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Series & Trilogias Literarias
CAPÍTULO ONZE
Todo o resto, a verdade
1
– Tragam os prisioneiros – ordenou Drakasha.
Era noite no convés do Orquídea Venenosa, ancorado sob um céu coalhado de estrelas. As luas ainda não tinham começado a nascer. A capitã estava junto à amurada do
tombadilho, silhuetada por lâmpadas alquímicas, usando um oleado como se fosse uma capa. Uma ridícula peruca de lã cobria sua cabeça, vagamente lembrando o adereço
cerimonial de um magistrado verrari. O convés, de proa a popa, estava apinhado de tripulantes e, num pequeno espaço livre a meia-nau, se achavam os prisioneiros.
Dezenove homens do Mensageiro Vermelho tinham sobrevivido à luta da manhã. Naquele momento, eles estavam com as mãos e os pés atados num grupo desorganizado no convés
central. Locke se moveu até ficar atrás de Jean e Jabril.
– Oficial de justiça, você nos trouxe um grupo lamentável – criticou Drakasha.
– Lamentável mesmo, meritíssima. – Delmastro apareceu ao lado da capitã, segurando um pergaminho enrolado e também usando uma peruca ridícula.
– O bando mais desgraçado de vira-latas imorais e broxas que eu já vi. Mesmo assim, acho que devemos julgá-los.
– Devemos, sim, senhora.
– De que eles são acusados?
– De uma lista de crimes tão grande, com tanto sangue que até parece geleia. – Delmastro abriu o pergaminho e acrescentou, erguendo a voz: – Recusa voluntária da
gentil hospitalidade do Arconte de Tal Verrar. Fuga deliberada das excelentes acomodações fornecidas pelo mesmo Arconte na Rocha de Barlavento. Roubo de uma embarcação
da marinha com a intenção declarada de usá-la para pirataria.
– Desgraça.
– Exato, meritíssima. Agora, a parte seguinte é bastante confusa: alguns são acusados de motim, outros, de incompetência.
– Alguns isso, outros aquilo? Oficial, não podemos admitir desorganização. Simplesmente acuse todo mundo de tudo.
– Entendido. Agora os amotinados são incompetentes e os incompetentes são amotinados.
– Excelente e magistral. Sem dúvida serei citada em livros.
– Em livros importantes, senhora.
– Pelo que mais esses desgraçados precisam responder?
– Ataque e roubo sob a bandeira vermelha, meritíssima. Pirataria armada no Mar de Bronze no vigésimo primeiro instante do mês de Festal, neste mesmo ano.
– Vil, grotesco e desprezível! – gritou Drakasha. – Que fique registrado que eu me sinto a ponto de desmaiar. Diga, existe alguém que fale em defesa dos prisioneiros?
– Ninguém, senhora, já que os prisioneiros não têm um tostão.
– Ah. Então sob que leis eles reivindicam direitos ou proteção?
– Nenhuma, senhora. Nenhum poder em terra irá reivindicá-los ou ajudá-los.
– Patético, mas não inesperado. Sem orientação firme dos seus superiores, talvez seja natural que esses roedores tenham fugido da virtude como de uma doença contagiosa.
Talvez surja alguma chance de clemência.
– É improvável, senhora.
– Ainda resta uma pequena questão, que pode atestar o verdadeiro caráter deles. Oficial, pode descrever a natureza dos associados e consortes deles?
– Vividamente, meritíssima. Eles se associam voluntariamente com os oficiais e a tripulação do Orquídea Venenosa.
– Deuses do céu – gritou Drakasha. – Você disse Orquídea Venenosa?
– Sim, senhora.
– Eles são culpados! Culpados de todas as acusações! Culpados em todas as particularidades, culpados até a extremidade absoluta e definitiva de toda a possível culpabilidade
humana!
Drakasha arrancou a peruca, jogou-a no convés e ficou pulando em cima dela.
– Excelente veredicto, senhora.
– É a determinação deste tribunal, solene em sua autoridade e inabalável em sua decisão, que, por crimes cometidos no mar, o mar os tenha. Joguem-nos na água! E
que os deuses não sejam apressados demais em conceder misericórdia às suas almas.
Gritando, os tripulantes avançaram de todas as direções e cercaram os prisioneiros. Locke foi empurrado e puxado com o grupo até a portinhola de bombordo, onde havia
uma rede de carga no convés, com uma vela por baixo, ambas amarradas nas bordas. Os ex-tripulantes do Mensageiro foram empurrados para a rede e seguros ali enquanto
dezenas de marinheiros sob o comando de Delmastro iam até o cabrestante.
– Preparem-se para executar a sentença – disse Drakasha.
– Içar! – gritou Delmastro.
Uma complexa armação de moitões e talhas tinha sido posta entre as vergas mais baixas do mastro de proa e do principal; os marinheiros giravam o cabrestante e as
bordas da rede foram puxadas para cima. Em alguns segundos, os ex-tripulantes estavam acima do convés, espremidos como animais numa armadilha. Locke se agarrou à
rede áspera para não escorregar até o centro da massa de membros e corpos. Houve uma agitação inútil de empurrões e palavrões à medida que a rede balançava para
além da amurada e oscilava suavemente na escuridão, 5 metros acima da água.
– Oficial de justiça, execute os prisioneiros – ordenou Drakasha.
– Joguem eles!
Eles não fariam isso, pensou Locke, e bem nesse instante eles fizeram.
A rede cheia de prisioneiros entrou em queda livre, provocando gritos involuntários em homens que haviam travado uma batalha assassina no Martim-Pescador em relativo
silêncio. A tensão nas bordas da rede se afrouxou, de modo que pelo menos eles tiveram mais espaço para rolar e quicar quando ela bateu na superfície da água.
Eles se agitaram numa massa confusa, gritando por um ou dois segundos, e então a água quente e escura começou a jorrar para dentro, em volta deles. Por um breve
momento, Locke sentiu um pânico genuíno, pois as cordas que prendiam suas mãos e os pés estavam bem amarradas, mas depois de alguns instantes as bordas da vela começaram
a subir de novo, até estarem logo acima da superfície do oceano. A água ainda presa com os prisioneiros ia quase até a cintura de Locke e agora a lona formava uma
espécie de poço abrigado.
– Todo mundo está bem? – indagou Jean.
Locke viu que ele tinha reivindicado a borda da rede diretamente do lado oposto a ele. Havia meia dúzia de homens empurrando e chapinhando entre os dois. Locke fez
cara feia ao perceber que Jean estava bem contente naquela situação.
– Engraçado pra caralho – murmurou Streva, apoiando-se com um dos braços. O outro fora amarrado ao peito numa tipoia grosseira.
Vários ex-tripulantes do Mensageiro estavam com ossos quebrados e quase todos tinham cortes e hematomas, mas ninguém fora liberado do ritual.
– Meritíssima!
Locke olhou para cima ao ouvir a voz de Delmastro. A tenente os espiava da portinhola de bombordo com uma lanterna na mão; a rede deles estava a pouco mais de um
metro do casco escuro do Orquídea.
– Meritíssima, eles não estão se afogando!
– O quê?! – Drakasha apareceu ao lado de Delmastro com sua falsa peruca de novo na cabeça, agora mais torta do que nunca. – Seus desgraçadinhos mal-educados! Como
ousam desperdiçar o tempo deste tribunal com essa recusa ridícula em ser executados? Oficial, ajude-os a se afogar!
– Sim, senhora, ajuda imediata para afogamento. Bombas do convés a postos! Bombas do convés agora!
Dois marinheiros surgiram junto à amurada segurando a ponta de uma mangueira de lona. Locke se virou para o outro lado no instante em que o jorro de água salgada
e quente começava a atingi-los. Não é tão ruim, pensou, apenas alguns segundos antes que algo mais substancial do que água batesse na sua nuca com uma pancada ardida.
O bombardeio com essa nova indignidade – estopa engordurada, percebeu Locke rapidamente – era generalizado e enérgico. Os tripulantes haviam se enfileirado na amurada
e jogavam aquilo na rede de prisioneiros, uma verdadeira chuva de trapos e fragmentos de corda que tinham o fedor familiar e rançoso da coisa com que ele passara
várias manhãs lambuzando os mastros. Esse ataque prosseguiu durante vários minutos, até que Locke não tinha ideia de onde terminava a gordura e onde começavam suas
roupas, e a água no pequeno espaço confinado estava com uma camada escorregadia de imundície.
– Inacreditável! – gritou Delmastro. – Meritíssima, eles ainda estão lá!
– Não se afogaram?
Zamira apareceu de novo junto à amurada e removeu solenemente a peruca.
– Maldição. O mar se recusa a reivindicá-los. Temos que trazê-los de volta a bordo.
Depois de alguns instantes, os cabos acima deles se retesaram e a pequena prisão de rede e lona começou a se erguer. E já não era sem tempo, pelo que parecia: Locke
estremeceu ao sentir algo grande e poderoso roçar contra a barreira sob seus pés. Em segundos, estavam misericordiosamente acima das pontas encrespadas das ondas
e subiram rangendo.
Porém, o castigo não havia terminado: a rede foi içada acima da amurada, mas não foram descidos até o convés e ficaram pendurados de novo em meio à escuridão.
– Solte a talha giratória! – mandou Delmastro.
Locke viu uma mulher pequena subindo no emaranhado de cordas acima. Ela puxou um pino na grande roldana de madeira em que a rede estava suspensa. Locke reconheceu
a peça circular de metal da talha; muito bem lubrificada, ela permitiria que até mesmo cargas irregulares e pesadas fossem giradas com facilidade. Cargas como eles.
Tripulantes se enfileiraram perto da amurada, agarraram a rede e a ergueram; em instantes, os prisioneiros giravam numa velocidade nauseante e o mundo ao redor passava
voando em vislumbres – água escura... lâmpadas no convés... água escura... lâmpadas no convés...
– Ah, pelos deuses – disse alguém, logo antes de vomitar ruidosamente.
Houve uma fuga desesperada para longe do pobre coitado e Locke se agarrou com ferocidade ao seu lugar na borda da rede, tentando ignorar a massa de homens chutando
e estremecendo.
– Limpem eles! – gritou Delmastro. – Bombas de convés!
O duro jato de água salgada atingiu-os outra vez e eles giraram furiosamente. Locke passava pelo jorro a intervalos de alguns segundos e sua tontura aumentava à
medida que os minutos passavam. Apesar de estar ficando na moda, ele concentrou toda sua dignidade em não vomitar.
Tão intensa era sua tontura e tão rápida foi a libertação que ele nem percebeu que tinham sido trazidos de volta ao convés até que a rede em que estava agarrado
se afrouxou por completo. Locke tombou para a frente, outra vez sobre rede, lona e tábuas duras. O mundo agora girava em seis ou sete direções ao mesmo tempo, todas
profundamente desagradáveis. Locke fechou os olhos, mas isso não ajudou nem um pouco.
Homens se arrastavam por cima dele, gemendo e xingando. Dois tripulantes puxaram Locke de pé; seu estômago quase se rendeu e ele tossiu com força para lutar contra
a náusea. Drakasha se aproximava, tendo descartado a falsa peruca e a capa, e estava inclinada num ângulo curioso.
– O mar não quis vocês. A água se recusa a engolir vocês. Ainda não é hora de se afogarem, louvem Iono. Louvem Ulcris!
Ulcris era o nome jereshti para o deus do mar e não era ouvido frequentemente em terras ou águas terins. Deve haver mais ilhéus do leste a bordo do que eu imaginava,
pensou Locke.
– Senhor das Águas Revoltas, nos proteja – entoou a tripulação.
– Então agora vocês estão entre nós – continuou Drakasha. – A terra não os quis e o mar não quer reivindicá-los. Vocês fugiram, como nós, para a madeira e a lona.
O convés é o seu firmamento, essas velas são o céu. Esse é todo o mundo que vocês têm. Este é todo o mundo de que vocês precisam.
Ela avançou com uma adaga em mãos.
– Vocês vão lamber minhas botas para reivindicar um lugar nele?
– NÃO! – rugiram em uníssono os ex-tripulantes do Mensageiro; tinham sido instruídos sobre essa parte do ritual.
– Vão se ajoelhar e beijar meu anel precioso pedindo misericórdia?
– NÃO!
– Vão dobrar os joelhos diante de títulos mesquinhos em pedaços de papel?
– NÃO!
Ela foi até Locke e lhe entregou a adaga.
– Então livre-se, irmão.
Ainda instável e grato pela ajuda dos tripulantes ao redor, Locke usou a faca para cortar a corda das suas mãos, depois se abaixou para cortar a que prendia os tornozelos.
Virou-se e viu que todos os ex-tripulantes do Mensageiro estavam mais ou menos de pé, a maioria segura por um ou dois do Orquídea. Perto, podia distinguir vários
rostos familiares: Streva, Jabril, um sujeito chamado Alvaro... e logo atrás deles, Jean, olhando-o inquieto.
Locke hesitou, apontou para Jabril e estendeu a faca.
– Liberte-se, irmão.
Jabril deu um sorriso, pegou a faca e cortou suas amarras num instante. Jean fuzilou Locke, que fechou os olhos, não querendo fazer mais contato visual, e ouviu
a adaga passar pelo grupo. “Liberte-se, irmão”, murmuravam repetidamente. E então o ritual terminou.
– Desatados por suas próprias mãos, vocês são irmãos fora da lei no Mar de Bronze – anunciou Drakasha – e tripulantes do Orquídea Venenosa.
2
Até um ladrão experiente achará a oportunidade de aprender novos truques se viver o bastante. Na manhã e na tarde do dia da iniciação, Locke havia aprendido a saquear
um navio capturado da maneira adequada.
Concluiu sua última ronda nos conveses inferiores, razoavelmente seguro de que não havia mais tripulantes do Martim-Pescador dispersos, e subiu a escada até o tombadilho.
Os corpos dos Redentores tinham sido postos de lado, empilhados junto à amurada de popa; os cadáveres dos marinheiros do Orquídea haviam sido carregados para o poço
do navio. Locke viu vários tripulantes de Zamira cobrindo-os respeitosamente com lona de vela.
Fez um exame rápido da situação. Trinta ou quarenta tripulantes do Orquídea tinham vindo a bordo e assumiam o controle em todo lugar. Estavam nos enfrechates, com
Jean e Delmastro ao timão, cuidando das âncoras e vigiando os cerca de trinta sobreviventes do Martim em cima do castelo de proa. Sob a supervisão de Utgar, os feridos
de ambos os navios haviam sido carregados para o convés central, perto da portinhola de estibordo, onde, naquele momento, Drakasha e Treganne chegavam. Locke foi
às pressas até elas.
– É o meu braço, Erudita. Dói terrivelmente. – Streva usava o braço bom para apoiar o ferido, retraindo-se de dor, e o estendeu para Treganne examinar. – Acho que
quebrou.
– Claro que quebrou, seu cagalhão cretino – rebateu ela, passando por ele e indo se ajoelhar junto a um marinheiro do Martim com a túnica completamente encharcada
de sangue. – Continue balançando-o assim e ele vai se soltar de vez. Sente-se.
– Mas...
– Eu começo o trabalho com quem tem menos chance de sobreviver – murmurou Treganne.
Apoiou-se na bengala enquanto se abaixava. Depois, torceu-a e o cabo se separou do resto, revelando uma lâmina do tamanho de uma adaga que ela usou para cortar a
túnica do marinheiro.
– Você poderá ser tratado logo se eu der dois chutes na sua cabeça. Ainda quer atenção?
– Ahn... não.
– Você vai aguentar. Dê o fora.
– Aí está você, Ravelle. – Drakasha passou por Treganne e os feridos e agarrou Locke pelo ombro. – Você se saiu bem.
– Me saí bem?
– Quando se trata de comandar um navio, você é tão inútil quanto um rabo sem buraco, mas ouvi dizer as coisas mais incríveis sobre como você lutou.
– Suas fontes exageram.
– Bom, o navio é nosso e você nos entregou o comandante. Agora que arrancamos nossa flor, precisamos sugar o néctar antes que o mau tempo ou outro navio apareça.
– A senhora vai tomar o Martim-Pescador como presa?
– Não. Não gosto de ficar com mais de uma tripulação tomada de cada vez. Vamos arrancar todas as coisas valiosas e a carga útil.
– Então vamos queimá-lo ou algo assim?
– Claro que não. Vamos deixar suprimentos suficientes para a tripulação chegar a um porto e vamos observá-los partir para o horizonte – respondeu Drakasha. – Você
parece confuso.
– Não tenho objeções, capitã, é só que... não é tão sacana quanto eu esperava.
– Você não acha que nós respeitamos os que se rendem porque somos gentis, acha, Ravelle? – Drakasha riu. – Não tenho muito tempo para explicações, mas é assim. Se
não fossem aqueles malditos Redentores, essas pessoas... – ela gesticulou na direção dos tripulantes feridos do Martim que esperavam ser atendidos – ... não teriam
provocado nem recebido nenhum arranhão. Quatro navios em cada cinco que tomamos, eu diria, se não puderem colocar redes-navalhas e preparar arcos, simplesmente se
entregam. Sabem que vamos deixar que saiam com vida assim que terminarmos. E os marinheiros comuns não possuem 1 centira da carga, então por que iriam engolir uma
espada ou uma seta de balestra por causa disso?
– Acho que faz sentido.
– Para mais pessoas do que nós. Veja essa confusão. Redentores como segurança? Se aqueles maníacos não estivessem disponíveis de graça, esse navio não teria nenhum
guarda de verdade. Garanto. Não faz sentido para os donos. Essas viagens longas, quatro ou cinco meses desde o oriente distante até Tal Verrar, com especiarias,
metais raros, madeira... um proprietário pode perder dois navios em cada três e o que chega paga pelos dois que não têm sucesso. Com lucro de sobra. E se eles conseguirem
o navio de volta, mesmo sem a carga, tanto melhor. É por isso que não afundamos e queimamos feito loucos. Enquanto mostrarmos algum autocontrole e não chegarmos
perto demais da civilização, os detentores das bolsinhas de ouro pensam em nós como um risco natural, como o clima.
– Então a... parte de sugar o néctar... por onde começamos?
– A coisa mais valiosa à mão é a bolsa do navio. O capitão a guarda para despesas. Subornos e coisas assim. Encontrá-la é sempre um pé no saco. Alguns a jogam no
mar, outros escondem em algum lugar desagradável e improvável. Na certa vamos ter que dar uns tapas nesse tal de Nera durante algumas horas antes que ele cuspa a
verdade.
– Maldição. – Treganne deixou seu paciente tombar no convés e começou a limpar as mãos sangrentas na calça. – Este não tem jeito, capitã. Dá para ver direto os pulmões
atrás do ferimento.
– Ele com certeza está morto? – perguntou Locke.
– Bom, pelos céus, não sei, sou apenas a porra da galena. Mas ouvi dizer num bar que, quando os pulmões ficam abertos à luz do dia, aceita-se que a pessoa está morta
– respondeu Treganne.
– Ah... é. Ouvi a mesma coisa. Olha, mais alguém aqui vai morrer se não receber atenção imediata?
– Não é provável.
– Capitã Drakasha, mestre Nera tem um coração mole – disse Locke. – Será que posso tomar a liberdade de sugerir um plano...?
Alguns instantes depois, Locke voltou ao convés central segurando pelo braço Antoro Nera, cujas mãos tinham sido amarradas às costas. Locke lhe deu um bom empurrão
na direção de Zamira, que estava de pé com um sabre desembainhado. Atrás dela, Treganne trabalhava febrilmente sobre o corpo do marinheiro recém-falecido. A túnica
cortada e sangrenta fora tirada e o cadáver vestia outra limpa. Só uma pequena mancha vermelha marcava o ferimento mortal e Treganne deu a impressão de que a forma
imóvel ainda poderia ser salva por ela.
Drakasha agarrou Nera e encostou sua arma no peito dele.
– É um prazer conhecê-lo. – Ela deslizou o gume curvo na direção do pescoço desprotegido de Nera, que gemeu. – O seu navio está muito mal-equilibrado. Tem muito
peso de ouro. Precisamos retirar a bolsa do comandante o mais rápido possível.
– Eu, ahn... não sei exatamente onde ela está – replicou Nera.
– Certo. E eu posso ensinar peixes a peidar fogo. Você tem mais uma chance, e então vou começar a jogar seus feridos no mar.
– Mas... por favor, me disseram...
– Eu não disse nada.
– Eu... eu não...
– Erudita, você pode fazer alguma coisa pelo homem em quem você está trabalhando?
– Ele não vai dançar nem tão cedo, mas, sim, ele vai sobreviver.
Drakasha mudou a posição de Nera e segurou-o pela gola da túnica com a mão livre. Deu dois passos à direita e, mal olhando, cravou o sabre no pescoço do marinheiro
morto. Treganne se retraiu e deu um pequeno empurrão nas pernas do cadáver, assim pareceria que ele havia chutado. Nera ofegou.
– O galenismo é um negócio muito incerto – alegou Drakasha.
– Na minha cabine – reagiu Nera. – Um compartimento escondido junto à bússola acima da minha cama. Por favor... não mate mais nenhum...
– Na verdade eu não matei – explicou Drakasha. Em seguida, arrancou o sabre, limpou-o no calção de Nera e lhe deu um beijo rápido na bochecha. – O seu marinheiro
tinha morrido havia alguns minutos. Minha sanguessuga disse que pode salvar o resto dos seus feridos sem problema.
Ela girou Nera, cortou a corda que lhe atava as mãos e o empurrou para Locke, rindo.
– Devolva-o ao pessoal dele, Ravelle, e faça a gentileza de aliviar o fardo do tal compartimento secreto.
– Como quiser, capitã.
Depois disso, começaram a revirar o Martim-Pescador mais ansiosos do que recém-casados tirando as roupas no primeiro momento de privacidade. Locke sentiu a fadiga
se desvanecer à medida que se absorvia no que era essencialmente um vasto roubo, maior do que qualquer outro de sua vida. Foi passando de um serviço ao outro em
meio a tripulantes do Orquídea que gargalhavam e faziam palhaçadas mas trabalhavam com pressa e precisão.
Em primeiro lugar, levaram tudo que fosse transportável e razoavelmente valioso: garrafas de vinho, o guarda-roupa formal de Nera, sacos de café e chá da cozinha
e várias balestras da minúscula armaria do Martim. A própria Drakasha avaliou o conjunto de instrumentos de navegação e ampulhetas do navio, deixando o comandante
com o mínimo necessário para conduzir sua embarcação de volta ao porto.
Em seguida, Utgar e o contramestre revistaram a flute da proa à popa, usando a equipe do esfregão restante para carregar os suprimentos e equipamentos náuticos:
calafeto alquímico, lona de vela em bom estado, ferramentas de carpintaria, barris de piche e rolos e mais rolos de cordas novas.
– Que merda boa – comentou Utgar, sobrecarregando Locke com uns 20 quilos de corda e uma caixa de limas de metal. – Isso é caro demais em Porto Pródigo. É sempre
melhor conseguir com o que chamamos de desconto de costado.
A última parte, porém não menos importante, era a carga do Martim. Todas as grades das escotilhas do convés principal foram levantadas e uma teia quase incompreensível
de cordas e moitões foi armada entre os dois navios. Ao meio-dia, caixotes, barris e trouxas de tecido impermeável estavam sendo levados para o Orquídea. Era tudo
o que Nera havia prometido e mais ainda: terebintina, madeira-bruxa oleada, sedas, caixotes de fino vinho amarelo acolchoados com peles de ovelha e barris e mais
barris de especiarias brutas. O cheiro de cravo, noz-moscada e gengibre encheu o ar; após uma ou duas horas trabalhando no içamento, Locke estava marrom com uma
gosma que era metade suor e metade canela em pó.
Às cinco da tarde, Drakasha mandou parar a transferência de riqueza. O Orquídea estava mais afundado na água reluzente e a flute, mais leve, balançava solta, esvaziada
como uma casca de inseto a ponto de cair das mandíbulas de uma aranha. A tripulação de Drakasha havia limpado tudo, claro. Deixaram os barris de água, carne-seca,
cerveja e vinho baratos. Até deixaram alguns caixotes e pacotes com coisas valiosas armazenadas de modo muito inconveniente ou muito no fundo para o gosto de Drakasha.
Mesmo assim, o saque foi meticuloso. Qualquer mercador terrestre ficaria satisfeito em ter um navio descarregado no cais com uma presteza tão grande.
Uma breve cerimônia foi realizada junto à amurada de popa do Martim; Zamira abençoou os mortos das duas embarcações, tomando posse de sua condição de sacerdotisa
de Iono. Então, os corpos foram lançados ao mar, costurados em lona antiga com as armas dos Redentores para fazer peso. Os fanáticos jeremitas foram jogados sem
uma palavra.
– Não é desrespeitoso – disse Utgar quando Locke sussurrou sobre isso. – Eles acreditam que são consagrados, abençoados e tal pelos seus próprios deuses no instante
em que morrem. Não há nada de errado em jogar os pagãos no mar. É bom saber disso, para o caso de você ter de matar mais um punhado deles, não é verdade?
Por fim, o longo trabalho do dia foi realmente concluído; Nera e sua tripulação foram liberados para cuidar da própria sorte outra vez. Enquanto os arqueiros de
Drakasha mantinham vigilância nas vergas, a rede de cabos e defensas entre os dois navios foi retirada. O Orquídea Venenosa içou seus botes e soltou as velas. Em
minutos, estava fazendo 7 ou 8 nós rumo ao sudoeste, deixando o Martim-Pescador à deriva e numa desordem só.
Locke tinha visto Jean poucas vezes durante o dia e os dois pareceram se esforçar para manter a distância. Assim como Locke havia se lançado ao trabalho manual,
Jean permanecera com Delmastro no tombadilho. Não chegaram suficientemente perto para se falar de novo até que o sol caiu atrás do horizonte e a equipe do esfregão
foi arrebanhada e amarrada para a iniciação.
3
Todos os novos iniciados e metade da antiga tripulação do navio estavam no Turno Alegre, alimentados por prateleiras e mais prateleiras dos finos vinhos orientais
tirados do Martim-Pescador. Locke reconheceu alguns rótulos e safras. Coisas que não seriam vendidas em Camorr por menos de 20 coroas por garrafa estavam sendo drenadas
como cerveja, derramadas nos cabelos de homens e mulheres que comemoravam e escorrendo no convés. Os antigos tripulantes do Orquídea, homens e mulheres, misturavam-se
animados à antiga equipe do esfregão. Jogos de dados, lutas e círculos de cantoria tinham brotado espontaneamente. Havia flertes e propostas tácitas por toda parte.
Jabril desaparecera abaixo do convés com uma tripulante pelo menos uma hora atrás.
Locke observava tudo aquilo nas sombras de estibordo, logo abaixo do tombadilho. A escada daquele lado não ficava colada à amurada; havia espaço suficiente para
uma pessoa magra se enfiar ali com certo conforto. “Ravelle” fora cumprimentado calorosamente quando circulara pelo convés, mas agora que encontrara um exílio aconchegante,
ninguém parecia sentir sua falta. Em suas mãos, estava um grande odre de couro cheio de vinho azul que valia o peso em prata, ainda intocado.
Do outro lado da grande massa de marinheiros rindo e bebendo, Locke avistou Jean perto da amurada oposta e viu quando uma mulher muito mais baixa se aproximou dele
por trás e estendeu a mão. Locke virou as costas.
A água passava deslizando, um gel preto encimado por cachos de espuma fluorescente. O Orquídea mantinha uma boa velocidade através da noite. Carregado, cedia menos
do que antes à agitação do oceano e dividia as ondas pequenas como se fossem ar.
– Quando eu era uma tenente aprendiz, na minha primeira viagem com espada de oficial, menti para minha capitã sobre o roubo de uma garrafa de vinho.
Espantado, Locke olhou ao redor e viu que Drakasha estava parada diretamente acima dele, junto à amurada de frente do tombadilho.
– Não apenas eu – continuou ela. – Todos os oito do alojamento de aprendizes. Nós o pegamos “emprestado” do depósito particular da capitã e deveríamos ter sido espertos
o suficiente para jogar a garrafa no mar ao terminarmos.
– Na... marinha de Syrune?
– Nas Forças Marítimas de Sua Resplandecente Majestade da Eterna Syrune. – O sorriso de Drakasha era um crescente de branco contra o escuro, débil como a espuma
nas ondas. – A capitã poderia ter mandado que fôssemos chicoteados, rebaixados de posto ou mesmo acorrentados para um julgamento formal em terra. Em vez disso, fez
com que baixássemos a verga do sobrejoanete do mastro principal. Nós tínhamos uma de reserva, claro. Ela nos obrigou a raspar o verniz da que havíamos tirado...
era uma verga de carvalho, sabe, com 3 metros de comprimento e grossa feito uma perna. A capitã pegou nossas espadas e disse que elas só seriam devolvidas se e quando
comêssemos o sobrejoanete. De ponta a ponta, até a última lasca.
– Quando comessem?
– Trinta e oito centímetros de carvalho robusto para cada um – confirmou Drakasha. – Como faríamos isso, era da nossa conta. Demorou um mês. Tentamos de tudo. Raspando,
lixando, fervendo, transformando em polpa. Tínhamos mil truques para tornar aquilo palatável e forçávamos goela abaixo algumas colheradas ou lascas por dia. A maioria
ficou doente, mas comemos a verga.
– Pelo amor dos deuses.
– Quando aquilo acabou, a capitã explicou: ela queria que entendêssemos que as mentiras entre colegas de tripulação despedaçam o navio, parte por parte, comendo-o
até não sobrar nada.
– Ah. – Locke suspirou e tomou um gole de seu vinho excepcional e quente. – Acho que isso significa que eu estou destinado a um pouco mais de dissecação, não é?
– Venha se juntar a mim na amurada de popa.
Locke se levantou, sabendo que aquilo não era um pedido.
4
– Eu não sabia que pôr em prática a justiça podia ser tão cansativo – comentou Ezri, aparecendo junto ao cotovelo de Jean enquanto ele olhava por cima da amurada
de bombordo do Orquídea.
Uma das luas começava a subir no sul, meia moeda de prata espiando acima do horizonte noturno, como se preguiçosamente decidindo se valia a pena ir adiante.
– Você teve um longo dia, tenente.
Jean sorriu.
– Jerome – disse ela, pondo a mão no antebraço dele –, se você me chamar de “tenente” de novo esta noite eu o mato.
– Como quiser, ten... tan... qualquer outra coisa que não “tenente” e que comece com “ten”, sério... Além disso, você já tentou me executar uma vez esta noite. Veja
no que deu.
– Na melhor coisa possível – disse ela, agora se encostando na amurada ao lado dele.
Não trajava a armadura, só uma túnica fina e um calção que ia até os tornozelos, sem meias ou sapatos. O cabelo estava solto, ondas de cachos escuros se agitando
na brisa. Jean percebeu que ela apoiava a maior parte do peso sobre a amurada, se esforçando muito para não demonstrar.
– Ah, hoje você chegou um pouco perto demais de algumas lâminas – falou ele.
– Já estive mais perto. Mas você, bom... você... você é um lutador muito bom, sabia?
– Já me disseram is...
– Pelos deuses, claro que você é um bom lutador. Eu queria dizer alguma coisa muito mais inteligente, sério.
– Então considere como dito. – Jean coçou a barba e sentiu um calor bem-vindo de nervosismo se agitando no estômago. – Nós dois podemos fingir. Todas as... é...
bobagens inteligentes casuais que eu venho treinando com os barris no porão há dias também sumiram da minha mente.
– Treinando, é?
– É, bem... aquele tal de Jabril é um cara sofisticado, não é? Eu precisava de um pouco de conversa para atrair a atenção dele.
– O quê?!
– Você não sabia que eu só gosto de homens? De homens altos?
– Aahh, eu chutei você no convés uma vez, Valora, e agora vou...
– Rá! No seu estado?
– Meu estado é a única coisa que está salvando sua vida neste momento.
– Você não ousaria abusar de mim na frente de metade da tripulação...
– Claro que ousaria.
– Bom, é. É verdade.
– Olha toda essa confusão adorável, barulhenta. Acho que ninguém notaria se eu pusesse fogo em você. Diabos, lá no porão do convés principal há casais fazendo de
tudo, mais apinhados do que lanças nos armários de armas. Se você quiser paz e silêncio de verdade esta noite, o lugar mais perto que vai encontrar é a 200 ou 300
metros da proa.
– Não, obrigado. Não sei dizer “pare de me comer” em tubaronês.
– Bom, então você está preso aqui com a gente. E nós estávamos esperando há um bom tempo que você saísse da equipe do esfregão. – Ela sorriu para ele. – Esta noite
todo mundo conhece todo mundo.
Jean a encarou, os olhos arregalados, sem saber o que dizer ou fazer. Ela franziu a testa.
– Jerome, eu... estou fazendo alguma coisa errada?
– Errada?
– Você fica meio se afastando. Não só com o corpo, mas com o pescoço. Fica...
– Ah, inferno. – Jean riu, pôs a mão no ombro dela e um sorriso idiota incontrolável abriu-se no momento em que Ezri levantou a sua para segurá-la ali. – Ezri, eu
perdi os ópticos quando você... fez a gente nadar no dia em que embarcamos. Sou o que chamam de quase cego. Acho que não percebi, mas eu estava me mexendo para manter
você em foco.
– Ah, pelos deuses – sussurrou ela. – Desculpe.
– Não precisa se desculpar. Manter você em foco vale o trabalho.
– Eu não quis...
– Eu sei. – Jean sentiu a pressão ansiosa no estômago migrando para encher o peito e respirou fundo. – Olha, nós quase fomos mortos hoje. Fodam-se esses joguinhos.
Quer tomar uma bebida comigo?
5
– Olhe – disse Drakasha.
Locke parou junto à amurada de popa, olhando o rastro fosforescente do navio entre o brilho de duas lanternas de popa, que brilhavam como orquídeas de vidro do tamanho
de sua cabeça, pétalas transparentes inclinadas delicadamente na direção da água.
– Pelos deuses! – exclamou Locke, estremecendo.
Entre o rastro e as lanternas, havia apenas luz suficiente para ele enxergar aquilo: uma sombra longa e preta deslizando atrás do Orquídea Venenosa. Eram 12 ou 15
metros de algo sinuoso e sinistro, usando a esteira do navio para se esconder. A capitã apoiava uma das botas na amurada e tinha uma expressão de prazer casual no
rosto.
– Que diabo é isso?
– Existem cinco ou seis possibilidades. Pode ser um verme-baleia ou um polvo gigante.
– Ele está seguindo a gente?
– Está.
– É... ahn, perigoso?
– Bom, se você largar sua bebida na água, não pule atrás.
– Você não acha bom atirar umas flechas nele?
– Eu poderia atirar, se ao menos tivesse certeza de que isso é o mais rápido que ele consegue nadar.
– Bem pensado.
– Atire flechas em todas as coisas estranhas que você vir por aí, Ravelle, e você apenas vai ficar sem flechas. – Ela suspirou e olhou ao redor, para garantir que
estavam mais ou menos sozinhos. O tripulante mais próximo se achava ao timão, 8 ou 9 metros à frente. – Você foi muito útil hoje.
– Bom, não havia alternativa.
– Achei que eu estava permitindo um suicídio quando concordei em deixar que você fosse na frente.
– E foi quase isso, capitã. Aquela luta chegou a... bom, a centímetros do desastre o tempo todo. Nem me lembro de metade dela. Os deuses me abençoaram permitindo
que eu evitasse me sujar nas calças. Sem dúvida a senhora sabe como é.
– Sei. Também sei que às vezes essas coisas não são por acaso. Você e mestre Valora... provocaram um bocado de comentários pelo que fizeram nessa batalha. Suas habilidades
são incomuns para um ex-especialista em pesos e balanças.
– Pesar e medir é uma ocupação tediosa. A gente precisa de um passatempo.
– O pessoal do Arconte não contratou vocês por acidente, certo?
– Como assim?
– Eu disse que iria descascar essa fruta estranha que você chama de história, Ravelle, e andei fazendo isso. Minha impressão inicial a seu respeito não era favorável.
Mas você... se saiu bem. E acho que posso entender como manteve sua antiga tripulação obediente apesar da sua ignorância. Parece que você tem um talento especial
para a desonestidade improvisada.
– Pesar e medir é uma ocupação muito, muito tediosa...
– Então você é um especialista em uma ocupação sedentária que por acaso tem talento para espionar? E se disfarçar? E comandar? Para não mencionar sua habilidade
com armas e a do seu amigo íntimo que tem uma cultura incomum, o Jerome?
– Nossas mães tinham muito orgulho de nós.
– Você não foi contratado pelo Arconte, que o tirou do Priori – continuou Drakasha. – Vocês eram agentes duplos. Provocadores plantados, postos intencionalmente
a serviço do Arconte. Não roubaram o navio por causa de algum insulto do qual não querem falar; vocês o roubaram porque suas ordens eram de minar a credibilidade
do Arconte. De fazer alguma coisa grandiosa.
– Ahn...
– Por favor, Ravelle. Não há outra explicação razoável.
Pelos deuses, que tentação, pensou Locke. Uma vítima me convidando para embarcar na sua concepção equivocada, sem qualquer impedimento. Fitou o rastro fosforescente
do navio, a coisa misteriosa que nadava em meio a ele. O que fazer? Aproveitar a brecha, cimentar as identidades de Ravelle e Valora na mente de Drakasha, trabalhar
a partir daí? Ou... ele corou ao relembrar as censuras de Jean. Jean não o criticara apenas em bases teológicas ou por causa de Delmastro. Era uma questão de abordagens.
Qual seria mais eficaz?
Deveria passar a perna na capitã ou se tornar aliado dela?
O tempo estava se esvaindo. Aquela conversa era o ponto crucial: seguiria seus instintos e a manipularia ou seguiria o conselho de Jean e... tentaria confiar nela.
Pensou furiosamente. Os seus instintos... eram sempre infalíveis? Deixando de lado os argumentos de Jean e levando em conta apenas os instintos dele... no fim das
contas, Jean já fizera alguma coisa na vida além de tentar protegê-lo?
– Me diga uma coisa – falou bem devagar – enquanto eu avalio uma resposta.
– Talvez.
– Algo que tem metade do tamanho deste navio provavelmente está nos olhando durante esta conversa.
– É.
– Como você suporta isso?
– Eu vejo coisas assim com frequência suficiente para já estar acostumada...
– Não só isso. Tudo. Em toda a minha vida, estive no mar por apenas seis ou sete semanas. Há quanto tempo você está aqui?
Ela o encarou sem dizer nada.
– Não vou lhe contar algumas coisas a meu respeito só porque você é capitã deste navio, mesmo que você me jogue de volta no porão ou no mar – prosseguiu Locke. –
Algumas coisas... primeiro quero saber com quem estou falando. Quero conversar com Zamira, e não com a capitã Drakasha.
Ela continuou em silêncio.
– Será que é pedir demais?
– Tenho 39 anos – disse ela por fim, bem baixinho. – Naveguei pela primeira vez quando tinha 11.
– Quase trinta anos, então. Bom, como eu disse, estou aqui há algumas semanas. E nesse tempo, tempestades, motim, enjoo, batalhas, espectros-voadores... coisas famintas
espreitando por toda parte, esperando que alguém ponha um dedo na água. Não é que eu não tenha me divertido muitas vezes; eu me diverti. Aprendi coisas. Mas... trinta
anos? E com filhos? Você não acha tudo isso... arriscado?
– Você tem filhos, Orrin?
– Não.
– No instante em que eu perceber que você está querendo me dar sermão por causa deles, essa conversa vai ser encerrada com você sendo jogado na água para conhecer
o que quer que está lá embaixo.
– Não foi mesmo minha intenção fazer isso. É só...
– As pessoas em terra adquiriram o segredo de viver para sempre? Aboliram os acidentes? Deixaram de ter intempéries na minha ausência?
– Claro que não.
– Meus filhos realmente correm mais perigo do que algum pobre coitado convocado para lutar nas guerras de um duque? Ou alguma família miserável morrendo de peste
devido ao fechamento do bairro pela quarentena? Ou morta depois de queimarem as casas até os alicerces? Guerras, doenças, impostos. Baixando a cabeça e beijando
botas. Há uma quantidade suficiente de coisas famintas rondando a terra, Orrin. A diferença é que as do mar não usam coroas.
– Ah...
– A sua vida era um paraíso antes de navegar no Mar de Bronze?
– Não.
– Claro que não. Escute bem. Eu achei que tinha crescido numa hierarquia em que a competência e a lealdade bastavam para manter a situação – sussurrou ela. – Fiz
um juramento e imaginei que ele era recíproco. Fui idiota. E precisei matar uma quantidade medonha de homens e mulheres para escapar das consequências dessa idiotice.
Você acha que eu poria minha confiança, e o futuro de Paolo e Cosetta, na mesma besteira que quase me matou antes? A que sistema de leis eu deveria me submeter,
Orrin? Em que rei, duque ou imperatriz eu deveria confiar como se confiasse em uma mãe? Qual deles pode julgar melhor minha vida do que eu? Você pode me indicar,
escrever uma carta de recomendação?
– Zamira, por favor, não me confunda com um defensor dessas ideias; parece que toda a minha vida foi passada desdenhando voluntariamente de tudo o que você está
falando. Eu lhe pareço o tipo de sujeito ligado à lei e à ordem?
– Admito que não.
– Só estou curioso. Aprecio o que você disse. E o que acha da Armada Livre? Sua suposta Guerra pelo Reconhecimento? Por que professar um ódio tão grande por... leis,
impostos e todas essas imposições se era essencialmente isso que você estava lutando para estabelecer aqui?
– Ah. – Zamira suspirou, tirou o chapéu de quatro bicos e passou os dedos pelos cabelos agitados pela brisa. – Nossa infame Causa Perdida. Nossa contribuição pessoal
à gloriosa história de Tal Verrar.
– Por que vocês deram início a ela?
– Má avaliação. Todos esperávamos... bom, a capitã Bonaire foi convincente. Nós tínhamos uma líder, um plano. Abrir minas em novas ilhas, nos embrenhar em florestas
para tirar madeira e resina. Pilhar como quiséssemos até que os outros poderes no Mar de Bronze viessem torcendo as mãos para a mesa de negociação e depois acabar
com eles através do comércio autorizado. Imaginamos um reino sem tarifas. Montierre e Porto Pródigo inflando com mercadores e suas fortunas importadas.
– Ambicioso.
– Idiota. Eu havia escapado recentemente de uma aliança desagradável e pulei direto para outra. Nós acreditamos em Bonaire quando ela disse que Stragos não tinha
coragem de vir e lutar de verdade.
– Ah. Diabos.
– Eles nos encontraram no mar. Foi a maior ação que eu já vi e a que foi perdida mais rapidamente. Stragos colocou centenas de soldados verraris em seus navios para
apoiar os marinheiros; não tivemos a menor chance numa luta de perto. Assim que tomaram o Basilisco, eles pararam de fazer prisioneiros. Abordavam um navio, o afundavam
e partiam para o próximo. Os arqueiros deles acertavam todos os que estivessem na água, pelo menos até a chegada dos polvos gigantes.
– Eu precisei de todos os truques que tinha só para arrancar o Orquídea dali. Alguns de nós retornamos a Pródigo, perseguidos, e mesmo antes de chegarmos, os verraris
destruíram Montierre. Quinhentos mortos numa manhã. Depois disso, eles navegaram de volta para casa e imagino que tenha havido muitas danças, fodas e discursos.
– Acho que é possível tomar uma cidade como Tal Verrar... e é possível ameaçar as bolsas ou o orgulho dela e sair ileso. Mas não ameaçar as duas coisas ao mesmo
tempo.
– Você está certo. Talvez Stragos estivesse impotente quando Bonaire saiu da cidade. Porém, nós unimos os interesses de Tal Verrar atrás dele. Nós o invocamos como
algum demônio de historinha. – Ela cruzou os braços por cima do chapéu sobre o peito e se inclinou à frente, encostando os cotovelos na amurada. – Assim permanecemos
fora da lei. Sem prosperidade para os Ventos Fantasmas. Sem destino glorioso para Porto Pródigo. Agora este navio é o nosso mundo e só o levo para o porto quando
a barriga está cheia demais para navegar. Estou sendo clara, Orrin? Não me arrependo de como vivi estes anos. Eu vou para onde quero. Não dou títulos. Não vigio
fronteiras. Que rei de terra tem a liberdade de um capitão de navio? O Mar de Bronze provê. Quando preciso me apressar, ele me dá ventos. Quando preciso de ouro,
ele me dá galeões.
Que os ladrões prosperem, pensou Locke. Que os ricos se lembrem.
Tomou a decisão e se apoiou na amurada para não tremer.
– Só os idiotas amaldiçoados pelos deuses morrem por causa de linhas riscadas em mapas – disse Zamira. – Mas ninguém pode riscar linhas em volta do meu navio. Se
tentarem, só preciso escapar e enfunar mais velas.
– É. Mas... Zamira, e se eu fosse obrigado a lhe dizer que isso não é mais válido?
6
– Você andou mesmo ensaiando com barris, Jerome?
Tinham pegado uma garrafa de conhaque Romã-Preta num caixote aberto no meio dos farristas e a levaram para o seu lugar junto à amurada.
– Barris. Sim. – Jean tomou um gole da bebida, escura como noite destilada e com uma ardência parecida com a da urtiga por baixo da doçura. Devolveu a garrafa a
ela. – Eles nunca riem, nunca ridicularizam a gente e não oferecem distrações.
– Distrações?
– Os barris não têm seios.
– Ah. E o que você andou dizendo a esses barris?
– Esta garrafa de conhaque ainda está cheia demais para que eu comece a passar vergonha desse jeito.
– Então finja que eu sou um barril.
– Os barris não têm sei...
– Foi o que ouvi dizer. Tome coragem, Valora.
– Você quer que eu finja que você é um barril para que eu possa dizer o que andei dizendo aos barris quando estava fingindo que eles eram você.
– Exatamente.
– Bom... – Ele tomou outro longo gole da garrafa de conhaque. – Você tem... você tem aros que nunca vi em nenhum barril de nenhum navio, aros tão brilhantes e bem
ajustados...
– Jerome...
– E suas aduelas! – Ele decidiu que era hora de tomar outro gole. – Suas aduelas... tão bem-niveladas, tão apertadas! Você é o melhor barril que já vi, seu barrilzinho
maravilhoso. Para não falar da sua rolha...
– Humpf. Então você não vai dizer suas bobagenzinhas doces?
– Não. Estou absolutamente entrincheirado na minha covardia.
– “Homem! Em que rato ele se transforma ao conversar” – recitou Ezri. – “Zomba dos deuses, ousa na batalha e se encolhe diante da censura de uma donzela! O simples
riso de uma jovem comum é sentido como uma adaga e, como uma adaga, aloja-se em seu peito. Transforma o sangue em leite aguado e a coragem numa fraca lembrança.”
– Uhhhh, Lucarno, é? – Jean repuxou a barba, pensativo. – “Mulher, teu coração é um labirinto sem mapa. Pudesse eu engarrafar confusão e bebê-la durante mil anos,
não ficaria tão desconcertado quanto contigo entre o despertar e o desjejum. Ficaste tão sinuosa que as serpentes aplaudiriam sua passagem, caso os deuses lhes dessem
mãos.”
– Gosto dessa. O Império de Sete Dias, certo?
– Certo. Ezri, desculpe eu perguntar, mas como diabos você...
– Não é mais estranho do que você saber essas coisas. – Ela pegou a garrafa, tomou um longo gole e ergueu a mão livre. – Sei. Vou lhe dar uma dica: “Segurei o mundo
nas mãos, por capricho, de meridiano a meridiano. Recebi confissões de imperadores, a sabedoria dos magos, as lamentações dos generais.”
– Você tinha uma biblioteca? Você tem uma biblioteca?
– Tive. Eu era a caçula de seis filhas. Mamãe e papai podiam pagar acompanhantes vivos para as cinco mais velhas. Eu precisei me virar com os mortos, nos livros
de mamãe. – Com o gole seguinte, ela esvaziou a garrafa e, sorrindo, jogou-a no mar. – E qual é a sua desculpa?
– Minha formação foi... ahn, eclética. Você já... Você se lembra de um brinquedo com peças de madeira de várias formas, que a gente encaixava em buracos correspondentes
num tabuleiro de madeira.
– Lembro. Eu ganhei o das minhas irmãs, quando elas se cansaram dele.
– Eu fui treinado para ser uma peça quadrada que se encaixa num buraco redondo.
– Sério? Existe uma guilda para isso?
– Estamos trabalhando há anos para obter autorização.
– Você também tem uma biblioteca?
– De certa forma. Às vezes nós... pegávamos emprestado dos outros sem que eles soubessem ou cooperassem. É uma longa história. Mas há outro motivo. Vou lhe dar um
verso para você também adivinhar. “Depois do escurecer” – recitou ele com exagero – “um asno com plateia de um só é chamado de marido e um asno com plateia de duzentos
é chamado de sucesso”.
– Você esteve... no palco. Você foi ator! Profissionalmente?
– Temporariamente. Muito temporariamente. Eu fui... bem... nós... – Ele olhou na direção da popa e se arrependeu de imediato.
– Ravelle – compreendeu Ezri, depois encarou Jean com curiosidade. – Você e ele eram... vocês dois estão tendo algum tipo de desentendimento, não é?
– Podemos não falar sobre ele? – Sentindo-se ousado e nervoso ao mesmo tempo, Jean pôs a mão no braço dela. – Só esta noite, será que ele pode não existir?
– Podemos não falar sobre ele – respondeu ela, apoiando-se no peito dele, e não na amurada. – Esta noite ninguém mais existe.
Jean a encarou, de súbito muito consciente das batidas do próprio coração. O luar refletido nos olhos dela, a sensação do seu calor, o cheiro único de conhaque,
suor e água salgada... de repente, ele só foi capaz de dizer “Aaahn...”.
– Jerome Valora – disse Ezri –, seu magnífico idiota, você quer que eu desenhe?
– É...
– Me leve para a minha cabine. – Ela agarrou a túnica dele. – Eu tenho o privilégio de paredes e pretendo usá-lo. Longamente.
– Ezri – sussurrou Jean –, nunca, em cem anos, nem em mil anos, eu diria não, mas hoje você foi retalhada e mal consegue ficar de pé...
– Eu sei. Esse é o único motivo pelo qual confio que não vou quebrar você.
– Ah, por causa disso eu vou...
– Certamente espero que sim. – Ezri abriu os braços. – Primeiro me leve até lá.
Jean pegou-a com facilidade; ela se acomodou em seu colo e enlaçou o pescoço dele. Enquanto Jean se afastava da amurada e ia para a escada do tombadilho, viu-se
diante de um arco de trinta ou quarenta farristas do Turno Alegre. Eles ergueram os braços e começaram a aplaudir loucamente.
– Ponham seus nomes numa lista para que eu possa matar todos de manhã! – Ezri sorriu e fitou Jean. – Ou talvez eu tenha que esperar até a tarde.
7
– Só escute – pediu Locke. – Por favor, escute com a mente mais aberta possível.
– Vou me esforçar.
– Sua... ahn, dedução sobre Jerome e eu é louvável. Faz sentido, se não for levado em conta o que eu escondi até agora. A começar por mim mesmo. Não sou um lutador
treinado. Sou um maldito lutador horrível. Tentei ser diferente, mas os deuses sabem: sempre acontece uma comédia ou uma tragédia antes que eu possa piscar.
– Isso...
– Zamira. Preste atenção. Eu não matei quatro homens com qualquer coisa que parecesse habilidade. Larguei um barril de cerveja num homem idiota demais para olhar
para cima. Cortei o pescoço de outros dois que foram derrubados pelo barril. Matei o quarto depois que ele escorregou na cerveja. Quando o pessoal encontrou os corpos,
deixei que tirassem suas próprias conclusões.
– Mas você atacou aqueles Redentores sozinho...
– É. Pessoas que estão para morrer perdem a cabeça frequentemente. Eu deveria ter morrido dez segundos após o início daquela luta, Zamira. Foi Jerome que me salvou.
Jerome e somente Jerome.
Nesse momento, um alarido soou acima do ruído de festa no convés central. Locke e Zamira se viraram a tempo de ver Jean aparecer no topo da escada do tombadilho
com Delmastro nos braços. Nenhum dos dois olhou para Locke e a capitã; alguns segundos depois, sumiram.
– Por ganhar aquele coração, nem que seja apenas por uma noite, o seu amigo Jerome deve ser mais extraordinário ainda do que eu pensava.
– Ele é extraordinário – sussurrou Locke. – E continua a salvar minha vida, repetidamente, mesmo que eu não mereça. – Voltou o olhar para a esteira reluzente do
Orquídea, assombrada pelo monstro. – O que é mais ou menos sempre.
Zamira permaneceu em silêncio e, após alguns instantes, Locke prosseguiu:
– Bom, depois de ele ter feito isso de novo hoje de manhã, eu escorreguei, tropecei e corri feito o diabo até que a luta acabasse. Só isso. Pânico e pura sorte.
– Mesmo assim você foi à frente, nos botes. Subiu primeiro, sem saber o que o esperava.
– Tudo baboseira. Eu sou um às das baboseiras, Zamira. Um fingidor. Um ator, um impostor. Não tinha nenhuma motivação nobre quando fiz aquele pedido. Minha vida
não valeria muito se eu não fizesse algo absolutamente maluco para recuperar algum respeito. Eu forjei cada segundo de compostura hoje de manhã.
– O fato de você considerar isso extraordinário só significa que foi mesmo sua primeira batalha.
– Mas...
– Ravelle, qualquer um que esteja no comando finge tranquilidade no momento em que a morte se aproxima. Nós fazemos isso pelos que estão ao redor e por nós mesmos.
Porque a única alternativa é morrer se retorcendo. A diferença entre um líder experiente e um que não foi testado é que só os que não foram testados se chocam ao
perceber como conseguem fingir bem sob pressão.
– Não estou acreditando – falou Locke. – Quando cheguei a bordo, não pude impressioná-la o suficiente para fazer você cuspir na minha cara. Agora você está inventando
desculpas para mim. Zamira, Jerome e eu nunca trabalhamos para o Priori. Nunca me encontrei com um membro do Priori, a não ser de passagem. O fato é que ainda estamos
trabalhando para Maxilan Stragos.
– O quê?
– Jerome e eu somos ladrões. Ladrões independentes e profissionais. Fomos a Tal Verrar para um serviço muito delicado, que nós mesmos planejamos. Os... serviços
de informação do Arconte descobriram quem e o que nós somos. Stragos nos deu um veneno latente para o qual só ele pode fornecer o antídoto. Até garantirmos o antídoto
ou conseguirmos algum outro remédio, somos marionetes dele.
– Com que objetivo?
– Stragos nos entregou o Mensageiro Vermelho, permitiu que formássemos uma tripulação com os prisioneiros da Rocha de Barlavento e forjou documentos de um oficial
imaginário e ressentido chamado Orrin Ravelle. Ele nos deu um mestre de navegação, que teve um ataque cardíaco logo antes de depararmos com a tempestade, e nos mandou
para cá, para fazermos o negócio dele. Foi assim que conseguimos o navio. Foi assim que passamos a perna no Stragos de modo tão improvável.
– Ele quer o quê? Alguém em Porto Pródigo?
– Ele quer a mesma coisa que vocês deram na última vez em que se cruzaram. Ele está praticamente em guerra com o Priori e sentindo a idade. Se quiser recuperar algo
parecido com popularidade, a hora é agora. Ele precisa de um inimigo fora da cidade para fazer seu exército e sua marinha serem necessários de novo. Esse inimigo
é você, Zamira. Nada seria mais conveniente para Stragos do que pirataria perto da cidade dele nos próximos meses.
– E é exatamente por isso que os capitães do Mar de Bronze evitaram chegar perto de Tal Verrar nos últimos sete anos! Nós aprendemos a lição do pior modo. Se ele
vier procurando briga, vamos preferir nos esconder e fugir a enfrentá-lo.
– Eu sei. Ele também sabe. Nosso trabalho, nossa obrigação, é encontrar um modo de criar problemas aqui. Fazer com que vocês icem a bandeira vermelha suficientemente
perto a ponto de os verraris comuns a verem das latrinas públicas.
– Como, diabos, vocês planejavam conseguir isso?
– Eu tinha uma ideia grosseira de espalhar boatos, oferecer subornos. Se você não tivesse abordado o Mensageiro, eu teria tentado provocar uma confusão sozinho.
Mas isso foi antes de termos alguma ideia do verdadeiro estado de coisas por aqui. Agora Jerome e eu obviamente precisamos da sua ajuda.
– Para quê?
– Para ganhar tempo. Para convencer o Stragos de que estamos tendo sucesso.
– Se você acha, ao menos por um segundo, que eu farei alguma coisa para ajudar o Arconte...
– Não acho. Se você pensa que eu pretendo mesmo ajudá-lo, não estava me escutando. O antídoto de Stragos deve durar dois meses. Isso significa que Jerome e eu precisamos
estar em Tal Verrar em cinco semanas para conseguir outro gole. E se não progredirmos, ele pode simplesmente decidir cortar o investimento em nós.
– Se vocês precisarem nos deixar para retornar a Tal Verrar, vai ser uma infelicidade. Mas vocês podem encontrar um mercador independente em Porto Pródigo; sempre
parte um a cada poucos dias. Temos arranjos com vários deles para parar em Tal Verrar e Vel Virazzo. Vocês terão dinheiro suficiente da divisão do saque para comprar
passagem.
– Zamira, você é inteligente. Escute. Eu falei pessoalmente com Stragos várias vezes. Ou melhor, ouvi sermões. E acredito nele. Acredito que essa é a última chance
que ele tem para esmagar o Priori e de fato governar Tal Verrar. Ele precisa de um inimigo, Zamira. Precisa de um inimigo que ele sabe que pode esmagar.
– Então seria loucura ceder ao plano dele provocando-o.
– Zamira, essa luta vai alcançar vocês independentemente das suas intenções. Vocês são tudo que ele tem. São o único inimigo que se encaixa na situação. Ele já sacrificou
um navio, um mestre de navegação veterano, uma tripulação de prisioneiros e um tanto de prestígio só para colocar Jerome e eu em ação. Enquanto estivermos aqui e
você nos ajudar, você vai saber quais são os planos dele, porque estaremos realizando-os em seu navio. Se você nos ignorar, não faço ideia do que ele vai tentar
em seguida. Só sei que ele terá outros projetos e você não saberá quais são.
– De que vai me servir participar disso com vocês e provocar Tal Verrar a ponto de Stragos obter o que deseja? Não pudemos derrotar a frota dele há sete anos, nem
com o dobro do nosso contingente atual.
– As armas não são vocês – explicou Locke. – As armas somos Jerome e eu. Só precisamos de uma solução para o veneno e vamos nos virar contra o filho da puta como
um escorpião nas calças dele.
– E para isso eu exibo meu navio, minha tripulação e meus filhos ao alcance de um inimigo muito mais forte do que eu?
– Zamira, você falou do Mar de Bronze como se fosse um reino das fadas, infinitamente mutável, mas você está agarrada a Porto Pródigo e sabe disso. Não duvido que
você possa viajar para qualquer porto no mundo e alcançá-lo em segurança, mas você poderia viver em qualquer outro lugar como vive aqui? Vender com tanta facilidade
suas mercadorias e seus navios capturados? Pagar sua tripulação com tanta regularidade? Conhecer as águas e seus colegas fora da lei tão bem? Espreitar nas rotas
de comércio à metade da distância atual com relação à marinha de qualquer potência?
– Essa é a conversa mais estranha que tenho em anos. – Zamira recolocou o chapéu. – E provavelmente é o pedido mais estranho que alguém já me fez. Não tenho como
saber se você está dizendo a verdade. Mas conheço este navio e sei como ele pode navegar rápido se todo o resto falhar. Mesmo se Porto Pródigo cair.
– Esta, claro, é uma opção: me ignorar. Esperar até que Stragos encontre outro modo de obter sua guerra ou algo próximo disso. E depois fugir. Para outro mar, alguma
vida mais dura. Você mesma disse que não pode vencer a marinha do Arconte; não pode golpear Stragos pela força das armas. Então pense no seguinte: cedo ou tarde,
todas as alternativas que você tem vão se transformar em recuo e retirada. Jerome e eu representamos o único meio de ataque que você jamais possuirá. Com sua ajuda,
podemos destruir o Arconato para sempre.
– Como?
– Esse... é um plano que ainda está sendo elaborado.
– Esta deve ser a coisa menos tranquilizadora que você já...
– No mínimo – interrompeu Locke –, nós sabemos que existem forças poderosas em Tal Verrar contrárias ao Arconte. Jerome e eu podemos contatá-las, envolvê-las de
algum modo. Se o Arconato fosse abolido, o Priori seguraria Tal Verrar pelos cordões das bolsas. A última coisa que eles iriam querer seria se meter numa guerra
inútil que poderia popularizar outro herói militar.
– Parado aqui na popa do meu navio, a semanas de Tal Verrar, como você pode falar com certeza sobre o que pode ser feito com os mercadores e políticos de uma cidade?
– Você mesma disse que eu tenho talento para a desonestidade. Com frequência, acho que é a única habilidade que tenho e que vale ser recomendada.
– Mas...
– Drakasha, isso é intolerável!
Locke e Zamira giraram ao mesmo tempo e encontraram a Erudita Treganne parada no topo da escada de tombadilho. Ela foi na direção dos dois, mancando sem a ajuda
da bengala, e nos braços estendidos se retorcia um pesadelo preto e quitinoso, de múltiplas patas e brilhando sob a luz da lanterna. Uma aranha do tamanho de um
gato. A galena segurou-a com a barriga para a frente e as presas reluzentes se remexiam indignadas.
– Santos deuses, sem dúvida é – comentou Locke.
– Treganne, que diabo Zekassis está fazendo fora da gaiola?
– A sua tenente começou um ataque contra a divisória entre nossos alojamentos – sibilou Treganne. – Um barulho e uma agitação intoleráveis! Ela teve sorte de só
derrubar uma gaiola com todos aqueles chutes e teve mais sorte ainda porque eu estava ali para conter esta dama sem culpa...
– Então... espera aí, você mantém essa coisa na sua cabine? – Locke ficou aliviado ao descobrir que o bicho não estivera solto pelo navio.
– De onde você acha que vem a seda para suturar os ferimentos, Ravelle? Pare de se encolher; Zekassis é uma criatura delicada e tímida.
– Treganne – interveio Drakasha –, como galena, você deve estar familiarizada com os hábitos de acasalamento da fêmea humana adulta.
– É, mas a 2 metros da minha cabeça é uma intromissão insuportável...
– Treganne, na minha opinião, interromper Ezri neste momento seria uma intromissão insuportável. O compartimento do intendente, do outro lado do corredor, está aberto.
Peça ao carpinteiro para dar uma acomodação temporária à Zek e ponha sua rede no espaço do Gwillem.
– Vou me lembrar dessa indignidade, Drakasha...
– Sim, aproximadamente por dez minutos, até que alguma afronta nova surja para reivindicar sua atenção completa.
– Se Delmastro se causar algum dano por causa desses esforços – disse Treganne com afetação –, ela pode encontrar outro galeno para servir às suas necessidades.
E devo dizer que ela pode usar o próprio abdômen para fiar seda para os curativos...
– Tenho certeza de que o abdômen de Ezri está ocupado de outro modo, Erudita. Por favor, encontre alguém para construir uma casa para esta coisa passar a noite.
Você não vai precisar argumentar muito para convencê-los da urgência.
Enquanto Treganne saía pisando firme e bufando com sua criatura tímida e delicada sacudindo-se em protesto, Locke se virou para Zamira com uma sobrancelha arqueada.
– Onde foi que você arranjou essa...
– O castigo pela insolência na família real de Nicora é ser pendurado para morrer de fome numa gaiola de ferro. Nós estávamos em Nicora roubando um pouco; Treganne
estava lá em cima, definhando. Na maior parte do tempo, não me arrependo de tê-la tirado de lá.
– Bom, o que você diz da minha...
– Proposta louca?
– Zamira, eu não preciso que você navegue até o porto de Tal Verrar. Só me dê algo para ganhar alguns meses da indulgência de Stragos. Saqueie um ou dois navios
perto de Tal Verrar. Trabalho rápido e fácil. Você sabe que Jerome e eu seremos os primeiros a pular ao mar por você. Só... deixe que eles corram para a cidade e
espalhem um pouco de pânico. Depois nos mande à noite, num bote, deixe-nos fazer nosso serviço e voltaremos com uma ideia melhor de como reverter a situação...
– Atacar navios verraris e chegar perto o bastante da cidade para deixar vocês saírem num bote? Esperar ancorada com um prêmio de 5 mil solaris pela minha cabeça...
– Ora, isso é injustiça, Zamira, independentemente de qualquer coisa que eu tenha feito para provocar suspeitas. Se Jerome e eu quiséssemos apenas voltar a Tal Verrar,
por que arriscaríamos o pescoço no seu ataque hoje de manhã? E se eu quisesse continuar enganando ou espionando você, por que não aproveitei sua conclusão de que
éramos agentes do Priori?
Ele fez uma pausa e prosseguiu:
– Jerome e eu discutimos hoje cedo. Se você conversou com Jabril antes de me tirar do seu porão, deve saber que sou sacerdote do Treze, do Guardião Torto. Vocês
fazem parte... da nossa gente, mais ou menos. Da nossa laia. É uma questão de dignidade. Jerome insistiu que lhe contássemos a verdade, que precisamos de vocês como
aliados voluntários e não como marionetes. Sinto vergonha de dizer que eu estava irritado demais para concordar. Mas ele tem razão, e não é só a porra de um sentimento,
mas a dura verdade. Não creio que Jerome e eu possamos fazer isso, a não ser que você ajude com o pleno conhecimento do que estamos fazendo. E se você não quiser
ou não puder fazer isso, acho que vai ter uma tremenda confusão pela frente. Em breve.
Drakasha pousou a mão direita no cabo de um dos sabres e fechou os olhos, parecendo cansada e aborrecida.
– Antes de qualquer coisa, fora todas as outras considerações, precisamos parar em Porto Pródigo. Tenho carga para vender, suprimentos para comprar, uma presa da
qual dispor e uma tripulação para cuidar. Estamos a vários dias de lá e vamos ficar vários dias por lá. Vou pensar no que você disse. De um modo ou de outro, vou
lhe dar uma resposta depois de termos feito os negócios em terra.
– Obrigado.
– Então você se chama mesmo Leocanto?
– Continue me chamando de Ravelle. É mais fácil para todo mundo.
– Claro. Bem, você está no Turno Alegre e só vai voltar ao serviço amanhã à tarde. Sugiro que aproveite a noite.
Locke olhou para seu copo de couro com vinho azul, subitamente pensando que poderia tomar mais alguns e talvez participar de um jogo de dados para desanuviar a mente
durante algumas horas.
– Se os deuses forem gentis, já aproveitei. Boa noite, capitã Drakasha.
Deixou-a sozinha junto à amurada, estudando silenciosamente o monstro que espreitava na esteira do Orquídea.
8
– Doeu? – sussurrou Ezri, percorrendo com um dedo a pele escorregadia de suor acima das costelas de Jean.
– Se doeu? Deuses do céu, mulher, não, foi...
– Não estou falando disso. – Ela lhe deu um cutucão firme na cicatriz que traçava um arco sobre seu abdômen, abaixo do peito direito. – Mas disso.
– Ah, isso. Não, foi maravilhoso. Alguém veio atrás de mim com um par de dentes de ladrão. Pareceu uma brisa quente num belo dia de primavera. Eu adorei cada segundo
da... ai!
– Idiota!
– Onde você arranjou cotovelos tão pontudos? Você afia num esmeril ou... ai!
Ezri estava em cima de Jean na rede de semisseda que ocupava a maior parte do compartimento dela. Ele mal conseguiu se deitar com um braço sob a cabeça, roçando
a antepara interior do lado de estibordo do navio, e poderia ter ocupado toda a largura com os braços abertos. Um badulaque alquímico do tamanho de uma moeda fornecia
uma leve luz prateada. Os cabelos de Ezri, escuros feito madeira-bruxa, reluziam como seda de aranha ao luar. Ele passou as mãos por aquela úmida floresta de cabelos,
massageou o couro cabeludo quente com as unhas e, com um gratificante gemido, ela deixou que os músculos relaxassem.
O ar parado do compartimento estava denso de suor e com o calor preso da primeira hora interminável e frenética que passaram juntos. Jean notou pela primeira vez
que o lugar também estava absolutamente desarrumado. As roupas espalhadas formando um caos. As armas e as poucas posses de Ezri caídas no chão feito destroços de
um naufrágio. Uma pequena rede contendo alguns livros e rolos de pergaminho pendia de uma trave do teto e se inclinava na direção da porta do cômodo, indicando que
todo o navio estava adernado a bombordo.
– Ezri – murmurou ele, olhando a rígida divisória de lona que formava a “parede” esquerda. Um par de pés grandes e outro de pés pequenos haviam causado danos sérios
a ela. – Ezri, de quem é a cabine que nós quase derrubamos com chutes há pouco?
– Ah... da Erudita Treganne. Quem disse para você parar de fazer cafuné? Ah, está muito melhor.
– Ela vai ficar puta da vida?
– Mais do que o usual? – Ezri bocejou e deu de ombros. – Ela é livre para arranjar um amante e chutar a parede de volta quando quiser. Estou ocupada demais para
ser diplomática. – Ela beijou o pescoço de Jean, que estremeceu. – Além disso, a noite mal começou. Podemos derrubar tudo a chutes se eu quiser, Jerome.
– Então você é quem manda – falou Jean, movendo ligeiramente o corpo dela até estarem deitados de lado, cara a cara.
Ele passou as mãos com o máximo cuidado possível pelas bandagens rígidas do braço dela; a única coisa de que ela não conseguiu se despir. As mãos foram até as bochechas
de Ezri e depois ao cabelo. Os dois se beijaram durante o tipo de momento interminável que só existe entre amantes cujos lábios ainda são território novo um para
o outro.
– Jerome – sussurrou ela.
– Não. Faça uma coisa por mim, Ezri: em particular, nunca me chame assim.
– Por quê?
– Me chame pelo meu nome verdadeiro. – Ele beijou o pescoço dela, encostou os lábios na sua orelha e o sussurrou.
– Jean... – repetiu ela.
– Pelos deuses, sim. Repita.
– Jean Estevan Tannen. Gostei.
– Seu e somente seu – murmurou Jean.
– Vou lhe dar algo em troca: Ezriane Dastiri de la Mastron. Dama Ezriane da Casa de Mastron. De Nicora.
– Sério? Você tem uma propriedade ou algo assim?
– Duvido. Filhas excedentes que fogem de casa não costumam receber propriedades. – Ela beijou-o de novo e desgrenhou sua barba com as pontas dos dedos. – Depois
de ter deixado aquela carta para meus pais, tenho certeza de que fui deserdada.
– Pelos deuses. Sinto muito.
– Não sinta. – Ela desceu os dedos até o peito dele. – Essas coisas acontecem. A gente vai em frente. Encontra coisas aqui e ali que ajudam a esquecer.
– É verdade – sussurrou ele, e então ficaram ocupados demais para conversar durante um bom tempo.
9
Locke foi arrancado de seu vívido emaranhado de sonhos por várias coisas: o calor crescente do dia, a pressão de três copos de vinho na bexiga, os gemidos dos homens
de ressaca ao redor e as pontas afiadas das garras da criaturinha pesada que dormia em sua nuca.
Atacado pela súbita lembrança da aranha da Erudita Treganne, ele ofegou aterrorizado e rolou, agarrando a coisa grudada nele. Piscou várias vezes para afastar a
névoa de sono dos olhos e se pegou lutando não com Zekassis, mas com um gatinho de rosto estreito e pelos pretos.
– Que diabo...?
– Miau – retrucou o animal, encarando-o.
Tinha a expressão comum a todos os gatinhos, de um tirano em formação. Eu estava confortável e você ousou se mexer, diziam os olhos de jade. Por causa disso, você
deve morrer. Quando ficou aparente para o gato que seu peso era insuficiente para quebrar o pescoço de Locke com uma pancada violenta, pôs as patas no ombro dele
e começou a esfregar o focinho coberto de baba nos lábios dele. Locke se retraiu.
– É o Magnífico – disse alguém à esquerda de Locke.
– Magnífico? Não, é ridículo.
Locke enfiou o gatinho sob o braço como se fosse um perigoso instrumento alquímico. O pelo era fino e sedoso e o bicho começou a ronronar alto. O homem que havia
falado era Jabril; Locke levantou as sobrancelhas ao ver que ele estava deitado de costas, completamente nu.
– É o nome dele – explicou Jabril. – Magnífico. Ele tem uma mancha branca no pescoço. E nariz úmido, não é?
– Isso mesmo.
– Magnífico. Você foi adotado, Ravelle. Não é irônico?
– A ambição da minha vida finalmente se concretizou.
Locke olhou em torno, para o porão do castelo meio vazio. Vários dos novos tripulantes do Orquídea roncavam alto. Um ou dois engatinhavam para se levantar e pelo
menos um dormia contente numa poça do que parecia ser o próprio vômito. Jean não estava à vista.
– E como foi sua noite, Ravelle? – Jabril se apoiou nos dois cotovelos.
– Virtuosa, acho.
– Meus pêsames. – Jabril deu um sorriso. – Já conheceu Malakasti, do Turno Azul? Que tem o cabelo meio ruivo e adagas tatuadas nos nós dos dedos? Pelos deuses, acho
que ela não é humana.
– Você sumiu cedo da festa, devo admitir.
– É. Ela tinha algumas exigências. E alguns amigos. – Jabril massageou as têmporas com a mão direita. – Aquele contramestre do Turno Vermelho, o cara sem dedos na
mão direita. Não tinha ideia de que ensinavam aos garotos ashmiris, tementes aos deuses, esses tipos de truque. Uau.
– Garotos? Eu não sabia que você... ahn... perseguia esse tipo de presa.
– É, bem, parece que sou capaz de tentar tudo pelo menos uma vez. – Jabril deu uma risada. – Ou cinco ou seis vezes, por acaso. – Ele coçou a barriga e pareceu perceber
pela primeira vez que estava sem roupa. – Diabos. Eu me lembro de que estava usando calções ontem...
Locke emergiu ao sol alguns minutos depois, com Magnífico ainda enfiado sob o braço. Espreguiçou-se e bocejou, e o gato fez o mesmo, tentando se soltar e, aparentemente,
voltar para cima da sua cabeça. Locke segurou o sujeitinho minúsculo no alto e o encarou.
– Não vou deixar que você me cative. Encontre outro para compartilhar a baba.
Sabendo que qualquer maltrato ao bichano poderia fazer com que ele fosse jogado no mar, pousou o gato no chão e cutucou-o com o pé descalço.
– Tem certeza de que você está autorizado a dar ordens a esse gato? – Locke se virou e viu Jean parado nos degraus do castelo de proa, acabando de vestir uma túnica.
– É preciso ter cuidado. Ele pode ser chefe de turno.
– Se ele fosse se atribuir algum posto, acho que se colocaria em algum lugar entre Drakasha e os Doze. – Locke encarou Jean por um tempo. – Oi.
– Olá...
– Olha, temos pela frente um bocado de conversa tediosa do tipo “eu fui um escroto” e ainda estou me sentindo meio vitimizado por aquele vinho azul, portanto só
vamos presumir...
– Desculpe – disse Jean.
– Não, eu que devo me desculpar.
– Nós batemos de frente de verdade, não foi?
– Se há uma coisa para a qual uma batalha não serve, é para acalmar os nervos. Não culpo você pelo... que disse.
– Podemos pensar em alguma coisa – continuou Jean, baixo e com urgência. – Alguma coisa juntos. Sei que você não é... eu não queria insultar a sua...
– Eu mereci. E você estava certo. Conversei com Drakasha ontem à noite.
– Conversou?
– Contei a ela... – Locke fez uma careta, espreguiçou-se de novo, usou o movimento para encobrir uma série de sinais de mão. Jean fez o mesmo, arqueando as sobrancelhas.
Não mencionei os Magos-Servidores, a Agulha do Pecado, Camorr, os nomes verdadeiros. Todo o resto, a verdade.
– É mesmo? – perguntou Jean.
– É. – Locke olhou para o piso. – Eu disse que você estava certo.
– E como foi que ela...
Locke imitou lançar dados e deu de ombros.
– Vamos para Porto Pródigo antes que qualquer coisa aconteça. Serviços a fazer. Ela falou que depois... conta o que decidiu.
– Sei. E assim...
– Você teve uma boa noite?
– Pelos deuses, tive.
– Ótimo. Quanto a... bem... ao que eu disse ontem...
– Não precisa...
– Preciso. O que eu disse ontem foi a coisa mais idiota de todas. Mais idiota e menos justa. Sei que eu andei... sem esperança por tanto tempo que uso isso como
uma armadura. Não me ressinto de nada que você tem. Aproveite ao máximo.
– Estou aproveitando, acredite.
– Que bom. Você não vai querer aprender comigo.
– Ah, então...
– Tudo está bem, mestre Valora. – Locke conseguiu sorrir. – Mas esse vinho do qual eu estava falando...
– Vinho? Você...
– Os cabos de bosta, Jerome. Preciso mijar antes que minha bexiga exploda. Você está bloqueando a escada.
– Ah. – Jean desceu e deu um tapa nas costas de Locke. – Desculpe. Alivie-se, irmão.
CAPÍTULO DOZE
Porto Pródigo
1
O Orquídea Venenosa seguiu na direção oeste por sul através de um ar mormacento e ondas moderadas e os dias passaram para Locke no ritmo das tarefas.
Ele e Jean foram postos no Turno Vermelho, sob a supervisão direta da tenente Delmastro, na ausência de Nasreen. As cerimônias de iniciação grandiosas não serviram
nem um pouco para aplacar o apetite do navio por manutenção; os mastros ainda precisavam ser engraxados, as emendas verificadas e reverificadas, os conveses lavados,
os cordames ajustados. Locke lubrificava os sabres dos armários de armas, fazia força no cabrestante para mudar a carga de lugar com o objetivo de melhorar o equilíbrio
do navio, servia cerveja nas refeições do meio da noite e destrançava pedaços de corda para fazer estopa até ficar com os dedos vermelhos.
Drakasha apenas o cumprimentava com movimentos rígidos de cabeça e não o chamou de novo para conversas particulares.
Como tripulantes oficiais, os ex-marinheiros do Mensageiro tinham o direito de dormir mais ou menos onde pudessem. Alguns optaram pelo porão principal, especialmente
os que conseguiram companheiros de redes entre os velhos membros do Orquídea, mas Locke se achou confortável o bastante no portão do castelo, agora com espaço suficiente.
Ganhou uma túnica de reserva num jogo de dados e usava-a como travesseiro, um luxo após dias tendo só o convés como apoio. Dormia como uma estátua de pedra depois
de terminar cada turno da noite, logo antes da luz vermelha do alvorecer.
Jean, claro, dormia em outro lugar.
Não avistaram nada até o dia 27, quando os ventos mudaram e começaram a soprar com força, vindos do sul. Locke desmoronou ao alvorecer em seu lugar de sempre, encostado
na antepara de bombordo no porão do castelo, e então roncou durante várias horas, parecendo satisfeito consigo mesmo. Até que algum tipo de agitação o acordou e
encontrou Magnífico enroscado sobre seu pescoço.
– Argh! – exclamou ele.
O gatinho recebeu isso como sinal para apoiar as patas dianteiras nas suas bochechas e começar a cutucar entre os olhos de Locke com o focinho úmido. Locke pegou
o animal, sentou-se e piscou. Sua mente estava enevoada; algo definitivamente o havia acordado antes da hora.
– Foi você? – murmurou, franzindo a testa e esfregando o topo da cabeça de Magnífico com dois dedos. – Precisamos parar de nos encontrar assim, garoto. Não estou
sendo cativado por você.
– Terra à vista! – soou um grito débil do lado de fora do porão do castelo. – Três pontos a bombordo!
Locke pousou Magnífico, deu-lhe um cutucão na direção de alguém que roncava ali perto e se arrastou para a luz da manhã.
A atividade no convés parecia normal: ninguém estava agitado, nem mandando mensagens urgentes a Drakasha ou mesmo apinhando a amurada para tentar ver a terra que
se aproximava. Alguém deu um tapa nas costas de Locke. Ele se virou e deu de cara com Utgar, que tinha um rolo de corda pendurado no ombro. O vadrã assentiu amigavelmente.
– Você parece confuso, Turno Vermelho.
– É só que... eu ouvi o grito. Achei que haveria mais agitação. Aquilo é Porto Pródigo?
– Não. São os Ventos Fantasmas, sim, mas só estamos vendo o entorno. Lugares miseráveis. Ilha Asp, Rocha do Bastardo, as Areias de Opala. Nenhum lugar do qual a
gente queira chegar perto. Ainda faltam dois dias para Pródigo e, com o vento deste jeito, não estamos indo como gostaríamos, não é?
– Como assim?
– Você vai ver. – Utgar sorriu por estar escondendo informações. – Você vai ver, sem dúvida. Volte ao seu sono de beleza, certo? Você vai voltar para os mastros
em duas horas.
2
As Ilhas dos Ventos Fantasmas apareceram aos poucos ao redor do Orquídea como uma quadrilha de assaltantes saboreando a lenta aproximação de um alvo. No horizonte,
que já fora límpido, brotavam ilhas densas com uma selva coberta de névoa. Picos altos e pretos ribombavam de vez em quando, arrotando linhas de vapor ou fumaça
nos céus pesados e cinzentos. A chuva caía constantemente, não as tempestades implacáveis dos mares abertos e, sim, a umidade insignificante dos trópicos, quente
como sangue e mal acossada pela brisa da selva.
As águas haviam clareado com a viagem para o oeste, desde o cobalto das profundezas até o azul-celeste e um água-marinha translúcido. O lugar era repleto de vida;
pássaros voavam em círculos, peixes disparavam nas águas rasas em cardumes prateados e formas sinuosas maiores do que homens os seguiam. Elas iam languidamente na
esteira do Orquídea: tubarões-foice, viúvos-azuis, rizadores-do-azar, barbatanas-de-adaga. Os mais assustadores de todos eram os tubarões-lobos da região, cujas
costas cor de areia lhes permitiam sumir na turbulência pálida embaixo do navio. Era preciso ter bom olho para ver as incongruências fantasmagóricas que traíam seu
movimento de espreita e eles tinham o hábito desconcertante de circular abaixo dos cabos de bosta.
Locke agradeceu aos deuses por eles não saltarem.
Continuaram velejando por um dia e meio, desviando-se de ocasionais recifes ou ilhas menores. Drakasha e Delmastro pareciam conhecer a área como a palma da mão e
só analisavam os mapas, murmurando, a raros intervalos. Locke começou a vislumbrar detritos humanos nos bancos de areia e nas pedras – aqui um mastro desgastado,
ali as costelas esqueléticas de uma quilha antiga no fundo arenoso. Num turno à tarde, ele viu centenas de coisas parecendo caranguejos do tamanho de cachorros se
congregando no fundo virado do casco de um navio. À medida que o Orquídea passava, as criaturas fugiam em massa de seu recife artificial, fazendo a água ao redor
espumar. Em instantes, haviam desaparecido completamente.
Locke terminou o turno após algumas horas, cônscio de uma tensão crescente na tripulação ao redor. Algo mudara. Drakasha andava sem parar pelo tombadilho, ordenou
vigias extras no calcês e tinha reuniões sussurradas com Delmastro e Caladão.
– Ela não quer dizer o que está acontecendo – disse Jean depois de Locke ter dado o que achava ser uma sugestão sutil. – No momento, ela é totalmente tenente, nem
um pouco Ezri.
– Isso, em si, já significa uma coisa: que devemos conter a celebração – observou Locke.
Drakasha convocou todos os tripulantes na hora da troca do turno da tarde. Uma vasta massa de homens e mulheres ansiosos e suados fixaram os olhares na amurada do
tombadilho e esperaram as palavras da capitã. O sol era um disco de cobre ardente coroando selvas logo adiante; as cores abrasadoras se esgueiravam, camada após
camada, através das nuvens, e a toda volta as ilhas escureciam.
– É o seguinte – começou Drakasha. – Os ventos permaneceram firmes feito o diabo nos últimos dias, vindos do sul. Podemos baixar âncora em Pródigo esta noite, mas
não podemos passar pelo Portão do Comerciante.
Houve um murmúrio geral na multidão. Delmastro, surgindo ao lado do cabrestante, pôs a mão no seu cinturão de armas e berrou:
– Quietos! Pelo mijo de Perelandro, a maior parte de nós já esteve aqui antes.
– Estivemos mesmo – continuou Drakasha. – Corações fortes, Orquídeas. Faremos o de sempre. Turno Vermelho, descanse um pouco. Esperem um chamado a toda a tripulação
dentro de algumas horas. Depois disso, ninguém dorme, ninguém bebe, ninguém trepa até estarmos de novo seguros em casa. Turno Azul, você está de serviço. Del, cuide
dos novatos. Passe tudo para eles.
– Passar o quê? – Locke olhou ao redor, fazendo a pergunta ao ar, enquanto a tripulação se dispersava.
– Há duas passagens para Porto Pródigo – explicou Jabril. – A primeira, o Portão do Comerciante, fica ao norte da cidade. Tem uns 20 quilômetros de comprimento.
É cheia de curvas, com bancos de areia por toda parte. Na melhor das hipóteses, é uma passagem lenta, mas com um vento forte do sul, não dá. Iríamos demorar dias.
– Então o que vamos fazer, diabos?
– O segundo caminho, pelo oeste. Tem metade do tamanho. Também é sinuoso, mas não tão ruim. Especialmente com esse vento. Mas é melhor evitá-lo se for possível.
Chamam de Passagem do Mercado.
– Por que é melhor evitar?
– Porque tem alguma coisa lá – interveio a tenente Delmastro, abrindo caminho pelo pequeno grupo, composto por ex-Mensageiros, que tinha se reunido em torno de Jabril.
Locke viu-a dar um aperto brevíssimo no braço de Jean. – Alguma coisa... mora lá.
– Alguma coisa? – Locke deixou transparecer a irritação na voz. – O navio corre perigo?
– Não – respondeu Delmastro.
– Deixe-me ser mais específico, então. Nós, que estamos a bordo dele, corremos perigo?
– Não sei. – Delmastro trocou um olhar com Jabril. – Se alguma coisa virá a bordo do navio? Não. Não mesmo. Se você... vai sentir vontade de sair do navio? Não posso
afirmar. Depende do seu temperamento.
– Não sei se eu gostaria de ter a atenção íntima de alguma coisa nadando naquelas águas – falou Locke.
– Ótimo. Então provavelmente você não tem com que se preocupar. – Delmastro suspirou. – Todos vocês, prestem atenção no que a capitã disse. O negócio é descansar
um pouco; vocês serão chamados na metade do tempo do descanso usual, portanto aproveitem ao máximo. – Ela parou ao lado de Jean, e Locke entreouviu um sussurro:
– Eu certamente pretendo aproveitar.
– Eu, ahn... encontro você mais tarde, Jerome.
Locke sorriu, mesmo contra a vontade.
– Vai tirar um cochilo? – perguntou Jean.
– Diabos, não. Vou ficar girando os polegares, acordado, até que me chamem para o serviço. Talvez eu encontre alguém para jogar uma partida de baralho...
– Duvido – replicou Delmastro. – A sua reputação...
– Essa é uma perseguição injusta contra a minha sorte – disse Locke.
– É, bem, talvez você devesse exibir publicamente seu azar. Para bom entendedor, meia palavra basta. – Ela jogou um beijinho zombeteiro para Locke. – Se é que você
entende, Ravelle.
– Ah, roube o Jerome e faça o pior que puder com ele. – Locke cruzou os braços e deu um sorriso enviesado; o fato de Delmastro estar ficando mais à vontade com ele
havia sido uma mudança bem-vinda nos dias anteriores. – Vou avaliar o desempenho de vocês vendo como Treganne está puta da vida. É assim que vou me divertir. Vou
propor apostas para ver até que ponto vocês conseguem deixar a Erudita...
– Se você fizer qualquer coisa desse tipo – interrompeu Delmastro –, eu o acorrento a uma âncora por suas partes preciosas e mando que seja arrastado por cima de
um recife.
– Não, a ideia é boa – contrapôs Jean. – Nós também podemos apostar com ele e trapacear...
– Este navio tem duas âncoras, Valora!
3
O crepúsculo se aproximava quando Jean e Ezri se esgueiraram de volta para o tombadilho. Drakasha estava perto da amurada de popa, com Cosetta aninhada no braço
esquerdo, segurando uma pequena taça de prata na mão direita.
– Você precisa beber, amor – sussurrou Drakasha. – É uma bebida noturna especial para as princesas piratas.
– Não – murmurou Cosetta.
– Você não é uma princesa pirata?
– Não!
– Eu acho que é. Seja boazinha...
– Não quero!
Jean se lembrou do tempo passado em Camorr, de como às vezes Correntes se comportava quando um dos jovens Nobres Vigaristas decidiam dar um chilique. Na época, eles
eram muito mais velhos do que Cos, certo, mas crianças eram crianças e Drakasha estava com um olhar preocupado.
– Ora, ora – disse ele em voz alta, aproximando-se das duas Drakashas de modo que Cosetta o visse. – Isso aí parece muito bom, capitã.
– Parece mesmo muito bom e tem um gosto ainda melhor que o visual.
– Humpf – reagiu Cosetta. – Ahhhh! Não!
– Você precisa tomar – alegou a mãe.
– Capitã, isso parece tão maravilhoso! – Jean fingia estar fascinado pela taça de prata. – Se Cosetta não quer, eu quero.
Drakasha o encarou, depois sorriu.
– Bom... – começou, parecendo relutante. – Se Cosetta não quer, acho que não tenho escolha.
Ela afastou lentamente a taça da filha, como se fosse entregá-la a Jean, e os olhos da menininha se arregalaram.
– Não! – exclamou ela. – Não!
– Mas você não quer – replicou Drakasha com um ar definitivo. – Jerome quer. Então ele é que vai tomar, Cosetta.
– Hummmm – fez Jean. – Vou beber tudo de uma vez.
– Não! – Cosetta estendeu a mão para a taça. – Não, não, não!
– Cosetta. – Drakasha estava séria. – Se você quer, precisa beber. Entendeu?
A menininha assentiu, a boca formando um “o” de preocupação, os dedos se esforçando para alcançar o prêmio agora valiosíssimo. Zamira levou a taça aos lábios de
Cosetta, que bebeu o líquido com uma cobiça urgente.
– Muito bom – elogiou Drakasha, beijando a testa da filha. – Muito, muito bom. Agora vou levar você para baixo, para você e Paolo dormirem. – Ela enfiou a taça num
bolso do casaco, carregou Cosetta com ambos os braços e assentiu para Jean. – Obrigada, Valora. O convés é seu, Del. Só uns minutos.
– Ela odeia fazer isso – comentou Ezri baixinho depois que Drakasha sumiu na escada do tombadilho.
– Alimentar Cos de noite?
– É leite de papoula. Ela bota os dois para dormir... para a Passagem do Mercado. Ela não quer os dois acordados de jeito nenhum quando passarmos por lá.
– Que diabo vai...
– É difícil explicar. É mais fácil passar pela coisa. Mas você vai ficar bem, sei que vai. – Ela passou uma das mãos pelas costas dele. – Você consegue sobreviver
a mim de mau humor.
– Ah. Mas, quando uma mulher tem o seu coração, não tem mau humor.
– Onde eu nasci, as pessoas que fazem elogios detestáveis são penduradas em gaiolas de ferro para definhar.
– Dá para ver por que você fugiu. Você inspira tantos elogios que qualquer homem que falasse com você durante algum tempo ficaria enjaulado depois...
– Você está sendo mais do que detestável!
– Preciso fazer alguma coisa para manter o pensamento longe do que vai acontecer...
– O que nós fizemos lá embaixo não bastou?
– Bom, acho que poderíamos voltar para lá e...
– Infelizmente, a pior praga neste navio não é Drakasha nem eu e, sim, o serviço. – Ela deu um beijo no rosto de Jean. – Se quer se ocupar com alguma coisa, pode
começar com os preparativos para a Passagem. Vá ao armário de lanternas de proa e me traga as luzes alquímicas.
– Quantas?
– Todas. Todas que você encontrar.
4
Era a décima hora da tarde. A noite caía feito um manto sobre os Ventos Fantasmas e o Orquídea Venenosa, sob as velas de gávea, atravessava a Passagem do Mercado
com uma aura branca e âmbar. Uma centena de lâmpadas alquímicas tinham sido sacudidas para se acender e foram postas ao longo de todo o casco do navio, algumas no
cordame, mas a maioria abaixo da amurada, refletindo o fogo falso na água escura.
– Seis braças! – gritou um dos dois marinheiros que Drakasha havia colocado nas laterais.
Eles eram os prumadores: lançavam as linhas de sonda para avaliar a quantidade de água entre o casco do navio e o fundo do mar. Seis braças; onze metros. O Orquídea
podia passar por estreitos muito mais rasos do que aquele.
Normalmente, as sondagens eram ocasionais e bastaria um marinheiro para fazê-las. Naquele momento, os dois marinheiros, que estavam entre os mais velhos e mais experientes,
lançavam as linhas e berravam os resultados a todo instante. E cada um deles era vigiado por um pequeno grupo de... cuidadores, era a melhor expressão em que Jean
pôde pensar. Marinheiros armados e com armaduras.
Estranhas precauções haviam sido tomadas em todo o navio. A pequena tripulação de elite que esperava no alto para trabalhar nas velas tinha cabos de segurança amarrados
na cintura; eles ficariam pendurados feito pêndulos se caíssem, mas pelo menos viveriam. Os fogos de verdade foram apagados, fumaça era rigidamente proibida. Os
filhos de Drakasha dormiam na cabine com as janelas de popa trancadas e a porta da escada do tombadilho vigiada. A capitã estava com seu colete de mosaico de Vidrantigo
e os sabres pendiam nas bainhas.
– Cinco e três quartos! – gritou um prumador.
– A névoa está chegando – anunciou Jean.
Ele e Locke tinham se posicionado junto à amurada de estibordo do tombadilho. Drakasha andava de um lado para outro ali perto, Caladão estava ao timão e Delmastro,
junto à bitácula com uma pequena fileira de ampulhetas de precisão.
– É assim que começa – explicou Caladão.
O Orquídea estava entrando no canal de 1,5 quilômetro de largura entre penhascos que se erguiam até cerca de metade da altura dos mastros e eram cobertos por uma
selva escura que desaparecia em meio ao negrume. Ouviam-se ruídos débeis de coisas ocultas naquela floresta: guinchos, estalos, sons farfalhantes. Os arcos de lanternas
do navio clareavam a água ao redor por 15 ou 20 metros e, nos limites desse círculo luminoso, Jean via fiapos de névoa cinzenta começando a brotar do mar.
– Cinco e meia! – soou o grito do prumador de estibordo.
– Capitã Drakasha. – Utgar estava junto à amurada de popa com a linha da barquilha presa entre os dedos. – Quatro nós.
– Sim. Quatro nós e nossa popa está nivelada com a boca da Passagem. Me dê dez minutos, Del.
Delmastro assentiu, virou uma das suas ampulhetas e ficou olhando a areia começar a escorrer da câmara superior para a inferior. Drakasha foi até a amurada dianteira
do tombadilho.
– Atenção – disse aos tripulantes que trabalhavam ou esperavam no convés. – Se começarem a se sentir estranhos, fiquem longe das amuradas. Se não conseguirem ficar
no convés, desçam. Essa é uma tarefa que precisamos suportar e já passamos por ela antes. Vocês não vão sofrer nada se ficarem no navio. Agarrem-se a esse pensamento.
Não saiam do navio.
Agora a névoa estava se elevando aos poucos. As silhuetas sombreadas dos penhascos e selvas mais além desapareciam rapidamente. Diante deles, havia apenas o negrume.
– Dez, capitã – avisou Delmastro por fim.
– Cinco! – gritou um prumador.
– Hummm, vire o timão. – Drakasha usou um pedaço de carvão para rabiscar uma anotação rápida num pergaminho dobrado. – Dois raios a sotavento.
– Certo, capitã, dois a sotavento.
Com o ligeiro ajuste feito pelo mestre de navegação, o navio se inclinou para bombordo. Marinheiros no alto fizeram pequenos acertos nas velas e no cordame sob instruções
que Drakasha havia ensaiado antes de entrarem na Passagem.
– Me dê doze minutos, Del.
– Sim, capitã, doze.
Durante esses doze minutos, a névoa ficou mais densa, como fumaça de um fogo bem alimentado. Fechou-se dos dois lados, uma parede cinza e em redemoinhos que parecia
trancar a luz e os sons do navio numa bolha, isolando qualquer indício do mundo lá fora. Os estalos dos moitões e do cordame, as batidas das ondas no casco, as vozes
– todas essas coisas familiares ecoavam abafadas e os ruídos da floresta desapareceram. A névoa continuava avançando, até atravessar a linha efêmera da água iluminada
pelas lanternas. Agora a visibilidade em qualquer direção morria a pouco mais de 10 metros de distância.
– Doze, capitã – anunciou Delmastro.
– Caladão, vire o timão – ordenou Drakasha, olhando a bússola na bitácula. – Timão a barlavento. Leve-nos para noroeste por oeste. – E gritou para os tripulantes
no convés central: – Preparem-se para mexer nas vergas! Noroeste por oeste, vento no quarto de bombordo!
Houve uma movimentação intensa enquanto o navio se virava lentamente para o novo curso e a tripulação prendia as vergas mais uma vez. Durante todo esse tempo, Jean
ficou ainda mais convencido de que a névoa de fato amortecia o som ao redor. O ruído das atividades na embarcação não se propagava, sendo abafado por aquela mortalha
intangível. A única evidência de um mundo do outro lado do nevoeiro era o cheiro úmido e terroso da selva que vinha com a brisa quente, atravessando o tombadilho.
– Sete braças! – gritou um prumador.
– Del, 22 minutos.
– Certo – respondeu Delmastro, virando suas ampulhetas como um autômato.
Os 22 minutos seguintes se passaram num silêncio claustrofóbico, pontuado apenas pelo balanço ocasional de uma vela ou os berros dos homens com as sondas. A tensão
crescia à medida que o tempo se arrastava, até que...
– Deu a hora, capitã.
– Obrigada, Del. Caladão, vire o timão. Leve-nos para sudoeste por oeste. – Ela acrescentou, levantando a voz: – Depressa, agora! Amuras e panos! Para a bordada
de bombordo, sudoeste por oeste!
Velas estremeceram e tripulantes correram de um lado para o outro xingando e trabalhando nas cordas enquanto o navio adernava para a bordada de bombordo. Eles giraram
no coração da névoa; a brisa com cheiro de selva pareceu rodar em volta como um boxeador esperando o momento para atacar o oponente e Jean sentiu-a na bochecha esquerda.
– Firme, Caladão – ordenou Drakasha. – Ezri, quinze minutos.
– Quinze, certo.
– Aí vem, caralho – murmurou Caladão.
– Pare com essa merda – rebateu a capitã. – A única coisa verdadeiramente perigosa aqui somos nós, entendeu?
Jean sentiu uma comichão na pele da testa e enxugou o suor que brotava ali.
– Quatro e três quartos! – gritou um prumador.
Jean, sussurrou uma voz débil.
– O quê, Orrin?
– Hein? – Locke estava segurando a amurada com as duas mãos e mal olhou para Jean.
– O que você quer?
– Eu não disse nada.
– Você está...
Jean Tannen.
– Ah, pelo amor dos deuses – gemeu Locke.
– Você também? – Jean o encarou. – Uma voz...
– Não veio do ar – sussurrou Locke. – Mais parecia... você sabe quem. Lá de Camorr.
– Por que está dizendo o meu...
– Não está – interveio Drakasha em voz baixa e urgente. – Todos a ouvimos falando conosco. Todos ouvimos nosso nome. Controle-se.
– Guardião Torto, não temerei o escuro, pois a noite é sua – murmurou Locke, apontando o indicador e o dedo médio da mão esquerda para a escuridão: a Adaga do Treze,
um gesto dos ladrões contra o mal. – Sua noite é meu manto, meu escudo, minha libertação dos que caçam para alimentar a forca. Não temerei o mal, pois você tornou
a noite minha amiga.
– Bendito seja o Benfeitor – completou Jean, apertando o antebraço esquerdo de Locke. – Paz e lucro aos seus filhos.
Jean... Estevan... Tannen.
Jean sentia a voz, percebendo de algum modo que a impressão de som era apenas um truque que ele fazia consigo mesmo, um eco nos ouvidos. Sentia aquilo como uma intromissão
na consciência, como um roçar de patas de insetos contra a pele. Enxugou a testa de novo e percebeu que estava suando demais até para uma noite quente como aquela.
Na proa, alguém começou a soluçar em voz alta.
– Doze – Jean ouviu Ezri sussurrando. – Mais doze minutos.
A água está fresca, Jean Tannen. Você... está suando. Suas roupas coçam. A pele... coça. Mas a água está fresca.
Drakasha endireitou as costas e desceu a escada do tombadilho até o convés central. Encontrou o tripulante que soluçava, ergueu-o gentilmente e lhe deu um tapinha.
– Cabeça erguida, Orquídeas. Isso não é de carne e osso. Não é uma luta. Mantenham-se firmes.
Ela parecia bastante corajosa. Jean se perguntou quantos tripulantes sabiam ou adivinhavam que ela drogava os filhos para que eles não passassem por aquilo.
Seria sua imaginação ou a névoa ia clareando a estibordo? A névoa não estava menos densa, mas a escuridão por trás parecia diminuir... adquirir uma luminescência
doentia. Um sussurro de água cresceu numa pulsação constante, rítmica. Ondas se quebrando em bancos de areia. A água preta ondulava na borda do pequeno círculo de
luz.
– O recife – murmurou Caladão.
– Quatro braças! – gritou um prumador.
Algo se agitou na névoa, uma impressão fraquíssima de movimento. Jean olhou para a escuridão em redemoinho, esforçando-se para enxergar aquilo de novo. Esfregou
o peito, onde a túnica encharcada de suor irritava a pele por baixo.
Venha para a água, Jean Tannen. A água é tão fresca... Venha. Deixe a túnica, deixe o suor. Traga... a mulher. Traga-a com você para a água. Venha.
– Pelo amor dos deuses – sussurrou Locke. – O que quer que está aí conhece o meu nome verdadeiro.
– O meu também – falou Jean.
– Quero dizer, ele não está me chamando de Locke. Ele sabe o meu nome de verdade.
– Ah. Merda.
Jean fitou a água negra e ouviu o som dela batendo no recife oculto. Era impossível estar fresca... só podia estar quente, como todo o resto naquele lugar maldito.
Mas o barulho... o barulho daquelas ondas não era tão desagradável. Escutou, fascinado, por um tempo, depois levantou a cabeça em letargia e olhou para a névoa.
Algo apareceu ali por um instante brevíssimo – uma forma escura visível através do nevoeiro. Do tamanho de um homem. Alto, magro e imóvel. Esperando em cima do recife.
Jean estremeceu violentamente e o vulto desapareceu. Ele piscou como se acordasse de um devaneio. Agora a névoa estava escura e sólida como sempre, a luz imaginária
havia sumido, o sibilo da água no banco de areia não era mais tão prazeroso. O suor escorria em filetes pelo pescoço e pelos braços, e ele gostou dessa distração,
pois o fez se coçar furiosamente.
– São... são, ahn, 4 braças... e um quarto – murmurou um prumador.
– Deu a hora – anunciou Ezri, parecendo também sair de um atordoamento. – É hora, é hora!
– Não é possível – murmurou Locke. – Só se passaram... poucos minutos.
– Eu olhei agora e a areia estava toda embaixo. Não sei quando isso aconteceu. – Ela levantou a voz com urgência: – Capitã! Deu a hora!
– Acordem! Acordem! – berrou Drakasha como se o navio estivesse sob ataque. – Amuras e panos! Oeste por norte! Vento no quarto de bombordo, firmem as vergas!
– Oeste por norte, certo – confirmou Caladão.
– Não entendo – disse Ezri, olhando suas ampulhetas. Jean viu que a túnica azul dela estava empapada de suor, o cabelo embolado, o rosto escorregadio. – Eu estava
olhando as ampulhetas. Foi como se... eu só pisquei e... o tempo todo havia passado.
O convés estava tomado por uma enorme agitação. De novo a brisa mudou, a névoa redemoinhou e Caladão colocou-os no novo curso com movimentos precisos, quase delicados,
no timão.
– Pelos deuses! – exclamou Ezri. – Essa foi a pior de que me lembro.
– Nunca foi assim antes – acrescentou Caladão.
– Quanto tempo falta? – perguntou Jean, sem se envergonhar em parecer ansioso.
– É a nossa última virada – respondeu Ezri. – Presumindo que não tenhamos ido demais para o sul a ponto de encalharmos em algo nos próximos minutos, basta seguir
para oeste por norte até Porto Pródigo.
Continuaram deslizando pelas águas escuras e, gradualmente, as sensações estranhas na pele de Jean foram sumindo. A névoa recuou, primeiro se abrindo numa escuridão
menos intensa diante do navio e depois se dissipando atrás deles. As lanternas voltaram a iluminar a noite e o som tranquilizador da selva dos dois lados do canal
retornou.
– Oito braças! – gritou um prumador.
– É o canal principal – informou Drakasha, subindo de novo a escada do tombadilho. – Muito bem, gente. – Ela se virou para olhar por cima do poço do navio. – Tirem
a maior parte das lanternas. Deixem algumas para a navegação, para não surpreendermos ninguém ao entrarmos no porto. Continuem usando as sondas. – Ela abriu os braços
e envolveu Caladão e Ezri, apertando os ombros dos dois. – Sei que eu proibi a bebida, mas acho que todos nos beneficiaríamos de um gole.
Seu olhar pousou em Locke e Jean.
– Parece que vocês dois gostariam de um serviço. Peguem um barril de cerveja e sirvam a todos no mastro principal. – Em seguida, gritou: – Meio copo para quem quiser!
Encaminhando-se rapidamente para a proa, seguido de perto por Locke, Jean ficou satisfeito ao sentir a tensão de pouco antes se evaporar. Tripulantes sorriam de
novo, conversando, até rindo aqui e ali. Alguns permaneciam calados, os braços cruzados, olhando para baixo, mas até esses pareciam aliviados. A única coisa bizarra
na situação, percebeu Jean, era o zelo com que a maioria tentava manter a atenção concentrada no navio e nas pessoas ao redor.
Mais de uma hora se passaria antes que muitos deles se permitissem olhar para a água de novo.
5
Se você pudesse ficar parado a mil metros acima de Porto Pródigo, no meio daquela noite, veria um tênue feixe de luz que lembrava uma joia brilhando na névoa de
uma escuridão tropical sem limites. Nuvens ocultam as luas e as estrelas. Até as finas linhas vermelhas de lava vulcânica que às vezes reluzem nos horizontes distantes
estão ausentes; as montanhas escuras fumegam sem fogo visível.
Pródigo tem uma praia comprida no lado norte de uma ilha vasta, montanhosa. Além dela, quilômetros de uma antiga floresta tropical recuam na noite e nenhuma luz
arde em lugar algum dessa vastidão soturna.
Assim que deslizam por qualquer das passagens árduas que os trazem do mar, os navios são recebidos com uma amabilidade incomum por um porto amplo, fechado de todos
os lados. Não há recifes, ilhas menores ou qualquer coisa pondo em risco a navegação e maculando o fundo de areia branca da baía. Na extremidade leste da cidade,
a água chega até a altura da cintura, enquanto no oeste até mesmo navios pesados podem quase beijar a terra e manter 8 ou 9 braças abaixo da quilha.
Uma floresta de mastros oscila suavemente acima dessas profundezas, uma confusão de cais, barcos, navios e cascos em todos os níveis de estrago. Há dois ancoradouros
mal delimitados que servem a Porto Pródigo. No Cemitério, flutuam as centenas de cascos e destroços que jamais voltarão ao mar aberto. A leste dele, reivindicando
todas as docas maiores e mais novas, fica o Hospital, chamado assim porque seus pacientes ainda têm esperança de viver.
6
Um sino começou a tocar, as batidas lentas ecoando na água, assim que o Orquídea Venenosa emergiu da Passagem do Mercado.
Locke olhou por cima da amurada de bombordo, em direção às luzes da cidade e seus reflexos ondulantes na baía.
– Os vigias do porto vão tocar essa porcaria até a gente baixar a âncora. – Jabril notara sua curiosidade e se postara a seu lado. – É preciso avisar a todo mundo
que eles estão no serviço, para continuarem recebendo a ração de bebida.
– Você passou muito tempo aqui, Jabril?
– Nasci aqui. A prisão em Tal Verrar foi o que recebi na única vez em que tentei avistar outros oceanos.
Baixar âncora em Porto Pródigo não teve nada da cerimônia que Locke vira em outros locais; nenhum piloto de porto, nem autoridades de alfândega, nem mesmo um único
pescador curioso. E, para sua surpresa, o Orquídea ficou parado no meio do caminho. Eles se acomodaram a cerca de 800 metros do cais, enrolaram as velas e mantiveram
as lanternas acesas.
– Baixar um bote a bombordo – ordenou Drakasha, contemplando a cidade e os ancoradouros pela luneta. – Depois ponham as redes-navalhas a estibordo. Mantenham as
lanternas acesas. Turno Azul dispensado, mas com sabres a postos junto aos mastros. Del, vá buscar Malakasti, Dantierre, Grande Konar e Rask.
– Como quiser, capitã.
Depois de ajudar a equipe de trabalho a colocar um dos botes maiores na água, Locke se aproximou de Drakasha, que ainda examinava a cidade com a luneta.
– Imagino que tenha motivo para cautela, capitã.
– Nós estamos fora há algumas semanas e as coisas mudam. Eu tenho uma tripulação grande e uma embarcação grande, mas nenhuma das duas é a maior que existe.
– A senhora vê alguma coisa que a deixe nervosa?
– Nervosa, não: curiosa. Parece que, pela primeira vez, a maioria de nós está em casa. Está vendo aquela linha de navios junto à doca leste, mais perto de nós? Quatro
capitães do conselho estão na cidade. Cinco, agora que eu voltei. – Ela baixou a luneta e olhou-o de lado. – Além de dois ou três mercadores independentes, pelo
que vejo.
– Espero mesmo que não seja nada de mais – disse ele baixinho.
Nesse momento, a tenente Delmastro voltou ao tombadilho, armada e com armadura, seguida por quatro marinheiros.
Malakasti, uma mulher magra com mais tatuagens do que palavras no seu vocabulário, tinha uma ótima reputação de lutadora com facas. Dantierre era um verrari barbudo
e careca que costumava usar as sedas de um nobre maltrapilho; tinha se tornado fora da lei depois de uma longa carreira como duelista profissional. Grande Konar
fazia jus ao apelido: era o maior a bordo do Orquídea. E Rask, bem, Rask era um tipo que Locke reconhecia quase de imediato, um matador de assassinos. Drakasha,
como muitos garristas em Camorr, mantinha-o sob rédea curta e só lhe dava liberdade quando precisava de sangue. Muito sangue.
Um grupo brutal, nenhum deles jovem nem há pouco tempo sob o comando de Drakasha, pensava Locke enquanto todos os tripulantes eram reunidos brevemente no convés
central.
– Utgar fica no controle do navio – anunciou Drakasha. – Não vamos atracar esta noite. Vou levar Del e um grupo de terra para sondar a cidade. Se tudo estiver bem,
teremos alguns dias movimentados... e vamos começar a dividir as cotas amanhã à tarde. Tentem não apostar e perder tudo para os colegas antes mesmo de ter o dinheiro
em mãos, hein? Nesse meio-tempo, Turno Vermelho, cuide do navio. As redes-navalhas ficam a estibordo até voltarmos. Postem vigias em todos os mastros e fiquem de
olho na linha-d’água. Turno Azul, se quiserem, alguns de vocês podem dormir perto dos armários das armas. Mantenham adagas e porretes à mão mesmo se não quiserem.
– Para Utgar, acrescentou baixinho: – Guarda dupla na porta da minha cabine a noite toda.
– Sim, capitã.
Drakasha desapareceu em sua cabine por alguns instantes. Ao voltar, ainda vestia o colete de mosaico de Vidrantigo, com os sabres agora em belas bainhas adornadas
com joias, esmeraldas reluzentes nas orelhas e anéis de ouro sobre as luvas pretas. Locke e Jean se aproximaram dela do modo mais discreto possível.
– Ravelle, não tenho tempo...
– Capitã – começou Locke –, a senhora juntou uma equipe de briga porque está disposta a amedrontar qualquer um que possa lhe causar encrenca, não foi? E se eles
forem idiotas demais para aceitar a deixa, a senhora quer pessoas que possam acabar depressa com tudo. Eu sugiro fortemente, fortemente, que Jerome iria lhe servir
bem nas duas situações.
– Eu... hummm. – Ela encarou Jean, como se tivesse acabado de notar a largura de seus ombros e a grossura dos braços. – Isso pode acrescentar um toque final. Certo,
Valora, quer sair numa noitada?
– Quero – respondeu Jean. – Mas eu trabalho melhor em dupla. Orrin é o homem exato para...
– Vocês dois se acham muito espertos – interrompeu Drakasha. – Mas...
– É sério – interveio Jean às pressas. – Peço humildes desculpas, mas a senhora já viu o que ele faz. A senhora vai ter uma pilha de músculos na retaguarda. Leve-o
para... imprevistos.
– Esta noite é um negócio delicado – avisou Drakasha. – Dar um passo em falso em Porto Pródigo após a meia-noite é como mijar numa cobra raivosa. Eu preciso...
– Aham – disse Locke. – Somos camorris.
– Ah. Estejam no bote em cinco minutos – orientou Drakasha.
7
Drakasha assumiu a proa e Delmastro, a popa; todos os outros pegaram um remo. Atravessaram a superfície calma da baía num ritmo constante.
– Pelo menos aquele imbecil enfim parou de tocar o sino – murmurou Jean.
Ele estava no último banco de remador, perto de Grande Konar, assim podia conversar com Ezri, que roçava a água com uma das mãos.
– Isso é sensato? – perguntou Jean.
– O quê, mexer na água? – Ezri apontou um polegar por cima do ombro, na direção da Passagem do Mercado. – À noite não dá para ver, mas nas entradas da baía, no fundo,
existem fileiras regulares de enormes pedras brancas.
– Pedras Ancestres – falou Konar.
– Elas não nos incomodam, mas nada mais passa por elas – continuou Ezri. – Não há nenhuma coisa viva nesta baía; você pode nadar ao crepúsculo com cortes sangrentos
nos pés e nada vai aparecer para tirar uma provinha.
– Mas não faça isso muito perto do cais: tem mijo – avisou Konar, quase como se pedisse desculpas.
– Bom, parece ótimo. – disse Jean.
– É, acho que sim – concordou Ezri. – Só que é um saco pescar. Os barquinhos apinham a entrada da passagem do Portão do Comerciante e atrapalham o trabalho lá mais
do que o usual. Por falar em atrapalhar o trabalho...
– Hum?
– Não estou vendo o Mensageiro Vermelho em lugar nenhum.
– Ah.
– Mas ele estava se arrastando feito uma lesma. E nós temos uma companhia interessante no lugar dele.
– Quem?
– Está vendo aquela primeira fileira de navios? O primeiro de estibordo a bombordo é o Águia-Pescadora, o lúgar de Pierro Strozzi. A tripulação dele é minúscula,
assim como sua ambição, mas ele seria capaz de navegar num barril dentro de um furacão. Em seguida, o Cadela Régia, da capitã Chavon Rance. Ela é um pé no saco.
Tem um tremendo mau humor. Ao lado está o Draconiano, o brigue de Jacquelaine Colvard. Ela é razoável e está aqui há mais tempo do que todo mundo. Aquele grande
de três mastros na extremidade oposta é o Soberano Temível, a dama de Jaffrim Rodanov. Uma embarcação maligna. Na última vez que vi, ele estava na praia sendo reformado,
mas agora parece pronto para o mar.
Com seis pessoas puxando os remos, a viagem foi rápida. Em alguns instantes, tinham chegado a um cais de pedras meio desmoronado. Enquanto Jean prendia seu remo,
notou um cadáver boiando suavemente na água.
– Ah – fez Ezri. – Coitado. Essa é a marca de uma noite animada por aqui.
O grupo de terra de Drakasha amarrou o bote na ponta do cais e subiu como se estivesse abordando uma embarcação inimiga, com coração cauteloso e mãos perto das armas.
– Santos deuses! – exclamou um bêbado quase todo banguela no meio do cais, aninhando um odre. – É Drakasha, não é?
– É. Quem é você?
– Banjital Vo.
– Bom, Banjital Vo, você está encarregado da segurança do bote que acabamos de amarrar.
– Mas... eu...
– Se ele estiver aqui ao voltarmos, eu lhe dou uma moeda de prata verrari. Se alguma coisa acontecer com ele, vou perguntar por você e, quando encontrá-lo, vou arrancar
a droga dos seus olhos.
– Eu... vou vigiar o barco como se fosse meu.
– Não: vigie-o como se ele fosse meu.
Ela levou-os para fora do cais, subindo um caminho de areia um pouco inclinado, ladeado por barracas de lona, cabanas de troncos sem teto e construções de pedra
parcialmente desmoronadas. Jean podia ouvir roncos de pessoas dormindo naquelas estruturas decrépitas, além dos balidos suaves de cabras, rosnados de vira-latas
e a agitação de galinhas. Algumas fogueiras tinham se reduzido a brasas, mas não havia lampiões nem luzes alquímicas penduradas em nenhum lugar naquele lado da cidade.
Uma fedorenta torrente de mijo e fezes escorria pelo lado direito da trilha e Jean pisou com cuidado para evitar aquela sujeira, assim como um cadáver esparramado
que represava o fluxo a uns 500 metros do cais. Ocasionais bêbados ou fumadores de cachimbo semilúcidos os encaravam em várias reentrâncias e sombras, mas ninguém
falou com eles, até que passaram pelo topo de uma ladeira e o chão voltou a ser de pedra.
– Drakasha, bem-vinda de volta à civilização! – gritou um homem corpulento em vestes de couro com tachas de ferro enegrecido.
Ele segurava uma lanterna fraca numa das mãos e um porrete com argolas de bronze na outra. Atrás, havia um homem mais alto, encurvado e barrigudo, armado com um
comprido cajado de carvalho.
– Belo Marcus – cumprimentou Drakasha. – Pelos deuses, cada vez que eu volto, você está mais feio! Como se alguém esculpisse lentamente um cu com base num rosto
humano. Quem é a nova figura charmosa?
– Gutrin. O esperto decidiu parar de navegar e se juntar ao resto de nós, que vivemos balançando o pau na vida glamorosa.
– É? – Drakasha estendeu um punho fechado com moedas e o sacudiu para que elas tilintassem. – Encontrei isto na estrada. São suas?
– Tenho um lar feliz para elas aqui mesmo. Está vendo, Gutrin? Esse é o estilo. Faça algum favor a essa dama e ela devolve o elogio. Viagem frutífera, capitã?
– A barriga está tão cheia que não podemos mais nadar, Marcus.
– Bom para você, capitã. Então vai encontrar o Desmancha-Navios?
– Ninguém quer encontrar aquele escroto inútil, mas se ele desejar abrir a bolsa e se dobrar, tenho uma coisinha de madeira e lona para a coleção dele.
– Vou mandar avisar. Vai passar a noite aqui?
– É apenas um pulo, Marcus. Só vim içar a bandeira.
– Ótima ideia. – Ele olhou brevemente ao redor, depois acrescentou com a voz mais séria: – Chavon Rance pegou a mesa alta no Carmim. Digo isso só para você parecer
que sabe das coisas quando entrar.
– Obrigada.
Quando os dois haviam se afastado descendo para o cais, Jean se virou para Ezri.
– São algum tipo de guardas?
– Mantenedores. É mais como uma gangue. São sessenta ou setenta, os que botam ordem aqui. Os capitães lhes pagam um pouquinho de cada carga que trazem e eles ganham
o resto da vida sendo um incômodo público. Você pode fazer praticamente o que quiser, desde que esconda os corpos e não queime nada nem acorde metade da cidade.
Se fizer isso, os Mantenedores aparecem para um pouco de manutenção.
– E o que é “içar a bandeira”?
– Às vezes é preciso fazer esses joguinhos. Deixar todo mundo em Pródigo saber que Zamira voltou, que está com o casco cheio de coisas, que vai chutar a cabeça deles
se a olharem de viés. Sabe? Em especial os outros capitães.
– Ah. Entendi.
Entraram na cidade propriamente dita, onde, pelo menos, as luzes que tinham visto da baía se irradiavam de janelas e portas abertas dos dois lados da rua. Outrora,
as construções tinham sido respeitáveis casas e lojas de pedra, mas o tempo e a maldade marcaram suas fachadas. Janelas quebradas cobertas de tábuas de navios ou
pedaços de pano de vela rasgados. Muitas casas possuíam anexos de madeira de que parecia inseguro se aproximar, quanto mais morar neles. Outras tinham terceiros
e quartos andares de pau a pique parecendo cogumelos brotando nos telhados antigos.
Jean sentiu uma pontada súbita de nostalgia relutante. Bêbados largados sem sentidos nas sarjetas. Crianças maldosas olhando das sombras. Mantenedores usando compridos
casacos de couro espancando algum pobre coitado e deixando-o apagado atrás de uma carroça sem rodas. Os sons de xingamentos, discussões, gargalhadas e vômitos soando
em cada porta e janela aberta... esse lugar era, se não um irmão de Camorr, pelo menos um primo de primeiro grau.
– Orquídeas! – berrou alguém de uma janela do segundo andar. – Orquídeas!
Zamira respondeu ao grito bêbado com um aceno casual e virou à direita numa encruzilhada lamacenta. Da boca escura de um beco, cambaleou um homem atarracado, usando
apenas uma calça suja. Tinha os olhos vítreos, desfocados, de um fumador de pó jeremita e, na mão direita, trazia uma faca serrilhada do tamanho e da largura do
antebraço de Jean.
– Dinheiro ou boquete – ameaçou o homem, com filetes de saliva pingando do queixo. – Não me importa o que for. Tenho necessidades. Dê um...
Se ele não percebeu que estava diante de oito oponentes, não deixou de notar Rask batendo na mão com a faca e empurrando-o para o beco pelo pescoço. Jean escutou
um gorgolejo úmido e Rask retornou à rua em poucos segundos, limpando uma das suas facas num trapo. Jogou o pano no beco, embainhou a faca e enfiou os polegares
no cinto, despreocupadamente. Ezri e Drakasha não acharam que o incidente mereceria comentário e continuaram andando, à vontade como fiéis indo ao templo numa manhã
do Dia da Penitência.
– Cá estamos – disse Ezri ao chegarem ao topo de outra ladeira baixa.
Uma praça ampla meio pavimentada com as seções lamacentas entrecruzadas por rastros de carroças era dominada por um gordo prédio de dois andares com um pórtico construído
na popa cortada de um antigo navio. O tempo, o clima e sem dúvida incontáveis brigas tinham raspado e lascado seu elaborado trabalho de entalhe, mas podiam ser vistas
pessoas bebendo e festejando atrás das janelas do segundo andar, no que teria sido a grande cabine. Onde antes estivera o leme, havia agora uma pesada porta dupla,
flanqueada por globos alquímicos – do tipo redondo e grosso que era quase impossível de ser quebrado – imitando lanternas de popa.
– O Carmim Esfarrapado – continuou Ezri. – É o coração de Porto Pródigo, ou o cu, dependendo da sua perspectiva.
À esquerda da entrada, havia um escaler de navio, preso ao prédio por pesadas estruturas de madeira e correntes de ferro. Alguns braços e pernas humanos se projetavam
dele. A porta do Carmim Esfarrapado se abriu violentamente e um par de brutamontes emergiu, carregando um velho frouxo entre os dois. Sem cerimônia ou pena, o jogaram
no bote, onde sua chegada provocou alguns gritos incoerentes e membros se sacudindo.
– Agora olhe onde pisa – alertou Ezri, sorrindo. – Se ficar bêbado demais para permanecer de pé, eles lançam você ao mar. Em algumas noites, dez ou vinte pessoas
são empilhadas naquele bote.
Um instante depois, Jean se espremeu para passar pelos brutamontes e adentrou a taverna movimentada, com os cheiros familiares de uma hora mais perto do amanhecer
que do jantar. Suor, carne escaldada, vômito, sangue, fumaça e uma dúzia de tipos de cerveja e vinho ruins: o aroma de uma vida noturna civilizada.
O lugar parecia construído para uma clientela que travaria guerra não apenas uns com os outros, mas com os que estivessem no bar e na despensa. O balcão, na extremidade
oposta do salão, era cercado por painéis de ferro até o teto, deixando apenas três janelas estreitas, através das quais os funcionários podiam servir bebidas e comida
como arqueiros disparando flechas de seteiras.
Só havia mesas de chão ali embaixo, ao estilo jereshti: superfícies baixas ao redor das quais homens e mulheres sentavam-se, ajoelhavam-se ou se deitavam em almofadas
puídas. Naquele ambiente mal iluminado, abafado como uma caverna, eles jogavam cartas ou dados, fumavam, bebiam, disputavam quedas de braço, discutiam e tentavam
rir da atenção dos leões de chácara que percorriam o lugar, obviamente procurando candidatos para jogar no bote lá fora.
Parte das conversas silenciou quando o grupo de Drakasha apareceu; ouviram-se gritos de “Orquídeas!” e “Zamira voltou!”. A capitã assentiu para ninguém em especial
e virou devagar os olhos para o segundo andar.
Escadas subiam dos dois lados do salão; nas laterais, o segundo andar era pouco mais do que uma passarela com corrimão. Acima do bar e da entrada, ele se expandia
em sacadas mais amplas com mesas e cadeiras ao estilo terim. Jean presumiu que a “mesa alta” fosse a que ele tinha vislumbrado lá de fora. Drakasha começou a se
encaminhar para a escada que levava exatamente naquela direção.
Uma súbita corrente de excitação surgiu na taverna: um bom número de conversas parou por completo e vários olhos seguiram a passagem deles. Jean estalou os nós dos
dedos e se preparou para que as coisas ficassem interessantes.
No topo da escada, havia uma alcova cercada por corrimão, cujo fundo eram as janelas que davam para a praça escura. Estandartes de seda vermelha pendiam em nichos
com globos alquímicos por trás, emitindo uma luz fraca, vagamente agourenta e tingida de rosa. Duas mesas largas tinham sido unidas para acomodar um grupo de doze,
todos marinheiros e muitos com ar duro, percebeu Jean.
– Zamira Drakasha – disse a mulher à cabeceira da mesa, levantando-se da cadeira.
Era jovem, mais ou menos da idade de Jean, com a pele bronzeada de sol e rugas fracas ao redor dos olhos, que indicavam anos passados no mar. Seu cabelo cor de areia
estava preso atrás em três rabos e, apesar de ser mais baixa do que Zamira, parecia pesar mais de 10 quilos que ela. Forte e rotunda, com um punho de sabre bastante
usado visível no cinto.
– Rance – respondeu Drakasha. – Chay. Foi uma noite longa, querida, e você sabe muito bem que está sentada à minha mesa.
– Isso é tremendamente curioso. Nossas bebidas estão em cima dela e nossas bundas, nas cadeiras. Se você acha que ela é sua, talvez devesse levá-la ao sair da cidade.
– Quando eu estou fora, nos meus negócios, você quer dizer. Lutando com meu navio, balançando a bandeira vermelha. Você sabe onde fica o mar, não sabe? Você já viu
outros capitães indo e vindo...
– Não preciso ralar mês sim, mês não, Drakasha. Só escolho alvos ricos, para começo de conversa.
– Você não está me ouvindo, Chay. Realmente não me importa que tipo de cadela rói ossos no meu lugar quando estou fora, mas depois de voltar, espero que ela se arraste
para baixo da mesa, que é o seu lugar.
O pessoal de Rance saltou das cadeiras e Chay levantou uma das mãos, rindo ferozmente.
– Saque aço, sua puta irritante, e eu mato você de modo justo diante de testemunhas. Então os Mantenedores vão poder arrastar sua tripulação de volta ao cais por
causa de briga e a Ezri aqui pode ver o que aqueles seus pirralhos acham do gosto das tetas dela...
– Mostre suas cartas, Rance. Você acha mesmo que tem condições de manter esse lugar?
– Diga qual é o teste e eu deixo você chorando.
– Os brutamontes da casa vão vir para cima de nós... – sussurrou Jean para Ezri.
– Não. – Ela fez sinal para ele silenciar. – Desafio não é o mesmo que uma arruaça comum. Ainda mais entre capitães.
– Pela mesa – gritou Drakasha, estendendo a mão para uma garrafa meio vazia –, todo o Carmim é testemunha, a disputa é de bebidas! A primeira a cair de bunda pega
a tripulação e vai para o andar de baixo.
– Eu esperava alguma coisa que demorasse mais de dez minutos – disse Rance. – Mas aceito. Fique à vontade com essa garrafa.
Zamira olhou ao redor e pegou dois pequenos copos de cerâmica de tamanho igual que estavam em lugares anteriormente ocupados por tripulantes de Rance. Jogou o conteúdo
sobre a mesa, depois encheu-os com líquido da garrafa. Era conhaque kodari branco, viu Jean, forte como terebintina, que descia queimando. A tripulação de Rance
recuou para perto das janelas e a outra capitã rodeou a mesa para ficar ao lado de Zamira. Ela ergueu um dos copos.
– Uma coisa – falou Zamira. – Você vai tomar a primeira bebida ao estilo de Syrune.
– Que diabo é isso?
– Quero dizer que vai beber através da porra dos olhos.
Velozmente, ela pegou seu copo com a mão esquerda e jogou a bebida no rosto da mulher. Antes que Rance pudesse ao menos gritar, o braço direito de Drakasha subiu
com rapidez igual. O punho enluvado, com anéis e tudo, encontrou o queixo de Rance com o som de um chicote estalando e a outra capitã bateu no chão com tanta força
que os copos em cima da mesa chacoalharam.
– Você está de bunda aí no chão, querida, ou isso é a sua cabeça? Alguém acha que há alguma diferença?
Drakasha se postou acima de Rance e tomou lentamente seu conhaque. Engoliu tudo sem se contrair e jogou o copo por cima do ombro.
– Você disse que ia ser...
Antes que o furioso tripulante de Rance, provavelmente seu imediato, pudesse continuar a protestar, Locke se adiantou com a mão levantada.
– Zamira cumpriu com o juramento. O teste foi uma bebida e sua capitã caiu de bunda.
– Mas...
– A sua capitã deveria ser inteligente e mais específica – interrompeu Locke. – E ela perdeu. Você vai retirar o juramento por ela?
O homem agarrou Locke pela frente da túnica. Os dois se debateram por pouco tempo e Jean saltou adiante, mas antes que a situação piorasse, o marinheiro de Rance
foi puxado para trás, de má vontade porém com firmeza, pelos amigos.
– Quem é você, afinal? – gritou ele.
– Orrin Ravelle – respondeu Locke.
– Nunca ouvi falar, porra.
– Mas acho que vai se lembrar de mim. – Locke balançou uma pequena bolsa de couro diante do sujeito. – Peguei sua bolsa, seu broxa.
– Seu filho da...
Locke jogou a bolsa para trás e ela caiu em algum lugar no meio dos cerca de cem fregueses que assistiam à ação na sacada, com olhos e bocas abertos.
– Epa – fez Locke. – Mas tenho certeza que você pode contar com que todas as pessoas íntegras que estão lá embaixo vão guardá-la para você.
– Chega! – Zamira se abaixou, agarrou Rance pelo colarinho e a fez sentar. – Sua capitã lançou o desafio e perdeu. Ela é sua capitã?
– É – respondeu o homem, com uma carranca.
– Então cumpra com o juramento dela. – Zamira arrastou Rance até o topo da escada e se ajoelhou na frente dela. – Você não é uma cadela tão régia afinal de contas,
hein, Chay?
Rance recuou a cabeça para cuspir sangue no rosto da rival, mas o tapa de Drakasha foi mais rápido e o líquido espirrou na escada.
– Duas coisas – disse Zamira. – Primeiro: estou convocando o conselho para amanhã. Espero ver você lá, no lugar e na hora de sempre. Confirme com essa cabeça idiota.
Rance assentiu lentamente.
– Segundo: eu não tenho pirralhos. Tenho uma filha e um filho. E se algum dia você se esquecer disso outra vez vou esculpir a porra dos seus ossos para fazer brinquedos
para eles.
Ela empurrou Rance escada abaixo. Quando ela caiu embolada aos pés dos degraus, sua tripulação consternada já estava correndo atrás, sob os olhares triunfantes do
grupo de Drakasha.
– Vejo você por aí... Orrin Ravelle – falou o marinheiro sem bolsa.
– Valterro – interveio Zamira, séria. – Isso foi um negócio. Não o transforme em algo pessoal.
O homem não pareceu feliz, mas acompanhou o resto da tripulação de Rance.
– Aquela parte sobre seus filhos pareceu bem pessoal – sussurrou Jean.
– Então eu sou hipócrita – murmurou Drakasha. – Se quiser protestar, pode tomar uma bebida ao estilo de Syrune. – Zamira foi até o corrimão acima do salão principal
e gritou: – Zacorin! Está escondido em algum lugar aí embaixo?
– Escondido é a palavra certa, Drakasha – respondeu uma voz atrás das janelas do bar blindado. – A guerra já terminou?
– Se você tiver alguma coisa que não tenha gosto de suor de porco, mande para cima. E um pouco de carne. E a conta da Rance. A pobre coitada precisa de toda a ajuda
possível.
Houve uma gargalhada no salão. A tripulação de Rance, carregando-a pelos braços e pernas, não pareceu achar nem vagamente divertido.
– Então é isso – declarou Zamira, acomodando-se na cadeira que Rance tinha acabado de deixar vaga. – Acomodem-se. Bem-vindos à mesa alta do Carmim Esfarrapado.
– Bom, isso aconteceu como esperado? – perguntou Jean, ocupando um lugar entre Locke e Ezri.
– Ah, sim. – Ela deu um sorriso enviesado para Drakasha. – É, eu diria que nossa bandeira foi içada.
8
Eles se esforçaram ao máximo para parecer relaxados e se divertindo por quase uma hora, servindo-se da cerveja escura medíocre do Carmim e de todas as bebidas melhores
que a tripulação de Rance deixara para trás. O prato da noite era pato com uma película de gordura; a maioria tratou-o como decoração, mas Rask e Konar o brutalizaram
até restar apenas uma pilha de ossos.
– O que fazemos agora? – indagou Locke.
– A notícia da nossa volta vai correr até todos os urubus de sempre – respondeu Drakasha. – Em no máximo dois dias, eles vão estar nos cortejando. A bebida e as
rações irão primeiro; é sempre o mais fácil de vender. Vamos ficar com o material náutico normal e o de reserva. Com relação às sedas e as coisas mais finas, os
mercadores independentes atracados na doca do Hospital são nossos amigos. Vão tentar nos limpar pagando quinze a vinte por cento do valor de mercado. É bom para
nós, e então eles vão levá-las de novo para o mar e vendê-las pelo preço integral, com sorrisos inocentes no rosto.
– E o Mensageiro?
– Quando ele aparecer, o Desmancha-Navios vai nos fazer uma visita. Vai oferecer um pouco de mijo numa tigela de barro e vamos convencê-lo a dar um pouco de mijo
numa jarra de madeira. Então o navio será problema dele. Deve valer 6 mil solaris com o cordame intacto; eu terei sorte se conseguir 2. A tripulação dele vai levá-lo
para o leste e vender a algum mercador solícito por uns 4 mil, cobrando muito menos do que os concorrentes e ao mesmo tempo lucrando bastante.
– Diabos, alguns navios no Mar de Bronze já foram tomados e revendidos três ou quatro vezes – praguejou a tenente Delmastro.
– Esse tal Desmancha-Navios... – disse Locke, começando a maquinar um plano. – Imagino que o fato de a profissão ser também o nome dele significa que ele não tem
concorrentes.
– Todos estão mortos – explicou Delmastro. – De modo terrível e publicamente instrutivo.
– Capitã, quanto tempo isso tudo vai demorar? Estamos quase no fim do mês e...
– Sei muito bem em que dia estamos, Ravelle. Vai durar o necessário. Talvez três dias, talvez sete, oito... Enquanto estamos aqui, todo mundo na tripulação tem pelo
menos uma chance de passar um dia e uma noite em terra.
– Eu...
– Não esqueci o assunto que o preocupa – interrompeu Drakasha. – Vou levá-lo ao conselho amanhã. Depois disso, veremos.
– Que assunto? – Delmastro pareceu genuinamente confusa. Locke imaginava que Jean já tivesse contado a ela, mas a impressão era de que os dois tinham passado os
momentos particulares de um modo mais sábio e mais divertido.
– Você vai saber amanhã, Del. Afinal de contas, você vai ao conselho comigo. Chega desse assunto, Ravelle.
– Certo. – Locke bebericou a cerveja e ergueu um dedo. – Outra coisa, então. Deixe-me requisitar umas coisas à senhora em particular antes que esse Desmancha-Navios
apareça. Talvez eu possa ajudá-la a espremer um preço maior do colega.
– Ele não é um colega. É escorregadio feito um cagalhão mergulhado em pus e quase tão agradável quanto.
– Tanto melhor. Pense no comandante Nera; pelo menos me deixe tentar.
– Sem promessas. Mas vou ouvir o que você tem a dizer.
– Orquídeas! – urrou um homem de voz profunda, surgindo no topo da escada. – Capitã Drakasha! Sabe que ainda estão arrancando os dentes de Rance das paredes lá embaixo?
– Rance caiu doente com uma crise súbita de descortesia – disse Zamira. – Depois simplesmente caiu. Olá, capitão Rodanov.
Ele era um dos maiores homens que Locke já vira; devia mais de 2 metros, com mais ou menos a idade de Zamira e um tanto rotundo. Mas os braços longos e musculosos
pareciam feitos para estrangular ursos e o fato de não se dignar a carregar uma arma significava muito. O rosto era comprido e tinha uma mandíbula pronunciada, o
cabelo claro apresentava entradas e os olhos brilhavam com o humor satisfeito de alguém que sente poder enfrentar o mundo. Locke já vira homens do tipo entre os
garristas de Camorr, mas nenhum tão alto; até mesmo o Grande Konar só podia suplantá-lo em gordura.
De modo incongruente, suas mãos enormes envolviam duas delicadas garrafas de vinho feitas de vidro cor de safira com fitas prateadas abaixo das rolhas.
– Há alguns meses, tirei cem garrafas de Azul Lashani do ano passado de um galeão. Guardei algumas porque sei que você gosta. Bem-vinda de volta.
– Bem-vindo à mesa, capitão.
A um gesto de Drakasha, Ezri, Jean, Locke e Konar passaram cada um para uma cadeira à direita, deixando livre a que ficava ao lado de Zamira. Jaffrim acomodou-se
nela e lhe entregou as garrafas. Quando ela ofereceu a mão direita, ele beijou-a, depois estendeu a língua.
– Hummmm. Sempre me perguntei qual seria o gosto de Chavon. – Ele se serviu de um copo deixado de lado enquanto Zamira gargalhava. – Quem está mais perto do barril
de cerveja?
– Permita-me – respondeu Locke.
– Eu conheço a maioria de vocês – observou Rodanov. – Rask, claro, estou tremendamente chocado ao ver que ainda está vivo. Dantierre, Konar, é bom ver vocês. Malakasti,
querida, o que Zamira tem que eu não tenho? Espera, não sei se quero saber. E você. – Ele passou um braço em torno da tenente Delmastro e apertou-a. – Não sabia
que Zamira deixava crianças soltas no convés. Quando você vai terminar de crescer?
– Eu cresço em todas as direções certas. – Ela sorriu e fingiu dar um soco na barriga dele. – Sabe, o único motivo para as pessoas pensarem que seu navio tem três
mastros é porque você está sempre de pé no tombadilho.
– Se eu tirar o calção, de repente vai parecer que ele tem quatro.
– Poderíamos acreditar nisso se não tivéssemos visto um bom número de vadrãs nus – interveio Drakasha.
– Bom, eu não sou uma vergonha para a velha pátria – replicou Rodanov enquanto Locke lhe passava um copo de cerveja. – E vejo que você andou arranjando caras novas.
– Aqui e ali. Orrin Ravelle, Jerome Valora. Este é Jaffrim Rodanov, capitão do Soberano Temível.
– À sua saúde e sorte – entoou Rodanov, erguendo no copo. – Que seus inimigos estejam desarmados e sua cerveja, intacta.
– Mercadores idiotas e bons ventos para persegui-los – completou Zamira, levantando uma das garrafas.
– Teve um bom ganho desta vez?
– Os porões estão cheios a ponto de arrebentar – respondeu Drakasha. – E pegamos um pequeno brigue, de mais ou menos 90 pés. Já deveria estar aqui, por sinal.
– É o Mensageiro Vermelho?
– Como você...
– Strozzi chegou ontem. Disse que partiu para cima de um brigue lento e já ia pegá-lo quando deu de cara com uma das suas tripulações acenando para ele. Isso foi
uns 100 quilômetros ao norte do Portão do Comerciante, perto do Promontório Queimado. Diabos, eles devem estar se arrastando pelo Portão agora mesmo.
– Mais poder a eles, então. Nós viemos pelo Mercado.
– Nada bom – comentou Rodanov, parecendo pouco satisfeito pela primeira vez desde que aparecera. – Ouvi umas coisas estranhas sobre o Mercado ultimamente. Sua Eminência,
o Sacana Gordo...
– O Desmancha-Navios – sussurrou Konar para Locke.
– ... mandou um lúgar no mês passado e diz que ele se perdeu numa tempestade. Mas ouvi, por lábios confiáveis, que o lúgar não chegou a sair do Mercado.
– Achei que a velocidade seria a melhor vantagem na vinda para cá. Mas da próxima vez vou usar o Portão, nem que demore uma semana. Pode espalhar a notícia.
– Seria o meu conselho também. Por falar nisso, ouvi dizer que você quer convocar o conselho para amanhã.
– Há cinco de nós na cidade. Eu tenho... um negócio curioso, de Tal Verrar. E quero uma reunião fechada.
– Um capitão e um imediato. Certo. Vou avisar a Strozzi e Colvard. Acho que Rance já sabe, não é?
– Sabe.
– Talvez ela não consiga falar.
– Não vai precisar. Eu é que tenho de contar uma história.
– Então que seja. “Falemos por trás das mãos, para que os lábios não sejam lidos como o livro dos nossos desígnios, e vamos encontrar algum local onde apenas os
deuses e os ratos possam ouvir nossas palavras ditas em voz alta.”
Locke encarou Rodanov; aquilo era Lucarno, de...
– O casamento do assassino – disse Delmastro.
– É, fácil – confirmou Rodanov com um sorriso. – Nada mais difícil me veio à mente.
– Que curiosa queda pelo teatro vocês, predadores do Mar de Bronze, parecem ter – comentou Jean. – Sei que Ezri tem um gosto...
– Só cito Lucarno por causa dela – retrucou Rodanov. – Eu, pessoalmente, odeio o sacana. Sentimentos piegas, autossatisfação óbvia e um monte de piadinhas sobre
trepadas para que todos os panacas bem-vestidos do Trono Terim pudessem se sentir maliciosos em público. Enquanto isso, os Magos-Servidores e meus ancestrais jogavam
dados para ver quem conseguia queimar o império primeiro.
– Jerome e eu gostamos muito de Lucarno – falou Delmastro.
– Isso é porque não conhecem nada melhor – rebateu Rodanov. – Porque as peças dos antigos poetas do Trono são mantidas em cofres por pessoas obtusas enquanto os
meros pingos de vômito de Lucarno são exaltados por qualquer um que tenha moedas para desperdiçar com escribas e encadernações. As peças dele não são preservadas,
são perpetradas. Mercallor Mentezzo...
– Mentezzo é ok – interrompeu Jean. – Seus versos são razoáveis, mas ele usa o coro como uma muleta e sempre lança os deuses no fim para resolver os problemas de
todo mundo...
– Mentezzo e seus contemporâneos construíram a dramaturgia do Trono Terim a partir do modelo de Espadri, revigorando os monótonos rituais dos templos com temas políticos
relevantes. Suas limitações de estrutura deveriam ser perdoadas; em comparação, Lucarno teve toda a obra deles sobre a qual trabalhar e tudo o que acrescentou à
mistura foi um melodrama meloso...
– O que quer que ele tenha acrescentado basta para que, quatrocentos anos depois do flagelo de Terim Pel, Lucarno seja o único dramaturgo com o patronato formal
de Talatri cuja obra ainda é preservada inteiramente e trabalhada regularmente para novas edições...
– Um apelo aos leitores sem gosto não equivale a uma análise filosófica válida das obras em questão! Lucestra de Nicora escreveu em suas cartas a...
– Com o perdão de todo mundo – interrompeu Grande Konar –, mas não é educado ter uma discussão se mais ninguém sabe de que porra vocês estão falando.
– Devo admitir que Konar está certo – observou Drakasha. – Não sei se vocês dois estão para sacar as armas ou fundar um culto de mistérios.
– Quem diabos é você? – questionou Rodanov, fixando o olhar em Jean. – Não tenho com quem discutir isso há anos.
– Eu tive uma infância incomum – explicou Jean. – E você?
– Na minha juventude, eu... digamos... ostento o fato de que o Colégio Terim precisava de um mestre de letras e retórica chamado Rodanov.
– O que aconteceu?
– Bom, havia um professor de retórica, veja bem, que bolou um modo perfeito de manter uma casa de apostas no Salão das Reflexões Aplicadas. Arenas de gladiadores,
corridas de barcos do Colégio, esse tipo de coisas. Ele usava os alunos como moleques de recado e, como o dinheiro podia ser usado para comprar cerveja, isso o tornou
nosso herói pessoal. Claro, no momento em que ele precisou fugir da cidade, o resto de nós recebeu chicotes e correntes, por isso me alistei para um serviço de merda
a bordo de um galeão mercante...
– Quando foi isso? – interrompeu Locke.
– Diabos, foi quando os deuses eram jovens. Deve fazer 25 anos.
– Esse professor de retórica... o nome dele era Barsavi? Vencarlo Barsavi?
– Como raios você pode saber disso?
– Posso ter... cruzado o caminho dele algumas vezes. – Locke sorriu. – Viajando pelo leste. Nas vizinhanças de Camorr.
– Ouvi boatos – disse Rodanov. – Ouvi o nome uma ou duas vezes, mas nunca fui a Camorr. Barsavi, sério? Ele ainda está lá?
– Não – respondeu Jean. – Ouvi dizer que morreu há uns dois anos.
– Que pena. – Rodanov suspirou. – Que pena mesmo. Bom... devo dizer que chateei vocês por tempo demais falando de gente que morreu há séculos. Não me leve muito
a sério, Valora: foi um prazer conhecê-lo. Você também, Ravelle.
– Foi bom vê-lo, Jaffrim – comentou Zamira, levantando-se da cadeira com ele. – Até amanhã, então?
– Espero uma boa apresentação. Boa noite a todos.
– Um dos seus colegas capitães – observou Jean enquanto Rodanov descia a escada. – Muito interessante. Por que ele não quis nossa mesa?
– O Soberano Temível é o maior navio que qualquer capitão de Porto Pródigo jamais teve – explicou Zamira lentamente. – E tem a maior tripulação, de longe. Jaffrim
não precisa fazer os mesmos joguinhos que o resto de nós. E sabe disso.
Não houve conversa à mesa durante vários minutos, até que de repente Rask pigarreou e falou com voz baixa e grave:
– Eu vi uma peça de teatro uma vez. Tinha um cachorro grande que mordeu um cara nos bagos...
– É – confirmou Malakasti. – Eu também vi. Porque o cachorro adorava salsicha e o sujeito vivia dando salsicha a ele, aí ele tirou a calça...
– Certo – cortou Drakasha. – A próxima pessoa que mencionar qualquer tipo de peça vai nadar de volta até o Orquídea. Vamos ver até que ponto o nosso amigo Banjital
Vo queria a prata dele.
9
No dia seguinte, Magnífico acordou Locke bem a tempo da mudança do turno do meio-dia. Locke tirou o gatinho de cima da cabeça, encarou seus olhos verdes e disse:
– Pode ser um tremendo choque, mas de jeito nenhum, em todos os infernos, vou ser cativado por você, seu destruidor do sono.
Locke bocejou, espreguiçou-se e saiu sob a chuva quente e fraca que caía de um céu coberto por um aglomerado de nuvens.
– Aahh – fez ele, despindo-se até ficar apenas com o calção e deixando a chuva tirar parte do odor do Carmim Esfarrapado de sua pele.
Era estranho, refletiu, como a miríade de fedores do Orquídea havia se tornado familiar e o cheiro do tipo de lugares em que ele passara anos se tornara intrusivo.
Drakasha tinha posicionado o Orquídea perto de um dos longos píeres de pedra no ancoradouro do Hospital e Locke viu que uma dúzia de botes chegara junto ao costado
de bombordo. Enquanto cinco ou seis marinheiros armados do Turno Azul vigiavam a portinhola de entrada, Utgar e Zamira negociavam vigorosamente com um homem em uma
lancha atulhada de abacaxis.
O início da tarde foi consumido pela ida e vinda de botes; diversos moradores de Porto Pródigo apareciam para vender de tudo, desde comida fresca até drogas alquímicas,
e representantes dos mercadores independentes vinham indagar sobre as mercadorias no porão e examinar amostras sob o olhar atento de Drakasha. O Orquídea se tornou
temporariamente um mercado flutuante.
Mais ou menos às duas da tarde, quando a chuva diminuía e o sol atravessava as nuvens, o Mensageiro Vermelho apareceu, vindo do Portão do Comerciante, e baixou âncora
ao lado do Orquídea. Nasreen, Gwillem e a tripulação da presa voltaram a bordo, com vários ex-tripulantes do Mensageiro que haviam se recuperado o suficiente para
se locomover.
– Que diabo ele está fazendo aqui?! – gritou um deles ao ver Locke.
– Venha comigo – chamou Jabril, passando um braço pelos ombros do sujeito. – Não é nada que eu não possa explicar. Nesse meio-tempo, vou lhe contar sobre uma coisa
chamada equipe do esfregão...
Treganne exigiu que baixassem um bote para ela visitar o Mensageiro e examinar os feridos ainda a bordo. Enquanto Locke ajudava nessa tarefa, a Erudita cruzou com
Gwillem junto à portinhola.
– Nós trocamos de cabine – informou ela, fazendo cara feia. – Estou com seu antigo compartimento e você pode ficar com o meu.
– O quê? O quê? Por quê?
– Você logo vai descobrir.
Antes que o vadrã pudesse perguntar mais alguma coisa, Treganne havia descido e Zamira segurou-o pelo braço.
– Que tipo de oferta inicial o Desmancha-Navios vai fazer por ele?
– Duas moedas de prata e um copo de cascas de ferida de varíola.
– É, mas até onde eu devo conseguir que ele chegue, mais ou menos?
– De 1.100 a 1.200 solaris. Ele vai precisar de dois mastaréus novos, já que o de proa também se partiu. Só não caiu. Vergas novas, algumas velas novas. O navio
foi reformado recentemente e isso ajuda, mas uma olhada nas tábuas vai mostrar a idade. Ele deve ter uns dez anos de uso pela frente.
– Capitã Drakasha – chamou Locke, parando ao lado de Gwillem. – Se é que posso me intrometer...
– É o tal esquema de que você falou, Locke?
– Tenho certeza de que consigo espremer pelo menos mais algumas centenas de solaris dele.
– Ravelle? – Gwillem franziu a testa. – Ravelle, o ex-capitão do Mensageiro Vermelho?
– É um prazer conhecê-lo – disse Locke. – E tudo o que preciso pegar emprestado, capitã, são algumas roupas melhores, sacolas de couro e uma pilha de moedas.
– O quê?
– Relaxe, não vou gastá-las. Só preciso delas para fazer uma exibição. E é melhor que Jerome vá junto também.
– Capitã – disse Gwilem –, por que Orrin Ravelle está vivo, faz parte da tripulação e está pedindo dinheiro?
– Del! – gritou Drakasha.
– Estou aqui – respondeu ela, aparecendo um instante depois.
– Del, explique ao Gwillem por que Ravelle está vivo e faz parte da tripulação.
– Mas por que ele está pedindo dinheiro? – repetiu Gwillem.
Ezri o agarrou pelo braço e puxou-o para longe.
– Meu pessoal espera ser pago pelo Mensageiro – falou Drakasha. – Preciso garantir que o que você está tramando não vai piorar as coisas.
– Capitã, nessa questão eu estarei agindo como membro da sua tripulação. Não sei se a senhora se lembra, mas eu também tenho direito a uma parte do que ganharmos
com o Mensageiro.
– Hummm. – Ela olhou em volta e bateu os dedos no punho de um dos seus sabres. – Roupas melhores, é?
10
Os agentes do Desmancha-Navios, instigados por boatos da noite anterior, foram rápidos em ver as velas novas na Baía Pródiga. Às cinco da tarde, uma barca ornamentada,
remada por escravos, parou ao lado do Mensageiro Vermelho.
Drakasha esperava para receber os ocupantes da outra embarcação com Delmastro, Gwillem e duas dúzias de tripulantes armados. Os primeiros a subir pelo costado faziam
parte de um esquadrão de guardas, homens e mulheres suando sob armaduras de couro fervido e correntes. Após varrerem o convés com o olhar, uma equipe de escravos
saltou a bordo e preparou cabos para içar uma cadeira suspensa e seu ocupante, da barca até a portinhola de entrada. Suando furiosamente, fizeram força para levantar
a cadeira e o homem sentado nela.
O Desmancha-Navios estava exatamente como Drakasha lembrava: um terim velho, com uma pele fina tão distendida de gordura que parecia ter estourado nas emendas, e
sua carne viscosa se derramava no mundo ao redor. As bochechas caídas iam até algum lugar abaixo do meio do pescoço, os dedos pareciam salsichas que haviam arrebentado
e as papadas tinham tão pouca firmeza que tremiam quando ele piscava. Ele conseguiu se levantar da cadeira com a ajuda de um escravo de cada lado, mas não pareceu
sequer remotamente confortável até que outro serviçal apareceu com uma larga prateleira laqueada, uma espécie de mesa portátil. O móvel foi posto à sua frente e
ele apoiou a barriga enorme em cima, com um gemido de alívio.
– Um brigue manco – disse a ninguém em particular. – Faltando um mastaréu e com outro que só serve para virar lenha. Meio velho. Uma dama cujos encantos desbotados
estão mal ocultos por camadas recentes de pintura e douração. Ah. Desculpe, Zamira, não vi você aí parada.
– Já eu senti o navio adernar no instante que você subiu a bordo – retrucou Drakasha. – O brigue foi forte o bastante para atravessar uma tempestade de fim de verão
mesmo nas mãos de um incompetente. Os cabos estão limpos, mastaréus são baratos e ele é muito mais atraente do que a maioria dos bagulhos que você leva para o leste.
– Bagulhos que são trazidos a mim por capitães como você. Bom, eu vou querer olhar por baixo das calças dessa embarcação e ver se ela ainda tem alguma xota que valha
a pena. Depois podemos discutir o tamanho do favor que eu farei a você.
– Faça pose o quanto quiser, seu velhote. Eu terei um bom preço por um bom navio.
– E é bom mesmo – falou Leocanto Kosta (como Zamira havia passado a pensar nele), escolhendo esse momento para emergir de seu esconderijo na escada do tombadilho.
O pequeno estoque de roupas finas do Orquídea lhe dera um verniz de riqueza. Seu casaco marrom-mostarda tinha punhos de brocado de prata, a túnica era de seda sem
manchas, os calções eram razoáveis e os sapatos estavam engraxados. As vestimentas também eram de tamanho suficiente para um homem com o corpo de Jean, mas Kosta
as enchera com trapos para não parecerem largas. Não se pode ter tudo.
Um florete emprestado pendia do cinto e vários anéis de Zamira reluziam nos dedos. Atrás dele vinha Jerome, vestido como o Obediente Serviçal de Postura Comum, carregando
três pesadas pastas de couro no ombro. A velocidade com que haviam assumido os papéis levou Zamira a deduzir que já os tinham usado em outro lugar.
– Milorde, terminou a inspeção? – perguntou Drakasha.
– Terminei. E, como eu disse, gostei do navio. Não é excelente, mas não é uma armadilha mortal. Posso ver quinze anos nele, com um pouco de sorte.
– Quem é você, porra?
O Desmancha-Navios encarou Kosta com olhos que pareciam de um pássaro subitamente confrontado por um bico rival na hora em que ia pegar uma minhoca.
– Tavrin Callas – respondeu Kosta. – De Lashane.
– Um nobre? – perguntou o Desmancha-Navios.
– Da Terceira Ordem. Não precisa usar meu título.
– E não vou mesmo. Por que está farejando este navio?
– Seu crânio deve ser mais mole do que sua barriga! Estou pensando em comprá-lo da capitã Drakasha.
– Sou eu que compro navios na Baía Pródiga.
– Com base em quê, num decreto dos deuses? Eu tenho verba e é só isso que importa.
– Suas verbas não vão ajudá-lo a nadar, garoto...
– Chega – ordenou Drakasha. – Até que um de vocês pague por ele, é no meu navio que vocês estão.
– Você está muito longe de casa, moleque, e se atravessar o meu caminho...
– Se quiser este navio, pague o preço justo por ele. – Drakasha se inflamou, com irritação genuína. O Desmancha-Navios era poderoso e útil, mas numa disputa de força
qualquer capitão do Mar de Bronze poderia esmagá-lo sob o calcanhar. A falta de concorrência o levara a abusar demais da paciência dos outros. – Se lorde Callas
fizer a melhor oferta, eu venderei a ele. Já podemos parar de ser idiotas?
– Estou preparado para comprar meu navio – garantiu Kosta.
– Ei, espere aí, capitã – interveio Delmastro, pegando a deixa. – Nós sabemos que o Desmancha-Navios pode pagar. Mas ainda não vimos o dinheiro do lorde.
– Del está certa – concordou Drakasha. – Por aqui, nós usamos cartas de crédito para limpar a bunda, lorde Callas. É melhor ter alguma coisa pesada nessas bolsas.
– Claro – disse Kosta, estalando os dedos.
Jerome avançou e largou uma pasta aos pés de Drakasha. Ela bateu no convés com um tilintar.
– Gwillem – chamou ela, sinalizando para ele avançar.
O intendente se agachou sobre a pasta, abriu os fechos e revelou uma pilha de moedas de ouro – uma combinação da bolsa do navio de Zamira e as verbas que Leocanto
e Jerome haviam trazido para o mar. Gwillem ergueu uma moeda, segurou-a à luz do sol e mordeu-a. Assentiu.
– É das boas, capitã. Solari de Tal Verrar.
– Há 700 nessa pasta – assegurou Kosta, o que era a deixa para Jerome jogar a segunda no convés ao lado. – Mais 700.
Gwillem abriu a segunda pasta, permitindo que o Desmancha-Navios visse que ela também transbordava de ouro. Continha cinco ou seis camadas de solaris sobre uma bolsa
de seda cheia de moedas de prata e cobre. A terceira pasta era igualmente uma fraude, mas Zamira esperava que Kosta não precisasse provar seu argumento de novo.
– E com isso eu lhe dou mil, para começar – anunciou Leocanto.
– Devem ser moedas de baixa qualidade – disse o Desmancha-Navios. – Isso é intolerável, Drakasha. Traga uma balança do seu navio e eu vou pegar as minhas.
– Essas moedas são perfeitas – rebateu Kosta, trincando os dentes. – Todas elas. Sei que a senhora vai verificá-las, capitã, e sei o que valeria minha vida se a
senhora descobrisse que qualquer uma delas é falsificada.
– Mas...
– Sua profunda preocupação com meu bem-estar é notável, Desmancha-Navios – observou Drakasha –, mas lorde Callas está totalmente correto e eu julgo que ele é sincero.
Ele oferece mil. O senhor quer aumentar o lance?
– As apostas estão abertas, velhote – provocou Leocanto. – Você pode mesmo oferecer mais?
– Mil e dez – respondeu o Desmancha-Navios.
– Mil e cem – retrucou Kosta. – Pelos deuses, estou me sentindo como se jogasse cartas com meus cavalariços.
– Mil e cento e cinquenta – chiou o adversário.
– Mil e duzentos.
– Ainda nem examinei as madeiras dele...
– Então deveria ter atravessado a baía mais depressa. Mil e duzentos.
– Mil e trezentos.
– Esse é o espírito. Finja que pode me acompanhar. Mil e quatrocentos.
– E quinhentos. Estou avisando, Callas, se você aumentar o preço vai haver consequências.
– Pobre e velho balde de banha, obrigado a se contentar com um lucro ridículo, em vez de um lucro obsceno. Mil e seiscentos.
– De onde você veio, Callas?
– Comprei passagem no barco de um mercador independente.
– Qual?
– Não é da sua conta. Mil e seiscentos. O que você...
– Mil e oitocentos – sibilou o Desmancha-Navios. – Está ficando sem bolsas, seu fingidor lashani?
– Mil e novecentos – disse Kosta, denotando um tom de preocupação na voz pela primeira vez.
– Dois mil solaris.
Leocanto conferenciou brevemente com Jerome, dando um espetáculo. Olhou para os pés e murmurou:
– Vá se foder, velhote. – Fez um gesto para Jerome recolher as pastas no convés.
– Vendido ao Desmancha-Navios – anunciou Zamira, contendo um sorriso enorme. – Dois mil foi o preço.
– Rá! – O rosto do Desmancha-Navios se contorceu com um triunfo que parecia quase doloroso. – Eu poderia comprar dez de vocês por capricho, moleque. Se algum dia
eu sentir necessidade de enfiar o pau em algo estrangeiro e inútil.
– Bom, você venceu – disse Leocanto. – Parabéns. Estou desconcertado.
– E deve estar mesmo, já que de repente está no meu navio. Agora eu gostaria de ouvir o que você pagaria para impedir que eu coloque você num espeto sobre uma fogueira...
– Desmancha-Navios – cortou Drakasha. – Até que eu veja 2 mil solaris nas minhas mãos, este não é seu navio nem no inferno.
– Ah – fez o velho. – Uma questão técnica. – Ele bateu as palmas das mãos e seus escravos mandaram a cadeira suspensa de volta à barca, presumivelmente para ser
carregada com ouro.
– Capitã Drakasha – disse Kosta –, obrigado pela tolerância, mas eu sei quando é hora de me retirar...
– Del, leve lorde Callas e seu criado a um dos nossos botes – ordenou Drakasha. – Lorde Callas, o senhor está convidado a jantar na minha cabine. Depois disso podemos...
mandá-lo de volta ao seu lugar.
– Estou em dívida para com a senhora, capitã. – Kosta fez uma reverência mais profunda do que era necessário e desapareceu pela portinhola de entrada com Delmastro
e Jerome.
– Estripe o pirralho sacaninha – falou o Desmancha-Navios em voz alta. – Fique com o dinheiro dele.
– Estou contente com o seu – retrucou Zamira. – Além disso, gosto da ideia de ter um barão lashani genuíno convencido de que me deve a vida.
Os escravos do Desmancha-Navios transferiram um saco após outro de moedas para o convés do Mensageiro, com prata e ouro, até que o preço combinado formasse uma pilha
aos pés de Zamira. Gwillem iria contar tudo com tranquilidade, claro, mas Zamira não achava que haveria fraude ou moedas falsas, devido à mesma lógica que “Tavrin
Callas” havia exposto alguns minutos antes. O Desmancha-Navios mantinha uma dúzia de mercenários bem equipados em sua propriedade fortificada nos limites da cidade,
mas se enganasse uma capitã, seria perseguido por pelotões de piratas, e os dias em que ele conseguia correr eram uma lembrança distante.
Drakasha deixou o Mensageiro nas mãos dos guardas e escravos do Desmancha-Navios e estava de novo à bordo do Orquídea em meia hora, sentindo o contentamento costumeiro
advindo da venda de uma presa. Menos uma complicação para preocupá-la. Agora toda a sua tripulação estaria de volta num único navio, as divisões de cotas seriam
feitas, a bolsa do navio estaria substancialmente enriquecida. Os ex-Mensageiros feridos que não haviam participado do saque do Martim-Pescador representavam um
pequeno problema, mas todos optaram pela indignidade temporária da equipe do esfregão, se a alternativa era serem deixados adoentados em Pródigo.
– Ravelle, Valora – chamou ela, encontrando os dois sentados no porão do castelo, sorrindo e conversando com Del e uma dúzia de tripulantes. – Foi melhor do que
eu esperava.
– Setecentos ou oitocentos a mais do que seria possível – comentou Gwillem, surpreso.
– Muito mais gordura para as cotas de todo mundo – observou Valora.
– Até que o sacana gaste algum dinheiro para sondar os mercadores independentes – lembrou Del, com uma sobrancelha erguida, numa mistura de admiração e incredulidade.
– Quando ele descobrir que ninguém trouxe nenhum nobre lashani recentemente para qualquer lugar perto de Pródigo...
– Claro que ele vai deduzir o que aconteceu, cedo ou tarde. – Kosta balançou a mão, sem dar importância. – Essa é a beleza da coisa. Esses tiranozinhos metidos a
besta, egoístas, que vivem fazendo ameaças... bem, a gente pode dançá-los conforme nossa música. Jamais, nem em mil anos, ele deixaria alguém saber que a senhora
o enganou em plena luz do dia com um truque tão simples. E com a margem de lucro que ele arranca de todo navio que tira da senhora, nem no inferno ele vai contra-atacar,
a não ser com palavras birrentas.
– Ele não tem poder para fazer pressão, se é nisso que ele está pensando – completou Zamira. – Foi tudo bem-feito. Mas isso não significa que você pode andar por
aí à vontade com essas roupas chiques a noite toda. Guarde-as de novo.
– Claro... capitã.
– E quer o Desmancha-Navios fique calado ou não, acho melhor manter vocês dois fora de vista pelo resto do tempo que passarmos aqui. Os dois permanecerão confinados
ao navio.
– O quê?! Mas...
– Acredito – disse Drakasha num tom firme mas divertido – que não seja sensato deixar dois sujeitos como vocês livres com muita frequência. Vou lhes dar uma coisinha
extra da bolsa do navio para compensar o incômodo.
– Ah, é justo. – Kosta começou a tirar os componentes mais delicados de seu figurino elegante. – Acho que, de qualquer modo, não sinto um desejo particular de ter
a garganta cortada num beco.
– Garoto esperto. – Zamira se virou para Delmastro. – Del, vamos fazer uma lista para o Turno Alegre desta noite. Eles podem ir para a terra conosco quando formos
para o conselho. Digamos... metade da tripulação do navio. Faça com que seja justo.
– Certo – respondeu Del. – E até voltarmos da reunião, eles podem esperar nos botes, convenientemente atentos a qualquer encrenca, não é?
– Exato. Assim como todos os outros tripulantes, espero.
– Capitã – sussurrou Del, quase grudada no ouvido de Zamira –, de que se trata essa reunião, afinal?
– Negócios ruins, Ezri. – Ela olhou para Leocanto e Jerome, que sorriam e brincavam um com o outro, sem perceber que estavam sendo vigiados. – Ruins se forem verdadeiros.
Ruins se não forem.
Ela pôs um braço em volta do ombro de Ezri – a jovem que dera as costas para a vida de mimada aristocrata de Nicora, que ascendera da equipe do esfregão até o posto
de imediata, que quase fora morta duas vezes mais que os anos a serviço do Orquídea, na luta para preservá-lo flutuando.
– Certas coisas que você vai ouvir esta noite se referem a Valora. Não tenho como adivinhar o que vocês dois conversaram em particular... nos raros interlúdios em
que passaram seus momentos privados falando... – Ezri levantou o queixo, sorriu e não se dignou a ficar ruborizada – ... mas o que eu tenho a dizer talvez não agrade.
– Se houver alguma coisa a ser resolvida entre nós, confio que ele vai resolver – comentou Ezri baixinho. – E não tenho medo de ouvir nada.
– Essa é a minha Ezri. Bom, então vamos nos vestir para encontrar os colegas. Armaduras e sabres. Lubrifique suas bainhas e afie as facas. Talvez precisemos das
ferramentas para dar alguns argumentos de despedida, caso a conversa fique feia.
CAPÍTULO TREZE
Pontos de decisão
1
Um quilômetro e meio de praia solitária separa Porto Pródigo das ruínas de sua decaída sentinela de pedra: Castana Voressa, Forte Glorioso.
Construída para dominar o lado norte da baía que servia a Porto Glorioso antes que uma mudança na sorte dos Ventos Fantasmas trouxesse uma modificação equivalente
ao nome da cidade, agora a fortaleza não bastaria para conter um ataque de palavrões, quanto mais das lâminas e flechas de uma força hostil.
Dizer que foi construída com material barato seria uma injustiça para os pedreiros unhas de fome; várias cargas de blocos de granito verrari foram desviadas para
o comércio de construções de casas em troca de dinheiro para o vinho, por oficiais entediados longe demais de casa. Planos grandiosos para muralhas e torres se tornaram
planos grandiosos para uma muralha, e finalmente planos modestos para um muro menor com um alojamento. E, para fechar com chave de ouro, a guarnição de soldados
para lá destinados se perdeu no caminho, devido a uma tempestade de fim de verão.
O único remanescente útil do forte é um pavilhão de pedra circular a uns 50 metros da água, ligado à ruína principal por um largo caminho elevado de pedras. O local
deveria ser uma plataforma para catapultas, mas nenhuma chegou. Hoje em dia, quando os capitães piratas de Porto Pródigo convocam um conselho para discutir seus
negócios, o pavilhão é sempre o lugar e o horário é sempre o crepúsculo. Ali, eles discutem com privacidade, de pé sobre pedras de um império verrari que jamais
se concretizou, em cima das ambições frustradas de uma cidade-estado que, mesmo assim, frustrou as ambições deles sete anos antes.
2
Começou como todas as reuniões de que Zamira se lembrava: sob o céu vermelho-púrpura do crepúsculo, com lanternas acima das pedras antigas, o ar úmido denso como
o hálito de um animal e os insetos picando com força máxima.
Quando o conselho de capitães era convocado, nunca havia vinho, comida ou assentos. Sentar-se apenas deixava as pessoas mais inclinadas a desperdiçar tempo. O desconforto
despia o sentimento das palavras de todos e os levava depressa ao âmago dos problemas.
Para surpresa de Zamira, ela e Ezri foram as últimas a chegar. Zamira assentiu cordialmente enquanto encarava um de cada vez.
Primeiro, havia Rodanov, agora armado, com sua imediata Ydrena Koros, uma loura magra, apenas um pouco mais alta do que Ezri. Ela tinha a pose de uma duelista profissional
e grande reputação com a cimitarra jereshti de lâmina larga.
Ao lado deles, se achava Pierro Strozzi, um careca amigável perto dos 50 anos, ladeado por seu tenente, reconhecido como Jack Arranca-Orelhas, pois gostava de fazer
isso com seus inimigos derrotados. Dizia-se que ele as curtia e costurava, fazendo colares elaborados, que mantinha trancados em sua cabine.
Rance estava ali, com Valterro ao lado, como sempre. O lado direito do maxilar da capitã tinha vários tons arrepiantes de preto e verde, mas ela ficava de pé sozinha
e pelo menos teve a cortesia de não encarar Zamira com fúria quando achava que a rival a observava.
O último chefe, mas não menos importante, era Jacquelaine Colvard, chamada de “a Velha dos Ventos Fantasmas”, ainda elegante aos 60 e tantos anos, apesar de grisalha
e queimada de sol feito couro velho. Sua atual protegida, portanto amante, era Maressa Vicente, cujas habilidades de luta e navegação ainda não eram muito conhecidas.
A jovem sem dúvida parecia bastante capaz.
Até que um deles fosse embora, estavam isolados do resto do mundo. Grupos de tripulantes, cerca de meia dúzia de cada navio, misturavam-se desconfortavelmente no
fim da trilha elevada. Ninguém mais teria permissão de caminhar por ela até que a reunião terminasse.
Então, pensou Zamira, como vamos fazer isso?
– Zamira, foi você que convocou o conselho – lembrou Rodanov. – Vamos ouvir o que está na sua mente.
Direto à ação, então.
– Não tanto na minha mente, Jaffrim, mas na de todos nós. Há evidências de que o Arconte de Tal Verrar tem planos inconvenientes para nós outra vez.
– Outra vez? – Rodanov fechou os punhos enormes. – Foi Bonaire que teve planos inconvenientes, Zamira; deveríamos saber que Stragos faria o que qualquer um de nós
teria feito no lugar dele...
– Não me esqueci de nem ao menos um dia daquela guerra, Jaffrim. – Zamira sentiu os pelos da nuca se arrepiarem, apesar de sua decisão de ser paciente. – Você sabe
muito bem que eu passei a chamar aquilo de erro.
– A Causa Perdida – bufou Rodanov. – Melhor chamar de Porra de Ideia Imbecil. Seria bom se você tivesse visto aquilo como uma loucura na época!
– Seria bom se você tivesse feito mais do que falar na época – interveio Strozzi em tom ameno. – Falar e ir embora quando a frota do Arconte escureceu o horizonte.
– Eu nunca participei da sua porcaria de Armada, Pierro. Me ofereci para atrair alguns navios dele para longe e foi o que fiz. Sem minha ajuda, vocês teriam perdido
o barlavento mais cedo e seriam flanqueados pelo norte. Chavon e eu seríamos os únicos capitães de pé aqui...
– Parem com isso! – gritou Zamira. – Eu convoquei o conselho e tenho mais coisas a dizer. Não chamei todos aqui para cutucar velhas feridas.
– Fale – disse Strozzi.
– Há um mês, um brigue saiu de Tal Verrar. O capitão o roubou da Marina da Espada.
Houve uma súbita explosão de murmúrios e um balançar de cabeças. Zamira sorriu antes de continuar.
– Para formar sua tripulação, ele entrou na Rocha de Barlavento e esvaziou uma câmara inteira de prisioneiros. A intenção era navegar para o sul e se juntar a nós
em Porto Pródigo. Para içar a bandeira vermelha.
– Quem seria capaz de roubar um navio do Arconte num porto vigiado? – questionou Rodanov, como se não acreditasse muito nessa possibilidade. – Eu gostaria de conhecê-lo.
– Já conheceu – informou Zamira. – O nome dele é Orrin Ravelle.
Valterro, que estivera em silêncio atrás da capitã Rance, quase engasgou.
– Aquele escrotinho...
– Quieto – cortou Zamira. – Você perdeu sua bolsa ontem à noite, não foi? Ravelle tem mãos rápidas. Mãos rápidas, mente ágil, talento para comandar e jeito com uma
arma. Ele ganhou lugar na minha tripulação matando quatro Redentores Jeremitas sozinho. – Zamira divertiu-se ao promover Kosta com as mesmas meias verdades em que
ele trabalhara tanto para fazê-la desacreditar.
– Você disse que ele tinha seu próprio navio – observou Rodanov.
– É. O Mensageiro Vermelho, que foi vendido ao Desmancha-Navios esta tarde mesmo. Pierro, você o viu no Promontório Queimado há alguns dias, não viu?
– Vi.
– E lá estava eu, cuidando da minha vida, inocentemente catando presas aqui e ali no Mar de Bronze quando por acaso dei de cara com o Mensageiro de Ravelle. Interrompi
os planos dele, para dizer o mínimo. Encontrei furos na história dele e consegui espremê-la inteira, mais ou menos.
– E que história é essa? – Rance parecia ter pedras na boca, mas dava para compreendê-la.
– Pense bem, Rance. Quem é Ravelle? Um ladrão, sem dúvida. Treinado para fazer muitas coisas incomuns. Mas um homem seria capaz de tirar um brigue do porto trancado
da Marina da Espada? Um homem poderia invadir a Rocha de Barlavento, dominar todos os guardas, libertar todos os prisioneiros de uma câmara e enfiá-los em seu brigue,
roubado convenientemente na mesma noite?
– Ahn... Bom, pode ser que...
– Ele não fez isso sozinho – falou Colvard pela primeira vez, em voz baixa, mas atraindo os olhares de todos no pavilhão. – Stragos deve tê-lo deixado escapar.
– Exatamente – concordou Zamira. – Stragos o deixou escapar. Stragos lhe deu uma tripulação de prisioneiros ansiosos por qualquer tipo de liberdade. Stragos lhe
deu um navio. E fez tudo isso sabendo que Ravelle navegaria para o sul. Viria se juntar a nós.
– Ele queria um agente entre nós – explicou Strozzi, com uma empolgação pouco característica.
– É. Mais do que isso. – Zamira passou os olhos pelo círculo de piratas, certificando-se de que tinha a atenção integral antes de prosseguir: – Ele tem um agente
entre nós. A bordo do meu navio. Orrin Ravelle e seu companheiro Jerome Valora estão agora a serviço do Arconte.
Ezri girou a cabeça bruscamente para encarar Zamira, boquiaberta. A capitã apertou seu braço com discrição.
– Mate-os – sugeriu Colvard.
– A situação é mais complicada e mais séria do que isso.
– É séria mesmo, para esses dois homens de quem você fala. Acho melhor transformar complicações em cadáveres.
– Se eu tivesse descoberto a trama deles sozinha, isso já teria sido feito. Mas foi Ravelle que me confessou essas coisas. Segundo diz, ele e Valora são agentes
contra a vontade. Stragos lhes deu um veneno latente e afirma ter o antídoto. Dentro de mais um mês, eles precisarão tomar a segunda dose.
– Então a morte seria um favor – resmungou Rance. – Aquele sacana jamais deixará que eles sejam mais do que marionetes.
Rodanov balançou a mão, sinalizando para ela se calar.
– Qual era a missão deles, segundo Ravelle? Nos espionar?
– Não, Jaffrim. – Zamira pôs as mãos às costas e começou a andar lentamente de um lado para o outro no centro do pavilhão. – Stragos quer que nós lhe façamos o favor
de içar outra vez a bandeira vermelha à vista de Tal Verrar.
– Isso não faz sentido – rebateu Strozzi.
– Faz, quando você considera as necessidades do Arconte – reagiu Colvard.
– Como assim? – perguntaram Rance e Strozzi em uníssono.
– Ouvi dizer que as coisas estão ruins entre o Arconte e o Priori – explicou Colvard. – Se alguma coisa aparecer e causar medo nos ótimos cidadãos de Tal Verrar,
o apreço deles pelo exército e pela marinha aumentará.
– Stragos precisa de um inimigo externo a Tal Verrar – completou Zamira. – Precisa disso depressa e é necessário uma garantia de que suas forças possam chutá-lo
à vontade. – Ela abriu os braços, encarando os colegas capitães e imediatos. – É o mesmo que sermos pintados como alvos.
– Não há lucro em lutar conosco... – começou Strozzi.
– Para os que lucram com moedas, você está certo. Mas, para Stragos, isso significa tudo. Ele jogou com um navio, uma tripulação de prisioneiros e a própria reputação
na missão de Ravelle. Vocês não acham que ele está agindo a sério? Ele se tornou motivo de risos permitindo que um “pirata” escapasse de seu porto seguro, só com
o objetivo de se redimir nos esmagando mais tarde. – Zamira juntou os punhos. – Essa era a tarefa de Ravelle: nos convencer, nos enganar, mentir para nós, nos subornar.
E se não pudéssemos ser levados a servir, seu plano era fazer isso pessoalmente, no Mensageiro.
– Então nosso rumo é óbvio – disse Rodanov. – Não vamos dar nada ao Stragos. Não vamos dançar em volta da forca dele. Vamos manter 800 quilômetros de distância de
Tal Verrar, como fizemos desde a guerra. Se for preciso, bancaremos os humildes durante alguns meses. – Ele estendeu a mão e deu um tapa caloroso na pança de Strozzi.
– Vamos viver da gordura acumulada.
– Se é que podemos ter êxito nisso, pedindo o seu perdão, capitão – falou Ydrena Koros. – Essa sua evidência, capitã Drakasha... A palavra de dois homens parece
mais frágil do que...
– Não é só a palavra deles – interrompeu Zamira. – Pense, Koros. Eles tinham o Mensageiro Vermelho. A tripulação, cujos sobreviventes agora fazem parte da minha
tripulação, veio de fato da Rocha de Barlavento. O Arconte os mandou, sem dúvida.
– Concordo – falou Colvard –, mas também concordo com Jaffrim: ficar longe da provocação é o modo mais sensato...
– Seria o mais sensato se Stragos estivesse fazendo isso por capricho – cortou Zamira. – Mas não está, não é? Ele está lutando pela própria vida. Seu posto está
correndo risco. Ele precisa de nós.
Ela andou de novo pelo centro do pavilhão, lembrando-se dos “argumentos” que havia oferecido no correr dos anos em suas representações de magistrada nos rituais
de iniciação. Será que aquelas atitudes teatrais eram mais convincentes? Esperava que sim, pelos deuses.
– Se nós jogarmos Ravelle e Valora no mar e os ignorarmos, ou se ficarmos longe de Tal Verrar, Stragos tentará outra coisa. Alguma trama ou truque para nos atrair
para a luta, ou para convencer seu povo de que estamos provocando uma luta. Só que da próxima vez os deuses talvez não permitam que os instrumentos do desígnio dele
caiam nas nossas mãos. Vamos estar cegos.
– Há mais hipóteses aí do que praticamente tudo que já ouvi no Colégio – retrucou Rodanov.
– O Mensageiro Vermelho e os prisioneiros indicam que Stragos fez uma aposta – disse Colvard. – Isso significa que ele não pode se mover às claras ou com confiança.
Sabendo o que sabemos sobre a situação em Tal Verrar... eu diria que essa ameaça é real. Se Stragos precisa de um inimigo, nós somos os únicos pretendentes nesta
dança que se ajustam à necessidade dele. O que mais ele pode fazer? Chamar Balinel para a luta? Camorr? Lashane? Kartane? Não mesmo.
– O que você gostaria que fizéssemos, Zamira? – Rodanov cruzou os braços e fez uma cara feia.
– Nós temos meios de atacar o Arconte.
– Nós não podemos lutar contra a marinha verrari – objetou Rodanov. – Nem podemos invadir a droga da cidade, invocar raios do céu nem pedir aos deuses para educadamente
se livrar do Stragos para nós. Então de que modo podemos atacar? Ferindo os sentimentos dele com cartas maldosas?
– Stragos espera que Ravelle e Valora se apresentem diretamente a ele para receber o antídoto.
– Eles têm acesso a ele – compreendeu Colvard. – Um assassinato!
– Pelo qual eles seriam culpados se sobrevivessem – observou Strozzi.
– Bom para eles – falou Rodanov. – E aí? Você quer nosso consentimento para levá-los de volta a Tal Verrar e soltá-los? Tudo bem. Eu ficaria feliz em emprestar um
par de facas a eles.
– Segundo a perspectiva de Ravelle e Valora, só há uma pequena complicação: eles prefeririam obter um antídoto permanente e depois acabar com o Stragos.
– Infelizmente é raro realizarmos nossos desejos na vida... – comentou Rance.
– Diga a ele que temos um antídoto – propôs Colvard. – Convença-os de que temos os meios para livrá-los dessa situação. Depois solte-os em cima do Arconte... Tanto
faz se eles vão sobreviver ou não ao assassinato.
Ezri abriu a boca para discordar, mas Zamira a encarou com o olhar mais gélido de seu arsenal treinado por tanto tempo.
– Isso é maravilhosamente ardiloso – falou Zamira, quando teve certeza de que Ezri iria se conter –, mas é conveniente demais. Se você estivesse no lugar deles,
acreditaria nessa afirmação?
– Minha cabeça está começando a girar – reclamou Strozzi. – O que diabos você quer fazer, Zamira?
– Eu gostaria – respondeu ela, enunciando cada palavra com muito cuidado – que nenhum de vocês ficasse alarmado demais se eu achar necessário provocar certo tumulto
nas imediações de Tal Verrar.
– E com isso invocar nossa destruição! – gritou Rodanov. – Quer ver Porto Pródigo saqueado como Montierre? Quer nos ver espalhados por meio mundo e nossas rotas
de comércio sem vigilância cheias de furiosos navios de guerra verraris?
– Se eu fizer alguma coisa – disse Zamira –, a discrição seria...
– Impossível – rosnou Rodanov. – Assim, Stragos vai terminar o serviço que começou ao esmagar a Armada Livre. Ele vai destruir nosso meio de vida!
– Ou preservá-lo. – Zamira pôs as mãos nos quadris. – Se Stragos está decidido a nos pressionar, ele vai nos pressionar, quer dancemos segundo a música dele ou não.
A bordo do meu navio, estão nossos meios, nossos únicos meios de lutar contra ele. Se Stragos for derrubado, o Arconato vai cair junto. E se o Priori governar Tal
Verrar, podemos saquear este oceano o quanto quisermos até o dia da nossa morte.
– Por que você iria querer entrar no jogo do Arconte, mesmo com... discrição? – perguntou Strozzi.
– Ravelle e Valora não são santos – explicou Zamira. – Não estão dispostos a jogar a vida fora em nosso benefício. Eles querem viver e, para isso, precisam de tempo.
Se Stragos acreditar que eles estão trabalhando duro para ele, vai lhes conceder as semanas ou os meses necessários para encontrar uma solução. E, enquanto isso,
pode ser que ele adie seus outros planos.
– Essas semanas e meses também podem ser o tempo suficiente para ele conseguir o apoio da cidade – retrucou Rodanov.
– Vocês devem confiar que eu vou ser delicada. Como capitães irmãos, é isso que estou pedindo, no fim das contas. Não importa o que vocês ouvirem com relação a Tal
Verrar, confiem no meu julgamento.
– É um pedido significativo – comentou Colvard. – Nenhum de nós iria ajudar?
– Não posso pensar em nada que fosse mais contraproducente do que todos nós aparecermos uma manhã em Tal Verrar. O Arconte teria sua guerra em dez minutos, mais
ou menos. Portanto, deixem essa tarefa comigo. É um risco só para o meu navio.
– É um risco para todos nós – rebateu Rodanov. – Você está pedindo que coloquemos nosso destino e o de Porto Pródigo nas suas mãos. Sem qualquer supervisão.
– E foi diferente nesses últimos sete anos? – Ela encarou cada capitão. – Cada um de nós sempre esteve à mercê dos outros. Qualquer um de nós poderia ter golpeado
muito ao norte, atacado um navio que carregasse o primo real de alguém, assassinado marinheiros demais ou simplesmente ficado ganancioso demais para ser ignorado.
Nós estivemos em perigo o tempo todo. Estou apenas fazendo a cortesia de avisar antes, pela primeira vez.
– E se você fracassar? – questionou Rance.
– Se eu fracassar, não haverá pena para vocês aplicarem: já estarei morta.
– Nossos juramentos de não interferência – disse Colvard. – É isso que você quer, não é? Uma promessa de manter as espadas nas bainhas enquanto você joga a regra
mais importante da nossa... associação pela sua janela de popa.
– Não havendo alternativas melhores, sim. É isso mesmo que estou pedindo.
– E se recusarmos? – perguntou Rodanov em voz baixa. – Se nós, quatro contra um, proibirmos isso?
– Então alcançaremos uma fronteira que todos tememos atravessar – respondeu Zamira, encarando-o também.
– Eu não vou proibir – interveio Rance. – Prometo manter as mãos longe de você, Zamira. Se você suar para que eu tenha lucro, tanto melhor. E se você morrer fazendo
isso, não vou ficar de luto.
– Eu também dou meu juramento – disse Colvard. – Zamira está certa: nossa segurança coletiva depende de quem de nós for mais maluco. Se houver uma chance de chutar
Maxilan de cima do seu pedestal, rezo pelo seu sucesso.
– Obviamente, Zamira Drakasha vota a favor de Zamira Drakasha – completou Zamira, fitando Rodanov e Strozzi.
– Não gosto de nada disso – reagiu Strozzi. – Mas, se der merda, nenhum navio neste oceano pode correr como o meu Águia-Pescadora. – Ele sorriu e estalou os nós
dos dedos. – Inferno. Balance a saia para o Arconte e veja se ele está a fim de um roça-roça. Eu não vou estar por perto.
Todos os olhares se voltaram para Rodanov.
– Parece que eu tenho em mãos a oportunidade de ser... antissocial. – Ele suspirou e esfregou a testa. – Não creio que nada disso seja sensato, mas se sua promessa
de discrição for tão rígida quanto meu juramento de não interferência... muito bem. Vá acionar as engrenagens dessa trama insana.
– Obrigada. – Zamira sentiu o alívio se espalhar pelo corpo, da cabeça aos pés. – Não é mais fácil do que fazermos picadinho uns dos outros?
– Isso precisa ficar entre nós – lembrou Colvard. – Não peço um juramento, eu espero um juramento. Stragos pode ter outros olhos e ouvidos em Pródigo. Se isso chegar
a alguém que não está aqui, o tempo que passamos nesta reunião, para não mencionar a missão de Zamira, será um desperdício completo.
– Certo – concordou Strozzi. – Silêncio. Todos os deuses são nossas testemunhas.
– Todos os deuses são nossas testemunhas – repetiram os outros.
– Você vai partir imediatamente? – indagou Colvard.
– Minha tripulação precisa de uma noite em terra. Não posso pedir para voltarem sem ter ao menos isso. Vou mandar metade de cada vez, vender o resto do meu saque
o mais rápido possível. Pretendo sair do porto em dois ou três dias.
– São três semanas até Tal Verrar – disse Rodanov.
– Certo – confirmou Zamira. – Não há sentido em nada disso se nossos rapazes caírem mortos no caminho. Pretendo ser rápida. – Ela se aproximou de Rodanov, pôs uma
das mãos na bochecha direita dele e ficou nas pontas dos pés para beijar a esquerda. – Jaffrim, eu já desapontei você alguma vez?
– Nunca desde a guerra. Ah, merda, não devia ter dito isso. Não me ponha na berlinda assim, Zamira. Só... não faça merda.
– Ei – chamou Colvard –, como é que eu posso ganhar uma atenção assim?
– Estou me sentindo generosa, mas fique com as mãos onde estão, se prefere que elas continuem presas ao corpo.
Zamira sorriu, beijou Colvard no meio da testa enrugada e lhe deu um abraço. Cautelosamente, porque era difícil acomodar todas as espadas e adagas que as duas estavam
usando.
É sempre assim, pensou Zamira. É sempre assim nessa vida.
3
Utgar esperava na portinhola de entrada para ajudar quando Zamira e Ezri subiram de novo pelo costado do Orquídea Venenosa. Eram dez e meia da noite.
– Bem-vinda de volta, capitã. Como está?
– Passei o dia discutindo com o Desmancha-Navios e o conselho de capitães – murmurou Zamira. – Quero meus filhos e quero uma bebida. Ezri...
– Sim?
– Você, Ravelle, Valora. Na minha cabine, imediatamente.
Assim que entrou em seu aposento, Zamira jogou na rede o casaco, os sabres, o colete de Vidrantigo e o chapéu. Acomodou-se com um gemido em sua cadeira predileta
e recebeu Paolo e Cosetta no colo. Perdeu-se no cheiro familiar dos cabelos encaracolados dos dois e olhou com absoluta satisfação os dedinhos quando os pegou em
suas mãos ásperas. Os de Cosetta, ainda tão minúsculos e inseguros... os de Paolo, crescendo e ficando mais hábeis a cada semana. Pelo amor dos deuses, eles estavam
crescendo depressa demais, depressa demais.
A conversa familiar a acalmou até o âmago; aparentemente, Paolo havia passado a tarde lutando contra monstros que viviam num dos seus baús de viagem e, naquele momento,
Cosetta tinha planos de crescer e virar Rei dos Sete Tutanos. Zamira pensou brevemente em explicar a diferença entre um rei e uma rainha, mas achou que o esforço
não valia a pena; contradizer Cos só levaria a dias de discussões sem fim.
– Rei! Dos Sete Tutandos! – exclamou a menininha, e Zamira assentiu, solene.
– Lembre-se da sua pobre família quando você entrar no seu reino, querida.
A porta se abriu e Ezri apareceu com Kosta e Valora... ou seria mestre de Ferra? Malditas identidades falsas.
– Tranque a porta – pediu Zamira. – Paolo, pegue quatro copos para a mamãe. Ezri, pode cuidar de uma daquelas garrafas de Azul Lashani? Estão bem atrás de você.
Paolo, assoberbado pela responsabilidade, colocou quatro copos pequenos na mesa laqueada em cima dos baús. Kosta e De Ferra acomodaram-se em almofadas no chão e
Ezri tirou rapidamente a rolha encerada que lacrava a garrafa. O cheiro de limões frescos permeou a cabine e a tenente encheu cada copo até a borda com o vinho da
cor das profundezas do oceano.
– Infelizmente, não farei brindes – disse Zamira. – Às vezes, a gente apenas precisa de uma bebida. Aproveitem.
Segurando Cosetta com o braço esquerdo, Zamira tomou seu vinho num gole só, apreciando o gosto mesclado de especiarias e frutas cítricas, sentindo o pinicar da ardência
gélida.
– Quero – exigiu Cosetta.
– Essa bebida é da mamãe, Cos, você não vai gostar.
– Quero!
– Eu disse... Ah, tudo bem. Não dá para temer o fogo sem se queimar.
Ela serviu uma quantidade mínima do vinho azul em seu copo e entregou cuidadosamente a Cosetta. A menina pegou-o com uma expressão da maior solenidade, virou-o na
boca e depois bateu-o na mesa com estrépito.
– Parece MIJO! – berrou, sacudindo a cabeça.
– Sempre há algumas desvantagens em criar filhos entre os marinheiros – comentou Zamira, pegando o copo antes que caísse da mesa. – Mas, afinal de contas, sem dúvida
eu é que estou fazendo a maior contribuição para o vocabulário dela.
– MIIIIIIJO! – gritou Cosetta, rindo, imensamente satisfeita consigo mesma. Zamira mandou-a ficar quieta.
– Eu faço um brinde – disse Kosta, abrindo um sorriso enviesado e erguendo o copo. – À percepção clara. Só agora, depois de todas essas semanas, percebi quem é a
verdadeira capitã desta embarcação.
De Ferra deu um risinho e bateu o copo no dele. Mas Ezri deixou seu vinho intocado na mesa e olhou para as próprias mãos. Zamira decidiu ser rápida: Ezri claramente
precisava ficar a sós com Jerome.
– É o seguinte, Ravelle – começou Zamira. – Eu não sabia que argumentaria a favor do seu plano até que me peguei fazendo isso.
– Então a senhora vai nos levar...
– De volta a Tal Verrar. Sim. – Ela se serviu de mais um copo de vinho e tomou um gole mais conservador. – Convenci o conselho a não entrar em pânico caso cheguem
histórias do Norte falando da trama que vamos pôr em prática.
– Obrigado, capitã, eu...
– Não me agradeça com palavras, Ravelle. – Zamira bebericou de novo e pousou o copo. – Agradeça mantendo seu lado do acordo. Descubra um modo de matar Maxilan Stragos.
– Sim.
– Deixe-me esclarecer outra coisa. – Zamira virou Cosetta com cuidado no colo, de modo que a menininha olhasse diretamente para Kosta. – Todo mundo a bordo deste
navio estará arriscando a vida para lhe dar uma chance nesse plano. Todo mundo.
– Eu... eu entendo.
– Se o tempo passar e não pudermos encontrar uma solução para o que Stragos fez a vocês... bom, seu acesso a ele não é eterno. Farei tudo ao meu alcance para ajudá-los
antes que a coisa chegue a esse ponto. Mas se não houver alternativa, se o tempo se esgotar e o único modo de vocês o derrubarem for sacrificando-se, não esperarei
vê-los de novo, entendeu?
– Se a coisa chegar a esse ponto, vou arrastá-lo ao julgamento dos deuses com minhas mãos nuas – garantiu Kosta. – Vamos os dois juntos.
– Pelos deuses – disse Cosetta. – Mãos nuas!
– Mijo! – gritou Kosta, levantando seu copo na direção de Cosetta, que quase caiu de tanto rir.
– Obrigada, Ravelle, por presentear minha filha, que agora vai ficar acordada a noite inteira repetindo a palavra.
– Desculpe, capitã. Então, quando partimos?
– Metade da tripulação vai para a terra esta noite; a outra metade, amanhã. No dia seguinte, vamos juntar os que quiserem ficar conosco. Espero que possamos nos
livrar dos saques amanhã. Portanto... dois dias. Dois e meio, talvez. Depois veremos como o Orquídea voa.
– Obrigado, capitã.
– E é só isso. Já está na hora de meus filhos dormirem e pretendo reivindicar o privilégio de roncar o quanto quiser assim que todos vocês saírem da minha cabine.
Kosta foi o primeiro a aproveitar a deixa, terminando de tomar sua bebida e pondo-se de pé. De Ferra o acompanhou e já ia sair quando Ezri falou em voz baixa:
– Jerome, você pode ir comigo a minha cabine? Só uns minutos?
– Só uns minutos? – De Ferra deu uma risada. – Ora, Ezri, quando foi que você ficou tão pessimista?
– Agora – respondeu ela, arrancando o sorriso do rosto dele. Consternado, Jean ajudou-a a se levantar.
Um momento depois, a porta da cabine se fechou com um estalo, deixando Zamira sozinha com sua família num dos calmos interlúdios que eram tão perversamente raros.
Durante alguns breves instantes a cada noite, ela podia fingir que seu navio não estava próximo do perigo e se imaginar mais como mãe do que como capitã, sozinha
com as preocupações ordinárias de seus filhos...
– Mamãe – chamou Paolo. – Quero aprender a lutar com espada.
Zamira não conseguiu se conter; encarou-o por um tempo e explodiu numa gargalhada. Ordinárias? Pelos deuses, como é que alguma criança nascida naquela vida poderia
ao menos ter alguma coisa ordinária?
– Espada! – berrou Cosetta, possível futuro Rei dos Sete Tutanos. – Espada! Espada!
4
– Ezri, eu...
Ele viu o tapa chegando, mas jamais lhe ocorreu, nem por um instante, tentar impedi-lo. Ela colocou toda a força no golpe, o que significava muita coisa, e as lágrimas
turvaram a visão de Jean.
– Por que não me contou?
– Contei...
Agora ela estava soluçando, mas o soco seguinte acertou o braço dele com a mesma força.
– Ai – gemeu ele. – O quê? O quê?
– Por que você não me contou? – questionou ela, quase gritando.
Ele agarrou os punhos dela: um soco nas costelas ou no plexo solar poderia deixá-lo sentindo dor durante horas.
– Ezri, por favor. Contar o quê?
Ele se ajoelhou no piso estreito do compartimento, beijando as pontas dos dedos dela enquanto Ezri tentava puxar as mãos de volta. Por fim, Jean soltou-a e baixou
os braços.
– Ezri, se você precisa me bater, pelos deuses, bata. Se é disso que você precisa, não vou lutar nem por um segundo. Nunca. Só... diga o que você quer.
– Como você pôde não me contar? – sussurrou ela.
– Eu conto qualquer coisa que você quiser, só...
– O veneno, Jean.
– Ah – gemeu ele, tombando de lado contra a parede dos fundos da cabine. Ela deslizou com ele. – Ah, merda.
– Seu sacana egoísta, como pôde...
– Drakasha contou nossa história no conselho dos capitães – entendeu Jean, entorpecido. – Você estava lá e ouviu.
– Ouvi dela, e não de você! Como você pôde fazer isso comigo?
– Ezri, por favor, é...
– Você é a única coisa, a única coisa em toda essa porra de oceano que é minha, Jean Tannen – sussurrou ela, abraçando-o com toda a força. – Eu não tenho este navio.
Diabos, nem tenho esta cabine. Não tenho a porra de um tesouro enterrado. Não tenho família nem título, não mais. Até que enfim posso pegar alguma coisa em troca...
– E por acaso eu tenho... um defeito significativo.
– Podemos fazer alguma coisa. Podemos encontrar alguém. Galenos, alquimistas...
– Nós tentamos, Ezri. Alquimistas e envenenadores. Precisamos do antídoto do Stragos ou de uma amostra do veneno dele, para criar um com base nela.
– E eu não merecia saber? E se você...
– Caísse morto aqui uma noite? Ezri, e se um Redentor tivesse atravessado meu crânio com uma espada ou se a tripulação tivesse me assassinado no dia em que nos conhecemos?
– Você não é assim, não é assim que alguém como você morre, eu sei, eu sei...
– Ezri, você viu cada uma das minhas cicatrizes, sabe que eu não sou...
– Isso é diferente. É uma coisa contra a qual você não pode simplesmente lutar.
– Ezri, eu estou lutando. Estou lutando desde o dia em que o Arconte colocou essa porra em mim. Leocanto e eu contamos os dias, entende? Eu ficava acordado à noite
nas primeiras semanas e tinha certeza de que podia sentir o veneno agindo dentro de mim... – Ele engoliu em seco e sentiu as lágrimas escorrendo pelo rosto. – Olha,
quando eu estou aqui ele não existe, entende? Quando estou com você, não consigo senti-lo. Não me importo com ele. Isto é... como um mundo diferente. Como eu poderia
contar a você? Como poderia arruinar isso tudo?
– Eu ajudaria. Acredite...
Ela tirou os braços que estavam em volta do pescoço dele e os dois ficaram ajoelhados na penumbra, encarando-se.
– Eu te amo, Jean – sussurrou ela.
– Eu também te amo, Ezri. – Ele sentiu o coração ficar mais leve; foi como respirar depois de séculos passados embaixo d’água. – Você é diferente de tudo que eu
já conheci.
– Não posso deixar você morrer.
– Não é você... você não pode...
– Eu posso fazer o que quiser. Posso levar você a Tal Verrar. Posso ganhar tempo para você conseguir o que precisa com Stragos. Posso ajudá-lo a chutar o rabo dele.
– Ezri, Drakasha está certa. Se eu não puder conseguir o que preciso com ele... acabar com o Stragos é mais importante...
– Não diga isso.
– Eu farei isso. Faz todo o sentido. Pelo amor dos deuses, eu não quero, mas se não tiver opção, vou me sacrificar por ele.
– Seu desgraçado – sussurrou Ezri, e antes que ele pudesse reagir, ela pôs-se de pé, agarrou-o pela frente da túnica e jogou-o contra a antepara de estibordo. –
Você não vai! Não se nós o derrotarmos, Jean Tannen. Não se nós vencermos.
– Mas se eu não tiver opção...
– Invente uma opção, seu filho da puta. – Ezri segurou-o na antepara com um beijo que era pura alquimia.
As mãos de Jean se enfiaram na túnica dela, descendo até o calção, e soltaram o cinto das armas com o máximo possível de carícias nas áreas não cobertas por ele.
Ela tirou o cinto das mãos dele e jogou-o contra uma das paredes de lona esticada, onde as armas fizeram um estardalhaço enorme e caíram no chão.
– Se não houver um modo, invente um modo, Jean Tannen. Os fracassados não trepam nesta cabine.
Ele pegou-a no colo, sentando-a em seus braços cruzados, e girou-a de modo que as costas dela ficassem grudadas na antepara e os pés, pendurados. Beijou os seios
através da túnica, sorrindo da reação de Ezri. Parou para encostar a cabeça no peito dela, sentiu as batidas rápidas do coração sob a bochecha esquerda.
– Eu teria contado – sussurrou. – De algum modo.
– De algum modo, mesmo. “Homem! Em que rato ele se transforma ao conversar...”
– Ah, não basta eu ter de aguentar isso de você, agora tenho Lucarno para me censurar...
– Jean – interrompeu Ezri, apertando a cabeça dele com mais força contra o corpo. – Fique comigo.
– Como assim?
– Esta vida é boa – murmurou ela. – Você se encaixa bem nela. Nós nos encaixamos bem nela. Depois de cuidarmos do Stragos... fique comigo.
– Eu gosto daqui. Às vezes, acho que poderia ficar para sempre. Mas há... outros lugares que eu poderia mostrar a você. Outras coisas que poderíamos fazer.
– Não sei se eu me ajustaria bem a uma vida em terra...
– A terra tem seus piratas, como o mar – sussurrou ele entre os beijos. – Eu sou um deles. Você poderia...
– Deixe isso para depois. Não precisamos decidir nada agora. Só... pense no que eu falei. Eu não o trouxe aqui para negociações.
– Por que, então?
– Para fazer barulho – sussurrou ela, começando a tirar a túnica dele. – Para fazer muito, muito barulho.
5
Logo antes da mudança de turno da meia-noite, Gwillem emergiu de seu novo alojamento no corredor estreito entre as quatro cabines menores do navio. Com uma carranca,
vestindo apenas sua tanga e um colete colocado às pressas, passou pela porta de seu antigo compartimento com pedaços de flanela enfiados nos ouvidos.
Bateu à porta várias vezes. Como não houve resposta, bateu de novo e berrou:
– Treganne, sua vaca, você vai se ver comigo!
6
– Então os preparativos estão quase completos?
Os dois homens se encontraram nas ruínas sem teto de um casebre de pedras, ao sul da cidade propriamente dita, tão perto dos limites da floresta fantasmagórica que
nem mesmo os bêbados e os viciados em Mira iriam até lá em busca de abrigo. Era quase meia-noite e caía uma chuva forte, quente como cuspe.
– Ela vendeu todo o nosso bagulho esta tarde. Andou pegando água e cerveja feito uma louca. Já tem comida mais do que suficiente. Amanhã, assim que juntarmos todo
mundo que quiser ir embora, tenho certeza de que partiremos.
Jaffrim Rodanov assentiu e, pela centésima vez, olhou ao redor, para a casa arruinada e suas sombras. Qualquer pessoa próxima o bastante para ouvir através do barulho
da chuva teria de estar visível, supôs ele.
– Drakasha disse... coisas perturbadoras no conselho. O que ela contou a vocês sobre os planos para quando voltarem ao mar?
– Nada – respondeu o outro homem. – Curioso, em geral, ela nos dá uma boa semana para estourar a cabeça e esvaziar as bolsas. Ela está com fogo no rabo, e isso é
um mistério para nós.
– Claro. Ela só vai contar depois que vocês estiverem a caminho. Mas ela não disse nada sobre o Arconte? Sobre Tal Verrar?
– Não. Então você acha que ela vai...
– Eu sei o que ela vai fazer. Só não estou totalmente convencido de que seja sensato. – Rodanov suspirou. – Ela pode jogar um monte de merda em cima de todo mundo
que está nos Ventos Fantasmas.
– Então agora você...
– É. – Rodanov entregou uma bolsa, sacudindo-a para que se ouvisse o tilintar das moedas. – Como discutimos. Fique de olhos abertos. Observe tudo. Vou querer um
relatório depois.
– E a outra coisa?
– Está aqui. – Rodanov sopesou uma sacola de pano impermeável, com algo pesado dentro. – Tem certeza de que você consegue escondê-la bem...
– No meu baú. É privilégio de posto, certo? Tem fundo falso.
– Está bom.
Rodanov entregou a sacola.
– E se eu precisar... usar essa coisa...
– Mais uma vez, é como discutimos. O triplo do que paguei a você, esperando para ser dado assim que estiver feito.
– Quero mais do que isso. Quero um lugar a bordo do Soberano.
– Claro. – Rodanov estendeu a mão e os dois se cumprimentaram do modo vadrã tradicional, apertando o antebraço um do outro. – Você sabe que um bom homem sempre será
útil para mim.
– Estou sendo útil, não estou? Só quero ter certeza de que vou ter um local para chamar de lar quando tudo tiver acabado. Independentemente de como acabar.
O sorriso de Utgar era um débil crescente branco contra as sombras.
7
Na direção norte por leste pelo Mar de Bronze, com o úmido vento sul no quarto de estibordo, o Orquídea Venenosa cortava as ondas como um cavalo de corrida a quem
finalmente tivessem dado rédea solta. Era o terceiro dia do mês de Aurim.
Depois de um dia perdido navegando com dificuldade pela passagem tortuosa e cheia de pedras conhecida como Portão do Comerciante, tinham passado mais dois desviando-se
de recifes e ilhas, até que a última corcova coroada por selva e a última fumaça vulcânica dos Ventos Fantasmas tivessem sumido além do horizonte.
– Esse é o jogo – disse Drakasha.
Ela se dirigia ao grupo que havia reunido no tombadilho. Delmastro, Treganne, Gwillem, Utgar, Nasreen, Oscarl e todos os tripulantes especializados: carpinteiros,
fabricantes e reparadores de velas, e assim por diante. Caladão ouvia tudo de seu posto junto ao timão e Locke estava na escada do tombadilho, com Jean e meia dúzia
de marinheiros de folga. Não tinham sido exatamente convidados para escutar o pequeno discurso da capitã, mas também não foram dissuadidos. Não fazia diferença,
já que as notícias corriam por um navio mais depressa do que o fogo.
– Vamos para Tal Verrar – continuou Drakasha. – Vamos deixar que nossos novos amigos, Ravelle e Valora, realizem alguns negócios escusos em terra.
– Cabeça a prêmio – lembrou Caladão.
– Ele está certo – concordou Gwillem. – Com o seu perdão, capitã, mas se aparecermos à vista de Tal Verrar...
– Se o Orquídea Venenosa baixar âncora, sim, eu valho um bocado de dinheiro. Mas, se fizermos alguns ajustes no meu belo navio aqui e ali, alterar um pouquinho a
disposição de velas, trocar as lanternas de popa por algo mais simples e pintar um nome falso em letras enormes...
– Como vamos chamá-lo, capitão? – perguntou o carpinteiro.
– Eu simpatizo com Quimera.
– É uma atitude atrevida – comentou Treganne. – Mas o que o resto de nós tem a ganhar com esses “negócios escusos”?
– Nada que eu queira discutir antes que tudo esteja concluído – respondeu Drakasha. – Mas o ganho para todos nós será substancial. E estamos indo com a bênção de
todo o conselho de capitães.
– Então por que eles não estão aqui, dando uma ajudinha? – questionou Nasreen.
– Porque uma capitã faz melhor que os outros. – Drakasha fez uma reverência exagerada. – Agora, voltem às tarefas ou ao descanso. Espalhem a notícia a todo mundo.
Locke estava à toa alguns minutos depois, sozinho com seus pensamentos junto à amurada de bombordo, quando Jean apareceu ao seu lado. O sol poente davam um tom de
bronze ao mar e ao céu e, mesmo assim, o ar calorento do oceano era revigorante após a atmosfera suarenta dos Ventos Fantasmas.
– Está sentindo alguma coisa estranha? – perguntou Jean.
– O quê, com relação a...? Ah, você está falando do veneno. Não. Não me sinto melhor ou pior do que ultimamente. Mas, ah, tenho certeza de que vou tentar mandar
um recado para você se começar a vomitar salamandras ou algo assim. Presumindo que você consiga ouvir alguém batendo na porta daquela cabine.
– Ah, pelo amor dos deuses. Você também, não. Ezri quase jogou Gwillem por cima da amurada...
– Bom, sejamos honestos, as pessoas costumam notar o tipo de estardalhaço que em geral acompanha um ataque contra o navio...
– E agora você está prestes a sofrer um acidente repentino...
– ... perpetrado por Redentores Jeremitas montados em garanhões. Aonde você arranja tanta energia?
– Ela faz com que seja fácil.
– Ah.
– Ela pediu para eu ficar – revelou Jean, olhando para as mãos.
– No navio? Depois que tudo isso acabar? Presumindo que reste alguma coisa de nós?
Jean assentiu.
– E tenho certeza de que ela queria dizer você também...
– Ah, claro que sim – disse Locke, sem conter totalmente o tom de sarcasmo. – O que você respondeu?
– Eu pedi... Achei que ela pudesse ir conosco.
– Você a ama. – Locke assentiu antes que Jean pudesse responder. – Você não está só passando tempo enquanto estamos aqui. Você despencou mesmo do penhasco, não foi?
– É – sussurrou Jean.
– Ela é boa. Tem inteligência e fogo. Tem um gosto por tirar coisas das pessoas na ponta da espada, o que, para mim, é um ponto a favor. E pelo menos você pode confiar
a retaguarda a ela, numa briga...
– Eu sempre confiei em você...
– Para estar nas suas costas numa briga, é claro. Mas você pode confiar nela para não deixá-lo envergonhado antes que a briga acabe. Vocês dois ganharam o dia no
Martim-Pescador, e não eu. E eu vi como ela levou pancadas; a maioria das pessoas ficaria abraçada à rede durante alguns dias depois daquilo. Ela é teimosa demais
para parar de se mexer. Vocês dois combinam muito bem.
– Você faz parecer que é ela ou você.
– Claro que não precisa ser. Mas as coisas vão mudar...
– Vão mudar, sim. E melhorar. Essa situação não precisa significar o fim de nada.
– Levá-la conosco? Três contra o mundo? Recomeçar a coisa toda, formar de novo uma gangue? Já não tivemos essa conversa?
– Já, e...
– Na ocasião, eu estava fazendo meu melhor papel de escroto bêbado. Eu sei. – Locke pôs a mão esquerda em cima da direita de Jean. – Você está certo. As coisas podem
mudar e melhorar. Nós vimos isso acontecer com outras pessoas; talvez possa acontecer com a gente, para variar. Assim que concluirmos o golpe na Agulha do Pecado,
vamos estar podres de ricos e não seremos mais bem-vindos na sociedade educada de Tal Verrar. Ela poderia ir conosco... ou você poderia ficar com ela...
– Ainda não sei. Nenhum de nós sabe. Decidimos enfrentar a situação ignorando-a durante a viagem.
– Excelente ideia.
– Mas eu quero...
– Escute. Quando chegar a hora, você vai fazer a escolha necessária e não deve pensar em mim, entendeu? Vocês combinam muito. Talvez você pudesse encontrar coisa
melhor... – Locke sorriu para que Jean não levasse aquilo a sério – ... mas sei com certeza que ela não poderia. Jamais. – Ele apertou a mão de Jean. – Estou feliz.
Você conquistou uma coisa neste beco sem saída em que Stragos nos enfiou. Segure com força.
Não havia mais nada a dizer, por isso ficaram ouvindo os gritos das gaivotas que circulavam no alto e contemplaram o sol afundar no horizonte distante, inflamando
o mar. Até que passos pesados soaram na escada do tombadilho atrás deles.
– Meus garotos – falou Drakasha, passando os braços pelos ombros dos dois. – Exatamente com quem eu queria falar. Estou tirando-os do turno de serviço da tarde com
todos os outros Vermelhos.
– Ah... muita generosidade da sua parte – comentou Locke.
– Não é, não. De agora em diante, vocês estão emprestados ao carpinteiro durante as tardes. Já que vamos a Tal Verrar por causa de vocês, a maioria das alterações
no Orquídea serão responsabilidade dos dois. Pintar, esculpir, rizar... Vocês vão ficar bem ocupados.
– Uau, parece um modo absolutamente fantástico de passar a viagem.
Não era.
8
– Terra à vista! – gritou o vigia no mastro de proa no início da tarde. – Terra e fogo a um ponto a estibordo!
– Fogo? – Locke ergueu o olhar da sua mão no jogo que havia começado no porão do castelo. – Merda!
Largou as cartas no convés, abrindo mão da aposta de 7 solaris para a rodada: quase um ano de salário para um trabalhador verrari honesto. Eram apostas comuns nos
jogos após o pagamento das cotas. Havia muitas moedas circulando pelo navio, já que tinham saído de Porto Pródigo com tanta pressa.
Ao sair do porão do castelo, quase trombou com Delmastro.
– Tenente, aquilo é Tal Verrar?
– Só pode ser.
– E o fogo? É verdade?
Fogo na cidade poderia significar desastre ou guerra civil. Caos. Stragos podia já estar morto, sitiado ou até vitorioso, portanto não precisando mais de Locke ou
Jean.
– É dia 21, Ravelle.
– Eu sei que droga de dia... Ah. Ah.
O vigésimo primeiro dia de Aurim: a Festa Iono, o grande cortejo do Senhor das Águas Revoltas. Locke suspirou de alívio. Longe dos ritmos usuais da cidade, havia
quase esquecido o feriado. Os verraris agradeciam a influência de Iono na sorte da cidade queimando navios antigos enquanto milhares de bêbados faziam uma confusão
no cais. Locke só vira a festa das sacadas da Agulha do Pecado, mas era uma ocasião animada e ficaria mais fácil entrar na cidade; haveria mil coisas ocupando os
guardas.
– Todos os tripulantes! – soou um grito na popa. – Todos os tripulantes no convés central! A capitã quer falar!
Locke sorriu. Sempre que ocorria uma daquelas chamadas durante um carteado, o jogo precisava parar e todo mundo podia pegar de volta o dinheiro que houvesse apostado.
Seus 7 solaris logo voltariam para casa.
Os tripulantes se reuniram ruidosamente no poço do navio e, depois de alguns minutos, foram silenciados por um gesto de Drakasha. A capitã pôs um barril vazio ao
lado do mastro principal e Delmastro saltou em cima, usando um sobretudo respeitável tirado do depósito de roupas finas do navio.
– Pelo resto da noite – gritou a tenente –, nós somos o Quimera e nunca ouvimos nem falar do Orquídea Venenosa. Eu sou a capitã! Estarei no tombadilho se alguém
precisar de alguma coisa. E Drakasha vai ficar na cabine dela, a não ser que as coisas tenham ido para o inferno. Se outro navio nos saudar, eu é que vou responder.
Vocês vão fingir que não falam terim. Nossa tarefa é deixar nossos dois amigos em terra, para um serviço que será importante para todos nós. Ravelle, Valora, vamos
enviá-los no mesmo bote que vocês doaram à nossa causa, tantas semanas atrás. – Ela voltou a falar só depois que as conversas cessaram. – Devemos baixar âncora nas
próximas duas horas. Se vocês não retornarem ao nascer do sol, este navio vai embora e nunca mais chegaremos a menos de 800 quilômetros desta cidade.
– Entendido – disse Locke.
– Assim que a âncora estiver baixada, quero o dobro de vigias no alto. Preparem redes-navalhas nos dois costados para serem içadas rapidamente, mas deixem embaixo.
Coloquem alabardas nas laterais, encostadas nos corrimões, e sabres a postos junto aos dois mastros. Se um barco da alfândega ou alguma outra coisa carregando pessoas
uniformizadas tentar fazer uma visita, vamos convidá-los a bordo e detê-los durante a noite. Se algo a mais nos incomodar, vamos repelir a abordagem, botar os panos
e fugir feito o diabo.
Houve um murmúrio geral de aprovação.
– E é só. Preparados para Tal Verrar. Caladão, coloque-nos a cerca de 1,5 quilômetro das Galerias de Esmeralda. E icem uma bandeira cinza de Ashmira na amurada de
popa.
Ashmira, apesar de não ter uma frota mercante ou militar própria, fazia muitos negócios com registros de conveniência para contrabandistas, caçadores de recompensa
e mercadores que desejavam escapar de tarifas. Ninguém olharia duas vezes para eles com aquela bandeira. E, o mais importante, ninguém se aproximaria apenas para
jogar conversa fora com conterrâneos longe da pátria. Locke aprovou a ideia. Ancorando nas águas a sudeste da cidade, eles ficariam a uma curta distância da Castellana,
logo poderiam chegar a Stragos sem ficar muito perto das marinas apinhadas ou do ancoradouro principal.
– Ei – disse Utgar, dando um tapa nas costas de Locke e Jean. – Vocês dois, em que diabos vão se meter? Querem um guarda-costas?
– Ravelle é o único guarda-costas de que preciso – afirmou Jean com um sorriso enviesado.
– É justo. Isso preciso admitir. Mas onde vocês vão enfiar o nariz, hein? Alguma coisa perigosa?
– Provavelmente não – respondeu Locke. – Olha, Drakasha vai contar tudo, provavelmente mais cedo do que você imagina. Por enquanto, digamos que vamos realizar uma
tarefa comum.
– Dizer olá à vovó – completou Jean. – Pagar as dívidas de jogo do titio. Pegar três pães e um saco de cebolas no Mercado Noturno.
– Ótimo, ótimo. Guardem seus segredos. Vamos ficar aqui nos entediando, certo?
– Não é provável – replicou Locke. – Esse navio é cheio de surpresinhas, não é?
– É verdade – concordou Utgar, dando uma risadinha. – É bem verdade. Bom, tenham cuidado. Que os olhos dos deuses estejam sobre vocês e coisas desse tipo.
– Obrigado. – Locke coçou a barba, depois estalou os dedos. – Diabos, quase esqueci uma coisa. Jerome, Utgar, vejo vocês daqui a pouco.
Foi correndo para a popa, desviando-se de grupos do Turno Azul e de Vermelhos entediados ajudando a carregar armas tiradas dos armários. Subiu os degraus até o tombadilho
em dois saltos rápidos, deslizou descendo pelo corrimão de outra escada e bateu com força na porta da cabine de Drakasha.
– Está aberta! – gritou ela.
– Capitã. – Locke fechou a porta depois de entrar. – Preciso pegar emprestado o dinheiro que estava no meu baú de viagem.
Drakasha estava deitada em sua rede com Paolo e Cosetta, lendo para eles um livro pesado que se parecia terrivelmente com o Léxico prático do bom marinheiro.
– Tecnicamente, aquele dinheiro foi dividido em cotas – disse ela. – Mas posso lhe dar o equivalente, tirado da bolsa do navio. Todo ele?
– Duzentos e cinquenta solaris devem bastar. Ah. Ele, ah, não vai voltar comigo.
– Fascinante. Esta é uma definição de “emprestado” que não me compele exatamente a me levantar da rede. Quando estiver saindo...
– Capitã, Stragos é apenas metade dos negócios desta noite. Preciso manter Requin ronronando também. Caso contrário, ele pode esmagar esse plano como um inseto.
Além disso, se eu inflar o ego dele, há um item útil que posso arrancar de suas mãos, agora que estou pensando.
– Então você precisa de um suborno.
– Entre amigos, nós chamamos isso de consideração. Vamos lá, Drakasha. Pense nisso como um investimento para o resultado que desejamos.
– Em nome da minha paz e do meu silêncio, tudo bem. Estará tudo preparado para quando você sair do navio.
– A senhora é muito...
– Não sou gentil nem de longe. Saia.
9
Os dois estavam fora havia sete semanas, mas parecia uma vida inteira.
Parado junto à amurada de bombordo, olhando de novo para as ilhas e torres de Tal Verrar, Locke sentia a ansiedade e a melancolia se mesclando como bebidas. As nuvens
estavam baixas e escuras sobre a cidade, refletindo a luz laranja do incêndio festivo que ardia no ancoradouro principal.
– Está preparado? – perguntou Jean.
– Preparado e suando bastante – respondeu Locke.
Usavam roupas finas e capas de linho com capuzes, todas emprestadas. As capas eram quentes demais, mas não tão raras nas ruas de muitos bairros; significavam que
a pessoa devia estar armada e era melhor não incomodá-la. Ele esperava que as vestimentas a mais os protegessem de algum vislumbre casual de alguém inconveniente
que pudesse reconhecê-los.
– Baixar! – gritou Oscarl, encarregado do grupo que punha o bote na água.
Com os estalos de cordas e moitões, a pequena embarcação balançou para a escuridão e bateu na água. Utgar desceu pela rede de abordagem para soltar tudo e preparar
os remos. Locke estava prestes a descer quando Delmastro segurou seu braço.
– Não importa o que acontecer, traga-o de volta – sussurrou ela.
– Não vou fracassar. Nem ele.
– Zamira mandou lhe dar isso.
Delmastro entregou-lhe uma pesada bolsa de couro, atulhada de moedas. Locke assentiu em agradecimento e enfiou-a num bolso interno da capa.
Enquanto descia lentamente para o bote, Locke passou por Utgar, que fez uma saudação animada e continuou subindo. Locke chegou ao bote, mas continuou agarrado à
rede de abordagem para poder ficar de pé. Olhou para cima e, à luz das lanternas do navio, viu Jean e Ezri se despedindo com um beijo. Ela sussurrou alguma coisa
para ele e os dois se separaram.
– Isso é infinitamente preferível à última vez em que dividimos este bote sozinhos – comentou Jean no momento em que os dois se acomodaram no banco e encaixaram
os remos nos toletes.
– Você disse a ela seu nome de verdade, não foi?
– O quê? – Os olhos de Jean se arregalaram e ele fechou a cara. – Isso é uma suposição?
– Não sou muito bom em leitura labial, mas a última coisa que ela disse a você tinha uma sílaba, e não três.
– Ah. – Jean suspirou. – Bom, não é que você é mesmo um sacana esperto?
– Sou, em todos os sentidos.
– Eu disse e não me arrependo...
– Pelos deuses, não estou com raiva, Jean. Só estou me exibindo.
Os dois começaram a remar juntos, fazendo força, impelindo o bote pela água escura e agitada em direção ao canal entre o Bairro Galezzo e as Galerias de Esmeralda.
Minutos passaram-se em silêncio; os remos estalavam, a água espirrava e o Orquídea Venenosa ficava para trás, a brancura das velas enfunadas sumindo no escuro até
que tudo o que restava era uma débil constelação das luzes das lanternas.
– O alquimista – disse Locke do nada.
– Hein?
– O alquimista de Stragos. É a chave para essa confusão toda.
– Se com “chave” você quer dizer “causa”...
– Não, escute. Qual é a probabilidade de Stragos acidentalmente deixar conosco os vidros que ele usa ou nos dar o antídoto? Ou deixar uma dose escorregar do bolso?
– Pergunta fácil: totalmente impossível.
– Certo. Então não adianta esperar que ele cometa um erro; precisamos fazer contato com esse alquimista.
– Ele pertence ao séquito pessoal do Arconte. Talvez seja a pessoa mais importante a serviço de Stragos, se o Arconte tem o hábito de fazer isso com frequência.
Duvido que ele tenha uma casa conveniente, isolada, onde a gente possa lhe fazer uma visita. Ele provavelmente mora no Mon Magisteria.
– Mas tem de haver alguma coisa que a gente possa fazer. O sujeito deve ter um preço. Pense no que temos na Agulha do Pecado ou no que poderíamos conseguir com a
ajuda de Drakasha.
– Admito que é a melhor ideia até agora – comentou Jean. – O que não quer dizer muita coisa.
– Olhos abertos, ouvidos atentos e esperança no Guardião Torto – murmurou Locke.
Naquele lado da cidade, o porto interno de Tal Verrar estava apinhado de gôndolas alugadas, embarcações de lazer e barcas. Os ricos – e os não tão ricos que não
se importavam se acordariam sem um centira no dia seguinte – migravam dos crescentes profissionais para os bares e cafés das Galerias de Esmeralda. Locke e Jean
se misturaram ao fluxo e remaram contra a corrente principal, desviando-se de embarcações maiores e trocando vulgaridades da mais alta qualidade com os clientes
que gritavam, zombavam e arremessavam garrafas de algumas das barcas mais agitadas.
Enfim passaram entre o Crescente dos Artífices e o Crescente dos Alquimistas, admirando as vívidas esferas de fogo azuis e verdes que os alquimistas estavam atirando,
presumivelmente em apoio à festa (mas nunca se sabia), a 12 ou 15 metros de altura, de suas docas particulares. O vento vinha da direção contrária de Locke e Jean,
que se viram perseguidos por uma chuva de fagulhas com cheiro de enxofre e pedacinhos de papel queimado.
Seu destino era bastante fácil de descobrir; na extremidade noroeste da Castellana ficava a gruta de entrada para as cavernas de Vidrantigo de onde tinham emergido
com Merrane na primeira noite em que ela os levara ao Arconte.
A segurança no desembarcadouro particular do Arconte havia aumentado. Enquanto Locke e Jean percorriam a última curva para entrar na cavidade de vidro prismático,
uma dúzia de Olhos levantou balestras e se ajoelhou atrás de escudos de ferro curvos com 1,5 metro de altura, presos ao chão para protegê-los. Atrás deles, um esquadrão
de soldados verraris comuns cuidava de uma balista, uma pequena arma de cerco capaz de despedaçar o bote deles com um quatrelo de 5 quilos. Um Olho puxou a corrente
que saía de uma abertura no muro, talvez para fazer soar um alarme acima.
– O uso deste atracadouro é proibido! – gritou o oficial.
– Por favor, ouça com atenção! – berrou Locke. O rugido surdo da cachoeira lá em cima ecoava através da caverna e não havia espaço para erro. – Temos uma mensagem
para a dama à espera.
O barco bateu na borda do atracadouro. Era desconcertante, pensou Locke, ter tantas balestras dedicadas a intimidá-los. Mas o Olho se aproximou e se ajoelhou ao
lado dele. Sua voz ecoou metálica através dos buracos em sua máscara sem feições.
– Vocês estão aqui para falar com a dama à espera?
– Estamos – respondeu Locke. – Diga a ela exatamente o seguinte: “Duas fagulhas foram acesas e duas fogueiras brilhantes retornaram.”
– Vou dizer. Enquanto isso...
Depois de pousar cuidadosamente as balestras, meia dúzia de Olhos saiu de trás dos escudos para tirar Locke e Jean do bote. Os dois foram imobilizados e revistados;
as adagas nas botas foram confiscadas, assim como o saco de ouro que Locke trazia. Um Olho o examinou e entregou-o ao oficial.
– Solaris, senhor. É para confiscar?
– Não. Leve-os à câmara da dama à espera e devolva isso a eles. Se o dinheiro por si só pudesse matar o Protetor, o Priori já teria feito isso, certo?
10
– Vocês fizeram o que com o Mensageiro Vermelho?
Maxilan Stragos estava com o rosto rubro de vinho, esforço e surpresa. As vestes do Arconte eram as mais suntuosas que Locke já vira, uma capa de seda verde-piscina
com listras verticais e tiras de brocado de ouro, sobre um casaco e um calção que também reluziam em ouro. Usava anéis em todos os dedos, engastados alternadamente
com rubis e safiras, muito próximas das cores de Tal Verrar. Ele estava diante de Locke e Jean numa câmara forrada de tapeçarias no primeiro andar do Mon Magisteria,
acompanhado por dois Olhos. Locke e Jean não tinham recebido cadeiras, mas também não foram amarrados. Nem postos na câmara do suadouro.
– Nós, ahn, o usamos para dar início ao contato bem-sucedido com os piratas.
– Perdendo-o para eles.
– De certa forma, sim.
– E Caldris está morto?
– Há algum tempo.
– Agora diga, Lamora, exatamente que tipo de reação você esperava de mim ao trazer essas notícias?
– Bom, a porra de um ataque cardíaco seria bom, mas vou aceitar um pouco de paciência enquanto explico o restante.
– Sim, faça isso.
– Quando o Mensageiro foi tomado pelos piratas, todos nós a bordo fomos feitos prisioneiros.
Locke havia decidido que os detalhes específicos das injúrias, da equipe do esfregão e assim por diante poderiam ser deixados fora da história.
– Por quem?
– Drakasha.
– Zamira está viva, é? Com o velho Orquídea Venenosa?
– É. Em ótimas condições e, para dizer a verdade, está ancorado a uns 3 quilômetros, ah... – Ele apontou com um dedo na direção que esperava ser o sul – ... para
lá.
– Ela ousa fazer isso?
– Ela está praticando uma técnica obscura chamada “disfarce”, Stragos.
– Então agora vocês... fazem parte da tripulação dela?
– Sim. Nós, que fomos tirados do Mensageiro, fomos presenteados com a oportunidade de provar nossas intenções abordando a presa seguinte de Drakasha. Você não verá
o Mensageiro de novo, pois ele foi vendido a uma espécie de... ahn... barão dos desmanches. Mas pelo menos agora estamos em posição de lhe dar o que você quer.
– Estão? – A expressão no rosto de Stragos passou da irritação para a pura cobiça num piscar de olhos. – Que... revigorante ouvir esse informe, em vez de vulgaridades
e reclamações.
– As vulgaridades e as reclamações são meus talentos especiais. Mas ouça: Drakasha concordou em provocar o pânico. Se recebermos nosso antídoto esta noite, no fim
da semana você terá relatórios de ataques em todos os lugares. Vai ser como jogar um tubarão numa casa de banhos pública.
– O que você quer dizer com “Drakasha concordou”?
Improvisar um motivo fictício para Zamira era muito simples: Locke poderia ter feito isso dormindo.
– Eu contei a verdade a ela. O resto foi fácil. Assim que nosso serviço estiver concluído, você mandará sua marinha para o sul, para encher de porrada cada pirata
dos Ventos Fantasmas que encontrar. Exceto os que começaram a confusão, que, convenientemente, caçarão em outro lugar por alguns meses. E quando você tiver encerrado
sua fantástica guerrinha, ela voltará para casa e descobrirá que os antigos rivais estão no fundo do oceano. Que infelicidade!
– Sei. Eu preferiria que ela não soubesse das minhas verdadeiras intenções...
– Se houver algum sobrevivente nos Ventos Fantasmas, ela não vai poder falar com eles sobre o papel que representou, vai? E se não houver sobreviventes... com quem
ela poderá falar?
– Faz sentido – murmurou Stragos.
– No entanto – completou Jean –, se nós dois não retornarmos logo, o Orquídea vai para o mar aberto e você perderá sua única chance de usá-lo.
– E terei desperdiçado o Mensageiro, manchado minha reputação e suportado a companhia de vocês em troca de nada. Sim, Tannen, tenho plena consciência de todos os
ângulos do que você sem dúvida acha que é um argumento terrivelmente esperto.
– E o nosso antídoto, então?
– Vocês ainda não mereceram a cura final. Mas as consequências serão adiadas de novo.
Stragos apontou para um dos Olhos, que fez uma reverência e saiu da sala. Voltou alguns instantes depois e manteve a porta aberta para duas pessoas. A primeira era
o alquimista pessoal de Stragos, carregando uma salva de prata com uma cúpula. A segunda era Merrane.
– Nossas duas fogueiras brilhantes retornaram – disse ela.
Usava um vestido de mangas compridas no mesmo tom verde-piscina da capa de Stragos e sua cintura esguia era acentuada por uma apertada faixa de brocado de ouro.
Trançada no cabelo, havia uma guirlanda de botões de rosa vermelhos e azuis.
– Kosta e De Ferra merecem outro gole temporário de vida, minha cara.
Ele estendeu o braço e ela se aproximou, segurando seu cotovelo com o jeito leve e amigável de uma acompanhante, e não de uma amante.
– É mesmo?
– Conto a você quando voltarmos aos jardins.
– Algum tipo de comemoração da Festa Iono, Stragos? Você nunca me pareceu do tipo que gosta de comemorar – comentou Locke.
– Só por causa dos meus oficiais – respondeu Stragos. – Se eu ofereço festas de gala para eles, o Priori espalha boatos de que sou esbanjador. Se não faço nada,
eles sussurram que sou austero e sem coração. De qualquer modo, meus oficiais sofrem muito mais em sociedade quando não têm funções particulares das quais possam
excluir seus rivais ciumentos. Assim, eu dou uma utilidade aos meus jardins, no mínimo.
– Choro de novo por suas dificuldades – ironizou Locke. – Forçado por circunstâncias cruéis a dar festas em jardins.
Stragos sorriu e fez um gesto para o alquimista. O sujeito tirou a cúpula da salva de prata, revelando duas taças de cristal branco opaco, cheias do familiar líquido
âmbar claro.
– Esta noite, podem tomar o antídoto em cidra de pera – falou o Arconte. – Em nome dos velhos tempos.
– Ah, seu velho sacana engraçadinho.
Locke passou uma taça para Jean, esvaziou a sua em vários goles e depois jogou-a longe.
– Pelos céus! Escorregou.
A taça de cristal bateu no piso de pedras com um tinido alto, sem se estilhaçar. Quicou uma vez e rolou para um canto, completamente intacta.
– Um presentinho dos Mestres Alquimistas. – Stragos pareceu se divertir bastante. – Não é Vidrantigo, mas é a coisa certa para negar aos meus convidados grosseiros
suas satisfações mesquinhas.
Jean terminou de tomar sua cidra e pousou a taça na bandeja do careca. Um dos Olhos pegou a outra taça e, quando as duas estavam cobertas de novo pela cúpula de
prata, Stragos dispensou o alquimista com um aceno.
– Eu... ahn... – começou Locke, mas o sujeito já havia passado pela porta.
– O negócio desta noite está concluído – avisou Stragos. – Merrane e eu precisamos voltar à festa de gala. Mestre Kosta, mestre de Ferra, vocês têm a parte mais
importante de sua tarefa pela frente. Me agradem... e talvez eu faça tudo isso valer a pena para vocês.
Stragos levou Merrane até a porta, virando-se apenas para falar com um dos seus Olhos.
– Tranque-os aqui durante dez minutos. Depois, os acompanhem de volta ao bote. Devolvam as coisas deles e garantam que tenham ido embora. Depressa.
– Eu... mas... maldição – praguejou Locke bruscamente quando a porta se fechou atrás dos dois Olhos.
– O antídoto – disse Jean. – É só isso que importa agora. O antídoto.
– Acho que sim. – Locke encostou a cabeça numa das paredes de pedra da sala. – Que os deuses nos acudam. Espero que nossa visita ao Requin corra melhor do que esta.
11
– É a entrada de serviço, seu filho da mãe ignorante!
O leão de chácara da Agulha do Pecado surgiu do nada. Deu uma joelhada em Locke, tirando seu fôlego com uma pancada cruel, e jogou-o no pátio de cascalho iluminado
por lampiões localizado atrás da torre. Locke nem havia entrado, meramente se aproximara da porta, pois não vira alguém que pudesse subornar com facilidade para
ter uma audiência com Selendri.
– Uuf – fez ele ao ser cumprimentado pelo chão.
Jean, guiado mais por um reflexo leal do que pelo pensamento racional, meteu-se na briga no momento em que o homem avançou para continuar a bater em Locke. O leão
de chácara rosnou e virou o punho de modo casual demais na direção de Jean, que o agarrou com a mão direita, depois quebrou várias costelas dele usando a esquerda.
Antes que Locke pudesse dizer qualquer coisa, Jean chutou o sujeito na virilha e lhe deu uma rasteira.
– Urrrrgh, ai – gemeu o homem, batendo no chão.
O próximo funcionário a passar pela porta tinha uma faca; Jean quebrou o punho que a segurava e fez o sujeito ricochetear na parede da Agulha do Pecado como uma
bola numa quadra. Os próximos seis ou sete funcionários que os cercaram, infelizmente, tinham espadas curtas ou balestras.
– Vocês não têm ideia de com quem estão mexendo – disse um deles.
– Na verdade – soou um áspero sussurro feminino na entrada de serviço –, suspeito de que eles têm.
Selendri usava um vestido de noite, de seda azul e vermelha, que devia custar o mesmo que uma carruagem dourada. Uma manga comprida cobria seu braço arruinado e
os músculos fortes e a pele lisa do outro braço estavam desnudos, destacados por pulseiras de ouro e Vidrantigo.
– Nós pegamos os dois tentando entrar pela porta de serviço, senhora – alegou um dos funcionários.
– Vocês nos pegaram chegando perto da porta de serviço, seu filho da mãe imbecil. – Locke se ergueu até ficar de joelhos. – Selendri, nós precisamos...
– Tenho certeza de que sim – interrompeu ela. – Soltem-nos. Eu cuido deles. Ajam como se nada tivesse acontecido.
– Mas ele... pelos deuses, acho que ele quebrou minhas costelas – chiou o primeiro homem com quem Jean havia lidado. O outro estava inconsciente.
– Se você concordar que nada aconteceu, eu faço com que você seja levado a um galeno. Aconteceu alguma coisa?
– Aaahnn... não. Não, senhora, nada aconteceu.
– Ótimo.
Enquanto ela se virava para voltar à área de serviço, Locke se levantou cambaleando, apertando a barriga, e estendeu a mão para segurá-la suavemente pelo ombro.
Ela girou bruscamente em sua direção.
– Selendri – sussurrou Locke –, não podemos ser vistos nos andares dos jogos. Há...
– Indivíduos poderosos chateados com sua incapacidade de lhes dar uma oportunidade de revanche?
Ela afastou a mão dele.
– Desculpe. Sim, é exatamente isso.
– Durenna e Corvaleur estão no quinto andar. Você e eu podemos pegar o armário ascensor no terceiro.
– E Jerome?
– Fique aqui na área de serviço, Valora.
Ela conduziu os dois pela entrada de serviço para que garçons, deliberadamente ignorando os homens feridos no chão, pudessem continuar recebendo as gorjetas da noite
dos menos inibidos da cidade.
– Obrigado – agradeceu Jean, ocupando um lugar meio escondido atrás de altas estantes de madeira cheias de pratos sujos.
– Vou dar instruções para eles o ignorarem – avisou Selendri. – Desde que você ignore o meu pessoal.
– Vou ser um santo.
Selendri agarrou um funcionário de passagem, que estava sem bandeja, e sussurrou algumas ordens rápidas em seu ouvido. Locke captou as palavras “sanguessuga de cachorro”
e “segure o pagamento deles”. Em seguida, acompanhou Selendri pela multidão do andar térreo, encolhido como se tentasse sumir embaixo da roupa, rezando para que
a única pessoa que o reconhecesse fosse Requin.
12
– Sete semanas – disse o Senhor da Agulha do Pecado. – Selendri tinha certeza de que nunca mais veríamos vocês.
– Cerca de três semanas de ida e três de volta – explicou Locke. – Mal passamos uma semana em Porto Pródigo.
– Você certamente parece ter ficado um bom tempo no convés. Trabalhando para merecer a passagem?
– Os marinheiros comuns atraem muito menos atenção que os passageiros pagantes.
– Suponho que sim. Essa é a cor natural do seu cabelo?
– Acho que é. Se o senhor mudasse tanto quanto eu, começaria a perder a noção.
As amplas portas da sacada no lado leste do escritório de Requin estavam abertas, a não ser por uma fina tela que mantinha os insetos do lado de fora. Através dela,
Locke podia ver os dois navios transformados em pira no porto, cercados por centenas de pontos de luz de lanternas que deviam ser espectadores em embarcações menores.
– Este ano vão queimar quatro – informou Requin, notando o que atraíra a atenção de Locke. – Um para cada estação. Acho que estão terminando com o terceiro. O quarto
deve se inflamar logo, e então tudo vai ficar bem. Menos pessoas nas ruas e mais tumulto nas casas de tavolagem.
Locke assentiu e se virou para admirar o que Requin havia feito com o conjunto de cadeiras que ele encomendara. Tentou afastar o sorriso de satisfação do rosto e
conseguiu parecer apenas um pouquinho admirado. As quatro réplicas se encontravam em volta de uma mesa de pernas finas do mesmo estilo, onde tinham sido postas garrafas
de vinho e um artístico arranjo de flores.
– Isso é...
– Sim, uma réplica, infelizmente. Seu presente me levou a mandar fazê-la.
– Meu presente. Por falar nisso... – Locke enfiou a mão embaixo da capa, pegou a bolsa e colocou em cima da mesa de Requin.
– O que é isso?
– Uma consideração. Em Porto Pródigo, há uma quantidade enorme de marinheiros com mais moedas do que bom senso no carteado.
Requin abriu a bolsa e ergueu uma sobrancelha.
– Que bonito. Você está se esforçando mesmo para não me chatear, não é?
– Quero meu emprego. Agora mais do que nunca.
– Vamos discutir a sua tarefa, então. Esse tal de Calo Callas ainda existe?
– Sim. E está lá.
– Então por que, diabos, você não o trouxe de volta?
– Ele está totalmente louco.
– Então é inútil...
– Não. Não é inútil. Ele tem mania de perseguição, Requin. Está alucinando. Imagina que o Priori e a Guilda dos Artífices têm agentes em cada canto de Porto Pródigo,
em cada navio, em cada taverna. Ele mal sai de casa. – Locke sentiu prazer em conjurar tão rapidamente uma vida imaginária. – Mas o que ele faz dentro daquela casa!
O que ele tem! Centenas de fechaduras. Instrumentos mecânicos. Uma forja particular e foles. Ele continua insaciável como nunca em relação à sua profissão. É tudo
o que lhe resta no mundo.
– Como os restos de um louco podem ser significantes? – questionou Selendri. Ela estava parada entre duas das exóticas pinturas a óleo de Requin, encostada na parede
com os braços cruzados.
– Eu experimentei todo tipo de coisas quando achei que conseguiria abrir o cofre desta torre. Ácidos, óleos, abrasivos, diferentes tipos de fechaduras e ferramentas.
Eu me considero um bom avaliador de mecanismos e de arrombamentos. E as coisas que esse sacana é capaz de fazer, as coisas que ele constrói e inventa, mesmo enlouquecido...
– Locke espalmou as mãos e deu de ombros num gesto teatral. – Pelos deuses!
– O que será necessário para trazê-lo aqui?
– Ele quer segurança. Não é avesso a sair de Porto Pródigo. Diabos, ele está ansioso por isso. Precisa sentir que alguém poderoso está disposto a colocá-lo debaixo
da asa.
– Ou você poderia simplesmente dar uma pancada na cabeça dele e trazê-lo acorrentado – interveio Selendri.
– E me arriscar a perder a cooperação dele para sempre? Pior, lidar com ele numa viagem de três semanas depois que ele acordar? A mente do sujeito é delicada feito
vidro, Selendri. Eu não recomendaria pancadas na cabeça.
Locke estalou os nós dos dedos: era hora de adoçar o discurso.
– Olha, vocês querem esse homem em Tal Verrar. Ele vai enlouquecê-los, talvez vocês até precisem providenciar algum tipo de enfermeiro ou cuidador, e sem dúvida
terão de escondê-lo dos artífices, mas as coisas que ele poderia fazer valeriam cem vezes isso. É o melhor arrombador que eu já vi. Ele só precisa acreditar que
eu de fato represento o senhor.
– O que você sugere?
– Você tem um sinete de cera nos seus livros-caixas e nas cartas de crédito. Eu já o vi, ao fazer meus depósitos. Coloque-o num pedaço de pergaminho...
– E me incriminar? Não mesmo.
– Já pensei nisso. Não escreva um nome no pergaminho. Não date, não assine, nem acrescente seu “R” de sempre. Só escreva algo agradável e não específico. “Estou
ansioso para oferecer conforto e hospitalidade” ou “Espero toda a devida consideração”.
– Bobagens banais. Sei.
Requin pegou um pergaminho numa gaveta da mesa e rabiscou algumas frases com a pena do tinteiro. Depois de passar um dessecante alquímico na carta, encarou Locke.
– E esse artifício pueril vai ser suficiente?
– Devido ao seu medo, Callas é uma criança. Ele vai agarrar isso feito um bebê agarrando um peito.
– Ou um homem adulto – murmurou Selendri.
Requin sorriu. Usando luvas como sempre, tirou o cilindro de vidro de um pequeno lampião sobre a mesa. Com a vela, derreteu um bastão de cera preta, pingando algumas
gotas no pedaço de pergaminho. Por fim, tirou um pesado anel de sinete de um bolso do casaco e pressionou-o contra a cera.
– A sua isca, mestre Kosta. – Ele entregou o pergaminho. – O fato de ter se esgueirado pela entrada de serviço e tentar se esconder embaixo desta capa sugere que
não está planejando ficar muito tempo na cidade.
– Volto para o sul em um ou dois dias, assim que meus colegas tripulantes terminem de descarregar a... carga completamente legítima e adquirida com responsabilidade
em Porto Pródigo.
Essa era uma mentira segura: com dezenas de navios descarregando na cidade todo dia, pelo menos alguns deviam estar trazendo mercadorias ilegais.
– E você vai trazer Callas de volta.
– Vou.
– Se o sinete não for suficiente, prometa a ele qualquer outra coisa razoável. Dinheiro, drogas, bebidas, mulheres. Homens. As duas coisas. E se não bastar, aceite
a sugestão de Selendri e deixe que eu me preocupe com o estado mental dele. Não volte com as mãos abanando.
– Como o senhor quiser.
– E quanto a você e o Arconte? Com Callas na mão, você provavelmente voltará à tal trama para o meu cofre...
– Não sei. Vou levar seis ou sete semanas para voltar. Por que o senhor não pensa em como posso servi-lo da melhor forma nesse tempo? Qualquer plano que o senhor
considere adequado. Se quiser que eu o entregue ao Arconte como agente duplo, tudo bem. Se quiser que eu diga ao Arconte que ele morreu ou algo assim... simplesmente
não sei. Minha cabeça dói. O senhor é o homem que tem a visão de tudo. Estou ansioso por novas ordens.
– Se você puder permanecer tão educado assim – disse Requin, sopesando a bolsa –, me traga o Callas e continue a ficar satisfeito com sua posição no esquema geral...
talvez você tenha um futuro a meu serviço.
– Agradeço.
– Vá. Selendri vai levá-lo. Ainda tenho uma noite movimentada pela frente.
Locke deixou transparecer um pouco de seu alívio real. Essa teia de mentiras estava crescendo de modo tão complexo, tão ramificado e delicado que um peido de mariposa
poderia desintegrá-la. Mas as duas reuniões da noite haviam alcançado o que ele e Jean necessitavam.
Mais dois meses de vida obtidos com Stragos e mais dois meses de tolerância de Requin. Agora só precisavam voltar ao bote sem complicações e remar até a segurança.
13
– Estamos sendo seguidos – alertou Jean enquanto atravessavam o pátio de serviço da Agulha do Pecado.
Iam voltar pelo labirinto de becos e cercas vivas por onde tinham vindo, pelo pouco usado quarteirão de jardins e caminhos secundários por trás das casas de tavolagem
menores. O bote estava amarrado num píer das docas internas da Grande Galeria; eles haviam subido ao topo dos Degraus de Ouro por escadas precárias, ignorando as
caixas de ascensão e as ruas em que milhares de complicações poderiam estar à espreita.
– Onde estão?
– Do outro lado da rua. Vigiando o pátio. Mexeram-se quando nos mexemos, agora mesmo.
– Merda – praguejou Locke. – Gostaria que esse monte de escrotos tivesse só um par de bagos, para eu poder chutá-lo toda hora.
– Na beira do pátio, vamos sair correndo de repente, sem a mínima sutileza – orientou Jean. – Esconda-se. Quem correr atrás de nós...
– Vai ter que explicar umas coisas do modo mais difícil.
No fundo do pátio, havia uma cerca viva com o dobro da altura de Locke. Uma passagem em arco ladeada por caixotes e barris vazios levava a uma região atrás dos Degraus
de Ouro, escura e pouco usada. A cerca de 10 metros dela, Locke e Jean saíram correndo ao mesmo tempo.
Passaram pelo arco e entraram no beco sombreado. Locke sabia que tinham apenas instantes para se esconder. Precisavam estar longe o bastante do pátio para impedir
que algum funcionário da Agulha do Pecado visse a luta. Passaram correndo por fundos de gramados murados e jardins, a poucos metros de prédios onde centenas das
pessoas mais ricas do mundo terim perdiam dinheiro por diversão. Por fim, encontraram duas pilhas de barris vazios dos dois lados do beco – o local mais óbvio possível,
mas se os oponentes achassem que eles estavam tentando escapar, talvez apenas ignorassem essa possibilidade.
Jean já havia sumido em seu esconderijo. Locke puxou a adaga da bota, sentindo as marteladas do próprio coração, e se agachou atrás dos outros barris. Cobriu o rosto
com o braço, deixando apenas os olhos e a testa expostos.
Ouviram o som rápido de couro batendo em pedras, e então duas formas escuras passaram correndo pela pilha de barris. Locke atrasou deliberadamente seu movimento,
permitindo que Jean investisse primeiro. Quando o perseguidor mais próximo de Locke se virou, espantado pelo ruído do ataque contra o companheiro, Locke avançou,
a adaga em riste, empolgado com a perspectiva de enfim conseguir algumas respostas para aquela coisa.
Sua ofensiva foi boa: passou o braço esquerdo em volta do pescoço do sujeito no instante exato em que postou a faca contra a junção entre pescoço e queixo, no lado
direito.
– Largue sua arma ou eu...
Mas foi só isso que teve tempo de dizer antes que o homem tomasse a pior decisão possível. Ele se impulsionou para a frente numa tentativa de se soltar, talvez num
reflexo, sem perceber o ângulo em que a faca de Locke estava posicionada. Locke jamais saberia se o motivo fora um supremo otimismo ou uma miserável idiotice: o
homem foi degolado e morreu instantaneamente, cuspindo sangue. Sua arma caiu dos dedos frouxos para as pedras.
Locke levantou as mãos, incrédulo, e deixou o cadáver cair. Viu-se em frente a Jean, que ofegava sobre a forma imóvel de seu próprio oponente.
– Espera um minuto – disse Locke. – Quer dizer...
– Acidente – explicou Jean. – Eu peguei a faca dele, nós lutamos um pouco e ela se enfiou embaixo das costelas do sujeito.
– Maldição – murmurou Locke, sacudindo a mão direita para se livrar do sangue. – A gente tenta manter um sacana vivo e veja o que acontece...
– Balestras – falou Jean, apontando para o chão.
Os olhos de Locke se acostumaram ao escuro e ele viu as formas vagas de duas pequenas balestras de mão. Armas de beco, do tipo que só podia ser usado a no máximo
10 metros.
– Pegue-as. Pode haver mais deles atrás de nós.
– Que inferno. – Locke recolheu uma das armas e entregou a outra a Jean, cautelosamente; os pequenos quatrelos podiam estar envenenados.
Pensar em manusear a arma envenenada de outra pessoa no escuro o fez se arrepiar. Mas Jean estava certo: caso tivessem outros perseguidores, eles precisariam aproveitar
a vantagem.
– Para mim, a discrição é o passatempo alheio – disse Locke. – Vamos dar no pé.
Correram loucamente por lugares abandonados dos Degraus de Ouro, indo para o norte em direção à borda do vasto platô de Vidrantigo. Desceram lance após lance de
escadas de madeira bambas a ponto de causar náusea, olhando em frenesi para cima e para baixo à procura de perseguidores ou de alguma emboscada. No meio da escadaria,
o mundo era um redemoinho vertiginoso ao redor de Locke, pintado nas cores surreais de incêndio e vidro alienígena. No porto, o quarto e último navio do festival
começava a ficar incandescente, um sacrifício em madeira, piche e lona diante de centenas de barcos pequenos apinhados de sacerdotes e farristas.
Chegaram ao pé da escada e atravessaram, cambaleantes, as plataformas de madeira do cais interior, passando por ocasionais mendigos e bêbados, balançando loucamente
as adagas e balestras. Diante deles, estava o píer, longo e vazio, lar de apenas uma comprida pilha de caixotes. O bote oscilava convidativo nas ondas, agora a apenas
30 metros, iluminado pelo clarão do inferno.
Pilha de caixotes, pensou Locke, mas já era tarde demais.
Dois homens saíram das sombras enquanto Locke e Jean passavam, saltando do ponto de emboscada mais óbvio possível.
Locke e Jean giraram juntos; a sorte é que eles carregavam as balestras. Quatro homens ficaram parados suficientemente perto para se darem as mãos, fazendo mira.
Quatro dedos tremeram, cada um separado dos gatilhos por não mais do que o tamanho de uma gota de suor.
Locke Lamora estava parado no píer de Tal Verrar, com o vento quente de um navio em chamas às costas e a picada fria de uma flecha de balestra no pescoço.
14
Ele deu um sorriso torto e se concentrou em manter sua balestra ao nível do olho esquerdo do oponente. Os dois se achavam próximos o bastante para se sujarem com
o sangue um do outro caso disparassem ao mesmo tempo.
– Seja razoável – disse o homem que o encarava. O suor deixava riscas visíveis ao escorrer pela testa e pelas bochechas cobertas de sujeira. – Considere as desvantagens
da sua situação.
Locke fungou.
– A não ser que seus globos oculares sejam feitos de ferro, a desvantagem é mútua. Não acha, Jean?
Estavam parados dois a dois: Locke e Jean frente a frente com seus rivais. Eram quatro flechas de metal frio nas armas retesadas, a poucos centímetros da cabeça
de quatro homens compreensivelmente nervosos. A essa distância ninguém poderia errar, nem se todos os deuses acima ou abaixo do céu quisessem o contrário.
– Parece que nós quatro estamos enfiados em areia movediça até os bagos – comentou Jean.
Na água atrás deles, o velho galeão gemia e estalava à medida que as chamas violentas o consumiam de fora para dentro. A noite virava dia num raio de centenas de
metros ao redor e o casco era entrecruzado por riscas de um laranja esbranquiçado nos pontos em que as tábuas se separavam. A fumaça saía daquelas rachaduras infernais
em pequenas erupções negras, os últimos suspiros trêmulos de uma enorme fera de madeira em agonia. Os quatro homens estavam no píer, estranhamente sozinhos no meio
da luz e do barulho que atraíam a atenção de toda a cidade.
– Baixe a arma, pelo amor dos deuses – pediu o oponente de Locke. – Fomos instruídos a não matá-los se não fosse necessário.
– E tenho certeza de que você diria a verdade se a ordem fosse justamente o contrário, é claro – replicou Locke. Seu sorriso se alargou. – Faço questão de jamais
confiar em homens com armas encostadas no meu pescoço. Desculpe.
– Sua mão vai começar a tremer muito antes da minha.
– Vou apoiar a ponta do meu quadrelo no seu nariz quando me cansar. Quem mandou vocês atrás de nós? Quanto estão pagando? Não estamos desprovidos de fundos; poderíamos
chegar a um feliz acordo.
– Na verdade – interveio Jean –, eu sei quem os mandou.
– Sério?
Locke lançou um olhar para Jean antes de encarar o adversário outra vez.
– E foi feito um acordo, mas eu não diria que é feliz.
– Ah... Jean, acho que não estou acompanhando você.
– Não.
Jean levantou uma das mãos para o homem à sua frente, com a palma para fora. Depois virou a mira devagar, com cuidado, para a esquerda, até apontar a balestra contra
a cabeça de Locke. O homem que ele estivera ameaçando anteriormente piscou, surpreso.
– Sou eu que não estou acompanhando você, Locke.
– Jean. – O sorriso de Locke desapareceu. – Isso não é engraçado.
– Concordo. Me entregue sua arma.
– Jean...
– Entregue agora. Depressa. E você aí, por acaso é imbecil? Tire essa coisa da minha cara e aponte para ele.
O antigo oponente de Jean umedeceu os lábios, nervoso, mas não se mexeu. Jean trincou os dentes.
– Olhe, seu macaco de cais com cérebro de esponja, estou fazendo o serviço para vocês. Aponte a balestra para a droga do meu ex-parceiro para podermos sair deste
píer!
– Jean, eu descreveria esta reviravolta como muito pouco favorável – disse Locke, e parecia a ponto de falar mais, só que o oponente de Jean escolheu esse momento
para aceitar o conselho.
Agora Locke sentia o suor descendo numa cascata pelo rosto, como se sua própria umidade traiçoeira estivesse abandonando o recinto antes que algo pior acontecesse.
– Pronto. Três contra um. – Jean cuspiu no cais. – Você não me deu escolha, tive que fazer um acordo com o patrão desses cavalheiros antes de partirmos. Maldição,
você me obrigou. Desculpe, achei que eles fariam contato antes de partirem para cima de nós. Agora entregue sua arma.
– Jean, que diabo você acha que está...
– Não. Não diga mais porra nenhuma. Não tente vir com artimanhas para cima de mim; conheço você muito bem para não deixá-lo falar. Silêncio, Locke. Tire o dedo do
gatilho e entregue a arma.
Locke olhou a ponta de aço do quadrelo de Jean com a boca aberta, incrédulo. O mundo ao redor se dissipou até restar apenas aquela ponta minúscula, reluzente, viva
com o reflexo laranja do inferno que chamejava no ancoradouro atrás dele.
– Não acredito – disse Locke. – Eu só...
– É a última vez que vou mandar, Locke. – Jean manteve a mira firme, bem entre os olhos dele. – Tire o dedo do gatilho e me dê a droga da arma. Agora.
LIVRO III
CARTAS NA MESA
Estou sendo pressionado pela direita;
meu centro está cedendo... A situação é
excelente: vou atacar.
GENERAL FERDINAND FOCH
CAPÍTULO CATORZE
O flagelo do Mar de Bronze
1
Jaffrim Rodanov vadeava no banco de areia junto ao casco de um barco de pesca emborcado, ouvindo as ondas se quebrarem contra as tábuas partidas e sentindo-as passar
sobre seus tornozelos. A areia e a água da Baía Pródiga eram límpidas àquela distância da cidade. Não havia lodo e nenhum pedaço de metal enferrujado ou caco de
cerâmica cobria o fundo. Nenhum cadáver flutuava como uma balsa sinistra para os pássaros barulhentos.
Crepúsculo do sétimo dia de Aurim. Drakasha partira havia uma semana. A mais de mil quilômetros, pensou Jaffrim, um erro estava sendo cometido.
Ydrena assobiou. Estava encostada no casco do barco, nem perto demais nem longe demais dele, meramente enfatizando, por sua presença, que Rodanov não estava sozinho
e que seu comparecimento àquele encontro era conhecido da tripulação.
Jacquelaine Colvard havia chegado.
Ela deixou sua imediata ao lado de Ydrena, tirou as botas e entrou na água sem levantar o calção. A velha e inabalável Colvard, que saqueava navios naquelas águas
desde quando ele era um menino com o nariz enfiado em pergaminhos cheios de mofo. Antes de ele ao menos ter visto um navio que não estivesse desenhado.
– Jaffrim, obrigada por fazer minha vontade.
– Você só pode querer falar de uma coisa neste momento – comentou Rodanov.
– É. E isso está na sua cabeça também, não é?
– Foi um erro dar nosso juramento a Drakasha.
– Foi?
Rodanov enfiou os polegares no cinturão da espada e fitou a água que ia escurecendo, as ondulações onde seus tornozelos pálidos sumiam.
– Eu fui generoso quando deveria ter sido cínico.
– Então você se considera o único com poder de proibir aquilo?
– Eu poderia não ter feito o juramento.
– Mas aí seriam quatro contra um e Drakasha teria ido para o norte olhando o tempo todo por cima do ombro.
Rodanov sentiu uma ansiedade aflorar.
– Notei coisas curiosas nestes últimos dias – continuou ela. – Sua tripulação tem passado menos tempo na cidade. Você andou pegando água. E eu o vi no seu tombadilho,
testando os instrumentos. Verificando suas balestilhas.
A ansiedade dele cresceu. Será que ela viera confrontá-lo sozinha ou aliar-se a ele? Seria louca de se aproximar tanto caso fosse a primeira hipótese?
– Então você sabe – disse ele.
– Sei.
– Pretende me dissuadir?
– Pretendo fazer com que seja feito direito.
– Ah.
– Você tem alguém a bordo do Orquídea Venenosa, não é?
Rodanov não estava com clima para disfarçar.
– Se você me disser o que sabe, não vou insultá-la negando.
– Foi uma suposição. Afinal de contas, você já tentou me espionar.
– Ah – fez ele, sugando o ar entre os dentes. – Então Riela não morreu num acidente num bote, afinal de contas.
– Sim e não. De fato, tudo se passou num bote.
– Você...
– Quer saber se eu o recrimino? Não. Você é um homem cauteloso, Jaffrim, assim como sou uma mulher fundamentalmente cautelosa. É nossa cautela compartilhada que
nos traz aqui esta tarde.
– Você quer ir comigo?
– Não. E meus motivos são práticos. Primeiro, o Soberano está pronto para o mar e o Draconiano não está. Segundo, se nós dois saíssemos juntos, isso provocaria...
um grau inconveniente de especulação, quando Drakasha não retornar.
– Haverá especulações de qualquer modo. E haverá confirmação. Minha tripulação não vai ficar calada para sempre.
– Mas qualquer coisa poderia ter acontecido. Se sairmos num esquadrão, a única explicação razoável seria um conluio.
– E suponho que seja só coincidência que, mesmo vários dias depois de você ter descoberto sobre meus preparativos, o Draconiano ainda não esteja preparado para o
mar?
– Bom...
– Me poupe, Jacquelaine. Eu estava preparado para fazer isso sozinho antes de virmos aqui esta noite. Só não imagine que, de algum modo, me convenceu a ir no seu
lugar.
– Jaffrim. Paz. Desde que essa flecha acerte o alvo, não importa quem puxará a corda. – Ela soltou o cabelo grisalho, que esvoaçou sobre os ombros à brisa mormacenta.
– Quais são as suas intenções?
– Óbvias, imagino. Encontrá-la. Antes que ela cause danos suficientes para dar a Stragos o que ele quer.
– E caso você a encontre? Transmitirá mensagens educadas, de costado a costado?
– Um aviso. Uma última chance.
– Um ultimato para Drakasha? – Sua testa se franziu ao máximo. – Jaffrim, você sabe bem demais como ela vai reagir a qualquer ameaça: como um tubarão numa rede.
Se você tentar chegar perto de uma criatura nesse estado, vai perder uma das mãos.
– Uma luta, então. Acho que nós dois sabemos que é nisso que vai dar.
– E o resultado da luta?
– Meu navio é mais forte e eu tenho oitenta almas a mais. Não vai ser bonito, mas pretendo fazer com que seja matemático.
– Zamira morrerá.
– É isso que costuma acontecer...
– Presumindo que você lhe permita a cortesia da morte em batalha.
– Permita?
– Considere que, ainda que o curso de ação de Zamira seja perigoso demais para ser tolerado, a lógica dela foi impecável num aspecto.
– Qual?
– A morte dela, de Ravelle e Valora faria as vezes de uma bandagem para um ferimento que já está supurando. A podridão vai se intensificar. Precisamos aplacar a
ambição de Maxilan Stragos, e não apenas frustrá-la temporariamente.
– Concordo. Mas estou perdendo o gosto pela sutileza com a mesma rapidez com que gasto meu suprimento, Colvard. Terei que ser rude com Drakasha. Conceda-me a mesma
cortesia.
– Stragos precisa de uma vitória, mas não em nome da própria vaidade e, sim, para instigar o povo. Se essa vitória estiver espreitando nas águas perto de Tal Verrar
e for suficientemente espalhafatosa, que necessidade ele teria de nos incomodar aqui?
– Pusemos um sacrifício no altar – sussurrou Rodanov. – Pusemos Zamira no altar.
– Depois que Zamira causar algum dano. Depois de ela provocar certo pânico na cidade. Se a famosa pirata, a infame patife Zamira Drakasha, cuja cabeça vale 5 mil
solaris, fosse obrigada a desfilar acorrentada por Tal Verrar... levada à justiça às pressas após desafiar mais uma vez tolamente a cidade...
– Stragos vitorioso. Tal Verrar unida em admiração. – Rodanov suspirou. – Zamira pendurada numa jaula em cima do Abismo do Monturo.
– Satisfação para todos – completou Colvard.
– Mas talvez eu não possa pegá-la viva.
– O que quer que você entregue ao Arconte será de igual valor. Viva ou morta, ela será um troféu e os verraris vão atulhar as ruas para ver. Suspeito que seria melhor
deixá-lo ficar com o que restar do Orquídea Venenosa também.
– Eu faço o serviço sujo. Depois entrego os louros da vitória a ele.
– E os Ventos Fantasmas serão poupados.
Rodanov contemplou as águas da baía durante algum tempo antes de falar outra vez:
– É o que presumimos. Mas não temos ideias melhores.
– Quando você vai partir?
– Na maré da manhã.
– Não o invejo por ter que navegar com o Soberano pelo Portão do Comerciante...
– Vou pela Passagem do Mercado.
– Mesmo durante o dia, Jaffrim?
– As horas se esvaem. Recuso-me a desperdiçar mais tempo. – Ele se virou para a terra, a fim de pegar as botas e ir embora. – Não é possível participar da última
cartada se não se pode chegar lá a tempo para ocupar um assento.
2
Sentindo o ardor de lágrimas súbitas nos olhos, Locke afastou o dedo do gatilho da arma e apontou-a lentamente para cima.
– Pelo menos vai me dizer por quê?
– Mais tarde. – Jean não baixou sua balestra. – Entregue a arma. Devagar. Devagar!
O braço de Locke tremia; a reação nervosa fazia com que seus movimentos fossem espasmódicos. Concentrando-se, tentando manter as emoções sob controle, entregou a
arma a Jean.
– Ótimo – disse Jean. – Mantenha as mãos erguidas. Vocês dois trouxeram corda, certo?
– Certo.
– Ele está sob minha mira. Amarrem-no. As mãos e os pés, e apertem bem os nós.
Um dos emboscadores apontou sua balestra para o ar e buscou uma corda num bolso do casaco. O outro baixou a arma e pegou uma faca. Mal seus olhos tinham se afastado
de Locke para o colega, Jean agiu.
Com sua própria balestra numa das mãos e a de Locke na outra, girou calmamente e cravou uma seta na cabeça de cada atacante.
Locke ouviu o tuac-tuac agudo do disparo duplo, mas demorou um bom tempo para ter a compreensão total do significado. Ficou ali tremendo, o queixo caído, enquanto
os dois estranhos espirravam sangue, estremeciam e morriam. Um deles apertou o gatilho por reflexo. Com um ruído final que fez Locke dar um pulo, uma seta partiu
chiando para o escuro.
– Jean, você...
– Por que tanta dificuldade para me entregar a porcaria da arma?
– Mas você... você disse...
– Eu disse... – Jean largou as armas, agarrou-o pelas lapelas e sacudiu-o. – Como assim “eu disse”, Locke? Por que estava prestando atenção ao que eu estava dizendo?
– Você não...
– Pelo amor dos deuses, você está tremendo. Você acreditou em mim? Como pôde acreditar em mim? – Jean soltou-o e ficou encarando-o, pasmo. – Achei que você só estava
entrando no jogo com uma convicção exagerada!
– Você não fez nenhum sinal, Jean! Que diabo eu deveria pensar?
– Não fiz sinal? Eu fiz o sinal de “mentira”, tão claro quanto aquele navio queimando! Quando levantei a palma da mão para aqueles idiotas.
– Você não...
– Eu levantei! Como se eu pudesse esquecer! Não acredito! Como você pôde pensar... onde você acha que eu arranjaria tempo para fazer um acordo com alguém? Nós estamos
no mesmo navio há dois meses!
– Jean, sem o sinal...
– Eu fiz o sinal para você, seu pateta! Quando comecei com o papo de traidor frio e relutante! “Na verdade, eu sei quem os mandou.” Lembra?
– É...
– E depois o sinal. O sinal de “Ah, veja, Jean Tannen está mentindo para dois verraris cortadores de garganta sobre trair seu melhor amigo em toda a porra do mundo”!
Será que a gente precisa treinar esse sinal com mais frequência? Precisa mesmo?
– Eu não vi nenhum sinal, Jean. Juro pelos deuses.
– Você é que não enxergou.
– Não enxerguei? Eu... é, olha tudo bem. Não enxerguei. Estava escuro, tinha balestras em todo canto, eu deveria saber. Deveria saber que a gente nem precisava disso.
Desculpe.
Ele suspirou e olhou para os dois corpos com setas emplumadas se projetando grotescamente das cabeças imóveis.
– Nós precisávamos mesmo, de verdade, interrogar um desses sacanas, não é?
– É – respondeu Jean.
– Mas ainda assim... foram ótimos disparos.
– É.
– Jean?
– Hum?
– A gente deveria estar correndo como loucos agora.
– Ah. É. Vamos.
3
– Ó do navio! – gritou Locke enquanto o bote se encostava na lateral do Orquídea Venenosa.
Ele soltou os remos com alívio; Caldris teria orgulho da velocidade com que haviam saído de Tal Verrar, passando por uma flotilha de delegações de sacerdotes e bêbados,
pelo galeão em chamas e pelos cascos enegrecidos dos sacrifícios anteriores, pelo ar ainda sufocante de fumaça cinza.
– Pelos deuses! – exclamou Delmastro, ajudando-os a passar pela portinhola. – O que aconteceu? Estão machucados?
– Meus sentimentos foram feridos – respondeu Jean –, mas todo esse sangue foi emprestado para a ocasião.
Locke olhou suas roupas finas, manchadas com a vida de dois homens. Ele e Jean pareciam açougueiros amadores bêbados.
– Conseguiram tudo de que precisavam? – perguntou Delmastro.
– De que precisávamos? Sim. O que queríamos? Não. E dos malditos atacantes misteriosos que não nos dão um momento de paz na cidade? Conseguimos demais.
– E quem são eles?
– Não fazemos ideia. Como os sacanas sabem onde estamos, quem nós somos? Faz quase dois meses! Nós fomos indiscretos como?
– Na Agulha do Pecado – arriscou Jean, sem muita convicção.
– Como eles estavam nos esperando no cais, então? É eficiente demais!
– Vocês foram seguidos de volta ao navio? – perguntou Delmastro.
– Não que tenhamos visto – respondeu Jean –, mas acho que seríamos idiotas se ficássemos esperando.
Delmastro assentiu, pegou seu apito e soprou três notas agudas e familiares.
– À meia-nau! Prender barras do cabrestante! A postos para içar âncora! Equipe do contramestre, a postos para içar o bote! – gritou. – Vocês dois parecem chateados
– comentou, dirigindo-se a Locke e Jean enquanto o navio se transformava num redemoinho de atividade ao redor.
– Por que não estaríamos? – Locke esfregou a barriga, ainda sentindo uma dor surda onde o leão de chácara da Agulha do Pecado o havia golpeado. – Nós nos livramos,
claro, mas, em troca, alguém provocou uma encrenca infernal.
– Sabe o que gosto de fazer quando estou de mau humor? – indagou Ezri com doçura. – Gosto de saquear navios. – Ela apontou lentamente para além dos tripulantes agitados
no convés, para o mar, onde outra embarcação podia ser vista, iluminada pelas lanternas de popa contra a escuridão do sul. – Ah, olhem, tem um ali agora mesmo!
Instantes depois, batiam à porta da cabine de Drakasha.
– Vocês não estariam de pé se esse sangue fosse seu – comentou ela, convidando-os a entrar. – Seria esperar demais que ele pertencesse a Stragos?
– Seria – respondeu Locke.
– Que pena. Bom, pelo menos vocês voltaram. Isso é tranquilizador.
Paolo e Cosetta estavam embolados em sua caminha, roncando pacificamente. Drakasha parecia não ver necessidade de sussurrar na presença deles. Locke sorriu, lembrando
que, na idade deles, também aprendera a dormir em meio a distrações medonhas.
– Fizeram algum progresso real? – perguntou Drakasha.
– Ganhamos tempo – informou Locke. – Também saímos da cidade; não era certo que isso acontecesse.
– Capitã – chamou Delmastro. – Estávamos pensando se poderíamos dar início à próxima parte do plano um pouco mais cedo. Digamos, agora.
– Você quer fazer uma abordagem e socializar?
– Há um provável pretendente esperando para dançar a uns 3 quilômetros a sudoeste. Longe da cidade, além dos recifes...
– E, no momento, a cidade está meio absorvida pela festa – acrescentou Locke.
– Vai ser só uma visita rápida, como nós estivemos discutindo – continuou Ezri. – Acordá-los, fazer com que mijem nas calças, saquear a bolsa e as mercadorias transportáveis,
jogar coisas no mar, cortar algumas correntes e danificar o cordame...
– Bom, temos de começar em algum ponto – falou Drakasha. – Del, mande Utgar para baixo, para pegar um pouco das minhas sedas e almofadas. Quero uma cama improvisada
para as crianças no armário de cordas. Se terei de acordá-las para escondê-las, é justo que eu lhes dê isso.
– Certo – disse Delmastro.
– Como está o vento?
– Vindo da direção nordeste.
– Vamos virar para o sul, trazê-lo para o quarto de bombordo. Velas de gávea rizadas, devagar e com firmeza. Diga ao Oscarl para tirar os botes pela parte de trás,
assim nosso amigo não os verá na água.
– Certo, capitã.
Delmastro tirou seu sobretudo, deixou-o na mesa de Drakasha e saiu rapidamente da cabine. Alguns segundos depois, Locke ouviu uma agitação no convés: Oscarl gritando
que tinham acabado de receber ordem de içar o bote e Delmastro gritando algo sobre preguiçosos moles e burros.
– Vocês dois estão péssimos – comentou Zamira. – Terei que arranjar um novo baú para separar as roupas encharcadas de sangue das que estão limpas. Da próxima vez,
usem apenas vermelho e marrom.
– Sabe, capitã – observou Locke, olhando as mangas ensanguentadas de seu casaco –, isto me dá uma ideia. Uma ideia realmente, realmente divertida...
4
Logo depois da segunda hora da madrugada, com Tal Verrar enfim entrando num sonambulismo bêbado e os incêndios da Festa extintos, o “Quimera” se esgueirou até o
Sardinha Feliz. Passou pela chalupa desgastada, pequena e sonolenta a uma distância de cerca de 200 metros, com um número mínimo de lanternas de navegação e sem
fazer uma saudação. Isso não era totalmente incomum em águas onde nenhum ato de pirataria fora informado por mais de sete anos.
No escuro, era impossível ver que o convés do Orquídea não tinha nenhum bote.
Naquele momento, eles emergiram devagar da sombra de bombordo do navio e, a um sinal silencioso, os remadores puseram-se em ação a todo vapor, tornando branco o
mar escuro. Três linhas fracas, espumosas, se estenderam do Orquídea ao Sardinha e, quando o vigia solitário na popa da chalupa notou alguma coisa, era tarde demais.
– Ravelle! – gritou Jean, que foi o primeiro a subir pela lateral da chalupa. – Ravelle!
Ainda vestindo as roupas sujas de sangue, ele enrolara um pedaço de pano vermelho na cabeça e pegara emprestado um varapau com ponta de ferro tirado de um armário
de armas do Orquídea. Os outros tripulantes subiram rapidamente atrás dele: Jabril e Malakasti, Streva e Rask. Carregavam porretes e cassetetes, deixando as espadas
nas bainhas presas aos cintos.
Três botes cheios de piratas abordaram o navio por três direções diferentes; a pequena tripulação da chalupa foi varrida para o convés central por lunáticos que
berravam balançando porretes, até que finalmente ela foi dominada e o chefe dos atormentadores veio a bordo para se rejubilar com a vitória:
– Meu nome é Ravelle!
Locke andou pelo convés diante dos treze tripulantes encolhidos e seu estranho passageiro de roupão azul. Locke, como Jean, tinha mantido as roupas ensanguentadas,
e complementara-as com uma faixa vermelha na cintura, um lenço vermelho sobre o cabelo e algumas joias de Zamira, para aumentar o efeito.
– Orrin Ravelle! E voltei para prestar meus respeitos a Tal Verrar!
– Não nos mate, senhor – implorou o capitão da pequena embarcação, um homem magricelo de cerca de 30 anos bronzeado como um marinheiro que fez uma longa viagem.
– Nós nem somos de Tal Verrar, só viemos para que nosso contratante...
– Você está interrompendo experimentos hidrográficos críticos! – gritou o homem de roupão, tentando se levantar. Ele foi empurrado para baixo de novo por um grupo
de tripulantes zombateiros do Orquídea. – Essas informações são vitais para o interesse de todos os navegadores! Você está cortando a própria garganta se...
– Que diabos é um experimento hidrográfico crítico, velhote?
– Ao examinar a composição do solo do mar...
– Composição do solo do mar? Eu posso comer isso? Posso gastar isso? Posso levar de volta à minha cabine e trepar com isso?
– Não, não e certamente não!
– Certo. Joguem esse escroto na água.
– Seus desgraçados ignorantes! Seus macacos hipócritas! Me soltem... Me soltem!
Locke ficou satisfeito ao ver Jean se apresentar para cumprir a tarefa: não apenas o sujeito ficaria totalmente apavorado como Jean controlaria a situação, impedindo
que ele se machucasse.
– Ah, por favor, senhor, não faça isso – pediu o capitão do Sardinha. – Mestre Donatti é inofensivo, senhor, por favor...
– Olhem – interrompeu Locke –, será que todo mundo nesta banheira é idiota, menos eu? Por que eu sujaria as solas das minhas botas com uma visita a esta porcaria
se vocês não tivessem algo que eu quisesse?
– Os... é... experimentos hidrográficos? – perguntou o capitão.
– DINHEIRO! – Locke o agarrou pela frente da túnica e puxou-o de pé. – Quero toda coisa de valor, toda coisa bebível, toda coisa consumível que esse bote crescido
tenha a oferecer ou você pode olhar o velho idiota se afogar! Que tal esse experimento hidrográfico?
5
O saque não foi muito ruim para um navio tão pequeno; obviamente, Donatti havia pagado bem para ser carregado de um lado para o outro e fazer suas experiências e
não estaria disposto a navegar sem levar muitos dos confortos de casa. Um bote cheio de bebidas, tabaco fino, almofadas de seda, livros, instrumentos de artífices,
drogas alquímicas e sacos de moedas de prata logo foi mandado de volta ao Orquídea enquanto os piratas de “Ravelle” concluíam a pilhagem.
– Os cabos do leme foram inutilizados, senhor – informou Jean cerca de meia hora depois da abordagem.
– Adriças cortadas, estais cortados! – berrou Delmastro, apreciando seu papel de bucaneira comum. Ela caminhou pela amurada de bombordo com uma machadinha, cortando
coisas aparentemente ao acaso. – Sei lá o quê, cortado!
– Senhor, por favor – implorou o capitão –, vamos demorar séculos para consertar, o senhor já pegou tudo o que era de valor...
– Não quero que vocês morram aqui – cortou Locke, bocejando para fingir tédio. – Só quero ter algumas horas de calma antes que a notícia chegue a Tal Verrar.
– Ah, senhor, nós faremos o que o senhor pedir. Qualquer coisa que o senhor pedir. Não contaremos a ninguém...
– Por favor – interrompeu Locke. – Agarre-se a alguma dignidade, mestre Sardinha. Eu quero que você fale sobre isso. Por toda parte. Use isso para conseguir a simpatia
das putas. Talvez ganhar algumas bebidas nas tavernas. E o mais importante, repita meu nome: Orrin Ravelle.
– O-Orrin Ravelle, senhor.
– Capitão Orrin Ravelle – continuou Locke, sacando uma adaga e encostando-a no pescoço do capitão. – Do bom navio Foda-se Tal Verrar! Vá até lá e avise que estou
nas vizinhanças!
– Eu... ahn... farei isso, senhor.
– Ótimo. – Locke empurrou o sujeito para o chão e guardou a adaga. – Então vamos encerrando por aqui. Agora você pode retomar seu divertido naviozinho de brinquedo.
Locke e Jean se encontraram brevemente na popa antes de entrar no último bote de volta ao Orquídea.
– Pelos deuses, o Arconte vai adorar isso – comentou Jean.
– Bom, nós não mentimos para ele, não foi? Prometemos ataques piratas. Só não dissemos que teriam Zamira como atração principal. – Locke jogou um beijo para a cidade
ao longo do horizonte norte. – Feliz Festa, Protetor.
6
– Se há uma coisa que nunca sentirei necessidade de fazer de novo na vida é ficar pendurado o dia inteiro pintando o traseiro deste maldito navio – resmungou Locke.
Às três da tarde do dia seguinte, Locke e Jean estavam pendurados em precários balanços de corda presos à amurada de popa do Orquídea Venenosa. Agora que a apressada
camada de tinta passada na noite anterior escondia o Quimera, eles rebatizavam o navio: Deleite. Suas mãos e túnicas estavam bem sujas de tinta prateada.
Tinham progredido até “Dele” e Paolo e Cosetta faziam caretas para eles através das janelas de popa da cabine de Zamira.
– Acho que ser pirata é parecido com beber – comentou Jean. – Se você ficar acordado a noite inteira fazendo isso, paga o preço no dia seguinte.
Naquela manhã, o Orquídea tinha virado para o norte, a confortáveis 60 ou 80 quilômetros a oeste da cidade; Drakasha saíra rapidamente da área onde haviam atacado
o Sardinha e decidira passar o dia longe, preparando o novo disfarce de sua menina de madeira. Ou, mais exatamente, encarregando Locke e Jean dessa tarefa.
Enfim conseguiram completar o nome, por volta da quarta hora da tarde. Sedentos e queimados de sol, foram puxados ao tombadilho por Delmastro, Drakasha e Nasreen.
Depois de eles beberem canecas de aguarrosa morna, Drakasha chamou-os a sua cabine.
– O trabalho ontem à noite foi bem-feito. Bem-feito e lindamente desconcertante. Não duvido que o Arconte ficará bastante contrariado.
– Eu pagaria um bom dinheiro para ser uma mosca numa parede de taverna em Tal Verrar nos próximos dias – observou Locke.
– Mas isso também me deu uma ideia com relação à nossa estratégia geral.
– Qual?
– Você me disse que o capitão e a tripulação da chalupa não eram verraris. Isso vai diminuir um pouco o impacto da história deles. Haverá perguntas sobre a confiabilidade
deles. Boatos e murmúrios grosseiros.
– Certo...
– Portanto, o que fizemos não vai ter tanto efeito. Vai provocar comentários, especulação e um bocado de incômodo para Stragos, mas não pânico; os verraris não vão
criar tumultos nas ruas pedindo a intercessão dele. De certa forma, como primeiro serviço de pirataria para ele, foi um trabalho grosseiro.
– A senhora está ferindo nosso orgulho profissional – disse Jean.
– E o meu também! Mas pensem no seguinte... talvez o que precisemos seja de uma fiada de trabalhos igualmente grosseiros.
– Espero uma explicação muito divertida para essa ideia – falou Locke.
– Esta tarde, Del me contou que vocês dois depositam suas esperanças no alquimista pessoal do Stragos. De algum modo, acham que poderiam assegurar a ajuda dele fazendo
uma oferta.
– É verdade – confirmou Locke. – Esse foi um dos aspectos da visita de ontem ao Mon Magisteria que não correu muito bem.
– Então, obviamente, o que precisamos fazer é lhes dar outra chance de se encontrar com o alquimista. Outro motivo plausível para visitar logo o Mon Magisteria.
Como bons serviçaizinhos, ansiosos para ouvir a opinião do patrão sobre como o trabalho está progredindo.
– Ahhh – fez Locke. – Se ele quiser gritar com a gente, é a garantia de que pelo menos vai nos receber para um papinho.
– Exato. Então, o que precisamos é fazer... algo espalhafatoso. Algo impressionante, algo que seja inegavelmente um exemplo sincero de nossos maiores esforços a
favor de Stragos. Mas... sem ameaçar Tal Verrar diretamente. Não a ponto de servir aos propósitos de Stragos.
– Hummm – murmurou Jean. – Algo impressionante. Espalhafatoso. Não ameaçador. Não tenho certeza de que esses conceitos se misturam bem com a vida de pirataria.
– Kosta, você está me olhando de modo muito estranho. Você tem alguma ideia ou eu o deixei no sol por tempo demais hoje?
– Impressionante, espalhafatoso e sem ameaçar Tal Verrar diretamente – sussurrou Locke. – Pelos deuses! Capitã Drakasha, a senhora me honraria se me consentisse
uma humilde sugestão...
7
O Monte Azar estava silencioso naquela manhã, 27 de Aurim, e o céu acima de Salon Corbeau era azul como as profundezas de um rio, sem as marcas da fumaça cinza do
velho vulcão. Era outro inverno ameno no norte da Costa de Bronze, num clima mais confiável do que os mecanismos verraris.
– Mandachuvas – disse Zoran, chefe dos funcionários do cais no turno da manhã.
– Por que você está pedindo chuvas? – Giatti, seu colega mais novo, olhou sério na direção do porto.
– Mandachuvas, seu idiota. Figurões, ricos. A classe abastada e abestada.
Zoran ajustou seu tabardo verde-oliva e espanou-o, desejando não ter de usar a porcaria do chapéu de feltro de lady Saljesca. Ele o fazia parecer mais alto, mas
também suar.
Para além das paredes de rocha natural do porto de Salon Corbeau, um brigue pomposo de dois mastros e casco de madeira-bruxa escura acabara de se juntar a dois faluchos
lashanis ancorados no mar calmo. Um escaler saíra do recém-chegado: quatro ou cinco nobres e uma dúzia de remadores.
Enquanto o escaler parava junto ao cais, Giatti se curvou e começou a desenrolar uma corda de uma estaca do porto. Quando a proa da embarcação estava firme, Zoran
postou-se ao lado dela, fez uma reverência e estendeu a mão para a primeira jovem que se levantou do banco.
– Bem-vinda a Salon Corbeau. Como a senhora se chama e como deve ser anunciada?
A jovem baixa, com uma musculatura incomum para alguém de seu status, abriu um bonito sorriso e segurou a mão de Zoran. Usava um casaco verde-floresta por cima de
uma saia de babados da mesma cor, que fazia destacar muito bem seu cabelo castanho encaracolado. Mas ela parecia usar bem menos maquiagem e joias do que seria de
esperar. Talvez uma parente mais pobre do dono do barco?
– Desculpe, senhora, mas preciso saber quem vou anunciar. – Ela pisou em segurança no cais e ele afrouxou o aperto.
Para sua surpresa, ela não fez o mesmo e, com um movimento hábil, encostou uma adaga de aço enegrecido na parte interna da sua coxa. Ele ofegou.
– Piratas muito bem-armados, um grupo de 98 – avisou a mulher. – Grite ou lute e você vai ser um eunuco surpreso.
8
– Fique calmo – pediu Delmastro enquanto Locke levava Jean, Streva, Jabril e Grande Konar para o cais. – Aqui somos todos amigos. É só uma família rica vindo visitar
seu lindo povoadozinho. Cidade. Coisa.
Ela manteve a adaga entre si e o funcionário mais velho, para que não houvesse chance de alguém vê-la de longe. Konar pegou o funcionário mais novo, passando um
braço em volta do seu ombro como se os dois se conhecessem, e murmurou algo no ouvido dele que fez a cor sumir do rosto do pobre coitado.
Devagar e com cautela, os tripulantes do Orquídea foram para o cais. No centro do grupo, os que usavam camadas de roupas elegantes tentavam não fazer muito barulho,
já que carregavam um arsenal de armas que chacoalhava sob as capas e saias. Tinha sido demais supor que os funcionários das docas não notariam sabres e machadinhas
nos cintos dos remadores.
– Cá estamos, então – disse Locke.
– Parece um belo lugar – observou Jean.
– A aparência é bastante enganadora. Agora vamos esperar que a capitã faça as honras.
9
– Perdão? Perdão, senhor?
Zamira Drakasha, sozinha no bote menor do Orquídea, olhava o guarda de aparência entediada atrás da amurada ornamental do iate mais próximo do navio dela. A outra
embarcação tinha uns 15 metros de comprimento, um único mastro e bancos de quatro remadores de cada lado. Os remos estavam presos na vertical, como as asas de um
pássaro empalhado. Logo atrás do mastro, havia um pavilhão similar a uma tenda, com paredes de seda que balançavam suavemente, postado bem entre o guarda e o continente.
O guarda espiou-a, franzindo os olhos. Zamira estava usando um vestido amarelo grosso que não se ajustava ao seu corpo, quase um roupão. Tinha deixado o chapéu na
cabine e tirado as pulseiras dos braços e as fitas do cabelo.
– O que você quer?
– Minha senhora me deixou para cuidar das tarefas no navio enquanto ela se diverte em terra. Tenho várias coisas pesadas para mover e estava imaginando se poderia
pedir sua ajuda.
– Quer que eu vá até lá e banque a mula para você?
– Seria muita gentileza da sua parte.
– E, ah, o que você estaria preparada para fazer em troca?
– Ora, oferecer meu agradecimento sincero aos deuses por sua bondade. Ou talvez eu possa fazer um pouco de chá.
– Você tem uma cabine lá?
– Tenho, pela gentileza da minha senhora...
– Alguns minutos sozinho com você e essa sua boca, e eu estaria feliz em mover essas merdas para você.
– Que... que deselegante! Minha senhora vai...
– Quem é a sua senhora, afinal?
– Lady Ezriane de la Mastron, de Nicora...
– Nicora? Rá! Como se alguém ligasse a mínima. Vá se catar. – O guarda se virou, rindo sozinho.
– Ah. Então que seja. Eu sei quando não agrado.
Ela esticou a mão e tirou a lona de cor parda que cobria o fundo do bote, logo à frente dos seus pés. Embaixo, estava a balestra mais pesada do arsenal do Orquídea,
com uma seta de ferro farpado do tamanho do braço dela.
– E simplesmente não me importo.
O guarda ficou perplexo com o surgimento súbito de uma ponta de quatrelo brotando do seu esterno. Zamira se perguntou se ele tivera tempo de especular sobre a localização
do resto da seta antes de desmoronar.
Zamira puxou o vestido amarelo por cima da cabeça e jogou-o na popa do barco. Por baixo, usava seu colete de Vidrantigo, uma túnica leve, calção, botas e um par
de esguias braçadeiras de couro. Ela enfiou a mão embaixo do banco, tirou seus sabres e os enfiou nas bainhas. Remou o barquinho até o costado do iate e acenou para
Nasreen, que estava na proa do Orquídea. Dois tripulantes subiram na amurada do brigue e mergulharam na água.
Os nadadores chegaram à lateral da embarcação um instante depois. Zamira os ajudou a sair da água e mandou-os para a frente, para usarem um dos conjuntos de remos.
Então, puxou os pinos para soltar as correntes da âncora do iate; não havia sentido em desperdiçar tempo levantando-a. Com seus dois marinheiros remando e ela cuidando
do leme, foram necessários apenas alguns minutos para colocar o iate atrás do Orquídea.
Sua tripulação começou a descer lentamente para o iate, armada e com armaduras, não combinando em nada com a pequena embarcação frágil e coberta de entalhes elaborados.
Quando o número de marinheiros chegou a 42, Zamira achou que o barco não suportaria mais; havia tripulantes agachados no convés, enfiados na cabine e segurando todos
os remos. Estava bom: quase dois terços de sua tripulação em terra para executar o ataque principal e o outro terço no Orquídea para atacar os navios no porto.
Acenou para Utgar, que estaria encarregado desse último serviço. Ele sorriu e deixou a portinhola de entrada para dar início aos preparativos finais.
Os remadores de Zamira fizeram o iate rodear o Orquídea; viraram para bombordo logo depois de passar pela popa e apontaram na direção da praia. Além dela, podiam
ser vistos os jardins escalonados e as construções do vale pequeno e rico, arrumadas como pratos antes de um banquete.
– Quem trouxe o toque final? – perguntou Zamira.
Um dos tripulantes desenrolou um estandarte de seda vermelha e o prendeu na adriça de bandeira que pendia do mastro do iate.
– Certo, então. – Zamira se ajoelhou na proa do iate e fez um ajuste de praxe no cinto das espadas. – Remadores, com vontade! Vamos para a praia!
À medida que o iate avançava pelas águas temporariamente calmas da baía, Zamira notou algumas figuras pequenas em cima dos penhascos próximos enfim se alarmando.
Um ou dois correram para a cidade; deviam chegar mais ou menos na mesma hora que Zamira esperava sentir a areia da praia sob as botas.
– Ice a vermelha e vamos ter um pouco de música!
Enquanto a bandeira escarlate subia pela adriça e tremulava ao vento, cada tripulante no iate soltou um uivo selvagem. Os berros ecoaram por todo o porto. Os tripulantes
disfarçados no cais começaram a pegar as armas e agora cada pessoa visível no penhasco estava fugindo para a cidade. Os sabres de Zamira relampejaram ao sol no momento
em que ela os sacou.
Era a melhor definição de uma bela manhã.
10
– Era absolutamente necessário saquear Salon Corbeau daquele jeito? – questionou Stragos.
Locke e Jean estavam sentados no escritório do Arconte, cercados pelo adejar fraco e sombreado de seus milhares de insetos mecânicos. Poderia ser apenas um truque
da sala mal iluminada, mas parecia a Locke que as rugas do rosto de Stragos haviam se aprofundado desde que ele o vira pela última vez.
– Foi bastante divertido. Você tem alguma ligação especial com aquele lugar?
– Não, Lamora, só que eu tinha a clara impressão de que você iria concentrar suas atividades contra navios nas proximidades de Tal Verrar.
– Considera-se amplamente que Salon Corbeau está nas proximidades de...
– Ela é um navio, Lamora?
– Havia navios no porto...
– Eu tenho a droga dos números aqui, dados pelos meus agentes – interrompeu Stragos, batendo com dois dedos num pedaço de pergaminho. – Dois faluchos afundaram.
Quarenta e seis iates, barcas de lazer e embarcações menores queimadas ou afundadas. Cento e dezoito escravos roubados. Dezenove guardas particulares da condessa
Saljesca mortos, dezesseis feridos. A vasta maioria das residências e casas de campo de Salon Corbeau foi queimada, praticamente todos os jardins foram destruídos.
O estádio foi devastado. Prejuízo de mais de 95 mil solaris, numa primeira estimativa. Mais ou menos a única coisa que vocês deixaram de lado foram algumas lojas
e a residência da própria lady Saljesca!
Locke deu um sorriso enviesado: esse tinha sido o objetivo. Depois que os hóspedes mais importantes de Saljesca haviam fugido para sua mansão-fortaleza e se trancado
lá com o resto dos seus soldados, seria inútil atacar o prédio; os tripulantes do Orquídea seriam trucidados. Mas com a única oposição trancada no topo do vale,
a tripulação de Drakasha ficara livre para agir alucinadamente por mais de uma hora, saqueando e queimando o vale à vontade. Tinham perdido apenas quatro membros
no ataque.
Quanto às lojas, bem, Locke havia requisitado especificamente que a área ao redor do negócio da família Baumondain fosse deixada em paz.
– Não tínhamos tempo para atacar tudo – alegou ele. – E agora que Salon Corbeau está mais ou menos arruinada, alguns daqueles artesãos podem se estabelecer em Tal
Verrar. Aqui é mais seguro, com você e seus militares por perto, não é?
– Como você pode passar o tempo executando um ataque assim, de modo tão eficiente, quando seus esforços pelo meu projeto principal são tão superficiais?
– Protesto...
– Um ataque feito por Orrin Ravelle na noite da Festa... muito obrigado por isso, por sinal... contra uma chalupa iridani contratada por um excêntrico. Mais dois
ataques informados, ambos nas vizinhanças de Salon Corbeau, um feito por Ravelle e outro pela desconhecida “Capitã de la Mastron”. Drakasha teme receber o crédito
por seu próprio trabalho?
– Estamos tentando criar a impressão de que vários piratas agem...
– O que vocês estão tentando é esgotar minha paciência. Vocês não roubaram cargas importantes, não queimaram navios no mar, nem mesmo assassinaram um tripulante.
Contentam-se com dinheiro e coisas valiosas fáceis de carregar, humilham e apavoram os prisioneiros, fazem pouco mais do que vandalizar as embarcações deles e depois
desaparecem.
– Não podemos ficar pesados demais com carga maior: temos muitos ataques para executar.
– Parece que vocês têm um bocado de matança a executar. Agora a cidade está achando mais divertido do que preocupante. Continuo a sofrer aos olhos do público pelo
negócio do Ravelle, mas poucos temem que essa farra de... arruaças realmente atrapalhe o comércio verrari. Nem mesmo o saque de Salon Corbeau provocou ansiedade.
Seus ataques recentes dão a impressão de que agora você teme se aproximar de novo da cidade, que estas águas permanecem seguras. Se eu estivesse comprando produtos
de um mercador, no momento não estaria satisfeito com a qualidade deles.
– A diferença, claro, é que quando eu tiro as medidas para, digamos, casacos novos, não enveneno meu alfaiate até que ele acerte o comprimento das mangas.
– Minha vida e minhas fortunas estão em risco. – Stragos se levantou da cadeira. – A sua também, dependendo do seu sucesso. Eu exijo carniceiros, não palhaços. Tomem
navios à vista dos muros da minha cidade. Passem as tripulações pela espada. Peguem a carga ou queimem, chegou a hora de agir a sério. Isso, e só isso, vai agitar
a cidade até os alicerces. Não retornem até terem derramado sangue nestas águas. Até se tornarem um flagelo.
– Então que seja. Outro gole do nosso antídoto...
– Não.
– Se o senhor quer que trabalhemos com confiança absoluta...
– Vocês vão esperar. Como ovos em conserva num vidro. Faz menos de duas semanas que tomaram a última dose. Não correm perigo durante mais seis.
– Mas... Espere, Arconte – interrompeu Jean enquanto Stragos se virava para sair. – Mais uma coisa: fomos atacados de novo aqui, na noite da Festa.
Os olhos de Stragos se estreitaram.
– Os mesmos assassinos de antes?
– Se você quer dizer o mesmo mistério, sim, acho que sim. Estavam à nossa espera no cais depois que visitamos Requin. Se eles receberam uma dica sobre nossa presença
na cidade, agiram bem rápido.
– E o único lugar onde estivemos antes de visitar os Degraus de Ouro – acrescentou Locke – foi aqui.
– Meu pessoal não teve nada a ver com isso – retrucou Stragos. – Na verdade, esta é a primeira vez que ouço falar nisso.
– Nós deixamos quatro mortos para trás – argumentou Jean.
– Nada de mais. Os policiais encontraram quase trinta corpos pela cidade após a Festa; sempre acontecem discussões e roubos nessas ocasiões. – Stragos suspirou.
– Obviamente isso não tem nada a ver comigo e eu não tenho mais nada a lhes dizer a respeito. Presumo que voltarão direto para o navio depois de saírem.
– A toda velocidade – garantiu Locke. – Permanecendo o mais longe possível das ilhas.
– Algum malfeito anterior de vocês é que está provocando essas complicações. Agora vão embora. Nada de antídoto e nada de conversas. Vocês só vão estender o tempo
de saúde quando mandarem mercadores em pânico aos meus portões, implorando ajuda porque a morte espreita do lado de fora do porto. Vão e façam o serviço.
Ele girou e saiu sem dizer mais nada. Um instante depois, um esquadrão de Olhos marchou pela porta principal e ficou esperando.
– Bom, maldição – murmurou Jean.
11
– Vamos pegar o sacana – assegurou Ezri enquanto estavam deitados na cabine dela naquela noite.
O Orquídea Venenosa, agora chamado de Mercurial, atravessava um mar agitado a uns 30 quilômetros a sudoeste de Tal Verrar, e os dois se agarravam um ao outro, balançando
na rede.
– Vai ser difícil – opinou Jean. – Stragos não vai nos receber até que façamos algum trabalho sério para ele... e se fizermos isso, podemos levar as coisas ao ponto
em que ele não precise mais de nós. Vamos receber uma faca em vez do antídoto. Ou... se chegar a esse ponto, ele vai receber a faca...
– Jean, não quero ouvir falar disso.
– É preciso encarar os fatos, querida.
– Não acredito. Não acredito. Sempre há um modo de atacar ou de escapar. É assim aqui. – Ela rolou para cima dele e beijou-o. – Eu disse para você não desistir,
Jean Tannen, e comigo o negócio é que eu consigo o que quero.
– Pelos deuses – sussurrou Jean –, como é que eu pude viver antes de conhecer você?
– Triste, mal, miseravelmente. Eu torno tudo muito melhor. É por isso que os deuses me puseram aqui. Agora pare de enrolar e me diga alguma coisa agradável!
– Alguma coisa agradável?
– É, seu pateta, ouvi dizer que às vezes outros amantes falam coisas agradáveis uns aos outros nos momentos a sós...
– É, mas com você é sob pena de morte, não é?
– Pode ser. Deixe-me encontrar um sabre...
– Ezri – começou ele com uma seriedade súbita. – Olha... quando tudo isso terminar, Stragos e todo o resto, talvez Leocanto e eu sejamos... muito ricos. Se nossos
outros negócios em Tal Verrar correrem bem.
– Não diga “se”: o certo é “quando”.
– Certo. Quando isso acontecer... você poderia ir conosco. Leo e eu falamos um pouco sobre isso. Você não precisa escolher uma vida ou outra, Ezri. Pode simplesmente...
tirar licença por um tempo. Todos nós poderíamos.
– Como assim?
– Poderíamos arranjar um iate. Em Vel Virazzo há um lugar, a marina particular, onde todos os ricaços mantêm seus botes e barcas. Em geral, há alguns à venda, se
você tiver centenas de solaris à mão, o que pretendemos ter. Precisamos ir a Vel Virazzo de qualquer modo, para... concluir nossos negócios. Um barco seria preparado
para nós em dois dias e depois... rodar por aí um pouco! À deriva. Aproveitar. Fingir que somos nobres inúteis durante um tempo.
– E voltar para a pirataria mais tarde?
– Quando você quiser. Do jeito que você quiser. Você sempre consegue o que quer, não é?
– Viver num iate por um tempo com você e Leocanto. Sem ofensa, Jean, você é passável, para um homem de terra, mas seu amigo, como ele próprio admite, não seria capaz
de navegar um sapato por uma poça de mijo...
– Por que você acha que levaríamos você, hein?
– Bom, eu pensei que tinha alguma coisa a ver com isso. – Ela moveu as mãos estrategicamente para uma posição mais interessante.
– Ah, e tem, mas você poderia ser uma espécie de capitã honorária também...
– Posso dar o nome do barco?
– Você deixaria outra pessoa fazer isso?
– Certo – sussurrou ela. – Se o plano é esse, esse é o plano. Vai ser assim.
– Quer dizer mesmo que...
– Diabos, só com o saque que fizemos em Salon Corbeau, todo mundo dessa tripulação pode ficar bêbado durante meses quando voltarmos aos Ventos Fantasmas. Zamira
não vai sentir minha falta durante um tempo. – Eles se beijaram. – Meio ano. – Beijaram-se de novo. – Um ano ou dois, talvez.
– Sempre há um modo de atacar – murmurou Jean entre beijos –, sempre há um modo de escapar.
– Claro. Fique firme e, cedo ou tarde, você encontra o que procura.
12
Jaffrim Rodanov andava de um lado para o outro no tombadilho do Soberano Temível à luz laranja-prateada do início da manhã. Seguiam na direção norte por oeste com
o vento no quarto de estibordo, cerca de 60 quilômetros a sudoeste de Tal Verrar. As ondas tinham de 1,5 metro a 2 metros.
Tal Verrar. A meio dia de viagem da cidade que eles haviam evitado como se fosse uma colônia de doentes de pele-solta nos últimos sete anos, rumo ao lar de uma marinha
capaz de esmagar até mesmo seu poderoso Soberano se fosse provocada. Não havia liberdade genuína naquelas águas, apenas uma vaga ilusão: fartos navios mercantes
que ele jamais poderia tocar, uma cidade rica que ele jamais poderia saquear. Mas podia viver com isso. Era ótimo, desde que a liberdade e os saques nos mares do
sul pudessem permanecer disponíveis.
– Capitão – chamou Ydrena, aparecendo no convés com uma caneca de cerâmica lascada cheia de seu chá matinal misturado com conhaque. Não pretendo arruinar uma bela
manhã...
– Você não seria minha imediata se eu precisasse de uma puxa-saco.
– Fizemos um tempo ótimo até aqui, mas agora estamos há uma semana sem pistas, capitão.
– Vimos duas dúzias de navios mercantes, lúgares e galeras de lazer só nos últimos dois dias e ainda não avistamos uma bandeira da marinha. Ainda há tempo para encontrá-la.
– Não discordo, capitão. Encontrá-la é que é...
– Um verdadeiro pé no saco. Eu sei.
– Afinal de contas, ela não vai estar por aí se anunciando como Zamira Drakasha do Orquídea Venenosa. – Ydrena tomou um gole do chá. – “Muito prazer, somos infames
destruidores de navios dos Ventos Fantasmas, será que podemos nos aproximar para uma visita?”
– Zamira pode usar o nome que quiser, pintar o que quiser na popa, mexer com o plano de velas até parecer um xaveco constipado, mas ela tem apenas um casco. Um casco
escuro, de madeira-bruxa. E nós o vemos há anos.
– Todos os cascos são escuros até que a gente chegue bastante perto, capitão.
– Ydrena, se eu tivesse uma ideia melhor, acredite, estaríamos usando-a. – Ele bocejou e se espreguiçou, sentindo os músculos dos braços se esticarem de modo agradável.
– A única notícia que tivemos foi de alguns navios atacados, e agora Salon Corbeau. Ela está circulando por aí, mantendo-se a oeste. É o que eu faria, para ter mais
espaço livre de mar.
– É. Um tremendo espaço.
– Ydrena – falou ele baixinho –, eu percorri um longo caminho para violar um juramento e matar uma amiga. Vou até onde for preciso e a perseguirei pelo tempo necessário.
Vamos percorrer esse mar até que um de nós dê de cara com o outro.
– Ou que a tripulação decida que já está...
– Falta um bocado até passar dos limites. Enquanto isso, dobre todos os nossos vigias de topo à noite. Triplique de dia. Vamos colocar metade da porra da tripulação
nos mastros se for necessário.
– Vela nova à vista! – gritou uma voz no topo do mastaréu de proa.
O aviso foi passado adiante pelo convés e Rodanov correu, incapaz de se conter. Tinham ouvido esse berro cinquenta vezes naquela semana, mas aquela poderia ser a
vez.
– Onde?
– Três pontos a estibordo!
– Ydrena, ponha mais pano! Direto para o avistamento! Timão, leve-nos a nor-nordeste na bordada de estibordo!
O Soberano Temível estava à vontade com o vento e o mar naquele momento; seu tamanho e seu peso lhe permitiam cortar as ondas que roubariam a velocidade de embarcações
menores. Eles se aproximariam em muito pouco tempo da outra embarcação.
Mesmo assim, os minutos passavam intermináveis. Chegaram ao novo curso, aproveitando a força do vento que agora soprava logo atrás do costado de estibordo. Rodanov
andava pelo castelo de proa, esperando...
– Capitão Rodanov! É de dois mastros, senhor! Repetindo, dois mastros!
– Muito bem! Ydrena! Imediata ao castelo de proa!
Ela apareceu ali num minuto, o cabelo louro-claro balançando na brisa, jogando fora o resto do chá matinal.
– Leve minha melhor luneta ao mastaréu de proa – ordenou ele. – Avise... assim que souber alguma coisa.
– Sim. Enfim algo para fazer.
A manhã progrediu com lentidão torturante, mas ao menos o céu estava sem nuvens. Boas condições para um avistamento. O sol subiu e ficou mais claro, até que...
– Capitão, casco de madeira-bruxa! – gritou Ydrena. – É um brigue de dois mastros com casco de madeira-bruxa!
Ele não suportava mais esperar passivamente.
– Estou subindo!
Com dificuldade, arrastou-se pelos ovéns do mastro de proa até a plataforma de observação no mastaréu, um lugar que ele reservara para marinheiros menores e mais
jovens muitos anos antes. Ydrena estava empoleirada lá, com um tripulante que se arrastou de lado a fim de abrir espaço para ele na plataforma. Rodanov pegou a luneta
e espiou o navio no horizonte, até que nem mesmo sua faceta mais cautelosa lhe permitiria negar.
– É ele. Ela fez alguma coisa diferente nas velas, mas é o Orquídea.
– E agora?
– Ponha cada retalho de vela que pudermos aguentar. Abuse o máximo possível desse oceano antes que ela nos reconheça.
– O senhor quer atraí-la com bandeiras de sinalização? Oferecer um acordo, depois pular em cima?
– “Falemos por trás das mãos, para que os lábios não sejam lidos como o livro dos nossos desígnios.”
– Mais das suas poesias?
– Versos, e não poesia genuína. Mas... não. Ela vai nos reconhecer, cedo ou tarde, e saberá exatamente qual é o nosso negócio.
Ele devolveu a luneta a Ydrena e se preparou para descer de volta pelos ovéns.
– Direto para ela, sem capas e com armas à mostra. Podemos dar isso a ela, porque é a última luta que ela travará.
CAPÍTULO QUINZE
Entre irmãos
1
– Jerome sabe que você está me pedindo isso?
– Não.
Locke estava atrás de Drakasha junto à amurada de popa, encolhido perto dela para que pudessem conversar em particular. Era a sétima hora da manhã, mais ou menos,
e o sol subia para uma cúpula azul sem nuvens. O vento vinha do leste, um pouquinho atrás do costado de estibordo, e as ondas se intensificavam.
– E você acha que...
– É, acho que posso falar por nós dois. Não há outra opção. Não veremos Stragos de novo a não ser que você faça o que ele pede. E, para ser franco, se você fizer
o que ele pede, acho que nossa utilidade terá um fim. Haverá mais uma chance de acesso físico a ele. É hora de mostrar a esse escroto como nós fazíamos as coisas
em Camorr.
– Achei que vocês eram especializados em finesse desonesta.
– Também tenho um negócio ativo colocando facas no pescoço das pessoas e gritando com elas.
– Mas, se você requisitar outro encontro depois de afundarmos alguns navios para ele, não acha que ele estará preparado para alguma traição? Em especial num lugar
apinhado de soldados?
– Só preciso chegar perto dele. Não vou fingir que poderia abrir caminho por uma muralha de guardas, mas a 15 centímetros de distância, com um bom punhal, eu sou
a própria mão de Aza Guilla.
– Pegá-lo como refém, então?
– É simples. Direto. Espero que eficaz. Se eu puder enganá-lo para me dar o antídoto ou fazer um acordo com o alquimista, talvez possa deixá-lo meio morto de medo.
– E você realmente pensou direito nisso?
– Capitã Drakasha, eu mal consegui dormir nos últimos dias, pensando. Por que acha que vim até aqui falar com a senhora?
– Bom...
– Capitã! – gritou o vigia do mastro principal para o convés. – Temos ação atrás de nós!
– Como assim?
– Vela talvez a três pontos a bombordo, no horizonte. Acabou de dar a volta bem de repente. Parou de ir para o oeste e apontou direto para nós.
– Olhos bons – elogiou Drakasha. – Mantenha-me informada. Utgar!
– Sim, capitã?
– Dobre a vigilância em cada mastro. Vocês aí, no convés! Preparem-se para mudança de rumo! A postos com as amuras e os estais! Esperem minha ordem!
– Problema de verdade, capitã?
– Provavelmente não. Mesmo que Stragos tenha mudado de ideia desde ontem e decidido nos caçar agora, um navio de guerra verrari não poderia estar vindo daquela direção.
– Esperemos que sim.
– É. Portanto o que vamos fazer é modificar nosso rumo, bem devagar. Se a mudança de curso deles foi inocente, eles vão passar alegremente. – Ela pigarreou. – Timão,
para noroeste por norte, rápido. Utgar! Firme as vergas para um vento no quarto de estibordo!
– Sim, capitã!
O Orquídea Venenosa adernou mais ainda a bombordo, até estar indo quase para noroeste. Agora a brisa forte soprava pelo tombadilho, quase batendo direto no rosto
de Locke. Ao sul, ele achou que via velas minúsculas; não conseguia enxergar o casco.
Alguns minutos depois, veio o berro:
– Capitã! O navio virou cinco ou seis pontos a bombordo! Está atrás de nós outra vez!
– Nós estamos a estibordo deles. Ele está tentando se aproximar. Mas isso não faz sentido. – Ela estalou os dedos. – Espera. Pode ser um caçador de recompensas.
– Como ele poderia saber que somos nós?
– Provavelmente tem uma descrição do Orquídea, dada pela tripulação daquela chalupa que você visitou. Olha, só podemos disfarçar nosso garoto por um tempo. Essas
lindas tábuas de madeira-bruxa são características demais.
– Então... até que ponto isso é um problema?
– Depende de quem tiver mais velocidade. Se for um caçador de recompensa, será uma luta infrutífera. Vai estar carregando pessoas perigosas e nada de valor. Assim,
se formos os mais rápidos, pretendo mostrar a bunda a eles e dar adeus.
– E se não formos?
– Teremos uma luta infrutífera.
– Capitã, é de três mastros! – gritou um dos vigias de um mastaréu.
– Isso está ficando cada vez melhor – comentou Drakasha. – Vá acordar Ezri e Jerome para mim.
2
– Azar – disse Delmastro. – Tremendo azar.
– Só para eles, se a coisa for como eu quero – replicou Zamira.
A capitã e sua tenente estavam junto à amurada de popa, olhando o débil quadrado branco que marcava a posição do perseguidor no horizonte. Locke esperava com Jean
a pouca distância, junto à amurada de estibordo. Drakasha tinha virado o navio alguns pontos para o sul, assim viajavam em direção oés-noroeste com o vento bom no
quarto de estibordo, o que ela afirmava ser o melhor ponto de vela do Orquídea. Locke sabia que havia naquilo certo risco: se o oponente fosse o mais rápido, poderia
determinar um curso de interceptação que iria trazê-lo muito mais depressa do que numa caçada de popa. O problema era que uma perseguição desse tipo, indo para o
norte, não duraria muito: o espaço de oceano ilimitado só existia a oeste deles.
– Não sei se estamos ganhando terreno, capitã – avisou Delmastro depois de alguns minutos de silêncio.
– Nem eu. Porcaria de mar agitado. Se ele é de três mastros, pode ter peso para estabelecer uma velocidade melhor.
– Capitã! – O grito do mastro principal foi mais urgente ainda do que o usual. – Capitã, ele não está ficando para trás e... capitã, peço perdão, mas talvez a senhora
queira vir olhar isso pessoalmente.
– Olhar o quê?
– Se eu não estou louca, já vi esse navio antes! Eu juro. Gostaria que outros olhos confirmassem.
– Vou dar uma olhada – interveio Delmastro. – Posso levar sua luneta predileta?
– Deixe-a cair e eu dou sua cabine a Paolo e Cosetta.
Locke ficou observando Delmastro subir pelo mastro principal, armada com o orgulho e a alegria de Zamira, uma obra-prima de óptica verrari engastada em couro tratado
alquimicamente. Passaram-se mais alguns minutos antes que o grito dela chegasse ao convés:
– Capitã, é o Soberano Temível!
– O quê? Del, tem certeza absoluta?
– Eu já o vi bastante, não vi?
– Estou subindo!
Locke trocou um olhar com Jean enquanto Zamira saltava nos ovéns do mastro principal. Um zum-zum de murmúrios e palavrões havia brotado entre os tripulantes no convés.
Cerca de uma dúzia deles abandonou suas tarefas e foi para a popa, esticando o pescoço para vislumbrar a vela ao sul. Afastaram-se alarmados quando Drakasha e Delmastro
retornaram ao tombadilho, sérias.
– Então é ele? – perguntou Locke.
– É – respondeu Drakasha. – E, se está procurando por nós há algum tempo, quer dizer que não partiu muito depois de nós.
– Ele pode estar trazendo uma mensagem ou algo assim, não é?
– Não. – Drakasha tirou o chapéu e passou a outra mão pelas tranças, quase nervosa. – Ele se opôs ao plano mais do que todos os outros no conselho de capitães. Não
navegou por tanto tempo e tão longe quanto nós, arriscando o navio perto de Tal Verrar, para dar uma mensagem. Infelizmente, precisamos adiar nossa conversa, Ravelle.
O argumento não faz sentido se este navio não estiver flutuando no fim do dia.
3
Locke olhou para o Soberano Temível por cima da espuma branca das ondas, agora bem acima do horizonte, apontado para eles como uma agulha atraída para um ímã. Era
a décima hora da manhã e o progresso de Rodanov sobre eles era óbvio.
Zamira fechou sua luneta com força e girou de costas para a amurada de popa.
– Capitã – falou Delmastro –, deve haver alguma coisa... Se pudermos mantê-lo à distância até o anoitecer...
– Então teríamos opções, sim. Mas só uma caçada direta de popa garantiria esse tempo e, se corrermos para o norte, vamos encontrar o litoral muito antes do crepúsculo.
Para não mencionar que ele foi restaurado há pouco tempo e nós já passamos da hora de fazer isso. A verdade é que já perdemos essa corrida.
Drakasha e Delmastro ficaram em silêncio durante vários instantes, até que a tenente pigarreou.
– Eu... é... vou começar a preparar as coisas, está bem?
– É melhor mesmo. Deixe o Turno Vermelho continuar dormindo enquanto puder, se é que algum deles ainda está dormindo.
Delmastro assentiu, agarrou Jean pela manga da túnica e puxou-o em direção à escotilha do convés principal.
– A senhora pretende lutar – disse Locke.
– Não tenho opção. Nem você, se quiser viver para o jantar. Rodanov tem quase o dobro do nosso número. Você entende a confusão em que estamos.
– E tudo por minha causa, mais ou menos. Desculpe, capitã...
– Basta de papo furado, Ravelle. Não me arrependo de tê-lo ajudado, portanto ninguém mais precisa se arrepender. Isso é coisa do Stragos, e não sua. De um modo ou
de outro, os planos dele nos atingiriam.
– Obrigado, capitã Drakasha. Agora... eu sei que já conversamos sobre a verdadeira extensão das minhas habilidades em batalha, mas a maior parte da tripulação provavelmente
ainda pensa que sou uma espécie de matador. Eu... acho que...
– Você quer um lugar no meio da encrenca?
– Quero.
– Achei que você ia pedir isso mesmo. Já tenho um lugar para você. Não pense que vai pegar moleza.
Ela se afastou por um momento e gritou em direção à proa:
– Utgar!
– Sim, capitã?
– Pegue a sonda de mar profundo e faça uma medição!
Locke levantou as sobrancelhas interrogativamente e ela explicou:
– Preciso saber quanta água temos sob os pés. Então vou saber quanto tempo a âncora vai demorar para descer.
– Por que a senhora baixaria uma âncora?
– Você terá de esperar para se surpreender. Assim como Rodanov, espero... mas isso seria pedir demais.
– Capitã, temos umas 9 braças! – gritou Utgar após vários minutos.
– Certo. Ravelle, sei que você está de folga agora, mas você foi insensato a ponto de vir para cá e pedir atenção. Pegue uns dois Azuis e alguns barris de cerveja
lá de baixo. Tente fazer silêncio, para não acordar nenhum Vermelho. Vou convocar todos os tripulantes dentro de mais ou menos uma hora e nunca é sensato mandar
pessoas para uma confusão dessas com a garganta seca demais.
– Será um prazer, capitã. Mais ou menos uma hora, então? Quando a senhora acha que estaremos...
– Pretendo provocar a briga antes do meio-dia. Só há um modo de vencer quando a gente está sendo perseguida por alguém maior e mais forte. Dar meia-volta, dar um
soco nos dentes dele e esperar que os deuses gostem da gente.
4
– Todos os tripulantes! – gritou Ezri pela última vez. – Todos os tripulantes no convés central! Vagabundos e filhos da puta preguiçosos, no convés! Se têm colegas
de quarto ainda lá embaixo, puxem todos para cima!
Jean parou na frente do grupo à meia-nau, esperando que Drakasha fizesse seu discurso. Ela estava junto à amurada, tendo atrás Ezri, Nasreen, Utgar, Caladão, Gwillem
e Treganne. A Erudita parecia profundamente chateada, pois uma coisa tão trivial quanto uma luta sangrenta de navio contra navio havia interrompido sua rotina.
– Ouçam bem! O navio que vem para cima de nós é o Soberano Temível. O capitão Rodanov não gostou dos nossos negócios nestas águas e viajou um longo caminho para
lutar conosco.
– Não podemos lutar com tanta gente assim! – berrou alguém da turba.
– Não temos escolha. Eles estão se aproximando para fazer a abordagem, quer gostemos ou não.
– Mas e se ele só estiver atrás de você? – perguntou um tripulante que Jean não reconheceu; o sujeito também estava de pé na frente do grupo, bem onde Drakasha e
todos os seus oficiais podiam vê-lo. – Nós entregamos você a ele e poupamos uma luta infernal. Isto aqui não é a marinha e eu tenho o direito de gostar tanto da
minha vida quanto...
Jabril abriu caminho pelo grupo atrás do homem e deu-lhe um soco no cóccix. O sujeito caiu se retorcendo no convés.
– Nós não sabemos se ele só quer Drakasha! – vociferou Jabril. – Eu não vou esperar junto à amurada com as calças abaixadas para ver se alguém beija o meu pau! A
maioria de vocês sabe disto tanto quanto eu: se um capitão luta contra um capitão, não é conveniente deixar que os dois lados da história retornem a Porto Pródigo!
– Espere, Jabril – Zamira desceu rapidamente a escada do tombadilho, foi até o homem pragmático e ajudou-o a sentar-se. Então, parou diante da tripulação reunida,
ao alcance da primeira fileira. – Basryn está certo com relação a uma coisa: isto aqui não é a marinha, portanto vocês têm o direito de gostar da própria vida. Não
sou uma droga de imperatriz. Se alguém quer tentar me entregar ao Rodanov, estou aqui. É a chance de vocês. Alguém?
Como ninguém se destacou do grupo, Drakasha levantou Basryn e olhou-o direto nos olhos.
– Agora você pode pegar o menor bote, você e qualquer um que queira ajudá-lo. Ou pode ficar.
– Ah, diabos – praguejou ele gemendo. – Desculpe, capitã. Eu... acho que prefiro viver como covarde a morrer como idiota.
– Oscarl, quando terminarmos aqui, junte um grupo e baixe o bote pequeno, depressa. Se mais alguém quiser ir com o Basryn, fique à vontade. Se Rodanov vencer, tentem
a sorte. Se eu vencer... saibam que estamos a pelo menos 80 quilômetros de terra e vocês não voltarão a bordo.
Basryn assentiu, e foi só. Drakasha soltou-o e ele cambaleou para o meio dos tripulantes, abraçando a si mesmo e ignorando os olhares irados das pessoas ao redor.
– Ouçam bem, agora! – gritou Drakasha. – O mar não é nosso amigo hoje; aquele filho da puta tem mais capacidade de cortar a água do que nós. Uma caçada em qualquer
direção só iria nos garantir mais algumas horas. Se quisermos resolver isso à distância de um beijo, pretendo determinar os termos do cortejo. Só para que alguns
de nós fiquem de pé, é necessário que cada um mate dois deles, logo, obviamente, precisamos nos sair melhor do que isso. Se colocarmos um dos nossos costados contra
a proa dele, podemos nos apinhar em volta do ponto de abordagem dele e ficar em maior número no único lugar que importa. A tripulação grande não vai significar nada
se ele tiver de mandá-la em partes direto para os nossos dentes.
Ela fez uma pausa e prosseguiu:
– Assim, vou colocar vocês em fileiras no poço do navio. Espadas e escudos na frente, lanças e alabardas atrás. Não percam tempo: se não puderem matar uma pessoa,
joguem-na na água, fora da porcaria da luta! Del vai escolher nossos dez melhores arqueiros e mandá-los lá para cima. Cinco por mastro. Eu gostaria de enviar mais,
porém vamos precisar de cada arma possível no convés.
Em seguida, virou-se para Locke e Jean.
– Ravelle, Valora, vou dar alguns tripulantes a vocês, para formar nossa “companhia de voo”, fazendo voar pedras contra os botes do Soberano. Eles vão tentar nos
abordar por todos os lados assim que estivermos ocupados na área central, portanto vocês vão aonde eles forem. Uma pessoa no convés pode rechaçar cinco num bote,
desde que vocês ajam depressa. Nasreen, escolha três pessoas e fique perto da âncora de estibordo, à espera de ordens. Assim que eu mandar, vocês protegerão a proa
contra botes, permitindo que o grupo de Ravelle lute em outro lugar. Utgar, você vai ficar comigo, carregando as balestras. Bom, há cerveja no castelo de proa e
quero ver o barril vazio antes de darmos início ao trabalho. Bebam, encontrem as armaduras. Se tiverem cota de malha ou peças de couro que estejam guardando, coloquem
tudo. Não me importa o quanto vocês vão suar; vocês nunca vão precisar tanto disso quanto hoje.
Drakasha dispensou a tripulação virando-se de costas para ela e voltando a subir a escada do tombadilho. Um pandemônio irrompeu no convés central; de repente, os
tripulantes empurravam uns aos outros, indo em todas as direções, em busca de armaduras e armas ou do que poderia ser sua última bebida em vida.
Ezri pulou a amurada do tombadilho e gritou enquanto penetrava no caos:
– Equipes de incêndio, preparem baldes duplos de areia! Ponham a rede-navalha de bombordo e a icem bem alto! Jerome, carregue seu rabo preguiçoso até o tombadilho!
Forme a companhia de voo lá!
Jean acenou e acompanhou Drakasha à popa, onde Utgar esperava, parecendo nervoso. Treganne estava descendo a escada de tombadilho, murmurando algo sobre “compras
no atacado”.
Subitamente, uma forma baixa e escura disparou pela escada de tombadilho até Drakasha, que recebeu um puxão na calça. Ela olhou para baixo e viu Paolo agarrado em
suas pernas.
– Mamãe, o barulho!
Zamira sorriu e pegou-o no colo, aninhando-o contra as lapelas do casaco. Virou-se para o vento, que afastou o cabelo de seu rosto. Jean pôde ver que os olhos de
Paolo estavam virados para o Soberano Temível, que oscilava sob o céu sem nuvens, diminuindo implacavelmente a distância entre eles.
– Paolo, querido, a mamãe precisa que você a ajude a esconder você e sua irmã no armário de cordas na coberta inferior, está bem?
O menino assentiu e Zamira deu-lhe um beijo na testa com os olhos fechados, enterrando o nariz no emaranhado de cachos curtos e escuros.
– Ah, ótimo – falou ela. – Por que depois disso a mamãe precisa pegar a armadura e os sabres, abordar o navio daquele filho da puta mentiroso e afundá-lo como se
fosse uma pedra.
5
Jaffrim Rodanov estava na proa de seu navio, com o Orquídea Venenosa bem no centro da luneta, quando o navio de Drakasha girou subitamente a bombordo e apontou para
ele feito uma flecha. As velas do mastro principal tremeram e foram sumindo de vista à medida que a tripulação de Drakasha as posicionava para a batalha.
– Ah, lá vamos nós, Zamira. Enfim fazendo a única coisa sensata.
Como sempre, Rodanov vestira um casaco de couro reforçado com malha nas costas e nas lapelas. Os amassados e os vincos da peça antiga eram sempre um conforto para
ele: uma lembrança de que, havia anos, as pessoas vinham tentando matá-lo, sem sucesso.
Nas mãos, usava suas armas prediletas, luvas de aço enegrecido segmentado. Na confusão de um combate corpo a corpo, elas podiam aparar lâminas e arrebentar crânios.
Além disso, ele se valia de um porrete cravejado de ferro que chegava até a cintura. Fechou a luneta com cuidado e enfiou-a num bolso, pensando em recolocá-la na
bitácula antes do início da luta. Não como na última vez.
– Ordens, capitão?
Ydrena esperava na escada do castelo de proa, com sua espada curva embainhada às costas e a maior parte da tripulação preparada atrás dela.
– Ela está vindo na nossa direção – trovejou Rodanov. – Sei que isso não é fácil, mas Drakasha está atacando em águas verraris. Ela vai fazer o inferno baixar sobre
a vida de que todos nós gostamos... a não ser que a impeçamos agora. Formar a estibordo, como planejamos. Escudos na frente. Balestras atrás. Lembrem-se, uma saraivada,
depois joguem-nas no chão e saquem os aços. Equipes dos botes, saiam pelo lado de estibordo assim que estivermos emparelhados com o Orquídea. Arpéus a postos na
lateral e na proa. Timão, você já sabe o que fazer: execute com perfeição ou reze para morrer na luta. Este dia será vermelho! Drakasha é uma adversária de respeito,
mas o que nós somos, sobre todos os ventos e águas do Mar de Bronze?
– SOBERANOS! – gritaram os tripulantes como se fossem um só.
– O que somos, jamais abordados e jamais derrotados?
– SOBERANOS!
– O que nossos inimigos berram quando falam o nome de sua perdição no julgamento dos deuses?
– SOBERANOS!
– Nós somos! – Ele sacudiu o porrete acima da cabeça. – E temos algumas surpresas para Zamira Drakasha! Tragam as jaulas para a frente!
Três equipes de seis marinheiros trouxeram gaiolas cobertas de lona ao convés do castelo de proa. Elas tinham alças de madeira, postas bem longe das laterais de
tela, e cerca de 2 metros de comprimento e 1 de largura e de altura.
– Não comeram nada desde ontem, certo?
– Não – respondeu Ydrena.
– Ótimo.
Rodanov verificou duas vezes as seções da amurada de estibordo de cerca de 3 metros que seu carpinteiro havia enfraquecido, para que um bom empurrão as derrubasse.
Um estrago em seu amado Soberano, mas que poderia ser consertado facilmente mais tarde.
– Ponham-nas aqui. E chutem as jaulas. Deixem que elas fiquem bem irritadas.
6
Os dois navios rasgavam as ondas um em direção ao outro e, pela segunda vez na vida, Locke Lamora se viu prestes a entrar numa batalha marítima.
– Firme, Caladão! – gritou Drakasha, que olhava por cima da amurada de bombordo do tombadilho.
Locke e Jean esperavam ali perto, armados com machadinhas e sabres. Jean também tinha um par de braçadeiras de couro, outrora pertencentes a Basryn, que não estava
em nenhum lugar à vista desde que fora sozinho para o mar no bote pequeno. Meu bote, pensou Locke, um tanto amargamente.
Locke e Jean haviam formado a “companhia de voo” com Malakasti, Jabril, Streva e Gwillem. Todos portavam escudos e lanças, à exceção do contramestre de aparência
tímida, que usava um avental de couro cheio de pesadas bolas de chumbo para a funda que carregava na mão esquerda.
A maior parte da tripulação esperava à meia-nau, enfileirada como Drakasha havia ordenado: os que tinham escudos grandes e espadas se achavam à frente; os com alabardas,
atrás. As velas do mastro principal estavam içadas, baldes de areia haviam sido dispostos, a portinhola de entrada de bombordo fora protegida com o que Delmastro
chamava de “rede de esfolar” e o Orquídea Venenosa corria para o abraço do Soberano Temível como um amante que ficara muito tempo distante.
Delmastro surgiu do meio da confusão no convés central, lembrando muito a primeira vez que Locke a vira, com a armadura de couro e o cabelo preso para a ação. Sem
se importar com as armas que os dois carregavam nos cintos, ela saltou para cima de Jean, envolvendo-o com os braços e as pernas. Ele abraçou-a e os dois se beijaram
até que Locke riu alto. Não era o tipo de coisa que as pessoas costumavam ver antes da maioria das batalhas, imaginou.
– Este dia é nosso – afirmou ela quando os dois enfim se separaram.
– Tente não matar todo mundo lá antes que eu ao menos me envolva, certo? – Jean sorriu e ela lhe entregou uma bolsinha de seda.
– O que é isso?
– Um cacho do meu cabelo. Era para ter lhe dado há alguns dias, mas ficamos ocupados com os ataques. Você sabe. Pirataria. Vida agitada.
– Obrigado, amor.
– Agora, se você estiver encrencado em algum lugar, pode segurar essa bolsinha na frente de quem estiver incomodando e dizer: “Você não faz ideia de com quem está
querendo foder. Eu estou sob a proteção da dama que me deu este objeto.”
– E isso vai impedir alguém?
– Merda, não, é só para confundi-los. Então você os mata enquanto eles estiverem olhando com uma cara esquisita.
Os dois se abraçaram de novo e Drakasha pigarreou.
– Del, se não for muito problema, estamos planejando atacar aquele navio ali na frente. Será que você poderia...
– Ah, é, a luta pela nossa vida. Acho que posso ajudar a senhora por alguns minutos, capitã.
– Boa sorte, Del.
– Boa sorte, Zamira.
– Capitã – chamou Caladão –, agora...
– Nasreen! – berrou Drakasha o mais alto possível. – Soltar âncora de estibordo!
– Colisão total! – berrou Delmastro um instante depois. – Segurem-se todos! Aí em cima! Agarrem um mastro, agarrem um cabo!
Alguém começou a tocar freneticamente o sino do mastro de proa. Os dois navios se aproximavam a uma velocidade espantosa. Locke e Jean se agacharam na escada de
bombordo do tombadilho, agarrando-se à amurada interna. Locke olhou para Drakasha e viu que ela estava concentrada, contando alguma coisa. Curioso, tentou decifrar
o que dizia e concluiu que ela não falava em terim.
– Capitã – chamou Caladão, calmo como se estivesse pedindo um café –, o outro navio...
– Timão, tudo a bombordo! – gritou Drakasha.
Caladão e seu companheiro começaram a girar o timão do navio para a esquerda. De repente, houve um rangido e um estalo na proa; o navio estremeceu de ponta a ponta
e foi sacudido para estibordo como se fosse apanhado nos dentes de um vendaval. Locke sentiu o estômago protestar e se agarrou à amurada com toda a força.
– Equipe de âncora, corte o cabo! – berrou Drakasha.
Locke tinha uma visão excelente do Soberano Temível correndo na direção eles, a menos de 100 metros. Ofegou ao pensar no pesado gurupés do navio transpassando o
Orquídea e sua tripulação feito uma lança, mas o navio de três mastros adernou para bombordo, girando também.
Rodanov evitou uma colisão de frente, numa manobra intencional, supôs Locke. Ainda que pudesse causar danos sérios ao Orquídea, o abalroamento prenderia o navio
bem no lugar onde Zamira poderia resistir melhor à abordagem e possivelmente afundaria os dois navios cedo ou tarde.
O que aconteceu foi espetacular: o mar borbulhou entre as duas embarcações e Locke ouviu as ondas protestando, sibilando furiosamente como carvões ardentes. De algum
modo, o Soberano e o Orquídea contiveram o impulso e deslizaram um contra o outro ao longo dos costados. O mundo inteiro pareceu se sacudir quando os dois se encontraram;
madeiras estalaram, mastros estremeceram e lá em cima uma tripulante do Orquídea foi arrancada de sua posição. Ela bateu no convés do Soberano, tornando-se a primeira
baixa na batalha.
– Draiva! Draiva! – gritou Zamira.
Todos no tombadilho olharam para cima ao mesmo tempo enquanto a draiva do Orquídea era enfunada do modo mais atabalhoado possível por uma pequena equipe. Descendo
até a extensão total, a vela foi presa no lugar a uma velocidade desesperada. Normalmente as velas de proa e de popa jamais seriam posta de lado para o vento, mas
a intenção era que a brisa forte do leste a empurrasse, afastando a popa do Orquídea do contato com o Soberano. Caladão forçou o timão para estibordo, tentando facilitar
o movimento.
Houve uma série de gritos e estalos na proa; o gurupés do Soberano estava destruindo ou estragando boa parte do cordame de proa, mas o plano de Drakasha parecia
ter sido bem-sucedido. O gurupés não havia aberto um buraco no casco e apenas a proa de Rodanov a estibordo estava em contato com o lado de bombordo de Drakasha.
Lá de cima, pensou Locke, os deuses podiam ver os navios como esgrimistas bêbados, os gurupés cruzados mas causando relativamente pouco dano enquanto oscilavam.
Coisas invisíveis riscaram o ar com sibilos serpentinos e Locke percebeu que choviam flechas ao seu redor. A luta de fato começara.
7
– Vaca syresti espertalhona – murmurou Rodanov, erguendo-se após a colisão.
Drakasha usava sua raiva para impedir um contato pleno de costado com costado. Que fosse: ele tinha cartas na manga, prontas para serem usadas.
– Soltem-nas! – gritou.
Um tripulante parado bem atrás das três jaulas, ladeado por homens com escudos, puxou a corda que abria as portas. Elas estavam a apenas centímetros do trecho enfraquecido
da amurada, que fora convenientemente arrancado quando os navios se encontraram.
Um trio de valconas adultas – famintas, sacudidas e irritadas além da conta – saíram em disparada, berrando como mortos-vivos vingativos. A primeira coisa em que
puseram os olhos foi o grupo de Orquídeas que estava do outro lado. Ainda que pesadamente armados e com armaduras, o pessoal de Zamira sem dúvida esperava repelir
primeiro uma abordagem humana.
As três aves de ataque lançaram-se pelo ar e pousaram no meio de escudos e alabardas, atacando com os bicos e as garras do tamanho de adagas. Tripulantes gritaram,
empurraram-se uns contra os outros e provocaram o caos absoluto na luta desesperada para golpear as feras ou fugir delas.
Rodanov riu ferozmente. A aquisição das aves tinha valido a pena, mesmo tendo custado tanto em Pródigo, mesmo tendo empesteado o porão, mesmo que fossem estar mortas
em pouco tempo. Cada Orquídea que elas mutilavam era um a menos para seu pessoal enfrentar e não era possível avaliar o prazer de fazer os inimigos se borrarem.
– Baixar botes! – gritou ele. – Soberanos! Comigo!
8
Os gritos vindos da proa eram mais do que humanos; Locke subiu correndo de quatro a escada de tombadilho, esforçando-se para ver o que acontecia. Vultos marrons
se agitavam entre as “legiões” de Zamira ao longo da amurada de bombordo. Que diabo era aquilo? A própria Drakasha passou correndo com os dois sabres na mão, partindo
para o ponto de maior caos.
Vários marinheiros a bordo do navio de Rodanov lançaram arpéus. Uma equipe de Drakasha, já esperando por isso, correu para a amurada de bombordo e cortou os cabos
dos arpéus com machadinhas, porém um deles tombou com uma flecha no pescoço.
Um estalo agudo, chapado, indicou que uma flecha havia batido ali perto e Jean agarrou Locke pelo colarinho da túnica e puxou-o para o tombadilho. Sua “companhia
de voo” estava agachada atrás dos escudos pequenos; Malakasti usava o dela para proteger também Caladão, que manobrava o timão de cócoras. Alguém gritou e caiu do
cordame a bordo do Soberano e, um segundo depois, Jabril berrou quando uma flecha arrancou lascas da amurada de popa ao lado de sua cabeça.
Para surpresa de Locke, Gwillem se levantou subitamente e, com uma expressão plácida, começou a girar uma bola de chumbo em sua funda. Enquanto seu braço subia,
ele soltou uma das cordas da arma e um arqueiro no tombadilho do Soberano caiu para trás. Jean puxou o contramestre de volta para o convés no momento em que o vadrã
começou a pegar outro projétil.
– Botes! – berrou Streva. – Botes dando a volta!
Dois botes, cada um carregando cerca de vinte marinheiros, vinham depressa de trás do Soberano, fazendo uma curva para se aproximar da popa do Orquídea. Locke desejou
ardentemente que algumas flechas atrapalhassem a passagem deles, mas os arqueiros lá em cima tinham ordem de ignorar os botes. Aquelas embarcações eram trabalho
apenas para o lendário herói do barril de cerveja, Orrin Ravelle.
Contudo, ele possuía uma grande vantagem: Jean Tannen. Colocadas de modo incongruente nas polidas tábuas de madeira-bruxa do convés, havia várias pedras grandes
e redondas, tiradas laboriosamente do lastro do navio.
– Dê uma de bruto, Jerome! – bradou Locke.
Quando o primeiro bote do Soberano se aproximou da amurada de proa, dois marinheiros armados com balestras se levantaram para abrir caminho para uma mulher que segurava
um arpéu. Gwillem girou e disparou uma das suas bolas para baixo, abrindo a cabeça de um homem de proa e derrubando-o para trás, em meio à confusão de marinheiros.
Jean foi até a amurada de popa, erguendo acima da cabeça uma pedra de 40 quilos, do tamanho do peito de um homem comum. Ele berrou e jogou-a no bote, onde ela despedaçou
não apenas as pernas de dois remadores, mas o casco da pequena embarcação. A água começava a jorrar pelo buraco, provocando pânico.
Então vieram setas de balestra do segundo bote. Apanhado enquanto olhava os esforços do primeiro, Streva recebeu uma nas costelas e caiu para trás, em cima de Locke,
que empurrou de lado o rapaz desafortunado, sabendo que não poderia ajudá-lo. O convés já estava vermelho de sangue. Uma flecha disparada das vergas superiores do
Soberano se cravou nas costas de Malakasti, que caiu sobre a amurada, e seu escudo despencou no mar.
Jabril empurrou a lança dela para longe e puxou-a para o convés. Locke viu que a flecha havia perfurado um dos pulmões e as respirações úmidas pelas quais ela lutava
agora seriam as últimas. Jabril, com a expressão angustiada, tentava cobri-la com o próprio corpo, até que Locke gritou:
– Tem mais vindo! Não perca a porra da cabeça!
Hipócrita maldito, pensou com o coração martelando.
No barco que afundava lá embaixo, outro marinheiro se preparou para jogar um arpéu. Gwillem disparou de novo, despedaçando o braço do sujeito. E outra pedra foi
atirada por Jean. Diante do bote afundando e de cadáveres se amontoando nos bancos, os sobreviventes pulavam na água. Eles poderiam significar encrenca de novo dentro
de alguns minutos, mas por enquanto estavam fora da luta, assim como um terço da “companhia” de Locke. O segundo bote inimigo se aproximava, cauteloso com as pedras,
mantendo-se afastado. Deu a volta ao redor da popa e partiu para o lado de estibordo, um tubarão com uma presa ferida.
9
Zamira arrancou seu sabre do corpo da última valcona e berrou para seu pessoal no lado de bombordo:
– Reorganizar! Reorganizar! Fechem a porra da abertura ali!
Valconas! Maldito Rodanov, o sacana esperto: pelo menos cinco tripulantes seus estavam mortos por causa daquelas coisas malditas e só os deuses sabiam quantos mais
estariam feridos ou abalados. Ele já esperava que ela fosse de costado para a proa.
E ali estava ele, impossível não ver, quase do tamanho de dois homens, usando um casaco escuro e aquelas porcarias de luvas. Nas mãos, um porrete que devia pesar
10 quilos. Seus homens fluíram ao redor dele e partiram contra a primeira fileira dela através da abertura que Rodanov fizera em seu corrimão de estibordo. O ponto
de decisão era exatamente a confusão que ela havia esperado: lanças furando, escudos balançando, cadáveres e lutadores pressionados pela turba e impedidos de se
mover. Alguns escorregavam pelo abismo entre os dois navios, afogando-se ou sendo esmagados pelas embarcações.
– Balestras! – gritou ela. – Balestras!
Atrás dos lanceiros, quase todas as balestras de seu navio tinham sido carregadas. A fileira de trás dos Orquídeas pegou-as e disparou uma saraivada por entre as
filas da frente; oito ou nove homens de Rodanov tombaram, mas ele próprio pareceu intocado. Um instante depois, os inimigos revidaram. Homens e mulheres caíram gritando
nas fileiras de Zamira, com setas emplumadas na cabeça ou no peito.
Os Soberanos tentavam pular por cima da abertura maior à direita da luta principal; alguns deles tiveram sucesso e estavam agarrados tenazmente à amurada dela, lutando
para subir. Drakasha resolveu esse problema por conta própria, cortando rostos e partindo crânios com os cabos dos sabres. Três, quatro... mais deles vinham. Drakasha
já estava ofegando: não era mais a lutadora incansável de outrora, refletiu pesarosa. Flechas cortavam o ar ao redor, mais tripulantes de Rodanov saltavam e parecia
que todos os malditos piratas do Mar de Bronze se encontravam no convés do Soberano Temível, enfileirados e esperando para invadir seu navio.
10
A “companhia de voo” de Locke estava ocupada com a amurada de estibordo do tombadilho enquanto Caladão e um dos seus companheiros usavam lanças para rechaçar nadadores
vindos de qualquer outro ângulo. Locke, Jean, Jabril e Gwillem tentavam afundar o segundo bote, que era bem mais forte do que o anterior.
As duas pedras atiradas por Jean haviam matado ou ferido pelo menos cinco pessoas, mas não fizeram buracos na madeira. Os tripulantes de Rodanov procuravam acertá-los
com arpéus, num duelo desajeitado com as lanças dos Orquídeas. Jabril gritou quando um gancho furou uma das suas pernas e deu o troco acertando o pescoço de um Soberano.
Gwillem se levantou e atirou uma bola de ferro contra o barco; foi recompensado pelo esforço com um grito de dor. Enfiou a mão no bolso do avental para pegar outra,
mas uma flecha brotou nas suas costas como por mágica. Ele cambaleou para a frente, contra a amurada de estibordo, e as bolas da funda rolaram pelo convés, num estrépito.
– Merda! – gritou Locke. – Estamos sem pedras grandes?
– Usei todas – respondeu Jean.
Uma mulher com uma adaga nos dentes deu um salto acrobático para a amurada e teria conseguido escalá-la se Jean não a tivesse acertado no rosto com um escudo. Ela
despencou na água.
– Maldição, sinto falta das minhas Irmãs Malvadas!
Jabril tentou acertar freneticamente com sua lança quatro ou cinco Soberanos que se seguravam na amurada; dois soltaram, mas num instante havia mais dois rolando
sobre o convés, com sabres na mão. Jabril caiu de costas e cravou a lança na barriga de um e Jean pôs as mãos na funda de Gwillem e passou-a pelo pescoço do outro,
estrangulando-o como nos velhos tempos em Camorr. Outro marinheiro surgiu, apontando apenas a cabeça, e empurrou uma balestra entre as hastes da amurada, mirando
Jean. Locke sentiu-se o lendário herói do barril de cerveja ao chutar o rosto do homem.
Gritos vindos da água anunciavam alguma novidade; cauteloso, Locke olhou por cima da borda. Uma massa borbulhante, gelatinosa, flutuava ao lado do bote como um cobertor
translúcido, pulsando com uma fraca luminescência interna que era visível até mesmo de dia. Um homem que nadava foi puxado, gritando. Em segundos, aquela substância
se nublou em vermelho e ele começou a ter espasmos. A coisa estava sugando o sangue dos seus poros como uma pessoa faria com o sumo de uma fruta madura.
Era uma lanterna-da-morte, como sempre atraída pelo cheiro de sangue na água. Era um modo medonho de morrer, mesmo para pessoas que Locke estava tentando matar com
todo o empenho – mas ela e outras sem dúvida viriam cuidar dos nadadores. Não havia mais Soberanos subindo pelo costado; os poucos que restavam no bote embaixo procuravam
freneticamente escapar da criatura. Locke largou sua lança e respirou fundo várias vezes, necessitado de fôlego. Uma flecha acertou a amurada 60 centímetros acima
de sua cabeça, outra passou sibilando, uma terceira atingiu o timão.
– Protejam-se! – gritou ele, olhando ao redor em busca de um escudo.
Jean o agarrou e o arrastou para a direita, segurando o corpo de Gwillem à frente. Jabril se arrastou para trás da bitácula e Caladão e seu colega se entrincheiraram
atrás do cadáver de Streva. Locke sentiu o impacto de pelo menos uma flecha se cravando no contramestre.
– Mais tarde a gente pode se sentir mal por usar os mortos desse jeito, mas, diabos, há um bocado deles por aí – berrou Jean.
11
Ydrena Koros passou por cima da amurada e quase matou Zamira com o primeiro golpe de sua cimitarra. A lâmina ricocheteou no Vidrantigo – mesmo assim Zamira ficou
furiosa ao ver que sua vigilância havia falhado. Golpeou de volta com os dois sabres, mas Ydrena, pequena e ágil, teve todo o espaço necessário para aparar um e
evitar o outro. Tão rápida, com tão pouco esforço! Zamira trincou os dentes. Eram duas lâminas contra uma e, ainda assim, Koros não parava de desferir sua arma.
Zamira perdeu o chapéu e quase perdeu o pescoço, aparando o golpe apenas no último segundo. Outro ataque sibilou contra seu colete, um segundo cortou uma braçadeira.
Merda – ela se encostou num dos seus próprios marinheiros. Não havia mais nenhum lugar aonde ir no convés.
Koros fez surgir uma adaga curva, de lâmina larga, na mão esquerda, fintou com ela e girou a cimitarra contra os joelhos de Zamira. A capitã soltou os sabres e entrou
na guarda de Koros, ficando peito a peito com ela. Agarrou os braços de Ydrena, forçando-os para trás e para baixo com toda a força. Naquilo, pelo menos, ela levava
vantagem. Além do mais, a luta suja prevalecia sobre a luta bonita.
Zamira deu uma joelhada na barriga de Ydrena, agarrou o cabelo dela e socou seu queixo. Os dentes de Ydrena fizeram um som parecido com bolas de bilhar se chocando.
Zamira puxou-a de pé e jogou-a de costas, contra a espada do Soberano que estava logo atrás. Um breve olhar de surpresa surgiu no rosto ensanguentado da mulher,
depois morreu com ela. Zamira sentiu mais alívio do que triunfo.
Pegou os sabres no convés e, quando o marinheiro à sua frente arrancou a espada do corpo de Ydrena e o deixou cair, encontrou de súbito uma das lâminas de Zamira
no peito. A batalha continuou, em movimentos mecânicos: os sabres subiam e desciam contra a maré de tripulantes de Rodanov, e as mortes se sucediam numa cacofonia
vermelha. Flechas voavam, o sangue deixava o convés escorregadio e os navios oscilavam, dando a tudo um ar de pesadelo.
Podiam ter se passado minutos ou séculos antes que ela visse Ezri ao lado, afastando-a da amurada. O pessoal de Rodanov recuava para se reagrupar, o convés estava
repleto de mortos e feridos; seus próprios sobreviventes praticamente pisavam em cima deles, tropeçando uns contra os outros e caindo também.
– Del – ofegou Zamira. – Está ferida?
– Não. – Ezri estava coberta de sangue; suas peças de couro tinham sido cortadas e o cabelo estava meio desgrenhado, mas, fora isso, ela parecia incólume.
– E a companhia de voo?
– Não faço ideia, capitã.
– Nasreen? Utgar?
– Nasreen está morta. Não vejo Utgar desde que a luta começou.
– Drakasha! – soou uma voz acima dos gemidos e murmúrios da confusão dos dois lados: era Rodanov. – Drakasha! Renda-se! Todo mundo, renda-se! Drakasha, escute!
12
Rodanov olhou para a flecha cravada no alto do seu braço direito. Doía, mas não era uma agonia profunda, lacerante, logo não atingira o osso. Fez uma careta, usou
a mão esquerda para firmar a ponta de flecha e partiu a haste logo acima, com a direita, ofegando. Até poder cuidar do ferimento do modo adequado, aquilo bastaria.
Sopesou seu porrete outra vez, fazendo pingar sangue no convés do Soberano.
Ydrena estava morta; maldição, fora sua imediata durante cinco anos. Ele tentara chegar perto dela, lascando escudos e empurrando lanças para o lado. Pelo menos
meia dúzia de Orquídeas o haviam enfrentado e ele reagira à altura. Tinha derrubado Dantierre no mar. Mas o espaço de luta era estreito demais, os movimentos dos
navios eram imprevisíveis, os tripulantes eram muito poucos ao seu redor. Zamira sofrera bastante, mas o ponto de contato reduzido o prejudicara. A ausência de tumulto
na popa do Orquídea sugeria que os botes passavam por dificuldades. Merda. Pelo menos metade de sua tripulação se fora. Era hora de soltar a segunda surpresa. O
pedido de interrupção na batalha era o sinal para revelá-la. Era tudo ou nada: a última partida, a última mão, a última rodada.
– Zamira, não me faça destruir seu navio!
13
– Vá para o inferno, seu filho da puta que viola juramentos! Venha tentar de novo, se acha que ainda tem tripulantes dispostos a morrer depressa!
Locke havia deixado Jabril, Caladão e o outro timoneiro – com as lanternas-da-morte, supôs – vigiando a popa. Ele e Jean foram rapidamente para a popa, de súbito
livre do ataque de flechas, passando pelos montes de mortos e feridos. A Erudita Treganne veio pisando firme, a perna falsa ressoando no convés, arrastando Rask
com apenas uma das mãos. No convés central, Utgar estava de pé, usando um gancho para levantar a grade do porão de carga principal, com uma bolsa de couro junto
aos pés. Locke presumiu que ele estivesse fazendo alguma coisa para a capitã e o ignorou.
Encontraram Drakasha e Delmastro na proa, com cerca de vinte Orquídeas sobreviventes olhando para um número duas vezes maior de Soberanos do outro lado. Ezri abraçou
Jean ferozmente; parecia ter passado por muito sangue, mas ainda não perdera nenhum do seu. Ali em cima, o Orquídea dava a impressão de não ter convés, só uma camada
de mortos e agonizantes. O sangue escorria pelos costados.
– Eu, não! – gritou Rodanov.
– Aqui! – berrou Utgar no centro do Orquídea. – Aqui, Drakasha!
Locke se virou e viu Utgar segurando uma esfera cinza, com cerca de 20 centímetros de diâmetro, com uma superfície curiosamente untuosa. Ele a aninhou na mão esquerda,
suspendendo-a acima da escotilha de carga aberta, e com a outra segurava algo que se projetava da parte de cima do artefato.
– Utgar – disse Drakasha –, que diabo você acha que...
– Não se mexa, porra, está bem? Ou você sabe o que eu faço com essa coisa.
– Deuses do céu, não acredito – sussurrou Ezri.
– Que diabo é aquilo? – perguntou Locke.
– Má notícia, a porra de uma péssima notícia: uma esfera mata-navio.
14
Ezri explicou rapidamente:
– Alquimia, alquimia negra, cara pra diabo. Você precisa ser a porra de um maluco para trazer uma para o mar. É pior que óleo de fogo, incandescente. Você não pode
tocar nela. Não pode chegar perto. Basta deixar no convés e ela queima e atravessa as tábuas direto, até as entranhas, e incendeia qualquer coisa. Diabos, provavelmente
põe fogo até na água. Ao menos não se apaga quando é molhada.
– Utgar – falou Drakasha –, seu filho da puta, seu traidor, como você pôde...
– Traidor? Não. Eu sou homem de Rodanov; sou e tenho sido desde antes de me juntar a você. A ideia foi dele, sabe? Se eu lhe prestei um bom serviço, Drakasha, só
estava fazendo meu trabalho.
– Mande atirarem nele – disse Jean.
– A coisa que ele está segurando é o pavio do fósforo de enrolar. Se ele mover a mão direita ou se nós o matarmos e fizermos aquilo cair, vai se acender. É para
isso que essas porcarias existem, entendeu? Um homem pode manter uma centena como prisioneiros se ficar parado no lugar certo.
– Utgar, nós estamos vencendo esta luta – tentou argumentar Drakasha.
– Você podia estar. Por que acha que eu agi?
– Utgar, por favor. Este navio está cheio de feridos. Meus filhos estão lá embaixo!
– É. Eu sei. Então é melhor baixar as armas, não acha? Encostem na amurada de estibordo. Arqueiros, desçam dos mastros. Fiquem todos calmos: tenho certeza de que
há um arranjo feliz esperando por todo mundo, menos por você, Drakasha.
– Gargantas cortadas e corpos jogados ao mar! – gritou Treganne, que apareceu no topo da escada de tombadilho com uma besta nas mãos. – Esse é o arranjo feliz, não
é, Utgar? – Ela foi mancando até a amurada do tombadilho e apoiou a balestra no ombro. – Este navio está cheio de feridos e eles são minha responsabilidade, seu
escroto!
– Treganne, não! – berrou Drakasha.
Mas já era tarde; Utgar deu um salto e estremeceu quando a seta se cravou em suas costas. A esfera cinza tombou para a frente e caiu de sua mão esquerda; a outra
puxou um cordão branco e fino. Utgar tombou no convés e seu instrumento sumiu de vista no porão embaixo.
– Ah, inferno – praguejou Jean.
– Não, não, não – sussurrou Ezri.
– As crianças – Jean pegou-se dizendo. – Eu posso pegá-las...
Ezri olhou para a escotilha de carga, pasma, encarou-o, depois voltou a fitar a escotilha.
– Não só eles: o navio inteiro.
– Eu vou – afirmou Jean.
Ela o agarrou, envolveu-o com tanta força que ele mal pôde respirar e sussurrou no ouvido dele:
– Jean Tannen, seu desgraçado. Você torna isso... você torna isso difícil demais.
E então lhe deu um soco no estômago, com mais força do que ele jamais achara possível. Jean caiu para trás, dobrado em agonia, percebendo as intenções de Ezri no
momento em que ela o soltou. Ele gritou em fúria. Mas ela já corria pelo convés, em direção à escotilha.
15
Locke soube o que Ezri pretendia fazer no instante em que a viu fechar o punho, mas Jean, com os reflexos embotados pelo amor, pela fadiga ou por ambos, obviamente
não sabia. Antes que Locke pudesse fazer qualquer coisa, ela empurrou Jean para trás e Locke tropeçou por cima dele. Locke ergueu os olhos bem a tempo de ver Ezri
pular no porão, onde uma claridade laranja artificial emanava da escuridão.
– Ah, Guardião Torto, que inferno – sussurrou ele, vendo tudo passar lentamente, como xarope esfriando...
Treganne junto à amurada do tombadilho, perplexa, obviamente ignorando o que suas boas intenções haviam provocado.
Drakasha saltando à frente, os sabres ainda nas mãos, lenta demais para impedir Ezri ou se juntar a ela.
Jean se arrastando, quase incapaz de se mexer, mas obrigando-se a ir atrás dela a qualquer custo, uma das mãos se estendendo inútil.
A tripulação dos dois navios olhando, apoiando-se nas armas e uns nos outros, tendo esquecido a luta por um momento.
Utgar alcançando a seta em suas costas, agitando-se debilmente. Fazia cinco segundos que Ezri saltara no porão de carga. Foi quando os gritos começaram.
16
Ela emergiu da escada do convés principal, segurando-a nas mãos. Não, mais do que isso, percebeu Locke horrorizado: ela devia saber que suas mãos não resistiriam,
por isso a aninhava junto ao corpo.
A esfera estava incandescente, um sol em miniatura, queimando com as cores vívidas de prata e ouro derretidos. Locke sentiu o calor contra a pele a 10 metros de
distância, retraiu-se por causa da luz, sentiu de imediato o cheiro estranho de metal queimado. Ezri correu o mais rápido possível, porém, mais perto da amurada,
passou a apenas caminhar rapidamente e depois saltitar, desesperada. Estava pegando fogo e gritava o tempo todo e era impossível pará-la.
Chegou à amurada de bombordo e, com um último esforço convulsivo, tanto das costas e das pernas quanto do que restava dos braços, jogou a esfera no Soberano Temível.
O artefato cresceu em brilho enquanto voava, um cometa de metal derretido, e os tripulantes de Rodanov se afastaram no momento em que bateu no convés.
Não se podia tocar aquela coisa, ela dissera. Isso não era verdade, mas Locke sabia que não era possível encostar nela e sobreviver. A flecha que a acertou na barriga
uma fração de segundo depois veio tarde demais. Ezri caiu no convés, soltando fumaça, e então todo o inferno se abriu pela última vez naquele dia.
– Rodanov! – gritou Drakasha. – Rodanov!
Houve uma erupção de luz e fogo no centro do Soberano: a esfera, rolando de um lado para o outro, havia finalmente explodido. A alquimia incandescente chovia pelas
escotilhas, pegava em velas, engolfava tripulantes e quase partiu o navio ao meio em segundos.
– Se eles vão queimar o Soberano, todos os tripulantes, tomem o Orquídea! – bradou Rodanov.
– Resistam! – ordenou Drakasha. – Vamos repelir a abordagem! Timão todo a bombordo, Caladão! Tudo a bombordo!
Locke sentiu um calor novo e crescente contra a bochecha direita; o Soberano já estava condenado e, se o Orquídea não se soltasse de seus ovéns, do gurupés e de
entulhos variados, o fogo engoliria os dois navios. Jean se arrastou lentamente para o corpo de Ezri. Locke ouviu sons de novas lutas irrompendo atrás e pensou por
um instante em lhes dar atenção, mas então percebeu que, se deixasse Jean naquele momento, jamais iria se perdoar. Ou merecer perdão.
– Santos deuses – sussurrou ao vê-la. – Por favor, não. Ah, pelos deuses.
Jean gemeu, soluçando, as mãos acima dela. Locke também não saberia onde tocá-la. Restava muito pouco dela: pele, roupas e cabelo queimados numa textura medonha.
E ela ainda se mexia, tentando debilmente se levantar. Ainda lutava por algo parecido com a respiração.
– Valora – chamou Treganne, mancando na direção deles. – Valora, não, não toque...
Jean deu um soco no convés e gritou. Treganne se ajoelhou ao lado do que restava de Ezri, tirando uma adaga da bainha no cinto. Locke ficou espantado ao ver lágrimas
escorrendo pelas bochechas dela.
– Valora, pegue isso. Ela já está morta. Ela precisa de você, pelo amor dos deuses.
– Não. – Jean soluçou. – Não, não, não...
– Valora, olhe para ela, maldição. Ela não pode mais ser ajudada. Cada segundo é uma hora para Ezri e ela está rezando por essa lâmina.
Jean arrancou a faca da mão de Treganne, passou a manga da túnica sobre os olhos e estremeceu. Ofegando apesar do cheiro terrível de queimado que pairava no ar,
moveu a faca na direção dela, com espasmos no mesmo ritmo dos soluços, como se tivesse tido um derrame. Treganne pôs as mãos sobre a dele, para firmá-la, e Locke
fechou os olhos.
E então tudo acabou.
– Sinto muito – lamentou-se Treganne. – Desculpe, Valora, eu não sabia... não sabia o que era aquela coisa, o que estava com Utgar. Desculpe.
Jean permaneceu em silêncio. Locke abriu os olhos de novo e o viu se levantando como num transe, os soluços praticamente interrompidos, a adaga ainda frouxa na mão.
Ele se moveu como se não visse nada da batalha que continuava furiosa ao redor, atravessando o convés na direção de Utgar.
17
Mais dez Orquídeas se lançaram à proa para protegê-la, seguindo as ordens de Zamira, empurrando o Soberano com toda a força com a ajuda de lanças, bicheiros e alabardas.
Soltavam o gurupés e os cordames do Orquídea enquanto os sobreviventes de Rodanov junto à proa lutavam feito demônios para escapar. Por fim, tiveram sucesso, com
a ajuda de Caladão, e os dois navios sofridos se separaram.
– Todos os tripulantes! – gritou Zamira, atordoada pelo esforço demasiado para se fazer ouvir. – Todos os tripulantes! Amuras e estais! Virando para oeste, à frente
do vento! Equipe de incêndio ao porão principal! Levem os feridos para Treganne, na popa! – Presumindo que Treganne estivesse viva, presumindo... muita coisa. Mais
tarde poderiam lamentar. Agora era hora de mais sofrimento.
Rodanov não havia participado da luta final para abordar o Orquídea; Zamira o vira pela última vez correndo para a popa, lutando através das chamas e indo para o
timão. Quer fosse um último esforço desesperançado para salvar o navio ou destruir o dela, ele tinha fracassado.
18
– Socorro – sussurrou Utgar. – Socorro, tire isso, não consigo alcançar.
Seus movimentos eram fracos e os olhos estavam ficando vítreos. Jean se ajoelhou ao lado, encarou-o e cravou a adaga nas costas dele. Utgar inspirou, em choque;
Jean continuou a golpear enquanto Locke olhava, até Utgar morrer, até suas costas estarem cobertas de ferimentos, até Locke o segurar pelo pulso.
– Jean...
– Isso não adianta de nada – disse Jean, numa voz incrédula. – Pelos deuses, não adianta.
– Eu sei. Eu sei.
– Por que você não a impediu? – Jean se lançou contra Locke, prendendo-o contra o convés, uma das mãos envolvendo seu pescoço. Locke engasgou e se debateu, sem sucesso,
como se esperava. – Por que você não a impediu?
– Eu tentei – garantiu Locke. – Ela empurrou você em cima de mim. Ela sabia o que iríamos fazer, Jean. Ela sabia. Por favor...
Jean soltou-o e sentou-se. Olhou para as mãos e balançou a cabeça.
– Ah, pelo amor dos deuses, desculpe. Desculpe, Locke.
– Sempre – respondeu Locke. – Jean, eu sinto tanto, tanto! Eu não... eu não queria que isso acontecesse por nada no mundo. Por nada no mundo, ouviu?
– Ouvi – disse ele baixinho. Em seguida, enterrou o rosto nas mãos e ficou mudo.
A sudeste, o incêndio a bordo do Soberano avermelhou o céu. Subiu rugindo pelos mastros e velas, fez chover lona queimada como cinza vulcânica sobre as ondas, devorou
o casco e enfim foi sumindo numa enorme montanha de fumaça e vapor enquanto o casco enegrecido do navio afundava.
– Ravelle – chamou Drakasha, pondo a mão no ombro de Locke e interrompendo seu devaneio –, se você puder ajudar, eu...
– Estou bem – assegurou Locke, levantando-se cambaleante. – Posso ajudar. Só talvez... deixar Jerome...
– É. Ravelle, nós precisamos...
– Zamira, chega. Chega de Ravelle isso, Kosta aquilo. Perto da tripulação, tudo bem. Mas meus amigos me chamam de Locke.
– Locke.
– Locke Lamora. Não... Ah, a quem, diabo, você iria contar? – Ele estendeu a mão e pôs sobre a dela e, num momento, os dois se abraçaram. – Desculpe – sussurrou
ele. – Ezri, Nasreen, Malakasti, Gwillem...
– Gwillem?
– É, ele... Um arqueiro do Rodanov, sinto muito.
– Pelos deuses... Gwillem estava no Orquídea quando eu o roubei. Era o último da tripulação original. Ra... Locke, Caladão está no timão e, por enquanto, estamos
em segurança. Preciso... preciso descer e ver meus filhos. E preciso... preciso que você cuide da Ezri. Eles não podem vê-la assim.
– Eu cuido disso. Olhe, desça. Eu cuido das coisas no convés. Vamos mandar o resto dos feridos para Treganne. Vamos cobrir todos os corpos.
– Muito bem – falou Zamira em voz baixa. – O convés é seu, mestre Lamora. Volto daqui a pouco.
O convés é meu, pensou Locke, olhando a destruição deixada ao redor pela batalha: cordames arrebentados, ovéns danificados, amuradas partidas, flechas cravadas praticamente
em todo lugar. Corpos apinhados em cada canto do convés central e do castelo de proa; sobreviventes moviam-se através de tudo isso como fantasmas, muitos se apoiando
em lanças e arcos como se fossem muletas.
Que os deuses nos acudam. Então é assim que se sente um comandante. Encarar as consequências e fingir que não se vacila.
– Jean – sussurrou ele, agachando-se junto ao amigo sentado no convés. – Jean, fique aqui. Fique o quanto quiser. Vou estar por perto. Só preciso cuidar das coisas,
está bem?
Jean assentiu debilmente.
– Certo – falou Locke, olhando de novo em torno, daquela vez procurando os menos feridos. – Konar! Grande Konar! Prepare uma bomba, a primeira que você encontrar
e que funcione. Enfie uma mangueira nessa escotilha de carga e dê uma boa encharcada no porão do convés principal. Não podemos ter nada queimando lá embaixo. Oscarl!
Venha cá! Traga lona de vela e facas. Precisamos fazer alguma coisa com esses... com todas essas pessoas.
Todos os tripulantes mortos no convés. Precisamos fazer alguma coisa com eles aqui, pensou Locke. E depois vou fazer alguma coisa com o pessoal de Tal Verrar. De
uma vez por todas.
CAPÍTULO DEZESSEIS
Acertando as contas
1
– Guardião Torto, Treze Silencioso, seu servidor o chama. Ponha os olhos sobre a passagem desta mulher, Ezri Delmastro, serviçal de Iono e sua serviçal. Amada de
um homem amado por você. – A voz de Locke ficou embargada e ele lutou para se controlar. – Amada de um homem que é meu irmão. Nós... lhe entregamos esta de má vontade,
Senhor, e não me importo em dizer isso.
Restavam 38 de pé; haviam jogado cinquenta no mar e o resto desaparecera durante a batalha. Locke e Zamira compartilharam os deveres fúnebres. As recitações de Locke
tinham ficado mais entorpecidas a cada morto, mas naquele momento, no último ritual da noite, ele se pegou amaldiçoando o dia em que fora escolhido como sacerdote
do Guardião Torto. No seu suposto décimo terceiro aniversário, sob a Lua do Órfão. Que poder e que magia ele sentira na época! O poder e a magia de fazer orações
fúnebres. Fez um muxoxo, enterrou os pensamentos cínicos em favor de Ezri e continuou:
– Esta é a mulher que salvou todos nós. É a mulher que derrotou Jaffrim Rodanov. Nós a entregamos, em corpo e espírito, ao reino de seu irmão Iono, poderoso Senhor
do Mar. Ajude-a. Carregue sua alma até Aquela que pesa todos nós. Imploramos isso com o coração esperançoso.
Jean se ajoelhou junto à mortalha de lona e pôs em cima um cacho de cabelos castanho-escuros.
– Minha carne – sussurrou ele, e furou o dedo com uma adaga, deixando uma gota vermelha cair. – Meu sangue. – Inclinou-se para a parte da lona que cobria a cabeça
e deu um beijo demorado. – Meu ar e meu amor.
– Essas coisas atam sua promessa – anunciou Locke.
– Minha promessa – confirmou Jean, levantando-se. – Uma oferenda de morte, Ezri. Que os deuses me ajudem a torná-la digna. Não sei se posso, mas que os deuses me
ajudem.
Zamira, parada ali perto, aproximou-se para segurar um dos lados da prancha de madeira que sustentava o corpo de Ezri enrolado em lona. Locke ajudou com o outro;
Jean, como havia alertado a Locke antes da cerimônia, estava incapacitado de auxiliar. Ele torceu as mãos e olhou para outro lado. Era uma hora após o pôr do sol
e num momento tudo acabou – Locke e Zamira inclinaram a prancha e a mortalha de vela deslizou pela portinhola de entrada, caindo nas ondas escuras lá embaixo.
O círculo silencioso de tripulantes exaustos, a maioria ferida, começou a se dispersar, de volta aos cuidados de Treganne ou aos seus grupos de serviço reduzidos.
Rask havia substituído Ezri, Nasreen e Utgar por enquanto; com a cabeça enrolada numa grossa bandagem de pano, ele começou a pegar os sobreviventes em melhor condições
e a passar tarefas.
– E agora? – indagou Locke.
– Agora seguimos com dificuldade, com o vento principalmente contra nós, de volta a Tal Verrar. – A voz de Zamira estava cansada, mas seu olhar era firme. – Tínhamos
um acordo antes disso. Eu perdi mais do que apostei, tanto em amigos quanto em tripulantes. Não temos força para tomar nem mesmo um barco de pesca, por isso acho
que o que resta está por sua conta.
– Como prometemos – concordou Locke. – Stragos. É. Leve-nos até lá e eu... vou pensar em alguma coisa.
– Não precisa – replicou Jean. – Só chegue perto e me mande para a terra. – Ele olhou para os pés. – Depois vão embora.
– Não – rebateu Locke. – Não vou ficar aqui enquanto...
– Só é preciso um para o que tenho em mente.
– Você acabou de prometer uma oferenda de morte...
– Ela vai receber. Nem que seja eu, ela vai receber.
– Você não acha que Stragos vai suspeitar se vir só um de nós?
– Vou dizer a ele que você morreu. Vou dizer que tivemos uma luta no mar e não estarei mentindo. Então ele vai me receber.
– Não vou deixar você ir sozinho.
– E não vou deixar você ir comigo. O que acha que pode fazer? Me impedir?
– Calem a boca, vocês dois – interveio Zamira. – Pelo amor dos deuses. Hoje de manhã mesmo, Jerome, seu amigo aqui tentou me convencer a deixar que ele fizesse exatamente
o que você está planejando fazer agora.
– O quê? – Jean olhou furioso para Locke e trincou os dentes. – Seu sujeitinho miserável e ardiloso, como pôde...
– O que foi? Você quer saber como pude pensar em fazer o que você está planejando fazer comigo? Seu pavão metido a besta, eu vou...
– Vai o quê?!
– ... vou me jogar contra você e você vai me encher de porrada. E aí você vai se sentir péssimo! O que acha disso, hein?
– Já me sinto péssimo. Por que você simplesmente não me deixa fazer isso? Por que não me concede isso? Pelo menos você vai estar vivo; pode tentar achar outro alquimista,
outro especialista em venenos. É uma oportunidade melhor do que a que eu tenho.
– Nem no inferno. Não é assim que a gente trabalha e, se você queria algo diferente, deveria ter me deixado sangrar até a morte em Camorr. Lembro que eu estava bem
decidido a isso, na ocasião.
– É, mas...
– É diferente quando é você, não é?
– Eu...
– Cavalheiros – interrompeu Zamira – ou sei lá o que vocês são. Deixando todas as outras considerações de lado, esta tarde eu dei meu bote pequeno ao Basryn para
que o sacana pudesse morrer nas ondas, e não no meu navio. Você terá uma tremenda dificuldade para chegar com um dos outros botes a Tal Verrar sozinho, Jerome. A
não ser que se proponha a voar, não vou levar o Orquídea a mais do que a distância de um tiro de flecha do quebra-mar de recifes.
– Eu nado se for preciso...
– Não banque o idiota por estar irritado, Jerome. – Drakasha o agarrou pelos ombros. – Seja frio. A frieza é a única coisa que vai ter utilidade se você quiser me
retribuir pelo que foi feito à minha tripulação. À minha imediata.
– Merda – murmurou Jean.
– Juntos – disse Locke. – Você não me deixou em Camorr nem em Vel Virazzo. De jeito nenhum vou deixar você aqui.
Jean fez uma cara feia, segurou a amurada e olhou para a água.
– É uma tremenda pena. Todo aquele dinheiro na Agulha do Pecado. Uma pena não podermos pegá-lo. Ou as outras coisas.
Locke sorriu, reconhecendo a mudança súbita de assunto como um modo de Jean ceder resguardando o próprio orgulho.
– Agulha do Pecado? – perguntou Zamira.
– Nós não contamos algumas partes da nossa história, Zamira. Desculpe. Às vezes essas tramas se enredam demais. Nós, ahn, temos alguns milhares de solaris nos livros-caixas
da Agulha do Pecado. Diabos, eu deixaria minha parte para você se houvesse como pegar, mas isso é impossível.
– Se ao menos existisse alguém na cidade que pudesse guardar um pouco dele para nós...
– Não adianta chorar sobre o leite derramado – observou Locke. – Duvido que tenhamos cultivado um único amigo em Tal Verrar que não seja contratado ou subornado.
Sem dúvida seria bom ter a porra de um amigo agora.
Juntou-se a Jean na amurada e fingiu estar tão concentrado no mar quanto ele, mas só conseguia pensar em corpos amortalhados caindo na água.
Corpos caindo, assim como ele e Jean haviam planejado usar cordas, para cair em segurança da...
– Espere um minuto. Um amigo. Um amigo. É disso que a gente precisa, porra. Nós jogamos com Stragos e Requin à vontade. Com quem não nos incomodamos em mexer nos
últimos dois anos? Quem nós ignoramos?
– Os templos?
– Boa tentativa, mas não. Quem tem um interesse direto nessa porcaria?
– O Priori?
– O Priori – confirmou Locke. – Aqueles sacanas gordos, cheios de segredos, de conluios. – Locke tamborilou no corrimão, tentando afastar a tristeza dos pensamentos
e forçar uma dúzia de planos frouxos, improváveis, numa trama coerente. – Pense. Com quem nós já jogamos? Quem nós encontrávamos na Agulha do Pecado?
– Ulena Pascalis.
– Não. Ela mal se sentava à mesa.
– De Morella...
– Não. Pelo amor dos deuses, ninguém o leva a sério. Quem poderia levar o Priori a fazer algo absolutamente ousado? Quem está por lá há tempo suficiente para exigir
respeito ou mexer os pauzinhos? Precisamos de alguém dos Sete Internos. Para o diabo com o resto.
Entender a política do Priori era o mesmo que prever o futuro com base em entranhas de frangos, pensou Locke. Havia três níveis de sete membros nos conselhos mercantis;
o objetivo de cada cadeira nos dois inferiores era de conhecimento público. Dos Sete Internos, só os nomes eram conhecidos – a hierarquia, as tarefas que realizavam,
tudo era um mistério para as pessoas de fora.
– Cordo – disse Jean.
– O Velho Cordo ou Lyonis?
– Os dois. Qualquer um dos dois. Marius é dos Sete Internos, Lyonis está subindo. E Marius é mais velho do que os bagos de Perelandro. Se alguém poderia mobilizar
o Priori, como parte de alguma coisa insana que você está sonhando em fazer...
– Só é meio insana.
– Eu conheço essa porra de expressão na sua cara! Tenho certeza de que qualquer um dos Cordos é o que você quer; uma pena não termos conhecido os sacanas. – Jean
encarou Locke com cautela. – Você está mesmo com aquela expressão. O que pretende fazer?
– Eu pretendo... e se eu pretendo me sair bem em tudo? Por que estamos tramando o suicídio como primeira opção? Por que pelo menos não tentamos primeiro? Pegar o
Requin. Fazer o serviço. Pegar Stragos. Espremer uma resposta ou um antídoto dele. Depois cair em cima dele, de um modo ou de outro.
Locke fez mímica de enfiar uma adaga num invisível Arconte de Tal Verrar. Era algo tão prazeroso que ele repetiu o gesto.
– Como, diabos, vamos fazer isso?
– Essa é uma pergunta fantástica. A melhor que você já fez na vida. Sei que precisamos de algumas coisas. Primeiro, pelo modo como as coisas andam ultimamente, todos
os verraris podem estar nos esperando no cais com balestras ou tochas. São necessários disfarces melhores. Qual é o sacerdócio mais ordinário dos Doze?
– O de Callo Androno – respondeu Jean.
– Com o perdão d’Ele, é isso mesmo.
Callo Androno, Olhos-nas-Encruzilhadas, deus das viagens, das línguas e do conhecimento tradicional. Seus sacerdotes itinerantes, além de seus estudiosos estabelecidos,
desdenhavam as roupas finas, orgulhando-se de suas vestes rústicas.
– Zamira – chamou Locke –, se ainda houver alguém a bordo capaz de usar linha e agulha, precisamos de dois mantos. Faça-os de pano de vela, restos de roupas, qualquer
coisa. É horrível falar isto, mas deve haver muitas roupas sobrando por aí agora.
– Os sobreviventes vão dividir os bens e eu vou repartir o dinheiro entre eles. Mas posso pegar umas coisas antes.
– E precisamos de alguma coisa azul.. As faixas de cabeça azul de Androno. Se as usarmos, seremos homens santos, e não vagabundos malvestidos.
– A túnica azul de Ezri – sugeriu Jean. – Está... deve estar na cabine, onde ela deixou. Meio desbotada, mas...
– Perfeito – comentou Locke. – Zamira, quando nós voltamos da primeira visita a Tal Verrar com este navio, eu lhe dei uma carta para guardar. Ela tem o sinete de
Requin. Jerome, preciso que você transfira o sinete, como Correntes nos mostrou. Você é melhor nisso do que eu e tem de ficar bom.
– Posso tentar. Não tenho certeza... não sei se posso ser bom em alguma coisa agora.
– Preciso que você dê o seu melhor. Preciso que você faça. Por mim. Por ela.
– Para onde você quer que o sinete seja transferido?
– Para um pergaminho limpo. Papel. Qualquer coisa. Você tem alguma folha, Zamira?
– Uma folha inteira? Não creio que Paolo e Cosetta tenham deixado alguma. Mas várias estão rabiscadas só em parte; talvez eu possa cortar uma ao meio.
– Faça isso. Jerome, você pode encontrar algumas ferramentas necessárias no meu antigo baú de viagem, na cabine de Zamira. Ele pode usá-lo, assim como algumas lanternas,
capitã?
– Paolo e Cosetta se recusam a sair do armário de cordas. Estão assustados demais. Eu levei roupas de cama e luzes alquímicas para eles. A cabine está à sua disposição.
– Você vai precisar das suas cartas também – lembrou Jean. – Pelo menos imagino que sim.
– Diabos, é, pretendo usar as cartas. Vou precisar delas, além do melhor equipamento que pudermos juntar. Adagas. Pedaços curtos de corda, de preferência de semisseda.
Dinheiro, Zamira, bolsinhas com 50 ou 60 solaris para o caso de termos de pagar para sair de algum problema. E uns cassetetes; se você não tiver, há areia e pano
de vela...
– E um par de machadinhas – completou Jean.
– Há duas na minha cabine. Na verdade, eu as peguei no seu baú.
– O quê? – O rosto de Jean se irradiou de empolgação. – Você está com elas?
– Eu precisava de um par. Não sabia que eram especiais, caso contrário teria devolvido quando você saiu da equipe do esfregão...
– Especiais? Elas são parte da família – disse Locke.
– É, graças aos deuses. E como tudo isso se encaixa, então? – perguntou Jean.
– Como eu disse, é uma pergunta excelente, em que eu pretendo pensar por longo tempo...
– Só vamos ver Tal Verrar de novo amanhã à noite, se o tempo permanecer assim – falou Zamira. – Garanto que você terá um longo tempo para pensar. E vai passar a
maior parte dele em cima do mastro de proa, como vigia. Ainda preciso que você seja útil.
– Claro – concordou Locke. – Claro. Capitã, ao chegarmos a Tal Verrar, leve-nos pelo norte se possível. Independentemente de qualquer coisa, nossa primeira parada
tem de ser no Quarteirão dos Mercadores.
– Cordo? – perguntou Jean.
– Cordo. O velho ou o novo, não importa. Eles vão nos receber nem que tenhamos de nos esgueirar pela porcaria das janelas.
2
– Que diab... – disse um serviçal corpulento e bem-vestido que teve o infortúnio de passar pela alcova do quarto andar por onde Locke e Jean tinham acabado de se
esgueirar.
– Ei, parabéns! – exclamou Locke. – Somos ladrões reversos, que viemos lhe dar 50 solaris!
Ele jogou a bolsa de moedas para o serviçal, que a pegou numa das mãos e ficou boquiaberto com o peso. Jean aproveitou a hesitação do homem e o acertou com o cassetete.
Tinham vindo pelo canto noroeste do último andar da mansão da família Cordo; ameias e espetos de ferro haviam tornado pouco atraente a subida até o telhado. Passava
pouco da décima hora da noite, uma perfeita noite do final de Aurim no Mar de Bronze, e Locke e Jean já tinham atravessado uma cerca viva de espinhos, se desviado
de três grupos de guardas e jardineiros e gastado vinte minutos escalando as pedras úmidas e lisas da residência.
A maior parte dos objetos necessários à empreitada estava enfiada em mochilas costuradas às pressas por Jabril. Possivelmente graças aos improvisados mantos de sacerdotes
de Callo Androno, ninguém disparara uma balestra contra eles desde que haviam posto os pés em território sólido verrari, mas a noite era uma criança, pensou Locke
– uma criança muito, muito pequena.
Jean arrastou o serviçal inconsciente para a alcova e olhou ao redor, procurando outras complicações, enquanto Locke fechava em silêncio a janela de vidro fosco
duplo e a trancava de novo. Uma fina peça de metal cuidadosamente entortada permitira que ele abrisse a tranca; as Pessoas Certas de Camorr chamavam essa ferramenta
de “ganha-pão” porque, se você pudesse entrar e sair de uma casa rica o bastante para ter janelas de vidro, seu jantar estava garantido.
Por acaso, Locke e Jean tinham invadido um número suficiente de casas grandiosas como aquela – ainda que nenhuma tão ampla – para saber vagamente onde procurar sua
presa. Os quartos principais costumavam ser adjacentes a cômodos confortáveis como salas de fumar e de estar, escritórios e...
– Biblioteca – murmurou Jean, andando em silêncio pelo corredor da direita, ao lado de Locke.
Luzes alquímicas em nichos com cortinas de bom gosto davam ao lugar um agradável brilho laranja-dourado. Através de uma porta dupla aberta no meio do corredor, à
esquerda, Locke vislumbrou prateleiras repletas. Não havia outros serviçais à vista.
A biblioteca era uma maravilha: devia conter mil volumes, além de centenas de rolos de pergaminho em fileiras e caixas organizadas. Mapas das constelações, pintados
em couro curtido alquimicamente, decoravam os poucos espaços vazios das paredes. Duas portas fechadas, à esquerda e à frente, levavam a outros cômodos internos.
Locke se encostou na porta da direita, ouvindo. Escutou um leve murmúrio, virou-se para Jean e o avistou parado junto a uma estante de livros. Jean puxou um fino
volume em oitavo – com cerca de 15 centímetros de altura – e enfiou-o rapidamente na mochila. Locke sorriu.
Naquele momento, a porta da esquerda se abriu, dando-lhe uma pancada inofensiva mas dolorida na nuca. Ele girou e deu de cara com uma jovem que carregava uma bandeja
de prata vazia. Ela abriu a boca para gritar e Locke a tapou com a mão esquerda, pegando uma adaga com a direita. Empurrou-a para o cômodo de onde ela viera, sentindo
os pés afundarem num tapete fofo com 2 centímetros de espessura.
Jean veio atrás dele e fechou a porta. A bandeja da serviçal caiu no tapete e Locke a empurrou de lado. A mulher caiu nos braços de Jean com um “Uuunf!” de surpresa
e Locke se viu ao pé de uma cama que devia ter 3 metros de lado, envolvida em seda suficiente para fabricar as velas de um iate razoavelmente grande.
Sentado em travesseiros na outra ponta daquela cama, parecendo menor diante de tanto espaço vazio e opulento, estava um velho murcho de camisola de seda verde. Seu
cabelo comprido, cor de espuma do mar, caía sobre os ombros. Ele examinava uma pilha de papéis sob uma luz alquímica.
– Marius Cordo, imagino – disse Locke. – Para o futuro, posso sugerir que você invista em algum mecanismo de artífice para os fechos das suas janelas?
O velho ergueu os olhos e arregalou-os, deixando cair os papéis das mãos.
– Ah, que os deuses me acudam! – exclamou ele. – Que os deuses me protejam! É você!
3
– Claro que sou eu – falou Locke. – Só que você ainda não sabe quem, diabos, sou eu.
– Mestre Kosta, podemos discutir isso. O senhor deve saber que sou um homem razoável e extremamente rico...
– Certo, você sabe quem, diabos, eu sou – cortou Locke, inquieto. – E estou cagando e andando para o seu dinheiro. Estou aqui para...
– No meu lugar, o senhor teria feito a mesma coisa – interrompeu Cordo. – Eram negócios, apenas negócios. Poupe-me e deixe que esta também seja uma decisão de negócios,
baseada em ouro, joias, finos produtos alquímicos...
– Mestre Cordo, olhe, eu... – Ele fez um muxoxo, virou-se para a serviçal. – Esse homem está... é... senil?
– Ele é absolutamente lúcido – respondeu ela com frieza.
– Garanto que sou – rugiu Cordo. A raiva mudou suas feições por completo. – E não serei tirado dos negócios por assassinos no meu próprio quarto! Agora, ou vocês
me matam logo ou negociam o preço de minha soltura!
– Mestre Cordo, diga-me duas coisas, e seja perfeitamente claro com relação a ambas, porra. Primeiro, como sabe quem eu sou? Segundo, por que acha que eu vim aqui
para matá-lo?
– Me mostraram seus rostos numa poça d’água.
– Numa poça... – Locke sentiu o estômago se revirar. – Ah, maldição, foi um...
– Um Mago-Servidor de Kartane, representando sua guilda numa questão pessoal. Sem dúvida o senhor percebe agora...
– Você. Eu teria feito o mesmo no seu lugar, foi o que você disse. Você mandou aqueles malditos assassinos atrás de nós! Aqueles escrotos no cais, aquele garçom
com o veneno, aqueles homens na noite da Festa...
– É óbvio. E vocês foram esquivos, infelizmente. Com um pouco de ajuda de Maxilan Stragos, imagino.
– Infelizmente? Infelizmente? Cordo, você não faz ideia de como você é um filho da puta sortudo por eles não terem tido sucesso! O que os Magos-Servidores contaram
a você?
– Ora, sobre os seus planos...
– Fale com as palavras deles ou eu mato você de verdade!
– Que vocês são uma ameaça ao Priori e que, devido a pagamentos anteriores feitos por nós, eles consideraram interessante avisar sobre a presença de vocês.
– Quer dizer, aos Sete Internos.
– É.
– Seus sacanas estúpidos. Os Magos-Servidores usaram você, Cordo. Considere isso na próxima vez em que pensar em dar dinheiro a eles. Mestre de Ferra e eu estamos
na porra da lista deles, de quem querem foder, e eles nos jogaram entre você e Stragos, para se divertirem. É só isso! Nós não viemos aqui para fazer nada contra
o Priori.
– É o que você diz...
– Por que não o matamos ainda, então?
– Este é um ponto ao mesmo tempo agradável e vexatório – respondeu Cordo, mordendo o lábio.
– O fato é que, por motivos além da sua compreensão, eu invadi sua casa para entregar a cabeça de Maxilan Stragos numa bandeja.
– O quê?
– Não de forma literal. Eu tenho planos para aquela cabeça e sei como você ficaria bastante feliz em ver o Arconato chutado feito um formigueiro. Eu pretendo retirar
Maxilan Stragos do poder permanentemente esta noite. E preciso da sua ajuda.
– Mas... você é algum tipo de agente do Arconte...
– Jerome e eu somos agentes relutantes. O alquimista pessoal de Stragos nos deu um veneno latente. Enquanto Stragos controlar o antídoto, podemos servi-lo ou morrer
de um modo medonho. Mas o escroto acabou nos pressionando demais.
– Vocês poderiam ser... poderiam ser provocadores enviados por Stragos para...
– Para o quê? Testar a sua lealdade? Em que tribunal, sob que juramento, diante de qual lei? E por que ainda não o matamos?
– Hum... é um argumento válido.
– Aqui – disse Locke, rodeando a cama para sentar-se ao lado de Cordo. – Pegue uma adaga. – Ele jogou a arma no colo do velho no mesmo momento em que bateram à porta.
– Pai! Pai, um serviçal está ferido! O senhor está bem? Pai, eu vou entrar!
– Meu filho tem uma chave – explicou Cordo enquanto a porta era destrancada.
– Ah, então vou precisar disso de volta. – Ele pegou a adaga e apontou-a para Cordo de um modo vagamente ameaçador. – Fique parado. Isso não vai demorar mais de
um minuto.
Um homem forte, de 30 e poucos anos, irrompeu no quarto com um florete ornamentado nas mãos. Lyonis Cordo, membro do segundo nível do Priori, único herdeiro e viúvo
havia vários anos. Talvez o solteirão mais cobiçado de toda Tal Verrar, e, de forma notável, raramente visitava a Agulha do Pecado.
– Pai! Alacyn! – Lyonis deu um passo para dentro do quarto, brandindo a arma com um floreio e abrindo os braços para bloquear a porta. – Soltem eles, seus desgraçados!
Os guardas da casa estão acordados e vocês jamais descerão até a...
– Ah, pelo amor de Perelandro, nem vou atuar. – Locke devolveu a adaga ao Velho Cordo, que a segurou entre dois dedos como se fosse uma espécie de inseto capturado.
– Olhe. Pronto. Que tipo de assassino esdrúxulo eu sou? Guarde sua espada, feche a porta e abra os ouvidos. Temos muitos negócios a discutir.
– Eu... mas...
– Lyonis – interveio o pai –, este homem está fora de si, mas, como diz, nem ele nem seu colega são assassinos. Guarde a arma e diga aos guardas para... – Ele se
virou para Locke com suspeita. – Você feriu muito algum empregado meu ao invadir a casa, Kosta?
– Só uma pancadinha na cabeça. A gente faz isso o tempo todo. Ele vai ficar bem, quem quer que seja.
– Ótimo. – Marius suspirou e devolveu cuidadosamente a adaga a Locke, que a enfiou de volta no cinto. – Lyonis, mande os guardas ficarem longe. Depois tranque a
porta e sente-se.
– Posso ir embora, já que ninguém vai cometer nenhum assassinato nestes aposentos? – perguntou Alacyn.
– Não. Desculpe. Você já ouviu demais. Acomode-se para ouvir o resto. – Locke se virou para o Velho Cordo. – Olhe, por motivos óbvios, ela não pode sair desta casa
até que nosso negócio desta noite seja concluído, certo?
– Por todos os...
– Não, Alacyn, ele está certo. – Marius gesticulou para acalmá-la. – Muita coisa depende disso e, se você for leal a mim, sabe bem. Se, perdão, você não for, sabe
melhor ainda. Vou deixá-la confinada no escritório, onde ficará confortável. E eu vou recompensá-la muito, muito bem por isso, prometo.
Solta por Jean, ela sentou-se num canto e cruzou os braços, mal-humorada. Lyonis, parecendo duvidar da própria sanidade, dispensou o esquadrão de brutamontes que
chegou à biblioteca um instante depois e embainhou o florete. Fechou a porta do quarto e encostou-se nela, a carranca combinando com a de Alacyn.
– Bom, como eu estava dizendo – continuou Locke –, no fim desta noite, haja o inferno ou o fogo dos Ancestres, meu colega e eu estaremos perto de Maxilan Stragos.
De um modo ou de outro, vamos retirá-lo do poder. Possivelmente da própria vida se não tivermos escolha. Mas, para conseguir o que desejamos, exigimos algumas coisas
de vocês. E, se aceitarem entrar nessa, devem entender que assim funcionará. Estou falando sério. Quaisquer que sejam seus planos para tomar a cidade de Stragos,
estejam prontos para acioná-los. Quaisquer que sejam suas medidas para manter o exército e a marinha dele de mãos atadas até lembrarem quem paga os salários, ponham-nas
em prática.
– Retirar Stragos? – Lyonis pareceu pasmo e alarmado ao mesmo tempo. – Pai, esses homens são loucos...
– Quieto, Lyo. – Marius levantou a mão. – Esses homens afirmam que estão numa posição única para concretizar a mudança que desejamos. E... abriram mão de me causar
mal em represália a certas atitudes contra eles. Vamos ouvi-los.
– Ótimo – disse Locke. – Vocês precisam entender o seguinte: dentro de duas horas, mestre de Ferra e eu vamos ser presos pelos Olhos do Arconte quando sairmos da
Agulha do Pecado...
– Presos? – interrompeu Lyonis. – Como vocês podem saber...
– Porque eu vou marcar um encontro. E vou pedir a Stragos para nos prender.
4
– O Protetor não vai recebê-los, nem a dama. Essas são as nossas ordens.
Locke podia sentir a expressão desdenhosa do Olho, mesmo através da máscara.
– Agora vá – disse Locke ao chegar com Jean ao atracadouro do Arconte no barco menor e mais ágil que tinham conseguido com Marius. – Diga a ele que fizemos o que
ele pediu quando nos vimos pela última vez e que precisamos mesmo falar sobre isso.
O oficial demorou alguns segundos pensando, depois foi até a corrente para dar o sinal. Enquanto esperavam uma decisão, Locke e Jean tiraram todas as armas e equipamentos,
colocaram-nos nas sacolas e deixaram tudo no fundo do bote. Por fim, Merrane apareceu no topo da escada e chamou-os; eles foram revistados com a meticulosidade de
sempre e acompanhados até o escritório do Arconte.
Jean tremeu ao ver Stragos, que estava de pé atrás da mesa. Locke notou-o fechando e abrindo os punhos, por isso apertou seu braço.
– Boas notícias? – perguntou o Arconte.
– Alguém veio informar um incêndio no mar ontem, por volta do meio-dia, a oeste da cidade? – indagou Locke.
– Dois navios mercantes informaram sobre uma grande coluna de fumaça no horizonte oeste. Mais nenhuma notícia, que eu saiba, e nenhum sindicato informando nenhuma
perda.
– Logo, logo eles farão isso. Um navio queimado e afundado. Sem sobreviventes a bordo. Ia para a cidade e estava pesado de tanta carga, por isso tenho certeza de
que, com o tempo, sua falta será sentida.
– Com o tempo... E o que vocês querem agora, um beijo no rosto e um prato de doces? Eu disse para não me incomodarem até...
– Pense no nosso primeiro afundamento como dinheiro garantido. Decidimos mostrar nosso vinho e bebê-lo também.
– O que isso significa?
– Queremos os frutos dos nossos esforços na Agulha do Pecado. Queremos o que levamos dois anos para conseguir. E queremos esta noite, antes de fazermos qualquer
outra coisa.
– Bom, vocês não podem ter necessariamente esta noite. Ora, vocês acham que eu vou lhes dar algum tipo de documento, uma requisição educada ao Requin para permitir
que vocês carreguem o que querem?
– Não, mas nós vamos lá esta noite e, até estarmos longe, em segurança, com o botim, nenhum outro navio será afundado nas suas águas pelas mãos do Orquídea Venenosa.
– Você não dita os termos de seu trabalho para mim...
– Na verdade, eu dito. Ainda que estejamos confiando em você para nos devolver nossa vida após o fim da escravidão, não confiamos mais que as circunstâncias nesta
cidade nos permitirão levar adiante o esquema da Agulha do Pecado depois de você ter o que quer. Pense, Stragos. Nós certamente já pensamos. Se você pretende colocar
o Priori sob seu domínio, poderá haver caos. Derramamento de sangue e prisões. Requin está de conluio com o Priori; a fortuna dele precisa estar intacta se quisermos
roubá-la. Portanto, desejamos primeiro ter o que é nosso em mãos antes de concluirmos seu negócio.
– Seu arrogante...
– Sim! Eu! Arrogante! Ainda precisamos da porra do antídoto, Stragos. Ainda precisamos recebê-lo da sua mão. E exigimos outro adiamento, no mínimo. Esta noite. Quero
ver seu alquimista ao seu lado quando voltarmos aqui, dentro de duas horas.
– Por todos os malditos... Como assim, quando voltarem aqui?
– Só há um modo de nós sairmos em segurança da Agulha do Pecado, depois de Requin se dar conta de que passamos a perna nele. Precisamos sair de lá e cair direto
nas mãos dos seus Olhos, que vão estar esperando para nos prender.
– Por que, diante de todos os deuses, eu mandaria que fizessem isso?
– Porque, assim que estivermos aqui de novo, em segurança, vamos sair discretamente, voltar ao Orquídea Venenosa e, mais tarde, nesta noite mesmo, atacar a própria
Marina de Prata. Drakasha tem 150 tripulantes e nós passamos a tarde tomando dois barcos de pesca para usar como embarcações incendiárias. Você queria ter a bandeira
vermelha à vista de sua cidade? Pelos deuses, vamos colocá-la no porto. Vamos golpear e queimar o máximo possível e acertar o que estiver ao nosso alcance na saída.
O Priori estará junto aos nossos portões com sacos de dinheiro, implorando por um salvador. O povo vai se rebelar se não tiver esse salvador. Isso é o bastante?
Podemos fazer o que você quer. Podemos fazer esta noite. E um ataque punitivo contra as Ilhas dos Ventos Fantasmas... bom, com que rapidez você consegue arrumar
o seu baú de viagem, Protetor?
– O que você vai tomar do Requin? – perguntou Stragos após uma longa ruminação silenciosa.
– Nada que não possa ser transportado por um homem com muita pressa.
– O cofre de Requin é impenetrável.
– Nós sabemos. O que queremos não está dentro dele.
– Como posso ter certeza de que vocês não morrerão?
– Nós morremos se não ficarmos sob a custódia pública e legal de seus Olhos. E depois sumimos, levados embora, devido a crimes contra o Estado verrari, numa determinada
questão que é prerrogativa do Arconato. Uma prerrogativa que em pouco tempo você terá o direito de alardear. Ande, admita que o plano é lindo.
– Você vai deixar o objeto do seu desejo comigo – exigiu o Arconte. – Roube-o. Ótimo. Transporte-o para cá. Mas como você precisa que seu veneno seja neutralizado
de qualquer modo, vou guardá-lo até nos separarmos de vez.
– Isso é...
– Um conforto necessário para mim – completou Stragos, num tom ameaçador. – Dois homens que sabem estar diante da morte certa poderiam fugir facilmente e depois
beber, farrear e se deitar com prostitutas durante várias semanas antes do fim, caso encontrassem uma grande quantia em dinheiro, não é?
– Acho que você está certo – respondeu Locke, fingindo irritação. – Absolutamente tudo que deixarmos com você...
– Receberá um cuidado escrupuloso. Seu investimento de dois anos o estará esperando.
– Acho que, então, não temos escolha. Concordo.
– Mandarei redigir um mandado de prisão contra Leocanto Kosta e Jerome de Ferra. E concederei esse pedido. E então, pelos deuses, é melhor que você e aquela puta
syresti façam o que é necessário.
– Faremos. Da melhor maneira possível. Foi feito um juramento.
– Meus soldados...
– Olhos – interrompeu Locke. – Mande Olhos. Deve haver agentes do Priori entre os soldados comuns e eu confio que você fica de olho nos seus Olhos, por assim dizer.
Além disso, eles fazem as pessoas se cagar de medo. Esta é uma operação de choque.
– Hummm. A sugestão é razoável.
– Então ouça atentamente, por favor.
5
Era bom ser eles mesmos.
Emergir de um longo período de identidade falsa podia ser como respirar depois de um quase afogamento, pensou Locke. Agora toda as múltiplas camadas de mentiras
estavam sendo descascadas, ficando para trás, enquanto eles subiam pela última vez a escada dos Degraus de Ouro. Agora que sabiam qual era a origem dos assassinos
misteriosos, não tinham necessidade de se fingir de sacerdotes e se esgueirar pelos cantos; podiam andar como simples ladrões, com as autoridades da cidade nos seus
calcanhares. Ele e Jean deveriam estar adorando a situação, gargalhando juntos, desfrutando da alegria ofegante que sempre sentiam com um crime bem executado. Mais
ricos e mais espertos do que todos os outros. Mas naquela noite só Locke falava e Jean lutava para manter a compostura, até o momento em que pudesse golpear, e que
os deuses ajudassem quem estivesse no seu caminho.
Calo, Galdo e Pulga, pensou Locke. Ezri. Tudo que ele e Jean tinham desejado era roubar o máximo que pudessem carregar e rir o tempo todo, até se afastar a uma distância
segura. Por que isso lhes custara tantos entes amados? Por que um filho da puta idiota sempre precisava imaginar que era possível atravessar impunemente o caminho
de um camorri?
Porque não é possível. Nós provamos isso uma vez e vamos provar de novo esta noite, diante de todos os deuses.
6
– Fiquem longe da entrada de serviço, seus... Ah, que os deuses me protejam, são vocês! Socorro!
O leão de chácara que havia recebido nas costelas os dolorosos cuidados de Jean no encontro anterior se encolheu enquanto os Nobres Vigaristas corriam pelo pátio
de serviço na direção deles. Locke viu que o homem usava uma espécie de cinta rígida por baixo do tecido fino da túnica.
– Não viemos machucar você – garantiu Locke, ofegando. – Chame... Selendri. Chame-a agora.
– Vocês não estão vestidos para falar com...
– Chame-a agora e ganhe uma moeda – insistiu Locke, enxugando o suor da testa – ou fique aí mais dois segundos e tenha a porra da costela quebrada de novo.
Meia dúzia de funcionários da Agulha do Pecado se reuniu em volta, para o caso de haver encrenca, mas não fizeram movimentos hostis. Alguns minutos depois de o homem
ferido sumir dentro da torre, Selendri voltou.
– Vocês dois deveriam estar no mar...
– Não há tempo para explicações, Selendri. O Arconte ordenou que fôssemos presos. Há um esquadrão de Olhos vindo nos pegar agora mesmo. Vão chegar aqui em minutos.
– O quê?!
– Ele descobriu de algum modo. Ele sabe que estávamos tramando com vocês contra ele e...
– Não fale sobre isso aqui – sibilou Selendri.
– Esconda-nos. Esconda-nos, por favor!
Locke pôde ver pânico, frustração e cautela guerreando no lado incólume do rosto dela. Deixá-los ali para enfrentar o destino e permitir que revelassem tudo o que
sabiam aos torturadores do Arconte? Matá-los no pátio, diante de testemunhas, sem a explicação plausível de uma queda “acidental”? Não. Precisava levá-los para dentro.
Por enquanto.
– Venham – ordenou. – Depressa. Você e você, revistem-nos.
Funcionários da Agulha obedeceram, tirando suas adagas e bolsas de moedas. Selendri pegou-as.
– Este aqui tem um baralho – avisou um deles depois de remexer nos bolsos de Locke.
– Isso é a cara dele – respondeu Selendri. – Não ligo. Vamos ao oitavo andar.
Entraram pela última vez no grandioso templo da avareza de Requin. Passando pelas multidões e pelas camadas de fumaça que pairavam feito espíritos inquietos, subiram
a ampla escadaria espiral percorrendo os andares de fineza e risco crescentes.
Locke olhava ao redor: seria sua imaginação ou não havia nenhum membro do Priori por ali? Subiram ao terceiro andar, ao quarto – e ali, naturalmente, ele quase trombou
com Maracosa Durenna, que o olhou boquiaberta com uma bebida na mão enquanto Selendri e seus guardas o arrastavam. No rosto de Durenna, Locke viu mais do que perplexidade
ou irritação: ela estava puta da vida.
Locke podia imaginar como ela os via: mais cabeludos, mais magros e queimados de sol. Para não mencionar malvestidos, suados e claramente numa tremenda encrenca
com a casa. Sorriu, acenou para Durenna e ela ficou para trás.
Passaram pelos últimos andares, pelas camadas mais rarefeitas da casa. Ainda nenhum membro do Priori. Seria coincidência ou um sinal encorajador?
Chegaram ao escritório de Requin, onde o Senhor da Agulha estava parado diante de um espelho, vestindo um casaco de noite, de abas compridas, com acabamento de brocado
de prata. Ele pareceu irritado ao ver Locke e Jean, a maldade em seus olhos combinando com a feroz luz alquímica de seus ópticos.
– Olhos do Arconte – explicou Selendri. – Estão vindo prender Kosta e De Ferra.
Requin rosnou, saltou adiante como um esgrimista e deu um tapa em Locke com as costas da mão, com uma força espantosa. Locke deslizou pelo chão de costas e bateu
na mesa de Requin. Badulaques chacoalharam de modo alarmante acima dele e um prato de metal caiu com estardalhaço nos ladrilhos.
Jean avançou, mas os dois corpulentos funcionários da Agulha o agarraram pelos braços e, com um estalo bem lubrificado, Selendri liberou suas lâminas ocultas para
dissuadi-lo.
– O que você fez, Kosta? – rugiu Requin.
Ele chutou Locke na barriga, jogando-o de novo contra a mesa. Uma taça de vinhou caiu e se espatifou no chão.
– Nada – respondeu Locke, arfando. – Nada, ele simplesmente sabia, Requin, sabia que estávamos conspirando contra ele. Tivemos de fugir. Os Olhos estão nos nossos
calcanhares.
– Olhos vindo à minha Agulha – rosnou Requin. – Olhos que podem estar a ponto de violar uma tradição importantíssima dos Degraus de Ouro. Você me colocou numa situação
muito delicada, Kosta. Você fodeu com tudo, não foi?
– Desculpe – lamentou-se Locke, ficando de quatro. – Desculpe, não havia para onde fugir. Se ele... se ele puser as mãos em nós...
– Certo. Vou lidar com os seus perseguidores. Vocês dois, permaneçam aqui. Vamos discutir isso no momento em que eu voltar.
Quando voltar, pensou Locke, você trará mais funcionários. E Jean e eu vamos “escorregar” pela janela.
Era hora de agir.
Os saltos das botas de Requin ecoaram primeiro contra ladrilhos, depois contra o ferro de sua pequena escada durante sua descida até o andar de baixo. Os dois funcionários
que seguravam Jean o soltaram, mas ficaram de olho nele, e Selendri se encostou na mesa de Requin, com as lâminas a postos. Ela olhou friamente para Locke enquanto
ele se levantava de novo, contraindo-se.
– Não tem mais coisinhas doces para murmurar no meu ouvido, Kosta?
– Selendri, eu...
– Você sabia que ele estava planejando matá-lo, mestre de Ferra? Que os negócios dele conosco nesses últimos meses dependiam de nós permitirmos que isso acontecesse?
– Selendri, escute, por favor...
– Eu sabia que você era um investimento ruim. Só não percebi que a situação iria dar uma virada tão repentina.
– É, você estava certa. Era um investimento ruim e não duvido que Requin vá ouvi-la com mais atenção no futuro. Porque eu jamais quis matar Jerome de Ferra. Jerome
de Ferra não existe. Nem Calo Callas. Na verdade – continuou ele com um sorriso largo –, você acabou de nos trazer exatamente aonde queríamos, para receber a recompensa
por dois longos anos de trabalho duro, para que possamos roubar a porra toda de você e do seu chefe.
O som seguinte na sala foi um funcionário da Agulha do Pecado batendo na parede, com a impressão de um punho de Jean avermelhando todo um lado do seu rosto.
Selendri agiu com velocidade notável, mas Locke estava preparado para ela; não para lutar, mas apenas para se desviar e ficar longe daquela mão cheia de lâminas.
Pulou por cima da mesa, espalhando papéis, e gargalhou enquanto os dois fintavam de um lado para o outro, dançando para ver quem passaria primeiro pelo móvel.
– Então você vai morrer, Kosta.
– Ah, e você estava planejando nos poupar. Faça-me o favor. Por sinal, Leocanto Kosta também não existe. Há muitas coisinhas que você não sabe, viu?
Jean deu uma testada no rosto do segundo funcionário, partindo o nariz dele, e o homem caiu de joelhos, gorgolejando. Jean passou por trás dele e acertou o cotovelo
em sua nuca com toda a força. Locke estava tão concentrado em evitar Selendri que se retraiu com o barulho do crânio do sujeito batendo no chão.
Um instante depois, Jean surgiu atrás de Selendri, com sangue do nariz quebrado do funcionário escorrendo pelo rosto. Ela golpeou com suas lâminas, mas a raiva de
Jean o impulsionava de uma forma rara, maligna. Ele agarrou o antebraço de bronze, dobrou-a ao meio com um soco na barriga, girou-a e agarrou-a pelos braços. Ela
se debateu e lutou para respirar.
– Este é um belo escritório – comentou Jean baixinho, como se tivesse acabado de apertar a mão de Selendri e de seus funcionários em vez de espancá-los.
Locke franziu a testa, mas deu prosseguimento ao plano: não podia perder tempo.
– Olhe com atenção, Selendri, porque só posso fazer esse truque uma vez. – Ele pegou suas cartas fraudulentas e as embaralhou de modo teatral. – Há alguma bebida
na casa? Uma bebida muito forte, do tipo que provoca lágrimas nos olhos e fogo na garganta?
Ele fingiu surpresa diante de uma garrafa de conhaque na prateleira atrás da mesa de Requin, perto de uma tigela de prata cheia de flores.
Locke pegou o recipiente, jogou as flores no chão e colocou-o na mesa. Depois, abriu a garrafa e derramou o líquido marrom na tigela, até encher cerca de três dedos.
– Agora, como você pode ver, não estou segurando nada nas mãos a não ser este baralho perfeitamente normal, perfeitamente comum. Será?
Ele embaralhou pela última vez e jogou as cartas na tigela. Elas amoleceram, distenderam-se e começaram a borbulhar e espumar. As figuras e os símbolos se dissolveram,
primeiro numa gosma branca riscada de cores, depois numa gosma cinza e oleosa. Locke encontrou uma faca de manteiga de ponta arredondada num pequeno prato no canto
da mesa e usou-a para mexer vigorosamente a gosma cinza até que todos os traços das cartas tivessem sumido.
– Que diabo você está fazendo? – perguntou Selendri.
– Cimento alquímico. Pequenas folhas de resina pintadas para parecer cartas de baralho, elaboradas para reagir com alguma bebida forte. Pelos doces deuses, você
não quer saber quanto isso me custou. Diabos, eu não tinha opção a não ser vir roubar vocês, depois que mandei fazê-las.
– O que você pretende...
– Devido a uma experiência profissional vívida, sei que esta bosta seca até ficar mais dura do que aço. – Ele correu até o ponto da parede onde o armário ascensor
emergiria e começou a passar a gosma cinza por cima de todos os vãos quase invisíveis que indicavam a porta. – Assim, depois que eu pintar isto nesta linda entrada
oculta e derramar na fechadura da porta principal, bom... em cerca de um minuto, Requin vai precisar de um aríete se quiser ver de novo seu escritório esta noite.
Selendri tentou gritar por socorro, mas sua garganta era muito danificada e saiu apenas um som alto e lúgubre, que não chegou ao andar de baixo com a força necessária.
Locke desceu correndo a escada de ferro, fechou a porta principal do escritório de Requin e lacrou apressadamente o mecanismo da tranca com um bocado do cimento
que já ia endurecendo.
– E agora – prosseguiu, retornando ao centro do escritório – a próxima curiosidade da noite, relativa a este lindo conjunto de cadeiras que presenteei ao nosso estimado
anfitrião. Por acaso, eu sei o que é o Barroco Talatri e há um motivo para alguém com a cabeça no lugar construir uma coisa tão bonita com uma madeira tão fraca
como a crescente-cisalha.
Locke pegou uma cadeira, arrancou a almofada e o painel de baixo com as mãos, expondo uma câmara rasa dentro do assento cheia de ferramentas: facas, um cinto de
escalada feito de couro, prendedores, descensores e vários outros recursos. Jogou tudo no chão com estrépito e levantou a cadeira acima da cabeça, sorrindo.
– Isso faz com que elas sejam muito mais fáceis de quebrar.
E foi o que fez, lançando a cadeira com força no piso de Requin. Ela se despedaçou em todas as juntas, mas os pedaços não voaram porque eram unidos por algo enfiado
através das cavidades ocas nas pernas e no encosto. Locke remexeu nos restos do móvel durante um tempo até extrair vários pedaços longos de corda de semisseda.
Pegou um deles e, com a ajuda de Jean, amarrou Selendri rapidamente na cadeira atrás da mesa de Requin. Ela chutou, cuspiu e até tentou mordê-los, mas de nada adiantou.
Assim que ela estava presa, Locke retirou uma faca da pilha de ferramentas e Jean começou a despedaçar as outras três cadeiras e extrair o conteúdo escondido. Enquanto
Locke se aproximava de Selendri com a faca na mão, ela o olhou com desprezo.
– Não posso lhe contar nada de significativo – alegou ela. – O cofre fica na base da torre e vocês acabaram de se lacrar aqui em cima. Portanto, pode me amedrontar
o quanto quiser, Kosta, mas não tenho ideia do que você está fazendo.
– Ah, acha que isso é para você? – Locke sorriu. – Selendri, eu imaginava que você me conhecesse melhor. Eu não falei nada sobre cofre.
– Seu trabalho para encontrar um modo de entrar...
– Eu menti, Selendri. Sou conhecido por minhas mentiras. Você acha que eu estava mesmo testando com fechaduras e fazendo anotações para Maxilan Stragos? De jeito
nenhum. Eu tomava conhaques no térreo e no primeiro andar, tentando voltar a ser o que era depois de quase ter sido transformado em picadinho. A porra do seu cofre
é impenetrável, querida. Eu jamais quis chegar perto dele.
Locke olhou ao redor, fingindo notar o escritório pela primeira vez.
– Mas Requin tem mesmo um monte de pinturas caras nas paredes, não é?
Com um sorriso que Locke sentia como se fosse maior ainda do que era, foi até a tela mais próxima e começou, com muito cuidado, a cortá-la da moldura.
7
Locke e Jean se jogaram de costas da varanda de Requin dez minutos depois, as cordas de semisseda indo dos cintos de couro até os perfeitos nós de ancoragem no corrimão.
Nas cadeiras, não houvera espaço suficiente para cordas de reserva, mas às vezes não era possível chegar a algum lugar na vida sem correr pequenos riscos.
Locke berrou de júbilo enquanto deslizavam depressa pelo ar noturno, passando por sacadas e janelas de jogadores entediados, satisfeitos, desinteressados ou exaustos.
Sua alegria derrotara temporariamente a tristeza. Ele e Jean desceram em vinte segundos, usando os descensores de ferro para evitar um mergulho de cabeça e, durante
esse tempo, tudo estava bem no mundo, louvado seja o Guardião Torto. Dez das caríssimas pinturas de Requin – amorosamente retiradas das molduras, enroladas e enfiadas
em tubos de tecido impermeável – estavam penduradas no seu ombro. Ele tivera de deixar duas na parede, por não possuir mais tubos, mas, de novo, o espaço nas cadeiras
era limitado.
Assim que concebera a ideia de ir atrás da conhecida coleção de arte de Requin, Locke havia sondado um possível comprador entre os negociantes de várias cidades.
O preço que acabara sendo oferecido pela hipotética aquisição fora gratificante, para dizer o mínimo.
A descida terminou 7 centímetros acima do chão de pedras. A aterrissagem incomodou vários casais bêbados que caminhavam pelo perímetro do pátio de Requin. Nem bem
estavam se soltando das cordas e dos arneses, ouviram o som de botas pesadas e o tilintar de armas e armaduras. Um esquadrão de oito Olhos correu para eles, vindo
da rua ao lado da Agulha do Pecado.
– Fiquem onde estão! – gritou o que estava no comando. – Como oficial do Arconte e do Conselho, prendo-os por crimes contra Tal Verrar. Levantem as mãos e não lutem,
caso contrário não seremos misericordiosos.
8
O bote comprido e raso se aproximou do ancoradouro particular do Arconte e Locke se deu conta de que seu coração martelava no peito. Agora vinha a parte delicadíssima.
Ele e Jean foram empurrados para fora da embarcação pelos Olhos que os cercavam. Suas mãos estavam amarradas às costas e as pinturas tinham sido confiscadas. Elas
foram carregadas muito delicadamente pelo último Olho a sair do bote.
O oficial que executara a prisão se aproximou do que comandava o ancoradouro e prestou continência.
– Viemos trazer os prisioneiros para ver o Protetor imediatamente, oficial das espadas.
– Eu sei – disse o outro homem, com um quê de satisfação inconfundível na voz. – Muito bem, sargento.
– Obrigado, senhor. Para o jardim?
– Sim.
Locke e Jean foram levados através do Mon Magisteria, percorrendo corredores vazios e salões de baile silenciosos, sentindo os odores de óleo de armas e cantos empoeirados.
Por fim, saíram no jardim do Arconte.
Trilharam o caminho de cascalho pela noite perfumada, em meio ao brilho débil de trepadeiras prateadas e à luminescência trêmula dos besouros-lanterna.
Maxilan Stragos os esperava na casa de barcos, numa cadeira trazida para a ocasião. Com ele estavam Merrane, mais dois Olhos e... o coração de Locke se acelerou:
viu também o alquimista careca. Os Olhos que os haviam detido, comandados pelo sargento, prestaram continência ao Arconte.
– De joelhos – disse Stragos em tom casual, e Locke e Jean foram forçados a se ajoelhar no cascalho diante dele.
Locke se retraiu e tentou captar os detalhes da cena. Merrane usava uma túnica de mangas compridas e uma saia escura; Locke podia ver que as botas dela não eram
frágeis, elegantes e, sim, calçados de montaria pretos, de salto baixo, boas para correr e lutar. Interessante. O alquimista de Stragos segurava uma grande sacola
cinza, parecendo nervoso. A pulsação de Locke voltou a se acelerar enquanto ele pensava no que poderia haver ali.
– Stragos, outra festa no jardim? – perguntou Locke, fingindo não saber o que se passava na mente do Arconte. – Seus patetas blindados podem nos desamarrar agora;
duvido que haja agentes do Priori espreitando nas árvores.
– Às vezes eu me perguntava o que seria necessário para torná-lo mais submisso – divagou Stragos, e sinalizou para o Olho que estava à sua direita. – Lamentavelmente,
concluí que isso é impossível.
O Olho chutou Locke no peito, derrubando-o de costas. Locke tentou se contorcer para longe, deslizando pelo cascalho. O Olho abaixou-se e puxou-o de volta de joelhos.
– Está vendo meu alquimista? Aqui, como você requisitou? – perguntou Stragos.
– Estou – respondeu Locke.
– É isso que você vai ter. Só isso. Mantive minha palavra. Desfrute de seu inútil vislumbre.
– Stragos, seu escroto, nós ainda temos trabalho a fazer para...
– Acho que não – interrompeu o Arconte. – Acho que seu trabalho já está feito. E enfim acredito que consigo entender por que você incomodou tanto os Magos-Servidores
a ponto de eles o entregarem aos meus cuidados.
– Stragos, se nós não voltarmos ao Orquídea Venenosa...
– Meus observadores me informaram sobre um navio com a descrição daquele pirata, ancorado ao norte da cidade. Vou tomá-lo em pouco tempo, com metade das galeras
da minha frota. E depois farei outro desfile pelas ruas e terei uma tripulação para jogar no Abismo do Monturo, um a um, enquanto toda Tal Verrar me aplaude.
– Mas nós...
– Vocês me deram o que eu preciso, ainda que não como pretendiam. Sargento, você encontrou alguma dificuldade em tirar esses prisioneiros da Agulha do Pecado?
– Requin se recusou a deixar que entrássemos no prédio, Protetor.
– Requin se recusou a deixar que vocês entrassem no prédio. – Stragos nitidamente saboreou cada palavra. – Tratou uma tradição informal como se tivesse precedência
sobre minha autoridade legal. E me deu motivo para mandar minhas tropas em pelotões e para fazer o que os policiais comprados e pagos não fariam: aprisionar aquele
desgraçado até descobrir quanto tempo ele está disposto a ficar quieto com relação às atividades de seus bons amigos, o Priori. Agora tenho minha chance de lutar.
Não é necessário que vocês dois provoquem mais violência nas minhas águas.
– Stragos, seu filho da puta...
– Na verdade, não há necessidade nenhuma de vocês dois.
– Nós tínhamos um acordo!
– E eu poderia cumpri-lo se vocês não tivessem zombado de mim na única questão em que eu não poderia admitir desobediência! – Stragos se levantou da cadeira, trêmulo
de raiva. – Minhas instruções eram para deixar os homens da Rocha de Barlavento vivos! Vivos!
– Mas nós... – começou Locke, absolutamente perplexo. – Nós usamos o Geladestreza e os deixamos...
– Com as gargantas cortadas – completou Stragos. – Só os dois do telhado sobreviveram; presumo que vocês foram preguiçosos demais para subir até lá e acabar com
eles.
– Nós não...
– Quem mais estava atacando minha ilha naquela noite, Kosta? Aquilo não é exatamente um centro de peregrinação, certo? Se vocês não fizeram isso, deixaram os prisioneiros
fazerem. De qualquer modo, a culpa é de vocês.
– Stragos, honestamente não sei do que você está falando.
– Suas alegações não vão trazer meus quatro bons guardas de volta, vão? – Stragos levou as mãos às costas. – Portanto, está tudo encerrado. O som da sua voz, seu
tom arrogante, a pura afronta contida nessa sua língua... você incomoda meus ouvidos como se eu tivesse enfiado neles pele de tubarão, mestre Kosta, e assassinou
soldados honestos de Tal Verrar. Você não terá sacerdote, cerimônia ou sepultura. Sargento, me dê sua espada.
O sargento dos Olhos avançou, desembainhou a espada e virou o punho para o Arconte.
– Stragos – disse Jean. – Uma última coisa. – Locke se virou para o amigo e viu que ele abrira um pequeno sorriso. – Vou me lembrar deste momento pelo resto da minha
vida desgraçada.
– Eu...
Stragos não terminou a frase, já que o sargento recuou subitamente o braço com a espada e acertou o punho da arma no rosto do Arconte.
9
Foi assim que os acontecimentos chegaram àquele ponto.
Os Olhos arrastaram Locke e Jean do pátio da Agulha do Pecado e os enfiaram numa pesada carruagem com barras de ferro nas janelas. Três entraram no compartimento
com eles, dois foram em cima para guiar os cavalos e três ficaram nas laterais e atrás, do lado de fora.
No fim da rua, em cima da camada mais alta dos Degraus de Ouro, o veículo virou à esquerda para pegar a rampa de descida até o nível seguinte e outra carruagem bloqueou
subitamente o caminho. Os Olhos gritaram ameaças; o outro cocheiro pediu mil desculpas e explicou que seus cavalos eram teimosos demais.
As cordas de balestras começaram a estalar e os cocheiros e guardas do lado de fora tombaram, apanhados indefesos numa tempestade de quatrelos. Esquadrões de policiais
uniformizados apareceram na rua, dos dois lados da carruagem, balançando seus porretes e escudos.
– Saiam do caminho! – gritaram para os espectadores de olhos arregalados, porém os mais espertos já haviam procurado abrigo. – Não há nada para ver aqui. Negócios
do Arconte e do Conselho.
Enquanto os corpos batiam nas pedras do calçamento, a porta se escancarou e os três que estavam dentro fizeram uma tentativa inútil de ajudar os colegas caídos.
Mais dois esquadrões de policiais atacaram e os dominaram, com a ajuda de indivíduos à paisana que, por acaso, se envolveram. Um dos Olhos lutou com tanto empenho
que foi morto acidentalmente; os outros dois foram logo imobilizados ao lado da carruagem e suas máscaras de bronze foram removidas.
Lyonis Cordo apareceu usando um uniforme de Olho completo, a não ser pela máscara. Estava acompanhado por mais sete homens e mulheres com vestimentas quase iguais.
Com eles, havia uma jovem, desconhecida para Locke, que se ajoelhou diante dos dois Olhos capturados.
– Você eu não conheço – disse ela ao da direita.
Antes que o homem tivesse tempo de perceber o que acontecia, um policial cortou seu pescoço com uma adaga e o empurrou no chão. Outros policiais arrastavam rapidamente
os corpos para um lugar fora de vista.
– Você – falou a mulher, encarando o único Olho sobrevivente –, Lucius Caulus. Você eu conheço.
– Me mate agora – reagiu o homem. – Não vou lhe dar nada.
– É claro. Mas você tem uma mãe. E uma irmã, que trabalha no Crescente das Mãos Pretas. E tem um cunhado nos barcos de pesca e dois sobrinhos...
– Foda-se – disse Caulus. – Você não faria...
– Enquanto você olhasse. Eu faria. Eu farei. Cada um deles, e você vai ver tudo e eles vão saber que você poderia salvá-los com algumas palavras.
Caulus olhou para o chão e começou a soluçar.
– Por favor, deixe que isso fique entre nós...
– Tal Verrar permanece, Caulus. O Arconte não é Tal Verrar. Mas não tenho tempo para fazer joguinhos com você. Responda às minhas perguntas ou vamos encontrar sua
família.
– Que os deuses me perdoem. – Caulus assentiu.
– Passaram a vocês alguma senha ou procedimento especial para usar quando entrassem de novo no Mon Magisteria?
– N-não...
– Quais, exatamente, foram as ordens dadas ao seu sargento?
Ao término do breve interrogatório, Caulus foi levado com os corpos para longe – vivo, para continuar temendo as consequências caso tivesse deixado alguma coisa
de fora –, os falsos Olhos se armaram com os utensílios dos verdadeiros e puseram as máscaras de bronze. Então, a carruagem partiu de novo, acelerando em direção
ao bote à espera no cais interior, para que nenhum agente de Stragos atravessasse a baía a tempo de alertá-lo sobre o que vira.
– Tudo correu praticamente tão bem quanto se esperava – comentou Lyonis, sentado com eles dentro da carruagem.
– Esses uniformes falsos dão para enganar? – perguntou Locke.
– Quem disse que são falsos? Os uniformes não foram a parte difícil: nossos simpatizantes dentro das forças de Stragos os deram há um tempo. As máscaras é que são
bastante difíceis. Uma para cada Olho, sem reserva; eles as mantêm como herança de família. E passam tanto tempo olhando para elas que até mesmo uma cópia bem-feita
seria notada. – Cordo levantou sua máscara e sorriu. – Depois desta noite, espero que jamais vejamos essas porcarias de novo. Agora, que diabo há nesses tubos de
tecido impermeável?
– Um presente do Requin. Um negócio pessoal sem qualquer relação com o que nos interessa.
– Você conhece bem o Requin?
– Nós compartilhamos um gosto pela arte do período tardio do Trono Terim – respondeu Locke, sorrindo. – Até trocamos algumas obras recentemente.
10
Enquanto Lyonis derrubava o Arconte, os outros falsos Olhos tiravam as máscaras e agiam. Locke e Jean se soltaram dos falsos nós nos pulsos em menos de um segundo.
Um dos homens de Lyonis subestimou as habilidades do Olho verdadeiro que ele enfrentava e caiu de joelhos com a maior parte do lado esquerdo aberta. Mais dois homens
do Priori se aproximaram e golpearam o Olho até que sua guarda falhou; derrubaram-no e o esfaquearam várias vezes. Os outros tentaram correr e pedir ajuda, mas foram
mortos antes de dar cinco passos.
Merrane e o alquimista olharam ao redor, ele muito mais nervoso do que ela, mas dois seguidores de Lyonis os detiveram sob a ponta das espadas.
– Bom, Stragos – disse Lyonis, puxando o Arconte até ficar de novo de joelhos –, os mais calorosos cumprimentos da Casa de Cordo.
Ele levantou o braço, com a espada virada para golpear, e sorriu.
Jean o agarrou por trás, jogou-o no chão e se postou acima dele, furioso.
– O trato, Cordo!
– Vocês nos fizeram um tremendo serviço – falou Lyonis, ainda sorrindo no chão –, mas não nos sentimos confortáveis deixando pontas soltas por aí. E agora nós somos
sete e vocês são...
– Seus vira-casacas amadores – cortou Locke. – Fazem com que nós, profissionais, fiquemos horrorizados. Você se acha tão esperto, porra. Eu pensei nisso muitíssimo
antes, por isso pedi que um amigo mútuo oferecesse uma opinião sobre este assunto.
Locke enfiou a mão na bota e pegou uma meia folha de pergaminho um pouco amarrotada e úmida de suor, dobrada em quatro. Entregou-a a Lyonis e sorriu enquanto o o
membro do Priori a desdobrava, sabendo o que ele iria ler:
Eu consideraria uma afronta pessoal se os portadores deste bilhete sofressem algum mal ou fossem prejudicados de qualquer modo, já que estão engajados numa tarefa
de benefício mútuo. A extensão de todas as cortesias a eles será digna de nota e retribuída como uma cortesia a mim. Eles têm minha confiança total e absoluta.
R
Tudo isso, claro, acima do sinete pessoal de Requin.
– Sei que você, pessoalmente, não gosta muito da casa de tavolagem dele – continuou Locke. – Mas deve admitir que o mesmo não é verdade para todos os membros do
Priori e muitos de seus colegas mantêm uma grande quantidade de dinheiro no cofre dele...
– Chega. Já entendi. – Cordo se levantou e praticamente jogou a carta de volta para Locke. – O que você pede?
– Só quero duas coisas: o Arconte e o alquimista dele. O que vocês fizerem com esta maldita cidade é totalmente da sua conta.
– O Arconte deve...
– Você já ia estripá-lo feito um peixe. Agora ele é da minha conta. Só saiba que qualquer coisa que aconteça com ele não será uma inconveniência para você.
Gritos soaram do outro lado do jardim. Não, corrigiu-se Locke: do outro lado da fortaleza.
– Que diabo é isso? – perguntou.
– Temos simpatizantes no portão do Mon Magisteria – explicou Cordo. Estamos trazendo gente para impedir que alguém vá embora. Eles devem estar marcando presença
agora.
– Se você tentar invadir...
– Não vamos invadir o Mon Magisteria. Só vamos lacrá-lo. Assim que as tropas do lado de dentro compreenderem a nova situação, confiamos que aceitarão a autoridade
dos conselhos.
– É melhor você esperar que isso seja verdade em toda Tal Verrar. Mas chega desta merda. Ei, Stragos, vamos bater um papinho com seu alquimista de estimação.
Jean levantou o Arconte, ainda claramente em choque, e começou a puxá-lo para onde Merrane e o alquimista estavam sob guarda.
– Você – Locke apontou para o careca – vai começar a explicar um monte de coisas se tem amor à vida.
O alquimista balançou a cabeça.
– Ah, mas eu... eu...
– Preste muita atenção. Este é o fim do Arconato, entendeu? Esta noite toda a instituição vai afundar no porto de uma vez por todas. Maxilan Stragos não terá poder
para comprar um copo de mijo quente nem com todo o ouro de Tal Verrar. Assim, você não vai poder se arrastar até ninguém enquanto passa o resto de sua vida curta
e miserável respondendo aos dois homens que você envenenou, porra. Você tem um antídoto permanente?
– Eu... eu carrego um antídoto para cada veneno que uso a serviço do Arconte. Só para garantir.
– Xandrin, não faça... – começou Stragos. Jean lhe deu um soco no estômago.
– Ah, não. Faça, Xandrin, faça – retrucou Locke.
O careca enfiou a mão na bolsa e tirou um frasco de vidro cheio de líquido transparente.
– Eu só ando com uma dose. Basta para um homem, portanto não derrame. Isso vai limpar a substância dos humores e canais do corpo.
Locke pegou o frasco com a mão trêmula.
– E isso... quanto vai custar para que outro alquimista faça mais?
– É impossível. Eu projetei o antídoto para impedir a análise reativa. Qualquer amostra levada a exame alquímico será arruinada. O veneno e seu antídoto são fórmulas
que pertencem somente a mim...
– Anotações – interrompeu Locke. – Receitas, como quer que você chame essas porcarias.
– Estão na minha cabeça. O papel não guarda bem segredos.
– Bom, então até que nos prepare outra dose, parece que você vem com a gente, porra. Você gosta do mar?
11
Então Merrane tomou sua decisão. Se o antídoto não podia ser duplicado e se ela derrubasse o frasco no chão... as incômodas anomalias Kosta e De Ferra estariam praticamente
mortas. Assim, restariam apenas Stragos e Xandrin.
Se eles fossem eliminados, todos que tinham algum conhecimento direto do fato de que ela servia a um senhor fora de Tal Verrar seriam silenciados.
Moveu bem pouco o braço direito, deixando cair o punho da adaga envenenada na mão, e respirou fundo.
Merrane agiu tão depressa que o falso Olho junto a ela nem teve a chance de erguer a espada. Seu golpe de lado, sem um olhar ou gesto revelador, pegou-o na lateral
do pescoço. Ela deslizou a lâmina, cortando o que podia, para o caso de o veneno demorar a agir.
12
A primeira vítima de Merrane mal havia ofegado, surpresa, quando ela se moveu de novo, cortando a nuca de Xandrin com uma faca que surgiu do nada em sua mão. Locke
encarou aquilo por uma fração de segundo, espantado; ele se considerava rápido, mas percebeu que, se ela o tivesse atacado, não veria o golpe a tempo.
Enquanto Xandrin gritava e tombava para a frente, Merrane chutou Locke, um ataque mais rápido do que forte, acertando seu braço, e o frasco voou dos dedos dele.
Locke mal teve tempo de gritar “Merda!” antes de mergulhar em busca do vidro, sem ligar se iria se ralar no cascalho ou Merrane faria alguma coisa com ele. Pegou
o frasco ainda intacto, soltou um murmúrio de agradecimento e foi empurrado de lado no momento em que Jean passou.
Com o invólucro grudado no peito, Locke viu Merrane girar e atirar a faca, sendo acertada por Jean no mesmo instante. Assim, em vez de ela se cravar no pescoço ou
no peito de Stragos, a arma ricocheteou no cascalho.
Surpreendentemente, Merrane conseguiu lutar de verdade contra Jean. Ela livrou um braço do aperto dele e lhe deu uma cotovelada nas costelas. Ágil e sem dúvida desesperada,
chutou o pé direito de Jean, soltou-se e tentou se afastar. Jean continuou segurando um pedaço grande o suficiente da túnica dela para arrancar a manga esquerda
até o ombro; desequilibrado quando o pano cedeu, ele caiu no chão.
Locke vislumbrou uma tatuagem elaborada e escura na pele clara do braço de Merrane – algo parecido com uma videira entrelaçada numa espada. Ela partiu feito uma
seta de besta, correndo pela noite, para longe de Jean e dos falsos Olhos que a perseguiram em vão antes de desistir e xingar alto.
– Bom, que diab... Ah, inferno – praguejou Locke, notando pela primeira vez que o falso Olho que Merrane golpeara, assim como Xandrin, se retorcia no chão e espumava.
– Ah, merda, merda, inferno! – gritou, dobrando-se impotente sobre o alquimista agonizante.
As convulsões pararam em apenas alguns segundos e Locke olhou para o único frasco de antídoto nas mãos, com uma sensação doentia na boca do estômago.
– Não – disse Jean atrás dele. – Ah, pelo amor dos deuses, por que ela fez isso?
– Não sei – respondeu Locke.
– O que vamos fazer?
– Nós... Merda. Não faço a mínima ideia.
– Você deveria...
– Ninguém vai fazer nada – cortou Locke. – Vou manter isto em segurança. Assim que tudo acabar, vamos jantar com este frasco e pensar sobre a situação. Vamos bolar
alguma coisa.
– Você pode...
– É hora de ir – interrompeu Locke, com o máximo de firmeza possível. – Vamos levar o que viemos pegar, antes que as coisas fiquem mais complicadas.
Antes que as tropas leais ao Arconte notem que ele está tendo uma noite ruim. Antes que Lyonis descubra que Requin está nos caçando agora mesmo. Antes que alguma
outra maldita surpresa brote para morder nossa bunda.
– Cordo, onde está o saco que você prometeu?
Lyonis fez um gesto para um dos seus falsos Olhos, que entregou um pesado saco de aniagem a Locke. Locke sacudiu-o; era mais largo do que ele e tinha quase 2 metros
de comprimento.
– Bom, Maxilan, eu lhe dei a chance de esquecer tudo isso e manter o que você tinha, mas você precisava ser a porra de um escroto, não é?
– Kosta – respondeu Stragos, enfim redescobrindo a voz –, eu... eu posso lhe dar...
– Você não pode me dar porcaria nenhuma. – Stragos parecia estar pensando em pegar a adaga de Merrane, por isso Locke deu um chute forte na arma, que quicou no cascalho
e sumiu na escuridão do jardim. – Nós que servimos ao Guardião Torto temos uma pequena tradição, que seguimos quando alguém próximo de nós morre. Nesse caso, uma
pessoa que foi morta em resultado dessa porra de trama louca que você armou.
– Kosta, não jogue fora o que eu posso oferecer...
– Nós chamamos de oferenda de morte. Significa que roubamos algo de valor proporcional à vida que perdemos. Só que neste caso não creio que haja alguma coisa no
mundo que sirva. Mas vamos fazer o nosso melhor.
Jean se postou ao lado dele e estalou os nós dos dedos.
– Ezri Delmastro – disse muito baixinho –, eu lhe dou o Arconte de Tal Verrar.
Deu um soco tão forte em Stragos que levantou o Arconte do chão, enfiou-o, inconsciente, no saco de aniagem e o colocou no ombro como um saco de batatas.
– Bom, Lyonis, desejo sorte com sua revolução, ou sei lá o que é – disse Locke. – Vamos sair daqui antes que as coisas fiquem mais interessantes para nós.
– E o Stragos...
– Você nunca mais vai vê-lo.
– Então está bom. Vocês vão deixar a cidade?
– Não suficientemente rápido para o nosso gosto.
13
Jean largou-o no tombadilho, sob os olhos de Zamira e de toda a tripulação sobrevivente. Fora uma viagem longa e árdua de volta: primeiro para pegar as mochilas
no barquinho de Cordo, depois para pegar o bote de Drakasha e remar para o oceano. Mas valera a pena. Toda a noite valera a pena, decidiu Locke, só para ver a expressão
de Stragos ao dar de cara com Zamira.
– Dr... Dra... kasha – murmurou ele, depois cuspiu um dente no convés. O sangue escorria em vários fios pelo seu queixo.
– Maxilan Stragos, ex-Arconte de Tal Verrar – disse ela. – Último Arconte de Tal Verrar. Na última vez que o vi, minha perspectiva foi um tanto diferente.
– A minha... também. – Ele suspirou. – E agora?
– Existem dívidas demais sobre a sua carcaça para serem pagas apenas com a morte. Nós pensamos muito nisso. Resolvemos mantê-lo por aí pelo máximo de tempo possível.
Ela estalou os dedos e Jabril avançou, carregando um monte de correntes de ferro e algemas robustas, ainda que ligeiramente enferrujadas. Ele largou-as no convés
perto de Stragos e gargalhou quando o velho deu um pulo. Outros tripulantes o agarraram e ele começou a soluçar, incrédulo, ao ver os braços e pernas serem presos
e as correntes, enroladas em seu corpo.
– Você vai para o porão, Stragos. Vai para a escuridão. E vamos considerar um privilégio especial carregá-lo aonde formos. Em qualquer tempo, qualquer mar, qualquer
calor. Vamos levá-lo por um longo caminho. Você e os seus ferros. Muito depois de suas roupas apodrecerem, garanto que você ainda irá usá-los.
– Drakasha, por favor...
– Joguem-no no lugar mais profundo possível – ordenou ela, e meia dúzia de tripulantes começou a carregá-lo para uma escotilha do convés principal. – Acorrentem-no
à antepara. Depois deixem que ele se aconchegue.
– Drakasha! Você não pode! Não pode! Eu vou enlouquecer!
– Eu sei. E vai gritar. Pelos deuses, como você vai uivar lá embaixo. Mas tudo bem. É sempre bom ter um pouco de música no mar.
Ele foi levado para baixo do convés do Orquídea Venenosa, onde ficaria para o resto da vida. Drakasha virou-se para Locke e Jean.
– Vocês dois cumpriram com o prometido. É incrível, mas conseguiram o que queriam.
– Não, capitã – replicou Jean. – Conseguimos o que fomos correr atrás. Mas não conseguimos o que queríamos. Nem de longe.
– Sinto muito, Jerome.
– Espero que nunca mais alguém me chame assim. Meu nome é Jean.
– Locke e Jean. Certo, então. Posso levar os dois a algum lugar?
– Vel Virazzo, se não for incômodo – respondeu Locke. – Temos alguns negócios a realizar.
– E então serão ricos?
– Teremos verbas, sim. Quer um pouco, para o seu...
– Não. Vocês entraram em Tal Verrar e executaram o roubo. Fiquem com o saque. Nós temos o bastante de Salon Corbeau e muito poucos modos de dividi-lo agora. Vamos
ficar bem. E o que vocês vão fazer depois disso?
– Nós tínhamos um plano – disse Locke. – Lembra-se do que você me falou junto à amurada naquela noite? Se alguém tentar riscar linhas em volta do seu navio, simplesmente...
enfunar mais velas?
Drakasha assentiu.
– Digamos que tentaremos fazer isso.
– Vão precisar de mais alguma coisa?
– Bom, só por uma questão de segurança, dado o nosso histórico... talvez você possa nos emprestar uma sacola e nos dar uma coisa pequena mas importante?
14
Eles se encontraram no dia seguinte, a convite de Requin, no que só poderia ser descrito como os destroços de seu escritório. A porta principal estava arrancada
das dobradiças, as cadeiras continuavam no chão, quebradas, e quase todas as pinturas das paredes tinham sido cortadas das molduras. Requin parecia sentir um prazer
perverso em sentar os sete membros do Priori em belas cadeiras no meio do caos e fingir que tudo estava perfeitamente normal. Selendri andava pelo aposento atrás
dos convidados.
– Tudo correu bem para as damas e os cavalheiros desde ontem à noite? – perguntou Requin.
– A luta na Marina da Espada terminou – respondeu Jacanta Tiga, a mais nova dos Sete Internos. – A marinha está nas nossas rédeas.
– O Mon Magisteria é nosso – continuou Lyonis Cordo, representando o pai. – Todos os capitães de Stragos estão sob custódia, a não ser dois capitães da inteligência...
– Não podemos ter outra porra de incidente como o de Ravelle – opinou um homem de meia-idade.
– Tenho pessoas trabalhando nessa questão – garantiu Requin. – Eles não vão se esconder dentro da cidade, isso eu posso prometer.
– Os embaixadores de Talisham, Espara e do Reino dos Sete Tutanos expressaram publicamente a confiança na liderança dos conselhos – informou Tiga.
– Eu sei – Requin sorriu. – Ontem à noite eu lhes perdoei algumas dívidas substanciais e sugeri que eles poderiam ser úteis para o novo regime. E quanto aos Olhos?
– Cerca de metade deles está viva e sob custódia – respondeu Cordo. – O resto está morto e apenas uns poucos podem estar tentando organizar uma resistência.
– Eles não irão longe – assegurou Tiga. – A lealdade ao velho Arconato não vai pagar comida nem cerveja. Acho que vão aparecer mortos aqui e ali assim que irritarem
demais os soldados regulares.
– Vamos nos livrar do resto discretamente nos próximos dias – observou Cordo.
– Bom, eu fico pensando se isso é mesmo inteligente... – comentou Requin. – Os Olhos do Arconte representam um grupo significativo de pessoas muito bem-treinadas
e comprometidas. Sem dúvida seriam mais úteis sem encher sepulturas.
– Eles eram leais só ao Stragos...
– Ou talvez a Tal Verrar, se você lhes perguntar. – Requin pôs a mão no coração. – Meu dever patriótico me impele a observar isso.
Cordo bufou.
– Eles eram as tropas de choque dele, seus guarda-costas, seus torturadores. Eles são inúteis para nós, mesmo que não se tornem indisciplinados.
– Talvez, apesar de todo o seu alardeado conhecimento militar, nosso caro e ausente Arconte tenha empregado os Olhos de modo pouco eficaz – continuou Requin. – Talvez
as máscaras sem rosto fossem exageradas. Eles podiam ter sido mais bem-utilizados à paisana, como um acréscimo ao seu aparato de inteligência, em vez de aterrorizar
o povo como seus executores.
– Talvez para o bem dele – replicou Tiga. – Se Stragos tivesse feito isso, esse aparato de inteligência poderia ter arruinado nossa ação contra ele ontem. Foi por
pouco.
– Mesmo assim, é difícil manter um reino quando não se tem mais um rei – objetou Cordo.
– É – concordou Tiga. – Todos estamos muito impressionados, Cordo. Mencione sutilmente seu envolvimento com o máximo de frequência que puder, por favor.
– Pelo menos eu...
– E é mais difícil ainda manter um reino – interrompeu Requin – quando a gente descarta ferramentas em ótimo estado deixadas para trás pelo rei anterior.
– Perdoe se somos obtusos – disse Saravelle Fioran, uma mulher quase tão velha quanto Marius Cordo –, mas o que você está querendo dizer, Requin?
– Apenas que os Olhos, adequadamente controlados e treinados, podem ser um recurso importante para Tal Verrar se não forem usados como tropas de choque e, sim, como...
uma polícia secreta?
– Diz o homem responsável pelas pessoas que essa força estaria encarregada de caçar – zombou Cordo.
– Jovem Cordo, essas também são as pessoas cuja interferência com os negócios da sua família é mantida num mínimo aceitável, devido ao meu envolvimento. Essas pessoas
foram fundamentais para a nossa vitória ontem: levando suas mensagens, enchendo as ruas para impedir reforços do exército, distraindo os oficiais mais leais de Stragos
enquanto alguns de vocês tinham condições de abordar essa questão com o ar de amadores tentando jogar bocha.
– Eu, não... – disse Cordo.
– Não, você, não. Você lutou. Mas eu alardeio minha hipocrisia com um sorriso no rosto, Lyonis. Não ouse fingir, aqui em particular, que seu desdém o absolve de
algum modo do seu envolvimento com gente como eu. Você não deseja uma cidade sem regulamentação do crime! Quanto aos Olhos, não estou pedindo, estou apenas relatando.
Os poucos que eram fanáticos por Stragos podem tropeçar convenientemente e cair em cima de espadas. O resto é útil demais para ser jogado fora.
– Baseado em que você tem a presunção de fazer sermões...? – começou a perguntar Tiga.
– Baseado em que seis das sete pessoas sentadas aqui acharam bom armazenar bens e dinheiro no cofre da Agulha do Pecado. Itens que, sejamos francos, não precisam
reaparecer caso eu me sinta ansioso com relação ao nosso relacionamento. Eu tenho um investimento nesta cidade, assim como vocês. Não acharia bom que um poder estrangeiro
interrompesse meus negócios. Para dar crédito ao Stragos, não posso imaginar que o exército e a marinha nas mãos de vocês irá inspirar temor nos nossos inimigos,
dado o que aconteceu na última vez em que o Priori governou durante uma guerra. Portanto é melhor termos garantias.
– Certamente podemos discutir isso dentro de alguns dias – disse Lyonis.
– Acho que não. Inconveniências como os nossos Olhos sobreviventes têm um hábito de desaparecer antes que as discussões possam ser ampliadas, não é? Este é um período
agitado. Mensagens podem ser perdidas, mal-entendidas, e tenho certeza de que haveria um motivo plausível para o que quer que acontecesse.
– Então o que você quer? – perguntou Fioran.
– Se vocês vão tomar o Mon Magisteria como centro administrativo para nosso novo governo brilhante, imagino que uma suíte de escritórios seria um bom começo. Algo
belo e prestigioso, antes que todos os melhores tenham sido ocupados. Além do mais, espero um orçamento operacional elementar até o fim da semana; eu mesmo vou fazer
o rascunho. Salários para o ano que vem. Por falar nisso, pelo menos três cargos dessa nova organização devem ser meus. Salários de 10 a 15 solaris por ano.
– Para que você possa oferecer molezinhas a alguns de seus ladrões emproados – disse Lyonis.
– Para que eu possa auxiliá-los na transição para uma vida de cidadãos respeitáveis e defensores de Tal Verrar.
– Essa vai ser a sua transição para uma vida de cidadão respeitável? – perguntou Tiga.
– E eu pensava que já era! – exclamou Requin. – Pelos deuses, não. Não desejo me afastar das responsabilidades de que desfruto no momento. Mas por acaso tenho uma
candidata ideal para comandar nossa nova organização. Alguém que compartilha minhas apreensões com relação ao modo como Stragos empregava seus Olhos e que deve ser
levada muito mais a sério pelo fato de que já foi um deles.
Selendri não pôde deixar de sorrir quando os membros do Priori se viraram nas cadeiras para encará-la.
– Ora, Requin, espere um pouco... – começou Cordo.
– Não vejo necessidade – contrapôs Requin. – Não acredito que seus seis colegas queiram me negar este pedido muito pequeno e muito patriótico, certo?
Cordo olhou ao redor e Selendri soube o que ele estava vendo no rosto dos outros: se ele tentasse formalmente impedir aquele estratagema, estaria sozinho e enfraqueceria
não só a posição pelo seu pai, mas também suas perspectivas futuras.
– Acho que a compensação inicial para ela dever ser algo bonito, bem bonito – prosseguiu Requin, animado. – E, é claro, ela vai requisitar o direito de usar carruagens
e barcas oficiais. E uma residência oficial: Stragos tinha dezenas de casas e mansões à disposição. Ah, e acho que o escritório dela no Mon Magisteria deveria ser
o mais belo e prestigioso de todos. Não concordam?
Os dois se beijaram por longo tempo, sozinhos no escritório após os demais terem saído em vários níveis de perplexidade, preocupação e irritação. Como fazia usualmente,
Requin tirou as luvas para passar a pele marrom cheia de cicatrizes em Selendri.
– Pronto, querida. Sei que você estava incomodada aqui há algum tempo, subindo e descendo as escadas desta torre, servindo e se curvando diante de bêbados abastados.
– Ainda lamento meu fracasso em...
– Nosso fracasso foi totalmente compartilhado. De fato eu caí mais do que você no papo furado de Kosta e De Ferra. Você manteve a suspeita o tempo todo. Se eu deixasse,
você os teria jogado pela janela mais cedo e evitado toda a confusão no final, tenho certeza.
Ela sorriu.
– E aqueles membros do Priori metidos a besta presumem que estou apenas dando a você um trabalho fácil. – Requin passou os dedos pelo cabelo dela. – Pelos deuses,
que surpresa eles terão. Mal posso esperar para vê-la agindo. Você vai construir algo que fará meu pequeno bando de felantozzis parecer insignificante.
Selendri olhou a bagunça no escritório. Requin riu.
– Devo admirar aqueles merdinhas audaciosos. Passar dois anos planejando uma coisa assim e ainda o negócio das cadeiras... e o meu selo! Nossa, o Lyonis teve um
ataque...
– Imaginei que você ficaria furioso.
– Furioso? Acho que estou. Eu gostava um bocado daquelas cadeiras.
– Sei quanto tempo você trabalhou para adquirir aqueles quadros...
– Ah, os quadros, é. – Requin deu um sorriso malicioso. – Bom, quanto a isso... as paredes ficaram um tanto carentes de decoração. O que você acha de descer ao cofre
comigo e começar a pegar os verdadeiros?
– Como assim “os verdadeiros”?
EPÍLOGO
Mares de sangue
1
– Como assim “reproduções”?
Locke estava sentado numa cadeira de madeira confortável, de encosto alto, no estúdio de Acastus Krell, negociante de Finas Distrações em Vel Virazzo. Ele envolveu
sua esguia taça de chá morno com as duas mãos para evitar derramá-la.
– Certamente o senhor não desconhece o termo, mestre Fehrwight.
Krell pareceria um graveto, não fosse a graciosidade dos seus movimentos; andou pelo estúdio como um dançarino num palco, manipulando as lentes de aumento como um
duelista fazendo pose. Usava um manto frouxo de brocado de seda azul-crepúsculo e o brilho de sua cabeça careca enfatizava a natureza fantasmagórica e penetrante
de seu olhar. Aquele recinto era o covil de Krell, o centro de sua existência, que lhe dava um ar de serena autoridade.
– Com relação à mobília, não desconheço, mas quanto a pinturas...
– É uma raridade, mas não tenho dúvida disso. Nunca vi as versões originais destas dez pinturas, cavalheiros, mas há incongruências fundamentais nos pigmentos, nas
pinceladas e no envelhecimento geral da superfície. Não são genuínas obras de arte do Barroco Talatri.
Jean absorveu isso pensativamente, as mãos cruzadas diante do corpo, ignorando seu chá. Locke sentiu gosto de bile subir-lhe a garganta.
– Explique – pediu, lutando para manter a irritação sob controle.
Krell suspirou, sua irritação obviamente atenuada pela simpatia dirigida a eles.
– Olhe. – Ele levantou com cuidado uma das pinturas roubadas, uma imagem de nobres do Trono Terim sentados assistindo a uma disputa de gladiadores, recebendo o tributo
de um lutador ferido mortalmente. – Quem pintou isso é um mestre artesão, um indivíduo fantástico, paciente e hábil. Seriam necessárias centenas de horas para cada
pintura e a obra deve ter sido feita com acesso pleno aos originais. Obviamente o... cavalheiro com quem os senhores conseguiram essas peças tinha restrições quanto
a expor os originais. Eu apostaria minha casa com todos os jardins que os originais estão no cofre dele.
– Mas as... incongruências. Como o senhor as reconheceu?
– Os mestres sob o mecenato dos últimos cortesãos do Trono Terim tinham um meio secreto de distinguir suas obras das produzidas por artistas que serviam a patronos
menos importantes. Um fato desconhecido fora da corte até anos depois de o império ter caído. Nas pinturas, os mestres escolhidos por Talathri e seus associados
criavam deliberadamente uma pequena falha visual num canto da obra, com pinceladas cujo tamanho e direção não combinavam com as feitas ao redor. A imperfeição que
proclama a perfeição, por assim dizer. Como a marca de beleza que alguns vadrãs gostam de ver em suas damas.
– E o senhor identifica isso apenas com um olhar?
– Se não encontro nenhuma sugestão dela em lugar algum, em nenhuma dessas dez obras de arte...
– Maldição – praguejou Locke.
– Isso me sugere que o artista que criou estas peças ou o patrão dele admirava tanto as obras originais que se recusou a falsificar as marcas ocultas.
– Bom, isso é muito animador.
– Vejo que o senhor exige mais provas, mestre Fehrwight, e felizmente o que resta é mais claro ainda. Primeiro, o brilho desses pigmentos é impossível, dado o estado
da alquimia há quatrocentos anos. A vibração desses tons revela uma origem contemporânea. Por fim, o mais incriminador: não há verniz que acuse antiguidade nessas
obras. Nenhuma rachadura fina nos pigmentos, nem descoloração devido a mofo ou luz do sol, nenhum desgaste nas camadas de laca. A carne dessas obras, por assim dizer,
é tão diferente das genuínas quanto meu rosto seria do de um menino de 10 anos. – Krell deu um sorriso triste. – Eu envelheci bem. Estas obras nem envelheceram.
– O que isso implica para o nosso acordo?
– Tenho consciência – falou Krell, acomodando-se na cadeira atrás de sua mesa e pousando a pintura – de que os senhores passaram por uma dificuldade extraordinária
para retirar até mesmo essas cópias do... cavalheiro de Tal Verrar. Os senhores têm minha gratidão e minha admiração.
Jean bufou e olhou para a parede.
– Sua gratidão e sua admiração, por mais bem-intencionadas que sejam... – começou Locke.
– Não possuem valor legal – completou Krell. – Não sou tolo, mestre Fehrwight. De qualquer forma, por essas dez pinturas, ainda posso lhe oferecer 2 mil solaris.
– Dois? – Locke apertou os braços de sua cadeira e se inclinou à frente. – A soma que discutimos originalmente foi de 50 mil, mestre Krell!
– Pelos originais eu pagaria alegremente essa quantia; por artefatos genuínos do Último Florescer, eu teria compradores em regiões distantes, que não se preocupariam
com o... possível desprazer do cavalheiro de Tal Verrar.
– Dois – murmurou Locke. – Pelos deuses, nós deixamos mais do que isso guardado na Agulha do Pecado. Dois mil solaris por dois anos, é o que o senhor está oferecendo.
– Não. – Krell uniu as pontas dos dedos finos. – Dois mil solaris por dez quadros. Por mais que eu lamente o que os senhores passaram para pôr as mãos nessas obras,
não havia cláusulas de dificuldade no nosso acordo. Eu pago por mercadorias, e não pelo processo exigido para obtê-las.
– Três mil – retrucou Locke.
– Dois mil e quinhentos e nem um centira a mais. Eu posso encontrar compradores para estes quadros; cada um deles ainda é um objeto único que vale centenas de solaris,
digno de ser possuído e exposto. Se eu for pressionado, posso até tentar vendê-los, depois de um tempo, de volta ao cavalheiro de Tal Verrar, afirmando que os consegui
em alguma cidade distante. Não tenho dúvida de que ele seria generoso. Mas se o senhor não quer aceitar meu preço... está livre para levá-los a uma praça de mercado
ou uma taverna, talvez.
– Dois mil e quinhentos... Para o inferno.
– Suspeito que todos estaremos lá, mestre Fehrwight, no devido tempo. Mas agora eu gostaria de uma decisão. Aceita a oferta?
2
– Dois mil e quinhentos – disse Locke pela vigésima vez enquanto a carruagem chacoalhava em direção à marina de Vel Virazzo. – Não acredito, porra.
– É mais do que muita gente tem, acho – murmurou Jean.
– Mas não é o que eu prometi. Desculpe, Jean. Fiz merda de novo. Dezenas de milhares, foi o que eu disse. Um valor gigantesco. Colocando a gente no topo. Como nobres
lashanes. Que os deuses nos acudam. – Ele pôs a cabeça nas mãos. – Guardião Torto, por que, diabos, você ainda me ouve?
– Não foi sua culpa. Nós conseguimos. Nós saímos com tudo, como planejamos. É só... que era o tudo errado. Não havia como saber.
– Merda.
A carruagem diminuiu a velocidade e parou rangendo. Houve um estalar e um raspar enquanto o lacaio posicionava um degrau de madeira e, em seguida, a porta abriu
à luz do dia. O cheiro do mar tomou o compartimento, assim como os gritos de gaivotas.
– Você ainda... quer fazer isso? – Locke mordeu o lábio ao ver que Jean não reagia. – Eu sei... que ela deveria estar aqui com a gente. Nós podemos simplesmente
esquecer o antigo plano, deixar pra lá, tomar carruagens...
– Tudo bem. – Jean apontou para o saco de aniagem no banco ao lado de Locke, que ondulava como se estivesse vivo. – Além disso, desta vez nós nos demos o trabalho
de trazer um gato.
– É... – Locke cutucou o saco e deu um sorriso débil quando o animal tentou atacá-lo. – Mas, ainda assim, você...
Jean já estava se levantando para sair da carruagem.
3
– Mestre Fehrwight! É um prazer finalmente conhecê-lo. E o senhor também, mestre...
– Callas – interveio Locke. – Tavrin Callas. Desculpe meu amigo, ele teve um dia difícil. Eu vou conduzir nossos negócios.
– É claro – disse o responsável pelo porto de iates particulares de Vel Virazzo.
Ali, as barcas de lazer e as embarcações de passeio das famílias notáveis de Vel Virazzo – que podiam ser contadas nas duas mãos sem usar todos os dedos disponíveis
– eram mantidas sob vigilância constante.
O homem levou-os ao final de uma das docas, onde uma esguia embarcação de um mastro balançava suavemente nas ondas: 12 metros de comprimento, de teca e madeira-bruxa
laqueadas, com acabamento em latão e prata. O cordame era de semisseda nova e finíssima e as velas enroladas eram brancas como areia de praia limpa.
– Tudo preparado segundo suas cartas, mestre Fehrwight. Peço desculpas pelo fato de que foram necessários quatro dias, em vez de três...
– Não faz mal – interrompeu Locke, entregando uma sacola de couro contendo solaris que ele havia contado na carruagem. – O pagamento combinado, integral, além do
bônus para três dias, para sua equipe de trabalho. Não tenho motivos para ser avarento.
– O senhor é gentil demais. – O homem fez uma reverência enquanto aceitava a bolsa pesada. Quase 800 solaris já haviam ido embora.
– E as provisões? – perguntou Locke.
– Completas, conforme foi especificado. Rações e água para uma semana. Os vinhos, capas oleadas e outros equipamentos de emergência, tudo no lugar, verificado pessoalmente
por mim.
– Nosso jantar?
– Está vindo, está vindo. O entregador já deveria ter chegado há vários minutos. Espere, aí está o garoto.
Locke olhou na direção da carruagem. Um menino havia acabado de aparecer atrás dela, correndo com um cesto coberto maior do que seu peito, aninhado nos braços. Locke
sorriu.
– O jantar conclui nossos negócios – disse enquanto o garoto se aproximava e entregava o cesto a Jean.
– Muito bem, mestre Fehrwight. E os senhores vão zarpar...
– Imediatamente. Temos... muitas coisas para deixar para trás.
– Vão precisar de ajuda?
– Tínhamos esperado uma terceira pessoa – respondeu Locke baixinho. – Mas bastamos nós dois. – Olhou para seu barco novo, para o arranjo de velas, cordame, mastro,
leme, que antigamente eram estranhos. – Nós sempre bastamos.
Demoraram menos de cinco minutos para carregar o barco com a bagagem tirada da carruagem, pois era pouca coisa: algumas roupas de reserva, túnicas e calções de trabalho,
armas e o pequeno kit de instrumentos de ladrões.
O sol estava se pondo no oeste e Jean começou a desamarrá-los do cais. Locke pulou para o convés de popa, um espaço do tamanho de uma sala cercado por amuradas,
abriu o saco de aniagem e soltou o conteúdo no barco.
O gatinho preto olhou-o, espreguiçou-se e começou a se esfregar na sua bota direita, ronronando alto.
– Bem-vindo ao novo lar, garoto. Tudo que você vir é seu – avisou Locke. – Mas isso não quer dizer que estou sendo cativado por você.
4
Ancoraram a 100 metros da última torre-lanterna de Vel Virazzo e, sob sua luz rubi, tiveram o jantar que Locke havia prometido.
Sentaram-se no convés de popa, as pernas cruzadas, com uma mesinha entre os dois. Cada um fingiu estar absorto no pão e no frango, nas barbatanas de tubarão com
vinagre, nas uvas e nas azeitonas pretas. Magnífico tentou guerrear com a refeição várias vezes e só aceitou uma paz honrada depois que Locke o subornou com uma
asa de frango quase do tamanho de seu corpo.
Tomaram um vinho branco camorri comum, o tipo que suaviza uma refeição sem se tornar o elemento central. Locke jogou a garrafa vazia no mar e começaram a beber outra,
mais lentamente.
– Está na hora – disse Jean por fim, quando o sol já estava tão baixo que parecia afundar na amurada de estibordo.
Era um momento vermelho: todo o mundo, do mar ao céu, da cor de uma pétala de rosa escurecendo, de uma gota de sangue que ainda não secara. O mar estava calmo e
o ar, imóvel. Sem nada para atrapalhar, sem responsabilidades, sem um plano ou um compromisso em qualquer lugar no mundo.
Locke suspirou, tirou um frasco de líquido transparente do bolso interno do casaco e pousou-o na mesa.
– Nós discutimos sobre dividi-lo.
– Discutimos – confirmou Jean. – Mas não é isso que vamos fazer.
– Não?
– Você vai bebê-lo. – Jean pôs as duas mãos na mesa, com as palmas viradas para baixo. – Todo.
– Não.
– Você não tem escolha.
– Quem, diabos, você acha que é?
– Não podemos correr o risco de dividi-lo – respondeu Jean, num tom controlado que indicava que ele não aceitaria uma recusa. – É melhor que um de nós fique curado
com certeza do que os dois resistirmos por um tempo e... morrermos de uma hora para a outra.
– Eu me arrisco a resistir.
– Eu, não. Por favor, beba, Locke.
– Ou o quê?
– Ou você sabe o quê. Você não é mais forte do que eu. Beba a porra do antídoto, pelo amor do Guardião Torto.
– Não posso.
– Então você me obriga a...
– Você não entendeu: eu não disse que “não quero”. Eu não posso.
– Como assim?
– Isso é apenas água num frasco que eu peguei na cidade. – Locke enfiou a mão de novo no bolso, pegou um frasco de vidro vazio e colocou-o lentamente ao lado do
falso. – Você me conhece tão bem... estou surpreso por você ter concordado que eu servisse o seu vinho.
5
– Seu vigarista escroto – rugiu Jean, saltando de pé.
– Nobre Vigarista.
– Sua porra de filho da puta miserável! – Locke se encolheu, alarmado. Jean agarrou a mesa e jogou-a no mar, espalhando os restos do jantar no convés. – Como você
pôde? Como pôde fazer isso comigo?
– Não posso ver você morrer – replicou Locke com um tom inexpressivo. – Não posso. Você não poderia me pedir para...
– Você nem me deu uma opção!
– Você ia fazer com que eu engolisse o antídoto à força, porra! – Locke se levantou, espanando migalhas e fragmentos de osso de frango da túnica. – Eu sabia que
você tentaria alguma coisa assim. Você me culpa por ter feito primeiro?
– Agora eu tenho de ver você morrer, é isso? Ela, e agora você? E isso é um favor?
Jean desmoronou no convés, enterrou o rosto nas mãos e começou a soluçar. Locke se ajoelhou perto dele e passou os braços em volta dos seus ombros.
– É um favor. Um favor para mim. Você salva minha vida o tempo todo porque é um idiota e não sabe das coisas. Deixe-me... deixe-me fazer isso por você, só uma vez.
Porque você merece.
– Isso não entra na minha cabeça – sussurrou Jean. – Porra, seu filho da puta, como pôde fazer isso? Quero abraçar você. E quero arrancar sua cabeça. As duas coisas
ao mesmo tempo.
– Ah. Pelo que sei, esta é a definição de “família”.
– Mas você vai morrer – murmurou Jean.
– Isso ia acontecer de qualquer modo. E o único motivo para não ter acontecido antes... é... você, na verdade.
– Odeio isso.
– Eu também. Mas está feito. Acho que tenho de me sentir bem a respeito.
Eu estou calmo, pensou. Acho que posso dizer isso. Eu estou calmo.
– O que vamos fazer agora?
– O que foi planejado. Algum lugar, qualquer lugar, na velocidade mais preguiçosa possível. Subir o litoral, à toa. Ninguém atrás de nós. Ninguém no caminho, ninguém
para roubar. Nunca fizemos esse tipo de coisa. – Locke sorriu. – Diabos, honestamente, não sei se vamos ser bons nisso.
– E se você...
– Acontecerá quando tiver que acontecer. Desculpe.
– Sim... Não, nunca vou perdoar você.
– Acho que entendo. Levante-se e me dê uma mão com a âncora, está bem?
– O que você tem em mente?
– Este litoral é antigo demais. Está desmoronando. Já vi isso antes. Vamos ver se conseguimos apontar essa coisa para um lugar diferente.
Locke se levantou, mantendo uma das mãos no ombro de Jean.
– Algum lugar novo.
Scott Lynch
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