar de dois casos na mesma noite. Era como produção em série. Tomou o elevador principal para o quarto piso, evitando a entrada da ala Goldblatt, não fosse ela despertar a curiosidade do pessoal da segurança. O quarto piso era exclusivamente de pediatria e, enquanto atravessava o comprido corredor em direção à ala Goldblatt, ao pensar nas crianças doentes que se encontravam nos diversos quartos, ocorreu-lhe à idéia a desagradável memória do pequeno Janos. Fora Jazz quem o encontrara naquela fatídica manhã. O pobre miúdo estava rígido como uma porta e ligeiramente azul, deitado de rosto para baixo no cobertor amarrotado. Sendo ela mesma uma criança, Jazz entrara em pânico e, desesperada por encontrar auxílio, saiu disparada para o local onde os pais estavam a dormir para tentar acordá-los. Contudo, fizesse o que fizesse, não conseguia arrancá-los ao seu sono embriagado. Jazz acabou por ligar o 112 e, mais tarde, por deixar entrar os paramédicos pela porta principal.

Uma pesada porta anti-incêndio separava a Ala Goldblatt do hospital propriamente dito. Era como se raramente fosse aberta e, depois de um esticão sem êxito, Jazz teve de colocar um pé contra a jamba e usar os músculos das pernas para a fazer mover-se. Ao atravessar o limiar, foi de novo recordada de como a decoração da ala Goldblatt era diferente. Aquilo que chamou particularmente a atenção de Jazz foi a iluminação. Em lugar das habituais luzes fluorescentes, havia candelabros incandescentes e luzes de quadros, que tinham diminuído de intensidade desde a visita anterior de Jazz.

Encostou o ombro à porta de emergência somente para ter cem por cento de certeza de que se reabriria para ela sair. Deslocou-se com um esforço significativamente menor que da primeira vez. Jazz percorreu o corredor com um passo decidido. Aprendera com a experiência a não ser hesitante, dado que tal comportamento chamava a atenção. Sabia onde ia, e era assim que agia. Apesar do amplo campo de visão, ao longo do corredor, não viu vivalma, nem sequer na longínqua sala das enfermeiras. Enquanto ia passando pelos quartos dos pacientes, ouvia o ocasional bip de um monitor e até avistou uma enfermeira debruçada sobre um paciente.

À medida que se ia aproximando do seu objetivo, começou a sentir a mesma excitação que experimentara em combate no Kuwait, em 1991. Era uma sensação que apenas os soldados que tivessem estado na guerra poderiam compreender. Sentia por vezes um toque dessa sensação quando jogava Call of Duty, mas sem a intensidade da coisa a sério. Era para ela um pouco como os speeds, mas melhor e sem a ressaca. Jazz sorriu interiormente. Ser paga por aquilo que estava a fazer tornava-o ainda mais agradável. Foi até ao quarto 424 e não hesitou. Entrou de imediato.

Stephen continuava de costas elevadas na cama, mas a dormir profundamente. O televisor estava desligado. O quarto encontrava-se relativamente escuro e a única iluminação vinha de uma mistura de débil luz noturna e uma luz de espelho da casa de banho. A porta da casa de banho estava apenas uma fresta aberta, fazendo com que caísse uma faixa de luz aos pés da cama e ao longo do chão como uma estreita tira de tinta fluorescente. O fio do líquido intravenoso continuava no lugar.

Jazz verificou o seu relógio. Passavam catorze minutos das três. Rápida mas silenciosamente, foi até a beira da cama e abriu o fio intravenoso. No saco Millipore, as gotas transformaram-se numa corrente regular. Dobrou-se e olhou para o local do fio intravenoso onde a agulha entrava no braço de Stephen. Não havia qualquer inchaço. O líquido intravenoso corria bem.

De regresso à porta que dava para o corredor, Jazz inclinou-se para fora e olhou para um lado e para o outro do corredor para uma derradeira inspeção. Continuava sem ver vivalma. Tudo estava calmo. Regressou à beira da cama e puxou as mangas do casaco acima dos cotovelos para se desembaraçar delas. Tirou depois do bolso uma das duas seringas cheias e retirou-lhe a proteção com os dentes enquanto segurava o recipiente do líquido intravenoso na mão esquerda. Apesar da excitação, pôs-se direita antes de inserir a agulha. Endireitou-se e escutou. Nada ouviu.

Com um empurrão forte e estável, Jazz despejou o conteúdo da seringa no recipiente de líquido intravenoso. Ao fazê-lo, viu que o nível de fluido no saco Millipore aumentava, tal como esperara. A solução de cloreto de potássio juntava-se ao fluido intravenoso. No entanto, ela não esperava ouvir um gemido bastante ruidoso de Stephen, que esbugalhava os olhos ao máximo. Mais inesperado ainda foi o fato de a mão direita de Stephen ter disparado por cima do peito dele para ir agarrar o antebraço de Jazz com uma força chocante. Escapou-se da boca de Jazz um grito abafado de dor quando as unhas afiadas se lhe cravaram na pele.

Deixando cair a seringa de um dos lados da cama, Jazz tentou desesperadamente retirar a mão de Stephen do seu braço, mas sem êxito. Ao mesmo tempo, o gemido de Stephen transformou-se num guincho. Jazz desistiu de tentar libertar o braço da mão do paciente, colou a mão livre na boca dele e debruçou-se para ele numa tentativa desesperada de o calar. Resultou, embora ele desse uns esticões numa tentativa de se escapar, libertando-se.

Teve lugar uma breve luta contínua, mas a força de Stephen depressa diminuiu. À medida que o punho cerrado no braço de Jazz ia enfraquecendo, as unhas deles iam-se arrastando pelo antebraço dela abaixo, arranhando-a e fazendo-a gritar de novo.

Tão depressa como começara, o tumulto morreu. Os olhos de Stephen reviraram-se e o seu corpo tornou-se frouxo, com a cabeça pendida sobre o peito.

Jazz libertou-se. Estava furiosa.

— Sacana! — Murmurou ela por entre dentes cerrados.

Olhou para o braço. Vários dos arranhões sangravam. Apetecia-lhe dar um soco àquele tipo, mas conteve-se, pois sabia que ele já estava morto. Pegou na seringa e baixou-se de gatas à procura da maldita tampa de agulha que segurara entre os dentes e deixara cair ao gritar. Depressa desistiu. Em lugar disso, limitou-se a dobrar a agulha a 180° antes de tornar a colocar a seringa vazia no bolso do casaco. Não conseguia acreditar no que sucedera. Desde que começara a despachar pacientes, este era o primeiro a realizar tal proeza.

Depois de ter feito abrandar o líquido intravenoso na posição em que se encontrava quando ela entrara e de ter tornado a colocar o estetoscópio em torno do pescoço, dirigiu-se rapidamente para a porta. Olhou de relance para os dois lados do corredor. Felizmente, parecia que ninguém ouvira o grito de Stephen, já que o corredor permanecia calmo como a morgue. Baixou cautelosamente a manga do casaco por cima dos arranhões no antebraço, olhou mais uma vez para Stephen para se certificar de que não se esquecia de coisa alguma e saiu para o corredor.

Sem perder tempo, tornou a percorrer o espaço até a porta de emergência. Uma vez do outro lado, encostou as costas contra a porta. Sentia-se um pouco desalentada por força das inesperadas complicações, mas depressa se recompôs. Calculou que teria de esperar alguns problemas de vez em quando, apesar da sua planificação. Examinou depois o antebraço a melhor luz. Tinha três sulcos na superfície interna do antebraço causados pelas unhas de Stephen, com um rasto de arranhões lineares com cerca de oito centímetros de comprimento em direção ao pulso. Dois deles vertiam sangue. Abanou a cabeça, pensando que por certo Stephen pressentira o que o esperava.

Jazz tornou a baixar cautelosamente a manga e olhou para o seu relógio. Eram três e vinte e tinha mais uma sanção para realizar. Sabia tratar-se de um momento oportuno, porque a enfermeira encarregue de Rowena fazia a pausa ao mesmo tempo em que ela e só regressaria passados dez minutos. Não podia todavia perder tempo. Caminhando com ligeireza, Jazz regressou aos elevadores principais e tornou a subir ao seu piso.

Havia apenas uma pessoa na sala das enfermeiras. Era Charlotte Baker, uma endiabrada auxiliar de enfermagem. Estava ocupada a escrever notas para as enfermeiras. Jazz olhou de relance para a despensa e para a sala dos medicamentos, cuja porta horizontal tinha a metade de cima aberta. Estavam ambas desertas.

— Onde está a nossa intrépida líder? — perguntou Jazz. Olhou para o corredor em ambas as direções. Não viu vivalma.

— Creio que a senhora Chapman está lá em baixo no quarto 602, a ajudar na introdução de um cateter — disse Charlotte, sem erguer os olhos. — Mas não tenho a certeza absoluta. Tenho estado aqui a tomar conta do forte há mais ou menos um quarto de hora.

Jazz acenou e olhou para o quarto 602. Esse quarto situava-se na direção oposta do de Rowena. Sentindo que não chegaria uma melhor altura, afastou-se do balcão que dava para a sala das enfermeiras, certificou-se de que Charlotte não lhe prestava qualquer atenção e dirigiu-se ao 617. Uma vez mais, a sua pulsação acelerou na expectativa de ação, só que dessa vez a emoção tinha um toque de ansiedade depois da experiência com Stephen Lewis. Uma dor ligeira devido aos arranhões no antebraço recordou-lhe que não poderia controlar todas as variáveis.

Um dos pacientes avistou Jazz quando ela passou apressada pela sua porta e chamou-a, mas ela ignorou-o. Verificou o seu relógio e calculou que tinha seis minutos até que alguém regressasse da pausa para almoço, incluindo a enfermeira incumbida de tratar de Rowena, mas, uma vez que nunca ninguém chegava a horas, tinha alguma margem de manobra. Seis minutos era imenso tempo.

O cenário era semelhante àquele que encontrara no quarto de Stephen, mas sem a alcatifa, os cortinados elegantes, o mobiliário estofado e a arte de qualidade, e apenas uma luz de emergência iluminava a divisão. A porta da casa de banho estava entreaberta, mas as luzes estavam apagadas. Rowena Sobczyk dormia na cama com os dois pés enfaixados devido a uma correção bilateral do halux valgo. Estava deitada de costas e ressonava ligeiramente. Jazz baixou os olhos para a mulher. Embora tivesse vinte e seis anos, parecia bem mais jovem, com feições pequenas e um tufo de cabelo escuro e desalinhado espalhado pela almofada branca.

Jazz abriu o saco de líquido intravenoso para que ele corresse livremente e depois dobrou-e para verificar qualquer inchaço. Era inexistente, de modo que estava tudo a postos. Retirou a seringa cheia e, segurando-a na mão direita, ergueu o recipiente de líquido intravenoso com a esquerda. Tal como fizera no quarto de Stephen, usou os dentes para remover a tampa da seringa. Inseriu imediatamente a agulha no saco e tornou a posicionar a mão com o polegar sobre o êmbolo da seringa. Depois de ter inspirado e retido o ar, carregou suavemente no êmbolo.

Rowena agitou-e, contorcendo a parte superior do corpo. Jazz retirou a seringa e, ao fazê-lo, ouviu passos no corredor no pavimento compósito. A sua intuição deu imediatamente o alerta quando o som dos passos a fez pensar nos sapatões de Susan. Olhou brevemente para a porta semi-aberta que dava para o corredor, depois de novo para Rowena, que agora agarrava o braço por onde corria o líquido intravenoso e fazia ruídos gorgolejantes.

Em pânico, Jazz deixou cair a seringa e a tampa dentro do bolso e afastou-se da paciente. Durante um segundo, pensou em esconder-se na casa de banho, para o caso de Susan ouvir ruídos, mas depois descartou a idéia por poder tornar uma má situação pior ainda. Em lugar disso, começou a dirigir-se para a porta, pensando que a melhor defesa era o ataque.

Numa confirmação dos seus piores receios, Jazz foi literalmente de encontro a Susan, que ia a entrar no quarto, justamente no momento em que Susan ultrapassara a soleira da porta.

Susan recuou um passo, agindo com indignação e olhando Jazz com a mesma expressão de desafio que transparecera no seu rosto no último encontro de ambas.

— Charlotte disse-me que viria aqui. Mas que raio está aqui a fazer? Esta paciente é de June.

— Estava a passar pelo corredor e ela chamou-me.

Susan dobrou-se em redor de Jazz, que tentava preencher todo o espaço da porta, e olhou de soslaio para a semi-obscuridade do quarto.

— O que é que se passava?

— Calculo que estivesse a sonhar.

— Parece estar agitada. E o líquido intravenoso está a correr a toda a velocidade!

— A sério? — perguntou Jazz.

Susan abriu caminho, obrigando Jazz a deslocar-se para o lado. Susan diminuiu a velocidade a que o líquido intravenoso corria e dobrou-se sobre Rowena.

—Meu Deus! — disse ela. Depois, virando-se para Jazz, gritou:

— Acenda as luzes! Temos aqui um código!

Jazz fez o que lhe ordenavam enquanto Susan ligava o alarme. Susan ordenou depois a Jazz que a ajudasse a baixar as grades da cama do outro lado. Segundos mais tarde, o código foi anunciado pelo sistema de altifalantes hospitalar.

— Tem um pulso filiforme, ou tinha! — vociferou Susan. Tinha os dedos pressionados contra o pescoço de Rowena para lhe sentir a artéria carótida. Largou-a e subiu para a cama, onde se ajoelhou. — Temos de começar reanimação cardiopulmonar. Você expira, eu faço as compressões.

Foi com grande relutância que Jazz apertou as narinas de Rowena com os dedos e colocou os lábios nos dela. Soprou para o interior e inflou os pulmões. Houve pouca resistência, o que sugeria que a paciente estava essencialmente flácida. Só ela sabia que, nessa fase, tentar reanimar Rowena era uma piada.

Charlotte e outra enfermeira chamada Harriet chegaram e conseguiram prender e ligar um aparelho de eletrocardiogramas. Susan continuava com as compressões e Jazz, por causa das aparências, prosseguiu com a respiração.

— Temos alguma atividade elétrica — disse Harriet. — Mas a mim parecem-me estranhos complexos.

Nessa altura, chegou a equipa de reanimação cardiopulmonar residente e rapidamente assumiu o controlo. Jazz foi empurrada para o lado à medida que Rowena era destramente entubada e começou a respirar oxigênio puro. Gritaram-se ordens para que trouxessem medicamentos que foram administrados. Retirou-se sangue arterial, que foi enviado para o laboratório para um relatório sobre gases sanguíneos. Os estranhos complexos em que Harriet reparara a princípio tinham desaparecido rapidamente. O eletrocardiograma traçou uma linha reta e os residentes começaram a perder o entusiasmo. Rowena não reagia a coisa alguma.

Enquanto a reanimação prosseguia tecnicamente, Jazz saiu do quarto. Regressou à sala das enfermeiras e entrou na despensa. Sentou-se e aninhou a cabeça por entre as mãos. Precisava de uns minutos para se recompor. Sentira-se desalentada com o que se passara com Stephen Lewis, e depois, acontecer algo de adverso com Rowena parecia-lhe mais do que conseguia agüentar. Jazz não conseguia acreditar. Nunca tivera qualquer problema com os casos anteriores. Não podia evitar perguntar-se se apanharia um susto na missão seguinte.

Pelo canto do olho, viu Susan surgir da sala das enfermeiras. Jazz não conseguia ouvi-la, mas partiu do princípio de que ela tivesse perguntado à auxiliar à frente do balcão onde estava Jazz, pois a auxiliar não tardou a apontar na direção dela. Quando Susan começou a dirigir-se para a despensa, Jazz sabia que estava prestes a sofrer outro confronto.

Susan entrou e fechou a porta. Não falou, nem sequer depois de se ter sentado. Limitou-—se a fitar Jazz.

— Ainda estão a tentar reanimar a paciente? — perguntou Jazz, desconfortável com o silêncio. Jazz queria que despachassem a discussão, se era que iam ter uma.

— Sim — disse simplesmente Susan antes de nova pausa.

Jazz sentiu que aquilo se tratava de um qualquer concurso esquisito para ver quem pestanejava primeiro, por isso resolveu esperar. Finalmente, Susan disse:

— Quero perguntar-lhe de novo por que razão estava no quarto de Sobczyk. Diz que a paciente a chamou. O que é que ela disse, exatamente?

— Não me lembro se disse alguma palavra. Ouvi-a, simplesmente, está bem? Por isso entrei para ir ver.

— Falou com ela?

— Não. Estava a dormir, de modo que apenas me virei e saí.

— Então não viu que o saco intravenoso estava completamente aberto.

— É verdade. Não olhei para o líquido intravenoso.

— Ela pareceu-lhe bem?

— Claro! Foi por isso que ia a sair, quando chocamos uma com a outra.

            — Que arranhões são esses no seu braço?

O modo como Jazz estava sentada, com os cotovelos sobre a secretária embutida, fizera com que a manga tivesse caído apenas o suficiente para revelar os três arranhões e um pouco de sangue seco.

—Ah, isto? — inquiriu Jazz. Tirou os braços da secretária e abanou a manga para que tornasse a descer e lhe cobrisse os ferimentos. — Aconteceu no meu carro. Não é nada.

— Sangraram.

— Talvez um pouco, mas não há problema, a sério.

Jazz sentiu-se outra vez no tal concurso para ver quem pestanejava primeiro, como se estivessem na terceira classe. Durante quase um minuto, Susan não proferiu palavra e mal piscou os olhos. Jazz estava farta. Arrastou a cadeira para trás e levantou-se.

— Bem, é hora de ir trabalhar. — Contornou Susan e abriu a porta.

— Surpreende-me a estranha coincidência de a Jazz estar naquele quarto — disse Susan, girando e ficando de frente para Jazz.

— É evidente que quando a paciente chamou, era o início de fosse o que fosse que provocou o código. Devia tê-la verificado melhor que o que fiz. Mas diga-me! Está a tentar fazer-me sentir pior ainda do que já sinto ou quê?

— Não, nem por isso — admitiu Susan. Desviou o olhar.

— Bem, está a fazer um excelente trabalho, quer esteja a tentar, quer não — disse Jazz antes de sair para ir à procura da auxiliar de enfermagem com quem lhe calhara trabalhar nessa noite.

A princípio, Jazz sentiu que se tinha escapado com as suas palavras a uma situação potencialmente problemática com Susan, mas, à medida que o resto do turno passava, foi ficando progressivamente paranóica. Parecia que sempre que se virava Susan estava a fitá-la. Chegada a altura de os relatórios trocarem de mãos e as enfermeiras do turno da manhã ouvirem as notícias da noite, incluindo o código de Rowena Sobczyk, o problema avançara já até um nível ridículo. Com o comportamento de Susan, não havia dúvida na mente de Jazz de que ela era suspeita. Jazz não conseguia pensar em mais nada que não o Sr. Bob a dizer-lhe que não poderia haver ondas. No que dizia respeito a Jazz, essa situação com Susan não se tratava de uma onda ameaçadora; pressagiava uma onda de maré.

O maior receio de Jazz era que Susan saísse depois dos relatórios e fosse diretamente dar com a língua nos dentes acerca das suas suspeitas a Clarice Hamilton, a supervisora da enfermagem, uma afro-americana enorme que Jazz julgava ser tão inútil como Susan. Se tal acontecesse, provavelmente o diabo ficaria à solta e Jazz teria por certo de usar o número de emergência do Sr. Bob. Porém, aquilo que o Sr. Bob poderia fazer naquela fase era bastante limitado.

No instante em que o relatório terminou, Jazz permaneceu onde estava e fingiu estar a trabalhar um pouco mais nos relatórios. Susan passou mais cinco minutos a informar a enfermeira responsável pelo dia sobre problemas específicos. Perto como estava, Jazz conseguia ouvir a maior parte da conversa. Felizmente, Susan nada disse acerca de Jazz. Terminado isso, Susan foi buscar o casaco e, rindo e prosseguindo com June, percorreu o corredor até aos elevadores. Foi então que Jazz foi buscar o seu próprio casaco. Também pegou num par de luvas de látex de uma caixa pousada sobre a mesa da despensa, ao lado da porta.

Por essa altura, pela manhã, com a mudança de turnos, a área dos elevadores estava apinhada. Jazz certificou-se de que se mantinha na periferia, o mais longe possível de Susan e de June. Quando o elevador chegou, escondeu-se na área da cabina mais ao fundo. Sabia onde se encontrava Susan devido ao seu ridículo carrapito.

Quando o elevador se deteve no segundo piso, Jazz abriu caminho até a frente e saiu, juntamente com meia dúzia de outras pessoas, incluindo Susan. Jazz sabia que Susan, tal como ela, ia de carro para o trabalho. Qual bando de galinhas a cacarejar, o grupo caminhou até a porta, que se abriu para a ponte de ligação que terminava no parque de estacionamento. Jazz deixou-se ficar para trás para deixar a cauda do grupo ultrapassá-la. Enquanto caminhava, pegou nas luvas de látex.

Uma vez no parque, o grupo despedaçou-se para seguir para os respectivos veículos. Nessa altura, Jazz acelerou o passo. Tinha as mãos nos bolsos e a direita agarrava a Glock. Diminuiu a distância entre si e Susan de modo a que, quando Susan se introduzisse do lado do condutor do seu Ford Explorer, Jazz estivesse a fazer o mesmo do lado do passageiro. No segundo em que ouviu o fecho centralizado abrir o carro, abriu a porta do lado do passageiro e deslizou para o interior.

Jazz calculara o tempo na perfeição. Era quase como se tivesse estado ali sentada quando Susan entrou no carro. Noutras circunstâncias, a expressão chocada de Susan teria sido hilariante. O problema era que Jazz não estava a achar nada disso divertido.

— Mas que raio!? — Inquiriu Susan.

— Pensei que talvez pudéssemos conversar em privado e emendar as coisas — disse Jazz. Tinha ambas as mãos nos bolsos, com os ombros descaídos e os braços direitos.

— Não tenho nada para falar consigo — rebentou Susan. Inseriu a chave na ignição e ligou o motor. — Agora saia do meu carro. Vou para casa.

— Eu acho que temos imenso sobre o que falar. Passou a noite toda a lançar-me um mau-olhado. Quero saber porquê.

— Bem, você é uma ave rara.

Jazz riu-se de escárnio.

— Isso é engraçado, vindo de si.

— É esse o tipo de comentário subjacente às minhas impressões — disse Susan com brusquidão. — Para ser sincera, nunca tive confiança em si. Não sei porque é que é enfermeira. Não se dá bem com ninguém. Não revela qualquer compaixão. Todas as noites tenho de lhe atribuir os casos mais fáceis.

— Ah, tretas! — balbuciou Jazz. — Dá-me todos os casos de porcaria.

Por um segundo, Susan fixou o olhar em Jazz, justamente do mesmo modo como fizera ao longo de toda a noite.

— Não vou discutir consigo. Na verdade, se não sair do meu carro, chamo os seguranças e deixo que sejam eles a tratar de si.

— Ainda não me disse por que razão esteve a olhar para mim embasbacada. Quero saber se tem alguma coisa a ver com Rowena Sobczyk.

— É claro que tem que ver com Rowena Sobczyk! É demasiada coincidência ter saído do quarto dela quando não era sua paciente. E lembro-me que foi vista a sair do quarto de Sean McGillin, que também não era seu paciente. Mas falar consigo acerca disto não faz parte do meu trabalho. É uma tarefa da supervisora de enfermagem; por isso, estou certa de que ela irá falar consigo.

— Ah, sim? — zombou Jazz. — Acho que não devia ter tanta certeza disso, sua anormal falhada!

Com algum esforço Jazz retirou a Glock do bolso.

Susan viu a arma em punho e teve apenas tempo de erguer a mão direita quando Jazz lhe disparou dois tiros de lado no peito. Susan esbarrou de lado contra a porta, ficando com a face colada ao vidro.

Apesar do silenciador, o ruído no interior do carro foi maior do que Jazz esperara. O mesmo se passou com o cheiro a cordite. Com a mão livre, abanou o fumo. Voltando-se, olhou pela traseira do jipe. Estavam a chegar múltiplos carros à garagem, mas todos eles seguiam ao lado ou sobre a rampa, uma vez que todos os lugares de segunda fila estavam tomados. Havia alguns carros a sair. Com todo aquele ruído e comoção, Jazz sentia-se confiante de que ninguém teria ouvido o duplo som da Glock. Jazz tornou a guardar a arma no bolso.

Estendeu a mão, agarrou Susan pelo carrapito e endireitou-a, deixando que a cabeça lhe pendesse sobre o peito, mas mantendo-a esticada. "Que falhada", pensou ela ao colocar os braços da mulher sem vida no volante. "E os falhados merecem falhar." Desligou o motor do carro.

De seguida, abriu a mala de Susan e vasculhou-a até encontrar a carteira. Abriu-a, retirou o dinheiro e os cartões de crédito. Atirou depois a carteira e os cartões ao chão, na esperança de criar a aparência de um assalto fatal. Voltando-se novamente, Jazz olhou pelo vidro traseiro para a porta que dava para a ponte de ligação. Ao fazê-lo, surgiu um grupo de enfermeiras, que acenaram umas às outras ao dividirem-se para irem até aos respectivos veículos. Jazz agachou-se até elas estarem fora do campo de visão.

Tornou a sentar-se e olhou para o Hummer. Estava apenas a dois carros de distância. Depois de uma rápida olhadela para se certificar de que a costa estava livre, Jazz saiu do veículo de Susan e afastou-se dele passando pela parte da frente do carro seguinte.

No interior do seu próprio jipe, descalçou as luvas de látex e enfiou-as no bolso. Ligou a ignição, recuou e seguiu para a saída. Ao passar por trás do carro de Susan, espreitou para o interior. Parecia que Susan estava a dormir uma soneca depois de uma noite dura. Era perfeito.

Lá fora, no tráfego matinal, Jazz inspirou profundamente. Não se apercebera de como estava tensa. Fora uma noite difícil, mas estava confiante de que lidara bem com as coisas. Estava dez mil dólares mais rica e conseguira eliminar um potencial problema. A Operação Peneira estava viva e de boa saúde. A vida era boa.

 

O velho alarme de corda de Laurie soou na pouca luminosidade matinal e ela estendeu a mão para o desligar sem abrir sequer os olhos. Ao regressar ao calor da cama estremeceu, não de frio, mas de náuseas. Piscou os olhos para os abrir. Sentira uma leve náusea também na manhã anterior, mas atribuíra-a às vieiras que comera na noite precedente com Roger. Adorava vieiras, mas já por algumas vezes no passado a tinham feito sentir-se mal disposta no dia seguinte. Felizmente, a náusea do dia anterior não durara. Depois de ter andado um bocadinho a pé, desaparecera por completo.

Laurie sentou-se. Estremeceu de novo. Depois de ter bebido um gole da água que tinha na mesinha de cabeceira, sentiu-se um pouco melhor. O problema era que, dessa vez, não tinha comido vieiras ao jantar. Na verdade, comera um pouco de frango razoavelmente simples, com a recordação da náusea na mente.

Ao cravar as unhas nos lençóis à sua volta, reparou num novo sintoma a juntar-se à náusea: um ligeiro desconforto no quadrante inferior direito. Não era suficientemente forte para lhe chamar dor. Com o auxílio dos dedos, pressionou cautelosamente o abdômen na zona por cima da anca. Não saberia dizer se piorava a sensação de desconforto, uma vez que empurrar o estômago lembrava-lhe sobretudo a bexiga cheia.

Atirou a roupa da cama para trás, puxou o roupão para si e fez deslizar os pés para o interior dos chinelos. Ao entrar na casa de banho, sentia o desconforto com maior nitidez. Agora assemelhava-se mais a uma dor, mas bastante leve.

Considerando esses dois sintomas como médica que era, a primeira preocupação de Laurie foi com um estado precoce de apendicite. Sabia que muitas complicações de saúde podiam verificar-se no quadrante inferior direito e que por vezes o diagnóstico podia ser desafiante.

Sabia contudo que estava a pôr a carroça à frente dos bois. Era uma espécie de hipocondria a que cedera nos tempos de estudante de medicina. Sorriu ao lembrar-se de uma simples dor de cabeça no primeiro ano que a fez preocupar-se com a possibilidade de sofrer de hipertensão maligna, simplesmente porque estudara a síndrome na noite anterior. Era evidente que não sofria de hipertensão maligna e, do mesmo modo, o desconforto e a náusea tinham desaparecido quase por completo quando saiu do chuveiro.

Laurie não tinha fome, mas obrigou-se a comer uma torrada. Como lhe caiu bem, comeu um pouco de fruta. Estava convencida de que ter alguma coisa no estômago a ajudaria, e assim foi. Quando já estava preparada para sair para o GMLS, sentia-se em grande medida no seu estado normal.

Acenou à Sra. Engler quando a porta se abriu com um estalido. Dessa vez, a harpia remelosa falou com efeito, aconselhando Laurie a ir buscar o chapéu de chuva, dado que se previa chuva.

Estava uma manhã amena e, apesar das previsões meteorológicas, ainda não chovia. Laurie atravessou a First Avenue na direção norte, alheia ao engarrafamento do trânsito, perguntando-se se a sua náusea poderia ser psicossomática devido ao estresse. "O que há de novo?", pensou ela com desânimo, uma vez que nunca parecia ser capaz de fazer com que a sua vida social se desenrolasse com tanta suavidade como a profissional.

A sua relação de cinco semanas com Roger era um turbilhão e deparara-se recentemente um inesperado obstáculo. Viam-se duas ou três vezes por semana, bem como todos os fins-de-semana. Laurie não considerava inultrapassável o presente obstáculo, mas abalara-a até certo ponto e levara-a a recordar-se de que, no início, se mentalizara que as paixões da adolescência muitas vezes não resistiam ao teste do tempo. O caso em questão dizia respeito ao fato de Laurie ter sabido duas noites antes que Roger era casado. Tinha havido imensas oportunidades para ele lhe contar esse importante fato, mas escolhera não o fazer, por razões que ela não compreendia bem. Somente quando Laurie se forçara a perguntar-lho diretamente é que ele lhe confessara a verdade. Casara-se com uma tailandesa cerca de dez anos antes, quando estava colocado na Tailândia, e nunca se divorciara, embora supostamente procurasse agora fazê-lo. Mais perturbador ainda para Laurie era o fato de ele ter tido vários filhos.

A história foi se tornando um pouco menos condenatória à medida que se fora desvendando. A mulher era proveniente de uma família rica e privilegiada, à qual regressara num gesto de egoísmo, segundo Roger, basicamente raptando as crianças quando Roger fora transferido para a África. Contudo, o fato de ele ter guardado essa informação para si estabelecera um mau precedente e fizera com que Laurie se tivesse perguntado se Roger não seria bem a pessoa que ela imaginara. Dera também ênfase a um crescente desconforto que Laurie sentia acerca da velocidade a que a relação seguia, a par da pressão de Roger para uma intimidade física.

Na noite anterior, estando ela sentada no seu apartamento a sentir pena de si mesma face às revelações, tomara consciência de algo muito importante. Pela primeira vez, admitira para si mesma o fato de suprimir, ativa e deliberadamente, questões sobre as quais não queria falar, nem sequer pensar. Reconhecera esse traço nos pais, em especial na mãe, desde que se conseguia lembrar, e a maneira como a mãe lidara com a recente doença de cancro da mama era um caso ilustrativo. Contudo, nunca se olhara no espelho como sendo filha dos seus pais. Aquilo que a fizera chegar a essa conclusão era o fato de o estado civil de Roger não ter sido a surpresa que ela gostava de fingir que fosse. Tinha havido dicas, mas Laurie evitara assiduamente reconhecê-las. Não queria simplesmente acreditar que ele era casado.

Na esquina da 30th Street, Laurie esperou pelo semáforo para atravessar a First Avenue. Ao fazê-lo, pensou em como esse traço recém-descoberto da sua personalidade se aplicava à sua relação com Jack. Com uma súbita clarividência, parecia-lhe bastante evidente. Quisera colocar nele toda a culpa por não querer compromissos em relação ao futuro de ambos e por não levantar a questão do casamento e dos filhos. Compreendia agora que teria de partilhar alguma da culpa, uma vez que também ela fracassara em levantar a questão. Compreendeu ainda que a proposta dele para abordar o assunto com regularidade fora na verdade uma cedência da parte dele, porventura não uma cedência monumental, mas ainda assim uma cedência. Como haveria de comunicar tudo isso a Jack era algo de que não fazia idéia. A última vez que tinham falado a um qualquer nível pessoal fora cinco semanas antes.

Quando o semáforo mudou e ela se apressou a atravessar a First Avenue e a subir os degraus da porta do GMLS, pensou que ter conhecido Roger complicara as coisas. Em lugar de ter problemas com um homem, agora tinha problemas com dois. Apesar de gostar de ambos, sabia que amava Jack, e deu por si a ansiar pela sua franqueza em admitir que não estava preparado para um compromisso. Parte das razões pelas quais começara a sair com Roger devia-se à vontade de fazer ciúmes a Jack, uma maquinação adolescente agravada por duas situações: em primeiro lugar, não esperara sentir-se tão atraída por Roger como se sentia, e, em segundo lugar, não esperara que o estratagema do ciúme funcionasse tão bem.

Embora sentisse que Jack a amava, a sua persistente relutância em estabelecer qualquer compromisso convencera-a de que o amor dele não era igual ao dela. Em concreto, nunca a fizera sentir que valorizava tanto a relação de ambos como ela. Estava convencida de que ele não mudaria e era incapaz de sentir ciúmes.

No entanto, agora, graças ao seu comportamento atual, sentia-se de outro modo. O tom das suas interações e das suas conversas deteriorara-se com o tempo. Nos primeiros tempos após Laurie se ter mudado para o seu apartamento, existira um sarcasmo frívolo. Depois de ter começado a ver Roger, tornara-se mais desagradável, o que a fizera sentir-se pessimamente. Um mês antes, quando Jack a convidara para jantar com ele e ela lhe contara que tinha combinado ir a um concerto sinfônico com Roger na noite em questão, Jack respondera-lhe desejando-lhe uma vida agradável. Não sugeriu uma data alternativa. Estava implícito que nem sequer queria manter-se seu amigo.

Ao acenar a Marlene, a recepcionista, ao mesmo tempo em que se apressava para o interior da sala de identificação, Laurie foi obrigada a sorrir. Toda a situação tinha um toque de telenovela e disse a si mesma para afastar da mente os pensamentos em relação aos dois homens. Claramente, mudar o seu comportamento ou o de qualquer outra pessoa não seria a coisa mais fácil do mundo.

Laurie pendurou o casaco nas costas de uma cadeira de repouso na sala de identificação, pousou o chapéu de chuva por cima e foi diretamente à máquina de café. Era a vez de Chet decidir que casos tinham de ser autopsiados e ele estava embrenhado no trabalho, debruçado sobre uma pilha de pastas.

Laurie mexeu o café com uma colher e verificou as horas. Ainda não eram oito, mas sem dúvida não chegara tão cedo como quando costumava ir com Jack. Reparou que Vinnie não estava ali a ler o jornal, o que sugeria que ele já estaria lá em baixo com Jack, a fazer uma autópsia. Os únicos ruídos que ouvia eram os das conversas das telefonistas no gabinete de comunicações, preparando-se para o dia. Laurie gostava desse relativo isolamento, sabendo que dentro de uma hora, o espaço estaria a zumbir de atividade.

— O Jack já está lá em baixo? — perguntou Laurie, bebendo um gole de café.

— Sim — disse Chet sem erguer a cabeça. Depois, subitamente, ergueu os olhos quando lhe reconheceu a voz. — Laurie! Fantástico! Fiquei de te dar um recado se chegasses antes das oito. Janice está ansiosa por falar contigo. Já aqui esteve por duas vezes.

— Seria acerca de um recente paciente do pós-operatório do General? — inquiriu Laurie, cujos olhos se iluminaram.

Pedira a Janice que a informasse se surgisse outro caso desses. Se assim fosse, seria consideravelmente mais fácil não pensar nos dois homens da sua vida, já que os quatro casos suspeitos de homicídio cresceriam vinte e cinco por cento. Tinha de concluir os dois casos que autopsiara, McGillin e Morgan. Os outros dois tinham sido concluídos por Kevin e George, que haviam referido a causa de morte como sendo natural, conclusão a que Laurie se opusera.

— Não, não é um paciente do General — disse Chet com um sorriso provocador que Laurie não conseguiu detectar. Laurie baixou os ombros em sinal de decepção. — Não é um, são dois! — Estendeu a mão e deu uma palmadinha em cima de duas pastas que colocara de lado. Empurrou-as depois suavemente na direção de Laurie. — E é evidente que precisam ambos de ser autopsiados.

Laurie pegou nas pastas e olhou para os nomes: Rowena Sobczyk e Stephen Lewis. Verificou rapidamente as suas idades: vinte e seis e trinta e dois, respectivamente.

— São ambos do Manhattan General? — perguntou. Queria ter a certeza.

Chet anuiu.

Parecia a Laurie quase demasiado bom para ser verdade, do ponto de vista da distração. A sua série ia aumentar para seis casos, e não para cinco. Tratava-se de um crescimento de cinqüenta por cento.

— Gostaria de ocupar-me destes dois casos — apressou-se ela a dizer.

— São teus — respondeu Chet.

Sem proferir mais uma palavra, Laurie agarrou no casaco e no chapéu-de-chuva. Com as pastas debaixo dos braços e a equilibrar o café o melhor que conseguia, passou rapidamente pelo gabinete de comunicações e pelo gabinete da administração a caminho do gabinete dos investigadores forenses. Estava cheia de curiosidade. Tivera de se sujeitar a uma certa humilhação no decurso das cinco semanas anteriores, uma vez que o seu cenário de assassino de série fracassara em materializar-se como possibilidade viável e fora posto de parte por todos, exceto por Roger. Jack aproveitara o assunto para a provocar de maneira bastante sarcástica em diversas ocasiões. Até Sue Passero se mostrara desdenhosa depois de ter efetuado aquilo que descrevera como múltiplas indagações discretas pelo hospital. Felizmente, Calvin não levantara a questão de todo. Nem Riva.

Os relatórios hospitalares dos quatro casos tinham chegado por fim ao gabinete de Laurie e ela completara a matriz, mas não encontrara pistas. De fato, os casos não estavam relacionados de modo algum. Estavam em causa diversos cirurgiões, diferentes anestesistas na sua maioria, uma variedade de agentes anestésicos, uma significativa variação de drogas pré e pós-operatórias e locais distintos no hospital. Pior que tudo, os resultados da toxicologia eram completamente negativos, apesar de Peter ter usado todos os truques de que se lembrava com o cromatográfico de gás e com o espectrômetro de massa. Com o intuito de auxiliar Laurie, tinha feito verdadeiramente tudo e mais alguma coisa para descobrir até os indícios mais insignificantes de um agente nocivo. E, sem agente, ninguém se dispunha a conferir qualquer crédito à idéia de um assassino em série, especialmente porque não houvera mais casos depois de Darlene Morgan.

Todos tinham relegado os quatro casos para o caixote de lixo das singularidades estatísticas que ocorriam no ambiente inerentemente perigoso do hospital.

Ao surgir no gabinete dos investigadores forenses, Bart ergueu os olhos da secretária:

— Vens mesmo a tempo — disse ele e apontou para o fundo da sala para ilustrar o que queria dizer. Janice estava a vestir o casaco.

— Drª. Montgomery — disse ela. — Estava com receio de não te ver. Já gastei as energias todas e a minha cama chama-me. — Despiu o casaco e, depois de o ter pendurado sobre a cadeira da secretária, sentou-se pesadamente.

— Desculpa-me por reter-te aqui — disse Laurie.

— Não faz mal — disse Janice corajosamente. — Só demora um minuto. Essas pastas que aí tens são de Lewis e Sobczyk?

— São — disse Laurie puxando uma cadeira.

Janice pegou nas pastas, abriu-as e retirou os relatórios, tornando a entregá-los a Laurie.

— Estes dois casos do General lembram-me os outros quatro em que estava interessada — disse Janice enquanto Laurie lia por alto os registros.

Janice mergulhou o rosto cansado entre as mãos e inclinou os cotovelos na secretária. Respirou fundo antes de continuar.

— Resumindo, eram ambos jovens e saudáveis; aparentemente morreram ambos de problemas cardíacos inesperados; tinham sido submetidos a pequenas cirurgias menos de vinte e quatro horas antes e evidentemente nenhum deles reagiu à reanimação.

— Parecem incrivelmente idênticos — disse Janice. — Mas há algo que eu queria sublinhar. Embora a maioria dos parâmetros sejam os mesmos para a senhora Sobczyk, há algo de diferente. Quando foi encontrada pelas enfermeiras, estava in extremis, mas ainda viva. Infelizmente, não tardou a que a situação se alterasse, apesar da esforçada intervenção. Por outro lado, Lewis não revelava qualquer atividade cardíaca ou respiratória quando foi encontrado pelas auxiliares de enfermagem.

— Por que é que achas que isso é importante?

— Apenas porque é diferente — disse Janice encolhendo os ombros. — Não sei, mas da última vez que falaste comigo, perguntaste-me se tinha sentido algo intuitivamente acerca do caso Darlene Morgan. Não sentira, mas com o caso Sobczyk, o fato de ela ainda ter estado viva destacou-se.

— Então, fico contente por mo teres dito — disse Laurie. — Mais alguma coisa?

— Só isso. O resto está nos relatórios.

— Escusado será dizer que quero cópias dos relatórios hospitalares.

— Já foram pedidas.

— Ótimo! — Exclamou Laurie. —Ainda bem que me dizes isso. Se te lembrares de mais alguma coisa, sabes onde encontrar-me.

Laurie reuniu os seus pertences e saiu para o elevador das traseiras, ansiosa por começar a trabalhar. Não se lembrava de se sentir tão entusiasmada nas últimas semanas. À medida que o elevador subia, pensava no que Janice lhe dissera. Perguntou para com os seus botões se seria importante.

Entrando apressada no seu gabinete, Laurie pendurou o casaco e colocou o chapéu-de-chuva por cima do arquivo. Sentou-se à secretária, abriu as duas pastas e tornou a retirar de lá os relatórios de Janice. Depois de os ter relido mais cuidadosamente, debruçou-se, abriu uma das gavetas da secretária e pegou na matriz que esboçara a partir dos quatro casos originais. Estavam presos por um elástico às pastas de Morgan e de McGillin, juntamente com as cópias das partes pertinentes dos outros dois casos. Soltou as folhas e ficou a segurar a pasta McGillin durante um segundo. Não fora capaz de dar uma palavra conclusiva ao Dr. McGillin acerca da morte do filho, tal como lhe prometera confidencialmente, o que a fez sentir-se culpada. Nem sequer lhe falava havia semanas, embora lhe tivesse prometido que o tornaria a contatar. Ao pousar a pasta juntamente com a outra, tomou nota mentalmente para não se esquecer de lhe telefonar. Perguntou-se o que diria o homem se ela lhe dissesse que estava a contemplar a idéia de um assassino em série.

Confiante na avaliação de Janice, Laurie prosseguiu adicionando Lewis e Sobczyk à matriz, apesar de ainda ter de realizar as autópsias. Uma vez que Janice previra o interesse de Laurie, fizera um trabalho muito completo sobre os dois casos. Mesmo sem os relatórios hospitalares, Laurie podia preencher os espaços para as idades dos pacientes, as horas a que haviam sido declarados mortos, o departamento hospitalar, os procedimentos cirúrgicos a que tinham sido submetidos e os locais no hospital onde se encontravam os seus quartos. Enquanto Laurie estava a fazer isso, Riva chegou.

— A acrescentar coisas à tua matriz? — inquiriu Riva, espreitando por cima do ombro de Laurie.

— Há mais dois presumíveis casos. Isso faz com que sejam seis. É evidente que ainda não fiz as autópsias, mas parece tratar-se exatamente do mesmo. Queres mudar a tua idéia acerca do modo de morte? Quer dizer, isto vai ser um aumento de cinqüenta por cento.

Riva riu-se.

— Não me parece, especialmente porque os resultados da toxicologia foram negativos e sei como Peter tentou arduamente. A propósito, como está a tua mãe? Esqueço-me sempre de perguntar.

— Está a reagir surpreendentemente bem — disse Laurie. — É claro que não recebo muitas notícias, uma vez que age como se nada se tivesse passado.

— Fico contente por ela estar bem — disse Riva. — Diz-lhe que lhe desejo tudo de bom! Ei, como é que está aquele teu namorado? Nem parece tu, teres andado assim silenciosa em relação a isso.

— Vai bem — disse Laurie vagamente.

Riva tinha razão; Laurie não contara muito acerca de Roger. Pegou no telefone antes que Riva lhe pudesse fazer mais perguntas e ligou para a sala mortuária. Ficou satisfeita por ser Marvin a atender. Contou ao técnico os detalhes dos dois casos e disse-lhe que queria tratar primeiro do de Sobczyk. Com a sua habitual alacridade, disse a Laurie que estivera à espera dela.

— Vejo-te na cova — disse Laurie a Riva ao recolher as pastas de Sobczyk e Lewis.

Enquanto descia no elevador, preparava-se mentalmente para os casos, o que era fácil, uma vez que em parte partia do princípio e esperava não encontrar grande coisa. Quando já tinha vestido a roupa verde e o fato lunar e abrira caminho para a sala de autópsias, Marvin estava quase pronto. A caminho da sua mesa, passou pela de Jack.

Ao reconhecer Laurie, Jack olhou de relance para o relógio de parede antes de se endireitar diante do corpo aberto de uma senhora consideravelmente idosa. Tinham-lhe rapado uma parte do cabelo grisalho e fibroso, o que revelara uma fratura marcada e encovada no crânio, ao cimo da cabeça.

— Drª. Montgomery, parece que anda a encurtar o horário de trabalho nestes dias. Deixe-me adivinhar! Aposto que a explicação se encontra no fato de andar na borga com o seu namorado francês.

— Que piada! — disse Laurie. Lutou contra a sua irritação e contra o impulso de avançar. — Na verdade, enganas-te nos dois casos. Estive em casa na noite passada e Roger é tão americano como tu ou eu.

— Que estranho — disse Jack. — Rousseau parece-me tão francês. Não concordas, Vinnie?

— Pois, mas o meu nome é italiano, o que não significa que eu não seja americano.

— Meu Deus, tens razão! — exclamou Jack com uma falsa expressão de contrição. — Parece-me que ando para aqui a tirar conclusões precipitadas. Desculpem!

Laurie sentia-se embaraçada com o comportamento de Jack e com a cólera ciumenta que não estava a conseguir reprimir muito bem. Contudo, perante as circunstâncias, estando na sala de autópsias com Vinnie, preferiu mudar de assunto. Apontou para a fratura encovada do crânio da mulher:

—A causa talvez, mas não o modo — disse Jack. — Estes casos estão a tornar-se a minha especialidade.

— Gostarias de te explicar? — inquiriu Laurie.

— Estás mesmo interessada?

— Não to perguntaria se não estivesse.

— Bem, a vítima foi apressadamente descartada de um navio de cruzeiro a meio da noite. A companhia de cruzeiros alegou que uma senhora idosa embriagada sofrera uma queda fatal na casa de banho da sua cabina. Declararam que não houve qualquer comportamento suspeito nem violência envolvidos no caso, mas eu não engulo isso, embora ela pudesse ter estado bêbeda.

— Diz—me porque é que não engoles isso.

— Em primeiro lugar, porque a fratura marcada e encovada está no cimo da cabeça — disse Jack, entusiasmando-se com a conversa. —Isso é difícil de acontecer quando se cai numa casa de banho, a não ser que se seja contorcionista. Em segundo lugar, olha para este padrão de hematomas na parte interna dos braços dela!

Jack apontou para grupos lineares de petéquias, que Laurie conseguiu ver quando se aproximou.

— Depois, olha para estas marcas de bronzeado no pulso e no dedo anular. Terá passado bastante tempo ao sol no cruzeiro, com aquilo que parece um calhau no dedo e um relógio de pulso. E imagina lá? Nada de anéis nem de relógio na cabine. Tenho de dar o crédito ao médico do cruzeiro. Apesar da hora, estava a pensar a toda a velocidade. Tinham limpo a cabina e a casa de banho, mas, mesmo assim, fez as perguntas certas.

— Então pensas que se trata de homicídio.

— Sem dúvida, apesar da opinião contrária da companhia de cruzeiros. É claro que só vou relatar o que se descobriu, mas se alguém me perguntasse a minha opinião, diria que bateram violentamente na cabeça desta mulher com uma qualquer espécie de martelo, a arrastaram rudemente pelos braços até a cabina enquanto ainda estava viva, a roubaram e a deixaram moribunda.

— Parece um bom caso para enfatizar que as mortes entre os idosos são em alguns aspectos semelhantes às mortes que envolvem abuso de menores.

— É precisamente isso — disse Jack. — Uma vez que se espera que os idosos morram, há menos suspeitas de atos sujos do que no caso de uma pessoa mais jovem.

— Esse caso é uma boa lição — disse Laurie, tentando fazer boa cara antes de se deslocar até junto da sua mesa.

Embora o tom da conversa fosse cordato, o seu caráter geral era mais uma prova de como haveria de ser difícil manter qualquer tipo de conversa séria com Jack acerca da sua relação ainda que ele estivesse inclinado a tal. Afastou porém esse pensamento do espírito ao baixar os olhos para o cadáver de Rowena Sobczyk.

— Suspeitas de alguma coisa fora do normal para este caso? — perguntou-lhe Marvin.

— Não. Creio que vai ser direto — disse Laurie, ao mesmo tempo em que o seu olho clínico encetou o exame externo.

A sua primeira impressão prendeu-se com o fato de a mulher ter uma aparência consideravelmente mais jovem que os vinte e seis anos relatados. Era pequena e tinha feições delicadas, quase pré-adolescentes, bem como cabelo negro encaracolado e espesso, de ar jovem. A sua pele era quase imaculada e de uma alvura de marfim, com exceção das áreas em que se notava um certo tom azulado. Tinha os dois pés enfaixados, o que era consistente com a cirurgia a que fora submetida. As ligaduras estavam limpas e secas.

Tal como McGillin e Morgan, os vestígios da tentativa de reanimação eram ainda visíveis, incluindo o tubo endotraqueal e o tubo de líquido intravenoso. Laurie analisou-os cuidadosamente antes de os retirar. Procurou sinais de dependência de drogas, mas não os encontrou. Retirou as ligaduras. As incisões cirúrgicas não revelavam quaisquer marcas de inflamação e apenas uma drenagem mínima.

O exame interno da autópsia era idêntico ao externo: negativo quanto a qualquer patologia óbvia. Apenas detectou várias costelas partidas devido à tentativa de reanimação. Tal como nos outros casos, Laurie certificou-se de que retirava amostras mais do que adequadas dos locais habituais para os exames toxicológicos. Não perdera a esperança de que Peter tivesse êxito com os seus truques num desses casos.

— Queres tratar do segundo caso já de seguida? — perguntou Marvin enquanto acabavam de coser o cadáver.

— Sem dúvida — disse Laurie.

Com o intuito de acelerar a transição, Laurie ajudou-o. Quando passaram por Jack a caminho da saída e depois de novo ao entrarem, Laurie certificou-se de que não hesitava. Não queria sentir-se novamente constrangida devido aos comentários dele. Se ele a viu, não o deixou transparecer. Por essa altura, a sala estava em pleno funcionamento, com imensas pessoas a entrar e a sair e, com os seus fatos lunares, pareciam todos bastante semelhantes. Graças ao clarão provocado pelas luzes dos projetores, era difícil ver para além das máscaras faciais.

Logo que transferiram Stephen Lewis para a mesa e o colocaram na posição correta, Laurie deu início ao exame externo. Entretanto, Marvin foi buscar os frascos para amostras e outros materiais para o caso. Laurie seguiu o seu protocolo habitual para evitar deixar escapar fosse o que fosse. Embora tivesse elevadas expectativas de que o caso de Stephen Lewis seria idêntico aos demais no sentido de não revelar quaisquer patologias significativas, queria ser minuciosa, e a sua abordagem metódica deu frutos quase de imediato. Quase indiscernível, mas definitivamente presente, estava uma quantidade de sangue em crosta por baixo das unhas do indicador e do anular direitos. Se não tivesse olhado propositadamente, não teria dado por isso. Era algo que não vira em Sobczyk, nem em Morgan, nem em McGillin, e George e Kevin não o tinham descrito nas notas de autópsia dos outros dois casos.

Laurie tornou a colocar a mão de Lewis sobre a mesa e começou a procurar cuidadosamente quaisquer arranhões no corpo do homem que pudessem explicar o sangue seco. Não encontrou coisa alguma. Também não havia sangue no local por onde fora introduzido o líquido intravenoso. De seguida, removeu as ligaduras que lhe enfeixavam o ombro direito. A incisão cirúrgica estava fechada e não ostentava sinais de inflamação, embora houvesse sinais de sangramento pós-operatório, com um pouco de sangue em crosta ao longo da linha de sutura. Laurie considerou que havia hipótese de esse sangue poder ter sido a fonte do sangue por baixo das unhas, embora parecesse estranho, uma vez que ele se encontrava na mão direita.

Quando Marvin regressou, Laurie pediu-lhe gaze esterilizada e dois frascos para amostras. Queria tirar as impressões digitais do ADN de ambas as amostras apenas para se certificar de que eram compatíveis com as da vítima. Quando tirou as amostras, sentiu que havia também uma pequena quantidade de tecido. Num recanto da sua mente titilava o pensamento de que, se a sua idéia do assassino em série tinha algum valor e se Lewis tivesse tido o palpite das intenções do homicida e se o tivesse conseguido agarrar, talvez o tivesse conseguido arranhar. Havia muitos "ses", mas Laurie orgulhava-se de ser meticulosa.

O resto do caso prosseguiu com rapidez. Laurie e Marvin tinham-se habituado um ao outro a ponto de funcionarem como uma equipa bem orquestrada que requeria um mínimo de conversa. Cada um deles previa os gestos do outro, como dançarinos de tango. Uma vez mais, quase não havia patologias. As únicas coisas que descobriram foram a formação de um ateroma mínimo na aorta abdominal e um pólipo de aspecto benigno no intestino grosso. Não havia explicação para a súbita morte do homem.

— É o teu último caso? — perguntou Marvin depois de ter pegado na agulha que Laurie lhe entregou quando terminou de coser o cadáver.

— Assim parece — disse Laurie. Olhou em redor da sala para ver se conseguia distinguir Chet, mas não teve sucesso. — Acho que terminamos. Alguém já me teria dito alguma coisa.

— Ambos os casos desta manhã me recordam aqueles de que tratamos há um mês — disse Marvin, ao mesmo tempo em que começou a limpar os instrumentos e a reunir os frascos para amostras. — Lembras-te daqueles dois em que não encontramos nada de relevante? Não me consigo lembrar dos nomes deles.

— McGillin e Morgan — disse Laurie. — É claro que me lembro e estou impressionada por também te lembrares, tendo em conta o número de casos em que estás envolvido.

— Lembro-me deles devido ao quão chateada ficaste por não encontrares nada. Olha, queres levar estes frascos ou queres que subam com tudo o resto?

— Eu levo as amostras para a toxicologia e para o ADN — disse Laurie. — As amostras para o microscópio podem seguir com as outras. E obrigada por mo lembrares. Devo dizer que cada vez te estimo mais.

— Ainda bem — respondeu Marvin. — Igualmente. Quem me dera que todos os médicos fossem como tu.

— Mas que aborrecido isso seria — disse Laurie com uma gargalhada, ao mesmo tempo em que reunia as amostras.

Tornou a passar pela mesa de Jack sem parar. Ouvia Jack e Vinnie a rir provavelmente de uma piada com humor negro. Laurie desinfetou-se bem como os frascos para amostras antes de surgir no corredor.

Sem perder tempo, despiu o material de proteção e ligou a bateria ao carregador. Sem tirar sequer a roupa verde, dirigiu-se ao elevador das traseiras. Transportava o grupo de frascos para amostras apertado contra o peito para evitar deixá-los cair. Tinha as duas pastas debaixo do braço. Enquanto subia até ao quarto piso, sentia a pulsação nas têmporas. Estava excitada. As autópsias tinham confirmado a avaliação feita por Janice. Laurie sentia-se confiante de que a sua série era agora de seis.

Laurie saiu no quarto piso e espreitou cautelosamente para o interior do laboratório de toxicologia. Numa tentativa de evitar o temperamental diretor de laboratório, ficou reduzida a andar a esgueirar-se por ali. Felizmente, ele ficava a maior parte do tempo no laboratório geral, no piso em baixo. Sentindo-se como um gato de orelhas baixas, apressou-se a atravessar diagonalmente o laboratório e a entrar no minúsculo gabinete de Peter. Ficou satisfeita por não ouvir uma única pessoa chamar o seu nome. Sentiu-se ainda mais satisfeita por Peter se encontrar à secretária, o que significava que não teria de o procurar.

— Oh, não! — lamentou-se Peter com uma expressão provocadora ao erguer os olhos do trabalho e avistar as amostras nos braços de Laurie.

— Sei que não estás contente por me veres — disse Laurie. — Mas és o homem que procuro! Preciso de ti mais do que nunca. Acabei de autopsiar mais dois pacientes que são uma cópia dos outros. Agora são seis.

— Não sei como podes dizer que sou o homem de que precisas, porque, até agora, só encontrei um grande vazio.

— Não perdi a esperança, por isso tu também não podes perdê-la. — Laurie pousou as amostras na secretária de Peter. Algumas delas ameaçaram cair a rolar. Peter agarrou várias e pô-las de pé. — Agora que há seis casos, a idéia de crime cresce. Peter, tens de encontrar alguma coisa. Tem de estar aí.

— Laurie, fiz tudo de que me consegui lembrar com os outros quatro casos. Procurei todos os agentes conhecidos que afetam o ritmo cardíaco.

—Tem de haver algo em que não tenhas pensado—insistiu Laurie.

— Bem, há mais uma coisa ou duas.

— Muito bem, tipo o quê?

Peter fez uma careta e coçou a cabeça.

— Quer dizer, estamos no campo das improbabilidades.

— Não faz mal. Precisamos de alguma criatividade. Em que é que estás a pensar?

— Num recanto da minha mente, lembro-me de ter lido qualquer coisa quando estava a tirar o curso sobre uma rã venenosa da Colômbia chamada Phyllobates terribilis.

Laurie revirou os olhos.

— Eu diria que estarás a divagar um pouco. Mas não faz mal. O que é que têm essas tais rãs?

— Bem, contêm uma toxina que é uma das mais tóxicas substâncias conhecidas pelo homem. Se bem me lembro, pode causar paragem cardíaca.

— Parece interessante! Fizeste testes para a detectar?

— Na verdade, não. Quer dizer, é necessária uma quantidade tão diminuta da toxina, algo como um milionésimo de grama. Não sei se apareceria numa máquina com a precisão da nossa. Terei de ver onde procurar.

— É esse o espírito. Tenho a certeza de que vais encontrar alguma coisa, especialmente com estes dois casos adicionais.

— Vou ligar-me à Internet e ver o que consigo descobrir.

— Agradeço-te muito—disse Laurie. — E mantém-me informada! Pegou nas amostras de ADN e começou a caminhar para a saída, mas depois deteve-se.

— Ah, a propósito, aconteceu algo de ligeiramente diferente com um dos casos. Deixa-me ver com qual deles.

Abriu a pasta de Sobczyk e comparou o número de registro com os frascos das amostras. Ao encontrar o correto, ergueu-o no ar e colocou-o diretamente diante de Peter.

— É este. Dos seis, este foi o único paciente que tinha alguma atividade respiratória e cardíaca quando foi encontrado. Não sei bem o que pensar do assunto, mas achei que deverias saber. Se se tratasse de uma toxina instável, talvez revelasse a maior concentração dos seis casos.

Peter encolheu os ombros.

— Vou ter isso em conta.

Laurie olhou para o laboratório propriamente dito. Ao ver que a costa estava livre, acenou a Peter e apressou-se a sair disparada para o corredor. Usou as escadas para subir ao sexto piso. A meio caminho, deteve-se. De súbito, o desconforto abdominal no quadrante inferior direito reapareceu. Uma vez mais, usou os dedos para pressionar essa área. A princípio, fez piorar o desconforto, atingindo o limiar daquilo a que ela chamaria dor, mas depois, e tão depressa como surgira, desapareceu. Laurie levou a mão à testa para se certificar de que não tinha febre. Convencida de que não tinha, encolheu os ombros e seguiu caminho.

O sexto piso albergava o laboratório de ADN. Em contraste com o resto do edifício, o laboratório de ADN era muito sofisticado. Tinha menos de meia dúzia de anos e rebrilhava, com as paredes de azulejos brancos, armários brancos, chão de compósito branco e os instrumentos mais recentes. Ted Lynch, o diretor, era um antigo futebolista da Ivy League. Não era tão possante como Calvin, mas não lhe ficava muito atrás, embora a sua personalidade fosse o oposto da de Calvin. Ted era um indivíduo de bom temperamento e simpático. Laurie foi encontrá-lo debruçado sobre o seu adorado seqüenciador.

Laurie deu a Ted um pouco de informação de base sobre o caso e depois perguntou-lhe se ele lhe faria uma análise rápida. Juntamente com as amostras retiradas da parte interna das unhas de Lewis, deu-lhe uma amostra de tecido de Lewis.

— Sim, sim, sim! — disse Ted com uma gargalhada. — Tu e o Jack saíram-me cá um par. De cada vez que me trazes alguma coisa, tem de ser já, como se o céu fosse desabar se não o conseguisses. Por que é que vocês os dois não podem ser mais como o resto da malta preguiçosa? Raios, eles esperam não receber notícias minhas, porque, quando tal sucede, isso significa trabalho para eles.

Laurie não conseguiu evitar sorrir. Ela e Jack tinham criado uma reputação. Laurie pediu a Jack que fizesse o seu melhor. Desceu depois um piso e seguiu a passo ligeiro para o seu gabinete. Mal podia esperar para se dirigir ao telefone. A pessoa a quem mais a entusiasmava dar as notícias acerca dos dois membros novos da sua série era Roger.

Sentada à secretária, Laurie marcou a extensão de Roger no Manhattan General. Tamborilou os dedos enquanto esperava que a ligação fosse feita. O seu coração batia com maior rapidez ainda que antes. Sabia que Roger quereria saber pormenores sobre os dois novos casos, se ainda não o soubesse. Infelizmente, quando a chamada foi atendida, ouviu o atendedor de chamadas. Laurie praguejou em silêncio. Parecia que ultimamente era apenas ouvida pelos atendedores de chamadas, nunca pelas pessoas.

Depois de ter ouvido a mensagem gravada de Roger, Laurie disse simplesmente que era ela ao telefone e pediu-lhe que lhe ligasse. Não conseguia evitar uma ponta de decepção por não conseguir apanhá-lo de imediato. Desligou o telefone e pousou a mão no auscultador ao mesmo tempo em que pensava que Roger era a única pessoa que parecia partilhar a sua preocupação quanto à possibilidade de haver um ceifeiro da morte — a forma pejorativa que Sue Passero utilizava para se referir às suas suspeitas — a percorrer os corredores do Manhattan General. Contudo, devido ao recém-descoberto sentimento de honestidade, perguntou-se o quão sincero seria realmente o seu apoio. Depois da revelação do casamento, não sabia até que ponto deveria confiar nele. À medida que Laurie ia pensando em retrospectiva sobre as últimas cinco semanas, tinha de admitir que ele se mostrara por vezes demasiado solícito. Detestava ser cínica, mas era essa a conseqüência da desonestidade dele.

Laurie deu um pulo quando o telefone tocou por baixo da sua mão e pegou no auscultador num estado de quase pânico.

— Gostaria de falar com Laurie Montgomery — disse uma agradável voz de senhora.

— É a própria — respondeu Laurie.

— Chamo-me Anne Dickson. Sou assistente social aqui no General e gostaria de marcar uma reunião consigo.

— Uma reunião? — perguntou Laurie. — Pode dizer-me de que caso se trata?

— Do seu caso, como é evidente — disse Anne, confusa.

— Do meu caso? Não sei se estou a perceber bem,

 — Trabalho no laboratório de genética e acredito que veio aqui há pouco mais de um mês atrás fazer um teste genético. Estou a ligar-lhe para combinar consigo a sua vinda cá para podermos marcar uma consulta.

Passou pela mente de Laurie uma complexa série de pensamentos. O teste ao BRCA1 era mais um exemplo do fato de querer afastar da mente coisas desagradáveis. Esquecera-se completamente de que tirara sangue. A mulher que lhe fazia esse telefonema vindo do nada fez com que toda essa perturbadora questão lhe viesse à idéia como uma avalanche.

— Está? Está a ouvir-me? — Perguntou Anne.

— Estou a ouvi-la — disse Laurie enquanto tentava organizar as idéias. — Deduzo que isto significa que o teste deu positivo.

— Significa que gostaria de falar consigo pessoalmente — disse Anne num tom evasivo. — É esse o nosso procedimento normal para com os nossos clientes. Também gostaria de lhe pedir desculpa. A sua pasta está em cima da minha secretária há cerca de uma semana, mas foi colocada por engano no dossiê errado. Foi inteiramente culpa minha, de modo que gostaria de a ver o mais depressa possível.

Laurie sentiu uma onda de irritação impaciente. Respirou fundo e lembrou-se de que a assistente social estava apenas a tentar fazer o seu trabalho. Ainda assim, Laurie teria preferido que lhe dissessem simplesmente os resultados, em lugar de ter de sofrer um qualquer protocolo demorado.

— Tive um cancelamento para a uma hora de hoje — continuou Anne. — Estava com esperança de que pudesse ser. Se não lhe for conveniente, a próxima vaga é de hoje a uma semana.

Laurie fechou os olhos e tornou a respirar fundo. Não se deixaria ficar num limbo durante uma semana. Embora pensasse que o telefonema estava relacionado com os resultados positivos do teste, queria ter a certeza. Olhou para o relógio. Era um quarto para o meio-dia. Não havia razão para não dar uma saltada ao General. Talvez conseguisse almoçar com Roger ou com Sue.

— À uma hora está bem — disse ela, resignada.

— Ótimo — disse Anne. — O meu consultório é na mesma área onde foi tirar sangue.

Laurie desligou o telefone. De olhos novamente fechados, dobrou-se sobre a secretária e passou grosseiramente os dedos pelo cabelo, arranhando o couro cabeludo. A sua consciência foi inundada por todas as conseqüências desagradáveis do gene BRCA l Juntamente com uma onda de tristeza. O que a aborrecia em particular era o fato de reconhecer a necessidade premente de tomar aquilo a que ela chamava "uma decisão final", uma decisão que eliminava opções, tais como a de ter filhos.

— Toc, toc! — chamou uma voz.

Laurie ergueu os olhos e deu por si a olhar para o tenente detetive Lou Soldano. Tinha uma aparência particularmente esmerada com uma camisa limpa e engomada e uma gravata nova.

— Oi, Laur! — disse ele alegremente.

Laur era um diminutivo que Joey, o filho de Lou, dera a Laurie no tempo em que ela e Lou saíam juntos. Nessa altura, Joey tinha cinco anos. Agora tinha dezessete.

Laurie e Lou não se tinham zangado, antes tudo partira de uma compreensão mútua de que uma relação romântica não seria apropriada. Embora continuassem a sentir grande respeito, compreensão e admiração um pelo outro, a parte da paixão não funcionava. Em lugar de romance, desenvolvera-se e desabrochara com o passar dos anos uma amizade de grande proximidade.

— O que é que se passa? — perguntou Lou.

Ela começou a falar, mas, em lugar de dizer alguma coisa, os seus olhos encheram-se de lágrimas. Batera com uma mão na testa, pressionando as têmporas com o polegar e o indicador.

Lou fechou a porta. Puxou a cadeira de Riva e sentou-se, pousando depois a mão no ombro de Laurie.

— Então, vá lá! Conta-me o que se passa!

Laurie retirou a mão da testa. Ainda tinha os olhos cheios de lágrimas, mas nenhuma lhe deslizara pelo rosto. Ergueu as maçãs do rosto e depois sorriu debilmente.

— Desculpa — conseguiu dizer.

—Desculpa? De que é que estás a falar? Não tens de te desculpar por nada. Vá lá! Conta-me o que está a acontecer. Mas, espera! Acho que sei.

— Sabes? — inquiriu Laurie. Abriu uma das gavetas da secretária e retirou de lá um lenço para limpar os olhos. Uma vez que os olhos úmidos estavam sob controlo, fitou Lou. — O que é que te leva a pensar que sabes aquilo que me aborrece?

— Aprendi a conhecer-te ao longo dos anos; tanto a ti como a Jack. Também sei que vocês acabaram. Quer dizer, não é propriamente um segredo.

Laurie começou a protestar, mas Lou tirou a mão do ombro dela e ergueu-a para a acalmar.

— Sei que não é da minha conta; mas é da minha conta, uma vez que sou doido por vocês os dois. Sei que andas a sair com outro médico, mas acho que tu e Jack deveriam fazer as pazes. Vocês foram feitos um para o outro.

Laurie foi obrigada a sorrir, contrafeita. Fitou Lou com um olhar de ternura. O homem era um querido. Na altura em que ela e Jack começaram a envolver-se romanticamente, ela receara que ele ficasse com ciúmes, uma vez que os três se tinham tornado bons amigos. Em lugar disso, mostrara-lhes um encorajamento generoso desde o início. Era agora a vez de Laurie de pousar a mão no ombro de Lou.

—Agradeço-te a tua preocupação — disse ela com sinceridade.

Se ele queria pensar que o acesso de sentimentalismo da parte dela se devia à sua relação com Jack, por ela, tudo bem. A última coisa que queria fazer era encetar uma discussão com Jack acerca do problema BRCA1.

— Sei por certo que o fato de andares a ver esse outro tipo está a deixar Jack doido.

— Não me digas — disse Laurie. — Bem, sabes uma coisa, Lou. Na verdade, isso deixa-me surpreendida. Julguei que a Jack tanto lhe fazia.

— Como é que podes ter pensado isso? — inquiriu Jack com uma expressão de total incredulidade. — Esqueceste-te da maneira como ele reagiu quando quase ficaste noiva daquele negociante de armas, o Sutherland? Jack ficou um trapo.

—Julguei que isso tivesse sido porque vocês os dois não acharam que Paul fosse o homem certo, e não era. Não pensei que se tratasse de ciúmes da parte de Jack.

— Escreve o que te digo: eram ciúmes, sem sombra de dúvida.

— Bem, veremos o que podemos fazer. Gostaria de falar com Jack se ele mo permitisse.

— Permitisse? — perguntou Jack com igual descrença. — Olha, dou-lhe um puxão de orelhas se ele não o fizer.

— Duvido que isso ajudasse — disse Laurie com novo sorriso. Assoou o nariz com o lenço que tinha na mão. — Mas, seja como for, a que devo esta visita a meio da manhã, especialmente tendo em conta que estás todo aperaltado? Sei que não vieste aqui somente como advogado de Jack.

— Bem podes ter a certeza — disse Lou. Endireitou-se no assento.

— Estou com um problema, e preciso de ajuda.

— Sou toda ouvidos.

—A razão por que estou todo janota é porque tive de ir a Jersey com Michael O'Rourke, o meu capitão. Infelizmente a cunhada foi assassinada esta manhã aqui na cidade e fomos contar ao marido. Escusado será dizer que estou sob grande pressão para encontrar um suspeito. O cadáver já está lá em baixo na câmara frigorífica. Eu estava com esperança de que tu ou Jack pudessem tratar do caso. Preciso de uma pausa e entre vocês os dois parecem sempre descobrir algo de inesperado.

— Céus, lamento, Lou. Agora não posso tratar disso. Se puder esperar até mais para a tarde, estou certa de que posso ajudar.

— A que horas?

—Não tenho a certeza. Tenho uma consulta no Manhattan General.

— A sério — comentou Lou com um sorriso irônico. — Foi lá que a cunhada de Michael foi assaltada, mesmo no parque de estacionamento.

— Isso é horrível. Fazia parte do pessoal do hospital?

— Sim, durante anos. Era enfermeira-chefe e trabalhava à noite. Foi baleada ao entrar no carro para ir para casa. Foi uma coisa abominável. E tinha dois miúdos, um com dez e outro com onze anos.

— Foi roubada ou violada, ou ambas?

— Apenas roubada, ou assim parece. Tinha os cartões de crédito espalhados pelo carro. O marido calcula que ela tivesse menos de cinqüenta dólares e foi por isso que perdeu a vida.

— Lamento.

— Não tanto como eu a não ser que dê algum avanço ao caso. Então e Jack? Não estava no gabinete quando passei por lá.

— Está lá em baixo na cova, ou estava, quando saí de lá, há cerca de meia hora.

Lou levantou-se e fez rodar a cadeira até junto da secretária dela.

— Espera, Lou — disse Laurie. — Já que aqui estás, há uma coisa de que te quero falar.

— Ah, sim? O que é?

Laurie contou de forma abreviada a Lou a série de seis casos. Aflorou apenas os aspectos mais relevantes, mas foi o suficiente para que Lou tornasse a puxar a cadeira de Riva para se poder sentar de novo.

— Então, julgas mesmo que estes casos são homicídios? — inquiriu Lou quando Laurie ficou em silêncio.

Laurie soltou uma risadinha para si mesma.

— Sabes, não tenho a certeza — admitiu ela.

— Mas disseste que julgavas que alguém andava a fazer isto a esses pacientes. Isso é homicídio.

— Eu sei — disse Laurie. — O problema é que nem eu mesma sei até que ponto acredito nisso. Deixa-me que te explique. Comecei esta manhã com uma encenação de honestidade para comigo que me está a levar a repensar muitas coisas. Passei o último mês e meio emocionalmente estressada com Jack, com a minha mãe e com outras coisas, e sei que tenho andado à procura de uma distração. Esta minha série insere-se por certo nessa categoria.

Lou anuiu, num gesto de compreensão.

— Achas então que podes estar a fazer uma tempestade num copo de água?

Laurie encolheu os ombros.

— Referiste essa idéia do assassino em série a alguma outra pessoa aqui no GMLS?

— Simplesmente a todos aqueles que me escutassem, incluindo Calvin.

— E?

—Toda a gente acha que eu estou a tirar conclusões precipitadas, porque a toxicologia não consegue encontrar nada remotamente suspeito, como insulina ou digitalina, que foram usadas no passado em assassinatos em série documentados em instituições de saúde. Bem, não é totalmente verdade dizer que toda a gente discordou. O médico com quem tenho saído, cujo nome, a propósito, é Roger e trabalha no General, apoiou-me, mas dei por mim hoje de manhã a questionar os seus motivos. Mas isso é outro assunto completamente distinto. De qualquer forma, essa é toda a história acerca da idéia do assassino em série.

— Contaste-a a Jack?

— Claro. Acha que estou esquisita.

Lou tornou a levantar-se e repôs a cadeira de Riva no seu lugar.

— Bem, mantém-me informado. Depois da conspiração da cocaína na córnea que descobriste há dez anos, é provável que eu te dê mais crédito que tu mesma.

— Isso foi há doze anos — disse Laurie.

Lou riu-se.

— Isso só mostra como o tempo voa quando te estás a divertir.

 

— Que tal? — perguntou Jack. Recuou um passo para contemplar o seu trabalho manual.

— Está bem, creio eu — respondeu Lou.

Jack ajudara Lou a vestir um fato lunar e ligara-lhe a bateria. Ouvia o zumbido do ventilador a absorver ar através do filtro HEPA.

— Sentes a brisa?

— E que brisa! — comentou Lou num tom zombeteiro. — Não compreendo como é que consegues trabalhar com esta geringonça todos os dias. Para mim, uma vez por mês já é muito.

— Não é bem o meu passatempo preferido — admitiu Jack enquanto começava a trepar para dentro do seu próprio fato. — Quando estou de serviço aos fins-de-semana, retorno por vezes sub-repticiamente à velha máscara e bata, mas sempre que o Calvin descobre ouço um belo sermão.

Calçaram as luvas na antecâmara e depois entraram na sala de autópsias propriamente dita. Cinco das oito mesas estavam a ser usadas. Na quinta, encontravam-se os restos mortais de Susan Chapman. Vinnie estava ocupado a preparar os frascos para amostras.

— Lembras-te do detetive Soldano, não lembras, Vinnie?

— Sim, claro. Bem-vindo de novo, tenente.

— Obrigado, Vinnie — disse Lou ao parar a cerca de dois metros da mesa.

— Está tudo bem? — Perguntou Jack.

Lou era um observador relativamente freqüente de autópsias, de modo que Jack não receava que ele desmaiasse e caísse de costas, como acontecia a alguns visitantes. Jack não fazia idéia por que razão teria ele parado, embora tivesse reparado que a máscara facial do detetive se embaciara, sugerindo que estaria a respirar demasiado depressa.

— Estou bem — murmurou Lou. — É um bocado difícil ver-se alguém conhecido assim grosseiramente estendido, à espera que lhe arranquem as entranhas como aos peixes.

— Não me disseste que a conhecias — respondeu Jack.

— Acho que estou a exagerar. Não a conhecia de fato. Tinha-a encontrado algumas vezes em casa do comandante O'Rourke.

— Bem, anda para aqui! Não vais ver nada a essa distância.

Lou deu dois ou três passos hesitantes em frente.

— Bem, parece que ela tinha uma queda por Krispy Kremes — disse Jack, analisando o cadáver. — Vinnie, quanto é que ela pesava, meu velho?

— Oitenta e três quilos.

Jack assobiou, mas o som foi abafado pela máscara de plástico.

— É peso a mais para aquilo que eu diria ser um metro e sessenta.

— Um metro e sessenta e três — disse Vinnie. Regressou ao armário para ir buscar seringas.

— Fui corrigido — disse Jack. — Muito bem, Lou, tapa-me aqui os buracos! Obrigaste-me a vir para aqui tão depressa que não li o relatório do investigador. Onde é que ela foi encontrada?

— Estava sentada direita no lugar do condutor do seu jipe como se dormisse uma sesta. A cabeça repousava-lhe sobre o peito. Foi por isso que não foi logo descoberta. Foi vista por umas quantas pessoas, mas pensaram que estaria a dormir.

— Que mais me podes dizer?

—Não muito. Aparentemente, foi atingida na parte direita do peito.

— Ficaste com a impressão de que se tratou de roubo?

— Certamente foi o que me pareceu. O dinheiro dela desapareceu, a carteira e os cartões de crédito foram atirados ao chão e as roupas estavam intactas.

— Como é que tinha os braços?

— Enfiados no volante.

— A sério? Isso é esquisito.

— Como assim?

— A mim parece-me que ela foi posta nessa posição.

Lou encolheu os ombros.

— Pode ser. Se assim for, qual é a leitura que fazes disso?

— Não é habitual num assalto vulgar.

Jack pegou na mão direita da mulher. Uma parte da eminência tenar por baixo do polegar desaparecera, provocando um defeito sulcado. O resto da cabeça do polegar e a maior parte da palma estava muitíssimo cravada de penetrações minúsculas. Parte do primeiro osso metacarpo era visível no defeito.

— O meu palpite é que se trata de um ferimento defensivo.

Lou anuiu. Ainda estava a um passo bem contado da mesa. Jack ergueu o braço direito, afastando-o do corpo. Havia na axila dois círculos de um vermelho-escuro com algumas fibras de tecido aderentes. A superfície dos círculos lembrava carne talhada e seca com um pouco de tecido adiposo amarelo a espreitar.

Vinnie regressou com as seringas e, depois de as ter deixado cair ao lado do cadáver, apontou para o painel na parede.

— Esqueci-me de te dizer que prendi ali os raios-X. Há duas balas no peito que correspondem aos dois ferimentos por onde entraram.

— Como estás certo! — exclamou Jack.

Avançou até aos painéis das radiografias e espreitou-as. Lou surgiu atrás dele e olhou por cima do ombro dele. As duas balas salientavam-se bastante, como dois defeitos branco-puro no campo mosqueado, de vários tons de cinzento.

— O meu palpite é que uma esteja no pulmão esquerdo e a outra no coração.

— Isso confirma os cartuchos de nove milímetros encontrados no veículo — disse Lou.

— Vejamos o que mais conseguimos descobrir — disse Jack ao regressar à mesa e recomeçar o exame externo.

Foi meticuloso, seguindo literalmente do cimo da cabeça até as pontas dos pés. No decorrer do processo, apontou para os pequenos pontos em redor da entrada dos ferimentos.

— Qual é o significado disso? — Inquiriu Lou. Avançara finalmente o suficiente para ver.

— Uma vez que a área estava tapada com roupa, diz-me que a boca da arma estava próxima, talvez apenas a uns trinta centímetros de distância, mas não tão perto como estava da mão.

— Isso é relevante?

—Diz-me tu. Leva-me a questionar se o atacante estava sentado no carro quando a arma foi disparada, em lugar de ter simplesmente esticado o braço para o interior do carro.

— Ah, sim?

Jack encolheu os ombros.

— Se o assaltante estava sentado no carro, poderás querer perguntar se a vítima o conhecia.

Lou anuiu.

— Boa observação.

Para o exame interno, Jack permaneceu à direita da vítima, tendo Vinnie à esquerda. Lou ficou de pé à cabeça e debruçava-se quando Jack apontava para uma descoberta em particular.

A autópsia foi de rotina, exceto quando Jack traçou os trajetos das balas. Tinham ambas penetrado as costelas, fato que Jack considerou que provavelmente explicaria a carência de ferimentos de saída. Uma das balas tinha atravessado o arco aórtico e fora alojar-se no pulmão esquerdo. A outra passara pelo lado direito do coração para se ir cravar nas paredes do ventrículo esquerdo. Jack resgatou as duas balas, mexendo-lhes com extremo cuidado para não lhes alterar as marcas externas. Deitou-as em bolsas de provas com etiquetas de identificação preparadas por Vinnie.

— Infelizmente, isto é tudo o que te posso dar — disse Jack, entregando a Lou as embalagens seladas. — Talvez o pessoal da balística te possa ajudar.

— Espero que sim — disse Lou. — Não temos impressões digitais da cena, nem sequer do manípulo do lado do passageiro. Nem sequer havia quaisquer impressões latentes na carteira para além das da vítima, por isso não temos pistas na cena. Ainda por cima, os funcionários da noite não viram ninguém suspeito aproximar-se ou andar por ali.

— Parece que vai ser um caso difícil.

— Lá nisso tens razão.

Deixando Vinnie a limpar o material, Jack e Lou foram para o armazém despir os fatos de proteção. Dali dirigiram-se ao recinto dos cacifos para trocarem a indumentária verde de proteção pelas roupas do dia-a-dia.

— Uma vez médico, para sempre médico, por isso espero que não te importes que eu te diga que se te está a formar aí uma pança, tenente.

Os olhos de Lou contemplaram o seu volume dilatado.

— É triste, não é?

—Triste e pouco saudável — disse Jack. — Não estás a ser bom para ti com esse excesso de peso, especialmente uma vez que não deixaste de fumar.

— O que é que queres dizer com isso? — interrogou-o Lou, como que ofendido. — Já deixei de fumar centenas de vezes. Ora, a última vez foi só há dois dias.

— E quanto tempo durou isso?

— Até conseguir cravar um ao meu colega: há cerca de uma hora. — Riu-se. — Já sei, sou patético. Mas a razão por que ando com este excesso de bagagem é por não conseguir arranjar tempo para fazer exercício, com todos os homicídios nesta bela cidade. — Vestiu a camisa e abotoou-a sobre a cintura saliente.

— Vais ter de ser acusado da tua própria morte se não mudares de hábitos.

Postado ao lado de Jack em frente ao espelho, Lou fez deslizar a gravata em laço por cima da cabeça. Não tinha desfeito o nó. Cingiu-o até ao pescoço, projetando o queixo enquanto o fazia.

— Tive uma conversa com Laurie antes de vir aqui ter contigo.

— Sim? — inquiriu Jack. Fez uma pausa, enquanto apertava a gravata de malha, e fitou Lou no espelho.

— Estava perturbada por causa de vocês os dois e ficou com os olhos cheios de lágrimas.

— Isso é curioso, tendo em conta que está a viver um caso selvagem e apaixonado com um anormal qualquer do Manhattan General.

— Chama-se Roger.

— O que seja. Na verdade, não é um anormal, o que é parte do problema. Efetivamente, parece ser perfeito.

— Bem, podes ficar descontraído quanto a isso. Definitivamente, não fiquei com a impressão de que ela estivesse assim tão louca pelo sujeito. Até disse que quer falar contigo acerca de fazer as pazes.

— Ah! — grunhiu incrédulo. Recomeçou a apertar a gravata.

Sabendo que estava a pôr palavras na boca de Laurie e sentindo-se um pouco culpado por isso, Lou evitou que os seus olhos encontrassem os de Jack enquanto retirava o casaco do cacifo e o vestia. Justificou as suas maquinações, dizendo tratar-se de um amigo que só pretendia ajudar os seus amigos. Usou os dedos para pentear para trás o cabelo cortado rente.

Os olhos de Jack seguiram Lou até que este finalmente o olhou. Jack disse então:

— Acho difícil de acreditar que ela queira fazer as pazes, quando há umas semanas atrás não me dava bola além de falar de casos aqui da morgue. Tentei encontrar-me com ela uma série de noites de seguida. Ela deu-me com os pés em todas elas, dizendo que estava ocupada porque ia a um concerto sinfônico ou ao museu ou ao bailei ou a um qualquer outro evento cultural de distinção. Ou seja, tinha a agenda preenchida e nunca sugeriu uma data alternativa.

Tal como Lou, Jack usou os dedos para afastar o cabelo estilo César da testa com gestos rápidos e irritados.

— Devias tentar outra vez — sugeriu Lou. Sentia que devia agir com pezinhos de lã. — Tal como eu lhe disse, vocês foram feitos um para o outro.

— Vou pensar nisso — disse Jack num tom evasivo. — Não ando muito dado a humilhações ultimamente.

— Também referiu a sua confusão face a uma série de mortes suspeitas no Manhattan General. Quase parecia que estava a tentar convencer-se de que se tratavam de homicídios. Disse que tinha falado do assunto contigo. O que é que te parece? Disse que tu achavas, e são palavras dela, que ela andava "esquisita".

— Isso é um bocado forte. Só acho que se deixou levar um pouco por esses quatro casos.

— Seis! Teve mais dois hoje.

— A sério?

— Foi o que ela disse. Também admitiu que poderia estar a usar a idéia do assassino em série como distração.

— Disse isso exatamente? Quer dizer, usou de fato a palavra "distração"?

— Palavra de escoteiro!

Jack abanou a cabeça com surpresa.

— Eu diria que se trata de um julgamento razoável, tendo em conta que a toxicologia não detectou nada. Devo ainda dizer que me parece demonstrar uma impressionante consciência de si.

Com o sol de março a executar ainda o seu trânsito diurno no céu meridional, um raio de luz do meio-dia que rasgara de súbito a veloz camada de nuvens penetrou na janela da cafeteria, orientada para sul, do Manhattan General. Era como um feixe de luz laser e Laurie viu-se obrigada a erguer a mão para proteger os olhos da súbita intensidade. A Drª. Susan Passero, que estava sentada em frente dela de costas para a janela, tornou-se uma silhueta desprovida de feições contra o clarão.

Mantendo a mão sobre a testa, Laurie baixou os olhos para o tabuleiro que tinha diante de si. Mal tocara na comida. Embora a sua escolha tivesse parecido apetitosa quando a recebeu, uma vez sentada percebeu que não sentia qualquer fome. A falta de apetite não era uma coisa habitual em Laurie. Atribuiu o fato ao estresse que sentia perante o premente encontro com a assistente social e as notícias inevitáveis que estava prestes a receber. Em certos aspectos, sentia-se humilhada por ser forçada a ver uma profissional de saúde mental.

Quando Laurie chegara ao hospital quarenta minutos mais cedo, fora primeiro até ao gabinete de Roger, mas ele continuava a não estar disponível. Uma das secretárias tinha lhe dito que ele estava em reunião à porta fechada com o presidente do hospital. Laurie fora então à procura de Sue, que amavelmente se dispôs a almoçar com ela, apesar de ser tão em cima da hora.

— Receber uma chamada de uma das assistentes sociais do laboratório de genética não significa necessariamente que o teste seja positivo — disse Sue.

— Ah, por favor! — queixou-se Laurie. — Oxalá a mulher me tivesse dito e pronto.

— Na verdade, e segundo a lei, não é suposto que to digam por telefone — disse Sue. — Com a nova Lei da Privacidade de Informações sobre Saúde, o fato de se dar informações por telefone não é bem visto. O pessoal de laboratório nunca pode ter certeza absoluta de com quem está a falar. Poderiam inadvertidamente dar a informação à pessoa errada, que é o que a nova lei da privacidade deve prevenir.

— Por que é que não te enviaram os meus resultados? — perguntou Laurie. — És a minha médica de família oficial.

— Tecnicamente, não o era quando o teste foi pedido. Mas tens razão. Eu devia ter sido informada. Ao mesmo tempo, não me sinto surpreendida. O laboratório de genética de livre acesso está agora a dar os primeiros passos. Para te dizer a verdade, espanta-me que não te tenham pedido para teres uma sessão com um dos assistentes sociais especialmente formados antes de te terem tirado sangue. Era esse o meu conceito da maneira pró-ativa como iriam lidar com as coisas. Não é preciso ser sobredotado para saber que os testes genéticos vão ser perturbadores, independentemente dos resultados.

"Nem me digas", disse Laurie para consigo.

— O que é que se passa com a tua comida? — perguntou Sue, inclinando-se para a frente de modo a poder olhar para ela. — Não lhe tocaste. Deverei levar isto a peito

Laurie riu-se e fez a Sue um aceno de mão rejeitando a idéia. Laurie confessou que não tinha fome, com tudo aquilo que se estava a passar na sua vida.

— Olha — disse Sue, adotando um tom mais sério. — Se o teste ao BRCA1 acabar por ser positivo, que é aquilo que pensas que vai suceder, quero que venhas imediatamente à clínica para que eu faça com que vejas um dos nossos melhores oncologistas. Combinado?

— Combinado.

— Ótimo! Entretanto, o que é que se passa com a Laura Riley? Marcaste uma consulta ginecológica para uma análise de rotina?

— Sim, marquei.

Laurie deu uma espreitadela ao relógio.

— Ups! Tenho de ir andando. Não quero chegar tarde. A assistente social pode decidir que estou a ser agressiva-passiva.

As mulheres separaram-se no corredor. Enquanto Laurie subia os degraus para o segundo piso, o desconforto no quadrante inferior direito regressou, fazendo-a hesitar. Perguntou-se por que razão as escadas tendiam a agravar fosse qual fosse o incômodo que a aborrecia. Era semelhante àquilo a que costumava chamar "dor de burro" quando corria demasiado em criança. Verdade seja dita que se desvaneceu passado apenas um minuto. Fechou a mão direita em punho e bateu nas costas. Ocorrera-lhe a idéia de que se poderia tratar de dores nos rins ou na uretra, mas a batida não tornou a despertar o desconforto. Apalpou o abdômen, mas nada sentiu de anômalo. Encolheu os ombros e seguiu o seu caminho.

A sala de espera do laboratório de diagnóstico genético estava tão serena como durante a anterior visita de Laurie. Flutuava no ar, emanada dos altifalantes nas paredes, a mesma música clássica e, penduradas nas paredes, encontravam-se por certo as mesmas reproduções impressionistas. O estado mental de Laurie é que era diferente. Na primeira visita, sentira mais curiosidade que ansiedade. Agora era o oposto.

— Posso ajudá-la? — perguntou uma recepcionista de avental cor-de-rosa.

— Chamo-me Laurie Montgomery e tenho uma marcação com Anne Dickson para a uma hora.

— Vou dizer-lhe que está aqui.

Laurie sentou-se e pegou numa revista, folheando agressivamente as páginas. Olhou para o relógio. Era exatamente uma hora. Perguntou-se se a Srª. Dickson iria humilhá-la ainda mais fazendo-a esperar.

O tempo passava devagar. Laurie continuou a folhear a revista sem conseguir concentrar-se. Deu por si a sentir-se progressivamente mais ansiosa e, ao mesmo tempo, mais irritada. Fechou a revista e tornou a pousá-la sobre a mesa com as outras. Em lugar de tentar ler, recostou-se e fechou os olhos. Com a sua força de vontade, acalmou-se. Pensou que se deitava numa praia sob o sol quente. Se tentasse fazê-lo, quase conseguia ouvir as ondas enrolarem-se na areia.

— Srª. Montgomery? — perguntou uma voz.

Laurie ergueu os olhos para o rosto sorridente de uma mulher que teria metade da sua idade. Usava uma camisola branca simples com uma fileira apenas de pérolas em redor do pescoço. Por cima da camisola, vestia uma bata branca. Tinha um bloco de apontamentos de mola na mão esquerda, encostado ao corpo. Estava de mão estendida.

— O meu nome é Anne Dickson.

Laurie levantou-se e apertou a mão da mulher. Depois seguiu-a por uma porta lateral e ao longo de um pequeno corredor. Foi encaminhada para uma sala pequena e sem janelas com um sofá, dois cadeirões, uma mesinha de café e um arquivo. Ao centro da mesa de café havia uma caixa de lenços de papel.

Anne fez sinal a Laurie para que se sentasse no sofá. Fechou a porta e sentou-se num dos cadeirões, com a caixa de lenços convenientemente entre ambas. Anne consultou a sua pasta com mola por um instante e depois ergueu os olhos. Do ponto de vista de Laurie, ela era uma mulher de boa aparência que poderia ter sido uma mera estudante de faculdade num programa de estágio profissional, em lugar da pessoa com pelo menos um mestrado e provavelmente mais formação adicional em genética. Usava o cabelo liso, de comprimento médio e castanho com risco ao meio, o que a obrigava a afastá-lo freqüentemente do rosto e a prendê-lo atrás das orelhas. Os seus batom e verniz eram de um tom vermelho acastanhado escuro.

—Agradeço-lhe por ter vindo apesar de ser tão em cima da hora — disse Anne. Tinha uma voz suave e um leve timbre nasal. — E peço-lhe, uma vez mais, desculpa por ter colocado a sua pasta no sítio errado.

Laurie sorriu, mas sentia bem que estava a ficar cada vez mais impaciente.

— Queria falar-lhe um pouco daquilo que fazemos aqui, no laboratório de genética — continuou Anne.

Cruzou as pernas e colocou a pasta entre elas. Laurie podia ver uma pequena tatuagem de uma serpente na parte interna da perna dela, mesmo acima do tornozelo.

— Também lhe queria explicar por que razão está a falar comigo, e não com um dos nossos médicos. Trata-se meramente de uma questão de tempo: eu tenho muito e eles têm pouco. Eu posso ficar aqui consigo durante o tempo que quiser a responder a todas as suas questões. E se não lhe souber responder, tenho acesso imediato a pessoas que certamente saberão.

Laurie não fez comentários nem alterou a sua expressão enquanto ordenava silenciosamente a Anne que cortasse a palha e se limitasse a informá-la do raio dos resultados do teste. Recostou-se para trás abruptamente, cruzou os braços e tentou lembrar-se de que não deveria culpar o mensageiro. Infelizmente Anne e a situação estavam a irritá-la de morte. Considerou a caixa de lenços particularmente condescendente, como se Anne esperasse que ela se deixasse ir abaixo emocionalmente, embora, conhecendo-se como se conhecia, Laurie soubesse que se tratava de uma possibilidade.

— Agora — disse Anne depois de ter consultado outra vez o bloco de mola e de ter feito com que Laurie sentisse que estava a assistir a uma apresentação gravada. — É importante que conheça um pouco a ciência da genética e como esse campo mudou completamente com a descodificação do genoma humano, ou seja, da seqüência dos três ponto dois mil milhões de pares de base de nucleótidos. Mas deixe-me antes de mais dizer-lhe que me pode interromper a qualquer momento se não compreender alguma coisa.

Laurie anuiu impacientemente. Não conseguia evitar perguntar-se o quanto saberia Anne acerca de pares de base de nucleótidos, apesar da maneira loquaz como se lhes referira. Os pares de base de nucleótidos são os componentes da molécula de ADN que formam a parte em escada da molécula e a sua ordem linear é responsável pela transmissão de informação genética.

Anne prosseguiu discutindo as leis da genética de Gregor Mendel respeitantes às características dominantes e recessivas descobertas através do trabalho do monge com ervilhas de jardim no século XIX. Laurie nem conseguia acreditar que estava a ser submetida àquilo; todavia não interrompeu, nem relembrou a Anne o fato de estar a lidar com uma médica que, como era evidente, ouvira falar do trabalho de Gregor Mendel no decurso dos seus estudos de biologia. Laurie deixou que a mulher continuasse a falar longamente sobre genes e sobre como certas características podiam ligar-se a outras características para formarem haplótipos específicos herdados através das gerações.

A determinada altura, Laurie até deixou de ouvir a assistente social para se concentrar nos tiques da mulher, que incluíam, para além do afastar quase constante do cabelo atrás da orelha, um blefarospasmo contínuo quando apresentava um argumento. Mas a atenção de Laurie foi atraída de novo para a mulher quando ela começou a falar de polimorfismos de um único nucleótido, a que depressa se começou a referir usando o acrônimo PUN. Tratava-se de uma área da genética em que Laurie não era muito entendida e de que apenas recentemente tomara conhecimento.

—Os PUNs tornaram-se extremamente importantes — disse Anne.

— São locais específicos do genoma humano onde um único par de base de nucleótidos se transformou, por mutação, ou eliminação, ou, mais raramente ainda, por inserção. Em cada duas pessoas, há uma média de um PUN por cada mil, ou aproximadamente esse número, de bases de nucleótidos.

— Por que é que se tornaram tão importantes? — Laurie deu por si a fazer a pergunta.

— Porque existem agora milhões deles localizados ao longo de todo o genoma humano. Representam marcadores convenientes que estão hereditariamente ligados a genes anômalos específicos. É muito mais fácil fazer o teste ao marcador do que isolar e fazer a seqüência do gene afetado, embora geralmente façamos ambas as coisas para termos a certeza a cem por cento. Queremos sentir-nos seguros de que damos aos nossos pacientes a informação correta.

— Pois — disse Laurie com irritação.

O comentário de Anne acerca de genes anômalos trouxera rudemente Laurie de volta à realidade e às razões daquela conversa. Não se tratava de um exercício intelectual.

Aparentemente abstraída do estado de alma de Laurie e depois de ter consultado a pasta de mola, Anne prosseguiu com o monólogo no seu tom nasalado. De repente, Laurie sentia-se farta. A sua paciência chegara abruptamente ao fim. Descruzou os braços e ergueu a mão direita para que Anne parasse de falar. Anne apanhou a deixa, parou a meio da frase e olhou Laurie com uma expressão inquiridora.

— Com o devido respeito — disse Laurie, tentando modular a voz para parecer calma — há uma informação relevante que, ou não tem, ou de que se esqueceu. Sucede que eu própria sou médica. Agradeço-lhe este material de base, mas parto do princípio de que a verdadeira razão por que aqui estou é porque tem os resultados do meu teste. Quero saber quais são. Por isso, se tivesse a gentileza, gostaria que os dissesse.

Um pouco desconcertada Anne tornou a consultar a pasta de mola. Quando ergueu os olhos, o seu blefarospasmo estava significativamente mais pronunciado.

— Não sabia que era médica. Vi o título de doutora, mas julguei que se tratasse de uma outra espécie qualquer de doutoramento. Não fazia qualquer referência a medicina.

— É bem verdade. Sou positiva para o marcador do gene BRCA1?

— Mas não falamos acerca das implicações.

— Estou ciente das implicações e quaisquer outras questões que possa ter colocá-las-ei ao meu médico oncologista.

— Compreendo — disse Anne.

Baixou os olhos para a pasta de mola como se ela lhe pudesse fornecer alguma ajuda para aquilo que obviamente considerava ser uma situação desconfortável.

— Não quero parecer mal agradecida em relação aos seus esforços — acrescentou Laurie — mas tenho de saber.

— Claro — disse Anne. Endireitou-se na cadeira e olhou Laurie nos olhos. Não havia qualquer blefarospasmo. — É efetivamente positiva quanto ao marcador do BRCA1, o que foi confirmado ao fazer-se a seqüência do gene. Lamento.

Laurie desviou os olhos, que nada viam, enquanto mordia o lábio inferior. Embora estivesse absolutamente à espera das notícias, sentia as lágrimas a acumularem-se no horizonte emocional. Lutou contra elas por uma questão de princípio. Estava determinada a não usar os lenços na mesa à sua frente.

— Muito bem — ouviu-se dizer.

Ouviu também Anne começar a falar, mas Laurie não a escutou.

Embora Laurie sentisse geralmente uma consciência aguda dos sentimentos dos outros, nas presentes circunstâncias, não queria saber. Sabia que, até certo ponto, estava a culpar o mensageiro.

Laurie levantou-se, lançou a Anne aquilo que era um sorriso amarelo e dirigiu-se à porta. Com as palmas assim molhadas, não tinha qualquer intenção de apertar a mão da mulher. Ouvia Anne a segui-la e a chamar o seu nome, mas nem sequer olhou para trás. Atravessou a área da recepção da clínica com um passo determinado e saiu para o corredor do hospital.

No primeiro piso, Laurie ficou satisfeita por estar rodeada pelas multidões que chegavam e partiam em vagas no movimentado hospital. O caráter anônimo proporcionava um inesperado consolo para o seu turbilhão mental. Havia um banco do lado oposto do balcão de informações e Laurie aproveitou um momento para se sentar. Respirou fundo. Estava a acalmar-se. Precisava decidir o próximo passo. Prometera a Sue que iria à clínica o mais depressa possível para marcar uma consulta com o oncologista, mas, ali sentada, sentiu necessidade de uma interação mais pessoal. Pensou em Roger e perguntou-se se ele estaria disponível.

A área da administração estava fechada e, quando a porta de ligação se fechou atrás de si, Laurie percebeu que preferia a calma ao caos da entrada do hospital. Os seus sapatos não produziam qualquer som na alcatifa. Tentando não pensar na realidade de ter uma bomba-relógio genética a marcar o tempo em cada uma das suas células, avançou até a área do gabinete de Roger. Uma das secretárias reconheceu-a por ter ali estado mais cedo.

— O Dr. Rousseau está no gabinete — disse a secretária, olhando para Laurie por detrás do monitor.

Laurie anuiu, acusando tê-la ouvido, e caminhou até a entrada do gabinete de Roger. Tinha a porta entreaberta. Estava sentado à secretária, a ver papéis. Laurie bateu na jamba e Roger ergueu os olhos. Estava vestido como era habitual quando no hospital, com uma camisa branca lavada e fresca. Usava uma gravata de seda dourada, cuja textura e cor formavam um agradável contraste com o seu rosto com traços vincados e de bronzeado permanente.

— Meu Deus! — Exclamou ele, ao avistar Laurie e ao mesmo tempo em que se punha de pé. — Acabei de deixar uma mensagem no teu atendedor, há dois segundos. Que coincidência.

Contornou a secretária e fechou a porta. Virou-se de novo para ela e deu-lhe um abraço rápido e um beijo na testa. Não reparou que os braços dela se mantinham inertes ao longo do corpo.

— Estou tão feliz por estares aqui. Tenho tantas coisas para te contar.

Virou as duas cadeiras de costas direitas de modo a ficarem de frente uma para a outra. Fez um gesto para que Laurie se sentasse e ele fez o mesmo.

— Não vais acreditar na manhã que eu tive — disse Roger com emoção. — Ocorreram mais duas mortes pós-operação na noite passada, tais como as quatro anteriores: ambos jovens e saudáveis.

— Eu sei — disse Laurie com uma voz tênue. — Já os autopsiei a ambos. Foi por isso que te telefonei mais cedo.

— E o que é que encontraste?

— Não havia nada; nenhuma patologia — disse Laurie no mesmo tom calmo. — Foram como as quatro anteriores.

— Eu sabia! Eu sabia! — Disse Roger, socando o ar com o punho. Ergueu-se e pôs-se a andar para trás e para a frente no minúsculo gabinete. — Esta manhã convoquei uma reunião de emergência da comissão de morbilidade/ mortalidade, embora nos tenhamos reunido há apenas dois dias. Apresentei os dois casos como provas de que estas últimas cinco semanas não passaram de uma pausa. Argumentei vagamente que teremos de fazer alguma coisa. Mas, ah, não, não vamos armar confusão, já que os media podem vir a saber por um passarinho. Tenho vontade de fazer um telefonema anônimo aos media para que tal deixasse de ser um problema, mas é claro que não o farei. Até fui ao gabinete do presidente depois da reunião para tentar convencê-lo a mudar de idéias, mas foi como falar para uma parede. Consegui até que ficasse zangado comigo por aquilo a que chamou a minha "maldita e tenaz determinação".

Laurie observou os passos de Roger, mas não conseguia olhá-lo nos olhos. Nesse momento, o que lhe ocupava a mente não era a série de mortes suspeitas no Manhattan General, mas não tinha forças emocionais para contrariar a presente veemência de Roger acerca delas.

— E depois, para piorar as coisas — acrescentou Roger — tivemos um assalto homicida no nosso parque de estacionamento esta manhã. Quer dizer, começo a ficar com um complexo em relação a tudo isto. Nada disto acontecia antes de eu ter vindo para a comissão.

Roger parou finalmente de se mover e estabeleceu contacto visual com Laurie. A expressão dele sugeria que procurava simpatia, mas mudou quando reparou na dela.

— Por que essa cara? — Perguntou ele. Debruçou-se para a observar melhor, depois sentou-se depressa. — Lamento. Aqui estou eu a gritar, furioso e a ignorar-te, e tu estás aborrecida. O que é que se passa?

Laurie fechou os olhos com força e desviou o olhar. A súbita solicitude de Roger tornou a despertar em si as emoções sentidas no instante em que Anne Dickson lhe dera as notícias definitivas. Sentiu a mão de Roger no ombro.

— O que foi, Laurie? O que é que se passa?

A princípio, Laurie só conseguia abanar a cabeça, por medo de, caso falasse, derramar um dilúvio de lágrimas. Detestava o seu sentimentalismo. Que maldito defeito! Endireitou-se e respirou fundo, libertando o ar com uma raiva refreada.

— Desculpa — conseguiu ela dizer.

— Não tens nada que pedir desculpa. Eu é que não me calei, como um bruto egoísta e insensível. O que foi?

Laurie aclarou a garganta e deu início à sua saga com o BRCA1 e, ironicamente, à medida que falava, foi-se tornando progressivamente menos emocional, como se o seu lado profissional fosse capaz de dominar. Falou sobre a mãe e a sua recente cirurgia, e também do fato de ser positiva em relação ao gene mutado. Referiu ainda os conselhos do pai no sentido de fazer o teste. Deixando de parte o papel de Jack, descreveu a forma como se dirigira ao Manhattan General para tirar sangue no dia em que conhecera Roger. Explicou-lhe depois o êxito com que esquecera tudo isso até receber o telefonema de Anne Dickson nessa manhã. Concluiu dizendo que acabava de chegar de uma reunião onde lhe tinha sido dito que era positiva quanto ao marcador BRCA1 e quanto ao gene mutado propriamente dito, de modo que não havia hipótese de erro laboratorial. Admitiu que culpara o mensageiro, apesar de ter tentado não o fazer, e brincou com o fato de ter recusado à pobre mulher a oportunidade de lhe fazer a pergunta que era a quinta-essência do terapeuta: como se sentia Laurie em relação às notícias. Laurie acabou por soltar uma risadinha.

— Estou espantado por conseguires encontrar humor nisto — disse Roger.

— Sinto-me melhor depois de ter falado contigo.

— Tenho muita pena em relação a tudo isto — disse Roger com um tom de voz que sugeria uma total sinceridade. — O que vais fazer? Qual é o próximo passo?

— É suposto que, logo que saia daqui, vá à clínica ver Sue Passero. Ofereceu-se para me ajudar a fazer uma marcação num futuro próximo com um oncologista.

Deu uma palmadinha na coxa de Roger e começou a erguer-se.

— Espera! — disse Roger, estendendo a mão e empurrando-lhe o ombro para que se mantivesse sentada na cadeira. — Calma! Uma vez que a assistente social não teve oportunidade, deixa-me perguntar-te como te sentes. Calculo que seja qualquer coisa como descobrir que o nosso melhor amigo é nosso inimigo mortal.

Laurie espreitou para as profundezas dos olhos castanhos escuros de Roger. Deu por si a perguntar-se se ele lhe estaria a fazer a pergunta na condição de amigo íntimo ou de médico. Se fosse no primeiro caso, seria o interesse dele verdadeiramente sincero? Parecia ter a destreza de dizer a coisa certa, mas qual seria a sua motivação? Censurou-se depois por pôr isso em causa, mas depois do golpe do casamento e dos filhos, não tinha certeza de coisa alguma.

— Acho que ainda não tive tempo de sentir grande coisa — disse Laurie após uma pausa.

Sentia-se tentada a dizer algo acerca da sua capacidade, recentemente admitida, de compartimentar os pensamentos a ponto de simplesmente não pensar sobre coisas em que não queria pensar. Porém, decidiu depois tratar-se de uma história demasiado comprida, uma vez que queria ir ao edifício da Clínica Kaufman para ver Sue. A longo prazo, o oncologista seria a chave e quanto mais cedo se marcasse a consulta, melhor se sentiria.

— Tem de haver alguma coisa que possas partilhar comigo — insistiu Roger. Conservava a mão pousada no ombro dela. — Não podes descobrir uma coisa assim tão perturbante sem teres alguns receios específicos.

— Creio que tens razão — admitiu Laurie com relutância. — Para mim, o mais assustador são algumas das medidas profiláticas sugeridas e os seus efeitos secundários. Por exemplo, a idéia de deixar de ser fértil através da remoção dos meus ovários é...

Laurie parou a meio da frase. Para ela, o pensamento que subitamente lhe passou pela cabeça como um tornado era equivalente a ser rudemente esbofeteada na face. Produziu nela uma instantânea descarga de adrenalina que fez com que o seu pulso acelerasse e sentisse um formigueiro nas pontas dos dedos. Por um momento, sentiu-se até tonta, a ponto de ter tido de agarrar a beira da cadeira para evitar cair.

Felizmente as tonturas passaram com tanta rapidez como surgiram. Podia dizer que Roger estava a falar, mas, nesse instante, não conseguia ouvi-lo, dado que a idéia que lhe ocorrera continuava a ressoar na sua cabeça com um efeito semelhante ao ribombar do trovão. Passou-lhe de novo pela mente o velho ditado: "Cuidado com o que desejas, que ainda se pode concretizar."

Laurie levantou-se de forma abrupta, arrastando também efetivamente Roger na subida, já que ele mantinha a mão no ombro dela. De repente, queria estar sozinha.

— Laurie! — Disse Roger. Com o auxílio das duas mãos, abanou-a. — O que é que se passa? Não terminaste a frase.

— Desculpa — disse Laurie num tom de voz que transmitia mais calma do que na realidade sentia. Retirou as relutantes mãos de Roger dos seus ombros. — Tenho de ir.

— Não posso deixar-te ir assim. Em que é que estás a pensar? Sentes-te deprimida?

— Não, não estou deprimida. Pelo menos, ainda não. Tenho de ir, Roger. Depois ligo-te.

Laurie virou-se para sair, mas Roger agarrou-lhe o braço.

— Tenho de ter a certeza de que não te vais magoar de forma alguma.

Ao perceber o que Roger queria dizer, Laurie abanou a cabeça.

— Fica descansado, não me vou magoar. Só preciso ficar sozinha durante algum tempo. — Soltou o braço da mão de Roger.

— Liga-me.

— Sim, ligo-te — disse Laurie, ao mesmo tempo em que abria a porta.

— Vejo-te esta noite?

Laurie hesitou à entrada e depois virou-se.

— Esta noite não vai dar. Mas falo contigo.

Laurie abandonou o gabinete de Roger, contornou a mesa da secretária mais próxima e atravessou deliberadamente o corredor, resistindo à tentação de fugir. Sentia os olhos de Roger cravados nas suas costas, mas não se virou. Ao atravessar a porta que separava a área da administração do resto do hospital, mergulhou na multidão. Uma vez mais, aquele anonimato era reconfortante. Em lugar de sair disparada do edifício, que fora a sua intenção inicial, tomou uma vez mais o seu lugar em frente do balcão de informações e passou o quarto de hora seguinte a pensar nas conseqüências da sua perturbadora idéia.

 

A conferência de quinta-feira à tarde no Gabinete do Médico-Legista Superior consistia num desempenho de autoridade, de acordo com os ditames de Harold Bingham, o chefe. Embora fosse freqüente a sua não comparência, citando para tal, deveres administrativos urgentes, todas as pessoas sob as suas ordens nas cinco divisões de Nova Iorque tinham de comparecer. Calvin Washington, o subdiretor, fazia com que a regra fosse rigorosamente cumprida, a não ser que tivesse sido previamente concedida dispensa, devido a doença grave ou algo equivalente. Como conseqüência, os patologistas forenses dos gabinetes dos departamentos de Brooklyn, Queens e Staten Island tinham todos de fazer a viagem semanal a Meca para o discutível esclarecimento que as conferências proporcionavam. Para os médicos-legistas nomeados para a sede, que servia Manhattan e o Bronx, o ônus era bem menos que uma imposição, uma vez que tudo o que tinham a fazer era tomar o elevador do quinto piso para o primeiro.

De uma forma geral, Laurie considerava as conferências agradáveis até certo ponto, em especial o período social informal que antecedia a reunião. Era durante esse tempo que os médicos trocavam histórias dos casos mais desafiantes a nível intelectual ou simplesmente bizarros. Laurie raramente contribuía para essas discussões "paralelas", mas dava-lhe prazer ouvi-las. Infelizmente, a noção de prazer não se adequava à situação que vivia nessa quinta-feira em particular. Depois de ter sabido que era positiva para o marcador BRCA l e de ter experimentado de seguida uma preocupação perturbadora que lhe surgira no gabinete de Roger, sentia-se num estado traumático, quase entorpecido, e certamente não se sentia minimamente social. Chegada à sala, não se juntara ao grupo em redor do café e dos donuts, antes, escolhera um lugar perto da porta que dava para o corredor, na esperança de uma possível escapadela em algum momento conveniente e discreto.

A sala de conferências era de dimensão moderada e a sua decoração tinha um aspecto particularmente gasto, o que sugeria que era muito mais velha que os seus alegados quarenta e quatro anos. À esquerda, onde uma porta comunicava diretamente com o interior do gabinete de Bingham, havia uma mesa de leitura inclinada, riscada e raspada, com a sua luzinha que já não trabalhava e um microfone que ainda funcionava. Dispostas diante do pódio, havia quatro fileiras de assentos igualmente alvos de incúria, fixados ao chão e munidos de superfícies para escrever com dobradiças. Os assentos conferiam à sala a aparência de uma pequena sala de aulas e permitiam-lhe realizar a sua principal função: as conferências de imprensa de Bingham. Ao fundo da sala encontrava-se uma mesa de biblioteca onde nesse momento se encontravam as bebidas e petiscos e em torno da qual se agrupavam os médicos-legistas da cidade: toda a gente, com exceção dos dois manda-chuvas e de Jack. Uma tagarelice de vozes e risos flutuavam pela sala.

Ao contrário de Laurie, Jack não gostava de coisa alguma em relação às conferências de quinta-feira. Jack tivera um desentendimento com um dos médicos-legistas do gabinete de Brooklyn por causa da irmã de um dos colegas de basquetebol de Jack e recusava-se até a socializar com o homem. Os mesmos sentimentos tinham-se estendido ao chefe do departamento quando ele apoiara o seu subalterno na disputa. Embora Jack negasse que o fazia deliberadamente, chegava sempre atrasado, para grande irritação de Calvin.

A porta para o gabinete de Bingham abriu-se e surgiu a figura possante de Calvin. Agarrava uma pasta, que abriu na mesinha de leitura inclinada. Os seus olhos escuros varreram a sala, encontrando brevemente os de Laurie antes de continuar. Era evidente que atentava nas presenças.

— Muito bem! — berrou Calvin quando ninguém lhe prestou qualquer atenção. Graças ao microfone, a sua voz ressoava pela sala como um tímbale. — Vamos lá a andar com isto!

Calvin manteve a cabeça inclinada para baixo enquanto organizava os papéis na superfície inclinada da mesa de leitura. Os médicos-legistas interromperam imediatamente as conversas e foram em fila ocupar as cadeiras para tomarem os seus lugares. Calvin deu início à reunião do modo como Bingham costumava fazê-lo, nos tempos em que o chefe era uma presença regular. Começou por apresentar um resumo das estatísticas da semana anterior.

Ao mesmo tempo em que a voz de Calvin ia prosseguindo, Laurie divagava. Embora fosse geralmente boa a encarnar o seu lado profissional, ao comando da situação, e a deixar os problemas pessoais para outra ocasião, nesse momento não conseguia fazê-lo. O seu novo receio não cessava de fazer a sua desagradável aparição na mente dela, a tal ponto que até ultrapassava a preocupação com o BRCA1. O problema era que não fazia idéia do que haveria de fazer se os seus medos fossem percebidos.

A porta para o corredor que se encontrava imediatamente à esquerda de Laurie abriu-se e Jack entrou. Calvin parou a sua apresentação, fitou Jack e disse sarcasticamente:

— Estou tão feliz por ter conseguido dar-nos a graça da sua presença, Dr. Stapleton.

— Não perdia isto por nada deste mundo — respondeu Jack, fazendo estremecer Laurie.

Com o seu temor por figuras de autoridade, não conseguia compreender como é que Jack podia demonstrar um descaramento tão transparente em relação a Calvin. Considerou que se tratava de uma espécie de masoquismo da parte de Jack.

Jack baixou os olhos para Laurie com uma expressão exageradamente inquiridora. Estava sentada no lugar que ele sempre preferia e Laurie escolhera-o pela mesma razão. Fez-lhe uma festa no braço antes de ocupar o assento lateral diretamente à frente do dela. Com a cabeça de Jack no seu campo de visão, considerava ainda mais difícil concentrar-se naquilo que Calvin estava a dizer. Era um alarme visual que lhe lembrava que, de uma maneira ou de outra, teria de ter uma conversa séria com ele.

Depois de anunciadas as estatísticas, Calvin dedicava-se à habitual discussão de questões administrativas pertinentes que geralmente envolviam um certo decréscimo dos subsídios municipais, e a conferência dessa semana não era exceção. Em lugar de ouvir, Laurie observava Jack. Embora ele tivesse acabado de se sentar, a sua cabeça começara a reveladora queda que sugeria que já começara a adormecer, provocando nela a preocupação de que Calvin reparasse e explodisse de fúria. Quando as figuras de autoridade se zangavam, mesmo que não com ela, isso causava-lhe ainda assim desconforto.

Ou Calvin não reparou, ou decidiu simplesmente ignorar esse desrespeito, porque concluiu as suas observações sem fazer uma cena e apresentou o Dr. Jim Bennett, o chefe do gabinete de Brooklyn.

Todos os chefes dos respectivos gabinetes distritais de Nova Iorque se levantavam para fazer a sua apresentação. Quando Dick Katzenburg, de Queens, se colocou atrás do microfone e começou a falar, Laurie teve uma retrospectiva da conspiração de cocaína, doze anos antes. Fora numa conferência de quinta-feira que tivera a idéia de discutir os seus casos de overdoses com o grupo e a discussão que se seguira fora útil, graças a Dick. Perguntou-se por que razão não lhe ocorrera a idéia de fazer o mesmo com os casos do Manhattan General e pensou em levantar a questão. Mudou porém de idéias. Sentia-se demasiado estressada para lidar com a ansiedade de falar em frente do grupo. Contudo, tornou a vacilar ao relembrar-se de que Calvin parecia estar com uma disposição relativamente tolerante.

No final da apresentação das estatísticas de Staten Island por parte de Margaret Hauptman, Calvin recuperou o pódio e perguntou se alguém queria o microfone para qualquer outro assunto. Era uma oferta pró-forma que raramente era aceite, uma vez que as pessoas estavam desejosas de se irem embora. Após um momento de dolorosa indecisão, Laurie ergueu a mão, hesitante. Qualquer hipótese de mudar de idéias foi destruída quando Calvin, rápida, mas relutantemente, a reconheceu. Jack contorceu-se no seu assento à frente dela e lançou-lhe uma exasperada expressão inquiridora, onde estava subjacente: "Por que é que estás a prolongar esta agonia?"

Laurie caminhou com pouca firmeza até ao pódio. Sentia um tremor de adrenalina, uma vez que falar diante de grupos sempre a intimidara. Enquanto ajustava o microfone, repreendeu-se por se ter metido numa situação daquelas. Certamente que não precisava de mais stress.

— Em primeiro lugar, deixem-me pedir-vos desculpa — começou Laurie. — Não me tinha preparado para isto, mas acabei de me lembrar de que gostaria de ter de todos uma resposta geral acerca de uma presente série minha.

Laurie baixou os olhos para Calvin e podia dizer que os olhos dele se tinham semicerrado. Pressentia que ele sabia o que aí vinha e censurava-o. Fitou Jack, e logo que os seus olhos se cruzaram com os dele, ele colocou os dedos como se fossem uma arma e fingiu disparar contra a sua própria cabeça.

Com tais vibrações negativas, Laurie sentiu-se ainda mais insegura. Com o intuito de organizar as idéias, baixou os olhos para a superfície de madeira da mesa inclinada, com a miríade de iniciais e rabiscos envoltos em marcas de esferográfica. Procurando desviar o olhar de Calvin ou de Jack, ergueu-o e lançou-se numa breve descrição da Síndrome de Morte Súbita de Adultos, ou SMSA, termo que admitiu ter cunhado ao falar com uma colega de profissão cinco semanas antes, relativamente a quatro paragens cardíacas completamente inesperadas ocorridas no hospital e que tinham resistido à reanimação. Disse que nesse momento tinha seis casos que se estendiam por um período de tempo de seis semanas e todos apresentavam dados demográficos semelhantes: jovens, saudáveis e no espaço de vinte e quatro horas depois de uma cirurgia seletiva. Prosseguiu dizendo que não havia qualquer patologia evidente ao microscópio, embora em relação aos dois últimos casos ainda faltasse a análise ao microscópio, uma vez que tinham sido autopsiados nessa mesma manhã. Concluiu dizendo que, apesar do fracasso da toxicologia em encontrar um possível agente arrítmico, suspeitava que o modo de morte nesses casos não era natural nem acidental.

Laurie deixou que a sua voz esmorecesse. Tinha a boca seca como palha. Bem que teria gostado de beber um copo de água, mas permaneceu onde estava. Aquilo que estava subjacente ao seu monólogo tornou-se imediatamente claro ao grupo e, durante alguns segundos, o silêncio reinou na sala de conferências. Depois, uma mão ergueu-se no ar, e Laurie dirigiu-se ao indivíduo.

— Então, e os eletrólitos: sódio, potássio e, em especial, cálcio?

— O laboratório relatou que todos os eletrólitos de todas as fontes habituais de amostragem eram inteiramente normais — respondeu Laurie. Dirigiu-se depois a outra pessoa que levantara a mão.

— Há alguma outra relação entre os pacientes para além de serem todos jovens, saudáveis e de terem acabado de ser submetidos a uma cirurgia?

— Nenhuma que seja evidente. Fiz questão de procurar pontos em comum, mas não encontrei qualquer outro para além dos referidos. Os casos envolvem na maior parte das vezes médicos diferentes, procedimentos distintos, diversos agentes anestésicos e, na sua maioria, medicamentação diferente, até mesmo analgésicos pós-cirúrgicos.

— Onde ocorreram?

— Ocorreram os seis no mesmo hospital: o Manhattan General.

— Que tem uma taxa de mortalidade extremamente baixa — interrompeu Calvin.

Estava farto. Ergueu-se, aproximou-se do pódio e usou o seu corpo volumoso para afastar Laurie. Dobrou o microfone endireitando-o e os altifalantes emitiram um ruído estridente e áspero como que em protesto.

— Chamar a estes casos díspares, e nesta fase, uma "série" é enganoso e prejudicial, porque, tal como a Drª. Montgomery admitiu, não estão relacionados. Já disse isto à Drª. Montgomery, e torno a dizer-lho. Digo também a esta augusta assembléia que isto se trata de uma discussão interna que não deve sair desta sala. O GMLS não vai manchar a reputação de um dos principais centros de cuidados terciários com insinuações infundadas.

— Seis é uma coincidência bastante grande — disse Jack. Estava mais acordado desde que Laurie se levantara para falar.

Embora não estivesse a dormir, estava descuidadamente sentado para trás com as pernas penduradas da cadeira à sua frente.

— Poderia fazer o obséquio de mostrar algum respeito, Dr. Stapleton? — resmungou Calvin.

Jack pousou os pés no chão e endireitou-se na cadeira.

— Quatro estava no limite, mas seis são casos a mais, sobretudo se ocorreram todos no mesmo hospital. Ainda assim, vou votar em acidental. Há algo no hospital que está a afetar os sistemas circulatórios dos pacientes.

Dick Katzenburg ergueu a mão. Calvin fez-lhe um gesto com a mão para que falasse.

— O meu colega do gabinete de Queens acaba de me relembrar de que vimos alguns casos semelhantes — disse Dick. — Segundo nos lembramos, os dados demográficos eram bastante semelhantes. Eram todos relativamente jovens e supostamente saudáveis. O último caso foi há pelo menos uns meses atrás, e não tivemos mais nenhum desde então.

— Quantos, no total? — Inquiriu Laurie.

Dick inclinou-se para Bob Novak, o seu subdiretor, e escutou-o por um instante, endireitando-se de seguida.

— Julgamos que também foram seis durante um período de vários meses e foram registrados por vários médicos-legistas. Precisamente quando começávamos a ficar um pouco curiosos acerca deles, pararam e, como resultado, os nossos radares deixaram de ter interesse neles. Lembro-me de que acabaram todos por ser registrados como naturais, embora não tenha sido encontrada qualquer patologia relevante. Tenho a certeza de que os resultados da toxicologia foram negativos para todos os casos, porque isso ter-me-ia por certo chamado a atenção.

— Foram mortes pós-cirúrgicas? — perguntou Laurie.

Fora apanhada de surpresa, sentia-se excitada e satisfeita. Seria um déjà vu se a sua série se relevasse dupla ao trazer o assunto a uma conferência de quinta-feira. E, se fosse dupla, o perfil desses casos seria certamente uma distração mental ainda maior que até a data.

— Creio que sim — disse Dick. — Lamento não poder ser mais conclusivo.

— Eu compreendo — disse Laurie. — Onde tiveram lugar essas mortes?

— No hospital Saint Francis.

—Ah, a intriga adensa-se! — comentou Jack. — O Saint Francis não é também um hospital da AmeriCare?

— Dr. Stapleton! — rebentou Calvin. — Mantenha por favor um pouco de decoro! Tenha respeito se deseja contribuir para a conversa.

— É uma instituição da AmeriCare — disse Dick, virando-se para Jack e ignorando Calvin.

— Como poderei aceder aos seus nomes e números de registro? — perguntou Laurie.

— Envio-lhe um e-mail logo que chegue ao gabinete de Queens — disse Dick. — Ou podemos simplesmente telefonar à minha secretária. Creio que ela seria capaz de encontrar a lista.

— Gostaria de os ter o mais depressa possível — disse Laurie. — Gostaria de ter acesso aos relatórios hospitalares, e quanto mais depressa conseguir passar os números de registro a um dos nossos investigadores, melhor.

— Por mim, tudo bem — disse Dick, de modo afável.

— Mais alguma questão? — Perguntou Calvin. Perscrutou o grupo e depois deu a reunião por terminada. — Encontramo-nos na próxima quinta-feira.

Enquanto a maioria dos médicos-legistas se levantavam, espreguiçavam e retomavam as conversas que a reunião interrompera, Dick dirigiu-se a Laurie. Tinha o telemóvel colado à orelha e estava a descrever a localização de uma pasta na sua secretária. Fez um gesto a Laurie para que ela esperasse.

Lançando um olhar de relance a Jack, Laurie viu-o escapulir-se de imediato da sala de conferências. Tivera esperança de poder falar com ele, ainda que brevemente, para lhe agradecer o fato de, no fim de contas, a ter apoiado durante a sua mini-apresentação.

— Tem onde escrever? — Perguntou Dick.

Laurie pegou numa caneta e nas costas de um envelope. Enquanto mantinha o dedo no envelope para o manter estável sobre a superfície de escrita de uma das cadeiras, Dick escreveu os nomes e os números de registro. Agradeceu à secretária e desligou.

— Bom, aqui tem — disse ele. — Diga-me se a puder ajudar de qualquer outro modo. Sou obrigado a admitir que parece curioso.

— Calculo que serei capaz de aceder àquilo de que necessito através do banco de dados, mas se não o conseguir, falo consigo. Obrigada, Dick! É a segunda vez que me ajuda. Lembra-se daqueles casos de cocaína há doze anos?

— Agora que fala nisso, é claro que me lembro, embora pareça que tenha sido numa outra vida. De qualquer modo, fico contente por poder ser útil.

— Drª. Montogmery! — gritou Calvin. — Posso falar consigo por um segundo? — Embora o comentário fosse apresentado como um pedido, era mais uma ordem.

Laurie lançou a Dick um aceno de despedida e dirigiu-se cautelosamente a Calvin.

— Se os casos de Dick forem semelhantes aos seus em termos de dados demográficos, quero que me avise. Entretanto, mantém-se de pé a proibição de falar da sua suposta série a qualquer pessoa fora do GMLS. Estou a ser claro? A Laurie e eu tivemos no passado os nossos desentendimentos acerca de informação passadas aos media e eu não quero que isso se repita.

— Compreendo — disse Laurie nervosamente. — Não se preocupe! Aprendi a lição, e certamente não procuraria os media. Ao mesmo tempo, tenho de admitir que tenho falado com o chefe do pessoal médico do Manhattan General desde o início destes casos. É meu amigo.

— Como é que se chama?

— Dr. Roger Rousseau.

— Uma vez que faz parte do pessoal, calculo que é seguro partir do princípio de que está ciente da natureza delicada desta questão.

— Sem dúvida.

— Calculo que também é seguro partir do princípio de que não procurará os media.

— Dificilmente o faria — disse Laurie. Sentia-se mais confiante. Calvin encontrava-se definitivamente com um humor mais ameno. — No entanto, o Dr. Rousseau está legitimamente preocupado e creio que gostaria de saber se os casos de Dick serão efetivamente idênticos. Dar-lhe-ia a oportunidade de falar com o seu homônimo do hospital Saint Francis e fá-lo-ia sentir que não é o único com esse problema.

— Bem, não vejo mal em que fale com ele, desde que seja clara quanto ao fato de que, oficialmente, o GMLS não concorda de momento com a sua avaliação do modo de morte e de presente irá apoiar a inclinação do gabinete de Queens,

Laurie deixou a sala de conferências e dirigiu-se diretamente ao gabinete do investigador. Começava a acalmar-se da ansiedade de falar em frente do grupo e de ter tido de confrontar Calvin. Sentiu-se ainda melhor ao encontrar Cheryl Meyers à sua secretária, uma vez que o seu dia de trabalho terminara oficialmente uma hora antes. Na opinião de Laurie, Cheryl era a investigadora mais talentosa do GMLS e tão trabalhadora como Janice. Laurie pediu a Cheryl que copiasse a lista de nomes e de números de registro que Dick lhe dera e pediu-lhe que acrescentasse um pedido de cópias dos relatórios dos pacientes ao hospital Saint Francis.

— E quanto às pastas das autópsias e certidões de óbito? — perguntou Cheryl.

Tal como Laurie explicara a Dick, disse-lhe que ia tentar ver primeiro o que conseguiria obter da base de dados informática. Se precisasse de ajuda para as cópias, iria ter com ela.

Agarrando no envelope e lendo em silêncio os nomes vezes sem conta, Laurie subiu de elevador. A sua intuição dizia-lhe alto e bom som que os dados demográficos e os pormenores dessa nova lista de vítimas haveria de ir ao encontro da sua. A sua série de SMSA era agora de doze pessoas.

Chegada ao quinto piso, Laurie hesitou. Precisou de um instante para se sentir confiante. Apetecia-lhe descer até ao gabinete de Jack para falar com ele, ainda que brevemente, sobre a revelação perturbante e potencial que tivera no gabinete de Roger. Pensou que acalmaria as suas ansiedades se as partilhasse, mas não sabia bem o que queria dizer nem mesmo como começar. Numa tentativa de se mostrar impassível perante todas essas incertezas, inspirou, fortalecendo-se, e começou a andar.

Quanto mais se aproximava, mais devagar seguia. Tornou a hesitar antes de se mostrar à entrada, amedrontada com a sua indecisão. Estava a tornar-se, ou uma cobarde, ou irremediavelmente fraca, ou uma mistura de ambas. Laurie olhou ansiosa por cima do ombro para a sua própria porta, a cerca de metro e meio de distância, e estremeceu.

Ao ouvir uma cadeira de secretária a raspar no chão no interior do gabinete à sua frente, e sentindo que Jack vinha a sair, Laurie quase se sentiu entrar em pânico. Felizmente, não havia tempo, e nem sequer era Jack. Chet foi literalmente de encontro a ela na sua pressa.

— Ah, céus, desculpa! — disse Chet enquanto agarrava Laurie pelos ombros para impedir de a atirar ao chão quando os dois tropeçaram um passo para trás.

Ele soltou Laurie imediatamente e dobrou-se para apanhar o casaco que deixara cair.

— Está tudo bem — disse Laurie. Recuperou-se depressa, embora tivesse a pulsação acelerada.

— Estou de saída para a minha aula de musculação — disse Chet em jeito de explicação. — Obviamente, estou atrasado. E se andas à procura de Jack, chegaste tarde. Tinha um jogo de basquetebol importante no campo do bairro e saiu daqui disparado há dez minutos.

— Ah, que pena! — exclamou Laurie. Na verdade, sentia-se aliviada. — Não faz mal. Apanho-o de manhã.

Chet despediu-se com um aceno e atravessou o corredor a correr até ao elevador. Laurie caminhou até ao gabinete. Subitamente, sentia-se muito cansada. Tinha sido um dia duro. Estava ansiosa por regressar ao apartamento e tomar um banho quente.

Tal como Laurie suspeitava, o seu gabinete estava deserto. Nos trinta minutos seguintes, fez um download dos registros dos seis casos de Queens. Embora os relatórios dos investigadores forenses não se aproximassem sequer em termos de qualidade dos de Janice, havia informação suficiente para que Laurie concluísse que os casos eram, com efeito, idênticos aos dela. As mortes ocorriam nas primeiras horas da manhã, entre as duas e as quatro, as idades variavam entre os vinte e seis e os quarenta e dois, nenhum dos pacientes tinha historial de problemas cardíacos e ocorreram no limite das vinte e quatro horas após a cirurgia programada.

Quando terminou, estendeu a mão para o telefone e marcou o número de Roger. Prometera-lhe que lhe telefonaria e era tão boa altura como qualquer outra, especialmente porque tinha algo de especial a dizer para além de lhe explicar o seu comportamento no gabinete. Feita a chamada, deu por si dessa vez a esperar a resposta do atendedor para evitar ter de resistir a ser arrastada para uma conversa acerca de coisas que não queria discutir, mas, infelizmente, Roger atendeu ao segundo sinal com a habitual voz bem-disposta. Quando se apercebeu de que se tratava de Laurie, mostrou-se imediatamente solícito.

— Estás bem? — perguntou ansiosamente.

— Estou a agüentar-me — respondeu Laurie. Não ia mentir. — Estou ansiosa por regressar ao meu apartamento. Não foi bem a minha idéia de um dia excelente. Entretanto, fiquei a saber de uma coisa nesta última hora que julgo que vais achar interessante. No decurso da nossa conferência interdepartamental das quintas-feiras, chamou-me a atenção o fato de ter havido seis mortes no hospital Saint Francis, no Queens, que até agora são espantosamente idênticas às do Manhattan General.

— A sério? — perguntou Roger. Mostrava-se simultaneamente surpreendido e interessado.

— Fiz um download das certidões de óbito e dos relatórios de investigação e pedi cópias dos relatórios hospitalares. Vai demorar algum tempo até conseguir os relatórios, mas, entretanto, envio-te o que conseguir amanhã. Parto do princípio de que quererás discutir isto com o chefe do pessoal médico do Saint Francis.

— Sem dúvida, quanto mais não seja para nos lamentarmos juntos. — Mudando de assunto, Roger acrescentou: — Agora, falemos de ti. Devo dizer-te que tenho andado muito preocupado desde que interrompeste abruptamente uma frase a meio aqui, no meu gabinete, e depois, basicamente, saíste. O que se passa na tua cabeça?

Laurie enrolou o fio do telefone nos dedos enquanto tentava pensar em algo apropriado para dizer. Não era sua intenção, de modo algum possível ou imaginária, causar ansiedade a Roger, mas não havia forma de querer discutir aquilo que lhe dominava os pensamentos, especialmente porque nem sequer sabia ao certo se as suas preocupações eram justificadas.

— Ainda aí estás? — inquiriu Roger.

— Ainda aqui estou — assegurou-lhe Laurie. — Roger, estou bem. A sério! E logo que me sinta confortável para falar sobre o que me ocupa o pensamento, prometo que o farei. Será que consegues aceitar isso de momento?

— Creio que sim — disse Roger sem entusiasmo. — Tem a ver com o resultado positivo quanto ao marcador de BRCA1?

— Indiretamente, até certo ponto. Mas, por favor, Roger, mais perguntas, não.

— Tens a certeza de que não te queres encontrar comigo esta noite?

— Esta noite, não. Telefono-te de manhã. Prometo.

— Está bem, fico à espera de saber de ti. Mas se mudares de idéias, vou estar em casa esta noite.

Laurie desligou o telefone, deixando a mão a repousar sobre o auscultador. Sentia-se culpada por causar angústia a Roger, mas não falaria com ele sobre o que lhe ia na alma.

Afastou-se da secretária e levantou-se, olhando depois para a pilha de material novo da base de dados do GMLS. Pensou em levar os papéis consigo para casa e acrescentar os nomes à sua matriz, mas rejeitou de imediato a idéia. Poderia lidar no dia seguinte com a série que aumentava.

Com o casaco sobre o braço e o chapéu-de-chuva na mão, Laurie apagou a luz e trancou a porta do gabinete. A paragem seguinte era a farmácia e, depois disso, o seu apartamento. Quando premiu o botão para descer do elevador quase sentia a deliciosa sensação de deslizar para o interior de um banho quente. Para ela, um banho era tanto uma experiência terapêutica como uma oportunidade para se limpar.

 

“Cento e noventa e nove, duzentos", contou para si Jazz antes de parar de fazer abdominais. Ficou deitada de costas na base inclinada do aparelho de abdominais, mantendo as mãos atrás da cabeça enquanto olhava para a madeira embutida no teto da sala de pesos do health dub. Respirava com dificuldade por ter puxado por si mesma ao longo de todo o treino, fazendo o dobro do número normal de repetições para cada exercício e com os pesos de cada fase. Um tal esforço exercia geralmente um efeito catártico sobre ela, limpando-lhe a mente, e esse dia não foi exceção. Sentia-se melhor. Fechou os olhos e deixou que o seu corpo descontraísse, apesar de ter a cabeça numa posição inferior à do resto do corpo, fazendo com que o sangue fluísse em direção à cabeça.

Jazz não conseguira deixar de se apoquentar com os imprevistos nos casos de Lewis e Sobczyk, a ponto de ter dificuldades em dormir. Antes desses dois episódios problemáticos, realizara dez missões sem sombra de preocupação. Irritara-a o fato de as pessoas poderem ser tão difíceis, especialmente Lewis, que lhe agarrara o braço daquela forma. Sobczyk não fora muito melhor, com o modo como gorgolejara e se contorcera justamente no momento errado. A única parte boa fora que essa lamentável situação a fizera ultrapassar os limites no que dizia respeito a Susan Chapman. Jazz fantasiara livrar-se dela desde o primeiro dia e agora estava feito.

Jazz retirou os pés de debaixo da barra almofadada e fez girar as pernas para o lado. Ergueu-se e olhou ao espelho para o seu rosto muito vermelho e suado. Agarrou na toalha e limpou o suor da testa antes de erguer os olhos para o relógio. Embora tivesse basicamente duplicado toda a rotina de treino, tornara-lhe apenas trinta minutos mais.

Deixando que os seus olhos varressem brevemente o espaço, avistou os inevitáveis olhares furtivos da maioria dos ocupantes masculinos, incluindo do louro Sr. Ivy League, que não via há algum tempo. Tendo em conta a disposição com que se encontrava, quase desejava que ele tentasse de novo meter conversa. Desta vez não seria tão simpática.

Sabendo que tinha de se despachar se quisesse chegar ao trabalho razoavelmente cedo, Jazz dirigiu-se aos balneários. Agora que tinha a irritação acerca dos episódios de Lewis e de Sobczyk sob controlo, podia pensar com maior clareza sobre eles. Nenhum deles era culpa sua. Fazendo a rotação do braço esquerdo, olhou para as marcas de arranhões ainda abertas. Nem acreditava que o sujeito tivera a lata de a arranhar daquela maneira e esperava que ele não fosse HIV positivo. Certamente merecia o que lhe acontecera. De futuro, lembrou Jazz a si mesma, deveria manter-se afastada da mão livre do indivíduo em questão. Em relação ao desastroso resultado Sobczyk, era culpa de Chapman, e agora que Chapman fazia parte do passado, pouco havia com que se preocupar.

Com a toalha e o walkman numa mão, Jazz usou a outra para abrir a porta dos balneários das senhoras. Atirou a toalha para o grande cesto e, de walkman debaixo do braço, tirou uma Cola do recipiente cheio de gelo. Depois de ter dado uma olhadela em redor para se certificar de que ninguém estava a ver, prosseguiu. Puxou a argola com um estalido e bebeu um longo e satisfatório gole.

Em última análise, a verdadeira ameaça dos percalços em relação a Lewis e a Sobczyk era a possibilidade de descoberta. O Sr. Bob avisara-a acerca das ondas e ambos os episódios tinham sido como ondas de três metros. Participar na Operação Peneira fora a melhor coisa que sucedera a Jazz, e ela estremeceu ao pensar no que poderia ter acontecido se não tivesse despachado Chapman quando o fez. Ou, pior ainda, no que poderia ter sucedido se Chapman se tivesse dirigido diretamente à supervisora de enfermagem nessa manhã em lugar de ter saído para o carro. Jazz nem sequer gostava de pensar nisso, porque tudo aquilo para que trabalhara poderia ter ido pela pia abaixo. No início da sua relação com o Sr. Bob, decidira que não permitiria que nada nem ninguém se interpusesse entre ela e o seu sucesso recentemente descoberto. Mesmo antes de ter ido para o health dub, tinha se ligado à Internet para verificar a sua conta bancária. Tal como esperara, o seu saldo era agora de quase cinqüenta mil dólares. O mero ato de olhar para os números fê-la sentir-se no paraíso.

— Ei! — zombou alguém. — Ouvi dizer que era enfermeira e não neurocirurgiã.

Jazz deteve-se e virou-se para olhar a pessoa que falara com ela. Era uma mulher roliça, com uma toalha atada em redor do corpo como um cannoli.

— Eu conheço-a?

—Disse-me que era neurocirurgiã — disse a mulher com desdém. — E como sou uma pessoa de boa fé, acreditei em si. Bom, agora já sei que não é verdade.

Jazz deixou escapar uma irônica semi-gargalhada. Lembrava-se vagamente de ter feito esse comentário, mas o fato de aquela gorda se recordar disso e de ter a lata de tocar no assunto era uma piada de mau gosto.

— Por que é que não te metes na tua vida, suína? — escarneceu Jazz, e começou a andar antes que a mulher pudesse responder.

Jazz abanou a cabeça e perguntou-se se deveria procurar outro health club. Naquele que de momento freqüentava, costumavam ser apenas os homens a irritá-la, mas agora que as mulheres começavam a fazê-lo, seria porventura altura de sair.

Jazz não demorou muito no duche, nem se pôs a engenhar; vestiu o material protetor verde e a bata branca. Quando vestiu o casaco cor de azeitona, verificou os bolsos, como fazia sempre. Afagou a Glock e o Blackberry enquanto passava os olhos pelo cacifo para se certificar de que tirara tudo aquilo de que precisava.

Enquanto descia no elevador, perguntava-se quando teria a próxima missão da Operação Peneira. Esperava que fosse em breve e não era apenas pelo dinheiro. Uma vez que os problemas dos últimos dois casos tornavam a possibilidade de descoberta uma preocupação realista, preocupava-a ser descoberta. Aprendera a lidar com esses pensamentos negativos no serviço militar. A idéia era tornar a saltar imediatamente para a água.

No nível superior do parque de estacionamento, dirigiu-se ao carro que a esperava. Reluzia à luz crua e fluorescente do parque e tinha uma aparência imponente, apesar do fato de já não ser virginal. Na traseira, à esquerda, havia uma mancha de tinta amarela e uma pequena mossa provocada por um recente picanço com um taxista. Jazz não estava satisfeita com o defeito no veículo, cuja superfície, à parte isso, era imaculada, mas o dano causado ao táxi e a irritação do condutor compensaram o defeito insignificante.

Quando se encontrava a cerca de três metros, ativou o fecho centralizado e ouviu os cliques mecânicos das portas a serem destrancadas. Ao aproximar-se de lado, viu de relance o seu reflexo nos vidros esfumados e ajeitou a franja com os dedos. Abriu a porta do lado do passageiro, atirou o saco de desporto para cima do banco e balançou-se para o assento atrás do volante. Ao enfiar a chave na ignição, na expectativa de ouvir o rugido do V-8, uma mão agarrou-lhe o ombro.

Jazz quase saiu disparada pelo tejadilho. Rodando sobre si mesma depressa o suficiente para bater com a anca no volante, lançou um olhar ao banco traseiro. Na semi-obscuridade do interior, escurecido pelos vidros fumados e escuros, tudo o que conseguia ver eram as silhuetas de dois homens. Tinham os rostos ocultados pelas sombras. Enquanto Jazz se debatia freneticamente para levar a mão ao bolso do casaco para retirar a Clock, um dos homens falou:

— Olá, Drª. J. R.!

— Credo, Sr. Bob! — exclamou Jazz atabalhoadamente. Largou a Glock. Em lugar disso, bateu com a palma da mão na testa. — Pregou-me um susto de morte.

— Não era essa a intenção — disse o Sr. Bob num tom que não era de desculpa. — Estamos só a ser discretos.

Estava sentado no assento oposto ao dela, no banco de trás, ligeiramente inclinado para diante. O outro homem estava recostado para trás de braços cruzados.

— Como raios é que aqui entrou? — inquiriu Jazz.

Olhou de soslaio para tentar ver o outro fulano enquanto esfregava a parte de cima do osso ilíaco. Pulsava devido ao doloroso contato com o volante.

— Fácil. Conservamos uma chave quando entregamos o veículo. Gostaria que conhecesse um colega meu: o Sr. Dave.

— Não consigo ver nenhum de vós — queixou-se Jazz. — Devo ligar a luz interior?

— Não é necessário e prefiro que não o faça.

— O que está aqui a fazer?

— Precisávamos de nos sentir tranqüilizados.

— Tranqüilizados em relação a quê?

— Para começar, queremos ter a certeza de que os dois pacientes cujos nomes recebeu ontem foram sancionados.

— Mas é claro. Tratei dos dois ontem à noite.

Jazz sentia a pulsação acelerar. Nervosa, receava que Bob tivesse de algum modo ficado a saber dos sarilhos.

— E depois há uma pequena questão acerca de uma enfermeira ter sido morta no parque de estacionamento do Manhattan General, supostamente por uns escassos cinqüenta dólares. O que me pode dizer acerca desse incidente?

— Nada. Não ouvi nada sobre o assunto. Quando é que isso sucedeu?

Jazz agitou a língua no interior da boca. Estava seca como palha. Contudo, e deliberadamente, não desviou os olhos nem se mexeu no assento, graças à sua formação em interrogatórios militares.

— Esta manhã, entre as sete e as oito. Chamava-se Susan Chapman. Conhecia-a?

— Susan Chapman! É claro que a conhecia. Era a incompetente enfermeira encarregada no meu piso.

— Foi o que pensamos e, francamente, foi isso que nos preocupou. Queríamos ter a certeza de que não esteve envolvida no caso, tendo em conta a sua reputação, Drª. J. R. Eu sei que aquele sacana daquele oficial em San Diego estava a pedi-las, mas você disparou contra ele, ainda que não letalmente. Tem a certeza de que esta Susan Chapman não a irritou e a fez perder a cabeça, algo de semelhante ao que se passou com o oficial da marinha? Sentimos que é uma certa coincidência que tenha sido morta, tendo em conta a sua história, e sendo sua superior imediata.

— Então é disso que se trata? Julgam que matei Susan Chapman? Ei, de maneira nenhuma! Quer dizer, a Susan e eu podemos ter tido as nossas divergências, mas isso eram coisas menores, como o fato de ela me atribuir sempre casos de porcaria ou de me dar nas orelhas por me ter sentado por dois segundos. Não a mataria, de modo nenhum. Vá lá! Acham o quê, que sou maluca?

— A questão é que precisamos ter a certeza de que o seu comportamento se encontra acima de qualquer crítica. Deixei isso bem claro quando a recrutei para o nosso programa. Lembra-se, não pode haver ondas! É claro que tudo isto se baseia na assunção de que quererá manter-se uma participante ativa da Operação Peneira.

— Mas é claro! — disse Jazz com convicção.

— Está contente com a sua recompensa e acredito que este jipe onde estamos sentados tem sido uma fonte de divertimento?

— Nem vale a pena falar sobre isso. Estou contente!

— Ótimo! Agora, tenho a sua palavra em como se houver algum problema com um qualquer aspecto relacionado com a sua posição, ou com os seus colegas de trabalho, ou com o trabalho que faz para nós, me telefona para o número especial que lhe dei? Parto do princípio de que ainda o tem?

— Julguei que esse número de telefone fosse apenas para emergências.

— Consideraria aquilo de que estamos a falar uma emergência. Quero que me telefone se alguma vez se sentir tentada a fazer alguma coisa fora do usual, em particular alguma coisa violenta que possa instar uma investigação, como certamente este homicídio da enfermeira encarregada fará. Lembre-se! Disse-lhe desde o início que, para nós, a segurança é da maior importância, uma vez que qualquer brecha poderia colocar em perigo toda a operação. Tenho a certeza de que não deseja isso.

— É claro que não.

— Consideramos preocupante qualquer tipo de investigação, especialmente se for envolvida nele.

— Concordo.

— Então vemos as coisas da mesma maneira.

— Sem qualquer dúvida.

O Sr. Bob virou-se para o companheiro.

— Há alguma coisa que gostasses de dizer ou de perguntar à Drª. J. R.?

— Quantas vezes por semana vem a este clube desportivo? — perguntou o Sr. Dave. Descruzou os braços e inclinou-se ligeiramente para a frente.

Jazz encolheu os ombros.

— Não sei, talvez cinco ou seis, por vezes até sete. Por que?

— Então, para além do seu apartamento ou do hospital, este é o único local onde passa mais tempo?

— Creio que sim.

— Tem atualmente algum namorado ou amigas chegadas?

— Nem por isso — disse Jazz. Embora não conseguisse ver o rosto do homem, sentia, pela sua voz, que o Sr. Dave era mais jovem que o Sr. Bob. — Que raio de perguntas são essas?

— Gostamos sempre de conhecer os nossos agentes — disse o Sr. Bob com um sorriso. Os seus dentes pareciam especialmente brancos à luz débil. — Tem alguma pergunta para nós?

— Sim! Quais são os vossos verdadeiros nomes? — Jazz riu-se com nervosismo.

Sentia-se numa clara desvantagem, sendo que eles tinham informações acerca dela e ela nada sabia sobre eles.

— Lamento, mas isso é confidencial.

— Então não tenho perguntas.

— Muito bem — disse o Sr. Bob. — Temos uma coisa para si: outro nome. Creio que vai trabalhar esta noite.

— Claro! Estou de serviço nas próximas quatro noites, por isso vou estar disponível. Qual é o nome?

— Clark Mulhausen.

Jazz repetiu o nome. Com uma nova missão, sentia-se agora inteiramente recuperada do choque de ter sido surpreendida pelos homens no interior do seu Hummer e pelo fato de o homicídio de Susan Chapman ter sido referido. Na verdade, agora sentia-se exaltada. Sentia-se, por outras palavras, a mergulhar de novo na água.

— Será então capaz de tratar do Clark esta noite?

— Considere o trabalho feito — disse Jazz com um sorriso confiante e irônico.

O Sr. Bob abriu a porta e saiu. O Sr. Dave fez o mesmo do seu lado.

— Lembre-se, nada de ondas! — lembrou-lhe o Sr. Bob antes de fechar a porta.

— Nada de ondas — repetiu Jazz por cima do ombro, mas não tinha a certeza se os homens a tinham ouvido, porque as duas portas se fecharam em simultâneo enquanto ela falava.

Observou os dois homens a passarem pela fila de carros em direção a um Hummer H2 que era uma cópia do seu. Jazz não reparara nele ao chegar ao parque. Logo que os homens subiram para o seu veículo, Jazz ligou a ignição e fez marcha atrás do seu espaço.

— Sacanas! — murmurou enquanto conduzia em direção à rampa que dava para a rua.

Embora estivesse excitada por ter recebido mais um nome e satisfeita por tudo correr bem com a Operação Peneira, sentia-se ofendida pela forma como estava a ser tratada. Não gostava de ser subserviente nem que lhe falassem de cima, que fora o que sucedera durante a conversa com o Sr. Bob e com o Sr. Dave. Até os nomes dos homens eram estúpidos e como um balde de água fria. Perguntou-se ainda vagamente quanto lhes pagariam a eles por cada sanção, uma vez que ela recebia cinco mil dólares. "Caraças!", pensou, era ela que tinha o trabalho todo.

— Então, o que é que achas? — perguntou David Rosenkrantz a Robert Hawthorne.

Bob estava no lugar do condutor, tamborilando lentamente os dedos no volante e a olhar pelo pára-brisas para a parede nua de cimento enquanto ponderava a conversa que tivera com Jazz. Ainda tinha de ligar o carro. Dave encontrava-se no assento do passageiro, a olhar para o patrão.

— Não sei — disse Bob por fim, erguendo as mãos no ar. Abanou a cabeça e virou-se para o subalterno.

Bob era um homem robusto, de aspecto atlético, com feições grosseiras que contrastavam com o seu fato italiano. As roupas elegantes eram para ele uma nova afetação. A maior parte da sua vida fora passada em canseiras militares, correndo o mundo em operações especiais como membro das Forças Especiais do Exército.

— Gerir esta operação é uma clássica pescadinha de rabo na boca. Passamos tanto tempo a procurar e a cultivar estes tarados anti-sociais, dispostos a levar a cabo as missões sem compunção, mas depois temos de lidar com a sua loucura. Esta Rakoczi é disso bom exemplo. Dá para acreditar que ela tentou com efeito acertar nos tomates daquele oficial da marinha só porque se fez a ela?

— Sim, lá eficiente é ela — disse Dave.

Dave estava na casa dos vinte, tinha quase metade da idade de Bob. Era de constituição mais delgada, mas igualmente atlética. Fora recrutado por Bob na prisão, onde tinham ambos cumprido pena: Bob, por quase ter assassinado um homossexual que cometera o erro de o abordar num bar, e Dave por puro furto avultado.

— É o melhor que temos — respondeu Bob. — É por isso que estou dividido. A Rakoczi não é pessoa para fazer farinha. Damos-lhe um nome e, zás, a pessoa desaparece nessa mesma noite. Nem por uma vez houve qualquer hesitação ou desculpas, como tivemos de agüentar da parte de todos os outros. Mas, tal como estava a tentar sugerir, tenho medo que ela seja um furacão incontrolável.

— Achas que esteve envolvida no homicídio da enfermeira?

— Para te dizer a verdade, não faço idéia, embora não descartasse a hipótese. Ao mesmo tempo, sei que não o faria por cinqüenta dólares, por isso talvez tenha sido um assalto. Não sei, simplesmente. Tinha esperanças de que, ao surpreendê-la, ficássemos com uma idéia mais clara.

— Não teve grande reação quando mencionaste o nome da enfermeira pela primeira vez, mas depois pareceu ficar um bocado passada.

— Fiquei com a mesma impressão, mas não sei como interpretá-lo. Tal como a maioria dos nossos agentes, tem um historial de não se dar bem com os superiores, de modo que a notícia da morte de Chapman pode tê-la deixado satisfeita por não ter de continuar a aturá-la.

Bob ligou o motor do veículo e virou-se para trás para fazer recuar o jipe do espaço no parqueamento.

— Acho que teremos de ficar atentos e ver o que acontece — disse Bob. Logo que o carro saiu do lugar, ligou o automático e dirigiu-se à rampa. — Se ocorrerem mais disparos que impliquem coincidências, seremos obrigados a suspeitar do pior, e ela terá de ir. Se tal acontecer, serás tu o homem.

— Sim, bem sei — disse Dave. — Foi por isso que lhe perguntei quais eram os hábitos dela.

— Foi o que calculei — disse Bob, subindo até a entrada. — Mas toma aquilo que ela disse com um pouco de desconfiança. As pessoas como a Rakoczi têm tantos escrúpulos em mentir como em engraxar os sapatos.

Dave anuiu, mas não estava preocupado. As tendências solitárias de Rakoczi fariam com que lidar com ela fosse obra fácil.

 

Laurie colocou a pequena tampa de plástico no instrumento quando considerou que ele estava adequadamente ensopado e colocou-o na borda do lavatório. Por certo que não ficaria ali sentada a observá-lo durante o tempo necessário. Em lugar disso, subiu para o duche, envolveu-se na espuma de um gel de banho e espalhou xampu pelo cabelo. Permaneceu depois debaixo da torrente de água durante alguns minutos, permitindo que ela lhe caísse em cascata sobre a cabeça. Para Laurie, um duche não era bem a experiência terapêutica que era um banho de imersão, mas era igualmente calmante.

Fora uma noite inquieta para Laurie, cuja mente se recusava a desligar. Quando conseguiu dormir, fê-lo aos bochechos, perseguida por sonhos perturbantes, incluindo o pesadelo recorrente com o irmão a afundar-se na lama. Quando soara o despertador, sentiu um certo alívio por aquela longa noite ter finalmente acabado. Mal se sentia descansada, mas estava aliviada por sair da cama. As cobertas e os lençóis estavam num desalinho tal por força das voltas que dera na cama que parecia que tinha ali havido um combate de luta livre.

À semelhança das noites anteriores, sentira um toque de náusea ao levantar-se. No momento em que desligou o chuveiro ainda sentia um resquício, mas partindo do princípio de que a situação seria a mesma, esperava sentir-se no seu estado quase normal depois de ter ingerido um pouco do pequeno-almoço.

Laurie saiu do tapete de banho e enxaguou-se, depois virou-se e inclinou a cabeça no interior da cabina do duche para sacudir a espessa juba, como um cão que saísse de uma imersão num lago. Enxaguou de seguida vigorosamente o cabelo e envolveu-o na toalha. Só então se aventurou a baixar os olhos para a inocente peça de plástico que se encontrava na borda do lavatório.

Laurie reteve a respiração. Com os dedos ligeiramente trêmulos, pegou no instrumento como se pelo fato de o segurar mais perto de si o resultado fosse diferente. Não o era, porém. Na pequena janela do invólucro de plástico havia duas riscas cor-de-rosa. Laurie fechou os olhos e manteve-os assim por um prolongado momento. Quando os reabriu, as riscas rosadas continuavam lá. Não eram fruto da sua imaginação. Dado que tinha estudado as instruções na parte lateral da caixa, Laurie sabia que o teste era positivo. Estava grávida!

Com os joelhos a tremer, Laurie baixou a tampa da sanita e sentou-se. Por um instante, sentiu-se completamente esmagada. Tinham sucedido demasiadas coisas desconcertantes num período de tempo demasiado curto. Tudo começara com o semi-rompimento com Jack, logo seguido do cancro da mãe, da situação com a mutação do BRCA1 e depois a relação vertiginosa com Roger. E agora era arrastada para ainda mais um potencial tumulto. Durante a maior parte da sua vida, sonhara como seria ficar grávida, mas agora que estava, não sabia como se sentir. Era como se a sua vida se escapasse abruptamente ao seu controlo.

Laurie tornou a colocar o dispositivo do teste na borda do lavatório e olhou para a caixa que o contivera, que pousara sobre a tampa do cesto. Sentia-se uma vez mais tentada a culpar o mensageiro, como se estar grávida fosse culpa do teste de gravidez. Laurie podia tê-lo feito na noite anterior, mas lera que era mais fiável e sensível de manhã. De modo que aguardara. Era óbvio que estivera a procrastinar e a protelar o inevitável. Quando a possibilidade de estar grávida lhe ocorrera de súbito no gabinete de Roger, sentira-se quase certa de que estaria. Afinal de contas, isso explicaria a náusea matinal, que tolamente tentara atribuir às vieiras.

Laurie abanou a cabeça, consternada. O fato de ter sido apanhada de surpresa pela sua gravidez era mais um exemplo da sua capacidade de afastar da mente coisas em que não queria pensar. Lembrava-se claramente de ter dado pela falta do período três semanas antes. Porém, com tudo o resto que se passava, decidira não se preocupar com o assunto, e assim foi. Ao fim e ao cabo, já lhe tinha faltado o período antes, em especial quando sob stress, e, atualmente, não havia certamente escassez de stress na sua vida.

Baixando a cabeça para olhar para o abdômen, Laurie tentou compreender que havia o princípio de uma criança dentro de si. Embora sempre tivesse considerado a idéia como algo de natural, agora que estava com efeito a acontecer, parecia-lhe tão fenomenal que desafiava a lógica. Soube imediatamente quando ocorrera a concepção. Tinha de ter sido aquela manhã em que ela e Jack tinham dado por si, estranha e completamente despertos a meio da noite. A princípio, tinham sido cuidadosos para não perturbar o outro, mas ao descobrirem que nenhum deles estava a dormir, tinham começado a conversar. A conversa conduzira às carícias, e as carícias tinham progredido para um abraço. A conseqüência, terem feito amor, fora natural e saciara-a inicialmente, mas, quando Laurie deu por si ainda acordada, a intensidade do ato de fazer amor levara-a ironicamente a perceber aquilo de que sentia falta: uma família com filhos. Agora, a derradeira ironia consistia no fato de que esse ato de fazer amor produzira com efeito uma criança por que ela ansiara, embora sem um casamento.

Laurie levantou-se e pôs-se de lado diante do espelho. Tentou ver se tinha alguma protuberância na barriga, mas depois riu-se abertamente de si mesma. Sabia que às cinco semanas um embrião não era maior que uns oito milímetros, dificilmente criando quaisquer alterações externas visíveis.

De súbito, Laurie parou de rir e mirou-se ao espelho. Estar grávida nas presentes circunstâncias dificilmente seria motivo para risos. Era um erro com conseqüências sérias para a sua vida, e para os outros também. Foi com esse estado de espírito que se perguntou como teria acontecido. Teve sempre o cuidado de evitar fazer amor quando julgava estar no período fértil, por isso, como é que fizera asneira? Pensou em retrospectiva na noite em que tinham feito amor, e logo que o fez, percebeu o que sucedera. Às duas da manhã, era tecnicamente o dia seguinte. O dia anterior fora o décimo, o que provavelmente teria estado bem, mas certamente não ao décimo primeiro.

— Oh, meu Deus! — exclamou Laurie em voz alta e num tom de desespero ao começar a interiorizar a realidade da situação.

Sentia-se verdadeiramente esmagada e até um pouco deprimida. A necessidade de falar com Jack passara subitamente de desejo a urgência; porém, nesse instante, perguntava-se como arranjaria força emocional para o fazer. Tinha demasiados pensamentos em turbilhão na sua mente, o menor dos quais não seria o conhecimento de ser positiva quanto ao marcador BRCA1. Como é que isso jogaria com o fato de estar grávida? Não fazia idéia, mas o pensamento fez surgir invariavelmente a palavra "aborto". Apesar de ser médica, Laurie associara sempre mais o termo às suas conotações políticas respeitantes aos direitos das mulheres que a um procedimento que haveria de ponderar. Subitamente, tudo isso mudara.

— Tenho de me recompor! — disse Laurie à sua imagem ao espelho com maior determinação que aquela que sentia.

Foi buscar o secador e começou a secar o cabelo. O seu único refúgio era o seu lado profissional. Apesar dos problemas, tinha de ir para o trabalho.

Tal como antevira, os enjôos de Laurie desapareceram depois de ter ingerido um pouco do pequeno-almoço. Flocos de fibra sem leite revelaram ser a coisa mais agradável ao seu paladar. Enquanto comia, o desconforto abdominal do lado inferior direito que sentira ocasionalmente nos últimos dias regressou. Com o auxílio dos dedos exerceu pressão nessa área. A sensação foi assim acentuada, especialmente quando deslocou os dedos para a área medial, mas continuava sem ser algo a que chamasse dor. Perguntou-se vagamente se seria uma sensação normal de início de gravidez. Uma vez que nunca estivera grávida, não sabia se o implante provocava uma tal sensação. Sabia, a nível intelectual, que o processo envolvia uma espécie de invasão das paredes do útero, de modo que não estava fora do domínio da possibilidade. Havia também a hipótese de o desconforto ter origem no ovário direito. De uma forma ou de outra, não era a sua maior preocupação.

Quando Laurie chegou ao GMLS eram apenas sete e um quarto, mas continuava a sentir-se pessimista quanto a apanhar Jack na sala de identificação. Parecia que, recentemente, ele chegava cada vez mais cedo. A sua suposição foi corroborada ao ver o local preferido de Vinnie vago e o seu jornal, aberto na página desportiva, abandonado sobre a secretária, o que sem dúvida significava que se encontrava lá em baixo a ajudar Jack. Chet estava embrenhado no trabalho, sentado à secretária principal a ver as pastas dos cadáveres que tinham chegado durante a noite. Seria o seu último dia de trabalho nessa semana. Laurie era a médica-legista de serviço no fim-de-semana que se aproximava, o que significava também que, na semana seguinte, o dever de decidir quais os casos que tinham de ser autopsiados e a sua distribuição recairia sobre ela.

— Jack já está lá em baixo? — perguntou Laurie ao tomar o primeiro gole de café.

Na convicção de que a cafeína a ajudaria a controlar a disposição melancólica, desejou que o estômago tolerasse a infusão forte.

A cabeça de Chet ergueu-se.

— Sabes como é o Jack. Quando aqui cheguei já tinha andado a tirar nabos da púcara em todas as pastas e estava ansioso por começar o dia.

— Com que tipo de caso é que ele está ocupado? — O calor do café provocou nela um contraditório arrepio.

— É interessante que perguntes. Ficou com um caso semelhante aos teus dois de ontem.

Laurie afastou o copo dos lábios. A boca abriu-se-lhe numa expressão de surpresa.

— Queres dizer, um caso do Manhattan General?

— Sim! Um sujeito relativamente novo que tinha sido submetido a uma cirurgia de rotina a uma hérnia e cuja alta que logo recebeu foi para vir para aqui.

— Por que é que Jack ficou com ele? Ele sabe que estou interessada nesses casos.

— Foi um favor que te fez.

— Ah, tem paciência, Chet! O que é que queres dizer com "favor"?

— Aparentemente, Calvin deixara recado a Janice de que se surgisse outro caso desses, ela deveria ligar-lhe. Obviamente, foi o que ela fez, porque ele chegou aqui por volta da mesma hora que Jack e deu-lhe uma vista de olhos. Quando cheguei, disse-me especificamente que não queria que tratasses dele. Na verdade, disse que terias oficialmente um dia para te dedicares a papeladas, de modo que estás livre e em paz. Bom, Jack ofereceu-se então para se ocupar do caso porque disse que provavelmente querias os resultados o mais cedo possível.

— Por que é que Calvin disse que não me queria a tratar do caso? — questionou Laurie.

Tinha todo o ar de ser um golpe baixo deliberado, uma vez que a distração em que consistia a sua série era a única coisa que lhe corria de feição face a todos os seus problemas.

— Não disse. E tu conheces o Calvin, não se esperava que oferecesse uma justificação. Deixou claro como água que não deverias fazê-lo. Disse-me ainda que quando eu te visse deveria informar-te de que ele quer que vás ao seu gabinete o mais depressa possível. Pronto, a mensagem foi entregue. Boa sorte!

— É esquisito. Pareceu-te zangado?

— Não estava pior que o normal. — Chet encolheu os ombros. — Desculpa, é tudo o que sei.

Laurie anuiu como se compreendesse, mas não era verdade. Deixou o casaco num dos cadeirões e fez, no sentido inverso, o trajeto através da sala de identificação na direção da área de recepção principal. Estava nervosa. Com tudo o resto que estava a ter lugar na sua vida, segundo palavras suas, "o desmoronar de um baralho de cartas", não se deixaria surpreender se também a sua carreira estivesse em perigo, embora não fizesse idéia do que poderia ter feito para irritar Calvin, além porventura daquela apresentação improvisada do dia anterior. Contudo, depois de ter falado com ele a posteriori, parecia estar tudo bem.

Laurie pediu a Marlene que telefonasse diretamente para a área da administração, cujo silêncio era tumular. Nenhuma das secretárias chegara ainda. Calvin encontrava-se, porém, no seu gabinete, a passar os olhos por documentos que se encontravam no seu cesto de entrada e assinando-os rapidamente. Continuou com os últimos, mesmo depois de Laurie se ter anunciado. Ele fez-lhe sinal para que se sentasse enquanto reunia a pilha de papéis assinados e os colocou no cesto de saída. Recostou-se de seguida e fitou Laurie por cima dos óculos sem aros, com o queixo praticamente sobre o peito.

— Se ainda não o sabe, o nome do potencial novo caso é Clark Mulhausen, e calculo que queira saber por que razão insisti para que não tratasse dele.

— Seria simpático — disse Laurie.

Sentia-se aliviada. O tom de Calvin não era estridente, o que sugeria que não estava zangado e ela não estaria prestes a ser arengada, ou, pior ainda, dispensada.

— O que se passa é que ainda tem de concluir aqueles casos originais na sua chamada série de há um mês atrás. Neste ponto, não pode estar à espera do trabalho de qualquer outro laboratório, ou seja lá o que for, por isso tem de os concluir. Para ser honesto, o diretor tem sentido uma certa pressão relativamente a eles da parte do gabinete do presidente da câmara, sabe Deus porquê. Seja qual for a razão, informou-me de que quer os casos registrados como concluídos, o que significa que eu começo a sofrer pressão. Talvez tenha alguma coisa a ver com seguros e os familiares. Quem sabe? De uma maneira ou de outra, acabe-os! Dei-lhe um dia para se dedicar à papelada e para os concluir. Parece-lhe bem?

— Não registrei os óbitos porque não posso dizer em boa consciência que foram acidentais ou naturais, e sei que não quer que eu diga que foram homicídios, porque isso haveria de sugerir um assassino em série e não tenho quaisquer provas... pelo menos por enquanto.

— Laurie, não me complique a vida — disse Calvin. Inclinou-se para diante num gesto intimidador, esticando a enorme cabeça para ela e perfurando-a com os seus olhos escuros e ameaçadores. — Estou a tentar ser simpático em relação a tudo isto. Também não estou a tentar impedi-la de considerar a possibilidade de estarem, com efeito, relacionados, mas, por enquanto, terá de escolher entre acidental ou natural. Sou a favor do natural, tal como Dick Katzenburg, porque não há mais provas de que tenham sido acidentes que homicídios. As certidões de óbito podem sempre ser emendadas se e quando estiverem disponíveis novas informações. Não podemos deixar os casos num limbo para sempre e a Laurie não pode criar uma catástrofe de relações públicas chamando-lhes homicídios, ou mesmo acidentes, sem uma qualquer justificação específica. Seja razoável!

— Está bem, vou fazê-lo — disse Laurie com um suspiro de derrota.

— Obrigado! Mas que raios! A Laurie faz com que pareça que lhe estou a pedir a lua. E já que estamos neste assunto, o que encontrou acerca dos casos de Queens? Enquadram-se nos mesmos dados demográficos?

— Até agora — disse Laurie com uma voz cansada. Debruçou-se, olhando para o chão com os cotovelos pousados sobre os joelhos. — Pelo menos pelo que consegui apurar dos relatórios do investigador. Estou à espera dos relatórios hospitalares.

— Mantenha-me informado! Vá; agora vá para o seu gabinete e faça as certidões desses casos do Manhattan General!

Laurie anuiu e pôs-se de pé. Lançou um sorriso amarelo a Calvin e virou-se para sair.

— Laurie — chamou Calvin. — Age como se se sentisse intimidada, o que não parece seu. Que se passa? Está bem? Está a deixar-me preocupado. Aflige-me vê-la a si, mais que qualquer outra pessoa, por aí de cara triste.

Laurie virou-se para fitar Calvin. Estava surpreendida. Não era típico dele fazer perguntas pessoais e muito menos deixar transparecer preocupação. Dificilmente esperaria isso de qualquer figura de autoridade, especialmente do tantas vezes mesquinho Calvin. A surpresa provocou nela uma indesejável comoção emocional, que imediatamente ameaçaram vir à superfície. Uma vez que deixar-se ir abaixo diante do superior, com freqüência machista, era a última coisa que desejava, lutou contra o impulso respirando fundo e retendo a respiração por um minuto. As sobrancelhas de Calvin arquearam ligeiramente e ele inclinou-se mais para a frente, como que incitando-a a falar.

—Acho que tenho tido muito em que pensar — disse finalmente Laurie. Temia que os seus olhos se encontrassem.

— Não se importa de desenvolver? — perguntou Calvin num tom de voz que era significativamente mais suave que o habitual.

— Agora não — disse Laurie, ao mesmo tempo em que lançava a Calvin o mesmo sorriso amarelo.

Calvin anuiu.

— É justo, mas lembre-se, a minha porta está sempre aberta.

— Obrigada — conseguiu Laurie dizer antes de sair disparada.

Enquanto percorria o corredor principal do primeiro piso, sentia uma mistura de sentimentos a acrescentar aos seus pensamentos caóticos. Por outro lado, sentia-se afortunada por ter conseguido escapar sem uma cena emocional, enquanto, ao mesmo tempo, se sentia irritada consigo mesma por mais outro episódio ainda da sua constrangedora expressividade. Era ridículo que tivesse de lutar contra uma lágrima porque o patrão evidenciara um pouco de preocupação. Por outro lado, estava impressionada por ter testemunhado um lado do vice-diretor que nunca vira. E, após o nervoso pessimismo evocado pela chamada ao gabinete de Calvin, sentia-se aliviada por ainda ter emprego.

Não sabia se, caso lhe tivesse sido imposta uma licença forçada por uma qualquer transgressão real ou imaginária, teria conseguido lidar com isso. Com a nova preocupação quanto ao fato de estar grávida misturada com as suas outras ansiedades, a distração que o trabalho lhe proporcionava era mais necessária que nunca.

Enfiou a cabeça no gabinete do investigador e perguntou a Bart Arnold, o investigador-chefe, se Janice ainda andava por ali. Laurie queria saber os pormenores do caso Clark Mulhausen, para ter a certeza de que seria mais um a acrescentar à sua série.

— Saiu há cerca de dez minutos — disse Bart. — Posso ajudá-la com alguma coisa?

— Nem por isso — disse Laurie. — Então e Cheryl, está disponível?

— Está com azar. Já se encontra num caso. Quer que lhe peça que lhe telefone quando regressar?

— Pode transmitir-lhe uma mensagem — disse Laurie. — Ontem, pedi-lhe que avançasse com uma requisição de relatórios hospitalares do hospital Saint Francis, no Queens. Queria que alterasse o pedido e o tornasse urgente. Preciso deles o mais depressa possível.

— Não há problema — disse Bart enquanto tomava uma nota num post-it. — Vou deixar isto na secretária da Cheryl. Considere-o feito.

Laurie dirigiu-se de novo à sala de identificação para despir o casaco, mas pensou em Jack lá em baixo, na cova, a fazer a autópsia a Clark Mulhausen. Teria a pasta com o relatório de investigação de Janice, onde se encontrariam todas as especificidades. Inverteu o rumo e encaminhou-se ao elevador das traseiras. Não só poderia certificar-se de que o caso Mulhausen se enquadrava nos dados demográficos da sua série, como teria uma desculpa para falar com Jack. Ao relembrar a forma como vacilara na tarde anterior aporta do gabinete de Jack, teria sido bom ter uma razão profissional para quebrar o gelo com ele e dar-lhe a oportunidade de sugerir que se encontrassem fora do GMLS para uma discussão privada. Ao pensar no gênero de conversa que teria de ter com ele ficou tensa. No seu presente estado de espírito, não fazia idéia se ele seria receptivo, quer a encontrar-se com ela, quer ao que ela tinha para lhe dizer. Lou dera-lhe a entender que sim, mas Laurie não sabia.

Noutros tempos, uma bata, uma touca e uma máscara era tudo o que era necessário para se entrar na sala de autópsias para uma visita ou para verificar um achado ou ter uma curta conversa. Os tempos tinham mudado. Agora Laurie tinha de ir à sala dos cacifos para vestir o material de trabalho verde antes de se dirigir ao armazém para ir buscar o equipamento protetor completo, como se ela mesma estivesse a tratar de um caso. Calvin estabelecera as novas regras, que seriam supostamente definitivas.

—Ah! — Lamuriou-se Laurie ao estender o braço enquanto pendurava a blusa no cacifo.

Sentira uma pontada súbita na mesma localização abdominal que intermitentemente a perturbava nos últimos dias. Desta vez, tratava-se definitivamente de uma dor aguda que a fez estremecer, bem como retirar a mão. Com cautela, colocou-a sobre a área incômoda. Felizmente, a dor depressa abrandou e depois desapareceu de forma tão súbita como surgira. Exerceu uma pressão cuidadosa sobre a área, mas não sentia qualquer sensação residual de dor. Estendeu o braço como fizera ao pendurar a blusa, mas continuava sem sentir qualquer desconforto. Abanando a cabeça, confusa sobre se teria alguma coisa a ver com o fato de estar grávida, pensou que talvez devesse perguntar a Sue se ela experimentara algo de semelhante durante as suas duas gravidezes.

Com a memória da dor a desvanecer num pano de fundo, Laurie continuou a vestir o material verde, atravessando depois o corredor para se enfiar dentro do fato lunar. Passados alguns minutos, abriu a porta da sala das autópsias. Quando a pesada porta bateu na jamba atrás de si, as duas pessoas que se encontravam na sala endireitaram-se da sua posição debruçada sobre o cadáver estendido e aberto diante deles. Olharam ambos para ela.

— Bem, demos graças! — troçou Jack. — Será mesmo a Drª. Montgomery já com as suas insígnias reais e ainda nem sequer são oito horas? A que devemos esta grande honra?

— Só quero saber se este caso se enquadra verdadeiramente na minha série — disse Laurie o mais superficialmente possível enquanto se preparava para o provável sarcasmo ininterrupto de Jack. Avançou até aos pés da cama. Jack estava à esquerda e Vinnie à direita. — Por favor, continuem a trabalhar! Não quero interromper.

— Não quero que penses que te tirei este caso. Sabes por que é que estou a fazê-lo?

— Sei, o Chet contou-me.

— Já viste o Calvin? Hoje não consegui interpretar a expressão dele. Estava esquisito. Está tudo bem entre vocês?

— Está tudo ótimo. Eu mesma fiquei preocupada quando o Chet me disse que teria um dia para me dedicar à papelada e que Calvin me queria ver o mais rapidamente possível. Sucede que a única coisa que quer é que eu faça as certidões dos anteriores casos da minha série. Devo dizer que foram naturais.

— Vais fazê-lo? Estou a pensar que não há maneira de serem naturais.

— Não tenho lá muitas escolhas — admitiu Laurie. — Ele pôs os pontos nos is. Detesto as pressões políticas deste trabalho e esta situação começa a tornar-se um exemplo perfeito. Mas, seja como for, o que achas do Mulhausen? Este caso pertence à minha série?

Jack baixou os olhos para o tórax aberto do cadáver. Já removera os pulmões e estava a meio do processo de abrir as artérias. O coração estava totalmente exposto.

—Até agora, teria de dizer que sim. Os dados demográficos são os mesmos e não vejo qualquer sugestão de patologia de qualquer espécie. Terei a certeza dentro de meia hora, ou por volta disso, quando acabar de examinar o coração, mas ficaria muito surpreendido se encontrássemos alguma coisa.

— Importas-te que dê uma olhadela ao relatório do investigador que está na pasta?

— Importar? Por que é que haveria de me importar? Mas posso poupar-te o trabalho dando-te os fatos. O paciente era um corretor de trinta e seis anos, saudável, que fora submetido ontem a uma operação simples a uma hérnia e estava a recuperar bem. Às quatro e meia da manhã de hoje, foi descoberto morto na cama. As notas das enfermeiras diziam que estava praticamente à temperatura ambiente quando foi encontrado, mas tentaram de qualquer modo animá-lo. Como é evidente, nada conseguiram. Portanto, acho que se enquadra na tua série? Sim. E mais, acho que estás genuinamente a caminho de alguma coisa com essa idéia da série. É óbvio que a princípio não o achava, mas agora sim, especialmente uma vez que tens sete casos. Laurie tentou observar as sutilezas da expressão de Jack, mas não conseguia fazê-lo através da máscara de plástico. Sentia-se contudo incentivada. Um pouco como Calvin, agia de maneira mais afável do que o esperado, o que a fez sentir-se otimista numa série de frentes.

— E em relação a esses casos que Dick Katzenburg mencionou ontem? — perguntou Jack. — Já resultaram em alguma coisa?

— Sim, pelo menos dos relatórios dos investigadores. Estou à espera dos relatórios hospitalares para ter a certeza.

— Foi uma boa colheita — disse Jack. — Ontem, quando te levantaste para ir ao microfone fazer a tua pequena apresentação, fiquei lixado, porque isso queria dizer que a sessão de tortura de quinta-feira à tarde seria prolongada, mas agora tenho de te dar os louros. Se os casos de Dick acabarem por se enquadrar nos teus, a tua série duplica, o que estender um pano mortuário por cima da AmeriCare, não achas?

— Não sei o que é que isto diz acerca da AmeriCare — disse Laurie. Estava surpreendida com a tagarelice de Jack. Até isso lhe parecia um incentivo.

— Bem, como se costuma dizer, há algo podre no reino da Dinamarca: com treze casos já se vai para além das coincidências. Mas é interessante não haver um indício comum a todos, que é a razão por que hesito em apoiar a tua idéia de homicídio, embora comece a amadurecê-la. Diz-me, algum destes casos ocorreu na unidade de cuidados intensivos ou na unidade de cuidados pós-anestésicos?

— Nenhum dos meus. Não sei em relação aos de Dick. Os meus estavam todos em quartos hospitalares regulares. Por que é que perguntas? Mulhausen também não estava?

— Não! Estava num quarto normal. Não tenho a certeza das razões pelas quais estou a perguntar isto. Talvez porque se lide de maneira diferente com as drogas na unidade de cuidados intensivos e na unidade de cuidados pós-anestésicos que num piso hospitalar regular. Na verdade, estou a tentar pensar em alguma espécie de erro de sistemas, como receberem todos, uma droga que não lhes deveria ser administrada. É só mais uma coisa a ter em atenção.

— Obrigada pela sugestão — disse Laurie sem grande convicção.

— Não me vou esquecer disso.

—Também acho que deverias continuar a pressionar a toxicologia. Continuo a achar que, em última análise, há de ser a toxicologia a resolver este enigma.

— Isso é fácil de dizer, mas não sei que mais posso fazer. Peter Letterman excedeu-se completamente, esforçando-se ao ponto de pensar em minudências. Ontem estava a falar de ir verificar uma espécie qualquer de toxina incrivelmente tóxica de uma rã sul-americana.

— Eh pá! Isso é um bocado bizarro. Alguma coisa está a parar os sistemas circulatórios cardíacos destas pessoas. Não posso evitar pensar que terá de ser uma droga vulgar que provoque arritmia. A forma como o conseguem é outra história.

— Mas isso haveria por certo de aparecer na toxicologia.

— É verdade — concordou Jack. — Então e uma substância contaminadora no líquido intravenoso? Todos eles estavam a receber líquido intravenoso?

Laurie pensou por um minuto.

— Agora que falas nisso, sim. Mas não é invulgar, uma vez que a maior parte das pessoas que se submete a cirurgia mantém o líquido intravenoso pelo menos durante vinte e quatro horas. Quanto à substância contaminadora no líquido intravenoso, a idéia passou-me pela cabeça, mas é extremamente improvável. Se estivesse envolvido uma substância contaminadora, teríamos mais casos do que temos, e certamente que isso não haveria de privilegiar as pessoas relativamente jovens e saudáveis, nem apenas pacientes submetidos a cirurgias seletivas.

— Creio que não deverias eliminar nada à partida — disse Jack.

— O que me faz pensar na questão sobre os eletrólitos que aquele sujeito de Staten Island te colocou ontem depois de teres feito a tua apresentação. Disseste-lhe que os níveis testados eram todos normais. É verdade?

— Completamente. Fiz questão de pedir ao Peter que os verificasse especificamente, e ele escreveu no seu relatório que eram todos normais.

— Bem, parece sem dúvida que estás a cobrir todos os aspectos — disse Jack. — Vou acabar o caso Mulhausen só para me certificar de que não há embolias ou patologias cardíacas. — Tornou a posicionar o bisturi na mão e debruçou-se sobre o cadáver.

— Estou a tentar pensar em todas as possibilidades — disse Laurie. Então, depois de um momento de hesitação, acrescentou: — Jack, posso falar contigo em privado?

— Ah, por amor de Deus! — exclamou Vinnie subitamente. Tinha estado a passar impacientemente o peso do corpo de uma perna para a outra ao longo da extensa conversa entre Laurie e Jack. — Não podemos acabar este raio desta autópsia?

Jack endireitou-se e olhou para Laurie.

— Sobre o que queres falar?

Laurie olhou de relance para Vinnie. Sentia-se constrangida na presença dele, especialmente tendo em conta a sua impaciência. Jack reparou na reação de Laurie.

— Deixa lá o Vinnie. Com a ajuda que me presta como assistente, bem podes fingir que não está aqui. Eu estou sempre a fazê-lo.

— Que engraçadinho — respondeu Vinnie. — Por que será que não me estou a rir?

— Na verdade — disse Laurie — não quero falar agora contigo. O que eu gostaria era de combinar um encontro. Há umas coisas importantes que preciso partilhar contigo.

Jack não respondeu de imediato, antes, ficou a fitar Laurie através da máscara facial de plástico.

— Deixa-me adivinhar — disse ele por fim. — Vais casar-te e queres que eu seja a madrinha.

Vinnie riu-se tanto que parecia que ia sufocar.

— Ei, não teve assim tanta piada — protestou Jack, embora agora se risse com Vinnie.

— Jack — disse Laurie, mantendo, com alguma dificuldade, a voz calma. — Estou a tentar falar a sério.

— Também eu — conseguiu dizer Jack. — E uma vez que não negaste as núpcias, considero-me informado, mas receio que terei de declinar a oferta para ser madrinha. Havia mais alguma coisa?

— Jack! — repetiu Laurie. — Não me vou casar. Tenho de falar contigo acerca de algo que nos diz respeito, a ti e a mim.

— Está muito bem! Sou todo ouvidos.

— Não vou falar contigo aqui, na sala de autópsias.

Jack fez um gesto em redor da sala com todos os seus pormenores góticos.

— Que há de mal aqui? Sinto-me em casa.

— Jack! Será que poderias falar a sério por um instante? Eu disse que era importante.

— Está muito bem! Que outro ponto de encontro temos à nossa disposição que sirva melhor as tuas necessidades? Se me deres uma meia hora, poderia encontrar-me contigo lá em cima, na sala de identificação, e poderíamos conversar com uma bela caneca de café do Vinnie. O único problema é que os outros hoipolloi estarão a chegar para o seu dia de trabalho. Talvez prefiras um encontro na nossa cênica sala de almoço no segundo piso a tirar algo delicioso das máquinas. Aí poderíamos confraternizar com o pessoal da manutenção do edifício. O que preferes?

Laurie fitou Jack o melhor que conseguia através da proteção facial de plástico. A reversão por parte dele para o sarcasmo minou seriamente o seu otimismo inicial acerca da receptividade dele, mas insistiu.

—Aquilo que eu esperava era que pudéssemos jantar hoje à noite, possivelmente no Elios, se conseguíssemos marcar mesa.

O Elios era um restaurante que tivera um papel importante na longa relação de Laurie e Jack.

Durante mais um longo momento, Jack fitou Laurie. Embora no dia anterior não tivesse dado muito crédito aos comentários de Lou em relação a Laurie, perguntou-se de súbito se teria havido uma ponta de verdade naquilo que ele dissera. Ao mesmo tempo, Jack relembrou-se a si mesmo que não estava com disposição para ser humilhado.

— O que é que se passa com o Romeu? Está doente esta noite?  — Vinnie soltou nova risadinha e depois tentou reprimi-la quando Laurie lhe lançou um olhar furioso.

— Não sei — continuou Jack. — É um pouco em cima da hora, tendo em conta que eu esta noite deveria ir jogar bowling com dezessete freiras que vêm de fora.

Vinnie perdeu o controlo e abandonou a mesa. Deambulou até ao lavatório e manteve—se ocupado.

— Será que poderias falar a sério por um instante? — repetiu Laurie. — Não estás a facilitar as coisas.

— Não estou a facilitar as coisas? — perguntou Jack com ar arrogante. — Mas que mudança! Tentei durante meses combinar uma noite contigo, mas estavas sempre de saída para um importante acontecimento cultural.

— Só passou um mês e perguntaste-me duas vezes, e eu tinha planos para ambas as noites. Preciso falar contigo, Jack. Encontras-te comigo esta noite ou não?

— Parece que estás mesmo motivada para este encontro.

— Estou muito motivada — concordou Laurie.

— Muito bem, que seja esta noite. A que horas?

— O Elios está bem para ti?

Jack encolheu os ombros.

— Está ótimo.

— Então vou telefonar para lá para ver se consigo fazer uma marcação e depois digo-te. Pode ser que tenha de ser cedo, porque é sexta-feira à noite.

— Está bem — disse Jack. — Fico à espera que me digas qualquer coisa.

Com um aceno de cabeça, Laurie deixou a mesa, abriu a porta para o corredor e tornou a fazer o caminho até ao armazém para despir o fato protetor. Estava satisfeita por Jack ter finalmente concordado em encontrar-se com ela, mas, tal como Calvin sugerira mais cedo, sentia-se triste por ter tido de fazer com que Jack aceitasse o encontro e, sentindo a cólera dele, já não estava particularmente otimista acerca de como ele reagiria às suas novidades.

Depois de ter vestido as roupas do dia-a-dia e de ter retirado o casaco da sala de identificação, Laurie tomou o elevador para o quarto piso. A sua intenção era fazer uma visita rápida a Peter para lhe levantar a moral para os seus esforços e para se certificar de que ele não teria encontrado o pote de ouro nos casos de Sobczyk ou de Lewis. Preocupada como estava com pensamentos pessoais, nem sequer considerou a possibilidade de confrontar o seu rival, John DeVries, o diretor do laboratório. Infelizmente, encontrava-se no laboratório de Peter, aparentemente a meio do processo de o descompor. Tinha as mãos furiosamente premidas contra as ancas e Peter tinha uma expressão envergonhada no rosto. Laurie fora cair de cabeça, sem o saber, nessa guerra.

— Não poderia vir em melhor altura! — exclamou John. — Vejam lá se não é a sedutora em carne e osso!

— Desculpe!? — interrogou Laurie.

Perante um comentário tão sexista, sentia a sua própria ira a aumentar.

—Aparentemente, conseguiu seduzir o Peter para que se tornasse o seu escravo de laboratório privado — grunhiu John. — A Drª. e eu já tivemos esta discussão. Com a miséria que me atribuem para gerir este laboratório, ninguém recebe serviços especiais, o que invariavelmente faz com que todos os outros tenham de esperar muito mais tempo. Estou-me a fazer entender, ou quer que lhe faça um desenho? Além disso, pode ter a certeza de que o Dr. Bingham e o Dr. Washington serão notificados acerca desta situação. Entretanto, quero-a fora daqui. — Por forma a dar ênfase a este ponto, John fez um gesto na direção da porta.

Durante um instante, Laurie contemplou, quer o rosto descarnado de John, quer o de Peter. A última coisa que queria fazer era piorar as coisas para Peter, de modo que se absteve de dizer a John o que achava sobre ele. Em lugar disso, deu meia volta e saiu do laboratório.

Enquanto subia as escadas, Laurie sentia-se mais deprimida que antes. Detestava querelas com as pessoas, especialmente com aquelas com quem tinha de trabalhar. Levavam muitas vezes a respostas emocionais pouco apropriadas, como aquela que anteriormente tivera com Calvin, embora nessa ocasião com John o que dominava era a raiva. Ao pensar em Calvin, perguntou-se vagamente qual seria o resultado daquilo, uma vez que John tinha invariavelmente êxito nas suas ameaças. Pensou que teria boas hipóteses de receber notícias do subdiretor, mas não fazia idéia do que isso poderia significar.

Desejava honestamente não ter causado um problema a longo prazo a Peter, dado que ele tinha de lidar com John diariamente.

Laurie entrou no seu gabinete e fechou a porta. Pendurou o casaco e reparou que o de Riva estava pendurado no cabide, o que significava que ela estaria lá em baixo, na sala de identificação ou na sala de autópsias. Laurie sentou-se e pensou no telefonema que tinha de fazer. Temia-o desde que o teste de gravidez tinha dado positivo. A seu ver, era como se o processo de fazer a chamada pudesse finalmente, e em última análise, confirmar a realidade da sua gravidez. Tentara negá-lo até certo ponto, por ser um erro tão grande. Por muito que desejasse ter filhos, não era esse o momento, e perguntou-se o que lhe teria passado pela cabeça para se permitir correr aquele risco. Embora tivessem passado apenas umas semanas, não se conseguia realmente lembrar.

Estendeu a mão para o telefone e fez, com relutância, o telefonema para o hospital Manhattan General. Feita a ligação, baixou os olhos para o material dos casos de Queens, que ela tinha de acrescentar à matriz, juntamente com o caso de que Jack se ocupava atualmente.

Quando a telefonista atendeu, Laurie pediu-lhe que lhe passasse a chamada para o consultório da Drª. Laura Riley. Ao ouvir a extensão a tocar, Laurie sentiu-se grata por Sue lhe ter indicado uma médica ginecologista que também era obstetra. Num meio médico marcado atualmente pela negligência, não seria esse por certo o caso.

Quando a secretária de marcações da Drª. Riley atendeu, Laurie explicou-lhe a situação. Deu por si a tropeçar nas palavras quando revelou que, de acordo com um teste de venda livre, estava grávida.

— Bem, nesse caso, não poderemos certamente esperar até setembro — disse jovialmente a secretária. — A Drª. Riley gosta de ver as pacientes de obstetrícia entre oito a dez semanas após o último período. Em que estado está a senhora?

— Passaram cerca de sete semanas — disse Laurie.

— Deveríamos então vê-la para a semana, ou na semana depois dessa.

Fez-se uma pausa. Laurie apercebeu-se de que a mão que segurava o telefone estava a tremer.

— E que tal na próxima sexta-feira? — inquiriu a secretária, de regresso à linha. — É de hoje a uma semana, à uma e meia.

— Estará ótimo — disse Laurie. — Obrigada por me arranjar aí um espacinho.

— O prazer é meu. E agora, pode dizer-me o seu nome?

— Desculpe, não me apercebi de que não lho tinha dito. Sou a Drª. Laurie Montgome

— Drª. Montgomery! Lembro-me de si. Falei consigo ontem.

Laurie estremeceu. O seu segredo era agora quase público. Embora não conhecesse a secretária, a mulher sabia agora um pormenor íntimo e terrivelmente privado da sua vida com o qual Laurie ainda não decidira como lidar. Teriam de ser feitas escolhas difíceis.

— Parabéns! — continuou a secretária. — Não desligue! Tenho a certeza de que a Drª.  Riley vai querer cumprimentá-la.

Sem hipótese de responder, Laurie deu por si à espera, a ouvir música. Por um breve instante pensou em desligar, mas decidiu que não o podia fazer. Para manter as idéias em ordem, baixou os olhos para a pilha de certidões de óbito e relatórios de investigação de Queens. Ansiosa por uma distração, pegou no primeiro e começou a ler. O nome da paciente era Kristin Svensen, de vinte e três anos, que fora admitida no hospital para uma hemorroidectomia. Laurie abanou a cabeça perante a dimensão da tragédia. Fazia com que os seus problemas parecessem pequenos comparados com a morte de uma jovem mulher saudável num hospital depois de ter sido submetida à extração das hemorróidas.

— Drª. Montgomery! Acabei de saber as boas notícias! Parabéns.

— Pode tratar-me por Laurie.

— Muito bem, e pode tratar-me por Laura.

— Não tenho a certeza se as felicitações serão o mais adequado. Para ser totalmente honesta, trata-se de uma surpresa bastante inesperada e inconveniente para mim, de modo que não estou segura de como me sinto.

— Compreendo — disse Laura, que reinava na sua exuberância. Depois, com uma sensibilidade nascida da experiência, acrescentou. — Teremos ainda assim de verificar se a Laurie e o embrião se encontram o mais saudáveis possível. Tem ocorrido algum problema?

— Um pouco de enjôo matinal, mas é passageiro.

Laurie sentia-se desconfortável ao falar sobre a gravidez e queria terminar o telefonema.

— Informe-nos se piorar. Há imensas sugestões sobre como lidar com isso e milhares de livros disponíveis sobre a gravidez. Em relação aos livros, aconselho-a a manter a distância dos mais conservadores, porque vão dar consigo em doida, a pensar que não poderá fazer coisa alguma, como tomar um banho quente. Dito isto, vemo-nos na sexta-feira.

Laurie agradeceu-lhe e desligou o telefone. Era um alívio ter terminado o telefonema. Pegou nos casos de Queens impressos do computador e bateu com as suas extremidades na superfície da mesa para os alinhar. O movimento provocou uma sensação desagradável quase subliminar no preciso local onde sentira a dor quando se encontrara na sala dos cacifos. Perguntou-se se deveria ter ao menos mencionado a sensação e a dor a Laura Riley. Pensou que deveria tê-lo feito, mas não tornaria a telefonar-lhe. Em lugar disso, haveria de aflorar o assunto durante a consulta, a não ser que se tornasse suficientemente freqüente ou intensa para justificar um telefonema. Perguntou-se também se deveria ter mencionado o fato de ser positiva ao marcador de BRCA1, mas, tal como com o desconforto, decidiu que seria perfeitamente adequado discutir o assunto na primeira consulta.

Com os papéis numa mão, Laurie estendeu de novo a mão para o telefone, mas depois hesitou com a mão no auscultador. Fazia idéias de telefonar a Roger por diversos motivos, o menor dos quais não seria a culpa que sentia por tê-lo deixado às escuras relativamente àquilo que lhe deveria ter parecido um comportamento estranho no seu gabinete. Porém, não sabia o que dizer-lhe. Ainda não estava disposta a contar-lhe toda a verdade por uma série de razões, mas sabia que teria de dizer alguma coisa. Por fim, decidiu que usaria a desculpa do BRCA1, como já fizera.

Laurie pegou no telefone e marcou o número da linha direta de Roger. Aquilo que realmente a motivava era o desejo de lhe enviar cópias dos materiais de Queens para que pudessem falar diretamente sobre eles. Apesar do tumulto em que a sua mente se encontrava devido aos seus problemas pessoais, tivera uma idéia para os casos de Queens que poderia porventura resolver o mistério da SMSA.

 

Quando Laurie chegou ao hospital Manhattan General, foi conduzida de imediato ao gabinete de Roger, onde ele a esperava. A primeira coisa que ele fez foi fechar a porta. Depois deu-lhe um abraço demorado e silencioso. Laurie retribuiu o abraço, mas não com idêntico ardor. A acrescentar aos resíduos do golpe do casamento, sabia que não seria completamente direta com ele acerca da sua situação, o que a fez sentir-se constrangida. Se ele reparou na resistência dela, não o mencionou. Depois do abraço, virou as duas cadeiras de espaldar direito de modo a ficarem de frente uma para a outra, tal como fizera no dia anterior. Indicou a Laurie que se sentasse numa e ocupou a outra.

— Fico feliz por ver-te — disse ele. — Senti a tua falta a noite passada.

Ele estava inclinado para diante, para o espaço dela, e tinha as mãos unidas e os cotovelos sobre os joelhos. Laurie encontrava-se perto dele o suficiente para lhe sentir o perfume do aftershave. O dia dele estava agora a começar. A camisa lavada ainda conservava os vincos que denunciavam a lavanderia.

— Também fico feliz por te ver — disse Laurie.

Estendeu o braço e entregou-lhe os relatórios de investigação e as certidões de óbito dos seis casos de Queens. Não tivera tempo de fazer cópias, mas não importava. Poderia facilmente fazer um novo download. Ao dar-lhe o material esperava desviar a conversa do seu estado de espírito, pelo menos por um instante. Além disso, estava ansiosa por lhe contar a sua idéia.

Roger deu uma rápida vista de olhos pelas páginas.

— Meu Deus! Parecem mesmo semelhantes aos nossos, aponto de terem lugar por volta da mesma hora pela manhã.

— É o que eu acho. Saberei mais pormenores quando receber os relatórios hospitalares. Mas vamos imaginar, só para podermos discutir o assunto, que são realmente como que cópias dos nossos. Isso sugere-te alguma coisa?

Roger olhou para os papéis, pensou por um momento e depois encolheu os ombros.

— Significa que o número de casos duplicou. Temos agora doze casos, e não seis. Não, temos treze, incluindo a morte da noite passada. Parto do princípio de que tenhas ouvido falar de Clark Mulhausen. Vais fazer a autópsia?

— Não, está o Jack a fazê-la — disse Laurie.

Falara um pouco de Jack a Roger durante o namoro de cinco semanas, incluindo o fato de ela e Jack terem vivido juntos. Quando Laurie conhecera Roger descrevera-se como sendo "maioritariamente livre". Mais tarde, quando ela e Jack já se conheciam melhor, admitira que usara essa descrição de si em particular devido a questões por resolver com Jack. Fora mesmo a ponto de lhe confidenciar que o problema tinha a ver com a relutância de Jack em comprometer-se. Roger aceitara as notícias com grande equanimidade, o que fizera aumentar a avaliação de Laurie quanto à maturidade e auto-confiança dele, e o assunto nunca mais fora tocado.

— Olha para as datas nos casos de Queens — sugeriu Laurie. Roger deu nova vista de olhos aos papéis e ergueu os olhos.

— Ocorreram todos em finais do outono do ano passado. O último deles teve lugar em finais de novembro.

— Exatamente — disse Laurie. — Estavam todos muito perto uns dos outros, com uma freqüência de pouco mais de um por semana. E depois pararam. Isso sugere-te alguma coisa?

— Creio que sim, mas parece que tens algo específico em mente. Porque é que não me dizes?

— É justo, mas antes ouve! Tu e eu somos os únicos que suspeitam de que possamos estar a lidar com um assassino em série, mas fomos amordaçados com eficácia. Não consigo fazer com que o GMLS tome uma posição em relação ao modo de morte, e tu não consegues fazer com que as autoridades hospitalares admitam sequer a existência de um problema. Aquilo contra o que estamos aqui a lutar é a inércia institucional. Ambos os sistemas burocráticos preferem varrer o assunto para debaixo do tapete até que alguma coisa os obrigue a agir.

— Não posso argumentar contra isso.

—Aquilo que permitiu que fôssemos tão facilmente controlados foi o fato de que, do teu lado, o teu hospital tem uma taxa de mortalidade tão baixa que estas mortes não aparecem no radar. Do meu lado, é o fracasso da toxicologia.

— Ainda não encontraram nada remotamente suspeito?

Laurie abanou a cabeça.

— E as hipóteses de que tal possa vir a acontecer num futuro próximo acabam de cair em queda livre. Receio que o nosso rabugento diretor de laboratório tenha descoberto esta manhã o meu esforço dissimulado. Se o conheço, a partir de agora vai certificar-se de que qualquer trabalho futuro nos nossos casos há de ir para o fim da fila. E mesmo quando chegar até ele, por certo que não fará nada de especial.

— E então, o que vais fazer em relação a tudo isto?

—Isto significa que nos cabe apenas aos dois tentarmos descobrir a raiz deste possível assassino em série, e é melhor que façamos alguma coisa, se é que queremos prevenir a ocorrência de mais mortes sem sentido.

— Sabemos disso praticamente desde o primeiro dia.

— Sim, mas até agora tentamos trabalhar dentro dos limites das nossas instituições e dos nossos trabalhos. Creio que temos de tentar outra coisa, e parece-me que estes casos de Queens nos oferecem uma oportunidade para tal. Se estas mortes forem homicídios, o meu palpite é que haja um assassino em série e não dois ou mais.

— Acho que parti desse mesmo princípio.

— Uma vez que Saint Francis é outra instituição da AmeriCare, deverias ter um razoável acesso à base de dados do pessoal deles. Estás na posição perfeita para obter informações sobre o pessoal. Precisamos de uma lista de pessoas, desde porteiros a anestesistas, que trabalharam no turno das onze às sete em Saint Francis no outono e no Manhattan General no inverno. É neste ponto que a minha idéia começa a ficar um pouco distorcida, mas se conseguirmos encontrar uns quantos suspeitos credíveis, talvez sejamos capazes de fazer com que o hospital ou o GMLS tomem uma atitude.

Esboçou-se um ligeiro sorriso no rosto de Roger enquanto ele fazia um aceno de cabeça.

— Que bela idéia! Ainda bem que pensei nela. — Riu-se e deu uma palmadinha brincalhona na coxa de Laurie. — Fizeste com que tudo parecesse tão simples. Mas está bem. Creio que devo ser capaz de persuadir alguém a dar-me essa informação, e não seria interessante se chegássemos realmente a uma conclusão? Quer dizer, pergunto-me se haverá com efeito uma lista dessas. Sei de uma outra lista que por certo existe, uma lista de pessoal profissional com privilégios de acesso em ambas as instituições. Tenho acesso direto a ela como chefe do pessoal médico.

— Essa idéia pode até ser melhor que a minha — admitiu Laurie.

— Se me perguntassem quem é que eu achava que seria o suspeito mais provável na comunidade hospitalar, seria obrigado a dizer um médico louco. Passou-me pela cabeça que, se estas mortes são homicídios, então, seja quem for que é o responsável por elas tem de ter conhecimentos relevantes de fisiologia, farmacologia e talvez até de ciências forenses. De outro modo, já saberíamos como é que ele ou ela se está a safar com isto.

— E ambos sabemos que grupo de médicos é o mais conhecedor destes aspectos.

— Qual?

— Os anestesistas.

Laurie anuiu. Era verdade que os anestesistas seriam os mais hábeis a liquidar pacientes, porém, apesar dos seus comentários, tinha dificuldades, enquanto médica, em acreditar que poderia estar um médico atrás dessas mortes. Parecia tão contrário ao papel de um médico, mas, afinal, era contrário ao papel de todos os profissionais da saúde.

—E que tal agarrar já esta idéia? — sugeriu Laurie. — Eu sei que é sexta-feira e que as pessoas não ficam entusiasmadas por lhes atirarem aos ombros uma nova tarefa precisamente antes do fim-de-semana. Mas temos de fazer qualquer coisa, e temos de o fazer depressa, e não somente porque pode prevenir mais mortes. Pode acontecer que o nosso assassino em série seja também esperto o suficiente para saber que seria mais seguro para ele mudar-se para outro hospital depois de um certo número de episódios. Partimos aqui do princípio de que ele se transferiu uma vez depois de seis episódios, por isso temos razões para acreditar que se poderia mudar de novo depois de sete. Se o fizer, então os nossos colegas com funções equivalentes num outro hospital qualquer, talvez até noutra cidade, terão de começar a partir do zero. Foi essa uma das razões pelas quais um outro recente e infame assassino em série da área da saúde aqui, na zona metropolitana, demorou tanto tempo a ser apanhado.

— Ei, Queens pode não ter sido o primeiro hospital.

— Tens razão — disse Laurie com um arrepio. — Nunca tinha pensado nisso.

— Vou tratar já disso — prometeu Roger.

— Estou de serviço no fim-de-semana — disse Laurie — o que significa que provavelmente estarei no GMLS, por isso telefona-me para lá. Qualquer coisa que eu possa fazer para ajudar, terei muito gosto em fazê-la. Sei que todo o processo será mais difícil do que sugeri.

— Vamos ver. Talvez consiga encontrar um cromo dos computadores no pessoal que nos pudesse ajudar. — Roger alinhou as páginas que Laurie lhe dera. — Agora tenho uma coisa bastante interessante para te dizer acerca dos nossos casos. Descobri por acaso um curioso ponto em comum.

— Sim? — inquiriu Laurie. Estava fascinada. — O que é?

— Não quero com isto dizer que seja relevante, mas é verdade para os sete casos, incluindo o de Mulhausen de ontem à noite. Todos eles beneficiários recentes da AmeriCare, tendo aderido ao plano no último ano. Na verdade, descobri-o por acidente, ao olhar para os números de beneficiário.

Por um instante, Laurie fixou os olhos em Roger, que lhe retribuiu o olhar. Laurie refletiu acerca desse novo fato e tentou pensar como poderia relacionar-se com o caso. Nada lhe ocorreu, embora lhe tenha lembrado o comentário de Jack do dia anterior durante a conferência à tarde, na qual ficara a saber que o Saint Francis, outra instituição da AmeriCare, tinha igualmente registrado uma série de mortes semelhantes às dela. Tinha dito: "A intriga adensa-se." Não tivera oportunidade para lhe perguntar o que quisera ele dizer com aquilo, nem desenvolvera o comentário dele quando nessa manhã dissera que esses casos iam "estender um pano mortuário sobre a AmeriCare", mas agora que Roger lhe contava esse fato, estava ainda mais ansiosa para lhe pedir que se explicasse. Laurie sabia que Jack sentia um ódio visceral pela AmeriCare, o que lhe distorcia o pensamento, mas, mesmo assim, era inteligente, bem como intuitivo.

— Não sei mesmo se isto é relevante — repetiu Roger. — Mas é curioso.

— Tem de ser relevante de alguma forma — disse Laurie. — Mas não sei como. Estas vítimas eram todas jovens e saudáveis. A AmeriCare recruta ativamente esses clientes. Perdê-los é algo que funciona em seu detrimento.

— Eu sei. Não faz sentido, mas achei que te deveria informar, de qualquer modo.

— Ainda bem que o fizeste — disse Laurie, levantando-se. — Bem, tenho de regressar. Não estou a fazer a autópsia do Mulhausen porque deveria ter subido imediatamente ao meu gabinete esta manhã para fazer as certidões de óbito de McGillin e de Morgan nas quais devo referir que as causas foram naturais.

— Calma! — disse Roger. Agarrou Laurie pelo braço e, com um pouco de pressão, fez com que se tornasse a sentar na cadeira. — Não te escapas assim tão facilmente. Mas, antes de mais, quem é que te obriga a registrares as mortes como sendo naturais?

— Calvin Washington, o subdiretor. Diz ele que Harold Bingham, o chefe, está a ser pressionado pelo gabinete do presidente da câmara.

Roger abanou a cabeça. Tinha uma expressão de repugnância no rosto.

— Não me espanta, tendo em conta aquilo que o presidente do hospital me disse ontem. Disse-me que eu deveria saber, para meu próprio bem, que a AmeriCare quer que o problema se esfume no ar.

— Isso não me surpreende. Seria um pesadelo para as relações públicas. Mas como é que vem do gabinete do presidente da câmara?

— Sou novo na organização, mas tenho a sensação de que a AmeriCare atribui grande importância às ligações políticas, tal como é evidenciado pelo fato de terem conseguido o contrato para o município. Não tenho de te recordar que a saúde é um grande negócio e há imensos lobbies numa enorme variedade de assuntos.

Laurie acenou como se compreendesse, o que não era verdade.

— Vou registrá-los como mortes naturais, mas espero que com a tua ajuda consiga mudar os certificados num futuro próximo.

— Já chega desta conversa de negócios — disse Roger. — Mais importante que isso é saber como estás. Tenho andado mesmo preocupado e, para dizer a verdade, tive de me controlar para não te telefonar a cada quinze minutos.

— Desculpa se te deixei preocupado — disse Laurie, ao mesmo tempo em que a sua mente procurava freneticamente uma maneira de aplacar Roger sem lhe mentir e sem lhe contar o fulcro da questão.

— Mas, tal como te disse ontem, estou a agüentar-me. Só que é um momento difícil para mim.

— Eu compreendo. Tentei imaginar como me sentiria se me tivessem dito que tinha um marcador para um gene que estava associado ao desenvolvimento de um cancro e depois me tivessem deixado sair pela porta. A área florescente da genética médica terá de arranjar uma maneira melhor de apresentar este tipo de informação aos pacientes do que atualmente, juntamente com algumas curas razoáveis.

— Na posição de alguém que está a passar por isso, terei de concordar, embora a assistente social tenha feito um esforço. Mas a medicina americana foi sempre assim. A tecnologia tem sido a sua força motora, arrastando a filosofia dos cuidados ao cliente atrás de si.

— Oxalá eu soubesse apoiar-te mais.

— Infelizmente, de momento não podes mesmo saber. Estou presa na minha própria odisséia pessoal. Mas isso não significa que não aprecie os teus cuidados e tens-me apoiado.

— Então e esta noite? Podemos ver-nos?

Laurie fitou os olhos pálidos de Roger. Incomodava-a o fato de não estar a ser franca, mas não conseguia arranjar ânimo para lhe dizer que estava grávida e ia jantar com Jack porque tinham ambos concebido uma criança. Não se tratava de achar que ele não conseguisse lidar com isso, porque achava que conseguia. Era mais devido à sua noção de privacidade e, enquanto não contasse a Jack, não queria partilhá-lo com outra pessoa, mesmo com alguém de quem gostava, como era o caso de Roger.

— Poderíamos jantar cedo — insistiu Roger. — Nem sequer temos de falar do assunto BRCA1 se não quiseres. Talvez já tenha alguns dados acerca do pessoal daqui ou do Saint Francis. Quer dizer, seria possível eu conseguir alguns, embora, como tu dizes, seja sexta-feira.

— Roger, com tudo o que me aconteceu recentemente, preciso de algum espaço, pelo menos durante uns dias. É esse o tipo de apoio de que necessito. Podes tentar viver com isso?

— Sim, mas não me agrada.

—Agradeço a tua compreensão. Obrigada. — Laurie levantou-se de novo e Roger fez o mesmo.

— Posso ao menos telefonar-te?

— Creio que sim, mas não sei se quererei falar muito. Talvez fosse melhor telefonar-te eu. Estou a tentar viver um dia de cada vez.

Roger anuiu e Laurie imitou-o. Viveu-se um breve e constrangedor instante de silêncio até que Roger se inclinou e tornou a abraçar Laurie. A sua reação foi tão refreada como anteriormente. Laurie esboçou um débil sorriso e preparou-se para se ir embora.

— Mais uma questão — disse Roger. Colocou-se entre Laurie e a porta. — Será que alguma parte desse "momento difícil" que descreveste tem a ver com o fato de eu ainda ser casado?

—Para ser honesta contigo, creio que um pouco — admitiu Laurie.

— Não há dúvida de que estou arrependido de não to ter dito e lamento-o. Sei que o deveria ter feito antes, mas a princípio parecia presunçoso pensar que isso te importaria. Quer dizer, chegou a um ponto em que nem eu queria saber, como se não fosse uma questão. Depois, quando nos começamos a conhecer e me apaixonei por ti e soube que isso te importaria, senti-me embaraçado por não to ter dito antes.

— Obrigada por pedires desculpa e por te explicares. Tenho a certeza de que nos vai ajudar a pôr um ponto final neste assunto.

— É essa a minha esperança — disse Roger. Fez uma carinhosa festa no ombro de Laurie e depois abriu a porta do escritório. — Vamos falando.

Laurie anuiu.

— Sem dúvida — concordou e saiu.

Roger ficou a observar Laurie seguir o seu caminho por entre as secretárias e começar a atravessar o corredor. Observou-a até ela desaparecer do seu campo de visão, depois fechou a porta. Enquanto contornava a secretária e se sentava, o perfume dela pairava no ar como um fantasma. Estava preocupado com ela e temia ter arruinado a relação de ambos, por não ter sido franco com ela e, mais danoso ainda, não estava limpo. Continuava a ocultar coisas que ela tinha o direito de saber se a relação se desenvolvesse, e, pior ainda, não estava a dizer a verdade sobre as coisas que já lhe contara. Ao contrário do que ele lhe sugerira, havia aspectos por resolver da sua relação com a mulher, incluindo um amor não correspondido da parte dele, que não tivera coragem para lhe contar, embora ela tivesse tido a coragem de lhe contar algo de semelhante relativamente a Jack, o namorado anterior.

O maior segredo de Roger para toda a gente, incluindo os seus atuais empregadores, era o fato de ter sido viciado em drogas. Durante o tempo que passara na Tailândia, deixara-se cair numa armadilha de dependência da heroína. Começara de modo bastante inocente, como uma espécie de experiência; aparentemente para que melhor pudesse compreender e tratar pacientes com esse problema. Infelizmente, subestimara o caráter sedutor da droga e a sua própria fraqueza, em especial porque a heroína estava disponível de forma tão livre. Foi nessa altura que a mulher e os filhos o abandonaram e procuraram a proteção da sua influente família. Foi também essa a razão por que foi transferido para África e acabou por ser despedido da organização. E apesar de ter sido submetido a um extenso programa de reabilitação e de se manter razoavelmente limpo de drogas havia anos, o espectro do problema do vício continuava a assombrá-lo todos os dias. Um dos problemas consistia no fato de saber que bebia demais. Adorava vinho e andava sub-repticiamente a beber pelo menos uma garrafa por noite, o que fazia com que se preocupasse com a possibilidade de estar a permitir que o álcool se tornasse um substituto da heroína. Como médico, em especial um médico que já fora submetido a um processo de reabilitação, conhecia os riscos.

Roger teria experimentado uma agonia mais duradoura, mas felizmente tinha a série de mortes suspeitas para lhe ocupar a mente. Embora se tivesse sentido curioso acerca delas quando sozinho, fora o empenho de Laurie que lhe atiçara o interesse. Usara a série para promover uma relação com ela e resultara de modo excelente. À medida que as semanas iam passando, fora-se deixando encantar por ela e começara a pensar que a sua idéia de regressar aos Estados Unidos com o intuito de resgatar um qualquer tipo de vida normal com uma nova mulher, novos filhos e a proverbial casa com jardim e uma cerca branca estavam ao seu alcance. Depois, com um deslize, o desastre batera à porta. Agora precisava da série mais do que nunca como de uma espécie de cola que mantivesse as coisas unidas. Quanto mais depressa conseguisse as listas de empregados que ela lhe sugerira, melhor. Se tivesse de fato sorte e conseguisse alguma coisa, poderia telefonar-lhe nessa noite e levá-la ao apartamento dela.

Roger usou o intercomunicador do telefone para contatar Caroline, a secretária mais eficiente. Pediu-lhe que fosse ao seu gabinete. De seguida, retirou o diretório telefônico do hospital e procurou o diretor do departamento de recursos humanos. Chamava-se Bruce Martin. Roger copiou o número da extensão telefônica dele e, enquanto o fazia, Caroline surgiu e deixou-se ficar, expectante à porta.

—Preciso de uns nomes e de uns números de telefone do hospital Saint Francis — pediu Roger. A sua voz refletia o seu súbito zelo. Quero falar com o chefe do pessoal médico e com o diretor dos recursos humanos o mais depressa possível.

— Quer que lhes telefone — perguntou Caroline — ou quer ser o Doutor a fazer a chamada?

— Faça-me a chamada—ordenou Roger. — Entretanto, vou ter uma conversa rápida com o Sr. Bruce Martin.

 

No momento em que saía pela porta principal do GMLS, Laurie olhou de relance para o relógio. Sentia-se aterrorizada. Era quase meio-dia. A viagem de táxi do hospital Manhattan General demorara uma incrível hora e meia. Abanou a cabeça. Nova Iorque podia ser assim, com toda a baixa da cidade emaranhada no tráfego como um enorme coágulo sanguíneo. O condutor explicara-lhe que estava na cidade um qualquer dignitário, embora não soubesse quem. Infelizmente, a visita implicava que algumas ruas fossem fechadas devido ao desfile de veículos. Logo que tal sucedeu, toda a parte central da cidade se deteve com estrépito.

Marlene premiu o botão para abrir a porta principal a Laurie, de modo que a obrigou a passar pela área da administração. Teve medo de olhar pela porta aberta, não fosse Calvin avistá-la. Se tivesse sabido que ia estar ausente por tanto tempo, teria preenchido as duas problemáticas certidões de óbito antes de ter saído.

Felizmente, o elevador estava à espera, por isso Laurie não teve de ficar ali de pé, no corredor principal, completamente exposta a qualquer pessoa que saísse da administração. Enquanto subia, perguntou-se se Roger seguiria a sua sugestão e faria o trabalho de detetive que ela lhe propusera. Quanto mais se preocupava com a idéia, mais otimista se sentia de que iria conduzir a algum lado. Contudo, mesmo que assim não fosse, dar-lhe-ia pelo menos a sensação de que se estava a fazer algo em relação ao problema. Nem sequer queria pensar nas tragédias individuais que as mortes das pessoas jovens e saudáveis na flor da idade estavam a provocar nas suas famílias e entes queridos.

Laurie saiu no quinto piso e caminhou apressadamente para o seu gabinete. Aporta estava entreaberta. Riva encontrava-se no interior, mas ao telefone. Laurie pendurou o casaco e sentou-se. Colada ao centro do livro de registros estava uma série de post-its com notas escritas na caligrafia redonda de Riva. Três deles diziam simplesmente "Jack veio cá." Dois diziam "Calvin veio cá", seguidos de vários pontos de exclamação. O último deles dizia para telefonar a Cheryl Meyers.

Cheia de pressa, Laurie abriu a gaveta onde guardava o material da série do potencial assassino em série e retirou de lá as pastas de McGillin e de Morgan. Retirou de cada uma as certidões de óbito parcialmente completadas e estendeu o braço para pegar numa caneta. A primeira certidão era a de McGillin e ela colocou a caneta sobre o local no formulário onde tinha de indicar o modo de morte. Contudo, hesitou quando irrompeu na sua mente uma batalha entre a sua responsabilidade para com o dever, tal como lhe era ordenado por um superior, e o seu sentido de ética. Para ela o caso assemelhava-se ao de um soldado a quem ordenassem fazer algo que não fosse correto e pelo qual poderia ser considerado responsável. A única coisa que salvava a situação era que, no caso de Laurie, não se tratava de um ato irrevogável, e poderia ser mudado. Foi com um suspiro que completou ambos os formulários. Nesse ponto, Riva desligou o telefone e girou na cadeira.

— Por onde é que andaste? Tentei ligar-te para o telemóvel uma dúzia de vezes.

— Estive no Manhattan General — disse Laurie. Abriu a mala, procurou o telemóvel, pegou nele e verificou o visor. — Bem, aí está a explicação por que não recebi a tua chamada. Parece que nunca me consigo lembrar de ligar esta maldita coisa. Desculpa.

— Calvin esteve aqui por duas vezes: Escrevi duas notas para que recebesses as mensagens se chegasses e eu não estivesse aqui. O mínimo que se podia dizer é que não está muito satisfeito por teres desaparecido.

— Eu sei do que se trata — disse Laurie ao mesmo tempo em que erguia as duas certidões de óbito. — É disto que ele anda à procura, por isso deve estar tudo bem.

— Espero que sim. Estava possesso.

— Vejo que Jack também passou por cá.

— Isso é o eufemismo do ano. Esteve aqui vinte vezes. Bem, isso é um pouco exagerado. Mas até ele se tornou um bocado sarcástico com os seus comentários mais para o fim.

Laurie resmungou interiormente. Depois dos esforços despendidos para fazer com que Jack concordasse em jantar com ela nessa noite, esperava que a sua ausência não o tivesse frustrado o suficiente para que cancelasse a saída.

— E Jack disse o que queria?

— Não, apenas que andava à tua procura. Quanto à ultima mensagem de Cheryl, disse que não era importante, mas que lhe desses uma apitadela.

Laurie levantou-se, apertando as duas certidões de óbito.

— Obrigada pelo teu serviço de mensagens. Devo-te uma.

— Não foi nada — disse Riva. — Mas, só por curiosidade, o que é que estiveste a fazer no Manhattan General durante tanto tempo?

— Na verdade, passei mais tempo em táxis que no hospital. Mas fui até lá porque tive uma idéia que pode favorecer a minha teoria de um assassino em série.

— E qual é?

— Depois conto-te. Por agora, vou levar estas certidões de óbito ao Calvin em pessoa, para acalmar as águas.

— O que deverei dizer ao Jack se por acaso tornar a aparecer por aqui?

— Diz-lhe que passo pelo gabinete dele depois de ter ido ao de Calvin.

Laurie fez o caminho inverso, até ao elevador, sentindo uma ponta de culpa por não partilhar o seu problema mais recente com Riva. Apesar de a consulta de obstetrícia estar próxima, sabia que não queria dizer a ninguém que estava grávida enquanto não o dissesse a Jack. É claro que sabia que se partilhá-lo com Jack acabasse por ser tão mau como poderia ser, optaria por não partilhá-lo com qualquer outra pessoa.

Enquanto o elevador descia, Laurie olhou de relance para as certidões de óbito agora completas. Embora pudessem ser modificadas e, na sua opinião, provavelmente seriam, continuava a perturbá-la o fato de ter sido obrigada a comprometer o seu profissionalismo preenchendo-as como fizera. Parecia-lhe que vergar-se perante as exigências da burocracia era não só eticamente repugnante, como também um desserviço à memória das vítimas.

Uma vez na administração, Laurie teve de se sentar no sofá à espera. A porta de Calvin estava fechada e Connie Egan, a secretária, disse-lhe que o subdiretor estava em reunião à porta fechada com um comandante da polícia. Laurie perguntou-se se seria Michael O'Rourke, o superior imediato de Lou, que era cunhado da vítima de assalto no Manhattan General. Enquanto esperava, pensou naquilo que ia dizer a Jack. Se ele andara tanto à sua procura como Riva sugerira, seria inevitável que lhe perguntasse onde tinha ela estado. Se ele fosse tão ciumento como Lou sugeria, não seria grande ajuda saber que Laurie tinha ido ver Roger imediatamente depois de ter conseguido convencer Jack a jantar com ela. Contudo, Laurie prometeu que não cairia na armadilha de mentir.

Pensar em Jack fê-la lembrar-se de que não reservara uma mesa para jantar. Como já era de tarde, sabia ser uma altura adequada para o fazer. Olhou para o telefone na mesa de apoio, ao lado do seu assento. Dado que ninguém lhe prestava qualquer atenção, Laurie telefonou a Riva para que ela lhe desse o número que estava na agenda telefônica sobre a sua secretária e depois fez a chamada. Tal como esperara, o restaurante já tinha muitas reservas feitas e Laurie teve de marcar uma reserva de quarenta e cinco minutos.

A porta de Calvin abriu-se e por ela saiu um polícia robusto, com uma aparência de quinta-essência irlandesa com as suas roupas azuis. Deu um aperto de mão a Calvin, fez um aceno de cabeça a Laurie, pôs o chapéu e saiu. Quando os olhos de Laurie se voltaram de novo para Calvin, ela deu por si trespassada pelo olhar fixo dele.

— Venha cá! — vociferou Calvin.

Laurie pôs-se de pé, passou por ele acanhadamente e ficou de pé no interior do seu gabinete. Calvin fechou a porta, foi até junto de Laurie e sacou-lhe os papéis das mãos. Encostou as costas à secretária enquanto verificava as certidões. Satisfeito, atirou-as para cima da secretária.

— Já não era sem tempo — disse Calvin. — Onde raios andou metida? Dei-lhe um dia para tratar da papelada, não para andar por aí no bem bom.

— Fiz aquilo que pensei que seria uma rápida visita ao hospital Manhattan General. Infelizmente, o trânsito não cooperou e acabou por ser uma missão bem mais demorada do que esperara.

Calvin mirou Laurie com suspeição.

— E o que é que foi lá fazer, se posso saber?

— Estive a falar com o senhor de que lhe falei ontem, o chefe do pessoal médico.

—Não vai fazer nada que se revele um embaraço para o departamento, espero eu.

— Não o antevejo. Passei-lhe a informação acerca dos casos de Queens. Está nas mãos dele fazer aquilo que lhe parecer apropriado.

— Não quero ouvir dizer que a Laurie está a passar dos limites, como já fez no passado.

— Tal como disse ontem, aprendi a lição. — Laurie sabia que estava, uma vez mais, a ser pouco franca.

— Assim o espero. Agora vá lá acima fazer as certidões dos restantes casos ou terá de percorrer as ruas da cidade à procura de um trabalho alternativo.

Laurie anuiu respeitosamente e deixou o gabinete de Calvin. Sentia-se aliviada. Esperara o pior, mas a visita acabara por ser surpreendentemente branda. Perguntou-se se Calvin estaria a amolecer.

Enquanto estava no primeiro andar, Laurie enfiou a cabeça no gabinete do investigador forense para ver se poderia poupar um telefonema. Foi encontrar Cheryl atarefada à secretária e perguntou-lhe em que estava a pensar.

— Só queria que soubesses que telefonei para Saint Francis e mudei o pedido do relatório para urgente.

— Ora bolas! Quando vi a tua mensagem fiquei com esperança de que já os tivesses.

Cheryl riu-se.

— Serviço de relatórios hospitalares para a manhã seguinte? Longe está o dia! Teremos sorte se os virmos dentro de umas semanas, mesmo com a classificação de urgente.

Laurie regressou ao elevador principal e, enquanto aguardava, perguntou-se se seria útil que Roger interviesse em relação aos relatórios. Tinha a sensação, no íntimo, de que algures nos relatórios de Saint Francis ou do Manhattan General haveria algum pedaço de informação escondido que seria a chave para o mistério.

Ao alcançar o quinto piso, Laurie hesitou por um instante, procurando ganhar coragem. Queria dar um pulo ao gabinete de Jack para falar com ele, mas estava preocupada com aquilo com que se depararia, depois do que Riva dissera. Embora Laurie tivesse aceite que o atual afastamento de Jack fosse em larga medida culpa sua devido ao caso com Roger, isso não facilitava as coisas. Ao mesmo tempo, não pediria desculpas.

Inspirou para se fortalecer e começou a percorrer o corredor. Ao contrário do dia anterior, não hesitou. Deixou que o seu ímpeto a conduzisse até ao gabinete, onde encontrou Jack e Chet debruçados sobre as respectivas secretárias, a espreitar pelos microscópios. Embora não o tivesse feito de propósito, entrara em silêncio, de modo que nenhum dos homens soube que ela se encontrava ali.

— Apostava uma de cinco em como tenho razão — estava Jack a dizer.

— Apostado! — respondeu Chet.

— Desculpem! — chamou Laurie.

Foi com evidente surpresa que as cabeças de ambos os homens se levantaram e viraram para a visita.

— O quê! — exclamou Jack. — Falando no diabo! O fantasma da desaparecida Drª. Montgomery acaba de se materializar entre nós.

— Milagre! — acrescentou Chet. Recuou, fingindo-se aterrorizado. —Vá lá, rapazes! — disse Laurie. — Não estou com disposição para ser gozada.

—Graças a Deus que ela é real! — disse Jack, como que aliviado. Encostou as costas da mão à testa no gesto estereotipado de desmaiar.

Da mesma maneira, Chet levou a mão ao peito como se estivesse a sentir palpitações.

—Vá lá, deixem-se disso! — disse Laurie, cujos olhos passavam de um para o outro. Parecia-lhe que estavam a levar a charada um pouco longe de mais.

— Julgávamos que tinhas desaparecido para sempre — explicou Chet com um riso dissimulado. — Ouviram-se rumores de que se tratara de uma súbita desmaterialização. Como eu era o organizador de horário de hoje, deveria saber onde estavas, mas não fazia idéia. Nem a Marlene, da recepção, te vira sair.

— Marlene não estava na recepção quando saí — disse Laurie. Era evidente que a sua ausência fora tema de especulação, o que, dadas as circunstâncias, não era bom sinal.

— Estamos todos um pouco curiosos em relação ao sítio onde foste, uma vez que, segundo Calvin, deverias ter estado no gabinete.

— Mas o que é isto, a Inquisição Espanhola? — perguntou Laurie, na esperança de que um pouco de humor os desviasse da questão. Olhou diretamente para Jack. — Riva disse-me que passaste por lá, por isso estou a retribuir-te a fineza. Tinhas alguma coisa em especial para me dizer?

— Ia dar-te a informação final acerca da autópsia de Mulhausen — disse Jack. — Mas, antes disso, estamos realmente curiosos em relação a onde terás ido tão misteriosamente. Não nos preenches esta lacuna? Temos uma data de dinheiro apostado nisto.

Os olhos de Laurie deslocavam-se de um homem para o outro. Observavam-na, plenos de expectativa. Era essa a questão que ela temia e tentou loucamente pensar numa resposta apropriada e sem mentir. Não conseguiu pensar em nada.

— Fui ao hospital Manhattan General — começou Laurie, mas Jack interrompeu-a.

— Bingo! — disse Jack. Apontou para Chet com os dedos posicionados de modo a que a mão parecesse uma arma. — Estás a dever-me cinco dólares, campeão.

Chet fez rolar os olhos num sinal de evidente decepção, mudou o peso do corpo para retirar a carteira do bolso traseiro e colocou uma nota de cinco dólares na palma estendida de Jack.

Jack agarrou triunfantemente no dinheiro e olhou para Laurie.

— Parece que sempre acabo por lucrar com o teu encontro amoroso.

Laurie sentia a sua ira aumentar, mas manteve o controlo. Não gostava destes jogos duvidosos à sua custa.

— Fui ao Manhattan General porque tive uma idéia que pode resolver o mistério da minha série de homicídios.

—Ah, claro! —disse Jack. — E, por mera coincidência, tiveste de partilhar essa idéia com o teu atual querido.

— Acho que vou lá abaixo buscar café — disse Chet, levantando-se apressadamente.

— Não tens de ir por minha causa — disse Laurie.

— Mas acho que vou, de qualquer maneira — respondeu Chet.

— É hora de almoço.

Saiu do gabinete e fechou a porta atrás de si. Por um instante, Laurie e Jack ficaram a olhar um para o outro.

— Vamos pôr as coisas nestes termos — disse Jack, quebrando o silêncio. — Acho humilhante que faças um esforço considerável para me convenceres a jantar contigo e depois desapareças de imediato durante quatro horas para ires ter com o homem com quem tens atualmente um caso.

— Eu compreendo isso e peço-te desculpa. Não me ocorreu que te poderia afetar assim.

— Ah, por favor! Põe-te no meu lugar.

— Bem, depois de o ter feito, tenho de confessar que tive medo de que me perguntassem onde tinha ido. Mas, Jack, fui apenas pela razão que te disse. Os casos de Queens deram-me uma idéia de como posso conseguir arranjar uma lista de potenciais suspeitos. Não se tratou de um encontro secreto. Não me deprecies com esse tipo de conversa!

Jack atirou para cima da mesa a nota de cinco dólares de Chet, baixou os olhos e esfregou a testa.

— Jack, acredita em mim! Parte da razão por que me ocorreu uma idéia deveu-se aos teus comentários acerca de a intriga se começar a adensar e de haver um pano mortuário sobre a AmeriCare. Na verdade, queria perguntar-te o que querias especificamente dizer com isso.

— Não sei se tinha alguma coisa específica em mente — disse Jack sem tirar a mão da testa. — Mas a tua série salta para treze casos em dois hospitais, ambos pertencentes a instituições AmeriCare. Isso faz-te pensar.

Laurie anuiu.

— Pensei que tinhas em mente algo acerca de gestão de cuidados. Se estamos a falar de homicídios, começo a ficar com a impressão de que não são aleatórios. Os dados demográficos são demasiado idênticos. Por exemplo, fiquei hoje a saber que todos eles, pelo menos os do Manhattan General, eram beneficiários relativamente recentes da AmeriCare. Agora, como isso se enquadra no caso, não faço idéia.

Jack retirou a mão e ergueu os olhos para Laurie.

— Então agora achas que isto pode ser uma coisa tipo conspiração?

Laurie anuiu.

—Pensei que era isso que estava subjacente nos teus comentários.

— Nem por isso, e, em termos de capitação, não faz sentido, por isso não pode ter nada a ver com a gestão de cuidados per se. Por outro lado, a medicina tornou-se um grande negócio e a AmeriCare uma organização enorme. Significa isso que existem tipos a trabalhar como atuários e os seus patrões, que se encontram tão afastados dos cuidados a pacientes que se esquecem qual é, em última análise, o produto da companhia. Vêem tudo em termos de números.

— Isso pode ser verdade — disse Laurie — mas ver-se livre dos beneficiários novos e saudáveis é diametralmente contraproducente para um objetivo atuarial.

— Pode parecer-nos assim, mas a minha perspectiva é a de que há pessoas envolvidas, em níveis mais elevados, e que não conseguimos compreender. Poderia ainda assim estar envolvida uma espécie de conspiração cuja lógica pode não ser imediatamente evidente.

— Talvez — disse Laurie vagamente. Sentia-se decepcionada. Julgara que Jack poderia ter algo de específico a oferecer.

Laurie e Jack olharam-se fixamente durante uns segundos. Jack quebrou o silêncio.

— Deixa-me perguntar-te honestamente uma coisa a que aludi lá em baixo, na cova. O jantar desta noite é alguma espécie de cenário elaborado para me dizeres que te vais casar? Porque, se é, vou explodir. Quero só avisar-te disso.

Laurie não respondeu de imediato, porque o comentário lembrava-lhe como tudo se tornara complicado na sua vida. Era-lhe difícil manter tudo e toda a gente na perspectiva certa.

— Este silêncio não me está a deixar à vontade — avisou Jack.

— Não me vou casar! — disse Laurie com súbita veemência, apontando o dedo a Jack. — Disse isso sem incertezas lá em baixo, na sala de autópsias. Disse-te que tinha de falar contigo acerca de uma coisa que te envolve a ti e a mim, e a mais ninguém.

— Creio que não incluíste essa parte "mais ninguém" na cova.

— Bem, estou a fazê-lo agora! — vociferou Laurie.

— Está bem, está bem. Acalma-te! Eu é que deveria estar irritado e não tu.

— Ficarias irritado no meu lugar.

— Ora aí está uma afirmação que não posso interpretar sem um pouco mais de informações. Mas, sabes, Laurie, detesto ver-nos assim um contra o outro. Somos como dois cegos a esbracejar no escuro.

— Não poderia concordar mais.

— Bem, então porque é que não me contas seja o que for que tens de me contar e damos o assunto por encerrado?

— Não quero falar sobre isso aqui neste lugar. Quero estar longe do GMLS. Não tem nada que ver com trabalho e não quero estar aqui. Fiz uma reserva no Elios para um quarto para as seis.

— Eh pá! Isso vai ser um jantar ou um almoço tardio?

— Que engraçadinho! — disse Laurie impacientemente. — Eu avisei-te de que poderia ter de ser cedo. É sexta-feira à noite e estão cheios. Tive sorte em conseguir o que consegui. Vais lá aparecer ou não?

—Vou, mas vai ser um grande sacrifício. Warren vai ficar desiludido por eu não aparecer no campo de basquetebol para o jogo de sexta-feira à noite. Bem, na verdade, isso é mentira. Tenho andado a jogar tão mal desde que te foste embora que ele não me aceita na sua equipa. Tornei-me uma persona non grata no meu próprio campo.

— Vejo-te no Elios — disse Laurie — se te dignares a aparecer. — Virou-se e saiu do gabinete.

Jack saltou da cadeira de um pulo e, segurando a jamba da porta, inclinou-se para o corredor. Laurie já ia a boa distância no corredor em direção ao seu gabinete. Não havia qualquer hesitação no seu passo e deslocava-se a bom ritmo.

— Ei! — Chamou ele. — Dizer que jantar contigo era um sacrifício, era supostamente uma piada.

Laurie não abrandou o passo nem se virou e depressa desapareceu de vista no interior do seu gabinete.

Jack endireitou-se e sentou-se na sua cadeira à secretária. Perguntou-se se teria exagerado com o sarcasmo. Encolheu os ombros porque, conhecendo-se, teria sido difícil para ele agir de outro modo. Essa reação tornara-se a sua defesa contra as incertezas da vida. Na atual situação, temia receber um qualquer tiro no escuro por parte de Laurie. Não fazia idéia do que se passava na cabeça de Laurie.

Porém, o comentário de Lou de que ela queria fazer as pazes ainda lhe ressoava na mente e dava-lhe uma ponta de esperança.

A mistura de basquetebol de rua e de trabalho era geralmente o consolo de Jack e, como o basquetebol não andava a satisfazê-lo tanto, como explicara a Laurie, o trabalho dominava. Ao longo das anteriores cinco semanas, Jack fora literalmente um mouro de trabalho. No espaço de pouco mais de um mês, passara de pesadelo de Calvin, quanto a conseguir fazer certidões de casos, a menino querido de Calvin. Não só estava a fazer significativamente mais casos que qualquer outra pessoa, como os estava a fazer mais depressa. Jack regressou a microscópio e aos tabuleiros de lamelas que acabara de trazer da histologia nessa manhã.

O tempo voava. Chet regressou e Jack insistiu para que Chet reouvesse a nota de cinco dólares com a explicação de que a aposta não tinha sido justa, porque Jack tinha cem por cento de certeza. Passado algum tempo, Chet saíra de novo, mas Jack continuou a trabalhar. Os progressos feitos acalmaram-no e conferiram-lhe uma sensação de satisfação, mas, melhor que tudo, tornaram possível não pensar em Laurie.

— Jack, levanta a cabeça para apanhares ar — disse uma voz, desconcentrando Jack.

Estivera a fitar um estranho parasita hepático com que deparara no fígado de um caso de ferida provocada por arma de fogo. Olhou para cima e viu Lou Soldano de pé à porta.

— Estou a observar-te há cinco minutos e não mexeste um maldito músculo.

Jack fez sinal ao detetive com uma mão para que entrasse no gabinete enquanto virava a de Chet com a outra.

Lou sentou-se pesadamente e atirou o chapéu para a secretária de Chet. Ostentava o habitual rosto privado de sono a ponto de ter enrugado a testa por forma a manter os olhos abertos.

— Acabei de ouvir as boas notícias — disse Lou. — Acho ótimo.

— De que é que estás a falar?

— Acabei de enfiar a cabeça no gabinete de Laurie. Contou-me que tu e ela têm um encontro esta noite no Elios e que ela te convidou. O que é que eu te disse? Ela quer que voltem a ficar juntos.

— Ela disse-te isso especificamente?

— Não, especificamente não, mas, por favor! Quer dizer, convidou-te para jantar.

— Disse que me queria contar uma coisa, mas talvez seja algo que eu não queira ouvir.

—Céus, que pessimista! Pareces tão mal como eu. Aquela mulher ama-te.

— Sim, pois, isso é novidade para mim! E como é que ela te disse que tínhamos um encontro, de qualquer das maneiras?

— Perguntei-lhe. Não escondo o fato de que vos quero ver juntos e ela sabe-o.

— Veremos — disse Jack. — Entretanto, o que é que te tem ocupado?

— O arrepiante caso Chapman, é claro. Temos trabalhado a mil à hora e entrevistamos toda a gente no hospital. Infelizmente, ninguém viu uma pessoa suspeita; não que isso seja muito estranho. Mas não temos nada. Estava com esperança de que tivesses encontrado qualquer coisa. Sei que o meu comandante veio falar com Calvin Washington.

— Que esquisito! Calvin nada sabe sobre o caso e não falou comigo.

Lou encolheu os ombros.

— Pensei que talvez tu tivesses falado. De qualquer modo, tens alguma coisa?

— Ainda não recuperei as lamelas, mas não nos vão dizer nada. Tens as balas, que creio que vão ser as únicas coisas que vais conseguir na autópsia. Que tal a posição da vítima e o fato de seja quem for que a matou estar provavelmente sentado no carro? Estás a trabalhar na perspectiva de que a vítima pode ter conhecido o perpetrador?

— Estamos a ver todos os ângulos. Acredita em mim. Andamos a entrevistar toda a gente que tem acesso ao parque de estacionamento. O problema é que não temos impressões digitais. Com exceção dos cartuchos, não temos nada!

— Desculpa não ter sido melhor ajuda — disse Jack. — Mudando de assunto, a Laurie disse alguma coisa acerca da série de mortes suspeitas de que te falei ontem?

— Não, não disse.

— Espanta-me — disse Jack. —As coisas parecem promissoras a esse respeito. Já tem sete casos do Manhattan General, incluindo um que autopsiei hoje, e deparou com outros seis de um hospital de Queens.

— Interessante.

—Acho que é mais que interessante. Na verdade, começo a achar que ela tem razão acerca disto desde o princípio. Julgo que pode estar a caminho de encontrar um assassino em série.

— A sério?

— A sério! Por isso, talvez devas começar a pensar em envolver-te no caso.

— Qual é a opinião oficial? Calvin e Bingham também alinham?

— Dificilmente. Com efeito, descobri que Laurie foi pressionada por Calvin a fazer as certidões dos primeiros casos, apontando-os como mortes naturais, e Calvin foi pressionado por Bingham, que foi pressionado por alguém do gabinete do presidente de câmara.

— Parece coisa política, o que significa que estamos de mãos atadas.

— Bem, pelo menos avisei-te.

 

Jack puxou pelos músculos enquanto pedalava e a bicicleta respondeu. Passava nesse momento pelo edifício das Nações Unidas, no sentido norte da First Avenue. Embora o tráfego das cinco e meia estivesse no auge, Jack não teve altercações com os demais condutores. Reduzira a sua agressividade até certo ponto na seqüência da recente chegada à morgue de um dos muitos estafetas de bicicleta da cidade. O pobre sujeito tivera uma disputa com o condutor de um camião do saneamento básico e pagou caro por ela. Quando Jack o viu na morgue, a sua cabeça tinha o diâmetro de uma grande bola de praia, mas a espessura de uma moeda de quarto de dólar.

Mais adiante, vislumbrava-se o viaduto de sólidos pilares da Ponte de Queensboro. Jack premiu uma mudança superior quando a estrada começou a descer num declive gradual. Com o auxílio da gravidade, estava lado a lado com o trânsito e o vento assobiava-lhe pelo capacete. Tal como era habitual, o seu regozijo o conferia-lhe uma sensação de distanciamento e, por uns minutos, todos os seus cuidados, as suas preocupações e as más recordações se evaporaram num banho de endorfinas.

Mais cedo, nessa mesma tarde, Jack desligara a luz do microscópio, arrumara a secretária e dirigira-se ao gabinete de Laurie com a idéia de discutir com ela o modo como se dirigiriam para o restaurante. Encontrara todavia a secretária vazia, tal como sucedera durante as muitas visitas que lhe fizera nessa manhã. Nessa ocasião, Riva explicara-lhe que ela regressara ao apartamento para mudar de roupa. Jack deduziu que fizera uma expressão de surpresa, porque Riva prosseguira, explicando que se tratava de uma coisa de mulheres, embora essa explicação tivesse servido apenas para o confundir mais. A roupa que Laurie estava a usar era perfeitamente adequada para o jantar cedo. Mais que qualquer outra pessoa no GMLS, Laurie vestia-se sempre de maneira elegante e feminina.

Logo a seguir à Ponte Queensboro, o trânsito enredava-se com carros congestionados que competiam para entrar na rampa que conduzia ao FDR Drive, no sentido norte. Jack via-se reduzido a seguir aos ziguezagues entre carros, autocarros e camiões parados até ser capaz de serpentear o seu caminho ao longo do engarrafado cruzamento da 63nd Street. Afastou-se do congestionamento e levantou-se sobre os pedais para recuperar a velocidade.

A partir desse ponto para norte, Jack não teve problemas. Na esquina entre a 82nd Street e a Second Avenue, Jack subiu para o passeio e desmontou. Prendeu a bicicleta e o capacete a um sinal de estacionamento proibido. Quando entrou no Elios, estava apenas três minutos atrasado.

Jack deixou-se ficar de pé junto do bar de mogno, logo a seguir à porta de entrada, e observou a cena. Os empregados de avental branco lavado de fresco apressavam-se, certificando-se de que as mesas cobertas de toalhas de linho estavam em ordem. Havia poucos clientes espalhados pelo interior estreito, mas profundo. Imediatamente à direita de Jack havia uma mesa redonda ocupada por um ruidoso grupo, entre os quais Jack reconheceu vagamente vários como sendo gente da televisão, embora não tivesse televisor. A princípio, não viu Laurie e julgou que fosse o primeiro a chegar.

A dona, uma mulher elegante e alta, aproximou-se dele. Quando Jack lhe disse que tinha uma reserva no nome de Montgomery, ela pegou-lhe no blusão de pele, que entregou de imediato a um empregado desocupado, e fez um sinal a Jack para que a seguisse. A meio caminho da sala de jantar, viu Laurie numa mesa à direita, embrenhada numa conversa com um empregado de bigode. Diante de si, havia uma garrafa de água com gás italiana, mas não havia vinho. Sabia o quanto Laurie gostava de vinho e, no passado, se ele se atrasasse para um jantar a dois, ela avançava sempre e pedia uma garrafa. Desconhecia a razão pela qual não o teria feito nessa ocasião.

Jack debruçou-se e deu um rápido beijo na face de Laurie antes sequer de ter pensado se deveria ou não fazê-lo. Apertou depois a mão ao empregado, que era um tipo notavelmente simpático. Quando se sentou, o empregado perguntou-lhe se queria vinho.

— Sim, acho que sim — disse Jack. Olhou para Laurie.

— Força — disse Laurie apontando para o copo de água. — Eu fico pela água.

— Sim? — inquiriu Jack.

Ele sentia-se já ligeiramente desarmado num encontro para jantar do qual não fazia idéia o que esperar. Hesitou por um instante, mas pediu ao empregado que lhe trouxesse uma cerveja. Se Laurie não ia beber vinho, ele também não o faria. Considerava-o uma questão de princípio, embora não fizesse idéia de qual seria o princípio.

— Ainda bem que chegaste aqui em segurança — disse Laurie. — Estava com esperança de que, depois do caso do estafeta, reconsiderasses a conveniência de cortejares diariamente a morte.

Jack anuiu, mas não respondeu. A seu ver, Laurie parecia radiante. Usava um dos conjuntos de que ele mais gostava e ele perguntou-se se ela o teria escolhido de propósito. Não só mudara de roupa, como lavara o cabelo. No GMLS, Laurie usava-o, ou amontoado ao cimo da cabeça, ou numa trança francesa, mas nessa noite caía-lhe em cascata sobre os ombros formando uma suave moldura em redor do seu rosto.

— Estás linda — disse Jack.

— Obrigada. Tu também estás bem.

— Ah, sim, claro — disse Jack, com evidente incredulidade.

Olhou para a camisa de cambraia amarrotada, ligeiramente suja, a gravata azul escura e as calças de ganga ligeiramente manchadas de gordura. Ao lado do esplendor de Laurie, sentia-se o parente pobre. Enquanto o empregado estava ausente a tratar da cerveja de Jack, falaram trivialmente acerca do número de vezes que já tinham estado naquele restaurante. Laurie fez referência àquela vez em que levara Paul Sutherland ao Elios para um encontro surpresa com Jack e Lou, quando pensava em casar com o homem.

— Bem, não foi a minha noite preferida aqui — admitiu Jack.

— Nem a minha — concordou Laurie. — Lembrei-me dela porque ontem o Lou mencionou-a e disse que tu e ele tinham ficado ciumentos.

— Ah, sim? Bem, sabe lá o Lou!

— Devo dizer-te, só para que o saibas, que nunca pensei que tivesses ciúmes.

O empregado regressou com a cerveja de Jack e um cesto de pão.

— Gostariam de ouvir agora as especialidades da casa ou querem esperar?

— Creio que vamos esperar uns minutos — respondeu Laurie.

— Então é só chamar-me — disse o empregado num tom simpático.

Jack e Laurie ficaram a vê-lo dirigir-se à cozinha.

— Desculpa ter sugerido esta tarde que jantar contigo era um sacrifício — disse Jack quanto tornaram a olhar um para o outro. Não quis magoar-te. Era suposto ser uma piada.

— Obrigada pelo pedido de desculpas. Em circunstâncias normais, não teria reagido como reagi. Receio que ultimamente não ande a ver muito humor nas coisas.

— Bem, não tive oportunidade de te dizer que Mulhausen estava limpo, tal como tinhas suspeitado. Não havia qualquer patologia evidente. E por falar em Lou, deverias saber que lhe disse que começava a despertar para a tua idéia do assassino em série e que o departamento dele poderia querer estudar o caso.

— Ah, foi? E o que é que ele disse?

— Quis saber qual era a posição oficial do GMLS e eu disse-lhe.

— Disse que, perante as circunstâncias, uma vez que nem o GMLS nem o hospital tomavam uma atitude e com o gabinete do presidente da câmara tangencialmente envolvido, tinha, em certo sentido, as mãos atadas.

— Vou tentar mudar tudo isso apresentando uma lista de suspeitos.

— Suspeitos a sério! Eh pá! Isso haveria por certo de mudar o cenário. É estranho que digas isso. Tive uma nova idéia que vai ao encontro dessa linha de ação.

— Deve ser interessante.

— Embora as mortes da tua série pareçam contraproducentes para os interesses atuariais da gestão de cuidados, há uma maneira ou outra de se poderem relacionar com o fenômeno da gestão de cuidados.

— Estou a ouvir.

—A gestão de cuidados tem sido obrigada a mostrar-se agressiva e a impor procedimentos hospitalares de uma forma muitas vezes hostil. O teu assassino em série poderia ser alguém tão zangado com a AmeriCare como eu. Tenho de confessar que ocultei alguns pensamentos assassinos depois de a AmeriCare ter engolido o meu trabalho. Se não fosse a AmeriCare, ainda hoje seria um conservador oftalmologista no Midwest, com um fato de xadrez escocês e a esforçar-se por enviar duas miúdas para a faculdade.

— Por mais vezes que me contes a história da tua vida passada, parece-me difícil de imaginar. Tenho a certeza de que não te reconheceria.

— Eu não me reconheceria.

— Mas o teu argumento é bem visto. Um médico com acesso privilegiado no Manhattan General e no Saint Francis é um dos perfis que está a ser considerado. Qual é a tua outra idéia?

— Concorrência de gestão de cuidados! É um negócio cão, na arena médica. No papel dos dois gigantes locais da indústria, a National Health e a AmeriCare enfrentaram-se no passado com algumas espantosas maquinações feitas por baixo da mesa a virem a lume. Sei que a National Health aceitou geralmente que Nova Iorque ficaria para a AmeriCare, mas podem ter mudado de idéias. Provocar um importante desastre de relações públicas à AmeriCare, coisa que a tua série acabará mais cedo ou mais tarde por ser, seria sem dúvida vantajoso para a National Health. Nesta linha de pensamento, poderia estar envolvido qualquer indivíduo ou grupo que quisesse que as ações da AmeriCare caíssem, porque quando a tua série chegar aos media, os investidores vão afastar-se em bandos.

— Bons argumentos! — admitiu Laurie. — Realmente, não tinha pensado em nada disso. Obrigada.

— De nada.

Jack bebeu um longo gole de cerveja, diretamente da garrafa. Laurie bebericou a água com gás. O restaurante despertava do seu repouso diurno. Havia mais uns clientes sentados. Havia-se materializado uma multidão no bar, que fazia elevar o nível de ruído com a sua conversa entusiasmada e as suas gargalhadas.

Ao reparar na pausa que Jack e Laurie fizeram na conversa, o empregado foi perguntar-lhes se queriam entradas. Depois de Laurie e de Jack terem trocado olhares para verem se algum se opunha, anuíram ambos, o que arrancou do empregado uma impressionante atuação. Enunciou rapidamente uma comprida lista de entradas especiais, explicando cada uma delas com esmerado pormenor. Apesar do tentador recital, Laurie pediu uma salada de eruca e Jack decidiu-se por umas lulas. Eram ambos da ementa regular.

Depois de o empregado ter partido e de os ter deixado de novo a sós, Jack olhou para Laurie. Tinha a cabeça baixa enquanto mudava atarefadamente de posição os talheres, que se encontravam já perfeitamente posicionados. Jack sentiu que ela estava tensa. Passados mais alguns minutos, aquilo que começara por ser uma mera pausa na conversa pareceu a Jack tornar-se num constrangedor silêncio. Ajustou-se na cadeira dura e, depois de um olhar de relance em redor da sala para se certificar de que estavam a ser convenientemente ignorados, quebrou o silêncio.

— Quando é que gostarias de falar do teu importante "o que for" que te envolve a ti e a mim e a mais ninguém? Trata-se de um tema de aperitivo, de prato principal ou de sobremesa?

Laurie ergueu os olhos. Jack tentou ler-lhe os olhos azuis esverdeados, mas não sabia dizer se ela se sentiria zangada ou angustiada. As suas especulações quanto ao que ela iria dizer percorriam uma gama inteira, desde ela querer fazer as pazes, tal como Lou sugerira, até dizer-lhe que estava a tentar dar o nó com o namorado de nome que parecia francês. O fato de ela arrastar o mistério começava a enfraquecer.

— Se não for pedir muito, gostaria de te pedir que tivesses a gentileza de evitar quaisquer tentativas de um humor sarcástico. Estou segura de que é óbvio que estou a passar um mau bocado com isto e poderias pelo menos mostrar algum respeito.

Jack respirou fundo. Era um grande pedido que abandonasse a sua mais possante defesa psicológica numa situação em que temia precisar mais dela.

— Vou tentar — disse — mas estou à nora, a tentar imaginar de que se trata tudo isto.

— Em primeiro lugar, deixa-me dizer-te que fiquei ontem a saber que tenho o marcador para o BRCA1.

Jack fitou a antiga companheira enquanto uma miríade de pensamentos lhe ressoavam na mente. A par de um ímpeto de compaixão e preocupação estava aquilo que ele considerava ser uma nobre sensação de alívio. Numa atitude de egoísmo, sabia que pessoalmente conseguia lidar muito melhor com o problema do BRCA1 que com a idéia de que ela se ia casar.

— Não vais dizer nada? — perguntou Laurie após uma pausa.

— Lamento! A notícia apanhou-me desprevenido. Tenho de fato muita pena por saber que tens o marcador. O lado positivo é que continuo a achar que é melhor que o saibas do que se não o soubesses.

— Neste momento, não estou convencida.

— Estou eu. Não há uma sombra de dúvida na minha cabeça. Por agora, isso significa simplesmente que terás de ser muito mais vigilante, talvez com mamografias e ressonâncias magnéticas anualmente. Lembra-te de que, embora o marcador signifique que tens um maior risco de desenvolver cancro antes dos oitenta, a tua mãe, com quem sem dúvida partilhas a mutação, só desenvolveu o problema na casa dos oitenta.

— É verdade — disse Laurie, reconhecendo que Jack tinha razão. O seu rosto iluminou-se visivelmente. E a minha avó materna, que também tinha tido cancro da mama, também só o desenvolveu na casa dos oitenta. E as minhas tias, que estão todas na casa dos setenta, não o têm... pelo menos, ainda não.

— Ora bem, aí está! — disse Jack. — Parece-me razoavelmente claro que a tua mutação familiar específica determina uma doença octogenária.

— Talvez — disse Laurie, retraindo algum do seu otimismo. — Mas não há teste para uma tal asserção e não toma em consideração o risco aumentado de cancro dos ovários.

—Alguém da tua família, de ambos os lados, já teve cancro dos ovários?

— Não, de que eu tenha conhecimento.

— Parece-me que tudo isto são informações bastante positivas.

— Creio que sim — disse Laurie, tornando a brincar com os talheres.

Jack bebeu mais um gole da cerveja fria. Sentia-se quente e perguntou-se vagamente se o seu rosto o revelaria. Enfiou um dedo no colarinho e empurrou-o do pescoço suado. Estava morto por tirar a gravata, mas não se atrevia a fazê-lo, tendo em conta a maneira elegante como Laurie estava vestida. O que o incomodava era o modo como Laurie apresentara a questão do BRCA1. Dissera "em primeiro lugar", o que fez Jack temer que houvesse um "segundo lugar".

Nesse momento, chegou a salada e as lulas. O empregado serviu a comida e depois reorganizou a mesa e limpou as migalhas antes de desaparecer. Não os incomodara relativamente ao prato principal, o que lembrava a Jack uma das razões pelas quais gostava de comer no Elios. Nunca se sentira vítima do inevitável apressar de traseiros para dar a mesa a outros, como tantas vezes se sentira em muitos outros restaurantes "da moda".

Depois de ter comido umas garfadas das lulas e de ter bebido outro gole de cerveja, Jack aclarou a garganta. Supersticioso, não queria fazer a pergunta, mas a expectativa estava a dar cabo de si.

— Havia mais alguma coisa que querias dizer esta noite ou era apenas a questão do BRCA1?

Laurie pousou o garfo e fixou os olhos de Jack.

— Há mais uma coisa. Queria dizer-te que estou grávida.

Jack engoliu, inclinou ligeiramente a cabeça de lado como se alguém lhe tivesse dado uma bolada na nuca e tornou a pousar a cerveja sobre a mesa. Manteve os olhos colados aos de Laurie. Essa gravidez seria porventura a última coisa que esperava ouvir e a sua mente era uma selva de pensamentos complicados. Aclarou a garganta mais uma vez.

— Quem é o pai? — perguntou Jack.

O rosto de Laurie ensombrou-se como uma súbita tempestade de verão e levantou-se tão depressa de um pulo que a cadeira caiu de costas no chão. A queda fez com que as conversas em geral no restaurante parassem de repente. Atirou o guardanapo de pano para cima da salada e começou a andar para a entrada da sala. Jack, que a princípio recuara face ao inesperado alvoroço, recobrou suficientemente o espírito para estender a mão e agarrar o antebraço de Laurie.

Ela reagiu com um esticão, mas Jack agarrou-a firmemente e não a soltou. Ela olhou-o furiosamente com as narinas dilatadas.

— Desculpa! — Explodiu Jack, acrescentando depois apressadamente: — Não fujas! É evidente que precisamos conversar e talvez essa não tenha sido a mais diplomática das primeiras perguntas.

Laurie deu outro sacão para libertar o braço, mas com menos força que o primeiro.

— Por favor, senta-te! — disse Jack com um tom de voz mais calmo e tranqüilizador.

Como que subitamente ciente daquilo que a rodeava, os olhos de Laurie varreram a sala, e viu que o restaurante parecia ter sido imobilizado, com todos os olhos voltados para si. Baixou os olhos para Jack, anuiu e recuou um passo ao lado da mesa. Como que respondendo a uma deixa, o empregado materializou-se, endireitou-lhe a cadeira e levou o guardanapo e o prato da salada. Laurie sentou-se e, logo que o fez, a conversa recomeçou no restaurante como se nada tivesse acontecido. Os nova-iorquinos estavam habituados ao inesperado e aceitavam-no com naturalidade.

— Há quanto tempo sabes? — Perguntou Jack.

— Suspeitei ontem, mas só hoje tive a confirmação.

— Estás incomodada com isso?

— É claro que estou incomodada. Tu não?

Jack anuiu e fez um instante de pausa enquanto pensava.

— Que vais fazer?

— Queres dizer se vou ou não ter o bebê? É isso que estás a querer saber com essa maldita pergunta?

— Laurie, nós estamos a conversar. Não tens de ficar zangada.

— A tua primeira questão, como tu lhe chamas, tocou no nervo errado.

— Isso foi evidente, mas tendo em conta que estás a viver aquilo que de fora parece ser um intenso romance, a minha pergunta não é assim tão desadequada.

—Achei-a excessivamente insensível, uma vez que não tive sexo com Roger Rousseau.

— Como haveria eu de saber isso? Nas últimas semanas, tentei ligar-te uma série de vezes à noite. Uma dessas noites fui tentando até ser bastante tarde, o que me levou a pensar que não estivesses em casa.

— Fiquei umas vezes em casa de Roger — admitiu Laurie. — Mas não houve sexo.

— Isso parece uma distinção bastante suspeita, mas continuemos.

O empregado reapareceu com um guardanapo lavado e salada para Laurie. Usando de sensibilidade, retirou-se depressa.

— De quanto tempo estás? — perguntou Jack.

— Seis semanas, mas o consultório de obstetrícia diria sete. Não há dúvidas na minha cabeça de que sucedeu na última noite que passamos juntos. É muito irônico, não achas?

— "Surpreendente" é o adjetivo que mais me ocorre à idéia. Como pode isto ter acontecido?

— Espero que não estejas a pôr as culpas em mim. Se te lembras da noite anterior, tinhas-me perguntado em que ponto estava do ciclo. Disse-te que seria provavelmente seguro, mas que estava perto. Quando fizemos amor, era tecnicamente o dia seguinte e evidentemente não era seguro.

— Por que é que não interrompeste a relação?

Laurie olhou furiosamente para Jack.

— Estás a começar a enfurecer-me de novo. A mim parece-me culpabilização e sabes que mais? Estivemos os dois envolvidos na decisão de fazer amor e não apenas eu, e sabíamos ambos os mesmos fatos.

— Acalma-te — disse Jack apaziguadoramente. — Não estou a pôr as culpas em ti. A sério! Estou só a tentar compreender. O fato de estares grávida apanhou-me total e completamente de surpresa. Tínhamo-lo evitado com êxito no passado. Por que é que fizemos asneira desta vez?

O olhar furioso de Laurie acalmou-se. Respirou fundo e expirou com ruído.

— Bem, nesta altura, será provavelmente melhor ser totalmente honesta. Naquela manhã, quando comecei a suspeitar de que poderíamos fazer amor, pensei efetivamente que estávamos a correr um risco e tinha a certeza de que pensavas o mesmo. Na minha mente, não era um risco enorme, uma vez que eu julgava tratar-se do décimo dia, mas não deixava de ser um risco. Tendo em conta que eu queria muito construir uma família contigo, por ti e por mim, senti-me confortável com o risco. Do teu ponto de vista, pensei que algures nos recantos do teu espírito, pensavas do mesmo modo, com a idéia de que conceber uma criança haveria de te ajudar a libertares-te do teu passado para começares toda uma nova vida pessoal. Talvez estivesse a projetar demasiado os meus próprios desejos em ti; não sei, mas era assim que eu me sentia, sem tirar nem pôr.

Jack ponderou sobre as palavras de Laurie. Distraído, mascou a parte interna da bochecha enquanto o fazia. A vida dera-lhe uns golpes súbitos e este parecia ser dos maiores. O choque de ter de enfrentar as notícias de que possivelmente concebera mais um filho apanhou-o completamente desprevenido. Também o aterrorizou, sobretudo porque temia gostar demasiado do fato e que o tornasse tão vulnerável como no passado. Perder uma família fora a maior provação da sua vida e duvidava de que pudesse sobreviver a outra perda. Porém, no topo de todos estes perturbantes pensamentos, havia outro, mais positivo. Se nada mais aprendera nas últimas seis semanas miseráveis, ficara pelo menos a saber que amava Laurie mais do que aquilo que admitira. Qual seria o impacto disso na presente situação era algo de que não fazia idéia. Não fazia idéia de quais eram os sentimentos dela por esse novo namorado.

— Não lido bem com esses teus silêncios — disse Laurie. — Não só nem parecem teus, como preciso de uma reação. Qualquer coisa, mesmo que má. Tenho de saber como te sentes. Temos de tomar algumas decisões ou, se não te quiseres envolver, diz-me. Nesse momento, tomarei as decisões sozinha.

Jack anuiu.

— É claro que me quero envolver, mas isto é um pouco injusto. É difícil para mim que tudo isto me caia sobre os braços e depois esperes que tenha uma reação no instante. Na verdade, parece-me pouco razoável que esperes uma coisa dessas. Preferia que me tivesses contado logo que o soubeste para termos podido ambos pensar em simultâneo. E depois, neste jantar, poderíamos ter partilhado idéias.

— Tens razão — admitiu Laurie. — Não é minha intenção deixar-te aflito, embora gostasse que respondesses do modo que desejo.

— E como é isso?

Laurie estendeu a mão por cima da mesa e agarrou o antebraço de Jack.

— Não te vou pôr palavras na boca, a não ser esperar que o sucedido possa ser positivo e sacar-te ao teu papel de luto. Ter um filho não vai diminuir a tua família falecida. Mas vai para casa pensar sobre o assunto. Estou de serviço este fim-de-semana, por isso, se não estiver em casa, estarei no GMLS. Fico a aguardar a tua chamada.

— É justo — disse Jack com uma voz cansada.

— Vê lá, não fiques deprimido por minha causa — ralhou Laurie.

— Não vou ficar deprimido, mas digo-te uma coisa, já não tenho fome.

— Nem eu — disse Laurie. — Ficamos por aqui. Estamos ambos esgotados.

Laurie ergueu a mão e o empregado acorreu.

 

Roger recostou-se e esticou os braços em direção ao teto.

Sentia-os tolhidos depois das horas que passara debruçado sobre a mesa da biblioteca na sala de conferências do departamento de recursos humanos do hospital Saint Francis. Amontoadas em redor da mesa em pequenas pilhas individuais, havia numerosas páginas impressas do computador, bem como um CD recentemente gravado. Rosalyn Leonard, a diretora do departamento, estava sentada à sua frente. Era uma mulher de aparência séria, alta e lindíssima, com cabelos negros como o carvão e uma pele de porcelana, e que de início intimidara Roger, uma vez que parecia imune ao seu charme, coisa que Roger levava a peito. Para ele, era de uma importância desmesurada ser considerado atraente por mulheres que ele considerava atraentes. Contudo, a persistência recompensara-o e, passadas algumas horas, acabara por triunfar. A princípio muito devagar, ela começara a adoçar. No decurso da última hora, sentia que ela lhe retribuía os modos sedutores. O fato de ela não usar aliança não passara despercebido a Roger, e à medida que o dia se fundia na noite, ele inquirira-a com tacto em relação ao seu estado civil. Quando soube que era solteira e se encontrava, de momento, entre relações, chegou a considerar a hipótese de arriscar e de a convidar para jantar, especialmente para o caso das coisas não resultarem com Laurie.

Quando Roger fora de Manhattan para Queens ao início da tarde, tinha sido um pouco como ir para casa, uma vez que o hospital se situava no lado oriental de Rego Park, que se encontrava a pouca distância da zona de Forest Hills, onde ele crescera. Embora ambos os pais tivessem falecido, tinha várias tias e um tio que ainda viviam perto da sua casa de rapaz. Espreitando pela janela do táxi enquanto atravessava Queens Boulevard, pensara até em passar pela propriedade depois de terminada a sua missão.

Roger fizera progressos significativos. O seu encontro com Bruce Martin, que dirigia o departamento de recursos humanos do hospital Manhattan General, fora muito proveitoso, embora não a princípio. Quando Roger inicialmente lhe pedira de forma direta os registros dos funcionários, Bruce dissera-lhe que havia toda uma série de regras federais que restringiam o acesso a tal informação. Isso forçou Roger a ser criativo em relação ao seu pedido, argumentando que no seu papel de chefe do pessoal médico, estava a encetar um estudo acerca da interação entre médicos e todo o pessoal de apoio e da custódia, especialmente no que dizia respeito a novos funcionários e em particular aos que trabalhavam no turno da noite, quando o hospital se encontrava, segundo palavras suas, em "controlo de cruzeiro". Roger evitou fazer a mínima referência à sua verdadeira finalidade.

Quando deixara o gabinete de Bruce, já lhe fora prometida uma lista de todos os funcionários do hospital Manhattan General e uma lista dos novos funcionários desde meados de novembro, com particular ênfase para as pessoas que trabalhavam no turno da noite, das onze às sete. Ao propor para início um período assim tão aparentemente arbitrário, passara pela mente de Roger uma leve preocupação de que Bruce de algum modo suspeitasse, mas ele limitara-se a escrever sem qualquer reação. Prometeu a Roger que teria a lista antes de sair do trabalho nessa mesma tarde e que a deixaria na secretária dele.

A segunda coisa que Bruce fizera fora telefonar a Rosalyn Leonard, a sua homóloga no hospital Saint Francis, para lhe dizer que Roger iria ter com ela e para lhe dar uma idéia daquilo de que ele precisava. Nessa altura, Roger não percebera como isso fora útil. Se ele se tivesse posto mãos à obra com os seus pedidos, que era o seu plano inicial, não teria ido a lado nenhum com Rosalyn. Não havia dúvidas na mente de Roger de que ela teria sido desdenhosa e pouco prestável. Graças ao telefonema de Bruce, ela já tinha feito algum do trabalho preliminar antes da chegada de Roger. Acabou por se verificar que conseguir o tipo de listas que Roger queria implicava o acesso a uma série de fontes diversas. Roger ficara surpreendido por saber que os vários departamentos nos hospitais da AmeriCare funcionavam mais ou menos como feudos individuais que se regiam pelas limitações dos orçamentos ditados a nível central.

A outra coisa que Roger conseguira antes de deixar o Manhattan General fora que Caroline começasse a reunir numa lista o pessoal qualificado, com especial interesse nos médicos que tivessem acesso privilegiado tanto ao Manhattan General como ao Saint Francis. Roger dispusera-se a ver se tal informação se encontrava geralmente disponível, verificando para isso alguns registros individuais de médicos. Infelizmente, eram irregulares. Caroline prometera-lhe que faria o que pudesse, uma vez que não tinham códigos específicos. Dissera-lhe que estava esperançosa, dado que era amiga pessoal de um dos gênios informáticos do hospital, que muitas vezes descortinava como fazer o impossível.

— Ora, aí tem! — disse Rosalyn empurrando um último monte pequeno de papéis na direção de Roger, por sobre a superfície envernizada da mesa da biblioteca. Deu uma palmadinha no cimo do monte com a palma da mão. — Aqui está uma lista completa de todos os funcionários de Saint Francis em meados de novembro, com uma anotação naqueles que trabalharam no turno da noite; uma lista dos empregados do Saint Francis que ou saíram ou foram despedidos entre meados de novembro e meados de janeiro; uma lista do nosso pessoal qualificado que trabalha a tempo inteiro, também de meados de novembro; e, por fim, uma lista do nosso pessoal qualificado com acesso privilegiado. É tudo o que quer para o seu estudo? Então, e novos funcionários desde novembro?

— Não é necessário — disse Roger. — Creio que isto chega para aquilo que tenho em mente. — Deu uma vista de olhos pelas páginas que continham todos os funcionários do hospital em meados de novembro e abanou a cabeça, espantado. — Não fazia idéia de que era necessária tanta gente para pôr um hospital americano a funcionar.

Queria desviar a conversa do seu suposto estudo. Calculava que, astuta como era, Rosalyn depressa haveria de descobrir o ardil se ele se visse forçado a contar muito mais.

— Tal como todos os hospitais AmeriCare, na verdade estamos numa posição inferior à média — disse Rosalyn. — À semelhança de todas as organizações de gestão de cuidados, uma das primeiras coisas que a AmeriCare faz quando se apossa um hospital é reduzir o pessoal em quase todos os departamentos. E eu bem o sei, uma vez que a tarefa nada invejável recaiu sobre mim. Fui responsável por um número considerável de notas de rescisão.

— Isso deve ter sido difícil — disse Roger num tom inconscientemente preocupado.

Colocou de lado a lista completa e passou os olhos pela lista de funcionários que tinham deixado o Saint Francis. Até essa lista era bem mais longa do que previra. Também não era tão detalhada como esperara, em especial quanto ao turno em que trabalhavam funcionários individuais, se tinham sido despedidos ou saído por vontade própria e para onde tinham ido.

— Surpreende-me tão grande rotatividade de pessoas. Isto é representativo?

— Em termos gerais, sim, mas poderá estar ligeiramente elevada porque o período que lhe interessa engloba as férias. Quando as pessoas estão a pensar em mudar para um novo emprego e querem tirar um tempinho de descanso entre trabalhos, as férias são um período popular e previsível.

— E parece que são sobretudo enfermeiros.

— Infelizmente, é essa a realidade. Há uma grave carência de enfermeiros, o que faz com que tenham a faca e o queijo na mão. Estamos constantemente a recrutar enfermeiros e os outros hospitais recrutam os nossos, como se estivéssemos a puxar a corda a ver quem ganha. Estamos até a confrontar-nos com a necessidade de procurar possíveis candidatos no estrangeiro.

— A sério? — Inquiriu Roger.

Sabia que os Estados Unidos atraíam médicos de países em desenvolvimento que iam para a América, supostamente para se formarem, mas que depois ficavam, mas não estava ciente de que também estavam a ser recrutados enfermeiros. Considerando as necessidades de saúde do mundo em vias de desenvolvimento, era algo que parecia, na melhor das hipóteses, eticamente discutível.

— A lista não diz para onde foram os indivíduos.

Rosalyn abanou a cabeça.

— Essa informação não é colocada no banco de dados principal do empregador. Pode aparecer no registro individual se a pessoa pediu que fosse enviada uma carta de recomendação para uma outra instituição ou se nos foram feitas perguntas por uma outra instituição. Mas temos de ser muito cuidadosos com estes registros, como bem sabe. Há sempre a ameaça de litígio, a não ser que o indivíduo autorize o acesso à informação.

Roger anuiu.

— E se me deparar com questões sobre pessoas em particular para o meu estudo? Quer dizer, questões acerca dos seus registros no que diz respeito ao seu desempenho geral quando no Saint Francis, por exemplo, se se davam bem com os colegas ou se foi levada a cabo alguma ação disciplinar por uma qualquer razão.

— Isso será difícil — disse Rosalyn, acenando com a cabeça como se concordasse consigo mesma. — Esse seu estudo é interno, ou é algo que está a pensar publicar?

— Ah, é definitivamente interno e com acesso limitado, exceto ao mais alto nível administrativo. Certamente que não se destina a publicação.

— Sendo esse o caso, poderei provavelmente ajudá-lo, mas teria de informar o presidente e o conselho geral. Quer que faça isso na segunda-feira? Seria essa a minha primeira oportunidade.

— Não, na verdade, não — disse Roger rapidamente. A última coisa que queria era que os dois presidentes falassem acerca do seu alegado estudo. — Espere até que eu veja se preciso de mais informações pessoais sobre alguma destas pessoas. Provavelmente, não irei precisar.

— Diga-me só com vinte e quatro horas de antecedência se precisar.

Roger anuiu, e estava ansioso por mudar de assunto. Aclarou a garganta e resolveu-se por fim a colocar a pergunta-chave que tinha em mente.

— Quais destes funcionários que deixaram Saint Francis, se é que algum, vieram para o Manhattan General, o que significa que permaneceram no seio da AmeriCare? Essa informação está prontamente disponível?

— Que eu saiba, não. Como sabe, a AmeriCare gere os seus hospitais como entidades individuais. O único padrão comum diz respeito ao preço e à origem dos fornecimentos básicos. Se um funcionário do Saint Francis sair e for para o Manhattan General, para nós, isso não é diferente de ter ido para um hospital que não pertença à rede da AmeriCare.

Roger assentiu de novo. Começava a compreender que necessitaria de muito tempo para comparar dados quando regressasse ao gabinete. As probabilidades de ter alguma coisa para levar ao apartamento de Laurie nessa noite como desculpa para a ver pareciam diminutas. Ergueu o pulso e olhou para o relógio. Era um quarto para as sete. A janela por trás de Rosalyn estava completamente negra. A noite caíra havia muito.

— Receio tê-la retido aqui durante um tempo absurdo — disse Roger. Sorriu calorosamente. —Agradeço-lhe muito a sua ajuda, mas, infelizmente, sinto-me especialmente culpado por ser sexta-feira à noite e estou certo de que a impedi de fazer algo de muito mais divertido e agradável.

— Foi um prazer ajudá-lo, Dr. Rousseau. Bruce foi muito lisonjeiro acerca de si quando telefonou. Sei que trabalhou com os Médicos sem Fronteiras.

— Receio que sim — disse modestamente Roger. — Mas, por favor, trate-me por Roger.

— Obrigada, doutor — disse Rosalyn, e depois riu-se de si mesma. — Quero dizer, obrigada, Roger.

— Não há nada que agradecer. Eu é que lhe deveria estar agradecido.

— Já li acerca do trabalho que os Médicos Sem Fronteiras fazem pelo globo. Estou muito impressionada.

— Há grande necessidade no mundo até dos cuidados de saúde mais básicos nos pontos problemáticos do globo.

Roger sentia-se satisfeito pelo fato de a conversa estar a adotar um tom pessoal.

— Não duvido. Onde foi em serviço?

— Sul do Pacífico, o Médio Oriente e, por fim, África. Uma mistura de selva impenetrável e deserto árido.

Roger sorriu. Tinha essa história bem preparada e, tal como fizera com Laurie, produzia geralmente um auspicioso resultado social.

— Parece um filme. O que o fez deixar os Médicos Sem Fronteiras e o que o trouxe a Nova Iorque?

O sorriso de Roger dilatou. Respirou fundo antes de abordar a pièce de résistance da sua persuasão.

— A derradeira compreensão de que não mudaria o mundo. Tinha tentado, mas não ia acontecer. Depois, tal como uma ave migratória, senti a necessidade instintiva de regressar ao ninho e constituir família. Sabe, nasci em Brooklyn e cresci na vizinha Forest Hills.

— Que romântico! E encontrou a felizarda senhora?

—Não me parece. Tenho andado demasiado ocupado a situar-me e a ajustar-me à vida no mundo civilizado.

— Bom, estou certa de que não terá problemas em fazê-lo — disse Rosalyn, ao mesmo tempo em que começava a reunir os papéis de onde selecionara as listas que dera a Roger. — Aposto que tem histórias fascinantes para contar acerca das suas viagens.

— Sem dúvida! — Respondeu Roger alegremente. Estava aliviado. Sabia que lhe estimulara o interesse. — Teria muito gosto em partilhar umas quantas menos pungentes se me deixasse oferecer-lhe o jantar. É o mínimo que posso fazer, depois de a ter mantido aqui por tanto tempo. Isto, é claro, se estiver livre. Será que me daria essa honra?

Um pouco desconcertada, Rosalyn encolheu os ombros.

— Creio que sim.

— Então está combinado — disse Roger. Levantou-se e esticou as pernas. — Há um restaurante italiano aqui em Rego Park, que desde os anos 50 é ponto de encontro habitual dos mafiosos da zona. A comida era excelente da última vez que lá fui, há séculos, e a lista de vinhos também não era má. Alinha a vermos se ainda existe?

Rosalyn tornou a encolher os ombros.

— Parece fascinante, mas não posso ficar até tarde.

— Nem eu. Bolas, ainda volto ao gabinete esta noite!

 

— Jasmine Rakoczi! — chamou uma voz.

Jazz interrompeu a série de um dos seus exercícios prediletos. Estava deitada de bruços a trabalhar os músculos das coxas e das nádegas. Virou a cabeça de lado e viu que estava alguém de pé junto da máquina que estava a usar. Foi com considerável surpresa que viu que os pés e as pernas eram de uma mulher, não de um homem, Jazz tirou os auriculares e torceu-se para olhar para o rosto dessa pessoa. Não conseguia ver muito bem, porque o rosto estava a contraluz, contra as luzes fluorescentes do teto.

— Desculpe incomodá-la — disse, o rosto quase destituído de feições.

Jazz não queria acreditar que alguém a estava a importunar a meio da sua rotina de exercício, e foi mais a irritação que qualquer outra coisa que a levou a retirar as pernas da máquina e a sentar-se, vendo-se de frente para uma das mulheres que trabalhava no balcão da entrada. Já a vira, ao entrar.

— Mas que raio se passa? — exigiu Jazz. Limpou a testa com a toalha.

— Estão dois senhores na entrada — disse a mulher. — Disseram que a queriam ver de imediato, mas o Sr. Horner não os deixou entrar.

Um arrepio leve, mas nitidamente desconfortável percorreu a espinha de Jazz. Passou-lhe pela cabeça a inesperada visita do Sr. Bob e do Sr. Dave na noite anterior. Algo se passava. Não parecia coisa do Sr. Bob, abordá-la assim num sítio público.

— Eu saio — disse Jazz.

Bebeu um gole da garrafa de água enquanto observava a funcionária a dirigir-se para a saída da sala de pesos. O primeiro pensamento de Jazz foi que tinha a Glock no bolso do casaco, pendurado no cabide. Se fosse haver sarilhos, queria a Glock. Mas por que é que haveria de ter sarilhos? Mulhausen partira suavemente, sem uma onda sequer. A única coisa que lhe passou pela cabeça foi a possibilidade de ter acontecido alguma coisa em relação à investigação de Chapman. Tal como toda a gente no turno das onze as sete, Jazz fora abordada por dois detetives de ar exausto para inquéritos de rotina. Porém, isso correra lindamente, como fora evidenciado pela conversa que tinham todos tido no momento do relatório de enfermagem. Os rumores diziam que se tinha tratado de um assalto, pura e simplesmente. A segurança hospitalar fizera muita questão de prometer que reforçaria a patrulha, em especial nos momentos de mudança de turno.

Jazz caminhou apressadamente para a porta. Preocupada como estava, nem sequer reparou nos homens que a fitavam. Sem perder tempo, regressou ao cacifo e pegou numa Cola à entrada. Abriu o cacifo e agarrou no casaco, que colocou por cima do vestuário de desporto, enfiando a mão no bolso direito para agarrar a Glock.

Com uma mão no bolso e a outra a segurar a Cola, Jazz teve de usar o ombro para abrir a porta que dava para a entrada. Para lá do balcão da recepção, havia uma sala de espera bastante espaçosa e, depois disso, um restaurante e um bar. Havia até uma pequena loja de roupa desportiva.

Jazz deu uma rápida vista de olhos pelas pessoas espalhadas pelo espaço, mas, não vendo o Sr. Bob nem o Sr. Dave, regressou à recepção para perguntar à recepcionista pelos homens que a queriam ver. Ela apontou-lhe para dois homens escondidos atrás de jornais. Era evidente que não se tratava do Sr. Bob nem do Sr. Dave. Pelo aspecto da parte inferior dos seus corpos, poderiam muito bem ser vagabundos sem-abrigo.

— Tem a certeza de que perguntaram por mim? — inquiriu Jazz.

A sua preocupação seguinte foi o receio de que se tratassem de dois detetives disfarçados a tentar tirar nabos da púcara em relação a Chapman. Com um sentimento de resignação, Jazz encaminhou-se para o local onde os homens estavam sentados. A mão continuava a agarrar a Glock no bolso.

— Boa noite — disse ela, irritada. — Disseram-me que vocês os dois andavam à minha procura.

Os homens baixaram os jornais e, ao fazê-lo, Jazz podia sentir o seu rosto a enrubescer e a pulsação acelerada nas têmporas. Foi tudo o que conseguiu fazer para evitar sacar da arma. Um dos homens era o seu pai, Geza Rakoczi. Tinha uma barba de dois dias no rosto, tal como o seu companheiro.

— Jasmine, minha querida, como estás? — perguntou Geza.

Do local onde se encontrava, atrás de uma mesinha de apoio rasa cheia de revistas desordenadas, Jazz sentia-lhe no hálito o cheiro a álcool. Sem responder, Jasmine olhou para o outro homem. Nunca o tinha visto.

— Este é o Carlos — disse Geza, ao reparar no foco de atenção de Jazz.

Jazz tornou a olhar para o pai. Havia anos que não o via e tivera a esperança de que ele tivesse bebido tanto que tivesse acabado na campa.

— Como é que me encontraste?

— O Carlos tem um amigo que é bom com computadores. Diz que se consegue encontrar tudo na Internet. Por isso, pedi-lhe que te encontrasse e foi o que ele fez. Disse que jogavas muito on-line e que usavas aquilo que ele chamou de "chat rooms". Não percebo nada desse palavreado, mas a verdade é que ele te encontrou. Até descobriu que eras membro deste clube. — Os olhos de Geza varreram o espaço em seu redor. — Que sítio tão chique! Estou impressionado. Estás-te a sair bem, miúda.

— O que è que estás aqui a fazer? — exigiu Jazz.

— Bem, para te dizer a verdade, preciso de algum dinheiro e, sabendo que és uma enfermeira toda catita e tudo, pensei em pedir-to. Sabes, é que a tua mãe morreu, Deus a tenha. Tenho de arranjar algum dinheiro, senão enterram-na para aí numa ilha qualquer numa caixa lisa de madeira.

Por um instante, tudo aquilo em que Jazz conseguiu pensar foi nos treze dólares que fizera a limpar neve. A memória do que sucedera ao dinheiro serviu apenas para lhe intensificar a fúria. Tendo em conta a força com que estava a segurar a Glock, foi esperta o suficiente para retirar o dedo do gatilho.

— Desaparece daqui para fora! — explodiu Jazz.

Rodou sobre os calcanhares e dirigiu-se de novo ao cacifo. Ouvia Geza a gritar o seu nome e, quando deu por si, tinha-lhe agarrado o ombro, obrigando-a a virar-se.

Jazz sacou a mão do bolso; felizmente, sem a Glock. Mais tarde, perguntou-se como teria isso sucedido, uma vez que o seu instinto fora sacar da arma. Espetou o dedo no rosto dele.

— Nunca mais me toques! — rosnou. — E não me venhas importunar! Estás a ouvir? Se vieres, mato-te. É muito simples.

Jazz tornou a virar-se e dirigiu-se aos balneários. Ouvia Geza a tentar queixar-se, dizendo que era pai dela, mas não parou e ele não tentou segui-la. Regressou para junto do seu cacifo, marcou a combinação no cadeado e guardou o casaco. De volta à sala dos pesos, decidiu começar o treino do princípio, embora quando foi interrompida estivesse quase a terminar.

Jazz precisara do esforço para controlar a sua fúria, o que em grande medida funcionou. Quando regressou ao balneário para tomar duche, recobrara o controlo. Quase podia ver algum humor na criatura patética em que o pai se tornara. Perguntou-se quando teria a mãe morrido. Jazz estava espantada por ela ter durado tanto tempo, tendo em conta a sua obesidade.

Dado que estava atrasada por ter duplicado o treino físico, Jazz tomou duche e vestiu-se à pressa. Ao sair do balneário, olhou de novo para a área da entrada onde o pai estivera sentado e sentiu-se aliviada por ele ter percebido a dica e ter partido.

Ao aproximar-se do carro, não conseguiu evitar lembrar-se da noite anterior, e, depois de ter aberto a porta, a primeira coisa que fez foi verificar o banco traseiro. Não estava satisfeita por o Sr. Bob e o Sr. Dave a terem surpreendido como tinham feito. Gostava de pensar em si como sendo uma pessoa precavida e observadora.

Jazz subiu para o Hummer e apertou o cinto, ansiosa por um pouco de divertimento a caminho do hospital. Os duelos com os taxistas eram uma boa maneira de lidar com os resquícios de ansiedade que a visita surpresa do pai nela havia despertado. Enquanto esperava na curta fila para sair do parque de estacionamento, pegou no Blackberry. Depois de três nomes nas duas noites anteriores, não se sentia otimista, mas, de qualquer modo, queria certificar-se.

Ao primeiro semáforo vermelho, ligou o telemóvel para ver se tinha mensagens. Para deleite seu, havia uma do Sr. Bob. Abriu-a à pressa.

— Yes! — gritou.

Havia mais um nome no seu visor: Patrícia Pruit.

Abriu-se um sorriso no rosto de Jazz. Estava tudo bem. Por essa altura na noite seguinte, a sua conta bancária teria um saldo de mais de sessenta mil dólares.

Quando o semáforo mudou, Jazz lançou-se à frente de um grupo de carros e de táxis. Ninguém parecia disposto a desafiá-la. Instalando-se para trás no assento, pensou em como a teria o pai encontrado. Estava um pouco surpreendida. Embora passasse imenso tempo na Internet em chat rooms, julgara ter sido cuidadosa em relação à sua identidade e residência, com exceção de umas quantas vezes em que fora "engatada". Decidiu que o melhor era ser mais cuidadosa, porque gostava de chat rooms e não desistiria desse prazer. Só on-line conseguia encontrar pessoas que pensavam como ela e com quem se podia identificar, a quem podia respeitar e até amar. Estavam a anos-luz dos idiotas com quem tinha de lidar na vida real.

 

O jantar de Roger com Rosalyn acabou por ser um êxito inclassificável. O fato de ela se ter mostrado altiva quando se conheceram foi mais que adequadamente compensado pelo seu comportamento ao longo do jantar, especialmente depois de ter bebido uns copos de vinho. A seguir à refeição, Roger tentou metê-la num táxi que a levasse a casa, mas ela insistiu para que partilhassem um. À porta do seu apartamento, em Kew Gardens, montou um argumento difícil de resistir para que Roger subisse para uma "última bebida", uma expressão que Roger não ouvia desde os tempos de faculdade.

Ao final, Roger resistiu, mesmo depois de um apaixonado e demorado beijo no passeio. Roger mantivera uma mão na porta aberta do táxi. Apesar de se sentir extremamente tentado a aproveitar-se da hospitalidade dela e de fosse o que fosse que a recente proximidade física implicasse, Roger não cessara de se relembrar do trabalho que planeara fazer no gabinete. Sentia que se estava a sair bem, e mesmo que não conseguisse coisa alguma nessa noite para apresentar a Laurie, o fim-de-semana estava só a começar.

Depois da promessa de que se manteria em contacto com ela, Roger subiu para o táxi e acenou pela janela. Rosalyn ficou colada ao chão, a acenar até ele desaparecer da vista. Roger sentia-se satisfeito. A aventura em Queens fora recompensadora. Não só conseguira a maior parte da informação que desejava, como conhecera uma mulher que era uma forte candidata a uns interessantes encontros futuros.

Quando chegou ao Manhattan General já eram quase onze horas. A primeira coisa que fez foi visitar a cafeteria e tomar um café a sério. Quando se dirigiu ao gabinete, sentia-se entusiasmado, e mergulhou no trabalho com alacridade. Às duas da manhã, já fizera um bom avanço nos dados. A idéia de Laurie, juntamente com as suas hipóteses, provara ser espantosamente frutuosa. Na verdade, parecia ser demasiado frutuosa. Quando começara, perguntara-se se conseguiria algum suspeito. Agora tinha demasiados.

Roger recostou-se na cadeira e pegou na primeira folha que imprimira, uma lista de cinco médicos com acesso privilegiado tanto no Manhattan General como no Saint Francis, e que tinham efetivamente exercido esse privilégio em ambas as instituições nos passados quatro meses. A lista original de médicos com privilégio duplo era demasiado extensa para poder trabalhar com ela. Foi então que decidiu restringi-la.

Como chefe do pessoal médico, Roger tinha acesso total à informação e aos registros credenciais de todos os médicos ligados ao Manhattan General. Três dos cinco médicos da sua lista tinham tido problemas disciplinares. Dois dos médicos eram designados eufemisticamente por "debilitados" por problemas de dependências com que Roger por certo se conseguia identificar. Estavam à experiência, com algumas limitações mínimas quanto aos seus privilégios, depois de terem sido submetidos a reabilitação de drogas seis meses antes. O outro indivíduo, o Dr. Pakt Tam, estava envolvido em múltiplos processos, ainda pendentes, de negligência médica, todos eles acabando por envolver mortes, embora não aquelas que se encontravam na série de Laurie. O hospital tentara revogar-lhe os privilégios, mas ele processara a instituição, e os privilégios tinham-lhe sido atribuídos de novo por ordem do tribunal no decorrer do julgamento.

O caso do Dr. Tam incitara Roger a procurar todos os médicos cujos privilégios tinham sido eliminados ou restringidos ao longo dos seis meses anteriores, na seqüência da idéia de que poderiam sentir-se zangados, vingativos ou transtornados. Essa investigação conduzira a oito médicos. O problema era que não tinha forma de saber se algum deles trabalhara no Saint Francis. Rabiscou depressa uma nota para telefonar a Rosalyn na segunda-feira. Juntou a nota à página com os nomes dos oito médicos e pô-la de lado.

A idéia de um médico irado levara Roger a pensar num qualquer funcionário hospitalar descontente, no presente ou no passado, em especial um enfermeiro ou alguém que tivesse acesso direto aos doentes. Se ia considerar os médicos, teria de considerar também todas as outras pessoas no hospital, por isso tomara nota para falar com Bruce de modo a arranjar uma lista de funcionários despedidos antes do mês de novembro, talvez até remontando a um ano atrás. Colara a nota à extremidade do candeeiro da secretária para ter a certeza de que a veria. Por essa altura, já começara a desanimar, mas insistira.

O grupo seguinte que Roger tomara em consideração foi o dos anestesistas. Tal como dissera a Laurie, e pelas razões que ela especificara concisamente, sentia que a sua especialidade os tornava os principais suspeitos, e a sua intuição fora recompensada com algumas possibilidades interessantes. Duas delas tinham-lhe saltado imediatamente à vista. Trabalhavam ambos exclusivamente no turno da noite, e supostamente por escolha própria. Um deles era o Dr. José Cabreo, que tinha uma história de "debilidade" com OxyContin, bem como de diversos processos por negligência médica. O outro era o Dr. Motilal Najah, um novo elemento entre os profissionais do Saint Francis. Roger imprimira cópias dos registros de ambos os médicos e desenhara estrelas juntos dos seus nomes. Tinha esses papéis precisamente diante de si mesmo ao lado do livro de registros. A seu ver eram os principais suspeitos, estando Najah à frente de Cabreo. Embora Najah tivesse o registro credencial limpo, o momento da transferência era demasiado perfeito.

O último grupo para que Roger olhara fora o dos restantes funcionários do hospital. Ao comparar a lista de pessoas que deixara o Saint Francis depois de meados de novembro com a lista dos novos funcionários do Manhattan General durante o mesmo período, Roger conseguira um grupo de mais de vinte pessoas. A princípio, o número chocou-o, mas depois, ao pensar sobre o assunto, fazia um certo sentido. O Manhattan General era a capitania da frota AmeriCare, e se estavam a recrutar pessoal, tal como Rosalyn sugerira, seria natural que a maioria dos profissionais e pessoal auxiliar preferisse estar na reputada instituição.

Reconhecendo as suas limitações como detetive, Roger soubera de imediato que vinte e três suspeitos eram demasiados para serem levados em conta. Para reduzir o grupo, usara a sugestão de Laurie para que considerasse apenas as pessoas que trabalhavam no turno da noite do Saint Francis e que se mudaram para o turno da noite no Manhattan General. Usando parâmetros tão estritos, não fazia idéia se conseguiria alguma coisa, mas, para sua surpresa, conseguiu. Obtivera sete. Os nomes eram Herman Epstein, de farmácia, David Jefferson, da segurança, Jasmine Rakoczi, de enfermagem, Kathleen Chaudhry e Joe Linton, do laboratório, Brenda Ho, da limpeza e Warren Williams, da manutenção.

Roger pegou na folha que continha os sete nomes. Embora se tratasse de mais pessoas do que esperara, julgava que poderia lidar com sete. Ao lê-los de novo, não conseguiu evitar pensar em como os apelidos refletiam a heterogeneidade étnica da cultura americana. Sentiu que poderia adivinhar as origens ancestrais gerais de todos exceto de Rakoczi, embora se pressionado dissesse Europa de Leste. Olhou para os diversos departamentos envolvidos e percebeu que todos eles teriam de alguma maneira acesso a pacientes, particularmente durante o turno da noite, quando a vigilância atingia o seu mínimo. Perguntou-se vagamente se deveria tentar convencer Rosalyn a conseguir-lhe os seus registros do Saint Francis. Agora que tinha o início de uma relação pessoal com ela, talvez conseguisse obter a informação sem que ela alertasse os seus superiores, mas não tinha garantias disso. Contudo, de que outra forma poderia prosseguir?

Pousando o papel ao lado da lista de anestesistas, Roger olhou para o relógio. Eram duas e um quarto da manhã. Abanou a cabeça. Não se lembrava da última vez que tinha ficado a trabalhar até tão tarde. Calculou que tivesse sido durante o internato de medicina. Era um pouco deprimente, pensar que o resto da cidade estava na sua maioria a dormir, mas pelo menos não se sentia cansado. A quantidade de cafeína que ingerira lá em baixo, na cafeteria, continuava a percorrer-lhe a corrente sanguínea, fazendo com que se sentisse com bichos-carpinteiros. Reparara até que estivera inconscientemente a bater com o pé direito no chão. Apetecia-lhe que fossem dez da noite, em lugar de duas da manhã, porque agora que tinha todos estes potenciais suspeitos, adoraria telefonar a Laurie ou até mesmo sugerir passar pelo apartamento dela. Infelizmente, isso estava fora de questão. Inquieta como estava por causa da situação do BRCA1, certamente que não a iria acordar.

O fato de pensar nas horas fez com que Roger percebesse que, pela primeira vez desde que trabalhava no Manhattan General, estava de fato no hospital durante o turno da noite, altura em que tinham lugar todas essas mortes discutíveis em que ele e Laurie estavam interessados. Com a cafeína em ação, dormir estava fora de questão, e enquanto se sentia com espírito de detetive, bem podia verificar o piso cirúrgico, onde mais de metade das mortes duvidosas ocorrera e, no local, poderia conhecer pelo menos metade dos seus, por assim dizer, suspeitos. Com essa idéia em mente, pegou nos registros dos dois anestesistas e na folha com os nomes dos sete indivíduos que se haviam transferido do turno da noite do Saint Francis para o turno da noite do General. Tornou a olhar para eles, memorizando os seus nomes.

Roger estava prestes a levantar-se quando lhe ocorreu outra idéia. Excitado como estava, sabia que ficaria acordado a maior parte da noite. Uma vez que precisaria dormir um pouco, era provável que regressasse ao trabalho já tarde. Com isso em mente, Roger marcou a extensão de Laurie no trabalho.

— Sou eu, Roger — disse para o atendedor de chamadas de Laurie. — Já passa das duas da manhã, mas a tua sugestão acerca do Saint Francis foi certeira. Produziu uma data de potenciais suspeitos, sem dúvida mais do que esperava, por isso tenho de te dar crédito. Estou ansioso por partilhar tudo isso contigo, e talvez nos pudéssemos encontrar amanhã à noite para jantar. Neste momento, vou lá acima fazer um pouco mais de trabalho de detetive, verificar o piso cirúrgico e conhecer algumas das pessoas na minha lista enquanto estão de serviço. Só para te picar, deixa-me que te fale de Motilal Najah, um dos anestesistas do turno da noite. Entrevistei-o quando se candidatou ao posto entre o pessoal. Seja como for, tinha-me esquecido de que veio de Saint Francis logo a seguir às férias. Coincidência, ou quê? E ele é apenas a ponta do iceberg. Bom, vou ficar por aqui mais umas horas, porque pode ser que não regresse ao meu gabinete possivelmente até ao meio-dia ou início da tarde. Telefono-te logo que chegue. Ciao!

Roger desligou o telefone e olhou para a lista de sete membros do pessoal que também tinham mudado para o General durante o período em questão, e perguntou-e se deveria ter lido a lista na gravação a Laurie. Queria sobretudo aguçar-lhe o interesse o mais possível, na esperança de que ela aceitasse a idéia de se encontrarem. Pensou em telefonar-lhe outra vez para acrescentar algo mais à mensagem, mas depois decidiu que a que lhe deixara era suficientemente provocadora.

Depois de ter vestido a bata comprida e branca que usava sempre que se aventurava pelo hospital, Roger percorreu a extensão da área da administração. Já ali estivera algumas vezes de noite, mas nunca depois da meia-noite. A essa hora, era como um mausoléu.

O corredor principal estava deserto, salvo uma pessoa que estava a usar um polidor de chão à distância. Enquanto subia no elevador, espantava-se perante o quão desperto e enérgico se sentia. Reconheceu ainda um toque de euforia, o que infelizmente lhe lembrou a heroína. Abanou a cabeça. Não queria cair nessa armadilha. Para os médicos, é mais difícil lutar contra essa tentação, estando as drogas tão facilmente disponíveis.

Roger saiu no terceiro piso e empurrou um par de portas de um corredor que davam para o complexo operatório. Deu por si num corredor deserto. À sua direita, era emitido o som de um televisor situado na abertura abobadada que conduzia ao bloco operatório. Na esperança de encontrar algum do pessoal cirúrgico, entrou.

O espaço tinha cerca de dez metros quadrados, com janelas que davam para o mesmo pátio que a cafeteria. Duas portas em lados opostos conduziam aos vestiários. O mobiliário consistia em dois ou três sofás de vinil cinzento, uma pequena quantidade de cadeiras e várias secretárias. Havia uma mesa de apoio cheia de jornais, revistas antigas e uma caixa aberta de pizza. Um televisor de canto estava ligado na CNN, mas ninguém estava a ver. Num outro canto havia um pequeno frigorífico com uma máquina de café em cima.

Estavam dez pessoas sentadas na sala, todas elas vestidas com as mesmas roupas verdes unissex. Algumas delas tinham toucas ou capuzes, e outras não. Embora o bloco operatório parecesse igualitário, Roger sabia que não o era. Era o domínio mais hierarquizado do hospital. A maior parte das pessoas no bloco estava a ler e a mastigar variados snacks enquanto bebericava café, ao passo que outras conversavam.

Roger foi à máquina de café. Pensou se deveria tomar mais, não para se manter acordado, mas mais como táctica social, bem como para ter uma razão evidente para ali estar. Não reconhecera uma única pessoa no bloco. Na convicção de que se sentia adequadamente enérgico, abriu o frigorífico e preferiu um sumo de laranja pequeno.

De bebida na mão, Roger varreu a sala com os olhos com o intuito de observar as diversas pessoas mais atentamente. Ninguém lhe prestara qualquer atenção quando entrara, mas uma mulher olhou-o então e sorriu. Roger foi ter com ela e apresentou-se.

— Eu conheço-o — disse a mulher. — Conhecemo-nos na festa de Natal. Chamo-me Cindy Delgada. Sou uma das enfermeiras. Não recebemos muitas vezes a visita dos administradores. O que o traz aqui a meio da noite?

Roger encolheu os ombros.

— Fiquei a trabalhar até tarde e pensei em dar uma volta por aí para ver pessoas e o hospital em ação.

Surgiu um sorriso forçado no rosto de Cindy.

— Não há grande emoção com este grupo sonolento. Se anda à procura de diversão, sugiro-lhe que vá às urgências.

Roger riu-se para ser cortês.

— Não há casos esta noite?

— Ah, se há! — disse Cindy. — Fizemos duas operações e está agora a decorrer uma na sala seis e temos outra que há de vir das urgências dentro de uma hora.

— Conhece o Dr. José Cabreo?

— Claro — disse Cindy enquanto apontava para um homem pálido e atarracado numa cadeira junto à janela. — O Dr. Cabreo está já ali.

Ao ouvir o seu nome, José baixou o jornal e olhou para Roger. Tinha um bigode farfalhudo que lhe ocultava grande parte da boca. As suas sobrancelhas ergueram-se, expectantes, por baixo do elástico da touca cirúrgica.

Roger sentiu-se obrigado a ir ter com ele. Não planeara necessariamente falar diretamente com os dois anestesistas; o plano do seu jogo informal fora travar uma conversa casual com o pessoal do bloco operatório acerca dos homens para ver se conseguia ficar com uma impressão das suas personalidades. Roger não se estava a enganar. Não era psiquiatra, e não tinha ilusões de que não saberia reconhecer um assassino em série a não ser que a pessoa lho dissesse diretamente, porém, tinha uma vaga idéia de que seria capaz de sentir se o homem poderia ser um potencial suspeito.

— Olá! — disse Roger, constrangido, já que não sabia o que dizer. Censurou-se por não ter previsto a possibilidade de um tal confronto.

— Em que posso ajudá-lo? — Inquiriu José.

— Bem — disse Roger, tentando não parecer tão confuso como na realidade estava. — Sou chefe do pessoal médico.

— Eu sei quem é — disse José. A sua voz denotava perspicácia, como se soubesse o que Roger queria.

— Sabe? Como?

José era um dos muitos membros do pessoal que nunca conhecera, categoria que incluía toda a gente do turno da noite. O anestesista apontou para a etiqueta de identificação.

— Ah, mas é claro! — respondeu Roger, batendo com a palma da mão na testa. — Esqueci-me de que estava aí.

Deu-se uma pausa constrangedora. O resto da sala estava em silêncio, exceção feita ao televisor, cujo volume se encontrava bastante baixo. Roger tinha a sensação de que as outras pessoas na sala estavam a escutar.

— O que é que quer? — Perguntou José.

— Só me queria certificar de que está satisfeito e de que não há problemas.

— O que quer dizer com "problemas"? — exigiu José. — Não gosto da insinuação.

— Não há motivo para ficar aborrecido — disse Roger num tom apaziguador. — A minha intenção é simplesmente ser pró-ativo e conhecer o pessoal. Ainda não tivemos o prazer de nos conhecermos. — Roger estendeu a mão a José, cujo rosto enrubescera.

José olhou para a mão de Roger, mas não mostrou qualquer impulso para a apertar. Também não se levantou. Lentamente, os seus olhos ergueram-se e tornar a fixar-se nos de Roger.

— Tem uma grande lata em aparecer aqui vindo do nada para me falar de problemas — disse ele, furioso. Espetou ameaçadoramente o dedo para Roger. — É bom que isto não tenha nada que ver com histórias passadas, como ir desenterrar os analgésicos de que precisava para as costas ou os meus casos encerrados de negligência médica, porque se tiver, o senhor e o resto da administração vão receber notícias do meu advogado.

—Acalme-se — insistiu Roger suavemente. — Não tinha qualquer intenção de falar sobre nenhuma dessas coisas.

Foi apanhado de surpresa pela agressividade e atitude defensiva de José, mas fez um esforço por se manter calmo e controlado. Se um homem se poderia sentir ofendido por tão insignificante provocação, talvez fosse uma bomba capaz do impensável. Para neutralizar a situação, Roger apressou-se a acrescentar:

— O meu verdadeiro objetivo era passar por aqui para lhe perguntar como estão as coisas a correr com o Dr. Motilal Najah. O Dr. está aqui há muito tempo e o Dr. Najah é relativamente novo entre nós. Estava interessado na sua opinião de profissional mais antigo.

Alguma da hostilidade e da tensão desapareceram do rosto de José, que fez um gesto a Roger para que se sentasse junto de si. Logo que Roger se sentou, José inclinou-se para diante e baixou a voz.

— Por que é que não disse logo? Era com Motilal que deveria estar a falar, se está preocupado com problemas.

— Como assim? — quis saber Roger.

Os olhos de José tinham agora um brilhozinho de conspiração. Roger deu por si a pensar que, mesmo que José não fosse um assassino em série, poderia ser a última pessoa que Roger quereria que lhe desse uma anestesia.

— O homem é um solitário. Quer dizer, somos uma espécie de equipa unida no turno da noite. Deixe-me que lhe diga, ele não interage com ninguém a não ser a nível profissional. Come sozinho e nunca aqui vem para socializar. E quando digo nunca, quero dizer nunca!

— Pareceu-me com suficientes bons modos quando o entrevistei — disse Roger.

Roger lembrava-se nitidamente de ter ficado impressionado com a candura de Motilal e os seus modos delicados. Parecera-lhe bastante simpático; contudo, aquilo que estava a ouvir de José sugeria que Motilal teria alguns traços anti-sociais e, a ser verdade, teria de ser considerado suspeito.

— Então enganou-o — disse José. — Recostou-se e fez um gesto em redor da sala. — Pergunte a quem quiser, se não acredita em mim.

Roger passou os olhos pela sala. As pessoas tinham retomado as leituras ou as conversas. Roger olhou para José. Começava a sentir pessimismo perante a idéia de filtrar a lista de potenciais suspeitos com aquilo que estava a ouvir acerca de Motilal e com a atitude de José.

— Então e as suas capacidades profissionais? — perguntou Roger. — É um bom anestesista?

— Julgo que sim — disse José. — Mas um dos enfermeiros anestesistas seria mais indicado para avaliar isso, uma vez que têm de trabalhar diretamente com esse preguiçoso. O problema que tenho com ele é que nunca está aqui. Anda sempre a deambular pelo hospital.

— E que anda ele a fazer enquanto deambula por aí?

— Como haverei eu de saber? O que eu sei é que acabo sempre por fazer o trabalho todo. Ainda há dez minutos, tive de lhe enviar um bip para que viesse aqui, já que era a vez dele fazer um caso. Que raios, já tinha feito dois hoje!

— Onde é que ele estava quando lhe enviou o bip?

— Lá em baixo, no piso de obstetrícia/ ginecologia. Pelo menos foi o que me disse quando lho perguntei. Mas, sei lá, bem poderia estar num dos bares das redondezas.

— Então está a tratar de um caso neste momento?

— É bom que esteja, senão Ronald Havermeyer, o nosso chefe, vai saber disto. Estou farto de cobrir aquele tipo.

— Diga-me uma coisa — disse Roger, instalando-se para trás na cadeira. — Está ciente de que nos últimos dois meses ocorreram no nosso hospital sete mortes inesperadas e inexplicadas de pessoas saudáveis no período de vinte e quatro horas posteriores à cirurgia?

— Não — disse José, demasiado prontamente, na opinião de Roger.

José imobilizou a mão estendida na direção de Roger como que para o calar. Um altifalante de parede regressara à vida com uns estalidos.

— Código vermelho n° 703 — anunciou uma voz destituída de corpo. — Código vermelho n° 703.

José ergueu-se, atirando o jornal para o lado.

— Mas que coisa, ah!? No instante em que tenho a oportunidade de me sentar, surge um código cardíaco. Desculpe interromper assim de forma tão abrupta, mas quando não estamos num caso, é suposto que apareçamos para um código. Insisto para que fale com Motilal. Se está a tentar travar problemas, é ele o seu homem.

José apressou-se a sair da sala com o estetoscópio preso na mão. Roger conseguia ouvir, vindo do corredor, o ruído das portas duplas que conduziam ao elevador a abrir-se e a fechar-se ruidosamente. Roger expirou, desconfortável, e olhou em redor da sala. Ninguém reagira à estranha conversa de ambos, nem ao anúncio do código nem à súbita partida de José, até que os seus olhos tornaram a encontrar Cindy Delgada. Ela sorriu de novo e fez um gesto inquiridor com os ombros. Roger levantou-se e foi ter com ela.

— Não ligue ao Dr. Cabreo — disse ela com uma gargalhada. — É um pessimista inveterado e o nosso profeta residente do mal.

— Pareceu-me um pouco defensivo.

— Ah! Isso é o eufemismo do ano. É completamente paranóico, com um toque de misantropia, mas sabe uma coisa? Damos-lhe um desconto, porque é um anestesista bom como o diabo, e olhe que eu sei, porque trabalho com ele quase todas as noites.

— Isso é tranqüilizador — disse Roger, embora não estivesse muito convencido. — Por acaso ouviu o que ele disse sobre o Dr. Najah?

— Ouvi um apanhado.

— É esse o sentimento geral aqui no bloco operatório?

— Creio que sim — disse Cindy com um encolher de ombros. — É verdade que o Dr. Najah não socializa nem passa tempo conosco, mas ninguém se importa com isso, exceto o José. Quer dizer, afinal de contas isto é o "turno do cemitério".

— O que quer isso dizer?

— Somos todos um pouco peculiares e é essa a razão pela qual trabalhamos neste turno. Talvez sejamos um pouco misantropos à nossa maneira. Sei que me agrada o fato de haver menos supervisão e menos chatices burocráticas. Por que razão Motilal prefere este turno é coisa que não sei. Talvez seja por uma razão tão simples como a timidez. É difícil saber o que pensa por ser tão calado, mas digo-lhe que é sem dúvida um bom anestesista, e não me interprete mal por tê-lo dito acerca de José, porque não o digo acerca de toda a gente.

— Não diria então que o Dr. Najah é anti-social.

—Certamente que não no sentido psiquiátrico. Pelo menos, acho que não, mas, para ser sincera, de fato, não o sei. Provavelmente só troquei dez palavras com ele.

— José queixou-se de que ele vagueava pelo hospital. Faz idéia de onde vai?

—Creio que sim. Julgo que ele visita todos os internados pré-operatórios marcados para essa manhã. O motivo pelo qual julgo isso é porque anda sempre com o horário das cirurgias do dia seguinte.

Roger anuiu, reafirmando ao mesmo tempo a sua opinião acerca das suas deficiências como detetive. Depois de ter conversado com José, de ter ouvido falar um pouco acerca do solitário Motilal e de ter aprendido algo acerca do turno da noite em geral, não estava a eliminar qualquer suspeito, mas insistiu.

— Ouviu aquilo que José disse quando lhe perguntei se estava ciente das sete mortes a que assistimos nos últimos dois meses?

— Sim, ouvi — disse Cindy com um riso abafado e desdenhoso e um aceno de mão de quem ignora a questão. — Não sei o que é que lhe passou pela cabeça; porque sabe dessas mortes. Todos nós sabemos, especialmente os anestesistas. Quer dizer, não temos andado obcecados com a questão, mas tem sido ocasionalmente tópico de conversa, especialmente à medida que os casos vão aumentando.

— Por que me haveria de dizer que não tinha conhecimento dos casos?

— Não faço idéia. Talvez lhe devesse perguntar quando ele regressar. Os anestesistas nunca demoram muito tempo em códigos. Aparecem simplesmente quando acontece estarem disponíveis para entubar os pacientes ou, se o paciente já estiver entubado, para se certificar de que foi adequadamente entubado.

— Obrigado por falar comigo — disse Roger. Olhou depois uma última vez de relance em redor da sala. — Devo dizer que mais ninguém parece especialmente simpático.

— Tal como eu disse, somos todos peculiares, mas se aqui vier com regularidade, vai achar as pessoas simpáticas.

Com um derradeiro aceno de mão e um sorriso de reconhecimento, Roger saiu para o elevador. Levou o dedo ao botão de chamada, mas deteve-o a meio caminho. A sua visita ao bloco operatório não fora especialmente proveitosa. Tinha dois anestesistas que eram potenciais suspeitos antes de lá ter ido e continuava a ter dois depois de ter saído.

A escolha era simples. Poderia ficar no terceiro piso a visitar a farmácia e a tentar descobrir alguma coisa sobre Herman Epstein, que fora transferido do turno da noite do Saint Francis para o turno da noite do Manhattan General. Podia descer ao segundo piso para visitar o laboratório e ver o que conseguia descobrir acerca dos dois técnicos laboratoriais que estavam na mesma lista. Poderia regressar ao primeiro piso para visitar a segurança ou ir mesmo à cave para ver as limpezas e a manutenção, onde havia mais dois transferidos idênticos. Contudo, algo lhe disse que não ficaria a saber de nada, graças à sua total falta de experiência de investigação. A sua pequena conversa com José deixara claro que ele nem sequer sabia que perguntas fazer, à falta de "É você o assassino em série que anda a dar cabo dos pacientes durante o turno da noite?" A idéia de Laurie era boa em teoria, mas, na verdade, havia demasiados potenciais suspeitos. Todos os transferidos tinham acesso ao hospital em geral, em virtude das respectivas funções profissionais.

A idéia de perguntar diretamente às pessoas se havia um assassino em série abriu um sorriso no rosto de Jack. Não era difícil de imaginar o que aconteceria à sua reputação e ao seu posto se começasse a fazer essa pergunta. Roger suspirou e olhou para o relógio. Já passava das três da manhã. Embora parte da euforia provocada pela cafeína estivesse a esmorecer, a sensação de entusiasmo não. Não conseguiria adormecer de modo nenhum se regressasse ao apartamento.

Impulsivamente, Roger premiu o botão para subir no elevador. Decidiu que faria uma visita ao piso das cirurgias, cuja enfermeira-chefe fora assaltada e morta e onde tinham ocorrido quatro das sete mortes inesperadas. Decidiu também fazer uma rápida visita ao quinto piso, onde estava instalada a ortopedia e a neurocirurgia e onde tinham ocorrido duas das mortes. Pensou sobre o fato de nunca ter estado num hospital durante o turno da noite, especialmente nos pisos dos pacientes, e ficar com uma idéia do ambiente e do local poderia vir a ser-lhe útil ao seu raciocínio.

Embora tivesse partido desse mesmo princípio, a atmosfera do piso cirúrgico era completamente diferente do ambiente diurno. Em lugar do caos controlado, reinava uma inesperada e ilusória calma. Enquanto caminhava da entrada do elevador para a sala das enfermeiras, não viu vivalma. Era como se tivesse ocorrido um aviso de incêndio e todos tivessem saído a correr do edifício.

Chegado à sala das enfermeiras, Roger olhou para o painel de monitores que exibiam os eletrocardiogramas e as pulsações de todos os pacientes. Com a moderna tecnologia sem fios, uma tal telemetria estava agora facilmente disponível em pisos hospitalares regulares. O problema, claro está, era que ninguém estava lá a ver.

Roger olhou para ambos os lados do corredor. O chão de PVC brilhava na semi-obscuridade. Nesse momento, Roger ouviu o ranger revelador de uma cadeira de secretária. Perguntando-se de onde teria vindo o som, contornou a extremidade da sala dos enfermeiros e encaminhou-se para a porta aberta. Conduzia a uma despensa com uma secretária/mesa comprida embutida, com armários por cima e por baixo dela e um frigorífico. Sentada à secretária com os pés apoiados e a ler uma revista, estava uma enfermeira de aparência cativante. As suas feições refletiam um toque exótico asiático, que Roger começara a apreciar nos anos que passara no Médio Oriente. Os seus olhos eram, tal como seria de esperar, negros, tal como o cabelo curto. Por baixo da bata verde avistava-se um corpo firme e bem feito.

— Boa noite — disse Roger antes de se apresentar. Reparou que a enfermeira estava a ler uma revista de armas, o que lhe pareceu ligeiramente desadequado.

— Que se passa? — inquiriu a enfermeira sem retirar os pés da beira da mesa.

Roger sorriu intimamente. Lembrava-se de um tempo, num passado não tão remoto, em que as enfermeiras se mostravam deferentes para com os médicos a ponto de agirem como que intimidadas, até mesmo nos Estados Unidos. Era evidente que esta não se sentia assim.

— Ando só a ver como vão as coisas — disse Roger. — Sei que perderam tragicamente a enfermeira-chefe ontem de manhã. Lamento.

— Não faz mal. Na verdade, nem era assim uma enfermeira-chefe tão boa.

—A sério? — perguntou Roger. Parecia-lhe uma resposta curiosamente pouco simpática.

Uma tal franqueza para com um estranho não era a norma, fosse aquilo que dissera verdade ou não. Leu-lhe a placa de identificação: Jasmine Rakoczi. Lembrou-se de que ela estava na lista de transferidos.

— Não estou a brincar consigo. Era esquisita e ninguém gostava muito dela.

— Lamento ouvir isso, Srª. Rakoczi — disse Roger. Encostou-se à mesa e cruzou os braços. — E Clarice Hamilton já nomeou outra enfermeira-chefe para o turno?

—Ainda não. Temos uma temporária para nos desenrascar, mas não passa de outra grunha. Eu tomei uma espécie de controlo da situação e atribuí os pacientes ao pessoal. Alguém tinha de o fazer e os outros estavam só para aí sentados, a brincar com os dedos. De qualquer modo, as coisas estão a correr mesmo bem.

— Fico contente por ouvi-lo — disse Roger. — Srª. Rakoczi, gostaria de lhe fazer uma pergunta.

— Trate-me por Jazz. Não respondo quando me chamam Srª. Rakoczi.

— Parto do princípio de que está ciente das quatro mortes de pacientes relativamente jovens, obviamente saudáveis e em pós-operatório que ocorreram neste piso ao longo das últimas seis ou sete semanas, tendo a última ocorrido apenas na noite passada.

— Claro. Dificilmente não teria conhecimento do caso.

— É verdade — concordou Roger. — Perturbaram-na?

— O que quer dizer com isso?

Roger encolheu os ombros. A pergunta parecia tão óbvia.

— Perturbaram-na a nível psicológico?

—Não, nem por isso. Trata-se de um hospital grande e movimentado. As pessoas morrem. Não nos podemos ligar às pessoas, porque se o fizermos damos em malucos e os outros pacientes hão-de sofrer. Vocês, os grandes, sentados nos vossos gabinetes elegantes não se lembram de como é estar nas trincheiras, está a perceber o que quero dizer?

— Creio que sim — disse Roger. Notou uma alteração não muito sutil na atitude da enfermeira. Começara por se mostrar vivaz, mas agora parecia cautelosa e tensa.

— Está a perguntar-me isto porque tiveram lugar no meu piso?

— Claro!

— Ocorreram mortes semelhantes em outros pisos.

— Estou ao corrente disso.

— Na verdade, ocorreu uma esta noite, há apenas meia hora, lá em cima no piso da obstetrícia/ ginecologia. Porque é que não vai lá acima assediá-los?

Todo o corpo de Roger foi apanhado por uma tensão distintamente desagradável, cujas culpas ele atribuiu à cafeína. Passada a euforia, sentia-se invariavelmente como se todos os seus nervos tivessem sido expostos. Ao saber de mais uma morte enquanto estava ali mesmo no hospital, supostamente à procura de suspeitos, provocou nele uma desconfortável sensação de cumplicidade, como se devesse ter sido capaz de a prevenir.

— As especificidades eram mais ou menos as mesmas? — perguntou, ele, na vaga esperança de uma resposta negativa.

— Julgo que sim — respondeu Jazz. — Diz-se que se tratava de uma mulher na casa dos trinta, que veio fazer uma histerectomia. A sério, porque é que não vai lá acima perguntar aos enfermeiros se isso os perturbou?

Durante um instante, Roger ficou a fitar aquela enfermeira de ar exótico que inicialmente considerara atraente e bastante sensual e que lhe retribuiu impudentemente o olhar. Agora considerava-a quase arrepiante, fazendo-lhe lembrar até certo ponto a sua reação ao Dr. Cabreo e à história acerca do Dr. Najah. Não conseguia evitar lembrar-se do comentário de Cindy acerca de as pessoas que trabalham no turno da noite serem "peculiares", embora "peculiar" não fosse porventura uma expressão suficientemente forte. Talvez "neuróticas" se aproximasse mais da realidade. Não podia deixar de pensar se teria considerado igualmente bizarras todas as pessoas na lista de possíveis suspeitos. De uma forma ou de outra, começava a tornar-se claro que teria de convencer Rosalyn a arranjar-lhe os registros do pessoal transferido, independentemente dos riscos.

— O que é isto? — troçou Jazz. — O silêncio é o melhor remédio, ou estamos numa espécie de jogo adolescente para ver quem pisca primeiro os olhos?

— Desculpe — disse Roger, quebrando o contato visual. Fiquei apenas chocado por saber de mais uma morte. É perturbante e alarmante. Estou surpreendido por parecer aceitar as coisas com tanta ligeireza.

— Chama-se distância profissional — disse Jazz. — Nós que realmente tratamos de pessoas, temos de a manter. — Pousou os pés no chão com um baque, atirou a revista para o lado e levantou-se. — Tenho doentes para ver. Divirta-se lá em cima na obstetrícia/ ginecologia.

— Só um segundo — disse Roger. Agarrou Jazz pelo braço quando ela tentava passar por ele. Ficou surpreendido com a sua constituição musculosa. — Tenho mais umas perguntas.

Jazz baixou os olhos para a mão de Roger, que lhe agarrava o braço. Viveu-se um momento de tensão, mas ela controlou-se. Ergueu os olhos para Roger.

— Largue-me o braço, ou vai arrepender-se amargamente. Está a ouvir-me?

Roger soltou-a e tornou a cruzar os braços para se mostrar completamente não-ameaçador. Não queria dar a essa mulher qualquer desculpa para a violência física, de que intuía que ela fosse capaz. Com efeito, ela estava a assustá-lo.

— Pelo que sei, foi recentemente transferida do Saint Francis. Não se importa de me dizer por que?

Era a vez de Jazz o fitar antes de responder.

— O que é isto, um interrogatório?

— Como lhe disse, sou chefe do pessoal médico. Houve uma queixa ligeira da sua atitude por parte de um dos médicos e eu estou a analisá-la. Para lhe dizer a verdade, este médico tem um historial de queixas infundadas, mas sou ainda assim obrigado a verificar a alegação.

Roger estava a mentir, mas sentia que tinha de inventar uma explicação para o fato de a estar a interrogar de improviso. O pessoal da enfermagem não se encontrava sob a sua jurisdição.

— Qual é o nome desse anormal desse médico?

—Não tenho autorização para divulgar a identidade do indivíduo.

Jazz desviou os olhos de Roger. Os seus olhos dispararam em redor da sala. Roger via que ela tinha as narinas dilatadas e respirava fundo. Já não revelava prudência. Estava agora definitivamente encolerizada.

— Deixe-me explicar — disse Roger. — Estou a perguntar-lhe se saiu do Saint Francis por uma razão semelhante. Teve problemas com alguém do pessoal médico do Saint Francis? Temos de lhe perguntar.

— Que diabos, não! — rebentou Jazz. — Posso ter trocado ocasionalmente umas palavras azedas com a minha enfermeira-chefe, mas nunca com um médico. Quer dizer, contam-se pelos dedos da mão as vezes que vi lá um médico no turno da noite. Estavam todos em casa a comer as mulheres.

— Estou a ver — disse Roger. Não estava com disposição para comentar o inapropriado argumento que Jazz apresentara por último, mas retomou o primeiro. — Então, também achava que a sua enfermeira-chefe no Saint Francis não era tão competente como teria desejado?

Surgiu um sorriso trocista no rosto de Jazz.

— Adivinhou bem, mas isso não é de espantar. O turno da noite atrai gente esquisita.

Roger anuiu. Na seqüência da sua primeira visita ao turno da noite, não poderia ter concordado mais.

— Só por curiosidade, alguma vez pensou que também poderia ter alguma culpa no fato de não se dar bem com nenhuma das enfermeiras-chefes?

Qualquer vestígio de sorriso desapareceu do rosto de Jazz.

— Ah, sim! A culpa é minha que essas duas gordas fossem tão estúpidas. Tenha paciência!

— Então, por que é que se transferiu?

— Queria mudar e queria vir para o centro da cidade.

— Por que é que trabalha no turno da noite?

—Por que há muito menos tretas. Continua a haver algumas, tenho de o admitir, mas são em muito menor número que durante o dia ou mesmo durante o fim da tarde. Quando era socorrista no serviço militar, nomearam-me para os Fuzileiros para serviço independente. Gosto mais de trabalhar sozinha.

— Então esteve no serviço militar.

—Nem mais! Estive com os Fuzileiros durante a primeira Guerra do Golfo.

— Que interessante! — disse Roger. — Diga-me, qual é a origem do nome Rakoczi?

— Húngara. O meu avô era um dos lutadores pela liberdade.

— Mais uma questão, se não se importa — disse Roger, tentando parecer despreocupado. — Sabia que quando esteve no Saint Francis ocorreu uma série de mortes semelhante, em novembro?

— Foi o mesmo: seria difícil não ter dado por isso.

—Obrigado pelo seu tempo — disse Roger, afastando-se da mesa. — Creio que vou seguir a sua sugestão a subir à obstetrícia-ginecologia, mas posso ter mais algumas perguntas. Importava-se que eu regressasse, se fosse caso disso?

— Como queira.

Roger tentou lançar a Jazz um sorriso tranqüilizador antes de sair da despensa e se dirigir aos elevadores. Enquanto caminhava, abanou a cabeça de forma imperceptível. Não conseguia acreditar. Tinha falado com duas pessoas da sua lista e ouvira coisas sobre uma terceira e sentia que poderia considerar qualquer um deles como sendo possivelmente louco o suficiente para fazer o inconcebível.

Jazz espreitou para o exterior da despensa apenas o suficiente para observar Roger a dirigir-se aos elevadores. Não podia acreditar! Vinham aí sarilhos. As sanções tinham corrido tão bem até chegar a Lewis, a partir daí ficara o diabo à solta. E logo depois de ter eliminado um potencial desastre, surgira outro.

— Que sacana! — murmurou.

Sabia, pela forma como ele se vestia e como falava, que era mais um desses malditos tipos da Ivy League.

Quando Roger chamou os elevadores e premiu o botão de chamada, virou-se e olhou para a sala dos enfermeiros. Jazz arrastou a cabeça para dentro. Não queria que ele a visse de olhos fixos nele como se estivesse preocupada. Abanou a cabeça e bateu com uma palma aberta sobre a mesa. Uns quantos papéis soltos voaram para o chão.

— Mas que raio haveria eu de fazer? — murmurou.

Tornou a abanar a cabeça. Passou-lhe pela cabeça a idéia de telefonar ao Sr. Bob, mas depressa a rejeitou. Tinha a sensação de que, caso se queixasse de qualquer coisa, não lhe seriam dados mais nomes. Seria despedida da Operação Peneira. Era tão simples quanto isso. Jazz encolheu os ombros. Não conseguia pensar em coisa alguma. Embora se sentisse consumida, não sabia o que fazer. Ao mesmo tempo, sabia que tinha de ser cuidadosa, porque esse maldito tipo da administração poderia acabar por ser muito mais que uma onda, pela maneira como falava.

A porta do elevador abriu-se e Roger saiu no sétimo piso. À esquerda, para além das portas duplas, situava-se a ala médica, e à direita, do outro lado de portas idênticas, ficava a obstetrícia/ ginecologia. Entrou nessa área. Ao contrário do piso cirúrgico lá em baixo, havia imensa gente à vista, tanto na sala dos enfermeiros como no corredor. Até viu um auxiliar de serviço médico a empurrar uma marquesa, com um paciente amortalhado por um lençol, na direção dos elevadores. Roger calculou que se tratasse do paciente acerca do qual viera fazer perguntas.

Enquanto avançava para a sala dos enfermeiros, deteve-se por um momento e ficou apenas a observar. Calculou que via a equipa de reanimação juntamente com alguns dos enfermeiros do piso. O carrinho de reanimação, com o seu desfibrilador, estava estacionado contra a parede do corredor. As pessoas conversavam em pequenos grupos, muito provavelmente discutindo a tentativa falhada de reanimação.

— Por favor — disse Roger a uma mulher que se encontrava imediatamente diante de si.

Estava ocupada a escrever num relatório, mas ergueu os olhos. Tal como Jazz, lá em baixo, usava a indumentária verde, mas, ao contrário de Jazz, irradiava cortesia e respeito. Também ao contrário de Jazz, era ligeiramente obesa e tinha uma pequena quantidade de sardas na cana do nariz.

— Será que me poderia dizer quem é a enfermeira-chefe?

— Sou eu. O meu nome é Meryl Lanigan. Em que posso ser-lhe útil?

Roger apresentou-se e disse que andava a averiguar a morte recente.

— O seu nome era Patrícia Pruit — disse Meryl. — Aqui está o relatório. Gostaria de o ver?

— Gostaria, sim. Obrigada.

Roger pegou no relatório e deu-lhe uma rápida vista de olhos. Os dados demográficos eram tais como ele receara. Patrícia Pruit era uma saudável mãe de três de trinta e sete anos. Fora submetida na manhã anterior a uma histerectomia devido à existência de fibromas. O tratamento pós-operatório decorrera sem qualquer incidente e já começara a ingerir líquidos oralmente. Seguiu-se a catástrofe.

Roger baixou os olhos para Meryl. Ela aguardava o relatório, no qual tornou a pegar.

— É sem dúvida uma tragédia — disse Roger. — E tão inesperada, tendo em conta a sua idade e saúde no passado.

— É de partir o coração — concordou Meryl. Abriu o relatório nas notas dos enfermeiros.

— Ocorreram outras bastante semelhantes em outros pisos ao longo do último mês — disse Roger.

— Foi o que ouvi dizer. Felizmente, este foi o nosso primeiro caso. Talvez seja mais difícil para nós que para os outros, uma vez que estamos habituados a resultados mais felizes.

— Tenho umas perguntas para lhe fazer, se não se importa. Por acaso, viu o Dr. Najah no vosso piso esta noite?

— Vimos, como sucede geralmente.

— Então, e o Dr. Cabreo?

— Também o vimos, mas só depois de ter sido acionado o código.

— Então e uma enfermeira chamada Jasmine Rakoczi, a quem chamam Jazz?

— É curioso que pergunte isso!

— Como assim?

— Vemos muitas vezes a Srª. Rakoczi a maioria das noites. Até me queixei a Susan Chapman, que costumava ser a enfermeira-chefe, dizendo que não a queria aqui. Vou ter de ir um pouco mais acima agora que já não temos aqui a Susan.

— O que é que a Srª. Rakoczi faz quando vem aqui?

— Tenta ser simpática com os auxiliares. Para além disso, está sempre a olhar para os relatórios, que não são da conta dela.

— Lembra-se especificamente de ela ter estado aqui esta noite?

—Lembro-me pois, porque sempre que a vejo questiono-a. Questionei-a hoje, tal como sempre faço.

— E o que disse ela?

— Disse que estava a desempenhar o papel de enfermeira-chefe lá em baixo e precisava de algumas provisões. Não me recordo de que se tratava. Enviei-a à nossa despensa para ir buscar aquilo de que necessitava, mas pedi-lhe que depois se fosse embora. Também lhe disse que ela teria de substituir aquilo que levasse, coisa que prometeu que faria.

— E ela foi à vossa despensa?

— Foi.

— E depois, o que aconteceu?

— Imagino que tenha ido buscar o que queria e voltou a descer. Não sei mesmo, porque estava ausente a tratar de um problema com um dos pacientes. E depois, claro, tivemos o código.

— Em que quarto estava Patrícia Pruit?

— No 703. Porque é que pergunta?

— Gostaria de lhe dar uma vista de olhos.

— Faça favor — disse Meryl enquanto apontava para o respectivo corredor.

Agitava-se uma miríade de pensamentos no espírito de Roger enquanto se encaminhava do quarto da paciente. A seu ver, Jasmine Rakoczi estava a tornar-se cada vez mais um enigma. Não cessava de se perguntar por que razão estaria constantemente a subir um piso para ir à secção de obstetrícia/ginecologia para conversar com os auxiliares quando parecia tão anti-social e por que haveria de folhear os relatórios de obstetrícia/ginecologia. Não fazia qualquer sentido. O que fazia sentido era que tanto ela como o Dr. Najah tinham ido ao piso antes do código. É claro que se perguntou quantas outras pessoas da sua lista de transferidos teria também ido até lá. Pelo que sabia, bem poderiam ter ido todos.

O quarto de Patrícia estava numa desordem. Os despojos da tentativa de reanimação cardíaca amontoavam-se no chão. Na agitação do momento, alguns dos invólucros, das seringas dos recipientes de medicamentos, e outros utensílios do gênero, tinham sido simplesmente atirados fora. A cama tinha sido descida por forma a ficar plana e elevada para ajudar na reanimação cardiopulmonar, e a mesa de reanimação continuava no seu lugar. Havia umas quantas gotas de sangue reveladoras, salpicadas no lençol branco e amarrotado.

Infelizmente, aquilo que Roger procurava não estava em exibição. O poste do líquido intravenoso estava na sua posição habitual à cabeça da cama, mas sem a garrafa nem o recipiente de plástico para o líquido que teria de ter estado ali pendurado. Como estivera presente na cena, Roger tivera a idéia de mandar analisar o conteúdo intravenoso. Dado que Laurie lhe tinha dito que a toxicologia nada encontrara, talvez testar o líquido intravenoso produzisse qualquer coisa.

Roger virou-se e regressou à sala dos enfermeiros. Conseguiu a atenção de Meryl e inquiriu-a acerca da garrafa desaparecida.

Meryl encolheu os ombros.

— Não faço idéia de onde esteja.

De seguida virou-se e chamou o médico residente que liderara a reanimação, fazendo-lhe a mesma pergunta. Abanou a cabeça, indicando que também não sabia, e depois retomou a sua mini-conferência de esquina. Ele e os outros residentes continuavam a debater ruidosamente as razões pelas quais não tinham tido êxito.

— Calculo que tenha descido com a paciente — disse Meryl. — Deixamos sempre pelo menos os intravenosos no sítio, bem como quaisquer outros tubos.

— Isto pode parecer uma pergunta parva, mas não trabalho aqui há muito tempo. Para onde é que a paciente foi, exatamente?

— Para a morgue, ou para o local que usamos como morgue. Trata-se do velho teatro de autópsias na cave.

— Obrigado — disse Roger.

— De nada — disse Meryl.

Roger regressou aos elevadores. Pressionou o botão para descer, mas depois viu o sinal das escadas. Tinha de súbito em mente perguntar à Srª. Rakoczi por que razão ia ela com tanta freqüência ao piso de obstetrícia/ginecologia e de que provisões tinha precisado nessa noite. Uma vez que o elevador estava a demorar o seu tempo a chegar, Roger usou as escadas. Enquanto descia, reconheceu que o efeito da cafeína começava finalmente a passar. Sentia as pernas pesadas. Decidiu que teria mais uma conversa com a Srª. Rakoczi, iria brevemente à procura da garrafa com o líquido intravenoso e depois seguiria para casa.

O piso cirúrgico estava tão calmo como antes. Roger deduziu que todos os enfermeiros estariam a atender os respectivos pacientes.

Viu alguns deles enquanto passava pelas portas abertas dos quartos dos pacientes. Em lugar de incomodar alguém, pensou em ficar a aguardar na sala dos enfermeiros pelo regresso da Srª. Rakoczi. Para sua surpresa, foi encontrá-la no mesmo sítio onde a encontrara antes, na mesma posição, a ler a mesma revista.

— Julguei que me disse que tinha pacientes para ver — disse Roger.

Sabia que estava a ser provocador e cáustico para com alguém com um temperamento volátil, mas não conseguia evitá-lo. Não havia dúvidas de que aquela mulher era uma preguiçosa.

— Já estive com eles. Agora estou a tomar conta da sala dos enfermeiros. Tem algum problema em relação a isso?

—Felizmente para nós dois, não está sob a minha tutela — disse Roger. — Mas tenho mais uma pergunta para si. Segui a sua sugestão, subi ao piso de obstetrícia/ginecologia e falei com Meryl Lanigan. Disse-me que era uma presença assídua nesse piso. Com efeito, disse que esteve lá em cima hoje. Gostaria de saber porque.

— Para a minha formação contínua — disse Jazz. — A obstetrícia/ginecologia interessa-me, mas não tive muito contacto com a área enquanto estive nos Fuzileiros, por razões óbvias. De modo que vou lá acima com freqüência durante as minhas pausas. Agora que já aprendi alguma coisa sobre esse ramo, estou a pensar em candidatar-me a uma vaga na obstetrícia/ginecologia.

— Foi então por motivos de formação contínua que foi lá a cima esta noite?

— Será assim tão difícil de acreditar? Em vez de descer até a cafeteria na hora de almoço com metade da minha equipa do piso cirúrgico para falar sobre baboseiras, subi à obstetrícia/ginecologia para aprender qualquer coisa. Não sei o que se passa com este sítio. Sempre que uma pessoa faz um esforço por se melhorar, só consegue chatices.

— Não quero contribuir para o seu fardo — disse Roger, debatendo-se para manter a voz isenta de sarcasmo. — Mas parece haver uma discrepância. A Srª. Lanigan disse-me que quando a confrontou, a Jazz lhe disse que queria levar qualquer coisa emprestada.

— Foi isso que ela disse? — Perguntou Jazz com uma gargalhada desdenhosa. — Bem, numa coisa tem razão. Precisei de trazer emprestados uns fios de infusão, graças ao fato de os fornecimentos centrais não nos reporem as provisões, mas isso foi algo de que depois me lembrei. Aquilo que eu realmente estava a fazer lá em cima era a sorver informação através da leitura das notas dos enfermeiros. Provavelmente, não o quer admitir, porque deve ter medo que eu esteja na mira do emprego dela.

— Não seria esse o meu palpite — disse Roger. — Mas sei lá! Obrigado pelo seu tempo, Srª. Rakoczi. Torno a entrar em contacto consigo se tiver mais questões.

Roger saiu da despensa e contornou a mesa da sala dos enfermeiros. Sentia-se agora genuinamente fatigado. A cafeína desaparecera por completo. Alguns instantes mais cedo, ponderara a idéia de, depois de ter falado novamente com a Srª. Rakoczi, regressar ao bloco operatório para ver se conseguia encontrar o Dr. Najah. Tal como com Rakoczi, queria perguntar-lhe o que andara a fazer no piso da obstetrícia/ginecologia, mas agora mudara de idéias. Sentia-se exausto. Eram quase quatro da manhã.

Roger decidiu que a primeira coisa que faria ao regressar ao seu gabinete nessa mesma manhã seria telefonar a Rosalyn para lhe suplicar que lhe arranjasse o relatório de Jasmine Rakoczi do Saint Francis. Não lhe importavam as conseqüências. Deu por si a perguntar-se até que ponto a escassez geral de enfermeiros teria que ver com o fato de Jasmine Rakoczi estar empregada. A esmagadora maioria das hipóteses apontavam para que não fosse uma assassina em série. Isso seria demasiado fácil. Contudo, a seu ver, o fato de ela, com a sua atitude, estar a trabalhar como enfermeira, era uma paródia, e tinha intenções de fazer alguma coisa em relação a isso.

Roger premiu o botão para descer do elevador e arriscou uma olhadela para a sala dos enfermeiros cirúrgicos. Foi apenas por uma fração de segundo, mas julgou avistar a figura de Jazz a olhá-lo da extremidade da porta da despensa. Roger não estava muito seguro e, tendo em conta o cansaço que subitamente sentia, poderia ter sido a sua imaginação. A mulher fê-lo sentir-se desconfortável. Detestava a idéia de poder vir a ser um paciente aos seus cuidados.

O elevador chegou e ele entrou. Mesmo antes de as portas se fecharem tornou a olhar para a porta da área de serviço. Pela segunda vez, não sabia se eram os seus olhos ou se seria o seu cérebro a enganá-lo, pois julgou vê-la de novo.

Tomou o elevador para a cave, onde nunca estivera. Ao contrário do resto do hospital, era completamente utilitária. As paredes eram de cimento manchado e desprovidas de decoração, e corriam imensos canos expostos, alguns isolados, outros não, ao longo do teto. As luzes consistiam em simples casquilhos de porcelana com quebra-luzes de tela metálica. Logo a seguir aos elevadores, lia-se num velho sinal composto de tinta estalada e aplicado diretamente sobre a parede de cimento: "teatro de autópsias", acompanhado de uma grande seta vermelha.

O percurso era labiríntico, mas, seguindo as setas vermelhas, Roger acabou por chegar às portas duplas em pele com janelas ovais situadas ao nível dos olhos. O vidro estava coberto por uma película de gordura. Embora Roger conseguisse ver que havia uma luz acesa na sala posterior, não conseguia distinguir quaisquer pormenores. Avançou, abrindo depois a porta com uma maçaneta de latão antigo.

O interior consistia num anfiteatro médico de dois andares, semicircular e antiquado, com fileiras de pequenos assentos que se erguiam em escada para as trevas. Roger calculou que tivesse sido construído cem anos antes, numa altura em que a anatomia e a patologia eram disciplinas-chave na formação médica acadêmica. Havia bastante madeira velha, riscada, corroída de negro e envernizada, e a luz chegava de uma única lâmpada grande e coberta que pendia do teto num fio comprido. A luz centrava-se numa antiquada mesa de autópsias de metal que ocupava o centro da cave. Encostado à parede do fundo encontrava-se um armário de portas de vidro com uma coleção de instrumentos para autópsias em aço inoxidável. Roger perguntou-se quando teriam sido usados pela última vez. Poucas autópsias eram agora realizadas fora do gabinete do médico-legista, especialmente em hospitais de gestão de cuidados como o Manhattan General.

De pé na sala, e juntamente com a mesa de autópsias, havia várias marquesas hospitalares cobertas com lençóis, onde obviamente se encontravam cadáveres. Roger começou a andar em frente, sem saber qual deles seria Patrícia Pruit. À medida que se aproximava do primeiro cadáver perguntou-se, como já fizera no passado, por que razão teria Laurie escolhido a patologia forense para carreira. Parecia tão oposta à sua personalidade vibrante. Com um encolher de ombros, agarrou a ponta do lençol e levantou-a.

Roger fez uma careta. Estava a olhar para os restos mortais de um indivíduo que estivera envolvido numa qualquer espécie de acidente. A cabeça do homem estava horrivelmente distorcida e esmagada, de modo que tinha um dos olhos completamente exposto. Roger tornou a baixar o lençol. Sentia as pernas bambas. Nos tempos de aluno de medicina não gostava de patologia, especialmente de patologia forense, e essa vítima recordava-lhe esse fato de maneira desconfortável e brutal.

Roger inspirou algumas vezes antes de avançar para a segunda marquesa. Estendeu o braço para a ponta do lençol, mas a mão não conseguiu fazê-lo. Em lugar disso, foi projetado para a frente e desequilibrou-se, uma vez que lhe tinham batido no meio das costas com aquilo que lhe parecia ser um pau. Sabia que estava a cair e os seus braços dispararam de modo reflexivo para amortecer a queda, mas, antes de bater no chão ladrilhado, a madeira atingiu-o de novo, deixando-o de boca aberta.

Roger embateu no chão e escorregou para a frente nos ladrilhos vidrados. Bateu com a cabeça na parede que separava a local das autópsias das bancadas de assentos. Tentou mover-se, mas as trevas desceram sobre si como um cobertor pesado e sufocante.

 

Quando o despertador de Laurie quebrou o silêncio no sábado de manhã bem cedo, sentia-se de modo semelhante ao que sentira na sexta-feira de manhã. Uma vez mais, não tinha dormido bem e o sono fora arruinado por sonhos ansiosos.

A primeira coisa que fez depois de ter saído da cama foi repetir o teste de gravidez com um novo kit. Como médica, estava bem ciente da necessidade de repetir testes por forma a excluir leituras falsas. Quando regressou para verificar os resultados, tinha consciência de uma ambivalência definitiva. Porém, uma vez mais, era claramente positivo. Poucas dúvidas poderiam haver de que estava grávida.

A náusea matinal acrescentava créditos aos resultados do teste e parecia um pouco pior que nos dias anteriores, mas, depois de ter comido um pouco de farelo com passas, sentiu-se melhor. O desconforto no quadrante inferior direito que a acompanhava era outra história. Felizmente, não era nada como o que experimentara na noite anterior a caminho de casa, vinda do encontro com Jack. Nessa altura fora pura dor, suficientemente intensa para a fazer contorcer-se. Surgira de súbito no táxi, como que diversas cólicas intestinais. Durante uns segundos, julgou que teria de telefonar a Laura Riley, mas depois, tão subitamente como tinham surgido, desapareceram. Por serem tão intensas, Laurie tinha ficado convencida de que estariam relacionadas com o sistema digestivo. Eram de uma natureza bem mais aguda que as dores menstruais, o que a levava-a pensar que nada tivesse que ver com o fato de estar grávida. O único motivo para confusão era que pela manhã surgia juntamente com as náuseas, sugerindo que estariam relacionadas.

Laurie pousou a tigela dos cereais vazia na bancada da cozinha. Preocupada com o persistente desconforto, pressionou cautelosamente o abdômen na área geral da dor com o dedo indicador, numa tentativa de determinar se haveria um ponto preciso para a dor. Não havia e, curiosamente, a simples palpação pareceu ser benéfica. Quando Laurie retirou a mão, o desconforto desaparecera, sugerindo-lhe uma vez mais que o problema seria intestinal, porventura gases.

Aliviada por a sensação ter desaparecido, Laurie vestiu-se rapidamente. Estava de serviço no fim-de-semana, o que significava que, de todos os médicos-legistas no GMLS, era a sua vez de ir ver que tipos de casos tinham chegado durante a noite. Sabia que provavelmente faria umas autópsias, a não ser que pudessem todas ser adiadas para segunda-feira, o que, segundo a sua experiência, nunca sucedera. Havia uma segunda pessoa que estaria de serviço caso tivesse lugar uma enchente de casos urgentes, mas, de acordo com a experiência de Laurie, isso também nunca acontecera.

O tempo era o típico para um dia de março em Nova Iorque: chuviscos e frio. Laurie aninhou-se debaixo do chapéu de chuva enquanto caminhava a custo na First Avenue, no sentido norte. Procurara um táxi por breves momentos, mas sempre que o tempo ficava desagradável eram difíceis de encontrar.

Enquanto caminhava, Laurie pensou na conversa com Jack. Em retrospectiva, percebeu como as suas próprias emoções tinham compreensivelmente virado de um extremo para o outro. Embora se sentisse agora constrangida com a reação de Jack quando ele lhe perguntara quem era o pai, uma vez que se tratava, em última análise, de uma pergunta razoável, deu a si mesma crédito em geral por ter mantido a compostura de forma admirável. Tendo em conta aquilo que estava em jogo, poderia ter sido uma das conversas mais importantes da sua vida. Tudo o que agora podia fazer era rezar para que Jack reagisse como ela esperava. Dado o historial dele, imaginou que as hipóteses seriam apenas de cinqüenta-cinquenta.

Na rua, à porta do GMLS, havia vários camiões de estações televisivas, o que sugeria que algo digno de notícia ocorrera durante a noite, e Laurie pôs-se em guarda. Lidar com os media não era a parte preferida da sua profissão de médica-legista. Vivera experiências infelizes com jornalistas no passado, a ponto de terem colocado em risco o seu posto de trabalho.

Por um instante, Laurie hesitou e ponderou se deveria dar a volta para a entrada da morgue na 30th Street. Olhou de relance para os camiões das televisões. Havia apenas três e não tinham as antenas levantadas, o que sugeria que não esperavam notícias de grande impacto. Calculando que fosse o que fosse que os tivesse levado ao GMLS não seriam notícias de primeira página, Laurie subiu os degraus e entrou. Cerca de uma dúzia de jornalistas e três operadores de câmara punham-se à vontade na entrada.

Laurie acenou uma saudação a Marlene, que ia sempre trabalhar umas horas aos sábados de manhã, e tentou atravessar a entrada para que as portas se abrissem. Quase de imediato, o caminho foi-lhe bloqueado por um jornalista que a reconheceu e que empurrou um microfone para o seu rosto. Acenderam-se várias luzes brilhantes, mergulhando a entrada numa forte iluminação à medida que os operadores de câmara içavam o equipamento sobre os ombros.

— Doutora, quer comentar o acidente? — perguntou-lhe o jornalista.

Os outros agruparam-se em redor com os respectivos microfones.

— Na sua opinião, tratou-se de um suicídio duplo ou terão os dois rapazes sido empurrados?

Laurie afastou o microfone.

— Não faço idéia do que está a falar e qualquer informação saída deste gabinete tem de ser autorizada pelo diretor, pelo subdiretor ou pelo gabinete de relações públicas. Vocês sabem disso.

Laurie abriu caminho para a sala de identificação enquanto ignorava vagas de novas perguntas. Para seu alívio, viu Robert através do vidro central. Com o seu auxílio, entrou e fechou a porta, deixando os jornalistas presos na entrada.

— Obrigada, Robert — disse Laurie, despindo o casaco.

— São como uma alcatéia de lobos — respondeu Robert.

— Que história é esta? — inquiriu Laurie.

— Dois miúdos de treze anos foram atropelados pelo metrô.

Laurie estremeceu. Um tal cenário iria ser emocionalmente exigente para ela e ficou surpreendida por não lhe terem ligado durante a noite. Felizmente, o presente grupo de médicos de turno era particularmente competente e tinha significativa experiência para lidar com os casos mais críticos. Os médicos de turno eram na sua maioria residentes antigos de patologia que ganhavam uns trocos em biscates.

— Já foram feitas as identificações?

— Sim! Tratou-se disso tudo durante a noite.

Laurie estava satisfeita por isso já ter sido despachado. Para ela, o processo de identificação era especialmente fatigante com crianças porque implicava invariavelmente ter de lidar com os pais que as tinham perdido.

Laurie prosseguiu até a sala de identificação, encantada por ver que o fim-de-semana de serviço de Marvin coincidia com o seu. Já fizera café e pousara as pastas dos casos que tinham dado entrada, ficando com um deles diante de si.

Laurie e Marvin trocaram saudações enquanto ela se servia de uma caneca de café.

— Parece que vamos estar ocupados — disse ela, mirando as pastas.

— Receio que sim — concordou Marvin. Bateu na pasta diante de si com os nós dos dedos. — Recebemos mais um desses confusos casos pós-operatórios do Manhattan General.

— Não me digas!

— Tem uma nota de Janice na capa.

Laurie leu rapidamente a nota. Traçava os pormenores de Patrícia Pruit, respondendo a todas as habituais questões pertinentes. Laurie inspirou profundamente. Contanto não encontrasse qualquer patologia cardíaca, a sua série estava agora em catorze, com oito casos ocorridos só no Manhattan General. Não podia continuar.

— Vamos tratar do caso Pruit primeiro — disse Laurie.

— Antes dos dois rapazes? — inquiriu Marvin. — Viste aquela gente toda das notícias à espera na entrada?

— Vi e podem esperar mais um pouco — disse Laurie. Queria confirmar o mais depressa possível que Pruit era parte da série e avisar Roger. Tinha de se fazer alguma coisa. Não podiam continuar na sombra.

— Muito bem, vou lá abaixo fazer os preparativos.

— Mais alguma coisa digna de nota?

—A maioria parece-me casos de rotina. Creio que quererás passar a maioria deles. O meu palpite é de que iremos fazer quatro casos, mas podes ter outras idéias.

Enquanto Marvin descia à sala de autópsias, Laurie ficou a dar uma vista de olhos por todas as pastas. Tal como previra, Marvin estava certo. Fariam os quatro casos e assim terminaria o seu dia, a não ser que surgisse algo digno de nota enquanto estivessem a trabalhar. Com essa decisão tomada, Laurie subiu ao seu gabinete para guardar o casaco. Estava satisfeita por tê-lo feito, porque, pousada na sua secretária, estava uma pilha de relatórios hospitalares. Para grande espanto seu, as assistentes pessoais tinham realizado, de algum modo, o impressionante feito de conseguir os relatórios de Lewis e de Sobczyk do Manhattan General e os cinco relatórios do Saint Francis, todos eles num tempo recorde.

O relatório no cimo era o de Rowena Sobczyk. Laurie abriu-o e folheou algumas das páginas, olhando para as notas do bloco operatório e para o registro da anestesia. Tal como com o Sr. McGillin e com Morgan, nada havia de invulgar. Preparava-se para pousar o relatório quando caiu uma pequena tira de um eletrocardiograma anômalo. Tinha cerca de sessenta centímetros, tendo sido dobrado, como um acordeão, no relatório somente com os primeiros quinze centímetros colados na página.

Laurie abriu o relatório nessa página. Tratava-se de uma nota escrita pelo residente encarregado da tentativa de reanimação. Laurie leu-a rapidamente e considerou-a pouco esclarecedora. Esticou depois o eletrocardiograma e analisou-o. Os complexos estavam esticados, o que sugeria que representavam batidas cardíacas fracas, se é que tinham sido batidas cardíacas de todo. Poderia ter sido apenas atividade elétrica cardíaca mal coordenada que não provocara qualquer contração muscular. À medida que a seqüência continuava, os complexos tornavam-se progressivamente mais distorcidos, depois aplanavam-se numa linha direita. No canto, rabiscada a lápis, lia-se a anotação: "Curto segmento de eletrocardiograma do início da tentativa de reanimação, depois do qual não foi detectada qualquer atividade elétrica."

Nunca tivera muita experiência de leitura de eletrocardiogramas e esse breve segmento não lhe sugeria coisa alguma. Porém, não conseguia pôr de parte a idéia de que poderia ser relevante, uma vez que não tinham ocorrido tracejados semelhantes com McGillin nem com Morgan, que não revelaram qualquer atividade elétrica no eletrocardiograma, e pensou que poderia mostrá-lo a alguém mais conhecedor que ela. Marcou esse local no relatório com uma régua e até escreveu uma nota num post-it para se lembrar de mostrar o tracejado a um cardiologista.

O seu telefone tocou e o som fê-la dar um salto. Olhou para ele, esperando e perguntando-se se poderia ser Jack. Colocou a mão sobre ele e deixou-o tocar mais uma vez, sentindo a vibração atravessar-lhe a pele numa vã tentativa de influenciar a identidade da pessoa do outro lado. Apesar dos seus esforços, era Marvin e a mensagem era simples: estava tudo a postos lá em baixo, na sala de autópsias.

Laurie repôs a pasta de Sobczyk no cimo da pilha, com a régua espetada de uma das extremidades. Estava ansiosa por estudá-los à tarde, em especial os de Queens, para se certificar de que os casos eram iguais aos do General. Depois tornou a olhar para o telefone e, por um breve instante, ponderou a hipótese de telefonar a Jack. Enquanto o fazia, reparou na luzinha na parte lateral do telefone que indicava que tinha mensagens. Confusa quanto a quem teria deixado uma mensagem no seu gravador durante a noite, pegou no auscultador de novo e verificou as mensagens.

Laurie começou por ficar espantada com a duração da mensagem e depois pelo som da voz de Roger. Estava impressionada por ele ter levado a sua sugestão tão a sério que estivera a trabalhar incessantemente até às duas da manhã. Estava ainda mais impressionada com o fato de ele ter conseguido arranjar aquilo que ele considerava ser uma lista de suspeitos, incluindo um anestesista chamado Najah que tinha sido recentemente transferido do Saint Francis para o Manhattan General. Enquanto prosseguia a audição da mensagem, ia sentindo uma definitiva sensação de satisfação e uma avidez por ouvir os pormenores, embora o quando fosse uma outra questão. Ao dirigir-se para os elevadores que a conduziriam à cave perguntou-se se e quando poderia Jack telefonar. Com Jack, nunca se sabia.

Tal como Laurie previra, a autópsia feita a Patrícia Pruit foi de uma semelhança espantosa às das outras na série, sem qualquer patologia que justificasse a sua súbita morte. Segundo a regra, o local da operação não tinha excesso de sangue, nem sinais de infecção, e não havia coágulos nas artérias das pernas, do abdômen nem do peito. O coração, os pulmões e o cérebro estavam inteiramente normais. No final do processo, Laurie ajudou Marvin a deslocar o corpo de novo para a marquesa.

— Qual dos miúdos queres fazer primeiro? — perguntou Marvin enquanto destravava as rodas da marquesa.

— É indiferente — disse Laurie. Abriu as duas pastas sobre uma mesa de autópsias próxima e procurou os relatórios do investigador forense. Depois, pensando melhor, disse: — Na verdade, por que não fazê-las ambas ao mesmo tempo?

— Por mim, está ótimo — disse Marvin de modo amável. Empurrou a marquesa com o cadáver de Pruit através da porta principal.

Uns anos antes, Laurie teria levado as pastas para a cantina entre casos, mas agora que tinha o fato lunar vestido, isso dava muito trabalho, de modo que leu os relatórios de investigação de pé, tendo o ventilador como pano de fundo. Podia ver de imediato por que razão alguns jornalistas se interessariam pelo caso. O trágico episódio tinha o tipo de apelo tétrico que os tablóides adoravam. Os acidentes tinham ocorrido às três da manhã na estação da 59th Street. O comboio da zona alta da cidade entrara a alta velocidade e passara por cima dos dois miúdos.

O problema era a existência de histórias contraditórias. O maquinista alegava que os miúdos tinham esperado até ao último minuto para saltar, de modo que nada havia que ele pudesse ter feito. Um tal cenário sugeria suicídio duplo, mas o maquinista fizera o teste do balão, que detectara excesso de álcool. A outra história era contada pelo revisor, que afirmava ter estado entre a primeira e a segunda carruagem, a olhar para a estação quando o comboio chegou. Disse que não tinha visto quaisquer miúdos na plataforma e passou o teste do balão. A terceira história era a do senhor do quiosque que afirmava que um homem suspeito passara o molinete logo a seguir aos miúdos, mas desaparecera.

A porta para o corredor abriu-se e Marvin empurrou outra marquesa.

— A coisa está feia — disse ele.

— Imagino — disse Laurie.

Continuou a ler os relatórios de investigação. Não foram encontradas notas de suicídio, nem na plataforma, nem nas vítimas. As conversas com os pais de ambos os miúdos não confirmaram quaisquer sinais de depressão. Segundo palavras de um dos pais, os miúdos eram "selvagens e com o diabo no corpo, mas nunca se matariam."

— Vou buscar o outro — gritou Marvin.

Laurie acenou por cima do ombro enquanto continuava a ler. Uma vez mais estava impressionada com o trabalho de Janice. Não fazia idéia de como poderia ela ter reunido tanta coisa numa só noite.

Terminadas as suas leituras, Laurie retirou das pastas as folhas para as notas da autópsia e virou-se para olhar para o primeiro cadáver. Entretanto, Marvin regressava com o segundo cadáver.

— Meu Deus! — Murmurou Laurie ao mesmo tempo em que baixava os olhos para os restos mortais do primeiro rapaz.

Os adolescentes não eram tão difíceis para Laurie a nível emocional como crianças pequenas, mas não deixavam de ser complicados.

Ser atropelado por um comboio encontrava-se no cúmulo das experiências traumáticas. O braço do rapaz tinha sido arrancado do ombro e estava pousado ao longo do tronco. A cabeça e o rosto haviam sido reduzidos a uma polpa. Não havia forma de apresentar os cadáveres em melhores condições para poupar os pais.

Laurie deu início ao exame externo especificando os traumatismos demasiado óbvios à vista. Era evidente que o corpo fora arrastado por baixo do comboio até ele ter parado.

— Aqui está o segundo — disse Marvin enquanto empurrava a marquesa vazia para a parte lateral da sala.

Laurie fez um aceno de mão por cima do ombro sem se virar. Encontrou algo de inesperado no pênis do rapaz, que a fez descer o olhar para ver as solas dos pés. Marvin juntou-se a ela do outro lado da mesa.

— Reparei nisso — disse Marvin, seguindo a linha de visão de Laurie. — O que é que achas disso? — A juntar às escoriações, havia um pouco de queimado.

— Onde estão os sapatos? — Inquiriu Laurie.

— Num saco de plástico na câmara frigorífica.

— Vai buscá-los — disse Laurie.

Estava preocupada e avançou imediatamente para junto da segunda criança.

Quando Marvin regressou com as roupas de ambos os casos, Laurie sentiu que já resolvera o mistério somente através do exame externo. Marvin levou-lhe os tênis que os miúdos tinham usado. Tal como os próprios rapazes, estavam num estado lastimoso. Laurie pegou neles e olhou para as solas.

— Parece-me muito claro aquilo que aconteceu.

— Sim? — perguntou Marvin. — Elucida-me.

Nesse instante, abriu-se a porta que dava para o corredor, surpreendendo Laurie e Marvin. Era Sal D'Ambrosio, um dos outros técnicos mortuários. Estava demasiado animado tendo em conta a sua habitual personalidade indiferente.

— Acabamos de receber um cadáver de um homem decapitado e sem mãos, juntamente com alguns polícias. O que faço?

— Fizeste um raio-X, pesaste-o e fotografaste-o, como deves fazer? — inquiriu Laurie.

Em grande contraste com Marvin, que precisava de poucas indicações, a apatia de Sal chegava muitas vezes aos nervos de Laurie. Havia um protocolo a ser seguido para todos os cadáveres que chegassem ao GMLS.

— Ora muito bem! — disse Sal, pressentindo a impaciência de Laurie. — Julguei que com os polícias aqui, a história pudesse ser outra.

Tornou a enfiar-se pela porta e a fechá-la.

Laurie fez um minuto de pausa. Ouvir dizer que chegara um cadáver decapitado e sem mãos produzira nela uma sensação de déjà vu que a fez retroceder sete anos, ao momento em que um cadáver semelhante tinha sido trazido depois de ter estado a flutuar no East River. Tinha sido com algum esforço que se conseguira fazer a identificação. O nome do homem era Franconi, e o Sr. Franconi tinha-a levado e a Jack, postumamente, numa selvagem aventura pela Guiné Equatorial e pela África Ocidental.

— Então! — Marvin interrompeu o breve filme mental de Laurie. — Vá lá! Deixaste-me curioso. O que se passa com estes dois miúdos?

Laurie começou de novo a explicar, mas a porta que dava para o corredor tornou a abrir-se. Entrou uma figura de máscara, touca e bata, para grande surpresa de Laurie e de Marvin.

— Desculpe, mas não é permitida a entrada a ninguém — gritou Laurie, de mão no ar como um polícia sinaleiro.

Por um segundo, julgou que o intruso poderia ser um jornalista particularmente aventureiro que de algum modo se conseguira infiltrar na segurança do GMLS.

— É perigoso e o uso de material de proteção completo é obrigatório.

— Ah, por favor, Laur! — disse o homem, que se deteve. Jack disse-me que aos fins-de-semana as coisas não eram tão rígidas por aqui e que é assim que se veste, a não ser que se trate de um caso infeccioso.

— Lou? — perguntou Laurie.

— Sim, sou eu. Não me vais obrigar a meter-me dentro de um fato desses, pois não? Dão comigo em doido.

— Se o Calvin entrar, vais ser banido para o resto da vida.

— Realisticamente, quais são as hipóteses de ele entrar?

— Nulas, suponho eu.

— Ora, aí tens — disse Lou. Aproximou-se de Laurie e olhou de relance para os dois rapazes, mas depois ergueu logo de novo os olhos para Laurie.

— Bah! Que espetáculo! Como é que fazes disto a tua profissão?

— Realmente, tem o seu lado negativo — concordou Laurie. O que é que te traz aqui tão cedo num sábado?

— O cavaleiro sem cabeça com quem vim. Causou mais alguma agitação no Manhattan General. Digo-te que aquele lugar há de ser a minha desgraça.

— Acho melhor que me elucides.

— Telefonaram-me esta manhã ao nascer do dia. Parece que o fulano que trata dos cadáveres no General foi trabalhar como de costume e encontrou um cadáver que não deveria lá estar. — Lou riu-se. — Quer dizer, há um certo humor nisto, encontrar um cadáver a mais na morgue. Já ouvi de cadáveres serem colocados no lugar errado ou desaparecerem, mas encontrar um a mais é um pouco fora do normal.

— Por que é que te chamaram? Por que é que as pessoas que trabalham no local não trataram do assunto?

— O meu comandante ouviu este caso na seqüência do homicídio da cunhada lá ontem de manhã. Tem praticamente linha aberta para o hospital. Então, liga-me logo e diz-me que vá até lá. O problema é que não houve novidades no caso da cunhada, de modo que tem um puxão de orelhas para mim. Há também algumas semelhanças. Este novo cadáver tem aquilo que parecem ser dois buracos de bala, tal como a cunhada dele.

— Não há identificação?

— Não, nem uma pista. E não falta ninguém no hospital, nem pacientes, nem funcionários.

— Então e a cabeça e as mãos?

— Desapareceram. Não as encontramos em parte nenhuma.

— Então o teu comandante acha que o novo cadáver está de algum modo relacionado com o caso da irmã da mulher.

— Não o disse assim por essas palavras, mas sem dúvida de que era isso que tinha em mente. É esquisito. O cadáver estava imaculado quando o tipo foi encontrado nas traseiras da velha câmara frigorífica da sala de anatomia. Não havia sangue fresco nem seco, nada, como se o sujeito tivesse acabado de sair do duche. É tudo muito estranho, se queres saber a minha opinião, e já vi muita coisa esquisita na minha profissão.

— Como é que a cabeça e as mãos foram cortadas?

— Como assim?

— Foi uma coisa limpa ou tipo talhar carne?

— Limpa. Muito limpa.

— Como se tivesse sido feita por um médico?

— Julgo que sim. Não tinha pensado nesses termos, mas sim.

— Parece um caso intrigante.

— Vais tratar dele já? O comandante diz que quer notícias da minha parte o mais cedo possível.

— Terei muito gosto em tratar do caso, mas só depois de acabar estes dois rapazes.

Lou deu uma vista de olhos em redor de Laurie e tornou a observar os restos mortais.

— Que história é esta?

— Dois miúdos atropelados por um comboio.

Lou fez uma careta.

— Foi isto que atraiu os tipos dos media para a entrada?

— Receio que sim. Só a idéia de se ser atropelado por um comboio já é suficientemente macabra, mas, a torná-la ainda mais apelativa para os tablóides, há a questão de se tratar porventura de um duplo suicídio ou de um duplo homicídio.

— Pois — disse Marvin, tomando a palavra pela primeira vez. — Estava mesmo prestes a ouvir a resposta no momento em que chegaste.

—A sério? — inquiriu Lou. Ultrapassou a sua hesitação e aproximou-se. — Estes tipos parecem ter passado por um picador de carne. O que foi, suicídio ou homicídio?

— Nem uma coisa nem outra — disse Laurie. — Foi acidental.

Com óbvia surpresa, tanto Lou como Marvin ergueram os olhos para Laurie.

— Como podes ter tanta certeza? — quis saber Lou.

— Estou convicta de que quando fizer as autópsias encontrarei provas de que as crianças estavam mortas quando o comboio lhes passou por cima. Olha para as pequenas queimaduras nos pés.

Laurie pegou num pé de cada rapaz e apontou para as áreas escuras e queimadas.

— O que vês? — inquiriu Lou.

— Queimaduras — disse Laurie. Depois apontou para os pênis dos rapazes. — Tal como estas nas extremidades das glandes.

— Mas que raios são as glandes? — perguntou Lou.

— É o plural de glande, ou cabeça do pênis.

— Au! — exclamou Lou, fazendo uma careta de dor.

— Julgo que estes dois miúdos cometeram o erro fatal de urinar lado a lado na terceira linha de comboio enquanto estavam de pé, ou na berma de aço da plataforma, ou na própria linha do comboio. O local era tão propício que a eletricidade subiu em arco pelo fio de urina e eletrocutou-os em simultâneo.

— Meu Deus do céu! — disse Lou, endireitando-se. — Lembra-me de nunca fazer isso.

Lou ficou para as autópsias dos dois rapazes, que depressa terminaram. Tal como Laurie antevira, havia provas evidentes de que os fortes traumatismos sofridos pelos rapazes ocorreram depois de os corações terem cessado de bater. Enquanto trabalhava, Laurie contou a Lou pormenores do primeiro caso de que tinham tratado, Patrícia Pruit, e que, como conseqüência, a sua série de mortes misteriosas, inexplicáveis e inesperadas no Manhattan Geral tinha subido para oito.

— Credo! — respondeu Lou. — Ontem, Jack disse-me que tinhas sete e que ele começava a ver com outros olhos a tua idéia de um assassino em série, mas que a administração ainda não estava a engolir a história. Qual é agora a reação de Calvin? Será que o GMLS está disposto a tomar uma posição pública?

— Calvin não sabe da morte desta manhã — disse Laurie. Não sei qual vai ser a sua reação, mas não estou muito otimista. Receio que vá ser preciso um qualquer acontecimento de extrema importância para que ele veja a luz, uma vez que não nos chegou qualquer ajuda da toxicologia. Quando o assunto diz respeito ao Manhattan General, tem palas nos olhos. Continua a pensar nele como sendo o velho centro acadêmico venerado onde se formou. A última coisa que quereria fazer seria manchar a sua reputação.

— Se continuarem a morrer lá pessoas saudáveis, a reputação dele vai sofrer, de uma maneira ou de outra. Mas diz-me se ele for ao encontro das tuas idéias. Tal como disse a Jack, com tudo o resto que se está a passar neste momento, estou de mãos atadas, pelo menos oficialmente. Estou atulhado com este caso Chapman. Se não arranjar um suspeito, bem posso ir por aí vender lápis.

— Na verdade, estou a trabalhar com o Dr. Roger Rousseau na produção de suspeitos legítimos, e deixou-me uma mensagem ontem à noite em que me dizia que tinha feito progressos.

— Não gosto nada de ouvir que estás a "trabalhar" com esse tipo, por razões óbvias. Mas se tu e ele conseguirem arranjar alguns nomes, posso fazer qualquer coisa, mesmo que não seja a nível oficial.

— Creio que já temos um — disse Laurie. Acabou de coser o último dos rapazes e entregou os instrumentos a Marvin. — Vamos lá colocar o decapitado Sr. Xis antes do turista.

O turista era o quarto caso que tinham planeado autopsiar. Tratava-se de um estudante universitário que aparentemente morrera de toxicidade alcoólica aguda. O nível de álcool no seu sangue já revelara ultrapassar os limites dos gráficos. Fora encontrado no Central Park por um jogger madrugador.

Enquanto Marvin estava ausente por ter ido buscar Sal para que o ajudasse com os cadáveres dos dois rapazes, Laurie continuou a falar com Lou acerca da sua série. Explicou a sua idéia sobre um potencial assassino que se teria aparentemente mudado do Saint Francis para o Manhattan General, e disse que Roger procuraria os transferidos, entre outras pessoas, e que podia até ter falado com alguns deles, incluindo o anestesista Najah.

— Espera um segundo! — Ergueu a mão. — Espera aí. Estás-me a dizer que esse teu namorado está a planear aproximar-se, em pessoa, de Najah e de alguns dos outros assim designados suspeitos?

— Creio que está, sim — respondeu Laurie. Foi apanhada desprevenida. Não esperara uma reação tão negativa por parte de Lou.

— Isto é de loucos! — disse Lou. — Sabes o que penso sobre gracinhas de detetives amadores. Uma coisa é conseguir alguns nomes como resultado de um jogo de sofá, mas a história muda completamente de figura quando se trata de abordar realmente alguém.

— Por que? Tem de se ir diminuindo a lista para se saber quais poderão com efeito ser suspeitos. De outro modo, não passa de pura conjectura!

— Deus do céu! Laurie, detesto ouvir-te falar assim. Vamos imaginar por um instante que existe realmente um assassino em série atrás daquilo a que chamas série. Se existe, e se não for completamente passado, pode ser extremamente perigoso. A mínima provocação poderia fazê-lo ultrapassar os limites.

Marvin e Sal regressaram à sala de autópsias. Enquanto deslocavam os cadáveres dos adolescentes para as marquesas que os aguardavam, Laurie e Lou permaneceram em silêncio. Sentiam-se os dois constrangidos devido à súbita veemência de Lou. Quando a porta se fechou atrás dos técnicos que empurravam as marquesas, Lou aclarou a voz.

— Desculpa — disse ele. — Não foi minha intenção que isto saísse assim tão forte. Os detetives amadores metem-me um medo de morte. A última coisa que quero que faças é que ponhas a tua vida em risco como fizeste quando andaste a brincar aos detetives naquele caso de cocaína de Paul Cerino. Lidar com psicopatas não é coisa para novatos.

— Acho que compreendo o que me estás a dizer — disse Laurie.

— E agora num registro mais leve — disse Lou, ansioso por mudar de assunto. — Estou morto por te perguntar pelo teu jantar de ontem à noite com Jack. Como correu? Vão enterrar o machado de guerra ou quê?

Laurie não respondeu logo e, quando o fez, tudo o que disse foi que o júri ainda estava em período de reflexão. Lou não ficou muito satisfeito, mas a sua intuição disse-lhe que deixasse o assunto.

Marvin e Sal regressaram com uma única marquesa. Marvin empurrava-a e Sal puxava-a. Depois de Marvin ter colocado um raio-X que trazia debaixo do braço sobre uma superfície próxima, os dois técnicos transferiram com destreza o cadáver masculino decapitado e sem mãos.

— Estou a ver o que querias dizer — disse Laurie depois de ter dado uma olhadela ao corpo. — É de uma limpeza notável.

Em grande contraste com os cadáveres estropiados dos adolescentes, não havia sangue, nem sequer no pescoço e nos pulsos cortados, que haviam sido decepados com tanta perfeição que se assemelhavam a ilustrações num livro de anatomia. Sal tornou a levar a marquesa para o corredor enquanto Marvin montava o raio-X.

As duas balas destacavam-se por serem duas manchas de um branco puro num fundo que ia do cinzento ao preto. Uma delas era uma forma irregular achatada e a outra era normal. Laurie apontou para a bala deformada ao centro do tronco.

— O meu palpite é de que esta tenha batido na espinha. — Apontou depois para o defeito numa das vértebras. — Diria que acabou no fígado. A outra está no mediastino, ao centro do peito, e não me surpreenderia se descobríssemos que penetrou no arco aórtico. Foi esse o tiro fatal.

— Parece uma nove milímetros — disse Lou.

— Veremos — disse Laurie.

Tornou a concentrar-se no cadáver para dar início ao exame externo. Enquanto estava de pé à direita do cadáver com Marvin do outro lado, Laurie pediu ao técnico que fizesse rolar o cadáver para si. Queria ver as feridas nos locais por onde as balas tinham entrado, bem como fotografá-las. Contudo, quando Marvin fez o que ela lhe pedira, viu uma tatuagem pequena e detalhada de um polvo ao fundo das costas do cadáver.

Laurie desequilibrou-se e inspirou uma grande lufada de ar. Estendeu o braço e agarrou-se à extremidade da mesa para se manter de pé. Tinha os olhos fixos na tatuagem.

— Laurie, sentes-te bem? — perguntou Marvin.

Laurie não se moveu. Embora tivesse perdido o equilíbrio a princípio, agora parecia imóvel.

— Laurie, o que se passa? — inquiriu Lou. Inclinou-se para a frente para tentar ver através da máscara facial.

Laurie abanou a cabeça para quebrar o seu transe momentâneo. Recuou um passo da mesa.

— Preciso de uma pausa — disse ela numa voz alta e ofegante. — Esta autópsia vai ter de esperar. — Rodou sobre os calcanhares e encaminhou-se para a porta.

Tanto Marvin como Lou ficaram a observá-la. Lou chamou-a pelo nome, mas ela não respondeu. Quando as portas se fecharam atrás dela, Lou olhou para Marvin.

— Que se passa?

— Sei lá — disse Marvin. Tornou a colocar o cadáver deitado de costas. Soltou uma gargalhada breve e melancólica. — Isto nunca aconteceu. Talvez esteja mal-disposta.

— Acho que é melhor ir lá ver — disse Lou, encaminhando-se para a porta. Como esperava que Laurie estivesse no corredor, Lou ficou surpreendido por não ver vivalma. Do ponto onde se encontrava conseguia ver todo o espaço até ao gabinete de segurança. Também não parecia estar lá qualquer pessoa. Confuso quanto ao que teria sucedido, percorreu a extensão dos compartimentos pequenos e refrigerados onde os corpos eram armazenados antes da autópsia. Quando chegou ao final, ao ponto onde à esquerda havia uma grande câmara frigorífica onde se podia entrar a pé, conseguia ver à direita até ao armazém, onde eram guardados os fatos lunares. Embora ela estivesse ocultada em parte da vista, vislumbrou Laurie a despir o equipamento. Quando lá chegou, Laurie estava a ligar a bateria ao carregador.

— O que é que se passa? — perguntou Lou. — Estás bem? Não vais fazer aquele caso?

Laurie virou-se e olhou o amigo de frente. Tinha os olhos marejados de lágrimas.

— Então — disse Lou. — Que se passa contigo? — Retirou a máscara, despiu a bata que lhe cobria as roupas e envolveu-a num demorado abraço. Ela não resistiu.

Passados vários minutos, Lou recuou para ver o rosto de Laurie, mantendo os braços em redor dela. Ela ergueu o seu próprio braço por entre os dele para enxugar uma lágrima com a mão, que depois limpou na parte da frente da bata verde.

— Já consegues falar? — perguntou Lou suavemente.

Laurie assentiu, mas não fez qualquer gesto para se libertar do abraço de Lou. Respirou fundo, começou a falar, gaguejou e depois parou para tornar a limpar os olhos.

— Demora o tempo que precisares — encorajou-a Lou.

— Infelizmente, conheço a identidade do cadáver decapitado — disse finalmente Laurie numa voz hesitante. — É Roger Rousseau, o meu amigo do Manhattan General.

— Meu Deus! — exclamou Lou, em parte por piedade e em parte por irritação. —Agora vês porque te disse que as investigações amadoras são perigosas.

— Não preciso de um sermão — disse Laurie. Libertou-se dos braços de Lou.

— Desculpa, bem sei que não, mas isto é um desastre.

— Não me digas — desafiou Laurie. — Esta pessoa era importante na minha vida e fui eu que o instei a fazer o que fez. Oh, meu Deus, que confusão!

Laurie aninhou a cabeça entre as mãos.

— Desculpa-me, Drª. Montgomery, mas não foi isso que aconteceu. Sugeriste-lhe que arranjasse alguns nomes. A menos que eu esteja enganado, não o instaste a ir falar com as pessoas. Isso foi idéia dele.

— Neste momento, isso parece-me uma distinção erudita — disse Laurie deixando cair as mãos para os lados.

— Vais fazer o caso? — quis saber Lou.

— Não, não vou fazer o caso — disse Laurie rispidamente.

— Está bem, está bem. Não tens de ficar zangada comigo. Estou do teu lado.

— Desculpa — disse Laurie abanando a cabeça.

Robert Harper, o diretor da segurança, passou pela linha de visão de Laurie junto à câmara frigorífica de livre acesso. Depois de ter desaparecido em direção à sala de autópsias, voltou para trás para olhar de novo e tornou-se outra vez visível. Aproximou-se rapidamente.

— O pessoal dos media começa a ficar inquieto — afirmou Robert. — Ouviram falar no cadáver decapitado e agora insistem em saber pormenores.

— Como é que ouviram falar da nova chegada? — exigiu Laurie.

Robert executou um gesto inquiridor com as mãos.

— Não faço idéia. Marlene acabou de me ligar para que eu fosse até lá acalmá-los.

Laurie olhou para Lou. Lou ergueu as mãos.

— Eu não lhes contei.

Laurie sacudiu a cabeça, abatida:

— Isto é um circo.

— O que é que lhes hei de dizer? — perguntou Robert.

— Diz-lhes que vou chamar o subdiretor.

— Duvido que isso os satisfaça.

— Terá de os satisfazer — disse Laurie.

Abriu caminho por entre os dois homens e saiu do armazém encaminhando-se para a sala de autópsias. Robert e Lou trocaram um rápido olhar antes de Robert se encaminhar para o piso superior. Lou foi atrás de Laurie. Alcançou-a acelerando o passo.

— Rousseau tem de ser autopsiado — disse ele.

— Não precisas de me dizer aquilo que eu já sei — respondeu Laurie.

Abriu a porta da sala de autópsias, debruçou-se para o seu interior e disse a Marvin que fizesse uma pausa porque ela já iria ter com ele dentro de pouco tempo. Dirigiu-se depois ao elevador das traseiras. Lou seguiu-a.

Enquanto subiam no elevador, Lou olhou para Laurie, que lhe retribuiu o olhar. Por um instante, o choque e a tristeza que sentia tinham-se transformado em cólera.

— Talvez seja este o sinal de alarme — disse Laurie. — Talvez agora todos os céticos levem esta minha série um pouco mais a sério.

— Discordo—corrigiu Lou. —A morte de Rousseau não valida inequivocamente a teoria de que as mortes dos pacientes da tua série sejam homicídios. Aquilo que faz é confirmar que temos um assassino no Manhattan General que tem médicos e enfermeiros na mira. Talvez esse indivíduo ande a matar pacientes, talvez não. Evita tirar conclusões precipitadas.

— Pouco me importa o que dizes, eu acho que estão relacionadas.

— Talvez — disse Lou. — Rousseau deixou mais algum nome para além do do Dr. Najah?

— Não, esse era o único.

— Mas suspeitas de que tivesse mais.

— Não há dúvidas de que tinha mais. Foi o que ele disse.

— Achas que ele pode ter escrito os nomes?

— Acho que sim. Ele falou em listas.

— Bem, obrigado Senhor por estes pequenos favores.

Chegaram ao piso de Laurie. Lou apressou-se atrás de Laurie, que saiu disparada do elevador e se dirigiu ao seu gabinete. Quando Laurie se sentou à secretária e pegou no telefone, Lou fez o mesmo na secretária de Riva. Foi com alguma hesitação que Laurie marcou o número de Jack. Rezou para que ele estivesse em casa, e não a jogar basquetebol. Para seu alívio, ele atendeu ao segundo toque.

— Detesto incomodar-te — começou Laurie.

— Incomodar? Não é incômodo nenhum. É bom ouvir a tua voz.

— Eu sei que disse que ia ficar à espera da tua chamada, mas aconteceu uma coisa. Jack, preciso de ti aqui no GMLS.

— Serão porventura os casos tão desinteressantes que precises de te rir para aliviar o stress? — sugeriu Jack.

Começou a dizer mais qualquer coisa, mas Laurie interrompeu-o.

— Por favor, poupa-me esse humor sarcástico! Roger Rousseau foi trazido esta manhã na qualidade de vítima de homicídio por identificar. Foi morto ontem à noite no Manhattan General.

— Vou já para aí — disse Jack, e desligou.

Após ter pousado o auscultador, Laurie colocou os cotovelos sobre a secretária, embalou a cabeça nas mãos e esfregou os olhos. Desde aquela fatídica noite no apartamento de Jack em que não conseguia dormir, era como se a sua vida tivesse escapado ao seu controlo. Parecia ser arremessada de um turbilhão para outro. Atrás de si, podia ouvir Lou a falar com alguns dos seus homens que se encontravam no Manhattan General. Estava a ordenar-lhes que selassem o gabinete do Dr. Roger Rousseau até ele lá chegar e que procurassem informações acerca do Dr. Najah.

Um gemido involuntário escapou-se dos lábios de Laurie ao endireitar-se e afastar as mãos do rosto. Teria de fazer o seu luto por Roger, mas isso teria de ficar para mais tarde. Pegou no telefone e marcou o número de Calvin. Depois de ter falado brevemente com a esposa, Calvin falou ao telefone.

— Que se passa? — perguntou Calvin num tom impaciente. Não gostava de ser incomodado em casa sem uma boa razão.

— Estou com receio de uma série de coisas. Vou começar pelo princípio, mas não sei bem como dizer isto.

— Não estou com disposição para jogos, Laurie. Diga lá o que tem para me dizer.

— Muito bem. Tenho noventa e nove por cento de certeza de que o chefe do pessoal médico do Manhattan General, o meu amigo médico com quem tenho confidenciado acerca da minha série, está neste momento estendido numa mesa da sala de autópsias, à espera de ser autopsiado. Foi morto ontem à noite no hospital e encontrado esta manhã na câmara frigorífica.

Durante um instante, Calvin nada disse. Laurie poderia ter pensado que a chamada tinha caído se não lhe ouvisse a respiração.

— Por que é que não está cem por cento segura? — perguntou por fim Calvin.

— O cadáver não tem cabeça nem mãos. Seja quem for que lhe fez isto, não queria que ele fosse identificado.

— Então deu entrada como incógnito?

— Exatamente.

— E como é que fez a identificação a noventa e nove por cento?

— Reconheci uma tatuagem bastante sui generis.

— Parto então do princípio de que se possa dizer que esse indivíduo era mais que um amigo.

— Era um amigo — insistiu Laurie. — Um bom amigo.

— Está bem — disse Calvin, disposto a mudar de assunto.

Conhecendo-a como a conheço, parto do princípio de que encara este episódio como algo que comprova a sua idéia do assassino em série no que diz respeito à sua série de casos.

— Faz sentido. Só ontem de manhã é que eu falei à vítima dos casos de Queens e sugeri que ele procurasse funcionários que tivessem sido transferidos de Saint Francis para o General. Deixou-me uma mensagem de voz durante a noite a dizer que iria regressar com alguns potenciais suspeitos, os quais abordaria.

— A polícia está ativamente envolvida?

— Sem dúvida. O detetive Lou Soldano está aqui neste preciso momento a falar com os seus agentes que estão lá no hospital.

— Acho que não seria apropriado que fosse a Laurie a fazer a autópsia.

— Nem me passou pela cabeça. Jack já está a caminho.

— Não é Jack que está de serviço em segundo lugar.

— Eu sei. Achei que não só poderia fazer a autópsia, como me poderia dar um pouco de apoio moral, de que bem preciso,

— Muito bem, está ótimo — disse Calvin. — Tem certeza de que quer ficar? Poderia arranjar alguém para preencher o seu lugar durante o fim-de-semana. Imagino que seja um choque.

— É um choque, mas prefiro ficar.

—A Laurie é que sabe e eu não quero pressionar sobre este assunto. Ao mesmo tempo, tenho de ser claro quanto à posição do GMLS a respeito da sua série. Tal como disse antes, não estamos no ramo da especulação. Não há provas de que qualquer desses seus pacientes seja um caso de homicídio. Estamos em sintonia, Laurie? Preciso ter a certeza, porque não quero que fale aos media. Há aqui demasiadas coisas em jogo.

— Houve mais um caso para a minha série esta manhã — disse Laurie. — Uma mulher saudável de trinta e sete anos. Isso perfaz um total de oito só no Manhattan General.

— Os números não me vão influenciar, Laurie, e não deveriam influenciá-la a si. Aquilo que me faria vacilar seria se John surgisse com algum resultado toxicológico. Vou ver se o consigo pressionar um pouco na segunda-feira para que redobre os seus esforços.

"Isso há de fazer grande coisa", pensou Laurie com desânimo, sabendo quanto esforço tinha já sido despendido.

— Que mais se passa? — perguntou Calvin. — Deixou subjacente que haveria mais qualquer coisa.

— E há — admitiu Laurie. — Não o teria incomodado por causa disso, mas já que o tenho em linha, aproveito para o informar.

 Laurie prosseguiu contando a história dos dois rapazes. Quando chegou ao fim, fez referência ao pessoal dos media à entrada e acrescentou

— Gostaria de lhe pedir permissão para os informar das minhas descobertas acerca desses dois casos. Creio que é do interesse do público que esta informação seja difundida o mais depressa possível, na esperança de que desencoraje os miúdos de tornarem a fazer uma coisa dessas no futuro.

— A gente dos media sabe do cadáver decapitado?

— Infelizmente, sim.

— Se falar com eles, será capaz de se refrear de falar sobre o cadáver decapitado da sua série? Sem dúvida que lhe farão perguntas.

— Creio que sim.

— Laurie, ou sim, ou não.

— Está bem, sim! — exclamou Laurie com alguma impaciência.

— Não esteja irritada comigo, Laurie, senão impeço-a de falar com os media.

— Desculpe, estou um pouco estressada.

— Pode falar com os media sobre o incidente no metrô, desde que sublinhe que as suas descobertas consistem numa impressão preliminar que requer mais estudo. Quero que diga isso especificamente.

— Sim, ótimo, está bem — disse Laurie, ansiosa por desligar.

Sentia-se subitamente cansada de falar com Calvin, uma vez que ele a fazia constantemente lembrar-se do lado político de ser médica-legista.

Quando Laurie desligou por fim, virou-se para olhar para Lou, que também terminara os seus telefonemas. Estremeceu intimamente com uma repentina dor aguda na zona inferior direita do abdômen. Felizmente, ficava muito aquém daquilo que experimentara na noite anterior no táxi, mas chamou-lhe ainda assim a atenção.

— Jack vem a caminho — disse Laurie. Mudou de posição para aliviar a dor. Conseguiu-o até certo ponto, mas não completamente. — Ele vai fazer a autópsia do cadáver decapitado.

Lou anuiu.

— Eu ouvi. É uma boa idéia, porque não deverias fazê-la de modo nenhum. Também ouvi o teu plano para falares com o pessoal das notícias lá em baixo. Posso ajudar-te falando com eles acerca do cadáver decapitado, enquanto tu te restringes ao acidente no metrô. Dessa forma, evitas sarilhos com Calvin.

— Parece um bom plano — disse Laurie. Levantou-se e a dor diminuiu.

— E tenho de te dizer que já encontrei uma coisa muito interessante. Este Dr. Najah tem cadastro. Foi preso há quatro anos quando tentava embarcar num avião para a Flórida com uma pistola na pasta. É claro que alegou tratar-se de um acidente e de que se esquecera dela lá, e tinha licença de uso.

— Era uma nove milímetros?

— Era.

— Que interessante!

Laurie colocou a mão na anca de modo a poder usar os dedos para massagear sub-repticiamente o abdômen. À semelhança dessa manhã, o gesto curou-a quase de imediato.

— Mais uma coisa — disse Lou. — Antes de se ter formado como anestesista tinha sido cirurgião.

— Meu Deus! — disse Laurie ao relembrar as extremidades perfeitamente mutiladas do cadáver nos locais de onde tinham sido removidas a cabeça e as mãos.

— Vamos apertar com ele durante alguns dias e enviar uns interrogadores mais experientes para que o façam falar. Vamos também arranjar um mandado de busca e ver se conseguimos encontrar aquela nove milímetros que ele estava a tentar levar para a Flórida.

— Parece-me uma excelente idéia — concordou Laurie.

 

Pouco depois de Laurie e Lou terem descido para enfrentar os media, Jack chegou, para grande surpresa de Laurie. Desconfiara que ele tivesse apanhado um táxi, mas Jack corrigiu-a. Explicara-lhe que, a essa hora da manhã, a bicicleta era o veículo de eleição para qualquer viagem que implicasse atravessar a cidade quando o tempo era uma questão relevante.

Para Laurie e Lou, lidar com os jornalistas tinha sido trabalhoso desde o início. O simples fato de conseguir acalmá-los fora difícil, dado que se tinham entregado a um pequeno frenesi. As possibilidades narrativas de um cadáver anônimo, decapitado e de mãos mutiladas, descoberto por acidente numa câmara frigorífica de uma sala de anatomia de um grande hospital eram em alguns aspectos melhores que os dos dois adolescentes do sexo masculino que tinham sido atropelados por um comboio. Com uma imaginação característica, tinham sido visionados alguns cenários verdadeiramente tétricos.

Laurie foi a primeira a dirigir-se aos jornalistas. A idéia de que os miúdos tinham sido eletrocutados enquanto urinavam para a terceira linha fizera erguer algumas sobrancelhas, mas não criara um interesse duradouro. O grupo ficara muito mais atento, bem como ruidoso, quando Lou lhes falou acerca do cadáver não identificado, apesar da inteligência com que omitira dados substanciais.

Jack autopsiou Rousseau um pouco mais tarde, trabalhando com Marvin enquanto Lou ficava a observar. Laurie fez questão de nem sequer olhar. Em lugar disso, formou equipa com Sal para autopsiarem o estudante universitário encontrado no parque. Os casos foram concluídos aproximadamente à mesma altura.

Lá em cima, na cantina, acompanhados por sanduíches e bebidas compradas nas máquinas, Jack fez um breve esboço daquilo que encontrara em Rousseau. Explicou que a primeira bala danificara a espinha dorsal do homem, de modo que a vítima teria ficado paraplégica, caso não tivesse sido disparada uma segunda bala. Jack descreveu o segundo projétil como o golpe de misericórdia, uma vez que lhe furara o coração depois de ter raspado numa costela, terminando na parede ventricular esquerda.

Durante o curto monólogo, Laurie esforçou-se por manter a calma exterior, suprimindo ativamente os pormenores daquilo que estava a ouvir em relação a alguém que lhe era querido. Para manter a fachada, chegou a fazer umas perguntas técnicas, a que Jack respondeu de bom grado. Disse que não tinha qualquer dúvida de que as mãos e a cabeça tinham sido removidas muito depois de o coração ter deixado de bater. Era também da opinião que o homem não tinha sofrido, já que a morte fora quase instantânea. Quanto às balas, eram definitivamente de nove milímetros.

Depois de Lou ter telefonado ao seu comandante para o informar dos pormenores da autópsia, sugeriu que Laurie fosse com ele ao hospital Manhattan General para o ajudar a localizar e a identificar quaisquer tipos de listas que pudessem ser encontradas no gabinete de Rousseau. Laurie concordou de imediato. Para não ser deixado de fora, Jack pedira para os acompanhar. Disse que não queria perder a oportunidade de participar no merecido castigo da AmeriCare, na certeza de que os media teriam um grande dia quando sentissem o cheirinho do que se estava a passar nos bastidores. Especialmente depois de ter ouvido o caso de Patrícia Pruit, estava agora firmemente do lado de Laurie.

Antes de deixar o GMLS, Laurie fez um desvio pelo gabinete de comunicações, atrás da sala de identificação, para que a telefonista soubesse que ela ia sair. Certificou-se de que a telefonista tinha o seu número de telefone à mão. Como médica-legista de serviço, Laurie tinha de se manter contatável.

Para irem até ao Manhattan General subiram todos para o Chevrolet Capríce de Lou. Laurie foi para o lugar da frente, ao passo que Jack se sentou atrás. Os chuviscos da manhã tinham abrandado e transformaram-se naquilo que seria mais uma bruma. Ainda assim, tanto Jack como Laurie preferiram manter as respectivas janelas abertas e lidar com a umidade do que respirar o ar no interior do carro. Enquanto seguiam, Laurie informou minuciosamente Jack acerca da mensagem telefônica que Roger lhe deixara.

— Este Najah parece ser um bom candidato — disse Jack. — Talvez bom de mais. Ter um anestesista por detrás deste mistério seria uma excelente maneira de explicar por que razão a toxicologia fracassara em conseguir alguma coisa. Poderia estar envolvido um qualquer tipo de gás extremamente volátil.

Lou contou a Jack aquilo de que já tomara conhecimento sobre Najah, especialmente no que dizia respeito à pistola de nove milímetros. Acrescentou que a pistola seria testada pela balística, se fossem afortunados o suficiente para lhe meterem as mãos em cima.

Com exceção de uma presença policial de uniforme claramente aumentada, o hospital parecia estar a funcionar na sua forma normal e agitada, com pessoas a entrar e a sair e pacientes em cadeiras de rodas a serem lá depositados. Uma longa fila de visitantes serpenteava do balcão de informações, e atravessavam a entrada médicos de bata branca e enfermeiros com a indumentária verde de proteção.

Lou desculpou-se por um instante para ir falar com um dos polícias. Laurie e Jack afastaram-se para o lado.

— Como é que te estás a agüentar? — perguntou Jack.

— Melhor do que imaginava — respondeu Laurie.

— Estou impressionado — admitiu Jack. — Não sei como te consegues concentrar com tudo aquilo que te ocupa o cérebro.

— Na verdade, tentar descortinar o que se está a passar aqui ajuda — disse Laurie. — Evita que eu fique a matutar nos meus próprios problemas.

Laurie referia-se nesse momento ao desconforto abdominal que andava a sofrer. Parecia que a vibração a que fora submetida durante a viagem no carro de Lou o agravara até certo ponto. Não era tão aguda como fora no táxi na noite anterior, mas era, ainda assim, dor, e Laurie começou a pensar seriamente na possibilidade de ser apendicite. A localização estava correta, ainda que a apresentação fosse irregular. Justamente quando pensava em mencioná-la a Jack, Lou regressou.

— Vamos lá abaixo à cena do crime antes de irmos ao gabinete de Rousseau — disse Lou. — Aparentemente, os rapazes do CSI[5] já fizeram alguns avanços.

Apanharam o elevador para a cave e seguiram as setas para o teatro das autópsias. As envelhecidas portas duplas em couro foram abertas quando eles pararam e estendia-se pela entrada uma extensão de fita amarela usada na cena do crime. Um oficial de polícia de uniforme encontrava-se de lado. Lou abaixou-se para passar sob a fita, mas quando Laurie tentou segui-lo, o polícia obstruiu-lhe o caminho.

— Está tudo bem — disse Lou, regressando em auxílio de Laurie. — Estão comigo.

Umas luzes muito fortes iluminavam o interior semicircular do anfiteatro, atingindo até a última bancada dos assentos em fileira. Ainda se encontravam a trabalhar vários investigadores da cena do crime.

— Diz-se que fizeste alguns progressos — disse Lou a Phil, o técnico principal.

— Creio que sim — disse Phil modestamente. Fez-lhes sinal para que o seguissem até ao fundo da cave. Apontou para uma marca de giz no chão. — Concluímos que o corpo começou por estar aqui, com a cabeça da vítima em contato com o rodapé. Embora a área tenha sido limpa superficialmente, conseguimos delinear claramente salpicos de sangue, o que nos deu uma idéia da localização da vítima quando foi morta.

Phil levou depois o grupo de regresso à entrada do anfiteatro e apontou para dois círculos de giz ali perto.

— Foi aqui que encontramos os dois cartuchos de nove milímetros, o que nos leva a crer que o assassino estaria a cerca de seis metros da vítima quando disparou.

Lou anuiu enquanto olhava de um lado para o outro, entre o local onde o corpo fora encontrado e os cartuchos.

— E finalmente — disse Phil ao mesmo tempo em que executava um gesto para que tornassem a segui-lo. Avançou e pousou a mão na velha mesa de autópsias. Foi aqui que teve lugar o desmembramento.

— Um teatro de operações vulgar — comentou Lou. — Veio mesmo a calhar ao assassino.

— Nem mais — respondeu Phil. Apontou para o armário repleto de instrumentos de autópsia. —Até teve acesso a instrumentos adequados. Conseguimos precisar quais as facas e as serras que usou.

— Bom trabalho — disse Lou. Olhou para Laurie e para Jack.

— Têm alguma questão?

— Como é que concluíram que a mesa de autópsias foi usada para lhe cortar a cabeça e as mãos? — Perguntou Jack.

— Abrimos o dreno — disse Phil. — Havia indícios no ralo.

— Vamos ver onde foi encontrado o corpo — disse Lou.

— Tudo bem — respondeu Phil.

Conduziu-os de seguida ao longo do espaço da cave, para além do local onde o corpo fora esboçado no chão, e através de uma porta simples até um curto corredor. Passaram por um gabinete pequeno e a abarrotar.

Ao fundo do corredor, chegaram a uma sólida porta de madeira que parecia pertencer a um talho. Produziu um ruidoso clique quando Phil a abriu. Do seu interior saiu uma nuvem de vapor frio que tresandava a formol e que aderiu ao chão.

Tanto Laurie como Jack estavam familiarizados com o estilo da sala que se encontrava do outro lado da porta. Era exatamente como a câmara frigorífica de anatomia onde os cadáveres eram armazenados na faculdade de medicina antes de serem distribuídos para dissecação. Havia de ambos os lados fileiras de corpos nus pendurados por tenazes introduzidas nos canais auriculares e presos a um varão no teto.

— O corpo da vítima estava numa marquesa mesmo ao fundo, coberto por um lençol — disse Phil, apontando para a ala central.

— É um pouco difícil ver o espaço daqui. Querem ir até lá atrás?

— Acho que vou passar — disse Lou. Virou-se para trás. — As câmaras frigoríficas de cadáveres dão-me arrepios.

— Estou impressionado por o corpo ter sido encontrado tão rapidamente — disse Jack. — Parece-me que estes outros tipos têm estado aqui pendurados há anos.

Laurie revirou os olhos. Espantava-a sempre que Jack encontrasse humor em toda a parte.

— O assassino não queria que o corpo fosse encontrado nem identificado — acrescentou ela.

— Vamos lá acima ao gabinete de Rousseau — sugeriu Lou.

Como era sábado, a área de gabinetes da administração estava na sua maioria deserta. Um agente da polícia de uniforme que estava a ler o Daily News deu um salto quando avistou o grupo, em especial o tenente detetive Soldano. Atrás do polícia ficava o gabinete de Roger. Havia uma fita amarela da cena do crime esticada diante da porta.

— Parto do princípio de que ninguém aqui esteve — disse Lou ao polícia.

— Não desde que telefonou esta manhã, tenente.

Lou aquiesceu e puxou a fita por um dos lados, mas antes que pudesse abrir a porta, uma voz chamou o seu nome. Quando se virou, viu um homem alto e esguio com a aparência de uma estrela de cinema a caminhar a passo largo na sua direção de mão estendida. O seu cabelo arruivado era listrado de madeixas douradas e tinha o rosto bronzeado, o que conferia aos seus olhos azuis uma tonalidade mais intensa. Parecia acabado de chegar das Caraíbas. Lou ficou tenso.

— O meu nome é Charles Kelly — disse o homem apertando a mão de Lou com um vigor desnecessário. — Sou o presidente do hospital Manhattan General.

Lou tentara marcar uma reunião com ele no dia anterior, mas Charles rejeitara-a, como se não fosse digna da posição do presidente. Se Lou a tivesse considerado imperativa, teria insistido, mas, dadas as circunstâncias, tivera outras coisas mais urgentes para fazer.

— Lamento não nos termos podido encontrar ontem — disse Charles. — Foi um dia terrível, regido por um horário apertado.

Lou anuiu e reparou que Charles lançara um olhar a Laurie e depois a Jack. Lou apresentou-os.

— Receio já conhecer o Dr. Stapleton — disse Charles formalmente.

— Boa memória! — comentou Jack. — Deve ter sido há uns bons oito anos, quando vos ajudei por altura de todos os problemas que tiveram com aqueles desagradáveis germes. Charles olhou para Lou.

— O que estão eles a fazer aqui? — O seu tom era tudo menos hospitaleiro.

— Estão a ajudar-—me com a investigação.

Charles assentiu como se ponderasse acerca da explicação de Lou.

— Informarei o Dr. Bingham na segunda-feira de que estiveram aqui. Entretanto, queria apresentar-me a si, tenente e dizer-lhe que estarei ao seu dispor para qualquer ajuda que me seja possível.

— Obrigado — disse Lou. — Julgo que por enquanto de nada precisamos.

— Gostaria de lhe pedir uma coisa.

— Muito bem, força! — disse Lou.

— Com dois tristes homicídios no mesmo número de dias, gostaria de lhe pedir que fosse o mais discreto possível, em especial acerca dos macabros pormenores daquele que hoje foi descoberto. Além disso, gostaria de lhe pedir respeitosamente que toda a informação a difundir passasse pelo nosso departamento de relações públicas. Temos de pensar na instituição e limitar os danos inerentes.

— Infelizmente, já passou uma pequena quantidade de fatos tétricos para os media — admitiu Lou. — Não faço idéia de como passaram, mas fui obrigado a dar uma mini-conferência de imprensa. Posso assegurar-lhe de que não lhes dei quaisquer pormenores. É melhor não o fazer numa investigação deste tipo.

— É essa precisamente a minha opinião — disse Charles — embora imagine que por razões diferentes. De qualquer modo, estamos gratos por qualquer informação que nos possa conceder nestas tão desventuradas circunstâncias. Boa sorte com a sua investigação.

— Obrigado, doutor — disse Lou. Charles virou-se e regressou ao seu gabinete.

— Cretino! — comentou Jack.

— Aposto que andou em Harvard — disse Lou com inveja.

— Vá lá! — instou Laurie. — Tenho de regressar ao GMLS. Lou abriu a porta e entraram os três no gabinete de Roger. Enquanto Laurie hesitava logo após o limiar da porta, Lou e Jack avançaram diretamente até a secretária de Roger. Os olhos de Laurie varreram lentamente o espaço. O fato de estar no espaço de Roger fê-la deparar de novo com a enormidade da sua perda. Conhecia-o havia apenas cinco semanas e sabia que no fundo não o conhecia, porém, gostava dele, e talvez até o amasse. Sentira intuitivamente que era boa pessoa e fora generoso para com ela numa altura em que ela precisava. Em certo sentido, era até possível que se tivesse aproveitado dele até certo ponto, o que provocava em si uma ponta de culpa.

— Anda cá, Laurie! — chamou Lou.

Laurie começou a atravessar o espaço, mas deteve-se quando o seu telemóvel tocou no interior do bolso do casaco. Era a telefonista do GMLS com a mensagem de que dera entrada um caso de custódia policial. Laurie garantiu-lhe que regressaria dentro de uma hora e pediu à telefonista que dissesse a Marvin que começasse a preparar as coisas. As mortes sob custódia policial eram notórias a nível político e esta seria certamente uma que ela teria de autopsiar, em lugar de esperar até segunda-feira.

— Parece que temos aqui uma data de material — disse Lou quando Laurie se juntou a ele e a Jack. — Estas folhas podem ser o mais importante. Até têm estrelas junto dos nomes.

Entregou as folhas a Jack, que lhes deu uma vista de olhos antes de as entregar a Laurie. Eram os registros de credenciais do Dr. José Cabreo e do Dr. Motilal Najah.

Laurie leu-os a ambos.

— O momento de transferência de Najah e o fato de aparentemente preferir o turno da noite são suspeitos, no mínimo.

— Pergunto-me porque é que não estará aqui o registro da sua detenção — questionou Lou. — É importante para alguém que lida com substâncias controladas. Quer dizer, tinha de ter estado com a sua candidatura à DEA[6].

Laurie encolheu os ombros.

—Aqui está outra lista onde Rousseau colocou estrelas — disse Lou. — É de pessoas transferidas do Saint Francis para o Manhattan General entre meados de novembro e meados de janeiro.

Jack deu-lhe uma vista de olhos e entregou-a a Laurie.

Laurie leu a lista de sete nomes, reparando em que departamento hospitalar trabalhavam.

— Todas estas pessoas teriam um fácil acesso aos pacientes, especialmente no turno da noite.

Lou anuiu.

— Temos o trabalho preparado para nós. É quase de mais. Aqui está uma lista de oito médicos que foram despedidos dos quadros do General nos últimos seis meses. Calculo que um deles poderia ser um lunático enlouquecido que gostaria de regressar de algum modo à AmeriCare.

— Isto lembra-me alguma coisa — disse Jack. — Talvez me devesses acrescentar a essa lista.

— Vou ter de arranjar uma equipa completa para começar a trabalhar em tudo isto — disse Lou. — Se Najah não for o nosso homem, teremos de considerar entrevistar toda a gente. Humm... Que será isto, pergunto eu? — Lou segurou um CD que se encontrava por cima de várias listas.

— Vamos ver — disse Laurie.

Pegou no CD e ligou o computador de Roger escrevendo rapidamente a sua palavra-passe, o que levou Jack a erguer as sobrancelhas. Laurie apercebeu-se da reação, mas optou por ignorá-la.

O CD revelou conter os registros hospitalares em formato digital de todos os casos na série, incluindo os de Saint Francis. Calculou que Roger conseguira os dados do Saint Francis quando fora buscar os registros dos funcionários. Laurie explicou a Lou de que se tratava e perguntou-lhe se o podia levar consigo para o GMLS. Poderia ser-lhe útil quando analisasse os relatórios.

Lou pensou por um instante.

— Podes fazer uma cópia?

Lou localizou o gravador de CDs do computador e fez uma cópia para si.

— Na verdade, também não me importava de ficar com cópias de todo este material impresso — disse Laurie depois de ter pensado sobre o assunto. — Terei tempo de olhar para isto à tarde e talvez me surjam algumas idéias úteis. Tenho a certeza de que existe uma máquina fotocopiadora aqui por perto.

— Tudo bem — disse Lou. — Com todo este material, toda a ajuda que conseguirmos será útil.

A fotocopiadora encontrava-se mesmo à porta do gabinete de Roger e Laurie fez fotocópias de todas as listas. Quando terminou, disse a Lou e a Jack que se dirigiria de novo ao GMLS.

— Queres que vá contigo? — perguntou Jack. — Quer dizer, até fico de serviço se quiseres ir para casa.

— Eu fico bem — assegurou-lhe Laurie. — Prefiro andar ocupada a ficar sentada em casa. És bem-vindo, se quiseres vir, mas cabe-te a ti decidir.

Jack olhou para Lou.

— Quais são os teus planos?

— Quero interrogar o homem que encontrou o corpo — disse Lou. — Depois quero conhecer esse Najah e ver se temos a sorte de conseguir a arma dele. Pode ser que o simples fato de lhe refrescarmos a memória relativamente à ciência da balística faça com que dê com a boca no trombone, o que seria uma maravilha.

— Importas-te que fique contigo durante algum tempo? — perguntou Jack. —— Também gostaria de conhecer o Dr. Najah.

— Faz favor.

Jack virou-se para Laurie.

— Depois vou ter contigo. Até te ajudo com aquele caso de custódia policial, se quiseres.

— Não há problema — disse Laurie. — Vejo-te quando te vir, mas obrigada por teres vindo e por teres tratado do caso. Digo-o com toda a sinceridade.

Laurie deu um abraço a cada um dos homens e deixou-se ficar um pouco mais de tempo nos braços de Jack. Até lhe fez uma adicional festa no braço antes de se ir embora.

Antes de deixar a área da administração do hospital, Laurie fez um desvio pela casa de banho das senhoras. Equilibrou as listas e o CD na borda do lavatório e entrou numa das cabinas. Enquanto se aliviava, a sua mente saltava da prematura morte de Roger para a dos adolescentes, cuja travessura inocente provocara o seu fim. Recordou-lhe que os humanos, tal como todos os organismos, grandes e pequenos, se encontravam sempre precariamente posicionados à beira do abismo.

Preocupada com tais pensamentos, Laurie usou um pequeno pedaço de papel higiênico dobrado para se limpar. Quando se preparava para deitar o papel na sanita, reparou que havia nele algo de anômalo. Havia uma gotinha de sangue. Estava a sangrar!

Laurie afastou imediatamente o espírito das implicações do fato. Tratava-se apenas de uma minúscula quantidade de sangue, porém, tanto quanto se lembrava, qualquer quantidade de sangue era mau sinal durante a gravidez, especialmente numa fase tão inicial. Ao mesmo tempo, o contato limitado que tivera com a obstetrícia enquanto estudante de medicina desvanecera-se da sua memória havia muito, de modo que não queria tirar conclusões precipitadas.

"Porque é que estas coisas têm sempre de acontecer no fim-de-semana?", lamentou-se em silêncio. Gostaria de perguntar a Laura Riley qual era a relevância do incidente, mas sentia relutância em telefonar-lhe num sábado. Laurie pegou num pedaço de papel limpo e tornou a limpar-se. O sangue não surgiu de novo, o que lhe proporcionou algum consolo; no entanto, o fato de ter perdido sangue, combinado com o desconforto no quadrante inferior direito que vinha sentindo recentemente parecia-lhe no mínimo pouco auspicioso.

Enquanto lavava as mãos no lavatório, Laurie olhou-se ao espelho. As últimas noites de sono inquieto tinham o seu preço. Embora longe do estado de Janice, tinha olheiras e um ar cansado, e o seu rosto denotava exaustão. Tinha um mau pressentimento de que poderia estar prestes a enfrentar mais um tumulto e rezou para que, se tivesse de acontecer, encontrasse uma reserva emocional para lidar com isso.

 

Laurie não demorou tanto tempo a chegar ao GMLS como temia, mas, uma vez mais, a viagem de táxi piorou nitidamente o desconforto abdominal que sentia. Marvin estava à sua espera e ela autopsiou imediatamente o caso de custódia policial, o que acabou por se revelar terapêutico. Quando concluiu a autópsia, a dor desaparecera e, em seu lugar, sentia uma vaga sensação de pressão. Enquanto despia a indumentária verde de proteção, pressionou a área com os dedos. Ao contrário do que sucedera nessa manhã, palpar a área fê-la sentir-se pior. Confusa como estava, foi à casa de banho ver se estava a sangrar, mas não estava.

Laurie subiu até ao seu gabinete e fitou o telefone. Pensou novamente em telefonar a Laura Riley, mas sentiu a mesma relutância. Nem sequer a conhecia e detestava começar a sua relação com ela importunando-a num fim-de-semana com um problema que provavelmente poderia esperar até segunda-feira. Afinal, Laurie sentia os sintomas havia alguns dias. O súbito aparecimento de umas gotinhas de sangue era o único aspecto verdadeiramente diferente e parecia que tinha parado.

Irritada consigo mesma pela sua indecisão, Laurie mudou o foco de atenção para um possível telefonema a Calvin. Poderia dar-lhe informações atualizadas acerca de Roger e alertá-lo para o caso da custódia policial. Encontrara um traumatismo profundo na laringe do detido, o que implicava o uso abusivo de força. Tais casos eram invariavelmente desafios e Calvin teria de ser informado. Contudo, não havia qualquer pressão evidente por parte dos media e a toxicologia ainda tinha de ser feita. Laurie decidiu que tudo poderia esperar até segunda-feira, a não ser que Calvin decidisse telefonar-lhe por vontade própria.

Em lugar de fazer quaisquer telefonemas, Laurie decidiu passar algum tempo concentrada nos relatórios de Queens e depois nas listas de Roger. Sentia que lho devia, já que ele, de certa forma, dera tristemente a sua vida pela causa.

A primeira coisa em que reparou foi que os relatórios do Saint Francis divergiam significativamente dos do General. Enquanto o Manhattan General era um hospital universitário, Saint Francis era uma mera instituição comunitária. Não havia internos nem residentes a escrever notas, de modo que os relatórios eram muito mais reduzidos. Até as notas dos médicos assistentes e dos enfermeiros eram mais breves, o que fazia com que lê-las fosse bem mais simples.

Tal como esperara depois de ter lido os relatórios dos investigadores forenses, os dados demográficos coincidiam com os do General. As vítimas eram todas relativamente jovens e tinham morrido no período de vinte e quatro horas subseqüente à cirurgia marcada. Eram também todas saudáveis, o que intensificava a tragédia.

Laurie lembrou-se então de Roger lhe ter dito que descobrira que os casos do General eram todos de beneficiários relativamente recentes da AmeriCare. Ao focar-se na seção de dados biográficos do relatório que estava a examinar nesse momento, verificou que se passava o mesmo. Verificou rapidamente os outros relatórios de Queens. Dois deles eram beneficiários havia apenas dois meses.

Laurie ponderou acerca desse curioso fato e perguntou-se se seria relevante. Não o sabia, mas pegou num bloco de papel pautado e escreveu: todas as vítimas recentes beneficiários AmeriCare. Por baixo, escreveu: todas as vítimas vinte e quatro horas após anestesia; todas as vítimas com intravenoso; todas as vítimas jovens de meia-idade; todas as vítimas saudáveis.

Laurie olhou para a sua lista e tentou pensar de que outras formas poderiam as vítimas estar relacionadas. Não lhe ocorreu coisa alguma, por isso pôs o bloco de lado e regressou aos relatórios. Embora soubesse que os casos do General tinham ocorrido em diversas zonas do hospital, sendo que muitos tinham tido lugar no piso cirúrgico, não sabia como fora com os casos de Queens. Rapidamente descobriu que eram idênticos, tendo havido casos em diversas alas pelo hospital.

Dado que os relatórios de Queens eram consideravelmente mais sucintos, Laurie sentia-se mais tentada a olhar para cada página e, em relação a um dos relatórios, deu por si a ler até a ordem de admissão, que se encontrava num formulário padrão impresso. Descrevia os preparativos do local da operação, a proscrição de coisa alguma por via oral depois da meia-noite e vários estudos laboratoriais de rotina. Enquanto os olhos de Laurie iam descendo pela lista, detiveram-se num teste que ela não reconheceu. Estava agrupado nas análises sanguíneas, portanto partiu do princípio de que fosse uma análise ao sangue. Chamava-se MASNP. Nunca ouvira falar de um teste designado MASNP. Perguntou-se se NP significaria proteína nuclear, mas, se fosse esse o caso, o que representaria MAS? Não sabia, mas se estivesse certa acerca do significado de NP, o teste poderia ser uma qualquer espécie de exame imunológico.

Transferiu a sua atenção para o verso do relatório, onde estavam apensos os resultados dos testes laboratoriais, e procurou o resultado. Não o encontrou. Embora tivesse encontrado todos os restantes resultados dos testes, não havia qualquer resultado MASNP.

Com a curiosidade aguçada, olhou para os outros relatórios de Queens. Todos eles tinham um pedido de MASNP, mas nenhum resultado. Sucedia precisamente o mesmo com os relatórios do General: todos os gráficos tinham o pedido, mas nenhum resultado.

Laurie pegou no bloco de papel pautado e escreveu: Todas as vítimas tinham pedidos de MASNP, mas nenhum resultado MASNP; o que é o MASNP?

Por pensar em testes laboratoriais, lembrou-se do curto traçado de eletrocardiograma no relatório de Sobczyk registrado pela equipa de reanimação. Folheou os relatórios até encontrar o correto. Foi fácil, porque ainda tinha a régua lá espetada. Laurie abriu o relatório, desdobrou o segmento e tornou a ler a nota que escrevera para si mesma no post-it para se lembrar de o mostrar a um cardiologista. Colocou de lado a pasta de Sobczyk, mas aberta na parte do eletrocardiograma, e verificou as outras pastas para se certificar de que nenhuma delas tinha um eletrocardiograma associado às tentativas de reanimação. Não se lembrava de ter visto algum, mas queria ter a certeza.

— Espero não estar a interromper nada — disse uma voz.

Laurie virou-se. Jack estava de pé à porta. Em lugar da sua habitual expressão ligeiramente sarcástica, o seu rosto exprimia preocupação.

— Pareces terrivelmente atarefada — acrescentou.

— É melhor manter-me atarefada — respondeu Laurie. Foi buscar a cadeira de Riva e puxou-a para junto da sua secretária. Fico contente por ver-te. Entra e senta-te.

Jack baixou-se para o assento e deu uma olhadela à secretária de Laurie.

— O que estás a fazer?

— Queria ter a certeza de que os casos de Queens eram equivalentes aos do General. E são, a um nível surpreendente. Também encontrei algo curioso. Estás familiarizado com um teste sanguíneo chamado MASNP? Parto do princípio de que seja um acrônimo, mas nunca ouvi falar nele.

— Nem eu — disse Jack. — Onde é que o viste?

— Faz parte dos pedidos pré-operatórios de todos estes casos — disse Laurie. Pegou num relatório ao acaso e mostrou o formulário a Jack. — Está em todos os relatórios. Calculo que faça parte da rotina instituída da AmeriCare, pelo menos nestes dois hospitais.

— É interessante — comentou Jack. Abanou a cabeça. — Já olhaste para o verso para ver que tipo de unidades de resultados estão registradas? Pode dar uma pista.

— Tentei fazê-lo, mas não encontrei quaisquer resultados.

— Em nenhum dos relatórios?

— Não. Nenhum!

— Bem, tenho a certeza de que poderemos clarificar isso na segunda-feira se pedirmos a um dos investigadores forenses que lhe dê uma vista de olhos.

— Boa sugestão — disse Laurie. Fez mais uma nota num post-it.

— Há mais uma coisa curiosa em relação a todas estas vítimas. Sem exceção, todas elas são beneficiárias relativamente recentes da AmeriCare, tendo aderido ao programa há menos de um ano.

— Ora aí está um pensamento alegre, tendo em conta que é isso que nós somos.

Laurie soltou uma semi-gargalhada.

— Não tinha pensado nisso.

—O plano de seguros tem crescido tanto que imagino que uma boa percentagem dos beneficiários se encontre nessa categoria.

— É verdade, mas continuo a achar estranho.

— Mais alguma coisa digna de nota? — inquiriu Jack.

Laurie olhou em redor para os relatórios espalhados em cima da secretária.

— Há mais uma coisa. — Pegou no relatório de Sobczyk com o breve registro do traçado do eletrocardiograma desdobrado e entregou-o a Jack. — Este traçado diz-te alguma coisa? Foi registrado pela equipa de reanimação no momento em que chegaram junto da paciente e mesmo antes de a linha ter ficado plana.

Jack olhou para as curvas, demasiado constrangido para admitir que nunca fora muito bom a ler eletrocardiogramas, nem sequer nas melhores circunstâncias. Decidira bem cedo no curso de medicina que seria oftalmologista e não prestara muita atenção a competências de que não necessitaria.

Jack devolveu o relatório a Laurie, abanando a cabeça.

— Se tivesse de dizer alguma coisa, diria que me parece que o sistema condutor do coração está a falhar, mas isso é óbvio pela forma como os complexos se espalham. Mas não mo deverias estar a perguntar a mim. O meu conselho seria que o mostrasses a um cardiologista.

— É esse o meu plano —— disse Laurie pegando de novo no relatório e juntando-o aos outros.

— Então e as listas de Roger? — perguntou Jack. — Já tiveste tempo para as ver?

— Ainda não. Tive de fazer a autópsia do caso de custódia policial primeiro, por isso só aqui estou há cerca de meia hora. Vou perder algum tempo com as listas depois de ter acabado os relatórios. É com os relatórios que sinto poder dar a maior contribuição. Tem de haver um pedaço do puzzle que não estou a ver.

— Não achas que é aleatório?

— Não. Há alguma coisa que liga estes pacientes uns aos outros, para além daquilo que já sabemos.

— Não tenho assim tanta certeza. Julgo que os casos serão oportunistas, estando as vítimas no local errado à hora errada.

— Vocês tiveram alguma sorte com Najah?

— Sim e não — disse Jack. — É certo que o apanharam, mas ele não está a cooperar. Alega que está a ser discriminado por questões raciais e que é uma vítima. Têm-no sob custódia, mas ele não fala. Insiste em esperar pelo advogado, que virá amanhã da Florida para a acusação.

— E a arma?

— Foi enviada para a balística. Mas os resultados vão demorar um pouco. Entretanto, tenho a certeza de que vão soltá-lo sob caução.

— Qual é o palpite de Lou quanto a ser ele o nosso homem?

—Está otimista, especialmente tendo em conta o seu comportamento. Lou diz que quando alguém é inocente, se mostra propenso a cooperar. É claro que Lou está apenas centrado em quem matou a enfermeira e Rousseau. Não está a pensar na tua série.

— Então, e tu?

—Tal como te disse, gosto da idéia de ele ser anestesista. Tendo em conta a sua formação, poderia andar a despachar pacientes de uma maneira que nos seria difícil de deslindar. Quanto a matar a enfermeira e Rousseau, trata-se de algo igualmente circunstancial, uma vez que se baseia meramente no conhecimento de que possui uma nove milímetros. O problema é que existem por aí imensas armas dessas.

— Não achas que seja quem for que anda a matar os pacientes, matou a enfermeira e Roger?

— Não tenho a certeza.

— Tenho eu — disse Laurie. — Faz sentido. Provavelmente, a enfermeira viu algo de suspeito. A morte dela teve lugar na manhã seguinte ao dia em que ocorreram dois novos casos para a minha série. Quanto a Roger, tinha andado no hospital especificamente a falar com pessoas que julgava serem potenciais suspeitos. Pode ter confrontado Najah. Talvez até o tenha visto no quarto de Pruit.

— São argumentos muito bons — admitiu Jack.

— Ainda bem que prenderam Najah — disse Laurie. — Se for ele, há de pensar duas vezes antes de cometer mais crimes enquanto tem Lou em cima dele, o que quer dizer que hoje vou dormir melhor. Entretanto, vou passar as listas de Roger a pente fino, para o caso de ele não desbobinar.

Jack anuiu por diversas vezes, concordando com o plano de Laurie. Deu-se uma breve pausa, até que Jack disse:

— Sei que não tem nada a ver com esta conversa, mas será que podemos retomar a conversa de ontem à noite no ponto onde ficamos?

Laurie olhou Jack com cautela. Enquanto conversavam, reparou que a sua habitual expressão sarcástica fora reaparecendo gradualmente e não pôde deixar de sentir que se tratava de um mau sinal agora que sugeria mudar o rumo da conversa para questões pessoais. No seu íntimo, começou a nascer uma mistura de frustração e irritação. Com tudo aquilo que estava a ter lugar, desde a culpa em relação à morte de Roger até a pressão que sentia na zona inferior do abdômen, não estava interessada em suportar mais desilusões.

— Que se passa? — perguntou Jack em resposta ao silêncio de Laurie. Interpretando mal a sua hesitação, ergueu as sobrancelhas num gesto inquiridor e acrescentou, carrancudo: — Continua a não ser o momento nem o lugar certo?

— Acertaste! — explodiu Laurie, esforçando-se por se controlar face ao tom de Jack. — A morgue da cidade dificilmente será o local para discutir o início de uma família. E, além do mais, para ser sincera, compreendo de súbito que não vou discutir mais o assunto. Os fatos são muito claros. Deixei bem claro como me sinto, incluindo o recente acontecimento que é a minha gravidez. O que eu não sei é o que tu sentes e tenho de saber se estás interessado e se és capaz de abandonar o teu papel de homem de luto metido consigo. Se é isso que me queres dizer, muito bem! Diz-me! Estou farta de discutir isto e estou farta de esperar que te decidas.

— Vejo que definitivamente não é o momento nem o lugar certo — disse Jack com igual irritação. Levantou-se. — Acho que vou ficar à espera de circunstâncias mais oportunas.

— Faz isso — retorquiu Laurie asperamente.

— Vamos falando — disse Jack antes de sair pela porta.

Laurie virou-se para a secretária, aninhou a cabeça entre as mãos e suspirou. Considerou por um breve segundo a hipótese de sair a correr atrás de Jack, mas, mesmo que o fizesse, não saberia o que lhe dizer quando o alcançasse. Era evidente que ele não se preparava para lhe dizer aquilo que ela queria ouvir. Ao mesmo tempo, Laurie perguntou-se se estaria a ser demasiado agressiva e exigente, especialmente tendo em conta que não lhe falara dos seus mais recentes sintomas nem do medo que ainda nem a si mesma verbalizara: o medo de um aborto, que tornaria uma vez mais a mudar tudo.

Passava um pouco das quatro da tarde quando David Rosenkrantz entrou com o carro no parque de estacionamento do pequeno edifício comercial onde Robert Hawthorne tinha o seu gabinete. Na sua vida anterior, o edifício fora um armazém, mas, tal como sucedera com muita da reabilitação levada a cabo na baixa de Saint Louis, tinha sido reciclado. Era ocupado agora um concorrido restaurante no primeiro piso e escritórios de empresas especializadas no segundo. Quando Robert Hawthorne, ou o Sr. Bob, como era conhecido pelos seus agentes, chegara à cidade, a princípio para fundar uma companhia chamada Resultados Adversos e, na sua seqüência, para montar a Operação Peneira, encontrara o espaço e considerara-o conveniente, por se encontrar perto dos escritórios de advogados Davidson e Faber. David não sabia que relação era essa com a firma de advogados e sabia que não deveria perguntar. Aquilo que sabia era que Robert era lá chamado numa base bastante regular.

Não era freqüente que Roger se encontrasse na cidade, uma vez que o seu trabalho consistia em viajar para várias cidades e verificar os agentes em campo e lidar com eles, se necessário. Não era um trabalho fácil, tendo em conta os lunáticos que tinham a trabalhar como agentes independentes. A princípio David só apagava fogos, mas agora que já trabalhava com Robert havia mais de cinco anos, fora encarregado também do recrutamento. Essa tarefa era mais divertida e um desafio. Robert aparecia com nomes que recebia de um velho colega do Exército que continuava a trabalhar no Pentágono. Tratava-se sobretudo de pessoas que tinham trabalhado numa qualquer espécie de função médica no serviço militar e que tinham sido despedidas de forma pouco dignificante. David nunca estivera pessoalmente no serviço militar, mas conseguia avaliar o modo como a experiência podia afetar as pessoas que estavam a tentar regressar à vida civil, especialmente aquelas que tinham presenciado um qualquer tipo de combate. Com a situação no Iraque a arrastar-se, tinham imensos potenciais recrutas. É claro que também procuravam pessoas despedidas de hospitais civis. A maioria dessas sugestões partia de pessoas que já estavam inseridas no projeto.

A porta do gabinete não estava identificada. David bateu nela com os nós dos dedos para o caso de Yvonne, a secretária, que era também a namorada que vivia com Robert, estar nas traseiras. Não se tratava de uma grande operação. Robert, Yvonne e David eram os únicos funcionários e durante muitos anos tinham sido apenas Robert e Yvonne.

Ouviu-se o ruidoso clique do mecanismo de trancas quando Yvonne, dotada de grandes seios, abriu a porta. Com a sua voz melada e uma pronúncia sulista, convidou galantemente David a entrar. A sua sintaxe era interpolada com muitos "meu querido", mas David não se deixava enganar. Apesar do cabelo louro descolorado e das afetações brejeiras, tais como saltos agulha e saia curta, David sabia que ela fazia exercício físico regular com Robert e era perita em tae kwon do. David sentia pena de quem pudesse por engano decidir aproveitar-se, após umas bebidas, do seu comportamento sedutor.

O escritório era simples. Tinha duas secretárias, uma na sala à entrada e a outra no gabinete interior de Robert, dois computadores, umas mesinhas pequenas, algumas cadeiras, um arquivo e dois sofás. Era tudo alugado.

— O velho patrão feioso está na sala das traseiras, meu querido — murmurou Yvonne. — Agora vê lá, não vás lá aborrecê-lo, estás a ouvir?

David não tinha qualquer intenção de aborrecer Robert. Soube que algo se passava quando Robert lhe pediu que fosse lá. David regressara à cidade na noite anterior, depois de alguns dias passados na Costa Ocidental, e deveria estar a desfrutar de algum tempo de descanso.

— Senta-te! — disse Robert quando David entrou.

Robert estava à secretária com as pernas cruzadas e os pés sobre a esquina, de mãos atrás da cabeça. O seu casaco Brioni fora atirado para o braço do sofá.

— Queres café, meu querido? — inquiriu Yvonne. Havia uma máquina italiana de café expresso na mesa do gabinete anterior.

David sorriu e agradeceu a Yvonne, mas declinou a oferta. Olhou para Robert, que tinha os lábios contraídos numa expressão de frustração.

— Recebi há pouco más notícias — disse Robert. — Parece que o nosso numerozinho na Grande Maçã não se consegue controlar.

— Outra morte? — perguntou David.

— Receio que sim — respondeu Robert. — Desta vez foi um dos médicos da administração. Aquela mulher é um perigo. É boa, mas está a pôr em risco toda a operação.

— Tens a certeza de que foi ela?

— A cem por cento? Não! A noventa e nove? Sem dúvida! Os tiros seguem-na como moscas num naco de queijo fedorento. Como é evidente, uma coisa destas não pode continuar, de modo que acho que as tuas férias vão ter de esperar, Yvonne fez-te uma reserva num vôo que chega lá por volta das dez e meia.

— É em cima da hora. Então, e uma arma?

— Yvonne também tratou disso. Só terás de fazer um desvio no teu trajeto para a cidade.

— Não me lembro da morada dela.

—Yvonne também sabe isso. Não te preocupes, pensamos em tudo. — David levantou-se.

— Não te importas, pois não?

— Não, não me importo. Sabia que aconteceria, mais cedo ou mais tarde.

— Pois é, acho que eu também o sabia.

 

Do outro lado da janela imunda do gabinete de Laurie, o dia cinzento fora-se desvanecendo na noite enquanto ela examinava minuciosamente os relatórios uma vez mais, na esperança de encontrar um qualquer pedaço oculto de informação crítica. Tal como sucedera com as suas leituras anteriores, não lhe saltou coisa alguma à vista. Tinha as suas notas em post-its para mostrar uma curta tira de um eletrocardiograma a um cardiologista e para pedir aos investigadores forenses que a elucidassem acerca da natureza do teste MASNP. Para além disso, não sabia o que mais fazer.

Revira também cuidadosamente todas as listas de suspeitos de Roger, ordenando-as segundo a sua potencial relevância. Continuava a considerar que Najah era o suspeito mais intrigante e mais provável, mas os demais sete indivíduos de diversos departamentos hospitalares que trabalhavam no turno da noite e que tinham sido transferidos do Saint Francis para o General por volta da altura crítica eram quase tão interessantes quanto ele, especialmente porque o grupo inteiro tinha fácil acesso aos pisos dos pacientes. A lista seguinte apresentava oito médicos cujos privilégios hospitalares tinham sido cancelados ao longo do período de seis meses imediatamente antecedente. Gostaria de descobrir, se possível, o que teria cada um deles feito que justificasse uma ação disciplinar.

Entre a análise das listas de Roger e uma última leitura dos relatórios, Laurie pensara em telefonar a Jack. Embora considerasse que a reação que tivera um pouco antes em relação a ele fosse compreensível, dadas as circunstâncias, arrependia-se dela. Fora demasiado precipitada e amarga, e deveria pelo menos ter-lhe dado a hipótese de dizer o que pensava, mesmo que suspeitasse de que ele não haveria de lhe dizer aquilo que ela queria ouvir. Ao mesmo tempo, aquilo que lhe dissera era, infelizmente, verdade. Estava cansada da sua indecisão, que fora a razão pela qual se mudara do apartamento dele quando o fizera. Por fim, decidira não telefonar. Teria sido como pôr o dedo na ferida. Em lugar disso, decidiu esperar pela manhã e, se ele ainda não lhe tivesse telefonado por essa altura, ela haveria de lhe ligar.

Laurie empilhou os relatórios hospitalares em dois montes. Colocou junto deles o bloco de notas com a sua própria lista de todos os casos que se assemelhavam entre si. Pousou o CD com os registros digitais em cima do bloco. Olhou para o relógio. Era um quarto para as sete, hora que julgou ser boa para regressar ao seu apartamento. Faria um jantar ligeiro antes de ir para a cama. Conseguir dormir ou não já era uma história diferente. Não tinha querido ir para casa mais cedo, por receio de se sentir deprimida. Fora melhor manter-se ocupada a tarde inteira para evitar pensar na morte de Roger, no irritante comportamento de Jack e nos seus próprios avultados problemas.

Laurie empurrou a cadeira para se afastar da secretária e estava prestes a levantar-se quando tornou a olhar para o CD. Ocorreu-lhe de súbito a idéia de ver se haveria alguma diferença entre o registro digital e as fotocópias do relatório hospitalar em especial, quanto às análises sanguíneas desconhecidas. Talvez conseguisse descobrir um resultado e, caso o conseguisse, talvez fosse capaz de perceber de que teste se tratava.

Tornando a aproximar a cadeira da secretária, Laurie ligou o computador e inseriu o CD, passando as páginas até deparar arbitrariamente com os valores laboratoriais de Stephen Lewis. A letra era minúscula e Laurie usou o dedo para percorrer a coluna situada do lado esquerdo da página. Perto do fim, encontrou MASNP. Fez deslizar o dedo na horizontal e viu o resultado. Dizia "MEF2 A positivo".

Laurie coçou distraidamente a nuca enquanto olhava para o resultado registrado. Não havia explicação. MEF2A não fazia mais sentido que MASNP. Era como procurar a definição

de uma palavra desconhecida e encontrar um sinônimo desconhecido. Laurie tirou outro post-it do bloco e escreveu nele o resultado, seguido de um ponto de interrogação. Com o intuito de colocar o novo post-it junto dos demais, que colara na parede atrás da sua secretária, arrastou a cadeira para trás e soergueu-se, inclinando-se para diante de braço estendido.

Escapou-se-lhe dos lábios um grito de dor abafado. Em lugar de colar o post-it na parede, baixou as duas mãos até a superfície da secretária para suportar o peso do corpo. Sentira uma cólica súbita e forte na zona inferior do abdômen e, durante alguns segundos, manteve a posição e reteve a respiração. Felizmente, a dor começou a diminuir e Laurie deixou-se afundar na cadeira. Conservou uma postura rígida, não fosse ela agravar fosse o que fosse que se passava no interior do seu corpo.

Persistira no seu abdômen um desconforto leve e contínuo depois da autópsia do caso da custódia policial. Aumentara e diminuíra de intensidade, mas nunca desaparecera totalmente. Ela caracterizara-o mais como pressão que como dor até ter tentado juntar o novo post-it aos outros.

Diminuída a dor a um ponto que lhe permitia respirar normalmente, ajustou o peso na cadeira sentando-se mais direita. Felizmente, aquilo que agora se tornara uma dor manteve-se num nível tolerável. Surgira-lhe suor na testa, que ela limpou com as costas da mão. Sabia que estava ansiosa, mas espantava-se por estar tão ansiosa para suar copiosamente. Perguntou-se se poderia estar com febre, mas julgava que não. Palpou cuidadosamente o abdômen com um único dedo. Ao contrário de ocasiões anteriores, sentia agora uma área definitivamente magoada, o que lhe pareceu mau augúrio. Tal como reparara antes, situava-se precisamente no local onde surgia a dor da apendicite.

Foi com hesitação que Laurie se levantou devagar. Fora o movimento súbito de se semi-erguer alguns minutos antes que provocara o presente episódio e estava ansiosa por evitar uma repetição. Felizmente, não tornou a suceder. A transpiração era outra história. Na verdade, piorara.

Laurie deu cuidadosamente uns passos para fora do gabinete e no corredor, ao mesmo tempo em que continuava a apoiar-se com a mão contra a parede. A dor continuou a ser suportável. Com uma crescente confiança, caminhou lentamente ao longo do corredor até a casa de banho das senhoras. Uma vez lá dentro, pegou num pouco de papel higiênico e limpou-se. A mancha reaparecera e havia mais sangue do que anteriormente. Sabia que não tinha apendicite.

Foi com crescente ansiedade que Laurie fez o caminho de regresso até ao escritório e retornou à cadeira. Olhou para o telefone. Continuava a hesitar telefonar à Drª. Riley, embora agora sentisse que tinha poucas escolhas. O sangue afastara a hipótese de apendicite e, a par da localização da dor, sugeria uma possível gravidez ectópica, que era muito mais grave que uma mera ameaça de aborto. Por fim, pegou com relutância no auscultador e ligou para o número do consultório da Drª. Laura Riley. Quando a telefonista atendeu, Laurie disse-lhe o seu nome e deu-lhe o seu número direto. Julgando que isso poderia apressar a chamada da médica, incluiu o título de "doutora" e disse que precisava de falar com a médica. Disse que se tratava de uma emergência.

Quando Laurie pousou o auscultador, reparou numa sensação inédita: um vago desconforto no ombro. Era tão leve que se perguntou se não estaria a imaginá-lo, porém, contribuiu para a sua ansiedade, já considerável. Se fosse real, sugeria o agourento desenvolvimento de uma irritação peritoneal. Para testar essa possibilidade, Laurie empurrou cuidadosamente o dedo indicador contra o abdômen e depois retirou de súbito a mão. Fez uma careta perante a pontada efêmera. Aquilo de que padecia designava-se "ressalto" e sugeria igualmente irritação peritoneal, o que a fazia agora temer que pudesse ter não só uma gravidez ectópica, como que tivesse já ocorrido a rotura. Se assim fosse, tratava-se de uma verdadeira emergência médica para a qual o tempo seria um fator determinante. Poderia estar a sofrer uma hemorragia interna.

O toque agressivo do telefone interrompeu a sua obsessão e pegou com um sacão no auscultador, que encostou ao ouvido. Sentiu-se aliviada quando a Drª. Riley se identificou. Laurie percebia que ela estava ao telemóvel e num local público. Ouvia-se conversas ruidosas como pano de fundo.

Laurie começou por pedir desculpa por lhe telefonar a um sábado à noite e disse que resistira à idéia porque receara que seria uma má forma de encetar uma relação profissional, mas estava convicta de que não tinha de fato alternativa. Laurie prosseguiu descrevendo os seus sintomas em pormenor, incluindo o ressalto. Admitiu que sentira desconforto antes de ter falado com ela ao telefone no dia anterior, mas esquecera-se de o referir e pensara que poderia esperar até a consulta marcada para a sexta-feira seguinte.

— Em primeiro lugar — disse Laura depois de Laurie ter concluído — não há motivo para se desculpar. Na verdade, preferia que me tivesse telefonado mais cedo. Não quero alarmá-la, mas deveríamos considerá-la uma gravidez ectópica até podermos rejeitar essa idéia. Pode estar a sangrar a nível interno.

— Foi o que pensei — admitiu Laurie.

— Continua com diaforese?

Laurie levou à mão à fronte. Estava úmida de suor.

— Infelizmente, sim.

— Qual é, aproximadamente, a sua pulsação? Está acelerada ou normal?

Usando o ombro para segurar o telefone, Laurie sentiu a pulsação no pulso. Sabia que estivera mais acelerada anteriormente e queria certificar-se de que continuava assim.

— Está definitivamente acelerada — admitiu.

Tivera esperança de que o suor e a batida cardíaca rápida se devessem à ansiedade, mas as perguntas de Laura tinham-na levado a reconhecer que poderia haver uma outra explicação: poderia estar a entrar em choque.

— Muito bem — disse Laura num tom de voz controlado e profissional. — Quero vê-la nas emergências do hospital Manhattan General.

Laurie sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha perante a idéia de ser paciente no General.

— Podemos escolher outro hospital? — perguntou.

— Infelizmente não—disse Laura. — Trata-se do único hospital onde tenho acesso. Além disso, estão inteiramente equipados se tivermos de recorrer a técnicas invasivas. Onde está neste momento?

— Estou no meu escritório no Gabinete do Médico-Legista Superior.

— Na esquina da First Avenue com a 30th Street?

— Sim.

— E onde é o seu gabinete nesse edifício?

— No quinto piso. Por que é que pergunta?

— Vou enviar uma ambulância.

"Deus do céu!", pensou Laurie. Não queria ir numa ambulância.

— Posso apanhar um táxi — sugeriu ela.

— Não vai apanhar um táxi — afirmou Laura inequivocamente. — Uma das primeiras regras de ser paciente numa situação de emergência médica, regra essa particularmente difícil de ser aceite por médicos, é a de que tem de cumprir as ordens. Poderemos discutir mais tarde a necessidade para tal, mas de momento não vamos correr riscos. Vou enviar uma ambulância o mais depressa possível e encontro-me consigo nas emergências. Sabe qual é o seu tipo de sangue?

— O positivo — disse Laurie.

— Vejo-a nas emergências — disse Laura, e desligou.

Laurie pousou o auscultador com a mão a tremer. Sentia-se em estado de choque. Os tumultos estavam a tornar-se a norma. Num único dia, fora obrigada a identificar o cadáver de um amigo e agora tinha de enfrentar a aterradora perspectiva de uma emergência médica e de possível cirurgia num hospital onde se suspeitava que um assassino em série andasse a matar pacientes como ela. O seu único consolo consistia no fato de o suspeito mais provável estar sob custódia.

Laurie pegou no telefone. Tinha-se sentido relutante em telefonar a Jack por uma série de razões, mas perante estes novos desenvolvimentos, a sua mão foi compelida a tal. Precisava de apoio, precisava dele como ouvinte das suas queixas ou como guardião no hospital caso acabasse por ter de se submeter a uma intervenção cirúrgica de emergência.

O telefone tocou uma vez, depois duas.

— Vá lá, Jack! — pressionou Laurie. — Atende!

O telefone tocou mais uma vez e Laurie soube que ele não estava lá. Tal como suspeitara, depois do toque seguinte, a chamada foi para o atendedor de chamadas. Enquanto esperava para deixar uma mensagem sentiu-se percorrida por uma vaga de ressentimento. Parecia insólito como Jack conseguia irritá-la de tantas formas. Sem dúvida que estaria no campo de basquetebol do bairro a fingir que era um adolescente. Laurie sabia que estava a ser pouco razoável, mas não conseguia evitá-lo. Estava efetivamente zangada por ele não estar. Embora soubesse que se tratava de uma comparação injusta, não podia deixar de pensar que se Roger não tivesse sido morto teria estado disponível.

— Surgiu um grande problema — disse Laurie quando chegou a sua altura de falar. — Preciso outra vez da tua ajuda. Neste momento, estou à espera de uma ambulância que me leve ao Manhattan General. A Drª. Riley acha que posso ter uma gravidez ectópica já em estado de rotura. O lado positivo é que deixarás de te sentir pressionado, mas o lado negativo é que terei de enfrentar uma cirurgia de emergência. Preciso de ti lá. Não quero tornar-me parte da minha própria série. Por favor, vem!

Depois de ter premido o botão de desligar, Laurie marcou o número do telemóvel de Jack. Passou pelo mesmo processo, deixando uma mensagem idêntica na esperança de que ele ouvisse uma ou outra. De seguida, afastou-se da secretária com a idéia de pegar no casaco antes de se dirigir à cave, onde esperava que chegasse a ambulância. Ao levantar-se, manteve a mão pressionada contra a zona inferior do abdômen, na expectativa de evitar mais uma cólica grave. Em lugar disso, sentiu um tinido nos ouvidos e uma vaga de tonturas.

Quando deu por si, ouviu vozes, em especial a voz de um homem que parecia estar a falar ao telefone. Estava a dizer alguma coisa acerca da tensão arterial estar baixa, mas estável, a pulsação a cem e o abdômen estar um pouco tenso. Laurie percebeu que tinha os olhos fechados e abriu-os. Estava no chão do seu gabinete, a olhar para o teto. Uma paramédica estava atarefada a ligar-lhe um tubo de intravenoso no braço esquerdo. Encontrava-se um paramédico postado de lado enquanto falava ao telemóvel. Atrás dele, reconheceu Mike Laster. Ao lado de Laurie havia uma marquesa estendida no chão com um suporte de líquido intravenoso.

— O que aconteceu? — perguntou Laurie. Começou a erguer-se.

— Calma — disse a paramédica, pousando a mão no peito de Laurie. — Sofreu simplesmente um pequeno desmaio. Mas está tudo bem. Vamos levá-la daqui para fora dentro de dois segundos.

O paramédico fechou o telemóvel.

— Muito bem, vamos lá!

Contornou a cabeça de Laurie, estendeu as mãos sob as costas dela e até as suas axilas. A mulher dirigiu-se aos seus tornozelos.

— Quando disser "três" — disse o homem, contando depois rapidamente.

Laurie sentiu-se ser içada para a marquesa. Os paramédicos seguraram-na depressa com faixas, ergueram a marquesa até ao nível da cintura e manobraram-na até ao corredor.

— Durante quanto tempo estive inconsciente? — inquiriu Laurie. Nunca tinha desmaiado. Não se lembrava de ter caído ao chão.

— Não pode ter sido por muito tempo — disse a mulher. Estava aos seus pés a empurrar, ao passo que o homem estava à cabeça, a puxar. Mike seguia ao seu lado.

— Desculpa lá isto — disse Laurie a Mike.

— Não sejas tola — respondeu Mike.

Desceram no elevador até a cave. Quando passaram pela sala mortuária, Laurie viu o técnico da noite, Miguel Sánchez, de pé à porta. Laurie fez-lhe um aceno com a mão, constrangida. Miguel retribuiu-lhe o gesto.

A marquesa seguiu às sacudidelas pelo chão de cimento da morgue, passou pelo gabinete de segurança e dirigiu-se ao parque privado. A ambulância estava estacionada ao lado de uma das carrinhas mortuárias da Health and Hospital. Laurie pensou na ironia de sair da mesma forma que os cadáveres entravam.

Uma vez na ambulância, a paramédica insuflou um aparelho de medição da tensão arterial apertado no braço direito de Laurie.

— Como está? — perguntou Laurie.

— Está ótima — disse a mulher, embora tenha esticado o braço para abrir um pouco mais o intravenoso.

Para Laurie, a viagem até ao hospital Manhattan General foi surpreendentemente rápida. Sentira-se desligada o suficiente para fechar os olhos. Ouvia a sirene, embora lhe parecesse soar à distância. Quando deu por si, as portas da ambulância abriram-se e ela foi transportada para a luz intensa.

As urgências estavam tipicamente caóticas, mas não teve de esperar. Foi transportada rapidamente para o interior e diretamente para a seção de cuidados intensivos. Enquanto estava a ser transferida para uma mesa de examinação, Laurie sentiu uma mão agarrar-lhe o antebraço. Virou-se e deu por si a olhar para o rosto de uma mulher jovem que usava a indumentária verde de proteção, completada com uma touca.

— Sou a Drª. Riley. Vamos tomar bem conta de si. Quero que se descontraia.

— Estou descontraída — respondeu Laurie.

— Uma vez que não nos conhecemos antes, tenho de lhe perguntar se tem algum problema médico, se está a tomar medicamentos ou se tem alergias.

— Não a todas essas questões. Fui abençoada com uma saúde de ferro.

— Ótimo! — disse Laura.

— Espere um segundo — disse Laurie. — Há uma coisa que lhe queria dizer. Fiz recentemente um teste ao marcador BRCA1 que deu positivo.

— Já consultou um oncologista relativamente a essa questão?

— Ainda não.

— Bom, não creio que isso vá ter influência sobre o que temos de lhe fazer nesta situação. Deixe-me pô-la ao corrente do plano. Primeiro, vamos fazer uma rápida culdocentese, que serve para confirmar se tem algum sangue no espaço posterior ao útero. É feito com uma agulha que atravessa a parte superior da vagina. Parece pior do que é. Vai sentir um beliscão, mas é tudo.

— Compreendo — disse Laurie.

Em concordância com as suas palavras, Laura realizou rapidamente o processo, com pouco desconforto para Laurie. O resultado foi positivo.

—Isto decide por nós a necessidade de uma intervenção cirúrgica — disse Laura. — A minha maior preocupação é que continue a sofrer a hemorragia para a cavidade abdominal. Temos de parar esse processo. Teremos também de lhe fazer uma transfusão de sangue. Compreende tudo o que lhe estou a dizer?

— Sim — disse Laurie.

— Lamento que tenha tido de viver um problema destes. Quero ter a certeza de que não pensa que tenha sido por culpa sua. As gravidezes ectópicas são mais comuns do que as pessoas imaginam.

— Há algo no meu passado que pode ter contribuído para isso. Quando andava na faculdade, tive um episódio de doença inflamatória pélvica associada ao DIU.

— Isso pode ter ou não contribuído — disse Laura. — Entretanto, há alguém a quem gostaria que telefonássemos?

— Já telefonei à pessoa que gostaria que estivesse aqui — disse Laurie.

— Muito bem, vou subir ao piso cirúrgico para me certificar de que está tudo pronto. Vejo-a dentro de alguns minutos.

— Mais uma vez, obrigada. Lamento ter-lhe estragado a noite de sábado.

— Mas de que está a falar? Pô-la de novo bem vai dar-me uma ótima noite de sábado.

Durante alguns minutos, Laurie ficou sozinha. Sentia-se curiosamente indiferente, como se todo aquele episódio envolvesse uma outra pessoa. Ouvia indícios reveladores de dramas que se desenrolavam em quartos vizinhos e via pessoas a andarem de um lado para o outro através de portas abertas para levarem a cabo diversas tarefas urgentes.

Laurie sentia-se uma mulher de sorte por ter Laura Riley como médica e estava em dívida para com Sue por lha ter recomendado. Com o tipo de confiança de profissionalismo que Laura projetava, Laurie não se sentia tão receosa quando à cirurgia iminente como teria imaginado. Sabia que precisava dela, com o crescente inchaço no abdômen e a debilidade geral que a perda de sangue provocara em si. A sua única preocupação a sério era o medo de se tornar vítima da SMSA depois da cirurgia e de se tornar membro da sua própria série, mas afastou esse pensamento do espírito. Em lugar disso, pensou em Jack e perguntou-se quando receberia ele a mensagem. Sentia algum receio de que ele estivesse aborrecido com ela o suficiente para não ir até lá. Se tal acontecesse, Laurie não tinha idéia do que haveria de fazer, de modo que afastou também esse pensamento da sua mente.

 

Jack enganara Flash com uma finta de cabeça e um inteligente pick[7], deixando-o por um momento sem saber onde estava Jack. Quando se deu conta do que se passara, já ele se esgueirara para debaixo do cesto. Warren vira o movimento pelo canto do olho e fez um passe perfeito para as mãos ansiosas de Jack. Este rodopiou e equilibrou-se para fazer um simples lançamento em suspensão que daria a vitória num jogo até então empatado. Infelizmente não foi o que aconteceu. Devido a um inexplicável erro de cálculo, a bola não entrou no cesto fazendo tabela, tal como Jack pretendia. O lançamento foi demasiado curto e a bola ficou presa entre o aro e a tabela.

Fez-se uma pausa no jogo. Muito embaraçado por ter falhado um lançamento tão fácil, Jack teve de saltar para libertar a bola. Foi então que, numa humilhação final, um jogador adversário a agarrou, saiu do garrafão e fez um passe longo para Flash, que se tinha aproveitado do fato de Jack estar debaixo do cesto para se desmarcar, já que era ele que o deveria estar a defender. Jack viu, impotente, Flash do outro lado do campo a fazer, ao contrário de si, um lançamento certeiro. O jogo tinha terminado. A equipa de Flash tinha ganho.

Jack saiu do campo com vontade de desaparecer, desviando-se das poças que se encontravam ao longo das linhas laterais. Encostado à vedação de rede já num sítio seco, deixou-se escorregar até ficar sentado com as pernas dobradas e os joelhos no ar. Warren aproximou-se vagarosamente com as mãos nas ancas e um sorriso trocista, ainda que forçado. Warren era quinze anos mais novo que Jack e tinha um corpo que faria inveja a um modelo de roupa interior masculina. Sendo o melhor jogador da vizinhança e um ardente competidor, detestava perder. Não apenas porque isso significava ter de ficar sentado um ou dois jogos, mas também por ver nisso uma afronta pessoal.

— Que raio se passa contigo? — perguntou Warren. — Como é que pudeste falhar aquele lançamento? Pensava que te tinhas recuperado, mas esta deve ser uma das tuas exibições mais lamentáveis.

— Desculpa, pá! — disse Jack. — Acho que não estava concentrado.

Warren deu uma pequena gargalhada desdenhosa, como se tivesse acabado de ouvir o eufemismo do ano, e sentou-se ao lado de Jack com os joelhos dobrados de igual forma. Diante deles, um novo grupo de cinco jogadores preparava-se para jogar contra Flash e a sua equipa. Apesar do mau tempo e de ser sábado de noite, tinha aparecido muita gente.

O basquetebol de Jack tinha melhorado nas últimas semanas, mas nessa tarde a pressão de Laurie e o fato de ter adotado o papel de vítima levaram-no ao limite.

Podia condoer-se pelo que ela estava a passar ultimamente, mas, do seu ponto de vista, Laurie não fazia idéia do que era ser-se realmente vítima. Ainda por cima, era inacreditável a forma como o criticava insistentemente pelo seu tipo de humor, a única defesa que possuía contra a difícil realidade em que o destino e a AmeriCare o tinham lançado. Pior ainda, não conseguia entender a razão pela qual não queria ela ouvir o que ele estivera a pensar acerca da gravidez. Desde que ela lhe dera as notícias nunca mais tinha pensado noutra coisa e estava ansioso por partilhar o que sentia, os seus prós e contras. Essa novidade levara-o a ter que enfrentar a idéia de uma segunda família como algo real e acabou por acreditar que poderia não estar tão assustado com a situação como pensara... pelo menos até essa tarde, quando ela agiu de forma tão exigente e adotou o papel de vítima. Relembrando a conversa mais uma vez, não podia acreditar que ela dissesse estar "farta" de discutir a hipótese de ter uma família porque, antes de ela ter saído de casa, nem se lembrava da última vez em que se abordara a questão.

— Raios! — gritou Jack de repente, arrancando a fita da testa e atirando-a ao chão.

Warren olhou-o interrogativamente:

— Estás em mau estado pá! Deixa-me adivinhar, a Laurie ainda anda a fazer das suas.

— Nem fazes idéia! — disse Jack desdenhosamente.

Ia começar a desenvolver quando ouviu um bip abafado. Agarrou na mochila, abriu o fecho e tirou o telemóvel, que normalmente não levava para o campo, a não ser que estivesse de serviço. Contudo, nessa noite, depois da discussão com a Laurie, queria estar contatável caso ela caísse em si. Quando abriu a tampa do telemóvel e viu que tinha uma mensagem, verificou o número de quem lhe tinha ligado.

— É ela! — disse Jack um pouco exasperado.

Sem saber o que esperar e com pouca esperança num milagre, ligou para o gravador de chamadas. Logo que começou a ouvir a mensagem levantou-se e, à medida que a continuava a ouvir, abriu lentamente a boca. Desligou e baixou os olhos para Warren, momentaneamente paralisado.

— Meu Deus! Foi levada de urgência para o Manhattan General para uma cirurgia de emergência!

Libertando-se da sua breve e aturdida imobilidade, dobrou-se e agarrou no equipamento.

— Tenho de trocar de roupa e ir para lá imediatamente!

Deu meia volta e desatou a correr para a saída do campo.

— Espera! — gritou Warren lá de trás.

Jack não parou nem abrandou, pois conhecia bem a seriedade de uma rotura numa gravidez ectópica. Quando foi detido pelo tráfego na rua, Warren alcançou-o.

— E que tal se eu te der boléia? — disse Warren. — O meu carro está já ali na esquina.

— Fantástico — respondeu Jack.

— Quando desceres já estarei aqui à tua espera — disse Warren. Jack anuiu antes fazer um sprínt para atravessar a rua. Subiu as escadas do edifício duas a duas e começou a despir-se no último lanço. Despiu o resto do equipamento enquanto atravessava a sua casa, ansioso por chegar ao hospital antes que Laurie fosse levada para o bloco operatório. Não gostava da idéia de que ela fosse operada e tão pouco gostava da idéia de a ter no Manhattan General.

Ao mesmo tempo em que se lançava escadas abaixo, tentava ajeitar-se nas roupas que já usara nesse dia. Conforme lhe prometera, Warren esperava-o no seu jipe negro quando Jack saiu do seu edifício. Jack saltou para dentro do carro e Warren arrancou fazendo chiar os pneus.

— É uma operação séria? — Perguntou Warren.

— Podes crer que sim — respondeu Jack.

Enquanto fazia o nó da gravata, atormentava-se por ter reagido de forma tão emocional ao pequeno ataque de nervos de Laurie nessa tarde. O que ele deveria ter feito era deixá-la disparatar sem se irritar, mas tinha-lhe fugido o controlo da situação. Não o tinha desde que ela saíra do seu apartamento.

— Quão séria? — perguntou Warren.

— Deixa-me pôr as coisas desta maneira: já houve pessoas que morreram devido ao problema que ela tem.

— Grande merda! — murmurou Warren enquanto punha o pé no acelerador.

Jack agarrou a pega acima da porta do pendura segurando-se quando Warren lançou o jipe à desfilada para passar o verde no semáforo da 97 Street. Poucos minutos depois, Warren tinha o Manhattan General à vista.

— Onde é que queres que te deixe? — perguntou Warren.

— Segue os sinais que indicam as urgências — respondeu Jack.

Warren acabou por se meter entre duas ambulâncias no átrio de entrada e Jack saltou do carro.

— Obrigado pá! — disse Jack.

— Depois diz-me como é que correram as coisas — gritou Warren pela janela.

Jack acenou para trás do ombro, pulou para a plataforma e correu para o interior do hospital. A sala de espera estava cheia de gente. Jack dirigiu-se diretamente para as portas duplas que conduziam à sala de urgências propriamente dita, mas foi impedido de entrar por um polícia de uniforme, corpulento e de faces coradas. O homem estava ao lado das portas, mas colocou-se diante delas quando Jack se aproximou.

— Tem de assinar à entrada — disse-lhe o agente apontando por cima do ombro de Jack.

Com algum esforço, Jack tirou a carteira e abriu-a. No seu interior encontrava-se o cartão oficial de médico-legista. O polícia aproximou a mão de Jack para o examinar.

— Desculpe Sr. Doutor — disse quando viu o que era.

Depois de ter dado uma vista de olhos a alguns cubículos, sem ter a sorte de encontrar Laurie, Jack deteve uma das enfermeiras, que seguia apressadamente pelo corredor levando nas mãos uma mão-cheia de tubos com sangue para análise. Quando Jack perguntou por Laurie, a enfermeira olhou de soslaio, como se fosse ligeiramente míope, para um quadro perto da porta de entrada que Jack tinha passado sem ver.

— Está na unidade de cuidados intensivos — disse a mulher apontando para o fim do complexo — no quarto 22.

Jack foi encontrá-la sozinha no quarto, rodeada por todo o tipo de aparelhos médicos de cuidados intensivos. Atrás dela estava um ecrã LCD plano onde se marcava em tempo real a tensão sanguínea e o ritmo cardíaco. Tinha os olhos fechados e as mãos juntas sobre o peito com os dedos entrelaçados. Excetuando a sua palidez, parecia a imagem de um descanso satisfeito. Atrás dela, pendurados num suporte intravenoso, estava um conjunto de garrafas e uma bolsa de sangue cujos conteúdos corriam para o seu braço esquerdo.

Em poucos passos, Jack abeirou-se de Laurie. Pousou a mão no seu antebraço, relutante em despertá-la do seu sereno dormitar, mas com medo de não o fazer.

— Laurie? — chamou suavemente.

De pálpebras pesadas, Laurie abriu os olhos. Sorriu quando viu Jack.

— Graças a Deus que estás aqui!

— Como é que te sentes?

— Tendo em conta o que se passa, sinto-me bastante bem. A anestesia começou a fazer efeito e estou já em estado pré-operatório. Estou prestes a ir para cirurgia. Tinha a esperança que chegasses cá antes de eu entrar.

— É uma rotura ectópica?

— Tudo indica que sim.

— Lamento que tenhas de passar por tudo isto.

— Não estás um pouco aliviado? Sê sincero!

— Não, não estou aliviado. Na verdade estou preocupado. Não podemos ir para outro hospital? Que tal para o hospital do teu pai?

Laurie sorriu com uma serenidade induzida pelos medicamentos. Abanou a cabeça.

—A minha médica tem privilégios aqui. Pedi logo à partida para ir para outro sítio, mas receio estar de mãos atadas. Ela tem a certeza de que ainda estou a sangrar internamente, pelo que não temos muito tempo.

Laurie libertou o antebraço da mão de Jack e agarrou o dele.

— Sei o que estás a pensar, mas não tenho problemas em estar aqui, e menos ainda agora que chegaste. Embora, teoricamente, esteja em risco de ser uma vítima para a minha série, não creio que seja muito elevado. As probabilidades estão do meu lado, especialmente agora com Najah fora de campo.

Jack anuiu com a cabeça. Sabia que estatisticamente ela tinha razão, mas era uma tênue consolação, principalmente sendo o caso contra Najah tão circunstancial. A verdade é que ele não gostava que Laurie estivesse lá e ponto final. Contudo, resignou-se ao fato de não ter muita escolha. Ela podia dessangrar durante a transferência para outro hospital.

— A sério que estou bem — acrescentou Laurie. — Gosto da minha médica. Confio muito nela. Perguntei-lhe o que me iria acontecer esta noite e ela disse-me que depois da cirurgia eu iria para a UCPA.

— Que raio é a UCPA?

— A Unidade de Cuidados Pós-Anestésicos.

— Que é feito da sala de recuperação?

Laurie sorriu e, encolhendo os ombros, disse:

— Não sei. Agora chamam-lhe UCPA. De qualquer modo, disse-me que possivelmente eu ficaria na UCPA toda a noite. Se tiver de sair, quer que eu fique numa unidade de cuidados intensivos devido à quantidade de sangue que perdi. Nenhum dos casos na minha série se passou na unidade de cuidados intensivos, apenas nos quartos do hospital. Sinto-me segura até amanhã, altura em que estou convicta de que poderemos levar a cabo a transferência. O meu pai pode meter-me no University Hospital e mesmo que a minha médica não me possa acompanhar até lá, tenho a certeza de que o meu antigo ginecologista me acompanhará.

Jack assentiu. Continuava a não estar muito contente, mas via a lógica dela. Além disso, em termos de emergências médicas, o Manhattan General estava equipado com o melhor.

— Estás tão à-vontade com isso como eu? — perguntou Laurie.

— Acho que sim — consentiu.

— Ainda bem — disse Laurie — e não te esqueças que a tudo isso se junta ao fato de o principal suspeito estar detido.

— Não estou disposto a confiar nisso — disse Jack.

— Se fosse apenas esse pormenor, eu também não estaria — prosseguiu Laurie — mas há que juntar a isso a minha paz de espírito.

— Ainda bem — respondeu Jack — e a tua paz de espírito é o mais importante. No que me diz respeito, agrada-me a idéia que estejas na UCPA. É uma segurança real. O caso contra Najah é pura suposição.

— Sem dúvida — concordou Laurie — o que me leva a fazer uma sugestão. Não há razão para que estejas por aqui sem fazer nada enquanto eu estou na cirurgia. Porque não vais até ao GMLS e dás uma vista de olhos no material que está na minha secretária? Principalmente às listas de Roger. Podias trazê-las para aqui. Escrevi algumas das minhas idéias, mas seria bom poder ouvir o teu ponto de vista, especialmente se Najah se revelar o fim da linha, desculpa-me o trocadilho.

— Desculpa?! — disse Jack energicamente. — Nem penses que eu saio daqui enquanto estiveres a ser operada!

— Está bem, escusas de te irritar. Era só uma sugestão.

— Obrigado, mas não, obrigado! — Reforçou Jack.

Deu-se um momento de pausa na conversa. Jack deitou uma olhadela ao ecrã LCD. Estava um pouco preocupado com a tensão baixa e o batimento cardíaco um pouco alto, mas estava satisfeito por ver que estavam estáveis.

— Jack — disse Laurie apertando-lhe mais o braço — lamento ter-me irritado hoje à tarde. Não estive bem, pois não te deixei falar. Desculpa.

— Desculpas aceites — disse Jack enquanto baixava os olhos para Laurie — e eu lamento ter sido tão hipersensível. Tinhas muitas razões para te sentires tão consternada. O problema é que também eu tenho estado bastante perturbado. Claro que isto também não é desculpa.

— Muito bem, Laurie! — disse uma voz animada. Laura Riley entrara no quarto com um auxiliar de ação médica — A sala de operações está pronta e tudo o que nos falta é a Laurie.

Laurie apresentou Laura a Jack e teve o cuidado de mencionar que se tratava de um colega médico-legista. Laura foi simpática, mas não se alargou na conversa, dizendo que queria pôr as coisas a andar. Já tinha havido um pequeno atraso na espera que uma das salas de cirurgia vagasse.

— Será que eu poderia ver? — perguntou Jack.

— Não, não creio que seja boa idéia — respondeu Laura sem hesitar — mas uma vez que é o turno da noite, creio que o posso levar até a sala dos cirurgiões e pode esperar aí. É romper um pouco as regras, mas afinal o Jack é médico. Depois, logo que acabarmos de tratar da Laurie, posso fazer-lhe um ponto da situação. Isto se a Laurie não tiver problemas com isso, claro.

— Por mim está tudo bem — respondeu Laurie.

— Vou aceitar a sua oferta da sala dos cirurgiões — disse Jack — mas antes talvez fosse boa idéia doar sangue. A Laurie e eu temos o mesmo tipo de sangue e se ela necessitar de outra unidade de sangue gostaria de ser o doador.

— Isso é muito generoso da sua parte — disse Laura — o mais provável é que o usemos.

Voltando-se para Laurie, continuou:

— Agora vamos levá-la para o bloco operatório e tratar de si. Fez um gesto com a cabeça para o auxiliar de ação médica, que destravou as rodas da maca e começou a orientá-la na direção do corredor.

 

— Desculpe — disse uma voz com sotaque num tom peremptório.

Jazz parou e virou-se para trás. Era o dono da mercearia na Columbus Avenue que ela freqüentava. Também lhe tocara no braço ao mesmo tempo em que lhe falava.

— Esqueceu-se de pagar — disse, apontando para o saco de tecido que trazia pendurado ao ombro.

Jazz esboçou um sorriso forçado. Calculou que aquele sujeito de aspecto anêmico deveria pesar menos de quarenta quilos e isso quando estava molhado; contudo, ali estava ele, abordando-a no meio do passeio da Columbus Avenue. Era incrível a lata com que algumas pessoas se comportavam sem terem em que apoiar a sua atitude. Claro que podia estar a preparar alguma, mas Jazz duvidava muito. Usava um apertado avental branco preso à sua cintura, impedindo-lhe o acesso aos bolsos.

— Leva leite, pão e ovos, mas não pagar — precisou o homem, que comprimiu com força os lábios e lançou o queixo para fora.

Para Jazz, não havia qualquer dúvida de que o homem estava embriagado. Comportava-se como se estivesse pronto para lutar, o que só faria sentido se o homem tivesse um super cinturão negro nalgum tipo de arte marcial exótica. Ela era maior que ele, claramente estava em melhor forma e segurava na mão direita, que estava dentro do bolso do casaco, a sua Glock.

— Senhora regressar à loja! — ordenou o homem.

Instintivamente, Jazz olhou em redor. Ninguém parecia estar a prestar-lhes atenção, mas sem dúvida que isso se alteraria se ela fizesse uma cena. Ainda assim, estava tentada. Olhou de novo para o seu incômodo interlocutor. No entanto, antes que pudesse falar, o seu telemóvel, que estava no bolso esquerdo do casaco, fez um bip e vibrou-lhe na mão. Era costume deixá-lo ligado quando andava de um lado para o outro.

— É só um segundo — disse Jazz para o dono da loja enquanto tirava o telemóvel do bolso.

Aflorou-lhe o rosto um sorriso maior e mais genuíno ao verificar que era uma mensagem do Sr. Bob. Depois de ter recebido três nomes nos últimos dois dias, não estava à espera de outro, mas que outra razão haveria para que ele a contatasse na altura do dia em que recebia os nomes? Abriu rapidamente a mensagem.

— Porreiro! — exclamou Jazz.

No ecrã lia-se o nome de Laurie Montgomery. Retirou a mão direita do bolso e dirigiu-se ao merceeiro com o polegar para cima. Não podia estar mais satisfeita. Vinham a caminho outros cinco mil dólares, o que significava que em três noites ganharia a colossal soma de vinte mil dólares!

— A minha mulher ir chamar a polícia se você não regressar e pagar — insistiu o homem.

Com mais esses cinco mil dólares caídos do céu, Jazz teve um arrebatamento de rara magnanimidade e generosidade.

— Sabe, agora que fala nisso, acho que saí sem pagar. Por que não regressamos e tratamos disso?

 

As asas do avião tocaram na pista com um ruído surdo e a fuselagem abanou com o impacto. O barulho e a vibração arrancaram David Rosenkrantz das profundezas do sono. Momentaneamente desorientado, precisou de um pouco de tempo para retomar a compostura. Virando a cabeça para o lado, olhou através da janela listada pela chuva. Aterrara no aeroporto de La Guardia e mal se viam as luzes do terminal através do ar úmido.

— É uma boa noite para apanhar uma molha — disse uma voz. — Disseram que choveria por volta das dez horas e, por uma vez na vida, acertaram.

David virou-se para o homem que estava a seu lado. Era um fulano empertigado, no fim da meia-idade, com óculos sem aro e que envergava, tal como David, camisa e gravata. Robert insistira com David para que se vestisse como um homem de negócios. Dizia que conferia um ar de legitimidade à operação. Também a David isso agradava porque sentia que passava mais despercebido. Com todos os vôos que tinha de realizar, parecia apenas mais um homem de negócios. O seu companheiro de viagem inclinou-se para a frente para olhar através da janela de David.

— Está de regresso a casa ou veio a Nova Iorque em negócios?  — perguntou o homem.

Não pronunciara palavra durante toda a viagem, tinha vindo com o nariz enfiado no computador portátil o tempo inteiro.

— Em negócios — respondeu David sem desenvolver.

Não gostava muito de falar com os companheiros de viagem. As conversas chegavam inevitavelmente até ao tipo de negócios em que estava envolvido David. Anteriormente, se fosse obrigado, dizia que estava na área de consultoria de saúde. Isso funcionou até que um dia deu consigo a falar com um passageiro que estava realmente nessa área. Lembrou-se de que a conversa tinha sido um pouco arriscada e de que se salvara dela pela oportunidade de desembarcar.

— Eu também estou em negócios — disse o homem empertigado. — Trabalho em software informático. A propósito, onde é que se vai hospedar? Se ficar em Manhattan, talvez pudéssemos partilhar um táxi. Quando chove em Nova Iorque são tão difíceis de encontrar quanto uma agulha no palheiro.

— É muito generoso da sua parte — respondeu David — mas ainda tenho coisas que fazer. Esta viagem apareceu à última da hora.

— Posso-lhe recomendar o Marriott — insistiu o homem. Quase sempre têm disponibilidade ao fim-de-semana e tem uma boa localização central.

David sorriu o melhor que pôde.

— Vou ter isso em atenção, mas não vou diretamente para a cidade. Tenho de fazer uma paragem aqui em Queens.

Tinha planeado apanhar um táxi para Long Island, onde faria o táxi esperar enquanto recolhia a arma combinada.

— Não te esqueças de que essa bruxa os despacha uns atrás dos outros. — Aconselhara-o Robert. — Por isso não lhe dês muito espaço de manobra. Na verdade, não lhe dês nenhum espaço de manobra. O problema é que ela não tem quaisquer escrúpulos em usar a arma.

David anuiu ao conselho não solicitado, mas não necessitava que lhe dissessem tais coisas. Era um profissional e havia anos que fazia isto. Pôs a mão no bolso do casaco e tirou um pedaço de papel. A morada era Vernon Avenue, n.° 1421, Long Island. Perguntava-se que tipo de lugar seria aquele. Também se perguntava se a obtenção da arma iria ser tranqüila. Numa recente viagem a Chicago, o fornecedor da arma tinha sido preso no dia anterior, por razões que nada tinham que ver com o seu caso, anulando a operação e obrigando David a ficar cinco dias na "cidade ventosa". Esperava que não se passasse o mesmo fiasco em Nova Iorque, pois estava ansioso por regressar a Saint Louis em cerca de vinte e quatro horas.

David viu as outras moradas que tinha escrito no papel. Eram a de Jasmine Rakoczi e a do seu ginásio, ambos na parte norte do West Side.

— Onde é esse Marriott? — Perguntou ao homem empertigado, que estava ocupado a arrumar o computador na mala de viagem.

— Em Times Square — respondeu.

— Isso é no West Side?

— É pois, mesmo ao lado da zona dos teatros.

Teria o Marriott em mente. Em termos gerais, o seu plano era ir buscar a arma e encontrar um hotel. Estava exausto, depois de várias noitadas nas ruas na costa ocidental, e ansiava por ter uma boa noite de sono. Logo pensaria na melhor maneira de lidar com essa mulher, a Rakoczi. A melhor parte de tudo isso era lembrar-se do seu aspecto. Robert chegara a dizer-lhe que ela tinha um dos melhores corpos que alguma vez tinha visto e não havia dúvidas quanto ao ótimo gosto de Robert. David tinha toda a intenção de ver por si mesmo, o que significava que o apartamento dela seria o melhor sítio para a tarefa.

 

Com um movimento displicente, Jack lançou a Cosmopolitan para a mesinha de apoio da sala dos cirurgiões. Desesperava por algo para ler, mas aquela revista não era o que tinha em mente. Já passara os olhos por tudo o resto, incluindo números antigos da Time, da People, da National Geographic e da Newsweek, para além dos semanários de sábado. Chegou a tentar ver a CNN por algum tempo, mas não conseguia concentrar-se na televisão, especialmente depois das duas canecas de café que tomara. Era um quarto para a meia-noite e Laurie ainda estava no bloco operatório, o que o deixava cada vez mais inquieto.

Tinha ido ao terceiro piso com Laurie, a Drª. Riley e o auxiliar de ação médica. Apertara a mão de Laurie de forma reconfortante uma última vez, antes de ela e os demais terem desaparecido para o bloco operatório. Na esperança de que Laurie reconsiderasse o seu pedido e o deixasse assistir à cirurgia, dirigira-se ao vestiário masculino e vestira a farda verde de proteção, usando um cacifo vazio sem chave para guardar as roupas.

Porém, Laura foi firme na insistência em que permanecesse na sala dos cirurgiões, dizendo-lhe que regressaria logo que a operação terminasse. Jack procurou distrair-se, de modo a evitar atormentar-se com o porquê de tanta demora. Enquanto esperava, o turno do hospital mudou e um grupo totalmente diferente de pessoas assegurava o funcionamento do bloco operatório e circulava dentro e fora da sala. Ninguém importunou Jack, o que o deixou satisfeito. Não estava com disposição para convívios.

Era quase meia-noite quando a Drª. Riley surgiu finalmente no arco de entrada da sala. Quando localizou Jack, caminhou até ele. Ele ergueu-se. Parecia exausta, mas sorria, o que o tranqüilizou.

— Desculpe tê-lo deixado na expectativa — disse Laura. — Demorou um pouco mais do que esperávamos, mas está tudo bem.

— Graças a Deus — disse Jack. — Qual foi o problema?

— Uma hemorragia incessante. Perdeu muito sangue e a coagulação não ajudou. Por agora, quero que fique na UCPA de modo a poder monitorizar o estado da coagulação e a tensão arterial.

— Parece-me bem.

— Vejo que vestiu as roupas de proteção.

— Tinha a esperança de que cedesse e me permitisse acompanhar a cirurgia.

— Lamento — disse Laura. — Sei pela Laurie que a vossa relação não é meramente profissional. No que toca a partos, fico contente com a participação dos companheiros, mas não neste tipo de operações.

— Não tem que se desculpar — respondeu Jack. — Ela está bem e isso é tudo o que importa.

— Na verdade, até é bom que tenha vestido isso. Foi-me dada autorização para que o Jack entre e faça uma visita rápida, desde que se sinta bem com isso.

— Adoraria entrar — disse Jack — mas diga-me, era uma gravidez ectópica?

— Sim — disse Laura. — No istmo do oviduto, muito perto da parede uterina, o que pode explicar uma hemorragia tão significativa. O próprio oviduto estava claramente com problemas, e acabamos por removê-lo de uma vez, juntamente com o ovário direito. O aspecto positivo é que o lado esquerdo do oviduto e o ovário parecem ser perfeitamente normais, pelo que a sua fertilidade não deverá sofrer alterações significativas.

— Ela terá muito gosto em sabê-lo — disse Jack.

Agora que sabia que Laurie se encontrava em recuperação, pensou no embrião perdido, surpreendido pela sua emoção ao fazê-lo. Estava triste, apesar de ter antecipado uma sensação de alívio pelo fim da pressão, tal como Laurie sugerira. Apesar de o luto nunca ser agradável, nesta situação ele sentia que havia um lado positivo, uma vez que fazia crescer nele a convicção de que seria mais capaz de ter uma criança do que teria pensado apenas uns dias antes.

Acenando-lhe para que a seguisse, Laura conduziu-o até a zona principal do bloco operatório. Encontravam-se várias mulheres no balcão principal, embrenhadas no seu trabalho administrativo. Na parede do lado oposto, estava um grande quadro branco escrevinhado como papel milimétrico. Na parte esquerda encontravam-se os números de todas as salas de cirurgia. No cimo, em colunas, havia espaços para o nome do doente, do anestesista, do cirurgião, do enfermeiro de serviço, do enfermeiro médico-cirúrgico e da intervenção. Jack verificou que havia oito casos a serem seguidos. Viu o nome de Laurie riscado.

A UCPA situava-se mesmo atrás do balcão. Era uma divisão branca, ampla, austera, com dezesseis camas, oito de cada lado. Cada uma delas era apoiada por uma panóplia de equipamentos de anestesia, incluindo uma série de monitores de tensão arterial e pulsação, uma ligação para o eletrocardiograma e outra para a oxigenação sanguínea. Apenas quatro das dezesseis camas estavam ocupadas. Todos os pacientes pareciam estar a dormir, apesar da forte luz ambiente e da sensação de atividade frenética. Cada um deles tinha o seu próprio enfermeiro, que monitorizava constantemente desde os sinais vitais até a emissão de urina, desde o ritmo respiratório à temperatura corporal interna e anotava tudo num bloco de mola junto à cama. Nos intervalos daquelas atividades, ajustavam dosagens de líquido intravenoso, verificavam drenos ou corriam para o armário que continha as reservas de fluidos intravenosos e de medicamentos.

Uma enfermeira com ar de quem não está para brincadeiras, com o cabelo louro encaracolado e o aspecto de um buldogue atarracado, assegurava o funcionamento do balcão central. Transmitia a sensação de controlo de um sargento de recruta. Laura apresentou-lhe Jack. O seu nome era Thea Papparis.

— Espero que compreenda que só pode ficar por alguns minutos — disse Thea. A sua voz era tão imperativa quanto a sua aparência física.

— Agradeço-lhe o simples fato de me deixar entrar — disse Jack, revelando um respeito pouco habitual pelos regulamentos.

Em circunstâncias normais, via as diretivas burocráticas como meras linhas de orientação, mas com os cuidados de Laurie a poderem depender do seu comportamento, mostrava-se particularmente circunspecto, o que se evidenciava pela forma como evitou dirigir-se precipitadamente para o bloco operatório em reação ao fato de o caso de Laurie se ter arrastado.

—Tem aí uma mulher admirável, doutor — disse Thea. — É um encanto, mesmo sob os efeitos da anestesia.

Por um momento a sua atenção foi desviada para o monitor sobre o balcão. Um dos doentes sofrera uma extra-sístole, com a respectiva pausa compensatória. Jack aproveitou a oportunidade para olhar de relance para Laura, que ostentava uma expressão exagerada de culpa, o que significava que tinha mentido acerca do estado civil de Jack, de modo a que ele pudesse entrar na UCPA.

Thea concentrou a sua atenção nos visitantes.

— O que estava eu a dizer? Ah, sim! A sua mulher é uma pessoa muito agradável. A maior parte das pessoas que vem para aqui está um pouco "passada", embora alguns possam ser pouco cooperantes e mesmo beligerantes. Mas a sua mulher não. É amorosa.

— Obrigado — disse Jack. — Agradeço-lhe a atenção que lhe dispensou.

— É esse o nosso trabalho — disse Thea.

Laura fez-lhe sinal para que a seguisse e dirigiram-se à cama encostada à parede que estava mais afastada. Um enfermeiro com uma impressionante tatuagem de uma sereia no braço esquerdo estava a ajustar os líquidos intravenosos de Laurie, que também recebia outra unidade de sangue.

— Como é que ela está, Pete? — perguntou Laura, olhando rapidamente para o bloco de mola antes de chegar ao lado direito da cama.

— Está tudo a correr sobre rodas — respondeu Pete. — A pressão sanguínea e o batimento cardíaco estão ótimos. Urinou e não expeliu nada pelo dreno.

— Ótimo! — disse Laura. Agarrou o antebraço de Laurie, abanou-o um pouco e chamou-a pelo nome.

Laurie abriu imediatamente os olhos, mas apenas até metade. Tinha a testa enrugada, como estivesse a fazer um esforço por mantê-los abertos. Olhou para Laura e depois para Jack, que estava do seu lado esquerdo. Sorriu placidamente e colocou a sua mão sem força na de Jack.

— Lembra-se de eu lhe ter dito que a operação tinha terminado? — perguntou Laura.

— Nem por isso — admitiu Laurie sem tirar os olhos de Jack.

— Bem, mas já está — disse Laura. — E está tudo bem consigo. A hemorragia foi estancada. Eu dir-lhe-ia que se relaxasse, mas já está a fazê-lo.

Laurie voltou a cabeça lentamente na direção de Laura.

— Obrigada por tudo o que tem feito e desculpe por lhe ter estragado a noite de sábado.

— Não se preocupe — disse Laura. — Isto hoje tem sido uma festa.

— Estou na UCPA?

— Sim, está.

— E vou passar aqui a noite.

—Afirmativo. Pedi-lhes que ficassem aqui consigo e a vigiassem até que eu regresse da minha ronda. A unidade de cuidados intensivos está cheia, mas aqui fica igualmente bem, ou até mesmo melhor. Espero que não se importe. Poderá ser um pouco complicado dormir com toda esta atividade.

— Não me importo absolutamente nada — disse Laurie, apertando a mão de Jack.

— Bem — acrescentou Laura — agora tenho de vos deixar aos dois. Laurie, vejo-a de manhã às sete horas. Tenho a certeza que tudo estará bem e que a poderemos mudar para um quarto no piso da obstetrícia/ginecologia, desde que tenham uma cama vaga. Sei que estão lotados esta noite, mas preocupamo-nos com isso amanhã, está bem?

— Está bem — respondeu Laurie.

Com um aceno, Laura afastou-se. Laurie virou-se para trás para Jack.

— Que horas são?

— Perto da meia-noite — respondeu Jack.

— Credo! Como passam as horas! Realmente o tempo voa quando nos estamos a divertir.

Jack sorriu.

—É bom ver que não perdeste o sentido de humor. Como te sentes?

— Ótima. Sei que parece ridículo, mas não sinto qualquer tipo de desconforto. O pior é a boca seca. Seja lá o que for que me deram, sinto-me nas nuvens. Agora que terminou, posso admitir que estava bastante assustada. Fui tonta em deixar o problema ficar fora de controlo.

— Não creio que te devas recriminar.

— Eu sim. Não reagir a sintomas evidentes é um claro exemplo de uma das minhas características menos admiráveis, isto é, afastar do pensamento qualquer coisa que possa ser potencialmente desagradável, física ou emocionalmente. Sou mais filha da minha mãe do que alguma vez gostaria de admitir.

— Começas a assustar-me com este tipo de discernimento sob o efeito da anestesia — brincou Jack. — O que te deram, algum tipo de soro da verdade? Não respondas! Vamos falar de algo mais pertinente. Disseram-te que tinhas sofrido uma rotura de gravidez ectópica?

— De certeza que sim, mas a minha memória de curta duração ainda está a arrancar.

— Assim que soube que estava tudo bem, senti uma curiosa sensação.

— Olha agora, que estranho que digas isso — disse Laurie com um leve sorriso nos lábios. — Estavas desapontado por eu me ter safado?

— Esta não me saiu muito bem. O que eu queria dizer é que quando já não me tinha de preocupar contigo senti-me triste por termos perdido o bebê.

Por um momento, Laurie nada disse e o seu sorriso desvaneceu-se. Olhou fixamente para Jack com um olhar de descrença.

— Olá! — disse Jack. — Ainda estás aí?

Lentamente, Laurie levou a mão livre ao rosto e usou um dedo para limpar uma lágrima. Abanou a cabeça como se ainda não acreditasse no que Jack acabara de dizer.

— Se ouvi bem, e tendo em conta as circunstâncias, isso é capaz de ser a coisa mais querida que alguma vez me disseste. Vais fazer-me chorar.

— Não chores! — disse nervosamente Jack quando viu no ecrã atrás da cama de Laurie que o seu batimento cardíaco aumentara.

De forma alguma queria perturbá-la, estando tão fragilizada. Vamos falar de algo um pouco menos sentimental, desde que tenhamos tempo.

Olhou primeiro para Pete, que fingia não estar a ouvir, e depois para Thea, que se encontrava no balcão central, para ter a certeza de que ela não se tinha dado conta da reação de Laurie. Felizmente, a enfermeira chefe estava temporariamente ocupada com outra coisa. Foi com uma sensação de alívio Jack voltou a sua atenção para Laurie.

— Não vou poder ficar aqui muito tempo e é possível que não possa voltar. Em condições normais, não seria tão contido, mas têm-te como refém. Tenho medo de que caso pise o risco eles de alguma forma se vinguem em ti. Eu sei que é uma idéia ridícula, mas este sítio parece dirigido pela Gestapo.

—Como te entretiveste durante três horas? — perguntou Laurie.

— Tinha uma bola — disse Jack. — Eu... — Tentou pensar em algo espirituoso, mas nada lhe ocorreu. Embaraçado, deu uma pequena gargalhada. — Não posso acreditar, o meu sentido de humor abandonou-me!

— Estás aborrecido e exausto. Porque é que não vais para casa dormir um pouco?

— Dormir? — perguntou Jack. — Está fora de questão. Bebi várias canecas de café na sala dos cirurgiões. Não vou dormir para aí até terça-feira.

— Não podes simplesmente ficar aqui pelo hospital — disse Laurie. — Se realmente não consegues dormir, por que não fazes o que te sugeri antes e vais ao meu gabinete? Já que tens de estar acordado pelo menos aproveitas bem o tempo.

— Sabes, sou capaz de fazer isso — disse Jack.

Passou-lhe pela cabeça trazer todo o material para a sala dos cirurgiões. Afinal de contas, o turno da noite já estava de serviço no hospital. Podia ajudar a passar o tempo tentar falar com algumas das pessoas que estavam na lista de Roger, embora, depois de ter pensado duas vezes, tivesse de admitir que o destino dele retirava algum entusiasmo à idéia.

— Desculpem interromper — disse Thea, que surgira aos pés da cama. — Vão ter de se despachar, pois temos uns pacientes que vão dar entrada a qualquer momento.

— É só mais um momento — disse Jack a Thea, que anuiu e regressou ao seu posto de comando.

— Ouve — disse Jack a Laurie debruçando-se para estar perto do seu ouvido. — Antes de ir, quero estar absolutamente seguro de que te sentes confortável aqui. Sê sincera! Caso contrário, planto-me do outro lado da porta e recuso-me a mexer.

— Estou completamente confortável. Devias ir dormir um pouco.

— Estou a dizer-te que não vou dormir! Estou cheio de energia, pronto para fazer um triatlo.

— Está bem, acalma-te! Então vai ao meu escritório para que pelo menos possas estar ocupado. Traz tudo para aqui.

— De certeza que te sentes confortável?

— Absoluta.

— Muito bem — disse Jack, dando um beijo na testa de Laurie antes de se endireitar. — Podes dormir pelos dois. Estarei de regresso e tentarei vir aqui novamente se aquela Brunnhilde me deixar.  — Apontou com o polegar sobre o ombro.

— Eu estou ótima — disse Laurie. — Não te preocupes.

Apertando uma última vez a mão de Laurie, Jack caminhou de novo até ao balcão central. Enquanto Thea estava ao telefone, por trás da sua cadeira, Jack escreveu o seu nome e número de telemóvel.

— Mais uma vez obrigado por me ter deixado entrar — disse Jack quando ela desligou e olhou para ele.

— De nada — disse Thea. Pôs-se em bicos de pés, para espreitar por cima do ombro de Jack e gritou. — É isso mesmo, Claire. É dessa linha que te estava a falar. Acho que não está a funcionar bem. — Tornou a olhar para Jack. — Desculpe. Não se preocupe com a sua esposa. Nós tomamos bem conta dela.

— Escrevi aqui o meu número de telemóvel — disse Jack, e entregou o papel a Thea. — Se o estado dela sofrer qualquer tipo de alteração, agradeço que me avisem.

— Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance — disse Thea.

Deu uma olhadela ao papel e atirou-o para a secretária à sua frente. Fez um breve sorriso e um aceno a Jack e voltou-se para uma das enfermeiras que a tinha abordado com uma pergunta.

Olhando uma última vez na direção de Laurie, Jack saiu da UCPA. Atravessou a sala dos cirurgiões. As caras tinham mudado, mas o cenário não. Na zona do vestiário masculino, tornou a vestir a sua roupa.

O átrio principal do hospital estava estranhamente sossegado e bem longe da azáfama do dia. Enquanto saía pela porta principal, sentia-se satisfeito por ver que havia alguns táxis pacientemente à espera na fila. A chuva prevista pela meteorologia começou.

O táxi deixou Jack no parque exterior da morgue e ele atravessou a central de segurança. Cari Novak, o segurança do turno da noite, deu um salto da cadeira como se tivesse sido apanhado desprevenido, o que fez com que o livro que estava a ler caísse no chão. Debruçou-se sobre a porta e chamou:

— Passa-se alguma coisa que eu deva saber, Dr. Stapleton?

— Não — disse Jack por cima do ombro.

Mike Passano, o técnico do turno da noite da morgue, teve uma reação semelhante quando ouviu a voz de Jack ecoar na morgue ladrilhada e o viu passar pelo escritório. Enquanto Jack esperava pelo elevador, a cabeça de Mike apareceu.

— Há algum caso a dar entrada para autópsia? — perguntou.

— Não — disse Jack. — Eu gosto tanto deste sítio que não consigo manter-me afastado.

O quinto piso estava de tal forma mal iluminado que as portas laranja do gabinete pareciam de um lamacento castanho-acinzentado. Uma vez no gabinete de Laurie, Jack ligou o candeeiro de teto e piscou os olhos perante o seu relativo brilho. Sentou-se na cadeira dela e observou todo o material que estava na sua secretária. Havia duas pilhas organizadas de relatórios hospitalares. Ao lado, estavam as listas de Roger e um bloco de notas pautado. Continha uma lista das formas pelas quais Laurie concluíra que os casos se relacionavam. Na parede por cima da secretária estavam dois post-it: num deles havia uma nota para mostrar o segmento do eletrocardiograma de Sobczyk a um cardiologista e o outro questionava que tipo de teste laboratorial seria um MASNP. Um outro post-it, tão engelhado que dificultava a leitura, apontava na direção da secretária. Jack alisou-o. Estava escrito com a letra de Laurie "MEF2A positivo", seguido de um grande ponto de interrogação. Jack não fazia idéia do significado da sigla.

O que Jack não viu foi o CD que se lembrava de ter visto Laurie gravar no escritório de Roger. Por isso, procurou rapidamente por baixo dos relatórios e das listas de Roger. Chegou mesmo a abrir as gavetas de Laurie, que, ao contrário das dele, estavam impecavelmente arrumadas. O CD não estava lá. Coçou a cabeça. Onde é que ela o teria metido? Olhou de relance para o relógio. Era quase uma e meia da manhã.

Jack respirou fundo e tentou organizar os pensamentos. Tinha o coração acelerado por força do café e a cabeça a andar a mil à hora. Era difícil concentrar-se no que quer que fosse. Não lhe agradava estar longe do hospital Manhattan General, onde Laurie se encontrava num estado tão vulnerável. No entanto, teria dado em doido se tivesse ficado na sala dos cirurgiões hora após hora, com os olhos fixos no relógio. Seguindo a sugestão de Laurie, tinha a intenção de regressar à sala dos cirurgiões com todo o material que estava na secretária. Mas, antes de o fazer, teve uma outra idéia. Pensou que podia tirar algum tempo para encontrar possíveis respostas às perguntas dos três post-its. Com tantos hospitais literalmente ali ao lado, seria uma incumbência rápida e podia ter algum resultado.

Levantou-se e remexeu os relatórios até encontrar o de Sobczyk. O segmento do eletrocardiograma foi fácil de encontrar, uma vez que Laurie o assinalara com uma régua. Olhou uma vez mais para ele e admitiu novamente que não o sabia interpretar. Na verdade, na sua opinião ninguém conseguiria percebê-lo. Era essencialmente o registro ao acaso das células de condução cardíaca no estertor da morte celular. Destacou cuidadosamente do relatório a página que continha o registro. Pegou nela e nos outros dois post-its, saiu do escritório de Laurie deixando a luz acesa e dirigiu-se ao elevador. A porta abriu-se mal premiu o botão. Tal coisa que nunca acontecia durante o dia. Era como se fosse a única pessoa no edifício.

Durante a viagem até a cave traçou a sua estratégia, apesar de ter o cérebro a pensar em mil e uma coisas. Pensou em ir até ao centro médico Bellevue da Universidade de Nova Iorque, entrar nas urgências e pedir que chamassem o interno de cardiologia de serviço. Jack calculava que não demoraria muito, uma vez que o médico já estaria provavelmente nas urgências. Depois, pensou dirigir-se ao laboratório para tentar encontrar o supervisor noturno. Se alguém sabia dizer-lhe que tipo de teste era um MASNP e o que significava um MEF2A positivo, esse alguém era o supervisor do laboratório do hospital. Questionou-se se os dois desconhecidos estariam relacionados.

Lá fora ainda chuviscava, pelo que Jack subiu a First Avenue literalmente a correr, com a página do relatório de Sobczyk protegida sob o seu casaco. As urgências pareciam as do Manhattan General quando fora visitar Laurie.

O afluxo de pessoas só diminuía geralmente depois das três da madrugada. Jack dirigiu—se ao balcão central e captou a atenção de um dos enfermeiros, que podia perfeitamente passar por empregado de uma discoteca. Chamava-se Salvador e parecia ter uma dúzia de fios de ouro aninhados no peito extraordinariamente peludo.

— Sou o Dr. Stapleton — disse Jack. — Por acaso sabe quem é o interno de cardiologia que está de banco?

—Não sei, mas vou saber — respondeu antes de gritar a pergunta a um colega que se encontrava na zona de tratamentos, para a qual o balcão principal abria do lado oposto. O outro indivíduo encontrava-se fora do alcance visual de Jack.

— É a Drª. Shirley Mayrand — respondeu o enfermeiro, dirigindo novamente a atenção para Jack.

— Sabe se a Drª. Mayrand se encontra no serviço de urgência neste momento?

O enfermeiro encolheu os ombros.

— Não faço idéia.

— Como posso enviar-lhe um bip?

— Eu posso fazê-lo por si — disse Salvador. Pegou no telefone e marcou o número do operador do bip. — Digo-lhe para vir ao serviço de urgência?

Jack assentiu.

— Fico aqui à espera.

Voltou-se e contemplou o cenário. Pelo menos era visualmente interessante. À sua frente, ocupando as cadeiras de vinil da sala de espera, estendia-se uma fatia igualitária da vida de Nova Iorque, em toda a sua glória como em toda a sua banalidade. Desde bebês que choravam até aos mais idosos, desde vagabundos sem abrigo até aos mais chiques, desde bêbados até aos angustiados, desde os feridos até aos doentes, estavam todos ali, à espera de serem observados.

— Tem lá calminha — gritou Thea ao telefone estridente. Estava a tentar preencher uma requisição de aprovisionamento.

Desistiu e atendeu a chamada. Era Helen Garvey, a supervisora do turno da noite do bloco operatório.

— Quantas camas têm? — perguntou Helen sem palavras de cortesia.

— Ocupadas ou vazias? — questionou Thea.

— Vá lá. Essa é uma das perguntas mais tolas que ouvi esta noite.

— Estás de mau humor.

— E estou no meu direito. De acordo com o serviço de urgências estamos prestes a ser inundados por situações traumáticas e a primeira vaga já vem a caminho. Houve uma colisão frontal entre um autocarro e uma carrinha e o autocarro transpôs uma barreira de proteção. Segundo sei, distribuíram as vítimas, mas nós recebemos a maioria. Contatei todo o pessoal que está de banco de modo a podermos arranjar até vinte salas de operações. Vai ser uma noite longa.

— Tenho treze pacientes e apenas três camas vazias.

— Isso não é nada encorajador. Em que estado se encontram?

Thea vagueou com o olhar e reviu mentalmente cada caso.

— Está toda a gente em boa forma, exceto uma hemorragia reincidente num aneurisma abdominal. Esse tem de ficar, pois ainda pode ter de voltar a ser aberto. Continua a perder sangue pelo dreno.

— Então os outros estão estáveis?

— Para já.

— Então limpem a casa, porque são os próximos a receber esta vaga.

Thea desligou o telefone. Estava mentalizada para o que tinha de fazer. Desafios destes eram o seu forte.

— Oiçam bem — gritou às suas tropas. — Vamos mudar para modo de calamidade e não se trata de um exercício.

O movimento das rodas arrancou Laurie ao seu sono drogado para um estado quase desperto. Os seus olhos piscaram perante as luzes fluorescentes por cima de si e, por um momento, ficou desorientada no tempo e no espaço. Deu-se outro sobressalto quando a cama começou a mexer-se e o empurrão fê-la recordar-se, de forma breve mas aguda, que tinha sido submetida a uma cirurgia intra-abdominal. De repente, soube onde se encontrava e o grande relógio por cima da porta da sala da UCPA, da qual se aproximava, indicou-lhe as horas. Eram duas e vinte e cinco.

Voltando a cabeça para o lado em resposta a um murmúrio de vozes, Laurie teve um vislumbre da grande atividade no balcão central. Dobrando a cabeça para trás de modo a poder ver o que se passava atrás de si, olhou para o rosto do auxiliar que a empurrava. Era um afro-americano muito magro e de pele clara, com um bigode fino e cabelo grisalho. Os músculos do pescoço sobressaíam à medida que se esforçava para virar a cama de Laurie em direção às portas giratórias.

— O que se passa? — quis saber Laurie.

O auxiliar não respondeu, concentrando-se em lugar disso em parar o movimento dianteiro da cama antes de a fazer recuar uns passos. As portas da UCPA tinham-se escancarado. Uma outra cama trazia um paciente acabado de sair de uma cirurgia. Havia uma pessoa aos pés da cama, a puxar, e outra à cabeceira, a empurrar. Um anestesista caminhava ao lado da cama, mantendo as vias respiratórias do paciente desobstruídas ao segurar-lhe o queixo para trás. Pareciam falar os três ao mesmo tempo.

Laurie voltou a fazer a pergunta ao auxiliar atrás dela. Estava apreensiva. Algo se passava. Tinha percebido que não seria transferida até Laura Riley a visitar de manhã.

— Vai para o seu quarto — respondeu o auxiliar, preocupado em manobrar a cama de Laurie de modo a permitir a passagem do doente que chegava.

— Estava combinado eu ficar aqui na UCPA — disse Laurie com uma crescente sensação de alarme.

— Cá vamos nós — disse o auxiliar como se não a tivesse ouvido. Grunhiu ao mesmo tempo em que conseguia pôr a cama a andar de novo para a frente.

— Espere! — gritou Laurie. O esforço do seu protesto fez com que estremecesse de dor provocada pela incisão.

Chocado com a explosão de Laurie, o auxiliar parou a cama mais uma vez e olhou para ela preocupado.

— O que é que se passa?

— Eu não devia estar a sair daqui — atestou ela.

Tinha de falar alto, de modo a fazer-se ouvir por cima do barulho provocado pelas conversas que decorriam na sala. Para reduzir a dor ao mínimo tinha de fazer uma ligeira pressão sobre a parte superior do abdômen e evitar pressionar a parte inferior. Quando Jack a visitara anteriormente, quase não sentia desconforto resultante da operação. Infelizmente, isso tinha mudado.

— Recebi ordens rigorosas para a levar para o seu quarto — respondeu o auxiliar. A sua expressão era em parte de desafio e em parte de confusão. Tirou um pedaço de papel do bolso e olhou-o de relance. — É Laurie Montgomery, não é?

Ignorando a pergunta, Laurie levantou a cabeça da almofada e olhou para o balcão central, que parecia um formigueiro. À sua frente, as portas do átrio abriram-se novamente e mais um paciente acabado de sair da cirurgia foi rapidamente transportado para a unidade. Mais uma vez, o auxiliar teve de fazer a cama de Laurie recuar para que conseguissem passar.

— Quero falar com a enfermeira-chefe — exigiu Laurie.

O auxiliar movia o olhar entre ela e o balcão central numa clara indecisão. Sacudiu a cabeça, frustrado.

— Não me vai levar a lado nenhum—afirmou Laurie. — Eu tenho de ficar aqui. Preciso falar com um supervisor. Com um responsável.

Encolhendo os ombros, resignado, o auxiliar dirigiu-se ao balcão, deixando Laurie e a cama encalhadas no meio da sala. Segurava na mão o pedaço de papel que retirara do bolso. Laurie observava enquanto ele tentava em vão captar a atenção de alguém. Quando conseguiu, a pessoa apontou para uma mulher robusta com um capacete de cabelo loiro. Laurie observava enquanto o auxiliar mostrava o papel a Thea e apontava para ela.

Thea bateu com a palma da mão na testa, como se resolver mais um problema fosse a última coisa de que precisava. Dobrou a extremidade do balcão central e dirigiu-se diretamente a Laurie, com o auxiliar uns passos atrás dela.

— Qual é o problema? — perguntou Thea de mãos nas ancas.

— Eu devia permanecer na UCPA até ser observada pela Drª. Riley — disse Laurie enquanto se debatia por pensar no que dizer. Para além de ter acabado de acordar com uma situação tão urgente, os efeitos dos medicamentos e da anestesia faziam com que a sua mente funcionasse em câmara lenta.

— Deixe-me assegurá-la de que está tudo bem consigo. Está estável como o rochedo de Gibraltar. Não precisa ficar na UCPA e, infelizmente, temos muitos doentes que precisam. Adoraríamos acolhê-la a noite toda, mas temos muito que fazer. Por isso, até uma próxima, fique bem. — Com um aperto final no antebraço de Laurie, regressou ao balcão central, vociferando ordens acerca de outro paciente a um dos enfermeiros.

— Desculpe! — chamou-a Laurie em vão. — Pode chamar a minha médica ou deixar-me fazer uma chamada?

Thea nem se voltou. Já estava embrenhada no problema seguinte.

O auxiliar regressou à sua posição por trás da cabeça de Laurie e colocou uma vez mais a cama em circulação. Dirigiu-a às portas duplas da UCPA e a cama colidiu com elas, empurrando-as. Já no átrio, esforçou-se por orientar a cama no sentido paralelo ao corredor antes de a fazer avançar. Laurie reparou que havia, estacionadas de encontro à parede, várias marquesas com pacientes à espera de serem levados para o bloco operatório.

— Preciso fazer um telefonema — disse Laurie quando passavam ao pé do balcão das cirurgias.

— Vai ter de esperar até chegar ao seu quarto — respondeu o auxiliar. Fez pontaria com a cama às portas que conduziam ao bloco operatório.

Laurie foi acometida por um sentimento de desespero quando chegaram à rampa de acesso aos elevadores. Estava a ser rudemente retirada do seu refúgio prometido e a ser levada ao deus-dará, e era impotente para o impedir. Sofrendo duplamente com a fraqueza devida à perda de sangue e com a dor, o mais leve movimento tornava difícil imaginar-se mais vulnerável. Recordando a lista que mostrava o que os doentes da sua série tinham em comum, sabia que se encaixava no perfil. Tinha a idade certa, era saudável e estava a soro, tinha sido submetida a uma cirurgia e era segurada da AmeriCare havia relativamente pouco tempo. A sua única consolação residia nas estatísticas e no fato de Najah ter sido preso.

— Para onde vou? — perguntou Laurie, procurando uma ponta de esperança. — Para a obstetrícia/ginecologia?

O auxiliar consultou o pedaço de papel.

— Não! O serviço está lotado. Vai para o quarto 609, no piso da cirurgia geral.

Laurie fechou os olhos ao sentir-se percorrida por um arrepio.

 

— Dr. Stapleton! Ei, Dr. Stapleton!

Ao ouvir o seu nome por cima do burburinho das conversas e do ruído das crianças a chorar, Jack olhou para trás em direção ao balcão das emergências. Com toda a cafeína que lhe corria no sangue, estivera a andar de um lado para o outro, entre o balcão e as portas de entrada, olhando de modo intermitente para a chuva que caía lá fora, sobre o cimento da rampa para cadeiras de roda. À medida que o tempo fora passando, começara a pensar em mudar para o plano B, que consistia em desistir da demanda do post-it, regressar a correr ao GMLS, pegar no material que se encontrava na secretária de Laurie e levá-lo para o Manhattan General. Eram duas e meia da manhã e já estava ausente havia uma hora e meia.

Jack via Salvador a fazer-lhe sinal para regressar ao balcão. Ao seu lado, encontrava-se uma rapariga que parecia ter quinze anos. Tinha cabelo castanho claro liso, pelos ombros, que usava em risco ao meio e preso atrás das orelhas convenientemente grandes. Os seus olhos eram enormes e separados por um nariz estreito e arrebitado.

— A doutora Shirley Mayrand — disse Salvador com um gesto que designava a cardiologista residente enquanto Jack regressava rapidamente ao balcão.

Jack sentiu-se momentaneamente enfeitiçado pela juventude da mulher. Pela primeira vez na vida, sentiu-se velho. Embora se aproximasse dos cinqüenta, o fato de jogar basquetebol com miúdos que tinham metade da sua idade fazia-o esquecer-se da sua idade. Sendo a cardiologista residente de serviço, aquela mulher que tinha diante de si tinha de ter passado pela faculdade, pelo curso de medicina e de ter completado um significativo número de anos como interna.

— Em que posso ajudá-lo? — perguntou Shirley. Até a sua voz parecia a Jack pré-adolescente.

Depois de se ter apresentado, procurou a página do relatório de Sobczyk, pousou-a no tampo da mesa e desdobrou o traçado do eletrocardiograma.

— Deixo-vos a sós — disse Salvador, indo-se embora.

— Sei que não é grande coisa — disse Jack apontando para a tira do eletrocardiograma — mas estava a pensar se poderia fazer um comentário.

— É tão curto — queixou-se Shirley ao debruçar-se sobre o tracejado.

— Pois, bem, é tudo o que temos — disse Jack. Reparou que a risca no cabelo de Shirley serpenteava no seu percurso desde a testa até ao cimo da cabeça.

— Qual é o método?

— Boa pergunta. Não faço idéia. Foi uma tira do início de uma reanimação cardíaca frustrada.

— Provavelmente um condutor padrão — observou Shirley.

— Talvez — disse Jack.

A residente ergueu os olhos. Jack percebeu que uma das razões pelas quais os seus olhos pareciam tão grandes se devia ao fato de conseguir ver a parte branca em redor de toda a córnea. Conferia-lhe um ar de contínuo e inocente espanto.

— Não sei o que lhe posso dizer — comentou Shirley. — Terá de fato de me mostrar um pouco mais para ser capaz de lhe fazer um comentário com alguma segurança.

— Foi o que pensei — disse Jack. — Mas, infelizmente, este traçado é de um paciente que já morreu, coisa que já sabe, pois, como lhe disse, foi registrado durante uma tentativa de reanimação frustrada. O que quero dizer é que, se me der um palpite, isso não funcionará em detrimento do paciente; imagine, digamos, que era obrigada a dar a sua opinião. Qualquer coisa.

Shirley tornou a olhar para o traçado.

— Bem, como por certo já reparou, sugere um espaçamento, quer do intervalo PR, quer do complexo QRS, ao passo que o QTRS parece ter-se fundido com a onda T.

Jack cerrou os dentes. Parecia-lhe de certo modo injusto que aquela mulher jovem e pequena o fizesse sentir-se velho e estúpido.

— Talvez fosse melhor — sugeriu Jack — restringir os seus comentários a alguma coisa que eu conseguisse compreender. Quer dizer, poderia dizer-me qual é a sua impressão sem me explicar como chegou até ela.

— Bem, sugere-me alguma coisa — disse Shirley olhando para Jack. — Mas tenho uma idéia.

— Muito bem! Qual é?

— O Dr. Henry Wo, um dos professores, está por acaso aqui nas urgências neste momento. Foi chamado para fazer uma angiografia num caso de suspeita de enfarte agudo de miocárdio. Por que é que não lho vamos mostrar?

Jack sentia-se satisfeito. A possibilidade de conseguir a opinião de um professor pela madrugada nem sequer lhe ocorrera.

— Venha comigo até ao interior das urgências propriamente ditas! — disse Shirley ao mesmo tempo em que se debruçava por cima do balcão para apontar a Jack o caminho que ele deveria seguir. Vou ter consigo e levo-o à sala lá em baixo, onde ele está a trabalhar.

As portas do elevador abriram-se e o auxiliar de ação médica fez rodar, com um gemido, a cama de Laurie até a entrada do sexto piso. Uma vez que havia uma ligeira discrepância entre o nível do chão do piso e o nível do elevador, sentiu-se uma sacudidela e Laurie fez uma careta devido à dor que lhe causou. Era evidente que fosse o que fosse que lhe tivessem administrado para as dores perdera o seu efeito.

Embora se sentisse tão em pânico como quando deixara a UCPA, reconciliara—se pelo menos com a realidade de que pouco poderia fazer até ter oportunidade de usar um telefone. Perguntara ao auxiliar onde estavam as suas coisas, com a idéia de usar o telemóvel. Infelizmente, ele respondeu que não fazia idéia.

O auxiliar empurrou-a ao longo do corredor desde o átrio do elevador até a sala dos enfermeiros, que parecia um farol de luz intensa no hospital obscurecido e na sua maioria adormecido. Nos recessos do hospital, as luzes noturnas envoltas em vidro fosco estavam espaçadas a intervalos ao longo dos corredores, a cerca de cinqüenta centímetros do chão.

Depois de ter conseguido que a cama avançasse à velocidade de um passo ligeiro, o auxiliar teve de se esforçar para conseguir Pará-la ao lado da sala dos enfermeiros. Quando o conseguiu fazer, acionou o travão de pé antes de deixar Laurie e se aproximar do balcão na sala dos enfermeiros. Laurie conseguia ver a parte de cima de duas cabeças de enfermeiras, uma delas de cabelo curto, a outra de rabo de cavalo. Ambas as mulheres ergueram os olhos quando o auxiliar deixou cair o relatório hospital de capa de metal de Laurie em cima do balcão.

— Tenho uma paciente para vocês — disse o auxiliar.

Laurie viu a mulher de cabelo curto pegar no relatório e ler o nome que ornava a capa. Ergueu-se de imediato.

— Ora, ora, Srª. Montgomery. Devo dizer-lhe que já nos perguntávamos onde estaria.

As duas enfermeiras saíram de detrás do balcão enquanto o auxiliar se encaminhava dos elevadores.

Laurie observou as duas mulheres aproximarem-se da cama, indo cada uma delas para um dos lados. Usavam ambas a indumentária verde hospitalar. A de cabelo curto tinha pele escura, olhos amendoados e um nariz estreito e aquilino. A tez da outra era mais pálida, com feições mais largas que sugeriam uma mistura asiática. Já que ambos os rostos se encontravam a contraluz, tendo as luzes noturnas atrás de si, apenas as proeminências eram nitidamente visíveis. O resto dos seus rostos perdia-se em relativas trevas. A Laurie, que já de si estava ansiosa, pareceram-lhe ambas medonhas.

— Preciso de um telefone — disse Laurie, desviando o olhar de uma para a outra, incerta se uma seria mais velha que a outra.

— Jazz, eu levo-a para o quarto e instalo-a — disse a mulher de aparência asiática, ignorando o comentário de Laurie.

— É muito amável da tua parte, Elizabeth — disse Jazz — mas creio que tomarei pessoalmente conta da Srª. Montgomery.

—A sério? — inquiriu Elizabeth. Era óbvio que estava surpreendida.

— Sim? — disse Laurie com alguma irritação. — Preciso de um telefone!

— Como queiras — disse Elizabeth à colega e encaminhou-se para a sala dos enfermeiros.

Jazz atirou o relatório de Laurie para os pés da cama e foi para trás da cabeceira começar a empurrar.

— Desculpe! — exclamou Laurie rolando a cabeça para trás para continuar a ver Jazz. — É muito importante para mim usar o telefone. — Fez uma careta quando a cama foi destravada e de novo quando a cama avançou com um solavanco ao longo de um corredor comprido e escuro.

— Ouvi-a da primeira vez — disse Jazz. A sua voz deixava transparecer o esforço de empurrar a cama. —Acho que devo relembrá-la de que são duas e meia da manhã.

— Eu sei que horas são — disse Laurie com rispidez. — Tenho de telefonar à minha médica. Não deveria estar aqui. Deveria ter permanecido na UCPA até ela vir fazer a ronda pela manhã.

— Detesto ter de lhe dar estas notícias — disse Jazz. — Mas a sua médica, tal como todos os médicos, está a dormir profundamente. Não quer ser incomodada por causa de um qualquer problema de logística.

— Pare esta cama imediatamente! — ordenou Laurie. — Não vou para este quarto.

— Ah, não? — questionou Jazz, mas nem sequer hesitou.

Continuou a empurrar a cama de Laurie a uma velocidade significativamente maior que o auxiliar. Estava ansiosa por levar Laurie para o quarto. Nessa mesma noite, quando Laurie chegara ao hospital, tivera dificuldade em localizá-la. A princípio, pensou que talvez o Sr. Bob se tivesse enganado no nome do hospital, mas acabou por perceber que o problema se devia somente a um atraso na entrada do nome de Laurie no sistema informático do hospital. Jazz percebera-o ao verificar o registro das urgências quando fora buscar a ampola de potássio.

— Ordeno-lhe que pare — gritou Laurie quando Jazz a ignorou.

Laurie foi obrigada a pressionar com a mão a parte superior do abdômen para controlar a dor. A ação de gritar interferia com a sua incisão.

— Estou a ver que vai ser uma paciente difícil — disse Jazz com uma curta gargalhada.

Na verdade, sentia o oposto. Laurie seria uma das sanções mais fáceis, graças ao fato de a obstetrícia/ginecologia estar repleta. O fato de ter Laurie no seu piso enquanto desempenhava o papel de enfermeira-chefe faria com que tudo ocorresse num piscar de olhos.

No quarto 609, Jazz fez Laurie rodar cento e oitenta graus para empurrar a cama de modo a que a cabeceira entrasse primeiro. Quando passaram a soleira, Jazz ligou a luz do teto no quarto, obrigando as duas mulheres a piscar os olhos. Jazz conduziu Laurie até junto da cama de hospital, que era significativamente mais larga que a cama, semelhante a uma marquesa, que Laurie ocupava nesse momento.

Laurie olhou furiosamente para a enfermeira, cuja atitude não conseguia compreender. Empalideceu ao avistar a identificação da mulher: Jasmine Rakoczi. Apesar das drogas que ainda lhe corriam no sistema, Laurie recordou-se nesse preciso instante de que se tratava de um dos nomes na lista de Roger que incluía pessoas que tinham sido transferidas do turno da noite do Saint Francis para o turno da noite do Manhattan General!

— O que se passa? — perguntou Jazz ao baixar a grade protetora do lado indicado. Não pôde deixar de reparar na reação de espanto de Laurie. — Passa-se alguma coisa de errado?

Sem esperar por uma resposta, Jazz empurrou Laurie para o lado da cama do hospital. Agarrou na ponta superior do lençol de Laurie e afastou-o com um gesto brusco de pulso, apanhando Laurie desprevenida e expondo-a por completo. Usava apenas uma bata de hospital aberta atrás e tinha os joelhos nus, as pernas e os pés destapados. Uma protuberância na parte inferior direita do abdômen cobria-lhe o penso que lhe tinham aplicado sobre a incisão e um dreno cirúrgico serpenteava para fora da extremidade da bata e entrava num instrumento de plástico que conservava uma pressão negativa. Era evidente um fio de sangue no interior do tubo.

— Muito bem! — disse Jazz, impassível. — Apresse-se para ali e vamos deixá-la confortável. — Dirigiu-se então à cabeceira da cama e transferiu o saco de líquido intravenoso para o suporte na cama do hospital.

Laurie não se moveu. O pânico que sentira ao ser levada da UCPA aumentara gradualmente até atingir um auge ao ver a identificação de Jazz. Estava paralisada de medo. Pelo que sabia, Jazz bem poderia ser a assassina em série.

— Vá lá, menina — disse Jazz. Recuou até junto de Laurie e olhou para ela. — Vamos lá a mexer esse rabo para a cama.

Laurie fitou-a com o olhar mais provocador de que era capaz. Não se conseguia lembrar de mais nada para fazer.

— Se não quer cooperar, terei de chamar Elizabeth, e mudamo-la de uma maneira ou de outra. Não estamos aqui a negociar.

— Quero falar com a enfermeira-chefe — explodiu Laurie.

— Ora, que coisa mais conveniente — riu-se Jazz. — Já está a falar com ela. Sou eu a enfermeira-chefe. Pelo menos, a que desempenha as funções de enfermeira-chefe, o que vai dar ao mesmo.

A sensação de desespero de Laurie subiu mais um nível. Sentia-se progressivamente enredada numa perigosa teia de circunstâncias aterradoras.

— Então, por que é que não quer mudar de sítio? — perguntou Jazz com evidente frustração. Esticou o braço por cima de Laurie para lhe apontar as instalações do quarto. — Veja só aquela cama confortável com todos os seus comandos. Poderá ajustar-se a qualquer posição que queira e mais alguma. Tem televisor, um jarro de água sem água, uma vez que está em pós-operatório recente, um botão para chamar por nós, os escravos... todos os confortos de um lar. Que mais pode querer?

Os olhos de Jazz olharam involuntariamente para aquilo que Jazz lhe ia descrevendo e tornaram a olhar para algo. Havia um telefone na mesinha de cabeceira! Perguntou-se por que razão não teria pensado nisso até esse segundo. O auxiliar até se lhe tinha referido. Seria a sua tábua de salvação. Rangendo os dentes, ergueu-se sobre os cotovelos e começou a deslocar as costas para a cama de hospital. Tornou depois a posicionar as pernas e repetiu a manobra, passando lentamente por cima da divisão.

— Muito bem — disse Jazz. — Vejo que decidiu cooperar. Fico contente por ambas.

Logo que Laurie se encontrou na cama de hospital, Jazz deslocou o aparelho de sucção para o dreno de Laurie. Puxou o cobertor que tinha sido colocado aos pés da cama e deixou-o pousar sobre o peito de Laurie. De seguida, mediu-lhe a tensão arterial e a pulsação. Ao fazê-lo, Laurie observou-a atentamente. Jazz evitava o contacto visual.

— Muito bem — disse Jazz, olhando-a por fim ao levantar a grade protetora com um solavanco. — Parece estar tudo em ordem, com exceção do pulso, que está um bocadinho para o acelerado. Vou num instantinho ao balcão verificar as instruções para si. Tenho a certeza de que terá alguma indicação para que lhe sejam administrados analgésicos à medida que for precisando. Está a precisar, ou sente-se bem de momento?

Laurie estava espantada com a carência de calor humano normal na voz e nas ações de Jazz. Aparentemente, não havia nada de específico de que Laurie se pudesse queixar, a não ser do fato de os seus pedidos serem ignorados; havia porém uma frieza preocupante que parecia incrivelmente deslocada e, como tal, contribuía para o seu já considerável desconforto. Havia algo de definitivamente estranho em relação a Jasmine Rakoczi.

— O gato comeu-lhe a língua? — perguntou Jazz com um sorriso trocista. Afastou as mãos à altura da cintura. — Por mim, tudo bem. Não tem de falar se não quiser fazê-lo. Para ser sincera, facilita-me imenso o trabalho se não o fizer. Mas se mudar de idéias, tem o botão de chamada. É claro que quando chegar a altura de o premir, posso estar a lidar com alguém um pouco mais comunicativo.

Com um derradeiro sorriso que Laurie interpretou como sendo de descarada indiferença, Jazz saiu da sala.

Com o cuidado de não se mover demasiado depressa, Laurie estendeu o braço para a grade protetora lateral e levantou o telefone. O esforço obrigou-a a contrair os músculos abdominais, o que lhe provocou um desconforto significativo. Rangendo os dentes perante a dor, conseguiu deslocar o telefone da mesinha de cabeceira para a cama. Colocou-o junto de si e depois esforçou-se por se lembrar do número de telemóvel de Jack, tendo em conta a ansiedade e as drogas que tomara. Tomou-lhe um instante, mas depois surgiu-lhe na mente de forma tranqüilizadora. Pegou no auscultador e levou-o à orelha.

O coração de Laurie saltou uma batida. Não havia sinal de ligação! Carregou freneticamente no botão de desligar, na expectativa do som familiar. Nada. O telefone estava como morto. Com a mesma atitude frenética, agarrou no botão para chamar os enfermeiros e premiu-o, não uma, mas várias vezes em seguida.

 

Embora conseguir a opinião de um professor acerca do curto segmento de traçado de eletrocardiograma de Sobczyk lhe parecesse uma grande idéia, Jack não tinha levado em conta a disponibilidade do professor. Quando Jack e Shirley regressaram à sala lá em baixo, Jack descobriu que o Dr. Henry Wo estava a meio da introdução de um cateter. Jack viu-se forçado a andar uma vez mais de um lado para o outro do corredor, motivado pela cafeína, gesto esse pontuado por freqüentes olhadelas ao seu relógio. Shirley permaneceu estoicamente junto dele. Se tinha consciência da inquieta agitação de Jack, não o mencionou.

Só perto das três horas da manhã é que Henry saiu da sala, descalçou as luvas de látex e retirou a máscara. Era um asiático de rosto redondo com uma pele imaculada e cabelo negro cortado rente. Pegou na mão de Jack e agitou-a entusiasticamente quando Shirley os apresentou. Shirley fez referência à dificuldade em interpretar o curto segmento do eletrocardiograma e Jack entregou-lhe a página do relatório de Sobczyk com o traçado apenso.

— Estou a ver, estou a ver — disse Henry, assentindo e sorrindo ao olhar para a tira do eletrocardiograma. — Muito interessante. É tudo o que temos?

— Infelizmente, sim — disse Jack. Contou-lhe a breve história, tal como a conhecia, da tentativa de reanimação frustrada. Acrescentou a razão pela qual considerava que um simples palpite da parte deles poderia ser útil.

— É perigoso dizer muito com tão pouco — disse Henry enquanto estudava de novo o traçado. Ergueu de seguida os olhos para Shirley.

— Drª. Mayrand, talvez nos pudesse contar aquilo em que está a pensar?

Shirley reiterou o que já dissera a Jack acerca das várias ondas, intervalos e complexos enquanto Henry continuava a acenar com a cabeça. Quando Shirley terminou, Henry perguntou-lhe se fazia idéia do que poderia ter justificado essas alterações.

— O sistema condutor parece estar a falhar — disse Shirley.  — Talvez queira dizer que o bombear de sódio no interior das células do feixe de His não esteja a funcionar, ou talvez tenham sido esmagadas, o que resulta numa alteração deletéria nos potenciais da membrana.

Jack tornou a cerrar os dentes. Sentia uma súbita vontade de explodir num acesso de raiva. O breve monólogo de Shirley relembrava-lhe dolorosamente a algaraviada acadêmica que tivera de suportar ao longo do curso de medicina. Cativo de uma ansiedade intensificada pela cafeína, Jack tinha pouca tolerância para uma tal lengalenga didática e preparava-se para dar a conhecer a sua impaciência quando Henry lhe tirou as palavras da boca.

— Penso que o Dr. Stapleton está interessado num agente em particular que possa justificar aquilo que estamos a ver nesta curta tira de um eletrocardiograma. Estou correto, Dr. Stapleton?

Jack anuiu com entusiasmo.

— Bem — disse Shirley, visivelmente desconfortável por ser colocada numa posição difícil. — Estou certa de que existe uma série de drogas que poderiam criar este tipo de situação, incluindo quantidades tóxicas da maior parte de drogas arrítmicas. Mas creio que poderia eventualmente ter sido provocado por um súbito desequilíbrio de eletrólitos, em especial potássio ou cálcio. Mas isso é praticamente tudo que se pode dizer acerca da questão.

— Bem dito — elogiou Henry. Entregou a página do relatório de Sobczyk com o traçado do eletrocardiograma a Jack.

Jack recebeu o papel de Henry, refletindo acerca do que Shirley dissera. Nada acrescentara de novo, mas as palavras "súbito desequilíbrio de eletrólitos" deu-lhe uma idéia. A razão pela qual ele e os outros tinham rejeitado o possível papel do potássio foi por o laboratório ter relatado que os níveis de potássio das vítimas eram todos normais. Agora que Jack pensava sobre o assunto, aquilo que o laboratório estava a dizer em concreto era que os níveis de potássio subseqüentes à morte eram normais. Tal como toda a gente sabia, os níveis de potássio disparam depois da morte porque o vasto armazenamento de potássio do corpo é intracelular e mantém-se por um sistema de transporte ativo. Na seqüência da morte, o sistema de transporte pára e o potássio é imediatamente derramado. Qualquer súbito aumento de potássio num indivíduo resultante de uma massa injetada antes da morte seria eficazmente dissimulado. Jack tinha de admitir que se alguém quisesse matar pacientes, seria uma forma insidiosa e inteligente de o fazer.

— Se por acaso encontrar registros adicionais do eletrocardiograma, avise-nos — estava Henry a dizer. — Talvez pudéssemos ser mais conclusivos tendo mais pistas. Informe-nos.

— Mais uma coisa — disse Jack ao avistar os dois post-its de Laurie apensos ao verso da página. —Algum de vós sabe que teste laboratorial é este?

Descolou o post-it onde se lia "MASNP" e entregou-a Henry. Henry olhou para ele, abanou a cabeça e olhou para Shirley. Shirley também abanou a cabeça.

— Não faço idéia — disse Henry. Tornou a entregar o pedaço de papel amarelo a Jack. — Mas conheço alguém que provavelmente saberá: David Hancock, o supervisor noturno do laboratório. O laboratório fica convenientemente situado ao fundo do corredor. Henry apontou para uma porta que não estava a mais de seis metros de distância. — Sei que está cá hoje, porque já me ajudou.

Jack pegou no post-it e tornou a colá-lo à página, ao pé do outro. Com o laboratório ali tão perto, considerou que valeria a pena entrar lá e ver se David Hancock estava disponível.

—Não sei que tipo de teste é um MASNP, mas sei o que é MEF2A — disse Henry ao avistar o segundo post-it, ligeiramente engelhado.

— Sim? — Inquiriu Jack. Nem sequer tinha a certeza onde teria Laurie conseguido o acrônimo.

— É um gene — disse Henry. — Produz uma proteína que controla a cascata de acontecimentos que assegura a saúde do revestimento interno das artérias coronárias.

— Interessante — disse Jack vagamente, perguntando-se como poderia estar relacionado com a série de Laurie, se é que estava relacionado. — O que significaria um MEF2A positivo?

— Bem, isso é um pouco enganoso—admitiu Henry. — Quando escrevem "MEF2A positivo" na literatura, o que querem realmente dizer é positivo para o marcador da forma mutada do MEF2A. Nesse caso, trata-se de alguém que produz uma proteína defeituosa e, como conseqüência, terá uma elevada probabilidade de vir a sofrer de doença coronária, tal como sucedeu ao meu paciente esta noite. É positivo para o marcador MEF2A e aqui está ele, depois de ter sofrido um enfarte agudo de miocárdio, embora o tenhamos evitado mantendo o colesterol LBD nos níveis mais baixos que foi possível.

— Bem, tenho a certeza de que tudo isto será útil — disse Jack, embora na verdade não fizesse idéia.

Quando chegasse ao Manhattan General e fosse ver Laurie teria de lhe perguntar onde encontrara ela o acrônimo e depois, caso fosse apropriado, diria o que descobrira.

Jack agradeceu a Henry e a Shirley e dirigiu-se rapidamente à porta do laboratório, na esperança de que David Hancock estivesse disponível. Quando entrou no laboratório deu uma olhadela ao relógio e os seus níveis de ansiedade aumentaram um pouco. Passavam vinte e dois minutos das três da manhã.

Laurie carregou no botão para chamar os enfermeiros mais umas vezes. Perdera a conta de quantas vezes o premira desde que Jazz partira e o fato de ninguém lhe ter respondido fê-la sentir-se ainda mais vulnerável. Ocorreu-lhe que Rakoczi estava a ser propositadamente agressiva-passiva, tal como sugerira que poderia vir a ser ao sair.

Contribuindo para a sua ansiedade, a dor que Laurie sentia devido à cirurgia piorara, especialmente depois de se ter deslocado da marquesa para a cama e depois de ter levantado o telefone. Antes, sentia-a apenas quando se movia, mas agora era constante. Não havia dúvida de que precisava de um analgésico, mas estava relutante em pedi-lo devido aos seus inevitáveis efeitos hipnóticos. Dadas as circunstâncias, Laurie não queria ficar mais entorpecida do que já estava. Tinha de manter o espírito alerta se queria ter alguma hipótese de se proteger até a chegada de Jack.

No preciso momento em que Laurie decidira ver como seria sair da cama e pôr-se de pé, deslizou alguém para o interior do quarto. Não era Jazz nem Elizabeth. Era outra mulher, ainda mais morena que Jazz, com cabelo preto, comprido e liso preso atrás com uma mola. Transportava uma grande bandeja pelo guiador. A bandeja estava dividida em numerosos cubículos preenchidos com tubos repletos de sangue, seringas e afins.

— Laurie Montgomery? — perguntou a mulher ao mesmo tempo em que olhava para a requisição.

— Sim — disse Laurie.

— Tenho de lhe tirar sangue para estudos de coagulação.

A mulher pousou a bandeja aos pés da cama de Laurie, retirou os adequados tubos fechados e com códigos de cores e foi colocar-se ao lado de Laurie, com um torniquete a pender-lhe da mão.

— Preciso de um telefone — disse Laurie, ao mesmo tempo em que a mulher pegava no braço dela e começava a procurar as veias e a dar pancadinhas naquelas que queria ver se seriam apropriadas para a agulha. — Aquele que está aqui na mesinha de cabeceira não dá sinal.

— Não posso ajudá-la com o telefone — disse a mulher em voz alta e monótona. —Não passo de uma técnica laboratorial. — Encontrou uma veia que lhe parecia prometedora e apertou o torniquete.

Laurie preparava-se para lhe explicar pelo menos parte do seu problema quando avistou a identificação da mulher do laboratório. Lia-se Kathleen Chaudhry. Tal como Rakoczi, era um nome bastante original. E também tal como Rakoczi, era um dos nomes que se encontrava na lista de Roger de pessoas que tinham sido transferidas do Saint Francis durante o período suspeito. E, tal como Rakoczi, Laurie julgou que poderia ser uma assassina em série.

Laurie puxou o braço para longe de Kathleen de tal forma que a técnica laboratorial recuou um passo, chocada. Kathleen depressa recobrou o equilíbrio.

— Calma! — disse ela. — Vou só tirar um pouco de sangue.

— Não quero que me tire sangue — afirmou Laurie.

Era inflexível e a sua voz exprimia-o. Sentia-se paranóica, mas tinha boas razões para isso. Era como se estivesse a ser atormentada, rodeada por potenciais assassinos em série.

— A sua médica ordenou que lhe fossem feitos estes testes — disse Kathleen. — São para o seu bem. Só demora um segundo. Quase não sentirá nada, prometo.

— Não me vão tirar sangue nenhum — disse Laurie, sem deixar sombra para dúvidas. — Desculpe. Não vale a pena tentar convencer-me a fazê-lo.

— Muito bem, como queira — disse Kathleen, lançando as mãos ao ar. — Por mim, tudo bem. Só terei de avisar as enfermeiras.

— Faça isso — disse Laurie. — E enquanto o faz, diga a uma das enfermeiras que venha aqui imediatamente.

Depois de fazer questão de exprimir a sua frustração arremessando literalmente os tubos ao acaso para o interior da bandeja, Kathleen saiu do quarto.

Uma vez mais, o pesado silêncio do hospital adormecido envolveu Laurie. Começava agora a questionar a sua sanidade. Teriam aqueles nomes estado realmente nas listas de Roger, ou estaria a sua mente extenuada a inventar tudo aquilo? Laurie não tinha a certeza, mas de uma coisa sabia, sem sombra de dúvida: queria que Jack viesse e a levasse dali para fora.

Contraindo o corpo contra a dor, que piorava a cada movimento dos músculos abdominais, Laurie começou a mover-se lentamente em direção aos pés da cama. Queria ultrapassar as grades laterais e tentar pôr-se de pé. Conseguira apenas chegar a meio caminho quando Jazz entrou descontraidamente.

— Espere aí, minha menina — disse Jazz. — Onde julga que vai?

Laurie fitou-a com notório desdém.

— Preciso encontrar enfermeiros que respondam ao botão de chamada.

— Deixe-me dizer-lhe uma coisa, querida — disse Jazz. — Não é a única paciente no piso e não é, de longe, a mais doente. Temos de respeitar prioridades, coisa que tenho a certeza que compreenderia se parasse para pensar por um raio de um minuto. O que é que quer, comprimidos para as dores?

— Quero um telefone! — disse Laurie. — Este aqui na mesinha de cabeceira não dá sinal.

— Pôr o telefone a funcionar é tarefa do departamento de comunicações do pessoal diurno. Estamos no turno da noite de enfermagem. Não temos tempo para essas coisas.

— Onde estão os meus haveres? — exigiu Laurie.

Poderia tudo ser resolvido se conseguisse pôr as mãos no seu telemóvel.

— Ainda devem estar na cirurgia.

— Quero-os aqui neste preciso momento!

— Faz muitas exigências — ridicularizou Jazz. — Lá nisso tenho de dar o braço a torcer. Mas, escute-me, querida! A cirurgia está muito atarefada esta noite, o que quer dizer que vamos estar ocupados. Hão de tratar da sua tralha quando tiverem tempo. Agora, se me der licença, tenho pacientes para ir ver.

— Espere! — gritou Laurie antes de Jazz se ter enfiado pela porta fora. Quando Jazz se virou para ela, acrescentou: — Quero este líquido intravenoso fora do meu braço.

— Lamento — disse Jazz abanando a cabeça.

Regressou ao interior do quarto e, pondo-se ao lado de Laurie, enterrou uma mão na axila de Laurie. Sem um aviso, puxou-a para o local da cama onde anteriormente se encontrara. Laurie estremeceu de dor. Estava também impressionada com a força de Jazz.

— Estava em choque quando chegou às urgências — continuou Jazz. — Precisa desse líquido intravenoso para o caso de uma recaída. Precisa de fluidos e talvez precise de mais sangue.

— Pode ser aqui colocado outro líquido intravenoso — argumentou Laurie. — Quero este daqui para fora. Se não mo tirar, arranco-o eu mesma.

Jazz fitou Laurie por um segundo.

— Você é um bocado vivaça, não é? Bem, talvez se depare com alguns problemas a arrancar esse bebê. Trata-se de um fio central periférico, o que parece um pouco contraditório, mas é um cateter que foi cosido por baixo daquele pequeno penso que cobre o ponto de entrada. Estaria a arrancar um pedaço considerável de tecido se o puxasse.

— Quero que chamem a minha médica — disse Laurie. — Senão, arrancarei este intravenoso de qualquer modo, sairei desta cama e deste quarto.

O sorriso trocista e descarado com que Jazz abandonara anteriormente o quarto reapareceu.

— Você não existe. A sério! Li que ontem à noite quase sangrou até a morte e agora, passadas umas horas, está a dar ordens. Vou dizer-lhe o que vou fazer. Vou telefonar à sua médica e vou explicar-lhe exatamente aquilo que acabou de me dizer. Que lhe parece?

— Seria melhor ser eu a dizer-lhe.

— Talvez, mas isso vai ser um problema, uma vez que o seu telefone ainda não está ativo. De qualquer modo, farei o telefonema, explicarei a situação tintim por tintim, incluindo a sua recusa em tirar sangue para uma análise de coagulação, e depois já volto. Que tal?

— Já é alguma coisa — admitiu Laurie.

Enquanto Jazz saía do quarto, Laurie deixou que a sua cabeça caísse para trás sobre a almofada. Tinha a cama elevada cerca de trinta graus. Sentia o coração a pulsar-lhe nas têmporas, a dor no local da incisão piorara e tinha agora um novo receio, de que pudesse ter rebentado alguns pontos. Sentia no entanto que o pânico atingira um pico. Inspirou fundo e expirou, tentando relaxar um pouco. Até fechou os olhos. O fato de Jazz entrar em contato com Laura Riley não era tão favorável como conseguir ligar a Jack, mas, tal como dissera à enfermeira, já era alguma coisa.

 

Mais uma vez, as coisas não correram como Jack teria gostado.

David Hancock fora almoçar, mas estava prestes a regressar a qualquer momento. A princípio, Jack pensou que se tratava de uma piada, uma vez que a noite ia alta. Isto antes de se lembrar que as pessoas que trabalham no turno da noite vivem num fuso horário completamente oposto, e que para eles a refeição a meio do turno é o almoço, independentemente das horas que marca o relógio.

Jack passarinhou pela sala até ao regresso de David Hancock. Era um homem magro de origens indeterminadas. Como que compensando o pouco cabelo que tinha na cabeça, usava bigode e uma delgada e grisalha barbicha, o que lhe conferia um aspecto algo diabólico. Antes de agarrar no post-it ouviu o pedido de Jack sem qualquer comentário. Enquanto olhava para o pedaço de papel chupou ruidosamente os dentes.

—Tem a certeza de que isto é um teste de laboratório? — perguntou David olhando para Jack.

O otimismo de Jack quanto à obtenção de uma resposta caiu a pique.

— Quase a certeza — disse Jack ao mesmo tempo em que se aproximava para reaver a nota. David tirou o post-it do alcance de Jack continuando a olhar para ele.

— O que é que o fez pensar que é um teste de laboratório?

— Fazia parte das indicações pré-operatórias de alguns pacientes — disse Jack enquanto olhava para a porta por detrás do ombro.

— Não neste hospital — disse David.

— Não — concordou Jack que, nervosamente, mudava o peso do corpo de uma perna para a outra, tentando decidir se ficava ali ou se dava meia volta e ia embora. — Foi no Manhattan General e no Saint Francis, em Queens.

— Xii... — disse David depreciativamente. — Duas instituições da AmeriCare.

Apanhado desprevenido pelo comentário do supervisor laboratorial, Jack inclinou-se para ver melhor a expressão do homem.

— Será que detecto um juízo de valor na sua voz?

— Pode crer que sim — disse David. — Tenho uma irmã, que vive em Staten Island e trabalha para a Câmara, que tem tido alguns problemas de saúde, e a AmeriCare tem-lhe dado que fazer. Aquelas pessoas só vêem cifrões e tratar dos seus pacientes é a última coisa que os preocupa.

— Também tenho tido as minhas divergências com eles — admitiu Jack. — Talvez um destes dias possamos partilhar algumas das nossas aventuras, mas agora estou interessado em saber que tipo de teste é o MASNP.

— Bem, tenho de admitir que não tenho a certeza absoluta do que se trata — começou David — mas imagino que seja um teste genético.

Jack foi apanhado de surpresa. Meia hora antes Shirley Mayrand fizera-o sentir-se velho. Agora receava que David lhe fizesse o mesmo em termos de conhecimentos. Jack estava familiarizado com a ciência médica genética, mas o seu conhecimento limitava-se a marcadores de identidade usados na medicina forense. Sabia que este campo de investigação, relativamente recente, estava a avançar a uma velocidade exponencial, incentivado pela decifração do genoma humano completo.

— Imagino que MA signifique "microarray"[8], que é uma tecnologia de alta densidade usada para testes genéticos.

—Ah é? — Perguntou Jack com inocência. Estava já completamente fora de contexto e embaraçado por admiti-lo, embora o que David lhe estava a dizer encaixasse naquilo que Henry dissera a propósito do "MEF2A" escrito na nota do outro post-it.

— Está com uma expressão curiosa, doutor. Sabe o que é uma micro-matriz, não sabe?

— Ah... não muito bem — admitiu Jack.

— Então deixe-me explicar. Micro-matriz é uma grelha ou algo como um tabuleiro de damas de pontos minúsculos de uma mistura de seqüências de ADN, variáveis, mas conhecidas, colocadas numa lâmina de microscópio. Estamos a falar de muitos pontos. Ou seja, milhares, de tal forma que podem fornecer informações sobre as características de milhares de genes a qualquer altura.

— A sério! — disse Jack, embora logo depois tenha desejado não o ter feito.

Sabia que estava a parecer estúpido.

— Mas duvido que o teste sobre o qualquer saber seja um teste de caráter genético.

— Não!? — A voz de Jack soou débil.

— Não, não creio. Imagino que SNP[9] signifique Polimorfismo de Nucleótido Único, que, como sabe, é uma variação nuclear no genoma humano. Como certamente também saberá, milhares de SNP foram já cartografados de forma tão exata por todo o genoma humano que podem ser relacionados com genes mutantes específicos, passados de geração em geração. Esses SNP são também chamados marcadores. São marcadores para os nocivos genes mutados.

Foi como se a proverbial lâmpada se acendesse na cabeça de Jack. Não tinha acompanhado tudo o que David dissera, mas isso não era importante. De dedos trêmulos, apressou-se a tirar a página do relatório de Sobczyk. Quando conseguiu retirar o outro post-it enrodilhado, mostrou-o a David.

— Será que isto pode ser o resultado de um MASNP? David agarrou o outro post-it e coçou a cabeça.

— MEF2A Positivo — leu alto. — Será que isto me diz alguma coisa? Humm. — Olhou para o vazio e bateu na cabeça calva com os nós dos dedos. Depois tornou a olhar para o papel. — Sim! Já me lembro o que é! Se não estou enganado, MEF2A é um gene associado de alguma forma às artérias coronárias. Não sei exatamente como, mas lembro-me que se alguém tem este gene mutado acaba por ter elevadas probabilidades de vir a sofrer de doença coronária. Para responder à sua questão, "MEF2A positivo" pode ser o resultado de um teste MASNP em que ficou determinado que um certo indivíduo tem o SNP específico que serve de marcador para o gene MEF2A mutado.

De repente, Jack agarrou a mão de David e deu-lhe um sincero, ainda que breve, aperto de mão.

— Vamos tomar um copo um dia destes! E muito obrigado! Creio que o David acaba de resolver um mistério.

— Que tipo de mistério? — perguntou David, mas Jack já estava a correr para a porta.

Tal como fizera para entrar no laboratório, Jack atravessou as urgências para sair. Calculava que houvesse uma outra saída mais conveniente, mas não queria perder tempo a averiguar onde se encontrava. A demanda do post-it, como ele lhe chamava, acabara por ser mais proveitosa do que imaginara. Acreditava que agora tinha tanto um possível motivo como um possível método, ainda que não provado, para as mortes que Laurie tão perspicazmente estivera a documentar. Tudo aquilo de que precisava era saber onde teria Laurie desencantado o "MEF2A positivo" para ver se havia mais marcadores para outros pacientes.

Jack irrompeu pelas portas duplas que separavam as urgências da respectiva sala de espera e quase chocou com um homem numa cadeira de rodas que estava a ser levado para tratamento. O homem arquejava e a sua respiração ficou ainda pior com o susto causado pela possível colisão. Pedindo desculpa, Jack desejou-lhe as melhoras e atravessou a correr a sala de espera até a noite que o aguardava lá fora. Tinha começado a chover, mas nem se importou com isso. Se aquilo que estava a pensar fosse correto, a AmeriCare seria ainda mais escandalosamente amoral e corrupta do que julgara e sentia-se mais satisfeito ainda por Laurie se encontrar na UCPA sem lhe ser permitida a transferência para as alas comuns do hospital.

Ao chegar à First Avenue, Jack virou para sul. Abria e fechava os olhos enquanto corria à chuva e podia sentir pequenos fios de água a correrem-lhe pela cara. Tinha quase a certeza onde Laurie tinha encontrado com o "MEF2 A Positivo". Apenas queria ter a confirmação. Deu-se a si mesmo quinze minutos no gabinete de Laurie para encontrar o que pretendia e se ao fim desse tempo não tivesse sorte, adiaria a tarefa para mais tarde e regressaria ao Manhattan General. Mesmo que Brunnhilde não lhe permitisse regressar à UCPA, já se contentaria em estacionar-se à porta.

Laurie acordou sobressaltada. O fato de ter adormecido estando tão preocupada assustou-a tanto como o alvoroço que a despertara. Era Jazz e Elizabeth que entravam descontraidamente na sala conversando sobre outro paciente. Jazz aproximou-se do lado direito de Laurie e Elizabeth deu a volta à cama e pôs-se do seu lado esquerdo.

Laurie endireitou-se com algum esforço. Enquanto dormia descaíra ao ponto de ficar com o ombro comprimido contra a grade protetora da cama. Olhou de modo penetrante para cada mulher à vez. Sentia uma persistente dor de baixa intensidade no abdômen e a boca completamente seca. Na UCPA ter-lhe-iam dado pedaços de gelo, ao passo que neste quarto nada recebera.

— Ora bolas! — disse Jazz com surpresa ao olhar para Laurie. — Se soubéssemos que estava a dormir poderíamos ter-nos poupado a alguns incômodos.

— Falou com a minha médica? — reclamou Laurie.

— Digamos que falei com um dos seus médicos — respondeu Jazz. O seu sorriso descarado reapareceu, como se sentisse prazer em arreliar Laurie.

— O que quer dizer com "um dos meus médicos"? — perguntou Laurie.

— Falei com o Dr. José Cabreo — disse Jazz. — Ele está disponível, enquanto a sua doutora Riley está sem dúvida a dormir.

Laurie sentiu a pulsação a aumentar. Também se lembrava do nome do Dr. José Cabreo da lista de Roger. Na verdade, tinha lido o seu historial e ficou a saber dos seus casos de negligência médica e de tóxico-dependência. De nenhum modo queria ter algo que ver com esse anestesista.

— Ficou bastante aborrecido por saber que a Laurie tinha estado a fazer este teatro todo — prosseguiu Jazz. — Recordou-me, de forma clara, que as análises prescritas à coagulação têm de ser realizadas. Ficou também muito incomodado com as suas ameaças de arrancar os tubos intravenosos e saltar da cama, com dreno e tudo.

— Não me importa o que pensa o Dr. Cabreo — disse Laurie mordazmente. — Disse-me que telefonaria à minha médica. Quero falar com a Drª. Laura Riley.

— Correção — disse Jazz, espetando o indicador. — Eu disse que chamaria o médico, não o seu médico. Devo lembrar-lhe que o departamento de anestesia considera que ainda tem, em grande medida, responsabilidade sobre si. Tecnicamente, a Laurie ainda está num estado pós-anestésico.

— Eu quero a minha médica! — resmungou Laurie de dentes cerrados.

— É tramada, não é? — disse Jazz a Elizabeth. Esta assentiu sorrindo.

Jazz olhou para Laurie e disse:

— Uma vez que já são quase quatro da manhã, umas horas mais e vai ter o que deseja. Entretanto, tencionamos seguir estritamente as ordens que o Dr. Cabreo teve a amabilidade de nos comunicar para o seu próprio bem. — Jazz fez sinal com a cabeça a Elizabeth.

Laurie começava a reiterar o que pensava sobre o Dr. Cabreo, mas antes que pudesse completar a frase, as enfermeiras investiram simultaneamente para os seus antebraços, colando-os à cama. Surpreendida por este ataque súbito e inesperado, Laurie tentou libertar-se, mas as dores que sentia e a força das enfermeiras tornaram-no impossível. Quando se deu conta, tinha os pulsos presos com correias de velcro, que depois foram amarradas à parte de baixo da cama. Aconteceu tudo tão depressa que Laurie ficou pasmada.

— Pronto! Missão cumprida! — disse Jazz a Elizabeth enquanto se punha direita. — Agora podemos ficar tranqüilas, sabendo que os intravenosos vão permanecer no seu sítio e que esta paciente pouco cooperante não vai andar a vaguear por aí.

— Isto é um escândalo! — balbuciou Laurie, enquanto puxava inutilmente as correias. Apenas fazia com que a estrutura da cama chocalhasse. As correias permaneceram firmes.

— O Dr. Cabreo não concorda consigo — disse Jazz com um sorriso. — O stress causado pela cirurgia desorienta algumas pessoas, que têm de ser protegidas de si mesmas. Ao mesmo tempo, também pensou que a Laurie poderia ficar um pouco perturbada, pelo que lhe receitou um bom sedativo, forte e rápido.

Retirou do bolso uma seringa que já tinha a injeção preparada. Tirou a proteção da agulha com os dentes e aproximou a seringa da luz, dando pequenas pancadinhas com a unha do indicativo da mão direita.

— Não quero nenhum sedativo — guinchou Laurie, tentando mais uma vez libertar as mãos.

— É precisamente para prevenir esse tipo de reação que serve o sedativo — disse Jazz. — Elizabeth, importas-te de segurar a Srª. Montgomery enquanto eu faço as honras da casa?

Com um sorriso não muito diferente do de Jazz, Elizabeth agarrou os ombros de Laurie e colocou o seu considerável peso sobre ela. Laurie tentou contorcer-se, mas sem êxito. Sentiu o algodão frio embebido em álcool passar-lhe pela pele, seguido por uma picada e uma dor aguda mas breve.

— Sonhos cor-de-rosa! — Desejou-lhe Jazz. Fez sinal a Elizabeth e saíram ambas do quarto.

Dos lábios de Laurie saiu um queixume impotente enquanto poisava a cabeça na almofada. Um pouco mais cedo, com a dor que sentia e os efeitos dos medicamentos que tinha tomado, acreditara que seria impossível sentir-se mais impotente, mas estava errada. Agora encontrava-se literalmente amarrada à cama como uma potencial vítima sacrificial. Não fazia idéia de que tipo de injeção acabava de receber. Pelo que sabia, poderia até ser um veneno e a luta ter chegado ao fim. Se, tal como dizia Jazz, fosse um sedativo, estava condenada a ficar em breve muito mais vulnerável.

Embora estivesse em muito boa forma, tanto graças ao basquetebol como ao ciclismo, encontrava-se já sem fôlego quando deslizou até a porta dos elevadores do GMLS. Ouviu Cari Novak gritar o seu nome quando passou a correr pela segurança, mas não abrandou. A sala mortuária estava deserta. Jack premiu o botão do elevador repetidamente, como se isso apressasse a sua chegada.

Enquanto esperava, tentou pensar onde teria Laurie guardado o CD que gravara no gabinete de Roger. Tinha de ter sido aí que Laurie se deparara com a referência ao MEF2A. Entretanto chegou o elevador e Jack entrou rapidamente. O CD não estava junto dos relatórios nem das listas e não o vira nas gavetas da secretária de Laurie. O único sítio onde não procurara fora no arquivo com quatro gavetas. Olhou para o relógio. Passavam cinco minutos das quatro. Estava ausente do Manhattan General havia um pouco mais de três horas, o que sentia ser o limite do tolerável para estar descansado. Tal como decidira, não poderia demorar mais de quinze minutos para encontrar o CD.

O elevador parou com um solavanco e a porta pareceu levar um tempo fora do comum a abrir. Impaciente, Jack bateu-lhe com o pulso. A seu tempo, a porta abriu-se e Jack seguiu rapidamente ao longo do corredor pouco iluminado. Qual personagem de desenhos animados, quase falhou a porta do gabinete de Laurie por ir tão depressa. O chão estava encerado e teve de agarrar-se à ombreira para evitar deslizar para além da porta. Uma vez no interior do gabinete, começou pela gaveta de cima do arquivo.

Passados cinco minutos de uma busca vã, Jack fechou a gaveta de baixo e levantou-se. Coçou a cabeça, perguntando-se, intrigado, onde teria ela posto o raio do CD. Olhou para a secretária de Riva, mas colocou de parte a possibilidade de ele estar lá. Não havia qualquer razão para tal. Algo mais provável seria que não tivesse dado por ele quando procurara na secretária de Laurie, pelo que se sentou e tornou a procurar em todas as gavetas. Dessa vez foi bastante meticuloso, acreditando que o CD teria que estar ali em alguma parte.

Sentou-se de novo depois de ter fechado a última gaveta.

— Raios! — disse alto.

Olhou para o relógio. Sobravam menos de cinco minutos do tempo que poderia demorar. Enquanto olhava novamente para cima da secretária, pensando tornar a perscrutar o monte de relatórios para ver se o CD não estaria por acaso no meio de um deles, os seus olhos fixaram-se numa pequena luz amarela no monitor do computador.

Embora o ecrã estivesse negro, a luz dava a entender que o computador estava ligado, mas que o monitor adotara o modo de stand-by.

Premiu uma das teclas com o indicador direito, o ecrã iluminou-se e Jack deu por si a ver uma página do registro de Stephen Lewis, que listava os resultados de todas as suas análises. A letra era pequena e Jack teve de se debater com os óculos para ler que tinha comprado às escondidas. De óculos postos, conseguiu ler o que estava escrito e os seus olhos seguiram a coluna do lado esquerdo da página. Acabou por chegar ao "MASNP" e, acompanhando horizontalmente a linha com o dedo, leu "MEF2A positivo".

Abanando a cabeça perante a estupidez de não ter procurado o CD no respectivo drive no computador de Laurie, Jack agarrou no rato e passou vários minutos a descer pelo relatório médico digitalizado de vários pacientes da série. Aquilo que encontrou não o surpreendeu. Em todos os casos, tanto os do Manhattan General como os do Saint Francis, verificou que o teste ao MASNP dera positivo para algum marcador, entre vários, de mutações genéticas deletérias. Reconheceu alguns genes, mas outros não. Quando chegou ao relatório de Darlene Morgan teve um sobressalto arrepiante. O seu MASNP era positivo em relação ao gene BRCA1!

Por uma fração de segundo, Jack ficou a olhar, estarrecido, para o ecrã. Até esse momento, considerara baixo o risco de Laurie ser um potencial alvo para quem quer que estivesse a matar estes pacientes, uma vez que as estatísticas estavam do seu lado. De repente, deixara de ser esse o caso. O responsável por estas mortes parecia estar a atingir pessoas com genes deletérios herdados, e lembrou-se de que Laurie, tal como Darlene Morgan, tinha o BRCA1.

Como que impelido por um foguete, Jack ergueu-se de um pulo, saiu a correr do gabinete de Laurie e lançou-se precipitadamente pelo corredor em direção ao elevador. Felizmente, continuava nesse piso. Enquanto descia, procurou às apalpadelas o telemóvel no bolso do casaco. Olhou para o relógio mais uma vez. Passavam dezesseis minutos das quatro. Marcou rapidamente o número do Manhattan General, mas não tentou fazer a chamada, pois de momento não tinha rede.

Logo que as portas se abriram no piso térreo, saiu disparado pelo corredor, passando pela segunda vez por um surpreendido Cari Novak, que caminhava na direção oposta. Jack ignorou-o. Tinha o telemóvel colado ao ouvido, depois de ter feito a chamada assim que saíra do elevador. O operador do hospital atendeu quando descia o pequeno lanço de escadas que conduziam do parque da entrada da morgue ao passeio. Depois de se ter identificado como médico, e sem abrandar, Jack pediu, já ofegante, que o passassem à UCPA. Queria assegurar-se de que Laurie não era transferida até que Riley fizesse a sua ronda. Correndo o mais depressa que conseguia, Jack chegou à 30th Street e virou para oeste.

Ao chegar à First Avenue, o telefone foi atendido na UCPA. Reconheceu a voz imperativa da enfermeira responsável e obrigou-se a parar. Já não chovia tanto como quando entrara a correr no GMLS, um quarto de hora atrás, mas ainda assim chovia, de modo que Jack tentava proteger o telemóvel com a mão disponível. Diante de si passava um ou outro carro na direção norte.

Com a respiração cortada, Jack identificou-se a Thea.

— Espere um segundo — disse Thea. Do outro lado da linha, Jack podia ouvi-la a gritar indicações sobre onde deveria ser colocada a cama de um novo paciente. Depois regressou à linha. — Desculpe, estamos um pouco ocupados por aqui. Em que é que o posso ajudar, Dr. Stapleton?

— Não queria incomodar — disse Jack. Ao mesmo tempo em que falava procurava um táxi. Ainda não vira um sequer. — Queria saber qual é o estado de Laurie Montgomery. — Viu finalmente à distância um táxi com a luz de livre ligada. Estava prestes a sair do passeio e fazer sinal com a mão quando se assustou com a resposta de Thea.

— Não temos aqui uma Laurie Montgomery.

— O que quer dizer? — perguntou, sobressaltado. — Está na cama encostada à parede oposta. Estava aí hoje, até me disse que ela era um encanto.

—Ah, essa Laura Montgomery! Queira desculpar-me. Nas últimas horas tivemos aqui um corrupio com um grande número de traumatizados. Laurie deixou a UCPA, já estava bem e necessitávamos da cama.

— Quando é que foi isso? — perguntou Jack com a boca subitamente seca.

—Logo depois de o supervisor do bloco operatório me ter avisado que tinha ocorrido um desastre. Eu diria que deviam ser umas duas e um quarto.

— Deixei-lhe o meu número de telemóvel. — balbuciou Jack. A Thea deveria ligar-me se houvesse alguma alteração no seu estado.

—Não houve qualquer alteração. Os seus sinais estavam estáveis. Não a deixaríamos sair daqui se houvesse o menor problema, acredite!

— Para onde foi ela? — conseguiu perguntar Jack, forçando-se a controlar a raiva e a aflição na sua voz. — Para a UCI?

— Não, ela não necessitava de ir para lá e, de qualquer modo, a unidade estava cheia, tal como a obstetrícia/ginecologia. Foi para o quarto 609, no piso de cirurgias.

Jack fechou bruscamente o telemóvel e ficou a olhar, angustiado, para a avenida escura, molhada e quase vazia. O táxi que vira tinha-se ido durante o choque que lhe causara a preocupante e desesperante conversa com Thea Papparis. A idéia de Laurie ter saído havia quase duas horas da UCPA, estando tão vulnerável, enquanto ele andava na sua estúpida missão era quase demasiado horrível para acreditar. A pergunta "Em que raio estava eu a pensar?" repetia-se dentro da sua cabeça como sinos a repique. Assolado pelo pânico, Jack começou a correr para norte ao longo da First Avenue, indiferente às poças de água que pareciam charcos de crude. Sabia que correr até ao Manhattan General lhe tomaria demasiado tempo, mas também sabia que não podia simplesmente ficar ali.

 

Tinha sido uma noite atarefada, talvez uma das mais atarefadas de que Jazz se conseguia lembrar no seu atual local de trabalho. Tinham recebido uma invasão de pacientes com traumatismos vindos da UCPA e que ocuparam todas as camas vagas. No papel de enfermeira chefe auto-proclamada, estatuto esse que estava para ser alterado em breve, segundo os rumores, com a contratação de uma nova enfermeira experiente para o turno da noite, coubera a Jazz, à falta de uma chefe, a tarefa de distribuir os pacientes pelos atuais enfermeiros e auxiliares de ação médica do turno da noite. Não se tinham ouvido muitas queixas, já que Jazz fizera questão de ficar com a sua parte. Mais importante ainda, fizera também questão de incluir Laurie na sua lista. Uma vez determinado e aceite isso, Jazz descontraiu. Sabia que seria capaz de cumprir a sua responsabilidade para com a Operação Peneira à sua vontade.

Jazz espreguiçou os braços acima da cabeça e fez rodar a cabeça algumas vezes para relaxar os músculos do pescoço. Estava tensa. Terminara nesse momento umas papeladas e preparava-se para fazer uma pausa na prestação dos cuidados aos pacientes, de que pretendia fazer bom uso. Até a pausa para almoço tinha sido cortada para todos, pois os pacientes assim o exigiram, obrigando Jazz a passar sem comer. Em lugar disso, usara esse tempo para desaparecer na casa de banho das senhoras, situada mesmo antes da entrada da cafeteria, para encher uma seringa com o cloreto de potássio, que surripiara da despensa nas urgências, e deitar fora a ampola vazia. Na sua perspectiva, a preparação de uma sanção tornara-se rotina.

Eram quatro e quarenta da manhã e estava tudo pronto. Estivera à espera do momento certo e ele chegara. Elizabeth, que se encontrava ali sentada com Jazz dois segundos antes, a tratar da sua própria papelada, fora chamada para ajudar um paciente no quarto 637 e acabara de desaparecer da sua vista. Entretanto, todos os outros enfermeiros e auxiliares estavam igualmente ausentes, a cuidar dos respectivos pacientes. Os corredores de iluminação débil possuíam aquela serena tranqüilidade noturna de que Jazz aprendera a gostar. Olhou para um corredor e para o outro. Era a oportunidade perfeita.

Jazz afastou a cadeira da secretária e levantou-se. Introduziu a mão no bolso direito do casaco e tocou de forma tranqüilizadora na seringa cheia. Inspirou fundo para controlar a excitação e começou a andar. Com passos de crescente ligeireza, atravessou, apressada, o corredor até ao quarto 609. Fez uma pausa à porta e deu uma nova olhadela aos dois lados do comprido corredor. Uma vez iniciada uma missão, preferia não ser vista para evitar falatórios posteriores.

Tal como lhe convinha, não havia pessoa alguma à vista. O único ruído que se ouvia era o bip calmo e metronômico de um monitor num quarto ali perto. Jazz sorriu. Sancionar Laurie Montgomery iria provavelmente ser a missão mais simples que já levara a cabo, tanto porque pudera escolher o momento, como por o seu alvo se encontrar sob o efeito de sedativos e com os membros presos. "O que poderia ser mais fácil?", perguntou Jazz em voz baixa.

Jazz entrou no quarto. Meia hora mais cedo, quando dera por si a passar pelo 609 de regresso à sala dos enfermeiros depois de ter tratado de um outro paciente, enfiara a cabeça no seu interior para se certificar de que os sedativos estavam a fazer efeito. E estavam. Enquanto lá estivera, baixara as costas da cama de Laurie de modo a deixá-la numa posição horizontal. Desligara também as luzes fluorescentes de teto. Agora, e à semelhança do corredor, o quarto era banhado por um suave brilho incandescente vindo das luzes noturnas situadas nos recessos mesmo acima do rodapé.

Sem um ruído, Jazz deslocou-se até junto da cama de Laurie. A paciente encontrava-se num sono profundo, induzido por drogas. Tinha a boca ligeiramente aberta e Jazz podia ver que os seus lábios e língua estavam secos e como que incrustados.

— Ah, coitadinha! — murmurou Jazz com desprezo.

Estava divertida. De todos os pacientes que Jazz sancionara até ao momento, sentia que Laurie era a que mais o merecia, com todas as suas exigências e a sua desagradável atitude. Aos olhos de Jazz,

Laurie era a definição de uma cabra privilegiada e rica, que seria o equivalente feminino de todos os Srs. Ivy League que ela tivera de aturar. E, a acrescentar a tudo isso, era médica e continuava a dar ordens a Jazz mesmo na posição de paciente! De acordo com a sua perspectiva, Laurie Montgomery, com o seu passado de berço de ouro, "teria o que merecia" ao sofrer uma grande e derradeira humilhação.

Jazz olhou para as faixas que amarravam os pulsos de Laurie e sentiu um arrepio de prazer. Não havia dúvida de que as amarras lhe facilitavam a missão e Jazz estava certa de que Laurie não haveria de coçar o braço como o canalha do Stephen Lewis. Para além do aspecto prático, considerou que as faixas possuíam um poder de atração semelhante àquele que em si produziam os filmes pornográficos onde se viam pessoas amarradas e que ela transferira da Internet. Para si, tratava-se de uma questão de controlo.

Jazz levantou suavemente a cabeça de Laurie e retirou-lhe a almofada. Estava convicta de que, com os sedativos que lhe dera, ela nem se mexeria, e assim foi. Jazz enfiou a almofada por baixo do braço. Queria-a a jeito para a atirar à cara de Laurie na eventualidade de ela produzir sons inconvenientes como a chata da Sobczyk. Não estava à espera de que Laurie o fizesse; o intravenoso era um fio central, o que significava que o potássio concentrado seria depositado numa grande veia, fazendo com que fosse menos doloroso que numa veia superficial, mas Jazz queria estar preparada. Orgulhava-se de aprender depressa e quanto menos surpresas, melhor.

Ergueu o braço, agarrou no fio intravenoso e abriu-o de forma a que fluísse livremente. Aguardou alguns minutos, para ter a certeza de que corria bem. Quando se sentia segura de que o intravenoso estava a funcionar na perfeição, sacou da agulha com o potássio. Usou os dentes para arrancar a proteção da agulha e espetou-a no saco do líquido.

Depois de ter olhado para a porta e para o corredor e ter ficado à escuta por um instante de algum som suspeito, Jazz deu a injeção com uma pressão forte e contínua. Demorou apenas cinco segundos. Sabia que quanto mais potássio chegasse ao coração numa massa concentrada, mais eficaz seria. Tal como era habitual, enquanto injetava, viu o nível de fluido aumentar na câmara de microporo por baixo do saco de fluído intravenoso.

Logo que a seringa ficou vazia, Jazz retirou-a e recolocou-lhe a proteção. Puxou depois a almofada de debaixo do braço enquanto Laurie se agitava, gemia e abria os olhos.

— Bon voyage — sussurrou Jazz.

Com a almofada na mão direita preparada para a ação e a seringa na esquerda, Jazz debruçou-se depois sobre Laurie, porque julgara que ela murmurava qualquer coisa. Começava a pedir-lhe que repetisse o que dissera quando recuou, numa surpresa chocada, perante o som da porta do quarto a ser fechada. Jazz sentiu-se momentaneamente pasmada com a chegada súbita e em turbilhão naquele ambiente silencioso e debilmente iluminado, especialmente porque se sentia tensa e embrenhada naquilo que estava a fazer, mas também porque julgara que tinha sido tão cuidadosa no evitar de surpresas. Aparte um passo defensivo atrás dado por reflexo, Jazz ficou paralisada por um momento.

— Como é que ela está? — gritou Jack ao acorrer aos pés da cama de Laurie.

A sua respiração era libertada em sopros ruidosos. Tinha o cabelo a pingar e colado à testa. Parecia um selvagem, com a barba por fazer, os olhos vermelhos, as roupas molhadas e os sapatos encharcados. Inclinou-se com ambas as mãos sobre o fundo de metal da cama como que exausto, mas depressa se restabeleceu. Era evidente que não gostara de imediato daquilo que vira. Os seus olhos dispararam em direção a Jazz, que não lhe respondera. Viu a almofada e a seringa nas mãos dela. A sua atenção tornou a dirigir-se para Laurie, que gemia suavemente e se debatia débil e futilmente contra as amarras nos pulsos.

—O que é que se passa? — perguntou Jack. Apressou-se a contornar a cama para se colocar à direita de Laurie, à frente de Jazz. — Laurie! — Gritou.

A sua mão pegou por breves momentos no pulso de Laurie, mas depois disparou para lhe agarrar a testa por forma a impedir que a sua cabeça se agitasse de um lado para o outro.

— Para que raios são as faixas? — gritou Jack, mas não esperou por uma resposta.

Face a uma inspeção mais atenta, era evidente que Laurie se encontrava num estado desesperado, cada vez pior, e possivelmente em agonia. O seu rosto deixava transparecer uma mistura de terror, confusão e dor.

— Acenda as luzes! — gritou Jack. — Anuncie o código!

Jazz continuava sem reação, para além de recuar mais um passo, espantada com os inesperados acontecimentos.

— Foda-se! — gritou Jack face à paralisia da enfermeira. A sua voz fez eco nas adormecidas paredes do hospital. Precisava de auxílio depressa, mas não queria deixar Laurie sozinha, por uns segundos que fosse.

Num estado de frustração desesperada e frenética, Jack puxou a cama, afastando-a da parede. As rodas travadas produziram um chiado no chão de PVC. Depois de ter empurrado a mesinha de cabeceira para o lado, fazendo com que a coleção de objetos pousados na sua superfície caísse ao chão com estrépito, Jack enfiou-se entre a cabeceira da cama e a parede. Com o pé desprendeu os travões das rodas. Rangendo os dentes e deixando que um grito de guerra se soltasse dos seus lábios, empurrou a cama da parede, arrancando os cabos de energia com esse gesto. Ganhou velocidade, e embora tenha batido na porta e depois na ombreira, trataram-se de colisões oblíquas, e não impediram o seu avanço. No espaço de segundos, encontrava-se no corredor e, usando de toda a sua força, conseguiu que a cama rolasse a boa velocidade pelo corredor em direção às luzes intensas da sala dos enfermeiros.

— Anunciem o sinal de código! — gritou Jack a plenos pulmões enquanto empurrava.

Avultou-se no seu caminho um infeliz carro de limpezas, mas Jack ignorou-o. A cama onde Laurie se encontrava tinha consideravelmente mais inércia e o desgraçado carrinho foi derrubado com um estrondo, entornando no chão a sua provisão de sabonetes individuais e outro material. Seguiu-se alguém que vinha a caminhar e que quase foi esmagado pelo ímpeto da cama.

— Anunciem o sinal de código! — tornou a gritar Jack. Começaram a surgir nas portas enfermeiros, auxiliares e até pacientes ambulatórios para verem Jack passar apressado.

Jack tentou reduzir a velocidade a que a cama seguia ao aproximar-se da sala dos enfermeiros, mas só parcialmente foi bem sucedido. A cama disparou ao lado do balcão, levando consigo todos os registros hospitalares que haviam sido deixados em cima dele, bem como um vaso de flores cortadas que ainda teria de ser entregue a um dos pacientes. À luz forte, Jack podia ver como Laurie estava com mau ar. Era de uma palidez fantasmagórica e estava imóvel. Os seus olhos, de pupilas dilatadas, fitavam inexpressivamente o teto. Jack despiu o sobretudo e o casaco molhados, deixando-os cair ao chão, e foi para o lado de Laurie. Depois de ter rapidamente concluído que era óbvio que ela não estava a respirar nem tinha pulsação, puxou o queixo dela para trás, apertou-lhe o nariz e colou os lábios aos dela. Expirou vários sopros demorados para o interior da sua boca, curvou-se sobre a cama e começou a executar uma massagem cardíaca. Segundos mais tarde, estavam várias enfermeiras junto de si. Uma delas trazia um insuflador Ambu e começou a fazer a respiração na boca de Laurie, acertando cuidadosamente o ritmo com as compressões de Jack. Encheu os pulmões de Laurie com ar depois de Jack ter exercido sobre ela cinco compressões. Uma outra enfermeira empurrou uma garrafa de oxigênio com rodas e ligou-a ao insuflador Ambu.

— Já anunciaram o sinal de código? — Gritou Jack.

— Sim — disse a enfermeira que expirava para Laurie.

— E então, onde diabos estão eles? — Perguntou Jack.

— Passou menos de um minuto desde que foram chamados.

— Merda, merda, merda! — deixou escapar Jack por entre dentes cerrados.

Estava ofegante por ter estado a correr, a empurrar, e agora a efetuar as compressões. Censurou-se silenciosamente por ter deixado Laurie, ainda que por sugestão dela. Deveria ter-se aparcado à porta da UCPA, tal como ameaçara. Da sua posição sobre Laurie, podia ver que a cor dela era um bocadinho de nada melhor em comparação com o que fora antes de dar início à reanimação cardiopulmonar, por isso estavam a fazer um pequeno progresso.

— Como estão as pupilas dela? — perguntou Jack à enfermeira que estava a monitorizar o saco.

— Não há grandes alterações.

Jack abanou a cabeça era sinal de frustração.

— Mas afinal quanto tempo demora a equipa de reanimação a chegar aqui? — gritou entre compressões.

Se o que sucedera a Laurie fora aquilo de que suspeitava, a sua vida estava claramente em causa até a chegada da equipa de reanimação e, até depois disso, não sabia quais seriam as suas hipóteses. De uma coisa estava ele bem certo: a reanimação cardiopulmonar por si só não haveria de dar conta do recado. Tinha de ser tratada.

Como que em resposta a uma oração, a porta do elevador abriu-se no átrio e saiu de lá aos solavancos um carro para falhas cardíacas. Era acompanhado de quatro médicos residentes, duas mulheres e dois homens, que vinham a correr. A líder do grupo era Caitlin Burroughs, que parecia ter andado com Shirley Mayrand na turma do curso de medicina para bebês sobredotados. Se Jack a tivesse visto na rua, julgaria que se tratava de uma aluna de liceu e não de uma experiente médica residente. Os homens também tinham uma aparência jovem, mas nem de perto nem de longe se encontravam ao nível de Shirley ou Caitlin.

Um dos residentes tomou imediatamente o insuflador Ambu das mãos da enfermeira. Dois dos outros começaram a ligar os cabos para o eletrocardiograma. Era evidente que sabiam trabalhar em equipa.

— O que se passou? — gritou Caitlin, verificando as pupilas de Laurie.

— Hipercalemia — respondeu Jack a gritar.

— Mas que diagnóstico tão específico! — exclamou Caitlin. Falava de modo rápido e em staccato. Poderia ter parecido jovem a Jack, mas deixava transparecer uma confiança que só poderia advir da experiência. — Como sabe que tem os níveis de potássio demasiado elevados?

— Não é doença renal — explodiu Jack em resposta.

Não tinha cem por cento de certeza de que Laurie estivesse a sofrer de excesso de potássio, mas estava seguro a cem por cento de que, se não agissem de imediato, e se estivesse mesmo hipercalêmica como suspeitava, a perderiam por certo, e acabaria por se tornar uma estatística da sua própria série.

— Demoraria muito tempo a explicar-lhe agora como é que sei, mas sei — continuou Jack com ênfase. — Temos de a tratar para excesso de potássio no soro, e temos de o fazer agora! Neste segundo.

— Como é que tem tanta certeza? E, já agora, quem é o senhor?

— Sou o Dr. Stapleton — explodiu Jack. — Sou médico-legista aqui na cidade. Ouça! Têm tido desde janeiro uma série de inesperadas mortes cardíacas neste hospital. Têm todos sido casos de tentativas infrutíferas de reanimação em pessoas jovens e saudáveis, tal como esta paciente. Foi dado alerta vermelho no GMLS. Julgamos que se trata de hipercalemia iatrogênica propositada.

— Não temos quase nada no eletrocardiograma — anunciou um dos residentes, postado junto da máquina pousada sobre o carro de equipamento para falhas cardíacas.

A máquina expelia papel de eletrocardiograma de lado, cujo traçado registrava complexos mal formados.

Caitlin deu-lhe uma rápida vista de olhos. Fosse o que fosse que tivesse visto, fê-la colocar-se do lado de Jack e começou a gritar ordens que fizeram com que as enfermeiras começassem numa correria. Queria gluconato de cálcio; queria vinte unidades de insulina normal juntamente com uma dose de cinqüenta gramas de glucose; queria bicarbonato de sódio; queria uma preparação de resina com catião permutador para um enema de retenção; queria que enviassem sangue para analisarem as percentagens de eletrólitos; e, mais importante que tudo isso, na opinião de Jack, queria que enviassem um bip a um residente de cirurgia para que os auxiliasse com uma diálise peritoneal de emergência. Segundo a perspectiva de Jack, seria a diálise que poderia vir a salvar o dia.

Enquanto as enfermeiras se ocupavam a cumprir as ordens e a obter e preparar toda a medicamentação, um dos residentes subiu para a cama para aliviar um relutante Jack, mas logo que o homem deu início às compressões, Jack reconheceu que ele estaria provavelmente a fazer um melhor trabalho que ele. Como oftalmologista transformado em médico-legista que era, estava um pouco enferrujado no que dizia respeito à reanimação cardiopulmonar. Estava também exausto, mas era-lhe difícil permanecer ali aos pés da cama sem nada fazer enquanto a vida de Laurie estava na corda bamba. Durante o período em que se concentrara a fazer as compressões no peito, não tinha tido tanta oportunidade para pensar na potencial tragédia daquilo que estava a testemunhar.

Jack não fizera todo o percurso desde o GMLS até ao hospital Manhattan General a correr, mas ainda assim correra até bem longe. Atravessara a correr quase dez quarteirões da First Avenue sem ver um único táxi disponível. Tinha passado por ele um bom número de carros que o haviam molhado, mas não parara. Depois, a sua sorte mudara. Perto da sede das NU, um carro de patrulha da polícia encostara diante dele, na aparente convicção de que ele estaria a fugir de um crime. Quando Jack lhes mostrara a sua identificação de médico-legista e lhes dissera, ofegante, que estava a correr devido a uma emergência no Manhattan General, a polícia dissera-lhe que entrasse no carro. Tinham-no levado sem paragens com a sirene ligada. Se lhes passou pela cabeça por que razão um médico-legista, que lida com cadáveres, haveria de ter uma emergência a meio da noite que o obrigasse a correr pela First Avenue fora, não o tinham deixado transparecer.

Enquanto o tratamento contra a hipercalemia começava a baixar os elevados níveis de potássio que Jack receava que corressem no sangue dela, surgiu um anestesista. Começou a entubar habilmente Laurie para que ela pudesse receber a respiração artificial com maior fiabilidade. Quando se endireitou depois de terminado o procedimento, Jack viu-lhe o nome. Era José Cabreo e Jack virou de novo o rosto para ele. Lembrava-se do nome do homem das listas de Roger. Jack deu por si a observar cada movimento de José e sentiu-se aliviado quando o anestesista saiu apressadamente.

A diálise peritoneal foi iniciada de forma percutânea sem qualquer dificuldade, com recurso a um grande trocarte incisivo. Jack desviou os olhos enquanto o trocarte era introduzido pela cavidade abdominal de Laurie, mas estava perto o suficiente para ouvir o som de bombear que fez ao atravessar a faseia, e estremeceu. Passado um momento, viu o fluido isotônico, isento de potássio, a ser introduzido no abdômen. Tinha consciência de que, com a extensa área de superfície no interior do abdômen resultante das voltas do intestino, combinada com o rico plexo de vasos sanguíneos, a diálise peritoneal era o método mais eficiente, ainda que passivo, de reduzir os níveis de potássio ou de qualquer outro eletrólito elevado no sangue.

Infelizmente, passados dez minutos da terapia agressiva, era com desapontamento que verificavam poucas alterações no estado de Laurie. Caitlin pediu mais gluconato de cálcio e injetou-o ela mesma. Jack ouviu-a de longe, pois começara a andar de um lado para o outro entre a cama de Laurie, diante da sala dos enfermeiros, e o elevador. Desta feita não era a cafeína que o estimulava, era o medo e a culpa crescentes que sentia. A preocupação que o afligia era de que esse episódio pudesse ser outro exemplo do fato de dar azar às pessoas que amava. Esse pensamento perseguia-o de modo implacável. Numa noite, já perdera um filho, agora estava à beira de perder a mulher que amava. Para piorar as coisas, sabia que a culpa era, pelo menos em parte, sua.

Quando as análises ao sangue chegaram, Caitlin mostrou-as a Jack.

— Bem, estava inteiramente certo — disse ela apontando para o nível de potássio anormalmente elevado e sublinhado no papel. É o mais elevado que já vi. Depois de tudo isto terminar, gostaria que me contasse como é que sabia.

— Terei muito gosto — disse Jack — desde que a Srª. Montgomery consiga escapar.

Se Laurie não se salvasse, não sabia se estaria na disposição de falar fosse com quem fosse.

— Estamos a dar o nosso melhor — disse Caitlin. — Pelo menos, está com boa cor e as pupilas baixaram definitivamente.

À medida que os minutos iam passando de modo inexorável, Jack mantinha a distância. Como não participava, tornava-se cada vez mais incômodo para si ver Laurie estendida na cama com um estranho a bater-lhe no peito e outro a esfregar com frieza o insuflador respiratório. Os pacientes ambulatórios que anteriormente tinham surgido nas respectivas portas para contemplarem o drama que se desenrolava tinham regressado às camas. A maioria dos enfermeiros do piso também tinha sido chamada pelas necessidades dos seus próprios doentes.

Eram vinte para as seis quando ocorreu o primeiro sinal verdadeiramente otimista e foi Caitlin que nele reparou.

— Ei, pessoal! — gritou. — Estamos a conseguir um pouco de atividade elétrica por parte do coração!

O médico residente que de momento não estava a fazer nem a massagem cardíaca nem a compressão do insuflador respiratório acorreu à máquina de eletrocardiogramas para olhar por cima do ombro de Caitlin.

— Peça mais uma análise aos níveis de potássio — gritou Caitlin à enfermeira que lhes prestava auxílio.

— Uau! Estes complexos começam a parecer bastante normais — disse o residente a Caitlin, que anuiu em sinal de concordância. — E estão a melhorar.

— Pára as compressões! — gritou Caitlin ao residente, que estava ajoelhado na cama debruçado sobre Laurie. — Vejam se tem pulsação.

O residente que estivera a respirar por Laurie também parou o tempo suficiente para sentir se havia pulsação no pescoço de Laurie.

—Tem pulsação! E, meu Deus, está a respirar sozinha! — Retirou a máscara da extremidade do tubo endotraqueal. Sentiu com a palma da mão a quantidade de ar que inspirava e expirava. — Está a respirar de modo bastante normal e está a agitar o tubo endotraqueal.

— Esvazia-o e retira-o! — ordenou Caitlin. — O eletrocardiograma parece completamente normal.

O residente seguiu apressadamente as ordens e fez deslizar o tubo para o exterior da boca de Laurie, mas continuou a segurar-lhe o queixo para trás de forma a certificar-se de que as vias respiratórias permaneciam abertas. Laurie tossiu por diversas vezes.

Ao ouvir essas trocas de palavras, Jack precipitou-se do local onde se encontrava a andar de um lado para o outro na zona obscurecida dos elevadores e foi para trás da secretária da sala dos enfermeiros. Laurie tinha sido ligada a um dos monitores montado sobre a secretária, mas, para o ver, uma pessoa teria de se encontrar do lado oposto do balcão de onde estava a decorrer a ação. Meia hora antes, quando olhara, as linhas da pressão sanguínea e da pulsação tinham registrado no ecrã linhas planas. Agora era diferente e o coração palpitava-lhe no peito. Laurie tinha pulsação e tensão arterial!

— Pára com a diálise peritoneal! — ordenou Caitlin. — E retira a resina de catião permutador. Não queremos exagerar e depois termos de nos preocupar com níveis de potássio demasiado baixos.

Jack contornou o balcão da sala dos enfermeiros. Havia novamente uma agitação em redor de Laurie à medida que as mais recentes ordens de Caitlin eram levadas a cabo. Jack não se queria meter no caminho deles, mas, perante a esperança que tais acontecimentos lhe davam, queria manter-se perto dela.

—Aleluia! — disse o residente que estivera mais recentemente a respirar por Laurie. — Está a acordar!

Incapaz de se manter afastado, Jack misturou-se com a multidão à cabeceira da cama de Laurie, que tinha sido encostada ao balcão da sala dos enfermeiros. Baixou os olhos e viu aquilo que lhe parecia ser um milagre. Laurie tinha os olhos abertos e eles moviam-se de um rosto sobre o dela para o outro não deixando transparecer o mínimo sinal de confusão nem de medo. Inesperadamente, Jack irrompeu em lágrimas, de tal modo que lhe era difícil ver. Tudo o que conseguia fazer era abanar a cabeça enquanto tentava falar.

— Soltem-lhe os pulsos — ordenou Caitlin, que se introduzira à frente de Jack. As amarras tinham sido mantidas durante aquela difícil situação. Caitlin debruçou-se sobre Laurie e esfregou-lhe os ombros num gesto tranqüilizador. — Está tudo bem. Descontraia-se. Temos tudo sob controlo. Vai ficar bem.

Laurie tentou falar, mas a sua voz mal se ouvia. Caitlin teve de se baixar e encostar um ouvido à boca dela.

— Está no hospital Manhattan General — disse Caitlin. — Sabe como se chama e em que anos estamos? — Caitlin escutou-a e depois endireitou-se.

Olhou para Jack, que se acalmara o suficiente para controlar o choro e limpar as lágrimas.

— As perspectivas são de fato muito boas. Está bem encaminhada. Devo dizer-lhe que o seu rápido diagnóstico salvou sem dúvida o dia. Com os níveis de potássio elevados como estavam quando começamos, não teria por certo podido ser reanimada.

Jack anuiu. Continuava sem conseguir falar. Em lugar disso, dobrou-se e pousou a testa sobre a de Laurie. Agora que tinha as mãos livres, Laurie ergueu a mão e fez-lhe uma festa de lado na cabeça e murmurou numa voz arranhada:

— Por que é que estás tão perturbado? Que se passa?

As perguntas de Laurie fizeram com que se soltasse mais uma vaga de lágrimas. De momento, tudo o que conseguia fazer era esfregar a mão de Laurie.

Estava uma enfermeira de pé atrás do balcão na sala dos enfermeiros. Acabara de atender ao telefone.

— Drª. Burroughs! — chamou. — O nível de potássio em Montgomery é de quatro miliequivalentes.

— Meu Deus! — exclamou Caitlin. — Isso é quase perfeito. Virou-se para os seus três residentes subordinados. — Muito bem, eis o que vamos fazer! Enquanto ligo ao professor e lhe dou as novidades atualizadas, vocês os três levam a paciente lá para baixo, para a unidade de cuidados cardíacos, e ligam-na ao monitor. Vou querer outra análise ao nível de potássio logo que lá cheguem e vou para lá mal termine aqui as coisas para podermos decidir que fluidos vamos usar.

Enquanto se faziam rápidos preparativos para mudar Laurie, Jack conseguiu falar.

— Não estou perturbado — murmurou ao ouvido de Laurie. — Estou contente por estares bem. Pregaste-nos um susto.

— Foi? — inquiriu Laurie. Também a sua voz voltava a si, mas falar era-lhe doloroso.

— Estiveste inconsciente durante algum tempo — disse Jack.

— Qual é a última coisa de que te lembras?

— Lembro-me de ter saída da UCPA, mas nada depois disso. O que aconteceu?

— Explico-te tudo o que sei na primeira oportunidade — prometeu Jack quando a cama se começou a deslocar.

— Também vens? — perguntou Laurie segurando o braço de Jack.

— Podes ter a certeza — disse Jack, que caminhava a seu lado. Uma enfermeira deu uma corridinha e entregou a Jack o sobretudo e o casaco molhados.

Usaram um elevador de pacientes para levar Laurie até ao terceiro piso, onde se situava a UCC. À porta da unidade, deparou com um impedimento. A enfermeira não deixava Jack entrar, embora a pudesse visitar quando ela estivesse instalada. A princípio, Jack renunciara à idéia. Queria estar ao lado de Laurie, tendo em conta o que sucedera enquanto ele estava ausente. Acabou por ceder, convencido de que Laurie estava em boas mãos. Os residentes da reanimação garantiram-lhe que um deles estaria junto da cama continuamente.

— Vou estar aqui — assegurou a Laurie apontando para uma pequena sala de espera em frente à porta da UCC.

Laurie anuiu, preocupada com os seus sintomas físicos, que se tornavam progressivamente mais incômodos, à medida que a sua mente se clarificava. Aquilo que queria nesse momento era gelo picado para a boca seca e garganta dorida, bem como algo para as dores que sentia no local da incisão e no peito. No que dizia respeito à sua memória, estava ainda em branco quanto ao período depois de ter deixado a UCPA.

Jack foi para a sala de espera, que se encontrava deserta. Um relógio na parede indicava que eram seis e um quarto. Havia por ali vários sofás e uma série de cadeiras. Uma mesinha de apoio tinha uma mistura de revistas espalhadas sobre si. A um canto, estava disponível café gratuito. Jack atirou o sobretudo e o casaco para o braço de um dos sofás e sentou-se, soltando um pesado gemido enquanto o fazia. Recostou-se, pôs as mãos atrás da nuca e fechou os olhos. Sentia-se em estado de choque. Nunca sentira um stress assim, combinado com um tal esforço físico e grandes alterações emotivas. Para piorar as coisas, experimentava ainda os residuais efeitos da cafeína, que eram suficientes para fazê-lo sentir-se mal disposto.

O gesto de fechar os olhos proporcionou a Jack a oportunidade de pensar sobre a pura criminalidade daquilo a que Laurie felizmente sobrevivera. Na urgência de cuidar dela, não pensara sobre o assunto até àquele momento. Conseguia ver mentalmente a enfermeira bronzeada que se encontrava no quarto de Laurie quando ele irrompeu na divisão. À luz débil, parecera-lhe quase esquelética, com cabelo negro e curto, uns olhos muito encovados e dentes incrivelmente brancos. Aquilo de que melhor se lembrava era da almofada numa das mãos e da seringa na outra. Sabia que haviam muitas explicações para o porquê de ela segurar tais objetos, tal como poderia existir uma explicação para a sua evidente paralisação perante aquilo que era obviamente uma emergência de vida ou de morte. Jack vira outras pessoas imobilizarem-se desse modo quando era residente. Na verdade, fizera basicamente a mesma coisa quando da sua primeira paragem cardíaca depois da licenciatura no curso de medicina. Contudo, naquelas circunstâncias, Jack não podia deixar de pensar nas ações dela como sendo suspeitas. Vira-a novamente durante a angustiante reanimação, mas apenas em breves vislumbres, quando ela surgira na sala dos enfermeiros para ir à despensa dos medicamentos usar o distribuidor computadorizado. Não participara na reanimação. Jack perguntara a uma das enfermeiras que ajudara qual era o nome da enfermeira bronzeada. Quando ela lho disse, Jack suspeitou mais ainda. Tratava-se de mais um nome das listas de Roger.

Os olhos de Jack abriram-se. Procurou o telemóvel no bolso do casaco. Como sabia o número pessoal de Lou Soldano no SoHo, e apesar da hora, fez rapidamente a chamada. Depois daquilo que presenciara, Lou tinha de se envolver no caso. Não poderia haver desculpas. O telefone tocou seis vezes antes de Lou atender. A sua voz era áspera e Jack teve de ficar à espera durante um período de tosse por parte do detetive.

— Vais sobreviver? — inquiriu Jack quando Lou ficou finalmente em silêncio.

— Abstém-te do humor — resmungou Lou. — É bom que seja importante.

— É mais do que importante — disse Jack. — Laurie teve de ser submetida a uma cirurgia de urgência ontem à noite no Manhattan General. Depois, há umas horas, alguém a colocou à beira do abismo e lhe deu um bom empurrão. Na verdade, durante alguns segundos, ou até mesmo minutos, esteve morta.

— Meu Deus! — explodiu Lou, que dera início a mais um ataque de tosse.

— Tosses assim todas as manhãs? — Perguntou-lhe Jack quando Lou regressou à linha.

— Onde é que ela está agora? — perguntou Lou, ignorando a pergunta de Jack.

— Está na unidade de cuidados cardíacos, no terceiro piso — disse Jack. — Estou sentado na sala de espera mesmo em frente à porta.

— Há algum perigo?

— Médico ou de outro tipo?

— Ambos.

— Em termos médicos, creio que têm as coisas bastante bem controladas. Teve a sorte de lhe calhar uma cardiologista residente especialmente perspicaz e que tem ar de andar no segundo ciclo. Foi a segunda pessoa esta noite que me fez sentir pré-histórico. Quanto à hipótese de a pessoa que tentou matar Laurie tentar mais um golpe, não me parece que seja problema. Não naquela unidade de cuidados cardíacos; há demasiadas pessoas ali à volta e eu estou sentado à porta.

— Tens alguma, idéia de quem o fez?

— Há uma pessoa, na verdade uma enfermeira, em quem eu apostaria algum dinheiro, mas trata-se de algo circunstancial. Conto-te os pormenores quando aqui chegares. Também temos as listas de Roger, de modo que tens a papinha feita. Mas a idéia de que a série de Laurie seja hipotética já não é sustentável.

— Sabes o nome dessa enfermeira?

— Rakoczi.

— Que espécie de nome é esse?

— Não faço idéia.

— A Rakoczi sabe que suspeitas dela?

— Calculo que sim — disse Jack. — Manteve-se longe de mim durante a reanimação. Estava no quarto de Laurie quando eu entrei e a encontrei moribunda.

Jack prosseguiu, descrevendo brevemente a cena tal como se lembrava.

— Bem, será a primeira pessoa com quem quererei falar — disse Lou. — Vou para aí o mais depressa possível, o que realisticamente será dentro de meia hora. Entretanto, vou telefonar para o departamento local da polícia e pedir dois agentes fardados para ficarem aí à porta da unidade de cuidados cardíacos, para o caso de teres de ir à casa de banho, ou assim.

— Parece-me um bom plano.

— Estiveste a pé a noite toda?

— Estive — admitiu Jack.

— Está bem, deixa-te ficar aí e já me encontro contigo.

Jack estava quase a desligar quando ouviu Lou acrescentar.

— Só mais uma coisa. Não te armes em herói, está bem? Deixa-te estar quieto.

— Não te preocupes — disse Jack. — Depois daquilo por que já passei, até estou sem fôlego. Vou ficar aqui.

Jack desligou, guardou o telemóvel e tornou a fechar os olhos. Sentiu um certo alívio depois de ter falado com Lou Soldano. Tinha tirado dos ombros o fardo da criminalidade daquilo que sucedera a Laurie e às outras vítimas. Para Jack, era um pouco como passar o testemunho numa corrida de estafetas, o que significava que a sua contribuição estava terminada. Ainda não sabia como se arrependeria por não seguir os seus próprios conselhos.

 

— Desculpe — disse Caitlin, depois de ter dado um ligeiro safanão no ombro de Jack.

Ele pestanejou e arrancou-se às profundezas do sono. Sentia-se um trapo, mas, à medida que a sua visão se tornava mais nítida e ele se orientava no tempo, no espaço e voltava a si, endireitou-se prontamente. Estava surpreendido e francamente consternado por se ter deixado adormecer.

— O que é que se passa? — balbuciou. — Ela está bem?

— Está ótima — respondeu Caitlin. — O nível de potássio no sangue está normal e os sinais vitais mantiveram-se estáveis. Até ingeriu algum fluido oralmente, tal como a Drª. Riley ordenou. O dreno da incisão também foi removido, pelo que ela está muito bem.

— Fantástico! — disse Jack à medida que deslizava para a frente para se levantar.

Caitlin esticou-se e fez pressão sobre o ombro dele, de modo a mantê-lo sentado no sofá.

— Eu sei que quer visitá-la, mas creio que será melhor deixá-la estar por enquanto. Ela está exausta e a dormir.

Jack recostou-se e anuiu.

— Estou certo de que tem razão. Na verdade, neste momento aquilo que mais me preocupa é a sua segurança. Escusado será dizer que, como decerto já terá deduzido, alguém lhe deu o potássio deliberadamente.

— Foi o que eu pensei — disse Caitlin. — Mas fique descansado. Estou confiante que a Unidade de Cuidados Cardíacos é segura. No entanto, para ter a certeza absoluta, pedi a um dos meus estagiários que ficasse à cabeceira dela permanentemente. Vai ficar a vigiar tudo, como um falcão. Ninguém se aproximará dela sem que ele o autorize.

— Perfeito — disse Jack.

— Deduzo que não devo perguntar-lhe quem acha que lhe fez isto.

— Provavelmente, quanto menos se falar do assunto até estar resolvido, melhor — concordou Jack. — Sei que isso é difícil num hospital, onde os mexericos se espalham como um fogo incontrolável. Mas talvez seja melhor para todos se a doutora e os seus colegas não falarem acerca do que se passou, nos próximos dias. Não tardará a aparecer aqui um detetive de homicídios e eu espero que ele descubra a verdade.

Naquele instante, surgiram à porta dois polícias fardados. Um era um afro-americano enorme, cujos músculos protuberantes desafiavam a elasticidade dos tecidos da sua farda. Chamava-se Kevin Fletcher. Comparativamente, a outra era uma mulher hispânica franzina, chamada Toya Sanchez. Ambos pareciam constrangidos por se encontrarem num hospital. Apresentaram-se a Jack num sussurro. Disseram-lhe que tinham ordens para se dirigirem expressamente a ele. Depois agiram como se não soubessem o que fazer.

— Puxem duas cadeiras e vão sentar-se à entrada da UCC — sugeriu Jack. —Certifiquem-se de que todos aqueles que aí entrarem têm legitimidade para o fazer.

Em seguida, olhou para Caitlin e disse:

— Deduzo que esta seja a única porta.

— É a única — assegurou Caitlin.

Satisfeitos por receberem instruções, os dois agentes seguiram a sugestão de Jack e foram sentar-se um de cada lado da porta dupla da unidade. Jack sentiu que a presença deles era, se nada mais, pelo menos imponente. Mas era a atarefada UCC que proporcionava a verdadeira segurança.

— Tenho visitas a fazer — disse Caitlin — por isso, deixo-o aqui na sua vigília.

— Obrigado por tudo o que fez — disse Jack o mais sinceramente que conseguiu. — Foi sensacional!

— A sua dica acerca do potássio foi a chave — disse Caitlin. — Talvez devesse considerar a hipótese de fazer o internato em cardiologia. Faríamos uma boa equipa.

Jack riu-se e questionou-se se a jovem médica estaria a namoriscá-lo. Depois sorriu perante a sua própria vaidade, pensando que estava a tentar compensar-se pelo fato de ela o fazer sentir-se tão velho. Acenou à medida que ela se afastava da sala de espera.

Após a saída de Caitlin, Jack recostou-se novamente no sofá. Não se encontrava prestes a adormecer outra vez, já que experimentara uma subida de adrenalina quando ela o acordou. Em lugar disso, começou a meditar sobre o verdadeiro significado de matar pacientes com marcadores positivos para genes deficitários. Tornou-se-lhe imediatamente evidente que uma tal atrocidade não podia ser explicada simplesmente por uma perturbação anti-social da personalidade, apesar de a pessoa que estava efetivamente a injetar o potássio sofrer certamente de tal patologia. Soube instintivamente que teria de se tratar de uma conspiração mais ampla, com o envolvimento de algumas pessoas de elevado estatuto na AmeriCare. Na sua mente, tratava-se de um exemplo assustador de como a prática da medicina podia ser distorcida ao ter evoluído para um grande negócio caracterizado pela predominância de interesses comerciais. Estava ciente de que havia pessoas escondidas nas poderosas administrações dessas enormes empresas de gestão de cuidados e de gestão hospitalar em franca expansão, semelhantes à AmeriCare, que estavam de tal forma afastadas, por força dos procedimentos burocráticos e muitas vezes geográficos, da missão de base da organização, que podiam facilmente cegar perante os objetivos mínimos e, em última análise, o preço das ações.

Os pensamentos de Jack foram interrompidos por um alvoroço no corredor. Tinha chegado um grupo de enfermeiros e havia um riso contido devido à presença dos agentes policiais que verificavam as suas identidades antes de os deixarem entrar na UCC. Jack observou como riam e brincavam e perguntou-se se eles se comportariam da mesma forma caso soubessem o que se passava nos bastidores do seu hospital. Mais ainda mais que os médicos, eram os enfermeiros quem no dia-a-dia alinhava nas trincheiras, num combate direto contra a doença e a incapacidade. Estava certo de que se sentiriam indignados se soubessem que um deles era suspeito de tal traição.

Essa idéia fez com que Jack tornasse a pensar em Jasmine Rakoczi. Se ela fosse a criminosa, tal como se lhe afigurava possível, então teria de ser profundamente anti-social. Jack não conseguia evitar pensar que tinha de estar errado acerca dela. Como poderia uma enfermeira ser anti-social? Parecia-lhe um oxímoro. Porém, na improvável hipótese de ser anti-social, como teria conseguido colocação num hospital tão prestigiado? Não fazia qualquer sentido, especialmente face à hipótese de haver um qualquer contador de tostões entranhado na estrutura organizacional da AmeriCare que teria de lhe indicar quem deveria atestar de potássio.

A porta da UCC abriu-se de rajada, surgindo um novo grupo de enfermeiros e enfermeiras. Encontravam-se igualmente surpreendidos e curiosos pela presença dos agentes fardados. Os polícias eram educados, mas evasivos e, em breves instantes, as vozes dos enfermeiros sumiam-se à medida que eles desapareciam no corredor.

Os olhos de Jack dirigiram-se ao relógio de parede. Passava pouco das sete da manhã. De repente, fez-se luz na sua mente cansada quanto ao motivo pelo qual um grupo de enfermeiros entrara e outro saíra. Era a mudança de turno. Os do turno de dia estavam a substituir os da noite.

Jack saltou do sofá. Nem sequer lhe tinha ocorrido que Jasmine Rakoczi estaria de saída antes que Lou chegasse. Se fosse ela a criminosa e se pressentisse que Jack o sabia, poderia desaparecer de vez. Dirigiu-se ao átrio a passo largo e disse rapidamente aos polícias que subiria ao sexto andar.

Em seguida, apressou-se até ao átrio dos elevadores, onde era evidente que o ambiente do hospital tinha mudado. Tinha início o dia atarefado. Havia pelo menos uma dúzia de pessoas à espera de elevador, entre as quais vários auxiliares de serviço com marquesas a caminho para ir buscar doentes com cirurgias marcadas.

O primeiro elevador que apareceu parecia cheio quando a porta se abriu. Ainda assim, várias pessoas entraram. Sem hipóteses de ser dissuadido, Jack forçou literalmente a sua entrada. A indignação das pessoas era-lhe perceptível, uma vez que a porta mal fechava. Apinhados no elevador, os passageiros nem falavam enquanto subia.

Para desgosto de Jack, a subida parecia de uma frustrante lentidão. O elevador parava em todos os andares vomitando passageiros, freqüentemente os que viajavam atrás, obrigando Jack e alguns outros a saírem para cada átrio. Quando chegou ao sexto piso, Jack tinha dificuldades em controlar a sua impaciência e, quando a porta se abriu, foi o primeiro a sair. O seu plano era dirigir-se rapidamente ao balcão de enfermagem e indagar acerca de Jasmine Rakoczi. Esperava que, por sorte, ela se tivesse atrasado e que a conseguisse apanhar antes de sair.

A porta do elevador imediatamente oposto ao de Jack estava a fechar-se. Pelo canto do olho, pareceu-lhe vislumbrar as feições, bastante impressionantes, da enfermeira. A imagem foi efêmera e, no momento em que se voltou para olhar de novo, as portas do elevador tinham-se fechado.

Por um segundo, Jack debateu-se sobre o que fazer. Se corresse escadas abaixo, tinha boas hipóteses de chegar antes do elevador. Mas, e se estivesse enganado? Se não fosse a Rakoczi? Depois de algumas falsas partidas, regressou impulsivamente ao plano A e desceu em direção à sala dos enfermeiros. Avistava várias enfermeiras, algumas das quais reconheceu, o que lhe pareceu encorajador. Via também o recepcionista da ala, que acabara de entrar ao serviço. Estava ocupado a colocar em ordem a papelada em cima da secretária, muita da qual resultava da reanimação de Laurie.

Jack disse que era o Dr. Stapleton e perguntou por Jasmine Rakoczi. O recepcionista, um tipo franzino, loiro e com um rabo de cavalo, disse-lhe que Jazz Rakoczi tinha saído há dois segundos. Procurou em redor de Jack para ver se ainda a avistava no átrio dos elevadores.

— Sabe para onde ela vai? — Perguntou Jack rapidamente, percebendo que era ela a pessoa que vira no elevador. — Quero dizer, qual a saída que utiliza ou em que direção caminha? Preciso falar com ela. É importante.

— Ela não vai a pé para casa — disse o funcionário. — Tem um Hummer H2 preto, elegante, que me chegou a mostrar uma vez. Tem um sistema de som que não dá para acreditar! Estaciona-o sempre no segundo piso do parque de estacionamento, em frente à porta da ponte pedestre.

— Em que piso é que se sai do elevador para se ter acesso à ponte pedestre? — apressou-se Jack a perguntar.

— No segundo piso, claro — respondeu o funcionário, com uma expressão de quem tinha ouvido a pergunta mais estúpida de sempre.

Jack saiu disparado em direção às escadas. Anteriormente, julgara ser capaz de ultrapassar o elevador de Rakoczi. Agora que gastara o tempo a dirigir-se à sala dos enfermeiros sabia que isso estava fora de questão. No entanto, não se arrependia da sua decisão, uma vez que a teria perdido de qualquer forma. Correria até ao primeiro andar de modo a tentar apanhá-la na entrada principal. Da forma como as coisas correram, sentia que ainda tinha hipóteses de a apanhar. Ela tinha de atravessar a ponte pedestre e pôr o carro a funcionar. Saber de que tipo de carro se tratava podia vir a revelar-se a chave.

A escadaria estava pintada de cinzento metalizado. Os degraus eram de aço e, à medida que os sapatos embatiam neles, cada passo soava como um tambor. O estrondo repetitivo ecoava no espaço fechado. Cada piso tinha dois lanços de escadas, o que obrigava Jack a seguir o movimento de espiral da descida, no sentido dos ponteiros do relógio. Quando atingiu a porta do segundo piso estava tonto e cambaleou ligeiramente ao entrar no átrio.

A sua aparência desgrenhada e a sua barba por fazer, aliadas à sua falta de equilíbrio momentânea, levavam a que os transeuntes mantivessem dele uma distância considerável quando lhes pedia indicações para a ponte pedestre. Por fim, alguém sentiu pena dele e respondeu apontando. Jack saiu disparado, o mais rápido que conseguiu. Repetindo "com licença" foi abrindo caminho por entre a torrente de pessoal hospitalar que se dirigia ao parque automóvel. Tendo passado um par de portas, percebeu que se encontrava na ponte pedestre, uma vez que, de repente, conseguia ter uma panorâmica da Madison Avenue. Na zona do parque, havia um outro par de portas que conduziam a um pequeno átrio, apinhado de pessoas que aguardavam o elevador. Jack ficou reduzido a forçar a passagem até poder empurrar a pesada porta que dava acesso ao segundo piso do parque. O parque de estacionamento estava cheio de carros que entravam e saíam, e cujos faróis dianteiros se entrecruzavam na atmosfera sombria e saturada de gases de escape. Lá fora, a alvorada começava a clarear o céu da noite, ao passo que o interior do parque era insuficientemente iluminado por luzes fluorescentes pouco freqüentes.

Conhecer a marca do carro de Jazz era efetivamente a chave e ele conseguiu distingui-lo imediatamente entre os outros. Tal como o funcionário lhe dissera, estava estacionado exatamente em frente à porta de ligação da ponte pedestre. Elevando-se nas pontas dos pés, de modo a conseguir ver sobre os carros que se encontravam entre si e o Hummer, Jack viu Rakoczi! Tinha acabado de chegar ao carro. Jack conseguia inclusivamente perceber que ela segurava na mão um comando, que dirigia ao carro à medida que se comprimia em direção ao lugar do condutor. O espaço que o separava do carro estacionado ao lado era pouco superior a cinqüenta centímetros.

— Menina Rakoczi! — gritou, sobrepondo-se ao ruído dos automóveis. Viu-a voltar-se e olhar na sua direção. — Espere um momento! Preciso falar consigo!

Por um instante, a mente fatigada de Jack questionou o fundamento que o levava a abordar uma mulher que suspeitava ser uma assassina em série. Contudo, o seu desejo de a impedir de partir ultrapassou as suas preocupações. Com toda a agitação de pessoas e carros, sentiu-se moderadamente seguro, em particular porque não tinha quaisquer intenções de a confrontar, apenas de ser firme.

Jack olhou para a esquerda e para a direita, tentando conciliar a sua travessia com o movimento dos carros. Jazz permanecia junto ao carro com a porta do lugar do condutor entreaberta. O comando desaparecera, aparentemente no interior do bolso dela. Ela envergava um casaco verde-azeitona acima do seu tamanho sobre a farda. Tinha a mão direita no bolso. A sua expressão era altiva ao ponto de se tornar desafiadora.

Deslizando entre o carro de Jazz e o que se encontrava ao lado, Jack dirigiu-se à enfermeira, cujos olhos se estreitavam à sua aproximação. Jack percebeu que aquela pessoa não exalava muito calor humano.

— Precisam que volte ao hospital — disse Jack, suficientemente alto para se sobrepor ao ruído do trânsito. Procurou soar autoritário de modo a evitar contra-argumentos. Até apontou com o polegar sobre o ombro. — Há lá pessoas que querem falar consigo.

— Já não estou de serviço — disse ela com desdém. — Vou para casa.

Jazz voltou-se e colocou um pé no interior do jipe, com a intenção evidente de se instalar atrás do volante. Jack agarrou-lhe o braço direito acima do cotovelo com força suficiente para a manter onde estava.

— É importante que fale com estas pessoas — disse Jack.

Começou a dizer algo acerca de o acompanhar, mas não chegou a terminar. Com uma rapidez totalmente inesperada, Jazz recorreu a um golpe tipo karatê, de modo a libertar o braço e, praticamente em simultâneo, deu uma joelhada na virilha de Jack. Ele contorceu-se, apertando os genitais ao mesmo tempo em que deixava um gemido involuntário escapar-lhe dos lábios. Quando deu por isso, tinha o cano frio de uma arma encostado à base do pescoço.

— Levanta-te, idiota! — vociferou Jazz com escárnio e suficientemente alto para ser ouvida. — E entra na porcaria do carro.

Jack ergueu a cabeça. Estava curvado pela dor e não tinha a certeza de conseguir andar.

— Esta arma vai disparar se não entrares — silvou Jazz.

Jack avançou ao mesmo tempo em que Jazz recuou um passo. Ainda com a mão direita a segurar os genitais, usou a esquerda para o ajudar a sentar-se atrás do volante. A dor não era comparável a nada que já tivesse sentido. Fazia-o sentir-se fraco, como se fosse feito de borracha.

— Salta para o banco do passageiro — disse-lhe Jazz, enquanto olhava de relance para verificar se alguém se tinha apercebido do que se passara. No meio de toda a confusão e barulho do parque, ninguém prestara a mínima atenção. — Anda lá — disse Jazz rispidamente. Como incentivo adicional, bateu-lhe com a ponta do silenciador da arma na cabeça.

Tendo a caixa de velocidades no seu caminho, Jack não estava certo de ser fisicamente capaz de fazer o que Jazz lhe ordenava, mas sentia que não lhe restava outra hipótese senão tentar. Inclinou-se sobre a consola central em direção ao banco do passageiro, rodou sobre as costas e, com os joelhos fletidos, fez passar os pés. Estava agora todo contraído, mais ou menos de costas assentes no banco.

Jazz subiu rapidamente para trás do volante e fechou a porta do condutor, eliminando a maioria dos ruídos do parque. Manteve a arma apontada ao rosto de Jack, a poucos centímetros da testa.

— E sobre o que é que essas pessoas querem falar comigo? — perguntou Jazz com um escárnio evidente.

Jack começou a responder, mas ela interrompeu-o.

— Não te dês ao trabalho de responder, porque não interessa. O que interessa é que arranjaste maneira de seres morto.

O ruído do disparo foi suficientemente alto, apesar do silenciador, para provocar zumbidos nos ouvidos no espaço confinado do habitáculo. Os olhos de Jack, que se fecharam como reflexo ao barulho, abriram-se subitamente e a tempo de ver a cabeça de Jazz tombar e embater sobre o volante. Um regato de sangue jorrou e escorreu-lhe pela nuca. A acrescer à confusão, a arma dela caiu-lhe sobre o peito.

— Desculpe — disse uma voz masculina proveniente das profundezas escuras do banco traseiro — importa-se de me alcançar a Glock da menina Rakoczi? Prefiro que segure no silenciador em vez de na coronha.

Jack pegou na arma tal como lhe era indicado e, contorcendo-se para trás, conseguiu endireitar-se parcialmente de modo a erguer a cabeça suficientemente alto para ver por cima do lugar do passageiro. A visão era limitada pelos vidros fumados. Tudo o que Jack conseguia vislumbrar era o esboço de uma figura sentada imediatamente atrás do lugar do condutor. Havia um ligeiro cheiro de cordite no ar.

— Estou à espera da arma — disse o homem na sombra. — Se não fizer o que lhe digo, as conseqüências serão desastrosas. Seria de supor que estivesse desejoso de me ajudar, já que lhe salvei a vida.

Desorientado pelo curso dos acontecimentos inesperados e chocantes, Jack não estava em posição de questionar o pedido e começou a estender a arma pôr entre a separação dos bancos dianteiros. Foi então que a porta do lado do condutor se abriu de rompante e o corpo lânguido de Jazz tombou sobre o betão. Mais uma vez surpreendido, Jack viu de relance Lou, igualmente apanhado de surpresa.

— No banco de trás — gritou Jack. — Cuidado!

Lou desapareceu no mesmo instante em que a figura na sombra do banco de trás descarregou novamente a pistola, seguindo-se o barulho de vidros estilhaçados. Sem pensar, Jack fez rodopiar a arma que segurava de modo a que o seu indicador deslizasse sobre o freio do gatilho. Ainda agachado por trás do banco do passageiro, ergueu a arma e desferiu três disparos seguidos às cegas na direção do homem na sombra. Para Jack, a arma produzia um som silvante ruidoso, algo como a combinação entre um pulso a atingir um saco de pancada e o ar que se liberta de um pneu. Os cartuchos gastos tiniram entre os assentos dianteiros. Apesar dos zumbidos que sentia nos ouvidos, o silêncio instalou-se novamente. Mais uma vez, o cheiro de cordite penetrou no habitáculo.

Os ouvidos de Jack latejavam. Enquanto se comprimia contra a parte de trás do seu assento, ouviu um murmúrio vindo do banco traseiro. Receou mover-se e ficou na expectativa de que o homem lá atrás se levantasse e disparasse sobre ele, como fizera com Rakoczi.

— Lou? — chamou Jack. Tinha medo de se mexer e receava que Lou tivesse sido alvejado.

— Sim — a voz de Lou surgia de algures fora do carro.

— Estás bem?

— Estou ótimo. Quem é que disparou aqueles últimos três tiros?

— Fui eu. Disparei às cegas.

— Sobre quem é que disparaste?

— Não faço a mínima idéia.

— Era esta a enfermeira de que me falaste ao telefone?

— Sim, é ela — disse Jack. Mudou de posição. Não agüentava as dores nas costas, pressionadas como estavam contra a porta do lado do passageiro.

— Pensei que tinhas prometido não te armar em herói!— queixou-se Lou. — Também a alvejaste ou quê?

— Não fui eu que a alvejei! — exclamou Jack. — Foi o tipo que estava no banco de trás.

— Seja ele quem for, disparou sobre mim — disse Lou. — E isso não me agrada.

A acrescer ao murmúrio, Jack ouviu agora claramente uma respiração ofegante. Nesse mesmo momento, os seus olhos encontraram os de Lou por entre a porta aberta e a ombreira do lado do condutor. Encontrava-se agachado junto à roda dianteira do lado do condutor, segurando a pistola encostada à cabeça.

Jack conseguiu colocar as pernas onde deviam estar, debaixo do amortecedor, de forma a poder mover a cabeça e olhar com cuidado por entre os assentos dianteiros para o banco de trás. Na penumbra e com a visibilidade reduzida pôde ver uma mão flácida cujo indicador ainda se encontrava encostado ao freio do gatilho. Nesse instante, ouviu uma respiração estertorosa.

Ganhando coragem, ergueu a cabeça e espreitou sobre a cabeceira do banco da frente. Conseguia vislumbrar um homem sentado direito, mas com a cabeça inclinada para trás e os braços afastados. Com a cabeça para trás, conseguia perceber que o homem envergava uma máscara de esqui. Respirava a custo.

— Parece que o alvejei — disse Jack.

Lou levantou-se, caminhou ao lado do carro e enfiou a pistola através da janela traseira que fora atingida. Segurava a arma com ambas as mãos e apontou-a ao indivíduo atingido.

— Consegues encontrar as luzes? — perguntou.

Jack rodou e procurou as luzes interiores. Quando as encontrou, ligou-as. Olhou para o homem no banco de trás. Havia uma mancha de sangue em expansão no seu peito.

— Consegues alcançar a arma dele? — perguntou Lou. Manteve a arma apontada ao estranho, que aparentemente se encontrava inconsciente.

Jack esticou a mão cautelosamente em direção à arma, como se o homem fosse acordar de repente para mais uma luta desesperada, tal como acontecia nos filmes de suspense.

— Toca no cano, não na coronha — indicou Lou — e coloca-a no banco da frente.

Jack fez o que lhe era dito e saiu rapidamente pela porta do lado do passageiro. Abriu a porta de trás e inclinou-se para ver melhor o homem. De perto, era perceptível a sua respiração ofegante. Jack tirou a máscara de esqui na esperança de que ajudasse o homem a respirar. Lou abriu a porta do outro lado do homem.

— Reconhece-lo? — perguntou Lou.

— De modo nenhum — respondeu Jack.

Ao mesmo tempo em que Jack tentava sentir a pulsação, Lou agarrava o tecido na parte frontal da camisa do indivíduo e, com um puxão lateral, rasgava-a. No peito dele eram visíveis três feridas.

— Eu diria que o alvejaste — comentou Lou com admiração.

— O pulso está filiforme e célere — disse Jack. — Não vai ficar entre nós por muito tempo, a não ser que sejamos rápidos. Pensando pela positiva, já está no hospital.

— Verifica a enfermeira — disse Lou. — Vou tirá-lo do carro.

Jack escapou pela traseira do veículo e correu para o outro lado.

Debruçando-se, precisou apenas de um segundo para apurar que Jazz fora alvejada na nuca muito de perto, tal como numa execução. A bala atravessara indubitavelmente o bolbo raquidiano. Estava obviamente moribunda.

Jack ergueu-se novamente e passou por cima da mulher. Conseguia ver que Lou retirara parcialmente o indivíduo ferido do carro.

— Que tal está a mulher? — Grunhiu Lou.

— Está morta. Vamos concentrar-nos nele.

Com a porta de trás aberta de encontro ao carro vizinho, Jack teve de inverter a direção, passar novamente por cima de Rakoczi e correr à volta do jipe para o ajudar com o homem. Lou tinha as mãos por baixo das axilas dele. Jack comprimiu-se e agarrou-o pela anca.

— Meu Deus, pesa uma tonelada — queixou-se Lou, enquanto conseguiam passar por entre os carros estacionados. Foram imediatamente atingidos pelos faróis de um carro que tentava sair do parque. O condutor teve o descaramento de buzinar.

— Só em Nova Iorque — queixou-se Lou entredentes do impaciente condutor. Lutava com o indivíduo ferido. — O que raio é que este tipo faz, afinal? Será jogador de futebol profissional?

À medida que se aproximavam das portas de acesso à ponte pedestre, alguns funcionários do hospital que estavam de saída pararam a olhar, incrédulos, sem perceberem bem o que estavam a testemunhar. Pelo menos, um deles teve a sensibilidade de inverter o sentido e abrir a porta.

A meio da ponte, Lou cambaleou.

— Tenho que parar — disse ofegante.

— Trocamos — sugeriu Jack. — Pousaram o homem sobre o chão de cimento da ponte, trocaram rapidamente de posições e tornaram a pegar nele.

— Apareceste em boa hora — disse Jack, gemendo.

— Parece que te perdi por pouco à porta da Unidade de Cuidados Cardíacos — replicou Lou. — Depois foi no sexto andar. Ainda bem que o recepcionista me disse para procurar um Hummer preto.

Com uma iluminação melhor, tornou-se claro que as manchas na camisa do homem eram de sangue e as pessoas dispunham-se agora a ajudar. Quando chegaram ao fim da ponte, chegaram dois enfermeiros para ajudar. Um deles ficou junto à cabeça, perto de Jack, enquanto o outro pegava numa perna ao lado de Lou.

—As Urgências são no piso inferior — disse um dos enfermeiros, entre duas inspirações. — Esperamos pelo elevador ou tentamos pelas escadas?

— Pelo elevador — respondeu Jack. Apercebeu-se de que o indivíduo já não respirava. — Mas vamos subir, e não descer. Ele precisa de um cirurgião torácico de imediato.

Os dois enfermeiros trocaram olhares consternados, mas nada disseram. Em lugar de pousar o homem, Jack apoiou-se contra a parede e, com a mão que tinha livre, pressionou o botão de chamada do elevador. Por sorte, chegou um elevador quase de imediato. Por azar, estava cheio.

— Vamos entrar — gritou Jack. Não havia forma de o demover e foi de encontro a pessoas que tinham permanecido imóveis. Reconhecendo a gravidade da situação, algumas pessoas saíram, criando o espaço livre necessário. A porta fechou-se.

Os quatro homens que transportavam o indivíduo ferido entreolharam-se ao mesmo tempo em que os passageiros do elevador o olhavam fixamente. Ninguém falou enquanto o elevador subia ao piso de cima.

Quando as portas do elevador se abriram no terceiro piso, transportaram o homem para o exterior e empurraram as portas duplas. À medida que cruzavam o arco da entrada da sala de cirurgiões, Jack gritou que transportavam um homem que fora alvejado no peito três vezes. Chegados às portas de acesso ao bloco operatório propriamente dito, alguns cirurgiões que esperavam pela entrada dos seus casos, caminhavam por ali. De entre eles, vários eram cirurgiões torácicos e começaram a avaliar a situação do homem, tendo como referências as feridas onde as balas penetraram. Apesar de haver alguma discordância quanto à natureza dos ferimentos, todos concordavam que a única hipótese de sobrevivência para aquele homem seria ser submetido de imediato a um bypass cardiopulmonar.

Quando o grupo se acercou do balcão do bloco operatório, vários enfermeiros ficaram horrorizados por eles terem entrado naquele serviço esterilizado com as roupas da rua. A sua indignação durou apenas até perceberem que estavam a dar entrada com um doente portador de um ferimento mortal.

— O quarto 8 está a ser preparado para uma cirurgia de coração aberto — gritou um dos enfermeiros por detrás do balcão.

O grupo apressou-se em direção ao quarto 8, onde colocaram o homem diretamente na mesa de operações. Os cirurgiões não perderam tempo. Cortaram-lhe as roupas. Surgiu um anestesista, que disse a gritar que o homem já não respirava nem tinha pulso. Entubou o doente de imediato e começou a administrar-lhe cem por cento de oxigênio. Outro anestesista começou a fazer-lhe várias incisões amplas e a administrar-lhe soro logo que possível. Também pediu que o seu sangue fosse tipificado e analisado.

À medida que os cirurgiões se comprimiam à volta do doente, Jack e Lou retiraram-se. Um dos cirurgiões torácicos pediu um bisturi, que lhe foi colocado de imediato na mão expectante. Sem hesitar e sem se preocupar sequer em calçar as luvas, fez um corte decidido no peito do doente. Em seguida, com as mãos despidas, abriu as costelas e foi confrontado com uma enorme quantidade de sangue. Nesse momento, Lou decidiu esperar na sala de cirurgiões.

— Sucção! — gritou o cirurgião.

Jack tentou ver o melhor que podia do cimo da mesa. Tratava-se de um espetáculo diferente de tudo a que tinha assistido. Nenhum dos cirurgiões usava luvas, máscaras ou batas, e tinham sangue até aos cotovelos. Tudo se precipitara de tal forma que ninguém tivera tempo de cumprir os vulgares procedimentos pré-operatórios. Jack escutava intencionalmente os gracejos, o que confirmava algo que já sabia, que os cirurgiões eram uma classe à parte. Apesar da natureza pouco ortodoxa do acontecimento e do sangue coalhado, estavam a divertir-se. Era como se o episódio servisse para validar convenientemente os seus poderes curativos.

Decidiu-se rapidamente que o homem sofrera aquilo que teria sido um ferimento mortal, se não tivesse ocorrido num grande hospital. Duas das balas tinham perfurado os pulmões. Colocava-se agora aos cirurgiões um problema vulgar. Era a terceira bala que lhes apresentava o desafio. Entre outras coisas, perfurara os grandes vasos.

Os vasos danificados foram rapidamente vedados e o doente foi ligado à máquina cardiopulmonar. Nessa altura, alguns dos cirurgiões saíram para darem início aos procedimentos que tinham agendados e os dois cirurgiões torácicos pararam o tempo suficiente para se lavarem e envergarem as vestes típicas da sala de operações. Jack dirigiu-se à anestesista para discutirem as hipóteses de sobrevivência do homem, mas a enfermeira supervisora tocou-lhe no ombro e disse:

— Desculpe, mas estamos a tentar manter o nível de esterilização do local. Tem de sair e vestir a farda se pretende ficar aqui a observar. — Entregou-lhe um par de botas para calçar sobre os sapatos.

— Tudo bem — concordou Jack. Estava surpreendido por não o terem expulso mais cedo.

À medida que caminhava pelo longo corredor do bloco operatório, os acontecimentos daquela noite longa começaram a fazer-se sentir. Estava tão exausto que tinha a sensação de ter pesos acorrentados às pernas e aos pés. Ao passar pelo balcão, foi assaltado por uma sensação de desconforto semelhante a uma náusea. Encontrou Lou sentado na sala de cirurgiões a falar ao telemóvel. À frente dele, na mesa de café, estavam uma carteira e uma carta de condução.

Jack sentou-se pesadamente numa cadeira em frente a Lou. Sem interromper a conversa, Lou apontou para a carta de condução. Jack debruçou-se e pegou nela. Pertencia a David Rosenkrantz. Observando-a de perto, estudou a fotografia. O indivíduo parecia um jogador de futebol americano, com um pescoço largo e um grande sorriso. Era um homem atraente.

Depois de ter desligado o telefone, Lou olhou para Jack. De seguida, debruçou-se com os cotovelos sobre os joelhos.

— Para já, não quero grandes explicações acerca de como tudo se passou — disse com uma voz cansada — mas gostava só de saber porquê. A última coisa que me prometeste foi que te sentarias à porta da Unidade de Cuidados Cardíacos.

— Era essa a minha intenção — disse Jack. — Mas depois apercebi-me de que o turno estava a mudar e fiquei subitamente preocupado que Rakoczi desaparecesse. Só queria certificar-me de que ela ficava por cá até tu chegares.

Lou esfregou o rosto vivamente com ambas as mãos e gemeu. Quando afastou as mãos, tinha os olhos vermelhos. O seu aspecto era quase tão mau quanto o de Jack.

— Amadores! Detesto-os! — comentou enfaticamente.

— Nunca me ocorreu que ela tivesse uma arma — disse Jack.

— Então e as duas mortes recentes por ferimentos de balas que aqui se deram? Também não te passaram por esse cérebro minúsculo?

— Não — admitiu Jack. — Estava mesmo preocupado com a idéia de nunca mais a vermos. Pensei simplesmente em pedir-lhe para ficar. Não ia acusá-la de nada.

— Má decisão — disse Lou. — É assim que pessoas como tu são mortas.

Jack encolheu os ombros. Olhando em retrospectiva, sabia que Lou tinha razão.

— Já viste a carta do homem que alvejaste?

Jack anuiu. Não lhe agradava pensar que tinha mesmo alvejado alguém.

— Bom. Quem é David Rosenkrantz?

Jack sacudiu a cabeça.

— Não faço a mínima idéia. Nunca o vi nem ouvi o nome dele.

— Vai sobreviver?

—Não sei. Ia perguntar a opinião da anestesista, mas pediram-me que saísse. Pareceu-me que os cirurgiões estavam bastante otimistas, pela forma como falavam. Se ele se safar, isso prova que, se alguém tiver de ser baleado, deve fazer tudo para que tal aconteça num hospital decente.

— Muito engraçadinho — disse Lou sem se rir. — Como está a Laurie?

— Está bem. Muito bem. Pelo menos estava quando eu saí. Vamos verificar à Unidade de Cuidados Cardíacos. Não esperava estar ausente por tanto tempo. É já ao fundo do corredor.

— Por mim, tudo bem — disse Lou pondo-se em pé.

A enfermeira-chefe da Unidade de Cuidados Cardíacos saía nesse instante da unidade e disse a Jack que Laurie estava ótima, a dormir, e que o médico já a tinha observado. Também lhe disse que havia planos em curso para a transferirem para o Hospital Universitário, onde o pai dela trabalhava.

— Parece-me bem — disse Jack, olhando para Lou.

— A mim também — disse Lou.

Depois de terem visitado a Unidade de Cuidados Cardíacos, Lou quis que Jack fosse com ele às Urgências. Queria que ficasse registrado que Jack identificara a mulher morta como sendo a enfermeira que vira no quarto de Laurie. Explicou-lhe que, quando abandonara o bloco operatório, tinha ligado à sede da polícia para que o Hummer fosse considerado cena de crime e para transportarem o corpo para o hospital. Estava particularmente interessado em que a Glock fosse inspecionada pela balística.

Quando caminhavam de volta ao elevador, Lou aclarou a garganta.

— Sei que estás exausto e que tens razões para isso, mas preciso saber o que se passou desde que chegaste ao parque.

—Apanhei a enfermeira quando estava prestes a entrar no carro — disse Jack. — Já tinha a porta aberta, pelo que gritei e corri até ela. Evidentemente, ela não cooperou, o que é dizer pouco. Quando lhe agarrei no braço de modo a impedi-la de entrar no carro, deu-me uma joelhada nos tomates.

— Ai! — condoeu-se Lou.

— Foi então que sacou da arma e me ordenou que entrasse no carro.

— Aprende a lição — disse Lou. — Nunca entres num carro com um criminoso armado.

— Não me parece que tivesse muito por onde escolher — respondeu Jack.

Chegaram ao átrio dos elevadores onde algumas pessoas esperavam. Começaram a falar mais baixo.

— E foi aí que eu entrei em cena — disse Lou. — Vi-te entrares no carro. Até vi a arma dela. Infelizmente, tive de deixar passar alguns carros antes de correr ao vosso encontro. O que é que se passou no carro?

— Aconteceu tudo tão depressa. E evidente que o tipo já lá estava, aparentemente à espera da Rakoczi. Quando ela estava prestes a alvejar-me, ele disparou sobre ela. Meu Deus... — a voz de Jack sumiu-se quando pensou em como estivera perto do fim.

— És doido varrido! — queixou-se Lou. Deu uma pequena palmada no ombro de Jack e sacudiu a cabeça. — Tens uma estranha inclinação para te envolveres nas situações mais incríveis. Meteste-te no meio de um golpe tipo execução. Tens consciência disso?

— Agora tenho — admitiu Jack.

O elevador chegou e eles entraram. Foram para a parte de trás da cabina.

— Está bem — disse Lou. — A questão é por que? Tens alguma idéia?

— Tenho — respondeu Jack. — Mas deixa-me contar-te o que se passou antes. Primeiro a Laurie quase morreu devido a uma dose avassaladora de potássio, uma forma inteligente de homicídio. Não há forma de ser documentado, graças à ação do potássio no corpo humano, mas não é só isso. A questão é que os pacientes da série da Laurie foram mortos desta forma astuciosa, mas não eram alvos aleatórios. Todos eles, incluindo a Laurie, tinham resultados positivos em marcadores genéticos para doenças graves.

O elevador chegou ao primeiro piso e Lou e Jack saíram. O hospital estava apinhado de gente e eles continuaram a falar baixo.

— Então, como é que tudo isto leva à morte da enfermeira? — questionou Lou.

— Acho que é a prova de que há uma conspiração de grandes dimensões aqui envolvida — respondeu Jack. — Penso que, se tiveres sorte, vais chegar à conclusão de que a enfermeira trabalhava para uma rede intrincada que acabará por te conduzir a algum cabecilha dentro da administração da AmeriCare.

— Espera um segundo! — disse Lou, forçando Jack a parar. — Estás a sugerir que uma empresa de prestação de cuidados de saúde da dimensão da AmeriCare pode estar envolvido na morte dos próprios pacientes? Isso é uma loucura!

— Achas? — interrogou Jack. — Em qualquer área geográfica onde estes gigantes da saúde competem entre si, uma coisa que procuram evitar, abafando a concorrência ou comprando os opositores, quando têm dimensão para tal, é competir quanto ao custo dos prêmios. E como é que eles determinam o valor dos prêmios? Bem, a forma antiquada, atuaria, era calcular o risco, procurar adivinhar o custo de tomar conta de um grupo de pessoas, depois acrescentar lucro, dividir pelo número de pessoas e, bingo, eis o prêmio. De repente, debaixo do nariz de toda a gente, as regras mudaram. Com a decifração do genoma humano, o velho conceito de seguro de saúde está condenado ao caixote do lixo. Recorrendo a testes individuais, fáceis de realizar, conseguem identificar as pessoas que estão destinadas a dar-lhes bastante despesa. O problema é que as grandes empresas que prestam cuidados de saúde não podem mostrar discriminação, pelo que têm de aceitá-las. Nessa conjuntura, de um ponto de vista puramente comercial, têm de ser eliminadas.

— Estás a dizer-me que achas que alguns administradores da AmeriCare são capazes de cometer homicídio?

— Na verdade, não — disse Jack. — Os assassinos têm de ser indivíduos completamente perturbados, como estou certo que vais descobrir ser o caso da menina Rakoczi, se ela for de fato culpada. Estou a falar de uma variante horrível de crimes de colarinho branco, com níveis de cumplicidade variáveis. No topo, estou a falar de alguém que pode ter sido recrutado na indústria de automóvel ou em qualquer outro tipo de negócio, que se senta num escritório, bem longe dos pacientes, e pensa exclusivamente nos resultados. Infelizmente, é assim que os negócios funcionam e é por isso que se torna imperativo algum tipo de supervisão governamental numa economia de mercado livre. Posso parecer um misantropo, mas os seres humanos tendem a ser interesseiros e funcionam muitas vezes como se usassem palas nos olhos.

Lou sacudiu a cabeça. Estava enojado.

— Não acredito que estejas a dizer tudo isto. Para mim, os hospitais sempre foram o sítio onde nos dirigimos para tratarem de nós.

— Lamento — disse Jack. — Mas os tempos estão a mudar. Decifrar o genoma humano foi uma descoberta fenomenal. Por momentos, permitiu que todos baixassem as defesas, mas as conseqüências não se vão fazer esperar. Dentro em breve vai mudar tudo aquilo que sabemos sobre a medicina. Muitas mudanças vão ser positivas, mas algumas vão ser negativas. É sempre assim com os avanços tecnológicos. Se calhar, não lhes devíamos chamar avanços. Talvez fosse preferível uma palavra menos carregada de valor como "mudanças".

Lou olhou-o fixamente. Jack retribuiu-lhe o olhar e pensou que a expressão do detetive se situava algures entre a frustração e a irritação.

— Estás a gozar comigo acerca de tudo isto? — perguntou Lou.

— Não — respondeu Jack com uma pequena gargalhada. — Estou a falar a sério.

Lou meditou por um momento e disse, taciturno:

— Não sei se quero viver no teu mundo. Mas que se lixe! Vamos lá fazer a identificação da Rakoczi.

Entraram nas Urgências, que estavam já a abarrotar de doentes. Destacavam-se alguns polícias fardados. Lou procurou o Dr. Robert Springer, o diretor das urgências. O Dr. Springer levou Lou e Jack até a sala de traumatismos, cuja porta se encontrava aberta. Encontraram Jasmine Rakoczi. Estava nua, deitada sobre uma cama. Tinham-lhe inserido um tubo endotraqueal ligado a um respirador. O peito subia e descia intermitentemente. Por trás dela, num monitor de ecrã plano, eram registradas a pulsação e a tensão arterial. A tensão era baixa, mas a pulsação era normal.

— Então? — perguntou Lou. — É esta a mulher que viste no quarto de Laurie?

— É — respondeu Jack. Olhou para o Dr. Springer. — Por que é que a mantém ligada ao respirador?

— Queremos mantê-la oxigenada — respondeu o Dr. Springer ao mesmo tempo em que regulava o ritmo do respirador.

— Não suspeita que o bolbo raquidiano tenha sido destruído? — questionou Jack. Estava surpreendido que se fizesse tanto esforço numa situação de clara morte.

— Sem dúvida — respondeu o Dr. Springer, endireitando-se. — Os funcionários responsáveis pelo sector da doação de órgãos querem localizar receptores compatíveis. Querem resgatar os órgãos internos.

Lou olhou para Jack.

— Ora aqui está uma grande ironia — disse. — Ela pode vir a salvar uma série de pessoas.

— Ironia não é uma palavra suficientemente forte — replicou Jack. — Eu inclino-me para sátira mordaz.

Para surpresa do Dr. Springer, o detetive deu uma palmada na cabeça do médico-legista, acusou-o de ser um peneirento e saíram os dois a rir.

 

Seis semanas depois

O tenente detetive Lou Soldano estacionou o Chevrolet da sua esquadra junto ao passeio situado ao lado de uma boca de incêndio e atirou o cartão de plástico laminado que o identificava como o proprietário da viatura para cima do tablier. Em seguida, esticou-se, retirou do porta-luvas o spray para o hálito e inalou algumas bombadas de modo a disfarçar os Marlboros que fumara no caminho. Inclinou o retrovisor para baixo e analisou o seu reflexo. Precisava de se barbear, mas isso era o costume, sobretudo àquela hora: um quarto para as oito da noite. Já que não podia fazer nada quanto à barba, usou os dedos para alinhar o cabelo todo na mesma direção. Satisfeito com a sua aparência, abriu a porta e saiu para a rua.

O ar tinha o toque sedoso de uma noite de primavera. Graças a vestígios da luz do dia, o céu era de um rosa suave que se fundia num violeta argênteo a oriente. Subiu a Second Avenue num passo ligeiro. Telefonara a Jack e Laurie nessa tarde, na esperança de os encontrar e pô-los a par do caso AmeriCare e eles convidaram-no para jantar com eles no seu restaurante favorito, o Elios.

Lou já tomara algumas refeições com o casal nesse restaurante. Umas agradáveis, outras nem tanto. Na última categoria incluía-se a noite em que Laurie anunciara que ia casar com o imbecil que levara a reboque. Felizmente para todos, tratou-se de um alarme falso e a memória dessa noite trazia um sorriso ao rosto de Lou. Também fora uma sorte que ele e Jack não se tivessem morto no restaurante. Tinham ficado de rastos.

Lou parou do lado de fora. Mesmo em frente à porta, estava a bicicleta de montanha de Jack, presa a um parquímetro por uma panóplia de cadeados. Lou abanou a cabeça. Nem ele nem Laurie conseguiam demover Jack de usar a bendita bicicleta. Sorriu maliciosamente ao recordar-se de como Jack lhe chamava a atenção para os perigos do tabaco para a saúde, quando os perigos de andar de bicicleta na cidade, em particular da forma como ele guiava, eram mil vezes superiores.

No interior do restaurante, os festejos da noite estavam ao rubro. As pessoas apinhavam-se em torno do bar ao ponto de colidirem com os comensais que ocupavam as cobiçadas mesas da frente. Lou sentia-se decididamente desconfortável, como lhe acontecia sempre que se encontrava entre os bons vivants, em especial as celebridades, que pareciam rir e falar mais alto que todos os outros.

Depois de ter atravessado a multidão do bar, deu por si na sala de refeições, que estava a abarrotar. Os seus olhos percorreram vagarosamente a sala, em busca de um rosto familiar. Aliviado, avistou Jack e Laurie numa mesa ao fundo, no canto direito.

Lou levou algum tempo a chegar até junto dos amigos, uma vez que a sala estava apinhada com quantas mesas e cadeiras era possível. No caminho, deu um encontrão no braço de um homem o que o levou a entornar o vinho. Quando se voltou para pedir desculpas, o cinto da sua gabardina foi parar à sopa de outra pessoa. Apesar destes incidentes, acabou por conseguir chegar à mesa.

— Desculpem o atraso — disse Lou, dando um beijo rápido a Laurie e um aperto de mão a Jack, que se encontrava do lado oposto da mesa. Certificou-se de que não derrubaria os copos altos com o braço ou o casaco.

— Não faz mal — respondeu Laurie. Retirou a garrafa de champanhe do balde de gelo e encheu o copo de Lou.

Lou tentou pendurar o casaco nas costas curvas da cadeira, mas a sua atrapalhação chamou imediatamente a atenção de um empregado, que lhe levou o casaco. Sentou-se e usou o guardanapo para absorver a transpiração que lhe surgira ao longo do contorno do cabelo. Parecia-lhe que estavam uns 90 graus no interior do restaurante. Desabotoou o primeiro botão da camisa, aliviou o nó da gravata e abanou-se.

— Para a próxima encontramo-nos em Little Italy com a minha gente — disse.

— Está combinado — disse Laurie animadamente.

Após alguns gracejos, Jack disse:

— Estou mesmo curioso acerca da investigação da AmeriCare. O que há de novo?

— Também eu — disse Laurie.

Lou olhou para os amigos. Quando pensava na amizade que os unia, ficava surpreendido. Não era amigo do seu próprio médico nem do dos filhos. A maior parte dos seus amigos eram outros polícias, apesar de jogar regularmente às cartas com alguns bombeiros. Porém, Jack e Laurie eram diferentes dos outros médicos que conhecia. Não o olhavam com desdém pela sua formação nem pela sua profissão. Na verdade, o seu sentimento era precisamente o oposto.

— Está bem — disse Lou. — Primeiro os negócios, depois o prazer. Mas vejamos. Por onde hei de começar? Para já, tenho que vos dizer que aquilo que o Jack me disse na manhã em que Jasmine Rakoczi foi alvejada acabou por se revelar profético. Jack, meu amigo, acertaste em cheio.

Jack sorriu e Lou fez o gesto de espetar o polegar para cima.

— Contudo — prosseguiu Lou — o grande mérito é de Laurie, por ter sido persistente face à ignorância geral, incluindo de Jack, e por ter descoberto pele da Rakoczi por baixo das unhas de Stephen Lewis.

— Um brinde a isso — disse Laurie. Ergueu a flute e brindou com os amigos.

— Entretanto — continuou Lou depois de ter pousado o copo chegaram os resultados da balística e indicam-nos que a arma da Rakoczi matou a cunhada do meu comandante e Roger Rousseau. Lou afagou o antebraço de Laurie. — Desculpa por trazer de volta um assunto tão doloroso.

Laurie anuiu indicando estar ciente da sensibilidade de Lou.

— Os resultados da balística também indicam que foi a arma de David Rosenkrantz que matou a Rakoczi, o que livra o Jack de sarilhos.

— Que engraçadinho! — disse Jack.

— Eu sei que vocês têm conhecimento de que a cabeça e as mãos do Rousseau foram encontradas no frigorífico da Rakoczi, uma vez que foram trazidos para o GMLS, pelo que não vou entrar por aí.

— Por favor, não o faças — disse Laurie.

— Uma vez que David Rosenkrantz era de outro estado, o FBI entrou imediatamente em cena e eis que, imaginem, houve mortes semelhantes em hospitais da AmeriCare noutras partes do país. E, neste momento, estão a decorrer investigações em todas as localidades para encontrar o perpetrador.

— Valha-me Deus! — exclamou Jack atabalhoadamente. — Quando sugeri tratar-se de uma conspiração, pensei num ou dois graúdos e na Rakoczi. Nunca me ocorreu que seria algo à escala nacional.

— Bem, deixa-me chegar à parte mais interessante — disse Lou. Encostou mais a cadeira à mesa e inclinou-se. — Termos garantido a sobrevivência do crápula do Rosenkrantz acabou por ser a chave. Fez um acordo com a polícia e colaborou implicando o tipo imediatamente acima dele, Robert Hawthorne. Acontece que este Hawthorne é um tipo interessante e é o executor de toda a operação. É um oficial das Forças Armadas Especiais na reserva que se mantém em contato com o exército através de uma rede de amigos. Tem manifestado um interesse particular no pessoal médico militar insatisfeito. Não se sabe se foi recrutado ou se criou o seu próprio nicho. Aquilo que sabemos é que tem atuado como fornecedor independente ao serviço de uma grande firma de advogados de Saint Louis, especializada em casos de queixas por negligência profissional. A firma é extremamente ativa, defendendo casos em simultâneo em todo o país. Tanto quanto se sabe, Hawthorne recrutou e dirigia um grupo de enfermeiros descontentes, alguns dos quais tinham servido o exército e que eram pagos para denunciar episódios com resultados adversos dos hospitais em que trabalhavam e recebiam prêmios quando os casos eram levados a tribunal.

— Já ouvi falar disso — disse Jack.

— Eu também — disse Laurie. — São sobretudo casos de obstetrícia e de anestesiologia. É o equivalente moderno dos antigos perseguidores de ambulâncias.

— Bom, não conheço esses pormenores — disse Lou. — Mas eis a parte mais interessante. Nos últimos anos têm havido movimentações no sentido de tornar as empresas de cuidados de saúde passíveis de serem acusadas de negligência, o que, como um aparte, me parece razoável.

— O que é ou não razoável pouco importa no que toca às decisões sobre cuidados de saúde neste país — interpôs Jack. — Todas as decisões são tomadas tendo em vista interesses estabelecidos.

— Por um estranho golpe do destino — continuou Lou — as empresas de cuidados de saúde e os advogados de queixas de negligência deram por si de repente na mesma situação, no seu desejo de tentar impedir uma reforma da legislação contra a negligência. Quer dizer, os objetivos eram ligeiramente diferentes, uma vez que as empresas de cuidados de saúde não queriam que as coisas mudassem para não poderem ser processadas, ao passo que os advogados não queriam mudanças que escamoteassem prêmios por dor e sofrimento ou eliminassem taxas para contingências, entre outros. Ambos empregam pessoas com interesses em lobbies para assegurarem que a lei contra a negligência não muda, o que os uniu. Essencialmente, estão no mesmo barco, o que originou um casamento bizarro entre os dois grupos. Como tal aconteceu, fica à imaginação de cada um, mas alguém na AmeriCare deve ter-se apercebido de que podiam recorrer aos serviços sombrios de Robert Hawthorne, já que pelo menos alguns dos contatos eram... como é que podemos dizer isto? Psicopatas ou sociopatas, capazes de homicídio sem pesos na consciência.

—A designação mais atual é "perturbação anti-social" — assinalou Laurie.

— Está bem. O que seja — disse Lou. — De qualquer modo, algum ou alguns burocratas da AmeriCare interessaram-se em obter informações dos médicos infiltrados na firma de advogados que eram treinados para reunir apoios de modo a montar um esquema de eliminação de segurados de alto risco. Tratava-se de segurados que eles sabiam que lhes custariam milhões de dólares em cuidados especializados e, em conseqüência, aumentariam a pressão nos valores dos prêmios. Quer dizer, acaba por fazer algum sentido, ainda que seja doentio.

— Meu Deus! — reiterou Jack. — Isto é mais ou menos o que eu receava, mas em grande escala.

— Deixa-me terminar — disse Lou depois de se ter assegurado de que ninguém mais o ouvia. — Se houve mais colaboração nos trabalhos, de tal forma que os advogados se aproveitassem das mortes para apelar aos familiares diretos para processarem os médicos envolvidos, não o sabemos. Até agora, só tivemos conhecimento de um processo que envolve um médico do hospital Saint Francis.

— Mas certamente que esse processo vai ser retirado agora que se suspeita de homicídio — disse Jack.

— Talvez — replicou Lou. — Mas eu não teria tantas certezas, uma vez que o perpetrador era funcionário do hospital.

— Então, em que estado está a investigação neste momento? — perguntou Laurie.

— Há uma procura ativa pelas Jasmine Rakoczis nas outras instituições em que ocorreram mortes no âmbito do mesmo padrão. A esperança é apanhar alguma e torná-la em prova do estado. Se isso acontecer, é possível que o castelo de cartas se desmorone.

— Já há denúncias no testemunho do indivíduo atingido? — perguntou Laurie.

— Só do Robert Hawthorne, que não fala e saiu sob uma fiança considerável — respondeu Lou. — Infelizmente, o indivíduo não estava a par de toda a operação. Tudo o que sabia era que o seu chefe, Robert, era um visitante assíduo da firma de advogados. Não sabia com quem se encontraria nem sobre o que conversavam.

— Não foi indiciado ninguém da hierarquia da AmeriCare? — inquiriu Jack em tom de lamento.

— Ainda não — admitiu Lou. — Mas estamos a fazer figas.

— Que pesadelo! — disse Laurie estremecendo ao recordar a sua experiência penosa no hospital.

— Ena! — exclamou Lou ao olhar para as bolhas que se erguiam na flute como se as estivesse a ver pela primeira vez. — Isto é champanhe! — Alcançou a garrafa e retirou-a do balde de gelo. — Não sei porque é que estou a olhar para isto. Não consigo distinguir entre as marcas. — Acomodou novamente a garrafa no balde. — Isto é alguma comemoração?

— Mais ou menos — respondeu Laurie com um sorriso. Olhou para Jack que ergueu as sobrancelhas como se soubesse um segredo.

— Vá, disparem — ordenou Lou. Olhou para um e para o outro.

— Bem, não é nada de especial — disse Laurie. — Fui hoje submetida a um exame médico, que não foi muito agradável, confesso, mas o resultado foi reconfortante. Ao que parece, a minha gravidez ectópica resultou de um oviduto anômalo ou danificado. O exame que fiz hoje garante que o outro oviduto é perfeitamente normal.

— Mas isso é ótimo! — disse Lou. Acenou algumas vezes com a cabeça. Voltou a olhar para um e para o outro amigo, que evitavam o contato visual, olhando para baixo e mexendo as bebidas.

— Bem — acrescentou Lou — e esse resultado favorável significa que estão a pensar colocar o oviduto à prova?

Laurie olhou para Jack e disse:

— Infelizmente, para já, quer apenas dizer que o podemos fazer.

— É uma pena — comentou Lou — Bom, se precisarem de voluntários para fazer o teste, eu estou disponível.

Jack riu-se e olhou primeiro para Lou e em seguida para Laurie.

— Por que é que tenho a sensação de que vocês estão os dois a aliar-se contra mim?

— Ei, só estou a tentar ser um bom amigo! — declarou Lou ao mesmo tempo em que erguia ambas as mãos proclamando a sua inocência.

— Bem, meu bom amigo — disse Jack colocando o braço em volta do ombro de Lou. — No que diz respeito ao teste do oviduto, acho que eu e a Laurie damos conta do recado.

— Brindo a isso — disse Lou erguendo o copo.

— E eu também — concordou Laurie.



 

[1] Dumpster: marca registrada; o termo é usado em geral para designar qualquer recipiente grande para o lixo. (N. da T.)

[2] MET – Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque. (N.da T.)

[3] - Ivy Leangue – Referência a um grupo de universidades norte-americanas (das quais fazem parte, por exemplo, Yale e Harward) de reconhecida excelência de ensino e prestígio social. (N. da T.)

[4] FDA – Food and Drug Administration,organismo governamental norte-americano que inspeciona e aprova, de acordo com os padrões por si determinados, produtos alimentares, medicamentos, cosméticos,etc... (N. da T.)

[5] CSI – Crime Scene Investigation (Investigação na Cena do Crime. (N. da T.)

[6]  DEA – Drug Enforcement Administration: organismo que regula a produção, prescrição e distribuição de medicamentos. (N. da T.)

[7] Pock: bloqueio do adversário num jogo de basquetebol. (N.da T.)

[8] O termo microarray é usado em português, podendo também ser traduzido por “micro-matriz”. (N. da T.)

[9]  Em inglês: Single Nucleotide Polymorphism. (N. da T.)

 

                                                                                            Robin Cook

 

 

                      

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