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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MARÉS NEGRAS - P.2 / Filipe Faria
MARÉS NEGRAS - P.2 / Filipe Faria

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Recortado contra a lua, um vulto de capa observava o conclave da ponta da enorme lapa que o encimava. Pouco mais era visível além de um elmo de quatro chifres recurvos e uma esfarrapada capa negra que a suave brisa nocturna agitava ligeiramente, mas o que mais atenção chamava eram os dois pontos vermelhos que brilhavam onde deveriam estar os olhos do estranho visitante. A sua mera presença silenciou todos os presentes, pois havia algo de desnatural na sua silhueta, na sua postura de caçador perante presas inscientes do perigo, na sua pose imota e atenta. Ninguém se atreveu a abrir a boca, a tentar estabelecer contacto com o vulto, e nenhuma iniciativa dele partiu nesse sentido. O único ruído a quebrar o silêncio foi o de ossos a ranger quando os pontos vermelhos se mexeram, dando a impressão de que o vulto estudava o conclave, passando cada um dos presentes com o seu rubro olhar maligno. Por fim, ouviu-se algo parecido com metal a franger, e o vulto encolheu-se e saltou, pairando pelo ar com a capa a esvoaçar-lhe atrás, congelando momentaneamente no ar à visão de todos, e precipitando-se violentamente de seguida sobre a laje, na qual aterrou de clangorosas cócoras com os pés precisamente ao lado da barriga do prisioneiro, fazendo a pedra tremer e afastando todos os presentes como se estes fossem anéis numa superfície de água perturbada. O homem ficou paralisado com o terror incutido pelos pontos vermelhos alojados nas órbitas vazias da caveira desprovida de maxilar inferior e fendida ao meio que o fitou durante breves instantes antes de o vulto se erguer e olhar em redor.

 

 

 

 

Todos o viam agora pelo que era: um moorul, e essa constatação teve os mais variados efeitos. Gritos, joelhos no chão, mãos atiradas ao ar, preces, olhares átonos de choque, louvores, maldições. Os moorul haviam infligido incontáveis e inomináveis atrocidades ao povo de Tanarch durante a Guerra da Hecatombe, embora a grande maioria dos Filhos presentes apenas tivesse memória desses factos das histórias que lhes haviam sido contadas. Nenhum fora visto após o fim da guerra, e poucos sabiam como reagir perante a presença de um dos infames tenentes do Flagelo. E na verdade, apesar da sua aura de pavor, o próprio moorul parecia não saber o que fazer ao certo, limitando-se a olhar em redor de forma intimidante. Havia algo na situação que lhe estava a escapar, algo que o impedia de se abater sobre a massa humana como uma foice negra, e não estava a conseguir descortinar de que se tratava. Linsha recuara quando o moorul saltara, e ainda não ousara aproximar-se mais, embora este estivesse de costas para ela. Recuara tanto, aliás, que estava praticamente ao pé dos celebrantes, eles também hirtos e incapazes de tomarem qualquer tipo de acção. Um deles, contudo, balbuciava algo detrás da sua máscara ao lado da feiticeira, incapaz de desviar os olhos do mooru mas parecendo estar a tirar ilações acerca da sua presença no conclave.

 

Um sinal... é um sinal... tartamudeava o homem quase imperceptivelmente.

 

Que dizes? ciciou outro atrás de Linsha, chamando a sua atenção para a silenciosa conversa.

 

É um augúrio... Ele enviou-nos um sinal... um moorul para nos transmitir a Sua vontade... nesta noite...!

 

Um arauto do Flagelo... disse um terceiro.

 

Sim! concordou o primeiro, alto o suficiente para chamar a atenção do moorul, que olhou por cima do seu ombro para o grupo de celebrantes e para a feiticeira. Um sinal! Por fim, um sinal!

 

Olhai! O Flagelo manifesta-se! exclamou outro, agarrando Linsha pelos ombros.

 

Linsha! O seu olhar recai sobre Linsha! acrescentou mais um.

 

O moorul observava o estranho comportamento dos humanos, ainda sem perceber ao certo o que se passava. Agora apontavam para ele e agarravam uma mulher, sacudindo-a como se de uma oferenda se tratasse.

 

Senhora Linsha, é um sinal auspicioso! segredou-lhe um celebrante ao ouvido. Lorde Malagor não foi assassinado, foi deposto segundo a vontade d’Ele! E vós haveis sido escolhida para o suceder!

 

Linsha foi praticamente empurrada para a frente por várias mãos e cruzou involuntariamente olhares com o moorul, que lhe colou os pés ao chão. O tenente do Flagelo virou-se completamente e encarou-a de frente de cima da laje, tomando-a como a líder do estranho grupo.

 

Quem são estes que nos rodeiam? perguntou a voz cava do moorul em Olgur, mas antes que a feiticeira pudesse sequer tentar arranjar a coragem para responder, outra voz semelhante fê-lo por ela, vinda do mesmo vazio debaixo do maxilar do moorul.

 

Humanos.

 

Sangue para a nossa lâmina.

 

E contudo não os atacamos.

 

Não, não o faremos.

 

Todos os presentes sabiam falar Olgur, que servia como língua secreta para os Filhos do Flagelo, mas ainda assim a multidão ficou confusa com o aparente monólogo do moorul, até um dos celebrantes esclarecer tudo.

 

As muitas vozes do Flagelo! Somos dignos da Sua atenção e clemência! regozijou-se o homem.

 

O moorul ignorou-o e continuou.

 

Mas devemos restabelecer-nos.

 

Sim, a viagem exauriu-nos.

 

E contudo...

 

Não devemos matar estes...

 

Não...

 

Seria errado.

 

Porquê?

 

Não o sabemos.

 

Linsha ouvia o macabro solilóquio sem saber o que fazer. Seria o moorul um sinal? Parecia ter convencido os celebrantes disso, embora nada tivesse feito para o provar além de simplesmente estar presente. Alguma coisa teria de lhe dizer, pois grande parte da atenção revertera para si uma vez mais, e estava ciente de que aquele momento podia ser crucial para a sua nomeação.

 

Moorul... as palavras faltaram-lhe quando os pontos vermelhos a tornaram a fitar. Uma... oferenda... para ti foi a única coisa que lhe ocorreu, e indicou o homem deitado sobre a laje na qual o moorul ainda estava de pé.

 

Os olhos do Coração Quebrado arregalaram-se, ficando maiores e mais brancos quando o moorul passou um pesado pé sobre a sua barriga e o pousou ao lado, expondo o seu pálido corpo hirsuto e desnudo.

 

Uma oferenda?

 

Devemos aceitar.

 

Sim, recobremos as nossas forças.

 

Aquela terrível caveira parecia avaliá-lo enquanto desembainhava a espada, agarrando o punho de forma reversa. Houve um emudecido e crescente murmúrio de espanto à medida que a negra lâmina porosa silvava lentamente para fora da bainha. O homem amarrado mal tinha forças para se debater, mas o seu peito erguia-se em convulsivas arcadas e as suas costas molhavam a rocha com suor. Rápido e inclemente, o moorul atravessou o ventre do homem e aço retiniu agudamente contra a rocha, fazendo com que a multidão se encolhesse reflexamente. Ferido de morte e de olhos esgazeados, o Coração Quebrado evacuou as entranhas e a bexiga, cujos conteúdos escorreram pela laje enquanto o seu sangue era sofregamente sugado pela porosa lâmina, deixando a silenciosa multidão morbidamente cativada. Restabelecido, o moorul embainhou a espada seca e desceu da laje, encarando Linsha.

 

Fazes-nos uma oferenda, humana constatou uma das vozes.

 

O que pretendes em troca? aditou outra antes que a feiticeira pudesse responder.

 

Eu...? Linsha pensou rapidamente, tentando imaginar o que Malagor teria dito. Nada. O que desejas tu... moorul?

 

Tanto quanto era possível a uma caveira fendida exibir emoções, a que olhava para Linsha pareceu indecisa por um momento, até que se pareceu lembrar de algo e olhou para um ponto indeterminado a leste, além das montanhas.

 

Ancalach... disse o que se ouviu como um coro de vozes cavas, arrepiando todos os presentes.

 

Um agente do Flagelo... murmurou um dos celebrantes, cujo furor devoto era atiçado a cada palavra que o moorul proferia.

 

Enviado para destruir o Flagício... concordou outro.

 

E unir os Seus fiéis... atreveu-se um terceiro a supor.

 

Procuras... Ancalach, moorul? O nome desagradava à feiticeira, tal como a todos os Filhos.

 

Sim respondeu uma voz apenas.

 

Embora menos fervorosa do que os celebrantes, Linsha também começava a acreditar no envolvimento do Flagelo em tudo o que estava a acontecer. Era uma verdadeira dádiva, a vinda do moorul, e a feiticeira viu nele o veículo ideal para a sua vingança contra Aewyre Thoryn, esquecendo de repente tudo o que dizia respeito à cerimónia da sua nomeação.

 

Eu sei para onde... Ancalach se dirige, moorul. E posso ajudar-te a chegar a ela.

 

Os pontos vermelhos da caveira atiçaram-se como brasas bafejadas, e Linsha deu um involuntário passo atrás.

 

Como?

 

Podes ajudar-nos?

 

A chegarmos a Ancalach?

 

De que forma?

 

Fala, mulher.

 

Sim, fala.

 

Atordoada pela cacofonia de exaltadas perguntas, a feiticeira precisou de um instante para organizar os seus pensamentos.

 

Aewyre Thoryn, o filho de Aezrel Thoryn, dirige-se a Asmodeon neste preciso momento, e tem-na em sua posse. Ele partiu há alguns dias, mas posso arranjar-te forma de chegares a ele mais depressa...

 

Aezrel...? inquiriu uma das vozes.

 

Sim... respondeu Linsha. Aewyre Thoryn é o filho de...

 

Aezrel? repetiu outra.

 

Aezrel... as vozes pareciam estar a debater-se interiormente com memórias.

 

Posso arranjar-te um barco, moorul. Chegarás ao teu destino mais depressa.

 

Um barco?

 

Que nos levará a Ancalach?

 

Devemos aceitar?

 

Sem dúvida.

 

Se nos ajudar a cumprir o nosso propósito.

 

Devemos aceitar, sim.

 

Os monólogos do moorul eram enervantes, mas Linsha sabia que não podia esperar menos de um dos tenentes do Flagelo. Se pudesse ajudar os desígnios do seu senhor e com isso vingar-se de Aewyre Thoryn, tanto melhor. Se a mera presença do moorul abonasse a favor da sua nomeação como Alto Vulto como parecia estar a fazer, então a cerimónia seria um sucesso total, muito além das suas mais optimistas expectativas.

 

Leva-nos, humana despertou-a o moorul dos seus pensamentos.

 

Sim, leva-nos a Ancalach.

 

Leva-nos ao nosso propósito.

 

Quer... Linsha engoliu em seco, sem acreditar na ousadia do que estava prestes a perguntar. Quer isso dizer que sou eu... a escolhida?

 

O moorul fitou-a sem que a sua inexistente expressão traísse a sua perplexidade. A feiticeira esperou o pior.

 

Sim... és a escolhida para nos ajudar, humana disse por fim, e as suas palavras levaram os joelhos dos celebrantes ao chão.

 

As sombras saúdam Linsha Akselban, o Alto Vulto! bradaram em uníssono, erguendo os braços ao ar. Pelo Flagelo, pela glória de Seltor!

 

Pelo Flagelo, pela glória de Seltor! juntaram-se-lhes os restantes filhos, dando graças ao Anátema na encosta do vale.

 

O moorul não tirava os olhos de Linsha, aguardando, mas a feiticeira não conseguiu ficar atemorizada com o olhar do além. Era perfeito, demasiado perfeito.

 

Linsha riu inicialmente com os ombros, mas evoluiu rapidamente para uns soluços mal contidos, que culminaram com uma descontrolada e quase histérica gargalhada com a cabeça levada atrás.

 

O bom tempo que se fazia sentir em boa parte de Tanarch ainda não dera de si na costa, onde as chuvas continuavam a frustrar as expectativas dos habitantes de Ul-Syth, saturados com o longo Inverno. Os ventos marítimos traziam frequentemente nuvens pardas consigo, como se o mar pretendesse limpar o imundo porto da cidade costeira, que estava atulhado de lama e detritos trazidos pelos rios. Ul-Syth era a porta de entrada para as importações da Latvonia, o porto marítimo da nação, situado na margem tanarchiana do rio Niolga com vista para a Sirulia na margem Norte. A cidade era circunvalada por uma bizarra muralha de madeira constituída por duas paredes paralelas ligadas por vigas, com os compartimentos criados entre elas preenchidos com terra e cascalho. Um adarve coberto e com seteiras ao longo da sua extensão encimava a muralha, que era reforçada a intervalos por torres de madeira de topos tetragonais. O portão de entrada era uma grande barbacã de madeira com uma espécie de campanário no topo do telhado de quatro águas a servir de ponto de vigia para os guardas, e já se encontrava fechado, como os dois tardios visitantes constataram ao parar na estrada enlameada defronte das portas.

 

Tannath e Hazabel montavam o cavalo que sobrevivera à emboscada dos bandidos, inclinados para a frente devido à fadiga das costas e com a harahan à frente do eahanoir, que pegava nas rédeas. O céu plúmbeo começara a chorar um ligeiro chuvisco ao entardecer e nem agora que o sol se começava a pôr a chuva parava, e tanto os cavaleiros como o animal estavam encharcados. A viagem de ambos fora silenciosa e tensa, pois tanto um como o outro esperava ser traído e morto a meio da noite pelo seu companheiro de viagem, o que em nada contribuiu para o repouso de ambos. O cavalo fora forçado a um passo apressado para que não ficassem demasiado longe do navio, mas agora que chegavam a Ul-Syth estavam cientes de que os sirulianos levavam uns bons três dias de avanço. Apesar de tudo, a harahan parecia mais restabelecida pelo simples facto de não se ter exaurido a viajar pelas sombras, mas não estava nada satisfeita por ter perdido a barcaça de vista. O seu cheiro era ofensivo para o delicado nariz de Tannath, pois a mulher já não devia tomar banho há muito tempo, e os malditos fígados que trazia consigo (e que arrancara a alguns viajantes e camponeses pelo caminho) exalavam um nauseabundo odor féleo. As omoplatas salientes do seu emagrecido corpo espetavam-se-lhe no peito, e já por várias vezes raspara a mão contra as tábuas com as quais a mulher entalara o braço. Chegara por várias vezes a pensar sugerir que fosse ela atrás, mas não confiava na harahan a esse ponto. Na verdade, ainda não sabia até que ponto confiava nela, mas assim eram as alianças de conveniência, e ser cuidadoso era um modo de vida para qualquer eahanoir.

 

Os dois aguardaram à chuva que alguém aparecesse no campanário, mas ninguém sequer espreitou pelas seteiras da barbacã.

 

Ó da guarda! gritou Tannath ao lado de Hazabel. Sabe falar Leochlan? perguntou-lhe. A maior parte deles fala Glottik nesta cidade, mas pode aparecer um...

 

Não respondeu a mulher sucintamente. Mas não há problema. Eu posso entrar quando se fizer noite e depois...

 

Tentemos primeiro a via civilizada, sim? interrompeu Tannath, sentindo as omoplatas da mulher roçarem-lhe o peito quando esta encolheu os ombros.

 

Como queiras, eahanoir.

 

Tannath tornou a gritar, e acabou por aparecer a silhueta de um guarda no campanário.

 

A portada está oclusa! berrou o homem numa voz rouca. Vinde ao dilúculo!

 

Tannath levou a mão à bolsa e abanou-a, deixando a tilintante linguagem do ouro falar por si. Mesmo com o ruído da chuva o guarda compreendeu o que o eahanoir queria dizer e abriu-lhes as portas, recebendo uma moeda de prata pelo incómodo, outra por lhes dar umas parcamente perceptíveis indicações para o porto e uma de ouro para se coibir de fazer perguntas.

 

Desperdício de dinheiro comentou a harahan enquanto as portas eram fechadas atrás de ambos e os cascos do cavalo começavam a bater no pavimento de madeira.

 

Há muito que deixei de lhe dar importância afirmou Tannath prosaicamente. Hazabel não persistiu no assunto.

 

As ruas de Ul-Syth estavam escuras e vazias, com os cidadãos recolhidos e os animais abrigados da chuva onde quer que se pudessem recolher. Os edifícios eram de madeira esculpida e por vezes pintada, alguns tinham pátios cercados por vedações de estacas, e a luz que provinha do seu interior jorrava amarela pelas frestas das adufas das janelas. Os passos cascosos do cavalo e a leve queda do chuvisco eram o único ruído de fundo na rua, e Tannath olhava em redor, vigilante. Não temia bandidos, principalmente com uma harahan a seu lado, mas preferia evitar surpresas, e não via necessidade de se livrar desse velho hábito.

 

Ele disse para virarmos para a direita em que casa? perguntou Hazabel.

 

Na que tivesse isto respondeu o eahanoir, abrindo as mãos à frente da harahan e tocando os dedos para com elas formar um círculo.

 

Será aquele casarão? Hazabel apontou para um edifício de dois andares elaboradamente esculpidos ligado a outros dois mais pequenos por galerias e vedado por uma cerca.

 

Só podemos supor que sim arriscou Tannath, puxando a rédea para a direita.

 

Seguiram o trilho pavimentado nas ruas cada vez mais escuras até que começaram por fim a sentir o cheiro do mar e o ruído de ondas mesclado à chuva. Uma série de armazéns altos descortinou o porto de Ul-Syth, uma língua de terra lamacenta e seixosa coberta por pavimentos de toros e com uma série de cais semelhantes a dentes de madeira dispostos em linha que começava na foz do Niolga e acabava na elevação do terreno que formava um penhasco a sul. Guindastes, barris e caixotes misturados com cordame completavam o quadro de um porto aflito com os dejectos do degelo da Primavera, que eram arrastados pelo rio abaixo e pareciam sempre encontrar o seu caminho para os cais. Vários barcos ancorados flutuavam a meio dos detritos na água acastanhada, rangendo e com a madeira escurecida pela chuva.

 

Chegámos constatou Hazabel, esfregando os pingos no nariz. E agora?

 

Falamos com o adjunto do capitão do porto. É ali disse o eahanoir, indicando um edifício postado ao lado de um guindaste e com uma lanterna de ferro acesa por cima da porta à qual se dirigiram.

 

Tannath desmontou, ajustou a capa e bateu à porta com força, aguardando a olhar para o chão, reflectindo acerca das suas possibilidades. À terceira batida ouviu uma voz oriunda do interior, seguida de passos mal-humorados vindos na sua direcção. A porta abriu-se e revelou um alto e corpulento homem com um bigode preto em crescente, vestido com um grosseiro casaco cinzento desprovido de colarinho que lhe chegava aos joelhos e exibia mais do seu hirsuto peito do que Tannath queria ver. Os seus olhos castanhos sombreados pelas salientes orlas das órbitas cobertas por eriçadas sobrancelhas eram tudo menos amigáveis.

 

Quem...? O eahanoir levantou a cara o suficiente para que a luz da lanterna lhe iluminasse a tatuagem vermelha no olho esquerdo. Ah, você outra vez? admirou-se o adjunto num arranhado Glottik, olhando para fora e vendo Hazabel montada. Encontrou a eahanna que estava à procura, ha?

 

Procuro um barco disse Tannath como se não o tivesse ouvido.

 

Alguém berrou do interior do edifício, ao qual o homem respondeu com igual tom de voz, dando a ideia de que lhe assegurava de que não estava ninguém importante à porta. Piscou um olho e abanou a cabeça de forma a dar a entender ao eahanoir que estava tudo bem.

 

Isso é fácil. Barcos não faltam. Para onde?

 

O barco que procuro deve ter passado por este porto há alguns dias. Vela azul, tripulado por sirulianos, levava prisioneiros.

 

Ah, esse? indagou o homem com óbvio desagrado. Sim, passou por cá há...

 

Para onde foi?

 

Ah, para o porto de Aemer-Anoth, do outro lado do Istmo. Diziam que iam, ah, para a guerra...

 

Quando parte o próximo barco para a Sirulia?

 

Ah, isso já é mais complicado. Sabe, ninguém vai para a Sirulia, especialmente agora. Não há barcos para... Tannath ergueu a mão enluvada com os dedos indicador e médio estendidos e uma moeda de ouro entre eles. Ah, bem, na verdade, ainda ontem veio um mensageiro ter com o capitão do porto. Receberam um pombo a dizer que devíamos esperar um barco de Val-Oryth nos próximos dias.

 

Quanto custa a passagem?

 

Ah, sabe, veio de uma pessoa importante. O capitão disse que a mensagem dizia para não... O eahanoir estendeu o anelar e mínimo da mesma mão, exibindo outra moeda. Teria de falar com eles, mas como levam voluntários para a guerra, devem ter espaço. A mensagem dizia para termos uma barcaça a postos e para os deixarmos passar sem entraves. Se quer que lhe diga, nem sei para quê tanto secretismo. Se são voluntários...

 

Tome, para aliviar os escrúpulos disse Tannath, entregando-lhe as duas moedas na mão. Por mais duas dessas, teria a bondade de reter o barco e avisar-me quando ele chegasse? É uma questão de vida ou morte.

 

Hmm, sabe, ah, a mensagem era bastante clara... e o capitão não ia gostar...

 

”Talvez da tua vida ou morte...”, pensou o eahanoir. Três?

 

Bem, se é, ah, tão urgente, acho que os posso reter um pouco quando chegarem... acedeu o homem com o brilho do ouro reflectido nos olhos pela lanterna. Onde fica?

 

Há alguma estalagem aqui por perto?

 

Tem O Retiro do Marinheiro já ali ao lado. Diga que o Raikhov o enviou.

 

Assim farei. Fico a aguardar o aviso na estalagem. Tannath virou-lhe as costas sem sequer se despedir, voluteando a capa negra e dirigindo-se à montaria.

 

Espere! Ah, por quem é que devo perguntar quando o barco chegar? lembrou-se o homem.

 

O eahanoir deteve-se, cruzou olhares com Hazabel e olhou por cima do ombro para o capitão do porto.

 

Pergunte pela senhora Slayra disse, indicando Hazabel com a cabeça e assentando o pé no estribo. Não receava dar o seu nome, mas seria bom manter o anonimato na cidade para o caso de ter de voltar.

 

Raikhov franziu o cenho enquanto o eahanoir montava e dirigia o cavalo para a estalagem que lhe fora indicada. Coçou a cabeça, deveras curioso em relação ao estranho indivíduo e ao seu regresso, mas as duas moedas que lhe pesavam na mão eram razão suficiente para não fazer mais perguntas além das necessárias. Latvonianas, toscamente cunhadas, mas compactas e de bom ouro, provavelmente do tempo de Bakur Osogrod. Iria avisar os rapazes das docas logo de manhã, pois mal podia esperar para ter mais três daquelas belezas na sua mão...

 

Raikhov! berrou o capitão da sala, provavelmente irritado pela corrente de ar que estava a entrar pela porta. Quem está aí?

 

O homem enfiou as duas moedas na sua bota e fechou a porta. Já disse, capitão. Ah, viajantes, perderam o barco!

 

Então manda-os nadar a ver se o apanham!

 

Já o fiz, capitão, já o fiz... Raikhov cofiou o satisfeito bigode, antecipando com ansiedade a chegada do barco.

 

A barcaça dos conscritos velejara à vista da rochosa linha da costa de Tanarch durante todo o dia, rasgando as águas escuras com a proa e fustigando-as com os remos manuseados pelos prisioneiros. Felizmente, o vento soprara para Norte, enfunando a vela azul e permitindo à embarcação percorrer uma boa distância até anoitecer, quando os remos foram recolhidos e foi concedido repouso aos exaustos ocupantes. O vento continuou a soprar durante a noite de céu aberto polvilhado com cintilantes estrelas, que pressagiavam bom tempo na manhã seguinte. Havia chovido nos primeiros dias frios no mar, mas o vento afigurava-se como os últimos suspiros do Inverno, que por fim cedia o lugar à Primavera por toda Tanarch.

 

Aewyre estava aninhado no chão de costas para o seu assento, exaurido e com os braços doridos devido ao tempo que passara a remar. Allumno estava a seu lado, com a cabeça apoiada nos braços por cima dos joelhos, e nos últimos dias deixara de tentar falar com o seu protegido, que desde a conversa com o Mandatário e depois do encontro com Lhiannah pouco ou nada dissera, especialmente quando abordado a respeito do que falara com Aelgar. Slayra tentara arrancar-lhe algumas palavras dias antes enquanto fazia o mesmo com as suturas nos arranhões do guerreiro, mas apenas com estas fora bem-sucedida. Aewyre sentia-se ferido por alguma razão, e não tinha vontade de o discutir com nenhum dos seus companheiros. Lhiannah também não lhe dirigira palavra desde a sua conversa, e o guerreiro não podia deixar de se sentir algo irritado por isso. Fizera um grande esforço para ir falar com a arinnir, numa altura em que ainda estivera a lidar com a violenta revelação do Mandatário, e nem sequer uma palavra de agradecimento. Dever-se-ia isso ao seu breve contacto físico? Bom, nada acontecera, e pela forma como as coisas estavam a correr talvez nunca viesse a acontecer. Em todo o caso, não estava com cabeça para tais assuntos e tinha mais em que pensar, como por exemplo dormir, embora tivesse a estranha e frustrante sensação de que estava demasiado cansado para o fazer. Já não sabia há quanto tempo andava a mudar constantemente de posição, mas todos à sua volta pareciam adormecidos, menos os sirulianos à proa. Resmungando, o jovem coçou a barba, fechou teimosamente os olhos e tentou aconchegar-se ao duro assento, livrando-se das correntes das grilhetas que lhe haviam escorregado pelas pernas até à barriga.

 

Para a fossa com isto tudo... rabujou o guerreiro em surdina, apoiando a testa nos braços, como o seu tutor, e esfregando o nariz nas suas imundas calças, que cheiravam a couro suado.

 

Aewyre sobressaltou-se quando uma mão lhe tocou no ombro, inclinando-se bruscamente para trás com um tilintar de correntes e virando-se para ver quem lhe tocara.

 

Lhiannah estava acocorada a seu lado, com a cabeça destapada e iluminada pelo luar, e a capa castanha que lhe cobria os ombros espalhada pelo chão. Parecia tão surpresa como o guerreiro pelo simples facto de estar ali e não a dormir na popa da barcaça, mas ali estava ela. A boca de Aewyre permaneceu entreaberta, mas não lhe ocorreu nada para dizer, e a princesa aparentava ter a mesma dificuldade, embora decerto tivesse as suas razões para ter vindo ter com ele.

 

Hum... ajudas-me a tirar a ligadura? pediu a arinnir entre dentes em voz baixa, indicando a faixa branca e suja que lhe cingia o maxilar e a cabeça.

 

Ha? O quê? sussurrou o guerreiro atabalhoadamente. Lhiannah franziu o cenho e virou a cara para a esquerda para ouvir melhor. Tu queres que eu ta tire?

 

Sim.

 

Mas... agora?

 

Sim, estou farta dela. Já não preciso.

 

Mas... tens a certeza? E porquê eu?

 

Porque pensei que fosses o único que não ia fazer uma cena se eu pedisse. Enganei-me?

 

Aewyre franziu a perplexa testa. Tirar a ligadura a meio da noite? E logo ele porque não fazia cenas? Vendo a sua hesitação, Lhiannah preparou-se para se levantar, mas o guerreiro ergueu a mão antes que o fizesse.

 

Está bem, está bem acedeu Aewyre, olhando para os lados para constatar que Allumno ainda dormia e que os sirulianos despertos os observavam aos dois sem qualquer discrição. Tens a certeza?

 

Tenho afirmou Lhiannah, cuja convicção foi reforçada pelo facto de o dizer entre dentes forçosamente cerrados.

 

O guerreiro deitou a perna esquerda de lado no chão e cruzou a outra por cima dela, apoiando o braço no joelho direito.

 

Chega-te aqui então... pediu, indicando à princesa que se aproximasse.

 

Lhiannah assim fez e segurou a ponta do queixo com os dedos de ambas as mãos, baixando ligeiramente a cabeça para que Aewyre lhe pudesse desatar as pontas da ligadura, o que fez com desajeitado cuidado, temente de a magoar, desculpando-se de cada vez que lhe puxava o cabelo sem querer ao desapertar o nó. Quando acabou de descingir a ligadura, deixou uma ponta cair e puxou a outra enquanto Lhiannah endireitava a cabeça, aparentemente receosa de largar o queixo. Aewyre nada disse, limitando-se a dar-lhe o seu tempo, e a princesa acabou por inspirar fundo pelo nariz antes de começar a acompanhar a descida do queixo com as pontas dos dedos. Aewyre baixava o pescoço enquanto seguia o movimento, fazendo uma careta de cada vez que Lhiannah cerrava os olhos com a dor e a rigidez dos músculos do seu maxilar, mas a arinnir continuou determinadamente. Quando o guerreiro já estava prestes a agarrar-lhe os pulsos, receando que Lhiannah fosse deslocar a sua ainda convalescente mandíbula, a princesa começou a puxá-la para cima, sempre com o apoio dos dedos, repetindo esta operação quatro vezes até se atrever a largar o queixo. Quando o fez, abriu e fechou a boca lentamente, olhando em crescente satisfação para Aewyre, e levantou-se de braços estendidos e boca aberta, como se quisesse saborear o vento salgado que lhe abanava os cabelos. Fechou os olhos e deixou escapar uma alegre risada rouca que lhe saiu aos soluços e que trouxe um sorriso à cara de Aewyre, que contudo rapidamente se esvaneceu quando Lhiannah agarrou o queixo aflitamente antes de espirrar. Apoiou a mandíbula com as palmas das mãos e curvou-se com o espirro, que a desequilibrou e obrigou Aewyre a agarrar a princesa para evitar que esta lhe caísse em cima. Lhiannah espirrou uma segunda vez e deixou-se cair de joelhos com o apoio do guerreiro, cerrando os olhos com a dor no maxilar.

 

Estás bem? perguntou Aewyre, segurando-a pelos ombros tensos. A arinnir não respondeu, permanecendo de olhos cerrados e mãos assentes na mandíbula. Lhiannah, estás bem? insistiu, sacudindo-a levemente.

 

Embora não estivesse a ouvir, a princesa acenou com a cabeça de pálpebras fechadas para dar a entender que estava bem e largou o queixo lentamente, respirando fundo pelo nariz para se acalmar. Quando a dor amainou, Lhiannah abriu os olhos e viu um preocupado Aewyre a agarrá-la pelos ombros, mexendo os lábios inquiridores sem que a princesa o conseguisse ouvir devido ao zumbido nos ouvidos, principalmente no direito. Em todo o caso, tornou a acenar com a cabeça e estendeu os braços para os lados de forma a que o guerreiro a largasse. Aewyre assim fez, embora relutantemente, e ficou a olhar para Lhiannah enquanto esta baixava a cabeça, deixando os cabelos louros descaírem para a frente, e observando as suas profundas inspirações com a subida e descida dos ombros. Uma última exalação, e a princesa endireitou-se na sua posição acocorada, olhando o guerreiro de frente enquanto habituava o seu maxilar aos movimentos.

 

Vai com calma... recomendou Aewyre, por falta de algo melhor para dizer.

 

Não te preocupes assegurou-lhe Lhiannah. Há muito que o jovem não ouvia a voz da sua companheira sem que esta estivesse abafada pelos seus dentes, e esse simples facto trouxe-lhe um meio sorriso à cara que a arinnir não compreendeu e talvez tenha interpretado mal, pois puxou o cabelo para trás e começou a olhar nervosamente para os lados.

 

Bom... era só isso? quis Aewyre saber, sentindo que algo os afastava.

 

Sim... quer dizer, não. Os seus olhos voltaram a encontrar-se. Obrigada, mas não por isto... quer dizer, também, mas não foi só por isso que vim aqui.

 

Hmm? O guerreiro ergueu uma sobrancelha.

 

Tu... bem, tu foste um cretino há umas noites, como sempre, mas a verdade é que... Lhiannah afagou o lado do seu maxilar. Era mesmo disso que eu estava a precisar. Ajudou-me.

 

Ainda bem que pude ser um cretino útil.

 

Lhiannah lançou-lhe um olhar severo, repreendendo-o pelo desrespeito que o seu comentário chistoso mostrava para com o seu esforço em estar a dizer o que dizia.

 

Por isso... obrigada. Eu... A arinnir olhou para algo atrás do ombro de Aewyre e o guerreiro seguiu o seu olhar, mas tanto Allumno como os outros dois prisioneiros dormiam. Lançou uma expressão intrigada à princesa, mas esta agiu como se nada fosse. Por isso... não sei, gostava de retribuir o favor...

 

Oh? Além da sobrancelha erguida, o canto da boca do guerreiro também se levantou.

 

Sim. Tu tens andado estranho ultimamente. Há alguma coisa... sobre a qual gostarias de falar?

 

Oh. Os cantos da boca de Aewyre voltaram à sua posição normal.

 

Hm-hm acenou Lhiannah desajeitadamente com a cabeça, obviamente tão confortável com a situação como o guerreiro.

 

Não. Nada de especial respondeu Aewyre sucintamente, endireitando a perna e sentando-se desinteressado de lado para a arinnir.

 

Aewyre, eu já não ando com a cara tapada com o capuz. Tenho visto como nem sequer falas com o Allumno, aliás, com qualquer um de nós. Alguma coisa se passa, e...

 

Lhiannah, quem é que te pediu para vires falar comigo?

 

Ha? A princesa virou a cabeça para a esquerda.

 

Quem é que te disse para vires falar comigo? O Allumno? A Slayra?

 

Lhiannah ficou indignadamente rígida na sua posição acocorada ao perceber, e olhou para Aewyre com uma expressão verdadeiramente, zangada.

 

Só para que saibas, eu vim cá porque estava mesmo preocupada, nem foi por causa da ligadura nem nada disse numa voz trémula, fitando o guerreiro com olhos ressentidos durante uns breves momentos. Mas se não queres falar... Ergueu-se, virou-lhe as costas e deu um passo na direcção da popa.

 

Lhiannah... ouviu Aewyre dizer atrás de si, mas não olhou para trás. É a minha mãe. A arinnir parou abruptamente, sobreolhando o guerreiro, que apoiava a cansada cabeça nas mãos. É a minha mãe...

 

A sua mãe, a rainha Adelayne, morta havia vinte anos? Por que pensava nela agora? Lhiannah ajoelhou-se ao lado de Aewyre, e a sua mão pairou hesitantemente sobre o forte ombro do guerreiro antes de nele pousar.

 

A tua... mãe?

 

Aewyre espalmou as mãos uma contra a outra, apoiou o queixo nos polegares e assentou o nariz nos dedos estendidos, suspirando antes de se recostar contra o assento e começar a relatar a sua conversa com o Mandatário. A mão de Lhiannah permaneceu no seu ombro enquanto falava, apertando-lho ocasionalmente quando as palavras lhe saíam a custo, e a expressão da princesa era de condolência e inesperada compreensividade.

 

... e foi isso terminou o guerreiro, erguendo as mãos no ar em escarnecedora simplificação. Só isso. A minha mãe era casada. Teve duas filhas com o Aelgar, morreram as duas, conheceu o meu pai e fugiu com ele para Nolwyn. Fim da história. E eu soube-o agora, vinte anos depois, da boca do marido traído. Só isso...

 

A testa de Lhiannah estava franzida quando a sua mão agarrou a de Aewyre e a apertou com força, cobrindo ambas com a outra. Os dois fitaram-se mutuamente, partilhando de certa forma da impressão de que estavam a conhecer duas pessoas novas, ou pelo menos duas facetas até então desconhecidas.

 

Eu... compreendo que te sintas assim acabou a princesa por dizer. Mas também acho que estás a deixar que isso te afecte demasiado.

 

Oh, sim, claro, desculpa-me por não estar a saltar de alegria... retorquiu o guerreiro, tentando retirar a mão, mas Lhiannah agarrou-lha com mais força.

 

Ouve! Eu também não nasci numa família propriamente unida. A minha mãe era uma arinnir e capturou o meu pai. Tanto quanto sei a minha... concepção, e a do meu irmão Sologhn, até foram forçadas, e depois o meu pai pegou em nós e...

 

Eu sei, o Worick contou-me.

 

O quê? Ele...? A princesa debateu-se com as palavras, eriçada, mas acabou por cair em si. Claro... era de esperar. Não abre a boca para falar, mas quando é para envergonhar os outros... Massajou o maxilar. Mas não interessa. Sabes então que o meu pai fugiu comigo e com o meu irmão e depois casou com duas outras mulheres?

 

Sim, mas...

 

A primeira nem desgostava de mim, mas a Alnara, a minha segunda madrasta, não me pode ver à frente. Teve um filho com o meu pai depois de o Sologhn morrer, o meu querido meio-irmão Solan, que a Alnara prefere ver morto a ter qualquer contacto comigo. Nunca te ocorreu que nunca nos vimos em nenhum dos encontros entre as nossas duas cidades, que tenhas sempre ouvido falar de Solan, o príncipe de Vaul-Syrith, e nunca de mim? Aewyre apercebeu-se da verdade das palavras de Lhiannah, espantado com o facto de nunca ter sequer pensado nisso. Pois, a Alnara não gosta que eu esteja presente, deve pensar que eu quero matar o rapaz para lhe usurpar o título de princesa, se calhar...

 

O guerreiro estava demasiado surpreso para dizer alguma coisa, o que não impediu Lhiannah de continuar. Parecia determinada a compensar todo o tempo que passara sem falar devido à ligadura.

 

Mas isso não interessa. O que eu quero dizer é... A arinnir olhou para o vazio, a sua expressão subitamente perplexa. Ah. O que eu quero dizer é que eu sou filha fora do casamento real, não ilegítima, mas perto disso. Tu és o filho de uma princesa casada que fugiu com o teu pai. E então? Achas que ela gostava menos de ti por isso? Que isso faz de ti menos do que és? Ou são os títulos que te preocupam? O divórcio não consumado? O facto de ninguém te ter dito? De que é que teria servido? Terias crescido de outra forma, serias hoje um homem diferente?

 

Lhiannah continuava a agarrar-lhe a mão, confortando-o ao mesmo tempo que parecia estar a repreendê-lo com uma severidade quase maternal. Não se lembrava da última vez que os seus olhos se haviam fitado mutuamente durante tanto tempo sem que um ou outro os desviasse.

 

Pareces... familiarizada com o assunto comentou.

 

Eu sou a princesa indesejada, Aewyre. Vivi toda a minha vida com isso, e nem a Alnara nem os nobres de Vaul-Syrith alguma vez me deixaram esquecê-lo. Mas uma coisa é, outras pessoas infernizarem-te a vida por isso, outra completamente diferente é estares a castigar-te por algo de que não tens culpa nenhuma. Não escolhemos os nossos pais, Aewyre, mas se há uma coisa que sei é que, desde que saibamos que eles gostam ou gostaram de nós, casamento ou não, o resto não importa. Apesar da Alnara, o meu pai sempre me deu todo o amor que um homem como ele pode dar. Já a Lhiannon, a minha mãe, nunca mais a vi nem ouvi falar dela. Tu ao menos tiveste dois pais que te adoravam e ao teu irmão; podes dizer que foi por pouco tempo, mas foi mais do que eu alguma vez tive...

 

Lhiannah apercebeu-se de que acabara por inadvertidamente canalizar o assunto para si e para o seu passado, e o interesse patente na expressão de Aewyre fê-la perceber que pelo menos parecia ter aliviado a pesarosa alma do guerreiro.

 

Percebes...? perguntou, dando consigo a baixar os olhos, mas a repentina força no aperto de Aewyre fê-la erguê-los outra vez.

 

Lhiannah... O guerreiro sentia que estava a caminhar sobre cacos de vidro que se lhe podiam espetar no pé a qualquer momento.

 

Podes ser uma durona, mas... é verdade aquilo acerca do rapaz que te puxou as saias e passou o resto da vida a comer papas?

 

Silêncio.

 

A barcaça rangia, lambida pelas ondas do mar, e o ocasional passo siruliano ressoava pela madeira da embarcação. Olhos azuis e escuros sondavam-se mutuamente.

 

Foi o Worick...? inquiriu a princesa retoricamente. Não. É claro que não. Eu dava-me sobretudo com os recrutas da guarda, porque as meninas da corte não gostavam muito de mim. Qualquer um daqueles bois ter-me-ia posto a mim a comer papas durante muito tempo se eu tivesse tentado fazer isso a um deles. O Worick é que conta essas histórias, sempre contou, para me proteger dos outros, dizia ele. Foi ele quem sempre me defendeu, quem me treinou, quem fazia pequenas viagens comigo para longe do castelo, onde sabia que eu não me sentia bem. Há quem diga que fiquei tão bravia como ele por causa disso; como me estavam sempre a esfregar a cara no chão, acabei por aprender a morder, às vezes até a mão que só me queria afagar (não acredito que estou a dizer isto)...

 

Lhiannah tornou a encontrar algo digno do seu interesse no chão ”e começou a desenvencilhar a sua mão da de Aewyre.

 

Bom, já me dói o maxilar... afirmou, esfregando-o com a mão livre. O melhor é deixá-lo descansar.

 

Aewyre procurava desesperadamente por palavras com nexo na sua cabeça, pensando em algo que pudesse dizer enquanto os dedos de Lhiannah lhe escorriam da mão como areia. A arinnir levantou-se, ajeitando a capa aos ombros e levando a mão recém-liberta ao nariz para não tornar a espirrar, pois o vento levantara-se entretanto. O guerreiro ficou com a mão aberta estendida em frente durante mais alguns momentos, como se não tivesse percebido que já não estavam de mãos dadas, mas acabou por a baixar com um suspiro enquanto Lhiannah continuava postada à sua frente, olhando para o chão e de mechas de cabelo louras pesadas de sebo a abanarem à brisa.

 

Acho que... vou voltar lá para trás decidiu a arinnir, olhando de relance para Aewyre antes de dar um passo para o lado.

 

Lhiannah...? A princesa virou a cara para olhar. Obrigado. Sinto-me... melhor.

 

Ainda bem que pude ser uma durona útil replicou Lhiannah, sorrindo fugazmente antes de continuar na direcção da popa.

 

Aewyre suspirou resignadamente e recostou-se contra o seu desconfortável assento, embaraçando um pé na corrente das suas grilhetas ao fazê-lo. Enquanto se desembaraçava da cadeia, não ouviu os passos que retrocediam atrás de si e só se apercebeu da presença de Lhiannah quando uma mão apoiou parte do peso do corpo da arinnir no seu ombro. Antes que pudesse virar a cara para olhar, sentiu o contacto de um par de lábios com uma pequena crosta no seu malar, perto do olho esquerdo.

 

Tão depressa como o fez, Lhiannah deu meia-volta e dirigiu-se apressadamente para a popa antes que Aewyre tivesse oportunidade de dizer algo, não tropeçando a meio do caminho por pouco. Os olhos dos sirulianos estavam postos em ambos alternadamente, mas o jovem não lhes deu atenção, limitando-se a olhar boquiaberto para as costas de Lhiannah, que se sentou ao lado de um dormente Worick e tapou a cabeça com o seu capuz antes de se aprontar para dormir. Aewyre virou-se para a frente e levou as pontas dos dedos ao malar beijado, sentindo a frescura do ínfimo rasto de saliva de Lhiannah contra o vento. Olhou para a comprida ligadura que esquecera estar a agarrar com a mão direita e revolveu-a nos dedos, procurando nela as respostas para as perguntas que lhe grassavam na cabeça.

 

Eu não sabia, Aewyre disse a voz de Allumno ao seu lado, sobressaltando-o. O mago estava desperto e olhava-o com uma expressão de sonolenta franqueza. Talvez o Zoryan o soubesse, mas nunca me disse. Soube-o agora pela primeira vez.

 

O jovem entreabriu a boca para dizer algo, mas ou reconsiderou ou nada lhe ocorreu, pois nenhuma palavra dela saiu e Aewyre limitou-se a fechá-la e acenar com a cabeça. Allumno pôs-lhe a mão no ombro.

 

Estás bem?

 

Sim... estou assegurou-lhe o guerreiro, acenando uma vez mais com a cabeça. Agora estou.

 

Ainda bem. Tenta dormir agora; amanhã falamos disso se quiseres.

 

Está bem. Boa noite, Allumno.

 

Boa noite retribuiu o mago, enterrando a cabeça nos braços. Aewyre ainda olhou uma última vez para trás, incapaz de perceber se Lhiannah dormia ou não por causa do capuz, e colou as costas ao assento com um longo suspiro. Enfaixou a mão distraidamente com a ligadura da arinnir enquanto olhava para o céu estrelado e acabou por seguir o exemplo do seu tutor, tentando não pensar no exaustivo dia que o esperava.

 

É melhor despacharem-se. Se o capitão sabe disto, ah, dá-me de comer aos caranguejos disse Raikhov, conduzindo Tannath e Hazabel apressadamente pelo trilho de madeira que levava ao cais na foz do Niolga.

 

Estava a anoitecer, e o adjunto do capitão do porto correra a chamá-los ao seu quarto na estalagem, anunciando a chegada do barco pelo qual haviam esperado. O eahanoir e a harahan caminhavam lado a lado com Tannath a puxar o cavalo pelas rédeas, dois vultos negros encapuzados que nada tinham a dizer um ao outro; as noites passadas no quarto da estalagem haviam sido silenciosas, com parca troca de palavras e muitos olhares de soslaio. Eram dois aliados de conveniência, e estavam dispostos a seguirem o mesmo meio para chegarem a fins diferentes, nada mais do que isso.

 

Havia alguma agitação no cais e ouviam-se vozes de protesto dos membros da tripulação de uma barcaça em mau estado que estava atracada atrás de uma segunda, pronta para velejar porém ainda desocupada. A carta que o capitão do porto recebera dizia claramente para deixar os homens passarem sem entraves, e Raikhov mandara-os esperar mesmo após estes terem descarregado a sua modesta carga: um grande caixote rectangular e alguns barris com água e mantimentos.

 

Eles, ah, viajaram dia e noite pelo Doleg enfatizou Raikhov. Olhem para o estado daquela barcaça... é perigosíssimo. Os, ah, voluntários deles devem ser muito importantes para viajarem com tanta pressa.

 

Tanto Tannath como Hazabel estavam completamente desinteressados dos motivos ou dos tripulantes da barcaça. Sabiam que se dirigiam para a Sirulia, para onde Quenestil, Slayra e Aewyre Thoryn estavam encaminhados, e o resto não importava. À medida que se aproximavam do cais, iam-se apercebendo da veemência dos protestos da tripulação, aos quais os estivadores respondiam com pedidos de calma pouco convictos e ombros encolhidos, apontando na direcção de Raikhov assim que o avistaram. O adjunto do capitão do porto ergueu os braços, anunciando sorridente o fim do estorvo, mas o que devia ser o capitão do barco, um homem alto e de barba e cabelo negros e espessos, dirigiu-se a ele iradamente, vituperando num Leochlan difícil de decifrar. Tannath e Hazabel assistiram à conversa, na qual Raikhov tentou aplacar a indignação do homem, apontando frequentemente para os dois e fazendo alusão ao que só podia ser dinheiro. O capitão avaliou-os com um mero olhar e de imediato abanou negativamente com a cabeça, apontando para a barcaça e batendo com o indicador na mão aberta, provavelmente referindo-se à mensagem clara da carta que fora enviada ao capitão do porto.

 

O que é que aqueles idiotas estão a discutir? sibilou Hazabel.

 

Não sei, mas o bom do nosso adjunto não parece estar a conseguir fazer valer o seu ponto de vista. Espera aqui.

 

O eahanoir foi ter com os dois tanarchianos, atraindo pela primeira vez o olhar do resto da tripulação, e interpôs-se entre ambos, tossicando.

 

Senhor, deixe estar disse-lhe Raikhov, tentando fazer parecer que tinha a situação em mãos. O outro homem fitava-o com desprezo. O capitão está só um bocado zangado, e...

 

Ignorando-o, Tannath remexeu em algo dentro da sua capa e o seu braço emergiu dela, segurando uma bolsa com um fundo bojudo que tilintou quando o eahanoir a abanou.

 

Eu e ela disse Tannath, apontando para si e para a harahan com o polegar, indicando de seguida a barcaça com o indicador no barco. Por isto tilintou os conteúdos da sua bolsa para dar ênfase.

 

O trincolejar do ouro agiu como um bálsamo para a fúria do capitão da embarcação, que ainda assim se mostrava hesitante em aceitar de imediato a proposta, apesar do montante envolvido. Algo o estava a fazer hesitar, e Raikhov achou que a altura era a ideal para se fazer útil, retomando a conversa com um sorriso pretensiosamente desarmante, elevando a pessoa de Tannath aos píncaros da integridade e fiabilidade. Os olhos astutos do capitão fitavam o eahanoir, a harahan e a bolsa alternadamente, sem sequer desconfiar da identidade dos dois, mas pressentindo algo a respeito de ambos que o deixava um tanto quanto apreensivo. Por fim, o ouro pesou mais do que a prudência, e o capitão assentiu relutantemente com a cabeça, que de seguida inclinou, dando a entender que os queria aos dois dentro da embarcação o quanto antes para partirem de imediato. Tannath fez uma curta vénia de agradecimento e atirou-lhe a bolsa para a mão, voltando para a harahan com o adjunto aos seus calcanhares.

 

Já está, não lhe disse? exclamou o homem, satisfeito. Ele estava a, ah, levantar algumas dificuldades, mas não há nada que palavras sensatas saídas da boca certa não resolvam, e, ah...

 

Talvez se devesse retirar, antes que o capitão do porto saiba o que aconteceu interrompeu Tannath com a sensação de que Raikhov estava a tentar enfiar a mão na sua bolsa à procura de mais ouro. Sempre me disseram que os caranguejos de Tanarch sabem tão bem porque são muito vorazes.

 

O adjunto calou-se, obviamente pouco satisfeito com a perspectiva de não ganhar um pouco mais do que já recebera, mas a não tão subtil sugestão do eahanoir dava a entender que a sua assistência já não era necessária. Ainda assim, o homem insistiu, pois estava habituado a regateios.

 

Ah, sim... bem, sabe, é que com tudo o que foi preciso senhor, ah...

 

Gosta de mel, Raikhov? inquiriu Tannath, tirando os alforges da sela do cavalo e nutando com a cabeça perante o olhar inquiridor de Hazabel.

 

Ah, como?

 

Sei que em Tanarch apreciam muito o mel da Latvonia... Apesar de saber que a harahan devia ter quase o dobro da sua força, o eahanoir atirou os alforges por cima dos ombros para manter as aparências. São insectos muito eficientes, as abelhas. Sabe o que acontece aos abelhões depois de estes terem cumprido a sua função?

 

O homem piscou os olhos e reflectiu de dúbia boca entreaberta acerca das palavras de Tannath, mas o olhar do eahanoir esclareceu todas as suas dúvidas.

- Ah.

 

Adeus, Raikhov despediu-se Tannath, passando ao seu lado com Hazabel no seu encalço. Pode ficar com o cavalo.

 

A poucos passos da prancha de embarque e debaixo do olhar expectante da tripulação, Tannath inclinou-se para Hazabel.

 

Quantos... fígados te sobram, mulher?

 

Três.

 

O eahanoir praguejou em surdina na sua língua.

 

Tenta não os matar a todos antes de chegarmos ao nosso destino, está bem? Não convinha ficarmos à deriva no mar para tu lhes desopilares os fígados.

 

A única resposta de Hazabel foi o que pareceu um riso mórbido abafado pelo capuz, talvez causado pelo humor negro do eahanoir, talvez pelo destino que já tinha reservado à tripulação. Tannath preferia inclinar-se para a primeira hipótese, pois embora preferisse evitar um confronto com uma harahan, não iria permitir que a mulher lhe emperigasse a viagem. Os dois entraram na barcaça, limitando-se a trocar olhares com a tripulação. Aparentemente, o ouro não deixara nada por dizer, e tanto um como o outro preferiam que assim fosse. Contudo, algo fez com que Hazabel se detivesse subitamente, chamando a atenção do eahanoir para o objecto para o qual ela estava a olhar: um grande caixote rectangular deitado no convés e separado da restante carga. A harahan olhava fixamente para o contentor, embora este fosse simples e desprovido de qualquer indício daquilo que dentro de si portava. Tannath estranhou a atitude da mulher, mas perante um escrutínio mais atento notou de facto que havia algo de... errado com o caixote. Não era nada que pudesse ver, cheirar ou ouvir, mas não podia deixar de sentir algo, algo que lhe teria eriçado os pêlos do pescoço caso os tivesse, algo que o enchia de vontade de abrir o caixote e ao mesmo tempo o fazia sentir que essa seria a última coisa que deveria fazer.

 

A inspecção dos dois não passou despercebida à tripulação, que estranhou a atenção que davam a um singelo caixote, e Tannath puxou a manga de Hazabel, indicando-lhe um assento a uma distância razoável do contentor. Os dois vultos sentaram-se e fingiram-se alheios aos olhares dos quais eram alvos, resguardando-se com os seus capuzes. A barcaça estava pronta a velejar, e o capitão deu a ordem de partida, fingindo que os dois não existiam enquanto supervisionava o erguer das velas e o desatar das amarras. Todos pareciam ter pressa, reparou Tannath, mais pressa do que qualquer marinheiro devia ter para navegar de noite rumo a uma guerra com pouco mais no barco além de mantimentos para uma viagem e uma tripulação como alegados e improváveis voluntários. Algo não batia certo.

 

E aquele caixote...

 

Aemer-Anoth

 

Ao fim das mais de duas semanas de viagem no mar, a barcaça siruliana chegou a Asmodeon. A costa rochosa que avistaram fora ansiada por aqueles que aguardavam o fim da extenuante viagem e temida pelos que sabiam o que nela os aguardava. A oeste estava o Istmo Negro, a extensa ponte de areia que ligava Asmodeon ao resto do continente, e que se encontrava submersa pela maré alta. Foram saudados por um comité de rolas-do-mar que voejavam ao longo das falésias, concentradas sobretudo sobre a estreita praia entre duas arribas, o único local de desembarque à vista. No apertado areal escuro fora construído um longo cais acoplado a uma robusta cabana erguida sobre postes acima da praia, por detrás da qual uma escadaria subia pelo trilho escarpado para fora da praia. Duas figuras humanas, provavelmente sirulianos, estavam de pé no cais e pareciam aguardar a chegada da barcaça.

 

Asmodeon, pensavam todos a bordo.

 

A terra dos pesadelos. O covil do Flagelo. O domínio da Sombra. O solo que gerara tantos dos horrores que havia eras assolavam Allaryia.

 

E contudo, embora pouco mais estivesse à vista além das falésias encimadas por resistentes árvores retortas, parecia tão... vulgar. Não era uma paisagem bonita, com a rocha escabrosa dos penhascos, a água escura à beira-mar, a areia sombria da pequena praia na qual estavam espalhados os esbranquiçados troncos retorcidos de árvores caídas ou arrancadas pelo vento, mas estava longe de corresponder às imaginativas expectativas dos prisioneiros. As rolas-do-mar cantavam no ar e viravam pedras e conchas na praia à procura de alimento, o ar cheirava a sal, o sol primaveril luzia em cima e o horizonte não estava coberto por nenhuma sombra imensa a bloquear a sua luz. Era uma impressão estranha, semelhante a uma sensação de defraudamento e ao mesmo tempo um alívio.

 

Alheios às ponderações dos prisioneiros, os sirulianos saudaram os seus companheiros à distância e prepararam-se para o desembarque iminente, ordenando aos homens que retomassem os seus assentos e preparando-se para amarrar a vela. Quenestil, que passara boa parte da viagem nauseado e vergado sobre a amurada, foi persuadido por Slayra e pela proximidade de terra a sentar-se. Evidentemente, os enjoos que julgara ter perdido na travessia de jangada haviam voltado devido ao tempo que passara com os pés assentes em solo firme. Slayra também não se sentira bem durante a viagem, embora por razões diferentes. Os enjoos matinais haviam-na repetidamente colocado ao lado de Quenestil na amurada, e as azias foram um tormento frequente após cada frugal refeição, que comia tanto pela crescente fome como para tirar o incomodativo sabor metálico na sua boca. Sentia-se mais... cheia também, com a estranha sensação de que o seu útero não estava no sítio certo, e a sua disposição não fora das melhores nos últimos dias, rivalizando com a irritabilidade de Worick. O thuragar mantivera-se constantemente pensativo e, embora alegre pela recuperação física e anímica que Lhiannah evidenciava, não podia deixar de estar apreensivo devido à vindoura batalha, pois o veterano conhecia bem os horrores da guerra e era o único do grupo a tê-los experienciado em primeira mão. Estava com a ideia de que os seus restantes companheiros não esperavam nada pior do que o ataque à fortaleza de Coilen, daí que não demonstrassem nenhuma preocupação de maior, mas se as forças de Asmodeon estavam verdadeiramente encaminhadas para o local aonde iam, então não haveria comparação possível entre a escaramuça em Alyun e o que se avizinhava. E isso deixava-o preocupado, mais do que alguma vez admitiria abertamente. Taislin também não estava particularmente comunicativo, pois apesar de orgulhoso por ter salvo os seus amigos do que lhe parecera ser uma morte certa em Val-Oryth, começava a questionar a utilidade do que fizera, se não tirara o pássaro da boca do gato para de seguida o deixar cair e pisar. Do grupo dos cinco companheiros que seguiam na popa, Lhiannah era a única que não parecia carecer de alento, embora estivesse tão pouco faladora como os outros, ocupada com um pensamento qualquer que se recusava a partilhar.

 

A barcaça aproximava-se gradualmente do cais, em cuja ponta os dois sirulianos os aguardavam de braços cruzados, envergando os seus exemplares arneses. Viam-se e sentiam-se movimentos nervosos entre os prisioneiros que, confrontados com a chegada a uma terra da qual apenas guardavam as impressões das horrendas histórias acerca dela contadas, se começavam verdadeiramente a aperceber daquilo que os aguardava. Correntes tilintavam, sussurros raspavam no ar, olhares eram trocados, caras sujas e barbudas revelavam expressões de inquietação e ansiedade. Quando o casco resvalou no cais, um dos Ajuramentados a bordo pegou na grossa amarra e atirou-a ao siruliano no desembarcadouro, que a agarrou e amarrou a um grosso poste. Assim que a embarcação se deteve, a prancha de desembarque foi estendida, e o Mandatário ordenou a ordeira saída dos prisioneiros. Os dois sirulianos no cais não tinham as nucas rapadas e os cabelos penteados para a frente como os seus mais jovens congéneres, e a sua secura e austeridade pareciam mais o resultado de uma mais prolongada vida de rigorismo do que a praticada frialdade de quem ainda estava a tentar convencer os seus superiores. As suas armaduras ostentavam cicatrizes, e os punhos das suas espadas estavam bem conservados mas claramente gastos pelo uso, o que também se podia dizer dos seus corpos e semblantes. Tratava-se de dois homens que claramente já haviam passado por muito, não tão velhos como o Mandatário, mas já com cãs nos seus encaracolados cabelos negros e castanhos colados às cabeças. Aelgar desceu da barcaça para os saudar, e os dois alinharam os prisioneiros ao longo do cais sob o seu supervisionamento, ajudados pelos deferentes Ajuramentados, que de seguida vestiram os seus arneses com a ajuda uns dos outros.

 

Os cinco companheiros voluntários foram posicionados à frente da procissão flanqueada pelos Ajuramentados, em cujo meio Allumno se encontrava e em cuja ponta Aewyre e os mais robustos prisioneiros carregavam o equipamento e as sobras dos mantimentos, e todos aguardaram enquanto o Mandatário e os dois sirulianos conversavam afastados de todos. Taislin não resistiu a aproximar-se discretamente de costas, fingindo olhar para o desengraçado mar, e a arrebitar a orelha. Os ruídos das rolas e das ondas dificultavam-lhe a compreensão das frases, mas mesmo em voz baixa as palavras dos sirulianos eram fortes e claras.

 

As marés atingiram o seu esto declarou um dos sirulianos.

 

Os progressos do avanço? inquiriu o Mandatário.

 

Estão a uns dois dias de Aemer-Anoth. Os Batedores retardaram-nos, e as guarnições a leste fizeram-nos sangrar antes de retirarem. A de Aellar-Noroth foi encurralada, mas o Fronteiro Daervon vendeu cara a sua vida à Sombra.

 

Que na morte tenha encontrado a graça de Sirul... disse Aelgar com todo o pesar que um homem que parecia já ter perdido demasiado, podia mostrar.

 

Os Eahan recusam-se a deixar-nos levar as suas mulheres para Gaul-Anoth, como esperávamos continuou o siruliano de cabelos negros, espetando ainda mais a já arrebitada orelha de Taislin. Eahan?

 

... como esperávamos O burrik não ouviu a primeira parte da frase, momentaneamente distraído pela menção aos lendários eahan brancos. E como sempre o Castelão respeitará a sua decisão?

 

Sim.

 

Muito embora a contragosto secundou o de cabelos castanhos.

 

Como todos nós... aditou o Mandatário. Quantos homens?

 

Os restantes Mandatários trouxeram-nos um total de trezentos e setenta e três conscritos, Mandatário Aelgar, o que com os vossos perfaz um total de quatrocentos e dezassete para o Esporão.

 

Quatrocentos e dezassete? Não parecia um número muito elevado a Taislin. Certamente seriam bastantes menos homens do que os que vira na batalha no Vale dos Ventos. Mais parecia a lista de convidados para uma festa... e que raio era o Esporão?

 

Terão de ser suficientes afirmou Aelgar categoricamente, parecendo pouco preocupado. Armas e armaduras?

 

Recebemos um suprimento satisfatório, embora de qualidade medíocre.

 

O Mandatário soltou um resignado suspiro, como se não tivesse esperado outra coisa.

 

Muito bem, Miliciares. Não nos devemos deter mais...

 

Uma pergunta, se me for permitido, Mandatário pediu o siruliano de cabelos negros.

 

Sim, Miliciar?

 

Qual a razão da vinda das duas mulheres? perguntou, e os olhares que os companheiros de Taislin averteram fizeram-no perceber que a atenção recaíra sobre eles.

 

Aelgar hesitou antes de responder.

 

A sua presença tem um motivo, Miliciar disse, dando a entender que não se tratava de um assunto a ser abordado. Os Miliciares pareceram compreender, pois não insistiram.

 

Pois bem... retomou o siruliano de cabelos castanhos. Devemos retirar-nos então, Mandatário. Aguardam-nos em Gaul-Anoth.

 

O roçar de metal contra metal denotou um aperto de mãos ou algo semelhante.

 

Que a luz de Sirul vos resguarde e aos vossos na batalha, Mandatário desejou o outro.

 

Os dois sirulianos entraram então no barco e prepararam-se para partir nele, e Aelgar deu a ordem de início de marcha para fora da praia, fazendo o tabuado do cais suspenso tremer e ressoar com os passos dos prisioneiros. Os quatro companheiros na dianteira sussurravam entre si, mas Taislin estava demasiado absorto nos seus pensamentos para lhes dar atenção. Não sabia se devia ou não contar-lhes o que ouvira, pois não pensava ter escutado nada de pertinente, excepto talvez a questão dos números. Além de que provavelmente lhe iriam fazer perguntas às quais não saberia responder, e poderiam ver os números com os seus próprios olhos quando chegassem ao seu destino. De momento, eram os Eahan que ocupavam os seus pensamentos. Seria possível? Iria descobri-lo em breve, o que fazia do burrik o mais ansioso dos conscritos.

 

O solo de Asmodeon era fragoso e cascalhento nas encostas das Montanhas que a procissão contornava, mesmo no trilho que se formara através de inúmeras passadas ao longo dos anos. Para grande surpresa de todos menos os sirulianos, flores amarelas cupuladas brotavam por entre o cascalho escuro, tingindo a pedregosa tapeçaria da paisagem de vivazes tons verdes e flavos acentuados pelo sol, que se baixava a oeste, para onde o grupo caminhava. Ninguém vira ainda nuvens negras como piche, nem esqueletos semeados pela terra; nem ouvira vozes vis no vento, nem gritos no ar. Asmodeon não cheirava a sangue seco ou a cadáveres podres, mas sim a pedras, flores desabrochantes e sal devido à proximidade da costa. Não era glacialmente fria nem causticamente quente; a temperatura era a que se esperava de uma península tão a norte durante a Primavera: fresca e húmida.

 

Confesso que não era bem isto que eu esperava admitiu Quenestil em voz baixa, compelido por alguma razão a não falar alto com o Mandatário tão próximo, independentemente daquilo que dizia. Caminhava de braço dado com Slayra, que se mantinha silenciosa.

 

Bah, o que esperavas ver? inquiriu Worick. Rios de sangue, drahregs a saltarem do chão, mijo a chover dos céus e lagos de esterco?

 

Não respondeu Quenestil, sentindo-se ofendido. Mas esperava algo mais, com tudo o que já se passou aqui.

 

Eu também admitiu Lhiannah, olhando em redor de cabeça descoberta. Parece tão... normal.

 

É uma terra como outra qualquer, pedras me partam. Há animais que vivem aqui, como em todo o lado... Deviam era preocupar-se com os habitantes, e com o que os sirulianos têm reservado para nós.

 

Recordados do propósito da sua vinda, os companheiros quedaram-se silenciosos e nada mais se ouviu além dos ásperos passos cascalhosos, o ruído acerado dos arneses dos sirulianos e o tilintar de correntes. Aelgar forçava a procissão a uma marcha apressada, obviamente com pressa de chegar a Aemer-Anoth, onde e o que quer que isso fosse. Os companheiros só obtiveram a resposta ao final da tarde quando chegaram ao cimo de um outeiro que olhava de alto o terreno que começava a descer e se estendia numa baixada pelo azulado horizonte fora.

 

A paisagem era dominada por um imponente castelo de construção invulgar, situado no topo de dois afloramentos de rocha de configuração escarpada que sobreolhavam um rio. Na verdade, tratavam-se de duas estruturas distintas separadas por um íngreme fosso e unidas por uma ponte levadiça por cima deste: a mais pequena era uma bastilha de forma triangular com dois altos torreões nas pontas da base do triângulo, das quais partiam as muralhas reforçadas por duas torres flanqueantes que se encontravam num terceiro torreão no vértice. A outra era um verdadeiro castelo de formato poligonal com uma muralha provida de seis torres mais altas do que as da bastilha, dentro de cujo pátio ainda se encontrava uma imponente torre de menagem rodeada por outra robusta muralha. O anciano megálito ostentava as cicatrizes de inúmeras batalhas e cercos, e os tons díspares do cinzento das suas muralhas sugeriam incontáveis reparações. A única entrada encontrava-se entre uma torre flanqueante e o torreão na ponta da base da muralha leste da bastilha, acessível através de um carreiro na rocha paralelo à muralha que levava a uma estreita barbacã. De resto, os afloramentos eram demasiado altos e íngremes para providenciarem qualquer outro ponto de acesso praticável. Era uma fortaleza altiva e imperiosa, que prometia um verdadeiro inferno a quem a tentasse tomar, e, mesmo àquela distância, os prisioneiros não puderam deixar de abrir as bocas de espanto e admiração. A tentativa de uma estrada serpeava pelos abundantes outeiros a nordeste e passava por entre o apertado fosso que separava as duas estruturas de Aemer-Anoth, dando acesso à ponte de pedra aninhada entre os dois afloramentos de rocha que constituía o único ponto de acesso ao outro lado do rio. Um exército teria de tomar primeiro o castelo antes de poder sequer pensar em atravessar a ponte, pois de outra forma seria chacinado no apertado fosso por arqueiros a dispararem do topo das muralhas de ambas as fortificações. Também era possível contornar o rio num baixio a norte, mas comandante algum alguma vez consideraria sequer a possibilidade de deixar uma guarnição de sirulianos na retaguarda do seu exército.

 

Contemplem Aemer-Anoth! declarou o Mandatário em voz alta, virando-se de seguida para os prisioneiros com uma expressão séria. Irão defendê-la com as vossas vidas, ou perdê-las-ão.

 

Quanto mais se aproximavam da fortaleza, mais intimidados os prisioneiros se sentiam, não tanto pela sua imponência pétrea, mas pelo que nela os aguardava. Quando a sombra das suas muralhas e torreões os cobriu, já o sol era denteado pelas ameias, das quais espreitavam cabeças de elmos e pontas de lanças reluzentes com a derradeira luz do dia. A procissão seguiu ordeiramente pelo carreiro do afloramento de rocha rugosa, sobre a qual tanto sangue já escorrera que estava impregnada com tal dor e sofrimento humano e inumano que todos o podiam sentir, ainda que de uma forma subtil. Cada passo contava uma história diferente, nenhuma agradável de ouvir e todas elas alusivas a mortes violentas, a sangue, agonia e medo, os desditosos filhos da guerra. Worick sentia-o com particular intensidade, lendo as expressões das pedras como outra pessoa faria com caras, e embora não se tratasse de nada ao qual não estivesse já habituado, o facto de Lhiannah estar agora também envolvida não podia deixar de o preocupar. O som raspante e metálico do rastrilho da barbacã fez-se ouvir ao ser aberto quando a procissão se encontrava a meio do carreiro rochoso. Eram aguardados à entrada da bastilha debaixo da barbacã por um siruliano de cabelos agrisalhados acompanhado por um séquito do que deviam ser Ajuramentados, embora fosse difícil dizer devido aos elmos que usavam, afunilados à maneira siruliana e com babeiras em forma de relhas de arado. O siruliano mais velho tão alto como o Mandatário e revestido por um esplendoroso arnês com o braço direito decorado com ornatos gravados a ácido, sobre o qual ainda repousava uma clâmide amarela pendurada à espaldeira saudou Aelgar com um forte aperto de mãos enluvadas de aço. Passou de seguida os olhos azuis pelo grupo de quarenta e quatro maltrapilhos que Aelgar lhe trouxera, bem como os cinco estranhos voluntários, e especialmente as mulheres entre estes, Slayra em particular, sobre as quais o seu impassível olhar adquiriu a parecença de expressão.

 

Mandatário...?

 

Explicarei tudo a seu devido tempo, Factoto Caendal interrompeu Aelgar.

 

Muito bem. O Castelão aguarda novidades vossas, e decerto quererá ver-vos o quanto antes. Deixai os conscritos comigo, e...

 

Levarei uns comigo, Factoto. Julgo que poderão ser do interesse do Castelão, e do vosso também.

 

Os dois sirulianos falaram silenciosamente com os olhos, e Caendal acabou por anuir.

 

As vossas palavras são estranhas, Mandatário, mas irei convosco se com isso vier a percebê-las melhor. Ajuramentado Aeden!

 

Senhor! chamou um jovem siruliano atrás do Factoto.

 

O grupo fica ao vosso comando disse sem sequer olhar para trás. Levai os conscritos para as suas instalações e procedei ao esclarecimento e à distribuição de armas.

 

Sim, senhor! obedeceu o Ajuramentado de imediato, assumindo o comando dos seus colegas e o dos que haviam acompanhado Aelgar.

 

Quais desejais levar, Mandatário?

 

O grupo de voluntários, incluindo as mulheres, e aqueles dois indicou Allumno e Aewyre. Grande parte dos olhares recaíam sobre o jovem, divididos entre a estranheza da presença de duas mulheres e daquele que parecia ser um siruliano acorrentado. Slayra e Worick em especial recebiam olhares que só podiam ser descritos como pouco amigáveis. E pedi a um Ajuramentado para trazer aquele caixote.

 

Um grupo bizarro, o que nos traz, Mandatário... comentou Caendal, virando-se para um jovem siruliano, ordenando-lhe que tirasse as grilhetas aos dois e que levasse o caixote indicado por Aelgar. O grupo então separou-se, com os Ajuramentados e os prisioneiros a dirigirem-se à entrada de uma das torres flanqueantes.

 

O pátio interior da bastilha estava vazio, uma extensão de terra batida desprovida de edifícios ou de qualquer outra estrutura, nem sequer um poço. Os únicos presentes eram outros prisioneiros que ouviam as ordens e indicações de grupos de sirulianos arnesados. O facto de se estarem a dirigir ao portão da ponte levadiça na base da muralha triangular mereceu-lhes a atenção de boa parte dos presentes, mesmo dos próprios sirulianos, que contudo se abstiveram de fazer perguntas aos seus superiores. A um sinal do Factoto, o rastrilho foi erguido, apresentando uma queda livre para o profundo fosso e a ponte levadiça da muralha em frente. Uma trompa soou por cima do portão e ouviram-se enormes correntes a deslizar do outro lado, baixando a rangedora ponte de grossas tábuas reforçadas por rebites e faixas de ferro enquanto outro rastrilho era erguido. A ponte esbarrou ruidosamente nas calhas de pedra do lado da muralha dos companheiros, e Caendal pôs nela o pé antes que o rastrilho estivesse completamente erguido, dirigindo-se pela primeira vez ao grupo.

 

O que vão ver não está reservado a muitos. Desconheço os propósitos que o Mandatário Aelgar tem para vocês, mas só por isto dever-lhe-iam estar gratos disse, fazendo um gesto a todos para que o seguissem.

 

Os companheiros ficaram intrigados com as palavras do Factoto, mas foram atrás dele sem fazerem perguntas, evitando olhar para os lados, pois embora a ponte fosse larga, não dispunha de nada que se entrepusesse entre uma pessoa e uma perigosa queda. Taislin não resistiu e deu uma olhada, tecendo um comentário acerca da altura que fez com que Quenestil o puxasse para trás pelos colarinhos. Em circunstâncias normais, o burrik teria ficado ofendido, mas estava demasiado excitado, lembrando-se dos eahan dos quais Aelgar falara, e o que Caendal acabara de dizer deixara-o ansioso ao ponto de quase passar por baixo das enormes pernas do siruliano e correr para o outro lado da ponte para ver o que as muralhas escondiam.

 

Não ficou desapontado quando atravessaram a barbacã.

 

A primeira coisa que saltava à vista no pátio dentro das muralhas além do facto de ser relvoso era a torre de menagem colada à muralha norte, uma possante estrutura ameada com tecto cónico protegida por uma muralha em meio círculo assente numa elevação do afloramento. Contudo, a atenção dos companheiros rapidamente se desviou para a esquerda, onde os seus olhares ficaram retidos.

 

Além de uma cisterna, havia apenas uma estrutura no pátio, e essa era deveras invulgar, destoando acentuadamente dentro do ambiente belígero das muralhas de uma fortaleza. Feita inteiramente de mármore, estava assentada num sólido círculo com degraus concêntricos à entrada, sobre o qual havia outro círculo mais pequeno, que por sua vez apoiava um terceiro mais pequeno ainda, em cima do qual estava um belver constituído por uma colunata redonda que sustentava uma cúpula de mica translúcida. Os círculos formavam uma pequena torre de andares sucessivamente de menor superfície, tinham janelas de pedra com motivos em forma de semicírculos e foices que lembravam crescentes. Motivos lunulares semelhantes decoravam o resto do edifício, cujas colunas aneladas ostentavam relevos selénicos, e atrás dele via-se um ensombrado recinto jardinado cercado por um muro de mármore com globos luminosos nele esculpidos e com armações de madeira dispostas em semicírculos encostados à fria muralha repletas de fragrantes flores brancas. Porém, não fora o edifício a chamar a atenção dos companheiros, mas sim os seus ocupantes que se encontravam nos degraus e no jardim, e que mesmo à distância de trinta passos os deixaram a todos boquiabertos.

 

Eram Eahan, os lendários eahan brancos, os protegidos de Sirul. Altos e elegantes, os seus longos e sedosos cabelos eram brancos como a neve, os olhos azuis-escuros brilhavam como safiras e a pele era da cor do marfim envelhecido. Homens e mulheres envergavam vestes soltas em tons de branco, prateado, azul e negro, que pareciam cintilar a cada movimento. A entrada dos companheiros não lhes passou despercebida, e os Eahan fitaram os desconhecidos com genuíno interesse enquanto eram admirados por estes. Encontravam-se demasiado longe para saber dizer ao certo, mas pareciam estar a sorrir aos recém-chegados.

 

Prossigamos ordenou o Mandatário, sentindo que já lhes concedera um privilégio ao dar-lhes tanto tempo para admirarem os Eahan. O Castelão aguarda-nos.

 

Relutantemente e torcendo os pescoços para olharem para trás, os companheiros seguiram pelo trilho de relva pisada que levava à torre de menagem e que cindia o pátio como uma cicatriz em pele verde. Alguns Eahan ergueram as mãos em despedida, mas a maior parte deles começou a falar entre si, obviamente intrigados com a presença de estranhos.

 

Vocês viram-nos? perguntou Taislin, excitadíssimo. Eram Eahan! Eahan!

 

Embora não fossem contagiados pelo entusiasmo do burrik, nenhum dos companheiros ficara impassível após ter visto os eahan brancos, cuja mera visão os distraíra das suas preocupações mais imediatas, deixando-os numa espécie de estado de inebriamento passivo enquanto tentavam verbalizar o que haviam sentido ao tê-los visto e eram conduzidos como ovelhas até à ponte levadiça da muralha da torre. Sirulianos armados e arnesados observavam-nos de forma quase ameaçadora do topo das ameias e torreões, empunhando alabardas e possantes arcos longos. O sol já descera atrás da muralha oeste, cuja sombra cobria agora o pátio. A ponte levadiça tinha a base acima do nível do chão e era íngreme, com um centro liso e os cantos providos de tábuas pregadas a servirem de degraus improvisados, e tornou-se óbvio ao subirem que, no caso de um cerco, a torre estaria longe de ser tomada mesmo que a ponte fosse baixada por traição ou acidente. A muralha fora judiciosamente construída sobre a elevação do afloramento rochoso, parecendo quase parte integrante dele e impossibilitando quaisquer escavações debaixo das suas fundações. Worick acenou aprovadoramente com a cabeça ao subir; os outros viraram as suas para trás para um último olhar aos eahan, constatando que alguns ainda os observavam.

 

Já dentro do ainda mais sombrio recinto interior, os companheiros foram rapidamente conduzidos à entrada da imponente torre de menagem, passando por grupos de Ajuramentados e Miliciares que lhes reservavam sempre um olhar penetrante e, no caso de Worick e Slayra, intensamente desaprovador. Quenestil apertou a eahanoir contra si, apercebendo-se da animosidade patente nos olhos dos sirulianos.

 

Não gosto deste lugar... sussurrou-lhe Slayra, afagando o seu ventre.

 

O shura não respondeu, pois embora a atmosfera também não lhe agradasse, sentir-se-ia estúpido a dizer que não gostava de uma das fortalezas que ao longo dos séculos haviam garantido a segurança de Allaryia. Mas Slayra estava de facto a receber muita atenção, bem como Worick e Lhiannah, e nenhum dos três se sentia confortável com os olhares, pelo que a entrada na torre constituiu um alívio temporário.

 

O edifício era frio e austero como os seus habitantes, totalmente desprovido de qualquer tipo de decoração e iluminado por tochas. Passaram por uma enorme porta de ferro reforçado flanqueada por dois sentinelas átonos que mal registaram a sua passagem, e enveredaram por um corredor com seteiras nas paredes nas quais os ecos dos seus passos reverberavam. Com os seus avaliadores olhos em bico, Worick olhou para cima e viu os buracos no tecto através dos quais os defensores poderiam despejar morte sobre visitantes indesejados.

 

”Pedras me partam, decididamente não queria estar na pele de quem atacar este lugar... se é que alguma vez chegariam aqui, com tudo o que há lá fora...”

 

Por alguma razão, o thuragar ficou mais tranquilo. Aemer-Anoth não era inexpugnável, mas quase, e com defensores motivados duvidava de que o inimigo alguma vez ultrapassasse as muralhas da bastilha. Claro que ainda não sabia ao certo o que iriam enfrentar, e também não tivera ocasião de avaliar a têmpera dos prisioneiros, mas com sirulianos e eahan do seu lado só uma nova Horda conseguiria tomar a fortaleza.

 

Perdido nas suas reflexões, quase não reparou quando os seus companheiros pararam subitamente ao entrarem no que devia ser o salão nobre da torre, uma sala rectangular com tecto de abóbadas de arestas de cujos centros pendiam candelabros de ferro. Tal como o resto da torre, era exclusivamente funcional e não tinha decoração de qualquer espécie, sendo a luz amarelada dos candelabros a única cor no meio da monotonia pardacenta. Havia apenas uma janela elevada ao fundo da sala, da qual já não entrava luz nenhuma, e em baixo da qual se encontrava um cadeirão sobre um estrado com degraus. Aos pés dos degraus encontrava-se um grupo de três eahan arnesados, dois sirulianos com roupas de batedores e um com um arnês, que provavelmente haviam sido a razão para o súbito estacar dos seus companheiros; e em cima do cadeirão estava sentada uma majestosa figura: um siruliano, o mais velho que o grupo até então vira e o único com barba. A sua ainda basta cabeleira estava cindida por uma risca ao meio e, tal como a barba impecavelmente aparada, era branca e sarapintada de negro. Envergava um arnês com cada placa revestida por tecido vermelho debruado a amarelo, e mesmo sentado àquela distância o seu porte era desmedido, quase gigantesco, talvez mesmo do tamanho de um antroleo. Claramente a liderar o grupo de eahan brancos estava um eahan alto e robusto, com os compridos e brilhantes cabelos brancos cingidos atrás da nuca por uma tiara prateada na qual estava incrustada uma brilhante hematite negra pontilhada de prateado. O seu arnês era menos volumoso que o dos sirulianos, e bastante mais decorado com motivos selénicos e espaldeiras em forma de crescentes. Era visivelmente mais velho do que os restantes eahan presentes, com a cara vincada e uns baços olhos azuis-escuros, mas à primeira vista parecia ser anos mais jovem do que o siruliano sentado, embora os dois devessem ser sensivelmente da mesma idade.

 

Observados pelos seus líderes, o grupo de três eahan e sirulianos aos pés do estrado estava a discutir numa língua que os companheiros não percebiam, mas que lhes dava a entender que havia discórdia a respeito de um determinado assunto quando entraram. Os pesados passos do Mandatário e do Factoto anunciaram a sua chegada, e os contendedores silenciaram-se, descarregando o peso dos seus olhares sobre os recém-chegados, que por pouco não vacilaram com o impacto. Os brandos olhos dos eahan eram inócuos, embora perturbadores à sua maneira, mas os dos sirulianos eram como virotes de besta, embatendo com violência quando assim o desejavam. Não havia Ajuramentados presentes nem jovens eahan; aquele era claramente um encontro importante, e o siruliano mais novo que carregava o caixote atrás do grupo sentiu-se nitidamente deslocado, abrandando o passo como se julgasse que a qualquer momento ser-lhe-ia ordenado que parasse e volvesse. O Mandatário e o Factoto avançaram decididamente e o grupo de eahan e sirulianos apartou-se para lhes dar passagem, cada um recuando para o lado do seu líder. Aelgar e Caendal então levaram os joelhos ao chão, raspando com as joelheiras na pedra.

 

Ao vosso serviço, Castelão saudou o Mandatário.

 

Saudações, Patriarca disse o Factoto, dirigindo-se ao eahan mais velho.

 

O eahan branco recebeu a saudação com um aceno de cabeça, embora estivesse claramente mais interessado no díspar grupo que os dois sirulianos haviam trazido consigo.

 

Saudações, Mandatário Aelgar. Quem são estes que traz ante a nossa presença? perguntou o Castelão numa voz estentórea que parecia deslizar pelas abóbadas como ondas numa praia.

 

Sem tirar o joelho do chão, Aelgar olhou para trás e fez uma expressão séria ao constatar que os companheiros estavam de pé.

 

De joelhos perante o Castelão Aedreth Caeryth e o Patriarca Hanal Lasan. Ajuramentado, pode pousar atrás de mim o que trouxe e retirar-se. Feche as portas ao sair.

 

O jovem siruliano foi o primeiro a fazer como lhe fora ordenado, executando uma rígida vénia ao seu senhor e aos seus superiores antes de sair da sala e fechar as portas. Os companheiros ajoelharam-se hesitantemente enquanto o Ajuramentado se retirava, incertos quanto ao que dizer ou fazer. Mesmo Allumno, habituado como estava a protocolo e etiqueta, se sentia deslocado e inseguro enquanto apoiava a mão no ombro de Aewyre. Os dois líderes receberam as irresolutas saudações com acenos de cabeça e esquadrinharam os estranhos num curioso escrutínio.

 

O Mandatário Aelgar assegurou-me de que estes indivíduos seriam do vosso interesse, Castelão disse Caendal, incluindo Hanal educadamente com o olhar.

 

Ergam-se disse Aedreth. Mandatário, queira elucidar-nos quanto a este grupo.

 

Sim, e quanto à razão que o levou a trazer uma filha do Flagelo e um fruto da odiada Luris para Aemer-Anoth interveio um dos Miliciares presentes, indicando Slayra e Worick e encolhendo a cabeça de seguida perante um olhar severo de Aedreth. As minhas desculpas, Castelão.

 

Os companheiros sentiam-se como animais exóticos trazidos para exposição quando se levantaram, e Slayra e Worick perceberam por fim a razão pela qual se haviam sentido particularmente visados pelos olhares dos sirulianos. Os eahan observavam com interesse sem terem ainda proferido uma única palavra.

 

Certamente, Castelão... disse Aelgar, repreendendo ele também o Miliciar com um olhar de censura. Tal como me foi incumbido, cumpri a minha missão de recolher conscritos e prolongar a linhagem em Val-Oryth, embora tenha deparado com dificuldades que poderão mais tarde ser discutidas. Enquanto o fazia, encontrei este singular grupo apontou para trás com a mão acusado do assassínio de lorde Malagor da Torre Judicante.

 

Houve um virar de cabeças colectivo para o grupo, e os companheiros por momentos pensaram que iriam ser julgados outra vez.

 

Já antes os havia encontrado, e o jovem alto que vedes atrás de mim prestou-me auxílio e aos Ajuramentados que me acompanhavam num insurgimento durante uma missão da linhagem. Dias depois, fui avisado de que enfrentavam penas de morte, surgi a meio da audiência e invoquei a Lei da Conscrição de Clausura, ilibando-os das suas acusações, e...

 

Mandatário... interrompeu Aedreth. Quem são eles?

 

A jovem humana é a princesa Lhiannah Syndar, filha de Sunlar Syndar, regente de Vaul-Syrith. O mago é Allumno da Gema Vermelha, conselheiro de Aereth Thoryn, regente de Ul-Thoryn. E este... apontou para Aewyre sem sequer olhar para ele é Aewyre Thoryn.

 

A cabeça do Factoto virou-se bruscamente para o Mandatário com um ar chocado e de um momento para o outro Aewyre viu-se no eixo de uma sala repleta de olhares das mais variadas expressões. Fez um esforço por não recuar um passo e olhou para um ponto indeterminado em frente, incapaz de os enfrentar a todos. Tanto o Castelão como o Patriarca estavam verdadeiramente intrigados, e o mesmo se podia dizer dos grupos de sirulianos e eahan, que contudo não se pronunciavam.

 

A sua vinda a Tanarch sem qualquer aviso prévio seria por si só de estranhar, mas Aewyre Thoryn também trouxe isto consigo continuou Aelgar, abrindo o caixote e tirando Ancalach dele, empunhando a espada diante dos estupefactos presentes. A luz dos candelabros incidia nos ornados copos da Espada dos Reis, dourando-os e abrilhantando a lâmina desprovida de quaisquer riscos ou bocas. Se o Mandatário quisera surpreender ainda mais os seus congéneres e os eahan brancos, acabara de o conseguir, e Aewyre pensou que se iria vergar debaixo do peso de todos aqueles olhos.

 

Aelgar avançou, subiu o estrado e ajoelhou-se perante o seu senhor, oferecendo-lhe Ancalach com ambas as mãos. Aedreth olhou para a arma, e via-se na sua pouco relaxada postura que não estava habituado a ser surpreendido; todavia, acabou por estender a mão e crispar os dedos enluvados e cobertos de aço no punho de Ancalach. Empunhou a espada em riste, percorrendo de cima para baixo o afiadíssimo fio da lâmina com os olhos, e pousou-a de lado sobre a palma da sua outra mão. Hanal subiu ele também os degraus do estrado de forma a ficar com a cabeça à altura da do Castelão, e embora não se estivesse a dirigir aos companheiros, as palavras que lhe saíram da boca causaram uma duradoura impressão nos seus ouvidos, sossegando-os e deixando-os mais à-vontade. Não percebiam a língua, mas cada sílaba precedia e seguia a outra em perfeita harmonia e incutiu-lhes uma sensação de confirmação. Aedreth fitou o eahan e nutou com a cabeça, tornando a olhar para Aewyre de seguida.

 

Aproxima-te, Aewyre Thoryn disse em passiva autoridade, pousando Ancalach sobre os joelhos. Aelgar ergueu-se de imediato e postou-se do lado oposto ao de Hanal no estrado.

 

Aewyre hesitou e olhou para os seus companheiros, procurando apoio que sabia que não poderia receber, e acabou por avançar por falta de opções, ficando no meio do fogo cruzado dos olhares dos dois grupos.

 

Diz-me, Aewyre Thoryn ressoou a voz do Castelão, o que fazias em Tanarch com a espada do teu pai?

 

O jovem engoliu em seco, sabendo bem que era inútil mentir ou dissimular a verdade. Os orbes do velho siruliano eram azuis como dois charcos cristalinos, e a sua alma parecia reflectir-se neles, despida até ao âmago do seu mais íntimo ser e dentro deles retida como uma imagem à superfície da água.

 

Eu... inspirou fundo, sentindo-se como uma criança apanhada após uma travessura. Eu saí de Ul-Thoryn com Ancalach... sem o conhecimento do meu irmão... do regente. Queria... a voz falhou-lhe, e Aewyre pigarreou quero descobrir o que aconteceu ao meu pai, e a única maneira de o saber... é ir a Asmodeon. Sirulianos e eahan entreolharam-se. Por isso estava em Tanarch...

 

Hum, e os teus companheiros? inquiriu o Castelão, erguendo ligeiramente a ponta de Ancalach na direcção destes.

 

Encontrei-os nas minhas viagens. São meus amigos. Por fim, uma pergunta de resposta fácil.

 

Incluindo a eahanoir e o thuragar? E daí, talvez não.

 

Sim ousou Aewyre dizer, sentindo necessidade de defender os seus companheiros. Confio a minha vida a cada um deles. Viajámos juntos durante este último ano.

 

Quenestil apertava Slayra contra si com um braço, e Lhiannah reparou que Worick tinha os punhos fechados, ciente da hostilidade dos sirulianos.

 

Entendo... continuou o Castelão a conversa, como se mais ninguém estivesse presente na sala. E por que foram acusados pelo assassínio de lorde Malagor?

 

Aewyre hesitou antes de responder, com a distinta impressão de que uma palavra em falso lhe poderia ser custosa, mas tornou a optar pela verdade sincera.

 

Os meus companheiros não estiveram envolvidos nisso... só o Allumno, que estava comigo. O... ah... lorde Malagor era um Filho do Flagelo, e nós já tínhamos sido atacados pelos seus homens. Só que não o sabíamos e, quando eu fui convidado para uma festa por lorde Malagor, o Allumno veio comigo... ah, porque tinha sido atacado por ele enquanto meditava... quer dizer, no Pilar. Estaria a ser claro? Era impossível dizê-lo pela expressão inalterada de Aedreth, e não ousava tirar os olhos dos dele. Bem, quando o viu, o Allumno atacou-o para me defender, e as pessoas que lá estavam pensaram que se tratou de assassínio. Mas não foi; eles eram Filhos do Flagelo... a pupila de lorde Malagor também era uma; a... princesa Lhiannah reconheceu-a no tribunal. Eu...

 

Maldição, por que não dizia o homem alguma coisa? O interior do salão real era fresco, mas Aewyre sentiu gotas de suor a brotarem da sua testa. Estava agudamente consciente da sua lastimosa aparência, da sua barba de três semanas, das cicatrizes no lado esquerdo da face, das linhas de sujidade que demarcavam os vincos na sua testa enrugada, das suas roupas sórdidas...

 

Eu acredito no que diz, príncipe Aewyre interveio Hanal repentinamente, deixando o jovem demasiado atordoado para ficar surpreendido. O eahan contemplava-o a meio do estrado, parecendo ser mais ou menos da sua altura, e dirigiu-se a Aedreth sem desviar o olhar. O príncipe fala a verdade, Castelão.

 

Eu sei, Patriarca disse o siruliano, mas a história não deixa de ser intrigante. Então viajaste este caminho todo para descobrir o que aconteceu ao teu pai, Aewyre Thoryn?

 

Sim afirmou o guerreiro sucintamente, acenando com a firme cabeça, sem vontade de repetir o ordálio que era falar com o Castelão e olhar para ele ao mesmo tempo.

 

E para esse fim fugiste de Ul-Thoryn com a espada que lhe pertence por direito?

 

Sim estranhamente, Aedreth parecia aprovar das respostas concisas do jovem.

 

E como pensavas chegar a Asmodeon?

 

A pé... ou de barco. E não pensava. Ainda penso.

 

O grupo de sirulianos mexeu-se em silencioso ultraje pela ousadia do jovem, mas nenhum ousou interromper o Castelão, que fingiu não notar.

 

Tencionavas viajar por uma terra que há milénios apenas é pisada por drahregs e outras criaturas vis, acompanhado por seis companheiros, portando o chamariz para as forças do Flagelo que é a Espada dos Reis, e entrar na própria fortaleza de Asmodeon, na qual nem os exércitos combinados dos sirulianos e eahan conseguiram penetrar séculos atrás?

 

Um breve silêncio.

 

Sim.

 

Outro, durante o qual Aedreth ergueu um sobrolho branco com alguns isolados pêlos negros.

 

- És filho do teu pai, sem dúvida... comentou, lançando um quase imperceptível olhar de soslaio ao Mandatário. Presumo então que matar lorde Malagor não fizesse parte dos teus planos?

 

Não, não fazia respondeu Aewyre, talvez demasiado depressa.

 

Muito bem. Ainda assim, tu e os teus amigos foram condenados e encontram-se agora debaixo da minha jurisdição...

 

Eles não foram! Só eu e o Allumno é que...

 

Os teus amigos ofereceram-se como voluntários, Aewyre Thoryn interveio Aelgar a seu lado. Todos eles.

 

A atenção do Castelão recaiu sobre o Mandatário.

 

Mandatário Aelgar, talvez agora me podeis explicar por que haveis trazido um grupo com duas mulheres?

 

Eu... Aewyre viu Aelgar hesitar pela primeira vez. Não foi uma decisão ponderada, Castelão. Tomei-a durante a audiência. O thuragar e o eahan parecem bons guerreiros, e tê-los-ia aceite de qualquer forma. O burrik foi quem me avisou do que estava a suceder na audiência, que Aewyre Thoryn podia ser condenado à morte. As duas mulheres... perdoai a minha irreflectida decisão, Castelão, mas o burrik informou-me de que tanto elas como os seus companheiros corriam perigo, que os Filhos do Flagelo já os haviam atacado e que certamente o iriam fazer outra vez. Eu...

 

Não vos escusais tanto, Mandatário serenou-o Aedreth.

 

Por vezes esquecemo-nos de que o que jurámos fazer foi proteger Allaryia e os seus habitantes e, sendo verdade o que o burrik disse Taislin encolheu-se com a atenção do Castelão, haveis feito precisamente isso ao trazer as mulheres convosco.

 

Sim, Castelão.

 

É claro que podeis tê-las trazido ao encontro da sua própria morte, mas aqui sempre terão mais hipóteses do que sozinhas em Val-Oryth, não?

 

Como...? exclamou Aewyre, desagradado pelo tom ominoso das palavras de Aedreth.

 

Tu e os teus companheiros vão combater, Aewyre Thoryn, lutarão ao lado dos restantes conscritos no Esporão. A bastilha é o único ponto de acesso viável à fortaleza, e caber-vos-á a vocês defendê-la sozinhos...

 

Espere aí! interveio Worick, dando um passo em frente.

 

O que quer dizer com defendermos aquilo sozinhos?

 

Os eahan fitavam os companheiros com olhos tristes e resignados, mas os sirulianos por pouco não mataram o thuragar com os seus. O Castelão pareceu ficar mais sério ainda ao responder.

 

Sim, thuragar. Defenderão o Esporão com quatrocentos conscritos que terão a oportunidade de expiarem os seus crimes.

 

Sozinhos? Mas afinal que espécie de exército é que vem aí, ha?

 

A indignação de Worick e o medo por Lhiannah sobrepusera-se à sua hesitação.

 

Mostra respeito, thuragar... disse um dos batedores sirulianos com uma voz ameaçadora, embora Aedreth não parecesse sentir-se de forma alguma ultrajado.

 

Aproxima-se um exército de cinco mil a leste; drahregs, ulkekhlens e ogroblins. Segundo os relatos dos nossos batedores, devem chegar dentro de dois dias.

 

Castelão? interrompeu um dos batedores, parecendo querer dar a entender que o seu superior se esquecera de algo.

 

O Factoto poderá informá-los acerca dos detalhes mais tarde, Batedor Eaduin. Por agora, já sabem tudo o que precisam de saber. Aedreth pontuou a sua afirmação com um olhar fixo na direcção do thuragar. Mais alguma pergunta?

 

Duas disse Aewyre. Vão obrigá-las a combater? indagou, indicando Lhiannah e Slayra com o polegar.

 

Não podemos obrigar ninguém a combater, Aewyre Thoryn. Vocês estarão por vossa conta no Esporão e devem fazer como bem entenderem, desde que estejam cientes de que a vossa sobrevivência apenas de vocês depende. As mulheres não precisam de lutar, contudo; elas e o burrik podem tratar dos feridos, ou desempenhar outras funções que não a de combater.

 

Embora os seus companheiros parecessem mais aliviados, Lhiannah entreabriu a boca para protestar, mas decidiu que a altura não era indicada para discutir essa questão.

 

Muito bem disse Aewyre. E depois da batalha? O que acontece?

 

Todos quantos sobreviverem poderão partir e serão escoltados até à fronteira da Sirulia, livres de voltarem para as suas terras...

 

Vão impedir-me de ir para Asmodeon? O Castelão franziu o cenho.

 

Aewyre Thoryn, em duas décadas humano algum entrou ou saiu de Asmodeon. Aceita o destino do teu pai e volta para os teus depois da batalha...

 

Vão impedir-me ou não? Depois da batalha, é para Asmodeon que eu vou, e para a fossa com todo o resto.

 

Aewyre Thoryn... advertiu o Mandatário.

 

A expressão do Castelão petrificou-se de repente e a sua armadura rangeu quando o homem apoiou as grandes mãos nos braços do cadeirão, erguendo-se com Ancalach empunhada. Os sirulianos quedaram-se silentes e os olhares dos Eahan viraram-se em simultâneo para Aedreth quando este se agigantou sobre o estrado, parecendo quase tocar com a cabeça no tecto baixo do salão. O homem era enorme, imenso, e a sua armadura revestida de tecido vermelho fazia-o parecer ainda maior, um gigante coberto dos ombros aos pés pelo sangue dos seus inimigos. O seu primeiro passo ressoou pela sala, e a sua ponderosa descida pelos degraus do estrado foi acompanhada pelos olhos de todos os presentes, fixos no Castelão num misto de respeito e temor. O seu caminhar era lento e grave, alquebrado pelo peso da idade, mas provido de uma energia e vigor nascidos de uma vontade férrea temperada por anos de rigores e provações, e de uma força conservada em músculos rijos como carne defumada. Quando chegou ao nível de Aewyre, o jovem teve de erguer o queixo para enfrentar os seus olhos e apelar a toda a sua audácia e dignidade para não recuar ou se encolher e tapar a cabeça com as mãos perante tão imponente presença. O homem permaneceu diante do jovem, sobranceando-o, e parecia decidido a esperar para ver quanto tempo Aewyre aguentaria cruzar olhares com ele quando por fim quebrou o silêncio:

 

Caso sobrevivas à batalha, Aewyre Thoryn, ninguém te impedirá de seguires para Asmodeon, nem aos teus amigos, se eles desejarem mesmo seguir-te ao encontro da morte. Aedreth apoiou a base da lâmina de Ancalach sobre a mão esquerda enluvada e entregou-lha. Toma. Irás precisar dela.

 

Aewyre não esperara reaver a sua espada tão cedo, pelo que hesitou antes de a aceitar, grato pela desculpa para descruzar olhares com o Castelão. Aelgar tirou a bainha da caixa para lha dar.

 

Factoto Caendal, os planos e a disposição mantêm-se. Levai Aewyre Thoryn e os seus companheiros para o Esporão e dai-lhes as devidas indicações.

 

Sim, Castelão.

 

Castelão solicitou Aelgar, peço permissão para acompanhar o Factoto.

 

Aedreth não viu qualquer razão para recusar o pedido, anuindo com uma inesperadamente compreensiva cabeça. Caendal levou o punho do ornado braço direito ao peito e fez uma vénia ao seu superior e a Hanal, um gesto que o Mandatário repetiu. Os três outros sirulianos curvaram-se ligeiramente em despedida dos seus pares e os Eahan fizeram o mesmo, embora ainda fitassem tristemente os aturdidos companheiros enquanto estes olhavam uma última vez para trás ao retirarem-se. Caendal e Aelgar conduziram-nos para fora do salão e o grupo deu consigo a suspirar de alívio, apercebendo-se do quão pesada a atmosfera estivera dentro da torre. Já era tarde, mas tal como em Tanarch, o sol aguentava-se teimosamente no horizonte, relutante em abandonar o seu posto.

 

Foste ousado e desrespeitoso, Aewyre Thoryn admoestou-o o Mandatário, caminhando a seu lado.

 

Tinha o direito de saber o que nos iria acontecer afirmou o guerreiro, decidido a aproveitar o resquício de imprudência que lhe sobrava.

 

Sim, e ainda não responderam a todas as perguntas lembrou Worick.

 

O Factoto deteve-se e virou-se para os companheiros, cruzando os braços e assegurando-se de que a atenção deles não recaía sobre a casa dos Eahan ao fundo atrás de si.

 

Pois bem, eis o que precisam de saber: vocês e mais quatrocentos e dezassete conscritos ficarão encarregues da defesa do Esporão...

 

Mas porquê só nós? insistiu Worick. Quantos sirulianos há aqui? Mil? Dois mil? Cada um de vocês vale dez drahregs! Por que é que não nos ajudam?

 

Caendal assumiu uma expressão grave e séria.

 

Porque, tal como estimaste, thuragar, somos pouco mais de mil nesta fortaleza, juntamente com menos de oitenta Eahan, os últimos membros da única família que optou por ficar o mais perto possível da sua antiga terra. Não só nesta fortaleza, por toda a Sirulia os nossos números têm vindo a diminuir progressivamente ao longo dos anos enquanto protegíamos Allaryia, servindo de barreira a uma nação que nem sabe dar o devido valor ao que fazemos. Tem sido uma constante guerra de atrito, e nós não temos os números do nosso lado, por isso adoptámos este sistema de conscrição, no qual criminosos e condenados saldam a dívida que têm para com a lei de uma forma ou de outra.

 

Os companheiros estavam chocados com o que haviam acabado de ouvir. Caendal estava a dizer-lhes por outras palavras que eles e os restantes conscritos iriam servir como um escudo de carne para o resto da fortaleza. O Esporão era o único ponto de acesso para entrar no castelo, e os sirulianos iriam aguardar no outro lado enquanto a ralé lutava pelas suas vidas.

 

Pedras me partam, quatrocentos contra quê? Cinco mil?

 

A bastilha é altamente defensável assegurou Caendal. Os vossos números deverão bastar.

 

E se não bastarem? Vocês ficam sentados do outro lado a ver as nossas cabeças serem espetadas em lanças?

 

Foi-te apresentada uma escolha em Val-Oryth, thuragar...

 

Não sabia era que nos iam enviar para uma chacina! E quem é que estás a tratar por ”tu”? Devo ser mais velho que tu, minha viga carunchosa...

 

Lhiannah agarrou o ombro do seu mentor, pressentindo problemas. Os sirulianos que rondavam os adarves das muralhas sobranceiras estavam a olhar para o pátio.

 

Não abuses da minha paciência, thuragar.

 

Basta interveio Aelgar. Tal como o Factoto disse, a bastilha é altamente defensável. Além disso, a presença do filho de Aezrel Thoryn e a de Ancalach deverá levantar o moral dos conscritos.

 

Pensei que Allaryia não precisasse de ”quimeras”... comentou o jovem, olhando de soslaio para o Mandatário.

 

Allaryia de facto não precisa de quimeras reconheceu Aelgar, mas vocês irão precisar de toda a ajuda que conseguirem.

 

Aewyre calou-se, sentindo o que sobrava da sua rebeldia a desvanecer-se. Apenas Worick não se deu por satisfeito.

 

Então e que coisa era aquela que Castelão não nos quis dizer no salão?

 

O Factoto elogiou a memória do thuragar com um aceno da cabeça.

 

Os nossos batedores descobriram que o exército é liderado por um azigoth, que porta algo que faz com que a hoste o siga...

 

Um azigoth? pronunciou-se Allumno pela primeira vez, secundado por boa parte dos seus restantes companheiros.

 

Ai, mas querem mesmo mandar-nos para uma chacina! exclamou Worick, incrédulo. Não nos querem matar já e esperar que o pivete dos nossos cadáveres afugente o exército?

 

Um azigoth enfatizou Caendal. Apenas um azigoth. Não sabemos de onde surgiu, mas aparentemente conseguiu amedrontar ou de alguma forma convencer alguns drahregs a juntarem-se num exército, que de início deve ter sido bem maior, antes de fatalmente se ter começado a desregrar. É preciso alguém muito forte e imponente para unir qualquer número de drahregs num propósito comum, e este azigoth em particular parece tê-lo conseguido de alguma forma. Resta saber quantos dias aguentarão a arremeter e sangrar contra as muralhas de Aemer-Anoth...

 

As palavras do Factoto falharam em apaziguar o desassossego dos companheiros, e o homem trocou um breve olhar com o Mandatário, que fechou os olhos e nutou com a cabeça.

 

Prossigamos então. Amanhã poderás apresentar-te aos restantes conscritos, Aewyre Thoryn, ou permanecer anónimo se assim o desejares. E tu, thuragar, terás um dia e meio para tentar desmoralizar as tropas ou discutir estratégias com elas. Os outros poderão combater ou ficar escondidos num dos torreões a aguardar a entrada dos drahregs. Tal como em Val-Oryth, a escolha é vossa...

 

Os companheiros passaram uma noite miserável numa das salas da barbacã convertidas em dormitórios, partilhando-a com um grupo de malcheirosos conscritos e dormindo em camastralhos no chão. A única abertura era uma janela estreita que dava para o pátio, e Lhiannah abrira-a para aliviar o odor, mas um dos conscritos tornara a fechá-la a meio da noite, resmungando algo acerca do frio. A manhã seguinte veio cedo, tal como em Tanarch, e todos taparam as cabeças com os puídos cobertores para as resguardarem dos raios de sol que entravam pelas frestas da janela e da parede, até serem acordados por batidas aceradas na porta, que foi aberta por um Ajuramentado.

 

A refeição vai ser servida na messe anunciou no dialecto siruliano que tanto os faladores de Glottik como os de Leochlan compreendiam. Levantem-se.

 

Worick rabujou e Lhiannah teve de pensar em algo criativo para o acordar; Taislin estava com os olhos papudos e ensonados; Slayra sentia-se enjoada, como frequentemente lhe começara a acontecer durante a manhã; e os restantes companheiros também já haviam visto dias melhores. Sentiam-se sujos e pouco refeitos, e o pensamento de que em breve tomariam parte numa batalha diferente e mais perigosa do que qualquer outra na qual tivessem participado não os abandonava. O Ajuramentado conduziu-os pelo corredor da barbacã até umas escadas em espiral, nas quais deram com outro grupo de conscritos conduzido por outro jovem siruliano que já as desciam e que os fitaram com o ar de indiferença de completos desconhecidos. Contudo, muitos acharam curioso o facto de Aewyre portar uma espada ao cinto, embora não ao ponto de lhe fazerem perguntas a esse respeito. Apesar da insistência dos seus companheiros, o jovem não estivera com disposição para apresentações na noite anterior, e ainda não fazia ideia de como é que haveria de se anunciar como o príncipe de Ul-Thoryn no meio da ralé tanarchiana.

 

Pedras me partam, quatrocentos marmanjos que mal se conhecem uns aos outros, mortos de medo e que só querem que isto acabe para poderem ir para casa... resmungou Worick.

 

Ninguém comentou, pois todos pensavam o mesmo. Faziam parte de uma ralé que mal poderia ser apelidada de guarnição; homens que quando muito apenas teriam treino de milícia, eventualmente um ou outro mercenário ou velho soldado, e pelo que até então haviam visto, alguns não se encontravam sequer capazes de combater, devido à idade ou a incapacitação física.

 

Seguindo a orientação dos Ajuramentados, os dois grupos saíram no rés-do-chão da barbacã e entraram na messe, uma sala alta na qual estavam estendidas duas compridas mesas assentes sobre cavaletes. Vários conscritos já estavam nelas sentados a comer, e receberam a chegada de mais com desinteresse, embora o punho de Ancalach lhes chamasse a atenção tal como aos outros. À entrada da sala, um dos Ajuramentados indicou uma tina de água que já fora repetidamente usada e na qual os companheiros relutantemente lavaram as mãos antes de se sentarem. O pequeno-almoço que lhes foi distribuído era surpreendentemente substancial e nutritivo: coalhada, pão de centeio, peixe fumado, queijo duro e biscoitos de aveia, tudo devorado pelos famintos companheiros.

 

Os sirulianos têm de se alimentar, não é? deduziu Taislin de boca cheia, expelindo algumas migalhas de aveia. Para serem tão grandes...

 

Slayra estava sem grande apetite, e Aewyre de bom grado comeu a porção que a eahanoir deixou sobrar enquanto Quenestil tentava convencê-la a comer mais um pouco antes que o seu amigo devorasse tudo. Worick olhava pensativamente em redor com migalhas no bigode e restos de coalhada na barba debaixo do lábio inferior, avaliando os cerca de trinta conscritos que estavam presentes. Allumno agarrava a taça de coalhada com ambas as mãos, inclinando-se para Lhiannah para lhe dizer algo acerca do seu maxilar, ao qual a princesa acenou com a cabeça, mastigando com cuidado. Finda a refeição, os Ajuramentados anunciaram que se iria dar um encontro no pátio da bastilha para a distribuição de equipamento, e ordenaram a todos que empilhassem as taças e os cavaletes. Tudo parecia um grande campo de treino de recrutas, que iriam ter a sua derradeira prova de fogo muito antes do devido tempo. Como bons recrutas, os conscritos e os companheiros seguiram os sirulianos pelo corredor até ao pátio, no qual se conglomerava a improvisada guarnição do Esporão, observada pelo Factoto e um grupo de dez Ajuramentados. A frente dos sirulianos estava um modesto arsenal disposto em fila, arcos, espadas, achas de armas, lanças, adagas, aljavas de flechas, elmos, cotas de malha e algumas das armaduras lamelares que os tanarchianos favoreciam. Assim que os companheiros e o seu grupo chegaram, Caendal alinhou os conscritos e procedeu à distribuição do armamento com a assistência dos Ajuramentados, assegurando-se de que os homens mais robustos ficavam com o melhor equipamento. Enquanto aguardava a sua vez, apoiando a mão e batendo com os dedos no pomo de Ancalach, Aewyre tornou a reparar no ornado braço direito do Factoto e inclinou a cabeça para Allumno.

 

Por que é que o resto da armadura dele é normal e o braço está decorado?

 

É o designativo da sua função; ele é o Factoto. Aewyre piscou os olhos e ficou na mesma. O braço-direito do Castelão.

 

Ah.

 

Desde que começámos a viagem, parece que andas a desaprender tudo o que te ensinei...

 

Quando é que falámos de factotos defendeu-se o jovem. Allumno suspirou e fez um gesto com a mão que dava a entender que não era nada que valesse a pena discutir naquele momento. Quando chegou a vez dos companheiros, o seu equipamento foi-lhes restituído: o arco ocarr e o facalhão de Quenestil, o martelo de Worick, a afilada espada e a couraça de Lhiannah, os punhais e adagas de Taislin (alguns dos quais mantivera em sua posse durante a viagem), o cajado e a sacola de Allumno, e o estilete e quebra-espadas de Slayra. Quenestil ainda teve direito a um corselete de couro e setas com pontas de aço, Worick recebeu um pequeno escudo redondo e Allumno arrecadou um gibanete de pano encorpado e dobrado. Aewyre teve a sua couraça de volta e um elmo cupulado de segmentos de ferro rebitados com um avental de malha de aço. Quando terminou a distribuição, Caendal dirigiu-se à guarnição com a sua possante voz:

 

Todos vocês escolheram servir Sirulia a cumprir as vossas penas. Pois bem, defendam esta bastilha e serão ilibados e incondicionalmente livres de partir quando ela estiver fora de perigo. Lutem com coragem e disciplina, e o Esporão não será tomado; falhem, e serão mortos e devorados pelos drahregs, pois a progénie do Flagelo não faz prisioneiros.

 

Pedras me partam, como é que ele espera que esta gentiaga desmoralizada lute com ”coragem e disciplina”? murmurou Worick, observando as expressões apáticas dos conscritos, que mais pareciam ovelhas num curral à espera de que a porta fosse aberta para os lobos entrarem. Porra, Aewyre, diz alguma coisa.

 

Digo o quê? retorquiu o jovem. Que estou aqui para os salvar? Nem sabemos se nos conseguimos salvar a nós mesmos...

 

A barbacã é o único ponto de entrada viável, e é nela que deverão concentrar as defesas continuou Caendal. O inimigo não traz engenhos de cerco além de escadas, e talvez venha a proceder à construção de uma torre. Já foram informados acerca da constituição do exército que se aproxima, e já sabem o que os lidera; planeiem a vossa defesa de acordo com esse conhecimento. Perguntas?

 

Aewyre, o Worick tem razão... sussurrou Allumno ao seu protegido. Isto não é Alyun e estes não são os Corações Quebrados. Temos de ser nós a dar o exemplo, ou vai ser um massacre.

 

Então se somos nós, por que é que tenho que ser eu a falar? Tal como o Factoto esperara, ninguém se pronunciou, pelo que o siruliano se retirou com um aceno de cabeça à guarnição e lhe virou as costas, pronto para voltar para a fortaleza.

 

Eu tenho uma pergunta! berrou Worick, empurrando Aewyre com força para a frente.

 

Antes que o guerreiro sequer se apercebesse do que acabara de acontecer, todos os olhos no pátio estavam centrados em si. Olhou para trás, vendo que Worick fingia estar distraído, olhou em redor, constatando que os conscritos aguardavam que dissesse algo, interessados pela primeira vez, e virou-se para a frente para encarar os Ajuramentados e Caendal, que tinha o ar de quem estivera à espera de que Aewyre dissesse algo.

 

Eu queimo-te a barba, Worick... disse o guerreiro em surdina, engolindo em seco antes de falar. Factoto... posso falar com os conscritos?

 

O homem anuiu com a cabeça e estendeu a mão convidativãmente, Aewyre virou-se para o que de repente se tornara a sua plateia. Mesmo os seus companheiros o fitavam como se esperassem dele algum discurso inspirado para galvanizar a guarnição. Iria queimar a barba do Worick, sem dúvida. Pigarreou hesitantemente e decidiu arriscar:

 

Eu... vocês percebem Glottik? Algumas cabeças acenaram afirmativamente, outras foram abanadas, outras mal se mexeram.

 

”Bem, isto vocês devem perceber”, pensou o jovem, crispando os dedos na espada e desembainhando-a.

 

Eu, sou Aewyre Thoryn, filho de Aezrel Thoryn, e esta é Ancalach proclamou, erguendo a lâmina ao alto e guiando com ela os olhos de todos.

 

Boa, gastar o trunfo logo ao início... resmungou Worick, seguidamente silenciado por Allumno.

 

Aewyre deixou Ancalach impressionar os conscritos durante mais algum tempo antes de a baixar, esperando que a sua esplendorosa aparência fosse o suficiente para os convencer.

 

Eu... fui conscrito tal como vocês, e quero tanto sair daqui... como vocês. Todas as aulas de oratória com Allumno esvaneceram-se-lhe da mente no preciso instante em que mais delas precisava. Somos poucos, mas a bastilha pode ser bem defendida. Eu e os meus amigos temos alguma experiência nestas coisas afirmou, indicando os seus companheiros com a ponta de Ancalach. Vamos estar por nossa conta, mas... se trabalharmos juntos, pode ser que muitos de nós ainda voltem para casa quando tudo terminar. Quando o exército chegar, podemos esconder-nos aqui dentro e esperar que eles entrem, ou podemos lutar. Eu vou lutar. Mais alguém?

 

Silêncio, exceptuando o nervoso tilintar de cota de malha e o ranger de couro. Caendal e os Ajuramentados aguardaram uma reacção, embora bem menos expectantes do que Aewyre, que se questionava acerca da sua própria credibilidade.

 

Slayra desenvencilhou-se dos braços de Quenestil e, para grande espanto de todos, postou-se ao lado do guerreiro.

 

Eu vou ajudar declarou a eahanoir.

 

Worick percebeu a ideia da eahanna e seguiu o seu exemplo, cruzando os braços em desafio.

 

Vá lá, seus rabos moles... vociferou o thuragar. Ou querem que uma mulher grávida lute por vocês?

 

A mera presença de Slayra chamara quase tanta atenção como Ancalach, e a eahanoir agarrou a já algo protuberante barriga com as mãos para enfatizar o seu estado. Enquanto os conscritos murmuravam entre si, Quenestil juntou-se-lhe, e os restantes companheiros fizeram o mesmo. Por fim, um dos tanarchianos avançou, um homem barbudo e de cabelos desgrenhados que o grupo reconheceu como companheiro de viagem.

 

É vero! Foram ele e o mago que escocharam lorde Malagor! disse, apontando para Aewyre e Allumno.

 

Os conscritos murmuraram de forma mais ruidosa e menos discreta, mas era difícil dizer se o faziam por nervosismo ou por estarem impressionados, ou mesmo se o facto já fora conhecido ou não. Aewyre não esperou por uma confirmação e deu um passo em frente, silenciando a multidão com um varrer de Ancalach.

 

Não interessa o que fizemos antes, ou o que vocês fizeram. Agora estamos aqui, e temos de lutar para nos defendermos, ou morremos. O jovem viu que a determinação da plateia ainda era periclitante, o que não constituía grande surpresa, tendo em conta o seu deplorável discurso, pelo que deixou que a sua espada falasse por si. Esta é Ancalach, a Esp... o Flagício da Sombra. Se os filhos do Flagelo vêm aí, ela vai provar o seu sangue. Que coisa mais estúpida para dizer, pensou o guerreiro, sem contudo se atrever a parar. Eu e os meus companheiros vamos lutar. Quem mais? Quem luta connosco?

 

Lida traduziu-lhe Allumno de lado.

 

Lida. Quem lida connosco?

 

Eu lido disse uma voz após alguns momentos, e quem a proferiu avançou de braço erguido para a frente dos conscritos.

 

Eu lido veio uma segunda, seguida de várias outras, e em breve se formou um pequeno grupo de tanarchianos sujos, andrajosos e equipados ao acaso defronte dos companheiros, incitando os restantes a fazerem o mesmo. Alguns aproximaram-se mais, esticando as mãos hesitantemente para tocarem em Ancalach, o que Aewyre permitiu, apoiando a ponta da espada no chão.

 

Quando os últimos resistentes foram convencidos pelos números e pela manifesta falta de opções a avançar, o jovem olhou brevemente para trás para Caendal, que acenou aprovadora e curtamente com a cabeça antes de se retirar, deixando os companheiros ao comando da guarnição.

 

”Muito bem, consegui convencer homens desesperados de que há esperança...”, congratulou-se Aewyre sardonicamente, observando os conscritos que olhavam para Ancalach com admiração. ”Agora só tenho de me convencer a mim mesmo...”

 

Os companheiros passaram o resto do dia a organizar as defesas da bastilha com os conscritos. O grosso das defesas concentrar-se-ia na barbacã, nos dois torreões a leste da bastilha e na torre flanqueante entre estas, com um contingente mais reduzido no torreão do vértice. As pedras de arremesso arrecadadas nas caves da barbacã e das torres foram recolhidas e distribuídas pelos pontos de defesa, água foi depositada em tinas para escaldar (tratando-se de drahregs, ninguém contava com um cerco prolongado ao ponto de terem de a racionar), flechas foram armazenadas em barris e conscritos foram destacados para a sua posterior distribuição durante a batalha. Worick supervisionava tudo, embora deixasse o comando da guarnição a cargo de Aewyre, e o jovem teve de ouvir os seus resmungos e lamentos durante boa parte dos preparativos. O thuragar queixava-se da falta de meios, que os sirulianos não lhes haviam deixado nada além de ”calhaus” e ”flechas de caçar passarinhos”, mas ambos sabiam que seriam obrigados a desembaraçar-se com o que tinham. Quenestil encontrou alguns arqueiros e caçadores entre os conscritos, aos quais deu os melhores arcos, e ocupou-se a dar lições básicas àqueles que nunca haviam manejado um, designando de seguida postos a cada um nas seteiras e ameias. Os homens pareciam mais motivados, vendo nos companheiros a esperança de poderem regressar vivos a casa, e os procedimentos decorreram harmoniosamente e sem quaisquer percalços de maior.

 

Até ao entardecer, quando chegou a altura de decidir quem iria ou não combater.

 

Nem pensar! bradou Worick, varrendo o ar à sua frente com uma brusca mão para enxotar a absurda ideia de Lhiannah. Mas nem sonhes!

 

Nem pensar, o quê? retorquiu a arinnir, também ela exaltada. Quem diz que eu preciso da tua permissão?

 

O meu martelo, se for preciso!

 

Os companheiros estavam reunidos no topo da barbacã ao fim de um cansativo dia, e nenhum esperara deparar com dificuldades quando o mais complicado parecia já ter sido feito. Mudos de surpresa, olhavam para o thuragar e para a princesa alternadamente enquanto estes gritavam um com o outro.

 

Eu sei lutar melhor do que qualquer um daqueles maltrapilhos! defendeu-se Lhiannah, apontando para alguns conscritos que se encontravam no adarve da muralha e que observavam a discussão.

 

E eu bato com mais força que tu, por isso baixa as orelhas! Nem penses que vais estar aqui quando os bichos chegarem; tu não fazes ideia! Isto não é Moorenglade, ou Karatai, ou sequer Alyun! Depois do que a harahan te fez, tu não...

 

É por isso? Então e tu, que mordes tentáculos e quase morres envenenado? Ou quando o drahreg quase te partiu a cabeça em duas?

 

Não é isso que eu quero dizer, cachopa dum raio! E já te disse para baixares as orelhas; olha que comigo tu não fazes farinha!

 

Ei! interveio Quenestil, pondo-se no meio dos dois de mãos erguidas. Calma!

 

Não te metas, eahan! disse o thuragar, esticando o pescoço para o lado para fitar Lhiannah, que ignorava a presença do shura.

 

Lhiannah, pensa bem... tentou Quenestil ser razoável. A Slayra não pode combater, vai ficar a tratar dos feridos, e é capaz de precisar de ajuda, e...

 

O Taislin pode ajudá-la! chicoteou a arinnir, sentindo que todos estavam contra ela. Ou o Allumno, que não pode andar a correr pelas muralhas com o seu joelho! E já agora, quem é que te deu o meu arco?

 

Lhiannah... pediu o shura, olhando para Slayra a pedir um conselho que a eahanoir não foi capaz de lhe dar.

 

Sai da frente, eahan!

 

Eu vou lutar, Worick!

 

Os únicos que se mantinham alheados da altercação eram Taislin, Allumno, Slayra e Aewyre, que apoiava os cotovelos sobre uma ameia e observava a paisagem da qual o exército viria. O mago não se pronunciava, tal como nunca o fazia em discussões que considerava frívolas, a eahanoir sentia que não fosse pelo seu estado provavelmente também não gostaria de ser posta de parte, pelo que nada disse, e o burrik abria e fechava a boca hesitantemente enquanto olhava para Lhiannah e Worick, incerto quanto ao que dizer. Ao reparar que Aewyre estava completamente alheado da discussão, chamou-lhe a atenção:

 

Aewyre, diz alguma coisa!

 

O silêncio foi a única resposta do jovem, que ficou na mesma posição como se não tivesse ouvido, e ironicamente foi isso mesmo a atrair a atenção dos outros, que se calaram e olharam na sua direcção. Como se tivesse sentido os olhos dos seus companheiros nas costas, Aewyre virou-se lentamente e apoiou os cotovelos na ameia, parecendo de todos o menos propenso a uma discussão. Lhiannah, porém, pressentiu a opinião do guerreiro e não lhe interessava sabê-la.

 

Nem uma palavra, Aewyre. Eu vou lutar, não me interessa o que vocês dizem. A Slayra está grávida, mas eu já estou curada e não vou ficar escondida numa torre como uma princesa...

 

Podes ficar como princesa ou como prisioneira ameaçou Worick. Mas que ficas, ficas.

 

Worick, tu não te atrevas...

 

A escolha é da Lhiannah interrompeu-os Aewyre, espantando todos, sobretudo a arinnir, que ficou a olhar de boca aberta com o resto da frase por sair.

 

O guerreiro desencostou-se da ameia e foi ter com a princesa, passando pelos seus surpresos companheiros e agarrando-a delicadamente pelos ombros.

 

A escolha é tua. Mas eu peço-te que não lutes. Por favor a voz do guerreiro saiu-lhe invulgarmente calma e ponderada, e os seus olhos eram sinceros. Se alguma coisa te acontecer, mesmo que ganhemos a batalha... não terá valido a pena.

 

Lhiannah não foi capaz de fechar a boca, nem de fazer muito mais além de piscar os incrédulos olhos, e o mesmo se passava com os restantes companheiros.

 

Só o Taislin não chega; a Slayra vai precisar de ajuda. Nós vamos precisar da magia do Allumno nas muralhas, e para o caso de o pior vir a acontecer, quem estiver a tratar dos feridos pode precisar de alguém que saiba manejar uma espada. Por favor?

 

Lhiannah pouco mais conseguiu além de tartamudear. Eu...

 

Aewyre Thoryn! ouviu-se uma possante voz vinda do pátio da bastilha.

 

O encanto foi quebrado, e o grupo dirigiu-se às ameias da barbacã para olharem para baixo para o pátio, seguidos por Aewyre e Lhiannah, que demoraram mais tempo a reagir ao chamamento. Fora o Mandatário quem o chamara, acompanhado por um Ajuramentado que trazia algo aos braços, e que ao ver os companheiros os chamou com um gesto da mão.

 

O que é que ele quer agora? questionou-se Worick.

 

Não sei... disse Aewyre, encolhendo os ombros e dirigindo-se às escadas da barbacã, cruzando olhares com Lhiannah ao passar por ela antes de descer.

 

Quando saíram no pátio, Aelgar aguardava-os de braços cruzados e o jovem siruliano a seu lado trazia uma grande saca aos braços. Os conscritos que passavam atarefadamente pelo pátio olhavam-nos com o despeito do costume, tecendo comentários certamente pouco elogiosos acerca deles.

 

Mandatário disse Aewyre.

 

Aewyre Thoryn. Vejo que conseguiste motivar os conscritos...

 

Conseguimos, sim. O que deseja?

 

Ou melhor ainda interveio Worick, tem alguma coisa para nos ajudar? É que nem só com calhaus e setas de passarinhos se defende um castelo...

 

Aelgar ignorou o thuragar.

 

Trago-te algo, Aewyre Thoryn disse, indicando ao Ajuramentado que avançasse com um gesto da mão acerada. O jovem siruliano assim fez e estendeu a saca ao guerreiro, que nela pegou. O que quer que fosse, era pesado, e constituído por várias peças metálicas. A tua couraça dificilmente te proporcionará protecção adequada numa batalha, e se queres providenciar uma visão inspiradora para os conscritos, deves envergar algo mais do que as tuas lastimosas roupas e armadura.

 

Aewyre ergueu o sobrolho e, segurando a saca com um braço, enfiou a mão pela abertura, remexeu um pouco e tirou do interior um coxote de aço. Fitou o Mandatário com um ar admirado.

 

Que te sirva bem. O Patriarca Hanal Lasan convidou-te a ti e aos teus companheiros para uma festa que celebrarão hoje em vossa honra.

 

A naturalidade das palavras do Mandatário e o seu aparente despropósito fez com que os companheiros levassem mais tempo do que seria normal para se aperceberem do que o siruliano acabara de lhes dizer. Assim que o tomaram em conta, a sua reacção foi sem excepção de atabalhoado espanto.

 

O... Patriarca? duvidou Aewyre.

 

Devem sentir-se priveligiados. Poucos homens vivos tiveram contacto com os filhos de Sirul, e nem tantos dos que morreram tiveram direito a mais do que um mero vislumbre. Toquem a trompa na barbacã norte quando o sol tocar as ameias e serão conduzidos ao Patriarca. Sejam deferentes e respeitosos como se se estivessem a dirigir ao próprio Castelão, e comportem-se com cortesia para com todos, pois estarão a lidar com uma das mais antigas famílias Eahan.

 

O Mandatário certificou-se de que o que acabara de dizer assentara devidamente nos companheiros antes de se despedir.

 

É tudo. Adeus, Aewyre Thoryn e, para o caso de não nos vermos amanhã... boa sorte. Que a luz de Sirul te resguarde e aos teus amigos na batalha.

 

Antes que Aelgar se retirasse, Aewyre estendeu a mão como para o reter.

 

Mandatário. O homem deteve-se, e Aewyre deu um passo em frente ainda de braço estendido.

 

Não sabia bem por que o estava a fazer afinal, o homem salvara-o do tribunal apenas para lhe extorquir memórias acerca da sua mãe para depois o usar como escudo de carne na vindoura batalha mas algo lhe dizia que Aelgar não lhe dera a armadura só pelas aparências. Seria culpa? Ou o desejo de honrar a memória da sua mãe? Duvidava de que alguma vez obtivesse a resposta, mas fosse como fosse, o gesto sensibilizou-o.

 

Obrigado.

 

O Mandatário olhou primeiro para a mão do jovem e depois para os seus olhos, parecendo hesitante, mas acabou por a apertar com passivo vigor siruliano.

 

Não me agradeças ainda, Aewyre Thoryn... foi a única coisa que disse antes de se retirar, dando a entender que não se tornaria a virar nem que o jovem gritasse pelo seu nome.

 

Os companheiros viram-no atravessar a ponte da barbacã norte, que estivera barrada por dois Ajuramentados e que foi seguidamente erguida. Entreolharam-se em silêncio por alguns instantes, certificando-se de que haviam ouvido as mesmas palavras. Convidados pelos Eahan... era quase surreal, mesmo para quem já havia visto bastante em Allaryia como Allumno e Worick.

 

Bem... disse o mago, olhando para o limpo céu primaveril. Tratemos então do que falta antes que o sol toque as ameias.

 

Sim... concordou Aewyre, por falta de algo melhor para dizer.

 

Sim, mas antes... lembrou-se Worick, olhando para Lhiannah. Como é, cachopa?

 

A arinnir hesitou, encarando um companheiro de cada vez e fitando Aewyre por mais tempo, recebendo na cara do guerreiro a confirmação do que este anteriormente dissera. Não acreditou nas palavras que lhe saíram da boca, mas também foi incapaz de as impedir:

 

Está bem. Eu fico a ajudar a Slayra.

 

O thuragar pareceu profundamente aliviado, e Aewyre nutou com a cabeça e retirou-se antes que Lhiannah pudesse continuar com o seu escrutínio.

 

Vamos então disse Aewyre. Temos de encontrar um lugar que sirva de enfermaria...

 

Os companheiros foram atrás do jovem, e Quenestil e Slayra deixaram-se ficar para trás, intrigados com o que estavam a assistir. Ambos pareciam querer fazer alguma espécie de comentário, mas não sabiam ao certo o quê. Contudo, tinham decididamente a sensação de já terem presenciado uma situação semelhante, muito tempo atrás.

 

Achas que vão aparecer uns eahanoir para raptarem a Lhiannah? disse Quenestil por fim, cingindo delicadamente a cintura da eahanna com o braço.

 

Os orbes azuis-claros de Slayra olharam-no de lado, e o canto esquerdo da sua boca ergueu-se num sorriso enviesado que a eahanoir enfatizou com uma cotovelada não tão ligeira nas costelas do eahan.

 

Não teve graça.

 

Então por que é que sorriste?

 

Porque não sei se o Aewyre calcorreria toda a Latvonia atrás dela para a salvar...

 

Os dois fitaram-se mutuamente enquanto andavam, por pouco não tropeçando no degrau da entrada da barbacã. Quenestil beijou a testa de Slayra, apertando-a brevemente contra si, e os dois subiram as escadas atrás dos seus companheiros.

 

Controla-te, mulher! vociferou Tannath, empunhando estilete e quebra-espadas a uma distância segura de Hazabel.

 

A harahan estava acochada como um animal faminto, com os tendões das mãos bem visíveis e as garras negras prontas a escarpelar carne, mesmo as da mão do braço entalado. Vacilava com as oscilações da barcaça, cuja tripulação estava receosamente encostada à amurada da embarcação, temente e encurralada. O céu tanarchiano escurecia com o aproximar da noite, e Hazabel sentia os seus mais primários instintos virem à tona da sua consciência.

 

Uma harahan! apercebeu-se o capitão, agarrado ao mastro e empunhando uma comprida faca.

 

Nós precisamos deles, mulher! advertiu o eahanoir. Toca-lhes e eu mato-te!

 

Tenho fome! praticamente rugiu Hazabel. Há dias que a harahan não comia, e desde que o barco soltara as amarras, a mulher parecera acometida de uma sensação claustrofóbica que agora extravasava num acesso de fúria.

 

Não lhes toques!

 

Tenho fome! repetiu a harahan, olhando com olhos de predadora em busca de uma presa fácil.

 

Dama da noite! disse o capitão em inesperado Olgur, surpreendendo Hazabel, que o fitou admirada. Tannath não percebeu e manteve-se atento aos movimentos da harahan. Nós servimos O Flagelo, tal como tu!

 

Tomando a hesitação de Hazabel como um sinal de aplacamento, o homem avançou na sua direcção, passando cautelosamente por cima do caixote. Tannath mal lhe deu atenção, hesitante em tirar os olhos da sua companheira de viagem.

 

Vamos para a Sirulia a mando de Linsha Akselban, o Alto Vulto explicou o capitão, mantendo a faca baixa e a mão esquerda apaziguadoramente erguida. Não somos teus inimigos, harahan, e o que trazemos neste caixote...

 

A proximidade do homem foi mais do que Hazabel pôde suportar, e as palavras tornaram-se indistintas aos seus ouvidos, que apenas ouviam o bater do seu próprio coração retumbante. Com um grito estridente, a harahan saltou sobre o surpreso capitão, caindo com ele em cima do caixão e esventrando-o com as garras diante da atónita tripulação, que ficou paralisada ante o horror do que viam. Mesmo Tannath ficou momentaneamente estupefacto com a violência da morte do homem, mas o mórbido deslumbramento cedo deu lugar à raiva, e o eahanoir investiu de estilete em riste.

 

Maldita sejas, mulher! execrou.

 

Com os seus instintos mais primários bem despertos, Hazabel sentiu o ataque e pulou para longe do alcance de Tannath, virando-se para ele e encarando-o como a sua próxima vítima. O eahanoir aprestou as armas, preparando-se para a selvática arremetida da sua aliada de conveniência, e os restantes membros da tripulação despertaram nesse preciso momento, decididos a livrarem-se daquela que era claramente uma ameaça à segurança de todos, juntamente com o seu acompanhante.

 

Contudo, antes que qualquer um dos presentes pudesse sequer mexer um músculo, o caixote estraçalhou-se, projectando borda fora o eviscerado cadáver do capitão, e dele ergueu-se um aterrador vulto de braços erguidos. A sua esfarrapada capa cor de sangue pisado esvoaçou com o brusco movimento, revelando a armadura negra molhada com o sangue do capitão, e dois iridiscentes pontos vermelhos brilharam nas órbitas vazias da caveira descarnada da sua face. Algo na sua mera presença fez com que todos se detivessem, gelados pelas ondas de terror frio que pareciam emanar do terrífico vulto.

 

Sangue? inquiriu o vulto a si mesmo numa cava voz dúbia perante os atemorizados desconhecidos. Sangue... Aezrel? palavreou em vozes diferentes, olhando em redor e estabelecendo uma ligação entre o sangue na sua armadura e os humanos que compunham a agitada tripulação. Aezrel. Ancalach. SANGUE!

 

A última palavra foi proferida num tétrico coro, e o vulto desembainhou uma negra e porosa espada com o intuito de decapitar a vítima mais próxima de si: Tannath. O eahanoir baixou a cabeça e rebolou de lado pelo chão de modo a criar distância entre si e o terrífico vulto, que optou por o ignorar a favor de um imóvel tripulante, cuja mandíbula foi despedaçada por uma possante espadeirada. O terror uivou de satisfação e passou para o próximo, que estava demasiado aterrado para se mexer e cuja cabeça rodopiou para o mar, dirigindo-se de seguida com impressionante rapidez para um terceiro, escachando-lhe o crânio. Tannath e Hazabel permaneceram sabiamente acocorados de costas para a amurada, observando a matança que se desenrolava a bordo até que os últimos seis tripulantes pularam em pânico para a água. O vulto deteve-se diante da amurada, por pouco não saltando para o mar em perseguição das vítimas que lhe haviam escapado, e ficou a olhar estupidamente para as figuras que nadavam furiosamente na direcção da distante costa, aparentando estar a reflectir profundamente acerca do que acabara de acontecer. Tannath e Hazabel estranharam a súbita quietude do que instantes atrás se lhes afigurara como um imparável arauto de morte e ergueram-se, hesitantes e prontos para o pior. O vulto, contudo, parecia ter-se esquecido da sua presença, pois continuou de costas viradas para ambos e fitou a sua espada ensanguentada, que sorvia sofregamente o sangue nela espalhado.

 

Que sucedeu? perguntou a si mesmo.

 

O sangue respondeu uma segunda voz. O sangue acirrou-nos.

 

Sim, e a iminente violência com a qual nos deparámos aditou uma terceira, para grande confusão do eahanoir e da harahan.

 

Dever-se-á à proximidade do nosso objectivo?

 

Talvez. Ele está próximo.

 

Está próximo, sim.

 

Ancalach chama-nos declarou um tenebroso coro.

 

Ancalach? ousou Hazabel falar, esquecendo momentaneamente a sua fome.

 

O vulto virou-se para a harahan de espada empunhada, embora toda a agressividade se tivesse esvanecido da sua postura. Tannath crispou os dedos nos cabos das armas, e Hazabel recuou reflexamente perante a atenção daquele que então percebeu ser um moorul. A escrutinadora caveira inclinou-se para o lado, estudando com interesse os dois únicos seres vivos a bordo.

 

Também procuras Ancalach... moorul? desengasgou Hazabel.

 

Se a procuramos? retorquiu uma das vozes.

 

Sim, é o nosso objectivo.

 

O nosso propósito.

 

Porque somos livres.

 

Livres, sim.

 

E vocês, filhos da Sombra desgarrados? inquiriu após ter consolidado os diversos pensamentos.

 

Desgarrados como nós, agora.

 

Sim, não mais enclausurados.

 

Eu... também a procuro, moorul afirmou a harahan, ignorando o subsequente monólogo.

 

A cabeça do moorul virou-se então para Tannath, que nada disse e se manteve na defensiva.

 

Também procuras Ancalach, filho da Sombra? perguntou em Olgur.

 

O eahanoir não falava a língua de Asmodeon, pelo que não respondeu, e o moorul interpretou o seu silêncio como uma negação.

 

Então não nos preocupas. Mas tu, filha da Sombra, se nos ”tentares tirar Ancalach, matamos-te afirmou categoricamente, deixando Hazabel muda de surpresa.

 

Tannath não estava a perceber a conversa entre os dois, mas pelo tom das palavras não lhe parecia de todo amigável.

 

Não... não ta tirarei, moorul disse Hazabel por fim sem fazer qualquer esforço para esconder o veneno na sua voz, ao qual o vulto pareceu alheio.

 

Óptimo disse, esquecendo-se uma vez mais da presença de ambos a bordo. Este é o veículo que nos levará ao nosso propósito?

 

De encontro ao nosso chamamento.

 

Mas ele move-se devagar.

 

Como um antílope manco.

 

Devagar, sim.

 

Devemos açodar o seu andamento.

 

Açodar, sim.

 

O quanto antes.

 

Façamo-lo, então.

 

Fascinados com o monólogo do moorul, Tannath e Hazabel limitaram-se a observar sem sequer se mexerem quando o vulto embainhou a espada já seca e olhou fixamente para o céu escurecente. Ambos pensaram que o moorul de alguma forma adormecera até começarem a sentir um arejo levantar-se, adejando-lhes os cabelos. A aragem aumentou progressivamente de intensidade até adquirir o vigor de um vento forte que enfunou as velas da embarcação, arrojando a barcaça pelas águas. Hazabel agarrou-se à amurada para se equilibrar, recordando-se por alguma razão da nevasca provocada pelos udagai nas estepes, mas foi incapaz de estabelecer uma ligação entre ela e a súbita ventania. Ao que parecia, acabara de deparar com mais um obstáculo entre ela e a Espada dos Reis, um obstáculo inesperado e verdadeiramente difícil de superar. Olhou para Tannath, mas o eahanoir ignorou-a e continuou a fitar o vulto negro, ainda incerto quanto ao que fazer. Uma bizarra série de coincidências deixara-o sozinho num barco a meio do mar com uma harahan faminta e um estranho monstro vindo das histórias da Guerra da Hecatombe, sem saber que destino os dois lhe guardavam e rumando a parte incerta. Restava-lhe apenas esperar que as surpresas tivessem terminado com a aparição do moorul e que os seus dois involuntários companheiros de viagem não se intrometessem entre si e o seu objectivo.

 

Quando o sol tocou as ameias já os companheiros estavam mais do que prontos a dirigirem-se para a barbacã norte, tão aprontados quanto lhes fora humanamente possível nas pouco luxuosas condições do Esporão. Aewyre e Allumno fizeram a barba ao fim de semanas, Worick limpou a sua e todos se despiolharam mutuamente e lavaram as caras. As suas roupas continuavam sujas e com um cheiro pouco prazenteiro, mas quanto a isso nada havia a fazer com os meios de que dispunham. Todos sentiam uma espécie de ansiedade infantil de intensidade variável, como crianças às quais havia sido dito que do outro lado da muralha os esperavam os seres das histórias que lhes contavam ao deitar. O seu nervoso miudinho revelava-se nos movimentos irrequietos de cada um enquanto aguardavam que a ponte levadiça fosse baixada, bem como na incapacidade que mostravam em ter uma conversa coerente uns com os outros, limitando-se a abordarem assuntos frívolos pertinentes à temperatura e a tarefas para o dia seguinte já exaustivamente discutidas. Quando as correntes dos mecanismos começaram a ranger, os companheiros silenciaram-se e aguardaram a descida da ponte com excitabilidade pueril. Dois Ajuramentados esperavam-nos do outro lado e conduziram-nos ao estranho edifício no qual os Eahan aparentemente residiam.

 

O Patriarca aguarda-vos foi a única coisa que um dos jovens sirulianos disse, e Hanal Lasan estava de facto nos degraus concêntricos da entrada do edifício, de braço dado com uma Eahana. Eram os anfitriões e esperavam-nos cortesmente à porta do seu lar, o que nenhum dos companheiros acharia de todo extraordinário, não fossem os dois Eahan.

 

Ouviam-se vozes e via-se movimento no jardim atrás; seria mesmo possível que os eahan brancos iam fazer uma festa em sua honra? Antes que disso se apercebessem, estavam a poucos passos do casal, que os recebeu com sorrisos francos. Hanal trajava uma justa túnica negra granida com fragmentos de mica que cintilavam como as estrelas que se viam no céu. Estava cingida à sua cintura por uma folgada faixa branca e chegava-lhe aos pés, deixando apenas entrever os seus sapatos de couro negro e macio. Ostentava a mesma tiara argêntea com a brilhante hematite negra nela incrustada, mas usava ainda um par de braceletes de prata com outras pedras iguais nelas embutidas. A sua parceira contrastava aguerridamente a seu lado, envergando um exuberante vestido em tons de azul e prateado de mangas folgadas e pontilhado por pedras-da-lua. O seu cabelo alvo estava preso por uma crespina pontoada por minúsculas pedras-da-lua irisadas que brilhavam em tons de azul, violeta e vermelho, e trazia dois brincos em forma de crescentes prateados nas graciosamente pontudas orelhas. Ambos eram lindos, altos, duas figuras saídas de um conto de encantar, mas a sua beleza era temperada, sazonada, com bondosos olhos cor de safira e uma nobreza inerente que fez com que a primeira reacção dos companheiros fosse levarem os joelhos ao chão. Os Ajuramentados limitaram-se a baixar as cabeças em deferência.

 

De pé, aventureiros disse Hanal na sua profundamente canora voz. A única realeza, aqui presente encontra-se entre vós. Eu sou o mero patriarca de uma família.

 

Patriarca... disse Aewyre, tentando não gaguejar ao levantar-se. Sentimo-nos honrados pelo vosso convite. Minha senhora dirigiu-se à Eahana ao lado de Hanal.

 

A minha esposa, Eluana apresentou o Eahan. Estes são Aewyre Thoryn, príncipe de Ul-Thoryn, e Lhiannah Syndar, princesa de Vaul-Syrith. Os outros que me desculpem, mas o Mandatário não teve a delicadeza de me dizer os vossos nomes.

 

Worick de Taramon declarou o thuragar, de todos o menos embasbacado, embora também não estivesse propriamente frio e impassível.

 

Allumno da Gema Vermelha apresentou-se o mago, fazendo a vénia que Worick esquecera ou dispensara.

 

Slayra disse a eahanoir, preenchendo a falta de um apelido com a característica vénia do seu povo, levando um pé para trás do outro e flectindo ligeiramente as pernas.

 

Quenestil... Anthalos seguiu-se-lhe o eahan, incapaz de tirar os olhos do casal mesmo durante a mesura.

 

Taislin Mãosdelã piou o burrik ao encontrar a sua voz, tirando o barrete e segurando-o ao peito com ambas as mãos.

 

Nós é que agradecemos que tenham aceite o nosso convite. Obrigado, Ajuramentados agradeceu Hanal, e os sirulianos retiraram-se com palavras deferentes, sem terem erguido a cabeça uma única vez para fitarem o casal Eahan. Venham, vamos apresentar-vos. Os outros estão ansiosos por vos conhecer...

 

Que indelicadeza, esposo admoestou Eluana numa maravilhosamente melodiosa voz. Os dois falavam o que parecia ser o dialecto que os sirulianos usavam para comunicar com estrangeiros, e os companheiros percebiam cada palavra. Não vês que os nossos convidados estão cansados e ainda não recuperaram dos rigores da sua viagem? Lembrei-me disso e mandei preparar-lhes um banho.

 

O Eahan sorriu com a reprimenda de boa índole e escusou-se aos companheiros.

 

As minhas desculpas. Venham então; usufruam da presciência da minha esposa, e os outros poderão conhecer-vos quando estiverem refeitos.

 

Mas Patriarca contrapôs Aewyre cerimoniosamente, nós não podemos...

 

Acho que ela queria dizer que consegue sentir o nosso cheiro dali sussurrou-lhe Slayra.

 

... passar nem mais um momento sem um banho. Sim, ficar-lhe-íamos muito agradecidos. Obrigado...

 

Eluana deixou escapar um mavioso riso que fez com que o guerreiro corasse de forma embaraçosamente meninil.

 

Venham reiterou Hanal, indicando a entrada do edifício com uma convidativa mão.

 

Aewyre viu-se na necessidade de ser o primeiro a avançar e fê-lo relutantemente, olhando para os degraus concêntricos de mármore da entrada do edifício, que estavam belamente ornados em baixo-relevo com motivos selénicos. Sentiu que iria conspurcar a santidade do local se nele pousasse a sola da sua imunda bota e hesitou.

 

Minha senhora, devemos tirar as botas?

 

Se assim o desejarem, príncipe. A prática não é incomum no interior desta casa.

 

Aewyre achou por bem fazê-lo, e todos seguiram o seu exemplo, mesmo Worick, que teve de tirar também as grevas e os escarpins da sua armadura. Por fim, de botas sobraçadas, os companheiros foram atrás dos seus anfitriões para dentro da brancura marmórea do edifício. O salão de entrada era iluminado pela parca luz que entrava pelas janelas de pedra com motivos em forma de crescentes e semicírculos, e por velas que ardiam dentro de globos de mármore fino com aberturas pendurados ao longo das paredes, e o seu tecto era sustentado por duas ornadas colunas aneladas. Passaram debaixo de um amplo arco em forma de meia-lua e entraram num corredor iluminado pelos mesmos globos de mármore fino, que percorreram até chegarem a uma ampla sala da qual emanava ar quente e na qual eram aguardados por dois Eahan com grandes cestas de pedras molhadas aos braços e uma jovem Eahana com toalhas e um cesto. Manter os queixos no lugar foi um esforço para os companheiros, pois a eahanna branca envergava parcas vestes devido ao calor da sala, constituídas por uma saia branca e duas faixas de tecido atadas ao pescoço que se cruzavam sobre o peito e que expunham o seu ventre liso. Não era mais velha do que Aewyre, e a sua pele clara estava enrubescida com os vapores quentes da sala. Os seus cabelos brancos estavam presos num modesto coque entrançado na nuca, mas algumas madeixas brancas haviam escapado e colavam-se à húmida cara. Os Eahan também vestiam roupas confortáveis, na forma de túnicas em tons de roxo e azul com mangas abertas atadas a braceletes prateadas nos pulsos e com um colarinho tão baixo que deixava entrever os seus delgadamente musculados peitos. Slayra deu consigo a ajeitar a sua suja camisa azul-escura e Lhiannah, ergueu as sobrancelhas antes de desviar o olhar, embaraçada com o sorriso com o qual um dos eahan brancos a presenteou. A Eahana sorriu também aos recém-chegados, originando sorrisos apatetados da sua parte, e disse algo a Eluana, algo que os companheiros não perceberam mas que de alguma forma os fez sentir que a água estava pronta.

 

Muito bem, Sana, mas fala numa língua que os nossos convidados compreendam recordou-lhe a mulher do Patriarca.

 

Perdão, honrados convidados escusou-se a Eahana, baixando a cabeça. Por favor, estejam à vontade.

 

Não me parece que o consigam, Sana comentou Hanal com um sorriso. Não se forem tão pudicos como os nossos irmãos sirulianos...

 

O comentário do Patriarca fora bem-intencionado, mas em nada ajudou o já patente desconforto dos companheiros, o que não passou despercebido ao casal.

 

Retirem-se, então, mas deixem-lhes as toalhas e o resto ordenou Eluana, virando-se de seguida para os companheiros, sempre com o seu deslumbrante sorriso. São banhos nutridores, enriquecidos pelos minerais daquelas pedras que o Misal e o Dagol têm aos braços. Levem o tempo de que necessitarem, e se precisarem de alguma coisa, não hesitem em chamá-los. Eles aguardar-vos-ão na sala em frente e nós estaremos à vossa espera no jardim.

 

Os seus anfitriões despediram-se, e os serventes foram atrás deles, sorrindo para os convidados ao passarem por eles. Os companheiros ainda ficaram algum tempo a olhar para o arco pelo qual os Eahan saíram, até que Slayra quebrou o silêncio, suspirando de sobrancelhas erguidas:

 

Aqueles até deixava que me tirassem as roupas... comentou, olhando de soslaio para Quenestil para ver se este ouvira a provocação, mas o eahan ainda estava com os olhos fixos na entrada e de boca entreaberta. A eahanoir despertou-o com uma cotovelada nas costelas.

 

Bom... pigarreou Allumno. Não queremos deixar os nossos anfitriões à espera muito tempo, pois não? Aewyre?

 

Ha? Ah, não, não queremos... Vamos lá tomar banho.

 

O grupo olhou então pela primeira vez para a sala, cujo tecto era abobadado e decorado com baixos-relevos de estrelas, e em cujo chão de mármore se encontrava um círculo de reentrâncias em forma de crescentes a servirem de banheiras, três das quais estavam cheias de convidativa água quente a emanar vapor e um odor distintamente mineral. No seu centro encontrava-se um banco de pedra em forma de anel sobre o qual estavam o cesto e as toalhas. Resistir à tentação de saltar para dentro das banheiras com as roupas vestidas foi um esforço, mas os companheiros aguentaram o suficiente para esperarem que Slayra e Lhiannah se despissem e entrassem na sua banheira, suscitando um abanar da cabeça de Quenestil devido à desnecessária modéstia. Worick foi o último a entrar, pois ninguém estava disposto a esperar que o thuragar acabasse de despir a sua armadura ou a perder tempo a ajudá-lo. Todos se deixaram afundar na água quente com prolongados e ruidosos suspiros de olhos fechados quando os seus corpos sujos e castigados relaxaram e os seus músculos endurecidos se distenderam. A água parecia penetrar pelos seus poros adentro e balsamizar os seus ossos cansados, revigorando-os ao mesmo tempo que lhes depurava a pele. Cada um dos companheiros ficou absorvido na sua própria sensação de deleite, proferindo comentários superlativos dirigidos a ninguém em especial e torturando Worick sem querer.

 

Quando o resmungante thuragar entrou por fim na banheira ocupada apenas por Taislin, apercebeu-se de que fora feita para crianças e não pôde deixar de se sentir ofendido, mas ninguém estava em condições de falar e cedo Worick também deixou de estar, encostando a cabeça à borda e deixando a barba flutuar à superfície da água.

 

Quando Allumno abriu os olhos, apercebeu-se de que não sabia quanto tempo havia passado e revolveu a plácida água com os seus movimentos, originando gemidos guturais da parte de Aewyre e Quenestil.

 

Há quanto tempo estamos aqui? Lavem-se, temos o Patriarca à nossa espera!

 

Nem a urgência na voz de Allumno foi o suficiente para sobressaltar os companheiros, que se limitaram a abrir os estuporados olhos e a olhar lentamente em redor enquanto o mago se inclinava para fora da sua banheira para remexer no cesto que a Eahana havia deixado no banco. Tirou um jarro de couro com o que devia ser sabão líquido e despejou uma porção sobre a sua mão antes de o passar a um ainda amodorrado Aewyre.

 

Limpem-se, vá. O Patriarca está à nossa espera... repetiu Allumno, esfregando vigorosamente o cabelo e as axilas.

 

Lentamente, os companheiros despertaram do seu torpor e começaram a lavar-se com o sabão, que cheirava a flores e os fez sentirem-se limpos como quase haviam deixado de julgar possível. Lhiannah esfregava as costas de Slayra enquanto Aewyre, Allumno e Quenestil lavavam as suas partes íntimas de costas para elas, suscitando o ocasional e partilhado olhar indiscreto pela parte destas. Os três estavam relegados a observar as peripécias de Taislin enquanto o burrik tentava a todo o custo afastar a sujidade de Worick que se espalhava pela água.

 

Aaah! Olhem para isto! É preto como piche! E há piolhos a flutuar nele! guinchava o pequeno ladino de cabelos molhados a taparem-lhe os olhos, chapinhando na água com os braços.

 

Até parece que alguns não são teus... resmoneou o thuragar.

 

Ah pois, mas os meus são os que se mexem. Esses já devem estar mortos há muito tempo!

 

Em breve também estarás se não te calas, mafarrico... ameaçou Worick com a barba e o cabelo ensaboados.

 

Os dois faziam um quadro engraçado e os três companheiros deram consigo a sorrir, recordando as velhas contendas entre o thuragar e o burrik, cujas memórias não eram assim tão velhas mas que já pareciam ter anos. Quando todos acabaram de se lavar e Aewyre começou a distribuir as toalhas, aperceberam-se de que as suas roupas já não se encontravam na sala.

 

Mas não ouvi ninguém a entrar... afirmou Quenestil.

 

No estado em que estavam, não teriam ouvido as trompas da batalha se ela começasse esta noite... admoestou-os Allumno. Temos de chamar os serventes.

 

Boa ideia disse Slayra, piscando o olho a Lhiannah. Aparentemente, o banho fizera maravilhas pela disposição dos companheiros, pois ninguém parecia minimamente preocupado. Havia também algo de feérico que permeava a estância dos Eahan, uma sensação quase mágica no seu interior que permitiu a todos olvidarem a vindoura batalha. Os seus medos e angústias haviam sido deixados no exterior do edifício, dentro de cujas paredes nada de mau poderia acontecer.

 

O mago chamou pelos serventes e estes não tardaram a aparecer com roupas lavadas aos braços, sempre sorridentes e alegremente solícitos. Lhiannah e Slayra estavam com os torsos cingidos pelas toalhas e os restantes companheiros tinham-nas à volta das cinturas, o que originou alguns embaraçados olhares mútuos. Sorrindo, os dois Eahan entraram dentro do banco anelado, pousaram as roupas neste e estenderam as mãos para agarrarem as toalhas dos companheiros. Quenestil dispensou a amabilidade, vestindo as macias roupas novas e trocando um abanar de cabeça com um eahan branco enquanto este se oferecia para segurar a toalha de Lhiannah. Allumno seguiu o exemplo do shura enquanto o outro servente segurava a sua toalha estendida para assegurar a sua privacidade. Aewyre não pôde deixar de se retesar quando a Eahana agarrou a toalha que lhe envolvia a cintura e a arrancou antes que pudesse reagir, rindo com o seu embaraço ao estendê-la à sua frente. A eahanna era mais alta que Lhiannah, mas resguardou o guerreiro apenas até pouco abaixo do peito e obrigou-o a virar-se de costas para evitar os brilhantes olhos azuis-escuros que pareciam rir com uma vida própria. Enquanto os companheiros se vestiam, a Eahana disse algo numa voz alegre aos outros dois serventes na sua língua que o grupo não percebeu, mas por alguma razão sentiram-se acusados de recato excessivo e veio-lhes à cabeça a imagem de sirulianos. A língua que falavam era estranha, pois embora os companheiros não a conhecessem, as suas palavras evocavam imagens que permitiam uma compreensão quase empírica do que os Eahan diziam. De costas para os serventes, Aewyre virou a cabeça para Allumno e soletrou a palavra ”Eridiaith” com a interrogante testa franzida a pedir confirmação. O mago acenou com a cabeça, e o jovem continuou a ouvir o que diziam, maravilhado com a beleza e harmoniosa sonoridade da linguagem. O grupo vestiu-se tão depressa que só se aperceberam verdadeiramente das roupas que envergavam quando os Eahan baixaram as toalhas. Lhiannah e Slayra tinham roupas iguais às da Eahana e sapatilhas macias, e os companheiros vestiam cintilantes camisas justas em tons de roxo e azul como o céu do anoitecer e calças de bocas largas com botas de couro negro. A macieza do linho fresco contra as suas peles era uma sensação desde há muito desconhecida, e todos afagavam as roupas em quase primitivo maravilhamento. Worick e Taislin vestiam roupas para adolescentes e crianças, mas os outros abstiveram-se de fazer comentários.

 

Venham, a família do Patriarca aguarda-vos disse a Eahana, dobrando as toalhas nos seus cremosos braços.

 

Primeiro gostaria de me pentear... objectou Lhiannah, indicando o seu cabelo húmido.

 

A rapariga levou os dedos à boca, escusando-se pela sua indelicadeza, e tirou um pente de marfim do cesto. Lhiannah aceitou-o, incapaz de pensar muito mal da solícita rapariga, embora todos os olhos masculinos da sala estivessem postos nela enquanto distribuía pentes pelo grupo.

 

Que cabelo tão lindo que tem disse a Eahana docemente, estendendo a mão para o tocar. Posso?

 

O pedido era demasiado cândido para recusar, e a arinnir nutou com a cabeça, permitindo-lhe afagar o ouro acabado de polir dos seus cabelos.

 

É lindo tornou a elogiar, observando então os restantes companheiros enquanto estes se penteavam e reparando no ventre ligeiramente dilatado de Slayra, impossível de esconder devido à exiguidade do vestido. Está com criança! exclamou, deliciada.

 

Nota-se muito? retorquiu a eahanoir, desperdiçando sarcasmo. Poucas vezes se sentira tão exposta, e a sensação não lhe agradava de sobremodo.

 

Foi abençoada sorriu a Eahana. Não há dádiva maior. Certamente será tão linda como a mãe.

 

Desarmada pela candura da rapariga, Slayra acabou por sorrir e partilhar o sorriso com Quenestil. A eahanna branca podia ser bonita de mais, mas sabia fazer os convidados sentirem-se à vontade.

 

Bom, vou avisar o Patriarca de que estão quase prontos. Espero que se sintam refeitos, porque nós temos muitas perguntas para vos fazer disse a Eahana, sorrindo uma última vez a todos e deixando-os ao cuidado dos outros dois serventes.

 

Quando os companheiros acabaram de desembaraçar e pentear os cabelos, os dois Eahan conduziram-nos para fora da sala e pelo largo corredor a caminho da saída para o jardim. Com a Eahana fora de vista, os companheiros repararam então em Lhiannah e Slayra, que caminhava de braço dado com Quenestil. A princesa não se sentia de todo desconfortável com o traje, mas vê-la em roupas de mulher parecia de alguma forma estranho. Lhiannah ajustava a manilha prateada no seu braço esquerdo desnudo e notou a contemplação com desagrado.

 

Sim?

 

Os companheiros livraram-na de imediato do seu escrutínio, mas Aewyre manteve-o com o mesmo interesse.

 

O que foi? Não posso? perguntou, irritada. Achas que me deviam ter dado calças?

 

Não, não, não é isso assegurou o guerreiro, olhando-a nos olhos. Estás linda. Só isso.

 

Contra toda a sua vontade, a princesa corou e puxou instintivamente o cabelo para trás da orelha, deixando a mão ficar a tapar a sua enrubescida cara. Felizmente, não tardaram a chegar ao jardim e a atenção do guerreiro foi desviada para a autêntica comitiva de Eahan que os aguardava e que os recebeu com largos gestos de boas-vindas e sorrisos. A lua estava em quarto minguante, e o jardim que iluminava era um recinto isolado do pátio por um muro de mármore decorado com motivos selénicos, e dentro dele a relva primaveril crescia viçosa, pintalgada com flores. Peónias e lunárias brancas cresciam em abundância, e as armações de madeira dispostas ao pé da muralha impediam que o frio e inflexível paredão destoasse da serenidade do jardim, em cujo centro se encontravam oito pedestais de mármore dispostos num anel, cada um dos quais representando uma das fases da lua. Os Eahan apresentavam um festival de azul, branco, prateado, negro e roxo, no qual homens e mulheres se distinguiam pela cor, com os tons mais claros a prevalecerem nos vestidos e os mais escuros a dominarem as túnicas, embora mesmo esses cintilassem como as estrelas do céu nocturno. Havia uma profusão de anéis, tiaras, diademas e brincos mais ou menos ornados, todos com um brilho argênteo e quase selénico, em formas de crescentes e luas cheias decoradas com pedras-da-lua e hematites negras. Os Eahan eram altos e de uma robustez esguia, elegantes sem excepção e com um brilho próprio que parecia emanar não só dos reflexos do luar nos seus cabelos níveos como também do profundo azul dos seus bondosos olhos. As suas feições não eram delicadas ou angulares como as de Quenestil e Slayra, mas sim da aparência lisa e tersa de mármore polido, e as suas orelhas não tinham os lóbulos pegados à cara como os do shura nem a curvidade das da eahanoir; eram apenas parecidas com orelhas humanas, mas com subtis e graciosos lóbulos e aurículas pontudos.

 

Bem vindos, sejam bem-vindos recebeu-os Hanal. Espero que a ablução tenha sido do vosso agrado?

 

Sim... titubeou Aewyre, meio avassalado com a quantidade de criaturas lendárias que se lhe deparavam naquele preciso momento. Muito obrigado, Patriarca. É uma honra para nós.

 

Repito, príncipe Aewyre, são vocês quem nos honram com a vossa presença. Permitam-me agora apresentar-vos. A nossa família é pequena, mas todos têm muitas perguntas para vos fazer.

 

Os companheiros contemplaram os perto de cem Eahan que se encontravam no jardim, constituídos pela família e pelo seu séquito, e não queriam acreditar no que lhes estava a acontecer.

 

Quando a lua já ia alta no céu, os companheiros já haviam perdido o acanhamento e conseguiram por fim confraternizar com os Eahan, que faziam todos os esforços nesse sentido. Queriam conhecer Aewyre, o filho do lendário Aezrel Thoryn, e ver a quase mítica Ancalach, que o príncipe achara por bem trazer consigo, incapaz de a confiar à guarda dos conscritos. Os restantes companheiros, porém, não receberam menos atenção por isso, pois a curiosidade dos eahan brancos em relação ao que se passava no resto de Allaryia era quase tão grande como a de conhecer Aewyre. Como lidara Nolwyn com a perda do seu campeão? Em que pé estavam as relações entre os reinos? Como era a vida nas cidades humanas? Avistavam-se drahregs nas regiões civilizadas? O que haviam visto durante as suas viagens? Essas perguntas e muitas mais eram respondidas enquanto eram servidas taças de saboroso iogurte com bagas. Embora cientes de que a sua presença causava um desconforto inicial nos seus interlocutores, os Eahan sabiam fazer os companheiros sentirem-se à vontade e bebiam as palavras dos seus convidados com atenção, interesse e polidez. Mesmo Worick e Slayra, que haviam sido alvo do despeito dos sirulianos devido à sua raça, atraíam atenções dos seus anfitriões, que não viam neles um ”fruto de Luris” ou uma ”filha do Flagelo”, mas sim fascinantes tópicos de conversa, e mesmo o taciturno e pouco sociável thuragar se viu envolvido num debate acerca de grandes batalhas do passado com um velho soldado Eahan. Taislin mal cabia em si de contente, sendo o centro de atenções de uma audiência só sua a ouvir atentamente os relatos das suas aventuras, nas quais invariavelmente figurava como protagonista ou surgia como o herói do dia, batalhando sozinho contra adversários criativamente inseridos em pontos fulcrais das suas demandas com o mal-asado grupo que mesmo com a sua sábia orientação apenas se metia em apuros. Quenestil respondia a perguntas acerca do seu povo e das montanhas nas quais viviam, Lhiannah descrevia a corte de Vaul-Syrith e Allumno foi falar com Eluana após ter feito o seu melhor para satisfazer a curiosidade dos Eahan acerca das suas experiências pessoais com o Pilar e a história de Zoryan e da gema que tinha à cabeça. A esposa do Patriarca deu-lhe toda a sua atenção e os outros eahan brancos mantiveram-se fora da conversa por respeito.

 

Se a senhora não se importar, tenho umas perguntas a fazer-lhe. Evitaria incomodá-la, mas o vosso esposo parece ocupado...

 

Não me importo de todo, senhor Allumno. Faça as perguntas que quiser. A Eahana devia ser da sua idade, talvez um pouco mais velha, mas como era comum nos eahan em geral, a beleza da sua juventude estava bem conservada, amadurecida na sua ligeiramente vincada cara.

 

Constou-me que a vossa família foi a única que escolheu ficar em Asmodeon?

 

A bela face de Eluana contorceu-se brevemente no que pareceu ser tristeza ou saudade, mas cedo se recompôs, embora tivesse dificuldade em responder de imediato.

 

Peço desculpa. Se fui de alguma forma indiscreto...

 

Não, não, senhor Allumno, não foi indiscrição alguma. Trata-se apenas de uma pergunta que... traz sempre recordações consigo.

 

Se forem desagradáveis para a senhora, não as desejo trazer à tona...

 

Não, por favor. Esteja à vontade. Aliás, acompanhe-me. Quero mostrar-lhe uma coisa.

 

Os dois caminharam através da multidão de Eahan, que andavam de um companheiro para o outro, e chegaram à escultura que representava as fases lunares no centro do jardim. Eluana indicou o pedestal que caracterizava a lua cheia com um delicado dedo anelado.

 

Como provavelmente já o pôde constatar, nós damos muita importância à lua, a genetriz dos ritmos da vida, do devir cíclico.

 

A nossa história começou em plenilúnio, quando vivíamos em Syntadel debaixo do abraço de Sirul, nutridos pelo seu afecto e tutelados pela sua sabedoria. Depois tudo foi perdido, com o desaparecimento das Entidades e o domínio de Seltor cobriu o minguante convexo e a meia-lua com o mesmo gesto do dedo, até chegar ao minguante côncavo, e agora como povo encontramo-nos no nosso estado mais fraco: os nossos números são reduzidos e fomos exilados da nossa terra natal devassada.

 

Allumno acenou com a deveras interessada cabeça.

 

As famílias decidiram afastar-se da terra que se tornara a sua ruína, temendo o pior prosseguiu, seguindo para a negra lua nova com o dedo. As menos receosas mudaram-se para a Sirulia, as restantes desistiram completamente da ideia de um dia restaurar Syntadel e migraram para a segurança do refúgio que vocês chamam Shallath Yngil, resguardados pela Barreira. Nós, os Lasan, somos os únicos que acreditam que o nosso povo já alcançou esta fase abanou o dedo na direcção da lua nova, e que, com preserverança, poderemos eventualmente completar o círculo e tornar a alcançar o nosso plenilúnio o seu dedo regressou à lua cheia.

 

Bem dito, esposa surgiu Hanal por trás, sobressaltando-a ao cingir-lhe a cintura com ambas as mãos. Está a falar com a pessoa certa para perceber a nossa cultura, senhor Allumno.

 

Hanal Lasan, a portares-te como um mancebo púbere à frente dos nossos convidados! repreendeu-o Eluana sem o mínimo tom de irritação na voz, agarrando-lhe as mãos e roçando a nuca contra o seu pescoço.

 

O Patriarca disse algo em suave Eridiaith à sua esposa. O mago não compreendeu as palavras, mas sentiu-se tocado de certa forma e experimentou um estranho calor afectuoso no peito. Os dois beijaram-se docemente à sua frente e Allumno virou a cara por respeito, tentando não parecer demasiado acessível para mais uma barragem de perguntas dos Eahan que o circundavam como se estivessem à espera de que a sua conversa com Eluana terminasse.

 

Mas senhor Allumno, não pretendia interromper! disse Hanal, permitindo-lhe devolver a sua atenção ao casal. Por favor, continue. Tentarei eu também responder às suas perguntas, o que é justo, tendo em conta o incómodo interrogatório pelo qual passou.

 

Não, não foi incómodo nenhum, Patriarca... mas agradeço a vossa solicitude. Estava de facto curioso quanto à vossa relação com os sirulianos.

 

Eluana olhou para o seu esposo, dando a entender que era um assunto que lhe competia, e o Eahan não se fez de rogado.

 

Os sirulianos são como irmãos para nós, senhor Allumno. Cresceram e amadureceram desde o tempo em que foram acolhidos em Syntadel, umas pobres criaturas em busca de perdão. Ensinámos-lhes muito, demos-lhes a nossa amizade e compaixão, e eles retribuíram em todos os aspectos. Ambos ficámos marcados quando Syntadel foi ocupada e fomos expulsos, mas os sirulianos... é difícil para nós expressar as emoções que eles sentiram. Ainda eram humanos nos seus corações, e a perda do seu lar adoptivo mudou-os. Tornaram-se frios, acerbos, intransigentes, e passaram a ser dominados por uma vontade quase fanática de destruir as forças do Flagelo. Decerto já ouviu falar da Cisão? Allumno nutou com a cabeça. Exilaram as suas mulheres para as proteger e assumiram um modo de vida rígido e austero. A sua população está a envelhecer, pois o seu sangue dilui-se em Tanarch e eles adoptaram um sistema de reprodução selectivo com o qual as mulheres nem sempre cooperam, e francamente não as podemos culpar... é um assunto que debatemos frequentemente: quem ama mais as suas mulheres? Eles, que as decidiram afastar do perigo, ou nós que, apesar de lhes termos proposto um exílio semelhante, na verdade não as queremos longe de nós? Eu diria que somos nós, visto que lhes damos uma escolha, mas eles rebatem, insinuando que somos egoístas justamente pelo facto de não nos querermos afastar das nossas mulheres e que dessa forma as expomos ao perigo...

 

Esposo, estás a divagar advertiu-o Eluana.

 

Tens razão. Perdão, senhor Allumno, já me estava a afastar do assunto. Queria saber da nossa relação com os sirulianos? Pois bem, a sua atitude para connosco também mudou: passaram a ser protectores, por vezes em demasia. Tratam-nos como animais raros que devem ser resguardados dos males do mundo a todo o custo, recusam-se a olhar para as nossas mulheres como se fossem indignos delas... não me entenda mal, senhor Allumno, não existem rancores ou animosidades de qualquer espécie entre nós, nunca existiram, mas temos bastantes desentendimentos. Um deles é esta lei de conscrição que eles conceberam. Achamos desumano o que eles fazem, o que vos estão a fazer, mas eles vêem todo o processo como mais uma forma de livrar o Allaryia daquilo que julgam ser a influência do Flagelo, purgando Tanarch de criminosos ou pelo menos fazendo-os lutar para merecerem a sua liberdade.

 

O Factoto disse que se trata uma forma de evitar a perda de vidas sirulianas, visto que os seus números estão a diminuir tanto... lembrou Allumno.

 

É verdade, mas que Sirul me perdoe, eu não posso deixar de dizer que se trata de um buraco que eles próprios cavaram e no qual acabaram por cair. Um povo que vive diariamente com escaramuças não se pode dar ao luxo de exilar as suas mulheres e adoptar um sistema de reprodução tão absurdo como aquele! Aos anos que debatemos essa questão com eles, mas eles são teimosos e inflexíveis, tal como se tornaram com tudo o resto. Sinceramente, já não sei se eles estão mais empenhados em proteger Allaryia ou em destruir a progénie do Flagelo, custe o que custar. Tudo isso nos entristece, mais do que eles alguma vez possam imaginar, e nada podemos fazer a respeito...

 

Eluana apertou a mão do Patriarca, que suspirou tristemente, roçando os dedos da sua esposa com o polegar.

 

Nós acreditamos em mudança, senhor Allumno, não em destruição. Nada é fixo ou imutável. Os thuragar ajudaram os humanos contra os drahregs na Era da Discórdia. Vocês têm um thuragar e uma eahanoir entre vós, e vejo que são leais companheiros. Na destruição não reside nenhuma resposta, apenas a morte.

 

Acreditais na mudança firmou Allumno. Mesmo os drahregs, duplamente aviltados?

 

Mesmo o Primeiro Pecado. Aliás, pelo que ouvi das vossas histórias, o vosso grupo deparou mais do que uma vez com um drahreg peculiar... disse o Patriarca com um sorriso que dava a entender que sabia algo sobre o assunto.

 

Antes que Allumno o pudesse inquirir a esse respeito, caiu o silêncio no jardim e todas as atenções se voltaram para uma bela Eahana que deslizava com a sua saia pela relva com um Eahan esguio atrás dela, carregando um banco e o que o mago só soube descrever como um suporte de madeira com um crescente invertido, ambos marchetados a marfim, do qual pendiam cristais facetados de comprimento variável e que repicavam suavemente com um som cristalino com cada passo do eahan branco. A rapariga trazia um vestido de longas mangas inteiramente branco e debruado a prata, tinha uma fina corrente argenta à testa da qual pendia um belo crescente de prata e usava o alabastrino cabelo solto. Entre tanta beleza, a Eahana conseguia destacar-se, o que aos olhos de Allumno e de todos os outros companheiros não era nada de pouca monta.

 

A nossa filha mais nova, Alisa disse o Patriarca com orgulho. Ofereceu-se para cantar algo em honra dos nossos convidados.

 

-Têm uma filha linda... Allumno não conseguiu abster-se de dizer.

 

É muito gentil, senhor Allumno agradeceu Eluana. Vejamos o que ela escolheu para vós...

 

O Eahan pousou o estranho instrumento e o banco, sobre o qual se sentou, e Alisa esperou de mãos cruzadas sobre a delgada cintura enquanto o seu parceiro tocava delicadamente nos cristais, comparando os sons. O Eahan fez sinal com a cabeça assim que se deu por satisfeito e a filha do Patriarca olhou para o público que a rodeava, presenteando todos com um sorriso.

 

Para os nossos convidados, a Ária de Deadran e Ansala.

 

Os Eahan acenaram aprovadoramente com a cabeça, e os companheiros agradeceram em silêncio o refolgo das incessantes perguntas. O suave tilintar dos cristais não tardou a preencher o silêncio enquanto o eahan branco tocava suavemente nos cristais pendentes, trinando-os como faria com as cordas de uma harpa e deixando que os seus suaves embates fizessem uma música própria. Alisa fechou os olhos, inspirou fundo e começou por emitir um harmonioso gemido, erguendo a delicada mão e olhando para a lua ao cantar o primeiro verso. A voz da rapariga era magnífica, límpida e tão cristalina como os sons do instrumento que a acompanhava, e os companheiros viram-se enfeitiçados não pelo Eridiaith no qual cantava, mas sim pelo seu encantador timbre. Não percebiam as palavras, mas à medida que o triste e plangente canto continuava, começaram a visualizar um siruliano nobre e alto e uma Eahana linda como a manhã, aos quais se seguiram uma sucessão de sentimentos.

 

Querença. Afecto. Amor. Dúvida. Conflito entre estas. Uma escolha a fazer. O siruliano... não se permitia a fazê-lo, mas queria-o mais do que tudo. A Eahana esperava e sofria. Angústia. O amor prevalece, alegria e felicidade. O mundo torna-se belo. Os corações dos companheiros bateram mais depressa e algo lhes correu pelo sangue que lhes estimulou todos os sentidos. Um segredo. Triste é escondê-lo, não o que esconde. Não devia ser assim. Quem ouvia a ária deu consigo a esperar ferventemente que o segredo não fosse descoberto, que o casal pudesse ser feliz, que a história pudesse acabar bem. Então, a desgraça. O segredo é descoberto. A respiração dos companheiros reteve-se, como se tivessem apanhado um susto. Deadran, pobre Deadran. Exilado pelos seus. Expatriado. Enviado para a fronteira, forçado a uma vida no ermo. Dor, lágrimas, desespero. Anos. Tantos anos, demasiados mesmo para tão jovem coração de Eahana.

 

Morte.

 

Noites de lua cheia em Asmodeon. Saudade. Eterna tristeza. Uma figura solitária caça, lamenta-se e chora, chora pela sua perda. Cabelos brancos ao luar, uma memória longínqua, perene e lamentosa. Um coração dilacerado, um amor proibido...

 

Quando Alisa terminou, baixou a cabeça e tornou a cruzar as mãos defronte da cintura, escondendo a cara. Havia lágrimas nos seus olhos, bem como nos do público, e os companheiros aperceberam-se com surpresa da salgada tristeza que lhes escorria pelas suas próprias caras. As emoções que a canção em Eridiaith evocara... nunca haviam sentido nada assim. Fora como se toda a mágoa do mundo tivesse sido brevemente condensada naquelas últimas estrofes, causando um compadecimento geral em quem as ouvira.

 

Lhiannah esfregou as lágrimas das pálpebras com o polegar e olhou para Aewyre, curiosa quanto à sua reacção, mas o guerreiro não estava onde o vira pela última vez. Procurou-o em redor, mas não havia rasto do jovem, até que um Eahan lhe tocou no braço, sorrindo-lhe tristemente.

 

O príncipe Aewyre foi por ali disse, indicando a entrada para o edifício. Deixe-o estar. A Ária por vezes entristece...

 

Obrigada agradeceu a arinnir, ignorando o seu conselho e dirigindo-se para a entrada.

 

Worick olhava para o chão de olhos secos, absorto nalgum pensamento, e Taislin era confortado pelos seus ouvintes, tentando não fungar demasiado para quem se apresentara como um herói das histórias. Allumno tapava a boca com uma forçadamente pensativa mão, apoiando o cotovelo num braço cruzado enquanto fechava repetidamente os olhos para forçar a saída da humidade que lhe turvava a visão.

 

Uma canção... deveras triste comentou, destapando por fim a boca.

 

Deveras anuiu Eluana, abraçada ao braço do seu esposo.

 

Não é muito inspiradora para quem aguarda uma batalha disse Hanal, embora eventualmente possa servir para lembrar a quem a ouve as razões pelas quais tem de sobreviver...

 

Allumno concordou em silêncio, e o Patriarca não acrescentou mais nada. Slayra agarrava o braço de Quenestil com força, cintilando dos olhos enquanto este esfregava os seus com as costas da mão, inspirando fundo após a subtil torrente de emoções pelas quais passara.

 

Quenestil?

 

Sim? O shura viu que as pestanas da eahanoir estavam molhadas e sentiu verdadeiramente o aperto no seu braço.

 

Tenho de ir à latrina. Vem comigo.

 

O eahan não percebeu o pedido, mas antes que pudesse fazer qualquer pergunta já estava a ser arrastado.

 

Desculpe disse Slayra, dirigindo-se a uma Eahana com a mão livre sobre a barriga, onde é a latrina?

 

A eahanna branca olhou discretamente para o ventre dilatado de Slayra e fez uma cara compadecida ao fitá-la.

 

Pobrezinha, ficou a sentir-se mal? Vá para a da torre, que fica mais perto indicou a Eahana, apontando para o canto arredondado da muralha no qual o torreão estava inserido e no qual se encontrava uma abertura orlada por uma armação de madeira com flores brancas nela enrodilhadas.

 

A eahanoir agradeceu e puxou Quenestil para o interior do torreão como se estivesse aflita, conseguindo assim passar sem qualquer estorvo pelos Eahan. A porta da latrina estava logo nesse andar, ao lado das escadas em espiral, e Slayra abriu-a com tanta pressa que bateu com ela contra a parede, puxando o shura para dentro antes de a fechar. Quando por fim tomou consciência do que se passara, Quenestil deu consigo com Slayra dentro de um pequeno compartimento fresco no qual pairava um estranho odor causado pela mistura da fragrância dos molhos de rosmaninho pendurados na parede e o fedor fecal que emanava do buraco no banco de pedra tapado por uma tábua de madeira. A única iluminação da latrina provinha da janela gradeada por cima do banco, através da qual o luar entrava.

 

Slayra, o que ten...

 

A eahanoir puxou a boca do eahan contra a sua tão repentinamente que os seus dentes rasparam uns nos outros, mas nem por isso Slayra o largou, agarrando-lhe antes os cabelos com mais força e empurrando-o contra a parede.

 

Slayramm... mmmo que é quemmm... tentou Quenestil falar, vendo-se forçado a pegar na eahanna pelos braços para a afastar. Slayra! O que tens?

 

Nada. Cala-te ordenou Slayra, tornando a beijá-lo e mordendo-lhe o lábio superior para o impedir de falar.

 

Perplexo, o shura tornou a afastá-la, grunhindo com os dentes no seu lábio e sacudindo ligeiramente a eahanoir.

 

Slayra, pára um instante e diz-me o que se passa!

 

Mas é preciso passar-se alguma coisa? retorquiu a eahanoir, irritada.

 

Bem... sim! Estás grávida, estamos no meio de uma festa e... assim, sem mais nem menos? E numa latrina?

 

Slayra cerrou os dentes e agarrou a cabeça do eahan, puxando-a para perto da sua.

 

Quenestil, tu amanhã ou depois de amanhã podes morrer, percebes? Podes morrer! E eu não quero que os nossos últimos dias tenham sido uma viagem a vomitar num maldito barco de sirulianos!

 

Quenestil deu-se conta dos efeitos da canção, e toda a sua agressividade desapareceu quando por sua vez pegou na cabeça da eahanoir.

 

Slayra, eu não...

 

Se tu vais morrer, então quero-te dentro de mim uma última vez. Parece-te assim tão estranho?

 

Slayra, eu não vou morrer. Eu prometo...

 

Não faças promessas que não podes cumprir, cabrito montês respingou Slayra, batendo-lhe no peito com os punhos e ficando a olhar para o shura com os orbes azuis-claros, que pareciam maiores com o luar a incidir neles de lado, sombreando-lhe o outro lado da face.

 

De facto, nada havia a dizer. As suas bocas tornaram a encontrar-se abruptamente, e Quenestil encostou Slayra à parede enquanto esta levantava as saias, ambos a respirarem com sofreguidão pelos narizes. O shura apercebeu-se do tempo que passara desde a última vez que estivera com a eahanoir, e descobriu que o seu corpo ansiava pela suavidade da sua pele, o almíscar do seu cheiro, a fogosidade dos seus lábios. Slayra parecia possessa como na noite que ambos haviam passado no abrigo na neve havia quase um ano, e Quenestil retribuiu a ferocidade, rosnando enquanto a sua orelha era mordida e livrando-se de todo e qualquer pensamento racional para se entregar ao arrebatamento sensual.

 

Assim que Lhiannah saiu do edifício dos Eahan, avistou Aewyre no pátio, e o seu primeiro impulso foi correr atrás dele para saber o que se passava. Porém, não fora a única a ir atrás do guerreiro, pois de seguida distinguiu claramente na semiobscuridade do pátio as roupas e o cabelo brancos de uma Eahana, o que fez com que a princesa se detivesse. Aewyre caminhava a passos rápidos na direcção de nenhures, e talvez por isso não ouvisse os delicados passos da eahanna branca que o seguia, mas esta estendeu a mão e disse algo que Lhiannah não percebeu. Pareceu Eridiaith, mas talvez Lhiannah simplesmente não tivesse percebido as palavras à distância, ou talvez fosse do seu ouvido. Em todo o caso, fez com que o jovem parasse e se virasse para trás. A arinnir escondeu-se atrás de uma das colunas ao lado da entrada e tentou sem sucesso ouvir o que ambos diziam, sentindo-se ridícula por ficar a observar como uma menina bisbilhoteira.

 

O que queres? perguntou Aewyre com desnecessária rispidez, esquecendo momentaneamente o fascínio por Eahan.

 

Era Sana, a servente que o assistira e aos seus companheiros no banho. A brusquidão do guerreiro assustou-a e a Eahana sobressaltou-se, levando a mão ao peito.

 

Príncipe Aewyre, passa-se alguma coisa?

 

Não, não se passa nada! negou o guerreiro. Volta para trás.

 

Ouço dor na vossa voz, príncipe disse Sana serenamente, aproximando-se.

 

Torci o pé ao descer aquelas escadas, deve ser disso... comentou sarcasticamente. Volta para trás. Não se passa nada comigo.

 

Memórias que a Ária despertou?

 

O quê? Como é que... balbuciou o guerreiro. Não interessa. Volta para trás, quero ficar sozinho firmou, voltando-lhe as costas e afastando-se.

 

Não foi senão quando sentiu o suave toque dos dedos da eahanna no seu ombro que algo estalou dentro da sua cabeça, e Aewyre oscilou violentamente com o braço para trás, livrando-se da indesejada mão.

 

Não me ouviste? vociferou, irado. Quantas vezes tenho de...

 

Quando caiu em si, o guerreiro quase sufocou com o que acabara de fazer. Sana tinha uma expressão surpresa e magoada na cara, agarrando o pulso que aleijara, e Aewyre desejou ser supliciado naquele preciso momento.

 

Eu... desculpa... pediu o guerreiro, pegando no braço magoado da Eahana. Como é que te chamas?

 

Sana, príncipe.

 

Desculpa, Sana.

 

Não, príncipe. Eu é que fui intrometida, mas vi-o a sair com tanta tristeza e dor na sua face que tive de perguntar se podia fazer alguma coisa por si...

 

Sensibilizado, Aewyre sentiu-se ainda pior.

 

Não, não podes. Ninguém pode... afirmou, olhando para o céu.

 

Posso ouvir disse a Eahana. As feridas infectam quando são escondidas.

 

Aewyre reuniu coragem para a olhar nos olhos, temendo perder-se no escuro azulado dos seus feéricos orbes, mas nada lá encontrou além de compaixão e uma sincera vontade de ajudar. Fechou os olhos e soltou um longo suspiro antes de falar, sentindo uma torrente de palavras a avolumarem-se na garganta, ansiosas por sair.

 

Era uma rapariga. Foi há um ano que tudo aconteceu, e ainda hoje não percebo bem o que foi ao certo. Conheci-a numa cidade pela qual passámos, e tinha-a pedido em casamento, mas ela morreu para me salvar... daquilo que eu a devia ter salvo. Um tirano que dominava a cidade, e que eu e os meus companheiros derrotámos, mas não a tempo de fazer algo por ela...

 

Sana ouvia atentamente, nutando com a cabeça e franzindo ligeiramente a testa ao saber da morte da rapariga em questão.

 

Não sei o que teria sido... eu, um príncipe, ela, uma camponesa... Onde estaria eu agora? E hoje já nem sei se era amor ou uma paixão, quer dizer... O guerreiro grunhiu de frustração. E as palavras da vossa maldita língua, que parece que vão remexer aqui dentro e trazem tudo à tona... só tornaram tudo mais confuso ainda! Porra, eu já tinha ultrapassado isto!

 

Quando Sana deu um passo atrás, Aewyre apercebeu-se de que estava a levantar a voz outra vez e fechou a boca, baixando a cabeça e os braços que se haviam erguido sem que tivesse notado, embora não conseguisse relaxar os punhos crispados.

 

Desculpa, Sana. Eu... não me sinto bem. O melhor é ires embora.

 

O guerreiro esperou que a Eahana assim fizesse, mas o que sucedeu foi precisamente o oposto e Sana aproximou-se ainda mais de si, agarrando-lhe a cabeça com ambas as mãos. Levou algum tempo para aproximar a sua cara da de Aewyre, concedendo-lhe amplas oportunidades para reagir, mas o guerreiro não se mexeu até o seu lábio inferior ser docemente beijado e os seus olhos terem ficado instintivamente semicerrados. Pegou na Eahana pelos ombros e afastou-a, sentindo um ligeiro arvoamento quando os seus lábios se separaram.

 

Então? O que estás a fazer?

 

A Eahana abanou a cabeça e respondeu-lhe em Eridiaith com uma frase tão doce, tão plena de ternura, candura e carinho que o fez sentir que tudo estava bem e que não havia mal algum naquilo que iam fazer. Sana era bela, com os seus olhos cerúleos, as madeixas soltas de cabelo branco que haviam escapado ao coque entrelaçado na nuca e uma inocente boca cordiforme. Pareceu-lhe a coisa mais natural do mundo beijá-la, e assim o fez. Sabia a frutos e bagas silvestres, e Aewyre abraçou-a, cingindo as suas formas macias num forte abraço.

 

Lhiannah parou de observar detrás da coluna nesse preciso momento, assumiu uma expressão fria e virou as costas hirtas à cena que se desenrolava no pátio, voltando para dentro do edifício.

 

Um incomodado tentilhão de peito e ventre rosados e cabeça cinzento-azulada voava, undante sobre os abrasados telhados vermelhos de Ul-Thoryn, uma das poucas aves à vista no céu limpo do estuante dia. As ruas da cidade estavam festivas, as janelas dos edifícios dos burgueses decoradas com brilhantes toalhas e panos e com as mais dispendiosas peças da sua copa nelas expostas. Apesar do calor, era seguro dizer que boa parte da cidade estava nas ruas, embora os cidadãos se mantivessem à sombra perto das fontes e poços, e muitos preferissem aguardar a procissão do casamento dentro das tabernas, onde os preços das bebidas inflacionavam gradualmente. A milícia de Ul-Thoryn patrulhava cada beco e viela, reforçada pelos efectivos de Allahn Anroth, assegurando-se de que nenhuma irregularidade era cometida e acalmando os ânimos provocados pelas altas temperaturas e a massiva aglomeração de pessoas nas ruas. Alheio a tais festividades, o tentilhão continuou a sobrevoar os arruamentos da cidade até chegar ao seu destino, o plácido e fresco jardim do claustro da catedral de Assana. Grande foi a sua surpresa quando, ao pousar sobre o tejadilho de uma galeria, o encontrou repleto de estranhos.

 

As cortes de Ul-Thoryn e Lennhau estavam reunidas no jardim, sumptuosamente trajadas numa diversidade de cores e feitios que bordejavam o janota, e a sua presença afastara os habitantes mais pequenos. Estavam todos reunidos em redor do monóptero de mármore vermelho no centro, que se encontrava no eixo de duas pérgulas cruzadas cobertas de trepadeiras, cuja sombra era avidamente contestada pelos presentes. As balaustradas e colunas das galerias do claustro eram decoradas por armações em madeira com rosas nelas entrelaçadas, e entre as pérgulas havia quatro fontes rodeadas de narcisos amarelos com pétalas de rosas vermelhas a flutuarem na perfumada água, bem como renques de miosótis azuis. O jardim era fresco, mas ainda assim os convidados limpavam o suor das testas e as damas abanavam as mãos à frente das caras. Havia mesmo quem fosse molhar as mãos nas fontes ou se juntasse às sorores e noviças de Assana que aguardavam de braços cruzados sobre a cintura debaixo das galerias. As fiéis da deusa do amor e do casamento envergavam dominós vermelhos com os capuzes puxados para trás e usavam os cabelos soltos, embora as sorores usassem uma coifa de linho branco cingida por duas longas tranças entrelaçadas sobre a cabeça. Todas as atenções se centravam no monóptero, sobre cujo estrado ensombrado por uma laje pintada com o símbolo de Assana uma rosa vermelha cercada por um anel dourado se encontravam Aereth Thoryn, lollina Nehin e o preste que presidia ao casamento. O encalorado regente de Ul-Thoryn vestia uma longa túnica amarela rachada debaixo da cintura com apertadas mangas. Trazia aos ombros um semicircular manto vermelho debruado a ouro e com um brocado na forma de águias, firmado ao peito por uma faixa presa a dois broches dourados encastoados com rubis. O seu increspado cabelo negro estava dividido ao meio, fora frisado por meio de ferros quentes e cortado ao nível da maxila, e a sua barba estava oleada. Ostentava ainda na fronte a coroa de Ul-Thoryn, uma tiara de ouro com duas asas recolhidas sobre as têmporas e a cabeça de uma águia com olhos rubiáceos. lollina trajava um sumptuoso vestido brasonado com as armas do seu pai e marido. A águia e o sol de Ul-Thoryn estavam harmoniosamente lado a lado com o teixo e as bagas de Lennhau na frente e nas costas da princesa, de cujos braços pendiam um par de badanas brancas com pequenos teixos nelas cerzidos. Os seus espessos cabelos negros haviam sido amansados por meio de uma grossa trança que lhe percorria a cabeça de uma têmpora à outra, debaixo de uma fita da qual caíam pingentes vermelhos sobre a testa de lollina. As pontas dos seus vários fios encaracolavam-se sobre a gorjeira de cassa que lhe cobria o pescoço e que estava presa debaixo da trança e enfiada na gola do vestido. O preste envergava um dominó vermelho igual ao das noviças e sorores, e a sua calva deixava-lhe poucas opções para pentear o seu cabelo branco. O seu único distintivo era uma tiara dourada enfeitada com rosas vermelhas que de alguma forma destoavam com o seu porte e idade, e agarrava uma rosa com ambas as mãos enquanto falava. O casal ouvia diligentemente o seu sermão, mas os restantes convidados começavam a ficar impacientes devido ao calor.

... que vos unirá, o irresistível atraimento sensual entre forças antagónicas e complementares, adimplementado pela emoção que verdadeiramente une homem e mulher, e que urde o tecido que compõe a comunidade na qual vivemos concluiu o preste numa voz monocórdica, olhando revezadamente com os seus papudos olhos castanhos para o casal.

 

Seguiu-se uma série de perguntas: tinham idade para contrair matrimónio? Juravam estar fora do grau de consanguinidade proibido? Amavam-se verdadeiramente? Consentiam os dois de livre vontade? Ambos responderam afirmativamente a todas, e o preste chamou os portadores dos anéis. O pajem de Aereth e a aia de lollina foram em frente lado a lado, trazendo os anéis enquanto duas noviças subiam ao monóptero com duas pequenas taças, uma de barro com extracto de lúpulo e outra de osso com mel. O preste aguardou que o pajem e a aia entregassem as rosas e se retirassem, arregalando ligeiramente as esvanecentes sobrancelhas e sorrindo ao sentir uma tensão entre os dois jovens que, não pôde deixar de reparar, não existia entre o casal. Suspirando, concentrou-se na sua tarefa e retomou o rito.

 

O amor é ambíguo disse. É deleitoso passou a rosa a Aereth, que a estendeu defronte do nariz de lollina para que esta a cheirasse, e doloroso. O regente pegou então na delicada mão esquerda da princesa e picou-lhe cuidadosamente o polegar com um espinho.

 

lollina fez o mesmo, embora tivesse dificuldades em espetar o espinho no polegar da mão direita de Aereth e acabasse por o fazer com demasiada força. O regente silvou através dos dentes e encolheu-se, mas recuperou de imediato a compostura, lançando um olhar irritado à princesa sem que esta o visse, pois não o olhava nos olhos.

 

O matrimónio é doce prosseguiu o preste, e uma das noviças passou a taça de osso a Aereth para que este a desse de beber a lollina, que repetiu o gesto, e amargo. Os dois beberam de seguida o extracto de lúpulo, disfarçando o melhor que conseguiram as desagradadas caretas. Mas juntos, com amor e respeito, prevalecerão perante as adversidades e serão unos na vida e na morte.

 

Aereth Thoryn, tomais lollina Nehin como vossa esposa? Jurais amá-la como homem?

 

Sim.

 

Aereth Thoryn, regente de Ul-Thoryn, tomais lollina Nehin, princesa de Lennhau, como vossa rainha regente? Jurais amá-la como monarca?

 

Sim.

 

As mesmas perguntas foram feitas a lollina, cujas respostas mal se fizeram ouvir além do monóptero e uma das quais nem mesmo o preste ouviu à primeira. Os dois colocaram então os anéis nos polegares feridos um do outro.

 

Então, pela graça e amor de Assana, doravante sois marido e mulher. Podeis consumar a vossa união diante de todos e com a bênção da deusa.

 

Aereth pegou na cabeça de lollina, forçando-a a olhá-lo nos olhos pela primeira vez e sentindo a hirteza do seu pescoço. Beijaram-se, mas a princesa manteve a boca fechada, causando um desconfortável momento durante o qual o seu esposo tentou hesitantemente apartar-lhe os lábios com os seus, acabando por desistir e endireitar-se com as ditosamente morenas bochechas em brasa. Os presentes aplaudiram, fingindo entusiasmo. O casal virou então as costas para o preste de mãos dadas, roçando os anéis nos polegares e manchando-os com o sangue das picadas. Uma soror trouxe-lhes uma rola branca que ambos agarraram com as mãos livres, soltando-a de seguida para que voasse em liberdade sobre uma nova rodada de aplausos dos convidados. O tentilhão fartou-se e optou por fazer o mesmo, voando para fora do jardim rumo a um local menos agitado. Passou sobre a multidão que estava reunida à porta da catedral e seguiu inconscientemente o caminho entapetado com juncos e flores que fora preparado para a procissão final em direcção ao palácio. A série de ruas que levavam a Aemer-Anoth estavam decoradas com garridas grinaldas e festões, e havia homens sobre os telhados com sacos de pétalas de fragrantes flores para atirarem aquando da passagem do casal. O pequeno pássaro sobrevoou as muralhas do palácio real de Ul-Thoryn e dirigiu-se aos seus jardins, que por norma evitava devido à presença de gatos e falcões amestrados. Pelo menos pareciam sossegados, à excepção de uns quantos homens que deambulavam pelos pomares e que o tentilhão evitou. Pousou sobre a boca do peixe de mármore alusivo ao brasão de Sardin de uma das fontes um legado da nação que outrora as oito províncias de Nolwyn haviam constituído, com Ul-Thoryn como sua capital e bebeu da água que dela jorrava. Distraído pela sede e pelo ruído da fonte, nunca chegou sequer a ver a pedra que o atingiu em cheio na cabeça, matando-o instantaneamente. O tentilhão caiu na água e duas mãos sujas de fuligem chapinharam desajeitadamente nela para o tirar, praguejando e amaldiçoando todas as aves.

 

Estúpido, tinha de cair na água, molhar as penas! resmungou o moço de cozinha com o tentilhão numa mão. Era um vulgar rapaz baio, descalço, com penas de galinha depenada no cabelo negro e um incisivo em falta. Mas pronto, era mesmo um destes que o raio do velho queria.

 

Satisfeito, correu para fora do jardim e voltou para o caos da cozinha com o seu diminuto trofeu. Dentro do recinto de grandes dimensões reinava uma actividade sem precedentes desde a coroação de Aereth, e o moço mergulhou destemidamente no mar de gente à procura do arquimagiro. O altíssimo tecto da cozinha era formado por abóbadas em forma de cruzamento de ogivas, das quais pendiam enormes candelabros de ferro com grossas velas que iluminavam o recinto a par dos fornos e lareiras secundárias e principal. Imperava o clangor de sertãs e caldeirões, o retinir de talheres e louça, o borbulhar de água e caldos, o embater de cutelos contra madeira, o ranger de varas no espeto, o fervilhar de gordura ao lume, o crepitar da madeira, o ufanar de foles. Acima de tudo ouviam-se as vozes e os gritos dos copeiros, despenseiros, trinchadores, sopradores, ajudantes, sopeiros, lenhadores, louceiros e moços de cozinha que, tal como o rapaz do tentilhão, corriam em redor para depenar, esfolar, escamar, trazer, buscar, lavar. Homens e mulheres temperavam, cortavam, esquartejavam, salgavam e untavam segundo as ordens dos seus superiores, esfregando as testas suadas com os braços de mangas arregaçadas sempre que a ocasião lhes permitia. Fintando todos os que se lhe atravessavam no caminho, o rapaz calcorrinhou a cozinha até encontrar mestre Colmor, o arquimagiro, que como sempre estava a repreender vários dos seus subalternos ao mesmo tempo. Era um homem rubicundo e grisalho, com uma catarata num olho, e vestia uma túnica branca na qual estavam expostos como medalhas os percalços das suas provas e manuseio de comidas.

 

Seus sabujos lambuzentos, besuntaram isso tudo! criticou, apontando para um luzente pernil de carneiro. O que é que estão a fazer aí? Um quartilho de agraço, o que foi o que eu vos disse? Querem embebedar a vitela? Pela foice de Gorfanna, tirem-me estes esterqueiros daqui e tragam-me cozinheiros! E vocês, não estão a tingir as roupas de que vos ouço a falar! Coem-me bem esse caldo, ou eu parto-vos os pescoços como as galinhas que são! O que foi?

 

O moço de cozinha estendeu timidamente o tentilhão a mestre Colmor.

 

O passaroco que pediu... tentou dizer antes de este lhe ser arrancado da mão, cheirado e atentamente perscrutado.

 

Está molhado. Estiveste a dar-lhe o banho que te falta, meu rafeiro sarnoso?

 

O rapaz abriu a boca para falar, mas o arquimagiro atirou-lhe o tentilhão de volta para a mão e virou-lhe as costas.

 

Seca-o e manda-o arranjar para a tarte salgada da dama Nehin. Se ela não chegar à mesa, asso-te no espeto!

 

O moço foi de imediato fazer como lhe fora dito, e o tentilhão acabou por se ver aninhado no topo da massa salgada de uma tarte de enguias e lagostins, esperando a sua vez até um par de mãos pegar na sua bandeja. O pajem de Aereth vestia um sainho amarelo e apertadas calças vermelhas, e o seu cabelo conseguira escapar aos ferros quentes, estando apenas cingido por uma fita. Ainda se sentia afogueado devido à tortuosa procissão, na qual tivera de caminhar ao sol ao lado da liteira coberta do seu senhor, e agora cabia-lhe servi-lo e à sua esposa e sogros. O corredor que percorreu mais parecia um carreiro de formigas, com atarefados criados e serventes em incessante marcha. Deu a tarte de provar ao provador, um anafado homem que tinha todo o ar de adorar o seu trabalho, e um aceno da cabeça deste permitiu-lhe a passagem. Já sentia a rugidora emanação que provinha do fundo da galeria, ao fim da qual entraria no salão real de Allahn-Anroth, e embora não conseguisse ouvir o barulho, sentia-o no peito. Um palco fora montado às pontas da mesa, no qual decorreriam pequenas peças para o entertenimento de todos durante os entremezes. Menestréis tocavam músicas mudas em dois balcões marchetados sobre a mesa, arranhando violinos, soprando flautas e trinando alaúdes. As bocas dos comensais escancaravam-se para proferirem sons que o pajem não podia ouvir ou emborcar as entradas que davam início ao banquete: caldo de carne, sonhos de miolos de vaca, cadoz cozido, empadas várias, maçãs assadas, figos passados por gordura e lagostins com manteiga. Para aliviar as sequiosas gargantas após a encalorada procissão, havia uma profusão de vinhos licorosos, com água importada das nascentes das terras altas de Sathmara à disposição de todos os que desejassem aguar as bebidas para não se embebedarem demasiado cedo. Afinal, o banquete iria durar o dia inteiro e prolongar-se-ia pela subsequente semana adentro, e ninguém desejava comparecer indisposto às vindouras festividades que iriam animar a cidade inteira. O pajem deixou-se ficar por um breve instante a admirar a cena, que era diferente de qualquer outro banquete ao qual tivesse comparecido. Assemelhava-se a um dos frescos retratados nas paredes do salão na sua sumptuosidade e opulência, uma cena de tempos passados nos quais Nolwyn fora uno e poderoso.

 

Despertou das suas contemplações e dirigiu-se rapidamente à mesa principal com a tarte de Lethia Nehin nas mãos, vendo que a esposa de lorde Tylon aguardava com fria impaciência enquanto este falava com Aereth. A mãe da princesa envergava um vestido que lhe deixava os ombros e uma generosa parte do peito a descoberto, e os seus cabelos castanhos-escuros estavam presos em tranças dentro de dois cilindros prateados ornamentados com jóias. Cortun estava a seu lado e esforçava-se para que os seus olhos não se baixassem demasiadas vezes de viés para os seios da sua senhora, ainda que sub-repticiamente. O próprio pajem distraiu-se com um fugaz relance ao servi-la, que bastou para que a bandeja da tarte batesse num copo, fazendo o braço do rapaz recuar reflexivamente, deixando o tentilhão cair do seu ninho sobre as sobras de miolos de vaca de lorde Tylon. Os olhos cor de avelã crestada por geada da dama Lethia gelaram o pajem na sua posição, ainda com a bandeja nas trémulas mãos e indeciso quanto ao que fazer. Os lábios pintados de vermelho da mulher mexeram-se, e o rapaz leu-os, tentando decifrar o que diziam à procura de uma possibilidade de remediar o que fizera. Cortun?

 

Duas grandes mãos calejadas com dedos gordurosos cobriram-lhe a cara e boa parte da cabeça, começando a apertar com uma força que ameaçava estalar-lhe o crânio. O pajem largou a bandeja e agarrou os grossos pulsos peludos, mas as manápulas continuavam a apertar e apertar, tornando a pressão na sua cabeça insuportável. A sua visão começou a escurecer, granida por trémulos pontos brancos... mas subitamente, as mãos largaram-lhe a cabeça e o pajem caiu ao chão como se as suas pernas se tivessem esfacelado. Duas delicadas mãos agarraram-no, uma na nuca e a outra no peito, e quando a sua visão clareou, viu a aia de lollina que olhava para ele com grandes olhos preocupados. Lorde Aereth erguera-se e vociferava algo a Cortun, agastado, enquanto lorde Tylon lançava olhares repreendedores à sua esposa. O vibrar na sala cessara, e o pajem viu que os convivas estavam todos calados a observar a cena. A aia afagava-lhe a nuca e falava com ele, mas o rapaz estava demasiado atordoado para lhe dar atenção, despertando apenas ao ver quem se aproximava, cabriolando com destreza sobre as mesas. O seu corpo retesou-se e os seus olhos arregalaram-se, inquietando a aia, que contudo também virou a cara ao ouvir a guizalhante chegada de Dilet, o bobo.

 

Desgraça! Miséria! Contenda no casamento! Nobres senhores e senhoras, peço-vos: tenham tento! exclamou alarmado ao aterrar de cócoras diante de Lethia, sem tocar num único prato.

 

O seu traje do dia era verde e vermelho, com um barrete de três erectas pontas e sapatos de bicos invulgarmente curtos, mas nem por isso menos garridos. Lethia olhou friamente para Dilet, dando rapidamente a entender que não estava com disposição para brincadeiras, mas Dilet inclinou a cabeça, apoiando-a no indicador e perscrutando a esposa de lorde Tylon.

 

Linda senhora, verdadeira flor silvestre da Primavera. Devo perguntar-vos: porquê uma admoestação tão severa? indagou, arregalando as sobrancelhas. Não sejais tão dura com o pobre do rapaz pediu, baixando os olhos para o peito de Lethia, pois muitos olhos certamente se perderam nesse belo regaço falaz...

 

Assim que se deu a erupção de gargalhadas no salão, Lethia levantou-se, e as costas da sua mão esbofetearam Dilet em cheio na cara. As risadas aumentaram de volume, e várias mãos bateram na mesa sobre a qual o bobo pousou graciosamente as suas, dando uma pirueta para trás para se afastar da irada mulher. O seu malar sangrava de um arranhão causado por um dos anéis de Lethia, que tremia de raiva contida atrás de uma fachada de gelo. Dilet ficou a observá-la com um sorriso torto, esperando que a cascalhada geral ”diminuísse para poder falar outra vez.

 

A carícia de uma bela dama, dia alegre para um feio jogral! Mais risotas. Mas sabiamente guardo a minha distância; carícias a mais podem fazer mal! Lethia parecia prestes a rebentar de raiva, agarrando a toalha com as unhas, e o seu marido pousou-lhe uma advertente mão no ombro. Não mais cheirarei a flor, se é que tal me foi permitido. Quem triunfa na vida é o homem advertido.

 

Dilet pegou no tentilhão morto e fechou ambas as mãos com o pássaro dentro delas.

 

Hoje duas casas se uniram em carne e terra; enlace venturoso! Ditosa aliança! Alegrai-vos, regozijai, pois afinal na abandonada nação subsiste a esperança! A águia nidificou no teixo, aguardemos a ninhada! Quatro bagas na sua corte, qual delas estará envenenada?

 

As palavras de Dilet causaram olhares dúbios e testas franzidas, mas o bobo ainda não tinha acabado.

 

Mas comei, diverti-vos! Não vim para vos silenciar! Falai, divertidos, refinai o paladar! A alegria é fugaz, passageira como as ondas do mar. Aproveitai quando podeis disse, abrindo as mãos, antes que ela fuja a voar.

 

Perante olhares e exclamações de espanto, o pássaro morto que o bobo agarrara bateu as asas e voou até ao tecto, sobrevoando o salão até sair por uma janela. Todos aplaudiram, e Dilet fez uma vénia antes de se retirar, cabriolando até ao palco numa estonteante série de piruetas até sair pela porta principal. Aereth deu então a ordem para que as festividades recomeçassem e todos se sentaram, retomando as conversas e a refeição. A aia virou-se para o pajem, que estava a ser acometido de suores frios.

 

Aquele bruto... disse, olhando venenosamente para as desmedidas costas de Cortun. Anda, levanta-te. Bebes um pouco de vinho e já te sentes melhor. Vá, eu ajudo-te.

 

A rapariga pôs o braço do pajem por cima do ombro e o rapaz nada fez para a impedir, concentrado apenas em amainar as batidas do seu coração.

 

- Ele magoou-te muito? O bruto! É uma besta! Um dia alguém

 

ainda lhe vai dar uma lição! Passou a delicada mão pela testa do pajem, e os seus dedos voltaram molhados. Estás todo alagado. Anda, vamos antes para o corredor. Nem peço autorização àquela megera... olha, está a falar com lorde Tylon. Espero que ele esteja a ralhar com ela.

 

Fora do palácio, enquanto o pajem e a aia se retiravam do salão, o

 

tentilhão voava erraticamente como uma mosca zonza.. Estava a ter dificuldades em manter-se no ar, e as penas pingavam-lhe gradualmente da pele, deixando um esvoaçante rasto atrás do pássaro, até que por fim a sua carne se desfez e os seus ossos se esfarelaram, lançando-o em queda livre contra o jardim. Quando caiu na relva, nada mais era do que uma fumegante e purulenta poça negra com penas.

 

No dia seguinte os companheiros acordaram refeitos, embora cientes de que, segundo os batedores sirulianos, o exército de Asmodeon chegaria nessa mesma tarde. A noite passada entre os Eahan fora balsâmica para os seus espíritos carregados e os seus corpos cansados e, embora partilhassem do nervosismo que de forma geral se fazia sentir entre os conscritos, sentiam-se mais prontos do que nunca para enfrentar o que vinha na direcção de Aemer-Anoth. Lhiannah fora a primeira a levantar-se, e os companheiros não a haviam visto desde então. Quenestil e Slayra saíram com os conscritos, retirando-se para uma conversa privada e deixando Aewyre, Worick, Allumno e Taislin sozinhos no quarto.

 

Mas aonde é que aquela cachopa terá ido? questionou-se Worick, passando os dedos pela invulgarmente limpa barba.

 

Certamente não saiu de Aemer-Anoth bocejou Allumno com a mão defronte da boca.

 

Se calhar ainda lhe dá uma ideia e corta o cabelo para se fazer passar por homem e lutar nas muralhas... Quando era criança, fez isso mesmo só para ir treinar com os rapazes.

 

Aewyre olhou de soslaio para o thuragar, questionando-se quanto à veracidade dessa e das outras histórias que contara acerca de Lhiannah, mas nada disse. Outras coisas lhe ocupavam a cabeça, embora sentisse uma estranha paz de espírito como há muito as suas atribuladas cismas não lho permitiam. Lhiannah deixara de ser uma preocupação, bem como a gravidez de Slayra; aceitara a morte de Babaki e resignara-se a carregar consigo a culpa pela morte da Nabella. Kror, o ”tendão” e a Essência da Lâmina eram considerações a ter mais tarde, tal como o acordara com o drahreg. Ancalach ainda lhe causava dúvidas desde o incidente nas cavernas, mas desde que o seu gume continuasse afiado e a sua ponta aguçada, não iria pensar demasiado no assunto. Sobravam a harahan, a sua alegada filha e o seu pai, mas de momento a vindoura batalha encontrava-se entre o guerreiro e essas três questões, pelo que teria de se concentrar nela como um obstáculo a ultrapassar...

 

... connosco, Aewyre? ouviu a voz de Allumno perguntar.

 

Ha? Desculpa?

 

Eu e o Worick vamos supervisionar as defesas nas ameias. Queres vir connosco? tornou o mago a perguntar, ajeitando o gibanete de pano encorpado que lhe fora oferecido para a sua protecção.

 

Ah, não, deixa estar. Eu acho que vou já vestir aquilo disse, apontando para a saca que continha a armadura siruliana oferecida pelo Mandatário. O melhor é ir-me habituando. Há já algum tempo que não uso um arnês.

 

É a única armadura que um homem devia usar comentou Worick, dando dois murros quase afectuosos na sua couraça.

 

Como é que consegues dormir dentro disso? admirou-se Aewyre. A última noite fora das poucas em que vira o thuragar dormir sem a sua armadura, e fizera questão de a vestir com a ajuda de Taislin logo de manhã. Nem os sirulianos chegam a esse ponto.

 

Não tenho um rabinho mole do Sul, é por isso afirmou Worick, batendo no seu traseiro acerado.

 

Precisas de ajuda para o vestir? perguntou Taislin, referindo-se ao arnês.

 

O guerreiro lembrou-se das partidas que o burrik pregara ao thuragar enquanto o ajudava a vestir-se, atando mal as correias prepositadamente, mas sabia que não o conseguiria fazer sozinho, e Allumno e Worick não pareciam dispostos a ajudá-lo.

 

Está bem, Taislin. Eu depois vou ter contigo, Worick. Taislin bateu com as mãos e esfregou-as de endiabrado contentamento.

 

Olha, mafarrico, depois vai à procura da Lhiannah e diz-lhe para ir ter à enfermaria. E se ela cortou o cabelo, traz-mo para eu a obrigar a engoli-lo... disse Worick, retirando-se com Allumno.

 

Os dois companheiros mais velhos caminharam lado a lado pelo corredor, silenciosos como era costume na presença um do outro, embora Worick olhasse o mago de lado sem que este reparasse, remexendo algo nos dedos da sua mão direita, escondida de Allumno. Por várias vezes abriu a boca e virou a cara, mas voltou sempre atrás, repetindo-o tantas vezes que o mago acabou por reparar.

 

Sim, Worick?

 

O thuragar hesitou, franzindo os lábios e revolvendo o bigode com o gesto, até que acabou por se deter, virando-se para Allumno com uma expressão séria.

 

Mago, quero que fiques com isto disse, estendendo-lhe um objecto de pedra.

 

Allumno pegou instintivamente nele e examinou-o atentamente. Era uma complexa runa de pedra, habilmente esculpida e polida e do tamanho de uma pequena maçã, cujo significado o mago desconhecia. Então fora aquilo que o thuragar estivera a trabalhar e cinzelar durante boa parte da viagem...

 

É uma runa de protecção. Como não sei se ainda vejo a cachopa hoje... é para lhe dares no caso de me... acontecer alguma coisa disse o thuragar, esfregando a embaraçada nuca. Essa pedra esteve debaixo do berço dela e... comecei a trabalhá-la no dia em que partimos convosco. É só isso. Se alguma coisa me acontecer, dás-lha. Para ela trazer sempre consigo. Percebeste?

 

Perfeitamente anuiu Allumno, fechando a mão com a runa dentro dela. Porquê eu?

 

Porque és o único que não faz perguntas estúpidas.

 

Entendo. O mago enfiou a runa cuidadosamente dentro da sua sacola e deu-lhe duas palmadinhas asseguradoras.

 

E consegues encontrá-la no meio dessa porcaria toda?

 

Não te preocupes. Ela fica segura aqui. Vamos?

 

Os dois retomaram o passo e, assim que chegaram à escadaria, Worick resmungou algo remotamente parecido com um agradecimento.

 

- De nada.

 

Quenestil e Slayra estavam no piso inferior da torre flanqueante da muralha oeste da bastilha, que os companheiros haviam convertido em enfermaria improvisada por se encontrar no lado oposto ao da provável frente da batalha. A sala na qual se encontravam tinha o chão coberto de palha e camastralhos e vasilhas e taças de água encostadas à parede. Braseiros sobre armações com ferros aguardavam as brasas para cauterizar feridas, e os conscritos que estavam presentes arrumavam toalhas e ligaduras de linho. Eram homens pouco adequados para o combate: estropiados, velhos e débeis que de pouco serviriam nas muralhas além de ficarem no caminho dos sãos e robustos, mas as vidas dos feridos em breve iriam depender deles. Os sirulianos haviam-lhes dado facas, serras, fórceps e pinças em número adequado, mas poucos sabiam usar tais instrumentos.

 

Os dois Eahan estavam à porta de mãos dadas e testas encostadas, tentando passar despercebidos. Quenestil iria para a muralha aguardar a chegada do exército, e Slayra ficaria na torre a ajudar Lhiannah e Taislin com os feridos, e os medos que a eahanoir revelara na noite anterior pesavam-lhes aos dois.

 

Quando é que eles chegam? perguntou a eahanna de olhos postos no chão.

 

Lá para o final da tarde, é o que os sirulianos dizem respondeu o shura, roçando a sua testa de montanhês contra a fronte macia de Slayra.

 

Vais estar numa seteira, ou...?

 

Não, o Aewyre precisa da minha ajuda para orientar os arqueiros nas ameias. Tenho de estar lá.

 

Hum, assentiu a eahanoir, apertando-lhe as mãos. Tenta acertar no olho do azigoth, sim? Pode ser que assim tudo acabe mais depressa...

 

Quenestil esfregou o nariz no cabelo de Slayra, bafejando-o com um suspiro e beijando-lhe a testa por falta de algo encorajador para dizer.

 

E tem cuidado com os machados grandes... a eahanoir falava em surdina. Já aquele boaroar te ia partindo em dois...

 

Slayra... Quenestil libertou as suas mãos e pegou na cara da eahanna, forçando-a a olhá-lo nos olhos. Se tu não quiseres... eu posso...

 

Não, silenciou-o, pousando um indicador sobre os seus lábios. Eu adoro-te por quem tu és; e sei que se não ajudasses os outros e algum deles morresse, nunca mais serias o mesmo. Não desde o Babaki...

 

O shura foi incapaz de discordar e limitou-se a nutar com a cabeça de pálpebras fechadas.

 

Além disso, és demasiado tosco a tratar de feridas, não ajudarias nada aqui. Ainda matavas alguém... afirmou, calando-se antes que perdesse a voz e abraçando Quenestil com força, apertando a cara contra o novo corselete de couro do eahan.

 

O eahan retribuiu e afagou-lhe a nuca, beijando-lhe a cabeça e desejando ter palavras que pudessem aquietar Slayra, mas sabia bem que a eahanoir não ia em falsas promessas e preferiu nada dizer.

 

Aqui estou eu, então... continuou a eahanoir. A mulher chorosa a despedir-se do homem antes de este ir para a guerra...

 

Slayra, pensa nele interrompeu Quenestil. Pensa no nosso bebé. Também fazes isto por ele.

 

Eu sei, eu sei... vai lá, então. A eahanoir afastou-se, fitando-o directamente nos olhos. Mas fica vivo, ouviste? Fica vivo ou eu juro que...

 

O shura preferiu beijá-la antes que pudesse proferir a sua ameaça, e os dois ficaram à porta agarrados um ao outro, afagando os seus corpos mutuamente até Quenestil ouvir um pigarreio atrás de si. Desenvencilhou-se de Slayra para permitir passagem aos três conscritos que queriam entrar e aproveitou para se afastar, agarrando a mão da eahanoir até os seus braços ficarem esticados ao máximo e os seus dedos se desprenderem.

 

Eu ainda volto hoje assegurou ao andar para trás, ajeitando o estojo do arco ocarr à cintura. O exército só vai chegar à tarde.

 

Vai, foi tudo o que Slayra disse, pousando as mãos no ventre. E volta...

 

O shura acenou gravemente com a cabeça e voltou-lhe as costas, pondo-se a caminho da barbacã.

 

Aewyre e Taislin estavam sozinhos no quarto diante das peças do arnês espalhadas pelo chão num padrão minimamente organizado. Era uma armadura velha, com os anos nela estampados na forma de inúmeras marcas de golpes, mas fora bem conservada e continuava perfeitamente funcional. As partes que protegiam zonas vitais tinham bordas dobradas para fora de forma a que as pontas de armas deflectidas nelas encalhassem em vez de resvalarem pela superfície e entrarem por uma fresta vulnerável. O guerreiro oferecera o elmo tanarchiano que recebera na distribuição das armas, pois o elegantemente afunilado capacete siruliano com a sua babeira em forma de relha de arado era claramente superior. Vestia apenas as suas calças e botas Eahan e enfiava um gibão de lona forrado a linho pela cabeça enquanto esperava que Taislin se decidisse quanto à primeira peça do arnês a entregar-lhe. A vestimenta estava coberta de fíbulas e tiras para atar as peças da armadura e tinha pedaços de malha cosidos nas axilas, no interior dos cotovelos e no colarinho. Iria ter calor com a armadura por cima do gibão, mas era o preço a pagar pela excelente protecção que o arnês lhe proporcionaria.

 

Então, Taislin? inquiriu Aewyre, executando movimentos longos para ajustar o gibão ao corpo.

 

Eh... talvez isto? sugeriu o burrik, erguendo uma manopla com a mão.

 

O guerreiro baixou os cantos dos lábios e as sobrancelhas.

 

Tu não fazes ideia, pois não?

 

Não. O Worick dizia-me o que queria... Aewyre suspirou.

 

Bom, se bem me lembro, começa-se por baixo. Por isso passa-me aquela...

 

A porta abriu-se e os dois viraram-se para trás a tempo de verem Lhiannah entrar no quarto.

 

Lhiannah. Onde estiveste? perguntou o jovem. Saíste de manhã cedo e ninguém sabia de ti.

 

A arinnir tinha o cabelo preso a meio por cima do ombro e envergava as roupas eahan, com as reveladoras e parcimoniosas faixas de tecido ao peito e a saia, que rasgara e atara numas calças improvisadas. Trazia, na cara a expressão que Aewyre já aprendera a associar a um sinónimo para ”não falem comigo”, mas foi a própria que lhes dirigiu palavra.

 

Taislin, vai para a enfermaria. Eu ajudo o Aewyre com a armadura. O burrik protestou.

 

Mas eu sei...

 

Agora. A voz de Lhiannah não dava espaço para discussões, e o burrik achou melhor retirar-se. Eu depois vou lá ter contigo.

 

Quando a amuada porta se fechou, Aewyre fitou a arinnir, tentando descortinar o que estava por detrás daqueles sempre enigmáticos olhos azuis.

 

Para que é que foi isso?

 

A princesa não lhe deu atenção, passou por ele e ajoelhou-se de costas para Aewyre perante as peças do arnês espalhadas no chão.

 

Eu ajudo-te com isso. Costumava vestir a armadura do meu pai quando ele ia para procissões disse, agarrando as duas grevas e virando-se para o guerreiro de cócoras. Chega-te aqui. E tem cuidado para os olhos não te caírem das órbitas. Já me bastou a volta que tive de dar pelas muralhas, rodeada de marmanjos.

 

Aewyre estivera de facto a observar atentamente os lisos músculos das costas de Lhiannah e pousara os olhos no seu peito exposto assim que a princesa se virara, mas endireitou-se ao ser-lhe chamada a atenção.

 

”Parece que a javalina acordou cedo hoje,..”, pensou o guerreiro, aproximando-se da arinnir.

 

Lhiannah fechou-lhe as grevas articuladas nas canelas e ligou as correias e fivelas para as apertar, permanecendo silenciosa enquanto o fazia. De seguida colocou-lhe os coxotes e joelheiras, atando-os cuidadosamente para lhe permitir a maior flexibilidade possível nas articulações.

 

Põe isto por cima disto, e aperta-o bem ao jovem, passando-lhe um cinto com três fivelas e uma pequena saia de cota de malha sem olhar para cima. Aewyre fê-lo sem questionar, e a arinnir atou as correias do topo dos coxotes ao cinto. o peso para as ancas e custa-te menos.

 

Estou a ver. E não queres passar esse peso sobre os teus ombros para cima de alguém? Eu, por exemplo? o guerreiro inocentemente, sentindo que algo se passava.

 

Lhiannah fitou-o directamente pela primeira vez desde que entrara, embora brevemente, e levantou-se com a couraça articulada nas mãos.

 

Os braços passando o orifício da couraça aberta pelo membro direito e trancando o torso de Aewyre com um estalo metálico, procedendo a atar as correias do lado esquerdo. ontem à noite?

 

Foi relaxante... o jovem, erguendo o sobrolho sem que a princesa reparasse, pois a sua atenção residia inteiramente no arnês.

 

Imagino... Lhiannah, baixando-se para pegar na couraça inferior e atirando um segundo cinto para cima do ombro.

 

E tu...?

 

Não gostei muito da canção ligando as duas couraças com correias e atando estas aos orifícios e fivelas do gibão.

- Parece-me que tu também não, porque desapareceste logo de seguida.

 

O guerreiro começava a desconfiar do rumo que a conversa estava a tomar.

 

Lhiannah, há alguma coisa que me queiras perguntar?

 

Sim, a arinnir, levando o dedo ao queixo como se tivesse lembrado de algo. usar a tua camisa? Hoje até está calor lá fora, mas estas roupas são expostas de mais, se é que se pode chamar roupas a isto...

 

Ha? Sim, claro. Usa-a à vontade disse o guerreiro, cada vez mais confuso com o jogo de Lhiannah. Fossem todas as roupas assim... murmurou entre dentes enquanto a princesa enfiava a sua camisa pela cabeça. Ficava-lhe um pouco larga e folgada, mas Lhiannah não se pareceu importar e voltou ao trabalho. Sempre ficas na enfermaria?

 

A arinnir pegou na faldra, uma saia de placas rectangulares e curvas, e cingiu a cintura do guerreiro com ela, prendendo-a à couraça abdominal com tiras que de seguida cobriu com o encorpado cinto que pusera ao ombro de forma a não as deixar expostas.

 

Sim, fico. Não quereria que a batalha deixasse de valer a pena se me acontecesse alguma coisa... havia sarcasmo quase palpável na sua voz.

 

Lhiannah, eu estava a falar a sério...

 

Estavas? Hmm, interessante comentou Lhiannah, inclinando a cabeça para o lado de sobrancelhas sardonicamente franzidas enquanto apertava o cinto à grossa fíbula. Então e o que é que farias se alguma coisa por acaso me acontecesse?

 

Aewyre tentava olhar Lhiannah nos olhos para ter alguma ideia do que estava a enfrentar, mas os fugidios orbes azuis recusaram-lhe essa vantagem e a arinnir foi buscar a escarcela, constituída por duas placas pentagonais destinadas a cobrir a linha de junção entre as defesas superiores e inferiores pelas ancas.

 

Se algo te acontecesse...? Mas que espécie de pergunta é essa?

 

Uma à qual não consegues responder, ao que parece... provocou Lhiannah, prendendo as correias da faldra às fivelas da escarcela e deixando-as pender sobre os coxotes.

 

Lhiannah, deixa-te de disparates. Sabes bem que nunca me perdoaria se te acontecesse alguma coisa asseverou o guerreiro, que começava a ficar ligeiramente abespinhado.

 

Sim? E o que queres dizer com isso, que nunca te perdoarias? continuou a princesa ao baixar-se para pegar nos braçais e cotoveleiras.

 

Aewyre balbuciou, sentindo que estava a ser subtilmente empurrado às escuras com o intuito de o encurralar a um canto que não via.

 

Mas que raio, Lhiannah, aonde é que queres chegar?

 

Não precisas de responder, se não quiseres... foi-lhe assegurado enquanto os braçais e as cotoveleiras lhe eram atados às pequenas fíbulas das mangas do gibão.

 

Quer dizer, precisas que eu te faça um desenho...?

 

Está quieto com os braços. Podes fazer um, se achas que isso ajuda...

 

Desgostoso? Inconsolável? tentou o guerreiro. Destroçado?

 

Vais ter de fazer melhor que isso, Aewyre Thoryn...

 

Talvez se soubesse por que razão é que tenho de fazer melhor? É alguma palavra especial que queres ouvir, é isso?

 

Não. Lhiannah encolheu os ombros, procedendo a cobrir os de Aewyre com um par de espaldeiras, laçando as tiras do gibão nas suas presilhas.

 

Então o que é?

 

Toma Lhiannah pousou-lhe as manoplas nas mãos. Podes ir pondo estas.

 

Aewyre soltou uma exclamação incrédula enquanto enfiava as luvas cosidas às manoplas, flectindo os dedos para ajustar o couro velho. A arinnir prendeu-lhe o gorjal às fíbulas da gola da couraça frontal e dorsal, resguardando-lhe o pescoço e a nuca, e terminou cingindo a faldra com o talim, do qual pendia Ancalach dentro da sua bainha de madeira revestida de couro gravado.

 

Aí tens admirou Lhiannah sarcasticamente, pousando as mãos nas ancas e fitando apenas o arnês. O proverbial cavaleiro de armadura reluzente, pronto a salvar as donzelas...

 

Foi então que Aewyre perdeu a paciência e agarrou a princesa pelos ombros, sacudindo-a.

 

Mas que raio, Lhiannah, olha para mim! O que é que se passa? Diz de uma vez, seja lá o que for!

 

Lhiannah olhou Aewyre por fim nos olhos, e a sua expressão endureceu e tornou-se séria de um momento para o outro.

 

Ficavas destroçado, dizes tu? rebateu. E durante quanto tempo? Até que aparecesse uma linda eahan virgem para te confortar? A princesa libertou-se das mãos do guerreiro e deu um passo atrás. Aewyre percebeu então o verdadeiro tema da conversa, mas Lhiannah ainda não tinha acabado. Ficavas triste como ficaste com a Nabella? Ou ias precisar de mais do que duas semanas até montares a primeira criada de estalagem que te aparecesse à frente?

 

A cara do jovem congelou nesse preciso instante, a sua chocada boca ficou entreaberta e os seus membros, rígidos. Foram precisos alguns instantes de silêncio para recapitular rapidamente o que a arinnir dissera, e então a sua boca estreitou-se numa linha fria e furiosa e os seus olhos endureceram. O pensamento que talvez tivesse ido longe de mais passou pela cabeça de Lhiannah, e por momentos pensou que Aewyre a iria mesmo agredir, o que fez com que os seus músculos se retesassem em antecipação. Porém, tudo o que o guerreiro fez foi ajoelhar-se para pegar no elmo siruliano, cujo topo esfregou com a mão antes de o sobraçar, e encaminhou-se em direcção à porta com um porte rígido provocado por algo mais que o arnês. Foi a vez da arinnir de ficar surpresa ao pensar que Aewyre se iria retirar sem uma única palavra, mas o jovem parou debaixo da porta e virou-se para trás.

 

Sabes... semicerrando os olhos e erguendo a mão direita de palma aberta, mexendo-a para enfatizar as suas palavras. Lhiannah virou a cabeça ligeiramente para a esquerda para ouvir melhor. sei o que há entre nós... julgo que há alguma coisa, mas tu não ajudas nada, e eu gosto de ter a certeza. Quer dizer, tu insistes em deixar as coisas indefinidas e depois ainda me vens chatear por...

 

O guerreiro soltou uma enfática exclamação incrédula, baixando a mão.

 

Nem sei por que é que digo isto, mas só para que saibas, não aconteceu nada ontem à noite. Os Eahan são ainda mais pudicos nessas coisas do que o Quenestil. O que ela fez foi bem intencionado e é normal para eles; só me quis confortar, porque viu como eu tinha ficado depois da canção, para ela não foi mais do que um abraço seria para nós...

 

E muito gostaste tu desse ”abraço”, pelo que vi... Lhiannah. confortassem toda a gente assim, haveria bem mais eahan em Allaryia...

 

Eu... mas tu... guerreiro acabou por fazer um brusco gesto de desdém com a mão. esquece! Não estou para ouvir isto! Quando tiveres alguma coisa concreta para me dizer, podes vir falar comigo; até lá, guarda os teus ciúmes e mesquinharias!

 

Vai lá, então... a arinnir de braços cruzados debaixo do peito quando Aewyre se retirou a passos furiosos, sobressaltando-se quando o guerreiro por pouco não arrancou a porta das dobradiças ao fechá-la.

 

A sua espada e armadura estavam a um canto da sala, e a princesa foi buscá-las, segurando com as duas mãos a sua couraça embelezada por relevos dourados como um objecto há muito perdido e por fim reavido. As suas mãos começaram a tremer, e com elas a armadura, até que Lhiannah a arremessou violentamente contra a parede, fazendo-a clangorar em protesto pelo chão. Esmurrou a parede com ambos os punhos cerrados e encostou a cabeça neles, suspirando longa e profundamente.

 

Worick estava ao lado de Allumno e Quenestil numa ameia com o queixo apoiado sobre o novo escudo que cingira à manopla com correias quando Aewyre surgiu de rompante das escadas da barbacã, pousando o elmo com força em cima de um merlão e apoiando-se nele. Os sete conscritos que se encontravam presentes olharam em silêncio para o portador de Ancalach.

 

É pena que a bicharada ainda não tenha chegado comentou o thuragar. Estás com ar de quem mataria drahregs aos magotes...

 

O que foi? inquiriu Quenestil.

 

Nada respondeu o guerreiro, olhando em frente para a paisagem. A Lhiannah já apareceu, Worick. Deve estar a caminho da enfermaria.

 

Ah, então foi isso... percebeu o thuragar.

 

Os outros abstiveram-se de comentar, sem qualquer vontade de se meterem em qualquer assunto que envolvesse as intrigas principescas de Aewyre e Lhiannah, e os quatro companheiros ficaram calados nas ameias. Estava um dia primaveril quente, e o sol brilhava no céu azul coberto de feixes de nuvens branco-arroxeadas que encabeçavam as montanhas como chapéus de aba larga. Os outeiros em frente eram como quistos no solo de Asmodeon, dos quais esperavam que ao fim do dia irrompesse o vil icor do Flagelo. Na verdade, os morros não eram muito diferentes de outros que já haviam visto, mas a imaginação de todos continuava a condicionar a forma como viam tudo o que os rodeava naquela que todas as histórias retratavam como a abominável terra da Sombra.

 

Vamos ficar aqui a olhar até eles chegarem? quis Quenestil saber.

 

Pelo menos até ao almoço respondeu o thuragar. O nosso exército já recebeu as suas indicações, e agora aguardam apenas a ordem do Aewyre para as porem em prática.

 

Se o jovem se apercebeu de que o thuragar lhe estava a passar a responsabilidade para cima dos ombros, não esboçou qualquer reacção. Worick nunca aceitaria ter os conscritos sob o seu comando; não depois do que acontecera em Alyun, que lhe avivara as memórias do seu passado fracasso, devido ao qual muitos dos seus homens haviam morrido. O thuragar dissera-lhe que estava disposto a orientar os conscritos e a dar-lhe conselhos, mas as ordens partiriam da boca do guerreiro. Aewyre aceitara as condições, sentindo que fazia tudo parte do dever de um líder, que por uma vez tentaria ser com alguma dignidade.

 

Julgas que seremos logo atacados, Worick? Allumno.

 

Bah, eles devem montar acampamento e tudo o resto, mas sendo drahregs se calhar ainda se atiram de focinhas contra as muralhas assim que aparecerem... o thuragar, sombreando os olhos com a mão para ver melhor à distância. assim, pela altura em que vão chegar já deve estar quase escuro, por isso talvez ainda escapemos hoje sem safarrascada.

 

Talvez... Aewyre alto, batendo levemente com os dedos enluvados no elmo.

 

Não pareces muito preocupado, de uma maneira ou de outra reparou Quenestil, ainda curioso quanto à disposição do seu amigo.

 

O que vier, virá o guerreiro, sem nunca tirar os olhos do horizonte. só para que seja rápido e vamos tentar sair vivos disto, está bem?

 

Estou certo de que todos nos empenharemos nesse sentido... assegurou Allumno, olhando de soslaio para Worick, que não se pronunciou.

 

E depois? o eahan.

 

Continuamos para Asmodeon. Foi para isso que calcorreámos meia Allaryia, lembras-te?

 

Quenestil levantou as mãos, rendendo-se à evidência de que não valia a pena falar com o seu amigo naquele momento.

 

Olha, esta batalha até veio mesmo a calhar... Worick. mais drahregs matarmos aqui, menos nos aparecerão no caminho!

 

É um facto... Allumno a dizer. depois perguntar ao Mandatário se...

 

Concentrem-se na batalha, por agora Aewyre, sempre de olhos fixos no horizonte. À distância, viu um grande grupo de aves levantar voo no sopé das montanhas. pensamos no resto.

 

E vai haver muito em que pensar, acredita Worick. Entrar no coração de Asmodeon com uma grávida às costas não é nenhum favo de mel... mas ao menos temos mais sítios onde nos escondermos do que em Karatai. Isso sim é que foi uma sorte, não termos encontrado mais tribos.

 

É verdade lembrou-se Allumno. A Slayra já não se encontra em condições de viajar, Quenestil.

 

Sim, eu sei. Mas é como o Aewyre disse: pensamos nisso depois, O shura olhou para o guerreiro, mas ao que parecia o seu amigo continuava a fitar o horizonte cada vez mais atentamente, pois estava inclinado sobre o merlão e tinha o pescoço esticado. Não foi senão quando viu a boca entreaberta e os tendões à vista nas mãos de Aewyre que percebeu que algo lhe chamara a atenção além da paisagem.

 

O seu peito inflamou-se ao ver o que se aproximava. Uma trompa ressoou longa e sonante na fortaleza e os corações de todos na bastilha começaram a bater mais depressa em aterrado uníssono, mesmo os dos que não se encontravam na muralha.

 

Pedras me partam, ainda é demasiado cedo! Mas o raio dos sirulianos...!

 

A trompa tornou a ressoar, abafando os praguejes de Worick, e os companheiros ficaram a observar a aproximação da tropa inimiga em surpreso e atemorizado silêncio. Era impossível discernir detalhes à distância que o exército ainda se encontrava, mas os seus números eram indubitavelmente elevados e marchavam com aferro, trazendo consigo a promessa de uma morte agonizante com o cintilante aço que ostentavam ao sol. A vanguarda avançava como uma caterva de revoltas formigas cinzentas, batendo o terreno para a hoste principal, em cujo meio se via uma estrutura semelhante a uma torre de cerco incipiente a ser arrastada por vultos que mesmo àquela distância pareciam enormes e que se distinguiam dos restantes. Os conscritos gritavam em Leochlan e corriam pelas muralhas, alertando a bastilha para a iminente vinda do inimigo, mas os companheiros permaneceram nas ameias, observando em terror mudo e parcamente controlado debaixo das suas peles o exército que vinha na sua direcção com o intuito de os matar a todos. Quenestil estava particularmente assustado, pois nem sequer estivera como espectador do conflito no Vale dos Ventos, mas a experiência de pouco conforto foi mesmo para os companheiros que por ela passaram. Apenas Worick parecia calmo, tão calmo quanto alguém podia estar perante a atemorizadora visão de um exército hostil em marcha. Não era nenhum novato em batalhas de grande escala, e embora já tivesse deixado os seus melhores anos para trás, ainda se sentia apto para aquela que sabia que seria uma carnificina como nunca vista pelos seus restantes companheiros. Pelo menos a Lhiannah estaria a salvo, desde que aguentassem as muralhas.

 

Não fiquem aqui a olhar, pedras vos partam! vociferou o thuragar. Aewyre, organiza aquela ralé antes que eles saltem das ameias! Mago, ala para o torreão que aqui não te aguentavas um instante! Eahan, prepara os arqueiros! Estão a ouvir-me? Eles estão a chegar, porra! Eles estão aí!

 

Quando o exército por fim chegou, deteve-se hesitantemente a trezentas passadas das muralhas de Aemer-Anoth, urrando e praguejando contra as odiadas pedras que a compunham e nas quais tanto sangue da progénie do Flagelo já fora derramado. Cinco mil era uma boa estimativa para os seus números, compostos por uma dianteira de ulkekhlens, pequenos humanóides corcovados de pele acinzentada criados pelo Flagelo para combater os thuragar nos seus túneis e cavernas. O seu porte era semelhante ao dos garigonor, bem como os seus olhos pretos e pequenos, mas as semelhanças acabavam aí, pois as suas testas e narizes estavam revestidos de robustas placas ósseas, os seus crânios eram alongados e acuminados, e as garras das suas mãos e pés destinavam-se a fins bem mais sangrentos além de escavar. Estes ulkekhlens em particular haviam guarnecido as suas garras com dedais de ferro afiados e farpados, e estalavam-nos em ferina antecipação. O corpo principal do exército era constituído por ferozes drahregs de pele negra e cabelos entrançados, rapados, emaranhados e tapados por escabrosos capacetes. Envergavam couro robusto e aço, e muitos traziam escudos redondos revestidos com peles cobertas de violentos símbolos pintados, tanto marcas pessoais como ameaças em Olgur que, pela sua brutal elaboração, eram perceptíveis mesmo para quem não sabia falar a língua. Estavam armados com lanças, machados, espadas de lâmina larga, farpões e arcos, e entre esses encontravam-se esquadrões de escaramuçadores que empunhavam falcatas, temíveis espadas curtas curvadas para a frente de gume único com uma pesada ponta que podia fender um elmo com um único golpe. Os que mais atenção chamavam, contudo, eram as centenas de ogroblins, imensos humanóides de pele escura maiores do que ursos e que bramiam com os seus focinhos vesiculosos de narinas bufejantes, debaixo dos quais fileiras de dentes amarelados entre dois enormes caninos protuberantes no maxilar inferior aguardavam carne na qual se pudessem enterrar. Os seus musculosos braços eram de tamanho desmedido, permitindo-lhes quase caminhar com os punhos apoiados no chão, e das suas cabeças desciam cascatas de jubas negras pelas encurvadas costas abaixo, decoradas com caveiras humanas e afins a servirem de grotescas contas. Empunhavam enormes clavas com espinhosas cabeças de ferro, grandes machados, cutelos desmedidos, e arrastavam pesadas bolas de ferro com correntes enroladas à sua cintura, cujo fim causava apreensão aos defensores. Os ogroblins haviam puxado a estrutura inacabada daquela que viria a ser a torre de cerco, sustentando-a por trás com cordas para a impedir de tombar sobre quem a puxava durante a viagem, e tal demonstração de força causou um novo estremeção na já de si periclitante determinação dos conscritos. Do temido azigoth não havia sinal, embora fosse fácil passar despercebido no meio do exército e talvez se encontrasse escondido nas carroças, carretas e tendas por montar na retaguarda, embora essa fosse uma posição pouco habitual para quem comandava um exército, principalmente um composto por criaturas tão irredutíveis como drahregs. Ainda assim, os companheiros não puderam deixar de sentir alívio pela aparente ausência da criatura; menos um horror com o qual teriam de lidar por enquanto. Os que se lhes deparavam já eram suficientes para sujar as calças de um homem feito.

 

Apáticos, os defensores observavam enquanto os drahregs montavam os manteletes para a sua protecção durante a vindoura chuva de setas e aprontavam as grandes escadas com ganchos nas pontas. Tornou-se de imediato claro que iriam tentar um assalto directo, mas ninguém esperara outra coisa de tal exército. Qualquer comandante com um pingo de sensatez sabia que se arriscaria a perder todos os seus drahregs por deserção de um dia para o outro no caso de um cerco demasiado prolongado, pelo que o melhor era permitir-lhes dar largas à sua sede de sangue. O verdadeiro desafio era orientar a massa negra para um fim produtivo que não resultasse na aniquilação total do seu exército, pois drahregs eram notoriamente difíceis de controlar. Ainda assim, os números pesavam nos inexperientes conscritos, aos quais a perspectiva de cinco mil contra quatrocentos se lhes afigurava como uma morte certa. Worick sabia que não era bem assim, que preferia bem mais estar nas ameias a ter de tomar Aemer-Anoth. O castelo fora construído com mestria e estava muito bem localizado, e as frontes de ataque eram reduzidas e vulneráveis para os sitiantes. Desde que conseguissem manter a moral e impedir os conscritos de debandarem em pânico, as muralhas dificilmente seriam tomadas. Talvez a parte mais difícil fosse mesmo essa: fazer com que os defensores não perdessem o alento. O thuragar quase podia cheirar o seu medo, o aterrorizado odor que emanava de cada conscrito nas ameias e nos torreões. A hora de almoço passara há muito, mas ninguém sentira vontade de comer então nem tão-pouco naquele preciso momento, pois o medo apertava os estômagos de todos e os nervos diluíam-se em suores frios que causavam tremores involuntários. Os nós dos dedos dos arqueiros perto do thuragar estavam brancos devido à força com a qual apertavam os seus arcos, e as únicas palavras que se trocavam eram as de temor partilhado por meio de sussurros. Aewyre observava o exército com uma expressão impassível, apoiando a mão no pomo de Ancalach e tamborilando o elmo sobraçado com os dedos. Quenestil agarrava o flexível arco ocarr com ambas as mãos, dobrando-o distraidamente. Allumno estava à vista na torre flanqueante, distinguindo-se entre os outros devido à ponta escarlate do seu cajado, e àquela distância era difícil detectar nele traços de nervosismo. O mago reparou que era observado e fez um aceno com a cabeça ao thuragar, que o devolveu e tornou a olhar para o exército.

 

Cinco mil... muito sangue iria escorrer. As pedras do maldito castelo iriam ficar uma vez mais saciadas. O sangue dos seus próprios defensores serviria provavelmente de condimento, pois aquelas pedras não lhe pareciam muito discernidoras. Haviam sido talhadas para um único propósito ao qual não podiam escapar, e o sangue tornara-se parte da sua imutável natureza, quase tão certo como a chuva e a neve que caíam do céu para as cobrir. Eram pedras, mas Worick sabia que elas sentiam. As vibrações que lhe transmitiam, causadas pelas passadas e pisadas do imane exército, eram como o rufar de tambores de guerra, e pareciam-lhe quase... ansiosas.

 

”Vocês também, cambada de calhaus mal talhados? Bem podem estar; não há engenhos de cerco. Só têm de beber como passarocos espojados de bico aberto no ninho. Muito bem, vão ter o vosso quinhão. Hão-de beber tanto que é hoje que eu descubro se as pedras podem ou não arrotar...”

 

Worick Quenestil tocou-lhe no ombro e apontou em frente para a esquerda do thuragar.

 

Nas muralhas da fortaleza começavam a surgir as esplendorosas e imponentes figuras arnesadas de sirulianos, cujas armaduras não refulgiam ao sol por estarem cobertas por folgados briais azuis e brancos. A sua chegada incitou a um tumulto nas fileiras do exército inimigo, que urrou e ugou e bramiu de ódio na direcção dos seus inimigos declarados. Por momentos pareceu que iriam investir, mas os preparativos ainda não estavam completos, e os mais arrebatados que avançaram a correr não tardaram a voltar atrás, praguejando e prometendo dor e agonia aos sirulianos.

 

Parece que vamos ter ajuda... disse o eahan, sossegado com a súbita presença, ainda que distante.

 

Oh sim, bela ajuda que vão dar. Umas quantas setinhas para chatear o exército, é o que é! Dois mil sirulianos podiam destroçar esta ralé sozinhos, mas não querem perder homens e usam-nos a nós como escudo de carne para os desgastar! Seria uma porra de uma estratégia brilhante, se não nos envolvesse a nós, pedras os partam a todos!

 

De facto, embora estivessem armados, a postura dos sirulianos era a de meros observadores que monitoravam os procedimentos dentro e fora de Aemer-Anoth como árbitros. O único ânimo que poderiam providenciar provinha da sua presença, mas essa mantinha-se demasiado distante para encorajar os conscritos.

 

- É melhor do que nada comentou Aewyre. Fala-nos deles outra vez pediu, indicando o exército além das muralhas.

 

Bah, os drahregs já vocês conhecem bem. Fortes, selvagens, e sem um único membro fraco nas fileiras; esses morreram ou foram mortos à nascença. Os ulkekhlens parecem toupeiras depeladas, mas são perigosos; vão conseguir escalar esta muralha com as garras e podem distrair-vos o suficiente nas ameias e dar tempo aos outros para subirem com escadas. Os ogroblins são o que vêem: mais fortes que bois e com um geniozinho amoroso. Se algum daqueles bichos chegar às ameias, vai haver sangue, disso podem estar certos. Ah, e como vai haver muita caganeira de certeza, não se esqueçam de lembrar o nosso exército de fechar sempre as latrinas depois de as usar, senão os ulkekhlens são bem capazes de entrar por elas.

 

Muito bem. O que é que te parece, está na altura de ires para a tua posição?

 

Hum, é melhor; isto pode começar daqui a nada. Eahan, aguentas-te por aqui com o Aewyre?

 

Vou dar o meu melhor afirmou o shura.

 

Menos do que isso, e podes morrer. Faz chover morte sobre eles, eahan, ouviste? Quero ouvir estes fios de arco a vibrar e drahregs a gritarem como meninas. Entendido?

 

Faz o que te compete e racha cabeças, Worick ripostou Quenestil. Eu faço a minha parte.

 

O thuragar esboçou uma careta que com alguma imaginação podia ser vista como um sorriso.

 

Eu dizia-te qual é a tua parte... gracejou Worick. Boa sorte, eahan desejou, estendendo-lhe a mão, que o shura apertou. E tu, Aewyre, dá-lhes novas razões para terem medo dessa espada.

 

O guerreiro e o thuragar trocaram apertos de mão antes de Worick se dirigir à muralha do outro lado da torre flanqueante, na qual o ataque se concentraria com maior intensidade por se encontrar na área menos íngreme do afloramento. O exército inimigo cercava a bastilha num semicírculo que cobria o torreão do vértice até ao da ponta leste da base do triângulo que constituía o Esporão, cientes de que um assalto à fortaleza principal era inútil e incapazes de atacar a oeste devido à natureza escarpada do elevado afloramento nessa área. Worick e Allumno defenderiam a muralha entre o torreão da ponta do Esporão e a torre flanqueante, e Aewyre e Quenestil estariam encarregados da que chegava ao torreão da ponta da base e da barbacã que dela fazia parte, a única entrada para Aemer-Anoth e o seu ponto mais vulnerável, embora também de difícil acesso. As fileiras inimigas pareciam ficar mais excitadas a cada momento que passava: ulkekhlens que raspavam as unhas guarnecidas no chão, drahregs que lambiam as lâminas e batiam com elas nos escudos, ogroblins que pisavam o chão e bramiam como bisontes acirrados. Não haviam erguido paliçadas ou escavado quaisquer trincheiras; ou estavam cientes dos reduzidos números da guarnição e não contavam com uma surtida, ou estavam tão seguros da sua superioridade que simplesmente não se importavam, contentando-se com a protecção dos manteletes que haviam montado. A inexistência de cavalaria inimiga podia ser também um motivo, mas de uma forma ou de outra a hoste da Sombra parecia segura de si e não esperava qualquer reacção dos sitiados.

 

Os arqueiros, Quenestil? Aewyre de lado.

 

Aguardam ordens.

 

Manda-os prepararem-se, então.

 

Tens a certeza? Os arqueiros deles estão com o sol contra os olhos...

 

E mesmo assim mal podem esperar por atacar. Manda-os prepararem as setas.

 

Flechas! o shura tão alto quanto conseguiu para se sobrepor à berraria bélica dos drahregs, e os conscritos frecharam os seus arcos atabalhoadamente. Alguns deixaram as suas setas cair e atrapalharam-se ao tentarem redimir-se. Porém, ninguém riu e todos ficaram à espera da ordem para retesarem os arcos.

 

Raios, eles antes prefeririam o colo de Assana à espada de Gilgethan Aewyre. arcos deles tremem. Estão aterrados.

 

Eu também confessou o shura, sem nunca tirar os olhos do exército.

 

Somos dois. Ou melhor, quatrocentos e dois.

 

Quatrocentos e vinte e quatro, a contar connosco, se bem me lembro.

 

Ou isso. Porra, que são tantos...

 

E, parece que vamos ter de reduzir um pouco os números deles...

 

Só um pouco. O guerreiro pousou a mão no ombro do seu amigo e apertou-lho com força. Não queres mesmo ficar com a Slayra?

 

Quero - confessou o eahan, mas fico aqui.

- De certeza?

 

Absoluta.

 

Mais palavras eram desnecessárias. Aewyre apertou o ombro de Quenestil uma última vez, enfiou o elmo na cabeça, deixando a babeira erguida, desembainhou Ancalach e subiu para uma ameia, assentando o pé esquerdo num merlão.

 

Estão a ver isto? gritou a plenos pulmões, brandindo a Espada dos Reis. Estão a ver? Sabem o que é, não sabem? Pois rezem para que isto seja o mais próximo que ela chega de vocês hoje!

 

A bravata de Aewyre teve um efeito surpreendente e imediato. A hoste inimiga calou-se, e um silêncio ensurdecedor cobriu Aemer-Anoth como um manto. O sol encontrava-se sobre a bastilha, e todos os olhos estavam virados para o jovem e para a espada que empunhava, que luzia com um fulgor acerado. A pose inspiradora do arnesado guerreiro pareceu animar os conscritos, pois uns poucos gritaram o nome de Ancalach e alguns ergueram mesmo os punhos.

 

Não se esqueçam, não vão lutar pelos sirulianos ou por mim! relembrou-lhes Aewyre. Vão lutar para poderem sair daqui sãos e salvos, para poderem voltar para casa! Nós estamos aqui; eles é que têm de vir cá acima! Mas desta muralha não passam!

 

Não! berraram vários conscritos em uníssono, deixando-se contagiar pelo ânimo do guerreiro e dos defensores que estavam mais próximos dele. Eram homens desesperados que naquele momento se apercebiam do que tinham a perder e que não estavam dispostos a deixar fosse quem fosse tirar-lhes, nem cinco drahregs nem cinco mil.

 

Então venham, seus filhos de uma puta sarnosa! desafiou Aewyre, embriagado com a sua própria fanfarronada, cobrindo o exército inimigo com uma varredela de Ancalach e recuando com o pé para sair da ameia.

 

Os conscritos urraram a sua concordância e pouco depois havia quem lançasse insultos dirigidos aos drahregs e a quem os havia dado à luz, bem como promessas de morte pelo gume do Flagício, devidamente acentuadas com gestos obscenos. Os sirulianos nas muralhas e torres da fortaleza observavam impávidos, mas o exército inimigo não reagiu bem às provocações. Drahregs começaram a rugir em protesto, ulkekhlens ululavam de indignação e ogroblins bramiam, esmurrando os peitos com nodosos punhos cerrados.

 

”Grande rapazola, agora é que os acirraste...”, pensou Worick.

 

O ataque era iminente. Os conscritos estavam prontos. Lábios eram lambidos. Gargantas contraíam-se com a secura que engoliam. Os dedos do thuragar estavam crispados no cabo do seu martelo, flectindo-se em antecipação. Worick olhou em redor e sentiu necessidade de dizer algo, de atirar a sua acha para a crescente fogueira que ardia no peito dos homens na muralha.

 

Por Tharobar, esta maldita bastilha é a bigorna, eles são o martelo, e nós somos o que fica pelo meio... metaforizou o thuragar com rara gravidade. Resta-nos ver se quebramos ou nos mantemos firmes, ouviram? Quando as faíscas começarem a voar, é que vocês vão mesmo descobrir de que é que são feitos.

 

Não era possível dizer se os tanarchianos tinham compreendido as suas palavras ou não, mas todos acenaram resolutamente com a cabeça e fixaram os olhos na hoste inimiga.

 

E então o ataque começou.

 

Assim que a distância de trezentos passos que separava a hoste inimiga das muralhas foi reduzida por uma passada, as setas choveram das ameias de Aemer-Anoth, sibilando pelo ar. Os ulkekhlens grunhiram selvaticamente e correram sobre os quatro membros, escancarando as bocas de dentes afiados. Quando a saraivada de pontas de ferro se abateu sobre eles, muitos tombaram e caíram feridos, mas a maré parda continuou a avançar, enquanto na sua retaguarda os drahregs empurravam os manteletes, frechando os seus arcos.

 

Disparar! Quenestil, dando o exemplo com o seu arco ocarr.

 

Cheguem-lhes! Worick da outra muralha.

 

Outra chuva de flechas desceu das ameias e seteiras da bastilha, enterrando-se em terra, madeira e carne, e mais pequenos corpos ficaram a contorcer-se no chão, mas a massa acinzentada continuava a avançar inexoravelmente. O solo tremia com os milhares de passos, as rodas dos manteletes rolavam, empurradas por drahregs a urrarem e berrarem. Ogroblins estrondeavam pelo chão enquanto corriam na direcção das muralhas, empunhando enormes escudos rectangulares de grossas tábuas de madeira e carregando escadas, bramindo com desmedido furor.

 

Disparar! Quenestil a gritar, e a sua flecha isolada foi precedida por um coro de fios vibrantes que soltaram uma nova bátega mortal. Da outra muralha seguiu-se uma salva semelhante, e o campo diante das muralhas ficou semeado por mais estorcegantes corpos corcovados.

 

Após a terceira surriada, os manteletes dos drahregs travaram e estes começaram a responder com as suas próprias saraivadas, menos concentradas e regulares, mas perigosas não obstante. Quenestil e os homens mais próximos de si encolheram-se em frente para a protecção dos merlões e ouviram as hastes e pontas embaterem e retinirem secamente contra a pedra das muralhas em frente e atrás. Ninguém grunhiu ou gritou, mas ninguém tão-pouco se deu ao trabalho de olhar em redor para ver se alguém fora atingido e todos se levantaram com os arcos frechados. Algumas setas atrasadas silvaram e embateram em redor, fazendo com que alguns homens se encolhessem instintivamente, mas os outros tiveram a presença ou ausência de espírito para soltarem a resposta. A carga dos ulkekhlens avançava rapidamente, e os seus uivos e grunhidos estavam cada vez mais próximos. Quenestil não se incomodou a gritar a ordem de disparo, pois os indisciplinados conscritos já agiam de acordo com os ditames do caos da adrenalina e despediam setas com abandono. Como era seu hábito, o eahan tentou focalizar um alvo entre a caterva de corcoveados humanóides que galopavam na sua direcção, mas eram demasiados, moviam-se muito depressa e não havia tempo para escolher um corpo entre os milhares, pelo que Quenestil se limitou a soltar a flecha e preparar outra. Ouviu um baque surdo ao seu lado e o grunhido de um homem, seguido de um tombo e um gemido rouco, e a sua reacção imediata foi encolher-se. Um conscrito tinha uma flecha cravada acima da clavícula e estava asfixiar diante dos seus olhos, enclavinhando os dedos na garganta e fitando-o com os grandes olhos esbugalhados na sua face inflamada pelo rubor da morte. Não o podia ajudar. Não havia tempo para o ajudar ou a quem quer que fosse. Mais flechas retiniram contra a muralha e voaram por cima das ameias. Quenestil fechou os olhos, deixando-se imergir totalmente no fluxo da batalha antes de os tornar a abrir e se levantar com o arco frechado e retesado.

 

E então ouviu um avassalador coro à sua esquerda que o sobressaltou e fez com que soltasse a flecha atrapalhadamente. Uma estridente saraivada jorrou sobre o flanco da vanguarda ulkekhlen, decepando membros e projectando para o ar todos quantos atingia. O avanço não parou, mas a massa oscilou visivelmente com o brutal impacto. Impressionados, Quenestil e vários conscritos olharam para a direcção da qual a destruidora salva viera e viram os sirulianos com possantes arcos longos frechados e fios retesados. Eram incaracterísticos e desprovidos de ornamentos, mas mortíferos. Após um novo berro unissonante em Eridiaith, setas tornaram a voar, extraindo a sua potência do poder dos arcos e das palavras velurianas, e disseminando a morte onde caíam. Tão impressionados ficaram os conscritos que não foi senão quando uma saraivada de setas inimigas se abateu sobre as ameias que se lembraram de que deviam estar a defender a muralha. Os ulkekhlens estavam próximos, e as suas línguas rosadas pendiam-lhes para o lado como as de cães. Um grupo de ogroblins corria a passos largos para o carreiro no afloramento de rocha que levava à barbacã, e foi sobre esses que o destruidor fogo dos sirulianos passou a incidir.

 

Preparem-se! Aewyre, crispando os dedos em Ancalach e baixando a babeira côncava em antecipação do ataque.

 

Os ulkekhlens já trepavam o afloramento de rocha, escalando-o como aranhas providas de garras de aço, e os defensores estavam indecisos entre disparar sobre eles, sobre os drahregs que os molestavam detrás dos manteletes, ou os ogroblins que subiam pelo carreiro. Aewyre sentiu pelo menos duas pontas de setas resvalarem no seu arnês, desequilibrando-o momentaneamente, e viu que os ogroblins que não se dirigiam ao carreiro empunhavam as suas correntes providas de pesadas esferas e começavam a girar em si com elas, atingindo alguns ulkekhlens entretanto.

 

Cuidado! Eles vão atirá-las! o guerreiro, apontando para os imensos e rodopiantes humanóides, que arremessaram as esferas nesse preciso momento. Muitas foram para o lado, algumas voaram baixo e atingiram ulkekhlens pelas costas, mas a maior parte voou com ímpeto contra as muralhas e algumas chegaram mesmo às ameias.

 

As inúmeras colisões foram retumbantes. Grande parte das esferas embateram contra a muralha e abateram-se com grande estrépito sobre os ulkekhlens que trepavam o afloramento, esmagando alguns e desequilibrando outros, mas as que atingiram as ameias forçaram os defensores a baixarem-se ao lascarem os merlões e arrancarem pedras das suas fundações de argamassa. Quenestil levantou-se, ouvindo setas a zumbirem à sua volta, e viu que alguns dos pequenos humanóides já estavam a meio da muralha e os ogroblins também avançavam na sua direcção.

 

Pedras! disparando contra os que ainda não haviam chegado à muralha.

 

Os conscritos obedeceram, mas alguns inclinaram-se sobre as ameias para tentarem atingir os ulkekhlens que escalavam a muralha, sendo eles próprios atingidos pelo fogo drahreg.

 

Não se inclinem! Não se inclinem! avisou o eahan. eles acertam-vos! Atirem pedras!

 

Vários homens corriam aos pares com cestos de pedras, pedregulhos e calhaus, distribuindo os rudimentares projécteis pelas fileiras de defensores. Enquanto uns disparavam contra os drahregs, outros atiravam pedras cegamente pela muralha abaixo, orando para que acertassem em algo. Homens gritaram na barbacã, alertando para a presença dos ogroblins em baixo, cujos enormes escudos estavam polvilhados com setas, algumas das quais enterradas na sua pele dura sem que isso os incomodasse de sobremodo.

 

Quenestil, vai lá! Aewyre, indicando a barbacã. Atira-lhes a água!

 

Agua, água! o shura, correndo de cabeça baixa ao longo da muralha e ouvindo as flechas a silvarem por cima e os grunhidos, pragas e orações dos conscritos nas ameias, cujos arcos não paravam de vibrar.

 

Agua! vários defensores em uníssono, e dois homens não tardaram a aparecer com uma grossa vara aos ombros da qual pendia um caldeirão de ferro enegrecido com borbulhante água a ferver.

 

Um grupo de ogroblins já chegara à barbacã e começara a cortar o portão de madeira com violentos golpes dos seus possantes machados, cientes ou não de que ainda havia um rastrilho de ferro por trás. Quenestil enfiou o arco no estojo e ajudou os dois homens que pegavam na vara a erguerem o pesado recipiente, encalhando-o entre dois merlões.

 

Cubram-nos! a um grupo de arqueiros, que soltaram uma salva de setas e lhes deram espaço de seguida.

 

Quenestil e vários outros conscritos empurraram a vara para a frente e inclinaram o caldeirão, despejando o seu escaldante conteúdo sobre os ogroblins, cujos escudos de pouca protecção lhes serviram contra a água a ferver. Embora a pele grossa os resguardasse dos piores efeitos, os grandes humanóides soltaram uma série de ensurdecedores bramidos de dor, levando as mãos aos olhos e contorcendo-se cegamente, alguns caindo do carreiro e rebolando pelo afloramento abaixo. Outros vieram substituí-los, correndo debaixo de uma chuva de flechas sirulianas.

 

Aewyre não se pôde dar ao luxo de soltar o grito de triunfo que lhe aflorara à garganta, pois nesse preciso momento surgiu o primeiro ulkekhlen nas ameias. O conscrito que com ele deparou agrediu-o na garganta com a ponta do arco e derrubou-o, mas logo de seguida surgiram outros três, um dos quais apanhou um defensor despreparado. Com um feroz grunhido e surpeendente agilidade, o ulkekhlen pulou da ameia para cima do homem, que deixou o arco cair quando as garras do humanóide se cravaram no seu ombro e nuca e os seus dentes se enterraram na sua garganta.

 

Às armas! Por Gilgethan, às armas! o guerreiro, decepando a espinha dorsal e boa parte do abdómen do ulkekhlen com um golpe de Ancalach, tarde de mais para salvar a vida da sua vítima.

 

Os conscritos não precisaram de mais nenhum incentivo e largaram os arcos para tirarem os escudos das costas e desembainharem as espadas que Tanarch lhes concedera, dando de imediato início à peleja nas muralhas. Os ulkekhlens escorreram então pelas ameias, berrando roucamente, pululando, mordendo e arranhando, passando por baixo de pernas, saltando para cima de ombros e costas com flechas a zumbirem em seu redor e o sangrento aço de espadas a retinir e cortar carne. Um trepou para cima de um merlão e pulou sobre o primeiro alvo que viu: Aewyre. O guerreiro recebeu a sua investida com Ancalach em riste, empalando a criatura e oscilando a ponta da espada contra o chão, pisando a cara do moribundo para arrancar a lâmina do seu abdómen e originando uma expulsão de urina e excremento ao fazê-lo. Um corpo leve caiu-lhe sobre o ombro esquerdo, raspando-lhe o elmo e a espaldeira com garras de aço à procura dos seus olhos. Aewyre agarrou um membro ao mesmo tempo que se curvava e arremessou a criatura para a frente, atingindo um conscrito pelas costas. Não houve tempo para rectificar o seu erro, pois as malditas criaturas pareciam estar por todo o lado e não lhe permitiram tempo para outras considerações além de as manter afastadas de si, cortando e decepando.

 

Os ogroblins na barbacã tiveram o seu refolgo quando os defensores se viram confrontados com os ulkekhlens, e Quenestil viu-se forçado a fazer uso do seu facalhão ao lado das espadas dos conscritos. Livres das pedras e da água a ferver, os enormes humanóides continuaram a golpear o portão e alguns pegaram nas escadas com ganchos de ferro nas pontas que os seus companheiros debaixo do carreiro lhes passavam, preparando-se para as encostar à barbacã. Os que atacavam o vértice do Esporão corriam com essas mesmas escadas, e nesse momento, drahregs armados de escudos e falcatas urraram em uníssono e irromperam detrás dos manteletes, correndo na direcção das muralhas e do carreiro que levava à barbacã.

 

As únicas flechas que provinham das muralhas eram as das seteiras e das torres, pois os restantes defensores estavam demasiado ocupados a repelir os ulkekhlens. Allumno entoava ininterruptos cânticos arcanos do topo da torre flanqueante, fustigando o avanço inimigo com dardos místicos, rajadas arcanas, línguas de fogo e descargas eléctricas. Através da Palavra, criava lufadas de vento para desviar as saraivadas inimigas e derrubar os ulkekhlens que trepavam as muralhas, o que o tornava um alvo que os drahregs tentavam a todo o custo abater. Na muralha à sua direita, Worick proferia gritos de guerra e pragas em Garogar, rachando crânios e ossos à martelada.

 

Venham daí, seus fornicadores de toupeiras! cravando o bico recurvo do seu martelo no flanco de um dos humanóides criados para combater a sua raça e puxando com força para lhe rasgar a carne.

 

A criatura caiu, mas ainda se arrastou de mão estendida para agarrar o pé do thuragar, que com ele lhe esmagou a cabeça e os dentes contra o chão. Outra pulou-lhe para cima, mas Worick recebeu-a com o seu escudo e desviou-a da sua trajectória para o chão, trazendo o martelo com destroçador efeito para baixo em seguimento. Um ulkekhlen mordia a coxa de um conscrito que acabara de varar outro com a sua espada, pelo que o thuragar correu na sua direcção com o espeto do martelo em riste, espetando-o na ilharga do humanóide e alçando-o com um grunhido de esforço. O humanóide esbracejou e esperneou no ar, sustido de costas pelo espeto do martelo, e Worick atirou-o por cima das ameias para a sua morte. Ouviu um berro feroz ao seu lado e virou-se para ver um ulkekhlen de boca sangrenta escancarada com a ponta de uma espada a sair-lhe do peito. Não se incomodou sequer a olhar para a cara do homem que o salvara, pois outro berro fez com que girasse em si para esborrachar a cara de outro adversário, rachando-lhe as placas ósseas da testa e fazendo-o engolir os próprios dentes.

 

Drahregs! um conscrito com dois grandes arranhões na testa, apontando para além das ameias.

 

Worick agrediu um ulkekhlen com a ponta do cabo do martelo na barriga e despedaçou-lhe a bacia com a cabeça da arma, permitindo-se um instante para olhar. Um batalhão de ululantes drahregs corria na direcção da muralhas de redondos escudos em riste, prontos a treparem as escadas que os ogroblins sustiam.

 

As escadas! Derrubem as escadas! o thuragar, arrancando um queixo de ulkekhlen com uma possante martelada e correndo para o primeiro par de ganchos que avistou.

 

Prendeu o bico recurvo do seu martelo num deles e fez força para o soltar, mas ambos estavam bem assentes e os ogroblins seguravam-nos com força em baixo.

 

Pedras me partam, distraíram-nos bem! o thuragar, concutindo com o escudo um ulkekhlen que o tomara por desprevenido e sentindo uma seta embater contra o seu braço. Mago! Oh, porra, não me ouve... mas corram com estas animalárias, pedras vos partam! Os drahregs vêm aí!

 

Quenestil deslizou o facalhão pela garganta de um ulkekhlen, tentando desesperadamente arranjar espaço para que os conscritos pudessem fazer uso do novo caldeirão. Os defensores debatiam-se com espadas e machados com os humanóides que estavam nas muralhas enquanto outros estavam inclinados sobre as ameias a espicaçar com lanças os que ainda não haviam subido. Podia ouvir os urros dos drahregs a avançarem, mas tanto o eahan como os restantes defensores estavam de mãos cheias com os ulkekhlens e não se podiam ocupar deles. Aewyre ceifava para a esquerda e para a direita, deixando ulkekhlens desmembrados a seus pés, mas os humanóides eram implacáveis na sua vontade de ferrarem os dentes em carne. Apanhou um deles de boca aberta e cortou-lhe a cabeça do maxilar para cima, talhando de seguida outro desde o ombro até ao umbigo com um ””poderoso golpe. Teve de esmurrar um terceiro com as costas do punho acerado antes de poder sequer erguer Ancalach para podar os sôfregos braços que lhe tentaram agarrar a perna. O sexto foi atingido por uma flecha acidental na omoplata, e Aewyre decapitou a sua surpresa cabeça antes que pudesse fazer algo mais além de grunhir. O guerreiro sentia calor, e apesar de o arnês lhe permitir boa flexibilidade e ter o peso equilibradamente distribuído pelo seu corpo, era extremamente abafado, pois tanto o metal como o gibão aprisionavam o suor e calor. Há muitos anos que não estava dentro de um arnês, faltava-lhe a noção de economia de movimentos, e o sol batia calorosamente no metal, acalentando o sangue que era aceleradamente bombeado pelos seus membros e peito.

 

Os drahregs corriam com desordenado abandono na direcção do carreiro, deixando os manteletes para trás, instigados pela ausência de qualquer oposição visível, mas o vibrar dos arcos sirulianos cedo lhes mostrou o quão errados estavam. Os humanóides negros foram projectados para o lado com a força das flechas, e a violência do embate dos projécteis nos escudos que não atravessaram foi suficiente para quase lhes luxar as articulações dos ombros e cotovelos. O coro Eridiaith tornava as setas armas ainda mais mortíferas, e os drahregs eram alvos bem mais fáceis do que os ulkekhlens, como atestavam os inúmeros cadáveres que o batalhão deixou atrás de si com apenas duas saraivadas. Confrontados e confundidos com o inesperado e alarmante número de mortos causados pelas destrutivas salvas, os drahregs debandaram. Os ogroblins ficaram também desmoralizados e deram o sinal de retirada com aflitos bramidos, fugindo do portão da barbacã com os grandes escudos erguidos para se resguardarem das temíveis setas que voavam da fortaleza como falcões de aço. Ao ouvirem a fuga do seu apoio, os ulkekhlens entraram em pânico e começaram a tentar fugir, mas tarde de mais constataram que era bem mais fácil subir à muralha do que descê-la, e muitos comprovaram-no da pior forma, caindo para uma morte pedregosa. Os conscritos atacaram com novo alento e tombaram muitos, cortando pernas e varando costas com lanças.

 

Eles fogem! Aewyre, trespassando a ilharga de um ulkekhlen. fogem!

 

Os conscritos soltavam gritos pouco humanos, massacrando todos os ulkekhlens que não conseguiram fugir a tempo e continuando a golpear os cadáveres dos caídos quando já não havia nenhum à vista. Os pequenos humanóides fugiam e caíam em pânico; uns poucos afortunados conseguiram descer pelas escadas que os ogroblins haviam deixado para trás, outros correram pela muralha abaixo como gatos a tentarem amenizar o impacto da queda, mas a maior parte morreu a tentar fugir. Os sobreviventes ainda tiveram de escapar à chuva de setas e insultos emasculantes que se seguiram quando os conscritos recuperaram os seus arcos, rindo e gritando vitoriosamente. Aewyre ergueu Ancalach e contribuiu com os seus insultos, mas o rumor que ouviu à sua direita chamou-lhe a atenção para o outro lado da torre, no qual o ataque ainda decorria com força.

 

Quenestil, fica aqui. Eu vou ver ali! apressadamente, deixando um confuso eahan para trás.

 

O guerreiro correu pelo adarve com Ancalach empunhada, gritando palavras de encorajamento desnecessárias, puxando e chamando aleatoriamente alguns homens para virem consigo.

 

Worick urrou ao esborraçar a cabeça de um drahreg que acabara de surgir numa ameia, sem chegar sequer a ver o resto do seu corpo. O Primeiro Pecado estava a subir com afinco as escadas que os ogroblins seguravam, e os poucos ulkekhlens que sobravam conseguiam fazer de si verdadeiros incómodos de modo a impedir os defensores de emperigarem a sua subida.

 

As escadas, pela Bigorna Dourada! Derrubem as malditas escadas! o thuragar, enfiando a borda do escudo na boca de um ulkekhlen que lhe saltara para cima.

 

Quando se virou, um drahreg de escudo erguido já tinha um pé assente na ameia. Worick martelou o escudo do adversário, e este oscilou perigosamente para a direita com a força do golpe, agarrado ao gancho da escada com a mão que empunhava a falcata e com um pé apenas apoiado no degrau. O thuragar ia partir-lhe os dedos quando outro drahreg surgiu do espaço aberto que o seu companheiro criara com o que afinal fora uma finta, atacando o thuragar com um farpão. A arma encalhou entre a espaldeira e a couraça de Worick, incapaz de penetrar mas com suficiente força para o desequilibrar e permitir a subida de ambos os drahregs. O mesmo sucedeu em vários outros pontos da muralha, e os ferozes humanóides negros abateram-se sobre os defensores com urros de parar o coração. Um conscrito espetou a ponta da sua lança na barriga de um, mas outro decepou-lhe a haste da arma com a falcata e escachou-lhe o crânio de seguida. Outro fendeu o escudo de um drahreg com uma machadada, mas a resposta do adversário deixou-lhe a lâmina de uma falcata enterrada na garganta esguichante de vermelho.

 

Pressionem, pressionem! Worick, contendendo com os dois drahregs que haviam subido ao mesmo tempo. Não os deixem subir!

 

Um dos humanóides golpeou o seu escudo, encalhando nele a arma até metade, e o thuragar torceu o pulso para lha arrancar da mão, trazendo de seguida o martelo abaixo contra o escudo do outro adversário. O drahreg desarmado largou o escudo, sem parecer incomodado com a perda da arma, e saltou de mãos nuas sobre Worick, derrubando-o. O thuragar debateu-se com o drahreg pelo chão e foi esmurrado por duas vezes antes de lhe agarrar o pulso com a mão que empunhava o martelo e afastar a cara com a outra, empurrando o queixo do oponente. O drahreg debateu-se e procurou algo na cintura com a mão, crispando os dedos no cabo de um farpão e cravando-o na garganta de Worick antes que este sequer se apercebesse do que acontecera.

 

A gema na testa de Allumno luziu quando o mago conjurou uma série de crepitantes aguilhões verdes que voaram das pontas dos seus dedos e se espalharam pelos drahregs que estavam a combater nas ameias. Atingiu alguns, mas o melhor que fez foi conceder aos conscritos oportunidades para atacarem, pelo que decidiu atacar a fonte do problema: as escadas. Estavam longe da sua esfera de influência, o que dificultaria qualquer tentativa de as afectar directamente, mas o mago decidiu tentar à mesma. Entoou palavras ígneas de combustão e apontou para uma escada apinhada de vultos negros que a trepavam, mas nada aconteceu, devido a Entropia ou à distância. Allumno praguejou em surdina e pegou no cajado com ambas as mãos, usando-o como um foco para os seus poderes e repetindo a frase. Desta vez uma escada irrompeu em chamas, queimando as mãos e os pés dos drahregs que a trepavam e causando a sua sobressaltada queda. As labaredas morreram de seguida, deixando apenas madeira chamuscada para trás, pois era difícil manter um efeito prolongado a tal distância e o mago já se começava a sentir cansado. Ainda não chegara a canalizar Essência directamente, mas mesmo moldá-la através da Palavra era extenuante, especialmente quando feito ao ritmo acelerado ao qual o mago fora forçado. Allumno abaixou-se e permitiu-se uns breves momentos de descanso encostado às ameias contra e sobre as quais as setas inimigas embatiam e voavam. A sua respiração era normal, pois o cansaço que o acometia era sobretudo mental, pesando-lhe nos ossos e no espírito e deixando-o de cabeça pesada e zonza. Mas os defensores precisavam de si, precisavam da sua magia.

 

”Só mais uns instantes de descanso...”, impôs o mago a si mesmo. ”Não mais que uns instantes...”

 

Worick grunhiu, levando a mão à ponta do farpão, que não o golpeara com força suficiente para quebrar os elos da cota de malha sobre o gorjal de couro que lhe protegiam o pescoço. Contudo, a força do golpe quase lhe esmagara a garganta e deixara o thuragar sufocado, permitindo ao drahreg que ainda se encontrava por cima continuar a pressionar o farpão contra a cota de malha. A cara do humanóide estava tão próxima da sua que Worick sentiu o calor do seu hálito a carne podre quando o drahreg lhe rosnou de boca aberta, respingando-lhe a testa e a barba de pastosa saliva azeda. Os seus olhos pretos com orbes vermelhos pressagiavam a sua morte e regozijavam-se com ela, e a grande cicatriz que lhe percorria a testa até debaixo do olho direito contorcia-se num esgar de ódio. O thuragar soltou um asfixiado grunhido de esforço, tentando a todo o custo impedir o adversário de libertar a outra mão, quando se apercebeu de que estava a prescindir da sua única vantagem. Largou-lhe o pulso e, antes que o drahreg pudesse usar a mão liberta para ajudar a enterrar o farpão no seu pescoço, usou a sua própria mão livre para orientar o espeto do seu martelo contra a cara do oponente. O espigão atravessou a pele entre ambos os maxilares do drahreg, cravando-se-lhe violentamente no palato. O humanóide urrou de agonia, agarrando a cabeça do martelo com ambas as mãos, mas Worick torceu a arma e a cruciante dor infligida tirou o drahreg de cima de si. Ainda no chão, o thuragar agarrou o cabo com ambas as mãos e estorceu-o com força, partindo o pescoço do adversário, cujo corpo vasquejou violentamente antes de ficar quieto.

 

Não havia tempo para se recuperar, pelo que Worick cambaleou para os seus pés de martelo empunhado, tentando avaliar o caos de espadas, escudos, falcatas e gritos que o rodeavam. Avistou um drahreg pelo canto do olho por pura sorte e aparou o golpe com o cabo da arma na base da falcata, empurrando o braço do oponente para o lado e varando-lhe o peito com o espigão que já começava a usar mais que o próprio martelo. Os drahregs estavam em força nas ameias, e determinados a tomar as muralhas, urrando e golpeando com abandono. Os conscritos estavam claramente abalados, a sua noção de segurança atrás das ameias fora violada e agora enfrentavam a morte trazida por lâminas cruéis.

 

Lutem, seus desgraçados! bradou Worick, arrancando os pés de um drahreg do chão com uma martelada lateral na cabeça, aparando a falcata de um segundo com o escudo e partindo o cotovelo deste com um violento contragolpe. Lutem ou morram!

 

A ferocidade do thuragar animou os conscritos, mas os drahregs respondiam de igual forma, e a situação parecia ter alcançado um temporário impasse que poderia bem resultar na perda da muralha.

 

Lutem! Lut...

 

-Ancalach! ouviu-se um coro de vozes bradar, seguidas do som de uma investida.

 

Worick virou-se para trás no seguimento de um golpe que derrubou outro drahreg e viu Aewyre à cabeça de uma surtida de vinte homens vindos da torre flanqueante. Ancalach abateu-se sobre os escaramuçadores drahregs como uma faca em brasa sobre manteiga, abrindo uma brecha que os conscritos que o seguiam preencheram e dilataram à espadada e machadada. Aewyre avançou pelos invasores com um longo e contínuo grito, cortando, lanhando, acutilando, espadeirando e tombando drahregs num desbaste mortal. Animados pela arremetida, os defensores atacaram com força redobrada e começaram a empurrar os drahregs contra as ameias.

 

Isso mesmo! Worick, partindo as costas de um drahreg que atacou pela retaguarda. com força! Empurrem-nos para fora da muralha!

 

Aewyre aparou uma falcata, deixando-a deslizar pela lâmina de Ancalach, que de seguida passou pela garganta do seu atacante com um passo lateral, cortando o joelho de outro em rápida sucessão e interceptando o braço de um terceiro em pleno golpe, podando o pulso da mão que empunhava a arma. Um corpo colidiu contra as suas costas arnesadas, e o guerreiro estendeu o braço para trás, girando sobre um pé e empurrando o indivíduo para o chão sem saber se era amigo ou inimigo, deparando com um drahreg de escudo em riste a investir contra si. Aewyre baixou-se e varreu o chão com a espada, cortando o pé do adversário e derrubando-o, deparando de imediato com outro, que já se encontrava próximo e com a falcata erguida. O guerreiro levou Ancalach acima, recebendo o golpe com um bloqueio duro e deixando-o deslizar em frente pela lâmina, permitindo-lhe cravar o pomo da espada na cara do drahreg, levantando-lhe de seguida os pés do chão com um pontapé entre as pernas. Enquanto o adversário caía de joelhos, apoiando-se com o escudo no chão, Aewyre deu uma volta e cravou Ancalach nas costas do drahreg ao qual cortara o pé, puxando-a de seguida para decapitar o que deixara ajoelhado.

 

Worick concutiu um adversário com o escudo, deixando-o para trás para ser tombado pela espada de um conscrito a seu lado, e cravou o bico recurvo do martelo no escudo de outro, puxando-o para si e contra a borda do escudo que lhe esmagou a laringe. Os drahregs estavam a recuar perante a reavivada pressão, e alguns já largavam ou embainhavam as armas para descerem as escadas com os ulkekhlens antes que a debandada se tornasse geral e a sua única saída ficasse perigosamente apinhada. A quebra do moral deu-se por fim quando Allumno retomou o seu ataque arcano com um relâmpago que carbonizou o braço de um drahreg e os humanóides começaram a fugir em desespero, sendo fatalmente empurrados das ameias pelos jubilosos defensores. Escorraçado o inimigo, os conscritos pegaram em arcos e pedras e procederam a abater pelas costas o inimigo em retirada; alguns preferiram pegar nas suas virilidades e urinar para fora das muralhas, respingando os drahregs e soltando por fim com grande alívio a urina que quase lhes rebentara as bexigas durante o combate. Aewyre ainda empunhava Ancalach com ambas as mãos, ofegando ruidosamente e fazendo as placas do arnês respingado de sangue roçarem umas nas outras com os seus enfunados pulmões enquanto observava a retirada do inimigo.

 

Pedras... me partam arfou Worick ao seu lado. Eles iam conseguindo...

 

O que é que... se passou aqui? quis o guerreiro saber, baixando a cruenta espada e erguendo a babeira do elmo para respirar melhor.

 

Aconteceu que esta muralha... tem uma superfície de ataque mais ampla... e que estes merdilheiros se esqueceram... de que deviam estar a defendê-la... acusou o thuragar, cobrindo os festivos conscritos com um desdenhoso gesto da mão. Deixaram-se distrair pelos ulkekhlens... e quando os drahregs conseguiram subir... faltou pouco para uma debandada. Chegaste... mesmo a tempo...

 

Achas... que vão atacar outra vez? inquiriu o guerreiro, esquadrinhando as ameias com o olhar. Havia corpos de drahregs e ulkekhlens por todo o lado, bem como de conscritos. Pairava no ar um odor a sangue, suor e urina aquecidos pelo sol.

 

Bateram com o nariz na parede... e sangraram bastante... não devem tornar a atacar hoje. Agora vão reorganizar-se... que é o que nós devíamos fazer também...

 

Sim... ouçam, ouçam! Aewyre ergueu a mão para chamar a atenção dos conscritos. Reunam os feridos. Levem-nos para a enfermaria...

 

E os mortos? perguntou um defensor com a manga manchada de sangue.

 

Os mortos...? O que ia fazer com os mortos? Olhou para Worick a pedir conselhos, e o thuragar limitou-se a encolher os ombros.

 

As ordens são tuas...

 

Está bem, mas o que é que achas que eu devo fazer? O thuragar tornou a encolher os ombros.

 

Gordura arde bem e cheira mal...

 

Gordura arde...? Quando percebeu o que Worick queria dizer, Aewyre ficou boquiaberto. - Queimá-los? Worick, eles não são drahregs...!

 

Queimá-los não, nem os drahregs. Não da forma que tu estás a pensar clarificou o thuragar, assentando o espigão do martelo no chão e apoiando ambas as mãos no pomo do cabo. Usá-los como armas. Ou pelo menos parte deles.

 

O guerreiro continuava boquiaberto.

 

Não temos terra para os enterrar, não os podemos deixar aqui nas ameias, e não me parece que os queiras enfiar a todos nas cavas; o cheiro seria insuportável. A verdade é que nos faltam meios para defendermos as muralhas, e gordura de cadáveres é muito eficaz, seja de drahregs, ulkekhlens ou humanos...

 

Não posso fazer isso, Worick! Isso seria...

 

Estamos em guerra, rapazola. Para sobreviver, nem sempre fazemos o que gostamos. Mas é como eu disse: as ordens partem de ti. Este é só o meu conselho...

 

E eu só vou aproveitar metade dele, muito obrigado firmou Aewyre, enojado com a proposta do seu companheiro. Empilhem os drahregs, tirem-lhes a gordura e depois atirem-nos ao rio ordenou, apontando para a muralha oeste que o sobranceava. Os outros, envolvam-nos em panos e levem-nos para as cavas do torreão oeste acrescentou, indicando os corpos dos defensores caídos.

 

Vai ficar um rico cheirinho por lá...

 

Os sirulianos que decidam depois o que fazer com eles.

 

Ah, queres deixar-lhes um presente?

 

Sim, um presente... só espero que não fique muito maior do que já é... disse o jovem, caminhando por entre a mortandade no adarve e contemplando o exército inimigo.

 

Não tenhas muitas esperanças advertiu-o o thuragar, postando-se a seu lado. Rechaçámos o ataque e devemos ter morto umas boas centenas deles, mas também não escapámos ilesos, nem iremos escapar nos próximos assaltos. Isto vai ser sangrento, Aewyre.

 

Havia uma intensa actividade nas fileiras recuadas dos invasores, das quais emanava um rouco rumor semelhante ao de feras retraídas a lamberem as suas feridas, e todos nas muralhas podiam sentir o peso dos olhares de ódio que os visavam, prometendo um resultado diferente no próximo ataque. Os conscritos continuaram a apupar o inimigo até que por fim o seu ânimo amorteceu e começaram a levar os feridos para a enfermaria e os mortos para as cavas, tal como Aewyre ordenara.

 

Quantos? perguntou o guerreiro.

 

Quantos quê?

 

Homens. Quantos morreram?

 

Não sei, manda alguém contar. Também há os feridos, não temos ainda como saber quantos deles é que podem continuar a combater. E outra coisa: apesar de os termos repelido, isto correu bastante mal.

 

- É certo que estes conscritos não passam de uns bandalhos indisciplinados, mas a forma como os drahregs conseguiram subir às muralhas... se isso tornar a acontecer, as coisas podem ficar muito feias. Como foi do outro lado?

 

Os drahregs não chegaram a subir. Foram destroçados pelos arcos dos sirulianos. Uns ogroblins fizeram umas rachas no portão, mas nada de maior. Matámos bastantes ulkekhlens.

 

Hmm... reflectiu Worick, coçando o queixo barbudo. Se calhar é melhor trocarmos de posição, nós os dois.

 

Aewyre fitou o thuragar.

 

Porquê?

 

As coisas parecem ter corrido bem na tua parte da muralha, segundo o que dizes. Aqui não foi assim tão bom, e apesar de toda a bazófia, os homens ficaram com a confiança um bocado abalada, enquanto na barbacã ela deve estar alta. A tua presença e a da Ancalach podem ser importantes para o moral aqui. Além disso, aqui é tudo à cachaporrada com algumas bruxarias do mago à mistura, tal como viste; não precisas de ser nenhum génio militar para aguentar a muralha.

 

O guerreiro ponderou os argumentos, e não viu neles qualquer falha.

 

Está bem. E agora, o que fazemos?

 

Esperamos. Tratamos dos feridos. Contamos os mortos. Vigiamos enumerou o thuragar, virando as costas às ameias e desferindo um pontapé na cabeça frouxa de um drahreg. Eles vão aprontar o ataque para amanhã, mas isso não quer dizer que possamos dormir descansados. Destaca patrulhas pelas muralhas, porque aqueles ulkekhlens podem bem subi-las durante a noite. E deixa uns quantos homens na sala dos mecanismos do rastrilho da barbacã com as portas trancadas. Também...

 

Worick! arquejou o guerreiro, agarrando-o pelo ombro e puxando-o para trás. Eles estão a voltar!

 

De facto, fileiras de drahregs de escudos empunhados avançavam lentamente, e embora mantivessem as armas embainhadas, causaram o pânico nas muralhas.

 

Vai haver outro âmago! gritou um conscrito em Leochlan, frechando um arco.

 

Calma! Calma! Calma! berrou Worick, levantando os braços. Não molhem as ceroulas, eles não vão atacar! Estão a ouvir? Eles não vão atacar, suas meninas!

 

Então vão fazer o quê? questionou Aewyre de Ancalach empunhada.

 

Recolher os corpos.

 

O guerreiro virou a cara para o thuragar, perplexo. Drahregs, a recolherem os seus mortos?

 

Mas Worick acertara, pois embora mantivessem os escudos erguidos, os drahregs limitaram-se a arrastar e a levar os cadáveres às costas. Os conscritos acalmaram, suspirando de alívio, e limitaram-se a observar, surpresos.

 

O quê? exclamou Aewyre, incrédulo.

 

Para quê essa surpresa? admirou-se Worick. Estão a tratar do jantar.

 

A compreensão de Aewyre soltou-lhe o queixo, que descaiu.

 

Bom proveito! berrou o thuragar com a mão ao lado da boca. Que vos caiam muito bem, porque amanhã podem ser vocês a ir para a panela! O thuragar riu da sua própria piada, Se é que eles usam panelas...

 

Ao fim do dia, a enfermaria improvisada era o lugar mais activo do Esporão. Slayra, Lhiannah, Taislin e os conscritos que os ajudavam não tinham mãos a medir com o número de feridos graves e ligeiros, cinquenta e um no seu total. Muitos precisavam apenas de suturas e limpeza das feridas, alguns seriam incapazes de combater no dia seguinte, outros ficariam incapacitados, e um certo número de infelizes não tardariam muito a juntar-se aos trinta e quatro que haviam morrido no embate, e o máximo que podia ser feito por eles era aliviar-lhes o sofrimento. Havia fileiras de homens gemebundos deitados nos camastralhos ao longo das paredes, contorcendo-se e vagindo de dor, delirantes com febre, alguns com as calças sujas pelo medo e pela necessidade. Os conscritos ajudavam-nos como podiam, servindo-lhes água e colando-lhes toalhas molhadas às testas ferventes, mas pouco mais podiam fazer além disso, pois não dispunham de ervas ou vinho para lhes aplacar as dores e as infecções. Moscas haviam aparecido do nada e pairavam sobre os feridos e moribundos, zumbindo em faminta antecipação e deleitando-se com os insalubres odores de feridas infectadas.

 

Slayra começava a sentir a cabeça andar à roda. Amputara uma mão pendente do pulso, arrancara pelo menos quatro pontas de flechas com fórceps, empurrara dúzias de outras para fora da carne de homens feridos, e cauterizara tantos ferimentos que o cheiro a carne e pêlos queimados ainda pairava no ar. Os gemidos, os odores doentios, o calor dentro do recinto e o incessante bulício começavam a deixá-la enjoada. Alguém lhe deu um encontrão no ombro ao passar por ela, mas Slayra não lhe deu importância e deixou-se ficar de olhos fechados a inspirar fundo, agarrando o ventre e tentando impedir o seu estômago de se rebelar uma vez mais...

 

Não! ouviu Lhiannah gritar, e de imediato abriu os olhos, olhando em redor.

 

A arinnir corria na direcção de dois conscritos, um dos quais acamado e o outro ajoelhado por cima deste. O indivíduo deitado estava de tronco nu e com o abdómen cingido por ligaduras brancas manchadas de sangue. Fora ferido por uma ponta de lança na barriga, que lhe furara os intestinos e lhe roubara todas as esperanças de vida. O outro tinha uma faca sangrenta na mão, e foi só então que a eahanoir reparou que a garganta do ferido estava aberta, tingindo a almofada e a palha em redor de vermelho.

 

Oh não... disse, apressando-se na direcção dos dois, que Lhiannah bruscamente separou, tentando em vão tapar a ferida aberta na garganta do moribundo com uma toalha.

 

Infeliz, o que é que fizeste? perguntou Slayra exasperadamente, ajoelhando-se diante do moribundo com as mãos erguidas, sem saber o que fazer com elas. O ferido soltou um derradeiro gemido chiante, revirando os olhos e parando de se mexer, deixando a cabeça descair na almofada ensopada de sangue.

 

Ele estava a sofrer; ia morrer da axe escusou-se o conscrito com a faca sangrenta. Não o escochei. Leni a sua dor.

 

O quê? Slayra não percebia o que o homem estava a dizer, e sentiu o sangue retumbar-lhe nas têmporas com a frustração. Então e aquele, não o queres matar? E aquele, por que não lhe cortas também a garganta? Ou a todos, já agora? Mas assegura-te de que os outros conseguem ver, para dormirem descansados esta noite! Idiota!

 

O homem fitava-a com indiferença, sem qualquer arrependimento patente na sua face. A vontade de Slayra era esmurrá-lo na laringe para ver se ele também gostava, mas outra cedo se lhe sobrepôs e forçou a eahanoir a virar-lhe as costas e a correr para as escadas.

 

Slayra! gritou Lhiannah atrás da eahanoir, sem que esta se detivesse.

 

A eahanna negra desapareceu nas escadas em espiral, correndo para o andar superior e parando defronte de uma estreita janela, onde se deixou ficar a respirar fundo o ar fresco que dela provinha. Não soube dizer quanto tempo passou, mas Lhiannah acabou por surgir das escadas, deparando com a eahanoir no corredor, vendo-a de cabeça baixa com os braços apoiados numa estreita janela a respirar pesadamente. A luz avermelhada do sol poente raiava da apertada abertura, iluminando o vulto negro de Slayra e recortando a sua palpitante sombra contra a parede.

 

Slayra...? A eahanoir esticou o braço com a mão aberta, respirando fundo. Lhiannah deu-lhe tempo para se recuperar e esperou até que a eahanna se endireitasse antes de se aproximar mais. Estás bem?

 

Melhor do que aquele pobre desgraçado...

 

Pois... mas estás bem?

 

Nem por isso, não. A minha boca sabe a moedas, ando sempre com a bexiga cheia, o meu esterno arde e tenho o frequente prazer de provar as refeições mais do que uma vez, se é que me entendes...

 

Lhiannah cruzou os braços e admirou-se por estar sozinha a falar com a eahanoir, genuinamente preocupada com ela. Muito mudara entre as duas desde o reencontro em Val-Oryth...

 

À parte disso...?

 

Vou sobreviver. Não sei por que fiquei assim tão transtornada... não faças essa cara; eu já vi bem pior. Mas houve algo que... não sei, ter de tratar de todos aqueles moribundos com os meios que nos deram... o Quenestil lá fora nas muralhas... e depois tenho andado com um feitio... vê lá tu, ainda hoje desatei a chorar quando ouvi um conscrito a rezar a Gorfanna para que o seu campo tivesse uma boa colheita, de modo a que a sua mulher e filhos não passassem fome se lhe acontecesse alguma coisa, ou algo parecido...

 

Lhiannah nutou compreensivamente com a cabeça, e Slayra olhou para fora da janela, abrilhantando os claros olhos azuis com a luz do sol poente.

 

Slayra... pigarreou Lhiannah. Se não for demasiado indiscreto... porquê um bebé? Porquê agora?

 

A eahanoir olhou de soslaio para a arinnir, devolvendo de seguida a atenção para o pôr do sol. Tanto ela como Quenestil haviam resumido sucintamente a sua travessia aos companheiros, pois além da morte de Babaki pouco mais lhes importara.

 

Se não queres responder...

 

Depois de o Babaki ter morrido suspirou a eahanoir, andámos umas semanas pelas florestas da Latvonia e apanhámos um barco para Tanarch numa vila. Eu fui atacada por um marinheiro numa noite, e o Quenestil tentou ajudar-me, mas foi atirado borda fora. Mergulhei atrás dele e andámos à deriva, até sermos encontrados por um druida azul com uma jangada.

 

Lhiannah inclinou a interessada cabeça, ajustando os braços cruzados debaixo do peito e encostando o ombro à parede.

 

Os dias que passámos ali... sabíamos que tão cedo não se iriam repetir. Depois ele disse-me umas coisas... sabes como é o Quenestil, todo atabalhoado quando tem de falar daquilo que sente... e eu dei comigo a pensar. Tinha perdido o Babaki, e podia bem perdê-lo a ele também; estávamos a ir para Asmodeon, afinal de contas. Se o pior acontecesse, queria ao menos ter algo dele, algo mais do que uma recordação. Queria parte dele em mim, queria um filho dele. esfregou o ventre distraídamente e virou-se para Lhiannah. é por isso que agora estou assim. O que achaste? Uma história piegas, não? Mas foi o que aconteceu.

 

Bem... a arinnir. piegas, mas... não é bem o que eu teria esperado de ti.

 

Slayra ergueu uma fina sobrancelha.

 

Mas também... nunca teria esperado estar aqui a falar contigo, ou ter chorado pelo Babaki abraçada a ti, ou ter-te a consolar-me quando eu estava acamada no templo... ou sequer partilhar uma banheira contigo e esfregar-te as costas, quando alguns meses atrás o mais certo era ter tentado afogar-te.

 

As duas trocaram sorrisos e deram consigo a abraçarem-se uma à outra. Quando se afastaram, Lhiannah olhou para o ventre ligeiramente saliente da eahanoir e deixou as mãos a escassa e hesitante distância dele.

 

Posso...? fez que sim com a cabeça, e a princesa passou-lhe as palmas pela barriga, rindo sem saber ao certo porquê.

 

Qual é... qual é a sensação?

 

À parte dos enjoos, das idas à latrina e do resto? É maravilhoso afirmou a eahanoir. uma sensação única, que nem consigo descrever bem. Faz-te sentir... não sei... estás a criar vida dentro de ti... é difícil explicar. Além disso, já me tinha esquecido de como era viver sem sangrar. Que alívio!

 

Sangrar...?

 

Sim, mulher. O choro lunar?

 

Ah, sim. Pois... ao menos isso.

 

- É um pesadelo durante as viagens. Como é que nunca te queixavas? Mas também, a única coisa da qual te queixavas comigo até há bem pouco tempo era da minha presença.

 

As duas trocaram sorrisos, e Slayra inspirou fundo. Bom, vamos voltar? Como é que aquilo ficou?

 

Ficaram um bocado agitados durante algum tempo, mas acabaram por acalmar. Mandei o idiota atirar o corpo para o rio e saltar ele também. O Taislin ficou a tratar dos outros.

 

É verdade lembrou-se a eahanoir enquanto se dirigiam para as escadas, quantos morreram? Uns trinta?

 

Sim, foi o que disseram; trinta mortos e cinquenta feridos; isso, e que o inimigo tinha morrido às centenas no ataque.

 

E os... rapazes?

 

Ninguém me disse nada, mas pelo que percebi, parece que nenhum deles ficou ferido. Contaram-me que o Aewyre ajudou o Quenestil a aguentar a barbacã, e que de seguida foi acudir o Worick no vértice.

 

O Quenestil disse que ainda passava por cá hoje, mas já sabes como são os homens e as promessas, não é? Hmm? Lhiannah?

 

O quê? Oh, sim. Homens e promessas. Pois.

 

Slayra franziu as desconfiadas sobrancelhas enquanto desciam as escadas, notando que a arinnir ficara absorta nalgum pensamento.

 

Tu e o Aewyre... parecem estar a entender-se melhor... arriscou para ver qual a reacção de Lhiannah.

 

Melhor? fungou a princesa. Também eu pensava. ”Mas será que estes dois nunca mais se vão deixar desta dança?”

 

admirou-se Slayra. ”Eu e o Quenestil é que devíamos ser assim...”

 

Contudo, absteve-se de fazer qualquer tipo de comentário e continuou a descer as escadas.

 

Queres falar disso?

 

Não.

 

Está bem desistiu a eahanoir. Podia ser que o Quenestil soubesse alguma coisa acerca do que se passara entre os dois durante a separação do grupo. Mas onde estava o desgraçado do eahan?

 

Aewyre acordou de sobressalto com o soar da trompa nas muralhas. Adormecera sentado no chão de costas para a parede, e nem sequer tirara a armadura, o que constatou dolorosamente ao mexer o primeiro dos seus ressentidos músculos. Bateu no elmo ao seu lado com um movimento involuntário e fê-lo ressoar pelo chão, tentando de seguida apanhá-lo e falhando na tentativa. À sua volta os ensonados conscritos levantavam-se atabalhoadamente, afoitados pelo mugido da trompa mas ainda com um pé em Aemer-Anoth e o outro nos sonhos. Aewyre pegou no elmo e levantou-se de costas apoiadas na parede, assegurando-se de que Ancalach se encontrava embainhada.

 

Para as muralhas! tartameleante. as muralhas!

 

Fora uma noite mal dormida para todos, não só para os que haviam sido destacados para os turnos de vigia. O som de madeira a ser cortada, serrada e martelada fizera-se ouvir durante a noite inteira no exterior da bastilha, roubando o sono a quem estivera instalado a nascente das muralhas. Além disso, houvera quatro sorrateiras incursões de ulkekhlens, o que obrigara os defensores a uma vigia atenta das muralhas. Aewyre julgava ter ouvido dizer que um homem chegara mesmo a ser atacado por um enquanto se encontrava na mais vulnerável das posições numa latrina, mas talvez não tivesse passado de um sonho; ou melhor, um pesadelo. Assentou o elmo na cabeça enquanto subia apressadamente as escadas em espiral para o topo da barbacã à frente dos defensores, tentando não pensar muito nos horrores que o dia decerto lhe guardava. Quando chegou ao cimo da escadaria, deparou com Worick a berrar indicações e a empurrar conscritos para as suas respectivas posições enquanto Quenestil preparava os arqueiros ao longo das ameias. Alguns homens carregavam ganchos e compridas cordas, o que o jovem de imediato estranhou. A primeira coisa que lhe ocorreu, contudo, foi o quão à vontade o thuragar estava a dar ordens, apesar da sua recusa em assumir o comando, sendo a segunda o quão claro e brilhante o céu estava tão cedo de manhã, pontilhado apenas por alguns cirro-cúmulos, prometendo mais um dia quente. Tanarch e Sirulia estavam a roubar-lhe a noção de tempo, que naquele momento não tinha em suficiente abundância para gastar em tais considerações.

 

Worick? a atenção ao thuragar.

 

O quê? Aewyre? Vai já para o vértice, pedras te partam! Worick com urgência. vão cair-nos em cima daqui a nada!

 

Para que é que são as cordas?

 

Para a torre! Vá, não faças perguntas, vai lá! E não te esqueças de usar as medas, ouviste?

 

Torre...? só então que o guerreiro viu a periclitante torre de cerco que fora erguida defronte da muralha, por cima de um pavimento de toros que chegavam até ao carreiro que levava à barbacã. Então fora essa a razão do incessante ruído durante a noite...

 

Era uma estrutura imensa e imponente, embora se notasse claramente que fora construída à pressa. Boa parte da construção era sustida por cordas e não por pregos, e toda ela rangia assustadoramente a cada movimento, levando os conscritos a questionarem-se acerca da ameaça que realmente representava. Tinha uma improvisada ponte levadiça erguida no topo, e sua fronte estava coberta de peles húmidas; uma precaução desnecessária, pois os defensores não dispunham de flechas incendiárias ou de qualquer material inflamável para usar em projécteis. Ainda assim, o simples facto de terem terminado a estrutura numa única noite era um claro indício da tenacidade e determinação dos drahregs.

 

Mas de que é que estás à espera? Worick. a mexer, mas que raio!

 

De facto, as fileiras do exército inimigo agitavam-se, e pareciam prontas a investir a qualquer instante. Drahregs urravam, ogroblins bramiam, ulkekhlens berravam, todos numa atemorizante cacofonia que fazia tremer o mais resoluto dos conscritos. Nas muralhas da fortaleza já se viam as imotas figuras dos sirulianos a contemplarem os sitiantes como gárgulas vigilantes com as pontas dos seus arcos a sobressaírem dos merlões.

 

”Desgraçados...”, pensou Aewyre enojado, pondo-se a caminho da torre flanqueante. ”Se estivessem aqui connosco, destroçávamos estes malditos com um mínimo de perdas tanto para nós como para eles, mas preferem ver-nos sangrar até à morte e levar connosco tantos bichos quantos conseguirmos...”

 

Não conseguia acreditar que fossem estes os sirulianos das histórias, os alegados defensores de Allaryia. Podia compreender os eahan, que eram verdadeiramente poucos e que o próprio Aewyre não sabia se aceitaria ou não a sua ajuda, pois não conseguia deixar de os ver como uma raridade que Allaryia não se podia dar ao luxo de perder...

 

”Mas as famílias destes pobres desgraçados se calhar também não se podem dar ao luxo de perder um filho, ou um marido...”, pensou o guerreiro, distribuindo palmadas e palavras de apoio pelos defensores enquanto se dirigia ao vértice.

 

Entrou na torre e atravessou rapidamente o corredor que levava ao outro lado, mas antes que saísse, ouviu um ribombante urro anunciar o início do assalto.

 

Maldição! galgando o espaço que faltava percorrer e gritando para anunciar a sua chegada à muralha coberta de nervosos defensores, que pareceram aliviados com a sua presença.

 

Os manteletes drahregs já rolavam, empurrados pelos uivantes arqueiros negros, precedidos por ogroblins com as possantes esferas acorrentadas, e os ulkekhlens seguiam aos calcanhares de ambos, esperando prudentemente que os defensores engajassem primeiro os resguardados drahregs. A primeira saraivada de setas das muralhas não tardou, com Quenestil a ordenar com exíguo sucesso aos seus arqueiros que disparassem em arco por cima dos manteletes. Os sirulianos aguardaram, pois as suas salvas não serviam para molestar o adversário mas sim para o destroçar na altura certa. Os drahregs pararam e começaram a abrir fogo detrás do abrigo dos seus manteletes, e os ogroblins desprovidos de escudos principiaram a oscilar as pesadas esferas de ferro. Debaixo da cobertura do fogo amigo, os ulkekhlens berraram então roucamente e desataram a cavalgar na direcção das muralhas quando as setas e esferas começaram a embater contra estas. Os conscritos responderam à altura e abateram inúmeros pequenos humanóides pela sua ousadia com uma mortal salva, o que contudo não os deteve, nem a segunda, nem a terceira, a partir da qual as saraivadas passaram a ser irregulares devido à indisciplina dos conscritos, que ou se atrapalhavam, ou começavam a atrasar-se. Um segundo grupo de ogroblins corria no encalço dos ulkekhlens, carregando enormes escadas, enquanto o primeiro se preparava para tornar a arremessar as pesadas esferas, que atingiam os seus e as muralhas com igual e arrasadora frequência. Uma chegou mesmo a arrancar a cabeça de um merlão, projectando dois conscritos pelo pátio adentro.

 

Espadas, em frente! Aewyre, baixando a babeira do elmo em preparação para o iminente embate, pois os ulkekhlens já haviam começado a trepar a muralha.

 

Os arqueiros recuaram e homens armados de escudos erguidos e espadas acocharam-se nas ameias de armas em riste, aguardando a chegada dos pequenos humanóides enquanto os conscritos armados de arcos continuavam a disparar atrás de si, alternando com o cego arremesso de pedras. Era o máximo de disciplina que o guerreiro esperava poder incutir aos defensores, mas não podia ser pior do que o desempenho dos homens no primeiro dia do cerco, no qual a cortina sul da muralha quase fora perdida. As primeiras faíscas chamejaram à sua esquerda quando Allumno começou a despedir feitiços ofensivos do topo da torre flanqueante, da qual manava uma constante chuva de setas. Drahregs urraram e começaram a correr assim que os ogroblins chegaram a determinada distância das muralhas com as suas escadas com pontas de ferro recurvas. O assalto começara, os expectantes músculos dos defensores estavam tensos como arames prestes a estalar, determinados a não cederem uma única pedra das ameias, e a única coisa na qual Aewyre conseguia pensar era que devia ter urinado logo ao acordar, e para a fossa com a trompa.

 

A primeira cabeça ulkekhlen a surgir nas ameias foi varada de um lado ao outro pela ponta romba de uma espada, a do segundo foi escachada por um exaltado altabaixo, mas o terceiro foi suficientemente rápido para evadir um golpe e conseguir esgueirar-se por entre dois merlões, sendo de seguida pontapeado contra a pedra. Aewyre cortou o braço ao quarto, o quinto mordeu um escudo antes de ser decapitado pela cunha de um machado, e foi só a partir do sexto que os conscritos se viram envolvidos num feroz combate com o inimigo que saltava de todas as ameias. De repente, Aewyre só ouvia rosnidos, guinchos, berros, grunhidos, aço a clangorar e silvar e cortar, tudo abafado pelo seu elmo. Viu o corpo cinzento de um ulkekhlen saltar para cima de alguém pela limitada visão periférica da sua fresta, mas a sua atenção foi dividida entre um que se dependurou do pescoço de um defensor, abocanhando-lhe o nariz, e outro que mordia a perna de um conscrito que mantinha outro à distância com o escudo. Com um grito, Aewyre pisoteou o torso do humanóide que mordia a perna e espedaçou a anca do que estava pendurado com um revés de Ancalach. Não teve sequer tempo para ver se o defensor estava bem ou para ajudar o outro, pois um ulkekhlen agarrou-se-lhe de seguida ao braço esquerdo e mordeu-lhe a mão enluvada com força. Os dentes rilharam no metal da manopla e o couro era robusto, mas ainda assim o guerreiro pensou sentir pontas afiadas picarem-lhe a carne. Grunhiu e levou um joelho ao chão, trazendo o cume do alongado crânio da criatura com ímpeto contra as pedras do adarve, com as quais colidiu com um enojante estalo. Aewyre tentou levantar-se, mas um ulkekhlen aterrou-lhe nos ombros e outro agarrou-se ao seu braço direito, ambos mordendo e arranhando em vão. Ainda assim, arriscava-se a ficar soterrado debaixo de uma massa das desgraçadas criaturas se permanecesse em tal posição, mas o ulkekhlen às suas costas deu um grito e um estremeção, e o guerreiro deixou de sentir o seu peso. Aliviado, estocou em frente com o braço do qual praticamente pendia o outro ulkekhlen, enfiando a ponta de Ancalach na barriga de um terceiro.

 

Arqueiros, às armas! esmurrando o humanóide que ainda estava agarrado ao seu braço, e os conscritos que ainda empunhavam arcos largaram-nos e aprestaram as espadas e os machados para se juntarem à peleja. A primeira linha aguentara bem o assalto, mas o guerreiro queria tirar os ulkekhlens da muralha antes que os drahregs chegassem, e nesse preciso momento as pontas recurvas da primeira escada engancharam-se no cunhal de uma ameia.

 

Drahregs! um conscrito, levando a espada abaixo com ambas as mãos e fendendo o crânio de um adversário.

 

Drahregs! outro em aflição. Era óbvio que ninguém desejava que a brutal investida do dia anterior se repetisse, e os ulkekhlens foram vítimas de uma alentosa pressão que ameaçava empurrá-los a todos pelas muralhas abaixo.

 

Uma flecha resvalou na espaldeira de Aewyre, outra enterrou-se no peito acolchoado da armadura de pano de um defensor, distraindo-o o suficiente para um ulkekhlen lhe rilhar a canela com os dentes.

 

Lanças! o jovem. atrás, peguem nas lanças!

 

Não pôde olhar para trás para ver se a sua ordem fora cumprida, nem tinha como saber se fora sequer ouvido devido à babeira que lhe resguardava a face abaixo dos olhos. Limitou-se a pressionar, a estocar em frente e a agredir com o pomo e os copos de Ancalach e com o seu próprio punho, encurralando as pequenas feras e esmagando-as contra as ameias até as forçar a baterem em retirada. A implacável pressão estava a funcionar, até os primeiros drahregs aparecerem, ferozes e de farpões empunhados, que logo arrojaram contra os defensores. Muitos caíram feridos pela salva de arremessos, mas os lanceiros não tardaram a avançar, atacando por trás da primeira linha com as compridas hastes, estocando os negros humanóides no peito e na garganta e empurrando-os para fora das ameias que tentavam transpor. Porém, os drahregs não tardaram a afastar e podar as lanças com as pesadas lâminas das suas falcatas, e o caminho ficou uma vez mais aberto. Aewyre urrou, desferindo um pontapé no queixo de um teimoso ulkekhlen e cortando pelo pulso o braço com o qual um drahreg se segurava a um merlão, causando a sua queda. Encalhou a parte superior da lâmina no pescoço de outro e libertou-a com um sacão que trouxe um jorro vermelho atrás de si. Um machado desceu ao seu lado e enterrou-se violentamente no escudo de outro drahreg, desequilibrando-o e derrubando-o da escada.

 

Eles não vão avançar! declarou o jovem. Não vão avançar!

 

E de facto os drahregs estavam a ter sérios problemas em assentarem os pés na muralha devido à implacavelmente obstinada pressão dos defensores. A imagem da cruenta Ancalach a ceifar vida após vida nas ameias, empunhada pelo filho de Aezrel Thoryn no seu imponente arnês siruliano inflamava e galvanizava os conscritos, que combatiam com uma ferocidade equiparável à do Primeiro Pecado. Os ulkekhlens já fugiam, descendo atabalhoadamente pelo lado interior das escadas erguidas pelos ogroblins, e a arremetida dos drahregs começava a vacilar.

 

Eles

acuam! regozijou-se um defensor que vergastava os adversários com a lança cortada. Os perros acuam!

 

Aewyre não se permitiu a mesma alegria, pois vislumbrou as fileiras de drahregs que corriam para as escadas para dar continuidade ao ataque, que desta vez não seria tão facilmente repelido.

 

Continuem! bradou o guerreiro. Ainda não acabou! Vêm aí mais!

 

O refolgo dos surrados drahregs veio na forma de uma concentrada saraivada de flechas e esferas de ferro inteiramente direccionadas às muralhas, ignorando o torreão. As setas abateram-se indiscriminadamente sobre todos os que combatiam nas ameias, e as esferas causaram mais abalos do que danos, mas foi o suficiente para permitir aos atacantes recobrarem o fôlego e retomarem a ofensiva. Os ulkekhlens foram ameaçados e obrigados a tornar a trepar as muralhas pelos drahregs em baixo, que de seguida começaram a subir as escadas para substituir os caídos. Várias fateixas encalharam nas ameias, mas ninguém lhes deu mais atenção do que às pontas de ferro das escadas, ocupados como estavam a impedir os atacantes de ganharem terreno. Aewyre fendeu a cabeça de um drahreg, que caiu morto de barriga sobre a ameia, e o que se lhe seguiu estocou com extraordinária rapidez com uma lança, cuja ponta resvalou pela sua babeira acima, encalhado na borda dobrada para fora, que a impediu de entrar pela viseira adentro e furar um olho ao guerreiro. Incapaz de se aperceber ou dar valor à sorte que tivera, o jovem trouxe Ancalach acima com ambas as mãos e deslizou a lâmina debaixo da axila do adversário, gritando ao desferir o golpe:

 

Continuem! Não parem!

 

De repente, um aterrador bramido fez-se ouvir à esquerda e todos se viraram para ver um enorme ogroblin de boca escancarada e vesiculoso focinho enfunado, agarrado a um merlão com um braço e a derribar quatro conscritos e três drahregs com uma varredela da clava que empunhava a meio do comprimento para melhor a manejar no espaço apertado. A criatura subira por uma das cordas ancoradas, e agora espalhava o caos e o medo onde antes haviam estado defensores determinados. Aewyre raspou a cara de um drahreg com uma oscilação da ponta de Ancalach, cortando-lhe o nariz e o lábio superior, e investiu contra o monstro antes que este destroçasse a fileira dos conscritos. O ogroblin golpeava com o braço direito, que acabara de levar atrás no momento em que Aewyre chegou. Quando desferiu a nova varredela, o guerreiro penetrou-lhe pelo movimento adentro pela esquerda e interceptou-lhe o golpe, cortando-lhe a artéria no interior do braço. A criatura bramiu de dor, deixando a clava cair, e Aewyre grunhiu ruidosamente ao trazer Ancalach pelo percurso inverso, decepando-lhe a mão que o sustia às ameias. O monstro soltou um bramido ainda mais fragoroso e caiu para a sua estrondosa morte.

 

Aewyre gritou com o coração a bater ao pulso da batalha e ergueu a Espada dos Reis, deixando o sol ruborizar a sangrenta lâmina para que todos a vissem.

 

Ancalach! Morte à Sombra!

 

Morte à Sombra! os conscritos de volta, abatendo-se sobre os invasores.

 

Quenestil urrou ao enterrar o facalhão na barriga de um drahreg com um farpão levado atrás, e o humanóide escarrinhou-lhe sangue para cima do ombro. Grunhindo, o shura empurrou-o com a mão livre e arrancou-lhe a lâmina do ventre a tempo de aparar a espadada do que surgiu no lugar do seu companheiro morto. Aos seus lados ouvia os grunhidos e ofegos dos conscritos, que estocavam, lanhavam e varavam, apresentando uma fronte de escudos, espadas, machados e pontas de lança. Os mortos já eram tantos que os pés de defensores e atacantes não mais pisavam as pedras do adarve, mas sim os corpos dos caídos, amigos e inimigos. O calor humano que emanava dos apertados corpos em furioso movimento era sufocante, e o sol quente acalentava o sangue derramado nas muralhas, tornando o seu férreo odor ainda mais pungente. O arco e a aljava à cintura atrapalhavam-lhe os movimentos, mas sabia que se os largasse, nunca mais os veria. O eahan desviou o segundo golpe de espada, inverteu o aperto na arma e deslizou a lâmina pela garganta do adversário, deixando-o tombar gorgolejante em frente. Já estava rouco de tanto gritar, embora os brados dos conscritos que o ladeavam tornassem difícil dizer se estava ou não a berrar, mas a cada novo golpe Quenestil tornava a forçar a garganta, tal como o fez quando se baixou para evitar uma cutilada e de seguida enfiou a ponta do facalhão na axila do quinto drahreg. Ou talvez fosse o sexto desde que começara a contar. Talvez mesmo o sétimo. A verdade é que já não sabia quantos havia morto desde que a investida começara. Não podia estar ali há muito tempo sol pouco ou nada se mexera parecia já ter passado uma eternidade de morte, sangue e gritos. Não conseguia ver o portão da barbacã, mas sabia que os ogroblins se encontravam aos pés da muralha, desbastando a portada de madeira com as suas imensas armas. Não era preocupante, pois ainda teriam de contender com o rastrilho de ferro, mas estavam numa posição vulnerável que devia ser explorada. Quenestil deu lugar a um conscrito, olhou para trás e viu que os homens que empunhavam a vara do caldeirão de água quente aguardavam impacientemente que alguém lhes abrisse caminho para despejarem morte escaldante sobre o inimigo. Worick estava algures no meio da peleja, mas o único sinal do thuragar eram os seus desmedidos urros de guerra, pelo que o shura decidiu tomar a iniciativa.

 

Abram caminho! indicando com o cruento facalhão o contestado lanço de merlões sobre o portão da barbacã. Os ogroblins que se encontravam em baixo haviam erguido escadas por cima das suas cabeças, permitindo a passagem a drahregs e resguardando-se a si mesmos. caminho para o caldeirão!

 

Os defensores que se puderam dar ao luxo de seguir a ordem do eahan fizeram-no, virando a sua atenção e as suas espadas e lanças para os drahregs que estorvavam as ameias sobre a barbacã.

 

Caldeirão! Quenestil, e os homens ergueram o fervente receptáculo de ferro chamuscado, aprestando-se para correrem para as ameias. Os drahregs foram surpresos pela súbita acometida dos defensores e muitos caíram das escadas, mas os que subiram em outros pontos da muralha compensaram a perda. Saiam da frente!

 

Os conscritos do caldeirão gritaram em uníssono e marcharam apressadamente em frente, derramando chapejantes quantidades de água a ferver enquanto o faziam. Os únicos homens que permaneceram nas ameias sobre o portão foram os lanceiros que tentavam manter o inimigo à distância até o caldeirão estar devidamente assente entre dois merlões. Quenestil caminhava ao lado dos conscritos e afoitava-os, acometido de uma primordial e cruel ansiedade de ver a fervente água ser vertida e ouvir os urros de agonia do inimigo. Por sua vez, os defensores encarniçavam-se mutuamente, prometendo uma morte escaldante aos sitiantes e regozijando-se com tal prospecto. Por essas mesmas razões, a surpresa dos defensores foi grande e aterradora quando o homem à dianteira da vara do caldeirão tombou com uma flecha perdida espetada no pescoço e o que ia atrás nele tropeçou. Todos soltaram gritos de aviso quando o caldeirão caiu ao chão, entornando a fumegante água a ferver no adarve, mas muitos foram apanhados desprevenidos quando os seus pés de repente arderam, e os feridos e inconscientes empilhados nas ameias soltaram uivos de desperta dor quando a fervente torrente se abateu sobre eles. O pânico instalou-se em redor do caldeirão entornado, com homens a saltarem de pés queimados, a escorregarem e a escaldarem as mãos e a criarem espaços abertos na muralha ao desviarem-se da água.

 

Mas o que é que se está a passar? Worick, fazendo o olho de um drahreg saltar da órbita com uma violenta martelada na cabeça. que é que está tudo a fazer no... pedras me partam, ajudem-nos ali!

 

O thuragar viu as aberturas causadas pelo incidente e os drahregs que por elas estavam a entrar. Não sabia o que acabara de acontecer, mas também não tardou a fazer a ligação entre o caldeirão caído e a água fumegante em redor de vários corpos esperneantes no chão.

 

Não, esperem! e estendeu o martelo a seu lado a tempo de impedir alguns conscritos de correrem cegamente contra os invasores que trepavam pelas ameias sem qualquer oposição. Os drahregs saltaram, uivando em antecipação, e foram os primeiros a escorregar assim que puseram os pés no adarve.

 

Os defensores avançaram cautelosamente e abateram-se sobre os inimigos caídos, alguns derrapando ao fazê-lo, e Worick ficou para trás para continuar a orientar a defesa, exemplificando com a cabeça do seu martelo e a de outro desventurado drahreg. Apesar do contratempo dos defensores, os sitiantes estavam a ter dificuldades em assentarem os pés na muralha. O grosso dos ulkekhlens já fora repelido e poucos dos drahregs que a custo chegavam ao fim das escadas conseguiam transpor as ameias, pois além dos determinados defensores ainda tinham de se haver com o devastador fogo dos sirulianos no flanco. Os ogroblins em baixo grunhiam e bramiam enquanto estraçoavam o portão com bordoadas, machadadas e cutiladas, mas poucos lhes davam atenção. As baixas do inimigo amontoavam-se no campo, na base da muralha e sobre as ameias, mas ainda assim a hoste avançava como uma inexorável maré a abater-se contra um firme quebra-mar. Porém, enquanto as ondas embatiam em vão contra a bastilha, aproximava-se um vagalhão na forma da torre de cerco, arrastada por duas filas de ogroblins de escudos erguidos a puxarem grossas cordas. A vacilante torre era empurrada por drahregs e sustida por trás e pelos lados por cordas puxadas por outro grupo de ogroblins, e estava perigosamente apinhada de ulkekhlens e mais drahregs que se esforçavam por equilibrá-la por dentro.

 

Olha a torre! Worick, avistando o topo do engenho entre dois merlões ao derrubar um drahreg da ameia entre eles.

 

Eahan! Vai buscar as medas!

 

Quenestil cravou o facalhão nas costas de um estrebuchante drahreg com ambas as mãos ao ouvir o grito do thuragar e arrancou-o com um grunhido ao erguer-se para olhar em frente. A torre aproximava-se de facto, e estava na altura de fazer bom uso da gordura dos cadáveres do inimigo.

 

Continuem! Não os deixem passar! o shura, chutando a cabeça de um drahreg que se tentava levantar. digam aos outros para irem buscar as medas! Vocês, venham comigo!

 

disse a seis conscritos, que prontamente o seguiram para o lado interior do topo da barbacã, no qual estavam empilhadas medas de palha enfaixada com trapos e untadas com a gordura dos cadáveres de drahregs e ulkekhlens mortos no dia anterior.

 

As medas emanavam um nauseante odor rançoso e eram sebosas ao toque, mas ninguém hesitou em sobraçar tantas quantas conseguia debaixo dos braços e correr com elas para as ameias. Quenestil pegou numa das tochas de vigia que ainda ardiam e foi atrás dos seis homens, vendo que o combate nas ameias continuava tão acirrado como quando o deixara momentos atrás, com Worick a servir de sólido exemplo para a inflexível resistência nas muralhas, urrando e oscilando e quebrando com igual ferocidade.

 

Worick! Tenho-os aqui! o eahan, acenando em vão com a tocha, pois o thuragar estava de costas para ele. Raios, não me ouve... ponham isso no chão! Ponham-nos no chão! Vão buscar mais e distribuam-nos pela muralha! Vão!

 

Os conscritos assim fizeram e o shura juntou-se à furiosa pugna nas ameias. Uma flecha zumbiu perigosamente perto da sua cabeça, e Quenestil encolheu-se instintivamente, endireitando-se de seguida para passar com um berro entre dois conscritos e queimar a cara de um drahreg com a ponta da tocha. O humanóide urrou, levando as mãos à cara queimada, e caiu da muralha abaixo. O eahan desferiu um golpe lateral e acertou na nuca de um outro que tentava trepar um merlão, chamuscando-lhe os cabelos e fazendo-o bater com o queixo contra a pedra. Um terceiro surgiu na ameia em frente e arremessou um desajeitado farpão que passou por cima da cabeça de Quenestil, que por sua vez o empurrou com o pé na cara. Entretanto, a torre aproximava-se e dirigia-se claramente à barbacã, pronta a baixar a balanceante ponte levadiça no seu topo.

 

Worick! O que fazemos agora? o eahan, agredindo a haste de uma lança inimiga com o facalhão.

 

Ha? som de uma cabeça esborrachada distraiu o thuragar, que olhou rapidamente em redor antes de avistar o seu companheiro. Estás aí? E as medas?

 

Estão ali atrás! Quenestil, desviando-se da segunda estocada da mesma lança, cujo empunhador se escondia atrás de um merlão.

 

Então acende-os e manda-os! O que estás aqui a fazer? berrou Worick, falhando uma mão que se retirou e atingindo a pedra de uma ameia.

 

A única resposta do shura foi um grunhido ao agarrar a haste da teimosa lança com a mão da tocha, encostá-la ao cunhal de uma ameia e parti-la com o pé, feito o qual se retirou de forma cambaleante, dando lugar a um conscrito com o braço ligado. Os seis homens que destacara já haviam empilhado uma quantidade razoável de medas e corriam a buscar mais.

 

Isso! Vamos atirar estas agora! Quenestil, passando a tocha apressadamente pelas medas, que facilmente se atearam. Peguem nelas! Atirem-nas para fora da muralha!

 

Os defensores pegaram cuidadosamente nas ardentes medas e correram a atirá-las por cima das ameias, voltando atrás para repetirem o processo. Os restantes grupos ao longo da muralha perceberam o sinal e fizeram o mesmo, arrojando os fumegantes fardos para o amontoado inimigo aos pés do afloramento debaixo da muralha.

 

Isso mesmo! Worick, bloqueando uma lançada com o escudo e avistando a torre. agora! Peguem nas cordas!

 

O thuragar pegou no braço de um defensor e puxou-o para o seu lugar, baixando-se de seguida para pegar numa das muitas cordas estendidas ao longo do adarve, percorrendo-a até chegar ao gancho na sua ponta. Tomara providências ao ver a torre, e mandara alguns homens procurarem corda e ganchos, alguns dos quais foram removidos da sala de mecanismos do rastrilho da barbacã.

 

Estão a ouvir? erguendo a sua corda e entregando-a a um conscrito para exemplificar a quem o estava a ver. nelas, a torre já está perto!

 

Todos os homens que puderam ser dispensados da defesa das ameias recuaram e remexeram as cordas misturadas no chão à procura da sua, incitados pelo impaciente thuragar enquanto outros continuavam a arremessar as fumegantes medas de palha gordurosa. A torre aproximava-se, rebombando pelo chão e seguida por uma ferina fileira de alvoroçados escaramuçadores drahregs, as flechas continuavam a silvar incessantemente pelo ar, o inimigo continuava a ser morto e repelido das muralhas. A batalha corria de feição para os defensores, e estes não estavam dispostos a permitir que a maré de alguma forma se alterasse, com ou sem torre de cerco. As medas começavam a semear a confusão onde caíam, engasgando o inimigo com o seu odor rançoso, obscurecendo-lhe a vista com o fumo e queimando-o com a palha ardente enquanto a chuva de pontas de ferro continuava a cair. O caos apenas aumentou quando os ogroblins que puxavam a torre depararam com o afloramento e se aperceberam de que já não tinham mais espaço para caminhar em frente e passaram a puxar para os lados, derribando quem se lhes pusesse no caminho, passando o bruto do esforço para os drahregs que empurravam a estrutura e retardando substancialmente o seu avanço.

 

Preparem-se! Worick, medindo o progresso da torre. Um grupo de vinte defensores segurava nervosamente as cordas enquanto os seus companheiros rechaçavam os avanços dos drahregs. Quando eu disser...!

 

Quenestil e os seus conscritos continuavam a arremessar medas por cima das cabeças de quem lutava nas ameias, proferindo maldições e rogando pragas ardentes. O calor do sol e da palha a arder era abrasador e o odor quase sufocante, mas ninguém parou por um instante sequer, recusando-se a ceder o mais ínfimo passo ao inimigo. Os homens que defendiam as muralhas eram movidos pelo mais básico instinto de sobrevivência, e sabiam que esta dependia do facto de os drahregs passarem ou não das ameias, o que os incitava a uma obstinada recusa da mais racional vontade de arredar e fugir.

 

Preparem-se...! Worick a avisar, vendo o topo da torre cada vez mais próximo. atirem!

 

À ordem do thuragar todos oscilaram os ganchos das cordas e um por um arrojaram-nas na direcção da estrutura com sucesso variável. Boa parte dos ganchos prendeu-se em vigas, traves ou cordas no topo da torre, embora muitos falhassem o alvo ou caíssem de seguida sem se conseguirem enganchar em lado algum. Os que falharam os arremessos largaram as suas cordas e agarraram as dos seus mais certeiros companheiros, firmando o seu aperto nelas.

 

Puxem agora! como se a vossa vida estivesse nessas cordas! Worick, pegando também numa para dar o exemplo. O grupo de defensores ugou em uníssono e puxaram com todas as suas forças, retesando as cordas e inclinando a torre perigosamente para a frente.

 

A base da estrutura estava prestes a embater contra a vertente do carreiro que levava à barbacã, mas os ogroblins que seguravam a torre por trás sentiram que estava a ser indevidamente puxada e tentaram compensar, cada um com a força de cinco homens.

 

Mais força! Puxem com mais força, não parem! Worick os dentes, arrastando os pés pelo adarve da muralha ao sentir a torre resistir-lhes.

 

O refolgo dos conscritos veio na forma de uma destruidora saraivada dos sirulianos, cujos possantes projécteis cortaram cordas e abateram ou feriram ogroblins, desequilibrando o certame de forças que contestavam a torre para o lado dos defensores. Assim que sentiram a tracção oposta vacilar, humanos e thuragar soltaram altos grunhidos e fizeram um derradeiro esforço que os deixou quase de costas no chão. A base da torre embateu nesse momento contra o carreiro, e as cordas dos conscritos que a puxavam por cima inclinaram a estrutura para a frente, causando a sua tangente e aterradoramente lenta queda. Drahregs e ulkekhlens bramaram em pânico ao sentirem os seus estômagos subirem-lhes à boca, e houve um coro geral de consternação nas fileiras inimigas quando estas viram o seu trunfo tombar com grande estrépito contra a sólida muralha e sobre os ogroblins que tentavam destruir o portão da barbacã. Madeira estalou e quebrou, cordas desprenderam-se, ossos partiram-se, coberturas de peles rasgaram-se, corpos foram esmagados, farpas e lascas voaram, e os conscritos soltaram um grito de vitória... que rapidamente deu lugar a um de alarme quando dois dos seus e o thuragar foram arrancados da muralha pelo brusco sacão da corda que agarravam e que estivera presa a algo que se partira. Os três voaram brevemente antes de se abaterem sobre os escombros da torre que tapavam a entrada da barbacã.

 

Do seu posto elevado na torre flanqueante, Allumno viu a queda da torre e os três corpos que sobre ela caíram de seguida. A visão do thuragar arnesado a precipitar-se sobre os escombros como um pássaro abatido arregalou-lhe os olhos e reteve-lhe a respiração, arruinando o feitiço que estivera a preparar. A runa que Worick lhe dera pesou-lhe subitamente na sacola, e o mago correu para a vertente da torre virada para norte, empurrando um conscrito boquiaberto e inclinando-se sobre uma ameia na qual se apoiou com as mãos.

 

Não... deuses, não... Allumno. vez não...

 

Worick! Quenestil em desespero ao ver os pés do seu companheiro desaparecerem atrás de um merlão.

 

O eahan acotovelou o seu caminho até às ameias, derrubando conscritos e gritando que lhe saíssem da frente. Saltou para cima de uma ameia e olhou para baixo, alheio aos gritos dos defensores e às flechas que zumbiam à sua volta. A torre ruíra sobre o carreiro, cobrindo completamente a entrada da barbacã e criando sobre esta com as sobras da sua ponte levadiça uma espécie de plataforma destroçada que ainda podia ser explorada pelo inimigo. Algumas cordas pendiam frouxamente das ameias como fios da teia de uma aranha, e o que sobrava das escadas do inimigo estava desocupado, visto que quem as estivera a usar no momento da queda fora esmagado pela torre. O thuragar não estava à vista, mas, para grande aflição dos defensores, isso não impediu Quenestil de saltar das muralhas, empunhando facalhão e lança partida e gritando o nome do seu companheiro.

 

Era um longo salto, mas não para além dos limites de um filho dos montes, que aterrou de quatro membros sobre a destroçada ponte levadiça com um impacto que lhe abrasou joelhos e tornozelos. Ignorando a dor, o shura rebolou pelas tábuas da ponte e agarrou-se à borda para se estabilizar, avaliando a situação à sua volta e avistando um drahreg que se contorcia em dores, preso da bacia para baixo debaixo de uma viga. Quenestil rosnou, pegou-lhe pelos cabelos entrançados e cortou-lhe a garganta sem piedade, procurando de seguida por vestígios do thuragar. Os escombros da torre rangiam e estalavam por todo o lado, sobrepondo-se aos gemidos e vagidos dos que debaixo deles estavam soterrados, e Quenestil não soube por onde começar a procurar, optando por entrar pela primeira abertura que se lhe deparou.

 

À sua volta era um caos de vigas, barrotes, madeiros, tábuas, cordas e traves, tudo lascado, partido, rachado, vergado, rangente. O piso era traiçoeiro, membros de drahregs e ulkekhlens pendiam aleatoriamente, alguns ainda se mexiam mas nenhum mereceu a atenção de Quenestil. Deparou com outro drahreg caído, este com o braço esmagado entre dois barrotes, e acabou com o seu sofrimento com uma brusca lançada no pescoço sem sequer se deter na sua procura.

 

Worick! Estás aí? à madeira, obtendo como resposta apenas alguns rosnidos e gemidos vindos de parte incerta, nenhum dos quais parecidos com voz do seu companheiro. No exterior ouviram-se rugidos e berros do alvoroçado exército inimigo; em breve a torre encher-se-ia de drahregs e outras criaturas vis.

 

Quenestil tropeçou numa viga enquanto caminhava com apressado cuidado, bateu repetidas vezes com a cabeça e com os joelhos, e enterrou o pé num buraco, por pouco não torcendo o já ressentido tornozelo. O interior da torre destruída era variavelmente iluminado, dependendo da extensão dos estragos da parte pela qual passava, e o passo apressado do eahan propiciava-se a acidentes.

 

Worick! a gritar, sem se importar se era ou não ouvido pela hoste que o aguardava no exterior. se me estás a ouvir!

 

Ninguém respondeu, mas o shura deparou subitamente com o corpo caído do thuragar debaixo de uma viga e sobre uma série de peles, cordas e traves partidas. Correu de imediato na sua direcção e ajoelhou-se diante do seu companheiro, orando para que estivesse apenas inconsciente. Tentou ver-lhe o pulso, mas o arnês do thuragar e o gorjal de couro resguardavam-lhe o pescoço, e os pulsos estavam cobertos pelas manoplas e pelas luvas. Tinha de estar vivo. Tinha de estar. Quenestil recusava-se a sequer considerar a alternativa.

 

Aguenta-te, seu nanico rabugento e malcheiroso... o eahan, embainhando o facalhão e tenteando a viga que entalava Worick. tiro-te daqui... fazendo em vão força para a erguer. assim não. Vamos lá ver...

 

Antes que o eahan pudesse pensar noutras formas de libertar o thuragar, ouviu passos e estalos, seguidos de grunhidos e bufidos de algo ou alguém que tentava transpor um obstáculo. Desembainhou o facalhão e empunhou a meia lança que tirara ao drahreg na muralha com a mão esquerda, avistando quase de imediato a cabeça de pastosos cabelos do drahreg que acabara de subir e que também o viu, rosnando e empunhando um machado. Quenestil saltou por cima da viga, colocando-se entre Worick e o drahreg, que gritou algo para trás de si antes de atacar, provavelmente a chamar os seus companheiros. Empunhou o machado com ambas as mãos e investiu, berrando uma obscenidade em Olgur ao tentar partir o eahan em dois. Porém, o espaço era demasiado apertado e a arma do humanóide embateu contra uma trave rachada, fazendo chover lascas sobre Quenestil e praticamente travando o golpe. O shura aparou o que sobrou da força da machadada com a haste da lança e cortou os tendões do braço do adversário com um golpe do facalhão, derrubando o drahreg com um pontapé no estômago. Desembaraçou-se do adversário caído com uma cutilada na nuca antes que o segundo aparecesse, este com uma falcata sedenta de sangue. Os olhos vermelhos do drahreg inflamaram-se e o humanóide escancarou a boca ao arremeter, obrigando Quenestil a desviar-se do primeiro golpe e do rápido segundo que o impediu de efectuar um contragolpe. O seu oponente era um escaramuçador e lutava como um possesso, e o shura já conseguia ouvir os companheiros que vinham atrás, pelo que não podia perder demasiado tempo com ele. As suas costas bateram contra um barrote, e Quenestil torneou-o instintivamente antes que o adversário lhe pudesse talhar o ombro, fazendo-o embeber a arma na madeira ao invés disso. Com o barrote a separá-lo do drahreg, o eahan estendeu o braço, agarrou os cabelos do oponente e puxou a sua cara com força contra o madeiro, partindo-lhe o nariz e concutindo-lhe a cabeça com o pomo do facalhão de seguida. Dois outros drahregs surgiram antes que o escaramuçador caísse, armados de espadas e farpões, e outros tantos vinham atrás deles. Quenestil embainhou o facalhão, pousou a lança, tirou o arco e frechou-o antes que os inimigos dessem mais do que dois passos, plantando uma flecha no peito de um drahreg. Antes que o drahreg se apercebesse do perigo ou pudesse avisar os que vinham atrás, foi silenciado por uma ponta de aço na garganta. Os outros três que surgiram pouco depois foram semelhantemente abatidos pelos céleres disparos do eahan, embora um deles ainda conseguisse arremessar um farpão antes de uma seta se alojar na sua coxa, obrigando o shura a baixar-se durante um instante que bastou para que quatro drahregs surgissem do nada, trepando pelos escombros como cães famintos. Quenestil soltou duas flechas em rápida sucessão, uma das quais apenas atingiu o escudo do alvo, e então os três drahregs estavam em cima dele. O shura ainda disparou uma última flecha à queima-roupa por baixo do queixo de um inimigo, rebolando de seguida pelos dolorosos e irregulares escombros para longe do alcance dos outros dois, que o seguiram com espadadas falhadas. O eahan largou o arco e pegou no pedaço de uma viga que encontrou por acaso, usando-o para aparar um golpe e chutando o joelho do adversário, que se vergou. O outro veio pelo lado e golpeou Quenestil com um altabaixo que partiu tábuas quando o eahan rebolou para o lado oposto. Os seus pés assentaram em escombros suficientemente firmes para o shura se agachar e trazer o pedaço de viga com ímpeto para cima, atingindo o drahreg com o joelho magoado no queixo e aparando ao mesmo tempo a nova espadada do outro. A força do impacto desequilibrou ambos e tanto Quenestil como o drahreg cambalearam pelo acidentado piso, tentando recuperar a estabilidade antes do outro. O eahan tornou a desembainhar o facalhão, empunhando-o de forma reversa, e distraiu o drahreg com um arremesso do pedaço de viga, que o adversário deflectiu com a lâmina da espada, expondo-se numa posição vulnerável que o shura aproveitou, praticamente saltando em frente num desajeitado golpe que enfiou a ponta do facalhão pela coxa do drahreg adentro. O humanóide uivou e, com o adversário a seus pés, trouxe a espada cegamente abaixo, atingindo apenas madeira. Quenestil cingiu-lhe a cabeça com as pernas e puxou-lhe a cara para o chão, contra o qual colidiu com um estalo de madeira e ossos, cravando-lhe lascas e farpas na face. Ergueu-se sem demora, arrancando a lâmina do facalhão da coxa do adversário caído e defrontando os outros três que surgiram, empunhando lanças e machados, antevendo os vultos de outros tantos atrás deles. Estava mal armado para defrontar tantos e tão bem armados, mas tocou no dente de carcaju no seu colar, rosnou e investiu como um animal encurralado, jurando que não sairia dos escombros da maldita torre sem Worick. Não iria permitir a morte de mais um companheiro.

 

Saltou de lado para cima de uma trave inclinada, que cedeu assim que o shura nela se impulsionou para cima dos oponentes, e caiu sobre dois dos que empunhavam machados antes que estes pudessem trazer as armas aprestadas para a frente. Os três debateram-se no chão, rosnando, e Quenestil conseguiu enterrar a arma no peito de um antes de algo afiado lhe lacerar o braço esquerdo e se cravar na barriga do outro. O drahreg que permanecera de pé praguejou e trouxe a lança acima para um novo golpe, mas o que fora atingido no abdómen tirou o eahan de cima de si com um golpe do cabo do machado na cara enquanto o terceiro crispava os dedos no punho do facalhão cravado no seu peito. Quenestil caiu de costas, procurando cegamente por algo que servisse de arma enquanto o drahreg ferido na barriga se recusava a receber a morte e o da lança se preparava para varar o shura como a um porco. Encontrou uma tábua que prontamente agarrou, usando-a como escudo improvisado para deflectir a lançada que o visava, arremessando-a de seguida contra o drahreg, atingindo dolorosamente os dentes da sua boca aberta, à qual levou ambas as mãos, largando a arma. O outro drahreg arrastara-se para perto, empunhando o machado perto da cunha, e Quenestil livrou-se dele com um certeiro pontapé no queixo, tropeçando ao tentar levantar-se para pegar no seu facalhão. O drahreg que atingira na boca aproveitou e desferiu-lhe um pontapé no estômago, pegando no eahan pelas costas e atirando-o contra um conjunto de vigas caídas. Quenestil cambaleou após o impacto, agarrando-se onde podia na tentativa de se manter de pé, e recuperou a sua visão a tempo de ver o adversário pegar na lança caída e arrojá-la na sua direcção. O shura desviou-se do singrante projéctil, que se cravou ruidosamente contra uma viga, e o drahreg rugiu de fúria, exibindo dentes ensanguentados e atacando Quenestil com as mãos nuas. O eahan rosnou em resposta, e os dois embateram violentamente, golpeando-se mutuamente. Quenestil baixou-se para evitar um murro oscilante e esmurrou as costelas do drahreg, mas este desferiu-lhe uma pancada com as costas da mão e arremeteu com ele contra um barrote, cabeceando-o de seguida sobre o olho. Quenestil descontrolou-se e abocanhou a orelha pontuda do adversário, arrancando-lha inteira com um selvagem rosnido. O drahreg uivou de dor, e o shura acotovelou-lhe o queixo por baixo, carregando com ele de seguida contra os outros inimigos que entretanto haviam surgido e empurrando-o contra as pontas das armas que estes empunhavam, derrubando-os. Sem se deter, correu a arrancar o seu facalhão do peito do moribundo drahreg, virando-se numa selvática postura acocorada para receber o ataque dos outros, que não tardaram a desenvencilharem-se do empecilho que lhes fora atirado. Eram cinco, e mais vinham a caminho. O exército inteiro estava a entrar pelos rangentes escombros da torre, e o eahan dispunha apenas de um facalhão para os combater. O sabor do sangue drahreg abrasava-lhe as papilas, a ferida no seu braço estava quente e molhada, e dores por todo o seu corpo estavam a ser emudecidas a custo pela bombeante adrenalina. Mas não iria desistir.

 

Venham, desgraçados... agachando-se e rosnando como um carcaju.

 

O drahreg da frente aceitou o desafio, urrando e investindo de falcata erguida.

 

E os tendões dos seus jarretes foram cortados por uma sibilante lâmina, que o derrubou.

 

Antes que Quenestil ou os drahregs se apercebessem do que estava a acontecer, um dos humanóides virou-se contra os seus, e uma cabeça voou, seguida de uma mão ainda a empunhar uma falcata, grunhidos roucos e surpresos, silvos de aço, gorgolejes de gargantas cortadas e ossos a serem fendidos por lâminas. O eahan permaneceu imóvel enquanto tudo sucedia, e durante o breve intervalo que se seguiu à matança, contemplou as costas de um drahreg que empunhava dois sangrentos alfanges e que se virou para ele enquantou outros vinham ululantes na sua direcção. Olhos cinzentos e vermelhos fitaram-se em reconhecimento, e os do drahreg deslizaram para o corpo caído de Worick, voltando dubiamente para os de Quenestil, que se lembrava do drahreg, mas ainda não sabia o que deduzir da sua presença na torre.

 

Ele... vive? este.

 

Sim o shura, ainda agachado. O drahreg acenou com a cabeça.

 

Tira-o. Eu não os deixo passar urrando e virando-se para receber os atacantes de alfanges brandidos.

 

Aewyre urrou e fendeu outra cabeça de cabelos entrançados, levando Ancalach acima para repelir outro drahreg que já se dependurava de um merlão, quando duas lâminas silvaram e entrechocaram dentro da sua cabeça, paralisando-o momentaneamente. O guerreiro virou a cabeça para o outro lado da muralha, sentindo a inconfundível presença de Kror e o avassalador puxar do ”tendão”. Aqui? Agora? Como?

 

Algo lhe explodiu no crânio, fazendo o seu elmo gritar e arrancando-lho da cabeça. A sua visão apagou-se e as suas pernas cambaram, momentaneamente incapazes de susterem o peso do corpo. A peleja nas ameias extinguiu-se praticamente, manifestando-se apenas como um leve rumor de fundo, e o jovem sentiu que era o eixo do mundo e que este girava à sua volta. Os seus membros estavam entorpecidos, privados de toda e qualquer sensação, e o sentimento de leveza era tal que Aewyre pensou estar a voar até embater de lado contra pedra fria que lhe beijou a têmpora, uma, duas vezes até a sua cabeça assentar por fim no chão, roçando a sobrancelha direita contra a aspereza pétrea. Algo quente lhe escorreu do escalpo, percorrendo os sulcos da sua testa enrugada e a maçã do seu rosto, passando-lhe por baixo do nariz com o seu odor cóbreo. Os olhos de Aewyre entreabriram-se, trémulos, e nada mais viram além de furiosos pés, chão molhado de vermelho, caretas de dor de homens e drahregs que se contorciam no chão, membros imóveis. Tudo parecia mexer-se tão devagar, de forma tão indistinta... os pés... por que se afastavam os pés das ameias...? As ameias! Os defensores recuavam! Tinha de defender as ameias!

 

Assomou-se um grito à garganta de Aewyre, borborejando das profundezas dos seus pulmões e crescendo até uma eclosão vocal que culminou quando o guerreiro voltou para os seus pés, oscilando brutalmente com Ancalach ao fazê-lo e cortando ambas as pernas a alguém que estivera ao seu lado, amigo ou inimigo, não soube dizer. O berro continuou a jorrar da sua boca como uma fonte acabada de rebentar, mas os únicos borbotões eram os do sangue que a Espada dos Reis vertia em seu redor, dançando e cantando a silvante réquia de todos os que rodeavam o jovem. Algo colidiu no seu flanco, e a resposta de Ancalach foi rápida e fulminante, originando berros e gritos de dor e medo ao lacerar couro, cota de malha e carne. A ponta da espada enterrou-se num abdómen, e Aewyre nem viu quem afastou com o pé para arrancar a lâmina, batendo em alguém atrás de si com o pomo ao fazê-lo. Não via nada além dos drahregs à sua frente, o resto nada mais era além de movimentos borrados e erráticos. Não ouvia nada além do seu próprio berro que lhe raspava a garganta, silenciando os gritos de sofrimento das suas vítimas. Também não havia espaço para o pensamento racional e o guerreiro abnegou-o, limitando-se a cortar e a decepar tudo o que se mexia à sua volta num festival de sangue e carne vermelha de feridas abertas.

 

Quando caiu em si, o guerreiro havia chegado aos merlões, com a cruenta Ancalach pousada sobre uma poça de sangue numa ameia e o coto de uma mão decepada encostado a um dos lados do gume. O guerreiro ofegava como um cavalo cansado e tinha os cabelos colados à cabeça por suor e sangue, que também lhe cobria boa parte da armadura e lhe tornava o aperto no punho da espada pegajoso. A cada inspiração sua manava-lhe ar quente e húmido do gorjal, e o jovem apercebeu-se de que a sua bexiga estava prestes a rebentar, decidindo simplesmente soltá-la e ignorar a urina quente que lhe escorreu pela perna esquerda abaixo.

 

Os ruídos em seu redor avivaram-se então, e Aewyre lembrou-se de que não estava sozinho nas muralhas, reassumindo uma nada dignificante postura de combate com uma poça de urina a formar-se em redor do seu pé esquerdo. Não sabia quanto tempo ficara no chão, mas ocorreu-lhe que o efeito da sua queda podia ter sido devastador para o moral dos defensores. Contudo, o seu assomo de fúria bélica parecia ter inflamado os conscritos, que estavam a repelir os drahregs das muralhas à semelhança do dia anterior, empurrando-os e espicaçando-os para fora das ameias.

 

Ancalach! Aewyre uma vez mais, ostentando a lâmina vermelha da Espada dos Reis. à Sombra!

 

Morte à Sombra! os conscritos, destroçando a investida inimiga e forçando os drahregs a uma debandada geral das muralhas.

 

Kror rosnava enquanto os seus alfanges sibilavam como serpentes encarniçadas, tombando quem quer que tentasse passar por ele, e Quenestil levou algum tempo a ajustar as suas percepções até conseguir agir. Não percebia o que estava a acontecer, mas o drahreg estava a dar-lhe tempo que de outra forma não teria para libertar Worick. O thuragar continuava imóvel debaixo da pesada viga, e o shura não tinha força para a erguer. Olhou impacientemente em redor, abrindo e fechando as mãos com ânsia de as crispar em algo que o pudesse ajudar, até avistar o cabo do machado de um drahreg, que de imediato correu a agarrar. Empunhou a arma com ambas as mãos e dirigiu-se apressadamente a Worick, tentando não se deixar distrair com os ruídos do combate atrás de si enquanto preparava a primeira machadada, receoso de ferir o thuragar. Inspirou fundo, levou a cunha acima e trouxe-a com ímpeto para baixo, fendendo o cunhal da viga.

 

Worick estrebuchou.

 

Worick! exclamou Quenestil, assustado.

 

O que... ha? Au, porra... onde estou...? esperneou fracamente o thuragar, olhando em redor com olhos pouco cientes.

 

Não te mexas, Worick. Estamos dentro da torre e estás preso debaixo dessa viga, mas eu já te tiro daí. Fica só quieto...

 

Quieto...? Mas o que... ei, o que vais fazer com esse... ei, et! O thuragar cobriu a cara com a mão livre quando o shura desferiu

 

uma nova machadada na viga, cujo impacto Worick sentiu mesmo debaixo da armadura.

 

Mas o que é que estás a fazer, eahan dum raio?

 

Quenestil ignorou as perguntas e continuou a falquear a viga que prendia o seu companheiro, desbastando a madeira com violentas machadadas enquanto Kror matava drahregs nas suas costas. Por fim, o eahan prendeu a cunha do machado num dos lados da profunda ferida da enfraquecida viga, pousou o pé sobre o outro e puxou, grunhindo de satisfação ao ouvir o tão aguardado estalo.

 

Estás bem? ofegou o shura.

 

Acho que dei um jeito no braço, mas além disso... ajuda-me a levantar pediu Worick.

 

Quenestil estendeu-lhe a mão, mas um desmedido bramido nas suas costas fê-lo girar em si de machado empunhado com ambas as mãos.

 

Um enorme ogroblin viera com os drahregs, mexendo-se com dificuldade no apertado espaço dos destroços da torre e causando um crepitante e audível rangido com o seu próprio peso ao tentar passar o resto do corpo pela abertura pela qual os drahregs haviam entrado. Kror recuou perante a ruidosa chegada do monstro, que estendeu uma grande mão de dedos nodosos para o agarrar e desmembrar. Um alfange mordeu-lhe profundamente os dedos e o ogroblin bramiu, esbofeteando o drahreg e projectando-o de costas contra um barrote. Quenestil não pensou sequer e investiu de machado ao lado, soltando um grito pouco humano e saltando sobre o surpreso monstro, enterrando-lhe a cunha do machado entre o ombro e o pescoço. O ogroblin bramou de dor, esticando a mão sã cujos dedos cobriram a cabeça do eahan e o ergueram no ar, principiando a esmagá-lo como a uma uva. Quenestil esperneou e sentiu o seu crânio ranger, reagindo cega e desesperadamente ao desembainhar o facalhão e espetá-lo no pulso do monstro, empurrando ainda o gume da lâmina em frente para alargar o golpe na artéria. A pressão na sua cabeça desapareceu subitamente, e o shura caiu atordoado sobre um monte de escombros, cortando-se no decurso da queda com o facalhão miraculosamente ainda empunhado. O moribundo ogroblin agarrava o pulso ferido, do qual esguichava sangue intensamente vermelho aos borbotões, e contorcia-se violentamente, estalando madeira e obstruindo completamente a entrada enquanto o fazia. Quenestil percebeu que chegara a altura de fugir e preparou-se para ir ajudar Worick, que se tentava levantar a custo, mas a visão do atordoado Kror com os alfanges caídos a seu lado fê-lo hesitar.

 

O drahreg acabara de o ajudar, provavelmente salvara a sua vida e a de Worick, mas ainda assim auxiliar o Primeiro Pecado era algo impensável para qualquer raça senciente de Allaryia. Aproximou-se, irresoluto, e pegou no alfange com o pomo argênteo incrustado com uma pedra azul enquanto se tentava decidir. Porém, a sua decisão pareceu-lhe subitamente muito mais fácil, evidente mesmo, assim que empunhou a arma, como se a resposta lhe fosse descortinada defronte da cara. Claro que tinha que ajudar o drahreg. Era a coisa certa a fazer. A única coisa a fazer. Só não devia pegar no outro alfange. Pegou no drahreg debaixo do braço e puxou-o, incitando-o a levantar-se.

 

Anda, vem connosco entregando-lhe a arma.

 

Kror estava zonzo, mas pegou no alfange e embainhou-o desajeitadamente atrás das costas, olhando primeiro para Quenestil e depois para o ogroblin, atrás do qual se ouvia o intenso alarido de drahregs que tentavam tirá-lo do caminho. Assim que largou o alfange, o shura estranhou a sua decisão e considerou repensá-la, mas sentiu que não o conseguiria fazer de consciência leve.

 

Worick, onde estão os outros?

 

Esquece-os. Não temos tempo, e as armaduras não os podiam proteger da queda. Eu caí de pés e ia-me partindo todo...

 

O eahan hesitou, mas sabia que o thuragar tinha razão e foi forçado a concordar com ele.

 

Vá, consegues andar? Óptimo, segue-me dirigindo-se a Worick para ajudar o thuragar a levantar-se, pegando no seu arco pelo caminho. embora daqui antes que eles voltem.

 

O que é que este está aqui a fazer? Worick de olhos semicerrados, agarrando o braço magoado.

 

Ainda tonto, Kror pegou e embainhou o seu outro alfange, apoiando-se com o braço livre contra um barrote caído.

 

Também não sei, mas ajudou-nos. Vá, vamos sair daqui. Worick não estava com disposição para mais perguntas, Kror não

 

parecia ter nenhumas e Quenestil estava com pressa, pelo que os três tropeçaram e arrastaram-se pelos escombros até à abertura pela qual o eahan entrara. No exterior choviam flechas, drahregs e ulkekhlens, e escadas eram derrubadas com os seus gritantes ocupantes em queda livre. Os sitiantes estavam a ser escorraçados das ameias, mas os três ainda se encontravam fora da segurança das muralhas e era urgente que saíssem dos destroços antes que estes ficassem infestados pelo inimigo. Quenestil olhou em redor, ponderando as suas opções, e Kror aguardou a sua decisão em aturdido silêncio, até Worick chamar a atenção do shura com uma cotovelada.

 

As cordas disse, praticamente arrastando o eahan na direcção de uma.

 

Os três tropeçaram várias vezes antes de alcançarem a frouxa corda que pendia de uma ameia, gritando pelos conscritos enquanto o faziam. Algumas cabeças repararam na sua presença e vários dedos apontaram na sua direcção, embora ninguém soubesse o que fazer. Gritos de aviso foram proferidos, provavelmente devido à presença de Kror, mas os dois companheiros ignoraram-nos e esperaram que ninguém tivesse a ousadia de tentar atingir o drahreg tão perto deles.

 

Como é que subimos? inquiriu Quenestil, ofegante. Não conseguimos trepá-las; tu não consegues de certeza...

 

Amarra-a à minha cintura grunhiu Worick, cerrando os dentes com a dor no braço. Eles puxam-me e vocês vão agarrados a mim. Vá, enrola essa porcaria! Eles podem estar a ganhar lá em cima, mas nós estamos cá em baixo...

 

Quenestil fê-lo apressadamente, fitando Kror de soslaio e questionando-se uma última vez acerca da sua decisão. A torre rangia, e sentiam-se movimentos no seu interior. Os sirulianos na fortaleza haviam-nos avistado aos três e abatiam todos quantos apareciam à superfície dos escombros, sem que nenhum visasse Kror, que mesmo assim se manteve perto dos dois companheiros. Quando a cintura de Worick ficou cingida, o thuragar achegou-se da muralha e puxou a corda com força, gritando para as ameias.

 

Vocês aí! Estão a ouvir? Puxem isto! Virou-se para Quenestil e Kror. Eahan, agarra-te à minha cintura e usa-me como escudo enquanto subirmos. Tu, drahreg, ficas agarrado às minhas pernas e reza para que os teus amigos não te escolham como alvo.

 

Os dois assim fizeram, e a corda retesou-se após uma segunda série de gritos e puxões do thuragar. A força de vários conscritos começou a alçar os três pela muralha acima, com Quenestil abraçado à cintura de Worick e Kror agarrado às pernas deste numa bizarra postura.

 

O inimigo retirava, mas ainda assim foram visados por um número de flechas isoladas, a maior parte das quais embateu muito ao lado, mas uma chegou a resvalar na couraça do thuragar enquanto estavam a meio da muralha. A ascensão pareceu interminável, mas subitamente as espaldeiras de Worick foram agarradas por várias mãos e os três foram puxados para o lado interior das ameias, caindo sem cerimónia no sangrento adarve coberto de corpos perante os vitoriosos gritos dos defensores. O thuragar grunhiu e praguejou por causa do braço sem ser ouvido, mas assim que os pontos brancos desapareceram da sua visão, a primeira coisa que fez foi erguer-se e abraçar um surpreso e ofegante Quenestil com um braço apenas.

 

Seu desbragado de orelhas pontudas! Worick. que raio foste tu fazer lá abaixo?

 

Tirar o teu nariz da colmeia... o eahan, sufocado pela inesperada efusividade.

 

Ainda morríamos os dois, meu idiota! o thuragar, desferindo pancadas com a manopla nos rins do eahan.

 

De nada Quenestil, apoiando-se com a mão numa ameia. não é só a mim que deves agradecer... indicando Kror com a cabeça.

 

O drahreg estava encostado a um merlão, olhando para as intrigadas caras dos conscritos que o fitavam de ensanguentadas armas empunhadas. Worick teve a sensação de que bastaria um movimento em falso de Kror para que os defensores o fizessem em pedaços e os atirassem pela muralha fora, pelo que decidiu intervir.

 

Alto aí, não lhe façam mal atraindo vários olhares surpresos. ser um drahreg, mas... mas... mas o quê? perguntou a si mesmo, olhando para Quenestil sem obter qualquer ajuda. eu sei ao certo. Olhem, é um drahreg, mas não é para vocês matarem. Pedras me partam, alguém vá chamar o Aewyre. Não vou ser eu a explicar isto de certeza...

 

Anoitecia no vasto acampamento do exército de Asmodeon, e os drahregs uivavam e rugiam de raiva com o falhanço do seu segundo assalto, devorando sofregamente os cadáveres dos caídos, o espólio do seu fracasso. Piras e fogueiras ardiam, espalhadas aleatoriamente pelo bivaque, e o Primeiro Pecado dava largas à sua frustração, mutilando os ulkekhlens que eram apanhados separados dos seus grupos. Os ogroblins mantinham-se juntos, bramindo ferozmente perante a aproximação de drahregs, que ainda compunham o grosso do desfalcado exército e cujos comandantes não se incomodavam a impor a ordem, participando eles também nos desacatos. A mera presença do maldito Flagício nas muralhas incitara a hoste a um descontrolado frenesim em ambos os assaltos, e muitos haviam morrido no segundo, reduzindo o exército a menos de metade dos seus números originais nesse dia, com a ajuda adicional de algumas deserções. Os defensores haviam-nos humilhado, pavoneando cabeças de drahregs e ulkekhlens espetadas em lanças e atirando-lhas das muralhas com as bocas cheias de excremento. Um ogroblin esventrado fora dependurado das ameias pelos tornozelos, servindo de festim para os corvos, que se regalavam com a mortandade aos pés da muralha.

 

Ahrab era o arrhak de um reduzido batalhão, e partilhava da raiva e frustração dos drahregs sob o seu comando. Estivera dentro da torre de cerco aquando da queda desta e fora mais afortunado do que boa parte do seu batalhão, escapando apenas com alguns arranhões e o pulso do braço do escudo torcido. Os seus cabelos grosseiramente emeranhados estavam presos em três tranças na nuca e o seu porte distinguia-o entre os restantes drahregs, o que lhe conferia uma dose maior de respeito necessária ao comando dos da sua espécie. Envergava uma loriga de pontudas lâminas metálicas e empunhava uma pesada espada de lâmina larga com a qual cortou em dois o corpo de um guinchante ulkekhlen estendido por um par de drahregs, que de imediato principiaram a devorar o moribundo juntamente com os companheiros que haviam observado a cena. Ahrab urrou de raiva por descarregar e retirou-se, pois a satisfação de matar ulkekhlens era exígua perante a humilhação da derrota, e deixou os seus homens ao seu festim, rosnando ferozmente enquanto desferia pontapés e encontrões por quem passava. Os sobreviventes do batalhão de Ahrab estavam na orla exterior num dos flancos do acampamento, o que tornava os seus homens mais propensos ainda a deserções, sobretudo durante a noite, e o drahreg não esperava ter mais do que um punhado de guerreiros sob o seu comando na manhã seguinte. Fumegante, Ahrab dirigiu-se à pira em volta da qual estavam sentados vários drahregs a tratarem das suas feridas, circundados por vários outros que os fitavam com algo mais do que interesse. Ninguém os ajudaria, e provavelmente não sobreviveriam à vindoura noite se não conservassem forças suficientes. O comandante sentiu-se tentado a decepá-los ali mesmo, e só o aviso de um drahreg a apontar para o exterior do acampamento salvou os feridos, desviando a faminta atenção dos que os rodeavam para três vultos que se aproximavam a leste. Não faziam parte do exército, isso era certo, mas caminhavam com um à-vontade que os denotava como neutros ou inimigos muito estúpidos, o que só por si despertou a curiosidade de todos os que os avistaram.

 

Ahrab foi em frente como lhe competia, e um grupo crescente de drahregs seguiu-o de armas desembainhadas. Os três desconhecidos não se detiveram e continuaram a avançar com o sol poente a oeste a bater-lhes de frente, estendendo-lhes as sombras grotescamente para trás. As pontas dos chifres recurvos do elmo do vulto mais imponente brilhavam com a moribunda luz do pôr do sol, mas as faces dos outros dois estavam ensombradas por capuzes. Ahrab crispou os dedos no punho da espada, sentindo-se apreensivo com a aproximação dos estranhos, mas os drahregs que ouvia atrás de si reforçaram a sua coragem e continuou a avançar até ficar a uma distância segura dos três. Rosnou-lhes que parassem em Olgur, e dois deles assim fizeram, mas o do elmo com chifres não se deteve e veio na sua direcção. O comandante tornou a vociferar e empunhou a espada com ambas as mãos, incitado pelos rosnidos de antecipação dos outros drahregs, e deu dois ameaçadores passos em frente com o ombro direito virado para o desconhecido.

 

Quando os pontos vermelhos brilharam nas órbitas daquela que então percebeu ser uma caveira, já era demasiado tarde e o mundo andou à sua volta antes de o chão se precipitar contra a sua cara, obscurecendo-lhe a visão. A cabeça de Arhab rebolou pelo escabroso solo, respingando-o com sangue, e a negra espada que a decapitara sorveu a mancha vermelha na lâmina. Os drahregs recuaram, empunhando as armas e rosnando como animais assustados, e mais se lhes juntaram, envolvendo os três estranhos num semicírculo ao mesmo tempo fascinado e receoso. Apesar da postura ameaçadora dos drahregs, o moorul parecia estar a olhar para além deles na direcção da fortaleza, e os outros dois estranhos acharam por bem manterem-se próximos dele.

 

Ancalach... disse, originando uma cacofonia de rosnidos e berros dos drahregs que lhe chamou a atenção.

 

Aewyre Thoryn... disse Hazabel em surdina, olhando para os contornos das ameias iluminados pela avermelhada luz do sol poente e afagando o braço entalado.

 

Dizes tu que os dois eahan estão com esse Aewyre Thoryn, mulher? inquiriu Tannath a seu lado, olhando para os drahregs em redor com as mãos perto das armas debaixo da capa.

 

Não sei admitiu a harahan desinteressadamente. São seus companheiros, mas não tenho como saber se estão com ele ali ou não.

 

O eahanoir lançou um odioso olhar de soslaio à mulher. Passara dias infernais sozinho com ela e com o moorul na barcaça, sempre temente de acordar com a cabeça cortada ou com um buraco sangrento onde o seu fígado deveria estar, tudo pela ténue esperança de vir a encontrar Quenestil e Slayra junto do jovem que os seus dois companheiros de viagem perseguiam. Não tinha certezas, mas também não tivera nenhumas desde que deixara Jazurrieh, pelo que acabara por se contentar em deixar-se arrastar pelos ventos do destino e esperar que estes lhe concedessem a bênção de deparar com os dois eahan responsáveis pela sua ruína. Isso se os drahregs que os cercavam não os fizessem em pedaços ali mesmo, pois a menção da Espada dos Reis deixara-os deveras acirrados.

 

Moorul, é melhor fazeres alguma coisa antes que eles nos caiam em cima disse despudoradamente ao seu terrífico companheiro, que não pareceu prestar-lhe atenção.

 

Ancalach repetiu com uma voz diferente, dando um passo em frente e fazendo os drahregs darem um atrás.

 

Por exemplo isso... comentou Tannath, seguindo o moorul a lado de Hazabel.

 

Os drahregs recuavam perante o avanço do imponente vulto, mas começaram a formar um subtil corredor conforme este se adiantava, dando ao eahanoir e à harahan a sensação de que estavam a ser conduzidos para uma armadilha da qual já não podiam escapar. O moorul desconhecia ou ignorava o facto, mas os três estavam a entrar pelo acampamento adentro entre duas paredes de rosnadoras carrancas de dentes arreganhados e cruéis armas aprestadas.

 

Ignora-os aconselhou-o Hazabel. Se um deles se sentir provocado por olhares para ele estamos mortos.

 

O eahanoir acatou o conselho e evitou as centenas de orbes vermelhos que o tentavam fitar, olhando em frente para um ponto indeterminado. A única orientação de que os três dispunham era a fortaleza, da qual se estavam claramente a afastar, mas nenhum ousou protestar. Por fim, quando já pensavam que estavam a ser conduzidos em círculos no interior do acampamento, depararam com uma grande e rústica tenda de peles animais e não só. Era desprovida de adornos ou de quaisquer indicativos de estatuto, nem sequer dispunha de um buraco pelo qual o fumo de uma fogueira pudesse sair. Nada a distinguia das restantes além do seu tamanho, mas a intenção dos drahregs parecia ser fazê-los entrar nela, ao que os três hesitaram, constatando de seguida que a sua retaguarda também já estava bloqueada.

 

Deixam-nos poucas opções, os nossos anfitriões... comentou Tannath, fazendo uso de todo o seu sangue-frio para esconder o nervosismo que o acometera.

 

Hazabel nada disse e olhou para o moorul, que por sua vez olhou para trás para a fortaleza e para os drahregs, que não mais pareciam dispostos a recuar. Como se tivesse tencionado fazê-lo desde o início, o moorul avançou e puxou o reposteiro de pele da entrada da tenda, entrando com Tannath e Hazabel ao seu encalço.

 

O interior estava escuro e abafado, impregnado com um intenso cheiro a suor que fez com que Tannath e Hazabel se engasgassem e no qual havia indícios de um olor que ambos apenas conseguiam descrever como o de insectos mortos e penas queimadas. A luz avermelhada do sol poente embatia fracamente nas peles da tenda nas suas costas, iluminando pouco mais além das pedras no chão da entrada desprovida de qualquer cobertura. A escura tenda estava silenciosa quando entraram, mas a sua chegada desencadeou uma série de gemidos de humanóides moribundos cujas vozes estavam gastas e roucas de gritar, e pedras foram movidas enquanto braços e pernas exaustos por espasmos de agonia tentavam arrastar os seus corpos quebrados. Tannath e Hazabel não conseguiam ver os moribundos, mas ouviam com toda a clareza o seu esforço e a plangência das suas vozes enquanto faziam uma derradeira tentativa de fuga, o que suscitou em ambos impressões da terrível agonia pela qual obviamente haviam passado e que de alguma forma parecia ter ficado entranhada nas peles que revestiam a tenda.

 

”O que é isto?” Tannath, semicerrando os olhos numa tentativa de se adaptar às parcas condições de luminosidade do interior e crispando os dedos nos punhos das armas.

 

Hazabel também estava pouco à vontade e sentiu-se aliviada por ter o moorul entre si, e o que quer que estava naquele lugar, que não parecia ter pressa em se revelar e os deixou com os esvanecentes gemidos e lamentos. Contudo, a sua presença era inocultável, pois fazia-se sentir e demarcava a sua posição mesmo que não pudesse ser vista. Tannath tinha a impressão de que se desse um passo em frente na penumbra, podia muito bem esbarrar de cara com o horror que estava por se revelar mas aparentemente sem qualquer pressa de o fazer. Eahanoir e harahan não ousaram proferir qualquer palavra e permaneceram em silêncio, e o moorul limitava-se a olhar em redor com os brilhantes pontos vermelhos nas suas órbitas como se pudesse ver, e talvez pudesse mesmo, mas não acusava a percepção de coisa alguma.

 

Vocês procuram a espada do rapaz? a maléfica voz de um terror inviso. Era chiante e áspera, e o ar sibilava, furiosamente ao sair da sua garganta como o contínuo silvo de uma serpente.

 

Houve um momento de silêncio que nem o moorul preencheu, embora provavelmente por razões diferentes das dos seus dois companheiros. Algo quitinoso arrastou-se pelas escabrosas pedras do chão, bem como o gume de algo metálico, e o movimento de algo emplumado agitou o ar pesado do interior da tenda.

 

Procuram Ancalach? a perguntar no mesmo tom.

 

Ancalach? um coro de vozes proveniente da cavidade debaixo do maxilar superior do moorul.

 

O nosso propósito.

 

Procuramo-la, sim.

 

Hazabel reaveu por fim a sua voz.

 

Sim... eu também e o moorul olhou-a de soslaio. Um novo momento de silêncio levou a que Tannath encolhesse os ombros e se pronunciasse também, farto da situação.

 

Nada quero com a espada. Procuro dois eahan.

 

Os eahan? a tetra voz com curiosidade.

 

Não, um eahan da montanha e uma eahanoir. Podem ficar com a maldita espada, vocês os três, eu só quero entrar naquela fortaleza e matar dois eahan. O resto não me interessa.

 

Inesperadamente, a voz riu, um riso crespo e terrível, e algo quitinoso tornou a arrastar-se pelas pedras do chão.

 

Também desejas Ancalach, desconhecido? perguntou uma das muitas vozes do moorul.

 

Procura-la, tal como a desgarrada filha da Sombra?

 

Não afirmou a presença oculta com áspera firmeza. A única coisa que pretendo é a dor e o sofrimento de todos dentro da fortaleza. Ajudem-me e podem ficar com a espada. Tu, eahanoir, podes ajudar se quiseres. A tua presença é-me indiferente, bem como as vidas dos eahan.

 

Uma insidiosa vontade insinuou-se então nas mentes de Tannath e de Hazabel na forma de uma sussurrante voz, mexendo nos seus mais básicos instintos e instigando-os a seguirem as suas verdadeiras vontades, fazendo a oferta do seu interlocutor parecer irrecusável. O moorul não aparentou ser tão afectado como os seus dois companheiros, mas estacou bruscamente como se só então se tivesse apercebido de algo que sempre estivera presente. A harahan mesclou-se às sombras de forma quase involuntária, seguindo contra a sua vontade o anseio primário de se unir à penumbra que era o seu domínio, e através da sua visão umbral distinguiu uma horrenda silhueta, que encorpava perfeitamente a terrível presença que sentira no interior da tenda. A sua atenção foi, porém, quase de imediato desviada para a espada que a silhueta empunhava, para o opaco aço da lâmina, a verdadeira fonte da voz que lhes sussurrara as insidiosas palavras. Ao reconhecê-la, Hazabel arfou e voltou à sua forma corpórea, dando um passo atrás.

 

Pelo Flagelo, quem é você...? perguntou a harahan por fim, respirando mais depressa e com um formigueiro no escalpo.

 

Eu sou Bathrazhúl disse a voz, e pela minha vontade, as pedras de Aemer-Anoth tremerão com os gritos de dor dos seus defensores.

 

Ao cair da noite, Quenestil, Worick, Allumno e um grupo de conscritos observavam o acampamento inimigo do topo da barbacã. Embora se apoiasse no cajado com ambas as mãos, o mago era o único que não estava com um ar surrado e sujo de sangue, embora o combate do dia tivesse deixado na sua cansada mente as marcas que deixara nos corpos dos outros. Quenestil tinha uma ligadura no braço esquerdo, nódoas negras e escoriações um pouco por todo o corpo, e os ligamentos nas suas pernas estavam ressentidos da aterragem na torre. Os ferimentos de Worick não estavam à vista, mas as caretas que fazia a cada movimento eram um claro indício de que também não estava nas suas melhores condições.

 

Soprava um vento frio de Leste, vindo das escarpadas montanhas coroadas por densas nuvens negras, alumiadas por relâmpagos distantes que ribombavam ameaçadoramente, cada vez mais próximos. Aemer-Anoth estava a ser aspergida por uma chuva fraca que começara há algum tempo, mas Quenestil reparara nos cirro-cúmulos durante o dia e sabia que estes vaticinavam chuva forte, e o facto de as nuvens terem levado boa parte do dia a formarem-se e o vento vir da direcção da tempestade era sinal de que se aproximava uma longa tormenta. Worick pensara em pegar fogo aos escombros da torre, visto que podiam facilitar o acesso à barbacã e ocultavam o portão principal, mas a chuva fê-lo reconsiderar e chegar à conclusão de que seria melhor usá-la como armadilha e pegar-lhe fogo durante o novo assalto, que seguramente viria assim que o sol nascesse. O moral dos conscritos era alto, pois haviam repelido duas violentas investidas e infligido massivas baixas nas fileiras inimigas, que agora viam estarem reduzidas a metade do seu número, o que os tornava confiantes apesar de sobrarem bem menos do que trezentos defensores nas muralhas. O inimigo não mais era temido, mas sim zombado, e aqueles que certamente não passavam de homens normais haviam dado mostras de uma macabra criatividade com os cadáveres dos invasores para dar largas à sua zombetaria. Ouviam-se uivos e gritos vindos do acampamento dos sitiantes, onde provavelmente mais drahregs estariam a morrer naquele preciso momento. Todos estavam convencidos de que, se aguentassem a próxima investida, a hoste desintegrar-se-ia, e a ansiedade na bastilha era quase palpável. Muitos homens rondavam as muralhas, incapazes de dormir pelas mais variadas razões, e alguns falavam mesmo descontraidamente nas ameias como se Aemer-Anoth não estivesse em estado de sítio ou sequer ameaçada, mas os que se encontravam na barbacã observavam em sóbrio silêncio, influenciados pela calma dos três companheiros.

 

Quenestil torceu o nariz perante o pestilento odor a morte fora das muralhas que o vento trazia consigo, mas deu-se por afortunado por o seu corpo não estar a contribuir para o cheiro. Fora cegamente arrojado ao saltar para a torre, e a cada instante que dentro dela passara tivera dezenas de oportunidades para morrer. Fora visitar Slayra de seguida para tratar das feridas e para a ver, e tivera de fazer um esforço tremendo para sair da enfermaria, tanto pela vontade que tinha de ficar, como pela força do aperto da eahanoir. Falara ainda um pouco com Taislin e Lhiannah, que lhe perguntara por Aewyre e fizera uma careta ao saber da aparição de Kror. O seu amigo e o drahreg ainda não haviam voltado da fortaleza, pois Kror surpreendera todos ao pedir para falar com os eahan como se os conhecesse, e ao conseguir que os sirulianos baixassem a ponte levadiça simplesmente por brandir os alfanges por cima da cabeça.

 

Percebes aquele drahreg, mago? perguntou Worick de repente, parecendo ter lido a mente do eahan.

 

Allumno não respondeu logo nem olhou para o thuragar, continuando a fitar o acampamento dos sitiantes enquanto coçava o queixo.

 

Sinceramente, não lembrou-se da bizarra experiência pela qual passara ao tocar a essência dos alfanges no Pilar e que originara mais perguntas do que as que respondera.

 

- É um mistério para mim, mas suspeito de que em breve seremos elucidados acerca da sua pessoa.

 

Pedras me partam, então ele vai falar com os eahan, e os sirulianos não lhe enfiaram uma espada pelo rabo acima? Se calhar o Aewyre foi com ele para fazer isso mesmo, com essa lengalenga da Essência da Lâmina... deve ser por isso que ele está aqui, não?

 

Não faço ideia, Worick admitiu Allumno, esfregando um pingo de chuva do nariz. Os riscos que ele correu para chegar aqui... eles os dois tinham um acordo, e alguma coisa deve ter acontecido para ele decidir vir ao encontro do Aewyre outra vez.

 

Mas não veio para lutar comentou Quenestil, tendo sido inteirado pelo mago acerca da história entre ambos os guerreiros após a batalha. Não com o Aewyre, pelo menos. Ainda não.

 

Não, também não me parece. Em breve tudo será esclarecido, espero eu.

 

Que coisa mais esquisita... continuou Worick. Qualquer dia temos eahan a montarem ovelhas e ogroblins a oferecerem flores às moças...

 

Existem sempre excepções, Worick disse Allumno. Tu és um bom exemplo disso. Quando o thuragar nada disse e se limitou a resmungar mais um pouco, Quenestil e o mago trocaram um invulgar piscar de olhos. É verdade, queres que te devolva a...

 

Fica com ela interrompeu-o Worick bruscamente, irritado pelo facto de Allumno falar do assunto à frente do eahan e transmitindo-lho com o olhar. Ainda falta pelo menos um assalto e muito pode acontecer.

 

Como queiras acedeu o mago, dando palmadinhas asseguradoras na sacola.

 

Quenestil olhou para ambos, mas cedo percebeu que não deveria esperar respostas dos seus companheiros acerca do assunto. Cada um com os seus segredos; era algo que sabia respeitar, pelo que nada disse e continuou a fitar em silêncio o acampamento intermitentemente iluminado pelos cada vez menos distantes relâmpagos. Iria ser uma noite agitada para os drahregs, ulkekhlens e ogroblins, pois a actividade no bivaque era furiosa e os ruídos dele provenientes pareciam os de um canil apinhado de cães raivosos. O facto de uma horda tão selvagem e desregrada conseguir sequer trabalhar para um propósito comum confundia o shura, mas palpitava-lhe que o que quer que os estivesse a manter minimamente coesos em breve deixaria de ser suficiente. Talvez se matassem uns aos outros e lhes poupassem esse trabalho. De qualquer forma, já não tinham a mínima hipótese de tomar Aemer-Anoth, pois mesmo que o Esporão caísse, o inimigo ainda teria de se haver com mil sirulianos, e mesmo fora das muralhas esse era um confronto ao qual nenhum drahreg sobreviveria. A razão que os instigava a continuar era um mistério para Quenestil, e muito provavelmente residia no azigoth que ainda estava por se revelar. Estaria mesmo um monstro desses a comandar a hoste? Os azigoth eram um mal primevo, criados por Luris a par dos divaroth de Sirul e os uman de Siris aquando da criação do Pilar de Allaryia, e o shura decididamente não ansiava por ver um.

 

O ruído de uma ponte levadiça a baixar-se chamou a atenção de todos, e os três companheiros dirigiram-se às ameias que davam ao pátio para verem Aewyre e Kror surgirem do portão da barbacã norte, caminhando lado a lado com visível tensão entre ambos. O drahreg trazia aos ombros uma capa azul que não tivera antes, provavelmente para impedir que fosse morto pelos defensores durante o próximo assalto, no qual tudo indicava que iria participar.

 

Olhem, ainda estão vivos reparou Worick. Querem ver que os sirulianos os mandaram lutar aqui para não sujarem de sangue o pátio deles?

 

Não, não me parece que seja esse o caso disse Allumno. Talvez agora as nossas dúvidas possam ser esclarecidas.

 

E talvez as possamos esclarecer dentro da barbacã sugeriu Quenestil ao sentir a chuva intensificar-se. Não tarda nada isto vai ficar feio.

 

Se estás com medo de te constipar, vai andando convidou o thuragar, toda a sua gratidão aparentemente já esquecida. Eu quero falar com o Aewyre acerca da disposição da nossa soldadesca amanhã. O bruto da bicharada quase de certeza virá contra a barbacã, com aqueles escombros ali em baixo, e temos de ver se os destroçamos o mais depressa possível.

 

A madeira certamente ficará demasiado húmida para lhe pegares fogo como tencionavas opinou Allumno, olhando para o escuro céu chuvoso de olhos semicerrados.

 

Pois, mas se atirarmos os fardos lá para dentro o cheiro e o fumo devem desorientá-los bastante, talvez mesmo sufocar uns quantos. Aqueles escombros têm dois gumes: podem ajudá-los a entrar, mas também nos podem ajudar a encurralá-los numa armadilha mortal.

 

Allumno não podia nem queria rebater tal facto, pois o thuragar era de todos os companheiros o mais versado nas artes bélicas, pelo que nutou com a cabeça e fez sinal com a mão a Aewyre. O jovem ergueu a sua em reconhecimento e dirigiu-se com Kror à barbacã, medindo cada passo que dava ao lado do drahreg.

 

Parecem dois cães em território por marcar... comentou Worick. Qual deles irá mijar primeiro?

 

Ninguém respondeu, e enquanto esperavam que os dois chegassem ao topo da barbacã, a chuva intensificou-se ligeiramente, com alguns pingos já grandes o suficiente para tamborilarem no arnês do thuragar. A maior parte dos conscritos que não haviam sido encarregados de vigiar começou a retirar-se para os dormitórios na barbacã, e os que ficaram muniram-se de capas e capuzes.

 

Pode ser que os desgraçados se afoguem... imaginou Worick, indicando o acampamento do inimigo com um gesto da cabeça.

 

Ou que se constipem comentou Quenestil com prepositada secura, verificando o estojo do seu arco para ver se estava devidamente fechado.

 

Ou isso... então aqueles dois, começaram à porrada lá dentro ou quê?

 

Em resposta ao thuragar, os dois guerreiros surgiram da escadaria da barbacã com Aewyre à frente, embora o guerreiro se apressasse a pôr-se ao lado de Kror, como se o facto de lhe ter dado as costas tivesse sido uma experiência enervante para ambos. As suas expressões não traíam qualquer emoção especial ou grande novidade que os restantes companheiros esperavam, embora houvesse nelas uma clara contenção forçada. A proximidade dos dois devia ser uma verdadeira provação, pensou Allumno, embora nem o mago pudesse conceber verdadeiramente o esforço que ambos faziam naquele preciso momento para não se atacarem mutuamente. O ”tendão”, como Aewyre lhe chamava, estava tenso como uma cãibra. Os conscritos que se encontravam no cimo da barbacã fitavam o drahreg com uma mistura de sentimentos, nenhum deles de confiança.

 

Então, como foi? Quenestil.

 

Aewyre e Kror olharam um para o outro, dando a entender que de facto havia algo a contar, mas incertos quanto a quem o devia fazer.

 

Vamos, desembuchem Worick. é? Podemos confiar nele? Vai lutar connosco? Contra nós? Contigo? Conhecia os Eahan? Por que é que os sirulianos não o cravejaram de setas assim que o viram? Vá, estamos todos à espera. Os homens não gostam muito da ideia de terem um drahreg nas suas costas, e de certeza gostariam de ouvir uma explicação.

 

Vários conscritos concordaram com as cabeças, aguardando uma elucidação quanto aos motivos e propósitos de Kror.

 

É complicado... Aewyre, esfregando os pingos de chuva do cabelo. Perdera o elmo ao ser golpeado na cabeça, mas não o substituíra ao descobrir a falta que sentia de andar com ela a descoberto. Kror... bem, o Kror é...

 

Um colossal urro proveniente das gargantas de dois mil drahregs, ogroblins e ulkekhlens reverberou pelo ar, e o chão tremeu com a investida colectiva da hoste inteira.

 

Todos nas muralhas ficaram momentaneamente paralisados de incrédulo terror ao verem a arremetida da selvagem horda ser iluminada por um relâmpago próximo, que fulgurou momentaneamente no aço de milhares de armas erguidas e no branco de dentes de bocas escancaradas. Mais parecia um imenso vagalhão negro prestes a rebentar contra as adormecidas muralhas de Aemer-Anoth, e o trovão que ribombou reforçou a imagem.

 

Mas... mas eles são completamente loucos! Worick, correndo a espreitar por uma ameia. escuro, está a chover! Os idiotas vão-se matar!

 

Aewyre desembainhou Ancalach, e Kror fez o mesmo com os seus alfanges, dando início à explosão de actividade nas ameias.

 

Pedras me partam, soem a trompa! Chamem todos, todos às suas posições! Às armas, por Tharobar! Eles vão mesmo atacar!

 

A trovejante hoste investia na direcção das muralhas, e nas ameias os defensores apressavam-se para as suas posições, muitos a julgarem que ainda não tinham acordado e que a arremetida não passava de um pesadelo. Homens corriam, tropeçavam e escorregavam ao longo do adarve, prendiam escudos, bradavam o apelo às armas a plenos pulmões. A trompa foi soprada no torreão, ressoando como o bramido de um enorme animal ferido de morte. A confusão era grande e maior ainda era a surpresa, pois ninguém contara com um ataque durante a noite, muito menos em tais condições. Os conscritos frecharam os seus arcos atabalhoadamente, embora já com um mínimo de noção de sincronia, e soltaram um tipo diferente de chuva sobre os invasores, que ouviam mais do que viam. Porém, apenas a primeira salva se fez sentir minimamente, pois o vento contrário quebrantava a força das flechas e a chuva em breve ensoparia os fios dos arcos, privando-os de força. Da parte do exército inimigo não veio um único projéctil. Todas as mãos empunhavam armas e escudos, todos iriam participar directamente no assalto. Worick ainda considerou atirar as medas para os escombros, mas a meio de uma tempestade seria inútil tentar pegar-lhes fogo ou sequer esperar que fumegassem.

 

Pedras me partam, eles vão pôr tudo o que lhes resta neste ataque! o thuragar, berrando para quem o pudesse ouvir.

 

Larguem os arcos! Aewyre, já com Ancalach desembainhada e com Kror de alfanges empunhados a seu lado. os arcos! Só estão a desperdiçar flechas! Vão buscar as pedras e preparem-se para o assalto!

 

Os conscritos fizeram como lhes foi ordenado e outros tantos chegaram pelas escadas, acabados de sair dos dormitórios e despertos da sua sonolência pela cada vez mais intensa chuva. O guerreiro repetiu as ordens a todos os recém-chegados e olhou para o torreão da fortaleza, no qual não havia um único siruliano ou eahlan à vista. Fora das muralhas, drahregs e ulkekhlens já corriam livremente pelo carreiro acima, carregando escadas sem terem de se preocupar com fogo inimigo, e um relâmpago iluminou uma caterva de ulkekhlens a treparem pelos escombros da torre como formigas. Em breve começaram a chover pedras e pedregulhos das ameias, ameigando elmos e deslocando ombros, obrigando os sitiantes a erguerem os escudos mas incapazes de sequer fazerem a maré vacilar. Alguns drahregs refugiaram-se debaixo dos escombros, outros subiram por eles com escadas que vários ogroblins começaram a tentar enganchar nas ameias, tanto aos pés da muralha como por cima dos destroços, o que lhes dava uma vantagem de altura. Os defensores empurravam as escadas com lanças e armas de haste, mas os ogroblins eram fortes e alguns estabilizavam-nas puxando compridas cordas atadas a degraus nas extremidades. Ainda houve quem tentasse abater os inimigos mais próximos através de tiros de arcos, mas o seu sucesso foi irrisório, e Aewyre ordenou-lhes que parassem. O único que conseguia causar reveses minimamente assinaláveis aos intentos dos invasores era Allumno, cujos feitiços alumiavam a barbacã em tons iridescentes e faziam drahregs chamuscados e queimados caírem pelo afloramento abaixo. Ainda assim, as primeiras pontas de ferro de escadas e fateixas não tardaram a roçar na pedra dos cunhais das ameias.

 

Deixa-os vir disse Worick a Aewyre de barba a pingar, empunhando o martelo com ambas as mãos. O ataque deles está concentrado. Vão ser trucidados quando chegarem cá acima.

 

Pode ser, mas quero tornar-lhes isso o mais difícil possível replicou o jovem. Vocês! Vão aquecer a água! Ainda podemos vir a usá-la!

 

Os ulkekhlens haviam-se escondido entre os escombros da torre e nenhum subia as muralhas, mas como os conscritos não podiam usar os arcos, a situação não lhes fez grande diferença, permitindo-lhes apenas atirar pedras e outros detritos sem distracções. Seguiu-se a grande desordem de todos os primeiros assaltos, durante a qual drahregs tentavam subir pelas escadas e eram derrubados por projécteis e os defensores se apertavam nas ameias da barbacã de machados e lanças em riste de forma a tapar todos e quaisquer pontos de entrada possíveis. Boa parte das defesas da bastilha estavam concentradas naquele lugar, e mais vinham a caminho. Os drahregs começaram a arremessar farpões antes de tentarem subir às ameias, mas eram rapidamente varados ou alanhados pelo determinado aço dos defensores. A clava de um ogroblin bateu cegamente contra um merlão, e a mão que a empunhava tentou agarrar-se, mas os seus dedos foram rapidamente decepados à machadada. Pedras eram arremessadas por cima da cabeça dos defensores, precipitando-se contra os sitiantes em baixo, e alguns usavam as lanças como armas de arremesso, ansiosos por infligirem baixas ao inimigo que estava fora de alcance. A dada altura, a frente da barbacã nada mais era do que um amontoado de escadas apinhadas com grossas cordas à mistura. Um grupo de bramantes ogroblins sobre os escombros da torre começou a arremessar as suas pesadas esferas, que eram bem mais perigosas quando arrojadas do alto da ruína. Pequenas brechas foram abertas quando os defensores tiveram de se baixar ou recuar perante a ameaça dos enormes projécteis, e alguns drahregs conseguiram chegar às ameias, dando início às primeiras escaramuças. As famintas falcatas dos drahregs tombaram alguns conscritos, mas a resposta não tardou e muitos caíram, já mortos, das escadas. A defesa era demasiado compacta, o ponto de ataque demasiado estreito e a investida demasiado concentrada para que o inimigo conseguisse fazer algum avanço.

 

Um relâmpago faiscou quando Worick trouxe o martelo abaixo, rachando a testa a um inimigo, e o thuragar berrou desnecessárias palavras de encorajamento aos homens à sua volta, que matavam a um ritmo e frequência embriagantes, desbastando a investida dos sitiantes. Todos sentiam que, caso continuasse assim, o inimigo seria chacinado e a batalha terminaria em breve, o que afoitou todos a um esforço adicional para repelir o assalto. Um farpão resvalou na espaldeira de Aewyre e o jovem fendeu a cabeça do drahreg que lho arremessara, impelindo os cabelos molhados para a frente com a força do golpe. Não tinha espaço de manobra para fazer nada mais além de estocar e golpear com altabaixos, pois estava ombro a ombro com os conscritos aos seus lados, mas também não precisava de mais do que isso para se deixar imergir na rotina de matar e esperar que aparecesse o próximo para ser morto. Perdera Kror de vista, mas sentia a sua presença com uma intensidade aguçada pela peleja como havia muito não experienciava. Um encontrão ao seu lado desequilibrou o guerreiro ao espetar a ponta de Ancalach na garganta de um drahreg, e teve de se apoiar com uma mão na ameia para não cair quando a gravidade libertou a sua lâmina da carne do inimigo. Um relâmpago iluminou tudo nesse preciso momento, e Aewyre alarmou-se ao ver uma parte do exército dirigir-se à praticamente desprotegida muralha do outro lado da torre flanqueante.

 

Pela espada cruenta de Gilgethan! recuando da ameia e deixando um conscrito entrar no espaço que deixara livre. Worick! Worick! olhando em redor sem contudo avistar o thuragar. Quenestil estava à vista, pelo que se dirigiu apressadamente ao eahan enquanto este dava ordens a homens com cestos de pedras.

 

O eahan olhou na sua direcção e os dois aproximaram-se um do outro aos encontrões.

 

O que f...

 

Vai para o vértice e leva homens contigo! Os que precisares! Agora! praticamente empurrando o eahan. drahregs que se estão a dirigir para lá! Não te preocupes, as coisas estão controladas aqui!

 

Os dois amigos fitaram-se por breves instantes, ouvindo a voz arcana de Allumno no meio da refrega, seguida de um clarão escarlate, e o shura acabou por nutar com a cabeça. Aewyre deu-lhe uma forte pancada nas costas e devolveu a sua atenção à acirrada escaramuça nas ameias, avistando então Worick, cuja cabeça do martelo subia e descia às suas costas, pingando, vermelha. Os malditos não tinham hipótese, pensou o jovem. Desta vez não iriam sequer pôr os pés na muralha, e o seu ousado ataque ameaçava sair-lhes caro ao ponto de desbaratar o exército. Só tinham de aguentar e manterem-se firmes mais um pouco; o pesadelo estava prestes a acabar... quando um disforme vulto se abateu com um desnatural guincho estrídulo sobre a retaguarda dos conscritos, fazendo sangue espirrar e membros decepados voar, revoluteando o ar chuvoso com possantes asas. O vulto virou em pleno ar, assentou os pés sobre dois merlões e varreu tudo à sua frente com um golpe que tombou outros tantos defensores. Um relâmpago coriscou, iluminando uma abominação que estarreceu todos os que o viram na barbacã por um instante que mais pareceu uma eternidade.

 

A criatura era um horror espinhoso, sinuosamente musculada e com espículos sobre boa parte da sua quitinosa pele azulada matizada de branco, sobretudo nos ombros, cabeça e espinha dorsal. Era mais alta do que Aewyre, mas as suas asas de negras penas molhadas e a sua nervosa cauda com um cruel ferrão faziam-na parecer maior ainda.

 

Tinha uma cara triangular emoldurada por espinhos, com dois cornos curvos sobre os pequenos olhos vermelhos, duas achatadas fossas nasais oblíquas, uma boca de dentes afiados, um queixo que terminava numa excrescência óssea da qual pingava chuva e as garras dos seus pés agarravam-se aos merlões como as de uma demoníaca ave. Todos souberam de imediato que estavam diante do alegado líder do exército, um azigoth, um terror alienígena do qual muitos apenas tinham ouvido falar em atemorizantes histórias e contos à lareira. Mas havia algo mais neste, além da sua mera presença: a espada bastarda que a sua mão de espinhosos nós empunhava. Era terrivelmente bela e ornada, com dentes incrustados no pomo e nas pontas dos copos de ferro negro e uma rubiácea gema facetada embutida na guarda, da qual partia uma lâmina de aço baço. O azigoth ostentou a espada ao alto, soltando outro guincho vibrante, e todos os defensores ouviram uma voz nas suas cabeças, sedutora e sussurrante, que os despiu de uma só assentada de todos os revestimentos de sofisticação civilizada, descobrindo os seus instintos mais básicos e trazendo-os à tona. Medo exacerbado proliferou nas fileiras dos defensores, instigado por uma vontade exterior que lhes abria os olhos para os números e a ferocidade do inimigo, e todos reconheceram a espada pelo que ela era, embora nunca a tivessem visto: a própria espada do Flagelo.

 

Dalshagnar! gritaram vários, aterrados.

 

A Língua Negra! secundaram outros tantos, recuando com os seus companheiros.

 

Verguem-se perante Bathrazhúl, humanos! berrou a criatura na sua estrídula voz.

 

Nesse preciso momento, drahregs urrantes irromperam das ameias, e o inimigo pôs os pés no adarve, abatendo-se de seguida sobre os surpresos e amedrontados defensores.

 

Lutem, seus desgraçados, lutem! gritou Aewyre, que também ouvira a voz, mas que, tal como os seus outros companheiros e um punhado de homens mais determinados, não se deixara afectar mais além da surpresa que fora o súbito aparecimento do azigoth.

 

O guerreiro e Kror foram os primeiros a ripostar à investida inimiga, atacando lado a lado e ceifando todos à sua frente numa mortal safra. Worick veio atrás, martelando o seu caminho através do inimigo, e apenas Allumno permaneceu estarrecido a olhar para o azigoth e para a espada que empunhava, provavelmente o único ciente da gravidade daquilo que via. Mais do que um azigoth, o inimigo que defrontavam era um azathrax, um demónio de dor e agonia destinado a espalhar o sofrimento e a angústia. A criatura não estava interessada na tomada de Aemer-Anoth, o seu intento não era a conquista, mas sim causar o maior sofrimento ao maior número de seres. E empunhava Dalshagnar, a Língua Negra, a pérfida espada do Flagelo.

 

”Deuses, ele não quer vencer esta batalha! Só quer que todos sofram, não importa que todo o seu exército seja morto!”, apercebeu-se Allumno ao ouvir o azathrax soltar outro vibrante guincho aquando do embate dos sitiados e sitiantes. o azigoth! em aflição, apontando para ele com o cajado.

 

Mas todos estavam de mãos cheias com o Primeiro Pecado, sedento de sangue e vingança pelas humilhações sofridas. Os mais determinados defensores foram afoitados pela investida de Aewyre e dos seus companheiros, mas muitos ainda recuavam, aterrados pelas insidiosas palavras de Dalshagnar, e Allumno percebeu que teria de afastar a fonte do medo dos defensores. Entoou palavras arcanas que alumiaram a gema do seu cajado, que irradiou uma rajada escarlate contra o azigoth, fazendo-o oscilar com o impacto. O azathrax guinchou, identificou o seu agressor e bateu com as asas negras, de cujas penas molhadas jorraram bátegas, voando na direcção do mago com a espada erguida. Aewyre viu o terror voar por cima de si e atingiu-lhe a perna com um golpe de Ancalach, desequilibrando-o e obrigando-o a aterrar atempadamente no meio dos defensores. O azigoth guinchou em fúria e decepou dois conscritos assim que os seus pés assentaram no chão, virando-se de seguida para o guerreiro. De perto a criatura era ainda mais terrífica e intimidante, mas Aewyre estava demasiado ciente da gravidade da situação para sentir medo e as lâminas de ambos entrechocaram, estrídulas. Worick quis ajudá-lo, mas viu-se obrigado a proteger as costas do seu companheiro dos alentados drahregs que, inspirados pela presença do azigoth e pelo recuo dos defensores, atacavam com redobrada fúria. Kror dançava entre os seus congéneres, que tombavam surpresos ante os seus rodopiantes alfanges, e Allumno bombardeava as fileiras inimigas com uma pletora de feitiços que iluminavam a escaramuça quase tanto como os relâmpagos da tempestade que se sucediam. Aewyre e Bathrazhúl prosseguiam com o seu combate singular e as suas lâminas lambiam-se, silvantes. O azigoth era rápido e os seus golpes fortes, mas não tinha a perícia do guerreiro e estava com as costas expostas aos defensores na sua retaguarda, o que um grupo de quatro homens não tardou a aproveitar. Contudo, a cauda do azathrax espadanou e derrubou três deles, cravando o ferrão no quarto com estonteante velocidade.

 

O conscrito atingido caiu de imediato ao chão, gritando e contorcendo-se em cruciante agonia como se as suas entranhas estivessem em fogo. Aewyre grunhiu em voz alta, desviou uma espadeirada de Bathrazhúl e escoriou-lhe o espinhoso ombro. A pele do azigoth era dura e quitinosa, mas o gume de Ancalach mordia-a ferozmente e causava-lhe dor que estava habituado a provocar e não a sentir. Furioso, o azathrax fez uso da sua cauda, cujo ferrão surgiu do nada e se espetou contra o flanco de Aewyre, embora incapaz de penetrar na fresta da armadura. Desequilibrado, o jovem agradeceu uma vez mais à mestria dos ferreiros sirulianos quando foi incapaz de bloquear o golpe seguinte e Dalshagnar se abateu sobre a sua espaldeira direita, amolgando-a e atirando-o de lado ao chão com a força do golpe. Um relâmpago de Allumno chamuscou as costas do azigoth, mas este não estava disposto a prescindir da sua vulnerável presa e o ferrão da sua cauda desceu, visando a cara de Aewyre. O guerreiro desviou-a e agarrou-se à cauda com a mão esquerda antes que esta fugisse, fazendo uso do seu impulso recuante para se levantar e golpear Bathrazhúl, que aparou Ancalach atempadamente.

 

Worick urrou ao rebentar as vísceras de um drahreg à martelada, ”e espirrando pingos de chuva com a violência do golpe. Passado o temor inicial causado pelas palavras de Dalshagnar, os defensores começavam a recuperar o alento e juntavam-se aos companheiros na peleja, mas os drahregs já estavam no adarve e mostravam-se determinados a não serem repelidos, animados pela presença do azigoth e da espada do seu desaparecido senhor. Kror rosnava enquanto combatia os seus, tentando ignorar as insistentes vozes de Kerhex e Sassiras’s na sua cabeça.

 

Idiota! Volta-te contra eles agora, ajuda-os a tomar a fortaleza! Mata o azatbrax e torna-te senhor entre os teus inferiores!

 

Ajuda-os, Kror! Eles precisam de ti!

 

As palavras do azigoth e da divaroth eram mutuamente contraditórias como sempre, mas desta vez o drahreg sentia-se verdadeiramente dividido. Ajudar os defensores era de facto a coisa menos lógica a fazer; eram superados em números pelos inimigos e apenas a presença dos companheiros os impedira de debandarem. De facto, Kror começava a repensar o que estava a fazer, mesmo enquanto tombava atacante após atacante. Os seus instintos mais primários despertavam, e Kerhex cavava por eles como um cão obstinado enquanto Sassiras’s fazia os possíveis por tapar o buraco causado pelo seu companheiro no escudo protector que a tanto custo viera a criar.

 

Sim... sim! o azigoth.

 

Kror, não! Não depois de tudo que...

 

Os olhos do drahreg ficaram vidrados e sentiu um rosnido primordial aflorar-se-lhe do peito pela garganta acima, alteando-se num berro que lhe escapou da boca escancarada quando Kror virou as costas aos seus e atacou os surpresos defensores atrás de si. O primeiro ficou com um alfange afundado na garganta até ao osso, sendo empurrado com um pé para cima de um segundo, e o terceiro ainda aparou uma espadada antes de a ponta do outro alfange lhe entrar pela virilha acima, passando debaixo da saia da sua túnica de cota de malha.

 

Drahreg de um raio! Worick, rachando a nuca de um e atacando Kror. sabia que não podíamos confiar em ti!

 

O drahreg ainda decepou a mão a um defensor antes de reparar no thuragar que investia contra ele, e a sua reacção foi pegar no sangrento braço do homem e atirá-lo contra Worick, que se deteve para tirar de cima de si o conscrito em estado de choque. Um outro drahreg surgiu para o distrair, e o thuragar teve de lhe dar atenção para desviar a sua lançada com o cabo do martelo e cravar-lhe o espigão na coxa, partindo-lhe o queixo de seguida. Kror corria na direcção do azigoth, cortando e acutilando por entre os ainda abalados defensores enquanto a espada do azathrax cantava um estridente dueto com a de Aewyre. A sua inesperada investida surpreendeu Bathrazhúl, cuja asa esquerda foi mordida por um alfange que fez penas negras voarem. O azigoth reagiu em estrídula fúria, encalhando Dalshagnar entre ambos os alfanges num forte golpe que fez Kror recuar, mas deixou uma abertura que Aewyre aproveitou com um golpe que cortou vários espinhos do braço do adversário. Bathrazhúl guinchou e bateu as asas, impelindo o corpo para trás e girando em si, decapitando e desmembrando vários conscritos com um único golpe antes de aterrar para enfrentar os seus dois inimigos. Allumno estava prestes a soltar um feitiço quando ouviu a voz de Zoryan na sua cabeça.

 

Não... será possível?

 

Mestre?

 

A gema, Allumno!

 

O mago deteve-se e olhou atentamente para a gema facetada incrustada em Dalshagnar enquanto o azigoth matava os defensores. Homens corriam e gritavam ao seu lado, mas Allumno permaneceu quieto, esmagado ao perceber o que Zoryan quis dizer.

 

Deuses... o mago em surdina, correndo de imediato para dentro da torre contra a maré de conscritos que avançavam para a defesa da barbacã.

 

Kror, deixa-o! Aewyre, atacando Bathrazhul ao lado do drahreg. ajudar os homens!

 

Kror ignorou-o e rosnou, desviando uma espadada do azigoth e desferindo um altabaixo com o outro alfange, do qual o azathrax se desviou, bloqueando Ancalach no mesmo movimento. Aewyre ripostou com um corte transversal que o adversário aparou com um bloqueio duro, varrendo os pés de Kror com a cauda e derrubando o drahreg antes que este pudesse aproveitar a abertura. Uma das suas mãos largou o punho da espada e golpeou um homem atrás de si, rasgando-lhe a cara com os espinhos nos nós dos dedos, e Aewyre deu uma passada lateral, torcendo os pulsos e estocando o flanco do azigoth de raspão. Bathrazhul soltou um protesto guinchante e obrigou Aewyre a defender-se de uma chicotada da sua cauda com o braço, o que fez com que desse três desequilibrados passos para trás. Kror tentava erguer-se, mas o azigoth trouxe Dalshagnar triunfantemente acima e preparou-se para partir o drahreg ao meio. Nesse preciso e longo momento, Aewyre e Kror sentiram o ”tendão” esticar-se ao máximo, parecendo ranger e ameaçando estalar com a tensão. O guerreiro aliviou instintivamente a pressão e simplesmente... deixou de puxar, quedando-se imóvel ao fazê-lo. O não mais contestado ”tendão” arremeteu para o drahreg, originando nele um impulso reflexo que lhe percorreu o corpo inteiro com uma extasiante sensação de unidade com os seus alfanges e com tudo e todos os que o rodeavam. Os movimentos à sua volta eram claros e bem definidos, deixando rastos no ar como se efectuados debaixo de água, e sentiu que podia isolar individualmente todos os combatentes na barbacã. A ameaça mais imediata era Dalshagnar e Kror isolou-a de todo o resto enquanto a Língua Negra cortava o ar em aparente lentidão, deixando um ondulante rasto para trás. Um surto de energia permitiu ao drahreg impelir o seu corpo para o lado com um golpe de pernas e descrever um arco à sua frente com ambos os alfanges enquanto o fazia. A reverberante ondulação causada pelo primeiro embateu solidamente contra a Língua Negra, desviando-a da sua trajectória, e a do segundo causou uma racha no quitinoso ventre do azigoth, vertendo sangue roxo. Bathrazhul guinchou estridulamente de dor e recuou um passo, mas Kror insistiu no ataque, ainda revigorado pela estranha sensação, e desferiu uma cutilada de lado com ambos os alfanges. Bathrazhul oscilou Dalshagnar a tempo de travar as armas do drahreg, afastou-o com uma larga varredela da espada e tornou a bater com as asas, impulsionando-se desta vez para fora do adarve e esvoaçando pelo pátio interior.

 

O combate nas ameias tornou-se uma vez mais rápido e arrebatado para Kror, juntamente com a indistinta cacofonia da peleja e os movimentos borrados dos combatentes que corriam e gritavam à sua volta. Fitou Aewyre estupidamente durante breves instantes, até o guerreiro reaver a sua presença de espírito e se aperceber de que o azigoth se dirigia para as frágeis defesas na outra muralha.

 

Maldição, o Quenestil! Kror, vai atrás dele! o guerreiro, virando-se de imediato para o combate nas ameias, mas algo fez com que esquecesse momentaneamente a ameaçada muralha e devolvesse a sua atenção ao drahreg.

 

Os olhos vermelhos de Kror fitavam-no, com algumas ensopadas tranças defronte da cara que o drahreg tirou com uma brusca sacudidela da cabeça. Os seus díspares alfanges pingavam sangue aguado e ergueram-se lentamente para uma postura de combate, brilhando com um relâmpago que iluminou os pingos que escorriam pela sua pele negra e os afiados caninos dos seus dentes arreganhados. Aewyre percebeu e também sentiu o que motivava Kror, sentiu-o sobrepor-se ao pensamento racional, ao acordo que tinham feito, aos seus propósitos e objectivos, a tudo menos ao irresistível desejo de medir aço com o drahreg. O guerreiro crispou os dedos de ambas as mãos no punho de Ancalach e aprestou-a a seu lado, pingando do nariz e queixo e com a grossa chuva a tamborilar-lhe no arnês.

 

Se tiver de ser assim...

 

Worick surgiu repentinamente do nada, gritando enquanto corria contra Kror com um drahreg trespassado pelo espeto do martelo à sua frente. Kror foi surpreendido e atingido pelas costas do seu congénere, que o derrubou e que de seguida caiu com o furioso thuragar por cima. Aewyre sentiu-se despertar de um sonho do qual se lembrava perfeitamente e olhou alternadamente para Kror e para Worick, que arrancou o espigão do peito do drahreg e lho cravou na garganta com um grunhido, fitando logo de imediato o guerreiro e o seu adversário.

 

Vamos desancar esse desgraçado... o thuragar, levantando-se de martelo empunhado.

 

Worick, não! Aewyre, apontando para a muralha que mal viam atrás da torre flanqueante. atrás do azigoth; o Quenestil está sozinho com poucos homens!

 

O thuragar pareceu momentaneamente indeciso, mas viu a razão nas palavras do seu companheiro e correu na direcção indicada após lançar um olhar ameaçador a Kror, deixando os dois à sua querela. Correu por entre o combate, distribuindo marteladas e encontrões aleatoriamente e gritando palavras de apoio aos defensores. A sua vontade era permanecer para ajudar os conscritos, pois a arremetida do inimigo estava a ser feroz, mas sabia que a morte do azigoth seria mais eficaz e desmoralizante do que a de mil drahregs. Partiu a bacia a um drahreg ao passar por trás dele e tropeçou num cadáver, levantando-se sem demora e entrando pela torre flanqueante adentro sem sequer reparar em Allumno, que estava sentado de pernas cruzadas e encostado à parede ao lado da entrada pela qual o thuragar irrompera. O mago estava de olhos fechados e a gema na sua testa refulgia, indicando a sua imersão no Pilar de Allaryia.

 

Aemer-Anoth brilhava furiosamente com os milhares de pontos cintilantes dos combatentes, que mais pareciam um enxame de pirilampos na translúcida imensidão do Pilar. Embora Ancalach, Dalshagnar e os alfanges de Kror se destacassem todos claramente, o azigoth era perfeitamente distinguível, possuindo mesmo uma silhueta parecida com a do seu verdadeiro corpo pelo simples facto de a sua raça ser praticamente nativa do Pilar. Foi na sua direcção que Allumno voou, alheio a tudo menos à Língua Negra, ansioso e ao mesmo tempo temente daquilo que ia experimentar. Assim que o alcançou, pairou a seu lado e concentrou-se no ponto escarlate da gema facetada que fulgurava com um brilho próprio no meio da fulgência de Dalshagnar.

 

Tem a certeza, mestre? o mago, hesitante. que tenhamos razão, desconhecemos os potenciais efeitos...

 

Só há uma maneira de descobrir, pupilo Zoryan. Tenho confiança nas tuas capacidades.

 

A manifestação etérea do mago soltou o que fora do Pilar seria um suspiro e estendeu a mão para tocar na brilhante forma da gema. E desapareceu.

 

O fio molhado do recurvo arco ocarr de Quenestil soltou pingos de chuva ao vibrar, e a fraca flecha que disparou atingiu o ombro de um drahreg que subia uma escada, derrubando-o. O eahan pegou na ponta da haste de mais uma e tornou a frechar o arco, escolhendo um alvo casualmente enquanto o pequeno grupo de homens que trouxera rechaçava os que chegavam às ameias. O drahreg que seguidamente atingiu debaixo da axila levou outro consigo ao cair, mas o shura nem sequer soltou uma exalação de triunfo ao frechar o arco uma vez mais. A arma estava a perder a potência e apenas conseguia atingir alvos próximos, e mesmo assim requeria a apurada pontaria do eahan para acertar em pontos vulneráveis, pois qualquer armadura já era protecção a mais. Os seus homens estavam a aguentar-se bem, e os drahregs ainda eram importunados pelo fogo dos arcos secos dos homens nas seteiras da torre flanqueante, mas eram poucos e o inimigo vinha às centenas, apesar de não passar de uma manobra de diversão para obrigar os defensores a dividirem os seus recursos. Ainda assim, nenhum drahreg conseguira ainda pôr os pés no adarve, e apenas dois dos trinta homens que Quenestil trouxera haviam morrido. Se conseguissem aguentar o ritmo da batalha, o inimigo certamente acabaria por se destroçar...

 

Mas ninguém contava com o horror que desceu dos céus sobre a retaguarda dos conscritos, abatendo-se sobre eles com a fúria acerada de uma terrível espada que numa única varredela tomou a vida a quatro e feriu outros tantos. O aterrador guincho que o horror soltou debelou a firmeza com a qual os homens defendiam a posição, e a sussurrante voz que ouviram dentro das suas cabeças incitava-os a todos a fazerem a coisa mais lógica e natural: fugir dos avassaladores números do inimigo. Alguns homens largaram as armas, outros ficaram estarrecidos quando o monstro pousou sobre dois merlões, brandindo a sua cruel espada e soltando outro arrepiante guincho vibrante. Quenestil não hesitou em disparar e a sua flecha enterrou-se na quitinosa pele do dorso do terror, embora parecesse tê-lo surpreso mais do que o incomodou. Quenestil não sabia o que enfrentava, mas calculou que pudesse ser o azigoth do qual todos haviam falado e que era um alvo a abater, pelo que frechou o arco rapidamente e soltou outra flecha, que atravessou a asa direita do monstro. O azigoth reagiu com um incomodado guincho e preparou-se para saltar para cima do ousado eahan, mas quando os primeiros drahregs surgiram nas ameias, achou melhor garantir a sua entrada com mais umas cabeças decepadas e optou por o ignorar. Quenestil preparava-se para disparar outra vez, tentando visar a garganta do azigoth, quando um relâmpago estalou e lhe ofuscou momentaneamente a visão, após o qual uma voz atrás de si causou um ardente afloramento no seu epigastro.

 

Quenestil!

 

O shura olhou para trás, apontando a flecha para o chão, e viu Tannath.

 

O ribombo de um trovão fez a muralha estremecer, mas o eahanoir continuou a avançar a passo cuidado e descontraído, empunhando estilete e quebra-espadas de pontas viradas para baixo. A sua capa negra estava ensopada e mal se mexia com o vento, e os seus sedosos cabelos puxados para trás e presos num rabo-de-cavalo pareciam colados à cabeça, realçando a alvura do seu semblante. A rubra tatuagem em redor do seu vivo olho cinzento parecia brilhar na obscuridade, mas decerto isso não passava de uma ilusão. A escaramuça nas costas de Quenestil perdeu toda a sua importância, os gritos dos defensores e dos drahregs, os guinchos e o silvo da espada do azigoth; o eahan apenas tinha olhos e ouvidos para Tannath.

 

Tu. Como...?

 

Um amigo com asas trouxe-me até à muralha gritou o eahanoir sem se deter. O resto não precisas de saber. Vem desafiou, cruzando os braços e levando as armas aos ombros em falsa saudação, larga esse arco e vamos jogar.

 

O shura continuava com uma expressão ilegível na cara a apontar a flecha para o chão como a estátua imóvel de um arqueiro à chuva, embora Tannath continuasse a avançar.

 

Devo-te dor, Quenestil disse o eahanoir. A ti e à Slayra, que vai ter uma pequena conversa comigo assim que nós tratarmos dos nossos assuntos...

 

Foi a pior coisa que Tannath podia ter dito. O fio molhado do arco vibrou e uma seta singrou contra o surpreso eahanoir, atravessando-lhe o antebraço esquerdo perto do cotovelo. Tannath grunhiu de dor, largou as armas e cambaleou, agarrando a haste da flecha com a mão direita. Quenestil atirou o arco ao chão e encaminhou-se de punhos fechados na direcção de Tannath, que cerrou os olhos e puxou a seta, cuja haste e volante de penas deslizaram dolorosamente para fora da ferida. E então o shura estava em cima dele, esmurrando-lhe o estômago, a cara duas vezes, agarrando-o pelo colarinho e impelindo a sua cabeça contra um merlão. O eahanoir embateu com a testa na pedra e o seu mundo apagou-se por breves instantes, iluminado de seguida pela aguda dor causada pelos repetidos golpes de Quenestil nos seus rins. Impeliu o cotovelo direito instintivamente para trás e atingiu o eahan no olho, tirando-o de cima de si e ganhando espaço para respirar, mas o shura rosnou e saltou-lhe em cima, agarrando o pulso do seu braço bom e pressionando-lhe o queixo com o seu, inclinando-o para trás com o intuito de lhe partir o pescoço. Tannath não contara com tanta raiva, mas via que o ódio que Quenestil por ele sentia era motivado por algo mais além de Slayra. Slayra...

 

O eahanoir cerrou os dentes, crispou o punho esquerdo e agrediu a têmpora do eahan com o nó do polegar, levando o joelho acima de seguida contra a sua virilha. Quenestil grunhiu de dor e aliviou consideravelmente a pressão, permitindo a Tannath espetar-lhe dois dedos hirtos nas costelas e esmurrá-lo na cara, tirando-o de cima de si. O eahan cambaleou e escorregou no adarve molhado, caindo ao chão. O eahanoir não perdeu tempo e chutou-o na barriga, curvando-o.

 

Vocês destruíram-me, tu e a Slayra disse calmamente sem prestar a mínima atenção ao furioso combate que se desenrolava poucos passos atrás, levantando Quenestil do chão com outro pontapé quando este se tentou erguer. Tiraram-me tudo. Um chuto no queixo para enfatizar, que fez o eahan cair de costas, espirrando pingos de água do seu cabelo e sangue da boca.

 

Algumas madeixas do cabelo de Tannath haviam-se soltado e estavam coladas à sua invulgarmente calma face, embora sangrasse de uma ferida na testa e do canto da boca. Quenestil virou-se de barriga para o chão e tornou a tentar erguer-se, mas o eahanoir calcou-lhe os rins com o calcanhar.

 

Eu até nem desgostava de ti, sabes? Estava disposto a soltar-te e ao teu amigo afirmou, pisando casualmente a nuca do eahan e fazendo-o embater com a testa contra o chão. Mas assim que soube o que a Slayra estava a tentar fazer... a sua voz ficou apertada e o eahanoir grunhiu ao pontapear o estômago de Quenestil, que arfou, sufocado.

 

Espero que tenhas gostado de a comer, Quenestil, porque eu vou ser o último a fazê-lo antes de lhe cortar a garganta! afirmou, levando o pé atrás para chutar a cabeça do eahan contra as ameias, mas desta vez Quenestil agarrou-lhe o tornozelo e calcanhar com ambas as mãos, torcendo-lho com um rosnido e derrubando-o.

 

Os dois rebolaram pelo adarve como cães acirrados, rosnando e grunhindo e agredindo-se mutuamente.

 

Worick carregou contra os drahregs que contestavam a cortina sul da muralha com o pequeno grupo de conscritos, bradando a plenos pulmões um pétreo grito de guerra em Garogar. Quenestil combatia um adversário do outro lado da escaramuça, mas não parecia precisar de tanta ajuda como os defensores, pelo que a raiva do thuragar ficou reservada para os drahregs. Caiu sobre os invasores como um projéctil de aço, abrindo uma brecha com uma larga martelada e malhando os inimigos que a tentavam colmatar. A atempada intervenção de Worick deu aos conscritos o breve instante de que necessitavam para recuperarem o fôlego e vieram em socorro do thuragar com espadas, lanças e machados. Bathrazhúl guinchou em estrídula fúria, bateu as asas negras e abateu-se sobre o thuragar com Dalshagnar levada atrás. Um relâmpago faiscou atrás do azigoth, sombreando a sua dianteira e tornando-o aos olhos de Worick num imenso vulto negro com uma rutilante espada pronta a decepá-lo. Ergueu o escudo que atara à manopla e tremeu com o violento impacto que por pouco não lho estraçalhou, ripostando com uma martelada que atingiu um drahreg que apareceu defronte do azathrax em vez deste. Bathrazhúl atingiu outro defensor com o ferrão da sua cauda enquanto combatia o thuragar, e o homem gritou em agonia quando todos os músculos do seu corpo se contraíram espasmodicamente. Worick grunhiu quando a ponta de uma lança resvalou na sua couraça e concutiu o drahreg que estava entre si e o azigoth, que por sua vez enterrou Dalshagnar no ombro protegido por cota de malha de um defensor.

 

Enfrenta-me a mim, coisa feia! o thuragar, partindo o cotovelo a um drahreg que atacava um homem ao seu lado.

 

Bathrazhúl aceitou o repto com um guincho e bateu com as asas para fora, afastando todos os que o rodeavam, amigos e inimigos, e empunhou a espada com ambas as mãos. Uma ferida no seu ventre vertia sangue roxo, bem como duas incisões no braço e na perna, mas não parecia incomodado de sobremaneira.

 

Vem, refugo de humanos na sua chiante e áspera voz.

 

Eu dou-te o refugo, minha azémola! o thuragar, investindo por entre a refrega de defensores e drahregs com o martelo erguido.

 

Bathrazhúl aparou o golpe, escoriando o cabo do martelo com o gume da lâmina, e o seu ferrão arremeteu contra a garganta do thuragar, incapaz de penetrar no couro e na cota de malha do seu gorjal, mas com força suficiente para o desequilibrar. O azigoth levou Dalshagnar acima, descrevendo com ela um semicírculo sobre a sua cabeça, e trouxe-a com ímpeto para baixo num golpe transversal. Worick ergueu o improvisado escudo e os ossos do seu braço rangeram com a força da colisão entre aço e madeira quando o gume da espada se enterrou na madeira. O thuragar aproveitou o instante que o azathrax usou para tentar libertar Dalshagnar e virou a face do martelo, levando-o atrás e deixando o cabo deslizar pela sua mão até ser travado pelo pomo, desferindo de seguida um altabaixo no ombro de Bathrazhúl com o bico recurvo da arma. A dura pele quitinosa do azigoth cedeu com um estalo e sangue roxo brotou da ferida, fazendo-o soltar um vibrante guincho de olhos fechados e responder com um golpe das costas da mão, cortando a cara do thuragar com os espinhos nos nós dos seus dedos. Worick grunhiu e aproveitou o facto de o bico estar cravado no ombro do adversário para puxar o martelo, reduzindo a distância que os separava e magoando o azigoth ao fazê-lo. O seu próprio sangue escorria-lhe dos arranhões na testa e no septo nasal, acalentando-lhe a cara e tapando-lhe ambos os olhos, e Worick debateu-se cegamente com Bathrazhúl, acabando por dar consigo nas espinhosas costas do monstro com o braço direito à volta do seu pescoço e a agarrar um espinho do ombro, e o outro a torcer o bico do martelo na ferida do azathrax. A chuva que lhe batia na cara clareou-lhe os olhos a tempo de ver Dalshagnar vir na sua direcção, embatendo contra o seu elmo num desajeitado golpe, e Worick torceu o martelo em resposta, rasgando o ombro do azathrax por dentro. Bathrazhúl tornou a guinchar e algo embateu duas vezes em vão contra as costas do thuragar, provavelmente o ferrão.

 

Agora vamos ver quem é o refugo, passarinho! berrou o thuragar ao ouvido do azigoth, torcendo o martelo mais um pouco e cuspindo penas negras da boca quando Bathrazhúl bateu as asas em fúria.

 

Kror desferiu uma cutilada oblíqua com o alfange direito, esticando o esquerdo para trás em preparação do seguimento, mas Aewyre leu-lhe os movimentos e aparou o primeiro com o lado da lâmina de Ancalach, travando-o com os copos e usando a mão esquerda para empurrar o alfange para a sua direita. Ao fazê-lo, bloqueou a trajectória do segundo e oscilou a Espada dos Reis por cima da sua cabeça num golpe que deveria atingir os rins do drahreg, mas com um golpe destes e com um rápido ajuste da perna direita para trás, Kror aparou a cutilada a tempo. Aewyre deu uma passada atrás e descreveu um semicírculo inverso com a arma, visando a perna do drahreg, mas este fez o mesmo movimento de pés e bloqueou o golpe com o alfange direito, usando o seguinte numa cutilada contra a cabeça do adversário. O guerreiro viu-se forçado a ceder outro passo, cruzando a perna esquerda atrás da direita e trazendo o pomo de Ancalach acima para receber o golpe com a lâmina, cuja ponta ficou apontada para a garganta de Kror, que se desviou rapidamente da subsequente estocada, assumindo de seguida uma posição defensiva. Aewyre sentia-se mais limitado que o drahreg, pois por muito cómoda e flexível que a armadura fosse, os seus movimentos estavam mais restritos do que os de Kror. Teria de fazer bom uso da protecção adicional que o arnês lhe providenciava e resguardar a cabeça, e acima de tudo fazer os possíveis por ignorar o furioso combate que se desenrolava à sua frente e no qual devia estar a participar, a ajudar os conscritos antes que estes fossem esmagados pelos números do inimigo. Mas a força do ”tendão” era demasiada. Não iria ser negado desta vez, não a meio de uma batalha, não quando o aço frio retinia nos seus ouvidos e a fraqueza da carne perante o seu afiado beijo se evidenciava em redor de ambos. Os dois guerreiros fitaram-se um ao outro, ofegantes, pingando e escorrendo chuva. Nenhum tencionava morrer, pois tanto um como o outro ainda tinha objectivos a cumprir, mas o ”tendão” queria o sangue de um deles. Aewyre ponderou por breves instantes o que acontecera quando Bathrazhúl estivera com Kror a seus pés e lembrou-se do sucedido no Poço de Songul, quando um repentino surto de energia o salvou de ser morto por dois arqueiros ocarr. Na altura recebera algo; desta vez concedera-o, mas o quê? A Essência da Lâmina estava dividida entre ambos, apenas a morte de um conferiria plenos poderes ao outro, e contudo...

 

Kror não parecia disposto a reflexões, e o seu corpo tensionou-se quando outro relâmpago coriscou, despertando o guerreiro dos seus pensamentos e fazendo-o crispar os dedos no punho de Ancalach reflexivamente. Parecia haver apenas uma maneira de acabar com tudo...

 

Um trovão estrondeou quando os dois avançaram, mas algo mais se fez ouvir a meio do ribombo, algo cruel, desumano, e gélido como os ventos do Norte, algo que parou o combate nas ameias por breves instantes. Aewyre e Kror tiraram os olhos um do outro e viram o vulto entre dois merlões, ensoberbecendo-se sombriamente sobre os combatentes com dois pontos vermelhos brilhantes no lugar dos olhos. O guerreiro reconheceu-o.

 

Ele... em surdina.

 

Baodegoth viu-o e tornou a uivar, abatendo-se sobre os combatentes em fúria.

 

Ancalach! gritou um coro de vozes provenientes do vazio debaixo do seu maxilar superior enquanto fazia a linha de defensores recuar com violentas ceifadelas da sua porosa espada negra. Os drahregs urraram, inspirados pela presença do moorul, e carregaram contra os já vacilantes conscritos.

 

Ainda assim, Aewyre continuava dividido entre Kror e Baodegoth, pois o ”tendão” nunca estivera tão tenso como naquele momento, exigindo o fim decisivo da contenda. Não foi senão quando um horriestridente grito se ouviu no ar e uma sombra voou contra Aewyre que o encanto por fim se quebrou, obrigando o jovem a baixar-se para evitar as garras que visavam a sua cara.

 

”Não, não é possível...”, pensou, olhando para trás e vendo a sombra assumir a furiosa forma da harahan, cujo braço estava entalado. ”O Kror, o moorul, e agora a harahan? O que é que se está a passar aqui?”

 

Por sua vez, o drahreg pareceu ficar possesso ao ver Hazabel e investiu contra ela antes que o guerreiro pudesse decidir o que fazer. A harahan, Kror, Baodegoth... acabou por optar pelo moorul, ciente de que estava a desperdiçar a oportunidade de obter respostas a respeito da sua alegada filha e de terminar de uma vez por todas a contenda da Essência da Lâmina. Brandiu Ancalach e juntou-se aos conscritos na cada vez mais desesperada defesa da barbacã.

 

Kror rosnava ao arremeter de alfanges em riste contra uma surpresa Hazabel, que obviamente não esperara encontrá-lo tão longe das estepes e que provavelmente o confundira com um drahreg comum.

 

Não, idiota! O que estás a fazer? Kerhex na sua cabeça.

 

Sim, Kror! Cumpre a tua promessa! Sassiras’s. Hazabel tornou a mesclar-se às sombras e deslizou pelo adarve na direcção de Aewyre, mas o drahreg não estava disposto a deixá-la escapar tão facilmente e arrojou o alfange de pomo rubiáceo, que girou pelo ar, sibilante. A harahan sentiu algo afiado morder-lhe a sombria coxa e assumiu a sua forma corpórea ao cair, derrapando pelo chão com o alfange a retinir ao seu lado. Kror empunhou o seu outro alfange com ambas as mãos e correu com intentos assassinos na direcção daquela que causara a morte de tantos dos seus irmãos, daquela que mutilara a Venerável, cujo fetiche parecia arder-lhe sobre o peito. Viera para Aemer-Anoth, porque o rasto da harahan o conduzira ao mar e porque sentira a sua vinda na direcção da fortaleza, e agora estava na hora de cumprir o papel de vingador que assumira. Porém, a poucos passos de Hazabel surgiu um conscrito que o tomou por inimigo e arrojou uma lança na sua direcção. Kror girou em si e deflectiu-a com o alfange, mas o humano desembainhou a espada e atacou-o, berrando pela sua morte. O drahreg desviou facilmente a sua espadada e passou-lhe o gume do alfange pelo interior do braço, desarmando-o e acutilando-lhe o pescoço de seguida. Quando se virou, algo duro lhe vergastou os rins, desequilibrando-o, e a outra metade da haste da lança que Hazabel empunhava atingiu-o de seguida na barriga, encaixando-se seguidamente na sua nuca e puxando a sua cabeça contra o joelho da harahan. Kror não esperara tal força e rapidez e o seu mundo ficou turvo, mas ainda viu a cara de dentes cerrados de Hazabel antes de a haste o atingir em cheio na sua, atirando-o rodopiante para o chão. A única coisa que o salvou de ser varado pela lança foi a aparição de outro conscrito que atacou Hazabel e que teve atravessado na barriga o destino que lhe fora reservado. E então a escuridão desceu.

 

Aewyre decapitou um drahreg, cuja cabeça rapada rodopiou por cima das dos combatentes, regando-as com sangue que rapidamente foi lavado pela chuva. Baodegoth estava a poucos passos de distância, espalhando caos e morte pelos defensores que não haviam recuado, mas os drahregs pareciam querer impedir o guerreiro de medir aço com ele.

 

Saiam-me da frente, desgraçados! aparando uma machadada, batendo num escudo, cortando um pulso, desferindo um pontapé na desprotegida canela de um adversário e fazendo a sua cabeça estalar com uma pancada do pomo de Ancalach.

 

O moorul reparou no seu esforço e pareceu decidir compensá-lo, pois os drahregs à sua frente gritaram de surpresa dor quando a espada negra lhes lanhou as costas.

 

Ancalach! o bizarro coro de vozes a gritar.

 

É esta! Aewyre, passando a espada pelo abdómen de um drahreg e pelo seu dorso, abrindo caminho para o moorul. Estava demasiado imerso no júbilo da batalha para sentir medo ou dúvidas. Vem buscá-la!

 

Baodegoth aceitou o desafio e investiu com uma violenta espadeirada descendente que o guerreiro desviou, obrigando o moorul a baixar-se com um corte horizontal de duas mãos que lhe decepou três dos recurvos chifres do elmo. A espada negra voltou e Aewyre cruzou as pernas, orientando a ponta de Ancalach para baixo e bloqueando o golpe que visara o seu joelho. As duas lâminas roçavam asperamente uma na outra devido à textura escabrosa da espada do moorul, criando uma áspera música enquanto se lambiam uma à outra. Baodegoth conseguiu atingir o adversário no braço, mas o braçal deflectiu a lâmina sem perigo e o jovem pôde ripostar com um corte rente à cabeça que arrancou dentes à caveira. Os olhos do moorul brilhavam, mas falhavam em incutir medo a Aewyre devido à determinação do guerreiro e à situação de conflito generalizado a meio da qual se encontravam. Um drahreg surgiu no meio de ambos e teve a perna decepada pelo guerreiro e a cabeça escachada pelo moorul, roubando apenas esse instante de atenção aos dois combatentes.

 

Dá-nos a espada ou morre, humano! uma voz, deixando a lâmina de Ancalach deslizar pela porosa espada e oscilando-a em arco, atingindo o joelho de Aewyre.

 

O jovem desequilibrou-se e a joelheira atingida bateu no chão, deixando-o ajoelhado perante o adversário, que trouxe a espada pelo caminho inverso e na direcção do pescoço de Aewyre. O guerreiro empunhou Ancalach com ambas as mãos e recebeu o golpe com os copos da espada, nos quais a encalhou para ganhar tempo para se levantar. Baodegoth resistiu, mas Aewyre continuou a exercer pressão e torceu os copos, passando a lâmina do moorul por cima da sua cabeça e esmurrando-o como seguimento do movimento. A sua manopla estraçalhou o que sobrava do maxilar superior de Baodegoth, mas este não pareceu afectado e respondeu com um golpe das costas da mão que atirou o jovem para trás apesar de apenas o atingir de raspão. Aewyre colidiu contra um grupo de drahregs e levou uma machadada que lhe amolgou a espaldeira esquerda antes de se virar para os enfrentar. Sabia que o moorul vinha atrás de si, mas não podia ignorar as restantes ameaças e estocou a garganta do inimigo mais próximo. Um outro atacou-o enquanto a ponta de Ancalach ainda estava alojada debaixo do queixo do drahreg que acabara de matar, e o jovem aparou a espadeirada instintivamente com o braço, aliviado ao ouvir o retinir metálico do arnês que se esquecera de estar a envergar. O drahreg que o agredira tentou golpeá-lo outra vez, mas Aewyre desviou-se, puxou Ancalach rapidamente, pegou no drahreg degolado pelos cabelos e atirou-o para trás e contra o moorul, que se atrapalhou tempo o suficiente para Aewyre entrar pelo terceiro golpe do adversário adentro e deslizar a espada pela axila do drahreg, sacando-a bruscamente para lhe cortar o músculo peitoral. Interrompeu o ataque de um terceiro a meio e cortou-lhe os dedos que agarravam o cabo do machado que empunhava, feito o qual Baodegoth tornou a exigir a sua atenção.

 

Dá-nos Ancalach! forçando o jovem a desviar a sua estocada e a responder com uma que passou por baixo do seu maxilar desfeito e atravessou o guarda-nuca de cota de malha do seu elmo. Dá-nos Ancalach! batendo de forma bruta na espada do adversário para a afastar.

 

Mas será que nada te cala? o guerreiro, demasiado atento ao combate para reparar que o moorul falava de si no plural. Começava a sentir-se cansado, pois já era a sua segunda batalha num único dia e ainda não tirara o arnês, pelo que os seus golpes eram cada vez mais violentos e executados com menos perícia.

 

Interceptou o altabaixo seguinte de Baodegoth com uma pancada dura na lâmina, deixando Ancalach seguir o seu percurso natural e oscilando-a de seguida num arco vertical por cima da cabeça que fendeu o elmo do moorul, baixando-lhe violentamente a cabeça. Aewyre tentou decapitar o seu adversário, mas este absorveu o golpe com a espaldeira, que foi fendida, e respondeu com uma poderosa pancada que colidiu violentamente contra Ancalach, fazendo o guerreiro cambalear para trás. Ao recuperar o equilíbrio, Aewyre cortou o jarrete a um drahreg e enterrou um dos gumes de Ancalach na nuca de outro enquanto Baodegoth se erguia. Os conscritos estavam a ceder visivelmente ante a pressão do inimigo, e o jovem soube que teria de fazer algo depressa a respeito do moorul, mas antes que pudesse tomar qualquer iniciativa algo gritante embateu contra o seu flanco, derrubando-o e deslizando com ele pelo chão.

 

Hoje morres, Aewyre Thoryn! a harahan histericamente, procurando os seus olhos com as garras.

 

Aewyre esbracejou para manter as mãos da mulher longe da sua desprotegida cara e conseguiu afastá-la com um murro no queixo, encostando-se às ameias laterais da barbacã para se erguer. Baodegoth surgiu de repente, empunhando a sua espada com ambas as mãos com o intuito de lhe escachar a cabeça. Aewyre desviou-se, e a lâmina embateu contra a pedra, mas o pé acerado do moorul colidiu contra a sua escarcela e impediu-o de se levantar. O guerreiro deixou-se cair de lado e aproveitou o movimento para golpear o tornozelo de Baodegoth, separando-lhe o pé da greva e rebolando pelo chão para ganhar distância. Baodegoth cambou e teve de se apoiar com uma mão num merlão, mas antes que Aewyre pudesse aproveitar o momento de adaptação do moorul, Hazabel tornou a gritar nas suas costas e empurrou-o de barriga contra as ameias. O jovem arfou bruscamente, grunhindo quando os fortes dedos da mulher se crisparam no seu cabelo e lhe puxaram a cabeça com tal força para trás que por pouco não lhe partiram o pescoço. A mão de Aewyre ergueu-se mais por instinto que por qualquer outra razão e agarrou o pulso entalado da harahan antes que esta enterrasse as garras na sua garganta. Os dois ficaram num impasse, tremendo ao medirem forças embora o braço que lhe visava a garganta estivesse bem mais fraco do que o que lhe estava quase a arrancar os cabelos.

 

Causaste-me muito sofrimento, rapazinho... disse Hazabel venenosamente ao seu ouvido, com os seus dedos hirtos de unhas negras a escassa distância dos olhos do guerreiro. Agora vais...

 

Aewyre viu o moorul aproximar-se de espada erguida pelo canto do olho e impeliu-se para trás, aproveitando a força com a qual a harahan lhe puxava a cabeça e sentindo a porosa lâmina de Baodegoth rasar-lhe o queixo. Caiu sobre Hazabel, que arfou ruidosamente debaixo do seu peso, e rebolou de cima dela para uma vacilante posição de combate. Baodegoth não lhe deu refolgo e obrigou-o a menear Ancalach para desviar os seus incansáveis golpes, que forçaram o guerreiro a recuar para fora da barbacã e para perto das escadas que desciam coladas à muralha. Estava a afastar-se demasiado dos conscritos, mas o moorul não exigia menos do que a sua total atenção enquanto o mantinha à defesa com a sua incessante saraivada de golpes. Uma desajeitada defesa fez com que o jovem tropeçasse para a esquerda, onde deparou com Hazabel, que lhe amolgou a espaldeira e braçal esquerdos com o golpe de um machado que apanhara e o fez cambalear de volta para o moorul. A espada de Baodegoth colidiu violentamente contra a sua couraça inferior, derrubando-o, e Aewyre caiu de costas com a cabeça à beira do adarve, virando-a e vendo, as escadas em baixo. Desviou-se para o lado para evitar a nova espadeirada de Baodegoth, que repenicou contra pedra, e respondeu com uma cutilada que lhe penetrou por baixo da espaldeira, mas o seu adversário não tinha carne para cortar e desferiu-lhe um pontapé na barriga que o atirou do adarve abaixo. O jovem clangorou pesadamente contra as escadas, expelindo todo o ar dos seus pulmões com o impacto e batendo com a nuca num degrau. A única sensação que teve foi a de que não doeu tanto como devia ter doído, mas o seu mundo andou à roda e todos os sons ficaram embotados quando o ruído seco do embate do seu crânio contra pedra lhe ressoou pela cabeça. Ficou paralisado durante alguns instantes até a couraça dorsal do seu arnês escorregar pelos degraus molhados e o deixar estendido de lado sobre a escadaria. Aewyre apoiou as mãos nos degraus e levantou-se, agarrando Ancalach com força por medo que os seus dedos o traíssem e encostando o ombro à face interior da muralha para se estabilizar. Baodegoth descia as escadas, coxeando, mas uma sombra voadora contornou-o e planou na direcção do jovem, que antes que pudesse reagir viu Hazabel materializar-se à sua frente e arremeter com o ombro contra si, esmagando-o contra a muralha com o impacto e esmurrando-o de seguida com tal força que o guerreiro deu uma volta, respingando água do cabelo e caindo pelas escadas abaixo.

 

Quenestil e Tannath debatiam-se pelo adarve, esbracejando e esperneando, até que o eahan conseguiu ficar em cima e libertou um braço, com o qual prontamente esmurrou o adversário. A sua mão esquerda agarrou-o pelos colarinhos e o shura tornou a agredi-lo, outra vez, e outra, e mais outra, rosnando e nada mais querendo além de matar o maldito eahanoir, nem que tivesse de o fazer com as mãos nuas. O braço ferido de Tannath foi ignorado e começou a vasculhar freneticamente a pedra molhada do adarve até crispar os dedos no couro do punho de uma das suas armas.

 

Morre, desgraçado! o shura, rebentando o lábio ao adversário com outro golpe e soltando um grunhido de surpresa quando algo aguçadamente frio lhe mordeu o ombro. Tannath torceu o estilete e rasgou a carne de Quenestil, que gritou de dor e libertou o eahanoir, permitindo-lhe tirá-lo de cima de si.

 

Os dois levantaram-se atabalhoadamente, e o eahan atacou antes tu, que o adversário fizesse uso da arma, mas Tannath desferiu-lhe um pontapé certeiro no estômago e outro com o calcanhar na cabeça, deixando-o encostado às ameias de joelhos e com os braços sobre um merlão. Preparou-se para lhe chutar o dorso, mas Quenestil virou-se rapidamente e deslizou com as pernas pelo chão, varrendo o pé do adversário e derrubando-o. Tannath caiu de costas sobre o adarve e o shura desferiu-lhe um desajeitado soco assim que este tentou erguer o tronco, ficando lado a lado com ele no chão. O eahanoir arrastou-se para o lado oposto e pôs os pés entre si e Quenestil, pontapeando-o na cara com ambos para ganhar tempo para se levantar. Os dois encararam-se então um ao outro, ofegando e sangrando das suas feridas. O shura tinha as marcas sujas e molhadas dos pés do eahanoir na cara, que também estava manchada com o sangue proveniente da sua têmpora e boca, e a ferida aberta no ombro ardia-lhe. Tannath tinha um lábio rebentado, o vermelho proveniente da sua testa mesclava-se ao da tatuagem do seu olho esquerdo e colava-se ao desalinho de madeixas pendentes, e o seu braço esquerdo pendia, gotejando sangue e água das pontas dos dedos.

 

Sabes o que é que me contaram acerca do teu amigo antes de eu partir? o eahanoir, cuspindo cuspe vermelho para o lado.

 

Quenestil estacou e pareceu empalidecer perante a menção de Babaki.

 

Estofaram-lhe o corpo e agora deve estar a decorar a sala de entrada de um prestigiado eahanoir...

 

Um relâmpago iluminou Aemer-Anoth e Quenestil atacou, gritando de raiva. Tannath estocou em frente, mas o shura bateu-lhe no pulso, afastando-lhe a arma, e enterrou o cotovelo direito no seu epigastro, erguendo o punho cerrado e esmurrando-lhe a cara com as costas da mão. Cingiu o pescoço do eahanoir com o mesmo braço e arrojou-o por cima do seu ombro para o chão, já com o punho esquerdo erguido para o golpear, mas Tannath deu um pontapé para trás e acertou na cabeça do eahan com a canela, saltando para os seus pés de seguida com um golpe de chicote de ambas as pernas. Quenestil tornou a investir quando o trovão ribombou e oscilou selvaticamente com o punho, do qual Tannath se baixou, agarrando o eahan pelas costas e puxando-o contra o seu joelho, no qual embateu com o estômago. Curvado, o shura levou seguidamente com o outro joelho na cara, e uma rasteira frontal atirou-o ao chão de barriga para baixo. O eahanoir quis chutá-lo na barriga, mas Quenestil agarrou-lhe a perna e puxou-o para o chão, no qual ambos tornaram a rebolar até Tannath conseguir por fim ficar em cima, ameaçando a garganta de Quenestil com a lâmina do estilete. Tanto um como o outro mediam forças com os braços feridos, enquanto os sãos se debatiam pelo estilete. Tannath grunhia de dentes cerrados, tremendo com o esforço e prometendo morte ao adversário com os seus olhos, enquanto Quenestil mantinha os seus na aguçada ponta do estilete, cuja proximidade oscilava.

 

Primeiro tu... Tannath com a voz apertada e dentes sangrentos. a Slayra. Mas com ela demoro mais tempo... muito, muito mais tempo.

 

Não! o shura, largando o pulso esquerdo do eahanoir, agarrando-lhe a parte interior do cotovelo com a mão livre e executando-lhe um movimento de alavanca com o braço armado, enterrando-lhe o estilete no coração.

 

Tannath soltou um arfar sufocado, acometido de um espasmo, arregalou os olhos e olhou para o pomo da arma que ainda empunhava. O seu sangue quente brotava às golfadas sobre o peito de Quenestil, que o fitava com um olhar vítreo, quase maníaco, e a sua cara foi a última coisa que o eahanoir viu.

 

Porra, Quenestil... em surdina, tombando de lado e de braços estendidos que ainda arranharam a pedra do adarve enquanto a vida lhe escorria para fora do peito. Os seus olhos fixaram-se no tempestuoso céu, e não se fecharam perante o faiscar de outro relâmpago.

 

O shura levantou-se a custo, agarrando o ombro ferido e incapaz de tirar os olhos do maldito eahanoir, mas nesse momento os ruídos da batalha pareceram voltar e chamaram-lhe a atenção para as ameias, nas quais Worick se debatia contra o azigoth e os conscritos tentavam a custo expulsar os drahregs que já haviam entrado. O eahan forçou as suas pernas a correrem para junto do thuragar, ignorou o seu arco ocarr caído no chão, pois o fio decerto já estaria ensopado e inútil, e pegou no machado de um conscrito caído antes de entrar na peleja.

 

Aguenta-te, Worick! partindo a coluna a um drahreg pelas costas à machadada.

 

Nem penses em salvar-me outra vez, eahan dum raio! o thuragar de cabeça encolhida e com os olhos cobertos de sangue, agarrado ao pescoço do azigoth e com o bico recurvo do seu martelo nele espetado. O azathrax batia-lhe repetidamente com a espada e com a cauda, mas Worick não largava.

 

Quenestil bateu no escudo de um adversário, que foi golpeado na perna pela espada de um conscrito, e esmagou a laringe de outro com a ponta do cabo do machado.

 

Aguentem firme! vendo que Worick estava demasiado ocupado para encorajar os defensores. firme!

 

Aewyre caiu de ombros no pátio interior, cujo piso de terra batida se convertera num autêntico lamaçal, e deu uma cambalhota para trás, parando por fim a sua violenta queda pelas escadas abaixo. Todo o seu corpo era dor, os cabelos da sua cabeça pendente tocavam na lama e apenas os seus trémulos cotovelos lhe sustiam o tronco. Ancalach continuava milagrosamente na sua mão direita, mas não estava certo de ainda ter forças para a empunhar. Doía-lhe tudo, estava cansado e tinha a certeza de ter torcido algo, senão mesmo o corpo inteiro. Ergueu Ancalach a custo e espetou-a no chão, apoiando-se nela para erguer o seu torso dorido, e conseguiu arrastar o joelho de uma perna e levantar a outra para ficar numa ofegante posição ajoelhada. Ergueu a cara meio tapada com cabelos molhados e enlameados e viu que Hazabel e Baodegoth desciam a escadaria na sua direcção, embora duvidasse de que estivessem a oscilar tanto quanto a sua visão dava a entender. O moorul coxeava com uma confiante calma, mas a harahan corria pelos degraus abaixo de garras hirtas como as de um predador.

 

Os dois... como podia vencer os dois...? E os drahregs... já os via a empurrarem os conscritos, pressionando-os pelas escadas e muralha fora, para longe da barbacã tomada.

 

Levantou o braço esquerdo e apoiou-o nos copos de Ancalach para se erguer e ao menos resistir com dignidade, mas reparou num pormenor que o deteve. A sua visão fosca distinguiu algo fino e amarelado que pendia do seu ameigado braçal esquerdo, e o guerreiro pegou nele, puxando-o para fora do amachucado resguardo e focando os olhos no estranho objecto sobre a sua enluvada mão aberta manchada de sangue e lama.

 

Uma mecha de cabelo louro entrançado.

 

Aewyre crispou os dedos nela e levou o cerrado punho à cara, apoiando o cotovelo no joelho e exalando de olhos fechados.

 

”Lhiannah, sua estúpida!” pensou, e então o grito de Hazabel encheu-lhe os ouvidos.

 

Os seus olhos abriram-se bruscamente, duros como aço, e o guerreiro ergueu-se para enfrentar a sombria forma semimaterializada da harahan prestes a cair-lhe em cima. Para grande surpresa desta, Aewyre ergueu ambos os braços, agarrou-a em pleno ar e arremessou-a por cima da cabeça, fazendo-a baquear de costas no chão e deslizar pela lama. Pegou em Ancalach de seguida, arrancou-a do chão e brandiu-a ao subir as escadas de encontro a Baodegoth, defrontando-o com a Espada dos Reis empunhada com ambas as mãos. O moorul não se mostrou impressionado e atacou da sua posição superior, deixando a perna decepada atrás para se equilibrar, e Aewyre recebeu as suas espadeiradas com vigor, desviando, aparando e batendo na porosa lâmina com força que faria o seu mestre levar as mãos à cabeça. Baixou-se de uma cutilada horizontal, impeliu a espada do moorul contra a muralha com uma pancada e golpeou-lhe o braço esquerdo pela cotoveleira, que cedeu com um agudo ruído metálico ao ser seccionada do braçal. Baodegoth não sentiu dor, mas recebeu logo de seguida um violento golpe que lhe fendeu o elmo de lado, deixando uma peça de metal retorcida sobre a sua caveira. Ripostou com uma espadeirada lateral, mas Aewyre baixou-se e golpeou-lhe a ilharga com força, deixando o adversário perto o suficiente da beira das escadas para o empurrar com um pontapé. O moorul caiu e o guerreiro viu o grupo de conscritos e drahregs que combatiam enquanto desciam pelas escadas, mas optou por correr a encontro de Baodegoth e acabar de uma vez por todas com o maldito acossador. Saltou das escadas para cortar caminho, e Hazabel voou obstinadamente na sua direcção assim que os seus pés chapejaram na lama, esperando apanhá-lo pelas costas, mas Aewyre virou-se e acutilou a forma sombria da mulher de lado, fazendo-a ir contra a parede. Hazabel agarrava o ventre com ambas as mãos, olhando para o sangue negro que vertia do seu ferimento com olhos arregalados e empurrando o seu corpo com os pés contra a parede para se manter de pé. Aewyre derrubou-a com um golpe das costas da mão esquerda, virando-se ao ouvir metal ranger para encarar um enlameado Baodegoth, que investia, coxeante.

 

Dá-nos Ancalach, humano! tornou o coro de vozes a exigir, enfatizando com um tremendo altabaixo que o guerreiro facilmente desviou com um toque de Ancalach, entrando de seguida pela defesa do adversário adentro.

 

Ela passou a lâmina pelo que seria a garganta do moorul, decepando-lhe a caveira e o elmo e arrancou parte da joelheira da perna boa por trás com um golpe transversal

para baixo, trouxe a Espada dos Reis para cima e para baixo, deslocando a espaldeira esquerda de Baodegoth - tua! O seu último golpe resvalou na couraça do moorul, mas foi desferido com suficiente força para o derrubar.

 

Com o moorul à sua mercê, Aewyre preparou-se para o despedaçar, mas um peso abateu-se sobre as suas costas e uma já não tão forte mão tapou-lhe a boca e o nariz, enquanto a outra lhe agarrava o braço esquerdo.

 

Mataste-me, Aewyre Thoryn... disse a rouca voz de Hazabel ao seu ouvido, crepitando com sangue que lhe subia pela garganta. Mas morro com a satisfação de saber o que está reservado para a tua... para a nossa filha...

 

A sua filha...? A distracção por pouco não provou ser fatal, pois Baodegoth o que sobrava dele erguia-se, animado por uma vontade que parecia estar além da vida ou da morte. Vinda de nenhures, uma cacofonia de vozes isoladas fez-se ouvir em seu redor.

 

O nosso propósito!

 

Ao nosso alcance!

 

Ancalach!

 

Sangue!

 

Livres!

 

ANCALACH.

 

Aewyre não quis acreditar quando viu a carcaça do moorul de pé a empunhar a espada de forma reversa e a erguê-la com o intuito de o empalar. A sua reacção foi imediata e instintiva. Levou o joelho direito ao chão e curvou-se, apresentando as costas de Hazabel à ponta da porosa lâmina, que nelas se enterrou, varando-a e embatendo secamente na sua couraça dorsal. O jovem ouviu o sufocado arfar da harahan ao ouvido e, ainda ajoelhado, libertou o seu braço esquerdo para agarrar o pomo de Ancalach e impeliu a espada com toda a força para cima, soltando um grito de raiva. A Espada dos Reis forçou a sua passagem através da fresta da couraça peitoral, atravessou o que quer que continha no seu interior e perfurou a couraça dorsal, saindo do outro lado.

 

O que sobrava de Baodegoth estacou, e os três combatentes ficaram parados num obsceno quadro de morte durante o que pareceu uma eternidade, até que Aewyre se desembaraçou de Hazabel e se viu forçado a largar a espada para sair debaixo do moorul, afastando-se ao ver que este ainda se mexia. Drahregs e conscritos batalhavam e caíam do adarve e das escadas, mas naquele momento Aewyre só tinha olhos para a harahan, que se contorcia de barriga na lama com a negra espada atravessada nas costas, e para o moorul, que tremia e executava gestos bruscos com Ancalach atravessada na sua couraça. Estaria a absorver o sangue da mulher para se curar?

 

”Deuses, será que nada o pára?”, interrogou-se o guerreiro, esperando pelo próximo movimento do adversário.

 

Porém, Baodegoth nada fez além de se contorcer como Hazabel, embora Aewyre tivesse a nítida sensação de que algo se estava a passar. Não era só a chuva que aumentara de intensidade; o ar ficara subitamente mais pesado no pátio, um sentimento primordial e anciano revelou-se em cheiro e sensação, e um zumbido estático alojou-se no ouvido de todos, imperceptível de início mas rapidamente assumindo um volume perceptível. Baodegoth torceu a espada e a harahan arfou roucamente, erguendo a cara enlameada com a boca a sangrar, pálida de morte. Ancalach fervilhava na armadura do moorul, que parecia estar a recompor-se ao mesmo tempo que se desintegrava. O metal cor de sangue pisado do seu arnês assumiu uma consistência quase líquida, mantendo a sua forma e consistência, mas moldando-se e fluindo livremente ao mesmo tempo. Quando Aewyre julgou que o seu adversário estava mesmo a sarar e se preparou para investir, o zumbido deixou de ser estático e tornou-se mais audível, aumentando gradualmente de intensidade. Um relâmpago despejou luz sobre o pátio, mas não teve qualquer efeito nas sombras que, como tentáculos, se começaram a contorcer para fora da ferida causada por Ancalach, cingindo Baodegoth num abraço umbroso enquanto este era acometido de convulsões cada vez mais violentas. Hazabel esticou o pescoço uma última vez com a boca aberta sem que dela saísse som algum e Baodegoth começou a cambalear à volta do eixo representado pela sua espada cravada na harahan. Nesse preciso momento, o zumbido revelou ser um grito que todos ouviam como se proferido à distância, mas que tendia a aumentar progressivamente. Sitiados e sitiantes pararam de combater em Aemer-Anoth, sentindo eles também a indefinível perturbação além do germinante grito que todos ouviam nas suas cabeças.

 

Worick e Bathrazhúl interromperam a sua acirrada contenda; Quenestil ficou com o machado erguido, pronto a desferir um golpe; Kror despertou com um ofego, olhando em redor; humanos e drahregs olhavam para o pátio ou na direcção deste, incapazes de ignorar o que se estava a passar embora não soubessem de que se tratava. Baodegoth estava coberto de sombras que serpenteavam dentro e fora do seu corpo, e Aewyre foi incapaz de combater o instinto primário de recuar daquele que sentia ser um perigo terrível e desconhecido. O grito tornava-se lancinante, e muitos taparam os ouvidos na tentativa de o abafar, mas ele não iria ser silenciado. Era um grito de dor, de inimaginável agonia, de fúria e alívio, todas juntas no rebentamento vocal de algo ou alguém que nada mais podia conhecer além do sofrimento. A lama aos pés de Baodegoth começou a borbulhar, e Ancalach contrastou com as sombras que o envolviam, brilhando como um feixe de sol e irradiando ofuscantes raios de luz. O horrendo grito ameaçou rebentar os tímpanos a todos ao atingir o seu auge, e nesse momento desceu um relâmpago dos céus que se abateu sobre Baodegoth, explodindo com um faiscante clarão, expelindo Ancalach do moorul como um projéctil e forçando todos a cobrirem os olhos. Aewyre foi projectado de costas para o lamacento chão, e a Espada dos Reis singrou pelo ar até embater agudamente com o pomo contra a cortina sul da muralha e cair ao chão.

 

Quando descobriram os olhos, os combatentes viram o círculo fumegante para dentro do qual a lama líquida se recusava a escorrer e no qual se encontrava a carcaça carbonizada da harahan e um vulto ajoelhado. O fumo dissipou-se rapidamente, e o vulto revelou ser um cabisbaixo homem arnesado com as mãos estendidas aos seus lados e os joelhos enterrados no chão. Todos os olhos na bastilha incidiam sobre ele em silêncio absoluto, com um misto de inexplicáveis pavor e admiração. Aewyre apoiou os cotovelos na lama e levantou a cabeça para ver o que acontecera, sentindo cada gota de chuva na pele da cara escaldada pelo calor do relâmpago. A cabeça do homem ergueu-se quando outro raio faiscou, e todos deram um involuntário passo atrás, independentemente da distância à qual se encontravam dele. O seu joelho ergueu-se e o homem levantou-se, deixando a chuva lavar a lama que manchava o seu esplendoroso arnês cor de sangue pisado e olhou em redor, avaliando o que o rodeava enquanto um trovão ribombava. Alto, com cabelos cor de azeviche, mais belo do que o sol da alvorada, mais terrível do que a tempestade que fustigava a fortaleza. O terror que causou nos conscritos foi palpável, mas a reacção dos drahregs foi bem diferente. Como um só, o Primeiro Pecado levou os braços ao ar e urrou em puro arrebatamento, fazendo as pedras de Aemer-Anoth tremer.

 

Nunca ninguém o vira.

 

Todos sabiam quem era.

 

Toda a esperança acabou para os defensores quando a onda negra rugiu. A cortina sul estava prestes a ser tomada, a barbacã fora cedida e o rastrilho desta era erguido por ogroblins que haviam passado por baixo dos escombros da torre, arrombado o portão e que agora abriam passagem aos ulkekhlens que esperavam ansiosamente atrás deles.

 

A batalha tornou-se um massacre com pontos de resistência isolados e vacilantes, e a determinação dos conscritos passou a desespero. O Flagelo de Allaryia regressara. O Anátema vivia. O Segundo Pecado estava entre eles. O Bastardo iria matá-los a todos.

 

Aparentemente alheio ao terror que provocava, à chacina que se desenrolava e à intensa chuva que o regava, colando-lhe os negros cabelos à cabeça, Seltor continuava a olhar atentamente em redor como um animal após longa hibernação. Aewyre não conseguia obrigar o seu corpo a erguer-se da lama, nem sequer a tentar fazê-lo, tal era a proximidade do Flagelo. O próprio Usurpador de Deuses estava a poucos passos de distância, ignorando-o por enquanto, e Ancalach fora projectada para longe que lhe passasse sequer pela cabeça empunhá-la contra o Flagelo naquele momento. A sua vontade era fugir, mas estava demasiado aterrado para sequer se mexer, quanto mais combater. Seltor ergueu a mão direita, olhando com interesse para os dedos enluvados enquanto os flectia, como se estivesse desabituado ao corpo. Conscritos eram massacrados na escadaria e no adarve em seu nome, mas não lhe mereciam a atenção que foi direccionada para Aewyre. O jovem sentiu-se ser varado contra o lamacento chão, embora o Anátema nada mais fizesse além de olhar para ele.

 

Aewyre Thoryn... disse numa voz calma, profunda e sedutora, que de alguma forma se fez ouvir a meio dos ruídos da batalha e da chuva. O jovem ficou paralisado, incapaz de reagir perante a sua atenção.

 

O rastrilho da barbacã rangeu, e os ulkekhlens gatinharam atabalhoadamente para o pátio, escorregando pela lama de encontro ao seu senhor, atrás do qual os drahregs que desceram pela escadaria se postaram, as suas armas vermelhas com o sangue dos defensores. A luta continuava sobre a muralha, mas a hoste de Asmodeon começava a concentrar-se atrás do Flagelo, aguardando as suas ordens. De um lado estava Aewyre, deitado de costas na lama e incapaz de se mexer; do outro, Seltor com um crescente exército às suas costas.

 

Devo-te muito, meu rapaz afirmou, alheio a tudo menos ao aterrado jovem. Não havia qualquer hostilidade na sua cativante voz, mas os seus penetrantes olhos despiam Aewyre até ao âmago do seu ser, trazendo ao de cima os seus mais primários medos. Nada disto teria sido possível sem ti.

 

Enquanto falava, os ogroblins debaixo da barbacã posicionaram barrotes da torre para susterem o rastrilho e entraram eles também no pátio, bramindo e ansiando por morte mas detendo-se respeitosamente atrás do seu senhor. Drahregs mostravam os dentes e rosnavam, ulkekhlens esgravatavam o lamacento chão com as garras, todos se enlevavam com a eminente presença de Seltor, filho de Luris, geradora do Primeiro e Segundo Pecados.

 

Não tem de terminar assim, Aewyre Thoryn, não são necessárias mais mortes hoje assegurou-lhe, cobrindo o exército de Asmodeon com um gesto aberto de ambas as mãos. Eles pararão a uma palavra minha. Para isso preciso apenas de que tu...

 

O rastrilho da barbacã norte ergueu-se com o som de metal a raspar em pedra e correntes a rechinarem, chamando a atenção de todos para o portão de entrada. Passos apressados ressoaram pela ponte levadiça, e o tilintar e o franger de metal precederam o batalhão de sirulianos que surgiu. Um coro de possantes vozes gritou algo em Eridiaith que fez o exército inimigo dar um involuntário passo atrás e que despertou Aewyre do seu paralisante pavor, permitindo-lhe arrastar-se de costas para trás na direcção da força de alívio. Centenas de sirulianos dispuseram-se ordeira e rapidamente numa coluna de batalha, apresentando uma frente de piques reforçados por alabardas nas filas anteriores. Os Miliciares e Ajuramentados envergavam armaduras com placas corrugadas desprovidas de ornamentos, elmos afunilados com babeiras em forma de relha de arado, empunhavam compridas armas de haste de lâminas possantes e enormes e afiados espadões às costas. Avançaram o suficiente para que dois homens pegassem em Aewyre e o puxassem para dentro das suas fileiras e detiveram-se a dez longos passos do Flagelo e do seu exército.

 

Dentro de um mar de braços e pernas arnesados, o ainda amedrontado guerreiro tentou sem grande sucesso recuperar a sua presença de espírito enquanto era arrastado para as fileiras de trás. Acabou por ser atirado para o chão na retaguarda da coluna, e um Ajuramentado virou-se para ele, desembainhando o seu grande espadão.

 

Vai, Aewyre Thoryn entregando-lhe a arma nas confusas mãos e apontando para o topo da barbacã. ajudar a princesa.

 

A... princesa...? Aewyre sem perceber, confuso e abalado. O jovem siruliano contudo nada mais adiantou e retomou o seu lugar na fileira, deixando o jovem a olhar para o topo da barbacã sem nada ver.

 

Porém, assim que distinguiu o barulho de uma refrega vindo de cima, lembrou-se de repente de que nenhum conscrito fora destacado para a barbacã norte, mas alguém abrira o rastrilho para permitir a entrada aos sirulianos.

 

Lhiannah! por fim, escorregando para os seus pés e correndo de espada em riste para a porta lateral que levava às escadas da barbacã, todos os seus medos esquecidos.

 

Os sirulianos encaravam os seus inimigos declarados em silêncio e imóveis como estátuas, enquanto estes rosnavam e rugiam e bramiam atrás do seu senhor, aguardando a ordem para atacar. Um relâmpago estalou, banhando os contendedores com luz branca que se reflectiu nos arneses dos defensores de Aemer-Anoth. Seltor cobriu as filas de majestosos guerreiros arnesados com os olhos, parecendo fitar cada um e ler-lhe a alma, e ao acabar abanou a cabeça em desprezo.

 

Convosco é impossível falar erguendo ambas as mãos bruscamente. Uma força invisível arrancou dezenas de sirulianos das linhas da frente, arrojando-os por cima das cabeças dos seus companheiros e contra a muralha.

 

Os drahregs berraram e carregaram sobre os seus detestados inimigos com ulkekhlens aos seus calcanhares e ogroblins às costas. A fileira de sirulianos recompôs-se com grande rapidez e disciplina e receberam a investida de armas aprestadas, apresentando uma linha firme de pontas de piques. O embate deu-se com violência, e com o ruído de madeira a estraçalhar-se, metal a embater, gritos de morte e o ribombar de um trovão, e depois as pesadas alabardas sirulianas desceram com aterradores gritos em Eridiaith. Seltor permanecia de mãos erguidas enquanto o seu exército explodia em seu redor, mas algo o fez estacar repentinamente, como se tivesse sido golpeado nos rins, e olhou para trás, para a cortina sul da muralha leste.

 

Worick, Bathrazhúl, Quenestil e todos os que se encontravam nas ameias do vértice olhavam pasmados para a distante figura que se erguia do fumegante círculo, mas a quietude foi quebrada quando uma onda de furor percorreu a hoste inimiga, incitando-a a um frenesim assassino que rebentou por todo o lado. Os conscritos não estavam prontos para o que se seguiu, e muitos tombaram antes que conseguissem sequer reagir. Bathrazhúl soltou um guincho estrídulo, passou Dalshagnar para a mão do braço no qual Worick espetara o bico do martelo e agarrou-o com a mão livre, atingindo dois drahregs à sua frente ao usar o corpo do thuragar como uma marreta. O azigoth agarrou então a espada com ambas as mãos e levou-a acima para partir Worick ao meio, mas um machado rodopiou na sua direcção e a cunha enterrou-se com um estalo na sua asa direita. Bathrazhúl guinchou de dor, vacilando, e o seu guincho aumentou de intensidade quando o thuragar lhe martelou o pé, partindo-lhe uma das garras e rebolando por baixo das suas pernas de seguida. Quenestil desviou-se da espadeirada vertical de um drahreg, esmurrou-o, baixou-se e desembainhou o facalhão ao evitar uma machadada que acabou por atingir um adversário atrás de si, cortou o jarrete ao agressor e agarrou-o pelos cabelos, espetando-lhe a arma na garganta. Vislumbrou uma lança caída no adarve e agarrou-a, correndo a acudir Worick. O thuragar levantou-se atrás do azathrax e martelou-lhe a ilharga, partindo vários espinhos com a pancada. Bathrazhúl guinchou, girou em si e espadeirou Worick em cheio de lado, atirando-o de costas contra as ameias, nas quais embateu com um drahreg atrás de si. O azigoth arrancou o machado da sua asa direita e decepou um conscrito ao seu lado, preparando-se para atacar o thuragar quando ouviu o grito de Quenestil, que investiu de lança em riste e lha espetou no flanco. Worick aproveitou a distracção e atacou o azathrax, embatendo contra o adversário com o ombro e caindo com ele para fora do adarve. Bathrazhúl bateu na escadaria da muralha e caiu de costas no lamacento pátio com o thuragar em cima.

 

Outra vez...! o shura em surdina, desferindo uma cotovelada na cara de um drahreg e saltando para a escadaria para acorrer Worick.

 

Bathrazhúl esbracejava e adejava selvaticamente debaixo do thuragar, fazendo lama respingar por todos os lados, e Worick tentava a custo contê-lo o suficiente para lhe dar uma martelada na cara. Porém, a força da criatura era demasiada e acabou por conseguir tirar o empecilho de cima de si, erguendo-se então com as asas enlameadas e o seu sangue roxo a tingir o chão em redor. Pisou o thuragar com o seu pé são, imobilizando-o, e pegou na espada caída na lama para acabar de vez com o incomodativo adversário que já o magoara demasiado. Quenestil galgou os degraus e derrapou ao aterrar no piso escorregadio do pátio, caindo de nádegas perto de Ancalach, que estava meio imersa na lamarosa água. O eahan nem se questionou quanto ao porquê de a Espada dos Reis se encontrar ali e pegou nela sem mais demora, empunhando-a com as lamacentas mãos e investindo contra Bathrazhul, que se limitou a bater directamente na lâmina para a arrancar das mãos do shura e derrubá-lo.

 

Agora morres, refugo de humanos... o azigoth na sua voz vibrante, erguendo Dalshagnar com ambas as mãos de ponta para baixo sobre a cabeça. O faiscar de mais um relâmpago iluminou o seu grotesco semblante, de cujas inúmeras protuberâncias e espinhos pingava chuva.

 

Worick olhou o seu executor nos olhos, mas foi forçado a fechá-los quando algo escarlate e brilhante explodiu na espada, originando um guincho de Bathrazhul e fazendo-o tirar o pé de cima de si. O thuragar rebolou para o lado, grunhindo como um porco na lama, e levantou-se de pernas vacilantes, sendo forçado a dar vários passos atrás para se estabilizar. Quenestil estava ajoelhado com o atordoado azigoth entre si e Ancalach, mas acocorado perto da espada estava um recém-chegado que o eahan não reconheceu. Um homem moreno e de robusta estatura baixa olhava em redor com ar perdido, envergando um singelo corselete de couro e roupas de viajante que não o distinguiam de forma alguma de qualquer outro conscrito. A sua encrespada barba não era feita há semanas, e o emaranhado dos seus espessos cabelos negros foi a custo alisado pela intensa chuva, que escorria irregularmente por eles. Bathrazhul recuperou então, olhando com espanto para a cavidade vazia na guarda de Dalshagnar na qual anteriormente estivera a facetada gema vermelha e para o humano que subitamente surgira do nada. Farto de interrupções, o azigoth soltou um ruído vibrante parecido com um rosnido e alçou a Língua Negra para aniquilar o novo incómodo, mas o homem surpreendeu os três ao dar uma cambalhota em frente para se desviar do golpe e erguer-se com Ancalach já empunhada, completamente transfigurado e com um ribombo de trovão para enfatizar a alteração. Havia algo no seu olhar e postura repentinos que o denotavam como sendo perigoso, mas Bathrazhúl não se deixou intimidar e tornou a atacar antes que Quenestil ou Worick pudessem fazer qualquer coisa. O humano tornou a surpreendê-los ao avançar em vez de se defender, e algures no movimento que executou o pulso que empunhava Dalshagnar separou-se do resto do braço, ficando a flutuar pelo ar. Outro borrão acerado, e o ferrão com o qual o azigoth atacara ao mesmo tempo foi decepado; outro borrão, e o homem estava atrás de Bathrazhúl, empunhando Ancalach com ambas as mãos dos braços estendidos, e a cabeça do azigoth rebolou incrédula pelo ar, mergulhando de cara numa poça quando o tempo retomou o seu passo normal, e pulso, ferrão e corpo tombaram, chapejantes.

 

Quenestil e Worick ficaram boquiabertos nas mesmas posições, olhando para o desconhecido com um misto de espanto e temor.

 

”Mãe, nunca vi nada tão rápido...”, pensou o eahan, erguendo-se devagar como o fana perante uma cobra, temente de que esta reagisse mal ao seu movimento.

 

Pedras me partam... o thuragar, baixando o martelo. posso...

 

O humano relaxou a postura e baixou os braços, olhando para os dois guerreiros que desconhecia, esperando por uma reacção que os denunciasse como amigos ou inimigos.

 

Aezrel Thoryn... Worick, reconhecendo por fim o homem que vislumbrara tantos anos atrás na última assembleia de Nolwyn como nação.

 

O homem inclinou a cabeça, vertendo a água que se acumulara sobre o seu encrespado cabelo.

 

E... o meu nome numa voz rouca. Aezrel desaparecera havia vinte anos, mas não parecia ser mais velho que Allumno. Onde estou?

 

Antes que Quenestil ou Worick pudessem responder, Dalshagnar levantou voou e singrou para longe dos três. Aezrel empunhou Ancalach com ambas as mãos, dando por fim atenção ao aglomerado de homens que vira à distância e reconhecendo entre eles aquele a cuja mão a Língua Negra foi parar.

 

Seltor... disse em surdina, esquecendo por completo os seus interlocutores e avançando a passo moderado na direcção do seu algoz.

 

Thuragar e eahan olharam com forçosa admiração para ambos os contendedores, sentindo que estavam a presenciar o reatar de um duelo havia muito adiado, mas assim que as hostilidades foram abertas perceberam o quão perigoso era ficarem a observar. Seltor golpeou bruscamente o ar com Dalshagnar, mas o seu golpe reverberou num sombrio arco ascendente na direcção de Aezrel, que executou uma guarda alta e o desviou com um agudo ruído em tudo idêntico ao embater de duas lâminas. Desviado, o golpe veio na direcção de Quenestil e Worick na forma de ar distorcido e trémulo, e os dois atiraram-se ao chão, ouvindo-o embater estridentemente na muralha. Aezrel respondeu com uma espadeirada sua, também ele golpeando o ar, mas a cinética do seu golpe cortou a chuva na direcção de Seltor, que o espedaçou com uma oscilação de Dalshagnar. O thuragar olhou por cima do ombro enquanto Quenestil observava, fascinado, e viu o lanho na pedra causado pelo golpe desviado.

 

Anda, eahan disse-lhe, agarrando-o pelo ombro. Temos que sair daqui.

 

- Não o ajudamos...? perguntou o shura sem grande convicção.

 

Como? Servindo-nos às postas ao... pedras me partam, não acredito que seja mesmo O Flagelo! E o Azrel Thoryn... mas anda. Aquele homem sabe cuidar de si.

 

Os dois levantaram-se e ponderaram rapidamente as suas opções, que consistiam em voltar para a cortina sul, combater nas ameias da barbacã ou participar na batalha no pátio. Worick viu que a cortina estava perdida, mas os drahregs que entrassem iriam ao menos defrontar os sirulianos de frente, pelo que se tratava de um mal menor. O combate nas ameias da barbacã norte ainda estava acirrado, o que provavelmente queria dizer que restava uma bolsa de resistência dos conscritos. Participar na batalha implicaria passar pelo Flagelo e atacar o inimigo por trás, o que podia ser eficaz se fossem mais. Também lançou um olhar à torre da enfermaria, mas esta estava fora de perigo por enquanto.

 

Anda, vamos subir disse o thuragar, apontando para a escadaria que conduzia à torre flanqueante da muralha leste. Se os drahregs tomarem a barbacã norte, podem atacar os sirulianos pela retaguarda. Os outros devem estar lá. Vamos!

 

Allumno despertou do seu transe meditativo com um sobressalto, soltando um arquejo de surpresa e tentando estabilizar-se com as mãos a seus lados. Libertara Aezrel. Conseguira. Olhou em redor, pensando que o pai de Aewyre pudesse estar próximo de si, mas constatou que o interior da torre flanqueante estava vazio, e que do exterior vinham os ruídos da batalha que ainda não terminara. Pegou no cajado, descruzou as pernas e ergueu-se com um grunhido de esforço por causa do joelho, apoiando-se com a mão livre à parede. Assim que se virou para a porta ao seu lado, deparou com um drahreg a sangrar de um ferimento no olho, que gritou assim que o viu e preparou-se para o varar com a espada antes que o mago tivesse tempo para esconjurar um feitiço.

 

Algo afiado o rasgou por trás, e o drahreg tombou, roncando, dando lugar a um outro com dois sangrentos alfanges empunhados. Kror estava ferido, mas não parecia ter perdido o alento para lutar como os conscritos massacrados que Allumno viu estendidos pelo adarve.

 

Vem, humano. Tens de sair daqui disse, virando-se para aparar a espadeirada de outro drahreg e lhe passar o alfange pelo ventre.

 

Allumno aniquilou outros dois com um leque de chamas azuladas que saiu da sua mão de dedos estendidos.

 

Onde estão os outros? perguntou a Kror enquanto este cravava o alfange no adversário que tombara. A barbacã estava praticamente vazia, mas no pátio desenrolava-se uma acirrada batalha entre sirulianos e o exército inimigo, e havia drahregs a combaterem na barbacã norte.

 

Não sei respondeu o Kror, desviando uma espadeirada e escachando a cabeça de outro.

 

Allumno entoou palavras arcanas e tentou impelir o último drahreg à vista para fora das ameias com uma força invisível, mas esta esvaneceu-se nos seus resquícios de Entropia e o inimigo arrojou um farpão na sua direcção. O alfange de Kror interceptou-o a tempo, espedaçando a arma, e o escaramuçador que a arremessara teve o pescoço cortado pelo drahreg ao investir com uma falcata.

 

Vem disse o mago, sem tempo para se sentir aliviado. Mais drahregs subiam pela escadaria da muralha para se juntarem aos que combatiam na barbacã norte, onde os seus restantes companheiros certamente estariam caso ainda estivessem vivos. Vamos ajudá-los.

 

Kror não levantou qualquer objecção e seguiu Allumno, que se deteve subitamente a meio da barbacã semeada de cadáveres, olhando fixamente para o pátio.

 

Em nome de todos os deuses... vendo o extraordinariamente rápido combate de dois guerreiros isolados, que de imediato identificou.

 

Lhiannah aparou o altabaixo do drahreg, desferindo-lhe um pontapé na virilha que o curvou e uma bordoada com o pomo da espada no elmo. A princesa defendia a entrada para a barbacã norte com o que sobrava dos conscritos e os feridos que trouxera consigo da enfermaria. Ninguém esperara o ataque durante a noite, e Lhiannah estivera a observar o decorrer da batalha do topo da torre da enfermaria, assistindo horrorizada ao virar da maré aquando do aparecimento do azigoth. Tomara então uma decisão e correra a chamar todos os feridos que estivessem minimamente aptos a combater, armando-os com o que havia à mão e com o que tinham vestido e conduzindo-os pela muralha oeste até à barbacã norte. Algo sucedera então, algo visceral que se fizera sentir no ar, acompanhado de um horrendo grito que quase roubara todo o alento ao seu grupo. Lhiannah vira então os sirulianos sobre a ponte levadiça baixada a gritarem-lhe que abrisse o rastrilho para se poderem juntar à batalha e a sua brigada de feridos assim fez, acolhendo de seguida na barbacã os conscritos escorraçados.

 

Agora tentavam travar a investida dos drahregs que subiam à muralha com o intuito de atacarem os sirulianos pela retaguarda. Lutavam num espaço apertado à entrada da barbacã, que não permitia a entrada a mais do que dois inimigos de cada vez e que começava a ficar atulhado de cadáveres drahregs com alguns humanos à mistura. Os defensores eram constituídos por homens com mais ligaduras do que armadura e que empunhavam ferros de cautério, espadas cheias de bocas, machados embotados e afins armas descartadas. O desespero era a única força que os instigava a combater, pois já nenhum nutria esperanças de vencer a batalha; queriam apenas sobreviver. Lhiannah gritava e grunhia, os seus braços ardiam e a camisa de Aewyre que vestia estava colada ao seu corpo pela chuva que apanhara ao vir para a barbacã. A sua espada subia e descia, recuava, estocava e torcia, gotejando sangue drahreg a cada movimento, mas surgia sempre mais um para substituir o que acabara de morrer. Uma lançada vinda detrás de um adversário que combatia raspou-lhe o ombro, mas a arinnir ignorou a dor, agarrou a haste da lança, puxou-a para bater na cabeça do drahreg à sua frente e enfiou-lhe a ponta da sua espada debaixo do queixo.

 

Lutem! os conscritos. não podem entrar!

 

Aewyre surgiu de rompante das escadas, mas apenas os conscritos que estavam atrás da barreira humana à saída para a muralha o viram. O guerreiro avistou os cabelos louros de Lhiannah no meio da peleja e chamou pelo seu nome, mas não se conseguiu fazer ouvir. Os homens gritaram-lhe qualquer coisa, mas Aewyre também não percebeu e olhou em redor. Não tinha espaço para manejar o espadão siruliano, e não havia maneira de conseguir passar para a linha da frente a menos que puxasse os homens um por um, pelo que optou por continuar a subir, ignorando os gritos dos conscritos. Chegou até ao chuvoso topo da barbacã norte e inclinou-se sobre as ameias que davam vista para a muralha, cujo adarve estava repleto de drahregs que tentavam entrar na barbacã. Subiam pela escadaria da muralha leste, mas a sua passagem era barrada por dois homens, um dos quais empunhava duas espadas curvas e o outro fazia iridescentes feitiços. Não via Quenestil nem Worick, e pelo vislimbre que lançou ao pátio, o exército de Asmodeon fazia-se em pedaços contra a sólida coluna de sirulianos. Aewyre tomou uma irreflectida decisão, saltou para cima das ameias e delas pulou para a muralha, para cima da chusma de drahregs. Um relâmpago faiscou nas suas costas, e a visão do guerreiro em pleno ar, gritando com abandono e uma enorme espada empunhada, estarreceu os drahregs que olharam para cima e sobre os quais Aewyre se abateu, amortecendo a sua queda com eles e deixando-se cair de frente sobre os outros, confiando no arnês para o proteger do pior. O guerreiro afastou-se dos surpresos inimigos com um empurrão e pegou no espadão com ambas as mãos, varrendo-os com um devastador golpe acompanhado de um ribombo que decepou vários e atirou outros das ameias abaixo para o fosso. Aproveitou o abalo dos inimigos para se virar rapidamente para trás e atingir os que se haviam apercebido do inesperado ataque, voltando-se de seguida para os da frente. A lâmina siruliana era maior e mais pesada que a de Ancalach, e o guerreiro fez o máximo uso do ímpeto que o seu peso lhe conferia, oscilando-a sobre a cabeça e cortando ar e drahregs com um ruidoso chofre.

 

Kror e Allumno aguentavam a muralha sozinhos, impedindo os drahregs que subiam pela escadaria de pousarem um único pé sobre o adarve. Os alfanges zumbiam, sangrentos, a voz do mago não tinha descanso e os degraus da escadaria estavam escorregadios com chuva e sangue dos corpos sobre eles empilhados. Os Miliciares e Ajuramentados estavam a sair-se bem contra a investida do inimigo e Seltor estava totalmente absorvido no seu combate com Aezrel; cabia-lhes a eles aguentar a secção da muralha para salvaguardar a retaguarda da coluna siruliana, mas os drahregs formigavam quase ininterruptamente da hoste principal para subirem pela escadaria.

 

Allumno optou por uma abordagem mais criativa ao problema e manipulou a água da chuva que escorria pelos degraus abaixo, vaporando-a e confundindo os drahregs com uma súbita nuvem de vapor que fez com que vários tropeçassem ou caíssem. A confusão permitiu a Kror recuperar o fôlego, e nesse preciso momento Worick e Quenestil surgiram da torre flanqueante a correr.

 

Tu! o thuragar ao ver Kror. bestiaga...!

 

Worick, espera! Allumno, interpondo-se entre os dois com o cajado em ambas as mãos. é...

 

Eu sei o que ele é, um monte de esterco preto traidor! acusou, apontando para Kror com o pingante espeto do martelo.

 

Traidor? Ele salvou-me e esteve a combater a meu lado... Worick, não!

 

O thuragar berrou e avançou de martelo erguido contra Kror, que se desviou e viu um drahreg surgir da cortina de vapor e ficar com a cabeça do martelo quase enfiada na sua. O thuragar empurrou o moribundo da muralha com um pontapé e apontou um dedo a Kror.

 

Não sei qual é o teu jogo, mas vou ficar de olho em ti, drahreg. Outros dois surgiram do vapor, presas fáceis para uma oscilante martelada que os apanhou a ambos e os atirou pela escadaria abaixo.

 

Olhem, na barbacã! Quenestil, apontando na direcção referida com um machado drahreg de lâmina em forma de meia-lua que apanhara.

 

Os quatro olharam para a barbacã norte e viram um guerreiro isolado a defrontar uma enfiada de drahregs no adarve da muralha.

 

E o Aewyre! Allumno.

 

Temos de o ajudar! Worick, rachando mais uma cabeça. tu e o eahan aguentam isto?

 

Temos que o fazer, não é? Quenestil resignadamente, avançando de machado em punho para tomar o lugar do thuragar.

 

Eu e o drahreg aqui vamos lá. E ai de ti se te virares contra nós outra vez...

 

Kror mostrou os dentes a Worick e tomou a dianteira, correndo para o torreão na ponta da base da bastilha.

 

Boa sorte, e cheguem-lhes a valer! desejou Worick, seguindo o drahreg.

 

Allumno vociferou algo de seguida e apontou com ambas as mãos para as silhuetas que se mexiam no vapor, descarregando uma rajada escarlate sobre elas. Quenestil aguardava de machado erguido, rosnando com um pé no adarve e o outro num degrau.

 

Aewyre não parava de oscilar os braços, segando todos à sua frente numa sangrenta colheita de corpos desmembrados. Anéis de cota de malha voavam, sangue irrompia de cotos decepados, metal era ameigado, couro e carne eram rasgados pela possante e afiada lâmina. O guerreiro sentia-se cansado, muito cansado, mas a única alternativa era largar a arma e deixar-se trucidar pelos drahregs, pelo que continuou a golpear e lanhar. Ouvia a voz de Lhiannah a gritar algo nas suas costas, mas não se atrevia a olhar para trás, não podia tirar os olhos dos adversários por um instante sequer. Provavelmente já tinham morto os drahregs que haviam ficado para trás, mas não o podiam ajudar a combater devido ao espaço de que necessitava para manejar o espadão siruliano. Teria de aguentar, embora não soubesse até quando, mas a ajuda veio por fim na forma de várias figuras arnesadas de cabelos brancos molhados que de repente se ergueram nas ameias da fortaleza do outro lado do fosso.

 

Os eahan frecharam em perfeita sincronia os seus longos arcos em forma de dois crescentes originantes do punho e soltaram uma saraivada reforçada com palavras em Eridiaith que ajudaram as setas a deslizar pela chuva e o vento até se cravarem nos flancos dos alvos. O efeito dos projécteis foi violento, pois os fios dos arcos eahan ainda estavam secos e a distância que separava ambas as muralhas não era grande. Aewyre pressionou quando os seus adversários vacilaram, e vários objectos rodopiantes arremessados pelos conscritos silvaram-lhe aos ouvidos, embatendo e espetando-se contra os drahregs à sua frente. Quando a segunda salva se abateu sobre o inimigo, o guerreiro viu Worick e Kror surgirem do torreão, martelando e acutilando a surpresa retaguarda drahreg.

 

Aewyre gritou de alívio, desbastando mais três adversários, e pegou no espadão a meio do comprimento da lâmina com a mão esquerda, usando-o como um cajado. Os conscritos atrás de si perceberam o sinal e investiram à espadada e machadada aos seus lados enquanto o guerreiro concutia com o pomo da espada e espetava com a ponta. Confusos e surpresos com o repentino ataque em três frentes, os drahregs começaram a desbaratar, mas ao verem que ambas as saídas estavam barradas entraram em pânico e todos os que não saltaram da muralha foram sumariamente chacinados. Aewyre abateu o seu último drahreg com uma cutilada que enterrou a lâmina do espadão do ombro até meio da coluna vertebral do adversário. Worick praguejou ao ver o seu alvo escolhido saltar das ameias, e Kror cravou ambos os alfanges nas costas de um que acabara de derrubar. Os drahregs que ainda se mexiam eram os que se contorciam no chão com ferimentos, e os conscritos acabaram com o sofrimento desses rapidamente e com sádico prazer. O coração de Aewyre trovejava dentro do seu peito, parecendo ressoar pelo metal do arnês, e um fragmento da sua mente tentou convencê-lo de que a batalha acabara, que tudo estava terminado, mas os ruídos vindos do pátio desacreditaram-no impiedosamente. Kror ofegava a poucos passos de distância, e os seus orbes cruzaram-se fatalmente, atraindo, cativando, chamando...

 

Aewyre! disse uma voz feminina atrás de si.

 

Lhiannah... respondeu o guerreiro, virando-se e apoiando-se no ombro da princesa, que lhe agarrou o braço com a mão livre. Os seus cabelos louros estavam presos num molhado rabo-de-cavalo, os seus olhos azuis de pestanas molhadas pareciam maiores, a sua roupa branca ensopada e manchada de sangue que felizmente não era o seu. A Slayra, o Taislin...?

 

Estão na torre, barricados no último piso.

 

Os dois fitaram-se, e ambos viam atrás dos olhos um do outro um sem-fim de palavras que esperavam para serem ditas, mas que teriam de aguardar um pouco mais.

 

Aewyre! chamou-lhe Worick a atenção, acotovelando-lhe a faldra. O Allumno e o Quenestil são capazes de precisar de ajuda...

 

Onde? virou-se o jovem imediatamente, olhando para o pátio. A coluna siruliana tomara a ofensiva e avançava com ímpeto, desbastando o inimigo com alabardadas.

 

Ali, na muralha! indicou o thuragar, mas o jovem deu pela falta do Flagelo e apercebeu-se de que era uma das duas figuras isoladas que lutavam com uma rapidez como nunca vira.

 

Quem... quem é aquele? perguntou, incrédulo por ver alguém a defrontar o Bastardo cara a cara.

 

Lhiannah também o avistou pela primeira vez e ficou boquiaberta, e o mesmo se passou com todos os conscritos que olharam. Os dois combatentes estavam perfeitamente alheios à batalha e completamente absortos no seu duelo.

 

É o teu pai, não vês? disse o thuragar com o seu habitual tacto.

 

O quê? exclamaram o jovem e Lhiannah em uníssono.

 

Arre, o teu pai! Aezrel Thoryn! Não me perguntes de onde ele veio que eu não faço ideia, mas é ele e... ei!

 

Aewyre empurrou o thuragar abruptamente, desatando a correr desenfreadamente pelo adarve fora.

 

Espera aí! gritou Worick, que fora agarrado por um conscrito antes que caísse. Oh, que o martelo de Tharobar parta isto tudo... vamos atrás dele!

 

Em baixo, os sirulianos batalhavam contra o que sobrava da hoste de Asmodeon, avançando com precisão e disciplina na formação compacta contra a qual a massa de drahregs era rasgada como terra perante uma charrua de alabardas. Os ulkekhlens passavam por baixo das armas de haste e pernas dos sirulianos, mas eram prontamente pisoteados e poucos estragos conseguiam fazer. Os ogroblins tentavam estraçalhar a formação, atacando com as suas massivas clavas, mas as pontas das armas de haste encolhiam-se como os espinhos de um animal retraído e os homens da fila dianteira ajoelhavam-se, baixando os compridos piques e espetando-os nas pernas e virilhas dos ferozes humanóides, que eram seguidamente talhados com precisão pelas alabardas. A meio da coluna encontrava-se um Miliciar que gritava em Eridiaith como se estivesse a dar ordens, e cada palavra sua era repetida em uníssono, aterrando o adversário, motivando os companheiros ou dando força adicional às armas. Equipada com as melhores armas e armaduras, extremamente disciplinada e rigorosamente treinada desde a mais tenra idade, a infantaria siruliana era unanimemente considerada a melhor de Allaryia, capaz de apresentar uma barreira inamovível ou investir como um aríete imparável, e os homens no pátio faziam jus à sua reputação, matando os filhos do Flagelo às centenas.

 

A meio do pátio, Aezrel Thoryn digladiava-se corpo a corpo com Seltor, e Ancalach e Dalshagnar lambiam-se agudamente, respingando água a cada embate. A esfarrapada capa do Flagelo esvoaçava, e os pés de ambos derrapavam pela lama e pisavam poças sem nunca perderem o equilíbrio, deslocando-se em frenéticos passos de uma mortífera dança. Os seus movimentos eram tão rápidos que mal podiam ser acompanhados a olho nu, e as lâminas pareciam estar em todo o lado enquanto deslizavam pelo ar, cortando-o sibilantes. Seltor aparou um golpe transversal, baixou a lâmina para bloquear outro que visava o seu joelho e teve o seu altabaixo desviado por uma defesa alta que de seguida se converteu num corte direccionado ao seu jarrete. Soltou a mão direita antes que o golpe o atingisse e percutiu Aezrel no ombro direito com a manopla, afastando-o de si a deslizar pela lama. Enquanto o adversário estava no chão, O Flagelo tornou a empunhar Dalshagnar com as duas mãos e descreveu um arco ascendente que avançou contra Aezrel na forma de uma undíflua reverberação sombria que relhava o chão molhado enquanto se aproximava, espirrando água e lama para os lados. O humano deu uma cambalhota para o lado e respondeu com um golpe seu, cujo revérbero de ar distorcido embateu contra o de Seltor, estilhaçando-se com ele. Os dois deslizaram então em redor de um eixo invisível com passadas laterais, brandindo as espadas e golpeando com elas como se estivessem a combater adversários invisíveis, mas os embates davam-se no ar, estridentes e faiscantes. Ambos pararam em perfeita sincronia, cada movimento a provocar uma resposta automática, e correram na direcção um do outro, continuando a espadeirar o ar e a verem os seus golpes reverberarem e embaterem estridulamente. A distância certa, Aezrel girou Ancalach sobre a cabeça e Seltor baixou-se com a perna de trás estendida, deslizando contra o adversário até trazer Dalshagnar acima. As duas espadas gritaram ao entrechocar e ambos ficaram quietos pela primeira vez, fitando-se mutuamente à chuva por detrás das lâminas. Aezrel tinha Ancalach vertical entre ambos os olhos e Seltor espreitava por cima do gume horizontal de Dalshagnar. O Flagelo era mais alto do que o humano, mas estava numa posição meio acocorada que permitia a Aezrel olhá-lo de igual para igual. O semblante do Bastardo continuava como se lembrava dele: impossivelmente belo, uma imaculada escultura de mármore de elegantes feições e olhos capazes de descortinarem os mais profundos e recônditos segredos da alma.

 

Vinte anos... Seltor. anos dentro dessa maldita espada. Cada instante, agonia. Consegues imaginar, Aezrel? Destinavas-me a um fim bem mais cruel do que aquele que eu te reservei, não achas?

 

As lâminas roçaram uma na outra ao deslizarem ligeiramente com a força que ambos faziam, e Aezrel ajustou a perna de trás.

 

Nada que não merecesses, maldito o guerreiro. Poucos castigos seriam mais adequados aos teus crimes. E que queres dizer com vinte anos?

 

Gotas de chuva escorriam ao longo do gume de Dalshagnar, acumulando-se na guarda e pingando do dente incrustado no copo.

 

Que quero dizer? Meu caro, o tempo não parou enquanto estivemos aprisionados. Vinte anos passaram desde o nosso fatídico confronto. Quanto aos meus crimes, isso já são certamente conversas da tua bela esposa. sirulianos sempre foram irredutíveis nas suas injuriosas crenças a respeito da minha pessoa. Ah, ela morreu, sabias? lembrou-se o Flagelo de repente, erguendo as sobrancelhas em quase sincera candura. desgosto do desaparecimento do marido foi mais do que pôde suportar, temo bem.

 

Mentes, desgraçado! Aezrel, afastando-se e retomando o ataque. como sempre! Dessa tua pérfida boca só saem mentiras!

 

O Flagelo aparou as ferozes espadeiradas do humano e dançou com elas, desviando-se e esquivando-se.

 

Infelizmente não retribuindo com um golpe transversal. aprisionado numa gema anímica, preso em estase, imune à passagem do tempo. desferiu dois reveses seguidos, obrigando Seltor a recuar. dos mais profundos desejos humanos, não? E certamente um destino consideravelmente mais suportável do que a agonia pela qual eu passei na tua perniciosa espada...

 

O humano conseguiu fintar Seltor com um revés para cima, torcendo os pulsos para o transformar num corte horizontal que rasou a cara do Flagelo, raspando-lhe o malar. Seltor gritou como se lhe tivessem cauterizado a face e recuou, oscilando amplamente com Dalshagnar para afastar o adversário. Aezrel levou o punho de Ancalach atrás e estocou em frente com firmeza, arrojando da ponta um filamento de ar distorcido que se projectou contra O Anátema, perfurando-lhe a escarcela e vertendo sangue negro da sua anca. Seltor tornou a gritar, cambaleando, e retribuiu em fúria com uma selvática oscilação da Língua Negra que sulcou o chão aos pés de Aezrel, fazendo água lamacenta irromper sobre o guerreiro e cegando-o momentaneamente. Desenhou logo de seguida um arco horizontal no ar antes que a água caísse, atravessando-a com a sombria reverberação do golpe, que embateu contra Ancalach e ainda escoriou o braço de Aezrel. Uma terceira oscilação fez o humano recuar mais uns passos e os dois oponentes fizeram um novo intervalo, ficando apenas a olhar um para o outro em mútua avaliação, ofegantes e totalmente alheios à batalha que se desenrolava a poucos passos de distância. O sangue negro de Seltor escorria do ferimento no seu malar, escurecendo-lhe o lado direito da face. Ao que parecia, Aezrel não perdera nenhuma da determinação de o matar, mas também, vinte anos de êxtase não permitiam grandes reflexões...

 

Vamos acabar isto, Aezrel O Flagelo, empunhando Dalshagnar atrás e apresentando-lhe um convidativo ombro.

 

O humano flectiu as pernas, pronto para tudo menos para a voz que ouviu.

 

Pai!

 

Os dois combatentes viraram as cabeças e viram um jovem alto e arnesado correr na sua direcção, empunhando um grande espadão siruliano com o qual podou um drahreg que estava no seu caminho. Aewyre ignorara os gritos dos seus amigos e correra pela muralha fora, passando por Allumno e Quenestil e descendo a escadaria contra a minguante maré de drahregs que por ela subia. Esquecera todo o medo, perdera todo o cansaço; era o seu pai!

 

Aewyre, espera! Allumno, vergastando um drahreg com o cajado a crepitar de energia escarlate.

 

Os seus companheiros e Kror haviam ficado para trás e foram forçados a lidar com a retaguarda do exército inimigo ao pé da escadaria quando a irregular brecha aberta pelo guerreiro se fechou. Aezrel viu que vários drahregs corriam atrás do jovem na sua direcção e cortou o ar com um revés, cuja reverberação diagonal passou por cima da cabeça de Aewyre e ceifou os inimigos que o perseguiam ao meio como uma grande foice. Seltor aproveitou a distracção do humano e estendeu o braço esquerdo de mão aberta na direcção do rapaz, que estacou como se tivesse embatido contra uma parede invisível e foi alçado ao ar por uma força opaca, deixando a espada cair. Aezrel reverteu a oscilação de Ancalach e desferiu com ela uma cutilada contra O Flagelo, que a aparou, recuando de braço esquerdo estendido. Aewyre foi arrastado pelo ar, imóvel e emitindo ruídos sufocados, e quando Seltor semicerrou os dedos começou a gritar de dor.

 

Ele apanhou o Aewyre! Quenestil, alarmado ao escachar a cabeça de um drahreg do cimo da escadaria.

 

Um ogroblin surgiu, bramindo com uma enorme clava empunhada, e os companheiros saltaram da escadaria para a lama, deixando a arma embater violentamente nos degraus. Kror ficara para trás e pulou para cima da clava, correndo rapidamente por ela abaixo enquanto o ogroblin a alçava e acutilando-lhe a garganta ao mesmo tempo que saltava para fora do seu alcance. Lhiannah levantou-se atabalhoadamente da lama a tempo de bloquear a espadeirada de um drahreg, e o machado de Quenestil estraçalhou as costelas do seu adversário enquanto este estava de braços erguidos. Ainda no chão, Worick apresentou o espigão do seu martelo a um ulkekhlen que lhe saltara em cima e empalou-o, enquanto Allumno cerrava olhos e dentes com a dor no joelho causada pela queda. Kror aterrou a poucos passos do mago, rebolando pelo chão e erguendo-se de alfanges cruzados para bloquear uma espada, passando de seguida um alfange pelo joelho do drahreg que o atacara. Vendo os companheiros encurralados contra a muralha, muitos os tomaram por presas mais fáceis do que os sirulianos ou que os conscritos que ainda defendiam a apertada escadaria. Desesperados, os cinco provaram-lhes o quão errados estavam. Aewyre tornou a gritar de dor, e Aezrel olhava alternadamente para o jovem e para O Flagelo.

 

Deixa o rapaz, Seltor. Por que o metes nisto?

 

Queres dizer que não o reconheces, Aezrel? admirou-se o Bastardo em tom quase reprovador de braço erguido. Olha bem.

 

Seltor torceu o pulso, e Aewyre foi virado de cabeça para baixo, aproximando-se de Aezrel, que olhava desconfiadamente para o Flagelo e não se atrevia a fazer mais do que vislumbrar o rapaz.

 

Deixa-me ajudar-te... ofereceu-se Seltor, circundando Aezrel com o seu filho. A cara de Aewyre passou a escassa distância da sua, e embora estivesse dependurada e os cabelos molhados lhe pendessem, houve algo nos olhos escuros do jovem e nas suas hirtas feições que despertou memórias no coração do velho guerreiro.

 

O queixo de Aezrel descaiu, e Ancalach baixou ligeiramente, mas então Aewyre tornou a gritar de dor e foi arrancado da sua presença, arrastado pelo ar até uma distância segura, e o guerreiro retomou a sua postura de combate. O seu olhar, contudo, era mais incrédulo que odiento.

 

O teu filho cresceu e tornou-se um belo rapaz, Aezrel elogiou o Anátema. Não me forces a matá-lo por causa da tua obstinação. Crava essa maldita espada no chão e eu solto-o.

 

O humano não mexeu um músculo sequer, claramente dividido, e Aewyre gritou em agonia enquanto a força tetra que o sustia começou a apertar mais, comprimindo-o dentro da sua armadura.

 

Embora para ti possa ser difícil acreditar, tudo o que eu quero é a Ancalach. Tu e o teu filho e todos os outros podem ir-se embora depois. Viverei bem comigo mesmo se não te matar, apesar de todo o mal que me causaste.

 

Ainda nenhuma reacção de Aezrel, que continuava imóvel.

 

O... meu exército está vencido, não tarda a debandar. Apenas a minha presença os instiga a continuar, mas nada mais resta para mim aqui. Espeta a espada no chão e eu vou-me embora. Hesita muito mais, outro grito estrangulado de Aewyre, e o teu filho morre.

 

O guerreiro atreveu-se então a olhar mais prolongadamente para o jovem, embora mantivesse Seltor na sua visão periférica. O Bastardo não mentia, não desta vez. Mas entregar-lhe Ancalach, enterrá-la no solo de Asmodeon, onde ele certamente a conseguiria de alguma forma aprisionar, deixá-lo escapar... todas as mortes, todos os bons homens caídos, mulheres e crianças massacradas e violadas... Zoryan, Torun, Sarea... tantas mortes a pesarem-lhe na consciência, a clamarem por vingança...

 

Outro grito do jovem, que sabia ser seu filho.

 

É o meu último aviso, Aezrel advertiu Seltor. Espeta a espada ou ele morre e nós retomamos a nossa contenda, e que o melhor ganhe.

 

O guerreiro baixou a cabeça e fechou os olhos, murmurando palavras que ninguém foi capaz de ouvir a meio da tempestade. Quando a ergueu, havia uma nova determinação na sua face que deixou o Flagelo na expectativa, mas acabou por erguer Ancalach e girá-la na sua mão, empunhando-a de forma reversa com a ponta apontada para o chão. O rei sem linhagem ficou nessa posição durante longas batidas de coração, olhando Seltor nos olhos enquanto a chuva escorria pela lâmina da sua espada e pelos seus cabelos ensopados. Seltor anuiu com a cabeça, incitando-o a fazê-lo de uma vez por todas e relaxando ligeiramente os dedos, o que aliviou a pressão sobre Aewyre, que gemeu de alívio. Aezrel olhou uma última vez para o seu filho, mexendo os lábios em palavras que este não pôde ouvir, e baixou-se lentamente, erguendo a mão que empunhava Ancalach. O Flagelo acompanhou a vagarosa descensão da Espada dos Reis com os olhos, crispando os ansiosos dedos no punho de Dalshagnar. A pingante ponta que já provara o seu sangue estava cada vez mais próxima do chão, uma presa acerada prestes a enterrar-se na terrosa carne de Asmodeon.

 

Uma gota de chuva pingou sobre o seu olho direito, e nesse momento o corpo de Aezrel explodiu em acção. Avançou com a perna traseira, levou o braço que empunhava Ancalach atrás e arremessou a espada rodopiante pelo ar contra Seltor, que arregalou os olhos assim que os abriu e virou a mão estendida na direcção do guerreiro. Aewyre caiu de ombro no chão, enterrando metade da cara na água lamacenta, e dos dedos do Flagelo projectaram-se afiadas garras negras que se alongaram sinuosamente como serpentes sombrias pelo meio das quais Ancalach rodopiou. Aezrel foi empalado pelas garras, que perfuraram couro, pele e carne, saindo-lhe sangrentas pelas costas e alçando-o pelo ar. Ancalach atravessou Seltor de um lado ao outro no ventre, fazendo-o curvar-se e cambalear para trás, soltando um rouco grito ao sentir o aço queimá-lo por dentro.

 

Como um só, os drahregs, ulkekhlens e ogroblins vacilaram quando o seu senhor foi atingido, e os sirulianos abateram-se sobre os inimigos em fúria fria e implacável.

 

Eles estão a desanimar! Worick, martelando o peito de um drahreg que olhara para trás.

 

Lhiannah grunhiu em resposta, arrancando a lâmina da sua espada do torso de um inimigo, enquanto Quenestil percutia outro na nuca com a parte anterior do machado. Kror dançou por entre os seus congéneres, deixando para trás parceiros mutilados e feridos de morte, e Allumno semeou a desordem nos já abalados drahregs com uma flamância escarlate proveniente do seu cajado que queimou todos quantos tocou. O mago já gastara mesmo as suas reservas de energia, estava exausto e via-se forçado a fazer uso do cajado para canalizar pura Essência.

 

O Aewyre! Onde está o...

 

Os drahregs que retiraram permitiram-lhe ver o culminar do duelo entre Seltor e Aezrel. O guerreiro estava estendido no chão, contorcendo-se de costas e arrastando os dedos e calcanhares numa poça de lama e do seu próprio sangue. O Flagelo gritava de agonia com Ancalach atravessada no seu ventre, e assim que crispou ambas as mãos no punho da Espada dos Reis estes fumegaram, soltando o chio de pele e carne queimada até Seltor a conseguir arrancar do seu abdómen, atirando-a ao chão e deixando-se cair de joelhos na lama com um braço apoiado no chão e o outro a tapar a ferida. Estava visivelmente com dores, e a sua forma diluiu-se repentinamente com um grito de raiva e frustração, unindo-se às sombras da noite e desaparecendo da vista.

 

Pai! Aewyre, arrastando-se pelo lamacento pátio até Aezrel, que vasquejava como um animal ferido, olhando fixamente para o tempestuoso céu.

 

Irremediavelmente desmoralizado pela fuga do seu senhor, o que sobrava do exército de Asmodeon destroçou-se em pânico, e a coluna de sirulianos avançou desapiedada sobre o inimigo em debandada, abatendo pelas costas todos os que estavam ao alcance das suas longas armas de haste. A chacina continuou até à barbacã leste, e muitos ogroblins e drahregs ficaram encurralados entre os apertados escombros da torre e os espadões que os sirulianos na vanguarda da coluna desembainharam, sendo cortados em pedaços até ao último humanóide.

 

Não houve, porém, qualquer grito de vitória aquando da retirada do inimigo. Os sirulianos terminaram a fria carnificina ordenadamente, afivelaram os espadões às costas e voltaram para os que haviam permanecido atrás e que se aglomeravam num círculo a meio do pátio semeado de cadáveres. Um respeitoso silêncio desceu sobre a bastilha, quebrado apenas pelo ocasional trovão enquanto os companheiros cercados de Ajuramentados e Miliciares observavam aquele que desconheciam mas sabiam ser um herói, aninhado nos braços do seu filho. Aewyre abraçava o seu pai, cuja pele morena empalidecia a olhos vistos e cujo sangue manchava o couro da sua armadura, tingindo a lama em seu redor de vermelho.

 

Pai? Pai? Está a ouvir-me? perguntou o jovem, abanando o guerreiro gentilmente.

 

Os olhos de Aezrel viraram-se para uns idênticos aos seus, escuros como os dos sulistas de Nolwyn, e o guerreiro disse entre tossidos sangrentos:

 

Aereth...?

 

Não, pai. É o Aewyre. Aewyre. Aguente-se, por favor... pediu o jovem numa voz plangente, deslizando a mão enluvada até à nuca do pai, apoiada sobre o seu joelho.

 

Os companheiros estavam indecisos entre avançar ou não, mas algo na cena os impediu de darem um passo sequer em frente. Quenestil foi o único a tentar fazê-lo, atirando o seu sangrento machado drahreg ao chão ao avançar, mas Allumno agarrou-lhe o braço, abanando a cabeça.

 

Aewyre... suspirou Aezrel, acenando com a fraca cabeça. Meu filho...

 

Sim, pai. Eu estou aqui assegurou-lhe o jovem, agarrando-lhe a mão suja de lama. Aguente-se. Os eahan...

 

A Adelayne? interrompeu o guerreiro, tossindo. E o Aereth? Onde estão?

 

Estão em Nolwyn, pai. Os dois. O pai não envelheceu nada! soluçou Aewyre, afagando os enlameados cabelos de Aezrel.

 

Então o desgraçado mentiu... alegrou-se o velho guerreiro, olhando para o céu que chorava em seu redor, criando anéis no alagado pátio com cada pingo. Eu sabia que ele estava a mentir...

 

Sim, ele estava a mentir concordou Aewyre sem saber ao que o seu pai se referia. E agora vai pôr-se bom e nós os dois vamos voltar para Nolwyn, onde o esperam há tanto tempo...

 

O toque frio e molhado de Aezrel na sua face surpreendeu-o, e o seu pai passou-lhe a avaliadora mão pela cara, deixando manchas de lama pela sua pele.

 

Meu filho... estás um homem... mais alto do que o teu pai... um ataque de tosse trouxe-lhe sangue aos cantos da boca, alarmando Aewyre.

 

Aguente-se, pai! Fique comigo, por favor! suplicou o jovem, agarrando a mão de Aezrel quando esta se afastou da sua cara. Tenho tantas coisas para lhe dizer, tantas perguntas para fazer... e o Aereth também, ele também precisa do pai... nós todos precisamos...

 

Diz... à tua mãe... que lamento. E que a amo pediu Aezrel, arranjando forças para retribuir o aperto na sua mão direita enquanto a outra agarrava o braço que lhe cingia a cintura. Tu e o Aereth... os meus filhos... tão pequenos quando parti...

 

Pai, pare com isso! Não vai partir outra vez! recusou Aewyre, apertando-lhe a mão com mais força. Não pode! Nós temos tanto que falar... não me deixe!

 

Adelayne... meus filhos... perdoem-me... murmurou Aezrel, inclinando a cabeça sobre o joelho de Aewyre e molhando a barba com o sangue que lhe escorreu do canto da boca.

 

Claro que perdoamos, pai! Claro que perdoamos! assegurou o jovem com a voz trémula, largando-lhe a frouxa mão para lhe pegar pela nuca. Mas não nos deixe, pai, por favor!

 

Eu fiz o melhor que podia... tive de o fazer... desculpem-me... pediu Aezrel, a sua respiração um estertor.

 

Pai...? Pai!

 

Ilegíveis e solenes, os sirulianos empunhavam as armas de haste e mantinham as cabeças respeitosamente baixas.

 

Pai...? perguntou Aewyre, sacudindo Aezrel suavemente. Worick baixou a sua cabeça e a do martelo, apoiando as mãos no pomo do cabo. Lhiannah tapava a boca com uma mão, abraçando a cintura com a outra. O shura tinha ambas as mãos sobre os ombros da princesa, recitando uma silenciosa elegia em Eahan. Allumno amparava-se pesarosamente no seu cajado, fechando os olhos e abanando lentamente a cabeça. Kror permanecia em silêncio, isolado no meio da multidão e observando a cena com ambos os alfanges baixados.

 

Pai...? o jovem, agarrando a cabeça do guerreiro com ambas as mãos, tentando que os seus olhos se cruzassem com os seus.

 

A mão de Aezrel caiu na poça tinta com o seu sangue, perturbando os anéis dos pingos da chuva e contraindo os dedos durante alguns instantes antes de parar de se mexer.

 

Pai... Aewyre, encostando a cabeça à de Aezrel.

 

Um relâmpago iluminou o derradeiro momento do rei sem linhagem nos braços do seu filho, seguido por um pesarosamente ribombante trovão.

 

- Ele sempre esteve lá disse Allumno aos presentes. O Flagelo esteve dentro de Ancalach durante vinte anos, tramando, espiando, agindo através de intermediários.

 

O mago e Worick eram os dois únicos companheiros presentes no salão da torre de menagem, e estavam a ser ouvidos pelo Castelão, sentado no cimo do estrado, o Factoto Caendal, o Mandatário Aelgar e o Patriarca Hanal, todos com os respectivos arneses envergados. A luz do sol da tarde entrava obliquamente pela janela elevada sobre o cadeirão, interceptada por Aedreth, cuja enorme silhueta ensombrava os dois companheiros, que ostentavam as sangrentas e lamacentas marcas da batalha na pele e nas roupas.

 

Dentro de Ancalach? ressoou a voz do Castelão. Aprisionado?

 

De certa forma. A sua essência passou para a lâmina quando o seu corpo foi presumivelmente destruído por ela no confronto com Aezrel, e de alguma forma persistiu, subsistindo na forma de uma manifestação senciente do seu poder. A presença sombria foi na verdade detectada por vários magos, incluindo eu, mas sempre interpretada como um vestígio residual do seu contacto directo com dois entes tão poderosos e malignos como Wrallach e Seltor, razão pela qual foi ignorada.

 

Worick olhou de soslaio para Allumno, descortinando a raiva fria atrás da rígida verbosidade com a qual respondia às perguntas dos sirulianos numa voz calma e comedida. O thuragar franziu o cenho e os três tenros arranhões que lhe atravessavam a testa, nariz e lábio superior protestaram.

 

Uma série de bizarros incidentes ocorreram com Ancalach, evidências de faculdades previamente desconhecidas e desconformes efeitos sobre várias criaturas por ela mortas... todas elas ocasionadas pela vontade do Flagelo na sua procura por um hospedeiro adequado para ocupar.

 

Hospedeiro esse que encontrou em Aemer-Anoth... disse Caendal de braços cruzados.

 

De facto. Tratava-se de um moorul, de seu nome Baodegoth, que de alguma forma conseguiu seguir o rasto de Ancalach através de Allaryia até nos encontrar. É certo que expressava um desejo coincidente com o de qualquer outro da progénie da Sombra ao deparar com a Espada dos Reis, nomeadamente o de se apossar dela, embora duvido de que soubesse ao certo o que fazer com a espada, mas o facto de nos ter seguido por tão longa distância levanta muitas perguntas para as quais malogradamente não disponho de respostas. Julgando pelas descrições que me foram facultadas, creio que o renascimento do Flagelo tenha sido o resultado de uma aziaga série de convergências, que podem ou não ter sido arquitectadas pelo próprio. O moorul e uma harahan que também nos perseguia desde há longa data devido a uma quezília com o Aewyre atacaram-no no assalto final, e nesse confronto a harahan foi empalada pela espada negra do moorul enquanto este foi varado por Ancalach. Os moorul são essencialmente carcaças vazias desprovidas de vida, movidas pela essência vital dos que matam, pelo que se afigurava como o hospedeiro ideal. Com o veículo que portava o seu senhor atravessado no seu corpo, o moorul terá então dado início a uma permutação unilateral. Porventura a sua carcaça vazia não teria conseguido comportar a imensamente poderosa essência do seu senhor sem ser destruída, mas o facto de ter empalado a harahan terá resultado numa concatenação de energias que lhe permitiu resistir à pressão, auferindo de uma oportuna equanimidade de reacções opostas.

 

Worick não percebera rigorosamente nada, mas se o mesmo se passara com os restantes ouvintes, as expressões serenas destes não o acusavam.

 

E... Aezrel Thoryn? perguntou Aelgar.

 

Assim que divisei a gema facetada incrustada na guarda de Dalshagnar, ocorreu-me de imediato o destino de Aezrel, estando relativamente familiarizado com as vicissitudes de semelhantes artefactos explicou Allumno, indicando subtilmente a gema na sua testa com o indicador. Gemas facetadas como essa são comummente concebidas com o fim de aprisionar seres, absorvendo-os e deixando o prisioneiro em êxtase permanente até ser liberto. Julgo que o azathrax terá sido o seu anterior ocupante até ser forçosamente substituído por Aezrel, feito o qual se terá apossado de Dalshagnar e decidido formar um exército para cumprir o seu propósito: espalhar a dor e o sofrimento. O que fez durante vinte anos, desconheço, mas os mais aparentes resultados do seu esforço foram ontem a custo destruídos. O mago pigarreou, respirando pelo que pareceu a primeira vez antes de continuar. De qualquer forma, assim que me apercebi das implicações da gema, transferi de imediato a minha consciência para o Pilar de Allaryia e introduzi-me forçosamente dentro dela. Tais jóias são essencialmente pequenas distorções no espaço físico de Allaryia, refractando-o como o fariam com luz, nas quais o corpo e a alma podem ser encarcerados à parte do mundo que os rodeia. A forma mais directa de libertação implica a destruição física da gema, mas visto tal estar fora do meu alcance, optei por um mero processo de distorção levado a cabo pela minha manifestação etérea, cuja presença no interior da jóia causou um efeito de refracção antagónico. A minha presença física em Allaryia permitiu à minha manifestação servir de conduta, libertando Aezrel.

 

Os sirulianos e o Patriarca ruminaram as palavras de Allumno, considerando todas as suas implicações.

 

O Flagelo... renascido disse Aedreth, cofiando a barba.

 

Em Aemer-Anoth aditou Aelgar.

 

Acarreado através de meia Allaryia por um jovem inconsciente acrescentou Caendal em tom de acusação mal disfarçado, e os seus olhos azuis pesaram sobre os dois companheiros que achou por bem trazer a única arma que O Flagelo teme para as mãos dos seus lacaios.

 

Allumno ficou mais hirto ainda e pareceu prestes a responder, mas Worick antecipou-se-lhe.

 

E vocês bem se aproveitaram disso! acusou, apontando o dedo. Sabiam que a Ancalach iria atrair os bichos como moscas para um cadáver e ter-nos-iam deixado lá a todos a morrer, não fosse pelo aparecimento do Flagelo, seus cobardes pomposos!

 

As feições dos três sirulianos petrificaram-se, e as do Patriarca enrugaram-se de pesar. Dos quatrocentos e dezassete conscritos apenas cinquenta e dois haviam sobrevivido aos dois dias de cerco, e desses apenas vinte e um regressariam relativamente sãos a casa; os restantes estavam mutilados ou de alguma forma incapacitados, e nada mais seriam do que fardos para as suas famílias.

 

Se fosse possível teres coração, thuragar disse o Factoto numa voz fria como aço diria que falavas dele. Sendo tu um exemplar vulgar da tua raça, contudo, leva-me a crer que, na tua prodigiosa ignorância, apenas falas daquilo que não percebes e que podes portanto ser perdoado pelo que disseste...

 

Podes pegar no teu perdão e enfiá-lo no...!

 

Basta! vociferou Hanal, descendo do meio do estrado e colocando-se entre os dois grupos de protectoras costas para os companheiros. Não é a altura de arrojarmos culpas, sobretudo quando são inexistentes em ambas as partes! Estes dois homens e os seus amigos sofreram uma perda que toda Allaryia irá lamentar, e centenas de vidas foram perdidas nesta batalha! Será o thuragar quem verdadeiramente carece de coração?

 

As duras mas razoáveis palavras do Patriarca puseram fim à contenda, e o salão quedou-se silencioso. Caendal e Worick ainda ficaram a olhar um para o outro, mas nada mais disseram e Hanal baixou os braços, suspirando.

 

Não é de facto a altura para inculpações, Patriarca concordou Aedreth, coçando o nariz com o cotovelo apoiado no braço do cadeirão. O Flagelo ressurgiu, e medidas urgentes devem ser tomadas. Há muito trabalho a fazer, e quanto mais cedo começarmos, melhor. Allumno da Gema Vermelha e Worick de Taramon, quais os vossos planos e os dos vossos companheiros?

 

Dispomos de liberdade de escolha, Castelão? Aedreth acenou com a cabeça.

 

Estão ilibados e livres de partir, tal como ditam as condições da Lei da Conscrição de Clausura.

 

Assim sendo, de momento apenas posso falar por mim e comunicar-vos que partirei em breve. O regresso do Flagelo precipitou a minha decisão, e como haveis dito, medidas urgentes devem ser tomadas.

 

E Ancalach? lembrou-se o Factoto Caendal.

 

Allumno hesitou por um momento, como se estivesse a ponderar as suas palavras.

 

Não é do conhecimento geral, mas quando Ancalach foi forjada dos fragmentos da Lança de Istegard, Aezrel teve de auxiliar Tharobar a colmatar o dano no material quebrado, imbuindo a lâmina com um fragmento da sua própria alma. Por essa razão, a Espada dos Reis apenas resguardará quem a empunha do pernicioso poder do Flagelo se essa pessoa tiver o sangue de um Thoryn. Desejais porventura apropriar-vos de Ancalach e conservá-la nas cavas de Aemer-Anoth como chamariz para as hordas do Flagelo?

 

Não, assegurou o Castelão. Apenas desejo saber o que pretendem fazer com a única arma capaz de destruir o nosso inimigo comum.

 

A resposta inesperadamente calma de Aedreth fez Allumno cruzar os sossegados braços atrás das costas, suspirando o que quase eclodira como uma explosão de raiva.

 

Aewyre irá levar a Espada dos Reis consigo; o que com ela pretende fazer ainda desconheço. Agora, temos a vossa permissão para nos retirarmos, Castelão?

 

Aedreth tornou a acenar com a cabeça e indicou a porta do salão com a mão. Allumno fez uma contrita vénia, e Worick nem a isso se dignou, virando de imediato as costas aos sirulianos e preparando-se para se retirar. Apenas a voz do Patriarca os deteve.

 

Esperem! pediu, e os dois companheiros viraram-se para trás. Hanal dirigiu-se a eles e pousou as mãos sobre os seus ombros. Digam ao príncipe Thoryn que lamentamos a sua perda. E eu... lamento que tenham passado pelo que passaram. Se vocês ou os vossos companheiros precisarem de algo, venham à nossa estância. Nada que estiver ao nosso alcance vos será negado.

 

Era impossível duvidar das palavras do eahan. Allumno e Worick nutaram com as cabeças em agradecimento e o Patriarca largou-os, falando serenas palavras em Eridiaith que lhes aliviaram ligeiramente a raiva e o ressentimento que sentiam. Lançando um último olhar aos três inescrutáveis sirulianos, mago e thuragar saíram da sala.

 

Lhiannah caminhava por um dos solitários e parcamente iluminados corredores da torre de menagem, acompanhada apenas pelo eco dos suaves passos das suas imundas sapatilhas eahan. A camisa roxo-azulada emprestada por Aewyre estava salpicada de sangue, e as bocas da sua saia rasgada e enfaixada nas pernas como calças improvisadas estavam pesadas com lama seca. A espada desajeitadamente embainhada balanceava-lhe pela perna enquanto percorria as solitárias galerias, procurando uma porta que se assemelhasse vagamente à de uma sala de veladura. O corpo de Aezrel fora honrosamente levado para o local onde os mortos de Aemer-Anoth por princípio apenas sirulianos eram velados, e Aewyre não saíra de lá desde então. Por fim, avistou uma entrada em arco ornada com motivos fúnebres alusivos à escalada dos mortos nas suas Montanhas que destoava claramente de todo o resto, e concluiu que encontrara a sala.

 

Não apressou o passo, pois não tinha pressa de descobrir o que queria dizer ao guerreiro, mas a súbita saída de Kror da sala deu-lhe um indesejado pretexto para se deter. O drahreg também pareceu surpreso ao ver a princesa, pois parou assim que a viu, e os dois ficaram a olhar um para o outro em silêncio. Kror podia ter lutado a seu lado durante a batalha e ter uma misteriosa relação com os eahan ainda por explicar, mas Lhiannah continuava com dificuldades em aceitar a presença do drahreg e não se sentia à vontade na sua companhia.

 

O Aewyre...? perguntou, indicando a entrada. Kror acenou com a cabeça.

 

Obrigada agradeceu em surdina, retomando o passo ao mesmo tempo que o drahreg. Os dois passaram a uma respeitosa distância um do outro, fazendo os possíveis por evitar um olhar de soslaio e falhando na tentativa.

 

A súbita tensão no corredor baixou com o distanciamento dos passos de Kror, e Lhiannah pôde por fim entrar na sala de veladura. O compartimento em questão era pequeno e abobadado, e Lhiannah ficou surpresa com as inesperadamente belas pinturas nas abauladas paredes, que retratavam a jornada de figuras arnesadas através de uma etérea paisagem montanhosa. A sala era sobriamente iluminada por dois pares de tochas penduradas nas quatro molduras opostas da abóbada, e no seu centro encontrava-se uma laje de mármore sobre a qual jazia o corpo de Aezrel Thoryn. Fora obviamente feita a pensar no enorme porte dos sirulianos, e o baixo nolwyno quase parecia uma criança, deitado nela de mãos sobre o peito. O seu corpo estava cingido por uma mortalha branca que cheirava a rosmaninho, dissimulando o cheiro a morte, e as suas empalidecidas feições pareciam serenas na morte como nunca o haviam sido em vida, ou pelo menos assim Allumno afirmara. Aewyre estava ao lado do seu pai e de costas para Lhiannah, com ambas as mãos apoiadas sobre o pomo de Ancalach. Ainda envergava o arnês siruliano, que estava praticamente coberto de sangue e lama. A arinnir deteve-se à entrada, questionando-se quanto à conveniência da sua presença em tal momento, mas acabou por entrar e dirigir-se lentamente ao guerreiro, tendo o cuidado de arrastar ligeiramente as sapatilhas para anunciar a sua chegada. Aewyre não se mexeu, e Lhiannah deteve-se detrás dele a menos de um passo de distância, puxando para trás as madeixas de cabelo soltas do rabo-de-cavalo e incerta quanto ao seguinte passo a tomar. As suas irresolutas mãos acabaram por se erguer, percorrendo o inesperadamente longo caminho até às espaldeiras do guerreiro, sobre os quais pairaram, hesitantes, até por fim pousarem.

 

Eu... lamento muito, Aewyre.

 

A cabeça do seu companheiro mexeu-se quase imperceptivelmente, acusando a recepção das suas palavras e pouco mais do que isso. Lhiannah afagou-lhe as espaldeiras, sem saber o que dizer a um homem que acabara de perder o pai pelo qual viajara através de meia Allaryia.

 

O meu pai nunca alcançará o pináculo da sua montanha disse Aewyre de repente, quebrando o velado silêncio.

 

Lhiannah não esperara tal afirmação e levou alguns instantes a conseguir perguntar:

 

Porquê...?

 

O Allumno contou-me. Ele concedeu um fragmento da sua própria alma para que Tharobar conseguisse forjar Ancalach, fundiu-se a ela. Agora que morreu, a sua alma foi absorvida. A ponta da espada rilhou o chão com a força que o guerreiro fez no seu pomo. Não subirá à sua montanha, não terá o direito às últimas palavras com a minha mãe, nem comigo ou com o Aereth quando morrermos. A única coisa que o espera é o oblívio dentro da lâmina de uma espada... foi por isso que ele me pediu desculpa...

 

Lhiannah não tinha palavras. Mas, reflectiu, se o Allumno lhe contara isso...

 

Ele sempre soube, desde o início completou o guerreiro o seu pensamento. Sempre soube que o meu pai não tinha morrido, era mais do que uma esperança vã. Só não sabia onde ele estava.

 

Estás... zangado com ele? Aewyre não respondeu de imediato.

 

Não, afirmou por fim. Talvez até devesse, mas não estou. Ele nunca me mentiu e deixou que as minhas próprias esperanças me movessem. Não, toda a minha raiva vai para uma pessoa apenas...

 

A sua voz endurecera de repente e o guerreiro virou-se para a arinnir, empunhando Ancalach defronte da sua cara. A bruxuleante luz das tochas reflectia-se no imaculado aço que Aewyre estivera obviamente a limpar, inflamando-o como se espelhasse a ardente cólera de quem a tinha em mãos.

 

Vou matá-lo, Lhiannah declarou, empunhando Ancalach em trémulas mãos iradas. Vou matar o maldito desgraçado. Não sei como, mas juro que o vou matar.

 

Deixou a sua solene promessa persistir alguns momentos no ar antes de embainhar a espada e olhar para a princesa pela primeira vez desde que esta entrara. Lhiannah apertava as improvisadas calças com os nervosos dedos e olhava fixamente para os orbes escuros do guerreiro. Ainda pensou em perguntar acerca de Kror só para contrariar o desconfortável mutismo que os acometera a ambos, mas havia demasiadas outras coisas que lhe queria dizer para gastar o seu fôlego com o drahreg. Coisas que não se sentia confortável a dizer na sala onde jazia o corpo do pai de Aewyre. Mas o silêncio era intolerável.

 

Aewyre, eu... Olhou para o chão, pigarreando e tornando a erguer a cabeça. Eu queria pedir-te desculpa... pelo que disse, e...

 

Não, Lhiannah interrompeu-a o guerreiro, surpreendendo-a ao pegá-la pelos ombros. Não interessa, nem o que tu disseste, nem o que eu disse. Agora não interessa mesmo nada. Eu preciso do teu apoio. O resto não interessa.

 

As mãos sujas de Aewyre apertavam-lhe os ombros, e estava tão próximo que a arinnir podia cheirar o seu odor a sangue, suor e urina. Apesar de coberta por um restolho de barba, a sua face mais parecia a de um menino triste e assustado a pedir conforto do que a de um guerreiro determinado a matar o próprio Flagelo. Os seus olhos escuros e francos, as suas mãos másculas, tão forte e tão frágil, acalorando-a por dentro com a sua proximidade e fazendo o seu coração bater mais depressa... As já vacilantes incertezas de Lhiannah esvaneceram-se por fim e a princesa fechou os olhos suavemente, inclinando a cabeça ligeiramente para trás e apartando os lábios enquanto as mãos de Aewyre deslizavam pelo seu torso abaixo...

 

Os surpresos olhos da arinnir abriram-se quando sentiu a soluçante cabeça de Aewyre pousar de lado sobre o seu peito e os seus braços a abraçarem-lhe a cintura com força. O guerreiro ajoelhara-se e agora chorava como uma criança no seu colo, molhando-lho com lágrimas que até então haviam teimado em sair. Lhiannah levou algum tempo para compreender o que se passara, piscando os olhos e olhando para baixo em momentânea e quase indignada perplexão com os confusos braços estendidos a seus lados. O patético pranto do guerreiro não tardou a comovê-la, contudo, e a arinnir acabou por lhe abraçar a cabeça, afagando-lhe meigamente os cabelos e apertando-a contra o seu terno colo. Lhiannah exalou ruídos tranquilizadores através dos dentes, oscilando levemente como o faria para embalar uma criança e vascolejando mansamente as lágrimas para fora de Aewyre.

 

O sol do entardecer afundava-se nas já dispersas nuvens da tempestade que retiravam para oeste, ruborizando-as com o seu minguante calor. Aewyre e Kror encaravam-se no lamacento pátio da bastilha, sozinhos e observados pelos restantes companheiros no topo da barbacã leste. As suas armas estavam embainhadas, e os dois guerreiros não mexiam um músculo havia bastante tempo, apenas com os cabelos a abanarem ao vento. Quenestil e Slayra estavam abraçados, Allumno apoiava-se no cajado, Worick observava de braços cruzados e Lhiannah tinha as mãos sobre os ombros de Taislin, que estava sentado sobre uma ameia. A maior parte dos conscritos trabalhava em baixo, desobstruindo o portão dos escombros da torre, mas alguns passeavam desorientados pelas muralhas enquanto procuravam ocupar o seu tempo até à sua libertação no dia seguinte, e poucos mostraram interesse no que se passava no pátio.

 

O que é que eles vão fazer? perguntou o burrik.

 

Isso estamos nós à espera de descobrir, meu pequeno amigo disse Allumno com os cabelos e as pontas da capa colada ao seu corpo a adejarem.

 

Um deles tem de morrer para que a Essência passe para o outro explicou Quenestil. Slayra afagou-lhe a cara maculada de cortes e inchaços e os dois eahan fitaram-se mutuamente. O corpo de Tannath fora atirado para o rio antes que a eahanoir o pudesse ter visto, e, talvez fosse melhor assim. O shura beijou-lhe a testa e abraçou-a com mais força, acariciando o seu ventre.

 

Assim o ditam as leis pelas quais a Essência se rege... obstou Allumno no momento em que os dois guerreiros no pátio desembainharam as suas armas, silenciando todos nas muralhas com o silvo do aço.

 

Aewyre e Kror continuaram imóveis e nunca tiraram os olhos um do outro, embora Ancalach e os alfanges parecessem vibrar nas suas mãos como amantes palpitantes ansiosos por se beijarem. Passaram-se alguns momentos tensos, durante os quais todos esperaram que os dois dessem início ao combate, mas nada aconteceu e humano e drahreg acabaram por apenas erguer as lâminas em saudação, embainhando-as de seguida.

 

... mas o Aewyre nunca foi muito de se reger pelas leis comentou o mago.

 

Então? admirou-se Worick. O que é que ele está a fazer?

 

A recusar-se a combater, a desafiar a Essência da Lâmina explicou Allumno, suspirando. Irá com o Kror para a Cidadela da Lâmina.

 

Os companheiros viraram os olhares para o mago, admirados. A Cidadela era o reduto de todos os que portavam a Essência da Lâmina, um refúgio seguro onde os seus portadores não receavam a perseguição e onde podiam aprender a manejar as suas habilidades debaixo da tutela dos melhores espadeiros do continente. Era provavelmente o local mais seguro de Allaryia, embora fosse vista por muitos como o mais perigoso.

 

O que espera ele fazer lá? quis Quenestil saber.

 

Nem ele sabe ao certo. Porventura procurar uma forma de tornear o preço de sangue que a Essência da Lâmina exige, se é que tal coisa é possível...

 

Mas por que não luta ele contra o drahreg? sugeriu Worick.

 

Porque o desfecho de tal combate é imprevisível. São os dois grandes espadeiros, e a verdade é que o Aewyre não deseja matar o Kror, tanto por nos ter ajudado como pela sua estranha ligação com os eahan. Além disso, se morresse no confronto, o que seria perfeitamente possível, apenas o seu irmão Aereth poderia empunhar Ancalach contra O Flagelo, e não se encontra apto para tal tarefa.

 

Mas que bela barganha de eahanoir... comentou o thuragar, ignorando o olhar de soslaio de Slayra.

 

E nós? lembrou-se Taislin. O que fazemos?

 

Boa pergunta, meu amigo disse o mago, sorrindo fracamente ao burrik. O Aewyre descobriu por fim o seu destino, e aceitou-o, mas infelizmente é algo que ele e o Kror deverão fazer sozinhos. Não o podemos ajudar no que ele se propôs a fazer.

 

As palavras do mago eram desagradavelmente terminantes, mas ninguém as pôde contrariar.

 

Quanto a nós, a Slayra não está pronta para uma viagem, pelo que deverá ficar com o Quenestil e com os eahan em Aemer-Anoth até o bebé nascer. Os eahan ofereceram-se amavelmente para os alojar aos dois. Nenhum dos eahan discordou. Alguém tem de levar o corpo de Aezrel para Ul-Thoryn. Lhiannah? Talvez tu, o Worick e o Taislin o possam fazer?

 

Claro acedeu a princesa, ignorando um resmungo de Worick perante a perspectiva de uma viagem com Taislin. E tu, Allumno? Vens connosco ou ficas com o Quenestil e a Slayra?

 

O mago virou a cara e olhou para Aewyre e Kror, que se dirigiam para a barbacã, e seguidamente para o céu avermelhado. Pareceu perder-se momentaneamente no nubiloso horizonte, mas acabou por responder com um tom de voz mais baixo.

 

Eu terei de vos deixar. Deixou alguns instantes passarem para deixar as suas certamente inesperadas palavras assentarem no seio dos companheiros. Apenas Worick soubera da sua decisão de antemão e não se mostrou admirado. Há... coisas que tenho de fazer, pessoas com as quais devo falar. Mas não partirei de imediato. Ainda temos muito que discutir, todos nós. Muito mesmo...

 

Nenhuma outra palavra foi proferida na barbacã. Nada mais havia a dizer por enquanto, e todos preferiram a visão dos últimos raios do sol às incertas expressões evidenciadas nas caras de todos. Aewyre sabia qual o seu destino, e aceitara-o. Mas quais seriam os seus?

 

Lorde Tylon Nehin caminhava pelos corredores iluminados por tochas de Aemer-Anoth, voltando do habitual passeio nocturno que o seu físico lhe recomendara para a digestão. Comera demasiado durante os festejos do casamento da sua filha, e os seus intestinos estavam desregulados. Pelo menos tudo correra de feição. Aereth e a sua filha já haviam consumado o seu casamento no leito de núpcias, pelos restos de sangue que as criadas haviam visto nos lençóis, e a aliança entre Ul-Thoryn e Lennhau fora terminantemente reforçada. Em breve comunicaria os progressos ao seu mestre, que nunca esperara um desenvolvimento tão conveniente da situação a servir os seus propósitos. Os seus dias como regente de Lennhau aproximavam-se do fim; em breve poderia aspirar a ambições maiores...

 

O tinir de um guizo no corredor chamou-lhe a atenção, e Tylon Nehin deteve-se abruptamente, olhando para trás. Ninguém. Apenas as águias de ferro a servirem de tocheiras o fitavam, átonas, e o único movimento era o do vento que entrava pelas janelas abertas. Outro guizo tiniu, desta vez à sua frente, e Tylon deparou com um ligeiro sobressalto com o bobo.

 

Dilet estava de braços cruzados atrás das costas numa pose invulgarmente composta, e vestia o mesmo traje verde e vermelho do dia do casamento, como se não tivesse mudado de roupa desde então. Baixo e magro, parecia enfezado perante a corpulência de lorde Tylon, mas o porte do regente não o intimidava minimamente. A narina mais elevada do que a outra e os seus incisivos leporinos faziam parecer que estava a franzir o nariz em desprezo, mas os cantos da boca estavam erguidos num confiante sorriso e os olhos de carúnculas bem visíveis brilhavam com uma estranha alegria. O primeiro instinto de Tylon foi o de enxotar a criatura, mas esta na verdade despertara a sua curiosidade desde o primeiro dia que a vira, e nunca tivera ocasião de falar com ele a sós.

 

Encontrarás poucos ouvintes para os teus chistes a estas horas, bobo comentou na sua voz de barítono, cruzando os braços debaixo do abarrilado peito.

 

Horas pouco apropriadas para chistes, é certo concordou Dilet, surpreendendo o regente com a ausência de rima e uma voz surpreendentemente nivelada. Pouco apropriadas para muitas outras coisas, na verdade. As horas da noite, lorde Tylon, pertencem ao nosso senhor uma vez mais.

 

O grande homem foi surpreendido e o seu queixo descaiu ligeiramente.

 

Como...?

 

Ele voltou, lorde Tylon, não importa como. As nossas preces foram ouvidas, e O Flagelo regressou.

 

O regente de Lennhau estava sem palavras. O Flagelo, vivo uma vez mais? E o que sabia o bobo disso?

 

Como... como pode saber?

 

Ouvi as sombras, lorde Tylon. Escutai os sussurros da noite. Não conseguis senti-lo? Othragon não vos avisou?

 

O seu peito acalorou-se perante a menção do nome do seu mestre.

 

O que és tu, criatura? perguntou Tylon quase em surdina, subitamente receoso do estranho bobo.

 

Apenas mais um humilde servo do nosso senhor. Tal como vós, que o servis através de Othragon. Trago-vos uma oferenda, lorde Tylon, com a qual melhor o podereis servir.

 

O homem olhou desconfiadamente para os braços de Dilet, que continuavam escondidos atrás das suas costas, e estava incerto quanto a aceitar ou não fosse o que fosse do enigmático bobo. Ainda estava demasiado aturdido para responder ou perguntar qualquer coisa quando Dilet lhe apresentou um bebé cingido por um envolvedouro de linho branco, arregalando-lhe ainda mais os olhos.

 

Nada temais, lorde Tylon. É uma pobre órfã de mãe, e só será perigosa quando crescer.

 

Hesitante, Tylon estendeu as grandes mãos e pegou no bebé, que estava acordado e perfeitamente sossegado. As farripas de cabelo sobre a sua testa eram castanhas, as suas anafadas bochechas saudavelmente rubicundas, e os seus bonitos olhos tinham uma cor azul a tender para o arroxeado. O regente de Lennhau ficou a olhar perplexamente para a bebé nas suas mãos e o bobo passou ao seu lado, caminhando como se a sua tarefa estivesse cumprida.

 

Aonde vais? quis Tylon saber, virando-se para o bobo, que continuou a andar. De quem é esta criança? O que é que eu faço com ela?

 

Servireis os propósitos do nosso senhor cuidando dela, lorde Tylon. Considerai-a um... recurso de contingência. Arranjai-lhe uma mãe ou uma ama-de-leite, tendes mulheres em abundância na vossa corte. Nada mais é exigido de vós.

 

Mas... mas...

 

Regozijai, lorde Tylon recomendou-lhe Dilet de costas, erguendo uma mão à laia de despedida antes de desaparecer da esquina do corredor. O nosso senhor regressou...

 

O homem ainda balbuciou algumas palavras, segurando a bebé como se fosse algo que desejasse manter longe de si.

 

O nosso senhor regressou? E fui avisado por um bobo? Resignado, o regente de Lennhau acabou por pegar no bebé ao colo, ignorando os seus ruídos de curiosidade e dando-se por afortunado por ao menos não estar a chorar. Tinha de falar com mestre Othragon. Urgentemente.

 

A verdadeira Demanda pelo Trono começara, e aparentemente não a estava a jogar apenas com Aereth Thoryn.

 

 

 

POSFÁCIO

Aconteceu.

O Flagelo ressurgiu e Allaryia perdeu o seu campeão, tudo num único e cruel golpe repentino e inesperado. O Bastardo acompanhara os companheiros desde a fatídica partida de Ul-Thoryn, influenciando subtilmente o seu percurso por Allaryia a favor dos seus desígnios. Tudo isto me era conhecido, mas a minha tarefa é meramente observar e relatar, nada mais.

Aewyre Thoryn irá tentar algo nunca experimentado: empossar-se da Essência da Lâmina sem matar o adversário que por ela lhe foi destinado, Kror, o misterioso drahreg. Muito certamente aguarda estes dois guerreiros, unidos pela necessidade de se matarem um ao outro na tentativa de a abnegar. Os restantes companheiros procuram o seu papel naquele que, de um dia para o outro, se tornou um mundo completamente diferente. Resta-lhes ver o quanto Allaryia mudou ou está para mudar nos tempos vindouros.

As tramas urdidas pelo Anátema durante os seus vinte anos de cativeiro começam por fim a revelar-se, desenrolando-se insuspeitas e sem oposição significativa. Sirulia foi avisada e prepara-se para o que decerto virá, estarão as restantes nações prontas para o vindouro pesadelo? O que a Sombra reserva para Allaryia é-me desconhecido mesmo a mim; resta-me observá-lo e registá-lo como me compete. Até lá, que os deuses estejam connosco.

               Pearnon, o Escriba Crónicas de Allaryia 

 

                                                                                                    Filipe Faria

 

 

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