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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MÁRIO E O MÁGICO / Thomas Mann
MÁRIO E O MÁGICO / Thomas Mann

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

     Thomas Mann, a quem seus filhos e amigos chamavam o “Mágico”, e que era um curioso de todas as coisas, também se interessou pela magia. É fato sabido que neste terreno, nem sempre se trata de magia branca.

     O personagem retratado em “Mário e o Mágico” é um inquietante hipnotizador de feira. Ele exerce sobre seu pequeno público um poder comparável ao dos ditadores sobre as massas.

     Esta novela que narra as férias de uma família à Itália de Mussolini, parecia ser uma sátira ao fascismo. Entretanto, ela é sobretudo uma interrogação sobre a natureza da vontade e sobre os limites da liberdade individual.

     As “Experiências Ocultas”, outra narrativa autobiográfica, em que se abrem as portas da mediunidade. Nesta o autor zomba do racionalismo clássico, mas, guarda as devidas distâncias em relação aos misteriosos fenômenos que o fascinam.

     Mas, não pertencemos nós à noite? A vida só se mantém graças aos mergulhos prolongados no sono. Esta a razão do panegírico ao sono, texto que cerceia um dos aspectos essenciais da condição humana.

     A estes 3 textos magistrais, da obra de Thomas Mann, acrescentamos cinco novelas de sua juventude, e para encerrar um ensaio autobiográfico de 1948, que constitui um suplemento precioso à “Esquisse de ma vie” de 1930.

    

    

  

 

     Torre di Venere me deixou a lembrança de uma atmosfera desagradável. Havia no ar, desde o começo, uma contrariedade, uma irritação, uma superexcitação. E depois, para terminar, houve o choque com este terrível Cipolla, em quem toda a malignidade do ambiente parecia se encarnar e se concentrar perigosamente, figura nefasta e muito impressionante para os olhos humanos. O final foi medonho. Pareceu-nos depois de tudo que ele já estava determinado de antemão na natureza das coisas, e a infelicidade quis ainda que as crianças o assistissem. Foi uma triste situação, bastante chocante em si, que nasceu de um mal-entendido causado pelas enganadoras promessas deste curioso homem. Elas não compreenderam, graças a Deus, onde terminava o espetáculo e começava a catástrofe, e nós as deixamos na doce ilusão de que tudo havia sido teatro.

     Torre se encontra a mais ou menos quinze quilômetros de Porto Clemente, uma das mais freqüentadas praias do mar Tireu. De uma elegância citadina, cheia durante meses, Porto Clemente oferece uma rua salpicada de bazares e de hotéis ao longo do mar. Uma grande praia coberta de barracas, de castelos embandeirados e de homens bronzeados, e a barulhenta animação dos divertimentos. Como a praia, margeada de bosques de pinheiros que as montanhas dominam a pouca distância, guarda em toda a costa sua areia fina e seu tamanho acolhedor, não é de se espantar que um pouco mais longe uma concorrência mais calma tenha se estabelecido, e já não era sem tempo: Torre di Venere (onde aliás procura-se em vão desde há muito a torre a que este lugar deve seu nome), como lugar de veraneio, é um descendente da grande estação vizinha. Durante alguns anos, para algumas pessoas, foi um lugar idílico, um refúgio para os amigos do elemento marinho sem mundanismos. Mas, como acontece sempre, a paz teve que deixar Torre para se estabelecer um pouco mais longe ao longo da costa, em Marina Petriera, ou Deus sabe onde. O mundo, como todos sabem, procura a paz e a expulsa, atirando-se sobre ela com uma paixão ridícula, na ilusão de que ela pode unir-se a ele e ficar onde ele está. E mesmo quando já montou sua feira em algum lugar, ele é capaz de pensar que ela ainda está presente. É assim que Torre, embora muito mais contemplativa e modesta que Porto Clemente, é bastante procurada pelos italianos e estrangeiros. Ninguém mais vai à estação balneária mundial se for uma estação mundial barulhenta e sem um quarto livre. Vai-se ao lado, a Torre, é até mais distinto, e além disto é mais barato. E a força de atração de suas qualidades continua a se exercer mesmo quando elas não subsistem mais. Torre tem agora o seu Grande Hotel. Numerosas pensões, luxuosas ou mais simples, estabeleceram-se. Os proprietários e locatários das mansões estivais e dos jardins de pinheiros em frente ao mar não têm mais tranqüilidade na praia. Em julho, em agosto, Torre em nada difere de Porto Clemente: as praias fervilham de pequenos banhistas que gritam, piam e se disputam sob o calor furioso de um sol que lhes pela a nuca. Pequenos barcos pintados de cores cruas balançam-se no azul resplandecente tendo crianças por tripulação, enquanto as mães inquietas as procuram com os olhos e fazem soar as músicas de seus nomes sonoros. E os vendedores de ostras, de bebidas, de flores, de enfeites de coral e de cornetti al burro, caminham sobre os membros das pessoas deitadas fazendo propaganda de suas mercadorias com a voz cheia e franca do sul.

     Tal era o aspecto da praia de Torre quando chegamos. Era tudo bastante lindo, mas achamos entretanto que havíamos chegado cedo demais. No meio de agosto a estação italiana ainda estava no auge. Não era o momento apropriado para os estrangeiros apreciarem os charmes do lugar. Que multidão depois do almoço nos jardins dos cafés da avenida! No “Esquisito”, por exemplo, onde íamos de vez em quando e éramos servidos por Mário, este mesmo Mário de quem falarei mais tarde, ma! dava para encontrar uma mesa. As orquestras, sem querer saber nada umas das outras, interrompem seus cantos reciprocamente. Além disto, todas as tardes chegam reforços de Porto Clemente. Porque, naturalmente, Torre é para os barulhentos hóspedes desta cidade de prazeres o alvo preferido de suas excursões. Os carros Fiat que passam cobrem de uma espessa poeira branca as moitas de loureiros e de oleandros à beira da estrada, espetáculo curioso mas repugnante.

     Seriamente, é em setembro que deve-se ir a Torre di Venere, quando a estação balneária já esvaziou-se do grande público. Ou então em maio, antes que o mar tenha atingido o grau de calor que decide o Meridional a mergulhar nele. No período anterior e posterior à estação, Torre não está vazia, mas está mais calma e menos nacional. Sob os guarda-sóis das tendas e nas salas de jantar das pensões, nestas ocasiões, escuta-se principalmente inglês, alemão e francês. Enquanto que no mês de agosto o estrangeiro encontra os hotéis, ao menos o Grande Hotel, onde por falta de outros endereços havíamos reservado nossos quartos, inteiramente nas mãos da sociedade florentina e romana. A tal ponto, que sente-se isolado e que pode por instantes ter a impressão de ser um hóspede de segunda ordem.

     Foi a experiência que tivemos, com um pouco de aborrecimento, na noite de nossa chegada, ao entrarmos na sala de jantar e ao nos ser indicada uma mesa pelo maître do hotel. Não se podia fazer nenhuma crítica a esta mesa, mas havíamos sido cativados pela vista da varanda vizinha, cujas vidraças davam para o mar. Ela estava tão cheia quanto a sala, mas não estava lotada, e sobre as pequenas mesas brilhavam lâmpadas vermelhas. As crianças mostravam-se maravilhadas com este esplendor e nos declaramos pura e simplesmente que preferíamos fazer nossas refeições na varanda. Isto apenas testemunhou nossa ignorância, ao que parece, porque nos fizeram saber com uma polidez um pouco sem graça, que este lugar íntimo estava reservado “à nossa clientela”, ai nostri clienti. Aos nossos clientes? Mas nós éramos clientes. Não éramos efêmeros passantes, íamos fazer parte da casa por três ou quatro semanas, éramos pensionistas. Não insistimos para que ficasse esclarecida a diferença entre gente como nós e esta clientela que podia comer diante de pequenas lâmpadas vermelhas. Comemos o pranzo em nossa mesa da sala, iluminada com uma luz comum. Um jantar bem fraco, aliás, esquema de hotel sem caráter e de pouco gosto. Em seguida achamos bem melhor a cozinha da pensão Eleonora, a dez passos de lá.

     Foi nesta pensão que nos estabelecemos, antes mesmo de estarmos verdadeiramente instalados no Grande Hotel, no fim de três ou quatro dias. E não foi por causa da varanda e de suas pequenas lâmpadas. As crianças ficaram imediatamente amigas dos garotos e dos pescadores e encantadas com os prazeres do mar teriam esquecido depressa o charme dos abajures coloridos. Mas aconteceu sem demora, com alguns clientes da varanda, ou melhor, com a direção do hotel somente, que se confundia diante deles em agrados, um destes conflitos que podem impor a uma estadia, desde o começo, a marca do desagrado. Entre esta clientela encontrava-se a alta nobreza romana, um príncipe X com a sua família. E como os quartos destas pessoas eram vizinhos aos nossos, a princesa, grande dama e ao mesmo tempo mãe apaixonada, ficara apavorada com os restos de uma coqueluche que havia atingido nossos filhos um pouco antes, e cujos fracos ecos tardios interrompiam ainda de vez em quando, durante a noite, o sono geralmente imperturbável do mais novo. A natureza desta doença é mal explicada, e isto dá lugar a superstição. Assim, não ficamos magoados com nossa elegante vizinha por ela acreditar na opinião tão difundida de que a coqueluche é contagiosa por simples acústica e por ter temido esta ameaça para os seus pequenos.

     Com o pleno sentimento feminino de sua consideração, ela queixou-se junto à direção, e esta, na figura do famoso gerente de redingote, apressou-se em nos dizer, com muita pena, que nestas condições era fatalmente necessário que nos mudássemos para o anexo do hotel. Protestamos dizendo que a doença do menino encontrava-se em seu último estágio, que ela devia ser considerada como finda e que não apresentava mais nenhuma espécie de perigo para a vizinhança. Tudo o que nos concederam foi levar o caso diante de um fórum médico. A decisão caberia ao médico da casa. Somente a ele, e não a um outro que poderíamos querer escolher. Aceitamos este trato, convencidos de que assim a princesa ficaria tranqüila e ao mesmo tempo evitaríamos a chateação de uma mudança. O doutor vem e revela-se um sincero e leal servidor da ciência. Ele ausculta o pequeno, declara a evolução do mal terminada e nega o menor perigo. Nós já nos acreditávamos com direito a considerar o incidente como terminado. Mas eis que o gerente declara que mesmo depois das constatações do médico precisávamos deixar nossos quartos e nos mudarmos para o anexo.

     Este bizantismo nos revoltou. Era impossível que este radicalismo a que nos chocávamos partisse da princesa. O hoteleiro servil com certeza não havia nem mesmo ousado comunicar-lhe a opinião do doutor. Em todo caso, nós lhe demos a entender que preferíamos deixar o hotel de uma vez por todas, e imediatamente fizemos as malas. Pudemos agir com esta tranqüilidade porque já havíamos travado relações com a pensão Eleonora, cujo amável aspecto íntimo havia nos agradado em tudo. E havíamos feito, na pessoa de sua proprietária, Signora Angiolieri, um conhecimento muito simpático. Madame Angiolieri, graciosa dama de olhos negros, do tipo toscano, que podia muito bem estar no começo da casa dos trinta, com a tez marfim fosco das Meridionais, e seu marido, homem cuidadosamente vestido, silencioso e calvo, possuíam em Florença um hotel bastante grande e apenas no verão e no começo do outono dirigiam a filial de Torre di Venere. Mas antigamente, antes de seu casamento, nossa nova hostess havia sido dama de companhia, camareira e até amiga da Duse, tempo que ela considerava evidentemente como a grande e feliz época de sua vida e cujas lembranças ela começou a nos contar com animação desde nossa primeira visita. As pequenas mesas e as estantes da sala da Madame Angiolieri eram enfeitadas com inúmeras fotografias da grande atriz, com afetuosas dedicatórias e com muitas outras lembranças da vida em comum de antigamente. E embora pudéssemos pensar que o culto de seu interessante passado fosse também destinado a aumentar o charme de seu atual negócio, era com prazer e interesse que, seguindo Madame Angiolieri pela casa, a escutávamos contar, em seu toscano entrecortado e cantante, a bondade dolente, os sentimentos e a profunda ternura de sua imortal patroa.

     Foi então para esta pensão que fizemos transferir nossas malas, com grande pena do pessoal do Grande Hotel, que segundo o costume bem italiano, gostava muito das crianças. O apartamento que nos deram era independente e agradável. O acesso ao mar era fácil, fazia-se por uma aléia de jovens plátanos que levava à calçada da praia. A sala de jantar, onde todos os dias Madame Angiolieri servia a sopa com sua próprias mãos, era fresca e limpa. O serviço era atencioso e dedicado, os alimentos excelentes, e chegamos a encontrar amigos de Viena com os quais pudemos conversar depois do jantar e que nos proporcionaram novos conhecimentos. Assim, tudo parecia estar correndo da melhor maneira possível, estávamos perfeitamente felizes com a mudança e nada faltava para uma estadia satisfatória.

   Entretanto, não nos sentíamos inteiramente à vontade. Talvez estivéssemos nos sentindo ainda perseguidos pela tola razão de nossa mudança de hotel. Pessoalmente, confesso que tenho dificuldades em me recompor de tais choques com costumes tão humanos como o ingênuo abuso do poder, a injustiça, a corrupção servil. Eles me preocuparam durante muito tempo, me jogaram em irritadas reflexões, que devem sua esterilidade ao caráter facilmente admissível e natural destes fenômenos. Entretanto, não estávamos nem mesmo brigados com o Grande Hotel. As crianças aí continuavam cultivando suas amizades, o porteiro consertava seus brinquedos, e de vez em quando, tomávamos chá no jardim do hotel. Encontrávamos sempre a princesa, que com os lábios realçados por um vermelho coral, aparecia com um passo graciosamente seguro para ver suas crianças queridas, confiadas à guarda de uma inglesa. Ela nem mesmo desconfiava de nossa perigosa vizinhança, porque quando aparecia, nosso pequeno ficava estritamente proibido de tossir, por menos que fosse.

     O calor era excessivo. Será que preciso dizer? Era africano. Logo que nos afastávamos das margens azuis, o reino do terror solar se tornava tão inexoráxel, que os poucos passos que precisávamos dar da praia à mesa de almoço, mesmo quando estávamos apenas de roupa de banho, se tornava uma tarefa penosa que nos fazia suspirar de antemão. Vocês gostariam disso durante semanas? Claro, é o Sul, é o tempo clássico, o clima que viu florescer a civilização humana, o sol de Homero, etc. Mas no fim de algum tempo, não resisto à tentação de achar este clima estúpido. O vazio ardente do céu, com o tempo, se torna penoso. É verdade que a vivacidade das cores, a monstruosa ingenuidade da luz e sua integridade despertam sentimentos alegres, dão uma certa despreocupação e tornam independentes os caprichos e as surpresas do tempo. Mas, sem que se note no começo, esta claridade deixa insatisfeitas as necessidades mais profundas e mais complexas da alma nórdica. E ela acaba por inspirar alguma coisa como o desprezo. Você tem razão, sem esta história boba de tosse de coqueluche, eu não teria tido a mesma impressão. Eu estava irritado. Talvez quisesse sentir este desprezo, e meio inconscientemente, peguei um motivo espiritual já preparado, e mesmo que não fosse para produzir este sentimento, ao menos para legitimá-lo e reforçá-lo. Mas se você nos atribui uma certa má-vontade, ela só pode ser levada em conta no que diz respeito ao mar e às manhãs passadas na areia fina, diante do seu eterno esplendor. Entretanto, contra qualquer expectativa, mesmo na praia não podíamos nos sentir bem, nos sentir felizes.

     Era muito cedo, muito cedo. A praia estava nas mãos da classe média nativa, tipo de gente agradável, evidentemente, quanto a isto você ainda tem razão. Via-se entre os jovens bastante charme físico e graça sã. Mas estava-se também inevitavelmente envolvido pela mediocridade humana e idiotice burguesa. O que não é nada agradável, confesse, quando leva a marca desta regiões. Que vozes têm estas mulheres! As vezes é difícil acreditar que nos encontramos na pátria do canto ocidental: “Fuggiéro”! Ainda tenho este grito no ouvido. Durante vinte manhãs eu o escutei vibrar cem vezes perto de mim. Descaradamente rouco, horrivelmente acentuado, com um é aberto muito marcado, dito com uma espécie de desespero mecânico. “Fuggiéro”! Rispondi al méno!” O sp era pronunciado à moda popular, como chp, dava para irritar quando já havia um certo mau-humor. Este grito era destinado a um horrível garoto, que tinha entre os ombros uma repugnante ferida causada pelo sol, e que representava ao extremo tudo o que já encontrei de desobediência, de idiotice e de maldade. Além disso era um grande covarde, mimado ao ponto de revoltar toda a praia com suas lamentações.

     Um dia, na água, um pequeno caranguejo lhe mordeu o dedo do pé. Suas lamentações por este pequeno incidente eram dignas de heróis antigos. Elas penetravam na gente até a medula, e davam a impressão de uma terrível infelicidade. Aparentemente, ele pensava ter sofrido um horrível ferimento. Tendo subido até a areia, ele se contorcia em sofrimentos que pareciam insuportáveis. Gritava: Oi! e Oimé! e repelia as trágicas adjurações de sua mãe e as exortações dos outros espectadores, dando pontapés para todos os lados.

     A cena atraía gente de todos os lugares. Foram procurar um médico, o mesmo que havia dado sobre a nossa coqueluche um julgamento tão sensato. Novamente ele confirmou sua lealdade científica. Consolando gentilmente o garoto, ele declarou o caso nulo e sem nenhuma importância e recomendou simplesmente ao paciente que voltasse à água para refrescar o pequeno ferimento. Mas ao invés de escutarem o médico, levaram Fuggiéro da praia, como um ferido ou um afogado, numa padiola, que foi seguida por um grande cortejo. No dia seguinte de manhã, fingindo descuido, ele recomeçava a destruir os castelos de areia das outras crianças. Numa palavra, um horror.

     Além disso, este rapazinho de doze anos pertencia aos principais representantes de um estado de alma público difícil de definir, que estava no ar, e que nos estragava uma estadia que podia ser maravilhosa, tornando-a pouco segura.

     De alguma maneira faltava à atmosfera um pouco de inocência. Havia opressão demais. Este público se vigiava. No princípio não sabíamos bem em que sentido, nem com que espírito. Ele era altivo. Fingia, para si próprio e diante dos estrangeiros, uma gravidade, um porte, um amor pela honra em contínuo estado de alerta — por quê? Não tardamos a entender que se tratava de política, que a idéia de nação estava em jogo. Efetivamente, a praia formigava de crianças patriotas, fenômeno anormal e aflitivo. As crianças não constituem, por si só, uma espécie humana e uma sociedade, por assim dizer, uma nação própria? Em razão de sua forma comum de vida, elas se unem facilmente e necessariamente, mesmo se seu pequeno vocabulário pertence a diferentes línguas. Os nossos não demoraram a brincar com as crianças italianas, assim como com outras de origens diferentes. Mas eles sofreram misteriosas desilusões. Havia suscetibilidades, expressões de um sentimento de orgulho, que pareciam difíceis demais e muito doutrinárias para merecer inteiramente seu nome. Brigas por causa de bandeiras, desavenças de consideração e de precedências. Os adultos se metiam muito mais para decidir e salvaguardar os princípios do que para conciliar. Tratava-se da grandeza e da dignidade da Itália, discursos sem serenidade que estragavam as brincadeiras. Nós víamos nossos dois pequenos se retirarem sem compreender, vexados e tínhamos dificuldades em explicar-lhes, de uma certa maneira, a situação: estas pessoas, dizíamos nós, atravessam um período, um estado um pouco análogo a uma doença, talvez não muito agradável, mas necessária.

     Foi por nossa culpa, por nossa negligência, que chegamos a um conflito com este estado de coisas, que entretanto havíamos reconhecido e julgado. Ainda um conflito. Parece que os precedentes não haviam sido o resultado de acasos distintos. Numa palavra, nós ofendemos a moral pública. Nossa filhinha de oito anos, mas parecendo um ano mais nova por seu desenvolvimento físico, magra como um palito, havia recomeçado a brincar na praia com a roupa de banho molhada, depois de um banho bastante longo, como c calor permitia. Deixamos que ela fosse mais uma vez ao mar enxaguar seu maiô duro por causa da areia colada. Assim ela poderia vesti-lo novamente e tomar cuidado para não se sujar. Completamente nua, correu até a água, distante dela apenas alguns metros, enxaguou seu maiô e voltou. Poderíamos prever a vaga de protestos, de escândalo, de indignação, que sua conduta suscitou, nossa conduta afinal de contas? Não quero fazer aqui uma conferência, mas no mundo inteiro, a atitude para com o corpo e a nudez sofreu durante estes últimos anos uma mudança fundamental que transformou os sentimentos. Há muitas coisas a que não damos mais nenhuma importância. Tal era a liberdade dada a este corpo de menina que não tinha nada de provocante. Entretanto, aqui isto teve o efeito de uma provocação. As crianças patriotas se puseram a gritar. Fuggiéro assoviava com os dedos. Ouvimos uma conversa animada entre pessoas vizinhas a nós, que não prometia nada de bom. Um senhor com trajes de cidade, o chapéu melão, pouco apropriado para a praia, inclinado em sua nuca, assegura a estas damas indignadas que está decidido a dar uma lição. Ele anda em nossa direção, e sofremos uma reprimenda onde todo o pathos do Sul sensual se coloca ao serviço de uma decência e de uma moral recatadas. O atentado ao pudor de que éramos culpados, nos diziam, era muito mais condenável ainda, na medida em que ele eqüivalia a um abuso ingrato e injurioso da hospitalidade da Itália. Não havíamos somente infringido as prescrições públicas que dizem respeito ao banho, mas também lesado criminalmente a honra de seu país. E ele, o senhor de fraque, tomaria as providências para defender esta honra. Que nossa ofensa à dignidade nacional não ficasse impune!

     Fizemos o possível para escutar este discurso, balançando a cabeça de uma maneira pensativa. Contradizer este homem superexcitado seria sem dúvida nenhuma cair de um erro em outro. Tínhamos muitas coisas na ponta da língua, por exemplo, que nem tudo permitia à palavra hospitalidade o seu uso adequado, segundo o seu significado mais puro, e que, para falar sem eufemismo, éramos muito mais hóspedes da Signora Angiolieri do que da Itália. Ela que havia desde alguns anos trocado a profissão de confidente da Duse pela profissão da hospitalidade. Tínhamos também vontade de responder que não sabíamos que a moral estava tão deturpada neste belo país, a ponto de que uma tal reação de recato e suscetibilidade pudesse parecer concebível e necessária. Mas nos limitamos a assegurar que estávamos bem longe de querer fazer a menor provocação e de faltar com o respeito. Usamos como desculpa a idade tão tenra e a pouca importância física da pequena delinqüente. Foi em vão. Não acreditaram em nossas afirmações. Nossa defesa foi rejeitada e acharam que uma punição se fazia necessária. As autoridades foram informadas por telefone, creio eu. Seu representante veio à praia, declarou o caso como muito grave, e tivemos que segui-lo ao “lugar”, ao Município, onde um funcionário superior confirmou o julgamento provisório como molto grave. Discursou sobre nosso ato com uma retórica didática, os argumentos banais eram exatamente os mesmos do senhor de chapéu duro, e nos multou em cinqüenta liras. Achamos que a aventura merecia esta contribuição ao orçamento italiano, pagamos e saímos. Não deveríamos ter ido embora de Torre di Venere?

     Por que não o fizemos! Teríamos evitado este fatal Cipolla. Mas tudo contribuiu para que não nos decidíssemos a partir. É a preguiça, disse um poeta, que nos retém em situações penosas. Poderíamos nos servir deste pensamento para explicar nossa constância. Além disto, depois de um tal incidente, ninguém gosta de abandonar o terreno imediatamente. Hesitamos em concordar que nos tornamos impotentes, sobretudo se manifestações de simpatia vêm do exterior encorajar a resistência. Na pensão Eleonora, todos eram unânimes em deplorar a injustiça de nossa sorte. Italianos, amizades de depois do jantar, pretendiam que a reputação do país não podia admitir isto, e exprimiram a intenção de irem, como compatriotas, pedir justiça ao senhor de fraque. Mas ele havia desaparecido da praia, assim como o seu grupo, desde o dia seguinte. Não por nossa causa, naturalmente, mas pode ser que a consciência da iminência da partida tenha contribuído para favorecer a sua iniciativa. Mas não importa a razão, foi um alívio para nós sabê-lo longe. Para dizer tudo, ficamos também porque nossa estadia estava nos deixando curiosos e porque esta espécie de interesse tem um valor em si mesmo, independente de mal-estar ou bem-estar. Será preciso não retirar o véu e evitar viver uma experiência, a partir do momento em que ela não parece inteiramente feita para proporcionar alegria e confiança? Devemos “partir” quando a vida parece se tornar um pouco inquietante, não muito segura, ou então um pouco penosa? Não, é claro, deve-se ficar, deve-se ver em que isto vai dar e enfrentar a situação. É assim, justamente, que talvez encontremos alguma coisa que valha a pena aprender. Ficamos, então, e nos foi dado, como terrível recompensa de nossa constância, conhecer a impressionante e nefasta figura de Cipolla.

     Eu não disse que o fim da estação começou quase no mesmo momento em que sofremos os rigores do Estado. Este senhor de chapéu melão, nosso delator, não era o único a deixar a praia. Era a grande partida. Viam-se numerosas charretes carregadas de bagagens se dirigirem para a estação. A praia se “desnacionalizava”. A vida em Torre, nos cafés, nos caminhos de pinheiros, se tornava mais européia e ao mesmo tempo mais íntima. Poderíamos até ter comido agora na varanda do Grande Hotel, mas preferimos nos abster disso, estávamos perfeitamente satisfeitos na mesa da Signora Angiolieri. Fique subentendida a nuance de bem-estar que o demônio do lugar permitia. Mas o tempo virou, ao mesmo tempo que esta mudança, o que aprovamos com prazer. Ele mostrou-se uma hora depois de acordo com o calendário de férias do grande público. O céu se cobriu, não que tivesse refrescado, mas o calor francamente tórrido que havia reinado durante dezoito dias desde nossa chegada (e sem dúvida já há bastante tempo antes dela) deu lugar a um tempo sufocante e pesado de sirocco.* E uma chuva fina molhava às vezes a areia aveludada onde passávamos nossas manhãs. Além disto, dois terços do tempo previsto para Torre já tinha se passado. O mar mole, descolorado, imensa extensão onde as águas-vivas flutuavam preguiçosamente, era em suma uma novidade. Teria sido tolice reclamar por um sol que havia causado tantos suspiros quando reinava orgulhosamente.

     Foi então neste momento que Cipolla se anunciou. “Cavaliere Cipolla”, assim era chamado nos cartazes que um belo dia encontramos afixados em todos os lugares, até na sala de jantar da pensão Eleonora. Virtuose ambulante, artista cômico, forzatore, illusionisfa, prestidigitatore (era assim que ele se designava) que tinha a intenção de visitar o honrado público de Torre di Venere, para lhe revelar alguns fenômenos de natureza misteriosa e desconcertante. Um mágico! Este anúncio foi suficiente para virar a cabeça de nossos pequenos. Eles nunca haviam assistido a uma tal representação. Esta viagem de férias lhes proporcionaria esta emoção desconhecida. Desde então, não pararam de nos atormentar para que comprássemos as entradas para o espetáculo do mágico. E embora a hora tardia do começo da representação, nove horas, nos fizesse hesitar, cedemos, considerando que afinal de contas poderíamos voltar tão logo tomássemos conhecimento dos talentos provavelmente modestos de Cipolla, e além disso, as crianças poderiam dormir até mais tarde no dia seguinte.

     Compramos então nossas quatro entradas com a própria Senhora Angiolieri, que havia reservado para seus hóspedes um certo número de lugares privilegiados. Ela não podia garantir o talento do mágico e não contávamos com ele; mas até nós sentíamos uma certa necessidade de distração, e a impaciente curiosidade das crianças exercia uma espécie de contágio.

     O local onde o cavaliere devia se apresentar era uma sala que havia servido durante a grande estação para representações cinematográficas renovadas a cada semana. Nunca havíamos ido lá. Para chegar até a sala era preciso passar diante do Palazzo, construção dos tempos feudais, com ares de castelo, e aliás à venda. Seguir a rua principal do lugar, onde encontrava-se a farmácia, o cabeleireiro, as lojas mais indispensáveis. Rua que conduzia do feudal ao popular, passando pelo burguês, pois ela terminava entre as casas miseráveis dos pescadores, onde velhas mulheres remendavam as redes diante da porta. Era aí, no popular, que encontrava-se a sala; não passava de uma barraca de madeira, vasta, é verdade. Sua entrada monumental estava enfeitada, dos dois lados, por cartazes multicolores colados uns acima dos outros. Assim, um pouco depois do jantar, no dia marcado, seguimos este caminho na obscuridade. As crianças haviam vestido suas mais belas roupas e estavam maravilhadas com tanta coisa imprevista. O ar estava pesado, como desde há muitos dias. Freqüentes raios de calor atravessavam a noite. Chovia um pouco. Nós nos abrigávamos sob os guarda-chuvas. Eram quinze minutos de caminhada.

     Receberam nossas entradas no corredor. Em seguida nós mesmos tivemos que procurar nossos lugares. Eles se encontravam na terceira fila à esquerda. Ao nos sentarmos, vimos que o público estava atrasado, apesar da hora tardia da representação. Aos poucos, o público, que parecia fazer questão de chegar atrasado, ia ocupando os lugares. Não havia camarotes. Esta demora inquietou-nos um pouco. As crianças já tinham as faces coloridas por um cansaço misturado a uma febril espera. Somente os lugares onde se ficava de pé, nos lados e no fundo da sala, estavam cheios desde nossa entrada. Aí encontrava-se todo o público autóctono de Torre di Venere, os braços descobertos cruzados sobre seus casacos coloridos. Eram pescadores, jovens rapazes de olhar atrevido. E se não estávamos insatisfeitos com a presença deste público popular nativo, que é quem dá a cor e o humor a estas espécies de representações, as crianças se mostravam maravilhadas. Elas tinham amigos entre estas pessoas, conhecimentos que fizeram durante os passeios da tarde, bem longe, na praia. Freqüentemente, na hora em que o sol, cansado de seu poderoso labor, mergulhava no mar e dourava a espuma de uma luz vermelha na crista das ondas, havíamos encontrado, ao voltar, grupos de pescadores. As pernas nuas, arqueadas, arrastando-se, uns após outros, eles puxavam suas redes. Passavam para os cestos molhados a pesca freqüentemente magra, os “frutti di mare”. Os pequenos acompanhavam o trabalho, diziam as poucas palavras italianas que sabiam, ajudavam a puxar a corda e assim estava feita a camaradagem. Agora eles trocavam saudações com a esfera dos lugares populares. Lá estava Guiscardo, Antonio, eles sabiam seus nomes, chamavam-nos baixinho, fazendo-lhes sinais, e os pescadores respondiam por um gesto com a cabeça, por um riso de dentes perfeitos. Olhe, lá está Mário, o Mário do “Esquisito”, o Mário que nos serve chocolate! Ele também quer ver o mágico, e deve ter vindo cedo. Está quase na frente, mas não nos viu, não presta atenção em nada, é o seu gênero, embora seja garçom. Iremos também fazer sinais ao homem que aluga barquinhos na praia, ele também veio, está atrás.

     O relógio logo marcou nove e quinze e depois nove e meia. Você pode conceber nossa aflição. A que horas as crianças iriam dormir? Foi um erro trazê-las aqui, porque será bem duro decidi-las a interromper o prazer, quando ele terá apenas começado. Com o tempo a sala lotou. Torre inteira estava lá: os hóspedes do Grande Hotel, da pensão Eleonora e de outras pensões, rostos conhecidos da praia. Ouvia-se falar inglês e alemão. Ouvia-se também francês, que os romenos e italianos usavam para falar entre si. A própria madame Angiolieri estava sentada duas filas atrás de nós, do lado de seu marido silencioso e calvo, que com os dois dedos médios de sua mão direita acariciava o bigode. Todos vieram muito tarde, mas ninguém tarde demais; Cippolla fazia-se esperar.

     Ele se fazia esperar, é esta a expressão exata. Ele tornava a assistência mais nervosa demorando a mostrar-se. Podemos até admitir esta tática, mas não sem limites. Lá pelas nove e meia, o público começou a aplaudir, o que é uma maneira amável de manifestar uma legítima impaciência, porque exprime-se ao mesmo tempo o desejo de aplaudir. As crianças tiveram muito prazer em tomar parte nisto. Todas as crianças gostam de aplaudir. Da esfera popular partiram gritos enérgicos: Pronti! e Cominciamo! E eis o que sempre acontece nestas circunstâncias: quaisquer que fossem os impedimentos que se opuseram durante tanto tempo à abertura do espetáculo, desapareceram de repente, dando lugar ao seu início. Um gongo tocou. Muitas vozes dos lugares populares responderam por um “Ah!” de satisfação, e a cortina afastou-se. Ela deixou aparecer um estrado, que por sua arrumação, e sobretudo por causa de um quadro-negro no primeiro plano à esquerda, mais parecia uma sala de aula do que o campo de ação de um prestidigitador. Havia também um cabide amarelo bastante ordinário, algumas cadeiras de palha assim como são em Torre, e um pouco mais para trás, via-se uma pequena mesa redonda. Sobre esta mesa encontrava-se uma garrafa e um copo, e sobre uma bandeja especial, um frasco cheio de um líquido amarelo-claro e um cálice de licor. Tivemos durante dois segundos tempo suficiente para perceber com o olhar estes diversos utensílios. Depois, sem que a sala se obscurecesse, “Cavaliere Cipolla” fez sua entrada.

     Cipolla entrou com um passo rápido que exprime o respeito para com o público e que dá a ilusão de que o ator já percorreu uma grande distância neste mesmo passo para conseguir chegar aos olhos da multidão, quando na verdade, há um instante apenas estava atrás dos bastidores.

     A roupa de Cipolla confirmava a ficção de uma chegada do exterior. Era um homem de uma idade difícil de definir. Mas não era jovem, claro, com os traços acusadores, o rosto arruinado, os olhos penetrantes, a boca enrugada e os lábios finos, com um pequeno bigode untado de cosmético negro e também com uma cova entre o lábio inferior e o queixo. Estava vestido de uma maneira complicada, um elegante que sai à rua com uma roupa de gala. Usava um amplo manteau negro sem mangas, com um colarinho de veludo de onde sai um capuz de seda. Tinha um cachecol branco em volta do pescoço e um chapéu alto, muito arqueado, que lhe caía de lado sobre a fronte. Mais do que em qualquer outro lugar, talvez, o século XVIII ainda está vivo na Itália e com ele o tipo do charlatão, do bobo de feira, tão característico daquela época. Apenas na Itália encontramos exemplares bem conservados. Havia na figura de Cipolla muito deste gênero histórico, e a impressão de truanice extravagante que faz parte desta figura já estava clara pela maneira estranha com que estava coberto por sua roupa pretensiosa. Suas vestes sobravam como se estivessem simplesmente penduradas em seu corpo. Havia alguma coisa de anormal em sua conformação — nem na frente, nem atrás — mais tarde pudemos notar melhor. Mas devo dizer que nem na atitude, nem nos gestos, nem na maneira de se comportar, via-se a menor tendência pessoal à brincadeira ou mesmo à palhaçada. Pelo contrário, ele exprimia-se com uma gravidade severa, uma recusa de qualquer humor, um orgulho capaz de mau humor se fosse preciso, e também com esta dignidade e esta complacência para consigo mesmo própria dos enfermos. Mas isto não impediu que sua atitude provocasse risos desde o começo em vários pontos da sala.

     Sua atitude não exprimia mais nenhum respeito. Tivemos que reconhecer que a rapidez de seus passos na entrada havia sido apenas uma manifestação de energia, e não uma espécie de submissão. De pé, perto da rampa, ele desembaraçava-se de suas luvas, tirando-as negligentemente, descobrindo longas mãos amareladas. Uma delas tinha um anel largo de onde sobressaía um lápis-lazúli. Cipolla deixava errar pela sala seus pequenos olhos severos sublinhados por bolsas flácidas. Examinava-a sem pressa, parando aqui e ali, num rosto, para estudá-lo desdenhosamente, os lábios cerrados sem dizer uma só palavra. Enquanto isto, enrolava suas luvas uma na outra, e sem dar a este gesto a menor atenção, mas com uma espantosa destreza, lançou-as sobre a mesa redonda, bem dentro do copo d'água.

     Depois, sempre olhando ao seu redor sem dizer uma palavra, tirou de um bolso interior um maço de cigarros, da melhor qualidade da região, como se pôde ver pela caixa. Retirou um com a ponta dos dedos e acendeu-o sem nem mesmo olhar, com um isqueiro de fluido que funcionou imediatamente. Respirou a fumaça profundamente, depois, com uma careta arrogante, os dois lábios alongados, soprou-a diante de si, agitando nervosamente um pé. Ela saía em turbilhões cinzentos por entre seus cientes pontudos e estragados.

     O público, que se sentia minuciosamente examinado, não o observava com menos atenção. Entre os jovens dos lugares populares, via-se sobrancelhas carregadas e olhares perscrutadores à espreita de qualquer erro deste homem seguro demais. Mas ele não se permitiu errar. Por causa de sua roupa, era bastante complicado tirar e fechar o maço de cigarros e o isqueiro. Foi preciso jogar seu manteau para trás. Vimos com alguma surpresa, em seu antebraço esquerdo, preso por uma tira de couro, um chicote com incrustrações de prata em forma de garras. Notamos igualmente que ele não usava paletó, mas um redingote. E como levantou-o também, pôde-se notar, um pouco escondido pelo colete, uma echarpe multicolor, que ele usava em volta do ventre. Os espectadores sentados atrás de nós, e que trocavam opiniões em voz baixa, achavam que a echarpe era um distintivo do “cavaliere”. Eu deixo a questão em aberto, porque nunca ouvi dizer que um distintivo deste gênero estivesse ligado ao título de cavaleiro. Talvez a echarpe fosse apenas charlatanismo, assim como a atitude do zombador, que continuava lá, sem dizer uma palavra. Ele nada mais fazia além de fumar seu cigarro calmamente no nariz do público, com um ar importante.

     Ria-se, como eu já disse, e a hilaridade tornou-se quase geral quando alguém dos lugares populares disse bem alto e secamente: Buona sera!

     Cipolla sobressaltou-se. “Quem é? perguntou ele num tom agressivo. Quem acabou de falar? Vamos! Começou bancando o espertinho e agora está com medo, hein? Paura, hein?” Falava com uma voz bastante alta, um tanto oprimida, mas metálica. Cipolla esperou. A sala guardava silêncio.

     “Fui eu”, disse subitamente um jovem que se via provocado e ferido em sua honra. Um belo rapaz, bem perto de nós, em mangas de camisa, o casaco jogado sobre o ombro. Seu cabelo negro, duro e crespo, estava arrumado em desordem, como era a moda desde que começara a onda de patriotismo. Isto tornava-o um pouco estranho e lhe dava um certo ar africano. “Ora,... Fui eu. Deveria ter sido você, mas eu quis prevenir”.

     Os risos recomeçaram com mais força ainda. O rapaz não levava desaforo para casa. Ha sciolto lo scilinquagnolo, declararam perto de nós. A lição popular não estava mal empregada, em suma.

     “Ah bravo! respondeu Cipolla. Você me agrada Giovanotto. Acredita que já estou te observando há bastante tempo? Tenho por gente como você uma simpatia particular, e posso ajudá-lo. Não há dúvida de que é um homem forte. Você faz o que quer. Ou já te aconteceu de não fazer o que queria? Ou até de fazer o que não queria? O que não queria? Escute, meu amigo, será prático e divertido nem sempre representar o papel do homem forte que deve prover-se ao mesmo tempo do querer e da ação. Se instituíssemos por uma vez a divisão do trabalho, sistema americano, sa! Você quer, por exemplo, botar a língua para toda esta sociedade escolhida e respeitável, toda a tua língua, até a raiz?

     — Não, replicou o rapaz com um tom hostil, não quero. Isto testemunharia pouca educação.

     — Isto não testemunharia absolutamente nada, disse Cipolla, porque você faria apenas a ação. Tenho todo o respeito por sua educação, mas na minha opinião, antes que eu tenha contado até três, você vai dar uma volta para a direita e botar a língua para o público. Uma língua tão longa, que você nunca soube que podia estendê-la tanto assim.”

     Encarou-o, e seus olhos penetrantes pareciam mergulhar mais profundamente em suas órbitas. “Uno”, disse ele, e seu chicote assobiou no ar com um golpe seco. O rapaz virou-se para o público e botou a língua para fora tão exageradamente e com um tal esforço, que via-se bem que ela se oferecia em todo seu tamanho. Depois, retomou sua posição anterior, o rosto sem expressão.

     “Fui eu”, parodiou Cipolla, apontando o jovem com a cabeça e piscando os olhos. “Ora,... Fui eu.” Dizendo isto, dirigiu-se para a mesa redonda, abandonando o público às suas impressões, encheu seu cálice com algo que parecia ser conhaque, e virou-o de um gole só com um gesto ágil.

     As crianças riam às gargalhadas. Das palavras trocadas, não entenderam quase nada. Mas que alguma coisa tinha se passado entre este curioso homem e alguém do público, alguma coisa engraçada, elas compreenderam, e isto as divertia muito. E como não tinham uma idéia muito precisa sobre os divertimentos de uma noite como esta que estava anunciada, estavam prontas a achar o começo engraçadíssimo.

     Quanto a nós, trocamos apenas um olhar, e me lembro que involuntariamente imitei com os lábios, bem baixinho, o barulho com o qual Cipolla havia feito seu chicote cantar no ar. Estava claro que as pessoas não sabiam muito bem o que pensar sobre esta abertura tão inesperada para um espetáculo de mágica. E eles não entendiam muito bem o que podia ter acontecido a Giovanotto, que no começo havia, por assim dizer, defendido sua causa, para que ele os ofendesse desta maneira. Acharam que Giovanoto tinha se conduzido como um tolo, e deixaram de se ocupar dele para dar atenção ao artista, que tendo voltado de sua mesa, prosseguia desta maneira seu discurso:

     “Minhas senhoras e senhores, dizia ele com sua voz asmática e metálica, vocês acabam de me ver um pouco suscetível diante da lição que este jovem lingüista de futuro (questo linguista di belle speranze, todos riram do trocadilho) quis me dar. Eu sou um homem de algum amor-próprio, tenham isto como dito. Não tenho nenhuma vontade de deixar que me desejem boa noite, a não ser que seja de uma maneira séria e polida. Aliás, não há por que fazê-lo de outra maneira. Desejando-me uma boa noite, o público também se deseja uma boa noite, porque vocês só terão uma boa noite se eu também tiver. Assim, este favorito das jovens de Torre di Venere (ele não parava de dar agulhadas no jovem) fez muito bem em provar imediatamente que tenho uma boa noite e que desta maneira possa prescindir de seus votos. Posso me gabar de ter quase que somente boas noites. Às vezes entra uma não tão boa no total, mas é raro. Meu trabalho é duro e minha saúde não é das mais robustas. Sofro de uma pequena enfermidade física que não me deu condições de tomar parte na guerra para a grandeza da pátria. É apenas com as forças da minha alma e do meu espírito que domino a vida, o que quer dizer: me domino. E me vanglorio de ter despertado com meu trabalho o interesse e a admiração do público cultivado. A imprensa soube apreciar este trabalho, o Corriere della Sera chegou a me chamar de fenômeno e eu tive a honra de ver em Roma o irmão do Duce entre os espectadores que assistiam a um de meus espetáculos. Já que num lugar tão importante, tão brilhante, pude adquirir certos pequenos hábitos, não creio ter que me desfazer deles num lugar relativamente menos importante, em suma, como Torre di Venere (riram às custas da pobre pequena Torre), nem admitir que eles sejam criticados por pessoas que parecem um pouco mimadas pelos favores do sexo feminino.”

     Uma vez mais era o pobre rapaz quem tinha que levar a culpa. Cipolla não deixava de ridicularizá-lo no papel de donnaiudo e de galo da cidade. A susceptibilidade e animosidade feroz com as quais ele voltava a Giovanotto não deixavam de estar em desacordo chocante com a expressão de seu amor-próprio e os sucessos mundanos de que se gabava. Lógico, o jovem devia apenas servir de tema de divertimento. Cipolla já devia ter o hábito de escolher um em cada noite e de tomá-lo como alvo. Mas em suas indiretas deixava transparecer um rancor que não era fingido. Uma olhadela para o físico dos dois homens teria sido suficiente para mostrar o sentido humano desta hostilidade, mesmo que o enfermo tenha feito várias alusões à felicidade que atribuía ao jovem junto às mulheres.

     “Para começar agora nossos divertimentos, acrescentou ele, permitam que me coloque à vontade”.

     E Cipolla andou até o cabide para desembaraçar-se de suas roupas.

     Parla benessimo, ouvimos perto de nós. O homem ainda não havia feito nada, e seu discurso já era apreciado como um talento. Ele soube se impor pela palavra. Nos Meridionais, a linguagem é um ingrediente da alegria de viver, e dão a ela um valor social muito mais importante do que o fazem no Norte. Nos povos do Sul, tem-se em grande honra este elo nacional, que é a língua materna, e o respeito maravilhado com o qual cultiva-se suas formas e suas leis fonéticas tem alguma coisa de exemplar. Fala-se com prazer, escuta-se com prazer, e julga-se escutando. O mérito pessoal varia de acordo com a maneira como se fala. Se a pessoa fala com negligência, se machuca a língua, é desprezada. Pela elegância e pelo dom da palavra adquire-se consideração. É por isto que o homem medíocre tenta empregar construções difíceis, que ele trabalha com cuidado, a fim de produzir um certo efeito. Sob este aspecto ao menos, Cipolla havia conquistado o público, embora não pertencesse nem um pouco a esta espécie de homem que o Italiano chama de simpático, por uma curiosa mistura de julgamento moral e estético.

     Logo que pendurou no cabide seu chapéu de seda, o cachecol e o manteau, Cipolla voltou para a frente do estrado, arrumando seu redingote, fazendo aparecer os punhos fechados com grandes botões, e tocando sua echarpe de charlatão. Ele tinha cabelos muito feios. Isto é, o alto de seu crânio era quase calvo, e somente uma mecha fina emplastrada de cosmético negro e dividida numa linha reta corria do alto da cabeça para a frente, parecendo estar colada. Enquanto que nas têmporas, os cabelos, igualmente tingidos de negro, estavam penteados de lado para o canto dos olhos. Parecia o penteado de um diretor de circo à moda antiga, ridículo, mas perfeitamente em harmonia com o estilo obsoleto de sua personalidade. Cipolla usava este penteado com tanta confiança, que a sensibilidade do público quanto ao seu lado cômico conteve-se e continuou muda. A “pequena enfermidade física”, que já mencionara por precaução, era agora bastante visível, embora não se soubesse claramente em que consistia. O peito era muito alto, como geralmente acontece nestes casos, mas a disformidade das costas não parecia situada em seu lugar habitual, entre os ombros; mas mais embaixo, como uma espécie de corcunda dos quadris e dos traseiros. Ela não impedia seu andar, mas tornava-o grotesco e estranho a cada passo. Aliás, mencionando esta desvantagem, ele havia atenuado seus inconvenientes e sentia-se que a sala, em relação a ele, não abandonava o tato das pessoas civilizadas.

     “Às suas ordens! disse Cipolla. Com o seu consentimento, iremos começar nosso programa por alguns exercícios aritméticos”.

     Aritmética? Isto não tinha cara de truque de mágica. Começamos a supor que o homem andava numa pista falsa, mas qual era a verdadeira não sabíamos. Eu começava a me inquietar pelas crianças. Mas por enquanto elas estavam felizes com o simples fato de estarem neste lugar.

     O cálculo que Cipolla organizou era tão simples que o truque chegava a ser desconcertante. Começou fixando uma folha de papel com uma tachinha no ângulo superior direito do quadro, e levantando-a, escrevia alguma coisa na madeira. Enquanto isto, falava sem parar, tomando cuidado de preservar a aridez do jogo acompanhando-o e sustentando-o com um discurso. Era um conferencista eloqüente que não se embaraçava nunca. Cipolla continuou em seguida a suprimir o abismo entre o palco e o público. Já havia feito antes uma ponte sobre este abismo, através da discussão com o jovem pescador. O fato de precisar de representantes do público no palco, e inversamente, de descer os poucos degraus de madeira que conduziam ao estrado para tomar contato com seus hóspedes pessoalmente, fazia parte de seu estilo de trabalho, e isto agradou muito as crianças. Não sei até que ponto entrar imediatamente em conflito com diversas pessoas dependia de suas intenções e de seu sistema, embora continuasse sempre sério e ressentido. Em todo caso, o público, pelo menos em seus elementos populares, foi da opinião de que isto fazia parte do espetáculo.

     Quando terminou, Cipolla escondeu o que havia escrito sob a folha de papel e pediu que duas pessoas viessem voluntariamente até o estrado para ajudar na execução do cálculo projetado. Isto não oferecia nenhuma dificuldade, mesmo as pessoas menos dotadas para a aritmética estariam aptas a fazê-lo. Como de hábito, ninguém se anunciou, e Cipolla se absteve de importunar a parte distinta de seu público. Ele limitou-se ao povo, e dirigiu-se a dois rapazes desengonçados, nos lugares populares no fundo da sala. Chamou-os, encorajou-os, repreendeu-os por conservarem as mãos nos bolsos e por não quererem agradar ao público. Efetivamente, Cipolla colocou-os em movimento. Com passos pesados, eles avançaram pela passagem do meio, subiram as escadas e colocaram-se diante do quadro-negro rindo desajeitadamente sob os bravos de seus camaradas. Cipolla brincou ainda alguns instantes com os rapazes. Elogiou as proporções heróicas de seus membros, as dimensões de suas mãos, que eram realmente aptas a dar à assembléia o serviço desejado, e deu a um deles um pedaço de giz, dizendo-lhe que simplesmente escrevesse os números que lhe gritassem. Non so scrivere, disse ele com uma voz brusca. Seu companheiro acrescentou: “Eu também não”.

     Só Deus sabe se diziam a verdade ou se queriam apenas zombar de Cipolla. Em todo caso, o mágico estava longe de dividir a alegria que essa confissão despertou. Ele estava ferido e desgostoso. Sentado numa cadeira de palha no meio do palco, as pernas cruzadas, fumava um novo cigarro do maço caro. Saboreava visivelmente com muito mais prazer, pois havia tomado um segundo conhaque enquanto os dois imbecis avançavam desajeitadamente para o estrado. De novo deixava escapar por entre seus dentes descobertos a fumaça que havia aspirado profundamente. Fixava seus olhos no vazio, para além dos dois idiotas que riam, para além do público. Sacudia a ponta do pé, longínquo e sério, como um homem que se retira em si mesmo e em sua dignidade, diante de um espetáculo inteiramente desprezível.

     “Escandalosos! disse ele friamente e de uma maneira irritada. Voltem para seus lugares! Todo mundo sabe escrever na Itália, cuja grandeza não oferece nenhum asilo à ignorância e às trevas. Deixar esta sociedade internacional ouvir uma acusação através da qual não somente vocês se anulam, mas que também expõe o governo e o país a propósitos mal intencionados, é uma brincadeira de mau gosto. Se realmente Torre fosse o último canto da pátria onde se refugiaria a ignorância das ciências elementares, eu teria que me arrepender de ter vindo a um lugar que já deveria saber estar muito aquém de Roma em todos os aspectos...”

     Aqui ele foi interrompido pelo jovem de cabeleira africana e de casaco jogado no ombro. Seu humor ofensivo havia abdicado apenas provisoriamente, e com a cabeça erguida, ele se constituía cavaleiro de sua pequena cidade.

     “Chega, disse em voz alta, chega de brincadeiras sobre Torre. Nós todos somos daqui e não vamos admitir que se zombe da cidade diante de estrangeiros. Estes dois homens também são nossos amigos. Se não são sábios, são jovens rapazes melhor constituídos que qualquer outro aqui nesta sala, que se vangloria de Roma embora não a tenha fundado.”

   Foi bem dito. O jovem tinha mesmo unhas e dentes. Era um divertimento esta espécie de drama, embora a entrada no programa propriamente dito se atrasasse cada vez mais. É sempre apaixonante ouvir uma discussão. Para algumas pessoas é um simples passatempo. Por uma espécie de prazer do mal elas se regozijam não tomando parte. Outras sentem angústia e emoção, e eu as compreendo muito bem, embora tenha tido a impressão de que tudo estava baseado num acordo prévio, e que os dois mastodontes que não sabiam escrever, assim como Giovanotto, entravam um pouco na representação do artista para produzir a comédia. As crianças escutavam com um prazer sem igual. Não compreendiam nada, mas as entonações mantinham-nas em suspense. Era isto então, um espetáculo de mágica! Pelo menos um espetáculo italiano de mágica. Deviam achar tudo muito bonito.

     Cipolla havia se levantado, e com dois passos desengonçados chegou até a rampa.

     “Mas vejam! disse ele com uma cordialidade carrancuda. Uma velha amizade! Um jovem que tem o coração sobre a língua! (ele dizia sulla linguaccia, o que significa língua carregada, e provocou uma grande hilaridade.) Vamos, meus amigos, disse aos dois pesadões. Estou farto de vocês. O meu negócio agora é com este homem de honra, con questo torreqiano di Venere, com este guardião da Vênus, que sem dúvida espera doces recompensas por sua vigilância...

     — Ah! não estou brincando! Vamos falar seriamente!” gritou o jovem. Seus olhos faiscavam, e ele fez um movimento brusco, como se fosse livrar-se do casaco para passar a uma explicação mais direta.

     Cipolla não o levou a sério. Nós, ao contrário, o olhamos com inquietação. O cavaliere estava às voltas com um campatriota, ele tinha o solo da Pátria sob os pés. Continuou frio, mostrando uma superioridade perfeita. Com um movimento de cabeça para o galo de briga, sorrindo de lado, o olhar voltado para o público, divertiu-o, tomando-o como testemunha de um humor exaltado que mostrava apenas a simplicidade da concepção de vida do adversário. E então, produziu-se mais uma vez uma coisa muito curiosa, que jogou sobre esta superioridade uma luz inquietante e fez cair no ridículo a excitação belicosa que emanava da cena.

     Cipolla aproximou-se ainda mais do jovem, olhando-o estranhamente nos olhos. Chegou a descer a metade dos degraus que o separavam do auditório. Desta maneira, pôde ficar perto do jovem brigão e ao mesmo tempo um pouco acima dele. O chicote pendia de seu braço.

     “Você não está disposto para brincadeiras, meu filho, disse ele. Isso é fácil de compreender, pois todo mundo está vendo que você não se sente bem. Ainda há pouco a sua língua, cuja cor deixava muito a desejar, indicava uma desordem aguda do aparelho digestivo. Não se deve sair de noite quando não se sente bem, e você mesmo, eu sei, já se perguntou se não seria melhor ir para casa deitar-se e colocar compressas no ventre. Não devia ter bebido esta tarde uma tal quantidade daquele vinho branco horrivelmente ácido. Agora tem cólicas, gostaria de dobrar-se em dois, de tal maneira está sofrendo. Pode fazê-lo sem medo! A gente sente um certo alívio quando o corpo cede às contrações das entranhas.”

     Cipolla dizia cada palavra com uma força de persuasão bastante segura, e com uma espécie de compaixão severa. Seus olhos, mergulhados nos olhos do jovem, pareciam ao mesmo tempo diluir-se e queimar-se acima das bolsas lacrimais. Eram olhos muito estranhos, e compreendia-se que o orgulho viril não era a única coisa que impedia o outro de desviar o olhar. Logo não houve mais nenhum traço de orgulho no jovem rosto bronzeado. De boca aberta, olhava o cavaliere, e esta boca aberta deformava-se num sorriso contraído e digno de pena.

     “Contorça-se! repetia Cipolla. Nada mais te resta a fazer. Com as cólicas que sente, é preciso se dobrar. Não vai resistir ao reflexo natural só porque te dizem que ele te aliviará.”

     O jovem levantou os braços lentamente, cruzou-os sobre o ventre para apertá-lo, e seu corpo se curvou, inclinou-se de lado e para a frente, indo cada vez mais para baixo. Os pés contraídos, os joelhos voltados um para o outro, acentuou sua flexão até quase se arrastar no chão, imagem das contorções de sofrimento.

     Cipolla deixou-o alguns segundos nesta posição, deu uma chicotada no ar e voltou mancando para a pequena mesa a fim de beber um conhaque.

     “Ele bebe muito”, constatou em francês uma senhora atrás de nós. Será que isto era tudo que a tocava? Não chegamos a saber até que ponto o público compreendeu. O jovem estava em pé novamente, sorrindo um pouco embaraçado, como se não soubesse como isto tinha lhe acontecido. Todos seguiram a cena com atenção, e quando ela acabou, aplaudiam-na aos gritos de “Bravo Cipolla!” assim como “Bravo, Giovanotto!” Ninguém interpretava o fim da disputa como uma derrota pessoal de Giovanotto. Ao contrário, ele era aplaudido como um ator que interpretou bem um papel humilhante. A sua maneira de se contorcer de dor havia sido realmente bastante expressiva, e para a galeria, havia funcionado como uma cena de teatro.

     Não saberia dizer até que ponto era preciso atribuir a atitude reservada da sala ao senso do tato, no qual o Sul nos é superior, e em que medida ela era determinada por uma consciência exata da natureza das coisas.

     O cavaliere, reconfortado, havia acendido um outro cigarro. Poderíamos recomeçar os ensaios aritméticos. Encontrou-se sem dificuldade um jovem sentado nas últimas filas, que declarou-se pronto para escrever no quadro os números que lhe ditassem. Nós o conhecíamos também. Era o empregado da mercearia da rua principal. Várias vezes nos havia servido bastante corretamente. Manipulava o giz com uma destreza comercial, enquanto Cipolla, que havia descido ao auditório, circulava entre o público com seu andar de enfermo e recolhia os números de dois, três ou quatro algarismos, como quisessem. Tomava-os dos lábios das pessoas interrogadas para gritá-los ao jovem que alinhava-os uns sob os outros. Como por um acordo recíproco, tudo era calculado para distrair, divertir, levar a digressões oratórias. Era inevitável que o artista se dirigisse a estrangeiros que não sabiam falar os números em italiano. Cipolla ocupava-se deles por muito tempo, com maneiras ostensivamente cavalheirescas, por entre a alegria polida dos nativos, que ele embaraçava convidando-os a traduzir os números propostos para o inglês e francês. Algumas pessoas citaram números que marcavam os grandes anos da História da Itália. Cipolla reconhecia as datas imediatamente e continuava o jogo, fazendo considerações patriotas. “Zero!” disse alguém. O cavaliere mostrou-se gravemente ofendido, assim como a cada tentativa que faziam para zombar dele. Respondeu por sobre o ombro que este não servia pois era um número de menos de dois algarismos. “Zero-Zero”! gritou imediatamente algum brincalhão. Obteve o sucesso que sempre tem, entre os Meridionais, as alusões a certas coisas naturais. Somente o cavaliere guardou dignamente uma atitude reprovadora, embora tivesse sido ele quem suscitara a brincadeira equívoca. Entretanto, com um dar de ombros, mandou escrever os dois zeros no processo verbal.

     Quando já tinha no quadro-negro mais ou menos quinze números de vários tamanhos, Cipolla pediu que fizessem a adição. Os calculadores hábeis poderiam fazê-lo de cabeça, mas ele permitia que se usasse giz ou lápis e papel. Enquanto trabalhava-se, Cipolla, sentado em sua cadeira do lado do quadro-negro, fumava um cigarro fazendo careta, com gestos pretensiosos e satisfeitos de enfermo. A soma, que dava um número de cinco algarismos, ficou logo pronta. Alguém proclamou-a, um outro a confirmou, o resultado de um terceiro diferia um pouco, o de um quarto coincidia com os primeiros. Cipolla levantou-se, limpou sua jaqueta, onde havia caído um pouco de cinza do cigarro, suspendeu a folha de papel no ângulo direito do quadro, e mostrou o que havia escrito. A soma exata, que se aproximava de um milhão, já estava lá. Ele já a tinha inscrito.

     Estupefação dos espectadores. Longos aplausos. As crianças estavam subjugadas. Queriam saber como Cipolla havia feito. Explicamos que era um truque que não podia ser compreendido assim à primeira vista, mas que o homem não era um mágico por causa disto. Agora elas sabiam o que era um espetáculo de mágica! O pescador que havia sentido cólicas no ventre e agora o resultado já pronto no quadro-negro. Era magnífico! e nós víamos com inquietação, que embora seus olhos estivessem vermelhos e já fosse quase dez e meia, seria bem difícil levá-las para casa. Haveria lágrimas. Entretanto, estava claro que este corcunda não fazia truques de mágica, ao menos no sentido convencional, e que este espetáculo não era para crianças.

     Ignoro o que pensava o público. Mas a “livre escolha” na determinação dos números havia sido duvidosa. A pessoa interrogada pode muito bem ter respondido por conta própria, mas era evidente que Cipolla havia escolhido suas pessoas, e que para chegar ao resultado inscrito de antemão, tudo havia sido submetido à sua vontade. O que não nos impedia de admirar suas capacidades aritméticas, mesmo se o outro elemento escapava estranhamente à admiração. Além disto, havia o patriotismo e a dignidade tão pronta a se irritar. Os compatriotas do cavaliere podiam sentir-se em paz em seu meio e continuar dispostos a brincar. Mas para as pessoas vindas de fora esta mistura era um tanto inquietante.

     Cipolla, aliás, tomava cuidado para tomar o caráter de seus talentos indubitáveis, mesmo para os poucos informados, sem que um nome ou um termo fosse pronunciado. Ele falava bem, falava sem interrupção, mas apenas com expressões vagas, presunçosas, como frases de propaganda. Continuou ainda por algum tempo no caminho das experiências começadas, tornou os cálculos mais complicados fazendo operações de um outro gênero, depois simplificou-os até o extremo limite, para mostrar como tudo se passava. Fez “adivinhar” os números que havia escrito previamente sob a folha de papel. Quase sempre dava certo. Alguém confessou que havia querido dizer um outro número, mas no mesmo instante em que o chicote do Cavaliere assoviou no ar diante dele, o número que se encontrou em seguida inscrito no quadro-negro havia escapado de seus lábios. Um riso sacudiu os ombros de Cipolla. Ele fingia admiração pelo gênio das pessoas que interrogava. Mas seus cumprimentos tinham qualquer coisa de zombador e de degradante. Não creio que as pessoas que serviam às experiências tenham sentido prazer com estes elogios, embora os acolhessem sorrindo e quisessem se atribuir uma parte dos aplausos. Também não tenho a impressão de que o artista era amado por seu público. Podia-se perceber uma certa aversão e uma certa malícia. Mas, sem falar da polidez que freava estes movimentos, o talento de Cipolla e sua severa segurança causavam muita impressão. Na minha opinião, até o chicote contribuía para que a revolta continuasse subterrânea.

     Depois das experiências com os números, passou aos truques com as cartas. Servia-se de dois baralhos que retirou de seu bolso. Ainda me lembro do essencial de seu trabalho e que consistia no seguinte: ele escolhia num baralho, sem mostrar, três cartas que escondia no bolso interior de seu redingote. Apresentava o segundo baralho a alguém, e a pessoa tirava precisamente estas três cartas. Nem sempre eram as mesmas, mas na maioria das vezes Cipolla triunfava quando mostrava ao público suas três cartas. Então, agradecia negligentemente os aplausos pelos quais reconhecia-se, querendo ou não, a força de que ele fazia prova.

     Um jovem da primeira fila à nossa esquerda, italiano de rosto orgulhosamente bem talhado, levantou-se e se declarou decidido a escolher segundo sua vontade e a resistir conscientemente a toda influência de qualquer espécie que fosse. Que saída poderia prever Cipolla nestas condições?

     “Desta maneira, respondeu o cavaliere, você irá tornar meu trabalho um pouco mais difícil. Sua resistência não mudará em nada o resultado. A liberdade existe, a vontade também existe, mas a liberdade de vontade não existe, porque a vontade que se dirige à sua liberdade bate no vazio. Você é livre para tirar ou não a carta. Mas se tirar, vai tirar a boa, ainda mais por procurar agir livremente.”

     Deve-se reconhecer que Cipolla não poderia ter escolhido melhor suas palavras para embaralhar as cartas e lançar confusão no espírito. O rebelde hesitou, nervoso, antes de se decidir. Tirou uma carta e quis ver imediatamente se ela se encontrava entre as cartas escondidas. “Mas como? espantou-se Cipolla. Por que fazer apenas a metade do trabalho?” O jovem obstinava-se, insistindo para que esta prova preliminar se realizasse. E servito, disse o mágico com um gesto excessivamente servil, e estendeu, sem nem mesmo olhá-las, as três cartas dispostas em leque. A carta da esquerda era a mesma que a carta tirada.

     O herói da liberdade sentou-se encolerizado, sob os aplausos da sala. Não importa saber em que medida Cipolla sustentava seus dons naturais por truques mecânicos e de prestidigitação. Cipolla fazia esta mistura, e a curiosidade de todos os espectadores se satisfazia saboreando um divertimento extraordinário e reconhecendo um talento profissional que ninguém negava. Lavora bene! Ouvimos várias vezes esta constatação perto de nós, aqui e ali. Ela revelava a vitória da eqüidade objetiva sobre a antipatia e a silenciosa revolta.

     Antes de qualquer outra coisa, Cipolla havia se re-confortado com um conhaque depois de seu último sucesso, que embora fragmentário, não era por isso menos impressionante. Efetivamente, ele “bebia muito”, e isso não era agradável de se ver. Mas estava claro que tinha necessidade de licor e cigarros para alimentar e renovar sua tensão de espírito, que era sob muitos aspectos, colocada rudemente à prova, como ele mesmo havia dito.

     Realmente, Cipolla tinha por momentos um péssimo aspecto, os olhos fundos, o rosto decomposto. O pequeno cálice o refazia, e depois de cada trago, seu discurso recomeçava com uma animação pretensiosa, enquanto soprava a fumaça, tragada por seus pulmões, em redemoinhos acinzentados. Ainda me lembro com certeza que ele passou dos truques das cartas a esta espécie de brincadeira baseada nas faculdades super ou sub-racionais da natureza humana.

     Intuição e transmissão “magnética”, em suma, numa forma inferior da revelação. Mas não sei mais a sucessão precisa de suas experiências. Também não quero chatear vocês com a descrição destes ensaios. Todos os conhecem. Todo mundo já participou deles alguma vez: a procura de objetos escondidos, a execução cega de atos complicados cuja direção passa de organismo para organismo através de vias desconhecidas. Todo mundo já deu uma olhadela, com uma curiosidade misturada a um certo desprezo, no caráter equívoco, não muito limpo e indecifrável dos poderes ocultos. Eles tendem a se misturar, nas pessoas daqueles que são dotados destes poderes, ao charlatanismo e a truques equívocos, sem que esta adição consiga provar nada contra a verdade de outras partes desta inquietante mistura. Eu direi apenas que todas as relações se reforçam naturalmente, que a impressão ganha em profundidade de todos os lados, quando é um Cipolla quem dirige o jogo tenebroso e sustenta o papel principal.

    O mágico estava sentado, no fundo do estrado, as costas voltadas para o público. Fumava, enquanto em algum lugar da sala as pessoas se entendiam em segredo sobre as disposições a que ele teria que obedecer. O objeto que deveria tirar do esconderijo, e com o qual executaria uma ação determinada previamente, passava de mão em mão.

     Era uma caminhar às cegas, onde às vezes obedece-se a um impulso brusco ou às vezes pára-se para procurar. Uma falsa direção é subitamente corrigida pelo movimento sugerido por uma inspiração. Nós o observávamos enquanto fazia estes ziguezagues através da sala. A cabeça jogada para trás, uma mão na mão do guia. Este sabia do esconderijo e devia concentrar seus pensamentos no objeto combinado, mas deixar seu corpo inteiramente passivo. Os papéis pareciam invertidos. A corrente passava em sentido contrário, e o artista, que não parava de falar, deixava isto bem claro.

     Ele, que durante tanto tempo havia sido o dono da vontade, era agora o elemento passivo, receptivo, executivo, cuja vontade estava suspensa para que se pudesse realizar uma vontade comum que flutuava no ar sem estar expressa. Mas ele declarava insistentemente que isto dava no mesmo. A faculdade de se desembaraçar de si próprio, dizia ele, de tornar-se um instrumento, de obedecer, no sentido mais absoluto e mais perfeito da palavra, era apenas o inverso do outro poder, da faculdade de querer e de comandar. Comandar e obedecer constituem juntos um só princípio, uma unidade indissolúvel. Aquele que sabe obedecer sabe comandar, e vice-versa. Estas duas idéias estão incluídas uma na outra, assim como a idéia de povo e a idéia de chefe. Mas era a ele que cabia o papel supremo, a tarefa mais árdua e mais extenuante, a ele que conduzia e organizava tudo, que transformava a vontade em obediência e a obediência em vontade, que dava nascimento a ambas e que tinha por causa disto um trabalho muito duro.

     Cipolla falava freqüentemente e com insistência do extremo trabalho que tinha. Com certeza para explicar sua necessidade de reconforto e seu freqüente recurso ao pequeno cálice.

     Tateava em seu redor como um visionário, conduzido e levado pela vontade secreta do público. Retirou do sapato de uma inglesa, onde o haviam escondido, um broche guarnecido de uma pedra. Carregou-o, parando às vezes, depois partiu novamente como se o estivessem empurrando, até uma outra senhora. Era madame Angiolieri, e ele deveria entregar-lhe o broche dizendo umas palavras que já haviam sido combinadas antes. Eram sem dúvida bastante naturais, mas entretanto muito difíceis de dizer exatamente, porque haviam sido escolhidas em francês.

     “Je vous fais ce présent en témoignage de ma vénération!” ele devia dizer. Pareceu-nos que havia um pouco de maldade na dureza das condições. Exprimia-se um contraste entre o interesse que se dava à vitória do maravilhoso e o desejo de inflingir uma derrota a este homem pretensioso.

     Era um curioso espetáculo: ajoelhado diante da senhora Angiolieri, Cipolla lutava para descobrir o ato que devia realizar. Ajudava-se discursando. “Devo dizer alguma coisa, e sinto claramente o que convém dizer. Entretanto, ao mesmo tempo, sinto que soaria falso se o deixasse sair de meus lábios. Cuidado para não me ajudarem com algum sinal involuntário!” gritou ele, embora fosse, ou precisamente porque fosse, o que esperava.

     “Pensem bem forte, gritou subitamente num péssimo francês, e depois disse a frase desejada, em italiano sem dúvida, mas de uma tal maneira que de repente a palavra essencial do final saiu em francês. Realmente, Cipolla não dominava a língua irmã da sua. Mas no lugar de venerazione, pronunciou “vénération” com uma terminação nasal completamente impossível!

     Depois de todas as demonstrações, da descoberta do broche, da caminhada até a senhora Angiolieri e do ajoelhamento diante dela, este sucesso incompleto produziu uma impressão quase que mais forte que uma vitória integral e provocou aplausos cheios de admiração.

     Levantando-se, Cipolla enxugava o suor de sua fronte. Vocês compreendem que contando a história do broche dei apenas uma exemplo de seu trabalho. Guardei deste episódio uma lembrança particularmente precisa. Mas Cipolla variava de diversas maneiras a forma fundamental de suas experiências. Misturava umas às outras de um tal jeito, que muito tempo se passou com improvisações análogas. Nestas experiências Cipolla era sempre ajudado pelo contato com o público. Nossa hostess parecia inspirá-lo especialmente. Arrancou-lhe adivinhações assombrosas.

     “Sinto, disse ele, que a senhora pertence a uma condição à parte que lhe vale muitas honras. Aquele que sabe ver percebe em torno de sua fronte encantadora uma luz, que, se não me engano, antigamente era mais viva do que hoje. Uma luz que empalidece lentamente... Nem uma palavra! Não me ajudem! Seu marido está ao seu lado, não é? prosseguiu ele voltando-se para o silencioso senhor Angiolieri. O senhor é o esposo desta dama e a sua felicidade é perfeita. Mas a esta felicidade misturam-se lembranças... lembranças principescas... O passado, Signora, representa em sua vida presente, ao que me parece, um papel importante. A senhora conheceu um rei... Não havia um rei, em outros tempos, no caminho de sua vida?

     — Não, respondeu num fio de voz a fornecedora de nossa sopa do meio-dia, e os olhos cinzas e dourados brilhavam na nobre palidez de seu rosto.

     — Não? — Não. Não um rei. Eu me baseei, por assim dizer, no material ainda bruto e não lapidado. Não um rei, não um príncipe — e entretanto um príncipe, um soberano de reinos superiores. Era um grande artista ao lado de quem, antigamente... A senhora quer me contradizer, e entretanto não pode fazê-lo. Ou melhor, pode fazê-lo apenas em parte. Muito bem, era uma grande artista, uma artista célebre no mundo inteiro, que lhe deu sua amizade durante a juventude e cuja sagrada lembrança estende uma sombra por toda a sua vida e a transfigura magnificamente... Seu nome? Será necessário dizer este nome cuja glória está ligada há muito tempo à glória da Pátria, e que como ela é imortal? Eleonora Duse”. E, nas últimas palavras, baixou solenemente a voz.

     A pequena mulher, subjugada, aprovava com a cabeça. Os aplausos tomaram as proporções de uma manifestação nacional. Quase toda a sala, começando pelos hóspedes da Casa Eleonora, conheciam o glorioso passado da Signora Angiolieri e podiam apreciar a intuição do cavalieri. Devíamos somente nos perguntar o que o próprio Cipolla poderia saber de antemão, o que talvez tivesse descoberto ao chegar a Torre, perguntando aqui e ali para satisfazer seu interesse profissional... Mas não tenho nenhuma razão para questionar como um raciona-lista as faculdades que sob nossos olhos foram fatais a Cipolla...

     Antes de qualquer outra coisa, é preciso dizer que neste momento houve um intervalo e o homem que nos tinha sob seu domínio retirou-se. Confesso que temi este ponto de minha história quase desde o momento em que a comecei. Geralmente não é difícil ler o pensamento das pessoas, e aqui foi muito fácil. É claro que vocês irão me perguntar por que não fomos embora finalmente. E sinto-me na obrigação de ficar devendo uma resposta. Eu mesmo não compreendo e não saberia realmente me justificar. Já devia ser mais ou menos onze horas ou talvez mais tarde ainda. As crianças dormiam. A última série de experiências havia sido para elas francamente monótona e a natureza não teve nenhuma dificuldade em reclamar seus direitos. Dormiam sobre nossos joelhos. Nossa filha sobre os meus e o menino sobre os de sua mãe. Por um lado isto podia nos tranqüilizar, mas deveria também nos ter despertado uma certa pena e nos lembrado que devíamos colocá-los na cama. Asseguro que quisemos obedecer a esta advertência, quisemos mesmo. Mas logo que acordamos as crianças, elas começaram a resistir e a nos implorar. Vocês conhecem a repugnância dos pequenos em abandonar um divertimento antes de seu final, e sabem que podemos quebrá-la, mas nunca vencê-la. Estava magnífico o espetáculo de mágica, diziam eles choramingando. Não sabíamos o que iria acontecer ainda, era preciso ao menos esperar um pouco para ver o que viria depois do intervalo. Eles dormiriam um pouco de vez em quando, contanto que não voltássemos para casa, que não os colocássemos na cama enquanto o espetáculo continuava.

     Cedemos, pelo menos naquele momento, ao que pensávamos. Não merecemos nenhuma desculpa por ter ficado, e é quase tão difícil dar uma explicação para nossa conduta. Acreditávamos que era preciso dizer B porque havíamos dito A, e que já havíamos cometido o primeiro erro trazendo as crianças? Acho esta razão insuficiente. Será que nós mesmos estávamos nos divertindo? Sim e não. Nossos sentimentos em relação ao cavaliere Cipolla eram os mais confusos, mas, se não me engano, eram os sentimentos de toda a sala, e entretanto, ninguém partiu. Estaríamos sob o jugo de uma fascinação que teria emanado deste homem que ganhava seu pão de uma maneira tão estranha? fascinação que estaria fora do programa, entre os diferentes números, e que teria paralisado nossas decisões? Podemos também pensar em simples curiosidade. Gostaríamos de saber como terminaria uma noite começada de tal maneira. Aliás, Cipolla havia acompanhado sua saída de declarações prometedoras. Podia-se concluir que o mágico não havia de maneira nenhuma esgotado suas surpresas, e que era preciso estar preparado para efeitos cada vez mais extraordinários.

     Mas não é nada disso. Ou então é tudo isso. Se nos perguntam por que não partimos neste momento, é melhor responder por uma outra pergunta: por que não deixamos Torre mais cedo? Na minha opinião as duas perguntas dão no mesmo e para me ver livre delas é melhor dizer que já foram respondidas. O espetáculo do mágico era o mesmo que Torre oferecia geralmente. Curioso e cativante, inquietante e doloroso e também humilhante. Talvez mais ainda. Esta sala constituía o ponto de condensação de toda a curiosa singularidade, de toda a insegurança, de toda a tensão de que a atmosfera de nossa estadia em Torre estava carregada. Este homem cujo retorno esperávamos parecia encarnar tudo isto. E como não havíamos feito uma “grande” partida, seria ilógico fazer uma “pequena” partida. Aceitem ou recusem esta explicação. Em todo caso, não tenho uma melhor.

     Houve então uma interrupção de dez minutos que quase se transformaram em vinte. As crianças, encantadas com nossa fraqueza, ficaram acordadas e souberam preencher este tempo agradavelmente. Voltaram a comunicar-se com a esfera popular, com Antonio, com Guiscardo, com o homem dos barquinhos. Gritavam aos pescadores depois de nos perguntarem as palavras em italiano: “Muitos peixes amanhã!” Gritavam para Mário, o garçom do “Esquisito”: “Mário, una cioccolata e biscotti!” Desta vez ele prestou atenção e respondeu sorrindo: Subito! Mais tarde tivemos razões para guardar a lembrança deste sorriso amável carregado de uma certa melancolia.

     O intervalo se passou assim. Depois o gongo tocou, o público parou de falar, recolheu-se à espera. As crianças instalaram-se avidamente em suas cadeiras, as mãos sobre os joelhos. O palco tinha ficado aberto. Cipolla apareceu com seu andar desengonçado e começou imediatamente um discurso de introdução à sua segunda série de experiências.

     Deixem-me resumir: este ser disforme, tão seguro de si, era o mais forte hipnotizador que já havia visto em toda a minha vida. Se havia jogado areia nos olhos do público quanto à natureza de suas representações, e se estava anunciado como mágico, era apenas com a finalidade de enganar a polícia, que proibia em princípio o exercício profissional de suas faculdades reais. Talvez esta camuflagem formal fosse usual em tais casos e oficialmente tolerada, ou tolerada em parte. Em todo caso, o mágico não havia feito muito mistério em torno da verdadeira natureza de seus talentos. A segunda parte de seu programa consistia inteiramente em experiências especiais que mostravam a supressão e a imposição da vontade.

     Numa longa série de experiências cômicas, emocionantes, espantosas, que a meia-noite ainda estavam no auge, assistiu-se a tudo o que pode oferecer este domínio inquietante da natureza. Desde os fenômenos mais insignificantes até os mais monstruosos. Os detalhes grotescos eram seguidos por um público feliz, que balançava a cabeça, aplaudia, batia nos joelhos, dominado por uma personalidade poderosa e segura. Entretanto, pareceu-me existir um certo sentimento de aversão por tudo o que havia de singularmente desonroso para cada um e para todos nos triunfos de Cipolla.

     Duas coisas ocupavam um papel importantíssimo nestes triunfos: o pequeno cálice reconfortante e o chicote em forma de garra. O cálice servia para atiçar seu poder demoníaco. Sem ele, estes poderes estariam ameaçados de esgotamento. Por um sentimento de humanidade poderíamos admitir o vício neste homem, mas só se não houvesse a outra coisa, o símbolo humilhante de seu domínio. Sua arrogância nos submetia a este chicote, que só dava lugar a um sentimento de submissão estupefata. Será que Cipolla sofria? Será que pretendia ter nossa compaixão também? Será que queria ter tudo?

     Uma palavra sua, que ficou gravada em minha memória, permitia supor uma ambição deste gênero. No ponto culminante de suas experiências havia posto em completo estado de catalepsia por passes e insuflações um jovem que se colocara à sua disposição, e que já tinha se revelado muito sensível a este tipo de influência. A catalepsia era tão completa que Cipolla pôde colocar este homem, mergulhado num sono profundo, sobre duas cadeiras. Seu corpo apoiava-se unicamente na nuca e nos pés, e Cipolla sentou-se sobre seu ventre sem vergar este corpo rígido.

     Era um espetáculo inacreditável e ignóbil; esta figura satânica em roupa de gala empoleirada neste corpo de madeira. O público apiedou-se, imaginando que a vítima deste divertimento científico devia sofrer: Poveretto! “Pobre rapaz!”, disseram algumas vozes caridosas. Poveretto!

     Cipolla zombou amargamente. “Vocês se enganaram de endereço, minhas senhoras e senhores, sono io il poveretto! Sou eu quem sofro com tudo isto.” Aceitou-se a lição. Cipolla podia comandar os divertimentos, podia em sua imaginação tomar para si as cólicas de ventre cujas terríveis contorções Giovanotto transmitia. Mas as aparências o contradiziam. Ninguém tinha vontade de dizer poveretto a alguém que sofre para tirar dos outros sua dignidade.

     Eu pulei diversas cenas, e negligenciei inteiramente a ordem de sucessão. Ainda hoje tenho a cabeça cheia de lembranças dos males que o cavaliere nos fez suportar, mas não sei mais como eles se apresentaram. Lembro-me, entretanto, que as experiências mais complicadas, as que tinham mais sucesso, me produziram menos impressão que outras menos importantes, que passavam depressa sem serem notadas. Pensei no jovem metamorfoseado em cadeira apenas pela reflexão que ele suscitou... Cipolla havia sugerido a uma senhora de uma certa idade, que cochilava no fundo de sua cadeira, a ilusão de que fazia uma viagem às Índias. Do fundo de seus transes ela contava com muita animação as aventuras que lhe aconteciam em mar e terra. Não achei esta cena tão formidável quanto uma outra que teve lugar imediatamente após o intervalo e que me preocupou muito mais; um homem grande e de forte compleição, com gestos militares, não pôde mais levantar o braço, simplesmente porque o corcunda lhe disse que não poderia mais fazê-lo. Um assobio do chicote havia acompanhado esta declaração. Ainda . tenho diante de mim o rosto deste colonello de grandes bigodes. Os dentes cerrados sob um sorriso, lutava para reencontrar a liberdade perdida: não dispunha mais de si próprio. Que fenômeno obscuro! Ele parecia querer e não poder. Mas sem dúvida não podia somente querer, sob o império desta prisão da própria vontade, que paralisa a liberdade e que nosso domador já havia predito ironicamente ao romano de ainda há pouco.

     Consigo me esquecer ainda menos do cômico, emocionante e fantasmagórico da cena com a Senhora Angiolieri. O cavalieri havia certamente adivinhado, desde seu primeiro olhar insolente sobre a sala, a fraqueza etérea desta mulher frente ao seu poder. Por puro feitiço, levantou-a literalmente da cadeira onde estava sentada, com seu marido, e levou-a para fora de sua fila. Cipolla pediu ao senhor Angiolieri que chamasse sua mulher pelo primeiro nome, para que o esposo colocasse na balança o peso de sua existência e de seus direitos, e para que sua voz despertasse na alma da companheira tudo o que pudesse proteger sua virtude contra o charme maléfico. Mas como esta tentativa foi vã! Cipolla, a alguma distância do casal, fez seu chicote assobiar uma vez. Nossa hostess estremeceu violentamente com este barulho e voltou seu rosto para o artista. Desde este momento o Senhor Angiolieri chamou: “Sofronia!” Nós ignorávamos que a senhora Angiolieri chamava-se Sofronia. Ele tinha razão de começar a chamá-la desde já, porque todos viam que a experiência era perigosa. O rosto de sua esposa não desviou-se do maligno cavalieri. Cipolla, o chicote suspenso, pôs-se a agitar seus dez longos dedos amarelados na direção da vítima, com um movimento de chamado magnético, recuando passo a passo. Madame Angiolieri levantou-se pálida de sua cadeira, virou-se inteiramente para Cipolla, e começou a segui-lo. Parecia flutuar como um fantasma. Que espetáculo misterioso e desolador! Com uma expressão de sonâmbula, os braços rígidos, suas belas mãos um pouco dobradas sobre os punhos, ela parecia deslizar lentamente ao longo da fileira, como se tivesse os pés acorrentados... e seguia o sedutor... “Chame, senhor, chame!” aconselhava o terrível Cipolla ao marido. E o senhor Angiolieri chamou com uma voz fraca: “Sofronia!”.

     Ah! chamou-a muitas vezes, e como ela se afastasse cada vez mais dele, colocou uma mão diante dos lábios, e lhe fez sinal com a outra gritando seu nome. Mas a pobre voz do amor e do dever era impotente. Madame Angiolieri continuava sempre de costas, já perdida. Fascinada, surda a qualquer chamado, deslizava com um passo sonâmbulo pela entrada da sala. Seguia o corcunda, que continuava mexendo os dedos, dirigindo-se para a porta da saída. Tinha-se perfeitamente a impressão de que teria seguido assim seu mestre até o fim do mundo, se ele tivesse querido.

   Accidente! O senhor Angiolieri, realmente assustado, soltou este grito e levantou-se de um pulo quando eles atingiram a porta da sala. Mas no mesmo instante Cipolla perdeu de alguma maneira o seu prestígio e interrompeu a experiência. “Isto basta, Signora, eu agradeço”. Enquanto a senhora Angiolieri, estupefata, voltava a si, Cipolla ofereceu-lhe o braço com um galanteio teatral para reconduzi-la ao marido. “Senhor, disse ele, eis aqui sua mulher! Eu a deposito intacta entre suas mãos, com meus cumprimentos. Guarde com todas as forças de sua virilidade um tesouro que é inteiramente seu. E para atiçar sua vigilância, lembre-se que existem forças mais fortes que a razão e a virtude e só muito excepcionalmente elas se encontram unidas a uma magnanimidade capaz de renúncia!”

     Pobre senhor Angiolieri doce e calvo! Não parecia capaz de defender sua felicidade, nem que fosse contra poderes menos demoníacos que os que uniam aqui a caçoada ao horror.

     Solene, inchado de orgulho, o cavaliere voltou ao estrado sob os aplausos dobrados por sua eloqüência. Graças sobretudo a esta última vitória se não me engano, havia aumentado sua autoridade a tal ponto que podia até fazer seu público dançar. Sim, dançar. É preciso entender a palavra em seu sentido próprio. Cipolla o fez dançar, efetivamente, e desde então, o estado de espírito degenerou de alguma maneira, os raciocínios se confundiram e as resistências do senso crítico, que haviam durante muito tempo se oposto à influência deste homem desagradável, se dissiparam numa espécie de embriaguez. Sem dúvida, foi preciso que ele travasse ainda um duro combate para que sua dominação fosse total. Foi contra a obstinação deste jovem senhor de Roma cuja rigidez moral ameaçava dar um exemplo público perigoso para a soberanidade de Cipolla.

     Cipolla não desconhecia a importância do exemplo. E sendo bastante esperto, escolheu como ponto de ataque a mais fraca resistência. Abriu a dança com o dócil adolescente que já havia colocado antes em catalepsia, criatura particularmente fraca. Mal o artista pousava os olhos sobre ele, já ficava com o rosto completamente transtornado, empinava bruscamente o busto, e com as mãos sobre a costura da calça, caía num estado de sonambulismo militar. Estava escrito em seu rosto que realizaria docilmente todas as bobagens que lhe fossem ordenadas. Parecia sentir-se feliz obedecendo cegamente, e não parecia chateado de desembaraçar-se de sua pobre independência. Porque ele sempre se oferecia para as experiências, e ficava visivelmente orgulhoso por ter adormecido e privado-se de sua vontade antes do que todos.

     Mais uma vez subiu ao estrado e apenas uma chicotada foi suficiente para que dançasse um “step” sob o comando do cavalieri. Isto é, para que lançasse seus membros desengonçados em todos os sentidos, balançando a cabeça, com os olhos fechados, numa espécie de êxtase.

     Via-se que sentia prazer, e outras pessoas não tardaram a juntar-se a ele. Dois jovens, um bem vestido, outro mais modesto, vieram executar o “step” ao seu lado. Foi neste momento que o senhor de Roma levantou-se e perguntou com altivez ao cavaliere se seria capaz de ensiná-lo a dançar mesmo contra a sua vontade.

     “Mesmo que você não queira!” respondeu Cipolla num tom de voz que nunca poderei esquecer. Tenho ainda este “Anche se nuou vuole!” no ouvido. E a luta começou. Cipolla, depois de ter tomado um pequeno cálice e acendido um novo cigarro, colocou nosso romano no caminho da entrada, o rosto voltado para a porta da saída. A alguma distância atrás dele, fez o chicote zunir comandando: Balla! Seu adversário não se mexeu. Balla! repetiu o cavaliere com força e o chicote estalou novamente. Vimos o jovem senhor agitar o pescoço dentro do colarinho, um de seus punhos se dobrou, um de seus sapatos virou-se para fora. Durante muito tempo ficamos com estes índices de uma tentação arrebatadora. Ora os sinais aumentavam, ora se atenuavam.

     Ninguém ignorava tratar-se de um caso em que era preciso vencer uma vontade preconcebida de resistência, uma heróica força de vontade. Este bravo senhor queria salvar a honra do gênero humano. Ele estremecia, mas não dançava. A experiência se prolongava tanto, que o cavalieri foi obrigado a dividir suas atenções. De vez em quando voltava-se para o estrado onde os três rapazes dançavam e fazia o chicote assobiar na direção deles, falando-lhes de lado, que estas pessoas não sentiriam depois nenhum cansaço, mesmo se dançassem por muito tempo, porque para falar a verdade, não eram eles que dançavam, mas sim Cipolla. Depois fixou novamente o olhar na nuca do romano para bloquear a força de vontade que resistia ao seu domínio.

     Nós a vimos fraquejar sob os golpes repetidos, sob as intimações encarniçadas. Assistimos à queda desta fortaleza com um interesse objetivo, misturado a diversos sentimentos, com uma compaixão e alguma satisfação cruel. Se compreendi bem, este senhor foi vencido por causa do caráter negativo de sua posição de combate. É verdade, a alma não pode viver de não querer. Não querer fazer alguma coisa é insuficiente para preencher uma vida. Não querer alguma coisa está bem próximo de não querer mais nada, e logo, de fazer assim mesmo o que uma outra vontade impõe. Estas duas idéias estão muito próximas uma da outra, e a idéia de liberdade encontra-se esmagada entre elas. Aliás, é neste sentido que entre uma ordem e uma chicotada, Cipolla falava. Para misturar aos seus poderes misteriosos uma ação psicológica desconcertante. “Balla! dizia ele. Quem se torturaria assim? Você está se violentando e chama a isso liberdade? Una ballatina! Todos os seus membros estão pedindo por isto. Como será bom deixá-los enfim realizar sua vontade! Mas pronto, você já está dançando. Não é mais uma luta, já é o prazer!”

     Com efeito, as contrações e os estremecimentos se acentuaram, ele levantou os braços, os joelhos, todas as suas articualções soltaram-se de uma só vez, seus membros se agitaram, ele dançava. E sob os aplausos do público, Cipolla conduziu-o assim sobre o estrado para colocá-lo ao lado dos outros fantoches. Pudemos então ver o rosto do vencido, lá do alto exposto ao público. Sorria largamente, os olhos semifechados, enquanto se “divertia”. Encontrava-se uma espécie de consolação ao constatar com toda a evidência que ele sentia-se bem melhor do que no tempo de seu orgulho...

     Podemos dizer que sua queda foi um marco na noitada. A partir deste momento, o gelo foi rompido. O triunfo de Cipolla atingiu seu apogeu. O reino da varinha de Circeu, deste chicote de couro leve, com o punho em forma de garra, não conhecia mais limites. Houve um momento, e já devia ser bem tarde, depois de meia-noite, em que oito ou dez pessoas dançavam no pequeno palco, mas na própria sala havia muita animação. Uma inglesa de lorgnon e grandes dentes saiu de sua fileira sem que o mestre nem mesmo tivesse se ocupado dela, e executava uma tarantela no caminho da entrada.

     Cipolla, entretanto, sentado negligentemente numa cadeira de palha à esquerda do estrado, tragava a fumaça de um cigarro e soprava-a com arrogância por entre seus dentes horríveis. Batendo com o pé, rindo de vez em quando com um movimento de ombros, contemplava a sala em desordem, e por momentos, sem nem mesmo se virar, estalava o chicote na direção de um dançarino cujo ardor parecia se relaxar.

     As crianças estavam acordadas. Sinto vergonha ao lembrar sua presença. Não era bom estar lá, e para elas menos ainda do que para qualquer um. E só posso explicar que nós não os tenhamos afastado neste momento de espetáculo por um certo contágio da despreocupação geral. Mas pelo menos, graças a Deus, elas não podiam sentir o caráter tirânico destes divertimentos. Sua inocência se maravilhava sem cessar com o fato de que lhe tivéssemos dado a permissão extraordinária de assistir a um espetáculo, a uma noite de mágicas. Haviam dormido de vez em quando uns quinze minutos sobre nossos joelhos. Agora, com as faces vermelhas, os olhos embriagados, riam de bom coração com os saltos que o mestre do espetáculo fazia as pessoas darem. Não tinham se prometido nada mais engraçado do que isto, e com suas pequenas mãos desajeitadas participavam alegremente de todos os aplausos. Mas, não se contiveram de alegria e pularam na cadeira, quando Cipolla fez sinal chamando Mário. Mário, do “Esquisito”. Cipolla lhe fazia sinal com o dedo, a mão diante do nariz, erguendo e dobrando o índex alternativamente.

     Mário obedeceu. Ainda o vejo montando os degraus do estrado, onde o cavaliere continuava fazendo sinal com o dedo, num gesto grotesco por sua perfeição exemplar.

     O jovem havia hesitado por um instante. Ainda me lembro bem. Durante toda a noite, os braços cruzados ou as mãos nos bolsos de seu casaco, ele ficara apoiado contra uma pilastra de madeira, no caminho lateral à nossa esquerda, no mesmo lugar onde se encontrava Giovanotto com sua cabeleira belicosa. Durante todo o tempo em que pudemos vê-lo, havia acompanhado o espetáculo atenciosamente, mas sem muita alegria. Só Deus sabe o que havia compreendido. Não lhe era nem um pouco agradável ser chamado para tomar parte nele ativamente. Entretanto, respondeu ao sinal de Cipolla e isto é fácil de ser entendido. Primeiro fazia parte de sua profissão. Além disso era moralmente impossível a um simples rapaz como ele desobedecer ao menor gesto de um homem que instalava-se em seu sucesso, como Cipolla o fazia neste momento. Com boa ou má vontade, afastou-se da pilastra, agradeceu as pessoas que em pé diante dele se afastavam para poder passar e montou no palco. Um sorriso cético bailava em seu lábios espessos.

     Imaginem um jovem de vinte anos, atarracado, os cabelos cortados rente, a fronte estreita, duas pálpebras muito pesadas sobre olhos de um cinza impreciso com manchas verdes e amarelas. Tenho certeza deste detalhe, porque havíamos falado freqüentemente com Mário. A parte superior de seu rosto, com o nariz esmagado, coberto de manchas vermelhas, estava em desacordo com a parte inferior, onde os lábios espessos dominavam, deixando ver seu dentes úmidos. Ao lado de seus olhos cerrados, esta boca exageradamente carnuda dava à sua fisionomia um ar de melancolia primitiva. Ela era a razão das gentilezas que tínhamos sempre para com Mário.

     Não podia-se falar de brutalidade em sua expressão. Isto seria contestado imediatamente pela rara fineza de suas mãos. Mesmo entre os Meridionais ficava-se espantado com sua distinção e todos gostavam de ser servidos por elas.

     Sem conhecê-lo pessoalmente, nós o conhecíamos como homem, se me permitem esta distinção. Víamos Mário quase todos os dias, e havíamos concebido um certo interesse por sua maneira de ser sonhadora, que degenerava facilmente em distração, corrigida numa transição rápida por uma cortesia apressada.

     Ele era sério, nada o fazia sorrir, se não fossem as crianças às vezes. Não que fosse ríspido, mas não era adulador. Ou melhor, renunciava à amabilidade, como se não tivesse nenhuma esperança de agradar. Teríamos ficado com a lembrança de Mário, mesmo em outras circunstâncias, como uma destas insignificantes lembranças de viagem, que às vezes guarda-se melhor do que outras mais consideráveis. Mas não sabíamos nada de sua vida, a não ser que seu pai era funcionário no Município e sua mãe lavadeira.

     Mário ficava melhor com sua roupa de garçom do que com este terno gasto, feito de uma fina fazenda listrada, que usava hoje. Em torno do pescoço não tinha um cachecol, mas um lenço de seda com as pontas para dentro do casaco.

     Mário aproximou-se do cavaliere, mas este não deixou de mexer o dedo diante de seu nariz, de tal maneira que o rapaz teve que chegar ainda mais perto, ao lado das pernas do mestre todo-poderoso, contra a cadeira. Cipolla, empurrando-o com os cotovelos separados, colocou-o de maneira que pudéssemos ver seu rosto. Examinava-o de alto a baixo, desdenhosamente, com um ar superior e divertido.

     “Mas como, ragazzo mio! dizia ele, só tão tarde nos conhecemos? Entretanto, você pode acreditar que eu te conheço há muito tempo... É verdade, há muito tempo que meus olhos te encontraram e eu me dei conta de tuas notáveis aptidões. Como então pude te esquecer? Eu sou tão ocupado, você sabe... Diga-me, como se chama? Só te peço o primeiro nome”.

     — Eu me chamo Mário, respondeu docemente o rapaz.

     — Ah! Mário, muito bem. Mas é um nome muito encontrado. Um nome muito conhecido. Um nome antigo. Um nome que mantém despertas as tradições da Pátria. Bravo! Salve.” E ele fez a saudação romana, apesar do seu ombro torto, levantando obliquamente o braço estendido, a mão rígida. Se estava um pouco bêbado, não era de se espantar. Mas falava, assim como antes, com um acento claro e com facilidade. Entretanto, neste momento introduziu-se em sua atitude e também no tom de suas palavras alguma coisa de repugnante, alguma coisa como um pacha que saciou sua fome. Uma mistura de sem-cerimônia grosseira e de presunção.

     “Muito bem, Mário, prosseguiu ele, você fez muito bem em ter vindo esta noite, e também em ter posto um lenço tão elegante, que combina maravilhosamente com seu rosto e que deve lhe valer muitos sucessos perto das meninas, destas adoráveis jovens de Torre di Venere...”

     Dos lugares populares, mais ou menos perto de onde Mário estivera, soou uma gargalhada. Era Giovanotto com sua cabeleira guerreira. Em pé, o casaco jogado no ombro, zombava de Mário brutalmente, com uma insolência cruel.

     Mário deu com os ombros, creio. Em todo caso estremeceu. Talvez tenha realmente tido um sobressalto, que transformou neste movimento de ombros, para mostrar que o lenço, assim como o sexo frágil, lhe era indiferente.

     O cavaliere deu uma olhada rápida pela sala. “Não nos inquietemos com ele, disse, tem ciúmes. Talvez seja o sucesso do seu lenço perto das garotas, ou talvez porque nos entendamos tão amigavelmente você e eu... Se ele quiser, posso lembrar-lhe a cólica. Não me custa nada. Diga-me, Mário: esta noite você se distrai... e durante o dia, você serve os clientes numa mercearia?

     — Num café! corrigiu o jovem.

     — Num café! Viu como Cipolla chegou perto? Você é um camarieri, um copeiro, um Ganimedes. Mais uma lembrança antiga, salvietta” Dizendo isto, o cavalieri estendeu o braço para saudar novamente.

     O próprio Mário sorria. “Mas antigamente, reconheceu ele por honestidade, servi algum tempo em Porto Clemente numa loja.” Em sua observação havia um pouco deste desejo das pessoas a quem se leu a sorte e que querem ajudar a adivinhação a ganhar um pouco de verdade.

     — “Ah! Era numa mercearia?”

     — Havia pentes e escovas, replicou Mario evasivamente.

     — Eu não disse que você não havia sido sempre um Ganimedes, que não teve sempre o guardanapo sobre o braço? Mesmo quando Cipolla não acerta em cheio, o faz de uma maneira que inspira confiança. Diga-me, você tem confiança em mim?”

     Movimento indeciso.

     “Você responde pela metade, constatou o cavaliere. Sem dúvida é difícil ganhar sua confiança. Até eu, estou vendo, não consigo assim tão facilmente. Observo em seu rosto uma marca de reserva, de tristeza, um tratto di malincolia... Diga-me — e com um gesto persuasivo pegou a mão de Mário — você sofre?

     — Nossignore! respondeu Mário muito rápido e categórico.

     — Você sofre, insistiu o mágico, afirmando isto com autoridade. Pensou que eu não veria? Tenha confiança em Cipolla! Naturalmente é por causa de garotas. Por causa de uma garota. Você sofre por amor.”

     Mário negava energicamente com a cabeça. Neste momento soou novamente perto de nós o riso brutal de Giovanotto. O cavalieri escutou. Seus olhos erravam no ar, mas ele prestava atenção a este riso. Como já havia feito uma ou duas vezes durante sua conversa com Mário, estalou o chicote um pouco para trás, na direção de seus bailarinos, para alimentar a dança. Mário aproveitou para fugir. Com um pulo afastou-se do mágico e chegou até a escada. Tinha uma mancha vermelha em torno dos olhos. Cipolla mal teve tempo de agarrá-lo.

     “Alto lá! disse ele. Não tem graça! Queria fugir, Ganimedes, no melhor da festa? Ou um pouco antes do melhor da festa? Eu lhe prometo coisas maravilhosas, já que você fica. Eu prometo lhe convencer de que sofre à toa. Esta jovem que você conhece e que outros também conhecem, como se chama ela? Espere! Eu leio o nome em seus olhos, eu o tenho na ponta da língua, e você também está quase pronunciando-o...

     — Silvestra! gritou Giovanotto.

     O cavaliere nem piscou.

     “Existem pessoas impertinentes que falam a torto e a direito, disse olhando para a sala, e prosseguindo tranqüilamente seu diálogo com Mário. Existem galos extremamente impertinentes que cantam por qualquer coisa! Eis que nos toma o nome dos lábios. E o pretensioso ainda acredita ter direitos particulares sobre ele. Não devemos ligar. Mas Silvestra, sim, a tua Silvestra, diga-me, é uma bela garota, não? Um verdadeiro tesouro! Seu coração bate quando a vê andar, respirar, rir. Ela é tão encantadora! E seus braços roliços, quando lava a roupa e joga a cabeça para trás, para expulsar os cabelos de sua fronte! Um anjo do paraíso!”

     A cabeça inclinada para a frente, Mário olhava-o fixamente. Parecia ter esquecido sua situação, ter esquecido o público. As manchas vermelhas aumentaram em torno de seus olhos. Pareciam pintadas. Raramente vi este fenômeno. Seus lábios espessos continuam entreabertos.

     “E ela te faz sofrer, este anjo, continuou Cipolla. Ou melhor, é ela quem sofre por você... Esta é uma grande diferença, meu caro, uma diferença essencial, acredite em mim! Em amor acontecem mal-entendidos. Pode-se mesmo dizer que o amor é o elemento predileto dos mal-entendidos. Você vai perguntar o que Cipolla pode entender de amor, com sua pequena enfermidade. Mas você se engana. Cipolla entende muito mesmo. Ele tem sobre o amor conhecimentos extensos e profundos e vale a pena escutá-lo. Mas deixemos Cipolla de lado, não se trata dele. Vamos pensar apenas em Silvestra, em tua adorável Silvestra. Como? Ela iria te trocar por qualquer galo tagarela, que poderia rir quando você choraria? Ela te desdenharia, a ti, um rapaz tão sentimental e tão simpático? É pouco provável. É impossível. Não somos tão bobos, eu e ela. Se me coloco no lugar de Silvestra, se tiver que escolher entre um grosseiro sujo de breu, como este pescador de peixe salgado, e um Mário, que evolui entre pessoas de alta classe, que oferece com talento bebidas aos estrangeiros e que me ama com um sentimento ardente e profundo, eu juro, meu coração não hesita. Sei bem a quem oferecê-lo. Já lhe dei meu coração há muito tempo, a ele só. Já é tempo que Mário saiba e compreenda, o eleito de minha alma! É preciso que você me veja e me reconheça, Mario, meu querido... diga, quem sou eu?”

     Era abominável. O impostor se tornava gracioso. Remexia seus ombros disformes coquetemente. Tornava ternos seus olhos envelhecidos. Mostrava seus dentes estragados num sorriso açucarado. Oh! Mas o que aconteceu com nosso Mário, enquanto Cipolla ofuscava-o com suas palavras? Sofro ao dizer, como sofri ao vê-lo. Porque foi a prostituição dos segredos mais íntimos. A exposição pública de uma paixão desesperada que uma felicidade ilusória embriagava. Tinha as mãos juntas diante de sua boca, seus ombros levantavam-se e abaixavam-se numa respiração violenta. Com certeza, em sua alegria, não podia acreditar em seus olhos e suas orelhas. Mas esqueceu-se de uma coisa apenas, precisamente o que não podia esquecer: que não devia confiar em seus olhos e suas orelhas. Subjugado, suspirou do fundo do coração, num sopro fervente: “Silvestra!”

     — Beije-me! dizia o corcunda. Pode me beijar, acredite. Eu te amo! Beije-me aqui!” E afastando o braço, a mão e o pequeno dedo, mostrava sua face, perto da boca, com a ponta do índex. E Mário se inclinou e lhe deu um beijo.

     A sala havia ficado em silêncio. Este instante era grotesco, monstruoso e apaixonante. Este instante em que Mário foi feliz. Durante este momento angustiante, em que todas as relações de felicidade e ilusão se impunham ao pensamento, ouviu-se, não imediatamente, mas desde a união repugnante e triste dos lábios de Mário com a pavorosa carne que se oferecia por engano à sua ternura, ouviu-se à nossa esquerda o riso de Giovannoto. Brutal, cruel, este riso isolado atravessou a ansiedade geral. E entretanto, se não me engano inteiramente, ele era acompanhado em surdina de alguma piedade pelo rival infeliz perdido pelo sonho. Havia talvez o eco deste mesmo grito de Poveretto! que o mágico se atribuíra ainda há pouco declarando que o público havia se enganado de pessoa.

     Mas, enquanto o riso ainda ecoava, Cipolla estalava seu chicote, em direção ao solo, ao lado do pé da cadeira.

     Mário acordou, endireitou-se e recuou com um pulo. Ficou um momento imóvel, o olhar fixo, o corpo tenso, apertando com suas duas mãos superpostas os lábios profanos. Depois, estapeou o rosto diversas vezes com os punhos, deu meia volta e precipitou-se escada a baixo sob os aplausos do público, ao mesmo tempo em que Cipolla, com as mãos sobre o regaço, ria sacudindo-se todo. Lá embaixo, correndo sempre, Mário revira bruscamente, ergue rapidamente o braço e dois tiros ecoam, entre os aplausos e risos.

     Em seguida, faz-se silêncio. Até mesmo aqueles que se agitavam no palco, detêm-se pasmados, com os olhos esbugalhados. Cipolla dera um pulo de sua cadeira. De pé, abria os braços em atitude de defesa; parecia querer gritar: “Basta! Silêncio! Afastem-se de mim. O que é que há?” Ao fim de algum tempo ele recaiu sobre a cadeira, a cabeça sobre o peito, deixando-se escorregar em seguida para o chão, aonde permaneceu imóvel: o que ali se estendia nada mais era do que um pacote de ossos contorcidos, e de roupas disformes.

     O tumulto ultrapassou toda a expectativa. As senhoras presas por convulsões escondiam o rosto sobre o peito dos homens que as acompanhavam. Gritava-se. Pedia-se um médico. Chamava-se a polícia. O tablado era invadido. Na confusão Mário foi bruscamente desarmado; arrancaram-lhe da mão o mecanismo de metal, pequeno, liso, assemelhando-se pouco a uma pistola, cujo cano quase inexistente dera ao destino um curso tão imprevisto e singular.

     De lá contudo — nós retiramos as crianças; no momento em que as arrastávamos para a saída chegavam dois policiais. A fim de se assegurarem de que era realmente o momento de ir embora, elas indagavam: “é verdade que acabou?” “Sim era o fim.” Um fim impressionante, um fim funesto. E contudo, este fim era uma liberação — não pude me defender desta impressão, e ainda hoje a experimento.

    

                     EXPERIÊNCIAS OCULTAS

   O mundo está cheio de problemas intelectuais, artísticos, morais e sociais. Sua elucidação talvez permitisse ao escritor ou ao orador um reconhecimento público. A dignidade e importância destes problemas recairia sobre aquele que os trata. E eu ouso apresentar-me a vocês com um assunto que sou forçado a chamar de fantástico, aberrante, escabroso de alguma maneira. Sua escolha me valerá certamente o desprezo escandalizado de quase todos vocês. Mas podemos escolher nosso assunto? Não, escrevemos e falamos do que nos inspira um interesse apaixonante, e não de outra coisa, mesmo que o objeto de nossa atenção seja útil.

     Para mim, a noção do que é respeitável é atrapalhada por impressões de natureza muito complexa: experiências e observações pessoais que são absurdas e inexplicáveis, a um tal ponto, (se é que existe qualquer espécie de graduação no inexplicável) que não posso tomar um partido.

     Sinto-me, agora pelo menos, perdido, incapaz de me consagrar a temas provenientes de uma esfera mais pura, mais sã, embora mais refinada, da razão humana, com os quais talvez merecesse a consideração de vocês. Digo “sinto-me perdido”, porque na verdade, positivamente, uma espécie de perdição emana deste mundo que obceca meu pensamento, o domínio da vida sem dúvida pouco profundo mas subterrâneo, tenebroso e ilusório, com o qual estabeleci relações, um pouco inconseqüentemente. Há uma tentação de escapar a tudo o que me caberia em proveito de coisas que não deveriam me dizer respeito. Mas elas exercem sobre minha imaginação e meu espírito uma atração tão viva, tão enganadora que compreendo que se possa ceder a elas de uma maneira culposa. E de tanto mergulhar nelas, numa loucura monomaníaca e vã, estou irreparavelmente perdido para o mundo mora! e superior.

     É um fato. Caí entre as mãos dos ocultistas. Não precisamente dos espíritas, embora alguns se encontrassem, creio, na reunião de que participei há pouco. Mas de qualquer maneira, convém estabelecer aqui uma distinção. A doutrina espírita não é obrigatória para a comunidade internacional dos sábios, que não é mais uma ínfima minoria, e cujos membros são chamados de ocultistas, porque se entregam a estudos de fenômenos que por enquanto parecem escapar às leis da ordem natural conhecida. E mesmo, muitos dentre estes pesquisadores, por um gesto de solidariedade e de rigor científico, rejeitam esta maneira “de explicar” certos enigmas, ou seja, a teoria espírita. Entretanto, é preciso reconhecer, o instrumento de que se servem para provocar os fenômenos ocultos é a constituição supranormal ou, em todo caso, anormal de certos indivíduos (que geralmente não são de um nível particularmente elevado). E o sonambulismo daqueles que são chamados médiuns roça a cada instante o piano transcendente e metafísico. Mas, que fique claro, a metafísica não é espiritismo, e sobretudo, o espiritismo não é metafísica. Há uma diferença de nível tão grande que constitui uma diferença essencial e compreende-se muito bem que a filosofia metafísica procure manter o espiritismo à distância. Na verdade, o espiritismo, a fé nos espíritos, nos fantasmas, nos espectros, com os quais comunica-se através de uma mesa, para obter como respostas os maiores disparates, é uma espécie de metafísica para empregada doméstica, uma fé de carvoeiro, tão pouco à altura de um pensamento especulativo idealista quanto da embriaguez do sentimento metafísico. Uma obra-prima do pensamento metafísico é o Mundo como vontade e representação. Possuímos a obra de arte metafísica em Tristão e Isolda de Wagner. Basta nos lembrarmos de intuições tão elevadas para fazer compreender a lamentável indignidade do que se chama espiritismo. Ele é tão metafísico quanto uma distração dominical para cozinheiras.

     Mas a dignidade humana é um critério da verdade? Sim, num certo sentido. Ouvi um homem, cujos atos e esforços evoluem no limite do domínio oculto, M. Krall d'Eberfeld, célebre por seus alunos, os “cavalos calcula-dores”, dizer: “Se existem espíritos, temos motivos para desejar viver por muito tempo, porque não há nada mais pueril e absurdo, confuso e digno de pena, do que a forma de existência destes seres, a julgar por suas pretensas manifestações”. Isto lembra a célebre apóstrofe da Sombra de Aquiles, nas margens cirenaicas, a propósito da sessão espírita de Odysseus. Ele chama a existência dos defuntos “um nada privado de sentido”, e o espírito pagão podia, aliás, entreter estas visões da vida depois da morte, sem por isso deixar-se desconcertar pela vida como verdade, artigo de fé, realidade. Ao contrário, o espírito do homem nascido sob o signo de Cristo terá dificuldades em admitir um além onde tudo se passaria de uma forma ainda mais estúpida, inútil e miserável do que no plano conhecido por nós. E, se um espírito se apresenta numa sociedade humana através da mesa, dizendo-se espírito de Aristóteles ou Napoleão Bonaparte, o que não é raro, a inexatidão mentirosa de seus ditos encontra-se confirmada por cem absurdos, tiradas devidas à ignorância, ou cascatas de charlatão. Neste caso, um pouco de bom gosto seria suficiente para nos convencer de que não somente este espírito não é Aristóteles nem Napoleão, mas que ele não é absolutamente nada. Ele finge ser, e deixar-se levar por um tal comportamento estaria abaixo de qualquer dignidade humana.

     Mas uma dúvida continua substindo: devemos nos perguntar se as noções de dignidade e de bom gosto prevalecem quando se trata de ciência, de exploração da verdade, logo deste processo que permite à natureza explorar-se através do homem. A dignidade existe apenas na esfera do espírito puro, de que faz parte a metafísica no sentido de uma especulação do conhecimento transcendente teórico. Mas se a metafísica torna-se empírica, se tem a condescendência, ou começa a sentir a obrigação, ou cede à tentação de descobrir experimentalmente o segredo do universo, (e é isto que ela faz no ocultismo, que é uma metafísica empírica experimental), ela deve perder as esperanças de conservar as mãos puras, ou uma atitude digna, com exceção daquele que em qualquer circunstância continua a serviço da verdade. Ela deverá estar preparada para a lama e a loucura. Com efeito, no espiritismo e no sonambulismo, a fonte dos fenômenos ocultos, e o segredo da vida orgânica se misturam aos segredos sobrenaturais, e esta mistura é perturbadora. Não se trata mais de espírito, de nível, de gosto. Não se trata de nada que seja belo em sua audácia. É a natureza que está em jogo, e no seu elemento impuro, grotesco, mau, demoniacamente equívoco. Em face disto, o homem, de espírito orgulhoso, levado por sua essência a emancipar-se e a lutar contra a natureza, adota uma atitude nobre, colocando sua dignidade específica no esquecimento do fato de que continua sendo um filho da natureza assim como um filho do espírito.

     Separar a metafísica do ocultismo, por razões humanas, seria contestar segundo uma hierarquia medieval toda dignidade e toda importância humana ao estudo da natureza e à ciência da natureza.

     Como se a ciência exata da natureza não chegasse a um ponto em que seu encontro com a metafísica torna-se inevitável!

     Mesmo que eu não saiba e não compreenda grande coisa da teoria do ilustre Senhor Einstein (com exceção, talvez, de que as coisas possuem uma “quarta dimensão”, a do tempo), isto não me impede, assim como a qualquer outro profano inteligente, de notar que nesta teoria o limite entre a física matemática e a metafísica tornou-se fluido. Será física ou o que será quando se diz hoje em dia que a matéria, definitivamente, não é material, que ela é apenas uma forma visível de energia e que suas mais ínfimas partículas (que aliás não são nem pequenas nem grandes) ainda que envolvidas em campos de força situados no espaço e no tempo, são elas próprias intemporais e extra-espaciais?

     Chega de teorias! Passemos às minhas experiências... Elas têm como ponto de partida a amizade que fiz com um homem, recentemente ainda, sobre quem as opiniões diferem. Muitos o tomam por um charlatão, um impostor, e outros vêem nele um eminente pesquisador, co-iniciador de uma nova ciência. É o doutor Albert, barão von Schrenk-Notzing. Médico, especialista de doenças nervosas, pesquisador da sexualidade, chegou cedo (há mais de trinta anos) aos estudos ocultos pela via do hipnotismo e do sonambulismo. Parece ter tido, durante um certo tempo, uma inclinação para o espiritismo. Hoje em dia ele rejeita esta teoria, e para explicar o inexplicável que suscita e observa, refere-se a forças naturais desconhecidas mas que vão sendo desvendadas pouco a pouco.

     A publicação de seu livro Fenômenos de materialização, alguns anos antes da guerra, provocou um escândalo público. Do mundo científico oficial partiu uma onda de protestos contra tantas divagações, tanta credulidade, diletantismo e charlatanismo. O público riu às gargalhadas. Na verdade, este livro coloca nosso lado sério a rude prova, tanto por seu texto quanto por suas ilustrações. Fotografias grotescas, fantásticas e absurdas. Muitos falaram que o doutor von Schrenk havia sido enganado, o que aconteceu mais de uma vez provavelmente. Por infelicidade, a disposição mediúnica, por mais autêntica que seja, não somente não prova em nada que sejamos isentos de defeitos horríveis, mas também, parece, favorece precisamente uma tendência a mistificar, e o talento para triunfar nesta mistificação. Em todo caso, tivemos por muito tempo a impressão que Schrenk-Notzing estava irremediavelmente perdido como sábio.

     Os anos se passaram. Veio a guerra, e com ela mudanças e aventuras inusitadas. O segundo volume de Fenômenos de Materialização encontrou uma atmosfera bastante mudada. Não que seu conteúdo fosse menos extravagante que o do precedente, ou que a ciência oficial, a imprensa, o público lhe tivessem reservado uma melhor acolhida. A zombaria e o insulto estiveram presentes. Mas tanto um quanto outro pareciam menos violentos, de uma segurança menos beata do que antes e havia uma nuance de resignação e de tolerância fatalista.

     Teve-se que aceitar tantas coisas insuspeitadas, sofrer tantos acontecimentos brutais, que a indignação que todos esforçavam-se para manifestar, apesar de tudo, carecia do “élan” desejado; podia-se até sentir uma inegável inclinação a pactuar,

     Como em política, existe nas ligações da ciência com o ocultismo uma direita e uma esquerda, uma opinião e uma vontade rigidamente conservadoras e uma tendência radical revolucionária, ao lado de numerosas transições e nuances entre os extremos: de um lado, uma negação obstinada de qualquer fenômeno que escapa a uma explicação racional, mas que é sempre assinalada e atestado por testemunhas, assim como a telepatia, os sonhos premonitórios e a segunda visão. De outro lado, uma credulidade fanática, isenta de crítica, repousando muito mais sobre um ódio desumano da razão e da ciência do que sobre um respeito racional diante do mistério.

     De qualquer forma, no ocultismo como em política, a atitude conservadora intransigente tem seu lado bom, porque entre a direita e a esquerda estende-se um plano oblíquo, sobre o qual escorrega-se facilmente. Admitir a veracidade de um simples fato oculto significa estender seu pequeno dedo a um demônio que certamente agarrará a mão toda. Principiis obsta! Entretanto, é indiscutível que hoje em dia um perigoso liberalismo começa a penetrar no campo da ciência ortodoxa, na Alemanha. A Alemanha, que podia ser considerada, até hoje, como a capital do conservadorismo sob este aspecto. No estrangeiro, na Inglaterra, na França, a tolerância já havia se estabelecido há muito tempo. Não falarei da América, onde, sem necessidade, muito charlatanismo parece ter se misturado às ciências ocultas. O fato de que Fenômenos de materialização, de Schrenk-Notzing, tenha sido traduzido para o inglês, não deixou de produzir uma certa impressão entre nós. Não mais do que o fato de que a Society for Psychical Research tenha feito ir a Londres, há dois anos, a médium que havia servido para suas primeiras experiências, uma mulher chamada Eva C..., e tenha feito um relatório das sessões com esta pessoa. Ou que sábios franceses como Richet, Flammarion, Gustave Geley, o doutor Bourbon e outros tenham sustentado Schrenk-Notzing em suas audácias, verificado suas experiências, confirmado seus resultados. Resumindo, um ligeiro abalo, uma certa desmoralização de nossa falange conservadora “céptica” pode ser constatado, sem dúvida. Existem traidores. Traidores ocultos, até o dia em que se tornam traidores públicos. Existem professores de universidade (e não somente filósofos e psicólogos, mas também professores de ciências naturais, físicos, biólogos e médicos) que se aproveitam, como fugitivos que são, da iluminação insuficiente das ruas de Munique e, encasacados, deslizam clandestinamente em direção às ciências noturnas do doutor von Schrenk, a fim de assistir a um espetáculo incongruente para eles. Entretanto, eles deveriam saber, e aliás o sabem, que o único meio de se conservarem intactos consiste em fechar os olhos e não ver. Estamos perdidos, ou melhor, o cepticismo começa a partir do instante em que se vê. Tenho exemplos. Um oculista de Munique, bastante conhecido, declarou publicamente que depois do que viu na casa de Schrenk-Notzing “tornou-se muito prudente no cepticismo”. Uma bela palavra, aliás as palavras mais inquietantes são as mais bonitas. Com efeito, só é um verdadeiro cepticismo aquele que se volta igualmente contra si próprio. E um céptico, sempre me pareceu, não é em suma aquele que só crê nas verdades estabelecidas e desvia os olhos de tudo que poderia colocar sua virtude em perigo. Mas aquele que (para falar numa linguagem popular) acredita que muitas coisas sejam possíveis, e se for o caso, não renega o testemunho de seus sentidos lúcidos por razões de conveniência.

     Quanto a mim, durante toda a vida, coloquei-me bastante “à esquerda” em matéria de ocultismo. Acreditava na possibilidade de coisas as mais diversas, sem ter entretanto nenhuma experiência no domínio sobrenatural. Meu interesse consistia numa simpatia teórica que não ia mais longe do que isto. É claro, eu sentia e exprimia, de vez em quando, o desejo de assistir a uma sessão, mas nunca aconteceu nada, e a culpa só podia ser minha.

     Mas recentemente... Deixem-me contar como aconteceu. Anunciaram-me uma visita, um senhor, um pintor, desenhista, que um jornal humorístico havia encarregado de fazer minha caricatura. Pois não. Ele desenhou-me um nariz de tucano, e uma palavra puxando outra, não sei como chegamos a falar do Doutor von Schrenk-Notzing. Enquanto ia me ridicularizando com a ponta de seu lápis, perguntou-me se eu já sabia que o barão estava trabalhando com um novo médium. Era, disse-me ele, um jovem, quase um adolescente, chamado Willi S., mecânico de seu estado, e ao mesmo tempo um famoso brincalhão no domínio da física, com quem Schrenk obtinha fenômenos absolutamente inusitados. O barão o havia descoberto, feito vir a Munique, havia lhe assegurado um lugar para dormir e uma ocupação profissional. Além disso, havia depositado uma soma para ele, com a única condição de que Willis, ao contrário da maioria dos médiuns, tolerasse nas sessões uma perpétua mudança de participantes, sem quase nunca decepcioná-los. Schrenk dava muita importância a isto, por razões de propaganda. Será que se poderia assistir alguma sessão? perguntei. O pintor não considerava isto como impossível. Ele conhecia Schrenk e tinha pessoalmente o mesmo desejo. Se eu lhe desse carta branca, ele conseguiria minha admissão.

     E assim foi. Marcamos encontro por telefone, e numa noite de inverno, às oito horas, um pouco antes do Natal, encontrava-me no metrô com meu caricaturista a caminho da sessão. Nós dois estávamos superexcitados, curiosíssimos, nossos sentimentos encontravam-se a meio caminho da exaltação e do nervoso. Desculpem-me a comparação, mas lembrava-me um pouco o estado de espírito dos jovens ao se prepararem para fazer uma primeira visita a uma mulher.

     A mansão do barão von Schrenk está situada num bairro residencial da cidade, perto de Karolinenplatz. À nossa chegada, um lacaio nos fez atravessar um vestíbulo de mármore e subir alguns degraus até uma ante-sala. Enquanto tirávamos nossos sobretudos, o dono da casa desejou-nos boas-vindas com esta amabilidade um pouco distante dos aristocratas, e em seguida nos fez entrar na biblioteca de tamanho médio, onde já se encontravam reunidos os outros participantes da sessão. Conhecia apenas um deles. Saudei-o reprimindo meu espanto de encontrá-lo aí. Era o professor C, zoólogo e desportista ardente, esquiador, navegador à vela e alpinista. Imberbe, de aparência jovem, embora tivesse certamente quarenta e cinco anos. Um homem dos bosques e do ar puro. Jamais teria pensado que ele tentasse atingir o desconhecido.

     As apresentações continuaram. Tive o prazer de conhecer Emmanuel Reicher, o célebre ator e traço de união com a América, que passava uns dias na Alemanha. A mãe adotiva do médium, uma mulher de meia idade chamada Senhora P., estava igualmente presente. E também um pintor polonês, louro, sem barba e que falava com um acento duro mas com uma voz quente. Depois um e outro membro da esfera intelectual de Schwabing. O elemento da medicina e das ciências naturais equilibrava provisoriamente o elemento intelectual profano. Havia também um segundo professor de zoologia. Um tipo de sábio quieto e nada social. Um jovem médico suíço. Um outro médico alemão, ainda jovem, assistente numa clínica de Munique, que havia trazido um tensiômetro e uma especialista de “relaxamento dos nervos” loura e alegre... Muitos vinham pela primeira vez. Reicher também, que aliás não parecia ser um estrangeiro para o domínio oculto, mas simplesmente estrangeiro no círculo.

     O médium, Willi, estava um pouco afastado. O barão apresentou-me a ele como sendo o convidado de honra, com a intenção manifesta de impressionar o amor-próprio e o humor do jovem rapaz. É o convidado de honra, saiba disso”, repetiu o barão, e solicitou uma acolhida amigável para seu caro médium dotado de uma vida orgânica tão inquietante. Como se fosse necessário no meu caso! Minha boa vontade já lhe era dada sem restrições, e fiz com que ele soubesse disso. Assegurei-lhe também que em minha pessoa não encontraria nenhum inimigo, nenhum observador mal-intencionado, nenhum céptico do gênero daqueles que sonham em desmascarar uma fraude em um flagrante delito com gritos de triunfo. Eu era um céptico “positivo”, um céptico que sentiria prazer se a experiência desse certo. Era preciso que ele soubesse. Uma ilusão? Entre a ilusão e a realidade existem muitos graus intermediários, e em algum lugar eles formam apenas um. Será que se tratava de uma mistificação da natureza que também poderia ser qualificada de realidade? Eu tinha vindo sem nenhum partido tomado, para ver tudo o que pudesse ser visto — nem mais nem menos. Troquei algumas palavras com Willi S., para fazer uma idéia de sua personalidade. Encontrei um rapaz de dezoito ou dezenove anos, moreno, baixo, simpático e sem nenhum sinal distintivo, de origem modesta, exprimindo-se num dialeto alemão do sul, misturado com austríaco. De aspecto decente, amável, não parecia ter nenhuma necessidade de seduzir por uma polidez: solícita e volúvel. Monossilábico em suas respostas a questões práticas, parecia estar num estado de tensão e de emoção reprimidas, sentir um certo pânico que se juntava à timidez natural de sua juventude.

     Deixei Willi, que era convidado pelo jovem clínico a utilizar seu tensiômetro, e fui inspecionar o laboratório a pedido do barão. Era uma grande sala, cheia de aparelhos fotográficos e flashes, de cadeiras, de mesas, e de muitos outros objetos. Por exemplo, uma caixa de música, uma campainha de mesa, uma máquina de escrever, numerosos anéis de feltro branco. Estas coisas de caráter banal em si, que serviam ao jovem Willi em suas estranhas proezas, encontravam-se espalhadas. Via-se também uma espécie de gaiola de finas barras de ferro, onde haviam prendido às vezes o adolescente, numa sessão crítico-científica particularmente rigorosa, sem com isso ter conseguido que os fenômenos inexplicáveis deixassem de se produzir. Finalmente, havia o “gabinete negro”, ao qual estavam ligados tantos murmúrios e tantas dúvidas. Olhei para dentro dele. O que vi era bastante prosaico: uma mistura de coisas sem interesse amontoava-se atrás da cortina que descia do teto, separando este canto da sala do resto. O doutor von Schrenk declarou que não precisaríamos do gabinete. Willi não precisava dele. Era forte. Continuava sentado em liberdade na sala durante suas performances. Era melhor que fosse assim. Meu cepticismo positivo com algum esforço teria aceito o gabinete, mas era bem melhor que Willi fosse forte. Voltamos para a biblioteca. Do outro lado, ela unia um escritório com o quarto onde Willi fazia a toilette para sua sessão.

     Ele não fazia esta toilette sozinho, Deus me livre! Ele a fazia sob o controle de três pessoas. Sob a vigilância de Argus, o dono da casa, e dois assistentes. Doutor Schrenk designou-me para este cargo como “diretor das experiências” juntamente com a alegre neurologista. Aceitei. Entretanto, não me achava qualificado para o cargo. Sentia-me inclinado a uma tolerância total para tratar este controle como uma simples futilidade. O papel de observador desconfiado não é meu forte. Ele me humilha e repugna a meu humanismo. Ninguém pode esperar que as pessoas mostrem seu melhor lado se pressupõe-se sua má fé. Como poderia tranqüilizar o humor deste jovem prestes a praticar atos singulares com sinais de desconfiança? Sou um céptico que deseja que alguma coisa aconteça, mas talvez seja este o cepticismo mais profundo, mais extremo. Quem sabe se com minha tolerância e minha boa-vontade eu era no fundo o mais incrédulo de todos? No momento isto pouco importa. Acostume-se, meu amigo, eu olho como um espectador.

     O barão designou-nos uma malha negra, que devia cobrir Willi dos tornozelos aos pulsos. Pediu-nos que o submetêssemos a um exame minucioso, que apalpássemos a malha. Uma malha de lã. Bom. Não descobrimos nada suspeito e Willi cobriu com ela seu corpo moreno de adolescente. Surpreendi um olhar tímido e grave que lançou à minha colega, a médica loura, enquanto vestia a malha. Mas com esta simples malha ele sentiria frio, então lhe deram um quimono. Um velho quimono macio, de seda, que pertencia ao barão. Uma roupa confortável que também inspecionamos, conscientemente, dos bolsos à bainha. Um velho e bravo quimono, nada a objetar. Entretanto, ele apresentava uma particularidade que o barão nos explicou. Era cheio de fitas, ao longo das costuras, nas mangas, em tudo. E eram galões luminosos. Eles estavam embebidos com um produto que os fazia brilhar na obscuridade. Assim, mesmo com uma luz muito fraca, poderíamos guardar a silhueta de Willi sob os olhos, com uma extrema clareza. Achei a precaução boa e prática. Willi também recebeu um galão luminoso em forma de diadema para pôr na cabeça, e calçaram seus pés com velhos chinelos turcos. Estava pronto. Mas uma vez pronto, abriu a boca inteira, à maneira dos leões, como se fosse nos devorar. Fiquei surpreso, mas explicaram-me que se tratava do controle da cavidade bucal. Que o diabo me carregue se conseguir esquecer esta cavidade bucal! Ela já enfeitava-se com uma coroa de ouro, para a glória de seu metîer. Quanto ao resto, era uma cavidade bucal irrepreensível. Víamos até atrás das amígdalas. E passamos para a sala ao lado.

     Um “alô!” amigável acolheu-nos na sala vizinha. Os habitués saudaram o Willi encapotado. Era um alegre disfarce, e ele próprio, em sua túnica e com diadema sacerdotal ria bobamente de seu traje ridículo. Vamos, ao trabalho! As pessoas dispersaram-se no laboratório e atrás de nós o dono da casa fechou a porta de entrada.

     Isto estava se tornando sério. Fenômenos sobrenaturais iam se passar nesta estranha sala, que parecia um atelier fotográfico com brinquedos para crianças. Confesso que senti uma ligeira timidez, uma repulsa interior, como se minha pessoa não estivesse em seu ambiente. Mas o diretor das experiências, sem que lhe pedissem, me confiou o controle do médium, a mim, e à mãe adotiva de Willi, senhora P. Começou imediatamente a me iniciar no exercício prático de minhas funções. Elas eram práticas, com efeito, eficazes e reconfortantes. Sentado em frente ao rapaz, tive que aproximar minha cadeira da sua, prender seus dois joelhos entre os meus, segurar suas mãos enquanto a assistente segurava seus pulsos. Willi era então nosso cativo, e ficamos sentados a olhar-nos bobamente, enquanto o público tomava lugar tagarelando.

     Isto se passou na frente da cortina, num círculo imperfeito, fechado de três quartos apenas. Numa das extremidades, o médium estava sentado conosco, seus controladores, e o mentor na outra extremidade. Duas ou três pessoas tiveram que recuar à segunda fila, e ficavam de pé ou sentadas, de acordo com sua vontade. Dentre elas o esportivo professor de zoologia, que para minha surpresa encontrava-se munido de um acordeão. Era um virtuoso deste instrumento, e servia-se dele freqüentemente durante excursões ou piqueniques estivais, e era por isto sobretudo que encontrava-se neste lugar. Com efeito, durante sua atuação, o médium pedia música, uma música quase ininterrupta. Era uma necessidade que tinha-se que respeitar. E o professor C, com seu instrumento, trouxe uma enorme variedade ao programa, que em sua ausência era substituído por uma caixa de música cujo repertório se compunha de um número apenas, não muito atraente.

     Uma claridade normal reinava ainda na sala. Uma luz elétrica branca, e o barão tomou as últimas disposições em relação aos objetos destinados às experiências. Uma mesa redonda encontrava-se em nosso círculo, não no meio precisamente, mas mais perto do anfitrião que do médium, a um metro e meio de distância deste último, como o barão nos mostrou com um metro. Muitos objetos estavam em cima dela: uma pequena lâmpada vermelha, um sino, um prato cheio de farinha, um quadrinho negro com um pequeno giz. Via-se igualmente um grande cesto para papel, virado de cabeça para baixo. Em cima dele estava colocada a caixa de música, uma segunda caixa de música, não a que nos deliciava com seu concerto, mas uma menor, sobre a qual os talentos de Willi deviam se afirmar a título de demonstração. O barão colocou a máquina de escrever em algum lugar perto dele, sobre o tapete, e espalhou em seguida pelo chão pequenos anéis de feltro, anéis luminosos, pois estavam preparados com a mesma substância dos galões da roupa de Willi. Um galão luminoso bastante grande estava fixado em alguns dos objetos.... Melhor ainda, os objetos de grandes dimensões, principalmente a cesta de papel, a caixa de música, o sino, estavam cobertos de fitas luminosas que o barão se vangloriava de ter inventado e de que fazia muito uso... A luz apagou-se.

     Acenderam novamente, porque Willi, ainda desperto, e sob minha vigilância, havia chamado a atenção sobre um esquecimento. “Os alfinetes, senhor barão”, disse ele. Era esta mais uma regra de prudência e de controle que o honesto rapaz nos lembrava. O barão enfiou grandes alfinetes no quimono. Alfinetes de grandes cabeças esbranquiçadas que brilhavam. Alguns alfinetes pareciam estar espetados na cortina, à direita e à esquerda da fenda, de maneira que o menor movimento seria perceptível, mesmo na obscuridade... Novo corte da luz branca. Não ficou mais nenhuma claridade, a não ser um brilho obscuro, vermelho, que caía de um lustre encoberto de vermelho e negro e da pequena lâmpada da mesa, igualmente encoberta. Não era suficiente para um olho que não estivesse treinado. Mas o barão afirmou que até este momento, não havia conseguido autorização para uma iluminação mais intensa, apesar de toda a sua boa vontade. “Luto por cada raio de luz, disse ele, mas isto é tudo o que pude obter até agora!” Willi resplandecia, os anéis de feltro, os galões nos outros objetos e os alfinetes da cortina brilhavam. Em suma, podia-se abraçar com o olhar as condições do espetáculo. A parte de cima da mesa estava bem iluminada.

     Reclamaram silêncio. E neste silêncio, a caixa de música que o barão acionara pôs-se a tocar a melodia de seu único número. Uma pequena canção breve, que recoçava sempre. Esperamos. Em particular eu esperei, segurando as mãos de Willi entre as minhas.

     De repente, no fim de três ou quatro minutos, ele tem um sobressalto. Um tremor convulsivo o sacode, e seus braços começam a executar sobre os meus movimentos de tração para a frente e para trás que puxam e empurram alternadamente. Sua respiração torna-se breve e ofegante.

     “Transe!” anuncia minha entendida assistente.

     O jovem havia caído em transe entre minhas mãos! Nunca até então eu havia observado este fenômeno, e como estou persuadido de que se trata de um estado de uma singularidade a longo alcance consagrei-lhe a maior atenção. O fato é que durante toda a sua duração, o “eu” de Willi divide-se em duas pessoas simbólicas para a representação de sonho. Uma personalidade masculina e uma feminina, que ele chama Erwin e Minna. Uma criancice. Um blefe. Ninguém leva Erwin e Minna a sério, mas por amor à causa presta-se a este capricho. Ninguém mais conhece Willi, mas sim Erwin e Minna, que sabem marcar com simplicidade sua presença alternada. Erwin é um mal-educado. Ele se manifesta através dos movimentos convulsivos de Willi mas raramente executa qualquer coisa que preste e aliás geralmente cede o lugar a sua irmã que se comporta com muito mais tato e meiguice. Segundo minha assistente era ela que puxava e empurrava nossos braços neste momento.

     — Minna está aí? pergunta o barão.

     Sim, está. Uma pressão de mão breve e forte que recebo de Willi o confirma. É sua maneira de dizer sim. Para dizer não ele agita as mãos e o busto de um lado para outro. Além disso, o sonâmbulo fala aos seus controladores num rápido murmúrio, numa espécie de tom apaixonado, mas com a língua pastosa.

     O barão saúda Minna.

     — Boa noite, Minna. Há hoje aqui bons amigos, tu conheces a maioria, alguns são novos, mas para ti tanto faz, não é?

     Willi se agita dizendo não.

     — O controle está sendo feito hoje por um homem muito simpático, um homem que tem o maior interesse por ti e tuas capacidades. Tu nos mostrarás lindas coisas, não é?

     Pressão com a mão e breve inclinação do busto para a frente.

     “Sim, ela promete.” Absurdamente diz-se “ela” mesmo sem querer.

     — Está bem, Minna. Então faça um esforço!

     A conversa começa. Ela deve começar. O médium a reclama. “Conversem”, sussurra ele gaguejando perto de minha orelha, e eu repito a ordem. Formaram uma corrente. Todos estão sentados, de mãos dadas. Talvez seja uma reminiscência de cerimônias espíritas, talvez também uma necessidade orgânica, ninguém sabe. De qualquer maneira Willi faz questão disso e nos recomenda freqüentemente, sussurrando, que fechemos bem a corrente. Meu vizinho da esquerda está igualmente em contacto comigo, sua mão direita sobre meu ombro, sobre meu braço. Falamos no escuro, o que vem na hora, mal sabendo quem se encontra do nosso lado. Não é fácil, a conversa esmorece a cada instante, vai diminuindo e se esgota. A verdadeira atenção não está voltada para esta atenção obrigatória. Entretanto, aconselham-nos que não esperemos os fenômenos com tanto ardor. O diretor das experiências recomenda uma atenção flutuante, sem avidez, sem impaciência, e ela é um pouco favorecida pela música, que se mistura à conversa barulhenta e artificial, aos sons do acordeão que o zoólogo da segunda fila maneja como um virtuoso. Ele toca marchas alegres, uma após outra, conhece sempre uma nova. E quando ele pára, imediatamente a caixa de música ocupa o seu lugar com sua pequena melodia mecânica e perfeita.

     Curiosa sessão. Compreendo que uma ciência que se respeita, habituada à dignidade da precisão, à atmosfera sóbria e material do laboratório, ao trabalho abstrato puro com aparelhos e preparações, sinta-se agredida por esta maneira extremamente humana de experimentar. E é a mesma coisa para o profano. Se ele esperava uma atmosfera sugestiva de solenidade e de mistério, fica decepcionado. O que o envolve parece destinado a despertar uma certa repugnância e uma desconfiança intelectual, lembrando-lhe os métodos banais empregados no Exército da Salvação para levantar a moral. Apelos cordiais e encorajadores que freqüentemente se elevam da corrente para o médium, ou melhor para a “Minna” de serviço: “Alô, Minna! Coragem! Para a frente! Mostre-nos o que sabe fazer, Minna!” concorrem para esta impressão. A situação só adquire um elemento místico, não no sentido fantasmagórico, mas num sentido ao mesmo tempo primitivo e perturbador, orgânico, através do médium em trabalho. Lutando, jogando-se para um lado e outro, sussurrando, gemendo e ofegando, minha curiosidade não o abandona um só instante. Seu estado e seu comportamento lembram um parto de uma maneira chocante, sem equívocos e decisiva. Ora joga a cabeça para trás, ora ela cai em meus ombros ou sobre nossas mãos moles que têm que apertar as suas para que não nos escapem. Seus esforços se produzem por crises, como dores de parto. Há pausas, estados de perfeita calma em que ele fica inacessível, enquanto, a cabeça caindo de lado sobre o peito, ele recupera suas forças dormindo. É o transe profundo. Em seguida ele se contrai e recomeça seu trabalho criador de parturiente.

     Uma sala de parto masculino em meio a trevas avermelhadas, com bate-papo, música e alegres gritos de encorajamento! Nunca havia me acontecido nada parecido em toda a minha vida. Eu me dizia que mesmo que não acontecesse nada mais, já teria valido a pena ter vindo. E realmente parecia que nada aconteceria. A “criança” não se manifestava. Nada de anormal queria acontecer. Algumas pessoas, em sua impaciência, já afirmavam ver e constatar coisas insólitas. Dois alfinetes luminosos não estavam mais espetados no robe de Willi, embora tivessem sido enfiados no tecido bem profundamente. Estavam no chão, sobre o tapete, um bem longe do outro. Declarou-se que eles haviam sido “tomados”, mas havia a possibilidade, senão a probabilidade de que tivessem se soltado com o trabalho de Willi. Além dos alfinetes, o que havia sido feito com os dois anéis que estavam lá atrás, bem na frente da cortina? Eles estavam na frente dele e não atrás. Eram, no começo, visíveis em toda a sua grandeza, mas durante os últimos minutos isto havia mudado, via-se apenas sua terça parte, a cortina havia avançado, ou os anéis haviam trocado de lugar. Mas ao observá-los mais atentamente, eles tornavam-se inteiramente visíveis, separados da cortina e isto era um fenômeno. Um fenômeno incerto, digno de pena, inútil perder tempo com ele. Mas será que eu não havia sentido passar sobre nosso círculo em sopro fresco emanando do médium e que anunciava manifestações iminentes? Não, falando francamente, um sopro fresco me seria bastante agradável, mas não havia sentido nada.

     E o tempo vai passando. Não é fácil calcular sua duração, mas suponho que tenha se passado uns quarenta e cinco minutos. Sem dúvida alguma, o médium deve estar lutando contra suas inibições. É interrogado sobre isto, mas diz não e continua seus esforços. Perguntam-lhe se tudo está em ordem e ele diz que sim. Quanto a mim, não acredito em Willi. Porque em segredo, é sobre mim que jogo a responsabilidade de nosso fracasso. Já havia duvidado de antemão que minha natureza pudesse ser de alguma utilidade para Willi durante seu trabalho, e agora tinha certeza, que lá no seu além, ele dividia comigo suas dúvidas sobre as possibilidades de melhorar a situação. Se protestava, era por pura cortesia, embora possa parecer bizarro falar de uma cortesia de sonâmbulo. De acordo com minhas observações, neste estado as inibições que a educação dá, a preocupação com o relacionamento humano não estão excluídas e Willi nem mesmo negava categoricamente. Ele murmurou: “Se vocês querem que os fenômenos venham mais cedo... E então? Willi calou-se. Será que desejava uma pausa? Silêncio. Depois ele começa a bater com o pé e todos contam com ele. Bate quinze vezes. Uma pausa de quinze minutos. E a sessão se interrompeu momentaneamente.

     Antes de acenderem a luz, deixaram o médium voltar a si. Foi preciso preparativos singulares, consistindo em movimentos do braço ao longo dos flancos, como se fosse coçá-los. Estes movimentos, ao menos em pensamento, ajudam-no a recuperar as forças orgânicas projetadas para fora de si mas que ainda não chegaram a manifestar-se. Ele voltou a si convulsivamente com duas ou três sacudidelas, e piscou os olhos sob a luz com um ar estúpido. Retiramo-nos para a sala vizinha.

     Fumamos. Willi, sentado no sofá, com sua fantasia, fumava também. Discutiu-se a situação. Ela não era desencorajadora. Acontecia de vez em quando uma fraqueza passageira como esta, e a necessidade de fazer uma pausa não era uma raridade. Com nosso Willi era difícil haver uma sessão negativa. Nada estava perdido. A mãe adotiva de Willi, senhora P., para descansar o público, contou histórias de sua casa. Eles não podiam mais continuar onde estavam, teriam que se mudar por causa dos outros locatários. Coisas indesejáveis não paravam de acontecer perto do rapaz. Fenômenos espontâneos, sinais e milagres. Ouviam bater na parede como se alguém estivesse dando socos. As mãos faziam gestos sem que tivessem sido solicitadas para isto. Um fantasma havia aparecido de repente na porta da sala de jantar. A própria cozinheira o havia visto e fugira gritando. Muito bem, mas até agora não havíamos visto nada. O jovem clínico do tensiômetro tomou mais uma vez a tensão de Willi para compará-la com a anterior e foi comentar o resultado com o doutor von Schrenk. Quinze minutos! O barão deu sinal para que a sessão recomeçasse.

     Convencido de que Willi havia pedido esta pausa sobretudo com a intenção de mudar de controlador, pedi instantâneamente demissão do meu cargo. Mas o dono da casa não quis me ouvir. Não, não devíamos ceder a todos os caprichos de Minna. Para minha edificação era importante que tivesse o médium sob minha guarda. Evidentemente eu poderia tomar o segundo lugar, o da senhora P. Qualquer outra pessoa poderia passar para o meu lugar, o de primeiro controlador. Reicher ou M. von K., de preferência este último. “Venha, K! Venha cumprir sua missão!”

     Von K. era o pintor polonês de acento duro e voz quente, um homem de natureza cordial e direta, o controlador preferido do médium, o último refúgio dos experimentadores quando uma sessão corria o risco de fracassar. Quando segurava as mãos de Willi e aplicava seu método jovial de tratamento quase sempre alguma coisa acontecia. “Oi, Minna. Estamos juntos novamente, hein? Somos velhos companheiros. Vai ser incrível a sessão, e você concorda comigo. Está vendo, você já está apertando minhas mãos. Mas escuta, não aperte minhas mãos tão fortemente, senão vai destrancar meu ombro. Minna, é assim que você mostra sua ternura?”

     Willi tinha necessidade deste estilo e quase sempre dava certo. Logo após apagaram a luz e estabeleceu-se a penumbra avermelhada. Willi caiu em seu sono magnético. A caixa de música fez funcionar suas engrenagens. O acordeão recomeçou a tocar. O trabalho de parto continuou.

     Inclinado para a frente, numa postura incômoda, sem apoio para as costas, mas insensível a estes inconvenientes, me agarro aos pulsos de Willi, emocionado com seu penoso trabalho.

     Ele nos sacode, nos puxa, treme, se joga de um lado para outro, se torce e sussurra ofegante: “Conversem!” “A corrente!” “A corrente!” repete von K. com uma docilidade humorística e cordial. “Vejamos, minha Minna tem todo o direito de pedir que se forme uma corrente de maneira conveniente.” Quanto mais ficamos sentados, mais é preciso atiçar a conversa que esmorece e se interrompe. O barão ajuda von K. “Conversem, senhoras e senhores! Professor C. o senhor está dormindo? Senhor Mann, é preciso conversar!” “Mas barão, estou fazendo tudo o que me é possível!”

     Todos fazem um esforço, murmuram futilidades na escuridão. O ator Reifer murmura um sonoro “Bla Bla Bla!”. A música é torturadora. Estamos cansados da melodia da caixa de música até a exasperação, mas quando o acordeão toca sua música tonitruante sentimos saudade do drelin-drelin mais discreto da caixinha. Se a prova é dura para Willi, também não é fácil para nós. Mais uma hora se passa depois da pausa. Tenho dores nas costas mas não ligo para elas. O médium estremece e sai de um transe profundo. Parece projetar alguma coisa para fora de si. “Bravo, Minna, diz von K. mimando-a. Ande, faça-o sair. Não está faltando quase nada, apenas um pequenino esforço e você nos mostrará coisas incríveis e eu lhe amarei tanto!”

     Em vão. Nada se mexe. Até a jovialidade de von K. não parece obter nada hoje. A renúncia se insinua em todos os corações. Decididamente, não tenho sorte com os mistérios. Continuarei a acreditar possível as coisas mais diversas, mas não terei visto nada. Pior para mim. Terríveis materialistas, odiosos campeões da hipótese de uma fraude e irascíveis cavalheiros das leis físicas escolares aqui vieram e viram coisas tão incríveis que ficaram perturbados até o dia seguinte de manhã em seu pretenso cepticismo. E meu cepticismo, que entretanto eqüivale à fé em comparação com o deles, uma crença em nada e em tudo, como defini-lo? revela-se nihilista, estéril. Um ligeiro amargor, como pode-se ver, me invade. Mesmo assim as impressões desta noite continuavam valendo a pena de serem recolhidas.

     O mentor tentou então um supremo estimulante. Falou gravemente: “Não, Minna. É preciso ser justo. Nós já estamos sentados há mais de duas horas, você não pode dizer que não tivemos paciência, mas tudo tem seu limite. Nós lhe damos ainda cinco, dez minutos. Se nada acontecer até lá, suspendemos a sessão. Estes senhores voltarão para casa, e mais de um entre eles pensará certamente que você não consegue nada, não é capaz de nada e contará para os seus amigos. Os cépticos se alegrarão.” “Mas não, barão, diz von K. fingindo contradizê-lo, mas não barão, o que você está dizendo? Ela está quase conseguindo, ela sabe melhor do que todos, ela sempre soube mais do que todos, minha Minna, quando esticava o braço bem para a frente para fazer convenientemente... Como? O que você está dizendo? Parem a música! O que você disse, querida Minna?

     Enquanto ele falava o médium murmurou alguma coisa. A música se cala, nós nos calamos. A voz eleva-se ainda uma vez gaguejando pastosamente: “O lenço”.

     — O lenço! ordena von K. autoritário. Ela sabe perfeitamente o que quer, ela o fará, ela nos fará ver muitas coisas, a minha amiga Minna...

     — Certo, diz o barão. Se ela não precisa mais do que isto, eis o lenço.

     O barão tira de seu bolso um grande lenço branco, que quase não havia usado. Toma-o pela ponta e deixa-o cair no chão, do lado da mesa. O lenço jaz imóvel, visível e brilhante. Todos olham-no fixamente.

    Recuem a mesa, murmura Willi com o rosto escondido em nossas mãos. — Assim? — Não, assim não.

     Ele não vê, mas sabe em seu sonho o que está se passando e que as coisas ainda não estão como quer. Willi corrige os gestos do barão com impaciência como se os estivesse vendo. Ele quer que a mesa seja empurrada um pouco mais para a esquerda e mais para perto do dono da casa. Pronto, assim está bom. O espaço entre a mesa e o lenço é maior agora. “A corrente”, sussurra Willi, e todos se apressam em fazer a corrente e conversar: “bla, bla, bla...” Eu também me viro para o meu vizinho polonês para dizer alguma coisa insignificante. Enquanto falo ouço alguém dizer com uma calma forçada: “Pronto, está vindo”. Viro rapidamente a cabeça...

     Quem se lembra da passagem de Lohengrin, primeiro ato, onde depois da oração de Elza, o coro entoa em uníssono: “Vejam, que estranho prodígio!” Aconteceu mais ou menos assim. O lenço levantou-se do chão e flutuava no ar. Sob os olhares de todos, num movimento rápido, enérgico e quase belo ele subiu na esfera luminosa da lâmpada que o tingiu de uma luz avermelhada. Subiu, eu disse, mas o termo não é exato. Ele não subiu vazio e flutuante ao vento, ele foi tomado e levantado. O lenço foi agarrado ativamente. O lenço formava dobras como se estivesse sendo sustentado por um pulso. Do interior, uma força viva o manipulava, e fazia com que ele mudasse de forma sacudindo-o ou apertando-o durante os do;s ou três segundos em que ficou suspenso livremente sob a claridade da lâmpada. Depois, num movimento calmo e seguro, voltou ao chão.

     Era impossível, e entretanto verdadeiro. Que um raio me mate se estou mentindo. Sob meus olhos imparciais, que estavam prontos igualmente a não ver se não houvesse nada para ser visto, isto aconteceu. E não uma vez apenas. Chegando ao solo, o lenço subiu novamente, mais depressa do que antes. Agora via-se com uma clareza incrível os movimentos, executados do interior, das falanges de um órgão que agarrava. Parecia menor que uma mão humana, em forma de serra. O lenço desce e sobe novamente... Quando está no alto pela terceira vez, é violentamente sacudido por alguma coisa invisível e atirado contra a mesa. Não exatamente em cima, a mira não foi bem feita. Ele fica agarrado na borda e cai sobre o tapete.

     O fenômeno foi acompanhado de muitos bravos e barulhentas aclamações para “Minna”. Várias vezes o barão me perguntou se eu estava vendo, se estava vendo bem o que se passava. Claro, como poderia não ver? Teria sido preciso fechar os olhos para não ver, e este foi o momento em que tive os olhos mais abertos em toda a minha vida. Já havia visto espetáculos mais grandiosos, mais belos, mais dignos. Mas nunca havia visto acontecer alguma coisa impossível apesar de sua impossibilidade. Eu repetia, transtornado: “Muito bem. Muito bem!” Embora me sentisse nauseado. Tinha os pulsos de Willi entre minhas mãos, cobertos com a malha de tricô, e via seus joelhos presos pelo polonês do meu lado. Era completamente impossível que o rapaz adormecido tivesse levantado o lenço. Quem mais? Ninguém. Não havia ninguém que pudesse ter feito isto, e entretanto, isto se fez. Eis o que me dava náuseas.

     A elevação do lenço, ouvi dizer, forma regularmente o fenômeno inicial. O charme estava rompido. O médium, que durante o incidente havia ficado estranhamente silencioso, endireita-se, estremece e murmura: “Retirem a caixa de música! O sino!”.

     — O sino! — grita com uma alegria calorosa von K. E então, onde está o sino para minha Minna? O sino sobre o cesto! Pronto, agora está tudo bem.” O barão obedece à ordem. Ele retira a caixa de música e coloca o pequeno sino sobre o cesto de papéis. Seus galões translúcidos brilham na obscuridade e um reflexo luminoso avermelhado brinca em seu metal. Willi leva sua mão junto com as nossas até sua fronte. Suspira. Então o sino é levantado. Ele é pego por uma mão, porque com que pode-se pegar um sino pela alça sem ser com a mão? O sino é levantado, fica no ar, inclinado. É agitado vigorosamente, traça um círculo na sala, toca outra vez e depois com um grande barulho é jogado sob a cadeira de um dos assistentes.

     Uma leve náusea. Profunda estupefação, com um pouco de desgosto, não de pavor. Cobrem Minna de elogios em voz alta e ininterruptamente. Um neófito grita: “Inacreditável!”

     A cabeça de Minna, o que digo, a cabeça de Willi cai de lado sobre a minha, como se fosse uma criança. Bravo, rapaz, o que você faz é fabuloso. Emocionado e cheio de cuidados, deixo sua cabeça repousar sobre a minha, mas o barão diz:

     — Escute, Minna, tenho algo de novo aqui. Você não conhece, mas não é difícil servir-se dela. É uma campainha que se toca apertando-a. Aperta-se de cima, olha. Então o barão toca. Faça-o também Minna. Pronto, eis a nova campainha.

     E ele coloca o objeto sobre o cesto. Espera. Já podemos perceber um tateamento no timbre, não se vê nada, mas ouve-se alguma coisa manipulá-la com os dedos, hesitando. Esta alguma coisa segura a campainha, agita-se lentamente e ela toca, mas não é o som desejado.

     — Não é assim, diz o barão. Você ainda não compreendeu. Desculpe-me. Retire-se. Olhe como se faz.

     E o barão toca o botão da companhia. “A corrente”, murmura Willi contra a minha face, e ele treme. Mas o barão não pode ao mesmo tempo fazer a corrente e mostrar como se manipula a campainha. Ele pede a Minna que o compreenda. Mal o barão se senta, o tateamento e o apalpar hesitante recomeçam. Finalmente Willi consegue. “Alguém” toca a campainha apertando o botão. Um som fraco, infantil e desajeitado, mas o essencial foi resolvido.

     “Bravo, Minna”, gritam todos. “Fantástico”, diz alguém. Mas não temos tempo de nos abandonar às nossas impressões. A sessão continua. Mal o barão retira a campainha do cesto de papéis, este começa a oscilar. O cesto se sacode, vacila, e vira ao contrário. Então ele é levantado muito alto, muito alto, fica suspenso no ar. Quase vertical, na penumbra avermelhada, com o brilho de suas fitas luminosas, o cesto plana quatro ou cinco segundos e cai no chão.

     — Vocês viram? Viram bem? — pergunta o barão, glorioso.

     Confessamos nossas impressões. Willi, mergulhado num transe profundo, estava recostado meio de lado em sua cadeira. Era natural que tivesse necessidade de repouso e que mergulhasse numa audiência de sonho, depois de ter conseguido que os atos oníricos se realizassem fora dele.

     Um momento! Vamos refletir! Tome distância e tente pressentir um ponto, o lugar mágico, em que uma visão de sonho se materializa e sob os olhos de outras pessoas na sala eles se tornam realidade. Náusea... Sem dúvida alguma, este ponto não está no plano de nossa consciência, de nossas leis de conhecimento. Se está em alguma parte, situa-se neste estado em que vejo o rapaz na minha frente e existe certamente uma porta aberta... para onde? Para trás da casa? Para trás do mundo?... Mas confesso, isto não é um pensamento, mas uma forma atenuada de náusea.

     Durante a interrupção, o barão pôs a caixa de música para funcionar. Ordenou igualmente uma mudança no controle. Von K. e eu fomos substituídos. Na obscuridade, fui para a outra extremidade da corrente tateando e sentei-me perto de Reicher que estava sentado ao lado do dono da casa. Eu linha a mesinha sob o nariz. Mal sentei-me e encontrei as mãos de meu vizinho, sob meu nariz, alguma coisa apalpa a caixa de música sobre a mesinha. O barão pára imediatamente a caixa de música. E no silêncio, sob meus olhos que não vêem, um pequenino barulho, um tateamento secreto se exerce na chave da caixa, esforçando-se por fazê-la funcionar. Ó ser secreto que tem medo de luz, inimaginável, formado de sonho e de matéria, o que faz sob nosso nariz? Crac. A chave é virada, a caixa se põe a tocar. “Faça com que pare”, diz o barão. E a música pára. “Que toque!” E a caixa toca. Isto várias vezes. Estou sentado, inclinado para a frente, alguém ordena o impossível e faz-se obedecer por um fantasma, um pequeno monstro tímido, vindo de detrás do mundo...

     Uma pausa. De repente uma grande agitação manifesta-se entre os anéis luminosos no tapete. Eles são empurrados de lá para cá, jogados de um lugar para outro... Um se levanta, sua fita brilhante pende abaixo dele. Ele fica suspenso e é carregado através da sala até a mesinha. É lá que “a coisa” quer depositá-lo, mas ela é tão desajeitada que poderia-se pensar em cegueira, e provavelmente a covardia e o medo de ser vista seriam a causa. Um medo de entrar demais no círculo luminoso da pequena lâmpada e da mesa. Desajeitadamente, com uma certa pressão, de maneira que o feltro roça a madeira, o anel deslizou sobre a borda exterior da mesa, apenas com a distância necessária para não cair, e fazendo isto, “a coisa” se choca contra a mesa no seu desajeitamento cego e medroso. É um choque. Um corpo duro contra um corpo duro, de uma tal maneira que a mesa vacila. Que horror, monstro do além, por que você empurra tão clandestinamente, sob nosso nariz, com seus punhos sobrenaturais, esta honorável mesa? Enquanto este pensamento me atravessa o espírito, crac, um anel pula em meu rosto. Atiraram-no com vontade. Ele desliza sobre meu joelho e vai até meus pés. Que monstro tão cheio de humor! Ri-se, e entretanto, todos estão melancolicamente impressionados com a petulância glacial de alguma coisa, que talvez seja apenas uma degenerescência aflitiva e complicada da fraude. Mas “ele” é civilizado, como disse. A “coisa” não me jogou no rosto a máquina de escrever ou a caixa de música. A “coisa” escolheu com tato um pequeno anel leve. Outras brincadeiras já foram feitas, um relógio já foi arrancado do pulso de seu dono e passeou pela sala, ou o laço da bota de alguém foi desfeito. Mas a ninguém, e todos afirmam isto unanimemente, estas forças invisíveis causaram um dano sério, o que denota uma sensibilidade delicada. Entretanto, uma tendência a desmoralizar, a brincar, é inegável. Sem dúvida alguma, uma vigilância constante é necessária, uma direção pedagógica e a assinalação de uma meta. Isto ficou claro, quando depois de ter atirado o anel em meu rosto, o espírito diabólico tentou virar de cabeça para baixo a caixa de música que estava em cima da mesa. O barão, bastante inquieto por seu instrumento, implorou que lhe poupassem aborrecimentos referentes a um conserto. Em vão. “Aquilo” obstinou-se em derrubar a pequena caixa. Sobre ela, ainda por cima, encontrava-se o pequeno quadro-negro e o giz que corriam o risco de quebrar se caíssem.

     Foi preciso distraí-“lo”. O barão chamou atenção com insistência sobre a máquina de escrever que encontrava-se no chão, na frente da cortina, com uma folha de papel, pronta para ser usada. “Escreva, Minna, disse ele. Ocupe-se de uma maneira útil. Nós lhe escutaremos e teremos o que você escreveu como prova de que não somos infelizes alucinados como afirmam alguns de seus inimigos.” A “coisa” presta atenção a argumentos razoáveis. Abandona a caixa de música. Esperamos. E, palavra de honra, escutamos o barulho da máquina batendo. É uma loucura. É também, mesmo depois de tudo o que já vimos, absurdo, risível, revoltante e nos atrai por sua extravagância. Quem está batendo à máquina? Ninguém. Ninguém está deitado no tapete, ninguém se serve da máquina, e entretanto alguém se serve dela. As extremidades de Willi estão presas. Supondo-se que ele pudesse liberar um braço, não alcançaria a máquina. Se pudesse liberar um pé e chegar até ela, não poderia bater em cada tecla separadamente, só poderia bater várias ao mesmo tempo. Logo, Willi está fora do jogo. Ora, fora Willi, não há mais ninguém que pudesse alcançar a máquina! O que fazer? Tenho que concordar com a cabeça e rir brevemente com o nariz. “Aquilo” bate aparentemente segundo as regras. Uma mão toca as teclas, está claro, mas há somente uma? Não, na minha opinião há duas mãos. O toque é muito rápido, como se fosse um exímio datilógrafo. Num minuto termina uma linha, ouve-se o barulho da máquina fazendo o parágrafo e uma nova linha começa, interrompe-se. Pausa.

     Então produz-se lá longe, na frente do fundo sombrio da cortina, uma pequena manifestação rápida apressada e fugidia. Uma aparição. Alguma coisa longe, do tamanho e da forma de um antebraço com a mão fechada. Não dava para reconhecer exatamente o que era.

   Sobe muitas vezes sob nossos olhos, para uma demonstração rápida. Sobe e desce, ilumina-se com uma luz interna, com um brilho breve, branco, que dissimula inteiramente a forma da coisa e desaparece.

     — Vocês viram uma materialização, diz o dono da casa, apontando o local com o dedo. É muito bom que tenham visto isto. Esperem, talvez nos deixe uma marca.

     Houve palavras encorajadoras, para incitar Minna a deixas a marca de sua mão na farinha. A farinha que estava num prato sobre a mesinha, mas nem por um minuto acreditei que ela faria isto. E não o fez. Esperamos em vão.

     O prato da mesinha estava extremamente iluminado, o fantasma teria se exposto perigosamente a nossos olhares críticos. Isto não teria correspondido à imagem que já havia feito do caráter ao mesmo tempo tímido e impertinente, fugaz, dissimulado e mistificador deste duende. Um caráter muito insignificante para ser mau. Muito mais complacente, mas fraco e envergonhado. Não aconteceu nada mais. O cansaço parece ter chegado. Willi murmurou “Feliz Natal”. A sessão terminou.

     Foi estranho ver, sob a claridade branca da eletricidade, o anel de feltro em meus pés. Não tinha vindo parar aqui de uma maneira racional. Igualmente estranho considerar a folha datilografada no chão, contendo absurdos apenas: duas linhas desordenadas de maiúsculas e de minúsculas. Teria provavelmente sido diferente se Willi soubesse escrever à máquina. Estava ainda caído, de lado, bêbado de sono, sobre os braços de um dos controladores. Aproximei-me dele, bati em seu ombro e lhe disse que havia sido uma brilhante sessão. Então ele levantou-se em silêncio, com um sorriso benevolente e melancólico, com os olhos cheios de sono.

     Todos voltaram para a biblioteca, discutindo com animação o que havia acontecido. Ofereceram chá. E para terminar, Reicher contou histórias de teatro.

     Então, o que vi? Três quartos de meus leitores me responderam: “Um blefe. Prestidigitação. Uma farsa.”

     Um dia, quando o conhecimento destas coisas for mais avançado e este domínio tornar-se mais popular, eles mudarão de idéia. E desde já, se me tomam por um ingênuo, um crédulo e sugestionável, deveriam refletir duas vezes diante do testemunho de experimentadores instruí-los como o sábio francês Gustavo Geley, que concluiu seu relatório com a seguinte declaração categórica: “Eu não digo: não houve fraude durante as sessões. Eu digo: qualquer possibilidade de fraude estava excluída.”

     É este o meu caso. E a situação é sedutora e ao mesmo tempo aberrante precisamente porque a razão nos obriga a reconhecer o que a própria razão gostaria de afastar como sendo impossível. Pela própria natureza dos fenômenos descritos, mesmo para aqueles que viram com seus próprios olhos, o pensamento de uma fraude se impõe sempre. Sobretudo retrospectivamente. E sempre é refutado e excluído pelo testemunho de nossos sentidos e pela própria consciência de sua impossibilidade total.

     Vocês me dirão que três quartos dos médiuns são impostores e foram desmascarados como tais. Este é um fato desagradável, que semeia confusão, ainda mais perturbador porque a maioria deles, estou pronto a admitir, não tem o desejo consciente da fraude, do dolus. Estou persuadido que o nosso próprio Willi, se o deixássemos livre, procuraria blefar e comprometeria assim de maneira terrível a sua causa. Porque é verdade que em seu sono, não estabelece nenhuma diferença entre o que realiza por iniciativa própria e o que faz “de uma outra maneira”. E como ele tem o desejo compreensível de se distinguir, interviria se não fosse vigiado. Seria pego em flagrante, e digo, seria uma causa de perturbação, sem que, entretanto, nada pudesse diminuir a autenticidade dos fenômenos que se produziram enquanto estava sendo vigiado.

     O negócio, bastante banal segundo suas formas, é grave e pede esclarecimentos de um caráter sério ou até mesmo solene. Depois de ter visto, considero como meu dever prestar um testemunho: durante a experiência a que assisti, qualquer possibilidade de uma fraude, de um ilusionismo de prestidigitador segundo as normas, estava excluída. Se acham que este é um testemunho audacioso, é a razão que nos obriga e nos força a fazê-lo. Mas a razão tenta, é verdade, imediatamente descobrir uma via intermediária e escapar à alternativa da fraude e da realidade, nem que seja por uma palavra.

     “Charlatanice” é a palavra cuja coloração turva faz com que a gente não perceba sua profundidade. As noções de realidade e de subterfúgio aí se misturam, e talvez esta mistura, um equívoco dos verdadeiros direitos da vida, seja menos estranha à natureza que ao nosso honesto pensamento. Logo, eu digo: a cena a que assisti é uma hipocrisia oculta da vida orgânica. Trata-se de complexos subumanos profundamente embaralhados, que ao mesmo tempo primitivos e complicados, com seu caráter pouco digno, seu desenrolar e seus finais são feitos sem dúvida para ferir o sentido orgulhoso e estético. Mas somente um espírito refratário, não razoável, poderia negar a realidade anormal.

     Além disso, sua exploração científica não está precisamente no começo. Pelo menos a ciência já criou um vocabulário técnico apropriado ao assunto e com a sua ajuda pode-se tratá-lo convenientemente. O que vi foram fenômenos de “movimento à distância” que este médium, o jovem Willi, é particularmente apto a suscitar. Eles encontram-se em estreita relação de causa com o fenômeno oculto da materialização, isto é, da organização passageira da energia fora do organismo do médium, conseqüentemente da exteriorização do ectoplasma. Fica claro, entre pessoas competentes, que o agente que executa as brincadeiras descritas, que toca o sino, levanta o lenço, serve-se da máquina de escrever, não é um espírito chamado Minna, assim como não é Aristóteles ou Napoleão, mas o próprio médium que exteriorizou-se parcialmente. Mas dizendo isto, não tornamos o problema mais accessível racionalmente, ao contrário. A hipótese popular espírita é muito superior, por sua claridade espiritual e sua simplicidade, à hipótese dos sábios. E o problema oculto da exteriorização e da materialização apresenta cada vez mais uma complicação aparentemente aplicada em ridicularizar o espírito humano. Mas o que há de espantoso nisso, já que no final das contas isto coincide com o problema, aparentemente não oculto, da vida?

     “O que condiciona a vida, disse Claude Bernard, não é nem a química, nem a física, nem nada análogo, mas o princípio ideal do processo vital.” Uma palavra singularmente imprecisa para um grande sábio, e francês ainda por cima. Uma palavra vaga, tateando em direção a um mistério, que prova que precisamente os grandes sábios nunca perdem o contato íntimo com o mistério. Só a mediocridade escolar corre o perigo de cair numa presunção científica, sem pensar em como o seu conhecimento “exato” da natureza, da vida e de suas funções está mergulhado num mistério e num enigma talvez eternamente in-solúvel.

     Mas pode-se considerar hoje como um fato consumado do ocultismo, que este princípio criador que se exerce na fisiologia normal, adquire em certos casos um caráter teleplástico. Isto é, ultrapassa os limites do organismo e age como ectoplasma, fora dele. De uma tal maneira que a substância orgânica exteriorizada (cujas aparições e criações de aparências já foram bem observadas) suscita passageiramente formas, membros, órgãos do corpo, notadamente mãos que têm todas as características biológicas e as capacidades funcionais de criações fisiológicas normais, e são biologicamente vivas. Estes órgãos terminais teleplásticos parecem mover-se livremente no espaço, mas segundo todos os observadores estão em ligação fisiológica e psicológica com o médium. De uma tal maneira que qualquer impressão sentida pelo teleplasma repercute sobre o organismo do médium e vice-versa. Podemos notar aqui como a fisiologia supranormal concorre com a normal no esforço de demonstrar a unidade dai matéria orgânica. Porque este fluido deixa o corpo do médium como uma massa amorfa, nem um pouco organizada e dá nascimento a diversos órgãos teleplásticos. Mãos, pés, cabeças, que se dissolvem, depois de uma existência efêmera mas participante de todos os atributos da vida. Eles são reabsorvidos pelo organismo do médium. Este fluido, esta substância, este substrato das diversas formações orgânicas é homogêneo, não diferenciado: nenhuma substância óssea, por exemplo, distingue-se de uma substância muscular, visceral ou nervosa. Há apenas uma substância, base e substrato da vida orgânica.

     É provável que todos os pensamentos, todos os discursos que se referem a assuntos deste domínio extravagante, todas as interpretações teóricas sejam hoje em dia explicações aparentes, provisórias. Em todo caso, pensar-se-ia e exprimir-se-ia de maneira insuficiente sobre o fenômeno da materialização como sobre o fenômeno da vida em geral se olhássemos apenas seu lado físico material e não igualmente o lado psíquico. Hegel disse que era preciso considerar a idéia, o espírito, como a suprema fonte de todas as aparências. E a fisiologia supranormal talvez esteja mais apta a demonstrar este axioma do que a fisiologia normal. Ela chega a colocar a prova filosófica da primazia da idéia, da origem ideal de toda realidade ao lado da prova biológica da unidade da substância orgânica. Intuitivamente coloquei os processos telecinéticos como sonhos do médiuns objetivados. A literatura especializada me dá razão, explicando com um acúmulo impressionante de termos técnicos, que a idéia do fenômeno vive nas profundezas inconscientes do sonâmbulo, transfere-se e é concretizada por uma projeção biopsíquica a uma certa distância graças a uma energia psicofísica. Em outros termos, recorre-se a uma faculdade inexplorada, ideoplástica, da natureza do médium. Uma palavra, uma noção de socorro de uma sedução platônica, não isenta de charme, para os ouvidos do artista, que tem tendência a interpretar não somente sua própria obra mas toda a realidade como um fenômeno ideoplástico. Uma palavra cuja noção continua tendo, apesar de tudo, uma profundidade bastante turva, assim como “charlatanice” e que graças à sua mistura mistificadora de elementos oníricos e de realidade leva diretamente a um domínio mórbido extravagante.

     Para terminar, acrescentarei um só exemplo, mas conclusivo. Afirmaram várias vezes, que as criações ideoplásticas, desde que existem, possuem todas as propriedades da vida real. Não somente elas se deixaram ver e apalpar, não somente nos asseguramos de sua realidade objetiva por fotografias e por aparelhos que registraram suas proezas telecinéticas, mas chegaram a tomar suas marcas no gesso. De uma tal maneira que chegou-se a levar mãos de origem transcendental a mergulhar em parafina derretida, flutuando na água quente. Assim se forma em volta do membro espectral um molde que petrifica-se no ar. Nenhuma mão humana poderia liberar-se deste molde sem quebrá-lo. Ora, o órgão teleplástico separa-se dele desmaterializando-se, e enche-se de gesso a luva de parafina deixada no laboratório para obter uma forma que re-produza em todos os seus detalhes a forma da materialização. Notem bem: as marcas das mãos assim obtidas não apresentavam em sua forma e suas linhas nenhuma semelhança individual com as mãos do médium ou de nenhum dos outros participantes. Ora, numa sessão com Willi S. eis que um incidente impossível (e não foi o único do gênero) produziu-se: enquanto o médium estava sob um controle rigoroso, uma forma apareceu acima de um pote de barro sobre a mesa. Uma forma vinda “do alto e por trás”, uma forma rosa, luminosa, uma mão com seu antebraço, que se agitou na superfície do vaso de barro. Depois da sessão colheu-se seis marcas nesta superfície que era lisa. Ora, na unha do pequeno dedo esquerdo de Willi, e no outro lado do quarto dedo da mesma mão, encontrava-se marcas de barro.

     Pergunto à natureza e ao espírito, pergunto à razão e à lógica triunfante: como, quando e de onde o barro veio parar no dedo de Willi?

     Não, não voltarei mais à casa do barão von Schrenk-Notzing. Isto não leva a nada, ou pelo menos a nada de bom! Amo o que chamei de mundo moral superior, amo o poema humano, os pensamentos claros e humanos. Odeio as infrações do cérebro e o transe espiritual. Na verdade, até agora, vi apenas algumas chamas do fogo do inferno, mas isto deveria me satisfazer. Evidentemente, gostaria de ter uma tal mão, uma tal formação metafísica ilusória na minha, como já aconteceu a outros. E talvez, uma vez, a cabeça de Minna apareça acima do ombro do sonâmbulo: uma bela cabeça de menina, do tipo eslavo, de olhos negros e vivos. A impressão seria bem estranha. Irei então, a título de experiência, uma vez ou outra na casa do barão von Schrenk-Notzing. Mais umas duas ou três vezes, não mais. Não há nisso nenhum inconveniente para mim. Eu me conheço. Sou o homem das paixões breves. Tomarei cuidado para que esta seja uma aventura sem conseqüências e esquecerei esta história para sempre. Não espero, aliás, voltar duas ou três vezes, mas apenas uma, e depois nunca mais. Não quero mais nada, apenas ver mais uma vez o lenço elevar-se diante de meus olhos, na luz avermelhada. Isto me entrou no sangue. Não posso esquecer. Queria, ainda uma vez, o pescoço estendido, os nervos gástricos convulsos diante do absurdo, ver o impossível que ainda assim se realiza.

    

                     CANTO AO SONO

     Que a noite caia a cada dia; que a graça do sono estenda-se todas as noites, apaziguadora, trazendo o esquecimento sobre os tormentos e as misérias, o sofrimento e a angústia; que ainda uma vez esta bebida de consolo e letargia distribua-se aos nossos lábios ressecados; que ainda uma vez, após a luta, este banho morno acolha nosso corpo fremente, a fim de que, purificado do suor, da poeira e do sangue, revigorado, renovado, remoçado inconscientemente, dele emerja com sua vitalidade e prazer originais. Ah! meu amigo! Sempre senti e considerei o sono como o mais beneficente e emocionante dos grandes fenômenos criadores do impulso cego. Saímos da noite sem sofrimentos, para penetrar no dia, e caminhamos. O sol é calcinante, andamos sobre espinhos e seixos cortantes. Sentimos nosso peito sufocar. Que assustador seria se a ardente estrada da fadiga se estendesse diante de nós sem fim provisório, sob uma luz crua, a perder-se de vista. Quem teria forças de percorrê-la até o fim? Quem não se prostraria pelo desencorajamento e desgosto?

     Mas eis a noite materna que surge novamente, sempre novamente, sobre o caminho de Paixão da vida. Cada dia tem um fim. Um bosque espera-nos, num murmúrio de fonte e numa verde penumbra, onde um maravilhoso frescor recobrará sobre nossa fronte a paz de nossa terra natal, então os braços estreitados num abraço, a cabeça tombada para trás, os lábios entreabertos e os olhos afortunadamente revoltos, penetramos numa sombra deliciosa.

     Dizem que fui criança tranqüila, nem barulhenta nem agitada, mas inclinada ao torpor e à sonolência, de um modo agradável para as mulheres que cuidavam de mim. Acredito, pois lembro-me de amar o sono e o esquecimento numa época em que não tinha nada a esquecer; e até me sinto capacitado para dizer que choque espiritual provocou nesta silenciosa inclinação natural a transformação em afeição consciente. Deu-se após eu ter ouvido o conto “O Homem Sem Sono”, a história desse homem preso ao tempo e às suas próprias ações, com ardor tão insensato, que maldizia o sono. Então, um anjo concedeu-lhe a realização de seu desejo, tirando a sua necessidade física de dormir, soprou sobre seus olhos para que eles se tornassem semelhantes a cinzentas pedras em suas órbitas e não se fechassem jamais.

     Como esse homem lamentou seu pedido; o que então suportou, só, privado do sono entre todos os homens; como o triste condenado arrastou sua vida, até o dia em que a morte o libertou e quando a noite, que pairava inacessível diante de seus olhos de pedra, atraiu-o até ela e para ela. Não poderia contá-lo com maiores detalhes, todavia sei que durante aquela noite, não me continha de impaciência para que me deixassem só em meu leito, a fim de lançar-me no seio do sono; nunca dormi tão profundamente como naquela noite em que ouvi essa história.

     Desde então sempre fiz distinção entre os livros que poderiam dizer algo em louvor ao sono; e Mesmer, por exemplo, exprimiu-se bem de acordo comigo, quando sublinhou a possibilidade de que o sono (que forma a base da vida vegetal, e do qual a criança, em suas primeiras semanas de vida, sai apenas para alimentar-se) seja talvez o estado natural, original do homem, aquele que corresponde mais diretamente à finalidade do fenômeno de vegetação. “Não se poderia dizer, propõe o genial charlatão, que apenas despertamos para dormir?” julgo isso extremamente bem pensado. Seguramente o estado de vigília é apenas uma luta para preservar o sono. Darwin também não pensa que o espírito se desenvolveu somente como uma arma na luta pela vida? Arma perigosa! Uma arma que, se nenhum perigo ameaça nossa segurança, vira-se freqüentemente contra nós. Felicitemo-nos quando ela repousa, quando a chama crua e consumidora da consciência que temos do mundo ao nosso redor e em nós próprios reduz satisfatoriamente sua atividade, quando podemos, então, abandonar-nos novamente à nossa verdadeira e feliz natureza.

     Contudo, se a angústia desperta-nos, não é ela que afinal nos afasta do sono. Acreditarias em mim, se te dissesse que não conheço insônia causada por desgosto ou preocupação? Só experimentei verdadeiro fervor pelo sono após ter passado a primeira fase de liberdade, de intangibilidade, quando os desgostos da vida sob a forma da escola começaram a turvar meus dias. Nunca mais dormi tão deliciosamente quanto durante algumas noites de domingo para segunda-feira, quando após um dia protegido, pertencendo aos meus e a mim mesmo, a manhã seguinte ameaçava-me novamente com dificuldades duras e estranhas. E isso sempre acontece. Nunca durmo tão profundamente, nem experimento um retorno mais doce ao seio da noite, que quando estou infeliz, quando o meu trabalho não foi bem sucedido, quando o desespero me oprime, quando desgostoso dos homens encontro refúgio nas trevas...; e como, pergunto, poderia ser de outro modo, já que é naturalmente impossível que a inquietação e o sofrimento reforcem nossa afeição ao dia e ao tempo?

     Sorrirás se eu te disser que preservo uma recordação precisa e reconhecida de cada leito no qual dormi durante algum tempo, de cada um deles, desde a pequena cama de grades com cortinas verdes, que foi o primeiro, até o imponente leito de acaju onde nasci e que durante sucessivos anos reinou em meus apartamentos de jovem celibatário? Atualmente possuo um leito mais leve, inglês, laqueado de branco. Por cima está suspenso, numa moldura branca, este quadro francês intitulado “Rumo à Estrela”, o qual, com a sua atmosfera azul esmaecida, imprecisa e musical, é o mais belo ornamento de alcova que posso imaginar... Sorrirás, repito, contudo, que lugar insigne ocupa o leito em nosso mobiliário, este móvel metafísico, onde os mistérios do nascimento e da morte se cumprem, este habitáculo de linho perfumado, onde inconscientes, com os joelhos dobrados como antigamente nas trevas do ventre materno, reatamos de alguma forma o cordão umbilical da natureza, atraímos o sustento e a renovação por vias misteriosas... Não seria como um barquinho mágico, posto de lado num canto, velado e discreto durante o dia, e no qual, a cada noite, vagamos sobre o mar do inconsciente e do infinito?

     O mar! O infinito! Meu amor pelo mar, que sempre preferi pela imensa uniformidade à ambiciosa variedade de aspectos da montanha, é tão antigo quanto meu amor pelo sono e sei perfeitamente onde essas duas simpatias encontram sua raiz comum. Tenho em mim muito hinduísmo, muita nostalgia indolente e profunda, por esta forma ou não-forma de perfeição chamada Nirvana ou o nada; e, ainda que artista, tenho uma inclinação bem pouco artística pelo eterno, que se traduz por uma aversão à articulação e à medida. O que contrabalança essa inclinação, creia-me, é a correção e a disciplina; é, para empregar a palavra mais séria, a moral... Ora o que é a moral? O que é a moral do artista?

     A moral tem duas faces, concentração e abandono, e uma sem a outra nunca é legítima. A “concentração”, esta fecunda antítese da distração (a propósito da qual Grillparzer cria para seu sacerdote uma magnífica linguagem), é necessário havê-la sentido para compreendê-la, não sendo raro que uma imagem particular provoque em mim, sempre de novo, a impressão mais profunda dessa palavra: a imagem do feto no ventre de sua mãe. Nossa cabeça, imagine, não se encontra redonda e acabada de uma só vez, de modo a ter apenas que se desenvolver como um todo... A princípio o rosto está aberto na frente, ele cresce pouco a pouco dos dois lados para juntar-se no meio, fecha-se lenta e firmemente a fim de transformar-se no rosto simétrico, dotado de visão, de vontade, individualmente condensado do nosso “eu”... É este processo de junção, de acabamento, de formação para tornar-se uma figura determinada, saída do mundo das possibilidades, é essa imagem que me faz pressentir aquilo que afinal se consuma além da aparência. Sinto, então, que toda existência individual deve ser compreendida como a conseqüência de um ato de vontade supra-sensorial, de uma decisão de concentrar-se, de limitar-se e tomar forma, de condensar-se fora do nada, de renunciar à liberdade, ao infinito, a dormitar e a mover-se na noite imaterial e intemporal, uma decisão moral de existir e sofrer. Sim tornar-se é, em si, um ato moral. De outra forma qual seria o significado destas palavras proféticas: “Nosso maior pecado é o de ter nascido?”... Só um boçal considera pecado e moralidade como conceitos opostos. Eles formam apenas um. Sem o conhecimento do pecado, sem o abandono ao que é funesto e nos consome, toda moral é uma afetação de virtude. Não são a pureza e a ingenuidade que constituem o estado desejável no sentido moral, não são a prudência egoísta e a arte desprezível de preservar a consciência tranqüila que formam o elemento moral, mas a luta e o desgosto, a paixão e o sofrimento. “Aquele”, escreveu, em alguma parte, Heinrich von Kleist, “que ama a vida com prudência já está moralmente morto, pois sua mais intensa força vital, que é de podê-la sacrificar, atrofia-se, quando ele cerca-se de cuidados.” A palavra de maior sentido moral do Evangelho é: “Não resista ao mal!”

     A moral do artista é concentração, a força de concentrar-se egoisticamente, a decisão de dar forma, de modelar, circunscrever, renunciar à liberdade, ao infinito, à sonolência e ao movimento no domínio ilimitado da sensação. Enfim, a vontade de criar uma obra. Mas quanto desprovida de nobreza e moral, exangue e repulsiva, é a obra nascida de uma arte fechada em si, prudente e virtuosa! A moral do artista é abandono, afastamento e perda de si próprio, é luta e tormento, aventura, conhecimento e paixão.

     A moral é sem dúvida o maior encargo da vida, é a própria vontade de viver, todavia se o fato de se dizer que a vida é o bem supremo é mais que uma frase de teatro, então deve existir algo maior e mais definitivo que essa vontade: assim como a moral consiste em corrigir e disciplinar o que é livre e possível, para reconduzi-lo ao limitado e ao real, por sua vez requer um corretivo, uma explicação, uma exortação incessante (que não se pode deixar de ouvir) uma incitação ao recolhimento e à renúncia... Dá a esse corretivo o nome de sabedoria e seu contrário será a loucura do homem preso ao tempo e ao instante com tão cega paixão que chega a maldizer o sono. Dá-lhe o nome de religiosidade, seu contrário será a bestialidade ligada aos instintos pagãos e cuja fuça permanece presa ao chão sem ver a grande paz estelar acima. Chama-lhe nobreza, seu contrário será a vulgaridade que se encontra à vontade, inteiramente e sem nostalgia, na vida e na realidade, que não conhece pátria superior; apesar de que existem pessoas tão grosseiras, tão inabalavelmente eficientes que não se pode imaginar sua morte, sua consagração à morte.

     Se não é a depressão que nos priva do sono, mas a paixão, chamada por Gotama Buda “devoção”, a fervorosa ligação do nosso “eu” à atividade quotidiana, isso é então mais que o sintoma de um estado nervoso. Significa que a nossa alma perdeu sua pátria, que no seu ardor se afastou tanto que não consegue encontrar o caminho do retorno; contudo, não é freqüente termos a impressão que precisamente os maiores e mais fortes homens de ação, os apaixonados, se “reencontram” sempre com facilidade? Ouvi dizer que Napoleão podia adormecer quando queria, em pleno dia, entre pessoas, no tumulto de uma batalha indecisa...

     Enquanto penso nisso, tenho sob os olhos esta imagem, sem grande valor artístico, cujo assunto sempre exerceu sobre mim infinita fascinação. Intitula-se: “É Ele”. Representa um pobre quarto de camponeses. Seus ocupantes, marido, mulher e filhos, comprimem-se à beira da porta aberta, numa contemplação espantada. Pois lá, no meio do cômodo, apoiado na modesta mesa, o Imperador está sentado e dorme. Está sentado lá, este símbolo da paixão egoísta e exuberante, tirou sua espada, seu punho descontraído repousa sobre a mesa, e com o queixo inclinado sobre o peito, ele dorme. Não sente necessidade de silêncio, da obscuridade, nem mesmo do travesseiro para esquecer o mundo. Sentou-se sobre a dura cadeira, a primeira que surgiu, fechou os olhos, deixou tudo atrás de si e dorme.

     Certamente, é aquele que conserva pela noite mais fidelidade e nostalgia, aquele que todavia durante o dia produz obras formidáveis. Eis por que prefiro a obra nascida da “nostalgia da noite sagrada”, que, apesar de si mesma, volta-se para o esplendor de sua vontade e embalo sonhador. Enquanto escrevo, ouço “Tristão” de Richard Wagner.

    

                                     A QUEDA

     Estávamos novamente entre nós, todos os quatro. Desta vez o pequeno Meysenberg representava o papel do anfitrião. Seu atelier prestava-se maravilhosamente para um jantar.

     Era uma sala estranha, mobiliada num estilo original, de acordo com um humor caprichoso de artista. Vasos etruscos e japoneses, leques espanhóis e punhais, quadros chineses e alaúdes espanhóis, conchas africanas e estatuetas antigas, bibelôs rococós coloridos e virgens de cera, velhas gravuras e trabalhos do próprio Meysenberg.

     Tudo isto estava acumulado na sala sobre as mesas, sobre as arcas, nos consoles e nas paredes. Além disso, as paredes estavam cobertas, como o chão, de espessos tapetes do Oriente e de sedas bordadas, empalidecidas. Era uma mistura de contrastes gritantes.

     Os quatro, quer dizer, o pequeno e ágil Meysenberg de cachos morenos; Laube, o jovem idealista louro que ocupava-se de economia nacional e que proclamava-se a favor da emancipação feminina onde quer que fosse; o Dr. Selten e eu. Nós, os quatro, estávamos agrupados no meio do atelier, sobre os assentos mais variados, em volta da pesada mesa de acaju. Honrávamos ao suculento menu que nosso anfitrião nos havia preparado. Talvez os vinhos ainda mais.

     O doutor estava sentado num grande banco de igreja, de esculturas antigas, de que não parava de zombar com sua maneira cáustica. Era o ironista de nosso grupo. A experiência do mundo e o desprezo pelo mundo exprimiam-se em cada um de seus gestos. Era o mais velho dos quatro. Perto dos trinta, sem dúvida. Era também o que havia “vivido” mais.

     — Um viciado! dizia Meysenberg. Mas é divertido!

     A expressão do doutor traía evidentemente o hábito da farra. Seus olhos tinham um certo brilho embaçado e seus cabelos negros cortados à escovinha já apresentavam no alto do crânio uma pequena calvície. Alguns traços sarcásticos que às vezes lhe davam uma expressão de amargor corriam do nariz até as comissuras dos lábios. E marcavam seu rosto, que uma barba pontuda alongava.

     No roquefort já estávamos nas “conversas profundas”. Selten chamava-as assim com a ironia desdenhosa de um homem que adotou como única filosofia o prazer sem porquê e sem escrúpulos desta vida terrestre que o “Supremo Reino Lá de Cima” havia posto em cena sem muita prudência, como dizia ele, para em seguida dar de ombros e perguntar: “Teria sido melhor abster-se?”

     Mas Laube, que havia habilmente desviado a conversa, do fundo de sua profunda poltrona trabalhada fazia gestos desesperados no ar.

     — Justamente. Justamente. A humilhante situação social da mulher (ele não dizia nunca Frau mas sempre Weib, porque soava mais naturalista1) tem suas origens nos preconceitos, nos estúpidos preconceitos da sociedade!

     — À sua saúde, disse Selten docemente num tom de pena, e virou de um trago seu cálice de vinho vermelho.

     O jovem rapaz perdeu o resto de calma. Pulou:

     — Ora, seu velho cínico! Não se pode conversar com você! Mas vocês (ele virou-se para Meysenberg e eu com um ar de desafio) têm que me dar razão. Sim ou não?

     Meysenberg descascava uma laranja.

     — Metade da razão, é claro, disse ele confiantemente.

     — Continue, disse eu ao orador para encorajá-lo. (Era preciso que ele se desabafasse de uma vez, senão não teríamos paz.)

     — Nos estúpidos preconceitos e na injustiça da sociedade, repito. Todas as bagatelas lhes são concedidas. Meu Deus, é perfeitamente ridículo. Organizam agora liceus para meninas e colocam mulheres como telegrafistas ou qualquer coisa assim. E então? Mas e numa grande escala? Numa grande escala? E tudo o que toca o plano erótico sexual, que crueldade sem visão!

     — Já era tempo, diz o doutor bastante aliviado, e afasta seu guardanapo, pelo menos isto está se tornando interessante!

     Laube fez o favor de lançar-lhe um olhar.

     — Vejam, continuou ele insistentemente, e agitou no ar um grande bombom que jogou para dentro da boca com um gesto decisivo. Vejam, quando dois seres se amam, e o rapaz abusa da jovem, ele continua sendo um homem honrado como antes, diz-se mesmo que agiu muito bem. Mas a mulher fica desonrada, perdida. Sim, perdida! Mas sobre que fundamento moral pode-se basear semelhante opinião? Ele não agiu de maneira muito mais de-son-ro-sa do que a mulher? Vamos, falem! Digam alguma coisa!

     Meysenberg seguia a fumaça do cigarro com um olhar pensativo.

     — Em suma, você tem razão, disse ele com indulgência.

     O triunfo de Laube inscreveu-se em seu rosto.

     — Não é? Não é? repetia ele sem parar. Em que se justifica moralmente tal julgamento?

     Eu olhava o Dr. Selten. Ele tinha ficado bastante silencioso. Enrolava entre os dedos uma bolinha de migalha de pão e olhava fixamente o vazio, com a expressão amarga que conhecemos.

     — Levantemo-nos da mesa, disse ele afinal calmamente. Vou contar-lhes uma história.

     Havíamos empurrado a mesa de jantar e instalamo-nos confortavelmente no fundo da sala, no nosso canto reservado à conversa, com seus tapetes e suas pequenas poltronas de almofadas. Uma lâmpada entornava no atelier uma luz velada azul. Uma leve camada de fumaça de cigarro já ondulava sob o teto.

     — Vamos, comece, disse Meysenberg enchendo com sua Bénédictine francesa quatro pequenos cálices.

     — Sim, eu lhes contarei com prazer esta história, já que chegamos a este assunto por acaso, disse o doutor. Ela está pronta, sob forma de novela. Vocês sabem que antigamente ocupei-me deste gênero de coisas.

     Não podia distinguir muito bem seu rosto. Ele estava sentado, uma perna cruzada sobre a outra, as mangas nos bolsos laterais de seu casaco, afundado em sua poltrona, e levantava calmamente os olhos para a lâmpada azul.

     O herói de minha história, começou ele no fim de um momento, havia terminado seus estudos no liceu de sua pequena cidade natal. Com dezoito ou dezenove anos entrou na universidade de P., uma cidade maior do que normalmente o são na Alemanha do Sul.

     Era o “bravo rapaz” realizado. Ninguém podia lhe querer mal. Alegre e ao mesmo tempo indulgente. Tornou-se imediatamente o favorito entre seus camaradas. Um belo rapaz magro de traços leves, de olhos castanhos e felizes, lábios delicadamente arqueados que começavam a se sombrear com os primeiros pêlos. Quando com seu chapéu claro jogado sobre os cachos morenos, as mãos nos bolsos, passeava pelas ruas lançando à sua volta olhares curiosos, as meninas atiravam-lhe olhadelas apaixonadas.

     Ainda por cima era inocente. Tão puro de corpo quanto de alma.

     Podia-se dizer dele, como Tilly, que nunca havia perdido uma batalha nem roçado em nenhuma mulher. A primeira eventualidade porque a ocasião não havia se apresentado, e a segunda igualmente por falta de oportunidade.

     Depois de quinze dias em P., apaixonou-se, é claro. Não por uma servente de bar, como é de praxe nestes casos, mas por uma jovem atriz, uma senhorita Weltner, uma ingênua do Teatro Goethe.

     Claro, como observou justamente o poeta, com a embriaguez da juventude, vê-se Helena em cada mulher. Mas a jovem era realmente bela. Uma silhueta frágil e infantil, cabelos de um louro acinzentado, olhos cândidos, castanhos, de um cinza puxando para o azul. Um pequeno nariz fino, uma boca inocente e doce, um queixo arredondado e de linhas delicadas.

     Apaixonou-se primeiro por seu rosto, depois por suas mãos, finalmente por seus braços, que viu desnudos numa noite em que ela representava um papel antigo, e depois apaixonou-se por ela toda. Por sua alma também, que ele desconhecia completamente.

     Seu amor custou-lhe muito dinheiro. De dois em dois dias reservava um lugar no Teatro Goethe. A cada instante era forçado a escrever a sua mamãe para solicitar subsídios, imaginando para justificar seu pedido as explicações mais absurdas. Mas enfim, ele mentia por ela, isto desculpava tudo.

     Quando soube que a amava, a primeira coisa que fez foi escrever poemas. O “silencioso lirismo” alemão bem conhecido.

     Ficava freqüentemente, até tarde da noite, entre seus livros. Só o pequeno despertador sobre a cômoda fazia ouvir seu tic-tac uniforme e lá fora soavam por momentos passos solitários. No alto do peito, no nascimento do pescoço, sentia uma dor mole, líquida, morna, que tendia a subir e se espalhar até seus olhos pesados. Mas como tinha vergonha de chorar de verdade, derramava suas lágrimas em palavras, no papel paciente.

     Então, cantava em versos ternos, melancólicos, como ela era doce e encantadora, e como ele estava doente e cansado, e como uma grande inquietude habitava sua alma e o empurrava para algum lugar, para um vazio, longe, bem longe, lá onde entre as rosas e as violetas cochilava uma felicidade suave, mas ele, ele estava acorrentado...

     Claro, era cômico. Todos teriam rido de sua poesia. As palavras, aliás, eram tão bobas, tão impotentes e insignificantes. Mas ele a amava. Ele a amava!

     Naturalmente, imediatamente após ter se confessado isto, sentiu vergonha. Era um amor tão miserável, tão humilde, que se limitava a beijar em sonho, silenciosamente, seu pequeno pé, porque ela era tão encantadora. Ou sua mão branca, e depois disso morria de alegria. Quanto à sua boca, nem mesmo ousava pensar.

     Uma noite, acordando, imaginou-a deitada neste momento, sua querida cabeça sobre o travesseiro branco, sua boca suave entreaberta, e suas mãos, estas mãos indescritíveis, com veias de um azul delicado, dobradas sobre a coberta. Então ele se virou bruscamente, apertou o rosto contra o travesseiro e chorou por muito tempo na escuridão.

     Este foi o ponto culminante. No momento não era mais capaz de escrever poemas nem de se alimentar. Evitava seus amigos, não saía mais e não tinha vontade de ler nada. Seu único desejo era ficar sempre sonhando, melancolicamente, diante da fotografia dela que havia comprado há muito tempo, mergulhado em suas lágrimas e seu amor.

     Uma noite, em companhia de seu amigo Rölling, um dos antigos camaradas do liceu e que fazia medicina igualmente, mas estava alguns semestres à sua frente, encontrava-se sentado diante de uma imponente caneca de chope, no canto de um café qualquer.

     De repente, Rölling colocou o chope na mesa.

     — Então, meu pequeno? Diga-me o que você tem no fundo.

     — Eu?

     Mas renunciou a se calar e desabafou-se. Falou dela e dele.

     Rölling, desaprovador, balançava a cabeça.

     — Muito mau, meu pequeno. Não há nada a fazer. Ela sempre viveu junto da mãe. A mãe morreu, é verdade, já há algum tempo, mas apesar de tudo não há nada a fazer. Uma menina terrivelmente direita.

     — Como, então você achava que eu queria...

     — Bem, eu pensei que você desejava...

     — Oh, Rölling!...

     — Bem, me perdoe. Só agora compreendo tudo. Não imaginei que a coisa era assim tão sentimental. Então você vai enviar-lhe um buquê e escreverá um bilhete casto e respeitoso implorando uma autorização escrita para apresentar-lhe suas homenagens e exprimir-lhe em viva voz sua admiração.

     Empalideceu e seu corpo estremeceu todo.

     — Mas... mas não dá para fazer isto!

     — Por que não? Qualquer garçom levará o bilhete para você por 40 pfennings.

     Seu tremor aumentou.

     — Meu Deus, se isto fosse possível!

     — Onde mora ela?

     — Não... não sei.

     — Nem isto você sabe? Garçom, traga o catálogo. Rölling descobriu rapidamente o endereço.

     — Hein? Até agora viveu num meio melhor, mas mudou-se para a Heustrasse 6-A, no terceiro andar. Veja: Irma Weltner, pensionária do Teatro Goethe... Olhe, é um bairro terrivelmente popular. É assim que a virtude é recompensada.

     — Por favor, Rölling...

     — Está bem, está bem. Então você vai fazer isto. Talvez consiga beijar-lhe uma vez a mão. Coração sensível! As três moedas do seu lugar na platéia desta vez serão gastas no buquê...

     — Ah meu Deus, que me importa este dinheiro miserável!

     — Como é belo não se possuir mais a razão! declamou Rölling.

     Na manhã seguinte, uma carta de uma comovedora ingenuidade juntamente com um maravilhoso buquê partiu para a Heustrasse. Ah se ele recebesse uma resposta, não importa que resposta! Com que júbilo beijaria cada linha!

     No fim de oito dias, a caixinha do correio havia quebrado de tanto ser aberta e fechada. A proprietária partiu para cima dele com impropérios.

     As olheiras do jovem aumentavam. Tinha mesmo uma figura lamentável. Quando se olhava no espelho seu reflexo lhe fazia medo então chorava enternecendo-se consigo mesmo.

     — Escuta, meu pequeno, disse Rölling um dia energicamente, isto não pode continuar assim. Você está sumindo! É preciso fazer alguma coisa. Amanhã, você simplesmente irá à casa dela.

   Ele arregalou seus olhos dolorosos.

     — Simplesmente... na casa dela...

     — Sim.

     — Mas não pode ser. Ela não me deu autorização.

     — No fundo esta comédia toda é absurda. Deveríamos ter pensado logo que ela não lhe daria autorização por escrito sem lhe conhecer. Você vai vê-la. Sim-ples-men-te. Você vai ficar embriagado de felicidade se ela lhe der bom-dia apenas. Você não é feio. Ela não vai lhe botar porta afora sem lhe olhar pelo menos... Irá amanhã.”

     Ele sentiu uma vertigem.

     — Não posso, disse docemente.

     — Então, não há nenhum jeito de lhe ajudar. Rölling se aborreceu.

     — Você devia se virar sozinho para ficar bom!

     Enquanto lá fora o inverno fazia um último assalto ao mês de maio, seguiram-se alguns dias de luta terrível.

     Mas uma manhã, acordando de um profundo sono, depois de tê-la visto em sonho, quando abriu a janela, era primavera.

     O céu estava claro, de um azul pálido, parecia irradiar um doce sorriso, e um aroma delicioso perfumava a atmosfera.

     Ele sentiu, inspirou, saboreou, viu e ouviu a primavera. Todos os seus sentidos eram primavera. Teve a impressão de que o enorme raio de sol que batia em cima da casa insinuava-se até seu coração, clareava-o e o fortificava.

     Uma estranha calma o invadiu e quase lhe fez medo. Mas persistiu. Uma calma de sonho, como se não fosse ele quem subia os degraus. E encontrava-se agora diante da porta lendo o cartão de visita: “Irma Weltner.”

     Subitamente teve a certeza de que cometia uma loucura. Perguntava-se o que tinha vindo fazer e se dizia que era preciso desistir e voltar antes que o surpreendessem.

     Mas foi como se este último assalto de timidez o tivesse arrancado deste estado de embriaguez de ainda há pouco. Porque uma grande confiança, segura, tranqüila, penetrou-lhe a alma. Até então havia estado como sob o peso de um fardo, de um terrível imperativo, uma espécie de estado de hipnose. Agora era animado por uma vontade livre, segura de sua meta, exultante. Era primavera!

     A campainha e um ruído metálico ressoaram por todo o andar. Uma servente veio abrir.

     — A senhorita está em casa? perguntou ele com entusiasmo.

     — Está sim, mas quem devo?...

     — Tome.

     Deu-lhe seu cartão, e enquanto o levava, ele simplesmente foi atrás dela, com um riso exuberante no coração. Quando a empregada entregou o cartão à sua jovem patroa ele já se encontrava na sala, em pé, o chapéu na mão.

     Era uma sala do tamanho médio, com móveis simples e escuros.

     A jovem havia deixado seu lugar, perto da janela. Um livro sobre uma mesinha parecia ter sido abandonado naquele instante. Ele nunca a havia visto tão encantadora quanto agora, em nenhum dos papéis que havia representado. O vestido cinza escuro que moldava sua silhueta fina era de uma elegante simplicidade. Nos cabelos louros acima de sua fronte tremia o sol de maio.

     Sentiu seu sangue ferver e murmurar de alegria. Enquanto ela lançava um olhar espantado sobre o cartão, depois um outro mais espantado ainda sobre ele mesmo, seu desejo ardente exprimiu-se. Deu dois grandes passos em direção a ele e pronunciou algumas palavras angustiadas e impetuosas:

     — Oh não!... não fique zangada!

     — Que intrusão é esta? perguntou ela achando tudo muito divertido.

     — Mas era preciso, embora não tenha recebido autorização para isto. Era preciso que pelo menos uma vez eu dissesse pessoalmente a que ponto a admiro, senhorita...

     Ela apontou-lhe uma cadeira amavelmente e enquanto sentava continuou gaguejando:

   — Veja bem, sou uma dessas pessoas que são obrigadas a dizer tudo imediatamente e não guardar sempre tudo dentro de si... silenciosamente, é por isso que lhe pedi para...

     Interrompeu-se ingenuamente para perguntar:

     — Mas por que não me respondeu, senhorita?

     — Bem, não saberia dizer, replicou ela sorrindo, como sinceramente seus elogios e o belo buquê me deram prazer, mas... eu não poderia... não poderia imediatamente... eu não podia saber, não é?

     — Não, não, eu devia ter pensado nisso. Mas agora você não está zangada comigo por ter vindo sem ter sido autorizado...

     — Ah não, como poderia estar zangada?... Há muito tempo que você está em P.? acrescentou ela vivamente, procurando com muito tato evitar um silêncio constrangedor.

     — Há seis ou sete semanas, senhorita.

     — Tanto assim? Pensei que tinha me visto no palco há uns dez dias somente, quando recebi seu amável bilhete.

     — Permita-me, senhorita! Eu a vi durante este tempo todo quase todas as noites! Em todos os seus papéis!

     — Então por que não veio mais cedo? perguntou ela inocentemente espantada.

     — Deveria ter vindo mais cedo?... replicou ele coquetemente.

     Sentia-se tão indizivelmente feliz, sentado na frente dela, conversando intimamente com ela, e a situação parecia tão inimaginável que temia despertar tristemente deste sonho tão doce, como era hábito.

     Sentia-se tão alegre, tão à vontade, que havia cruzado as pernas quase com desenvoltura e ao mesmo tempo tão perdidamente feliz que tinha vontade de cair a seus pés jubilante... Tudo isto é bobagem... eu te amo tanto... te amo tanto!

     Ela ficou embaraçada, mas logo se pôs a rir cordialmente, feliz com sua resposta.

     — Perdão, você me entendeu mal. Falei isto, evidentemente de uma maneira um pouco desajeitada, mas você não deve ter reflexos tão lentos...

     — Eu me esforçarei, senhorita, para ter reflexos ainda mais rápidos...

     Estava absolutamente fora dele, depois se recapitulou mais uma vez a cena. Ela estava sentada e ele perto dela. Tocou-se mais uma vez para se provar que era ele mesmo e seus olhos incrédulos, extasiados, deslizavam sempre novamente para o rosto e a silhueta da jovem... Sim, era sua cabeleira de um louro acinzentado, sua boca doce, seu queixo de linhas ternas com uma ligeira tendência para um queixo duplo. Era sua voz clara, infantil, seu jeito encantador de falar, que agora, fora do teatro, se tingia de um acento alemão do sul. Sem aprofundar mais sua última resposta, ela tomou seu cartão sobre a mesinha para se familiarizar um pouco mais com seu nome. E eram suas mãos queridas, que ele havia freqüentemente beijado em sonho, estas mãos indescritíveis, e seus olhos, que ela voltava novamente para ele, com uma amabilidade cheia de interesse. E era novamente a ele que ela se dirigia, prosseguindo a conversa, num fogo cruzado de perguntas e respostas. A conversa se prolongou, com hesitações de vez em quando, depois com um aumento de maliciosidade... Eles falaram de suas origens, das atividades de Irma Weltner e de seus papéis. Ele naturalmente elogiou e admirou sem limites a maneira como ela os “compreendia”, ainda que no fundo, como ela mesmo disse protestando com um pequeno riso, havia nestes papéis bem poucas coisas para se “compreender”.

     Em seu riso alegre ressoava sempre uma pequena nota teatral, como por exemplo quando o gordo Papa lança para a platéia uma palavra espirituosa de Moser, mas não importa, ele estava fascinado. Contemplava seu rosto com uma paixão ingênua, não disfarçada, a tal ponto que mais de uma vez teve que lutar contra a tentação de cair aos seus pés e lhe confessar francamente seu imenso amor.

     Talvez uma boa hora já tivesse se passado quando finalmente consultou seu relógio, bastante embaraçado, e se levantou apressadamente.

     — Mas estou tomando seu tempo, senhorita! Já deveria ter me mandado embora há tanto tempo! Devia, entretanto, saber que em sua presença o tempo...

     Inconscientemente agia com muito tato. Já não se tratava mais de sua admiração para a jovem como artista. Seus elogios exprimidos com uma franqueza ingênua, tomavam instintivamente um caráter mais pessoal.

     — Mas que horas são? Por que você já quer ir embora? — perguntou ela com uma surpresa triste, que se estivesse sendo representada fazia um efeito mais realista e convincente que sobre um palco.

     — Meu Deus! Já lhe aborreci o suficiente. Durante toda uma hora!

     — Como? O tempo passou assim tão depressa para mim? — gritou ela com um espanto desta vez indubitavelmente sincero. — Já uma hora! É preciso então que eu me apresse para fazer entrar na cabeça o meu novo papel para esta noite. Você estará no teatro? No ensaio não sabia nada ainda. O diretor quase me bateu!

     — Quando posso matá-lo? — perguntou ele solenemente.

     — Melhor hoje do que amanhã!

     Ela pôs-se a rir, estendendo a mão para despedi-lo.

     Então ele debruçou-se sobre sua mão com uma fúria apaixonada que não conseguia frear. E pousou nela seus lábios, num longo, interminável beijo, embora um instinto secreto o chamasse de volta à razão. Mas não conseguia desligar-se do suave perfume desta mão, e separar-se deste maravilhoso tumulto de sentimentos.

     Irma retirou sua mão um pouco precipitadamente e quando ele levantou novamente os olhos para ela, acreditou distinguir em seu rosto uma certa expressão de embaraço, de que deveria alegrar-se de todo seu coração, mas que interpretou como um aborrecimento inspirado por sua conduta inconveniente. E durante um momento ficou desolado, confuso.

     — Meu mais cordial obrigado, senhorita, disse ele vivamente e de uma maneira mais cerimoniosa do que até então, pela grande amabilidade que me testemunhou.

     — Não há de quê. Tive muito prazer em conhecê-lo.

     — E, não é verdade, implorou ele novamente, retomando seu tom ingênuo de ainda há pouco, não vai me recusar uma pedido, senhorita... quer dizer, vai deixar que eu volte mais uma vez?

     — Naturalmente... isto é, certamente... Por que não?

     Ela mostrou um ligeiro embaraço. Depois do estranho beijo o pedido parecia um pouco deslocado.

     — Ficarei muito contente de conversar novamente com você, acrescentou ela com uma amabilidade calma e estendeu-lhe mais uma vez a mão.

     — Mil vezes obrigado!

     Ele inclinou-se brevemente e de repente encontrou-se do lado de fora. Imediatamente após ter deixado de vê-la foi como se tivesse sido um sonho.

     Mas em seguida sentiu novamente o calor da mão de Irma na sua e em seus lábios, e então soube que era mesmo realidade e que seus sonhos extasiados, “debochados” tinham se tomado verdadeiros. Desceu a escada ofegante, como bêbado, debruçado meio de lado sobre a rampa que ela devia ter tocado mil vezes e que ele cobriu de beijos jubilantes, do alto até embaixo.

     Lá embaixo, diante da fachada de uma casa um pouco afastada, havia uma pequena praça, uma espécie de pátio-jardim onde do lado esquerdo um monte de lilases abriam suas pequenas flores. Ele parou, enfiou seu rosto ardente na moita fresca e aspirou longamente, enquanto seu coração rendia-se ao perfume nascente, delicado.

     Oh... oh — como a amava!

     Rölling e alguns outros rapazes já haviam terminado a refeição quando ele entrou no restaurante e ainda todo embraseado sentou-se perto deles depois de uma rápida saudação. Durante alguns minutos ficou completamente silencioso e limitou-se a olhá-los, um após outro com um sorriso de superioridade, como se em segredo se divertisse às custas deles. Deles, que, sentados, fumando, não desconfiavam de nada.

     — Minhas crianças, gritou ele de repente debruçando-se sobre a mesa, vocês sabem da novidade? Eu estou feliz!

     — Ah! Ah! Ah! — Riu Rölling, e olhou-o de uma maneira bastante significativa, em pleno rosto. Depois, com um gesto solene, estendeu-lhe a mão através da mesa.

     — Minhas mais sentidas felicitações, meu pequeno.

     — Mas por quê?

     — O que se passa?

     — É verdade, vocês ainda não sabem. Muito bem, hoje é seu aniversário. Ele festeja seu aniversário. Olhem-no um pouco. Vocês diriam que ele acaba de nascer novamente?

     — Puxa vida!

     — Quem diria!

     — Felicitações!

     — Devíamos regar isto com vinho...

     — Mas é claro! Garçom!...

     Ficou estabelecido que celebrava-se seu aniversário.

     Enfim, depois de oito dias de espera penosamente suportada com uma nostalgia impaciente, ele renovou sua visita. Ela o havia autorizado, não é? Todo os états d'âme exaltados que a timidez amorosa havia despertado nele na primeira vez já estavam morrendo.

     Depois veio e conversou com ela mais freqüentemente. Porque ela sempre lhe permitia novas visitas.

     Eles conversavam com abandono, e quase que se podia qualificar sua relação de amigável, se de vez em quando, de repente, não se manifestasse um certo embaraço, uma timidez, alguma coisa como um vago medo que aparecia geralmente nos dois ao mesmo tempo. Nestes momentos, a conversa podia morrer subitamente e se perder num olhar mudo, que durava um segundo. Depois imediatamente, como no primeiro beijo, dava pretexto para o diálogo ser retomado momentaneamente mais animado.

     Às vezes lhe era permitido levá-la para casa depois da representação. Que felicidade traziam para ele estas noites primaveris quando a seu lado errava pelas ruas! Diante da porta de sua casa, ele agradecia-lhe cordialmente por sua gentileza, ele beijava sua mão e prosseguia o caminho, o coração cheio de uma exaltação jubilante.

     Foi numa destas noites que depois de ter se despedido dela e de já ter se afastado alguns passos, virou-se uma última vez. Então viu que ela ainda estava na soleira e parecia procurar alguma coisa no chão. Mas pareceu-lhe que somente quando o viu virar-se de repente ela tomou a atitude de alguém que procura.

     — Eu lhe vi ontem à noite! disse Rölling um dia. Meu pequeno, aceite a expressão de minhas maiores considerações. Sem dúvida ninguém ainda foi tão longe com ela. Você tem talento. Mas assim mesmo é um bobo. Ela não pode tomar as iniciativas. Este modelo de virtude notória. Ela deve mesmo ter um fraco por você! E dizer que você não dá um passo para a frente!

     Ele olhou-o um instante sem compreender. Finalmente entendeu e disse:

     Ah, cala a boca...

     Mas tremia.

     A primavera amadureceu. Já no fim deste mês de maio sucedeu-se uma série de dias quentes onde nem uma gota de chuva caiu. O céu, de um azul pálido, vaporoso, contemplava do alto a terra sedenta. E o calor implacável, cruel, do dia, de noite cedia lugar a um ar pesado, arrasador, que uma brisa fraca tornava ainda mais sensível.

     Num destes finais de tarde nosso bravo rapaz passeava solitário nos arredores.

     Ele não tinha podido se suportar em casa. Estava doente de novo. De novo sentia-se encurralado por este desejo sedento que acreditava entretanto ter saciado há muito tempo graças à sua felicidade. Mas agora era forçado a gemer novamente. Gemer depois dela. O que queria ele ainda?

     A idéia vinha de Rölling, este Mefisto. Só que era mais bondoso e menos inteligente.

     Terminar esta contemplação...

     — Não ouso dizer como...2

     Com um gemido sacudiu a cabeça e fixou seu olhar ao longe, na penumbra.

     Isto vinha de Rölling! Pelo menos foi ele quem, vendo-o empalidecer novamente, havia dito em voz alta, em palavras brutais e apresentado inteiramente nua diante dele esta idéia até então envolta em nuvens de uma terna e vaga melancolia!

     E continuava a errar, cada vez mais longe, com seu passo esgotado e entretanto tenso pelo esforço, no ar pesado da noite.

     E não conseguia achar a moita de jasmim de que pensava sentir o aroma. Entretanto, era impossível que um jasmineiro estivesse em flor! Mas parecia-lhe respirar sempre, onde quer que fosse, este perfume suave, embriagador, logo que se encontrava fora de casa.3

     Numa encruzilhada do caminho, apoiado numa encosta que parecia um muro onde encontravam-se árvores dispersas, havia um banco. Sentou-se e olhou em frente. Do outro lado da estrada, o mato áspero inclinava-se para o rio que deslizava preguiçosamente. Um pouco depois da beira do rio, numa linha reta entre duas fileiras de álamos, balançando-se penosamente ao longo do horizonte de um violeta pálido, arrastava-se solitária uma carroça de camponês.

     Continuou sentado, os olhos fixos, sem ousar o menor movimento, porque também fora dele nada se mexia.

     E ainda e sempre este pesado perfume de jasmim!

     E no mundo inteiro este peso arrasador, este silêncio morno, este calor de encubadeira, tão sedento, tão ardente de desejo. Ele sentia que era preciso que uma liberação qualquer se produzisse, que a salvação viesse de algum lugar, a calma impetuosa e refrescante de toda esta sede que estava nele e na natureza...

     Então levantou-se, com uma vaga resolução tomada pela metade e voltou para a cidade com um passo cada vez mais rápido. Quando parou, com a consciência incerta de estar no fim do caminho, um grande terror invadiu-o de repente.

     A noite tinha caído completamente. Tudo estava silencioso e obscuro em sua volta. Somente de vez em quando um ser humano aparecia ainda a tal hora neste lugar tão afastado. Entre as numerosas estrelas vagamente encobertas, a lua, no céu, estava quase em seu auge. Bem longe, a luz impassível de um lampião de gás.

     E ele encontrava-se diante da casa de Irma.

     Não, não queria ter vindo! Mas alguma coisa nele havia querido, contra a sua vontade.

     E agora, enquanto levantava os olhos para a lua, sentiu, entretanto, que tudo estava em ordem e que ele estava em seu lugar.

     Vinda não se sabe de onde, de repente, uma luz. Ela vinha de cima, do terceiro andar, de seu quarto onde uma janela estava aberta. Então ela não estava ocupada no teatro, estava em casa e não dormia ainda.

     Ele chorou. Apoiou-se na hera e chorou. Tudo era tão triste. O mundo estava tão mudo e sedento e a lua tão pálida.

     E este desânimo árido pesou novamente em seu corpo todo, tanto que ele foi obrigado a gemer, nostalgicamente depois... depois...

     Não, não devia ceder, mas ele próprio se...

     Endireitou-se. Seus músculos se contraíram.

     Mas em seguida, uma dor morna, silenciosa, varreu novamente suas forças.

     Melhor era então ceder, com um cansaço.

     Apertou levemente a campainha e subiu a escada com um passo lento, se arrastando.

     A empregada olhou-o com um ar um pouco surpreso, a tal hora; mas a senhorita estava em casa.

     Ela não o anunciava mais. Depois de ter batido na porta com um golpe fraco, ele mesmo abriu a porta da sala de Irma.

     Não tinha consciência de agir. Não foi até a porta, deixou-se ir. Tinha impressão de ter, por fraqueza, abandonado qualquer timidez e que um imperativo silencioso, com um gesto grave, quase triste, lhe ordenava que entrasse. Sentia que qualquer vontade superior, independente, dirigida contra esta ordem muda e poderosa teria apenas criado em seu interior um doloroso conflito. Ceder, ceder. O que aconteceria seria justo e necessário.

     Em resposta à batida na porta, ouviu uma ligeira tosse como alguém que limpa um pigarro. Depois um “Entre!” ressoou, cansado e interrogador.

     Quando penetrou na sala, Irma estava sentada contra a parede do fundo, no canto do sofá, banhada de uma meia penumbra, atrás da mesinha. A lâmpada espalhava uma luz velada. Irma não voltou os olhos para ele, parecendo acreditar que era a empregada. Continuou imóvel, em sua atitude cansada, uma face esmagada contra as costas do sofá.

     — Boa noite, senhorita Weltner, disse ele docemente.

     Então ela sobressaltou-se, levantou a cabeça e olhou-o um instante com um profundo espanto.

     Ela estava pálida e seus olhos vermelhos. Uma expressão de sofrimento, silenciosa e resignada, crispava as comissuras de seus lábios. E um gemido cansado, indizivelmente doce, exprimia-se em seu olhar voltado para ele e no som de sua voz quando perguntou: “— Tão tarde?”

     Então ele sentiu explodir e subir nele o que nunca havia sentido porque nunca havia se abandonado a tal ponto. Uma dor quente, apaixonada, a dor de ver um sofrimento inscrito neste rosto tão doce, que havia pairado em sua vida como a imagem da felicidade encantadora, alegre. Sim, ela sofria, enquanto até agora ele só havia sentido pena de si próprio. Sentiu por ela uma profunda piedade, feita de uma infinita abnegação.

     Ele parou imediatamente e perguntou, agora timidamente e em voz baixa (mas seu sentimento exprimia-se bem alto, apaixonadamente):

     — Por que chorou, senhorita Irma?

     Ela continuou muda e olhou para os joelhos, para o lenço branco que amassava em sua mão.

     Então aproximou-se dela, e sentando ao seu lado, tomou suas duas mãos tão finas, de uma brancura de marfim, que estavam frias e úmidas e beijou ternamente cada uma. E enquanto de seu peito lágrimas ardentes subiam às pálpebras, repetiu com uma voz trêmula:

     — Você... você chorou?

     Mas ela inclinou a cabeça mais para baixo ainda, sobre o peito. O leve perfume de sua cabeleira subiu até ele e enquanto o seio de Irma ofegava, lutando contra uma dor profunda, angustiada, silenciosa e que seus dedos delicados estremeciam entre os seus, viu saltar de suas longas pálpebras sedosas duas lágrimas que se soltaram, lentamente, pesadamente.

     Ele apertou suas duas mãos temerosamente contra o peito, e bem alto, numa voz estrangulada, exalou seu lamento doloroso e desesperado.

     — Não posso... não posso ver você chorar! Não suportarei!

     Ela levantou seu pequeno rosto pálido para ele, e então eles puderam se olhar, olhos nos olhos, profundamente, profundamente, até o fundo da alma, e se dizer nesta troca de olhares que se amavam. Um grito de júbilo libertador, desesperado e carregado de êxtase, um grito de amor, dissipou a última timidez. Seus corpos juvenis se enlaçaram num abraço tumultuoso e crispado, seus lábios trêmulos se encontraram e no primeiro longo beijo, enquanto o mundo à sua volta desaparecia, entrou pela janela aberta o cheiro do lilás, neste momento pesado e carregado de desejo.

     Levantou seu corpo frágil, quase magro demais, e balbuciaram juntos seu amor, os lábios entreabertos.

     Depois ele estremeceu estranhamente quando ela, que para a timidez amorosa do jovem havia sempre sido uma divindade extraordinária, diante de quem ele havia se sentido sempre fraco, desajeitado e pequeno, quando ela começou a ofegar sob seus beijos...

     Uma vez, durante a noite, ele acordou.

     Um raio de lua brincava nos cabelos de Irma e sua mão repousava sobre seu seio.

     Então, ele levantou os olhos para Deus, beijou os olhos sonolentos de Irma e sentiu-se melhor do que nunca.

     Uma tempestade caíra durante a noite. A natureza estava liberada de seu torpor febril. O mundo inteiro respirava um ar refrescante, perfumado.

     Sob o sol matinal, os lanceiros atravessavam a cidade, e as pessoas paravam nas portas respirando o ar fresco e se cumprimentando.

     Enquanto dirigia-se para casa, por entre a primavera rejuvenescida, um cansaço sonhador e feliz nos membros, tinha vontade de exalar seu júbilo para o céu azul, luminoso. “Ó você minha doce... doce... doce...”

     Chegando em casa sentou-se à mesa de trabalho, diante do retrato da amada e recolheu-se. Entregou-se à um exame de consciência escrupuloso sobre o que havia feito. Perguntou-se se por acaso, apesar de toda a sua felicidade, não estava sendo um cretino. Isto lhe teria sido muito penoso.

     Sentia-se tão solene como por exemplo no dia de sua crisma. E quando olhou para fora a primavera balbuciando e o céu que sorria docemente, teve neste momento, como durante a noite, a impressão de contemplar Deus; uma gratidão grave e muda em seu rosto. Suas mãos se juntaram, e com uma ternura apaixonada murmurou o nome da amada, como uma fervorosa prece matinal lançada à primavera.

     Rölling? Não, era preciso que ele não soubesse. Era um rapaz muito gentil, mas empregaria novamente suas expressões tão desenvoltas e trataria o acontecimento de uma maneira... burlesca. Mas se algum dia voltasse para casa, sim, contaria à sua mãe, de noite, na hora em que a lâmpada sussurra. Contaria toda... toda a sua felicidade...

     E sentou-se novamente.

     Naturalmente, oito dias mais tarde Rölling sabia de tudo.

     — Sei de tudo. Meu pequeno, você acha que sou idiota? Será que poderia me contar a coisa com alguns detalhes?

     — Não sei do que você fala. Mas mesmo que soubesse, replicou gravemente, não falaria do que você sabe que sei, obrigando o perguntador, com um ar doutorai e gesticulando com o índex, a segui-lo através dos espirituais meandros de sua frase.

     — Olhem só como está isto! O meu amigo está soltando faíscas! Um verdadeiro brilhante! Palavra de honra, seja feliz, meu amigo!

     — Sou feliz, Rölling, disse ele gravemente, com fervor, e apertou apaixonadamente a mão de seu amigo. Mas Rölling achava que o caso estava tomando um aspecto muito sentimental.

     — Escute, disse ele. A pequena Irma não se tornará brevemente uma jovem senhora? Será que não posso ser amigo do casal?

     — Rölling, você é odioso!

   Talvez Rölling tenha falado. Ou talvez o amor de nosso herói, que por causa dele rompeu com todas as amizades e os antigos hábitos, não pudesse mesmo ficar ignorado por muito tempo. Logo correu pela cidade o boato de que “a” Weltner, do “Teatro Goethe”, tinha um “caso” com este jovem estudante. E as pessoas afirmavam agora que nunca haviam acreditado verdadeiramente na virtude desta “pessoa”.

     Sim, havia rompido com tudo. À sua volta o mundo havia desaparecido, e entre nuvens rosas e amores rococós, tocando violino, ele planou durante semanas. Só queria, durante a insensível fuga das horas, ficar deitado aos pés da jovem, a cabeça atirada para trás, e beber o sopro de seus lábios. O resto não contava. Para ele só subsistia esta embriaguez que os livros chamam de “amor”.

     Esta postura, a seus pés, caracterizava o relacionamento dos dois. Toda a superioridade mundana, exterior, da mulher de vinte anos sobre o rapaz da mesma idade se revelava. Ele era sempre aquele que movido pela instintiva necessidade de lhe agradar devia controlar suas palavras e seus movimentos para responder convenientemente ao que esperava Irma. Sem falar do abandono apaixonado das cenas de amor, era sempre ele que nas simples relações mundanas não podia se mostrar completamente descontraído e sofria de um certo embaraço. Talvez em parte por dedicação amorosa, talvez mais ainda porque no plano social fosse o menor, o mais fraco, suportava que ela o repreendesse como a uma criança, para em seguida pedir-lhe perdão humildemente, dolorosamente, até que lhe fosse permitido novamente aninhar a cabeça contra o seio de Irma, e que ela lhe acariciasse a nuca com uma ternura maternal. Sim, estendido a seus pés, levantava os olhos para ela, entrava e saía quando ela desejava e obedecia a cada um de seus caprichos. E como ela tinha caprichos!

     — Meu pequeno, declarou Rölling, acho que ela o tem debaixo do chinelo. Minha opinião é que você é dócil demais para uma união livre!

     — Rölling, você é um asno. Você não sabe. Não entende nada. É um todo. Eu não a amo somente como... como isto... mas a amo... eu a amo... ah, é impossível dizer!

     — Você é um cara bom demais, é isso, disse Rölling.

     — Ora, Rölling, que bobagem!

     Ora, que bobagem! Estas expressões estúpidas “chinelo” e “muito dócil” só podiam mesmo ser de Rölling. Na verdade seu amigo não entendia nada. Sua ligação era tão simples e tão legítima. Só podia mesmo ter entre suas mãos as mãos da amada e repetir-lhe sem cessar: “Ah, dizer que você me ama, que você me ama um pouquinho, como lhe sou grato por isso!”

    

     Uma vez, numa bela tarde, andava solitário pelas ruas e compôs um novo poema que emocionou-lhe muito:

    

             Quando o crepúsculo se apaga

             e o dia morre em silêncio,

             oh, junte as mãos com fervor,

             e eleve seus queridos olhos para Deus.

            

             Será que sobre nossa felicidade

             seus olhos descansam com tristeza,

             como se seu olhar tranqüilo

             nos dissesse que um dia este amor morrerá?

            

             Que a primavera desaparecerá,

             nos deixando em pleno inverno,

             e a dura mão da vida

             nos separará um do outro?

            

             Não apóie sua fronte, sua doce fronte

             tão ansiosamente contra a minha,

             a primavera ainda ri com todas as suas folhas,

             plena de um sol luminoso!

            

             Não não chore! A dor dorme, longínqua,

             ó minha amada, venha ao meu coração!

             ainda é a hora em que com gratidão

             o amor feliz eleva os olhos ao céu!

    

     Mas se este poema o emocionava, não era porque estivesse pensando seriamente um instante sequer na possibilidade de um fim. Esta era uma idéia insensata. No fundo, só lhe vinham ao coração os últimos versos, onde a melancólica monotonia do ritmo se interrompia na alegre emoção da felicidade presente, num ritmo rápido e livre. O resto exprimia simplesmente uma musicalidade que lhe fazia subir aos olhos a carícia de vagas lágrimas.

     Escreveu novamente à sua família cartas que com certeza ninguém entendeu. Na verdade, elas não continham nada. Mas a sua pontuação traía uma agitação extrema. Estavam cheias de pontos de exclamação completamente sem razão de ser. Mas era preciso que ele comunicasse e exteriorizasse sua felicidade de alguma maneira, e como não podia falar abertamente, seus pontos de exclamação queriam dizer muitas coisas. Freqüentemente ria baixinho, com alegria, pensando que até seu pai tão inteligente não seria capaz de decifrar estes hieróglifos. E entretanto, eles apenas queriam dizer; estou tre-men-da-men-te feliz!

   Assim passou o tempo até o meio de julho, nesta maravilhosa, suave e transbordante felicidade. E nossa história seria fastidiosa se não acontecesse algo muito divertido numa determinada manhã.

     Era uma manhã realmente muito bela. Era cedo ainda, perto de nove horas. O sol acariciava a pele agradavelmente. O ar recomeçava a perfumar. Exatamente, pensou ele, como a famosa manhã depois da primeira noite maravilhosa.

     Estava de muito bom humor e batia alegremente com sua bengala na calçada branca como neve. Pensava ir até a casa de Irma.

     Ela não esperava sua visita, isso era o melhor de tudo. Ele havia pensado em assistir uma aula esta manhã, mas naturalmente este projeto não deu em nada. Um dia como este! Só faltava isto! Neste belo dia ficar sentado num anfiteatro! Se estivesse chovendo, aí sim. Mas nestas condições, sob este céu com seu claro e terno sorriso... Ir à casa de Irma, à casa dela! Sua decisão lhe fazia ver tudo cor-de-rosa. Descendo a Heustrasse, assobiava a enérgica cantiga dos beberrões da Cavalaria Rusticana.

     Diante de sua casa, parou e aspirou por um momento o perfume do lilás. Ele havia estabelecido pouco a pouco uma amizade apaixonada com o arbusto. Cada vez que vinha, parava e tinha com ele um pequeno diálogo mudo, extremamente sentimental. O lilás lhe descrevia, com promessas silenciosas e delicadas, toda a felicidade que o aguardava uma vez mais. E ele o contemplava como acontece às vezes quando sentimos uma grande felicidade ou uma grande dor e desesperamos por comunicá-la a um ser humano, e nos viramos num estado de grande emoção para a natureza imensa e silenciosa que na verdade parece às vezes nos compreender. Ele considerava, já há algum tempo, o lilás integrado à sua situação, dividindo suas emoções, familiar. E graças à sua permanente exaltação, via nele muito mais do que um simples acessório decorativo de seu romance.

     Depois de ter deixado por algum tempo o querido e temo aroma contar-lhe e prometer-lhe mil coisas, subiu a escada. E depois de ter encostado a bengala no corredor, entrou sem bater, alegre e exuberante, as duas mãos nos bolsos do paletó claro de verão, seu chapéu redondo jogado para trás porque sabia que era assim que ela o preferia. Entrou na sala de visitas.

     — Bom dia, Irma. Diga, você está sem dúvida... “surpresa”, ia ele acrescentar, mas foi ele quem ficou surpreso. Quando entrou, viu que ela se levantou de um pulo como se fosse procurar precipitadamente alguma coisa, mas sem saber bem o quê. Ela passou o guardanapo nos lábios, completamente sem ação, em pé diante dele, olhando-o com seus grandes olhos. Na mesa havia café e biscoitos. De um lado estava sentado um velho senhor respeitável, com um cavanhaque branco como neve, vestido com uma extrema correção, que mastigava seus biscoitos e o olhava muito espantado.

     Ele tirou vivamente o chapéu, virou-o e revirou-o entre as mãos, com um ar embaraçado.

     — Oh, perdão, disse ele. Não sabia que você tinha visita.

     O velho interrompeu sua mastigação e olhou a jovem em pleno rosto.

     O jovem teve medo de vê-la tão pálida e sempre na mesma atitude. Mas o velho tinha ainda a cara muito pior! Um verdadeiro cadáver. E nem parecia ter penteado os raros cabelos que lhe restavam! Quem poderia ser? Tentou pensar rapidamente sobre isto. Um parente? Mas como ela nunca havia falado dele? Enfim, de qualquer maneira era uma situação muito desagradável. Que pena! Ele esperava tanto desta visita! Só lhe restava ir embora. Era horrível! E horrível também que ninguém dissesse nada! Como deveria ele se comportar nesta situação?

     — O quê? disse de repente o velho senhor e passeou em sua volta o olhar de seus pequenos olhos castanhos, brilhantes, enfiados nas órbitas, como se esperasse uma resposta a esta questão enigmática. Talvez estivesse confuso. Tinha uma expressão bastante estúpida no rosto. Seu lábio inferior pendia, flácido como o de um idiota.

     Nosso herói subitamente teve a idéia de se apresentar. E o fez com muita dignidade.

     — Eu me chamo X. Queria simplesmente... queria apresentar meus cumprimentos...

     — Não me interessa! berrou de repente o respeitável senhor. O que você quer?

     — Perdão.

     — Ah! Dê um jeito de dar o fora. Você está sobrando aqui. Não é verdade, minha gatinha?

     Dizendo isto, levantou amavelmente seus olhos para Irma.

     Ora, nosso herói não era precisamente um herói, é verdade, mas a maneira de falar do velho senhor havia sido tão ofensiva, sem contar que a decepção havia feito passar seu bom-humor completamente, que ele mudou logo de atitude.

     — Permita-me, senhor, disse ele com calma e decisão, não compreendo o que lhe autoriza a me falar desta maneira... ainda mais que acredito ter ao menos tanto direito quanto o senhor de me encontrar neste quarto.

     Foi demais para o velho senhor. Uma tal aventura nunca lhe havia acontecido. Seu lábio inferior agitou-se sob o efeito de uma grande emoção. Ele bateu três vezes o guardanapo sobre o joelho e forçando ao máximo seus modestos poderes vocais, proferiu estas palavras:

     — Jovem imbecil! Você não passa de um jovem imbecil!

     Sim, até agora o rapaz havia freado sua cólera e admitido a possibilidade de que o velho senhor fosse um parente de Irma. Mas sua paciência chegou ao limite. A consciência de sua ligação com a jovem cresceu orgulhosamente nele. Pouco importava quem fosse este intruso. Ele o havia ofendido grosseiramente e o rapaz sentiu alguma coisa como o legítimo sentimento de seu “direito de senhor” fazendo um gesto breve em direção à porta, dizendo com isto que o velho senhor devia abandonar o local imediatamente.

     O velho ficou um momento sem ação. Depois gaguejou entre o riso e as lágrimas, enquanto seu olhar perdido vagava pela sala:

     — Quem diria!... me acontecer uma coisa destas!... mas... uma coisa destas! Meu Deus! O que diz disto?

     Levantou seus olhos implorantes para Irma que havia se virado e não pronunciava uma palavra.

     Quando o infortunado senhor compreendeu que não podia esperar nenhum apoio da parte dela, e como a impaciência de seu interlocutor, que renovava o gesto em direção à porta, se tornava ameaçadora, abandonou a partida.

     — Vou embora, disse como uma nobre resignação. Vou embora imediatamente. Mas voltaremos a nos falar, seu jovem estúpido!

     — Certamente, voltaremos a nos falar, gritou nosso herói, com toda a certeza! Ou o senhor pensa que me jogou todos estes insultos na cara à toa? Mas agora, fora daqui!

     Tremendo e bufando, o velho senhor levantou-se penosamente. Sua calça larga dançava em volta de suas pernas secas. Ele segurava os rins e quase caiu novamente na cadeira. Isto tornou-o sentimental.

     — Eu, um pobre senhor! gemia titubeando em direção à porta. Eu, um pobre senhor! Que moleque grosseiro! Oh... ai!.

     Uma cólera nobre subiu nele novamente.

     — ...Mas, mas isto não fica assim! Não vai ficar assim!

     — Não vai mesmo ficar assim! afirmou no corredor seu cruel carrasco, agora divertindo-se com a situação, enquanto o velho, com uma mão trêmula, apanhava seu pesado casacão e com um passo inseguro descia a escada. “Nós nos veremos novamente...” repetiu o jovem muito docemente, porque a terrível expressão do velho inspirava-lhe cada vez mais pena. “Estou à sua disposição, continuou cortesmente, mas depois de sua atitude para comigo, não deve espantar-se da minha.” Inclinou-se corretamente e abandonou o senhor ao seu destino ouvindo-o resmungar para conseguir um táxi.

     Somente agora perguntou-se novamente quem poderia ser este velho. Seria, apesar de tudo, um parente dela? Seu tio ou seu avô ou qualquer coisa deste gênero? Misericórdia, neste caso, o havia tratado muito rudemente. Talvez o velho fosse assim estúpido de natureza. Talvez fosse seu jeito mesmo. Mas então ela deveria lhe ter feito algum sinal. Mas ela parecia se desinteressar de toda a cena. Somente agora ele percebia isto. Até este momento o velho havia tomado toda a sua atenção. Quem poderia ser? Ele não se sentia à vontade, e hesitou um instante antes de ir para perto dela. Pensava que talvez tivesse se comportado como um menino mal-educado.

     Quando a porta da sala se fechou novamente, Irma estava sentada de lado no canto do sofá. Tinha entre os dentes a ponta do lenço e olhava para a frente fixamente sem fazer um movimento em direção a ele.

     Ele ficou um momento sem saber o que fazer, depois juntou as mãos e gritou, quase chorando de desespero:

     — Mas diga-me logo quem era, pelo amor de Deus!

     Nem um movimento. Nem uma palavra.

     Ele sentiu frio e calor. Um vago pavor percorreu seu corpo. Mas em seguida ele se disse que tudo isto era cômico, sentou-se do lado dela e tomou-lhe a mão paternalmente.

     — Vamos, minha pequena Irma, seja razoável. Você não está com raiva de mim? Foi ele quem começou, o velho senhor. Quem era ele?

     Silêncio de morte.

     Ele levantou-se e afastou-se alguns passos, desamparado.

     A porta que dava para o quarto de dormir estava entreaberta. Entrou bruscamente. Na mesinha de cabeceira, perto do leito desfeito, alguma coisa chamara a sua atenção. Quando voltou tinha nas mãos algumas notas azuis.

     Feliz de poder por um momento desviar a conversa, colocou o dinheiro na frente dela, sobre a mesa, dizendo:

     — Seria melhor arrumar isto. Estava jogado lá no quarto.

     Mas subitamente tornou-se lívido. Seus olhos esbugalharam-se e os lábios se entreabriram, trêmulos.

     Quando entrou com o dinheiro, ela voltou os olhos para ele, e nestes olhos ele viu.

     Alguma coisa pavorosa estendeu os dedos cinzas, ossudos, para ele e apertou-lhe a garganta.

     Foi um espetáculo terrível o do jovem estendendo as mãos e gaguejando sem parar, no lamentável tom de uma criança cujo brinquedo, quebrado, jaz no chão:

     — Ah não... ah, ah, não...

     Depois, num movimento de angústia, precipitando-se para ela, agarrando suas mãos com gestos loucos, como se quisesse puxá-la para si para poder se refugiar perto dela, com uma súplica desesperada na voz:

     — Não, te suplico, não... te suplico, não! então você não sabe... como eu... não! Diga que não é verdade!

     De novo, afastando-se dela, precipitou-se para a janela gemendo alto e bateu duramente a cabeça contra a parede.

     A jovem, com um gesto teimoso se encolheu ainda mais no sofá.

     — Eu sou uma atriz. Não sei por que você faz tanta história. Todas elas fazem isto. Estou cansada de fazer papel de santa. Vi onde isto leva. É impossível. Para nós é impossível. A gente tem que deixar isto para os ricos. Nós, nós temos que nos virar. Há as roupas e... todo o resto.

     Finalmente, numa explosão:

     — Além disso todo mundo sabia que eu era uma...

     Ele atirou-se sobre ela e cobriu-a de beijos loucos, cruéis, flageladores, e diria-se que em seu balbuciar “oh você... você...!” seu amor lutava desesperadamente contra terríveis sentimentos contraditórios.

     Talvez já tivesse aprendido por estes beijos, que para ele, de agora em diante, o amor consistiria no ódio e na volúpia, num selvagem rancor. Talvez, mais tarde ainda, os dois tivessem se unido novamente. Ele não se lembra.

     Finalmente encontrou-se embaixo, diante da casa, sob o meigo céu sorridente, diante do arbusto de lilás.

     Ficou imóvel por muito tempo, petrificado, os braços caídos ao longo do corpo. Subitamente notou que o doce perfume de amor de lilás o envolvia como uma onda, tão delicado, tão puro e delicioso.

     Então, num brusco impulso feito de desespero e furor, mostrou o punho ao céu e mergulhou cruelmente a mão no perfume mentiroso, bem lá no fundo. O arbusto estalou e partiu, as flores delicadas se despedaçaram.

     Depois achou-se em casa, sentado à mesa, fraco e silencioso.

     Lá fora, em sua luminosa majestade, reinava o delicioso dia de verão.

     E ele olhava fixamente seu retrato. Tão suave, tão pura...

     Acima de sua cabeça, por entre os acordes de um piano, subia o estranho lamento de um violoncelo. À medida que os sons profundos e temos jorravam e se espalhavam, envolvendo sua alma, subiu nele como uma velha canção em surdina, há muito tempo esquecida, alguns ritmos vagos e melancólicos:

    

             Que a primavera desaparecerá,

             nos deixando em pleno inverno,

             e a dura mão da vida

             nos separará um do outro...

    

     E esta é a conclusão mais tranqüilizadora que posso tirar: o bobo rapaz pôde chorar finalmente...

     Houve um instante de silêncio total em nosso canto. Os dois amigos do meu lado também não pareciam ter ficado insensíveis ao estado de espírito melancólico que a narrativa do doutor despertara em mim.

     — Acabou? perguntou o pequeno Meysenberg.

    — Graças a Deus, disse Selten, com uma dureza um pouco forçada, me pareceu. E levantou-se para se aproximar de um vaso cheio de lilás fresco que se encontrava no fundo do atelier, no último canto, sobre uma mesinha esculpida.

     Então compreendi de repente de onde vinha a impressão estranhamente forte que sua história havia produzido em mim. Ela vinha deste lilás, cujo perfume tinha um papel tão importante na narrativa, e que pairava em toda a história. Foi este perfume, seguramente, quem havia incitado o doutor a nos contar o acontecimento, e exercido em mim um efeito positivamente sugestivo.

     — Emocionante, disse Meysenberg, e acendeu um novo cigarro com um profundo suspiro. Uma história realmente emocionante. E entretanto tão simples.

     Eu fiz coro.

     — Sim, e é esta simplicidade que garante sua veracidade.

     O doutor teve um riso breve e debruçou ainda mais seu rosto sobre o lilás.

     O jovem idealista louro ainda não havia dito nada. Não parava de balançar a cadeira de balanço onde estava sentado e continuava a mastigar bombons.

     — Laube parece terrivelmente transtornado, observou Meysenberg.

     — Claro, a história é comovedora, respondeu ele vivamente parando de se balançar e endireitando-se. Mas Selten quis me contradizer, não? Não acho que tenha conseguido. Quem tem, mesmo levando-se em consideração esta história, o direito moral de considerar a mulher...

     — Ah, cale a boca. Você e suas expressões pedantes, interrompeu bruscamente o doutor, com uma emoção inexplicável na voz. Se você não me compreendeu, é digno de pena. Se hoje em dia uma mulher cai por amor, amanhã ela cairá por dinheiro. Eis o que quis te mostrar. Nada mais. Mas talvez minha história contenha a justificativa moral pela qual você tanto berra!

     — Diga uma coisa, pediu subitamente Meysenberg, se a história é verdadeira, como você pode conhecê-la tão bem e nos mínimos detalhes e também por que se agita tanto contando-a?

     O doutor calou-se um momento. Mergulhou subitamente sua mão direita no lilás, com um gesto breve, anguloso, quase crispado. Ao mesmo tempo respirava profunda e lentamente seu perfume.

     — Oh, pelo amor de Deus, é porque o “bravo rapaz” era eu, senão tudo isto não teria a menor importância...

     Enquanto dizia isto e com uma brutalidade triste e amarga mergulhava a mão no buquê de lilás, como antigamente, eu via que nada nele revelava o “bravo rapaz”.

    

                           DESEJO DE FELICIDADE

     O velho Hofmann havia feito fortuna como proprietário de uma plantação na América do Sul. Casara-se com uma americana de boa família e voltara com ela para a Alemanha do Norte, sua pátria, para estabelecer-se em sua cidade natal, onde o resto da família habitava igualmente. Foi nesta cidade que Paolo nasceu.

     Não conheci seus pais muito bem. Mas de qualquer maneira, Paolo era o retrato de sua mãe. A primeira vez que o vi, isto é, quando nossos pais nos levaram à escola pela primeira vez, era um garoto magricela de tez amarelada. Parece que estou vendo. Usava os cabelos negros penteados em longos cachos que caíam em desordem sobre a gola de seu casaco azul-marinho e emolduravam seu rosto estreito.

     Como nós dois havíamos sido muito mimados em casa, não nos sentimos à vontade em nosso novo meio: a sala de aula nua, e sobretudo o personagem velho de barba ruiva, que pretendia iniciar-nos no alfabeto de qualquer maneira, nos amedrontava.

     Agarrei-me chorando nas roupas de meu pai quando ele quis afastar-se, enquanto Paolo adotava uma atitude completamente passiva. Apoiado imóvel contra a parede, mordia seus lábios finos, os grandes olhos cheios de lágrimas fixos nesta juventude cheia de futuro, nestes meninos que se davam cotoveladas e que zombavam impiedosamente.

     Assim rodeados de máscaras careteiras, nos sentimos imediatamente atraídos um pelo outro e ficamos encantados quando o professor de barba ruiva nos fez sentar lado a lado. Daí para frente fizemos um grupo à parte, para edificar em comum as bases de nossa cultura, e nos entregamos a um comércio quotidiano de trocas, com nossos pães com manteiga.

     Desde esta época ele era adoentado. De vez em quando era obrigado a faltar à aula durante períodos bastante grandes. E quando voltava suas têmporas e suas faces deixavam transparecer ainda mais claramente suas veias de um azul pálido, que se nota freqüentemente nos morenos de compleição delicada. Conservou sempre esta característica. Foi a primeira coisa que notei quando o revi em Munique, e mais tarde em Roma.

    Nossa amizade prosseguiu durante os anos escolares, quase pela mesma razão que fez com que ela nascesse. Era o patético da “distância” em relação à maioria dos nossos condiscípulos, conhecida de todos aqueles que com quinze anos lêem Heine escondido e fazem um julgamento decisivo sobre o mundo e os homens.

     Quando tínhamos dezesseis anos, creio, tomamos juntos lições de dança, e conseqüentemente vivemos em comum nosso primeiro amor.

     Dedicava uma adoração ardente e melancólica à menina que o havia fascinado, impressionante para a sua idade, e que às vezes me parecia positivamente inquietante.

     Lembro-me particularmente de uma certa reunião dançante. A menina chamou um outro para dançar duas vezes, num pequeno espaço de tempo. Eu observava Paolo angustiado. Em pé do meu lado, encostado na parede, imóvel, olhava fixamente seus sapatos de verniz. De repente caiu desmaiado. Levaram-no para casa, onde ficou oito dias de cama, doente. Souberam então, nesta ocasião, creio, que o estado de seu coração deixava muito a desejar.

     Já antes disto Paolo havia começado a desenhar e manifestava um real talento. Conservo um desenho que reconstitui bastante fielmente os traços desta menina. Esboçado a carvão com a inscrição: “Tu pareces uma flor1” Paolo Hofmann fecit.

     Não sei bem em que época, mas já freqüentávamos as classes superiores quando seus pais deixaram a cidade para se instalarem em Carlsruhe, onde o pai de Hofmann tinha negócios. Paolo não devia mudar de escola, então ficou morando na casa de um velho professor.

     Esta situação não durou muito tempo. Se o incidente que vou contar não foi a causa decisiva da partida de Paolo, que um belo dia seguiu seus pais em Carlsruhe, contribuiu para isto certamente.

     Durante uma lição de história santa, o professor olhou para Paolo de uma maneira aterradora e tirou de cima do Antigo Testamento aberto diante de Paolo uma folha na qual uma silhueta feminina pronta até o pé esquerdo exibia seus charmes sem o menor pudor.

     Paolo foi então para Carlsruhe, e de vez em quando trocávamos cartões postais. Esta ligação foi espaçando-se cada vez mais até que terminou completamente.

     Mais ou menos cinco anos tinham-se passado desde nossa separação quando o encontrei novamente em Munique. Numa bela manhã de primavera seguia a Amalienstrasse quando vi alguém descer a escadaria da Academia, alguém que de longe quase tomei por um modelo italiano. Quando me aproximei, era ele, na verdade.

     De estatura média, o chapéu jogado para trás sobre os espessos cabelos negros, a tez lívida marcada por finas veias azuis, elegante mas vestido negligentemente. Por exemplo, dois botões de seu casaco não estavam abo-toados. Com o bigode curto ligeiramente virado para cima, avançava para mim com seu andar balançado, indolente.

     Reconhecemo-nos quase ao mesmo tempo e nossa retomada de contato foi muito cordial. Enquanto diante do café Minerva nos perguntávamos alternadamente como haviam sido estes últimos anos, constatei que ele parecia tenso, quase exaltado. Tinha os olhos brilhantes, o gesto amplo, largo. Não tinha boa aparência, parecia sofrer. Hoje falo isso com uma certa facilidade, mas na hora fiquei muito chocado e o disse abertamente.

     — Então continua doente? perguntei.

     — Sim, creio. Sim, estive constantemente doente. E no ano passado durante muito tempo num estado grave. É aqui o lugar do mal.

     Com a mão esquerda designou o peito.

     — Sempre foi assim para mim, mas nestes últimos tempos me sinto bem, bastante em forma. Posso dizer que estou bem mesmo. Aliás, com meus vinte e três anos o contrário seria inquietante.

     Estava mesmo de excelente humor. Contou-me, com bastante animação, sua vida desde nossa separação. Pouco depois ele tinha obtido de seus pais autorização para dedicar-se à pintura e acabado há mais ou menos uns nove meses os seus estudos na Academia. Ainda há pouco ele aí havia entrado por puro acaso. Havia passado algum tempo viajando, vivido principalmente em Paris e estava em Munique há cinco meses. “Provavelmente por muito tempo... quem sabe, talvez para sempre.”

     — De verdade? perguntei.

     — Claro. Isto é, por que não? A cidade me agrada extraordinariamente. A atmosfera em geral. E as pessoas? E o que também é importante, a posição social que se ocupa como pintor completamente desconhecido, é deliciosa, não é melhor em nenhum lugar.

     — Você fez relações agradáveis?

     — Pouco numerosas, mas excelentes. É preciso, por exemplo, que eu lhe recomende uma família... Eu a conheci durante o carnaval... O carnaval é encantador aqui. Chamam-se Stein. O barão Stein.

     — Que gênero de nobreza é esta?

     — O que se chama aristocracia da finança. O barão é um homem da Bolsa. Ocupou uma posição formidável em Viena, freqüentava várias personalidades principescas e tudo ia muito bem. Depois seus negócios desmoronaram. Ele retirou-se, dizem, com um milhão, e leva aqui uma vida sem fausto, mas de bom tom.

     — Ele é judeu?

     — Ele, não creio. Sua mulher provavelmente. Mas não me canso de repetir, são pessoas extremamente agradáveis e distintas.

     — Têm filhos?

     — Não. Ou melhor, uma moça de dezenove anos. Os pais são muito amáveis...

     Pareceu embaraçado por um instante, finalmente acrescentou:

     — Proponho seriamente que me deixe introduzi-lo em sua casa. Será um prazer para mim. Você concorda?

     — Mas claro. Ficarei agradecido. Nem que seja só para conhecer esta moça de dezenove anos...

     Ele me olhou de lado e disse em seguida:

     — Está bem. Se você concorda passo amanhã para lhe pegar entre uma hora ou uma e meia. Eles moram na Thüringerstrasse 25, primeiro andar. Fico feliz em poder levar-lhes um antigo condiscípulo de meus amigos. Combinado.

     Com efeito, no dia seguinte tocávamos a campainha no primeiro andar de um elegante prédio da Thüringerstrasse. Do lado da campainha via-se em grandes letras negras o nome do barão von Stein.

     Durante todo o caminho, Paolo havia estado super-excitado e de uma alegria quase exagerada. Mas agora, enquanto esperávamos que abrissem a porta, constatava nele uma singular mudança. Do meu lado, havia se imobilizado numa calma absoluta, colocando à parte um tremor nervoso de suas pálpebras. Uma calma impressionante, crispada. Esticou um pouco a cabeça para a frente. A pele de sua fronte estava esticada. Fazia quase o efeito de um animal que de orelha em pé escuta, seus membros completamente contraídos.

     O empregado que tomou nossos cartões de visita voltou dizendo-nos que nos sentássemos por um instante, porque a senhora baronesa viria logo em seguida. E introduziu-nos numa sala bastante grande, de móveis sombrios.

     Quando entramos, uma jovem de roupas claras de primavera, sentada no canto da janela de onde se percebia a rua, levantou-se e ficou um instante em pé com um ar interrogador.

     “A moça de dezenove anos” pensei olhando meu companheiro sem querer.

     — Senhorita Ada, murmurou ele.

     Ada apresentava uma grande maturidade de formas para a sua idade, e com seus movimentos lânguidos e quase pesados, ela não dava a impressão de ser tão jovem assim. Sua cabeleira de um negro brilhante, que ela usava frisada sobre as têmporas e caindo em dois cachos na fronte, formavam um contraste impressionante com a brancura marfim de sua tez. O rosto, é verdade, com seus lábios carnudos e úmidos, um nariz forte e olhos amendoados com cílios negros e delicados, não deixavam nenhuma dúvida sobre suas origens em parte semíticas. Mas era de uma beleza extraordinária.

     — Ah, uma visita? perguntou ela, e deu alguns passos em nossa direção. Sua voz era ligeiramente velada. Colocou uma mão na fronte para ver melhor, enquanto com a outra apoiava-se no piano de cauda encostado na parede.

     — E uma visita muito bem vinda, acrescentou ela com a mesma entonação. Depois olhou-me de uma maneira interrogadora.

     Paolo avançou para ela e com uma lentidão quase sonolenta inclinou-se em silêncio para a mão que ela lhe estendia.

     — Senhorita, disse ele em seguida, permita-me apresentar-lhe um amigo, um camarada de escola com quem aprendi o alfabeto...

     Ela estendeu-me a mão igualmente, uma mão mole, sem anéis, que parecia desossada.

     — Alegro-me... disse ela, enquanto seu olhar sombrio, que um leve piscar tornava singular, parava em mim. E meus pais também ficarão muito felizes... Espero que já os tenham avisado.

     Na rua Paolo acendeu um cigarro.

     — E então, interrogou ele, o que me diz?

     — Oh, são pessoas muito agradáveis, apressei-me em responder. A jovem de dezenove anos chegou mesmo a me impressionar.

     — Impressionar? Deu uma risada breve e virou-se.

     — Sim, você ri, disse. Entretanto, lá em cima, pareceu-me às vezes que uma nostalgia secreta embaçava seu olhar. Será que me engano?

     Calou-se um instante, depois sacudiu lentamente a cabeça.

     — Se soubesse como você pode adivinhar...

     — Mas vejamos. Para mim o importante é saber se a senhorita Ada responde...

     De novo, os olhos baixos por um momento, olhou à sua frente. Finalmente disse em voz baixa, de uma maneira confiante:

     — Acho que serei feliz.

     Deixei-o apertando calorosamente sua mão, mas sem deixar de sentir no fundo de mim mesmo uma certa apreensão.

     Algumas semanas se passaram, durante as quais, várias vezes, tomei chá com Paolo no salão dos Stein. Um círculo restrito, mas muito agradável, tinha o hábito de se reunir aí: uma jovem atriz da Corte, um médico, um oficial. Não me lembro mais de cada um deles separadamente.

     Não observava nada de novo na conduta de Paolo. Habitualmente, apesar de sua aparência inquietante, estava sempre exaltado, alegre, e manifestava, em presença da jovem baronesa, esta calma inquietante que me havia chocado desde a primeira vez em que a vi.

     Ora, uma manhã eu encontrei o barão von Stein na Ludwigstrasse. Não via Paolo há dois dias. O barão estava a cavalo. Parou, e do alto de sua sela me estendeu a mão.

     — Sinto-me feliz em vê-lo. Espero que apareça em nossa casa amanhã à tarde.

     — Sem dúvida, se o senhor me permite, barão. Certamente meu amigo Hofmann virá buscar-me como todas as quinta-feiras.

     — Hofmann? Ah, então você não sabe? Ele partiu. Pensei que lhe havia informado.

     — Não me disse nada.

     — E assim, bruscamente. Eis o que chamo caprichos de artista... Então, até amanhã de tarde.

     Dizendo isto, fez seu cavalo partir e me deixou lá, estupefato.

     Precipitei-me à casa de Paolo. Sim, infelizmente o senhor Hofmann havia partido. Não, não havia deixado nenhum endereço.

     Claro que o barão sabia que Hofmann não partira por um simples capricho de artista. Sua própria filha confirmou uma hipótese que eu já considerava como certa. Foi durante um passeio a pé no vale de Isar que haviam organizado e ao qual fui convidado a tomar parte. Só nos pusemos a caminho depois do almoço, e na volta, a uma hora tardia da noite, a senhorita Ada e eu formávamos o último casal do bando.

     Desde a desaparição de Paolo não havia notado nenhuma mudança nela. Havia conservado toda a sua calma e se absteve de fazer a menor alusão ao meu amigo, enquanto seus pais não cansavam de lamentar sua brusca partida.

     Agora andávamos lado a lado nesta sedutora região dos arredores de Munique. O luar fazia reflexos brilhantes entre as folhagens e nos afastamos um instante, em silêncio, do barulho do resto das pessoas. Ele era tão monótono quanto o surdo ronco das águas que corriam ao longo do nosso caminho.

     Subitamente ela começou a falar de Paolo, com um tom muito calmo e muito seguro.

     — Você é seu amigo desde a infância? perguntou ela.

     — Sim, senhorita.

     — Você divide seus segredos?

     — Acho que seu maior segredo me é conhecido, mesmo sem que ele me tenha contado.

     — E eu posso ter confiança em você?

     — Espero que a senhorita não tenha dúvidas quanto a isto.

     — Está bem, disse ela.

     E levantou a cabeça com um movimento decidido.

     — Ele pediu minha mão e meus pais a recusaram. Ele é doente, me disseram eles, muito doente. Mas pouco importa. Eu o amo. Posso falar-lhe assim, não é? Eu...

     Ela embaraçou-se um instante, depois continuou com a mesma decisão:

     — Ignoro aonde ele se encontra, mas eu o autorizo a repetir-lhe estas palavras que você ouviu de meus próprios lábios assim que o vir. Ou a escrever-lhe, assim que tiver descoberto seu endereço. Nunca darei minha mão a um outro. Ah!... nós veremos!

     Nesta última exclamação, apesar da teimosia e da decisão, exprimia-se uma dor tão desamparada que não pude me conter. Peguei sua mão e apertei-a em silêncio.

     Mandei então uma carta aos pais de Hofmann implorando-lhes que me comunicassem o endereço de seu filho. Recebi um endereço no sul do Tyrol, mas a carta que para aí enviei voltou às minhas mãos juntamente com um bilhete que dizia que o destinatário havia abandonado o lugar sem dizer para onde ia.

     Ele não queria ser importunado de nenhum lado. Havia fugido de tudo para morrer em algum lugar sozinho. Claro, morrer, porque depois de todos estes acontecimentos eu tinha tristemente consciência de que não o veria mais.

     Não estava claro que este rapaz doente, condenado, amava esta jovem com toda a paixão silenciosa, vulcânica, ardentemente sensual, que correspondia às primeiras emoções de sua adolescência? O instinto egoísta do doente havia atiçado nele o desejo de unir-se a uma saúde florescente. Este frenesi, a partir do momento em que não fosse saciado, não consumiria mais rapidamente suas últimas forças vitais?

     Cinco anos se passaram sem que ele me desse sinal de vida, mas também sem que a notícia de sua morte chegasse até mim.

     No ano passado, passava uns dias na Itália. Em Roma e seus arredores. Depois de ter passado os meses quentes na montanha, voltara para a cidade no fim de setembro. Numa noite morna estava sentado no café Aranjo diante de uma xícara de chá. Folheando meu jornal, olhava com um olho distraído a animação que reinava no vasto estabelecimento cheio de luz. Os clientes entravam e saíam, os empregados corriam em todas as direções, e de vez em quando, pelas portas abertas, os chamados dos vendedores de jornais, numa voz agudíssima, penetravam na sala.

     De repente vejo um homem da minha idade dirigir-se lentamente para a saída, passando entre as mesas... Este andar... Mas eis que ele volta a cabeça para mim, levanta as sobrancelhas, vem ao meu encontro com um “ah” alegremente surpreso.

     — Você aqui?

     A exclamação partiu ao mesmo tempo de nossos lábios e ele acrescentou:

     — Então ainda somos deste mundo, todos os dois.

     Ao dizer isto, seu olhar evitou um pouco o meu. Durante estes cinco anos ele não havia mudado. Talvez seu rosto estivesse ainda mais magro, e seus olhos ainda mais enterrados no fundo das órbitas. De vez em quando, dava uma longa respirada.

     — Você está em Roma há muito tempo? — perguntou ele.

     — Na cidade estou há pouco tempo. Passei alguns meses na montanha. E você?

     — Na praia, até a semana passada. Você sabe que sempre preferi o mar à montanha... Sim, desde que não nos vemos conheci uma boa parte da terra.

     E enquanto bebia um copo de servetto a meu lado, pôs-se a contar como havia passado estes últimos anos. Viajando, sempre viajando. Havia errado nos montes do Tyrol, percorrido lentamente toda a Itália, ido da Sicília à África e falou-me de Alger, da Tunísia, do Egito.

     — No final vivi algum tempo na Alemanha, disse ele. Em Carlsruhe. Meus pais desejavam vivamente me ver e não queriam me deixar partir. Agora estou na Itália novamente, há três meses. Sinto-me em casa nos países do sul, sabe? Roma me agrada além de qualquer expressão.

     Até então me abstive de perguntar por sua saúde. Mas agora tomei coragem:

     — Depois de tudo o que me contou, permito-me concluir que sua saúde melhorou sensivelmente, não?

     Olhou-me um instante com um olhar interrogador antes de responder.

     — Pergunta isso porque erro assim alegremente? Vou explicar-lhe. Isto é para mim uma necessidade muito natural. O que que você quer? A bebida, o tabaco e o amor me são proibidos, e eu tenho necessidade de um derivativo, um narcótico qualquer, compreende?

     Como me calasse, ele acrescentou:

     — Grande necessidade, há cinco anos.

     Tocamos no ponto que havíamos evitado até agora, e o silêncio que se fez marcou nosso embaraço mútuo. Apoiado nas costas de veludo de sua banqueta, levantou os olhos para o lustre. Enfim, disse bruscamente:

     — Antes de tudo você me perdoa por ter ficado tanto tempo sem lhe dar notícias... Você compreende?

     — Claro.

     — Você sabe da minha aventura de Munique, continuou ele num tom quase duro.

     — Tão completamente quanto possível. E sabe que durante todo este tempo eu era portador de uma mensagem para você? Uma mensagem de uma dama?

     — Vamos ver se é alguma novidade.

     — Não é novidade nenhuma. Mas apenas uma confirmação do que já ouviu de seus próprios lábios...

     E no meio da multidão tagarela e gesticuladora repeti-lhe as palavras que a senhorita Ada me havia confiado certa noite.

     Ele escutou passando lentamente a mão sobre a fronte. Finalmente disse sem dar o menor sinal de emoção:

     — Eu lhe agradeço.

     Seu tom começava a me desconcertar.

     — Mas sobre estas palavras cinco anos se passaram, disse eu, cinco longos anos que você e ela, que vocês dois, que vocês viveram... Mil impressões novas, mil sentimentos, pensamentos, desejos...

     Interrompi-me porque ele endireitou-se, e com uma voz em que fremia novamente a paixão que eu acreditava extinta nele, disse:

     — Estas palavras, eu as retenho.

     Neste instante, reconheci em seu rosto e em toda a sua atitude a expressão que havia notado no dia em que fui ver a senhorita Ada pela primeira vez: esta calma imponente, esta tensão crispada da fera prestes ao bote.

     Durante todo o mês que se seguiu, percorri a cidade com ele: Roma, este museu de arte universal onde abundam as riquezas, esta moderna metrópole do Sul, esta cidade barulhenta, rápida, quente e sensual. Entretanto, o sopro do vento quente traz do ultramar a indolência pesada do Oriente.

     O comportamento de Paolo foi sempre igual. Freqüentemente grave e taciturno, podia às vezes cair num cansaço prostrado, para sair dele bruscamente, enquanto seus olhos brilhavam, prosseguindo com ardor uma conversa que havia deixado morrer.

     É preciso falar também de um certo dia em que deixou escapar algumas palavras que somente hoje tomaram para mim sua verdadeira significação.

     Era um domingo. Havíamos aproveitado a maravilhosa tarde para dar uma volta na via Appia. E agora, depois de ter seguido até bem longe o caminho antigo, repousávamo-nos nesta pequeno colina cercada de ciprestes e de onde se goza uma vista esplêndida sobre o campo ensolarado com o grande aqueduto, e os montes Albanos envolvidos de uma bruma mole.

     Paolo, meio estendido, do meu lado, sobre o solo quente, verde, o queixo apoiado na mão, olhava ao longe, com um olho cansado, encoberto. De repente, saiu de sua apatia com um busco sobressalto e dirigiu-se a mim:

     — Ah! este ar!... Tudo está no ar.

     Concordei vagamente com ele e o silêncio caiu novamente. De repente, sem a menor transição, disse voltando seu rosto para mim:

     — Diga-me, você nunca ficou espantado de me ver vivo ainda?

     Calei-me, emocionado, e ele olhava ao longe, com um ar sonhador.

     — Eu sim, continuou ele lentamente. No fundo, me espanto todos os dias. Você sabe exatamente como estou fisicamente? O médico francês, em Alger, me disse: “Só o diabo sabe como você ainda está em pé, andando por aí. Eu lhe aconselho a voltar para casa e meter-se no leito imediatamente.” Ele não me escondia nada, toda noite jogávamos dominó. E, entretanto, ainda vivo. Quando de noite me deito, na obscuridade, meu coração bate como louco. Transpiro de angústia e de repente tenho a impressão de que acabou tudo e de que uma presença mortal roça em mim... Por um momento tudo pára; meu pulso cessa completamente de bater, minha respiração interrompe-se, levanto-me sobressaltado, acendo a luz, exalo um profundo suspiro, dou uma olhada em minha volta, meu olhar devora os objetos. Depois bebo um gole d'água e me deito novamente, sempre do lado direito. Pouco a pouco adormeço.

     “Durmo profundamente e por muito tempo, porque estou mortalmente cansado. Você não acha que se eu quisesse poderia simplesmente me deitar em algum lugar e renunciar a viver? Tenho a impressão de que nestes últimos anos já olhei mil vezes a morte face a face. Mas não estou morto. Alguma coisa me retém. Eu me endireito, evoco uma certa lembrança, me seguro numa certa frase que me repito vinte vezes, enquanto meus olhos bebem avidamente a luz e a vida em minha volta... Você me entende?”

     Estendido na relva, imóvel, ele não parecia esperar nenhuma resposta. Não me lembro mais o que lhe disse. Mas nunca me esquecerei da impressão que suas palavras me causaram.

    E agora é preciso voltar àquele dia — oh! parece que foi ontem...

     Era um dos primeiros dias de outono. Um destes dias cinzas, de um peso insólito, em que o vento úmido, opressivo, vindo da África, sopra nas ruas, e em que de noite o céu inteiro estremece riscado de raios.

     De manhã fui buscar Paolo para um passeio. Sua grande mala estava aberta no meio da sala, o armário e a cômoda abertos também. Seus esboços a aquarela trazidos do Oriente e a reprodução em gesso da cabeça da Juno vaticana ainda estavam em seus lugares. Em pé diante da janela, ele olhava para fora, imóvel, e só interrompeu sua contemplação quando parei dando um grito de surpresa. Enfim, voltou-se com um movimento breve, me estendeu uma carta e disse simplesmente:

     — Leia.

    Eu o olhava. Neste rosto amarelado, magro, mórbido, de olhos negros e febris, vi esta expressão que geralmente só se vê no rosto dos mortos. Uma imensa gravidade que me fez baixar as pálpebras sobre a carta. E eu li:

     “Meu caro Senhor, devo este endereço à amabilidade de seus pais a quem recorri, e espero que receba estas linhas com boa-vontade.

     “Permita-me, caro Senhor, assegurar-lhe que durante estes cinco anos sempre pensei no senhor com um sentimento de sincera amizade. Se devesse supor que sua brusca partida, neste dia tão doloroso para todos, traduzisse um sentimento de cólera em relação a mim e aos meus, a mágoa que sentiria seria ainda maior que o espanto, a profunda surpresa que senti quando pediu a mão de minha filha.

     “Nesta época eu falei com o senhor de homem para homem, ainda que corresse o risco de ser brutal. Comuniquei-lhe francamente, lealmente, a razão que me obrigava a recusar minha filha a um homem que, e não saberia como insistir nisto, tenho na mais alta estima sob todos os pontos de vista. Eu falei como um pai que procura assegurar a felicidade durável de sua única filha, e que consideraria um dever realizar certos desejos — recíprocos — se somente o pensamento de que eles fossem realizáveis o houvesse tocado.

     “É nesta mesma qualidade, caro Senhor, que lhe escrevo: como um amigo e também como um pai. Cinco anos se passaram desde sua partida e se até agora não tive oportunidade de reconhecer até que ponto a inclinação que soube inspirar em minha filha se enraizou nela, um incidente acaba de se produzir, que me abriu os olhos. Por que lhe esconderei que minha filha, pensando no senhor, recusou a mão de um homem excelente, um partido que eu, como pai, só podia encorajar calorosamente?

     “Os anos se passaram e se revelaram impotentes para mudar os sentimentos e aspirações de minha filha. E se (esta é uma pergunta franca e modesta) acontece o mesmo com o senhor, declaro por estas linhas que nós, os pais, não queremos mais botar nenhum obstáculo à felicidade de nossa filha.

     “Espero sua resposta impacientemente, e lhe serei eternamente grato por ela, qualquer que seja seu conteúdo. E não tenho mais nada a acrescentar, a não ser a expressão de minha mais alta consideração.

     “Seu dedicado

     OSCAR von STEIN.”

    

     Levantei os olhos. Com as mãos cruzadas nas costas, ele havia se virado para a janela novamente. Perguntei apenas:

     — Você parte?

     E sem me olhar ele respondeu:

     — É preciso que minhas bagagens estejam prontas até amanhã de manhã.

    

   Passamos o dia a arranjar certas formalidades e a fazer malas, no que pude ajudar, e de noite fizemos juntos um último passeio pelas ruas da cidade.

     O ar continuava abafado, quase intolerável, e o céu trêmulo se incendiava a cada instante com bruscas fosforescências. Paolo parecia calmo e cansado. Respirava profundamente, pesadamente.

     Neste silêncio, ou falando de coisas indiferentes, erramos mais ou menos por uma hora quando paramos diante da Fontana Trevi, esta célebre fonte que mostra os cavalos do deus marinho a galope.

     Uma vez mais contemplamos longamente, com admiração, este grupo magnífico e cheio de movimento, que sob as fulgurações de um azul vivo produzia um efeito quase feérico. Meu companheiro disse:

     — É verdade, Bernin alegra-me até nas obras de seus alunos. Não compreendo seus detratores. Evidentemente, se pode dizer que o Último Julgamento é mais esculpido do que pintado, todas as obras de Bernin são mais pintadas do que esculpidas. Mas existe um decorador maior do que ele?

     — Você sabe, perguntei, o que dizem desta fonte? Quem bebe um gole de sua água antes de deixar Roma é chamado a voltar. Tome meu copo de viagem, vou enchê-lo com um destes jatos de água. Você verá sua Roma novamente um dia.

     Ele pegou o copo e levou-o aos lábios. Neste instante o céu inteiro incendiou-se num luar de fogo, ofuscante, prolongado, e o frágil recipiente se partiu batendo na margem da fonte.

     Com um lenço Paolo enxugou a água espalhada em sua roupa.

     — Estou nervoso e desajeitado, disse ele. Continuemos nosso caminho. Espero que este copo não tenha valor.

     No dia seguinte de manhã o tempo tinha se acalmado. Um céu azul, estival, ria acima de nossas cabeças enquanto íamos de carro para a estação.

    Nossas despedidas foram breves. Paolo apertou minha mão em silêncio enquanto eu lhe desejava muita felicidade.

     Durante bastante tempo meu olhar seguiu sua silhueta erguida diante da larga janela do vagão. Seus olhos tinham uma expressão de gravidade e triunfo.

    

     O que me resta a dizer? Ele morreu. Morreu no dia seguinte à noite de núpcias. Quase durante a noite de núpcias.

     Era preciso que fosse assim. Não era a vontade, a vontade de ser feliz, somente ela, quem lhe havia permitido vencer a morte durante tanto tempo? Era preciso que ele morresse. Morresse sem luta nem resistência, quando seu desejo de felicidade ficasse satisfeito. Não tinha mais nenhum pretexto para viver.

     Pergunto-me se agi mal, se conscientemente agi mal em relação àquela a quem ele ligava seu destino. Mas eu a vi no enterro de Paolo, em pé, na frente do caixão. E sobre seu rosto também reconheci a expressão que havia visto no rosto de meu amigo: a forte e solene gravidade do triunfo.

 

                                          A MORTE

    

             10 de setembro.

     Eis o outono e o verão nunca mais voltará. Nunca mais o verei.

     O mar está cinza e calmo. Uma chuva fina e triste cai do céu. Quando o vi esta manhã, me despedi do verão e saudei o outono, meu quadragésimo outono, que chegou inexoravelmente. E inexoravelmente ele trará este dia cuja data digo às vezes em voz baixa com um sentimento de fervor e de terror secreto...

    

             12 de setembro.

     Fui dar uma volta com a pequena Asuncion. É uma companheira agradável, silenciosa e que às vezes se limita a levantar para mim seus grandes olhos cheios de ternura.

     Seguimos o caminho da praia que leva a Kronshafen, mas voltamos cedo, antes de termos cruzado com mais de dois seres humanos.

     Na volta, fiquei feliz ao ver minha casa. Como soube escolhê-la! Simples e cinza, do alto da colina ela estende seu olhar ao longe, sobre o mar escuro! Sua fachada de trás está no nível da calçada e mais para trás os campos se sucedem. Mas não ligo para eles. Só ligo para o mar.

    

             15 de setembro.

     Esta casa solitária sobre uma duna perto do mar, sob o céu cinzento, parece um conto de fadas sombrio e misterioso. E quero que seja assim em meu último outono. Mas esta tarde, enquanto estava sentado à janela de meu escritório, um carro parou, carregado de provisões. O velho Franz ajudou a descarregá-lo. Ouvi barulho e vozes. Não saberia dizer o quanto fiquei irritado. Imediatamente ordenei que coisas deste tipo sejam feitas de manhã cedo, enquanto ainda estou dormindo. O velho Franz respondeu simplesmente: “Às suas ordens, senhor conde”, mas seus olhos vermelhos me olharam de um jeito inquieto e insistente.

     Como, aliás, poderia ele compreender? Ele não sabe. Quero que meus últimos dias escapem à banalidade quotidiana e à monotonia. Só de pensar que a morte poderia ter alguma coisa de burguês e de vulgar, me inquieto. É preciso que tudo seja raro e estranho para mim, neste grande dia grave e enigmático de 12 de outubro...

    

             18 de setembro.

     Estes últimos dias não saí. Passei a maior parte de meu tempo deitado numa espreguiçadeira. Impossível ler, tanto meus nervos me torturavam. Fiquei simplesmente recostado, olhando cair a chuva lenta e inesgotável.

     Asuncion entrou várias vezes. Uma vez trouxe flores, algumas plantas ásperas e molhadas que ela colheu na praia. Quando beijei-a agradecendo, ela desfez-se em lágrima, porque eu estava “doente”. Como o seu amor terno e melancólico me toca dolorosamente.

    

             21 de setembro.

     Fiquei bastante tempo sentado à janela de meu escritório com Asuncion em meus joelhos. Olhávamos o vasto mar cinza ao longe. E atrás de nós, a grande sala com sua alta porta branca e seus móveis de espaldares rígidos mergulhava num profundo silêncio. Enquanto acariciava lentamente a cabeleira macia da criança, que cai num jato negro e liso sobre seus ombros frágeis, fiz uma retrospecção em minha vida passada, turva e confusa. Evoquei minha juventude que foi calma e mimada. Minhas vagabundagens pelo mundo e a época breve e luminosa de minha felicidade.

     Você se lembra da criatura sedutora e ardente, sob o céu de veludo de Lisboa? Há treze anos ela lhe deu esta criança e morreu, o braço fino enlaçando seu pescoço.

     A pequena Asuncion, com os olhos sombrios de sua mãe, mas mais cansados, mais sonhadores. Sobretudo ela tem a sua boca, esta boca de um desenho infinitamente terno e entretanto um pouco amargo. Bela sobretudo quando se cala e sorri imperceptivelmente.

     Minha pequena Asuncion. Se você soubesse que vou lhe deixar? Você chorava por me ver “doente”. Ah! Será que isto conta? O que é isto em comparação ao dia 12 de outubro?

    

             23 de setembro

     Raros são os dias em que meu pensamento se perde em minhas lembranças. Há quantos anos só me sinto capaz de pensar no futuro, de esperar o grande dia fatídico de meu quadragésimo ano?

     Como vai acontecer, como? Se eu pudesse saber! Não sinto nenhum medo, mas ele parece aproximar-se com uma lentidão torturadora, o dia 12 de outubro.

    

             27 de setembro.

     O velho Dr. Gudehus veio de Kronshafen.. Veio de carro e almoçou comigo e Asuncion.

     — É preciso, disse ele engolindo a metade de um frango, que o senhor faça exercícios, senhor conde, muito exercício ao ar livre. Não ler! Não pensar! Não torturar o espírito! Porque eu o tomo por um filósofo, eh, eh, eh!

     Dei de ombros e agradeci cordialmente por seus esforços. Ele me deu também alguns conselhos em relação à pequena Asuncion e a observava com um sorriso artificial e embaraçado. Aumentou minha dose de bromureto: será que dormirei um pouco melhor agora?

    

             30 de setembro.

     Último dia de setembro. Agora não há mais muito tempo a esperar. São três horas da tarde e já calculei quantos minutos me separam do primeiro minuto do dia 12 de outubro. 8.460 no total.

     Não pude dormir esta noite porque o vento levantou-se e o mar e a chuva não se calam. Fiquei deitado, deixando o tempo passar e desaparecer. Pensar, torturar o espírito? Não! O Dr. Gudehus me toma por um filósofo mas tenho a cabeça muito fraca e só posso repetir: a morte.

    

             2 de outubro.

     Estou muito emocionado e à minha emoção mistura-se um sentimento de triunfo. Às vezes quando pensava em minha morte e me olhavam com um ar de dúvida e de inquietude, notei que me tomavam por um demente, e eu mesmo me estudei com desconfiança. Infelizmente! Não. Não estou louco. Hoje li a história deste Imperador Frederico a quem predisseram que morreria sub flore. Ele evitou as cidades de Florença e Florentinum, mas o acaso levou-o a Florentinum e ele morreu. Por que morreu?

     Uma predição é insignificante em si. Tudo depende da influência que ela exerce sobre nós. Mas desde o instante em que ela exerce esta influência, já se encontra autenticada e se realiza. Mas o quê? Uma premonição que desperta em mim e se fortifica, não será superior à uma predição que vem de fora? E o firme conhecimento do momento em que se entregará a alma será mais quimérico do que o lugar? Oh, existe um elo constante entre o homem e a morte. Pela força da sua vontade e da sua convicção, você pode aspirá-la de alguma maneira. Atraí-la de maneira a que ela venha a você, na hora em que você predisse...

    

             3 de outubro.

     Freqüentemente, quando meus pensamentos se estendem diante de mim como águas acinzentadas que parecem infinitas porque se encobrem de bruma, entrevejo vagamente a relação das coisas entre si, e acredito desvendar o vazio de nossas concepções.

     O que é o suicídio? A morte voluntária? Mas ninguém morre involuntariamente. A renúncia à vida ou a adesão à morte são o efeito da fraqueza, que é sempre a conseqüência de uma doença do corpo ou da alma ou dos dois. Não morre quem não consente em morrer. E eu consinto? Claro que sim, porque enlouqueceria se não morresse neste 12 de outubro...

    

             5 de outubro.

     Penso na morte sem parar e isto me absorve inteiramente. Torturo-me para lembrar-me quando e como esta certeza veio e não consigo determinar. Com dezenove ou vinte anos sabia que morreria com quarenta anos, e de repente, como me perguntasse insistentemente que dia se daria este acontecimento, eis que soube também o dia.

     E agora, ele está perto de mim. Tão perto que acredito sentir o frio hálito da morte.

    

             7 de outubro.

     A violência do vento aumentou. O mar ruge e a chuva tamborila sobre o teto. Não fechei os olhos durante a noite, e coberto com um impermeável, desci até a praia onde sentei-me sobre uma pedra.

     Atrás de mim, nas trevas e na chuva, erguia-se a colina com a casa cinza onde dormia minha pequena Asuncion. E na minha frente, o mar empurrava sua sombria espuma até meus pés.

     Durante toda a noite meu olhar perscrutou a escuridão e tive a impressão de que assim deveria ser a morte, ou o “depois da morte”. Lá no alto e bem longe, as trevas infinitas onde rugem rumores confusos. Um pensamento, um obscuro sentimento do que fui continuará a tecer seu sonho e a escutar eternamente o incompreensível tumulto?

    

             8 de outubro.

     Quero dar graças à morte quando ela vier, porque agora ela já está iminente demais para que eu possa ainda esmorecer por muito tempo. Três breves dias de outono e tudo estará acabado. Com que impaciência espero este instante supremo. Não será um momento de êxtase e de imensa doçura? O máximo da volúpia?

     Ainda três breves dias de outono e ela entrará em minha casa. Como se comportará? Me tratará como um verme? Pulará em meu pescoço para estrangular-me e agarrará minha cabeça? Não. Eu imagino-a grande e bela, e de uma selvagem majestade.

    

             9 de outubro.

     Perguntei a Assuncion, quando estava sentada em meus joelhos: “O que você diria se eu lhe deixasse? Ficaria muito triste?” Então ela aninhou sua pequenina cabeça contra meu peito e chorou amargamente. Tenho um nó de dor na garganta.

     Além disso tenho febre. Tenho a cabeça fervendo mas tremo de frio.

    

             10 de outubro.

     Ela veio esta noite. Ela veio ao meu encontro. Não a vi nem a escutei, e entretanto nos falamos. Foi ridículo. Ela conduziu-se como um dentista: “Não seria melhor acabar logo com isto?” me disse ela. Mas não quis e fiquei firme. Mandei-a embora sem medir minhas palavras.

     “Não seria melhor acabar logo com isto?” Que linguagem vazia! Penetrou em mim até a medula. Tão vazia, tão monótona, tão burguesa! Nunca senti uma decepção tão grande e tão amarga.

    

             11 de outubro (onze horas da noite).

     Será que compreendi? Oh, sim, acredite-me, eu compreendo. Há uma hora e meia estava sentado em meu quarto e o velho Franz entrou tremendo e soluçando: “A senhorita, gritou. A menina. Ah! venha depressa!”

     E eu fui.

     Não chorei. Somente um arrepio gelado percorreu meu corpo. Ela estava deitada em seu leito, sua cabeleira negra envolvia o pequeno rosto pálido, doloroso. Ajoelhei-me perto dela e não fiz nada, não pensei em nada. O Dr. Gudehus chegou.

     “Uma parada cardíaca”, disse ele. E sacudiu a cabeça como alguém que não está surpreso. Este charlatão, este imbecil, parecia estar esperando que isto acontecesse!

     Mas eu, será que compreendi? Ah! quando me encontrei sozinho com ela, e lá fora a chuva e o mar estavam furiosos e o vento cantava na chaminé, dei um soco na mesa, tamanha a clareza com que a coisa me apareceu num piscar de olhos. Durante estes vinte anos, fixei para a morte o dia que vai começar dentro de uma hora. E em mim, alguma coisa sabia que eu não poderia deixar esta criança. Não poderia morrer depois de meia-noite, e entretanto, era preciso que isto acontecesse. Eu a teria expulsado novamente se tivesse vindo, mas ela passou primeiro no quarto da criança, porque deveria obedecer à minha premonição e à minha vontade. Será que fui eu quem a trouxe à sua cabeceira, será que fui eu quem lhe matou, minha pequena Asuncion? Oh! que palavras grosseiras, miseráveis, para coisas tão sutis e misteriosas!

     Adeus, adeus. Talvez lá longe encontre um pensamento, uma emanação de ti. Porque, veja, o ponteiro do pêndulo avança e a lâmpada que clareia seu rosto terno e pequeno logo se apagará. Seguro tua pequena mão fria e espero. Logo ela se aproximará de mim e eu me limitarei a concordar com a cabeça e a fechar as pálpebras, quando a ouvir dizendo: “Não seria melhor acabar logo com isto...”

    

                                       A VINGANÇA

    

     Para provar as verdades mais simples e fundamentais, dizia Anselmo a uma hora avançada da noite, a vida utiliza-se, às vezes, dos meios mais originais de persuasão.

     Quando conheci Dounia Stegemann, tinha vinte anos e era um perfeito tolo. Muito ocupado em cometer as primeiras loucuras, estava longe de ter esgotado os encantos da situação. Meus desejos eram desenfreados, eu me aplicava sem escrúpulos a satisfazê-los. E aliava, gratuitamente, à perversidade experimental da minha conduta, um idealismo que me fazia desejar com paixão uma pura intimidade intelectual, estritamente intelectual, com uma mulher.

     Quanto à Dounia Stegemann, havia nascido em Moscou, de pais alemães, e cresceu lá, ou pelo menos na Rússia. Conhecendo a fundo três línguas, o russo, o francês e o alemão, veio para a Alemanha como governanta. Mas, dotada de gostos artísticos, no fim de alguns anos abandonou este trabalho e vivia então como mulher livre e inteligente, filósofa e celibatária, fornecendo a um jornal de segunda ou terceira categoria artigos literários e musicais.

     Dounia tinha trinta anos quando cheguei a B. Ocupei com ela a mesma modesta mesa de uma pequena pensão. Era uma alta desengonçada, de ombros e peito chatos, olhos verdes claros, incapazes de demonstrar a menor agitação, o nariz exageradamente largo, e um penteado sem arte de um louro qualquer. Seu vestido simples, marrom escuro, era tão desprovido de charme e elegância quanto suas mãos. Ainda não tinha visto uma feiúra tão inegável e selvagem numa mulher.

     No roastbeef já estávamos falando de Wagner em geral e de Tristão especialmente. Sua liberdade de espírito surpreendeu-me. Sua emancipação era tão espontânea, tão pouco exagerada, tão desprovida de afetação, tão calma, segura e natural, como nunca acreditei existir. Seu afastamento objetivo, quando no transcorrer de nossa conversa empregou expressões como “seios murchos”, perturbou-me. A isso correspondiam seus olhares, seus movimentos, seu modo de colocar a mão no meu braço, com camaradagem...

     Nossa conversa foi animada e profunda. Nós a continuamos após a refeição, quando as outras pessoas já haviam partido fazia muito tempo. E durante horas seguidas, tocamos juntos no piano desafinado da pensão, trocamos reflexões e impressões. Compreendíamo-nos a fundo. E eu experimentava uma grande satisfação. Eis, dizia-me, uma mulher com cérebro masculino. Suas palavras aplicavam-se ao assunto tratado sem nenhum toque pessoal, e sua falta de preconceitos autorizava esta franqueza íntima na troca de experiências, de estados de espírito e de sensações que eram então minha paixão. Meu desejo tinha-se realizado em sua pessoa: um camarada feminino, cuja sublime ingenuidade não podia fazer nascer entre nós nenhum equívoco. Eu podia ficar seguro e confiante, ela excitava apenas meu espírito, pois os encantos físicos desta intelectual eram os de um cabo de vassoura. Sim, sob este ponto de vista minha certeza aumentava à medida que a aparência carnal de Dounia Stegemann tornava-se cada vez mais antipática para mim, na verdade inspirava-me repulsão. Não podia desejar um triunfo do espírito mais brilhante.

     Porém... porém, por mais que nossa amizade tentasse atingir à perfeição, por mais que, após haver deixado a pensão, nos visitássemos em nossos respectivos alojamentos, sem segundas intenções, freqüentemente surgia entre nós um sentimento que deveria continuar totalmente estranho à sublime frieza de nossa estranha relação. No preciso instante em que nossas almas confessavam seus mais castos e supremos segredos, em que nossos espíritos se obstinavam a decifrar seus mais sutis enigmas, quando abandonávamos o tratamento cerimonioso por um mais íntimo, um encanto perverso pairava subitamente na atmosfera, poluindo-a, sufocando-me. Dounia parecia não perceber nada. Ela era tão forte, tão livre! Mas eu, eu percebia e sofria por isso.

     Nossa relação prosseguia assim, e certa noite em que estávamos sentados em meu quarto, absorvidos por uma conversa sobre psicologia, isto tornou-se insuportável para mim. Dounia havia jantado comigo. Havíamos afastado a mesinha, e saboreávamos um vinho tinto fumando sem pose, atitude que caracterizava bem nossas relações. Dounia Stegemann continuava sentada, enquanto eu, com o rosto voltado para sua direção, repousava meio deitado na espreguiçadeira. Nossa conversa incisiva, cortante e de uma fraqueza radical, prosseguia. Falávamos dos estados de espírito que o amor provoca no homem e na mulher. Entretanto, não me sentia calmo e livre, experimentava uma excepcional irritabilidade, pois havia bebido muito. Este “não sei o quê” estava presente... este encanto perverso pairava no ar poluindo-o, e tornava a atmosfera irrespirável para mim. A necessidade de abrir de algum modo uma janela, rejeitando ao reino do nada, definitivamente, este sentimento perturbador por meio de palavras francas e brutais, ocupava minha atenção. O que resolvia expressar não era mais forte nem mais franco que tantos outros assuntos sobre os quais falávamos, e deveria ficar estabelecido de uma vez por todas. Meu Deus, ela seria a última pessoa a me agradecer por agir com escrúpulos galantes...

     — Escute, disse, levantando os joelhos e cruzando as pernas, preciso esclarecer uma coisa. Você sabe o que para mim imprime às nossas relações o encanto mais original e sutil? É o íntimo entendimento entre nossos espíritos, que se tornou indispensável para mim, em contraste com a nítida repulsa física que sinto em relação a você.

     — Ora, disse ela, é interessante. Com isso, minha observação foi varrida da conversa e retomamos o fio das nossas opiniões sobre o amor. Eu respirava melhor. A janela tinha sido aberta afinal. A clareza, a segurança e a pureza da situação restabeleceram-se sem equívoco, e Dounia devia sentir o mesmo. Continuamos a fumar e a conversar.

     — Sabe, retomou ela subitamente, existe algo que deve ser dito entre nós... Você não sabe que tive uma ligação.

     Virei a cabeça em sua direção e observava-a absorto. Sentada ereta, muito calma, ela agitava sobre a mesa o cigarro que segurava entre os dedos. Sua boca estava entreaberta e seus olhos verdes claros olhavam fixamente para frente.

     Exclamei:

     — Você... a senhorita... uma ligação platônica?

     — Não... Séria.

     —Onde?... Quando?... Com quem?...

     — Em Francfort-sur-le-Main, no ano passado, com um bancário, um homem jovem ainda, muito bonito... Eu tinha necessidade de lhe dizer... É melhor que você saiba... Ou será que perderei sua estima?

     Comecei a rir, e recostei-me, tamborilando com os dedos na parede.

     — É provável! Disse com magnânima ironia. Não a olhava mais. Conservava o rosto virado em direção à parede e contemplava meus dedos tamborilando. De repente, a atmosfera ainda há pouco purificada, tornara-se espessa ao ponto do sangue subir-me aos olhos obscurecendo-me a visão... Esta mulher deixara-se amar. Um homem abraçara seu corpo. Sem desvirar o rosto da parede, eu desnudava na imaginação este corpo e encontrava nele um encanto hediondo. Sorvia ainda um copo de vinho tinto. Silêncio.

     — Sim, continuou, à meia-voz. Achei melhor que você soubesse.

     E seu tom indubitavelmente significativo ao pronunciar essas palavras, fez com que tu me tomasse de um tremor desprezível. Ela estava lá, sentada, sozinha em meu quarto, à meia-noite mais ou menos, imóvel, numa imobilidade pesada de espera, que se oferecia... Meus instintos perversos acordaram. A idéia de que poderia lançar-me num deboche depravado com essa mulher fez com que meu coração batesse intoleravelmente.

     — Dounia, disse com a língua pastosa, ele te agradou, esse bancário?

     Ela respondeu:

     — Sim.

     — E, continuei sem olhar para ela, você teria alguma objeção em recomeçar essa experiência mais uma vez?

     — Alguma.

     Bruscamente, de um pulo, levantei-me da espreguiçadeira, apoiando a mão no encosto, e perguntei com a insolência do desejo desenfreado:

     — E o que você diria se nós dois?...

     Lentamente, ela virou o rosto para mim e olhou-me com um amável espanto:

     — Mas meu querido, de onde te veio uma tal idéia? Nossas relações não são de caráter tão puramente intelectual? ...

     — Sim... sim... mas isso é outra coisa! Poderíamos, sem prejuízo de nossa amizade habitual, unirmo-nos uma vez, de um outro modo...

     — Mas não! Compreenda bem que estou dizendo não! disse ela, cada vez mais surpresa.

     Com o furor do debochado pouco acostumado a refrear seus caprichos mais infames, eu bradava:

     — Por que não? Por que não? Por que você banca a grande dama?

     Fiz menção de passar aos atos.

     Dounia Stegemann levantou-se:

     — Contenha-se, disse. Você está fora de si! Conheço suas fraquezas, mas esta é indigna de você. Eu disse não e disse que nossa simpatia mútua é de natureza puramente intelectual. Você não compreende então?... E agora vou-me embora. Já é tarde.

     Sóbrio, tinha recuperado o domínio sobre mim.

     — Quer um casaco? disse eu rindo. Bem, espero que isso não modifique em nada nossa amizade...

     — Só faltaria isso! respondeu, e apertou-me a mão com camaradagem, enquanto um sorriso bastante zombeteiro desenhava-se nas comissuras de sua boca desagradável. Depois disso ela partiu. Fiquei plantado no meio do quarto, e meu rosto não estava precisamente espiritual enquanto recapitulava, em pensamento, os detalhes dessa encantadora aventura. Depois passei a mão na fronte e fui dormir.

    

                                         ESTÓRIA

    

     Havíamos jantado entre amigos e estávamos sentados ainda numa hora tardia, no escritório de nosso anfitrião. Fumávamos e nossa conversa tinha tomado um caminho meditativo e um pouco sentimental. Evocávamos o véu de Mâyâ e sua ilusão brilhante, o que Buda chama a “sede ardente”, a doçura do desejo e o amargor do conhecimento, a tentação e a imensa mentira. A expressão “o compromisso do desejo” foi pronunciada. Estabelecemos o axioma filosófico segundo o qual todo desejo se propõe a ser um triunfo. Estimulado por estas reflexões, alguém contou a seguinte história, que, assegurou ele, tinha acontecido ao pé da letra, assim como ele a contava, na elegante sociedade de sua cidade natal.

     “Se vocês tivessem conhecido Ângela, a mulher do gerente Becker, se vocês tivessem visto seus olhos azuis brincalhões, sua boca suave, a adorável covinha de sua face, seus cachos louros nas têmporas, se tivessem conhecido o charme que emanava de toda a sua pessoa, teriam se apaixonado loucamente por ela, como eu, como nós todos! O que é um ideal? Será antes de tudo uma força que dá vida, uma promessa de felicidade, uma fonte de entusiasmo e de vigor, logo um estímulo e uma excitação de todas as energias psíquicas, da própria vida? Neste caso, Ângela Becker era o ideal de nossa sociedade, sua estrela, seu sonho-desejo. Ao menos, creio que nenhum daqueles que gravitavam em volta dela podiam imaginar sua ausência, seu desaparecimento, sem sentir imediatamente, em sua própria alegria de existir, em sua própria vontade de viver, uma diminuição dinâmica, imediata. Palavra de honra, era assim!

     Ernst Becker havia trazido Ângela do estrangeiro. Era um homem de barba morena, silencioso, cortês. Tinha seu valor. Só Deus sabe onde ele tinha conquistado Ângela. Resumindo, ela lhe pertencia. Antigamente advogado e funcionário do Estado, tinha entrado num banco aos trinta anos. Está claro que era para poder oferecer uma vida fácil e luxuosa à jovem que queria trazer ao seu lar. Porque pouco tempo depois ele se casou.

     Como vice-gerente do banco de empréstimos sobre hipotecas, ganhava 30.000 marcos. E os Becker, que não tinham filhos, tomavam parte ativamente na vida mundana da cidade. Ângela era a rainha das festas, o centro das atenções. Nos intervalos, nuvens de adoradores sorridentes, encantados, enchiam seu camarote no teatro. Nos bazares de caridade, os compradores faziam fila em seu balcão e se apressavam em esvaziar a bolsa só para ter o direito de beijar a pequena mão de Ângela e obter um sorriso de seus lábios deliciosos. Para que proclamar seu brilho, sua sedução? O doce charme de sua pessoa só pode ser pintado por seus efeitos. Ela tinha jovens e velhos sob o jugo do amor. As mulheres e as jovens a adoravam. Durante um duelo, um tenente baleou um Conselheiro de Estado, no ombro, porque numa noite dançante os dois haviam disputado uma valsa com Ângela. Depois tornaram-se amigos inseparáveis, unidos em sua admiração por ela. Velhos senhores rodeavam-na depois do jantar para deleitarem-se com sua tagarelice deliciosa, com sua mímica divinamente sapeca. O sangue subia à face dos velhos, eles agarravam-se à vida de Ângela, eram felizes. Uma noite, um general, evidentemente de brincadeira, mas não sem que seu gesto exprimisse um sentimento profundo, ajoelhou-se diante dela em pleno salão.

     Mas nenhum homem ou mulher podia vangloriar-se de ser verdadeiramente íntimo de Ângela, nem mesmo de ser seu amigo. Somente Ernst Becker, claro, mas ele era muito silencioso e modesto, talvez também muito apagado, para gabar-se de sua felicidade. Entre ela e nós subsistia sempre uma bela distância. Via-se raramente Ângela fora de seu salão ou da sala de baile. Sim, refletindo bem, percebia-se que esta estranha criatura não nos aparecia à prosaica luz do dia, mas sempre exclusivamente à noite, na hora da luz artificial, onde a atmosfera mundana se aquece. Mas tinha que ser assim, o que aconteceria com um ideal se pudéssemos tratá-lo por tu?

     Ângela consagrava seus dias evidentemente a cuidar do interior de sua casa. Suas festas caracterizavam-se por um brilho extraordinário. Estas noites eram célebres, eram o charme do inverno. Graças aos méritos da dona da casa porque, devemos dizer, Becker era um anfitrião cortês, mas não passava disto. Nestas noites Ângela se excedia. Depois do jantar sentava-se diante de sua harpa e fazendo vibrar as cordas, cantava com sua voz suave. Impressão inesquecível. O gosto, a graça, o tato com que ela organizava estas noites eram enfeitiçadores. Sua amabilidade que raiava sobre todos ganhava os corações. A ternura atenciosa, profunda e também um pouco pudica que ela mostrava no relacionamento com seu esposo, eram para nós a imagem da felicidade, a possibilidade da felicidade, e enchia-nos de fé no Bem melancólico e carregado de nostalgia, como nos mostra, por exemplo, uma vida que a arte levou à perfeição.

     Assim era a mulher de Ernst Becker. Poderia-se esperar que ele apreciasse o privilégio de possuir tal esposa. Se alguém na cidade parecia digno de inveja, era ele, e podíamos imaginar quantas vezes Ernst devia repetir-se a si mesmo que era um homem feliz. Ele aceitava todas as homenagens enciumadas concordando amavelmente.

     Os Becker já estavam casados há uns dez anos. O gerente tinha quarenta anos e Ângela estava entrando nos trinta. Eis o que aconteceu:

     O casal havia organizado uma reunião mundana, uma de suas noitadas exemplares, uma ceia de quase vinte lugares. Na hora de abrir as champanhas, um senhor, um celibatário entre duas idades, levanta-se de repente para fazer um brinde. Ele celebra os anfitriões, sua hospitalidade, esta faustosa e autêntica hospitalidade que revela uma vida cheia de felicidade e o desejo de fazer participar dela o maior número de pessoas possível. Ele fala de Ângela, canta seus louvores. “Ah cara, maravilhosa senhora, disse ele voltando para ela o cálice que tinha na mão, se termino meus dias solteiro é por não ter achado uma mulher como a senhora. E se algum dia me casasse, teria que ser com uma mulher que se parecesse com a senhora traço por traço.” Depois disto dirige-se a Ernst Becker e pede permissão para dizer-lhe o que já ouviu tantas vezes: como todos o invejam, o felicitam, elogiam sua inefável felicidade. Depois chama todos os convidados a se juntarem para brindar os anfitriões abençoados, senhor e senhora Becker.

     Os vivas explodem e todos saem de seus lugares para virem brindar com o casal festejado. Mas de repente faz-se um silêncio, porque Becker, o gerente Becker, levanta-se, e está pálido como a morte.

     Está pálido. Somente seus olhos estão injetados de sangue. Solenemente, com uma voz trêmula, começa a falar.

     Por uma vez, exala ele ofegante sob o esforço, por uma vez na vida é preciso que ele se exprima! Por uma vez ao menos quer se livrar da verdade que carrega tanto tempo sozinho! Por uma vez, finalmente, vai nos abrir os olhos, a nós, os cegos, os bobos. Vai nos falar do ídolo cuja posse invejamos tanto! E enquanto os convivas, uns sentados, outros de pé, petrificados, paralisados, não acreditando em seus próprios ouvidos, os olhos fora das órbitas, rodeavam a mesa ricamente decorada, este homem, numa espantosa explosão, pinta seu casamento. O inferno de seu casamento...

     Esta mulher, sim, está aqui presente, ele nos diz como ela é falsa, mentirosa e selvagemente cruel! Como passa seus dias mergulhada numa preguiça depravada e desavergonhada, para só se despertar à noite, sob a luz artificial, numa vida mentirosa. Como, durante o dia, sua atividade limita-se a martirizar seu gato com refinamento de crueldade. Como ela o tortura, a ele também, com seus caprichos malvados. Como o enganou escandalosamente com os empregados, os operários, os mendigos que vinham bater à sua porta e como ela o chifrou. Como ela o arrastou, a ele também, na lama de sua corrupção. Como o aviltou, sujou, envenenou. Como ele suportou tudo, em nome do amor sentido outrora por esta simuladora. E porque, no fundo, ela é uma infeliz, infinitamente digna de pena. Mas como, finalmente, cansara-se da inveja, das felicitações e dos vivas, ele precisou, ele, Becker, uma vez, uma só vez, clamar a verdade.

     Vejamos, grita ele, ela nem mesmo se lava! Ela é in-dolente demais! É imunda sob suas roupas íntimas de renda!

     Dois senhores levaram-no para fora da sala. Os convidados se dispersaram.

     Alguns dias mais tarde, Becker, naturalmente de comum acordo com sua mulher, foi para uma clínica psiquiátrica. Ora, ele estava perfeitamente são. Estava simplesmente esgotado.

     Mais tarde os Becker estabeleceram-se numa outra cidade.

    

DEZESSEIS ANOS

     Este texto foi escrito para servir de introdução à edição americana de JOSEPH E SEUS IRMÃOS em um só volume (1948).

    

     Eis finalmente reunido num só volume esta pilha de trabalho piramidal que só difere dos monstros seus irmãos à entrada do deserto bíblico porque não se deve às hecatombes de escravos chicoteados, ofegantes, suas vítimas, mas à paciência de um só homem que edificou-o ao curso de longos anos.

     De longos anos... Refletindo bem, e levando em conta todas as interrupções, foram dezesseis anos consagrados a este trabalho. Um período historicamente tão “rico em histórias” quanto esta obra obstinada e concentrada sobre ela mesma desenvolvida durante este tempo. Um período cheio de peripécias de um gênero bastante prejudicial à serenidade épica. Será exagerado pensar que a posteridade — se é que a posteridade ainda se interessa ao domínio intelectual — talvez se espante um dia, e pergunte como durante estes anos de 1926 a 1942, no meio da turbulência dos acontecimentos que cada dia transtornavam o coração e o cérebro impondo-lhes as mais duras provas, pôde ser realizada uma narração como esta de setenta mil linhas? Narração anunciadora de acontecimentos primordiais da vida humana, o amor e o ódio, a discórdia fraterna e o sofrimento paterno, o orgulho e a expiação, a queda e o exaltamento, um canto humorístico da humanidade, se é permitido chamar as coisas por seus nomes.

     Não sinto espanto, mas gratidão. Sou agradecido a esta obra que foi meu apoio e meu bastão num caminho que freqüentemente atravessava vales sombrios. Ela foi meu refúgio, minha consolação, minha pátria, a garantia de minha própria tenacidade na mudança tumultuosa das coisas.

     Em 1924 foi terminado em Munique A MONTANHA MÁGICA que apareceu no mesmo ano. Entre seu final e o dia em que tive a coragem de escrever a primeira frase do prelúdio a Joseph e seus irmãos, intitulado DESCIDA AOS INFERNOS, este “Profundo é o poço do passado”, não tenho nada a assinalar como criação, salvo a narrativa intitulada DESORDEM improvisada para o número da NEUE RUNDSCHAU que comemorava meu 50.° aniversário. Um destes descansos ativos que são meu quinhão com uma certa regularidade quando me encarregam de um trabalho de longo fôlego. Assim, depois de Charlotte em Weimar, nasceram as Cabeças invertidas, uma brincadeira metafísica. E depois de ter terminado as Histórias de Joseph, escrevi a Lei, esta defesa da moral humana contra o nazismo. Lentamente, a partir da hora em que comecei este ensaio fantástico que forma a Introdução e faz pensar na etapa de abastecimento que precede uma viagem de exploração arriscada, lentamente e me perguntando com inquietude quanto tempo e lugar tudo isto tomaria, desenvolveram-se as partes do romance mitológico que apareceram sob o título de HISTÓRIAS DE JACOB. Simplesmente porque um texto manuscrito suficientemente grosso para formar um volume considerável já havia se acumulado, e não porque a obra tivesse sido prevista sob a forma de vários volumes, como uma série de romances, uma tetralogia. Infelizmente, tudo aconteceu de uma outra maneira, como sempre. Os BUDDEN-BROOK haviam sido concebidos como uma história de comerciantes, de mais ou menos cento e cinqüenta páginas e em seguida tomaram sua proporção; A MONTANHA MÁGICA originalmente devia ser uma narrativa da dimensão da MORTE EM VENEZA e sua contra-partida grotesca, e se hipertrofiou em seguida segundo suas próprias leis. Da mesma forma eu havia previsto um trio de novelas de coloração religiosa, cuja abertura devia ser mística, bíblica. A história de Joseph, contada novamente, com vivacidade, parecia ser a indicada. Habent sua fata libelli, não depois de sua publicação, mas desde o momento de sua gênese. O autor não sabe muita coisa de suas histórias quando começa a contá-las. Elas têm sua vontade própria e sabem melhor o seu caminho. As novelas sobre a Reforma e a Contra-Reforma desapareceram, e durante mais de cinco anos eu devia estar enfeitiçado pelas novelas míticas, bíblicas, concebidas como uma narração de um fôlego só, como um volume único, um volume que infelizmente aumentava desmesuradamente. Assim posso dizer que aqui e hoje, pela primeira vez depois de anos de uma existência dividida, a história aparece sob sua verdadeira forma.

     Habitualmente meus trabalhos narrativos acompanham-se de pequenos brotos sob forma de ensaios. Freqüentemente a incitação a escrevê-los pode vir de fora, mas no fundo eles só têm a finalidade de fortificar-me no meu propósito de narrador. Assim as dissertações da REPÚBLICA ALEMÃ e GOETHE E TOLSTOI ligam-se à MONTANHA MÁGICA. Os escritos sobre A ALEMANHA E OS ALEMÃES, DOSTOIEVSKI E NIETZCHE ligam-se ao DOUTOR FAUSTO.

     Seria desnecessário enumerar tudo o que está ligado a Joseph como pequenas críticas e notas marginais, e que recebe dele sua coloração: estes textos enchem volumes e compõem a maior parte das coleções em língua inglesa intituladas ORDER OF THE DAY e ESSAYS OF THREE DE-CADES. Como se com as sessenta páginas de introdução às HISTÓRIAS DE JACOB eu não tivesse me equipado suficientemente para a viagem ao país mítico e me colocado no estado de espírito necessário, seguiu-se ainda, no ano do começo, 1926, a análise entusiástica do AMPHITRYON de Kleist. Além disto basta ler as frases preliminares, que roçam o mito, do discurso sobre Lessing, para ver que elas têm uma ligação com “a coisa”. Ou digamos que por uma doce inclinação, um laço estabelece-se entre a coisa e elas. E até interrompi minha narração para escrever uma história independente, MÁRIO E O MÁGICO, uma história de fortes ramificações políticas, que se inclina em segredo sobre a psicologia do fascismo e também sobre a psicologia da “liberdade”, com sua doutrina de boa-vontade, que a coloca num tal estado de inferioridade diante da inabalável resolução de seu adversário.

     Devemos pensar que na época em que comecei JOSEPH, as tensões políticas interiores do após-guerra na Alemanha já haviam atingido seu apogeu, e nestes anos de 1920, por causa de minhas obras políticas, realizava minha obra artística sob a pressão, as perturbações morais e o peso do ódio nacional. A situação honrosa oficial que a República me reconhecia não mudava nada, e me obrigava a todas as espécies de discursos solenes. Os artigos, conferências, manifestações oficiais, adjurações políticas, prosseguiam paralelamente. As Histórias de Jacob já estavam acabadas e certas partes do Jovem Joseph escritas, quando no começo de 1930 realizei minha viagem ao Oriente, no Egito e Palestina. Não podia mais passar por uma viagem de estudos, mas antes pela verificação in loco do mergulho que havia executado à distância nesta esfera. De qualquer maneira, vi com meus olhos a paisagem do Nilo, desde o Delta subindo (ou descendo) para o país nubiano. Além disto, os lugares sagrados da Terra Santa, e minhas impressões enriqueceram o volume que tinha uma parte escrita ainda na Alemanha, Joseph no Egito. A este volume está ligado o estudo SOFRIMENTO E GRANDEZA DE RICHARD WAGNER. Cinqüenta anos já se haviam passado desde que o grande dramaturgo e músico tinha fechado os olhos em Veneza, e diversas cidades do estrangeiro me haviam convidado para fazer conferências sobre sua arte. Escrevi muito mais do que poderia dizer de viva voz. E sob a forma abreviada que finalmente dei à minha apologia crítica, eu a li primeiro no dia 10 de fevereiro de 1933 diante de um público completamente simpatizante, na Universidade de Munique, para começar no dia seguinte, com uma leve bagagem, a viagem com destino a Amsterdam, Bruxelas, Paris, de onde nunca mais voltaria à Alemanha.

     Quando deixei Munique, Hitler já era chanceler, mas foi durante nossas férias de repouso na montanha suíça que se produziu o incêndio do Reichstag, a vitória catastrófica ao nazismo nas eleições, a instauração da ditadura, a revolução nacional. E uma campanha terrível desencadeada no rádio e na imprensa contra mim, por causa da imagem que havia traçado de Wagner, me proibiu completamente a perspectiva de um retorno à minha pátria. Já contei em outro lugar a história desta época de minha vida. Ela provocou uma interrupção em Joseph que durou meses. Uma de minhas filhas, muito corajosamente, ousou voltar à nossa casa de Munique, já confiscada. Ela trouxe para o sul da França o manuscrito que eu havia deixado. E lentamente, em condições provisórias e precárias, o trabalho retomou seu curso, que só uma severa disciplina de vida tornou possível.

     JOSEPH NO EGITO foi terminada em Küsnacht, no lago de Zurique, onde havíamos emigrado no outono de 1933, depois de um longo trabalho, freqüentemente interrompido por outros afazeres, e apareceu em Viena em 1936 onde a editora a que pertencia pôde encontrar um asilo passageiro. Foi nesta época que fui excluído da confederação dos Estados alemães, e que retiraram meu título de doutor honoris causa (depois reobtido), ofensa à que respondi pela carta traduzida em tantas línguas, ao deão da Faculdade de Filosofia de Bonn. Foi nesta época também que começou a aparecer a revista suíça a favor da livre cultura alemã, Mass und Wert, sob minha direção.1 Ela publicou longas passagens de CHARLOTTE EM WEIMAR, o romance inspirado em Goethe que havia realizado no intervalo, também previsto como um breve intervalo.

     Eu era então membro do Comitê Permanente das Letras e das Artes instituído pela Sociedade das Nações. E antes da instauração do Terceiro Reich havia tomado parte nas sessões desta assembléia em Geneve e Francfort-sur-le-Main.

     Numa discussão em Nice, a qual não assisti pessoalmente, participei pelo envio de um memorando escrito, cuja leitura provocou uma certa sensação, e que apareceu mais tarde sob o título Achtung, Europa! na coletânea de ensaios do mesmo nome. Freqüentava novamente as reuniões do Comitê, em Veneza e Budapeste, e foi na capital húngara que no curso de uma sessão pública improvisei um discurso sobre os assassinos da liberdade e a necessidade de uma democracia militante — manifestação que ultrapassou os limites do tato, levando-se em conta o caráter bastante acadêmico e um pouco silencioso que os debates tinham, por causa da presença dos delegados fascistas. Entretanto, meu discurso valeu-me aclamações do público húngaro, que se prolongaram por um minuto inteiro e o abraço entusiasta de Karel Capeck, o poeta tcheco que morreu com o coração partido quando a democracia traiu sua pátria.

     Havia estabelecido relações com a América desde 1934. O diário de viagem TRAVESSIA COM DOM QUIXOTE foi o resultado literário de minha primeira viagem. A partir de então atravessei o oceano quase todos os anos, e o centro de gravidade de minha vida começou a deslocar-se para esta margem transatlântica. Para a América escrevi: DA VITÓRIA FINAL DA DEMOCRACIA, a conferência com que percorri, durante o inverno de 1938, quatorze cidades dos Estados Unidos. Para a América também, como introdução a uma edição de Nova York, ENSAIO SOBRE SCHOPENHAUER, o pensador que havia exercido sobre minha juventude uma impressão tão profunda. A obra figura hoje na coletânea ESSAYS OH THREE DECADES.

     Durante os anos de minhas idas e vindas entre a Europa e o Novo Mundo, situam-se ainda os dois artigos sobre Freud. O segundo fornece o tema da conferência de festa em Viena comemorando o 80.° aniversário do grande sábio. E o segundo discurso sobre Wagner e o ANEL DE NIBELUNG que tive que pronunciar na ocasião da representação desta obra grandiosa na Universidade de Zurique. Tudo isto foram interpolações no meu trabalho do romance sobre Goethe, que por sua vez era uma interpolação na obra épica principal, as HISTÓRIAS DE JO-SEPH. Esta interdependência dos trabalhos, inevitável, me parece, em certos casos de economia produtiva, não ser uma carga moral muito fácil. Uma grande obra encontra-se abandonada em proveito de uma obra menor, cujas exigências não havíamos previsto, que por sua vez levarão anos. Forçado pela necessidade, coloca-se igualmente estas de lado para satisfazer a mil espécie de obrigações quotidianas. Abandonamo-nos a trabalho acessórios e alguns tomam não apenas semanas, mas meses, e nada falta para que num tal trabalho, outras improvisações ainda menores apareçam, sem que por isso se perca de vista as solicitações maiores. Desta maneira, somos forçados a carregar no espírito e sobre os ombros o total, tudo o que vem e que aí se acrescenta. O que acontece é que precisamos ter paciência, uma fleugma que não é inteiramente natural deve ser conquistada num nervosismo que tende ao desespero. Resistir, obstinar-se, continuar a viver, e toda esperança leva o nome “tempo”. Dêem-me tempo, deuses imortais, dize-se numa oração, e tudo se realizará.

     Nossa instalação em Princeton aconteceu na ocasião dos terríveis acontecimentos políticos de “Munique”, a capitulação das democracias diante do fascismo, o sacrifício do Estado tcheco e de toda a moral política, consentida por amor pela peace in our time. Preso de um profundo desencorajamento que juntou-se a uma imensa indignação, escrevi A PAZ DE MUNIQUE, primeira acusação aos Estados ocidentais que o medo do socialismo russo devastava. CHARLOTTE EM WEIMAR foi continuada num novo ambiente de trabalho, apesar das dificuldades de aclimatação. Mas minhas ligações com a Universidade de Princeton me impunham ligeiros deveres. Conferências públicas e outras para alunos avançados foram elaboradas. Passamos ainda o verão de 1949 na Europa. Inglaterra, Suíça e Holanda, e na praia de Noordwijk eu escrevi, para o Random House de Nova York, a introdução à Anna Karenina de Tolstoi que foi igualmente incorporada nas coletâneas alemãs e inglesas de meus ensaios literários.

     Surpreendido na Suécia pela guerra, se é que pode-se falar de surpresa, fizemos uma viagem de retorno angustiante, perigosa mesmo, até Londres, depois no Washington. Levava muitos papéis, manuscritos de conferências e de livros, que no aeroporto de Londres, bastante afastado da cidade e camuflado, foram objeto de longas e fastidiosas enquetes. Um desenho, a arrumação da mesa do almoço que Goethe dá em sua casa de Frauenplan em Weimar para a bem-amada de sua juventude, excitou particularmente a desconfiança dos inspetores. Supuseram que este desenho fosse um plano estratégico e foi preciso que eu fizesse um pequeno discurso sobre o romance para convencê-los da perfeita inocência desta folha.

     Charlotte em Weimar chegava então ao final. Neste mesmo ano acabei o livro, em Princeton, com o diálogo fantasmagórico entre Lotte e Goethe na carruagem. E fiquei finalmente livre, depois de uma interrupção de quase cinco anos, para dedicar-me ao último volume de Joseph e seus irmãos. O desejo de terminar esta narração, que sobrevivia a tudo, e que eu tinha trazido comigo da Alemanha, estava vivo em mim, e lembranças míticas, paralelos alusivos, nem um pouco indignos do assunto, aumentavam ainda mais este desejo.

     Encontrava-me no mesmo ponto que Wagner quando, depois da grande interpolação de TRISTÃO e dos MESTRES CANTORES, havia retomado o ANEL DE N1BE-LUNG. Minha maneira de tratar o mito aproximava-se ainda mais, é verdade, do humor de Goethe da Noite do Walpurgis Clássico que do pathos de Wagner. Mas o desenvolvimento imprevisto que a narração de Joseph havia tomado, era, certamente, secretamente determinado pela lembrança da grandiosa arquitetura dos motivos Wagnerianos, e uma conseqüência deste sentimento. Trabalhando sobre temas inventados há tanto tempo, eu precisava, deformando-os e reformando-os, levá-los a um ponto de junção que fosse sua coroação. Este pensamento me alegrava, e entretanto, hesitava em colocá-lo em execução.

     Não que durante estes anos agitados minha veia tivesse secado. Eu havia me agarrado com unhas e dentes, apesar de todos os outros afazeres, a este antigo trabalho, e ele estava vivo em mim. A razão de minha timidez era que simplesmente eu temia um anticlima e que o quarto volume não tivesse o peso do terceiro. Este Joseph no Egito me parecia quase incontestavelmente o apogeu poético da obra, notadamente porque nele havia tentado salvar a honra humana, humanizar a silhueta da mulher de Putifar, contando a dolorosa história de sua paixão pelo mordomo cananeu de seu esposo nominativo. Não tinha nenhuma figura feminina de reserva, análoga à de Rachel do primeiro e do segundo romance, que pudesse contrabalançar a Mutem-Enet do terceiro. E um certo tempo se passou antes que eu me convencesse de que a tinha. Era Thamar, a nora de Juda e sua sedutora, de que fiz aluna de Jacob, uma figura procedente de Astartéia, com traços tomados ao livro de Ruth e que desenvolvi no estilo meio humorístico do todo, para fazer dela o protótipo da ambição histórica. Foi através dela (que em seguida deu nome a uma das principais passagens do livro, uma novela em si) que completou-se para mim o desejo de contar o resto. E hoje em dia ainda, não acho exagerado que esteja dito no texto: “Se alguém ficar tentado a chamar esta mulher “a figura mais espantosa da história”, não o contradiremos.”

     Fiz preceder de uma longa novela, as Cabeças invertidas, a retomada da obra principal. Finalmente em Brent-Wood, na Califórnia, onde passamos a primavera e uma parte do verão de 1940, reencontrei o tom rapsódico há muito tempo abandonado da saga bíblica, e os primeiros capítulos de JOSEPH O NUTRIDOR foram escritos. A gênese deste volume, cuja atmosfera é a mais clara e alegre de todos, não foi menos agitada, foi até mais que a dos outros três volumes, e ainda mais rica em interrupções que aceitava sempre com tristeza. Esta gênese desenrolou-se durante as terríveis tensões de uma guerra de que parecia depender o destino do mundo, a civilização ocidental, resumindo, tudo em que eu acreditava. Uma guerra que começou sob auspícios tão sombrios. Depois da queda da França, país de que me tornaria cidadão e que entrou na guerra assim como Aquiles deixou sua tenda depois da morte de Patrocle, pediram-me constantemente que pusesse minha palavra ao serviço desta guerra. Desta guerra e do mundo que ela prometia criar, tratam os ensaios improvisados que cronologicamente situam-se na época do quarto volume de Joseph, coisas como D1ESER KRIEG, O PROBLEMA DA LIBERDADE, etc. Eu os utilizava para conferências que me permitiram preencher minhas obrigações como fellow da Library of Congress de Washington. Mas já em Princeton, antes da nossa emigração para a Califórnia, uma vez terminado meu estágio de professor convidado, tinha, instigado pela B.B.C., começado a compor com regularidade, todos os meses, mensagens que eram enviadas pelo rádio à Alemanha, cujo número deveria elevar-se a cinqüenta e cinco durante os anos de guerra. Tinha assim vinte e oito dias de JOSEPH, quatro semanas de liberdade consagradas à brincadeira mítica, depois um dia ou dois em que não era poeta, mas, de todo meu coração, orador na luta, e onde dava livre curso ao meu ódio contra os perturbadores da Alemanha e da Europa, para gravá-las em seguida com uma emoção que só a vida e as paixões podem suscitar. Depois voltava à obra pacífica e ao “teatro do templo”, esta realização humorística e precisa do irreal, graças à montagem e à análise.

     Acima de minha atividade estava o azul do céu da Califórnia, tão parecido ao céu do Egito, e ao qual devo certamente muito de sua serenidade. Muitas pessoas fugiam da costa ocidental com medo dos ataques japoneses, mas nós havíamos, ao contrário, aproveitado o último momento em que ainda era possível construir, edificando nossa casa sobre as colinas de Santa Mônica.

     JOSEPH, O NUTRIDOR, é a parte da obra que foi escrita na América da primeira à última palavra, e não há dúvida de que ele tenha tomado emprestado um ou outro traço do espírito americano. Não somente o success story que já era por sua natureza e seu propósito, não somente por causa dos anglicismos ocasionais, tolerados com boa-vontade, que coloriram às vezes o discurso germânico. O espírito da narração, se vocês querem saber minha opinião sobre este assunto mítico, é um espírito isento de entraves até tornar-se abstrato.

     Seu instrumento é a própria linguagem em si e por si. A linguagem impõe-se em absoluto e não preocupa-se com os idiomas e com os deuses lingüísticos de cada país. Pouco me importo se acham, por exemplo, que o alemão do “Prelúdio nas esferas superiores” de Joseph, o nutridor, “no fundo, não é mais alemão”. Para mim. basta que seja linguagem. Para mim basta que a obra inteira represente uma obra lingüística em primeiro lugar, cuja polifonia mistura os acentos do Oriente primordial com a língua mais moderna, acentos de uma ciência-ficção. E a obra varia as máscaras da linguagem assim como seu herói faz se alternarem as máscaras divinas, e o último tem um caráter americano espantoso. Com efeito, é a máscara de um Hermes americano, de um emissário da sabedoria muito hábil. E o New Deal se reflete indubitavelmente na administração econômica, miraculosa de Joseph.

     O ano de 1942 já ia longe quando cheguei ao fim. Abaixo da última linha da MONTANHA MÁGICA, dezoito anos antes, havia escrito, não sem uma certa solenidade, FINIS OPERIS. Que poder amavelmente voluntário e imperioso até o fim continua sendo o estilo! Desta vez, ele me obrigou, segundo um costume narrativo de nossos pais, a disfarçar o Finis, de maneira que fiz do título do total, JOSEPH E SEUS IRMÃOS, a frase final. Eis aqui o todo, reunido num mesmo volume, na admirável tradução inglesa de Helen Lowe Porter. Um triunfo que se deve à fidelidade e à abnegação, que esta mulher não teria conseguido sem sua fé na dignidade de seu trabalho. Será que me é permitido dividir esta fé? Como a posteridade considerará esta obra? Transformar-se-á numa curiosidade para arquivistas, logo empoeirada, um ligeiro empréstimo roubado ao passado? Ou sua brincadeira alegrará ainda aqueles que virão depois de nós, sua emoção tocará os leitores tardios? Será que irão classificá-la entre os grandes livros? Não sei e ninguém pode me dizer. Mas como filho de comerciante, no fundo acredito na qualidade. O que ajudou tantas obras feitas pela mão do homem a atravessar idades, resistir aos séculos, e incitou a humanidade a preservá-las da destruição, mesmo nas épocas mais selvagens? Foi isto: a qualidade. O canto de Joseph é um bom trabalho, realizado fielmente, nascido da simpatia a que a humanidade sempre foi sensível. Creio que uma certa duração lhe é inerente.

 

                                                                                Thomas Man

 

 

                      

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