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MARGINÁLIA/ Lima Barreto
MARGINÁLIA/ Lima Barreto

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MARGINÁLIA

 

A QUESTÃO DOS "POVEIROS"

            Essa questão dos pescadores originários de Póvoa do Varzim, em Portugal, que, desde muitos anos, se haviam especializado, entre nós, na pesca em alto mar, e como que a tinham monopolizado, por parecer terminada, merece ser epilogada, pois muitas são as notas que se lhe podem apor à margem.

            De parte a parte, nas afirmações e atos de um e outro adversário, um espírito imparcial encontra o que observar e material para reflexões.

            Os defensores lastimosos dos "poveiros", que não se quiseram naturalizar brasileiros e, por isso, se repatriaram, encarniçaram‑se contra os japoneses, entre outros motivos, porque eles se insulam na massa da população nacional, com a qual parece não quererem ter senão rápidos contatos, os indispensáveis para os seus negócios.

            Curioso é que encontrem, unicamente nos japoneses, essa repugnância pela imitação com o geral da população brasileira, quando os tais "poveiros" a possuem ou possuíam também, a ponto de não permitirem que, entre eles, houvesse outra gente, empregada nas suas pescarias, senão os naturais de Póvoa do Varzim.

            Quando menino e adolescente, devido à ocupação de meu pai, na ilha do Governador, andei enfronhado nessas coisas de pesca e sabia bem desse exclusivismo dos "poveiros", extensivo até aos outros seus patrícios portugueses, oriundos de outras localidades de Portugal. Pessoa de toda a confiança, há dias, informou‑me que dos estatutos de uma sociedade de tais pescadores naturais de Póvoa do Varzim constava, em letra redonda, não poder fazerem parte dela senão os nascidos naquele lugarejo de Portugal.

            Os portugueses de Outra origem, que possuíam canoas, redes, "currais" e outros petrechos de pesca em escala mais ou menos desenvolvida, e a exerciam no interior da baía, empregavam na sua indústria indiferentemente auxiliares quaisquer, fossem ou não seus patrícios. Os "poveiros" não; quem não é de Póvoa não pesca com eles; e a sua vida é toda feita à parte dos outros portugueses e dos demais de outra qualquer nacionalidade, brasileira ou não. Por aí, vê‑se bem que eles levavam o seu isolamento do resto dos habitantes do Brasil mais longe que os japonêses. Estes fazem - estou disposto a crer - uma colônia confinada em si mesma, ferozmente isolada do grosso da nossa população; mas os "poveiros" só faziam uma colônia dentro da própria colônia de naturais do país de origem, com os quais pouco ou quase nada se misturavam.

            As minhas idéias e os meus princípios são inteiramente infensos a esse prurido de nacionalização quê anda por aí, e do qual os "poveiros" foram vitimas, tanto mais que, no caso desses homens, se trata de uma profissão humilde, tendo ligações muito tênues e remotas com a administração, a política e coisas militares do Brasil, não exigindo, portanto, o tal "fogo sagrado do patriotismo", a fim de apurar‑lhe o exercício, junto a excelentes vencimentos.

            A verdade, porém, deve ser dita; e não foi senão isto que fiz. A desorientação a esse respeito é tal que estamos vendo como essa questão se vai desdobrando em lamentáveis espetáculos de violências inauditas.

            O inspetor de pesca, a quem não atribuo móveis subalternos - longe de mim tal coisa! -  não contente de exercer draconianamente as atribuições que as leis e os regulamentos conferem a seu cargo, sobre redes e outras coisas próprias ao ofício de pescar, meteu‑se também a querer regular o comércio do pescado. Com a sua educação militar, que só vê solução para os problemas que a sociedade põe na violência, não trepidou em empregá‑la, violando os mais elementares princípios constitucionais. Com auxílio da marinhagem do cruzador sob seu comando e de sequazes paisanos, talvez mais brutais e ferozes do que as próprias praças de marinha, apesar de estarem habituadas estas, desde tenra idade, nas Escolas de Aprendizes, a ver, num oficial de marinha, um ente à parte, um semideus arquipoderoso, cujas ordens são ditames celestiais - com semelhante gente, violentamente, pôs‑se a apreender as "marés" nas canoas de pescaria, para vendê‑las ao preço que entendesse, deduzir percentagem arbitrariamente calculada, e, ainda por cima, a intimar os pescadores isolados a se matricularem em umas famosas colônias de pesca, improvisadas do pé para a mão.

            Tudo isto consta de jornais insuspeitos e não houve quem contestasse. Essa subversão das mais comezinhas garantias constitucionais, levada a efeito por um oficial que, por mais distinto que seja, não pode possuir autoridade para tanto, como ninguém a tem, leva‑nos a pensar como as nossas instituições republicanas vão respondendo muito mal aos intuitos dos seus codificadores e legisladores.

            Seja qual for a emergência, pouco a pouco, não só nos Estados longínquos, até mesmo nos mais adiantados, e no próprio Rio de Janeiro, capital da República, a autoridade mais modesta e mais transitória que seja procura abandonar os meios estabelecidos em lei e recorre à violência, ao chanfalho, ao chicote, ao cano de borracha, à solitária a pão e água, e outros processos torquemadescos e otomanos.

            É o regímen de "villayet" turco em que estamos; é o governo de beis, paxás e cádis o que temos. Isto é um sintoma de moléstia generalizada. A época que atravessamos parece ser de loucura coletiva em toda a humanidade.

            Havia de parecer que a gente de juízo e de coração, com responsabilidade na direção política e administrativa dos povos, depois dessa chacina horrorosa e inútil que foi a guerra de 1914, e das conseqüências de miséria, fome e doença que, acabada, acarretou ainda como contrapeso procurasse afugentar, por todos os meios, dos seus países, os germens desse aterrador flagelo da guerra; entretanto não é assim. Em vez de propugnarem uma aproximação mais fraternal entre os povos do mundo, um mútuo, sincero e leal entendimento entre todos eles, como que timbram em mostrar desejarem mais guerra, pois estabelecem iníquas medidas fiscais que isolam os países uns dos outros; tentam instalar artificialmente indústrias que só são possíveis em certas e determinadas regiões do globo, devido às condições naturais, e isto ainda no fito de prescindirem da cooperação de outra nação qualquer, amiga ou inimiga; e - o que é pior - todos se armam até os dentes, mesmo à custa de empréstimos onerosíssimos ou da depreciação das respectivas moedas, originada por emissões sucessivas e inúmeras, de papel‑moeda. Estamos no tempo da cegueira e da violência.

            Max‑Nordau, em artigo que uma revista desta cidade traduziu, cujo título é Loucura Coletiva, - observa muito bem, após examinar os despropósitos de toda a sorte que se seguiram à terminação oficial da grande guerra:

            "Dizia‑se antigamente: "Todo o homem tem duas pátrias, a própria e depois a França". Pois esta mesma França, tão hospitaleira, tão carinhosa, mostra agora a todos os estrangeiros um semblante hostil e, durante a maior parte do tempo, torna‑se impossível a estada em seu solo. As relações entre, povo e povo, entre homem e homem, quebraram‑se violentamente e cada país encerra‑se por detrás das suas fronteiras, opondo‑se a tôda a, infiltração humana do exterior.

            "Esperava‑se que à guerra sucedesse a reconciliação. Pelo contrário, procura‑se por todos os lados atiçar os ódios, exasperar os rancores, excitar a sede de vingança.

            Mais adiante, ele acrescenta esta observação que pode ser verificada por qualquer:

            "Também se esperava um desarmamento geral, mas em toda a parte se reorganizam os exércitos e as marinhas, com mais impetuosidade que nunca. O militarismo torna‑se mais forte e vai imperando em países onde anteriormente era desconhecido."

            Essa mania militar que se apossou de quase todos os países do globo, inclusive o nosso, levou todos eles a examinar e a imitar a poderosa máquina guerreira alemã.

            Os seus códigos e regulamentos militares vão sendo mais ou menos estudados e imitados, quando não são copiados. Não se fica só nisso. A tendência alemã, ou melhor, prussiana, de militarizar tudo, os mais elementares atos da nossa vida civil, por meio de códigos, regulamentos, penas e multas, vai‑se também apossando dos cérebros dos governantes que, com afã, adotam tão nociva prática de asfixiar o indivíduo num "batras" legislativo.

            O ideal dos militares atuais não é ser um grande general, ao jeito dos passados, que, aos seus predicados guerreiros, sabiam unir vistas práticas de sociólogo e de político.

            O ideal deles é o cabeçudo Ludendorff, cujas memórias denunciam uma curiosa deformação mental, obtida pelo ensino de uma multidão de escolas militares que o militarismo prussiano inventou, as quais têm de ser freqüentadas pelos oficiais que ambicionam altos postos. Tais escolas tiram‑lhes toda e qualquer faculdade crítica, todo o poder de observação pessoal, fazendo‑os perder de vista as relações que tem a guerra com outras manifestações de atividade social, para só ver a guerra, só a guerra com os seus petrechos, suas divisões, seus corpos, etc., citados pelo "Cabeçudo", cabalisticamente, pelas iniciais de suas denominações. Esqueceu‑se ele que seu livro era destinado, por sua natureza, a ser lido pelo mundo inteiro, e o mundo inteiro não podia viver enfronhado nas coisas pasmosas da burocracia militar alemã, para decifrar tais hieróglifos.

            Ludendorff não é um general; é uma consolidação viva das leis e regulamentos militares da Alemanha.

            Não foi à toa que o célebre jornalista alemão Maximiliano Harden, falando do livro do general francês Buat sobre esse famigerado Ludendorff, a mais alta expressão da lamentável limitação do espírito militar em todos os tempos, disse: "... é uma obra ‑prima, de clara psicologia latina, dominada em toda sua extensão por um espírito cavalheiresco e uma forte consciência de justiça, que fornecerá ao leitor alemão uma relação maior de verdades que as execráveis e copiosas banalidades editadas por quase todos os generais alemães".

            Houve quem chamasse o Sr. general Ludendorff, autor também de "execráveis e copiosas banalidades", de César. Sim, ele pode ser César; mas um César que não escreverá nunca a Guerra das Gálias e não transformará nenhuma sociedade.

            O mundo todo, porém, está fascinado pelos métodos alemães.

            Pode‑se dizer que a Alemanha, depois de vencida, é vencedora pela força hipnótica de sua mania organizadora, até as menores minúcias.

            O brutal e odioso Estados Unidos, com a Alemanha aparentemente vencida, é outro país modelo para os que estão sofrendo de mal de imitação e maluquice organizadora, concomitantemente.

            Foi talvez nas coisas peculiares do país de "Uncle Sam" que, certamente, o Sr. Norton de Matos, ministro de Estado de Portugal, buscou inspirar‑se para estabelecer a seguinte cláusula, a que se deviam obrigar os "poveiros" repatriados, no caso de quererem estabelecer‑se nas colônias portuguesas da África.

            Ei‑la, como vem estampada na Pótria, de 28 de novembro último: "...que evitem (os "poveiros") a comunicação e as relações de ordem sexual com o elemento nativo da África, de cor".

            Uma cláusula destas é por demais pueril e ridícula.

            Não é preciso dizer por quê; e seria escabroso.

            Mas, à vista dela, nós nos podemos lembrar de dois casos célebres que deviam incidir na punição do Sr. Norton de Matos, se ele fosse ministro ou coisa que o valha, no grande século das descobertas e conquistas portuguesas.

            Um é com Camões, cuja glória universal é um dos mais justos orgulhos de Portugal.

            Pois bem: o grande épico andou lá, pelo ultramar, de gorra, com uma rapariga de côr. Creio até que se chamava Bárbara e o autor dos Lusiadas fez‑lhe versos, aos quais intitulou se não me falha a memória "Pretidão do Amor". Li isto há bastantes anos no Cancioneiro Alegre, de Camilo Castelo Branco.

            O outro caso dessa espécie de comunicações e relações que o Sr. Norton de Matos divinamente proíbe, ao jeito da nação do Paraíso, passou‑se com o Albuquerque terríbil. Ele mandou matar sumariamente um seu soldado ou homem d'armas (parece que se chamava Rui Dias), por suspeitá‑lo amoroso de uma escrava, da qual o extraordinário Afonso d'Albuquer que não desprezava totalmente os encantos secretos, segundo tudo leva a crer.

            Camões, no seu maravilhoso poema, alude ao fato; e Teófilo Braga, no seu Camões o elucida.

            E assim que o vate lusitano comenta o caso, no ‑ Canto X, XLVII. Vou transcrever os quatro primeiros versos da oitava. Ei‑los:

 

Não será a culpa abominoso incesto,

Nem violento estupro em virgem pura

Nem menos adultério desonesto

Mas cuma escrava vil, lasciva, e escura.

 

            Vejam bem como Camões diz quem foi a causa do terríbil Albuquerque por na sua "fama alva, nódoa negra e feia". Estou vendo daqui o Sr. Norton de Matos, quando foi aos embarques, para a Índia, de Albuquerque, em 1503 (primeira vez), e de Camões, em 1553.

            E preciso supor que o Sr. Matos pudesse ser ministro durante tão dilatado lapso de tempo.

            Admitido isso, certamente o ministro havia de recomendar a cada um deles ter sempre presente à lembrança, a sua prescrição mais ou menos de Deus que larga um qualquer Adão no Paraíso. E falaria assim: - Olhe, Sr. d'Albuquerque, V.M. foi estribeiro‑mor del‑Rei D. João lI, a quem Deus tenha em sua santa guarda; V.M. é um grande fidalgo e deu mostras em Nápoles de ser um grande guerreiro - não vá V.M. meter‑se lá nas Índias com as negras. Cuide V.M. nisto que lho digo, para a salvação de su'alma e prestígio da nação portuguêsa.

            Ao cantor inigualável das proezas e feitos do Portugal glorioso, ele aconselharia desta forma:

            - Sr. Luís de Camões, V.S. é um poeta, ao que se diz, de bom e valioso engenho; V.S. freqüentou o paço dei‑Rei; V.S. versejou para as damas e açafatas da côrte. Depois de tudo isto, não vá V.S. meter‑se lá, nas índias, com as negras. Tome VS. tento nisso.

            Não há dúvida alguma que a providência do Sr. Matos é muito boa; mas a verdade é que os tais Amon, Lapouge, Gobineau e outros trapalhões antropólogos e etnográficos, tão do paladar dos antinipões, não admitem como lá muito puros os portugueses. Oliveira Martins também. Dá‑lhes uma boa dose de sangue berbere.

            Isto não vem ao caso e só tratei de tal por mera digressão, mesmo porque este modesto artigo não passa de um ajustamento da marginália que fiz às notícias lidas por mim, nos quotidianos, enquanto durou a questão dos "poveiros".

            Era tal a falta de uma segura orientação nos que se digladiavam, que só tive um remédio para estudá‑la mais tarde: cortar as notícias dos jornais, colar os retalhos num caderno e anotar à margem as reflexões que esta e aquela passagem me sugerissem. Organizei assim uma Marginália a esses artigos e notícias. Uma parte vai aqui; a mais importante, porém, que é sobre os Estados Unidos, omito por prudência. Hei de publicá‑la um dia.

            Contudo, explico por que entram os Estados Unidos nela. O motivo é simples. Os defensores dos "poveiros" atacam os japonêses e se servem dos exemplos da grande república da América do Norte no seu proceder com os nipões. Fui estudar alguma coisa da história das relações yankees com outros Estados estrangeiros; é deplorável, é cheia de felonias. Lembrei‑me também como lá se procede com os negros e mulatos. Pensei. Se os doutrinários que querem que procedamos com os japonêses, da mesma forma com que os Estados Unidos se comportam com eles, forem vitoriosos, com a sua singular teoria, não faltará quem proponha que também os imitemos, no tocante aos negros e mulatos. É lógico. Então, meus senhores, ai de mim e de... muita gente!

Gazeta de Notícias, 2‑1‑1921.

 

HOTEL 7 DE SETEMBRO

            Li nos jornais que um grupo de senhoras da nossa melhor sociedade e gentis senhoritas inauguraram, com um chá dançante, a dez mil‑réis a cabeça, o Hotel do Sr. Carlos Sampaio, nas encostas do morro da Viúva. Os resultados pecuniários de semelhante festança, segundo diziam os jornais, reverteriam em favor das crianças pobres, das quais as referidas senhoras e senhoritas, agremiadas sob o título de "Pequena Cruzada", se fizeram espontâneas protetoras.

            Ora, não há nada mais belo que a Caridade; e, se não cito aqui um profundo pensamento a respeito, motivo é não ter ao alcance da mão um dicionário de "chapas".

            Se o tivesse, os leitores veriam como eu ia além do esteta Antônio Ferro, que saltou no cais Mauá, para nos ofuscar, com os seus trapos de José Estêvão, Alexandre Herculano e outros que tais!

            Felizmente não o tenho e posso falar simplesmente - o que já é uma vantagem. Quero dizer que semelhante festa, a dez mil‑réis a cabeça, para proteger crianças pobres, é uma injúria e uma ofensa, feita a essas mesmas crianças, num edifício em que o governo da cidade gastou, segundo ele próprio confessa, oito mil contos de réis.

            Pois é justo que a municipalidade do Rio de Janeiro gaste tão vultosa quantia para abrigar forasteiros ricos e deixe sem abrigo milhares de crianças pobres ao léu da vida?

            O primeiro dever da Municipalidade não era construir hotéis de luxo, nem hospedarias, nem zungas, nem quilombos, como pensa o Sr. Carlos Sampaio. O seu primeiro dever era dar assistência aos necessitados, toda a espécie de assistência.

            Agora, depois de gastar tão fabulosa quantia, dar um bródio para minorar o sofrimento da infância desvalida, só uma coisa resta dizer à edilidade: passem bem!

            Um dia é da caça e outro é do caçador. Digo assim, para não dizer em latim: "Hodie mihi, cras tibi".

            Nada mais ponho na carta. Adeus.

Careta, 5‑8‑1922.

 

15 DE NOVEMBRO

            Escrevo esta no dia seguinte ao do aniversário da proclamação da República. Não fui à cidade, e deixei‑me ficar pelos arredores da casa em que moro, num subúrbio distante. Não ouvi nem sequer as salvas da pragmática; e, hoje, nem sequer li a notícia das festas comemorativas que se realizaram. Entretanto, li com tristeza a notícia da morte da princesa Isabel. Embora eu não a julgue com o entusiasmo de panegírico dos jornais, não posso deixar de confessar que simpatizo com essa eminente senhora.

            Veio, entretanto, a vontade de lembrar‑me o estado atual do Brasil, depois de trinta e dois anos de República. Isso me acudiu porque topei com as palavras de compaixão do Sr. Ciro de Azevedo pelo estado de miséria em que se acha o grosso da população do antigo Império Austríaco. Eu me comovi com a exposição do Dr. Ciro, mas me lembrei ao mesmo tempo do aspecto da Favela, do Salgueiro e outras passagens pitorescas desta cidade.

            Em seguida, lembrei‑me de que o eminente Sr. Prefeito quer cinco mil contos para reconstrução da Avenida Beira‑Mar, recentemente esborrachada pelo mar.

            Vi em tudo isso a República; e não sei por quê, mas vi.

            Não será, pensei de mim para mim, que a República é o regímen da fachada, da ostentação, do falso brilho e luxo de "parvenu", tendo como "repoussoir" a miséria geral? Não posso provar e não seria capaz de fazê‑lo.

            Sal pelas ruas do meu subúrbio longínquo a ler as folhas diárias. Lia‑as, conforme o gosto antigo e roceiro, numa "venda" de que minha família é freguesa.

            Quase todas elas estavam cheias de artigos e tópicos, tratando das candidaturas presidenciais. Afora o capítulo descomposturas, o mais importante era o de falsidade.

            Não se discutia uma questão econômica ou política; mas um título do Código Penal.

            Pois é possível que, para a escolha do Chefe de uma Nação, o mais importante objeto de discussão seja esse?

            Voltei melancolicamente para almoçar, em casa, pensando, cá com os meus botões, como devia qualificar perfeitamente a República.

            Entretanto - eu o sei bem - o 15 de Novembro é uma data gloriosa, nos fastos da nossa história, marcando um grande passo na evolução política do pais.

Careta, 26‑11‑1921.

 

A BIBLIOTECA

            A diretoria da Biblioteca Nacional tem o cuidado de publicar mensalmente a estatística dos leitores que a procuram, das classes de obras que eles consultam e da língua em que as mesmas estão escritas.

            Pouco freqüento a Biblioteca Nacional, sobretudo depois que se mudou para a Avenida e ocupou um palácio americano.

            A minha alma é de bandido tímido, quando vejo desses monumentos, olho‑os, talvez, um pouco, como um burro; mas, por cima de tudo, como uma pessoa que se estarrece de admiração diante de suntuosidades desnecessárias.

            É ficar assim, como o meu amigo Juvenal, medroso de entrar na vila do patrício, de que era cliente, para pedir a meia dúzia de sestércios que lhe matasse a fome - a espórtula!

            O Estado tem curiosas concepções, e esta, de abrigar uma casa de instrução, destinada aos pobres‑diabos, em um palácio intimidador, é das mais curiosas.

            Ninguém compreende que se subam as escadas de Versalhes senão de calção, espadim e meias de sêda; não se pode compreender subindo os degraus da Ópera, do Garnier, mulheres sem decote e colares de brilhantes, de mil francos; como é que o Estado quer que os mal vestidos, os tristes, os que não tem livros caros, os maltrapilhos "fazedores de diamantes" avancem por escadarias suntuosas, para consultar uma obra rara, com cujo manuseio, num dizer, aí das ruas, têm a sensação de estar pregando à mulher do seu amor?

            A velha biblioteca era melhor, mais acessível, mais acolhedora, e não tinha a empáfia da atual.

            Mas, assim mesmo, amo a biblioteca e, se não vou lá, leio‑lhe sempre as notícias. A estatística dos seus leitores é sempre provocadora de interrogações.

            Por exemplo: hoje, diz a notícia, que treze pessoas consultaram obras de ocultismo. Quem serão elas? Não acredito que seja o Múcio. O antigo poeta é por demais sabido, para consultar ‑ obras de sua profissão. Quero crer que sejam tristes homens desempregados, que fossem procurar no invisível, sinais certos da sua felicidade ou infelicidade, para liquidar a sua dolorosa vida.

            Leio mais que houve quatro pessoas a consultar obras em holandês. Para mim, são doentes de manias, que foram um instante lembrar‑se na língua amiga das amizades que deixaram lá longe.

            O guarani foi procurado por duas pessoas. Será a D. Deolinda Daltro? Será algum abnegado funcionário da inspetoria de caboclos?

            É de causar aborrecimento aos velhos patriotas, que só duas pessoas procurassem ler obras na língua que, no entender deles, é a dos verdadeiros brasileiros. Decididamente este país está perdido...

            Em grego, as obras consultadas foram unicamente duas, tal e qual como no guarani; e certamente, esses dois leitores não foram os nossos professores de grego, porque, desde muito, eles não lêem mais grego...

Correio da Noite, 13‑1‑1915.

 

O ANEL DOS MUSICISTAS

            As meninas do Instituto de Música escreveram aos jornais, lembrando a criação de um anel que as marcasse ao fim do curso ou dos cursos daquela casa sonora. A exemplo dos médicos, dos advogados, dos engenheiros, dos dentistas, dos bacharéis do Pedro II, dos cônegos, das raparigas da Escola Normal, elas querem também um distintivo que as extreme do vulgo. É muito justo, pois se o destino da mulher é o casamento, tudo o que possa concorrer para que elas o cumpram, deve merecer o nosso apoio entusiástico. Quando uma moça, doutora do Instituto, for de anel no dedo pelos bondes a fora, ao fim da viagem não esperará muito que um namoro se transforme em noivado... Ela garantirá a "zona" e o marido futuro ficará sossegado quanto às despesas da casa. O anel à mostra, isto é, o que ele rende, ficará sendo assim, às claras, uma espécie de dote, porque de todas as profissões femininas, a que tem maiores possibilidades entre nós é a de professora de música, quando garantidas pelo Instituto do largo da Lapa. Os motivos disto estão entrando nos olhos de todos os que residem no Rio de Janeiro e vivem sitiados por pianos ou violinos, na frente, nos fundos, nos lados, seja a casa em bairro rico ou pobre.

            De tal modo é rendoso o oficio de professora de música e de seus instrumentos, no Rio, que as brigas vergonhosas que há de vez em quando no Conservatório, só podem ser atribuidas à ganância dos professores e acólitos na caça e disputa de discípulos. Cherchez l'argent.

            A música, entre nós, é a única arte em que raramente aparece uma tentativa de criação. Entregue, como está, a moças, melhor, a mulheres, que em geral nunca em arte foram criadoras - estudam unicamente para o professorado - a arte musical, na nossa cidade, não dá nenhuma demonstração superior da nossa emoção, dos anseios e sonhos peculiares a nós. Limita‑se a repetir, trilhando os caminhos batidos. Não há invento nem novidade.

            As suas sacerdotisas agora querem um anel, talqualmente as senhorinhas da Escola Normal, quando acabam o seu curso secundário.

            Se a medida não trouxer progressos à arte de Euterpe, entra, entretanto, na lógica da nossa sociedade. Não é possível que num pais democrático, uma moça que andou aos cuidados do Sr. Richard, do Sr. Arnaud Gouveia, do Sr. Alberto Nepomuceno, que escreve óperas para exportação, possa ser confundida com qualquer rapariga aí.

            Para todos os que têm um curso qualquer, não há distintivo? Como não cabe o mesmo direito às talentosas executoras do Instituto de Música?

            Certamente, que elas tem toda a razão, e, se dependesse do meu voto, desde já estariam usando o berloque simbólico. Seria mais um.

            As pedras, querem elas que sejam de safira, porque - justificam - a música tem muita coisa com a matemática; e a safira é a pedra dos anéis de engenheiros. A moça que projetou o anel tem certamente um namorado aos cuidados dos Srs. Ortiz ou Villiot, na Escola Politécnica, imagino eu. Contudo, animo‑me a lembrar a ambos, que tanto a engenharia dele como a música da sua deidade, no fim quando ambos forem se servir de uma coisa e da outra, a matemática que entrar nelas pouco além irá daquela que se aprende nas escolas primárias.

            Seria melhor que a menina que ideou o anel, desde já estudasse as divisões da nossa moeda, a conta de juros da Caixa Econômica, para bem poupar e fazer render o que ganhar nas suas lições. E, para isto, basta o Viana, Aritmética; e pode deixar de lado o nome pomposo da matemática. Quanto ao seu futuro marido, se algum dia passar além do trânsito ou do nível, tem os "handbooks" que lhe suprirão as falhas na sabedoria.

            A matemática, minha senhora, para a maioria dos engenheiros, é assim como o latim para um grande número de padres: eles sabem só pronunciá‑lo.

            Não amesquinho seu noivo ou namorado, pois nunca foi do meu temperamento amesquinhar um doutor ou futuro doutor. Faço uma observação, unicamente. De passagem seja‑me permitido lembrar à futurosa Cellini acadêmica, que a safira, na escala da dureza, ocupa um dos primeiros lugares; e uma pedra tão dura não fica bem para emblema de uma arte tão doce e tão pouco rígida. Pense em outras, minha senhora.

            Se o fito é distinguir‑se, extremar‑se do vulgo feminino, há um processo seguro: É a tatuagem, que os doutores também poderiam usar, e, em certas partes dos corpos femininos, no colo, por exemplo, iria magnificamente. Além de tudo, é indelével. Ficaria a senhora Dra. em música, até que, como nós todos, fosse a gentil senhorinha formada, muito comumente,

"moisir parmi les ossementes, sous l'herbe et les fioraisons grassées", como diz Baudelaire. Procure na Une Charogne isso.

A Lanterna, 25‑1‑1918.

 

ELOGIO DA MORTE

            Não sei quem foi que disse que a Vida é feita pela Morte. É a destruição contínua e perene que faz a vida.

            A esse respeito, porém, eu quero crer que a Morte mereça maiores encômios.

            É ela que faz todas as consolações das nossas desgraças; é dela que nós esperamos a nossa redenção; é  ela a quem todos os infelizes pedem socorro e esquecimento.

            Gosto da Morte porque ela é o aniquilamento de todos nós; gosto da Morte porque ela nos sagra. Em vida, todos nós só somos conhecidos pela calúnia e maledicência, mas, depois que Ela nos leva, nós somos conhecidos (a repetição é a melhor figura de retórica), pelas nossas boas qualidades.

            É inútil estar vivendo, para ser dependente dos outros; é inútil estar vivendo para sofrer os vexames que não merecemos.

            A vida não pode ser uma dor, uma humilhação de contínuos e burocratas idiotas; a vida deve ser uma vitória. Quando, porém, não se pode conseguir isto,  a Morte é que deve vir em nosso socorro. A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos de independência; ela só quer acompanhadores de procissão, que só visam lucros ou salários nos pareceres. Não há, entre nós, campo para as grandes batalhas de espírito e inteligência. Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos. A agitação de uma idéia não repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma pessoa poderosa, trata o agitador de louco.

            Estou cansado de dizer que os malucos foram os reformadores do mundo.

            Le Bon dizia isto a propósito de Maomé, na sua Civilisation des Arabes, com toda a razão; e não há Chanceler falsificado e secretária catita que o possa contestar.

            São eles os heróis; são eles os reformadores; são eles os iludidos; são eles que trazem as grandes idéias, para melhoria das condições da existência da nossa triste Humanidade.

            Nunca foram os homens de bom senso, os honestos burgueses ali da esquina ou das secretarias "chics" que fizeram as grandes reformas no mundo.

            Todas elas têm sido feitas por homens, e, às vezes mesmo mulheres, tidas por doidos.

            A divisa deles consiste em não ser panurgianos e seguir a opinião de todos, por isso mesmo podem ver mais longe do que os outros.

            Se nós tivéssemos sempre a opinião da maioria, estaríamos ainda no Cro‑Magnon e não teríamos saído das cavernas.

            O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para própria felicidade da espécie humana.

            Entretanto, no Brasil, não se quer isto. Procura‑se abafar as opiniões, para só deixar em campo os desejos dos poderosos e prepotentes.

            Os órgãos de publicidade por onde se podiam elas revelar, são fechados e não aceitam nada que os possa lesar.

            Dessa forma, quem, como eu, nasceu pobre e não quer ceder uma linha da sua independência de espírito e inteligência, só tem que fazer elogios à Morte.

            Ela é a grande libertadora que não recusa os seus benefícios a quem lhe pede. Ela nos resgata e nos leva à luz de Deus.

            Sendo assim, eu a sagro, antes que ela me sagre na minha pobreza, na minha infelicidade, na minha desgraça e na minha honestidade. Ao vencedor, as batatas!

 

A MINHA CANDIDATURA

            Vou escrever um artigo perfeitamente pessoal; e é preciso. Sou candidato à Academia de Letras, na vaga do Sr. Paulo Barreto. Não há nada mais justo e justificável. Além de produções avulsas em jornais e revistas, sou autor de cinco volumes, muito bem recebidos pelos maiores homens de inteligência de meu país. Nunca lhes solicitei semelhantes favores; nunca mendiguei elogios. Portanto, creio que a minha candidatura é perfeitamente legítima, não tem nada de indecente. Mas... chegam certos sujeitos absolutamente desleais, que não confiam nos seus próprios méritos, que têm títulos literários equívocos e vão para os jornais e abrem uma subscrição em favor de suas pretensões acadêmicas.

            Que eles sejam candidatos, é muito justo; mas que procurem desmerecer os seus concorrentes, é coisa contra a qual eu protesto.

            Se não disponho do Correio da Manhã ou do O Jornal, para me estamparem o nome e o retrato, sou alguma coisa nas letras brasileiras e ocultarem o meu nome ou o desmerecerem, é uma injustiça contra a qual eu me levanto com todas as armas ao meu alcance.

            Eu sou escritor e, seja grande ou pequeno, tenho direito a pleitear as recompensas que o Brasil dá aos que se distinguem na sua literatura.

            Apesar de não ser menino, não estou disposto a sofrer injúrias nem a me deixar aniquilar pelas gritarias de jornais.

            Eu não temo abaixo‑assinados em matéria de Letras.

Careta, 18‑8‑1921.

 

SOBRE A GUERRA

 

            As últimas proezas de cruzadores alemães bombardeando as costas da Inglaterra é de molde a provocar a seguinte reflexão: a esquadra inglesa não é lá essas coisas.

            Numerosíssima, quase toda acumulada diante das costas germânicas, ela não pôde evitar que tal se desse.

            De resto, há ainda a notar que, se ela imobilizou a frota germânica, por sua vez ficou imobilizada, não podendo fazer nada de eficiente para o aniquilamento dos vasos alemães.

            O seu sábio preparo anterior, as suas constantes manobras não lhe deram, com o poder numérico, a superioridade esmagadora que era de esperar possuísse.

            Da mesma forma, o exército alemão até agora tem andado muito abaixo de sua fama.

            O seu violento efetivo, automatismo que adquiriu com manobras, exercícios e trenagens constantes, faziam esperar que ele esmagasse facilmente a França.

            Entretanto, tal não se deu e a Alemanha confessa que não tinha esse poder esmagador, quando deixou de invadir a França pelas fronteiras que tinha com esse país, e violou a neutralidade belga para derrotar o país de Joana d'Arc.

            Com esse procedimento deu sobejas mostras de que não se fiava muito na eficiência do seu exército, apesar do mata‑mouros do canhão 42, diante dos fortes franceses de Saona e Belfort.

            Para fazer a velha guerra lenta, de sítios e trincheiras, para ter a vitória assim duvidosa, não valia a pena, penso eu, levar a Alemanha tantos anos a adestrar um exército numeroso, a dotá‑lo de material aperfeiçoado, custosos maquinismos e gastar as fabulosas somas que gastou.

            Um exército tão famoso, tão poderoso, tão cheio de ff e rr, que chega a poucos quilômetros de Paris e tem que recuar precipitadamente, concordemos, não é essa formidável máquina de guerra que os nossos militaristas queriam que imitássemos.

            A orgia militar, a que a Alemanha desde muito se vinha entregando, tirava o sono ao mundo, era o seu constante pesadelo.

            Obrigou todos os países a estabelecerem esse crime contra a liberdade, contra a independência, essa violência aos temperamentos individuais que é o serviço militar obrigatório.

            Agora, parece, a Alemanha ficará por muito tempo diminuída e os seus idiotas partidos guerreiros que se crêem eleitos e com a missão de dominar o mundo, não encontrarão na massa de camponeses homens em que se apóiem, com auxilio de amuletos patrióticos; e os homens que criam o futuro, poderão agir.

Correio da Noite, 19-12-1914

 

ATÉ MIRASSOL

 (Notas de viagem)

            A CONVITE de meu amigo e confrade Dr. Ranulfo Prata, clínico nessa localidade de Mirassol, que fica nos confins de S. Paulo, atraído também pelo seu nome pitoresco, embarquei para ela, na Central, em 1 de abril.

            Tomei logo lugar no vagão de 1.a classe - uma hora antes da partida. É meu primeiro aborrecimento não caber o meu calhambeque de mala debaixo do banco. Prevejo que terei que viajar com o azedume do companheiro de defronte, por causa do tropêço que ela lhe vai causar às pernas.

            Ei‑lo que chega. É um rapaz simpático. Tem ar de ser de origem italiana. Possui mesmo uma forte cabeça romana. Fico contente, tanto mais que não se aborrece com a mala. Ainda bem. Tendo eu ficado nos bancos que estão imediatamente próximos à porta, o vis‑à‑vis é obrigatório.

            Há, portanto, ainda dois lugares disponíveis. Olho a plataforma. Há uma agitação que não é do meu gosto. Até automóveis com malas postais e medas de jornais e revistas penetram nela. Vejo passar uma família de imigrantes em fila índia, guardando a escala de crescimento e da hierarquia doméstica. Na frente o pai, carregando um grande saco, curvado; depois, a mulher, com um bebê ao colo; seguem‑se os filhos e filhas, na ordem da idade, carregando sacos, O último, uma criança de seis anos, de um louro sujo, leva na mão esquerda um saco e, na direita, erguida, uma garrafa quebrada.

            Que será? Mete‑me pena aquilo. Devem ser russos ou polacos. Por que deixaram a sua aldeia ou cidade? Foi a guerra. Maldita seja a guerra!

            Estes meus pensamentos são interrompidos pela chegada de dois outros passageiros para os lugares restantes que me cercam. Não se sentam logo. Procuram com o olhar um amigo no carro. Encontram‑no. Tratam com o "romano" a troca do lugar dele com o do amigo descoberto. É o Mário. Parece pessoa poderosa e rica. Sentam‑se. O que me ficou defronte, mostra incômodo com a mala. Pergunta ‑me por que não a ponho debaixo do banco.

            Explico‑lhe a razão; ele não esconde, entretanto, a contrariedade com semelhante vizinhança.

            Põem‑se a conversar. O amigo "descoberto" e o  mais animado no falar. Fala mal dos cigarros pobres e alude a altos negócios de contos de réis. Envergonho‑me da minha pobreza e dos meus humildes cigarros. Arrependo‑me da viagem ou, antes, de não ter tomado a segunda classe. É o meu lugar. Entretanto, vi que, para ela, se dirigiam tantos russos, alemães, italianos, etc., mal vestidos, barbados, que, talvez, antes de 1914, fôssem tão ricos como aquele poderoso senhor que fala mal dos cigarros, cigarros dos outros. Isto me faz rir interiormente da sua presunção e do seu fumo.

            Na portinhola, aparece‑me o G., bacharel da Bahia, alegre, satisfeito, muito confiante em si. Invejo‑o, eu tão tímido! Chegam amigos e meu irmão. Alegria. Um dos meus amigos conhece o vizinho de vis‑à‑vis.

            Vão‑se.

            Já me olha o fronteiro com mais simpatia e não mostra tanto aborrecimento com a mala.

            Estou encostado à portinhola e o viajante da esquerda, que também tem horror aos "mata‑ratos", está coberto com um encardido chapéu de palha.

            O meu é novo em folha.

            Consolo‑me. O trem põe‑se em movimento. Os meus vizinhos desandam a conversar vivamente.

            O de defronte, o que agora me olha com simpatia, me parece médico; os outros dois, políticos.

            A conversa se generaliza.

            Tratam de coisas eleitorais.

            O de chapéu de palha encardida, cuja profissão não é denunciada à primeira vista, é o mais velho dos três. Da maneira que fala de coisas de urna, percebo que é um velho politicão da roça que tem passado de partido para partido, do conservador para o liberal, de Fagundes para Bernardes, deste para Bertoldo, sem conseguir ser ao menos deputado de Niterói.

            Fala de coisas de capangas, de falsificações de atas, de distúrbios eleitorais, como se tudo isso fosse a coisa mais natural deste mundo.

            O vizinho, que aprecia os cigarros caros, secunda‑o nas suas apreciações. Explica por que o Maurício, o de Lacerda, não foi diplomado. É que o fogoso tribuno quis abarcar o mundo com as pernas. Dividiu os esforços por três Estados.

            Se os tivesse concentrado no seu município, certamente venceria o Henrique.

            Chega um outro chefe eleitoral. Esse parece não ter título algum, nem mesmo de patente da Guarda Nacional.

            Percebo que é coletor federal. A conversa eleitoral toma novo alento. As tricas e os truques de tão odiosa instituição são explicados.

            Não compreendo nada dessa conversa de influências da roça; mas fico a pensar: como é que gente tão rica, poderosa e influente, pode conversar tanto tempo e não ter uma idéia, uma reflexão sobre o atual estado angustioso do mundo?

            Chegamos a Belém. Olho a plataforma da estação. Vejo o bacharel G., o bacharel da Bahia, passar com uma graúda italiana muito clara. Vai falando alto  italiano. Todos o olham com inveja e eu também invejo a sua despreocupação.

            A viagem continua.

Careta, 23‑4‑1921.

 

            Até bem pouco, segundo me parece, a capacidade comercial das gentes ribeirinhas à Estrada de Ferro Central do Brasil consistia em vender frutas, queijos e café aos viajantes dos comboios que atravessavam as suas terras.

            Hoje, porém, as coisas mudaram. Veio o progresso. Já há o carro‑restaurante e, mesmo, pelos carros de passageiros, de onde em onde, atravessa um empregado dele, por demais disposto a fornecer aos viajantes o que eles quiserem.

            Matou o rudimentar comércio dos camaradas do interior; e, com essa morte, não sei se devido ao progresso ou à moda, desapareceram os guarda‑pós.

            Quando a primeira vez, em menino, viajei com meu pai em trem de ferro, para Barbacena, não levar guarda‑pó era sinal de lamentável pobreza ou de mau gosto sem igual.

            Quem não podia comprar um, pedia‑o emprestado, tal qual fiz eu com o calhambeque da mala que levei e tantos dissabores me fez passar.

            Hoje, porém, quem se apresentar no trem com um guarda‑pó, por mais caro que seja, mesmo que seja de sêda, como uma vestimenta chinesa ou japonesa, se não levar vaia, pelo menos é tomado como roceiro ou coisa parecida.

            A moda pede que não se os use e exige até que se viaje com roupas caras e finas.

            Dois dos meus vizinhos, no carro, viajavam com caríssimos ternos de linho imaculadamente lavados e passados a ferro.

            Eu tinha posto uma roupa nova naquele dia, para viajar - coisa que não aumentou nem diminuiu o meu valor.

            Entretanto, achei absurdo semelhante moda - deusa, aliás, que é fértil em absurdos.

            O pó das estradas de ferro continua a existir, mesmo à noite - por que então suprimir o capote de brim que resguardava as nossas roupas dele? Por que tornar chique viajar com roupas impróprias que muito mal se defendem da poeira?

            É difícil encontrar razões para os preceitos da moda. A alguém, a quem perguntei por que usava o paletó aberto com a camisa à mostra, uso que constituiria um sinal de má educação antigamente, respondeu‑me:

            - É porque é moda.

            Eis um forte motivo que justifica os trejeitos de andadura que fazem as nossas melindrosas, e a transparência venusina de seus vestidos que tanto indigna o Sr. Peixoto Fortuna, da Liga Pela Moralidade.

            O progresso, como já disse, trouxe a supressão do guarda‑pó, sem suprimir o pó das estradas de ferro;  em compensação, porém, graças à sua capacidade de criar profissões miseráveis, introduziu nos trens o  lustrador de botinas dos graúdos do meu estofo que conseguem viajar na primeira classe.

            O Sr. Mário de Alencar, cujo fino talento tanta admiração me causa, já resolveu, com grande simplicidade de meios e palavras, a questão social; e, em certa ocasião ao meio de uma grave sessão da Academia Brasileira, de que sou, com os Srs. Pinto da Rocha, Eduardo Ramos, Almachio Dinis e outros, membro virtual, foi ele que me observou o seguinte:

            - Se o progresso traz miséria, em compensação faz  nascer outras profissões. Veja você só os "manicures", os "pedicures", os engraxates, os motorneiros, os "chauffeurs", os massagistas, os tripeiros, etc. etc. Por ventura existiam essas profissões antigamente? Não há motivo para maldizer o estado atual da sociedade; ela fabrica necessidades, para criar trabalho e profissões.

            Lembrei‑me dessa frase do meu conspícuo amigo e confrade Mário de Alencar, quando, ainda dentro do Estado do Rio, passando instantes em uma estação, vi agachada, a meus pés, uma pobre criança que me lustrava, sem aviso algum, e com pressa e mêdo, naturalmente das autoridades do trem, as minhas modestas botinas.

            Dei‑lhe um cruzado e bendisse, com o Sr. Mário de Alencar, a organização da atual sociedade que me fazia tão rico e àquela criança tão miserável e pobre.

            O trem partiu e os meus companheiros de viagem voltaram a tomar assento e a discutir política que, segundo Bossuet, é a arte de dar felicidade aos povos e tornar a vida cômoda.

Careta, 30‑4‑1921.

 

            O trem corre e se aproxima dos limites dos Estados do Rio e São Paulo.

            Os meus vizinhos voltam do carro‑restaurante, acompanhados agora de um outro cidadão que, pela conversa, deve ser coletor federal É um tipo atarracado, quase quadrado e, pelo que dele ouvi, é muito entendido nesse negócio que os doutores e coronéis do interior, peões e camaradas, assassinos e simples caipiras chamam pomposamente política.

            Essa grande arte de dirigir os povos e as nações é ali reduzida à mais simples expressão de modestas cifras.

            Elas não vão além de mil e é freqüente que os palestradores repitam o milheiro de várias formas: "porque o Maurício não podia contar com os mil  votos que o Fábregas deu ao Borges; ah! não fosse isso e a intervenção do "centro", ele ganharia". A isto acode um outro: "não foi tanto pelos mil votos do Fábregas; foi porque ele não soube trazer para o seu lado o Assunção, que dispõe de outros tantos, mas descarregou‑os no Brandão".

            A política naquela palestra de influências eleitorais reduz‑se a números; e toma parecenças com os discursos parlamentares do meu simpático Cincinato Braga ou com os artigos do Mário Guedes, meu colega também, por ser agora, como eu já era, professor de agricultura. É verdade que eu a estudei nas "public‑houses" de New‑York e Londres, com o eminente Mark Twain; e o Mário fez seus estudos com o avisado Miguel Calmon, na Sociedade de Agricultura, na rua da Alfândega, onde este último possui um campo experimental da cultura do fumo ou tabaco bravio, nos telhados velhos do edifício.

            Há alguma diferença...

            Ao chegar a uma estação qualquer, o médico que viajava em frente a mim desde a Central, e acompanha a conversa política dos seus amigos, exclama com terno espanto:

             - Olha o Maurício!

            Penso que é o de Lacerda e antegozo uma disputa de alta política eleitoral em que o meu Maurício de Lacerda certamente não deixará de pontilhá‑la com algumas sentenças comunistas, para assustar os contos de réis daquele insolente Mário que despreza os meus cigarros. Infelizmente não é o de Lacerda; é um menino fardado de colegial. Percebo que é filho do médico; que perdeu o trem ou fêz qualquer traquinada e não saltou na estação devida. O pai recebe com bonomia as explicações do filho, sem nenhum ralho na voz ou no olhar. O pequeno quer descarregar a culpa para o chefe de trem, o pai, porém, desculpa este também: "ele tem muito que fazer; é natural que se esquecesse ..."

            Ainda mais simpatizo com esse meu companheiro de viagem, tão simples, tão natural, muito diferente dos amigos que o acompanham, e ainda mais desejo conversar com ele sobre febre aftosa, sobre coisas do Ministério Simões Lopes, etc., etc. Sabem por quê? Porque ele, ao ser apresentado ao tal coletor, dissera que a sua fazenda era só de criação; e que, ao lhe aparecer não sei que peste no seu gado, apelara para o Ministério vizinho do Hospício, que lhe enviara em auxílio um veterinário com uma lata de creolina.

            Dentro em breve, o filho se despede. Nessa despedida encontrei um problema nacionalista que rogo aos meus amigos Álvaro Bomilcar e Jackson de Figueiredo a resolverem‑no quanto antes, para sossego da "brasilidade".

            É tradicional que, nesses momentos, o filho leve aos lábios a mão direita do pai e a beije no dorso.

            É a bênção que ainda hoje eu, com quase quarenta anos, tomo a meu pai, em ocasiões solenes. Acontece que ultimamente foi introduzido o uso estrangeiro de  se beijarem pai e filho, nas faces, depois se abraçarem, tal e qual faziam, antigamente, as damas e moças, ao se encontrarem.  Não há nisto e, também, com o mútuo tratamento de tu e você entre pais e filhos, um afrouxamento do uso da nacionalidade, uma injúria irrogada aos manes dos nossos avós?

            Penso que há ai alguma coisa como que uma diminuição da forte constituição católica da família brasileira que sempre teve, graças à doutrinação da Igreja, por modelo o patriarcado bíblico.

            Não sou autoridade no assunto; mas, os meus amigos católico‑nacionalistas resolverão ‑ estou certo ‑ a questão a contento de todos e com rara sabedoria escolástica

            O menino saíra, ligeiro e alegre, sob o doce e longo olhar paterno, e continuamos a correr sobre os rails da Central, dentro da escuridão da noite, que, se é mãe do Crime e do Vício, é também o intermediário mais perfeito entre o mistério da nossa alma e aquele que nos cerca.

Careta, 7‑5‑1921.

 

DIAS DE ROÇA

 (Carta)

            Meu caro amigo. V. me perguntou o que faço nestas paragens que não te mando o manuscrito prometido. A bem dizer, não faço nada; mas, por isso mesmo, ainda não dei começo ao trabalho que tratei contigo fazer.

            Imagina tu que estou aqui há bem um mês e ainda não pude ler convenientemente, para convenientemente dar noticia de dois livros. Um é do Mário Sete, autor do formoso Rosas e Espinhos; é um romance que tem andado aqui de mão em mão e não sai de uma delas sem os maiores gabos e sem sugerir aos leitores reflexões sobre os encantos da vida roceira sobre a da cidade. Pois, ainda, como já disse a V., não pude ler o Senhora de Engenho. É este o título do romance de Mário Sete; entretanto, apesar de ser a negação para o gênero, a pedido de "várias famílias", já escrevi uma conferência literária que, pela circunspeção e seriedade, vou pedir ao meu Félix Pacheco que a publique no Jornal do Comércio. Tem ela por tema - "O destino da Literatura". Merece ou não o Jornal do Comércio? Espero que ela será muito apreciada pelos conspícuos acadêmicos Afrânio Peixoto e Hélio Lôbo, embora, sem discordarem, tenham ambos dos fins da literatura, idéias muito diferentes das minhas, se é que tenho algumas.

            Um outro livro que, para aqui trouxe, a fim de estudá‑lo convenientemente, é o de Gastão Cruís Coivara. É um livro de Contos que todos aí conhecem. Quero muito falar , desse livro em que o autor, apesar de médico, abandona o pseudo clássico de Aloísio, escreve como eu ou como o Cardim do Jornal do Comércio, mas se revela um temperamento complexo de pensador‑homem de letras.

            Mas que diabo V. faz - dirá o amigo - que não escreve ao menos isso? Passeio e converso. Mirassol não é uma paisagem. É muito pobre a esse respeito. Faltam‑lhe água e montanha. O horizonte é igual e unido; e as florestas de perobeiras já fugiram para longe do povoado, deixando das derrubadas e das queimadas conseqüentes, em pé, altos troncos carcomidos e enegrecidos pelo fogo, como para significar o seu protesto e clamar, sem cessar, aos céus de dia e de noite, contra a violência que sofreram. O caboclo passa por eles, e nem os olha, quanto mais os ouve...

            Ele marcha para o conto, para o conto de réis. Aqui só se fala em conto de réis; as grandes notas de cem, duzentos e quinhentos mil‑réis são comuns.

            Letras, hipotecas e anticreses são termos e instrumentos de créditos familiares a todos; e até a conta de pares o é.

            Sente‑se que o "rush" da população para aqui, não só paulista, mas brasileira, com a sua natural mescla de imigrantes de várias proveniências, não tem em grande conta a terra e as suas árvores. Ela corre atrás desse demônio do café que vejo pequenino, de dois e três anos, a crescer sobre as recentes derrubadas, com ar tímido de criança sonsa. Este pequeno de fisionomia verde‑chumbo vai ser o diabo...

            Constituída assim a povoação do lugar, é um gozo observá‑la em todas as camadas. Sem propósito algum, converso com este ou aquele e me edifico. Um curioso tipo de plantador, a não sei que propósito, disse‑me um dia destes:

            - Moço: a pior, a mais baixa profissão desta vida é a de advogado; depois, a de soldado; depois, é a de oficial de justiça.

            Há aqui intermináveis questões de terras, devido à falsificação de títulos de posse, a que chamam ‑ "grilos". Essas complicações, ao que parece, fazem as delicias dos advogados e são o pesadelo dos agricultores. Dai, a opinião do fazendeiro que ouvi

            Há coisas dolorosas provocadas por essa história de "grilo" que sociólogos da escola do super‑homem já elogiaram no Rio de Janeiro. Deixemos isso para mais tarde...

            É, mais ou menos com isto, meu caro amigo, que me ocupo aqui onde estou. São os meus dias de roça.

            À noite, vou ao cinema, coisa que não fazia aí, no Rio; e vou de graça, como representante da imprensa carioca. Evite os protestos...

            De V. etc. etc.

Careta, 14‑5‑1921.

 

PALAVRAS DUM SIMPLES

 

            Nunca me meti em política, isto é, o que se chama política no Brasil. Para mim a política, conforme Bossuet, tem por fim tornar a vida cômoda e os povos felizes. Desde menino, pobre e oprimido, que vejo a "política" do Brasil ser justamente o contrário. Ela tende para tornar a vida incômoda e os povos infelizes. Todas as medidas de que os políticos lançam mão são nesse intuito.

            Os prefeitos, por exemplo, desta nossa leal e heróica cidade do Rio de Janeiro, são atualmente piores que os almotacés do conde de Resende. Estes tinham direito a certo número de línguas e "mãos de vaca" das reses abatidas no matadouro; os edis de hoje mandam construir hotéis de oito mil contos, para... hospedar estrangeiros. De forma que, no tempo de el‑rei Nosso Senhor, as autoridades municipais se encarregavam do bem‑estar do seu povo, como se dizia antigamente; hoje porém, com a nossa democracia, essas mesmas autoridades se encarregam do bem‑estar dos ricaços displicentes que vêm a passeio, cheios de dinheiro, ver bobagens de uma "Exposição" de aterrado.

            Por estas e outras eu sou completamente avesso a negócios de política, porque não acredito nela e muito menos nos políticos.

            Ultimamente, entre nós houve uma barulheira política que quase sacudiu o pais.

            Pus‑me de parte e tive razão. Não havia nessa agitação nada de ideal, de superior. Só admito que  se morra em matéria de política quando se o faça por uma idéia que interesse um grande grupo humano. No caso não havia isto e eu, aqui e ali, levei‑o de troça.  E outra atitude ele não merecia. Não sei os pródromos de semelhante barulheira, mas eles devem ser muito baixos e vagabundos.

            A verdade, porém, é que o observador imparcial logo concluiu que nenhum dos grupos que se digladiavam falava a verdade.

            A questão versava sobre uma falsificação de cartas, atribuidas ao Sr. Artur Bernardes, atualmente eleito presidente da República. Tais cartas continham insultos ao Exército e os adversários do Sr. Bernardes excitaram os brios da força armada contra ele, baseados nas referidas missivas.

            O intuito dos opositores à candidatura do Sr. Bernardes era mover o Exército contra esta, vetá‑la e, caso fosse possível, impedir a posse do mesmo senhor pela força.

            Havia nisto um apelo declarado ao que se chama nas repúblicas espanholas "o pronunciamento". Toda a gente sabe que isso tem sido um flagelo, tanto para elas como para nós. O dever nosso é evitá‑lo de qualquer forma. Qualquer modalidade de hipocrisia política, de que se revista o provimento deste ou daquele cargo de eleição, é melhor do que o assassinato e a violência.

            Penso assim porque estou convencido de que seja Paulo, Sancho ou Martinho que governe, esta vida será sempre uma miséria.

            Seria capaz de deixar‑me matar, para implantar aqui o regímen maximalista; mas a favor de Fagundes ou de Brederodes não dou um pingo do meu sangue.

            Tenho para mim que se deve experimentar uma "tábua rasa" no regímen social e político que nos governa; mas mudar só de nomes de governantes nada adianta para a felicidade de todos nós.

            Demais, há tanta incoerência nesses políticos que nos azucrinam os ouvidos com velhos tropos quando querem satisfazer as suas ambições, que vimos, nos últimos acontecimentos, sujeitos que, não há muitos anos, se insurgiram contra a intromissão, a pressão dos militares nas causas políticas, apelarem para eles, para a sua fôrça e o seu prestígio, a fim de tornar vencedora a própria causa.

            Vimos em que deu a coisa. Ao menor sopro de "mazorca" foram todos pelos ares e eles todos debandaram, escafederam‑se, deixando o chefe sozinho

            Que este fique só, não há mal nenhum. Ele é rico ou enriquecido e pode agüentar o repuxo: mas o povo não deve ir atrás dessa gente.

            Os pobres‑diabos que se apaixonam por essas especulações de políticos é que levam o "chanfalho" da polícia e sofrem perseguições.

            São causas que nós, humildes, não devemos esposar, porque elas não representam nenhum ideal elevado, nem nada de sincero e de sério.

Hoje, 22‑7‑1922.

 

BAILES E DIVERTIMENTOS SUBURBANOS

            Há dias, na minha vizinhança, quase em frente à minha casa, houve um baile. Como tinha passado um mês enfurnado na minha modesta residência, que para enfezar Copacabana denominei "Vila Quilombo", pude perceber todos os preparativos da festa doméstica: a matança de leitões, as entradas das caixas de doces, a ida dos assados para a padaria, etc.

            Na noite do baile, fui deitar‑me cedo, como sempre faço quando me resolvo a descansar a sério. Às 9 horas, por aí assim, estava dormindo a sono solto. O baile já havia começado e ainda com algumas polcas repinicadas ao piano. Às 2 e meia, interrompi o sono e estive acordado até às 4 da madrugada, quando acabou o sarau. A não ser umas barcarolas cantadas em italiano, não ouvi outra espécie de música, a não ser polcas adoidadas e violentamente sincopadas, durante todo esse tempo.

            O dia veio se fazer inteiramente. Levantei‑me da cama e, dentro em breve, tomava o café matinal em companhia de meus irmãos.

            Perguntei a minha irmã, provocado pela monótona musicaria do baile da vizinhança, se nos dias presentes não se dançavam mais valsas, mazurcas, quadrilhas ou quadras, etc. Justifiquei‑lhe o motivo da pergunta.

            - Qual! - disse‑me ela. - Não se gosta mais disso... O que apreciam os dançarmos de hoje, são músicas apolcadas, tocadas "a la diable", que servem para dançar o tango, fox‑trot, rang‑time, e...

            - "Cake‑walk"? - perguntei.

            - Ainda não se dança, ou já se dançou; mas agora, está aparecendo um tal de "shimmy".

            Nunca vi dançar tal coisa, nem me tenta vê‑lo; mas a informação me fez lembrar do que era um baile familiar há vinte anos passados. O baile, não sei se é, era ou foi, uma instituição nacional, mas tenho certeza de que era profundamente carioca, especialmente suburbano.

            Na escolha da casa, presidia sempre a capacidade da sala de visitas para a comemoração coreográfica das datas festivas da família. Os construtores das casas já sabiam disso e sacrificavam o resto da habitação à sala nobre. Houve quem dissesse que nós fazíamos casa, ou as tínhamos para os outros, porque a melhor peça dela era destinada a estranhos.

            Hoje, porém, as casas minguam em geral, e especialmente, na capacidade dos seus aposentos e cômodos. Nas salas de visitas das atuais mal cabem o piano e uma meia mobília, adquirida a prestações. Meia dúzia de pessoas, numa delas, estão ameaçadas de morrer asfixiadas com as janelas abertas. Como é que elas podem comportar um baile à moda antiga, em que dançavam dúzias de pares? Evidentemente, não. Isto acontece com as famílias remediadas; com as verdadeiramente pobres, a coisa piora. Ou moram em cômodos ou em casitas de avenidas, que são um pouco mais amplas do que a gaiola dos passarinhos.

            Por isso entre a gente média os bailes estão quase desaparecendo dos seus hábitos; e, na gente pobre, eles ficaram reduzidos ao mínimo de um concerto de violão ou a um recibo de sócio de um clube dançante na vizinhança, onde as moças vigiadas pelas mães possam pirutear em salão vasto.

            O meu amigo Sussekind de Mendonça, no seu interessante livro - O Esporte está deseducando a mocidade brasileira - refere‑se à licenciosidade das danças modernas.

            Hei de falar mais detidamente sobre esse vigoroso livro: agora, porém, cabe só uma observação. Mendonça alude ao que se passa no "set" carioca; mas pelo que me informam, o subúrbio não lhe fica atrás. Nos tempos idos, essa gente verde das nossas elegâncias - verde é sempre uma espécie de argot - sempre mutável e variável de ano para ano, - desdenhava o subúrbio e acusava‑o falsamente de dançar maxixe; hoje, não há diferença: todo o Rio de Janeiro, de alto a baixo, incluídos os Democráticos e o Music‑Club das Laranjeiras, o dança.

            Há uma coisa a notar: é que esse maxixe familiar não foi dos "Escorregas" de Cascadura para o Acchilleon do Flamengo; ao contrário, veio deste para aquela.

            O meu estimado Mendonça atribui o "andaço" dessas danças desavergonhadas ao futebol. O Sr. Antônio Leão Veloso achou isso exagerado. Pode haver exagero - não ponho em dúvida tal coisa - mas o tal de futebol pos tanta grosseria no ambiente, tanto desdém pelas coisas de gosto, e reveladoras de cultura, tanta brutalidade de maneiras, de frases e de gestos, que é bem possível não ser ele isento de culpa no recrudescimento geral, no Rio de Janeiro, dessas danças luxuriosas que os hipócritas estadunidenses foram buscar entre os negros e os apaches. Convém notar que, entre esses retardados exemplares da nossa humanidade, quando em estado selvagem, semelhantes danças não têm a significação luxuriosa e lasciva que se julga. Fazem parte dos rituais dos seus Deuses, e com elas invocam a sua proteção nas vésperas de guerras e em outras ocasiões solenes.

            Passando para os pés dos civilizados, elas são deturpadas, acentuadas na direção de um apelo claro à atividade sexual, perdem o que significavam primitivamente e se tornam intencionalmente lascivas, provocantes e imorais.

            Isto, porém, não nos interessa, porque não interessa tanto ao subúrbio como ao "set" carioca, que dançam "one‑step" e o tango argentino, e nessas bárbaras danças se nivelam. O subúrbio civiliza‑se, diria o saudoso Figueiredo Pimentel, que era também suburbano; mas de que forma, santo Deus?

            Quando fui morar naquelas paragens não havia noite em que voltando tarde para casa, não topasse no caminho com um baile, com um chôro, como se dizia na gíria do tempo. Havia famílias que davam um por mês, fora os extraordinários, e havia também cavalheiros e damas que não faltavam a eles, além de irem a outros de famílias diferentes.

            Eram célebres nos subúrbios, certos rapazes e moças, como tipos de dançarinos domésticos. Conheci alguns, e ouvi muitos falar neles. Lembro‑me bem, dentre eles, de uma moça que, às vezes, atualmente ainda encontro, gordinha, com dois ou três filhos que lhe dão um imenso trabalho para acomodar nos bondes. Chamavam‑na Santinha, e tinha uma notoriedade digna de um poeta de "Amor" ou de um gatimanhas de cinematógrafo. Não' era bonita na rua, longe disso. A sua aparência era de uma moça como muitas outras, de feições miúdas, sem grande relevo, cabelos abundantes e sedosos. Tinha, porém, um traço próprio, pouco vulgar nas moças. A sua testa era alta e reta, testa de deusa a pedir um diadema. Era estimada como discipula de Terpsícore burguesa. A sua especialidade estava na valsa americana que dançava como ninguém. Não desdenhava as outras contradanças, mas a valsa era a sua especialidade. Dos trezentos e sessenta e cinco dias do ano, só nos dias de luto da semana santa e no de finados, não dançava. Em todos os mais, Santinha valsava até de madrugada. Dizia a todos que, por tanto dançar não tinha tempo de namorar. De fato, sempre requestada para esta e aquela contradança, via tantos e tantos cavalheiros, que acabava não vendo nenhum ou não firmando a fisionomia de nenhum.

            Se não era bela na rua, em atitude comum de passeio, valsando ficava outra, tomava um ar de sílfide, de divindade aérea, vaporosa e adquiria um ar esvoaçante de visão extra‑real. Fugia ao solo e como que pairava no espaço...

            Os que a viram dançar e me falam dela, até hoje não escondem a profunda impressão que a moça, ao valsar, lhes causou; e quando hoje, por acaso, a encontro atrapalhada com os filhos, penso de mim para mim: para que essa moça se cansou tanto? Chegou afinal ao ponto em que tantas outras chegam com muito menos esforço...

            O "pendant" masculino de Santinha era o seu Gastão. Baile em que não aparecia seu Gastão, não merecia consideração. Só dançava de "smoking", e o resto do vestuário de acordo. Era um rapaz de boa altura, simpático, grandes e bastos bigodes, de uma delicadeza exagerada; A sua especialidade não era a valsa; era o "pas‑de‑quatre", que dançava com ademanes de dança antiga, de minueto ou de coisa parecida. Fazia cumprimentos hieráticos e dava os passos com a dignidade e convicção artística de um Vestris. Seu Gastão ainda existe, e prosperou na vida. Quando rei suburbano do "pas‑de‑quatre" era empregado de um banco ou de um grande escritório comercial. Hoje é diretor‑gerente de uma casa bancária, está casado, tem filhos, mora em Conde de Bonfim, numa vasta casa, mas raramente dá bailes. Dançou para a vida inteira e também pelos filhos e filhas.

            Nesses bailes suburbanos, o mártir era o dono da casa: Seu Nepomuceno começava por não conhecer mais da metade da gente que, transitoriamente, abrigava, porque Cacilda trazia Nenê e esta o irmão que era namorado daquela - a única cuja família tinha relações com a do Seu Nepomuceno; e, assim, a casa se enchia de desconhecidos. Além destes subconvidados, ainda existiam os penetras. Chamava‑se assim certos rapazes que, sem nenhuma espécie de convite, usavam deste ou daquele truque, para entrar nos bailes - penetrar.

            Em geral, apesar da multidão dos convidados, essas festas domésticas tinham um grande cunho de honestidade e respeito. Eram raros os excessos e as danças, com o intervalo de um hora, para uma ceia modesta, se prolongavam até o clarear do dia sem que o mais arguto do sereno pudesse notar uma discrepância nas atitudes dos pares, dançando ou não. Sereno, era chamado o agrupamento de curiosos que ficavam na rua a espiar o baile. Quase sempre era formado de pessoas das vizinhanças e outras que não haviam sido convidadas e lá se postavam para ter assunto em que baseassem a sua despeitada crítica.

            Esses bailes burgueses não eram condenados pela religião. Se algumas nada diziam, calavam‑se. Outras até elogiavam. O puritanismo era francamente favorável a eles. Afirmava ele, pela bôca de adeptos autorizados, que essas reuniões facilitavam a aproximação dos moços de dois sexos, cuja vida particular a cada um deles se fazia isoladamente, sem terem ocasião de trocar impressões, sem comunicarem mutuamente quais os seus anelos, quais os seus desgostos, favorecendo tudo isso os saraus familiares.

            Estou certo de que os positivistas, hoje, julgariam que os atuais bailes aproximam por demais os sexos, e... "anathema sit".

            O pequeno povo porém ainda não sabe o "fox‑trot", nem o "shimmy". Nos seus clubes, ao som do piano ou de estridulantes charangas, dança ainda à antiga; e, no recesso do lar com um terno de flauta, um cavaquinho e violão ou sob o compasso de um prestativo gramofone, ainda volteia a sua valsa ou requebra uma polca, extraordinariamente honesta em comparação com os tais "steps" da moda.

            Sem receio de errar, entretanto, pode‑se dizer que o baile familiar e burguês, democrático e efusivo, está fora da moda, nos subúrbios. A carestia da vida, a exigüidade das casas atuais e a imitação da alta burguesia desfiguraram‑no muito e tendem a extingui‑lo.

            O violão e a modinha que Catulo, com sua tenacidade, com o seu talento e a sua obediência cega a um grande ideal, dignificou e tornou capaz da atenção dos intelectuais, vão sendo mais prezados e já se fazem encantos dos saraus burgueses em que, pelas causas apontadas, as danças mínguam. É pena que para um Catulo, artista honesto, sob todos os pontos de vista, haja uma dezena de Casanovas disponíveis, que, maus de natureza e sem talento algum, se servem da arte reabilitada pelo autor de Sertanejo, a fim de, por intermédio de horríveis cantarolas, levarem a desgraça a lares pobres e perder moças ingênuas e inexperientes. Há por lá monstros desses que contam tais proezas às dezenas. É o caso de imitar o outro e escrever: O Código Penal e a inutilidade das leis.

            Uma outra diversão que, antigamente, os suburbanos apreciavam muito e hoje está quase morta, era a do teatrinho de amadores. Quase todas as estações tinham mantido um Clube. O do Riachuelo, teve a sua meia hora de celebridade; possuía um edifício de razoáveis proporções; mas desapareceu, e, atualmente, foi transformado em escola municipal. O que havia de característico na vida suburbana, em matéria de diversão, pouco ou quase nada existe mais. O cinema absorveu todas elas e, pondo de parte o Mafuá semi‑eclesiástico, é o maior divertimento popular da gente suburbana.

            Até o pianista, o célebre pianista de bailes, ele arrebatou e monopolizou.

            Nada tem, porém, de próprio ao lugar, é tal e qual outro e qualquer cinema do centro ou qualquer parte da cidade em que haja pessoas cujo gosto de se divertir no escuro arrasta a ver‑lhes as fitas durante hora e tanto.

            O futebol flagela também aquelas paragens como faz ao Rio de Janeiro inteiro. Os clubes pululam e os há em cada terreno baldio de certa extensão.

            Nunca lhes vi uma partida, mas sei que as suas regras de bom‑tom em nada ficam a dever às dos congêneres dos bairros elegantes.

            A única novidade que notei, e essa mesma não me parece ser grave, foi a de festejarem a vitória sobre um rival, cantando os vencedores pelas ruas, com gambitos nus, a sua proeza homérica com letra e música da escola dos cordões carnavalescos. Vi isto só uma vez e não garanto que essa hibridação do samba, mais ou menos africano com o futebol anglo‑saxônio, se haja hoje generalizado nos subúrbios. Pode ser, mas não tenho documentos para tanto afiançar.

            Resta‑nos o Carnaval; é ele, porém, tão igual por toda a parte, que foi impossível, segundo tudo faz crer, ao subúrbio dar‑lhe alguma coisa de original. Lá, como na Avenida, como em Niterói, como em Maxambomba, como em todo este Brasil inteiro, são os mesmos cordões, blocos, grupos, os mesmos versos indignos de manicômio, as mesmas músicas indigestas e, enfim, o Carnaval em que como lá diz Gamaliel de Mendonça, no seu último livro - Revelação: - Os homens são jograis; as mulheres, bacantes. -

            O subúrbio não se diverte mais. A vida é cara e as apreensões muitas, não permitindo prazeres simples e suaves, doces diversões familiares, equilibradas e plácidas. Precisa‑se de ruído, de zambumba, de cansaço, para esquecer, para espançar as trevas que em torno da nossa vida, mais densas se fazem, dia para dia, acompanhando "pari‑passu" as suntuosidades republicanas.

            Ele não mais se diverte inocentemente; o subúrbio se atordoa e se embriaga não só com o álcool, com a lascívia das danças novas que o esnobismo foi buscar no arsenal da hipocrisia norte‑americana. Para as dificuldades materiais de sua precária existência, criou esse seu paraíso artificial, em cujas delícias transitórias mergulha, inebria‑se minutos, para esperar, durante horas, dias e meses, um aumentozinho de vencimentos...

Gazeta de Notícias, 7‑2‑1922.

 

O NOSSO CABOCLISMO

            Uma das manias mais curiosas da nossa mentalidade é o caboclismo. Chama‑se isto a cisma que tem todo o brasileiro de que é caboclo ou descende de caboclo.

            Nada justifica semelhante aristocracia, porquanto o caboclo, o tupi, era, nas nossas origens, a raça mais atrasada; contudo toda a gente quer ser caboclo.

            Muito influíram para isso os poetas indianistas e, sobretudo, o grande José de Alencar, o primeiro romancista do Brasil, que nada tinha de tupinambá.

            A mania, porém, percorreu o Brasil; e, quando um sujeito se quer fazer nobre, diz‑se caboclo ou descendente de caboclo.

            Em matéria de caboclismo, além do Guarani de José de Alencar, só gosto do Uruguai de Basílio da Gama, sobretudo quando fala da morte de Lindóia em cujo rosto a Morte era mais bela.

            Entretanto, no Brasil, atualmente, há uns caboclistas muito engraçados. Um deles é o Sr. Rondon, hoje general, que tem um ar feroz de quem vai vencer a batalha de Austerlitz.

            O general Rondon nunca venceu batalhas, e não as vencerá, porque o seu talento é telegráfico. Não há  general como ele para estender linhas de telégrafo; mas não há também general como ele, para catequizar caboclos.

            Até hoje, essa missão estava reservada aos religiosos de toda a espécie; mas foi preciso que o Brasil se fizesse republicano para que tal coisa coubesse aos oficiais do Exército.

            Rondon catequista é um grande general e o general Rondon é um grande catequista.

            Aí não é o sabre que cede à toga; é a batina que se vê vencida pelo sabre.

            Quando Rondon foi chefe da Comissão das Linhas Telegráficas, só em milho, ele gastava mais de quinhentos contos por ano, porquanto tinha intensificado a agricultura entre os Nhambiquaras.

            Sei disto porque nesse tempo era eu empregado da Secretaria da Guerra e vi os papéis a tal respeito.

            Toda a gente, porém, admira Rondon porque sabe andar léguas a pé; contudo, acho eu que essa virtude não é das mais humanas.

            O que o general Rondon tem de mais admirável, é a sua fisionomia de crueldade. Vê‑se nele a sua vocação de ditador e ditador mexicano. Tudo o está levando para isso, inclusive as suas descobertas já descobertas e a sua determinação de coordenadas de certos lugarejos pelo telégrafo, coisa pouco sabida e conhecida.

            Depois de tão excepcional caboclista, só há a Sra. Deolinda Daltro.

            Nunca se viu pessoa tão conspícua no caboclismo. A seriedade do seu ideal, o desinteresse que ela põe nele, além de outras qualidades e artefatos, dão‑lhe um destaque excepcional.

            D. Deolinda acaba de se apresentar candidato a intendente da cidade do Rio de Janeiro.

            Nada teria a opor, se não me parecesse que ela se enganava. Não era do Rio de Janeiro que ela devia ser intendente; era de alguma aldeia de índios. A minha cidade já de há muito deixou de ser taba; e eu, apesar de tudo, não sou selvagem.

Careta, 11‑10‑1919.

 

COMO RESPOSTA

            O foguista da Armada, Francisco dos Reis, foi, ontem, assistir ao jogo de futebol, no campo do Seleto Clube, à rua São Gabriel.

            Em meio do "match" o jogador Jadir Brás deu um formidável "shoot", indo a bola partir a perna direita de Francisco dos Reis.

Rio‑Jornal, de 16‑1‑1922.

 

            TENDO recebido de Porto Alegre, por intermédio desta revista, uma terna missiva do Dr. Afonso de Aquino, meu saudoso amigo, em que ele me fala da "Carta Aberta" que o meu amigo também Dr. Carlos Sussekind de Mendonça me dirigiu, publicando‑a sob a forma de 'livro e com o título - O Esporte está deseducando a mocidade brasileira - lembrei‑me de escrever estas linhas, como resposta ao veemente e ilustrado trabalho do Dr. Sussekind.

            Confesso que, quando fundei a Liga Brasileira Contra o Futebol, não tinha, como ainda não tenho, qualquer erudição especial no assunto, o que não acontece com o Dr. Mendonça. Nunca fui dado a essas sabedorias infusas e confusas entre as quais ocupa lugar saliente a chamada Pedagogia; e, por isso, nada sabia sobre educação física, e suas teorias, nas quais os sábios e virtuosos cronistas esportivos teimam em encaixar o esporte. A respeito, eu só tentava ler Rousseau, o seu célebre Émile; e mesmo a vagabundíssima Educação de Spencer nunca li.

            O que me moveu, a mim e ao falecido Dr. Mário Valverde, a fundar a Liga foi o espetáculo de brutalidade, de absorção de todas atividades que o futebol vinha trazendo à quase totalidade dos espíritos nesta cidade.

            Os jornais não falavam em outra coisa. Páginas e colunas deles eram ocupadas com histórias de "matches", de intrigas de sociedades, etc., etc. Nos bondes, nos cafés, nos trens não se discutia senão futebol. Nas famílias, em suas, conversas íntimas, só se tratava do jogo de pontapés. As moças eram conhecidas como sendo torcedoras de tal ou qual clube. Nas segundas‑feiras, os jornais, no noticiário policial, traziam notícias de conflitos e rolos nos campos de tão estúpido jogo; mas, nas seções especiais, afiavam a pena, procuravam epítetos e entoavam toscas odes aos vencedores dos desafios.

            Não se tratava de outra coisa no Rio de Janeiro, e até a política do Conselho Municipal, desse nosso engraçado Conselho que teima em criar teatro nacional, como se ele fosse nacional, a fim de subvencionar regiamente graciosas atrizes - até isso era relegado para segundo plano, senão esquecido.

            Comecei a observar e a tomar notas. Percebi logo existir um grande mal que a atividade mental de toda uma população de uma grande cidade fosse absorvida para assunto tão fútil e se absorvesse nele; percebi também que não concorria tal jogo para o desenvolvimento físico dos rapazes, porque verifiquei que, até numa sociedade, eram sempre os mesmos a jogar; escrevi também que eles cultivam preconceitos de toda a sorte; foi, então, que me insurgi. Falando nisso a Valverde, ele me disse todos os inconvenientes de tal divertimento, feito sem regra, nem medida, em todas as estações e por todo e qualquer sujeito, fosse de que constituição fosse, tivesse as lesões que tivesse. Fundamos a Liga.

            Ela não foi avante, não somente pelos motivos que o Dr. Mendonça escreve no seu livro, mas também porque nos faltava dinheiro.

            Quando a fundamos, eu fui alvejado com os mais soezes insultos e indelicadas referências. Ameaçaram‑me com vigorosos polemistas, partidários de futebol e uma récua de nomes desconhecidos cujo talento só é conhecido na tal Liga Metropolitana. Coelho Neto citou Spencer e eu, pela A Notícia, mostrei que, ao contrário, Spencer era inimigo do futebol. Dai em diante, tenho voltado ao assunto com todo o vigor que posso, porque estou convencido, como o meu amigo Sussekind, que o "sport" é o "primado da ignorância e da imbecilidade". E acrescento mais: da pretensão. É ler uma crônica esportiva para nos convencermos disso. Os seus autores falam do assunto como se tratassem de saúde pública ou de instrução. Esquecem totalmente da insignificância dele. Um dia destes o Chefe de Policia proibiu um encontro de "box"; o cronista esportivo censurou asperamente essa autoridade que procedera tão sabiamente apresentou como único argumento que, em todo o mundo, se permitia tão horripilante coisa. Ora, bolas!

            Certa vez, o governo não deu não sei que favor aos jogadores de futebol e um pequenote de um clube qualquer saiu‑se dos seus cuidados e veio pelos jornais dizer que o futebol tinha levado longe o nome do Brasil. 'Risum teneatis"...

            O meu caro Dr. Sussekind pode ficar certo de que se a minha Liga morreu, eu não morri ainda. Combaterei sempre o tal de futebol.

Careta, 8.4.1922.

 

 

"A MAÇÃ" E A POLÍCIA

            Noticiam os jornais que a polícia por intermédio de seus agentes e prepotentes, anda a vigiar a A Maçã, semanário que o ilustre poeta Humberto de Campos publica com um sal que, se não é de azedas, deve ser ático.

            Sou escritor e, se mérito outro não tenho, me gabo de ser independente.

            Sendo assim, não admito críticas a meus livros e aos meus escritos senão aquelas provindas de escritores que como eu não dispõem de força, nem de chanfalho. Admitir que um simples delegado de polícia ou uma praça de pré do meu amigo coronel Badaró esteja nos casos de julgar os meus escritos, é abdicar do meu esforço silencioso e doloroso durante vinte anos, para dizer o meu pensamento sincero - o que julgo essencial em ajuda da maior felicidade da comunhão humana.

            A polícia, pela sua feição própria, é incapaz desse papel de censura de qualquer manifestação de pensamento.

            Ela é uma emanação do governo; e é da natureza dos governos não admitirem crítica. Quando se os critica, ela apela para a ordem e para a moralidade. Dai o perigo que há em se entregar à polícia, qualquer poder que incida sobre a liberdade de pensamento. Fazendo‑a, ela faz obra dos governos e em qualquer trecho do escrito, ela encontra atentados à moral. Perguntarei aos policiais: o que é moral? Eles não saberão dizer; e, se o souberem, dirão que é a homenagem que o vício presta à virtude, disfarçando‑se e escondendo‑se.

            O que o Sr. Humberto de Campos escreve na sua revista é do conhecimento de todos nós, inclusive do da polícia; e, se ele edita o que edita, embora eu fosse incapaz de fazer o mesmo, a responsabilidade dele não pode ser diante de simples apitos de polícia e delegados, cuja competência em tal assunto não tem nenhuma base na lei e nos costumes.

            Polícia foi feita para prender gatunos e assassinos e nunca para fazer crítica literária, sob qualquer ponto de vista. Que "pataqueiros", fabricantes de "revistas" e "peças" de duvidoso mérito a ela se sujeitem, admito; mas, um escritor celebrizado, que usa da liberdade de crítica que as leis lhe facultam, o faça, não posso conceber.

            Conforme se diz em estilo diplomático, eu protesto contra a censura policial feita à revista de Humberto de Campos, em nome da liberdade de pensamento e tendo em vista a incompetência literária da polícia para fazer censura de escritos e a sua falta de autoridade moral.

Careta, 1 1‑3‑1922.

 

GENEROSIDADE

            Quando estive agora, ultimamente, no interior de São Paulo, confins desse Estado, próximo a Goiás e a Mato‑Grosso, tive muita coisa a observar e muita coisa a meditar.

            Lá, em Rio Preto, é ponta de trilhos e para lá vão ter toda a espécie de aventureiros, no bom ou mau sentido.

            Há os "grileiros" fabricantes de títulos falsos de propriedades de terras; há os advogados; mas há também os que querem horizontes novos para a sua atividade e para o seu trabalho.

            É justo que essa gente se mova para o interior do Brasil. Eu lá senti muito que já estivesse desfibrado, intoxicado de Rio de Janeiro, para não me deixar ficar por aquelas bandas, "cavando" e espalhando a graça e a harmonia da Guanabara que estão na minha alma.

            Tive lá um amigo, o Francisco de Sales, que é um portento de energia e honestidade. É um abridor de estradas. Ele as abre pelo deserto e faz por elas trafegar automóveis, nos quais andei graças à sua generosidade. Ele as traça por gosto e prazer, e tive um grande desgosto em não saber mais nada de topografia para auxiliá‑lo.

            Se ainda tivesse energia para recordar esse estudo elementar, ficaria lá para ajudá‑lo no seu mister, mesmo com um simples nível de pedreiro e uma trena.

            Muitas figuras como essa lá conheci de energia e de combate, no bom sentido.

            Feriu‑me, porém, muito a de um médico, formado na Suíça, onde ganhou um ar severo de alemão, mas que tem o nome portuguesíssimo de Barros. O seu primeiro é Cenobelino; e, conquanto esteja iniciando a carreira, é de uma generosidade fidalga.

            Conto‑lhes o caso.

            O Dr. Cenobelino foi chamado para ver uma criança que tinha levado um coice de um cavalo, na cabeça.

            A criança precisava de uma operação difícil, creio que de trepano. Era cara; a família do pequeno ou da pequena não a podia pagar. Ele se prontificou a fazê‑la gratuitamente.

            A criança se salvou e não podia ver bilhete de loteria que não pedisse ao pai que o comprasse.

            - Para quê?

            - Para pagar ao doutor que me salvou.

            Certo dia, o pai satisfez o pedido do filho e tirou a sorte. Escusado é dizer que recompensou generosamente o médico do filho.

Careta, 25‑6‑1921.

 

A POLÍTICA REPUBLICANA

            Não gosto, nem trato de política. Não há assunto que mais me repugne do que aquilo que se chama habitualmente política. Eu a encaro, como todo o povo a vê, isto é, um ajuntamento de piratas mais ou menos diplomados que exploram a desgraça e a miséria dos humildes.

            Nunca quereria tratar de semelhante assunto, mas a minha obrigação de escritor leva‑me a dizer alguma coisa a respeito, a fim de que não pareça que há medo em dar, sobre a questão, qualquer opinião.

            No Império, apesar de tudo, ela tinha alguma grandeza e beleza. As fórmulas eram mais ou menos respeitadas; os homens tinham elevação moral e mesmo, em alguns, havia desinteresse.

            Não é mentira isto, tanto assim, que muitos que passaram pelas maiores posições morreram pobríssimos e a sua descendência só tem de fortuna o nome que recebeu.

            O que havia neles, não era a ambição de dinheiro. Era, certamente, a de glória e de nome; e, por isso mesmo, pouco se incomodariam com os proventos da "indústria política"

            A República, porém, trazendo tona dos poderes públicos, a bôrra do Brasil, transformou completamente os nossos costumes administrativos e todos os "arrivistas" se fizeram políticos para enriquecer.

            Já na Revolução Francesa a coisa foi a mesma. Fouché, que era um pobretão, sem ofício nem benefício, atravessando todas as vicissitudes da Grande Crise, acabou morrendo milionário.

            Como ele, muitos outros que não cito aqui para não ser fastidioso.

            Até este ponto eu perdôo toda a espécie de revolucionários e derrubadores de regimes; mas o que não acho razoável é que eles queiram modelar todas as almas na forma das suas próprias.

            A República no Brasil é o regime da corrução. Todas as opiniões devem, por esta ou aquela paga, ser estabelecidas pelos poderosos do dia. Ninguém admite que se divirja deles e, para que não haja divergências, há a "verba secreta", os reservados deste ou daquele Ministério e os empreguinhos que os medíocres não sabem conquistar por si e com independência.

            A vida, infelizmente, deve ser uma luta; e quem não sabe lutar, não é homem.

            A gente do Brasil, entretanto, pensa que a existência nossa deve ser a submissão aos Acácios e Pachecos, para obter ajudas de custo e sinecuras.

            Vem disto a nossa esterilidade mental, a nossa falta de originalidade intelectual, a pobreza da nossa paisagem moral e a desgraça que se nota no geral da nossa população.

            Ninguém quer discutir; ninguém quer agitar idéias; ninguém quer dar a emoção íntima que tem da vida e das coisas. Todos querem "comer".

            "Comem" os juristas, "comem" os filósofos, "comem" os médicos, "comem" os advogados, "comem" os poetas, "comem" os romancistas, "comem" os engenheiros, "comem" os jornalistas: o Brasil é uma vasta "comilança".

            Esse aspecto da nossa terra para quem analisa o seu estado atual, com toda a independência de espírito, nasceu‑lhe depois da República.

            Foi o novo regime que lhe deu tão nojenta feição para os seus homens públicos de todos os matizes.

            Parecia que o Império reprimia tanta sordidez nas nossas almas.

            Ele tinha a virtude da modéstia e implantou em nós essa mesma virtude; mas, proclamada que foi a República, ali, no Campo de Santana, por três batalhões, o Brasil perdeu a vergonha e os seus filhos ficaram capachos, para sugar os cofres públicos, desta ou daquela forma.

            Não se admite mais independência de pensamento ou de espírito. Quando não se consegue, por dinheiro, abafa‑se.

            É a política da corrução, quando não é a do arrocho.

            Viva a República!

A.B.C., 19‑10‑1918.

 

BILHETE

            Meu caro Bruno Lôbo:

            Lembra‑te Bruno que sou teu velho conhecido de há muitos anos. Conheci‑te ainda estudante quando não tinhas tido a honra e glória de escrever a famosa brochura sobre a A Estrutura do Cilindro‑Eixo. Como tu tinhas fartas relações com jornalistas e aderentes, a tua brochura tão especial teve grande repercussão, graças à "reclame" que aqueles te fizeram. Tudo fazia que te encaminhasses por esse campo de Histologia e coisas parecidas. Tal, porém, não se deu. Tu, Bruno, achastes que esse campo era estreito demais para os teus méritos intelectuais. Quiseste mais. Era justo, porquanto tu és inteligente.

            Eu mesmo tive ocasião de verificar isso, quando passei em tua companhia cerca de oito dias no Júri, naquele famoso Júri em que tu foste presidente e eu fui perseguido por causa dele e tu homenageado.

            Dizia, porém, que tudo fazia crer que tu continuasses pelo campo da Histologia. Não o quiseste; e, num belo dia, li que tu eras nomeado Diretor do Museu Nacional. Assombrei‑me. Bruno sabichão em História Natural, em arqueologia egípcia, em antiguidades americanas! Quem o diria! Enfim... O mundo dá muitas voltas e tem muitas surpresas.

            Não ficaram aí as que me reservaram o meu amigo Bruno, que não é uma caixa delas, mas um caixão.

            Feito diretor do Museu, tu, meu caro Bruno, arvorando‑te em Congresso Nacional, emancipaste a mulher e nomeaste a inefável Berta Lutz secretário do referido Museu.

            Não chegava. O sábio histologista precisava mostrar que era capaz de maiores espantos. Que pensou? Fez‑se sabichão em Belas‑Artes. É verdade que, quando estiveste em Paris, freqüentaste Helios Seilinger, Lucílio e outros, e nessa Academia adquiristes profundos conhecimentos de artes plásticas.

            Confiante neles, em breve trataste de pontificar sobre elas, sem ler Winckelmann, Michel, Taine, Hegel e mesmo Morales de los Rios.

            Pleiteaste, cabalaste e acabaste te fazendo presidente da Sociedade de Belas‑Artes.

            Está aí como o meu amigo Bruno Lobo de "olhador" de microscópio passou a ser crítico de arte e pontífice em pintura, escultura, gravura, arquitetura, etc., etc.

            Dou‑te parabéns, Bruno, porque vens revelar que o Brasil possui um Pico de Mirandola ou um Leonardo da Vinci.

            Ainda bem!

Careta, 17‑6‑1922.

 

DE CASCADURA AO GARNIER

            Embarco em Cascadura. É de manhã. O bonde se enche de moças de todas as cores com os vestuários de todas as cores. Vou ocupar o banco da frente, junto ao motorneiro. Quem é ele? É o mais popular da linha. É o "Titio Arrelia" - um crioulo forte, espadaúdo, feio, mas simpático. Ele vai manobrando com as manivelas e deitando pilhérias, para um lado e para outro.

            Os garotos, zombando da velocidade do veículo, trepam no bonde e dizem uma chalaça ao 'Titio". Ele os faz descer sem bulha nem matinada, graças a uma graçola que sublinha, como todas as outras, com o estribilho:

            - É pau!

            Esse estribilho tornou‑o conhecido em todo o longo trajeto desse interessante bonde que é o Cascadura. Ele percorre uma parte da cidade que até agora era completamente desconhecida. Em grande trecho, perlustra a velha Estrada Real de Santa Cruz, que até bem pouco vivia esquecida.

            Entretanto, essa trilha lamacenta que, preguiçosamente, a Prefeitura Municipal vai melhorando, viu carruagens de reis, de príncipes e imperadores. Veio a Estrada de Ferro e matou‑a, como diz o povo. Assim aconteceu com Inhomerim, Estrela e outros "portos" do fundo da baía. A Light, porém, com o seu bonde de "Cascadura" descobriu‑a de novo e hoje, por ela toda, há um sopro de renascimento, uma palpitação de vida urbana, embora os bacorinhos, a fuçar a lama, e as cabras, a pastar pelas suas margens, ainda lhe dêem muito do seu primitivo ar rural de antanho.

            Mas... o bonde de Cascadura corre; "Titio Arrelia", manejando o "controle", vai deitando pilhérias, para a direita e para a esquerda; ele já não se contenta com o tímpano; assovia como os cocheiros dos tempos dos bondes de burro; e eu vejo delinear‑se uma nova e irregular cidade, por aqueles capinzais que já foram canaviais; contemplo aquelas velhas casas de fazenda que se erguem no cimo das meias‑laranjas; e penso no passado.

            No passado! Mas... o passado é um veneno. Fujo dele, de pensar nele e o bonde entra com toda a força na embocadura do Mangue. A usina do Gás fica ali e olho aquelas chaminés, aqueles guindastes, aquele amontoado de carvão de pedra. Mais adiante, meus olhos topam com medas de manganês... E o bonde corre, mas "Titio Arrelia" não diz mais pilhérias, nem assovia. Limita‑se muito civilizadamente a tanger o tímpano regulamentar. Estamos em pleno Mangue, cujas palmeiras farfalham mansamente, sob um céu ingratamente nevoento. Estamos no Largo de São Francisco. Desço. Penetro pela rua do Ouvidor. Onde os seus bácoros, as suas cabras, os seus galos e os seus capinzais? Não sei ou esqueci‑me. Entro na Garnier e logo topo um poeta, que me recita:

            - Minh'alma é triste como a rôla aflita, etc.

            Então de novo me lembro da Estrada Real, dos seus porcos, das suas cabras, dos seus galos, dos capinzais...

Careta, 29‑7‑1922.

 

A CARROÇA DOS CACHORROS

            Quando de manhã cedo, saio da minha casa, triste e saudoso da minha mocidade que se foi infecunda, na rua eu vejo o espetáculo mais engraçado desta vida.

            Amo os animais e todos eles me enchem do prazer da natureza.

            Sozinho, mais ou menos esbodegado, eu, pela manhã, desço a rua e vejo.

            O espetáculo mais curioso é o da carroça dos cachorros. Ela me lembra a antiga caleça dos Ministros de Estado, no tempo do Império, quando eram seguidas por duas praças de cavalaria de polícia.

            Era no tempo da minha meninice e eu me lembro disso com as maiores saudades.

            - Lá vem a carrocinha! - dizem.

            E todos os homens, mulheres e crianças se agitam e tratam de avisar os outros.

            Diz D. Marocas a D. Eugênia:

            - Vizinha! Lá vem a carrocinha! Prenda o Jupi!

            E toda a "avenida" se agita e os cachorrinhos vão presos e escondidos.

            Esse espetáculo tão curioso e especial mostra bem de que forma profunda nós homens nos ligamos aos animais.

            Nada de útil, na verdade, o cão nos dá; entretanto, nós o amamos e nós o queremos.

            Quem os ama mais, não somos nós os homens; mas são as mulheres e as mulheres pobres, depositárias por excelência daquilo que faz a felicidade e infelicidade da humanidade - o Amor.

            São elas que defendem os cachorros das praças de policia e dos guardas municipais; são elas que amam os cães sem dono, os tristes e desgraçados cães que andam por aí à toa.

            Todas as manhãs, quando vejo semelhante espetáculo, eu bendigo a humanidade em nome daquelas pobres mulheres que se apiedam pelos cães.

            A lei, com a sua cavalaria e guardas municipais, está no seu direito em persegui‑los; elas, porém, estão no seu dever em acoitá‑los.

Careta, 20‑9‑1919.

 

A DERRUBADA

            Fala‑se muito na remoção das grades do Passeio Público e até Coelho Neto já exumou os gregos com o seu cânon de beleza, para justificar a retirada das grades.

            Esse negócio de gregos e de beleza é coisa muito engraçada.

            Sainte‑Beuve já dizia que, de tempos em tempos, nós fazemos uma idéia da Grécia, e Coelho Neto tem, certamente, uma para uso próprio.

            Eu quisera saber se Neto tem a concepção da beleza dos mármores obesos ou das estatuetas de Tanagra e se aplaudiria as vestes gregas, verdadeiras colchas de retalhos, com que os arqueólogos vestiram há pouco a "Djanira", de Saint‑Saens.

             É preciso acabar com essa história da Grécia e de imaginar que os gregos tinham uma única concepção da beleza e que foram belos, como os mármores que nos legaram.

            Convém não esquecer que tais mármores são imagens religiosas e sempre os homens fizeram os seus deuses mais belos, mesmo quando os fazem humanos.

            Mas, tudo isso não vem ao caso.

            Eu não me atrevo mesmo a dar opinião sobre a retirada das grades do Passeio Público. Hesito.

            Mas, uma coisa que ninguém vê e nota é a contínua derrubada de árvores velhas, vetustas fruteiras, plantadas há meio século, que a aridez, a ganância e a imbecilidade vão pondo abaixo com uma inconsciência lamentável.

            Nos subúrbios, as velhas chácaras, cheias de anosas mangueiras piedosos tamarineiros, vão sendo ceifados pelo machado impiedoso do construtor de avenidas

            Dentro em breve, não restarão senão uns exemplares dessas frondosas árvores, que foram plantadas mais com o pensamento nas gerações futuras, do que mesmo para atender às necessidades justas dos que lançaram as respectivas sementes à terra.

            Passando hoje, pelo Engenho Novo, vi que tinham derrubado um velho tarnarineiro que ensombrava urna rua sem trânsito nem calçamento.

            A venerável árvore não impedia coisa alguma e dava sombra aos pobres animais, que, sob o sol inclemente, arrastavam pelo calçamento pesadas "andorinhas", caminhões, que demandavam o subúrbio longínquo.

            Era uma espécie de oásis, para as pobres alimárias, que resignadamente ajudam a nossa vida.

Correio da Noite, 31‑12‑1914.

 

VESTIDOS MODERNOS

            Nunca foi da minha vocação ser cronista elegante; entretanto, às vezes, me dá na telha olhar os vestidos e atavios das senhoras e moças, quando venho à Avenida. Isto acontece principalmente nos dias em que estou sujo e barbado.

            A razão é simples. É que sinto uma grande volúpia em comparar os requintes de aperfeiçoamentos na indumentária, tanto cuidado de tecidos caros que mal encobrem o corpo das "nossas castas esposas e inocentes donzelas", como diz não sei que clássico que o Costa Rego citou outro dia, com o meu absoluto relaxamento.

            Há dias, saindo de meu subúrbio, vim à Avenida e à rua do Ouvidor e pus‑me a olhar os trajes das damas.

            Olhei, notei e concluí: estamos em pleno Carnaval.

            Uma dama passava com um casaco preto, muito preto, e mangas vermelhas; outra, tinha uma espécie de capote que parecia asas de morcego; ainda outra vestia uma saia patriótica verde e amarelo; enfim, era um dia verdadeiramente dedicado a Momo.

            Nunca fui ao clube dos Democráticos, nem ao dos Fenianos, nem ao dos Tenentes; mas estou disposto a apostar que em dias de bailes entusiásticos nesses templos de folia, os seus salões não se apresentam tão carnavalescos como a Avenida e adjacências nas horas que correm.

Careta, 22‑7‑1922.

 

O "MOAMBEIRO"

            Quando saio de casa e vou à esquina da Estrada Real de Santa Cruz, esperar o bonde, vejo bem a miséria que vai por este Rio de Janeiro.

            Moro há mais de 10 anos naquelas paragens e não sei por que os humildes e os pobres têm‑me na conta de pessoa importante, poderosa, capaz de arranjar empregos e solver dificuldades.

            Pergunta‑me um se deve assentar praça na Brigada, pois há oito meses não trabalha no seu ofício de carpinteiro; pergunta‑me outro se deve votar no Sr. Fulano; e, às vezes mesmo, consultam‑me sobre casos embaraçosos. Houve um matador de porcos que pediu a minha opinião sobre este caso curioso: se devia aceitar dez mil‑réis para matar o cevado do capitão M., o que lhe dava trabalho por três dias, com a salga e o fabrico de lingüiças; ou se devia comprar o canastra por cinqüenta mil‑réis e revendê‑lo aos quilos pela redondeza. Eu, que nunca fui versado em coisas de matadouro, olhei os Órgãos ainda fumarentos nestas manhãs de cerração e pensei que o meu destino era ser vigário de uma pequena freguesia.

            Ultimamente, na esquina, veio ao meu encontro um homem com quem conversei alguns minutos. Ele me contou a sua desdita com todo o vagar de popular.

            Era operário não sei de que ofício; ficara sem emprego, mas, como tinha um pequeno sítio lá para as bandas do Timbó e algumas economias, não se atrapalhou em começo. As economias foram‑se, mas ficou‑lhe o sítio, com as suas laranjeiras, com as suas tangerineiras, as suas bananeiras, árvore de futuro com a qual o Sr. Cincinato Braga, depois de salvar o café, vai salvar o Brasil. Notem bem: depois.

            Este ano foi particularmente abundante em laranjas e o nosso homem teve a feliz idéia de vendê‑las. Vendo, porém, que os compradores na porta não lhe davam o preço devido, tratou de valorizar o produto, mas sem empréstimo a 30%.

            Comprou um cesto, encheu‑o de laranjas e saiu a gritar:

            - Vai laranja boa! Uma a vintém!

            Foi feliz e pelo caminho apurou uns dois mil‑réis. Quando, porém, chegou a Todos os Santos, saiu‑lhe ao encontro a lei, na pessoa de um guarda municipal:

            - Que dê a licença?

            - Que licença?

            - Já sei, intimou o guarda. Você é "moambeiro". Vamos para a Agência.

            Tomaram‑lhe o cesto, as laranjas, o dinheiro e, a muito custo, deixaram‑no com a roupa do corpo.

            Eis aí como se protege a pomicultura.

Careta, 7‑8‑1915.

 

IMPRESSÕES DE LEITURA

 

O DESTINO DA LITERATURA

            Minhas senhoras e meus senhores:

            É a primeira vez que faço o que nós brasileiros convencionamos chamar conferência literária. Na forma que nós o naturalizamos é um gênero de literatura fácil e ao mesmo tempo difícil e isto porque ele não só exige de quem o cultiva saber nas letras, habilidade no tratar o assunto, elegância na exposição, mas também porque impõe outras qualidades ao conferencista, que, quase de nenhum valor, para o sucesso, nas demais modalidades de atividade literária, são, entretanto, capitais e indispensáveis para nele se obter um bom resultado.

            Pede tal gênero ao expositor desembaraço e graça distinção de pessoa, capricho no vestuário e - quem sabe lá? - beleza física e sedução pessoal. É o critério nacional de que tenho muitas provas nas torturas por que têm passado aqueles meus amigos e confrades aos quais Deus galardoou com tão raras virtudes.

            Explico‑me.

            O meu belo camarada Olegário Mariano canta as cigarras com voz melhor, menos estridente e mais suavemente amorosa do que aquela com que esses insetos o fazem quando inspirados pelos crepúsculos aloirados do estio. Ele possui, em alto grau, a segunda série de qualidades do bom conferencista, a que acima aludi. O auditório de suas conferências é monopolizado pelas moças e senhoras. Sabem o que lhe tem acontecido? Olegário Mariano vê‑se de tempos, a esta parte atrapalhado para guardar em casa, caixinhas, caixas, caixões de cigarras secas que as suas admiradoras, do Amazonas ao Prata, lhe mandam insistentemente. É um verdadeiro pesadelo.

            Um outro meu amigo, que é excepcionalmente lindo e louro, embora da Terra do Sol, belo "diseur" de sólidas conferências, nas salas do bom‑tom do Rio de Janeiro, foi proibido de continuar a fazê‑las, pela respectiva esposa, porque, em uma das vezes, esta não viu no auditório um só homem. Tudo eram moças e senhoras.

            Conhecedor desse feitio característico que tomaram entre nós, pelo menos no Rio de Janeiro, as conferências literárias, sempre que, para elas fui atraído, solicitado por isto ou por aquilo, por este ou por aquele, me eximi de experimentar fazê‑las, empregando para isto todos os subterfúgios, todas as excusas, desde a simples desculpa de doença até à fuga covarde diante do inimigo.

            É verdade que o Sr. Augusto de Lima, grande poeta nacional e parlamentar conceituado, faz conferências com sucesso; mas é que, se não tem ou não teve a beleza de moço, possui hoje a imaterial da idade madura. É verdade também que assisti conferências concorridas de Anatole France e do professor George Dumas, e não eram eles, lá para que se diga, homens bonitos e chiques. Em Anatole, achamos eu e alguns amigos um belo homem; mas não da beleza que fere as mulheres. E esta é a qualidade fundamental para se fazer uma excelente conferência, no julgar de todos ou de todas da cidade brasileira em que nasci.

            Não é só essa a opinião de Botafogo, de Copacabana ou Laranjeiras; ela é partilhada pelas minhas vizinhas do Méier e também pelas deidades do morro da Favela e da Gamboa. É opinião geral da gente carioca.

            Estão bem a ver que nunca quis fazer uma ou mais conferências, não por orgulho nem por pretender ser mais profundo do que os meus confrades que as fazem; mas, só e cinicamente, pelo fato de conhecer a minha cidade natal, de alto a baixo, e de estar convencido de que, no tocante a elas, palestras ou conferências, a minha organização literária tinha falhas.

            De resto, o discurso nunca foi o meu forte e desde bem cedo me convenci disso. Quando bem moço, quase menino, ainda imperfeitamente conhecedor da minha verdadeira personalidade, atrevia‑me a freqüentar festas familiares e quase sempre delas saia fortemente despeitado com os oradores dos brindes de aniversário, de batizado, de casamento ou mesmo com aquele eloqüente conviva que erguera solenemente sua taça (era um simples copo, em geral) ao belo sexo.

            Quase com lágrimas, a minha adolescência vaidosa tentava explicar por que razão a minha relativa superioridade sobre tais oradores não permitia fazer os brilharetes de eloqüência que eles faziam. Procurava então desculpar essa minha incapacidade para orador de sobremesa, anotando anedotas da vida de grandes homens que não conseguiram falar, perante qualquer auditório, uma única vez na sua existência.

            Newton era um deles, e Gomes de Sousa, o maior geômetra brasileiro, era outro.

            Muitos mais grandes homens tinha eu a meu lado e, com isso, me orgulhava; mas, naqueles tempos, era menino e é próprio de menino não achar grande diferença entre um simples mortal e um grande homem, quando não é o de também supor‑se um verdadeiro gênio.

            Tudo isto, entretanto, não vem ao caso; e só a título de amenidade pode ser explicável que aqui viesse aparecer, tanto mais que conferência literária não é bem discurso, nem parlamentar, nem doméstico‑festivo, nem judiciário, nem mesmo mitingueiro. É antes uma digressão leve e amável, despretensiosa, que dispensa os estos demostênicos, as soberbas metáforas de Rui Barbosa, arroubos outros e tropos de toda sorte, antigamente tão bem catalogados pela defunta retórica, os quais tanto assustavam os nossos avós, quando esquartejavam esse nobre mártir dos gramáticos e professores de português de todos os tempos, que é o grande Camões.

            Embora convencido disso, ainda sentia medo da conferência porque há nela um elemento que a relaciona com o discurso, sem o qual ambos não teriam existência: é o auditório.

            Quando se publica um livro, um artigo, em uma revista ou num jornal, a crítica fica longe e se ela se manifesta, é através de artigo ou de carta, onde a desaprovação vem filtrada, quando o censor é educado, através de fórmulas de polidez; mas, quando se fala, sobre este ou aquele assunto, diretamente ao público, um esto de impaciência mal sopitado, uma manifestação de cansaço, um cochicho, enfim, o menor sinal de reprovação do auditório desnorteia quem expõe e se atreveu a amolar pessoas de boa vontade e que tem mais que fazer do que ouvir uma xaropada qualquer. No presente caso, desde já vos aviso, não tenham medo; serei breve.

            Tenho, para mim, que, mais do que outros motivos, foi este pavor do auditório que me fez até hoje fugir às conferências. Afinal, este gênero de literatura e uma arte de sociedade, - que fica um pouco acima do jogo de prendas e muito abaixo de um step qualquer; e eu, apesar de ser um sujeito sociável e que passo, das vinte e quatro horas do dia, mais de quatorze na rua, conversando com pessoas de todas as condições e classes, nunca fui homem de sociedade: sou um bicho‑do‑mato. Certas delicadezas de sofrer me acobardam mais diante dela do que os calabouços da ilha das Cobras; e uma rebeldia, aliás inocente, da minha parte contra ela, me põe sempre canhestro quando sou obrigado a mergulhar no seu seio.

            Tem sido para mim desvantajoso esse proceder, pois, conforme me hão dito confrades autorizados, é a palestra aliteratada o mais proveitoso gênero de literatura que se possa cultivar no Brasil. É, como já vos disse, a primeira que faço e talvez seja a última, porque estou encerrando o que prontamente se chama carreira literária. Venço agora, todos os temores, e a muito custo; certamente fui levado a isto, por ter pisado em terras de iniciativa e de audácia, qualidades que este próspero município de São Paulo vai me emprestar por instantes, animando‑me a falar‑vos, cônscio da minha obscuridade e a pesar da minha natural timidez.

            Muitas vezes todos vós que me ouvis, haveis de formular intimamente, de vós para vós mesmos, ao topardes, em um jornal ou em uma revista, com um soneto ou um artigo, perguntas como estas: para que serve "isto"? por que se honram os homens que fazem essas coisas, quando, as mais das vezes, se as suas vidas não são cheias de torpes episódios, são, entretanto, as de verdadeiros vagabundos? como é que todos lhes guardam os nomes e muitos se honram com a sua amizade? como é que nós os cercamos de honrarias, de estátuas, de bustos, e nos esquecemos do inventor da utilíssima máquina de costura? em que pode a Literatura, ou a Arte, contribuir para a felicidade de um povo, de uma nação, da humanidade, enfim?

            São perguntas naturais e espontâneas que não há um homem que as não tenha feito no seu fôro íntimo e que eu mesmo as fiz, quando, há cerca de vinte anos, me pus juvenilmente a escrever para o público, em revistas, e jornalecos que nasciam, eram lidos e morriam na rua do Ouvidor, não em toda ela, porque uma parte dessa célebre rua, nas proximidades do velho Mercado, mais se ocupa em coisas sérias que dizem respeito ao nosso estômago, desprezando tais caprichos literários, a menos que eles se traduzam em fartos ágapes, no famoso Hotel do Minho. Às vezes, isto acontece e a literatura e os literatos ficam valorizados no seio da finança cautelosa.

            Tais perguntas, meus senhores e senhoras, constituem em súmula o resumo do problema da importância e do destino da Literatura que se contém no da Arte em geral. Em redor dele, como todos vós sabeis, muito se há debatido e as mais contrárias teorias tem sido construídas, para resolvê‑lo.

            Filósofos e moralistas, sociólogos e doutrinários de toda a sorte têm‑no discutido. Muitos, para condenar a Arte, em conjunto, ou tão‑somente a Literatura; outros, para exaltá‑la. Platão que, com o ser grande filósofo, não deixava de ser também um grande poeta, não admitia artistas do verso na sua República ideal.

            O debate a esse respeito não está encerrado e nunca ficará encerrado enquanto não concordarem os sábios e as autoridades no assunto que o fenômeno artístico é um fenômeno social e o da Arte é social, para não dizer sociológico.

            Como os senhores sabem perfeitamente, entre as muitas ciências ocultas e destinadas a iniciados que ultimamente tem surgido, há uma que pretende ser a da teoria geral da Arte.

            Segundo Tolstoi, na sua sólida e acessível obra - O que é a arte? - o fundador dessa absconsa ciência foi o filósofo alemão Baumgarten, que a definia como tendo por objeto o conhecimento da Beleza, sendo que esta é o perfeito ou o absoluto, percebido pelos sentidos e tem por destino deleitar e excitar este ou aquele desejo nosso.

            Uma porção de definições da ciência estética se baseia, como esta, na beleza, tendo cada uma delas, por sua vez, um determinado critério do que seja Belo, do que seja Beleza.

            Deixo de citar muitas, entre as quais a de Hegel, que é muito interessante, para não me tornar fastidioso, tanto mais que estou longe dos meus livros e dos meus apontamentos; mas, se algum dos ouvintes quiser ter o trabalho de ler muitas delas, pode procurá‑las no livro de Tolstoi que citei, e de que, como os de Taine, de Guyau, de Brunetière e outros, me sirvo aqui, com mais ou menos liberdade, em virtude de não tê‑los à mão.

            Essas definições de arte, em que se inclui a Literatura, sugerem logo a interrogação: o que é a Beleza? Eis aí uma pergunta que às senhoras e às senhoritas, por estarem muito familiarizadas, com o assunto da indicação, parecerá ociosa; mas que, para os filósofos,

os abstratores de quinta‑essência, os estetas profundos que doutrinam sobre o Amor e o Belo sem nunca terem amado, para essa multidão de senhores sombrios, relaxados e distraídos, que fogem das recepções e dos chás dançantes; enfim, para toda essa gente livresca constitui tal pergunta objeto de apaixonadas discussões que, às vezes, baixam até à troca de soezes insultos, enquanto a verdadeira Beleza foge deles com a velocidade do aeroplano.

            Cada um desses doutos, minhas senhoras e meus senhores, explica de seu modo o que seja Beleza e cada um deles o faz mais incompreensivelmente, mais rebarbativamente, mais nevoentamente. Os alemães mais do que os ingleses, e os franceses mais do que aqueles, porque, segundo Tolstoi, quando a tradicional clareza dos franceses é fascinada pela proverbial névoa germânica, aquela gabada qualidade gaulesa capricha em se fazer densa, mais densa ainda do que, em geral, a neblina germânica.

            Não os seguirei nas suas nebulosidades de procurarei um autor claro, profundo e autorizado, para responder à pergunta que angustia os filósofos e que a metade do gênero humano, talvez, segundo a opinião geral, é a mais interessante parte dele, não suspeita até que possa ser formulada.

            A Beleza, para Taine, é a manifestação, por meio dos elementos artísticos e literários, do caráter essencial de uma idéia mais completamente do que ela se acha expressa nos fatos reais.

            Portanto, ela já não está na forma, no encanto plástico, na proporção e harmonia das partes, como querem os helenizantes de última hora e dentro de cuja concepção muitas vezes não cabem as grandes obras modernas e, mesmo, algumas antigas.

            Não é um caráter extrínseco da obra, mas intrínseco, perante o qual aquele pouco vale. É a substância da obra, não são as suas aparências.

            Sendo assim, a importância da obra literária que se quer bela sem desprezar os atributos externos de perfeição de forma, de estilo, de correção gramatical, de ritmo vocabular, de jogo e equilíbrio das partes em vista de um fim, de obter unidade na variedade; uma tal importância, dizia eu, deve residir na exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta na vida.

            É, em outras palavras, o parecer de Brunetière.

            Tomo como exemplo, a fim de esclarecer esse pensamento, um livro famoso, hoje universal - Crime e Castigo, de Dostoiewsky - que deveis conhecer.

            Trata‑se de um estudante que curte as maiores misérias em São Petersburgo. Lembrem‑se bem que se trata de miséria russa e de um estudante russo.

            As que passa não o fazem sofrer tanto; mas, por sofrê‑las, compreende melhor as dos outros. Isto leva‑o a meditar teimosamente sobre os erros da nossa organização social. Obrigado pela sua vida miserável, vem a conhecer uma velha sórdida, sem alma e sem piedade, que emprestava níqueis sobre objetos de pequeno valor intrínseco, cobrando juros despropositados.

            A velha onzenária não tem o mínimo remorso de explorar a miséria dos que a procuram.

            Relíquias de família, ensopadas de ternuras de mãe e afetos de irmãs; fetiches de amor, enriquecidos de beijos de noivas e de amantes, tudo ela recebe, dando miseráveis vinténs para recebê‑los triplicados, no fim de uma quinzena e, por muito favor, de um mês, sabendo perfeitamente que os objetos serão resgatados, porque, neles, há muito da alma e dos sonhos dos que os levam a penhor.

            O estudante chama‑se Raskolnikoff. É bom, é honesto, é inteligente, tanto assim que o sacodem idéias para acabar com as misérias dos homens. Mas... precisa dinheiro; ele não o tem. Precisa dinheiro para estudar, para transmitir as suas idéias aos outros, por meio de livros, jornais e revistas. Como há de ser? Eis o problema...

            Um dia, Raskolnikoff, indo em transação à casa da tal velha, percebe que ela tem na gaveta uma grossa quantia em notas de banco. A descoberta fere‑o profundamente; a ignóbil onzenária possui naturalmente o dinheiro de que ele precisa para realizar, para lançar a sua obra generosa que fará a felicidade de muitos, senão a de todo o gênero humano; mas como se apoderar dele?

            Furtá‑lo? Não podia porque a imunda agiota não arredava o pé da pocilga de seus imundíssimos negócios. Como obtê‑lo, então? Só matando‑a. É um crime; mas - pergunta ele de si para si - todos os benfeitores da humanidade e os seus grandes homens em geral, diretamente ou indiretamente, não praticaram ou não autorizaram a prática de crimes, para a plena realização de sua obra? Napoleão não foi um deles e, como ele, tantos outros?

            Ocorrem raciocínios dessa natureza a Raskolnikoff; e ele conclui que, possuidor de um ideal ‑ generoso e alto, tinha, em face dele e dos augustos destinos da humanidade, direito a matar aquela vilíssima velha, a qual, tendo deixado apagar‑se‑lhe na consciência todos os nobres sentimentos humanos, como que se havia posto fora da espécie e se feito menos que um verme asqueroso.

            Mata‑a, a ela e também à irmã, que entrava quando ele acabava de perpetrar o assassínio. Mata a ambas da forma mais cruel e horrorosa que se pode imaginar, com o furor homicida de bandido consumado. Mata as duas mulheres com uma embotada machadinha de rachar lenha que encontrara no quintal do casarão da sua residência, pois nem dinheiro tivera para comprar outra arma mais própria e capaz.

            Depois de consumado o crime, é em vão que procura fugir dele. O testemunho da consciência o persegue sempre e Raskolnikoff se torna, por assim dizer, o remorso dele mesmo. Quer o castigo; não pode sentir‑se bem na vida sem o sofrer, porque as suas relações com o resto da humanidade já são outras e ele se sente perfeitamente fora da comunhão humana, cujos laços ele mesmo rompera.

            Nisso tudo que é, resumida e palidamente, a obra do grande escritor russo, não há nada de comum com o que os escritores mais ou menos helenizantes chamam belo; mas, se assim é, onde está a beleza dessa estranha obra? - pergunto eu.

            Está na manifestação sem auxílio dos processos habituais do romance, do caráter saliente da idéia. Não há lógica nem rigor de raciocínio que justifiquem perante a nossa consciência o assassinato, nem mesmo quando é perpetrado no mais ínfimo e repugnante dos nossos semelhantes e tem por destino facilitar a execução de um nobre ideal; e ainda mais no ressumar de toda a obra que quem o pratica, embora obedecendo a generalizações aparentemente verdadeiras, executado que seja o crime, logo se sente outro - não é ele mesmo.

            Mas esta pura idéia, só como idéia, tem fraco poder sobre a nossa conduta, assim expressa sob essa forma seca que os antigos chamavam de argumentos e os nossos Camões escolares dessa forma ainda chamam aos resumos, em prosa ou verso, dos cantos dos Lusíadas. É preciso que esse argumento se transforme em sentimento; e a arte, a literatura salutar tem o poder de fazê‑lo, de transformar a idéia, o preceito, a regra, em sentimento; e, mais do que isso, torná‑lo assimilável à memória, incorporá‑lo ao leitor, com auxílio dos seus recursos próprios, com auxílio de sua técnica.

            Além. É verificado por todos nós que quando acabamos de ler um livro verdadeiramente artístico, convencemo‑nos de que já havíamos sentido a sensação que o outro nos transmitiu, e pensado no assunto.

            O que não soubemos, dizem uns, foi escrever "a história". Estes são os modestos; mas os pretensiosos dizem logo: "Isto! Também eu fazia!" Tal fato se dá mais comumente com as grandes obras de que com as medíocres. Toda a gente se julga capaz de escrever o D. Quixote, o Robinson, as Viagens de Gulliver, o Crainquebille, etc.; mas poucos se afirmam com aptidões para alinhavar o Rocambole, o Nick Carter ou outro qualquer romance‑folhetim. Passemos além: mais do que nenhuma outra arte, mais fortemente possuindo essa capacidade de sugerir em nós o sentimento que agitou o autor ou que ele simplesmente descreve, a arte literária se apresenta com um verdadeiro ‑poder de contágio que a faz facilmente passar de simples capricho individual, em traço de união, em força de ligação entre os homens, sendo capaz, portanto, de concorrer para o estabelecimento de uma harmonia entre eles, orientada para um ideal imenso em que se soldem as almas, aparentemente mais diferentes, reveladas, porém, por elas, como semelhantes no sofrimento da imensa dor de serem humanos.

            É por aí, segundo a minha humilde opinião, que devemos orientar a nossa atividade literária e não nos ideais arcaicos e mortos, como este, variável e inexato, que a nossa poesia, tanto velha, como nova, tem por hábito atribuir à Grécia. Insisto neste ponto porque ele me apaixona, tanto assim que, aqui e ali, sempre que posso, tenho combatido esse ideal grego que anda por aí.

            Em geral, nós, os brasileiros, pouco sabemos de arqueologia antiga; estamos na infância, e nem lhe acompanhamos os estudos feitos nessa língua; mas, quem curiosamente os segue, pode concluir, com rápidas leituras, que nada autoriza a admitirmos um certo e exato ideal de arte helênica. Em outra parte, já tive ocasião de observar isto, nas seguintes palavras:

            "Sainte‑Beuve disse algures que, de cinqüenta em cinqüenta anos, fazíamos da Grécia uma idéia nova. Tinha razão.

            Ainda há bem pouco o Sr. Teodoro Reinach, que deve entender bem dessas coisas de Grécia, vinha dizer que Safo não era nada disso que nós dela pensamos; que era assim como Mme. de Sevigné. Devia‑se interpretar a sua linguagem misturada de fogo, no dizer de Plutarco, como sáfica séria, em relação à mulher, o que o diálogo de Platão é em relação ao homem. Houve escândalo.

            Não é este o único detalhe, entre muitos, para mostrar de que maneira podem variar as nossas idéias sobre a velha Grécia.

            Creio que, pela mesma época em que o Sr. Reinach lia, na sessão das cinco Academias de França reunidas, o resultado das suas investigações sobre Safo, se representou na Ópera, de Paris, um drama lírico de Saint‑Saens - Djanira. Sabem os leitores (sic) como vinham vestidos os personagens? Sabem? Com o que nós chamamos nas casas das nossas famílias pobres - colchas de retalhos. Li isto em um folhetim do Sr. P. Lalo, no Temps.

            Esta modificação no trajar tradicional dos heróis gregos, pois se tratava deles no drama, obedecia a injunções das últimas descobertas arqueológicas. O meu simpático missivista (sic) pode ver por aí como a sua Grécia é, para nós, instável.

            Em matéria de escultura grega, podia eu, com o muito pouco que sei sobre ela, epilogar bastamente. É suficiente lembrar que era regra admitida pelos artistas da Renascença que, de acordo com os preceitos gregos, as obras esculturais não podiam ser pintadas.

            É que eles tinham visto os mármores gregos lavados pelas chuvas; entretanto, hoje, segundo Max Collignon, está admitido que as frisas do Pártenon eram coloridas.

            A nossa Grécia varia muito e o que nos resta dela são ossos descarnados, insuficientes talvez para recompô‑la como foi em vida, e totalmente incapazes para nos mostrar ela viva, a sua alma, as idéias que a animavam, os sonhos que queria ver realizados na Terra, segundo os seus pensamentos religiosos.

            Atemo‑nos a ela, assim variável e fugidia, é impedir que realizemos o nosso ideal, aquele que está na nossa consciência, vivo no fundo de nós mesmos, para procurar a beleza em uma carcaça cujos ossos já se fazem pó.

            Ela não nos pode mais falar, talvez nem mesmo balbuciar, e o que nos tinha a dar já nos deu e vive em nós inconscientemente."

            Mesmo que a Grécia - o que não é verdade - tivesse por ideal de arte realizar unicamente a beleza plástica, esse ideal não podia ser o nosso, porque, com o acúmulo de idéias que trouxe o tempo, com as descobertas modernas que alargaram o mundo e a consciência do homem, e outros fatores mais, o destino da Literatura e da Arte deixou de ser unicamente a beleza, o prazer, o deleite dos sentidos, para ser coisa muito diversa.

            Tolstoi, no livro de que me venho servindo e a cujo título mais atrás aludi, critica muito justamente semelhante opinião, com as seguintes palavras:

            "Quando se quer definir todo um ramo de atividade humana, é necessário procurar‑lhe o seu sentido e o seu alcance. Para isto fazer, é primeiramente indispensável estudar tal atividade em si mesma, na dependência de suas causas e efeitos, e não exclusivamente nas suas relações com os prazeres que ela nos proporciona.

            Ainda mais:

            "Se dissermos que o fim de uma certa atividade humana é unicamente o prazer, e só sobre ele fizermos repousar a nossa definição, será ela evidentemente falsa. É o que se dá com a definição de Arte assim concebida. Com efeito; examinando‑se as questões de nutrição, por exemplo, ninguém se atreverá a afirmar que o prazer de comer é a função principal da nutrição. Toda a gente compreende que a satisfação do nosso paladar não pode servir de base à nossa definição de mérito dos nossos alimentos."

            Há muitos que são agradáveis, digo agora eu, que não são nutritivos, antes são prejudiciais à economia do nosso organismo; e há outros que não são lá muito saborosos, mas que preenchem perfeitamente o fim da nutrição, que é o de conservar a vida do nosso corpo.

            Ver o fim, o destino de qualquer arte no prazer que ela nos proporciona, é imitar os homens de uma moralidade primitiva, como os selvagens, que não vêem na alimentação outro alcance que não seja o da satisfação agradável que lhes proporciona a ingestão de alimentos.

            Guyau, num curioso livro, tão profundo quanto claro - A Arte sob o ponto de vista sociológico - ensinou "que beleza não é uma coisa exterior ao objeto: que ela não pode ser admitida como uma excrescência parasítica na obra de arte; ela é, no fim de contas, a verdadeira floração da planta em que aparece

            A arte, incluindo nela a literatura, continua Guyau "e a expressão da vida refletida e consciente, e evoca  em nós ao mesmo tempo, a consciência mais profunda da existência, os sentimentos mais elevados, os pensamentos mais sublimes. Ela ergue o homem de sua vida pessoal à vida universal, não só pela sua participação nas idéias e crenças gerais, mas também ainda pelos sentimentos profundamente humanos que exprime".

            Quer dizer: o homem, por intermédio da Arte, não fica adstrito aos preceitos e preconceitos de seu tempo, de seu nascimento, de sua pátria, de sua raça; ele vai além disso, mais longe que pode, para alcançar a vida total do Universo e incorporar a sua vida na do Mundo.

            São ainda dele, de Jean Marie Guyau, o genial filósofo, esteta, moralista e poeta, morto prematuramente aos trinta e três anos; são dele, meus senhores e minhas senhoras, as palavras desta formosa divisa:

            "Ama tudo para tudo compreender; tudo compreender para tudo perdoar."

            Mais do que qualquer outra atividade espiritual da nossa espécie, a Arte, especialmente a Literatura, a que me dediquei e com que me casei; mais do que ela nenhum outro qualquer meio de comunicação entre os homens, em virtude mesmo do seu poder de contágio, teve, tem e terá um grande destino na nossa triste Humanidade.

            Os homens só dominam os outros animais e conseguem em seu proveito ir captando as forças naturais porque são inteligentes. A sua verdadeira força é a inteligência; e o progresso e o desenvolvimento desta decorrem do fato de sermos nós animais sociáveis, dispondo de um meio quase perfeito de comunicação, que é a linguagem, com a qual nos é permitido somar e multiplicar a força de pensamento do indivíduo, da família, das nações e das raças, e, até, mesmo, das gerações passadas, graças à escrita e à tradição oral que guardam as cogitações e conquistas mentais delas e as ligam às subseqüentes.

            Portanto, meus senhores, quanto mais perfeito for esse poder de associação; quanto mais compreendermos os outros que nos parecem, à primeira vista, mais diferentes, mais intensa será a ligação entre os homens, e mais nos amaremos mutuamente, ganhando com isso a nossa inteligência, não só a coletiva como a individual. A arte, tendo o poder de transmitir sentimentos e idéias, sob a forma de sentimentos, trabalha pela união da espécie; assim trabalhando, concorre, portanto, para o seu acréscimo de inteligência e de felicidade.

            Ela sempre fez baixar das altas regiões, das abstrações da Filosofia e das inacessíveis revelações da Fé, para torná‑las sensíveis a todos, as verdades que interessavam e interessam à perfeição da nossa sociedade; ela explicou e explica a dor dos humildes aos poderosos e as angustiosas dúvidas destes, àqueles; ela faz compreender, umas às outras, as almas dos homens dos mais desencontrados nascimentos, das mais diversas épocas, das mais divergentes raças; ela se apieda tanto do criminoso, do vagabundo, quanto de Napoleão prisioneiro ou de Maria Antonieta subindo à guilhotina; ela, não cansada de ligar as nossas almas, umas às outras, ainda nos liga à árvore, à flor, ao cão, ao rio, ao mar e à estrela inacessível; ela nos faz compreender o Universo, a Terra, Deus e o Mistério que nos cerca e para o qual abre perspectivas infinitas de sonhos e de altos desejos.

            Fazendo‑nos assim tudo compreender; entrando no segredo das vidas e das coisas, a Literatura reforça o nosso natural sentimento de solidariedade com os nossos semelhantes, explicando‑lhes os defeitos, realçando‑lhes as qualidades e zombando dos fúteis motivos que nos separam uns dos outros. Ela tende a obrigar a todos nós a nos tolerarmos e a nos compreendermos; e, por aí, nós nos chegaremos a amar mais perfeitamente na superfície do planeta que rola pelos espaços sem fim. O Amor sabe governar com sabedoria e acerto, e não é à toa que Dante diz que ele move o Céu e a alta Estrela.

            Atualmente, nesta hora de tristes apreensões para o mundo inteiro, não devemos deixar de pregar, seja como for, o ideal de fraternidade, e de justiça entre os homens e um sincero entendimento entre eles.

            E o destino da Literatura é tornar sensível, assimilável, vulgar esse grande ideal de poucos a todos, para que ela cumpra ainda uma vez a sua missão quase divina.

            Conquanto não se saiba quando ele será vencedor; conquanto a opinião externada em contrário cubra‑nos de ridículo, de chufas e baldões, o heroísmo dos homens de letras, tendo diante dos olhos o exemplo de seus antecessores, pede que todos os que manejam uma pena não esmoreçam no propósito de pregar esse ideal. A literatura é um sacerdócio, dizia Carlyle.

            Que me importa o presente! No futuro é que está a, existência dos verdadeiros homens. Guyau, a quem não me canso de citar, disse em uma de suas obras, estas palavras que ouso fazê‑las minhas:

            "Porventura sei eu se viverei amanhã, se viverei mais uma hora, se a minha mão poderá terminar esta linha que começo? A vida está, por todos os lados, cercada pelo Desconhecido. Todavia executo, trabalho, empreendo; e em todos os meus atos, em todos os meus pensamentos, eu pressuponho este futuro com o qual nada me autoriza a contar. A minha atividade excede em cada minuto o instante presente, estende‑se ao futuro. Eu consumo a minha energia sem recear que este consumo seja uma perda estéril, imponho‑me privações, contando que o futuro as resgatará - e sigo o meu caminho. Esta incerteza que me comprime de todos os lados equivale, para mim, a uma certeza e torna possível a minha liberdade - é o fundamento da moral especulativa com todos os risos. O meu pensamento vai adiante dela, com a minha atividade; de prepara o mundo, dispõe do futuro. Parece‑me que sou senhor do infinito, porque o meu poder não é equivalente a nenhuma quantidade determinada; quanto mais trabalho mais espero.

            Possam estas palavras de grande fé; possam elas na sua imensa beleza de força e de esperança atenuar o mau efeito que vos possa ter causado as minhas palavras desenxavidas. É que eu não soube dizer com clareza e brilho o que pretendi; mas uma coisa garanto‑vos: pronunciei‑as com toda a sinceridade e com toda a honestidade de pensar.

            Talvez isso faça que eu mereça perdão pelo aborrecimento que vos acabo de causar.

Revista Sousa Cruz, ns. 58‑59, outubro e novembro de 1921.

 

LIVROS

            Recebo‑os às pencas, daqui e de acolá

            O meu desejo era dar notícia deles, quer fosse nesta ou naquela revista; mas também o meu intuito era noticiá‑los honestamente, isto é, depois de tê‑los lido e refletido sobre o que eles dizem. Infelizmente não posso fazer isso com a presteza que a ansiedade dos autores pede. A minha vida, se não é afanosa, é tumultuária e irregular, e a vou levando assim como Deus quer. Há mais de um mês - vejam só! - recebi o romance de meu amigo Ranulfo Prata - Dentro da Vida - e ainda não escrevi sobre ele uma linha.

            Tenho também, há bastante tempo, de outro amigo, Jackson de Figueiredo, uma obra sua recente - Pascal e a Inquietação moderna - da qual ainda não pude falar como ela merece.

            Entretanto os livros chovem sobre mim - coisa que muito me honra, mas com a qual me vejo atrapalhado, devido à falta de método na minha vida.

            Há dias veio ter‑me às mãos um volumezito editado em Pernambuco, no Recife. Era assinado por uma senhora: D. Débora do Rego Monteiro, e tinha por título - Chico Ângelo. Trata‑se de contos e curioso pus‑me a lê‑lo com açodamento. Encantou‑me pela sua simplicidade, pela despretensão no escrever da autora - coisa rara em mulher - e pela maravilhosa meiguice em tratar os personagens e a paisagem; mas fi‑lo de bonde, de forma que não é uma leitura meditada, como a obra de D. Débora requeria; mas foi uma leitura cheia de simpatia e boa vontade.

            A ilustre autora há de desculpar‑me isso, mas quando se lembrar que a vida tem terríveis imperativos...

Careta, 12‑8‑1922.

 

LITERATURA MILITANTE

            Conheci O Sr. Carlos Malheiro (eu queria por o s) há dias, por apresentação de João Luso.

            Tive a mais bela impressão e o Sr. Carlos M. Dias pode ficar certo de que a idéia que eu fazia dele era muito diferente.

            Acreditava‑o um literato janota, desses das montras para uso das damas alambicadas; e o notável romancista que aprecio e admiro, surgiu‑me como a pessoa mais simples deste mundo.

            Falou‑se muito naturalmente e o homem que eu pensava ter todo o escrúpulo em trocar quatro palavras comigo, em plena via pública, pareceu‑me querer que me demorasse com ele a conversar. Agradecido.

            A vida tem dessas coisas; e, diz o povo, que não há como os homens conversarem, para se entenderem.

            Espero, justamente, que ele não leve a mal uns reparos que vou fazer sobre um seu recente artigo no O País intitulado - À margem do último livro de Anatole France.

            O que me feriu logo nele foi o primeiro período. Diz o autor da Paixão de Maria do Céu:

            "A aura gloriosa e nos nossos tempos incomparável de Anatole France servirá grandemente aos historiadores futuros para comporem uma opinião judiciosa sobre o bom gosto das élites sociais nossas contemporâneas e digo sociais, porque seria prova de inépcia imaginar que as centenas de milhares de volumes das suas obras foram exclusivamente adquiridas pelos literatos aprendizes, militantes e honorários."

            Pelo que aí diz o Sr. Malheiro Dias não sei por que despreza os aprendizes literatos, militantes e honorários.

            Como eu sempre falei em literatura militante, se bem me julgando aprendiz, mas não honorário, pois já tenho publicado livros, tomei o pião na unha.

            A começar por Anatole France, a grande literatura tem sido militante.

            Não sei como o Sr. Malheiro Dias poderá classificar a Ilha dos Pingüins, os Bergeret, e mais alguns livros do grande mestre francês, senão dessa maneira.

            Eles nada têm de contemplativos, de plásticos, de incolores. Todas, ou quase todas as suas obras, se não visam a propaganda de um credo social, tem por mira um escopo sociológico. Militam.

            Isto em geral dentro daquele preceito de Guyau que achava na obra de arte o destino de revelar umas almas às outras, de restabelecer entre elas uma ligação necessária ao mútuo entendimento dos homens.

            Eu chamo e tenho chamado de militantes, às obras de arte que têm semelhante escopo.

            Quando disse que o Sr. Júlio Dantas ou o Sr. Antero de Figueiredo não mereciam esse "engagement" que estamos tendo por eles é que eles não mereciam, no Brasil, a influência que vão tendo.

            O Brasil é mais complexo, na ordem social econômica, no seu próprio destino, do que Portugal.

            A velha terra lusa tem um grande passado. Nós não temos nenhum; só temos futuro. E é dele que a nossa literatura deve tratar, da maneira literária. Nós nos precisamos ligar; precisamos nos compreender uns aos outros; precisamos dizer as qualidades que cada um de nós tem, para bem suportarmos o fardo da vida e dos nossos destinos. Em vez de estarmos aí a cantar cavalheiros de fidalguia suspeita e damas de uma aristocracia de armazém por atacado, porque moram em Botafogo ou Laranjeiras, devemos mostrar nas nossas obras que um negro, um índio, um português ou um italiano se podem entender e se podem amar, no interesse comum de todos nós.

            A obra de arte, disse Taine, tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. Eles estão aí, à mão, para nós fazermos grandes obras de arte.

            Eu me atrevo a lembrar ao Sr. Malheiro Dias que a grande força da humanidade é a solidariedade.

            Hoje, quando as religiões estão mortas ou por morrer, o estímulo para elas é a arte. Sendo assim, eu como literato aprendiz que sou, cheio dessa concepção, venho para as letras disposto a reforçar esse sentimento com as minhas pobres e modestas obras.

            O termo "militante" de que tenho usado e abusado, não foi pela primeira vez empregado por mim.

            O Eça, por quem não cesso de proclamar a minha admiração, empregou‑o, creio que nas Prosas Bárbaras, quando comparou o espírito da literatura francesa com o da portuguesa.

            Pode‑se lê‑lo lá e lá o encontrei. Ele mostrou que desde muito as letras francesas se ocuparam com o debate das questões da época, enquanto as portuguesas limitavam‑se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da idealização da natureza Aquelas eram - militantes, enquanto estas eram contemplativas e de paixão.

            Creio que temo não amar, tendo por ideal de arte essa concepção. Brunetière diz em um seu estudo sobre a literatura que ela tem por fim interessar, pela virtude da forma, tudo o que pertence ao destino de todos nós; e a solidariedade humana, mais do que nenhuma outra coisa, interessa o destino da humanidade.

            Um doido que andou na moda e cujo nome não cito, proclamou a sua grande admiração pelos leões, tigres e jaguares; mas, à proporção que essas feras desaparecem, os homens, os bois e os carneiros conquistam o mundo com a sua solidariedade entre eles.

            É de Fouillée a segunda parte do período.

            Ligeiramente, fazendo todas as citações de memória, é o que posso dizer sobre o que seja literatura militante.

A.B.C., 7‑9‑1918.

 

LITERATURA E POLÍTICA

            Conforme resolveram os chefes políticos do Maranhão, o nome do Sr. Coelho Neto não foi incluído na lista dos que, por conta e risco deles, devem ser aproximadamente sufragados nas urnas, deputados federais por aquele Estado. A coisa tem levantado tanta celeuma nos arraiais literários, que me julgo obrigado a tratar do escandaloso acontecimento, pedindo que não vejam nestas considerações a mínima hostilidade ao conhecido escritor.

            Por mais que não queiram, eu também sou literato e o que toca a coisas de letras não me é indiferente. Vamos ao que serve.

            Não descubro razão para tanto barulho. O Sr. Coelho Neto como literato‑político, fez "forfait". Isto é explicável muito facilmente para quem conhece, mesmo ligeiramente, as suas obras, e nelas descobre as suas tendências literárias e espirituais.

            O Sr. Coelho Neto, que surgiu para as letras nas últimas décadas do século XIX, não se impressionou com as mais absorventes preocupações contemporâneas que lhe estavam tão próximas.

            As cogitações políticas, religiosas, sociais, morais, do seu século, ficaram‑lhe inteiramente estranhas. Em tais anos, cujo máximo problema mental, problema que interessava todas as inteligências de quaisquer naturezas que fossem, era uma reforma social e moral, o Sr. Neto não se deteve jamais em examinar esta trágica angústia do seu tempo, não deu para o estudo das soluções apresentadas um pouco do seu grande talento, nem mesmo tratou de conhecer o positivismo que lhe podia abrir grandes horizontes. Tenho para mim que o Sr. Coelho Neto é daqueles a afirmar que Clotilde de Vaux foi uma rameira ...

            O grande romancista, em religião, ficou num corriqueiro deismo ou, talvez, em um catolicismo singular e oportunista que, muito curiosamente, o faz orgulhar‑se, quando é excomungado por um arcebispo do Chile (vide Magda) e exultar, quando uma outra sua obra recebe gabos da mais alta autoridade eclesiástica do Rio de Janeiro.

            Em um século de crítica social, de renovação latente, das bases das nossas instituições; em um século que levou a sua análise até os fundamentos da geometria, que viu pouco a pouco desmontar‑se o mecanismo do Estado, da Legislação, da Pátria, para chegar aos seus elementos primordiais de superstições grosseiras e coações sem justificações nos dias de hoje; em um século deste, o Sr. Coelho Neto ficou sendo unicamente um plástico, um contemplativo, magnetizado pelo Flaubert da Mme. Bovary, com as suas chinesices de estilo, querendo como os Goncourts, pintar com a palavra escrita, e sempre fascinado por uma Grécia que talvez não seja a que existiu mas, mesmo que fosse, só nos deve interessar arqueologicamente.

            O mundo é hoje mais rico e mais complexo...

            Glorioso, e muito justamente pelo seu poder verbal; tendo conseguido, por fás e por nefas, a simpatia ativa e incansável de gregos e troianos - os políticos seus conterrâneos, deram‑lhe, durante duas legislaturas, uma cadeira de deputado pelo seu Estado natal. Se ele estivesse ao par dos males do seu tempo, com o talento que tem, e o prestígio do seu nome, poderia ter apresentado muita medida útil e original, embora os seus projetos morressem nas pastas das comissões. Mas, nada fez; manteve‑se mudo, só dando um ar de sua graça para justificar votos de congratulações a Portugal, por isto ou por aquilo, empregando nos discursos vocábulos senis ou caducos. O deputado ficou sendo o romancista que só se preocupou com o estilo, com o vocabulário, com a paisagem, mas que não fez do seu instrumento artístico um veículo de difusão das grandes idéias do tempo, em quem não repercutiram as ânsias de infinita justiça dos seus dias; em quem não encontrou eco nem revolta o clamor das vítimas da nossa brutalidade burguesa, feita de avidez de ganho, com a mais sinistra amoralidade para também edificar, por sua vez, uma utopia ou ajudar a solapar a construção social que já encontrou balançando.

            Em anos como os que estão correndo, de uma literatura militante, cheia de preocupações políticas, morais e sociais, a literatura do Sr. Coelho Neto ficou sendo puramente contemplativa, estilizante, sem cogitações outras que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses embotados pelo dinheiro. Indo para a Câmara, onde não podia ser poético ao jeito do Sr. Fausto Ferraz, porque o Sr. Neto tem senso comum; onde também não podia ser político à guisa do Sr. Urbano Santos, porque o Sr. Neto tem talento, vergonha e orgulho de si mesmo, do seu honesto trabalho e da grandeza da sua glória; indo para a Câmara, dizia, o grande romancista sem estar saturado dos ideais da época, não pôde ser o que um literato deve ser quando logra pisar em tais lugares: um semeador de idéias, um batedor do futuro.

            Para os literatos, isto foi uma decepção; para os políticos, ele ficou sendo um qualquer Fulgêncio ou Marcelino. Não é de admirar, portanto, que um Fulgêncio ou um Marcelino tenham eles escolhido para substituí‑lo. Quem não quer ser lôbo não lhe veste a pele..

A Lanterna, 18‑1‑1918.

 

REFLEXÕES E CONTRADIÇÕES À MARGEM DE UM LIVRO

            De uns tempos a esta parte, os fartamente enriquecidos, com o abalo que, na ordem econômica, sucessos externos e internos trouxeram ao nosso país, resolveram apelar para a religião, fonte de consolação para os humilhados e oprimidos, sobretudo a religião católica, a fim de estabilizar a sua situação e o futuro de sua descendência.

            O que vai acontecer, mete‑lhes medo e pedem auxílio à religião, no intuito de defender as suas cobiçadas fortunas.

            Até bem pouco, essa gente superenriquecida - Deus sabe como! - contentava‑se em converter o genro ambicioso, mediante o dote das filhas que tinham passado pelos colégios de irmãs de caridade.

            Viram, porém, que isto não bastava e muito pouco podia impedir que se avolumasse a sincera onda de revolta que crescia em todos os corações contra o atroz despotismo da riqueza e os miseráveis e torpes processos de enriquecimento, usados atualmente.

            A última guerra foi‑lhes favorável em dois sentidos: eles, esses gananciosos que simulam caridade e temor aos mandamentos da Santa Madre Igreja, prosperaram ainda mais; e a crueldade sem nome do espetáculo e a amplitude da inútil carnificina levaram inteligências honestas e desinteressadas a pensar mais maduramente sobre o mistério da nossa existência e o sentido dela.

            Muitas dessas inteligências voltaram um pouco ao catolicismo romano; e eis os magnatas do comércio, do banco e da indústria, de mãos dadas ao inacismo, cantando vitória e contentes porque tinham esmagado os adversários que lhes ameaçavam o pleno gozo e uso das fortunas, não só no que toca a eles, mas também a filhos e netos.

            Essa revivescência religiosa é muito natural. Não há como a provação das dores profundas para nos impor indagações sobre as coisas do Além; e a humanidade passou ou está passando por uma das mais duras privações de sua existência.

            De mais, o homem nunca deixou de ser um animal religioso e a religião é uma necessidade fundamental de sua natureza. Seja com que fito for, os grandes acontecimentos da humanidade sempre se revestiram  de aspecto de crença mística, de férvida esperança no futuro, de religião enfim.

            Entre nós, diversos moços, cedendo a esse impulso que a crise guerreira acelerou, se hão dedicado à apologética católica.

            Entre eles, sobressai por todos os títulos Jackson de Figueiredo, de quem muito sinto andar em tal matéria afastado. Aparece agora como uma brilhante revelação o Sr. Perilo Gomes.

            O seu livro - Penso e Creio - é deveras notável, já por ser escrito superiormente, com grande "élan" de paixão e soberbos toques de poesia, já pela erudição que demonstra.

            Todo o livro não é ocupado somente com a parte apologética propriamente. Há uma segunda parte que podia ser dispensada, pois nenhum parentesco tem com a primeira. Ao que me parece, o autor quis provar, com os artigos de sua lavra, que aduziu à parte principal de sua obra, que o nosso interesse artístico ou a nossa angustiosa perquirição intelectual, científica e teológica, não devem tão‑somente ser encaminhados para o obscuro, para o desconhecido ou para o debatido.

            Algumas vezes é proveitoso que o nosso exame e as nossas faculdades pensantes se dirijam e repousem no evidente, no respeitado e no que está claro como água.

            Deixemos, porém, isso de lado, para considerar somente o escritor e o pensador do Penso e Creio, porque o que encanta nele é o escritor, é a sua clareza, é o seu poder de expressão, é a sua veemência apaixonada e, sobretudo, a sua simplicidade no dizer e a sua total ausência de pedantismo.

            Já houve, entre nós, o pedantismo dos gramáticos que andou esterilizando a inteligência nacional com as transcendentes questões de saber se era necrotério ou necroteca, telefone ou teléfono, etc., etc.; já houve o pedantismo dos positivistas que aterrava toda a gente com a matemática; hoje há ou está aparecendo um outro: o pedantismo católico que se entrincheira atrás de São Tomás de Aquino e outros respeitáveis e sutis doutores da Igreja.

            Perilo Gomes não parece nada com esses senhores respeitáveis que hão de ser camareiros de S.S.; ele é um escritor para toda a gente, claro, forte, escondendo com pudor o seu real saber.

            Andava bem o catolicismo de Petrópolis necessitado de um espírito como esse que põe a serviço dele a sua fé sincera e o seu talento, pois, em geral, os que ele nos dá, são jesuítas alemães ou italianos e irmãos leigos da Companhia, nos quais o saber de detalhes e a pouca familiaridade com a língua tiram as indispensáveis qualidades de escritor de combate: a atração e a veemência.

            Digo catolicismo de Petrópolis porque o Sr. Perilo não se pode furtar em confessar que a sua obra não é de pura contemplação, não é uma confissão, não é um ato de contrição de sua irreligiosidade passada; é militante, é dirigida aos que pensam, aos condutores do pensamento nacional, no intuito, senão de convencê‑los, ao menos de abalá‑los no seu volterianismo ou agnosticismo.

            É, em substância, no sentido mais alto da palavra, uma obra política e o catolicismo de Petrópolis, por todos os meios, tem visado fins políticos, pacientemente, sorrateiramente. Ele tende à reforma da Constituição; até agora, contentara‑se com disfarces na violação dos preceitos dela que interessam ao Catolicismo; nos dias atuais, porém, aproveitando o mo‑ mento de angústias que atravessamos, quer obter a vitória completa.

            Sem que nada me autorize a tal explicitamente, eu filio Penso e Creio à ação do partido que se esboça aí com o título de nacionalismo. A Igreja quer aproveitar ao mesmo tempo a revivescência religiosa que a guerra trouxe, e a recrudescência exaltada do sentimento de pátria, também conseqüência dela, em seu favor aqui, no Brasil.

            O tal partido, pelos seus órgãos mais autorizados, está sempre a apelar para as tradições católicas de nossa terra; e nao é difícil ver nisso o desejo de riscar da carta de 24 de Fevereiro a separação do poder temporal do espiritual e suas conseqüências, como: o casamento civil e o ensino oficial inteiramente leigo.

            O culto à brasilidade que ele prega, é o apego à herança do passado de respeito, não só à religião, mas também à riqueza e às regras sociais vigentes, dai a aliança da jovem fortuna, representada pelos improvisados ricaços de Petrópolis, com a Igreja. Mas tal culto tende a excomungar, não o estrangeiro, mas as idéias estrangeiras de reivindicações sociais que são dirigidas contra os cresos de toda a ordem. O Jeca deve continuar Jeca, talvez com um pouco de farinha a mais.

            Estas reformas me parecem odiosas e sobremodo retrógradas. Dado que a maioria dos brasileiros seja verdadeiramente de católicos, decretada como oficial a Igreja Romana, mesmo toleradas outras seitas, é evidente que há em semelhante ato uma violência

inqualificável contra a consciência individual, por parte da massa que nem sempre está com a razão - coisa que, como ameaça, me causa apreensões e, como fato consumado, não pode deixar de revoltar um liberal como eu.

            Entretanto, o Sr. Perilo Gomes não trata dessas questões claramente, como já disse; mas, remotamente, se ligam a elas algumas das suas afirmações.

            Por isso, julgo não ser demais fazer as observações que acima ficam, já que se me oferece pretexto para fazê‑las, definindo de vez o meu humilde pensamento em face da agitação católico‑nacionalista que está empolgando todos que no Brasil tem alguma responsabilidade mental.

            Estaria e estou de acordo com o Sr. Perilo, quando afirma que a ciência não satisfaz; que ela parte do mistério e acaba no mistério; e que, fora dela, há muitas razões de crer em Deus e de obedecer à revelação da voz divina na nossa consciência; mas, no que não estou de acordo com o Sr. Perilo, é em afirmar ele que essa revelação de Deus em nós, só nos pode levar ao catolicismo. Não sei por quê!

            Para os que nasceram na religião católica e a abandonaram, ao se sentirem tocados pela graça divina, por isto ou aquilo, é muito natural que voltem a ela. Mas, se o convertido ou arrependido de irreligiosidade, nasceu no islamismo ou na igreja grega voltaria para o catolicismo ou para o maometismo ou para a igreja ortodoxa? A resposta não se faz esperar: ele voltaria para a doutrina religiosa em que foi educado.

            As religiões são expressões humanas de Deus, mas não Deus mesmo. É minha desautorizada opinião, em matéria que muito pouco tenho meditado e muito menos pensado.

            No argumento, aliás muito antigo, de que a maioria dos homens eminentes em toda a sorte de atividades teóricas e práticas, crê ou têm crido em Deus, o autor não faz entre eles a separação dos católicos, dos protestantes, dos simples deístas, dos religiosos de qualquer espécie.

            Admiro muito a religião católica; mas sei bem que ela é uma criação social, baseada na nossa necessidade fundamental de Deus e impregnada do cesarismo romano, que a anima e a sustém no seu velho sonho de domínio universal; sei que ela tem sabido aproveitar as conquistas de toda a ordem obtidas por este ou aquele homem, incorporando‑as ao seu patrimônio, e até aproveitou‑se em seu favor, de argumentos dos seus inimigos contra ela; sei bem disso tudo.

            Porém, essa admirável plasticidade da Igreja, através de quase dois mil anos de existência, amoldando‑se a cada idade e cada transformação social, poderia tentar a outro, que, no assunto, tivesse verdadeira erudição pois não tenho nenhuma, a demonstrar que tem havido, desde o édito de Milão, ou mesmo antes, até hoje, várias igrejas superpostas com os afloramentos fatais das mais antigas através das mais modernas.

            Seria certamente um capítulo de uma espécie de geologia religiosa em que, talvez, a classificação dos termos não fosse difícil de estabelecer.

            Penso e Creio é luxuriante e há tanta riqueza de idéias nele que a gente se perde querendo escolher as que deseja discutir. Vou me deter alguns instantes no que toca à extinção da escravidão antiga.

            É fato, como diz o Sr. Perilo, citando o Sr. Guiraud, que ela instituindo o dogma da fraternidade humana matava a escravatura.

            Mas, nessa questão do acabamento dessa odiosa instituição na Europa, na sua transformação em selvagem, sob a benéfica influência da Igreja, e no final desaparecimento desta última forma de elementar trabalho humano, desaparecimento que só se fez total com a Grande Revolução (Vid. Taine - Origines de la France Contemporaine); - nessa questão há um argumento em desfavor do papel social da Igreja moderna.

            Esse serviço, que não é preciso aqui mostrar de quanto é credora a humanidade ao catolicismo, segundo tudo faz crer, deve‑se pela primeira vez, como sendo patrimônio dele, a um filósofo que a Igreja mais combate - Augusto Comte.

            Entretanto, quem acabou com esta infame instituição, a que o mundo antigo, no acertado dizer do Sr. Perilo, estava a tal ponto identificado que os seus filósofos mais eminentes, mesmo o virtuoso Sócrates, mesmo o quase divino Platão e o conciso Aristóteles reconheciam a sua legalidade; entretanto, dizia eu, quem conseguiu a vitória de extinguir semelhante infâmia, não soube ou não pôde impedir a moderna escravidão negra nem propagou a sua abolição. Há exemplos isolados de eclesiásticos que a combateram; mas nunca um ato solene da igreja que a condenasse. A sua atitude perante a nefanda instituição foi a dos filósofos antigos de que fala o Sr. Perilo; foi a de reconhecer‑lhe, senão a legalidade, pelo menos a necessidade.

            Não fossem os filósofos do século XVIII, especialmente Condorcet, e os filantropos ingleses, talvez ainda a escravatura negra estivesse admitida como legal, apesar dos Evangelhos, onde, afinal, todos nós que conhecemos os homens bebemos inspiração.

            A Convenção extinguiu‑a nas colônias francesas, para Napoleão criminosamente a restabelecer; e essa grande Convenção Francesa, conforme tudo leva a crer, não foi um concílio muito ortodoxo.

            É por isso que Macaulay diz, não me lembro onde, que, durante o século XVII, os Evangelhos tinham passado das mãos dos religiosos para a dos filósofos, ateus ou não.

            Estou a muitas centenas de quilômetros dos meus modestos livros, senão citaria integralmente esse famoso trecho do grande escritor inglês.

            Esta incapacidade que a Igreja demonstrou para abolir a escravidão negra nas colônias dos países catolicíssimos, como a França, a Espanha e Portugal, dá a entender que ela não tem mais força para reprimir no coração dos seus fiéis a ganância, a cupidez, mesmo quando essa ambição desenfreada de dinheiro e de lucro se faça em troca da dignidade moral da pessoa humana.

            A força moral da Igreja é toda aparente; ela, a força, já se esvaneceu ou vai se esvanecendo. A última guerra mostrou a fraqueza do ascendente do Papado que não quis francamente experimentar o seu prestígio sobre os povos em luta, chamando‑os ao bom caminho da paz e da concórdia; e, se tal tentou, foi repelido.

            Não creio, portanto, que a Igreja possa resolver a questão social que os nossos dias põem para ser solucionada urgentemente.

            Se os socialistas, anarquistas, sindicalistas, positivistas, etc., etc. não a podem resolver estou muito disposto a crer que o catolicismo não a resolverá também, tanto mais que nunca foram tão íntimas as relações do clero com o capital, e é contra este que se dirige toda a guerra dos revolucionários.

            Nestas reflexões que o vibrante livro do Sr. Perilo Gomes me provocou fazer, não há o menor sinal de má vontade ou de hostilidade; mas, tão‑somente humilde homenagem de um adversário que, inesperadamente, encontra diante de si campeão contrário de tão raro valor e estranha bizarria, de cuja ação e de cuja crença quisera partilhar para sossego de sua alma.

A.B.C., 23‑4‑1921.

 

À MARGEM DO "COIVARA", DE GASTÃO CRULS

            Dizem os dicionários que "coivara" e uma fogueira  de gravetos. É possível que o professor Assis Cintra tenha outra opinião; mas tal coisa não vem ao caso, tanto mais que não me preocupo com essas coisas transcendentes de gramática e deixo a minha atividade mental vagabundar pelas ninharias do destino da Arte e das categorias do pensamento.

            Admitindo a velha definição dos dicionários, no livro do Sr. Gastão Cruls, que tem como título essa palavra de origem tupaica, não há positivamente "coivara", pois nele não se queimam só gravetos. Queimam‑se grossas perobeiras e duros jacarandás. Os contos que o compõem, não são delgados galhos secos, há alguns que são verdadeiras toras de cerne.

            O Sr. Gastão Cruís é médico, mas, graças a Deus, não escreve no calão pedante dos seus colegas. Escreve como toda a gente, naturalmente procurando os efeitos artísticos da arte de escrever, mas escreve sem o Elucidário de Viterbo e o Blutteau, nas mãos, e - que concubinato! ‑ sem ter diante dos olhos o redundante padre Vieira e o enfático Herculano.

            Vale a pena ler seu livro. É delicioso de naturalidade e precisão. Nota‑se nele que o autor ama muito a vida da roça, a vida de fazenda; mas - coisa singular - esse amor que ama a vida da roça não ama a natureza. Não há nele um toque distinto que denuncie esse amor. Não é só à paisagem, mas mesmo aos bichos, aos bois, aos carneiros; o que ele ama é, por assim dizer, a vida social da roça. As relações do fazendeiro com os colonos, os seus negócios, as suas cerimônias domésticas. Digo isso de um modo geral, sem querer de forma alguma diminuir o mérito do autor.

            O seu primeiro conto - O Noturno n.o 13 - é estranho e como que o autor quis manifestar nele que a sua concepção da vida não é rígida nem mecânica. Que o que se vê, não é tudo que existe; há "atrás" do que se vê muitas e muitas coisas.

            Nem sempre os seus contos mantêm na aparência esse tom de transcendente espiritualidade; mas quase sempre essa sua singular feição de escritor nacional se trai aqui e ali.

            Por exemplo: no G.C.P.A. é em nome dela - espiritualidade - que ele protesta contra os brutais processos da nossa atual medicina que só vê no doente, principalmente no seu cadáver, um caso a estudar, a dissecar, para escrever daí a dias uma chôcha memória que certamente morrerá na vala comum das revistas especiais, mas que dará a seu autor mais fama, portanto mais clientes e mais dinheiro. É a indústria clínica que se ceva nos cadáveres dos pobres desgraçados que morrem nos hospitais.

            Despertou‑me refletir um pouco, após a leitura desse magistral conto do Sr. Gastão Cruls, sobre certas ficções do atual ensino médico.

            Esse professor Rodrigues que vai seguido de uma récua de estudantes, assistentes e enfermeiros e faz discursos mirabolantes (é do autor) diante do doente, ensina ele alguma coisa? É possível transmitir a outrem o que se sabe, por experiência ou estudo, dessa maneira afetada e oratória - maneira que é exigida "malgré‑tout" - pelo auditório numérico que o cerca; é possível?

            Penso bem que não. Quanto mais reduzido for o número de alunos, melhor ele poderia iniciá‑los, quanto menos palavras arrevesadas, melhor eles compreenderiam o lente. As nossas escolas de grande freqüência devem ser condenadas.

            De resto - o que o autor também nota - não é um suplício para um doente grave estar a ouvir palavras campanudas sobre a sua moléstia durante uma hora? Poderá isso concorrer para a sua cura? Não. De forma que um pobre‑diabo que cai num hospital, em vez de ir para tratar‑se, vai para morrer. Lembro agora um caso que se passou há tempos.

            Uma parturiente, tendo‑se recolhido à Santa Casa, um lente de partos quis fazê‑la sujeitar‑se ao "toque" por toda uma turma de estudantes. Ela se revoltou e houve escândalo. Os jornais falaram e não sei como as coisas ficaram. Ela tinha razão sob todos os pontos de vista. A verdade, porém, é que todo esse nosso ensino médico é malvado e improdutivo, tanto assim que o Sr. Dr. Clark acaba de afirmar que há pelo Brasil inteiro quatro mil médicos que não sabem medicina.

            Vimos já esse professor Rodrigues, diante do doente, a fazer hipóteses mirabolantes e ousadas; agora, seguindo na esteira do Sr. Cruís, vamos ver no - A Neurastenia do professor Filomeno - outra feição do nosso ensino médico. O Dr. Filomeno é um sábio em medicina porque conhece o léxico antigo da nossa língua. Tem outras manias; essa, porém, é a principal. A sua lógica é de uma inflexibilidade aristotélica e ele a aplica largamente na sua clínica. Vejamos este caso, tal qual o autor nos conta e conforme expõe o grande Filomeno, lido no "Thinherabos", no Rui de Pina, no Diogo do Couto, no frei Luís de Sousa, no João de Barros e outros cacêtes. Eis aí como narra o arguto autor do Coivara:

            "A um indivíduo que o fora consultar enfermado pela moléstia de Friedreich, queixando‑se muito da marcha propulsiva, que já o fizera levar várias quedas, o professor Filomeno, ao invés de qualquer prescrição medicamentosa, preferira recomendar uma alimentação intensiva pelos siris e caranguejos. Mais tarde ele explicara a Raul por que assim procedera, começando por lhe citar um aforismo latino: "Cancri nunquam recte ingrediuntur".

            "Como Raul não compreendesse o latinório e se mostrasse um tanto atrapalhado, o Dr. Filomeno logo traduziu:

            - "Os caranguejos nunca andam em linha reta". Compreendes agora por que lhe receitei os crustáceos? Ora, se esse indivíduo tem uma desordem do equilíbrio que o impele a correr e cair para a frente, nada mais natural do que neutralizar essa força propulsora por meio dos gânglios nervosos dos siris e caranguejos, que são animais exclusivamente laterigrados, isto é, só sabem andar para os lados."

            Filomeno chama isto opoterapia. Valha‑me Deus! Eu me alonguei nestes dois contos em que se tratam de coisas do ensino médico, entre nós, talvez demais um pouco. Mas era preciso. É tão importante a medicina na nossa vida que toda a crítica deve ser feita por todos, àqueles que nos têm de curar, sobretudo àqueles que isso ensinam.

            Há, porém, nos contos do Sr. Cruís muita coisa outra que não a pura preocupação das coisas de sua profissão.

            "Noites Brancas", por exemplo, é conto fora dos nossos moldes, terrível, fantástico e doloroso. Beijos de uma morfética, dentro da noite escura. Oh! que horror!

            O que estranho no autor de um livro tão digno, como é Coivara, é a admiração que parece ter por Oscar Wilde e se traduz em frases quentes no seu conto "A Noiva de Oscar Wilde".

            Esse Wilde que se intitulava a si mesmo - "King of Life", "Rei da Vida" - não passou antes de "Reading" de nada mais do que o "Rei dos Cabotinos".

            Com uma singular sagacidade, ele soube conquistar a alta sociedade de sua terra, expondo‑lhe os vícios e, ao mesmo tempo, os justificando com paradoxos, nem sempre de bom quilate. As suas obras são medíocres e sem valimento. Às vezes até, com uma originalidade duvidosa, mesmo nos paradoxos. Faltou a Wilde sempre o senso da vida, sentimento do alto destino do homem, a frescura e a ingenuidade do verdadeiro talento, a grandeza da concepção e a força de execução.

            Ele é um mascarado que enganou e explorou toda uma sociedade, durante muito tempo, com arremedos, trejeitos e "poses" de artista requintado. Queria distinções sociais e dinheiro.

            Para isso, lançou mão das mais ignominiosas ousadias, entre as quais, a de ostentar o porco vício que o levou ao cárcere. Aí, ele despe‑se do peplo, tira o anel da múnia do dedo, põe fora o cravo verde, perde toda a basófia e abate‑se. Dostoiewsky passou alguns anos na Sibéria, num atroz presídio, entre os mais inumanos bandidos que se possa imaginar, e não se abateu...

            A sua vaidade, a sua jactância, a sua falta de profundo sentimento moral, o seu egoísmo, o seu narcisismo imoral obrigaram‑no a simular tudo que ferisse e espantasse a massa, para fazer sucesso, até esse imundo vício que o levou à prisão de "Reading". Ao que parece, ele em si não era portador de tal tara. Adquiriu‑a para chamar a atenção sobre si. Era elegante... Não é um artista, nem grande, nem pequeno; ele é um egoísta simulador de talento que uma sociedade viciosa e fútil impeliu até ao "hard labour". Tudo nele é factício e destinado a causar efeito. Não tenho todo o processo a que foi submetido; mas possuo grandes extratos que vem na obra do Dr. Laups - Perversion et perversité sexuelles - prefaciada por Zola. Pelas leituras deles, é que afirmei sobre ele o que acima fica dito.

            Toda a sua jactância, todo o seu cinismo em mostrar‑se possuidor de vícios refinados e repugnantes, toda a sua vaidade - tudo isso que o arrastou à desgraça, - talvez tenha dado um bom resultado. Sabe qual é, meu caro Dr. Cruls? É tê‑lo feito escrever o De Profundis. A vida é coisa séria e o sério na vida está na dor, na desgraça, na miséria e na humildade.

            A edição do Coivara é primorosa, como todas da Livraria Castilho, desta cidade.

A.B.C., 23‑7‑1921.

 

HISTÓRIA DE UM MULATO

            O livro do Sr. Enéias Ferraz - História de João Crispim - aparecido recentemente, apesar de umas ousadias fáceis que a sua mocidade desculpa, é obra de mérito que merece ser lida.

            É livro de um tipo só, porque os outros, mesmo o do poeta Afonso Pina, mais longamente estudado, ficam apagados diante da força com que o autor analisou o seu personagem central; e essa análise é feita - pode‑se dizer sem favor algum - é feita com grande cuidado e rara lucidez.

            Trata‑se de um rapaz de cor, de grande cultura, egresso de toda e qualquer sociedade, menos da das bodegas, tascas e prostíbulos reles.

            É um caso de "moléstia da cor", como qualifica Sílvio Romero, tratando de Tito Lívio de Castro, no prefácio que escreveu para - A mulher e a sociogenia - desse malogrado escritor.

            O derivativo para essa tortura, para essa moléstia especial, no personagem do Sr. Enéias Ferraz, não é o estudo, embora seja ele um estudioso; não é o bordel, embora não hesite em freqüentar o mais baixo que seja; não é a arte, embora escreva e seja ilustrado; é o álcool, álcool forte, "whisky", cachaça.

            Redator de jornal, possuidor de uma pequena fortuna, leva uma vida solta de boêmio, trocando, na verdade, o dia pela noite, quando corre lugares suspeitos, após os trabalhos de redação, mesmo, às vezes, nela dormindo.

            A sua dor íntima, a ninguém revela; e ninguém percebe naquela alma e naquela inteligência, o motivo de tão estranho viver quando, quem o levava - como diz o vulgar - "podia ser muita coisa".

            Temperamentos como este que o Sr. Enéias Ferraz estuda, tão comuns entre nós, nunca tentou a pena de um romancista. Ao que me conste, o autor da História de João Crispim é o primeiro que o faz, pelo menos, na parte estática, se assim se pode dizer.

            Como o Sr. Ferraz se saiu da tentativa, toda a gente pode vê‑lo com a leitura de seu interessante e atraente livro.

            Há nessas almas, nesses homens assim alanceados, muito orgulho e muito sofrimento. Orgulho que lhes vem da consciência da sua superioridade intrínseca, comparada com os demais semelhantes que os cercam; e sofrimento por perceber que essa superioridade não se pode manifestar plenamente, completamente, pois há, para eles, nas nossas sociedades democraticamente niveladas, limites tacitamente impostos e intransponíveis para a sua expansão em qualquer sentido.

            De resto, com o sofrimento, um homem que possui uma alma dessa natureza enche‑se de bondade, de afetuosidade, de necessidade de simpatizar com todos, pois acaba, por sua vez, compreendendo a dor dos outros; de forma que, bem cedo, está ele cheio de amizades, de dedicações de toda a sorte e espécie, que lhe tiram o direito de uma completa e total revolta contra a sociedade que o cerca, para não ferir os amigos.

            João Crispim é assim: por toda a parte, é querido; por toda a parte, é estimado.

            O marmorista que lhe fez o túmulo da mãe simpatiza com ele; mas lastima que gostasse tanto do "copito". Entretanto, mal sabia ele, o marmorista, que se não fôsse o "copito" - expansão da dor íntima de Crispim - talvez o fabricante de túmulos não amasse o moço mulato.

            Cercado de amigos, encontrando por toda a parte uma afeição e uma simpatia, uma vida, como a do personagem do Sr. Ferraz, perde a sua significação e trai o seu destino.

            A sua significação era a insurreição permanente contra tudo e contra todos; e o seu destino seria a apoteose, ou ser assassinado por um bandido, a sôldo de um poderoso qualquer, ou pelo governo; mas a gratidão e as amizades fazem‑no recalcar a revolta, a explosão de ódio, de fel contra as injustiças que o obrigaram a sofrer, tanto mais que os que a sorte aquinhoa e o Estado estimula, com honrarias e cargos, não têm nenhuma espécie de superioridade essencial sobre ele, seja em que for.

            Crispim, nem de leve, se insurgiu, a não ser inofensivamente em palestras e na platônica insurreição do cálice de cachaça, sorvidos, nos lábios de um rapaz, embora mulato, mas educado e com instrução superior à vulgar. Morre, porém, debaixo das rodas de um automóvel, num sábado de carnaval; vai para o necrotério, donde a caridade do Estado, após os folguedos de Momo - como se diz nos jornais - leva‑lhe o cadáver para [a] sepultura, como indigente, pois não foi reconhecido. A orgia carnavalesca não permitiu que o fosse...

            Não quero epilogar sobre essa cena, que é, aliás, uma das mais belas do livro; não posso, porém, deixar de observar que um tipo como esse João Crispim devia ser conhecido, mais ou menos, por todo o mundo, neste vasto Rio de Janeiro, onde sujeitos menos originais que Crispim são apontados por toda a gente.

            Isto, porém, é uma nuga sem importância, sobre a qual não vale a pena insistir.

            Os detalhes da obra do Sr. Ferraz são, em geral, excelentes; e ele possui, como ninguém, o sentimento da cidade, de suas várias partes e de seus vários aspectos, em diversas horas do dia e da noite.

            Quase sempre, nós nos esquecemos muito dos aspectos urbanos, do "ar" das praças, das ruas, lojas etc., das cidades que descrevemos em nossos livros, conforme as horas em que eles nos interessam em nossos escritos. A Balzac e a Dickens, os mestres do romance moderno, não escapa isso; e ao Sr. Ferraz também interessou essa feição do romancear do nosso tempo, tanto assim que nos dá belas descrições de trechos e coisas da cidade. Não citarei senão aquele das imediações do Teatro Municipal, alta noite; e também a da tradicional livraria do velho Martins, na rua General Câmara - um Daumier!

            No final de contas, a estréia do Sr. Enéias Ferraz não é uma simples promessa; vai muito além disso, sem que se possa dizer que seja uma afirmação, mesmo porque nós só nos afirmamos com o conjunto de nossas obras, e o Sr. Ferraz ainda pode e deve compor muitas outras.

            Sobra‑lhe talento e vocação para isso; o que é preciso, porém, é não esmorecer, não perder o entusiasmo, nem embriagar‑se com os louros colhidos. É o que espero, como amigo que sou dele.

O País, 17‑4‑1922.

 

VÁRIOS AUTORES E VÁRIAS OBRAS

            Nós nunca somos senhores do rumo que deve tomar a nossa vida.

            Nos primeiros anos, com os exemplos familiares, com os conselhos paternos, pensamos que ela deve seguir este ou aquele caminho e orientar‑se segundo tal ou qual estrela.

            Os acontecimentos supervenientes, porém, chegam e, aos poucos, devido aos embates deles, a nossa existência toma outro rumo muito diferente daquele que traçamos na carta do viver neste mundo.

            É vão delinear todo e qualquer projeto de vida nesta terra ou em outra, porque nós não somos senhores dos acontecimentos, não podemos dominá‑los nem evitar que eles nos levem para onde não queríamos ir.

            Quando, há cerca de vinte anos, época em que já devia estar formado, me pus a escrever em pequenos jornais chamados humorísticos, nunca imaginei que tais ensaios, quase infantis, meros brincos de quem acabava de sair da meninice, viessem um dia me pôr em colisões mais atrozes do que as que passei, ao ser examinado em Mecânica Racional e Cálculo das Variações pelo Sr. Licínio Cardoso.

            Perdi o respeito infundado que tinha desse meu antigo lente, no que fiz muito bem; mas, hoje, com a minha incipiente literatura, à vista das atrapalhações que ela, de onde em onde, me traz, sou obrigado a recordar‑me dele e da sua mecânica.

            A oferta de livros não cessa de me ser feita. É coisa que muito me desvanece; mas muito me embaraça também.

            Às vezes, são poetas que me oferecem as suas "plaquettes" e mesmo os seus livros.

            Sou obrigado, por delicadeza e para não parecer presunçoso, a dar uma opinião sobre eles. Ora, nunca estudei, mesmo nos seus menores elementos, a arte de fazer versos; não conheço as suas escolas, nem sei bem como elas se distinguem e diferenciam; entretanto, segundo as praxes literárias, tenho, ou por carta ou em artigo, que dar uma opinião sobre as obras poéticas que me são enviadas. É daí que me vem uma das complicações dolorosas que a literatura trouxe à minha existência. Se, de antemão, tivesse eu adivinhado que havia de escrevinhar livros e artigos de jornais, pelo que havia de merecer a atenção dos poetas, teria logo, nos meus primeiros anos de vida, tratado de estudar o Castilhos, porquanto, ao que parece, esse negócio de fazer versos, como a música e a geometria, só se aprende bem aí pelos quinze anos e mesmo antes.

            Nessa idade, porém, não tinha a mínima preocupação literária, havia até abandonado o meu Júlio Verne e todo eu era seduzido para o positivismo e coisas correlatas.

            Vieram, porém, os fatos duros e fatais que o destino guarda secretos, e eles me empurraram para as letras, sem nada saber de versificação.

            Não é só ai que a minha humilde literatura complica a minha vida e me causa incômodos. Há outros pontos em que ela me põe abarbado.

            Ainda há dias, recebi de S. Paulo, com uma lisonjeira dedicatória da autora, D. Maria Teresa de Abreu Costa, um curioso livro: Noções de Arte Culinária.

            A autora pede‑me justiça e eu que já escrevi sobre a sua obra, fiz o que estava em minhas mãos fazer.

            Sou incompetente para dizer sobre o assunto que tanto interessa a todos os homens; mas, consultei minha irmã que, nessas coisas de Culinária, deve ser mais autorizada do que eu, e ela me afirmou que o livro de D. Maria Teresa é excelente como método e exposição; é muito claro e não tem as obscuridades daquele curioso Cozinheiro Imperial, edição do Laemmert, em 1852, a terceira, em cujas páginas fui buscar algum chiste para alegrar meus artiguetes de vários números da Careta, desta cidade.

            Diz‑me, por carta, o Sr. J. N. Pereira, que a Sra. D. Maria Teresa dirigiu um curso anexo à Escola Normal da capital paulista, onde as respectivas alunas aprendiam a ser donas de casa. Esse curso, por economias mal entendidas, foi extinto.

            Longe de mim querer censurar este ou aquele governo, daqui ou de S. Paulo. Tenho um medo "brabo" de todos eles, nestes tempos que correm, de violência e pavor, governamentais, mas uma coisa, sem perigo, posso notar, à vista da criação desses cursos de coisas domésticas e similares: é a decadência da família; é o enfraquecimento das tradições domésticas.

            Há cinqüenta anos ninguém admitiria que uma moça, fosse qual fosse a sua condição, aprendesse essas artes familiares, senão no seu lar, ou no dos parentes ou no dos amigos de sua família.

            Não era só a culinária, incluindo os doces, que dessa forma se aprendia; era a renda de almofada, o "crochet", o "filet", o bordado, etc., etc.

            Hoje, não; as famílias não sabem ensinar mais essas coisas às suas filhas ou às dos amigos e parentes; e quando as moças querem aprendê‑las, tem que se dirigir a escolas especiais.

            Se é bom ou não, não sei. O tempo dirá.

            À oferta deste livro tão curioso da professora paulista, seguiu‑se uma outra a mim feita pelo coronel Ivo do Prado, da sua sólida obra: A Capitania de Sergipe e as suas ouvidorias.

            É uma obra de erudição e de pensamento. O Sr. Ivo do Prado não é unicamente um cartógrafo, nem um compilador de cartas de sesmarias e outros documentos rebarbativos. É também um observador das coisas sociais, dos movimentos das populações, das razões naturais e sociais por que elas preferiram tais ou quais caminhos, para o povoamento do interior.

            Não tenho espaço nem competência para acompanhar de perto o seu valioso trabalho; entretanto, uma observação sua me traz algumas reflexões que, talvez, não sejam de todo minhas, mas cujo contexto me apaixona.

            Trata‑se de nossa nomenclatura topográfica. O coronel Ivo do Prado nota, e com muita razão, que é difícil identificar os nossos acidentes da terra e mesmo os potamográficos, porque eles estão, a toda hora e a todo momento, a mudar de nomes, por mero capricho vaidoso das autoridades a que tal coisa incumbe.

            É uma grande verdade. Basta ver o que se passa na Estrada de Ferro Central, onde a vaidade ou a bajulação dos engenheiros, que isso podem, faz mudar, em curto prazo de tempo, os nomes tradicionais das estações, batizando‑as com os apelidos de figurões e poderosos do momento.

            Podia citar exemplos; mas creio não ser necessário. No Ministério da Marinha, um ministro, usurpando as atribuições da respectiva Câmara Municipal, mudou o nome da enseada da Tapera, em Angra dos Reis, para o pomposo de almirante doutor Batista das Neves.

            Decididamente não é o bom senso e o sentimento do equilíbrio que dominam os nossos atos. Para prestar homenagem à memória do desditoso almirante Batista das Neves, há, havia e haverá outros meios que não este, onde não se encontra uma razão qualquer que o explique.

            A observação do coronel Ivo do Prado, sobre essa nossa mania de estar, a toda a hora, mudando a denominação das nossas localidades, rios., etc, provocou‑me lembrar um artigo de Gaston Boissier, tratando de saber onde exatamente ficava Alésia, a célebre cida‑ dela em que César encurralou Vercingétorix e foi cercado também, mas derrotou os que o sitiavam, e acabou ornando o seu "triunfo" com aquele infeliz chefe gaulês.

            Um dos elementos para identificar Alésia foram as denominações locais que, com alguma corrução, desde quase dois mil anos, guardavam mais ou menos a fisionomia da primitiva denominação. Entre nós um tal meio de pesquisa seria impossível...

            Estão em moda os Estados Unidos; mas acredito que, apesar do amor histérico dos "yankees" pela novidade, lá as coisas não se passam desse modo.

            O livro que o Sr. Carlos Vasconcelos me ofereceu e é de sua autoria, dá‑me a entender isso. Em Casados... na América, tal é o titulo da obra, aqui e ali nos apelidos de lugares, vê‑se que há ainda lá muita coisa de huron e pele‑vermelha. Os americanos mataram‑nos sem dó nem piedade; mas os nomes que eles deram às regiões de que se apossaram os seus algozes foram conservados por estes e passaram até aos seus couraçados e cruzadores.

            O livro do Sr. Carlos de Vasconcelos é livro de um grande escritor. O que me parece diminuir o seu valor, é a preocupação do autor em encaixar, a força, os Estados Unidos nas suas novelas.

            Não sei se é porque tenho uma rara antipatia por semelhante país, não sei se é por outra qualquer causa; o certo, porém, é que a sua mania americana me dá a impressão de que a sua obra não é sincera, não nasceu do seu fundo íntimo.

            Estou convencido de que se a sua frase quente e ondeante, colorida e musical, fosse aplicada a assuntos mais nossos, o seu trabalho ganharia muito e muito!

            Esse "engouement" pelos Estados Unidos há de passar, como passou o que havia pela Alemanha, e da mesma forma.

            Não dou cinqüenta anos para que todos os países da América do Sul, Central e o México se coliguem a fim de acabar de vez com essa atual opressão disfarçada dos "yankees", sobre todos nós; e que cada vez mais se torna intolerável.

            Quem viver, verá!

            Um outro escritor que, com raras qualidades, parece ainda estar à procura do seu caminho, é o Sr. Adelino Magalhães.

            Há nele uma grande capacidade de observação até ao mínimo detalhe, à minúcia; é vivo e ligeiro; tem grande originalidade no dizer; mas lá vem o "mas"! - o Sr. Adelino Magalhães não quer ver nada além dos fatos concretos, atém‑se às aparências, pretende ficar impassível diante do Tumulto da vida (é o título de sua última obra) e não o perfuma de sonho, de dor, de piedade e de amor.

            A sua estética é muito cruel e primitiva; os seus contos ou antes, as suas "tranches de vie" têm alguma coisa de bárbaro, de selvagem, de maldade inconsciente. Contudo, o seu livro tem um grande merecimento: é próprio, é original. O trabalho com que o abre - "Um prego! Mais outro prego! ..." - é sobre todos os aspectos notável, apesar do abuso da onomatopéia - Pan! Pan!

            É uma dificuldade passar de autor tão impulsivo, como é o Sr. Adelino Magalhães, para um escritor laborioso, cauteloso, prudente, tal qual se nos apresenta o Sr. Nestor Vítor.

            Se Adelino é todo arremesso, o Sr. Nestor é a cautela em pessoa - o que bem condiz com o seu nome.

            Se há defeito no seu último livro - Folhas que ficam - deve provir desse seu feitio de ser. Há falta de espontaneidade. É um livro de reflexões esparsas a que o autor tentou coordenar em várias partes, mas que só ele mesmo poderá justificar semelhante coordenação.

            Ninguém pense que o Sr. Nestor as mandou para o livro tal qual elas saíram do primeiro jacto da sua pena ou do seu lápis.

            O autor da A Crítica de Ontem é muito filósofo para não fazer semelhante tolice.

            As suas reflexões e observações são pensadas e repensadas. Há algumas profundas e irônicas; outras, amargas; outras, céticas. Há muitas morais e muitas sociais. A observação sobre o nosso "doutor" é aguda e perfeita; a reflexão sobre o "Marimbondo metafísico" é de uma ironia acerada e do melhor quilate; e assim é quase todo o livro.

            Não é possível lê‑lo de um hausto; requer vagar e tempo, porque, se ele faz sorrir, faz também meditar e provoca inevitavelmente o aparecimento, na inteligência do leitor, de pensamentos contíguos ao do autor, desdobrando‑se aqueles em outros diferentes, até perder‑se a origem de que eles provieram.

            Espécie de obra muito rara na nossa produção literária, o trabalho do Sr. Nestor Vítor dá‑lhe um lugar à parte nas nossas letras.

            É com estas palavras da mais pura satisfação que fecho esta crônica, com a qual me desobrigo dos compromissos que contraí com tantos autores e amigos.

            Possam todos eles crer que a leitura de suas obras foi nesta minha quinzena de "férias" o máximo encanto do meu voluntário recolhimento.

Gazeta de Notícias, 6‑12‑1920.

 

URBANISMO E ROCEIRISMO

            Acabo de ler o novo livro do Sr. Mário Sete - Senhora de Engenho - autor pernambucano muito justamente apreciado, que, nele, sob a forma de romance, muito legitimamente e brilhantemente explana e discute essa questão de urbanismo que os nossos autorizados sociólogos práticos têm posto e semeado pelos jornais em fora.

            Não há doutrinação alguma, mas mesmo pelo fato de ser assim, isto é, procurar ele demonstrar pela ficção e com auxílio dos recursos da novela a necessidade, de abandonarmos a cidade pela roça, não deixa a obra de sugerir comentários que me parecem oportunos.

            É vezo hoje dos nossos economistas, políticos e outra espécie de gente que está, depois de Deus, encarregada de dirigir os nossos destinos, aconselhar aos que se queixam das duras condições da vida nas cidades:

            - Vão para a lavoura!

            O mirabolante aritmético Cincinato assim fala; e o Sr. Veiga Miranda, há bem pouco, fez a estatística da necessidade de braços nas fazendas paulistas e repetiu o conceito do seu colega de bancada.

            Não há nada mais pueril do que semelhante conselho. Só energias raras podem de uma hora para outra mudar de profissão e de hábitos. Querer que um tecelão, de uma hora para outra, se faça capinador de cafezais, é o mesmo que exigir que um médico, do pé para mão, se faça motorneiro.

            De resto, o urbanismo foi criado pelo próprio governo da República, dando nascimento, por meio de tarifas proibitivas, a um grande surto industrial, de modo a fazer da longínqua Sorocaba, antigamente célebre pela sua feira de muares, uma pequena Manchester, como a chamam os paulistas.

            Veio depois a megalomania dos melhoramentos apressados, dos palácios e das avenidas - o que atraiu para as cidades milhares e milhares de trabalhadores rurais.

            O governo fez isso e agora quer desfazer. Não é de admirar, porquanto a característica dos nossos governos é fazer e desfazer.

            Há ainda mais, no que toca aos rotos, aos pobres‑diabos. Na cidade, eles tem mais garantia, não estão sujeitos a mandões tirânicos e caprichosos e as autoridades são mais escrupulosas. Mais ainda: nas cidades, há hospitais, maus é verdade, mas os há. Na roça, não há nada disso. Uma porção de fatores têm concorrido para o êxodo das populações dos campos para as cidades; e muitos deles são devidos aos governos.

            A cidade é uma necessidade; e uma grande cidade, necessidade maior ainda é.

            O campo, a roça é um depósito de preconceitos e superstições sociais. Na cidade, dá‑se o oposto: há sempre uma ebulição de idéias, de sentimentos - coisa muito favorável ao desenvolvimento humano. O campo é a estagnação; a cidade é a evolução.

            Mostra‑nos o Sr. Sete, no seu magnífico romance, um moço filho de fazendeiros pernambucanos - lá se chamam senhores de engenho - que, fascinado pela cidade, vem para o Rio de Janeiro acabar os estudos começados no Recife. Essa fascinação pelo Rio, sobretudo por Botafogo e seus complementos, inclusive Petrópolis, é coisa verificada em todos os moços mais ou menos bacharéis deste Brasil imenso, especialmente os do Norte.

            Não leio um romance provinciano em que não note isto. Até no irônico - O Professor Jeremias - de Leo Vaz, lá está a tal história de Petrópolis.

            Nestor, o filho do senhor de engenho pernambucano, como dizia acima, vem para o Rio acabar os estudos. Como todo bom nortista, trata de cavar um emprego e o quer numa Secretaria de Estado, para estar bem perto de um Ministro. Como todo bom nortista, ele consegue a sinecura. Tinha travado conhecimento, a bordo, com um conterrâneo desenraizado, que o leva à sua casa. Tem uma filha moçoila; ei‑lo namorado; pouco depois de formado, casado; pouco depois de casado, pula de praticante do Ministério da Praia Vermelha para o de chefe de seção do Ministério da Justiça. Um verdadeiro milagre administrativo que só os nortistas conseguem realizar, e, às vezes, realizam.

            Aproximando‑se as bodas de ouro dos pais, Nestor e a mulher, Hortênsia, embarcam para Pernambuco. Vão para Águas Claras, o engenho dos velhos. No começo, o espetáculo daquela vida encanta e seduz Hortênsia, a carioca; mas, bem depressa, ela se aborrece, quer voltar, tanto mais que nota no marido certa inclinação por uma moça da casa, Maria da Betânia, antiga namorada dele e que é uma das figuras mais curiosas e mais bem estudadas do livro. Chega a gravidez a carioca. Ela fica; começa a afeiçoar‑se àquela vida e ambos, Nestor e Hortênsia, de comum acordo, resolvem estabelecer definitivamente residência no engenho de Águas Claras.

            A carioca foi vencida e o carioca adotivo que é o seu marido Nestor, também.

            Eis aí o entrecho do livro, cuja execução é soberba. O Sr. Sete não é um escritor nervoso, rápido, cujo pensamento, como já se disse sobre alguém, salte logo da cabeça para o papel.

            Por isso, ele excele na descrição das cenas familiares, no narrar os mínimos detalhes das coisas domésticas.

            Ele é amoroso de moças, dos seus atavios, dos seus arrebiques, dos seus muxoxos e dengues.

            A descrição da festa das bodas de ouro dos pais de Nestor é tão cheia de naturalidade, de singeleza, de graça, que, qualquer que a leia, a vê de pronto diante dos olhos, toda a festa por inteiro.

            Não há nele nenhum arroubo, nenhuma abertura para o Mistério da Vida e o Infinito do Universo; mas há, em contraposição, uma grande fidelidade na reprodução do que observa, e muita simpatia pelos lares felizes e ricos, de modo que o lendo eu, fico a pensar que, em Pernambuco, tudo é como em Águas Claras; tudo é feliz, mesmo a linda Maria da Betânia.

A.B.C., 10‑9‑1921.

 

A OBRA DO CRIADOR DE JECA‑TATU

            O criador de Jeca‑Tatu é um caso muito curioso nas nossas letras. Tendo uma forte capacidade de trabalho propriamente literário, ele é ainda por cima um administrador excelente, um editor avisado, um ativo diretor de uma revista sem igual no Brasil de hoje, de ontem e não sei se de amanhã.

            Não sofro da horrível mania da certeza, de que falava Renan; mas, com reservas, admito que, sejam quais forem as transformações políticas e sociais que o mundo venha a passar, a expressão político‑administrativa - Brasil - por muito tempo não subsistirá.

            Supondo por absurdo, que as coisas continuem no pé em que estão, a inabilidade, os crimes, as concussões, a falta de escrúpulos de toda a ordem dos nossos dirigentes de norte a sul do país - tudo isto leva a prever para nossa organização política, e isto num lapso de tempo bem curto, um desastre irremediável.

            Dizia eu, porém, que o Sr. Monteiro Lobato, o criador de Jeca‑Tatu, sabia como ninguém aliar a uma atividade literária pouco comum, um espírito comercial, no bom sentido, dirigindo com sucesso uma revista sem igual na nossa terra.

            Ela se publica na cidade de São Paulo e é a Revista do Brasil, já bem conhecida aqui, no Rio de Janeiro.

            Com uma clarividência difícil de se encontrar em brasileiro, o Sr. Monteiro Lobato conseguiu atrair para ela a atenção de todas as atividades intelectuais deste vasto país, como diz a canção patriótica, e fazê‑la prosperar, como prospera.

            Não está no seu primeiro ano, não está no terceiro; está no quinto de sua útil existência - coisa rara entre nós.

            Publicando há dois ou três anos um volume de contos - Urupês, o Sr. Lobato, em bem pouco tempo, sem favor algum, logrou ver o seu nome conhecido no Brasil todo e as edições de sua obra se esgotarem umas sobre as outras.

            A criação principal de um dos seus contos, aquele que dá o nome ao livro, o famoso Jeca‑Tatu, que o uso, e ele mesmo o sancionou, fez Jeca‑Tatu andar, pelo menos de nome, em todas as bocas, enquanto o personagem propriamente assanhou a crítica dos quatro pontos cardeais destas terras de Santa Cruz.

            Quiseram ver nela o símbolo do nosso roceiro, do nosso sertanejo - "o caboclo" - como se diz por eufemismo, porquanto nele há, de fato, muito de índio, mas há, em compensação, alguma coisa mais. Daí a celeuma. Surgiram contraditores de toda a parte e os mais notáveis, daqueles que conheço e tenho notícia, foram o Sr. Leônidas de Loiola, do Paraná, e o Sr. Ildefonso Albano, do Ceará.

            Li o Sr. Loiola, mas não li a contradita do Sr. Albano, que se intitula, se não me falha a memória, Mané Chique‑Chique. Creio, porém, que esses senhores se sangraram em saúde. Não acredito absolutamente nas miríficas virtudes dos sertanejos do norte, nem de outra parte do Brasil.

            Todos os nortistas, especialmente os cearenses, estão dispostos a fazer deles, senão esforçados "preux", ao menos tipos de uma energia excepcional, de uma capacidade de trabalho extraordinária e não sei o que mais.

            Citam, então, o Acre, criação do cearense exul. Não me convence. Julgo que haveria tenacidade, energia no trabalho, não na emigração, no êxodo, mas na constância em lutar com o flagelo climatérico que assola aquele Estado e os circunvizinhos.

            Essa energia, essa tenacidade se faria constante, se, de fato, existissem, para aproveitar os bons anos de chuvas, construindo obras ditadas pela própria iniciativa daquelas gentes, de modo a captar as águas meteóricas e outras, para os anos maus. Mas tal não se dá; e, quando chegam as secas, encontram as populações desarmadas.

            A secura dos desertos da Ásia Central fez descer para as margens do mar Negro e outras paragens hordas e hordas; mas o holandês, no seu charco desafiou, com a sua tenacidade e diques, as fúrias do mar do Norte.

            De resto, o Sr. Monteiro Lobato não quis simbolizar em Jeca‑Tatu, nem o sertanejo, nem coisa alguma.

            Ele não tem pretensões simbolistas, como nunca tiveram os grandes mestres da literatura. Tais pretensões são cabíveis nos transcendentes autores que ninguém lê. Ao que me parece, pois só epistolarmente conheço o autor do Urupês, o Sr. Lobato viveu ou nasceu na região a que chamam "norte paulista", o vale da parte de São Paulo do Paraíba do Sul. É ela que ele descreve com tanta ternura e emoção contida nos seus livros de ficção. Ele viu a sua decadência; ele relembra seu esplendor passado. Certamente, quando menino, brincou lá com aqueles Jecas; e é a sua saudade, é a sua simpatia, é a sua mágoa por não vê‑los prósperos, que fez pintá‑los como pintou. Isto está a ver‑se nas suas Cidades Mortas, livro seu, talvez mais curioso que o famoso Urupês, que tanto escandalizou o patriotismo indígena.

            No seu último livro - Negrinha - há um conto - "O jardineiro Timóteo" - que denuncia bem esse seu feitio de sentir.

            Deve‑se lê‑lo para bem perceber o pensamento geral que domina a produção do autor da Bucólica.

            Trata‑se de um preto, o Timóteo, que era jardineiro de uma fazenda daquelas regiões; aos poucos, esta vai decaindo, por isso ou por aquilo, e, com ela, os antigos senhores e patrões. Timóteo não dá por isto e continua a plantar as suas flores humildes e modestas: esporinhas, flores‑de‑noiva, amores‑perfeitos, sempre‑vivas, palmas‑de‑santa‑rita etc.

            Os azares da fortuna dos seus proprietários determinam a venda da propriedade agrícola a pessoas da cidade; e os novos donos implicam com as "esporinhas”e "perpétuas" do Timóteo.

            Mandam destruir o jardim, pois querem nele flores raras e caras: camélias, crisandálias, crisântemos, etc. O humilde negro despede‑se e deixa‑se morrer na porteira da fazenda, amaldiçoando aqueles bárbaros: "deixa estar"!

            O que o Sr. Monteiro Lobato vê e sente é o seu Taubaté, o seu Guaratinguetá; ele não tem a pretensão de encaixar no seu Jeca‑Tatu, Rolandos de Uruburetama, nem Reinaldos bororós, e mais filhos d'Aymon das gestas tupaicas.

            Toda a sua obra é simples e boa, animada pela poesia da sua terra, seja ela pobre ou farta, seja agreste ou risonha: mas é cheia de sadia verdade a sua literatura.

            A sua visualidade artística e literária, apesar da limitação do campo, abrange um arco de horizonte muito mais amplo do que o do comum dos nossos escritores.

            O que se evola de suas palavras não é ódio, não é rancor, não é desprezo, apesar da ironia e da troça; é amor, é piedade, é tristeza de não ver o Jeca em condições melhores.

            Basta ler este conto - Negrinha - com que intitula o seu último livro, para nos impregnarmos da sua alma compassiva, descobrir a sua entranhada afeição pelos que sofrem e pensam neste mundo.

            Não há no Sr. Monteiro Lobato nenhuma das exterioridades habituais dos escritores: pompa de forma, transbordamentos de vocabulário e de imagens; há um grande sonho íntimo de obter a harmonia entre todos os homens e destes com a Terra, nossa mãe comum.

            E, se a Arte, como quer Hegel, é a idéia que se procura, que se acha e que se vai além dela, Monteiro Lobato é um grande e nobre artista.

Gazeta de Noticias, 1 1‑5‑1921.

 

MADAME POMMERY

            Na sua Viagem ao Araguaia, em uma espécie de preâmbulo, o general Couto de Magalhães conta como causou um grande rôlo, em pleno teatro de gala, por ocasião de uma festa de 7 de Setembro, quando ele era ainda estudante de direito, o fato de um certo colega seu, também paulista, recitar, acompanhado de gargalhadas dos colegas, um soneto satírico, que começava assim:

 

Comendo içá, Lomendo cambuquira,

Vive a afamada gente paulistana

E aquelas a que chamam caipira,

Que parecem não ser da raça humana...

 

            Içá é o que chamamos formiga tanajura; e lá, por aquelas priscas eras em que o general era estudante, se vendia, ao que parece, torrada, em tabuleiros ou cestos, pelas ruas, sendo guloseima apreciada como o nosso mindobi torrado, ainda apregoado à noitinha nos bairros pobres deste Rio de Janeiro.

            Quem leu a Viagem desse curioso tipo de brasileiro que foi o general Couto de Magalhães, relembra isso quando acaba a leitura dessa estranha, original, por vezes desordenada, mas sempre brilhante obra, que é a crônica ou romance ou as duas coisas juntas, editadas pela Revista do Brasil, sob o sugestivo título de Mme. Pommery. A ostentação de hoje que este livro nos revela, dá um grande realce à modéstia e pacatez daqueles tempos de São Paulo. O café ainda não tinha pulado do vale do Paraíba para o do Tietê.

            O seu autor - que não sei verdadeiramente quem seja - é um filósofo risonho, sem piedade e sem ódio, sem paixão pró ou contra, discípulo de Montaigne, que ele cita a cada passo, vendo tudo, todos os fatos, todos os acontecimentos, a existência toda num plano só no plano da nossa integral miséria humana.

            A natureza não o interessa e nenhum, ou pouco, entendimento tem com as coisas mudas. É um clássico de alma.

            O livro, além de ser dedicado a várias sociedades sábias, inclusive a deliciosa "Eugência", foi suscitado pelo atual movimento nacionalista.

            Hilário Tácito, o autor, diz‑se simplesmente fiel cronista dos feitos e proezas de Mme. Pommery, "née" Ida Pomerikowsky, de Ivã do mesmo nome, domador de feras de profissão, e de Consuelo Sanchez, noviça espanhola, descendente do famoso padre Sanchez, creio que jesuíta, autor de um apreciado tratado - De Matrimônio - que, se fosse posto em vulgar, teria grande sucesso nos colégios de adolescentes púberes.

            Consuelo fugiu com o lambe‑feras de um convento de Córdova e foram dar nascimento à futura heroína da crônica, na Polônia ou adjacências.

            Após muitas aventuras, avelhantadas, embora moça ainda, gordunchuta, a descendente polaca do teólogo conjugal vem dar com o costado em Santos.

            Hilário Tácito, farto das vás histórias da marquesa de Santos e da Pompadour, viu que entre elas, as vãs histórias, havia muita coisa com que não se sonhava. Tratou de escrever o relato da vida de Mme. Pommery. Podia, afirma ele, justificar o seu asserto, se o quisesse desenvolver, com grande cópia de considerações filosóficas sobre o valor da história, citar Spencer, Kant e Pedro Lessa e o resto da ferragem de erudição que não se dispensa em conjunturas semelhantes. Abandonou, porém, tal propósito e desembarcou logo Mme. Pommery em Santos.

            Ela aí chegou como um herói de Carlyle, no seio da nossa trevosa Humanidade; chegou cheia da "centelha divina", para fazer arder os gravetos da sociedade paulista.

            E a "Lecture", donde o autor tira essa comparação, nem de propósito, é aquela em que se trata do Herói‑Divindade; é a de Odin.

            Dessa "radiance" celestial de Mme. Pommery vem logo uma grande transformação no opulento "mundo" do grande Estado cafeeiro.

            Segui‑la seria repetir o autor - o que não é possível; mas eu mostrarei em termos gerais como esse "a natural luminary shining by the gift of Heaven" a operou.

            Mme. Pommery montou uma usina central produtora e transformadora, com auxílio de um "coronel" camarada, chamou‑a "Au Paradis Retrouvé", a rua Paissandu, donde emitiu a sua irradiação e baniu daí a cerveja, substituindo‑a pela champanha, a 30$OOO a garrafa. Iniciava a sua missão heróica nas terras do Tietê...

            A usina era uma espécie de convento ou colégio, onde ela empregava toda a foôrça e capacidade de disciplina e rigor monacais da sua ascendência, que, na mãe, tinham dado em droga, mas que nela haviam ficado como um estigma, hereditário. O autor mesmo diz:

            "E ficou, de fato, pelo menos em estado latente, até o dia em que repontou na filha, claro e forte, como um pendor natural para tudo disciplinar no seu colégio à imitação das ordens monacais, à força de regimentos, praxes, regras e etiquetas, com que chegou a este paradoxo de regulamentar os desregramentos de alto bordo por um sistema tão completo e tão adequado ao nosso caso, que nunca mais necessitou de aperfeiçoamentos, nem de emendas, nem de retoques."

            Era uma espécie de Abbaye de Theléme, não muito igual à de Pantagruel e muito menos à dos pândegos de Paris, por demais, porém, adequada a São Paulo e, se possível fosse, ao Rio de Janeiro.

            A usina, "abbaye" ou coisa que o valha, começou a funcionar, segundo regras de uma particular mecânica aplicada, cuja teoria geral convém pedir emprestada ao autor.

            Ei‑la num exemplo:

            "Trata‑se de aliviar dito indivíduo (um coronel) dos seus 1 35$OOO por um processo automático mecânico; isto é, sem nenhuma força a mais, além de cocotte, champanha, coronel. A operação executa‑se em três fases: Fase A - Cocotte engrena coronel. Resistência ao rolamento - lOO$OOO. Resultante: contração, movimento retardado. Fase B - Cocotte engrena champanha, champanha engrena coronel. Resistência inicial - 30$OOO. Resultante: atração, movimento giratório cerebral. Fase C - Coronel engrena cocotte. Resistência final 100$000. Resultante: convulsão, movimento ascensional acelerado."

            Diz Hilário Tácito que esse mecanismo é o mais perfeito que se possa imaginar, pois, de 135 mil‑réis de combustível, aproveita 130 em trabalho útil, e só se perdem cinco na gorjeta.

            Realizando esta obra portentosa, Mme. Pommery rapidamente começou a influir nos destinos da sociedade paulista e, indiretamente, em toda a comunhão brasileira.

            A Finança, a Valorização, o Bar Municipal, a Moda, o Carnaval, a Política recebiam o seu influxo e a ele obedeciam; e, não lhe sendo bastante isto, transformaram‑na em educadora, em afinadora de maneira dos rapazes ricos, pois, como diz o autor:

            "Ora, por estes efeitos indiretos o prestígio de Mme. Pommery transcendeu desmesuradamente. Cursar o "Paradis Retrouvé" ficou sendo, no conceito geral da gente fina, um titulo de merecimento e remate indispensável de toda a educação aprimorada.

            "A sociedade de Ninon de Lenclos gozou da mesma opinião favorável do seu século. Mas devemos reconhecer que Mme. Pommery granjeou igual estima por meios muitíssimo mais práticos; pois nem filosofou, nem escreveu. E, sem ser tão bela, segundo a fama, alcançou contudo um grau de superioridade superior ao de Ninon."

            Assim, Mme. Pommery influiu sobre as várias e todas as partes da sociedade, exceto sobre os literatos, naturalmente sobre os paulistas, porque, sobre os daqui, estou informado de gente limpa que ela influiu dadivosamente. dando até a certo e determinado um principado em Zanzibar, por ocasião da assinatura do Tratado de Versalhes, além de favores que prestou a outros para escrever futuramente as suas magníficas obras...

            É tempo, porém, de falar de um modo geral de tão curioso livro. Seria estulto querer encarar semelhante obra pelo modelo clássico de romance, à moda de Flaubert ou mesmo de Balzac. Nós não temos mais tempo nem o péssimo critério de fixar rígidos gêneros literários, à moda dos retóricos clássicos com as produções do seu tempo e anteriores.

            Os gêneros que herdamos e que criamos estão a toda a hora a se entrelaçar, a se enxertar, para variar e atrair. O livro do Sr. Hilário Tácito obedece a esse espírito e é esse o seu encanto máximo: tem de tudo. É rico e sem modelo; e, apesar da intemperança de citações, de uma certa falta de coordenação, empolga e faz pensar. Vale sobretudo pela suculenta ironia de que está recheado, ironia muito complexa, que vai da simples malícia ao mais profundo "humour" em que assenta afinal o fundo de sua inspiração geral.

            Não quero mais tratar dele, embora ainda pudesse dizer muito e ele o merece. Bebe‑se muita champanha em casa de Mme. Pommery; e eu me lembro de um caso de boêmia que um camarada me contou.

            Certo doudivanas "pronto", num belo dia, jogou na "centena" e ganhou. Encontrou uns amigos e convidou‑os a beber. Beberam champanha, como na casa de Mme. Pommery. Num dado momento, o anfitrião levantou‑se e convidou:

            - Vamos tomar uma "lambada".

            - Como? Não há mais dinheiro? - perguntou um dos outros que queria "morder".

            - Há.

            - Então?

            - Nada, nada! - fez o "pagante". - É que não se devem deixar os amigos velhos pelos novos.

            Bebe‑se muita champanha em casa de Mme. Pommery...

Gazeta de Notícias, 2‑6‑1920.

 

            A Sra. D. Albertina Berta é um dos mais perturbadores temperamentos literários que, de uns tempos a esta parte, têm aparecido entre nós.

            Muito inteligente, muito ilustrada mesmo, pelo seu nascimento e educação, desconhecendo do edifício da vida muitos dos seus vários andares de misérias, sonhos e angústias, a autora do Exaltação com auxílio de leituras de poetas e filósofos, construiu um castelo de encantos, para seu uso e gozo, movendo‑se nele soberanamente, sem ver os criados, as aias, os pajens e os guardas.

            Do alto do seu castelo, ela percebe as casas dos peões e homens d'armas, lá embaixo, rasas com o solo, e só a flecha da igreja do burgo se ergue um pouco acima dele. Ela não lhe adivinha os obscuros alicerces robustos.

            Quando li o seu romance, lembrei‑me do drama que a milhardária americana Clarence Mackay leu a Jules Huret, quando ele andou em alta reportagem pelos Estados Unidos. Mme. Clarence era casada com o rei dos telégrafos americanos, que lá não são ou não eram monopólio do Estado. O drama da rainha dos cabos fazia apologia do amor livre, do "amor integral", sobre o amor platônico.

            Depois de Balzac, de Daudet, de Maupassant, etc., o romance Exaltação de D. Albertina Berta, na leitura, nos surge cheio de um delicioso anacronismo. Aparece‑nos como uma novela de grande dama, linda e inteligente, para quem a existência só tem o merecimento e mesmo é o seu principal fim o de terminar o amor de um casal, senão de condição real, mas suficientemente principal.

            O último livro da Sra. D. Albertina Berta - Estudos - é talvez mais do que o seu romance de estréia demonstrativo da originalidade do seu temperamento e do seu curioso talento, tanto mais curioso quando se trata de uma mulher brasileira.

            O que, caracteriza o pensamento de D. Albertina é, se não uma certa difusão de idéias, uma falta de nitidez, de clareza e coerência de idéias.

            Eu me permitiria dizer‑lhe se não temesse desagradar‑lhe, que, apesar de todo o seu apêlo à Grécia, a tal Hélade, a eloqüência torrencial e tumultuosa do seu escrever, o vago e o impreciso de suas concepções, o constante borbotar de idéias, sob sua pena, que se emaranham e se tecem inextrincavelmente, lhe dão mais parentesco com os luxuriantes poetas hindus do que com os helenos cediços.

            Neste seu último livro, a Sra. D. Albertina, no seu excelente estudo sobre Nietzsche, compara o "Super‑Homem" deste ao Nirvana búdico e ao Paraíso cristão. Os termos não se prestam a que se estabeleça qualquer comparação; admitindo, entretanto, que se o pudesse fazer, bastam estas palavras da autora, explicando a moral do "Super‑Homem", para mostrar o absurdo de tal coisa. Ei‑las:

            "Aos primeiros, às naturezas plenas (os "Super‑Homens"), a esses seres privilegiados, artistas do pensamento e da ação, que sabem governar‑se, manejar as paixões em proveito próprio (tomem nota), desviar as reações, ela (a tal moral dos Super‑Homens) tudo permite para a sua existência, o seu equilíbrio na vida universal: aventuras, incredulidades, repouso, o próprio excesso, a impiedade, a rudeza"...

            É possível admitir sujeito de tal moral digno do Paraíso ou do Nirvana? Não há quem hesite em dizer - "não" - por menos que conheça a concepção do Paraíso, que é muito plástica, e a do Nirvana, embora extremamente abstrata.

            A autora há de me desculpar essa rudeza, essa franqueza; mas seria hipocrisia não lhe falar assim. Dos meus vícios, que são muitos, creio não ter o da hipocrisia.

            Não gosto de Nietzsche; tenho por ele ojeriza pessoal. Acuso‑o, a ele e ao Esporte, como causadores do flagelo que vem sendo a guerra de 1914.

            Ele deu à burguesia rapace que nos governa uma filosofia que é a expressão de sua ação. Exaltou a brutalidade, o cinismo, a amoralidade, a inumanidade e, talvez, a duplicidade.

            Nenhum outro homem, mesmo em tom de ironia, falou tão mal da caridade e da piedade; entretanto, D. Albertina, à pág. 35 do seu soberbo livro, pede piedade para ele. Eu lha dou, de bom grado; mas continuo.

            Não se compreende que a humanidade, só podendo subsistir pela associação, possa prescindir de sentimentos que reforçam essa associação e a embelezam.

            Nietzsche é bem o filósofo do nosso tempo de burguesia rapinante, sem escrúpulos; do nosso tempo de brutalidade, de dureza de coração, do "make‑money" seja como for, dos banqueiros e industriais que não trepidam em reduzir à miséria milhares de pessoas, a engendrar guerras, para ganhar alguns milhões mais.

            São eles sem educação e sem gosto algum; com a crueza dos "condottieri", não têm como estes o senso da beleza e da arte.

            Nietzsche, devido à convivência em Bale com Burckhardt, tinha uma grande admiração por essa espécie de gente; mas, como sempre, a sua admiração se encaminhava para o pior, para César Bórgia, o ignóbil César Bórgia, certamente fratricida e, talvez,

incestuoso.

            Os seus comentadores, especialmente o Sr. Jules Gaultier, o engenhoso descobridor do Bovarismo, têm procurado extrair das elocubrações de Nitzsche um sistema de filosofia, tornam‑se, porém, mais confusos do que ele.

            Entretanto, apesar de não se poder tirar dos seus livros um pensamento nítido, claro e harmônico, o que, em geral, se depreende deles é um apelo à violência, à força, um desprezo pelo refreamento moral, pela bondade, pela piedade, até pelo amor que, para ele, não é mais um grande sentimento de resgate e um anelo à perfeição, mas uma espécie de vinho de bacantes em festas dionisíacas.

            Ele inspirou essa guerra monstruosa de 1914 e o esporte a executou.

            Spencer, em 1902, no seu último livro: Fatos e Comentários, no artigo "Regresso à Barbaria", previa esse papel retrógrado que o atletismo havia de representar no mundo.

            Condenando‑os, sobretudo o futebol, o grande filósofo dizia muito bem que todo o espetáculo violento há de sugerir imagens violentas que determinarão sentimentos violentos, dessecando a simpatia humana, enfraquecendo a solidariedade entre os homens. Nietzsche, catecismo da burguesia dirigente, combinando‑se com uma massa habituada à luta ou a espetáculos de lutas, só podia dar em resultado essa guerra brutal, estúpida, cruel, de 1914, que continua ainda e não resolveu coisa alguma.

            D. Albertina, que parece não ter percebido essa influência nefasta do filósofo de que é admiradora, diz em alguma parte do seu livro que é cristã.

            Admiro‑me muito que pessoa tão inteligente, cuja cultura eu desejaria ter, possa fazer semelhante profissão de fé, quando Nietzsche, no seu Anti‑Cristo, com a sua habitual falta de senso histórico, chama S. Paulo, essa alma extraordinária da epístola a Filemon, anarquista, cujo único propósito consistia em derrubar o Império Romano, que já estava em adiantado estado de putrefação, quando ele pregava a caridade e o amor com a sua palavra de fogo e o seu coração cheio de fé nos destinos da humanidade.

            De novo, peço desculpas à ilustre autora, cuja delicadeza da oferta de ambos os seus livros muito me tem desvanecido; mas este último é tão cheio de idéias e opiniões a ponto de sugerir outras idéias e outras opiniões, da minha parte, que eu queria exprimi‑las com mais serenidade, mas não posso.

            O seu estudo sobre a "Evolução do Romance" é magistral, embora lhe faltem referências ao romance russo, como já foi notado. Creio que a autora do Estudos não desconhece a influência dele sobre a novela francesa dos anos próximos. Até em Maupassant é bem sensível a influência de Tourgueneff.

            O seu espírito nietzschista (vá lá!) levou a autora do Exaltação a exaltar o coronel Rapagneta ou Rapagneto. Não vejo por quê.

            O Sr. D'Annunzio é um retrógrado; os seus ideais não são os dos nossos tempos; ele sempre sonhou com um ducadozinho italiano da Idade Média, em que ele pudesse dar expansão aos seus infrenes pendores para a volúpia e a crueldade. Não há nele nenhuma simpatia pelos homens; a sua arte não é uma interrogação diante do angustioso mistério da nossa existência, do destino e sentido da nossa vida; é uma apologia do sangue, da volúpia e da crueldade. A musicalidade da língua italiana ilude muito...

            Duque de Fiume, ele encheu as prisões e, se não faz execuções, com um machado medieval, tirado a algum museu italiano, é porque teme o inimigo mais poderoso que o vigia.

            César Bórgia, o terrível, fez o mesmo diante de Carlos VIII, rei de França.

            Não me alargarei mais. Estudos é um livro de fragmentos e livros desses não podem ser analisados, parte por parte, sem que o artigo que se escreva sobre ele tome proporções que um jornal não comporta.

            O que eu quis fazer foi caracterizar o espírito da autora e se, aqui ou ali, houve alguma aspereza, é porque é um livro de idéias e as minhas, se as tenho, são muito opostas às da ilustrada autora do Exaltação, cujo saber admiro muito e não cesso de preconizar.

            Há de me perdoar qualquer observação menos bem dita, pois penso, e a autora melhor do que eu sabe, que, quando se tem opiniões sinceras, se tem paixão.

Gazeta de Notícias, 26‑10‑1920.

 

A OBRA DE UM IDEÓLOGO

            A obra do Sr. José Saturnino de Brito já é digna de exame. Entre pequenos e maiores, ela já conta cerca de Oito trabalhos, que são: Socialismo progressivo, A cooperação é um Estado, A pirataria em paroxismo, A Escravidão dos pequenos lavradores e Socialismo pátrio, além das peças: Amor, vence! e Entre neblinas.

            Esta última, que foi publicada há dois anos, é deveras interessante, por vários motivos, e muito poeticamente se passa nas Paineiras. O melhor é darmos a palavra ao autor, a fim de que ele mesmo descreva o cenário:

            "Stélio se acha no terraço das Paineiras. Escreve, sentado a uma mesa. Vê‑se uma parte do hotel, o pavilhão envidraçado à E.. um trecho de bosque à D. O fundo de cena é todo neblina."

            Stélio, que é poeta, artista e revolucionário, escreve e lê isto, depois de escrito:

            "A hipocrisia dos que me acolheram entre lisonjas, me julgando rico, correu parelhas com a difamação promovida pelos perversos e o silêncio pretensioso dos falsos críticos; foices de salafrários, por entre a dentuça, expeliram sobre mim o insulto soez, abrindo‑se no meu caminho como cloacas humanas.. A esse sonhador solitário, cujo desespero, anunciado no trecho acima, não tardará em transformar‑se em desânimo, felizmente, em tão perturbado momento, surge a seus olhos uma verdadeira visão de divindade florestal; e isso ela o é já pela beleza que há de por força ter (o que é sempre indispensável em deuses e deusas seja de que religião for), já pelo mistério do aparecimento.

            É Ema que adivinha o sonhador, naquele desconhecido; e pergunta‑lhe o que faz.

            Pensa nos homens, responde; por isso acodem‑lhe maus pensamentos... nesta cavalgata de sombras do abismo social. Ser homem, é bem doloroso!

            O tormento do Sr. Saturnino vem daí; isto é, sabe bem qual é a armadura que nos pode proteger; mas sabe também que é daquelas armaduras divinas ou infernais dos romanos de cavalaria que os gênios bons e maus davam aos seus protegidos mas que estes não sabiam forjá‑las e nem qualquer outro mortal. Vem de não saber forrar‑se de egoísmo; e ei‑lo a ceder à fatalidade do seu temperamento, pregando, em prol dos outros, imprecando, amaldiçoando e maldizendo, em nome de um sonho que não toma corpo, que entrevê rapidamente e logo se esvai entre neblinas.

            Ele, porém, não cessa de sonhar, de imprecar, de exortar. A sua obra é de profeta da Bíblia e ninguém como ele obedece ao clamor que a injustiça do nosso estado social provoca da indignação dos bons corações.

            Surpreendido em colóquio com a druideza, pelo pai desta, o herói do Sr. Saturnino de Brito, ao ancião, que, segundo a filha, "foi simplesmente o terror dos maus que dominam a Beócia", dá‑se a conhecer pela seguinte forma arrebatada:

            "Mestre, pertenço ao número dos teus mais veneradores discípulos, aqui, e só me basta a honra de o ser sinceramente. Os apóstolos da regeneração, por meio da educação racional das massas mourejantes e da propaganda geral contra os preconceitos e os abusos do bronco capitalismo, aliado à política de rapina, tiveram também a sua influência entre nós. No teu olhar, no teu gesto, vibra e arde o ideal rubro, o ideal do sangue que só palpita pela Liberdade culta nesse gelo da Sibéria social cm que farejam os lôbos monetários e vaidosos... Aqui as feras que devoram as vítimas do trabalho fecundo são também inúmeras e de todos os matizes..."

            Todos os trabalhos do Sr. Saturnino de Brito têm sido dominados por esse pensamento que ele põe na boca do seu Stélio. É só lê‑los para o verificar.

            O ardor do seu gênio não lhe permite que as suas produções tenham a serenidade de expor fatos, de ordená‑los artisticamente, de modo que digam ao leitor mais do que dizem. O autor se apaixona, declama e abandona‑se à eloqüência. Ama a metáfora e a alegoria; e não tem o dom da ironia e da sátira.

            Tanto nas suas obras de ficção como nas de propaganda, a sua paixão não procura diques; ao contrário, como que se compraz em extravasar por todos os lados. Inunda tudo.

            Será defeito; mas também é denúncia da sua qualidade superior de escritor: a sua sinceridade.

            O real, como já disse alguém, o aborrece; e, no seu ideal, é que ele vive e faz viver os seus personagens. O mundo dele e das suas criaturas não é este; é um muito outro que se entrevê entre névoas.

            Querendo baixar até nós, o Sr. Saturnino fica prosaico e mostra‑se logo o escritor que não pode falar em tom familiar e em coisas familiares.

            Nesta coletânea de contos, que é a sua última obra e a que intitulou Da Volúpia ao Ideal, o autor do Socialismo Progressivo afirma completamente as tendências principais e superiores da sua atividade intelectual.

            Continua a ser o apóstolo disfarçado no literato; e prega com força e eloqüência o seu credo.

            O seu sonho grandioso de cooperativismo destinado a melhorar as condições de nossa vida; as afirmações de sua obra - A Cooperativa é um estado - vêm diluídas nas suas novelas a todo o propósito.

            O seu conto "Ana", embora outros também o denunciem, delata poderosamente essa feição primordial do artista que, enquanto dotado esplendidamente de outros dotes, não pode nunca esquecer a sua missão de sociólogo e apóstolo social.

            O Sr. Saturnino de Brito, tão enamorado da natureza como é, não ama as almas pelas almas, não se deleita unicamente com o choque de umas nas outras; ele quer contribuir um pouco para encher de esperança os que sofrem e não podem, e convencer os poderosos de que devem trabalhar, para que essa esperança seja um fato, e o mundo, longe de ser a geena que é hoje, venha a ser uma festa perene.

            Bendito seja tão nobre e desinteressado escritor! Ele vale pelo que vale o seu pensamento, e este é grande, e é belo!

A.B.C., 5‑2‑1921.

 

O TRIUNFO

            O Sr. Ranulfo Prata teve a bondade e a gentileza de me oferecer um exemplar de seu livro de estréia - O Triunfo. Eu o li com o interesse e o cuidado de todos os livros de moços que me caem nas mãos, pois não quero que um só de talento me passe despercebido.

            É um romance, antes, uma novela em que o autor revela grandes qualidades para o gênero.

            Já possui a sobriedade de dizer, a naturalidade do diálogo e não limalha a frase estafadamenente.

            O personagem principal - o triunfador - é estudado com toda a minúcia e exatidão.

            O seu caráter amoldável, fácil, e capaz de todas as dedicações, é nitidamente examinado e explicado.

            Compraz‑se o Sr. Ranulfo Prata no detalhar uma pequena cidade do interior da Bahia e, apesar desse gênero de estudo ser por demais comum, a sua pintura de Anápolis sai muito viva e original.

            Teimam todos os romancistas que tratam de tais cenas, em atribuir às moças dessas cidadezinhas, beleza.

            Algumas vezes que tenho visitado tais vilarejos, nunca encontrei uma moça que a tivesse.

            A Angelina do Sr. Prata é linda, é bela e, de meninota da roça, passa logo a "coquette" do Rio, cheia de amantes.

            A minha experiência a esse respeito é infelizmente nula e não posso apresentar objeção de preço, mas duvido que seja assim.  Contudo, tudo isso são nugas sobre as quais não quero insistir.

            Tais são as qualidades do livro, tais são as promessas que ele encerra, que o meu dever de escritor e justiceiro é animar o confrade, pedindo que ele continue, que ele se esforce mais, a fim de tirar da nossa vida brasileira obras de arte dignas da imortalidade dos séculos.

            O Triunfo está cheio de cenas de costumes cativantes.

            A rivalidade das bandas de música é uma delas e eu não posso deixar de transcrever aqui a descrição da representação de um drama, num teatrinho do interior. Ei‑la:

            "Entrava o terceiro ato, o último. O drama encerrava um poderoso exemplo de moral. Os protagonistas eram a mulher de um pintor, o pintor e um conde.

            "O papel de pintor coube ao Paiva, que o encarnou muito bem, de carmim nos lábios, gravata preta e olhar romântico. O conde era um rapaz alto, de cabeleira, aprendiz de alfaiate. Ele queria à viva força possuir a fresca mulher do pintor, que resistia tenazmente, apesar do ouro oferecido. Uma noite, não podendo sufocar o seu desejo, penetrou audaciosamente no humilde lar do artista e quis forçá‑la, recebendo uma grande bofetada. O pintor casualmente entra no momento, e raivoso, alucinado, - o que o Paiva fez muito bem - quer estrangular o fidalgo.

            A mulher fiel pede‑lhe, de joelhos, que não o faça.

            O conde, humilhado, ali mesmo saca do revólver e suicida‑se.

            "Quando o pano caiu a platéia aplaudia delirantemente, vertendo lágrimas de emoção."

            Com tantas e superiores qualidades, é de esperar que o Sr. Ranulfo Prata venha a ser um grande romancista, a quem aconselho abandonar toda a preocupação de elegâncias para só atender o que é propriamente de sua arte: a alma humana e os costumes.

            Tive com a leitura do seu livro o máximo prazer e espero que se repita em um segundo livro que, em breve, estou certo, ele nos dará.

            Se ainda lhe falta, talvez, uma profunda e sagaz visão da vida, sobram‑lhe outras qualidades de escritor que suprem aquela falta.

            Com o tempo, o jovem escritor corrigirá os defeitos e nós teremos um grande romancista digno das nossas letras e dos destinos da nossa língua.

            É desejo de quem escreve estas ligeiras notas e o faz ardente e sinceramente.

A.B.C., 28‑9‑1918.

 

O SECULAR PROBLEMA DO NORDESTE

            O Sr. deputado Ildefonso Albano mandou‑nos a 2.a edição, como já mandara a primeira, do seu excelente discurso sobre O Secular problema do nordeste. Não é bem o que nós, merecidamente, com os nossos costumes de Assembléias e Câmaras Legislativas, chamamos discurso. É aquilo que os antigos chamavam por esse nome, isto é, uma dissertação, menos do que um "tratado", mas que toca em todos os pontos do tema presente.

            E eu me atrevo a lembrar, para elucidar o que afirmo, o Discours sur 1'histoire universelie, de Bossuet; e o Discours sur la méthode, de Descartes. Ambas essas obras são clássicas e conhecidas de todos; e creio não haver a mínima exibição de sabença, ao citá‑las aqui.

            A obra do Sr. Ildefonso Albano é, pois, um quadro muito vasto desse atroz problema das secas chamadas do Ceará, que de há muito deviam ter preocupado todos nós brasileiros, de norte a sul, de leste a este, em todos os pontos do nosso território.

            Nós não podemos estar limitados a, quando elas aparecem, organizarmos bandos precatórios, festivais de caridade, mais ou menos mundanos, oferecer terra e trabalho aos "retirantes", despovoando uma grande região do Brasil, para povoar ou encher de necessitados outras.

            Todas as que têm aparecido já deviam ter nos ensinado que o caminho era outro e os trabalhos que lá se têm feito e não têm resultado palpável, já nos deviam também ter ensinado que tais trabalhos, por serem mofinos e mesquinhos, deviam ter seguido outra orientação mais ampla e audaciosa.

            Os trabalhos dos ingleses no Egito; dos franceses, na Argélia; dos americanos no Colorado, creio, mostram que nós podíamos seguir no Ceará e proximidades esse mesmo rumo de audácia eficaz que tem dado tão bons resultados àqueles.

            Se nós temos tido não sei quantas centenas de mil contos para valorizar, de quando em quando, quase anualmente, o café, por que não temos outro tanto para tornar fecunda uma grande região do país que é das mais férteis, exigindo só uma correção, relativamente mínima, na sua distribuição de águas ou na correção da declividade de seus rios, para que venha a sê‑lo de fato?

            Devido à inclinação do seu solo, como explica o Sr. Dr. Ildefonso Albano, conjuntamente com a fraca espessura do seu solo permeável, o Ceará vê o seu subsolo pouco infiltrado e os seus rios correrem somente três ou quatro meses no ano.

            De forma que, quando a chuva é escassa, a terra fica ressequida e os rios tão secos, e é então que se desenrola toda aquela lancinante tragédia do Ceará e proximidades.

            Como em geral nos fenômenos meteorológicos não se pode determinar o seu período de sucessão, de modo que nunca se pode prever quando é o ano de chuvas escassas e o ano de chuvas abundantes.

            Sendo assim, os habitantes daquelas flageladas regiões são tomados de surpresa, hoje, apesar das nossas pretensões de termos decifrado a natureza, por meio da ciência, como já no começo do século XVII foram também os primeiros conquistadores do Ceará. Tomo a citação do Sr. Ildefonso Albano.

            "Rezam as crônicas antigas que em 1603, Pêro Coelho de Sousa, homem nobre, morador na Praiva (?) do Estado do Brasil, com Diogo Campos Moreno, 80 brancos e 800 índios, marchou até o Jaguaribe, onde no Siará ajuntou a si todos aqueles índios moradores, foi até a serra de Buapava e teve grandes recontros com os tabajaras de Mel Redondo, e deu‑lhe Deus grandes vitórias. Por falta de provimento e socorro, voltou ao Jaguaribe, onde fundou uma povoação com o nome de Nova Lisboa. De volta para Pernambuco, se veio deixando tudo miseramente a pé com sua mulher e filhos pequenos, parte dos quais pereceram de fome.

            "Daí para cá se têm sucedido com cruel periodicidade os tétricos fenômenos, que expulsaram do Ceará o primeiro civilizado, depois de lhe arrebatar os inocentes filhinhos, cujos nomes encimam a lista fúnebre das vítimas da seca, lista longa e interminável, que ainda está por encerrar.

            Desde essa primeira notícia, que esse vale do Jaguaribe, sem que o seja em prazo de tempo regular, tem sido assolado pelas secas e mal convalesce de uma, cai‑lhe outra em cima. Teimoso que é de continuar a mostrar nos seus constantes renascimentos que é capaz das maiores possibilidades, ele continua a pedir sábios trabalhos hidráulicos, para produzir o melhor algodão do mundo.

            É preciso que eles se façam, não só aí, mas em todas as partes que eles forem precisos, não timidamente, como é dos nossos costumes, tanto de engenheiros, como de outra profissão, mas com largueza qualquer e audácia.

            É preciso que façamos cessar, todos nós brasileiros, esse horrível espetáculo, que o Sr. Ildefonso Albano ilustra com os mais dolorosos documentos tanto iconográficos, como literais.

            Como isto aqui é uma simples notícia de vulgarização de um trabalho que precisa ser divulgado e não uma crítica que não tenho competência nem estudos especiais para fazer, não me furto ao dever, na impossibilidade de também reproduzir as gravuras que um amigo do Dr. Albano queria fossem reproduzidas, de transcrever algumas cartas e outros documentos particulares, para comover o coração dos mais duros.

            Em data de 16 de fevereiro de 1916 o padre Raimundo Bezerra, vigário de Jaguaribe‑mirim, acusa a recepçao de 400$ e diz:

            "Como é grande a necessidade do povo, encontrando‑se pessoas caídas de fome, resolvi socorrê‑las e empregar o resto do dinheiro em sementes. O povo não pode mais resistir e nesses dias morrerão muitos de fome."

            Mais outro: O vigário de Ipueiras, padre J. de Lima Ferreira, em data de 26 de agosto de 1915, agradecendo a remessa de 300$, escrevia:

            "Os famintos aqui se acham em extrema miséria. Muitos estão quase completamente nus. Ipueiras sempre foi um município pobre; demais acha‑se alojada aqui uma grande porção de emigrantes de outras freguesias."

            Eu poderia tirar do livro do Dr. Ildefonso Albano mais outros depoimentos simples e tocantes do que é uma seca; mas os que aí vão já bastam para que todos procurem na sua obra uma imagem bem viva do que ela é.

            Registro, ainda uma vez, que este pequeno escrito tem unicamente por escopo chamar para ela toda a atenção dos brasileiros.

            Todos nós nos devemos interessar por esse problema e de interessa todos nós. Se se pode compreender - Pátria - é como um laço moral e esse laço não nos pode permitir que deixemos à míngua, de épocas em épocas, milhares de patrícios a morrer miseravelmente...

            Nada de paliativos; grandes obras para que elas cessem ou sejam atenuadas antes que aquilo lá fique um Saara, sem oásis.

            Para isso toda a propaganda é pouca. Eu fiz aqui o que pude.

A.B.C., 21‑9‑1918.

 

ANITA E PLOMARK AVENTUREIROS

            No ano passado, estando eu nos arredores de Ouro Fino, passando tempos em casa de um amigo, empregado na colônia federal Inconfidentes, que fica distante oito quilômetros daquela pequena cidade do sul de Minas, tive ocasião de ler pela primeira vez um livro de Teo Filho.

            O meu bom amigo era o Emílio Alvim, que havia sido durante anos secretário de jornais de péssima fortuna, e, como secretário, tinha organizado uma econômica biblioteca característica dos secretários de jornal.

            Quem vive neles pode logo imaginar em que consistem elas. Constam de publicações oficiais, em geral do Ministério da Agricultura, de "plaquetes" de versos ou de discursos laudatórios, de obras de autores gabadas, mas que, em geral, ninguém as lê ou procura. Todas chegam aos jornais por oferecimento dos editores e autores.

            Alvim tinha além de exemplares das edições dos Srs. Rodolfo de Miranda e Toledo, inclusive aquele famoso tratado de agricultura da Sra. Júlia Lopes - Correio da Roça - tinha, dizia eu, obras de Sr. Alberto Torres, do Sr. Oliveira Lima e, também, um romance do nosso Teo Filho - Mme. Bifteck‑Paff.

            Dos três, só conhecia bem o Sr. Oliveira Lima, a quem desde menino, desde a Revista Brasileira, do saudoso José Veríssimo, me habituei a ler com interesse e carinho; mas, dos dois outros, nada havia lido em livro. Li‑os lá.

            O Sr. Alberto Torres me pareceu um fabricante de constituições, uma espécie de Sieyès, à espera de uma nova revolução francesa com os seus desdobramentos inevitáveis.

            Teo, porém, de quem eu tinha lido um artigo de jornal ou outro, mal lhe conhecendo a feição literária, por uma crônica de Patrocínio, em que me surgiu como um aprendiz de Casanova - Teo me surpreendeu.

            Achei o seu romance raro, vivo, muito natural, perfumado de graça, à Willy; enfim, uma pintura da vida pernambucana com todos os aspectos de fidelidade, tanto no que toca às almas, como no que se refere ao ambiente em que elas se moviam; e tudo isto sem pedantismo de frase ou exibições de uma sabedoria de empréstimo.

            Agora, tenho em mãos, e acabo de ler, um novo livro seu, escrito de colaboração com o Sr. Robert de Bedarieux, que deve ser um autor extraordináriamente novo. É o Anita e Plomark - aventureiros.

            Confesso que a leitura deste não me deixou tão forte impressão quanto a do outro. O par de aventureiros agita‑se em um meio de "rastas" parvos, de patifes de toda a sorte e origem, de gente que perdeu a alma ou nunca teve uma, formando uma corja que pode ser "sui‑generis", mas que me é visceralmente antipática. Perdôo os criminosos declarados; são menos cínicos.

            Não posso compreender nem perdoar semelhantes vagabundos de caso pensado, a vida desses inúteis sem desculpa alguma, desses estéreis de todos os modos, sem nada de sério na cabeça, sem uma paixão, sem uma mania, sem se intimidarem diante do mistério da vida e sem uma ingenuidade sequer. São espíritos perversos demais e o cansaço da vida não lhes vem do trabalho próprio, nem dos seus ancestrais, mas de uma inata maldade aliada a uma perfeita incompreensão das altas coisas da natureza e da humanidade.

            Para os machos como tais, o "gato de nove caudas" ou a roda das penitenciárias; para as fêmeas como essa Anita, que Teo parece querer exaltar, só lhes desejo a guilhotina. A "Nouvelle" seria menos gentil.

            A prostituição na mulher é a expressão de sua maior desgraça, e a desgraça só merece compaixão quando é total, quando é fatal e nua. Não gosto dos disfarces, das intrujices, das falsificações e, sobretudo, do aproveitamento dessa sagrada marca do destino, para ludibriar os outros.

            A prostituta só é digna da piedade e respeito dos homens de coração, quando ela o é em toda a força do seu deplorável estado, quando ela sabe com resignação e sofrimento arcar declaradamente com a sua tristíssima condição. Não é assim a heroína do romance de Teo Filho; não é mesmo o que os venezianos da Renascença chamavam, com tanto respeito, uma hetaira "onesta", isto é, a cortesã eivada de arte, ensopada de poesia, com certo desinteresse natural e, talvez, uma tal e qual generosidade espontânea.

            Ao contrário, Anita, como em geral, as mulheres públicas da nossa sociedade burguesa, é de uma estupidez assombrosa e sem nenhum traço superior de coração ou inteligência.

            Os fisiologistas às vezes, para vencer certas dificuldades, estudam de preferência o órgão doente para lhe descobrir a função em estado normal; por Anitas e outras, nós poderíamos muito bem estabelecer o funcionamento normal da mentalidade feminina na nossa sociedade.

            O assassínio que ela pratica tem tanto de útil quanto de estupidamente executado.

            Há mesmo quem diga que, a não ser por defeito orgânico, a mulher só se prostitui por estupidez. Não será tanto assim, mas há muitos estados intermediários entre a senhora de família e a meretriz, estados que as mais atiladas aproveitam muitas vezes para sair da prostituição declarada.

            É verdade que a riqueza e o luxo tentam, mas o luxo e a riqueza, quando verdadeiros e francos, são acidentes na carreira das hetairas.

            Geralmente, o primeiro amante não é o velho rico da lenda. É da camada delas, dos seus recursos, mais ou menos; e as raparigas do prazer se recrutam, em geral, nas modestas classes.

            Creio que foi Maxime du Camp quem demonstrou isto em um estudo sobre a prostituição em Paris.

            E depois deste primeiro amante, seguem‑se outros equivalentes, e e "sorte grande" o amásio rico e gastador constante.

            Não é pois admirável que uma inteligência lúcida espere retirar de tão degradante estado as fortunas que, por exemplo, homens medíocres sabem sacar de oportunidades, "convênios, defesas, valorizações, auxílios às usinas de açúcar" e outros sutis expedientes honestos da gente progressista de São Paulo.

            Os homens têm tais recursos, dirão; mas as mulheres?

            Que procurem tais homens, pois, para elas, são eles muito fáceis. Anita faz isto, dir‑me‑á Teo. Não, meu caro; ela mata e rouba, sem necessidade de tal. Mas... vi que aí seria discutir o livro no meu ponto de vista - o que é coisa bastante impertinente, senão idiota. Tenho que aceitá‑lo tal qual é, em bloco; e olha, nada perde com isto.

            Há, no novo romance de Teo Filho, e talvez o próprio autor não tenha percebido, um aspecto que o torna notável e muito me interessou. É como ele mostra o mecanismo espiritual pelo qual se dá esse estranho fenômeno do caftinismo, essa abdicação da vontade da mulher, toda inteira, na de um homem, esse domínio de corpo e alma do rufião sobre a meretriz, esse ascendente, quase sempre unicamente determinado por laços psicológicos, em que não entra a mínima violência.

            Teotônio analisa muito bem como uma mesquinha alma de mulher, abandonada no vício, perdida, já meio‑criminosa, sente o vazio ao redor dela e tem medo desse vácuo moral, espiritual e sentimental. Ah! Essa solidão...

            Não terá mais afeições, e as que vai obtendo aqui e ali, só são mantidas graças à ignorância do seu verdadeiro estado, dos seus antecedentes; e, por mais que ela possua força de amor em uma delas, está certa que o resfriamento virá, desde que o afeiçoado saiba quem ela é. Só lhe resta o cáften. É ele o seu único apoio moral, a única alma que se interessa, sem indagação, por ela, e a aceita como ela é. No caso, é Plomarck. Estranha Cavalaria... Ela o ama? A bem dizer, não; mas precisa dele no mundo, na vida, onde uma mulher, ao que parece, não pode existir sem o apoio de um homem qualquer, seja ele marido, pai, irmão, filho, amante ou mesmo cáften.

            Sob este aspecto, o livro é notável como análise de um dos mais curiosos fenômenos da psicologia mórbida dos nossos tempos. Não afirmo que seja peculiar à época atual, pois há quem diga que ele é tão geral entre judeus, pelo simples motivo de que o Velho Testamento está recheado de exemplos de alguma coisa análoga e são conhecidos de nós todos; mas, seja como for, com dados atuais, a análise é sagaz no livro de Teotônio.

            Anita e Plomarck, aventureiros - é um livro singular e curioso por todos os aspectos que se o encare. Descrevendo esse meio de "parvenus" e "toquées". de todos os países e côres; desenrolando‑se quase todo nas paisagens delambidas e ajeitadas, "ad usum Delphini", da Côrte D'Azur; retratando a estupidez de recentes ricos, de damas "chics" e gatunos de alto coturno, que não atinamos para que roubam; evidenciando o sáfaro de todos eles - a novela nos prende pela estranheza do assunto, e sempre pela vivacidade dos matizes que o autor emprega nas breves e firmes descrições de que está cheio. É, de fato, um livro: e basta isto, creio eu, para torná‑lo digno de atenção.

A.B.C., 16‑2‑1918.

 

ELOGIO DO AMIGO

            Não sei como possa dizer bem da atividade literária de Nestor Vítor. Eu o conheci menino, quando fazia preparatórios no Ginásio Nacional.

            Nesse tempo, Nestor era vice‑diretor do Internato; e eu não gostava dele. Correm os tempos e aquele homem que me parecia seco, dogmático, cheio de sentenças, surge‑me deliciosamente como uma grande alma, capaz de dedicações e sacrifícios.

            Comecei a ler‑lhe as obras. Há nelas alguma coisa daquela secura que lhe notei em menino. Ele não é efusivo e revolto. Nestor é uma floresta do Paraná. Não tem entrelaçamentos dos nossos cipós nem as surpresas de variedades de essências que a nossa mata tropical ou subtropical oferece.

            As árvores de sua floresta são quase sempre de uma mesma espécie; são como as do Paraná; são araucárias, e sempre araucárias.

            Não há árvore mais monótona e mais fácil de explorar do que ela. A nossa floresta tropical ou subtropical é triste, mas grandiosa e impressionadora. Tudo nela é mistério, pululamento de vida, interrogação; mas as araucárias são de uma tristeza impassível e sem eloqüência.

            Entretanto, graças ao atrativo do contraste, eu aprecio Nestor, nas suas obras, quando ele revela as modalidades naturais do seu temperamento.

            Neste Elogio do Amigo mais do que em nenhuma obra, eu vejo Nestor meditativo, solitário, como um pinho do Paraná, com as suas escassas ramagens, a querer atingir um outro que lhe fica bem distante.

            Nestor é bem um amigo dessa forma, porque ele o soube ser de um pobre preto que teve audácia de fazer versos, e foi excomungado por ser preto e fazer versos, como se neste país todos nós não fôssemos mais ou menos pretos e todos nós não fizéssemos versos.

            Não há na literatura brasileira, a não ser a amizade de Sílvio Romero por Tobias Barreto, outro exemplo de tão forte amizade literária que esta de Nestor por Cruz e Sousa.

            Li este seu livro, em que Nestor tão bem retrata o seu íntimo de amigo, a sua força de amar o camarada; li‑o, repito, cheio de embevecimento e entusiasmo.

            Nunca amei; nunca tive amor; mas sempre tive amigos, nos transes mais dolorosos da minha vida.

            É por isso que gostei muito do livro que o meu amigo Nestor Vítor me ofereceu e que me deu extraordinária satisfação intelectual.

A.B.C., 5‑8‑1922.

 

UM ROMANCE SOCIOLÓGICO

            A fazenda "Boa Esperança" está situada no vale do rio Grande, daquele rio Grande que, recebendo o Paranaíba, forma o grande Paraná. Colocada nesse vale e nas divisas de Minas e S. Paulo, próxima à serra da Canastra, em que nasce tanto aquele rio, como, na vertente oposta, o São Francisco, a grande propriedade agrícola sofre o influxo e a influência de gentes do sul do Brasil, pelo vale do Paraná; do norte, pelo de São Francisco, assim como, pelos afluentes e confluentes destes dois grandes rios, das de Goiás e Mato‑Grosso.

            Carreiros, boiadeiros, tropeiros e vagabundos, já não contando com ciganos e índios mansos, dos quatro pontos cardeais do sertão do Brasil passam pelas proximidades e, por ela mesmo, no romance do Sr. Veiga Miranda, Mau Olhado, que a todos descreve e analisa soberbamente. Segundo Guyau e pelas suas intenções, classificarei de sociológica a sua interessante novela.

            Esse tipo curioso da nossa antiga propriedade agrícola, que é a fazenda, pinta‑o e descreve‑o o autor com minúcia e carinho.

            Isolada na sua vastidão, a fazenda era como um feudo em que o seu dono governava, distribuía justiça, ditava leis, a seu talante, só não cunhava moeda para vir a ser um verdadeiro príncipe soberano. Falta‑lhe também o aspecto militar do feudo antigo, para ter uma completa semelhança com o senhorio medieval.

            A "casa grande" não o possui como o tinha o castelo antigo. Não há barbacãs, ameias, fossos, pontes levadiças, homens d'armas; e mesmo a nossa capangada só aparece no latifúndio quando as rixas entre senhores de fazenda, vizinhos, chegam ao auge. Essa espécie de "bravi" está sempre à mão, ao alcance do primeiro chamado, mediante boa paga. Não se fixa, ou raramente.

            A "Boa Esperança" é um perfeito tipo de fazenda: e ela fornece aos proprietários, agregados e escravos todo o necessário à vida, exceto o sal.

            É mais completa que muitas outras que não fornecem o pano, mas que a do alferes Malaquias, dá, por intermédio da lã, cardada e tecida, dos seus grandes rebanhos de ovinos. Lá, só se compra o sal...

            É a fazenda, a descrição de sua vida total, o objeto do livro. A impressão que se tem é magnífica; mas, acabada a leitura da excelente obra do Sr. Veiga Miranda, cujas vistas sociais, sociológicas, seria melhor dizer, se traem no propósito e no desenvolvimento de sua novela, o leitor menos comum procura alguma coisa que lhe falta. É o escravo. O jovem e talentoso autor paulista só se ocupa dele na cena do batuque e, no mais, deixa‑o como simples, nome ou alcunhas interessantes. A justificativa que não havia nela, na fazenda, castigos, não me parece valiosa. A antiga propriedade agrícola de um tipo geral, e por sê‑lo, que o Sr. Veiga Miranda tratou, não podia existir sem o escravo que ela supõe. O eito, o banzo, a vida da senzala, etc., fazem‑lhe falta e como deixam o estudo desse elemento da fixação da nossa população rural, inacabado.

            Darwin que visitou uma, algumas décadas antes da ereção daquela que é o cenário do Mau Olhado, não deixou de vê‑los e senti‑los, nos arredores do Rio de Janeiro.

            No seu livro em que narra a viagem que fez, a bordo da corveta, creio eu, em torno do mundo, "Beagle", ele, se bem que ligeiramente, alude a eles.

            A fazenda do "Sossêgo", ali pelas bandas de Maricá, propriedade do Sr. Manuel Figueiredo, diz Darwin, tinha, pondo de parte a idéia de escravatura, alguma coisa deliciosa na sua vida patriarcal, tão profundamente nela se está separado e independente do resto do mundo.

            Mais adiante, conta o autor da Origem das Espécies:

            "Uma madrugada fui passear uma hora antes de sair o sol para admirar, à minha vontade, o solene silêncio da paisagem, mas, bem depressa ouvi elevar‑se nos ares o hino que cantam em coro os negros no momento de começar o trabalho."

            Ao grande naturalista inglês, nesta passagem e em algumas outras, não escapou o fenômeno social da nossa escravatura e o Sr. Veiga Miranda, que é inegavelmente um escritor moderno, sagaz e ilustrado, não devia ter esquecido esse ponto que o tema do seu romance como que torna primordial e requeria ser estudado à luz das modernas correntes de pensamento superior.

            A boa compreensão, ao jeito artístico da alma do escravo, explicaria melhor aquela atmosfera de crendice e abusão que desde o começo cerca os personagens do drama, ergue o feiticeiro Lelé às culminâncias de guia de multidão e aniquila o padre Olívio, atmosfera essa em que morre de amor por este a interessante Maria Isolina, protestando tragicamente contra a sua infecundidade imposta e criada pelas regrinhas da sociedade.

            Nada temos, porém, de dizer quanto ao que não foi feito no seu livro, pelo Sr. Veiga Miranda; compete‑nos falar do que o foi.

            Nessa parte a obra é de uma rara virtuosidade de execução que às vezes peca pela exuberância do detalhe. À grande tela em que o autor trabalhou com ciência e vigor, não faltou nenhuma pincelada para o seu bom acabamento. Não só os personagens principais e secundários; mas as cenas domésticas, as das indústrias agrícolas próprias à fazenda, o Sr. Veiga Miranda não se limita a esboçá‑las rapidamente. Ele as acaba e as arredonda suavemente.

            Não me lembro de autor moderno nosso que seja tão cuidadoso nesse ponto como o autor do Mau Olhado. Vejam só este trecho que trata do empalhamento de rapaduras:

            "Ao longo da mesa, à sua frente (do padre Olívio, filho de fazendeiro) à sua direita e à esquerda, os antebraços das mulheres agitavam‑se, de mangas arregaçadas, envolvendo as rapaduras, enlaçando as embiras, dando os nós fortes. O padre ficou entre a madrasta (Maria Isolina) e a Placidina, filha do Laurindo Bravo, a destemida virgem selvagem que se entregara por um ímpeto carnal ao mais valente tropeiro do sertão, matando‑o pouco depois, como as abelhas rainhas, e trazendo para a casa, dentro do seio, as duas orelhas ainda sangrentas. E, à sua frente, ficavam as duas primas mais velhas, Leonor e Gabriela, ladeando como sempre a figura alegre de Ismênia, com o seu rosto comprido, sardento, e o nariz acarneirado, um todo de traços meio masculinos, puxando muito aos do pai.

            "Iaiá, (a filha, mais velha do fazendeiro) não tomava parte na tarefa noturna. Continuava a caber‑lhe a mordomia da casa, desempenhada ainda com grande exibição de atividade e meticulosos zelos. Mandava logo ao começo uma bandeja de café, servido primeiro aos dois compadres e a Lelé (que andava agora nas boas graças de ambos, cercado cada vez de maior consideração, depois que os convencera de que salvara Maria Isolina), e depois transitado ao longo da mesa pelas empalhadeiras. E daí a pouco mandava colocar sobre a mesa, em vários pontos, travessas e peneiras cheias de pipocas.

            "Olívio adestrou‑se em pouco tempo no mister que lhe designaram. Escolhia para a madrasta as palhas mais macias, receando que o contato das outras a arrepiasse, desembaraçava as embiras, uma a uma, com cuidado, ajudando‑a até a enlaçar com elas os molhos já formados. Maria Isolina repreendia‑o de quando em quando, brincalhona, por uma demora, pelo defeito de uma palha, falando‑lhe com vivacidade infantil, os olhos brilhantes, parecendo mais largos sob a luz forte do lampião belga.

            "Olívio, de fato, se deixava apoderar, com intermitências, por uns alheamentos esquisitos, etc., etc."

            Maria Isolina, a madrasta, que casara muito moça com o fazendeiro, o alferes Malaquias, depois do primeiro contato matrimonial, violento e animal, num pouso de caminho, se tomara de uma invencível repugnância pelo marido e viera a adoecer duradoura e inexplicavelmente depois do primeiro e único parto mal sucedido.

            Após a chegada do enteado, Olívio, que saíra padre, do seminário de Mariana, feio e cheio de espinhas, tímido e triste, a moça alquebrantada se apaixonara secretamente por ele. Uma quadrinha que há no romance, tenta dizer o indefinido mal dessa parada de sentimento:

 

Sina do meu coração,

Fui aprender a amar bem cedo,

E guardar a vida inteira

Esse amor como um segredo.

 

            O autor, com muito relevo e habilidade, gradua esse sentimento da sinhá dona da "Boa Esperança" e o marca por gestos e palavras muito expressivos.

            Nessa mesma passagem do empacotamento de rapaduras, ao descobrir que o padre estava fornecendo embiras a Placidina, apossa‑se de Isolina uma raiva súbita que a leva a expulsar, sem motivo nem causa, do serão, a pobre agregada.

            A figura central e mais original do romance é o Lelé. Feiticeiro e sacristão, letrado a seu modo, rábula de câmaras eclesiásticas, onde vai freqüentemente para arranjar o desimpedimento de matrimônios entre parentes próximos, esse Lelé confunde, mistura e combina, as crenças superiores da Igreja Católica com as primitivas do animismo fetichista dos negros e índios. Alia a isso, uma medicina de pajé, com a sua terapêutica de ervas silvestres, cozimentos, rezas e exorcismos. É médico e sacerdote.

            Um tanto crente e um tanto impostor, aproveitando‑se de epidemias e desgraças climatéricas, emprega o seu ascendente sobre o povo e também sobre os senhores de fazenda em cujo espírito o seu prestígio se tinha infiltrado, transforma a todos em fanáticos obedientes ao seu mando, para vingar‑se do padre e realizar a sua estulta e bronca ambição de pontificar como um bispo autêntico na capela branca da fazenda "Boa Esperança".

            O Sr. Veiga Miranda põe todo o seu talento de observação e de psicólogo dos indivíduos e das multidões para o estudo e a ação desse personagem.

            Ele percorre o livro todo e é como que a alma da obra.

            Os personagens secundários, sobretudo a Borginha, a filha mais moça do fazendeiro, traquinas e desenvolta, são todos bem característicos e as concepções familiares e domésticas do Zamundo Bravo, lugar ‑tenente de Malaquias, e de seus filhos, filhas e noras, são documentos preciosos para o estudo dos nossos costumes do interior, onde todos, a começar pelos de lá, põem a máxima pureza e moralidade.

            Analisar o livro, detalhe por detalhe, seria, para mim e para os leitores, fastidioso e fatigante. Lê‑lo será melhor para travar conhecimento com um autor nacional que, às qualidades exigidas a um simples romancista, alia as de um psicólogo da nossa curiosa "multidão" roceira e as de um sociólogo que veio a sê‑lo passando pela geometria.

            E, por falar nisto, não nos despedimos do Sr. Veiga Miranda e do seu belo livro, sem lhe fazer uma crítica de mestre‑escola. Diz o autor, pág. 241:

            "Pairavam (os corvos) primeiro no alto, quase imperceptíveis, milhares, e iam baixando numa espiral invertida, até o ponto do banquete."

            Será mesmo espiral?... Riamo‑nos um pouco como bons camaradas que somos... Até logo!

Revista Contemporânea, 26‑4‑1919.

 

LIMITES E PROTOCOLO

            O Sr. Noronha Santos, diretor do Arquivo Municipal desta cidade, acaba de imprimir e publicar, por ordem e conta da respectiva Prefeitura, uma excelente memória sobre os limites desta leal e heróica "urbs" com o Estado do Rio.

            À vontade para falar dessas questões de limites estaduais, a propósito de sua curiosa obra, porquanto sou carioca, aproveito a ocasião para o fazer de um modo geral.

            O seu trabalho, que é exaustivo e minucioso, sofre do mesmo erro de visão que os demais referentes a tais questões.

            Todos eles querem ir buscar, como argumento decisivo da validade de tal ou qual linha divisória entre as antigas províncias, os documentos oficiais, decretos, portarias, avisos e outros atos administrativos.

            Um trabalho desses, que revela esforço e paciência, se não inteligência e capacidade, tem, entretanto, o pequeno defeito de esquecer que nem o Império e, muito menos, o governo colonial, tinham em mira, quando dividiram e subdividiram o Brasil, criar nele nacionalidades. O seu fito era outro: era obter províncias, comarcas, capitanias, termos, que, por meio de delegados seus, neles prepostos, permitissem ser mais bem dirigidas estas terras. O Amazonas e o Paraná nasceram ontem...

            Não se trata de linhas rígidas e imobilizadas no tempo. A precisão era‑lhes então absolutamente indiferente, por muitas razões. Uma delas é que eles, ambos os governos, podiam alterá‑las quando quisessem; uma outra é que a topografia do interior brasileiro devia ser mal conhecida, baralhada de denominações e corruptelas de denominações tupaicas, que cada um pronunciava a seu modo; e há outras causas que agora me escapam, para dar a tais documentos um valor muito relativo e sem valor para nós outros, agora que queremos organizar pequenas pátrias.

            Podem objetar que, quanto aqui, o Distrito Federal, segundo a terminologia republicana, não militam tais causas. Não há tal. Nós podemos bem imaginar o que era tudo isto, há cerca de cem anos, quando a Regência criou, em 1833, o Município Neutro. Era o indistinto. A barafunda devia ter sido a mesma, como nas outras partes do Brasil, tanto assim que um Ministro de Estado, o Conselheiro Chichorro da Gama, aludindo a obras do canal da Pavuna relatou‑as à Assembléia Geral do Império, como estando sendo efetuados na Província do Rio de Janeiro e no Município do Iguaçu.

            Os limites do atual Distrito Federal, entretanto, já haviam sido fixados no ano anterior. Aprendi tudo isto na obra do amigo Noronha Santos (o da Prefeitura), e não quero com isso de forma alguma diminuir‑lhe o trabalho e o mérito.

            O que me parece, entretanto, é que semelhantes trabalhos, que demandam tantas qualidades de inteligência e caráter, podiam ser mais bem empregados para um mais perfeito conhecimento da fisionomia do nosso povoamento, dos seus caminhos, das razões de fixação da população aqui e ali, onde e por que influíram os índios e as suas denominações locais, onde e por que aconteceu tal coisa com os negros e onde e por que se deu tal com os portugueses, não esquecendo as pequenas localidades onde todos estes três elementos se misturaram.

            Considerações ligeiras sobre trabalho de tanta monta, elas só têm por fim justificar ao meu ilustre amigo, Dr. Noronha Santos, as palavras que lhe disse, no Arquivo Municipal, há dias:

            - Estas questões não têm, para mim, senão uma importância mínima. Deviam ser resolvidas por amigável acordo.

 

            Temo muito transformar esta minha colaboração no A.B.C., em crônica literária; mas recebo tantas obras e a minha vida é de tal irregularidade, a ponto de atingir as minhas próprias algibeiras, que, na impossibilidade de acusar logo o recebimento das obras, me vejo na contingência de fazê‑lo por este modo, a fim de não parecer inteiramente grosseiro.

            Está neste caso o trabalho do Sr. Orris Soares, a quem aqui muito conheci, mas que me chega da atualmente benfazeja Paraíba. Chama‑se Rogério e é um drama em três atos.

            O Sr. Soares é autor de mais quatro outras peças, das quais três consideráveis, sendo que uma destas, - A Cisma - foi aqui muito elogiada, quando publicada, porque o dramaturgo não tem tido a felicidade de obter a representação das suas produções teatrais. E é pena, porquanto, pela leitura - estou julgando por esta do Rogério - elas deviam ser merecedoras dessa experiência.

            Na atual o autor intenta o estudo do drama íntimo que se deve passar no peito de um revolucionário, generoso e sincero, originado pelo choque e luta entre a violência e a brandura, com os respectivos cortejos de sentimentos derivados.

            Ele, o autor, simbolizava uma em Débora - espécie de Thervigne, - a outra, em Malvina.

            Admirei muito a peça, o estudo dos personagens, da protagonista, embora me parecesse ela não possuir uma certa fluidez. Isto nada quer dizer, porque é qualidade que se adquire. As que não se adquirem são as que ele têm: poder de imaginar, de criar situações e combiná‑las.

            A cena final da loucura do terrível revolucionário - Rogério - julgando‑se rei e coroando‑se com uma caixa de papelão, é maravilhosa, e intensa.

            É uma peça revolucionária, inspirada nos acontecimentos da atual revolução russa - o que se denuncia por alusões veladas e claras no decorrer dela.

            O autor não esconde a sua antipatia pelos revolucionários não só russos, como os de todo o jaez. Isto ele o faz com o pensamento geral da peça, como também nos detalhes, principalmente no cerimonial, nas atitudes governamentais e imperiais que eles tomam quando assumem o mando.

            Não é só com os de hoje que tal se dá, mas com os de sempre. Esses homens podem ser para nós ridículos, mas o motivo é porque os julgamos fora do seu tempo ou longe dele.

            Quando nos transportamos à efervescência das idéias do meio que os criou, eles não se parecem assim. São talvez plantas de estufa, mas são plantas imponentes e grandiosas, mesmo aquecidas artificialmente.

            Eu não aconselharia a Orris Soares a leitura das Origines de Taine nem o recentíssimo Les Dieux ont soif, para sentir como me julgo com razão e para encontrar o motivo por que, depois de passada a borrasca, eles nos aparecem medíocres.

            E assim é sempre quando se trata de grandes movimentos de sentimentos e de idéias que apaixonam as multidões. Compreendo muito mal as "Cruzadas" e seus barões e ainda menos as guerras de religião de Luteranos, Católicos, Calvinistas, etc.

            Quanto ao cerimonial e ao protocolo de que se fazem cercar os recém‑chegados ao poder, os há de muitas espécies, e os mais grotescos.

            Não tenho à mão nenhum exemplar de livro que me informe dos que os reis do Haiti se fizessem cercar; mas dois casos curiosos conheço fora dos revolucionários.

            Um é o do ditador do Paraguai, Carlos Antônio Lopez, que, para inaugurar um teatro feito por ele e construído por um literato espanhol, se apresentou na sala de espetáculo, no dia da inauguração, disforme de gordura, mamútico. A cabeça completamente unida ao rosto prosseguia numa imensa papada, sem linhas nem contornos e como que tinha a forma de uma pêra. Cobria‑a colossal chapéu de palha, com quase um metro de alto, verdadeiramente carnavalesco na sua feição de quiosque.

            Quem conta isto é um escritor argentino, Heitor Varela, que esteve em Assunção, no tempo; e a citação eu a tiro de artigos que o ilustrado Sr. Afonso de Taunay publicou, com o título "Álbum de Elisa Lynch", na Revista do Brasil.

            Há, porém, outros, os de certos magnatas sul‑americanos vaidosos que se fazem escoltar por navios de guerra quando dão passeios pelos lagos azuis e plácidos do país.

            Portanto, ainda se pode repetir: cá e lá más fadas há.

A.B.C., 2‑5‑1920.

 

"LEVANTA‑TE E CAMINHA"

            Pois para que saibais que o Filho do Homem

tem poder sobre a terra de perdoar os pecados,

disse ele então ao paralítico: Levanta‑te, deixa

o teu leito, e vai para a tua casa.

S. Mateus.

 

            O Sr. Walfrido Souto Maior, sob esse título, que lembra todo o poder divino de Jesus e a suave e ingênua poesia dos Evangelhos, acaba de publicar um poema, impresso na conhecida tipografia - Revista dos Tribunais - hoje uma das mais procuradas pelos nossos intelectuais de todos os matizes.

            A leitura do poema do Sr. Walfrido logo demonstra que este não é o seu primeiro. Versifica com muita facilidade e abundância, até ao ponto dessa facilidade traí‑lo, deixando perpetrar pequenos desleixos.

            Sou de todo incompetente em matéria de versificação; mas, não é preciso ser muito forte nela, para sentir no Sr. Souto Maior a luz e a sombra de seu talento poético.

            O tema do poema é todo espiritual. O autor, depois de mostrar os fatores de nossa queda moral, mostra os outros da nossa elevação, que, vencendo aqueles, farão que se realize esse milagre a célebre ordem de Jesus a um paralítico: "surge et ambula"; levanta‑te e caminha.

            Para que o milagre se opere, diz muito bem o autor:

 

Trazemos dentro de nós sentinelas perdidas

Que devem gritar sempre e muito forte: alerta!

Porém, que vão passando a vida adormecidas,

Deixando a porta da alma inteiramente aberta!

 

Devemos despertar depressa esses soldados,

E dar‑lhes disciplina, enchê‑los de valor;

Pospontar‑lhes na farda alguns galões dourados,

Fazendo‑os da razão ouvir sempre o tambor!

 

Precisamos trazer de pé as energias

Que vivem dentro da alma inertes, sem ação;

Debelar num sorriso os golpes de agonias

Que trazem sempre o luto ao nosso coração!

 

            Uma dessas sentinelas perdidas que é preciso despertar, é o pensamento que, numa formosa poesia, talvez a mais bela parte do seu poema, ele aconselha como agir.

            Não posso deixar de ceder à tentação de transcrever o final desse trecho do poema, cujos alexandrinos tem uma grande ressonância e maravilhosa amplitude sonora.

            Ei‑lo:

 

Deve ser como a planta o pensamento humano:

Livre deve nascer, desalogadamente

Florir; porque, se a planta enxertam, nem um ano

Conserva o seu vigor, e muito lentamente

Perdendo a vida vai, e morre, e se aniquila.

É que a fonte da vida, a verdadeira mola

(A sua essência enfim, essência que se asila

Na própria Natureza) arrefece e se estiola.

Porém, se a mesma planta ou tronco, se a mesma hera,

Apenas puro sol aquece onde ela esteja,

Rebenta, alegre, e vai saudando a primavera,

Sem nunca precisar das bênçãos de uma igreja!

 

            Percebe‑se bem, por aí e por outras partes do seu poema, que o Sr. Souto Maior está familiarizado com a técnica do verso, mas ama sobretudo o alexandrino, à Junqueiro; e o heptassílabo, à moda de Castro Alves. Na primeira parte, logo na segunda poesia - "Anatomia Ideal" - que, como todas do livro, demonstra estudo e uma visão particular do autor, há décimas de fino gosto do grande poeta baiano. Passo para aqui esta que é típica:

 

Vi Lamarck nesse pego

Da camada subterrânea,

Procurando como um cego

A Geração espontânea!

Estava lá Goethe - o sábio - !

Herschel sustinha o astrolábio,

Querendo falar ao Sol;

Vi, como Laplace, Linneu,

Discutindo o valor teu,

Com muitos sábios de escol!

 

            Isto não diminui em nada o valor da obra, pois esse aspecto, por assim dizer, extremo, encobre uma originalidade sempre latente do autor, cuja visão do mundo e da vida, baseada sobre fortes leituras que se tocam aqui e ali, é transfigurada de um materialismo genuíno, que parece ter sido a primeira crença do autor, por um espiritualismo fluídico que perpassa por toda a obra.

            O trabalho do Sr. Souto Maior, não só dá a capacidade de pensador, como também mostra todas as feições íntimas do seu estro e do seu temperamento literário.

            "Coração‑Alma" com que abre a segunda parte do poema, é uma poesia lírica de raro valor e apreço. Daria toda ela aqui, se não temesse parecer que queria assinar trabalho alheio; mas não posso deixar de citar esta estrofe, tão sentida e tão profunda, que os leitores ficarão admirados de não ter eu tido ânimo de pôr também nesta notícia as outras. Vejamo‑la:

 

Não te maldigas nunca, e nunca te exasperes

Contra a dor que te oprime; o espinho em que te feres

Criaste‑o mesmo tu:

Quem a túnica rasga, embora a mais singela,

Não pode maldizer o frio que o regela,

Se quis mesmo andar nu!

 

            Pelo pouco que citei, poderão avaliar os leitores do raro valor do livro do Sr. Walfrido Souto Maior. Era meu desejo alongar‑me mais na análise do poema: mas, para tanto não me sobra tempo, assoberbado como ando com pequenos trabalhos que me forneçam o necessário para as despesas imediatas da vida. Contudo, vai aqui o preito da minha admiração por tão raro poeta, no qual, apesar de conhecer eu homem há tantos anos, me surpreendeu encontrar, não só um bom poeta, mas também um singular poeta.

Argos, n.0 9‑10, outubro e novembro de 1919.

 

CANAIS E LAGOAS

            Com este título, pela Livraria Jacinto Ribeiro dos Santos, acaba de ser editado um curioso volume da autoria do Sr. Otávio Brandão.

            O objeto do livro, primeiro volume de urna série de três, é o estudo, sob o aspecto orográfico, potamográfico, mineralógico, geológico, etc., de uma curiosa região de Alagoas, crivada de canais e lagoas, que, segundo o prefaciador, vai da lagoa Manguaba até a do Norte.

            É uma curiosidade corográfica que só pode ser bem conhecida por especialistas ou pelos naturais da região.

            Quando estudei corografia do Brasil, aí pelos meus doze ou treze anos, ela me passou completamente desapercebida, e isto deve ter acontecido a muitos outros.

            O Sr. Otávio Brandão, que tão entusiasmado se mostra pelas belezas, singularidades e possibilidades daquela parte do seu Estado natal, publicando o seu interessante livro, devia fazê‑lo acompanhar da carta respectiva.

            O seu estudo, que é de uma minúcia extraordinária e feito com uma exaltação místico‑lírica, ressente‑se da falta de um mapa, uma planta, um "croquis" topográfico, que ao menos marcasse, não direi todos os acidentes topográficos, os termos geológicos, mas as linhas gerais da potamografia, da corografia, etc., e também a situação dos povoados, cidades, vilas, aldeias, para uma mais perfeita compreensão de seu trabalho, por parte dos estranhos à região que fossem ler a sua original obra.

            O autor que percorreu esse pedaço de terra brasileira, diz mesmo que muito lhe custou compreender tanta complicação de lagoas e canais. Que diremos nós, os seus leitores, então?

            Concebida com uma largueza de vistas muito notável na sua idade, a execução do seu trabalho ressente‑se, entretanto, aqui e ali, perdendo a diretriz científica que sempre devia obedecer, de certas efusões pessoais inoportunas e de uma exagerada avaliação do merecimento e valor dos lugares, mundos, como diz o autor estudado.

            Ele os compara; irá, à Holanda, com os seus canais; irá, à Caldéia; irá à Amazônia; e o próprio Oiticica, no prefácio, dragando, aprofundando canais e construindo muros protetores, numa obscura lagoa, até agora somente sulcada por canoas, transforma‑a no papel, em instantes, num dos primeiros pontos do mundo!

            Há evidentemente exagero de bairrista nessa hidráulica papeleira e rápida, e eu não queria ver a alta capacidade do observador, a força de estudioso do Sr. Otávio Brandão perturbada por tão infantil sentimento de um patriotismo, por assim dizer, comarquense ou distrital.

            O Sr. Brandão que, com tão poucos recursos, se mostrou capaz de profundos estudos de geologia, de mineralogia, de climatologia e, aqui e ali, denuncia um etnógrafo de valor, um analista de usanças, costumes e folclore devia abandonar a visão literária de altas regiões clímicas, como o Egito e o Nilo, para unicamente ver o seu Cadiz e o seu humilíssimo Paraíba, tal qual são.

            A Natureza apresenta frescos aspectos semelhantes e muitos menos iguais; e o Sr. Brandão diz uma parecida no seu livro.

            É ideante e diversa. No Brasil se encontra o diamante de uma forma; na África do Sul, de outra.

            O Nilo é ele e só ele, porque tem entre ele mesmo e suas nascentes, uma planície de imersão, o Bahr‑el‑Gagol, onde durante meses apodrecem ao sol inclemente toda a sorte de matérias orgânicas, as quais, quando vem a força das águas dos lagos, donde ele se origina, são compelidas, em forma de lodo em suspensão nas águas para o verdadeiro Nilo, inundando e adubando o velho país dos Faraós.

            Uma tal disposição geográfica, ao que me consta, não se encontra em nenhum rio da terra; nenhum deles tem um reservatório de adubo, de húmus que se reserva anualmente, e as enchentes arrastam em certas épocas do ano.

            Com o avanço da idade o Sr. Otávio Brandão que, tantas qualidades de escritor apresenta neste livro, que tantas qualidades de observador demonstra, que uma rara capacidade de estudo revela, há de abandonar os processos de um otimismo livresco sobre a nossa Natureza que lhe inoculou Euclides da Cunha, para examinar a terra diretamente com o maçarico e o bico de Bunsen, com a balança de Jolly, pesquisar rochas com o microscópio próprio e fazer, enfim, o que aconselha aos letrados, no art. 19, no capítulo que intitula

- "Uma síntese".

            Não me quero despedir do Sr. Otávio Brandão, sem lamentar e lavrar o meu protesto pelos tormentos e perseguições que sofreu, por parte do Governo de Alagoas.

            É incrível o que ele narra, mas não tenho dúvida nenhuma em aceitar como verdade.

            O governante do Brasil, não se trata desse ou daquele, mas de todos, resvalam pelo caminho perigoso da coação ao pensamento alheio, para o despotismo espiritual.

            Ninguém sabe até que ponto pode pensar desta ou daquela maneira; até que ponto não pode pensar. Daí vem que bacharéis ou não, investidos de funções policiais, sem instrução nenhuma e muito menos cultura, encontram na mais leve crítica às teorias governamentais vigentes manifestações de doutrinas perversas, tendentes a matar, roubar, violar e estuprar. Na sua imbecilidade nativa e na sua ignorância total de doutores que fizeram os seus estudos em cadernos, pontos, apostilas, etc., arrastarem para enxovias nauseabundas, doces sonhadores, como este bom Otávio Brandão, que nem ao menos tem um vício.

            Com a violência dos antigos processos do governo dos reis absolutos, eles ressuscitaram o crime de lesa‑majestade e a razão de Estado.

            Um tal estado de coisas não pode continuar; e não há lei que permita essa indigna opressão ao pensamento nacional, tanto mais que a Constituição dá a cada um a mais ampla liberdade de pensar e exprimir as suas idéias, por todos os meios adequados.

Argos, n.0 11, dezembro de 1919.

 

DOIS MENINOS

            De há muito queria eu dizer publicamente todo o bem que me merecem o esforço e o ardor intelectual desses dois meninos que se assinam Tasso da Silveira e Andrade Murici.

            Motivos de toda ordem me têm impedido; mas hoje, felizmente, posso fazê‑lo, se não completa, ao menos com a máxima boa vontade.

            Muito moços, tanto assim que eu, não me considerando de todo velho, os posso tratar assim familiarmente, paternalmente, de meninos, estrearam, como toda a gente, com "plaquettes" de versos, nas quais, se não havia remígios, não denunciavam, contudo, quedas irremediáveis.

            Eram, como se costuma dizer, os seus cartões de visita, apresentando‑os ao complicado mundo das letras.

            Daí por diante, cedendo a uma incoercível vocação íntima, lançaram‑se à crítica literária, à boa crítica do estudo profundo, simpático, sereno, de autores e de obras. Mostraram essa aptidão aqui e ali, fundaram uma excelente revista - América Latina - que vai prosperando com o vagar com que prosperam essas nobres tentativas entre nos.

            Não contentes com isso, publicam, de quando em quando, ensaios sobre autores notáveis, em que se acham, a par de pequenos defeitos próprios à pouca idade dos signatários, qualidades de penetração e discernimento artístico, difíceis de encontrar em inteligências tão moças.

            Nossas letras, apesar de não serem ricas em amadores de qualquer ordem, já têm, entretanto, produção suficiente para exigir o estudo isolado, monografias  dos seus melhores representantes; e esses estudos devem tentar as jovens inteligências operosas, pois é campo pouco explorado, mas que parece fecundo.

            Poucos deles têm merecido esse estudo, José de Alencar, poema de Araripe Júnior; Gonçalves Dias, uma biografia do Sr. Mendes Leal; Castro Alves, ensaios dos Srs. Xavier Marques e Afrânio Peixoto; Machado de Assis, este, por ser assim como herói anônimo da Academia, mereceu diversos, entre os quais avultam o de Alcides Maia e o do Sr. Alfredo Pujol.

            Assim, de pronto, não me recordo de outros autores nacionais que tenham sido tomados como objeto de trabalhos especiais sobre as suas vidas e suas obras. Entretanto, isto se me afigura de uma indeclinável necessidade, para bem se aquilatar afinal do valor e do alcance do nosso pensamento total.

            Desautorizadamente, julgo eu que nenhuma história da nossa literatura poderá se aproximar da perfeição enquanto não houver de sobra esses estudos parciais dos seus autores. Se não estou de todo esquecido, penso que isto já foi dito não sei por quem.

            Pesquisas sobre as suas vidas, os desgostos, suas amizades, seus amores, seus começos, seus estudos, sua correspondência, tudo isso que pode esclarecer o pensamento e a tenção de suas obras, não se concebe possa ser feito por um só autor; e, tendo de julgá‑los numa única obra geral, um único erudito, por mais ativo e diligente que seja, há de por força falhar e ser incompleto, se não tiver à mão esses estudos e outras achegas.

            Ultimamente, porém, a atividade da nossa critica literária parece ter compreendido isto, pois surgem, de onde em onde, monografias especiais sobre autores de monta e sobre outros assuntos relativos às letras nacionais.

            Farias Brito tem merecido diversas, e excelentes, de Jackson de Figueiredo, de Nestor Vítor, de Almeida Magalhães, de Veiga Lima e outros. Creio também que Nestor Vítor escreveu uma sobre Cruz e Sousa - autor que está exigindo justiça dos seus envergonhados admiradores e imitadores.

            Agora, aparecem esses dois meninos, Tasso da Silveira e Andrade Murici, em dois desenvolvidos estudos literários, sob todos os aspectos valiosos e dignos de nota.

            O de Tasso é um ensaio sobre Romain Rolland. Era este autor pouco conhecido entre nós antes da guerra de 1914. Esse atroz acontecimento pô‑lo em foco, devido à atitude de desassombro e independência que tomou, em face da cegueira delirante do patriotismo francês; mas, apesar disso, a sua obra, o Jean Christophe, um longo romance que ele vinha compondo e publicando os volumes lentamente, desde há anos, era já estimada discretamente no seu país e, um pouco, em toda a parte onde se lê francês.

            Ainda não tive a ventura de ler nenhum dos volumes, por isso nada posso dizer da justeza dos conceitos que, sobre o Jean Christophe, externa Tasso da Silveira; mas, não vem isso ao caso, porque, ao escrever estas linhas, não é o meu intuito fazer crítica da crítica.

            O que me interessa, é verificar a capacidade que tem Tasso, de focar um autor e estudá‑lo em todas as suas faces, com os elementos que lhe são fornecidos pela obra do mesmo.

            Há de haver, por força, nesse seu estudo de autor francês, lacunas, porquanto a nós, estrangeiros, por mais esforços que façamos, será muito difícil, senão impossível, "sentir" o imponderável da ambiência nacional, histórica, tradicional, feito de uma junção de nadinhas, evanescentes - ambiência, atmosfera que cerca o autor estranho no seu meio natural, penetra por ele todo e perpassa na sua obra.

            Essa ambiência sutil nos faz falta, quando, entretanto, é preciso também participar dela, para nos apurarmos com o autor, a fim de julgá‑lo perfeitamente, completamente.

            Não se dá isso com o trabalho de Murici, que versa sobre o Sr. Emiliano Perneta.

            Além de ser conterrâneo desse notável poeta paranaense, Murici foi seu discípulo, sente‑se bem, adivinha as obscuridades e justifica as contradições do seu pensamento, ilumina‑lhe as sombras; enfim, compreende‑o inteiramente.

            O seu estudo sobre o autor da Ilusão, pode‑se dizer que é definitivo e completo; e, quanto a mim, confesso, fez‑me julgar de outra forma o poeta da terra dos pinheirais.

            Não me deterei na análise das duas obras, porque acho abolutamente ilógica uma crítica segunda, além do que, não era bem esse, como já disse, o impulso que me fez escrever estas ligeiras e despretensiosas linhas.

            O que me alvoroça, é ver que há nesses dois meninos, Tasso da Silveira e Andrade Murici, estofo para realizar os sérios estudos que os nossos autores notáveis estão exigindo sejam feitos, a fim de que não fiquemos nós outros, por uma lamentável incompreensão do pensamento deles, em junção da época em que floresciam, sabendo‑se‑lhes unicamente os nomes e os títulos dos seus livros.

A Folha, 1‑6‑1920.

 

VOLTO AO CAMÕES

            Raramente vou ao teatro, embora, às vezes passe noites inteiras em claro a perambular pelas ruas e botequins; mas, de quando em quando, gosto de ler as notícias que os jornais dão das "premières", sobretudo em se tratando de peças portuguesas.

            Há dias li o "compte‑rendu" de uma peça do Sr. Júlio Dantas - O Reposteiro Verde.

            Sei bem que é de bom alvitre não julgarmos uma obra literária pelo seu resumo; mas a regra não é tão absoluta como querem por aí certos doutores artísticos cujas asserções trazem o vício de origem do interesse próprio ou dos seus chegados.

            Encontram‑se trabalhos literários que, por serem valiosos pelo fulgor do seu desenvolvimento, pelo rigor das cenas, pela percuciente análise dos personagens, pela largueza de vistas do autor, não podem ser resumidos e o resumo nada diz deles, mas há outros em que diz muito.

            Esse drama do Sr. Júlio Dantas, pelos resumos por mim lidos nos jornais, não passa de um dramalhão de capa e espada, cheio de assassinatos e outros matadores da velha escola; entretanto, mantém‑se ainda no cartaz.

            É curioso observar o "engouement" que o nosso público vai tendo por esses autores portugueses de uma mediocridade evidente que a disfarçam com um palavreado luxuriante, um barulho de frase, mas que não aventam uma idéia, que não revelam uma alma, que não interpretam mais sagazmente um personagem histórico, que não põem em comunicação as várias partes da sociedade, provocando um mútuo entendimento entre elas.

            No nosso tempo de literatura militante, ativa, em que o palco e o livro são tribunas para as discussões mais amplas de tudo o que interessa o destino da humanidade, Portugal manda para aqui, com grande sucesso, o Sr. Júlio Dantas e o Sr. Antero de Figueiredo, dois inócuos fazedores de frases bimbalhantes.

            Que nós tivéssemos sofrido a ascendência e a influência de Garrett, de Alexandre Herculano, de Oliveira Martins, de Eça de Queirós e mesmo de Camilo Castelo Branco, admite‑se.

            Todos estes, para não falar em alguns outros mais, como Arnaldo Gama, Antero de Quental, Antônio Nobre, Pinheiro Chagas, Ramalho Ortigão; todos esses dizia são criadores, de algum modo originais, muitos deles concorreram para reformar a música do período português, deram‑lhe mais números, mais plasticidade, inventaram muitas formas de dizer; mas, esses dois senhores a que aludi mais acima, sem concepção própria da vida, do mundo e da história do seu país, não vêm fazendo mais do que repetir o que já foi dito com tanta força de beleza pelos velhos mestres em glosar episódios de alcova da história anedótica portuguêsa, para gáudio das professoras públicas aliteratadas.

            O Sr. Júlio Dantas não passa de um Rostanzinho de Lisboa que fez A Ceia dos Cardeais - obra que não é senão um superficial "lever de rideau", sem um pensamento superior, sem uma emoção mais distinta, "verroterie" poética que fascinou toda a gente aqui e, creio, também em Portugal.

            As suas peças históricas não têm um julgamento original de acordo com qualquer ideal estético ou filosófico; não traem um avaliador sagaz, ágil do passado; de rigor psicológico nada têm os seus personagens.

            São glosas dialogadas de tradições e crônicas suspeitas, sem uma vista original do autor, sem um comentário que denuncie o pensador.

            Entretanto, num país como o Brasil, em que, por suas condições naturais, políticas, sociais e econômicas, se devem debater tantas questões interessantes e profundas, nós nos estamos deixando arrastar por esses maçantes carpidores do passado que bem me parecem ser da raça desses velhos decrépitos que levam por aí a choramingar a toda a hora e a todo o tempo: "Isto está perdido! No meu tempo as coisas eram muito outras, muito melhores".

            E citam uma porção de patifarias e baixezas de toda a ordem.

            Que Portugal faça isto, vá! Que lá ele se console em rever a grandeza passada dos Lusíadas em um marquês que tem por amante uma fadista, ou que outro nome tenha, da Mouraria, concebe‑se; mas que o Brasil o siga em semelhante choradeira não vejo por que.

            É chegada, no mundo, a hora de reformarmos a sociedade, a humanidade, não politicamente que nada adianta; mas socialmente que é tudo.

            Temos que rever os fundamentos da pátria, da família, do Estado, da propriedade; temos que rever os fundamentos da arte e da ciência; e que campo vasto está aí para uma grande literatura, tal e qual nos deu a Rússia, a imortal literatura dos Tourgueneffs, dos Tolstois, do gigantesco Dostoiewsky, igual a Shakespeare, e, mesmo, do Gorki! E só falo nestes; ainda poderia falar em outros de outras nacionalidades como Ibsen, George Eliot, Jehan Bojer e quantos mais!

            O caminho que devemos seguir, pois nada temos com essas alcouvitices históricas que o Sr. Júlio Dantas, o Rostanzinho de Lisboa, médico do Regimento de Cavalaria 7, discreteia pelos palcos com o chamariz da sua elegância e das suas lindas feições tratadas cuidadosamente, além do anúncio das suas imagens sonoras de carrilhão com que atrai as devotas.

            Compará‑lo a Rostand é uma grande injustiça, pois a peça do autor francês que fascina o autor português é o Cyrano de Bergerac; mas esta obra é, ainda assim mesmo, uma bela e forte peça no fundo e idéia; não é um simples bródio de prelados cínicos que comem glutonicamente a fartar e falam de amor, como se não tivessem batina.

            Se digo isto do Sr. Júlio Dantas, que direi então desse Sr. Antero de Figueiredo?

            Este senhor me parece um marmorista canhestro que fizesse uma "fouille" na Grécia, de lá extraisse um tronco, uma perna, um braço de um mármore antigo e dele fizesse um "bibelot".

            O campo de suas escavações é o grande Camões, onde vai retirar os episódios mais perfeitos e belos que as oitavas do poema esculpiram para fazer romances edulçorados que a transcendência estética do Sr. Malheiro Dias talvez ache superiores aos decassílabos de Camões e um assombro literário.

            Mas, em que pese ao Sr. Carlos Dias eu volto ao Camões; e sempre que quero ter a emoção poética dos amores de Dona Inês de Castro e D. Pedro, o Cruel, abro o meu "Lusíadas", edição pobre, e leio:

 

Estavas, linda Inês, posta em sossêgo.

Dos teus anos colhendo o doce fruito,

Naquele engano da alma, lêdo e cego,

Que a fortuna não deixa durar muito;

Nos saudosos campos do Mondego,

De teus olhos o pranto nunca enxuto,

Aos montes ensinando, e às ervinhas,

O nome que no peito escrito tinhas.

 

            Lido todo o episódio, fecho o livro, sentindo bem que li grande poeta e ninguém, depois dele, deveria tocar no assunto, sem profanar, tal foi a força de beleza com que seu gênio animou a história e a lenda de tão desgraçado amor.

A.B.C., 27‑4‑1918.

 

TABARÉUS E TAIBAROAS

            Pouco viajado pelo interior do Brasil, carioca da gema, tenho grande prazer em ler romances, novelas, contos, crônicas que tratam de costumes dos nossos sertões. Sempre os li com agrado e surpresa, às vezes, determinada pela estranheza de certos hábitos, opiniões e crendices das gentes do nosso interior.

            Ultimamente, a nossa produção literária tem se comprazido em cultivar tal gênero de literatura. Há quem veja nisto um mal. Não tenho nenhuma autoridade para contestar tal opinião; mas faço uma observação simples.

            A literatura é de alguma forma um meio de nos revelar uns aos outros; se não o seu principal destino, é uma das suas funções normais.

            Admitido isto, tratando os conhecedores de costumes, crenças, preconceitos das gentes das regiões que, pelo nascimento ou por outra circunstância qualquer, habitaram, eles fazem com que nós brasileiros que vivemos tão afastados, neste "vasto pais", como diz a canção, nos entendamos melhor e melhor nos compreendamos.

            Em boa ocasião, o Sr. Mário Hora compreendeu isto e acaba de enfeixar, sob o título de Tabaréus e Tabaroas - alguns contos em que cenas do nordeste brasileiro são apanhados num flagrante feliz.

            A língua, a paisagem, tudo enfim, sem esquecer a própria indumentária são de uma propriedade, de uma cor local que atrai e encanta. As almas também são aquelas rudes e agrestes daquelas regiões adustas e calcinadas, em que a vida ameiga o clima ingrato e a faca está sempre a sair da bainha para ensangüentar as caatingas.

            Qualquer dos contos do Sr. Mário Hora é um epítome da vida curiosa daquelas regiões, onde a crueldade se mistura com o cavalheirismo e o banditismo com a mais feroz honestidade.

            Aspectos desses de tão chocante contraste só podem ser colhidos por um artista de raça em que preocupações gramaticais e estilísticas não deturpem a naturalidade da linguagem dos personagens nem transformem a paisagem rala daquelas paragens em florestas

da Índia.

            O autor dos Tabaréus e Tabaroas conseguiu isto e realizou com rara felicidade uma obra honesta, simples e sincera.

            É de esperar que ele não fique nisso e continue o trabalho a que se dedicou, não esquecendo de que ele bem pode servir para estudos de mais vulto.

Careta, 24‑6‑1922.

 

FETICHES E FANTOCHES

            O Sr. Agripino Grieco é merecedor de toda a atenção pelo livro que, com o título acima, acaba de publicar a Livraria Schettino.

            Não é que nessa obra haja grandes pontos de vista, uma larga visão da Arte e da Vida; mas há nele uma desenvoltura de dizer e um poder de expressão que bem denunciam as origens do autor.

            Há no volume do Sr. Grieco, conforme meu fraco juízo, grandes qualidades e grandes defeitos. Pode‑se dizer dele o que alguém disse de Rabelais: quando ele é bom, é ótimo; quando é mau, é péssimo.

            O Sr. Agripino, conquanto seja um homem culto, falta‑lhe, entretanto, certa idéia geral do Mundo e do Homem. Daí, as suas injustiças nos seus julgamentos. Sainte‑Beuve, quando examinava um autor, procurava saber qual tinha sido a sua educação primeira. Isto é indispensável para aquilatar um autor.

            Nunca me despedi dessa lição do mestre das "Causeries du Lundi".

            No meu amigo Grieco se manifesta esse pequeno defeito, quando faz o exame e crítica de certos vultos da nossa atividade intelectual.

            Um exemplo que cito com amargor é a análise do Sr. Félix Pacheco, feita pelo autor do Fetiches e Fantoches.

            Não é do Sr. Félix Pacheco, senador e redator‑chefe do Jornal do Comércio, de quem falo. É do Félix, protetor dos escritores desprezíveis ou desprezados a quem me refiro e de quem só tenho recebido homenagens; e, como eu, muitos outros da minha têmpera.

            Se o Sr. Agripino tivesse meditado mais, havia de ver que um homem como o Félix é uma necessidade na nossa literatura. Ele vê longe e largo.

Careta, 2‑9‑1922.

 

O PROFESSOR JEREMIAS

            A Revista do Brasil, de São Paulo, é hoje sem dúvida nenhuma publicação verdadeiramente revista, que existe no Brasil. Muitas outras há dignas de nota, corno a América Latina, que um grupo de moços de iniciativa e talento vem aqui mantendo. A primeira, porém, é algo distante, para o paladar comum, tem certas reservas diplomáticas e discertas atitudes que não de gosto do leitor comum. Não vai nisso nenhuma censura da minha parte, tanto mais que já tive a honra de ocupar suas páginas com coisa minha, como também porque tudo o que cheira a cópia, me aborrece.

            A publicação de Araújo Jorge é ela mesma, muito original pelo seu programa, mesmo quando publica as proezas do almirante Caperton, que aqui esteve a exercer atos de soberania na nossa baía - coisa a que se habituara em São Domingos e a Americana nos informou.

            A América Latina, de Tasso da Silveira e Andrade Murici, representa um esforço de moços, quase meninos, e os senões que se lhe podém notar, advêm disso e de mais nada, afirmando porém, vontades e energias que merecem todo o nosso aplauso. A Revista do Brasil, entretanto, é a mais equilibrada e pode e deve ser a mais popular. Tem os seus números, assuntos para os paladares de todos os leitores. Como muitas de suas congêneres estrangeiras, é fartamente ilustrada, procurando os seus editores reproduzir pela gravura quadros nacionais notáveis ou desenhos de antigas usanças e costumes do nosso país. Publicada em São Paulo, ela não se inspirou pelo espírito e pela colaboração ao Estado em que surge. Nela são tratados assuntos que interessam a todo este vasto país, como diz a canção patriótica, assim como nos seus sumários se encontram nomes de autores que nasceram ou residem nos quatro cantos dessa terra brasileira.

            Com a sua atual futilidade e recente ligeireza que veio, infelizmente, a adquirir com as mágicas avenidas  frontinas, o Rio de Janeiro mal a conhece - o que é uma injustiça, porquanto, pelo que acabo de dizer, e é fácil de verificar, a Revista do Brasil, entre nós é uma publicação sui‑generis e digna de todo o apreço. Não me cabe dizer mais a respeito dela, pois lá escrevi e ela me imprimiu um despretensioso calhamaço.

            Embora possa parecer parcialidade de minha parte, não me era possível tratar de uma bela obra, por ela editada, sem me referir aos préstimos da publicação de Monteiro Lobato.

            Muitos dos meus leitores, se é que os tenho, têm visto aplicar, com ou sem propósito, o apelido de Jeca‑Tatu a este ou àquele; entretanto estou certo de que poucos saberão que se trata do personagem de um conto desse mesmo Monteiro Lobato, no seu magnífico livro Urupês.

            Os mais conscientes hão de se lembrar que foi o Sr. Rui Barbosa, num seu discurso, no Lírico, quem lançou à popularidade a inimitável criação de Monteiro Lobato; mas a massa nem do nome deste terá notícia, embora seu livro tenha tido excepcional tiragem, em sucessivas edições de 10.000 exemplares, talvez mais. Acontecimento sem‑par no Brasil de que a obra é perfeitamente merecedora.

            Editada pela Revista do Brasil, chega‑me às mãos uma novela de grande mérito do Sr. Leo Vaz que sinceramente me deslumbrou. Chama‑se O Professor Jeremias. É uma obra toda ela escrita com uma candura aparente, animada de um meio sorriso, constante e permanente, mas da qual se extrai uma filosofia amarga da vida e da sociedade.

            Um modesto mestre‑escola, a quem fizeram sonhar ou sonhou grandes posições, mas que o desenvolvimento ulterior de sua vida foi, aos poucos, levando o seu espírito para a resignação e para a indiferença por tudo o que lhe acontece e arrasta os outros, pois todos nós somos como aquele cão que aparece no fim do livro com uma lata no rabo atada, certamente por uma criança traquinas, a aconselhar o professor, como o faz, dizendo:

            - Olha: começa pelas opiniões. Não tenha opiniões. Não há vida mais doce do que a de quem não tem opiniões. Quando bambeio o cordel da minha lata, é como se não tivesse: não me vexa. Restringe‑se o círculo dos meus movimentos, é certo, mas fico livre, dentro de um círculo menor. Ao passo que a primeira opinião adotada, é um passo fora do círculo: é a lata a chiar atrás de mim, monótona, enervante...

            - Aconselha‑me, pois?...

            - A bambear o cordel, justamente. Livra‑te das opiniões, e ficarás imediatamente livre de uma série de coisas aborrecidas: política, filosofia, sistemas, impostos, calos, caixeiros‑viajantes...

            A esse quietismo singular chegou o novo Lao‑Tsé do professorado paulista, depois de muita observação e transtornos de vida, inclusive o seu casamento. A mulher era birrenta, ranzinza e mais birrenta ficou quando a irmã veio a casar rica e fixar‑se em Petrópolis com a sua sogra, a marquesa de Sapopemba. D. Antoninha, assim se chamava a esposa de Jeremias, era o contrário do marido, não se conformava com o seu destino de professora pública, pois também o era de um lugarejo de São Paulo. Rixas, implicâncias, interpretações, de acordo com o seu gênio birrento, de tudo o que acontecia, levaram os dois esposos a pedir o desquite, por consentimento mútuo. Jeremias escreve o livro para seu filho, o Joãozinho, que a mulher por ocasião da separação, impôs fosse com ela.

            O professor não sabe onde ela anda, a sua meia mulher, nem seu filho. Espera que o acaso ponha sob os olhos do Joãozinho as reflexões que lhe ocorreram, interpretando os fatos triviais da vida de uma vila obscura do interior de São Paulo, e que por elas o filho governe o seu futuro.

            Parece nada, mas nesse gênero há tanta coisa, tanta observação fina que é singular gozo ler a obra do Sr. Leo Vaz.

            Não conheço absolutamente o autor, mas se o conhecesse e privasse com ele, deixá‑lo‑ia falar à vontade, certo de que havia de regalar‑me com alguns conceitos melhores do que aqueles que o professor Jeremias emitiu no livro do Sr. Vaz.

            O que não aprenderia eu com o risinho irônico do autor do Professor Jeremias, para julgar com acerto esta nossa vida tormentosa? Não sei dizer... Mas... Tenho medo de ir a São Paulo.

O Estado, Niterói, 13‑2‑1920.

 

UM ROMANCISTA

            O Sr. Paulo Gardênia é um moço cheio de elegâncias, um Digesto de coisas preciosas, de receitas de namoros, de coisas decentes, que apareceu aí nos jornais e sucedeu a Figueiredo Pímentel no Binóculo.

            Ontem, deparei um capítulo de um seu romance na Gazeta de Notícias; e, como gosto de romances e nunca fui dado a modernismos, não conheço grandes damas e preciso conhecê‑las para exprimir certas idéias nas rimas que imagino, fui ler o Sr. Paulo Gardênia, ou melhor, Bonifácio Costa.

            Li e gostei.

            Vejam só este pedacinho tão cheio de perfeição escultural, revelador de homem que conhece mármores, o Louvre, as galerias de Munique, o Vaticano:

            "O peignoir, fino e leve, cobria‑lhe, indolentemente, em pregas moles, o corpo venusino que era esgalgo; os quadris largos; o busto flexível. Na corrente argentina, que lhe prendia os cabelos, louros como mel, luziam esmeraldas. E os seus dedos, maravilhosamente róseos e macios, eram rematados em unhas polidas, como pérolas. "fausse maigre autêntica arredondavam‑se‑lhe as linhas, numa surpresa de curvas opulentas, nos braços torneados, nas ancas calipígias."

            Diga‑me uma coisa, seu Bonifácio: como é que essa senhora é esgalga e ao mesmo tempo tem os quadris largos?

            Como é que essa senhora é "fausse maigre" e tem curvas opulentas e ancas calipígias?

            O senhor sabe o que se chama Vênus calipígia?

            O Sr. Bonifácio fala muito em Hélade, em Grécia, em perfeição de formas, mas nunca leu os livros da Biblioteca do Ensino de Belas‑Artes, que se vendem ali no Garnier.

            Se os tivesse lido, não vivia a dizer tais barbaridades para extasiar, exaltar a cultura literária e estética das meninas de Botafogo.

            A sua visualidade é tão perfeita, tão intensa, tão nova, acompanha e respeita tanto os conselhos que Flaubert deu a Guy de Maupassant, que acabou achando essa coisa magnífica, neste pedacinho de estilo de calouro de academia:

            "E o dia louro, azul, voluptuoso e quente, entrou pelo quarto, poderoso e fecundo, na alegria iluminada do sol..

            Gardênia ficou tanto tempo diante do "dia" que acabou vendo‑o ao mesmo tempo louro e azul. Coelho Neto gostou?

            A roda da rua do Roso deve orgulhar‑se de semelhante rebento.

            Os salões do século XVIII não dariam coisa melhor...

Correio da Noite, 1‑3‑1915.

 

MÁGOAS E SONHOS DO POVO

 

RECORDAÇÕES DA "GAZETA LITERÁRIA"

            Em 1884, publicou‑se aqui, neste Rio de Janeiro, a pequena revista quinzenal, intitulada Gazeta Literária. Não tinha o nome do diretor ou redator‑chefe, mas havia no cabeçalho a indicação que se assinava e se vendia na livraria de Faro & Lino, à rua do Ouvidor n.0 74.

            De nós que andamos hoje nessas coisas de jornais e revistas, poucos terão notícia dessa livraria e da Gazeta talvez nenhum.

            O jornalzinho literário era, entretanto, bem feito e curioso. Impresso em bom papel e nas oficinas Leuzinger, muito cuidado na revisão, tinha um aspecto muito simpático e uma leitura variada, de forte cunho intelectual. Colaboravam nele nomes conhecidos, alguns cheios hoje de glória inesquecível, como Capistrano de Abreu, Raul Pompéia, João Ribeiro, Urbano Duarte, Valentim Magalhães, Araripe Júnior, e outros que, embora pouco conhecidos do grande público, ainda são, não obstante, muito estimados pelos que se interessam com as etapas do nosso acanhado desenvolvimento intelectual.

            Teixeira de Melo, o amigo e êmulo de Casimiro de Abreu, que eu conheci velho e diretor da Biblioteca Nacional, quando a freqüentei ali, na Lapa, entre os meus 16 e os 20 anos, publicou na revistinha literária a sua famosa memória sobre a questão das Missões, que tanto devia ajudar o renome de Rio Branco, no dizer dos entendidos; e Beaurepaire Rohan dava nas suas colunas as primeiras páginas do seu Glossário de vocábulos brasileiros, tanto dos derivados de línguas conhecidas como daqueles cuja origem é ignorada. Esse trabalho que, ao que parece, foi publicado em volume, tem sido seguido de outros semelhantes e, ainda bem pouco tempo, vi em uma revista católica - Vozes de Petrópolis - um semelhante da autoria de um sacerdote dessa religião, cujo nome, embora não saiba agora escrevê‑lo (o que lastimo), me pareceu ser de alemão. Como estes dois glossários de brasileirismos, há muitos outros, menos gerais talvez, mas que constituem um bom manancial para o famoso Dicionário de Brasileirismos que a Academia Brasileira de Letras se propôs a organizar, mas de que até hoje nada ou quase nada fez.

            Voltando, porém, à Gazeta Literária, podemos dizer que, sem nome de diretor, sem talvez um programa definido (não tenho o número inicial), o espírito que a animava, como os leitores estão vendo, era de um grande nacionalismo.

            Não era o do nacionalismo dos nossos dias, guerreiro, espingardeiro, "cantativo", mas que acaba na comodidade das linhas de tiro de classes e repartições e deixa para as funções árduas do verdadeiro soldado a pobre gente que sempre as exerceu, com sorteio ou sem ele.

            Era um patriotismo mais espiritual, que não tinha uma finalidade guerreira e pretendia tão‑somente conhecer as coisas da nossa terra, a alma das suas populações, o seu passado, e transmitir tudo isto aos outros, para nos ligarmos mais fortemente no tempo e no espaço, em virtude desse próprio entendimento mútuo.

            Nas suas notícias sobre o "Movimento Artístico e Literário", há muita coisa curiosa e muita informação surpreendente. No número de 20 de maio de 1884, há a notícia de uma Fôlha Literária dos Srs. Alexandre Gasparoni Filho e Américo Guimarães - "ex‑redatares do Cometa"; há também a de uma Revista Literária, do Sr. Múcio Teixeira. Múcio e Gasparoni - quem os não conhece hoje? Mas, a ambos, como a vida mudou! Pelos títulos de suas publicações de 1884, está se vendo que, em um, ainda não havia despertado o amor pela fotogravura ultramundana; e, no outro, não se poderia nunca adivinhar que, grande poeta que ele era, viesse a ser o Barão Ergonte dos dias atuais.

            O que é curioso observar na interessante publicação dos livreiros Faro & Lino é que, há trinta anos, se tentavam publicações da mesma natureza que ainda hoje se tentam. Nas suas "Publicações recebidas" há notícia de uma União Médica, com artigos do Dr. Moncorvo, em francês, e do Dr. Pacífico Pereira, em português, e um parecer do professor Rebourgeon a respeito dos trabalhos sobre a febre amarela do Dr. Domingos Freire, que o sucesso do Sr. Osvaldo Cruz fez esquecer totalmente; há também de uma Revista do Exército Brasileiro que já trata do que hoje parece novidade  - o jogo de guerra - num artigo do Sr. F. A. de Moura; há, além de outra revista, a "da Liga do Ensino", "redigida pelo Sr. Rui Barbosa", com um artigo desse espírito inquieto e de tudo curioso que foi o Dr. Luís Conty, professor contratado de uma espécie de Missão, que, em 1874, por aí assim, veio para ensinar disciplinas, entre nós novas, na Escola Politécnica do Rio de Janeiro.

            Seria um nunca acabar, enumerar, através das páginas da revistinha de 1884, coisas velhas e notar a transformação espiritual dos homens. Uma coisa, porém, se nota: é que as nossas tentativas de hoje têm pouca novidade e se nós não as encadearmos com as que nos precederam, deixam de ter alguma força e são destinadas a morrer no esquecimento como as anteriores. Todo brasileiro julga‑se um inovador...

            Tenho esses números da Gazeta Literária desde a minha meninice e desde a minha meninice que os leio, com o espírito dos anos que o tempo vai‑me pondo às costas. Muita sugestão lhes devo e muito desejo eles me despertaram. Uma delas foi o conhecimento das coisas do folclore nacional e esse desejo até hoje não pude cumprir honestamente. Muita coisa há sobre o assunto, mas anda esparsa em obras tão difíceis de encontrar que me resignei ao acaso das leituras para ganhar uma noção mais ou menos exata da poesia e outras criações da imaginação anônima da nossa terra.

            Sei bem que há em Couto Magalhães, Capistrano de Abreu, Sílvio Romero, João Ribeiro muita coisa a ler; mas há também nos viajantes estrangeiros outras coisas mais e, também, em modestos outros provincianos, tantas outras que o meu precário viver não me permite consultar e estudar, tudo e todos.

            Dos viajantes estrangeiros, ainda há bem pouco tempo, o Sr. João Ribeiro, no O Imparcial, deu a tradução de um conto popular amazonense que vem no livro de viagem de Wallace. Era tão interessante que eu imaginei que messe de fábulas e narrativas, algo originais e denunciadoras do nosso gênio, dos nossos defeitos e qualidades morais, nós poderíamos encontrar nas obras desses sábios pesquisadores que, sem deixarem de ser profundos nas suas especialidades de ciências naturais, sondavam a alma e a inteligência do povo, que os via catar pedras e ervas, com o mesmo método que os seus hábitos científicos lhes tinham imposto à inteligência.

            No número 11 da Gazeta Literária, que é datado de 20 de março de 1884, há um artigo de Vale Cabral, intitulado Algumas canções populares da Bahia. Este Vale Cabral, pouco conhecido e muito menos lembrado atualmente, foi funcionário da Biblioteca Nacional e um dos mais ativos reveladores de coisas da nossa história, só até então conhecidas pelos pacientes eruditos. Ele publicou as cartas do padre Nóbrega, os Anais da Imprensa Nacional, com precisas informações sobre os primeiros livros nela impressos, e nos números da Gazeta que possuo há trechos das famosas Memórias de Drummond sobre o primeiro reinado, José Bonifácio, etc., que suponho terem sido publicados por ele, pela primeira vez.

            O seu artigo sobre as canções populares da Bahia muito me impressionou e há maia de vinte anos que não folheio a coleção mutilada da Gazeta que não o leia com este ou outro espírito.

            Hoje, por exemplo, é para matar saudades e lembrar os meus bons tempos de menino que leio:

 

Menina, quando tu fôres

Escreve‑me pelo caminho.

Se não tiveres papel,

Nas asas dum passarinho.

 

Da bôca, fazei tinteiro,

Da língua pena aparada;

Dos dentes, letras miúdas,

Dos olhos carta fechada.

 

            Embora o passarinho da canção fosse um pouco extravagante com os seus dentes, estas quadrinhas, que sempre ouvi e recitei em criança, muito me comoveram e comovem e ainda as guardo na memória. Se, como as retive, tivesse retido as "histórias" que me contavam naquela idade, tirando as que Perrault registra e dando‑lhes forma, como a "Gata Borralheira", poderia fazer um volumezito bem aproveitável. Mas não as guardei e pouco retive de cor dessa arte oral e anônima, afora essas quadrinhas e outros versos como o do famoso "chula":

 

Onde vai, senhor Pereira de Morais?

Você vai, não vem cá mais;

As mulatinhas ficam dando aism,

Falando baixo, etc. etc.

 

            Todas essas coisas ingênuas de contos, anedotas, anexins, quadrinhas, lendas, foram soterradas na minha memória por uma avalanche de regras de gramática, de temas, de teorias de química, de princípios de física, disto e daquilo, que, aos poucos, me vão morrendo na lembrança, para deixar emergir nela as histórias humildes do Compadre Macaco, do Mestre Simão e da Comadre Onça, dos meus pobres sete anos de idade.

            Nessas confusas recordações que tenho das fábulas e "histórias" populares que me contaram entram animais. O macaco é o símbolo da malignidade, da esperteza, da pessoa "boa na língua", em luta com a onça, cheia de força, mas traiçoeira e ingrata. Não me fio nas minhas lembranças, mas sempre me pareceu assim. Os estudiosos dessas coisas que verifiquem se a minha generalização é cabível.

            Em uns dos meus modestos livros, eu transcrevo uma das "histórias do macaco", em que ele aparece mais ou menos com essa feição. Não sei se ele figura em alguns dos nossos florilégios e estudos desses assuntos de folclore. Quem me contou, foi um contínuo da Secretaria da Guerra, onde fui empregado, ex‑praça do Exército e natural do Rio Grande do Norte, não sei de que localidade: o Sr. Antônio Higino.

            A onça aí figura perfeitamente com o feitio moral a que aludi, mas a manha do macaco, para vencê‑lo, socorre‑se da cumplicidade do Cágado ou Jabuti.

            Apesar das manhas, planos e esperteza do macaco, os contos populares lhe emprestam também alguma generosidade e alguma graça e uma filosofia de matuto "tinguejador". Há mesmo em todas elas, ao que me parece, uma grande simpatia por ele. Se o nosso povo não o fez o seu "totem", de alguma forma o faz o seu herói epônimo.

            Os estrangeiros, talvez, tenham alguma razão quando nos chamam de "macaquitos" ou "little monkeys", como me ensinou esse singular "totalista" que é o meu amigo Tigre.

            Contudo, devido à ignorância, já confessada, que tenho dessas coisas de folclore, eu não me animo a asseverar que a minha generalização possa ser de qualquer forma certa; e o intuito dessas linhas não é esse. O que elas visam, é explicar as razões por que fui levado a procurar, na conversa com homens e raparigas do povo, obter narrações, contos, etc, de origem popular, sem mesmo indagar se eles foram publicados, e dar nesta revista o resultado das minhas conversações com gente de toda a parte.

            Sou homem da cidade, nasci, criei‑me e eduquei‑me no Rio de Janeiro; e, nele, em que se encontra gente de todo o Brasil, vale a pena fazer um trabalho destes, em que se mostre que a nossa cidade não é só a capital política do país, mas também a espiritual, onde se vem resumir todas as mágoas, todos os sonhos, todas as dores dos brasileiros, revelado tudo isso na sua arte anônima e popular.

            Queira Deus que leve avante o meu inquérito! Amém.

Hoje, 20‑3‑1919.

 

SONHEI COM ISTO: O QUE É?

            O sonho sempre representou na nossa atribulada vida terrena, cuja regra é a insegurança de tudo, um grande papel profético. Em todas as pequenas crenças religiosas de toda parte, ele tomou uma atitude oracular indiscutida; e quase todos os agrupamentos humanos organizaram e organizam uma tábua para a sua interpretação. A humanidade, ou, para não errar, quase toda ela, está convencida de que o sonho é um aviso por parte do Mistério, de coisas boas e más que vão acontecer. Pode ser que ela tenha razão, pois, segundo me parece, a origem, a natureza e o mecanismo do sonho continuam mais ou menos inexplicados à luz dos estudos mais modernos. Não tenho certeza, mas leituras semi‑esquecidas me dizem mais ou menos isso, não havendo, portanto, pessoa bastante autorizada para condenar a crença que, sobre o sonho, o povo tem. Os livros antigos, tão cheios de alusões a sonhos divinatórios, e Plutarco, que infelizmente já não tenho, não narram a vida de um herói que não se refira a eles. Não me recordo nitidamente de nenhum, mas creio não me ter enganado redondamente. As literaturas de todos os quilates, de todas as línguas, têm usado e abusado do sonho. Agora de pronto lembro‑me de muita poucas obras literárias que o aproveitem; e, entre elas, aquela de que me recordo mais é a - Athalie -.

            Quando estudei francês, já lá vão vinte e seis anos, era o prato de resistência da nossa tradução em aula, o famoso sonho da heroína dessa tragédia; ele me ficou quase inteiramente de cor. O nosso professor, o bom Dr. Frutuoso da Costa, antigo seminarista, que, ao que parece, não tomou ordens definitivas de sacerdote devido à exigência canônica de um bom resultado no processo de "puritate sanguinis"; esse nosso professor, como dizia, certamente aborrecido com a nossa leitura arrastada e indiferente, tirava os óculos de aros de ouro, agarrava o Théâtre Classique, chegava bem perto dos olhos esse trecho da tragédia bíblica de Racine, e declamava‑o com entusiasmo eclesiástico de um patético sermão de Páscoa:

 

Je jouissois en paix du fruit de ma sagesse;

Mais un trouble importun vient, depuis quelques jours,

De mes prospérités interrompre le cours.

Un songe (me devrois - je inquiéter d'un songe?)

 

            Quando o Dr. Frutuoso atingia à imprecação de Jezabel:

 

Tremble, m'a‑t‑elle dit, fille digne de moi.

Le cruel dieu des Juifs l'emporte aussi sur toi.

 

            Por aí assim, punha toda força de voz que lhe restava, para acentuar bem a fala; e, certamente por causa de um tal esforço, não observava a sua teologia monoteica a heresia de haver um deus especial para os judeus, como se depreende dela. Por fim o seu furor dramático já era muito menor, ao recitar o final dessa fala de Athalie, quando ela tenta abraçar a sombra da mãe, que, no sonho, se aproxima do seu leito. Nessa passagem a sua voz era menos retumbante, havia menos ênfase nela, aproximava‑se mais do natural e dizia:

Mais je n'ai plus trouvé qu'un horrible mélange

D'os et de chair meurtris, et trainés dans la fange

Des lambeaux pleins de sang et des membres affreux

Que des chiens dévorants se disputeient entre eux.

            Parava nesse ponto infalivelmente, e nem mesmo exclamava - Grand Dieu! - frase com que Abner remata essa parte da narração do sonho profético da filha de Jezabel. O trecho é poderoso, vivo e desenhado em breves e poucas linhas fortes, mas nem sempre os sonhos literários têm essa grandeza, essa sobriedade e esse vigor.

            Eça de Queirós, que talvez se picasse de realista, tem na A Relíquia uma visão ou um sonho muito pouco verossímil, longo e cheio de pitoresco e pinturesco; e Machado de Assis, no Brás Cubas, com a Summa, Santo Tomás de Aquino, o hipopótamo, etc., descreveu um com muita coerência para o destino literário que ele tinha; mas ambos são sonhos muito pouco comuns. Todos nós já sonhamos e sabemos bem que uma das regras gerais do sonho é a falta de nitidez de plano, é a confusão de coisas disparatadas, senão nas partes, no todo.

            Proféticos ou não, seria um nunca acabar estar relembrando os sonhos registrados nas grandes obras literárias. Quase todos os heróis e heroínas de romances e poemas sonham; quando não é com seus autores, é por conta própria. É um efeito de que grandes e pequenos autores, bons e maus, se têm socorrido, e não seria eu quem havia de censurá‑los por isso, mesmo porque, se não digo, como as namoradas desprezadas, que a vida é um sonho, tenho, entretanto, muito para mim, que ela é uma ilusão - o que talvez não fique muito aquém do que as garotas desta ou daquela classe, deste ou daquele país, dizem e resumi mais acima.

            A interpretação dos sonhos tem merecido desde muito tempo sacerdotes especiais, mas particulares quase clandestinos não eram como aqueles áugures e arúspices de Roma, respeitados e oficializados, que prediziam os acontecimentos pelo modo de voar dos pássaros, pela maneira com que as galinhas e outras aves sagradas comiam os grãos. Contam os cronistas que não havia general que prescindisse de tal horóscopo antes de entrar em batalha. Hoje, não há mais disto; as missas solenes, porém, ressoam, pedindo‑se que Deus favoreça com a vitória cada um dos inimigos, e são mandadas rezar por cada um dos partidos em briga. É pena, à vista disso, que o nosso Panteon seja reduzido a um único Deus, porque, além de tal fato atrapalhá‑lo com pedidos contraditórios, impediu essa nossa pobreza de deuses que a guerra última permitisse à Discórdia levar a sua obra até ao céu e, de lá, o Empírio fazer descer Fochs, Hidenburgos, Lloyds Georges, Wilsons e Clemenceaus (não! estes últimos viriam do inferno), todos eles divinos para combater pró e contra Mercúrio ou São José, se este fosse Deus... Digo São José porque é patrono dos nossos bancos católicos...

            Seria um belo espetáculo - não acham?

            Reatando, porém, a narração, tenho a lembrar que, se a nossa época não possui sacerdotes destinados à interpretação de sonhos, criou, entretanto, essa maravilha que é o Dicionário dos Sonhos, livro barato e portátil. Já folheei um e observei que a maioria das predições se encaminha para o amor e para a fortuna. Os poetas dizem que o Amor é irmão da Morte. Está aí uma afirmação que o Dicionário desmente: o Amor é irmão do Dinheiro. Só não ama quem não tem dinheiro; entretanto, tenho conhecidos que me afirmam que só se ama para ter dinheiro. Eu não sei... o povo, porém, aquele verdadeiro, aquele que não sabe ler e escrever, tem uma regra muito diferente para interpretar os seus sonhos.

            - "Inácia! Sonhei hoje que estava arrancando um dente. O que quer dizer?" pergunta uma lavadeira à outra.

            - "Filha! Credo! Reza um Padre Nosso e uma Ave Maria para as almas", responde a companheira e continua: "Sonhar com dente é defunto na família".

            Nunca pude atinar com a relação que há entre uma coisa e outra; mas deve haver. Voz do povo, voz de Deus. Sonhar com excremento, é fortuna; sonhar com defunto, é saúde; sonhar com carne crua, é crime; e assim por diante.

            Onde foi o povo descobrir essas equivalências?

            Não há ainda para os sonhos aplicados ao jogo do bicho uma teoria interpretativa e segura, mas já se esboça uma, apesar das dificuldades. Conto um caso. "Sinhá" Maria sonhou um dia com um burro em cima do telhado de uma casa. Pediu cinco mil‑réis adiantados à patroa e jogou‑os no burro. Durante o tempo em que preparava os seus quitutes, foi sonhando com o vestido, as rendas, os sapatos, cheios de "manicolas", enfim com tudo aquilo com que havia de se revestir para ir à festa da Glória no Outeiro. Veio a tarde, correu a loteria e saiu o gato. Ficou triste, a "Sinhá" Maria; e pôs‑se a analisar o seu .sonho, chegando a esta conclusão:

            - "Burra sou eu; nunca burro andou em telhado. Quem anda em telhado, é gato."

            Desde tal descoberta da "Sinhá" Maria ficou assentado entre os jogadores de bicho que burro, cobra, avestruz, coelho e qualquer outro animal, no telhado, é gato.

            Pobre "Sinhá" Maria! Ela não tem motivos para se amaldiçoar! Todos nós vemos muitos burros nos telhados e afirmamos logo que é bicho muito inteligente; mas, nem por isso, acertamos. Passam‑se anos e nos convencemos de que nem burros eram. Eram bonecos de papelão. Eis aí!

            Há muitos modos de nos enganarmos com os nossos sonhos; um deles é ao jeito da analfabeta e simples "Sinhá" Maria; um outro é ao nosso; sabemos ler e, para isto ou para aquilo, precisamos de auto‑ilusões...

Hoje, 17‑7‑1919.

 

HISTÓRIAS DE MACACO

            O nosso macaco, com as suas parecenças humanas, tal e qual o vemos nas gaiolas e preso a correntes, é bem miúdo; mas tem tal ar de inteligência, é tão solerte e inquieto, que o povo não podia deixar de impressionar‑se com ele e dar‑lhe a máxima importância nas suas histórias de animais.

            Certamente, as suas semelhanças com o homem não são bastante flagrantes como as dos grandes macacos da África e da Ásia. O chimpanzé, o gorila, o orangotango e o gibo, sobretudo este, possuem mais fortes traços comuns a eles e ao homem. O último desses macacos antropóides é até tido como bem próximo parente do "Pitecanthropus" do Sr. Dubois, que passa por ser o avô desaparecido do gênero humano. Todos esses macacões africanos, asiáticos e javaneses, porém, são fortíssimos e de uma robustez muito acima da do homem, por mais forte que seja. Não sei qual será a impressão que se tem deles, ao natural; mas a que possuo, pelas gravuras dos compêndios, é de ferocidade e bestialidade.

            O nosso macaquinho não tem esse aspecto de força estúpida, mas de astúcia e malignidade curiosa, quando não de esperteza e malandragem.

            Assim, o povo o representa nas suas histórias, onde ele é fecundo em ardis e variadas manhas, para vencer dificuldades e evitar lutas desvantajosas; às vezes, porém, são mais simples e as narrativas populares procuram fazer ressaltar unicamente o pendor "planista" do símio, da simpatia de nossa gente humilde.

            Essa história que ai vai e me foi contada pela minha vizinha, D. Minerva Correia da Costa, natural de Valença, Estado do Rio, é exemplo disto que acabo de dizer e é intitulada:

 

HISTÓRIA DO MACACO QUE ARRANJOU VIOLA

            Um macaco saiu à rua muito bem vestido. As crianças, porém, não estiveram pelos autos e, apesar de vê‑lo bem vestido, começaram a troçá‑lo:

            - Olha o rabo do macaco! Olha o rabo dele!

            - Meninos, - dizia o mestre Simão, - deixem‑me ir sossegado pelo meu caminho.

            As crianças, porém, não o atendiam e continuavam de surriada:

            - Olha o rabo! Olha o rabo dele! Olha o rabo do macaco!

            Aborrecido e incomodado com a vaia da petizada, o macaco resolveu dirigir‑se a um barbeiro e pedir‑lhe que amputasse a sua cauda. O "fígaro" recalcitrou e não quis atendê‑lo. O macaco insistiu e ameaçou‑o de furtar‑lhe a navalha, caso não fizesse a operação que solicitava. O barbeiro, muito instado e ameaçado, consentiu e Simão voltou à rua extremamente contente. A assuada das crianças, porém, continuou:

            - Olha o macaco cotó! Olhem só como ele está rabicó!

            E tudo isso seguido de assovios e outras chufas! O macaco tomou o alvitre de procurar novamente o barbeiro para que lhe recolocasse a cauda. O barbeiro, muito naturalmente, mostrou‑lhe que era impossível. O macaco furtou‑lhe então a navalha. Feito o que, continuou o seu caminho e veio a encontrar uma mulher que escamava peixe com as unhas, por não ter faca ou outro instrumento cortante adequado. Ao ver tal coisa, o macaco indagou:

            - Por que você "concerta" o peixe com a mão?

            - Homessa! Que pergunta! Porque não tenho faca...

            - Não seja por isso... Tem você aqui uma navalha.

            Agradecida, a mulher, depois de preparar o peixe, deu‑lho a comer com farinha.

            Foi‑se o macaco após o almoço; mas, arrependido, deu‑lhe na telha de retomar a navalha. A mulher recusou, com toda a razão, pelo curial motivo de lhe ter dado a comer peixe e farinha, em troca. O macaco não teve dúvidas: carregou‑lhe um bom bocado de farinha.

            Seguiu adiante, vindo a topar com uma professora que dava bolos de pau às alunas. Ofereceu‑lhe a farinha para fazer bolos que substituíssem os de pau. A professora aceitou e, prontos que eles foram, o macaco não se fez de rogado e entrou também nos bolos. Despediu‑se logo após e, tendo andado um pouco, arrependeu‑se e voltou sobre os seus passos para reclamar a farinha. A professora - o que era naturalmente ele esperar - não a tinha mais; e, portanto, não a podia restituir. O macaco, então, arrebatou uma das crianças, apesar da gritaria da mestra e das outras discípulas. Com ela às costas, foi indo, quando encontrou um tipo que, caminhando, tangia uma viola.

            Propôs a troca da menina pelo instrumento, o que foi aceito pelo sujeito. Continuou o caminho que, bem cedo, era cortado por um largo rio, que ele não podia atravessar. Pela primeira vez, depois de tantas aventuras, vencidas com facilidade, encontrava um obstáculo que a sua manha e a sua astúcia não podiam vencer. Para consolar‑se, resolveu cantar as suas proezas com acompanhamento de viola. Assim cantou:

            - Macaco com seu rabo arranjou navalha; com a navalha, arranjou peixe; com peixe, arranjou farinha; com farinha, arranjou menina; com menina, arranjou viola...

            O rio, porém, continuava a correr mansamente em toda a sua largura intransponível. Viu bem que era impossível vadeá‑lo. Não havia lábia ou astúcia que lhe valesse... Desesperado atirou‑se nele para morrer.

 

            Esta história de um final pessimista para as manobras e espertezas do macaco, não é das comuns; as mais espalhadas dão sempre a vitória final ao símio sobre todos os obstáculos inimigos que encontre na vida e nas florestas.

            A onça é sempre o seu inimigo natural e é com ela, no romancear do povo, que tem travado um duelo de morte interminável.

            O Sr. Antônio Higino, natural do Rio Grande do Norte, que é hoje contínuo do gabinete do Ministro da Guerra e foi praça do exército, há anos, narrou‑me um conto passado entre os dois dos mais expressivos.

            Ei‑lo:

 

"O MACACO E A ONÇA

            Andava o macaco, como sempre, de implicância com a onça, e a onça com o macaco. Um belo dia, o felino veio a encontrar o símio trepado em um galho de pau, a tirar cipós.

            - Que fazes aí, compadre macaco? - perguntou a onça.

            - Ah! então tu não sabes, comadre onça, o que estou fazendo? Trato da minha salvação...

            - Como?

            - Pois não tens notícias de que Nosso Senhor vai mandar um pé de vento muito forte e só se salvará quem estiver bem amarrado?

            Amedrontada e por não ter mão com que ela própria se atasse, a onça pediu imediatamente:

            - Então, compadre macaco, amarra‑me também para eu não morrer... Tem pena de mim que não tenho mãos! Amarra‑me também pelo amor de Deus!

            O macaco obteve todas as juras e promessas que a comadre não lhe faria nenhum mal e desceu para atá‑la num tôco de pau. À proporção que a ia amarrando, perguntava:

            - Comadre, você pode se mexer?

            A onça fazia esforços para desvencilhar‑se, e o macaco atava mais fortemente o lugar que lhe parecia mais frouxo. Assim pôde conseguir amarrar a comadre, sem que esta, por mais que quisesse, pudesse fazer o mínimo movimento.

            Vendo‑a bem amarrada, o macaco apanhou um cipó bem grosso, deu na onça uma valente surra e fugiu em seguida.

            As outras onças conseguiram soltar a irmã, e esta jurou a seus deuses vingar‑se do macaco.

            Veio uma seca muito grande e a onça, para pilhar o símio e cevar nele o seu ódio recolhido, pôs‑se de alcatéia num único lugar em que havia água. Todos os animais iam até ali desalterar‑se, sem serem incomodados pelo felino: mas o macaco, muito atilado e esperto, não foi, adivinhando o que o esperava.

            Apertando‑lhe a sede, entretanto, ideou um ardil para ir até à cacimba saciá‑la. Tendo encontrado um pote de melaço, besuntou todo o seu corpo com ele e, depois, espojou‑se num monte de folhas secas, que se lhe grudaram aos pêlos.

            Disfarçado desse modo, encaminhou‑se para o bebedouro; a onça desconfiou daquele animal, mas não saiu da tocaia, limitando‑se a perguntar:

            - Quem vem lá?

            O macaco com voz simulada, mas segura, respondeu:

            - É o ará.

            Ará é o que nós chamamos ouriço‑caixeiro, com o qual a onça não tem implicância alguma.

            O suposto ouriço muito calmamente abeirou‑se do poço e pôs‑se a beber água a fartar, no que se demorou muito.

            Comadre onça começou a desconfiar de tal bicho, que bebia tanta água, e exclamou admirada:

            - Que sede!

            O macaco precavidamente afastou‑se e, logo que se pôs fora do alcance da terrível comadre, acudiu escarninho:

            - Admiraste‑te! Pois desde que surra te meti, água jamais bebi!

            A vingança da onça foi mais uma vez adiada. Como esta, muitas outras passagens desta curiosa luta são contadas pelas pessoas do povo e eu tenho ouvido diversas. Além da que aí vai, possuo escritas mais algumas, que não reproduzo agora para não me tornar fastidioso.

Hoje, 16‑4‑1919.

 

UM DOMINGO DE PÁSCOA

            Na Guerra dos Mundos, de Wells, quando os marcianos já estão de posse de quase toda Londres, em uma das praças da cidade, eles topam com um estranho espetáculo que os faz parar de admiração, em cima de suas máquinas que a nossa mecânica não saberia nem conceber. É que encontram no largo, creio que fazendo roda, um troço de vagabundos, de falidos sociais de toda espécie, que cantam, folgam e riem, despreocupadamente, enquanto todos fogem diante dos habitantes de Marte, com o seu terrível raio de calor, as suas máquinas de guerra e o seu asfixiante fumo negro...

            De noite, pelas primeiras horas de treva, quando me recolho à casa e subo a ladeira que é a rua em que ela está, se encontro crianças, brincando de roda, eu me lembro dessa passagem do extraordinário Wells. Durante as cinco ou seis horas que passei no centro da cidade, tudo o que conversei, tudo o que ouvi, tudo o que percebi nas fisionomias estranhas, foram graves preocupações. Não são já as de dinheiro, não é tanto o maximalismo que amedronta os pobretões, não é também a fórmula Rui‑Epitácio que abala o povo e faz cansar os lindos lábios das mulheres. Meu pensamento vem pejado de questões importantes, algumas para mim unicamente, e outras para os meus descendentes, que não terei.

            Subo a ladeira e logo dou com uma roda de crianças a cantar:

 

Ciranda, cirandinha!

Vamos todos cirandar!

Vamos dar a meia‑volta,

Volta e meia vamos dar!

 

            Para ouvi‑las, paro um pouco, e, continuando a voltear, as meninas e infantes emendam:

O anel que tu me deste

Era vidro e se quebrou;

O amor que tu me tinhas

Era pouco e se acabou!

 

            Parado ainda, considero aquela dúzia de crianças de várias origens e diversa pigmentação, pondo‑me a pensar na importância de tanta coisa fútil que me encheu o dia, para as quais devia ter o transcendente desprezo e a superior despreocupação que aquela meninada tem e manifesta com seu brinquedo pueril e inocente.

            Se faz lua, então eu me lembro de ver o céu, o que raras vezes faço e fiz. Quando andei fingindo que estudava astronomia, nunca quis observar estrelas pela luneta do teodolito. Preferi sempre encarregar‑me do cronômetro que repousava no chão.

            Hoje mesmo, não está em moda olhar o céu. No século XVIII, segundo Fontenelle, parece que era "chic", até as marquesas faziam‑no; e houve uma mesmo, a du Chatelet, que traduziu Newton e ensinou Física e Astronomia a Voltaire.

            Não é toa, portanto, que uns versos postos em baixo da gravura de um seu retrato, dizem que ela "s'élève dans les airs et le but de ses travaux est d'éclairer les hommes".

            Atualmente, porém, não há muito amor às coisas do céu e todos estão preocupados com as terrenas. A cantoria das crianças, entretanto, faz‑me sempre olhá‑lo e é então que me aborreço de não saber o nome das estrelas e das constelações. Já houve tempo, que isto fazia parte do manual do namorado elegante. Era poético mostrar à amada o Cão, Arturo, Lira, a Vega, esta sobretudo, nas varandas ou sentado o casal nos bancos do jardim. Flammarion andava em moda e todo "almofadinha" daquele tempo sabia essa carta de nomes celestes; hoje, porém, as boas maneiras de um perfeito namorado não pedem tanto e as ingenuidades são mais apreciadas.

            No último domingo de Páscoa, passei eu o dia com um amigo, cuja casa fica em uma das estações dos subúrbios mais consideradas pela posição social dos seus habitantes e muito conhecida pelos namoradores. A residência do meu amigo fica longe da estação, dá fundos para uma montanha que cai quase abruptamente e deixa adivinhar o granito de que é formada, pelas grandes massas dessa rocha que salpicam a sua vegetação escassa e rala. Quando há luar e ele dá de chapa nesse costão, aquela paisagem pobre de horizonte fica magnífica, imponente e grande. Domingo de Páscoa, porém, não houve luar; entretanto, no céu, as estrelas palpitavam de amor pela terra distante. A falta de luar, para poetizar o quadro, foi suprida pela presença de um bando de crianças, que, ao lado da habitação, entoavam as suas canções que devemos chamar infantis, acompanhadas de gestos e meneios adequados. Estive a ouvi‑las; e todas elas me pareceram muito modernas, pois nenhuma era dos meus tempos de menino.

            Não é de hoje que essas canções infantis são mais ou menos amorosas e tratam de casamentos e namorados. Acontecia isso nas antigas, e podia observá‑lo nas modernas que agora ouvia naquele domingo.

            A roda era de seis ou oito crianças e o chefe era um menino, Walter Borba Pinto, com nove anos de idade. Era carioca, mas os seus outros irmãos e irmãs, que estavam na roda, tinham nascido em vários pontos do Brasil, por onde seu pai andara cumprindo deveres de sua profissão militar. Guardei diversas cantigas e me pareceu interessante dar alguns exemplos aqui. Se todas fosse eu transcrever, talvez não chegasse um volume razoável; deixo, portanto, de parte muitas.

            Eis uma delas, que me parece chamar‑se "O Marinheiro":

 

Não me namore meus olhos

Nem meus brincos das orelhas;

Só me namore meus olhos

Debaixo das sobrancelhas.

            A seguir, há um estribilho que as crianças cantam, dançando aos pares alguns passos da valsa chamada - à americana - com balouço característico que o título da canção lembra:

 

Sou marinheiro!

Sou rei! Sou rei!

Adorador! Adorador!

Hei de amar! Amar!

És meu amor! Amor! Amor!

 

            Ninguém me peça a significação disso tudo, porque nada percebo aí; mas ouçam cantada e dançada por crianças, que hão de ficar embevecidos e encantados como eu fiquei com essa canção. Tive curiosidade de perguntar onde o Walter a tinha aprendido a cantar, e disse‑me ele, em resposta, que fora em Lorena. Como toda a gente sabe é uma cidadezinha que fica a meio caminho daqui para São Paulo, pela estrada de ferro; nas proximidades do Paraíba.

            Com toda certeza esse "marinheiro" da canção, que é rei, deve sê‑lo desse rio inspirador de poetas, cujo nome tupi quer dizer "rio mau".

            Não é de hoje que muitas canções populares não querem exprimir nada. A famosa "relíquia" - Tinherabos, non tinherabos - um monumento da língua de priscas eras, tem desafiado a sagacidade dos eruditos para traduzi‑la: e houve um, o Sr. Cônego Dr. Fernandes Pinheiro, que a interpretou assim: "tinhas rabos, não tinhas rabos" etc...

            Sílvio Romero citou essa interpretação, em plena sessão pública da Academia de Letras, e ela toda riu‑se muito à custa do sábio cônego e doutor.

            Na própria "Ciranda", que é tão comum, para conhecer‑lhe o sentido e significação, precisamos ir ao dicionário e saber que "Ciranda" é uma peneira de junco, usada na Europa para joeirar cereais.

            No domingo de Páscoa, na sessão que as crianças me deram de seus brincos peculiares, há uma cantiga que é própria para desafiar a paciência de um sábio investigador, a fim de explicar‑nos o seu sentido e objeto. Trata‑se do "Sambalelê", cujo texto é assim:

 

Sambalelê está doente,

Está com a cabeça quebrada;

Sambalelê precisava

Uma dúzia de palmada.

 

            O estribilho, que é acompanhado de palmas e sapateados, diz assim:

 

    bis   /     Pisa! Pisa! Pisa! Ó mulato!

                 Pisa na barra da saia! Ó mulato!

 

            Depois continua a cantiga:

 

Ô mulata bonita!

Onde é que você mora?

Moro na Praia Formosa,

Logo mais vou‑me embora.

 

            Segue‑se o estribilho e por fim esta última quadra:

 

Minha mulata bonita!

Como é que se namora?

Bota o lencinho no bôlso,

E a pontinha de fora.

 

            É inútil lembrar que muitas outras canções de roda ouvi nesse domingo da Ressurreição; e vendo aquelas crianças cantar tais coisas, com sua voz fanhosa e indecisa, recordei‑me que tinha cantado na minha infância canções semelhantes, com outros meninos e meninas...

            Onde estão eles? Onde estão elas?

            Não sei... Pesei a minha vida passada, olhei o céu que não me pareceu vazio, ao tempo que a voz fraca de um menino entoava:

 

Todos me chamam de feio,

De nariz de pimentão,

Quanto mais se vocês vissem

O nariz de meu irmão.

 

            E a cantoria continuava sem eco algum na "quebrada" próxima

Hoje, 21‑4‑1919.

 

O PRÍNCIPE TATU

            Das notas que andei tomando há anos, de histórias, contos, ditos, crendices de povo, conforme me contavam nos azares dos passeios e dos encontros, guardei uma: "História do Príncipe Tatu", que nunca vi escrita nem nunca ouvi narrada senão pela pessoa que ma pronunciara pela primeira vez. Foi ela uma senhora da minha vizinhança, a quem já aludi nestas rápidas notas e cujo nome talvez tenha demais vezes citado. Trata‑se de D. Minerva Correia da Costa, natural de Valença e residente à rua Piauí, em Todos os Santos, nesta cidade.

            É uma história complicada e longa, cheia de peripécias fantásticas e intervenções misteriosas, que não deixa de ter aquele fundo de todos os contos para crianças, de abnegação, de sacrifício primeiro, para afinal obter‑se a felicidade completa. Abstenho‑me de discutir se essa generalização é segura e se é útil. Não é caso para isso, pois não sou nem folclorista nem educador; mas, infelizmente, o povo parece não dar aos primeiros matéria para que os segundos organizem livros da Carochinha dignos e de acordo com os ideais da nossa atual sociedade. Antes de tudo, porém, convém notar que já dei uma redação minha a essa história do Príncipe Tatu. Publiquei‑a, com muitos erros de revisão, numa revista de inferiores do Exército, cujo nome me escapa agora. A publicação foi feita em dois números e ambos perdi‑os eu; guardei as notas e agora as colijo da maneira que se segue:

            Estando uma vez o rei e a rainha à janela do seu palácio, viram passar um ‑ caçador com . um tatu às costas. A rainha, até então, não tivera a felicidade de dar à luz um filho, e por isso disse para o rei:

            - Ah! meu Deus! Vês tu!... Quem me dera ter um filho, mesmo que fosse como aquele tatu!

            Os seus desejos foram satisfeitos; e dentro de menos de um ano a rainha veio a ter um filho, que era um tatu perfeito.

            Apesar de ser assim, foi ele criado com todos os cuidados de um príncipe e educado e instruído, conforme a sua hierarquia em nascimento.

            Tendo crescido e chegado a época própria ao casamento, demonstrou desejo de desposar a filha de um conde, que tinha três.

            A moça aceitou o pedido com repugnância e impôs que o seu palácio e residência fosse decorado e guarnecido como se se tratasse de um luto e o casamento se fizesse de preto. A condição foi aceita e assim os esponsais foram realizados. À hora de recolherem‑se ao quarto nupcial, o Príncipe Tatu, que já encontrara a mulher no leito, disse:

            - Ah! Quiseste que o nosso casamento fosse de luto, pois vais ver! Morre já e já!

            Em seguida, estrangulou a mulher, cuja morte foi atribuída a outra qualquer causa, que não a verdadeira.

            Ao fim de alguns anos o Príncipe Tatu, que parecia ter esquecido todos os propósitos matrimoniais, mostrou desejos de casar‑se com a segunda filha do conde. Houve espanto e mesmo sua mãe quis dissuadi‑lo desta sua tenção.

            Da mesma forma que a primeira, entendeu a segunda que o casamento fosse feito de luto e as salas do palácio em que ele se realizasse tivessem aspecto funéreo. Aconteceu‑lhe a mesma coisa que à primeira noiva.

            O príncipe parecia teimar em escolher esposa sempre entre as filhas do conde. Chegou, portanto, a vez da terceira, e esta, que tinha por madrinha uma boa fada, foi avisada de que devia desejar que as cerimônias do casamento fôssem as mais festivas possível. Realizaram‑se elas, portanto, com muita pompa e brilho como se fosse o enlace comum de um príncipe normal e uma princesa qualquer.

            Quando o Príncipe Tatu entrou nos aposentos conjugais encontrou a mulher com a fisionomia mais natural que se pode imaginar, e que o recebia como um verdadeiro noivo da espécie humana. Muito contente com isto, o Príncipe Tatu retirou o casaco e veio a ser o homem bonito que era, mas que o encantamento fizera animal. A moça ficou exuberante de alegria, e, não satisfeita de saber‑lhe o segredo, contou‑o à mãe, a rainha.

            Sabedora que foi do caso, não pôde a mãe conter a curiosidade e veio ver, certa noite, o príncipe seu filho com a forma humana. Julgando que lhe fizessem bem e viesse ele a ter sempre a forma da nossa espécie, a mãe e mais a sua nora lembraram‑se de queimar a casca óssea do tatu na persuasão que, despertando ele e não a encontrando, não pudesse mais retomar as formas do animal que aparentava a todos ser a sua. Tal, porém, não se deu.

            Sentindo o cheiro de osso queimado, o príncipe despertou e falou assim dolorosamente:

            - Ah! ingrata! Fôste revelar o meu segredo! Faltavam‑me só cinco dias para desencantar...

            A princesa nada dizia, - só chorava; e o príncipe não a recriminava, mas continuava a falar com muito queixume na voz:

            - Agora, se tu me quiseres ver, tens que ir às terras dos Campos Verdes.

            Dito isso, sem que ela pudesse perceber como, o Príncipe Tatu sumiu‑se dos seus olhos totalmente, completamente.

            Passaram‑se meses e anos e ela, sempre cheia de saudades, esperava que o seu marido voltasse da mesma forma misteriosa como a que envolvera o seu desaparecimento.

            Tal, porém, não se deu. E ela, cheia de saudades, não pôde por mais tempo suportar a ausência do Príncipe Tatu, seu marido de poucos dias. Arrumou a trouxa e, sem norte e sem guia, partiu em procura das tais terras que ninguém sabia em que canto do mundo ficavam. Andou muito, muito e muito por esse mundo de Cristo, e topou afinal com uma casinha, à beira da estrada, junto da qual estava uma velhinha, de grande velhice e largo olhar de bondade.

            - Minha velha, - perguntou a princesa, - onde ficam as terras dos Campos Verdes? A velhinha abandonou um instante a renda que estava fazendo sobre a almofada, e respondeu ternamente, com voz macia e pausada:

            - Minha netinha, quem deve saber disso é minha filha, a Lua; é ela quem percorre todos os descampados; é ela que nos beija, é ela que nos ama; deve ser, portanto, ela, quem o saberá. Espera, minha netinha, que ela venha, pois não tardará.

            Como nas clássicas histórias da Princesa Scheherazade, parece, leitores amigos, que a aurora vem rompendo; devemos por isso interromper a narração para continuá‑la na noite seguinte. Deixamos de pôr aqui o habitual "continua" dos romances‑folhetins, que os jornais trazem para o gáudio dos seus leitores artísticos, mas sem deixar de contar dentro de uma semana como se chega ao país dos Campos Verdes...

Hoje, 8‑5‑1919.

 

CONTOS E HISTÓRIAS DE ANIMAIS

            Os animais domésticos, domesticados e selvagens, sempre entraram em toda e qualquer literatura, quer na popular, quer na anônima, quer na pessoal e cultivada. Desde muito cedo que os homens se associaram aos animais para fazer a sua jornada na vida. Seja como simples companheiros, seja para sacrificá ‑los, a fim de obter alimento, eles sempre viveram entrelaçados aos sonhos e devaneios da humanidade. Comte incorporou, com aquela sua generosidade de filósofo pobre, orgulhoso e bom, certos animais à própria Humanidade; e Buda, o iluminado Çakia‑Muni, não admitia o sacrifício de nenhum para sustento do homem.

            Os paladinos, os altissonantes de alma e couraça, os "preux" esforçados das batalhas, dos combates singulares, das justas e torneios medievais, batizavam os seus ginetes de guerra com nomes flamejantes e significativos que ainda vivem na literatura e na memória

dos homens. Reinaud de Montauban, um dos quatro filhos d'Aymon, tem Bayard, o melhor corcel da cristandade; Rolando, o paladino dos paladinos, tem Neillantif, o "bon cheval courant" da sua imortal gesta; e todos os outros guerreiros de antanho possuem os seus "destriers" bem crismados e extremados da turbamulta dos cavalos anônimos. Os troveiros, os trovadores, os "clercs", que lhes contaram as façanhas nas festas, crônicas e romances, e as conservaram para a nossa atual edificação, só lhes viram as aparências, os aspectos de bravura, de ímpeto, de ardor, mas não nos deram as suas qualidades irredutíveis de caráter, de coração e inteligência - a sua alma, enfim.

            Foi preciso que Cervantes nos pintasse o doce e resignado Rocinante, esse hipogrifo cheio de candura que suportava candidamente os arrebatamentos do sonho generoso de justiça do seu amo e amigo, para que o cavalo entrasse na literatura com a posse de sua alma individual. Rocinante não se parece com outro qualquer cavalo; ele é unicamente o corcel de D. Quixote.

            Além deste animal, quem não se lembra do irrequieto e falador papagaio de Robinson Crusoé? Dessa ave doméstica, em geral maçante, mas que no livro de Crusoé nos parece tão simpática, a minorar, a quebrar o isolamento que oprime o seu companheiro da ilha deserta, dando‑lhe a larga visão da sociedade e dos homens - quem não se lembra dela?

            Podia ainda falar no "Roman de Renard", das fábulas, dos poemas hindus, mas meu propósito é outro e não convém perdê‑lo de vista, para exibir leituras ou erudição.

            A mistura dos animais com os deuses, seja como atributos de sua força e do seu poder, seja com qualquer outro sentido, é coisa fácil de verificar em todas as religiões. Na greco‑romana, o cavalo é animal de Netuno; a serpente, de Minerva; a águia, de Júpiter; os pombos, de Vênus e assim por diante.

            Na nossa religião católica, que não é das mais naturalistas e zoomórficas, certos santos têm o acompanhamento de animais.

            São João Batista, como toda gente sabe, é figurado com um carneiro ao lado; e nos presepes, com os quais se comemora o nascimento de Jesus Cristo, há o burro, a vaca, galos, galinhas, etc. A transcendente imaterialidade do Divino Espírito Santo é representada na iconografia católica por um pombo.

            Pode‑se dizer que, na espontânea atividade literária de todos os povos, os animais que os cercam figuram humanizados, falando, discreteando, sentenciando, narrando, ora com esta intenção, ora com aquela moralidade ou aquela outra filosofia.

            O Sr. Van Gennep, no seu conhecidíssimo livro, traz uma narrativa de animais que me parece típica para o gênero e que me atrai entre todas. É aquela em que se explica a origem de certas deformidades ou melhor singularidades morfológicas de determinados animais.

            A que reproduzo aqui, mais abaixo, para esclarecer o meu pensamento, é originária da África. Ei‑la:

            "O elefante, rei dos animais, convocou um dia todos os seus súditos para uma assembléia, sob pena de morte em caso de desobediência. Todos compareceram, exceto o caramujo.

            "A conferência teve lugar, como era de esperar, sob a presidência do elefante, e ia já pelo fim, quando os animais se puseram a gritar:

            "- Vem aí o caramujo! Está aí o caramujo!

            "O caracol aproximou‑se todo trêmulo.

            "- Donde vens? perguntou‑lhe o elefante.

            "- Da minha aldeia, respondeu‑lhe o caramujo.

            "- E por que tardaste? Não recebeste a ordem?

            "- Recebi‑a, pai elefante, e me pus logo em caminho. Mas, tu só me deste um pé para andar, os ramos me cegavam, e eu temo muito o frio e a chuva. Foram esses os motivos que me fizeram voltar e me decidiram a carregar a minha casa nas costas.

            "O elefante‑rei riu‑se muito e durante longo tempo com essa explicação. Depois, assim disse:

            "- Tu falaste claro, pai caramujo. Doravante, terás teus olhos na ponta dos chifres, e poderás escondê‑los, logo que os ramos das árvores os ameacem. Em todo o caso, para punir‑te de ter faltado à conferência, carregarás sempre, durante toda a vida, a tua casa nas costas."

            Diz o Sr. Van Gennep que certa tribo africana acrescenta a esta história a consideração de que o castigo não foi grande, porquanto o caramujo não precisou trabalhar mais para ter casa.

            Assim, porém, não procederam os nossos severos e terríveis deuses mais ou menos judaicos com o linguado. Todos conhecem esse peixe que tem a boca numa disposição especial e anormal, torta, como diz o povo. É corrente, entre nós, que ele assim ficou por ter tomado a liberdade de caçoar com Nossa Senhora. Andava a mãe de Jesus por uma praia, contam as nossas velhas, passeando, levando naturalmente o filho ao colo, a fazer não sei o quê.

            Não havia meio de atinar se o mar estava enchendo ou vazando. Nossa Senhora não encontrava ninguém que a tirasse da perplexidade, quando se aproximou mais das águas e viu um linguado que andava próximo. Perguntou com toda doçura e delicadeza:

            - Linguado, a maré enche ou vaza?

            O peixe que devia ser, por esse tempo, quando os animais ouviam e falavam, de um natural mofador e grosseiro, sem lhe responder à pergunta, arremedou‑a nas palavras e exagerou para melhor debicar o modo por que Nossa Senhora tinha articulado os lábios, a fim de pronunciá‑los. O linguado não sabia com quem estava falando, mas veio a sabê‑lo, quando Nossa Senhora lhe disse:

            - Ficarás com a boca torta, tu e toda a tua geração, até a consumação dos séculos!

            Assim foi e ainda hoje, mesmo no prato, à mesa do almoço ou do jantar, nós lhe vemos o estigma, que como castigo lhe deixou no seu corpo o justo ressentimento de nossa Mãe Santíssima.

            Não é só esse animal que mereceu dos nossos deuses católicos punição ou maldição pelo seu mau proceder em relação a eles.

            Manuel de Oliveira, um negro velho, cabinda de nação, muito fiel e dedicado, que viveu com a minha família e me viu menino de sete ou oito anos, tendo morrido há pouco tempo, não gostava de gatos e não me cessava de explicar essa sua ojeriza:

            - "Seu Lifonso", gato é bicho do diabo... É bicho que Nosso "Sinhô" não gosta; é bicho "madiçuado" por Deus. Cachorro, sim...

            Contava‑me, então, meu saudoso preto velho o motivo por que ficaram malditos os gatos, que, nos nossos dias, depois de Pöe e Baudelaire, estão em moda entre os literatos poetas, damas de sociedade e outras pessoas dignas de verem o seu "interior" estampado nos jornais catitas e revistas de elegância.

            Nosso Senhor Jesus Cristo estava na cruz e teve sede. Passaram homens, mulheres, bichos e ele pedia água. Ninguém se importou e não lha trouxe. Passou, então, um gato que Nosso Senhor julgou ser capaz de fazer a obra de caridade que o Homem‑Deus suplicava lhe fizessem. Rogou ao gato que lhe trouxesse um pouco d'água para lhe abrandar a ardência dos seus lábios ressecados.

            - Gato, "Seu Lifonso" - fala o Manuel de Oliveira, - que é bicho mau e do "demônho", sabe o que fez? Pois fez isto: "mixô" numa caneca e deu a "bebê" a "Nosso Sinhô". "Nosso Sinhô" mardiçuô ele pra sempre e até hoje "ele" é "mardiçuado" por Deus, é bicho que tem parte com o “capeta”.

            - E o cachorro, Manuel? - perguntava eu.

            - Cachorro não fez isso. Buscou água fresca e deu a "Nosso Sinhô", por isso ele é bicho de Deus.

            A história de Manuel de Oliveira é muito conhecida e familiar entre nós, havendo outras muitas que explicam a maldição de certos animais, as suas deformidades, mas que, infelizmente, agora não me acodem.

            Algumas não personificam o Deus ou o Santo que os castigou, mas outras personalizam‑nos francamente.

            É coisa muito sabida o horror que os judeus e muçulmanos têm ao porco e a tudo que a ele se refere.

            Por suporem ser de porco a graxa com que deviam umedecer os cartuchos de umas certas espingardas antigas, tendo de mordiscá‑los antes de enfiá‑los na culatra das carabinas, os cipaios muçulmanos da Índia, a serviço da Inglaterra, levantaram‑se em uma formidável revolta que pôs em perigo a dominação britânica nas terras do Ganges.

            Muitos autores querem ver nessa ojeriza, tão poderosa sobre as almas duma grande parte da humanidade, uma prescrição com fim higiênico feita religiosamente pela Biblia; outros, porém, julgam encontrar em tal coisa uma singular deformação de um totemismo primitivo e esquecido.

            Num caso ou noutro, seja qual for a razão, podemos afirmar que os animais irracionais, desta ou daquela forma, entram mais na nossa vida do que supomos. É sobre o seu sofrimento, sobre as suas próprias vidas que nós erguemos a nossa.

            Quando, há meses, estive no Hospital Central do Exército, e vi em uma sua dependência, em gaiolas, coelhos de olhar meigo e cobaias de grande esperteza, para pesquisas bacteriológicas, lembrei‑me daquele "Manel Capineiro", português carreiro de capinzais da minha vizinhança, que chorou, quando certa vez, ao atravessar a linha da Estrada de Ferro com o seu carro, a locomotiva matou‑lhe os burros, a "Jupepa" e o "Garoto".

            "- Antes fosse eu! ai mô gado!" disseram‑me que ele pronunciara ao chorar.

            Na sua manifestação ingênua, o pobre português mostrava como aquelas humildes alimárias interessavam o seu destino e o seu viver...

Hoje, 17‑4‑1919.

 

HISTÓRIA DE UM SOLDADO VELHO

            A literatura nacional possui obras maravilhosas que pouca gente conhece. Os livros conhecidos, citados e estimados, nada valem à vista dos que ficaram esquecidos e à mercê das traças das bibliotecas. Há muitos dessa literatura subjacente que talvez nem tenham chegado aos depósitos oficiais de livros e permaneçam nos desvãos poeirentos dos "sebos", sem encontrarem mão amiga que os traga para aquela forte luz da grande publicidade a que eles foram destinados ao nascer.

            Se me sobrasse fortuna e lazer tivesse eu, havia de andar pelas lojas de livros usados, a fazer descobertas dessas relíquias. Em falta de cronicons e códices manuscritos de antanho, havia de encontrar muita brochura curiosa e reveladora de novos predicados intelectuais de seus autores.

            Imagino que tal se desse, porque, entre os meus poucos livros, tenho uma brochura desconhecida, cujo valor é para mim inestimável.

            Todos os bibliófilos ricos do Rio de Janeiro podem comprar, nos leilões das livrarias das velhas famílias portuguêsas, manuscritos e "in‑fólios", que interessem a qualquer período da nossa história; mas a minha - A redenção de Tiradentes, pelo Sr. Fernando Pinto

de Almeida Júnior, nunca! É um drama histórico, em um prólogo, quatro atos e quatro quadros, original brasileiro, como diz na capa, e aprovado pelo Conservatório Dramático, tendo o "visto" da polícia. Foi impresso nesta cidade do Rio de Janeiro, na antiga casa Mont'Alverne, à rua Uruguaiana, 47, em 1893.

            Trata‑se de uma obra filosófica, histórica, crítica, republicana e cívica, mais cívica do que as recentes canções militares que o carnaval fez esquecer. Prefaciado pelo falecido Figueiredo Coimbra, esse encouraçado literário é precedido por uma porção de "vedetas" explicativas e contratorpedeiras de ofertórios significativos. O autor, por longas páginas, com divisas adequadas e outras coisas, oferece o seu drama a Saldanha Marinho, Rui Barbosa, Lopes Trovão e mais sete próceres republicanos; e, além destes, a diversas pessoas de sua família, cuja conta não se pode bem fazer, pois há uma indeterminada dedicatória - "Às minhas filhas..." - o que não impede de chamar o seu único filho varão de "unigênito"...

            O seu autor era, ou parece ter sido, capitão do Exército. O Sr. Figueiredo Coimbra, no prefácio, trata‑o sempre de Sr. capitão Almeida Júnior. Não tenho documento para afirmar que fosse do Exército; pode bem ser que fosse da Polícia ou da Guarda Nacional, mas tenho muitas razões para acreditar que tivesse passado pela legendária Escola Militar da Praia Vermelha.

            A sua obra que, além de abracadabrante e cívica, é sincera, denuncia uma admiração filial pelo Sr. Bote‑ lho de Magalhães; um sentimento desses ou de qual‑ quer admiração por esse senhor só pode existir nos que passaram por aquele estabelecimento de ensino militar. Ninguém mais a teve, tinha, tem ou terá.

            Não é meu propósito, porém, analisar a peça singular do capitão Almeida Júnior. A sua leitura, eu a fiz em anos passados, e agora não estou disposto a repeti‑la. Além de suas singularidades dramáticas e cênicas, ela pode fornecer ao exegeta arguto e ágil de espírito vasta documentação do sentir dos heróicos cadetes de 1889, isto é, do 15 de Novembro, de que nós temos a cortante e eloqüente imagem viva nos Srs. Lauro Müller e Lauro Sodré. Para mim, a peça do Sr. Almeida Júnior é preciosa porque foi onde pela primeira vez vi grafado, com todas as letras, o verbo "engrossar". Toda a gente sabe que esse verbo de jargão nasceu na velha Escola Militar, dela se propagou pela cidade inteira e chegou até aos jornais e à literatura escrita.

            Como este, muitos termos da nossa geringonça, ditos e outras formas de dizer que se tomaram populares, nasceram lá. Há um muito conhecido, mas que não me atrevo a escrever aqui, apesar de muito expressivo e curioso, como processo de formação de palavras novas. Os estudiosos dessas coisas que procurem determinar a sua origem, tanto mais que na Academia Francesa já se tratou há tempos do "argot" parisiense.

            A antiga escola da Praia Vermelha, como toda a caserna, terrestre ou flutuante, era muito favorável à formação de termos de gíria, de anedotas picarescas, senão fesceninas, de anexins e sentenças de sainete peculiar.

            A sua segregação parcial do total da sociedade, o quase isolamento dos seus alunos do resto dos homens de outras profissões e ofícios, o encontro forçado ali de gente oriunda de vários lugares, de proveniências familiares as mais diferentes, a monotonia da vida que exige conversas, pândegas adequadas entre eles, devia levar os cadetes a criar, sem o sentir, com estes ou aqueles elementos, uns modos de linguagem própria e literatura oral sua.

            Aquele estabelecimento tinha, além dessa feição peculiar à sua natureza, algumas qualidades e atributos que vieram encontrar a sua expressão máxima em Euclides da Cunha. No seu escrever, pejado de metáforas e comparações científicas, há sempre a preocupação de demonstrar saber universal, desdém pelas impressões do primeiro instante, desejo de esconder a colaboração do inconsciente sob a crosta espessa das leituras. Não se nota, no seu estilo, cambiantes, abandonos, suaves esbatimentos nas transições. A sua alma era seca e árida, e todo ele cheio de um orgulho intelectual desmedido, que a tornava ainda mais seca e mais árida. Tendo estudado difíceis disciplinas e, certamente, as conhecendo, mas literato até à medula, até à tortura de procurar um estilo original e inconfundível, até ao rebuscamento dos vocábulos raros, tinha a pretensão de filósofo, de homem de ciência que despreza o simples escritor, para ele sempre um ignorante.

            Nas pequenas revistas da velha escola da Praia Vermelha, pode‑se notar esse modo de espírito peculiar a ela, e também nas anedotas e "casos" contados pelos seus ex‑discípulos.

            Era corrente até bem pouco, entre seus alunos, que aquele instituto de ensino era o primeiro estabelecimento científico do mundo. Uma carta do doutor Audiffrent, discípulo de Augusto Comte, justificava essa crença.

            Euclides da Cunha manifestou, nos seus escritos, a influência do seu primeiro meio intelectual e o seu orgulho mental devia tê‑lo tomado muito cedo, pois a sua vida, que anda contada de boca em boca, não registra a existência de fortes amizades de moço, de menino, de criança.

            O Sr. Alberto Rangel é o único que assim é apontado. Talvez sem fundamento, eu creio mais literária do que simples e espontânea amizade de colegas de mocidade a que existia entre eles. Entretanto, a Escola Militar era de fortes camaradagens, de grande sociabilidade, de dedicações de uns alunos pelos outros, levadas ao extremo.

            Daí, talvez, essa capacidade de criar gíria, modificações e derivações na linguagem comum, que sempre foi uma criação do pendor dos homens para o seu agregamento; e ter tido ela influência decisiva nos nossos motins políticos.

            Participando da sociedade em geral e sendo habitantes de uma caserna estavam, portanto, os seus alunos muito adequados a trazer para a massa os modismos que o quartel criava. Hoje, esses dizeres pitorescos saem das casas de jogo: "deu o suíte"; "bancou o trouxa", etc. Sinais dos tempos? Não me compete examinar tal coisa. Voltemos ao assunto.

            Entre os soldados propriamente, que entre nós são em geral originários das mais humildes camadas da sociedade, além do calão quarteleiro, há histórias, contos, criados com os elementos que lhes estão à mão, e com um pensamento diretor que lhes acaricia a sua desfavorável situação social, e os consola da sua pobreza e do seu estado de obediência e inferioridade. Nessas historietas e anedotas, há sempre como moralidade a vingança ou a vitória da praça com seu espírito, seus ardis ou esperteza de meios destros, sobre os seus superiores civis ou militares. Entre os nossos jovens oficiais, em que a rigidez de certo positivismo estreito e pedante não domina mais, devia aparecer algum que colhesse da boca dos soldados exemplares dessa literatura plebéia, tanto mais interessante quanto desconhecida do grande público, embora por fragmentos e alusões figure no falar familiar.

            Não possuo muitos, mas tenho alguns, dos quais publico hoje um, que me foi fornecido pela ex‑praça Francisco José dos Santos, natural de Aracati, no Ceará. Atualmente é contínuo ou servente da Secretaria da Guerra. A sua história, que talvez não tenha muito de original para o comum, com o seu cômico reduzido, é, entretanto, a demonstração das recriminações dos soldados, quanto à exigüidade dos vencimentos de suas reformas.

            Não parece muito recente, pois, além do mais, tem aquele velho espírito de antagonismo entre o padre e o soldado, representantes das classes que antigamente disputavam o domínio da sociedade.

            Santos, quando me contou a história do "Soldado velho" era ainda cabo efetivo do exército, servindo na Secretaria como "correio", , isto é, um dos estafetas para entrega da correspondência, que lá não são civis como nas outras secretarias, mas praças de certa graduação, vencendo uma minguada diária.

            Eu a dou mais abaixo quase como o ex‑cabo ma forneceu por escrito, quando eu era efetivamente oficial da Secretaria da Guerra.

            Vamos, portanto, lê‑la:

 

"HISTÓRIA DE UM SOLDADO VELHO

            "Soldado Velho" deu baixa do serviço do Exército, por não servir mais para o trabalho. O soldado que recebia em recompensa de muitos anos de serviço era um cruzado. Ora, o que fez ele? Comprou um pato e saiu a revendê‑lo. Chegando perto de uma casa saiu‑lhe uma criada a comprar o pato.

            Ele disse que o custo era de dois cruzados; ela, a criada, vai falar à patroa, que manda vir o pato e, por sua vez, manda pagá‑lo. O soldado, porém, não saiu mais do portão. Após certo espaço de tempo chega um frade para penetrar na casa e pergunta‑lhe o que estava ali fazendo. "Soldado Velho" que bispou alguma coisa no caso disse que estava à espera do pagamento de um pato que vendera à família. O frade logo perguntou quanto era; ele disse o custo de dois cruzados. O religioso puxa do bolso da batina o dinheiro e paga. Dispõe‑se depois a entrar na casa; o soldado o acompanha; e ambos entram. Chegando na sala, o frade, que parecia peculiarmente muito íntimo da casa, puxou uma cadeira e sentou‑se; o militar fez o mesmo.

            A dona da casa vendo o frade entrar, acompanhado por aquele homem desconhecido, ficou interiormente furiosa, mas sem saber o que devia fazer, nem com coragem para perguntar ao frade que homem era aquele. O eclesiástico não lhe explicava o fato, dizendo uma coisa é outra sem relação com ele; e assim vão os três até à hora de jantar, ao qual não faltou o pato de cabidela. O frade tomou lugar na mesa; o "Soldado Velho" também.

            A dona da casa continuava furiosa, mas aceitava silenciosamente a situação, fazendo das tripas coração. Já estava a terminar o jantar quando bateram à porta. Era o dono da casa. Estava tudo perdido. À vista disto, a mulher tranca o frade e o soldado em uma alcova. O marido não saiu mais e a mulher cada vez mais ficava amedrontada. Chega a noite.

            O frade não tinha dado até ali uma palavra; e o "Soldado Velho" também; mas, quando foi aí pelas 10 horas, a praça reformada, vendo que todos já estavam dormindo, provocou uma conversação com o frade. Pediu‑lhe este que não falasse ali, mas o outro continuou a falar.

            O frade gratificou‑o com um conto de réis para que ele nada mais dissesse. Recebeu o dinheiro o "Soldado Velho", mas imediatamente continuou a dizer que no dia que comia pato não podia ficar calado.

            Deu‑lhe o frade mais outro conto de réis ficando sem vintém. "Soldado Velho", porém, não cessou de falar.

            O seu companheiro, para ver se ele se calava, deu‑lhe a batina de sêda. "Soldado Velho" teimou em afirmar que no dia em que comia pato não podia estar calado.

            O frade já lhe pedia pelo amor de Deus que não falasse mais, pois, se tal fizesse, eles ficariam desgraçados. O dono da casa certamente despertaria e era capaz de matá‑los. "Soldado Velho" não queria saber de nada; o seu desejo era só falar. O frade, percebendo que não tinha mais o que dar, despiu‑se de toda a roupa e entregou ao tagarela para que ele não falasse mais.

            Já sendo meia‑noite, na cadeia, a sentinela soltou o brado de alerta; o "Soldado Velho" ouviu e respondeu com outro formidável brado. O frade, com medo, meteu as mãos na porta e saiu nu. "Soldado Velho", que ainda não estava vestido com a batina, acompanhou o frade. Este pulou uma janela mas o dono da casa pula atrás dele e dá‑lhe um tiro. "Soldado Velho" pula em seguida ao dono e o prende. O homem, que era pessoa de grande reputação, não quis logo sujeitar‑se à prisão, mas "Soldado Velho" não queria saber de nada.

            Estava o "grosso" preso e bem preso, pois ele, soldado, era o rondante e tinha que cumprir o serviço, tanto mais que o preso tinha dado um tiro num homem. Não podia de maneira alguma soltá‑lo. O dono da casa, vendo a resolução do "Soldado Velho" e que tinha mesmo de ir à presença das autoridades, vexado, ele que era muito conhecido e respeitado por todos, propôs ao militar, se ele o soltasse, dar‑lhe doze contos. "Soldado Velho" aceitou o trato, mas com a condição do dono da casa mandar a sua mulher contar e trazer ali onde estavam, a maquia. O homem chamou a mulher e mandou que ela contasse os contos de réis com toda a pressa e os trouxesse. Assim foi feito. "Soldado Velho", que só vencia um pobre cruzado por mês, saiu da aventura com 14:OOO$, quatro cruzados, a batina de sêda do frade e todos os seus panos menores.

            Quem pagou o pato?

Hoje, 10‑4‑1919.

 

SUPERSTIÇÕES DOMÉSTICAS

            Houve quem dissesse que a superstição é a religião do homem que a não tem. Isto não quer dizer que todos os homens, as mulheres principalmente, desta ou daquela seita ou fé religiosa, não as tenham também.

            Na Europa, em qualquer parte dela, as superstições abundam. Todos nós sabemos disso, mas é idéia feita que só os italianos o sejam e um pouco os espanhóis. Dá‑se lá o que se dá entre nós, onde os sociólogos profundos atribuem as nossas, que, às vezes são bem européias, a depósitos na nossa consciência de crendices africanas, quando não tupaicas.

            É própria da nossa fraqueza mental essa pressa em explicar com criações arbitrárias o que não podemos cabalmente elucidar de outra forma; daí essas simplistas generalizações de nossos falsos sábios, quanto às origens das nossas crendices e abusões.

            O homem, cheio de mistério e cercado de mistério, vivendo aqui, ali e acolá, sempre procura nas coisas externas sinais seguros do seu destino e marcos certos para o seu roteiro na vida. É uma atividade fundamental do nosso espírito que se traduz de vários modos desde os samoiedas e esquimós até os araucânios e patagões. Os estudiosos de folclore já têm observado essa unidade espiritual da raça humana, vendo nos seus contos, fábulas, cantigas, ritos particulares e superstições uma relativa analogia substancial de temas a se manifestar com aparências narrativas de formas variadas.

            O Sr Van Gennep diz que da Cendrillon de Perrault, conhecida por nós como A Gata Borralheira, há mais de quatrocentas variantes, de todos os tempos e todos os países, desde a Europa até ao Extremo‑Oriente e à nossa América.

            O que se dá com a conhecidíssima Gata Borralheira dá‑se com quase toda a produção literária coletiva e anônima cujas manifestações são encontradas em todas e as mais diversas partes da Terra e na boca de raças diferentes, não se podendo, entretanto, determinar o foco de sua irradiação.

            O autor que citei diz que a conquista da Argélia, com o estudo dos árabes e berberes, demonstrou a existência na África do Norte de múltiplos temas, gozando de uma extensa voga na Europa Central. A minha tenção, porém, não é a de fazer um estudo mais amplo sobre o assunto, mesmo porque não me sobra nem a competência nem a vasta leitura que ele exige.

            Tento unicamente com o que tenho observado e ouvido, nas minhas conversas com pessoas do povo e gente humilde, registrar impressões, dar o meu depoimento individual, sem nenhuma outra pretensão mais elevada.

            Nas manifestações da psicologia popular, uma das mais curiosas é a superstição caseira que se transmite de pais a filhos, atravessando gerações e as situações mais diversas de fortuna das respectivas famílias.

            Desde menino, gosto muito de pombos; e, como sempre com os meus gostos, não distingo no objeto deles o que é de luxo ou o que é comum. Muitas vezes, quis, com os níqueis que ajuntava em um cofre, possuir um casal; e cheguei mesmo a projetar, em um caixão de sabão, o pombal. Nunca em casa me permitiram que eu os tivesse. É crença familiar entre nós que os pombos são, quando se reproduzem muito, sinal de prosperidade no lar; mas, desde que comecem a fugir, indicam que as coisas vão desandar.

            É uma crendice geral que qualquer observador pode colher entre as famílias pobres e remediadas; mas para a qual será muito difícil achar uma razoável explicação. Os pombos, arrulhantes pombos das beiras das casas, que eram na antiguidade consagrados a Vênus e cuja posse no regime feudal constituía um privilégio de senhor, são perseguidos, ou eram no meu tempo de menino, por essa abusão familiar de nossa gente pobre.

            Em toda a parte, pelo menos nos países europeus e os que surgiram deles, a coruja é tida como uma ave de mau agouro e o seu pio, ouvido à noite, vaticina grandes desgraças domésticas; entretanto, essa ave é na mitologia consagrada a um Deus ou Deusa que, segundo a minha fraca lembrança, nada tem de maléfico.

            A serpente também, a nossa cobra, tão cheia de legendas aterradoras e de habilidades cruéis, é consagrada a Minerva, a Atena grega, e o bramanismo simboliza nela o infinito, quando a representa mordendo a própria cauda.

            É artigo de fé entre a nossa gente roceira que ela não morde mulher grávida, e perde o poder de locomoção desde que a mulher dê três voltas no cordão que lhe amarra as saias.

            Os roceiros dizem que a cobra salta para morder o indivíduo que a afronta; mas os sábios negam isso. Há até, entre os matutos a recomendação de que se deve visá‑la bem quando se a quer matar a tiro, pois, errando este, a cobra vem certa pela fumaça do deflagrar da carga da espingarda e morde o atirador.

            Negam observadores autorizados essas proezas da cobra, como negam também que ela atraia o passarinho que quer engolir.

            O certo é que quem tem vivido na roça ouve, às vezes, um modo particular de gemer dos passarinhos, pousados nas árvores, que não é o vulgar. Já o notei, mas disso a afirmar que seja devido ao "magnetismo" da cobra a atraí‑lo, vai uma grande distância.

            Todas as superstições caseiras ou familiares têm quase sempre por base o temor dos gênios, das forças, misteriosas contrárias à nossa felicidade. Todas elas se dirigem contra o Azar, que acarreta moléstias, mortes, perdas de emprego e outros acontecimentos nefastos à vida satisfeita do lar; algumas, porém, têm por fim invocar a felicidade e pedir a prosperidade para ele.

            A ferradura, apanhada ainda quente dos pés do cavalo quando a perde, pregada atrás da porta da entrada, tem a virtude, dizem, de trazer a satisfação para a casa que a possui.

            Na sua generalidade, porém, as crendices populares visam evitar, afastar o "mau olhado", a "coisa feita", o "azar" , espontâneo e inexplicável ou provocado pela inveja de inimigos e desafetos.

            Para evitar tais coisas, há a figa‑de‑guiné, que os indivíduos usam, mas os lares também têm. Além desse amuleto e dos santinhos, devem‑se trazer, pendurados no pescoço, para afastar desgraças e feitiços, os "breves".

            Chamam a isto pequenos saquinhos, coisas misteriosas, às vezes mesmo orações com a invocação de certos santos ou palavras cabalísticas.

            No que toca a orações, há também o costume de escrevê‑las e enviar pelo correio aos amigos, com a recomendação de repeti‑las tantas vezes e passá‑las adiante. Tenho nos meus papéis um espécime dessas; e, se não as transcrevo aqui, é porque não as encontro à mão.

            A luta contra o azar, contra a incerteza do dia seguinte, nascida da convicção de que a nossa sorte é insegura e que somos cercados de entidades superiores e pouco amigas da nossa felicidade e repouso, leva‑nos às mais curiosas e inesperadas superstições domésticas.

            Ninguém derrame tinta ou azeite no chão, porque traz azar; ninguém quebre um espelho, porque traz azar; ninguém ponha uma vassoura "de pernas para o ar", porque traz azar; ninguém deixe um calçado com a sola voltada para cima, porque traz azar; ninguém vista uma meia ou outra peça de roupa pelo avesso, porque traz azar; e assim são inúmeras as superstições que procuram evitar o azar e todas elas são obedecidas cegamente, mesmo por aqueles que se julgam livres de tais crendices.

            Nesse debater nas trevas da nossa vida terrena, que é como caminhamos na nossa breve existência, sem marcos, sem certeza do que fomos, do que somos e do que seremos, a nossa mais urgente necessidade é estar bem com o mistério; e, quando as religiões não nos satisfazem, quando elas, à custa de regrarem a nossa sede e fome de Infinito e de Deus, nos abarrotam de tolices e patranhas manhosas a enfarar, é para essas pequenas e ingênuas crendices que ficaram guardadas na nossa memória, desde a meninice mais tenra, que nos voltamos para que a obscuridade do viver não nos cegue de todo, e elas nos guiem na nossa vida e nos desculpem, depois da nossa morte, perante o que vier...

            Eu não deixo nunca o meu chinelo virado com a sola para o ar...

Hoje, 27‑3‑1919.

 

REZAS E ORAÇÕES

            A oração, à reza, não só nas freguesias afastadas, mas mesmo nas centrais, o povo atribui poderes superiores e miraculosos de várias aplicações. Há as que são destinadas a fins de cura, há as que se empregam em conjuração de moléstias, há outras para a proteção contra feitiços e "coisas feitas" de qualquer origem, tendo como fito perturbar a felicidade da nossa existência.

            É corrente, e não sei como explicá‑la, a frase: "Você anda caipora; precisa ir aos "barbadinhos" ou rezar nos "barbadinhos"."

            Os "barbadinhos", como toda a gente sabe, são os capuchinhos italianos, cujo convento é no morro do Castelo; detentores, atualmente, da igreja mais antiga da cidade, onde está o túmulo de Estácio de Sá e no cunhal da qual existe o marco quinhentista da fundação da cidade, com as quinas do velho reino lusitano.

            Os "barbadinhos do Castelo" entram sempre em tudo que se alude a benzeduras, e uma das suas missas, nas primeiras horas da manhã, creio que a primeira sexta‑feira do mês, é tida entre os supersticiosos como possuindo a virtude de afastar o azar, o caiporismo, etc. Nunca a ela fui, mas muitos que lá foram me contam que tem uma freqüência segura de jogadores de todas as classes, de raparigas de vida airada e outros devotos do Acaso, que vivem acorrentados aos seus caprichos.

            Outra missa muito curiosa é a chamada das "arrependidas". Não sei em que dias é a assim chamada, que se diz na Igreja da Cruz dos Militares; mas as mulheres da cidade a freqüentam, para lavar‑se de culpas e pecados peculiares a seu sexo.

            Não é unicamente, porém, com o auxílio da missa - portanto do sacerdote católico - que a oração, na crença da nossa gente, exerce poderes maravilhosos e extraordinários sobre a causa da nossa vida e da nossa consciência.

            Muitas vezes, o povo prescinde do sacerdote ungido regularmente e escolhe um outro que ele mesmo sagra e consagra. É o "rezador" ou "rezadeira", que se encontram, sobretudo, nas freguesias rurais.

            Os homens são quase todos de idade; mas as mulheres, não. A religião católica não quis sacerdotisas nas suas cerimônias, mas as antigas não passavam sem elas e a crença geral e popular é que as feiticeiras, médiuns femininos, "rezadeiras" são mais poderosas que os homens no seu comércio com a Divindade e com o Mistério. Nas tricas galantes mesmo, em que se maranham raparigas e senhoras, moças e velhas, de todas as condições, muito pouca fé têm os amantes e namorados nos hierofantes, nos feiticeiros machos. Todas as esperanças daqueles e daquelas que o amor abrasa, é na cartomante.

            Há a cartomante quase licenciada que anuncia nas gazetas, tem entrevista com os repórteres, pitonisa Os sucessos políticos; mas há também as particulares, em ruas sombrias e pouco transitadas, que são procuradas  pelas informações de boca em boca, por aqueles que querem vaticínios certos de vida amorosa.

            Passeando nos subúrbios, já ouvi o seguinte diálogo, entre duas pequenas ou garotas, como chamam hoje os namoradores profissionais:

            - "Ele" volta, Hadjina. Volta - "ela" disse!

            - Qual! fez a outra lacrimejante.

            - Volta, sim! O que é preciso é você rezar a oração.

            Nunca me foi dado ler uma oração destas, distribuídas pelas cartomantes‑feiticeiras, professores‑cartomantes‑feiticeiros, que há por aí e vivem com favor dos seus poderes sobre‑humanos de unir corações e fazer toda a sorte de felicidades. Os que anunciam nos periódicos não me merecem interesse. São cínicos demais e os seus anúncios de extremada publicidade, desafiando a polícia são a mais segura demonstração do seu charlatanismo explorador.

            Vejam só este, aparecido, em um dos nossos jornais, há algum tempo:

 

            "MISTÉRIOS DA VIDA - O PROFESSOR BAÇU - Desvio das correntes adversas que surgem na vida - Ide vos casar? Quereis vos casar? Tendes dificuldade de obter noivo ou de realizar vosso enlace? Não sois feliz com o casamento? - Procurai o Professor Baçu. Ele vos fará um trabalho rápido e perfeito para que nesta reunião "reinem" A PAZ - A CONCÓRDIA - A FELICIDADE! Ele é o único que possui os MIMOS NUPCIAIS, verdadeiras relíquias, preparadas com as pedras "Natal", o que atrairá para vós - "a fortuna, a fartura e os ensejos de feliz ventura". Também possui as fórmulas em "líquidos e sólidos", usadas pelas mais formosas mulheres da celeste Jerusalém. Faz todo e qualquer trabalho, mesmo a distância, de pesquisas e investigações para a descoberta de fatos de caráter mais ou menos íntimo; obtendo reconciliações, aproximações de pessoas afastadas e realização de qualquer negócio considerado irrealizável. Combate todos os males físicos e morais e todos os malefícios. Horóscopos, diagnósticos e prognósticos.

            NOTA - Aos que sofrem, peço nome, idade, dia de nascimento e sintomas, acompanhado de envelope selado ao Capitão José Leão. Peçam prospectos. Reside com sua família à RUA 5. CLEMENTE N.o 183, Botafogo, Rio de Janeiro."

 

            Leram? Há tanto cinismo e tanta desfaçatez que aquilo que um mago anunciante nos fornecer em "breve", em amuleto, oração ou quer que seja, não pode merecer um pingo de atenção. A credulidade humana, porém, não tem fundo; e a insistência com que este e outros apregoam, com a mais luxuosa publicidade, os seus poderes e as suas virtudes excepcionais, mostra bem que a clientela não lhes falta, apesar das perseguições da polícia.

            Na roça carioca, como ia eu dizendo, os "benzedores" e "rezadeiras" não são desse quilate. Têm fé no seu mister e a sua sinceridade comunica essa fé aos outros.

            Rezam tudo. Mas as suas especialidades são para curar certas moléstias particulares às senhoras: "cobreiros", erisipelas, e dores vagabundas e sem explicação.

            As "rezadeiras" são ajudadas por facas, anéis e outros objetos de metal, com os quais, fazendo sucessivas cruzes ou outros sinais cabalísticos sobre os pontos afetados do corpo do paciente, acompanham o balbuciar da oração adequada. Chamam a isto "cortar" a dor ou a moléstia. Benzem ou rezam também as casas, aspergindo os cantos com uma certa água "rezada", aspersão que se faz com o auxílio de um ramo de alecrim ou arruda.

            Benzem outrossim as plantações; e pessoa digna de fé, que teve uma fazendola, há alguns anos, pelas bandas de Guaratiba, contou‑me um caso a que já aludi no meu Policarpo Quaresma.

            Tendo dado as lagartas em uma sua plantação de feijão, ameaçando mesmo matá‑la de todo, desesperado consentiu ele que chamassem uma "rezadeira" famosa, pela eficácia dos seus exorcismos, em toda a localidade. Ela veio e colocou cruzes de graveto nas bordas da plantação deixando na "cabeceira", uma abertura maior, pôs‑se nos pés e começou a rezar. Disse‑me a pessoa que as lagartas se foram enfileirando militarmente e saindo processionalmente pela abertura, entre as cruzes que havia na "cabeceira".

            É morta a pessoa que me contou, e era muito digna de fé, sendo doutor em medicina; e muitas vezes narrou‑me esse surpreendente espetáculo, como tendo visto com os seus próprios olhos.

            Horácio, há entre o ceu e a terra...

            Essa usurpação de atributos sacerdotais por particulares é feita, ou era, em larga escala.

            Quando meu pai foi para a ilha do Governador, exercendo um pequeno emprego nas Colônias de Alienados, recentemente fundadas pelo governo republicano, isto em 1890, a ilha não era o Petrópolis de quinta classe que o meu amigo Pio Dutra está fazendo ou dela já fez.

            Vivendo, por assim dizer, isolada do Rio de Janeiro, quase sem comunicações diárias com o centro urbano, abandonada pelos seus grandes proprietários, devido à decadência de suas culturas perseguidas atrozmente pela saúva, estava toda ela entregue a moradores pobres, apanhadores de suas frutas semi‑silvestres, como caju, lenhadores e carvoeiros, pescadores e alguns roceiros portugueses, que tenazmente se batiam contra a implacável formiga, fazendo roças de aipins, de batatas‑doces, de quiabos, de abóboras, de melancias, e até de melões. Essa espécie de "enclave" que era a ilha do Governador naquele tempo, profundamente rural e pobre, aqui pertinho da capital do Brasil, foi que me deu uma reduzida visão de roça e de hábitos e costumes roceiros. Cheguei a ver lá cavalhadas - que pobres cavalhadas! - na esplanada defronte à ilha da Freguesia, próximo da venda do Joaquim, pintor, agente do Correio, tendo como adestrados disputadores das sortes, próprias ao divertimento, o "Minhoto", o Jorge Martins e outros.

            A ilha não tinha vigário e o culto da população aos santos de sua fé era feito por intermédio de certos capelães rústicos, isto é, "rezadores" ingênuos e ignorantes, que diante de toscos oratórios, acompanhados pela assistência, entoavam nas cabanas ladainhas e outras orações. Do lugar em que morávamos, eu e a minha família, no Galeão, ainda me lembro do nome do respectivo capelão: - o Apolinário. Que fim terá levado?

            Essa forte crença na oração, na reza, que buscamos como alívio para as nossas dores morais e como uma súplica à Divindade para que intervenha na nossa vida, favorecendo‑nos nos nossos propósitos, toma este ou aquele aspecto bárbaro e tosco, aqui e ali, mas é sempre tocante e penetrante por isso mesmo. Ela não abandona a nossa gente humilde na sua obscura luta contra a miséria, contra a política e contra a moléstia; e, intimamente, pediu auxílio ao Correio, para mais eficazmente agir no perímetro urbano da nossa cidade.

            No artigo anterior, citei esse ato de distribuir, por intermédio do carteiro, orações escritas que devem ser lidas um certo número de vezes e enviadas a outras pessoas amigas, em número determinado.

            Não a tinha encontrado, entre os meus papéis. Encontrei‑a, porém, e aqui a dou tal e qual, sem nada mudar ou omitir.

            Conforme a recebi, no ano de graça de 1913, transcrevo abaixo:

            "Oração S. Jesus Cristo Senhor Nosso. Jesus Cristo rogamos a vós por nossos pecados e vosso sangue derramado na Cruz por nós. Senhor Jesus Cristo, rogamos a Deus que se contemple de compaixão e misericórdia e perdoai‑nos por vossa Mãe santíssima, hoje e sempre eternamente por todos os séculos dos séculos. Amém. Quem tiver esta oração deve distribuir durante nove dias a nove pessoas cada dia uma e no fim dos nove dias terá uma alegria em sua casa. Em Jesus a bem dizer que quem não fizer caso desta oração sofrerá um castigo grave perda em família. Esta oração foi enviada pelo Bispo Rio l.o de janeiro de 1913."

            Aos leitores que têm fé, eu peço que sigam as prescrições que essa oração recomenda. Não as segui porque, infelizmente, muito infelizmente mesmo, confesso que não creio, apesar da minha vaga e imponderável religiosidade.

Hoje, 3‑4‑1919.

 

RESTOS DO "TABU" ANCESTRAL

            O comandante Baratier, que deve ser hoje general, foi encarregado por Marchand de abrir a sua marcha através das origens ocidentais do Nilo, em demanda de Fáchoda, no Sudão egípcio.

            Ainda é da memória de todos a repercussão que, no mundo inteiro, teve a ocupação desse lugarejo desconhecido, pelas tropas francesas. A guerra quase estalou entre a França e a Inglaterra; e o povo francês quis mostrar a sua reprovação ao ato do seu governo, fazendo desocupar aquele lugarejo do alto Nilo, com uma ovação, um verdadeiro triunfo ao comandante Marchand, quando chegou a Paris. Elevado assim na estima popular, o obscuro soldado colonial convenceu‑se de seu excepcional heroísmo e desandou em delirar de orgulho.

            Tantas fez, que acabou pedindo demissão do Exército francês, para ir servir no russo, a convite, dizia ele, do próprio Czar, embora não fosse.

            Baratier, retomando o meu primitivo propósito, empreendeu a viagem com vinte e cinco atiradores senegaleses, dez auxiliares de outra proveniência e um intérprete árabe. A sua viagem é muito interessante e dela ele próprio publicou uma viva narração.

            Emaranhado numa teia espessa de ervas aquáticas o "umsuf" (ounun‑souf), a sua parada teve um retardamento imprevisto e os viveres se esgotaram.

            Com fome, certa vez, navegando em águas quase livres, avistou uma porção de grandes "marabuts" empoleirados nos galhos de uma árvore, a crescer numa ilhota.

            Assim ele descreve a emoção de tão auspicioso encontro: "A leur vue tous les regards se sont allumés: ces fleurs sont vivants, ces feurs sont de la viande". Baratier ia apontar a carabina para abatê‑los; mas logo os seus guias locais, "Djingues", se assustaram e ele viu bem que, fazendo tal coisa, os perderia irremediavelmente e toda a nação "Djingue" declarar‑lhe‑ia guerra sem tréguas. Após um instante de reflexão, segue o conselho do seu sargento, Moribah:

            - Ne tire pas".

            O "marabut" era tabu, por ser totem da tribo "Djingue", que habitava aquelas paragens.

            Essa aventura não é das mais eloqüentes, para demonstrar a força e o poder dessa crença do totem sobre as almas infantis desses povos retardados, ainda na infância da civilização. Há um outro mais estranho.

            A fome continua e eles acabam abatendo um hipopótamo. O gigantesco paquiderme jaz no chão meio decepado. O fogo crepita. Os homens impacientes de fome apanham os bocados de carne apenas sapecado e, às dentadas, os devoram caninamente. Não só os negros; ele e o intérprete, que são brancos, também.

            Naquele banquete repugnante em que há fome de feras, só poucos da expedição, entre os quais Moribah, não tomam parte nele. São seis atiradores senegaleses da tribo Keita, a qual tem o hipopótamo por totem.

            Se a religião católica tivesse esse poder sobre as almas, ela, a religião do amor ao próximo, da pobreza e da humildade, não permitiria haver entre nós, ocidentais, essa raça atroz do capitalista moderno onde, de quando em quando, ela vai buscar seus condes. Convém dizer, apesar de me parecer inútil, que tabu quer dizer que certa coisa é de tal forma sagrada que ninguém pode tocá‑la sem chamar a maldição dos Deuses sobre si e sua tribo; e totem diz‑se do animal que é tido como parente, avoengo da tribo, por isso fica tabu.

            Os leitores de Jules Verne, como eu o fui apaixonado em menino, devem lembrar‑se de que forma o encantador romancista da infância tirou partido dessa curiosa superstição, no último volume de Os filhos do Capitão Grant.

            Ainda estou a ver o meu amigo Paganel, embrulhado até ao pescoço, no seu manto de linho néo‑zelandês, dizer para os seus companheiros que vão encontrá‑lo numa altura em que estava sepultado um chefe "maori", referindo‑se aos selvagens que os perseguiam na sua fuga.

            - Não tenham medo! Subam! Eles não virão até aqui... Isto aqui é tabu!

            E não vieram, e todos encontravam na morte seguro asilo.

            Reinach, num dos seus interessantes livros de vulgarizaçao, contesta que o horror que os judeus e muçulmanos tem à carne do porco, oriunda de uma prescrição da Bíblia, tenha por causa um motivo qualquer higiênico. O legislador mosaico não podia ter cogitações dessa natureza. Acredita o sábio francês que esse ódio de Mafoma ao toucinho provém paradoxalmente de um totem que se obliterou em ódio, em horror, com o correr dos anos.

            Sem procurar os outros vestígios do antigo totemismo nos costumes atuais, com o urso de Berna, podemos na nossa vida vulgar aventurar que certas usanças se enraízam naquela crendice do totem.

            Um caso muito corriqueiro que deve ter chamado a atenção dos observadores para ele, é o do urubu. Por que não se o mata? É um pássaro repugnante, mas entretanto o povo não o persegue, a ponto de viver entre a criação, nos quintais de certas pequenas cidades do interior.

            Ave assim sagrada, ela o é no dizer do povo, porque limpa os arredores das casas, as ruas, as estradas das carniças putrefatas.

            Os eruditos, porém, dizem que o urubu é protegido dessa maneira, devido a obsoletas posturas municipais.

            Quem conhece, como todos nós, a impotência das leis, não leva muito a sério a última explicação; e quem leu, sobre o porco, a opinião de Reinach, pergunta de si para si, como eu que não tenho nenhuma competência, se o urubu não foi totem para os nossos afastadíssimos avós, ficando, por isso, tabu até hoje.

            Aventurando em mar ignoto, eu faço essa consideração porque entre nós, muito ao contrário do que se dá com o porco entre os judeus e muçulmanos, o urubu não é odiado. Há frases - urubu malandro; - há cantigas e várias peças de folclore em que o urubu entra com relativa simpatia.

            Todos conhecem esta canção que as crianças entoam por aí:

 

Urubu veio de cima

Com parte de dançador.

Ora! Dança urubu!

- Não sei dançar!

Urubu veio de cima

Com parte de homem sério.

Chegando no palácio,

Organizou ministério.

 

            Não sei toda a cantiga; mas não ressuma dela, estou certo, nenhuma antipatia contra a ave carniceira, que é aí mais troçada amigavelmente do que mesmo debochada com azedume.

            Entre os pescadores, há uma crença semelhante a esta do urubu, com o bôto.

            É muito conhecido esse peixe que vive à flor d'água, girando como se fosse uma roda, dois terços mergulhados. Todos que viajam na nossa baía conhecem‑no, apesar de quase nunca se lhe ver a cauda e a cabeça. Vemos só o seu dorso azulado a revolver‑se nas águas azuis ou verdes do mar e é dos grandes prazeres das crianças que tomam a barca de Niterói.

            Os pescadores não os matam porque, tendo eles por ofício limpar a superfície do mar, socorrem os náufragos, empurrando‑os para a praia, como fazem com tudo que bóia nas suas águas sem medida.

            O urubu é absolutamente inútil para qualquer fim alimentício ou outro por ser repugnante e nauseabundo; mas, assim mesmo, os senegaleses de Baratier esfomeados preferiram alimentar‑se com a carne imunda de aves semelhantes a servirem‑se do seu hipopótamo totêmico.

            Com o bôto, porém, não se dá o mesmo. Se não se presta para alimento, prestar‑se‑ia, por ser gorduroso, à extração de azeite que poderia aliviar um pouco, na verba iluminação, os orçamentos praieiros.

            Entretanto, nenhum deles se lembra disso e o bôto vive na segurança sob um tabu imemorial. Há outras aves, a cambaxirra, por exemplo, que não são perseguidas, como também certos insetos, como esse quase doméstico - o meirinho - que suga moscas.

            Este é naturalmente por ser útil, mas aquela é por ser uma ave azarenta que nenhuma criança quer ver no seu alçapão.

            A extensão que os nossos atuais estudos médicos têm levado ao exame de certas moléstias, cuja transmissibilidade é atribuida, as mais das vezes, a insetos parasitas, tem levado os sábios a amaldiçoar certos animais e a abençoar outros.

            O urubu tão sagrado pelo povo, é maldito para os sábios, pois propaga a epizoetia, nefasta ao gado; o sapo, tido corno diabólico, auxiliar de bruxas e bruxedos, perseguido pelas crianças, é bendito pelos higienistas, por devorar as larvas dos mosquitos, que inoculam no nosso organismo não sei quantas doenças.

            É mais um conflito entre a religião e a ciência...

Atualidade, 10‑8‑1919.

 

COISAS DO JOGO DO "BICHO"

            Há alguns anos, mantendo estreitas relações com o proprietário de uma tipografia, na rua da Alfândega, tinha ocasião de passar por ela toda a tarde, demorar‑me, a fazer isto ou aquilo, nas mais das vezes conversar unicamente.

            Aos poucos fui tomando conhecimento com o pessoal; e, em breve, era de todos camarada. A tipografia do meu amigo tinha a especialidade de imprimir jornais de "bicho" e ele mesmo editava um - O Talismã - que desapareceu.

            Era tão rendosa essa parte de sua indústria tipográfica que ele destacava um único tipógrafo para executá‑la. O encarregado dessa obra, além de compor os jornais, redigia‑os também, com o cuidado indispensável em tais jornais‑oráculos de por, sob este ou aquele disfarce de seções, de chapinhas, de palpite deste ou daquela, todos vinte e cinco animais da rifa do Barão.

            Conversando mais detalhadamente com o tipógrafo dos jornalecos de bicho, ele me deu inúmeras informações sobre os seus periódicos "zoológicos". O Bicho, o mais famoso e conhecido, dava de lucro, na média, 50 mil‑réis por dia, quase o subsídio diário de um deputado naquele tempo; A Mascote e O Talismã, se não forneciam um lucro tão avultado, rendiam mais, por mês, que os vencimentos de um chefe de seção de secretaria, naqueles anos, a regular por aí assim, em setecentos e poucos mil‑réis.

            Solicitado pelas informações do jornalista "animaleiro", pus‑me a observar, nas vendas da minha vizinhança que, pela manhã, o tipo de compras era este: um tostão de café, um ou dois de açúcar e um Bicho ou Mascote.

            O tipógrafo tinha razão e ele mesmo se encarregava de fortificar a minha convicção do império excepcional que o "Jogo do Jardim" exercia sobre a população carioca.

            Mostrou‑me pacotes de cartas de toda a sorte de gente, o que se via pela redação, de senhoras de todas as condições, de homens em todas as posições.

            Li algumas. Todas ressumavam esperança na sua clarividência transcendente para dizer o bicho, a dezena e a centena que dariam à tarde deste ou qualquer dia; algumas eram agradecidas e se alongavam em palavras efusivas, em oferecimentos, por terem os missivistas acertado com o auxílio dos "palpites" do Dr. Bico‑Doce. Lembro‑me de uma assinada por certa adjunta de um colégio municipal, no Engenho de Dentro, que convidava o pobre tipógrafo, já meio tuberculoso, a ir almoçar ou jantar com ela e a família. Recordo‑me ainda do nome da moça, mas não o ponho aqui, por motivos fáceis de adivinhar.

            O prestígio da letra de forma, do jornal, e o mistério de que se cercava o "palpitador", operavam sobre as imaginações de uma forma verdadeiramente inacreditável.  Julgavam‑no capaz de adivinhar de fato o número a ser premiado na "Loteria", ou, no mínimo, apalavrado com os homens dela, podendo, portanto, saber de antemão os algarismos da felicidade.

            Apesar da relutância do redator‑tipógrafo de tão curiosos exemplares da nossa imprensa cotidiana, eu pude conseguir algumas cartas, das quais uma, por me parecer a mais típica e mostrar de que maneira a situação desesperada de um pobre homem, pode reforçar a fé no "Jogo do Bicho", como salvação, e a ingênua crença de que o redator do jornaleco de palpites seria capaz de indicar o número a ser premiado, eu a transcrevo aqui, tal e qual, só omitindo a assinatura e o número da residência do signatário. É um documento humano de impressionar e de comover, por todos os aspectos. Ei‑lo: (cliché de um envelope selado e subscritado: "Ilmo. Dig.mo Snr. Bico‑Doce Muito Dig.mo Redator‑Chefe do Jornal O "Talismã" Rua da Alfândega n.0 182 Sobrado").

            "Ilmo. Sr. Dr. Bico‑Doce. - Rio de Janeiro, 20‑12‑911. - Em primeiro que tudo muito estimarei que esta inesperada Carta vos encontrem Com perfeita Saúde Conjuntamente a toda vossa família, e possa fruir os mais esplendorosos gozos.

            "Enquanto eu minha família, vamos passando uma vida penosa. Senhor, vós que Sois um bondoso, vós que Sois tão caridoso, vós que Deus dotou Com tanta doçura, e que Sois uma alma bem formada!... tenha Compaixão deste pobre Sofredor que a 2 anos está desempregado, e que neste longo período, posso vos dizer que tenho passado os dias bem acerbos, e estou tão oberado, Com o Quitandeiro, Padeiro, Peixeiro, etc., etc e só neste ou deve 200$; o meu senhorio já está Com a cara ruvinhaso comigo, peço dinheiro emprestado, e Compro todos os dias: "Mascote", "Bicho" e o "Talismã" e nunca Sou capaz de acertar em um Bicho ou numa Dezena que me liberte deste jugo que tanto tem me morteficado o espírito e já me acho desanimado da Sorte que me tem Sido tão tirana.

            "Pois bem, em nome de Deus vos peço Dê‑me uma Dezena ou Centena num destes dias em que a Natureza lhe der inspiração, porque aos Espíritos bem formados ele proteje a fim de poderem espalhar com aqueles menos favorecidos as Sorte, pode Ser que Se vós Condoer‑se das minhas misérias em breve me libertarei desta vergonha que estou passando, pois um pobre que deve 1:OOO$600, e sem poder pagar, é muito triste vergonhoso.

            "E Se vós me libertar deste jugo pode Contar que eu saberei reconhecer o meu bemfeitor, terá vós um Criado para qualquer Serviço que estiver em minhas fracas força e me apresentarei diante da vossa nobre pessoa, e poder utilizar‑se em qualquer mister que vos aprouver.

            "Deus que lhe queira ajudar, Deus lhe dê Saúde e felicidade pra Si e toda vossa família, e lhe dê boa inspiração e força para minorar as aflições dos pobres. - F..., Vosso humilde Criado e Obrigado, Rua Senador Pompeu...

            "Aqui aguardo a vossa proteção. - O vosso Abedê..." .

            Não era só em cartas que se revelava total e poderosa fé de pessoas de todas as condições nos poderes divinatórios do Dr. Bico‑Doce, redator‑tipógrafo de O Talismã. Nas visitas, também. Ele as recebia a toda a hora do dia e de pessoas de todos os sexos e idade.

            Havia uma senhora de Paquetá, bem trajada, jóias, plumas, etc, que não vinha ao Rio que não fosse ao Dr. Bico‑Doce para obter de viva voz, um palpite, na centena. Se ganhava, era certo, além do fervoroso agradecimento, uma gratificação qualquer.

            A mais curiosa e assustadora visita que ele recebeu, foi a de um capoeira da Saúde, um valentão, de chapéu de abas largas, calças bombachas, e navalha a adivinhar‑se nas algibeiras ou em qualquer dobra das roupas. O valente falou ao Dr. Bico‑Doce meio amigável e meio ameaçador. É fácil de supor a atrapalhação do "profeta‑bicheiro". Para sair‑se da entalação, indicou uma centena qualquer e safou‑se logo, temendo não acertar e levar uns pescoções.

            O bicho deu e a centena também. O destemido não teve o prazer de dar‑lhe a propina em mão, mas a deixou com um colega do Dr. Bico‑Doce que lha entregou no dia seguinte.

            - Felizmente, dizia‑me o pobre jornalista do Talismã, o homem não quis voltar mais.

            Plutarco, ou outro qualquer, conta que Alexandre, nas vésperas de morrer, distribuiu o seu império entre os seus generais. Um deles lhe perguntou: Que te fica, general? O macedônio logo respondeu: A esperança. Ai de nós se não fosse assim, mesmo quando a Esperança é representada pelo jogo do bicho e o palpite de um humilde tipógrafo como o Dr. Bico‑Doce, que, normalmente, mal ganha para a sua vida! A Esperança... O povo afirma que quem espera sempre alcança. Será verdade? Parece que aí a voz do povo não é a voz de Deus...

 

                                                                                            Lima Barreto

 

 

                      

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