Biblio VT
Há muitas e muitas eras, seres naturalmente mágicos chamados Espectros ameaçavam destruir o equilíbrio de todo o Multiverso, aniquilando tudo que existia.
Para combatê-los, uma sábia chamada Nopporn, descendente de uma das primeiras raças sapientes, convocou os principais líderes, regentes, imperadores e soberanos de todos os planetas civilizados para formarem um grupo de combate especial chamado Senhores de Castelo.
Depois de mais de uma década de guerras devastadoras, os Senhores de Castelo conquistaram a vitória. Os poucos Espectros sobreviventes foram aprisionados em pedras preciosas mágicas, que foram incorporadas a seres colossais, naturais dos confins do Multiverso.
Assim surgiu a Ordem dos Senhores de Castelo, formada por seres únicos, que usam seus dons, habilidades e artefatos de poder para incentivar a paz e a prosperidade pelos quatro quadrantes do Multiverso.
.
.
.
.
.
No tempo antes do tempo, existia apenas a frequência cósmica primordial, chamada de Maru. Um infinito de possibilidades, em que o futuro de incontáveis universos reverberava em uníssono, gerando a névoa boreal que, ao longo do tempo-espaço infinito, formou o que hoje conhecemos como Multiverso.
DOGMA NOPPORNIANO,
REGISTRADO NO LIVRO DOS DIAS
Para entender a magnitude do Multiverso, onde povos, reinos e nações proliferam vastamente em infinitas miríades de conhecimento, é preciso ter um espírito maleável,
calmo e, sobretudo, pacífico. Somente vivendo em harmonia consigo mesmo e com o ambiente circundante é que se é capaz de estender para os outros tal equilíbrio, o qual é chamado PAZ.
TEXTO FRAGMENTADO DO RITO DE PASSAGEM
PRIMEIRO DIA
Sangue Azul
Mares Boreais
Ano 3258 da Ordem dos Senhores de Castelo
O velho navio seguia veloz, espalhando gotas de arco-íris, enquanto cruzava os Mares Boreais. Tons de vermelho, amarelo e azul tingiam o céu, refletindo a beleza
exótica dos sete sóis que enfeitavam o firmamento. As velhas tábuas do tombadilho, repletas de pinturas de marujos, rangiam suavemente, acompanhando o balanço cadenciado
das águas.
Indiferente às belezas do Multiverso, Volgo seguia viagem em seu aposento, absorto em pensamentos. Estava há tanto tempo envolvido com o seu plano que às vezes era
preciso recordar o motivo de tudo aquilo. Desta vez, ao relembrar, sentiu uma sensação reprimida, desgastada pelo tempo, teimando em lhe mostrar que havia mais no
Multiverso do que apenas ódio e rancor; havia felicidade, compaixão e amor.
Em seu coração, um leve dedilhar de harpas ecoou, enchendo-o de emoções há muito esquecidas. A mais cortante e amarga de todas era a saudade. Morna como chuva de
verão, uma lágrima solitária rolou pela pele envelhecida, escorreu pelo rosto magro e caiu na túnica vermelha.
Volgo socou a mesa à sua frente com força.
— Maldita! — exclamou entredentes, xingando a lágrima e, ao mesmo tempo, a rainha dos manticores. Ele havia prometido não sentir piedade, nem de si nem de ninguém,
até que seu plano terminasse. Mas o efeito do choro da rainha ainda pesava em seu íntimo, ressuscitando sentimentos enterrados no mais profundo abismo de sua alma.
Em uma cama atrás dele, Willroch gemeu, trazendo-o de volta à dura realidade e o fazendo relembrar que ele estava ali por um propósito. E que atingir o seu objetivo
era apenas uma questão de tempo e sacrifícios; muitos sacrifícios.
Deixando as reflexões de lado, Volgo endureceu novamente seu coração e se aproximou da cama de Willroch. Apoiado no cajado de madeira, fechou os olhos e se concentrou,
murmurando palavras guturais. Enquanto fazia movimentos com a mão livre, experimentou o leve incômodo de induzir sua magia pelo cajado. Apesar de tantos anos, sentia
que não havia dominado totalmente a forma de utilizar aquele instrumento. Mas, ainda assim, era um meio útil de canalizar sua magia. Ignorando o desconforto, prosseguiu
com o encantamento. A ponta do cajado brilhou e uma poeira vermelha vibrante saiu de seus dedos, encobrindo completamente o corpo de Willroch, mergulhando o poeta
em um sono profundo.
Esse ritual era uma forma lenta, mas eficiente, de tratar Willroch, que apresentava melhoras significativas em relação aos meses anteriores. Embora crises e tremedeiras
ainda persistissem, Volgo estava confiante na recuperação total de seu lacaio. Ao finalizar a magia, cansado mas satisfeito, deitou para dormir sobre um pano no
chão; um costume adquirido há séculos, durante o autoexílio em uma caverna longe de tudo e de todos. De barriga para cima, postou o cajado sobre o corpo, segurando-o
firmemente com ambas as mãos, e criou uma proteção invisível ao seu redor.
Porém, antes de descansar em seu casulo protetor, repetiu sua rotina diária de verificação de sua rede de monitoramento. De olhos fechados, alinhou as vibrações
de sua mente para reverberarem na mesma frequência que os milhares de detectores que ele havia espalhado pelo Multiverso. Aqueles pequeninos aparelhos hexapiramidais
eram detectores tecnomágicos de Maru que lhe permitiam saber se fora captada alguma vibração mágica, do tipo que ele procurava havia tantos séculos.
Depois de se certificar de que, mais uma vez, nada fora detectado, Volgo deixou a mente se tornar uma tela em branco e, momentos depois, adormeceu.
Pouco tempo se passou quando o navio inteiro chacoalhou fortemente, arrancando-o do sono. Pergaminhos e livros caíram, e dois recipientes se quebraram ao se chocar,
espalhando um líquido gosmento e outro fumegante pelo chão do quarto. Volgo tentou se apoiar para levantar, mas outro tranco, mais forte que o primeiro, o derrubou.
— Mas que frak está acontecendo? — perguntou-se em voz alta, irritado.
Intrigado, equilibrando-se como pôde, seguiu pela embarcação, que continuava a chacoalhar, como um brinquedo sendo agitado por uma criança raivosa.
Assim que saiu para o convés, viu, abismado, que enormes barbatanas, finas e com listras rosadas, batiam furiosamente contra o navio. Aqueles apêndices macilentos,
repletos de agulhões coloridos, eram diferentes de tentáculos de lulas ou qualquer outra coisa que ele conhecesse.
Na popa, o capitão Tempestuoso, com espadas em punho, cortava os filetes rosados com movimentos precisos, enquanto seus marujos de tinta atacavam a criatura com
ferocidade. Alguns eram esmagados pela força dos golpes do animal, mas se levantavam rapidamente e voltavam a cortar as estranhas membranas que atacavam o navio.
Repentinamente uma enorme cabeça triangular emergiu ao lado do navio. Repleta de guelras e com vários olhos viscosos, sua pele transparente deixava os gigantescos
órgãos à vista. A boca possuía escamas afiadas no lugar de dentes e três pares de protuberâncias coroavam as laterais de sua cabeça monstruosa.
Uma exfirata!, pensou Volgo, incrédulo, reconhecendo a criatura que ele pensava existir apenas nas lendas dos viajantes boreais. Ele não sabia, mas aquele animal
raro estava seguindo o rastro deixado pela magia de cura que ele usava em Willroch. Para o animal, era como um chamado da natureza para se deleitar com um banquete
especial.
Os marujos de tinta, sem se abalar com a figura monstruosa, continuaram a cortar e espetar os apêndices-barbatana, que batiam furiosamente contra o tombadilho e
arrancavam pedaços do navio.
Subitamente, um emaranhado de filetes finos se enroscou na cintura do jovem capitão e o elevou até acima de um dos mastros. Com habilidade, Tempestuoso cortou o
maço de carne gelatinosa que o prendia e, por uma corda de um dos mastros, escorregou de volta ao convés, voltando a combater a criatura, que estava destruindo o
navio à procura da fonte da magia que a atraiu.
Diante de tanta destruição, Volgo foi tomado pela ira.
Se o animal não fosse detido, afundaria a embarcação. O velho feiticeiro já havia enfrentado perigos muito maiores para chegar até ali, e não seria um animal de
histórias infantis que acabaria com seus planos.
Concentrando seu poder, Volgo lançou uma violenta rajada escarlate contra o animal, que explodiu em um de seus muitos olhos. Com um rugido agudo de dor, a criatura
girou a cabeçorra, focalizou o mago e lançou vários apêndices rosados em sua direção.
Apesar da aparência indefesa e envelhecida, o feiticeiro rubro agiu rápido. Levantou voo e se desviou, escapando ileso ao ataque. Outros tentáculos se esforçaram
para pegá-lo, mas com movimentos ágeis escapou, pairando em pleno ar, acima da cabeça da criatura.
Fervilhando de ódio, apertou firmemente o cajado e disparou uma nova rajada, que explodiu no crânio triangular da exfirata com uma força arrasadora. Ferida, a criatura
urrou novamente, com um dos vários olhos pendendo debilmente em meio a jorros de sangue azulado.
Só aquele golpe fora suficiente para ferir gravemente a criatura, mas, ressoando ao som de harpas, a raiva no peito do mago cresceu de tal forma que sobrepujou todos
os outros sentimentos. Cego pela fúria, Volgo lançou mais uma rajada contra a exfirata, seguida de outra e de mais outra, cada uma mais forte que a anterior.
Seu desejo era desintegrar a criatura por completo, como se, ao fazer aquilo, destruísse também o aperto que lhe ardia no peito.
Althama!, pensou Tempestuoso, ao ver o descontrole do feiticeiro. Volgo fora dominado por um sentimento que sobrepujou de maneira avassaladora todos os demais, como
se tivesse sido cegado pelo ódio.
Sem ter como resistir aos duros golpes, os filetes rosados tombaram sem vida, escorregando pelas amuradas e caindo no mar. A enorme cabeça, estraçalhada, boiou junto
ao corpo gigantesco por alguns momentos, mas, como um navio avariado depois da guerra, a exfirata afundou, tragada pelo mar colorido.
Com dentes cerrados e segurando o cajado com força, Volgo pairou suavemente, até pousar no convés. Seu peito subia e descia descompassadamente. Mesmo com a raiva
pulsando no coração, fez um novo juramento a si mesmo: nunca mais perderia o controle de suas emoções; nunca mais se deixaria levar por uma althama.
À sua volta, marujos de tinta estraçalhados misturavam-se com retalhos de velas, tábuas quebradas e uma grossa camada do sangue azul da exfirata.
— Tempestuoso! — gritou Volgo, arfante, apoiando-se no cajado e fazendo um gesto ao seu redor. — Arrumem o navio o mais rápido possível. Não temos tempo a perder!
Olhando para o horizonte, onde um cobertor de estrelas substituía gradativamente o dia, disse, mais para si do que para o capitão:
— Nada irá me deter... NADA!
Saberes
Planeta Kynis
O homem, conhecido por poucos como Corning e pela maioria simplesmente como Ladrão, jogava biso em um bar perto do porto da capital do reino de As-Tanys, no planeta
Kynis.
Seu adversário, um homem baixo, de bigodes fartos e cabelos ralos, segurava as cartas triangulares com firmeza. Ao redor da mesa, alguns kynianos se aglomeravam.
Mais altos e magros que um humano comum, com orelhas de pontas duplas, pele acinzentada e uma ou duas barbatanas no topo da cabeça, formavam uma plateia ansiosa.
Esperavam em silêncio, curiosos para saber quem ficaria com a respeitável quantia de moedas quadradas que estava sobre a mesa.
O homem deu um gole em uma bebida amarelada e fitou o adversário, atento a qualquer movimento suspeito.
— Eu aceito a sua aposta — disse o bigodudo, colocando o copo de lado e empurrando o restante das moedas para o centro da mesa.
O Ladrão, satisfeito, revelou seu jogo: uma espada; uma armadura; uma feiticeira; um mago e um escudo. Todos da cor esmeralda.
Ao ver as cartas, o homem levantou-se bruscamente. Reconhecendo a derrota, jogou as próprias cartas sobre a mesa e saiu batendo os pés, contrariado por perder outra
rodada de biso para o estrangeiro com roupas de caçador.
— Obrigado, muito obrigado! É sempre bom jogar com pessoas tão amáveis — o Ladrão disse sorridente, guardando as moedas e agradecendo silenciosamente pela sorte;
não no jogo, mas porque o homem não viu quando ele manipulou o carteado.
Com o fim da partida, os curiosos se espalharam pelo salão.
Um homem magro, que apesar dos chamativos cabelos ruivos e da roupa espalhafatosa permanecera praticamente indistinguível dos outros clientes do local, se aproximou
dançando como um bailarino mal treinado.
— Conseguiu? Conseguiu? — perguntou o Bobo, com uma voz infantil.
— Consegui — respondeu o Ladrão, gesticulando para o amigo falar mais baixo. — Mas ainda é pouco, se compararmos com o que tínhamos antes.
Realmente não há honra entre ladrões, pensou ele, relembrando que haviam sido roubados enquanto dormiam em uma pensão, alguns dias atrás.
— E você. Tem alguma novidade? — sussurrou o Ladrão.
— Do homem que pegou o bracelete do mestre pistola? — o Bobo esticou os indicadores e, como se estivesse segurando dois revólveres, começou a atirar balas imaginárias
nas pessoas ao redor. — Bracelete para o mestre Kullat! — exclamou, dando um salto por cima da mesa e se sentando onde o bigodudo estava, pouco antes.
O Ladrão avançou sobre o amigo e tapou-lhe a boca, para evitar que ele falasse mais alguma coisa. Já havia sido muito arriscado jogar cartas enquanto o Bobo vigiava,
mas ele tinha de ganhar algum dinheiro para poder continuar a seguir a pista do bracelete de Thagir e, com isso, pagar sua dívida com Kullat.
— Então, o homem apareceu ou não? — indagou baixinho o Ladrão, destapando vagarosamente a boca do Bobo.
— Esse homem aqui? — respondeu o Bobo, retirando um papel pardo de um bolso da roupa, com a figura de um homem de óculos arredondados, de lentes escuras, que lhe
cobriam completamente os olhos e seu entorno.
Era o homem a quem ambos estavam vigiando.
— É, é... esse mesmo! — o Ladrão respondeu, pegando o papel e o amassando em uma bolinha. — Agora guarde isso antes que alguém veja.
O Bobo deu de ombros e guardou o papel. Com os dedos, fez dois círculos e os colocou sobre os olhos.
— Nenhum homem de óculos hoje — disse, meneando a cabeça e fazendo os guizos do chapéu chacoalharem.
O Ladrão praguejou entredentes.
— Mas eu sei de uma coisa que você não sabe — disse o Bobo, animado, balançando o tronco e os braços em uma dança engraçada.
O Ladrão olhou intrigado para o amigo, esperando que ele continuasse. Mas o Bobo não respondeu, apenas continuou a saltitar em seu assento, naquela dança maluca.
— O que é? — o Ladrão perguntou, irritado.
— O que é o quê? — o Bobo respondeu, parando de dançar.
— O que é que você sabe que eu não sei?
O Bobo deu de ombros.
— Não sei. O que é que eu sei que você não sabe?
O Ladrão fez uma careta e se levantou, indo em direção à porta.
— Nem sei por que ainda dou atenção...
No Mar Gélido
Dois dias depois, no fim da tarde, o Ladrão estava em um restaurante comendo carne cozida com legumes. Tomou um longo e demorado gole de água e aproveitou o movimento
para olhar novamente para o fundo do salão, onde um homem comia em silêncio. Graças aos dias de vigilância constante, ele e o Bobo conseguiram seguir o homem até
ali.
Apesar da bela capa que lhe caía pelos ombros e da gola alta que lhe encobria parte do rosto, era possível ver que o homem não era daquele planeta. Seu rosto estava
elegantemente barbeado, mas os cabelos castanhos mal podiam ser vistos por causa do grande chapéu de couro. Seus olhos estavam totalmente escondidos atrás de grandes
óculos circulares de lentes escuras, com detalhes em prata.
Bemor Caed, ministro de As-Tanys
O Ladrão continuou a comer, acompanhando discretamente o homem com o olhar durante todo o tempo, até que algo estranho aconteceu. Uma pequenina luz violeta surgiu
em pleno ar à frente do homem, desaparecendo logo em seguida.
Mesmo sem ter terminado a refeição, ele se levantou e saiu, deixando várias moedas prateadas sobre a mesa.
O Ladrão também pagou sua conta e, furtivamente, se dirigiu para a porta logo em seguida, mantendo a vigilância. Quando o homem esticou o braço para abrir a porta
de um autovapor, ficou visível por um breve instante um bonito e trabalhado bracelete de metal, incrustado com uma pedra escura e ovalada no centro.
Hoje eu pego aquele bracelete!, pensou o Ladrão, saindo do restaurante e correndo para a lateral do prédio, onde encontrou o Bobo guardando o triciclo a vapor de
lenha que haviam ganhado honestamente em um jogo, um dia antes.
Ciclomoto
Com o Bobo na garupa, viu o autovapor do homem seguir em direção ao norte da cidade.
— Acelera! Acelera! — gritou o Bobo, pulando como uma criança ansiosa.
E então, rapidamente, lá estavam eles seguindo o autovapor. Por vezes tiveram de desviar por ruas paralelas, especialmente porque o Bobo se levantava na garupa,
gesticulando e gritando.
Reconhecendo que estavam próximos da saída da cidade, por onde só havia a estrada que beirava o litoral, o Ladrão reduziu a velocidade, mantendo uma distância segura
o suficiente para continuar sem ser notado. Algum tempo depois, após uma curva acentuada, o autovapor desapareceu, mas o rastro de vapor denunciou que ele havia
entrado na floresta.
O Bobo e o Ladrão seguiram pelo mesmo caminho, uma estreita estrada de terra entre árvores grossas de folhas espinhosas, e, quando viram uma claridade em meio à
mata, estacionaram o triciclo atrás de uma grande moita, carregada de pequenas fratosas maduras. O Bobo pegou algumas e se pôs a comer, despreocupadamente.
A pé, com o silêncio típico dos gatos, seguiram até encontrar um conjunto de prédios abandonados, com postes-lampião ao redor, criando uma iluminação esmaecida.
O autovapor do homem estava estacionado no pátio. Ao lado dele, alguns animais, parecidos com cavalos, estavam selados e amarrados.
O Ladrão apontou para uma janela muito acima de sua cabeça e o Bobo fez um sinal positivo, ao entender o recado mudo do amigo. Com leveza e agilidade, subiu no poste
e se equilibrou no fio que o ligava ao prédio.
Um dia ainda descubro como ele consegue ficar tão leve, pensou o Ladrão, vendo o amigo andando tranquilamente pelo fio, que quase não cedeu sob seu peso.
O Bobo andou rapidamente até chegar próximo à janela. Examinando o interior do galpão, viu máquinas soltando vapor e alguns kynianos estirados em camas, como doentes
em um hospital macabro. De um lado os magros, malcuidados e vestidos com trapos como mendigos. De outro, os fortes, com roupas escuras cobrindo todo o corpo e o
rosto. Mas não havia sinal do homem de óculos em lugar nenhum.
Fazendo uma pirueta no ar, o Bobo caiu suavemente ao lado do Ladrão. Os guizos do chapéu não fizeram barulho em nenhum momento; mais uma de suas estranhas habilidades.
Apesar de ser uma figura espalhafatosa, ele sabia ser discreto quando era preciso. Até mesmo suas roupas pareciam mudar de cor, misturando-se ao ambiente como um
camaleão.
— Ninguém de óculos lá dentro — cochichou o Bobo, fazendo uma expressão estranha com a boca e dando de ombros.
Os dois então contornaram o galpão e, do outro lado, acharam uma trilha na mata e seguiram por ela. O cheiro de maresia e o barulho das ondas denunciavam que estavam
perto da praia.
Chegaram à margem de uma clareira, que seguia até a praia, onde um grande bote estava atracado. Archotes iluminavam o local, e alguns uniformizados, como aqueles
deitados no galpão, tiravam três jarros, grandes como crianças, de dentro do bote. Mesmo de longe, era possível ver que um deles tinha uma feia cicatriz no rosto
e uma bola azul onde deveria existir um olho.
Uma pequena fogueira crepitava perto dali. Ao redor, o homem de óculos falava com outras duas pessoas. Uma era um velho, magro e careca, vestindo uma longa túnica
vermelha. A outra era impossível de identificar, pois estava de costas e vestia manto e capuz escuros, da mesma cor do uniforme dos carregadores de jarros.
O trio falava entre si, mas, apesar da pouca distância, nem o Bobo nem o Ladrão conseguiam ouvir direito. Apenas algumas palavras entrecortadas chegavam até eles,
trazidas pelo vento.
... as três irmãs chegaram...
... estão todos preparados...
... sacrifícios...
O vento mudou de direção, e mais nenhuma palavra pôde ser ouvida. O homem de óculos falava sem parar e gesticulava largamente, como se estivesse contando uma história.
O velho magro e a figura encapuzada apenas meneavam a cabeça, vez por outra, como se concordassem.
O Ladrão decidiu que ele e o amigo deveriam voltar e criar uma emboscada. Assim, poderiam surpreender o homem de óculos, recuperar o bracelete e, finalmente, sair
daquele planeta.
Mas, para seu azar, ao se virar, ele tocou em uma árvore dormideira, que dobrou todas as folhas e desceu os galhos junto ao tronco, como se começasse a dormir. Apesar
de o movimento ter sido suave, foi o bastante para quebrar o padrão da mata, agindo como se um alarme tivesse sido acionado.
O grupo parou de falar e os três olharam na direção deles. O Ladrão e o Bobo ficaram imóveis, como se fizessem parte da natureza. Bons contraventores sabem que qualquer
movimento se destaca em meio à mata, mesmo em uma noite escura.
Um calafrio percorreu a nuca do Ladrão quando o velho esquelético lançou uma chama avermelhada para o céu, iluminando o local onde eles estavam.
— Tem alguém ali! — o homem de óculos gritou, apontando na direção deles.
O Ladrão viu a mão do homem se iluminar, e, um momento depois, um poderoso raio de energia atingiu a dormideira a seu lado, destruindo-a com uma explosão azulada.
— Corre! — o Ladrão gritou, empurrando o Bobo de volta pelo caminho pelo qual vieram.
Várias outras explosões atingiram árvores e plantas ao redor deles, enquanto corriam até o barracão. Então, passaram rapidamente pelo autovapor do homem de óculos
e pelos animais agitados, e continuaram correndo até o triciclo. Em nenhum momento olharam para trás. Pulando agilmente sobre o triciclo, o Ladrão acelerou, derrapando
por trás da moita. Antes de subir, o Bobo arrancou um galho repleto de fratosas.
Levantando terra, saíram rápido da floresta, entrando velozmente na estrada ao largo do litoral. Na garupa, o Bobo agarrava o dorso do amigo, sem largar o galho
de frutas.
Fuga de Bobo e Ladrão
— Quer uma? — gritou o Bobo, sacudindo o galho ao lado do rosto do Ladrão, sem receber resposta.
Logo atrás, em disparada, surgiu o autovapor do homem de óculos, expelindo ondas de fumaça. A perseguição continuou pela estrada cheia de curvas, acompanhando o
penhasco que contornava o mar de águas escuras.
Rapidamente, o homem emparelhou seu veículo ao lado do triciclo.
O Bobo atirou algumas bagas roxas de fratosas, tentando acertar o homem de óculos, que sorriu maliciosamente, acenou como se desse adeus e, esticando o braço, apontou
a palma da mão para o triciclo. Sua mão brilhou em nuances verdes e azuis, e a luz se transformou em uma luva repleta de fios, com um triângulo luminoso no centro
e triângulos menores na ponta de cada dedo.
Ao ver aquilo, o Ladrão instintivamente freou o triciclo, um instante antes de uma série de faixas de energia triangular cortarem o ar, explodindo a estrada.
— Pare com isso! — gritou o Bobo, jogando o galho inteiro de fratosas contra o motorista do autovapor.
Num movimento de zigue-zague, o Ladrão conseguiu desviar de outros três disparos, mas o quarto atingiu a roda da frente do triciclo, fazendo-o girar na estrada.
Sem controle, o pequeno veículo quebrou a mureta da estrada e caiu no precipício, levando consigo o Ladrão e o Bobo e desaparecendo no mar gélido.
O homem de óculos não se deu ao trabalho de parar; apenas acelerou e desapareceu com seu autovapor pela estrada deserta.
Máquina de Guerra
Planeta Wushu
Os sinais da ferocidade da batalha estavam espalhados pelo campo: destroços de máquinas, pedaços de metal retorcido e peças mecânicas quebradas misturavam-se a poças
de combustível em chamas, empestando o ar com uma densa fumaça negra que encobria o sol do meio-dia e deixando o ambiente envolto em sombras.
Indiferentes ao cheiro amargo de combustível e metal derretido, cinco guerrins, em seus roupões laranja rasgados e queimados, estavam de costas uns para os outros,
preparados para se defenderem de uma nova onda de máquinas voadoras e suas armas cortantes, ou talvez daquelas que surgiam, rastejando como cobras, com suas bocas
cheias de agulhas afiadas.
Ferimentos e sangue seco eram as provas da ferocidade da batalha que haviam travado desde antes do alvorecer. Cyla, uma das duas garotas do grupo, segurava com força
uma longa zarabatana metálica, indiferente à dor do profundo corte em seu rosto, de onde o sangue lilás havia escorrido e secado sobre a pele esverdeada. Aada, a
outra guerrina, ofegava profundamente, fazendo os negros cabelos trançados balançarem de leve. Ela ajeitou o escudo triangular no braço machucado e apertou ainda
mais forte o cabo da espada. Wazu e Zazu, os gêmeos uniclopes de pele vermelha, trocaram olhares, como se um esperasse a fala do outro, mas o único som que se ouvia
era o das botas e luvas metálicas, que zuniam e brilhavam, acompanhando a intensidade da energia das fivelas em seus cintos.
— E agora, o que vamos fazer? — perguntou Cyla, fazendo uma careta de dor por causa da ferida.
Todos se viraram para Sumo, o jovem de cabelos castanhos e rosto imberbe. O rapaz olhou para as feições cansadas e marcadas dos quatro companheiros, pensando que
seu próprio rosto devia estar parecido. Estavam em campo havia dias, enfrentando perigos e inimigos, sem comer nem descansar direito. Verificou as pequenas bolsas
d’água que carregava e chacoalhou o cajado, cujo interior era oco, e percebeu que estavam completamente secos.
— Já usei todas as minhas reservas — disse, contrariado. — O que vocês ainda têm?
Cyla olhou as várias faixas de couro atadas ao corpo e contou rapidamente os dardos metálicos presos a elas.
— Ainda consigo explodir umas dez daquelas máquinas esquisitas — disse Cyla, com raiva na voz, enquanto brandia sua zarabatana.
— A carga do meu escudo está baixa — disse Aada —, mas ainda aguenta um pouco. Só que minha espada não tem mais nenhuma cápsula de luz.
Wazu e Zazu checaram as fivelas em seus cintos.
— Ainda consigo chutar o traseiro de algumas daquelas coisas — disse Wazu, piscando seu único e grande olho azul.
— Aposto que chuto mais traseiros do que você — respondeu Zazu sorrindo, deixando à mostra dentes amarelados.
— Então vamos andando — disse Sumo. — Temos que chegar ao ponto de encontro o mais rápido possível.
Ele apontou para o norte com o cajado, e, seguindo o que lhes foi ensinado na Academia, os guerrins imediatamente fizeram uma formação de pentágono e começaram a
se mover, desviando dos destroços de metal e das poças flamejantes.
Não haviam avançado mais do que alguns passos quando, por trás da densa fumaça, escutaram estalos e estouros, típicos de motores a combustão, misturados ao barulho
de engrenagens girando. Sem nenhum aviso, uma bola de metal imensa, repleta de apêndices pontiagudos, foi lançada em direção ao grupo.
Para não serem atingidos, os guerrins se jogaram para os lados, desviando do ataque. Instantes depois, a esfera, presa a uma corrente, foi puxada de volta para a
fumaça, sendo lançada novamente contra o grupo. Desta vez, contudo, veio seguida de várias outras.
Wazu bateu na fivela do cinto, energizando botas e luvas. Seu irmão repetiu o gesto, e os gêmeos começaram a socar e chutar as bolas metálicas. Aada conseguiu repelir
uma com seu escudo mágico e, com sua espada afiada, quebrou a corrente que a prendia. Cyla saltou como uma ginasta entre duas bolas. Com sua zarabatana, lançou dois
dardos, que explodiram ao atingirem o metal. Sumo, como estava sem água, não conseguia se defender nem atacar. Só lhe restava uma coisa: tentar sobreviver. E, graças
à agilidade adquirida nos treinamentos que fizera desde criança, conseguiu se desviar de todos os ataques com saltos e manobras, valendo-se de seu cajado.
As bolas e correntes que sobraram foram recolhidas ao mesmo tempo em que uma rajada de vento forte soprou, espalhando fumaça e revelando quem estava por trás dos
ataques. Era uma estranha máquina de metal, apoiada em várias pernas mecânicas e com parte do corpo enterrada no chão. As correntes e bolas formavam uma espécie
de rabo, que balançava ameaçadoramente. Enormes engrenagens giravam e zuniam. No topo do que seria a cabeça, estruturas metálicas expeliam fumaça e fuligem.
A máquina de guerra encarou os guerrins com centenas de olhos incandescentes e fez um barulho horrível de metal, machucando os ouvidos dos jovens guerreiros. Com
um rangido, abriu uma enorme mandíbula e começou a morder terra e pedras ao seu redor.
— Saiam daqui! — Sumo gritou, correndo para longe e sendo seguido pelos outros quatro.
A intensidade do som aumentou e a boca da máquina começou a girar, sugando o solo rochoso e os destroços metálicos para dentro dela.
Aada foi surpreendida pela força da sucção. Assustada, tropeçou, e seu corpo rodou no ar como um boneco de pano, começando a ser puxada para trás, sugada em direção
à máquina. O escudo lhe foi arrancado, voando direto para dentro da boca metálica. Desesperada, agarrou a espada com ambas as mãos e a fincou no solo com um movimento
brusco. Como uma bandeira em uma tempestade, seu corpo tremulava, com os pés balançando freneticamente no ar.
Os outros quatro guerrins viam tudo, mas não conseguiam ajudar, pois tinham de se segurar para não ser eles também sugados.
De repente, a sucção parou e Aada caiu no chão, ainda empunhando firme o cabo da arma. A máquina, agora imóvel, começou a fazer um barulho ameaçador de pedras e
metal sendo destroçados. Parecia que as chaminés nas costas explodiriam, de tanta fumaça que soltavam.
Encarando os guerrins com seus vários olhos flamejantes, o monstro abriu a mandíbula de metal e vomitou uma tempestade de destroços. Estilhaços de pedras, terra
e pedaços de máquinas foram lançados diretamente contra o grupo.
Aada, que estava mais perto e sem seu escudo, não tinha como se proteger. Sua única reação foi gritar, apavorada, um instante antes de um brilho intenso como um
raio surgir e a engolir em meio à avalanche de detritos e metal.
— NÃO! — Sumo gritou, impotente.
Diante do ataque, os gêmeos se ajoelharam, próximos um do outro, e espalmaram as mãos sobre a cabeça. Suas luvas criaram uma redoma energética que também protegeu
Cyla, que gritava desesperada. Mas seus gritos foram abafados pelo barulho, enquanto ela e os gêmeos também eram atingidos fortemente pelos escombros.
Sumo, mais afastado e fora da rota de ataque, viu, horrorizado, os amigos sumirem no turbilhão de destroços. Sem conseguir reagir, sentiu o corpo fraquejar e caiu
de joelhos, sem forças nem para gritar.
A máquina cessou de expelir os escombros e ficou parada, contemplando a destruição, como se procurasse por algum sobrevivente.
Ainda de joelhos, Sumo ficou olhando o local onde Aada havia sido atingida, sem esperanças de que ela pudesse estar viva. No ar repleto de poeira e fumaça, viu algo
totalmente inesperado, que acalentou seu coração e o arrancou do estado letárgico e desesperador em que se encontrava. Uma barreira prateada, semitransparente, envolvia
Aada, que se aninhava amedrontada atrás de um homem em pé, com o punho fechado próximo ao rosto, como se estivesse segurando um escudo invisível.
Com lágrimas nos olhos, Sumo sorriu aliviado. O escudo de energia mágica, o manto espectral e as mãos flamejantes não deixavam dúvida: o salvador de Aada era seu
mestre, Kullat. Para a alegria do jovem guerrin, a proteção dos gêmeos também funcionou, e eles e Cyla conseguiram sair ilesos do ataque.
Sem desmanchar a barreira de energia protetora, Kullat conduziu Aada com delicadeza até os gêmeos. Enxugando os olhos, Sumo se levantou e correu até eles. A proteção
dos gêmeos tremeluziu e desapareceu, e, com um gesto suave, Kullat também fez desaparecer sua proteção.
Os cinco guerrins se abraçaram, com o cavaleiro no centro do abraço coletivo.
— Nunca — Kullat começou a falar, com um grande sorriso no rosto —, eu repito, nunca saia de casa sem um escudo mági...
A frase do Senhor de Castelo foi interrompida pelo barulho da máquina. O monstro de metal começou novamente a abocanhar e sugar tudo ao redor.
Com um gesto rápido, Kullat criou uma esfera de energia mágica em volta dos guerrins e a lançou no ar, flutuando para longe da criatura.
Ainda suspensos, os jovens viram, chocados, Kullat sendo tragado pela enorme mandíbula de ferro. Os guerrins gritaram em desespero ao ver seu mestre ser sugado para
dentro da criatura metálica, que fechou a bocarra, engolindo o Senhor de Castelo.
Os diversos olhos do monstro brilharam intensamente e as chaminés expeliram fumaça com fúria, lançando fuligem e vapor no ar. A enorme máquina chacoalhou a cabeça
de um lado para o outro e as luzes dos olhos piscaram freneticamente na cabeça gigante.
Repentinamente, o barulho das engrenagens cessou por completo e uma luz prateada brilhou intensamente dentro da criatura. Em seguida, uma explosão separou a enorme
cabeça do resto do corpo e a máquina de guerra se desmantelou, enquanto outras explosões surgiram, destruindo-a por dentro.
Motores e engrenagens voaram pelo ar e desabaram no chão, erguendo uma grande nuvem de sujeira. Do meio da poeira, caminhando calmamente em direção aos guerrins,
surgiu a silhueta de Kullat, com as mãos enfaixadas brilhando em prata.
Um a Menos
Depois da destruição da máquina, o grupo não foi mais atacado. Eles andaram pelo descampado até chegar ao pé de uma montanha, onde várias barracas estavam armadas
em uma ampla planície verde.
O Senhor de Castelo apontou as barracas de cura para Sumo.
— Leve seu grupo até lá — disse, com a voz calma. — Quero ter certeza de que todos estão bem.
— Sim, mestre — o jovem respondeu, cabisbaixo. — O senhor sabe o que aconteceu?
— Não — respondeu Kullat com seriedade. — Mas pretendo descobrir.
— Sim, senhor! — o jovem concordou baixinho, fez uma leve mesura e se retirou, guiando os colegas até as tendas azuis dos cuidadores.
Ele está se saindo muito bem, pensou Kullat. Se for tão bem na próxima missão quanto na última, vou recomendá-lo para o último estágio de guerrin.
Kullat suspirou profundamente, imaginando que aquele acampamento, em vez de ter sido apenas um teste das habilidades, do raciocínio lógico e do controle emocional,
poderia ter se tornado um campo de tragédias se ele, o Mestre em Campo do seu grupo, tivesse demorado um pouco mais para interferir na batalha.
Tentando afastar da mente o que poderia ter acontecido, andou pelo acampamento, passando por diversas barracas até chegar à tenda que servia de cozinha, da qual
surrupiou um espetinho de escorpião.
Depois seguiu até a grande tenda no centro do acampamento, onde uma enorme mesa com películas de projeção polidimensional exibia miniaturas dos diversos campos de
batalha ao redor da montanha e do acampamento.
A mesa estava cercada por vários Senhores de Castelo: irradiando eletricidade pelos olhos, estava Valtyne, uma castelar conhecida de Kullat. Cercada por uma pilha
de livros, ela acenou para o cavaleiro, que retribuiu com alegria. Plodu, de Dorin — um planeta do primeiro quadrante, rico em lendas —, conversava com duas Senhoras
de Castelo de Flux — um mundo de seres não corpóreos.
Ao ver o cavaleiro, Plodu se aproximou, estendendo-lhe a mão alaranjada.
— Kullat! Que bom vê-lo aqui — a voz era grossa, mas extremamente amigável.
— Meu amigo! Há quanto tempo — Kullat o abraçou. — A última vez que nos vimos faz o quê... uns cinco anos?
— Seis, para ser exato — respondeu Plodu, piscando os olhos amarelos, desprovidos de íris. — Foi quando você me salvou daquele bando de adiums no planeta Palla.
— É mesmo! — Kullat deu um soco de leve no ombro do amigo. — Só de lembrar daqueles dentes afiados fico arrepiado!
Os dois Senhores de Castelo riram alto. Um jovem chamado Ferus, que olhava atentamente um pergaminho eletrônico de notícias, levantou os olhos ao ouvir as risadas.
Ao ver Kullat, o jovem acenou e sorriu amigavelmente.
— Ferus! Você também está por aqui? Depois me mande uma nova remessa das suas histórias, ok? — disse Kullat, sorrindo e retribuindo o aceno, pensando que o jovem
era muito inteligente e, além de ser um ótimo contador de histórias, tinha potencial para se tornar um grande Senhor de Castelo.
Um pouco mais afastado, estava o general Ur’Dar, ancião do Conselho. Era uma figura proeminente com seus quatro braços e seus mais de dois metros de altura. Usava
uma enorme placa peitoral feita de aço, ombreiras largas e uma espécie de saia de couro. Nos punhos, grossos braceletes de combate, adornados com prata, completavam
seu figurino de batalha.
Kullat se despediu de Plodu, seguiu em direção ao general e se inclinou respeitosamente, recebendo de volta o cumprimento, em sinal de mútuo respeito.
— Nós fomos os primeiros a chegar? — perguntou Kullat.
— Não. O seu foi o terceiro grupo — respondeu o general.
— Nada mal, hein? — Kullat se aproximou da mesa de projeções.
— Nada mal mesmo — comentou o general, cruzando os quatro braços. — Talvez sua equipe seja campeã desta vez.
— É verdade. Sem Thagir aqui, talvez minha equipe consiga ficar em primeiro.
Kullat olhou para os vários setores ao redor da montanha que ainda estavam vermelhos, indicando que diversas equipes ainda não haviam chegado ao acampamento.
— Eles também devem estar com problemas com aquelas máquinas sugadoras.
— Como assim máquinas sugadoras? — perguntou Ur’Dar, confuso.
— Minha equipe quase morreu por causa de uma delas.
— Impossível! — Ur’Dar exclamou, chocado. — Essa função é desligada para treinamentos de guerrins.
— Não estava desligada quando meu grupo a enfrentou. Se eu não tivesse interferido, a guerrina Aada teria morrido. E talvez os outros também.
Ur’Dar passou as mãos de cima na cabeleira amarrada em um impecável rabo de cavalo e seus olhos escuros piscaram algumas vezes. Ele estava ciente de que o acampamento,
uma das sessões de treinamento que os guerrins devem ter antes de missões em campo, possui um nível de perigo real, mas não deveria existir risco de morte.
— Eles estão bem? — Ur’Dar perguntou, preocupado.
— Não vi nenhum ferimento grave, mas os mandei para as barracas dos cuidadores para garantir.
— E a guerrina?
— Ela é forte e determinada. Sugiro apenas fazer um acompanhamento mais de perto, só para ter certeza de que essa experiência não deixou nada além de marcas pelo
corpo.
— Cuidarei disso. — Ur’Dar suspirou, aliviado.
O general fez um sinal para Ferus se aproximar.
— Mande um comunicado para os orientadores das equipes restantes. Informe que a função de sucção das metratoras pode estar ativada e que os Mestres em Campo podem
interferir, se for preciso.
Ur’Dar colocou as duas mãos de baixo na cintura e cruzou os braços de cima.
— Acho que vou desativar todas aquelas máquinas. Já estão velhas, e eu não quero esse tipo de risco em meus acampamentos.
— Todas... menos uma! — Kullat exclamou, sorridente.
Ur’Dar estreitou os olhos.
— Como assim?
— A que atacou os meus garotos sofreu um pequeno acidente. — Kullat deu de ombros.
Ur’Dar o encarou por um instante e então abriu um largo sorriso, batendo com força nas costas de Kullat e soltando uma sonora gargalhada.
Uma Nova Cor
Ilha de Ev’ve
O Panteão de Heróis, um dos lugares mais frequentados da Academia, foi construído em memória e em homenagem aos Senhores de Castelo, heróis que vivem e tombam em
nome da paz e da prosperidade dos povos.
Esse enorme complexo é formado por um grande jardim florido, centenas de estátuas, corredores largos de grama verde, bancos e mesas, córregos e fontes de água cristalina.
Integrado ao bosque que cerca o grande Castelo Central de Ev’ve, está o Muro dos Registros — um extenso rochedo mágico verde-escuro, construído em 32 depois da Guerra
Espectral, cuja frequência se conecta às tatuagens fantasmas de todos os castelares do Multiverso. Ele serve de fonte de pesquisa e monitoramento permanente, além
de exibir em baixo-relevo o nome de todos os Senhores de Castelo que já existiram: o dos vivos é representado em um tom amarelo vibrante, o dos castelares anteriores
à construção do panteão e o dos falecidos são apagados; e os banidos Ho’nin, também conhecidos como homens-onda, têm o nome apagado e cortado em diagonal.
Todo esse complexo de paz e harmonia tornou-se, com o tempo, um dos locais preferidos dos guerrins para os encontros após as aulas, para conversar, comer, ler, namorar
e trocar figuras castelares — ilustrações do tamanho de uma carta de baralho que retratam vários Senhores de Castelo e contêm informações como força, inteligência,
nível Tesla e uma breve biografia. Essas ilustrações são também utilizadas em algumas formas de jogos.
Por ser um lugar de confraternização, o Panteão é frequentado por colaboradores da Academia, professores, acadêmicos e Senhores de Castelo que estejam de passagem.
Mas, naquele dia, apesar de o local estar repleto de estudantes, não havia nenhum Dan à vista. Os mestres estavam em reunião para discutir assuntos acadêmicos antes
do recesso das aulas, e, sem a presença de seus mestres e com um pequeno período de folga à vista, os guerrins estavam ainda mais agitados que de costume.
Indiferente ao clima de festa, no alto de uma das pontes de acesso ao Panteão, a guerrina Laryssa, de Agas’B, estava quieta. Os cabelos lisos haviam crescido desde
que chegara em Ev’ve, batendo nos ombros, e balançavam suavemente ao sabor da brisa. Enquanto fitava o vazio, seus pensamentos voavam e a levavam de volta ao passado,
fazendo-a relembrar as amarguras pelas quais passara. Por mais que sua mente dissesse para seguir adiante, seu coração carregava pedras difíceis de serem quebradas.
No início, aquele turbilhão de sentimentos ainda era efeito do canto da rainha manticore. Mas, apesar de ter se passado tanto tempo, e do efeito ter se reduzido
drasticamente, sua alma não havia se recuperado por completo. E, provavelmente, havia feridas que jamais cicatrizariam. Dia após dia, ela remoía seus sentimentos:
pensava em Kullat e nos momentos especiais que passaram juntos em Agas’B, momentos que apenas os dois conheciam. Relembrava seu mais fiel amigo, Azio, a quem devia
a própria vida e a quem amava incondicionalmente, mas talvez não da maneira como ele merecia. E culpava-se ainda pela perda da mão de seu pai. Mas o que mais a machucava
era o arrependimento das decisões que tomara, decisões que acarretaram grandes perdas: a felicidade de Driera, a sanidade de Iki e a vida de Dau.
— O que você está fazendo aqui? — disse uma voz jovial, quebrando a concentração de Laryssa.
Ela olhou para trás espantada e sorriu ao ver Glinda, uma garota de longos cabelos rosados, pele branca como leite e olhos claros como vidro, que era muito popular
e possuía vários admiradores. Muito mais que a beleza, eram seu jeito meigo, sua alegria contagiante e sua despreocupação confiante que a tornavam especial. Por
serem companheiras de quarto, a amizade entre as duas aflorou naturalmente, e Glinda se tornou a melhor amiga e confidente de Laryssa.
— Eu perguntei: o que a senhorita está fazendo aqui? — Glinda abriu um grande sorriso, deixando à mostra os dentes cristalinos. — Temos que nos preparar logo. Hoje
a noite promete!
— Glin, eu... — Laryssa começou a falar, mas foi interrompida.
— Ah, não, Lary! — Glinda retrucou antes que Laryssa pudesse continuar. — Você já sumiu nas três últimas festas. E nessa você prometeu que iria!
Glinda se referiu à promessa que a amiga fizera, após ela insistir muito, de ir à festa que os estudantes fariam durante o recesso das aulas. E a festa daquele dia
seria especial, já que seria organizada pelo trio fantástico: Dod, guerrin de Collete,* e as gêmeas Keetrin e Keitty, de Adrilin.**
Laryssa ficou em silêncio.
— Não acredito! Você ainda está pensando nele? — Glinda perguntou, soltando um suspiro. Notando os olhos tristes da amiga, se aproximou, colocando uma das mãos sobre
o ombro dela. — Está na hora de acordar, Lary! — Glinda chacoalhou de leve o ombro da princesa. — Kullat não vai voltar. Você sabe disso!
Laryssa continuou calada. Não era apenas aquilo que a afligia, mas ela achou melhor que a amiga pensasse assim, pelo menos por enquanto.
— Tá! Você gosta dele! — Glinda continuou, impaciente; não era a primeira vez que conversavam sobre isso. — Você e mais um terço das garotas daqui são apaixonadas
pelo cara.
Laryssa suspirou, pensando que Kullat realmente era muito popular na Academia. O bom humor do cavaleiro era sua marca, sempre disposto a conversar com os alunos.
— Lary, escute — Glinda continuou. — Confesso que ele é lindo, alto, forte, com aquele manto branco impecável. E o capuz? Aqueles olhos brilhando na escuridão ficam
com um ar tão misterioso...
— Junte mais uma àquele um terço — Laryssa resmungou.
— Ah, pare com isso! — Glinda retrucou. — Não sou eu que está aqui em cima se martirizando por um amor impossível.
Laryssa resmungou, cruzando os braços em sinal de desgosto. Glinda já conhecia a amiga o suficiente para saber que a conversa lhe desagradava, mas ignorou a atitude
e continuou falando.
— Está na hora de procurar outra pessoa, amiga! Se você gosta de caras bonitos com mãos brilhantes — Glinda continuou, entusiasmada —, é só frequentar um pouco mais
as festas. Você conhece o Percell?
Laryssa conhecia o guerrin de cabelos castanhos e se lembrou que uma vez ele usou seu poder de criar luz sólida para fazer uma apresentação, na aula de história
do Multiverso, quando criou um teatro de fantoches de luz vívido e cheio de detalhes sobre as Guerras Espectrais.
— Ele sempre pergunta de você — Glinda sorriu e piscou um olho.
— Sério? — Laryssa se espantou. — Que tipo de pergunta?
— Ah... sobre quando você vai parar de babar pelo Kullat e seguir adiante — Glinda respondeu, rindo, mas, vendo que Laryssa não tinha entendido a brincadeira, continuou:
— Sua boba! Não é isso. Ele só pergunta quando você vai aparecer nas festas. Ele é muito tímido, mas é um verdadeiro cavalheiro.
Apesar de concordar com a amiga, Laryssa fechou a cara e voltou a encarar o horizonte, emburrada.
— Eu queria voltar no tempo e apagar tudo. Se não tivesse aquela maldita barreira mágica da Nopporn, eu juro que tentava.
— Todo mundo já pensou em mudar o passado, principalmente garotas apaixonadas — Glinda continuou, com um sorriso maroto. — Mas deixa isso pra lá, amiga. Tem tantos
outros... candidatos a príncipe. Lembra do Virnus? — E, vendo um reflexo de reconhecimento nos olhos de Laryssa, ela continuou: — Então! Sabia que ele solta raios
quando bate palmas? Não sei para que isso serve, mas aposto que ele consegue fazer coisas incríveis com aquelas mãos... — Glinda suspirou alto e sorriu. — Ele parece
até um deus, com aquela linda cabeleira dourada!
Laryssa fechou os olhos à menção da palavra “dourada”.
O único ser dourado com quem me importo está tão longe... A princesa suspirou pensativa, sentindo um grande vazio pela ausência de Azio. Aquela sensação começou
quando ela achou que o tinha perdido no vulcão em Edimgrir, e foi naquele momento que ela se deu conta de que seus sentimentos por ele eram muito mais intensos e
profundos do que jamais imaginara. Engraçado como a gente só dá valor para alguém quando o perde, pensou. Dividida, era como se seu coração fosse uma corda puxada
para lados contrários. De um lado, Kullat, cujo coração era maior do que ele próprio, mas que não queria, ou não conseguia, se entregar ao amor de uma companheira.
De outro, Azio, seu velho amigo e protetor, que desde sua mais tenra lembrança zelou por ela, protegendo-a dos perigos da vida, amando-a incondicionalmente, mas
sem poder dar a ela o tipo de amor de que ela precisava. A alma de Laryssa estava permanentemente atribulada por sentimentos conflitantes. Era como se, em seu íntimo,
existisse uma verdadeira batalha entre o branco e o dourado.
Ela colocou as mãos no peito, como se quisesse aprisioná-lo, e sacudiu de leve a cabeça para espantar aqueles pensamentos. De longe, avistou Virnus conversando animadamente
e fazendo um movimento amplo com uma das mãos, que deixou no ar um lindo e brilhante arco vermelho.
— Quem sabe não está na hora de colocar um pouco de vermelho na minha vida? — disse Laryssa, com um suspiro.
Glinda abriu um largo sorriso, abraçou a amiga e começou a andar, praticamente a arrastando.
— Então vamos jantar e nos trocar para ir à festa e procurar uma nova cor para você, amiga!
Laryssa parou e se desvencilhou dos braços de Glinda.
— Infelizmente eu não posso ir ainda. — Laryssa puxou um pergaminho de dentro do quimono verde e o mostrou para Glinda. — Tenho que cumprir algumas horas da pena
hoje na biblioteca. — E, vendo a expressão de desânimo da amiga, complementou: — Mas prometo que passo lá depois.
Glinda apenas suspirou e deu de ombros.
— Você que sabe, Lary... Você que sabe.
Notas
* Planeta do primeiro quadrante. Também conhecido como planeta de papiros, por possuir vastas bibliotecas, repletas de pergaminhos e outros tipos de registro.
** Planeta do terceiro quadrante. Sua população é composta de gêmeos. O nascimento de um filho único é estudado exaustivamente pelos cientistas locais.
À Procura
Depois do jantar, Laryssa colocou o vestido rosado que a amiga tanto insistira para que ela usasse e saiu, deixando um beijo no ar para Glinda. Chegou ao Panteão
de Heróis com passadas firmes. Não corria, mas seu andar denunciava a pressa.
Como se para debochar de sua luta contra o tempo, a figura de um homem calvo lançava seu olhar petrificado para a princesa. Ao lado dele, outras três estátuas a
fitavam com a mesma expressão dura. Aqueles bustos representavam as quatro pontas do Triângulo Samsara, Senhores de Castelo únicos, que nasceram antes mesmo de a
Ordem existir.
Quem dera eu tivesse o poder de vocês, dobradores do tempo. Laryssa pensou, sem diminuir o passo. E pensar que ainda estão vivos.
Ela evitou o Muro dos Registros, para não lembrar que o nome de seu antigo mestre estava apagado, como os nomes de todos os heróis já falecidos.
Com passadas rápidas, percorreu uma série de caminhos tortuosos até chegar a um complexo de três edifícios, um bem maior e central, que se conecta com os outros
dois menores por passarelas tubulares, transparentes e brilhantes. Ao se aproximar, reconheceu o símbolo Musashi, que brilhava em branco na fachada do prédio circular
central; uma enorme coluna de metal e vidro, iluminada por faixas horizontais de luz azul fosforescente do chão até o último andar. Nos primeiros cinquenta andares,
as janelas eram de vidro prateado, em formato ovalado. Daquele ponto em diante, o vidro era negro e hexagonal.
A Torre Hideo, com cento e dez pavimentos, é uma edificação tão alta que do seu topo é possível ver o distante, protegido e proibido Lago Sagrado, considerado o
epicentro de todo o Multiverso. A torre é um verdadeiro complexo de conhecimentos, estudos e arquivos, e guardiã de uma infinidade de segredos.
Ela registrou sua entrada em um painel e entrou no ascensor dinâmico. Em poucos instantes, estava no trigésimo quinto nível. E, logo ao sair, um aviso luminoso lhe
confirmou que estava no lugar certo.
§ PLANETAS — MAPAS — LOCALIZAÇÕES §
Laryssa sabia que deveria usar suas horas de pena na biblioteca para organizar arquivos, mas, em vez disso, aproveitava para conseguir informações que, normalmente,
não poderia acessar.
O tempo passou e a mesa ficou repleta de mapas polidimensionais, pergaminhos eletrônicos e papiros antigos. Uma pulseira em seu braço vibrou, alertando que a parte
de sua pena daquele dia fora cumprida. Ela estava cansada, mas, ao pegar um pequeno livro de capa vermelha, sentiu-se um pouco mais animada ao reconhecer a própria
caligrafia no papel amarelado. Eram anotações e desenhos, resultado de várias horas de pesquisa como aquela. Fez mais algumas anotações, e, satisfeita, achou que
já tinha o que precisava.
Vou contar para o Azio o que encontrei antes de ir para a festa, pensou, arrumando tudo para poder voltar ao alojamento. Quem sabe isso o ajude a encontrar o que
ele tanto procura.
Um Novo Sentimento
Planeta Oudar
Azio escalava a escarpa rochosa com grande agilidade. Abaixo dele, a parede íngreme seguia firme até o chão. A enorme floresta abaixo era apenas um amontoado de
tons de verde cobertos de neve. Seus pés balançavam livremente, já que ele segurava todo seu peso apenas com as mãos.
Impulsionando o corpo dourado para cima, transpôs com facilidade o último trecho da subida, chegando a salvo no primeiro dos três Degraus de Ubmar. Depois de vencido
esse primeiro trecho, outros dois, de altura semelhante, mas mais estreitos, também teriam de ser ultrapassados.
Ele se sentou na rocha fria e olhou ao redor. Seus sensores não indicavam nenhum vestígio de vida naquele primeiro nível da montanha rochosa. Seu peito estalou,
fazendo um barulho fraco como se, com isso, demonstrasse sua decepção. Não havia nada ali, apenas pedras, neve e o vento congelante.
De lá de cima, contemplando a dimensão da cordilheira que divide o reino de Dovah ao meio, confirmou seus cálculos de que contornar a imensa elevação levaria semanas.
Então ficou satisfeito ao refletir que sua decisão era mais lógica e rápida: passar por cima do obstáculo. Na velocidade com que progredia, levaria apenas mais um
ou dois dias para cruzar toda a muralha e, finalmente, chegar até Slytosam, porto de acesso aos Mares Boreais.
No entanto, Azio não se contentava com a rapidez com que avançava. Ele viajara de tão longe até aquele planeta apenas para se certificar de que seguira uma pista
falsa. Só com as buscas realizadas ali, gastou mais de dois meses, sem contar o tempo de viagem pelos Mares Boreais.
Na desolação daquele lugar inóspito, Azio sentiu novamente o peso da solidão. Antes, ele tinha certeza de que era o último de sua raça, e até havia aceitado sua
condição. Mas isso mudou depois que Volgo usou o poder do Globo Negro que estava retido em seu corpo, o que liberou uma infinidade de fragmentos de memória, imagens
distorcidas e recortes de informação.
Foi assim que, momentos antes de seu corpo entrar em colapso e afundar na lava do vulcão em Edimgrir, ele teve certeza de que não era o último sobrevivente de Binal.
Pelo menos, tinha esperança de não ser, pois alguns fragmentos de suas lembranças surgiram em sua mente, como raios em uma noite tempestuosa: algo vago sobre uma
estranha construção de metal, rostos e corpos de outros binalianos, ainda vivos. Gritos horrendos de seres iguais a ele. Volgo, Kendal e um outro ser juntos, humilhando-o
e torturando-o, assim como a outros de seu povo. Prisão, flagelo, dor, raiva, escravidão, magia e, enfim, esquecimento.
Apesar de serem fagulhas na escuridão, algumas dessas lembranças se tornaram importantíssimas para ele. Pistas que lhe deram esperança para começar uma busca pelo
Multiverso. Se existisse mais algum binaliano vivo, ele o encontraria. Se mais alguém da sua raça ainda fosse prisioneiro, ele o libertaria. E se seu pior temor
se confirmasse e ele encontrasse apenas corpos metálicos, ainda lhe restaria uma coisa a perseguir: a vingança.
Em meio ao turbilhão de pensamentos, um lampejo de alegria tomou conta do seu ser, quando uma voz familiar ecoou em seus ouvidos.
— Az... ...gue me ou...? — A voz estava entrecortada, misturada a estática.
O gigante dourado fechou o punho e, de seu antebraço, três hastes surgiram, formando uma pequena antena de recepção ressoante, que vibrava exatamente na mesma frequência
do comunicador Amlar que ele deixara com Laryssa. A frequência vibracional desses aparelhos se alinhava até ressoarem de forma idêntica, independentemente da distância
ou de qual universo se encontrassem.
Azio aguardou a automodulação do aparelho e, rapidamente, uma miniatura da princesa Laryssa, vestindo um belo e jovial vestido rosado, surgiu à sua frente. Embora
fosse uma projeção polidimensional, a perfeição da imagem impressionava. Azio podia ver o rosto elegante, os cabelos lisos até os ombros e os lábios graciosos dela.
— Azio. Consegue me ouvir? — Laryssa perguntou, com uma expressão de dúvida.
— Alto e claro. E também consigo vê-la. Você está bem? — Sua voz metálica demonstrava alegria.
Laryssa abriu um sorriso encantador, repleto da mais pura felicidade.
— Como é bom poder falar com você de novo! Faz um tempão que estou tentando ligar esta coisa. Esse comunicador é muito complexo para mim.
— A beleza está na complexidade, princesa — Azio sorriu de leve. — E, assim como você, a tecnologia binaliana também é complexa.
Laryssa sorriu. Antes ela estranharia um elogio daqueles vindo de seu amigo dourado. Mas, ultimamente, isso vinha acontecendo com certa frequência. Ela estava até
começando a ansiar por ter esse tipo de conversa com Azio.
— Você é a figura mais complexa que eu conheço — ela disse sorridente. — Então também deve ser a mais bela.
Azio ficou calado pelo tempo de um suspiro e, para surpresa de Laryssa, pareceu acanhado.
— A conclusão lógica é que somos ambos complexos e belos — ele disse por fim, olhando com ternura para a imagem dela flutuando à sua frente.
— Belos e complexos — ela concordou. — Mas ainda assim, continuo sem saber como mexer nesse comunicador. Eu sou uma filha da natureza, e não estudiosa da tecnologia.
— Para os binalianos, não há distinção entre natureza e tecnologia. As duas coisas são uma só.
— Então, pela sua lógica, você também é filho da natureza, assim como eu — Laryssa disse, pensativa. — E, portanto, somos iguais, apesar de sermos tão diferentes.
— E ficou calada por um momento, coçando a cabeça. — Será que isso faz sentido?
— Faz todo sentido — Azio prosseguiu. — Um dia, muito em breve, vou poder lhe mostrar um pouco mais do que a natureza binaliana é capaz de criar. Então você vai
ver como, apesar de diferentes, somos iguais.
Laryssa imaginou que Azio estava se referindo à própria busca. Se ele conseguisse encontrar outros sobreviventes de Binal, poderia mostrar a ela as maravilhas de
outros seres vivos e tecnológicos criados naturalmente. Mas ela estava errada. A frase de Azio era uma referência a si mesmo e às mudanças que estavam ocorrendo
gradativamente em seu corpo, desde que o poder do Globo Negro havia se fundido a ele, anos atrás.
— Ei, Lary! — A voz de Glinda surgiu por trás da pequena imagem de Laryssa. — Você prometeu que ia à festa, mas ainda está aí parada? Eu já preparei o campo, amiga!
O Virnus está louquinho para falar com vo...
Laryssa bloqueou o som com um movimento rápido, impedindo Azio de continuar a escutar. Mas ele viu a pequena imagem da princesa se virar e, como em um teatro mudo,
percebeu que ela gesticulava pesadamente, como se brigasse com Glinda.
Alguns instantes depois, ela se virou novamente para Azio. Seu rosto estava vermelho. Ela suspirou e desbloqueou o som do comunicador Amlar.
— Desculpe. A Glinda entrou sem avisar, mas já foi embora.
— Quem é Virnus? — perguntou Azio, sem emoção.
Seu peito fez um estalo tão seco quanto o tom de sua voz.
— É outro guerrin. Mas isso não importa agora — continuou Laryssa, mudando de assunto rapidamente. — Você conseguiu achar alguma coisa aí?
O autômato balançou a cabeça negativamente. Ele ia contar que havia ido para Dovah, seguindo uma pista sobre alguns seres que poderiam ser binalianos, mas que, na
verdade, eram tecno-híbridos de Mancer, planeta do quarto quadrante. Como alguns deles possuíam tecnologia muito similar à binaliana em seus corpos, sua pesquisa
o levou a presumir, incorretamente, que poderiam ser de seu povo. Mas a pequena frase que ouviu de Glinda criou um sentimento ruim, meio amargo, que ele não conseguia
definir o que era. Incapaz de processar corretamente o que sentia, o autômato ficou calado, apenas olhando a projeção.
— Não desanime, meu querido — disse Laryssa diante do silêncio de Azio, tomando sua reação como sendo a decepção pelo fracasso. — Acho que temos uma chance. Encontrei
algumas coisas na biblioteca que talvez possam nos ajudar.
A princesa explicou que, durante seus trabalhos na biblioteca, um dos responsáveis pela classificação dos mundos comentou algo que chamou sua atenção. Cinco mundos
do primeiro quadrante apresentaram um ritmo de desenvolvimento muito acima do esperado para planetas com baixa tecnologia e pouca magia. Laryssa sabia que a classificação
de planetas pode mudar, conforme o progresso dessas mudanças. Assim, um planeta originalmente do primeiro quadrante pode ser reclassificado para o segundo ou até
para o terceiro quadrante, caso suas características sociais, econômicas e tecnológicas mudem a ponto de necessitar de uma nova classificação. Mas são casos raros,
e os principais estudos sobre o assunto apontam que, normalmente, tais mudanças são consequência de contrabando de tecnologia ou de invasões, embora considerem também
eventos randômicos de aceleração da Maru. Ainda que a Ordem dos Senhores de Castelo jamais interfira na evolução natural dos reinos, existe uma equipe em Ev’ve que
monitora mudanças bruscas de comportamento.
— Os planetas são Grandia, Ultima, Vandal, Disgaea e Zelda — Laryssa continuou, empolgada. — Todos apresentaram desenvolvimento fora do comum. Fiz uma pesquisa,
revendo mapas e fases históricas desses planetas, e acho que pode haver vestígios de tecnologia binaliana em alguns reinos — completou, repassando as anotações de
seu caderno vermelho.
Azio piscou os olhos em amarelo. Binal fora destruído muito tempo atrás. Mas, se o que Laryssa estava dizendo fosse verdade, era possível que binalianos estivessem
fora de Binal quando a tragédia planetária aconteceu.
— Notei algumas anuências complexas no desenvolvimento dos cinco — a princesa continuou —, mas especialmente em Grandia e Zelda. Você poderia começar por esses dois.
Então se inclinou com um sorriso enorme no rosto, feliz por ter encontrado novas pistas que poderiam ser decisivas na busca de Azio. Mas a inexpressividade do rosto
dele a deixou aflita.
— Sei que não é muita coisa — ela prosseguiu, encabulada —, mas vou continuar procurando. Eu ainda não tive acesso à biblioteca particular da mestra Raissa, mas
fiquei sabendo de uma garota chamada Uni que já foi lá uma vez. Vou tentar falar com ela e descobrir como ela fez para chegar até lá. — Azio continuou calado e inexpressivo
como uma rocha. — Eu não vou desistir enquanto não acharmos seus amigos. Farei de tudo para encontrar alguma coisa que possa ajudar você.
Finalmente, Azio moveu a cabeça.
— Você já ajudou muito, princesa — ele disse, piscando levemente. — Estou muito grato.
Laryssa sorriu aliviada.
— Irei para Zelda primeiro — ele continuou, calculando mentalmente que a viagem pelos Mares Boreais entre Oudar e Zelda era possível, e que, para sua sorte, não
levaria mais do que três ou quatro dias para chegar até o outro planeta. — Darei notícias quando chegar lá.
— Nós vamos achá-los! — ela exclamou, convicta. — Eu tenho certeza! — E acenou com carinho, abrindo um último sorriso, até que sua imagem sumisse no ar por completo.
Azio recolheu a antena e permaneceu sentado, pensativo, olhando para o horizonte longínquo. Ele não pensava em tudo o que Laryssa havia descoberto e nas novas possibilidades
que o aguardavam. O único pensamento era aquela frase, cravada como uma espada em sua mente.
O Virnus está louquinho para falar com vo...
Aquela frase lhe causava um desconforto inexplicável.
O Virnus está louquinho para falar com vo...
Um sentimento que ele nunca havia experimentado antes.
O Virnus está louquinho para falar com vo...
A sensação era de alguém que está prestes a perder algo, prestes a ser roubado. E aquilo não era bom. Ele não sabia, mas, na verdade, estava com ciúme.
Sem entender e sem saber como lidar com aquilo, piscou e se levantou para prosseguir sua jornada, mas uma estranha luz o cegou repentinamente.
— 0101%%0101 — gritou em binaliano, surpreso.
Seu pé escorregou e ele perdeu o equilíbrio. Então sentiu seu corpo ficar leve, enquanto caía inerte do alto do penhasco. Durante a queda, vários fragmentos de imagens
sobrecarregaram sua mente, como se fossem borrões distorcidos surgindo rapidamente em sua memória. Um céu amarelado com duas grandes estrelas. Uma enorme construção,
parecida com um tridente, feita de circuitos eletrônicos. Sons estranhos de metal sendo rasgado e gritos. Uma estrada fluorescente verde. Um vale deserto, repleto
de sucata.
Em queda livre do alto das montanhas Ubmar, ele parecia uma estátua de ouro rejeitada pelos deuses. Apesar da neve e dos galhos das árvores terem reduzido sua velocidade,
seu corpo se chocou com violência contra o solo da floresta. Seus olhos piscaram freneticamente, antes de se apagarem por completo.
Vigia
Planeta Kynis
Kynis é um planeta relativamente pequeno, cuja maior parte é tomada por água salobra. As partes secas se resumem ao continente As-Tanys a leste, à grande ilha Makrao
Maat a oeste, e a poucas ilhotas sem grande importância.
Apesar disso, e de os kynianos serem da mesma espécie, continentais e ilhéus possuem sistemas de governo e culturas totalmente distintos. Os continentais pregam
o lucro e a criação de rotas interboreais. Já os ilhéus mantêm as relações exteriores limitadas ao mínimo e pregam a defesa da “Verdade”. Separados por uma faixa
não muito grande de mar, ambos os lados mantêm um exército armado no litoral, em razão das contendas comerciais, e o único acesso à ilha de Makrao Maat é pelo porto,
onde também fica a base do exército. Por isso, é quase impossível alguém passar sem ser notado.
Mas um bom Ladrão sempre encontra uma falha. O Ladrão e o Bobo evitaram ao máximo seguir por esse caminho, pois uma invasão a Makrao Maat é algo perigosíssimo. No
entanto, depois de quase morrerem ao serem atacados e jogados ao mar, dias atrás, o Ladrão teve certeza de que o homem de óculos voltaria para a ilha e não sairia
mais por um longo tempo. Por isso, eles teriam que tentar invadir o local onde o homem morava, para roubar o bracelete.
Os dois descobriram que, dois anos atrás, aquele homem fora o primeiro não kyniano nomeado ministro de Relações Exteriores de Makrao Maat, e que ele trabalhava para
os ilhéus como representante de comércio havia já oito anos. Isso piorava a situação do Bobo e do Ladrão, uma vez que o homem morava no palácio do governo. Se entrar
em um país sem a documentação necessária já era difícil, invadir a sede do governo e roubar um ministro seria ainda mais complicado.
Mas aquele não era o primeiro desafio da vida do Ladrão. Ele conseguiu comprar informações e ficou sabendo que, naquela tarde, um carregamento de minério de ferro
seria entregue no porto ilhéu de Daaq. Com a ajuda de um marujo continental, eles alugaram um espaço no interior do navio e, com a metade do que restava do dinheiro,
compraram um diagrama das construções do porto e um antigo mapa que indicava como chegar ao palácio do governo ilhéu e seus detalhes internos. Por mais algumas moedas,
o marujo que lhes vendeu o mapa também revelou que haveria uma troca de guarda no porto, na metade da noite. Segundo ele, os guardas se reuniam na frente de um prédio
verde, deixando uma via de acesso livre aos guichês de checagem. Atrás dos guichês, um pequeno escritório, que funciona como despacho de encomendas, é o único prédio
que tem acesso direto aos dois lados da fronteira. Se o Ladrão e o Bobo conseguissem entrar nesse escritório, na manhã seguinte poderiam sair pela porta que dá acesso
à ilha como se fossem encarregados de algum serviço.
Preparado, o Ladrão colocou o plano em prática. Enquanto o minério era descarregado, ele e o Bobo esgueiraram-se por trás do navio, afastaram-se agilmente e esconderam-se
sobre caixas nas docas, esperando o momento certo para agir. A noite caiu e o movimento cessou. Encobertos pela cerração da madrugada, perto da hora da troca da
guarda, os dois amigos desceram silenciosamente das caixas e se esgueiraram para o limite das docas. Havia apenas um soldado ilhéu de Makrao Maat ali, e eles não
tiveram problemas em passar por ele e chegar à rua estreita, com prédios e construções em ambos os lados.
Os soldados de pele cinzenta, vestidos com seus uniformes brancos de combate, faziam a ronda pelas calçadas, ora entrando nos becos, ora andando pela rua. Eles usavam
elmos fechados, que escondiam as orelhas pontudas e os olhos alongados. No ombro, carregavam o símbolo de Makrao Maat, um círculo amarelado com uma chama desenhada
ao redor. Preso ao corpo por uma braçadeira de tecido, cada um levava um elfir, uma espécie de arma cinzenta de cano curto com capacidade para quinze cartuchos maatianos
— cápsulas individuais contendo língua de fogo e uma esfera de ursi comprimido —, artesanalmente montada em vilas interioranas de Makrao Maat.
A visão das armas arrepiou os pelos da nuca do Ladrão. Ele jamais gostou de armas, ou melhor, jamais gostou do que elas eram capazes de fazer. Então continuou a
analisar o ambiente e viu dois dragões sobrevoando a área, fazendo círculos no céu. Eram criaturas grandes, e ele imaginou se soltavam fogo como as dragoas de Kullat.
Outros soldados andavam com passos firmes, segurando seus elfires, cada um equipado com um pequeno feixe de luz azulada que iluminava os cantos escuros da rua. Um
dos fachos quase iluminou o Bobo, mas o Ladrão conseguiu puxar o amigo de volta para a escuridão.
Um soldado se aproximou dos outros, parecendo ser o responsável pela patrulha das docas. Ele falou algo e apontou para um prédio verde de dois andares à esquerda.
Os demais concordaram com a cabeça e foram em direção à porta do prédio. Do outro lado da rua, uma pequena porta ficou desprovida de vigilância. Eles nem precisaram
esperar muito, e a oportunidade estava ali, diante de seus olhos.
— Estamos com sorte. O despacho está livre... — sussurrou o Ladrão.
— O quê? Você quer que eu despache alguma coisa agora? — perguntou o Bobo, que, apesar de estar vestindo roupas espalhafatosas, estava tão encoberto pelas sombras
que parecia ele mesmo ser uma delas.
— Fique quieto — respondeu o Ladrão. — Eu acho que a troca vai acontecer agora — sussurrou, ao ver alguns guardas entrarem no prédio enquanto outros saíam. — Vamos!
Os dois cruzaram a rua sorrateiramente, passando pela lateral do prédio, e chegaram à porta do escritório de despachos, ainda protegidos pela escuridão da noite.
— Fique de vigia e avise se alguma coisa se aproximar — disse o Ladrão.
Ele examinou a fechadura e sorriu. Era simples e parecia não ter nenhum tipo de alarme. Ele só precisaria de alguns momentos para abri-la.
É incrível como soldados pensam sempre da mesma maneira, não importa o planeta, pensou o Ladrão. Confiam tanto que ninguém vai passar por eles que descuidam das
passagens mais simples.
Mas algo gelado encostou em sua nuca e quebrou sua concentração. Ele ia brigar com o Bobo por estar atrapalhando, mas, quando olhou para o lado, viu o amigo olhando
fixamente para uma lagarta, que andava tranquilamente pela parede. Compenetrado, o Bobo sussurrou para a lagarta.
— Estou de olho em você!
— Virar devagar! Cruzar dedos em cabeça! — disse uma voz grossa atrás deles, usando parcas palavras na língua comum.
O Bobo soltou um guincho de susto e o Ladrão apenas suspirou profundamente. Quando este se virou, viu dois guardas apontando elfires para a sua cabeça e para o coração
do amigo. Os fachos de luz estavam desligados. Atrás deles, outros três soldados armados vinham correndo em sua direção. Um deles segurava com dificuldade a correia
de um luna’tac — um animal grande, com quase a metade do tamanho do maatiano, cujos dentes cinzentos e pontiagudos estavam prontos para estraçalhar o inimigo, se
preciso.
O Ladrão meneou a cabeça, insatisfeito consigo mesmo por não ter respeitado a primeira lição dos ladrões: ter paciência. Se ele não tivesse se precipitado, se tivesse
mantido vigília por mais algumas horas, perceberia que alguns soldados continuavam patrulhando enquanto ocorria a troca.
O Bobo se ajoelhou, choramingando e entrelaçando os dedos sobre a cabeça. O Ladrão também levou as mãos à cabeça, mas não se ajoelhou. O soldado olhou friamente
para a dupla.
— Vocês invadir. At tuk presos — disse, tentando usar a língua comum, com um sotaque carregado e com a voz abafada pelo capacete. Ele falou algo para os outros soldados
na própria língua, mas nem o Bobo nem o Ladrão entenderam. Então se virou para eles e concluiu: — Prisão agora.
Uma Figura Sinistra
Os dois foram levados para uma espécie de carroça redonda de metal, com uma enorme tampa do mesmo material e buracos estreitos no meio. Em seguida, foram colocados
dentro daquela panela sobre rodas, atrelada a um enorme dragão amarelo sem asas. A carroça era desconfortável e cheirava a comida velha. Certamente era usada para
outras coisas, que não carregar prisioneiros.
Algumas horas depois daquele desagradável trajeto, quando a carroça parou, os dois foram desembarcados e encaminhados para dentro de um edifício de pedras repleto
de limo. Ficava à beira-mar, mais ao norte, e os guardas eram ainda menos amigáveis que os do porto. Ambos foram conduzidos por uma série de corredores escuros e
estreitos, até chegarem a uma antessala, onde dois guardas os revistaram, retirando tudo de seus bolsos.
Obac, o soldado que os prendeu, aproximou-se e revirou alguns dos objetos: uma bola de papel pardo, um rolo de barbante, uma faca de tornozelo, um estojo de arrombamento,
um pequeno saco com poucas moedas, o diagrama do porto e o mapa do palácio do governo, com um círculo em um quarto escrito ministro do Exterior. Obac ficou espantado
pela descoberta e sentiu um calor de emoção diante da possibilidade de ter seus serviços reconhecidos pelo próprio ministro.
— O que ser isto? — disse Obac, pegando algo que um dos soldados retirou do bolso da calça colorida do Bobo.
O Ladrão ficou pálido ao ver o pequeno broche em formato de dragão; o broche que Kullat lhes dera em Oririn. Ele o deixara com o Bobo, porque o amigo teimara tanto
em ficar com o presente do mestre Kullat que o Ladrão simplesmente se rendeu. Agora se arrependia da decisão.
— Senhor-capitão-major — o Bobo disse com voz infantil, inventando uma patente para o soldado, ajoelhando-se e colocando as mãos para cima, em uma súplica dramática.
— Por favor! Me deixe ficar com isso!
O soldado não deu atenção ao homem de cabelos ruivos e examinou cuidadosamente o objeto. Obac disse algo ao outro soldado, olhando atentamente o broche em suas mãos.
— Por favor, nobre major-general — continuou o Bobo, arrastando-se de joelhos até Obac, balançando as mãos espalmadas sobre a cabeça e chorando copiosamente, em
uma cena de derreter até o coração mais gelado. — Deixe isso comigo, general-comandante! Foi a última coisa que meu pai me deu. — A voz soava como a de uma criança
que pede um brinquedo. — Meu pai era soldado... Ele me deu isso antes de morrer na guerra, e eu prometi carregar seu dragãozinho sempre comigo. Pelo amor de Deus,
senhor mestre-general!
Então parou de falar, agachado como um cachorro aos pés de Obac, com as lágrimas escorrendo e encharcando a pele sardenta do rosto. O Ladrão apenas apontou as mãos
para o Bobo, fazendo a melhor expressão de pena que conseguiu. Era impossível dizer se Obac estava sensibilizado. Ele usava um capacete igual aos dos demais, exceto
por ter faixas amarelas dos lados.
Por um momento, enquanto ele examinava o broche, a sala ficou em completo silêncio. Na realidade, Obac não entendeu quase nada do que aquele estranho homem dissera.
Apenas algumas palavras esparsas, como pai e Deus. O soldado colocou a mão no peito, lembrando-se do pingente de Seath que carregava preso a um colar, embaixo da
roupa. Então pensou que aquele broche poderia significar alguma coisa relacionada ao deus daquele homem e, mesmo acreditando que o único Deus verdadeiro era Seath,
resolveu não arriscar.
— Poder ficar este isso! — Obac finalmente respondeu, em um uso pobre da língua comum.
E devolveu o broche para o Bobo, que o pegou como se fosse o maior tesouro do mundo.
— Obrigado, magnânimo senhor-major! — o Bobo exclamou, enxugando as lágrimas com a manga da blusa enquanto abaixava e levantava a cabeça repetidamente. — Obrigado!
Obrigado!
O Bobo pegou o broche e beijou o capacete de um soldado próximo, que o rechaçou com um movimento brusco. O Ladrão suspirou, aliviado.
Após a revista, eles receberam e vestiram o uniforme da prisão, que nada mais era que camisa e calça vermelhas de tecido fino e um par de botas de couro simples,
sem cadarços. Depois foram levados por um pequeno corredor até chegarem a uma saleta oval, com uma espécie de alçapão no teto baixo e sem nenhuma janela. Quando
entraram, a porta de metal foi fechada atrás deles e um dos guardas girou uma manivela na parede. A sala inteira começou a girar, movimentando-se suavemente para
baixo. O Ladrão percebeu que não era uma sala, mas uma espécie de elevador.
Aquele movimento descendente durou um tempo considerável, até que estancou com um solavanco suave e a porta de metal se abriu, revelando um longo salão, com várias
grades metálicas por todos os lados. O Ladrão analisou rapidamente o ambiente, enquanto eram conduzidos até o fundo do salão. Ao lado do elevador, um enorme tubo
metálico, com grades móveis, fazia a circulação do ar. De ambos os lados do salão, várias celas estavam vazias, mas foi possível ver que havia prisioneiros em três
delas. A iluminação artificial fraca dava ao ambiente um ar tenebroso.
Ao chegarem ao fundo do ambiente, um dos guardas abriu a porta da penúltima cela para que os dois entrassem, enquanto um outro guarda vigiava, com arma em punho.
O cárcere era pequeno, com uma janela oval grande e sem grades. Apenas uma espécie de cúpula transparente, mas muito forte, deixava ver o lado de fora, confirmando
aquilo de que o Ladrão desconfiava: a cela era escavada no fundo da terra, muito abaixo do nível do mar. Externamente, alguns poucos raios solares começavam a iluminar
a água, indicando que um novo dia estava começando. Um peixe-balão-barbado passou se contorcendo pelo lado de fora, perseguindo pequenos crinds.*
Os guardas os trancaram e saíram sem dizer nenhuma palavra. Assim que ficaram sozinhos, o Ladrão explodiu com o Bobo.
— Qual parte do Fique de vigia e avise se alguma coisa se aproximar você não entendeu?
— Mas eu fiquei vigiando! — disse o Bobo calmamente, sentando-se em um fino colchão sobre a cama. — Eu vi a lagarta se mexer, mas, como ela estava indo na outra
direção, eu não avisei. Era para avisar só se algo se aproximasse, não era?
O Bobo não esperou resposta; fez uma careta e começou a alisar o broche, como se fosse um filhotinho perdido. O Ladrão bufou, mas não falou nada. Afinal, ele já
estava acostumado com as maluquices do amigo.
— Pelo menos você conseguiu ficar com isso — disse o Ladrão, apontando para o broche.
— Ele é muito bonito. Não queria ficar sem — comentou o outro, inocentemente.
— Por Hood! — clamou o Ladrão pelo deus da fortuna, conhecido como responsável pela sorte dos ladrões.
Em seguida, o Bobo se deitou, bocejou e fechou os olhos. O Ladrão jogou as mãos para o alto, desistindo de falar com o amigo. Então começou a analisar a cela, constatando
que fugir daquele lugar seria extremamente difícil. Além do mais, mesmo se conseguissem quebrar a janela, estavam tão abaixo da superfície que certamente morreriam
afogados antes de conseguir emergir. Cansado, ele se deitou na outra cama e resolveu aproveitar para dormir. Afinal, precisariam estar descansados para enfrentar
o que viria pela frente.
O mar lá fora estava bastante claro, indicando que já deveria ser perto da hora do almoço, quando foram acordados bruscamente por Obac. O Bobo resmungou algo sobre
um sonho com monocórnios e girântulas.
— Ser esses duas, senhor — disse Obac, com o sotaque carregado e a voz abafada já característicos, dando passagem a alguém que vinha atrás dele.
O Ladrão levou um susto quando viu uma figura sinistra se aproximando da porta da cela.
Era o homem de óculos escuros.
Nota
* Também conhecidos como ísimos-de-prata. São peixes pequeninos e rápidos, esplendidamente brilhantes, como cristais, e que nadam em cardumes, como lambarinos e
sardines. São menores que os ziggs e os lepismos, porém maiores que as ondinas.
Sombras na Lua
— Isso foi encontrado com vocês — disse o homem de óculos, usando a língua comum com perfeição.
Sua voz rouca ecoava pela cela. Em uma das mãos, ele segurava o mapa com os detalhes do palácio e o papel opaco com a ilustração que o Bobo tinha feito dele. Então
ajustou os óculos de lentes circulares e escuras com a mão livre. Seus olhos estavam totalmente ocultos, como se guardassem algum segredo atrás de cortinas de mistério.
— Mas... — ele olhou fixamente para os dois prisioneiros pelas barras da cela, aproximando-se ainda mais e os reconhecendo. — Vejam o que o vento leste nos trouxe
nesta noite tão agradável.
Ambos ficaram calados. O homem esmurrou a grade violentamente, assustando o Bobo, que se encolheu feito um animal acuado.
— Pensei que vocês tinham ficado no fundo do mar! — O homem sacudiu os papéis na mão, olhando fixamente para os dois.
Diante do silêncio dos prisioneiros, ele deu uma ordem à Obac.
— Abra a cela!
— Desculpar, senhor. Mas não poder... — respondeu Obac, receoso. — Contra regras. Inchi a nutal!
— Mas eu sou o ministro do Exterior! E exijo que abra esta cela! É contra a minha vida que esses homens estavam tramando! — Ele sacudiu os papéis na frente do rosto
de Obac.
— Parvatu... — o guarda engasgou. — Desculpar... Só juiz julgamento e ministro Exército entrar sem... — ele pensou um pouco, lembrando-se da palavra correta — ...
sem autorização.
O homem de óculos respirou profundamente e fulminou o soldado com uma expressão de total insatisfação. Em seguida, virou-se para os dois dentro da cela.
— Por enquanto, vocês estão seguros. Mas a vida na prisão é difícil, mesmo aqui, neste reino pacífico. E vocês sabem... as sombras passam pela lua!
Ele cuspiu as últimas palavras como se fossem veneno. O Ladrão sentiu um arrepio subir pela coluna, e seus cabelos se eriçaram. No submundo, essa frase tinha o peso
de um juramento de morte. Normalmente, assassinos, cobradores e mercenários utilizavam essa expressão para intimidar suas vítimas antes de torturá-las e matá-las.
Ao ver a expressão de medo no rosto do Ladrão, o homem sorriu, certo de que a ameaça havia sido compreendida.
— E você! — sibilou, virando o corpo e apontando para o peito do soldado. — Juro que vai receber exatamente o que merece por ter me afrontado.
— Ministro Bemor Caed... — ele começou, calando-se imediatamente ao se dar conta da fúria no rosto do homem de óculos.
— Cale a boca e suma da minha frente!
Obac estremeceu, olhou com ar de dúvida para Bemor Caed e saiu com passos apressados. O homem se aproximou das barras, retirou os óculos e encarou os dois prisioneiros.
Seus globos oculares eram aterradores, repletos de tatuagens escuras ao redor das pupilas. Em volta dos olhos, sombras escuras, também tatuadas, faziam os olhos
daquele homem se tornarem dois círculos malignos, que pressagiavam a morte. Ele colocou a boca através das grades e, com raiva, sussurrou uma última ameaça.
— Aproveitem seus últimos dias no mundo dos vivos, pois, quando a Synlige chegar, será o fim de vocês.
Admirável Mundo Novo
Planeta Zelda
A água lodosa incomodava. Além de fria e viscosa, retardava muito os movimentos. Azio olhou ao redor, para ver se havia algum barranco de terra ou uma superfície
mais elevada que permitisse maior mobilidade, mas não encontrou nada que o ajudasse a sair dali.
Depois da queda em Ubmar, levou quase meio dia para que ele se reativasse. Aquela era a quinta vez que sua mente era invadida por memórias, e, a cada novo clarão,
o quebra-cabeça se tornava mais completo e sua busca parecia mais próxima de um fim.
Desde então, nada de novo aconteceu. Pelo menos, não até aquele momento. Mas os apagões, as avalanches de fragmentos de memória e até mesmo o pântano onde ele estava
agora o incomodavam menos do que as palavras que ouvira quando conversou com Laryssa pela última vez.
O Virnus está louquinho para falar com vo...
A frase ainda lhe causava grande desconforto. Seu peito estalou, e ele parou por um momento. Fechou o punho e fez três hastes surgirem no antebraço, pronto para
chamar Laryssa e perguntar.
Mas perguntar o quê?, refletiu. Quem é Virnus? O que ela quer com ele? O que ela está fazendo?
Ele olhou para a pequena antena de recepção e seu peito estalou de novo. A indecisão lhe causava uma estranha sensação de falta de lógica. Não havia um objetivo
claro ou uma diretriz que conduzisse suas ações.
Um pio ecoou na floresta e chamou sua atenção. Empoleirado em um galho grosso, havia um pássaro estranho. Era grande, com penas marrons e bico pequeno. Ele observava
o gigante dourado, com olhos largos e amarelos. Era um rauru, uma espécie de coruja do pântano. A ave estufou o peito branco e olhou para ele como se indagasse que
tipo de criatura era aquela. As enormes penas acima dos olhos balançavam fracamente, dando ao rauru uma aparência questionadora. A ave encarou Azio por mais um instante
e piou novamente, abrindo as asas, levantando voo e desaparecendo em seguida.
O autômato recolheu a antena, desistiu da ideia de contatar Laryssa e decidiu continuar com a exploração.
O pântano era perigoso, não apenas por ser lar de criaturas carnívoras e plantas assassinas, mas também por causa dos gases que as algas submersas liberavam. Azio
aprendeu que, nas áreas onde a água se tornava mais densa e turva, havia uma névoa extremamente venenosa e corrosiva, que ele deveria evitar sempre que pudesse,
para preservar seus circuitos internos.
O autômato continuou andando em meio ao lodo, esperando encontrar uma margem. Seus navegadores internos informavam que a fonte de energia que procurava estava próxima.
Era tarde, a luz do dia diminuía e as sombras cresciam lentamente, deixando o pântano mais escuro. Sons de pequenos animais surgiram fracamente, como se conversassem
entre si sobre o estranho invasor dourado.
Azio chegou a uma borda esverdeada e saiu da água. Então encontrou rochas talhadas e percebeu que havia achado uma construção. Era um arco de pedras, repletas de
símbolos cobertos de musgo, que deixava uma entrada à vista. Muros altos, muito desgastados pelo tempo, delimitavam uma área onde plantas rasteiras se acumulavam
nos cantos. Ali, uma estátua esculpida em rocha corroída tinha o formato de uma figura feminina.
Ele explorou o local, caminhando pelas ruínas cujo nome e propósito já haviam sido esquecidos, e chegou a uma nova seção, dividida ao meio por uma piscina de água
suja. Em cada margem, duas pequenas construções, com dois andares cada. Eram idênticas, cada uma com uma porta na base e janelas sem vidros no primeiro e segundo
andar.
As leituras do ambiente revelaram que havia uma terceira passagem no centro. Invisível, bem no meio dos dois prédios, escondida na água suja da piscina. O autômato
piscou e entrou na água. A passagem estava bloqueada por uma pedra redonda, repleta de símbolos e figuras. Com um pouco de esforço, ele empurrou a estranha porta
para o lado, abrindo caminho.
Então nadou lentamente pela água espessa. Ativou as luzes dos olhos para iluminar o túnel submerso, mas não demorou muito para encontrar outra pedra, similar à primeira,
impedindo sua passagem. Ele removeu a segunda rocha e continuou em frente. Nadou por um tempo rente ao solo, quando algo prendeu seu braço. Surpreso, tentou se desvencilhar
dos pequenos tentáculos negros, mas, quanto mais tentava se libertar, mais preso ficava. A coisa agarrou um de seus pés, impedindo ainda mais seus movimentos, e
algo se enrolou em seu abdômen, espalhando-se para as pernas.
Seus olhos piscaram freneticamente e seus sensores deram vários sinais de alerta. Acionando a arma de energia do ombro, disparou contra a massa negra que se trançava
cada vez mais em seu corpo. As rajadas clarearam a água por alguns instantes, e Azio percebeu que estava lutando contra um emaranhado de algas.
Isso é medo? Eu senti... medo?, refletiu, tentando racionalizar o que estava acontecendo.
Mais calmo, livrou-se do resto das algas e se afastou. Nadou até a água ficar rasa e emergiu no meio de um pequeno lago dentro de uma construção. O peito estalou,
e ele observou o enorme salão ovalado que o cercava. O teto rochoso era alto, e duas estruturas com janelas quebradas e portas escancaradas podiam ser vistas. Muito
acima, pequenos buracos no teto permitiam que a luz fraca do sol iluminasse o ambiente.
Seguindo o rastro da energia, passou pela porta e andou com cuidado. A escuridão o envolveu completamente e seus olhos piscaram, mudando seu módulo ocular para visão
noturna.
À sua frente, avistou um largo corredor, cujas paredes continham aberturas retangulares, como quartos um de frente para o outro, mas sem portas. No teto, estranhos
dispositivos ovalados, cobertos de ferrugem e com fios queimados. No fim do corredor, encontrou uma escada de pedra. Antes de continuar, seu corpo se dobrou, como
se tivesse levado um golpe no abdômen, e outro clarão invadiu sua mente.
Seu corpo caiu no chão viscoso, enquanto as memórias ganhavam vida e transformavam o ambiente ao redor. O corredor ganhou luzes, revelando paredes amarelas de rocha.
Os dispositivos estavam novos e reluzentes, emitindo um pulso azul fraco que formava, acima de cada cômodo, uma parede de luz sólida. Um homem grande com braços
musculosos andava de uma ponta a outra do corredor, segurando uma arma comprida com luzes amarelas no cano cinza.
— Liguem as coleiras! — Azio escutou o homem berrar. Apesar de ser apenas uma lembrança, era uma visão tão real que parecia que ele estava vivendo aquele momento
novamente.
Dentro dos cômodos, vários binalianos se espremiam no pequeno espaço. Alguns mais altos que Azio, com a pele metálica esverdeada, outros de coloração branca e olhos
que piscavam em verde, todos usando uma espécie de algema metálica larga que criava um colar ao redor do pescoço.
O homem armado fez um sinal e as paredes de luz sumiram. Lentamente, os binalianos saíam de suas celas, em fila, de cabeça baixa e olhos apagados. A luz amarela
da coleira refletida na pele metálica lhes dava um ar de tristeza e solidão.
Azio se levantou e tentou segurar um deles, mas sua mão atravessou o vazio. Indiferentes ao gesto do autômato, os binalianos marchavam para fora, subindo a escada
que havia ao final do corredor.
Outro homem apareceu na frente da escada. A pele era manchada, o rosto inchado com escaras em forma de cruz nas bochechas e as orelhas cortadas. No queixo, um adorno
em forma de chifre. Vestia-se com roupas de couro, carregava uma arma menor na cintura e olhava para os binalianos com uma expressão séria. Ele já havia visto aquele
rosto em suas lembranças antes. O homem começou a gesticular e falar, mas Azio entendeu apenas Grandia, guerra e lucro entre as palavras que o homem dizia.
Tentou chegar mais perto, andando rumo à escada, mas foi interceptado por uma binaliana de pele azul. Os olhos dela piscavam freneticamente, alternando entre verde
e azul.
— ØTØOØTØO!!!! — ela gritou em uma língua familiar, embora Azio não tenha entendido as palavras.
O autômato dourado ainda tentava chegar ao homem gordo quando ouviu uma explosão. Em seguida, uma forte luz o cegou, fazendo-o cambalear e cair para trás com o susto.
Tão rápido quanto apareceu, a visão sumiu. Azio voltou à realidade, rodeado pela escuridão. Seus olhos piscaram fracamente, enquanto o módulo de visão noturna era
acionado mais uma vez. Com o peito estalando, ele cambaleou até a escada e saiu, chegando em um pátio superior. Quando finalmente deixou a estrutura, piscou os olhos
várias vezes. Espalhados pelo salão, havia diversos pedaços de corpos binalianos. Musgo e ferrugem se misturavam aos já decompostos metais, produzindo uma visão
de morte e abandono.
Sentindo um aperto no peito, Azio se ajoelhou desconsolado, próximo a um cadáver daquele que, um dia, fora um companheiro de cela. A cabeça sem a pele metálica deixava
à mostra a delicada estrutura de componentes enferrujados do crânio. Os olhos não existiam mais e a boca era apenas um orifício retangular, que nunca mais emitiria
som algum. O abdômen, uma complexa estrutura de músculos sintéticos e tubos de alimentação, estava rasgado e coberto de fuligem. Faltavam um braço e os pés, como
se tivessem sido arrancados com violência.
Atingido por uma mistura de emoções — raiva, desespero e desolação —, Azio se levantou, entorpecido. Seus sensores indicavam que a fonte de energia estava próxima,
mas ele ignorou o aviso. Seus olhos tristes examinavam os sinais de batalha que se espalhavam, sem querer acreditar no que via. As paredes estavam repletas de rachaduras
e marcas de explosões. Ao seu redor, corpos e destruição. Olhos mortos o encaravam com frieza, como se o acusassem de tê-los abandonado.
Transtornado, mais adiante reconheceu a binaliana. O rosto de traços delicados e o corpo moldado em curvas suaves estava caído de costas, com as armas apontadas
para o teto, como se tivesse morrido em uma luta.
Ela lutou até a morte!, pensou, amargurado, observando os danos no corpo da binaliana. A placa peitoral estava retorcida e com manchas negras, típicas de explosões.
Em uma das mãos da binaliana, algo chamou sua atenção. Entre os dedos, havia um pedaço de mineral com circuitos delicados em sua estrutura. Azio o analisou e o resultado
o deixou surpreso. Na pequena pedra, não maior que seu dedo indicador, havia energia suficiente para abastecer uma cidade pequena por cerca de dez anos. Com certeza,
tratava-se de tecnologia binaliana.
Alguém trouxe binalianos para cá. Pior... eu estive aqui! Mas por quê? E o que Grandia tem a ver com tudo isso?
Rapidamente, ele acessou seus sistemas de informação em busca de mais dados sobre o planeta. Descobriu que Grandia não possui um portal boreal e que seus habitantes
são, na maioria, humanos. O comércio de componentes eletrônicos é forte, já que Grandia possui uma vasta rede de minas, de onde é possível extrair minerais condutores
de ótima qualidade, mas que exigem um delicado e perigoso processo de extração, uma vez que as minas soltam gases tóxicos e letais para humanos.
Eles usavam binalianos para extrair minérios!
A conclusão veio com uma avalanche de revolta. Saber que seu povo, o maravilhoso povo de Binal, fora reduzido a um bando de escravos mineradores fez com que o ódio
crescesse dentro de si de tal forma, que ele entrou em módulo de combate, e, furioso, disparou repetidamente seu canhão contra a estrutura de pedra, destruindo tudo
ao seu redor e sepultando seus semelhantes em uma tumba de rocha.
Pela primeira vez na vida, ele chorou. E, fazendo uma prece silenciosa ao deus Nett, virou as costas para a tumba de seu povo, jurando vingança, e voltou pelo caminho
de onde viera.
Era noite quando chegou à entrada principal. O céu escuro exibia uma nuvem de poeira cósmica vermelha na direção leste, enquanto estrelas e dois planetas povoavam
o firmamento nas direções oeste e sul.
Azio olhou para o céu e seus olhos piscaram.
Tem algo errado aqui. As estrelas são as mesmas, mas o céu está diferente. O planeta que eu procuro não é este.
Uma chama de esperança acendeu-se em seu peito, pois aquele deveria ter sido apenas um ponto de apoio ou uma estação de trabalho. Em suas memórias, o céu era avermelhado,
com pontos brilhantes em lilás e dourado. Um planeta esverdeado, rodeado por um anel de poeira, ficava ao sul. Apesar de aquele não ser o planeta pelo qual procurava,
a configuração estelar denunciava que ele estava perto. Visualizando os mapas dos planetas daquela região, seus cálculos mostraram que só havia um candidato apto:
o planeta Grandia, o mesmo onde seu povo havia sido usado como escravo, e que, agora, era o seu destino.
No entanto, como Grandia não tinha passagem boreal, o único jeito de chegar até lá seria via interespaço.
Desapontado, mas esperançoso, começou sua viagem de volta. Não importava quanto tempo levasse, ele encontraria o seu povo.
Águas Milagrosas
Planeta Wushu
A leste do acampamento de treinamento dos Senhores de Castelo há uma grande planície, cortada por vários córregos de água límpida, onde fontes termais criam pequenas
piscinas naturais que se espalham harmoniosamente, formando um verdadeiro paraíso natural. A maior de todas as piscinas é conhecida como Grande Lago Azul, por causa
das areias dessa cor que cercam todo o seu entorno.
Na tarde do antepenúltimo dia de acampamento, é concedido um pequeno intervalo para que os guerrins e seus mestres possam se recuperar, descansar na relva e compartilhar
a paz do lugar e das águas sempre mornas da região. Essa pausa acontece antes dos dois últimos dias de provas do acampamento castelar, que definem as colocações
das equipes e os desempenhos individuais dos guerrins. Também é um dos ensinamentos da Ordem: mesmo nas situações mais difíceis, devem-se buscar a calma e a harmonia.
Sumo estava sob uma grande árvore, sentado em uma roda com vários outros guerrins, que conversavam animadamente. Nem parecia que ele e seu grupo quase haviam sido
mortos por uma máquina descontrolada, alguns dias antes. O assunto do momento, motivo da animação, era como o grupo de Sumo havia se dado bem nos testes do acampamento,
sendo um dos fortes candidatos a ganhar o troféu.
Apesar de modesto, o jovem estava orgulhoso do seu time e da própria atuação. Por usar de astúcia e rapidez de raciocínio, seu grupo resolveu um enigma em apenas
uma hora e ganhou uma grande vantagem no dia anterior.
Acima deles, pulando entre os galhos e procurando por frutas maduras, estava Slurg, o animalzinho de estimação que acompanhava Sumo aonde quer que ele fosse. Menor
que uma coruja e coberto por uma penugem extremamente fina, que mais pareciam pelos que penas, a criaturinha tinha duas asinhas e os pés escondidos embaixo de um
corpo rechonchudo. O bico pequenino contrastava com os grandes olhos redondos, e duas orelhinhas pontudas, cobertas por aquela mesma penugem, completavam a simpática
e estranha criatura. Visíveis em seu pequeno corpo, alguns sinais indicavam que o animal já havia passado por experiências duras na vida. Uma das asas era deformada,
uma pálpebra tinha duas cicatrizes, o bico era lascado e faltava um pedaço de uma das orelhas.
Darsa, uma pequenina aprendiz do planeta Socotra, levantou-se e começou a se afastar do grupo.
— Aonde você vai? — perguntou Ahany, outra aprendiz, do reino de Dandara.
— Estou com sede.
— Espere! — disse Sumo, levantando-se e aproximando-se da moça. — Eu posso ajudar.
Ele poderia usar a água das pequenas bolsas que carregava ou aquela que tinha dentro de seu cajado. Mas, decidido a impressioná-la, ele se ajoelhou e tocou na grama
verde ao lado dela. Concentrado, começou a fazer gestos sinuosos de baixo para cima. Momentos depois, uma fonte de água cristalina brotou da terra e jorrou alto.
Sumo apoiou-se em seu cajado, levantou-se e, com mais alguns movimentos, regulou a fonte para a altura de Darsa. A garota sorriu e se aproximou, afastou os cabelos
pretos para trás das orelhas e bebeu com delicadeza.
— Obrigada — disse ela, ao terminar. — Essa foi a água mais saborosa que já tomei.
Sumo sorriu. Com um último gesto, como se soltasse algo no ar, a fonte parou de jorrar.
— Eu senti que havia um rio subterrâneo aqui embaixo — ele explicou. — Acho que tem ligação direta com o Grande Lago Azul.
— Ouvi dizer que a vista de lá é magnífica — ela disse, mexendo em seu colar, um cordão trançado que passava por uma pequena pedra negra.
— Se você quiser, posso acompanhá-la até lá para vermos o pôr do sol.
— Eu adoraria — Darsa finalizou com um grande sorriso, novamente colocando o cabelo atrás da orelha.
Isso!, pensou Sumo, animado.
De repente, um barulho entre os galhos chamou a atenção de todos no grupo e, como se fosse uma fruta madura, Slurg despencou da árvore diretamente no colo de Fazur,
um aprendiz tão magro que parecia pele e osso. Fazur se assustou e o grupo todo começou a rir. Slurg saltitou rápido pela grama e se jogou no colo de Sumo. Sua pelagem
estava completamente salmão [felicidade].
— Será que cabe mais um no passeio? — perguntou Sumo para Darsa, apontando para o animalzinho em seu colo.
Darsa alisou os pelos de Slurg e afagou a orelha boa dele. O animalzinho estremeceu inteiro e soltou um pio alegre. Ela segurou o braço de Sumo e começou a caminhar
em direção ao Grande Lago Azul.
Perto dali, de olhos fechados, Kullat meditava em uma das piscinas naturais, deixando sua energia mágica fluir lentamente para fora do corpo. Ele estava submerso
até a cintura e vestia apenas uma roupa de banho. As mãos enfaixadas permaneciam acima da água cristalina da piscina, brilhando fracamente. A aura prateada tremulava
suavemente ao redor do corpo, e o manto branco estava estendido sobre a vegetação rasteira, como uma toalha de piquenique. Sobre o manto, uma cesta grande, um prato
com bolo de carne, pequenas trufas e algumas castanhas, além de uma jarra de suco pela metade, indicavam que o cavaleiro havia dedicado algum tempo para fazer uma
das coisas de que mais gostava: comer.
Risos de guerrins, músicas tocadas por outros Senhores de Castelo e os sons da natureza se misturavam harmoniosamente ao seu redor, enquanto ele relaxava. Apesar
de haver pessoas por perto, todos mantinham certa distância dele, respeitando sua meditação. Nesses momentos de solidão e reflexão, ele aproveitava para refletir
sobre os acontecimentos passados, sobre os incontáveis amigos que fizera ao longo de tantos anos de aventuras e sobre sua família, que, apesar de longe fisicamente,
estava sempre presente em suas orações e em seu coração.
Então se lembrou de uma história, que sua mãe chamava de “A história das águas milagrosas”.
Alguns anos após seus pais se casarem, o vilarejo onde moravam foi atacado por soldados comandados por um homem terrível. O povo da pequena Camour tentou resistir,
mas acabou sendo escravizado. Silv e Mari, pai e mãe de Kullat, fugiram por túneis nas minas de carvão e se refugiaram nas longínquas e inóspitas montanhas de Sil’li.
Durante várias semanas, viveram como nômades, sobrevivendo como podiam. Certa manhã, quando procuravam por água, seguiram uma trilha feita por animais e encontraram
um pequeno riacho de águas cristalinas. Ao beberem dessa água, sentiram magicamente o cansaço sumir, como se a bebida fosse um elixir. Influenciados pela água mágica,
decidiram se fixar por ali. Seguiram riacho acima, até a nascente, em um vale ao pé de uma cadeia de montanhas, perfeito para criar um novo lar. Para surpresa deles,
encontraram um casebre abandonado, cheio de teias de aranha e muito pó sobre os móveis. Pássaros moravam na chaminé e o ar dentro da cabana cheirava a passado. Os
dias se passavam tranquilos enquanto o casal transformava a cabana em um lar. Eles limparam o lugar e transportaram o ninho de passarinhos para a varanda. Ao redor
da cabana, fizeram uma horta e um pequeno jardim. Silv cortou uma grande pilha de lenha e a dispôs cuidadosamente ao lado da pequena cozinha. Enfim, após tanto sofrimento,
o casal havia encontrado um lar, seguro o bastante para viver. Eles sobreviviam da vasta floresta, rica em frutas e em caça de excelente qualidade. E se fartavam
da água daquela nascente, incrivelmente límpida e inebriante ao paladar, que mais parecia uma bebida mágica. Durante meses, permaneceram na cabana, sozinhos, mas
felizes. E, na primavera que se seguiu a um rigoroso inverno, o destino lhes trouxe uma grata surpresa. Mari estava grávida de seu primeiro filho.
Kullat sorriu ao lembrar como a mãe falava da gravidez e da necessidade absurda que tinha de comer. Mal sabia ela que a culpa era mesmo do bebê, que, ainda na barriga,
precisava de muito mais energia que qualquer outra criança de Oririn.
Dois dias depois de anunciar a gravidez, a alegria de seus pais deu lugar ao terror e ao espanto, quando eles ouviram três batidas à porta. Após um momento de indecisão,
e com um machado na mão, Silv abriu a porta e teve uma nova surpresa. Um homem de cabelos castanhos estava parado na varanda, sozinho, com uma pequena mochila em
uma mão e uma ave recém-abatida na outra. Às costas, um belo arco com filigranas de ouro e algumas flechas de metal com penas coloridas denunciavam que, apesar de
se vestir como um simples caçador, se tratava de alguém de posses.
— Estão gostando da minha casa? — disse o homem, com um belo e alvo sorriso.
Amizades Inóspitas
Um grupo animado de guerrins passou alvoroçado perto da piscina natural onde Kullat meditava. Por um momento, sua atenção se desviou para os sons dos aprendizes,
mas rapidamente o cavaleiro se voltou outra vez para a meditação, fazendo sua energia excedente emanar suavemente para fora do corpo, equilibrando sua Maru mágica,
enquanto voltava a relembrar a história que sua mãe lhe contava quando ele era mais jovem.
Ele se lembrou de como a mãe relatava a aflição que sentira ao escutar aquele homem falando que era o proprietário da casa.
— Meu coração parou — ela dizia, com os olhos alegres, anos depois. — Aquilo significava que eu e seu pai teríamos que sair dali e voltar a viver em meio aos perigos
da floresta.
O caçador, em vez de ficar ofendido, demonstrou-se muito satisfeito pelo fato de a cabana ter lhes sido útil e até agradeceu pelo cuidado com que trataram da propriedade.
O caçador aceitou o convite para jantar e, durante a conversa, Silv e Mari descobriram que aquele era N’quamor, regente de Kullawat. Ele revelou que usava a cabana
como refúgio quando era mais jovem, um lugar para o qual ia sempre que precisava refletir, mas que, havia anos, a abandonara. Isso acontecera até aquele dia, quando
sentiu necessidade de se afastar do cotidiano da cidadela, a fim de pensar sobre uma proposta que lhe fora oferecida: conhecer a Ordem dos Senhores de Castelo e
participar dos treinamentos para se tornar membro de tal ordem. Mesmo sabendo que o povo de Kullawat tinha capacidade de se proteger e uma organização ímpar que
lhe dava autonomia nas tarefas do dia a dia, ele teria de pensar bem sobre o assunto, por isso resolvera voltar ao velho refúgio. Após o jantar, Silv e Mari disseram
que partiriam na manhã seguinte, mas N’quamor ficou profundamente ofendido, alegando que era ele o intruso ali, pois, ao abandonar a cabana, perdera o direito à
sua posse. Mas, se o aceitassem como hóspede, ele seria eternamente grato. E foi assim que, por um mês inteiro, N’quamor ficou hospedado naquela que antes havia
sido sua própria cabana. Durante esse tempo, os três construíram uma bela amizade. Antes de retornar a Kullawat, N’quamor fez um pedido que mudou para sempre a vida
de Silv e Mari. Como sua única família fora o pai, ele era um homem solitário. Além disso, aprendera a se importar com o casal como se fosse sua própria família
e os convidou para morar com ele em seu castelo. Como Silv e Mari também gostavam muito de N’quamor, e pensando que seria melhor para a gravidez de Mari, decidiram
aceitar. Eles celebraram com copos cheios da água milagrosa do riacho, sem desconfiar que a bebida os ligaria mais profundamente do que jamais poderiam imaginar.
Em homenagem ao reino de Kullawat, Mari batizou o filho com o nome de Kullat, que significa “o filho de fora”. Silv se emociona até hoje ao contar que é amigo pessoal
do primeiro Senhor de Castelo de Oririn, e Mari sempre conta que, graças àquelas águas milagrosas, seus filhos nasceram com dons especiais: poderes de energia mágica
para Kullat, e um conhecimento inato sobre a natureza das coisas para Kylliat.
Kullat desconfiava de que a mãe tinha razão, já que N’quamor só manifestou seus dons anos depois de ter começado a fazer os retiros e, consequentemente, de sobreviver
às voltas com aquela fonte. Mas a certeza veio quando, algumas décadas antes, Kullat enfrentou Volgo pela primeira vez. Com profunda tristeza, ele relembrou que
não conseguiu intervir e que Volgo acabou matando uma rara criatura fantástica e que, com seu corpo enorme, jazia por milênios embrenhada no solo daquele vale, embaixo
da fonte onde N’quamor, sua mãe e seu pai beberam tantas vezes.
Mesmo depois de tanto tempo, toda vez que pensava naquilo, sentia o vazio que o invadira quando o Gaiagon foi assassinado. Era uma sensação de completa desolação,
como se sua própria alma tivesse sido fragmentada em uma infinidade de pedaços, cada um sofrendo uma eternidade de solidão e tristeza. Era como se a vida fosse apenas
uma breve e tola enfermidade em um Multiverso com total falta de sentido.
Essência Floral
Aquela lembrança era tão triste que Kullat sentiu sua Maru desestabilizar. Concentrando-se novamente, forçou aqueles pensamentos para as profundezas da mente, focalizando
na sensação agradável da água que o envolvia, na brisa suave que lhe afagava o rosto e no delicado odor da vegetação.
Com calma, fez voltar a fluir o excesso de energia que seu corpo produzia, espalhando-a suavemente ao seu redor. Agora pensava na última conversa que havia tido
com o irmão, sobre uma nova ideia que tivera para contatar aquilo dentro do pricubo — uma espécie de fenda-prisão dimensional — que ele carregava em seu próprio
corpo. Mesmo após anos de insistentes tentativas, Kylliat ainda tentava estabelecer uma conexão com aquilo, mas, até aquele momento, não havia conseguido. Kullat
achava que a nova ideia talvez pudesse dar certo, mas era muito arriscada. Preocupado, fez o irmão jurar que não tentaria nada sem que ele estivesse junto.
Kullat se deixou levar em pensamentos, flutuando entre o irmão e os amigos de Oririn, passando por velhos amigos da Academia e, finalmente, chegando a Thagir e na
família dele. O cavaleiro gostava muito de Thagir e admirava a maneira como ele, a esposa e as filhas eram unidos. Pensar na família de seu melhor amigo, em vez
de lhe trazer sentimentos bons, fez surgir uma velha dúvida que persistia em retornar à sua mente de tempos em tempos: Não estaria na hora de ele também formar uma
família?
Ultimamente, aquele questionamento havia ganhado uma importância inesperada para o cavaleiro. Principalmente depois que sentira todo o poder do canto da rainha manticore,
que exacerbara as dúvidas e os temores mais profundos do seu ser. Kullat afastou aqueles pensamentos, convencendo-se de que, se algum dia uma princesa conquistasse
o seu coração, ele se deixaria levar. Mas, até lá, viveria o presente.
Mal concluiu esse pensamento, não precisou abrir os olhos nem escutar nenhum passo para saber que Nahra estava atrás dele, pois a fragrância suave e familiar de
violetas a denunciara. Sempre que ela se aproximava daquela maneira furtiva, ele se sentia incomodado. Talvez fosse por causa de sua beleza arrebatadora, ou porque
ela era uma mulher lupina — e os lobos eram as únicas criaturas de que Kullat tinha medo.
— Você quase me assustou desta vez — disse ele, virando-se sorridente.
Kullat era um homem experiente, que já havia viajado muito pelo Multiverso e visto beldades de vários planetas. Mas seu coração pulou uma batida quando viu Nahra
parada atrás dele, sorrindo sensualmente com seus belos caninos brancos e seus brilhantes olhos amarelados. Ela usava um ínfimo traje de banho branco, que realçava
a tez morena. As duas pequenas orelhas pontudas, como as de um lobo, despontavam em sua cabeça. A esquerda tinha uma cicatriz pequena, e a direita era ornada com
dois brincos escuros de argola. Os longos cabelos cinza-negros eram repicados, emoldurando belamente as costas. A cauda lupina gingava suavemente, e o corpo atlético
refletia a luz do sol, deixando a Senhora de Castelo ainda mais bela.
Ela sorriu ao ver que Kullat a observava e que as mãos do cavaleiro começaram a brilhar com um pouco mais de intensidade.
— Achei que você levaria mais alguns dias para chegar — Kullat disse, tentando disfarçar. — Afinal, só saberemos da próxima missão depois do acampamento.
— Você acha que eu perderia a chance de ver a sua cara quando me observasse assim?
Ela girou lentamente o corpo, para que o cavaleiro pudesse admirar seu traje de banho. Sua cauda acompanhou o movimento com graça e suavidade. Quando terminou, viu
que Kullat estava sem palavras. Sorrindo, ela apontou suavemente para a água morna da piscina.
— Se incomoda se eu entrar?
Ele limpou a garganta, como se estivesse engasgado.
— Fique à vontade — disse, fingindo indiferença.
Nahra sorriu novamente e entrou na piscina languidamente. Kullat a observou silencioso, vendo-a nadar tranquilamente até a outra margem e voltar, parando ao lado
dele.
— Sabe... Eu prefiro nadar sem roupa — ela comentou, erguendo os braços e se espreguiçando lentamente, o que realçou seu busto firme, de beleza proporcional ao conjunto.
— Mas como as regras não permitem...
— Ah, eu sei — Kullat comentou, alisando o cavanhaque e desviando o olhar. — Fiquei sabendo que você tentou assistir às aulas assim.
— Como sabe disso? — Nahra riu, relembrando a primeira vez que pisara em uma sala de aula na Academia. Apesar de ter recebido o quimono marrom padrão, não sabia
como usá-lo e, para espanto dos professores e alunos, chegou sem roupas à classe.
— Mais uma das histórias da Academia! — ele exclamou, debochado.
Ela se abaixou na água, molhando o vasto cabelo cinza-negro.
— Foi um choque quando me viram daquele jeito. Um garoto me cobriu com uma cortina tão rápido que quase caiu. Depois, tive uma longa conversa com os professores,
que insistiram em me dizer que aquilo era errado e fora dos padrões de disciplina da Ordem. Até hoje eu não consigo entender como um pedaço de pano pode fazer tanta
diferença para as pessoas. Lá no meu planeta, se alguém usa algum pano no corpo, é porque quer esconder alguma coisa.
— Mas, quando ouvi a história, fiquei sabendo que não foi só uma vez — complementou Kullat.
— Bom... É verdade que tentei, mais uma ou duas vezes, ir para a aula com menos roupas que o recomendado, mas os professores insistiram tanto que resolvi usar aquele
uniforme horrível — concluiu ela, dando de ombros.
Kullat sabia que deveria enfatizar que comportamentos assim poderiam gerar transtornos em outras sociedades, como Ur’Dar já havia mencionado, mas decidiu deixar
Nahra em paz. Quando ela foi designada para substituir Thagir como companheira de missões, ele pesquisou sobre Lican, o planeta de Nahra, e descobriu que sua sociedade
é livre de preconceitos, semelhante a outras sociedades humanas, e, por contar com uma organização matriarcal, as mulheres apreciam muito a liberdade para fazer
o que quiserem, incluindo a forma de conduzir a família e a vida privada. Conversando com Ur’Dar, ele soube que, por várias vezes durante a Academia e até mesmo
depois de formada como Senhora de Castelo, Nahra foi repreendida por causa do comportamento excessivamente libertário. Mas Kullat sentia que, apesar de agir de acordo
com o que a Ordem determinava, o pensamento dela nunca havia mudado de verdade.
Como não queria outra discussão polêmica naquele momento, resolveu mudar de assunto.
— Você acha que o Sumo está preparado para a próxima missão em Hakin?
— Acho que sim — ela respondeu. — Duvido que seja pior que Yllib.
Kullat concordou com um menear de cabeça. Vários guerrins passaram correndo ao lado deles, divertindo-se com um disco vermelho, em direção a outra piscina. Uma garota,
usando uma túnica curta e delicada, acenou radiante para Kullat. Era Cyla, uma das integrantes de sua equipe.
Ele retribuiu o aceno com alegria. Nahra, com seus olhos lupinos amarelos como o sol, fitou as faixas ao redor dos dedos, mãos e pulsos de Kullat.
— Você nunca tira essas coisas? — Apontou, intrigada, para as mãos dele.
— Bem... — O cavaleiro colocou as mãos dentro d’água, com um ar embaraçado. — Não são coisas, são faixas. E elas são muito importantes para mim.
Ela esperou que ele continuasse, mas ele estava bem menos falante que o normal.
— Então, elas saem ou não? — ela prosseguiu.
— Sim. Posso tirá-las quando quiser. Mas não arrisco ficar muito tempo sem elas. Meu corpo não aguentaria.
— Não aguentaria lidar com toda a sua energia — ela complementou. — Ur’Dar me falou sobre elas antes de começarmos a trabalhar juntos.
— Entendi. — Ele fechou as mãos, formando um breve brilho branco.
— Meditar ajuda? — ela continuou, sorridente, mostrando novamente os caninos brancos e balançando a cauda embaixo da água morna.
— Ajuda bastante — ele respondeu laconicamente.
Kullat não comentou, mas, desde Breasal, a meditação era acompanhada de sentimentos tristes, ainda um efeito do canto da rainha manticore ecoando em sua alma. Era
algo que havia diminuído nos últimos meses, mas havia um pequeno resquício latente que insistia em remoer sentimentos desagradáveis. Nahra percebeu que o cavaleiro
estava soturno. Normalmente ele respondia com piadas e bom humor, mas desta vez seus olhos estavam desolados, como os de alguém magoado.
— Meu povo também medita — disse ela, tentando retomar a conversa. — Nós escolhemos uma floresta selvagem ou um campo tranquilo como esse aqui e fazemos nossas meditações,
buscando nos unir à natureza — Ela suspirou e sorriu. — Mas não ficamos tristes quando fazemos isso.
— Também, pudera! — ele exclamou, um pouco mais sorridente. — Eu também não ficaria triste se minha meditação acabasse com uma ronda noturna, como seu povo faz.
Aquela era uma expressão que Nahra dizia quando tinha compromissos à noite, normalmente quando encontrava alguém interessante e desejava passar uma noite agradável
e, às vezes, íntima com essa pessoa.
— Não foi por falta de convite — ela disse, encarando-o de leve. — Você sabe que é só falar, podemos fazer uma ronda quando quiser.
Apesar de saber que o cavaleiro era experiente naqueles assuntos, ela sempre conseguia deixá-lo desconcertado. E adorava fazer aquilo.
— Quem sabe um dia, quando não estivermos a serviço da Ordem — Kullat respondeu, baixando o olhar e preferindo não continuar com aquela conversa.
Apesar de não concordar totalmente com o estilo de vida da companheira e de ter sido orientado por Ur’Dar a tentar frear um pouco as ações de Nahra, ele tinha suas
próprias convicções sobre a vida e como ela deveria ser vivida.
Nahra pensou em insistir na conversa, dizendo que, durante todos aqueles meses em que foram parceiros em missões, eles nunca tiveram um momento a sós que não fosse
a serviço da Ordem. Mas, ao ver o cavaleiro quieto e taciturno, decidiu deixá-lo em paz. Tomada por um impulso sincero, ela se aproximou e passou a mão carinhosamente
no rosto dele, ajeitando os cabelos negros na testa do cavaleiro.
O movimento suave fez o perfume de violetas invadir as narinas de Kullat. Sem seu capuz, ele se sentiu desprotegido diante do gesto dela. Nahra percebeu o constrangimento
dele, sorriu e deu um salto para trás, mergulhando lentamente e deixando uma essência de flores no ar.
Faíscas de Dragão
Kullat ficou observando sua companheira nadando graciosamente, apenas admirando sua beleza.
Pouco depois, sentiu uma tremulação em sua aura de proteção natural. às suas costas, algo se aproximava. Ele se virou e viu que Hilena, Senhora de Castelo de Alphaba,
estava ali.
— Soube que você salvou uma guerrina outro dia — ela disse, parando altiva ao lado da piscina e ajeitando o comprido vestido amarelo, que combinava com uma fita
de cabelo da mesma cor.
O cavaleiro não escondeu a insatisfação por vê-la ali. Hilena era sua conhecida do tempo de Academia, mas eles nunca se deram muito bem, apesar de manterem uma espécie
de tolerância mútua desde que se formaram.
— Aada é uma boa aluna — ele respondeu, virando o corpo de volta para a piscina e dando as costas para ela. — Se treinar bastante, será uma ótima Senhora de Castelo.
— Eu sei... — Hilena comentou, olhando para Nahra, que nadava na outra extremidade da piscina. — E ainda acho que ela devia ter ficado na minha equipe, e não na
sua.
— Nem sempre temos o que desejamos. Falando nisso, em que lugar seus guerrins estão mesmo? — Kullat sabia que estavam em quinto lugar, mas não podia deixar passar
a chance de provocar Hilena.
— Dois guerrins se perderam na floresta na última prova — ela respondeu, contrariada. — Se não fosse por causa disso, estaríamos em primeiro.
— Por Khrommer! — Ele fez uma falsa expressão de espanto, gargalhando por dentro. — Esses guerrins de hoje se perdem com muita facilidade mesmo... — complementou,
mais relaxado.
O comentário tirou um sorriso falso de Hilena. A competição entre os dois vinha desde os tempos em que eram guerrins. Nos últimos anos, Thagir havia conseguido levar
seu time a ser campeão por três vezes. Kullat conseguiu um segundo lugar no acampamento anterior, e Hilena foi a terceira colocada no mesmo período. Dessa vez, já
que o pistoleiro não estava participando, ela esperava superar todos os demais, mas, em razão dos problemas que seus guerrins enfrentaram durante as provas, sua
equipe perdeu posições e, apesar de a equipe de Plodu estar em primeiro lugar, o grupo de Kullat novamente havia se saído muito bem e estava na segunda colocação
na avaliação geral até aquele momento.
A derrota tinha um sabor ácido na boca de Hilena. Quanto a Kullat, ele saboreava a colocação de sua equipe como se sorvesse puro mel de hamalat.
— Pois bem. Eu só passei aqui para buscar um conselho.
— Qual conselho? — perguntou Kullat, virando-se e encarando Hilena, intrigado.
— Eu presenciei algo preocupante, que pode afetar a moral e a imagem da Ordem. E queria saber o que você faria no meu lugar.
— Se fosse algo grave, eu falaria com um dos dez Conselheiros.
— Ótima sugestão — ela disse, com um ar vitorioso. — É exatamente isso que eu vou fazer.
— Ei, Hilena — disse Kullat, curioso e desconfiado. O fato de ela o procurar para pedir conselhos não era nada comum. — O que foi que aconteceu?
— Eu vi, com meus próprios olhos, uma dupla de Senhores de Castelo flertando abertamente em público, bem aqui, no meio dos guerrins. Uma total falta de ética, na
minha opinião.
Hilena apontou acusadoramente o dedo para o peito de Kullat e depois para Nahra, que nadava tranquilamente do outro lado da piscina. Kullat se virou assustado, espalhando
água no movimento.
— Espere um pouco — disse ele, chocado com a acusação. — Que história é essa?
— Sua namorada é bem conhecida pelo comportamento mundano. — Hilena apontou discretamente para Nahra, que estava saindo da água, do outro lado da piscina natural.
— E você sabe o que Ur’Dar pensa disso — concluiu, com um sorriso triunfante, afastando-se rapidamente e não dando a Kullat a oportunidade de argumentar.
Quando Hilena saiu, Nahra nadou por baixo d’água até chegar bem perto de Kullat. O sol já começava a se pôr. Guerrins e guerrinas se enrolavam em toalhas e recolhiam
o lixo dos piqueniques.
— O que aquela fofoqueira queria? — perguntou Nahra, deixando evidente que também não gostava de Hilena.
— É melhor irmos andando. Se formos rápidos, talvez consigamos falar com Ur’Dar antes que aquela cobra destile seu veneno.
— O que aconteceu? — Nahra insistiu, preocupada.
— Por enquanto, é melhor você não saber. — Kullat desconversou e saiu da piscina.
Nahra também estava se preparando para sair quando viu algo que a deixou chocada. Nas costas de Kullat, uma enorme cicatriz começava no ombro e passava por todo
o lado esquerdo, deixando a pele retorcida por cima dos músculos. Outras marcas menores podiam ser vistas, como se alguém tivesse chicoteado o cavaleiro.
— O que aconteceu com você? — ela perguntou, engolindo em seco. — Quem foi que fez isso?
— O quê? Isso? — disse Kullat, grato por Nahra mudar de assunto. — São apenas lembranças de Willroch — respondeu, enxugando-se com uma toalha branca.
— Willroch? Aquele seu amigo poeta?
Nahra lera o dossiê que Kullat fizera para o Conselho de Ev’ve sobre os acontecimentos no ninho de manticores em Breasal, que relatava também o último encontro dele
com Willroch. Além disso, como Willroch fora um famoso poeta, algumas de suas obras percorreram o Multiverso, e Nahra já havia lido algumas delas.
— Ex-amigo — respondeu ele secamente, começando a se vestir.
Então colocou o cinto de couro e fez um gesto amplo com as mãos, criando um novo manto, impecavelmente branco. O outro manto, que servira de toalha, vibrou e se
transformou em fagulhas brancas de energia, sumindo por completo um instante depois. Ela se enxugou rapidamente, vestiu um quimono negro e o amarrou com um cinto
violeta de tecido.
— Você acha mesmo que o seu amigo... Digo, você acha que ele morreu? — ela perguntou, apesar de saber que o assunto não era bem-vindo.
— Nahra, eu... — ele suspirou, tentando não parecer chateado. — Eu realmente não sei. Eu o conheço há bastante tempo e não me surpreenderia em saber que está vivo
em algum lugar.
— Sabe — ela disse —, eu gosto de um poema dele. O nome é Acordo, acho. — E parou de falar, como se tivesse ficado encabulada.
Kullat olhou para o horizonte e começou a recitar um trecho do Acordo, um dos poemas mais famosos do antigo amigo.
O espaço entre sua mente e seu coração
será preenchido pelo tempo.
Arrependimentos são feitos de memórias
por isso o mundo começa agora
e o futuro será pavimentado com dias de glória.
Nahra sorriu e adicionou sua voz cristalina à voz de Kullat, formando um belo dueto.
Quando achei você, me perdi
mas até o sol se põe no paraíso.
Você sabe que estou com medo
e quando eu estiver morto
suplico que me liberte.
Nahra olhava admirada para ele. O Senhor de Castelo tinha um semblante triste, mas estava mais sereno do que nunca.
— Eu não sabia que você gostava de poesia — disse, sincera.
Kullat apenas sorriu e colocou seu capuz, mergulhando o rosto em sombras.
— Existem muitas coisas que você não sabe sobre mim. Agora vamos. Temos de nos apressar antes que Hilena faça mais uma das suas.
Os dois Senhores de Castelo começaram a caminhar de volta para o acampamento, deixando para trás os momentos de paz e reflexão nas piscinas naturais daquele belo
paraíso.
Andaram em silêncio até que, perto das barracas, um brilho azulado surgiu na frente de Kullat. Era pequeno como um grão de poeira, mas cresceu rapidamente até ficar
do tamanho de um pequeno pássaro. A luz assumiu um formato alongado e começou a ziguezaguear freneticamente no ar, na frente do cavaleiro, deixando um rastro de
poeira brilhante por onde passava. O brilho zuniu baixo e pousou suavemente na mão enfaixada do cavaleiro. Era um pequeno dragão azul brilhante, que esticou as asas,
rugindo baixinho.
— O que é isso? — perguntou Nahra, curiosa.
Kullat não respondeu. Apenas retirou um broche vermelho do cinto e o colocou na frente do pequeno dragão, azul e brilhante. O animalzinho bateu as asas e subiu no
broche rubro. Nahra ficou em silêncio, admirada com o que via. Em pé no broche vermelho, o minúsculo dragão rugia, soltando pequenas faíscas azuis da boca, como
se falasse diretamente aos olhos de Kullat. Então o pequeno dragão de luz bateu as asas, rodopiou no ar e, diante da Senhora de Castelo, transformou-se em um broche
azul arredondado de dragão, que caiu ao lado do outro broche vermelho, sobre a mão espalmada de Kullat.
— O que aconteceu? — Nahra perguntou, perplexa.
— Temos que falar com Ur’Dar imediatamente! — ele exclamou, com urgência na voz, começando a andar a passos largos.
— Por causa da Hilena, certo? — Nahra perguntou.
Kullat meneou negativamente a cabeça.
— Não. Algo pior. Muito pior...
Imagens-Memória
Kullat andava apressado, sendo seguido por Nahra, que não entendia o motivo de tanta urgência. Ele colocou a cesta de piquenique sobre um barril antes de entrarem
na tenda principal do comando, onde encontraram Ur’Dar sentado, com vários papéis em uma mesa à sua frente. Kullat suspirou ao ver Hilena fazendo uma reverência
para o general.
Sempre com a língua comprida, pensou ele.
Hilena lhes lançou um olhar ao mesmo tempo reprovador e vitorioso, saindo quase que imediatamente pelo outro lado e evitando contato direto com Kullat e Nahra.
Ao vê-los, Ur’Dar fez um gesto para que se aproximassem.
— Venham até aqui. — Era mais uma ordem que um pedido.
— General — Kullat adiantou-se —, precisamos conversar.
— Precisamos mesmo! — o general interrompeu o cavaleiro e se levantou, cruzando dois braços à frente do peito musculoso e erguendo as outras duas mãos no ar, impaciente.
O tom de voz, apesar de duro, era baixo, para não atrapalhar as outras pessoas que estavam na tenda. — Já perdi a conta de quantas vezes conversamos sobre suas atitudes
— disse, fitando Nahra.
Sabendo que ouviria novamente sobre como seu comportamento não era condizente com as diretrizes da Ordem, ela rosnou como um lobo. Ur’Dar fez uma expressão tão dura
quando ouviu o rosnado que ela se calou e baixou a cabeça.
— General! Ela não fez nada errado — Kullat disse, com uma expressão séria.
— Não foi isso que Hilena me contou. — Ur’Dar estava ainda mais sério que Kullat e baixou o tom de voz. — Vocês sabem que esse tipo de comportamento em público é
inadmissível!
— O que... — Kullat começou a falar, mas foi interrompido por um gesto brusco do general.
— Sem explicações! — Ur’Dar o interrompeu novamente, deixando claro que não havia espaço para debate. — Não quero mais receber nenhuma reclamação sobre vocês. Nenhuma,
entenderam? Caso contrário, vou ser obrigado a levá-los a julgamento pelo Conselho.
Nahra retesou o corpo, tremeu nervosamente as orelhas e enrolou a cauda lupina na perna, mas se manteve calada e com a cabeça baixa. Kullat suspirou. Ele queria
discutir, mas conhecia Ur’Dar suficientemente bem para saber que não adiantaria insistir naquele momento.
— Mensagem recebida, general — Kullat disse, após um momento de silêncio.
Ur’Dar olhou para Nahra, que abriu a boca para falar, mas desistiu.
— Vocês estão dispensados — falou o general, fazendo um sinal para que saíssem da tenda.
— Ainda preciso falar com o senhor — disse Kullat, dando um passo à frente.
— Estou fechando os detalhes das últimas provas e não posso falar agora.
— Mas, general, o assunto é urgente — Kullat insistiu. — Preciso de sua autorização para deixar este planeta imediatamente.
— Isso é impossível! O acampamento ainda não terminou.
— Mas ele terá que ser conduzido por outro Shoujin.* Minha ida para Kynis é imprescindível.
— Kynis? — Ur’Dar disse, demonstrando um fio de preocupação. — Por que você é tão necessário lá?
— O oitavo dia — o cavaleiro justificou, sem explicar mais nada.
O general ficou em silêncio por um momento e se inclinou na cadeira, pensativo. O oitavo dia é baseado no ensinamento do Senhor de Castelo conhecido como Rei Pirata,
um dos vários heróis que lutaram na Guerra dos Espectros. Ele dizia: “A família e os amigos valem mais do que mil tesouros”. Ur’Dar refletiu que, se Kullat invocou
o oitavo dia, é porque o assunto realmente deveria ser muito importante para ele.
— Preciso pensar com calma — respondeu Ur’Dar, finalmente demonstrando preocupação. — Há muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Deixe-me refletir e voltamos a
conversar amanhã.
— Infelizmente, não podemos esperar até amanhã — Kullat enfatizou, abrindo a mão e mostrando um par de broches de dragão.
Ur’Dar olhou perplexo para os objetos. Ele os conhecia muito bem, pois ele mesmo havia apresentado Kullat a Tyamath, o rei dos dragões, muitos anos atrás, em Silene.
Naquela ocasião, o rei presenteou o cavaleiro com o par de broches intercomunicantes e com a habilidade empática de se comunicar com aqueles seres.
Sem hesitar, Kullat colocou os dois broches sobre a mesa. Então se concentrou e seus olhos brilharam, assim como os dois broches. Da luz, surgiram dois minidragões.
Os animais de energia se agitaram, emitindo sons e faíscas diretamente em uma película de projeção polidimensional sobre a mesa. Em instantes, imagens surgiram diante
do grupo. Eram imagens-memória, transferidas pelo Ladrão para o broche, por isso o próprio Ladrão não aparecia na projeção.
Kullat avançou as cenas rapidamente: vários momentos de vigília, onde um homem de óculos aparecia frequentemente. A perseguição até uma floresta. Kynianos magros
e outros vestidos de uniformes escuros, deitados em um galpão e outros em uma praia, carregando jarros, enquanto um encontro acontecia. Em seguida, a fuga noturna
em um triciclo e a queda no mar. O Bobo resgatando o Ladrão, tentando fazer respiração boca a boca e levando um sopapo na cabeça. Nova vigília. A tentativa de invasão
de uma ilha e a prisão da dupla.
As cenas agora mostravam o que havia acontecido dentro da prisão, e Kullat desacelerou alguns trechos, incluindo a parte em que o homem retirava os óculos, revelando
os olhos tatuados.
As sombras passam pela lua!
Ministro Bemor Caed...
Aproveitem seus últimos dias no mundo dos vivos.
Em seguida, o rosto do Ladrão apareceu, refletido em algo que parecia ser um aquário.
Kullat! Ele disse “as sombras passam pela lua”. Sombras pela lua! Entende? Por favor, nos ajude!
A imagem congelou, terminando a mensagem. O desespero na voz do Ladrão era evidente, e Kullat estava muito incomodado.
— O que você aprontou dessa vez? — questionou Ur’Dar, nervoso.
— É um assunto particular — respondeu Kullat.
— Particular? Como assim, particular? — Ur’Dar perdeu a compostura. — Você viu os olhos daquele homem? São tatuados! E, como se não bastasse, ele ainda fez uma ameaça
mortal! Aquele homem... — Ur’Dar bateu duas mãos fechadas nas outras duas, espalmadas. — Aquele homem pode ser um dos fugitivos da Sombra! Esse assunto não tem mais
nada de particular!
Kullat estava espantado. Nunca tinha visto Ur’Dar perder o controle antes. Nahra permaneceu em silêncio.
— A situação está ficando cada vez mais complicada — disse Ur’Dar, suspirando profundamente.
Kullat estava com uma expressão mortalmente séria.
— Se acha que está complicado agora, veja isto.
E voltou um pouco as imagens-memória do Ladrão, com Bemor Caed ainda na prisão, dizendo:
... eu sou o ministro do Exterior!
— Pelas orelhas sagradas de Edoc! Aquele homem é um ministro?
— Ainda tem mais — Kullat disse.
— Mais? — Ur’Dar e Nahra perguntaram em uníssono, embasbacados.
Kullat voltou a projeção até a fuga no triciclo, onde ficou claro que Bemor Caed havia tentado assassinar o Bobo e o Ladrão. Retrocedendo ainda mais, paralisou a
cena em um grupo, dentro de uma clareira. Apesar de estar escuro, era possível ver um homem magro de vestes vermelhas, alguém encapuzado e o próprio Bemor Caed.
— General! Eu tenho certeza de que esse homem... — Kullat apontou para a imagem do homem de vermelho — é Volgo!
O semblante do general ficou pesado e a testa ganhou ainda mais rugas de preocupação. Desde o relato sobre Breasal — intitulado na biblioteca como dossiê “Efeito
Manticore”, onde constava o que o feiticeiro havia feito —, os Anciões adotaram uma postura mais agressiva contra o homem chamado Volgo. Afinal, seus atos haviam
gerado problemas em reinos protegidos pelos Senhores de Castelo e, por isso, a Ordem emitiu um comunicado de que qualquer informação sobre ele deveria ser reportada
imediatamente. Depois disso, Ur’Dar recebeu alguns relatos sobre problemas envolvendo um homem de aparência magra, vestido de vermelho e com grande poder. Mas o
que mais preocupava o general era que, ao mandar fazer uma busca nas bibliotecas de Ev’ve, ele havia descoberto indícios de que aquele homem poderia estar envolvido
em coisas muito antigas. Coisas que Kullat e outros castelares jamais suspeitariam.
Ur’Dar respirou profundamente, alisando preocupado o rabo de cavalo com as mãos superiores, enquanto os braços inferiores gesticulavam nervosamente. Ele olhou em
volta e constatou que dentro da tenda de comando havia mais dois Senhores de Castelo e o jovem Ferus, sentado em um canto, entretido com algum documento.
— Venham comigo! — A voz do general pesava uma tonelada, e o sinal que fez para Kullat e Nahra o seguirem pareceu exigir uma enorme força de vontade.
Nota
* Senhor de Castelo formado pela Academia da Ordem, que passou por todos os testes necessários, estando apto a cumprir missões.
Semblantes Sombrios
Nahra, Kullat e Ur’Dar caminharam em silêncio, passando por várias barracas. A noite já se anunciava, e algumas estrelas começaram a surgir no firmamento. Mesmo
assim, o lugar estava bastante movimentado. Alguns guerrins conversavam com seus mestres sobre os desafios enfrentados no acampamento, outros checavam seus equipamentos,
remexendo mochilas e sacolas, ávidos para que chegasse o dia seguinte e, com ele, o início das provas finais.
Eles passaram pela barraca da cozinha, e o cheiro de vegetais cozidos em óleo de frutas encheu a boca de Kullat de água. Uma fornada de pão doce acabara de sair
e o cavaleiro passou a mão na barriga, imaginando a gostosa cobertura que cobria os pãezinhos. Para sua surpresa, Ur’Dar entrou na cozinha e se serviu de um enorme
copo de inic,* dando a chance para que o cavaleiro pegasse dois pães doces de cima da mesa. Eles saíram, ainda em silêncio, caminhando em direção ao pé da montanha.
A vegetação rasteira da planície aos poucos foi substituída por cascalho e rochas lisas. Se continuassem para leste, chegariam às piscinas naturais, mas Ur’Dar foi
para o outro lado, onde havia uma pequena estrada. Um pouco adiante, o general parou e se sentou em um tronco caído, bem à entrada do bosque, onde duas estátuas
seguravam lanternas de madeira com chamas azuladas.
Ur’Dar tomou um gole de inic e, ainda em silêncio, fez sinal para que Kullat e Nahra se sentassem à sua frente.
— O que vocês sabem sobre Kynis? — perguntou, alisando o rabo de cavalo com as mãos direitas e segurando o inic na esquerda inferior.
— Lembro que estudamos esse planeta na Academia — disse Nahra. — Mas, sinceramente, não me recordo de quase nada. Multigeografia nunca foi meu forte.
Kullat, que havia terminado de comer um dos pães, respondeu:
— Eu conheço algumas coisas. Não sei se é do seu conhecimento, general, mas minha primeira missão oficial como Shoujin foi em Enora, e lá eu tive o prazer de conhecer
o coronel kyniano Zíon.
— Agora que você falou... — Ele parou um instante, como se lembrasse das palavras. — O Dan Lothar me contou o que aconteceu com você e com Thagir na famosa missão
“O resgate do crânio de Maggor”.
— O quê? Essa história foi obra de vocês? — Nahra perguntou, abismada.
— Depois falamos disso — Kullat piscou para ela. E, voltando-se para o general, continuou: — Sei que Kynis é um planeta com dois reinos principais. Um no continente,
chamado As-Tanys, e outro em uma ilha. Mas também não lembro do nome.
— Makrao Maat é o nome do reino da ilha — complementou o general.
— Isso mesmo! — enfatizou Kullat, terminando o lanche e fazendo uma pausa, pensativo.
— Mais alguma coisa? — Ur’Dar indagou.
— Sim, mas não sei se seriam informações relevantes no momento. Se me permite uma sugestão, talvez seja melhor o senhor nos atualizar, general — sugeriu o cavaleiro.
Ur’Dar assentiu com a cabeça.
— Concordo. — E se ajeitou no tronco. — O problema é que As-Tanys e Makrao Maat estão entrando em mais uma guerra. E se Volgo está lá, pode ser que ele esteja envolvido.
— Guerra? — retrucou o cavaleiro. — Mas a última vez que eles guerrearam foi há tanto tempo!
— Cinquenta anos, para ser exato — corrigiu o general. — Mas a situação entre os dois reinos está bem delicada agora.
— Mas, pelo que sei, a ilha é pacífica — argumentou Kullat.
— Até o mais pacífico dos seres pode se tornar um guerreiro quando tem sua vida ou seus ideais ameaçados — o general retrucou, sério. — A ilha de Makrao Maat é praticamente
autossustentável, mas ainda precisa de itens vitais que não consegue produzir. O recomeço das desavenças ocorreu há uns sete anos, quando o continente criou um imposto
elevadíssimo sobre os produtos que exporta para a ilha. Mas a gota-d’água foi o novo imposto sobre importações interboreais, já que a entrada dos Mares Boreais é
controlada pelo continente. Em retaliação, a ilha reduziu o fornecimento de línguas de fogo e ameaçou cortar totalmente o comércio, se nada mudar. Em contrapartida,
o continente embargou o comércio de remédios para a ilha.
— Situação espinhosa essa — comentou Nahra.
— Bem espinhosa — concordou o general. — Sem línguas de fogo, As-Tanys não pode produzir seus próprios produtos. Por outro lado, o embargo chegou a um ponto onde
está faltando remédios na ilha.
— Não temos ninguém lá que possa ajudar? — Kullat questionou.
— Temos dois Senhores de Castelo sediados lá, mas receio que tenhamos de enviar outros para ajudar na questão política, pois os menteri que gerenciam os Treze Distritos
de As-Tanys não são muito abertos aos conselhos dos Senhores de Castelo que estão lá hoje, apesar de nos procurarem quando é vantajoso para eles. Já o reino de Makrao
Maat tem um rei mais... digamos... civilizado — disse Ur’Dar. — Tanto é que um dos dois Senhores de Castelo que vivem naquele planeta é um maatiano. Isso é bom para
nós, pois temos acesso diferenciado à ilha. Mas, justamente por isso, ele acaba não conseguindo realizar nenhuma negociação com o continente.
Kullat suspirou, e sua preocupação se voltou para os amigos que estavam presos na ilha. Se o crime do Ladrão fosse algo como roubar nas cartas, ele poderia apenas
conversar com o rei e pedir uma liberação dos prisioneiros em troca de serviços comunitários. Mas, com uma guerra em vista, a invasão poderia ser encarada como espionagem.
Kullat, que não queria envolver a Ordem, acabou sendo envolvido em algo muito maior.
— Mas não é só isso. Kynis tem algumas... — o general fez uma pausa, pensando bem antes de continuar — ... características especiais que, se usadas por alguém perigoso,
podem trazer sérias consequências.
— Que tipo de características? — indagou Nahra.
Ur’Dar olhou para a chama azul da lanterna, como se procurasse uma iluminação, uma forma melhor de responder.
— Os dois povos são kynianos, logo são da mesma raça. Mas os maatianos defendem a filosofia da Verdade, que é como uma seita. Dizem que aqueles que se mostram dignos
e puros podem se submeter a um processo a que chamam de “a grande evolução”.
O olhar de dúvida de Nahra e Kullat pedia um explicação mais clara. O general tomou mais um gole de inic antes de continuar.
— Dizem ainda que o rei maatiano tem acesso a um objeto milenar chamado Chuilong,** que tem o poder de transformar os corpos de kynianos em seres diferentes, os
chamados elfi-dragões.
Kullat e Nahra ficaram espantados. Eles já tinham ouvido falar daquele termo. Era mesmo provável que quase todos no Multiverso conhecessem a lenda dos elfi-dragões.
— Quer dizer que os elfi-dragões existem de verdade? — Nahra perguntou, incrédula.
— Eu achei que fossem só lendas — complementou Kullat, ainda tentando aceitar a ideia.
— Não, eles existem, e o castelar do reino de Makrao Maat é um deles.
— Nós temos um elfi-dragão na Ordem? — Nahra indagou, perplexa ao ver que lendas ganham vida.
— Sim. Mas isso não é relevante agora — retrucou o general. — Até porque a transformação é um privilégio para poucos. Só depois de décadas de dedicação à Verdade,
alguém ganha a honra de ser transformado, e, segundo informações, quem conduz a cerimônia é o próprio rei maatiano em um processo restrito no coração da ilha, onde
o Chuilong é guardado por uma proteção mágica que apenas o rei sabe como ultrapassar.
Kullat passou a mão pela barba, pensando naquelas informações. Sua preocupação com o Bobo e o Ladrão aumentava a cada instante daquela longa conversa. Eles estavam
de fato em maus lençóis, e seria difícil tirá-los de lá.
— E você acha que Volgo está atrás desse objeto? — perguntou Nahra.
— Sinceramente, eu não sei — respondeu o general. — Mas é uma possibilidade. Infelizmente não temos mais informações sobre o objeto e seus poderes. Nem Draak, o
Senhor de Castelo maatiano, teve autorização para nos contar mais sobre a transformação.
— Khrommer nos ajude — Kullat suspirou, cansado e com a mente cheia de preocupações. Uma delas ainda precisava ser discutida. — General, aquele homem disse as sombras
passam pela lua. E, quando alguém diz essa frase...
— Conheço bem essa frase — Ur’Dar interrompeu o cavaleiro. — Não esqueça que estávamos juntos quando lutamos contra a Sombra.
Kullat sentiu como se tivesse levado um soco no estômago. A época*** em que os Senhores de Castelo lutaram contra os triunos da Sombra foi um período terrível da
história do Multiverso. Kullat ainda era apenas um estudante na Academia e perdeu muitos amigos, professores e colegas durante as furiosas batalhas.
— Realmente — continuou Ur’Dar, sem dar atenção ao desconforto de Kullat. — A vida dos seus amigos está em perigo, mas há muito mais em jogo. Aquele homem também
disse que, quando a Synlige chegasse, eles encontrariam o seu fim.
— O que é esta Synlige? — perguntou Nahra, sem entender.
— Uma vez por ano, há um alinhamento das duas luas daquele planeta — Ur’Dar fez um gesto amplo com dois braços, formando um semicírculo, até que duas de suas mãos
se sobrepuseram à sua frente — e as águas do mar ficam muito mais baixas do que o normal, deixando à mostra uma larga faixa de corais, que criam uma ponte natural
entre o continente e a ilha durante três dias. Eles chamam esse período de Synlige, algo como visível na língua comum. Nesses dias, os dois reinos avançam com seus
exércitos pelos corais, ficando frente a frente, prontos para defender seu território.
O general se levantou, encarando as estrelas por alguns momentos, em reflexão. Duas mãos cruzadas atrás do corpo e outros dois braços cruzados à frente do peito
lhe davam um aspecto bruto, mas altivo. Kullat e Nahra também permaneceram em silêncio, absorvendo as informações à sua própria maneira.
— Receio que uma simples missão diplomática não seja suficiente neste caso — Ur’Dar disse, quebrando o silêncio da noite. — Vou enviar vocês dois imediatamente para
Kynis. Vocês devem evitar que essa guerra aconteça.
— Mas, general! Eu não posso receber uma missão dessas agora. Preciso ajudar meus amigos! — Kullat não conseguiu esconder a frustração na voz.
— Eu sei. Mas não temos escolha. De todos aqui do acampamento, você é o que possui mais informações sobre tudo o que está acontecendo. Além disso, preciso reportar
o que discutimos ao Conselho de Ev’ve.
— Mas, general... — Kullat começou a falar, mas foi interrompido por um gesto de “pare” do ancião.
— Vocês vão precisar de ajuda. Por isso, levem o Sumo com vocês. Os poderes dele poderão ser úteis, já que estarão perto do mar. — Vendo que Kullat tentaria argumentar,
o general juntou as outras três mãos ao gesto da primeira. — É o que posso fazer neste momento. E vou pessoalmente falar com os outros membros do Conselho em Ev’ve.
As chamas azuladas das lanternas bruxulearam, lançando poucos raios de luz sobre os semblantes sombrios dos três Senhores de Castelo.
— Senhor — Kullat murmurou, dando um passo na direção do general —, eu vou para Kynis, mas quero deixar claro que farei o que for preciso para ajudar meus amigos.
O gigante de quatro braços olhou profundamente nos olhos de Kullat.
— Não esperava menos de você, Domo Shoujin!
Notas
* Bebida gaseificada doce, sem álcool. É conhecida por ter mais de dez sabores, sendo o mais comum o de bagas vermelhas selvagens.
** “Sopro do dragão” em kin’nita.
*** Os conflitos abertos contra a Sombra, que tentou derrubar a Ordem dos Senhores de Castelo, ocorreram entre 3191 e 3195.
Um Símbolo do Passado
Órbita do planeta Zelda
Azio estava no espaço-porto do planeta Zelda, esperando anunciarem seu voo. Parado no largo corredor de alumínio e aço, entre as diversas luzes e neons das lojas
e os anúncios nas enormes grades de informações, o autômato parecia estar mais em harmonia com o ambiente do que em seus recentes destinos. Como seu próximo destino,
Grandia, não possuía passagem boreal, ele teria de usar o transporte mais comum para viagens intraespaciais, ou seja, as naves Vostok — dois gigantescos cilindros
de metal utilizados para transportar praticamente tudo, de alimentos a pessoas e animais.
Em uma tela cristalina, Azio assistia a um documentário comercial que era repetidamente exibido e contava detalhes das naves Vostok.
... um consórcio de grandes conglomerados comerciais — Voq-on, Solam, Tartirs e Okomiur — foi o responsável pelo projeto inicial. Cada Vostok possui capacidade para
até mil passageiros, além da tripulação. São dezoito níveis, divididos em três grandes áreas. A Engenharia: dois níveis que comportam o maquinário de engenharia,
cujos quatro propulsores de fusão sônica geram a energia para sustentar o suporte de vida, dormitórios, cozinha, gravidade artificial, aquecimento, espaços recreativos
— incluindo jogos, teatros e lojas —, entre outras tantas necessidades que uma nave desse porte exige. Na área chamada Armazém, três níveis destinados para armazenagem
de comida, bebida e água. Como parte do variado cardápio, além de alimentos desidratados e vários tipos de carnes congeladas, a nave carrega frutas de várias regiões
do Multiverso, como k’praty-la e juin-tuyn, frutas da estação de calor de Hund-lio.* Pinhas secas e paranty, fruta exótica de Felur, de gosto macio e parecido com
mel, dividem espaço com as famosas ghan-tei, pedaços suculentos de polpa das árvores de Manian.** Cozinheiros de várias raças servem os restaurantes e bares espalhados
pela nave. E, por fim, a área de Carga, os níveis restantes, que são destinados ao transporte de mercadorias. Há ainda um conjunto de celas para transportar prisioneiros
ou seres cuja periculosidade, como os tharos — seres que transpiram uma radiação letal a quase todos os seres vivos —, os torna uma ameaça aos demais passageiros.
É por isso que...
Azio já estava assistindo ao mesmo documentário pela quinta vez quando seu comunicador Amlar vibrou. Com um misto de felicidade e incerteza, ele ergueu o braço para
visualizá-lo. Em instantes, a imagem miniaturizada de Laryssa surgiu à sua frente. Apesar de estar sorrindo, era visível seu cansaço. Mesmo assim, seu rosto estava
diferente, com os olhos delineados e os lábios suavemente pintados. Seus cabelos também pareciam mais cuidados, e ela usava brincos brilhantes.
— Saudações, princesa — disse Azio, com certa reserva na voz.
Desde a última conversa, ele ficara perturbado com o suposto interesse pela princesa de alguém chamado Virnus. Tentou contato duas vezes, mas não obteve resposta,
o que o deixou angustiado. Agora que ela o procurava, ele não sabia como agir.
— Olá, meu amigo — ela disse, sorrindo. — Só vi suas chamadas agora. Desculpe. Fiquei ajudando o mestre Uoli a catalogar documentos desde cedo.
— Você parece cansada, princesa — disse Azio, e seus olhos piscaram duas vezes em vermelho.
— Um dia inteiro mergulhada em papéis velhos só deve ser divertido para as traças. — Ela riu da própria piada. — Mas vamos deixar isso pra lá. Como anda sua busca
em Zelda?
O autômato se lembrou dos clarões e da estranha mulher binaliana, mas decidiu não comentar nada.
— Zelda não é o planeta que estou procurando. Grandia pode me dar alguma pista — ele falou, sem timbre na voz metálica. — Estou em órbita neste momento, esperando
por uma nave que me levará até lá — continuou, sucinto.
— Bem — disse ela, estranhando o comportamento do amigo. — Tomara que tenha mais sorte em Grandia.
— Você conseguiu mais alguma informação? — ele perguntou, com a mesma voz fria. — Lembro que você mencionou que havia uma biblioteca particular onde tentaria entrar.
— Eu consegui falar com aquela guerrina chamada Uni, e ela me contou que conseguiu entrar na biblioteca particular da mestra Raissa a pedido dela, para ter uma lição.
Você acredita que ela leu uma parte do diário do próprio Monjor? Enfim, isso não vem ao caso — Laryssa fez um gesto com a mão. — O importante é que consegui falar
com a mestra e contei sobre nossos esforços em procurar outros sobreviventes de Binal. Ela ficou empolgada e abriu uma exceção para mim, permitindo que eu fizesse
algumas pesquisas com ela. Ainda não encontramos nada, mas a boa notícia é que não conseguimos ver nem um décimo de todo o material que ela possui.
— Entendo — Azio disse. — Fico feliz em saber que ainda há esperanças.
— Há, sim. Tem tantas coisas lá que fica difícil saber o que pode ou não ser útil. Por exemplo, eu achei um pergaminho de bambu antiquíssimo em uma língua que nem
a mestra conhecia.
— E tinha alguma informação útil nele? — perguntou Azio.
— Não sei se é útil, mas achei, no mínimo, estranha. Nesse pergaminho, eu encontrei um símbolo muito parecido com o de Oririn. Vou mandar a imagem para você ver.
— Ela bocejou enquanto mexia em algo a seu lado.
Em instantes, outra projeção surgiu, ao lado da figura da princesa. Era a imagem de um caderno de anotações, onde Laryssa havia reproduzido o desenho do pergaminho.
— Está vendo?
O autômato assentiu.
— Quando comparo o símbolo de Oririn com ele, há uma grande semelhança.
— Conheço muitos símbolos do Multiverso, talvez eu consiga alguma coisa. Aguarde um momento, princesa.
Azio ficou em silêncio por alguns instantes. Seus olhos piscaram em cores diferentes até que voltaram à tonalidade normal. Laryssa mordeu o lábio, na expectativa
de que o amigo decifrasse o estranho desenho, mas fez um ar de decepcionada quando Azio disse que não tinha nenhum registro compatível.
— Pode ser que tenha caído em desuso antes mesmo da formação da Ordem — ele comentou, atento à projeção. — Apesar de realmente ser muito parecido com o símbolo de
Oririn, pode ser apenas uma coincidência.
— Que pena! Fiz uma procura automática por imagens no Livro dos Dias, mas também não encontrei nada — ela comentou, colocando o cabelo atrás da orelha. Com isso,
o brinco se destacou e o peito de Azio estalou novamente. — Bem, de qualquer forma, vou continuar a pesquisa para tentar achar mais pistas sobre binalianos. Qualquer
novidade, eu aviso.
Ela parou de falar e bocejou novamente.
— Eu agradeço, princesa. — O tom de voz de Azio era seco, e a princesa notou que ele voltara a agir como um autômato normal, diferente daquele novo Azio a quem ela
já estava se acostumando.
— Azio, você está bem? Parece estranho.
— Estou funcionando perfeitamente, princesa. Não tem com que se preocupar. — As palavras saíram entrecortadas pela voz mecânica do terminal, que informava que tinha
iniciado o embarque para o próximo voo em direção a Grandia. — Preciso ir. Meu voo já está de saída. Agradeço novamente pela sua ajuda, princesa, e espero que não
esteja sendo um fardo para você.
— Não diga isso, Azio — ela disse, surpresa. — Você é muito importante para mim, e eu vou fazer de tudo para te ajudar. Avise quando chegar, está bem?
— Certamente, princesa — ele assentiu, mas não comentou que a viagem levaria semanas. — Agora é melhor você descansar. Parece que o sono a está vencendo. — E piscou
brevemente.
Ela sorriu.
— Você tem razão. O dia foi muito cansativo, e vou ter que acordar cedo amanhã. — Ela se espreguiçou. — Espero que tenha mais sorte em Grandia.
— Obrigado — ele disse.
— Até logo, querido amigo!
Os olhos de Azio brilharam em um azul suave.
— Tenha belos sonhos, querida princesa.
A imagem da princesa tremeu e, antes de desaparecer, ela soprou um beijo no ar.
Azio ficou alguns instantes olhando para o antebraço dourado, como se estivesse indeciso em partir ou ligar novamente. A voz mecânica retornou, tomando a decisão
por ele, informando que sua nave ia partir. Ele deu um salto suave e a baixa gravidade do planeta fez com que ele flutuasse. Lentamente, ele subiu e desceu, fazendo
uma curva até pousar perto do local de embarque.
Ele estava partindo novamente, carregando consigo um estranho pesar.
Notas
* Planeta do quarto quadrante, cujos habitantes são seres de silício e metal. As frutas são ricas em magnésio e cal e não são comestíveis para outros seres.
** Planeta do primeiro quadrante. As árvores são a própria fruta. De gosto suave e coloração verde, lembram gelatina.
Uma Última Lição
Planeta Kynis
A manhã afastava lentamente a escuridão da noite e Willroch já estava de pé na praia, sentindo a areia grossa embaixo dos pés descalços, enquanto observava as ondas
se chocarem fortemente contra as rochas da costa de As-Tanys. Ele estava sem camisa e sua aparência era a de alguém em plenas condições de saúde, muito diferente
dos meses de agonia pelos quais passara, por causa do veneno do ovo de manticore.
Um pouco mais atrás, segurando com as mãos esquálidas o cajado de madeira, Volgo observava o pupilo em silêncio. Seu plano seguia sem problemas. Ele já havia se
encontrado com Bemor Caed e garantido que todos os preparativos estavam em andamento. As irmãs trilobitas que trouxera em jarros no navio já parasitavam três kynianos
e tinham começado a realizar os seus encantos em algumas cobaias. O próximo passo do plano seria realizar o teste final em Willroch e se certificar de que ele estava
realmente pronto.
— Como você se sente? — a voz cavernosa de Volgo ecoou pela praia.
As ondas se quebraram furiosamente, refletindo a luz do sol que nascia devagar no horizonte. Willroch se virou lentamente, com um sorriso malicioso no rosto. A pele
morena estava viçosa, e os longos cabelos crespos lhe caíam pelos ombros. Os músculos proeminentes eram realçados pelo peito largo e atlético, que subia e descia,
em uma respiração profunda.
— Eu me sinto... poderoso! — disse ele, olhando para as próprias mãos.
Willroch ergueu os braços e sorriu novamente, mas agora de forma ameaçadora. Deu dois passos em direção a Volgo, levantando as mãos sob o olhar atento e desconfiado
do feiticeiro. Vários pedaços de ovo de manticore brilharam, incrustados na pele do poeta, permeando toda a parte posterior das mãos, passando pelos nós dos dedos
e alcançando o antebraço. No braço direito, os cristais chegavam quase até o cotovelo. Pareciam estilhaços de vidro púrpura, pontudos, que emitiam um leve pulsar
de energia. O brilho aumentava e diminuía no ritmo da respiração do poeta.
Sem avisar, Willroch disparou uma rajada de energia mágica púrpura à queima-roupa contra Volgo. O golpe o pegou de surpresa e o lançou longe, derrubando-o sobre
a areia com um baque surdo.
— Pare! — Volgo se levantou debilmente, tossindo e repetindo a ordem. — Pare agora!
— Parar? — respondeu Willroch, fechando as mãos e fazendo os cristais brilharem ainda mais intensamente. — Mas, mestre, este não é mais um treinamento?
Mal terminou de falar, disparou outra rajada. O ataque atingiu diretamente o peito do feiticeiro, em uma explosão púrpura que iluminou a praia e o fez girar no ar,
até cair novamente na areia.
O poeta sorriu pelo prazer da vingança. Agora sua magia estava mais forte e seu corpo estava mais resistente, mas, até que ele chegasse àquele estágio, Volgo o maltratara
sem piedade. Willroch não se esquecera da dor excruciante das rajadas do mago careca ou do desprezo em sua voz a cada treinamento.
Vendo o velho caído e ofegante, aproximou-se com a confiança de que já estava pronto para enfrentar o seu “mestre”.
— Você não queria que eu estivesse preparado? — disse ele, chutando o cajado de Volgo para longe. — Não queria que eu dominasse esse novo poder que você, tão gentilmente,
permitiu que eu tivesse?
Volgo tossiu e arfou. Seu corpo esquelético tremia e seu manto vermelho estava coberto de areia. Se Willroch não o conhecesse, teria piedade daquela figura frágil,
que parecia poder se quebrar apenas com o vento. Mas ele sabia que, por trás daquela aparência, existia um ser extremamente impiedoso, capaz de fazer qualquer coisa
para atingir seus objetivos.
Willroch encheu seu coração de ódio e desferiu um chute fortíssimo contra o estômago de Volgo, mas, antes de tocar em seu mestre, sentiu como se um aríete o golpeasse.
Uma explosão rubra iluminou a praia e o mago poeta foi lançado para trás violentamente. Volgo, ainda caído, sorria maliciosamente, e, de seu dedo indicador, uma
espécie de escudo negro o protegia. As tatuagens espalhadas pelo corpo brilhavam na mesma intensidade que o escudo.
Enquanto o poeta cambaleava para trás, Volgo flutuou graciosamente e ficou de pé. Com um gesto, desfez o escudo — as tatuagens pararam de brilhar —, e, esticando
o braço, o cajado voou para sua mão, deixando um rastro vermelho brilhante no ar. Volgo o segurou firmemente à frente do corpo e assumiu um ar imponente, muito diferente
da figura débil de instantes atrás.
Agora a diversão vai começar, o poeta pensou, satisfeito.
Ele se lançou com um grito de raiva, voando contra o adversário. Em resposta, Volgo também disparou no ar como uma bola de canhão vermelha. O encontro dos dois corpos
foi intenso, gerando uma onda de choque que espalhou areia e pedaços de rocha pela praia. Ainda no ar, colados um ao outro, trocaram socos energizados.
Volgo acertou um direto na boca de Willroch, fazendo o poeta cuspir sangue, mas este conseguiu pegar Volgo pelo braço e o atirou no mar gélido. Em seguida, lançou
uma rajada mágica lilás que cortou a água e explodiu nas costas de Volgo. O mago sentiu uma dor indescritível, e a rajada o afundou ainda mais na água.
A recuperação do mago poeta fora dura, mas surpreendente, e Volgo se permitiu sorrir com satisfação. Debaixo d’água, ele disparou diversas esferas de energia vermelha,
que perseguiram Willroch no ar. O poeta rodopiava enquanto as bolas de energia explodiam ao seu redor.
Aproveitando a distração do adversário, Volgo emergiu e se ergueu vários metros no ar. Com um movimento circular do cajado, lançou um raio de luz poderoso, que envolveu
Willroch por inteiro e o impeliu fortemente para baixo. Um som alto, como uma explosão, ecoou pela praia quando Willroch se chocou contra o solo arenoso. A areia
se espalhou por dezenas de metros, em uma chuva de detritos.
Volgo pousou suavemente na beira da cratera, formada pelo imenso impacto da rajada. Willroch estava cravado no fundo do buraco, com sangue escorrendo do nariz e
da boca e fumaça e faíscas vermelhas saindo do corpo. Estava prostrado, sem forças para continuar a lutar.
— Velho maldito... — Willroch praguejou fracamente. Então tentou se mexer, mas gemeu de dor e desistiu. — Espero que tenha gostado...
— Por ora, estou satisfeito — disse Volgo. — Mas você precisa aprender uma última lição — concluiu, com os dentes cerrados.
O velho mago bateu seu cajado na areia, e um raio eletrizado, como se fosse uma cobra, desceu furiosamente até o fundo da cratera, atingindo Willroch e percorrendo
dolorosamente todo o seu corpo, que se contorceu de modo violento.
Incapaz de suportar tanta dor, o poeta desmaiou.
— Seu treinamento acabou — disse Volgo, com desprezo.
Trunfo Final
Na manhã seguinte, vários homens de tinta trabalhavam em pequenos reparos no navio do Tempestuoso, limpando e arrumando as amuradas destruídas pela exfirata, dias
atrás.
No interior da embarcação, Volgo estava na pequena cozinha, sentado à mesa, sozinho. O mago comeu e bebeu em silêncio, absorto em pensamentos. Após a refeição, ainda
sentado, desenhou um arco no ar com as mãos esquálidas, murmurando palavras antigas. Em instantes, uma chama violeta surgiu à sua frente.
Gabian
Gabian
O mago repetiu o nome várias vezes, até que, de dentro da chama, surgiu a imagem de um homem de pele manchada, rosto gordo, bochechas com escaras em forma de cruz
e orelhas cortadas. Um adorno parecido com um chifre pendia do seu queixo.
— A que devo a honra de tão inesperado chamado? — disse Gabian, sorrindo e deixando à mostra dentes amarelados, incrustados de pequenos brilhantes.
— Espero que esteja tudo pronto — disse Volgo, sem rodeios.
— Sabe o que eu gosto no senhor? — perguntou Gabian, e, sem esperar pela resposta, continuou: — Sua objetividade! Sempre indo direto ao assunto, sem rodeios nem
enrolações.
— O mesmo não se pode dizer de você — disse Volgo, impaciente.
— Longe de mim, meu caro senhor — respondeu Gabian, levantando as mãos em sinal de defesa, mostrando os dedos gordos e as unhas pontiagudas. — Vamos direto aos negócios,
então.
— Finalmente — complementou Volgo.
— Pois bem — Gabian pigarreou. — Eles estarão prontos em breve, Loranq.* Alguns responderam bem ao novo feitiço, e vinte deles já começaram a obedecer aos comandos.
— Só vinte? — Volgo deixou clara a sua frustração. — Mas você ainda tinha uns cem deles!
— Infelizmente nem todos respondem como esperado. Tem três pequeninos que se mexeram, depois de décadas sem resultado positivo — Gabian respondeu, nervoso. — De
qualquer forma, foi uma evolução enorme.
— Nem tanto — comentou Volgo, sem dar mais detalhes. — Mas agora o feitiço está mais elaborado e deve funcionar melhor.
— Erna** abençoe essas palavras. Tanto tempo envolvido com esse projeto, arcando com tantos custos... — Gabian fez um instante de silêncio, e, como Volgo não se
pronunciou, continuou: — E, por falar nisso, estou tendo alguns gastos imprevistos, se é que me entende...
— Não se preocupe. Em breve, irei pessoalmente buscá-los e lhe pagarei pelos seus serviços. Posso até lhe dar um bônus, se os vinte se tornarem trinta — Volgo respondeu,
sério. Os olhos de Gabian se arregalaram, cobiçosos, deixando à mostra as grandes íris pardas. — Manterei contato.
Volgo finalizou a conversa bruscamente, fazendo a chama desaparecer com um gesto. Fechou os olhos por um instante e se permitiu sorrir orgulhosamente. Com Willroch
pronto, as trilobitas agindo e Gabian reunindo seu trunfo final, em breve estaria pronto para completar seu plano e, por fim, recomeçar.
Notas
* “Homem de vermelho”, em tradução livre para a língua comum.
** Deusa do povo Narap, planeta de origem de Gabian.
Pedido Suplicante
Planeta Curanaã
Há muito tempo, em um planeta árido e distante, uma sociedade vivia mergulhada na mais cruel e desmedida violência. Um grupo de criminosos, chamado de a Sombra,
era responsável por raptos, extorsões e assassinatos, cometidos a seu bel-prazer. Esse grupo, formado por três facções de criminosos — os Olhos Sombrios, os Ratos
da Noite e a Família Negra —, dominava o submundo e controlava todos os setores da sociedade.
Descontente com tamanho caos, uma guilda de pistoleiros comandou uma revolta armada, na tentativa de acabar com a Sombra. Mas eles foram vencidos, e os sobreviventes
se refugiaram em uma cidade longínqua de nome Anaã. Decididos a mudar de vida, convenceram a população de que deveriam abandonar aquele mundo e buscar um lugar onde
pudessem criar uma nova sociedade de paz e harmonia. Depois de anos de planejamento, nove pistoleiros, comandando pouco mais de três mil pessoas, deixaram aquele
planeta maldito. Durante décadas, flutuaram em suas arcas no vazio do interespaço, até encontrar um planeta intocado, o qual chamaram de Curanaã — a jovem Anaã.
Cidades e estados se formaram, originando uma nova comunidade baseada na integração com a natureza. Mas, com o passar dos séculos, os males comuns a todas as sociedades
também se instauraram em Curanaã. Então aconteceu de um dos cinco reinos ser dominado por um golpe de Estado, criando sérias dificuldades políticas e sociais. O
novo governo incitou a população e, com um exército armado, invadiu a fronteira de dois dos outros quatro reinos.
No castelo de Newho, um dos reinos invadidos, um homem solitário estava debruçado sobre uma mesa, preocupado. Pelas vestes simples, ninguém diria que aquele era
Thagir Idrarig, o regente de Newho.
Ele passou a mão pela barba negra-ruiva, já com fiapos brancos, analisando os últimos relatórios da fronteira enviados pelo capitão Uenner, da guarda do reino de
Newho. Seu irmão Phelir, comandante da Esquadra de Voo de Guivres,* fora pessoalmente para lá a fim de auxiliar o capitão e tentar impedir que um conflito se iniciasse.
— Boas notícias? — A voz veio de trás da enorme porta de madeira. Thagir sorriu ao ver seu pai andando em sua direção.
Ver Primir era como ver a si mesmo, mas em uma versão mais velha, um pouco mais baixa e com menos cabelos. Ao contrário das vestes simples de Thagir, Primir estava
usando uma bela jaqueta e calças brancas, adornadas com fios de prata. Ombreiras grossas, decoradas com o símbolo de Newho, davam-lhe uma aparência altiva. As botas
pretas de couro brilhavam como se fossem feitas de vidro. A única peça que destoava era um cinto especial de metal, uma segurança que Primir usava em tempos difíceis.
Ele abraçou o filho e passou os olhos pelos relatórios sobre a mesa.
— Acho que temos boas notícias, sim — respondeu Thagir. — Parece que mandar nosso pelotão aéreo para a fronteira surtiu efeito. Os invasores pararam a marcha. Vamos
manter os guivres lá por mais algum tempo, reduzindo a possibilidade de um ataque frontal.
— Recebi notícias de Olsa Muir — disse Primir, balançando um tubo vítreo com a fumaça de comunicação esbranquiçada dentro. — Ele garantiu que podemos contar com
o apoio de seu exército, caso a situação exija medidas drásticas.
Olsa Muir, um velho aliado de Primir, é o regente de Ohwen, reino a leste de Newho. Ambos os reinos possuem uma ideologia muito similar, mantendo uma aliança há
muitos anos. O exército de Ohwen é numeroso e muito bem organizado, além de contar com vários pistoleiros treinados em Newho. A ajuda seria primordial, caso o confronto
direto com os invasores fosse inevitável.
Primir se aproximou da janela oval da sala e fitou os campos verdes e as florestas ao redor do castelo, que continuavam até sumir de vista. Era primavera e a natureza
exibia toda a sua exuberância, com flores coloridas por todos os lados. Apesar da altura, o perfume naturalmente adocicado chegava até ele, carregado pela brisa.
— Além do mais — Primir continuou —, mesmo que algum inimigo consiga chegar até nossos portões, ainda poderíamos lançar o Zamok contra eles.
— Mas esse Zamok nunca foi usado antes — Thagir comentou, preocupado. — Acho até que ele nem existe!
Primir se aproximou e pousou a mão no ombro do filho.
— Existe, sim, eu lhe garanto!
— Então me diga de uma vez por todas: onde é que o Zamok está, afinal?
Thagir estava ficando irritado. Já havia tido aquele tipo de conversa com o pai várias vezes, mas nunca conseguira nada além daquele nome.
Primir passou a mão pelo colar, cujo medalhão era muito parecido com o de Thagir. Apenas não tinha a pedra que indicava que Thagir era o regente atual.
— Tudo tem um tempo na vida, meu filho. Quando chegar a hora, você saberá mais sobre Zamok. Agora me diga, teve alguma notícia do seu irmão? — Primir perguntou,
fugindo novamente do assunto.
— Ele mandou um morcego — Thagir comentou emburrado, pegando um papel da mesa e o abanando para o rei.
— O quê? — Primir virou-se para o filho, espantado. — Ele finalmente conseguiu treinar um morcego?
— Não exatamente — Thagir lembrou que o animal conseguiu entrar pela janela da sala de mapas e ficou se debatendo entre as vigas do teto antes de soltar o pergaminho
que trazia. — Mas pelo menos a mensagem conseguiu ser entregue. Ela diz que a situação está sob controle e que nossos batedores não encontraram nenhum grupo avançado
do inimigo. Parece que eles não possuem contingente suficiente para poder se dividir e continuar representando uma ameaça.
— Então a fronteira norte está sob controle — concluiu Primir, sorrindo para o filho. — Mas ainda vamos ter muito trabalho pela frente para convencer os outros reinos
a agir e dar um basta nessa loucura.
Thagir concordou com o pai. Embora tenha mandado mais um regimento de pistoleiros para reforçar as defesas da fronteira, sua intenção era conseguir o apoio dos outros
reinos-Estado para abafar aquela situação sem ter de usar de violência. Apesar de Curanaã ser um planeta fundado por pistoleiros, também era formado por pessoas
que pregavam o pacifismo. Sempre que possível.
— Papai? — Uma voz cristalina e infantil interrompeu a conversa.
Ao pé da porta, Lara, a princesa mais nova do reino, olhava os dois homens com seus lindos olhos verde-escuros. O humor de Thagir mudou completamente ao ver a filha.
Ele sorriu e se aproximou, dando um sonoro beijo na bochecha dela.
— O que foi, princesinha? — perguntou, dando outro beijo na filha. — Quer alguma coisa aqui do quarto de coisa velha?
Lara chamava a sala de mapas de “quarto de coisa velha”, por causa dos vários objetos antigos, pergaminhos, mapas e papiros que lotavam o cômodo.
— Não, Puxo — disse ela, usando o apelido que ela e a irmã, Alana, deram ao pai. — É o tio Kullat. Ele quer falar com você.
— Kullat está aqui? — ele perguntou, espantado, olhando em volta.
— Não — ela sorriu. — O tio está no gupi.
Thagir riu do mal-entendido. Kullat não tinha vindo a Newho, ele estava apenas chamando pelo gupi, o aparelho transmissor intraboreal.
— Obrigado, minha querida. Por favor, avise o tio que eu já estou indo.
Ela abriu um belo sorriso e concordou com a cabeça. Em seguida, saiu em disparada e sumiu pelo corredor. Acompanhado do pai, Thagir saiu da sala de mapas. Eles passaram
pelos largos corredores do castelo e desceram dois lances de escada. Pouco depois, chegaram a um pequeno salão sem janelas, contendo uma série de cubas flutuantes
de rocha azulada. Lara já os esperava, de braços cruzados e com um sorriso no rosto.
Thagir piscou para ela e entrou no salão, sendo seguido pela filha e pelo pai. Uma das cubas estava jorrando um líquido prateado e vaporoso, formando uma névoa azulada,
onde um rosto conhecido estava sendo projetado.
— Vejam só quem resolveu aparecer! — o pistoleiro disse, ao ver a imagem azulada de Kullat.
Kullat sorriu e começou a falar, mas sua voz estava muito baixa. O pistoleiro fez um gesto para o amigo aguardar e girou a cuba no ar suavemente, para ajustar a
projeção. A imagem tremeu um pouco, mas depois ganhou nitidez, o som ficou mais alto e a imagem ficou colorida, em lugar do tom azulado inicial.
— Pronto — Thagir disse, soltando a cuba. — Agora vamos te ouvir melhor e você não vai mais ficar azul.
— Eu estava azul, Lara? — Kullat perguntou, entrando na brincadeira.
— Azul como um passarinho! — Lara respondeu, fazendo um biquinho com a boca e batendo os braços como uma pequena ave.
Kullat soltou uma risada franca, sendo acompanhado pelos demais.
— Olá, meu jovem. Há quanto tempo não o vejo! — Primir disse em seguida. — Resolveu aceitar nosso convite para passar alguns dias aqui e comer nossas famosas orvinas?
— Humm... Orvinas bem assadinhas... — Kullat comentou, lambendo os lábios. — Pode considerar o convite aceito, meu caro Primir.
— Maravilha! — Primir respondeu, num tom sincero. — E quando chega? Vou mandar separar as melhores do rebanho.
— Infelizmente, tenho que resolver alguns assuntos antes. Mas, assim que possível, eu aviso. Afinal, não posso perder uma especialidade dessas. Ah, e diga à sua
esposa que eu não esqueci o pedido dela: prometo que vou levar a receita dos pastéis de abóbora da minha mãe.
— Não vá esquecer, hein? — Thagir disse, apontando o dedo ameaçadoramente para a imagem vaporosa. — Senão ela vai me fazer ir até Oririn só para pegar essa receita!
— Eu prometo! — Kullat esticou dois dedos sobre a testa, em sinal de juramento. — Mas agora, se pudermos conversar um pouco sobre uma coisa...
Primir sentiu que aquela era a sua deixa.
— Bom, Kullat, eu e esta princesinha aqui — Primir pegou a mão de Lara — precisamos achar a Alana. Hoje elas vão aprender com a avó como preparar um delicioso bolo
de frutas, não é, mocinha? — Lara assentiu sorridente. — Agora diga adeus para o tio Kullat.
Ela acenou com sua pequena mãozinha e lançou um beijo no ar. No vapor da fonte, apareceu a mão de Kullat, que fingiu pegar o beijo e guardá-lo no manto. Primir se
despediu e saiu, fechando a porta e deixando Thagir e Kullat a sós.
— Você está com cara de preocupado... O que aconteceu? — Thagir perguntou, sem maiores rodeios. Ele já conhecia o amigo suficientemente bem para saber que Kullat
iria lhe contar algo importante.
Kullat pareceu pensar um pouco antes de responder. Sua expressão era grave e deixou Thagir preocupado.
— Estou com problemas — Kullat disse. — E preciso da sua ajuda!
Nota
* Animal originário de Curanaã, com uma grande cabeça com chifres e corpo de serpente. Forte e feroz, possui língua pontiaguda, duas asas membranosas e pernas musculosas.
Pode voar durante horas e carregar até dois homens no dorso.
Escolhas da Vida
O tom de voz de Kullat era tão sério que fez o corpo de Thagir retesar.
— Que tipo de ajuda?
O semblante de Kullat estava duro, como há muito Thagir não via.
— Você lembra — disse Kullat — que encontramos o Corning e o Bobo em Agas’B?
— Sim — Thagir respondeu, alisando a barba, pensativo. — Mas na época você não disse o que eles estavam fazendo lá.
— Por minha culpa — Kullat se sentia desconfortável com a confissão —, eles estão em apuros. Eu pedi que eles conversassem com Anteos, aquele armeiro que encontramos
— Kullat baixou os olhos, envergonhado —, porque ele poderia ter alguma pista sobre o bracelete roubado do seu castelo. Ele conseguiu descobrir que há um homem em
Kynis que consegue materializar armas e que usa um bracelete muito parecido com o que você usava.
— Por que você fez isso? Eu nunca lhe pedi uma coisa dessas! — exclamou Thagir, secamente. — Você sabia que eu iria atrás do bracelete do meu pai quando fosse a
hora. Você não devia ter feito isso sem falar comigo!
— Mas era para ser uma surpresa! — Kullat respondeu, encabulado.
Ele sabia que a conversa com Thagir não seria fácil, mas não esperava que a reação do amigo fosse tão dura.
— E você mandou que eles fossem atrás desse homem? — Thagir continuou, irritado e gesticulando amplamente. Kullat apenas assentiu. — Onde é que você estava com a
cabeça? Se essa pessoa realmente está com uma Joia de Landrakar, então deve ser alguém muito perigoso.
O pistoleiro jogou as mãos para o alto, deu as costas para a fonte de projeção e começou a andar pelo salão.
— Eu só pedi para que eles o encontrassem. Não que o pegassem. — Kullat estava começando a ficar irritado também.
— Você o pressionou, não foi? — Thagir perguntou, acusadoramente.
— Não foi bem assim! — O cavaleiro engoliu em seco.
— Eu te conheço bem, Kullat. Você deve ter pressionado o Corning de alguma forma. — Thagir andava de um lado para o outro. De repente, ele se virou para a fonte,
com os olhos faiscantes. — Já sei! Você prometeu que a dívida dele estaria paga!
Thagir estava irritado com o amigo como há muito tempo não ficava.
— Então eu estou certo! — Thagir disse, diante do silêncio de Kullat. — E isso significa que Corning não apenas achou o bracelete, mas se sentiu na obrigação de
consegui-lo de volta. E acabou entrando em alguma enrascada e levando aquele maluco com ele!
— Ele quer pagar a dívida! Ele me pediu isso! — Kullat retrucou, olhando inocentemente para Thagir. O semblante flutuando no projetor vaporoso acentuava a seriedade
de sua expressão. — Eu achei que esse seria o jeito ideal. Uma boa para todo mundo.
— Isso foi jogo sujo... — Thagir apontou o dedo e encarou a imagem de Kullat acusadoramente.
— Eu não jogo sujo! Nunca! — Kullat explodiu, batendo os punhos flamejantes contra algo que Thagir supôs ser uma mesa. Diante da fúria do cavaleiro, a imagem tremeu
freneticamente por alguns segundos. — E também nunca abandono os amigos!
Thagir sentiu o peso daquelas palavras como se uma bigorna tivesse sido arremessada em seu peito. Kullat estava pedindo a sua ajuda. A ajuda de alguém a quem o cavaleiro
confiara a própria vida várias vezes. E, em retribuição, estava sendo acusado e atacado com palavras duras e frias.
Kullat resolveu virar a mesa.
— Por Khrommer! O que está acontecendo com você, Thagir?
O pistoleiro ficou vermelho de raiva, mas respirou profundamente e se concentrou em seus sentimentos. Surpreso, percebeu que o som choroso de harpas tocava suavemente
no fundo de sua mente. Havia meses ele não sentia aquilo, mas aquela conversa fez emergir novamente o efeito manticore.
— Kullat, me desculpe — Thagir murmurou, com a voz mais serena. — De vez em quando ainda escuto harpas.
O rosto de Kullat ficou mais brando ao entender o que afligia o amigo.
— Eu entendo... — Kullat disse, após um longo suspiro de simpatia. — Pelo visto, não sou só eu que estou com problemas.
Thagir se aproximou e colocou as mãos na fonte flutuante, que balançou de leve. Arcando um pouco o corpo para frente, encarou o amigo.
— Newho está à beira de uma guerra!
Kullat ficou espantado com aquela informação. Ele sempre achou que Newho era um reino pacífico e que Curanaã era um planeta exemplar no que dizia respeito à paz
e à harmonia. Observando mais atentamente, o cavaleiro viu que o amigo estava com uma aparência cansada, exibindo olheiras profundas e muitos cabelos brancos.
— Para piorar — Thagir continuou —, tive de pedir ao Phelir para ir pessoalmente para o front.
— E por que você mesmo não foi lá resolver? — o cavaleiro perguntou, intrigado.
— Por mim, eu já teria ido e acabado com isso de uma vez por todas! Mas meu pai está tentando resolver tudo de forma diplomática, evitando ao máximo a violência.
Ele diz que isso iria contra todos os preceitos pelos quais nossos antepassados lutaram.
— Mas, se você é o regente — Kullat prosseguiu, ainda espantado com a revelação de Thagir —, deveria decidir o que é melhor para o reino.
— Sim, eu estou na função — respondeu Thagir. — Mas em Newho nós fazemos diferente. Nenhuma decisão é tomada porque uma pessoa quer isso ou aquilo. Aqui nós conversamos
e chegamos a uma conclusão em conjunto. Qualquer um da família Idrarig pode ocupar a posição de regente, porque o futuro do reino sempre repousa sobre os ombros
de todos nós!
— Entendo. — Kullat pareceu relutar um momento, mas continuou: — E sei que o que vou lhe pedir agora é ainda pior nessa situação.
— O que pode ser assim tão ruim? — questionou Thagir.
Kullat suspirou profundamente.
— Preciso que você vá para Kynis comigo.
Thagir ficou confuso.
— Por que você não chama sua nova parceira para ir com você? Como é mesmo o nome dela?
— É Nahra, e ela já vai comigo. Mas a situação é muito mais complicada. Kynis também está em uma iminência de guerra e, para piorar, o homem que está com o bracelete
é ministro de um dos reinos e tem Corning e o Bobo como seus prisioneiros.
— Mas eu não posso deixar o meu reino agora! — Thagir exclamou.
— E tem mais uma coisa — Kullat disse. — Aquele homem jurou os dois de morte.
— Como você sabe disso?
— Meus broches de dragão. Deixei um deles com os dois, caso precisassem entrar em contato comigo. — Kullat relutou um pouco, sabendo que o que estava prestes a falar
afetaria Thagir profundamente, mas resolveu ir em frente mesmo assim. — O homem com o seu bracelete tem os olhos tatuados... — Ele hesitou. — Ele disse... que as
sombras passam pela lua!
Thagir se empertigou e cruzou novamente os braços. A informação sobre os olhos tatuados podia significar que o homem fazia parte de um dos braços da Sombra — os
Olhos Sombrios. E a frase, usada por assassinos, só aumentava suas suspeitas.
O pistoleiro refletiu por vários momentos sobre a possibilidade da volta de um inimigo antigo e a ameaça mortal que os amigos de Kullat sofreram.
Respirando profundamente, concluiu:
— Se o que você diz é verdade, então eles já devem estar mortos!
— Não, não estão. Eles foram presos em uma cela oficial e não podem ser atacados. Pelo menos por enquanto — respondeu Kullat.
— Por que você diz isso?
— Melhor que falar é mostrar.
Kullat mostrou o broche azul a Thagir e, em seguida, o abaixou para fora da imagem. Momentos depois, o rosto de Kullat sumiu e várias imagens e sons surgiram. Enquanto
as imagens-memória de Corning eram projetadas, Kullat ia explicando. Eles repassaram tudo, e Kullat terminou comentando as ordens de Ur’Dar.
— Tenho que cumprir a missão, por isso preciso de alguém de confiança para tirar aqueles dois de lá — Kullat finalizou.
Thagir entendeu o motivo da súplica do amigo. Com Volgo e Willroch em Kynis, o cavaleiro enfrentaria desafios que não poderia vencer sozinho, ainda mais tentando
resgatar os amigos.
— Realmente você é mestre em entrar em enrascadas — Thagir disse, com uma expressão dura.
— O tempo é curto. A Synlige começa em onze dias — Kullat concluiu, olhando seriamente para o pistoleiro.
— Onze dias? — o pistoleiro ergueu as mãos, incrédulo. — Mesmo que eu saísse agora, levaria vários dias para chegar até aí.
— Até aqui não, até Kynis! — Kullat disse, desconcertado. — Eu estou em Wushu. Nós vamos zarpar assim que eu terminar de falar com você, e chegaremos a Kynis daqui
a sete ou oito dias. Se você sair daí agora, poderá chegar até antes, entre quatro e sete dias. Eu já verifiquei.
— Grande Rama! — Apesar de não crer em divindades, quando queria expressar grande preocupação, Thagir usava a frase que seu pai tanto falava, que remetia ao deus
de seu planeta natal. — Vão sobrar apenas três ou quatro dias para evitar a guerra e resgatar aqueles dois!
— É pouco tempo, eu sei. Além disso, como Volgo pode ter algo a ver com isso — a voz de Kullat era suplicante —, é provável que tenhamos outras surpresas no meio
do caminho. É por isso que eu preciso da sua ajuda, velho amigo!
— Mas eu não sou mais um Senhor de Castelo! — Thagir tinha o semblante pesado. O cansaço e o estresse estavam cobrando um preço alto.
— Você só não tem mais o título de Shoujin, mas nunca vai deixar de ser um castelar. Você sabe disso!
Thagir ficou em silêncio por um momento e disse em seguida:
— Mas eu não sou mais um integrante oficial da Ordem, por isso não posso mais representá-la.
— Eu não estou pedindo para você ir como representante da Ordem. Estou te chamando como meu amigo. Preciso de alguém em quem confio. Alguém que possa, de fato, ajudar
a tirar aqueles dois de lá!
Thagir ficou estático, como se avaliasse o que o amigo dissera. Kullat sentiu que estava quase convencendo o antigo companheiro e resolveu apelar.
— Lembre-se do oitavo dia, amigo!
Em silêncio, o pistoleiro voltou a andar nervosamente pelo salão, pensando no oitavo dia:
A família e os amigos valem mais do que mil tesouros.
Aquele parecia um problema sem solução. Seu amigo realmente precisava de ajuda, caso contrário, Corning e o Bobo certamente perderiam a vida. Mas Newho e sua família
também precisavam dele ali. Sua decisão de sair da Ordem fora justamente para que pudesse se dedicar a eles. Se ele ajudasse Kullat, sua família e seu reino teriam
de ficar a cargo de outra pessoa. Mas, se não o ajudasse, estaria quebrando os votos de amizade. Era como um Teste V. Qualquer atitude seria contrária ao oitavo
dia, à amizade ou à família.
Por ser um dilema insolúvel, só havia uma coisa a fazer: tomar uma decisão e arcar com as consequências. E Thagir já havia tomado a sua. Ele voltou a olhar para
a fonte e encarou Kullat.
— Na vida, temos que fazer escolhas. — Thagir estava impassível. — E, apesar de saber que a nossa amizade nunca mais será a mesma depois disso, terei que escolher
não ajudá-lo.
A frase atingiu Kullat como uma facada no coração. A dor foi tanta e tão inesperada que ele ficou sem palavras.
— Espero que você me perdoe — Thagir murmurou, triste. — Boa sorte, amigo.
O pistoleiro girou a cuba da fonte com força. O pó prateado se desmanchou e a imagem de Kullat desapareceu, restando na mente de Thagir apenas a expressão de decepção
do amigo.
Mulher Admirável
Thagir voltou para a sala de mapas com o peito pesado após a conversa com Kullat. Ele sentia saudade do bom humor do amigo e de seu companheirismo. Mas também não
poderia abandonar sua família e seu reino naquela situação.
Desolado, decidiu andar na floresta, em busca de um pouco de paz de espírito. O contato com a natureza do reino sempre o ajudava a recuperar as forças e encontrar
o equilíbrio.
Antes de sair, passou pela cozinha para avisar sua esposa. Ela remexia alguma coisa nas panelas e o cheiro vindo do fogão era apetitoso, mas o pistoleiro não sentia
fome.
— Vai sair, amor? — ela perguntou, afetuosa. Apesar de toda a tensão no reino, ela se mantinha serena. Era o porto seguro em meio à tempestade. — Aproveita e pega
algumas lascas de rádia* para mim? Preciso delas para temperar a carne.
— De quantas precisa?
— Umas quatro lascas.
— Deixe comigo — ele disse, roubando-lhe um beijo antes de sair.
Então percorreu o enorme pátio do castelo com passos rápidos, mas com a cabeça baixa.
O castelo parecia se misturar com a floresta, como se tivesse sido moldado por ela. Árvores altas, de caule grosso, rodeavam as paredes externas como uma muralha,
formando uma fortaleza natural. Musgo e trepadeiras cobriam e reforçavam os pontos onde os muros eram de pedra. Fora dali, uma vasta extensão de vegetação rasteira
permitia esconder diversas armadilhas sensoriais, criando um campo de segurança contra invasores e ladrões. Algumas centenas de passos adiante, a floresta rodeava
toda a propriedade do castelo.
Thagir passou pelas armadilhas sem problemas, já que ele mesmo havia instalado a maioria delas, e as demais eram conhecidas desde a infância. Entrou na floresta
e seguiu para o sul, caminhando por uma antiga trilha em meio à vegetação. Os raios do sol passavam fracamente pelo teto dos galhos, e o vento espalhava, com frescor,
o cheiro gostoso de mata, onde pássaros coloridos cantavam, alheios à presença do pistoleiro.
Vale mesmo a pena lutar por tudo isto!, pensou, sentindo-se conectado à natureza.
Continuou caminhando até chegar à margem de um rio caudaloso que corria velozmente em direção ao mar. Partículas de água refrescavam o ar, deixando o pistoleiro
mais relaxado. O rio, largo e profundo, era repleto de vida e animais únicos. Próximo à margem, um arcto — um enorme e peludo mamífero marrom — pescava seu almoço
nas águas gélidas. O pistoleiro parou, procurando um caminho alternativo, pois não queria enfrentar a fúria de um animal que tinha a força de seis homens. O animal
cheirou o ar, ficou em pé sobre as patas traseiras e rugiu, marcando território.
Thagir ficou imóvel, certo de que sua presença havia sido detectada. Mas ele estava enganado. O real motivo estava na água, que se agitou à frente do arcto. Um enorme
charcas-roi** saltou do rio. De cabeça e corpo alongados, olhos vítreos de peixe, quatro pernas musculosas, pele lisa de anfíbio e rabo bifurcado, a criatura era
imponente, dois palmos maior que o arcto.
O charcas revelou fileiras de dentes pontiagudos na bocarra em forma de arco e atacou o arcto à sua frente, que, por instinto, saltou para o lado, desviando por
pouco do golpe fatal.
Thagir continuou imóvel, observando os dois animais entrarem em combate e se digladiarem furiosamente. O arcto ficou de pé nas patas traseiras e, com suas garras,
perfurou as costas do adversário, fazendo o sangue amarelado escorrer pela pele lisa. O charcas usou sua enorme mandíbula para morder com ferocidade o ombro do arcto,
fazendo o animal urrar de dor. A mistura de sangue amarelo e vermelho respingou nas águas do rio. Thagir assistia sem interferir. Aquele era um momento de equilíbrio
na natureza. Se não houvesse arctos para o charcas atacar, a criatura provavelmente sairia para longe dos rios para encontrar alimento e poderia atacar alguém. Em
contrapartida, se não houvesse charcas, a população de arctos poderia aumentar, trazendo problemas para as cidades mais próximas das florestas.
O embate continuou violentamente, até que o charcas tentou um ataque conjunto com a cauda e a enorme boca. A cauda atingiu a lateral do arcto com violência, que
cravou suas garras na cabeça do charcas, dilacerando totalmente um dos olhos do inimigo, que ganiu e se retraiu. Com o rosto rasgado, entrou de volta no rio, sumindo
por completo. O arcto, ensanguentado, deu um breve rugido e caminhou tropegamente para dentro da floresta.
Na natureza não há vencedores, apenas sobreviventes, Thagir pensou, olhando para o arcto que desaparecia pela mata.
Com o fim da luta, o pistoleiro seguiu pela trilha e passou por uma ponte de rocha que cruzava o rio para o outro lado da floresta. Durante a caminhada, pensava
em Kullat, mas ajudar o amigo era negar ajuda ao reino. Se uma guerra acontecesse em Newho, ele precisaria estar ali para defender sua família. Mas, se não ajudasse
Kullat, o que seria da amizade entre eles? Muitas foram as vezes em que ambos se sacrificaram em prol um do outro. Thagir salvara Kullat ao longo das missões em
que estiveram juntos, e o amigo também o fizera, inúmeras vezes.
Era um dilema difícil de resolver sozinho.
Um pouco mais à frente, achou o que procurava: a enorme árvore, de aparência gelatinosa, chamada rádia. O caule grosso era coberto de cascas avermelhadas semitransparentes.
O pistoleiro sacou uma faca pequena e, com cortes rápidos, retirou quatro lascas da casca.
Isso deve bastar, pensou, tentando se livrar dos outros pensamentos que lhe afligiam. Pouco depois, quando retornou ao palácio, encontrou Danima no pátio externo.
Ela olhava as princesas, que corriam alegremente pelo jardim. Uma mesa com frutas e jarras de suco estava posta debaixo da sombra de uma árvore, frondosa e florida.
Ao vê-lo, Danima fez sinal para que se sentasse à mesa, ao lado dela.
— Você trouxe as rádias que eu lhe pedi?
— Claro que sim — disse ele, retirando do bolso as lascas de madeira.
Ela as pegou com as mãos delicadas e as aproximou das narinas. Então balançou a cabeça e sorriu.
— Estes são vermelhões, não rádias — disse, divertindo-se com o engano do esposo. — Você está preocupado, não é?
— Não quero aborrecê-la com isso — Thagir suspirou e fez menção de se levantar.
— Não! Fique. Por favor, fale para mim o que está acontecendo — insistiu Danima, pegando gentilmente na mão dele.
Thagir sentiu que a muralha que criara ao redor de seus sentimentos se rompera, e a emoção tomou conta dele. Seus olhos marejaram e, grato por ter o apoio da esposa,
decidiu compartilhar seu dilema. Contou sobre Kullat e os problemas com o Bobo e o Ladrão e sobre algo que o afligia havia muito: o efeito do canto da rainha manticore,
que apertava seu coração e potencializava seus sentimentos mais profundos.
Sua esposa foi um exemplo admirável de companheira. Ela o ouviu atentamente, o incentivou e o confortou. Ele expôs sua preocupação com a guerra, com o fato de deixar
sua família desprotegida, com o medo de fracassar e com a pressão que recebia como regente. Após enxugar os olhos do marido e o beijar carinhosamente, ela por fim
disse, incisiva:
— Você não pode deixar Kullat sozinho. Ele é seu amigo... nosso amigo! Na verdade, ele já é parte da nossa família. Você não pode lhe dar as costas.
Cada frase dela cortava o coração de Thagir como uma faca afiada.
— Posso, sim! — Thagir esbravejou, batendo na mesa com frustração. — Posso e vou! Porque não quero dar as costas para você e para as meninas, como fiz tantas vezes
no passado.
Ele respirou fundo, tentando se recompor. Então pegou um copo e tentou se servir de suco verde, mas suas mãos tremiam. Delicadamente, Danima retirou a jarra do aperto
forte do marido e o serviu, enquanto tentava acalmá-lo.
— Meu amado — ela disse gentilmente —, você nunca nos deu as costas. Nunca.
— Mas eu... — ele tentou protestar, mas ela o impediu, colocando os dedos nos lábios dele.
— Tudo o que você já fez como Senhor de Castelo, regente, marido e pai é um orgulho para nós — ela disse. — Serve de exemplo para nossas filhas e para todos que
te cercam. Você é um exemplo vivo de honra, amor e amizade; alguém que vive pelos princípios que devemos manter e cuidar, defendendo os ideais dos seus antepassados,
que construíram este reino em uma terra distante, para que pudéssemos cuidar de nossos filhos e filhas com amor, vivendo em paz com a natureza e entre nós.
Thagir ouvia, em silêncio e imóvel, a voz suave e macia da esposa. Ele ouviu o riso de Lara ao fundo, seguido de uma gargalhada de Alana. As duas corriam velozmente
atrás de pássaros no jardim, alheias à conversa. Danima sorriu e acenou para as filhas, que riam sem parar.
— Elas vão ficar bem. Todos nós vamos ficar bem. Já tivemos outras batalhas enquanto você estava fora, e há muitas pessoas aqui que podem cuidar do nosso reino.
— Mas nunca foi tão perigoso como agora! — Thagir retrucou, ainda relutante.
— O perigo sempre existiu, com você aqui ou não — ela respondeu, amavelmente. — Você confiou em nós antes, me deixando como sua representante e mantendo seu pai
e Phelir no conselho. E pode confiar novamente, assim como nós confiamos em você.
Thagir levou as mãos à cabeça, cobrindo os olhos marejad
— Meu querido — Danima disse, tirando as mãos que cobriam o rosto do marido e revelando seus olhos. — Kullat precisa de você.
Ela enfatizou a última palavra, enchendo-a de um significado muito maior, de anos de amizade e de tudo o que Kullat representava.
O pistoleiro abraçou a esposa calorosamente, agradecendo em seu coração pela mulher admirável que tinha. Mas, mesmo com o apoio dela, ele não poderia deixar que
sua família corresse tanto perigo sem estar por perto.
Kullat teria de lidar com aquilo sozinho.
Notas
* Tempero picante que pode ser consumido ao natural ou cozido.
** A tradução literal para a língua comum seria “charcas-rei”.
Urthadar
Planeta Kynis
Na cozinha do navio, Willroch comia, observado por Volgo. O poeta ainda sentia o corpo machucado do confronto na praia, mas já estava bem melhor.
— O que faremos agora? — perguntou, após tomar um gole de vinho.
— As pedras já estão rolando pela montanha. Agora só é preciso esperar que cheguem ao vale — respondeu o feiticeiro. Willroch fez uma careta de tédio e tomou outro
gole de vinho. — Enquanto isso, encontrei uma forma produtiva de passarmos o tempo até chegar a Synlige.
Willroch não mudou o semblante, deixando o copo vazio na mesa. Volgo desenrolou um pergaminho com um mapa de Kynis; à esquerda, a ilha de Makrao Maat estava destacada
com um círculo. Mas ele apontou para a direita, em direção a uma cadeia de montanhas na parte de cima do mapa, no extremo norte do continente.
— Urthadar — murmurou, complementando com a tradução da palavra. — Tumba dos Reis.
Volgo já tinha visto várias vezes aquela parte do mapa, mas nunca lhe dera importância. Contudo, após usar o poder dos Espectros para lutar com Willroch na praia,
dias atrás, vinha sentindo uma atração estranha por aquela região. Era como se algo o chamasse até lá, por sutis frequências mágicas. Ele pesquisou e descobriu que
aquele era um local antigo e de difícil acesso, sobre o qual pairava uma lenda sobre reis e pedras mágicas. Para chegar lá, ele teria de ir até o extremo norte de
As-Tanys e atravessar as montanhas frias, o lar dos eukaris — bípedes carnívoros, suficientemente espertos para usar galhos petrificados como armas. Fortes e imunes
ao frio, andam em bandos numerosos e possuem uma estranha carapaça cinza no lugar da pele, que os torna praticamente invisíveis na paisagem desolada da floresta
petrificada. No entanto, aquelas criaturas não o assustavam.
— Vamos partir imediatamente — disse Volgo, sem se incomodar em dar mais explicações, apenas saindo para ordenar que o capitão levantasse âncora.
O feiticeiro sentia que algo havia despertado: um poder latente que emanava frequências estranhas para os outros, mas familiares para ele.
A mesma frequência do poder dos Espectros.
Preenchendo o Vazio
Ilha de Ev’ve
Apesar de o recesso da Academia já ter começado e de vários guerrins terem viajado para seus reinos de origem, Glinda e Virnus decidiram ficar em Ev’ve. Laryssa,
por estar cumprindo pena, não podia viajar para fora da ilha. Dessa forma, ela decidiu visitar Driera e Iki na Torre Mamoru — o terceiro posto de vigília, ao nordeste
da ilha de Ev´ve. A viagem serviria tanto para rever seus antigos mestres como para tentar esclarecer uma dúvida que não saía de seus pensamentos — o significado
daquele símbolo que encontrara na biblioteca da mestra Raíssa.
Mesmo bastante ansiosa pela expectativa de rever Driera e Iki, o motivo de seu coração bater descompassadamente e de sentir mariposas voando no estômago era outro.
Diante da porta, ela segurava a enorme maçaneta com força, suspirando e tentando se acalmar antes de abri-la. Enfim, tomou coragem e a abriu, sentindo o frio da
manhã envolvê-la em uma brisa suave. Um arrepio percorreu seu corpo ao ver Virnus ao pé da escadaria. Ele havia se oferecido para levá-la e, quando contou para Glinda,
a amiga a importunou tanto que sua única saída foi concordar com a companhia do guerrin.
Sob a luz do sol nascente, o jovem alto e atlético, de cabelos crespos e dourados, parecia ainda mais bonito, em um quimono amarelo-claro, um nível superior ao dela.
Atrás dele, uma robocarruagem de bronze e madeira os aguardava. Ele sorriu ao vê-la, e Laryssa retribuiu o sorriso, ainda sentindo pequeninas asas batendo no estômago.
— Oi — ele disse, olhando para ela com admiração e um pouco de acanhamento. Então apontou para a sacola de pano amarelo. — Pronta para a viagem?
— Estou, sim — ela levantou a sacola de leve. — Vou levar uma lembrança para eles.
Virnus abriu a porta da robocarruagem e estendeu a mão para ajudar Laryssa a subir. Um cavalheiro, pensou ela, sem conseguir evitar o sorriso. Virnus se sentou ao
lado dela, digitando o destino no painel de controle. Em instantes, uma rota surgiu no vidro sujo à sua frente, mostrando um mapa de Ev’ve e um tracejado partindo
da Academia, passando pela aldeia dos professores, depois pela cidade e, por fim, seguindo por toda a extensão da floresta de treinamento, até chegar ao limite extremo,
a nordeste da ilha.
Suavemente, a robocarruagem começou a andar, iniciando a viagem vagarosamente, mas ganhando uma velocidade impressionante em seguida.
— Pronto. Aqui vamos nós — Virnus disse, encostando-se no assento de couro desgastado.
— Obrigada por me acompanhar — disse Laryssa, um pouco acanhada.
— Não precisa agradecer. É um grande prazer ter um tempo só com você... — Ele sorriu e complementou rapidamente, tentando não parecer atrevido. — Quer dizer, assim
você pode me contar mais sobre o motivo que levou Iki e Driera a irem para Mamoru.
Ela também sorriu. Ele era galante, mas respeitoso.
— Eles foram para Mamoru para tentar curar o Iki — ela respondeu, entrelaçando os dedos das mãos nervosamente.
— Eu tive aulas com Iki-Dau... — Ele parou um instante, preocupado ao ver a reação de tristeza dela. — Desculpe — ele disse. — Eu não deveria ter falado em Dau.
Ela ficou em silêncio por um momento, mas refletiu que, já que estava ali com ele, tentaria seguir o conselho do mestre Fuh: “Se a fruta está madura, coma. Mas,
se estiver mais do que madura, faça um doce”. Então, como o tempo já havia passado, a fruta da culpa já estava mais do que curtida em seu coração. E já era hora
de transformar aquele sentimento em algo bom, em um motivo para começar uma doce amizade.
— Você não tem por que se desculpar. Eu que ainda não me desculpei completamente.
Ele se aproximou dela e segurou com delicadeza suas mãos entre as dele.
— Se você se sentir confortável — disse, gentilmente —, estou com tempo sobrando agora. E um dos meus poderes mais impressionantes é a capacidade de fechar a boca
e abrir os ouvidos.
Ela sorriu, grata por encontrar alguém disposto a ouvi-la. Talvez ela precisasse daquilo, de alguém que não a julgasse, apenas a deixasse à vontade para abrir o
coração. Com a nova injeção de coragem, ela resolveu contar tudo a Virnus. Falou sobre o sequestro de seu pai e como havia enfrentado seus mestres para salvá-lo.
Contou-lhe sobre Breasal e os perigos que enfrentaram, até chegar à parte da morte de Dau e como isso afetou seriamente Iki e Driera. Falou também sobre o que aconteceu
depois que Dau morreu, dos meses de catatonia de Iki, incapaz de viver com o vazio que a morte do irmão deixara em sua alma, e como Driera o visitava diariamente,
tentando ajudar os curandeiros a encontrar uma solução enquanto ela mesma tentava lidar com a perda de seu amado.
Inicialmente, Laryssa não pretendia contar o que havia acontecido dentro do vulcão, mas Virnus era tão bom confidente que ela resolveu confessar até os motivos de
sua condenação na Academia. Laryssa revelou ainda que eles haviam descoberto que Iki respondia muito bem a músicas e barulho, que funcionavam como uma forma de preencher
o vazio em sua mente. Driera então sugeriu que Iki fosse com ela para Mamoru, onde havia uma enorme cachoeira que despejava milhões de litros de água em uma queda
altíssima sobre o mar. O barulho lá era constante e tão intenso que a torre possuía abafadores de som ao redor para reduzir o barulho da fúria das águas. Driera
acompanhou o amigo e ambos ficaram em uma casa próxima da torre, onde o barulho era suportável para ela e suficientemente alto para Iki.
Virnus ouvia tudo atentamente. Para Laryssa, o guerrin se mostrava interessado e sensível, o que o deixava, de certa forma, atraente. Ela se remexeu novamente no
assento, tentando desviar dos lindos olhos azuis dele, quando, inesperadamente, a robocarruagem deu um solavanco forte e Virnus bateu com a cabeça no teto. Preocupada,
ela se aproximou para ver o local atingido e um odor agradável de perfume masculino invadiu suas narinas, fazendo a princesa conter um suspiro.
Aquela viagem estava sendo muito mais agradável do que ela jamais poderia imaginar.
— Estamos chegando — Laryssa disse um pouco mais alto que o normal, para que Virnus pudesse ouvi-la.
O barulho forte da água se chocando contra as pedras ecoava por toda a região. A estrada larga de cascalho era rodeada de árvores altas com aspecto vítreo, que formavam
um túnel transparente. A luz do dia refletia pela infinidade de galhos, criando uma miríade de cores por todos os lados. A Torre Mamoru se erguia no horizonte, em
quatro estruturas idênticas, como se fossem dedos gigantes e metálicos a brotar da terra. Eles entraram em uma estrada secundária, subiram uma colina e chegaram
a uma casa de paredes verdes, de dois andares. No jardim da frente, uma mulher usando um vestido longo, com detalhes rosa, olhava para o céu. Duas asas se destacavam
em suas costas, sendo uma de penas bege, e a outra, de metal.
— Laryssa! — ela exclamou animada ao ver a princesa sair da robocarruagem, acompanhada do guerrin de cabelos dourados.
A princesa respirou aliviada ao ver a antiga mestra de braços abertos. No início, Driera culpou Laryssa pela perda da asa, pela morte de Dau, pela condição de Iki
e por tudo o que havia acontecido dentro do vulcão dos manticores. Mas, com o tempo, a harpiana percebeu que aqueles sentimentos não estavam lhe fazendo bem e, antes
de se afastar da Academia, fez as pazes com Laryssa e a perdoou. Agora, ela não tinha mais rancor da antiga aluna.
Laryssa correu até Driera e a abraçou com força, recebendo de volta o mesmo carinho e afeto por parte da Senhora de Castelo. Virnus esperou educadamente as duas
se soltarem para se apresentar, curvando-se respeitosamente diante de Driera.
— Muito prazer em conhecê-la, senhora.
Enquanto ele se curvava, Driera apontou discretamente para o rapaz e sinalizou para Laryssa, com uma expressão alegre no rosto e meneando positivamente a cabeça.
A princesa abriu um pouco a boca, espantada pela sugestão da mestra, mas disfarçou a tempo de Virnus não notar sua expressão.
— O prazer é meu — ela disse, com a voz suave, apesar do barulho intenso das águas. — Como você se chama?
— Meu nome é Virnus, senhora.
— Pois bem, Virnus, seja bem-vindo à minha casa. — Ela apontou a construção atrás de si. — Nós não recebemos muitas visitas, mas fico feliz por terem vindo. — E
mostrou-lhes o caminho de pedras que levava à casa verde. — Venham.
A Senhora de Castelo caminhou até a casa e abriu a porta, revelando uma sala ampla, com poucos móveis de madeira. Vasos de plantas espalhados pelo ambiente completavam
a simples porém delicada decoração.
— Vou preparar alguma coisa para vocês beberem. Enquanto isso, por que não se sentam? — Ela apontou para um sofá com almofadas rústicas. — Devem estar cansados da
viagem.
— Confesso que é um caminho longo até aqui — Laryssa respondeu.
— Mas, com uma companhia agradável — Driera complementou sugestivamente —, a viagem sempre fica mais curta, não é mesmo?
— A senhora tem toda razão — Virnus completou, sorridente.
A princesa fingiu não entender e mudou rapidamente de assunto.
— Eu trouxe um presente para você. É um pouco do patê especial de Érlind. — E sorriu ao entregar a bolsa de pano amarela para Driera, mencionando a cozinheira-chefe
da Academia. — Ela me disse que você adora esse patê.
— Não acredito! — Driera deu um pulo de euforia e, de dentro da bolsa, retirou um pote vítreo e o abriu. O odor do preparado inundou o ambiente. Ela fechou os olhos
e cheirou o ar, apreciando o delicioso aroma de ervas. — Humm... Que delícia...
Laryssa sorriu, satisfeita.
— Depois que a gente prova este patê, só consegue parar quando acaba! — Driera disse, fechando o pote com cuidado, e, como se fosse um tesouro, o guardou de volta
na bolsa de pano. — Quer saber? Vou preparar um lanche e vocês vão poder comprovar o que estou falando.
Ela enlaçou os dois pelos braços e caminhou com eles até os fundos da casa, passando por uma porta ampla que dava para um jardim. Então os acomodou em confortáveis
bancos almofadados, dispostos ao lado de uma mesa. Pediu licença por um momento, deixando-os à vontade para apreciar a estonteante beleza do lugar. Árvores transparentes
e pedras coloridas se espalhavam sobre a grama verde, dando ares místicos ao local. Pouco depois, Driera surgiu com uma cesta cheia de castanhas, sementes, bolo
de frutas, suco, o patê que Laryssa havia trazido, torradas e uma toalha esverdeada. Juntos, os três puseram a mesa e comeram, enquanto conversavam sobre amenidades.
Laryssa e Virnus provaram o patê e comprovaram que o que Driera falara era mesmo verdade — aquele era o melhor patê que eles já haviam provado.
Enquanto isso, ao fundo do jardim, um homem alto e magro, sentado na relva, contemplava o mar multicolorido abaixo.
— Mestra — Laryssa disse, após morder um pedaço de bolo; o gosto era de castanhas com um toque de mel —, como ele está? — e apontou para o homem.
Ele estava absorto, como se estivesse hipnotizado pelo relaxante som das ondas se quebrando contra a enorme parede de pedra e da cachoeira desaguando continuamente
no mar. Ao vê-lo, o rosto de Driera se iluminou, ganhando uma expressão jovial. Segurando uma caneca de chá entre as mãos, ela suspirou, apiedada, antes de responder.
— Iki melhorou muito depois que viemos para cá — disse com um leve sorriso.
— E você, como está? — A pergunta saiu de forma automática, e Laryssa baixou a cabeça no instante seguinte, arrependida.
Driera simplesmente sorriu ao ver o embaraço da princesa.
— Eu estou bem. Iki tem sido um ótimo companheiro e tem me ajudado muito. Estamos vivendo sem pressa, nos acostumando com a nova rotina. Como dizem, estamos levando
a vida, aprendendo a conviver com nossas perdas e a aceitar o que nos tornamos. — Ela balançou a asa de metal. — Cuidar da manutenção da torre e treinar um pouco
juntos nos mantém ocupados.
Ela bebeu um pouco mais de chá e olhou novamente para Iki.
— Fico feliz em saber — disse a princesa, com sinceridade.
Laryssa refletiu que sua antiga mestra, antes enérgica e rude, havia amadurecido e se tornado uma pessoa muito mais autoconsciente, respeitosa e que, apesar de ainda
ser um pouco melancólica, reencontrara a felicidade.
— Agora me conte. E você, como está? — perguntou Driera, colocando a mão sobre o braço da jovem.
— Eu estou bem também. Estou conseguindo boas notas na Academia e aprendi a controlar melhor meus poderes. Agora estamos no recesso das aulas, e, embora eu ainda
não possa sair de Ev’ve, estou aproveitando bem o tempo livre.
— Que maravilha! É sempre bom fazer novas descobertas. — Ela olhou rapidamente para Virnus e disfarçou, bebendo mais um gole de chá. — Eu tenho certeza que tudo
isso vai fazer de você uma Senhora de Castelo mais bem preparada.
— Obrigada, mestra.
— E o Azio, tem tido notícias dele? — Driera perguntou.
Laryssa se demorou um pouco, cogitando como responder à pergunta. Ela havia omitido certas partes da história quando a contou a Virnus, justamente para não entrar
em detalhes no que dizia respeito a Azio. Não sabia ao certo por que fizera aquilo, mas tinha sido assim.
— Eu falo com ele de vez em quando. Ele está percorrendo o Multiverso para tentar encontrar outros robôs como ele.
Pela primeira vez, ela usou a palavra “robô” para descrever o amigo, e olhou discretamente para Virnus. Cortando uma fatia de bolo, o rapaz não parecia incomodado.
— E a sua pena? Falta muito para acabar? — Driera questionou, passando patê em uma nova fatia de torrada.
— Ainda não chegou nem na metade — ela respondeu, um pouco chateada.
— Oh, querida, sinto muito — Driera exclamou com sinceridade.
— Não precisa se preocupar. Está sendo muito bom para mim. Estou tendo oportunidade de conhecer melhor pessoas que, de outra forma, não poderia. — Ela olhou para
Virnus, que sorriu abertamente para ela em resposta. — E estou aprendendo muito com isso. Outra vantagem é que estou tendo acesso a documentos raros, que só poucos
Dans conseguem ver.
— Que maravilha! — Driera disse, empolgada. Ela havia sido Dan da Academia durante anos e sempre gostou de guerrins que demonstrassem interesse pelo estudo. Então
pegou um punhado de castanhas e perguntou: — E tem alguma coisa interessante nesses documentos?
— Já que estamos falando nisso — Laryssa aproveitou a deixa —, tem uma coisa, sim. Tem algo que está me intrigando. Parece muito com o símbolo de Oririn, do planeta
de Kullat, mas eu já verifiquei e não é de lá. Parece muito mais antigo. — A princesa retirou um pequeno pedaço de papel do bolso e o entregou a Driera. A castelar
olhou com atenção o desenho no centro da folha amarela, que reproduzia o original que estava no pergaminho de bambu.
— Por acaso a senhora conhece esse símbolo? — Laryssa perguntou, esperançosa.
— Não. Infelizmente não conheço — ela respondeu, ainda olhando para o papel. — Mas acho que Iki pode nos ajudar. Ele é a pessoa mais estudiosa que conheço.
Driera se levantou e fez sinal para que os guerrins a esperassem. Enquanto aguardavam, Virnus apertou a mão de Laryssa por baixo da mesa, para confortá-la. Ela se
virou e encarou aqueles olhos azuis por um instante, com o coração disparado.
— Está tudo bem? — ele perguntou baixinho.
Ela fez que sim com a cabeça, sem soltar a mão dele, como se quisesse sentir por mais tempo o toque morno e reconfortante de sua pele.
Laryssa viu Iki se levantar e caminhar ao encontro de Driera, abraçando-a com carinho. Por um momento, Laryssa achou que Iki estava beijando a harpiana, mas não
teve certeza. Os dois se soltaram e vieram, lado a lado, até a mesa. Iki vestia uma calça de algodão vermelha e estava descalço. Uma túnica sem mangas deixava à
mostra o peito e os braços. Apenas duas coisas haviam mudado no homem de tez prateada: os desenhos da pele não tinham mais linhas arredondadas, apenas riscas retas
e angulares, e os olhos agora eram amarelos e não mudavam mais, como quando Dau ainda estava vivo.
— Olá, Laryssa. Fico feliz em vê-la novamente — disse Iki com a voz rouca, forte e sincera. Ele também a havia perdoado pela morte de seu irmão. Olhando para Virnus,
complementou: — E, pelo que vejo, você trouxe seu namorado.
Laryssa corou e Driera riu do embaraço da jovem. Mas Virnus estufou o peito.
— Assim você vai deixá-los encabulados. — Driera repreendeu Iki com humor e se sentou, puxando um banco para que ele se acomodasse a seu lado e lhe entregando o
papel com o símbolo. Iki sorriu e voltou sua atenção para a folha.
— O que é isto? — perguntou, curioso.
— É o que queremos saber — respondeu Driera. — A Laryssa e o seu amigo Virnus querem descobrir o significado desse símbolo. Eu não reconheci, mas talvez você saiba
o que é.
Iki olhou demoradamente para o desenho. Depois de muito refletir, colocou o papel sobre a mesa e apontou para a figura.
— Eu acho que não é um símbolo — disse com seriedade, olhando para Laryssa. — Para mim, parece mais um selo.
— Um selo? Como assim? — Virnus perguntou, curioso, antecipando a pergunta de Laryssa. A princesa havia mostrado o desenho para ele durante a viagem, mas ele também
não sabia do que se tratava.
— Quando eu era um guerrin, ajudei um Senhor de Castelo chamado Turritop em um projeto de estudo sobre magia. Ele tinha vários documentos antiquíssimos, que carregava
consigo havia séculos. Eu lembro de ter visto algumas descrições e ilustrações com essa configuração no lado direito. Ele dizia que aqueles desenhos eram selos.
— Mas o que é um selo? — perguntou Laryssa. — Eu nunca ouvi falar disso antes.
— Infelizmente, é tudo o que sei. O Turritop achou que estava na hora de voltar para casa e resolveu que levaria tudo com ele para terminar o estudo sozinho.
— O senhor disse que ainda era um guerrin quando o ajudou. Há quanto tempo foi isso?
Iki pensou um pouco, coçando o queixo prateado.
— Há mais ou menos cinquenta anos.
Laryssa ficou desanimada. Se aquilo acontecera tanto tempo atrás, e se Turritop já tinha séculos de idade naquela época, era provável que ele estivesse morto. Encontrar
alguma pista seria muito difícil agora. Por alguns instantes, todos ficaram em silêncio, quebrado apenas pelo barulho do mar batendo nas rochas.
— Quer saber de uma coisa? Por que vocês não tentam falar com ele? — Iki disse, ao ver a expressão preocupada de Laryssa.
— Mas ele ainda está vivo? — questionou Virnus, que também pensou que o Senhor de Castelo já tivesse morrido.
A reação de Iki foi completamente inesperada. Ele riu alto, como se Virnus tivesse contado uma piada engraçadíssima. Riu tanto que chegou a lacrimejar.
— Desculpem — disse, enxugando os olhos. A pele prateada do rosto ficou brilhante com a umidade, ressaltando as linhas anguladas de sua tez. — Eu esqueci de dizer
para vocês: ele é um nutrícula.
— Um o quê? — Laryssa questionou e olhou para Virnus, confusa.
— Que tipo de aula vocês andam recebendo? Seus Dans de história nunca falaram do planeta Nutra? — Driera perguntou, parecendo chateada. Diante do olhar de ignorância
dos dois jovens, complementou: — Bom, não é hora de lhes dar uma aula, mas posso dizer que os nutrículas vivem de setenta a oitenta séculos.
— E Turritop não tem mais do que trinta! — Iki continuou. — Para os padrões nutrículas, ele era quase um adolescente quando se juntou à Ordem, há mais de dois mil
anos. Eu tenho certeza que vocês já ouviram falar dele, ou pelo menos da lenda criada por ele: o Drescher!
— O-o monstro de Nessat? — Virnus gaguejou.
Os olhos do rapaz se arregalaram e o medo ficou estampado em seu rosto. Ele não só ouvira falar daquele monstro, mas também já tinha tido uma experiência muito desagradável
na remota floresta de Nessat, alguns anos atrás. Em seu primeiro ano de Academia, contaram-lhe que havia um monstro naquela floresta que devorava os intrusos, poupando
apenas as mãos e os braços de suas vítimas, que usava como pernas para o seu próprio corpo deformado. Alegando que não tinha medo de nada, ele apostou que dormiria
uma noite, sozinho, naquela floresta. E assim o fez. Mas, quando acordou de manhã, sua mochila e todos os seus pertences haviam desaparecido, e, ao seu redor, o
chão fofo estava coberto de marcas. Não eram marcas de pés, patas ou outro tipo de rastro. Eram dezenas de marcas de mãos. Pavorosas e inexplicáveis marcas que o
cercavam de todos os lados. Ele fugiu apressado e nunca mais voltou.
— Acalme-se, meu jovem — Iki pousou a mão prateada sobre o ombro do rapaz. — Drescher existe de fato, mas não é nenhum monstro. Ele e Turritop são os responsáveis
pela segurança daquela região. O velho Senhor de Castelo talvez seja o único membro da Ordem que poderá desvendar esse mistério dos selos.
— Como faço para encontrá-los? — Laryssa indagou.
— Comece pelo começo, princesa — foi a resposta tutorial de Iki, que, por um momento, assumiu o ar de antigo mestre. — Vá até Nessat e procure chamar atenção. Se
encontrar uma enorme árvore sem folhas no caminho, melhor ainda. É lá que o velho Turritop mora.
— Será que devemos levar alguma coisa? Uma oferenda ou coisa assim? — Virnus perguntou, ainda apreensivo.
— Ah, essas lendas da Academia... — Iki riu. — Não, não precisa levar nada.
— Obrigada, mestre — Laryssa agradeceu, um pouco mais confiante. Não era exatamente isso que esperava encontrar ali, mas aquela pista parecia promissora.
— Sinto não poder ajudar mais — disse Iki, devolvendo o desenho a Laryssa.
— Vocês já ajudaram bastante — a princesa agradeceu, enquanto se levantava. Olhando para o céu, calculou mentalmente que horas eram. — Agora, se nos derem licença,
acho que é melhor irmos embora. Se sairmos agora, conseguiremos chegar a Nessat antes do anoitecer.
— Não sei não, Laryssa — disse Virnus, visivelmente incomodado, mas sem mencionar a antiga experiência que ainda lhe abalava a coragem. — Se acontecer alguma coisa
com a robocarruagem, vamos ter que passar a noite na estrada.
— O rapaz tem razão — Iki respondeu, sem fazer menção de se levantar. — Aconselho vocês a passarem a noite aqui conosco. Assim, podem sair amanhã cedo, tendo o dia
todo para tentar encontrar o que procuram.
— Isso! — Driera exclamou, excitada com a ideia. — Assim vocês podem contar para nós as novidades da Academia!
Um pouco contrariada, Laryssa sabia que pernoitar com seus antigos mestres era o melhor a fazer. Resignada, ela se sentou novamente.
O guerrin sorriu e, sem notar, imitou o gesto de Iki, pousando a mão levemente sobre o braço da princesa, apoiando-a silenciosamente. Driera reconheceu o olhar apaixonado
do jovem, o mesmo olhar de Iki, quando ele a fitava com seus olhos amarelos. Laryssa sorriu para ele, mais conformada.
— Está certo. Iremos amanhã cedo, então.
— Maravilha! — Driera exclamou, cruzando as pernas e servindo-se de mais uma torrada com patê. — Agora, digam-me. Como vai o velho Pilo? Ainda continua com aquela
mania de estalar os ossos? E a Enandra, já terminou aquela escultura horrorosa que estava fazendo? Contem-me tudo, e não poupem detalhes!
Dourado Caminho
Laryssa e Virnus saíram antes do raiar do dia, seguindo para o sul por uma antiga estrada de pedras amareladas. No início da manhã, já estavam na floresta Nessat.
De mãos dadas, andavam por uma trilha entre as árvores de caule branco, cujos galhos cobertos de musgo formavam pequenas cortinas entrelaçadas. As folhas, tão douradas
quanto o pavimento da estrada, refletiam magnificamente a luz do dia, criando uma atmosfera mística e agradável. Andaram mais um pouco, até a trilha se bifurcar
diante de uma enorme rocha coberta de limo.
— E agora, para que lado vamos?
— Simples. Vamos perguntar — Laryssa respondeu.
Ela levou as mãos em concha ao redor da boca, fechou os olhos e cantou uma melodia alegre e jovial, intercalando sons graves e agudos em uma harmonia rítmica perfeita.
Em resposta, pássaros cantarolaram com ela, fazendo as belas folhas douradas se agitarem. Um belo gato-cracatoa-do-mato surgiu, com pelos vistosos e compridos, que,
como o sol de inverno, brilhavam fracamente. Era tão grande que, mesmo sobre as quatro patas, chegava aos joelhos de Virnus. Ele cheirava o ar, levando o focinho
alaranjado à frente, sem receio.
Laryssa se agachou, para encará-lo nos lindos olhos fendidos, de um verde-mar profundo. Por um momento, o animal recuou um passo, mas voltou a se aproximar, bramindo
em sua voz cristalina e permitindo que a princesa tocasse sua cabeça ovalada. Em seguida, emitiu leves ganidos, e a princesa pareceu imitá-lo, como se ambos conversassem.
Ela apontou para a esquerda e o belo animal ergueu a cauda, como num sinal de aprovação. A princesa então emitiu um som semelhante ao primeiro bramido, e o animal
respondeu da mesma forma. Depois ele sacudiu a cabeça e saiu, em passos decididos, para dentro da floresta. Em um piscar de olhos, seus pelos se mesclaram à natureza,
e ele sumiu de vista.
Virnus olhou para a princesa com admiração.
— Que incrível! — Virnus exclamou, empolgado. — Eu não sabia que você conseguia falar com os animais.
— Não foi bem uma conversa — ela respondeu. — Eu não conheço todas as línguas naturais, mas consigo me entender com a maioria dos animais.
Virnus sorriu, admirado. Cada vez mais, ele se surpreendia com ela e apreciava sua companhia. Novamente de mãos dadas, eles seguiram o caminho da esquerda, à procura
da árvore desfolhada. Era como se passeassem no parque, como dois namorados, procurando um tesouro escondido.
Andaram por muito tempo, passando pelo que pareciam campos de vagens gigantes, clareiras de flores maiores do que eles próprios e uma plantação de enormes espinhos,
farpados e pontiagudos. O mais incrível é que o caminho diante deles era sempre livre de obstáculos.
Ao passarem sob uma gigantesca árvore cinzenta, com galhos retorcidos, Virnus viu algo que gelou seu coração. Em uma pequena área com pouca vegetação, havia marcas
de mãos espalmadas no solo. Ele engoliu em seco e seguiu ao lado de Laryssa, sem mencionar o que acabara de ver. A princesa reparou na tensão do rapaz e, aproximando
o rosto do dele, disse suavemente:
— Não se preocupe.
Ele sorriu, tentou disfarçar o nervosismo e olhou para os lábios dela, sentindo uma repentina vontade de beijá-la.
— Eu não estou nervoso, só um pouco preocupado — disse, escondendo o medo.
— Se isso é um teste, você acaba de tirar nota máxima — Laryssa passou a mão suavemente pelo rosto do jovem e, na ponta dos pés, sentiu o hálito doce dele se aproximando
cada vez mais de sua boca.
Indiferentes a tudo ao redor, eles se beijaram cálida e demoradamente. Ao final do beijo, a princesa, sorridente, olhou para cima, diretamente nos olhos dele.
— Eu não me preocupo porque tenho você para me proteger!
— Fiquem parados — disse uma voz, rouca e aterradora —, ou sofrerão as consequências.
Um enorme ser, enrodilhado sobre si mesmo como uma gigantesca centopeia, rodou até estancar à frente dos dois, desenrolando-se em um movimento fluido e mostrando-se
em sua plenitude e estranheza. Em vez de pernas, era sustentado por oito braços humanos, onde mãos faziam o papel de pés. Nessa posição, tinha metade da altura de
Virnus, mas, se ficasse ereto, seria muito maior que o guerrin. Seu corpo, formado por vários segmentos, era fino na cauda, crescendo proporcionalmente até chegar
ao pescoço, tão largo como o tórax de um homem forte, terminando em uma cabeça semicircular, com um topete córneo pontiagudo no topo. Dois olhos grandes, redondos
e marrons, projetavam-se ao lado da grande cabeça, movimentando-se independentemente um do outro.
Aquela figura era ainda mais horrenda que qualquer coisa que Virnus tivesse imaginado antes.
— O-o q-que é isso? — Apesar de suas mãos tremerem descontroladamente, o jovem estava pronto para incinerar a criatura ao menor sinal de perigo. Se fossem atacados,
criaria um arco térmico que poderia, literalmente, fritar o inimigo.
A criatura endireitou a parte frontal do corpo, permaneceu apoiada em seis dos oito braços e elevou a cabeçorra até ficar na altura do apavorado Virnus. Então o
encarou friamente, com seus olhos amendoados.
— Isso — a criatura apontou com duas mãos livres para o próprio peito — é o seu pior pesadelo. E isso quer saber por que invadiram a minha casa.
Suas pernas-braço o moveram suavemente de lado, e a criatura se abaixou um pouco para encarar a princesa. Ele apontou duas mãos para Laryssa, e seus olhos esquadrinharam
o ar ao redor dela.
— E, o mais importante, por que eu não vejo a aura do medo em você?
Apesar da situação, a princesa retribuía, impassível, o olhar frio da criatura.
— É simples — a princesa disse, tranquila. — Não tenho medo porque não há o que temer aqui.
Ela deu um pequeno passo à frente, diminuindo ainda mais o espaço entre eles e encarando a criatura com ainda mais determinação. A criatura sustentou o olhar, inexpressiva,
mas vacilou por um instante e desviou os olhos da princesa.
— Olá, Drescher — Laryssa falou, abrindo um sorriso de vitória e colocando as mãos na cintura, altivamente. — Nós estávamos procurando você.
A criatura deu duas braçadas para trás e se afastou dos jovens, visivelmente incomodada. Com sua visão especial, viu a aura do rapaz, vacilante, opaca e amarelada,
demonstrando o pavor que ele sentia. Por sua vez, a aura da moça estava firme, nítida e azulada, evidenciando segurança e determinação.
— Por que estão me procurando?
Laryssa pousou a mão no braço de Virnus, que congelara em posição de combate. Ao sentir seu toque, o rapaz relaxou um pouco.
— Precisamos da sua ajuda — ela disse. — Temos que encontrar o Turritop o mais rápido possível!
Ela ficou satisfeita com a reação de espanto que surgiu no rosto de Drescher ao ouvir aquele nome. Aquelas simples palavras revelavam que ela sabia o que havia por
trás das lendas. Certo de que sua pantomima não funcionaria mais, Drescher aceitou que havia sido descoberto.
— E por que querem vê-lo?
Pelo que Laryssa havia aprendido com Iki, Turritop era um estudioso ou, no mínimo, curioso. E ela já estava preparada para aquela pergunta.
— É sobre um projeto. Acho que ele vai se interessar pelo que temos a dizer.
A criatura refletiu por um momento, mas em seguida girou o corpo e entrou na floresta, sem dar nenhuma explicação.
— Venham comigo — disse, se afastando.
Laryssa segurou a mão de Virnus, sentindo sua pele quente de poder.
— Não se preocupe, eu cuido de você — ela sorriu.
O rapaz sorriu de volta e relaxou, enquanto ela o puxava atrás de Drescher pelo dourado caminho.
Sonhos Doces
Eles seguiram cruzando a floresta, por um caminho que se abria à frente da estranha criatura e se fechava logo depois que os três passavam. As plantas eram como
seres conscientes, agindo por vontade própria. Algumas os cheiravam, outras os tocavam, outras simplesmente moviam suas folhas e pendões sobre eles, sentindo-os,
mas sem nada fazer.
— Então você é o monstro de Nessat? — Laryssa perguntou, aproximando-se da criatura, que andava veloz sobre as oito mãos.
— Mais ou menos — respondeu Drescher, virando a cabeçorra e abrindo um sorriso sem dentes, com sua diminuta boca. — É uma história longa demais.
— Conte a versão reduzida, então — disse Virnus, sentindo-se menos receoso que antes, mas ainda mantendo uma saudável ponta de insegurança.
Drescher parou por um momento, olhou para cima e colocou uma das mãos no queixo redondo.
— Uma versão resumida... — disse, pensativo. — Isso é mais fácil! — Ele continuou a andar, agora em seis braços, deixando marcas de mãos por onde passava. — Essa
região toda da ilha era um extenso gramado, e um dos poucos pontos vulneráveis de Ev’ve. Há uns setecentos anos, o Conselho decidiu criar aqui uma muralha de defesa
e colocar vigias para guardá-la. Mas Turri se ofereceu para realizar o projeto de uma forma diferente. A primeira coisa que ele fez foi me plantar...
— Como assim, te plantar? — Virnus estacou, espantado, sem compreender o que Drescher queria dizer.
— Você quer a versão resumida ou não? — Drescher abriu os braços humanoides, com a palma das mãos para cima. Estranhamente, elas estavam limpas e não apresentavam
nenhum sinal de ter sido usadas para caminhar.
— Continue, Drescher. Não vamos mais interrompê-lo — disse Laryssa, apaziguando os ânimos.
Drescher voltou a andar, ou, no caso dele, a braçar. Uma rede de cipós amarelados e com grandes espinhos se abriu diante dele, dando passagem para os três e se fechando
logo depois.
— Continuando... Depois que eu nasci, Turri usou meus esporos para criar outros androbóticos. — Virnus abriu a boca novamente, pronto para fazer outra pergunta,
mas resolveu permanecer em silêncio — E todos nós, juntos, começamos a montar essa proteção que nos cerca. São várias plantações de defesa diferentes, que se misturam
umas às outras e impediriam um exército inteiro de passar por aqui. É virtualmente impossível cruzar Nessat quando ela está ativa. Além disso, quando alguém tenta
entrar na floresta, um alarme é acionado e eu mesmo vou até os intrusos para assustá-los. É mais um dos sistemas de segurança que Turri inventou. Ele diz que uma
lenda pode provocar muito mais medo que a realidade. Quanto a mim, não posso negar que ver as pessoas correndo e gritando é muito divertido! — Ele chacoalhou dois
braços no ar, encenando alguém desesperado. — Enfim, acho que é isso. Essa é a versão condensada da lenda do monstro de Nessat.
Laryssa e Virnus ficaram calados por um momento, e, como Drescher não continuou a falar, a princesa se adiantou.
— Mas se há tanta segurança assim, como é que nós conseguimos ir tão longe dentro da floresta?
— Foi porque eu deixei — Drescher respondeu, fazendo uma expressão de desagrado, como se a resposta fosse óbvia.
— Mas, se o objetivo é afastar as pessoas, por que você não nos espantou? — Laryssa perguntou.
Drescher saltou sobre uma árvore caída antes de responder.
— Assim que vocês cruzaram a margem da floresta, eu desativei as primeiras linhas de defesa, porque eu precisava saber o que tinha acontecido para que ele voltasse
— e apontou para Virnus, indicando que se lembrava do jovem. — Do jeito desesperado que ele fugiu daqui da última vez, achei que nunca mais ia vê-lo de novo. — Virnus
fechou a cara. — Então, eu os observei, e ficou claro que o motivo para ele ter se arriscado era você. — Laryssa não conseguiu esconder um sorriso, e Virnus só levantou
os ombros, como se tivesse sido pego em flagrante. Sem notar a reação dos jovens, Drescher continuou, apontando para ela. — E como eu não encontrei nenhum resquício
de medo em você, fiquei preocupado que a lenda não estivesse mais funcionando, o que seria uma falha em nosso sistema de proteção.
— Não se preocupe, eu garanto que a lenda ainda funciona — disse Virnus, menos emburrado.
— Tem uma coisa que eu não entendi. Você disse que nos observou desde o começo. Por acaso estava lá quando chegamos?
Novamente, a criatura fez uma careta, como se a resposta fosse mais clara que o sol.
— Não. — E apontou para uma planta azulada, que se moveu em resposta. — Eles me mostram tudo o que acontece em Nessat.
Laryssa e Virnus olharam para onde Drescher havia apontado: um apêndice pequenino numa planta, onde um diminuto globo ocular os observava. Ao olharem em volta com
mais atenção, eles repararam que, camuflados em troncos, dentro de flores e embaixo de moitas espinhosas, vários daqueles estranhos olhos vegetais os vigiavam.
Um frio percorreu a espinha da princesa. Era tenebroso ser vigiada pela própria floresta. Drescher parou subitamente, fez uma curva com o corpo e, liberando mais
um par de braços, se ergueu, ficando maior do que Virnus.
— De agora em diante, é melhor que vocês não vejam o caminho.
Os jovens se detiveram, espantados, encarando a criatura.
— Como assim? — perguntaram em uníssono.
Sem responder, Drescher começou a gesticular, movendo os dedos das quatro mãos suavemente. De trás de um arbusto cor de rubi, vários apêndices maleáveis surgiram,
serpenteando na direção dos dois. Eles deram um passo para trás, mas atrás deles outros apêndices como aqueles já os cercavam. Dois deles se ergueram como cobras,
aproximando a ponta bulbosa do rosto dos jovens, e arrebentaram como bolhas de sabão, espalhando um gás amarelado na face de Laryssa e de Virnus.
Pega de surpresa, ela sorveu um pouco da substância, que, apesar de estranha, era agradável ao olfato e doce ao paladar. Quanto a Virnus, ele conseguiu prender a
respiração e, com um gesto das mãos, incendiou os dois apêndices.
— Parece uma sobreme...— A voz de Laryssa foi diminuindo, sumindo por completo antes de terminar a frase.
Para desespero de Virnus, ela fechou os olhos e caiu para trás. Antes que ele pudesse pegá-la, vários daqueles apêndices a ampararam, evitando que ela caísse. Ainda
sem respirar, Virnus bateu uma mão na outra, criando uma espada de fogo. Mas, antes que conseguisse libertar a princesa, vários apêndices se lançaram sobre ele,
enrolando-se em seus pulsos, prendendo-lhe as pernas e os braços e impedindo seus movimentos.
— Relaxe — disse Drescher, mexendo os dedos e manipulando os apêndices como um titereiro da natureza — e aproveite os sonhos doces.
Três pontas bulbosas se aproximaram do rosto do rapaz, estourando fracamente e liberando uma pequena nuvem do gás amarelado ao seu redor. Ele ainda tentou resistir
e não respirar, mas foi só questão de tempo até seus pulmões o obrigarem a buscar o ar que lhes faltava. Tão rápido quanto Laryssa, ele também desfaleceu, deixando
uma última frase inacabada no ar.
— Parece mesmo sobre...
As Pedras dos Reis
Planeta Kynis
Volgo cerrou os dentes com raiva quando uma pedra pontiaguda lhe acertou o ombro. O feiticeiro apertou o cajado e disparou contra seu agressor, fazendo a criatura
tombar na neve. Ao seu lado, Willroch também atirou, dilacerando o braço do inimigo com uma rajada violeta.
— Não consigo vê-los — disse Willroch, disparando novamente.
Depois que o navio aportou, Volgo e Willroch iniciaram a caminhada até Urthadar. Após percorrerem uma longa distância, resolveram descansar. No entanto, eles não
perceberam que os eukaris os vigiavam. Pegos de surpresa, foram cercados e atacados. Lutaram ferozmente por muito tempo e, agora, estavam de costas um para o outro,
impedindo que os eukaris avançassem ainda mais..
Os eukaris agitavam longas pedras e os empurravam cada vez mais para dentro da floresta petrificada. Os magos tentaram voar para longe, mas os eukaris se jogaram
sobre eles e todos caíram no chão duro.
Um deles rosnou para o poeta, mostrando dentes cinzentos e pontudos, e arremessou uma lança de pedra contra Willroch.
— São muitos! — ele gritou, após conjurar um escudo de energia violeta para se defender do ataque. — Temos que voltar!
— Não! — Volgo retrucou, irado. — Estamos perto demais para voltar. Vamos acabar com eles agora.
Então fechou os olhos e se concentrou. Suas tatuagens brilharam em negro e ele pairou a centímetros do chão. Com raiva, apertou o cajado e bateu furiosamente no
solo duro. Uma onda circular de energia rubra e negra varreu a floresta, derrubando árvores e destruindo tudo ao redor do feiticeiro e de seu comparsa. Vários eukaris
foram dizimados na onda. Os poucos sobreviventes se arrastaram para longe, guinchando aterrorizados.
Volgo suspirou e pousou no solo. Ao redor deles, não havia mais nada. Os troncos de pedra das árvores estavam nivelados ao chão, e cascas grossas e estilhaços de
pedra se misturavam com sangue e neve no solo duro e enegrecido da floresta.
Willroch bateu a poeira da roupa e fez uma careta ao ver que um eukari foi jogado com tanta força que seu corpo literalmente foi esmagado contra uma grande pedra.
Os olhos cinza fitavam o vazio, e a boca escancarada mostrava que a língua da criatura havia sumido.
— Horroroso! — exclamou, afastando-se.
— Urthadar está próxima — Volgo disse, voltando a caminhar, como se nada tivesse acontecido.
O feiticeiro sentia que a emanação que havia despertado estava ainda mais próxima, e não desistiria de conseguir algo tão raro e precioso.
Seu corpo franzino parecia ainda mais frágil. Willroch pensou que aquela seria uma boa hora para um novo desafio ao mestre, mas lembrou da última batalha na praia
e resolveu não arriscar. Pelo menos, não naquele momento.
Eles andaram pela floresta até avistar uma enorme construção, feita de madeira petrificada, semelhante a um forte, com um portão destruído e duas torres de vigília.
— Finalmente! — Volgo exclamou, sentindo o poder cada vez mais próximo.
Eles passaram pelo portão e entraram em um enorme pátio circular. A neve se acumulava nos cantos e permeava toda a área com um branco cristalino. Ele analisou o
pátio cuidadosamente e se agachou, tocando o chão. Willroch apenas acompanhava o mago de vermelho com o olhar, sem entender.
— Diz a lenda — Volgo começou a falar — que um dos antigos reis deste lugar construiu esse forte esperando proteger um objeto de poder, até conseguir descobrir como
usá-lo. Mas outro rei atacou esta fortificação antes disso, e uma grande batalha ocorreu aqui.
Willroch olhou com mais atenção para os vários montes de pedra e neve ao seu redor, constatando que eram restos mortais, armaduras, armas e escudos. Volgo sorriu
e se levantou. Ele estava a poucos metros do que viera procurar. Então recitou palavras em uma língua estranha, e o chão começou a tremer e muitas pedras se soltaram,
levitando para longe e revelando uma escadaria de madeira petrificada. Com a ponta do cajado iluminada, eles desceram as escadas e entraram em uma pequena câmara
mortuária, onde dois caixões de madeira petrificada se destacavam.
— Por ironia da vida, ou por destino — Volgo retomou a história —, os dois reis morreram antes que o objeto fosse utilizado. Seus exércitos os enterraram lado a
lado, selando um acordo de paz.
— Mas e o tal amuleto?
— Não era um amuleto. Era um pedaço de rocha. E, ao contrário da descrição feita pelos reis, a rocha era comum, sem detalhes que a fizessem valiosa. Os oficiais
acharam que era uma pedra desprezível e decidiram quebrá-la em duas partes e enterrá-las com seus reis.
Ele fez um gesto com ambos os braços, e as tampas dos caixões explodiram em farelos.
Mais próximo!, pensou.
Com mais um gesto da mão, um forte vento rodopiante juntou a poeira e os destroços, levando-os para fora. A luz vermelha do cajado do mago iluminou dois esqueletos,
cada um em seu próprio invólucro mortuário, um vestindo uma cota de malha de metal e outro apenas coberto com um pano que outrora fora belo. Sob o peito de cada
um, metade de uma rocha negra.
Volgo achou que aquelas duas pedras pareciam olhos que o fitavam com curiosidade. E se sentiu desconfortável, como se alguém o estivesse observando através delas,
como se todo o seu corpo reverberasse naquela mesma frequência. Era uma sensação que o dominava. Ele largou o cajado, que pairou no ar, e esticou ambas as mãos vagarosamente,
sentindo aquela frequência tão espetacular.
Assim que tocou as pedras, foi tomado por uma sensação maravilhosa, mas invasiva. Era como se ele tivesse tocado a consciência de um ser infinito, que entendia o
que era conviver com os Espectros dentro de si e, ao mesmo tempo, como se sua mente tivesse sido compartilhada, revelando seus mais íntimos segredos.
Aquele momento durou menos que um piscar de olhos e, tão repentinamente quanto apareceu, o poder sumiu. Não havia mais nada, não existia mais vibração harmoniosa,
nem sensações espetaculares. A experiência de ter a mente envolvida e partilhada também desaparecera.
Em suas mãos secas, restavam apenas rochas comuns, tão ordinárias quanto quaisquer outras pedras de qualquer lugar. Antes que o feiticeiro pudesse pensar, as pedras
começaram a se desfazer, deixando apenas uma poeira escura a escorrer pelos dedos esqueléticos. Aqueles olhos profundos não mais existiam.
Uma armadilha, pensou com raiva. Mas logo essa raiva deu lugar a outro pensamento, e Volgo sorriu ao saber que nem tudo estava perdido. Urthadar e seus reis mortos
serviram para confirmar que ao menos ele estava certo sobre Kynis.
O Horror de Seath
Assim que tocou a mente de Volgo, mesmo que por breves momentos, Seath teve certeza de que havia vibrações espectrais fora das prisões. Apenas um leve roçar de mentes
foi suficiente para Seath sentir a essência de Volgo.
Raiva
Remorso
Angústia
Espectros vivos!
Sentimentos antigos
Intenções horríveis
Multiverso em perigo...
Horrorizado, Seath se desconectou dos pedaços da pedra na tumba dos reis e, fechando a mente, desfez a farsa que usara para conseguir contatar aquele ser perigoso.
Preciso agir.
O rei.
Preciso alertar o rei!
Última Chance
Com a própria vida e a do amigo em perigo, o Ladrão havia tentado de tudo para que fossem julgados rapidamente. Se libertados ou enviados a uma prisão maior, suas
chances de escapar da ameaça de Bemor Caed seriam maiores.
Eles incomodaram tanto os guardas que conseguiram que um escrevente os ouvisse e registrasse sua versão dos fatos, tentando acelerar o processo em alguns dias. Mas
foi em vão. O julgamento fora marcado para dali a um mês, e, enquanto isso, teriam de permanecer confinados à pequena cela submarina, totalmente à mercê do ministro
assassino.
Constantemente ameaçados, o Ladrão e o Bobo se revezavam para dormir. Mesmo que o ministro não tivesse permissão de entrar na cela, existiam várias outras formas
de serem mortos ali mesmo, dentro do cárcere. Por isso, os dois comiam e bebiam apenas pequenas porções de cada vez e esperavam algumas horas, atentos a qualquer
sensação diferente. Se não passassem mal, então ingeriam o resto. Não era um método totalmente confiável, mas era a melhor forma de assegurar que a comida não estava
envenenada.
O Ladrão havia tentado escapar de todas as maneiras possíveis, mas nenhuma delas tinha dado certo. Já havia tentado arrombar a fechadura, deslocar a porta da cela
e cavar a pedra. Se alguma dessas coisas tivesse funcionado, eles poderiam tentar escapar pelos grossos tubos de circulação de ar que existiam perto do elevador.
Mas eles não conseguiram nem chegar perto de sair da cela. O Ladrão tentou ainda quebrar a janela subaquática, apesar de reconhecer logo em seguida que aquela era
uma péssima ideia. Também provocou um pequeno incêndio, e ficou sem colchão por uma noite por causa disso. Feriu-se propositalmente para ir à enfermaria, mas só
recebeu remédios pela pequena janela por onde eram passadas comida e água. Tentou ainda enganar o guarda com uma briga com o Bobo, que ficou gritando como um louco
enquanto “apanhava”. Eles tinham até tentado o velho golpe de se prender ao teto quando lhes trouxessem comida, parecendo que haviam sumido, mas os guardas não eram
ingênuos como nas histórias infantis e levaram menos de um segundo para olhar para cima e encontrá-los.
Naquela noite, Bemor Caed os visitou novamente e tentou obter alguma informação, mas o Ladrão apenas repetiu a história que havia inventado para o escrivão. A reação
do ministro foi apenas uma frase: “as sombras passam pela lua”. Aquela frase soou como um alarme na cabeça do Ladrão, forçando-o a pôr em prática a mais arriscada
de todas as tentativas.
Um pouco depois do amanhecer, antes de acordar o amigo para o revezamento da vigília, o Ladrão se concentrou e buscou um local remoto de sua mente, que ele imaginava
como uma sala blindada de ouro puro. Ao se trancar nessa sala, ele entraria em uma espécie de hibernação e seu coração desaceleraria tanto que ele pareceria morto.
Seu plano era que o Bobo o encontrasse e alertasse os guardas. Assim, ele seria levado para algum lugar para que seu corpo fosse sepultado. E, como sua mente estava
programada para libertá-lo da sala de ouro algumas horas depois, talvez ele conseguisse fugir e soltar o companheiro.
Havia a possibilidade de alguma coisa inesperada acontecer, como ser cremado ou simplesmente jogado ao mar, mas, diante de uma situação desesperadora, o único jeito
era tomar uma medida desesperada, pois o ministro havia deixado claro que eles estariam mortos em poucos dias. Sua única chance seria escapar.
O Ladrão se deitou no chão, como se tivesse caído, entrou na sala de ouro de sua mente e se trancou. Para qualquer um que o tocasse, seu corpo seria como o de um
morto, com respiração e batimentos cardíacos tão reduzidos que chegavam a ser imperceptíveis.
Em sua mente, contudo, o Ladrão continuava desperto. Dentro da sala, uma representação de seu corpo físico flutuava, como se estivesse submerso em água. Além dele,
havia apenas uma ampulheta gigantesca que, em vez de areia, continha pó de prata para marcar o tempo que ele permaneceria catatônico.
Como ele não sabia o que poderia acontecer ao seu corpo enquanto estava naquela situação, uma pontada de arrependimento começou a surgir em seu íntimo e, sem querer,
seus pensamentos o levaram a fazer um balanço geral de sua vida. Ele reviveu a emoção do primeiro roubo, o horror de quando foi preso pela primeira vez, a decisão
de deixar a vida de ladrão quando se apaixonou e se casou, e como a ameaça de morte a sua esposa e filha o fez perder o rumo novamente, levando-o a voltar para o
submundo do crime. Ele relembrou o dia em que conhecera o Bobo, como eles haviam se tornado inimigos e, depois, amigos inseparáveis. Também reviveu a situação que
o ligara a Kullat e que, de certa forma, era o motivo para ele estar ali naquele momento. Imaginou ainda o desespero do Bobo quando encontrasse seu corpo sem vida
dentro daquela cela solitária em Makrao Maat. O Ladrão sabia que, se contasse seu plano, o amigo poderia acabar estragando tudo sem querer. Então, não contou nada
e, ao amanhecer, “morreu” e programou seu organismo para “ressuscitar” algumas horas depois.
Quando o último grão de prata caiu na ampulheta, a sala de ouro inteira evaporou, deixando a mente do Ladrão em um negrume completo. Vagarosamente, ele sentiu seu
corpo retornar à normalidade. Uma luz vermelha fustigou seus olhos e, lentamente, ele os abriu, acostumando-se novamente ao brilho intenso da vida. Mas, para sua
surpresa, viu um teto conhecido. Estranhamente, ainda estava deitado no chão da cela, com a cabeça apoiada em algo macio. Ao se sentar, ainda no chão, viu que era
o chapéu do Bobo que lhe servia de travesseiro. Olhou ao redor e encontrou o amigo sentado no canto da cela, abraçando as próprias pernas, balançando o corpo e cantando
uma canção infantil com a voz embolada de quem havia chorado durante horas. A imagem lembrava a de uma criança que havia perdido algo que amava muito.
— O que aconteceu? — perguntou o Ladrão.
O Bobo continuou se balançando e cantando, alheio a tudo a seu redor.
— Ei! O que aconteceu? Por que estou aqui? — perguntou novamente, sem surtir nenhum efeito.
O Ladrão se levantou, esticou as costas e os braços para afastar a dor de ter ficado imóvel por tanto tempo e se aproximou do amigo.
— Ei! — O Ladrão tocou o ombro do companheiro.
O Bobo enfim teve uma reação e olhou diretamente para o Ladrão. Seus olhos estavam tão marejados que ele precisou limpá-los. Um instante depois, como se tivesse
levado um choque, deu um pulo e correu para a porta, gritando.
— SOCORRO! AJUDEM! UM FANTASMA!
O Ladrão tentou acalmar o amigo, que tremia como um animal acuado e fugia dele como a presa foge do predador. Ele berrava por ajuda, gritando que tinha um defunto
andando, que um demônio havia possuído seu amigo e que via gente morta.
E gesticulava sem parar, como se desenhasse um X no pescoço, invocando o poder protetor de alguma divindade, enquanto tapava os olhos com o braço esquerdo. Após
várias tentativas de acalmar o amigo, o Ladrão simplesmente se apoiou na parede, ao lado do Bobo.
Um guarda, do lado de fora da cela, gritou algo em kin’nita, e um rosto gordo e cinzento surgiu entre as barras. Momentos depois, outro rosto maatiano, bem mais
magro que o anterior, apareceu e sorriu ao ver o Ladrão de pé.
— Não morto você? — apontou com o nariz para o Ladrão. — Bom! Sua amigo inteligente. Não deixar levar você pro fogo. Sorte grande, hein?
Os guardas gargalharam atrás da porta e se afastaram. O Ladrão mordeu o lábio de raiva tanto do amigo quanto dele próprio, pois agora tudo fazia sentido. Seu amigo
tinha ficado tão abalado com sua morte que não permitiu que o levassem embora.
Sem saber, ele havia desperdiçado a última chance que tinham de escapar.
A Verdade Mais Verdadeira
Ilha de Ev’ve
Virnus acordou vagarosamente, com uma fome enorme. A claridade incomodou seus olhos e ele piscou várias vezes, tentando enxergar.
— Até que enfim! — exclamou, reconhecendo a voz de Laryssa, que parecia preocupada. — Achei que você nunca mais ia acordar.
Ele cerrou os olhos, acostumando a visão aos poucos e sentindo a mão dela deslizar em seu rosto, suavemente. O rosto fino e delicado da princesa ficou nítido à sua
frente.
— Onde estamos? — ele perguntou, sentando e percebendo que estava em cima de uma bancada almofadada.
— Estamos na casa de Turritop, se é que isso aqui pode ser chamado de casa — ela respondeu, apontando ao redor.
Com os olhos mais acostumados à claridade, ele finalmente conseguiu ver onde estavam. Era um recinto não muito grande, formado por paredes escuras, repletas de grossas
raízes. Não havia janelas ou portas aparentes, mas, ainda assim, o ambiente era bem iluminado, apesar de não se ver nenhuma fonte de luz. Era como se estivessem
em uma sala, escavada abaixo de uma árvore enorme. Além da bancada com almofadas, havia apenas alguns objetos estranhos, que ele nunca vira antes, e nada mais.
A barriga de Virnus roncou.
— Você precisa comer — ela disse, pegando sua mão com carinho e ajudando-o a se levantar.
— Antes eu preciso... — ele ficou embaraçado e não terminou a frase. A bexiga estava tão cheia que chegava a doer.
Pelo comportamento dele, a princesa adivinhou o que era.
— É claro! — ela respondeu de forma natural. — Venha comigo, eu lhe mostro onde é o banheiro.
Sem soltar a mão dele, a princesa seguiu diretamente para a parede. Os feixes de raízes e as paredes de rocha se abriram à frente deles, revelando um corredor que
mais parecia um túnel debaixo da terra, repleto de raízes nas paredes de rocha e terra, e, estranhamente, com a mesma luminosidade de fonte indistinta.
Ela apontou para um feixe grosso de raízes escuras.
— É ali atrás. Você vai achar tudo de que precisa. Eu te espero lá na “sala” — ela disse, apontando para o caminho pelo qual haviam passado.
Algum tempo depois, ele voltou e se espantou com o que viu. Ela estava sentada em uma espécie de cadeira de raízes e pedras. Ao seu lado, outra cadeira igual o esperava.
Era arredondada, com o tampo feito de pedra irregular. Sobre ela, várias frutas, um jarro de uma bebida alaranjada e outro com água.
— Mas como é que... — ele apontou para a mesa e em seguida para o local em que estivera deitado pouco antes, e que agora estava vazio. Até as almofadas haviam desaparecido.
— Onde é que está...
— Eu não faço a mínima ideia — a princesa disse, dando de ombros. — As coisas aqui são assim. Aparecem e desaparecem. Agora coma, você dormiu por muito tempo.
Ele se sentou ao lado dela.
— Quanto tempo nós dormimos?
Ela serviu um pouco de suco para ele em um copo de madeira, enquanto ele pegava uma fruta comprida de casca vermelha e pintas amareladas.
— Eu apaguei por uma tarde e uma noite — ela disse —, mas você dormiu por mais de um dia.
No início ele se espantou, mas, ao lembrar que havia respirado o gás concentrado de três plantas, tudo fez sentido. A lembrança o trouxe para a realidade. Será que
eles eram prisioneiros daquela estranha criatura?
— Aquele bicho nos atacou! — ele exclamou.
— Não foi bem um ataque — ela retrucou, servindo-se de um pouco de suco também. — Ele só não queria que a gente visse o caminho até aqui.
O rapaz tomou um gole da bebida, apreciando o sabor adocicado, mas sua voz revelava seu descontentamento.
— Aquele troço bem que podia ter avisado o que ia fazer.
— Podia mesmo. E podia também dar notícias do Turritop.
— Você ainda não falou com ele? — o guerrin questionou, espantado.
Ela meneou a cabeça.
— Ainda não. Quando eu acordei, comecei a gritar por ajuda, e um bicho parecido com o Drescher, mas bem menor, veio por aquela... porta — e apontou para o local
onde ficava o túnel até o banheiro. — Ele disse que era para eu esperar, porque ele ia avisar o Turritop. Um tempão depois ele voltou, dizendo que era para esperar
mais um pouco. Eu esperei, esperei, mas nada aconteceu. Então gritei de novo, e apareceu outro bicho parecido, mas de uma cor um pouco diferente. Novamente, eu tive
que esperar. De lá para cá, já fiz isso mais três vezes, e a resposta foi sempre a mesma, que era para esperar.
— Será que somos prisioneiros? — Virnus perguntou, parando de mastigar e permanecendo com um pedaço da fruta ainda na boca.
— Eu acho que não — ela respondeu. — Mas agora que você acordou, tem um jeito fácil de descobrir.
Ele engoliu o pedaço da fruta.
— E qual é?
— Vamos procurar a saída — ela disse, tomando o restante do suco e colocando o copo de madeira sobre a mesa. — Mas, primeiro, termine de comer, está bem?
O rapaz assentiu, ansioso por sair daquele lugar estranho. Comeu mais duas frutas e tomou outro copo de suco. Aquilo já seria suficiente para aplacar sua fome.
— Podemos ir agora — ele disse, levantando-se e limpando a boca com as costas da mão.
— Ótimo! — Laryssa também se levantou.
— Por onde começamos? — o rapaz questionou.
— Vamos gritar...
Laryssa então começou a gritar, o mais alto que conseguiu, chamando por alguém. Virnus acompanhou a moça, colocando as mãos ao lado da boca e gritando a plenos pulmões.
Pouco tempo depois, a parede se abriu, e, pela brecha, surgiu uma criatura muito parecida com Drescher, mas bem mais escura e com menos da metade do tamanho dele,
movendo-se sobre oito braços e mãos.
— Precisam de alguma coisa? — a criatura foi direta. Os olhos esbugalhados e inexpressivos se projetavam para fora e os encaravam.
— Sim — Laryssa disse, postando o corpo da forma mais altiva possível. Afinal, ela era uma princesa. — Leve-nos até Turritop.
— Ele já disse que vocês devem esperar.
— E eu estou dizendo que você deve nos levar até ele agora! — Ela acentuou a última palavra tanto na voz quanto no gesto.
— Se é o que querem... — a criatura respondeu, com indiferença.
Virnus estranhou aquele ser. Ao contrário de Drescher, parecia um robô sem emoção. Ele girou o corpo, percorrendo o caminho de onde viera.
— Sigam-me — foi a única coisa que disse.
Virnus e Laryssa deram as mãos e seguiram a estranha figura pelo corredor. Em vez de ir até o final, ela parou no meio do caminho e colocou duas mãos na parede.
Os galhos se moveram e, rapidamente, formaram uma escada íngreme. O teto se abriu sobre eles e uma luz ainda mais clara surgiu. A criatura subiu a escadaria de raízes
com agilidade.
Virnus abriu passagem para Laryssa.
— Vá na frente. Se você cair, eu te seguro.
Ao chegarem ao topo, ficaram espantados. Eles haviam estado, literalmente, enterrados no chão. O buraco, que também era a saída, se abria no meio da floresta, onde
árvores altíssimas, de troncos acinzentados, subiam majestosas. Suas copas de folhas prateadas e brancas formavam um visual inigualável. O chão estava forrado com
aquelas folhas que, mesmo secas, não perdiam o viço. Uma das árvores, a mais perto da saída, tinha o tronco retorcido sobre si mesmo, como se tivesse sido girado
enquanto crescia.
Sem falar nada, a criatura seguiu para dentro da floresta, e Laryssa e Virnus se apressaram para não perdê-la de vista. O jovem olhou de relance para trás, mas o
buraco havia desaparecido. Enquanto andavam, viram várias daquelas criaturas multímanas. Variavam em cores e tamanhos, cada uma empenhada em realizar uma atividade.
— Olhe! — Virnus apontou para frente, chamando a atenção de Laryssa, que estava distraída vendo uma criatura do tamanho de um pássaro pequeno carregando o caroço
de uma fruta nas costas.
Na direção que o guerrin apontara, havia uma árvore gigantesca, cujo tronco largo e marrom se destacava em meio ao cinza-claro das demais árvores. O tronco enrugado
era tão largo que parecia uma muralha de madeira, e os galhos mais baixos eram tão grossos que retornavam ao chão antes de subir novamente, como se fossem outras
árvores.
Em vez de seguir em direção à enorme árvore desfolhada, a criatura virou à direita, passou por uma ponte sobre um riacho límpido e continuou, silenciosa, por mais
algum tempo. Então eles chegaram a uma espécie de jardim, onde uma infinidade de flores, de todas as formas e tamanhos, se misturava, criando um festival de cores
e cheiros. Um verdadeiro tesouro para qualquer multibiólogo.
Eles trilharam um caminho estreito até alcançar uma plantação em forma de anéis, que circundava um círculo central com não mais que seis passos de diâmetro. Nele,
havia apenas uma única planta, de caule grosso, folhas alongadas e caminhos rosados, como veias debaixo de uma pele verde. Uma única flor, ainda em botão, formava
uma coroa majestosa de pétalas amareladas, rajadas de laranja e violeta. Ainda fechada, era maior do que dois punhos juntos. Sua textura indefinida, meio metálica,
meio tecido, dava o toque final à sua estranha beleza.
Em frente à planta, uma figura masculina, de pele cinza-musgo, estava sentada no chão, com as pernas cruzadas em forma de borboleta e os cotovelos apoiados sobre
os joelhos. O miniDrescher se aproximou, com Virnus e Laryssa logo atrás, parando ao lado do ser, que olhava fixamente para a flor, compenetrado.
— Muab, Turritop — disse o miniDrescher, certificando que aquele ser era Turritop.
O estranho Senhor de Castelo permaneceu imóvel, contemplando a flor, absorto, enquanto Laryssa e Virnus esperavam. Laryssa suspirou, engolindo a vontade de quebrar
o silêncio e evitando ser indelicada com alguém de quem ela precisava.
Para não deixar seu sangue ferver de agonia, ela começou a reparar nos detalhes de Turritop. Ele estava completamente nu, mas Laryssa não sentiu vergonha, pois a
pele dele funcionava como uma cobertura natural e, mesmo sem roupa, seu sexo era indistinguível. A pele era lisa e repleta de frisos que se assemelhavam a peças
encaixadas umas nas outras. O rosto tinha uma expressão ao mesmo tempo sábia e jovial e, mesmo sem nariz, com cavidades no lugar das orelhas e olhos redondos, grandes
e brilhantes, o castelar ainda era uma figura simpática.
— O que é dessa vez? — Turritop perguntou, com uma voz firme e grossa, mas sem desviar o olhar da planta.
— Eles querem vê-lo.
Novamente Turritop manteve silêncio, com o olhar fixo na planta e a respiração lenta. A morosidade daquela conversa estava deixando Laryssa nervosa. Depois de mais
alguns instantes, ele finalmente disse:
— Mas por que essa pressa toda? Eu já disse que vou em breve. Só preciso esperar o desabrochar dela — e apontou o dedo longo, fino e sem unha para a planta. — Não
deve levar mais do que cinco ou seis dias.
Virnus abriu a boca, mas foi Laryssa quem falou, sem conseguir se segurar mais.
Senhor de Castelo Turritop e miniDrescher
— Cinco ou seis dias? — ela disse, em um tom desaprovador, sem se importar se estava sendo indelicada.
Notando a presença dos dois pela primeira vez, Turritop desviou o olhar da flor e encarou a princesa. Ele fixou seu olhar nela por um longo tempo, e ela sustentou
o seu, tentando não demonstrar nenhuma emoção, apesar de estar fervilhando por dentro.
— Talvez sete ou oito dias. Que diferença faz? É tão pouco tempo...
O miniDrescher se afastou, voltando para o caminho por onde eles vieram, e aguardou, silencioso.
— Desculpe, mestre — Laryssa juntou as mãos e fez uma reverência. Virnus rapidamente a imitou, demonstrando respeito. — Mas não podemos esperar tanto tempo! Por
isso o interrompemos.
Turritop virou-se novamente para a planta e voltou a ficar em silêncio, como se estivesse maturando aquelas informações.
— Tempo... sempre o tempo. Às vezes eu esqueço que vocês são tão impacientes. Para mim, são como moscas... — disse finalmente, fazendo uma pequena pausa. — Mesmo
em sua curta existência, conseguem ser tão inoportunos quanto elas. — Ofendida por ter sido comparada a um inseto incômodo, a princesa ia responder, mas o castelar
continuou a falar, sem lhe dar atenção. — Estão vendo esta planta? Ela floresce uma vez a cada trinta anos. Em todas as três vezes anteriores, uma bela amaralina
nasceu de sua florada, batendo suas asas e partindo para viver sua efêmera vida; não mais do que um século ou dois — ele disse, abanando uma das mãos, como se afastasse
um inseto de perto de si. — E pela quarta vez desde que a criei, ela florescerá novamente. E é aí que está a dúvida: será que outra amaralina nascerá? A resposta
a essa pergunta pode mudar todo o rumo do meu experimento, e pode ser a chave para o sucesso do projeto inteiro! — Ele levantou uma mão no ar, com o dedo em riste.
— Agora, diante disso tudo, será que vocês ainda não podem esperar alguns míseros dias?
Turritop se calou, sem desgrudar os olhos da flor. Virnus e Laryssa ficaram confusos com a história, sem entender quase nada do que ele havia falado. Para Laryssa,
com certeza uma flor que gerava uma amaralina bicentenária era algo incrível, mas ela não conseguia ver a importância daquilo. Para ela, o seu caso ainda era muito
mais importante. Então percebeu que, naquela conversa, teria de usar uma tática diferente, caso quisesse realmente conseguir a atenção daquele estranho Senhor de
Castelo.
— Mestre Turritop — ela começou, agachando-se ao lado dele. — Peço desculpas novamente. Não sabíamos que o senhor estava ocupado com algo tão importante. Mas nós
também estamos envolvidos em um outro projeto, e não conseguiremos evoluir sem sua ajuda.
Ele piscou os olhos três vezes. Era a primeira vez que piscava desde que os jovens haviam chegado. Aquele era um sinal de que ela conseguira chamar sua atenção.
Confiante, ela continuou:
— Foi por isso que mestre Iki nos enviou até o senhor. Ele garantiu que só o senhor conseguiria nos ajudar com nossa pesquisa.
Ele desviou o olhar da planta, olhando para Laryssa de forma diferente, como se a estivesse vendo pela primeira vez. Realmente Turritop se mostrou interessado, principalmente
porque ela havia mencionado o nome de Iki, alguém que ele respeitava e que, anos atrás, fora de grande ajuda em um de seus projetos.
Turritop ficou em silêncio por alguns instantes e, em seguida, se levantou. De pé, era duas cabeças mais alto que Virnus, mas era tão magro que devia pesar o mesmo
que Laryssa.
— Conte-me mais — ele disse, apontando para a princesa. — Do que trata esse projeto de vocês?
Laryssa sorriu por dentro, satisfeita. Ela tirou o papel com o desenho guardado em sua bota e o mostrou a Turritop. O Senhor de Castelo o pegou com seus quatro dedos
longos e cinzentos e olhou com cuidado para os detalhes da ilustração. Enquanto ele os analisava, Laryssa contou tudo o que sabia, mencionando ainda a semelhança
do desenho com o símbolo de Oririn. Quando terminou de falar, Turritop piscou novamente, apenas uma vez, e continuou em silêncio, ainda olhando para o papel. Laryssa,
ansiosa, segurou a mão de Virnus, buscando algum conforto.
Por fim, ele esticou o papel de volta para a princesa, visivelmente frustrado.
— Eu pensei que fosse algo interessante. É uma pena...
E tornou a se sentar, voltando a olhar para a planta. A princesa ficou boquiaberta, espantada com a falta de educação daquele ser. Mesmo sendo um Senhor de Castelo,
ela já estava perdendo a paciência com ele. Desafiando o bom senso, ela se interpôs entre ele e a planta e o encarou, com a cara fechada.
Turritop olhou para cima, encarando-a de volta.
— Vocês não vão sair daqui enquanto eu não falar com vocês, não é?
Laryssa sorriu forçadamente e cruzou os braços, esperando uma explicação. Virnus se postou ao lado dela, reforçando seu comportamento. O castelar fez uma expressão
carrancuda e continuou:
— Então escutem com atenção, porque eu não vou repetir. Esse é realmente um selo — ele disse, apontando para o papel na mão da princesa. — E um selo é uma magia
muito forte, que usa uma frequência única de Maru para aprisionar tipos específicos de vibrações, conhecidos por pouquíssimas pessoas.
— Desculpe, senhor, mas não entendi — disse Virnus, com uma expressão de dúvida.
— Confesso que eu também não — reiterou Laryssa, um pouco constrangida.
Turritop refletiu por um momento. Ele fez um movimento, pondo a mão sobre a terra à sua frente. Em instantes, uma pequena planta brotou e cresceu, atingindo uns
seis palmos de altura. Várias folhas azuladas surgiram, e uma fruta rosada cresceu até ficar do tamanho de uma mão fechada. Turritop colheu a fruta e, com mais um
movimento, a planta perdeu as folhas, secou e encolheu, sumindo de volta dentro da terra.
Com o dedo cinzento, o castelar fez um buraco na fruta. Um líquido rosado escorreu pela sua mão, mas ele não pareceu se importar.
— Imaginem que essa fruta é uma jaula e que esse furo é a entrada dela. — Os dois jovens assentiram, prestando atenção. Ele pegou uma pedra do chão e a colocou dentro
da fruta, através do furo. — Agora, imaginem que essa pedra é um animal descontrolado que, se não for contido, pode atacar quem estiver por perto. — Turritop pegou
um pouco de terra e passou sobre o furo, tapando-o. Depois, pegou o papel com o desenho do selo da mão de Laryssa e embrulhou a fruta inteira. — A magia do selo
faz exatamente o que o seu nome diz: sela a entrada da jaula e o animal não consegue sair. E, para reforçar o feitiço, é utilizada também a sua representação física,
que, nesse caso, é o desenho. Assim, não só a entrada, mas toda a jaula fica selada.
— Eu não sabia que esse tipo de coisa era possível — disse Laryssa, intrigada.
— Realmente eu não sei se é possível ou não — respondeu Turritop. — Mas, se for, não é do conhecimento comum. Eu mesmo nunca vi nada que contivesse um selo como
este nos meus estudos. Apenas li histórias antigas sobre seres poderosos selados em lâmpadas de óleo e urnas com demônios trancafiados em cavernas. Mas tudo não
passa de lendas e histórias de Carim. Agora que vocês conseguiram o que vieram buscar, será que podem me deixar em paz?
Laryssa não estava satisfeita, mas sentiu que não conseguiria mais nada com Turritop. Ela teria de continuar em sua busca, apesar de não saber ainda como.
— Que seja feita a vossa vontade, mestre — ela disse, secamente, saindo da frente dele e batendo os pés na direção onde o miniDrescher esperava.
— Boa sorte com a amaralina! — Virnus disse para Turritop, correndo em disparada atrás da princesa, que já se distanciava com o ser de oito braços.
— Eu nunca encontrei ninguém tão grosso assim em toda a minha vida! — Laryssa bufou.
— Eu achei ele meio... lento — Virnus complementou, andando ao lado da princesa.
O miniDrescher, que permanecera calado até então, parou e gesticulou para a mata, como se sinalizasse para alguém que eles não viam. Pensativo e ainda gesticulando,
disse:
— Vocês o acham grosso e lento. Ele disse que vocês são moscas inoportunas e impacientes. Quem está certo? Quem está errado? Uns com tão pouco tempo, outros com
tempo até demais.
Acima das plantas, novamente surgiram apêndices com pontas bulbosas. Desta vez, eles sabiam o que aconteceria e não resistiram. Os apêndices vegetais os envolveram
delicadamente e as pontas arrebentaram de leve, liberando aquele gás com cheiro e sabor de sobremesa. Eles ainda escutaram uma última frase, vinda daquela estranha
criatura:
— Qual de vocês possui a verdade mais verdadeira?
Os jovens sentiram o sono lhes acometer, e o mundo se apagou.
Arte da Negociação
Planeta Kynis
Qualquer um que tenha navegado pelas águas dos Mares Boreais sabe que prever a travessia é algo impossível. Às vezes há dias sem noite; outras, noites sem dia. Também
há vezes em que incontáveis estrelas, explosões espaciais ou ainda enormes planetas enfeitam o firmamento.
Dessa vez, os dias de travessia foram enfadonhos para Kullat e os demais. Uma névoa, tão espessa que quase podia ser cortada com uma espada, rodeou o navio durante
dias. Manter o ânimo em um ambiente em que a única mudança é a existência ou não de claridade é um desafio que só os marujos interboreais experientes estão preparados
para enfrentar. Mas sorrisos aliviados surgiram quando o navio cruzou o portal de acesso ao planeta Kynis e a névoa desapareceu. E depois de navegar nos oceanos
cálidos do planeta, a embarcação finalmente atracou no porto de Camnte, pertencente ao reino de As-Tanys.
O sol surgira havia pouco, e o porto já estava movimentado, com lojas abertas e comerciantes ávidos para negociar. Enquanto a tripulação, auxiliada por maquinários
movidos a vapor, prendia o navio ao cais, os passageiros desembarcavam pela popa. Três deles seguiram em direção à rua principal que liga o cais à cidade, cada um
carregando uma mochila de pano.
O primeiro era Kullat. De relance, ele poderia ser confundido com um fantasma andarilho, graças ao manto extremamente branco, de uma aparência quase espectral. Sem
capuz, os cabelos escuros, salpicados de fios prateados, estavam levemente desalinhados. Sempre cauteloso, ele passou a mão no curto cavanhaque, olhando ao redor
atentamente.
O segundo era Sumo. Quase dois palmos mais baixo que Kullat, ele trocara o quimono de guerrin por uma camisa clara de tecido leve, uma calça e um colete feitos com
um pano grosso, mas de aparência confortável, que lhe permitiam se movimentar livremente. Os cabelos castanhos e lisos, um pouco mais compridos do que ele normalmente
usava, emolduravam o rosto imberbe, fino e jovial. Além da mochila, onde seu amiguinho Slurg estava escondido, ele carregava apenas um cajado comprido de madeira
escura e algumas pequenas bolsas de água.
Sumo com Slurg
A última do trio era Nahra, que andava majestosamente no meio dos dois. As botas de bico fino faziam sonoros estalidos no calçamento de pedra e combinavam com a
roupa justa de couro marrom, que realçava suas curvas. Na cintura, presos ao cinto dourado, alguns enfeites balançavam suavemente, acompanhando o caminhar sinuoso
da Senhora de Castelo. Os braços nus expunham a linda pele morena, e as orelhas lupinas despontavam na cabeleira negro-acinzentada. Sua aparência era selvagem e
misteriosamente encantadora.
Nahra inspirou com força, absorvendo o ar marítimo do cais para conhecer o ambiente. Para ela, os cheiros se transformavam em sabores. Uns mais fortes, como pimenta,
outros mais fracos, como baunilha, mas todos inconfundíveis a seu próprio modo.
Ela estalou a língua, fazendo uma careta.
— Que cheiro ruim — disse baixinho, acostumando-se ao sabor daquele ambiente. — Parece mofo.
Kullat se espantou com o comentário da Senhora de Castelo. Havia dois dias eles não se falavam, e ele achou que ela não falaria com ele tão cedo. Eles haviam discutido
no navio por causa de uma “ronda” que Nahra havia feito com dois marujos dentro da embarcação. Ela se defendeu dizendo que não tinha feito nada de errado, mas ele
contra-argumentou que aquilo poderia denegrir a honra da Ordem, e que ela poderia ao menos ter esperado chegar a Kynis, poupando-o da situação embaraçosa de ter
de ouvir piadinhas durante a viagem.
Aparentemente, ela resolvera deixar o assunto de lado, agora que eles haviam chegado a Kynis, mas Kullat ainda se sentia incomodado, a ponto de pensar seriamente
em pedir ao conselho que sua companheira fosse substituída.
— Deve ser por causa da umidade — respondeu Kullat. — Neste mundo, quase tudo funciona à base de vapor.
Ninguém disse mais nada, e os três subiram a rua principal, tomada de comércio ambulante. À medida que andavam, passavam por vários kynianos, de pele levemente acinzentada,
orelhas de pontas duplas e cristas de barbatanas esverdeadas e semitransparentes.
Os três entraram em uma pequena loja de produtos navais para conseguir informações e trocar os pequenos lingotes de litina — um metal precioso que os castelares
usam como base de troca nos diversos planetas — por cans, o dinheiro local. Durante a viagem, Kullat se familiarizou com o valor da moeda, para não ser ludibriado.
O dono do estabelecimento era um típico kyniano, porém mais alto e mais esguio que a média. Como As-Tanys era um reino de muito comércio, a língua comum do Multiverso
era uma das línguas oficiais. Por isso, eles não tiveram problemas de comunicação e, por uma pequena taxa, fizeram a troca. Por mais meio can, ficaram sabendo que
no fim daquela rua existia uma pensão, onde eles poderiam contratar um inalve — serviço de transporte particular — que os levasse até o outro porto, perto de onde
ficava a sede do Conselho da Ordem daquele planeta.
Então saíram novamente e andaram algumas quadras, passando por várias barracas com cordas, cera e outros produtos marítimos. Do outro lado da rua, uma kyniana idosa
e bem acima do peso mexia uma panela quadrada e fumegante. Kullat parou e ficou olhando para a senhora.
— Não acredito — disse Nahra. — Você está com fome de novo? A gente acabou de comer no navio!
Kullat trocou a mochila de posição e suspirou.
— Não. Não estou com fome — respondeu, amargo.
Apesar da discussão que tinham tido antes, Nahra estranhou a resposta do cavaleiro. Ele havia falado pouco durante a viagem, e, nos últimos dias, a única coisa que
fizera fora atirar bolas explosivas de energia na água dos Mares Boreais e voar entre as gotas multicoloridas. Ela não perguntou, mas desconfiava de que o ar taciturno
do cavaleiro tinha algo a ver com a conversa que tivera com Thagir antes da viagem.
No fim da rua, entraram na pensão indicada pelo comerciante do cais. Era um estabelecimento pequeno, mas muito limpo e bem decorado. A casa havia sido transformada
em pensão, e o cheiro de comida recém-preparada convidava os transeuntes a se sentar e desfrutar de um belo desjejum. O atendente, muito solícito e sorridente, abriu
os braços em uma atitude de boas-vindas.
— Meus amigos — disse ele na língua comum, com uma voz mansa e doce —, em que posso lhes ser útil nesta manhã tão agradável?
Kullat deixou a mochila cair no chão, com uma expressão grave. O atendente não notou a tensão no rosto dos fregueses, ou fingiu muito bem não ter notado.
— Já sei. Vocês precisam de duas coisas: uma refeição para acalmar a fome e quartos para descansarem da viagem. Acertei?
— Quase. Precisamos de um inalve que nos leve até Corilus e de algo para comer durante a viagem até lá — Kullat respondeu, com simplicidade.
— Perfeitamente, senhor. Providenciarei alguns pães com a carne que serviremos no almoço, enquanto meu filho vai chamar um amigo meu, que tem um inalve espaçoso
e confortável. Ele poderá levá-los até lá, por um preço muito justo por sinal — o atendente disse, sorridente.
— Certamente — respondeu Kullat. — Mas qual seria o preço justo de tudo isso?
— Não tenho certeza. Vou ter que confirmar com meu amigo, mas acho que três refeições e um inalve... — o atendente kyniano fechou um dos olhos, calculando mentalmente.
— Trezentos cans, senhor.
— Trezentos cans? — Kullat se surpreendeu, pois era mais que o dobro do esperado. — Eu não devo ter me expressado direito. Eu quis dizer que preciso alugar um inalve,
não comprar um. — A frase saiu um pouco mais ríspida do que ele pretendia. Ele não gostava de negociar, e era sempre Thagir quem fazia isso. Tal lembrança deixou
o cavaleiro ainda mais chateado.
O atendente permaneceu com um sorriso no rosto, mas já não era mais uma expressão natural.
— Vejo que os senhores e a senhora são estrangeiros e, talvez, não estejam habituados a esta região da cidade. Infelizmente, não há muitos inalves disponíveis por
aqui.
Ele apontou para fora, mas, para seu azar, um veículo a vapor passou na frente da hospedaria. Ao lado das portas, alguma coisa estava escrita em kin’nita.
O atendente ficou visivelmente constrangido e Kullat supôs que aquele era um inalve. O cavaleiro ergueu uma sobrancelha para o atendente com um leve sorriso no rosto.
— Três refeições, quatro frutas, um inalve, um copo de suco para o garoto e dois copos de água de fogo — Kullat disse, fechando um olho e fingindo que estava calculando,
como o atendente fizera antes. — Acho que cento e cinquenta cans seria mais do que justo.
— Mas, senhor — disse o atendente, já sem sorrir —, só cento e cinquenta por tudo isso? Eu não vou ter nenhum lucro se aceitar esse preço. O mínimo que posso fazer
são duzentos cans.
— Cento e setenta e cinco? — disse Kullat, um pouco inseguro, mesmo achando que, pelo preço anterior, tanto o atendente quanto o dono do inalve teriam lucro.
— Cento e oitenta?
— Cento e sessenta? — retrucou Kullat, baixando o preço oferecido da última vez, lembrando como Thagir costumava fazer.
— Eu aceito os cento e setenta e cinco, senhor — respondeu o kyniano, novamente sorridente, estendendo a mão cinzenta para o cavaleiro.
— Trato feito! — respondeu Kullat, apertando a mão do atendente e selando o negócio.
— Vocês podem esperar ali — o atendente apontou para algumas poltronas ao lado — enquanto providencio tudo.
Ele se retirou para a cozinha, visivelmente satisfeito com a negociação.
— Eu não sabia que você era mesquinho — disse Nahra, sentando-se suavemente em uma das poltronas e cruzando as pernas languidamente.
— Não é mesquinharia — respondeu Kullat. — Sumo, você sabe por que eu negociei com ele?
— Eu... acho que sim — disse o jovem, retirando Slurg da mochila e colocando-o no colo. Seus pelos estavam azul-escuro [insegurança]. — O Dan Oomas nos ensinou que
os recursos da Ordem tem origem em doações e, por isso, devem ser usados com sabedoria.
Kullat assentiu, e Slurg fez um ruído parecido com uma risadinha. Seu pelo mudou para castanho [satisfação].
— Outra coisa que Dan Oomas sempre falou — continuou o jovem aprendiz — é que a Ordem precisa manter uma reputação coerente com seus valores. E gastar indiscriminadamente
não condiz com o comportamento de um Senhor de Castelo.
— Correto de novo, garoto — disse Kullat, com um leve sorriso para Sumo.
Slurg bateu as asinhas animadamente e seu pelo foi tomado por várias bolinhas vibrantes vermelhas e verde-claras [orgulho; contentamento]. Sumo acariciou a criaturinha,
que se aconchegou no colo do dono.
— Eu ainda acho que foi mesquinharia — disse Nahra, provocando um pouco o cavaleiro.
— Como diz um velho amigo... — Ele pensou em Thagir e se eles realmente ainda eram amigos. — Negociar é uma arte que leva anos para ser aperfeiçoada.
— Só acho que essa arte não combina com você — ela continuou. — Parece forçado.
O cavaleiro fez uma careta e se ajeitou na poltrona.
— É, também acho. Mas alguém precisa fazer o trabalho...
Eles pararam de falar quando o atendente voltou, trazendo as bebidas. Água de fogo para Kullat e Nahra, e um suco roxo com pequenas frutas amarelas para Sumo e Slurg.
Pouco depois chegou a comida, embalada em papel pardo, e, quase ao mesmo tempo, chegou também o transporte.
Espero que o Conselho tenha novidades, pensou Kullat, após dar o último gole. Estou cansado de só receber más notícias...
Então pagou a conta e o grupo entrou no inalve, que partiu rapidamente.
Silêncio dos Inocentes
Kullat, Nahra e Sumo chegaram à tarde em Corilus, uma grande cidade portuária e sede dos Treze Distritos do continente As-Tanys. Eles desceram em uma praça e seguiam
a pé para o porto, a poucas quadras dali, quando um estrondo chamou a atenção do grupo para o outro lado da pequena praça. Um veículo movido a gás de lenha* freou
bruscamente, colidindo com um grande transportador a vapor que vinha atrás.
O motivo do acidente foi um casal que, repentinamente, surgiu correndo na frente do veículo. A mulher kyniana caiu, mas não soltou o embrulho de pano que carregava.
O kyniano, segurando outro embrulho similar, parou bruscamente e voltou para ajudá-la.
— Continue correndo, Vanee! — ele gritou, desesperado, pegando o braço dela e tentando levantá-la.
— Eu... não aguento... — ela arfou, caída no chão. Com os olhos marejados, ela lhe estendeu o próprio embrulho de pano. — Leve-os daqui! Depressa!
Mas, antes que ele pudesse fugir, dez kynianos armados com bastões eletrificados cercaram o casal. Assustados, os dois se abraçaram, sem saber o que fazer. O trânsito
parou e as pessoas nas calçadas também se detiveram para observar. Até os motoristas que se envolveram no acidente aguardavam, tensos, dentro dos veículos. Impressionados,
Nahra, Kullat e Sumo assistiam à cena sem entender nada.
De dentro do pequeno embrulho nos braços do kyniano, um choro infantil se fez ouvir, seguido por outro, vindo do embrulho que a kyniana segurava.
Eram dois bebês.
Cegado pelo desespero e pela raiva, ele se lançou sobre os guardas, na tentativa de abrir caminho. Mas foi rapidamente dominado e lançado ao chão, recebendo duas
descargas elétricas. O bebê que ele segurava estava agora no colo de um dos policiais. A mulher, exausta, permaneceu caída na rua, chorando e soluçando. Os dois
bebês choravam sem parar.
De trás do círculo de guardas, surgiu uma kyniana alta e de impressionante presença, ainda mais realçada pelos belos ornamentos que usava nas orelhas, braços e pulsos.
Vestia a mesma roupa semimetálica dos outros guardas, mas possuía uma faixa laranja na cintura, em vez da faixa azul dos demais.
Veryna e a Guarda Azul de Corilus
— Vanee e Fillt Das-Clias — ela disse alto, para que todos ao redor pudessem ouvir. — Vocês estão presos por sonegação das taxas de natalidade, tentativa de fuga
e... — a policial olhou friamente para todos que observavam a cena e continuou, com um tom de asco na voz — dupla concepção não consentida.
A reação da pequena multidão foi espantosa. Houve uma comoção geral de desagrado, seguida de vários comentários. Alguns kynianos cuspiram no chão, enquanto outros
fizeram gestos de repulsa para o casal de foras da lei.
Kullat, Nahra e Sumo olhavam incrédulos e com raiva, mas nenhum deles se moveu. Eles sabiam que deveriam se focar na missão e não interferir no dia a dia dos reinos,
para não prejudicar a possibilidade de um futuro acordo. Além disso, ainda no navio, o trio estudou um pouco as leis daquele planeta, a fim de evitar alguma gafe
desnecessária. Por isso, sabiam que nenhuma concepção poderia ser aprovada sem o pagamento da devida taxa. E os pais que não fossem capazes de arcar com os custos
de seus filhos deveriam se apresentar em uma clínica do governo, para que o feto fosse retirado cirurgicamente. Já os gêmeos eram considerados uma anomalia, e mesmo
que os pais tivessem como sustentar a ambos, deveriam escolher uma das crianças para continuar viva, devendo a outra ser entregue aos médicos do ministério para
que fizessem o “descarte”.
Para os castelares, aquele tipo de atitude era uma barbárie. Mas, para os kynianos, era um modo de vida. Uma herança cultural que resistia ao tempo.
Chorando e segurando um dos bebês, a mulher olhou para a kyniana policial com profunda tristeza.
— Como você foi capaz disso, Veryna?
A policial parecia calma, mas seu olhar deixava escapar que ela estava incomodada.
— Eu só estou fazendo o meu trabalho!
— Mas fazer isso... com a gente? — disse o homem, tentando se levantar vagarosamente, com evidentes dores no corpo.
— Vocês sabiam desde o início que estavam infringindo as leis. Sabiam dos seus deveres perante a sociedade! — Veryna respondeu com dureza. — Eu mesma já tinha avisado
que vocês poderiam viver sem problemas apenas descartando uma dessas aberrações. Mas vocês me escutaram? — Ela estava exaltada. — Não! Em vez disso, trouxeram a
desgraça para a vida de vocês. — E olhou friamente para o homem à sua frente, que conseguira ficar de joelhos. — Mas eu vou lhes mostrar como o ministério é bondoso
e como as nossas leis são justas. Vou usar meu critério de grã-chefe para liberar vocês de todas as acusações.
E, erguendo novamente a voz para que todos à sua volta a escutassem, Veryna continuou falando, enquanto apontava para os bebês com ambas as mãos:
— Basta que vocês façam, aqui e agora, o que deveriam ter feito quando essas coisas nasceram.
Então retirou uma adaga do colete e a jogou ao lado do kyniano. A população se agitou, manifestando concordância e congratulando o ato de bondade da grã-chefe. Um
leve sorriso de satisfação surgiu no rosto dela. Veryna esperava que o homem escolhesse qual das duas crianças seria descartada e que ela obtivesse, assim, o reconhecimento
da população e dos treze menteri como uma líder fiel ao sistema e uma pessoa justa perante a sociedade.
Ainda de joelhos, o kyniano segurou a adaga com ambas as mãos, como se fosse uma relíquia sagrada. Com dificuldade, ele se levantou, pegou o bebê do colo do guarda
e o segurou ternamente junto ao peito. A criança, sentindo a presença do pai, diminuiu o choro. O kyniano olhou, com lágrimas nos olhos, o pequeno ser que tinha
nos braços. Uma criatura que, sem saber, já era culpada e condenada pela sociedade.
Então suspirou profundamente, suspendeu a adaga até a altura dos olhos e ficou em silêncio por alguns instantes.
Veryna sentiu o sabor da vitória. Mas seus olhos se arregalaram e um calafrio lhe percorreu a espinha quando o homem apontou a adaga em sua direção e a encarou com
dureza.
— Você é uma beskyt** — disse, com o olhar frio e cheio de rancor. — Não passa de uma traidora nojenta. Nós confiávamos em você, e agora você vem com uma armadilha
para conseguir se promover.
Um burburinho percorreu a multidão. Veryna ficou desconcertada e os guardas se agitaram. Ele andou tropegamente até a esposa, ajoelhou-se ao lado dela e acariciou-lhe
o rosto com as costas da mão que segurava a adaga, enquanto a outra segurava um dos bebês. O gêmeo no colo da mãe também não chorava mais.
— Você sabe o que temos que fazer, amada — ele disse com calma. — Está preparada?
Ela acenou afirmativamente a cabeça e beijou os bebês. Então olhou profundamente nos olhos do marido e sussurrou algo. O homem se virou e olhou para Veryna com os
olhos marejados e raivosos.
— Veja o que você ganhou por ter nos denunciado e perseguido — E mostrou a adaga. — Agora escolha você mesma qual dos seus sobrinhos vai viver e qual vai morrer!
Ele beijou a esposa na testa e, com um movimento suave, passou a adaga na garganta dela, diante dos olhos chocados de todos. Sua amada caiu, ainda segurando um dos
bebês, que recomeçou a chorar.
Antes que Veryna conseguisse fazer qualquer coisa, seu irmão enterrou profundamente no próprio peito a lâmina de aço da longa adaga. Um instante depois, seu corpo
amolecido tombou para o lado e a criança rolou pela calçada.
A grã-chefe ficou paralisada, olhando para o corpo da cunhada e do irmão, e para os sobrinhos que choravam desesperadamente no chão. A multidão estava aturdida.
Os guardas fizeram menção de se mover, mas Veryna ergueu a mão e eles pararam. Em seu rosto, o que antes era um sorriso se tornou uma expressão de confusão e espanto.
As mãos de Kullat brilharam ainda mais forte. Energizado pela ira, o Senhor de Castelo flutuava, sem perceber, a centímetros do chão. Mas ele respirou profundamente
e fechou os olhos, esforçando-se para se manter impassível. Sumo estava chocado, sem compreender direito o que estava acontecendo. Ele queria fazer alguma coisa,
mas não sabia o quê. Seu pequeno companheiro, Slurg, estava encolhido em seu ombro, escondendo o rosto nos cabelos de seu dono. A asinha deformada tremia, e os pelos,
agora totalmente pretos, refletiam o terror do jovem guerrin. Nahra esticou os dedos, e as garras negras e brilhantes se projetaram ameaçadoramente. Os cabelos e
os pelos da cauda se eriçaram, e ela rosnou, deixando os caninos afiados à mostra.
Kullat a segurou suavemente pelo braço. Apesar de ele também estar com raiva, teve discernimento para acalmar a Senhora de Castelo.
— Lembrem-se do sétimo dia! — exclamou o cavaleiro, mencionando um dos ensinamentos do Livro dos Dias.
Nahra não se moveu, mas suas garras se retraíram ao relembrar o ensinamento: “Busque dentro de si a coragem para lutar pelo bem, a serenidade para aceitar quando
nada pode ser feito e a sabedoria para distinguir uma situação da outra”.
Com os olhos brilhando, Kullat levantou o capuz e continuou a caminhar.
— Vamos sair daqui! — disse, amargurado, sem se virar.
— Mas, mestre, isso é loucura! — Sumo bradou, ainda imóvel.
Nahra suspirou profundamente e, apesar de resignada, pousou a mão no ombro do aprendiz.
— Kullat tem razão. Pense no sétimo dia — disse com a voz trêmula, mas decidida. — Às vezes, precisamos fechar os olhos para brutalidades hoje, para conseguirmos
avanços amanhã. Pense que, cumprindo nossa missão, daremos um passo enorme na consolidação da Ordem neste planeta. E, com a Ordem fortalecida, conseguiremos influenciá-los
a abandonar atitudes insanas como essa.
Sumo pensou por um momento. Seu desejo era voltar e lutar com aquela kyniana. Mas, ao final, admitiu que os argumentos de sua mestra eram corretos.
Contrariados e silenciosos, os três continuaram andando. Kullat e Nahra vinham na frente, e Sumo, apoiando-se no cajado, seguia logo atrás. No ombro do jovem, Slurg
estava rajado em um misto de vermelho e amarelo pálido [raiva; frustração].
Enquanto se afastavam, ainda conseguiram ouvir um último diálogo:
— Senhora, o que vamos fazer com os bebês? — perguntou um policial.
— As-Tanys não pode arcar com os custos de órfãos, sargento — disse Veryna, sem emoção na voz.
— Mas são seus sobr...
— Nazi maus!*** — ela interrompeu bruscamente. — Apenas faça o que tem de ser feito.
Alguns instantes depois, o choro dos bebês cessou. Primeiro um e, logo a seguir, o outro.
Os Senhores de Castelo não se viraram, mas souberam exatamente o que havia acontecido. O aço foi o instrumento da justiça de Kynis, silenciando os inocentes para
sempre.
Notas
* Alguns veículos de Kynis, em vez de línguas de fogo, usam tanques-fornalha para extrair o gás da madeira picada e gerar o vapor que move o motor.
** Expressão que significa “suja” ou “imunda”, no sentido de falta de valores ou moralidade.
*** Em kin’nita, expressão equivalente a “obedeça sem questionar”.
Conselho de Pedra
Kullat, Nahra e Sumo caminharam, tentando digerir aquele terrível acontecimento que haviam acabado de presenciar. Em silêncio, seguiram para o porto para encontrar
um transporte que os levasse até a pequena ilha de Mali-Otokk, situada entre o continente e a ilha de Makrao Maat.
Enquanto caminhavam, eles observaram que as ruas eram controladas por forças militares do continente. Postos de vigilância e veículos de guerra movidos a vapor estavam
em pontos estratégicos, prontos para entrar em ação. Máquinas barulhentas e fumegantes sobrevoavam a cidade, deixando rastros cinzentos no céu, enquanto grupos armados
patrulhavam, a pé ou em veículos especiais de batalha. Quanto mais próximo do porto, maior era o número de armamentos e soldados.
No entanto, apesar da tensão, a cidade mantinha o comércio ativo e várias pessoas perambulavam pelas lojas e barracões, movimentando os negócios e fazendo girar
a economia de Corilus.
Após mostrarem os documentos castelares em dois postos de controle, os três explicaram que pretendiam ir para Mali-Otokk e conseguiram chegar ao cais.
A visão que tiveram foi ao mesmo tempo aterradora e triste. De todos os lados, a perder de vista, soldados em máquinas fuliginosas faziam escolta ordenadamente,
criando uma linha defensiva na orla da cidade. Veículos aéreos zumbiam motores vaporosos, enquanto navios de guerra apontavam para o mar, prontos para agir.
Como a extensão entre os reinos naquele local era a menor de todas, via-se que não era só o continente que estava preparado para a guerra. Ao longe, era possível
ver a enorme estrutura bélica de defesa da ilha de Makrao Maat, com navios de batalha também prontos a se lançar ao mar e vigias aéreas patrulhando os céus insulares.
Era uma estranha guerra psicológica, onde todas as peças estavam em jogo, mas nenhum jogador fazia o primeiro movimento.
No entanto, mesmo em meio ao clima de guerra iminente, vários navios comerciais continuavam realizando seus procedimentos de embarque e desembarque — de mercadorias
e passageiros — tanto na ilha quanto no continente. Afinal, todos já deveriam estar acostumados com aquela situação.
Os três conseguiram contratar uma chalupa. Ao se afastarem do porto, presenciaram, boquiabertos, que a estrutura de guerra se estendia por todo o litoral. Além disso,
avistaram uma edificação altíssima ao fundo na cidade e, vindos daquela mesma direção, tubulações de metal gigantescas ligavam a cidade ao mar.
Como um antigo tratado definia que cada reino era dono de quatro de dez partes daquele trecho de oceano, uma porção do trajeto se deu ainda em águas continentais.
Mas o fim da viagem ocorreu em águas neutras, onde também ficava a ilhota da Ordem.
Os castelares chegaram ao destino no fim da tarde e, perto do cais onde desembarcaram, como se fosse um cartão de boas-vindas, viram uma grande fonte. Era uma escultura
bela, mas bizarra. Um cavalo babão?, Kullat pensou, achando graça da enorme cabeça de cavalo, de boca aberta, por onde jorrava água abundantemente em uma base circular.
Eles se dirigiram até uma pequena construção, onde funcionava um posto de controle, e se anunciaram para o representante.
— Fui orientado a encaminhá-los ao Conselho assim que chegassem — disse o kyniano de barbatana alaranjada, da mesma cor de sua vestimenta.
Rapidamente, foram conduzidos para a beira de um rio. O representante do posto apontou para uma pequena canoa, onde um homem extremamente baixo e bastante gordo
estava sentado. Todos agradeceram e subiram na canoa, que partiu velozmente. O homem, apoiando as mãos gordas sobre duas peças de metal presas à canoa, conduziu
a embarcação rio acima, que navegou sem emitir nenhum ruído.
Não muito longe, avistaram seu destino: um pequeno agrupamento de montanhas calcárias, com pouca vegetação, cujo topo estava encoberto por lençóis de nuvens. Eles
percorreram rapidamente o caminho e chegaram aos enormes pilares de pedra, formados pelo vento e pela água da altíssima cachoeira, que caía do alto do paredão pedregoso.
— Chegamos — disse o condutor, aproximando a canoa à margem do rio.
Sumo apoiou-se em seu cajado e ajeitou a mochila às costas.
— Não estou vendo nada aqui — disse, curioso.
— Onde fica o Conselho? — perguntou Nahra, olhando ao redor.
O condutor da canoa apontou para cima, de onde a água da cachoeira caía. Centenas de metros acima deles, sobre alguns daqueles pilares e envoltas em nuvens, viram
construções e pontes suspensas, que pareciam fazer parte da própria rocha, com várias ligações flutuantes entre elas.
Sumo sentiu um arrepio na espinha e segurou com força a alça da mochila. Slurg ficou rajado de rosa-claro e azul-escuro [fragilidade; falta de coragem] e se escondeu
na mochila.
— E como vamos fazer para chegar lá? — perguntou o jovem guerrin, preocupado.
O condutor não respondeu, apenas sorriu e amarrou a canoa a uma árvore na margem do rio. Então desceu e se dirigiu para um dos pilares, sendo seguido pelos três
castelares. Entalhada na pedra, havia uma espécie de caverna. Ele pediu que esperassem, entrou e, instantes depois, retornou com uma longa corda com um pedaço de
metal amarrado na ponta.
Em seguida, pediu que se afastassem e girou a corda sobre a cabeça. Quanto mais rápido o ar passava pelo metal, mais ele vibrava, formando um som semelhante ao bater
de centenas de asas. Alterando a intensidade da rotação e o diâmetro do círculo no ar, surgiu uma espécie de música. O som era amplificado pelas paredes e se espalhava
por todos os lados. Não demorou muito e outro som semelhante surgiu, vindo das construções no topo dos pilares.
— Eles estão conversando! — exclamou Nahra, espantada.
Os dois interlocutores continuaram com aquela conversa cifrada por mais algum tempo, até que o condutor da canoa parou de girar a corda.
— O transporte já está a caminho — disse com um sorriso franco.
No alto, ao lado da cachoeira, surgiu um movimento. Nahra aguçou a visão e, com um sorriso matreiro, pousou a mão no ombro de Sumo.
— Rapaz! Tenho duas notícias para você. Uma boa e outra nem tanto.
— Senhora?! — disse Sumo, tenso.
— A boa é que, como manipulador de água, você vai ficar orgulhoso ao ver a maravilha construída com a força desse líquido tão precioso! Já a outra é que você vai
enfrentar um teste inesperado.
O rapaz ficou ainda mais tenso, suspirou fundo e fez sinal de positivo com a cabeça quando finalmente enxergou o que a mestra já tinha visto. Do alto da cachoeira,
descia uma enorme cesta presa a grossas cordas. Aquele seria o transporte que os levaria até o topo.
Em seguida, um kyniano abriu a larga porta do cesto e os convidou a entrar. Eles agradeceram o condutor da canoa e embarcaram no novo transporte. Vacilante, Sumo
os seguiu.
— Acalme-se, Sumo. Estamos aqui com você — Kullat disse, tocando o ombro do rapaz.
— Para o senhor é fácil — replicou o aprendiz, nervoso. — O senhor pode voar!
— Podemos subir? — perguntou o condutor.
Kullat ia responder quando a mochila de Sumo começou a se mexer. O rapaz não conseguiu mantê-la fechada e, por uma brecha, Slurg saltou e se escondeu atrás de uma
pequena pedra.
— SLURG! Não faça isso! — Sumo largou a mochila e gritou aflito, enquanto saía do cesto. — Venha aqui, garoto. Nós vamos enfrentar isso juntos.
Com delicadeza, ele pegou o pequeno animal e o aninhou nos braços. A criatura mudava de cor incontrolavelmente e tremia sem parar. Sumo acalmou um pouco seu amiguinho,
ao mesmo tempo em que tentava se acalmar. Chateado, percebeu que todos haviam notado seu descontrole, por causa das mudanças de cor de Slurg. Às vezes, ele se arrependia
de ter criado Slurg desde que nascera. Como eles compartilhavam as sensações um do outro, era inevitável que ocorressem situações embaraçosas. Mas o arrependimento
logo dava lugar à alegria, já que sempre podiam contar um com o outro.
O guerrin respirou profundamente e subiu novamente no cesto, segurando Slurg com força e enfrentando seus medos com determinação. O kyniano acionou uma alavanca
e o transporte começou a se elevar. Devagar no início, mas ganhando velocidade rapidamente. Em pouco tempo, Sumo e Kullat entenderam por que Nahra havia dito que
o rapaz se orgulharia. O cesto estava ligado a um sistema mecânico de cordas, polias e roldanas. A força da água girava uma série de rodas d’água, que enrolavam
as cordas presas ao cesto e serviam como motor. À medida que eles se aproximavam do topo, algumas rodas se afastavam da água, reduzindo a velocidade de aproximação,
até que o cesto parou no ar, diante de uma ponte suspensa entre dois pilares.
Eles seguiram o kyniano por uma série daquelas pontes, passaram por alguns pilares e por construções entalhadas na rocha, até chegar ao maior e mais largo pilar,
que era também a entrada da sede do Conselho de Senhores de Castelo de Kynis.
Missões e Surpresas
A porta dupla de madeira estava aberta, e duas mulheres de cabelos vermelhos e pele amarelada os aguardavam. A mais velha era esbelta e vestia uma túnica branca
simples, com o capuz jogado para trás. Sua pele era lisa, sem nenhuma marca, e os olhos eram de um vermelho vivo, da mesma cor dos longos cabelos.
— Obrigada por terem vindo tão depressa! — disse, com uma voz meiga. — Meu nome é Cyrvil, Senhora de Castelo de Kremat.*
— E eu sou Ulani, também de Kremat — disse a mais nova, que usava calças de couro pretas e blusa vermelha. Tinha cabelos curtos e sardas no rosto, que combinavam
belamente com um par de olhos claros. — Vocês devem ser Kullat e Nahra — Ulani apontou corretamente para cada um. — Mas não esperávamos um belo rapaz nem uma criaturinha
tão fofa.
Ulani afagou a cabeça de Slurg, que ficou satisfeito com o carinho e mudou de cor várias vezes. Sumo ficou ruborizado pelo elogio, principalmente vindo de uma mulher
tão bonita. Por um momento, ele se lembrou da guerrina Darsa e do pouco tempo que tiveram para se despedir, antes de que ele viesse para aquela missão com seus mestres.
— Esse belo guerrin — Kullat disse, divertindo-se com o embaraço dele — chama-se Sumo.
O rapaz pigarreou baixinho.
— Muito prazer — e fez uma reverência perfeita, seguindo todas as regras de inclinação, postura e tempo, aprendidas na aula de etiqueta castelar.
Cyrvil retribuiu o gesto, mas Ulani não. Em vez disso, apenas sorriu e esticou a mão. Sumo hesitou um momento, sem entender, pois aquele gesto significava que a
jovem o considerava um igual. Sumo endireitou o corpo e retribuiu o cumprimento, apertando a mão dela com a exata pressão que um castelar deveria aplicar, sem muita
força, mas também sem ser leve demais. Satisfeito, sentiu que o toque da pele dela era morno e macio.
— Espero que tenham feito boa viagem — disse Cyrvil, apontando para que deixassem as mochilas sobre um móvel e a seguissem até uma grande porta branca, ao lado.
— Sabemos que foi às pressas, então, se precisarem de alguma coisa, por favor, avisem.
— Agradecemos a hospitalidade — respondeu Kullat, com humildade.
Então entraram em um salão oval. As paredes da sala eram da mesma rocha dos pilares, como se a própria pedra tivesse sido escavada com detalhes, sulcos e estrias,
formando belos padrões. No chão, havia um grande círculo, com um painel de comando no centro. No alto do teto, igualmente trabalhado, várias bolas vítreas flutuavam
no ar. Eram as esferas-T, a forma mais comum de comunicação entre os Conselhos Regionais e a ilha de Ev’ve, que usa tecnomagia para transmitir imagens e sons.
Do outro lado da sala, perto de uma janela triangular, estava outro Senhor de Castelo. Bem mais alto que os demais, Draak lembrava um kyniano, mas tinha uma constituição
mais forte e musculosa, típica de um guerreiro. A pele cinza-esverdeada era escamosa, e o rosto tinha traços dragonoides. Os dedos das mãos e dos pés eram como garras
e, na cabeça sem pelos, uma crista firme despontava altiva. Usava uma malha prata que servia de armadura, protegendo o peito e cobrindo a cintura e a pélvis. Ao
redor do grosso pescoço, pendia uma fina corrente prateada, com um pingente rústico, símbolo de sua fé.
Ao ver o grupo chegar, se aproximou.
— Bem-vindos, amigos! — exclamou alegremente, abrindo os longos braços, formados por quatro feixes de músculos, paralelos e vigorosos. — Sou Draak, Senhor de Castelo
de Makrao Maat. Fico feliz que tenham chegado.
Apesar do aspecto duro, o enorme kyniano era bastante amigável. Ainda mais para Kullat que, com o dom da habilidade empática com dragões, conseguia sentir as boas
intenções do Senhor de Castelo.
— Eu sou Nahra, do planeta Lican — disse a Senhora de Castelo, fazendo uma reverência e deixando a formosa cauda balançar suavemente. — Estes são Kullat, de Oririn,
e nosso aprendiz Sumo, do reino de Aang.
Kullat e Sumo fizeram uma rápida mesura. Draak não retribuiu a reverência. Em vez disso, abraçou os três, como se fossem velhos amigos. Também afagou os pelos de
Slurg, que estava aninhado no colo do rapaz.
— Eu detesto ser mal-educada — disse Cyrvil, com uma ponta de insatisfação no semblante —, mas teremos de deixar as amenidades para outra hora. Os Anciões pediram
que entrássemos em contato assim que vocês chegassem.
— Não se sintam menosprezados, amigos — complementou Draak, alisando a barbatana com uma das garras-dedo. — Na verdade, eu mesmo cheguei há pouco e não tive oportunidade
de me inteirar totalmente da missão.
— Não se preocupem — disse Kullat, conciliatório. — Nós entendemos perfeitamente. Quanto mais cedo falarmos com o Conselho, antes poderemos entrar em ação.
O cavaleiro estava ansioso. Haviam se passado tantos dias desde que ele recebera o broche de dragão com a mensagem de Corning que era bem provável que algo ruim
pudesse ter acontecido. Quanto mais rápido ele agisse, mais rápido conseguiria ajudar seus amigos.
— Por favor, aproximem-se — Cyrvil indicou para que todos entrassem nos limites do círculo de telemetria.
Quando se aproximaram, do chão surgiu um painel repleto de botões. Ela apertou dois deles e girou uma manivela. Kullat, Nahra, Draak e Cyrvil ficaram próximos ao
centro. Sumo, com Slurg adormecido em seu colo, e Ulani permaneceram um pouco mais afastados.
As esferas-T, ainda flutuando, começaram a girar lentamente, aumentando a velocidade gradativamente, soltando faíscas e brilhando com intensidade. Em segundos, imagens
nítidas e levemente translúcidas de algumas cadeiras de espaldar alto surgiram entre eles dentro do círculo. Os castelares se aprumaram para poder ver melhor a imagem.
E então uma voz mecânica ecoou pela sala.
Acesso prioritário estabelecido
Aguardando contato com o Conselho
Um losango piscava intermitentemente no ar, indicando que, apesar da imagem estática, a transmissão e a recepção estavam ocorrendo sem problemas. Um tempo considerável
se passou sem nenhuma mudança, até que finalmente duas figuras apressadas apareceram e se sentaram nas cadeiras.
Ambos eram Anciões** de Ev’ve. O primeiro era Ur’Dar, o gigantesco general de quatro braços, vestido com sua habitual armadura brilhante. A segunda era Kim-moross,
a última mulher-criança do extinto mundo Miaron. De pele vermelha e cabelos longos cor de violeta, apesar da aparência infantil, os olhos negros sem íris denunciavam
sua experiência. Se alguém cruzasse com ela fora da Academia, jamais saberia que aquela pequena menina era uma das maiores armeiras do Multiverso. Era estranho ver
o gigante ao lado da mulher-criança.
Todos na sala curvaram-se respeitosamente diante das duas imagens, recebendo de volta o mesmo cumprimento. Foi o general Ur’dar quem iniciou a conversa.
— Bem-vindos. — A voz era grossa e forte. — Desculpem pela demora. Infelizmente, várias coisas estão acontecendo simultaneamente, e o Conselho inteiro está envolvido
com outras prioridades. Enfim, teremos de ser rápidos.
— Ouçam com muita atenção — disse Kim-moross, com a voz idêntica à de uma criança, mas carregada de maturidade —, pois o destino de muitos depende do que vocês vão
fazer agora.
Os castelares ficaram quietos, esperando que os Anciões continuassem a conversa.
— Enquanto vocês estavam viajando — continuou Ur’Dar com sua voz grossa —, e apesar dos esforços diplomáticos, tivemos um retrocesso. Por isso, decidimos que eu,
pessoalmente, irei até Kynis para ajudá-los nas questões políticas.
Todos ficaram espantados.
— Mas o que aconteceu para que um Ancião se envolvesse pessoalmente? — perguntou Nahra, a orelha esquerda sacudindo rapidamente.
— Ontem um bairro inteiro de Corilus foi destruído em um atentado — respondeu a anciã-criança.
— Um atentado? — Kullat perguntou.
Kim-moross assentiu, e os cabelos violeta pareceram flutuar ao redor do rosto infantil.
— Esse foi mais um dos atentados atribuídos aos radicais do grupo de defesa da Verdade — continuou ela.
Draak a interrompeu, colocando a mão sobre o peito e tocando o pingente preso ao pescoço.
— Eu juro por Seath que nenhum maatiano está envolvido nisso. Esse tipo de ação é totalmente contra o que prega a Verdade!
— Não podemos descartar nenhuma hipótese ainda — Ur’Dar tomou a frente da conversa, esticando as duas mãos direitas para a Senhora de Castelo. — Cyrvil, vocês conseguiram
descobrir mais alguma coisa?
— Infelizmente, não — respondeu ela com pesar, os longos cabelos vermelhos e os olhos rubros destacados. — Hoje cedo estivemos no local da explosão e não encontramos
nenhuma pista. O epicentro foi totalmente destruído, as imediações foram muito abaladas e o bairro inteiro sofreu com um forte incêndio. Antes eram explosões pequenas
ou incêndios sem grande importância. Mas esse último incidente foi muito pior que todos os anteriores juntos.
— Foi uma bomba? — perguntou Nahra.
Ulani deu um passo à frente.
— Não sabemos. As explosões anteriores eram feitas de línguas de fogo concentradas. Mas nessa, nem os rastreadores de resíduos conseguiram identificar que tipo de
explosivo foi utilizado.
— Por causa da extensão do atentado — retomou Cyrvil —, os treze menteri decretaram ontem que, se os responsáveis não forem encontrados, eles terão que declarar
guerra a Makrao Maat.
— Isso é terrível! — disse Kim-moross, meneando a cabeça, entristecida.
Ulani deu um passo atrás, voltando à sua posição inicial.
— Felizmente, temos dois menteri que são contra a guerra. Eles estão tentando ganhar um pouco mais de tempo — Cyrvil complementou.
— E da parte de Makrao Maat — disse Draak. — Na verdade, o meu rei é contra qualquer guerra. Mas ele também já declarou que não vai permitir que nossa nação seja
atacada sem tomar as atitudes necessárias.
— Estamos ficando sem alternativas — disse Ur’Dar, recostando-se na cadeira.
— E sem tempo — acrescentou Kim-moross.
Todos ficaram em silêncio por alguns momentos, refletindo sobre a situação.
— Desculpem-me, mas, se me permitem um comentário... — disse Kullat, no tom mais respeitoso possível. — Como vocês devem saber, tenho dois amigos presos na ilha
que precisam de ajuda.
— Aqueles dois invasores são seus amigos? — interveio Draak.
— Eles mesmos. Achei que já tivessem recebido uma mensagem do Conselho a respeito.
Kullat olhou para a imagem de Ur’Dar, sem entender. Cyrvil levantou a mão. Suas longas unhas estavam pintadas de um tom suave, combinando com a túnica clara.
— Nós recebemos o comunicado, sim, Kullat. Mas o Draak estava fora e chegou aqui pouco antes de vocês. Infelizmente, não conseguimos conversar sobre essa missão
ainda.
— Como também sou um dos comandantes do exército, na verdade, precisei verificar toda a extensão da ilha para garantir que nossas defesas estivessem perfeitas. Levei
muitos dias fazendo isso. E, quando voltei para reportar ao rei, fiquei sabendo dos invasores.
— Eles não são invasores — Kullat argumentou. — Foi tudo um mal-entendido.
— Na verdade, o caso é mais grave do que um simples mal-entendido, amigo.
Sumo notou que aquele Senhor de Castelo tinha um péssimo hábito. Ele usava muito as palavras amigo e na verdade.
— Quão grave é o caso? — perguntou Kullat, apertando as mãos, preocupado.
— Na verdade, além de tentarem entrar no reino sem autorização, eles tinham um mapa do castelo.
— Que loucura! — Kullat estava assustado. Aquilo tudo tinha tomado proporções muito maiores do que devia. — Mas o rei sabe que seu ministro está envolvido com Volgo?
— Volgo? — Draak franziu o cenho. — Não faço ideia de quem seja esse tal de Volgo. E mesmo que soubesse, Bemor Caed é um de nossos mais respeitados ministros! E
seus amigos foram pegos com um mapa onde estava marcado o quarto dele. É óbvio que eles tramavam contra ele!
Draak estava visivelmente desconfortável com aquela situação. Um ataque a um ministro de seu reino era como um ataque ao próprio reino.
— Acredite em mim. Isso não passa de um mal-entendido — Kullat reforçou. — E é evidente que o seu ministro está envolvido com Volgo, que é um mago perigoso e que
está sendo procurado pela Ordem. E nada que venha disso pode ser bom.
— Não posso fazer nada sem provas — disse Draak, relutante.
— Mas e as imagens-memória? — Kullat elevou o tom de voz.
— Ele não as viu ainda — Cyrvil disse. — De qualquer maneira, o ministro estava em Makrao Maat quando ocorreram dois dos atentados. Ele pode até estar envolvido
com Volgo, mas não acho que tenha algo a ver com os terroristas.
— Além do mais — Draak continuou —, esse grupo já existe há algum tempo. Dois anos atrás, conseguimos prender um dos membros. Era um as-tanysiano que sempre sonhou
em se tornar um transformado, mas que não tinha os requisitos necessários.
— E quais eram esses requisitos? — perguntou Nahra, tentando extrair alguma informação do Senhor de Castelo, que era, ele mesmo, um transformado.
— Isso não vem ao caso agora — respondeu Draak, desconversando. — Na verdade, o importante é que investigamos e chegamos a outros quatro integrantes do grupo. Todos
na mesma situação que o primeiro. Todos querendo algo que não poderiam alcançar. Nada além disso, e nenhuma conexão com os atentados que estão acontecendo agora.
Precisamos de provas concretas, e, ainda assim, provavelmente não vai fazer muita diferença para o meu rei, já que o papel do ministro é, justamente, manter relações
diplomáticas, independentemente de preferências políticas.
Kullat ficou abalado. A situação estava muito pior do que ele imaginara. Ulani se aproximou e pousou a pequenina mão em seu ombro.
— Não se preocupe, vamos achar um jeito de ajudar seus amigos — disse ela, tentando acalmar Kullat.
Todos na sala assentiram, concordando com a jovem. Apenas Draak parecia não concordar. Mas, pelo menos, não discordou, assumindo um ar quase de indiferença. Sumo
pensou em dizer alguma coisa, mas esperou demais e perdeu o momento.
Kim-moross retomou a palavra.
— Acredito que o melhor agora é Cyrvil levar vocês até os menteri, para que consigam apoio na busca pelo grupo terrorista. E, como os menteri não aceitam a sua ajuda
— ela apontou para Draak —, sugiro que você volte a falar com o rei de Maat e tente acalmá-lo. Sugiro também que tente ajudar os amigos de Kullat e vigie o ministro.
— Concordo — disse Ur’Dar.
— Isso eu posso fazer — disse Draak, um pouco mais maleável.
— Excelente ideia — Nahra emendou. — Assim cobriremos todas as frentes.
Alguém bateu levemente na grande porta branca da sala e a cabeça de uma jovem, toda vestida de azul, sem nariz, de pele acobreada e cabelos amarelos, surgiu e chamou
por Ulani, que pediu licença e saiu.
— Desculpe discordar, mas, quanto à questão de Volgo... — Kullat insistiu, preocupado. — Alguém precisa encontrá-lo. E acho que esta poderia ser a nossa missão —
Kullat apontou para ele, Nahra e Sumo —, e não procurar por um bando de fanáticos.
— Vocês devem fazer as duas coisas — respondeu Ur’Dar. — Mas, antes de procurar por ele, vão ter que achar os responsáveis pelos atentados. E, se o meu instinto
estiver certo, acredito que vão descobrir o rastro de Volgo no caminho.
— E se esse tal chegar perto do meu reino — disse Draak, a voz ganhando uma potência inesperada —, estarei lá para esmagá-lo.
Com um gesto brusco, socou forte uma mão contra a outra.
— Precisamos ser rápidos e eficientes — continuou Kim-moross. — Muitas vidas estão em perigo, e o futuro de todo o planeta está em jogo.
Algo chamou a atenção de Ur’Dar e Kim-moross em Ev’ve. O som foi cortado por alguns instantes, e eles gesticularam e falaram com alguém fora da imagem. Logo após,
o som retornou.
— Infelizmente, surgiu uma situação urgente. Mas, antes, temos mais um aviso — disse Kim-moross com gravidade. — Tivemos muitas baixas em um curto espaço de tempo,
e isso aconteceu por todo o Multiverso. Não sabemos quase nada sobre isso, mas podem não ser casos isolados.
— Um caçador de castelares? — questionou Nahra, revelando os caninos lupinos.
— Não sabemos ainda se é coincidência, se é trabalho de uma pessoa, ou se há um grupo por trás disso — respondeu Ur’Dar. — Mas estamos investigando. Enquanto isso,
redobrem a atenção e reportem qualquer atividade suspeita ao Conselho.
— Tenham cuidado — disse Kim-moross. — E que a Maru vibre harmônica em seu caminho.
Os Anciões se curvaram em respeito e as esferas-T retornaram à posição inicial, encerrando a transmissão.
O grupo começou uma calorosa discussão sobre aquela nova informação. Existiria mesmo um grupo de caçadores de Senhores de Castelo? Quem poderia estar por trás daquilo?
Um governo, um planeta ou uma confederação específica? Será que os cavaleiros do lado negro haviam recuperado a força há tanto tempo perdida? Ou, ainda, seria obra
de alguém ligado à Sombra? Muitas perguntas, nenhuma resposta.
Kullat ia sugerir que voltassem a focar na missão, mas Ulani surgiu na porta e apontou para ele, com uma expressão mista de surpresa e satisfação.
— Kullat! — ela exclamou, gesticulando para que o cavaleiro a seguisse. — Você precisa ver isso.
O cavaleiro relutou. Ele precisava falar com Draak. Precisava mostrar a ele as imagens-memória, o feiticeiro Volgo e o ministro atacando seus amigos.
— O que é? — ele perguntou, sem se mexer.
Ela sorriu, dissimulada.
— É melhor você ver por si mesmo.
O que quer que fosse, parecia urgente. Ele deixou o grupo discutindo sobre os caçadores e a seguiu.
Então ela o conduziu por um longo corredor que dava para outra sala. Quando Kullat entrou, seu coração deu um salto.
Notas
* Reino de fogo do primeiro quadrante dos Mares Boreais. Seus habitantes são, de modo geral, homens e mulheres de cabelos vermelhos e pele colorida como rocha amarela.
** São dez os anciões de Ev’ve, selecionados após a batalha com os Espectros, pelo 1º Conselho de Nopporn. A cada cem anos, um novo regente é escolhido. N’quamor,
de Oririn, é o atual.
Velhos Amigos
— Mas... — Kullat disse, confuso. — O que é que você está fazendo aqui?
Sentado em um sofá, comendo tranquilamente um biscoito e com uma caneca de bebida na mão, estava seu velho amigo, Thagir. Ele abriu um largo sorriso para Kullat.
Estava vestindo sua usual calça bege, com muitos bolsos, e a longa casaca de couro verde-escura. Para finalizar, o pistoleiro usava um cinto prateado com várias
peças retangulares presas em toda a sua extensão. Cada peça possuía um símbolo incrustado e três pontos pretos, semelhantes a pequenos diamantes negros. Seu semblante
não era mais tão pesado, como se a viagem até Kynis tivesse lhe dado tempo para descansar.
— Um barqueiro o trouxe logo depois de vocês chegarem — disse Ulani. — Parece que vocês se desencontraram por pouco. Vou deixá-los a sós para poderem conversar —
finalizou, fechando a porta e deixando apenas os dois na sala.
O cavaleiro atravessou a sala rapidamente e parou diante de Thagir.
— Kullat... — O pistoleiro se levantou da cadeira, mas foi empurrado de volta pelo cavaleiro.
— Sem essa de Kullat. Só me diz o que você está fazendo aqui! — O tom do cavaleiro era sério, e suas mãos brilhavam de raiva.
— Eu vim ajudar — Thagir respondeu, e, após um curto silêncio, perguntou: — Posso me levantar?
Kullat suspirou profundamente e andou até uma janela. Thagir se levantou e andou até o lado dele.
— Eu precisava vir. Precisava me desculpar por falhar com você. Por tê-lo deixado sozinho quando você pediu minha ajuda.
O cavaleiro suspirou e retirou o capuz, mostrando os cabelos desalinhados e o cavanhaque bem aparado. Ele parecia mais velho, com mais cabelos e pelos brancos no
cavanhaque. Thagir o observou em silêncio.
— Você fez a sua escolha — disse o cavaleiro finalmente. — O que fez você mudar de ideia?
— Por onde começar? Bom, quando ficou sabendo do seu pedido, meu pai só faltou me escorraçar do castelo e tirar o meu colar de regente. Ele disse que, se eu não
viesse, ele mesmo viria. Com Phelir foi quase igual, exceto pelo fato de ele falar comigo pelo comunicador; caso contrário, acho que eu teria levado um soco. — Kullat
sorriu levemente, mas continuou em silêncio. — Mas, no fim, foi por causa de Danima. Ela me lembrou que existem valores pelos quais devemos lutar, que existem coisas
importantes que nunca devem ser deixadas de lado. Pediu que eu confiasse nela e garantiu que tudo ficaria bem com a nossa família. No início eu ainda resisti, mas
as palavras dela ficaram martelando na minha cabeça como um ferreiro malhando o aço de uma boa espada.
Thagir tocou o ombro de Kullat, que estava de costas, olhando para uma planície vaporosa e branca, feita de nuvens.
— Ela também disse — Thagir continuou — que você precisava de mim.
Aquela ênfase carregava consigo todo o peso da história de ambos, desde a época da Academia. Tudo o que haviam passado juntos e as inúmeras vezes que um salvara
o outro. Kullat ficou em silêncio por um longo tempo, refletindo sobre as palavras do pistoleiro. Depois de saber que Thagir não viria ajudá-lo, o cavaleiro sofreu,
sentindo-se abandonado pelo amigo. Ele sabia que a decisão de Thagir de ficar em Newho era a mais correta, porém havia um sentimento de abandono em seu peito que
teimava em crescer, contrariando qualquer lógica e raciocínio.
— Eu... — Kullat disse, menos agressivo. — Eu entendo. Foi uma escolha realmente difícil. Eu acho que teria escolhido ficar com a minha família, se estivesse no
seu lugar.
— Sinto muito — disse Thagir, com sinceridade. — E desculpe pelas palavras rudes.
— Eu também disse coisas que não deveria, velho amigo — Kullat confessou, virando-se de frente para o pistoleiro. — Também sinto muito.
— Então, amigos de novo? — Thagir perguntou, estendendo a mão para o cavaleiro.
— Nunca deixamos de ser... — Kullat ignorou o gesto e sorriu, abraçando o outro com força e o levantando do chão.
O abraço foi retribuído com carinho. As mágoas e a decepção que os dois amigos carregavam foram vencidas pela amizade. Thagir sentia o coração mais leve e um conforto
familiar ao se reencontrar com Kullat. Para Kullat, o abraço teve efeito revigorante, dando-lhe mais energia e coragem para enfrentar os perigos do Multiverso. O
cavaleiro sentiu como se um trogon tivesse saído de suas costas. A presença do amigo lhe transmitia uma segurança que havia muito ele não sentia.
Mesmo assim, alguma coisa não estava se encaixando. Ele conhecia Thagir muito bem e sabia que, quando o amigo tomava uma decisão, era muito difícil fazê-lo voltar
atrás. Por mais que sua família o tivesse apoiado, Kullat achava que isso não seria suficiente para fazer o amigo mudar de opinião. Mesmo que Khrommer aparecesse
na frente dele, era provável que não o convencesse disso.
— Agora me conte a verdade — Kullat franziu o cenho, empertigado. — O que fez você mudar de ideia?
Thagir sorriu. Seu amigo realmente o conhecia muito bem.
— Como eu disse, foi Danima.
— O que ela fez?
— Nada. Ela não fez nada. E esse foi o problema. Ela simplesmente começou a me ignorar. E você sabe como ela é.
Kullat riu francamente.
— Pior que sei. Ela deve ser a única pessoa no Multiverso mais turrona que você!
Ambos riram novamente. Kullat enxugou os olhos, que lacrimejaram de tanto rir. Em seguida, colocou a mão em um bolso do cinto de couro e retirou um papel amarelado,
estendendo-o para Thagir.
— O que é isso? — perguntou o pistoleiro.
— A receita de pastel de abóbora que Danima me pediu — Kullat disse. — Falei com minha mãe antes de vir para cá e peguei a receita com ela — concluiu um pouco encabulado.
— No fundo, eu tinha esperança de que você viesse...
Thagir deu um soco de leve no braço do amigo. As dúvidas e os pesares em seu coração ficaram mais leves, porque ele estava onde realmente deveria estar.
— Agora me diga uma coisa — Kullat olhou para o estranho cinto que o amigo estava usando. — Que coisa feia é essa aí? — perguntou, aproximando a mão do artefato.
Apesar de não tê-lo tocado, sentiu uma pressão e um formigamento na mão. Era como se sua energia vazasse diretamente para os pontos negros. Kullat afastou a mão
dormente, abrindo e fechando os dedos, tentando fazê-la voltar ao normal.
— Esse aqui é um dos tesouros do meu pai — Thagir disse. — Ele sempre usa esse cinto, mas dessa vez me obrigou a usá-lo para vir para cá.
— É algum tipo de cinto de utilidades? — perguntou o amigo, fazendo uma careta.
— Até que a ideia não é ruim, mas não é isso, não.
— Khrommer me ajude! — Kullat resmungou diante da esquiva do amigo. — Você vai ficar fazendo charme e não vai me falar nada sobre ele...
— Você me conhece... — finalizou Thagir sorridente, ajeitando a casaca verde.
A porta se abriu, e um garoto todo de azul, com cabelos castanhos, pele acobreada e sem nariz, informou que deveriam acompanhá-lo, pois o jantar estava sendo servido.
Pedido Oficial
As coisas estão melhorando!, Kullat pensou, esfregando as mãos animadamente.
— Vamos, vamos. Estou morrendo de fome! — disse ele, com um sorriso largo no rosto.
Thagir concordou, e ambos acompanharam o rapaz até o salão de refeições. Era uma sala grande, com sofás e cadeiras de madeira que ladeavam uma mesa comprida, já
posta com sucos, carnes e outros pratos.
Os demais já estavam lá, e Kullat apresentou Thagir a todos. Ulani e Cyrvil se apresentaram formalmente, dizendo que ele era bem-vindo à sede da Ordem.
Draak abraçou seu novo amigo, dizendo que, na verdade, era um prazer finalmente conhecer o “Grande Shoujin Pistoleiro” pessoalmente — Draak era um colecionador das
figuras castelares, e era assim que Thagir era descrito nelas. Depois que ele saiu da Ordem, a figura ficou rara e disputada entre os colecionadores.
Nahra se aproximou e deu um beijo úmido no rosto do pistoleiro, dizendo que era um prazer finalmente conhecê-lo. Ela sabia que Thagir era comprometido e não tentaria
nenhum de seus truques com ele, mas agiu daquela forma apenas para irritar Kullat. O cavaleiro fez uma careta de desaprovação, que ela fingiu não perceber.
Sumo fez uma reverência, contente por poder conhecer o antigo companheiro de seu mestre, e que também era um homem muito admirado pelos guerrins da Academia.
O pistoleiro olhou curioso para Slurg, que estava no ombro do guerrin. O pequeno animal fez um barulho alegre e pulou no colo do pistoleiro.
— Slurg! — gritou Sumo, envergonhado.
A pequena criatura bateu fracamente as asinhas, e seus pelos mudaram rapidamente para um rosa-claro [vergonha] e, em seguida, aninhando-se no colo do pistoleiro,
ganharam tons azul-claros [conforto].
— Não se preocupe! — Thagir disse, sentando-se ao lado de Sumo. — O nome dele é Slurg?
— Isso mesmo, mestre — respondeu o jovem.
— Não sou seu mestre, rapaz.
— É claro, Nonjin — disse o guerrin respeitosamente, usando o termo formal para Senhores de Castelo inativos.
Thagir afagou o bichinho em seu colo. O animalzinho passou a asa boa sobre o olho com cicatrizes e emitiu sons animados.
— Quer saber? — Thagir disse com um sorriso. — É melhor parar com essa história de Nonjin também. É uma palavra muito estranha. Pode me chamar de você!
O rapaz retribuiu o sorriso, espantado com a simplicidade do pistoleiro, e assentiu. Ele sempre imaginara que alguém como Thagir seria muito mais reservado ou, até
mesmo, entojado. Mas o pistoleiro era exatamente o oposto, um homem gentil e amigável.
— Hã... como o senhor... quer dizer, como você preferir — disse Sumo. — Desculpe por isso — continuou, apontando para Slurg. — Ele nunca fez nada assim antes.
— Deve ser a minha natureza selvagem — Thagir comentou, brincalhão.
— É... — Kullat riu, servindo-se de uma bela porção de salada. — O homem mora no mato, só pode ser selvagem mesmo.
— Lá vem você de novo com suas delicadezas — disse Thagir, sorridente.
— Certas coisas nunca mudam — Kullat replicou, bonachão, dando de ombros e enchendo um copo de suco. Ele se aproximou de um prato fumegante e sentiu o aroma da refeição.
— Humm... Que cheiro bom...
Thagir sorriu.
— É. Certas coisas realmente nunca mudam.
— Ele sempre foi assim? — Nahra perguntou, dirigindo-se a Thagir, enquanto se servia também.
— Assim como? Feio? — Thagir disse, espetando com o garfo uma espécie de cenoura arredondada cozida.
— Assim disse o galã da floresta! — Kullat interrompeu, enchendo o prato com fartas porções.
Nahra ficou surpresa com o comportamento dos dois. Pareciam duas crianças birrentas, divertindo-se à custa um do outro. Era um tipo de intimidade que, ela sabia,
só verdadeiros amigos conseguiam construir. Uma ponta de inveja percorreu seu corpo. Aquilo era algo que ela nunca tinha tido com ninguém, nem mesmo com Kullat.
— Eu quis dizer se ele sempre foi comilão — Nahra complementou, apontando para o prato de Kullat. O cavaleiro sorriu e apenas levantou as mãos diante do enorme prato
de comida, com uma expressão inocente.
Thagir deu de ombros e respondeu com espontaneidade:
— Comilão é uma palavra rasa nesse caso...
Kullat fez uma careta e continuou comendo. Nahra e Sumo se olharam e sorriram. Slurg bateu as asinhas peludas, grasnou baixinho e mudou a cor para um salmão, demonstrando
alegria. Draak, Cyrvil e Ulani se divertiam com a situação, honrados por ter visitas tão alegres à mesa.
— Certo — Thagir continuou, ajeitando-se na cadeira e assumindo uma postura mais centrada. — Que tal falarmos de coisas sérias? Agora que eu estou aqui, como posso
ajudar?
Kullat pigarreou, também assumindo uma postura mais respeitável.
— Bom... Preciso de ajuda com aqueles dois encrenqueiros... — O cavaleiro se referia ao Bobo e ao Ladrão. — Não vou poder fazer nada por eles agora, mas, se você
puder me ajudar com isso, posso continuar com a missão que o Conselho nos deu.
— Se depender de mim, aqueles dois ainda vão te dar muita dor de cabeça, mas fora daqui — Thagir disse confiante, cruzando os braços.
Kullat sorriu para o amigo e agradeceu, com sinceridade. Depois, apanhou um bocado de carne com salada e encheu a boca, satisfeito. Nahra inclinou-se para frente,
com o olhar pensativo, cruzando as mãos sobre a mesa e sacudindo levemente a orelha lupina. O brinco dourado de argola balançou de modo suave.
— Diga-me uma coisa, Thagir. Pelo que o Kullat me contou, você é um excelente negociador. Isso é verdade?
— Já tive alguns bons momentos nessa área.
— Ah, a modéstia. — Kullat debochou, falando para Nahra depois de uma mordida na carne. — Uma característica rara nos dias de hoje.
— Não comece — Thagir disse, apaziguador.
— Me lembre, por favor, quem foi que negociou com o rei-menino a abrir os portões de ferro dos sete-reinos? E quem foi que convenceu o velho profeta Tijrot a desistir
de sacrificar suas filhas? E quem foi que...
— Tudo bem, tudo bem — Thagir interrompeu. — Todo mundo já entendeu seu ponto de vista. — O pistoleiro se virou para Nahra e continuou: — Mas por que perguntou isso?
Ela se ajeitou na cadeira, inclinando-se ainda mais sobre a mesa, como se quisesse confidenciar algo. Sua cauda envolveu o corpo, e, instintivamente, todos se inclinaram
um pouco também.
— E se, além de ajudar na questão dos amigos de Kullat, você também nos ajudasse a ganhar tempo com o rei de Makrao Maat?
— Seria uma ajuda bem-vinda — Draak bateu na mesa com sua mão de garras e se empertigou na cadeira, animado. — Na verdade, uma colaboração isenta poderia ser muito
útil para todos nós.
— Exato! — Nahra continuou. — Assim teríamos mais um argumento para ganhar tempo também com os treze menteri para investigarmos melhor essa questão das explosões!
— Eu concordo! — disse Cyrvil, com expressão de aprovação. Os cabelos rubros balançaram suavemente quando ela apontou para Thagir e continuou: — Draak pode ir com
você para que conversem com o rei Behemut. E Ulani e eu podemos ir com Kullat e Nahra até o ministério de As-Tanys. Assim cobrimos as duas frentes de uma só vez.
— Dividir para conquistar! — Kullat estalou os dedos, visivelmente satisfeito com o plano.
Sumo ficou descontente por não ter sido mencionado, mas engoliu o orgulho e se manteve respeitosamente em silêncio.
Cyrvil retomou a palavra.
— Eu já havia solicitado uma audiência no ministério. Com o atentado de ontem, conseguimos uma audiência para amanhã cedo com os menteri.
— Ótimo! — exclamou Kullat. — Assim não perdemos muito tempo.
Nahra se virou para Thagir, e o movimento fez seus cabelos negro-acinzentados parecerem pelos macios de lobo.
— O que me diz, Thagir? Você aceita nos ajudar?
O pistoleiro ficou em silêncio por um momento e bebeu um pouco de suco, refletindo sobre tudo aquilo. Não era bem para aquele tipo de ajuda que ele viera até ali,
mas seria um desperdício se ele não aproveitasse suas habilidades em prol do bem de tantos seres.
— Só tem um problema — disse Thagir, pensativo. — Como não sou mais um Senhor de Castelo, não sei se o rei vai me atender.
— Pode deixar comigo! — exclamou Draak. — Eu consigo que o rei o atenda.
— Ainda assim, continuarei sendo apenas um qualquer-um-bem-acompanhado. Não sei se isso basta para que seu rei se convença de algo tão importante quanto evitar uma
guerra. Um dos segredos de uma boa negociação é que você nunca pode ser menor do que aquele que você quer mover.
— Uma formiga pode ser forte, mas, ainda assim, não consegue carregar uma montanha! — disse Nahra, pensativa.
— Humm... Eu conheço esse seu olhar — Kullat apontou o garfo para o pistoleiro.
— Qual é a sua sugestão? — perguntou Cyrvil, curiosa.
— Bom — disse Thagir, cofiando a barba. — Se a Ordem de Kynis me convidasse oficialmente para auxiliar vocês, acredito que eu teria maior poder de negociação.
— Podemos fazer melhor do que isso! — complementou Cyrvil, olhando ao redor da mesa e passando os olhos por Kullat, Draak e Nahra. — Temos quatro castelares graduados
aqui e, se todos estiverem de acordo, podemos designar Thagir como Daijin de Kynis!
Kullat gostou da sugestão. Na opinião do cavaleiro, não havia ninguém mais indicado para uma função tão especial como aquela. Já Thagir ficou espantado. Um Daijin
só era empossado em ocasiões extremas, onde fossem necessárias elevadas habilidades diplomáticas, imparcialidade, postura confiável e capacidade de negociação com
os mais altos postos. Ao receber o título provisório de Daijin, ele poderia falar pelo próprio Conselho da Ordem dos Senhores de Castelo de Kynis. Aquela função
era muito mais do que ele havia imaginado e, ainda surpreso, tentou reduzir a sua responsabilidade.
— Eu fico lisonjeado, mas não creio que seja preciso chegar a tanto. Ser convidado como um conselheiro independente já é mais do que suficiente.
— Deixe de falsa modéstia — Kullat balançou um dedo para o amigo. — Um Conselheiro Teman pode nos ajudar, com certeza. Mas um Daijin é algo muito, muito melhor.
Thagir cofiou a barba, pensativo. A ideia fazia sentido, mas, ainda assim, parecia um exagero. O pistoleiro olhou para Draak, o único que não tinha dado sua opinião.
— O que você acha?
— Na verdade, amigo — Draak balançava a cabeçorra positivamente, muito satisfeito —, um Daijin teria representatividade muito maior perante o meu rei. Além disso,
seria uma honra para mim poder assinar sua nomeação como Daijin!
Draak estava contente e orgulhoso, pois o que eles estavam fazendo ali entraria para a história da Ordem. Além disso, ele também estava pensando que sua coleção
de figuras castelares precisaria de uma nova carta rara e especial que, com certeza, seria lançada assim que aquela missão acabasse. Consequentemente, a figura do
“Grande Daijin Pistoleiro” já se formava em sua imaginação.
Cyrvil levantou o copo e, categórica, disse antes de brindar:
— Então está decidido. Eu mesma vou providenciar os papéis antes de partirmos.
Kullat bateu as mãos, satisfeito. Uma pequena chuva de fagulhas prateadas se espalhou.
— E então, o que vamos fazer agora, chefe?
Thagir olhou para o amigo, espalmando a mão em sinal de “pare”.
— Antes de mais nada, nada de me chamar de chefe.
— Claro, Senhor Daijin — Kullat disse, piscando um olho para Sumo e sorrindo ao ver a expressão de desagrado de Thagir.
Kullat sentiu seu bom humor de volta. Seu coração estava mais leve e tranquilo. Apesar de aquela ser uma situação delicada e complexa, agora que Thagir estava oficialmente
com eles, havia esperança de que conseguissem atingir todos os objetivos: achar os terroristas, impedir a guerra, ajudar seus amigos e, se tivessem sorte, achar
o rastro de Volgo.
— Então, amigos — Draak declarou, retirando um pequeno triângulo cinzento de uma das aparas da armadura. — Vou mandar um nuk para meu rei, avisando que amanhã levarei
um representante de peso da Ordem para falar com ele.
Draak segurou o pequeno triângulo cinzento junto à testa, pronto para projetar mentalmente a mensagem no objeto.
— Espere! — Kullat o interrompeu. — Você precisa ver uma coisa antes.
Peso no Coração
Kullat pediu que Draak aguardasse até o fim do jantar e, depois que todos estavam satisfeitos, eles se dirigiram até a sala das esferas-T. A Senhora de Castelo fez
alguns ajustes no painel de controle e três esferas-T desceram do teto, reproduzindo as imagens-memória que o Ladrão havia repassado para Kullat.
Draak tomou um choque e observou atentamente a projeção, principalmente quando Bemor Caed tentou assassinar o Bobo e o Ladrão. Mesmo assim, as imagens não denotavam
nenhuma relação com os atentados, nem com algum tipo de traição contra Makrao Maat.
Ninguém falou nada até que a projeção fosse encerrada.
— E então? — Kullat questionou, com a testa franzida.
— Na verdade, amigo... — Draak havia voltado a chamar Kullat de amigo. — Não é prova de traição. Mas a reação do nosso ministro foi muito estranha e precisa ser
investigada.
Kullat ficou tenso.
— Realmente não é prova de traição. Mas, se você acredita na Ordem, então peço que acredite em mim também. Volgo é perigoso, extremamente perigoso, e muito manipulador.
E o fato de ele e seu ministro estarem juntos é sinal de que algo grande e destrutivo está para acontecer.
— Entendo sua preocupação — respondeu Draak, passando os dedos-garra na cabeça escamosa, como se quisesse ajeitar a crista. — Vou mandar a solicitação para que o
rei nos atenda amanhã e o alertarei para que tome cuidado. O ministro pode não ser totalmente confiável, afinal.
Draak se concentrou e pronunciou algumas palavras em kin’nita. Quando terminou, o nuk brilhava suavemente, indicando que a mensagem estava pronta para ser transmitida.
O castelar pegou o objeto com a ponta dos dedos de garra e, com um movimento firme, lançou-o em direção à janela. O metal girou, cortou o ar com velocidade e assoviou
enquanto saía em disparada, levando consigo a mensagem de Draak ao castelo do rei Behemot.
Do lado de fora, os últimos raios de sol morriam no horizonte, trazendo em seu rastro a escuridão da noite e suas incontáveis estrelas.
— Então é isso, amigos. É melhor descansarmos agora, pois amanhã será um dia cheio.
Sumo olhou para Ulani, que estava acenando levemente com a cabeça, incentivando-o a se manifestar. O rapaz entendeu o recado, tinha até uma frase inteira pronta
na cabeça, mas, na afobação, se atrapalhou e só conseguiu fazer uma pergunta:
— E eu?
— O que tem você? — questionou Nahra.
— O que eu faço? Como posso ajudar?
— Hummm... Na verdade, eu não sei — respondeu Nahra, usando o vício de linguagem de Draak sem perceber. — Essa história de terroristas não está me agradando.
— Concordo — disse Kullat. — Acho melhor você esperar aqui.
Sumo abriu a boca para responder, mas Kullat o encarou com tamanha seriedade que o rapaz não disse nada. O pequeno animalzinho ficou amuado em seu colo, com cores
pálidas. Thagir, vendo a decepção de Sumo, lembrou-se dele mesmo quando era mais jovem. O pistoleiro então colocou uma das mãos sobre o ombro do jovem, interferindo
na conversa.
— Ele poderia vir comigo. Seria uma ótima forma de aprender um pouco mais sobre este planeta e seus costumes.
— Infelizmente — Nahra respondeu, visivelmente preocupada —, mesmo como Daijin, você não é membro da Ordem em tempo integral. E nós não podemos deixá-lo aos cuidados
de alguém que não é membro fixo da Ordem.
— Amigos! Isso é fácil de resolver — afirmou Draak, colocando também sua mão de garras sobre o outro ombro do rapaz. — Eu fico responsável por ele.
Nahra e Kullat se olharam, com expressões pesadas. Mesmo confiando na capacidade e na responsabilidade daqueles dois, ainda assim, era uma decisão muito difícil.
Em um rompante de coragem, o rapaz interveio:
— A teoria é essencial — disse, citando um velho ensinamento da Academia —, mas a prática é vital!
Kullat assentiu, pensativo. Realmente, se o guerrin não participasse da ação, nunca estaria preparado para se tornar um Senhor de Castelo.
— Eu acho que ele poderia aprender muito com o Draak e com o Thagir — disse Kullat, virando-se para Nahra, como se pedisse seu consentimento.
Ela concordava que o garoto precisava viver suas próprias experiências, mas deixá-lo sob a responsabilidade de outros era algo que não lhe agradava.
— Kullat, Nahra — disse Thagir, com calma. — Será muito menos perigoso para ele ficar conosco do que com vocês, que estarão caçando terroristas. E ficar aqui sentado,
sem fazer nada, é desonroso!
Aquele argumento pesou no coração de Nahra. Realmente, o pistoleiro era um bom negociador.
Um Convite Inesperado
— Tudo bem — Nahra apontou o dedo para Thagir, e a negra, longa e afiada garra lupina refletiu ameaçadoramente o brilho do ambiente. — Mas, se alguma coisa acontecer
com ele, você vai se ver comigo!
— Pode deixar. Vou devolvê-lo sem nenhuma parte faltando.
A animação do rapaz era tanta que Slurg ficou agitado, com cores variadas mudando constantemente em seu pelo, bateu as asinhas, deu uma cambalhota no ar e pulou
novamente no colo de Thagir.
Sem mais decisões a tomar, eles aproveitariam o restante da noite. Uma coisa que os castelares aprendem é que devem usufruir ao máximo do período de bonança e tranquilidade,
preparando-se física e psicologicamente para tempos mais difíceis.
Cyrvil e Draak pediram licença e foram para seus respectivos aposentos para descansar; queriam estar prontos para o dia cheio que viria com a manhã seguinte. Nahra
disse que daria uma volta pelos jardins da sede, deixando o cavaleiro e seu amigo à vontade para colocar a conversa em dia. E Ulani pousou a mão macia no braço de
Sumo, andando devagar para que ficassem mais atrás do grupo.
— Você fala pouco — ela disse, colocando-se ao lado dele. O cheiro doce de seu perfume era inebriante. — Você sabe que precisa se expor mais, não é?
— Eu sei... — ele respondeu, sem saber direito o que dizer, notando o belo contorno dos olhos claros que o encaravam com determinação.
Slurg se mexeu no ombro do guerrin e seus pelos ficaram cinzentos com rajadas brancas [dúvida; incompreensão].
— Os castelares de respeito se arriscam — Ulani passou a mão nos cabelos ruivos delicadamente, deixando o guerrin um pouco desconcertado. — Se você não se expuser,
se não correr riscos, será uma pessoa mediana. E pessoas medíocres não têm sucesso na vida.
Ele baixou a cabeça, fitando o chão. Então ela tocou suavemente o queixo dele e levantou seu rosto, para que ele a olhasse. O sorriso dela era arrebatador.
— Mas é difícil — ele disse, ruborizado. — Não é como na Academia ou no campo de treinamento.
— Por que não? — ela questionou, com suavidade na voz.
— Lá é diferente — ele tentou explicar. — Lá eu estou sempre com outros guerrins. Mas aqui estou com Kullat e Nahra, e devo obedecer a meus mestres.
— É claro que você deve obedecer, mas nunca se omitir! Você deve arriscar um pouco mais na vida, Sumo. Se não for assim, como poderá experimentar coisas diferentes?
Viver aventuras e encontrar o prazer do desconhecido? Aquela reunião da qual você participou há pouco, por exemplo, não acontece a toda hora. Ainda mais com dois
Anciões! Você não precisa ter medo de se expressar. Pode dar sua opinião, dizer o que pensa! Você não deve nunca deixar de fazer o que tem vontade por medo ou vergonha.
— Eu entendo... — disse ele, admitindo que os grandes heróis que ele admirava não eram covardes. Ao contrário, eram suficientemente corajosos para enfrentar o desconhecido.
— Veja o meu exemplo — ela continuou. — Eu falei algumas vezes na reunião, e até a anciã Kim-moross concordou comigo.
— Mas é diferente. Você é uma Senhora de Castelo...
Sumo parou de falar, pois Ulani começou a rir francamente.
— Sinto-me lisonjeada — disse ela e, aproximando-se um pouco mais do rapaz, baixou o tom de voz. — Mas eu não sou uma Senhora de Castelo. Sou uma guerrina. Cyrvil
e Draak são meus mestres em campo.
— Vo... você não é uma Senhora de Castelo?
— Não sou, não! — Ela estava se divertindo com a situação. — Ainda não conquistei essa honra.
— Mas você fala e age como se fosse! — Sumo exclamou, ainda confuso.
— Não é para isso que somos treinados? As atitudes também contam muito, Sumo. Eu respeito os Senhores de Castelo, mas eles não são melhores nem piores do que eu.
Somos todos iguais, apenas com mais ou menos experiência de vida.
Sumo parou, apoiando-se no cajado e refletindo sobre as palavras dela. O ponto de vista da guerrina era diferente daquele ao qual ele estava acostumado. A cultura
dele pregava que a experiência dos mais velhos superava a inexperiência dos mais jovens. Mas aquela moça, tão solta e segura de si, demonstrava que, apesar de manter
o respeito, era possível tratar a todos como iguais, exceto pelo fato de que cada um tinha um papel diferente na vida.
— Obrigado pelo conselho, senhora. Com certeza vou segui-lo.
— Assim espero. E não me chame de senhora. Não sou muito mais velha que você. — Após um momento, ela esticou os braços para cima e se espreguiçou, como se estivesse
relaxando. — Está quente aqui, não está? — perguntou, mudando de assunto.
Seu corpo ficou evidente e Sumo não conseguiu deixar de notar a beleza da moça. Slurg continuava cinzento, remexendo-se no ombro do dono. Sumo ficou confuso com
o comentário dela. Para o guerrin, o ar estava fresco.
— Vou para o meu quarto relaxar um pouco e aproveitar para fazer alguma coisa agradável antes de amanhã. Sugiro que faça o mesmo. — Ela piscou para ele, que permaneceu
calado. — Sabe... Com esse calor, vou ter que deixar a janela aberta. O meu aposento é no quarto andar, a última janela à direita, e pega uma ótima brisa nessa época.
Então se aproximou de surpresa e deu um beijo no rosto do guerrin, tão perto dos lábios que quase encostou em sua boca. Ele inspirou profundamente e foi tomado pelo
odor agradável do perfume dela enquanto ela se afastava.
— Às vezes o vento traz alguma coisa com ele. Quem sabe hoje seja uma dessas noites.
Ela acenou para ele e se foi. Demorou para ele perceber todas as deixas dela, mas, quando entendeu, sorriu envergonhado e ao mesmo tempo animado. Slurg mudou de
cor, ganhando tons azul-escuros, vermelhos, verde-escuros e verde-claros [falta de coragem; desejo; virilidade; contentamento].
Kullat, que havia saído para o pátio, retornou pela porta externa, sendo seguido por Thagir.
— Ei, Sumo! Vai ficar aí parado?
— Mestre, será que posso me retirar? — ele perguntou timidamente. — Queria ir para o quarto...
Sumo ficou parado, à espera da resposta de seu mestre.
— Claro, Sumo — Kullat respondeu, pensando que o guerrin estava querendo deixar os dois amigos a sós. — Nos vemos amanhã.
— Até amanhã, mestre.
Então sorriu e desapareceu pelo corredor.
Conversas ao Luar
Thagir e Kullat entraram no jardim da sede. A noite estava clara e era iluminada por uma das duas luas de Kynis.
Uma belíssima fonte triangular ornava o centro de uma plataforma de madeira negra. Do alto, água escorria vagarosamente, deslizando por paredes trabalhadas e indo
cair em um tanque. Tubos transparentes a canalizavam para nichos de árvores e plantas, fazendo um barulho tranquilizador. Pequenos quiosques com cadeiras e mesas
de madeira, com um tubo de água no centro, permeavam o lugar.
Kullat se sentou em uma cadeira e Thagir em outra, a seu lado. De repente, o tubo no centro da mesa piscou e uma luz verde-clara surgiu. Os demais tubos espalhados
também se acenderam, deixando o jardim com um brilho esverdeado, que combinava com a fonte, igualmente iluminada.
— Pegue isto — o cavaleiro disse, entregando um objeto a Thagir. — E leve com você.
Thagir olhou para a mão do amigo e viu o broche azul de dragão que ele usava para se comunicar.
— Já que sua tatuagem fantasma está inativa, porque você não é mais um Senhor de Castelo — Kullat explicou, olhando sério para o amigo —, isso vai nos ajudar.
Thagir estranhou a mudança de humor do amigo.
— Acalme-se. — Thagir colocou a mão no ombro do amigo. — Só vou ter uma conversa amigável com o rei deles. Que perigo pode ter nisso?
— Eu sei. De qualquer forma, tenha muito cuidado. Com Sumo e com você mesmo — Kullat retrucou, amargo.
— Kullat! — Thagir exclamou, segurando o broche com força. — Essa situação toda é muito difícil, mas você não pode se deixar abalar. Eu nunca vi você assim. Justo
você, que nunca deixou de brincar, mesmo nos piores momentos!
— Humm — murmurou o cavaleiro, soturno. — As coisas mudaram.
Thagir deu uma sacudidela no amigo e abriu um largo sorriso.
— A vida é feita de mudanças, e algumas delas estão fora do nosso controle. Só nos resta saber tirar o melhor da vida e evoluir, mantendo sempre a nossa essência
intacta. Lembre-se: você pode mudar o Multiverso, mas o Multiverso não pode mudar você!
Kullat assentiu, pensativo. As palavras de Thagir faziam sentido, mas eram difíceis de seguir.
— Se precisar, me chame. Chegarei voando.
— O mesmo vale para você. Se precisar, me chame — disse Thagir, indicando o broche em sua mão. E acrescentou, sorrindo: — Chegarei atirando.
Kullat sorriu ao imaginar o amigo chutando uma porta, com armas em punho e atirando para todos os lados. Ele se sentia mais leve ao contar com Thagir entre aqueles
que o ajudariam na missão. Uma dura e arriscada missão de paz.
— Como você e Nahra estão se virando? — perguntou o pistoleiro, depois de um breve silêncio. — Ela é de Lican e você não morre de amores por licanos... — A frase
saiu com um riso.
— Fiquei bem espantado quando ela apareceu — confessou o cavaleiro. — Quase soltei uma rajada na sala central.
— O poderoso Kullat com medo? — Thagir riu.
— Pare com isso — Kullat resmungou. — Eles sabiam que eu não gosto de lobos de qualquer tipo, principalmente daqueles que falam. E ela não é exceção; ela é imune
aos meus poderes, como todos os licanos e lobos. Ter Nahra como parceira de campo é... — ele parou, coçando o cavanhaque — ... um erro estratégico.
— Pelo contrário — Thagir meneou a cabeça. — Veja bem. Em uma dupla deve existir equilíbrio. Um deve poder suprir a carência do outro, para que a união seja maior
do que as partes sozinhas. Mas um também deve conseguir “anular”’ o outro, se for preciso. Só assim é possível minimizar os estragos, caso um dos dois “se perca
no caminho”. Na minha opinião, Nahra foi uma escolha acertada. Ela é uma das únicas que podem enfrentar você, justamente por ser imune aos seus poderes.
Kullat pensou um pouco em silêncio e, mesmo contrariado, resolveu argumentar:
— Essa é a teoria da Ordem. Mas na prática é muito difícil encontrar esse equilíbrio. Às vezes, chega a ser impossível. Veja nós dois. Quando éramos parceiros, com
certeza éramos melhores juntos que separados. E você tem de concordar comigo que, se eu me “perdesse no caminho”, você não teria como me deter. — Kullat olhou para
Thagir sem falsa modéstia.
Thagir deu um sorriso maroto.
— Se é o que você pensa...
— Ah, tá bom... — Kullat debochou. — Vai querer me dizer agora que o senhor conseguiria me deter, caso eu ficasse louco e começasse a lançar raios por aí.
— É... — Thagir fingiu pensar. — Se você ficasse louco, com certeza eu teria que usar meus “truques” para impedi-lo. — Ele piscou para o amigo.
Kullat deu de ombros e parafraseou o outro.
— Se é o que você pensa...
— Mas vamos voltar para a realidade. Você estava me dizendo que Nahra é imune aos seus poderes. Como pode ter certeza disso?
— Bom... — Kullat suspirou e, de dentro do manto, tirou um pão recheado de queijo. Thagir riu ao ver o lanchinho típico do amigo. O cavaleiro fez um gesto para que
Thagir parasse de ralhar com ele. — Em uma missão em Yllib, nós estávamos entrando nas ruínas de Bragg quando Nahra foi cercada por um enxame de hehists. Sabia que
aquelas coisas são carnívoras e um enxame pode devorar um animal em minutos? Pois é, para salvá-la, eu tive que soltar uma rajada contra ela e os bichos...
— E... — O pistoleiro ficou curioso, escutando o amigo atenciosamente.
— Eu desintegrei tudo. — Ele mordeu o pão e mastigou vagarosamente. — Quer dizer, quase tudo. Ela não sentiu nada, nem cócegas. Para piorar, ela é capaz de materializar
um lobo gigante... — Kullat se mexeu, sentindo um arrepio lhe atravessar a coluna. — Odeio aquela coisa... — E deu outra mordida no pão.
— Não entendi. Como assim, materializar um lobo? — perguntou o pistoleiro.
— Deixe que eu explico — respondeu uma voz vinda de trás de uma amurada de flores. Era Nahra, que surgiu balançando a cauda alegremente, fazendo o cavaleiro engasgar
com o pão.
Thagir riu e gesticulou para Nahra, convidando-a a se sentar com eles. Kullat resmungou alguma coisa, mas o pistoleiro não deu atenção.
— Desculpe se me intrometi — ela disse —, mas acabei indo para um caminho sem saída e tive que voltar para cá.
— Não se preocupe. Sente-se conosco e conte mais sobre o tal lobo gigante — Thagir pediu.
— Melhor mostrar, não? — ela disse.
— Não. Não faça isso... — Kullat gesticulou, agitado, mas era tarde demais.
Os olhos de Nahra brilharam fracamente e uma massa azulada surgiu ao seu lado. Rapidamente mudou de forma, diante dos olhos do pistoleiro. Um focinho grande se destacou,
seguido de uma enorme mandíbula com dentes afiados. Orelhas despontaram eretas na parte superior da cabeça. Quatro filetes de luz pulsaram, revelando patas grossas
com garras. A forma se alongou, transformando-se em um enorme dorso peludo e forte. Em instantes, um lobo semitransparente surgiu ao lado da bela mulher. Era enorme,
chegando quase à altura de Nahra sentada. A pele da criatura era repleta de marcas de batalhas. O Lobo olhou em volta, farejando o ar e rosnando baixinho.
Nahra passou a mão na cabeça dele e Thagir viu que, apesar de translúcida, até a pelagem da criatura era real, como um lobo de verdade.
— Impressionante! — Thagir exclamou, ainda admirando o enorme lobo.
— Obrigada — Nahra sorriu. — Ele se chama Talbain e é um token que recebi quando nasci — explicou. — Todos em Lican ganham um token da natureza. É como uma parte
de mim. Kullat não gosta, mas ele é bem fiel.
Talbain rosnou para Kullat e deu um passo em sua direção. O cavaleiro instintivamente deu um salto e flutuou no ar, com um escudo de energia à frente. A mão livre
estava fechada, como se empunhasse uma espada.
Thagir olhou para o amigo e gargalhou.
— Deixe de drama — Nahra disse, rindo. — Ele não vai te atacar.
— Nunca se sabe... — o cavaleiro retrucou, mantendo o escudo firmemente diante de si. As mãos brilhavam intensamente e a testa gotejava de suor.
— Mesmo se ele te atacasse, de que adiantaria esse seu escudo? O Talbain passaria por ele como se fosse uma ave atravessando uma nuvem.
— Não dependo de meus poderes para cuidar dele — Kullat resmungou, fazendo o escudo sumir. A mão livre tremia, mas ele manteve a posição.
Sempre que Talbain aparecia, Kullat reagia assim. O medo por causa da criatura era sufocante, mesmo com Nahra dizendo que o lobo não faria nada contra ele.
Para acalmar o cavaleiro, ela mandou o animal para o fundo do jardim, onde ele ficou sentado, contemplando a noite.
Nahra e Talbain
— Sente-se logo, seu medroso — disse Thagir.
Kullat olhou novamente para o lobo, que parecia hipnotizado pelas luzes cintilantes da noite de Kynis. Então murmurou, encarando Nahra:
— Detesto esse seu bicho...
— Não se preocupe, já estamos de saída — ela respondeu com um sorriso desdenhoso.
— Não. Fique! — disse Thagir, sincero. — Acho que não teremos muitas outras oportunidades de conversar daqui para frente.
— Tem certeza que não vou atrapalhar?
— Sem problemas. Eu e esse menino medroso aqui... — ele apontou para Kullat.
— Por favor, pare — interrompeu o outro, sério.
Thagir e Nahra sorriram.
— Tudo bem então. Esse cabeça-dura aqui e eu — Kullat meneou a cabeça e bufou pelo comentário do amigo — já conversamos um pouco hoje e calibramos nossas Marus.*
Além do mais, sempre vamos ter oportunidade para brigar de novo.
Kullat apenas sorriu, cerrando um punho e inflamando-o com energia mágica.
— Então — ela continuou, puxando uma cadeira e sentando-se ao lado de Thagir —, conte-me mais sobre você.
— Eu sou de Newho, do planeta Curanaã. Meu planeta é muito diferente deste aqui. Não há máquinas como essas. Nosso povo é muito mais ligado à natureza do que à tecnologia.
— Que coincidência! — Nahra exclamou. — O reino de onde venho também tem uma conexão muito forte com a natureza. É como se todos fôssemos uma grande família em Lican.
— O contato com a natureza é libertador, não?
— Claro — Nahra sorriu ao ver que Thagir entendia muito sobre a harmonia de viver em contato com a natureza. — Nós, licanos — ela encarou Kullat com seriedade —,
odiamos quando tentam cortar nossa liberdade.
— A liberdade é um dos bens mais preciosos — disse Thagir, meneando a cabeça afirmativamente. — Talvez o mais importante, depois da família e dos amigos.
— Sem dúvida! — Nahra exclamou. — E, por falar em família, Kullat me disse que você tem duas filhas...
— Lara e Alana. São as minhas princesinhas. Minha mãe e meu pai moram com a gente também.
— Não é o contrário? — disse Kullat, forçando uma expressão séria. — Achei que o castelo fosse do seu pai e que você está lá de favor.
— Lá vem você com suas delicadezas... — Thagir riu, fazendo Nahra rir também. — Na verdade, senhor Kullat, o castelo é sede da regência — continuou Thagir, apontando
para o próprio colar. — E, como eu sou o atual regente, são eles que moram comigo.
— Ah, tá. Pondo nessa perspectiva...
— Que linda joia! — exclamou Nahra, admirada com o colar de Thagir, adornado com imagens chanfradas dos símbolos de sua terra e com uma magnífica gema esverdeada
incrustada no centro.
— Esse é um dos meus truques — Thagir piscou para Kullat, que fez uma careta. — É o Medalhão do Regente — continuou, levantando a peça para que Nahra pudesse apreciá-la
melhor. — Ele está conectado magicamente com um alarme em outros medalhões parecidos que meu pai e minha esposa usam, lá no meu reino. Se o alarme for acionado,
não importa em que lugar do Multiverso eu esteja, ficarei sabendo na mesma hora.
— É por isso que ele podia ficar tranquilo quando saía em missões — complementou Kullat.
— É verdade. Estamos enfrentando uma crise por lá. Mas tenho certeza de que minha família é capaz de lidar com a situação sem precisar da minha ajuda.
Khrommer os proteja, pensou Kullat.
No jardim, sob a luz da lua, o trio continuou a conversar despreocupadamente, aproveitando os últimos momentos de calmaria antes da tempestade.
Já era tarde da noite quando Nahra resolveu se retirar. Thagir também aproveitou para ir para o quarto.
— Kullat, você vem? — perguntou o pistoleiro.
— Ainda não. Aqui é um lugar bem tranquilo. Quero meditar um pouco antes de dormir — respondeu, esticando os braços. Olhando para o lobo com desconfiança, acrescentou:
— Nahra, você pode levar o seu... bichinho?
Ela riu e fez sinal para que o lobo a acompanhasse. Thagir achou graça e a seguiu. Kullat se sentou próximo à fonte, com as pernas cruzadas, e, em instantes, uma
aura prateada surgiu ao redor de seu corpo, fluida como a água que brotava do chafariz.
Nota
* Expressão equivalente a “acabar com as diferenças” ou “entrar em entendimento”.
Prisão a Céu Aberto
Já no quarto, Nahra fechou a porta e se sentou na cama, com Talbain deitado a seu lado. Ela bocejou longamente e se espreguiçou. O dia tinha sido longo e cansativo,
e uma das frases que Thagir dissera não lhe saía da cabeça:
A liberdade é um dos bens mais preciosos.
Aquilo pesava amargamente em seu peito. Ela suspirou e olhou para Talbain. O lobo tinha as orelhas baixas, como se sentisse a angústia da dona. Nahra suspirou e
despiu-se completamente, como se isso lhe desse um pouco mais de paz, um pouco mais de liberdade. Então sacudiu as orelhas lupinas e balançou a cauda suavemente,
sentindo o ar fresco da noite por todo o corpo.
Mas o alívio durou pouco. Aquele sufocamento crescia dentro de sua alma havia anos, desde que ela atendera ao pedido da matriarca de seu clã, para que se juntasse
aos Senhores de Castelo. Apesar de atingir seu objetivo, todos aqueles anos na Academia e todo o tempo de serviço para a Ordem haviam tornado sua vida uma prisão
a céu aberto. Todas estas imposições e normas: hora para estudar, comer, treinar, descansar, o que vestir, como vestir... Era como se tivesse se tornado uma marionete.
Para piorar a situação, as rondas, sua única válvula de escape para exercer sua liberdade, não passavam despercebidas. Ela era sempre repreendida e precisava ouvir
longos discursos sobre o que podia ou não fazer.
Talbain rosnou fracamente e ergueu a enorme cabeça, cheirando os biscoitos que estavam sobre uma mesinha, ao lado da cama. Eram de chocolate com mel e pareciam deliciosos,
mas o lobo apenas deu mais uma cheirada no prato e voltou a se ajeitar no chão do quarto, sem tocar nas guloseimas. Nahra lembrou-se de Kullat.
Se ele estivesse aqui, provavelmente já teria comido tudo, e sorriu ao imaginar o cavaleiro devorando os biscoitos como uma criança. A presença dele geralmente a
alegrava, mas a discussão no navio ainda lhe apertava o coração. Ela mexeu nas longas mechas de cabelos, tentando alinhá-los enquanto remoía a lembrança da briga
que tivera com Kullat no navio, das palavras rudes e autoritárias que ouvira e que tão profundamente a magoaram.
Ela fechou os olhos, lembrando como o cavaleiro entrara furioso na cabine depois de saber que ela havia feito uma ronda com um marujo e, apesar dos pedidos dele,
repetira o feito com outro, duas noites depois.
— Chega! — ele disse duramente, em nada se parecendo com o bem-humorado e alegre Kullat que ela conhecia. — Você não entende, não é? Eu pedi para você, não pedi?
Parece até que esqueceu que temos um garoto sob nossa responsabilidade e que ele vê você como exemplo.
— Não é assim — ela tentou argumentar, mas foi calada por um gesto dele.
— Eu não concordo com tudo. Acho até que Ur’Dar pega muito pesado com você, mas ele tem razão em algumas coisas. Essa é uma delas.
— Eu sou livre para fazer as minhas escolhas — ela vociferou.
— Você já deveria saber que cada escolha tem uma consequência, Nahra — ele retrucou nervoso, com os punhos enfaixados brilhando intensamente. O cavaleiro parou um
instante e meneou a cabeça, como se percebesse que discutir não iria resolver nada. — Vou pedir que arranjem outro castelar para missões de campo com você. — As
últimas palavras foram ditas com um suspiro de desânimo, e Kullat saiu, sem lhe dar sequer uma chance de argumentar.
Sentada na cama, Nahra apertou com força um travesseiro, perfurando a elegante fronha com suas garras. Kullat era seu quinto parceiro em oito anos, e todos, sem
exceção, pediram para se afastar dela, justamente por não conseguirem lidar com sua necessidade de ser livre.
Se perdesse Kullat, teria de voltar ao Conselho, ouvir sermões e mais sermões sobre sua conduta e esperar até que lhe dessem outro parceiro. Ela já sabia que não
seria uma mulher, já que duas Senhoras de Castelo que foram designadas para acompanhá-la em campo desistiram em menos de um ano. Kullat, por outro lado, foi o único
que tentou orientá-la e até entendê-la um pouco mais. Ele nunca a xingou nem a desrespeitou, como tantos outros, mesmo quando discutiam.
Nahra lembrou que, mesmo nas vezes em que eles se desentenderam, o cavaleiro nunca a deixara sozinha em missões. Ele sempre estivera lá, ajudando-a e protegendo-a,
com palavras ou escudos de energia. Ela não esquecera que fora Kullat quem salvara sua vida em Yllib. Mas, invariavelmente, o cavaleiro agia como um guardião, vigiando
seus passos e cuidando de suas atitudes.
Um homem gentil e confiável, pensou, enxugando os olhos, que começaram a lacrimejar. Mas, ainda assim, um servo dessa sociedade carrasca...
Como se lesse seus pensamentos, Talbain uivou baixinho. Ela enxugou os olhos e afagou a cabeça do enorme lobo, sentindo os pelos ectoplásmicos e a respiração forte
do animal. Ela bocejou novamente, sentindo o sono chegar sorrateiro.
— É melhor você ir dormir agora — disse a Senhora de Castelo, dirigindo-se ao enorme lobo. — Boa noite, Talbain querido.
O animal sacudiu levemente o corpanzil e fechou os olhos. Em seguida, desapareceu no ar.
Nahra andou até a janela oval e contemplou a lua avermelhada no céu de Kynis. Olhou para baixo e viu uma trêmula e fraca luz prateada, vinda próxima da fonte no
jardim. Reconheceu Kullat, que meditava, alheio aos sentimentos dela. Ela tentou contemplá-lo por um tempo, mas seus olhos embaçados a fizeram desistir.
Então voltou para a cama. Na tentativa de acalmar o coração, cerrou os olhos, lembrando-se do poema que ela e Kullat declamaram juntos, dias atrás.
Quando achei você, me perdi
mas até o sol se põe no paraíso
Você sabe que estou com medo
e quando eu estiver morto
suplico que me liberte.
Suplico que me liberte..., ela pensou.
E, amargurada, adormeceu.
O Maior Poder de Todos
Tarde da noite, Kullat parou de meditar. A temperatura havia caído e um vento frio soprava no jardim, então ele decidiu ir para o quarto. No entanto, um barulho
chamou sua atenção. O cavaleiro colocou o capuz, buscando identificar a origem daquele som. O jardim da sede era circular e ficava entre os dormitórios, as salas
de comunicação e a sala de jantar. Kullat olhou ao redor e viu que uma coluna d’água se erguia no lado direito das janelas dos quartos.
Por Khrommer, o que é que ele está fazendo?, pensou, ao ver Sumo no topo da coluna d’água.
Da janela, alguém surgiu e deu um beijo demorado no rapaz. À luz da lua, Kullat reconheceu a jovem Ulani. Os dois aprendizes se despediram, Sumo se afastou e a jovem
se recolheu.
Alheio à presença do cavaleiro, o guerrin gesticulou e a coluna d’água começou a diminuir de tamanho. Na metade do caminho, alguma coisa o pegou pela gola e o levantou
no ar. Assustado, Sumo percebeu que estava voando, cada vez mais alto.
— Posso saber o que você estava fazendo?
O rapaz reconheceu a voz do mestre e engoliu em seco.
— Mestre Kullat?! — balbuciou com espanto, enquanto eles subiam no ar.
— Crianças deviam estar dormindo a essa hora da noite. — Kullat segurava o aprendiz pela gola e ambos flutuavam no ar.
— Eu não... Por favor, me ponha no chão — Sumo suplicou, cheio de pavor, com os olhos marejados.
O rapaz agarrou o manto do mestre com desespero. Kullat havia esquecido que o jovem tinha terror de altura e rapidamente retornou ao jardim.
O guerrin se segurou em uma árvore, arfando e suando, e o cavaleiro apontou para uma pequena bica que jorrava ali perto. O aprendiz pegou um pouco de água e lavou
o rosto.
— Desculpe, Sumo — Kullat disse, preocupado. — Sinto muito mesmo, não tive a intenção...
— Eu estou... bem — Sumo respondeu, ainda arfando. — É que...
— Eu sei. Todos nós temos nossos medos. Não é vergonha nenhuma.
Kullat esperou o garoto se recuperar, recriminando-se por ter agido de maneira impensada.
— Agora que você está mais calmo, posso saber o que estava fazendo? — Kullat perguntou, aproximando-se do guerrin.
Sumo enrubesceu, sentou-se em uma cadeira e apoiou o cajado no encosto. Hesitou um pouco, mas no fim contou sobre sua conversa com Ulani depois da reunião e sobre
o convite da guerrina. Disse a Kullat que, num primeiro momento, fora para o próprio quarto, indeciso sobre o que fazer, mas, refletindo um pouco mais, achou que
poderia se arrepender se não fosse conversar com Ulani. Então deixou Slurg dormindo e saiu para o jardim, para se tornar o que o vento traria naquela noite para
Ulani. Confessou ainda ao mestre que, agora, estava confuso, pois, mesmo não tendo nenhum relacionamento oficial com a guerrina Darsa, sentia que estava traindo
a confiança dela. Mas, ao mesmo tempo, também sentia uma forte atração por Ulani.
Kullat ouviu tudo sem interromper, apenas assentindo de vez em quando.
— Vou ser punido, mestre? — Sumo perguntou, fitando o chão.
— Por que pergunta isso? — indagou o cavaleiro, sério.
— Mestre... — Sumo ficou confuso. — Não é esse tipo de coisa que põe a mestra Nahra em apuros?
Kullat pensou um pouco. O guerrin tinha razão. Era exatamente aquele tipo de atitude que deixava Nahra em maus lençóis. Mas, naquele caso, era um pouco diferente.
Afinal, eles eram dois guerrins desimpedidos, conhecendo-se um pouco melhor. Uma situação típica dos jovens.
— Muito bem. Vejo que você é bastante observador e ciente das coisas que acontecem ao seu redor. Respondendo à sua pergunta: Não, você não será punido. Como poderíamos
punir o amor?
— Amor? — o guerrin disse, confuso. Ele tivera uma noite bastante agradável com Ulani, mas ainda era cedo para dizer que aquilo era amor.
— Veja bem. De todos os poderes do Multiverso, o maior talvez seja o amor — Kullat respondeu, batendo no ombro do aprendiz. — Cada ser do Multiverso ama de maneira
diferente. O amor não tem fórmula ou receita pronta, embora muitos queiram embrulhá-lo e dá-lo de presente. Existem diferentes tipos de amor, dependendo da nossa
idade, da nossa experiência e das situações em que nos encontramos.
— Se estou entendendo direito — disse o guerrin, confuso —, o que o senhor está querendo dizer é que o amor é um sentimento amplo, que pode variar de intensidade
e de forma. É isso?
— Mais ou menos — Kullat respondeu. — Veja o meu caso. Eu amo minha família de um jeito, meus amigos de outro e certas pessoas ainda de outro. Posso até amar determinada
pessoa de um jeito especial, mesmo que por um dia ou uma noite. O importante, meu jovem, é que o amor é uma força que pode nos trazer muitas alegrias, mas também
muitas tristezas, se não soubermos lidar com ele. — Kullat retirou o capuz e sorriu para Sumo. — Se você não desrespeitar ou magoar ninguém e não quebrar nenhuma
promessa ou juramento enquanto amar, por que seria punido?
— Desculpe, mestre, mas isso é muito confuso.
— Claro que é. O amor é um dos assuntos mais estudados e menos conhecidos do Multiverso! E é um dos sentimentos que a Ordem mais preza.
— Mas onde entra o amor na nossa constante luta pela paz? Quer dizer, na Ordem dos Senhores de Castelo?
— A Ordem preserva a paz acima de tudo, certo? Mas pense comigo: se você tem paz, mas não tem amor, de que vale lutar por isso? Salvar o Multiverso só faz sentido
se você, acima de tudo, ama a si mesmo e aos outros, pois essa é a paz mais completa que podemos ter.
Sumo parou um instante e pensou em Ulani e depois em Darsa. Duas pessoas que haviam mexido com ele e que agora ocupavam seus pensamentos. Ele não sabia qual delas
faria parte de seu futuro, se é que fariam, mas sentia que gostava delas, cada uma de um jeito especial.
— Mestre — ele hesitou, mas Kullat o encorajou a continuar. — O senhor já se apaixonou? Quer dizer, correu um boato na Academia sobre Tannhauser* e uma mulher da
casa de Ludoc...**
— Ah, Sumo — Kullat sorriu. — Um dia eu conto essa história direito. Agora é melhor voltarmos. Já está tarde e amanhã teremos um dia bem cheio.
O jovem se inclinou para frente, em sinal de respeito e agradecimento ao mestre pela conversa. Em seguida, ambos voltaram para a sede, deixando para trás o jardim
enluarado. Afinal, precisavam se preparar para a dura realidade que os aguardaria no dia seguinte.
Notas
* A Cidade Mítica, impossível de encontrar, pois está em todos os lugares e em lugar nenhum. Não há relato formal sobre sua existência, mas as lendas dizem que os
portões da cidade só se abrem se o visitante for considerado digno de lá entrar.
** Uma das casas reais do planeta Kavon, no primeiro quadrante dos Mares Boreais. São cinco as grandes casas — Ludoc, Pim, Jak, Nisc e Regin — que habitam o planeta.
Entrega
Ilha de Ev’ve
Já era tarde da noite quando Laryssa e Virnus chegaram ao complexo de dormitórios da Academia.
Laryssa se sentia feliz por retornar, embora muito cansada de dias tão cheios. Mas, ao mesmo tempo, não queria que aquela aventura acabasse, já que a presença de
Virnus ao lado dela durante toda a viagem fora muito agradável. O guerrin era amável e atencioso, e seu sorriso a cativava cada vez mais. Em nenhum momento ele fora
deselegante. Na verdade, ele era um acompanhante perfeito.
A robocarruagem parou e Virnus a ajudou a descer. À luz da iluminação noturna, os cabelos do rapaz pareciam ter um brilho próprio, dourado como o sol. Ela pousou
sua mão sobre a dele, sentindo novamente o calor aconchegante de sua pele. Ele olhou no fundo dos olhos dela e a envolveu num abraço suave. Então sorriu levemente
e a beijou com ternura.
A princesa sentiu o corpo todo tremer quando ele a beijou e, por um instante, esqueceu-se de tudo.
Dívida de Vida
Planeta Kynis
A refeição noturna veio pela pequena fresta na parte inferior da portinhola de metal, em pratos simples de porcelana.
— Comida! Comida! — o Bobo bateu palmas, como se tivesse acabado de ganhar um presente.
— Quatro — o Ladrão murmurou. Ele sempre contava o número de batidas das portinholas. Depois de mais algumas tentativas frustradas de fuga, a única coisa que lhe
restava era ocupar a mente.
Então olhou para o prato: um pedaço de peixe, algas, vegetais cozidos e creme de batata-marinha. O cheiro de ervas era fraco, mas apetitoso.
Depois de comer em silêncio, Corning encostou na cama, encarando o teto. Ele pensava no motivo de sua dívida com Kullat. Nada relacionado a jogos ou dinheiro. Ao
contrário, era algo muito mais íntimo e pessoal: era uma dívida de vida.
Fechando os olhos, era como se pudesse vê-la novamente à sua frente. Cabelos castanhos e encaracolados, sorriso harmonioso e mãos pequenas e delicadas. Eles haviam
se conhecido no mercado de Ishtal, em Gri-mor.* Sem dinheiro e faminto, ele havia roubado maçãs e um pedaço de pão, mas fora visto por policiais e correu pelas barracas,
tentando escapar. Ao dobrar uma esquina, trombou com ela na frente de uma barraca de ebik.** O pão e as maçãs rolaram pelo chão sujo do mercado, e eles desabaram,
entrelaçados. Os olhos dela eram como lindas opalas, hipnotizantes, encarando-o com um misto de curiosidade e divertimento. Ele se levantou rapidamente, ajudando-a
a se levantar também. Queria correr para longe, mas estava tão admirado com a beleza daquela mulher que seus pés não obedeceram. Ao longe, os policiais se aproximavam.
Vendo o desespero dele, a mulher segurou sua mão e apontou para baixo da tenda, indicando um lugar para ele se esconder até os policiais irem embora. Depois de algum
tempo, ela apareceu com um prato fumegante. Ali na cela, ainda de olhos fechados, ele conseguia até sentir o odor suave do ebik cozido que ela lhe dera.
Daquele momento em diante, ela se tornou a razão de sua vida. E foi assim por um bom tempo. Não havia mais roubos, policiais ou jogos. Havia apenas ela.
Mas seu espírito era rebelde e tolo demais. Com a imaturidade característica dos jovens, ele abandonou a vida pacata e voltou a viver no submundo. Tempos depois,
recebeu uma carta da companheira. Foi o momento mais sublime e mais apavorante de toda a sua vida: ela estava grávida.
A notícia se espalhou pelo submundo e não faltaram cobradores para ameaçar a vida dela e de sua filha. Um deles foi mais longe e as sequestrou, obrigando Corning
a roubar as joias gêmeas de Yrkal*** em troca da liberdade delas. Corning cometeu esse roubo e vários outros, até que o sequestrador exigiu as Faixas de Jord. Foi
quando Corning tentou roubar Kullat, em Oririn, sendo facilmente derrotado pelo Senhor de Castelo. Desesperado, ele contou tudo ao cavaleiro e pediu clemência —
se ele não voltasse com as faixas, as duas seriam assassinadas. Tomado de piedade, Kullat invadiu o covil, levando não só as faixas, mas seus punhos e sua justiça
junto, e desmantelou a gangue, libertando mãe e filha.
Certo de que elas pagariam eternamente por seus erros, o Ladrão tombou aos pés do cavaleiro, suplicando a ajuda dele. Kullat prometeu cuidar delas. Deixou-as sob
os cuidados de alguns amigos, num lugar seguro em Oririn, e nunca permitiu que lhes faltasse nada. Nascia ali sua dívida com o cavaleiro branco.
— Oi! — a voz do Bobo reverberou na cela e o assustou. O Ladrão abriu os olhos e viu o amigo perto dele, olhando-o fixamente.
— Que susto! — gritou, irritado.
— Você está rezando?
— Eu, rezando? — O Bobo se afastou, enquanto o Ladrão sentava na cama. — Não. Não estava rezando. Eu estava apenas... lembrando.
— Lembrando? — o Bobo inclinou a cabeça, como um gato que olha para uma bola de fios. — Estava tentando lembrar o seu nome?
— Eu sei o meu nome! — ele respondeu, irritado, afastando o Bobo com uma das mãos.
— Duvido! Se soubesse, me diria qual é... — retrucou o Bobo, com uma expressão de inocência.
— Hoje eu não tenho nome — respondeu o Ladrão, lacônico.
— Então eu vou te chamar de... — o Bobo pensou um pouco e seu rosto se iluminou, como se tivesse tido uma grande ideia. — Vou te chamar de Arsene!
— Arsene? Mas que nome mais bobo! — respondeu o Ladrão.
— Então, Arsene — o Bobo disse, ignorando a reclamação do amigo. — Estava rezando para quem?
— Eu já disse que não estava rezando! — respondeu o Ladrão, irritado. — Eu só estava... lembrando delas.
— Ah... das protegidas do mestre fantasma? — O Bobo coçou a cabeleira ruiva, pensativo. — Como era mesmo o nome delas? Tulana e Eripia... Tilapía e Erana...
— Por Hood! É Tamisa e Érida! — o Ladrão berrou, levantando-se com raiva. — Tamisa e Érida! Eu já te falei centenas de vezes o nome delas!
— É que... — o Bobo se encolheu como um animal acuado e começou a se desculpar, mas foi interrompido bruscamente pelo Ladrão.
— Cale a boca! — ele gritou ameaçadoramente.
Então suspirou e andou até a janela submersa, levando as mãos ao rosto, tentando esconder os olhos marejados. Ele sempre pensava em voltar e encontrar as duas, mesmo
que fosse apenas para se desculpar, para dizer quanto sentia por ter sido tão imaturo e egoísta. Mas, agora que estava prestes a morrer, aquilo não seria mais possível.
Uma lula-estrela passou nadando suavemente pela janela, com o corpo brilhante iluminando as águas escuras, mas ele não a viu. Sua visão estava nublada pelas lágrimas.
Notas
* Um dos oito reinos de Julm, no primeiro quadrante dos Mares Boreais.
** Tipo de salgado feito de carne e farinha, temperado com folhas verdes. Pode ser frito, cozido ou cru, sendo muito popular nos mercados de Julm.
*** Joias mágicas feitas por uma maga de Tatur, capazes de criar grandes ilusões.
Pouco Tempo
Antes do amanhecer, em um galpão sujo e abandonado, Volgo segurava seu cajado de forma intimidadora. Os olhos crispados de ódio encaravam três kynianos, acuados
como animais. Pelas vestimentas simples, as botas gastas e o típico odor marítimo, era evidente que se tratava de três marujos. Modestos hospedeiros que tiveram
a má sorte de estar no lugar errado na hora errada e que agora eram parasitados pelas verdadeiras responsáveis pela ira de Volgo: as três irmãs trilobitas.
Irmãs trilobitas
As trilobitas estavam agarradas às costas dos marujos. No dorso tripartido, oito olhos piscavam desordenadamente. Com dois palmos cada, eram como cavaleiros da morte,
usando suas vítimas tanto como ferramentas quanto como comida. As três magas do planeta Trilo são irmãs com uma ligação que as torna muito fortes quando estão juntas,
mas perdem seus poderes quando estão sozinhas.
Alguns aparelhos de ferro soltavam vapor por pequenos buracos, deixando o ambiente com uma fina névoa, acentuando ainda mais a expressão dura de Volgo.
— Quantos fugiram? — a voz cavernosa de Volgo ecoou pela pequena sala mal iluminada.
O trio estava aterrorizado.
— Uma... apenas uma... — respondeu a maior e mais velha das trilobitas. A resposta saiu na voz do kyniano de crista amarela que ela controlava, um som tremido e
carregado de medo.
— Apenas uma? — repetiu o feiticeiro, com firmeza. — Apenas uma?!
Volgo colocou a ponta do cajado no queixo do kyniano e o forçou a encará-lo. Às costas dele, a trilobita sofria espasmos de medo. Com um gesto, Volgo suspendeu o
kyniano no ar, envolvendo-o com uma forte faixa de luz sólida. Ignorando os gritos abafados das demais, o mago se aproximou, empurrando o corpo com força contra
a parede.
A pressão das costas do kyniano contra a parede fez a trilobita guinchar, certa de que seria prensada até a morte. Se antes Volgo prometera que elas, ao acabarem
seu serviço, parasitariam elfi-dragões, dando-lhes uma sobrevida que poderia beirar à imortalidade, agora, ao sentir a pressão do corpo contra seu dorso, a trilobita
imaginou que a imortalidade talvez não fosse chegar nunca.
Outra máquina fez um chiado curto e jogou mais vapor na atmosfera insalubre da sala. Quase não havia luz, exceto a que vinha de um vidro sujo e embaçado, preso ao
teto.
— Ela estava pronta? — Volgo se mantinha indiferente ao terror na face dos kyniano-trilobitas.
— Nã-Não. Ela não estava pr-pronta ainda — respondeu, entre sopros de ar. — Estava um po-pouco instável...
Ainda enfurecido, Volgo soltou o kyniano, que caiu tremendo no chão. A trilobita se sacudiu em suas costas, aliviada.
— Me explique como uma mendiga fraca e instável conseguiu fugir. Como? — Volgo indagou, com os olhos em brasa.
A trilobita se agitou nas costas do kyniano enquanto ele erguia o braço esquálido e apontava para o fundo da sala, onde outros kynianos estavam deitados, uns ao
lado dos outros. Havia alguns mendigos, mas a maioria eram kynianos fortes, vestidos de preto.
— A que fugiu devia estar doente, e o feitiço pode ter feito ela ficar melhor.
Volgo refletiu. Era uma hipótese plausível, já que o feitiço influenciava diretamente a Maru vital das vítimas. Nesse caso, realmente a mulher pode ter ficado mais
forte e fugido. Mas, mesmo assim, seria apenas temporário. Graças à forte instabilidade do processo, ela poderia morrer a qualquer momento.
— Quanto tempo ela tem? — Volgo fechou o punho esquelético, devagar.
— Pouco. Um dia. No máximo dois — respondeu a terceira trilobita, com uma voz rouca.
Volgo olhou com desprezo para os kynianos-trilobitas, que se encolheram de medo.
— Amarrem todos os mendigos e voltem ao trabalho! — Volgo exclamou, apontando para os homens de negro nas camas. — Preciso que terminem o feitiço neles o quanto
antes.
As três irmãs obedeceram rapidamente, temendo a terrível ira do mago rubro.
Vencedores e Sobreviventes
Com acenos de despedida, os dois grupos se dividiram. Kullat, Nahra, Cyrvil e Ulani pegaram uma condução por terra que os levaria até a sede do ministério, para
a audiência com os menteri. Draak, Thagir, Sumo e Slurg seguiram de barco.
O sol surgira havia pouco, mas o vento já estava quente. Seria um dia abafado e úmido.
No ritmo cadenciado do motor a vapor, a embarcação seguia para Makrao Maat, deixando rastros borbulhantes nas águas e duas finas colunas de fumaça flutuando no céu.
Diversas embarcações de As-Tanys estavam prontas para entrar em batalha se fosse preciso, mas, estranhamente, as outras embarcações comerciais e de transporte continuavam
a navegar tranquilamente, sem se importar com a tensão de uma guerra iminente.
Thagir notou outra coisa estranha. Uma enorme estrutura tubular, que parecia vir do centro da cidade, passava pela praia e entrava mar adentro. Usando o poder do
Coração de Thandur, o pistoleiro aguçou a visão e fitou ainda mais longe na praia. Em ambos os lados, e a perder de vista, viu vários daqueles tubos, espaçados por
alguns quilômetros uns dos outros. Todos cruzavam as areias e penetravam no mar.
Thagir se aproximou de Draak, que estava ao lado de Sumo.
— Draak, você sabe dizer o que são aqueles canos enormes?
Draak olhou para a praia e assentiu.
— Na verdade, sei sim. Está vendo aquele prédio alto no meio da cidade?
Thagir e Sumo olharam para onde Draak estava apontando. Ao longe, uma edificação erguia-se muito mais alta do que as outras. Era o ponto mais alto de toda a região.
— Aquela é a Torre Corilus — continuou Draak. — É para lá que nossos amigos estão indo neste exato momento. Além de ser a sede dos menteri, no subsolo da torre existe
uma usina de processamento de línguas de fogo. Depois da última grande guerra, a usina foi ligada diretamente ao mar por meio daqueles canos.
Ele se virou e apontou para um ponto adiante da proa do navio.
— Estão vendo que naquela parte não há nenhuma embarcação as-tanysiana? — Thagir e Sumo assentiram. — Na verdade, aquele é o limite das águas. Um pouco antes disso,
há uma linha encanada, paralela ao litoral, que é ligada àqueles canos lá atrás na praia. Quando a Torre Corilus libera a energia das línguas de fogo nos canos,
surge uma barreira de água plasmática.
— Água plasmática? — perguntou Thagir.
— Uma água superaquecida, mais quente que o próprio vapor!
— Que engenhoso! — disse Thagir, realmente espantado.
— Bastante engenhoso, amigo — respondeu Draak.
— Mas não é possível passar por cima? — perguntou Sumo.
— Na teoria sim, mas na prática é quase impossível — replicou Draak. — Teve uma vez que a barreira foi acionada e alguns cavalgadores de dragões do nosso povo tentaram
passar sobre ela, mas a água superaquecida é muitíssimo pior do que o simples vapor. Na verdade, é tão, mas tão quente, que é quase invisível. Ao mesmo tempo, sobe
a alturas tão elevadas que é impossível determinar quão alto a barreira chega. — Ele ficou em silêncio por um momento e então complementou, com pesar na voz: — Eu
perdi um tio naquele dia.
— Sinto muito — disse Thagir, com sinceridade.
— Estamos vivendo uma época insana, amigos — Draak falou, com tristeza —, em que irmãos lutam contra irmãos.
E apontou para as forças armadas continentais e depois sinalizou para o outro lado, em direção a Makrao Maat.
A força do vapor contra a brutalidade da natureza, pensou Thagir.
Ressentimento
Kullat, Nahra, Cyrvil e Ulani foram de inalve até a Torre Corilus, composta de trinta andares de bronze e rocha vulcanizada, com paredes sólidas e amareladas, poucos
vidros e formato cônico. Normalmente, a torre é repleta de funcionários do governo de As-Tanys, porém, com a aproximação da guerra, ganhou ares militares, com soldados
andando pelos largos corredores, carregando bastões energéticos e outras armas. Alguns andares servem agora de armazém logístico. Outros viraram paiol de armamentos
e enfermaria. Há, ainda, alojamentos de oficiais, centros de comando estratégico e toda a estrutura necessária para as tropas aéreas. Os últimos dois andares são
reservados ao ministério.
Após percorrerem o salão interno, repleto de soldados, e passarem por mais três inspeções de segurança, os quatro foram levados até o penúltimo andar. Guardas acompanharam
os castelares por um corredor largo, com colunas de rocha esculpida e esculturas realistas. Nas paredes, quadros detalhavam a história de As-Tanys.
Os soldados os conduziram até uma grande porta. Um deles a abriu, deu meia-volta e, com os demais, se retirou.
— Parece uma sala de interrogatório — disse Kullat, olhando ao redor.
Na sala, um tapete cinza levava ao centro do salão, onde havia apenas uma grande mesa em formato de C e treze cadeiras brancas.
— Vamos ter que esperar por Veryna — Cyrvil disse.
— Essa Veryna por acaso é uma policial que usa roupa preta metálica, com uma faixa na cintura? — Kullat perguntou.
— É ela mesma — Cyrvil respondeu, confusa. — Como a conheceram?
— Tivemos o desprazer de encontrá-la quando chegamos. — Diante da expressão de preocupação de Cyrvil, Kullat complementou: — Fique tranquila, nós não nos apresentamos
para ela.
— Mas não foi por falta de vontade — Nahra disparou, levantando as mãos e mostrando as unhas negras, que despontaram ameaçadoramente nos dedos.
— Ela se chama Veryna Das-Clias — Cyrvil continuou — e é a responsável por toda a segurança do reino. Ela é muito inteligente...
— E arrogante — interrompeu Ulani, cruzando os braços. Em vez da camisa vermelha, agora ela vestia top azul e blusa preta como as calças. Os cabelos curtos estavam
arrepiados.
— Além disso — Cyrvil continuou —, os menteri confiam nela. Tanto que, depois dos primeiros atentados, ela foi promovida a grã-chefe da Guarda Azul.
— Guarda Azul? — Nahra perguntou.
— É a elite policial de As-Tanys — Ulani respondeu, fazendo careta. — Um esquadrão bem treinado e letal.
— Eles foram escolhidos a dedo pela própria Veryna — Cyrvil continuou. — São tão orgulhosos que chegam até a se mutilar para demonstrar fidelidade.
— Nossa, que absurdo! — Nahra disse, espantada.
— Todos os membros da Guarda Azul cortam a segunda ponta das orelhas — Ulani explicou, fazendo o formato de uma tesoura com os dedos e levando-os perto da orelha.
— Fazem isso por acreditar que o verdadeiro povo Elfi só tinha uma ponta nas orelhas. Uma forma de homenagear as raízes mais antigas do povo kyniano.
Kullat se lembrou, incomodado, do que ocorrera na praça, quando os soldados fizeram o que lhes foi ordenado sem demonstrar nenhum traço de remorso ou hesitação.
Esse tipo de ação é extremamente radical, mesmo para guardas treinados.
De repente, uma figura entrou na sala com imponência. Kullat reconheceu a mulher de imediato — era Veryna Das-Clias. Ela usava o mesmo traje, e um bastão energético
se destacava na vestimenta. Era da altura de Nahra e exibia um vigor físico invejável.
Ela andou até o meio da sala com passos firmes, olhando para cada um deles com um ar arrogante. A pele era cinza-clara e a barbatana reluzia fracamente acima da
cabeça ereta. Mas o que mais chamava a atenção eram os olhos, de um magnífico verde-claro e, acima de tudo, desafiadores.
Ela parou no centro da sala, encarando Cyrvil e Ulani.
— Quem são eles?
E apontou para Kullat e Nahra com desdém, sem nem dizer seu nome, como se não precisasse se apresentar.
— Grã-chefe, gostaria de lhe apresentar Kullat e Nahra, da Ordem dos Senhores de Castelo — Cyrvil respondeu, com a diplomacia que o encontro exigia.
Kullat e Nahra se inclinaram em sinal de respeito.
— Senhores de Castelo? Quem diria. — Ela mediu ambos dos pés à cabeça, sem ao menos dar importância ao cumprimento. — Então são vocês que vão ter a audiência com
os menteri.
— Sim, grã-chefe — respondeu Kullat. — Viemos para ajudar no caso dos atentados e...
— Ajudar? — ela interrompeu, rudemente. — Eu não preciso de ajuda. Minha Guarda Azul tem muito mais competência do que um bando de maltrapilhos como vocês. — E apontou
para as faixas nas mãos de Kullat. — E tire esse seu capuz para falar comigo! Só criminosos escondem o rosto.
Os olhos de Kullat brilharam de raiva. Por um instante, ele se imaginou na posição dela, tendo grande responsabilidade de encontrar os terroristas. Mas sem resultados,
a ajuda que ele e Nahra supostamente trariam seria uma ameaça ao seu cargo. Com isso em mente, ele engoliu em seco e retirou o capuz em silêncio.
— Como eu estava dizendo — continuou Kullat, ignorando os desaforos —, estamos aqui para... falar com os menteri sobre as negociações de paz com o reino de Makrao
Maat.
— Ah, sim! — Veryna exclamou, debochadamente. — Vocês, os guardiões da paz no Multiverso, os defensores dos menos favorecidos.
— Faz parte do nosso papel... — Ulani começou a explicar, mas Veryna a interrompeu bruscamente.
— Não preciso da propaganda de vocês! — Veryna exclamou, com o dedo em riste, apontado para Ulani.
O rosto da guerrina ficou vermelho, mas ela permaneceu em silêncio.
— Eu sei por que vocês estão aqui — continuou Veryna, gesticulando enquanto falava. — Vieram meter o nariz onde não foram chamados. Vieram se intrometer em assuntos
que não lhes dizem respeito. Vieram atrapalhar o meu trabalho! — protestou, com uma voz arrogante e rancorosa.
Os castelares ficaram boquiabertos com a reação da grã-chefe. A revolta era tão grande que ela não media as palavras.
— Mas como infelizmente alguns menteri acreditam nessa bobagem toda, vim informar que a audiência vai atrasar duas horas. — Veryna apontou para quatro dispositivos
piramidais afixados no teto da sala. — Até eu voltar, vocês ficarão sob constante vigilância.
Em seguida, a grã-chefe sacou seu bastão e bateu levemente com ele na parede. Em instantes, dez guardas armados entraram na sala e se posicionaram em volta do grupo.
Um zumbido forte ecoou pela sala quando dez bastões energéticos foram ligados, com faíscas azuis iluminando a ponta das armas.
— Qualquer atividade suspeita deve ser controlada, entendido? — ordenou ela a um soldado.
O soldado apenas concordou com a cabeça, segurando firme seu bastão. Veryna saiu da sala, sem nem sequer olhar para trás.
Fumaça ao Vento
A viagem de Thagir, Draak e Sumo transcorreu em silêncio, quebrado apenas pelo barulho das ondas no casco e pelo ranger das tábuas da embarcação.
Sentado sobre uma caixa, Sumo afagava Slurg carinhosamente. O pequeno animal permanecia metade dentro, metade fora da mochila. Os olhinhos arredondados estavam fechados
e, vez por outra, o bichinho emitia um ruído baixo, como um ronronar misturado com pios. Draak permaneceu de pé na extremidade da proa, mergulhado em pensamentos,
impassível como uma estátua diante de uma tempestade.
Thagir refletia sobre o absurdo daquela situação. Duas nações dispostas a arriscar tudo em uma guerra. O pensamento o transportou para o próprio lar, que, naquele
exato momento, passava por situação semelhante.
Como as pessoas podem ser tão ignorantes a ponto de se matar para conseguir apenas bens materiais?, questionava-se o pistoleiro, indignado. Será que não percebem
que o maior bem que possuem são a vida e a felicidade de vivê-la com a família e os amigos?
Ele levantou os punhos em um reflexo não intencional, como se quisesse parar as guerras com as próprias mãos. Suspirando profundamente, resignou-se a aceitar os
fatos como eles eram: as guerras sempre existiram e continuariam a existir. Caberia a cada um lidar com elas da melhor forma possível.
Mais conformado, afastou a tensão do corpo, relaxou as mãos e as colocou nos bolsos da casaca. A mão direita repousou sobre um objeto que ele havia esquecido que
estava ali. Ele o retirou do bolso e o observou novamente, como fizera dezenas de vezes desde o início daquela viagem.
Era uma esfera de metal laranja-escura, do tamanho de uma ameixa, repleta de ranhuras e peças móveis, que criavam um quebra-cabeça complexo. Além de ser um passatempo,
era uma forma de conexão direta com sua família. Aquele era o mais novo Labirinto de Fogo que ganhara de Alana, sua filha mais velha, pouco antes de partir para
ajudar Kullat. Ela o criara especialmente para ele. Muito mais que apenas a diversão envolvida na solução do enigma, o que mais importava para Thagir era a mensagem
exibida quando o quebra-cabeça era decifrado. Alana lhe dissera que aquele era diferente e continha mais recados que os anteriores. Também lhe confidenciara que,
em sua mensagem, ela revelava um segredo que a mãe havia lhe contado. Como tinha certeza de que ele não conseguiria resolver o quebra-cabeça — o mais difícil já
criado —, ela fizera aquilo de propósito, só para deixá-lo ainda mais curioso.
Thagir passara dias tentando decifrar o enigma. Já havia feito de tudo — virado, torcido, girado e reordenado as peças de várias maneiras —, mas parecia não avançar
nenhum passo. Estava chateado por não encontrar a lógica daquele mistério, mas, ao mesmo tempo, sentia um enorme orgulho de sua filha, por criar algo tão complexo
sendo tão jovem.
Por algum tempo, ele se dedicou a achar a solução do quebra-cabeça, esquecendo-se dos problemas que estavam acontecendo em seu lar e dos desafios que em breve enfrentaria
ali em Kynis.
Inspeção
O capitão da embarcação, um kyniano alto e magro, de barba estranha e crista espetada, informou que eles estavam saindo das águas neutras e entrando nos limites
de Makrao Maat.
Sumo ficou boquiaberto ao ver dragões coloridos desenhando círculos imaginários no céu. Sobre cada um, uma dupla de soldados maatianos, ostensivamente armados. Um
deles voou mais baixo, passando rente às chaminés do navio. O vento do deslocamento espalhou o vapor e a fumaça e fez a bandeira maatiana tremular rapidamente. Os
dois soldados, com olhos atentos, analisaram toda a embarcação.
Draak acenou com um cumprimento militar para o primeiro na cela. Este retribuiu com o mesmo gesto e puxou o arreio da montaria alada, fazendo-a ganhar altura novamente
e se misturar às demais no céu.
A embarcação passou ao lado de um navio de metal. Aquele vigilante incansável permanecia desafiadoramente avançado, como um arauto de seu reino, pronto para entrar
em ação ao primeiro sinal de perigo. Várias embarcações similares, e outras um pouco menores, flutuavam pacientemente, à espera. Todas seguiam a mesma técnica construtiva:
carcaça de metal grosso, duas quilhas e pintura verde, com o símbolo de Makrao Maat em branco nas laterais.
Espalhados no mar, conjuntos de estruturas de combate protegiam as águas perto das praias insulares. Cada estação giratória era suspensa por enormes tripés de metal,
que mantinham seus canhões duplos apontados para o continente.
— Impressionado? — Draak perguntou, aproximando-se de Thagir.
— Muito! — o pistoleiro respondeu. — Estão mesmo preparados para a guerra.
— Estamos sempre preparados, amigo! — Draak exclamou, sem conseguir esconder uma pontada de orgulho.
Ironicamente, indiferentes ao poderio de toda aquela estrutura bélica, alguns pássaros sobrevoavam tranquilamente as estações, enquanto a água agitada batia contra
as estruturas triangulares de sustentação.
Sumo cutucou o pistoleiro e apontou para o mar, onde um vulto escuro e submerso acompanhava o navio. Ao se aproximarem da arrebentação, outros três vultos surgiram,
dois de cada lado da embarcação.
Inesperadamente, um deles emergiu, revelando uma enorme criatura, como uma serpente marinha, de cabeça alongada, mandíbula protuberante repleta de dentes serrilhados.
Barbatanas transparentes pendiam da face e do dorso, e escamas finas, de aspecto gelatinoso, coloriam-se com os reflexos da luz solar. Sentado em uma cela presa
ao pescoço da criatura, havia um soldado com roupas escuras e justas e capacete triangular. Dois grandes apêndices saíam das laterais da cabeça do monstro e se acoplavam
ao capacete do soldado, permitindo que ele respirasse o ar dos pulmões da serpente marinha enquanto estivessem submersos.
— Incrível! — exclamou Thagir, maravilhado pela beleza da criatura e pela graciosidade com que se movia.
— É um miluus — disse Draak. — Na verdade, é uma espécie de dragão marinho.
Sumo se aproximou com Slurg no colo, que exibia uma penugem rosada [fragilidade].
— Parece perigoso! — exclamou o garoto, receoso.
— E é! — Draak não conseguiu esconder seu orgulho. — Na verdade, são muito ferozes e extremamente rápidos. O veneno deles é tão potente que, mesmo diluído em água,
consegue paralisar a presa em instantes.
— Eles são treinados? — Thagir indagou, curioso.
— Desde pequenos, amigo.
Outro miluus, maior ainda que o anterior, emergiu ruidosamente do outro lado do navio, espalhando água ao seu redor. O animal esticou o longo pescoço sobre a embarcação,
farejou o ar e parou a enorme cabeça a poucos centímetros de Thagir. O pistoleiro ficou paralisado, sem saber o que fazer. A criatura o farejou e, chacoalhando a
cabeça, abriu a bocarra e expeliu uma enxurrada de água salobra.
O soldado, montado na cela no pescoço do animal, saltou agilmente para dentro do navio e, com uma espécie de lança de pontas duplas e extremamente afiadas, apontou
para Thagir e falou algo que o pistoleiro não entendeu. O tom de voz, contudo, deixava claro que havia algo errado.
Dragões de Makrao Maat
Draak se aproximou de Thagir, que estava todo ensopado e tentava limpar o rosto.
— Ele disse que o miluus sentiu a presença de alguma substância proibida em você.
Thagir, pingando, não respondeu. Apenas enfiou a mão em um bolso da calça e retirou uma planta medicinal de seu planeta.
— Será que ele está falando disso aqui?
O soldado pegou o ramo e o estendeu até o focinho do miluus, que permanecia com os enormes olhos vítreos bem perto de Thagir, encarando-o como uma fera prestes a
dar o bote. Ao cheirar a planta, o animal chacoalhou a cabeça novamente e outra enxurrada de água salgada lavou o pistoleiro de cima a baixo. Ele só teve tempo de
levantar as mãos, tentando proteger o rosto.
— Será que dá para ele parar de fazer isso? — reclamou o pistoleiro.
Draak aproximou-se, pegou o ramo da mão do soldado e o jogou para cima. No instante seguinte, da boca do Senhor de Castelo, uma língua de chamas vaporosas e escaldantes
surgiu, incinerando a planta em pleno ar.
— Tem mais dessa coisa com você? — Draak perguntou, passando as costas da mão na boca e enxugando os lábios. Thagir apenas meneou a cabeça negativamente. — Ótimo!
Então não teremos mais problemas.
Draak olhou para o soldado, falou algumas palavras em kin’nita e fez o gesto militar característico. O soldado empertigou-se e, um pouco desconcertado, respondeu
ao sinal. Rapidamente retornou para a cela, conectou os apêndices do animal novamente ao capacete, e ambos submergiram. A outra criatura, que assistira a tudo sem
interferir, também sumiu nas águas escuras.
— Desculpe, amigo — disse Draak. — Esqueci de avisar que as leis de Makrao Maat proíbem qualquer material orgânico não originário da ilha.
— Sorte que hoje não está frio — respondeu Thagir, dando de ombros.
— Posso ajudá-lo, mestre? — perguntou Sumo, aproximando-se.
— Ficarei imensamente grato — respondeu o pistoleiro.
Thagir abriu os braços e fechou os olhos, dando a deixa para Sumo agir. O jovem guerrin dobrou um pouco os joelhos, curvou o corpo e fez um movimento largo com os
braços. Em seguida, apontou as mãos para Thagir, fazendo gestos de baixo para cima, em uma espécie de balé sinuoso. Acompanhando os gestos de Sumo, toda a umidade
da roupa e do corpo de Thagir foi extraída e condensada em uma bolha voadora à frente do guerrin, que continuava a executar seus golpes dançantes. Com um movimento
lateral, Sumo transportou a massa líquida para fora do navio e a liberou sobre o mar.
— Sumo, essa sua habilidade é mesmo fantástica! — exclamou Thagir, completamente seco.
— Obrigado — respondeu o jovem, sorridente. — É um prazer poder ajudar.
De trás da caixa, uma pequena bola colorida surgiu e se jogou no colo do rapaz. Era Slurg, batendo alegremente as asinhas e soltando ruídos efusivos. O pelo estava
rajado de várias cores, como um arco-íris festejante.
Quando o navio finalmente atracou no porto, um batalhão de soldados já estava à espera.
Imagem Distorcida
Os soldados, de armadura e fortemente armados, subiram ao convés e começaram uma ronda pelo navio. Olharam tudo, sempre com a arma em posição de disparo. Um deles
olhou para Draak e fez o mesmo gesto militar de antes. O Senhor de Castelo apenas retribuiu o cumprimento.
— Inspeção de rotina — disse a Thagir e Sumo. — Não deve demorar.
Como Draak esperava, a inspeção realmente não demorou, mas nem por isso foi superficial. Os soldados se espalharam e analisaram a embarcação minuciosamente. Ainda
assim, foram rápidos e eficientes.
Em seguida, os três desembarcaram. Draak foi na frente, seguido por Sumo. O rapaz carregava o cajado em uma mão e a mochila nas costas, onde, além dos poucos objetos
de guerrin, estava o amigo Slurg. Thagir seguia à esquerda e também carregava uma pequena mochila, com algumas peças de roupa, utensílios pessoais e um pergaminho
dado a ele na noite anterior por Cyrvil, nomeando-o Daijin.
Havia tensão no olhar dos soldados, enquanto o trio andava pelo cais.
Ao chegarem à guarita de passagem para o interior da ilha, Thagir e Sumo tiveram seus pertences analisados. Apesar de não haver nenhum produto proibido, as armas
foram um empecilho momentâneo. Contudo, graças ao acordo maatiano com a Ordem, os castelares eram os únicos que poderiam entrar na ilha portando armas.
Assim que entraram definitivamente em terras maatianas, depararam com um vasto campo circular. No centro, uma praça hexagonal com uma enorme estátua de um ser humanoide,
mas sem muitos detalhes. Uma versão gigantesca do pingente de Draak. No lugar dos olhos, havia dois buracos. Ao redor da praça, vários dragões estavam deitados no
chão batido, colorindo a paisagem em tons diversos. Todos estavam de olhos fechados, e alguns soltavam pequenos rolos de fumaça branca pelas poderosas narinas.
— Estão descansando — disse Draak, ao ver a curiosidade do guerrin.
Os maatianos que andavam entre eles pareciam pequenos e indefesos diante da magnitude dos animais.
— Nunca vi um dragão tão perto — Sumo murmurou. — São gigantes!
— E muito poderosos, amiguinho — Draak complementou. — São a força aérea de Drakao Maat.
Draak continuou conduzindo Thagir e Sumo pelo campo circular. Eles passaram por uma série de postos de defesa, repletos de soldados armados, por alguns aparelhos
de guerra e por um cercado, onde alguns animais, grandes o suficiente para carregar até três soldados cada, estavam sendo banhados por maatianos de túnica escura.
Um elfi-dragão, também de túnica escura, esfregava com um grande escovão de aço a dura carapaça de um dos animais, que chapinhava satisfeito o chão, com as seis
grossas patas.
Mais adiante, chegaram a uma rua de pedras quadradas tão perfeitamente alinhadas que mais parecia uma obra de arte de um hábil artesão, e não uma forma de calçamento.
Diferentemente de As-Tanys, repleta de lojas e barracas espalhadas perto do porto, ali existiam construções funcionais, como se tudo tivesse sido planejado. Havia
grandes áreas de armazenamento, enormes cercados de madeira e metal, uma série de espaços de uso temporário e tanques imensos. Uma pequena construção, também com
janelas hexagonais, destacava-se por ter sobre o telhado outra estátua daquelas.
Vários veículos de transporte, de três eixos com rodas de ferro encaixadas em um sistema de trilhos, percorriam o lugar, sendo conduzidos por maatianos, normais
e transformados, que usavam o mesmo tipo de túnica escura. O cenário foi gradativamente mudando, dando lugar a grandes espaços de terreno plano, nivelado com uma
perfeição inacreditável e cercado apenas com telas.
— Aqui, amigos — disse Draak, apontando para os lados —, nosso ministro das construções reservou terras para futuras necessidades.
— A organização de vocês é impressionante! — exclamou Thagir, achando tudo verdadeiramente fascinante. Aquele tipo de pensamento, organizado e planejado, era o que
ele sempre defendia.
Eles caminharam por várias construções, com quatro pavimentos cada. Eram residências, construídas pelo governo para os operários do porto e suas famílias. Várias
janelas hexagonais davam ao conjunto o aspecto de uma grande colmeia. O mais incrível era que a vegetação nativa havia sido preservada, criando uma bela combinação
da natureza com as ruas e construções. Enquanto andavam, passavam por homens, mulheres e crianças maatianos. Todos sempre sorridentes, solícitos entre si e muito
amáveis com Draak, Thagir e Sumo, que, sentindo-se contagiados pelo clima agradável, retribuíam acenos, sorrisos e cumprimentos.
Finalmente, chegaram a uma praça comprida com três estátuas de tamanho natural. Do lado direito, um enorme dragão imponente e altivo. Do lado esquerdo, uma bela
e jovem kyniana com uma criança no colo. E, no centro, um transformado, com uma mão sobre o ombro da mulher e outra apoiada no dragão. No outro lado da praça, uma
única estátua com o dobro do tamanho das outras dominava o ambiente. Era outra estátua de Seath, com seus olhos vigilantemente ocos.
Um veículo comprido surgiu, deslizando silenciosa e rapidamente pela larga rua. Parecia um pepino gigante, em virtude do formato cilíndrico e da cor esverdeada.
— Zih’ka!* — praguejou Draak. — Corram, amigos! Temos que pegar aquele bulra!
Sem demora, ele começou a correr velozmente. Thagir e Sumo se entreolharam. O pistoleiro sorriu para o guerrin e saiu correndo, gritando:
— Aposto que chego primeiro!
Sumo ficou parado um instante, mas, no momento seguinte, ajeitou a mochila às costas e saiu em disparada atrás dos dois castelares.
Draak gesticulou e gritou, mas o veículo continuou em sua trajetória. Para surpresa de Thagir e de Sumo, bem diante de seus olhos, as mãos de Draak começaram a se
expandir. Cada um dos quatro dedos se distanciou dos outros, como um leque se abrindo. O pulso e o antebraço, passando pelo cotovelo e chegando até o ombro, também
se abriram em quatro estruturas musculosas, com um dedo em garra na ponta de cada uma. Entre as estruturas, havia uma fina membrana.
O pistoleiro quase tropeçou ao ver os braços de Draak se transformando em asas.
Draak bateu os braços-asas com força e, apesar de seu enorme tamanho, alçou voo facilmente. Com grande velocidade, alcançou o veículo e gesticulou. O veículo então
parou suavemente, e Draak, já com os braços de volta ao normal, esperou que Sumo e Thagir os alcançassem.
Sumo conseguiu chegar primeiro. Ambos estavam com a respiração acelerada, mas o pistoleiro estava bem mais cansado que o guerrin. Mesmo assim, eles sorriam abertamente,
alegres pela pequena competição.
— Estamos com sorte, amigos! — Draak exclamou, sinalizando para que os dois subissem. — Esse bulra passa perto do castelo real. Se perdêssemos esse, teríamos que
esperar um bom tempo até passar o próximo.
Arfantes, Thagir e Sumo não responderam. Apenas assentiram e seguiram Draak para dentro do transporte. Apesar de engraçado, era arejado e tinha bancos confortáveis.
Rapidamente, saíram dos limites do porto e trilharam uma estrada feita de enormes pedaços de rocha plana. A paisagem mudou, e surgiu uma estrada em meio a uma floresta
com uma infinidade de tons de verde. No horizonte, era possível ver uma cordilheira, com picos confeitados de neve. Eles seguiram por algum tempo margeando o litoral,
até chegar a uma ladeira íngreme. Apesar da forte inclinação, o veículo continuou deslizando tranquilamente, incansável em sua jornada.
Nota
* Gíria em kin’nita usada quando algo não dá certo, ou quando há uma confusão, problema ou desentendimento.
Cooperação
Os soldados mantinham o círculo ao redor de Kullat e seus amigos. Veryna demorou, mas finalmente voltou. Com a face inexpressiva, postou-se diante de um dos soldados.
— Tudo bem por aqui?
— Sim, grã-chefe. — A resposta foi automática.
— Muito bem. Os menteri já estão prontos. — Ela se virou para Cyrvil. — Quem vai falar com eles?
— Todos nós — ela respondeu.
— Não. Apenas dois de vocês — Veryna retrucou, com a voz autoritária.
— Grã-chefe — Kullat disse, no tom mais respeitoso que conseguiu —, todos somos da Ordem dos Senhores de Castelo.
— Eu disse apenas dois — Veryna rebateu, incisiva. Então se aproximou e encarou Kullat. — Somente dois.
Kullat fechou os punhos com força e labaredas prateadas surgiram ao redor das mãos enfaixadas. Alguns guardas se mexeram ao ver aquele brilho intenso. Até Veryna
sentiu um breve desconforto, mas não se abalou.
— Duas pessoas — ela reafirmou, sem se mover.
Antes que Kullat pudesse responder, Nahra interrompeu a discussão.
— Eu fico.
— Eu fico com ela — complementou Ulani, aproximando-se de Nahra.
— Muito bem. Vamos Cyrvil e eu — disse o cavaleiro, encarando Veryna e diminuindo o brilho das mãos. — Nahra e Ulani. Como Domo Shoujin, eu autorizo vocês a se protegerem,
se for preciso.
As últimas palavras saíram como uma ordem, e Veryna bufou em deboche.
Veryna olhou o cavaleiro furiosamente, mas se recompôs rápido, fingindo ignorar a provocação e ordenando que os guardas levassem Nahra e Ulani para uma sala ao lado.
Ela saiu e voltou logo em seguida, atrás de dois kynianos que usavam belos mantos com desenhos pretos nas mangas e no peito. O primeiro era baixo e tinha o corpo
roliço. Escamas prateadas delimitavam seu rosto, o que lhe dava a aparência de barba bem aparada. A barbatana na cabeça era pequena, mas bem cuidada. O segundo era
um pouco mais alto e magro. O queixo era fino e triangular, dando destaque às orelhas de pontas duplas.
— Grã-chefe, obrigado pela escolta, mas agora a senhora pode nos deixar — um deles disse, fazendo sinal para Veryna sair.
Pega de surpresa, a expressão de desagrado passou rapidamente a uma de dúvida.
— Estou aqui para garantir a segurança dos senhores — ela retrucou com deferência.
— Estamos bem seguros com nossos amigos — o mais alto disse tranquilamente, apontando para Kullat e Cyrvil. — Por favor, feche a porta ao sair.
Veryna ajeitou o corpo e se retirou respeitosamente, sem dizer mais nenhuma palavra. Kullat sorriu ao vê-la sair como uma criança mal-humorada.
— Essa mulher... — o mais baixo e gordo murmurou, mais para si que para Kullat e Cyrvil. — Desculpem, não nos apresentamos. Meu nome é Patre-Ulis, e este é meu colega,
Claw-Daram — disse, apontando para o kyniano alto.
— Podem me chamar apenas de Daram — disse o mais alto, sentando-se.
Patre-Ulis tinha olhos azuis que emanavam calma e sabedoria. Era menteri em As-Tanys havia mais de três décadas e sempre fora um pacifista. Sua luta e suas opiniões
contrárias à guerra chamaram a atenção do Conselho castelar, que o considerava um aliado importante.
— É uma honra conhecê-los, prezados menteri — o cavaleiro disse com uma leve reverência. — Eu sou Kullat, do planeta Oririn, e estou aqui com minha companheira para
poder ajudá-los.
O cavaleiro estendeu para Patre-Ulis um pergaminho amarelo, selado com o símbolo Musashi, onde a Ordem dos Senhores de Castelo registrou a missão.
Patre-Ulis desenrolou o documento e o leu. Passou o pergaminho para Daram, que o leu também, concordando com a cabeça.
— Estamos aqui para ajudar no que for preciso — Cyrvil disse, sentando-se perto de Daram.
— Sim, claro. Realmente estamos com sérios problemas! — continuou Patre-Ulis, esfregando as mãos rechonchudas num gesto nervoso.
— Por favor, nos deixem a par de tudo — pediu Kullat.
— Como vocês sabem, nossa sociedade é totalmente dependente das línguas de fogo que Makrao Maat produz — disse Daram. — Sem isso, nossa indústria vai à falência.
— Exatamente — Patre-Ulis disse, olhando para Kullat. — Alguns menteri acreditam que uma guerra vai nos trazer independência na produção de línguas de fogo. Infelizmente,
nossa grã-chefe é uma das maiores partidárias dessa ideia, e é por isso que precisamos de ajuda externa. Se não conseguirmos acabar com esses atentados, será a justificativa
perfeita para iniciar a guerra.
Uma onda de compreensão tomou conta de Kullat ao ouvir aquele comentário. Se Veryna não solucionasse o caso dos terroristas, poderia ser taxada de incompetente.
Se resolvesse, estaria impedindo a guerra e, consequentemente, indo contra sua própria noção distorcida de independência.
— Mas vocês já tentaram negociar com o rei de Makrao Maat? — perguntou Kullat.
— Acredite. Nós já tentamos. Mas o ministro de Relações Exteriores do rei é um tanto arredio — disse Patre-Ulis. — Parece até que ele quer que o rei declare guerra
contra As-Tanys.
— Tenho a mesma impressão — comentou Claw-Daram. — Nós nunca conseguimos conversar diretamente com o rei, pois sempre quem trata desses assuntos é o ministro.
Bemor, sendo o interlocutor entre o rei maatiano e os menteri, poderia manipular as conversações como quisesse.
— Sobre essas explosões — Kullat continuou, mais focado em tentar resolver a questão do que torná-la ainda mais complexa —, por que acham que são atentados?
— Foram três ao todo. Alguns prédios e casas de comércio explodiram, matando dezenas de pessoas — Claw-Daram disse, taciturno. — Em todas as vezes, foram encontrados
indícios que apontam os maatianos como responsáveis.
— Quais indícios? — Kullat perguntou, olhando para Daram com uma expressão séria.
— Em todos os locais das explosões foram encontrados resquícios de mensagens como estas.
Daram entregou a Kullat um papel amarelado e chamuscado, com três linhas, escritas em kin’nita. A mensagem terminava com um símbolo estranho, como uma assinatura.
Era uma representação de uma asa de dragão, firmemente desenhada em preto. Ele passou o papel para Cyrvil, que o olhou atentamente.
— O que está escrito? — perguntou ela.
Claw-Daram respondeu:
— O lucro é morte, é destruição. A Verdade de que precisam virá pelo sangue e pelo fogo.
— Uma ameaça evidente! — complementou Kullat.
— Mesmo assim, não dá para afirmar que isso tem algo a ver com os maatianos — concluiu Cyrvil.
— Concordo. Esse símbolo — Claw-Daram apontou para a asa de dragão — antigamente identificava os produtos que vinham da ilha, mas agora ele é usado como símbolo
dos terroristas.
— E se transformou na marca do medo — disse Patre-Ulis, com pesar. — As explosões mataram muitos e desabrigaram outras centenas. Além disso, várias relações comerciais
foram suspensas, já que outros comerciantes estrangeiros não querem mais vir até As-Tanys, com medo de serem vítimas de um atentado. Isso está enfraquecendo a cadeia
produtiva do continente e reduzindo o lucro de todos os Treze Distritos.
— E a população de As-Tanys — continuou Claw-Daram — está exigindo uma resposta de nós, os menteri. Precisamos descobrir quem está por trás dessas sabotagens e,
por isso, essa investigação neutra será providencial. Vocês, Senhores de Castelo, são a única chance que temos para evitar uma guerra.
— Vamos fazer o possível — respondeu Kullat.
— Infelizmente, temos pouquíssimo tempo. Se essa situação não se resolver até o início da Synlige, As-Tanys irá atacar Makrao Maat.
— Vocês não conseguem adiar essa decisão? — continuou Kullat.
— Penso que não — respondeu Patre-Ulis, pesaroso.
— Mas não é impossível! — complementou Claw-Daram, virando-se para Patre-Ulis. — Com o apoio de novos castelares, podemos tentar convencer os outros a postergar
o início da ofensiva. Quanto mais tempo ganharmos, maiores serão as chances de conseguirem acabar com os terroristas!
Patre-Ulis ficou pensativo por alguns instantes e suspirou profundamente antes de voltar a falar. Sua voz havia ganhado um toque de esperança.
— Precisamos de algo concreto para tentar essa manobra. Um acordo oficial com os Senhores de Castelo, apoiado por dois menteri, deve ser suficiente para ganharmos
tempo.
Todos concordaram. Patre-Ulis pegou um papel timbrado de cima da mesa e fez algumas anotações. Ao final, ele e Claw-Daram assinaram. A seguir, Kullat e Cyrvil também
assinaram e, juntos, os quatro postaram as mãos sobre o documento e recitaram algumas palavras. O papel ganhou um tom enegrecido e as letras ficaram esbranquiçadas.
Um método mágico de certificar que as assinaturas eram válidas.
— Está feito — disse Patre-Ulis. — Agora precisamos convocar uma audiência com os outros menteri para poder mostrar esse documento.
— Mas não podemos esperar. Temos que começar as investigações o quanto antes! — disse Kullat, ansioso.
Cyrvil colocou a mão em seu ombro, para acalmá-lo.
— Não vai ser preciso esperar. Podemos deixar Ulani aqui para representar a Ordem enquanto vamos ver os locais das explosões para tentarmos achar alguma pista.
— Não vejo problemas quanto a isso — respondeu Claw-Daram, sendo seguido por um aceno afirmativo do outro menteri.
Kullat ficou mais relaxado.
— Ótimo! — Cyrvil continuou. — A última explosão foi em Bacac, um bairro ao sul. Eu, você — ela apontou para Kullat — e Nahra podemos ir para lá agora mesmo.
— Perfeito! — exclamou Patre-Ulis. — Se tivermos alguma pista nova antes da reunião, ganharemos mais força para evitar a guerra.
— Mas temos um problema — Claw-Daram interrompeu. — Como garantia de que vocês estão agindo sob a autoridade dos Treze Distritos — ele abaixou o tom da voz —, teremos
de enviar nossa grã-chefe com vocês.
Kullat inclinou o corpo para frente e sussurrou o mais baixo que conseguiu.
— É realmente preciso?
Patre-Ulis e Claw-Daram se entreolharam e ficaram em silêncio por um momento.
— Infelizmente, sim — respondeu Claw-Daram, ciente de que a grã-chefe poderia ser mais um problema do que uma ajuda.
— Se não tem outro jeito... — Kullat suspirou.
Patre-Ulis fez um gesto para o guarda da porta e mandou chamar Veryna. A mulher entrou e olhou friamente para os dois menteri, sem dar atenção aos Senhores de Castelo.
— Grã-chefe — a voz de Patre-Ulis ecoou pelo salão —, estes castelares vão iniciar imediatamente novas investigações sobre os atentados. Você representará os Treze
Distritos e deverá prover tudo o que for necessário para eles.
— Os senhores têm certeza... — ela começou a argumentar, mas foi interrompida por um gesto do menteri.
— Você compreendeu as ordens, ou quer que eu as repita?
Veryna resmungou alguma coisa incompreensível.
— Sigam-me — limitou-se a dizer de modo arrogante, enquanto caminhava em direção à porta.
Confirmação
Thagir, Draak e Sumo — com Slurg no ombro — chegaram ao palácio real de Makrao-Maat. Apesar de não ser ostensivo, era exuberante. Todo feito de minério azul, com
detalhes em esmeralda e as janelas hexagonais características do reino. Não havia uma torre principal, mas uma enorme estrutura retangular, com árvores compridas
no topo. Um pátio extenso se abria à frente da construção, dando as boas-vindas a todos, com um bem cuidado conjunto de floreiras e uma enorme estátua, idêntica
ao pingente de Draak.
Enquanto os três andavam pelas largas passagens, entre floreiras e árvores coloridas, Draak acenava cada um que passava por eles, sendo correspondido com genuína
alegria. Todos em Makrao Maat eram visivelmente felizes.
Passaram pelo portão principal e chegaram a um pátio interno, com árvores de folhas azuladas, como as paredes da construção, e com um jardim de pedras brancas. No
centro, outra daquelas estátuas de Seath. Draak se dirigiu a uma entrada lateral, de metal escuro. A porta se abriu e outros dois soldados apareceram. Com Draak
na frente, Thagir e Sumo foram escoltados até uma sala oval, de paredes lisas, sem nenhuma gravura ou janela. Um comprido balcão se destacava, com mais guardas,
todos fortemente armados.
— Amigos — Draak disse, apontando para o balcão —, vocês devem deixar aqui todas as suas armas. Espero que compreendam.
— É realmente necessário, mestre? — Sumo perguntou a Draak, tentando arriscar um pouco mais, como Ulani havia lhe dito. — Somos da Ordem dos Senhores de Castelo
e viemos em missão de paz!
— Por isso mesmo devemos agir pacificamente — respondeu Thagir, com a sabedoria de um professor.
Sumo enrubesceu.
Um dos guardas atrás do grande balcão apontou para Slurg, que estava no ombro do Sumo, e depois para o balcão, indicando que o animalzinho deveria ficar ali.
— Mas... — Antes que o garoto pudesse terminar, Slurg pulou no colo dele, com a pelagem toda azul-escura [insegurança].
— Coitadinho! Ele está com medo! — Thagir exclamou, ao ver Slurg se agitar e tremer no colo do dono. O pistoleiro virou-se para Draak. — O pequeno precisa vir conosco.
Uma expressão de dúvida surgiu no rosto de Draak.
— Não sei se isso será possível — disse, olhando para a criatura. — Animais de estimação não são permitidos dentro do palácio.
Thagir apontou para o menino e para o animalzinho, que tremia e tentava se esconder embaixo do pescoço de seu dono.
— Não temos escolha. Eles possuem um laço simbiótico. Não podemos separá-los.
Draak ficou um instante em silêncio, ainda relutante.
— Pense neles como os iquakares — Thagir argumentou.
Draak entendeu a analogia. Os iquakares são a junção de duas espécies: os habitantes de Iq, que nascem com uma deficiência nas pernas, e as rakar, uma espécie de
serpente. Ambos possuem uma simbiose incomum. A rakar se fixa nas pernas do iquar com suas presas. Para os iquares, as doses de veneno agem como estimulante para
os músculos, permitindo que se locomovam. Em compensação, a rakar se alimenta do sangue do iquar.
— Faz sentido — Draak concordou, observando Sumo e Slurg. — Acho que nosso amiguinho pode ficar com o seu bichinho, afinal.
— Obrigado, senhores! — Sumo respondeu, aliviado. Slurg bateu as asinhas contente e seu pelo virou uma miríade de cores.
O jovem então entregou suas únicas armas: o cajado e o cinto com as reservas de água. O guarda revistou a mochila e constatou que não havia nada ameaçador nela.
Dois outros guardas, um com um animal estranho e outro com um aparelho mais estranho ainda, fizeram uma busca minuciosa em Sumo. Aparentemente satisfeitos por não
terem encontrado nada, sinalizaram para o soldado atrás do balcão, que guardou as armas do jovem.
Em seguida, foi a vez de Thagir. Ele colocou a mochila sobre o balcão, retirou o cinto que seu pai havia lhe dado e seus bastões de combate, e os depositou ao lado
da mochila. Um revólver rubro surgiu de dentro de sua manga com rapidez impressionante, fazendo Draak se assustar. Indiferente, Thagir o colocou ao lado do cinto
e remexeu nos bolsos. Quando terminou de dispor de suas armas, sobre o balcão havia munição variada, uma arma azul diferente de tudo o que Draak já vira antes, uma
adaga de cabo verde, uma varinha pequena de ponta triangular, que Draak não fazia a menor ideia de para que servia, e uma série de outros pequenos objetos, além
de algumas esferas azuis e outras amarelas.
— Seath hana’i maree!* — um guarda exclamou, espantado.
— A sorte favorece os preparados — o pistoleiro disse, dando de ombros.
— O que são essas bolinhas? — Draak perguntou, segurando uma das esferas azuladas.
— Eu uso contra charcas, um animal do meu reino — respondeu Thagir, sem dar mais explicações.
Com receio, um guarda abriu a mochila do pistoleiro. Dentro, além de roupas e objetos de uso pessoal, só havia um exemplar de um livro, de capa de couro com letras
negras, intitulado O segredo de Sora.
As armas foram postas dentro de uma cesta. O guarda já ia levá-la quando Thagir fez sinal para que ele esperasse. De uma das pernas, o pistoleiro retirou ainda um
conjunto de pequenas facas, presas por fitas de couro.
— Eu tinha esquecido.
— Isso é tudo, amigo? — disse Draak, desconfiado.
— É, sim — Thagir respondeu com sinceridade.
Tudo o que encontrariam quando me revistassem, pensou sem perder o sorriso.
— E o bracelete? — Draak perguntou, apontando para o braço do pistoleiro.
— Não é uma arma. Apenas me ajuda a ver melhor — Thagir respondeu.
— Eu já vi o que um desses pode fazer — Draak argumentou, um pouco desconfortável. — Sinto muito, mas é preciso tirá-lo também.
Thagir piscou os olhos, surpreso. O Coração de Thandur era único no Multiverso, e ele tinha certeza de que não existia outro igual.
— Como assim, já viu o que um desses pode fazer?
— O ministro Bemor Caed tem um desses. Na verdade, já vi ele materializar uma faca uma vez com aquela coisa... — Draak respondeu, mas Thagir não ouviu o resto da
sentença.
Kullat tinha razão, pensou. O ministro realmente tem uma Joia de Landrakar!
Nota
* Seath guarde sua alma.
Promessa
Thagir deixou o bracelete sobre o balcão. Após minuciosa revista realizada pelo guarda com o aparelho estranho, o pistoleiro foi liberado e suas armas foram guardadas
atrás do balcão.
Draak seguiu à frente, com postura ereta e firme. Soldados transformados, parecidos com o Senhor de Castelo, guardavam as várias interseções do caminho. Eles andaram
por vários corredores, passaram por algumas saletas e subiram duas escadas. Pelas enormes janelas do corredor central, dava para ver que uma chuva fina havia começado
a cair e batia fracamente no vidro polido.
Por fim, chegaram à frente de uma enorme porta branca, em formato oval, com o símbolo de Makrao Maat em relevo. Atrás dela ficava a sala do trono e, àquela hora,
ela deveria estar repleta de maatianos. Os ministros da Defesa e do Bem-Estar Comunitário deveriam estar ali, ao lado do rei, supervisionando o andamento da Synlige.
Quando abriram a porta, vislumbraram a sala do trono. Cortinas alaranjadas balançavam suavemente, empurradas pelo vento úmido da garoa, em um movimento melancólico.
Uma estátua de Seath, com uma pedra azul incrustada no peito, estava ao fundo do salão. No chão, um tapete amarelo terminava em uma pequena escada de três degraus.
No topo da escadaria, havia um trono de madeira escura, belamente adornado, mas ao mesmo tempo de uma simplicidade inesperada. Mas ele estava vazio, assim como o
resto da sala.
— Não há ninguém aqui hoje — disse uma voz por detrás deles.
Os três se viraram. Além da surpresa, Thagir, Sumo e Draak se contiveram para não transparecer nenhuma emoção ao ver o ministro Bemor Caed.
— Halli eba,* mirst** Draak-Kaliu — Bemor Caed levantou a mão direita espalmada.
— Halli eba unu, Bemor Caed — respondeu o castelar, imitando a saudação. — Como está o amigo hoje?
— Estou bem — respondeu o ministro na língua comum, com um sorriso largo e amigável. — Obrigado por perguntar. E quem são seus companheiros?
— Estes dois são slottets*** — Draak disse, apontando para Thagir e Sumo. — Vieram de fora.
— Sejam bem-vindos a Makrao Maat! — Bemor estendeu a mão, em um cumprimento.
O pistoleiro apertou a mão oferecida com firmeza e viu que o ministro usava um bracelete rico em detalhes, que cobria o punho inteiro. Conseguiu disfarçar a surpresa,
mas demorou no cumprimento, tentando observar todos os detalhes da peça. Era dourado, com pequenas runas e símbolos talhados magistralmente ao redor de uma gema
laranja. O pistoleiro não teve mais dúvidas de que aquele era, realmente, o bracelete roubado de seu pai.
— Este é Sumo, guerrin de Aang — disse o pistoleiro educadamente, apontando para o rapaz. — E eu sou Thagir, de Curanaã.
Ele esperou ver alguma reação de Bemor ao mencionar Curanaã, mas nenhuma sombra de reconhecimento passou pelo semblante do homem.
— É um prazer conhecê-los, mirst Thagir e mirst Sumo — disse Bemor com um sorriso amarelo. — Pena que seja em uma época tão difícil.
Slurg se encolheu no colo de Sumo e escondeu o rosto no colete do rapaz. Seus pelos ficaram rajados de lilás e cinza [antipatia; receio]. O jovem estranhou a reação
do animalzinho, já que ele mesmo não havia sentido aquilo.
— Temo ter más notícias, nobres slottets — Bemor disse, ajustando os óculos escuros no rosto. — O rei não poderá atendê-los.
— Como assim? — Draak franziu o cenho. — Eu mandei um nuk ontem para ele, informando que precisaríamos conversar hoje antes do almoço!
— Mirst Draak — Bemor respondeu, compreensivo —, o rei não está no castelo. Seu nuk ainda está no trono.
Draak olhou para o trono e notou que o triângulo que ele havia enviado no dia anterior estava pousado sobre o descanso do braço direito. Ainda brilhava, sinal de
que a mensagem aguardava para ser transmitida.
— Mas eu mesmo recomendei ao rei para não deixar o palácio nessa época de Synlige — Draak argumentou, descontente. — Ele me garantiu que só Seath seria capaz de
tirá-lo daqui!
— Exatamente! — o ministro cruzou as mãos à frente do corpo, com uma expressão séria. — O rei teve uma visão. Ele disse que o próprio Seath o chamou para o santuário.
Draak quase deu um pulo para trás, levando uma das mãos de dedos-garra ao peito e segurando o pingente de Seath. As feições do enorme Senhor de Castelo mudaram rapidamente
de indignação para surpresa e, por fim, para respeito.
— Hav Ukun! — Draak praguejou. Resignado, virou-se para Thagir e complementou: — Infelizmente, teremos que esperar pela volta do rei.
— Mas não podemos esperar! — Thagir exclamou. — Será que não podemos encontrá-lo no santuário?
— Acredite — respondeu Draak, cabisbaixo. — Infelizmente, não há nada que possamos fazer.
— Talvez eu possa ajudá-los — continuou o ministro, abrindo um amplo sorriso. — Como ministro das Relações Exteriores, sou a pessoa mais indicada para atendê-los.
Sendo o assunto tão urgente, os senhores podem contar com a minha total atenção!
O interesse de Bemor parecia genuíno. Sua empatia e seu carisma eram tão grandes que, se Thagir não soubesse que ele estava mancomunado com Volgo, seria difícil
descobrir que aquele homem não era confiável. Sem saída, o pistoleiro assumiu seu papel de representante da Ordem.
— Estou aqui hoje em nome dos Senhores de Castelo. Meu desejo é ser uma alternativa, um lado neutro no impasse entre Makrao Maat e As-Tanys. Tenho certeza de que
uma visão imparcial e sem interesses locais pode ajudar muito na resolução dos conflitos.
Thagir entregou-lhe o pergaminho que Cyrvil havia preparado. Quando Bemor terminou de ler, seu rosto ficou iluminado, com um brilho de esperança.
— Que Seath abençoe você e toda sua família! É exatamente disso que precisamos. Alguém imbuído com o espírito da paz, que possa nos ajudar neste momento inglório.
Thagir abriu um sorriso de satisfação genuína.
— Fico feliz que concorde com esse ponto de vista, caro ministro. Uma guerra não deve nunca ser a solução para os problemas. Tenho fé de que juntos poderemos convencer
seu rei de que há outras formas de resolver essa questão.
— Certamente! Certamente! Eu mesmo já tentei várias vezes reunir os menteri com nosso amado rei. Mas a sapiência não reside em todos os corações, já dizia Hass Lamuva,
e infelizmente os representantes dos Treze Distritos não acataram com bons olhos os nossos termos de pacificação.
— E quais foram esses termos?
Thagir continuou no papel de negociador. Dessa forma, poderia observar o rumo da conversa e, quem sabe, identificar melhor que tipo de homem estava enfrentando.
— Nosso pedido foi algo tão simples que fico até envergonhado de dizer. De fato, pedimos apenas que nos reuníssemos aqui em Makrao Maat. Mas os ministros se recusaram
terminantemente, exigindo o absurdo de que nosso rei fosse até o ministério.
— E por que seu rei não foi até lá?
— Ele não pode! — Draak aproximou-se dos dois e disse, incisivo. — Na verdade, desde que nosso fundador...
— Que Seath o guarde em seu reino eterno — Bemor tocou a testa, em sinal de respeito.
Draak fez o mesmo com uma mão e, com a outra, tocou seu pingente, murmurando algo.
— Então — continuou Draak —, desde que nosso fundador falou com Seath pela primeira vez, ficou definido que o rei de Makrao Maat não pode sair da ilha. É uma lei
antiga e que não poderá ser quebrada até o fim dos dias.
— Que isso nunca ocorra! — Bemor disse.
— Glória ao Verdadeiro — respondeu Draak.
Thagir refletiu sobre aquilo tudo. Cada vez mais os fatos pareciam favorecer Bemor Caed.
Será que tudo isso não passa de um mal-entendido?, pensou Thagir. Será que um dia ele realmente foi membro da Sombra, mas acabou fugindo para cá e se converteu para
essa religião? Se for isso, por que atacou aqueles dois e tentou matá-los? Por que os ameaçou de morte? E por que ele se encontrou com Volgo e com aquela outra pessoa
encapuzada?
Eram muitas questões sem resposta. Muitas dúvidas e fatos que não se encaixavam completamente.
— Bem, ministro — Thagir disse. — Infelizmente, acredito que precisaremos mesmo esperar o retorno do rei para podermos voltar a conversar. Mas fico muito satisfeito
em saber que o senhor está do nosso lado: o lado da paz.
Thagir gostaria de ver a reação nos olhos do ministro, mas eles estavam ocultos pelos óculos escuros.
— O prazer é meu. — Ele esticou a mão para afagar Slurg, mas os pelos do animal ficaram rajados de preto e vermelho vibrante [terror; agressividade] e, com o bico
quebrado, o bichinho mordiscou o dedo do ministro.
— Slurg! Não faça isso! — Sumo ficou ruborizado e afastou o animalzinho, que fez um muxoxo e se encolheu nos braços do dono. — Me desculpe. Ele anda muito arisco
ultimamente.
— Não se preocupe. — Bemor levou o dedo à boca e chupou o sangue da ferida recém-aberta. — Não foi nada.
Do lado de fora, um sinal soou alto.
— Hora do almoço — disse Bemor tranquilamente.
— Ministro — Draak adiantou-se —, levarei nossos amigos para experimentarem a hospitalidade do nosso refeitório. O amigo daria a honra de nos acompanhar durante
a refeição?
— Peço perdão aos nobres slottets. — A expressão de pesar de Bemor foi tão sincera que Thagir pensou que, se o ministro estivesse representando, mereceria um prêmio
de atuação. — Tenho outro compromisso que requer minha presença. Mas estou certo de que não vão faltar oportunidades para me redimir dessa falta.
O ministro esticou a mão não machucada para Thagir, indicando que a conversa havia chegado ao fim.
— Com certeza, caro ministro — disse Thagir, incorporado em seu papel de diplomata, sorrindo tão encantadoramente quanto o ministro. — Não vão faltar oportunidades.
Os três castelares saíram da sala do trono, deixando Bemor sozinho.
Quer dizer que você é de Curanaã... Aquele bando de desertores que foram contra a Sombra desde o princípio!, e cuspiu no chão. Então olhou para o bracelete em seu
punho, lembrando-se da reação de Thagir quando o viu. Mas como você sabe o que é isto?
Intrigado com o pistoleiro, passou as mãos nos curtos cabelos castanhos e retirou os óculos, limpando-os na camisa branca. Os olhos verdes eram como duas ilhas rodeadas
de inscrições negras. Alguns instantes depois, seu rosto se iluminou.
Mas é claro! Aquele idiota que me vendeu esse bracelete disse que o conseguiu em Curanaã. Se esse Thagir é de lá, reconheceu o bracelete! Era por isso que aqueles
dois idiotas da cadeia queriam invadir o meu quarto. Eles queriam me roubar!
Bemor começou a rir sozinho. Durante dias ficou imaginando para quem aqueles dois trabalhavam e quais eram as reais intenções deles. Não os havia matado ainda porque
queria saber o que eles queriam. No fim, tudo não passava de uma tentativa frustrada de recuperar um objeto roubado. Um objeto extremamente valioso, pelo que o próprio
Bemor havia descoberto.
Mas a preocupação logo voltou a incomodá-lo. Aquele homem chamado Thagir fazia parte da Ordem dos Senhores de Castelo e poderia realmente se tornar um incômodo.
Preocupado, andou até o trono. No braço do móvel, estava o nuk que Draak havia enviado ao rei Behemut. Ninguém, além do próprio Behemut, conseguiria tocar no objeto.
Mas Bemor não precisava tocá-lo. Concentrando-se, imaginou uma arma de raios em sua mão, mas nada aconteceu. Pensou então em um vaporizador lântico, mas novamente
nada aconteceu.
Um dia ainda descubro como essa coisa funciona.
Como ele não sabia exatamente como funcionava uma Joia de Landrakar, tentava descobrir, por tentativa e erro, todas as armas que poderiam existir naquele artefato.
Sem alternativa, pensou na luva que usara contra o Bobo e o Ladrão. Sua mão brilhou e, em instantes, estava vestida com a estranha arma. Concentrando os feixes dos
cinco dedos, disparou contra o nuk, que explodiu em pequenos pedaços.
Então olhou para a outra mão, onde o sangue coagulara na ferida feita por Slurg.
— Animalzinho miserável — murmurou, saindo da sala do trono com passos firmes.
Notas
* Expressão que significa algo como “Alegra-me vê-lo”, em kin’nita. A resposta equivale a “Alegra-me vê-lo também”.
** Termo formal para “senhor” ou “ilustre”, em kin’nita.
*** “Senhor de Castelo”, em kin’nita.
Alternativa
A caminho do refeitório da guarda, Thagir pediu explicações sobre o fato de não poderem ver o rei.
— De tempos em tempos — Draak começou —, para a cerimônia de transformação ou quando o rei tem uma revelação, ele se dirige ao santuário. O rei é o único capaz de
entrar na reserva e falar com o Verdadeiro.
— Você quer dizer que é o único com permissão? — indagou Thagir.
— Não exatamente, amigo. Na verdade, o rei é o único que consegue entrar no santuário. Existe uma barreira que impede que qualquer um passe de um certo limite.
— É um muro ou magia? — perguntou o pistoleiro.
— É mais como uma redoma — respondeu Draak. — Qualquer ser vivo que tente passar é barrado. Mas, quando o rei recebe a permissão de Seath, consegue levar outras
pessoas com ele para os rituais de transformação.
— Ele fala com o seu deus? — Sumo perguntou, segurando Slurg com carinho.
— Falar é uma palavra que não expressa a complexidade de Seath — Draak explicou. — Na verdade, Seath se revela por meio de sons, visões e cheiros que o rei interpreta.
Se o rei foi para o santuário, é porque, realmente, recebeu uma mensagem.
Thagir meneou a cabeça.
— Estamos com tão pouco tempo... Não tem mesmo nenhum outro jeito de falar com ele?
Draak pousou os dedos-garra no pingente de Seath.
— Infelizmente não. Só ele pode nos contatar, se quiser.
Todos ficaram em silêncio por um momento, pensativos. Falar com o rei era prioridade para tentar ajudar o Bobo e o Ladrão.
— Nós não poderíamos pelo menos visitar os prisioneiros? — disse, pensando em outra abordagem.
— Isso é algo que podemos tentar! — Draak abriu um largo sorriso, enquanto coçava o queixo escamoso. — Podemos conseguir uma autorização para visitá-los amanhã.
— Amanhã? — Thagir retrucou, mais impaciente ainda.
— A prisão é submersa, e as visitas são liberadas somente pela manhã — Draak respondeu, olhando para Thagir como se pedisse para ele se acalmar.
— Não acredito! — o pistoleiro bateu de leve na mesa. — Isso sim que é má sorte.
— Não se preocupe, amigo. Tudo vai dar certo. Pela graça de Seath!
Eu bem que gostaria de acreditar nessa “graça de Seath”, pensou Thagir, alisando os botões da casaca. Mas vou ter de ajudar aqueles dois do meu jeito...
Mil Nomes
O tempo na prisão passava devagar. As únicas coisas que aconteciam ao longo de todo o dia eram as refeições, que os prisioneiros recebiam quatro vezes ao dia.
O Bobo e o Ladrão tinham tentado fugir várias vezes. Já haviam estado frustrados, tristes e revoltados, e agora enfrentavam o tédio. O broche de dragão desaparecera
havia dias, e desde então não receberam nenhuma notícia. Até mesmo o homem de óculos não tinha aparecido mais.
Era como na história de Goulad. Por tentar roubar a ave de um deus, ele fora condenado a viver eternamente em uma caverna lacrada, sem nada para fazer. A perpétua
monotonia era o pior dos castigos. E ali, naquela prisão submersa, era como se o Bobo e o Ladrão estivessem recebendo o mesmo castigo.
— Lembrei de outro! — gritou o Bobo, sentando-se na cama com alegria. Seus olhos brilharam de satisfação.
— Lembrou de outro o quê?
— Ué! Outro você! — disse, ainda agitado.
Coitado, acho que enlouqueceu de vez.
— Do que é que você está falando?
— Do jogo! Você esqueceu do jogo?
O Ladrão finalmente entendeu do que seu amigo falava. Para passar o tempo, dias atrás, ele propusera um jogo, que batizara de Mil Nomes. Quem lembrasse de mais nomes
que ele já havia usado, ganharia. Durante horas, eles relembraram os vários nomes que o Ladrão usara nos últimos anos. Mas chegaram a um impasse quando empataram
e não conseguiram se lembrar de nenhum outro. O Ladrão até pensou em dizer o seu nome de verdade, só para ganhar o jogo, mas aquela era uma informação que ele pretendia
levar para o túmulo.
— E então? — perguntou o Bobo, animado. — Não quer saber qual é?
O Ladrão sorriu.
— Claro que quero. Qual foi o nome?
— Grômio!
— Grômio? Você está inventando! Eu nunca usaria um nome desses.
— Usou! Usou! Usou, sim! — O Bobo começou a pular na cama enquanto continuava a repetir. — Usou! Usou, sim, senhor!
— Você está querendo me enganar — o Ladrão disse, cruzando os braços, emburrado. — Eu não lembro de ter usado esse nome idiota.
— Lembra, sim! Você perde-eu!
— Já disse que não lembro!
O Bobo sentou na cama, cruzou os braços e fez uma expressão enfezada, imitando o Ladrão.
— Você não lembra porque estava boronho!
— Eu nunca fico bêbado! — insistiu o Ladrão.
— Ficou, sim. Você estava tão boronho que teve de ficar um tempão na cama tomando minha sopa especial!
O Ladrão teve um arrepio de asco ao pensar no que poderia ter naquela sopa. Realmente, ele não lembrava muito daquele período. Não porque estava bêbado, mas porque
havia sido envenenado. Ele só sabia que o Bobo salvara sua vida, ao carregá-lo e tratá-lo por quase um mês. Mesmo não se lembrando, ele teve que admitir. A história
fazia sentido.
— Tudo bem, tudo bem — o Ladrão estendeu a mão para o Bobo. — Você venceu!
— Venci? Venci... EU VENCI! — gritou o Bobo, cantando e pulando. Então pegou na mão do Ladrão e o puxou, fazendo-o dançar também, sem parar de cantar. — Grômio!
Grômio! Eu venci o Grômio!
Pelo menos por um breve momento, eles encontraram novamente a felicidade.
Cheiro de Morte
Nahra reclamava por debaixo do capuz marrom que lhe cobria a cabeça. Ela não gostava da forma como a água desalinhava seu cabelo. Depois do almoço, as nuvens encobriram
a cidade e uma chuva fina deixou as pedras da calçada escorregadias. Kullat seguia de cabeça baixa, encapuzado, observando Cyrvil à sua frente se proteger com seu
manto claro. Veryna e um pequeno grupo da Guarda Azul os acompanhavam.
As ruas estavam esburacadas e sujas. As casas pequenas se espremiam umas nas outras, sem nenhum cuidado. Bacac era a parte mais pobre, sem o glamour das construções
de vidro e aço do centro ou de Enuij, a parte rica de Corilus.
Eles viraram uma esquina e um kyniano esfarrapado apareceu. Carregava um cobertor sujo enrolado no corpo. Quase não tinha dentes e a pele cinza-escura era cheia
de cicatrizes e feridas.
Quando passou pelo grupo, escorregou na calçada lisa e trombou com um guarda, que rangeu os dentes e bateu no pobre maltrapilho, golpeando-o várias vezes. Dois soldados
mais próximos começaram a chutar o kyniano, que chorava e se curvava, tentando se proteger. A grã-chefe não demonstrou nenhuma reação de que impediria seus comandados.
O guarda ergueu novamente o bastão, mas foi incapaz de desferir o golpe. Sentiu um aperto no braço, como se dedos de aço o tivessem agarrado. Kullat o ergueu pelo
braço e o jogou no chão. Sem soltá-lo, manteve o rosto do agressor colado ao chão. Com incrível rapidez, Nahra deu um chute em um dos soldados e golpeou outro. Outros
dois avançaram com seus bastões eletrificados contra Nahra e Kullat, mas Cyrvil girou o corpo e deu um chute forte no abdome do primeiro guarda, fazendo-o ajoelhar
de dor. O segundo teve o bastão arrebatado por uma mordida de Talbain, que se materializou em pleno salto e quebrou o aparato ao meio.
Os soldados cambalearam e se afastaram, encarando o animal que rosnava furiosamente, ao lado de Nahra, Kullat e Cyrvil.
— Mas o que é que estão fazendo? — Veryna perguntou exasperada, abrindo os braços. — Por que estão atacando meus homens?
Ignorando os protestos da grã-chefe, Kullat mantinha a pressão no kyniano. Seus olhos soltavam faíscas mágicas, enquanto ele tentava se controlar para não esmagar
a cabeça do soldado com as próprias mãos.
— Você devia proteger as pessoas — Kullat disse entre dentes. — Proteger o povo! Não atacá-lo!
Os olhos do soldado estavam injetados de medo. Kullat o soltou, levantou e se virou para Veryna.
— Isso vale para você também — disse, apontando o dedo flamejante para ela.
Veryna deu um passo para trás, boquiaberta com as chamas.
— Você será preso por isso! — ela berrou, segurando o bastão ameaçadoramente, mas com evidente receio na voz. — Todos vocês serão!
— Então tente. — A resposta de Kullat foi desafiadora, e seus punhos brilharam ainda mais.
Os olhos da grã-chefe se encheram de ódio. Ela encarou o cavaleiro como se fizesse uma ameaça velada e, em silêncio, desligou o bastão. Apontando para o soldado
que ainda estava no chão, fez sinal para que os outros o ajudassem.
Cyrvil e Kullat correram até o kyniano, que sangrava na testa. Nahra e Talbain se postaram à frente deles, como que para defendê-los. O cavaleiro rasgou um pedaço
do próprio manto e o deu para que Nahra limpasse a testa do ferido. Com um gesto, consertou o rasgo na roupa e retirou o manto, cobrindo o kyniano com ele. Por fim,
remexeu no cinto, retirou um punhado de cans e entregou o dinheiro ao pobre mendigo.
— Pegue isso e vá comprar algo para você comer — disse, mais calmo.
Kullat segurou a mão dele com cuidado e depositou o dinheiro nela. Ele piscou, incrédulo, e murmurou um agradecimento em sua língua natal.
— Você deu um bom dinheiro para ele — disse Cyrvil, contente, vendo-o se afastar. — Ele vai poder comer por vários dias. Talvez até consiga arrumar um lugar melhor
para ficar.
— Assim espero — respondeu Kullat. — Não é a melhor solução, mas por hoje deve bastar.
Nahra concordou, fazendo Talbain sumir em um lampejo.
— Este bairro precisa mesmo de ajuda — Cyrvil disse. — Muitas pessoas desapareceram daqui.
— Como assim? — Kullat indagou, olhando para a castelar de cabelos vermelhos.
— Viemos aqui ontem, por causa da explosão, e tentamos falar com alguns moradores desses barracos. Um deles finalmente nos contou que seus amigos desapareceram.
Saíram certa manhã para tentar arranjar comida e nunca mais voltaram.
— E ninguém fez nada? — Kullat perguntou, irritado.
— Você acabou de ver como os pobres são tratados aqui — Cyrvil respondeu. — A polícia não se preocupa com isso e nós não tivemos tempo para investigar.
Cyrvil ficou em silêncio ao ver que Veryna e seus soldados voltavam. Kullat suspirou, guardando na mente que aquele assunto deveria ser tratado outra hora.
— O pulso daquele soldado está quebrado — Veryna disse com sua voz fria. — Ele vai precisar voltar para o comando.
— Só um pulso? — Kullat retrucou. — Então está com sorte. Poderia ser bem pior...
— Quero que uma coisa fique clara — Veryna disse, apontando o dedo para o rosto de Kullat ameaçadoramente. — Se interferirem de novo nas ações dos meus homens, vou
prender vocês pessoalmente.
O cavaleiro refletiu que era melhor concordar e continuar com a investigação do que permanecer discutindo. A contragosto, assentiu em silêncio, retornando a andar
pelas ruelas sujas e molhadas. Algumas construções estavam deterioradas pelo tempo, outras tinham enormes rachaduras, paredes inteiras desabadas e entulhos por todos
os lados. Nahra farejou o ar e fez uma cara de asco. Cheiro de fogo e fumaça, pensou ela.
Um pouco mais adiante, o cenário era ainda pior. Casas e pequenos prédios semidestruídos pareciam esqueletos negros, com paredes escurecidas pela fumaça e fuligem.
Vidros e entulho se misturavam à lama provocada pela chuva. A explosão destruiu tudo em um raio de várias quadras, e Kullat percebeu que muitas pessoas ainda viviam
nos escombros, apesar do perigo de desabamento.
Seguindo Veryna, os castelares pararam diante do que devia ter sido um prédio comercial. O que restara das paredes estava chamuscado. As poucas janelas estavam totalmente
quebradas, e no lugar onde devia ser a porta havia apenas um enorme buraco.
Nahra farejou algo no ar. Era um cheiro diferente, com um gosto adstringente, e fazia cócegas no nariz e na boca. Ela deu um passo em direção ao prédio, mas o bastão
energético de Veryna parou em seu peito.
— Espere — disse a grã-chefe, irritada. — Eu vou na frente.
Nahra assentiu com a cabeça, pois não queria provocar outra briga. Veryna fez sinal para que os soldados aguardassem e entrou no prédio, seguida pelos castelares.
Então eles se depararam com uma sala quadrada completamente destruída — os móveis e o que quer que fosse que guardassem ali estavam queimados; não havia sobrado
nada. Entraram no que deveria ser a cozinha, apenas para ver que tudo estava arruinado, com panelas e pratos quebrados pelo chão inteiramente chamuscado.
Kullat percebeu que não havia nada para investigar ali. Qualquer pista havia sido destruída pela explosão, queimada pelo fogo ou remexida pelos combatentes do fogo
ou pela polícia. Era uma perda de tempo. Ele sinalizou discretamente para que Cyrvil acompanhasse Veryna, que estava mais à frente. A Senhora de Castelo entendeu
a intenção de Kullat e se aproximou da grã-chefe.
Com a distração, o cavaleiro se aproximou de Nahra.
— Acho que não vamos encontrar nada aqui — sussurrou, para que apenas sua companheira pudesse escutar.
— Talvez não aqui — Nahra disse. — Mas senti um cheiro estranho lá fora. Parecia um produto químico.
Cyrvil se mostrou muito interessada em uma parede em especial e começou a discutir alguma coisa com Veryna, com grande entusiasmo.
— Você consegue identificar o cheiro? — Kullat perguntou.
— Não. Nunca senti nada parecido. Por isso pensei que fosse químico. — Nahra respirou profundamente, absorvendo todo o cheiro da cozinha. — Mas acho que consigo
identificar o rastro.
A lupina começou a farejar o ar em direção à saída do prédio. As orelhas giravam para os lados, como radares, vasculhando tudo ao redor. Veryna chegou apressada
atrás deles, sendo seguida por Cyrvil, com uma expressão fingida de desentendimento.
— Acharam alguma pista? — Veryna perguntou, desconfiada.
— Talvez — Nahra respondeu, sem parar de andar.
Ela saiu do prédio e nem se deu ao trabalho de vestir o capuz. As gotas bateram suavemente nos cabelos e molharam o belo rosto.
— Por ali! — Nahra apontou para um viela escura, com dois latões de lixo destruídos na entrada, e continuou seguindo o rastro.
— Mas o que é que você está sentindo? — perguntou Veryna, seguindo a castelar de perto.
Kullat deixou Nahra e Veryna irem na frente, mas manteve-se próximo, com Cyrvil em seu encalço. O espaço era pequeno e mal dava para duas pessoas andarem lado a
lado. Com isso, os soldados se espremiam atrás do grupo.
O cheiro que Nahra sentia tinha um sabor ruim, meio podre, muito parecido com o forte cheiro da morte.
— Isso é besteira! — Veryna protestou, parando de andar.
Kullat e Cyrvil ignoraram a grã-chefe e passaram por ela. Veryna bufou, mas foi obrigada a continuar, sendo praticamente empurrada pelos soldados que vinham atrás.
O rastro ficava cada vez mais forte à medida que avançavam na viela estreita, até que chegaram a um lugar rodeado por muito entulho e lixo.
Repentinamente, um grito horrível surgiu uns cinquenta passos à frente do grupo. Como um animal assustado, uma kyniana de roupas sujas e esfarrapadas saiu cambaleante
do meio do lixo. Ela se curvou para frente, segurando a barriga com as duas mãos, com uma expressão de agonia.
— Me... ajudem... — gemeu, caindo de joelhos. — Por favor...
Nahra arregalou os olhos.
— É dela! O cheiro está vindo dela! — exclamou, com os olhos arregalados, apontando para a mulher.
Mesmo àquela distância, o odor da mulher era pungente para Nahra.
Ao ver a mulher, Veryna deu um passo para trás e quase caiu sobre os guardas.
— Me deixem passar! — gritou, tentando se afastar. Mas a ruela era estreita demais e os soldados que vinham atrás bloqueavam o seu caminho. — Saiam da frente, seus
idiotas! — ordenou, exasperada.
— Por favor... — a kyniana murmurou. — Eu não quero morrer...
A mulher levantou a cabeça e, mesmo de longe, Kullat viu que os olhos dela começaram a escurecer, assim como seu corpo, seguido de um pulsar estranho.
— Não precisa se preocu... — Kullat começou a falar, dando um passo em direção à mulher, mas sua frase foi interrompida.
A mulher abriu a boca e deu um urro de agonia terrível. Um intenso facho de luz negra e cegante jorrou de sua boca. Com uma velocidade incrível, seu corpo inteiro
pareceu se quebrar e ruiu, criando uma massa negra e disforme. Quase instantaneamente, a massa negra pulsou mais uma vez e explodiu, gerando uma enorme onda de choque
e calor que tomou a ruela com grande ferocidade.
A explosão devastou tudo ao redor e, em sua fúria destruidora, engoliu o grupo de castelares e a Guarda Azul.
Vibrações
Havia dias que Seath pensava sobre aquele ser que emanava frequências espectrais, misturadas a tantos sentimentos negativos. O rei já tinha sido contatado, mas algo
mais precisava ser feito.
Na tentativa de compreender melhor o que estava acontecendo, Seath se arriscou como há séculos não fazia. Expandiu a mente para tocar os pensamentos de outros transformados
de Makrao Maat, além dos do próprio rei.
O que sentiu o surpreendeu.
Medo
Confusão
Ódio entre irmãos
Guerra...
Enquanto absorvia as nuances daquelas sensações, sentiu repentinamente uma brusca mudança nas vibrações vindas do continente. Para seu espanto, era como se outro
ser reverberasse na mesma frequência vital que ele. Era impossível, mas ainda assim aconteceu.
Há outro.
Eu sinto Meath.
Esperança está aqui!
Mas, tão rapidamente quanto surgiu, a vibração desapareceu por completo, como se tivesse sido totalmente eliminada da existência.
Onde está Meath?
Bilhete Trágico
Ilha de Ev’ve
A princesa se sentia radiante, o coração batendo forte ao se lembrar do gosto dos lábios e do calor do abraço de Virnus. Após um banho demorado, sentou-se na cama
e começou a folhear seu caderno vermelho. Tentou se concentrar nas anotações, mas seus pensamentos sempre voltavam para Virnus.
Repentinamente, a porta se abriu com força e Glinda entrou afobada, com uma expressão de espanto e desespero. Sua maquiagem estava borrada pelas lágrimas. Ela segurava
firmemente um pedaço de papel em uma das mãos.
— O que aconteceu? — a princesa se levantou assustada.
Laryssa pegou na mão alva da colega de quarto e a levou até a cama.
— Está a maior bagunça lá fora. Todos estão indo até o muro para ver.
— Você quer dizer o muro? — Laryssa questionou, espantada, referindo-se ao Muro dos Registros.
Glinda assentiu.
— Frian anotou os nomes que se apagaram... — disse, estendendo o papel que estava segurando. — E me pediu para lhe entregar. Ele sabe que você...
Laryssa arrancou o papel da mão da amiga e o abriu. Ao terminar a leitura, balançou a cabeça negativamente, atônita e perdida. Ela não sabia se corria, sentava ou
chorava. Quem decidiu foi o seu coração, e as lágrimas brotaram, abundantes. Glinda abraçou a amiga, silenciosamente, e olhou de novo para o bilhete trágico na mão
de Laryssa.
Em tinta negra, lia-se:
Notícia
Planeta Kynis
Batidas fortes acordaram Thagir. Ele havia dormido pouco naquela noite e seu sono fora agitado. Sonhou com o passado e o presente, guerra e morte, traições e perdas.
Ele se levantou e olhou em volta, sentindo-se perdido. Havia uma cama vazia ao seu lado. Confuso, levou alguns segundos até lembrar onde estava. Escutou novamente
batidas. De uma porta ao lado, apareceu Sumo, sorridente.
— Bom dia! — disse o guerrin, saindo do banheiro e indo em direção à porta. Ele fez alguns movimentos, e a água das mãos se juntou em um fio líquido, que flutuou
de volta para o banheiro, caindo ao lado de Slurg, que se banhava alegremente em uma bacia.
O guerrin abriu a porta, revelando a figura enorme de um Draak sorridente, segurando um papel pardo entre os dedos de garra.
— Bom dia, amiguinho!
— Bom dia, senhor!
— Posso entrar?
Sumo olhou para Thagir, que assentiu. Já estava sentado na cama, esfregando os olhos. O rapaz deu passagem.
— Por Seath! Você está com uma cara péssima, amigo! — Draak disse, olhando para o pistoleiro, que coçava os olhos, sonolento.
Thagir passou as mãos pelos cabelos curtos e os ajeitou.
— Mesmo os justos têm fantasmas que lhes assombram os sonhos.
— Entendo perfeitamente. Mas meu tio sempre dizia: não leve seus problemas para a cama, caso contrário terá de dormir com eles.
O pistoleiro bufou.
Sumo fechou a porta e sussurrou algo baixinho.
— Pode repetir o que você disse? — Draak perguntou, dirigindo-se para o guerrin, que não conseguiu esconder o espanto por ter sido ouvido.
— Não foi nada, mestre — Sumo mentiu.
— Meu amiguinho, minha audição é muito boa. Eu escutei o que você disse. Na verdade, suas palavras foram tão sábias que eu gostaria que você as repetisse para o
nosso amigão aqui.
O pistoleiro franziu a testa e olhou para Sumo, que ruborizou.
— Eu disse: mantenha a sua paz.
Thagir contraiu a boca, pensativo. O rapaz havia citado o mais antigo e mais importante de todos os ensinamentos do Livro dos Dias. Aquela frase era o primeiro dos
treze dias e carregava consigo toda uma filosofia de vida, ensinada e vivida pela Ordem dos Senhores de Castelo. Se alguém não está em paz consigo mesmo, como pode
incentivar a paz ao seu redor? Como pode enfrentar os perigos da vida? E, acima de tudo, como pode ser feliz?
— O aluno mostra que está preparado quando consegue ensinar o mestre. — Draak bateu de leve nas costas de Sumo, contente pelo guerrin.
Thagir ficou em silêncio. Todos tinham de buscar a paz interior para alcançar o seu melhor.
Draak estendeu a Thagir o papel que segurava, quebrando assim o silêncio.
— Tenho uma notícia que pode acabar com alguns desses fantasmas.
Sumo se aproximou, interessado. Thagir pegou o papel e viu que a mensagem estava escrita à mão.
— Não entendo essa língua. O que é isso? — Thagir lhe devolveu o papel.
Draak continuava com o sorriso aberto.
— Desculpe. Fiquei tão empolgado que esqueci que estava na nossa língua. É um recado de Iriu’Darta, ministro do Bem-Estar Social. Na verdade, ele conseguiu reagendar
um compromisso e poderá falar conosco após o almoço.
— Finalmente uma boa notícia! — respondeu o pistoleiro, mais animado.
Aquela novidade renovou suas esperanças.
— Bem, senhores! Se não podemos fazer mais nada até lá, é melhor então tomarmos nosso desjejum.
Sumo se adiantou para tirar Slurg do banheiro. O animalzinho pulava na bacia, espalhando água pelo chão. Thagir pediu para que Sumo e Draak aguardassem um pouco
enquanto trocava de roupa.
Do lado de fora, a chuva havia parado, mas o pistoleiro ainda sentia como se uma tempestade estivesse por vir.
Catástrofe
As equipes de combate a incêndios de As-Tanys finalmente controlaram o fogo da explosão. A chuva forte ajudou a diminuir os danos.
Ciclovotores perambulavam pelos céus e equipes em terra ajudavam os feridos. Ao redor da explosão, a quadras de distância, gemidos se misturavam ao barulho metálico
dos ciclovotores. Mas o que mais se ouvia eram os pedidos desesperados dos sobreviventes clamando por água, para matar a sede insana que seus corpos fragilizados
sentiam.
No local da explosão, um silêncio macabro pairava sobre os escombros e os corpos secos, espalhados em um caos enegrecido. No epicentro da tragédia, apenas uma pequena
equipe vasculhava os destroços, sem esperança de encontrar sobreviventes.
Nada resistiria à violência daquela catástrofe.
Ciclovotores
Última Alternativa
A claridade fraca de um novo dia penetrava pela janela redonda da cela. Apesar da noite anterior ter sido mais alegre, aquele novo dia trouxe consigo a melancolia.
O Bobo roncava baixinho na cama, alheio ao trágico destino que os aguardava. Os cabelos ruivos espalhados na testa davam-lhe um ar cômico, mesmo quando dormia.
O Ladrão estava deitado, mas não conseguia dormir. Pensava em Érida e Tamisa, imaginando como estariam naquele momento. Em Oririn, era o começo do outono. As folhas
secas cobririam as estradas e, na taverna Ursa Mat, seria servido um prato especial, feito de sementes cozidas em vinho quente, chamado sherstenya.* O Ladrão imaginou
se sua filha gostava de sherstenya e sentiu-se pequeno ao perceber que Érida não era mais que uma estranha para ele. Ele sabia dela apenas pelo que Kullat falava,
e, ainda assim, muito menos do que gostaria. Seu coração pareceu sumir no peito, afundado em vergonha.
Do lado de fora, o barulho de passos chamou-lhe a atenção.
Deve ser o café da manhã, pensou, sem se virar. Não aguento mais aquele mingau sem gosto.
Normalmente, apenas dois soldados traziam as refeições. Um distribuía a comida e outro acompanhava de longe, preparado para atacar. Mas, dessa vez, o barulho estava
diferente. Havia mais pessoas andando.
Atento, Corning se pôs de pé rapidamente. Se fossem os carrascos, lutaria até as últimas forças. E, se fosse o homem de óculos, lutaria ainda mais. Ele cutucou o
Bobo com o pé e falou baixinho:
— Tem alguém vindo!
O Bobo acordou assustado e confuso, gemendo algo sobre ovelhas e uma cachoeira de cebolas.
Dois guardas apareceram na frente das grades. Um deles disse algo em tom rude, mas nenhum dos dois prisioneiros entendeu. O guarda bateu com raiva na grade e apontou
para que os dois se afastassem, gesticulando para que ficassem perto da parede.
O Bobo agarrou o travesseiro, colocou-o no chão, abaixo da janela, e sentou, encostando-se na parede. O Ladrão também recuou, mas permaneceu em pé, sem tirar os
olhos dos guardas.
O outro guarda se virou, falou algo para alguém, fora do campo de visão dos prisioneiros, e apontou para as grades, fazendo sinal de negativo, indicando que as barras
não deveriam ser tocadas. Em seguida, gesticulou para que a pessoa se aproximasse.
O queixo de Corning caiu quando ele viu quem apareceu. Era como se um mundo totalmente novo estivesse à frente deles. Um mundo de esperança.
— Bom dia, senhores! — disse Thagir, feliz por ver que ambos estavam bem.
Acompanhando o pistoleiro, estavam Sumo e Slurg. Os guardas ficaram um pouco mais afastados, mas observavam atentamente.
O Bobo levantou-se e começou a pular de um lado para o outro da cela.
— Mestre Pistola! Mestre Pistola está aqui!
Sumo riu do homem magro de roupas coloridas. O Bobo correu em direção à grade, mas um dos guardas saltou à frente e a golpeou violentamente, fazendo sinal para que
ele se afastasse. Thagir apenas sorriu ao ver que o Bobo mostrou a língua para o guarda, antes de se afastar.
— Parece que vocês estão bem acomodados — o pistoleiro disse, olhando diretamente para Corning.
— Ah, mestre Pistola. Não estamos comendo bem, não — o Bobo retrucou, com uma cara de zangado. — Eles não dão doce pra gente. Nenhum docinho, acredita?
Sumo riu novamente.
— Eu acredito — Thagir inclinou-se, reduzindo o tom de voz, como se confidenciasse algo. — Eu mesmo já estou sentindo falta de uma bela sobremesa.
— Viu? Eu te disse, não disse? — o Bobo jogou o travesseiro no Ladrão. — Até o mestre Pistola sabe que a gente precisa de um doce pra viver. — Apontou para os guardas
e sussurrou de volta para Thagir, como se ninguém mais pudesse escutá-lo: — Por isso que esse pessoal é mal-humorado. Não comem doce!
Corning interrompeu o amigo.
— Thagir, você não sabe como fico feliz em te ver aqui. Temos tido dias muito difíceis.
— E noites também — complementou o Bobo, com o dedo em riste. — Não se esqueça das noites!
— Eu entendo — o pistoleiro respondeu. — Mas vocês precisam ter calma. Eu vim para ajudar.
O Ladrão suspirou, aliviado pela primeira vez em dias. Mas algo o intrigava.
— Não me leve a mal. Estamos muito gratos por você ter vindo pessoalmente. Mas por que o Kullat não veio?
— Ele queria muito, mas muitas coisas estão acontecendo agora. Por isso, ele pediu que eu viesse aqui para tentar ajudá-los.
— Tentar? — o Ladrão ficou confuso. — Como assim, tentar? Você não veio nos soltar?
— Que bom seria se fosse tão fácil. Vocês não fazem ideia do que tivemos de fazer para estar aqui hoje. Levamos dias só para conseguir uma autorização para visitar
vocês. Imaginem quanto trabalho não vamos ter para conseguir soltá-los.
— Se conseguirmos soltá-los — disse Sumo, dando um passo à frente.
— Quem é esse pássaro de mau agouro? — perguntou o Ladrão, desgostando de imediato do rapaz que, ao invés de levantar seus ânimos, parecia querer jogar um balde
de água fria neles.
— Meu nome é Sumo. E não sou agourento. Sou apenas realista. — O guerrin também teve uma primeira impressão ruim do Ladrão. Para ele, era como se o rosto daquele
prisioneiro estivesse estampado de culpa.
O Bobo arriscou dar um passo para frente. O guarda se mexeu de leve, mas não interferiu. Apenas ficou de prontidão.
— Ei, você. Tem algum docinho aí? — perguntou o Bobo, espichando os olhos desejosos.
— Me desculpe. Infelizmente não tenho.
Slurg piou tristemente no ombro de seu dono. O sorriso do Bobo desmoronou, e a cabeça pendeu para frente, amargurado. Thagir prosseguiu falando com o Ladrão.
— Vocês se meteram em uma situação muito pior do que imaginam. Kullat me contou sobre as sombras que passam na lua...
— Elas passam... e mais de uma vez! — A frase de Corning era clara para o pistoleiro. Significava que alguém havia voltado a fazer ameaças aos dois.
— Estamos num momento delicado lá em cima — disse o pistoleiro. — Os reinos estão à beira de uma guerra e, infelizmente, não sei se conseguiremos negociar a liberdade
de vocês agora.
— Mas, se você não vai nos libertar, o que veio fazer aqui? — o Ladrão perguntou, irritado.
— Você deve saber que há algumas coisas que ainda podemos fazer por vocês — Thagir continuou, revirando alguns os botões.
Corning prestou atenção ao movimento das mãos de Thagir que, com os dedos, disfarçadamente, indicou os dois botões de cima da casaca.
— E, caso as coisas não saiam como queremos, ainda assim, sempre buscaremos uma última opção. Por isso, precisamos tentar juntar tudo o que tivermos a nosso favor.
— E, ao falar “juntar”, apontou novamente os dois botões, encarando o Ladrão e certificando-se de que ele estava prestando atenção. — Só assim vamos conseguir livrá-los
dessas barras e libertá-los de vez dessa prisão!
O Ladrão levou a mão ao rosto e começou a andar pela cela, com ar preocupado.
— Por favor, não fique nervoso — disse Thagir, esperançoso de que o Ladrão entendesse a dica.
Um segundo se passou sem que houvesse reação. Thagir imaginou que Corning não tinha entendido a deixa.
— Não podemos ficar aqui! — o Ladrão gritou. — Eles vão nos matar, sabia?
O Ladrão bufava enquanto andava de um lado a outro na cela. O Bobo encolheu-se no canto e abraçou o travesseiro. Os guardas ficaram tensos, mas não fizeram nada.
Slurg escondeu o pequenino rosto no peito de seu dono.
— Entenda, Corning. Nós vamos tentar tirá-los daí — o pistoleiro respondeu, dando um passo pequeno, quase imperceptível, na direção das grades. — Mas a situação
lá fora está tão ruim, que eu realmente não sei se conseguiremos alguma coisa antes que o pior aconteça.
— Antes que o pior aconteça? — gritou o Ladrão, desesperado. — Antes que o pior aconteça?
— Talvez se...
O Ladrão não deixou Thagir terminar. Ele avançou e passou as mãos pela grade, agarrando fortemente o pistoleiro e trazendo-o para junto de si.
— Você precisa nos ajudar! Não podemos continuar aqui!
Pegos de surpresa, os guardas levaram um segundo para reagir. Mas, quando o fizeram, foram brutais. Golpearam o rosto e os braços de Corning, afastando-o do pistoleiro.
— Slutz! Slutz! — esbravejou o guarda, batendo novamente nas grades.
— Afasta! — o outro gritou, apontando ameaçadoramente a arma para o prisioneiro. — Visita prodam! Acabar!
E, encarando Sumo e Thagir, sinalizou a saída.
— Gorji Erda. Fora. Visita prodam! Erda. Erda!
— Não deixem a gente aqui! — gritou Corning, com toda a força.
— Aguentem firme! — gritou Thagir, sendo empurrado pelo soldado em direção à saída. — Só se desesperem se as sombras os visitarem!
Sumo e Thagir foram obrigados a sair, escoltados para fora do edifício. O guerrin estava assustado e preocupado. Ele não tinha imaginado que a reação do Ladrão seria
tão ruim.
— Ele está desesperado — disse o rapaz, apiedando-se do homem. Apesar de não ter simpatizado com ele, era uma situação tão dramática que acabou se comovendo.
— Você ainda tem muito o que aprender, garoto — Thagir abriu um breve sorriso.
Na cela, o Ladrão sorria satisfeito. Na palma de uma das mãos, estavam dois botões da casaca de Thagir.
Nota
* Semente em forma de cunha, cuja casca recobre uma polpa compacta de sabor salgado.
Mitos Vivos
Draak, que tinha ido falar com os responsáveis pelas defesas litorâneas da região, desceu da torre de comando e se dirigiu até a saída da prisão. Para sua surpresa,
Thagir e Sumo estavam sentados em um comprido banco de madeira. O guerrin estava de braços e pernas cruzados, emburrado. Slurg estava a seu lado, brigando com a
própria asa. E Thagir estava relaxado, com as pernas esticadas e as mãos nos bolsos da calça, assoviando baixinho, descontraidamente.
— Vocês não deveriam estar visitando seus amigos?
— Fomos expulsos — respondeu Sumo, com uma expressão endurecida.
— Não se preocupe — Thagir interveio, apaziguador. — Nós os vimos e sabemos que estão bem. Agora eles sabem que há amigos aqui fora que vieram ajudá-los.
— Mas e essa história de que vocês foram expulsos? — Draak perguntou, sem saber se ia até os guardas ou se esperava pela explicação de Thagir.
Thagir sorriu e fez sinal em direção à saída.
— Foi apenas um mal-entendido. Um de nossos amigos ficou um pouco nervoso e se exaltou. Mas não foi nada grave.
Draak deu de ombros.
— Se você diz que está tudo bem, então está tudo bem.
A conversa foi interrompida pelo estômago do enorme Senhor de Castelo. O ronco foi tão alto que pareceu o rugido de um animal encarcerado.
— Velsi* Seath, parece que engoli um monstro! — Como haviam acordado muito cedo, não haviam comido nada ainda. — Conheço um restaurante que serve um guisado de tor’na
fabuloso! Podemos comer e chegar a tempo de ver o pronunciamento do rei ao vivo. O que vocês acham?
Draak referiu-se à notícia de que o rei faria um comunicado para o povo após o almoço, e tais pronunciamentos eram feitos da sala do trono e transmitidos para toda
a ilha em tempo real.
— Ótimo! — exclamou Thagir. — Prefiro comer antes que meu estômago vire um monstro também.
O pistoleiro estava animado. Ele pensou em enviar o broche de dragão para Kullat, mas decidiu que seria melhor guardar para quando tivesse algo mais concreto. Como
alternativa, pediria que Draak enviasse um pulso de “tudo bem” por meio de sua tatuagem fantasma, após falarem com o rei.
No restaurante, comeram rapidamente. Ao saírem, Draak agradeceu e desejou que a graça de Seath banhasse o cozinheiro e todos os que ajudavam ali. Quando o pistoleiro
questionou por que não haviam pagado a comida, Draak gargalhou e respondeu que, em Makrao Maat, nada era pago. Ninguém era dono de nada e todos os cidadãos trabalhavam
para o bem-estar comum. Thagir concluiu que aquela forma de convivência devia ser o motivo para que todos os maatianos, sem exceção, fossem tão felizes.
Então prosseguiram na viagem de volta ao palácio. Draak guiava um bulra-ka azul — um bulra menor, que fica à disposição dos trabalhadores do palácio e é movido a
línguas de fogo, não a vapor. Pelos povoados por onde passavam, as pessoas limpavam os arredores das estátuas de Seath. Uma pequena cidade tinha até uma estrutura
armada, como se fosse uma festa, com barraquinhas e tendas ao redor da estátua. O povo todo estava se preparando para receber o comunicado do rei.
— Senhor Draak, como eles sabem que haverá um pronunciamento? — perguntou Sumo, ao ver uma procissão de pessoas ao lado da estrada, indo em direção a um povoado
pelo qual haviam passado havia pouco.
— Graças a isto aqui — Draak puxou o cordão prateado do peito e o esticou para trás, mostrando na ponta dos dedos-garra a estatueta humanoide. — Ele avisa a todos
que uma mensagem real será transmitida. Está vendo esses números aqui no peito dele? — Draak apontou para alguns traços suaves no objeto com seu dedo-garra. — Eles
indicam quando ocorrerá a transmissão.
Além dos traços, Sumo reparou nos olhos da estatueta. Antes eram apenas dois buracos vazios, mas agora estavam preenchidos com uma espécie de vapor condensado e
levemente brilhante.
— E todos têm um desses? — Sumo apontou para o amuleto.
Draak assentiu.
— Todos os maatianos possuem um desses Seath’Mar. É um presente do rei e de Seath para que todos estejam unidos diante da verdadeira fé. Na verdade, cada um pode
escutar o pronunciamento pelo próprio Seath’Mar. Mas as estátuas, os grandes Seath’Ran que cada comunidade possui, além do som, também recebem as imagens do rei.
E vocês devem concordar comigo que ver o rei em tamanho natural é uma experiência muito mais intensa do que ver apenas sua miniatura.
— Lá na minha terra — Sumo tomou a palavra —, somente em ocasiões especiais o rojan aparece para os súditos. Eu mesmo só o vi uma vez: no meu batismo de água no
festival da Mãe Ravena, quando fiz dez anos.
— Vocês terão que me desculpar — disse Thagir, um pouco acanhado —, mas para mim reis, regentes ou rojans são pessoas como outras quaisquer. A única diferença entre
nós — ele apontou para si mesmo, lembrando a Draak e a Sumo que ele era um regente — e os outros é o nosso maior nível de responsabilidade.
— Você vê um regente no espelho todos os dias, amigo — disse Draak, sorridente. — Mas, para as pessoas comuns, o rei é a expressão de todas as virtudes, de todas
as esperanças e, acima de tudo, alguém que está zelando por elas. São heróis para o povo. E heróis são admirados. Eles... Quer dizer, vocês são verdadeiros mitos
vivos!
Thagir se calou. Nunca havia pensado na questão daquela perspectiva.
Será que o povo de Newho tem essa visão de mim?
De repente, Slurg saltou em seu colo. Sumo ficou vermelho e se desculpou, mas Thagir o tranquilizou dizendo que ele não precisava se preocupar, pois gostava quando
o bichinho vinha com ele.
Pelo menos esse aqui parece não se importar com essa história de mito vivo, pensou Thagir, afagando a cabeça do animalzinho.
Nota
* “Santo” ou “bendito”, em kin’nita. A palavra só pode ser usada em referência a Seath.
Presença Real
Em pouco tempo, chegaram à sede do reino. As ruas estavam tomadas pela população. Transformados e não transformados andavam de um lado a outro, conversando animadamente
e acenando uns para os outros amigavelmente. Acima deles, dragões e cavaleiros vigiavam os céus, zelando pela segurança do povo.
Dentro do palácio, maatianos andavam apressados. Draak ia à frente, abrindo caminho com seu corpanzil. Pela janela, era possível ver uma praça interna, onde vários
maatianos aguardavam, ansiosos, pelo pronunciamento real. Um grande Seath’Ran avermelhado pairava sobre um pedestal, como se vigiasse a praça. Um coro de trombetas
soou ao longe, reverberando baixinho por todos os lados. A estatueta no pescoço de Draak emitia o mesmo som.
— Rápido! — exclamou Draak. — O pronunciamento vai começar!
Então correram em meio aos maatianos, que se agrupavam pelos corredores. Estranhamente, eles preferiam prestar atenção em seus próprios Seath’Mar a ir até a sala
do trono. Draak parou de correr dois passos depois de cruzar a porta e ergueu os braços, como se protestasse silenciosamente. O salão estava relativamente cheio,
com alguns maatianos espalhados pelos cantos. Alguns ministros, incluindo Bemor Caed, estavam em volta do trono, também de olhos e ouvidos atentos. O coro de trombetas
cessou.
— Mas o que é que... Onde está o rei? — perguntou Thagir, incrédulo ao ver o trono vazio.
Ninguém lhe respondeu. Um maatiano pequenino e franzino, com ares de quem já vivera o melhor dos seus dias, entrou por uma porta lateral. Com uma postura respeitosa
e compenetrada, postou-se diante da estátua Seath’Ran que havia no recinto.
A pedra azulada no peito da estátua emitia um leve brilho sobre aquele pequenino maatiano. Draak olhou para o Seath’Mar de seu cordão e viu a figura daquele maatiano
sendo projetada em miniatura no ar, diante do amuleto.
O pequenino começou a falar, com a voz empostada.
— Hardem shaul Traak’Moq. Oram padar o’re Makrao Maat!
— O que foi que ele disse? — Sumo perguntou.
Vários olhares incriminatórios fustigaram o rapaz. O maatiano idoso pigarreou acusadoramente, fazendo Sumo corar. Draak puxou o rapaz e Thagir para um canto.
— Vou traduzir para vocês — Draak sussurrou tão baixo, que quase não era possível ouvi-lo. — Aquele ali é Traak’Moq. Ele é o relator oficial do império de Makrao
Maat.
Traak’Moq continuou sua fala, em kin’nita. Draak traduziu para Sumo e Thagir quase simultaneamente, mas mantendo a voz o mais baixa possível.
— Ele está dizendo que hoje é um dia que entrará para a história, e que todo o povo de Makrao Maat deve estar atento ao que será dito pelo nosso rei Behemut, que
falará agora com todos nós.
A pedra azul do Seath’Ran parou de brilhar e o pequeno maatiano idoso se afastou, deixando um espaço vago diante da estátua. Os olhos da escultura começaram a projetar
luzes, criando uma imagem tridimensional no ar. A figura de um kyniano não transformado, magro, porém altivo, apareceu na projeção. Suas roupas eram tão comuns quanto
as de qualquer maatiano. A única diferença era a cor, um verde-esmeralda resplandecente. Além disso, usava um grande pingente da mesma cor, preso ao lado do rosto
por um fio dourado que lhe circundava a cabeça.
— É o rei! — exclamou Draak.
A expressão do rosto de Behemut era amarga e triste.
— Jai ah’ed Maat’tules! — disse o rei, com uma voz grave e carregada de pesar.
— Meus queridos maatianos — Draak continuou a traduzir, conforme o rei fazia seu discurso. — Venho até vocês como representante legítimo de Seath. Como todos sabem,
estamos diante de mais uma Synlige, e, com ela, todos os nossos esforços de paz estão novamente ameaçados. Este sempre foi um tempo de medo, apreensão e sacrifício
para o nosso povo. Devemos nos recolher, tirar as crianças das escolas e colocá-las em lugares mais seguros. Devemos patrulhar os céus e vigiar nossas fronteiras
com ainda mais afinco. Este é o tempo em que nossa vida será resumida a armas e armaduras. Um tempo que gostaríamos de esquecer.
Thagir ouvia a tradução com o coração apertado. Sendo ele mesmo um regente, entendia a dor que Behemut sentia ao proferir cada palavra.
— Duas vezes por ano, a Synlige nos coloca em alerta máximo. Todos nós, soldados ou não, nos preparamos para lutar, para defender nossa casa, nosso reino, nosso
lar.
Um burburinho de aceitação e orgulho percorreu os maatianos no salão. Um barulho veio da janela, demonstrando que a população do lado de fora do palácio também concordava.
Draak traduzia tudo com a mesma emoção de seu rei. O tom sussurrante já havia sido deixado de lado. A atenção de todos estava centrada no discurso de Behemut. Eles
bebiam suas palavras como a terra draga a chuva após a seca.
— Por isso, neste momento tão terrível, eu os convoco a lutar pela nossa pátria. A lutar pelo que é certo! É em momentos de tristeza, como este, que devemos reforçar
nossa crença e ter fé na bondade de Seath, pois dele são a força e a verdade!
Vários gritos de Dor mer omer surgiram pelo salão. Draak exclamou, mais do que traduziu: “Dele é a verdade!”
Então o rei fez uma pequena pausa. Balançando a cabeça positivamente e com uma incrível expressão de confiança e credulidade, continuou:
— E foi justamente neste tempo perdido que Seath mostrou mais uma vez ser o nosso guia e salvador. Nosso amado Seath falou comigo!
A multidão soltou um grito abafado de surpresa. Nem mesmo Draak, concentrado na tradução, conseguiu evitar uma sonora expressão de espanto. Alguns maatianos se ajoelharam
e começaram a rezar. Outros, de olhos fechados e erguendo as mãos para o céu, exclamaram palavras de aprovação e agradecimento.
— Glória ao Verdadeiro! — exclamou o rei, erguendo as mãos. — Ele me chamou para que nosso povo pudesse ficar alerta. Nosso reino está sofrendo, e não é apenas pela
ameaça da guerra. Existe alguma coisa mais espreitando nas sombras. Seath sentiu o mal rondando nosso amado lar e veio até nós para nos alertar. Existem inimigos
desconhecidos entre nós que podem nos prejudicar. E certamente o farão, caso tenham oportunidade.
Thagir e Sumo sentiram os olhos de alguns maatianos pousarem desconfiados sobre eles quando o rei se referiu a “inimigos desconhecidos”. Draak fingiu ignorar o gesto
e continuou a tradução.
— Por isso, com o coração pesado de tristeza, não vejo outra opção. Pela voz de Seath, aqui e agora, sou obrigado a proclamar a Declaração Temerosa!
O rei fez um instante de silêncio. Por todos os lados, suspiros de surpresa se misturaram a exclamações de desalento. A Declaração Temerosa era o estado máximo de
alerta e nunca havia sido proclamada antes. Significava que a guerra era praticamente inevitável.
O rei retomou o discurso.
— O exército estará pronto para qualquer investida inimiga, mas peço a todos que procurem abrigo. Cuidem de nossas famílias, cuidem de nossos vizinhos e amigos,
mas cuidem principalmente de nossas crianças, o futuro do nosso reino. Assegurem-se de que vocês estarão longe da batalha, refugiem-se no interior, se necessário.
E se, por uma infelicidade do destino, a guerra os alcançar, que Seath os ajude a lutar com honra e coragem.
Behemut fez mais um instante de silêncio, permitindo que todos refletissem sobre tudo aquilo. Meneando a cabeça, como se discordasse do que estava prestes a dizer,
prosseguiu:
— E, para garantir que nosso reino continue tendo um governo forte, mesmo diante de tamanha tragédia, ordeno a todos os ministros que abandonem o palácio e venham
para o santuário. Seath concordou em permitir a entrada de vocês pelo tempo necessário.
Bemor Caed ajustou os óculos e suspirou profundamente. Suas mãos tremiam um pouco. A reação do povo foi diversa. Alguns começaram a chorar, outros balançavam a cabeça,
como se não acreditassem nas últimas palavras de seu soberano. Outros, ainda, gritavam palavras de encorajamento, incentivando os companheiros a lutar ao lado dos
soldados.
Cabisbaixo, o rei finalizou seu discurso.
— Esta será uma Synlige desafiadora. Uma Synlige que devemos combater e, com a graça de Seath, triunfar! Unidos, venceremos mais este desafio — Draak engasgou nas
palavras, tamanha a comoção que sentia. O rei Behemut fez um gesto, parecido com um adeus. — Que a verdade seja a nossa guia, e que a bondade de Seath cubra a todos
nós com seu manto protetor. Despeço-me de vocês com a fé renovada de que ele está olhando por nós. Obrigado a todos, e glória ao Verdadeiro!
Então cruzou os braços em frente ao peito e fez uma leve reverência. Em seguida, a transmissão terminou.
Traak Moq abriu um grande livro vermelho e, com uma pena de estorvinho azul, escreveu vários parágrafos em negro nos autos oficiais do reino. Na última frase, se
deteve por um momento, desolado por ter de escrever o que nunca imaginara que teria de registrar.
É com pesar que o nosso amado rei Behemut anuncia a todo o povo que o véu das trevas caiu sobre o nosso reino, restando-lhe apenas uma saída: decretar a Declaração
Temerosa.
Traak Moq, relator-oficial do reino de Makrao Maat
Dia 23 do mês Mohalli do 325º Ano Dourado
Pulso Fantasma
No salão real e nos pátios dentro e fora do palácio, centenas de vozes irromperam. Maatianos se puseram a correr e ministros começaram a se preparar para a retirada,
de acordo com as ordens do rei.
— Vamos, amigos. Todos nós temos que deixar o palácio imediatamente.
Thagir ficou perdido, sem saber o que fazer. Todo seu plano virara fumaça em meio a um dia de ventania. Tentar convencer o rei a buscar uma alternativa de paz não
valia de nada agora. Até o apoio a seus amigos e um eventual pedido de perdão estavam fora de cogitação.
— O que vamos fazer agora? — perguntou Sumo, olhando para Draak e Thagir.
Thagir permaneceu em silêncio, sem saber o que dizer.
— Na verdade, amigos — Draak respondeu —, não sei o que vocês vão fazer. Quanto a mim, tenho deveres a cumprir para com o meu povo. Temos que nos preparar para a
batalha.
Thagir franziu a testa, indignado.
— Como assim? Você não vai fazer nada para tentar evitar a guerra?
— Às vezes temos que aceitar a inevitabilidade dos fatos e lidar com eles da melhor maneira possível — Draak disse. — Providenciarei para que vocês saiam da ilha
antes que as fronteiras sejam fechadas definitivamente.
O Senhor de Castelo maatiano se virou e saiu, sem esperar.
— Ele está certo — Thagir disse para Sumo. — Às vezes, é preciso seguir o caminho que a vida oferece. Mas eu tenho a péssima mania de criar o meu próprio caminho.
O pistoleiro piscou para o jovem e partiu atrás do Senhor de Castelo maatiano. Draak parou por um instante para dar passagem a um grupo de kynianas apressadas.
— Ei, Draak! Preciso de um favor seu — Thagir disse, alcançando-o.
— Se estiver ao meu alcance...
— Será que você pode mandar um pulso fantasma para o Kullat, informando que estamos voltando para a sede da Ordem?
— É claro! — Draak assentiu prontamente. — Na verdade, vou sinalizar também a Cyrvil que ficarei aqui e que o perigo é iminente.
Ele fechou os olhos e se concentrou. De cabeça baixa, o enorme castelar expandiu suas percepções, buscando as tatuagens fantasmas de Kullat e Cyrvil. Ele estava
acostumado com aquele exercício, mas, estranhamente, não conseguiu encontrar nada. Draak não abriu os olhos. Apenas levantou a mão, fazendo um sinal para que o pistoleiro
aguardasse. O maatiano franziu o cenho e se concentrou ainda mais. Determinado, esforçou-se para encontrar qualquer sinal da frequência de Kullat e Cyrvil.
Thagir estranhou a reação de Draak. Ele sabia que aquele nível de esforço para enviar o pulso não era normal.
— O que está acontecendo? — Thagir questionou.
O corpo de Draak tremia. Sua concentração era tanta que grossas gotas de suor lhe escorriam da testa.
— Draak. Está me ouvindo? Draak... DRAAK!
O Senhor de Castelo maatiano abriu os olhos, assustado. Sua respiração estava pesada, e ele soltou o ar com dificuldade. — Kullat... Cyrvil... — arfou Draak. — As
tatuagens deles... sumiram!
Sangue e Fogo
Em um galpão distante, vozes ecoavam em coro. Cada palavra era dita com força e determinação.
— O lucro é morte, é destruição. A Verdade de que precisam virá pelo sangue e pelo fogo!
Sete kynianos, em pé ao lado uns dos outros, prestavam atenção naquelas palavras, que pareciam preencher cada canto de sua alma.
— O lucro é morte, é destruição. A Verdade de que precisam virá pelo sangue e pelo fogo! — repetiam em uníssono, como se fossem uma só pessoa.
Eram como sombras. Usavam uma cota de malha que protegia o dorso, e os braços eram cobertos por mangas de couro negro. Luvas grossas protegiam as mãos. Na cintura,
um cinto com oito smides — pequenos discos redondos de metal com as bordas afiadas — era revestido por uma faixa de couro negra e comprida. As calças, de tecido
maleável, eram justas e terminavam em botas feitas de tiras, que se prendiam firmemente aos pés. Cada um segurava um bastão energético próximo ao peito. Seus olhos
eram amarelados, doentios e antinaturais.
Em um dos homens, uma bola azulada preenchia a cavidade ocular esquerda, dando-lhe um olhar sinistro. Pela brecha da máscara, era possível ver ainda uma cicatriz
esbranquiçada, que cruzava a pálpebra e a sobrancelha.
— As-Tanys está contaminada — Volgo falava, olhando diretamente nos olhos amarelados de cada um deles. — Contaminada por uma doença espalhada por falsos profetas,
que pregam a mentira e iludem o povo!
Os sete homens respiravam com força, encarando o feiticeiro com uma vontade de ferro. Cada palavra dita por Volgo era avidamente absorvida, inflando ainda mais o
ódio dos sete e fazendo crescer dentro deles um desejo quase infinito de combater o inimigo.
— Aquele reino de mentirosos busca difamar a Verdade. Eles e os Senhores de Castelo querem acabar com nosso amado Seath! — Volgo gritou com energia, com o dedo em
riste. — Mas a Verdade não pode ser silenciada! A Verdade triunfará!
— A Verdade triunfará — repetiram os sete kynianos, batendo com o bastão no próprio peito.
— Durante anos, o povo de As-Tanys sofreu nas mãos dos treze menteri, que espalharam dor e sofrimento em nome do lucro! — Volgo ergueu os braços magros, de punhos
cerrados, mostrando raiva para com aquele sistema materialista. — Mas agora, depois de tantos anos, a Verdade vai subjugar a falsidade. A Verdade triunfará sobre
os nossos inimigos, sobre os inimigos do povo!
Os kynianos que o ouviam gritaram fervorosamente, sentindo o espírito inflamado por aquelas palavras reveladoras. Volgo elevou ainda mais a voz e gesticulou enfaticamente,
com emoção incontida, enchendo o ambiente e o coração dos sete as-tanysianos.
— Liberdade ao povo de As-Tanys! Justiça aos inimigos do povo! Pela Verdade!
— Pela Verdade! — os sete homens gritaram e vibraram, em êxtase.
No fundo do galpão, encobertos pelas sombras, Tempestuoso e Willroch ouviam Volgo discursar e instigar cada vez mais o ódio dos sete.
— Vocês são a cura para a doença que assola este reino glorioso. Vocês são os libertadores da maravilhosa As-Tanys. Graças a vocês, esta terra será preparada para
que a semente da Verdade germine forte e eterna. Vocês são os escolhidos de Seath. Vão agora e espalhem o sangue dos infiéis. Queimem tudo com o fogo da Verdade!
— Volgo concluiu, erguendo vigorosamente o punho cerrado, como se abençoasse sua plateia.
Com gritos, palavras de ordem e o coração clamando por justiça, os sete dispararam para fora do galpão.
De braços cruzados, Willroch se aproximou do feiticeiro logo depois que o último kyniano saiu.
— Nunca vou entender como esses imbecis acreditam nesse tipo de besteira.
— Nunca subestime o poder da fé — Volgo retrucou, com um leve sorriso. — É uma arma de força incomparável e de uma ferocidade sem limites!
Ainda mais quando mentes fracas são dominadas por um feitiço de controle, pensou Volgo.
Willroch deu de ombros e foi buscar algo para beber. Pensou em chamar Tempestuoso para beber também, mas desistiu da ideia. O jovem olhava para o vazio, como se
sua mente estivesse morta ou fora do corpo. Willroch sentia a raiva emanando do rapaz de quimono negro, como se ele estivesse em uma luta constante contra alguma
coisa dentro de si.
Depois que o poeta se afastou, Volgo fechou os olhos e, fazendo um arco com as mãos, fez surgir uma chama violeta à sua frente.
— Bemor — ele chamou, concentrando-se. — Bemor — repetiu.
O arco vibrou e desapareceu, sinalizando que Volgo precisava esperar. Mas não precisou aguardar muito, pois um novo arco surgiu à sua frente momentos depois, e a
figura de Bemor Caed ficou clara entre as labaredas mágicas. O homem ajeitou os óculos e curvou o corpo em uma reverência.
— Senhor — disse a projeção de Bemor. — Desculpe-me tê-lo feito aguardar. Eu estava com os outros ministros quando o senhor me convocou para esta conversa. Por sorte,
consegui encontrar um local para atendê-lo sem mais demora.
Volgo assentiu, com um leve sorriso no rosto magro.
— Não seja tão rigoroso consigo mesmo, trur vinur — disse Volgo, usando uma expressão da Sombra para chamar Bemor de velho amigo.
— Fico feliz em lhe ser útil, meu senhor.
— Está preparado para dar continuidade ao plano?
— Certamente, senhor. Anos de espera e reflexão foram ótimos conselheiros para este momento tão aguardado. Tenho apenas uma questão menor a ajustar, mas estou pronto
para proceder exatamente conforme o seu planejamento.
— E essa questão menor seria sobre aqueles dois prisioneiros? — Volgo perguntou, lembrando que Bemor lhe contara sobre os dois estranhos. — Acha que eles serão um
problema?
— De maneira alguma, meu senhor — Bemor respondeu. — Já tenho um serviço encomendado para eles. Assim, não teremos nenhuma aresta para nos incomodar no futuro.
— Ótimo! — Volgo sorriu, satisfeito, esfregando as mãos esquálidas. — Deposito em você toda a minha confiança.
— Apesar de não ser digno de tamanha honra, garanto-lhe que o senhor não se decepcionará — Bemor fez uma nova reverência.
Volgo estava visivelmente satisfeito. Falar com Bemor Caed sempre lhe agradava. Aquele homem era um dos poucos a quem Volgo havia se afeiçoado em séculos de vida.
Talvez porque ele lembrasse a si mesmo em sua juventude: determinado, perspicaz e cheio de energia.
— Como planejamos, eu e Willroch o encontraremos antes do raiar do dia.
— O senhor já está no ponto de encontro? — Bemor questionou. Volgo apenas meneou a cabeça negativamente. O ministro fez uma expressão de dúvida. — Longe de mim querer
duvidar do senhor — disse Bemor —, mas ainda não me disse como fará para passar pelas vigias marítimas, pelas guarnições litorâneas e viajar até aqui. Tudo isso
em tão pouco tempo.
— Eu já fiz isso antes. Mais de uma vez, inclusive — disse Volgo. — Não terei problemas em fazer de novo, mesmo Willroch estando comigo dessa vez.
— Então, que as sombras os protejam! — disse Bemor, proferindo a velha frase de boa sorte que os integrantes da Sombra usavam.
— A escuridão é a nossa força! — Volgo respondeu ao provérbio.
Bemor fez uma nova reverência respeitosa para o seu senhor e Volgo a retribuiu, com um amplo gesto da mão direita. Em seguida, desfez o arco de magia.
— Capitão — disse Volgo, virando-se para o jovem de quimono negro, ainda imóvel no canto. Ao ouvir o chamado, Tempestuoso mexeu a cabeça, como um boneco que ganhou
uma fagulha de vida, e olhou para o feiticeiro. — Use isso quando for a hora de cuidar de Veryna.
Volgo atirou um pequeno vidro na direção do capitão e o jovem pegou o objeto em pleno ar, com um movimento calculadamente econômico. O rosto de Willroch assumiu
uma expressão de divertimento.
— Veryna? Mas eu achei que ela não havia sobrevivido ao incidente — ele disse maldosamente, voltando a bebericar.
— Ela ainda está viva, pelo menos por enquanto... — foi a resposta do feiticeiro. — Agora se apronte, pois temos que sair logo.
Willroch virou o restante da bebida de uma só vez e jogou o copo contra a parede, quebrando-o em pequenos pedaços.
— Eu já estou pronto — Willroch levantou as mãos, fazendo-as brilhar em lilás, ressaltando os pedaços da casca do ovo de manticore incrustadas na pele.
— Vamos! — respondeu Volgo, virando-se e saindo do barracão, com o cajado nas mãos esquálidas.
Willroch o seguiu.
— Não que eu queira jogar sal na sua sobremesa — disse Willroch, com uma falsa expressão de inocência —, mas você não acha que está contando com a sorte? E se a
guerra não acontecer?
Volgo bufou, desdenhoso.
— Eu só preciso de uma fagulha para começar um incêndio.
Fazendo um gesto com a mão magérrima, uma suave energia vermelha o envolveu e o velho mago flutuou. Como uma pedra lançada por uma catapulta, seu corpo disparou
no ar, deixando um rastro de poeira pelo caminho. Willroch deu de ombros e deu um pulo, disparando atrás de Volgo.
Desejo Realizado
Depois da conversa com Volgo, Bemor alisou a crina negra de sua montaria. O normaz resfolegou e bateu as patas fendidas contra o solo macio do bosque, apreciando
o carinho do dono. O ministro pegou um pequeno doce do bolso e o estendeu para o animal, que imediatamente abriu o bico e comeu a guloseima, saboreando o petisco.
Instigando o animal a sair da mata, Bemor se juntou à comitiva que se dirigia ao Templo Sagrado, onde o rei Behemut os esperava. O ministro também havia marcado
de se encontrar com Volgo naquele local. Ele incitou o normaz a andar mais rápido, passando de uma leve caminhada para um trote saltitante e acelerado. Como não
estava muito afastado da enorme comitiva, não demorou a retomar seu lugar, perto da grande carruagem real.
— Está tudo bem, ministro Caed? — perguntou outro integrante do grupo, quando Bemor emparelhou ao lado da janela.
— Estava apenas atendendo às necessidades do corpo, meu caro — respondeu Bemor, sorridente, sem dar mais explicações.
A viagem continuou num ritmo constante. Mesmo durante a negritude da noite, a longa comitiva seguiu, incansável, em direção ao Vale Sagrado.
Falta pouco agora, pensou Bemor, ansioso.
Volundr Handle
Kullat acordou em um quarto de paredes amarelas. Tubos de ferro estavam à mostra, como veias, permeando o teto e as paredes do lugar. Ao lado, estranhos equipamentos,
também de ferro, apitavam e soltavam vapor enquanto o cavaleiro tentava raciocinar.
Ele estava em uma cama de ferro, com lençóis claros, e vestia pijama cinza. Uma fraca luz percorria o quarto, vinda de tubos transparentes no teto. Pela janela,
viu que era noite. Tentou se mexer, mas seu corpo estava dormente e dolorido.
— Descanse — disse uma voz suave ao seu lado.
Kullat se esforçou para virar a cabeça e viu uma kyniana magra, de feições delicadas. A pequena barbatana estava pintada suavemente de verde-mar e prata, combinando
com os lábios verdes e a pele cinza-clara. Ela usava pequenos brincos de esmeralda, um par em cada orelha de ponta dupla.
A kyniana sorriu para Kullat e anotou algo, olhando para os monitores do quarto.
Kullat se sentia fraco e desorientado. Uma dor na barriga o alertava de que tinha muita fome. O quarto pareceu girar por um momento, e uma sensação de náusea lhe
subiu à garganta. Era como se seu corpo estivesse vazio, sem forças.
— Preciso comer — conseguiu murmurar, com a língua embotada.
A enfermeira terminou suas anotações, mexeu em alguns aparelhos e saiu do quarto, prometendo que voltaria em breve trazendo comida. Um líquido amarelado correu por
dentro de um tubo fino e comprido, que saía de uma das máquinas e seguia até o seu braço.
Ele sentiu uma sensação morna no corpo, e o torpor começou a regredir suavemente. Aproveitando a solidão, tentou colocar os pensamentos no lugar.
Lembrava de estar em um beco, de uma mulher de rua pedindo ajuda, dos olhos dela escurecerem. A imagem grotesca da mulher gritando deu vez ao brilho intenso de uma
explosão.
Por instinto, ele criou uma barreira de energia mágica para tentar proteger a si e quem estava atrás. Mas a velocidade da explosão foi tamanha que tudo ao seu redor,
inclusive o chão, foi instantaneamente destruído. Aquela explosão fora diferente de todas as outras que ele havia enfrentado antes. O tipo de energia e as múltiplas
ondas de choque eram tão diversos que rapidamente abalaram suas defesas e ele sucumbiu.
Ele esperou a morte, mas não morreu. Foi por pouco, muito pouco, na verdade. Graças à barreira protetora, conseguiu evitar o calor escaldante e a onda de ar destruidora,
mas outra força estranha e arrasadora o atingiu e ele apagou. Depois da explosão, quando abriu os olhos, seu corpo estava ensopado pela chuva que caía fracamente.
Quanto tempo havia se passado, ele não sabia.
Só lembrava que estava no centro de uma cratera negra. Do epicentro da explosão, não sobrou nada. Paredes, lixo e escombros haviam simplesmente sido obliterados.
O chão estava enegrecido, destruído e chamuscado.
Uma massa de corpos entrelaçados estava caída atrás dele. Em virtude da barreira que criara, conseguira proteger o grupo do calor e de grande parte da onda de choque,
mas não completamente. Nahra e Cyrvil estavam caídas ao seu lado, uma sobre a outra. Veryna jazia de bruços sobre dois soldados. Seu corpo soltava fumaça e sua barbatana
não existia mais. Um outro soldado estava caído mais atrás, com um coto de braço cauterizado, exalando vapores negros. Dos demais, sobraram apenas pedaços queimados,
alguns sem membros, outros sem metade do corpo.
Ele se lembrou da dor dilacerante que havia sentido enquanto estava deitado, com fragmentos pontudos machucando-lhe as costas e a chuva ainda caindo sobre ele. O
ar cheirava a carne queimada. Além da dor, sentia sede. Uma sede absurda, como se seu corpo inteiro gritasse por água. Um forte gosto de metal oxidado havia lhe
tomado a boca, deixando a língua dormente.
Objetos rondavam alto no céu, como abutres circulando carniça, esperando o momento certo de se fartar. Seus membros tremiam, como se os músculos tivessem sido eletrocutados.
O cheiro de mofo e vapor impregnou suas narinas à medida que os objetos desciam do céu em sua direção. Ciclovotores, pensou, ao ter uma visão mais clara dos veículos
em formato de losango.
Borrões amarelos surgiram, descendo por cabos do céu, e o agarraram, fazendo-o sentar no chão. Os borrões gesticulavam e falavam repetidamente duas palavras em kin’nita
— Volundr handle.* Eles apalparam seus braços e pernas, procurando fraturas, depois mexeram sua cabeça para os lados. A dor que sentia era lancinante e, se tivesse
forças, teria gritado. Os médicos injetaram algo em seu pescoço e, rapidamente, ele viu a luz se transformar em breu.
A máquina apitou estridente três vezes, trazendo-o de volta ao presente. Kullat suspirou, sentindo o corpo todo relaxar. Passou a língua nos dentes, como se houvesse
uma camada finíssima de areia presa a eles. Mesmo que dezenas de vezes mais fraca, ainda sentia sede e o sabor insalubre de metal oxidado na boca.
A enfermeira de brincos esverdeados retornou, trazendo uma bandeja.
Quanto tempo tinha se passado desde que a enfermeira saíra? Poderiam ser instantes ou dias, ele não sabia. Sua noção de tempo era nula.
Ela verificou a máquina e pareceu ficar satisfeita com o que viu. Pressionando um pedal perto do chão, a cama rangeu e saiu vapor debaixo dela. A parte superior
da cama se elevou, trazendo consigo o cavaleiro.
— Obrigado! — ele exclamou, estalando a língua quando ela puxou a mesinha com a comida diante dele.
— Você precisa se alimentar para poder se recuperar — respondeu ela, usando perfeitamente a língua comum.
— Quem é você? Onde estou?
— Você está no hospital geral de Corilus. Eu me chamo Naity-Gael e sou a enfermeira contratada para acompanhar você — respondeu ela, de modo amável.
Kullat se ajeitou dolorosamente para comer o que quer que fosse aquilo. Um prato fundo com uma estranha substância pegajosa, parecida com um mingau verde, cujo cheiro
azedo lembrava conserva de legumes estragada. Havia também uma pequena xícara, cheia de um líquido branco.
— São coranolas cozidas no vapor. O gosto é pior que o cheiro, mas garanto que vão lhe fazer bem — ela sorriu, exibindo lindos dentes brancos. Kullat retribuiu o
sorriso com suavidade e experimentou a refeição.
Ela tinha razão: o gosto era realmente horrível. Amargo e pegajoso, com sabor de musgo e terra mofada. Mesmo sendo ruim, ele se forçou a comer. O líquido, apesar
de não ser nenhum licor, tinha gosto mais ameno. A enfermeira ficou ao lado dele durante toda a refeição.
— Por quanto tempo fiquei desacordado?
— Dois dias.
Ele hesitou por um momento, diante da possibilidade de Cyrvil ou Nahra não terem suportado a explosão.
— E as minhas amigas... Elas estão bem? E a grã-chefe?
— A grã-chefe e os soldados que sobreviveram estão sendo tratados em outro lugar. Quanto às suas amigas, eu também estou cuidando delas. A mulher de cabelos vermelhos
está no andar de cima. E a mulher-cachorro está no quarto ao lado.
— Mulher-lobo — corrigiu ele.
A enfermeira apenas sorriu.
— Vocês tiveram muita sorte — ela sussurrou. — Volundr handle... Um milagre.
Nota
* “Ato de Deus” ou “milagre”, em kin’nita. Volundr é o deus kyniano adorado em As-Tanys.
Efeito Colateral
Kullat cochilou por algumas horas e acordou de madrugada, sentindo-se um pouco melhor. A cabeça já não girava e a náusea diminuíra. A comida e os remédios tinham
sido de grande valia, e ele se sentia mais forte, pelo menos o suficiente para ficar de pé. Cambaleante, seguiu até a porta.
— Não se esforce muito — Naity-Gael pediu, levantando-se da cadeira no fundo do quarto.
Diante do olhar surpreso da enfermeira, ele pediu para ver as amigas. Contrariada, ela o apoiou pelo braço para ajudá-lo. Vestindo o pijama cinza, andando lentamente
e com o corpo rígido e fraco como o de um idoso, ninguém diria que aquele era um dos homens mais poderosos do Multiverso.
Ao chegar à porta, pela primeira vez desde que acordara, Kullat olhou seu reflexo pelo vidro e se assustou com aquela visão fantasmagórica. O rosto estava mortalmente
pálido, os olhos fundos e avermelhados. O cabelo e o cavanhaque pareciam ter ficado um pouco mais claros, com fios prateados além do normal. A boca estava rachada,
o corpo, curvado, e a aparência era de alguém fraco e doente.
— Grande Khrommer! — Kullat afastou o olhar, evitando ver aquela figura deplorável que aparecia em seu reflexo.
— Deixe que eu abro — a enfermeira disse, abrindo a porta.
Felizmente precisaram andar pouco, pois Nahra estava no quarto ao lado, separado apenas por uma parede fina. Estava escuro, e o ambiente estava iluminado por uma
luz artificial vaporosa vinda do corredor. A bela mulher estava deitada com uma camisola cinza e coberta por um lençol amarelo até a barriga. Ataduras pressionavam
um lado da cabeça. Os cabelos, antes viçosos e brilhantes, estavam opacos e quebradiços. A pele morena estava desidratada, e a boca carnuda estava repleta de pequenas
rachaduras, como se ela tivesse ficado no sol por muito tempo.
— Como ela está? — Kullat perguntou para Naity-Gael.
A enfermeira foi até a cabeceira da cama e olhou alguns registros em uma tela.
— Ela deu entrada com um quadro semelhante ao seu. Estava com forte desidratação, hiperoxigenação aguda no sangue e sinais vitais fracos. Não há nenhum osso quebrado,
queimadura ou ferimentos. — A enfermeira tocou na tela novamente, e uma imagem do crânio de Nahra apareceu com algumas informações ao lado. — Mas aqui diz que ela
sofreu uma forte pressão nos ouvidos e que está surda do ouvido esquerdo.
— Surda? — Kullat ficou chocado.
— Ela consegue ouvir, mas não mais como uma licana, o que para ela é um diagnóstico de surdez. Os sons serão muito mais baixos e menos detalhados. Também não há
registro da extensão dos danos, nem se são permanentes. Por enquanto, ela deve descansar e não fazer esforço até se recuperar bem — a enfermeira disse.
Kullat precisou apoiar-se na cabeceira da cama.
— Mas ela vai ficar bem?
— Sim, vai. Não se preocupe — afirmou Naity-Gael.
— Nahra — ele sussurrou, tocando de leve sua face.
Ao sentir o toque, ela abriu os olhos suavemente. As íris, antes de um amarelo vivo e brilhante, estavam agora embaçadas. Ela sorriu um pouco e piscou devagar ao
reconhecer o cavaleiro. Foi um sorriso sincero e amigo, que fez o coração dele se aquecer.
— Oi, lobinha — ele disse, com um sorriso tranquilizador. — Está tudo bem agora.
Nahra suspirou e seus lábios tremeram. Naity-Gael tocou no ombro de Kullat, dizendo que iria ver alguns exames. Kullat agradeceu pela privacidade.
— Kullat — ela murmurou. Sua voz era rouca e triste, e lágrimas brotaram em seus olhos ao ver o estado dele. — Você está...
— Shhh, calma — ele passou a mão enfaixada pelo rosto dela, secando as lágrimas que escorriam pelas linhas delicadas de sua face. — Já passou.
— Eu... eu... vi a morte... — ela não terminou a frase, sendo interrompida pelo próprio choro. Nahra segurou a mão dele contra o rosto. — Quando pensei que iria
morrer, várias coisas passaram pela minha cabeça.
Kullat segurou o rosto dela com ambas as mãos e se aproximou. O cheiro de violetas era fraco, mas continuava ali.
— Você precisa descansar.
Em um impulso, ela o abraçou, chorando. Kullat sentiu o hálito doce dela misturado às lágrimas sinceras, e seus olhos também marejaram.
— Desculpe, Kullat... Me perdoe, por favor — ela sussurrou no ouvido dele. — Não quero te perder, não quero. Não quero outro parceiro, outra regra, nada — ela disse,
apertando ainda mais as costas do cavaleiro. — Sei que temos diferenças, mas não quero ficar sem você.
— Nahra... — ele tentou falar, mas ela o impediu, apertando seu corpo contra o dele.
— Não quero, Kullat — ela sussurrava, em prantos. — Depois de tudo, não quero ficar longe de você.
As palavras dela o tocaram fundo no coração. Ele se lembrou da discussão que tiveram no navio, durante a vinda deles para lá. Palavras duras e frias. Então se sentiu
envergonhado por não tê-la entendido antes.
Ela mantinha o abraço, como se não quisesse largá-lo mais. Seu coração pulava no peito enquanto chorava. Eles ficaram alguns minutos assim, abraçados em silêncio.
— Nahra — ele olhou para ela com ternura e ajeitou os cabelos despenteados da testa dela. — Não vou te abandonar, eu prometo!
Ela sorriu e Naity-Gael voltou para o quarto.
— Agora vamos — disse, colocando a mão no ombro de Kullat. — Vocês dois precisam descansar.
Nahra murmurou algo, mas Kullat não entendeu. Ele a beijou na testa, dizendo que voltaria depois. No corredor, sentiu uma forte pontada de dor no peito e curvou-se
ainda mais, cerrando os dentes. Era como se seus músculos tivessem enrijecido de repente. Naity-Gael o ajudou a se endireitar.
— Espasmo muscular. Vai passar com o tempo. Quanto mais líquido você ingerir e melhor se alimentar, mais rápido seu organismo vai voltar a ficar equilibrado. Agora
vamos voltar para o seu quarto.
— Ainda não... — ele respondeu, apertando o peito. — Eu preciso ver Cyrvil.
— Eu não acho uma boa ideia — ela respondeu, estacando diante do cavaleiro.
Ele se endireitou ao máximo, sem exclamar nem gemer pela dor que sentiu ao fazer isso.
— Eu preciso vê-la — ele olhou para ela, suplicante. — Por favor...
Ela relutou um pouco, mas assentiu, apoiando novamente o cavaleiro pelo braço. Os dois seguiram por um corredor largo e subiram vagarosamente uma rampa de dois lances,
até o andar de cima. Quando entraram no quarto de Cyrvil, Kullat não conseguiu esconder seu espanto. A krematiana estava dentro de um cilindro de metal, com um vidro
transparente ao lado. Máquinas e equipamentos se conectavam ao cilindro e monitoravam sua respiração e seus batimentos cardíacos.
— Por que ela está naquele troço? — Kullat perguntou, intrigado.
— O sangue krematiano é quente demais, quase como pedra derretida — explicou Naity-Gael, apontando para o cilindro. — Com essa cama, conseguimos tratar os ferimentos
e medicá-la sem nenhum risco.
— Kullat? — disse uma voz jovial atrás do cavaleiro.
Ele se virou e viu Ulani na porta do quarto. Os olhos dela estavam fundos, marcados pela tristeza e pelo cansaço. Ela correu até ele, com lágrimas no rosto.
Suspeitas
Ulani não escondeu a alegria e correu para abraçá-lo. Lágrimas brotaram de seus olhos, evaporando conforme escorriam por seu rosto cálido.
— Graças a Ere’bo!* — ela disse, soltando o cavaleiro. — Eu achei que... — a garota soluçou, com os olhos marejados.
Kullat a abraçou novamente, como um pai que tenta acalmar a filha.
— Calma. Está tudo bem agora.
O cavaleiro e a jovem sentaram-se em um sofá no quarto. A enfermeira saiu de perto, para dar espaço para os dois conversarem.
Kullat notou que Ulani estava abatida.
— Assim que eu soube da explosão, vim o mais rápido que pude. Ajudei no que foi possível e doei sangue para Cyrvil — Kullat reparou em uma mancha arroxeada no braço
da garota, de onde haviam retirado seu quentíssimo sangue krematiano. — Infelizmente, os efeitos da explosão para ela foram mais graves. Alguns órgãos entraram em
colapso e ela teve que passar por uma cirurgia difícil — a garota suspirou e fez uma pausa. Seus olhos voltaram a ficar embaçados. — Eu cheguei a pensar... que vocês
iam morrer.
— Obrigado por se preocupar, minha querida — ele sorriu e piscou para ela. — Graças a Khrommer, o pior já passou.
A garota sorriu e suspirou, relaxando um pouco. Os dois últimos dias haviam sido muito estressantes para ela. Mesmo sendo uma guerrina, ela teve de lidar sozinha
com a notícia da explosão e com a reação dos menteri àquele novo incidente. Agora que o estado de Cyrvil estava estável e o cavaleiro se sentia melhor, sua angústia
diminuíra, dando lugar ao forte espírito investigativo, típico dos castelares.
— Mas, afinal, o que aconteceu naquela noite? — ela questionou, intrigada. — Vocês encontraram alguma coisa? Encontraram algum terrorista?
Kullat explicou brevemente o que havia acontecido no beco. A mulher e a explosão.
— Que loucura! — Ulani exclamou, espantada. — Eu nunca ouvi falar nada sobre algo assim antes!
— Eu também não. Aquilo não foi causado por explosivos. — Ele fez uma breve pausa. — Eu tenho quase certeza de que foi magia. Uma magia muito poderosa.
— Volgo! — Ulani exclamou, levando uma das mãos à boca. As unhas estavam roídas e descascadas, resultado de dois dias angustiantes no hospital.
— Tenho quase certeza de que tem o dedo seco dele nisso tudo — disse Kullat, sério.
Ele fechou o punho e fez as faixas brilharem com sua energia mágica. A luz prateada foi tênue e fraca. Ele sentiu vertigem e parou imediatamente, notando que ainda
não estava suficientemente recuperado.
— Pode contar comigo! — a jovem disse, com convicção ferrenha e os olhos parecendo faiscar de raiva.
Kullat lhe agradeceu pela prontidão.
— E Veryna? — perguntou.
— Ela e os outros foram levados para as alas hospitalares do exército na Torre Corilus. A área é isolada e só militares e ministros podem entrar — Ulani ficou em
silêncio por um momento, como se relutasse em falar.
— O que foi? — Kullat indagou, ao ver a guerrina hesitar.
Ela balançou a cabeça, pesarosa.
— Os menteri já desistiram de tudo. Mandaram todo o exército se preparar para a guerra.
— Não pode ser. Nós temos que falar com eles, temos que impedir essa guerra! — Kullat se levantou, e uma dor lhe percorreu os músculos.
— Eles estão isolados na torre e não recebem mais ninguém. A explosão em Bacac foi a gota-d’água.
Kullat não sabia mais o que dizer. Ulani também se levantou e segurou no braço do cavaleiro.
— Kullat... Não há mais nada que possamos fazer.
Nota
* Deus do calor. Adorado em Kremat e em mais dois outros planetas. Segundo a crença, os rios de lava de Kremat são suas veias, e os sóis, seus olhos.
Um Rosto Amigo
Kullat arfou, sentindo uma nova onda de dor. Sem conseguir resistir, arcou o corpo e gemeu. Surpresa, Ulani segurou o cavaleiro pelos braços e o apoiou. Ao vê-lo
arqueado, Naity-Gael correu para ajudar.
— Tudo bem? — a enfermeira perguntou. Ele assentiu em silêncio e colocou a mão no abdome. — Vamos. Você deve voltar para o seu quarto.
Ulani se despediu, dizendo que ficaria no quarto de sua mestra. A enfermeira ajudou Kullat a voltar para o quarto e o apoiou enquanto ele se sentava na cama. Os
músculos do peito doíam e as pernas tremiam. Ela saiu e retornou logo em seguida com alguns comprimidos e um copo d’água.
— Tome. Isso vai ajudar a diminuir a dor. Tente descansar um pouco agora.
Ele agradeceu e tomou os remédios, olhando para ela. Naity-Gael sorriu e saiu rapidamente. Kullat havia simpatizado com a enfermeira. Ela era responsável e demonstrava
ser bem preparada.
Então pensou em Ulani. Não que ele não sentisse orgulho de Sumo, mas a jovem era visivelmente muito mais madura que o rapaz.
A vida dela deve ter sido dura, pensou ele. Aquilo o fez lembrar das palavras que seu velho amigo Thagir costumava dizer: “Espinhos ferem mãos delicadas. Mas mãos
calejadas aguentam até ferro quente”.
Ao lembrar do amigo, Kullat ficou curioso para saber onde ele estava. Com o sono lhe pesando as pálpebras, bocejou profundamente. Era madrugada, e ele resolveu voltar
a dormir.
Algum tempo depois, Naity-Gael acendeu as luzes e entrou no quarto, empurrando uma mesa de ferro redonda, com rodinhas ruidosas na base. Kullat esfregou os olhos,
com a vista ainda se ajustando à repentina claridade. Lá fora estava escuro, sinal de que ainda não havia amanhecido.
— Desculpe, senhor Kullat — ela disse, aproximando o aparelho da cama. — Mas essa garota insistiu que precisava falar com o senhor imediatamente.
Ela ajeitou o aparelho ao lado da cama e desenrolou alguns cabos, ligando-os a tubos na parede. Em seguida, pressionou o centro da mesa. Um vapor amarelo-claro surgiu
e, em instantes, uma imagem se formou. Kullat instintivamente se curvou ao ver Kim-moross no vapor do frequenciador.
— Por Nopporn, você está mesmo vivo! — exclamou, com a voz infantil carregada de surpresa.
Kullat fez uma careta de dúvida. Kim-moross não costumava brincar, ainda mais com um assunto tão sério como aquele. A enfermeira fez um sinal de que sairia e Kullat
gesticulou positivamente, balbuciando um “obrigado”.
— Até onde eu sei, estou vivo, sim — disse ele, espreguiçando-se e voltando sua atenção novamente para o frequenciador.
— O Muro registrou sua morte, Kullat. Sua, de Nahra e de Cyrvil. As tatuagens fantasmas de vocês não foram encontradas pelos nossos localizadores transboreais, e
o brilho de seus nomes se apagou no Muro — a mulher-criança explicou, percebendo a confusão dele.
— Como é? — ele endireitou o corpo, olhando para Kim-moross em dúvida. — Minha tatuagem? Minha morte?
Kim-moross fixou os olhos sem íris no cavaleiro.
— Ao que parece, alguma coisa interferiu no feitiço da tatuagem fantasma, e achamos que tínhamos perdido vocês. Só ontem Ulani conseguiu nos contatar e contar sobre
a explosão.
— Mas como é possível isso? A tatuagem fantasma é ligada à Maru vital. Enquanto eu estiver vivo, ela vai continuar a existir!
Ele se concentrou em sua tatuagem, mas, de alguma forma, sentiu que ela estava rala, quase sem forma. Era como se fosse apenas um eco do que deveria ser.
— Não sabemos como isso aconteceu. É a primeira vez na história do Muro que acontece algo assim, mas a vibração de sua tatuagem fantasma foi interrompida. Mesmo
agora, o que registramos é apenas um sinal muito fraco e intermitente, muito longe do normal.
Kullat refletiu, relembrando da mulher se desintegrando e das sensações que sentira durante e depois da explosão. De alguma maneira, alguém havia conseguido manipular
a Maru vital para transformar aquela mulher em uma bomba. Novamente um nome surgiu em sua mente.
Volgo!
— Anciã — o cavaleiro disse, finalmente. — Este mundo corre perigo. Um perigo maior do que imaginávamos. Vocês precisam falar com os menteri, nem que seja através
de um frequenciador.
Ele não disse, mas pensou: E também prender aquele lunático!
— Já sabemos de tudo. Ulani nos atualizou sobre a posição dos menteri. — A imagem tremeu um pouco. — Assim que soubemos da explosão, tentamos uma audiência com eles,
mas eles se recusam a nos atender. A única resposta que conseguimos foi a de que onze dos treze menteri votaram a favor do rompimento do acordo com a nossa Ordem
enquanto perdurar essa situação toda. Infelizmente, perdemos a pouca força que nos restava em As-Tanys.
— Por Khrommer! — o cavaleiro sentou-se, olhando preocupado para o vapor.
— Além disso, Ur’Dar não está mais indo para aí. — O tom de voz foi incisivo, deixando implícito que não haveria espaço para questionamentos. — Esse contato é para
dizer que o Conselho cancelou sua missão. As novas ordens são para que regresse para Ev’ve imediatamente.
Kullat se mexeu, espantado. Uma fisgada de dor perpassou-lhe a lombar, mas ele resistiu bravamente.
— Não podemos abandonar Kynis!
— Não há o que discutir, Kullat. — Kim-moross foi enfática na resposta. — Essas ordens se baseiam no quarto dia.
Kullat abriu a boca, mas não disse nada, lembrando-se do quarto dia: A derrota existe.
O lema do quarto dia se apoia na real existência de uma derrota. É um modo de dizer que nem todas as lutas serão vencidas e que nem todos poderão ser salvos. Kullat
odiou esse dia na Academia, e naquele momento aprendeu a odiá-lo ainda mais. Aquela era a primeira vez em sua vida que o quarto dia era aplicado a uma missão sua.
— E Draak, Cyrvil e a aprendiz Ulani? O que vai acontecer com eles?
— Cyrvil não poderá deixar o hospital enquanto não melhorar. Ela terá de permanecer em Kynis e continuar com o tratamento, até estar em condições de viajar.
— Mas, se a guerra estourar, o hospital poderá ser atacado!
— É um risco que teremos de correr — ela disse, enfática. — Deixamos uma mensagem na sede para que Draak nos contate o mais rápido possível. — Kim-moross ajeitou
os lisos cabelos violeta atrás das orelhas, deixando ainda mais evidente o rosto infantil. Mas a firmeza das palavras e o tom confiante não deixavam dúvida de que
sua decisão era embasada em décadas de experiência. — Já sobre a guerrina, apesar de ela se recusar a deixar sua mestra, você e Nahra devem se responsabilizar por
ela e trazê-la com vocês.
Kullat pensou em protestar, mas desistiu e suspirou. Aquele era um triste e amargo dia de derrota.
— E os meus amigos? — Kullat elevou a voz, quando se lembrou do pistoleiro e dos dois prisioneiros. — Eu preciso saber dos meus amigos!
— Você não entendeu, Kullat. As ordens são para que você abandone esse planeta imediatamente! — ordenou Kim-moross, num tom de voz duro e imperativo. — O que foi
feito foi feito. Amanhã de manhã será a Synlige, e não podemos correr o risco de que você, Nahra e os guerrins fiquem em Kynis, caso a guerra realmente estoure.
— Farei o possível, senhora — respondeu Kullat, recostando-se na cama. — Mas ainda estou muito fraco, e Nahra também não está totalmente recuperada.
Kullat não estava mentindo. Realmente eles estavam bastante fracos. Talvez não fracos o suficiente para viajarem, mas Kullat não poderia simplesmente abandonar todos
para trás. Ele ainda tinha esperança de fazer alguma coisa para mudar a situação.
A anciã-criança permaneceu calada, pensativa. Ela cruzou as mãos e apoiou a cabeça sobre os dedos entrelaçados.
— Compreendo sua posição. E, nesse ponto, tenho de acreditar em seu bom senso. Só peço que tenha consciência dos perigos que estão correndo.
— É um risco que temos de correr — Kullat a parafraseou, sem conseguir esconder totalmente o tom desafiador em sua voz.
— Eu confio que você fará a coisa certa — Kim-moross retrucou, apenas o fitando.
— Como sempre, senhora — Kullat fez uma leve mesura, e outra fisgada na lombar o fez prender a respiração por um momento.
— Antes de encerrarmos, tem uma pessoa aqui que conseguiu a proeza de me convencer a deixá-la falar com você.
Kim-moross se afastou, deixando apenas um vapor amarelo à frente do cavaleiro. Pouco depois, ele tomou um susto ao ver quem apareceu no frequenciador. Era um rosto
amigo, que o fez sentir uma sensação cálida e reconfortante.
Era Laryssa, a princesa de Agas’B. Fazia algum tempo que eles não se viam, e ele ficou admirado como ela estava ainda mais bonita do que ele se lembrava. Os cabelos
haviam crescido e o rosto, apesar de aflito, continuava lindo, como sempre.
Os olhos da princesa encheram-se de lágrimas ao ver o cavaleiro. Não era a primeira vez que ela chorava por causa de sua suposta morte.
— Kullat! Você está vivo! — ela exclamou, com a voz embolada. — Eu achei que...
— Laryssa — ele respondeu, sentindo-se realmente muito feliz em vê-la. — Como é bom te ver!
Ela sorriu levemente, com os olhos embaçados e vermelhos. Tinha o semblante cansado e abatido, pois passara dois dias sem dormir e quase sem comer por causa da notícia
da morte do cavaleiro. Virnus tentou consolá-la, mas a princesa não quis vê-lo. Na verdade, não quis ver ninguém. Mas, quando soube que o cavaleiro estava vivo,
insistiu tanto com seus superiores que acabou conseguindo uma permissão especial para falar com ele.
— Como você está? O que aconteceu? Você está bem? — perguntou, muito aflita. Mesmo através do vapor, ela notou que o cavaleiro parecia uma vela cujo pavio havia
se queimado quase totalmente, correndo o risco de qualquer brisa apagar sua chama.
— Calma, calma! — ele levantou as mãos, gesticulando para ela. — Eu estou fraco, mas estou bem. — Um dos músculos das costas repuxou, e ele fez uma careta de dor.
— Estou um pouco dolorido também, mas não há nada com o que se preocupar agora. Em breve tudo isso vai acabar, e você logo me verá em Ev’ve.
— Ah, Kullat. Eu precisava tanto ver você. — Ela enxugou os olhos, que voltaram a marejar.
— Laryssa, temos pouco tempo — Kim-moross a advertiu. — Mostre logo a ele.
Laryssa se virou e olhou para trás. Kullat imaginou que a armeira-mor de Ev’ve continuava na sala de transmissão, apesar de não aparecer no vapor. As duas conversaram,
mas o cavaleiro não conseguiu escutar o que diziam. Instantes depois, o rosto de Laryssa voltou a aparecer no vapor amarelado.
— Kullat, a anciã só permitiu que eu falasse com você depois que eu contei a ela uma coisa que descobri e que pode ser importante para você.
— O que você descobriu?
— Eu estava pesquisando na biblioteca reservada da mestra Raissa, quando esbarrei num livro velho com uma figura especial. — A princesa pegou um pedaço de papel
amarrotado e o desdobrou diante de si, para que ele pudesse ver do que se tratava. — É um selo mágico!
Kullat olhou intrigado para o desenho. Os dois círculos entrelaçados, à exceção das três marcas no lado direito, eram muito semelhantes ao símbolo de Oririn.
Ilha de Ev’ve
Pela tela semitransparente do frequenciador, Laryssa e Kim-moross viram a expressão de confusão no rosto abatido do cavaleiro. A princesa olhou para a anciã-menina,
que aguardava curiosa pelo que viria.
— Então, Kullat — a princesa voltou a falar. — Alguma vez já ouviu falar desse selo?
Kullat cofiou o cavanhaque, pensativo.
— Eu...
Kullat fez um movimento brusco para a frente e um barulho forte, vindo do lado dele, o interrompeu.
Laryssa e Kim-moross viram que o cavaleiro se levantou rapidamente, assustado, passando a mão na nuca.
— Mas o quê? — foram as últimas palavras que elas ouviram dele. A imagem tremeu e piscou e, em seguida, apagou-se por completo. A transmissão havia sido interrompida.
Para desespero da princesa, um pouco antes de a imagem se apagar, ela viu uma figura escura e ameaçadora no quarto de Kullat.
Interrupções
Planeta Kynis
O disco de metal se cravou na parede, após ter cortado os cabos de energia do frequenciador. Seu escudo estava tão fraco que o disco conseguiu fazer um corte em
sua pele, tingindo seu pijama com um filete de sangue.
Na janela do quarto, seu agressor segurava outro estranho disco de metal, empoleirado como um felino pronto para saltar. Vestia uma roupa de pano escura e uma máscara
que só deixava à mostra os olhos. Olhos kynianos, com certeza. Em uma das mãos, segurava um bastão energético que soltava faíscas azuis.
A figura pulou para dentro do quarto com rapidez e atacou com ferocidade. Kullat só teve tempo de desviar do golpe. O bastão bateu com força no frequenciador, partindo
o aparelho em dois. O homem tentou dar outro golpe, mas Kullat conseguiu desferir um murro no rosto do agressor, que recuou, tentando se recobrar. Aproveitando o
desequilíbrio do inimigo, o cavaleiro jogou o carrinho quebrado do aparelho sobre o homem.
Kullat levou as mãos enfaixadas ao abdome, sentindo uma forte pontada de dor. Se estivesse em sua plena capacidade, o mascarado já estaria preso ou em pedaços, mas
o cavaleiro ainda não estava pronto para um combate. Ele sentia a energia fluir em seu corpo, mas de maneira errática e fraca. Manteve a barreira natural que o protegia,
mas não disparou rajadas contra o inimigo. Tinha medo de ter sua força esgotada rapidamente e se tornar um alvo fácil.
Khrommer me ajude.
Nahra abriu os olhos, confusa. Embora o ouvido esquerdo ecoasse um vazio profundo, o direito ainda funcionava bem, e um barulho forte de algo quebrando a acordou.
Seus sentidos já não estavam embotados, mas o corpo ainda doía.
As luzes estavam apagadas, mas, como todo licano, ela tinha uma ótima visão noturna, que lhe permitiu distinguir a silhueta de um homem entrando pela janela. Ao
ver um brilho azul de um bastão energético, a Senhora de Castelo rolou para o lado e caiu. O rastro azulado atingiu a cama, destruindo o colchão em fagulhas cerúleas
como o azul do céu.
O homem saltou sobre a cama com agilidade. Nahra ainda estava no chão, tentando se levantar, quando Talbain se materializou entre ela e seu agressor, mostrando as
enormes presas ferozmente. O homem golpeou com força e o acertou. Faíscas azuis percorreram o corpo do animal quando ele deslizou pelo chão do quarto.
A Senhora de Castelo rosnou ferozmente, mostrando as garras afiadas e os caninos pontiagudos. Em seguida, acertou seu agressor com força, penetrando as garras no
braço e no ombro dele, rasgando roupa e carne. O sangue jorrou enquanto ele gritava de dor.
O bastão tocou no peito dela e a luz azul iluminou o quarto. A força do choque foi tamanha que ela foi lançada para trás, uivando de dor. A dor de milhares de picadas
lhe percorreu a pele e Nahra caiu, deixando o homem livre para atacar novamente.
Um disco prateado surgiu na mão dele e, em um movimento rápido, voou na direção da cabeça dela. Nahra tentou desviar, mas algo pesado caiu sobre ela, com um baque
seco. Era Talbain. O disco afiado estava cravado até a metade no dorso do lobo.
Ulani sonhava com agulhas, médicos e transfusões de sangue. Um barulho abafado, como algo se quebrando, interrompeu seu sono e a acordou.
Ela se revirou no sofá e tentou encontrar uma posição melhor para dormir, mas outro som, como um grito, interrompeu novamente seu descanso. Desconfiada, foi até
a porta e a abriu devagar. Olhou para o corredor de paredes amarelas e não encontrou ninguém. A câmara, onde Cyrvil estava, soltou um chiado longo, expelindo vapor
por dois pequenos canos na parte superior do aparelho.
Acho que sonhei, disse para si mesma. Os olhos estavam pesados e o sono era cada vez maior. Fechou a porta bocejando e voltou para o sofá. Então se virou para o
lado e adormeceu, sem notar que a janela do quarto estava aberta.
Nada a Fazer
Ilha de Ev’ve
Laryssa apertava freneticamente os botões à sua frente. A imagem de Kullat havia sumido, deixando apenas um chiado curto, comum em transmissões perdidas.
— Mestra! — ela ofegava, ainda mexendo no painel. — Kullat está sendo atacado.
Kim-moross se aproximou do transmissor e apertou dois botões. Uma imagem chuviscada, seguida de um ruído estridente, apareceu na tela.
— O frequenciador dele não está funcionando — ela disse, com a voz infantil. — Vamos esperar por um contato.
— Mas ele está em perigo! Eu vi um homem no quarto dele antes que a imagem sumisse. — Laryssa se levantou, mas Kim-moross a segurou pelo braço. Apesar da aparência
infantil, ela era forte. Mesmo assim, Laryssa não gostou de ser confrontada por uma “menina”.
— Precisamos avisar alguém. Mandar alguém lá para ajudar! — a princesa exclamou, indignada. — Não viu a transmissão?
— Cuidado com suas palavras, guerrina — advertiu Kim-moross. — Eu vi perfeitamente o que aconteceu, mas não há nada o que possamos fazer quanto a isso agora.
— Como não? Um Senhor de Castelo está em perigo!
— Centenas de Senhores de Castelo estão em perigo todos os dias — Kim-moross argumentou, largando a princesa.
— E vocês dão as costas para eles? — Laryssa retrucou, irritada, sem se importar se isso poderia pôr fim a seu futuro como Senhora de Castelo.
Os olhos de Kim-moross se cerraram diante da acusação.
— Nós confiamos neles, porque sabemos que são capazes. Também sabemos aceitar quando não há nada a fazer — Kim-moross disse, lançando um olhar de reprovação, fazendo
o rosto da princesa enrubescer. — Kullat é um Domo Shoujin. Acredito que seja capaz de superar mais essa adversidade. Vamos esperar pelo contato dele — a anciã concluiu
em um tom grave, indicando a saída da sala de transmissão.
Sem saber o que dizer, Laryssa deixou o local. Então, invocou o avatar de um enorme felino e jogou-se pela janela, deslizando pelo telhado e caindo no chão nas quatro
patas mágicas.
Com a rapidez de um guepardo, disparou para seus aposentos. Somente uma pessoa poderia ajudar Kullat agora.
Festa Particular
Planeta Kynis
Kullat preparou uma rajada, mas uma forte náusea o atingiu quando tentou se concentrar e uma onda de dor lhe percorreu o peito ao fazer isso. Usar a energia mágica
naquele momento poderia fazer seu corpo entrar em colapso.
O homem sorriu por dentro da máscara ao ver a expressão de dor de seu alvo, enquanto ouvia um grito alto de mulher vindo do quarto ao lado. Sem dar espaço para uma
reação, atacou furiosamente com seu bastão, lançando ao mesmo tempo outro disco de bordas afiadas.
Com um movimento lateral, Kullat conseguiu desviar do disco e o bastão passou a um dedo de sua cabeça. O mascarado avançou novamente e, encurralado, Kullat arriscou
e desferiu um soco energizado no peito do agressor. Embora fraca, a energia rasgou a malha escura e fez o homem rodopiar no ar, caindo atrás da cama. O cavaleiro
foi tomado por uma fraqueza repentina e sua vista escureceu, deixando-o quase inconsciente. Ter usado seu poder foi demais para o seu corpo.
Apoiado na parede, sentiu uma forte dor no ombro esquerdo quando outro disco o atingiu, ricocheteando e caindo no chão do quarto. Kullat se virou para a janela,
de onde o disco havia vindo.
— Mas o quê...? — disse Kullat, espantado ao ver outro mascarado entrando pela janela. — Isso aqui é uma festa particular, amigo!
Sem se arriscar em usar novamente sua magia, o cavaleiro pegou uma cadeira e a jogou contra o novo inimigo. Com um movimento rápido, o mascarado estraçalhou o móvel
com o bastão energético.
O primeiro agressor, com a roupa chamuscada, levantou-se e ficou ao lado do novo invasor. Os dois intrusos então partiram para o ataque direto, com seus bastões
energizados. Kullat pegou o pé do frequenciador quebrado e o usou como um bastão, defendendo-se da melhor forma possível, como Thagir havia ensinado. Ele desviou
das pontas azuis com agilidade, mas o corpo doía e ele não tinha espaço para contra-atacar. Era apenas uma questão de tempo até ser derrotado.
Os dois homens conseguiram encurralar o cavaleiro no canto do quarto. Um deles acertou a perna de Kullat, fazendo-o cair de joelhos, enquanto o outro o atingiu no
braço, lançando-o ao chão em uma explosão de fagulhas. No entanto, quando os agressores levantaram seus bastões para atingi-lo na cabeça, como carrascos prestes
a decapitar um condenado, a parede lateral foi arrebentada e o corpo de outro kyniano de preto caiu sobre os dois que atacavam Kullat.
Nahra apareceu pelo buraco, com a força renovada pela fúria que sentia por Talbain ter sido atingido. Ela saltou sobre os três homens e os atacou violentamente.
Suas garras eram como adagas de diamante negro cortando o ar e rasgando a carne dos inimigos.
Um dos homens, apoiado no chão, desferiu um golpe violento com os pés, acertando com força o estômago dela, fazendo-a arcar sobre si mesma. Com um movimento rápido,
o homem jogou algo no chão e uma pequena explosão encheu o quarto de fumaça.
Nahra engasgou com aquele gás e tossiu violentamente. Kullat cerrou os olhos e tapou a boca, mas a fumaça atrapalhava sua visão, e ele só conseguiu ouvir quando
um choque atingiu Nahra e ela rodopiou em sua direção, com faíscas azuis percorrendo seu tronco.
A janela aberta deixava o vento entrar, fazendo a fumaça dispersar um pouco e revelando novamente os agressores. Um deles estava em pé, segurando uma lâmina afiada
em uma mão. Outro estava apoiado sobre um dos joelhos, visivelmente machucado pelas garras da Senhora de Castelo. O terceiro estava inerte no chão, com o pescoço
rasgado de um lado a outro.
O homem de joelhos fez um movimento amplo com os dois braços, e dois discos voaram de dentro da fumaça. O primeiro atingiu o braço de Nahra, cravando fundo em sua
carne. O segundo passou veloz e atingiu a perna machucada de Kullat, fazendo um novo corte, ainda mais profundo que os outros dois.
Os olhos amarelados dos kynianos estavam injetados de raiva e determinação. Ainda no chão, Kullat se preparou para concentrar sua força em uma rajada, sua última
alternativa.
Mas, de repente, a porta do quarto se abriu com violência.
Remendos
Thagir arrebentou a porta com um chute potente e, com o poder do Coração de Thandur, sua visão aguçada deixou tudo mais nítido e muito mais lento que o normal. Em
uma rápida avaliação, viu Kullat e Nahra caídos, do lado direito da porta. Um buraco enorme estava aberto na parede, deixando outro quarto à vista. E, apesar da
estranha fumaça, podiam-se ver três homens — dois de pé, segurando adagas longas e finas, e um terceiro caído, imóvel.
O primeiro homem fez um movimento rápido de mãos, sendo imitado de imediato pelo outro, e as adagas voaram na direção de Thagir, que pulou para dentro do quarto,
dando uma cambalhota e evitando ser atingido. Enquanto rolava sobre o próprio corpo, pegou outro revólver no coldre do peito e disparou.
As paredes ficaram manchadas de vermelho, enquanto os corpos dos dois agressores caíam no chão, sem vida.
O pistoleiro ainda ficou posicionado, com as armas em punho, enquanto avaliava o ambiente à procura de outros agressores. Mas a única coisa que viu foi Talbain,
mancando, passar pelo buraco da parede e parar ao lado de Nahra. O enorme lobo gemia baixinho. Um disco estava cravado no lado esquerdo. Nahra acariciou o belo animal
e, com força, retirou o disco. Talbain uivou de dor e fechou os olhos. O corte era profundo, mas o animal não sangrava.
Nahra fechou os olhos e murmurou algo. Em instantes, o lobo desapareceu por completo.
— Vocês estão bem? — Thagir perguntou, guardando as armas de volta nos coldres.
— Ele vai ficar bem, mas vai ter que descansar bastante — ela respondeu, importando-se mais com o animal do que com ela mesma.
Kullat ergueu-se, tossindo. A dor na perna atingida o fez cambalear. Thagir correu e ajudou o amigo a manter o equilíbrio. O cavaleiro estava agitado e tossiu de
novo.
— Thagir! Se atacaram a mim e a Nahra... — Kullat disse, ofegante, apontando para fora.
— Cyrvil! — o pistoleiro exclamou e começou a correr, deixando Kullat e Nahra para trás.
Thagir correu desesperado, pois não era apenas Cyrvil e Ulani que estavam em perigo. Sumo também tinha ido para lá.
Inimigo Conhecido
Pouco antes, no andar de cima, uma batida à porta havia acordado Ulani. Resmungando de sono, ela caminhou até a entrada e acendeu a luz. Seus olhos se encheram de
alegria ao ver o jovem de cabelos castanhos.
— Sumo! — ela pulou nos braços dele.
O rapaz deixou cair o cajado, em um gesto atrapalhado que fez Ulani rir. Ela se abaixou para pegá-lo e, quando ficou novamente em pé, Sumo a empurrou bruscamente
para o lado. Ulani sentiu algo passar voando, bem próximo ao seu braço. Um bastão eletrificado bateu no chão, fazendo faíscas explodirem ao seu redor. Se Sumo não
a tivesse empurrado, o ataque teria arrebentado a cabeça da guerrina.
Ela se virou, com as mãos vermelhas de calor, preparando-se para lançar um jato de ar quente. Mas não conseguiu atacar, pois Sumo tomou a frente e partiu para a
luta contra um estranho kyniano vestido de negro. Sumo esmurrou e chutou o adversário com determinação. Slurg pulou de dentro da bolsa do guerrin, totalmente vermelho
[ira; ódio]. O bichinho estava quase com o dobro do tamanho e batia as asas freneticamente, atacando com o bico quebrado.
Com um giro, Sumo se lançou com as duas pernas no ar, acertando o peito e a cabeça do adversário. Antes mesmo de voltar ao solo, alguns movimentos sinuosos das mãos
comandaram um jato d’água concentrado de uma das pequenas garrafas presas ao cinto, atingindo o estômago do agressor e fazendo-o derrubar o bastão eletrificado.
— Sumo! Saia daí! — gritou Ulani, desesperada.
O que Sumo não tinha visto era que o agressor retirara uma lâmina afiada de trás da cintura. A adaga fina atingiu a mão do jovem, abrindo sua carne com facilidade.
O guerrin caiu, gritando de dor. Mal finalizou o golpe, o mascarado chutou Slurg fortemente, jogando-o longe. O animalzinho bateu violentamente na parede e caiu,
desfalecido. Em seguida, o assassino lançou dois discos contra Ulani.
Condicionada por anos de treino, a guerrina espalmou as mãos para a frente para se defender. Os discos encontraram um jato de micro-ondas efervescentes vindos de
suas mãos e se derreteram em pleno ar. Ela se concentrou e transformou a defesa em ataque. O kyniano apertou os olhos com raiva e ergueu os braços em frente ao rosto,
a fim de se proteger. Então sentiu o calor queimar a roupa, penetrar na pele e ferver seu sangue.
Na tentativa de se afastar do jato quente, ele correu pelo quarto, mas Ulani girou o corpo e perseguiu o homem com ondas tórridas. O que ela não previra era o que
ele faria a seguir. Desesperado, ele saltou por sobre a cama e pulou por cima da câmara onde Cyrvil estava.
— Não! — Ulani gritou, erguendo os braços e parando o ataque. Mas sua reação foi lenta, e o rastro de calor atingiu a câmara de Cyrvil, fazendo um cano de vapor
explodir com o aumento súbito da pressão e lançando água efervescente por todos os lados.
Luzes azuis começaram a piscar no quarto e um alerta sonoro intermitente disparou. Ainda atrás da câmara, o agressor jogou algo perto dos guerrins e um brilho cegante
os desorientou. Com a visão borrada, Sumo só conseguiu ver uma silhueta vindo em sua direção. Mas algo o acertou em pleno ar, derrubando-o com um baque surdo no
chão.
— Peguei você, seu covarde!
Sumo espantou-se ao reconhecer a voz de Thagir. Piscando várias vezes, conseguiu distinguir o pistoleiro vasculhando o quarto, com uma arma na mão, à procura de
outros agressores. Viu também que Nahra havia entrado no quarto. Tinha a cabeça enfaixada e as roupas encharcadas de sangue. Respirava com dificuldade, mas os olhos
estavam atentos. Apoiado nela estava Kullat, curvado, com uma mão segurando um pano na nuca. Tanto o pano quanto o pijama estavam vermelhos. Em meio a tanto sangue,
o cavaleiro parecia um fantasma, de tão pálido.
— Cyrvil! — Ulani gritou, conseguindo ver melhor e avançando até a câmara de cura.
Preocupada que seu ataque tivesse quebrado o aparelho, a jovem analisou os instrumentos com cuidado. Uma linha laranja ondulava tranquilamente e outra branca permanecia
acesa, piscando ritmadamente. Os sinais vitais de Cyrvil estavam estáveis. Apesar de o alerta sonoro intermitente ferir seus ouvidos, Ulani ficou aliviada, pois
o cano rompido não era primordial para o sistema de suporte de vida de sua mestra. Sem conseguir se conter, a guerrina caiu de joelhos.
— Ela não corre perigo — Ulani começou a chorar. — Ela está bem...
Nahra se aproximou da jovem e a confortou. Pressionando a mão machucada, Sumo correu até Slurg, que gemia baixinho. O animalzinho estava tonto e piscava os olhos
sem parar. Com carinho, Sumo o aconchegou no colo, sem se importar com o ferimento da mão.
— Sumo, você está bem? — Kullat aproximou-se, olhando preocupado para o corte profundo na mão do garoto.
Thagir foi até a janela para verificar se havia mais daqueles assassinos de preto. Com a visão aguçada pelo Coração de Thandur, perscrutou a escuridão cuidadosamente,
por todos os lados. Se havia mais alguém lá, estava muito bem escondido. Um movimento dez andares abaixo, ao lado do muro, chamou sua atenção, mas era apenas um
animal de rua que havia pulado sobre o monociclo a vapor em que ele, Sumo e Slurg vieram até o hospital.
Pela porta, surgiram apressados quatro kynianos: um enfermeiro grande e tatuado, outro enfermeiro pequeno de pescoço atarracado, um vigia fora de forma e uma enfermeira
de boca torta e maquiagem em excesso. Apesar de estarem acostumados a lidar com tragédias, o cenário que viram os deixou paralisados. Pessoas feridas, roupas ensanguentadas,
um homem armado e uma figura de preto caída, presa em uma espécie de teia azulada.
— Você! — Thagir dirigiu-se ao vigia com um tom autoritário, antes que ele resolvesse criar algum caso. — Desligue esse alarme e avise o resto da segurança que o
hospital foi atacado! — E, apontando para o assassino caído, complementou: — Qualquer um vestido como ele deve ser detido imediatamente. E é melhor ver se algum
daqueles infelizes lá embaixo sobreviveu.
— Que infelizes? — o vigia rechonchudo perguntou, já com um pé para fora do quarto.
— Siga as pistas — Thagir finalizou, apontando para o chão com o revólver.
O vigia seguiu com os olhos o sangue derramado, por onde Kullat e Nahra haviam passado. Espantado demais para contrariar, deu-se por convencido e saiu, seguindo
o rastro de sangue.
— Vocês — Thagir bufou, falando alto para superar o barulho incessante do alarme, dirigindo-se para os três enfermeiros. — Cuidem dos ferimentos deles.
O enfermeiro forte e tatuado falou algo para os outros dois e saiu em disparada. A enfermeira deu um passo em direção a Kullat, mas este indicou Sumo, pedindo que
ela cuidasse primeiro da mão cortada do garoto. O enfermeiro atarracado correu para ajudar Nahra, que ainda estava com um disco fincado no braço. Seu corpo estava
tão tomado de adrenalina que ela havia se esquecido daquilo. Só se lembrou quando o enfermeiro lhe tocou o braço e ela sentiu uma dor profunda nos músculos.
O barulho irritante do alarme finalmente foi interrompido e o enfermeiro tatuado retornou, trazendo um pequeno carrinho com remédios e bandagens. Os três começaram
a trabalhar ferrenhamente, cuidando dos machucados de Nahra, Sumo e, agora, também de Kullat. Machucados foram limpos, remédios foram administrados e cortes foram
suturados com cola cutânea. Como uma guardiã zelosa, Ulani permanecia ao lado da câmara de cura onde repousava sua mestra, alheia a toda a movimentação. Slurg ficou
no colo da guerrina, enquanto Sumo era tratado.
Com a situação sob controle, Thagir se agachou ao lado do assassino, que estava imóvel nos fios azuis. O pistoleiro virou o corpo, deixando-o de barriga para cima.
— Ele morreu? — perguntou Kullat, sentado no sofá, enquanto o enfermeiro terminava o curativo na nuca.
— Não. Está apenas desacordado. — Thagir respondeu, tirando do bolso uma bola do tamanho de uma ameixa grande e mostrando-a para Kullat. — Quando isso aqui atinge
o alvo, libera uma rede com sedativos. Eu uso para segurar os charcas. O sedativo não dura muito, mas me dá tempo suficiente para uma saída estratégica. Uma vez
coloquei um alirog* dos grandes para dormir!
Kullat colocou a mão no peito e gemeu baixinho. Com um gesto, agradeceu ao enfermeiro tatuado. A enfermeira também já havia tratado o ferimento de Sumo. Sem demora,
os dois se despediram e se retiraram. Apesar de atenciosos, os funcionários do hospital estavam apressados; muita coisa estava acontecendo naquela noite e todo o
pessoal estava fazendo o melhor possível para atender todos os pacientes.
— Recurso bem útil esse seu — disse Nahra, referindo-se à rede, enquanto ainda era tratada pelo enfermeiro atarracado. O disco havia sido retirado de seu braço e
o rapaz estava passando uma pomada amarronzada no ferimento.
Thagir, que permanecera todo aquele tempo com o revólver rubro na mão, finalmente guardou a arma em um coldre na cintura, preso ao cinto de peças de metal que ganhara
do pai.
— Cada um usa os recursos que tem. Felizmente, eu sou cheio deles!
— Pena que não tenha nada que marque o tempo — disse o cavaleiro, passando a mão pela atadura da nuca. — Por que você demorou tanto para chegar?
— Só ficamos sabendo onde vocês estavam depois que Draak tentou fazer um pulso fantasma — Thagir disse, ainda agachado ao lado do assassino desacordado. — Quando
ele não conseguiu encontrá-los, ficou claro que algo havia dado errado — Thagir apontou para Sumo e Slurg, que estavam ao lado de Ulani. — Então pegamos a primeira
embarcação e fomos direto para a sede da Ordem. Lá ficamos sabendo que vocês estavam no hospital, e viemos o mais rápido possível. Felizmente, chegamos bem na hora
da festa!
— E que festa! — Kullat disse, recostando-se no sofá e fechando os olhos. — Os convidados quase sempre chegam atrasados mesmo...
Thagir sorriu. Seu amigo estava fraco e abatido, mas seu humor estava novamente em dia.
— Onde está o Draak? — Ulani perguntou.
— Infelizmente, acho que não podemos mais contar com ele. Seu dever para com o rei parece ser maior que seu juramento para com a Ordem.
— Que história é essa? — Ulani se aproximou com a testa franzida, sem entender por que o pistoleiro havia falado aquilo. Seu mestre sempre fora um exemplo de honra
e correção, e ela não admitiria que um estranho o acusasse daquela forma. Mesmo que esse estranho tivesse acabado de lhe salvar a vida.
— Calma, menina — Thagir levantou as mãos, em sinal de paz. — Temos coisas mais importantes a fazer do que discutir por que Draak não está aqui — e apontou ao redor,
ressaltando a ausência do castelar. — Basta saber que ele não veio.
— Mas pelo menos vocês conseguiram soltar aqueles dois? — Kullat disse, referindo-se ao Bobo e ao Ladrão.
— Infelizmente não. Mas deixei um presentinho para o Corning. Tenho certeza que será útil, se é que você me entende.
— Sempre preparado — respondeu Kullat, mais aliviado. Ele sabia que Thagir não deixaria aqueles dois para trás se não existisse uma chance real de conseguir libertá-los.
O pistoleiro se virou para o assassino.
— Agora vamos ver o que temos aqui!
Para não entrar em contato com o sedativo, afastou os fios azuis com o couro da casaca, descobrindo totalmente a cabeça do assassino. Desenrolou o pano negro que
cobria seu rosto e retirou seu capuz. Ulani, que estava próxima, soltou um leve grito e se aproximou, olhando com atenção para o homem inconsciente.
— Você o conhece? — Thagir questionou.
Ela se abaixou e olhou ainda mais de perto, sem acreditar no que via. Ela não conhecia aquele kyniano, mas reconheceu algo muito mais importante. Então apontou para
as orelhas do assassino, cujas pontas inferiores haviam sido cortadas. Aquele era de certa forma um inimigo conhecido.
— Ele... ele é da Guarda Azul! — Ulani exclamou, atônita.
Nota
* Animal comum nas florestas de Arret. Peludo e alto, possui braços alongados capazes de levantar quase três toneladas.
Mercado de Horrores
Nahra afastou-se do enfermeiro sem nem agradecer e aproximou-se de Thagir. O enfermeiro também não esperou e se retirou sem demora.
— Ele é da Guarda Azul? — ela perguntou, olhando para o kyniano. — Por que ele ia querer nos matar?
— Deve ser um traidor — Kullat argumentou.
— Assim que ele acordar, vamos interrogá-lo — Nahra disse, sentando-se no sofá ao lado de Kullat.
Ela passou a mão nas bandagens da orelha. Um zumbido fraco a incomodava, mas era sinal de que sua surdez estava diminuindo.
— Tem uma coisa que não precisamos nem de interrogatório para saber — disse Thagir, estudando o rosto do kyniano com atenção. — Vocês não o reconheceram?
Kullat tossiu e abriu os olhos, mirando rapidamente o prisioneiro. Como não viu nada familiar, apenas meneou a cabeça negativamente. Os demais também não entenderam
o que Thagir estava querendo dizer. Apesar de ser um membro da Guarda Azul, nenhum deles parecia reconhecê-lo.
— Você já o viu antes? — perguntou Ulani, dirigindo-se ao pistoleiro.
— Sim. E todos vocês também — ele respondeu. — Basta se lembrar disso... — Thagir colocou um dedo sobre a pálpebra do kyniano, onde uma cicatriz vertical cortava
a sobrancelha e a pálpebra superior, seguindo até o alto da bochecha. O pistoleiro então abriu a pálpebra do prisioneiro, onde uma bola azulada fazia as vezes de
globo ocular.
— Orzana! — Nahra exclamou, espantada. — É o mesmo kyniano das imagens-memória!
— Exatamente — disse Thagir, soltando a pálpebra. — Essa era a peça que faltava para provarmos que é realmente Volgo quem está por trás desses atentados.
Kullat se empertigou e suspirou profundamente. Sua aparência parecia ainda mais debilitada.
— Eu disse que precisávamos detê-lo! — Sua voz quase não saiu, de tão fraco que estava. Os ferimentos na nuca, no ombro e na perna, apesar de não estarem mais sangrando,
doíam bastante. Thagir ajudou o amigo a se sentar no sofá, ao lado de Nahra. A cauda dela balançou e acariciou as costas do parceiro, solidária.
— Acho que preciso comer alguma coisa — ele disse, sofregamente.
— Sempre com fome — resmungou Thagir em um tom brincalhão, tentando não demonstrar que estava extremamente preocupado com o estado de Kullat.
— No andar de baixo tem uma cantina — Ulani disse. — Vou buscar algumas frutas para você.
— Não — Nahra interveio, levantando-se. — Eu vou! Preciso andar um pouco.
Na verdade, ela não precisava andar, só não estava suportando ver Kullat daquele jeito, tão abatido. Além do mais, tinha medo de deixar transparecer isso a ele,
o que só pioraria a situação.
— Você está bem? — Thagir perguntou, olhando para Nahra.
— Melhor do que ele — ela respondeu, apiedada, apontando para Kullat.
Quando saiu, foi como se não estivesse mais em um hospital. O corredor estava um caos. Enfermeiros e médicos corriam, entrando e saindo dos quartos, alguns carregando
macas com pacientes, outros gritando em kin’nita. Kynianos gordos e velhos, que deveriam ser vigias do hospital, entravam de quarto em quarto, com armas em posição
de disparo. Ela desceu as escadas e encontrou um deles, que olhou para ela e avançou em sua direção.
— O que você está fazendo aqui? — o vigia bufou, falando na língua comum. — Todos os pacientes devem ir para o setor leste.
Antes que pudesse responder, uma enfermeira surgiu atrás do guarda.
— Ela está comigo — disse, entrando na frente dele. Nahra a reconheceu. Era a enfermeira que cuidara de Kullat.
O vigia resmungou algo em kin’nita e saiu, entrando em outro quarto e deixando as duas na escada. A enfermeira segurou Nahra pelo braço e a conduziu pelos degraus.
Ao chegarem lá embaixo, Nahra foi surpreendida por uma cena inesperada. O corredor estava tomado de doentes e feridos desorientados. Enfermeiros e médicos corriam,
preocupados, de um lado para o outro, enquanto guardas kynianos armados gritavam e gesticulavam rudemente.
O caos era tamanho que parecia que haviam entrado em um mercado de horrores.
Futuro Irreversível
Universo 4ME2U — Interespaço
A nave Vostok cruzava velozmente o interespaço. Havia saído recentemente da órbita do planeta Zelda, em direção ao planeta Grandia, levando uma grande carga de muinaru
— um tipo de metal líquido. Além do mineral, nos níveis superiores, a nave também transportava vários passageiros, entre eles Azio. Pelas janelas, a velocidade do
deslocamento fazia com que o cenário externo mudasse rapidamente, passando por cinturões de rochas, sistemas estelares, planetas inabitados e seus satélites naturais,
e até por um sol errante, que vagava pelo infinito.
No centro de alimentação e indiferente às maravilhas naturais, Azio divagava, pensando na binaliana que “vira” na caverna em Zelda.
Ela morreu lutando. Mas lutando contra o quê? Contra quem?, refletiu, revivendo a raiva que sentira quando a viu, sem reação.
Novas sensações surgiam, e sua mente não conseguia processá-las. A falta de lógica e de racionalidade desses sentimentos o incomodava. Ele relembrou a própria falta
de emoções no período em que servira de guarda-costas da princesa. Ele não se lembrava de quase nada antes daquele tempo, nem de como chegara a Agas’B, mesmo depois
de os recentes “ataques de memória” invadirem sua mente. Em suas pesquisas, havia encontrado estudos sobre o comportamento de várias raças, nos quais ficou evidente
uma característica comum a todas elas: quando esses seres sofriam um trauma muito intenso, como presenciar um genocídio ou passar por uma situação grave de sobrevivência,
a mente deles se voltava para um estado primal de comportamento, no qual o instinto de preservação se sobrepunha às demais faculdades. Então Azio imaginou se não
era assim que os binalianos se comportavam diante de um grande trauma, como a destruição de seu planeta, regredindo a um estado quase robótico e imune às mazelas
das incertezas.
Um grupo de pequenos seres trípedes passou por ele. Usavam roupas sintéticas, com fios trançados nos cabelos, e falavam uma língua cantada. Eles caminhavam e conversavam
animadamente, gesticulando com seus longos braços e balançando caixas e sacolas com produtos adquiridos nas lojas da nave. Saindo de seu torpor involuntário, o autômato
os acompanhou com o olhar, até que eles entraram em um dos restaurantes. Em seguida, começou a andar a esmo, observando os demais passageiros. Vários metros à frente,
em um telão polidimensional, estava sendo reproduzido um tipo de esporte com bolas e foguetes. Acima da tela, em uma tarja preta, letras luminosas piscavam: “Próxima
parada Estação Interespacial Gag-Arin. Tempo estimado: 129 Garks”.*
Nave Vostok
Ao passar por uma loja cuja vitrine exibia joias com metais e pedrarias variadas, Azio sentiu o braço vibrar. Seu reflexo na vitrine denunciou um sorriso, e ele
piscou os olhos uma vez em verde. Com alegria, olhou para o comunicador Amlar em seu braço, e, em instantes, a imagem do rosto de Laryssa surgiu à sua frente. Então,
outro sentimento surgiu: saudade. Ela estava linda, como sempre, mas sua expressão era de desespero.
— Azio! Azio! — chamou afobada. — Você está aí?
— Estou, princesa — ele respondeu, fazendo um ajuste no comunicador. — Está me vendo?
A expressão de Laryssa se iluminou por um instante quando Azio apareceu no aparelho dela.
— Azio! Que bom ver você.
— Está tudo bem, princesa? Você parece nervosa. Aconteceu alguma coisa?
Ela balançou a cabeça e tentou falar, mas a voz falhou e os olhos ficaram molhados.
— É o Kullat. Ele precisa de ajuda — ela disse, com a voz embargada.
— Acalme-se, princesa. E diga-me o que está acontecendo.
Aflita, Laryssa contou o que tinha acontecido na sala de transmissão da sede. Enquanto ela falava, Azio percebeu, desgostoso, que ela ainda tinha sentimentos pelo
cavaleiro. Novamente, ele não conseguia entender a lógica, ou, melhor, a falta de lógica daquilo. Kullat não correspondia aos anseios dela, mas ela continuava a
nutrir algo por ele.
— Ele precisa de ajuda... — Laryssa disse. — E você é o único que pode fazer alguma coisa! Você tem que ir até ele. Por favor!
Azio observou a imagem dela por alguns instantes e fez alguns cálculos internos.
— Sinto muito, princesa — disse finalmente. — Mas estou em um transporte interespacial, e a próxima parada está muito longe daqui. Eu levaria, no mínimo, dois meses
castelares para chegar até lá, retornar para Zelda e ir até Kynis. Isso com conexões e transportes adequados.
— Lorda! — ela praguejou, e sua imagem chutou algo do outro lado da transmissão. — Eu não posso sair desta maldita ilha, e você aí, no meio do nada! — A frase foi
acusadora, como se o culpasse pelo que estava acontecendo.
— Tenho certeza que ele é capaz de se cuidar, Laryssa. — Ele usou o nome dela, dando à frase uma impessoalidade à altura das acusações veladas que acabara de receber.
— Você também? Será que todo mundo acha isso? — ela retrucou, irritada com o fato de Kim-moross ter lhe dito a mesma coisa. — Ele quase morreu, Azio!
Os olhos dela voltaram a marejar.
— Kullat é um Senhor de Castelo treinado e... — Azio começou a dizer em um tom frio, quase robótico. Mas, impaciente, Laryssa levantou a mão e o interrompeu.
Então suspirou fortemente, fazendo a imagem translúcida tremer um pouco, numa expressão de raiva incontida.
— Desculpe! Eu não devia ter te procurado. Você tem seus próprios problemas. Mas não se preocupe. — Ela enxugou os olhos. — Eu mesma vou dar um jeito nisso. Adeus!
E, sem dar sequer uma chance para que ele respondesse, ela desligou o comunicador e o deixou ali, imóvel. Os olhos dele piscaram em vermelho.
Como ela tinha coragem de encerrar a transmissão tão grosseiramente?
Ele recolheu o comunicador para dentro do braço e sentiu uma comichão enquanto o aparelho se mesclava à carne robótica. Sua vontade era contatá-la novamente, pedir
explicações, mas uma confusão de sentimentos o invadiu. A lógica dizia para ele continuar na busca pelo seu povo, mas seu coração insistia que ele deveria tentar,
de alguma forma, atender ao pedido da princesa.
Cansado e confuso, fechou as pálpebras e baixou a cabeça, ciente de que a decisão que tomasse naquele momento afetaria seu futuro de maneira irreversível, principalmente
no que dizia respeito à princesa.
Nota
* Medida de tempo utilizada em viagens interespaciais.
Uma Nova Chama
Planeta Kynis
Sentado na cama da cela, Corning olhava atentamente para os dois pequenos botões em sua mão. Eram leves, redondos e largos, com bordas levantadas, como se estivessem
estufadas. Uma fina camada de metal prateado rodeava a borda externa de um deles. O outro tinha a borda totalmente preta.
Ele não sabia direito como funcionavam, mas lembrou bem as palavras que Thagir usara horas antes.
... precisamos tentar juntar tudo o que tivermos a nosso favor.
Juntar.
Por mais que o Ladrão pensasse, não conseguia achar sentido naquelas palavras. Ele havia tentado juntar os botões de todas as formas possíveis, mas não havia surtido
nenhum efeito.
— Está rezando de novo? — disse uma voz infantil e sonolenta, quebrando sua concentração. — Isso é bom. Hood. Hood, né? Deusa dos ladrões e dos patifes. Ela vai...
Corning se levantou e impediu o amigo de terminar, tapando-lhe a boca com a mão. O Bobo arregalou os olhos e fingiu não conseguir respirar, fazendo sons estranhos
e tossindo. O braço dele bateu na mão do Ladrão, que derrubou um dos botões no chão.
— Cale a boca — Corning disse, irritado. — Aproveite que você acordou e faça alguma coisa de útil. Vá para a porta e fique de vigia. Avise se algum guarda chegar.
E, dessa vez, nada de bichos. Só guardas!
O Bobo ergueu o dedo em protesto, mas, ao ver a expressão zangada do amigo, começou a falar com o próprio dedo e se afastou da cama, indo até as grades.
O Ladrão juntou o botão do chão e sentou-se na cama, voltando à sua análise. Mas dessa vez viu algo diferente. Quando o botão caiu, a borda prateada se soltou. Era
como uma fina cobertura, que escondia algo sob ela. Ele retirou a película e descobriu ranhuras. Afobado, olhou o outro botão e descobriu que a borda preta também
era uma película. Debaixo dela, também havia ranhuras.
Os botões se encaixam!, pensou estupefato. Mas o que será que fazem juntos?
E buscou na memória alguma outra dica do pistoleiro.
Só assim vamos conseguir livrá-los dessas barras e libertá-los de vez dessa prisão!
— Genial! É um duken! — exclamou alegremente.
Então sorriu por finalmente reconhecer o pequeno dispositivo, usado para explosões controladas. Ele nunca havia visto um duken tão bem camuflado. Olhando com mais
atenção, percebeu como os botões funcionariam. Eles se encaixavam, formando uma peça única que, quando pressionada, seria acionada. Depois disso, a reação entre
as duas peças seria rápida, e a explosão, potente.
Admirado, chegou até a invejar o pistoleiro por fazer de seus botões os componentes de uma bomba.
Um plano começou a se formar em sua mente. O primeiro desjejum era servido antes do amanhecer, e ele desconfiava que esse também era o horário da troca de turno
dos guardas. Ele poderia tirar proveito disso!
— Doce! Doce! — gritou o Bobo. — Ei, guardas, eu quero doce!
Ao ouvir a voz do amigo, o Ladrão rapidamente escondeu os botões debaixo do travesseiro e fingiu que estava dormindo. Com os olhos semicerrados, viu dois guardas
sonolentos, que resmungaram alguma coisa para o Bobo e passaram na frente da cela. Um deles parou um instante, para a angústia do Ladrão, mas apenas para repreender
o Bobo, que gesticulava freneticamente na porta. O outro guarda o chamou, e ambos sumiram do campo de visão.
O Ladrão suspirou, tocou de leve os botões escondidos e sentiu uma chama de esperança queimar em seu peito. Talvez eles conseguissem finalmente sair dali. E talvez,
apenas talvez, ele pudesse ver sua filha de novo.
Bênçãos de Orzana
A enfermeira puxava Nahra, esforçando-se para andar contra o fluxo de corpos. Elas conseguiram chegar a uma porta de vidro e entraram, fechando-a logo a seguir.
O ambiente estava parcamente iluminado. A enfermeira apertou um interruptor na parede, e o barulho de vapor foi seguido de um brilho amarelado que surgiu em um tubo
transparente no teto. Nahra viu que elas estavam em uma sala de suprimentos, repleta de armários, gavetas e prateleiras.
— Mas que loucura é aquela lá fora? — Nahra perguntou.
— A segurança do hospital encontrou os três mortos no quarto — a enfermeira respondeu. — E resolveu transferir todos os pacientes para esta ala.
— Péssima ideia — Nahra coçou a orelha. — Se tiver mais algum daqueles lunáticos de preto, eles podem aproveitar a bagunça para atacar.
— Infelizmente é verdade — respondeu a enfermeira. — O pior é que no plantão da madrugada temos poucas pessoas trabalhando.
— Bom, é melhor eu encontrar logo aquela cantina. O Kullat está fraco e precisa se alimentar.
— A comida da cantina é uma porcaria. — A enfermeira fez uma careta. — Vai fazer com que ele fique mais doente.
Ela fez sinal para que Nahra esperasse e abriu as portas de um armário. Mexeu nas caixas das estantes de cima, procurando alguma coisa. Deu um suspiro e pegou um
pote vermelho. Após conferir o conteúdo, entregou-o a Nahra.
— Dê duas dessas cápsulas para ele agora, e mais duas de manhã. São suplementos que vão fazer com que ele se sinta melhor. Enquanto isso, vou tentar conseguir alguma
coisa mais saudável para ele comer.
— Eu agradeço muito... — Nahra hesitou um instante, pois não sabia o nome da enfermeira. — Como é mesmo seu nome?
— Naity-Gael — a enfermeira disse, sorridente. — Mas pode me chamar de Nai.
— Muito obrigada, Nai.
— É um prazer, senhora.
Nahra coçou a orelha novamente. Ao ver o gesto, a enfermeira indicou um banquinho para a Senhora de Castelo.
— Antes de voltarmos, me deixe ver como está o seu ouvido.
— Não temos tempo para isso — Nahra protestou.
— Não vou demorar — a kyniana disse, colocando as mãos delicadamente nos ombros de Nahra e fazendo-a sentar.
Mesmo contrariada, Nahra obedeceu, já que a coceira na orelha estava realmente a incomodando. A enfermeira desenrolou o curativo e examinou o ferimento. Do armário,
pegou uma pequena ampola, despejou um óleo grosso nas mãos e o espalhou cuidadosamente na orelha de Nahra.
— Procure não coçar — ela instruiu, ainda esfregando. — Isso vai amortecer o local, impedindo que infeccione. — Ela enxugou as mãos em uma toalha branca, de uma
pilha de toalhas limpas, e pegou outro vidro com comprimidos de uma gaveta. — E também tome um desses por dia. É para não infeccionar o seu braço. Agora que tratamos
o corpo, vamos tratar do seu visual.
De dentro de outro armário, a enfermeira pegou um pijama novo e o entregou a Nahra. A Senhora de Castelo olhou para a própria roupa ensanguentada, ciente de sua
aparência assustadora.
— Obrigada — Nahra respondeu, engolindo um comprimido a seco. Sem pudor, ela se despiu e colocou a roupa limpa.
A enfermeira embebeu um pano em água de curativos e limpou o rosto de Nahra, que admirava o fato de, mesmo em meio ao caos, existir pessoas que conseguem manter
a serenidade.
Com delicadeza, a enfermeira enfaixou novamente a orelha de Nahra.
— Obrigada, Nai. Você é uma excelente enfermeira.
— Minha mãe me ensinou que não basta fazer bem-feito. É preciso gostar do que se faz. E eu adoro ajudar, por isso sou o que sou.
— Que Orzana abençoe todas as mães! — exclamou Nahra, levantando-se.
Coração Silencioso
Nahra e Naity-Gael saíram da despensa. O movimento do corredor havia diminuído um pouco, mas ainda estava bastante tumultuado. A enfermeira andava com passos firmes,
falando algo em kin’nita que funcionava como um “abram caminho”, pois ninguém as parou. Quando chegaram ao pé da escada, elas se separaram.
A enfermeira sumiu em meio à multidão, enquanto Nahra subiu os degraus rapidamente. Em instantes, chegou ao quarto de Cyrvil. O prisioneiro continuava desacordado,
enrolado nos fios azuis, com Thagir ao seu lado vigiando-o como uma águia. Ulani e Sumo, com Slurg no colo, estavam ao lado da câmara de Cyrvil. A jovem guerrina
pousava uma das mãos sobre o vidro, olhando carinhosamente para sua mestra. Kullat continuava deitado no sofá, com os braços cruzados e os olhos fechados.
Nahra aproximou-se de Kullat, apiedada pela figura abatida do companheiro, e acariciou-lhe suavemente o rosto. Sua pele estava gelada. Kullat abriu os olhos vagarosamente,
como se tivesse adormecido.
— Tome dois desses — Nahra falou suavemente, estendendo duas cápsulas para ele.
— E a comida? — Kullat perguntou, desapontado.
— Já está a caminho. Agora tome isso. Vão fazer você melhorar — ela concluiu, esperançosa.
Kullat franziu a boca, contrariado, e engoliu as cápsulas. Sem se mover mais que o necessário, cruzou novamente os braços. Os olhos estavam fundos, e a pele extremamente
pálida.
Ele está mesmo mal, pensou Nahra, preocupada. Nem reparou que eu troquei de roupa. Ele nunca deixaria de brincar com isso.
Então afagou os cabelos do parceiro com carinho.
Ele apenas sorriu fracamente e voltou a fechar os olhos.
— Não temos muito tempo — Nahra disse, passando a mão uma última vez pelos cabelos despenteados de Kullat. — Daqui a pouco os guardas vão vir aqui para pedir que
a gente saia. Estão esvaziando esta ala inteira.
— Eles já tentaram — Thagir disse, sacudindo o revólver rubro. — Mas eu os convenci a nos deixarem em paz quando mostrei isto aqui!
— E o que vamos fazer agora? — ela perguntou para Thagir, sem desviar os olhos do rosto abatido de Kullat.
O pistoleiro apontou para o homem caído, envolto na rede-teia.
— Esse aqui ainda está apagado. Precisamos esperar que ele acorde para podermos conversar em particular.
Como que para contrariar Thagir, o prisioneiro resmungou alguma coisa e piscou fracamente.
— Mas ora, vejam só quem está acordando! — Thagir exclamou, abaixando-se ao lado do kyniano.
O pistoleiro deu um tapa de leve no rosto dele, para fazê-lo despertar mais rápido. Ele piscou novamente, demorando um pouco para tomar consciência de sua situação.
Apesar de seu corpo estar dormente e insensível, sua alma se encheu de alegria com o que viu. Todos os seus inimigos estavam ali ao seu redor, todos em um mesmo
lugar. Como um presente do destino, ele finalmente poderia cumprir a missão que havia recebido. Ele, sozinho, poderia acabar com todos aqueles inimigos da Verdade!
O kyniano fechou os olhos amarelados e começou a recitar algo incompreensível. Thagir aproximou-se, tentando escutar o que o kyniano estava sussurrando. Mas Nahra
o puxou pela casaca, arrastando-o para longe, desesperada. O cheiro pungente que o homem começou a exalar era igual ao da mulher que explodira no beco. Ele estava
envolto pelo cheiro da morte.
— O lucro é morte, é destruição! — gritou o homem preso na rede azul, começando a se debater, ensandecido. — A Verdade de que precisam virá pelo sangue e pelo fogo!
Como se tivesse sido golpeado fortemente no estômago, seu corpo se dobrou ao meio. Agonia e dor tomaram conta do seu rosto e ele arregalou os olhos. As órbitas,
antes amareladas, escureceram por completo.
Kullat já havia visto aquela expressão agonizante antes, no rosto da mulher que explodira. E os olhos... Era impossível não reconhecer aqueles olhos.
O cavaleiro se viu em um beco sem saída. Sua única opção era agir. Reunindo toda a força que conseguiu, ele se levantou e lançou um raio de energia mágica contra
o kyniano de preto.
— Kullat, pare! — Thagir gritou, desesperado, mas o cavaleiro não parou.
A pele do kyniano ficou escura como carvão, e ele começou a pulsar. Ao mesmo tempo, Kullat moldou uma esfera que envolveu totalmente o assassino, que urrava. Com
o grito, um intenso facho de luz negra jorrou de sua boca, como se fosse a própria fonte da morte. O cheiro ficou tão forte que Nahra não conseguia respirar. Kullat
fraquejou e a esfera quase se desfez com o impacto da luz negra. Porém o cavaleiro se concentrou ainda mais, buscando dentro de si toda a energia que pôde reunir.
Com um movimento brusco e um grito violento, ele lançou a esfera contra a janela. O vidro explodiu em cacos quando a bola saiu do hospital, levando consigo o corpo
do kyniano, que parecia implodir enquanto a esfera subia aos céus. Com o esforço, escorreu sangue do nariz e dos ouvidos de Kullat, que caiu de joelhos, mas não
desistiu. A esfera continuou a subir, bem acima do hospital. O corpo do assassino havia se transformado em uma massa disforme, que pulsou e, em seguida, brilhou
intensamente.
A explosão iluminou o céu, como se o próprio sol quisesse roubar o espetáculo noturno das estrelas. Um halo de fogo e destruição se espalhou sobre a cidade, e uma
ventania forte e quente varreu o céu. O som de um trovão descomunal ecoou, fazendo vidros e paredes vibrarem.
Sem suportar o peso do próprio corpo, Kullat desabou, sem qualquer energia no corpo. O cavaleiro viu Thagir gritar, mas a audição falhou, e ele não escutou a voz
desesperada do amigo. Seus olhos se fecharam, cobrindo-lhe a visão com uma cortina impenetrável. O corpo tombou, mas ele não sentiu o baque quando atingiu o chão.
Na escuridão do fim de sua jornada, pensou nos amigos. Queria dizer que não temia a morte, que vivera plenamente todos os seus dias. Queria falar de sua infância
com Kylliat, das paixões juvenis da Academia e dos ovos de Juma e Rudra se abrindo diante de seus olhos. Queria dizer que se sentia privilegiado por ter sido testemunha
de tantas maravilhas nos diversos mundos banhados pelos Mares Boreais. Pensou em Tannhauser, ou no sonho que teve sobre Tannhauser, no qual tinha sido escolhido
para ser o portador das Faixas de Jord. Gostaria de dizer a Sumo que sentia orgulho dele, que seus sentimentos eram grandes e ternos como os de um pai pelo filho.
Desejou poder falar para a princesa Laryssa que o tempo que haviam passado juntos fora um dos melhores de sua vida e que o guardava com muito carinho no coração.
Queria dizer a Nahra que a entendia e, sobretudo, que a admirava pela força e pela coragem com que defendia seus ideais, e que a amava, da maneira dele. Gostaria
de poder encontrar uma última vez seus pais e agradecer por tê-lo presenteado com a vida, dizer que os amava e que sentia saudade. E que, se tinha algum arrependimento,
era o de não ter encontrado ninguém com quem formar uma família para lhes dar os netos que eles tanto queriam. Mas, acima de tudo, ele gostaria de falar com Thagir,
de lhe agradecer pela amizade profunda, pelos conselhos e até pelas brigas que tiveram no meio do caminho. Queria lhe dizer que o admirava e o considerava um verdadeiro
irmão. Um irmão por quem havia feito seu último sacrifício e dado de bom grado o maior de seus bens: a sua vida.
Mas Kullat não pôde dizer nada daquilo, pois seu corpo jazia inerte no chão frio do quarto, inútil como um brinquedo quebrado. Sua mente, assim como o resto de seus
sentidos, estava turva em meio ao breu infinito. Um ponto luminoso surgiu no espaço vazio que havia se formado ao seu redor. A luz se expandiu, cálida e terna, envolvendo-o
suavemente com um caloroso abraço, reconfortante como o colo materno. Apesar de ter plena consciência de que aqueles eram seus últimos momentos no mundo dos vivos,
sentiu uma paz e uma tranquilidade infinitas. Era como se ele mesmo fosse um barco, navegando a plenas velas em um oceano tranquilo, em direção ao nascer de um sol
glorioso.
No instante seguinte, tudo ficou completamente escuro, e o fim silencioso finalmente chegou. Aquele corpo não lhe pertencia mais. Seu coração falhou e parou de bater,
atirando-o em um vácuo escuro e mudo, deixando para trás tudo o que ele fora um dia.
Adeus Negado
Quando viu Kullat caindo, Thagir gritou desesperado. Ele já havia visto seu amigo usar sua energia daquela forma antes, esgotando seu corpo para salvá-lo de um desmoronamento
em uma caverna. Mas agora era diferente. Ele estava extremamente fraco, e, ao usar suas reservas de energia para lançar o homem-bomba para fora do hospital, Kullat
estava correndo um sério risco de vida.
O pistoleiro jogou-se ao lado do amigo e segurou sua cabeça pendente com delicadeza. Filetes rubros haviam vazado das narinas e dos ouvidos, formando desenhos mórbidos
na pele pálida de Kullat.
— Ele não está respirando! — Thagir gritou, para ninguém em especial. Ajoelhando-se, colocou o ouvido no coração do amigo. Para seu desespero, não havia nenhum som.
O peito estava imóvel, tanto por fora quanto por dentro. — O coração dele parou! — berrou, desesperado.
Nahra imediatamente se postou ao lado da cabeça de Kullat. Como se mais nada no mundo existisse, o pistoleiro e a licana começaram a fazer as manobras de reanimação
que todos os castelares aprendem na Academia. Thagir entrelaçou os dedos, endireitou as costas e com cuidado, porém de maneira firme, começou a bombear ritmadamente
o peito do cavaleiro. Ao chegar ao quinto movimento, parou. No mesmo instante, Nahra se inclinou sobre o amigo, tapou suas narinas e soprou forte duas vezes em sua
boca. O peito do cavaleiro subiu e desceu, involuntariamente.
— Não fiquem aí parados! — Thagir gritou para Sumo e Ulani. Slurg piava, escondido entre eles, com os pelos totalmente negros [luto; morte]. — Vão buscar ajuda!
Os dois dispararam para fora do quarto, cada um numa direção.
Por um tempo que pareceu durar uma era inteira, Thagir e Nahra se revezaram, bombeando artificialmente o sangue e o ar no corpo do cavaleiro. Thagir começou a sentir
dores nos braços e Nahra estava visivelmente cansada de tanto soprar, mas nenhum deles esmoreceu. Continuariam a manter o coração e os pulmões do cavaleiro trabalhando,
pelo tempo que fosse necessário. Eles não podiam deixar que Kullat morresse, não daquela forma.
Nenhum dos dois guerrins havia voltado ainda quando Naity apareceu no quarto, trazendo um saco de frutas. Ao ver Kullat caído, ela largou o pacote, correu até a
câmara de Cyrvil e apertou um botão no painel. O alarme sonoro intermitente de alerta voltou a soar forte. Em seguida, ela retornou rapidamente até o cavaleiro caído.
— Deixe isso comigo — e afastou Thagir que, exausto, despencou, sentado no chão frio.
A enfermeira escutou o peito de Kullat. O coração do cavaleiro continuava inerte como uma rocha. Ela colocou as mãos no peito dele, de forma ligeiramente diferente
de como Thagir havia feito, e, com técnica e precisão, retomou o processo de massagem cardíaca. Mesmo exausta, Nahra continuou a ajudá-la, fazendo o papel de respirador
artificial.
Ulani, apressada, retornou sozinha ao quarto. Não havia encontrado ninguém para ajudá-los.
— Isso não está dando certo. Vamos ter que tentar reativar o coração com um estimulante. — Ela apontou com a cabeça para fora do quarto. — Você, menina, vá até o
final do corredor, na última porta à esquerda. Procure por um cilindro branco no armário. Tem um desenho preto e está escrito em letras verdes.
Ulani saiu em disparada e encontrou a porta no final do corredor. Mas, para sua infelicidade, havia mais de um armário. Ela os abriu desesperadamente, derrubando
potes e frascos no chão. Vapores acres de medicação empestearam o ar, mas ela não se importou. Procurou até o fundo das prateleiras e em todos os cantos, sem se
importar com a bagunça que fazia.
— Não tem nada aqui! — exclamou para si mesma, aflita, passando as mãos pelos curtos cabelos vermelhos, desesperadamente.
Em outro andar, Sumo corria como um alucinado, entrando e saindo dos quartos e salas. Até nos banheiros já havia procurado, mas estavam todos vazios. Era como se
percorresse um prédio fantasma. Em sua mente, pensava em Kullat, seu mestre e tutor. Tentava firmar esperanças de que ele voltaria milagrosamente à vida, sorridente
e bonachão. Até faria uma piada e pediria algo para comer. Mas, em seu coração, Sumo sentia que estava perdendo o seu mestre. Sua vista ficou turva e grossas lágrimas
rolaram em sua face. Ele se apoiou na parede, sentindo-se repentinamente enfraquecido. Perdido e sem saber o que fazer, apertou nos braços o único amigo que lhe
restava, tentando confortar-se a si mesmo com o amor de Slurg. Mas o pequeno animal também sentia a tristeza invadir-lhe a alma, e começou a piar.
— Não pude nem me despedir — Sumo disse para Slurg, sentando-se no chão, com a cabeça entre as pernas. — Não pude nem dizer adeus...
A Derradeira Batalha
Thagir sentia a incapacidade de agir corroer-lhe por dentro. Através da névoa que lhe encobria os olhos, via a determinação das duas mulheres. Cinco bombeadas de
esperança, seguidas de duas respirações repletas de expectativas. Mais cinco esperanças e duas expectativas.
Ulani apareceu na porta, ofegante. Ela segurava um cilindro branco com letras verdes.
— Não estava no armário — ela explicou, afobada, entregando o objeto. — Achei em uma caixa fechada...
Naity-Gael pegou o objeto e tirou a tampa com a boca, revelando uma agulha longa e grossa. Ela tateou o peito do cavaleiro, encontrando rapidamente o local que procurava,
e fez a agulha penetrar seu tórax com força.
O líquido escorreu do cilindro, sendo injetado diretamente no coração de Kullat. Então retirou a agulha de seu peito e jogou o cilindro para trás, que bateu ruidosamente
no chão e rolou para debaixo da cama.
A tensão tomou conta do quarto, enquanto todos aguardavam o resultado daquele último recurso. Naity debruçou-se no peito de Kullat, com a orelha de ponta dupla diretamente
sobre o coração, e esperou.
Thagir estava ajoelhado inutilmente ao lado do amigo. Pistoleiro habilidoso, lutador eficiente, estrategista sagaz e regente experiente... Aqueles eram títulos que
de nada valiam. Suas armas, truques e artifícios eram tão inúteis quanto ele naquele momento. Pela primeira vez na vida, sentiu necessidade de rezar, mas nem isso
ele era capaz de fazer.
O silêncio funesto do quarto só era quebrado pelos suspiros sofridos de Nahra, que também começou a chorar. Seu rosto estava vermelho, sujo com o sangue que havia
escorrido do nariz do cavaleiro.
Naity-Gael teve um fio de esperança ao sentir um pulsar fraco, quase imperceptível. Um batimento. O coração dele bateu, ela pensou. Mas a batida foi fraca e solitária.
Ela esperou por outro sinal, outra batida. Então aguardou, escutando pacientemente, mas nada aconteceu.
Devagar, levantou a cabeça.
— Não posso fazer mais nada. — Suas palavras não passaram de um sussurro.
Thagir viu que o peito de Kullat não se mexia. Seu coração não voltara a bater e sua risada sonora nunca mais seria ouvida.
Kullat estava morto.
A Cor da Vingança
O choro de Nahra se transformou em um longo e triste uivo de dor. Seu amigo e companheiro acabara de dar sua própria vida para salvá-la, e ela não pôde fazer nada
para impedir. Ulani e Sumo se abraçaram, em prantos, com Slurg piando ruidosamente entre eles. Por maior que fosse a preparação da Academia, eles nunca estariam
preparados o bastante para enfrentar a morte de alguém tão querido.
Para Thagir, as lágrimas de tristeza se transformaram em algo ácido, amargo e rançoso. Foi como se uma barragem tivesse arrebentado dentro do peito. Em seguida,
sentiu uma onda de raiva o consumir completamente. Do bolso, retirou o broche de dragão e o colocou na mão do amigo, como se fosse uma oferenda. Segurando as mãos
de Kullat entre as suas, fez uma promessa silenciosa.
Não fui capaz de te salvar, pensou, projetando os pensamentos para Kullat, na esperança de que a crença do amigo estivesse certa e a morte não fosse o final de tudo.
Mas, aqui e agora, eu juro, pela nossa amizade, que vou encontrar os responsáveis pela sua morte.
Com o coração em prantos, mas com os olhos amargurados já secos pela sede de vingança, sacou seu revólver rubro, apertando-o com tanta força que os nós dos dedos
ficaram esbranquiçados. Com o peso da promessa de vingança sobre os ombros, ele se dirigiu à janela quebrada e pôs uma perna para o lado de fora.
Em meio ao choro, Nahra sentiu os pelos da nuca se arrepiarem, enquanto um cheiro amedrontador invadia suas narinas. Virando-se para a janela de onde aquele odor
arrepiante vinha, viu Thagir sentar no parapeito, com uma perna para fora do prédio e a outra seguindo pelo mesmo caminho. O homem exalava um forte cheiro de perigo
e fúria. Um odor tão amargo de vingança ensandecida que a deixou tonta e aterrorizada.
— Não faça isso! — Nahra esticou os braços, ajoelhada no chão ao lado do corpo de Kullat, implorando e tentando fazê-lo raciocinar.
— Eu vou atrás daqueles que fizeram isso — ele disse, com os dentes cerrados —, e vou matar cada um deles.
— Não deixe que isso tome conta de você. Nós... nós precisamos de você. Não nos abandone agora... Pense em Kullat!
— Pensar em Kullat?! — o pistoleiro gritou, furioso, apontando com a arma para o corpo estendido no chão. — KULLAT MORREU!
O ódio no coração do pistoleiro era como um veneno poderoso, que destruía a lógica e aumentava o rancor em seu peito. Sem ouvir mais nada, Thagir passou a outra
perna pela janela e se jogou.
De braços e pernas abertos, caiu velozmente. Mas, graças ao cinto de repulsão dinâmica que seu pai lhe emprestara, seu corpo foi impelido contra o chão, anulando
gradativamente a velocidade da queda até que, como um gato, aterrissou no metal gasto da ciclomoto que usara para chegar ao hospital.
Ele se sentou no banco do estranho veículo e, com um movimento brusco, desengatou o freio e acelerou, derrapando o único pneu e deixando um rastro de vapor e fumaça
no ar da madrugada.
De olho na estrada, acelerou ao máximo. A visão estava estreita, os pensamentos, focados, e a calma da legítima reparação havia sobrepujado por completo o vigor
da razão. Enquanto seu coração sangrava pela perda do amigo, tudo em que pensava era na bala saindo do cano do seu revólver, e na cabeça de Volgo desabrochando em
uma flor vermelha; a verdadeira cor da vingança.
A Chave Real
Behemut estava sozinho em sua tenda real, apesar de vários maatianos terem se oferecido para acompanhá-lo durante a espera pela comitiva. Estava sentado em uma das
duas poltronas que sempre o acompanhavam nas viagens pelo reino. Ambas eram iguais, o que demonstrava que o rei não era maior nem melhor que nenhum de seus súditos.
A noite já se erguia, mas ele não conseguia dormir. Inquieto, permanecia em silêncio. O único som era o crepitar da pequena fogueira no centro da tenda. Mas nem
aquilo Behemut ouvia, pois sua mente estava voltada para o que deveria fazer em seguida. Tal como fazia quando levava algum maatiano para ser transformado pelo poder
de Chuilong, ele usaria o próprio corpo como chave para abrir passagem para a comitiva.
Dali em diante, encabeçaria a marcha, levando seu povo até o vale, lar de Chuilong, onde também conseguia se comunicar diretamente com Seath.
Escolha
Ilha de Ev’ve
Já era madrugada em Ev’ve, mas Laryssa estava acordada, arrependida por ter agido tão estupidamente com seu amigo dourado e ainda mais arrependida por ter jogado
o comunicador Amlar no chão, em um acesso de fúria. O aparelho agora estava quebrado sobre a mesinha perto da cama, e não havia nenhuma chance de contatar Azio novamente.
Sua amiga Glinda andava de um lado para o outro, tão aflita quanto ela, mas por um motivo diferente.
— Lary, você não pode fazer isso... É loucura!
— Então você não vai me ajudar? — a princesa perguntou, desafiadora.
Glinda se deteve e a encarou.
— Eu não disse isso. Mas, mesmo assim, quero que saiba que não concordo com o que você quer fazer... — Ela se sentou ao lado da princesa na cama e pegou suas mãos.
— Se você fizer isso, vai ser condenada à prisão. Ou, pior, pode ser banida e virar uma Ho’nin!
A princesa suspirou profundamente, sentindo o coração pesar.
— Eu não tenho escolha.
— Sempre há uma escolha! — Glinda reforçou, esperançosa.
Laryssa meneou a cabeça e se levantou.
— Então eu já fiz a minha.
Verdade e Esperança
Em algum lugar...
Eu morri?, pensou Kullat, abrindo os olhos, mas sem enxergar nada por causa da luminosidade. Ele inspirou profundamente, tentando identificar alguma fragrância conhecida,
mas não encontrou nada do que esperava: nem o cheiro de hospital, nem o perfume de Nahra, nem o suave odor de sangue. Em vez disso, sorveu um ar fresco como primavera,
suave como seda e doce como sobremesa. Para seu espanto, era exatamente o cheiro que ele imaginava que o além-vida teria.
Ele piscou e conseguiu ajustar a visão. Olhou ao redor, buscando entender onde estava, mas não conseguiu enxergar nada além de uma grossa e estranha névoa amarelada
que o envolvia. Desorientado, sentiu o chão quente sob seus pés e percebeu que estava descalço. A única coisa que conseguia ver era o próprio corpo, o mesmo de sempre,
mas, ao mesmo tempo, tão estranho que era como se nunca o tivesse visto. Nem as roupas eram as mesmas: o usual manto espectral não existia mais e, em vez do pijama
de hospital, vestia uma túnica simples. Ele a reconheceu de imediato: era a mesma que recebera anos atrás, quando ingressara no monastério de Pama, em Oririn, para
aprender a controlar os enormes picos de energia que assaltavam seu corpo durante a juventude.
Tentou lançar sua energia mágica para tentar dissipar a névoa, mas foi em vão; era como se não houvesse nenhuma magia correndo em seu corpo. Ele sentia um vazio
como nunca havia sentido antes. Olhou para suas mãos, nuas como qualquer mão normal seria. As faixas de Jord haviam sumido.
Então se lembrou das histórias dos monges, que lhe ensinaram sobre o deserto vermelho, o caminho das almas, em que apenas os justos conseguiriam achar a trilha para
a cidade de prata, onde desfrutariam da eternidade ao lado de Khrommer. Receoso, recordou seus medos juvenis, que agora voltaram com uma força aterradora. Não ser
merecedor de estar ao lado de Khrommer e ter de caminhar para sempre o afligia.
Apesar do medo, deu um passo firme, tentando abrir caminho com as mãos pela espessa névoa amarelada. Tateou o ar e olhou para o chão, em busca de algo que se parecesse
com uma trilha, mas nada encontrou.
O desespero já começava a surgir, quando um cheiro familiar impregnou suas narinas: o agradável aroma de terra recém-molhada de chuva, que lhe trazia lembranças
de casa.
Uma brisa morna afagou-lhe a face, balançando seus cabelos e espalhando a névoa que o rodeava. Em instantes, um vale magnífico surgiu à sua frente. Um enorme lago
refletia a luz do sol em suas águas plácidas. Um riacho cristalino, como um fio prateado, jorrava água colina abaixo, em um fluxo contínuo de vida. Os verdes da
floresta se misturavam ao verde da vegetação rasteira, transformando tudo em um vale esmeralda.
— Mas é Oririn!
Ele ouviu a própria voz, sem sequer abrir a boca. Apesar da estranheza da situação, não deu atenção para aquilo, deslumbrado com o que via. A cadeia de montanhas
no horizonte, com seus picos nevados, elevava-se ao céu em cumes redondos, em um formato peculiar e, acima de tudo, familiar.
— As montanhas Sil’li!
Novamente escutou sua voz, e, novamente, sua boca não se moveu.
Vinda de todos os lugares, e de lugar nenhum, outra voz surgiu, poderosa como um trovão e suave como um sussurro, ecoando pelas montanhas mais distantes, mas tão
próxima quanto o ar que o circundava.
Finalmente encontrei você!
Uma luminosidade cegante apareceu, fazendo Kullat fechar os olhos por um instante. A luz brilhou mais intensamente, mas, aos poucos, foi perdendo força e se transformou
em dois olhos, cada um formado por três círculos, um dentro do outro, que brilhavam intensamente em um laranja vivo.
A luz forte sumiu, revelando um rosto feito de pedra, água, vapor e grama. Lembrava o semblante de um kyniano transformado, mas com traços dragonoides acentuados.
As pedras, naturalmente talhadas em triângulos no longo queixo, davam-lhe uma aparência escamosa. Água cristalina corria entre os olhos laranja, permeando toda a
cabeça, desafiando as leis da física. O vapor saía das narinas suavemente, em meio a uma respiração colossal.
— Quem é você? — Kullat perguntou, sem mover os lábios.
A boca de grama e vapor moveu-se ruidosamente, como se rochas se chocassem, mas fechou-se novamente. Ainda assim, a voz reverberante soou ao redor do cavaleiro.
Eu sou Seath.
Kullat não teve medo.
— Você é algum tipo de deus?
Eu sou a Verdade.
Kullat ficou confuso.
— Eu morri?
Sim e não.
Diante da confusão de Kullat, Seath o confortou.
Calma, criança...
Kullat sentiu sua mente ser tocada em um misto de tato e pensamento. Algo macio e discreto como algodão começou a vasculhar suas memórias. Em um instante, sua mente
foi totalmente dominada por aquela entidade.
Eu sinto.
Você foi tocado por um irmão.
O cavaleiro sentiu seu corpo flutuar, como se algo dentro dele se elevasse do solo, fazendo-o ficar diretamente de frente para a gigantesca face. Espantado, não
conseguiu fazer nada para impedir.
Meath está em você.
Diante de seus olhos, a imagem de Oririn ruiu, desaparecendo por completo. Em instantes, tudo à sua volta ficou branco e iluminado, restando apenas o enorme rosto
e uma enorme tela branca, onde imagens de suas memórias começaram a ser pintadas por movimentos de mãos invisíveis, em sequência — rápidas como borrões, eternas
como o tempo.
A presença o rodeava em círculos, aflita e cheia de preocupação, buscando algo em sua mente. Na tela branca, surgiram várias lembranças: sua infância, brincando
com o irmão Kylliat; imagens de sua mãe lhe contando a história das águas milagrosas; sua juventude e como havia, sem querer, machucado uma garota bonita com seus
poderes; lembranças de seu tempo com os monges de Pama e muito, muito mais. Aquela sucessão de lembranças surgia e desaparecia no ambiente com uma rapidez incrível.
A presença mental não era invasiva. Ao contrário, era estranhamente familiar, como se fosse parte de Kullat, assim como o cavaleiro parecia fazer parte daquela entidade.
Abriu mais a mente, deixando a estranha presença livre para encontrar o que quer que estivesse buscando. As imagens se dissolveram enquanto o seu entorno refletia
uma lembrança triste e desoladora, de décadas atrás. Kullat estava revivendo o momento em que tentara, em vão, salvar um Gaiagon da morte em seu planeta. Impotente,
reviu suas memórias do gigante agonizando diante de si, sem nada poder fazer. A imagem do enorme Gaiagon, inerte nas montanhas longínquas de sua terra natal, era
desoladora. Não só porque um ser antiquíssimo havia sido brutalmente assassinado, mas também porque, pela primeira vez na vida, Kullat entendeu sua relação com aquela
criatura fantástica. O Gaiagon jazia muito próximo de onde o próprio Kullat havia nascido e passado sua tenra infância. E agora ele compreendia que fora a magia
natural daquele gigante que se mesclara a ele, ainda no ventre de sua mãe, dando-lhe os seus maravilhosos poderes de energia mágica. O entendimento de sua ligação
com aquele Gaiagon foi gloriosa, mas, ao mesmo tempo, aumentou profundamente sua tristeza por aquela perda. Com uma dor indescritível na alma, reviveu o arrebatador
sentimento de perda pela morte do Gaiagon, que ressurgiu com a mesma intensidade de emoções que havia sentido na época.
O rosto de pedra de Seath reapareceu em um flash, assumindo uma expressão desolada. Kullat finalmente entendeu. Seath não era um deus, era um Gaiagon.
Esperança morreu...
Em seguida, as memórias seguiram em rápida sequência, passando por vários meses, até chegarem à lembrança do encontro dele com os gêmeos de Adrilin, perto de seu
castelo, de tudo o que aconteceu então, até a batalha de Kullat contra Volgo, nas colinas Wan’ann, em Oririn. As memórias vinham em clarões: as colinas, Volgo, os
gêmeos, a luta. Tudo aparecia rápido, nítido e borrado ao mesmo tempo, mas, mesmo assim, o cavaleiro se lembrava de tudo. A velocidade das cenas mudou drasticamente,
até que ficou paralisada em uma imagem específica: a queda de Volgo no precipício, em direção ao mar. No ar, a poucos centímetros de sua mão, havia uma gema negra,
com um símbolo incrustado, muito parecido com o que Laryssa havia lhe mostrado, e semelhante ao emblema de Oririn que ele carregava tatuado na própria pele. A imagem
de Volgo foi evanescendo, permanecendo apenas o rosto fino do mago, desesperado e raivoso ao mesmo tempo. O rosto foi crescendo e transmutando de volta para o rosto
de pedra, grama, água e vapor.
Agora eu entendo.
A voz retumbante estava triste, emanando de todos os lugares ao mesmo tempo. Kullat também compreendera. Volgo havia conseguido uma gema-prisão dos Espectros. E,
ao fazer aquilo, acabou por matar o colosso.
Com a vista embaçada pelas lágrimas, ele encarou os tristes olhos incandescentes que haviam ressurgido, enquanto todo o resto ficava escuro.
Ele matou Meath!
A voz era de total tristeza ao se referir a Volgo ter matado o outro Gaiagon.
Ele matou meu irmão...
Kullat sentiu o desespero do rosto de pedra. Uma imensa nuvem de vapor surgiu pelas suas narinas e a cascata de água cristalina jorrou mais forte, escorrendo de
seus tristes olhos circunscritos. A boca de grama se moveu estranhamente, mas, em vez de palavras, um gemido dolorido surgiu. À sua volta, a imagem ficou totalmente
negra.
O inimigo está aqui!
Kullat sentiu a urgência e o desespero na voz de Seath. Volgo havia matado o irmão do Gaiagon em Oririn, e agora estava em Kynis.
— Eu quero ajudar! Eu preciso ajudar... — Kullat olhou, impotente, para suas mãos normais, sem faixas. — Mas como?
Pela primeira vez, ele tomou consciência da ausência material. Sentiu o corpo leve, incorpóreo e sem forças. Era como se tivesse deixado de ser alguém e houvesse
se transformado em uma coisa, um conceito. Repentinamente, recordou sua última memória. Ele havia usado toda sua energia mágica para salvar os amigos no hospital.
E, com o esgotamento da Maru mágica de seu corpo, sua Maru vital também havia sido interrompida.
O peso de mil mundos caiu sobre ele. Ele estava morto, ou pelo menos não estava vivo.
O rosto elemental à sua frente, que havia compartilhado daquela memória terrível e daquele pensamento funesto, assumiu uma expressão decidida, e os olhos faiscaram.
Kullat sentiu o toque suave de algodão em sua mente se intensificar, assumindo um tamanho e uma dimensão que ele nunca poderia imaginar que fossem possíveis. Sua
cabeça começou a fervilhar, seus membros pareceram que estavam sendo esmagados e expandidos ao mesmo tempo, e o peito ardeu de uma forma indescritível.
Meath está em você.
Meath era esperança.
Agora você é esperança.
Você precisa VIVER!
Kullat sentiu o ardor no peito se tornar uma dor lancinante. Como um trovão ecoando em um vale, seu coração voltou a bater. Seu sangue voltou a circular nas veias
e seu corpo começou a voltar a ganhar materialidade. Era como se ele estivesse fazendo o caminho inverso, deixando de ser algo e voltando a ser alguém. Suas mãos
estavam enfaixadas novamente.
Eu e você.
Seath e Meath.
Verdade e Esperança.
Juntos novamente.
Unidos contra o inimigo.
O rosto brilhou intensamente e a imagem do Gaiagon se desfez, escorrendo como água quente e evaporando, deixando Kullat sozinho na escuridão, enquanto a voz dizia
uma última frase, com grande urgência.
Venha depressa!
O Cheiro de um Beijo
Planeta Kynis
— Volundr tak... — Naity-Gael murmurou, clamando por seu deus, incrédula ao ver o corpo do cavaleiro brilhar intensamente no chão.
Como uma pluma levada pelo vento da manhã, o corpo inerte de Kullat ergueu-se vagarosamente e girou no ar, colocando-o de pé, embora não tocasse o chão. O broche
do dragão escorregou e caiu, com um fraco tilintar metálico ao chocar-se contra o chão. Kullat ouviu vozes, mas eram apenas murmúrios longínquos. A escuridão ao
seu redor se transformou em uma luz alaranjada, cálida como o sol, banhando-o intensamente. Cada célula de seu corpo parecia gritar, enquanto uma onda de vitalidade
fluía por todo o seu ser. Sentiu o calor aquecê-lo em movimentos circulares e ritmados. Era como um banho quente, em que a água escorre por toda a pele, abrindo
os poros, limpando a sujeira e relaxando os músculos.
Nahra tomou posição de combate, com as garras negras brilhando com a luz fraca do quarto. Ela ordenou que os demais se afastassem, deu um passo na direção de Kullat
e cheirou o ar. Um misto de odores fétidos e ácidos, oriundos da explosão do kyniano, impregnaram suas narinas, mas ela não se importou. Ela precisava saber se o
homem que estava ali, flutuando no ar, era ou não Kullat. As pálpebras do cavaleiro estavam fechadas, mas, pelo canto dos olhos, um brilho laranja vazava, deixando
um leve rastro de luz. Com cuidado, aproximou-se ainda mais, tocou no braço dele e sentiu uma resistência estranha, como se o ar em volta do cavaleiro tivesse se
solidificado. Ela não conseguia pegar na manga rasgada do pijama.
— Impossível — murmurou, espantada.
Nahra sabia que a frequência de sua Maru licana a tornava imune aos poderes de Kullat e que ela poderia passar pelo seu campo de força como se fosse uma fina camada
de papel. Mas, dessa vez, a barreira laranja a impediu de tocar no cavaleiro. Desconfiada da estranha luz, Nahra inspirou o ar novamente, sentindo um cheiro conhecido
por trás do fedor acre da explosão: um misto de doces, cedro, o colorido da mandarina e a força da menta. Mas, para seu espanto, havia algo mais; um odor novo, suave
como flores silvestres de um vale primaveril. Seus olhos em fenda se arregalaram. Era Kullat, sem dúvida, mas também alguém diferente.
Ainda de olhos fechados, Kullat sentiu sua pulsação aumentar intensa e harmonicamente. Os fluxos energéticos fluíram como corredeiras mágicas e seu sangue vibrou,
quente, ao passar pelas veias, irrigando músculos e órgãos. No ápice daquele turbilhão de força, ele abriu os braços e a luz o consumiu completamente. Suas mãos
enfaixadas voltaram a brilhar, porém em tons de laranja nas pontas das labaredas. Uma luz forte surgiu em suas costas, escorrendo, solidificando-se magicamente e
se transformando em um manto resplandecente. Na parte da nuca, a luz cresceu e encobriu sua cabeça, criando um capuz que escondeu o rosto do cavaleiro com sombras,
acariciando-lhe a face e ressaltando o brilho alaranjado que emanava de seus olhos cerrados.
Ainda brilhando, a luz alaranjada, que formava um campo de força ao redor do cavaleiro, pulsou intensamente e iluminou todo o quarto, fazendo com que todos protegessem
os olhos e, no instante seguinte, desapareceu por completo. Vestindo novamente seu manto espectral impecavelmente branco, Kullat caiu no chão, com um joelho dobrado
e outro tocando o solo. Ambas as mãos, enfaixadas e brilhando intensamente, também tocaram o solo.
Nahra deu um salto, assustada com a repentina queda.
— Orzana, mãe de todos! — gritou, espantada.
Ulani e Sumo arregalaram os olhos. Naity-Gael levou as mãos à boca, sem poder acreditar, quando viu o cavaleiro se levantando. Kullat endireitou o corpo e sorveu
o ar profundamente, expirando-o em seguida com calma. Era uma sensação maravilhosa poder respirar novamente. Ele abriu os olhos, que faiscaram por um instante, piscou
algumas vezes e levou a mão ao peito, sentindo a energia vibrar e crescer constantemente em seu corpo. Era um fluxo contínuo de energia, vindo diretamente do Gaiagon,
o qual lhe enviava Maru mágica em harmonia com sua Maru vital, e que pulsava constantemente, cada vez com mais força.
A camisa do pijama estava rasgada, deixando seu peito exposto. O manto espectral perdeu a cor laranja, mas brilhava suavemente nas costas. Seu rosto tinha cor novamente
e os olhos ficaram mais vivos, sem a aparência profunda e mórbida de antes. O sangue do nariz e das orelhas havia sumido.
Ele piscou os olhos novamente e, aos poucos, a imagem do lindo rosto de sua amiga e companheira se formou à sua frente. Seu belo rosto licano estava assustado, suas
orelhas estavam baixas, como se tivesse medo dele, e seus olhos estavam vermelhos e úmidos.
— Nahra...
O som de sua voz foi como um aríete em parede de palha. A barreira temerosa que ela sentia se quebrou tão rapidamente que ela foi inundada pelo êxtase de ter Kullat
de volta dos mortos. Sem conseguir se conter, pulou sobre ele e o abraçou com força.
— Você está vivo! — ela gritou, com lágrimas rolando pela face lisa e bela. — Vivo!
Kullat colocou as mãos brilhantes na cintura dela e abriu um sorriso caloroso.
— Pelo visto, a senhora sentiu a minha falta!
Ela sorriu com o rosto molhado. Se havia alguma dúvida antes, agora tinha certeza. Aquele era realmente o seu companheiro. Nahra segurou seu rosto com carinho e,
indiferente aos olhares maravilhados dos guerrins e da enfermeira, o beijou. O cavaleiro sentiu os lábios quentes da licana e, sem se importar com mais nada, se
entregou ao momento e retribuiu o carinho. Foi um beijo libertador, como se ambos quisessem compensar todas as mazelas pelas quais haviam passado: as discussões
sobre rondas noturnas, as regras da Academia, a explosão do beco de Barac, a morte e a milagrosa ressurreição. Para ela, foi um beijo sincero, de cheiro suave e
sabor doce. Para ele, foi como um recomeço, um prêmio digno de quem acaba de vencer a morte.
Ele retirou o capuz e passou a mão pelos cabelos, em um movimento involuntário, sem receio de mostrar ao mundo como era bom estar vivo. Ulani e Sumo se aproximaram,
com Naity-Gael ao lado. Todos olhavam perplexos para o cavaleiro. Slurg piou freneticamente e saiu dos braços de Sumo, batendo as asinhas para chegar até Kullat.
O pequeno animal se aninhou no ombro do cavaleiro com um ar feliz. Sumo e Ulani abraçaram Kullat carinhosamente, sem conter o choro. Por alguns momentos, tudo o
que importava para todos era aquele abraço e tudo o que ele representava: o resgate milagroso de alguém muito querido.
Alguns instantes depois, mas que pareceram durar uma eternidade, o abraço coletivo se desfez.
— Mestre — Sumo disse, enxugando os olhos. — Eu achei que havíamos perdido o senhor.
— E perderam — Kullat respondeu, com sinceridade. — Mas achei a morte meio chata e decidi voltar — ele finalizou, brincalhão como sempre e mais vivo do que nunca.
Sumo sorriu e Slurg deu um salto. Somente seu mestre mesmo para fazer piada com a própria morte! Ulani, Nahra e Naity-Gael também sorriram. A enfermeira se aproximou
do cavaleiro e esticou um braço, indecisa. Sua mão tremia, mas ela reuniu coragem e tocou no peito do cavaleiro. Sentiu batidas fortes e ritmadas, como uma bomba
poderosa de vapor, bombeando o sangue com força.
Naity-Gael acreditava em Volundr e em seus atos. Ela sabia que Kullat havia morrido; ela mesma constatara o óbito. Mas, de alguma forma, o cavaleiro tinha voltado
à vida. Ela estava desconcertada, mas, ao mesmo tempo, feliz. A enfermeira lutava para encontrar uma explicação, um erro no diagnóstico ou uma falha na avaliação,
mas seu coração acreditava que aquilo havia sido um ato de Deus.
— Volundr handle — ela murmurou. — É impossível, mas você está mesmo aqui. Só pode ser um milagre!
Kullat apenas sorriu para ela e piscou, confidente, como se confirmasse sua teoria de intervenção divina. Então olhou ao redor e procurou por Thagir, mas a única
coisa que viu foi o broche de dragão no chão. Achou estranho vê-lo caído daquele jeito e o pegou, pensando que deveria chamar a atenção do pistoleiro por deixar
algo tão raro largado daquela forma.
— Será que alguém pode me dizer onde é que o Thagir se meteu? — ele perguntou, sentindo-se um pouco ofendido porque Thagir não estava ali, para zelar pelo corpo
de um amigo, o seu melhor amigo.
Nahra suspirou e se aproximou do cavaleiro com uma expressão pesada. Ela hesitou um pouco, mas resolveu falar.
— Ele ficou louco... — Apontou para a janela e continuou: — Disse que ia se vingar e pulou!
Pedido Silencioso
— O quê? Ele pulou pela janela?
Kullat olhou para baixo, na esperança de encontrar seu amigo, mas não viu nada. Até o rastro de fumaça e vapor já havia se dissolvido na brisa.
— Ninguém o impediu? — Kullat questionou, inquisidor, com as mãos se acendendo em chamas mágicas.
— Eu tentei — Nahra disse, defensiva, com a cauda se enrolando na perna. — Mas nada conseguiria detê-lo.
— Eu vou atrás dele! — Kullat exclamou com seriedade, colocando a perna para fora da janela, como fizera Thagir pouco antes. — Preciso encontrá-lo antes que seja
tarde.
— Espere! — Nahra aproximou-se, segurando-o pelo braço. — Você nem sabe para onde ele foi!
Kullat parou. Ela tinha razão. Ele não fazia a menor ideia para onde seu amigo tinha ido. Colocando a perna de volta para dentro, ele a encarou com gravidade.
— Conte tudo o que aconteceu depois da explosão. Mas seja rápida, não podemos perder mais tempo.
Ela então relatou tudo o que havia se passado, desde o momento em que Kullat caíra sem vida, passando pelas tentativas de reanimá-lo, até chegar na parte em que
Naity declarou a morte do cavaleiro e sobre a raiva latejante nos olhos do pistoleiro pouco antes de ele desaparecer pela janela. Kullat ouviu tudo em silêncio,
prestando atenção nas transcrições da conversa para tentar encontrar uma pista de qual seria o próximo passo de Thagir. Em sua mente, ele entendeu os motivos e os
sentimentos do amigo, e sabia que, se fosse o contrário, provavelmente teria feito a mesma coisa: buscaria vingança a qualquer custo. Não era uma forma de justiça
que a Ordem dos Senhores de Castelo aprovava, mas também não a repreendia.
Ele pensou no perigo que o amigo corria se fosse atrás de Volgo sozinho. Sem a magia da Joia de Landrakar, Thagir não teria chance contra o feiticeiro. Seria uma
batalha da qual seu amigo poderia não sair vivo. Ele olhou para o broche em sua mão e depois para Nahra, que o encarava com olhos preocupados.
— Sem isso — ele disse, mostrando o broche de dragão — não vou conseguir entrar em contato com ele.
Ele suspirou e levou a mão à cabeça. Além de seu amigo desaparecido, ainda tinha de atender ao chamado daquele que o trouxera de volta à vida: o Gaiagon. E, como
se não bastasse, havia ainda o problema do Bobo e do Ladrão. Era como se estivesse novamente na Academia, enfrentando o Teste V, o mais odiado por todos, mas também
o mais valioso. O cavaleiro sabia que qualquer decisão que tomasse implicaria renunciar a outras duas coisas. Se ajudasse o Bobo e o Ladrão, tanto Thagir quanto
o Gaiagon estariam à mercê de Volgo. Se ajudasse o Gaiagon, estaria abandonando Thagir a um perigo que ele não poderia enfrentar sozinho, além do que os dois prisioneiros
poderiam ser mortos dentro da prisão. Se fosse atrás do pistoleiro, tanto o Gaiagon quanto os prisioneiros enfrentariam seus destinos sem sua ajuda.
Ele colocou as emoções de lado e raciocinou, procurando encontrar a opção menos prejudicial. E, apesar de ficar com o coração pesado por causa dos amigos, escolheu
atender ao chamado do Gaiagon.
Nem tudo está perdido, pensou o cavaleiro, buscando uma esperança. Se Thagir foi atrás de Volgo, talvez eu o encontre no caminho até o Gaiagon. E, se eu tiver sorte,
talvez ele nem consiga chegar até o feiticeiro! Quanto àqueles dois, espero que a ajuda de Thagir seja suficiente para mantê-los vivos, pensou, lembrando que o pistoleiro
disse que havia deixado algo com os prisioneiros.
Olhando para a escuridão da madrugada que chegava ao fim, Kullat respirou fundo, desapontado e inquieto. Sentia a energia de Seath ressoar harmonicamente em sua
direção, percorrer seu corpo e, rapidamente, renovar suas forças. Mas, além daquela nova energia, havia algo mais em sua mente: um pulso fraco, mas constante, como
uma bússola vibrando em sua cabeça, induzindo-o a ir em uma determinada direção.
O vento soprou novamente, e ele sentiu o ar tocando-lhe diretamente a pele do peito. Percebeu que, debaixo de seu manto recém-criado, estava usando trapos. A camisa
do pijama estava rasgada, as calças eram finas e ele estava descalço. Mas nada daquilo importava.
— Nosso tempo acabou. Está na hora de agir! — ele disse, cobrindo o peito nu com seu manto.
— Mas você acabou de voltar dos mortos! — Nahra exclamou, preocupada. — Precisa se recuperar!
— Eu estou bem — ele respondeu, fazendo suas mãos brilharem intensamente com a renovada energia mágica. A intensidade da claridade fez Nahra cobrir os olhos com
as mãos e mostrar os caninos, numa careta. — E preciso deter um feiticeiro!
— Mestre! — Sumo deu um passo à frente. — E quanto a nós?
Kullat olhou para o rapaz, que segurava o pequeno animal de estimação no colo, e para a jovem Ulani. Eles estavam desorientados com todos aqueles acontecimentos.
O cavaleiro suspirou, e as chamas mágicas diminuíram de intensidade, até sobrar apenas um suave brilho aperolado ao redor das faixas em suas mãos.
— Desculpe, Sumo. Eu não havia pensado em vocês.
— Você não pode tomar as decisões sozinho — disse Nahra, aproximando-se do cavaleiro. — Ainda somos uma dupla nessa missão, lembra-se?
Kullat se lembrou da comunicação de Kim-moross, antes do ataque.
— O conselho cancelou nossa missão — Kullat respondeu, com seriedade. — Mas vocês têm razão. Eu não posso simplesmente abandoná-los aqui. E, como não temos como
nos comunicar com o Conselho de imediato, eu, como Domo Shoujin, ordeno que...
Nahra o interrompeu, colocando uma das mãos no peito do cavaleiro. A sensação quente da mão dela em sua pele foi reconfortante.
— Você não precisa me dar nenhuma ordem. Só precisa pedir e faremos o que você quiser.
Pela primeira vez desde que haviam começado a trabalhar juntos, ele sentia que podia confiar nela plenamente. Ulani e Sumo concordaram sem hesitar.
— Ótimo. Então vamos sair logo daqui. Temos muito o que fazer.
A enfermeira, que acompanhava tudo em silêncio, interrompeu.
— Antes de irem, deixe-me apenas pegar algumas roupas novas para você — E apontou para o peito nu dele.
— Eu posso ajudar! — Sumo exclamou, com Slurg no ombro. Então foi até perto da porta, onde sua mochila havia caído, com mais duas sacolas de pano. — Peguei na sede
da Ordem, antes de virmos para cá.
Sumo entregou uma sacola para Kullat e outra para Nahra. Dentro, havia um jogo completo de vestimentas para cada um.
— Sempre preparado, certo? — Kullat piscou para o garoto, com um sorriso nos lábios. O rapaz apenas respondeu ao sorriso e assentiu com a cabeça.
O cavaleiro dirigiu-se ao banheiro, para se trocar. Quanto a Nahra, que ainda estava com o pijama do hospital, sem pudor nenhum, despiu-se ali mesmo e colocou as
roupas que o guerrin havia trazido. Kullat saiu do banheiro vestindo uma túnica branca sem mangas, calças e meias da mesma cor. Botas de couro claro e cinto de couro
completavam o conjunto. Nahra vestia calças de couro preto e um corpete azul, com botas da mesma cor. O corpete lhe caiu muito bem, deixando o busto firme e a cintura
bem definida. Ela passou a mão pelos cabelos e pela faixa que Naity-Gael havia feito em seu ouvido, sentindo falta do brinco dourado de argola pela primeira vez,
mas sem se importar realmente com aquela pequena perda. Kullat vestiu seu manto espectral e assentiu para Nahra, satisfeito por vê-la bem novamente. Ela sorriu e
piscou para ele, como se também aprovasse o cavaleiro em suas novas vestes.
Ele ajeitou o cinto, olhando com orgulho para o aprendiz. Em seguida, aproximou-se da enfermeira e segurou os ombros da kyniana com suavidade.
— Quero lhe agradecer por ter tido tanto cuidado conosco. Eu lhe serei eternamente grato.
O cavaleiro não esperou resposta e a abraçou com carinho. Ali não existia mais um relacionamento enfermeira-paciente. Eram dois novos amigos que estavam se despedindo.
— Estarei aqui sempre que precisarem — ela disse, dando um passo para trás. — Mas espero, sinceramente, que não precisem!
— Que Khrommer e Volundr te ouçam! — Kullat exclamou.
Então caminhou rapidamente para a porta, fazendo sinal para que os outros o seguissem.
— Eu também quero lhe agradecer por tudo — disse Nahra, dando-lhe um abraço forte. — Você é uma verdadeira anhel!*
Nahra deu um forte abraço na enfermeira e partiu, quase correndo atrás de Kullat.
Ulani passou a mão novamente no vidro da câmara de tratamento de sua mestra.
— Eu já volto — disse à enfermeira, com tristeza, antes de sair do quarto.
Sumo despediu-se com um aceno e, com Slurg no colo, seguiu ao lado da jovem guerrina. Do lado de fora, o corredor estava vazio. Os outros quartos, de portas escancaradas,
também estavam vazios, deixando claro que todos os pacientes haviam sido realocados. O cavaleiro começou a andar rapidamente.
— Mestre, para onde vamos? — Sumo indagou, quase correndo atrás do cavaleiro.
Eles chegaram à escadaria e começaram a descer.
— Nahra e eu vamos atrás de Volgo. Você e Ulani vão voltar para a sede — ele disse, apontando para os dois jovens, sem parar de descer as escadas.
Ulani estancou entre um degrau e outro.
— Voltar para a sede?
Kullat reparou que a jovem havia parado e virou-se para ela.
— Eu só saí do quarto porque pensei que você queria falar com a gente longe da enfermeira — Ulani bufou, contrariada. — Eu não vou a lugar nenhum. Não posso simplesmente
abandonar a Cyrvil aqui sozinha. E se ela acordar? E se alguém mais quiser atacá-la?
Kullat subiu dois degraus e se aproximou da jovem. Se outro ataque acontecesse, certamente Cyrvil seria morta se estivesse sozinha, mas seria apenas ela. Se os dois
guerrins permanecessem ali, com certeza também seriam mortos. Nesse caso, a razão deveria superar o coração, e seria melhor perder uma vida em vez de três. Além
disso, o cavaleiro tinha a esperança de que nenhum outro ataque acontecesse tão cedo. Mas ele estava certo de que nada daquilo a convenceria. Apesar de ter convivido
pouco com a jovem, o que havia presenciado revelara um caráter firme, decidido e fiel.
— Você está certa — ele disse. — Você não pode abandonar sua mestra. Mas não é isso que estou lhe pedindo. — E subiu mais um degrau, chegando mais perto dela, mas
se mantendo abaixo de sua linha de visão. — O tempo é muito curto agora e precisamos da sua ajuda. Eu preciso da sua ajuda.
A garota pareceu relaxar um pouco. Suas palavras estavam surtindo efeito. Ele ficou parado, encarando-a com a melhor expressão de vítima que conseguiu fazer, mas
não disse mais nada.
— Para que você precisa de mim? — a garota perguntou, abaixando os braços.
Ótimo! Ela baixou a guarda, ele pensou.
— Eu preciso que vocês dois entrem em contato urgente com o Conselho em Ev’ve e contem tudo o que aconteceu aqui. Cada um de vocês conhece uma parte dos acontecimentos
e, juntos, vão conseguir formar um quadro razoável de tudo o que está se passando neste planeta. — Kullat fez uma pequena pausa, olhou diretamente nos olhos de Ulani
e depois nos de Sumo. Por fim, complementou: — E eles também precisam saber que há um Gaiagon em perigo neste mundo!
— O quê? Um Gaiagon? — Ulani perguntou incrédula, olhando para o cavaleiro e descendo um degrau.
— Que história é essa? — Nahra questionou, espantada.
Kullat sentiu que aquela era a deixa pela qual esperava.
— Eu conto no caminho! — E voltou a descer as escadas sem parar e sem dar chance para que Ulani voltasse ao assunto de ficar no hospital. — Precisamos achar logo
a saída daqui.
Enquanto desciam, passando de um andar a outro, ele contou brevemente o que havia acontecido em Oririn, dezenas de anos atrás, quando Volgo matara outro Gaiagon.
Também comentou o encontro que tivera com Seath durante sua morte, e que ele não era um deus, como os kynianos pensavam, mas um Gaiagon. E falou ainda sobre a ameaça
que sentira com Seath, quando este viu sua memória sobre Volgo.
— E como o aparelho de comunicação que a Ordem havia disponibilizado aqui para o hospital está quebrado — Kullat finalizou —, alguém precisa ir até a sede para usar
as esferas-T e avisar ao Conselho! Ahh... finalmente a saída! — Kullat disse, chegando a uma porta no térreo com uma luz amarela.
A pressão em sua cabeça parecia aumentar, como se a bússola em sua mente latejasse. Um pedido silencioso vindo de longe, clamando para que ele agisse rápido.
Notas
* Entidade em forma de criança, com asas de águia e cuja origem é considerada divina. Sua missão é cuidar dos desafortunados.
Barreira Fusiva
Apesar de o grande sol de Kynis ainda não ter se levantado, o céu já começava a apresentar uma enorme variedade de cores. Para completar o espetáculo, o mar se iluminava,
criando uma mescla de cores única e espetacular. Era como se um artista indeciso tivesse usado todos os tons da paleta. As duas luas, em suas próprias cores, flutuavam
plácidas, alinhadas uma à frente da outra, como se fossem um olho de íris brilhante.
Mas, por mais belo que fosse aquele dia, o sol trazia consigo o presságio da morte. Assim que se levantasse, também ocorreria o início da Synlige. A maré baixava,
desnudando os arrecifes avermelhados, revelando o caminho entre o continente e a ilha, abrindo passagem para que o fantasma da guerra se tornasse real.
Na praia, no início da ponte vermelha de corais, Draak olhava para longe, onde o mar se confundia com o céu, extasiado com a complexidade da natureza. Inevitavelmente
se perguntava como alguém poderia imaginar que aquela maravilha não era obra divina; obra de Seath. Ele usava um uniforme leve e resistente, de um metal maleável.
Em uma das mãos, a correia de um lun’atac azulado, que esperava pacientemente pelas ordens de seu domador. Às costas, Draak levava um elfir de cano longo duplo.
Na cintura, um katar — uma adaga de soco —, três minibombas de estilhaços e uma arma portátil.
Como comandante do regimento de vanguarda, ele precisava dar o exemplo para seus comandados. Apesar de estar preocupado, não deixava transparecer seu receio, mantendo-se
impassível como uma rocha. Os soldados à sua volta, mesmo amedrontados e tensos diante da guerra iminente, mantinham-se firmes como o seu comandante. Semienterrados
na areia, e ao redor de toda a ilha, enormes disparadores estavam prontos para lançar bombas de estilhaço. Divisões de soldados, alguns comandando lun’atacs, dividiam
espaço com soldados montados em dragões terrestres. No mar, postos avançados formavam uma linha defensória extensa, complementada por navios de metal escuro repletos
de soldados fortemente armados e de cavaleiros de dragões marinhos, em suas armaduras aquáticas. No ar, dezenas de dragões, com dois soldados montados em cada um,
voavam em grupos, fazendo grandes círculos no céu de Makrao Maat. Parecia que a ilha inteira fervilhava, pronta para agir se a guerra começasse.
Do outro lado, o exército as-tanysiano também se preparava para o embate. Na água, embarcações de guerra margeavam o continente, formando uma extensa linha de defesa.
Na orla, fortificações e máquinas de guerra a vapor estavam preparadas para impedir o avanço do exército inimigo. No início do caminho de corais, guarnições de combatentes
se reuniam na praia e nas ruas próximas em grupos por especialidade: bastonetes, com suas lanças energizadas movidas a vapor; andarilhos, em suas máquinas bípedes
de guerra que despejavam fumaça e vapor no ar; e corredores, com armas de disparo rotativas sobre esteiras de movimento rápido. Grupamentos de ciclovotores bailavam
no céu, mostrando que também pelo ar o continente estava bem guarnecido.
Um triste espetáculo que surgia em tempos de guerra.
No horizonte, a ponta alaranjada do sol surgiu, trazendo consigo um silêncio sepulcral. Ninguém falava em nenhum dos dois lados, como se receassem que até mesmo
a voz pudesse ser o estopim para o pior. Quando o astro finalmente deixou de tocar a linha do horizonte, nenhuma onda mais passava sobre os corais. Novamente a Synlige
havia começado e os dois exércitos se colocaram em marcha.
Draak foi à frente, iniciando uma procissão macabra. Atrás dele, seguiram-se mecanismos de guerra sobre rodas, barreiras móveis, dragões terrestres, grupos compactos
de soldados e até um grupo inteiro de domadores de lun’atacs. Todos seguiram o comandante, que, a passos firmes, esmagava o delicado caminho de corais. Do outro
lado, três comandantes as-tanysianos avançavam em suas grunas — esferas de metal resistentes. Logo atrás, vinham pesadas máquinas de combate a vapor, soldados sobre
esteiras de tiro e divisões de lançadores de bombas. Ambos os grupos estancaram, mantendo uma pequena distância entre si, na estreita faixa de território neutro.
Aquele era o instante em que a barreira fusiva era acionada. Aqueles momentos, antes das máquinas serem ligadas na Torre Corilus e gerarem a energia necessária para
os difusores submersos, eram os mais tensos de toda a Synlige. Ao serem ligados, uma verdadeira parede de água superaquecida, que se eleva desde o fundo do mar até
o céu, forma uma divisão de água plasmática. Alimentada por uma rede subaquática de propulsores, serve de divisa marítima das duas nações. Mesmo sobre os corais,
canos de material super-resistente fecham por completo a passagem.
Os continentais criaram a barreira para impedir que fossem atacados. Mas, para os ilhéus, ela representava uma garantia de que a guerra não aconteceria. Exatamente
por isso, o rei maatiano não parou totalmente de fornecer línguas de fogo para os continentais. Ele sabia que, se não houvesse combustível para os geradores da Torre
Corilus, a barreira não existiria e a guerra seria inevitável.
Draak aguardava, ansioso, pela ligação da barreira. Mesmo com seu rei decretando a Declaração Temerosa, e mesmo que a maioria dos treze menteri fosse favorável a
uma represália armada em virtude dos atentados, ainda havia esperança de que os comandantes de ambos os exércitos mantivessem o controle da situação. E ele, como
comandante do exército da vanguarda de Makrao Maat, havia tomado uma precaução extra. Ele se encontrara em segredo com os três comandantes do exército inimigo e
fizera um acordo de sangue.
Amaldiçoado aquele que primeiro levantar armas contra seu irmão!, Draak relembrou as palavras, enquanto olhava para a cicatriz no braço onde havia feito um corte
com uma lâmina virgem para selar o acordo. Era melhor acreditar em uma promessa frágil do que esperar apenas pelo bom senso. E, na guerra, a última coisa que existe
é o bom senso.
Um maatiano, montado em um dragão terrestre, avançou até ao lado de Draak.
— Senhor! — exclamou. — Estamos todos preparados. Quais são suas ordens?
O dragão sacudiu a cabeça, e Draak olhou para o soldado em sua montaria. Era um maatiano jovem, que ainda não havia experimentado muito da vida, nem tinha tido a
honra de passar pela transformação para elfi-dragão. Mas, apesar da tenra idade, mostrava-se corajoso diante do perigo, pronto para lutar por seu reino, guerrear
por sua fé e defender seu povo.
Draak ajeitou o grande elfir de cano duplo às costas.
— Minhas ordens... — ele disse, fazendo uma pausa. — Eu gostaria muito de ordenar que todos nós voltássemos para nossa casa, cuidássemos de nossa família e continuássemos
a viver a vida pacificamente. — O dragão cabeceou, mas o soldado manteve as rédeas firmes. — Na verdade, a morte será a companheira de quem atacar hoje, meu jovem
amigo. E eu não quero que ninguém do nosso povo tenha uma companhia tão desagradável como essa. As minhas ordens são: vamos esperar. Vamos esperar e manter nossas
posições. Vamos esperar e rezar para Seath, para que ele ilumine o coração dos que estão do outro lado. Vamos rezar para que a barreira suba, e leve com ela a ameaça
que paira sobre nós. Que não permita que a maré seja tingida com o vermelho do sangue do nosso povo.
O rapaz assentiu, emocionado. Puxando as rédeas, trotou com seu dragão, de volta para a linha de defesa. Assim que chegou à sua posição, uma bandeira azul-clara
foi erguida, sendo imediatamente seguida por outras tantas bandeiras azuis, espalhadas ao longo da linha de frente e replicadas por toda a extensão da ponte de corais
vermelhos e das praias. A bandeira azul sinalizava que eles não tinham intenção de atacar, mas também não recuariam diante de nenhuma ameaça.
Assim que as primeiras bandeiras foram erguidas em seu exército, Draak viu, ao longe, no exército adversário, que bandeiras semelhantes, também azuis, começaram
a despontar. Rapidamente, uma sequência de bandeiras foi levantada, seguindo em direção à praia continental.
— Eles cumpriram com a palavra! — Draak exclamou em voz alta para si mesmo, aliviado ao ver que os comandantes as-tanysianos também sinalizaram a todo o seu exército
que era para manter suas posições, e não atacar.
No continente, dentro da Torre Corilus, o responsável pela barreira puxou uma grande alavanca. Os geradores, que estavam funcionando na carga mínima, começaram a
girar rapidamente. A fumaça e o vapor emanados pelo prédio foram multiplicados exponencialmente, chegando à carga máxima em pouco tempo. O fluxo de água plasmática
começou a ser bombeado para os enormes canos na base da torre, percorrendo a tubulação velozmente e chegando aos difusores submersos em poucos instantes. As incontáveis
fontes submersas começaram a expelir a água superaquecida e a se unir umas às outras, oceano acima. Uma explosão de vapor e água plasmática surgiu, tomando quilômetros
e quilômetros de extensão, subindo cada vez mais e atingindo as nuvens.
A barreira tinha sido ligada, e a guerra não mais aconteceria.
Aliviado, Draak levantou a mão-garra e exclamou alto:
— Seath nam ista! — Pela glória de Seath!
A tensão no exército maatiano se dissolveu no mesmo instante, e gritos eufóricos foram ouvidos em todos os lugares.
A Dura Realidade
Pelas ruas e vielas de Corilus, o silêncio era quebrado pelo ronco ensurdecedor do motor a vapor da ciclomoto de Thagir, que guiava como se estivesse em uma corrida.
O pistoleiro desviava dos poucos veículos que encontrava e fazia as curvas com tanta velocidade que chegava a deslizar a única roda do veículo, quando a curva era
mais acentuada. Sua mente estava obcecada com um único pensamento: encontrar Volgo e matá-lo.
Thagir corria pela cidade em direção ao porto atrás da única pista que tinha, da única saída em que conseguira pensar. Ele ia encontrar o ministro e arrancar dele
a informação sobre o paradeiro de Volgo. E só havia uma pessoa que conseguiria levá-lo até o ministro: Draak.
O pistoleiro acelerou ainda mais, apressado em ir até a ilha para encontrar o elfi-dragão, deixando um rastro de poeira no ar. Mas, por mais veloz e por mais longe
que fosse, a dura realidade era uma só. Kullat estava morto, e nada poderia mudar aquilo.
Irado, fez uma curva acentuada a toda velocidade, fazendo a ciclomoto deslizar perigosamente na única roda. Sem se importar, acelerou ainda mais, subindo na calçada
e quase colidindo com uma árvore no caminho. Continuou rápido até chegar ao limite do porto, onde precisou reduzir a velocidade, pois as ruas estavam fechadas com
obstáculos.
Uma sentinela ergueu o braço por trás de uma barricada de metal, sinalizando para que Thagir parasse. Vendo que por aquele caminho não conseguiria chegar ao porto,
o pistoleiro virou à direita e saiu em disparada, margeando a barreira. Estava a várias quadras da praia, e os prédios bloqueavam a visão do mar.
Ele seguiu por vielas e ruas, tentando se aproximar do porto, mas, sempre que um caminho parecia levá-lo até a praia, lá estavam as sentinelas para lhe impedir a
passagem. Tem que haver um jeito de passar!, pensou, desviando de um ou outro grupo de soldados e suas máquinas fumegantes, que se aglomeravam por todas as vias
que levavam até a praia.
À sua frente e à direita, viu um pequeno morro. Apesar de não ser muito alto, ainda era maior do que as construções de dois e três andares que existiam naquela região.
Confiante de que lá conseguiria visualizar uma brecha até o porto, subiu por uma estrada estreita de pedra. Ao chegar, viu que se tratava de uma espécie de praça,
com algumas árvores e um belo jardim ao redor de uma pequena construção solitária no fundo, perto do final do terreno. Parecia ser algum tipo de templo e não havia
vigias ali.
Acelerou novamente, roncando o potente motor, que expeliu fumaça e fuligem. Seguiu guiando a larga roda sobre o jardim, sem se importar com o estrago que causava,
e parou um pouco antes de uma descida íngreme, que começava atrás da construção e descia acentuadamente, até acabar na estrada abaixo.
O que viu o deixou perplexo. Incontáveis soldados se apinhavam por todos os caminhos possíveis, a pé ou em máquinas vaporosas. Ciclovotores bailavam como um enxame
pelo céu. Uma estrada vermelha havia surgido, ligando o continente à ilha, e estava repleta de combatentes, armados e montados em máquinas de guerra. E, o mais impressionante,
a estrada estava cortada ao meio por uma parede esbranquiçada, que se erguia majestosa, confundindo-se no alto com as próprias nuvens e que seguia até onde a vista
alcançava, formando uma cortina gasosa e mortal, impedindo que qualquer um a atravessasse.
Thagir imaginou que a barreira ficasse mais fraca no ponto mais alto e que o contato com o ar rarefeito e frio da atmosfera poderia diminuir ou minimizar os efeitos
da muralha escaldante, mas, infelizmente, ele não dispunha de nenhum recurso para passar por cima e cruzar a linha mortífera.
O pistoleiro então ficou parado, pensativo. Os soldados que se entrincheiravam nos caminhos até a praia e sobre a ponte vermelha não eram um grande problema, pois
ele estava preparado para enfrentar uma chuva de balas, se preciso. Mas aquela barreira era um obstáculo que nem mesmo com todos os seus truques ele conseguiria
vencer.
Caminho sem Volta
Ilha de Ev’ve
Os primeiros raios de sol iluminavam o porto principal de Ev’ve. As incontáveis ilhotas de pedra e musgo formavam um caminho tortuoso e belo pelo mar multicolorido,
como se fosse um jardim de estrelas sobre leitos de arco-íris.
Alheia à beleza magnífica da alvorada na ilha no centro de tudo, Laryssa se esgueirava com cuidado no cais, em busca do Escamas de Pedra, um navio que zarparia naquela
manhã em direção a um planeta do quarto quadrante. Sem autorização para viajar, ela teria que entrar clandestinamente na embarcação.
Com o raiar do dia, alguns marinheiros já perambulavam pelo porto, e a princesa se escondia sempre que avistava um deles. Mesmo ocultando o rosto com um capuz, a
mochila denunciava que ela estava de partida. Detrás de um veículo com garras enormes usado para carga e descarga de materiais pesados, Laryssa esquadrinhou o porto.
Havia nove navios grandes e três médios aportados. Mas, sem saber qual deles era o que procurava, teria de olhar um por um.
A garganta estava seca e o coração batia acelerado. Na mente, dúvidas surgiam a todo instante. Será que Kullat está vivo? E será que ainda vai estar quando eu finalmente
conseguir chegar até ele? Se ele tiver conseguido se salvar, terei sacrificado minha vida de castelar à toa? Mas ele pode ter sido capturado, e eu posso salvá-lo!
Apesar das dúvidas, sua racionalidade já tinha sido vencida há tempos por argumentos tão sólidos quanto uma bolha de sabão. Não era a lógica que a guiava. Ao contrário,
seus atos eram fruto dos seus sentimentos pelo cavaleiro. Seu coração batia forte por ele, mais forte do que ela admitiria. E a simples, apesar de remota, possibilidade
de que ela poderia salvá-lo a impeliu a continuar.
Receosa, ela se preparou para sair de seu esconderijo, mas um veículo de esteira dupla surgiu por detrás de uma pequena construção e a fez parar. Para seu alívio,
era um robô autoguiado, que carregava algumas caixas metálicas em seu reboque.
A sorte finalmente me favorece!, Laryssa pensou, sorrindo dentro do capuz ao ver as iniciais EP estampadas nas caixas. Essas caixas só podem ser do Escamas de Pedra!
Certificando-se de que não havia ninguém à vista, saiu em disparada e subiu no reboque com agilidade. Um arrepio lhe percorreu a espinha quando ela se escondeu entre
as caixas. Daquele ponto em diante, estava em um caminho sem volta, e não teria mais como desistir.
Invasão
Universo 4ME2U — Interespaço
Com agilidade, Azio deslizava os dedos dourados sobre vários símbolos, que apareciam e desapareciam rapidamente no painel de comandos do computador de seu quarto.
Sendo um binaliano, foi fácil para ele encontrar uma brecha e penetrar na programação da nave.
Sem parar de pressionar os símbolos sobre a tela, acionou seu comunicador Amlar e tentou, novamente, contatar a princesa. Mas, assim como das outras vezes, o resultado
foi o mesmo: sem resposta.
Ah, princesa... O que aconteceu com você? Por que não me responde?, questionou-se, angustiado. Já tinha perdido a conta de quantas vezes tentara falar com ela.
Recolheu o comunicador e continuou a manipular o sistema, tentando quebrar a proteção das comunicações da nave. Se conseguisse acesso ao frequenciador interespacial,
conseguiria conectar seu comunicador Amlar ao sistema e, talvez, conseguisse um canal direto com Ev’ve.
Assim, poderia enviar um recado para a princesa e dizer-lhe que postergaria sua busca para atender ao pedido dela. Ele ainda não tinha os meios para fazer isso,
mas tinha um plano para mudar isso em breve.
Tesouro nos Braços
Planeta Kynis
Kullat e seus amigos saíram pela porta lateral do hospital e se depararam com uma aglomeração. Kynianos confusos conversavam e gesticulavam, perguntando-se o que
teria sido aquela explosão, acima do hospital, pouco tempo antes. Sem dar importância para a pequena multidão, Kullat atravessou a rua quase correndo, desviando
de todos, enquanto seguia as orientações de Ulani até o local onde ela havia estacionado o veículo com o qual viera ao hospital e voltaria para a sede, acompanhada
de Sumo e Slurg.
— Chegando lá, vão direto para a sala de transmissão e contatem o Conselho — Kullat os orientou. — Passem a eles informações com o máximo de detalhes, contem tudo
o que está acontecendo aqui e falem também sobre Volgo e o Gaiagon. Diga para eles mandarem um quark para cá o mais rápido possível.
— Um quark inteiro? — o jovem perguntou, espantado. Isso significava um destacamento de seis duplas de Senhores de Castelo.
— Exatamente! — O cavaleiro olhou sério para o guerrin. — Temos que garantir que, dessa vez, Volgo seja capturado. Depois, esperem por nós lá na sede, e, se não
voltarmos... Enfim, alguém terá que receber o destacamento.
Os jovens entenderam o que Kullat queria dizer. Ele considerava aquela nova missão tão perigosa, que estava cogitando que nem ele e Nahra juntos seriam capazes de
combater o feiticeiro. E talvez não conseguissem voltar.
— Aqui, pegue isto — Kullat esticou a mão, mostrando o pequeno broche de dragão azul e o entregando para Sumo. — Com isto vocês conseguirão se comunicar comigo,
ou nós com vocês. Mas lembrem-se: é uma via de mão única. Uma vez que a mensagem seja enviada, vocês não vão conseguir mandar nenhuma outra, nem receber resposta.
Por isso, só o usem em caso de extrema urgência.
— Como ele funciona? — Sumo perguntou, olhando para o objeto na mão espalmada. Slurg pendeu a cabeça para frente, para também mirar o objeto.
— É simples. Você o segura e visualiza na mente o broche se transformando num pequeno dragão. Quando ele brilhar e se mexer, você pensa em tudo o que quer que eu
veja e, no fim, basta lançá-lo ao ar. Ele vai me encontrar em qualquer lugar no Multiverso e me entregar a mensagem.
Sumo assentiu e guardou o broche na mochila.
Depois disso, o silêncio se instalou entre eles. Senhores de Castelo de um lado, guerrins do outro. Havia chegado o momento da separação.
Nahra se aproximou de Ulani e se despediu com um abraço, cochichando em seu ouvido para que ela cuidasse de Sumo. Em seguida, chegou perto do guerrin e lhe deu um
beijo no rosto, aproveitando para sussurrar igualmente que ele cuidasse de Ulani. Ele concordou com a cabeça, e Slurg piou fracamente.
Kullat abraçou os dois guerrins e se despediu com recomendações de que tomassem cuidado.
— E cuidem também desse meninão — Kullat disse, afagando a orelha do bichinho, que se agitou no colo do dono.
Ulani e Sumo embarcaram no veículo e saíram em disparada, deslizando pelas ruas de Corilus, em direção contrária à da iminente batalha.
Nahra tirou as faixas da orelha. Não queria ir para a guerra parecendo ferida. Além disso, apesar de os sons soarem abafados, a audição do outro ouvido compensava
a diferença. Ela fechou os olhos por um instante, procurando saber se Talbain estava bem. Para seu alívio, sentiu que o lobo estava melhor, embora ainda não estivesse
totalmente recuperado.
— E agora, para onde vamos? — ela perguntou, abrindo os olhos novamente e encarando Kullat.
— Vamos para lá! — ele apontou em direção ao mar.
— Para o porto? — Nahra se aproximou, tocando-o no braço.
— Não. Para muito mais longe. Temos que ir para a ilha! — ele respondeu, confiante. — Temos que chegar até o interior dela.
— Mas e a Synlige? E Thagir?
— Não se preocupe. Apenas venha comigo.
Ela deu de ombros. Eles não tinham mais uma missão a cumprir e não tinham ordens. Agora, eram apenas os dois, e ela apoiaria Kullat em qualquer que fosse a sua decisão.
— Tudo bem, então. Mas como vamos até lá?
— Voando.
— Mas você está fraco. E ainda teria que me carregar! — Nahra já conhecia as limitações do cavaleiro para saber que voar era uma alternativa que despendia muita
energia.
Kullat pensou em explicar que estava recebendo energia do Gaiagon. Mas, em vez de perder mais tempo, ele apenas se aproximou e a pegou no colo. O cheiro de violetas
se fez presente novamente, trazendo a boa lembrança do beijo que haviam trocado. Ela não relutou nem reclamou, parecendo até gostar. Sentindo o abraço forte dela
em seu pescoço, ele também não podia negar que gostava de tê-la sob sua proteção.
Ele ajeitou o corpo e levantou voo rapidamente, mas com cuidado, como se carregasse um tesouro nos braços.
Chegada a Hora
No meio da Torre Corilus, os andares ocupados pelo hospital militar de As-Tanys estavam bem tumultuados. Do topo do prédio, rolos grossos de fumaça e vapor subiam
alto no céu escuro. Pelos largos corredores brancos, canos metálicos agiam como veias, conduzindo vapor e água para toda a instalação. Como acontecia em toda Synlige,
eles estavam se preparando para o pior.
Veryna estava deitada de bruços. Um pijama verde lhe cobria da cintura para baixo, deixando exposta a pele do pescoço, enrugada e queimada pela explosão. Os ombros
e a parte de trás dos braços também haviam sido atingidos, com feridas onde a malha metálica havia superaquecido e penetrado na pele.
Do lado de fora da alta torre, um redemoinho escuro se aproximou.
As janelas abertas traziam consigo a leveza do ar de um novo dia e, com a brisa fresca, o redemoinho entrou no quarto de Veryna. Como um fantasma sombrio, consolidou-se
ao lado da porta, formando uma figura masculina. O elegante quimono negro se assentou como uma luva quando Tempestuoso se certificou de que o restante do quarto
estava vazio. Com um movimento rápido, conferiu as duas espadas cruzadas nas costas. Um velho hábito que persistia sob o jugo do feitiço de Volgo. Pela fresta da
parte de baixo, percebeu que havia guardas de prontidão do lado de fora. Ainda sem emitir nenhum som, deslizou até o lado da cama da grã-chefe, indiferente aos ferimentos
dela.
Em sua outra vida, teria se apiedado da mulher. Mas nessa vida de agora, sua vontade não importava. Ele se inclinou sobre a cama e desembainhou uma espada, mas,
num gesto rápido, ela o impediu de terminar o movimento. De debaixo do travesseiro, Veryna retirou um bastão energético e o lançou contra a garganta do jovem capitão,
parando o golpe a centímetros de sua jugular. A arma brilhava ameaçadoramente, pronta para explodir em um jorro energético.
— Maldito seja! — Veryna sussurrou, tomada de raiva.
A pele das costas e dos braços repuxou dolorosamente, mas o semblante do capitão não se alterou. Indiferente à ameaça e ignorando o torso nu da grã-chefe, apenas
sorriu.
— Volgo mandou lembranças — disse, ainda sorrindo.
— Não fale no nome desse dund!* — ela respondeu entre dentes. A energia azulada do bastão beliscava a pele do pescoço de Tempestuoso. — Ele tentou me matar! Quando
eu mandar a sua cabeça quebrada de volta, ele vai entender que mexeu com a mulher errada!
— Ele quer falar com você — o jovem disse, alheio às ameaças.
Então lhe mostrou um pequeno vidro com algo arroxeado dentro. Veryna relutou um momento, mas, em seguida, fez sinal para que ele se afastasse.
Tempestuoso deu dois passos para trás, ainda segurando a espada. Ele abriu o pequeno frasco, despejando no chão a substância pegajosa. E depois usou a espada para
fatiar a estranha gelatina em três pedaços, empurrando as partes da gosma no chão, formando um triângulo.
Ele murmurou um feitiço e, das fatias gosmentas, labaredas surgiram, formando um círculo violeta no ar. Um vulto apareceu no meio do fogo e Veryna sentiu o sangue
ferver ao reconhecer o semblante magro e sem cabelos de Volgo. Seu rosto subia e descia no ar, como se ele estivesse flutuando. Atrás dele, apenas o céu matutino.
— Olá, grã-chefe! — A voz era poderosa, mas mesmo assim Veryna não se intimidou.
— Você tentou me matar! — ela vociferou. — Depois de tantos anos ajudando você e aquele maldito Bemor, o que eu recebo em troca? Uma sentença de morte?
— Acalme-se — Volgo retrucou, com o olhar frio de quem já havia enfrentado muito mais do que ameaças de uma mulher enraivecida. — Aquilo foi um acidente.
— Um acidente? Era isso que vocês queriam que parecesse? Um simples acidente? Mais uma morte na conta de radicais que nem existem!
Veryna golpeou com o bastão as labaredas, mas o gesto apenas fez a imagem tremer por alguns instantes. Irada, pensou em todos os anos de sacrifícios, em todas as
manipulações e conchavos, nos assassinatos e em tudo o que fizera com Bemor Caed para garantir que as coisas ocorressem conforme o planejado. Tudo em prol da guerra
que se aproximava.
— Eu já lhe disse que foi um acidente — Volgo reforçou. — Você estava no lugar errado e na hora errada.
— Seu dund maldito! Olhe bem o que fez comigo! — ela explodiu, virando-se de costas e mostrando as marcas horríveis para Volgo. — Veja bem o que o seu erro me custou!
O mago não se abalou. Ele já havia visto, e até mesmo provocado, ferimentos piores que aqueles em sua longa jornada.
— Encare como um sacrifício justo para que você tenha o que quer — foi a resposta do feiticeiro. — Ou será que terei de encontrar outra pessoa para terminar o seu
serviço?
Veryna bufou de raiva. O mago tinha razão. Grandes conquistas requerem grandes sacrifícios. Apesar da pele retorcida e queimada, o que mais a afligia não era a dor
física, mas a ferida em seu moral, em seu orgulho. A barbatana, seu símbolo pessoal de grandeza, fora totalmente destruída pela explosão. Mas, se o custo para conseguir
o que queria era esse, talvez não fosse um preço caro demais, afinal.
Ela se acalmou e encarou Volgo.
— Não será necessário — disse, séria. — Eu comecei e eu mesma vou terminar.
Seus olhos não estavam mais espremidos de raiva. Agora, estavam afinados pela cobiça.
— Ótimo! — disse o homem careca, com sua imagem flutuando.
— E quando começamos? — ela perguntou, sustentando o olhar contra o feiticeiro.
— Agora mesmo! — o feiticeiro respondeu, esboçando um breve sorriso.
Veryna também sorriu, satisfeita. Há anos estava esperando por aquilo e, finalmente, o momento havia chegado.
A imagem de Volgo se deformou e o fogo lilás se dissipou no quarto.
Veryna puxou o pijama para cima, cobrindo o busto firme, satisfeita com o resto do plano. Ela sabia que grandes conquistas requerem grandes sacrifícios.
— SITTIRS!** — ela gritou, levantando-se da cama e jogando o bastão sobre o travesseiro.
Mal terminou de falar, e dois soldados surgiram na porta, com bastões em punho. As orelhas, com uma das duas pontas cortadas, denunciavam que eram da Guarda Azul.
Tempestuoso, em silêncio, apenas olhou os dois brutamontes, vestidos com vestes metálicas negras, com uma faixa azul na cintura. O capitão os reconheceu de imediato.
Não pelo rosto, mas pelos olhos amarelados, antinaturais.
Veryna se aproximou dos dois guardas e os encarou com orgulho.
— Está na hora — Veryna disse, colocando as mãos sobre o ombro de cada um deles. Os dois ficaram rígidos como pedra e encararam sua superior com respeito. — Yur-Aador,
Tad-Uhra — ela os chamou pelo nome. — Vocês serão o fogo que iluminará a noite escura e o vento que varrerá a névoa da perdição que paira sobre o nosso povo. Eu,
em nome de todo o nosso planeta, lhes agradeço pelo que farão.
Os soldados nada responderam. Os olhos amarelados ficaram marejados, não por medo, mas por orgulho de serem os escolhidos para tamanha glória em As-Tanys.
Veryna suspirou profundamente e sorriu para os soldados. Em seguida, fez um sinal para o capitão Tempestuoso.
Dos olhos cinzentos do jovem capitão, uma nuvem cinzenta e trovejante surgiu, envolvendo-o por completo e se esticando como uma cobra flutuante. A fumaça se transformou
em um redemoinho agitado, que se esgueirou janela afora, levando consigo o capitão e a grã-chefe.
Os soldados olharam um para o outro e fizeram um gesto com as mãos, em sinal de respeito mútuo.
Era chegada a hora.
Notas
* Termo pejorativo que significa “canalha” ou “farsante”, em kin’nita. Sinônimo também de “animal” ou “besta”.
** Título usado pela Guarda Azul. Sem tradução para a língua comum.
Pacha Minara
Kullat voava rapidamente com Nahra nos braços. Suas reservas de energia não diminuíam, resultado da energia de Seath, que ressoava harmonicamente em seu corpo.
Os dois Senhores de Castelo deslizavam pelo céu da cidade, passando por cima de casas, ruas e prédios comerciais. Fumaça e vapor subiam por tubulações escuras no
topo das construções, parecendo cobras nebulosas iluminadas pelo belo sol matutino. Ainda que a fumaça e o vapor dificultassem a visão de Kullat, ele olhava atentamente
para as ruas, tentando encontrar Thagir. A possibilidade de avistá-lo era pequena, mas o cavaleiro não conseguia evitar de tentar.
Sua atenção foi quebrada quando Nahra sinalizou para a frente, apontando para a Torre Corilus. A construção era como uma máquina viva, cujas entranhas subterrâneas
rugiam, bombeando água superaquecida para a barreira fusiva, quilômetros adiante, no mar entre as duas nações. No topo, fumaça negra e colunas de vapor se espalhavam
pelo céu, o que a tornava semelhante a uma árvore frondosa, plantada em um jardim de pequenas construções fumegantes.
— Será que não deveríamos avisar a Veryna que existem traidores entre os seus guardas? — ela disse.
Kullat olhou para o prédio, pensativo. Eles não podiam perder tempo, mas ele não poderia simplesmente abandonar Veryna à própria sorte.
— Você tem razão. É melhor avisarmos a ela sobre o que descobrimos — disse Kullat.
Por muito pouco, não flagraram a nuvem tempestuosa saindo de um dos quartos, deixando dois soldados caídos no chão. Os corpos, negros como piche, pulsavam, e, da
boca, intensos fachos de luz negra jorraram, gerando duas massas escuras e disformes.
Alheio ao perigo que corriam, Kullat acelerou o voo, aproximando-se ainda mais da construção. Mas uma violenta explosão, seguida por outra de igual intensidade,
devastou o meio da Torre Corilus. Um barulho ensurdecedor, como se os próprios deuses estivessem quebrando correntes dentro da torre, ecoou pelas ruas de Corilus.
Labaredas e destroços foram lançados em jatos fervescentes em todas as direções, espalhando-se com rapidez e dividindo o prédio ao meio.
Instintivamente, o cavaleiro voou para baixo, conseguindo desviar da onda inicial de destruição. Porém, mesmo fazendo uma manobra rápida, a segunda onda de choque
os atingiu em pleno voo. Surpreso, Kullat os envolveu num casulo energético um instante antes de serem consumidos pela massa de fogo e detritos.
O cavaleiro sentiu o baque, sendo arremessado para baixo com força e chocando-se contra um autovapor coletivo que passava por ali. O impacto foi tanto que Nahra
foi arrancada de seus braços e arremessada para longe. Num ato de puro reflexo, ela virou o corpo em pleno ar e rolou ao tocar o chão, esfolando braços e pernas
contra o pavimento duro.
Vários kynianos corriam para longe, enquanto outros olhavam para cima, abismados. Mulheres desesperadas gritavam, e crianças choravam dentro do autovapor no qual
Kullat se chocara. O cavaleiro se levantou, desorientado, cobrindo a boca para não inspirar a fumaça de um autovapor que se incendiara a poucos metros dali. Olhou
ao redor, procurando Nahra, mas a poeira e a fumaça lhe atrapalhavam a visão.
Em meio àquela desordem, viu um casal com duas crianças correndo pela rua, quando um desmoronamento de estilhaços despencou sobre eles. Kullat saltou, voando como
uma flecha prateada, e lançou uma rajada fortíssima de energia mágica nos detritos, espalhando pedregulhos e poeira. Diante da morte iminente, o kyniano ficou paralisado
ao lado da esposa que, caída e agarrada às crianças, chorava desesperadamente.
Kullat pousou ao lado dela, pegou uma das meninas no colo e ajudou a kyniana a se levantar. Como se acordasse de um pesadelo, o pai foi tomado por uma fúria repentina.
Ele arrancou a criança do cavaleiro e, segurando a mão da outra menina, gritou com a esposa e correu para longe.
— DISPONHAM! — Kullat gritou, ao ver a mulher correr atrás do marido.
Choro, gritos e destruição cercavam a torre em chamas. O cavaleiro levantou voo e começou a procurar por alguém mais que precisasse de ajuda. Mas uma voz familiar,
vinda da direita, chamou sua atenção. Não muito longe, reconheceu a companheira pela cauda lupina, que balançava enquanto ela corria para longe. Ele acelerou o voo
e pousou ao lado da licana, no momento em que ela largou uma senhora no chão. A kyniana, de barbatana transparente e flácida, gritava histericamente, ensandecida
pela tragédia. Kullat segurou Nahra pelo braço e a conduziu para longe da mulher que, apesar de já estar salva, não parava de gritar.
A castelar tinha apenas arranhões e pequenos cortes. Os dois pararam ao lado de uma árvore, cujas folhas estavam esbranquiçadas pela poeira dos destroços, e olharam
para a Torre Corilus.
A edificação ardia, consumida rapidamente pelo fogo. As chamas avançavam depressa, engolindo muitos andares e expelindo fumaça. As janelas dos andares superiores
estavam estraçalhadas. Concreto, chapas de metal e pedaços enormes da fachada haviam desabado. Na base do prédio, kynianos comuns se misturavam a soldados, que saíam
correndo de dentro da torre.
Sirenes estridentes soaram ao longe e vários autovapores da polícia local, com as insígnias dos Treze Distritos, surgiram soltando vapor e fumaça. Dois veículos
cilíndricos enormes, que Kullat entendeu ser dois controla-fogos, aproximaram-se rapidamente. Vários kynianos, vestidos com roupas azuis, saltaram dos veículos,
desenrolaram tubos flexíveis e começaram a lançar jatos concentrados de espuma nos andares inferiores da torre, tentando conter as labaredas mortais.
A guarda isolou uma área grande ao redor da torre, fazendo todos saírem de suas casas e lojas. Kullat e Nahra foram afastados por um guarda gordo e mal-encarado,
que os obrigou a seguir o fluxo de pessoas para longe da construção. Ambos estavam desolados, pois, mesmo que pudessem ajudar, seriam de pouco auxílio diante da
extensão da catástrofe que presenciavam.
— Pacha Minara! — Santa Mãe!, Nahra gritou em licano, clamando pela Mãe de Todos e escondendo o rosto no peito de Kullat, como se aquilo pudesse apagar a cena horrenda
de sua memória.
Desesperados, alguns kynianos começaram a saltar do alto da torre em chamas, preferindo morrer na queda a perder a vida em meio ao fogo. Espantado, Kullat flexionou
os joelhos para saltar e voar — mesmo que ele não conseguisse salvar a todos, se pelo menos uma pessoa sobrevivesse, seu esforço não teria sido em vão.
Contudo, antes de alçar voo, seu corpo ficou paralisado de horror. Um ronco ensurdecedor e um tremor terrível antecedeu a catástrofe. Os andares inferiores cederam,
e a torre ruiu. Como um castelo de cartas, o prédio entrou em colapso, desabando andar sobre andar, numa velocidade inacreditável.
A multidão voltou a correr, empurrando uns aos outros, tropeçando e caindo no meio da rua. Gritos desesperados de espanto e terror se misturavam ao som ensurdecedor
da torre desmoronando. Nahra e Kullat começaram a correr e a gritar para que as pessoas se apressassem, mas suas vozes eram sobrepujadas pelo estrondo contínuo da
torre que caía.
A onda espessa de poeira e detritos os atingiu com uma força brutal, uma verdadeira avalanche de destruição e morte.
O Despertar do Monstro
Mesmo afastado, no alto do morro perto da praia, Thagir sentiu as vibrações causadas pelo peso descomunal da queda da Torre Corilus. Em um instante, o prédio se
tornara uma coluna de fogo, e, no seguinte, a torre simplesmente não existia mais.
Com a visão aguçada pelo bracelete mágico, o pistoleiro viu a expressão de espanto no rosto dos soldados abaixo, confusos com o que estava acontecendo. Um alarme
começou a soar na praia, seguido de vários outros ao longo do litoral.
Ainda com a magia do Coração de Thandur acionada, viu, espantado, a barreira fusiva, antes um paredão intransponível, reduzir-se a pequenos jatos de vapor, erráticos
e espasmódicos.
— A barreira caiu! — exclamou para si mesmo ao ver o último jato de vapor se dissolver.
Thagir rapidamente analisou a tragédia. A torre havia sido destruída e o peso dos escombros soterrou as máquinas que alimentavam os difusores fusivos, interrompendo
o fluxo de água plasmática por completo. Seu raciocínio foi interrompido pela agitação que se instaurou nos soldados perto da praia.
Aquele último ato terrorista era um golpe que eles não suportariam calados, uma afronta direta contra toda a nação, que transformou o símbolo de seu reino em ruínas,
derrubou sua maior defesa, expôs suas casas ao perigo e fez transbordar o ódio contra os maatianos. Como uma correnteza de corpos raivosos, os soltados largaram
as bandeiras azuis da paz e avançaram furiosamente em direção à ponte de corais vermelhos. No mar, os navios manobraram ofensivamente, enquanto os ciclovotores,
em formações de ataque, se lançaram em direção à ilha.
Thagir ligou a ciclomoto e acelerou, descendo pela parte menos íngreme do morro. Com velocidade, seguiu o fluxo de soldados que se dirigiam à batalha.
A oportunidade de continuar com sua vingança havia surgido e ele não queria desperdiçá-la.
Draak assistiu, incrédulo, à proteção de água superaquecida desaparecer por completo. Rapidamente voltou a atenção para seus soldados, que, tensos, aguardavam suas
ordens.
Ele comandou que todos mantivessem suas posições. Por alguns instantes, os dois exércitos ficaram estagnados. Mas a roda do tempo voltou a girar, mais furiosa do
que nunca. O exército continental se transformou em uma horda descontrolada, que invadiu a faixa de terreno neutro, brandindo suas armas enquanto gritava e disparava
contra os maatianos. Draak suspirou com tristeza, pois seu pior pesadelo se tornara realidade.
Sem saída, brandiu os braços, liberando seus irmãos para que defendessem a pátria amada. Os exércitos se chocaram com uma violência impiedosa e, em poucos instantes,
centenas de vidas foram perdidas.
O monstro da guerra havia despertado.
Revelação Sofrida
Quando a avalanche de destroços os atingiu, Kullat agarrou Nahra e a protegeu com o próprio corpo. Era impossível ver mais que alguns passos adiante. A nuvem de
poeira era como um vidro sujo que impedia qualquer visão. Kullat liberou Nahra de seus braços e, sem baixar o campo de força, fez um movimento com as mãos, lançando
uma bolha suave de energia mágica ao redor deles, que afastou a poeira levemente.
Por fim, eles conseguiram ver as pessoas correndo para longe. Algumas solitárias, outras em grupos tumultuados, mas todas eram semelhantes a fantasmas, cobertos
de cima a baixo pela poeira esbranquiçada. Dois kynianos passaram, carregando um terceiro nos braços. Outro estava sentado imóvel sobre uma lata de lixo, como uma
escultura de pó prestes a se desfazer. No meio da rua, um casal jovem estava abraçado, ela chorando com o rosto encostado no peito dele. Dentro de um veículo, o
choro de um bebê se misturava ao choro de uma mulher, mas não era possível vê-los, pois o autovapor estava coberto com uma grossa camada de poeira.
Kullat e Nahra começaram a andar sem saber exatamente o que fazer ou como ajudar. Nem eles estavam preparados para uma catástrofe tão grande. Vinda de trás, uma
criança kyniana passou correndo e chorando, sumindo no meio da nuvem de poeira alguns passos adiante. Nahra fez menção de segui-la.
— Nahra, não! — Kullat gritou, apertando-lhe o braço.
Instintivamente ela se virou, exibiu os dentes pontiagudos e golpeou com as garras negras o antebraço de Kullat, abrindo-lhe dois rasgos na pele.
— Temos que ajudar aquela menina! — exclamou, olhando para os lados, abalada diante da destruição que os cercava. — Temos que... temos que...
Ela queria continuar, mas sua voz ficou embargada. Então abaixou a cabeça, colocou as mãos sobre os olhos e começou a chorar. Sem se importar com seu ferimento,
Kullat a abraçou. Ele também queria ajudar, mas sabia que eles precisavam seguir adiante. A bússola mental de Seath latejava em sua cabeça, mantendo o foco naquilo
que era mais importante.
— Nós temos que ir agora — ele disse, triste, o sangue encharcando as faixas brancas.
Sem se afastar do abraço, ela apenas balançou a cabeça, concordando. Ele retirou seu manto e o colocou sobre ela, como se a envolvesse em uma carapaça de segurança,
isolando-a da infelicidade e afastando dela todo o mal. Com carinho, ele a pegou novamente no colo e expandiu sua proteção natural, envolvendo-a também.
— Seu braço... Me desculpe... — ela suspirou, abraçando o pescoço de Kullat.
— Não se preocupe — ele respondeu, dando um suave beijo no rosto da amiga.
Então se lançou no ar, deixando um redemoinho em seu rastro e afastando-se da gigantesca coluna de poeira, que subia alto no céu e se espalhava pela cidade. O cavaleiro
subiu mais e mais, sentindo o calor dos raios solares cada vez mais fortes, até ultrapassar a nuvem de pó.
No céu, suspirou pesarosamente ao ver que, além da tragédia abaixo, o caos se espalhara pelos recifes rubros que uniam o continente à ilha.
Um esquadrão de ciclovotores passou acima deles, atacando um grupo de dragões que invadiram o espaço aéreo do continente.
O cavaleiro subiu ainda mais, para passar por cima da batalha. De cima, viram grupos de dragões cuspindo jatos flamejantes enquanto seus pilotos atiravam projéteis
explosivos. Para combatê-los, ciclovotores disparavam incessantemente, ferindo e matando sem piedade. Na terra e no mar, máquinas e naus de guerra continentais enfrentavam
as forças terrestres e marítimas do exército maatiano.
Em seu coração, Kullat sentiu que fracassara. Era uma revelação sofrida saber que, apesar de todos os seus esforços, ele havia falhado.
Desolação e Desespero
Tanques bombardeavam navios de guerra, que contra-atacavam com canhões barulhentos e devastadores. Pedaços de terra voavam nos soldados próximos do porto, que apertavam
os gatilhos de suas armas com um misto de medo e ódio. No campo de batalha, soldados maatianos transformados voavam em formação, fazendo rasantes, agarrando os soldados
inimigos e esmagando-os com um aperto brutal, antes de lançá-los de volta ao solo.
No centro da batalha, Draak lutava. Por toda a sua volta, a guerra rugia e castigava, ceifando vidas com rapidez. Ele mesmo, naquele pequeno espaço de tempo, com
um girar de arma, contabilizou mais uma dívida em sua alma.
Seus soldados, bem treinados, formavam três linhas de defesa, conseguindo demarcar um pequeno espaço entre eles e a maior parte do exército inimigo. Draak estava
pesaroso pelas mortes, mas também se sentia orgulhoso pelos seus irmãos de luta que, mesmo em menor número, demonstravam uma enorme vontade de defender sua terra.
Analisando o campo de batalha, o castelar tentou prever qual seria o próximo movimento do exército adversário. Ao longe, atrás das formações inimigas, soldados kynianos
estavam sendo lançados para o alto e para os lados, como se algo abrisse caminho entre eles. Surpreso, Draak viu um grupo inteiro de soldados ser lançado ao ar,
deixando à mostra uma ciclomoto, com uma só roda, pilotada por um Thagir ensandecido.
O pistoleiro abria espaço sem tocar em ninguém, como se o próprio ar empurrasse qualquer um que estivesse em seu caminho. O espanto de Draak foi tão grande que ele
não conseguiu reagir a tempo e vários de seus companheiros dispararam contra o pistoleiro. Projéteis e bombas de estilhaço foram lançados, mas, tal qual os soldados,
eles também desviavam da frente do pistoleiro, repelidos por alguma coisa que o protegia.
Thagir acelerou, desviando dos grandes animais terrestres maatianos e, ignorando completamente os soldados, partiu para cima deles como se não existissem. A primeira
linha defensória foi lançada ao ar rapidamente, deixando vários combatentes caídos pelo caminho. A segunda linha também foi vencida com a mesma facilidade, e nem
mesmo uma chuva de metal foi suficiente para atingir o pistoleiro.
Um dragão voou sobre ele e lançou uma enorme língua de fogo líquido. Mas as chamas nem sequer chegaram perto, e a ciclomoto avançou imperturbável por dentro do túnel
de fogo que se formou ao seu redor. Confiante de que o cinto de repulsão dinâmica continuaria funcionando, Thagir acelerou ainda mais, quebrando a terceira e última
linha de defesa com a mesma facilidade, avançando diretamente para Draak.
Virando o comando do veículo, Thagir fez a ciclomoto deslizar lateralmente, parando um pouco antes de alcançar o castelar maatiano. Mesmo de longe, Draak sentiu
uma força invisível o empurrar para trás, obrigando-o a recuar dois passos. Conforme o veículo desacelerou, a força diminuiu, até que o pistoleiro parou ao seu lado.
Alguns soldados se aproximaram, atirando contra Thagir, mas os projéteis simplesmente ficavam lentos e paravam no ar, caindo inertes antes de atingirem o pistoleiro.
Draak fez sinal para que todos parassem.
— O que você pensa que está fazendo? — Draak questionou, pasmo. — Estamos no meio de uma guerra!
— Onde está o Bemor? — Thagir perguntou alto, com os olhos injetados.
Um dragão pousou ao lado deles, com seus dois cavaleiros apontando as armas para Thagir, aguardando as ordens de Draak. O pistoleiro continuou inabalável.
— Mas que história é essa? — Draak deu um passo à frente, aproximando-se da ciclomoto. Então sentiu uma leve pressão contrária no ar ao fazer isso. Thagir desceu
do veículo, com uma fúria selvagem nos olhos, e a pressão aumentou.
— Ou me diz logo onde ele está — Thagir vociferou, com o dedo em riste —, ou eu arranco isso de você!
— Você está passando dos limites, amigo! — Draak disse, devolvendo o olhar duro para o pistoleiro.
Um ciclovotor passou voando, em chamas, e se jogou sobre um navio maatiano. Draak viu, horrorizado, ambos os veículos se transformarem em uma enorme bola de fogo.
— Se isso fizer você sair daqui, então ótimo! — exclamou, levando a enorme mão de garras para trás, em direção a Makrao Maat. — Ele foi para o santuário com todos
os outros ministros. Agora, saia logo daqui!
Thagir o encarou, pensativo. Se o ministro estava no tal santuário, ele precisaria de um guia.
— Eu vou. Mas você vem comigo. — O pistoleiro apontou para a ciclomoto, indicando que Draak subisse nela. — Preciso que me leve até lá!
— O quê? — Draak respondeu, perplexo, mostrando, com os braços estendidos, o cenário onde se desenrolava a batalha. — Eu não posso abandonar os meus soldados!
Thagir retirou um pergaminho dobrado de dentro da casaca e o estendeu para o castelar.
— Isso não é um pedido. É uma ordem!
Draak olhou para o papel. Era o pergaminho contendo as assinaturas de Kullat, Cyrvil e dele mesmo, e que nomeavam Thagir como Daijin. Com aquele documento, ele era
obrigado a seguir as ordens do pistoleiro. Draak respirou fundo, arrependido de ter concordado em dar ao pistoleiro um título tão importante, o que agora o colocava
em uma situação muito delicada.
— Eu não posso! — Draak disse, entredentes, devolvendo o papel com rispidez.
Thagir se aproximou ainda mais e olhou para cima, quase encostando o rosto na face do enorme castelar dragão. A pressão continuou, e, apesar da brutal diferença
de tamanho e força, o pistoleiro não demonstrou nenhum sinal de medo.
— Se me desobedecer — Thagir disse, incisivo —, estará quebrando o juramento da Ordem. E você sabe o que isso significa.
Draak devolveu o olhar duro para Thagir.
— Mesmo com esse papel, você não representa a Ordem! E eu não vou abandonar os meus homens! — Draak estava tão perto que Thagir sentiu seu hálito quente.
Em alerta, os soldados se mantiveram de arma em punho, com o pistoleiro na mira. A curta distância dele, o dragão estava pronto para atacar. O pistoleiro deu dois
passos para trás, indiferente à carnificina da guerra que os cercava, e girou a fivela do cinto em duas voltas completas. Draak sentiu o ambiente ao redor ficar
pesado, como se o ar tivesse ficado gelatinoso. Os soldados e o dragão ao lado sentiram o mesmo efeito e ficaram mais lentos, brigando contra a resistência invisível
gerada pelo cinto de Thagir.
— Essa é sua última chance... — Thagir vociferou, entredentes.
— Eu já disse — Draak fechou o punho de garras com força. — Eu não vou abandonar meus homens!
Com raiva no olhar, o pistoleiro estendeu o papel com sua nomeação de Daijin e encarou Draak com frieza.
— Você não me deixa escolha!
— Espere! — Draak gritou, sentindo a resistência do ar ao redor.
— Dan Draak lotulo cade ed a hotan! — Thagir exclamou, com uma voz imperiosa.
O papel emitiu um brilho amarelado, e Draak sentiu a tatuagem fantasma vacilar e o corpo ficar dormente, dominado pela força do Arehm, o juramento sagrado da Ordem
dos Senhores de Castelo.
— Hotan ed cadar — Draak se obrigou a responder.
— Eu, Thagir Idrarig, Daijin deste reino, invoco o décimo terceiro dia. Diante do Arehm, ordeno que obedeça a meu comando... ou arque com as consequências!
O castelar dragão arregalou os olhos. O encanto de Arehm só o deixaria se mexer quando ele fizesse sua escolha. Renunciar à ordem de um Daijin era o mesmo que ir
contra a própria Ordem. Mas, se acatasse o comando de Thagir, estaria voltando as costas para todos os seus soldados, no momento em que eles mais precisavam dele.
Indiferente ao seu olhar desesperado, Thagir continuava a encará-lo, esperando a resposta. Olhando em volta, Draak viu seus irmãos dando a vida em nome de seu lar,
lutando furiosamente para manter os inimigos longe, defendendo seus ideais — os ideais de Seath e da Verdade.
— Eu... — Draak vacilou por um momento, mas, em seu íntimo, sabia o que tinha de fazer — ... eu arcarei com as consequências!
Ao declarar sua decisão, o encantamento se dissipou instantaneamente. O castelar dragão sentiu seu corpo voltar ao normal num piscar de olhos. Tão logo recuperou
o controle corporal, Draak liberou toda a sua raiva em um soco enfurecido contra o pistoleiro. Mas uma força invisível, com a mesma intensidade, frenou o golpe.
Thagir sequer se moveu, enquanto Draak forçava o punho contra seu rosto.
Thagir vs Draak nos corais de Kynis
— Você escolheu errado — Thagir disse e, com um soco certeiro, atingiu o rosto do castelar com força.
Draak sentiu a violência do golpe, que abriu um rasgo em seu lábio inferior. Antes que pudesse se recobrar, sentiu algo estourar em seu peito, fazendo-o cair de
joelhos ao chão. Era um líquido viscoso, que se espalhou e endureceu rapidamente, impedindo-o de abrir os braços e as asas. Thagir viu, satisfeito, que a bola azulada
que ele usava para caçar charcas havia conseguido deter o maatiano transformado.
Os soldados reagiram imediatamente, disparando contra o pistoleiro. E, de novo, nada o atingiu. O dragão tentou avançar sobre Thagir, mas, ao sentir uma forte resistência,
também não conseguiu atacar.
Draak fez força, tentando abrir os braços, e a substância começou a soltar filetes gelatinosos e se rompeu. Sem sentir o efeito analgésico da rede, Draak pressionou
ainda mais os braços e, com um urro, partiu uma parte da estranha prisão e liberou um braço. Atento aos movimentos do maatiano, Thagir o golpeou novamente, atingindo
seu rosto com força e abrindo ainda mais o lábio já machucado. Atordoado, Draak caiu, com a mão livre sobre o rosto ferido.
À sua volta, os soldados e o dragão ficaram ensandecidos e tentaram se aproximar. Mas, quanto mais tentavam, maior era a resistência que os impedia. Era como se
estivessem mergulhados em um pântano invisível.
— Você está louco? Estamos no meio de uma guerra! — Draak exclamou.
— Guerra? — Thagir meneou a cabeça. — Isto não é uma guerra! É uma armação! Não passa de uma distração para tirar o foco do que realmente está acontecendo!
A reação de Draak foi explosiva.
— Uma farsa? Meus irmãos estão morrendo, e não há nenhuma mentira nessas mortes. O que foi que aconteceu com você? — perguntou Draak, tentando entender a fúria do
pistoleiro.
Thagir aproximou-se, sacando uma faca de cabo grosso e lâmina esverdeada.
— O que aconteceu? — Além da pressão do ar, resultante do movimento do pistoleiro, Draak sentiu também o frio toque do aço verde em sua garganta enquanto Thagir
vociferava. — Kullat está morto! Foi isso o que aconteceu! — E, ao dizer o nome do amigo, Thagir fechou o punho com raiva, apertando a lâmina ainda mais contra a
pele escamosa de Draak. — E eu vou levar a minha justiça aos culpados!
Draak piscou desorientado, sem acreditar.
— Não é possível!
Uma enorme explosão ocorreu não muito longe, mas nenhum dos dois deu importância. O dragão que estava perto deles cabeceou, tentando se aproximar, mas a força invisível
o impediu.
— Não é possível? — Thagir bufou. — Olhe ao redor. Eles foram iludidos, assim como você. Aquele maldito Volgo e o seu ministro estão por trás de tudo. Eu aposto
a minha vida nisso!
— Mas... — Draak começou a sentir sua convicção se abalar. — Por que eles fariam isso?
— Responda você! — exclamou Thagir, afastando a faca do gigante enredado.
Draak refletiu por um momento: O que seria tão importante a ponto de valer a pena colocar duas nações inteiras em guerra?
Um calafrio lhe percorreu o estômago e subiu até a garganta.
— Eles querem entrar no santuário! — A conclusão se firmou na mente do maatiano como uma marca de ferro quente. — Eles querem a magia de Chuilong!
Outra explosão levantou areia e recife, quase acertando o pequeno grupo de soldados que rodeavam Thagir e Draak. Um dragão aquático lançou um jato fervente de líquido
opaco, que derreteu o pequeno barco inimigo que havia efetuado o disparo.
— Bem-vindo ao mundo real! — Thagir declarou, com uma expressão dura no olhar.
Pela primeira vez na vida, Draak se sentiu perdido. Ele, um elfi-dragão dos mais fortes, o senhor dos exércitos de Makrao Maat e um Senhor de Castelo poderoso, havia
se deixado enganar como uma criança. O som de rajadas de uma bateria antiaérea antecipou uma explosão no céu, acima deles.
— Tudo está perdido... — Draak disse, sentindo a desolação e o desespero dominarem sua alma.
— Não, ainda não! Nós ainda podemos acabar com esta guerra.
Vingança Carregada
Draak suspirou, arrasado. À sua volta, alguns soldados ainda tentavam se aproximar, sendo impedidos pela força invisível do cinto de Thagir. Draak meneou a cabeça,
arrasado pelas vidas perdidas em vão, em uma guerra sem sentido. Companheiros ou inimigos, eram apenas peças de um jogo, de que ambos os lados sairiam perdedores.
Sua mente militar analisou rapidamente as opções: se seus homens desistissem ou recuassem, os continentais invadiriam a ilha, e tudo pelo que os maatianos lutaram
seria relegado ao esquecimento. Mesmo contrariado, a única chance era o exército de Makrao Maat resistir nos recifes vermelhos. Só assim eles garantiriam que sua
cultura e seu povo sobreviveriam. Mesmo não querendo abandonar seus homens, ele sabia que era aquilo que precisava fazer para salvar o rei e acabar com a guerra.
Thagir sacudiu a faca à sua frente, trazendo-o de volta à realidade.
— Vai ficar aí parado?
Com a mão livre, Draak afastou a faca com um gesto brusco.
— Não preciso disso, Daijin! — disse rispidamente, enfatizando com desdém o título do pistoleiro, enquanto forçava o corpo musculoso para cima.
Com um urro, arrebentou as amarras e, levantando-se, postou-se em frente ao pistoleiro, encarando-o com seriedade. Apesar da desproporcional vantagem corporal de
Draak, Thagir não se intimidou.
— Vai querer brigar de novo, ou podemos ir salvar seu rei? — Thagir perguntou, guardando com displicência a faca em uma bainha no cinto.
Draak queria socar Thagir, mas sabia que seu golpe seria paralisado em pleno ar, graças à proteção do pistoleiro. Mesmo relutante, deu as costas para ele e viu que
os soldados e o dragão ao redor estavam exaustos de tanto forçar aproximação. Ao longe, soldados maatianos corriam freneticamente, reforçando a frente de batalha.
— Vamos salvar o rei — Draak disse, com resignação.
Thagir girou a fivela em sentido contrário, duas voltas e meia, reduzindo sua proteção para não mais do que alguns dedos ao seu redor. Livres, os soldados avançaram
com fúria contra o pistoleiro, mas Draak fez um sinal para que todos parassem e, aproximando-se do dragão, alisou a cabeça do animal com carinho.
Em kin’nita, Draak falou com os soldados. Um deles, com uma faixa amarela pintada no capacete, deu um passo à frente, argumentando firme, mesmo que respeitosamente.
Draak falou com tristeza, mas categórico, e todos em volta assentiram. Em seguida, disse algo para os dois cavaleiros, que imediatamente desceram do dragão.
Mesmo sem compreender a língua, Thagir entendeu que aquela seria sua montaria e também a forma como sua vingança seria carregada.
Trinta Passos
Ancaro’Mar, uma oficial elfi-dragão da guarda real, apareceu afobada à porta da tenda real. A barbatana elegante estava encoberta pelo capacete de batalhas, que
combinava com a cota de malha prateada que lhe cobria o peito e a cintura. Finalizando o figurino de guerra, no cinto de couro fino, levava uma adaga de lâmina dupla
belamente trabalhada.
Os olhos estreitos e escuros, emoldurados pelo rosto delicado, sentiram a diferença da luminosidade, que estava bem reduzida na tenda. Em kin’nita, pediu permissão
para entrar e foi prontamente autorizada pelo rei, que permanecia sentado na mesma poltrona em que passara a noite.
— Majestade — sua voz cristalina estava repleta de ansiedade —, a comitiva está chegando!
Os raios cálidos do sol da manhã refletiram nos detalhes que ornavam a roupa real quando ele saiu da tenda. A soldada elfi-dragão apenas o seguiu.
— Traga-me o Domus — disse Behemut, pedindo o normaz real.
Ela disparou para buscar a montaria do rei, enquanto Behemut seguiu até a frente do pequeno templo e viu seus ministros, montados em normazes, encabeçando uma longa
fila de dragões-da-terra, veículos militares, carroções de ferro e centenas de maatianos.
A comitiva se agrupou na clareira diante do templo, formando uma aglomeração inesperada, já que o templo não comportaria todos de uma vez e também não havia espaço
suficiente dentro dos muros baixos de rocha.
Ancaro’Mar retornou, apressada, trazendo consigo um normaz imponente, com pelagem cor de areia vibrante. O animal resfolegou e, abrindo e fechando o bico lateralmente,
soltou dois estalos para chamar a atenção. O rei alisou a testa do magnífico animal e se lançou sobre ele. Em seguida, conduziu sua montaria até a comitiva, aproximando-se
dos ministros, cujas faces cansadas traziam os sinais da fatigante viagem.
Sem demora, informou que eles precisavam partir de imediato, rumo ao Vale Sagrado. Behemut fez seu normaz girar para o lado contrário e iniciou a nova peregrinação,
sendo seguido pela longa fileira de maatianos. Atrás dos ministros vinham carroças, e, depois delas, um grande grupo de maatianos seguia a pé.
Na aglomeração que se formou, dois maatianos sorrateiramente saíram da mata, juntando-se aos demais. Eram Volgo e Willroch que, envoltos em um feitiço ilusório,
tinham as vestes e a aparência mudadas para as de kynianos comuns. Willroch, com sua pele escura camuflada em um cinza escurecido pelo sol, parecia um maatiano agricultor.
Já Volgo, mesmo camuflado pela magia, continuava com a aparência magra de sempre e, no lugar da careca, havia uma crista baixa e semitransparente, típica de maatianos
mais idosos. Completando o disfarce senil, ele se apoiava em seu inseparável cajado.
— Será que ninguém vai desconfiar de nós? Afinal, ninguém nos conhece — Willroch sussurrou para Volgo, sem precisar se preocupar em esconder as mãos cheias de estilhaços
de ovo de manticore, graças à ilusão.
— Você acha que eu cometeria um erro básico como esse? — Volgo respondeu, ofendido. Então tirou alguns papéis do bolso e o mostrou sorrateiramente para Willroch.
— Bemor já providenciou nossos registros há algum tempo. Para todos os efeitos, somos auxiliares de campo do ministro.
Willroch deu de ombros, com a usual falta de interesse, e se calou, sem dar grande importância ao planejamento de Volgo ou à eficiência de Bemor. Sem mais conversa,
ambos acompanharam os demais pela estreita trilha, com o rei à frente, seguido pela guarda real, pelos ministros e pelos demais súditos maatianos.
Algum tempo depois, o fluxo de pessoas parou. À frente, Volgo viu o rei estancado entre duas altas colunas de pedra. Mesmo de longe, o velho mago conhecia aquele
portal, com suas escrituras já quase apagadas pelo tempo. Por incontáveis vezes no passado, Volgo ficara diante daquele portal, tentando decifrar seu segredo e transpor
a proteção mágica que impedia a passagem de qualquer um. Para quem soubesse o que procurar, e, principalmente, como ver, era possível distinguir uma fina camada
de magia tremulante em constante fluxo. Pequenas e quase imperceptíveis linhas transparentes brotavam da terra e se curvavam em pleno ar, até se encontrarem no céu,
formando um obstáculo intransponível.
A redoma inquebrantável, pensou Volgo, ao se lembrar da horrível sensação de ser repudiado ao tentar transpô-la, independentemente da direção da qual viesse — do
céu ou até de túneis debaixo da terra.
O rei se postou entre as colunas e, ajoelhando-se, pediu que Seath autorizasse sua passagem e de seus conterrâneos. Atrás dele, toda a comitiva o imitou, ajoelhando-se
e louvando ao Verdadeiro. Compenetrado em suas orações, Behemut começou a balançar o corpo para frente e para trás, como um pêndulo, e, abrindo os braços, apontou
as pequenas mãos para as colunas de pedra, misturando palavras em kin’nita com um cântico melódico, suave e cristalino. Ele cantou de olhos fechados, com as mãos
erguidas, até que as colunas perderam a cor e ficaram cinzentas como a pele dos maatianos, deixando à mostra escritos em kin’nita antigo, que pulsavam em amarelo.
O rei continuou cantando por algum tempo. À sua frente, o ar ficou trêmulo e duas linhas coloridas surgiram verticalmente, formando duas portas, que se abriram em
harmonia.
Ao ver o caminho livre à frente, Volgo sentiu um tremor de satisfação percorrer o corpo esquálido, quebrando sua concentração por um instante e fazendo sua magia
ilusória vacilar. Mas, rapidamente, revigorou o feitiço. Um formigar conhecido e o leve cansaço característico de quando canalizava sua magia pelo cajado voltaram
a se intensificar, e, diante da necessidade de focalizar o feitiço, aquela era a melhor forma de realizar a ilusão.
O rei se levantou, montou novamente em Domus e passou pelas portas mágicas. A passos lentos, a multidão seguiu o soberano por entre as duas colunas, com palavras
de espanto e agradecimento a Seath.
Ao se aproximar das pilastras, um misto de ansiedade e excitação percorreu o corpo de Volgo. Eram apenas trinta passos entre ele e o portal, e, à medida que chegava
mais perto, sua respiração ficava mais forte. A sensação de triunfo arrebatou seu coração, mas o velho feiticeiro a sufocou com tanta força que seu peito chegou
a doer. Não seria um sentimento como aquele que poria quase uma década de planejamento a perder.
Quando o último peregrino passou pelo portal, as portas se fecharam e a passagem foi novamente bloqueada. Dali, eles seguiriam para o santuário, descendo a serra
pela trilha de pedras, até chegar ao pé da montanha. Fariam duas paradas durante a viagem: a primeira, a cerca de três horas dali, contava com uma fonte de água
natural, onde poderiam reabastecer os cantis e fazer uma refeição. A segunda, duas horas depois, era um pequeno conjunto de árvores frutíferas, quase na base da
montanha, que forneceria sombra e alimento para a última parte da jornada. De lá, seguiriam mais algumas horas, até o local onde Chuilong estava.
Indiferentes ao caminho a ser trilhado, Volgo e Willroch diminuíram a velocidade da marcha, afastando-se da pequena multidão. Disfarçadamente, entraram por entre
as árvores e desapareceram na mata. Volgo levantou seu cajado e a magia ilusória sumiu.
Em instantes, o feiticeiro alçou voo e ganhou altura. Willroch flexionou as pernas e deu um salto. Suas mãos brilharam, e ele o seguiu.
Canção de Eine
Corning rolava os dukens de Thagir entre os dedos, sua última esperança de liberdade. A janela de vidro tinha um brilho azul-esverdeado, sinal de que o dia já havia
raiado e que a próxima refeição seria servida em pouco tempo. O Bobo roncava na cama quando Corning o chutou de leve.
— Até que enfim! — gritou o Bobo, levantando as mãos em um gesto atrapalhado. Ele arregalou os olhos e, meio perdido, reconheceu o companheiro. Então franziu a testa
em sinal de desaprovação ao perceber onde estava. — Você tinha que me acordar bem na hora da dança dos sapos?
— Por Hood, fale baixo! — murmurou o Ladrão.
Os dois homens sentaram-se e Corning ficou de costas para a porta da cela.
— A comida vai chegar logo. Temos que nos preparar.
— Você parece o mestre-capuz-branco... Só quer saber de comida, comida...
— Esqueça a comida. — O Ladrão mantinha a voz baixa. — O que importa é seguir com o plano.
— Plano... plano... — O Bobo fez uma careta, coçando os cabelos ruivos. — Que plano?
O Ladrão bufou, lançando um olhar frio para o Bobo. Apesar de o plano ter sido repassado até a exaustão na noite anterior, teve que repetir tudo novamente. Ele explicou
que uniria as partes do duken no momento em que o guarda entregasse a comida e jogaria a mistura explosiva na porta. Os dois se esconderiam atrás das camas, enquanto
o impacto da explosão abriria a tranca, jogando o guarda para longe. Então eles o renderiam e roubariam seu bastão, deixando-o inconsciente. Depois, arrebentariam
os comandos do elevador com o bastão e tentariam subir pelos dutos de ventilação. Se tivessem algum problema, ainda teriam o plano alternativo: escalar pelo cabo
do elevador até chegarem ao motor. De lá, achariam uma forma de sair, nem que tivessem de abrir caminho à força.
O Bobo assentiu, como se tivesse entendido. Mas, em seguida, meneou a cabeça negativamente, fazendo uma careta.
— Que complicado... Por que você não estoura a janela e a gente nada que nem peixinho? — o Bobo perguntou, fazendo das mãos barbatanas e se movendo como um peixe.
O Ladrão revirou os olhos, mas mesmo assim explicou o óbvio.
— Por dois motivos. Primeiro porque estamos tão fundo que morreríamos esmagados pela pressão ou perderíamos o fôlego antes de chegar à superfície. Segundo porque,
mesmo que sobrevivêssemos, estaríamos condenando os guardas e os outros prisioneiros à morte. Somos ladrões, não assassinos.
O Bobo colocou uma mão no queixo e, por alguns instantes, ficou em silêncio, pensativo. Até que balançou a cabeça afirmativamente.
— Sabe de uma coisa? — ele disse, apontando para o Ladrão com uma expressão séria. — Até que você não é tão burro quanto parece.
Corning estava para dar um tapa no amigo quando um barulho na porta da cela chamou sua atenção. O Ladrão praguejou baixinho ao ver, do lado de fora, Obac e mais
três soldados maatianos, em vez do único guarda que entregava a refeição matutina. Um deles chamou a atenção de Corning: era baixo, porém forte, e não carregava
nenhuma arma. Ele se aproximou das grades e olhou atentamente para os dois. O uniforme negro e a alta barbatana azul, decorada com metais, davam-lhe um ar superior
em relação aos outros guardas.
O Bobo se aproximou do ouvido do Ladrão.
— Não quer mesmo tentar a janela? — cochichou ao ouvido de Corning.
O Ladrão não respondeu, apenas olhou enfezado para o amigo, mantendo as peças do duken nas mãos, pronto para usá-las, se necessário.
O maatiano baixo perguntou algo em kin’nita para Obac, com os olhos escuros fixos nos prisioneiros. Obac apenas assentiu com a cabeça, mantendo o bastão elétrico
próximo ao corpo, em posição de alerta enquanto abria a cela. Os soldados entraram, com armas em punho. O Bobo berrou alguma coisa sobre doces, mas um tapa de um
dos soldados foi o incentivo perfeito para fazê-lo calar a boca. O Ladrão não reagiu quando eles o viraram e algemaram suas mãos.
— Ir! — ordenou Obac, em seu pobre uso da língua comum, empurrando o Ladrão em direção à porta aberta.
Quando ele e o Bobo finalmente saíram pelo pátio da prisão, sua pele ardia em contato com as algemas que pressionavam seus pulsos.
Um suor frio cobria a testa de Corning, molhando os cabelos castanhos. Ele pensou que, se tivesse com seu casaco, poderia tentar usar uma arma escondida no forro,
mas aquilo era impossível com o uniforme vermelho da prisão, já malcheiroso pelos dias de confinamento.
Empurrados pelos soldados, eles entraram em uma “panela sobre rodas”, do mesmo tipo que os trouxera até ali, dias atrás. O cheiro daquela era ainda pior, e a pequena
jaula estava ainda mais imunda que a anterior. A porta foi fechada com um tranco, e o Bobo se jogou sobre a pequena janela de trás, buscando por ar fresco.
Um dragão-da-terra de couro avermelhado estava deitado no chão, na frente da panela, e soltou um leve ronco e uma onda de fumaça pelas narinas. Ao seu lado, o barbatana
de metal discutia com Obac, em kin’nita. Parecia nervoso e gesticulava, como se dispensasse Obac, que, por sua vez, balançava a cabeça, em desacordo. Impaciente,
o barbatana de metal fez um movimento para pegar algo de dentro da jaqueta escura, e Corning viu, de relance, o cabo de uma faca escondida nas roupas negras. O maatiano
retirou um papel dobrado como uma carta e marcado com um selo amarelo e o estendeu a Obac, que quebrou o selo e percorreu os olhos sobre o papel.
— Haederkronede* Jainr, tra tra com jun op’arii — disse Obac, erguendo três dedos e indicando que a escolta precisaria ter três soldados.
Obac apontou para Jainr, como era chamado o barbatana de metal, depois para si mesmo e para outro soldado. Sem dar margem a discussão, guardou o papel no bolso e
subiu na parte da frente do transporte, fazendo a carroça ranger com o peso de sua armadura. Desgostoso, Jainr o seguiu, calado.
O outro soldado também subiu, sentando-se ao lado de Jainr, e sacudiu as rédeas, fazendo o dragão vermelho começar a puxar a gaiola de ferro.
Jainr assobiou uma estranha melodia, que pareceu familiar a Corning, mas ele não deu atenção. Antes, olhou para o Bobo, que resmungava algo e mexia nas algemas com
os dedos finos, indiferente ao medo do amigo.
O Ladrão cerrou os dentes. Usar o duken naquele momento faria mais estrago nele e no amigo do que nos adversários. A panela era pequena e estreita, e uma explosão
ali poderia matá-los.
Jainr virou para trás e, falando perfeitamente a língua comum, sussurrou algo para o Ladrão.
— As sombras passam pela lua...
A viagem seguiu pela estrada de terra batida. Para evitar o ar pestilento da prisão móvel, Corning permaneceu em pé, grudado à pequena janela gradeada.
A paisagem mudou, virando uma mistura de vegetação rasteira, arbustos e cipós finos. A prisão havia ficado para trás havia um bom tempo, e, à frente, uma enorme
floresta despontava, com árvores altas e pontudas, iluminadas pelo sol matutino.
Eles avançaram em silêncio, no ritmo lento da jaula-panela, até que a estrada invadiu a floresta, e as árvores, com galhos grossos cobertos de musgo, formaram uma
cobertura escura e assustadora.
— Herstohpper — disse Jainr abrindo um sorriso amarelo, após vencerem uma curva fechada. — Nir ú badem!
O soldado condutor riu da piada sobre a necessidade de “regar a natureza” e puxou as rédeas, fazendo o dragão parar com um solavanco.
Com um movimento rápido, Jainr sacou a adaga escondida e, com um golpe preciso, enterrou-a até o cabo no pescoço do pobre condutor. O guarda gritou de surpresa e
de dor, debatendo-se no assento e acertando um chute descontrolado em Jainr, que o fez se dobrar de dor. Apesar de surpreso, Obac sacou seu bastão da cintura e golpeou
a cabeça do agressor.
Faíscas ainda percorriam a barbatana azul, enquanto Jainr, desmaiado pelo golpe, caía pesadamente sobre o dragão. Assustado, o animal rugiu e disparou pela estrada.
O tranco fez Obac se desequilibrar e cair para o lado, batendo no chão com força.
Ao passar num enorme buraco, a carroça deu um solavanco, e o agonizante condutor foi lançado para fora, rolando na estrada e deixando um rastro de sangue no caminho.
Com o impacto, Corning deixou cair uma parte do duken. O pequeno botão correu de um lado para o outro no chão sujo, enquanto a carroça balançava incessantemente.
Alheio ao que se passava, o Bobo ria e jogava as pernas para o ar, em um movimento contorcionista.
Ao fazer uma curva, o dragão escorregou. Com a velocidade e a brusca mudança de rumo, a carroça ergueu uma das rodas e tombou de lado, batendo em uma árvore grossa.
O choque não foi muito grande, mas a parede de trás da jaula se abriu.
O dragão desapareceu estrada afora, arrastando apenas o engate de metal que o prendia à carroceria. Atordoado, Corning tentou se levantar. Ele não tinha nenhum ferimento
grave, mas suas costas estavam doloridas por causa da pancada.
— Não é hora de dormir, vossa ladronice — disse a voz infantil do Bobo, que sorria para ele, já do lado de fora.
— Cale a boca e me ajude logo a levantar! — o Ladrão respondeu.
O Bobo fez uma careta e ajudou o amigo a sair da panela quebrada. Do lado de fora, Corning percebeu que o amigo não tinha um único corte ou arranhão. Mas o que o
deixou realmente pasmo foi ver que o Bobo não estava algemado.
— Deixa isso comigo — disse o Bobo, mexendo nas algemas do amigo. — Incomoda, né? As minhas eu tirei lá atrás...
Com um clique, a pressão nos punhos cedeu e as algemas caíram no chão, deixando as mãos de Corning livres.
— Como é que você...
— Mágica! — o Bobo respondeu, com uma expressão seríssima no rosto. — Eu sou um grande feiticeiro, caso você não saiba.
Corning apenas riu do amigo. Ele não saberia explicar, nem se tivesse todo o tempo do Multiverso. A floresta era densa, e eles poderiam facilmente fugir por ali.
Nos destroços da jaula, procurou o botão que lhe escapara das mãos e, por sorte, o encontrou aparentemente intacto. Segurou o duken e sorriu. Estava livre, afinal.
Mas sua determinação fraquejou ao ouvir novamente a melodia que Jainr assoviou quando subiu na carroça. Aflito, Corning finalmente reconheceu a canção. Era a Canção
de Eine, a última coisa que os ladrões ouviam antes de morrer pelas mãos dos carrascos. Assustado, pulou da carroça tombada. Ao seu lado, o Bobo fez uma pose de
quem ia começar a correr, mas permaneceu parado, como se tivesse congelado.
— Vocês foram marcados pela Sombra. — A voz ecoou no tronco das árvores, vinda de todos os lugares. — Agora, vão morrer...
— Apareça logo. — Corning sentiu as pernas tremerem, mas a voz saiu firme. — Ou vai ser covarde e nos matar pelas costas?
Saindo de trás de uma árvore, Jainr apareceu. Tinha cortes no rosto e a crista estava chamuscada, mas era tão ameaçador quanto antes, segurando a adaga com que matara
o condutor. Abriu os lábios em um sorriso maníaco, encarando o Ladrão com deleite.
— Vocês foram marcados — repetiu, jogando a adaga de uma mão a outra, enquanto se aproximava dos dois. — A Sombra nunca perde um marcado.
Então girou a adaga na mão, assoviando a Canção de Eine. Corning não se mexeu, apenas encarou os olhos escuros com determinação. De súbito, o maatiano começou a
correr e, com um movimento rápido, atirou a faca contra Corning, que só teve tempo de erguer o braço esquerdo. A lâmina rasgou o tecido grosso da roupa da prisão
e fez um corte em seu antebraço.
Sem parar de correr, Jainr se lançou sobre os dois, de braços abertos. O Bobo pulou para o lado em uma cambalhota e escapou do golpe. O maatiano pegou outra adaga
e socou o rosto do Ladrão com força, pronto para desferir o golpe derradeiro em seu peito. Para proteger o amigo, o Bobo deu um salto e chutou o ouvido de Jainr,
fazendo-o rolar para o lado.
Ensandecido, Jainr tentou atingir o Bobo com a adaga, mas o homem magro se dobrou para trás, como um acrobata, escapando ileso. Frustrado, partiu novamente atrás
do Bobo, deixando Corning sangrando no chão. Ele golpeava rápido, mas seus golpes só encontravam o vazio.
Corning acompanhava os movimentos do amigo atentamente. O corte em seu antebraço não era profundo e ele conseguiu se levantar, embora seu nariz doesse muito.
Jainr arfava de cansaço. Lutar contra o Bobo era o mesmo que lutar contra uma sombra brincalhona, que saltava, ria e cabriolava, enquanto dava piruetas e cambalhotas,
como se não possuísse nenhum peso.
Dando uma cambalhota no ar, o Bobo agarrou Jainr por trás.
— Me dá um doce?
Montado sobre ele, o Bobo abriu completamente a guarda do assassino. Corning, já recuperado do primeiro ataque, aproveitou para correr até ele e lhe desferiu um
soco vigoroso no queixo e uma joelhada no estômago. Um último chute potente lançou Jainr ao chão. O Bobo, com um salto, pulou por cima dele, caindo em pé ao lado
de Corning.
Apesar de derrotado, o maatiano sorria, com sangue nos dentes amarelados.
— Vocês... — ele tossiu, espirrando sangue. — Vocês nunca vão escapar da Sombra...
Com o braço ainda machucado, o Ladrão se ajoelhou ao lado dele.
— Talvez não escapemos da Sombra, mas de você vamos escapar...
Corning cerrou o punho com força, mas, em vez de bater novamente em Jainr, apenas lhe deu um tapinha no peito. Então segurou o Bobo pelo braço, deu as costas para
o homem no chão e saiu rápido, sem olhar para trás.
Mesmo caído, Jainr sorriu. Ainda que aqueles dois tentassem fugir, não conseguiriam ir muito longe. Cedo ou tarde, ele os acharia e os torturaria por muito tempo,
antes de acabar com a vida deles.
Esses idiotas não aprendem nunca, Jainr pensou. A única coisa que pode deter um assassino é outro assassino!
O maatiano parou de rir ao sentir algo esquentando em seu peito. O som abafado da explosão foi suficiente para Corning respirar aliviado. Se o duken poderia explodir
a fechadura da cela, feita de ferro e aço, ele nem queria imaginar o que faria com o corpo do assassino. Se ele tivesse se virado, veria que a realidade era pior
que qualquer coisa que sua imaginação pudesse criar.
Sem olhar para trás, eles voltaram pelo mesmo caminho de onde tinham vindo e encontraram Obac morto, com um ferimento horrível na coxa e outro nas costelas. Jainr
provavelmente não esperou o pobre soldado se recuperar da queda e o matou com a mesma adaga que retirou do corpo morto do cocheiro.
O Bobo e o Ladrão então pegaram as armaduras e os bastões elétricos de Obac e do condutor e avançaram pela floresta, deixando a estrada para trás.
— Será que tem algum doce por aqui? — perguntou o Bobo, olhando para os galhos das árvores.
Corning riu e não respondeu. Ele só pensava em sair daquele planeta maldito.
Notas
* “Ilustre”, “prezado” ou “respeitado”. Termo formal para demonstrar educação e respeito.
Segredo Compartilhado
Universo 4ME2U — Interespaço
As luzes azuladas piscavam, acompanhando os gritos estridentes das sirenes.
Azio digitava com uma velocidade incrível sobre a tela de comando em seu quarto. Depois de muito tempo tentando, finalmente conseguiu quebrar a segurança da nave.
Mas o sistema era mais avançado do que ele previra, e sua invasão foi detectada.
Rapidamente ele anulou o bloqueio, alterou a frequência de comunicação para que reverberasse pelos limites do Multiverso e, ajustando as ondas de seu próprio comunicador
Amlar, sintonizou a hiperfrequência secreta usada pelo Conselho de Ev’ve.
Obrigado, Jeiv!, Azio agradeceu em pensamento ao tecnomago da Ordem que tratara de sua pele em Ev’ve e o ajudara a desenvolver o comunicador Amlar, usando os mesmos
princípios e segredos das esferas-T.
Pelo lado de fora de seu quarto, batidas fortes se fizeram ouvir, tentando arrombar a grossa porta de metal. Mas, graças aos excelentes construtores da Vostok, ela
nem sequer tremeu.
Ah, Laryssa. O que é que eu não faço por você?, Azio pensou.
Seu comunicador Amlar acendeu, exibindo uma imagem estática.
— Tanto trabalho para ver uma sala vazia? — Azio praguejou em voz alta, indiferente às tentativas de arrombamento da porta.
Traição e Direito
Ilha de Ev’ve
Laryssa estava com as costas apoiadas em uma das caixas, mas o espaço era tão pequeno que ela teve de se espremer para sentar e as pernas ficaram dormentes.
Pelo menos seu plano tinha funcionado. O robô a trouxera diretamente para o compartimento de carga do navio Escamas de Pedra, e ninguém havia aparecido ali desde
então. Ela esperaria que zarpassem para, só depois, sair de seu esconderijo e esticar as pernas.
Estava ali havia muito tempo, e a fome e a sede se apresentaram como velhas conhecidas indesejadas. Apesar do espaço reduzido, serviu-se da água de um cantil e de
um lanche, ambos retirados da mochila que tinha sobre os joelhos.
O barulho seco de um fecho metálico e o ranger de velhas dobradiças denunciaram que a porta do compartimento de carga havia sido aberta. Laryssa ficou paralisada.
Duas vozes masculinas puderam ser ouvidas do lado de fora. Em seguida, passos ligeiros desceram as escadas de acesso.
— Eu sei que você está aí! Pode sair agora.
Não pode ser, Laryssa pensou, reconhecendo a voz e sentindo a raiva crescer dentro dela.
— Vamos, Laryssa, pode sair — disse a voz novamente.
A princesa pensou em permanecer escondida, mas sabia que não adiantaria. Ela fora descoberta, ou melhor, traída.
Sem alternativa, levantou sentindo as pernas formigarem. Ao pé da escada, via-se o vulto de um homem. Apesar do ambiente escuro, ela sabia quem era. O homem estalou
os dedos e duas bolas flamejantes surgiram, flutuando ao seu lado. A luz avermelhada iluminou o rosto de Virnus.
Ela se apoiou em duas caixas e saltou para fora do pequeno espaço onde estava confinada.
— E eu que pensei que a Glinda fosse minha amiga, aquela traidora...
Ele deu dois passos para frente, encurtando a distância entre eles. As bolas de fogo o acompanharam, ficando ao seu lado e iluminando também o rosto dela.
— Ela é sua amiga. E não, ela não traiu você. Fui eu que a forcei a dizer onde você estava.
Ela deu um passo ligeiro na direção dele e estendeu o dedo acusadoramente, bufando.
— Você não tinha esse direito! — As lágrimas já surgiam.
Ele pousou as mãos fortes nos ombros dela e olhou para baixo, diretamente nos olhos dela, que, molhados, refletiam as chamas que os iluminavam.
— Eu sou o único que tem esse direito... — ele disse, enquanto se curvava.
Suavemente, ele a beijou. Foi um beijo terno, cálido e reconfortante, como só o verdadeiro amor sabe ser.
A Verdade
Volgo e Willroch se afastaram rapidamente da comitiva real, sobrevoando o caminho até Chuilong. A redoma, praticamente invisível, não impedia o sol de banhar a serra
verde, que se estendia intermitente pelo largo vale. Como um manto esmeralda, o caminho era cortado por fios de prata, feitos de córregos e de um enorme rio de água
límpida, largo o suficiente para refletir os raios do sol em brilhos amorfos. Montanhas de picos arredondados se erguiam no horizonte, como as costas de um gigante
adormecido.
Apesar da beleza natural e inexplorada abaixo, o feiticeiro rubro e o mago poeta voavam em silêncio, em direção ao fundo do vale. Mesmo que nunca tivesse estado
naquele lugar, Volgo sentia uma força poderosa emanando como uma onda de calor ao seu redor. Em pouco tempo, pousaram em uma área de solo rochoso, com musgo e grama
brotando entre as pedras. As sombras das árvores denunciavam que a manhã estava chegando ao fim.
— Por aqui — Volgo disse, erguendo a mão, como se sentisse uma brisa de ar entre os dedos. — Estamos perto!
Seguiram um pouco mais adiante, até encontrarem uma parede rochosa com grossas ramas que formavam uma cortina de pequenas folhas. Não muito longe, uma encosta íngreme
descia ainda mais no vale, penetrando em um bosque de arbustos.
O feiticeiro fez um gesto, e uma lufada de ar varreu a parede, retirando a vegetação da superfície. Incrustada na rocha, uma porção de pedra com um braço de diâmetro
emitia um fraco brilho multicolorido. Atento, Volgo olhou para a parede. A luz bailava em um ritmo cadenciado, e as cores se mesclavam em ondas harmoniosas, como
se cada feixe respeitasse o desejo de brilhar das outras cores, permitindo lampejos cristalinos de azul, amarelo e verde.
— Eu lhe apresento Chuilong — Volgo disse, com um breve sorriso.
— Mas... é uma trinacora! — Willroch murmurou, espantado, ao entender a verdade sobre Chuilong.
Em vez de ser um objeto de poder, Chuilong não passava de uma magia de proteção das mais fortes que ele já ouvira falar. O que quer que ela estivesse protegendo,
deveria ser extremamente importante.
Em segredo, Willroch admirou a coragem de Volgo. Pelo que ele sabia, ninguém nunca tinha quebrado uma trinacora, e quem já havia tentado sofrera danos horríveis.
O próprio Willroch testemunhara dois magos de Brodt serem pulverizados completamente pela magia de proteção. Por outro lado, o poeta se permitiu rir. Se Volgo morresse
de uma forma horrível, seria o pagamento pelas torturas que fizera contra ele. Tal pensamento fez Willroch mostrar os dentes perfeitamente alinhados num sorriso
malicioso.
Pela expressão do poeta, Volgo viu que Willroch não só conhecia, mas também entendia, o risco envolvido em tentar quebrar aquela magia, embora duvidasse da capacidade
do poeta de realmente compreender sua real natureza e força. Até ele, com tantos séculos de experiência, havia enfrentado uma magia como aquela apenas uma vez. Ela
combina a força de três feixes de pura luz, entrelaçados entre si como fios em uma corda, tornando impossível acessar o seu interior. Se, de alguma forma, um feixe
é rompido, os demais absorvem sua energia, fortalecendo-se ainda mais. Caso alguém consiga chegar à última cor, encontrará uma barreira tão resistente que chega
a ser virtualmente intransponível.
— Deste ponto em diante, permaneça calado — Volgo ordenou, aproximando-se da parede.
Ele precisava encontrar o ponto essencial do primeiro feixe e romper a interseção da luz em seu espectro mais fraco, como se quebrasse o elo de uma corrente. Em
seguida, alteraria a frequência antes de liberá-la, usando a própria defesa contra si mesma. Ao absorver a energia contaminada, ela serviria como catalisador para
romper o próximo feixe, que liberaria uma nova energia, também contaminada, até que o último feixe se rompesse. Porém, no primeiro estágio de contaminação, Volgo
precisaria usar sua Maru vital para fazer a alteração na frequência, o que tornava o processo muito perigoso. Um erro ao quebrar e sugar os feixes seria como lançar
uma rajada poderosa de energia pura contra o próprio corpo, matando-o instantaneamente.
Ele esticou a mão esquálida e tocou na rocha. No mesmo instante, as cores, antes vivas e harmoniosas, ganharam tons escuros e fortes, alternando-se em movimentos
exaltados. Volgo sentiu todo seu corpo reagir à defesa, e seu instinto o ordenou a se afastar. Volgo afastou a mão, perplexo, finalmente entendendo que aquela magia,
que os nativos chamavam de Chuilong, despertava o estado primal dos kynianos, transformando-os em elfi-dragões.
Ele levantou o cajado com as mãos e o levou ao peito, murmurando palavras em uma língua há muito perdida. Seu corpo ganhou uma pequena aura avermelhada e, na ponta
curva do cajado, um brilho surgiu. Em reação, os feixes protetores se agitaram, como se estivessem vivos e detectassem um perigo enorme. Uma ponte de luz se abriu
entre o cajado e as luzes na parede, criando um elo luminoso entre o feiticeiro e o primeiro dos feixes. Volgo sentiu um aperto no cérebro, como se um grito mental
reverberasse em seu crânio.
Ele sorriu ao saber que o Gaiagon estava ciente de sua presença.
Razão para Lutar
Kullat cruzava velozmente o céu sobre a ilha de Makrao Maat, deixando um rastro prateado no ar.
Durante o voo, Nahra se sentiu livre como um pássaro, voando acima de um mar de árvores. Livre de julgamentos, normas e regras, com todo o céu a seu dispor, sem
limitações ou impedimentos. Nos braços dele, a Senhora de Castelo cheirou maravilhada o manto espectral que Kullat a fez vestir, para protegê-la do frio do voo.
Ela queria que aquele momento durasse para sempre, queria continuar nos braços de Kullat e, acima de tudo, queria beijar o cavaleiro novamente, sentir seu cheiro
adocicado, o sabor de seus lábios e tê-lo para ela, só para ela. Espantada, sentiu que até abdicaria de suas rondas se ele lhe pedisse. Foi nesse momento que, apesar
de não querer admitir, ela teve uma certeza: estava apaixonada.
Alheio aos sentimentos da amiga, Kullat só tinha uma preocupação: chegar até o Gaiagon.
— Como está sua mão? — Nahra perguntou.
O cavaleiro deslocou a maior parte do peso para o outro braço, esticando o braço ferido para frente, para que ela pudesse ver. Para surpresa dela, não havia mais
sinal dos cortes; a pele voltara ao normal e as faixas de Jord estavam limpas. O processo de cura havia sido rápido e eficiente.
— Incrível — ela murmurou.
— Eu sei — Kullat disse, sem falsa modéstia. — Mas isso não importa agora. Precisamos nos preocupar com o que nos espera. Se Willroch e Volgo estiverem juntos, vamos
ter de separá-los. Eu pego Volgo, e você vai ter que dar um jeito no Willroch. Mas lembre-se: você não é imune ao poder dele como é ao meu.
— Acho que não sou totalmente imune a você, afinal... — ela respondeu, acariciando-lhe a face.
Antes que o cavaleiro pudesse reagir, ela o beijou novamente. Assim como no hospital, foi um beijo marcante, quente e demorado. Um beijo que a libertou outra vez,
retribuído sem reprimendas. O manto que a cobria deslizou de seu corpo e foi levado pelo vento, mas nenhum deles se importou.
Kullat sorriu. Pensou em dizer que um beijo antes da batalha era um clichê comum nas histórias de Carimm, mas, em vez disso, apenas olhou para Nahra com um sorriso
confiante.
— Iqueróm Wapuma, Shoujin Nahra.
— Wapuma, Domo Shoujin Kullat.
O Inimigo está aqui!
O suplício do Gaiagon ecoou na mente de Kullat como um soco no cérebro.
A redoma, Kullat projetou seus pensamentos para Seath, como faço para atravessá-la?
Ela não é para você.
Venha! Depressa!
Seleção
O som do bater de asas era tão suave que, não fosse o movimento cíclico dos poderosos músculos do dragão, Thagir não saberia que eles estavam voando. As belas membranas
amareladas, transparentes como seda, subiam e desciam em movimentos ritmados, impulsionando velozmente o pistoleiro e Draak pelo céu.
Draak estava à frente, conduzindo o dragão por entre as nuvens. Aflito e muito incomodado por ter deixado seu exército lutando sozinho, apesar de ter explicado a
seus soldados que o rei estava em perigo, ordenou-lhes que defendessem Makrao Maat durante sua ausência e os abençoou com pedidos a Seath, dizendo que voltaria assim
que o rei estivesse em segurança.
Atrás dele, segurando firme em dois arreios de couro, Thagir sentia o ar frio lhe bater no rosto, como se isso abrandasse um pouco o peso que trazia no coração.
Nenhum dos dois disse nada após a decolagem, certos de que o silêncio seria a melhor conversa.
O voo era como uma eternidade para Thagir. Ansioso para encontrar Volgo e fazê-lo pagar pela morte de Kullat, o pistoleiro se assustou quando Draak fez uma manobra,
conduzindo o dragão para o solo e reduzindo a velocidade.
— Maldição! — Draak praguejou.
O dragão pousou em uma estrada estreita de terra, perto de um pequeno templo. À frente deles, havia duas enormes colunas de pedra.
— Eu tinha esperança de que eles ainda não tivessem passado pelo portão... — Draak disse, descendo do animal.
Thagir também desmontou e seguiu o castelar maatiano, que se aproximava das colunas com passos firmes. Com a mão espalmada para frente, Draak sentiu algo impedir
seu avanço.
— A barreira de Shuilong está ativa!
Thagir viu um tremular suave do ar entre as colunas e, esticando a mão, também sentiu a barreira.
— Como vamos passar? — perguntou o pistoleiro, irrequieto.
— Não vamos — Draak respondeu. — Não podemos passar.
Frustrado, o maatiano chutou uma pedra do chão, que rolou pela estrada. Thagir viu, confuso, a pedra passar pelas colunas, sem enfrentar nenhuma resistência. Observando
ao redor, viu folhas secas perto da redoma sendo carregadas pelo vento. Novamente esticou a mão e novamente sentiu que algo impedia sua passagem. De alguma forma,
a proteção escolhia o que deixava passar e o que não deixava.
A esperança se renovou dentro de Thagir. Se pedras e folhas conseguiam passar, ele também conseguiria. Bastava descobrir como.
Antivazio
Depois de muito esforço, Volgo finalmente encontrou o ponto de ruptura do primeiro feixe. Compenetrado, o feiticeiro alinhou sua energia com a frequência do feixe
e, fazendo uma parte da própria Maru vital se romper, sentiu o feixe reverberar, quebrando-se também.
Uma explosão circular esverdeada se espalhou pela parede rochosa, iluminando-a por dentro, com formas aleatórias se expandindo rapidamente. Em um efeito elástico,
essas mesmas formas começaram a voltar para o centro da magia trinacora.
Antes de atingir o segundo círculo, Volgo absorveu a energia verde pela ponta do cajado. Ao mesmo tempo, um jato de fumaça esverdeada se expandiu violentamente ao
redor dele. O ar ficou acre e pestilento, mas ele não sentiu nada além de um desconforto pelo odor desagradável.
Willroch, no entanto, teve os pulmões invadidos pelo gás pegajoso. Desorientado, deu um passo para trás, quase caindo pela encosta abaixo. Instantaneamente, sentiu
as entranhas se revirarem em espasmos e, dobrando o corpo, lançou todo o conteúdo do estômago para fora.
Volgo permaneceu firme, controlando a magia com concentração extrema. Com lágrimas nos olhos, ardidos pela fumaça penetrante, sentiu o corpo tremer e as pernas falsearem,
enquanto a frequência do primeiro feixe era transformada dentro de si. Reunindo toda sua força de vontade, emitiu de volta para a pedra aquela onda de frequência
distorcida e contaminada.
Dentro da névoa esverdeada, surgiu uma luz caótica, alternando as cores freneticamente e criando um zumbido agudo, como se um milhão de abelhas os envolvesse. No
alto do céu, a redoma, que cobria o vale, vacilou, e a fina camada transparente brilhou em uma forma errática, distorcendo por instantes o brilho do sol. Emergindo
do topo da redoma, um estrondo grave percorreu o ar.
Com as mãos trêmulas, Volgo retirou do cinto uma ampola e sorveu toda a poção roxa. Ofegante, respirou profundamente, sem se importar com o odor horrível à sua volta.
Com um gesto, criou um vento forte, que dispersou a fumaça esverdeada. Ainda vacilante, apesar da poção antivazio que acabara de beber, Volgo andou em direção ao
poeta, que estava de joelhos diante de uma poça macilenta com os restos de sua última refeição.
Pálido, Willroch limpou o rosto com as costas da mão, respirou descompassadamente e sentiu uma nova onda de ânsia o assolar por dentro. Vomitou novamente, dessa
vez apenas bile e sangue. No fim, o abdome ardia e um gosto ácido na boca denunciava que aquela era uma armadilha fatal.
Volgo lhe estendeu a mão cadavérica. Uma poeira avermelhada saiu dos dedos finos do feiticeiro e envolveu o poeta. Assim que inspirou a poeira rubra, sentiu o estômago
abrandar. Tossiu mais algumas vezes, mas a náusea e a ânsia já não eram mais tão fortes. Percebeu que, se não fosse o feiticeiro, vomitaria até a morte. Mesmo assim,
desconfiou que aquilo fazia parte do plano do feiticeiro.
— Shakes te carregue, velho! — Willroch praguejou, apoiando-se no joelho para se levantar. — Você sabia que isso ia acontecer?
Volgo não respondeu, apenas se manteve apoiado no cajado de madeira, parecendo ainda mais magro dentro das vestes vermelhas. A pele estava colada aos ossos das mãos
e a cabeça tinha apenas um filete de pele fina a cobrir o crânio. As múltiplas tatuagens, aparentes pelas mangas da veste vermelha, eram a única coisa que mantinha
a vivacidade naquele corpo cadavérico. Exceto por um fraco movimento no peito, nada indicava que Volgo estava vivo.
— Você está bem? — Willroch perguntou, mais curioso do que preocupado.
— Estou — Volgo se limitou a responder, com a voz cavernosa, endireitando o corpo.
Não lhe restava muita energia, e ele teria que iludir o poeta por tempo suficiente para se recobrar. Se fraquejasse, Willroch não pestanejaria e o atacaria. Então
deixou que a névoa fizesse efeito sobre ele, porque assim ambos ficariam desestabilizados. Mas, para sua sorte, a poção antivazio já começava a funcionar.
As árvores balançavam com o vento, projetando sombras disformes na parede, causadas pela luminosidade da pedra. O dia lançava uma brisa fresca no vale e alguns pássaros
voavam em bandos. O zumbido, que vinha da rocha pulsante, diminuiu, e a névoa verde não jorrava mais.
— A primeira defesa se esgotou — Volgo disse, com um fio de voz. — Logo a redoma inquebrantável vai cair, e, com ela, o segundo feixe.
De frente para a parede, Willroch se mantinha afastado, observando a caótica dança luminosa. Volgo estudava o segundo feixe, esperando por sua autodestruição e se
sentindo recuperado do feitiço do primeiro feixe.
Atrás deles, no céu, algo se aproximava velozmente, deixando um rastro prateado no ar. Eram Kullat e Nahra, que, mesmo de longe, viram as duas figuras, uma vestida
de vermelho e a outra de negro, em frente a uma parede de pedras, iluminada por um amálgama de brilhos pulsantes. De costas, Volgo e Willroch não viram a dupla de
castelares se aproximando.
Kullat não gostava da ideia de emboscada, mas ambos eram perigosos demais, e qualquer vantagem sobre eles seria vital para a luta. Para não serem vistos, o cavaleiro
desceu rápido, voando perto do chão em um rasante e avançando como um aríete contra os dois inimigos.
Impulsionada pelo voo, Nahra saltou dos braços de Kullat e jogou-se com os pés sobre o poeta. O choque expulsou o ar dos pulmões dele. O movimento foi tão intenso
que os dois rolaram pela relva. Levantando-se de um salto, Nahra se lançou contra Willroch. O poeta, sem entender o que estava acontecendo, só conseguiu produzir
um escudo de magia lilás. A castelar, com suas garras negras, esfacelou a proteção com apenas três golpes, partindo para cima do inimigo.
Desequilibrados, ambos rolaram encosta abaixo, sumindo entre os arbustos.
Destinos Cruzados
Com os punhos cerrados, Kullat atingiu Volgo como uma bala de canhão. Uma explosão de energia aperolada lançou o feiticeiro longe, fazendo-o se chocar contra a parede
de rochas e cair no chão secamente. Ainda no ar, Kullat concentrou uma esfera de energia mágica entre as mãos. Raios e trovões digladiaram ferozmente com chamas
aperoladas, cruzando o centro da esfera em linhas irregulares e formando uma nuvem cósmica com faíscas brancas explodindo para os lados.
O ar se eletrificou quando o poderoso raio cruzou o ar e atingiu o corpo de Volgo. Um estrondo, violento como um trovão, reverberou pela planície, e uma nuvem grossa
de terra e poeira se levantou onde o feiticeiro estava, abrindo uma pequena cratera no solo rochoso. Em meio à poeira que subia, Kullat pousou na beirada, com os
punhos flamejantes fechados, numa posição ameaçadora.
No buraco, o cavaleiro viu o homem com atenção e não teve mais dúvidas. A tatuagem de meia-lua, que começava na têmpora e terminava no queixo fino, era inconfundível.
Volgo, o antigo feiticeiro de Orko, estava à sua frente.
O feiticeiro tremia descontroladamente, com fagulhas mágicas percorrendo o corpo magérrimo. As roupas eram trapos vermelhos, revelando incontáveis tatuagens no peito,
braços e costas. Um filete de sangue grosso como mel e escuro como piche escorria pelo canto da boca, descendo até o queixo pontiagudo.
Não muito longe, a parede rochosa brilhava e os feixes continuavam a se mesclar, num frenesi alucinante.
Surpreso, Kullat deu um passo para trás. Um som, um lamento de morte, penetrou o cérebro do cavaleiro como mil agulhas em chamas, e ele caiu de joelhos ao lado da
cratera. Com a cabeça em ambas as mãos, fechou os olhos com força, como se aquilo pudesse diminuir a dor excruciante que o atingira. Mas, como uma corda que se arrebenta,
sentiu a conexão com Seath ser quebrada e as agulhas flamejantes desapareceram por completo.
Arfante, Kullat dobrou-se para frente, apoiando-se sobre as mãos no solo frio do vale. Abrindo os olhos, viu que Volgo, mesmo caído, segurava com as duas mãos o
seu cajado. O velho feiticeiro abriu os olhos, tristes e profundos, e encarou Kullat. O contato foi silencioso, mas, por trás dos olhos do feiticeiro, havia a força
de um espírito indomado.
Kullat saltou e flutuou para trás, com as chamas brancas encobrindo os punhos enfaixados, pronto para disparar uma nova rajada. Mas o feiticeiro não se mexeu. Apenas
fechou os olhos, sem oferecer resistência. Pego de surpresa pela aparência moribunda do velho, Kullat respirou fundo e não conseguiu disparar. Não contra um inimigo
derrotado.
No entanto, como ele não confiava no velho feiticeiro, manteve os punhos fechados, atento a qualquer movimento suspeito. Volgo suspirou e gemeu. Com gestos lentos
e sôfregos, tentou se levantar, mas desistiu e se largou no solo, gemendo novamente.
— Eu nunca acreditei em destino — disse Volgo com a voz fraca, como se seu corpo tivesse alcançado o limite da vitalidade. — Mas, desde que conheci você... comecei
a repensar essa questão. — O velho tossiu fracamente. — Nossos destinos parecem cruzados...
— O destino somos nós que fazemos — Kullat respondeu, com os punhos brilhando e os dedos desaparecendo entre as chamas brancas.
— Fazer o meu destino... É exatamente isso... o que eu estou... tentando fazer... — Volgo disse com dificuldade. Seu corpo tremia e sua voz estava cada vez mais
fraca. — Mas você insiste... você insiste em querer me matar.
— E você insiste em sobreviver — Kullat disse, mantendo-se em alerta.
— Infelizmente... você também persiste nesse ponto — Volgo redarguiu com a voz fraca.
O ódio queimava no peito do feiticeiro rubro. Sua vontade era destruir o Senhor de Castelo, obliterá-lo com uma rajada rubra. Mas seus incontáveis anos de existência
lhe ensinaram a maior das virtudes: a paciência. Ele teria de esperar mais um pouco para acabar de uma vez por todas com o castelar.
Esperaria, mas apenas o necessário.
Perfeição
Willroch chocou-se contra um tronco grosso.
— Por Shakes! — exclamou.
Mesmo com dor nas costas e na nuca, levantou-se rapidamente, perscrutando a floresta, em busca de sua agressora.
Mais abaixo, entre as árvores cobertas, Nahra tentava se soltar de um emaranhado de cipós. O corpete justo denunciava suas curvas, e o decote era chamativo a ponto
de Willroch encará-lo por mais que um instante. As árvores eram esparsas naquele ponto da floresta e a luz do sol era abundante, entrando por frestas grandes entre
os galhos grossos, cobertos de cipós.
— Ora, ora, o que temos aqui? — ele murmurou.
Ao ouvi-lo, os olhos amarelos da licana o fitaram com ferocidade. Com dois movimentos firmes, Nahra cortou os cipós e avançou contra o poeta. Willroch conseguiu
desviar do primeiro golpe, que atingiu um tronco, espatifando-o em lascas vermelhas. O segundo golpe, tão feroz quanto o primeiro, quase lhe rasgou o abdome. Para
escapar, ele flutuou de costas, enquanto ela corria e golpeava atrás dele.
A Senhora de Castelo atacava com um instinto animalesco e seu rosnado soava como uma constante ameaça aos ouvidos de Willroch. Como lâminas negras, suas garras zuniam
em ataques violentos que cruzavam o ar. Willroch apenas desviava dos ataques. Raivosa, Nahra saltou contra uma árvore e girou o corpo no ar, finalmente acertando
Willroch no rosto, fazendo-o cair no chão úmido da floresta. Percebendo o perigo iminente, ele disparou pela primeira vez, e a rajada violeta a obrigou a rolar para
o lado, perdendo a vantagem. Outra rajada atingiu o chão, à sua frente, afastando-a ainda mais. Uma terceira rajada atingiu um galho de uma árvore, que caiu entre
eles, criando uma barreira entre ambos.
— Lute como um homem! — ela gritou, frustrada pela não reação dele. E, mostrando caninos afiados, cortou o galho com um golpe diagonal, abrindo caminho.
— Pare antes que se machuque! — ele exclamou, girando o corpo para o lado e se afastando com um voo curto, fazendo Nahra desperdiçar outro ataque.
Nahra não deu ouvidos e investiu novamente, pulando com as garras estendidas, prontas para dilacerar o peito de Willroch. Mas, em vez de desviar, o poeta esperou
até que ela estivesse sobre ele e, com agilidade e confiança, segurou os antebraços dela. Aproveitando o impulso, a fez girar em um arco no ar. Surpresa, ela viu
o mundo de ponta-cabeça, enquanto era lançada de costas contra o chão.
— Eu já disse para parar — Willroch repetiu, olhando para ela. — Não vou lutar com você!
Por que ele não quer lutar?
Ela não conseguia entender. Então lembrou que Kullat lhe dissera certa vez que Willroch era traiçoeiro e poderia usar artimanhas para confundi-la. Determinada a
não ser enganada, ela rugiu e se virou no chão, lançando o corpo para o alto com a força dos braços. Mas ele fez um gesto com as mãos, e quatro tentáculos brotaram
da terra, enrolando-se nos punhos e nos tornozelos dela, prendendo-a em pleno ar.
— Não! — ela gritou, irada, tentando se livrar dos tentáculos violeta. Ela protestou e se debateu, mas o aperto dos estranhos construtos mágicos não diminuía, e
as ventosas, fortemente grudadas à sua pele, nem se mexiam.
Finalmente ela parou de tentar se soltar. Vendo que ela havia se acalmado, o poeta se aproximou com as mãos brilhando levemente em lilás. Para Nahra, aquele homem
era como uma versão distorcida do cavaleiro: punhos brilhantes, pele escura, cabelos cacheados até o ombro, olhos maliciosos e marcantes, mas um homem perigoso.
Belamente perigoso.
Ela não esperou Willroch se aproximar para cerrar os olhos. Um brilho azul surgiu entre os dois e, um instante depois, Talbain se materializou, saltando sobre o
poeta. Assustado, Willroch sentiu o peito arder, como se pegasse fogo, quando as garras do enorme lobo lhe rasgaram as roupas e arranharam a pele. O poeta tentava
empurrar a enorme cabeça do lobo para longe, mas seus dentes afiados se fechavam freneticamente, próximos ao seu ombro. Os dois caíram, com Talbain por cima, tentando
morder o pescoço do poeta.
Sem saída, Willroch encostou a mão na barriga do animal e disparou uma rajada lilás. Nahra sentiu a dor do lobo quando este foi lançado longe. Com um rosnado, Talbain
girou o corpo e se colocou nas quatro patas novamente, rosnando num misto de fúria e cautela, arreganhando a bocarra e mostrando uma fileira de dentes afiados. Encarando
o poeta, o lobo se aproximava vagarosa e ameaçadoramente.
Cacos de Luz
— Levante-se! — Kullat exclamou para Volgo, com as mãos inflamadas com sua energia mágica. — Está na hora de enfrentar as consequências dos seus atos.
Volgo sentiu a tensão do segundo feixe, cuja magia contaminada se espalhava pelas rochas e pelo solo.
— Você vai me matar? — Volgo questionou, deitado de costas na cratera, sem se mexer. Atento, escutou um silvo fino, quase inaudível.
— Não sou um carrasco — Kullat respondeu, ofendido. — Mas irei fazê-lo enfrentar a justiça.
— Qual justiça? A da Ordem? — O mago virou a cabeça em direção a Kullat e cuspiu as palavras, furioso. — Vocês são assassinos! — Kullat ficou tenso, pronto para
atacar. — Toda a Ordem de Senhores de Castelo é assassina!
Kullat meneou a cabeça, com pena do mago, que parecia ter enlouquecido pela própria maldade.
— Você sempre foi louco, feiticeiro — Kullat retrucou, firme. — Venha comigo agora.
Com um gesto, o cavaleiro criou cordas de energia mágica, que se lançaram contra Volgo, para prendê-lo. Mas, para seu espanto, as cordas se chocaram com alguma coisa
transparente, pouco antes de chegarem ao mago.
— Mas o quê...? — Kullat murmurou, confuso.
Volgo sorriu, confiante.
— Chegou a sua hora, castelar — Volgo proferiu as palavras como se fossem uma praga.
Atrás de Kullat, uma explosão de pura energia surgiu, quando o segundo feixe de proteção se rompeu. Uma violenta tempestade de luz sólida atingiu o cavaleiro nas
costas, explodindo em dezenas de bombas. Protegido por um fino escudo de energia, Volgo nada sofreu com a fúria da segunda defesa de Chuilong.
Kullat foi arremessado por cima da cratera e se chocou violentamente contra uma enorme pedra, recebendo uma infinidade de estilhaços luminescentes em seu corpo.
A força do impacto foi tão grande que, não fosse pelo campo de força, certamente ele teria sido esmigalhado. Graças à energia recebida do Gaiagon, conseguiu criar
uma parede à sua frente, enquanto a energia do segundo feixe se expandia.
No céu, a redoma, que por incontáveis anos protegeu o santuário, despencou em milhares de cacos de luz, dissipando-se em um pó brilhante e desaparecendo em pleno
ar. Por um momento, houve apenas silêncio, mas, instantes depois, toda aquela energia foi puxada de volta para o Chuilong.
Kullat criou dois enormes espetos de energia e os cravou fundo no solo pedregoso, segurando-se fortemente neles enquanto tudo ao seu redor voava e era incorporado
ao terceiro e último feixe.
Novas Ruínas
Thagir ainda estava pensando em como eles passariam pela barreira, quando, inesperadamente, a redoma inteira se transformou em estilhaços e se desfez diante de seus
olhos.
Draak rezava de joelhos, tentando sem sucesso fazer contato com Seath. Então se levantou rapidamente.
— A barreira está caindo! — Thagir disse, espantado ao ver o efeito destruidor descer do topo da redoma, espalhando-se para baixo.
— Chuilong! — Draak exclamou, desesperado.
As colunas do portão explodiram, espalhando pedaços de rocha, luz e poeira por todos os lados.
Protegido pelo cinto do pai, Thagir não foi atingido, mas Draak foi jogado para trás pela força da explosão. O dragão no qual vieram chacoalhou a cabeçorra, sacudindo
os destroços da grossa pele.
— Você está bem? — perguntou Thagir.
— Estou — Draak disse, tossindo.
— Então vamos — prosseguiu Thagir, ajudando-o a se levantar. — Temos que chegar até o rei antes que seja tarde demais!
Ambos subiram rapidamente no dragão, que decolou apressado. Eles passaram por cima dos destroços das duas colunas milenares que agora eram as mais novas ruínas de
Makrao Maat.
Encontrando seu Lugar
Willroch e Talbain se encaravam quando, no topo do penhasco, um turbilhão de luzes surgiu, como uma tempestade descontrolada. Pedras e pedaços de galhos foram lançados
penhasco abaixo. Tanto Talbain quanto Willroch desviaram dos detritos, e Nahra, que estava mais afastada, por sorte não foi atingida. O céu se transformou em uma
chuva de cacos de luz.
Talbain, aproveitando a distração, avançou. Mas Willroch, acuado, fechou o punho, criando um tentáculo de energia. Com agilidade, açoitou o ar, estalando o estranho
chicote, tentando manter o lobo a distância.
O tentáculo continha espinhos curvados, que fizeram Nahra se lembrar das marcas que vira nas costas de Kullat. Com certeza, as cicatrizes foram causadas por uma
arma como aquela. Outro estalo do chicote a assustou. Era horripilante e fazia um zumbido cruel, carregando uma promessa de dor no ar.
Willroch rodopiou o tentáculo e, com um estalido seco, atingiu Talbain no dorso. Ganindo de dor, o animal se contorceu, mas avançou contra o poeta. Este girou o
punho no ar e o chicote lambeu as costas de Talbain, derrubando o poderoso animal no chão.
Nahra gritou, sentindo toda a dor dos golpes. Graças à sua ligação com Talbain, soube que ele estava gravemente ferido. Willroch, espantado pelos gritos da Senhora
de Castelo, viu que a pele da mulher estava coberta de marcas, que correspondiam aos locais onde o animal fora atingido, como se ela mesma tivesse sido chicoteada.
Ao perceber que atacando o lobo também estava ferindo a mulher, ele largou a arma, que se desfez no ar antes mesmo de tocar o chão.
O animal permaneceu caído, respirando com dificuldade. Seu pelo azulado estava marcado pelas chibatadas. Com um uivo fraco, Talbain se desfez, deixando apenas longas
faíscas sinuosas e azuladas no ar.
Willroch passou a mão no peito, onde a pele rasgada queimava. A túnica e a bela camisa negra estavam rasgadas. Com passos firmes, aproximou-se dela e, para a surpresa
da Senhora de Castelo, estendeu-lhe a mão num gesto de ajuda. Ela piscou, confusa, tentando entender o que ele estava tramando.
— Eu sinto muito! Não queria machucá-la. — A voz dele era suave e sincera. Nahra desconfiou de sua atitude. O aperto dos tentáculos em seus punhos e tornozelos suavizou,
mas ela ainda permaneceu presa. — Você está bem? — O remorso era evidente na voz dele.
— Não preciso da sua piedade! — ela cuspiu as palavras.
— Por favor, se acalme — ele ergueu as mãos, deixando à mostra os estilhaços incrustados na pele negra. — Me desculpe pelo seu lobo. Eu disse que não queria lutar.
Eu... Eu não luto com mulheres.
A frase deixou Nahra ainda mais confusa. Desconfiada, ela respirou fundo, cheirando o ar, tentando detectar o cheiro de feitiçaria, mas só sentiu o odor dele. Uma
mistura de sabores fortes e marcantes. Um cheiro inebriante e saboroso de confiança e liberdade, típico de espíritos arredios e independentes.
Ele se aproximou e a fitou como se admirasse uma obra de arte.
— Eu, na minha pobre ignorância, achava que já tinha visto todas as perfeições do Multiverso, mas estava enganado. Havia uma ainda que eu nunca tinha visto, e agora
ela está bem diante dos meus olhos! — ele disse, realmente admirado.
— Já ouvi galanteios melhores — Nahra respondeu, tentando não admitir que aquelas palavras soaram agradáveis ao seu ego.
Ela sentiu os tentáculos afrouxarem ainda mais, mas eles ainda a prendiam com suavidade.
— Desculpe se a verdade não lhe satisfaz — ele disse, olhando para ela extasiado e perdendo-se no infinito azul de seus olhos.
Nahra sentiu algo acender dentro de si, mas tentou apagar aquele sentimento com um insulto.
— A verdade na boca de um mentiroso perde todo o valor.
Willroch assentiu com a cabeça, pensativo. Virando-se, mostrou as costas musculosas para ela, cruzando as mãos atrás de si. Então parou um instante, como se puxasse
algo pela memória, virou-se novamente e se aproximou.
Mentiras acalentadoras
são deslizes adoráveis.
Da boca de nobres aduladores
com lábios doces de falsidade.
Pobres almas sem valores
que fogem da dureza da verdade.
A voz era um sussurro em seus ouvidos. Ela engoliu em seco. Aquele homem, a quem ela atacara sem pestanejar, captou a essência de seus sentimentos e, em poucos instantes,
transformou-os em arte.
— Eu... Você... — Nahra não conseguia ordenar os pensamentos.
O cheiro saboroso dele, misturado a uma magia doce que fluía de seus lábios, arrebentou suas defesas, trazendo um sentimento de liberdade tão grande que ela se entregou
ao momento. Ele a beijou e seu coração disparou. As pernas tremeram e o corpo amoleceu, sem resistência, à total mercê do sedutor poeta que a segurava com braços
fortes, enquanto o gosto e o cheiro do beijo a preenchiam, trazendo devaneios suaves e felizes à sua mente, fazendo-a se esquecer de tudo e de todos, entregando-se
ao simples prazer daquele carinho.
O ar voltou aos pulmões quando seus lábios deixaram de ser pressionados, e ela abriu os olhos, inebriada pela magia de Willroch, que, acariciando o rosto dela com
suavidade, se despediu.
— Tenho que ir agora — ele sorriu, passando a mão suavemente pelo rosto da licana. — Espero poder te encontrar de novo, para falarmos mais sobre as verdades da vida.
Com um impulso suave, Willroch flutuou de volta para o topo do barranco, lançando-lhe um beijo de despedida.
Depois de tanto tempo, Nahra se sentia livre, mesmo atada ao solo pelos tentáculos. Seu coração se apertou ao ver Willroch ir embora. Ela fechou os olhos, sem conseguir
mais resistir, e dormiu suavemente.
Raio Branco
Quando a segunda defesa de Chuilong se desfez, Kullat desabou pesadamente sobre o solo duro. O impacto arrancou o ar de seus pulmões.
Aproveitando que o cavaleiro estava tonto, o mago rubro sorriu e flutuou até a borda da cratera. Sem esperar, lançou um jato escarlate de seu cajado. Raios percorreram
dolorosamente o corpo de Kullat, e a energia ateou fogo às roupas brancas do cavaleiro.
Com um murmúrio, Volgo criou três discos rubros de energia caótica e, com fúria, arremessou-os contra o cavaleiro, que ainda tentava apagar as chamas de suas vestes.
Atento ao novo perigo, Kullat se lançou no ar e disparou várias rajadas curtas, tentando se defender. Um disco foi atingido e se desfez em lâminas vermelhas, que
se cravaram na terra. Mas os demais ziguezaguearam, desviando do contra-ataque do cavaleiro.
Em uma manobra evasiva, Kullat voou para a floresta, e os discos explodiram ao se chocar com as árvores. Rapidamente, Kullat voou na direção de Volgo. Seus olhos
faiscavam e seu coração transbordava de raiva por ter sido enganado.
Essa foi a última vez!
Volgo liberou várias esferas menores de energia ao seu redor, cobrindo os olhos. As esferas vermelhas explodiram em rápida sequência, cegando o cavaleiro momentaneamente,
em pleno voo.
Com grande ímpeto, Volgo girou seu cajado como se fosse um cutelo gigante e atingiu a nuca do cavaleiro com brutalidade, fazendo Kullat se chocar contra o chão e
cair dentro da cratera. Tomado de ódio, o mago vermelho disparou vários raios de energia, acertando as costas de Kullat. As finas lanças de energia eram como agulhas
em brasa, queimando-lhe a pele. Se não fosse pelo seu campo de força natural, seu corpo teria sido perfurado mortalmente.
Sem dar trégua, Volgo saltou sobre Kullat e o acertou mais uma vez com o cajado, agora na barriga, arrancando-lhe o ar dos pulmões. Para se proteger de novos golpes,
Kullat fechou os punhos e cruzou os braços na altura da cabeça. Ignorando a dor, buscou dentro de si energia para contra-atacar. Como uma avalanche, a energia fluiu
de seu corpo, jogando Volgo para trás.
O feiticeiro tentou resistir, mas a energia era como uma montanha em movimento, empurrando-o para trás vigorosamente. Experiente, o feiticeiro decidiu se deixar
levar pela força do ataque, pois, se continuasse a resistir, poderia até perecer diante daquele poder irrefreável. Seu corpo foi lançado longe, como uma folha seca
ao sabor da tempestade.
Kullat se ergueu da cratera, com os punhos brilhando intensamente, a tempo de ver que o mago rubro evitara o choque com o solo num movimento fluido, nem um pouco
condizente a seu estado físico.
— Maldito mentiroso! — Kullat praguejou.
O cavaleiro lançou-se ao ar e, concentrando uma enorme carga energética, bateu as mãos com força, criando um raio vertical que arrebentou o solo, deixando um rastro
de pedras lascadas por onde passava.
Volgo esticou o cajado diante do corpo, tentando conter o golpe. O raio branco o envolveu e percorreu todo o seu corpo seco, fazendo sair fumaça de sua pele enrugada.
Ao final, caiu de joelhos.
Decidido a acabar de vez com aquela luta, Kullat fez um movimento circular com os braços, criando uma nova esfera de energia entre as mãos, pronto para lançar um
último golpe devastador contra o mago rubro. Mas não conseguiu terminar o movimento, e gritou com as costas em brasa. Um raio violeta o acertou com brutalidade,
fazendo sua pele arder como se milhares de abelhas o ferroassem. Era Willroch. Os cristais incrustados na pele pulsavam freneticamente, enquanto a rajada violeta
saía como lanças de suas mãos e atingia o ex-amigo.
Tempo Suficiente
Longe dali, a comitiva real estava parada em um refúgio, ao lado de um pequeno lago.
Todos os integrantes do séquito estavam de joelhos, com a cabeça encostada no chão, rezando para Seath. No centro estava Behemut, o rei dragão, e, a seu lado, Bemor
Caed, também ajoelhado.
Indiferente aos murmúrios e pedidos, o coração do ministro estava radiante. A redoma havia sumido, sinal de que seu mestre havia tido sucesso e, em breve, ele mesmo
estaria aproveitando seu tão merecido prêmio.
Ainda absorto em pensamentos, sentiu um vento forte soprar-lhe a nuca, e algumas folhas que estavam caídas no chão se espalharam caoticamente à sua volta. O vento
aumentou, balançando suas vestes, e, de repente, ele sentiu uma pressão enorme nos ombros, sendo suspenso no ar. Seu corpo havia sido fisgado por garras fortes que
o arrancaram do solo com rapidez.
Sem saber o que estava acontecendo, olhou para baixo e viu o rei Behemut se levantar, tão espantado quanto ele próprio. O soberano esticou os braços e se transformou
em um elfi-dragão dourado, com os agora poderosos braços convertidos em duas enormes asas. Mas, antes que pudesse alçar voo, os outros ministros o seguraram, impedindo
que ele voasse ao seu encalço. Abismado e confuso, viu a comitiva ficando cada vez mais longe, até que ele mesmo sumiu dentro de uma nuvem.
Preso pelo abraço forte das garras, reconheceu que estava sendo carregado por um dragão. Pensou em invocar uma arma do bracelete mágico que carregava, mas percebeu
que, se atacasse o animal, estaria assinando sua sentença de morte, pois uma queda daquela altura seria fatal.
Com rapidez, o dragão fez uma curva e voltou a descer, até pousar em um espaço da floresta onde as árvores eram esparsas. O animal o largou sem nenhum cuidado, fazendo-o
se chocar com força no solo da floresta.
Duas figuras surgiram, e Bemor reconheceu a ambas: eram Draak e Thagir.
Rápido como uma cobra, Bemor invocou uma arma pelo bracelete. Um brilho surgiu em sua mão e, um instante depois, ele segurava uma esfera translúcida e esverdeada,
com uma série de pequenas estrelas azuladas se agitando em seu interior.
— Não faça isso! — Thagir disse, à sua frente.
Por um breve momento, Bemor sentiu uma ponta de incerteza, pela firmeza com que Thagir proferira aquelas palavras. Mas a dúvida sumiu rapidamente, quando ele lembrou
do poder que aquela bola colorida tinha.
— Se eu fosse você — Bemor falou, ameaçador —, começaria a procurar um novo rosto!
Então chacoalhou a esfera, e as estrelas azuladas se agitaram em seu interior. Ele atacou com força, fazendo um movimento de braço para lançar a bola diretamente
contra a cabeça do pistoleiro. Mas, antes que a bola saísse de sua mão, ele sentiu uma estranha resistência no ar, como se estivesse tentando nadar em um lago de
areia movediça. Sua mão mal conseguiu avançar alguns palmos no ar e, com a ponta dos dedos ainda em contato com a superfície lisa da arma, sentiu o calor intenso
que ela começava a produzir.
Desesperado, Bemor tentou recuar a mão, mas um som claro como cristal o alertou de que era tarde demais. As estrelas dentro da esfera se transformaram em uma matéria
coloidal e cresceram rapidamente, arrebentando o invólucro esverdeado e espalhando-se abundantemente, derretendo tudo que tocava.
Sua mão e seu braço foram cobertos por aquela matéria borbulhante, irradiando uma dor insana. Ele gritava, enquanto pele e carne se transformavam em uma massa escura.
Duas gotas do líquido respingaram em seu rosto, queimando a bochecha e o nariz.
Thagir rapidamente desvirou a fivela do cinto e correu até ele.
— Eu avisei para não fazer isso! — vociferou, desferindo um chute no queixo de Bemor.
O golpe foi certeiro e fez o ministro desmaiar. Em seguida, o pistoleiro retirou um frasco do solado da bota, chacoalhou e apertou a ponta, em direção ao braço do
ministro. Uma espuma gordurosa cobriu totalmente o membro arruinado, deixando um cheiro acre após se solidificar.
O pistoleiro apalpou a área onde antes era o punho de Bemor e arrancou um pedaço grande de espuma, com a massa no seu interior transformada em algo quebradiço. Jogando-o
no chão, pisoteou com força, esmigalhando o pedaço de espuma. Do meio dos detritos, retirou algo que havia sido roubado muito tempo atrás e que, agora, estava novamente
nas mãos de um regente de Newho: o bracelete de seu pai.
Thagir olhou com pesar para o objeto semiderretido. Com cuidado, apertou um botão lateral e a peça se abriu, com um estalido. Ele não estava preocupado com o bracelete,
pois era possível criar outro sem muita dificuldade. O que lhe interessava era o que estava incrustado no centro dele. Encostando o bracelete no pulso, se concentrou.
A gema brilhou fracamente em azul, mas escureceu por completo momentos depois. Ele se concentrou novamente, buscando nos caminhos internos da pedra, porém, apesar
de sentir a presença de uma infinidade de armas em seu interior, não conseguia materializar nenhuma delas. Para sua infelicidade, a joia estava danificada.
Draak, que assistia a tudo sem saber o que fazer, se aproximou e apontou na direção de Bemor.
— Ele vai ficar bem?
Thagir bufou, sem tirar os olhos do ministro.
— Vai sobreviver — respondeu, impassível. — Pelo menos por tempo suficiente para nos contar o que precisamos saber.
O Dono da Prisão
Universo 4ME2U — Interespaço
— Eu devia jogá-lo no vácuo! — exclamou furioso o comandante da nave interespacial.
A cabeça avermelhada e calva brilhava, por causa do suor nervoso. Em pé, Azio olhava impassível para o pequeno e arredondado urlogue, que manquejava de um lado para
o outro da pequena sala-prisão da nave.
— Devia, mas não vai — Azio respondeu, friamente, piscando os olhos vítreos e continuando a acompanhar o caminhar desigual do roliço comandante.
Balançando a cabeça vermelha, finalmente o urlogue parou e olhou para cima, encarando Azio com os olhos negros esbugalhados.
— Invadir o sistema de comunicação de uma andara intraespacial já é um crime que poderia deixá-lo por um bom tempo na prisão. — O comandante esticou um dedo gordo
para o peito de Azio, mas não teve coragem de tocá-lo. — Mas colocar em risco milhares de vidas é algo tão abominável que eu mesmo deveria agir como juiz e executor!
Ao lado da porta, dois enormes seguranças ronitas rosnaram ameaçadoramente, encarando-o com seus frios olhos fendidos. Um leve zunir denunciava que eles estavam
prontos para disparar cargas paralisantes dos chifres espiralados, caso o autômato dourado reagisse.
— Como eu disse — Azio complementou, impassível —, você devia, mas não vai. Caso não queira ser responsabilizado por milhares de mortes, está na hora de voltarmos.
O comandante cerrou o punho e inspirou profundamente, segurando-se para não desferir um soco contra o prisioneiro. Os melhores navegadores tentaram restaurar o comando,
mas o código binaliano que Azio usou para tomar o controle da nave era complexo demais para ser desabilitado. Sem opção, o comandante teria de permitir que aquele
ser metálico os levasse para onde quisesse.
— Você será condenado! — o comandante exclamou, cerrando os olhos para Azio. — Eu prometo!
Azio apenas piscou os olhos, indiferente às ameaças do urlogue.
O comandante suspirou novamente, com o semblante comprimido de raiva. Dando as costas para Azio, mancou em direção à porta.
Azio estava satisfeito. Apesar de ser tratado como um prisioneiro, na verdade, por sua causa, a nave Vostok é que era uma prisão para os demais passageiros. Azio
apenas tomou a chave e se tornou o dono da própria prisão.
Ao se abrirem as portas, uma multidão esperava, calada, do lado de fora. Estufando o peito, o comandante se virou uma última vez, dirigindo-se aos seguranças.
— Deixem que o nosso novo comandante nos guie!
Sem esperar, o urlogue saiu. Os seguranças ronitas deram um passo para trás, abrindo caminho para que Azio passasse. Sem expressar qualquer emoção, o gigante dourado
seguiu o urlogue enraivecido.
O que tinha feito era gravíssimo, um crime contra várias leis intergalácticas, mas Azio não se importava. Como faria para se livrar daquela situação era um problema
que teria de resolver depois. Agora, seu objetivo era atender ao pedido da princesa.
O autômato refletiu, indiferente aos olhares amedrontados e raivosos da multidão que o cercava.
Estou indo, Laryssa.
A Última Defesa
Planeta Kynis
No passado, Willroch e Kullat se enfrentaram várias vezes, mas aquela rajada do poeta era diferente, muito mais poderosa do que qualquer outra que Kullat já havia
recebido. A energia não era pura, continha micropedaços em seu interior, como se carregasse areia pelos feixes energéticos. A dor que trazia era nova também.
Volgo retomou voo rapidamente e se lançou contra o cavaleiro. Ainda no ar, disparou vários raios vermelhos contra Kullat.
O cavaleiro contorceu-se de dor ao ser atacado pelo mago e pelo poeta ao mesmo tempo. Tentou reagir, mas ambos continuavam o ataque. Volgo gritou e as incontáveis
tatuagens brilharam. Seus olhos ficaram tomados por uma escuridão macabra, tornando-se negros como alcatrão. Com o cajado, lançou uma rajada contínua de energia
vermelho-escura contra o peito de Kullat.
Kullat nunca havia sentido aquela energia antes. Era destrutiva e de uma força incomparável. Debilitado pela intensidade do ataque, o cavaleiro sentiu que sua energia
extra, vinda do Gaiagon, começava a desaparecer, como se fosse drenada rapidamente de seu corpo. Sem conseguir revidar, manteve a duras penas seu campo de força
natural — a única coisa que impedia que seu corpo fosse destroçado.
Desesperado, buscou por Seath. Precisava de ajuda e o Gaiagon era o único aliado que ele tinha agora. Kullat encontrou uma resga da mente de Seath, mas era um toque
tão longínquo e intermitente que quase lhe escapou. Gritando em pensamento, Kullat clamou para que Seath o escutasse. A resposta foi um urro insano que ecoou em
sua mente quando um Seath ensandecido se uniu à mente dele, como um turbilhão de destroços em uma enchente. Buscou encontrar alguma ordem no caos que era a mente
de Seath, mas não conseguiu. O Gaiagon estava fora de si, incapaz de esboçar qualquer reação.
Para não ser consumido pela loucura de Seath, Kullat interrompeu o contato mental, ainda com sua proteção natural resistindo bravamente às rajadas mágicas de Volgo
e Willroch. Mas, com o corpo esmorecendo rapidamente, sentiu que o pouco da energia que Seath havia lhe dado estava prestes a se esgotar. Se não fizesse nada, logo
seria vencido. Tentou um contra-ataque, mas a energia combinada dos inimigos o sufocava, impedindo-o até mesmo de se mexer.
Sem parar com o ataque violeta, Willroch bateu o pé no solo rochoso. Então um tentáculo espinhento surgiu e envolveu Kullat, rasgando-lhe as roupas e a pele. O cavaleiro
gritou, tentando impedir o abraço mortal. Totalmente dominado, sentiu suas forças chegarem ao fim.
— MORRA!! — Willroch gritou, exultante.
Depois de tantos anos, o momento de acabar com aquela antiga amizade havia chegado. Em seu íntimo, o poeta sentiu um raro momento de tristeza e melancolia. Mas foi
um pensamento breve, sobrepujado pelo saboroso prazer de saber que, finalmente, havia vencido. O tentáculo apertava Kullat cada vez mais e as rajadas terminariam
o serviço rapidamente.
Triunfante, Volgo continuou a atacar. Graças ao poder dos Espectros que residiam em seu próprio corpo, ele enfim destruiria aquele que tanto frustrara seus planos.
Com um grito de agonia, Kullat sumiu com um estampido, diante dos olhos dos implacáveis magos.
— Mas o quê...?! — Willroch gritou, interrompendo o golpe, perplexo pelo sumiço do cavaleiro.
Confuso, Volgo olhou ao redor. Em um momento Kullat estava na frente deles, quase moribundo, e, no instante seguinte, era como se tivesse deixado de existir. Antes
que Volgo pudesse pensar em uma explicação, um estrondo fortíssimo deslocou o ar com uma força inigualável, abalando os dois magos.
O terceiro feixe se rompeu e a última defesa de Chuilong foi liberada. Como um furacão, o deslocamento de ar atingiu Volgo e Willroch, carregando-os como grãos de
areia.
A onda de choque se propagou velozmente, reverberando no vale e chegando às montanhas longínquas, fazendo a neve deslizar, como se a própria cordilheira tivesse
se mexido. Avalanches furiosas desabaram dos altos picos, enquanto o som pulsante varria tudo em seu caminho.
Willroch e Volgo foram assolados pelo ataque. Cada um à sua maneira, um rubro e outro lilás, eles se protegeram em invólucros mágicos. Ainda assim, seus corpos foram
trespassados pela magia sonora, que rebatia em seus membros, vibrava seus órgãos e machucava sua mente.
Longe dali, para além do vale e subindo as montanhas, Bemor Caed estava preso a uma árvore, com o braço ainda coberto pela espuma cicatrizante. Thagir estava esperando
que o ministro acordasse para interrogá-lo, mas a onda de destruição os atingiu sem aviso.
A onda de choque passou por eles, deixando para trás Thagir e Draak caídos, confusos e feridos. O dragão gemia dolorosamente, com a asa direita pendendo, flácida.
Antes que pudessem se recuperar do golpe, a onda retornou em sentido contrário, arrastando-os novamente.
Willroch ia desfazer a magia de proteção, mas desistiu ao ver que Volgo reforçara o próprio casulo mágico. A onda sonora regressou com violência, como uma maré furiosa,
sugando tudo para dentro do Chuilong.
Volgo fincou o cajado no chão, segurando-se firmemente, enquanto Willroch criou tentáculos que penetraram fundo no solo.
Para Willroch, aquela foi a maior demonstração de poder que ele já presenciara na vida.
A Verdade que Esmaga
Ambos resistiram, até que o último som foi reincorporado pelo Chuilong. Imediatamente, uma enorme e reverberante batida se espalhou por toda a parede de pedras,
vinda diretamente do solo. Era como um bater de coração gigantesco, bombeando alto. O chão começou a tremer e a parede de pedras se moveu, subindo intensamente para
o céu e rasgando o solo como se fosse um papiro podre. Em instantes, a parede de pedra se desdobrou como um braço extraordinariamente grande, e uma enorme rocha
escura e pontiaguda se abriu, revelando quatro dedos feitos de puro minério. A imensa mão desceu dos céus e se espalmou no chão, apoiando um corpo pedregoso e gigantesco
que se elevava. O chão do vale continuou a se rasgar, revelando uma cabeça que emergia das profundezas do vale, seguida por um tronco de proporções monstruosas.
O fundo do vale foi reduzido a uma pilha de escombros em um buraco descomunal, enquanto um verdadeiro colosso se postava de pé, sobre grossas pernas feitas de pura
rocha. Veios de metal prateado percorriam-lhe o corpo e enormes pedras lascadas formavam placas basálticas, servindo como pele.
Nem mesmo Volgo, que já havia encontrado um Gaiagon antes, esperava que aquele fosse tão grande e assustador. Era como se uma montanha inteira tivesse criado vida.
Seath havia acordado.
Os três olhos, feitos de uma miríade de pedras preciosas, com três círculos concêntricos cada, acenderam-se em um brilho furioso.
O gigante abriu a bocarra, maior do que um navio, e emitiu um grito agoniado, raivoso e interminável.
Willroch engoliu em seco, certo de que aquela criatura era uma verdade que poderia esmagá-los apenas com um passo.
— Finalmente! — Volgo exclamou, triunfante.
Wa’Puma
Ao passar a onda de choque, Thagir e Draak, ofegantes, certificaram-se de que ambos estavam bem. O dragão, debilitado e ferido, estava deitado no chão, cabisbaixo.
Thagir bateu as mãos na própria roupa, retirando o excesso de poeira que o cobria.
— O que foi isso?
Draak alisava o focinho do dragão, acalentando-o como se o animal fosse um filhotinho.
— Eu não faço a menor ideia... — Draak respondeu, meneando a cabeça.
— Eu acho que o seu ministro pode nos dizer o que aconteceu — Thagir disse.
O pistoleiro virou para o local onde Bemor estava amarrado, mas, para seu espanto, a árvore estava quebrada ao meio e não havia mais nem sinal do prisioneiro.
— Ele fugiu! — Thagir gritou, sacando uma arma e olhando ao redor, à procura de uma pista de onde Bemor poderia ter ido. No entanto, o lugar estava tão bagunçado
pelas ondas de choque que não havia a menor possibilidade de encontrar alguma trilha. Draak se aproximou e, vasculhando o entorno, disse:
— Eu aposto que ele está indo até o rei — e apontou para longe, em direção à comitiva de Behemut. — Temos que ir atrás dele!
Thagir cofiou a barba, pensativo.
— Eu aceito a sua aposta, mas o meu palpite é que é para lá que o Bemor vai — e apontou para o fundo do vale, de onde havia vindo a onda de choque.
Preocupado, Draak refletiu em silêncio por um momento. Agora que Bemor estava desaparecido, a única coisa que lhe importava era a segurança do rei.
— Pelo visto, vamos ter de nos separar de novo — disse Draak, resoluto.
— Infelizmente, você tem razão — disse o pistoleiro, conformado.
Thagir olhou para o dragão, insatisfeito. Se pelo menos ele tivesse um meio de transporte, conseguiria chegar mais rápido ao fundo do vale. Mas, sem alternativas,
teria que apelar para a velha e boa corrida.
— Boa sorte, Daijin! — Draak exclamou, enfático, estendendo a mão em um cumprimento formal.
— Daijin não... — Thagir respondeu, pegando o pergaminho com sua nomeação na casaca e o entregando a Draak. — Me chame de amigo. E, por favor, me desculpe por tudo
o que fiz.
Apesar de ressentido, Draak reconheceu que Thagir havia tomado aquela atitude por um motivo justo. Ele suspirou fundo, pegou o papel com a nomeação e abraçou Thagir
com uma fraternidade renovada.
— Iqueróm Wa’puma, amigo! — Draak exclamou de coração aberto.
— Wa’puma, amigo! — Thagir respondeu.
Vale em Ruínas
Seath virou-se para Volgo com olhos iluminados por luzes fluidas, que giravam em círculos, encarando-o com uma fúria indescritível.
Urrando novamente, o colosso deu um passo em direção aos dois inimigos, reduzindo a distância entre eles pela metade. Outro passo, e a montanha selvagem de terra
e minério estaria sobre eles.
Willroch sentiu a garganta secar em um misto de medo e ansiedade. Ele sabia que, se os dois derrotassem o monstro, conseguiriam um poder inigualável, e essa cobiça
era a força que o movia para levantar voo, logo atrás de Volgo. Ao invés de se afastarem da criatura, os dois se aproximaram dela e rodearam o gigante de pedras
e terra que, em vão, tentou acertá-los com as mãos enormes, como alguém que tenta matar uma mosca rápida demais.
Volgo disparou uma rajada rubra contra o peito do colosso, abrindo um enorme buraco entre as placas de terra. No entanto, antes mesmo que Volgo pudesse sorrir, a
abertura se fechou.
Willroch também atacou. Fazendo os fragmentos de ovo de manticore das mãos pulsarem fortemente, lançou duas rajadas mágicas no dorso terroso, mas, como antes, os
danos foram imediatamente reparados. O poeta concentrou-se mais uma vez e disparou diversos espinhos violeta contra a perna de terra e mineral, que explodiram em
sucessão, destroçando uma grande porção de pedras, que dessa vez não se fecharam.
— Agora sim! — Willroch gritou, ziguezagueando e fugindo da criatura que urrava e tentava pegá-lo em pleno ar.
Enquanto o mago poeta atacava sem piedade, Volgo voava para fora da linha de visão do Gaiagon. Da ponta do cajado do mago, um brilho fraco pulsava, e o feiticeiro
murmurava palavras guturais ao mesmo tempo em que planava ao redor da criatura.
Os três olhos do gigante brilharam e um raio monstruoso surgiu. O poeta, em uma manobra arriscada, deixou-se cair e conseguiu escapar por pouco do ataque. Mesmo
assim, pôde sentir o calor da energia e viu o raio atingir o chão, transformando o solo em lava instantaneamente.
Concentrado, Willroch disparou uma nova saraivada de espinhos, dessa vez, contra os olhos do Gaiagon. Os espinhos explodiram, criando uma tempestade de faíscas que
rachou um dos olhos de Seath. O gigantesco Gaiagon urrou de dor e sacudiu a cabeça, levando a mão até o local, onde um líquido multicolorido jorrava como sangue.
Percebendo que a criatura não mais se regenerava, Willroch continuou a atacar a cabeça de Seath, criando novas explosões na face rochosa do colosso e transformando
sua aparência em algo horrendo e deformado. Volgo se mantinha fora do alcance do gigante, que se debatia desorientado, pisoteando o vale já destroçado e arruinando
os troncos nus do que antes era uma floresta verdejante.
Enquanto Willroch distraía a criatura com seus ataques explosivos, Volgo esquadrinhava o corpo do Gaiagon com sua magia. Agora que as defesas do Chuilong haviam
desaparecido, ele poderia encontrar o que procurava.
Ciente do poder das palavras, recitou um antigo encantamento, obtido centenas de anos atrás a um custo inimaginável para seres comuns. A ponta de seu cajado ganhou
mais brilho, como se a madeira estivesse em brasa, e uma fina linha surgiu, traçando uma reta perfeita até o braço esquerdo da criatura.
— Ataque ali! — Volgo gritou, alto o suficiente para ser ouvido por Willroch.
Perto do cotovelo do gigante, graças à magia de Volgo, era como se existisse uma camada feita de outro mineral, diferente de todos os demais que compunham o corpo
titânico da criatura.
Sem hesitar, Willroch concentrou seus ataques ali, fazendo novas explosões arremessarem terra, raízes e minério pelo vale destruído. Volgo também disparou, aumentando
os danos com rajadas vermelhas que obliteravam o cotovelo do sofrido gigante.
O Gaiagon tentou se afastar, cobrindo o local com a mão e dando passos gigantescos em direção à cadeia de montanhas ao longe. O chão tremia com violência a cada
passo de Seath, mas, indiferentes à destruição e à tentativa desesperada de fuga, os dois homens continuaram o ataque massivo.
Usando a energia mágica dos Espectros, Volgo criou um vórtice mortal de energia negra. Com a mão esticada para frente, usou o próprio corpo como fio condutor e liberou
a descarga mortal contra as costas da criatura. O golpe foi tão violento que, ao atingir o gigante, se desdobrou em dezenas de explosões, que se espalharam por seu
enorme corpo.
Com um som agoniante, saído de uma boca semidestruída, a montanha viva caiu ruidosamente de joelhos, espalhando uma nuvem de detritos e poeira. Ainda segurando o
cotovelo, o gigante emitiu um suspiro desolado e abaixou a cabeça. As rochas das pernas gigantes oxidaram, estalando enquanto enferrujavam, cobrindo de fuligem os
pés e as coxas. Enormes placas basálticas se desprenderam do peito, caindo estrondosamente e se quebrando ao se chocar com o solo devastado do vale. A terra que
formava os braços e o abdome ganhou uma coloração escura e um aspecto lamacento, como se o corpo do gigante estivesse sendo atacado por chagas doentias. Impotente
diante do inevitável, o corpo do Gaiagon se arcou e se desfez em enormes blocos de pedra e terra. Com um estalo horrendo, ele desmoronou.
As rochas que formavam a cabeça da criatura também se partiram, separando os três olhos em grandes pedaços, ligados entre si apenas por raízes secas. O olho vazado
estava totalmente opaco e sem vida. O segundo estava com os três círculos cinzentos e apagados. E, no último olho, dois outros círculos também haviam se apagado,
sem deixar nenhum vestígio de que um dia foram cheios de luz multicolorida. Apenas o círculo menor ainda brilhava fracamente, indicando que uma réstia ínfima de
vida ainda havia sobrado ao Gaiagon. A pouca terra restante se transfigurou em lodo, e a vida, a preciosa vida, transformou-se em silêncio.
Diante da queda do colosso, Willroch ficou em êxtase. Ele seria capaz de fazer uma poesia completa sobre como derrotara um dos maiores seres do Multiverso, pensando
já nos primeiros versos da ode que comporia em sua própria homenagem, relatando como havia subjugado um gigante no crepúsculo do dia, onde antes existia uma floresta
milenar. Ao pensar na floresta, lembrou-se também da linda Senhora de Castelo com orelhas de loba, que agora devia jazer entre o cemitério de troncos despedaçados
e rochas quebradas. A lembrança da beleza e do beijo dela lhe trouxe um gosto doce à boca, misturado a uma sensação de tristeza saudosa pela perda daquela bela mulher.
Apesar de sentir o júbilo da vitória, Volgo não conseguiu afastar a tristeza de ter matado outro ser daquela raça tão incrível. Mesmo tendo se convencido há muito
tempo que faria tudo o que fosse necessário para atingir seu objetivo, não conseguia ficar totalmente alheio ao mal que ele mesmo causava. Um leve soar de harpas
invadiu-lhe a mente, mas ele suspirou e conteve as lágrimas, esmagando com determinação o arrependimento antes que pudesse se instalar em seu coração. Focando o
pensamento, eliminou qualquer traço de emoção e se aproximou do enorme braço da criatura.
Murmurando palavras agudas, algo brilhou debaixo das toneladas de pedra e, com um silvo fervente, chacoalhou o solo. Em instantes, uma pequenina esfera vermelha
se arremeteu para fora dos destroços, espalhando rochas e lodo ao redor, flutuando no ar.
Volgo levitou até o local onde a esfera brilhava e mergulhou na lama o braço esquálido até quase o cotovelo. Triunfante, puxou o braço de volta, os dedos magros
segurando algo em um abraço sinistro. As tatuagens em seu corpo se agitaram e centenas de murmúrios surgiram delas, como se estivessem vivas. As pupilas do mago
se tornaram escuras como a noite e a voz cavernosa sibilou exultante.
— Agora ninguém mais vai conseguir me deter... — murmurou, absorto em sua obsessão. — Ninguém!
Apoiando-se no cajado, se levantou. Suas tatuagens não mais se mexiam nem sussurravam, as pupilas assumiram o aspecto envelhecido normal, o corpo estava novamente
seco como sempre, e a roupa rubra, em trapos, imunda de lama. Porém sua postura altiva e decidida demonstrava que ele ainda estava no comando.
— Vamos embora! — ordenou a Willroch.
O poeta ainda velejava solitário em seus delírios de grandeza.
— Mas e Kullat? — Willroch perguntou, após um instante. — Será que o matamos?
— Duvido — respondeu o mago, meneando a cabeça.
— E o que vamos fazer a respeito?
— Não há nada que possamos fazer agora.
Sem dizer mais nada, Volgo se lançou ao ar, afastando-se rapidamente.
Apesar de se sentir desconfortável com aquilo, Willroch aprendera uma coisa na vida: quando não se pode mudar algo, a única opção é aceitar. Em silêncio, levantou
voo atrás de Volgo, pensando em terminar seu poema épico dizendo que o seu rival de manto branco fugira, amedrontado.
Juntos, os dois homens sumiram no horizonte, deixando para trás os restos de um Gaiagon moribundo sobre um vale em ruínas.
Luz Mórbida
Se estivesse voando em um dragão, Thagir teria chegado rapidamente ao fundo do vale. Mas a pé e passando por aquele cenário destroçado, tinha de pular árvores, desviar
de rochedos e vencer largas rachaduras no solo.
Ele estava exausto e ofegante, mas mesmo assim não parou de correr.
Quando o sol já sumia atrás das montanhas, chegou ao centro do vale.
Ofegante, observou tudo ao redor, e o que viu o deixou chocado. O solo parecia ter sido rasgado por dentro e poças gigantescas de lama e lodo se misturavam a pedaços
enormes de rochas, restos de árvores e terra, emaranhados em cipós ressequidos.
Uma pilha colossal de pedras, que lembrava vagamente uma figura alquebrada de um gigante, formava uma montanha de destroços. Um brilho em uma enorme rocha fendida
chamou sua atenção e, com armas em punho, dirigiu-se até lá, onde viu três círculos concêntricos. Apenas o menor e mais central de todos ainda pulsava fracamente.
Thagir sentiu um arrepio ao encarar aquela luz mórbida. Era como se olhasse no fundo dos olhos de um moribundo.
Entre as Dimensões
Tempestuoso segurava o timão com firmeza. Os olhos enevoados miravam o horizonte sem qualquer emoção, apenas com a indiferença que dava ao jovem capitão uma aparência
apática. Em sua luta interior, ele tentava se lembrar de algo a que pudesse se apegar, algo que pudesse lhe dar forças e que servisse como ferramenta para quebrar
o feitiço de controle de Volgo. Era um exercício frustrante, mas ele não perdia a esperança de, um dia, encontrar, em sua própria mente, a chave que o libertaria
de sua prisão.
A bússola escudo-espada já estava fixada no timão e os círculos de navegação apontavam a entrada para os Mares Boreais. As pinturas vivas andavam pelo convés, ajustando
os últimos detalhes para a passagem, em uma rotina já conhecida e comum aos que viajam pelos Mares Boreais. Um vento sobrenatural inflava as velas negras, que lembravam
asas de dragões, e mantinham a velocidade constante do navio. Em poucos momentos, sairiam definitivamente de Kynis.
Willroch estava sentado na proa, comendo uma fruta e olhando para o mar, pensativo. O poeta tinha uma pena e alguns papéis amarelos na mão e, entre uma mordida e
outra, escrevia letras elegantes com afinco, passando a pena na boca de vez em quando, como se estivesse em dúvida sobre qual palavra usar. Sua ode seria fantástica,
e ele não pouparia esforços para torná-la perfeita.
Volgo estava sozinho em seus aposentos. O ambiente estava mais arejado e os jarros das trilobitas não estavam mais ali. As irmãs feiticeiras aproveitavam agora uma
nova vida, parasitando três elfi-dragões que Bemor havia raptado.
O mago, já limpo e com novos trajes rubros, estava sentado na cadeira de madeira. Com satisfação, olhava para o pequeno objeto que retirara de dentro do corpo do
Gaiagon: uma gema polida, menor que um punho fechado, negra como ônix. Finas rajadas de cinza e branco em sua superfície formavam um desenho de dois círculos entrelaçados,
sendo um deles incompleto, uma faixa maior lateral, seguida de outra um pouco menor, terminando em um ponto redondo alinhado ao centro das demais linhas. Aquele
era o selo que mantinha os Espectros presos na gema-prisão.
O feiticeiro se concentrou na gema, sondando seu interior. Suas tatuagens brilharam com o esforço, sem surtir efeito contra aquele selo protetor, cuja magia antiga,
forte e absoluta, era intransponível. Era como a gravidade que mantém os planetas em órbita — invisível, cósmica, feita das mesmas forças que formam os Mares Boreais,
e que pulsava radiante diante do feiticeiro.
— Tenho um recado do capitão.
A frase o fez piscar, como se acordasse de um transe. Irritado pela intromissão, o feiticeiro deixou a pedra na mesa e virou para a porta. Um marujo, fino como uma
folha de papel, estava parado do lado de dentro da cabine.
— O capitão mandou avisar que estamos quase entrando no portal — disse a criatura, imóvel.
Volgo apenas assentiu, dispensando o marujo com um gesto rude. O fino corpo se esgueirou pela fresta da porta fechada e, assim como entrou, saiu, sem fazer barulho.
Um forte balançar, acompanhado da sensação única de deixar de existir por um ínfimo momento, indicou que o navio estava prestes a entrar no portal. Em poucos instantes,
eles seriam transportados para a camada entre as dimensões, conhecida por todos como Mares Boreais.
No Infinito
Kullat abriu os olhos com a certeza de que, daquela vez, estava morto. Parecia que estava acordando de um longo sono no qual a própria vida fosse um sonho. Em vez
de se sentir desesperado ou aflito, aguardou sem medo o início da peregrinação pelo deserto vermelho, onde encararia os enigmas do além-vida e, se fosse digno, entraria
pelos portões da cidade de prata, onde Khrommer o receberia para passarem juntos o resto da existência, em paz.
Mas algo estava diferente. As roupas eram as mesmas que ele estava usando na batalha contra Volgo e Willroch, e o corpo todo reclamava. A túnica rasgada e suja,
com buracos nas mangas, cobria-lhe o tronco dolorido. Ele passou a mão no cavanhaque e sentiu pequenas manchas de sangue coagulado. A pele ardia um pouco, queimada
pelos ataques de Willroch e de Volgo, em um desconforto brando. Contudo, o que mais o incomodava era a estranha sensação de peso que sentia, como se seu corpo fosse
puxado para baixo por uma força gravitacional invisível.
Ao longe, uma figura pequenina se aproximou, flutuando, até chegar ao seu lado. Para seu espanto, era Nahra. A licana tinha o corpo envolto por uma camada de luz
dourada e dormia profundamente.
Ambos estavam flutuando em uma escuridão sem fim. Ao seu redor, estrelas surgiam no longínquo véu negro que os envolvia totalmente. Elas piscavam, permeando a escuridão
com pontos indistintos de luz. Planetas surgiam, apenas para desaparecerem em buracos negros. Nebulosas se formavam, gerando cor e formas gasosas diante dos olhos
arregalados de Kullat. Tudo girava num grande caos, lançando luz e escuridão, feito um caleidoscópio espacial.
Um sol prata brilhou fracamente, emitindo ondas de calor e luz pelo espaço. Dois planetas, um verde e outro azul, giravam ao redor do astro, num movimento rápido
demais para Kullat compreender as órbitas. O movimento dos três astros se intensificou, e uma supernova explodiu, cegando o cavaleiro por um instante.
Quando abriu os olhos novamente, estava diante de três círculos uniformes. Outro brilho se fez e, usando a matéria escura e cintilante como barro, formou um rosto
conhecido ao redor dos olhos gigantes, flutuando como ele e Nahra.
— Seath! — Kullat exclamou, perplexo.
Estou morrendo, pequenino.
A voz não passava de um murmúrio, que trazia consigo dor, sofrimento e cansaço. Ao ouvi-la ecoar em sua mente, Kullat sentiu um misto de alegria e confusão. Os pensamentos
lutavam para encaixar as peças do enigma: Onde ele estava? Estava vivo? O que Nahra estava fazendo ali?
Pouco tempo...
Kullat sentiu o Gaiagon se conectar de novo à sua mente. Mas dessa vez foi Seath quem compartilhou memórias e pensamentos. Por esse elo mental, o Gaiagon o acalmou,
explicando que sua morte era apenas o começo de uma nova fase ao lado da Grande Entidade, mas que aquilo não tinha importância diante do perigo que todo o Multiverso
estava correndo.
Com uma enxurrada de pensamentos, Seath explicou o que havia acontecido desde que transportara os corpos físicos dele e de Nahra para aquele local — uma fenda boreal
onde a Maru da matéria vibra de forma diferente. Seath manteve Nahra dormindo, porque nem todos os segredos do Multiverso devem ser compartilhados, mesmo entre pessoas
de boa índole.
Dando continuidade àquela comunicação mental, repassou uma torrente de acontecimentos, a começar por sua própria batalha com Volgo e Willroch, até sobre a destruição
de seu corpo físico. Mesmo sabendo que o cavaleiro não compreenderia nem lembraria de tantas informações, Seath continuou a repassar uma série de conhecimentos sobre
sua vida pregressa para Kullat. Alguma parte daquele conhecimento poderia representar a diferença entre a continuidade ou não da existência do Multiverso.
O turbilhão de informações continuou fluindo, mas aos poucos foi se tornando mais fraco, com informações incompletas e desconexas. À sua volta, o próprio universo
ficou menor, com áreas mais escuras e desoladas, sem qualquer ponto luminoso.
Os imensos olhos piscaram em descompasso e Kullat sentiu que o Gaiagon estava se perdendo. Conforme os instantes se passavam, a conexão mental diminuía em força
e vibração. O tempo do Gaiagon estava se esgotando, mas ainda havia algo a compartilhar. Algo que o Gaiagon dera a própria vida para proteger.
Kullat e Gaiagon
Do olho central, um brilho surgiu, flutuando diante de Kullat. A luz penetrou o peito do cavaleiro, e uma sensação de compreensão plena o assolou.
A esperança e a Verdade
sobreviverão em você.
Seja um guardião
melhor do que nós...
Kullat tinha lágrimas nos olhos. Sua vontade era pedir perdão ao gigante por ter falhado com ele, assim como falhara com seu irmão Meath, em Oririn. Sua dor foi
ainda maior ao sentir um último pensamento, repleto de perdão, vindo de Seath.
Obrigado... pequenino...
Ali, no infinito, os olhos piscaram fracamente, em um tom acinzentado, e se apagaram por completo. O rosto cósmico do Gaiagon se transformou em uma luz azulada,
que encobriu o cavaleiro e a licana.
Sentindo o corpo cair, Kullat lutou para se aproximar da amiga, mas, apesar de todo o seu esforço, não conseguiu vencer a força que os puxava para baixo.
Sem Volta
Mares Boreais
Sozinho na cabine, Volgo suspirou pesarosamente. Fechou os olhos, tentando em vão não experimentar a sensação de perda, que já lhe era familiar, ecoando em sua mente
e criando um vazio em seu coração.
Mesmo sem querer, não conseguiu resistir à tristeza que lhe assolou o espírito quando finalmente o Gaiagon morreu. Ainda que ele soubesse que aquele sacrifício era
necessário, destruir um Gaiagon lançava um peso ainda maior em seus ombros.
Com pesar, o mago respirou profundamente, focando a mente no futuro, onde todos os seus pecados não teriam a menor importância. Abriu os olhos, viu a gema espectral
à sua frente e se animou novamente.
Quando conseguisse abri-la, absorveria no próprio corpo as dezenas de Espectros ali aprisionados, e, com eles, finalmente teria poder suficiente para cumprir a etapa
final de seu plano, criado há mais tempo do que queria se lembrar.
Ao tocar novamente a pedra, sua mente se negou a acreditar em seus sentidos. A gema estava fria, sem qualquer energia, e com pequenas rachaduras na borda. Como em
Urthadar, a gema perdeu a cor e esfarelou-se na mão magra do feiticeiro. Nos recônditos de sua alma, o feiticeiro sentiu o ódio de alguém que é enganado.
— Maldição! — Volgo praguejou, correndo para fora da cabine, enquanto o pó de pedra escorria por seus dedos. — TEMPESTUOSO, VOLTE! VOLTE PARA KYNIS, AGORA!
O grito ecoou pela imensidão boreal, sem resposta.
Aqui e no Infinito
Planeta Kynis
Já era noite, mas Thagir permanecia no vale arruinado, olhando tristemente para o fraco brilho naquele olho de pedra. Sem ter mais nenhuma pista e exausto por tudo
o que havia passado, remoía a raiva e a frustração.
Estava perdido em pensamentos quando a luz tremeluziu uma última vez. Ao ver o fiapo de luz se apagar, foi tomado repentinamente por uma sensação de perda tão intensa
que os demais sentimentos foram sufocados pela dor que inexplicavelmente afligiu sua alma.
Sozinho, diante do vale arruinado e do corpo destruído de Seath, ele baixou a cabeça e, pela primeira vez desde que chegara a Kynis, deixou as lágrimas rolarem abundantes
pelo rosto fadigado.
O sentimento pela perda do Gaiagon, apesar de ser sentido em todo o Multiverso, foi tremendamente mais intenso para Thagir. Para o pistoleiro, foi como uma avalanche
de desolação.
Ainda com a visão embaçada, viu uma imagem grande, quase da sua altura, cintilar alguns passos à sua frente, antes de desaparecer por completo. Em seu desespero,
pensou ser um truque da mente, mas um som áspero, como o de metal se quebrando, anunciou uma nova imagem, idêntica à primeira, mostrando que ele estava errado.
Sacou seu revólver e o apontou para a luz que flutuava diante dele. Era uma forma multicolorida, retangular e vítrea, como uma janela, com um borrão branco no centro
e uma massa cinzenta na parte inferior. Para seu espanto, a imagem se multiplicou, criando um rastro de outras imagens atrás de si, criando infinitos reflexos, que
causavam uma sensação de movimento, embora cada um deles estivesse imóvel. Em um rompante, as várias janelas se uniram novamente, em um brilho cegante.
Thagir protegeu os olhos com os braços e, quando conseguiu ajustar a visão novamente, não acreditou no que viu.
Um homem encapuzado, vestido com uma elegante e resplandecente túnica, flutuava majestosamente à sua frente. Labaredas brancas, com pequenos flashes laranja, erguiam-se
dos punhos fechados. Um manto espectral longo lhe cobria os ombros, dançando suavemente à medida que ele descia. Uma mulher, de curvas exuberantes, estava deitada
aos seus pés, envolta em uma fina camada de luz.
— O que é isso? — o pistoleiro perguntou, perplexo, apontando a arma para ambos. — O que está acontecendo aqui?
Confuso, Thagir pensou que aquele poderia ser um truque de Volgo, ou, embora ele não acreditasse, o fantasma dos amigos.
O encapuzado o encarou com os olhos brilhantes. Por um momento, não disse nada, apenas respirou fundo. As chamas nos punhos se apagaram, deixando um rastro prata
no ar.
— Thagir? — A voz era familiar.
O pistoleiro deu um passo para trás, engatilhando a arma e apontando para a cabeça do encapuzado. Então apontou outra arma para a mulher, que parecia dormir profundamente
aos pés do estranho.
— Quem é você?
Se aquele fosse um fantasma, não se importaria com uma bala no meio da testa. Mas, se fosse um truque de Volgo, então aquele homem se arrependeria amargamente.
— Sou eu... — o homem respondeu e, levantando as mãos em sinal de paz, retirou o capuz. Os cabelos brancos nas têmporas estavam desalinhados e o cavanhaque parecia
maior, mas o rosto era de Kullat.
— Diga quem você é! — berrou o pistoleiro, já com lágrimas nos olhos. — Por que está usando o rosto do meu amigo?
Kullat se aproximou lentamente. Vendo o desespero e a confusão no olhar do amigo, continuou:
— Anira ulume ine truam,* Tag,** meu velho...
— É... é você mesmo? — Thagir fraquejou, abaixando a arma.
Kullat se aproximou ainda mais e abriu os braços.
Sem conter a emoção de ver o amigo vivo, Thagir o abraçou, e Kullat retribuiu o abraço com força, feliz por saber que a amizade de ambos sobreviveria ainda por muito
e muito tempo.
— Eu achei... que você estivesse morto... — disse o pistoleiro, com a voz embargada.
— E estive, por um tempo — Kullat respondeu com sinceridade, liberando o amigo do abraço. — Mas Seath me salvou.
— Mas é impossível! — Thagir balançou a cabeça, descrente.
— Eu estou aqui, não estou? — Kullat retrucou.
Thagir não sabia o que dizer. Em vez disso, deu um soco forte no braço do amigo, como se para se certificar de que não era nenhuma invenção de sua mente.
— Primeiro quer atirar em mim — Kullat disse, fazendo uma careta de dor e levando uma das mãos ao local do soco. — E agora está me batendo? Que bela recepção essa
sua...
Thagir sorriu. Com certeza era o seu amigo que estava diante dele, mais vivo do que nunca. Seu coração ainda sentia o efeito da perda do Gaiagon, mas a alegria de
reencontrar o antigo parceiro transformou a força devastadora da vingança em um plácido lago de tranquilidade.
— Nunca mais me apronte uma dessas! — Thagir exclamou com o dedo em riste, mas com um sorriso preenchendo amplamente seu rosto.
— Eu também senti a sua falta — Kullat respondeu, devolvendo-lhe o sorriso e o soco.
Em seguida Kullat se ajoelhou ao lado de Nahra e passou as costas da mão suavemente no rosto dela.
— Como ela está? — Thagir perguntou, finalmente guardando o revólver em um coldre no peito.
— Agora está dormindo. Só vamos saber se ela está bem quando acordar. — Por um momento, Kullat ficou em silêncio, admirando a beleza da castelar. Então, com cuidado,
a pegou no colo.
— Eu não tive tempo de conhecê-la bem, mas ela me parece ser muito decidida.
— Sim, ela é — Kullat respondeu, ainda olhando para Nahra, com carinho.
— O que houve com vocês? — Thagir perguntou. Mesmo feliz por ter o amigo de volta, precisava de uma explicação racional para tudo o que estava acontecendo.
— Houve muita coisa... Mas não temos tempo agora. Precisamos sair daqui.
Com Nahra nos braços, Kullat esticou as mãos e delas surgiu um brilho branco, com nuances alaranjadas e vibrantes. Incrédulo, Thagir viu partículas de pura luz sendo
lançadas dos dedos do amigo, agregando-se umas às outras, formando um animal de luz com quatro extensas asas arredondadas e o corpo grande o suficiente para carregar
os três.
— Eu não sabia que você conseguia fazer isso...
— Eu não conseguia — Kullat piscou para ele.
Com um impulso, flutuou para cima do animal, levando Nahra no colo. Com um faixo de energia, também arrastou Thagir pelo ar, até pousá-lo ao seu lado, sobre o animal
luminoso.
— Caso você não saiba, a guerra começou — o pistoleiro anunciou, pesaroso.
— Infelizmente eu sei... — Kullat respondeu, calando-se em seguida, também com tristeza.
O cavaleiro suspirou, olhando entristecido para os destroços ao redor e para a pilha de pedras, outrora o corpo de Seath. Em silêncio, agradeceu ao Gaiagon pelo
sacrifício e por seus novos poderes. Graças a ele, agora seu corpo podia reter muito mais energia, o que resultaria no fortalecimento ainda maior de seus golpes.
— Então, para onde vamos? — Thagir perguntou. — Falar com o rei Behemut, ou tentar algo com os treze menteri?
— Nem uma coisa nem outra. Nós vamos voltar para o Conselho. Temos algo muito maior que uma simples guerra em nossas mãos.
Kullat atiçou o animal de luz, que bateu as asas com uma rapidez incrível, saltando velozmente no ar.
Notas
* “Amigos sempre, aqui e no infinito.”
** Apelido de Thagir, usado apenas pela família e por Kullat.
Um Último Golpe
Durante a viagem de volta, Kullat contou tudo o que havia acontecido. Desde como Seath o salvara no hospital, sua passagem pela Torre Corilus um pouco antes de ela
se desintegrar e, finalmente, como ele e Nahra foram até o local onde ficava Chuilong, cenário da luta contra Volgo e Willroch.
Explicou-lhe também que o Gaiagon decidira transportar seu corpo físico para um lugar seguro, já que, mesmo que vencesse um dos inimigos, o outro ainda teria chance
de matá-lo.
— Seath decidiu que a gema precisava de outro portador — disse Kullat —, capaz de defendê-la em vez de simplesmente escondê-la. — E, ao dizer isso, apontou para
o próprio peito. Thagir ouviu o amigo sem interromper. — Seath ainda conseguiu enganar o Volgo, fazendo uma réplica da gema espectral.
— Um enganador sendo enganado — Thagir comentou. — Irônico, mas justo.
O cavaleiro suspirou.
— Infelizmente, suas últimas energias foram usadas para manter a ilusão da pedra falsa, até que o Volgo tivesse atravessado o portal dos Mares Boreais.
— Tenho certeza que esse sacrifício não será em vão — Thagir concluiu, confiante.
Depois que Kullat acabou de dar suas explicações, foi a vez de Thagir contar tudo o que lhe acontecera desde a “morte” de Kullat. Ele descreveu a guerra nos corais
e sua luta com Draak. Contou também sobre o voo de dragão até Bemor e como havia recuperado o bracelete, apesar de danificado. Por último, narrou a onda de choque
que libertou Bemor e a corrida de Draak atrás do ministro, enquanto ele mesmo ia atrás de Volgo, mas, em vez do mago, encontrou Kullat e Nahra.
Com todos os fatos compartilhados, a dúvida agora era: O que eles fariam com a gema? Aquela era uma pergunta para a qual ainda não tinham resposta.
Pensativos, continuaram a viagem de volta, com Nahra ainda adormecida ao lado deles.
Pelo tratado assinado entre o Conselho de Nopporn e as duas maiores nações de Kynis, a pequena ilha de Mali-Otokk não era apenas a sede do Conselho Regional dos
Senhores de Castelo, mas também um território neutro, e atacá-la seria um grave crime de guerra contra a própria Ordem. Além disso, defesas mágicas e tecnológicas
desencorajavam qualquer tentativa de retaliação.
Por isso, apesar de a guerra entre maatianos e as-tanysianos continuar, não havia ocorrido nenhuma tentativa de invasão a Mali-Otokk. Era tarde da noite quando Kullat,
Nahra e Thagir chegaram ao porto de entrada da ilha. Graças à tatuagem fantasma, o cavaleiro e seus amigos não foram barrados nem atacados enquanto o construto de
luz descia até o pátio principal do castelo, sobre as cascatas montanhosas.
Sem nem se fazer anunciar, Thagir abriu a enorme porta de madeira talhada, dando espaço para Kullat entrar com Nahra. Ela ainda estava adormecida, e o cavaleiro
não conseguia esconder sua preocupação com ela.
— Ela já devia ter acordado — disse para Thagir. — Acho que tem algo errado.
Um rapaz sem nariz, de pele acobreada e cabelos castanhos, lançou um olhar inquisitivo para os recém-chegados pela fresta estreita em uma porta de metal. Quando
reconheceu Kullat e os demais, abriu a porta. Kullat também o reconheceu. Era o mesmo que o havia acompanhado até o salão de refeições, no primeiro dia em que chegara
a Kynis.
— Que bom que os senhores voltaram! — A aparência do rapaz denunciava que ele não dormia bem havia alguns dias.
— Obrigado, mas precisamos levá-la até o centro de cura! — exclamou Thagir apressado, apontando para a mulher nos braços de Kullat.
O rapaz fez sinal para que o seguissem e disparou castelo adentro.
Pouco depois, Nahra já estava deitada sobre uma espécie de cama metálica, respirando profundamente. Uma pirâmide de metal, flutuando no ar com a ponta para baixo,
lançava luz sobre seu corpo. Ao lado da cama, uma tela oval recebia os sinais da pirâmide e mostrava o resultado da varredura de suas funções cerebrais, lesões corporais
e linhas vibracionais de Maru.
Kullat e Thagir observavam pelo vidro, do lado de fora da mesa de exames, todos os movimentos dos raios de luz que cobriam o corpo da bela licana.
A pirâmide rodopiou no ar e, com um barulho agudo, pousou em uma base, encaixando-se perfeitamente em um espaço na cabeceira da mesa. Um senhor de pele escura e
manchada, de cabelos grisalhos e uma expressão séria, apertou alguns desenhos na tela oval, olhando os dados com genuíno interesse. Apertou novamente algumas imagens
e a pirâmide voltou a flutuar, repetindo a sondagem.
Esse processo se repetiu mais duas vezes. Balançando a cabeça, o operador da mesa destacou uma parte da tela, se levantou e abriu a porta para que Kullat e Thagir
entrassem.
— Então, o que conseguiu descobrir? — Kullat perguntou, aflito.
O operador lambeu os lábios e inspirou fundo. Olhando para a tela nas mãos, alisou o rosto experiente com uma expressão de dúvida.
— Está dizendo aqui que, apesar das escoriações, fisicamente ela está bem. Seu organismo está saudável, embora precise repor algumas vitaminas. Não há sinais de
fraturas ou anomalias nos órgãos vitais. — As informações da tela mudavam a um toque de dedo. — Foi detectada apenas uma lesão no ouvido esquerdo, mas não é nada
grave. Também não há nenhum vestígio de danos cerebrais. Comparando os resultados dos exames da Ordem com este aqui — ele sacudiu a tela —, o organismo dela está
conforme o esperado.
— Mas, então, o que ela tem que não acordou ainda? — Kullat esfregava as mãos enfaixadas, nervoso com o diagnóstico.
— Nada. Ela só está dormindo. Um sono mais profundo, mas não corre perigo. Vamos ter que observá-la por um tempo antes de administrar qualquer remédio. Se usarmos
o remédio errado, podemos piorar a situação. — As palavras saíram como um alerta, evidenciando o perigo da pressa.
— Mas...
— Não se preocupe. Pela análise da mesa, todas as frequências de Maru dela estão perfeitamente alinhadas à última leitura feita na Ordem. Vejam isso. — Ele apontou
para uma linha sinuosa, que oscilava graciosamente na tela. — Essa é a Maru mágica dela neste exato momento, e está tudo normal.
Kullat olhou atentamente para o monitor. Os dados na tela informavam que nada estava fora da normalidade.
— Ela precisa descansar — o operador disse com a voz calma. — Vou deixá-la aqui e monitorar suas funções vitais. Se algo diferente acontecer, chamo você na mesma
hora, combinado?
Mais tranquilo pela prontidão do operador, e sabendo que ali Nahra não corria perigo, Kullat concordou e deixou a enfermaria acompanhado do amigo pistoleiro.
Mais Problemas
— Preciso comer — disse Thagir, ao saírem da enfermaria.
— Essa frase não é minha? — Kullat indagou, com um leve sorriso.
— Eu realmente preciso comer — o pistoleiro retrucou, massageando a têmpora.
Estava cansado e faminto pela enorme travessia que fizera até o vale. A barriga revirava e a cabeça latejava.
— Vamos, eu sei onde tem comida.
— Eu ficaria surpreso se não soubesse!
Guiando o companheiro, Kullat foi na frente e rapidamente chegou à cozinha, que estava iluminada por um disco de vidro que emitia uma luz opaca.
Thagir ficou feliz ao ver que o rapaz sem nariz havia se antecipado e estava terminando de preparar uma ceia. Sobre a mesa de madeira, ele havia colocado um prato
com pão, uma cesta de frutas e uma jarra de suco. Também havia queijo branco e levarpos.* Sobre uma tábua escura, uma pequena cumbuca de cerâmica fumegava, contendo
sobras de cozido de carneiro.
O cheiro de ervas e temperos deixou Thagir com água na boca, e a barriga reclamou. O pistoleiro se sentou rapidamente e mergulhou um naco de pão no molho da carne.
Kullat agradeceu ao jovem e serviu suco ao amigo, que agradeceu com a boca já cheia.
Antes de sair, o rapaz tirou do bolso um pedaço de papel dobrado e o estendeu ao pistoleiro.
— Senhor Thagir? Esta mensagem é para o senhor.
Thagir reconheceu o selo de Newho na folha e imediatamente a pegou das mãos acobreadas do rapaz.
— Obrigado! Agora, se puder avisar a Sumo e Ulani que nós chegamos...
— Eu já cuidei disso, senhor.
— Você é um curin** muito eficiente, meu jovem — disse Thagir, satisfeito.
— Obrigado, senhor. — O rapaz ficou radiante e saiu, satisfeito com o elogio.
Thagir limpou as mãos em um pano antes de abrir o papel. Sua expressão estava séria. Kullat sentiu um frio na barriga ao ver a hesitação do amigo. Era como se quisesse
adiar ao máximo a leitura da mensagem, talvez por medo de que notícias ruins chegassem de Newho.
Mas, para sua surpresa e alívio, Thagir sorriu ao começar a ler a mensagem.
— O que foi? — Kullat perguntou, curioso.
— Leia você mesmo — Thagir respondeu, sorrindo e esticando o papel para o amigo.
O símbolo real de Newho despontava na parte superior da folha — um pequeno cristal envolto em ramos e cipós. Um símbolo igual ao do medalhão que Thagir usava. Mas
o papel estava repleto de rabiscos, os quais representavam a escrita de Newho.
— Eu não sei ler isso — Kullat respondeu, fazendo uma careta para o amigo.
Thagir riu da expressão do cavaleiro e depois tomou um gole de suco.
— Está vendo esta assinatura? — Thagir mostrou uma grafia fina e elegante. — É da Danima. Ela está dizendo que meu pai conseguiu ajuda de Olsa Muir. Com o reforço
do nosso exército, os invasores recuaram e nossas fronteiras não estão mais em perigo.
— Graças a Khrommer! — Kullat exclamou, sincero.
Radiante de alegria, Thagir encheu os copos de ambos de suco.
— Isso merece um brinde!
— Com certeza! — Kullat concordou. — Em meio a tantas perdas, pelo menos uma notícia boa!
Porém, antes mesmo de brindarem, a porta da cozinha se abriu repentinamente, assustando o cavaleiro, que se virou, com as mãos já brilhando.
— Eu disse! — a voz jovial ecoou pela cozinha. — Eu disse que ele viria para a cozinha!
Kullat sorriu ao ver Sumo, mas não teve tempo nem de se levantar, pois o rapaz correu até ele e o abraçou como um filho ao ver o pai que retorna de viagem.
— Cuidado com o suco, garoto! — Kullat disse, sorridente.
— Mestre! Você voltou! — Sumo exclamou, apertando os braços ao redor do cavaleiro.
Logo atrás do guerrin, vinha Ulani. Ela também estava satisfeita de ver os dois homens na cozinha. Apesar de seu semblante pesado denunciar que os últimos dias tinham
sido duros para ela, entregou-se ao momento e se aproximou sorridente, enquanto Slurg ziguezagueava ao redor de Thagir, soltando pios de felicidade. O bichinho tinha
a pelagem rosada [alegria; contentamento] e abria o bico diversas vezes, piscando os olhinhos enquanto se aninhava no ombro do pistoleiro.
— Também estou feliz em vê-los, crianças — Kullat disse, ao ser solto do forte abraço de Sumo. — Que bom que vocês estão bem.
Sumo também abraçou Thagir, enquanto Ulani fez uma mesura para o pistoleiro.
Todos se sentaram à mesa. Sumo falava rapidamente, fazendo perguntas e mais perguntas. Kullat respondeu a todas com calma, omitindo apenas a morte do Gaiagon, pois
imaginou que aquele não era o momento para compartilhar tal informação.
Após ouvir todo o relato do cavaleiro, os guerrins, por sua vez, disseram que chegaram bem até a sede. Ulani explicou que havia conseguido manter contato com a enfermeira,
Naity-Gael, para saber de Cyrvil, mas que todas as tentativas de se comunicar com os menteri haviam sido em vão.
— Nós tentamos avisar a Veryna e aos menteri sobre os traidores da Guarda Azul, mas todas as nossas mensagens estão sendo ignoradas desde que a guerra começou. Só
conseguimos captar algumas transmissões esporádicas da guarda civil. E uma delas falava que a Torre Corilus tinha sido derrubada!
Thagir e Kullat ficaram em silêncio. Kullat sabia que Veryna estava no hospital militar na Torre Corilus para ser tratada da explosão, mas, com a queda da torre,
era praticamente impossível que ela tivesse sobrevivido.
— É verdade — Kullat disse, pesaroso. — Eu mesmo vi a queda da torre. Foi um desastre terrível!
— E foi por isso que a guerra começou — Thagir complementou.
— Alguma notícia do Conselho em Ev’ve? Vocês conseguiram pedir os reforços que eu requisitei?
— O Ancião Ur’Dar já havia partido — Ulani explicou. — Ele está a caminho daqui nesse momento. Mas conseguimos falar com a senhora Kim-moross e ela concordou em
mandar reforços.
Kullat meneou a cabeça.
— Então precisamos falar com ela de novo. Volgo não está mais aqui, e a guerra já começou. Então não há mais por que enviar reforços para cá.
— O senhor tem certeza, mestre? — Sumo questionou.
— Infelizmente, sim.
Thagir pousou o copo vazio na mesa, sentindo o estômago finalmente cheio. Depois de tanto tempo sem comer e beber, agora que estava saciado, o que o afligiu foi
o sono. Ele bocejou longamente e se espreguiçou.
— Não sei quanto a vocês — disse —, mas estou precisando dormir. E, como nada vai mudar até o amanhecer, é melhor todos nós descansarmos um pouco.
— Eu só tenho que falar com o Conselho antes, mas vou me deitar em seguida — Kullat disse, após um bocejo.
— Se me dão licença — Thagir se levantou —, vocês podem me encontrar lá em cima, em uma daquelas camas. Mas, por favor, só me acordem se a guerra chegar aos portões
do castelo, está bem?
Ulani assentiu e se virou para Sumo, que estava dando pedacinhos de queijo para Slurg.
— Sumo, será que você poderia acompanhar Thagir até o quarto ao lado do seu? Eu vou acompanhar Kullat até o salão de comunicações.
Sumo se levantou e seguiu contente ao lado de Thagir, com Slurg pulando do colo de um para o colo do outro.
— Eu sei que você está cansado — disse Ulani, falando com Kullat —, mas tem uma coisa que precisa saber.
— Ah, não... — Kullat suspirou, desanimado. — Mais problemas?
Ulani sorriu.
— Acho que desse problema você vai gostar de tratar.
Notas
* Creme feito de miúdos de grist, animal parecido com um porco, muito comum em Kynis.
** Quem trabalha para a Ordem, voluntário ou contratado.
Coração em Paz
A guerrina acompanhou Kullat até um corredor no andar térreo, onde ficavam os alojamentos dos curins.
— Tem certeza que não quer falar com o Conselho antes?
— Não mesmo! — Kullat estava animado e andava rápido. — Quando foi que eles chegaram?
— No começo da noite, em um barquinho — Ulani sussurrava para não acordar ninguém. — Eles falaram com os barqueiros da entrada da ilha e disseram que era um assunto
urgente e que precisavam muito falar com você. Estavam desesperados, exaustos e, pelo que disseram, passaram por alguns apuros para chegar até aqui. Um deles até
se jogou no chão, pedindo asilo em seu nome, senhor.
— Típico! — Kullat sorriu.
Ela parou no fundo do corredor, em frente a uma porta de madeira.
— Um deles tinha um corte feio no braço, mas já recebeu os cuidados necessários. Eles tomaram um banho quente, comeram quase uma panela cheia de guisado e depois
os acomodamos aqui.
Kullat ia abrir a porta, mas estancou, em um momento de indecisão.
— Tem certeza que são eles? Quer dizer... como você os descreveria?
— Bom... Um deles disse que você o conhece por Corning, e o outro... — Ela fez uma pausa, como se procurasse a palavra. — Bem, ele parece um pouco estranho...
Kullat não teve mais dúvidas. Seus amigos tinham conseguido escapar. Ele abriu a porta com cuidado e a luz do corredor iluminou fracamente o pequeno quarto, onde
duas camas estavam ocupadas. O cavaleiro ficou parado, olhando para os homens que dormiam tranquilamente. Então suspirou aliviado, fechando a porta.
— Obrigado, Ulani querida!
Kullat abraçou a guerrina, com o coração novamente em paz. Surpresa, ela retribuiu o abraço, pois, apesar de não querer demonstrar, também estava precisando de acalanto,
uma vez que seu mestre, Draak, a abandonara à própria sorte e, o que era pior, sua mestra, Cyrvil, estava sozinha no hospital, perto daquela guerra horrível.
Mais relaxado por saber que seus amigos estavam bem, Kullat sentiu um bocejo crescer dentro de si e, sem conseguir contê-lo, bocejou largamente.
— Não quer deixar para falar com o Conselho amanhã de manhã? — Ulani disse, olhando para o cavaleiro com afeto.
— Querer eu quero, mas é melhor acabar logo com isso.
Pagamento
As esferas-T zuniram no teto da sala de comunicação enquanto Kullat ajeitava a túnica nos ombros. Sem capuz, o cavaleiro alisou o cavanhaque, enquanto esperava a
imagem se formar à sua frente.
— Wua sa laí,* Domo Shoujin Kullat! — A voz era infantil, mas carregada pela formalidade das palavras.
O som veio acompanhado da imagem da mulher-criança Kim-moross. Kullat se curvou em respeito, com as mãos próximas ao corpo, conforme a etiqueta de tratamento entre
Senhores de Castelo e Anciões.
— Wua sa ibiú,** Gaijin Kim-moross — ele respondeu formalmente, ainda curvado.
Kim-moross esperou o cavaleiro terminar o cumprimento, piscando os olhos sem íris, com atenção.
— Fiquei surpresa ao ser chamada para atendê-lo, embora imaginasse que, cedo ou tarde, entraria em contato — ela ajeitou os cabelos e cruzou os braços delicados
à frente do peito. A imagem era nítida, como se estivesse pessoalmente na sala. Kullat percebeu que ela continuava a sorrir. — Fico feliz em vê-lo bem novamente.
— Obrigado, armeira-mor — Kullat respondeu, com um leve aceno. — Também fico feliz em vê-la.
— Você parece muito bem para um morto — ela sorriu, ao notar que os trajes do cavaleiro estavam impecáveis, quase resplandecentes, como se brilhassem mais que o
normal.
— Parece que a minha morte foi um verdadeiro evento! — Kullat retribuiu o sorriso.
Kim-moross riu e meneou a cabeça, como se repreendesse Kullat.
— Quando a guerrina Ulani nos contatou e explicou o que tinha acontecido, ficamos todos mais tranquilos.
— Fico honrado pela sua preocupação — ele disse, com evidente satisfação. Mas seu semblante voltou a ficar pesado ao lembrar do motivo do contato. — Contudo, senhora,
temo que tenha más notícias.
— A guerrina Ulani já nos contou sobre o atentado que os atingiu. Não precisa se preocupar, o general Ur’Dar já está a caminho com um destacamento diplomático para
ajudá-los.
— Infelizmente, creio que a viagem dele será inútil. A guerra começou esta manhã.
A expressão de Kim-moross se alterou. Os olhos piscaram por um instante e um silêncio pesaroso se formou.
— Então fracassamos... — ela afirmou, consternada.
Ele suspirou e assentiu. Em seguida, explicou tudo o que havia acontecido. Falou com convicção, consciente de que todos haviam feito o possível para evitar a guerra,
mas que os esforços, infelizmente, foram insuficientes. Cada frase do cavaleiro era como um golpe no coração da armeira-mor, que ouvia tudo em silêncio. Seus grandes
olhos eram janelas para a sua alma, revelando toda a dor causada pela perda de vidas de forma tão estúpida e brutal. Kullat contou tudo, desde o início da guerra.
— Essas notícias são terríveis, meu caro Kullat — disse ela, enxugando os olhos com um delicado lenço. — Vou convocar imediatamente um Omesh para decidirmos o que
fazer!
E abriu um pequeno compartimento, pronta para apertar o botão que convocaria outros quatro Anciões para uma reunião emergencial.
— Espere, Gaijin! Essa guerra e tudo o que lhe contei até agora são apenas o começo! — Kullat disse, interrompendo-a. — Gaijin Kim-moross, respeitosamente afirmo
que um Omesh não será suficiente. O que aconteceu depois é tão mais importante que tenho certeza absoluta de que vamos precisar convocar um conclave Gamesh. — E
abaixou a cabeça, cerimonioso.
— Reunir todos os Anciões? — Kim-moross ficou com a pequenina mão paralisada no ar, em silêncio, analisando o pedido do cavaleiro. Um conclave Gamesh só é estabelecido
quando um Senhor de Castelo encontra ou descobre algo de extrema importância, cujas consequências podem ser significativas. Ela sabia que Kullat tinha discernimento
suficiente para saber quando realizar tal solicitação, principalmente sendo um Domo Shoujin. — Por qual motivo?
Kullat encarou a mulher-criança com seriedade.
— Eu presenciei o assassinato de um Gaiagon — ele levantou o braço e afastou a manga da túnica, virando o pulso em direção às esferas-T. — E eu mesmo me tornei um
guardião de Espectros...
Kim-moross viu, abismada, que uma joia negra estava cravada no antebraço do cavaleiro, como se fizesse parte de seu próprio corpo.
Mesmo sem ter mais detalhes, ela sabia que aquilo era verdade. Ela própria havia sentido um mal-estar na alma, algo longínquo, mas, ainda assim, relevante. Era como
se um pedaço do Multiverso tivesse, simplesmente, deixado de existir. O motivo estava ali, à sua frente.
— Esse assunto é muito sério. Prioridade branca! — Kim-moross exclamou com seriedade. Apesar de confiar na segurança das esferas-T, era protocolo que assuntos de
extremo sigilo, classificados como prioridade branca, não fossem tratados por comunicadores. — Reunirei todos aqui o mais rápido possível. Convocarei todos os que
estão fora de Ev’ve, incluindo o general Ur’Dar, e explicarei a situação — ela disse, aproximando-se do transmissor. — Não fale mais nada sobre isso com ninguém!
— e apontou o dedo para ele. — Venha para Ev’ve imediatamente.
— Assim será feito, nobre Kim — Kullat se curvou novamente.
— Kullat — a armeira-mor complementou, juntando as mãos, preocupada. — Você agora é a pessoa mais importante em todo o Multiverso, então se cuide. E isso é uma ordem!
Kim apenas piscou e desapareceu. Quando a imagem se apagou, Kullat suspirou, preocupado, sentindo o peso da responsabilidade que ganhara de Seath. No entanto, estava
tão cansado que o único pensamento que lhe ocorreu foi o de ter uma boa noite de sono. Quando chegou ao quarto, lavou-se rapidamente e caiu na cama, dormindo quase
no mesmo instante.
Na manhã seguinte, um barulho, como uma explosão, fez Kullat pular da cama, assustado. Entorpecido de sono, levou alguns momentos para lembrar onde estava. Um outro
som de explosão reverberou do lado de fora.
Parecia que a guerra havia chegado aos portões de Mali-Otokk.
Notas
* “Meu eu o saúda.”
** “Meu eu lhe deseja o dobro.”
O Fogo da Alma
Kullat saiu do quarto voando, com os punhos cerrados, emanando labaredas brancas. Alguns curins corriam pelo corredor, assustados. O cavaleiro diminuiu a velocidade
e flutuou ao lado da menina sem nariz.
— O que está acontecendo?
— Londra Maar! — ela exclamou desesperada, em uma língua que Kullat desconhecia, apontando em direção ao pátio externo. Amedrontada, ela correu para longe.
Kullat disparou pelo corredor, voando acima dos ajudantes, até chegar em uma das saídas para o pátio. Lá, chocou-se contra uma parede de ar quente, tão abrasadora
quanto o bafo de um dragão. Pousando sobre a soleira, viu que Sumo estava nos pés da escada, suando, fazendo movimentos harmônicos com os braços, balançando seu
cajado, enquanto usava seus poderes de manipulação de água.
Uma névoa branca pairava sobre o jardim, e o cavaleiro teve de fechar os olhos para distinguir o cenário, através da cortina de vapor. A fonte na qual meditara noites
atrás estava completamente seca, e as árvores estavam em brasas. Os tubos transparentes que canalizavam a água para os nichos das árvores estavam retorcidos, soltando
vapor. No meio da nuvem escaldante, havia uma silhueta feminina.
— Ulani? — Kullat exclamou, ao reconhecer a jovem krematiana. — Mas o que é que está acontecendo?
A guerrina tinha os olhos em brasa e a pele inteira estava vermelha, emanando micro-ondas que queimavam tudo ao seu redor. O calor era tão intenso que os bancos
e mesas do jardim entraram em combustão e uma estátua derreteu, tornando-se uma massa disforme.
Tubos de irrigação explodiram, jorrando mais vapor ainda no jardim e encobrindo-o inteiramente. A nuvem de vapor se intensificou e se espalhou, avançando como uma
onda cheia de espuma em direção ao castelo.
Era como se o fogo de sua alma tivesse se transformado em uma maré vermelha de chamas e varresse tudo ao seu redor.
Sumo se moveu ainda mais rápido, agitando os braços e rodopiando o cajado com dedos hábeis. Com os esforços do guerrin, a enorme nuvem branca parou, como se uma
parede invisível impedisse seu avanço diante do aprendiz dançarino.
Kullat percebeu o perigo e entendeu que era Sumo quem impedia a nuvem de continuar. Se o vapor incandescente entrasse pelas janelas, machucaria todos dentro do castelo.
O esforço era enorme e Sumo suava abundantemente, mas permanecia firme com seus movimentos, repelindo a neblina, que começou a subir. O jovem girou as mãos insistentemente,
até que todo o vapor sumisse, espalhando-se no ar.
Apesar de cansado, Sumo gesticulou novamente, fazendo a água dos canos arrebentados jorrarem em jatos fracos, criando uma leve chuva que refrescou todo o jardim
e dissipou o restante da nuvem de vapor.
Revigorado pelas gotas que caíam ao seu redor, o guerrin começou a andar em direção a Ulani. Perto da fonte derretida, a guerrina estava de joelhos sobre a grama
carbonizada, chorando descontroladamente, com os punhos apertados contra o peito. Sumo se aproximou, com passos cautelosos.
Kullat fez menção de acompanhá-lo, mas o guerrin fez sinal que se afastasse. O cavaleiro se manteve distante. Ciente do perigo que enfrentava, Sumo tocou no ombro
da guerrina, mas retirou a mão para não ser queimado por sua pele fervente.
— Eu sinto muito! — ele disse com sinceridade, apertando a mão queimada.
— Foi minha culpa... — ela murmurou de cabeça baixa.
A chuva continuava a cair. Fazendo uma proteção de umidade em torno da mão queimada, ele tocou novamente o ombro dela. Dessa vez, não se queimou.
— Não, não foi culpa sua — ele disse, agachando-se ao lado dela. A temperatura corporal da jovem diminuiu ao toque do rapaz e sua pele começou a perder o tom avermelhado.
— Não foi culpa de ninguém...
Ela olhou para Sumo. Sua maquiagem estava borrada e seus olhos transbordavam em lágrimas. Sumo concentrou a umidade em todo o seu corpo e a abraçou. Ela recebeu
o abraço com carinho e se entregou aos cuidados do guerrin.
Kullat assistiu a tudo com tristeza pelo sofrimento da jovem, mas com uma ponta de orgulho pela forma com que seu aprendiz agiu, controlando o incêndio e acalentando
o sofrimento da guerrina.
Pesaroso, o cavaleiro olhou para o jardim queimado, tentando imaginar o que tinha acontecido para que Ulani agisse daquele jeito. Sumo a pegou no colo e a tirou
do jardim, e Kullat os seguiu.
Por estar muito cansado, Thagir não ouviu as explosões no jardim. Algum tempo depois, acordou e tomou um banho demorado, algo que não fazia havia dias. Em seguida,
foi até a cozinha, esperando encontrar Kullat, mas seu amigo não estava lá. Pegou uma fruta azulada e foi para fora, encontrando o cavaleiro em pé, com uma expressão
séria. Para seu espanto, o jardim estava completamente carbonizado.
— O que é que aconteceu aqui? — Thagir perguntou, aproximando-se de Kullat e oferecendo-lhe um pedaço da fruta. — Fomos atacados?
Kullat recusou, o que deixou Thagir realmente preocupado.
— A Ulani teve uma althama....
O pistoleiro franziu a testa, analisando o tamanho da destruição.
— Deve ter acontecido alguma coisa muito grave para ela ter ficado com tanto ódio — Thagir complementou.
— Ódio não, frustração — respondeu Kullat, virando-se pela primeira vez. Thagir viu que os olhos do amigo estavam marejados. — Cyrvil... Ela morreu.
— O quê? — Thagir foi tomado pela surpresa. Chocado, deixou a fruta cair. — Mas não pode ser. Ela estava bem, eu mesmo vi! Ela estava bem!
Kullat meneou a cabeça, enxugou o rosto e respirou profundamente, antes de explicar.
— Naity-Gael contou que a queda da Torre Corilus cortou a energia do hospital, e os geradores auxiliares a vapor não funcionaram. Sem energia, a câmara onde Cyrvil
estava se desligou e ela... — Ele engoliu em seco e não terminou a frase. — Quando Ulani soube, não conseguiu aceitar que sua mestra tenha morrido por um motivo
tão estúpido — Kullat desabafou.
— Que terrível!
— Se eu não a tivesse mandado vir para cá — Kullat disse, fechando os olhos novamente —, talvez Ulani pudesse ter usado seu poder de calor para acionar os geradores...
Talvez ela pudesse ter salvado a Cyrvil... Talvez ela...
Kullat não conseguiu mais falar. Vendo o sofrimento do amigo, Thagir o abraçou como a um irmão. Tantas perdas e tantas mortes, tudo sobre os ombros de seu companheiro.
Eram fardos pesados demais para serem carregados por um só homem.
— Vamos entrar — disse Thagir, conduzindo o amigo de volta para o castelo e deixando para trás o ambiente destruído.
A Dívida e o Acordo
Ao se virarem, uma figura espalhafatosa surgiu na frente de Kullat e Thagir, pulando de alegria.
— Mestre Capuz! Mestre Pistola! Vocês vieram! — O Bobo pulou no colo de Kullat, rindo. Era como se o cavaleiro segurasse uma pena, tamanha a leveza do rapaz. Na
porta, corado de vergonha pela atitude do amigo, estava Corning. Kullat colocou o Bobo no chão, agradecendo a Khrommer por ambos estarem bem. Em meio a tanta tristeza,
seu coração ficou mais leve.
O Bobo começou a dar piruetas no ar, saltando sem encostar as mãos no chão.
— Por Khrommer, ele não muda nunca? — Kullat perguntou, sorrindo ao ver as peripécias do Bobo.
— Cada dia pior — disse Corning, aproximando-se.
— Acho que vocês precisam conversar um pouco — Thagir interrompeu, indicando a entrada de uma pequena sala, ao lado da saída do jardim.
O Ladrão, o Bobo e Kullat entraram na saleta, fecharam a porta e sentaram-se em cadeiras almofadadas.
— Fico muito feliz em vê-los bem — Kullat começou. — Confesso que estava com muito medo de que algo ruim acontecesse. Mas agora vocês dois estão aqui, sãos e salvos.
O Ladrão suspirou, recostando-se na cadeira.
— Salvos, sim. Mas foi por muito, muito pouco dessa vez.
— Imagino. Sei que passaram por apuros — Kullat disse. — Mas me diga, como vieram parar aqui?
— É uma longa história — Corning respondeu. — Mas...
— Eu tive a ideia de vir para cá — o Bobo interrompeu, erguendo um dedo, para dar mais ênfase à frase. — Eu dei a ideia de amarrar aquele soldado — e fez o movimento
com os braços, para mostrar como foi —, roubar o barco e remar até aqui.
Corning revirou os olhos, em completa desaprovação à fala do amigo.
— Enfim, achamos que seria melhor esperar por você aqui — desconversou Corning, sem querer entrar em detalhes.
Kullat apenas assentiu.
— Peço desculpas por colocá-los em tamanho perigo — Kullat disse. — Sinto mesmo.
— O que importa é que você veio. E graças a você e a seu amigo, agora estamos salvos — Corning disse e, repentinamente, ficou embaraçado. — Mas nós não conseguimos
reaver o bracelete...
Corning fez um gesto, como se tentasse agarrar o próprio ar. Kullat apenas colocou uma mão no ombro do Ladrão.
— Está tudo bem. Graças a vocês, o bracelete foi encontrado — Kullat olhou para o Ladrão e estendeu a mão. — Sua dívida foi paga!
O Ladrão se assustou. Ele tinha esperanças, mas não imaginava que Kullat fosse, de fato, livrá-lo da dívida. Abriu a boca para tentar falar alguma coisa, mas não
conseguiu. O Bobo, que até então parecia alienado à conversa, apenas sorriu e coçou o olho, tentando esconder sua emoção. Sua loucura, momentaneamente, havia se
transformado em uma placidez solidária.
— O acordo está mantido — o cavaleiro disse com um sorriso franco. — Cuidarei para que nada falte a elas.
— Eu... eu... — Corning disse, com a voz embargada, mas as palavras não saíram.
Kullat sorriu e abraçou o Ladrão. O Bobo, voltando ao seu normal, pulou por cima deles, gritando de alegria.
Uma Nova Liberdade
Uma batida à porta os interrompeu.
— Pode entrar! — Kullat exclamou, sem se levantar.
Um curin abriu a porta.
— Com licença, senhor. Mas pediram para avisar que a sua presença é necessária na enfermaria.
O cavaleiro saltou do assento e disparou porta afora, deixando todos para trás. Em instantes, chegou à enfermaria e, ao abrir a porta, não conteve o sorriso. Nahra
estava sentada, com um prato de comida nas mãos. Usava um pijama azul-claro, com um furo improvisado no final das costas, de onde a cauda surgia. Ao seu lado, Talbain
lambia um pote cheio de água.
— Por Khrommer, você está bem? — ele exclamou, andando na direção dela.
— Estou com fome... — ela retrucou, de boca cheia, deixando o prato sobre a cama ao ver o cavaleiro se aproximar.
O cavaleiro chegou perto dela e a abraçou com carinho. Talbain o ignorou e continuou a lamber a água.
— Você me assustou, sabia? — Kullat disse. — Parecia que ia dormir para sempre!
— Eu... eu não lembro como dormi — ela disse, confusa.
— Do que você se lembra?
— Eu estava lutando com Willroch — Nahra disse. — Mas ele me amarrou. Depois... depois não me lembro de mais nada.
Ela omitiu a breve, porém marcante conversa que tivera com o mago poeta, e também não mencionou o beijo.
— O que importa é que agora você está bem, Nahra — Kullat a abraçou novamente, agradecendo a Khrommer silenciosamente por sua companheira estar a salvo.
No entanto, o cavaleiro notou que ela não retribuiu o abraço e também não aproveitou o momento para fazer um de seus habituais gracejos.
— Você está bem?
— Sim, estou — ela mentiu novamente. — Só um pouco cansada.
A licana recebeu a morte de Cyrvil e a althama de Ulani com pesar e pouco comentou sobre a guerra que continuava em Kynis. Só queria ir embora daquele lugar.
Depois que Kullat saiu, ela tomou um longo banho e se deitou. Talbain continuava sua vigília despreocupada ao lado dela. A castelar passou a língua nos lábios, pensativa
e confusa. Um sentimento turbulento e absoluto dominava seu coração. Se Kullat lhe trazia calma, seus batimentos se aceleravam ao se lembrar da luta na floresta
com Willroch e daquele beijo. As mãos gentis do mago poeta, seus braços fortes a envolvendo e uma paixão pela vida que fluía de seus lábios, os quais, ao tocarem
os dela, lhe incendiaram o peito. Ainda conseguia sentir o sabor do cheiro dele, libertador, rebelde como um rio caudaloso e magicamente intoxicante, a ponto de
fazê-la perder os sentidos em seus braços.
Talbain, como que sentindo as emoções da dona, rosnou, mostrando os dentes pontudos.
— Não fique com ciúme — Nahra riu, ao ver que o lobo se aproximou mais dela, colocando o focinho próximo de sua mão para receber um agrado na enorme cabeça. — Você
sempre vai estar comigo, sempre vai ser o meu companheiro.
Ainda acariciando a cabeça de Talbain, Nahra fechou os olhos, imaginando se encontraria novamente Willroch para tentar apaziguar a tormenta que surgira em sua alma.
Talvez dele surgisse uma nova liberdade.
Jornada Longa
Universo 4ME2U — Interespaço
A nave Vostok flutuava pelo vácuo a toda velocidade, voltando para o espaço-porto de onde partira, poucos dias antes. Com a navegação travada e com as comunicações
bloqueadas, ninguém da tripulação ou dos passageiros conseguia alterar seu curso.
O comandante ainda tentou convencer Azio a desistir da ideia, argumentando que suas atitudes poderiam ser resultado do mau funcionamento de seu cérebro robótico.
Mas havia muito a razão deixara de ser o fio condutor das atitudes de Azio, que refutara a proposta e ordenara que fosse deixado sozinho, sem que ninguém o incomodasse.
Diante da relutante insistência do comandante, a menção de que ele poderia deixar o conjunto de giroscópios gravitacionais parar de funcionar foi suficiente para
fazê-lo desistir definitivamente de qualquer tentativa de dissuasão.
Mesmo sentindo a amargura abrasiva de agir como um déspota, esperaria chegar ao ponto de desembarque, onde encontraria uma forma de fugir. Buscando um lugar tranquilo
para aguardar, e mais aprazível que o seu pequeno quarto, encontrou um dos vários jardins espalhados pela nave e lá ficou, sozinho, admirando as estrelas através
da abóbada transparente. Com as luzes artificiais do jardim desligadas, era como se olhasse por uma enorme janela para o interespaço.
Enquanto via estrelas, nebulosas e cometas, pensava em tudo o que tinha acontecido em sua vida, desde que destruíra o Globo Negro, anos atrás. Seu corpo, sua mente
e sua alma haviam mudado drasticamente desde então, e ele reconhecia que não era mais quem costumava ser. E, mesmo que estivesse à procura de pistas de seu povo,
encontrar outros binalianos se tornara algo secundário diante da possibilidade de perder a princesa.
Seus sentimentos por ela eram intensos e contraditórios, arrebatadores e confusos. Era algo muito maior, mil vezes mais poderoso e dez mil vezes mais complexo que
qualquer outro sentimento que ele já fora capaz de sentir. Era algo tão incontrolável como uma althama, e que só podia significar uma coisa: ele a amava.
Guiado por aquele sentimento, nada o faria desistir de atender ao pedido de sua amada Laryssa. Percorreria o infinito e destruiria mundos, se ela pedisse. Derrotaria
exércitos e semearia planetas inteiros com flores, se isso a fizesse feliz. Não importava qual sacrifício fosse necessário, ele o faria. Mesmo que ela não o amasse,
ele faria tudo o que ela pedisse, tudo o que estivesse ao seu alcance para não perdê-la.
Sua jornada seria longa, mas, no fim, ele tinha certeza de que seu esforço seria recompensado, e sua dedicação, finalmente reconhecida e aceita. Se antes Laryssa
o considerava seu guarda-costas, um dia o reconheceria como seu protetor, amigo e companheiro para todo o sempre.
Estou indo, minha princesa, estou indo...
Que Assim Seja
Planeta Kynis
Com a guerra, mesmo que Mali-Otokk fosse considerada propriedade da Ordem dos Senhores de Castelo, inevitavelmente seria alvo de batalhas. Era apenas uma questão
de tempo até que um dos dois exércitos, ou ambos, viesse até aquela pequena ilha, em busca de uma base estratégica.
Por isso, durante todo o dia, foram realizados preparativos para o abandono da ilha. Ao fim da tarde, as últimas caixas e barris estavam sendo levados a bordo dos
três navios de pequeno porte. No maior deles, estavam Kullat, Thagir, Nahra, Talbain, Sumo, Slurg e Ulani. Corning e o Bobo ainda não haviam embarcado.
Em pé na proa do navio, Kullat olhava para o horizonte, onde vários focos de fumaça subiam aos céus, no exato local em que a faixa de corais estava. Estrondos fortes
ecoavam como trovões, denunciando que a guerra continuava corroendo vidas e relembrando o cavaleiro sobre o seu fracasso. Além da guerra, a morte de Cyrvil lhe pesava
no coração, que era castigado ainda por não ter notícias de Veryna ou de Draak. Além disso, o sumiço de Patre-Ulis e dos demais menteri era outro mistério não resolvido.
Frustrado, Kullat passou as mãos pelos cabelos, pensativo, relembrando uma frase de Volgo que ficava martelando em sua mente: É exatamente isso o que estou tentando
fazer.
Mas o que é? O que ele está tentando fazer?, Kullat pensou, aflito. Ele queria a gema do Gaiagon para fazer o que com ela? E por que Willroch está com ele?
As perguntas se multiplicavam à medida que Kullat tentava, em vão, entender o que tinha acontecido em Kynis. Fechou os olhos e respirou fundo, usando uma técnica
de meditação para tentar acalmar o espírito.
O perfume suave de violetas denunciou que ele não estava sozinho. Ele se virou, saindo do mar de dúvidas que se encontrava, e sorriu para Nahra. As orelhas despontavam
graciosas em meio à cabeleira acinzentada e bem penteada, com mechas caindo pelos lados do rosto com delicadeza.
— Você está bem? — ela perguntou, aproximando-se de braços cruzados, parecendo um pouco incomodada.
— Só estou tentando entender tudo o que aconteceu.
— Não importa o mundo ou o quadrante, sempre haverá guerra — Nahra disse. — Essa é a realidade.
— Essa realidade é algo que jurei combater. Mas dessa vez nós falhamos — ele retrucou, olhando para o horizonte com ressentimento. — Nós, os Senhores de Castelo,
falhamos...
Nahra ficou em silêncio. Dizer ao cavaleiro que nem sempre é possível vencer seria afirmar o óbvio.
— Falhamos. E nada vai mudar isso — ela disse, enfática. Assumindo uma postura ainda mais séria, aproximou-se um pouco mais, falando baixo, como se contasse um segredo.
— Mas tem algo que mudou.
— O que é? — Kullat indagou, alisando o cavanhaque em dúvida.
— Algo em você... mudou — ela respondeu, demonstrando desconforto. — O cheiro das pessoas não muda, Kullat. Mas o seu mudou, e muito.
— Como assim? — ele ficou intrigado.
— Não sei explicar — ela inspirou o ar perto do pescoço dele e estalou a língua, como se saboreasse algo. — Parece que ficou mais... harmônico, mais definido. Mas,
ao mesmo tempo, tem algo diferente, que não existia antes. É como se tivessem dois de você... — Ela parou um instante, tentando esclarecer melhor, mas não conseguiu.
— É magnífico e amedrontador ao mesmo tempo.
Kullat olhou para as mãos enfaixadas, que brilhavam suavemente em chamas brancas com leves contornos alaranjados. Nahra se surpreendeu com as chamas, sem saber que
Kullat agora detinha parte do poder de Seath.
— Magnífico e amedrontador... — ele sussurrou, sorridente, pegando a mão dela. Embora as chamas existissem, nenhum calor era gerado.
Um grito o interrompeu.
— Ei! — Era a voz de Corning. — Mas o que é que você está fazendo?
Nahra se virou, olhando para a lateral da embarcação.
O Bobo e o Ladrão estavam parados na rampa de acesso, com um enorme jarro de água entre eles. O Bobo havia destampado o jarro e, por causa da inclinação da rampa,
uma bela porção de água havia caído sobre Corning.
— Mas eu estou com sede! — disse o Bobo, com uma expressão de legítima inocência.
Corning arrancou a tampa do jarro da mão do amigo e o tampou com força. Em seguida, ambos voltaram a carregar o recipiente para dentro. Atrás deles, dois curins
carregavam a última caixa que compunha a pequena carga.
— Estamos partindo! — gritou o capitão, um sujeito magro, de cabelos negros que teimavam em cair por sua testa. Dois gritos similares nos outros dois navios sinalizaram
que a viagem iria começar.
Os motores das três embarcações liberaram línguas de fogo em suas caldeiras, gerando a força necessária para mover as enormes hélices em formato de redemoinho sob
a água. Em seguida os navios partiram suavemente, deixando para trás uma ilha vazia e desolada.
Logo atrás de Kullat e Nahra, a chaminé alta e larga começou a soltar fumaça, misturada ao vapor.
— Finalmente, vamos sair daqui! — Nahra exclamou, aliviada, cruzando os braços novamente.
Kullat sorriu para ela, concordando.
— Acho que vou ver como está Ulani — a licana disse, como se quisesse fugir dele.
— Sumo está com ela — Kullat retrucou, dando a entender que gostaria que ela ficasse ali com ele.
— Eu... eu preciso ir. — Sem esperar, ela se virou. — Talbain, vamos!
O enorme lobo, que estava deitado ali perto, levantou-se e encarou Kullat, mostrando os dentes pontiagudos. Depois, correu atrás dela e, com um pulo, se desmaterializou
um instante antes de atingi-la. Uma chuva de partículas coloridas caiu sobre ela, como se tivesse sido coberta por uma camada de luz protetora.
— Não se preocupe! — disse uma voz conhecida. — Relacionamentos são assim mesmo.
Kullat olhou ao redor, espantado, procurando o dono da voz.
— Onde é que você está? — perguntou.
— Aqui em cima! — respondeu Thagir.
Kullat olhou para o alto e viu o amigo sentado no banco de vigia da chaminé de metal.
— Mas o que é que você está fazendo aí? — continuou.
— Eu estava vendo a guerra... — E, sem recorrer à escada da chaminé, Thagir saltou, parando ao lado do amigo. — Queria garantir que ela ainda está longe de nós.
— E está? — Kullat perguntou.
— Sim, está. Pelo que escutei do capitão, conseguiremos chegar ao porto de Camnte antes do anoitecer. De lá para os Mares Boreais será um pulo!
Kullat concordou com a cabeça, mas não falou nada.
— Você estava aí o tempo todo, não estava? — o cavaleiro disse, sorrindo com um ar de confidência para o amigo.
Um pouco encabulado, Thagir reconheceu que sim.
— Desculpe, eu não quis ser intrometido. Mas não tinha como não escutar...
Kullat deu de ombros, como se não se importasse.
— E o que você acha?
— Do quê? — Thagir questionou, sem entender.
Kullat cruzou os braços, com a feição fechada, e se encostou na chaminé.
— Dela. Do que a está incomodando.
— Ah! — Thagir sorriu, encostando-se à chaminé, ao lado do amigo. — É como eu disse. Relacionamentos são complicados. Ela passou por muita coisa aqui neste planeta.
Dê um tempo para ela e para você. Deixe que ela reflita sobre tudo e decida o que realmente quer para o futuro.
Kullat suspirou profundamente.
— As mulheres são tão complicadas!
— Complicadas não — Thagir corrigiu. — Complexas. E as maiores maravilhas da natureza também o são.
— Pistoleiro, estrategista, negociador e, agora, filósofo? — Kullat disse, sarcástico.
Thagir encarou o cavaleiro com um sorriso no rosto.
— Filosofia não, meu amigo. Apenas a voz da experiência. Não esqueça que estou cercado de mulheres em casa!
Kullat sorriu.
— Nesse caso, dada a experiência que você tem no assunto, seguirei o seu conselho. Que o tempo seja o juiz e ajude a decidir que caminho ela vai trilhar.
— Que assim seja! — Thagir exclamou. — Que assim seja.
Homenagem Triste
Ilha de Ev’ve
A praia das torres estava deserta. Rochas porosas despontavam no mar, semelhantes a torres de castelos submersos, projetando suas sombras até a areia vermelha da
praia, onde as ondas suaves insistiam em apagar os passos de Laryssa, que caminhava solitária.
A brisa morna da tarde balançava seu vestido e espalhava seus cabelos, mas não era forte o bastante para secar o rastro de lágrimas que tinha no rosto.
Seu choro era triste e magoado. Seus pensamentos e emoções, conflitantes e confusos. Glinda e Virnus haviam traído sua confiança, ao impedirem que ela fugisse de
Ev’ve para salvar Kullat. Depois que Virnus a encontrou no porão do navio, ela ainda tentou argumentar sobre os motivos que tinha para tentar fugir, mas o jovem
não os aceitou, e eles acabaram discutindo. Em meio à briga, ele garantiu que, para impedi-la de cometer aquela loucura, seria capaz de atear fogo à embarcação ou
até denunciá-la aos Dans da Academia. Aquele seu último ato de paixão, em vez de fazê-la se sentir amada, a deixou revoltada. Ela fora tratada como uma criança,
cujas decisões são ignoradas. Sentindo-se desrespeitada e humilhada, terminou o relacionamento deles ali mesmo e abandonou a embarcação, desaparecendo entre os edifícios
do porto. De volta ao alojamento, acabou brigando também com Glinda.
E mesmo agora, sabendo que Kullat estava bem e voltando para Ev’ve, graças a um aviso da Gaijin Kim-moross, seu coração não conseguia perdoar o que Glinda e Virnus
haviam feito. A amizade e a paixão podem suportar qualquer desafio, qualquer problema. Mas, se existe algo capaz de destruir esses sentimentos, é a falta de confiança,
e Laryssa não confiava mais em nenhum dos dois.
Além disso, ela também havia brigado com Azio e quebrado o aparelho que permitia que ambos se comunicassem. E, para completar sua desolação, não conseguira contato
com Kullat.
Sem amiga, sem namorado, sem Azio e sem Kullat, Laryssa se sentia muito sozinha. Angustiada pela solidão, só lhe restavam seu pai e sua mãe para consolá-la. Seu
único porto seguro em todo o Multiverso, as únicas pessoas com quem ela poderia contar naquele momento tão triste de sua vida.
Ajoelhando-se na areia rubra, fechou os olhos e se concentrou no som das ondas, que, avermelhadas pelo sol poente, eram como uma extensão da própria praia. Respirando
profundamente, encheu os pulmões com o ar salgado e, com uma voz suave, começou a cantar.
A melodia, triste e cálida, fluía doce dos lábios, enquanto ela permanecia ajoelhada e de braços abertos, entrando em sintonia com o ambiente e sentindo as ondas
deslizarem ao seu redor, num ritmo constante.
No céu, uma figura redonda começou a tremeluzir e, conforme a princesa cantava, mais nítida ela se tornava. Em pouco tempo, uma enorme lua flutuava sobre o mar.
A princesa abriu os olhos e os secou, na esperança de obter algum conforto. Mas a lua continuou flutuando, impassível.
— Mãe? A senhora está aí?
Nenhuma resposta surgiu. A princesa ficou incomodada, pois era a primeira vez que sua mãe não respondia ao feitiço que havia lhe ensinado. Ela fechou os olhos de
novo e inspirou profundamente, pronta para reiniciar o cântico. Repetiria todo o ritual desde o início, receosa de ter errado alguma palavra da magia.
Contudo, uma voz familiar a fez abrir os olhos.
— Laryssa!
Espantada e confusa, ela viu um rosto conhecido surgir na lua, que tremeluziu por um instante, mas se firmou novamente.
— Pai?
— Olá, filha. — A imagem de seu pai era de alguém que não dormia havia dias. Mas as olheiras profundas não eram nada comparadas à sua expressão de preocupação. O
rosto de Larys cresceu na lua, como se quisesse olhar mais cuidadosamente para ela. — Está tudo bem com você? Parece que estava chorando...
A princesa não respondeu e, confusa, perguntou:
— O que é que você está fazendo aí, pai? Onde está a minha mãe?
A imagem da lua e de Larys tremeluziu novamente, como se a magia estivesse instável.
— Ela está aqui do meu lado... — O rosto dele se tornou ainda mais sombrio, o que deixou Laryssa preocupada.
— Eu quero falar com ela! — a princesa exclamou.
A lua por detrás do rosto rachou.
— Ela está muito fraca, minha filha. Ela...
A voz doce de Yaa o interrompeu.
— Deixe-me falar com ela... Por favor...
O coração da princesa quase parou ao ouvir a voz da mãe. Era um som fraco, como um fio prestes a arrebentar. Os gigantescos olhos de Larys se encheram de lágrimas
quando ele encarou a princesa.
— Sejam fortes, minhas queridas! — ele disse, acenando para Laryssa.
A imagem de Larys desapareceu. A princesa levou ambas as mãos à boca, e pequenos pedaços da lua se soltaram e sumiram no ar quando o rosto de Yaa surgiu.
— Mãe!
Surpresa, Laryssa não conseguiu se conter e começou a chorar. O rosto de sua mãe estava pálido e magro. Os olhos pareciam opacos e fundos, e o cabelo ralo tinha
perdido completamente o viço.
— Que bom ver você, minha criança... — Yaa disse vagarosamente.
Confusa, Laryssa sentiu as palavras se embolarem na garganta.
Uma nova rachadura surgiu na lua e a imagem de Yaa fraquejou. A lua toda tremeluziu por um momento, mas voltou a se fixar em seguida. A magia, que usava as vibrações
tanto de Laryssa quanto de Yaa, falhou, mal conseguindo se manter.
— O que aconteceu com a senhora? — A pergunta saiu engasgada, como se a princesa tivesse engolido um caroço.
— Aconteceu a vida! — Yaa disse, com um sorriso forçado e melancólico. — Tudo que vive um dia encontra o seu fim. E o meu está próximo...
— Não! — A princesa sacudiu a cabeça, sem querer acreditar no que estava escutando. — Você é a mãe de todas as fadas! Você não vai morrer... Não pode morrer!
— Eu estou morrendo, minha filha. — O rosto de Yaa se encheu de tristeza e a voz fraquejou ainda mais. — Mas o meu amor continuará sempre no coração de vocês...
A lua rachou de cima a baixo, e as duas partes se afastaram e se desvaneceram em pleno ar. Mas, antes de sua imagem desaparecer por completo, Yaa ainda conseguiu
dizer uma última frase:
— Lembre-se de quem te ama. Adeus, minha filha...
— A senhora não pode morrer! — Laryssa gritou, socando a areia com ambas as mãos. — NÃO PODE!
Mas a lua já havia desaparecido, e ela estava novamente sozinha. Sem forças para resistir, ela sentiu o corpo cair na areia e, encolhida, entregou-se ao desespero.
Dúvida, tristeza, raiva e arrependimento — tudo foi dizimado e a althama assolou seu coração de forma incontrolável, restando-lhe apenas um completo e infinito sentimento
de perda.
O sol começou a sumir na água rubra, a brisa cessou e as ondas desapareceram por um momento. Então tudo ao redor ficou calmo, e uma placidez acalentadora se fez
presente, como se a própria ilha de Ev’ve fizesse um instante de silêncio e abraçasse a princesa com carinho, numa homenagem triste, em luto pelas perdas causadas
por guerras, pela cobiça, pela vingança, pelas doenças e por todos os seres amados que haviam partido.
Caída na areia, entre lágrimas e soluços, Laryssa repetia para si:
— Eu lembrarei...
O Retorno
Mares Boreais
O navio seguia rapidamente pelos Mares Boreais com destino a Ev’ve, a ilha no centro de tudo.
Thagir e Kullat, sozinhos e em silêncio, tomavam um caldo grosso e fumegante. Todos os outros lugares à mesa estavam vazios. Ulani, ainda muito abalada, se recusava
a sair de seu alojamento. Sumo, com medo de que ela perdesse o controle novamente, preferiu ficar com ela. Nahra disse que estava indisposta e pediu que a refeição
fosse servida em seus aposentos.
— Isso não lembra os velhos tempos? — disse Thagir, quebrando o silêncio. Kullat não respondeu, apenas continuou a tomar a sua sopa. Thagir não desistiu. — Lembra
daquela vez que um bando de boglins passou a noite nos procurando na floresta, enquanto a gente fazia uma sopa como essa aqui na caverna deles?
Kullat tomou mais uma colherada antes de responder.
— Lembro — falou secamente.
Thagir atirou um pedaço de pão, acertando o prato do amigo.
— Deixe de ser rabugento! — disse, sorridente. Kullat pousou a colher na mesa, com as mãos já brilhando. — E tente controlar melhor suas emoções — completou o pistoleiro,
descontraído.
Kullat bufou e baixou a cabeça novamente.
— Olhe quem está falando sobre controlar as emoções...
Thagir sabia do que o amigo estava falando. Durante toda a sua vida, ele ouvira falar de pessoas dominadas por sentimentos, gerando uma verdadeira maré vermelha
em suas almas e cegando-as para outras emoções. Ele nunca tivera uma althama. Nunca, até poucos dias atrás.
Apesar de todo o seu autocontrole de pistoleiro, ele ainda conseguia sentir o gosto amargo da althama que o assolara quando vira Kullat morrer no hospital. Perder
o amigo fora algo arrebatador, como se seu coração tivesse sido dilacerado e seu sangue borbulhasse no peito, transformando-se em uma maré vermelha gigantesca e
avassaladora, que invadiu sua alma e destruiu qualquer outro sentimento. Aquela onda de ódio cegou seus olhos para o mundo, deixando espaço apenas para um desejo
incontrolável de vingança.
Mas, felizmente, seu amigo estava vivo, e aquela sensação horrível enfim havia passado. Thagir olhou com carinho para o amigo, que havia voltado a comer em silêncio.
— Ei! No que você está pensando? — questionou, tentando retomar a conversa.
— Por onde começar? — O cavaleiro suspirou. — Um Gaiagon morreu, uma Senhora de Castelo morreu, eu morri. Draak sumiu... — O cavaleiro parou um instante, com um
longo suspiro de cansaço. — Além disso tudo, uma guerra está acontecendo neste exato momento, Volgo e Willroch estão soltos por aí, e, por Khrommer, não bastasse
tudo isso, tenho que resolver o que fazer com Nahra. — Ele bateu com o punho fechado sobre a mesa, derrubando um pouco do caldo. — Sinto como se estivesse lutando
sozinho contra o mundo!
Thagir não se abalou com o desabafo do amigo, pois entendia muito bem o fardo que ele estava carregando.
— Você está errado! — O pistoleiro molhou um pedaço de pão no caldo e o enfiou na boca, lambendo os dedos.
— Do que é que você está falando? — Kullat perguntou, confuso.
Thagir apontou para o peito do amigo.
— Eu estou dizendo que você não está sozinho. Eu vou com você! — Kullat viu o amigo colocar outro pedaço de pão úmido na boca. — Não me olhe com essa cara! Você
acha mesmo que eu deixaria o destino de todo o Multiverso nas suas mãos, sem ninguém para controlá-lo? Só se eu quisesse que o Multiverso inteiro explodisse! É por
isso que vou pedir minha reintegração à Ordem.
Kullat piscou várias vezes, tentando acreditar nas palavras do pistoleiro.
— Mas e a sua família? E o seu reino?
— É por eles que farei isso — Thagir disse, ficando sério. — Volgo está tramando algo com os Espectros, e isso pode literalmente destruir o Multiverso que conhecemos.
E tem outra coisa, algo que ficou claro para mim depois de tudo o que aconteceu.
Thagir fez um ar de suspense, apenas para forçar Kullat a perguntar sobre a misteriosa conclusão do pistoleiro.
— Minha família e meu reino podem se virar muito bem sem mim. Já você...
O rosto de Thagir assumiu um ar de falsa decepção, mas ele não se conteve e abriu um largo sorriso. Kullat também sorriu, aliviado. Seu velho e melhor amigo estava
de volta.
Uma onda de tranquilidade encheu o peito de Kullat. Com sua energia mais forte do que nunca e Thagir novamente como seu parceiro, nem Volgo e Willroch juntos seriam
páreo para eles.
Kullat pegou o copo de madeira e o ergueu em um brinde. Thagir sorriu e imitou o gesto.
— Atenção, Multiverso! — Kullat exclamou em voz alta, como se quisesse que todos o ouvissem. — A dupla imbatível está de volta!
Epílogo
Planeta Kynis
No recém-formado reino de Makras Tanyat, Veryna se olhava no espelho da sala do trono do castelo que um dia fora a sede de Makrao Maat. Ela sentia uma felicidade
quase incontrolável enquanto admirava com orgulho a coroa de Foerst* em sua cabeça. Era feita com as joias do reino conquistado e ornada com os símbolos de seus
inimigos: Patre-Ulis, que morrera na explosão da torre, e Claw-Daram, que sobrevivera mas fora executado como traidor, além dos símbolos de todos os distritos e
do antigo reino de Makrao Maat.
Veryna estava satisfeita, pois, após tantos sacrifícios e anos de dedicação, ser nomeada Foerst era um reconhecimento justo. A Guarda Azul e os elfi-dragões estavam
sob seu comando agora, prontos para obedecer às suas ordens. A sede da Ordem em Mali-Otokk havia sido destruída, e um comunicado oficial fora enviado a Ev’ve cortando
relações e informando que os castelares não eram mais bem-vindos a Kynis, garantindo que os Senhores de Castelo não mais a incomodassem.
Behemut, nomeado Anden** depois da rendição, estava quieto ao seu lado. Um pouco mais atrás, como um guarda-costas, estava Draak, vestindo túnica em vez do costumeiro
traje de batalha.
Quatro passos atrás, estava Bemor Caed. O rosto marcado pela luta com Thagir e o braço substituído por uma prótese orgânica, cinzenta e escamosa, lhe davam uma aparência
híbrida. Mas ele sorria.
Olhando pela janela, estava Willroch, de braços cruzados, refletindo sobre o insucesso em encontrar a verdadeira pedra-prisão de Espectros. Ele pensava ainda em
Kullat, que novamente lhe escapara. Em sua mente também pairava o fato de que, graças a algum truque de Kullat e do Gaiagon, ele se vira obrigado a seguir Volgo
de volta a Kynis.
Veryna se virou para onde o antigo trono de madeira ficava. Em seu lugar, havia um belo assento aveludado, ornado com pedras e prataria. Sentado nele, estava Volgo.
— E agora, mestre? — Veryna perguntou com um sorriso no rosto. — Qual é o próximo passo?
Volgo sorriu e, com um indisfarçável prazer na voz, disse:
— Agora nós vamos à caça!
Notas
* Líder nacional e grã-ministra.
** Segundo em comando.
Apêndice
Sobre o Nome das Coisas
Assunto: Proposta de Estudo
Para: Junta de Ciências da Academia
Há culturas, principalmente as do quadrante dois, que acreditam que tudo o que existe possui um nome original, o qual foi pronunciado na criação do Multiverso, e
aquele que souber o nome verdadeiro de algo tem o domínio sobre tal item.
Contudo, conforme esta proposta de estudo quer comprovar, cremos que tudo se relaciona não com o nome, mas com a sonoridade. Dessa forma, queremos comprovar que,
ao falar uma palavra ou emitir um som na velocidade, no timbre, no volume e com a correta composição de sons, quem proferiu a palavra entra em sintonia com a Maru
do item ao qual a palavra se refere, conseguindo assim alterar a própria essência desse item.
Um exemplo disso é o que acontece com aqueles que possuem o poder de transformar água em vinho.
Essa é a base dos encantamentos falados e dos cânticos rituais, que são fruto mais do acaso e da vivência que do estudo, uma vez que ninguém nunca concluiu exatamente
como funciona a relação das palavras e da Maru.
Apenas como complemento explicativo, o que se faz por meio de palavras nas civilizações consideradas “menos mágicas” ocorre naturalmente em outras sociedades “mais
mágicas” sem o uso de sons, usando apenas a interação da própria Maru com a Maru da natureza.
A título demonstrativo, podemos citar os “formadores” que, de modo natural, conseguem interagir com determinados elementos da natureza. Citam-se, nessa categoria,
os terra-formadores, que interagem com a Maru de elementos sólidos, como pedras, areia e terra, dentre outros. Esses indivíduos fluem a própria Maru, quase que inconscientemente,
para a Maru dos elementos e a manipulam à sua vontade, como ocorre com aqueles que, instintivamente, utilizam-se do ar para circundar seu corpo e conseguir voar.
Logicamente, essa fluência entre Marus altera tanto o emissor quanto o receptor e, por vezes, gera perdas para um e/ou para outro. Assim ocorre com os manipuladores
de energia que “perdem força” conforme executam a interação. Esse efeito é compensado por reservas naturais (exemplo: alimento), transferências mágicas (exemplo:
gemas enriquecidas) ou até mesmo tecnológicas (exemplo: fontes alternativas de contenção de energia).
Como esses estudos querem comprovar, apesar das perdas ocorrerem em ambos, geralmente o efeito se dá em maior grau no organismo do ser emissor. E, segundo levantamento
histórico, ocorreram casos extremos em que uma conexão entre Marus foi tão intensa que chegou a consumir totalmente a vitalidade do emissor, provocando-lhe a morte.
Dessa forma, o que está sendo proposto neste...
FRAGMENTO DE PROPOSTA DE ESTUDO DA ACADEMIA
Da Academia e da Ordem
Descrição resumida da Ordem e da Academia, conforme estrutura aprovada pelo Conselho vigente.
Contempla as principais nomeações, classificadas do menor para o maior grau de autoridade.
Ho’nin Ex-castelar de qualquer graduação. Membro banido da Ordem, cuja tatuagem fantasma, se tiver, é eliminada. Seus dados, contudo, são mantidos nos registros
para fins de controle e eventuais reintegrações. Nonjin Senhores de Castelo que pediram baixa ou que por algum motivo estão inativos. Curin Roupas azuis.
Quem trabalha para a Ordem, como voluntário ou contratado. 1º Guerrin (básico) Roupas marrom-claras.
Distingue-se por faixas pretas nos braços:
1 faixa — recém-admitido na Academia;
2 faixas — fase intermediária do nível básico;
3 faixas — última fase do nível básico.
2º Guerrin (intermediário) Roupas verde-claras na primeira fase.
Roupas amarelo-claras na segunda fase.
3º Guerrin (avançado) Roupas laranja.
Penúltima fase do curso.
Sai em missões com um ou dois Shoujins.
4º Guerrin (pré-mestre) Roupas brancas.
Última fase de formação.
Sai em missões em duplas de guerrins do mesmo estágio e é acompanhado por no mínimo um Shoujin.
Para se graduar como Shoujin, precisa ser aprovado no Teste V. Teman Conselheiro temporário, convidado a representar a Ordem por um tempo determinado e com poderes/
responsabilidades limitados. Dan Professor da Academia ou Membro de um Conselho em um reino/planeta.
Desse nível em diante, todos os castelares são considerados mestres. Danjin Orientador de cada uma das Quatro Torres de Ev’ve.
Geralmente é um Dan.
Conjin Senhor de Castelo por mérito, que não passou pela Academia, mas foi convidado para integrar a Ordem, sendo aprovado no Teste V após aceitar o convite. Shoujin
Senhor de Castelo graduado, que realiza missões em dupla.
Os Shoujins são classificados por uma medição dos vários tipos de Maru (incluindo autocontrole), testes práticos, teóricos e físicos de conhecimento, habilidades,
hombridade moral e integridade psicológica. Os testes são realizados de quatro em quatro anos, e essa classificação é uma das bases para a definição das missões.
Domo Dan Diretor da Academia ou conselheiro-mor de um Conselho em um reino/planeta. Domo Shoujin Senhor de Castelo que atinge uma graduação diferenciada nos níveis
Tesla e que pode realizar missões sozinho.
Domo Shoujins são Senhores de Castelo especiais, muito poderosos e respeitados. É muito difícil ser consagrado com esse título. Daijin Título provisório que permite
que um castelar represente um Conselho da Ordem dos Senhores de Castelo de um reino/planeta.
Um Daijin só é empossado em ocasiões extremas, nas quais são necessárias elevadas habilidades diplomáticas, imparcialidade, postura confiável e capacidade de negociação
com os mais altos postos. Gaijin Conselheiro de Nopporn/Conselheiro de Ev’ve (os dez que compõem o Conselho Supremo). Daimio Conselheiro-mor de Nopporn/Conselheiro
Supremo de Ev’ve (um dos dez que compõem o Conselho Supremo). Domo Daimio Mestre Supremo. Quatro dos Gaijins anteriores. Cada um apadrinha uma das Quatro Torres
de Ev’ve. Primeira-conselheira Cargo exclusivo e vitalício dado a Nopporn pelo primeiro Conselho.
Chamado Castelar
Ao chegar até aqui, você provou ser mais do que um viajante dos Mares Boreais. Você é um verdadeiro Senhor de Castelo!
Você já andou pela cidade de gelo e descobriu O Poder Verdadeiro; escutou o canto da rainha, sentindo na alma o Efeito Manticore; passou por althamas e descobriu o que a Maré Vermelha representa. E o futuro ainda lhe reserva muitas aventuras, surpresas e emoções.
De coração, agradecemos a você por nos acompanhar nesta incrível jornada. Graças a pessoas como você, o Multiverso se expande cada vez mais. Hoje somos milhares de castelares.* E, para que outros tenham a oportunidade de fazer parte dessa nossa grande família castelar, o Conselho de Nopporn emitiu um chamado:
“Nobre Senhor de Castelo. Sua missão é simples, mas de grande importância para o Multiverso: Apresente as Crônicas dos Senhores de Castelo àqueles que ainda não tiveram contato com o Multiverso. Conte sua experiência e fale sobre como se sentiu lendo as três primeiras partes desta grande história. Se aceitar a missão, envie sua resposta para missao@senhoresdecastelo.com.br, com o assunto ‘Chamado atendido!’, e você receberá um Certificado da Ordem, atestando sua participação como um dos criadores da Primeira Legião dos Senhores de Castelo!”
Faça sua voz ecoar pelo Multiverso e ela será ouvida!
G. Brasman e G. Norris
O melhor da literatura para todos os gostos e idades