Biblio VT
Se há alguém capaz de compreender, és tu; sempre respeitei a tua inteligência. Eu tinha tanto para dar aí. Podia ter conseguido grandes coisas e com o tempo todos me teriam agradecido. Sim, até o Pele-de-Lobo. O fato de ter sido ele a tirar-me essa possibilidade é que me amargurou.
Tudo mudou no dia em que a mãe de Thorvald lhe deu a carta. Creidhe estava a trabalhar no tear, a lançadeira voando de um lado para o outro, tecendo uma bela teia de um padrão azul e carmim, testemunho dos ensinamentos da tia Margaret. Estava tão entretida e tão calada que todos pareciam tê-la esquecido. A entrega de um presente tão perigoso como aquela carta tinha de ser feita num momento de total privacidade. A tia Margaret falou com o filho em voz baixa em frente da lareira. Creidhe podia vê-los através da soleira da sala do tear. Nem um nem outro discutiam. As vozes mantinham o tom próprio de gente bem-educada. Mas Creidhe ouviu a porta da frente a abrir-se repentinamente e viu Thorvald descer os três degraus da entrada num único salto, atravessar o pátio e desaparecer nos campos como se perseguido por demônios. A jovem viu o olhar gelado e furioso no seu rosto. E embora não o soubesse na ocasião, foi naquele momento que a vida de Thorvald, e a sua, mudou repentinamente, tomando um novo rumo.
Creidhe conhecia Thorvald melhor do que ninguém. Brincavam juntos desde crianças e eram grandes amigos. Thorvald tinha poucos amigos; os dedos de uma mão eram suficientes para contá-los. O jovem falava abertamente apenas com dois, a quem permitia que se aproximassem: ela e Sam, o pescador, em cujo barco Thorvald ajudava, por vezes. Quanto a Creidhe, conhecia-o muito bem: os seus maus humores, os seus prolongados silêncios, os seus súbitos e brilhantes esquemas e os seus raros momentos de franqueza. Ela amava-o, apesar de todos os seus defeitos. Na sua mente, não tinha dúvida de que casaria um dia com ele. Não era um primo a sério, assim como Margaret não era uma tia a sério. Os laços eram de amizade, não de família. Thorvald ainda não percebera que ele e Creidhe estavam destinados um ao outro para sempre, mas perceberia em breve. Era apenas uma questão de tempo.
A lançadeira parou. Creidhe ficou a olhar para a soleira da porta, para uma paisagem penteada por ovelhas e cordeiros recém-nascidos. De casa da tia Margaret podia ver-se até ao mar, onde as falésias nuas dividiam a terra e o mar. Lá longe podia ver a silhueta escura de Thorvald a correr, sempre a correr. Creidhe vira uma mudança terrível nos seus olhos.
— Acabaste?
Creidhe deu um salto. Margaret aproximara-se dela sem um som.
— N... não, mas talvez seja melhor ir para casa. O pai já deve ter regressado da Ilha da Areia e eu tenho de ajudá-lo... — Creidhe calou-se. A tia Margaret tinha os olhos rasos de água. Um fenômeno espantoso. Ela era um modelo de decoro e autodomínio. Nunca perdia o controle.
Aquela casa, dirigida por Ash, o antigo empregado de Margaret, mas orientada pela própria Margaret, funcionava segundo uma rotina severa, com pouco espaço para erros e isso refletia-se na aparência da própria Margaret. Era uma mulher bonita de cerca de trinta e seis anos e de cabelos ruivos, cuidadosamente entrançados e encerrados numa touca de renda, alva como a neve, o seu vestido de linho tinha sempre as pregas imaculadamente passadas a ferro e o casaco de lã estava sempre apertado por dois broches gêmeos de prata, polidos até à perfeição. Margaret usava os símbolos de uma boa dona-de-casa: a navalha, a tesoura e as chaves, pendurados numa corrente. Era uma mulher competente. Algumas pessoas até a achavam intimidante.
Não voltara a casar depois da morte do marido, no primeiro ano do estabelecimento da colônia norueguesa nas Ilhas Brilhantes, antes de Thorvald nascer. Creidhe não achava a tia assustadora; havia uma ligação entre elas. Creidhe podia não ser grande coisa como sacerdotisa, como a sua irmã Eanna. Podia não ser bonita ao estilo das raparigas esguias, elegantes e de pele morena da ilha. Mas tinha outras qualidades. Apesar de ainda ser muito nova, era a melhor parteira de Hrossey e ultrapassara rapidamente a especialista da ilha, assumindo total responsabilidade. As mulheres gostavam muito do seu toque ágil e da sua cabeça fria, o que tornava a sua juventude irrelevante. Essas mesmas mãos tinham muito talento para fiar, tecer e bordar. Margaret dava muito valor a esse talento e protegia há muitos anos as capacidades daquela sua sobrinha roliça de cabelos louros.
Se Thorvald não se apressa a fazer-me a corte, pensou Creidhe para si própria, outro qualquer o fará, para que possa dizer que tem a melhor tecedeira de Hrossey.
Não que não houvesse ninguém interessado. Creidhe tinha sempre par nos bailes. Sam fizera-lhe um pente de osso de baleia com animais marinhos gravados. Egil compusera-lhe um poema e recitara-o, corando. Brude beijara-a por trás da vacaria, quando não estava ninguém a ver. O problema era que ela não queria o gentil Sam, o estudioso Egil ou o belo Brude com os seus olhos azuis. Ela só queria Thorvald.
Thorvald tinha uns olhos escuros como a noite e uns cabelos ruivos e suaves, como os da sua mãe. Creidhe gostava da sua inteligência, da sua perspicácia, da maneira como era capaz de surpreendê-la quase sempre. Adorava os seus momentos de gentileza, por mais raros que fossem. Por vezes, gostaria que ele fosse menos distante; ouvira outras raparigas chamarem-no de arrogante e não gostara. Era, simplesmente, muito fechado; ela tinha sorte por ele a considerar amiga. Creidhe suspirou. Não havia meio de Thorvald se aperceber de que ela podia ser mais do que uma amiga. Com dezesseis anos, era uma mulher, pronta para o casamento; mais do que pronta, pensava, por vezes. Se Thorvald não acordasse rapidamente, o seu pai começaria a sugerir prováveis maridos, e que diria então? Como filha da sua mãe, tinha de se casar e ter filhos. Eyvind começaria a exercer pressão dentro de pouco tempo.
— Creidhe?
— Oh! Desculpe. — Estivera, mais uma vez, a sonhar acordada. — Sente-se bem, tia Margaret?
— Sinto. — As palavras desmentiam os olhos avermelhados e os lábios apertados. — Vai-te embora, já que Nessa está à tua espera. Isso pode ficar para amanhã. O desenho está a ficar bonito, Creidhe. És uma verdadeira artista.
Creidhe corou.
— Obrigada, tia. — A jovem fez uma pausa. — Tia Margaret...?
Margaret ergueu uma mão. Era um gesto que dizia tudo. Nada de perguntas. Fosse o que fosse que tivesse provocado a fuga de Thorvald, como um homem perseguido por sonhos sombrios, não diria nada, para já.
— Creidhe — disse Margaret enquanto a sua sobrinha se dirigia para a saída com uma pequena trouxa na mão — não vás atrás de Thorvald. Hoje não. Acredita no que te digo, é melhor deixá-lo sozinho durante algum tempo.
— Mas...
— Se ele te quiser dizer, dir-te-á em seu devido tempo. E agora vai para casa. O teu pai esteve fora durante muito tempo. Imagino que ele vai gostar muito dos cozinhados da filha, talvez do carneiro assado com alho, ou do bacalhau cozido com molho de alho-porro. Põe-te a andar.
O tom era ligeiro de propósito, pensou Creidhe. Os olhos da sua tia é que a denunciavam. Os de Thorvald tinham a mesma sombra.
Às vezes, Creidhe fazia o que lhe ordenavam, mas outras vezes não. Thorvald estava sentado no chão, encostado a um muro de pedra e olhava para o mar. Tinha o rosto escondido nas mãos. O seu cabelo ruivo liso escapara da fita e o vento chicoteava-o, parecendo as chamas de um archote. O jovem estava imóvel. Nas suas costas, por trás do campo murado, as ovelhas baliam e as crias respondiam. No céu, as aves cantavam canções de Primavera. Creidhe trepou por cima do muro e sentou-se a seu lado sem dizer nada. Tornara-se muito boa naquela espécie de atitude.
— Vai-te embora, Creidhe! — grunhiu Thorvald ao fim de um certo tempo. O jovem não abriu os olhos.
Para lá da rebentação estava um pequeno barco, de regresso da pesca. Levantara-se vento; a pequena vela empurrava o barquinho rapidamente para sul, talvez para Hafnarvagr, ou para outro lugar mais perto. Creidhe ergueu uma mão num gesto de saudação, mas do barco não a viram.
— Estou a falar a sério, Creidhe — disse rispidamente Thorvald. — Vai para casa. Volta para os teus bordados.
Ela inspirou profundamente e expirou lentamente enquanto contava até dez. Era bom ter mulheres inteligentes na família; podia não aprender os mistérios, já que eram secretos, mas podia aprender as técnicas que ajudavam a manter a calma.
— O que é que se passa? — perguntou-lhe ela calmamente. — O que é que ela te deu?
— Não quero falar nisso. Nem a ti, nem a ninguém.
— Está bem — disse Creidhe após um momento. — Compreendo. Quando quiseres, estou aqui para ouvir.
Thorvald cerrou os punhos. Os seus olhos estavam, agora, abertos, virados para oeste. A Creidhe pareceu-lhe que ele não estava a olhar para as falésias, para as gaivotas, para as nuvens, para o vento que vinha do mar. O jovem estava a olhar para algo diferente que estava muito mais longe.
O tempo passou. O seu pai estaria em breve em casa; a observação acerca do carneiro assado fora verdadeira. Os prazeres simples da vida tinham o poder de provocar um sorriso nos lábios de Eyvind e uma luz nos seus olhos, que aquecia a família inteira. Não era tanto a comida a responsável, antes a amabilidade e capacidade da filha. Creidhe pôs-se de pé e pegou na sua trouxa.
— Creidhe? — Um suspiro sombrio. Ela ficou imóvel por um momento, gelada, e depois sentou-se de novo sem um único som.
— Uma carta — disse Thorvald. — Do meu pai. Ela guardou-a estes anos todos. Nunca me falou dela.
Creidhe teve dificuldade em perceber a amargura na sua voz. O seu pai morrera antes de ele nascer e isso era muito triste, certamente mais triste para Margaret do que para aquele filho que nunca conhecera o pai. Pelo que as pessoas diziam, o marido de Margaret, Ulf, fora um grande chefe de guerra, que liderara a primeira expedição de noruegueses às Ilhas Brilhantes. Um pai de quem um filho se podia sentir orgulhoso. Uma carta era bom, não era? Não parecia apropriado Margaret tê-la guardado até à maioridade do seu filho.
— De Ulf? — perguntou gentilmente Creidhe. — Suponho que é razão para estares triste; recorda-te o que podias ter tido. É uma pena ele não estar aqui para te ver crescer.
— Eu não disse que era do marido da minha mãe, o valoroso Ulf Gunnarsson. — A voz de Thorvald era dura como o aço. — Eu disse que era do meu pai. Quer dizer, do homem que ela diz ter sido o meu pai. Toma, lê-a, se estás assim tão interessada. Por que não há de também tu saber, uma vez que já metade da ilha sabe?
O jovem retirou o pequeno rolo de pergaminho do interior da sua túnica e estendeu-lho. Creidhe estava espantada. Que queria ele dizer? A jovem desatou o fio que enrolava a carta e desdobrou-a, revelando uma escrita nítida e bem desenhada. Era velha, tinha os cantos gastos e os caracteres estavam borrados aqui e ali como se lhes tivessem caído em cima algumas gotas de água. Havia uma pálida linha na contra-face, onde o fio a atara, como se o pequeno pergaminho tivesse estado muito tempo guardado.
— Tu sabes que eu não sei ler, Thorvald. O que é que diz?
— Eu digo-te. Diz que não sou ninguém. Pior do que isso, sou filho de um louco, de um assassino. Esquece Ulf; esquece o conceito de um casamento respeitável e a morte triste do meu pai antes de eu ver a luz do dia. Ulf não era o meu pai. Ela escondeu-me durante estes anos todos. E eles sabiam: o teu pai, Nessa, Grim e todos aqueles que vieram com ele. Até aquele servo, Ash, sabia a verdade, mas manteve a boca calada este tempo todo. Uma conspiração do silêncio. — A sua voz tremia; o jovem olhava fixamente para o chão a seus pés. — Como pôde a minha mãe ser tão cruel?
Creidhe estava sem palavras. A jovem queria pôr um braço em redor do ombro do jovem para o consolar, como faria com qualquer das suas irmãs. Mas não o fez; Thorvald tê-la-ia afastado no momento em que o tocasse. Aquela notícia era, na verdade, terrível, se era verdadeira. E se lhe acontecesse o mesmo a ela? O seu pai era o centro do seu mundo, a alma da família. Na verdade, por vezes, Eyvind parecia que era o pai da comunidade inteira, guardião e protetor de todos. Saber que o nosso pai não é nosso pai é como perder, de repente, toda a segurança. É como arrancar o coração do próprio corpo. Não parecia haver maneira de o consolar.
— Ficaste muito calada — disse Thorvald subitamente, virando a cabeça para olhar para ela. — Não tens palavras nenhumas de consolação? Nenhuma solução rápida para os meus problemas? — Os seus olhos semicerraram-se; a sua boca transformou-se numa linha fina. — Mas, talvez já soubesses disto. Talvez eu seja o último a saber a verdade acerca da minha herança. Já sabias, Creidhe?
O seu tom era de raiva; Creidhe abanou a cabeça.
— É claro que não! Como podes pensar...?
Os ombros de Thorvald descaíram. A sua fúria virara-se de novo para dentro de si mesmo.
— É isso mesmo. Já não sei no que hei de pensar.
— Quem... quem era ele? — arriscou Creidhe. — Esta carta foi escrita para ti? Onde está ele?
— Pergunta ao teu pai. Ele sabe a resposta.
— Mas...
— Pergunta a Eyvind. Foi ele que exilou o meu pai, para que ele nunca soubesse que tinha um filho. A carta foi escrita para a minha mãe. Não diz nada acerca de mim. O meu pai tenta explicar-lhe por que razão o amante lhe matou o marido. Tenta justificar o assassínio do próprio irmão. Já viste a maravilhosa herança que a minha mãe me permitiu descobrir, agora que acabo de atingir a maioridade? — Thorvald pegou numa pedra e atirou-a para longe, para o vazio da falésia. Ergueu-se no ar uma nuvem de gaivotas, gritando de protesto. O seu rosto estava branco como a cal, enquanto os olhos eram dois buracos negros.
— Como é que ele se chamava? — perguntou Creidhe para ganhar tempo, enquanto a sua mente procurava freneticamente a coisa mais acertada para dizer. Naquela situação não havia, provavelmente, nada para dizer.
— Somerled. — O jovem atirou outra pedra.
— Por que razão não falam eles desse homem? Devem tê-lo conhecido.
— Por que não lhes perguntas, se estás assim tão interessada?
Ela respirou lentamente.
— Thorvald?
— O que é?
— A tia Margaret fez bem em não te ter contado isto antes. Tu agora já és um homem. Não és capaz de ver isto como um desafio, em vez de uma desgraça?
As sobrancelhas dele ergueram-se em ar de troça.
— O que queres dizer, Creidhe?
— Podes muito bem descobrir tudo acerca de Somerled. Tal como disseste, deve haver muita gente nas ilhas que o conheceu. Talvez ele não fosse tão mau como pensas. Toda a gente tem um lado bom.
— E depois? — respondeu Thorvald, irritado. — Meto-me num barco e vou à procura dele?
Aquelas palavras ficaram suspensas entre ambos enquanto o silêncio se prolongava, dando-lhes um peso que não estava na intenção de Thorvald. Os olhos azuis encontraram os negros; em ambos houve um reconhecimento de que aquela idéia louca era, de certo modo, inteiramente lógica.
Thorvald enrolou o pergaminho e atou-o com o fio. Pô-lo de lado e encostou-se ao muro de pedra com as pernas em redor dos joelhos e com os olhos firmemente fechados. Ela esperou de novo. Finalmente, sem abrir os olhos, ele disse:
— Eu sei que estás a tentar ajudar-me, Creidhe. Mas eu quero estar sozinho. — Seguiu-se uma pausa. — Por favor — acrescentou ele.
Não era possível um gesto de afeto, um abraço ligeiro, um aperto de mão, se bem que Creidhe desejasse tocá-lo
— Adeus, Thorvald — disse ela e dirigiu-se para casa sob um céu cada vez mais escuro.
Não lhe podia perguntar assim sem mais nem menos. Não era um tópico que pudesse ser aflorado no meio do caos de alegria provocado pelo regresso do seu pai, com as crianças e os cães a saltarem e a fazerem barulho, com Nessa quase incapaz de reter as lágrimas e o próprio Eyvind a fazer os possíveis por abraçar todos ao mesmo tempo apesar do fardo do machado, da espada e da grande mochila. Não era homem que pedisse a outros para lhe levarem a bagagem, nem sequer agora, que transportava sobre os ombros a autoridade das ilhas. Quando se casara com Nessa, aliara-se à última princesa real dos Folk, o que o colocara acima dos homens normais e Eyvind fizera desse estatuto um ponto de honra, dedicando-se ao estabelecimento de uma paz duradoura entre as duas raças durante muitos anos inimigas viscerais os nórdicos invasores e os Folk, que habitavam as ilhas desde tempos imemoriáveis. O fato de ambas viverem agora lado-a-lado amigavelmente devia-se mais a Eyvind do que a outro qualquer. Era quase possível esquecer que tudo começara com terror e derramamento de sangue. Quanto a Nessa, nunca perdera o respeito devido ao fato de ser ao mesmo tempo sacerdotisa e líder da tribo, uma questão crucial em tempos de adversidade. Agora era Eanna a sacerdotisa, Nessa já não desempenhava qualquer papel nos mistérios e retirara-se dos locais de culto. Tinha o marido, as quatro filhas saudáveis, a casa e a comunidade e desempenhava um papel nos conselhos e nas negociações, como o exigia o seu estatuto especial. Apesar disso, sentia alguma tristeza.
Eanna fora a primeira filha de Eyvind e de Nessa. O seguinte fora um rapaz, mas o mar levara Kinart antes de ele ter atingido os cinco anos. Depois dele, apenas raparigas: Creidhe, Brona e Ingigerd. Não como devia ter sido; não como os anciãos tinham previsto.
Apesar do estatuto quase real que possuía nas ilhas, a família de Creidhe vivia mais numa herdade do que num palácio, um conjunto vasto de edifícios de pedra rodeado por terrenos murados, um pouco a leste da ilha que deixava de o ser com a maré baixa, chamada Dorso de Baleia. Dorso de Baleia fora, em tempos, o centro do poder das Ilhas Brilhantes. Nessa vivera lá; o seu tio fora um grande Rei.
Quando os nórdicos apareceram pela primeira vez nas suas costas, vindos de leste, Margaret, Nessa e Eyvind não eram muito mais velhos do que Creidhe era agora. A viagem de descobrimento através do mar, de Rogaland até às águas protegidas das Ilhas Brilhantes, começara por ser uma viagem em busca de uma vida de paz e prosperidade, mas transformara-se, no espaço de um ano, num conflito amargo e destruidor, que só terminara com a chacina da maior parte dos conterrâneos de Nessa. Eyvind e Nessa, o guerreiro nórdico e a sacerdotisa dos Folk, é que conseguiram a paz; os dois, lado-a-lado.
Que vidas diferentes deviam ter tido, pensou Creidhe, enquanto a sua mãe e o seu pai permaneciam por alguns momentos juntos. Nessa afagou a face de Eyvind com os dedos; ele beijou-lhe os cabelos. A maneira como olhavam um para o outro provocou lágrimas nos olhos de Creidhe. A juventude de ambos fora cheia de aventuras: viagens, batalhas, lutas e proezas. Mal conseguia imaginar aquilo tudo ao olhar para eles. Ninguém via os próprios pais como heróis, apesar de eles serem exatamente isso. Olhava-se para eles como aquilo que eram, uma parte essencial da existência dos filhos. Onde estaria ela se não fossem eles?
Tinha de lhes perguntar. Mas ainda não. Primeiro, o jantar. Na casa viviam homens e mulheres: Eyvind chamava-lhes gente da casa, à moda da sua terra. Esses homens e mulheres eram gente capaz, que pareciam fazer quase parte da família. As mulheres tinham-se habituado ao fato de ser Creidhe a mandar na cozinha, especialmente quando ela queria preparar uma refeição especial para o pai. Naquele dia, alguém tinha ido à pesca e havia peixe fresco; Creidhe mandou Brona à horta em busca de alho-porro, enquanto ela própria ia buscar alho e cebolas. A pequena Ingigerd foi rapidamente convencida de que cortar vegetais, mexer molhos e esmagar ervas era uma coisa muito divertida, o que tornou possível Nessa e Eyvind retirarem-se para os seus aposentos e passarem algum tempo sozinhos. Creidhe contou às irmãs uma história enquanto preparava o peixe. Uma história sobre a Tribo Perdida, aquela gente de espírito manhoso que era vista de vez em quando em lugares antigos e subterrâneos e que ela tornou longa e excitante, permitindo que as crianças a interrompessem com perguntas sempre que lhes apetecia.
Anoiteceu ainda mais. As pessoas da casa juntaram-se em redor da mesa para jantar. Os esforços de Creidhe foram recompensados com o sorriso de Eyvind e com as palavras calmas de aprovação por parte de Nessa. Brona comeu até à última migalha e colocou o seu prato na tina sem que lhe tivessem exigido. Ingigerd já estava a dormir antes de terminada a refeição.
Respeitando a necessidade de privacidade da família depois do regresso de Eyvind, os homens e as mulheres da casa não permaneceram muito tempo depois da refeição, retirando-se cedo para os seus alojamentos. No exterior era noite fechada e um frio súbito percorreu a grande casa, se bem que as suas paredes de barro e pedra fossem espessas e robustas. Eyvind deitou mais turfa para a lareira e aproximaram-se todos. Uma de cada lado da lamparina de óleo, Creidhe e Brona trabalharam nos seus bordados. Brona estava a fazer laboriosos progressos com uma fila de pequenas flores vermelhas na bainha de um avental. O trabalho de Creidhe era mais complexo e mais pessoal. A jovem chamava-lhe a Jornada e trabalhava numa pequena secção de cada vez, mantendo o resto dobrado e escondido.
Estava tudo calmo. Ingigerd dormitava nos joelhos de Eyvind, segura pelo braço que a envolvia. Era uma pena, Creidhe pensou, a família inteira não poder estar ali toda junta. Era uma coisa cada vez mais rara, agora que Eanna completara o seu treino como sacerdotisa dos mistérios e se retirara da vida normal para ir viver sozinha nos montes. Tinha de lhes perguntar. Não podia esperar. Eyvind levou Ingigerd para a cama e aconchegou-lhe a roupa. Brona picou-se num dedo e lançou um pequeno grito; continuou a coser durante mais algum tempo, suspirou, bocejou e arrumou o trabalho.
— Boa noite, Brona — disse Creidhe, um pouco mordaz. — Eu ajudo-te amanhã de manhã, se quiseres.
Brona esboçou um sorriso e virou-se para abraçar, primeiro o pai e depois a mãe. A jovem dobrou-se para acender a sua pequena lamparina com um graveto da lareira e depois desapareceu na direção do quarto que partilhava com Creidhe.
— Mais cerveja? — perguntou Nessa. — E tu, Creidhe? Não dês cabo dos olhos com esse trabalho maravilhoso, minha filha. Pareces cansada.
— Anda cá, senta-te aqui ao pé de mim — disse Eyvind. — Tive saudades da minha querida. Conta-me o que fizeste enquanto estive fora. Aposto que a tua tia Margaret te deu que fazer.
Creidhe sentou-se ao pé do pai: a jovem pegou na caneca de cerveja que a mãe lhe estendia. O pai pôs-lhe o braço em redor dos ombros e ela sentiu-se quente e segura. Se o assunto tinha de ser abordado, não havia melhor ocasião.
— Pai, mãe, gostava de lhes perguntar uma coisa.
Ambos esperaram.
— É acerca de Thorvald.
Silêncio de novo, se bem que parecesse diferente, quase como se ambos esperassem aquela revelação.
— Ele hoje... ele hoje estava muito preocupado, porque... porque a tia Margaret lhe contou acerca do pai. Do pai verdadeiro.
A jovem sentiu a súbita tensão no braço de Eyvind e ouviu a respiração suspensa de Nessa.
— Eu tentei ajudá-lo. Tentei ouvi-lo, mas ele estava muito zangado. Ele disse... a tia Margaret disse-lhe que o verdadeiro pai dele era um assassino. Foi o que ele disse. Que ele matou o próprio irmão, o marido da tia Margaret. E ele disse... — Creidhe calou-se.
— O quê, Creidhe? — O tom de Eyvind era calmo.
— Que o pai expulsou o pai de Thorvald — suspirou ela. — Que o baniu das ilhas, para que não soubesse que tinha um filho.
— Estou a ver.
— Pai, por que é que nenhum dos dois nos falou dessa história? É verdade? E não foi crueldade da parte da tia Margaret tê-la escondido de Thorvald até agora? Ele está tão zangado e tão amargurado. Nunca o vi assim. Não pude fazer nada para o ajudar.
Os seus pais trocaram um olhar, um olhar complicado. Eyvind tirou o braço dos ombros de Creidhe e segurou-lhe numa das mãos.
— Falaste nisto a Margaret, Creidhe?
— Não. Ela disse-me para esperar até Thorvald estar pronto para me dizer. Mas...
— Mas tu não esperaste. — O tom de Nessa era seco, mas não indelicado. — Creidhe, essa história pertence a Margaret, é um segredo dela. Ela é que preferiu esperar e contar a Thorvald quando achou que ele estaria pronto para receber a notícia. Aqueles tempos foram terríveis. Recordar o que aconteceu é recordar uma barreira entre o povo do teu pai e o meu, barreira essa que nos manteria inimigos para toda a vida e que passaria para os nossos filhos e para os nossos netos. Houve muito ódio e muita crueldade. Tomamos a decisão, naqueles dias, de atirar com tudo para trás das costas. Não esquecemos; carregamos essa recordação até ao dia da nossa morte. Mas preferimos continuar, todos nós. Suponho que, a partir de agora, o assunto será discutido mais abertamente. Certamente que Thorvald vai falar dele aos amigos, incluindo tu.
— Eanna sabe o que aconteceu, Creidhe — disse Eyvind calmamente. — Tinha de saber, já que é a sacerdotisa. Mas não o disse a ninguém, tal como nós prometemos a Margaret. Para bem de Thorvald.
Creidhe não disse nada. Por vezes, dói não se ser ninguém especial, se bem que não ambicionasse grande coisa para si própria. Mas ainda doía mais o fato de os seus pais não terem nela a confiança suficiente para lhe terem confiado o segredo.
— Tive uma conversa muito interessante com um homem chamado Gartnait na Assembléia, na Ilha da Areia — observou Eyvind, mudando, aparentemente, completamente de assunto. — Um chefe de guerra das Ilhas do Norte, um jovem de bom aspecto de cerca de vinte e dois anos de idade, de boas maneiras e muito bem-educado. Ele perguntou-me por ti, Creidhe. Parece que a tua fama chegou longe.
— Fama? Que fama? — Eyvind sorriu.
— Nada de mau, ou não teria falado tão bem do rapaz. Foste descrita como um modelo de jovem, altamente qualificada nas artes domésticas e bem bonita.
— Eyvind! — Nessa franziu o sobrolho.
— As suas palavras foram bastante mais elogiosas do que o que eu acabo de dizer. De fato, as tuas virtudes foram enumeradas durante bastante tempo, mas não tas vou repetir porque tenho medo que fiques com a cabeça à roda, filha. É evidente que o interesse do rapaz foi despoletado pelo que ouviu acerca de ti. Ele anda à procura de mulher.
— Oh.
— Terias gostado dele, Creidhe — disse o pai. — Era um homem honesto, aberto e com sorriso pronto. E bonito... já tinha dito? Vais ter de começar a pensar neste gênero de coisas, filha. Sabes como é importante, não só para ti, como para todos nós. Para as Ilhas.
— Não é a primeira vez que o teu pai responde a perguntas acerca de ti — acrescentou Nessa.
Creidhe olhou para a mãe com o coração a bater com toda a força, subitamente cheio de esperança. Thorvald dissera alguma coisa, finalmente?
— Creidhe — disse Eyvind calmamente — nós gostaríamos de saber se estás na disposição de ir para fora por uns tempos, talvez com a tua tia Margaret, para te servir de dama-de-companhia. Uma estadia nas Ilhas do Norte seria bom para ti, ficarias exposta a um círculo maior, conhecerias gente e, ao mesmo tempo, descansarias um pouco do teu trabalho aqui. Tu tens trabalhado muito, minha querida. Seria fácil arranjar uma visita no Verão. Nós temos lá amigos. Eu não te estou a pressionar para que façamos uma aliança com este Gartnait de que te falei; conhecerias muita gente. Serias vista, ficando numa posição que te permitiria conhecê-lo a ele, mas também a outros. A seu tempo, farias os teus próprios julgamentos.
— Sabes como é importante fazeres uma boa escolha — disse Nessa. — Se não velarmos pela qualidade do sangue, a identidade dos Folk perde-se. Serão os teus filhos, assim como os de Brona e os de Ingigerd, os herdeiros da linhagem real.
Creidhe sabia; não era possível crescer no seio de uma família daquelas sem ter consciência da ascendência real e da importância de um bom casamento. Nessa era a única parente viva do grande Engus, último Rei dos Folk das Ilhas Brilhantes. Era filha da irmã dele e como a sucessão real era pela linha feminina, era vital que as filhas casassem com homens de credenciais impecáveis, já que os seus filhos seriam pretendentes ao trono. Como Nessa não tinha filhos rapazes, era duplamente importante. Continuava a ter importância, apesar de as ilhas estarem a ser governadas por conselho e já não por reis escolhidos.
— Tens de casar bem — acrescentou Nessa. Seguiu-se um silêncio.
— Pensei que íamos falar acerca de Thorvald — disse Creidhe abruptamente, vendo-se à beira das lágrimas sem razão aparente.
— Nós estamos a falar de Thorvald, Creidhe — disse o pai gentilmente.
A jovem sentiu-se gelar; sentiu um peso no coração. Parecia que não havia mais nada a dizer.
— Tu quiseste saber da história — disse Nessa. — Nós lhe contamos, mas sugiro que sigas o conselho de Margaret e que a guardes para ti. É um dilema de Thorvald e dela. É preferível que lidem com o assunto à sua maneira. O pai de Thorvald era um homem chamado Somerled; era, é verdade, irmão de Ulf, e veio para as ilhas na primeira expedição, a mesma que trouxe Eyvind.
— Ulf queria paz — continuou Eyvind. — Fez um tratado com o Rei Engus, tio de Nessa. Tudo parecia ir bem. Mas Ulf morreu. Foi assassinado em circunstâncias muito estranhas. O meu povo culpou os ilhéus e a guerra estalou. Aconteceram... aconteceram muitas coisas más. Morreu muita gente.
Nessa olhou de soslaio para ele com as sobrancelhas ligeiramente franzidas. À luz suave da candeia, com a sua pele pálida e olhos cinzentos, parecia muito nova, nada mãe de quatro filhas. Nessa estendeu um braço e agarrou na mão do marido.
— O meu próprio povo foi praticamente varrido — disse ela com gravidade. — O meu tio e o meu primo morreram e com eles os que me eram mais próximos, com exceção de Eyvind e de Rona. — Nessa fez uma pausa. A perda da sua velha mentora, a sábia que a ensinara, mas que também ensinara a Eanna os mistérios dos antepassados, ainda era recente porque Rona vivera muito tempo, tendo morrido tranquilamente na Primavera anterior. — Para mim, tornou-se claro, assim como para o teu pai, que Somerled, que se tornara líder depois da morte de Ulf, era o responsável pela onda de medo e ódio que varreu as ilhas. O teu pai foi muito corajoso. Confrontou Somerled com risco da própria vida e provou que ele era o assassino do próprio irmão.
Eyvind sorriu timidamente, mas os seus olhos azuis estavam perturbados.
— Se bem me lembro, foi a coragem da tua mãe que equilibrou a balança. Sem ela, tudo se teria perdido.
— Não compreendo — disse Creidhe, tentando abarcar o sentido daquilo tudo. — Qual foi o papel da tia Margaret no meio disso tudo?
— Apesar do que fez — disse Eyvind — Somerled não era um homem unicamente mau. Pelo menos, eu nunca acreditei que assim fosse, e Margaret também não. Tivemos alguma esperança numa redenção por parte dele, uma centelha de amabilidade, de bondade, que crescesse, dada a educação e os antecedentes. Houve uma época em que Margaret se sentiu muito só. Ulf, apesar de ser um homem muito bom, andava sempre ocupado com os seus projetos, e eu penso que ela sofria com isso. Somerled admirava-a muito. A subtileza e a inteligência eram muito importantes para ele. Em Margaret, ele viu alguém que só raramente se encontra; o seu par. Mas, no fim, a sua aliança não foi uma aliança feliz. Ela não conseguia tolerar o que ele fazia para conseguir o poder.
— Mas teve um filho dele. E o pai exilou-o. — Parecia uma coisa muito cruel, apesar de o homem ser um assassino. Não parecia nada um castigo imposto pelo terno e generoso Eyvind.
— Eu fui colocado perante a evidência. À face da lei que ele próprio instituíra, podia tê-lo condenado à morte. E era o que Somerled esperava. Ele sempre fora um homem ferozmente ambicioso. Durante um ano, ele foi Rei, aqui nas ilhas. Mas, finalmente, foi derrotado; até aqueles que o apoiaram começaram a abandoná-lo. Ficou sem ninguém e pediu-me que o matasse. A sentença que decretei foi no sentido de que ainda tinha fé nele, mesmo depois da terrível matança que ele provocou. Dei-lhe hipótese de mudar de caminho: dei-lhe hipótese de aprender a andar. Pensei que estava a ser misericordioso. Mas, para Somerled, o castigo foi uma coisa extremamente cruel.
— Ele abandonou as ilhas sem saber que Margaret estava grávida do seu filho — disse Nessa. — Rona sabia. Pelo menos, acho que sim. Mas Margaret não lhe disse e só me disse a mim depois de Somerled ter partido. Mas isso não teria alterado a decisão de Eyvind. Somerled não podia continuar nestas ilhas. Ele tratou o meu povo com desprezo. Muitos acharam a decisão de Eyvind demasiado clemente; temiam o regresso de Somerled. Ele era um homem que sabia exercer o poder. Influenciava as pessoas através do medo e o medo é uma grande arma. Mas Eyvind obrigou-o a prometer que nunca regressaria. Obrigou-o a prometer que faria os possíveis por mudar. Talvez nunca venhamos a saber se Somerled cumpriu a promessa.
— Por que prometeu ele isso?
— Por causa disto — disse Eyvind, enrolando a manga para mostrar a longa cicatriz que lhe corria pelo interior do braço acima. Creidhe sempre considerara aquilo como um legado da vida que o seu pai tivera como guerreiro Pele-de-Lobo; o seu corpo estava cheio de cicatrizes de ferimentos sofridos em combate. — Somerled e eu éramos irmãos de sangue, juramos lealdade um ao outro para sempre. No fim, ele quis quebrar esse laço, mas eu obriguei-o a mantê-lo. Depois, mandei-o para Oeste, através do mar. Talvez tenha sido, no fim de contas, uma sentença de morte. Nunca mais soubemos nada dele.
Creidhe ficara sem palavras. Era como uma velha saga, do gênero deuses e monstros. Não era, certamente, uma coisa da vida real.
— É verdade, Creidhe — disse a mãe. — Foram tempos terríveis. Eyvind e eu tivemos sorte; o nosso amor um pelo outro tornou-nos fortes. Os antepassados avisaram-nos de que o nosso caminho seria difícil, mas também nos disseram que estávamos a agir corretamente. Alguns poderes, muito antigos, ajudaram-nos no fim, mas foi a coragem humana que venceu naquele dia. Não deves pensar mal da tua tia Margaret, apesar de ela se ter deitado com um homem que não era o seu marido. Ela é uma mulher forte e orgulhosa. A sua vida tem sido solitária devido ao erro que cometeu. Nunca perdoou a si própria esse erro.
— Tem Thorvald.
— Sim. E ama-o, embora seja uma recordação diária das penas do passado. Suponho que ela lhe vai falar disto tudo e lhe vai explicar o melhor que puder. Espero que ele ouça e que não a julgue com demasiada severidade.
— Ele falou pouco dela — disse Creidhe lentamente. — Limitou-se a dizer que tinha sido cruel da parte dela ter escondido a verdade durante tanto tempo.
— Thorvald teria reagido de maneira diferente no ano passado, ou no ano anterior? — perguntou Eyvind suavemente. — Ele continua a ser um rapaz apesar de já ter dezoito anos. Com o tempo, há de chegar a uma conclusão. Ainda vai ter de crescer um pouco.
A sua expressão era pensativa.
— Pai? — Creidhe queria fazer uma pergunta, mas não queria ouvir a resposta.
— Sim, filha?
— Eu não gostaria que as pessoas julgassem Thorvald pelo que o pai dele fez. Parece-me... injusto... que as pessoas possam achá-lo... inadequado... só porque o pai dele agiu mal naquele tempo. Parece-me... acho que uma pessoa de bom senso devia pôr isso de lado e dar-lhe o devido valor. — Era muito difícil dizer aquilo. — É o que eu tenciono fazer. Ele continua a ser a mesma pessoa de ontem. — As lágrimas estavam próximas; a jovem pestanejou para as afastar. — Espero que se lembre disso, quando está a pensar em mandar-me embora para as Ilhas do Norte.
— Oh, Creidhe — disse Nessa com um suspiro. — Nós seríamos incapazes de te mandar embora; não penses dessa maneira. É uma oportunidade. O teu círculo de conhecimentos é muito estreito aqui, em Hrossey.
— Pai?
— Filha, sinto-me chocado por me achares capaz de um preconceito desses. Devias saber que eu julgo sempre um homem pelos seus méritos, nunca pela sua linhagem ou defeitos dos seus parentes. Thorvald não é Somerled; Thorvald é Thorvald e mais filho de Margaret do que qualquer outro. Não o vou sobrecarregar com o peso do passado.
— No entanto, quer que eu vá para as Ilhas do Norte para fazer amizade com um chefe de guerra que não conheço de lado nenhum?
Eyvind sorriu.
— No entanto, quero que vás, se bem que fique cheio de saudades do teu carneiro assado.
— Tenho de pensar no assunto — disse Creidhe, engolindo em seco. Era o mesmo que uma sentença; o que tinham e o que não tinham cuidadosamente dito. Achamos que Thorvald não é um marido adequado para ti. Quase gostaria que não fossem ambos tão gentis e tão diplomatas, para que pudesse gritar e bater o pé. Na sua cabeça havia uma mistura de sentimentos pedindo para ser libertados e não havia maneira de os deixar sair. Creidhe guardou o bordado e levantou-se.
— Boa noite, pai. Bons sonhos, mãe.
— Creidhe... — começou Nessa. Mas Creidhe já tinha voltado as costas, dirigindo-se para o seu quarto. Só quando soprou a candeia e se meteu sob os cobertores ao lado de uma Brona adormecida é que a jovem permitiu que as lágrimas corressem. Não era justo. Nada daquilo era justo. Por vezes, os antepassados pregavam partidas, fazendo com que as coisas ficassem todas ao contrário. Se ela estivesse minimamente interessada naquele Gartnait das Ilhas do Norte, seria tudo muito simples já que o tipo parecia vê-la como uma espécie de catálogo de virtudes femininas sem sequer a conhecer. Provavelmente, Gartnait era exatamente o que o seu pai dissera, um ótimo espécime masculino e perfeitamente adequado para ser o pai de um futuro rei. Por que tinha ela de amar o único homem no mundo que mal olhava para ela alguns dias, enquanto que noutros a tratava como se ela não fosse diferente de outro rapaz qualquer? Não era justo.
— Creidhe? — A voz de Brona soou abafada, vinda de sob os cobertores. — O que é que se passa?
— Nada — fungou Creidhe, aproximando-se do calor do corpo da irmã. Estava-se na Primavera, mas o ar continuava frio e até naquela casa bem construída se sentiam pequenas correntes de ar pelos cantos. — Nada. Dorme.
Era como uma maldição, uma escuridão, que pesaria sobre si o resto da sua vida, escurecendo cada passo que desse. Uma coisa era ter um pai que morrera como um herói e que nunca conhecera, um homem que ainda era recordado como o líder da primeira grande viagem da Noruega até às Ilhas Brilhantes. Outra era descobrir que o seu pai fora um assassino, um tirano que lançara uma vaga de sangue e terror sobre as ilhas. Thorvald não queria reconhecer, mesmo para si próprio, o significado daquilo. Caminhando com grandes passadas ao longo do trilho na direção de Stensakir com um vento violento chicoteando-lhe os cabelos e puxando-lhe a capa com dedos gelados e insistentes, o jovem encolhia-se perante a terrível verdade que o atingira como um martelo depois do choque paralisador provocado pela notícia que a mãe lhe dera. Mas não conseguia afastá-la. Aquilo fazia sentido. A sua herança não vinha de Ulf, vinha de Somerled, não era uma herança brilhante, era uma herança sombria, não era uma herança de equilíbrio e bom senso, era uma herança de discórdia e caos. Era a peça que faltava no quebra-cabeças. Dizia-lhe por que razão se sentira sempre à parte das outras pessoas, por que razão não conseguia sorrir e apertar uma mão como devia ser, por que razão se virava contra aqueles que queriam ser seus amigos, por mais que tentasse. Era por causa dessa herança que, em certos dias, se sentia como se carregasse a sua própria nuvem de miséria e que mais ninguém podia ver. Não admirava que não se sentisse integrado. Não admirava que nunca se sentisse como parte das coisas. Não admirava que tivesse tão poucos amigos.
Thorvald estremeceu. Tal como o seu pai, não merecia ter amigos e, certamente, amigos leais como Creidhe, em quem podia sempre confiar para o ouvir e esperar por ele mesmo quando o seu mau humor o fazia abocanhar e rosnar como uma fera. Era melhor Creidhe ficar afastada dele. O seu sangue mau podia vir à superfície a qualquer momento! Não era seguro um homem ser amigo dele, ou uma mulher e, muito menos, uma rapariga franca como Creidhe, com as suas agradáveis perseguições domésticas. Ela era uma criança, não conhecia nada do mundo. Estava inocente das forças destruidoras que ele transportava consigo. A partir de agora, ninguém estaria seguro. A não ser... a não ser, contra toda a evidência, que o que diziam acerca de Somerled fosse mentira. Se a história tivesse sido distorcida e mudada, como acontece com todas as histórias ao longo dos anos, se fosse assim, talvez ainda houvesse alguma esperança. Se a sua mãe dissera que Somerled matara Ulf, esse fato devia manter-se. Mas talvez tivesse havido uma razão, uma justificação. Por que razão agira Somerled daquele modo? E que acontecera ao homem? Fora banido para o mar, perto de Dorso de Baleia. Tudo o que tinha pela frente era um oceano imenso, até atingir o fim do mundo. Que castigo, uma punição suficientemente grande e terrível para pertencer a uma saga antiga, como um fardo imposto por um deus vingativo ou por um monarca louco. O fato de ter sido Eyvind a determiná-lo era inacreditável. O pai de Creidhe era amplamente respeitado nas ilhas, não apenas por ser o marido da princesa real dos Folk, mas também por ser o suporte do grupo de proprietários de terras que se reuniam duas vezes por ano na Assembléia para manter a ordem e administrar a justiça. Eyvind era conhecido por ser um homem escrupulosamente honesto e justo, um modelo de força e honra. Não era, certamente, um homem de imaginação tortuosa ou ironicamente astuto.
Engendrar um exílio daqueles parecia, aos olhos de Thorvald, uma falta de caráter. Talvez a história tivesse coisas que Margaret não lhe dissera.
Não era possível perguntar a Eyvind. O orgulho proibia-lho. Não podia falar à mãe. O pensamento do que ela fizera desgostava-o. Se tinha um marido modelo, como Ulf, por que razão mentir com um irmão assassino, um patife miserável? E como fora possível não contar nada ao filho durante aqueles anos todos? Era o que mais lhe doía. Até à data, quando estava zangado ou preocupado, contara sempre com os conselhos de Margaret, com as suas palavras calmas para o tranqüilizar. Quando via que a mãe se sentia só, ou maldisposta, fazia sempre os possíveis por distraí-la com um jogo ou com um passeio, ou falava-lhe do que tinha andado a fazer. Era assim desde que se lembrava: a maior parte das vezes os dois, a não ser que contasse com Ash, que pairava sempre silenciosamente nas traseiras. Thorvald não compreendia por que razão a mãe mantinha Ash. Para ele, era evidente que o tipo queria algo mais do que a simples relação empregado-patroa, coisa em que Margaret não estava minimamente interessada. Um homem que andava por ali às voltas como um cão durante anos e anos, à espera de umas migalhas que nunca lhe davam, era, segundo Thorvald, uma causa perdida. Mas o silencioso e impassível Ash continuava, enquanto outros servos iam e vinham. Mesmo assim, eram uma família de duas pessoas, Thorvald e Margaret, não muito dados a grandes manifestações de afeto, mas confiando e dependendo um do outro. Até à data. Essa proximidade estava, agora, destruída para sempre. Ela espetara-lhe uma faca no coração, pensou Thorvald, dando um pontapé numa pedra que encontrou no caminho. Mais valia bani-lo, tal como o seu pai, do caminho dos homens e mulheres honestos, para que fosse convenientemente esquecido. Como lhe poderia perdoar algum dia?
A tarde ia avançada quando se aproximou da aldeia de Stensakir, onde o fumo das cabanas era soprado pelo vento e os telhados de colmo estremeciam, deformando-se com as rajadas. Thorvald podia ver o Sea Dove rumando firmemente para terra, a vela listada de vermelho retesada por causa da ventania. Chegara a horas. Tinha de falar com Sam; tinha de lhe contar, assim como também tinha de sabe mais coisas. Preferia guardar a notícia para si, mas era preciso. Thorvald precisava de um barco. Sam tinha um. Só esperava que Sam fosse capaz de manter a boca fechada.
Ainda ia demorar um pouco até o amigo atingir o molhe, provavelmente com uma boa pescaria apanhada nas águas traiçoeiras da costa nordeste de Hrossey e de Hrossey, a que os antigos chamavam a Ilha da Rainha. Não era, certamente, o lugar mais seguro para pescar, mas Sam era um ótimo marinheiro e conhecia perfeitamente as correntes e as marés. O jovem prosperara e construíra a sua própria cabana em Stensakir; até lhe falara em casar e começar uma família. Thorvald achava aquilo ridículo e dissera-o ao amigo. Como era bom rapaz, Sam limitara-se a sorrir.
Aquele canal era, não só um local de pesca perigoso, mas também sede de uma morada extremamente estranha. Na base da Ilha Sagrada, situada a meio caminho entre as ilhas maiores, vivia uma comunidade de eremitas cristãos. Os irmãos tinham viajado, através do mar, vindos de uma terra longínqua a sudoeste, numas frágeis cascas de noz. Tinham escolhido aquela ilha, cheia de tradição, como a sua casa. Os Folk tinham evitado o local durante gerações; era conhecido por ser a morada da Tribo das Focas, um povo perigoso, à vontade tanto na água como em terra, as mulheres de uma beleza que não era deste mundo e os homens tão temíveis que eram capazes de assustar uma pessoa de morte com um simples olhar dos seus olhos verdes-escuros. Apesar disso, escudados pela sua coragem e fé ou pela sua cega ignorância dependendo da maneira de ver de cada um os irmãos tinham-se instalado na Ilha Sagrada e viviam em boa ordem, se bem que de maneira simples, apascentando algumas ovelhas, uma cabra ou duas e algumas galinhas. Tanto quanto se sabia, a Tribo das Focas nunca os perturbara, se bem que se dissesse que os Folk do mar eram imensamente pacientes e tinham grandes memórias. Por exemplo, alguém os ofendia, ou recebia um favor. Podiam passar gerações e tudo ficava esquecido, mas, de repente, lá vinham eles, exigindo vingança ou pedindo pagamento. Havia, por isso, poucos visitantes na Ilha Sagrada e aqueles que faziam a viagem levavam sempre um pedaço de ferro como medida de proteção. Se uma pessoa se esquecesse desse objeto essencial, não havia garantia de regressar são e salvo a casa. Sam era dos poucos a visitar frequentemente os irmãos, levando uma mensagem, um presente, um pouco de pão ou peixe fresco. Sam era um homem grande e não se assustava com facilidade.
Thorvald esperou no molhe enquanto o Sea Dove se aproximava. Era um barco maravilhoso, um navio capaz de encher os sonhos de um pescador como Sam sem nunca ser capaz de os realizar. Sam construíra-o para um homem chamado Olaf Egilsson, suficientemente rico para comprar os melhores carvalhos de Rogaland. O Sea Dove era um barco perfeito em todos os pormenores, desde as linhas suaves até à força vigorosa da sua quilha. As pranchas inferiores eram de carvalho, ao passo que as superiores eram de pinho, mais leves. Era um navio oceânico, se bem que mais pequeno. Os dois pares de remos raramente eram utilizados porque navegava melhor à vela com um homem de pé perto da popa para segurar no leme, que estava montado a estibordo, enquanto o outro mareava a vela. Por vezes, entravam e saíam do molhe a remos; mas mais nada. Fora o próprio Sam a fazer a vela, não confiando em mais nenhum homem de Hrossey para o fabrico daquela peça crítica do barco. No dia em que ficara pronto, Olaf Egilsson fora apanhado por uma sezão e no espaço de sete noites estava morto, mas não antes de ter dito a todos os da sua família que ninguém poria as mãos naquele barco, senão o homem que o construíra com tanto amor. Se tinha de morrer, que o Sea Dove fosse para Sam, porque só Sam lhe daria o uso que ele merecia.
O navio era tão bem preservado como qualquer outro barco das ilhas; o seu arrais tinha reputação de cuidadoso, apesar de ter apenas vinte anos. As pranchas que formavam os pequenos conveses à proa e à popa tinham sido substituídas no último Outono, quando uma tempestade atirou para a praia de Skaill uma certa quantidade de troncos de pinho. O mastro podia ser descido para descansar numa armação apropriada, se bem que Sam nunca fizesse essa manobra no mar; o mastro permanecia sempre no seu lugar, salvo quando o Sea Dove entrava em doca seca no Inverno para trabalhos de reparação. O orgulho e a alegria de Sam era calafetado de novo todos os anos, o casco limpo, os bancos dos remadores raspados com areia e depois oleados por causa da água salgada. Em boas condições, o barco podia ser manobrado confortavelmente por dois homens, pelo menos nas águas costeiras em redor de Hrossey, não deixando, por isso, de constituir um desafio. No seu todo, Thorvald achava o Sea Dove capaz de uma grande viagem. Esperava, sinceramente, que o seu amigo concordasse.
Naquele dia, Sam tinha um passageiro. O monge de cabelo grisalho pisou o molhe enquanto Sam e o seu marinheiro-ajudante atavam o barco e começavam a descarregar a pescaria numa seqüência de gestos rotineiros. De todos os irmãos, Tadhg era o mais conhecido nas ilhas, porque era seu costume viajar muito, contando as suas histórias da fé cristã. Tadhg era um velho amigo de Eyvind e de Nessa. Conhecera o tio de Nessa, o último grande Rei das Ilhas Brilhantes. O seu aparecimento era extremamente importante; Thorvald aproveitaria a oportunidade.
— Vai até a casa, Thorvald! — gritou Sam enquanto colocava ao ombro um cabaz de peixe. — Leva o irmão Tadhg contigo e acende o lume por mim. Eu vou já.
Thorvald encaminhou-se para a aldeia e entrou na asseada cabana de Sam, que tinha uma ampla sala principal, alegre, com uma janela virada para leste para se poder ver o mar e auscultar os seus humores, plataformas para dormir, uma pequena lareira separada e um abrigo protegido para armazenar coisas diversas. Na ocasião estava lá metida uma galinha choca, cacarejando confortavelmente num cesto de palha. O irmão Tadhg entrou atrás de Thorvald com a saia do seu hábito castanho fustigada pelo vento selvagem. O monge fechou a porta com alguma dificuldade. Thorvald remexeu as brasas da lareira, foi buscar turfa e pôs uma chaleira ao lume. Como o tempo era limitado, o jovem decidiu dispensar a cortesia.
— Quero perguntar-lhe uma coisa.
— Pergunta — disse Tadhg, sentando-se junto do fogo diminuto e estendendo as mãos para as aquecer.
— Sei tudo acerca de Somerled. Sei que era o meu pai. A minha mãe contou-me. Deve tê-lo conhecido. Quero que me diga que espécie de homem era. Quero descobrir por que razão matou o irmão. E...
— E o quê, Thorvald? — O monge não parecia nada perturbado com aquela rajada de perguntas difíceis.
O fogo estava a começar a pegar. Thorvald acrescentou-lhe mais turfa.
— E eu quero que me diga para onde pensa que ele foi quando Eyvind o deixou à deriva. Na Ilha Sagrada há homens que vieram cá parar vindos de muito longe, homens que devem conhecer as correntes do oceano e onde estão as ilhas e os recifes. Diga-me o que pensa. Ele pode ter sobrevivido?
Tadhg não respondeu de imediato. Era como se estivesse à procura das palavras certas, escolhendo cada uma com cuidado.
— Diga-me! — pediu Thorvald. — Não se preocupe com palavras doces. Se pensa que ele morreu, diga. Se acha que ele era depravado e maldoso, diga. A minha mãe escondeu-me a verdade durante dezoito anos. Não tenho paciência para palavras falsas, ou meias verdades. Seja o que for que tenha para me dizer, não pode ser pior do que descobrir que a minha vida tem sido uma perfeita mentira.
— Tu ainda és novo, Thorvald — observou Tadhg, olhando para ele muito sério. — Ainda tens muitos anos pela frente. Esses anos é que contam, não aqueles que já passaram. Aquilo que o teu pai era, e para onde foi, não faz qualquer tipo de diferença. Tu tens de viver a tua vida, não a de Somerled.
— Deixe-se de filosofias! — cortou Thorvald. — Dê-me fatos. Por que razão matou o meu pai Ulf? É verdade que ele chacinou a maior parte dos ilhéus antes de Eyvind o ter detido?
— Queres que te responda antes de o teu amigo chegar? São perguntas muito difíceis, Thorvald.
— Por favor. — Aquelas duas palavras tão simples custaram-lhe muito; mas viu compreensão nos olhos cinzentos do monge e ouviu compaixão na sua voz. Era conveniente respirar fundo e tentar manter a calma, se queria ter a hipótese de conseguir as respostas de que tanto necessitava.
— Só Somerled te poderia dizer por que razão matou o irmão — disse Tadhg. — As razões pareceram-me óbvias: o desejo de poder, o ciúme e a frustração provocada pelo sentimento de que não tinha qualquer papel a desempenhar nas ilhas. Talvez, também, os seus sentimentos pela tua mãe. Havia razões mais antigas, que ele trouxe consigo de Rogaland, coisas de um passado distante. Sobre essas, terás de perguntar a Eyvind.
— A Eyvind? Porquê?
— Eles eram ambos amigos muito chegados: irmãos de sangue. Foi por um sentido de responsabilidade face aos atos malignos de Somerled que Eyvind o baniu. Podia tê-lo matado. Em vez disso, preferiu dar ao amigo uma segunda hipótese. Foi uma decisão sábia e generosa.
— Uma segunda hipótese! A hipótese de navegar até ao fim do mundo e morrer.
— Essa era uma das possibilidades — concordou Tadhg.
— Pensa que havia outras? Diga-me quais!
— Tem calma, Thorvald. Uma resposta de cada vez. Somerled trouxe com ele uma data de problemas, quando veio com a expedição do irmão. Ulf era meu amigo; conversamos muito durante a sua curta estadia nestas ilhas como chefe de guerra. Apesar de Somerled ser seu irmão, Ulf temia-o. Não foi por sua sugestão que Somerled veio com ele, foi por sugestão do Jarl. Ulf foi pressionado a concordar, já que tinha sido o Jarl a financiar a expedição. O resultado foi catastrófico. Somerled fez coisas terríveis como chefe. Era um homem inteligente, subtil, engenhoso. Era, também, extremamente cruel. A mim, pareceu-me que era um homem totalmente inconsciente do sofrimento dos outros; era como se uma parte essencial da consciência humana estivesse fechada dentro dele, desde sempre, desde o seu nascimento. É perturbador pensar que, não fora a intervenção de Eyvind, e de Nessa, ele teria continuado como Rei, e nenhum dos Folk das ilhas teria sobrevivido. O teu pai acreditava que o povo nórdico era superior em tudo e muito mais bem preparado para governar. Não havia aqui lugar para um povo que ele acreditava ser primitivo, fraco e incapaz. Queria-o varrido daqui de uma vez por todas. Somerled nunca os compreendeu; nunca compreendeu as ilhas. Quase matou Nessa; ela tinha demasiada influência para ser deixada viva. E Eyvind, também. Em determinada ocasião, tanto o Pele-de-Lobo, como eu, estivemos presos e em vias de sermos executados. Somerled não gostava de ouvir a verdade, a não ser que servisse os seus propósitos.
Parecia que não havia nada que Thorvald pudesse dizer. No fim de contas, pedira respostas para as suas perguntas. E essas respostas doíam-lhe, se bem que pensasse que nada o magoaria depois do que a mãe lhe dissera.
— Rei — disse ele, finalmente, num tom cavernoso.
— Exato. Era a ambição da sua vida, pelo que Eyvind me disse. Durante um curto espaço de tempo, foi-o. Mas o preço foi elevado.
Thorvald sentiu escapar-lhe da garganta um riso amargo.
— Hã? Imagine, se ele tivesse ficado por aqui mais algum tempo, eu teria sido Rei depois dele. Rei Thorvald. Que giro. E Eanna não teria nascido, nem Creidhe, nem as outras. Ainda bem que foi expulso. Como Rei, se calhar teria sido tão mau como ele.
— Devemos preocupar-nos com o caminho que seguimos no momento, não o que abandonamos — disse Tadhg, usando um gancho de ferro para tirar a chaleira do lume e ver se a água já estava a ferver. — Tu queres saber para onde ele poderá ter ido. Porquê?
Tinha de responder cuidadosamente àquela pergunta.
— Ele era o meu pai. Tenho algum interesse em saber se está vivo ou morto.
— Eu só posso falar de probabilidades, Thorvald. Mas ninguém pode saber o que aconteceu. A tua mãe disse-te, imagino, que não se sabe nada de Somerled desde esse dia, nenhum sinal de que possa ter atingido uma costa qualquer. Só te posso dar conjecturas.
— Serve — disse Thorvald, tentando não parecer muito interessado. Era importante que ninguém suspeitasse dos seus planos.
— Muito bem. De acordo com as condições aparentes daquele dia, suponho que o barco deve ter rumado a Norte, ou a Oeste. Talvez para Norte. Não temos provas de que haja terras significativas a Oeste, mas existem histórias estranhas. Ouvi dizer que um tipo chegou às Ilhas do Norte, há algum tempo atrás, num tal estado de choque que quase tinha perdido a razão. Era um dos da minha fé, que seguiu a mesma rota do que eu, mas que foi afastado por ventos contrários e que não conseguiu aportar às Ilhas Brilhantes. As suas palavras não faziam sentido, mas parece que passou duas ou três estações num outro grupo de ilhas a Noroeste. Essas ilhas devem estar a vários dias daqui, pelo menos, ou até mais, já que sabemos tão pouco desse lugar. Um ou dois outros relatos parecem confirmar a sua existência. Devem ser as últimas terras a Oeste, um lugar marginal. E deve ser difícil dar com elas. Se o barco do teu pai derivou para norte, é possível que as tenha atingido.
O coração de Thorvald batia com toda a força.
— Por que razão estava esse homem em estado de choque? — perguntou ele, ansioso. — Estava confuso devido à viagem em si, ou devido a outra coisa qualquer?
Tadhg franziu o sobrolho.
— Aquilo que sei é por me terem dito, claro. O tipo estava aterrorizado, quase sem razão; poucas palavras coerentes conseguiram dele. Tinha medo de estar na praia, como se estivesse à espera de um inimigo vindo da água. Falou em roubo de crianças e de uns cânticos quaisquer. Uma coisa muito estranha. Provavelmente, a longa viagem e o isolamento fizeram com que tivesse pesadelos acordado. Não é uma experiência fácil. A fé de um homem é posta duramente à prova.
— Sim, mas é por isso que a fazem, não é?
Tadhg sorriu.
— De fato. E para te ser franco, tenho pensado muitas vezes se essa viagem não terá mudado Somerled para melhor, como Eyvind esperava.
— Talvez ele fosse incapaz de mudar — disse Thorvald. O jovem podia ouvir o ranger das botas de Sam no exterior. — Talvez ele fosse tão mau que não pudesse ser redimido.
— Ah — observou Tadhg — mas se não podemos saber o que aconteceu ao teu pai, eu posso falar-te numa das verdades mais profundas de Deus e tu serias um homem muito sábio se ponderasses nela, Thorvald. Nenhum homem está para além da salvação. A graça de Deus está em todos nós. Se bem alimentada, essa pequena chama pode crescer até se transformar numa bondade gloriosa. Nós somos todos criaturas d’Ele; somos todos parte d’Ele. Para mudar, tudo o que precisamos é de aprender a amá-Lo. Até Somerled é capaz disso. Tens de acreditar que é possível ele tê-lo feito à sua maneira.
A chegada de Sam, com um cordel de onde pendiam alguns peixes de ventres pálidos numa mão e com uma trouxa na outra pôs termo à conversa. Encheram umas canecas de cerveja, prepararam uma refeição e a conversa fácil fluiu: o tempo, a chegada de carneiros novos à pequena herdade dos irmãos, um casamento próximo e a morte de um ancião em Hafnarvagr. Era para onde ia o irmão Tadhg: uma grande jornada. Sam ofereceu-lhe uma cama para passar a noite, mas o monge recusou. Tinha combinada uma boleia com um camponês local; de fato, era melhor ir ter com ele imediatamente, antes que escurecesse demasiado. Dormiria na casa do homem e seguiria na carroça no dia seguinte com uma carga de vegetais e algumas galinhas para o mercado. Tadhg limpou o prato com uma bucha de pão e levantou-se para partir.
— Lembra-te do que te disse, Thorvald — disse ele suavemente. — Não te precipites. Com tempo para refletir, um monstro pode passar a ser apenas uma sombra fugaz e uma montanha inacessível uma ligeira inclinação. Ainda és novo; precipitas-te em busca de respostas sem quereres saber do custo. Se deres tempo ao tempo, talvez descubras que a única coisa de que precisas é de esperar.
Thorvald deixou-o acabar. Não ganhava nada discutindo. A verdade era simples. Transportava consigo a herança do seu pai, marcando-o tanto como a coragem e bondade de Eyvind marcara o seu filho Kinart. Se não tivesse sido levado pelo mar, teria crescido e teria sido o gênero de líder que as pessoas seguem até ao fim do mundo. Tadhg não percebera a questão. Para se conhecer a si próprio, para olhar para dentro de si mesmo, Thorvald tinha de descobrir que espécie de homem era o pai. E só havia uma maneira de o descobrir. Era perigoso. A mãe não gostaria. Teria muita dificuldade em convencer Sam. No entanto, tinha de tentar, ou viveria para sempre com o conhecimento de que não enfrentara a verdade. Se o seu pai ainda estava vivo, tinha de o encontrar. Era uma demanda: grande, desafiadora, heróica. Se o fizesse, a sua vida teria um significado.
Sam não se surpreendia com facilidade. O jovem escutou calmamente a história: Margaret, Somerled, Ulf, batalhas e sangue derramado, assassínio e exílio. De vez em quando bebia um pouco de cerveja e acenava com a cabeça. Franziu o sobrolho uma ou duas vezes.
Uma das razões pelas quais Sam continuava a ser seu amigo era a sua calma. Era quase tão bom ouvinte como Creidhe e muito menos inclinado a fazer sugestões quando não eram desejadas. Quando Thorvald chegou ao fim da história, Sam não fez qualquer comentário. Mexeu no fogo, encheu de novo a caneca do amigo e deixou entrar um gato pela porta dos fundos, tudo em completo silêncio.
— Tu queres que eu te empreste o Sea Dove — disse ele, por fim, com os seus pensativos olhos azuis.
— Não exatamente — replicou Thorvald, sentindo uma onda de alívio por Sam ter compreendido sem ter tido necessidade de lhe dizer. — Eu não sou suficientemente bom marinheiro para o levar sozinho. Terias de ir comigo. Posso pagar-te, se isso ajudar.
As sobrancelhas de Sam ergueram-se um pouco. O jovem bebeu uma golada de cerveja.
— Tencionas ficar fora quanto tempo? Uma lua, uma estação? Talvez mais, se o vento te levar mais longe? Apanha-se muito peixe nesse espaço de tempo, o suficiente para pagar o casamento de um tipo e tornar a sua cabana simpática e aconchegada: as melhores lãs, boa roupa branca e um pedaço de madeira para fazer um berço. O suficiente para lhe encher as mãos de dinheiro. E se o barco se avaria? Este barco é a minha vida, Thorvald. Pode ser um barco robusto, mas não foi feito para velejar no oceano.
Aquelas palavras eram tudo menos encorajadoras. Por outro lado, havia uma nota na voz de Sam, um certo brilho no seu olhar, que mostravam que o seu interesse despertara.
— Pode ser que não demore tanto tempo assim. — Thorvald inclinou-se para a frente com os cotovelos nos joelhos, pronto a aproveitar a vantagem que tinha. — O irmão Tadhg acha que ele não deve ter ido para muito longe. Podíamos ir e voltar quase sem ninguém saber. Podíamos dizer-lhes...
Sam levantou uma mão, cortando o fluxo de palavras.
— Mais devagar. E quando chegarmos lá, se chegarmos? Tencionas chegar, dizer-lhe que és filho dele e regressar a seguir? E se não o encontrares? E se o encontrares e ele quiser que fiques? Como é que eu fico?
O sorriso que encurvou os lábios de Thorvald era de troça.
— Podes ter a certeza de que isso não acontecerá. Não espero ser recebido de braços abertos, mesmo supondo que encontramos quem procuramos. Não tenciono ficar lá. Tudo o que quero é uma resposta para a minha pergunta.
— E que pergunta é essa? — perguntou Sam, afagando o gato que se enroscara no seu colo, ronronando de contentamento. Mas Thorvald não respondeu e o silêncio prolongou-se entre os dois amigos.
— Vou pensar — acabou Sam por dizer. — Mas sou franco contigo, Thorvald. Não vejo o que posso ganhar com isso tudo, para além de ajudar um velho amigo.
— Uma última aventura antes de assentares? — sugeriu Thorvald. — A tua última incursão como homem solteiro? Preocupas-me com essa conversa de berços. Eu disse-te que pagava.
Sam acenou lentamente com a cabeça.
— Se concordar, será para fazer um favor a um amigo. Espero que esse favor me seja devolvido, um dia.
— É evidente. Farei o que for preciso — disse Thorvald ardentemente. A verdade era que o favor seria pago facilmente, já que Sam nunca lhe pedia mais do que um dia de ajuda no barco, ou no telhado de colmo da cabana. O seu amigo contentava-se com pouco.
— Hum — disse Sam com um brilho divertido no olhar. — Olha que não me esqueço, Thorvald. Dá-me um dia ou dois para pensar no assunto. Outra coisa. Em mar aberto, precisamos de uma tripulação de quatro homens, pelo menos. Precisamos de arranjar mais dois. E esses, certamente, quererão ser pagos.
— Não. — Thorvald pensara na ocasião em que Sam chegaria àquilo; sabia que precisava de uma boa resposta, mas o olhar no rosto do amigo disse-lhe que nenhuma daquelas em que tinha pensado seria a adequada. — Não posso levar mais ninguém. Pedir-te que venhas comigo é uma coisa, arranjar mais homens é outra completamente diferente. Assim que começássemos a fazer perguntas, toda a ilha ficava a saber. Isto é um segredo, Sam. Temos de ser só nós dois, mais ninguém. Tu falaste-me muitas vezes da maneira como o Sea Dove se comporta face ao vento. E não é longe. Podemos fazê-lo facilmente. Tu não sais todos os dias só com um ajudante?
— És maluco — disse Sam secamente. — Nem penses. É preciso, pelo menos, mais um homem. Pareces muito confiante quanto à distância. Pensava que não sabíamos de todo.
— O irmão Tadhg falou numa viagem de alguns dias. Os Folk nem sequer dariam pela nossa falta. — Uma mentira, quase de certeza. — Anda lá, Sam. É a oportunidade de uma vida: uma aventura a sério.
— Uma aventura que não terá valido a pena se não voltarmos para contar a história — observou Sam, sem expressão. Seguiu-se um breve silêncio.
— Não queres pensar na hipótese, nesse caso? — perguntou Thorvald, olhando fixamente para o amigo. — Nem sequer como um teste ao teu barco, ou a ti mesmo? Seja a que preço for?
A boca de Sam distendeu-se numa breve careta.
— Seja a que preço for? Tu não és tão rico quanto isso, Thorvald, por melhor que seja a herdade da tua mãe. Diz-me, falavas a sério quando disseste que retribuirias o favor? Digamos que aceito e que depois, quando te pedir que retribuas o favor, ele não é do teu agrado! Cumprirás a tua promessa?
O coração de Thorvald deu um salto; era evidente que ainda havia esperança.
— É claro — disse ele totalmente confiante. Não conseguia imaginar uma coisa que Sam lhe pedisse que não fosse capaz de fazer. — Dei-te a minha palavra, não dei? Eu sei o risco que corres, Sam. Se me fizeres isto, fico em dívida contigo para toda a vida.
— Se o fizer, serei tão louco como tu — resmungou Sam. — Bem, vou pensar e depois digo-te. Talvez consigamos arranjar uma tripulação nas Ilhas do Norte, tipos que não te conheçam, se isso é assim tão importante. É preciso organizar muita coisa.
— Tem de ser mantido em segredo — acrescentou Thorvald rapidamente. — Seria impedido se soubessem... a minha mãe, Eyvind, todos eles. Não podes dizer nada a Creidhe.
— Tu já és crescido — observou Sam, levantando-se. O gato, desalojado, deixou-se cair no chão e afastou-se, imperturbável.
— Mesmo assim. Eles achariam isto uma loucura, um perigo. Preferiram não falar do meu pai durante estes anos todos; decidiram esquecê-lo. Dificilmente gostarão que ele regresse à vida, quando está tão convenientemente na bruma da memória de todos.
— Mas — disse Sam —, a tua mãe contou-te.
Thorvald estremeceu.
— É verdade — concordou ele. — Asneira dela.
— Estás a ser um bocado duro com ela, não estás?
Thorvald não respondeu, mas, mais tarde, enquanto Sam dormia tranquilamente, como um bebê, ele permanecia acordado, pensando se teria sido leal com Margaret. Na sua mente, não tinha dúvidas de que ela lhe devia ter contado a verdade mais cedo, que não a devia ter guardado até àquele dia, esperando que ele a absorvesse, compreendesse e perdoasse, como se fosse uma coisa de todos os dias. Por outro lado, naqueles tempos ela era uma mulher nova, mais nova do que agora. E talvez Somerled não fosse, então, o que as pessoas diziam. Talvez houvesse alguma razão para o que fizera, razão que ninguém podia compreender. Talvez ele se sentisse como Thorvald, um intruso, um homem com poucos amigos, um homem demasiado inteligente para seu próprio bem.
Thorvald ficou durante muito tempo a olhar para o telhado de colmo, escutando o ronronar do gato enquanto o animal se aninhava nos cobertores por trás dos joelhos de Sam. O pescador suspirou e virou-se. Thorvald considerou as implicações do seu plano. Não havia dúvida de que iria magoar as pessoas de quem gostava, a mãe e, especialmente, Creidhe. Era uma viagem longa, quase certamente mais longa do que dera a entender a Sam e não havia garantias de que encontrariam terra. Somerled podia não estar lá; se calhar, nunca lá estivera. Podia ter morrido há muito tempo, algures no mar, sozinho, no seu pequeno barco. Quando soubesse o que fizera, Margaret ficaria horrorizada. Creidhe ficaria magoada por ele não ter tido confiança nela; a jovem estava acostumada a partilhar todos os seus medos, todas as suas frustrações, todos os seus esquemas e planos. Mas não lhe podia falar daquele. Tinha de esperar que ela lhe perdoasse quando do seu regresso. Se regressasse.
Uma coisa era certa. Era uma jornada que se sentia obrigado a fazer: obrigado pelos laços de sangue.
CAPÍTULO DOIS
Três correntes a oeste
A corrente sangrenta da caça à baleia
A corrente da morte da Noite das vozes
A corrente dos loucos da Ilha das Nuvens
NOTA A MARGEM DE UM MONGE
O trabalho de Creidhe estava quase terminado, um suave cobertor da melhor lã, vermelho-vivo sobre o mais profundo dos azuis. As orlas decorativas, com o seu padrão de raposas, mochos e pequenas árvores, já tinham sido feitas no pequeno tear; Creidhe coseria as duas coisas de maneira a produzir um efeito sem costuras. Margaret perguntou-lhe o que iria começar a seguir, mas Creidhe não lhe soube responder. Pela simples razão de que não haveria um a seguir, pelo menos para já. Talvez fosse para as Ilhas do Norte, como os seus pais queriam, disse ela à tia. Talvez não fosse uma boa ocasião para começar um trabalho novo. E continuava a ter na cabeça a Jornada, o bordado muito secreto que parecia crescer cada vez mais e que nunca parecia acabado de maneira satisfatória.
— Não te preocupes com Thorvald — disse-lhe a tia Margaret sem cerimônias, numa tarde em que estavam as duas a retirar os fios do tear, trabalhando lado-a-lado enquanto o sol de fim de tarde entrava pela porta aberta, fazendo brilhar a lã colorida. Ele vem para casa quando se sentir pronto. Suponho que te disse o que se passa.
— Alguma coisa — disse Creidhe de modo acanhado. Era difícil abordar o assunto, apesar de a tia Margaret ser uma amiga de confiança. Não era apenas um simples segredo, era um caso de assassínio e traição e era difícil imaginar a asseada e auto-suficiente Margaret, uma mulher que não aparentava qualquer sinal de natureza apaixonada, metida num drama daqueles. — Eu sei que ele se sente infeliz — continuou Creidhe. — Gostava de o ajudar, mas...
— Um homem não pode ser ajudado se não quiser — disse Margaret. — É melhor deixá-lo em paz, Creidhe. Thorvald tem de interiorizar tudo isto sozinho. O teu pai tem razão, uma viagem é capaz de te fazer bem.
Creidhe não disse nada. Margaret devia pensar que Thorvald andava algures absorto e que regressaria quando sentisse que lhe podia perdoar. Creidhe sabia que não era assim. Thorvald tinha ido outra vez visitar Sam. Por vezes, Creidhe pensava que Thorvald achava que ela era estúpida, assim como achava que o tempo que ela passava a tecer, a coser e a cozinhar era uma coisa de mulheres, que requeria pouca inteligência. Ela sabia que não era estúpida. Sabia que Thorvald andava a planear uma expedição. Ele ia à procura do pai e Sam ia com ele; eram precisos dois homens para manobrar o Sea Dove. Se Margaret ainda não tinha percebido, conhecia menos o filho do que pensava.
Aquilo ia ser um desafio. Talvez fosse uma longa viagem e Creidhe nunca gostara muito dos movimentos de um barco, nem sequer do pequeno bote que utilizavam para passear quando eram crianças. Mas uma coisa era certa. Apesar dos seus dezoito anos, Thorvald ainda não era um homem e não sabia tomar conta de si próprio. E apesar do que se pudesse dizer acerca dele, precisava da sua ajuda, do seu amor. As pessoas olhavam para Thorvald e só viam o seu lado mau, os maus humores, as fúrias súbitas, os silêncios. Creidhe conhecia-o muito bem. Ele era amigo dela desde que se lembrava. Estivera presente no dia em que Kinart morrera, um dia terrível em que os seus pais tinham ficado demasiado abalados pelo choque e pelo desgosto para se preocuparem com a filha mais nova. Creidhe ficara muito quieta na sombra, observando enquanto a fria e pálida forma do seu irmão era depositada em cima da mesa para ser lavada e secada e se faziam os serviços fúnebres. Margaret também estivera presente com Thorvald, ele próprio também uma criança. Thorvald sentara-se ao lado de Creidhe, limpara-lhe as lágrimas, aquecera-lhe as mãos nas suas. Fora ele que mantivera afastado o terror do desconhecido naquele dia em que o seu mundo ficara de pernas para o ar.
E, mais tarde, houvera muitas outras vezes, vezes em que ela se sentira triste ou preocupada, ele a ouvira enumerar as suas desgraças num silêncio resignado e a confortara, dizendo-lhe que tudo correria bem. Vezes em que ele a livrara de sarilhos. Creidhe lembrava-se de uma ida ao lago, de um barco horrível, de este se ter virado e de um salvamento embaraçoso. Nesse dia, se não fosse Thorvald, talvez se tivesse afogado. Se não tivesse sido a sua ajuda, teria ido para casa toda molhada, confessando a sua estupidez aos seus pais.
Depois fora a leitura e a escrita, algo com que Creidhe sempre tivera imensas dificuldades. Fizera um grande esforço com as lições dadas por Margaret, porque a sua atenção estava sempre virada para as coisas que preferia estar a fazer: pão, a bordar ou a permanecer simplesmente na rua, a apanhar ar fresco. Então, Thorvald ajudara-a, acrescentando as suas lições não oficiais às sessões formais de Margaret. Sentava-se com Creidhe no muro virado para ocidente e observava enquanto ela desenhava as letras no chão com um pau. Nunca se zangava quando a estava a ensinar. A culpa era dela, se não conseguia aprender.
Não havia dúvidas na mente de Creidhe de que aquele paciente professor, aquela criança amável, representava o Thorvald real, a essência do homem que viria a ser. As outras pessoas viam-no como uma pessoa arrogante, sem sentimentos, até cruel. Não havia dúvida de que era capaz disso tudo. Mas o verdadeiro rosto, pensava Creidhe, só o mostrava àqueles em quem confiava, mas esses eram muito poucos.
Apesar disso, continuava a ser imprevisível, sorumbático e dado a decisões súbitas e ilógicas. Não podia ir para aquela grande aventura sem ela.
Uma vez que estava decidida, havia planos para fazer. Sam e Thorvald não concordariam em levá-la, por isso teria de pôr coisas de lado. O que significava descobrir a data em que partiriam e ir para Stensakir na noite anterior. Quanto tempo estariam fora? Em que direção iriam? E como acompanhá-los sem deixar Eyvind e Nessa ralados de morte?
O pensamento daquilo tudo provocava-lhe um nó no estômago. Tanto perigo, risco e incerteza. Thorvald devia ter feito perguntas, se bem que ela soubesse que ele não falara com Eyvind. O jovem devia ter tomado conhecimento da rota mais provável e do local em que Somerled teria desembarcado. Certamente que Sam, o homem mais experimentado de Hrossey, não concordaria em levá-lo sem o mínimo de garantias. Mesmo assim, continuava a haver perguntas em suspenso. Talvez o local de destino fosse longínquo. Talvez estivessem ausentes muito tempo, uma lua completa, ou duas. A sua mãe ficaria ansiosa e o seu pai chocado. Eyvind ficaria furioso com Thorvald, se bem que a sua presença no navio fosse de sua única conta e risco. Talvez, até, se lhe metesse na cabeça ir em sua perseguição, se bem que não houvesse nas Ilhas Brilhantes outro barco capaz de competir com a velocidade e capacidade de manobra do de Sam. O seu pai nem sequer seria capaz de comandar um navio. E Margaret? Quem a ajudaria no tear? Quem a consolaria quando ela descobrisse que o filho saíra de casa para ir em busca de um pai que nunca conhecera? Apesar disso, Creidhe sabia que tinha de ir. Era um conhecimento que não tinha nada a ver com lógica, mas que era profundo e forte, uma convicção que sentia no coração e que lhe percorria o sangue. Tinha de ir com eles. Sem ela, Thorvald não conseguiria. Sem ela, a demanda falharia.
A jovem prosseguiu cuidadosamente a sua rotina diária, tornando-se útil em casa, ou indo quase todos os dias, a pé ou a cavalo, a casa de Margaret. Os pais falaram de novo da sua viagem às Ilhas do Norte e ela fingiu que estava a pensar no assunto. Não se sentia bem por estar a enganá-los. A família baseava-se na confiança e na verdade; a jovem desejava pedir-lhes conselho, mas não podia, sabendo que nunca concordariam em deixá-la partir numa viagem tão longa.
A sua irmã Brona era a única pessoa que pressentia que havia algo errado, e foi Brona que ajudou Creidhe a arranjar uma maneira. Ia haver um casamento em Stensakir: a filha mais velha de Grim, Sigrid, ia casar com um camponês da Ilha Ocidental, e toda a família estava convidada. Deviam ir todos para lá no dia anterior e chegara um mensageiro com a notícia de que os chefes de guerra dos Caitt tinham enviado uma delegação a Hafnarvagr, desejando falar com Eyvind acerca de uma combinação para proteger os estreitos entre as Ilhas Brilhantes e a sua linha de costa, no norte. O tráfego dos navios nórdicos e dinamarqueses aumentara consideravelmente naquela zona e a qualquer momento qualquer um deles podia apoderar-se de gado, madeira, peles ou escravos. Eyvind tinha de viajar imediatamente para sul e Nessa, que andava há uns dias um tanto cansada e pálida, tomou a decisão de ficar em casa com Ingigerd, em vez de ir ao casamento com o marido.
Nessa não queria desapontar as filhas. Creidhe e Brona podiam ir, disse ela, desde que fizessem a viagem e regressassem com os três homens que Eyvind escolhera para as acompanhar e guardar, ficando em casa de Grim e da sua mulher Eira até que terminassem os festejos. Margaret não ia, assim como Thorvald.
Mais ao menos ao mesmo tempo, Creidhe teve um golpe de sorte incrível. Uma das servas de Eyvind, uma rapariga chamada Solveig, andava a namorar um rapaz que trabalhava no Sea Dove como marinheiro. Quando Solveig disse acidentalmente que Sam ia dar alguns dias de folga ao seu namorado logo a seguir ao casamento, tudo se encaixou. Só podia haver uma razão, pensou Creidhe, para uma decisão que custaria a Sam muito peixe perdido. O Sea Dove devia estar quase pronto para partir. E ela estaria suficientemente perto de Stensakir na ocasião: perfeito. Quase parecia de propósito.
A dor que estava quase a infligir à sua família provocava um grande peso no coração de Creidhe, mas estava decidida. As duas raparigas fizeram as malas: um vestido para cada uma para o casamento, o adorado colar de contas de âmbar de Creidhe, a fita amarela preferida de Brona e os dois pares de meias de lã branca. Os presentes para o feliz casal já tinham sido postos de parte: uma caixa de pedra-sabão com baleias e focas gravadas, cheia de moedas de prata e uma tapeçaria de lã feita por Creidhe, mostrando uma árvore mágica cujos ramos tinham frutos e folhagem de muitas formas e cores, maçãs, pêras e bagas, tudo crescendo ao mesmo tempo no mesmo ramo. Creidhe sentia-se feliz por o seu cobertor azul e vermelho ainda não ter sido dado. Sentia-se feliz por o seu trabalho ser tão apreciado, mas era sempre triste vê-lo ir, porque levava sempre uma parte de si própria. Thorvald acharia aquilo uma tolice; era uma das coisas que nunca lhe dizia. O seu pensamento adiantou-se no futuro. Talvez o cobertor azul e vermelho viesse a cobrir a cama que ambos haveriam de partilhar como marido e mulher. A jovem imaginou-se a acordar com a luz da madrugada a bater nas cores ricas da lã; sentiu o calor do corpo de Thorvald contra o seu, a força do seu braço rodeando-a...
— Creidhe?
A jovem teve um sobressalto; Brona devia ter dito qualquer coisa e ela não a ouvira.
— Por que estás a arrumar isso? — perguntou Brona, olhando para o tecido da Jornada enrolado que Creidhe estava a meter na bolsa de fora da sua trouxa. — Só vamos estar lá alguns dias e haverá festas e dança todas as noites. Não vais ter tempo para bordar. Eu não levo o meu.
— Mal não faz — disse Creidhe, contente por a irmã não ter reparado em algumas das coisas que tinha empacotado: uma faca afiada, uma corda, uma barra de sabão, alguns panos macios para o caso de ter o período antes de regressarem a casa, uma tesoura, uma pederneira, agulhas de osso, lã colorida e algumas ervas como prevenção contra o enjôo. No fundo do saco ia uma velha camisa e um par de calças de Thorvald, retirados subrepticiamente de uma das arcas da tia Margaret e um quente chapéu de feltro com abas. A roupa de Thorvald não lhe servia; a sua silhueta não se podia chamar arrapazada. No entanto, suspeitava que naquela viagem não poderia levar nenhum dos seus vestidos nem nenhuma túnica de lã. Estaria sempre molhada e fria até lá chegarem, fosse onde fosse. Tinha de ser prática.
— Creidhe? — chamou Brona, olhando para a irmã enquanto atava a sua trouxa.
— O que é?
— Levas aí uma grande trouxa.
— A tua também é grande.
— Mas a tua é maior.
— O que é isto, uma competição?
Brona franziu o sobrolho. A jovem era uma rapariga franzina de olhos grandes, cabelos suaves castanhos iguais aos de Nessa e de aspecto delicado, que não lhe escondia a inteligência aguçada.
— Creidhe, não estás a planear nada, pois não? Tens andado estranha nestes últimos dias.
— Planear? Que havia eu de planear? — Creidhe ergueu as sobrancelhas, esperando mostrar uma expressão de surpresa inocente.
Brona levou as mãos às ancas.
— Planear fugir com Sam — disse ela cortantemente. — É melhor não fazeres isso, porque se casares com Sam nunca mais te falo, nem quando já for uma velha toda enrugada e sem dentes.
— Não valeria a pena falares-me se já não tivesses dentes — replicou Creidhe, sentindo um grande alívio logo seguido de uma grande idéia. Brona aproximara-se alarmantemente da verdade, mas só se aproximara. — Não conseguiria compreender uma palavra. Além disso, por essa altura também já devo estar surda.
— E então? — perguntou Brona, ameaçadora. — Vais?
— É claro que não! — disse Creidhe, vendo que a irmã estava quase a chorar, surpreendida por não ter reparado como Brona se tinha tornado numa mulher, embrulhada como andava com as suas próprias preocupações. — Sam não é exatamente o tipo de homem que foge, Brona. Se quisesse alguma coisa, pedia, ou perguntava.
— Pediu-te?
— Pediu o quê?
— Pediu-te. Pediu-te que casasses com ele. Pediu a tua mão ao pai. Eu sei que ele te fez um pente. Vi-o a olhar para ti.
— Não, Brona — disse Creidhe, sentando-se na cama e colocando um braço em redor dos ombros franzinos da irmã. — Sam não me pediu nada e duvido que o faça. — Não era ocasião para dizer a Brona que era possível o pai não considerar o esforçado Sam mais adequado para genro do que Thorvald. — Mas adivinhaste em parte. Eu tenho um segredo.
— Qual? — A atenção de Brona virou-se totalmente para o que viria a seguir; o olhar calculista no seu rosto mostrava que estava a pesar todas as possibilidades, entre as quais estaria, provavelmente, um jovem. Brona sempre gostara muito de histórias romanescas.
— Digo-te quando chegarmos a casa de Grim e de Eira. Mas só se jurares guardar segredo.
— Por que havia de jurar?
— Também te digo quando lá chegarmos.
Dissera o suficiente, pensou Creidhe. A irmã poderia tornar-se extremamente útil para cobrir a partida e para suavizar a má notícia a dar a Eyvind e a Nessa. A julgar pelo olhar nos olhos de Brona sempre que o nome de Sam era mencionado, não seria difícil conseguir um favor em troca.
— E agora vamos levar as nossas coisas para os cavalos e vamos despedir-nos. Espero que não chova. Não te esqueças das tuas botas de Inverno.
Eyvind já partira para Hafnarvagr de madrugada com um grupo dos seus homens de confiança. Na passagem levariam Ash. O taciturno empregado de Margaret era um homem gabado pela sua habilidade em resolver dificuldades nas negociações de assuntos delicados, resumindo, clarificando e sugerindo compromissos úteis. Eyvind reparara que Ash adquirira essa habilidade muito útil por viver na mesma casa que Thorvald e Margaret, já que nenhum deles tinha um caráter fácil. Se Ash era capaz de sobreviver em tais condições, não teria qualquer dificuldade com os terríveis chefes de guerra dos Caitt.
Nessa despediu-se das filhas com um beijo nas faces e falou calmamente, primeiro com Brona e depois com Creidhe enquanto aquela abraçava uma última vez a irmã mais nova.
— Tem cuidado, filha — disse Nessa suavemente, os seus olhos cinzentos fixando com uma luz alarmante os de Creidhe. — Estás numa encruzilhada. Sei que é assim porque vi. Terás de escolher um dos caminhos e alguns deles preocupam-me.
— Esteve a ver o fogo por minha causa? — murmurou Creidhe. Em tempos, a sua mãe fora uma poderosa sacerdotisa. Desistira por causa de Eyvind, mas o que aprendera era profundo e duradouro. Ajudara a treinar Eanna nas artes e Creidhe sabia que ela ainda usava o seu poder para uso próprio quando a necessidade a isso obrigava. As imagens nas chamas, as vozes vindas do interior da terra, a canção do vento e as vagas, tudo lhe falava um pouco da sabedoria dos antepassados e o caminho a seguir. — O que é que viu?
— Uma viagem. Uma descoberta e uma perda. Morte. Amor. Dor. Não sei se a história decorre no espaço de uma única lua ou se demora mais tempo. Há uma estranheza nela, um certo terror, que faz com que deseje que fiques em casa, segura, onde pertences. Mas não posso. Os antepassados não nos mentem.
Creidhe estremeceu. Os olhos da sua mãe estavam sombrios.
— Falou ao pai nisso? No que viu?
— Não — disse Nessa.
— Se quiser, fico em casa. — As palavras de Creidhe saíram apressadamente. — A mãe não parece bem. Pergunto a mim mesma...
Nessa sorriu e o súbito arrepio desapareceu tão rapidamente como aparecera.
— Estou bem, filha e fico bem com a Ingigerd a fazer-me companhia até vocês regressarem. Divirtam-se; faz-vos bem dançar e divertirem-se. Talvez, para ti, um dos caminhos te leve apenas até às Ilhas do Norte e até um certo jovem. O que acontecer depois depende de ti. E agora vai, os homens estão à espera. A tua trouxa é esta? O que é que tens lá dentro, um tear e um saco de lã?
Então, a pequena Ingigerd começou a chorar, Nessa pegou nela com palavras de conforto e, de repente, eram horas de partir. Creidhe olhou por cima do ombro para a figura franzina da mãe a diminuir cada vez mais à porta de casa, com Ingigerd nos braços e um sorriso de coragem nos lábios que não escondia a preocupação que tinha nos olhos. Um arrepio percorreu de novo o corpo de Creidhe. Quando voltaria a vê-las? E que diria a mãe quando soubesse que ela partira num pequeno barco em direção ao fim do mundo?
No fim, acabou por ser tudo quase fácil demais. Na primeira noite do casamento Sam apareceu vindo da sua aldeia com a sua melhor túnica bordada a vermelho e juntou-se ao bailarico. Era uma festa e tanto; Eira, a mulher de Grim, não poupara na cerveja e o próprio Grim matara um par de porcos como complemento ao peixe habitual e ao acompanhamento. Uma mulher chamada Zaira, que era famosa pelos seus bolos, fizera um esplêndido com farinha de bere e mel, nozes e especiarias vindas da Noruega num barco de carga. Os produtos tinham a sua origem nos mercados do oriente, lugares tão longínquos que estavam para além da imaginação. A própria Zaira viera de um desses lugares longínquos. Era uma bela bailarina e como o seu marido Thord estava no mesmo conselho que Eyvind, fez par com vários homens, o seu cabelo escuro voando e os seus lábios vermelhos sorrindo. Era um pouco namoradeira, achou Creidhe, mas sem má intenção. Thord, um homem cheio de cicatrizes e desdentado, um homem que mais parecia um monólito, ganhara-a como uma espécie de prêmio há muito tempo, numa outra terra. Nas Ilhas Brilhantes os casamentos não seguiam um padrão de cultura ou de parentesco restrito. Bastava olhar para a noiva: o seu pai fora, em tempos, um guerreiro Pele-de-Lobo e a sua mãe, bastante mais nova, tinha o mais puro dos sangues das ilhas. Bastava olhar para Eyvind e Nessa. A própria Creidhe tinha sangue das duas raças. Um pretendente, capaz de sustentar uma família, podia ser aprovado independentemente das suas origens. Com Creidhe e as suas irmãs era um pouco diferente. Se era suposto um filho de uma delas vir a ser Rei, nenhuma delas podia casar com um homem qualquer, se bem que parecesse que Nessa tinha feito exatamente isso. Eyvind era nórdico e fora, em tempos, um guerreiro Pele-de-Lobo. O seu povo fora o inimigo, o invasor que trouxera devastação às ilhas antes de a coragem e a magia terem posto um fim a esse brutal conflito. Mas Eyvind fora cuidadosamente escolhido, como qualquer príncipe oujarí. Tanto Nessa como a sua velha professora, Rona, tinham-no sujeitado a provas, nas quais ele tinha demonstrado a sua coragem, não apenas como guerreiro mas também como protetor decidido, forte na coragem e na bondade, sábio e dedicado. Se havia um homem capaz de ser pai de reis, esse homem era ele.
Creidhe suspirou. Conseguira de Brona uma promessa de silêncio, tendo feito, por sua vez, outra promessa. Sim, dissera à irmã que, se Sam lhe perguntasse aquilo que ambas sabiam, Creidhe diria não. Além disso, faria os possíveis para que Sam virasse a atenção para a própria Brona que, no fim de contas, tinha quase quinze anos e que estaria pronta para casar dentro de um ano ou dois. Toda a gente sabia que Sam queria assentar assim que a sua casa estivesse suficientemente confortável; estava a poupar dinheiro e a fazer todos os possíveis para que tudo estivesse perfeito. Creidhe viu no olhar da irmã a sua determinação. Seria Brona a deitar-se naqueles belos cobertores de lã, a cozinhar uma boa refeição para o marido acabado de regressar da faina, a providenciar um bebê masculino para o novo berço e mais nenhuma das raparigas das ilhas.
Assim, Creidhe prometeu e não disse que talvez um pescador não fosse o pai adequado para um Rei, por mais agradável à vista que fosse. Em troca, Brona prometeu-lhe que guardaria silêncio durante um certo tempo, o suficiente até que fosse demasiado tarde para que alguém se metesse num barco e conseguisse encontrar o Sea Dove em mar alto. No fim de contas, Brona contaria a Nessa e a Eyvind o que Creidhe lhe dissera para contar, uma tarefa que exigiria bastante coragem. Creidhe sabia que a troca não era justa. Se bem que Brona não acreditasse, nunca quisera Sam para si. Gostava dele, toda a gente gostava, mas Creidhe nunca preferiria outro homem a Thorvald. Era tão simples como isso. Era uma pena que Sam não visse as coisas da mesma maneira; ele estava a atravessar a sala na sua direção com um propósito firme e havia um certo olhar nos seus firmes olhos azuis que a preocuparam. Brona estava no outro extremo com um grupo de raparigas e estava a olhar.
— Queres dançar, Creidhe? — perguntou Sam polidamente, esboçando uma pequena vênia que, vinda de outro homem, teria parecido ridícula. Sam tinha uma dignidade natural que lhe ficava bem. Creidhe deu-lhe a mão e encaminharam-se para o círculo. Brona tinha o sobrolho franzido. Aquilo não fazia parte da combinação.
A música recomeçou e o círculo começou a rodar num sentido e no outro, as palmas bateram e os pés leves e não tão leves moveram-se numa dança de roda. Havia muito barulho, as pessoas conversavam, os assobios e os tambores discursavam alegremente e as botas batiam no chão de terra.
— Estás com bom aspecto, Creidhe — gritou Sam por cima do barulho geral.
— Também tu — gritou Creidhe em resposta. — Não esperava encontrar-te aqui.
— Eu gosto de uma boa festa — disse Sam com uma careta, enquanto o círculo se quebrava e se transformava numa série de casais, começando um movimento serpenteante.
— Mas é tarde — observou Creidhe — se quiseres sair com o teu barco de madrugada, ou antes.
— Ah. Bem — disse Sam, fazendo-a girar mais depressa do que os outros homens faziam com os seus pares — talvez tire um dia de folga e vá trabalhar na cabana.
Creidhe acenou com a cabeça. Tinha de fazer as perguntas certas sem parecer demasiado inquiridora.
— Voltas amanhã à noite? Grim diz que vai haver jogos; não sei de que espécie.
Sam fê-la regressar ao círculo com habilidade. Brona estava no outro lado com o jovem Hakon, o filho de Grim. Sam piscou um olho e as faces de Brona coraram ligeiramente. Sam virou-se para Creidhe.
— Jogos, hã? Bem, suponho que vou faltar a isso. Vou partir numa viagem; sou capaz de ficar fora uns dias, talvez mais. Vou para Norte. Amanhã não haverá noitada para mim; parto ao nascer do Sol do outro dia.
— Ah sim? — disse Creidhe como que por acaso, se bem que o seu coração batesse como um tambor, excitado; no fim de contas fora fácil, ele dera-lhe a informação de que necessitava. Só mais um dia. Então, enquanto os jogos decorressem, arranjaria maneira de se escapar e...
O padrão da dança mudou de novo e ela viu-se nos braços de um camponês enquanto, nas suas costas, Sam dançava com Brona. Um olhar por cima do ombro mostrou-lhe que os dois não falavam um com o outro; na verdade, a irmã, normalmente volúvel, parecia sem palavras enquanto dançava graciosamente, os olhos cinzentos fixos nos do seu par com uma expressão docemente solene. A tez pálida de Brona ainda estava rosada. Pelo menos, Sam estava a olhar para ela. Já era um começo. A parte infeliz era que Brona não sabia do papel de Sam na expedição; como podia Creidhe dizer-lhe que ia fugir com o objeto do seu afeto? Quando regressasse teria de explicar muita coisa.
Bem, o destino entregara-lhe exatamente o que pretendia. Os jogos eram, geralmente, barulhentos e acompanhados por um generoso fluxo de cerveja. Ninguém repararia na sua falta. Teria de acreditar que Brona manteria a boca fechada até muito depois de terem dado pela sua falta. Brona sabia que estaria com Thorvald, por que razão, e a direção em que iam. Desde que Eyvind não saltasse para um barco e fosse atrás deles, coisa sempre possível, a viagem decorreria como planeado. Assim, só precisaria de sair às escondidas da casa de Grim, encontrar o Sea Dove, entrar a bordo, esconder-se, agüentar um certo desconforto até chegar a ocasião certa e... Lidaria com essa parte quando chegasse a ocasião, disse Creidhe a si própria. Tinha de atirar com os seus medos para trás das costas; que o tempo estaria mau, que o barco naufragaria e que velejariam dias e dias sem encontrar o destino. Tinha de pôr de lado o sentimento de culpa; não se podia dar ao luxo de imaginar o pai furioso e a mãe frenética, Margaret chorando e Brona em sarilhos por sua causa. Se pensasse nessas coisas, talvez se sentisse tentada a mudar de idéias. E a voz interior, a voz poderosa e profunda que fazia ao mesmo tempo parte de si, mas que também era exterior, estava a tornar tudo muito claro, dizendo-lhe que continuasse. Tomara uma decisão. Thorvald precisava dela e ela estaria presente, como muitas vezes no passado ele estivera presente por ela. Seria forte. Quanto às conseqüências, lidaria com elas mais tarde.
Era assustador, admitiu ele, assustador e hilariante, enquanto o Sea Dove rumava com dificuldade a noroeste, ora mergulhando no cavalo de uma onda como se ela os fosse atirar para as profundezas daquele reino náutico; ora cavalgando lá no alto, sobre o pico de outra onda monstruosa que, certamente, não conseguiriam transpor, certamente que iam ser esmagados. Sam berrava umas ordens concisas e Thorvald, de mandíbulas apertadas numa estranha mistura de excitação e terror, obedecia-lhes o melhor que podia, tentando manter o trêmulo barco numa rota estável e compreendendo que não fora nada sensato ao convencer Sam a não levar outro homem com eles. O plano fora navegar até às Ilhas do Norte e arranjar lá um homem ou dois que não os conhecessem. Desse modo, teriam braços suficientes para a viagem. O problema era que as dificuldades eram maiores do que alguma coisa que Thorvald já experimentara. O céu estava cheio de nuvens loucas; o mar era um monstro turbulento com uma mente e uma vontade próprias. Se lhe apetecesse devorá-los, homens, barco e provisões, fá-lo-ia com tanta facilidade como um cão tira um pedaço de pão de cima de uma mesa.
Na verdade, Thorvald estava a adorar. O temporal tirava-lhe toda a confusão da cabeça; a dor nas costas, as bolhas nas palmas das mãos, a luta constante para manter os pés firmes esvaziavam-no de tudo que não a vontade de viver um pouco mais e não deixar Sam sozinho com aquele belo barco. Tinha uma missão pela frente. Era bom; hoje era um homem.
A rota era um pouco mais para Oeste do que Thorvald esperava. Uma vez fora das águas abrigadas das Ilhas Brilhantes, tinham ganho velocidade porque o vento era favorável a uma rota a direito na direção do seu destino. Após um curto debate consigo próprio, Sam tomara uma decisão: rumariam a noroeste, abandonando o plano de passar pelas Ilhas do Norte e contratar um ou dois homens extra, já que isso acrescentaria, pelo menos, dois dias à viagem nos dois sentidos. As coisas estavam a correr bem; estavam a conseguir. E quanto mais cedo chegassem, disse Sam, mais cedo estariam em casa. Não queria que o seu marinheiro desertasse por falta de trabalho pago; levaria muito tempo para conseguir outro. Quando encontrassem as ilhas, Thorvald poderia falar com o seu misterioso pai, Sam aproveitaria para pescar e regressariam a casa. Entre o quarto crescente e a lua cheia a viagem estaria completa e estariam os dois de regresso onde deviam estar.
Assim, rumaram a mar aberto, sem outra coisa que não um certo sentido de orientação para os guiar. Sam não usava relógio de sol, já que o Sea Dove pescava apenas nas águas costeiras das Ilhas Brilhantes onde as falésias, as dunas e os recifes eram os únicos marcos de que um homem necessitava. Mas olhava para a luz do Sol e para as nuvens, para as aves que lhe passavam por cima e quando a noite se aproximava Thorvald via-o a perscrutar os céus, tentando descobrir o que o Sol e a Lua lhe diziam. O tempo acalmara; Thorvald pensara por momentos se não iriam ficar os dois acordados toda a noite, agarrados aos cabos, aos remos ou ao leme enquanto o mar prendia e libertava, elevava e afundava a embarcação. Mas os deuses estavam cansados de brincar e o Sea Dove acalmou, rangendo, limitando-se a um movimento suave de balanço. Ataram o leme e lançaram a âncora flutuante, um pesado cabo com um saco cônico atado na ponta para limitar o andamento. Talvez fosse possível um ficar de vigia aos recifes, às baleias e às diversas criaturas das profundezas enquanto o outro dormia. Quem sabia o que se poderia esconder naquelas águas desconhecidas? Algures para oeste, talvez não muito longe, estava o fim do mundo; um homem podia ser arrastado para lá antes de dar por isso e ver-se a cair para um mundo desconhecido. Talvez fosse melhor, no fim de contas, não dormirem.
— Comida — grunhiu Sam, ajoelhando-se para tirar um odre de água e um saco de oleado da caixa onde os tinha armazenado. O jovem estava habituado a ficar muitos dias no mar; ele e o seu marinheiro saíam muitas vezes antes de o dia nascer e só regressavam ao pôr do Sol e o capitão do Sea Dove era um homem grande e de grande apetite. Carneiro salgado, pão bem cozido, um ovo ou dois cozidos as suas galinhas estavam de novo a pôr era um festim naquelas circunstâncias. Sam estendeu um braço para passar a água a Thorvald e ficou subitamente gelado, como se se tivesse transformado em pedra.
— O que é? — perguntou Thorvald, um tanto alarmado. — O que é que se passa?
— Shhh — sussurrou Sam, fixando intensamente o convés de pinho entre os seus pés. — Escuta.
A princípio, Thorvald não conseguiu ouvir nada para além do constante ranger da madeira do barco e das ondas a baterem no casco. Mas... havia mais qualquer coisa, um som parecido com um gemido fraco, ou um suspiro e uma espécie de arranhadelas, muito pequenas, por baixo das pranchas.
— Ratos? — sugeriu Thorvald com as sobrancelhas erguidas. Parecia que Sam tinha outra coisa em mente que não animais a bordo. As suas feições largas e agradáveis tinham ficado pálidas e ele estava a levantar as pranchas que se mantinham soltas sobre a armação do barco para permitir aconchegar a carga ou o balastro. Uma tábua pequena, duas, três e Thorvald, espantado com a rapidez e a intensidade da reação do amigo, avançou para espreitar para o casco sombrio do Sea Dove, perto da proa. Cheirava a qualquer coisa; alguém tinha vomitado. E ouviu-se um som, não o arranhar de um animal, mas uma voz, uma voz de rapariga, trêmula e fraca:
— Sam?
Sem uma palavra, os dois homens desceram para o buraco entre o convés da proa e o da ré, onde estavam armazenadas as provisões; passaram por cima das traves mestras, afastando sacos e trouxas até conseguirem abrir caminho. Creidhe estava acocorada em cima das pedras de balastro, por trás da rede que prendia a mercadoria, num lugar que mais parecia o esconderijo de um rato. Tiraram-na os dois, Sam com alguma gentileza, Thorvald com umas mãos que tremiam de fúria.
— Em nome de todos os deuses, que estás tu a fazer aqui? — perguntou ele. — Como é que entraste a bordo? Pelos ossos de Odin, que vai dizer o teu pai?
— Agora não — disse Sam. — Ela precisa de água e é melhor acendermos a lanterna; em breve estará escuro. Está uma pederneira naquele saco, juntamente com uma mecha seca. Tem cuidado. Não precisamos de um fogo para nada.
O seu tom era neutro, cuidadoso, pensou Thorvald, para não afligir ainda mais a malcheirosa, pálida como um queijo e ranhosa Creidhe. Afligir. Ah! Mal conseguia imaginar que ela tivesse feito uma coisa tão estúpida. Porquê, por todos os deuses, porquê? Desafiava todo o senso comum. Ela pusera toda a sua viagem em risco, como se quisesse que ele falhasse. E a sua própria segurança? Aquilo não era lugar para uma rapariga. E se se magoasse? E se adoecesse? Era suposto Creidhe ser sua amiga. Os amigos não faziam coisas daquelas.
As suas mãos ainda tremiam enquanto fazia lume e acendia a lamparina de óleo que havia sempre a bordo. Sam estava a falar delicadamente com Creidhe, dando-lhe água a beber, lavando-lhe o rosto e obrigando-a a distender os membros entorpecidos. Havia lágrimas nos olhos dela. Thorvald podia ver o brilho à luz da lamparina. Louvado fosse Odin, como podia uma rapariga fazer uma tolice daquelas? Especialmente uma rapariga como Creidhe, que gostava tanto de passar o tempo a bordar e a cozinhar. Como podia Sam estar tão calmo? Devia ter vindo sozinho, pensou Thorvald, furioso. Não podia confiar em ninguém, nem sequer naqueles que achava que o compreendiam.
Creidhe estava mais calma, bebendo pequenos goles de água do odre, respondendo à paciência de Sam, distendendo os braços e as pernas com um gemido e aspirando grandes lufadas de ar fresco. Deuses, ela tinha um aspecto terrível, a túnica cheia de vomitado, o cabelo todo emaranhado e o rosto branco como a cal à luz da lanterna. Os olhos tinham por baixo umas grandes olheiras.
— O que... — começou Thorvald, mas Sam obrigou-o a calar-se com um gesto.
— Primeiro a comida. As perguntas ficam para depois — disse o pescador, vasculhando no saco. — Sou capaz de jurar que são capazes de ouvir o meu estômago em Stensakir. Bebe devagar, Creidhe, pouco de cada vez. E é melhor comeres, também, um bocado de pão. O teu estômago também deve estar vazio. Vamos, só um bocadinho ou dois. Sentes-te melhor?
Creidhe acenou levemente com a cabeça; a jovem segurava no pão com uma mão, mas parecia ser incapaz de fazer outra coisa para além de tremer enquanto segurava na outra o odre, e fungava de vez em quando. Sam cortou o pão em silêncio, um pedaço de carne, ovos cozidos e entregou uma porção de cada coisa a Thorvald. Apesar de estar esfomeado, Thorvald não conseguia comer. Finalmente, não se conteve mais.
— Diz-nos, Creidhe. Explica-nos. Não percebes que isto é muito perigoso? Sabes para onde vamos? — O jovem podia ouvir a aspereza da sua própria voz, apesar de estar a fazer um grande esforço para se manter calmo. Sam estava a olhar para ele com uma expressão que não se podia descrever como amigável. — Qual foi a tua razão para fazeres uma coisa destas? Só tornaste as coisas ainda mais difíceis.
— Tu vais precisar de mim — disse Creidhe, endireitando os ombros e erguendo o queixo de uma maneira bem familiar. — Eu sei. Vais precisar de mim antes do fim disto tudo.
A sua voz traía a sua tentativa para parecer confiante; era muito baixa e soluçava. Nesse momento, Thorvald soube que o aperto que sentira no coração no momento em que ouvira e reconhecera a sua voz, no fundo do convés, era mais de medo do que de fúria e frustração: medo por ela e do que lhe custaria por ser sua amiga. Já era suficientemente mau ter forçado Sam a acompanhá-lo e a pôr em risco o seu barco. Mas arriscar a vida de Creidhe, cujo mundo era composto por bordados, família e felizes dias de sol, era aterrorizador. Era como se a mão do seu pai, a mão que devastara as Ilhas Brilhantes no espaço de uma única estação, se estendesse para tocar na viagem do seu filho; para a ensombrar. Durante uns momentos, Thorvald não encontrou nada para dizer.
Não havia Lua; a pequena lanterna que Thorvald pendurara cuidadosamente à proa espalhava um círculo de luz pálida, a suficiente para mostrar quão minúsculos eram, os homens, a mulher e a frágil casca de noz na imensidão do escuro oceano que os rodeava.
— O Sea Dove não está habituado a isto — observou Sam. — Quero dizer, a estar fora toda a noite. Não há sinal de terra em nenhuma direção, não está certo. Não me parece bem.
— Bem, não me parece que estivesses à espera que as coisas fossem fáceis — disse Thorvald secamente, incapaz de conter o conflito de sentimentos que lhe ia na alma. — É uma viagem de risco, uma viagem ao desconhecido, não um... um passeio de família pela costa numa manhã bonita.
Sam não respondeu. Aquele comentário não lhe era dirigido. Lentamente, o jovem terminou a sua refeição, limpou as mãos à túnica e arrumou o pão, a faca e o encerado. Foi à proa ajustar a lanterna e olhou por instantes para o céu. As estrelas estavam quase imperceptíveis; apesar de a Primavera ter começado há pouco, as noites já eram varridas pelo pálido clarão do Sol. Finalmente, Sam virou-se para os outros dois.
— Bem — disse ele calmamente — não há duas hipóteses, pois não? Assim que o Sol nascer, vamos para casa.
— Não!
A palavra fora dita a uma única voz; Thorvald e Creidhe tinham respondido exatamente ao mesmo tempo. Sam pestanejou.
— Uma razão para esse não — disse ele, olhando complacentemente para os seus dois companheiros. — Uma, de cada um de vós.
Seguiu-se uma pausa prolongada enquanto Thorvald olhava, carrancudo e de braços cruzados, para o oceano ondulante e Creidhe para o odre, como se este fosse um objeto de intenso fascínio.
— Então? — perguntou Sam. — Não existe nenhuma, pois não?
— Aí é que tu te enganas. Percebo que estejas preocupado com a saúde de Creidhe, para não falar da sua segurança. Mas devo dizer, levando em linha de conta o que já viajamos até agora e a força do vento, que devemos estar mais perto do nosso destino do que das Ilhas Brilhantes. Não será melhor levar Creidhe para o porto seguro mais próximo?
Sam não fez qualquer comentário.
— Creidhe? — perguntou ele.
— Ela não tem de dizer nada — disse Thorvald antes que a jovem respondesse. — Ela nem sequer devia estar aqui. É tão simples quanto isso.
Creidhe tossiu para clarear a voz.
— Suponho que lhe prometeste — disse ela, virada para Sam. — E um homem cumpre as suas promessas.
A jovem não olhou para Thorvald.
— Prometi — respondeu Sam, franzindo o sobrolho. — O problema é que o teu pai mata-nos se não te levamos para casa sã e salva. Mesmo assim, é muito capaz de nos matar na mesma. Não percebo por que razão fizeste isto, Creidhe.
A voz da jovem era, agora, mais firme.
— Eu sei que vocês vão à procura de Somerled. Sei que vão na direção em que ele deve ter ido. E sabia que não me deixariam vir convosco. Mas tinha de vir. Não posso explicar facilmente a razão. É mais um sentimento, um sentimento profundo. Sei que tinha de vir.
— Não percebo porquê. — O tom de Thorvald era brusco. — Tu não sabes velejar, não sabes lutar e não nos podes ajudar seja no que for. Tudo o que fizeste foi pores-te em perigo e ralar a tua família.
— Não foi o que vocês fizeram? — perguntou Creidhe calmamente.
Seguiu-se outro silêncio, durante o qual Sam desenrolou dois cobertores, colocou um em redor dos ombros de Creidhe e encostou-se ao engradado.
— Já chega — disse ele. — O barco é meu e eu é que decido. O que acontece é que, em ocasiões como esta, o vento decide por nós. Vou dormir um pouco; vocês os dois podem continuar a bater um no outro toda a noite, se quiserem, pelo menos enquanto conseguirem manter os olhos abertos. Acorda-me quando quiseres descansar, Thorvald. Tomarei uma decisão ao amanhecer.
Mais tarde, Thorvald recordaria aquela noite como uma estranha calmaria na tempestade daquela jornada. O jovem recordaria a sua confusão, o seu sentimento de culpa e o seu medo. Recordaria a serenidade de Creidhe com a luz da lanterna a iluminar-lhe as feições pálidas; como, apesar da necessidade de se precipitar muitas vezes para a amurada para vomitar, continuava a olhar para ele com uma tranqüilidade que o aborrecia mais do que qualquer outra coisa, já que lhe dizia que era mais capaz de se controlar do que ele. Quanto a conversa, pouca coisa, ou nada. O jovem não confiava em si próprio para falar; ela parecia achar desnecessária qualquer outra explicação.
A jovem dormiu durante algum tempo com a face encostada a um dos braços, os cabelos claros espalhados como um tecido sedoso, e ele olhou para ela, tentando imaginar como conseguiria mantê-la em segurança e, ao mesmo tempo, prosseguir a sua demanda. A sua demanda: continuava presente na sua mente, se bem que qualquer outro homem, naquelas condições, decidisse regressar a casa sem hesitar. Talvez fosse o legado do seu pai, condenando-o a colocar os seus próprios interesses à frente dos dos outros. A reação de Sam à crise fora rápida e atenciosa. Thorvald estava dolorosamente consciente de que a sua resposta fora falha de compaixão. Sam dormia agora o sono de um homem cuja consciência estava limpa, ao mesmo tempo que Thorvald estava sentado sozinho na companhia do oceano e da noite, pensando em como o destino parecia determinado em desviar os seus passos e torná-lo num inadaptado. O destino, pensou ele amargamente, não perdia uma oportunidade para lhe recordar que era filho do seu pai. Creidhe estremeceu e suspirou. Ocorreu a Thorvald que houvera uma certa coragem no que ela fizera, por mais errado que tivesse sido. Não conhecia muitas raparigas capazes de se manterem em silêncio por baixo do convés numa viagem terrível como aquela, ou planear, sequer, uma coisa daquelas. De fato, não conhecia nenhuma. A terem uma rapariga com eles, Creidhe era a única hipótese possível. De modo ausente, o jovem aconchegou-lhe o cobertor, continuou a sua vigia solitária e rezou por um vento vindo de leste.
De fato, a decisão partiu dos próprios deuses. Na escuridão que antecede a alvorada, o agradável balouçar do Sea Dove transformou-se num movimento desagradável e a âncora flutuante praticamente inútil contra a força insistente da corrente. O vento levantou-se, enchendo cada canto do barco de espuma, ensopando-lhes as roupas, os cobertores, as provisões. A madeira do Sea Dove gemia e estalava; o pano protestava. Sam indicou o rumo e Thorvald obedeceu. Creidhe manteve-se encolhida, fazendo os possíveis para não atrapalhar. Os dois homens tomaram a decisão com rapidez como medida de segurança porque se a direção indicada por Tadhg estava certa, aquele vento levá-los-ia ao seu destino. Içaram a vela. A tempestade levou-os para oeste, ou talvez para noroeste; as nuvens cada vez mais baixas tornavam difícil a orientação. Sam agarrou-se ao leme com todas as suas forças e os outros agarraram-se como lapas a tudo o que encontraram. A extensão de pano por cima deles bramia a ponto de se rasgar; o mastro vergava, a sua força de resistência testada até ao limite. Ocorreu a Thorvald que não estavam a controlar minimamente a rota do navio; o vento ia levá-los para onde lhe apetecesse. A única esperança era virar o Sea Dove contra as vagas monstruosas e mantê-lo a flutuar até que a tempestade acalmasse. Que hipóteses tinham de encontrar um pequeno grupo de ilhas acerca das quais não sabiam nada, senão que estavam algures a noroeste das Ilhas Brilhantes? Para lá dessas ilhas, que podiam perfeitamente ser o produto da imaginação de um louco qualquer, toda a gente sabia que não havia outra coisa senão água. Era como se o vento lhes quisesse retirar a respiração da boca, porque o que lhes ia na mente não podia ser posto em palavras. Era melhor pensar apenas na tarefa que tinham em mãos e manterem-se a bordo, preparando-se para a vaga seguinte, para a seguinte e depois para a seguinte, atentos ao pano e à chuva gelada, forçando as mãos a apertar e a desapertar os cabos, mudando de posição para equilibrar o Sea Dove e, entretanto, rezar de dentes e olhos cerrados, procurando descortinar uma mudança no tempo, uma sombra de misericórdia.
A embarcação em que Somerled fizera aquela viagem era um pequeno barco de pesca, como os que Tadhg e os seus irmãos utilizavam, por vezes, para ir a terra. Ao lado do Sea Dove, um barco daqueles era tão diferente como um pato de um albatroz. Só era possível imaginar como seria viajar daquela maneira. Na mente de Thorvald surgiu uma terrível verdade. Somerled não podia ter sobrevivido. A seguir, teve outro pensamento ainda mais louco: Vamos morrer os três. Numa crença como a do irmão Tadhg, simples e infalível, a fé na misericórdia eterna do seu deus era total. Os irmãos não tinham feito aquela viagem guardados pela mão do mesmo deus? Mas Somerled não tinha essa fé; como poderia um homem mau, esperar qualquer favor de qualquer divindade? Se Somerled conseguira fazer a travessia, fora outra coisa qualquer que lhe dera as forças necessárias para isso. Ódio? Ambição? No entanto, nunca regressara; nunca regressara a casa para se confrontar com o amigo que o enviara para aquele pesadelo.
Sam continuava agarrado com todas as forças ao leme, os músculos dos seus braços quase explodindo. O seu rosto estava pálido à luz fraca do quase amanhecer. Gritava algo, mas Thorvald não conseguia ouvir as suas palavras devido ao rugido do vento. Os cabelos de Creidhe flutuavam como uma bandeira dourada; a jovem agarrava-se com todas as suas forças a uma antepara.
A vela, parecia dizer-lhe Sam. Arreia a vela. Porque o mastro oscilava perigosamente, a pressão era demasiada e tinham de desistir de controlar a rota, ou arriscavam-se a perder este e a vela, fazendo com que o navio ficasse incapaz de ser manobrado, mesmo com tempo mais calmo. Thorvald avançou subitamente, as botas ensopadas parecendo de chumbo, os dedos tolhidos pelo frio enquanto tentava desapertar um cabo e depois outro dos ganchos de ferro que os seguravam. O Sea Dove estremeceu; uma montanha de água erguia-se por cima deles.
— Segurem-se! — gritou alguém e um instante mais tarde a vaga esmagava-se sobre o barco. O nariz, a boca, os olhos e os ouvidos de Thorvald encheram-se de água; o mar ergueu-o num abraço feroz, gelado, e o jovem sentiu a dor ceifar-lhe quase os braços enquanto tentava manter-se agarrado ao cabo, tenazmente, como uma criança aterrorizada se agarra à mãe perante um perigo desconhecido. Passaram-se longos momentos; o jovem prendeu a respiração até sentir o peito rebentar-lhe, até não suportar mais a agonia, até perceber que estava mais perto da morte do que nunca e então, com o rugido de um animal ferido, o Sea Dove endireitou-se de novo e surgiu o abençoado ar, ao mesmo tempo que um novo dia rastejava cuidadosamente através do céu tempestuoso, e Thorvald atreveu-se a abrir os olhos mais uma vez.
O mastro quebrara-se, deixando lascas enormes de madeira erguidas para o céu e a vela desaparecera. Creidhe jazia no convés, sufocada, a tossir e com um cabo enrolado em redor da sua figura toda descomposta. Era um milagre ter sobrevivido à queda do mastro e à vaga avassaladora. Sam. Onde estava Sam? A embarcação oscilava violentamente ao sabor dos caprichos do oceano; o leme jazia, suspenso, descontrolado. O coração de Thorvald gelou. Isto não, suplicou ele, se bem que nunca tivesse confiado muito em deuses. Isto não está certo. Eu queria um desafio, mas isto não, por favor...
— Sam! — guinchou Creidhe, pondo-se de pé e precipitando-se através da amurada na direção da ré. O Sea Dove ergueu-se; Creidhe caiu de joelhos e voltou a pôr-se de pé, agarrando-se ao convés da ré. Rastejou; o leme deslocava-se aos arrancos e estremecia, suspenso não muito longe da sua cabeça. — Não fiques aí! — gritou ela por cima do ombro. — Ele está ali gelado e a sangrar! Não sabes manobrar esta coisa?
Em estado de choque, Thorvald viu a silhueta de Sam no convés, parecendo mais morto do que vivo. O brilhante fio de sangue que lhe escorria pela face até ao pescoço, ensopando-lhe a camisa e a túnica, dava uma nota de cor vibrante àquela madrugada escurecida pela tempestade e àquele mar verde-escuro. Thorvald conseguiu chegar à ré e agarrou no leme, sabendo que os seus esforços seriam inúteis perante a força maligna dos elementos, mas compreendendo que tinha de tentar. Era uma luta até à morte, do homem contra a natureza; tinha de agüentar e esperar que um poder superior, se havia tal coisa, se cansasse de brincar com eles. Quisera um desafio e tinha-o: o jogo mais difícil que alguma vez tinha jogado.
Creidhe estava a rasgar qualquer coisa e enrolava-a em redor da cabeça de Sam, pressionando o ferimento com a mão. A jovem fechava a boca com força; os raios de luz da madrugada, penetrando nas pesadas nuvens, permitiam ver o seu rosto ainda mais pálido, como se também ela fosse cair inconsciente a qualquer momento. A jovem tentou afastar Sam, o suficiente para permitir que Thorvald pudesse manobrar, tentando desesperadamente controlar o Sea Dove, se bem que, sem os remos e a vela, o melhor que conseguiria seria evitar que ele se afundasse. Creidhe deixou-se cair no convés com a cabeça de Sam no colo; o jovem era demasiado pesado e ela amparou-lhe o ferimento com uma mão, agarrando-se com a outra ao pedaço de madeira mais próximo enquanto o céu acima deles trovejava e as vagas desabavam ou retiravam, erguiam-se ou caíam, determinadas a desalojá-los. O tecido que envolvia a cabeça de Sam a camisa de Creidhe, já tinha uma mancha vermelha. A jovem olhou para Thorvald apoiado com toda a força no leme, para o rosto coberto de cabelos molhados e para os olhos sombrios.
— Lamento — disse ela. Não era possível saber se aquilo era por causa do sarilho em que estavam metidos, ou simplesmente por estar ali.
— Também eu — disse Thorvald.
O Sea Dove escapou a mais um dia e a mais uma noite gelada, durante a qual Sam gemeu por baixo de dois cobertores. Thorvald e Creidhe fixavam a escuridão totalmente exaustos, mas vigiando teimosamente, ora o ferido, ora o mar, as estrelas, o movimento do barco meio arruinado. Mantinham-se os dois calados. Creidhe limpou a fronte de Sam, deu-lhe alguns goles de água e ajudou-o a virar-se. O jovem pescador parecia melhor. Thorvald fez os possíveis por manter a rota, se bem que lhe parecesse que o barco não respondia como devia. O jovem achou que o leme estava avariado, mas não o mencionou a Creidhe.
Não avistaram terra ao segundo dia de terem perdido o mastro. O vento amainou, as águas acalmaram-se e o frio entrou-lhes nos ossos. Cobriram Sam com toda a roupa seca que encontraram porque, no estado de fraqueza em que se encontrava, era importante que não cedesse ao frio e desistisse. O pescador dormia muito, mas quando acordava dizia coisas com senso e tentava fazer sugestões úteis, o que era bom sinal. Na noite seguinte, Thorvald ouviu Creidhe a murmurar de vez em quando e perguntou a si mesmo se a jovem não estaria a perder o juízo; isso seria o fim. Mas, após alguns momentos, veio-lhe à idéia que ela devia estar a rezar, ou algo parecido, se bem que falasse na antiga língua das ilhas e ele não fosse fluente nessa linguagem.
Lembrou-se que a irmã de Creidhe era uma sacerdotisa; que a sua mãe também sabia os mistérios da sua fé, que tinha a ver com a terra e o mar, o ancestral folclore das pedras erguidas e com os percursos da Lua e do Sol. Creidhe salmodiava de olhos fechados. Não podia saber a quem se estava a dirigir nem o que estava a pedir.
Se aquilo a fazia sentir-se melhor, pensou Thorvald sinistramente enquanto o céu empalidecia, antecipando uma nova aurora, melhor. Quanto a ele, estava a tornar-se rapidamente evidente que não conseguiria agüentar muito mais tempo. A dor que tinha nos braços era insuportável, as palmas das mãos estavam cheias de bolhas e, pior do que tudo, as dores de cabeça eram tantas que quase o cegavam. Aquilo acontecia de vez em quando em casa e ele sabia que a única coisa a fazer era deitar-se na escuridão e esperar que passasse. O Sol estava a nascer; a luz pálida transformou a dor de cabeça num torno que lhe apertava as têmporas, fazendo com que o estômago lhe subisse à boca e visse estrelas.
— Thorvald! — A voz de Creidhe perfurou-lhe o crânio. — Thorvald!
O jovem fechou os olhos; Aguenta-te, disse ele para si próprio, aguenta-te, continua...
— Thorvald! — A voz de Creidhe soou tão alta que a sua cabeça quase se dividiu em duas com a dor. — Terra! — gritou ela. — Estou a ver terra!
Os seus olhos abriram-se repentinamente. Creidhe estava meio de pé meio sentada a seu lado no convés da popa e gesticulava apontando para norte, onde sim, era verdade se erguiam umas ilhas incrivelmente íngremes à distância, agrupadas como um anel de torres fortificadas desafiando o oceano inóspito. Algo gritou no seu coração e lhe incendiou o espírito: uma esperança improvável.
— O que...? — Sam tentou pôr-se de pé; fez força nos joelhos e as mãos procuraram o apoio de um cabo.
— Terra — disse-lhe Creidhe, tranquilizando-o. — Ilhas. Não muito longe. Abrigo, comida, ajuda. — A jovem virou-se para Thorvald. — És capaz de nos levar até lá, não és? — perguntou ela.
Subiu-lhe aos lábios um riso amargo; o jovem reteve-o. Com vento de leste, sem mastro, sem vela, com um leme que só funcionava parcialmente e com ele, que não servia para nada com a sua dor de cabeça gritante e braços impotentes? Levá-los até lá? Aquelas ilhas envoltas em bruma não eram mais realidade do que uma terra de fábula, que fugia sempre que um marinheiro se aproximava. O silêncio prolongou-se.
— Eu sei que não podemos velejar — disse Creidhe em voz baixa. — Mas talvez possamos remar. — Seguiu-se outra pausa. — Podemos tentar, pelo menos.
Sam tentou levantar-se com a mão na cabeça.
— Remos — gaguejou ele, fazendo um gesto na direção da prateleira onde eles estavam armazenados. — Vamos...
Thorvald olhou para Creidhe e ela devolveu-lhe solenemente o olhar. Era impossível ela conseguir pegar num remo; naquelas condições, ele também não sabia se conseguiria. E quem iria ao leme?
— Toma. — Sam percorrera o espaço vazio, precariamente equilibrado mas com o instintivo sentido de equilíbrio de um marinheiro. O jovem tirou um longo remo do local onde estava armazenado no convés da proa e colocou-o no seu lugar. Naquele barco, o trabalho de remar era executado por dois homens lado-a-lado. Os braços maciços de Sam agarraram na pega de pinho à altura do peito. O pescador virou a cabeça na direção do outro remo e rolou os olhos na direção de Thorvald. — Direito. Creidhe... leme. O vento está a amainar. Temos... tentar. Raios me partam se perco... o Sea Dove...
Foi um espanto para Thorvald, mais tarde, o fato de terem conseguido. Os amigos, pensou, eram ao mesmo tempo uma maldição e uma bênção. Talvez se se tivesse sentido espicaçado pelo desejo de não querer parecer mais fraco do que Sam ou mais exausto do que Creidhe, cada um dos quais se sentou de dentes cerrados e olhos resplandecentes de esperança. O jovem remou, Sam remou e Creidhe agarrou-se com unhas e dentes ao leme, os olhos semicerrados enquanto tentava manter a rota na direção daqueles distantes pontos no horizonte. O vento amainou; o Sol apareceu timidamente por entre as nuvens que corriam no céu. Algumas aves começaram a sobrevoar o navio e desapareceram com gritos de alarme. Ninguém perguntou se estavam mais próximos. As mãos feridas e os braços doridos era tudo o que existia, isso e o movimento firme do Sol através do céu. Após um longo período de tempo viram rochedos a leste e a oeste e algumas focas nadando à sua volta. Após um período de tempo ainda maior, viram a silhueta de uma ilha e durante algum tempo remaram com força na sua direção, mas a corrente persistente empurrava-os para o largo. Num momento de desespero doloroso, pararam de remar e permaneceram em silêncio, vendo recuar os declives vestidos de verde. Havia lágrimas nos olhos de Creidhe. A jovem pestanejou para as fazer retroceder e falou com extrema firmeza.
— Bebemos um pouco de água, descansamos e continuamos. Estamos um pouco a oeste do grupo principal, mas parece haver outro a norte. Vamos para esse. Não está longe. Vocês estão a ir bem.
Sam olhou para Thorvald e Thorvald olhou para Sam. Através do brilho do suor, da dor e do cansaço dos músculos, ambos esboçaram um sorriso por entre os lábios rachados.
— Parem de rir-se de mim — ordenou Creidhe. — E agora, toca a andar. Peguem nos remos. Confiem em mim, sei o que estou a fazer.
Apesar de haver um ligeiro tremor por baixo da louvável vivacidade do tom, ambos os homens preferiram ignorá-lo.
Passaram a oeste de outras ilhas, umas maiores, outras mais pequenas e muito ao largo de uma minúscula, com monstruosas falésias subindo até um planalto desolado onde, coisa incrível, se viam ovelhas a pastar. Os dois homens lutaram contra a corrente; aquilo tinha inteligência própria. Por vezes, a superfície do mar deixava ver um contorno estranho, mais além verde-prateado e mais perto da cor natural das águas profundas. Era para oeste dessa divisória que a corrente tentava arrastá-los e precisaram de todas as forças para lhe resistir. Talvez se tivessem aproximado daquela ilha mais a norte; estavam demasiado cansados para saber. Thorvald pensou ver umas cabanas, mas não teve a certeza. Parecia-lhe impossível haver gente a viver num lugar minúsculo como aquele, onde mal se podia ver um pedaço de terra e onde as vagas castigavam a costa rochosa como se a quisessem despedaçar. Quem seria suficientemente louco, naquele lugar, para se atirar ao mar?, pensou ele azedamente enquanto remava e remava, e o Sea Dove abriu caminho através das águas agitadas. Quem se estabeleceria ali, senão um exilado ou um louco?
No fim, descobriram uma baía, uma pequena praia e uma corrente que os empurrou para terra. Por fim, começavam a acreditar que não iam morrer, pelo menos naquele dia. Não foi culpa de Creidhe se o Sea Dove raspou o casco nas rochas e se começou a adernar de modo alarmante. As águas estavam agitadas e os recifes submersos invisíveis. Mesmo assim, Thorvald olhou para ela, carrancudo, enquanto puxava o remo. Creidhe parecia ter dificuldade em reter as lágrimas. Quanto a Sam, quando ouviu o som inimitável, doentio, da madeira do navio a ser rasgada pelo recife, vacilou como se tivesse sido ferido mortalmente. Virou as costas ao remo, rosnando para Thorvald que continuasse a remar porque, se conseguissem encalhar o Sea Dove na areia antes de ele naufragar, teria, pelo menos, hipótese de o remendar. A paisagem era desabrigada; aquelas ilhas pareciam tão pobres de madeira como as Ilhas Brilhantes e muito menos hospitaleiras. Sem dúvida, tal como em casa, os troncos deviam dar à costa de vez em quando, um presente do mar mais precioso do que o ouro ou a prata mais bem trabalhados. Não tinham nada para trocar, à exceção do próprio Sea Dove. Mas estavam vivos e num último e desesperado esforço com os remos, sentiram o casco do navio deslizar na areia e Sam, menos alegre do que de costume, saltou por cima da amurada para amarrar os cabos às duas pedras maciças que pareciam estar ali para aquele propósito. Não havia nenhum molhe, mas havia barcos mais acima, pequenos, embarcações deselegantes que não pareciam adequadas àquelas águas caprichosas. Para lá da baía erguiam-se uns declives rochosos incríveis. Não se via vivalma. Mais atrás, abrigados numa prega de terreno, viam-se uns edifícios quaisquer; o fumo saía dos telhados de colmo.
De fato, estava para além das suas forças ir até lá e pedir ajuda. Sam inspecionou os danos do seu amado barco, modo de vida e tesouro; abanou a cabeça ligada, mas era evidente que já estava a pensar como conseguiria remendar o grande rombo no casco, substituir o mastro e regressar a casa. As rochas afiadas tinham trespassado o gabordo e as pranchas perto da proa; onde encontrar um carvalho de qualidade naquelas ilhas tão pobres de árvores? O pescador passou a mão pelas pranchas, resmungando para si próprio.
Creidhe mal podia andar. No instante em que pôs pé em terra os seus joelhos dobraram-se e a jovem caminhou aos tropeções até cair, de frente, no cascalho da praia. Thorvald sentia-se um pouco melhor. Os seus braços e ombros doíam-lhe como se tivessem sido marcados com ferro quente; quanto às mãos, não olharia para elas, temendo ficar doente. Sabia que estavam em carne viva e a sangrar; vira as de Sam. Esperava que a população local fosse amigável e que houvesse curandeiros. O jovem deixou-se cair na praia ao lado de Creidhe, de olhos fechados.
— Estás bem, Thorvald? — Apesar de tudo, a sua débil voz era desesperadamente cortês.
— Hum — grunhiu ele. — E tu?
— A culpa é minha — murmurou ela. — Agora, o Sea Dove está avariado e não podemos voltar para casa.
— O mar é que tem a culpa — disse Sam calmamente, subindo o areal na direção de ambos. — Eu posso repará-lo, desde que tenha tempo e a madeira adequada. O que quer dizer que vamos ficar aqui algum tempo. Precisamos de arranjar abrigo. E era capaz de comer uma ou duas pernas de carneiro assado. Parece que há uma aldeia qualquer lá em cima, se bem que as pessoas não pareçam com pressa de nos vir dar as boas-vindas. Tentamos?
Thorvald sentou-se abruptamente.
— Só uma coisa — disse ele. Os outros olharam para ele.
— Vocês sabem por que razão eu estou aqui. Estou aqui para o encontrar, para encontrar Somerled. Tenho de acreditar que ele veio dar aqui, senão não terá valido a pena. Sei que as hipóteses são mínimas, mas não é impossível. Talvez ele esteja lá em cima numa das cabanas, ou talvez não. Quero que vocês não digam nada acerca disso. A demanda é minha e de mais ninguém e eu é que sei como agir. Compreendem?
— Que queres dizer? — perguntou Creidhe, pousando a cabeça nas mãos como se estivesse demasiado cansada para pensar. — Não lhe vais dizer que és filho dele?
— Exatamente. E não vou dizer a ninguém a razão por que vim aqui. Se Somerled está nestas ilhas, quero observá-lo, primeiro, avaliá-lo, antes de lhe dizer a verdade. E não posso fazer isso se alguém disser quem sou e quem procuro assim que conhecermos a gente local.
— Se calhar, nem estamos nas ilhas certas... — murmurou Creidhe.
— Não te preocupes com isso — disse asperamente Thorvald. Aquilo ia demorar muito tempo e doía-lhe a cabeça. — Pode muito bem ser este o local. Quais são as probabilidades de haver dois grupos de ilhas iguais nestas paragens? E agora, compreendem, vocês dois, o que eu quero?
— Compreendo muito bem. Queres que mintamos a teu respeito — disse Sam secamente. O seu rosto estava horrivelmente branco sob a ligadura manchada de vermelho os seus olhos tinham um aspecto desaprovador.
— Não precisas de mentir. Basta não falares em Somerled. Até para ti deve ser fácil, Creidhe. — Thorvald viu-a estremecer e arrependeu-se imediatamente da farpa. Mas, por que levavam eles tanto tempo a compreender o que era tão óbvio? Que os deuses o protegessem dos amigos.
— Escuta, Thorvald — disse Sam de modo cansado. — Dói-me a cabeça, tenho um barco avariado e Creidhe está próxima da exaustão. Estamos no meio de coisa nenhuma e ninguém tem paciência para os teus joguinhos. Diz-nos qual é a história que temos de contar para que esta gente não pense que somos malucos e vamos ver se conseguimos alguma ajuda.
Sam articulava mal as palavras. Thorvald deu-se conta de que tinha esquecido por completo o ferimento do amigo.
— Que fomos pescar, que fomos afastados da rota e que deitámos a carga ao mar quando o barco começou a afundar-se — disse ele sucintamente. — E agora pedimos abrigo enquanto reparamos o barco. É fácil.
— E Creidhe? Por que está ela aqui?
— É tua irmã? Tua mulher?
As feições de Sam retesaram-se um pouco.
— Tens a resposta pronta, Thorvald. Não vou falar em Somerled se é isso que queres, mas não é preciso dizer mais mentiras. E agora vamos, vocês os dois. Estou molhado até aos ossos, a minha cabeça mata-me e a minha barriga está outra vez a queixar-se. Vamos ver que espécie de gente se estabeleceu no fim do mundo.
— Brona! — O nome soou através dos quartos iluminados da grande casa como um grito de batalha, ao mesmo tempo que a porta se fechava com estrondo nas costas de Eyvind. Um instante mais tarde, Ingigerd começou a chorar, acordada repentinamente do sono. Era a primeira vez que ouvia a voz zangada do pai.
— Recebeste a mensagem. — Nessa estava sentada à lareira com as mãos no colo e com os grandes olhos cinzentos abertos, fixando a figura enorme e furiosa do seu marido com o machado às costas, a espada no flanco e a pele de lobo, grande e hirsuta por cima dos ombros. O seu rosto era a imagem da angústia. — Não te zangues com Brona. Ela já derramou lágrimas suficientes. E estava a cumprir uma promessa. Foste tu que lhes ensinastes a cumprir uma promessa.
Brona surgiu naquele momento na soleira, transportando ao colo a irmã lacrimosa. A rapariga olhou para eles; os seus olhos estavam inchados e a sua expressão era deplorável.
— Está tudo bem, filha. — O tom de Nessa era calmo. — Leva Ingigerd para a cama, conta-lhe uma história. O teu pai fala contigo amanhã de manhã. — E, virando-se para Eyvind: — Vem, senta-te, que eu arranjo-te uma caneca de cerveja. Vieste depressa, meu querido; isto afetou-te. Vamos. Senta-te um pouco. Talvez as coisas não sejam tão más como parecem.
— Como pode ser isso? A nossa filha, a nossa querida filha sempre tão ajuizada, fugiu com dois rapazes irresponsáveis num barco de pesca costeira para águas desconhecidas? Em que estava a pensar Creidhe? — O guerreiro percorreu a sala várias vezes enquanto se desembaraçava da capa e das armas. — Nem parece dela, parece coisa de uma pessoa sem caráter. E o culpado é Thorvald. O rapaz é imprevisível e não inspira confiança. Devíamos tê-la mandado para as Ilhas do Norte.
— Senta-te, Eyvind. — Nessa usou um tom que o marido não podia recusar. O guerreiro sentou-se; ela colocou-lhe uma caneca de cerveja nas mãos e estendeu um braço para lhe colocar um caracol por trás da orelha. — E agora ouve-me.
— Eu não devia estar aqui; devia ir a caminho do norte, encontrar um barco e ir atrás deles. Não podem ter ido longe...
— Eyvind. Escuta-me.
O guerreiro calou-se.
— É possível que isto estivesse escrito. Eu vi qualquer coisa no fogo; não pude evitar a visão que os antepassados me enviaram. A nossa filha tem um caminho estranho pela frente, meu querido. Estranho e perigoso.
— Tu viste isto? Viste e não me disseste?
— Não te podia dizer. Tu sabes como são estes presságios; podem ser imprecisos, enganadores. Vi Creidhe numa longa e árdua jornada, vi sinais e símbolos; uma criança andrajosa; uma criatura parecida com uma raposa... não, não te conto.
— Pior ainda?
Nessa viu o olhar de Eyvind e segurou-lhe na mão.
— Pior e melhor — disse ela. — A nossa filha terá uma história maravilhosa para contar se ultrapassar isto. Perguntas por que razão fez ela isto, por que razão fugiu. Creidhe não fugiu. Procura, apenas, ajudar um amigo. Ela sacrificar-se-á muito por Thorvald. Tu sabes que ela o ama.
Eyvind franziu furiosamente as sobrancelhas. Aquele olhar transformara muitas vezes os intestinos dos seus inimigos em água. Nessa esperou com uma expressão tranqüila.
— Pensava que tinha acordado que Thorvald era o último homem que queríamos para ela — disse ele. — O rapaz é esperto, reconheço, mas o legado que carrega é sombrio e ele tem poucas das qualidades que eu quero que tenham os maridos das nossas filhas. O rapaz é egoísta, volátil e pouco amável. Como podes dizer...?
Nessa sorriu.
— Thorvald vai precisar da ajuda dela antes do fim da jornada. Devias rezar por ambos e por Sam. Vão sofrer os três e tornar-se-ão mais sábios antes de isto tudo terminar.
Eyvind mudou de posição, irrequieto. O guerreiro ainda não tocara na cerveja.
— Tenho de ir atrás deles. Aquelas águas são bravias e nada familiares; até Sam terá dificuldade em encontrar o lugar que procuram, isto supondo que é algo mais do que a visão de um louco. Não sou pai nem sou nada, se deixo que a minha filha parta numa demanda tão temerária como esta. Tenho de tentar encontrá-la...
— Não, Eyvind. — Nessa colocou-lhe uma mão no rosto e segurou-lhe no queixo, olhando-o nos olhos. — Não vais. Não podes. Vou precisar de ti aqui.
Ele pestanejou, confuso. Nessa era inteligente e cheia de recursos; governava a casa sem grande esforço e tomava parte nos conselhos e negócios das ilhas, como convinha ao seu estatuto real.
— Mas... — começou ele.
— Eyvi, meu querido, tenho notícias para ti. Esperei para te dizer até ter a certeza. — A sua voz baixara subitamente de tom, hesitante. Os seus dedos afagaram-lhe a têmpora; ele pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios. Ela viu alarme nos olhos dele e falou rapidamente. — Vou ter outro filho. Fiquei surpreendida; pensei que não teria outra hipótese. E acho que, se chegar ao fim, será um rapaz. Tenho esperança... Tenho tanta esperança...
Os seus lábios tremeram; as lágrimas que lhe começaram a rolar pelas faces pálidas refletiram-se nas dos olhos do seu marido. Ele apertou-a contra si, afagando os longos e suaves cabelos.
— Oh, Nessa — sussurrou ele. — Oh, minha pomba. É claro que fico, é claro, mas...
— Creidhe há de atravessar isto sã e salva — disse Nessa, trêmula. — A nossa filha é forte e capaz; isto pode parecer-te uma escapadela, mas ela não teria ido sem uma boa razão. Brona disse que a irmã odiava ter de nos mentir. Brona lamenta muito, Eyvi. Não sejas muito duro com ela. Elas são, as duas, boas raparigas.
— Um filho — murmurou Eyvind. — Nunca pensei que fôssemos abençoados de novo depois de o mar nos ter levado o nosso pequenino. Mas... não será arriscado para ti? Deves descansar, talvez devesses estar neste momento na cama...
— Shhh — disse Nessa, sorrindo ao mesmo tempo que chorava. A perda de Kinart ferira-o profundamente; transportaria aquela ferida para sempre. O seu pequeno filho fora a luz dos seus olhos durante quatro Verões, até à manhã em que a Tribo das Focas o levara. Ela sempre achara que aquilo fora uma espécie de pagamento, um ajuste de contas por parte daqueles estranhos habitantes do mar por a terem ajudado um dia. Se assim fora, o preço fora bem alto. — É provável que já tenha ultrapassado a idade ideal, mas sinto-me bem e com saúde e sei como preparar-me. Creidhe é boa parteira; ela ajuda-me quando chegar a ocasião. Não estejas tão ansioso, meu querido. Contenta-te com este presente maravilhoso.
— Eu estou contente. Contente mas preocupado por ti, por ele — disse ele, levando uma mão ao estômago dela, que já estava ligeiramente arredondado com a nova vida — e terrivelmente preocupado por Creidhe, apesar de tentares tranquilizar-me. Além disso, temos o tratado; não confio naquele principezeco dos Caitt e Ash também não. Vamos estar muito ocupados.
— Como vês, não podes ir atrás da tua filha — disse-lhe Nessa. — Confia em Creidhe. Ela vai surpreender-te.
— Isso já ela fez — disse ele severamente. — Diz-me, quando nasce a criança? É para quando?
— Para o Outono, pelas minhas contas. Talvez duas luas antes da cerimônia das mulheres. Por essa altura já Creidhe estará em casa e as tuas preocupações terão acabado. E agora bebe a cerveja, marido e vai dar as boas-noites às tuas filhas. Diz a Brona que lhe perdoas. Não podemos deixar que a Lua nasça conosco zangados.
Mais tarde, enquanto Nessa dormia nos seus braços, Eyvind olhou pela estreita janela para o pálido céu prateado daquela noite de Primavera. Pensou na filha de cabelos claros algures no mar bravio ou atirada para uma praia qualquer apenas com a coragem e o bom senso para a ajudarem. Pelos deuses, uma rapariga tão querida, de dezesseis anos atirada subitamente para o meio daquilo a que um punhado de homens selvagens e desesperados chamava casa naquelas ilhas distantes; só a idéia bastava para o aterrorizar. Nessa não percebia como aquilo era perigoso; Nessa não pensava como um homem. Um arrepio percorreu-lhe a espinha.
Somerled. Somerled era capaz de estar lá. Se o homem sobrevivera àquela perigosa viagem, quem poderia dizer no que se tornara durante aqueles longos anos de exílio? Talvez tivesse mudado como lhe pedira Eyvind, transformando-se num homem sábio, num homem bom, num homem de paz. Ou talvez tivesse aperfeiçoado as qualidades que tinham feito dele Rei das Ilhas Brilhantes: ambição desmedida e um completo desprezo pelo bem-estar dos outros. Somerled não tinha respeito pelas mulheres; acreditava que um homem devia ter o que quer. Odiava Eyvind e a sua família. Era de esperar, portanto, que eles não encontrassem aquelas ilhas; que Thorvald não localizasse o pai. No entanto, tinham de o encontrar.
Não havia outra coisa senão uma morte lenta naqueles mares vazios. Que os deuses protegessem Creidhe e que os deuses protegessem aquele bebê que estava a crescer na barriga de Nessa. Que Creidhe regressasse a casa a tempo de ajudar o bebê a nascer em segurança porque, se não regressasse, não sabia o que faria. Não confiava noutras mãos para aquela tarefa. Não podiam perder outro filho; não sobreviveria. Não se passava um dia sem que pensasse em Kinart, nem uma noite em que não sonhasse com ele: o seu filho a aprender a andar, as suas pernas gorduchas movendo-se confiante mas desajeitadamente, os cabelos claros espetados no alto da cabeça e as suas feições infantis iluminadas por um enorme sorriso de triunfo. Kinart cavalgando à sua frente, um pequeno e orgulhoso guerreiro muito direito nos braços do pai enquanto o velho cavalo prosseguia vagarosamente ao longo dos campos verdejantes. Kinart dormindo no colo de Nessa, cansado por um dia na rua e a luz da lareira iluminando-os a ambos. Kinart na praia, pálido e sem vida e um terrível grito de angústia saindo-lhe dos lábios se bem que o seu coração estivesse gelado de terror. Sofrera perdas antes, mas nenhuma como aquela. Dou tudo, prometeu ele em silêncio sem saber bem a que deus estava a rezar, apenas que era uma súplica vinda do mais profundo do seu ser, tudo o que quiseres, se deixares viver este.
CAPÍTULO TRÊS
Tocam os sinos de Água Brilhante
Por quem tocam eles?
Pelo nascimento de uma criança,
Pela chegada das baleias
Ou pela chegada de estranhos?
NOTA À MARGEM DE UM MONGE
Um sino tocava algures, lenta e regularmente. Creidhe podia ouvir vozes de homens, que vinham da aldeia. Podia dizer, pela expressão de Thorvald, que o jovem estava com uma das suas dores de cabeça; nenhuma outra coisa lhe podia provocar aquela palidez doentia, aquele cerrar de maxilares. Para além disso, estava tudo enevoado. Estava a conseguir andar, os seus pés pareciam aguentar-se, mas tinha as pernas dormentes e não conseguia deixar de tremer. Esquecera durante algum tempo, nos braços da morte, o frio e a fome. Agora, sentia um frio gelado de Inverno, que lhe chegava à medula; tinha as roupas ensopadas e apesar de estar a caminhar em solo firme, a cabeça andava-lhe à roda e o estômago agitava-se com náuseas. Sam segurava-a por um braço, ajudando-a a continuar e Thorvald, com o rosto branco como a cal, caminhava com uma firmeza louvável, enquanto os três homens desciam o carreiro ao seu encontro.
— Bom dia. — A voz de Thorvald era firme; era evidente que os seus dentes não batiam descontroladamente como os dela. — Espero que nos possam ajudar. Como vêem, fomos atirados para aqui e o nosso barco ficou danificado. Precisamos de comida, de água e de abrigo. Podem ajudar-nos?
Os três homens pararam e colocaram-se lado-a-lado no carreiro. Não olharam para Thorvald; tinham os olhos fixados intensamente em Creidhe. Não disseram nada. Através da névoa da sua tontura, Creidhe reparou que usavam peles de lobo como roupa e botas de pele de ovelha. Havia uma certa rigidez no comportamento dos três homens, dois jovens e um mais velho, talvez o líder. Não era possível dizer de que raça eram, nem que língua falariam. O mais velho tinha cabelos grisalhos e tinha o rosto barbeado; os outros eram louros e barbudos. A maneira como olhavam para ela: seria assim um espectáculo tão grande, toda despenteada e enjoada como uma pescada? Era de supor que tivessem ficado surpreendidos com aquela chegada inesperada: até chocados. Mas aquele exame minucioso e silencioso era provocado por mais qualquer coisa; a jovem sentiu que estava a ser examinada, de certo modo avaliada, e não gostou. A um dos homens faltavam-lhe os dentes da frente. A outro, faltava-lhe uma orelha. Todos tinham cicatrizes na face direita: umas linhas paralelas nítidas, quatro ou cinco. Não eram produto de combates, eram marcas rituais. Dois deles transportavam lanças; todos usavam facas. Se Thorvald e Sam tinham trazido armas, continuavam no barco.
— Espero que possam ajudar-nos — disse Thorvald de novo, mais lentamente. O jovem abriu as mãos. — Não queremos fazer mal a ninguém. Somos apenas três, aqui o meu amigo indicando Sam com o queixo e... a rapariga. Como vêem, está doente e cheia de frio e o meu amigo tem um ferimento na cabeça. Podem oferecer-nos abrigo por uma noite?
Os olhos dos três homens viraram-se para o alto e louro Sam que se mantinha firme sob o seu olhar perscrutador e depois regressaram à trémula Creidhe que se apoiava no seu braço. A jovem sentiu a força daquele olhar com uma terrível angústia, sentiu-o como uma lâmina raspando-lhe a superfície para lhe examinar o interior. Não deviam ter ficado muito impressionados; a jovem estava consciente da sua aparência. Os olhos dos homens viajaram de novo pela sua pessoa, avaliando, calculando; pareceu-lhe que eles tomaram uma decisão sem terem trocado uma palavra. O silêncio tornou-se desconfortável. Sam mexeu um pé.
— Eles não te compreendem — disse ele para Thorvald. — Faz sinais com as mãos. Dormir, comer, sabes como é. Gestos simples.
— O meu nome é Einar. — Parecia, no fim de contas, que compreendiam; o homem mais velho falou com um sotaque acentuadamente nórdico. Os olhos eram encovados e a sua expressão cautelosa. — A mulher — continuou ele, olhando para Thorvald. — Tua mulher? Tua irmã?
Thorvald pestanejou; apesar de ter a resposta pronta, ficou sem saber o que responder.
— Nossa amiga e parente — disse Sam. — Sob a nossa protecção. Queremos reparar o barco e regressar a casa. Mais nada. Fomos afastados da nossa rota, uma grande tempestade a sudeste.
— Tens madeira para a reparação? — perguntou rudemente um dos homens mais novos.
— Talvez não tenhas compreendido — disse Thorvald. — A jovem senhora precisa de descanso e de roupa seca...
Foi naquele momento que Creidhe sentiu o mundo a girar e, por um momento, a escuridão apoderou-se dela. Acordou nua por baixo de uns cobertores, o que era de certo modo alarmante, se bem que fosse uma bênção estar seca e quente. A jovem manteve-se imóvel, consciente das dores nas mãos, nos braços e nas costas; o tempo que estivera ao leme do Sea Dove castigara-lhe muito o corpo. Por todos os antepassados, se lhe doía tanto o corpo por ter estado ao leme, como estariam os outros depois de terem remado daquela maneira? Creidhe virou-se cuidadosamente e abriu os olhos. Estava deitada numa enxerga rude; fosse o que fosse que recheava o colchão, não era coisa cómoda. Por cima da sua cabeça os suportes do telhado de uma cabana, madeira apanhada à deriva segurando um entrançado de junco coberto de turfa. O local era escuro. A jovem virou a cabeça. Era um pequeno quarto de dormir; havia vários espaços para camas toscamente limitados por lajes de pedra, mas o único ocupante para além dela própria era uma anciã sentada num banco alto junto da entrada tapada por um pano, fiando com roca e fuso à luz de uma simples lanterna, não mais do que uma tigela com um pavio a flutuar no óleo. O brilho da lâmpada acentuava-lhe as rugas profundas do rosto e das mãos, firmes no seu trabalho e dos olhos encovados. Creidhe tossiu.
— Desculpe, onde estão as minhas roupas?
A mulher virou-se para ela; as suas mãos não detiveram o movimento da roca nem o enrolar da lã. A sua expressão era nula, de total incompreensão.
— Roupa — repetiu Creidhe, sentando-se cuidadosamente com o cobertor enrolado em redor do peito. — Túnica, calças, sapatos? As minhas coisas? — A jovem tentou ilustrar o que queria dizer com uma mão enquanto segurava no cobertor com a outra.
A roca parou de rodar. A anciã fez um gesto brusco com o queixo na direção dos pés da cama e afastou o olhar.
— Oh — disse Creidhe um tanto desconcertada. Havia ali um pequeno monte de roupa, era verdade, mas não era a sua, nem a de Thorvald que usava quando chegaram, nem sequer a que tinha na sua trouxa. De fato, o seu saco não estava à vista; tanto quanto sabia, ainda estava metido por baixo do convés do Sea Dove. Um arrepio percorreu-a.
— Preciso do meu saco! Onde estão as minhas coisas?
Não houve qualquer reação. Muito bem, teria de se meter naquelas roupas e sair em busca dos seus pertences. Não ia permitir que aquela gente obstinada pusesse as mãos na sua Jornada.
Abandonando a tentativa de modéstia, Creidhe levantou-se e vestiu-se, consciente da mordedura do frio que lhe provocava pele-de-galinha e consciente dos olhos encovados da anciã perscrutando cada um dos seus movimentos. Parecia que nunca tinham visto uma rapariga antes pela maneira como olhavam para ela. Bem, era uma terra diferente; costumes diferentes, modos diferentes. Vestiu a roupa que estava aos pés da cama: uma camisa, um vestido de pano cinzento grosseiro nada elegante mas quente e um espesso xale de lã. As botas de pele de ovelha eram grandes, mas, para já, teriam de servir.
— Pente? — perguntou ela sem muita confiança, correndo as mãos pelos cabelos emaranhados, sujos e cheios de sal. A fita que lhe segurava a espessa trança tinha desaparecido na tempestade; só uma boa lavagem com sabão, seguida por uma escovadela forte e dolorosa lhe voltaria a pôr os cabelos em bom estado. — Água? Sabão?
A anciã grunhiu de modo desaprovador e virou de novo a cabeça com um safanão. Aquilo estava a tornar-se irritante. Havia um pedaço de tecido cinzento em cima da cama, mais fino e mais suave do que o tecido do vestido. Perante o olhar sem expressão de Creidhe, a anciã parou de fiar e gesticulou, tornando evidente o que pretendia. Pega nisso, cobre-te, tapa o cabelo. A mulher tinha o sobrolho franzido; não era possível saber por que razão.
— Pente? — Creidhe gesticulou, fazendo os possíveis para parecer bem-educada e amigável. — Por favor?
A velha olhou para ela, irritada e cuspiu uma única palavra incompreensível com tal intensidade que Creidhe vacilou. Muito bem; tinha um pente no seu saco. Oxalá não tivesse sido levado pelo mar naqueles últimos dias de tempestade. Esperava sinceramente que não, porque perder a Jornada seria uma coisa muito cruel.
— Vou sair — disse Creidhe o mais calmamente que conseguiu. — Preciso do meu saco e quero ver os meus amigos. Obrigada por...
Não sabia como terminar aquilo. Por ter tomado conta de mim? A jovem pôs o pé na soleira, mas a mulher já lá estava, alarmantemente rápida para um ser tão velho, de braços abertos para lhe impedir a passagem.
— Eu quero sair. — O coração de Creidhe batia com toda a força. — Os meus amigos, preciso de falar com eles.
A velha abanou a cabeça, repetindo o gesto feito anteriormente: Tapa o cabelo. Claro, pensou Creidhe, podia, simplesmente, afastá-la do caminho, mas algo, nos olhos escuros brilhantes como contas, lhe disse que não o devia fazer. A jovem não esquecera os homens com o olhar avaliador e com as lanças. Creidhe recuou para a enxerga, pegou no tecido e envolveu negligentemente os cabelos com ele. Fora, realmente, apenas há dias que usara o seu melhor vestido azul de linho com um galão prateado e dançara num casamento com fitas de seda nos cabelos?
— Já posso sair? — perguntou ela calmamente, fazendo os possíveis por parecer reservada e tímida, se bem que sentisse uma ira lenta a subir-lhe pelo corpo acima.
A velha não respondeu, mas agarrou-a pelos braços e obrigou-a a virar-se. Aquelas mãos velhas, duras como as raízes de uma árvore, meteram-lhe os cabelos por baixo do lenço, fazendo desaparecer cada mecha e apertou o conjunto com uns alfinetes de osso tirados das profundezas de uma algibeira. À frente, o lenço estava puxado para baixo e as madeixas de cabelos escondidas dentro dele. Creidhe permaneceu silenciosa, sentindo-se corar de indignação. Tinha as palavras na boca: Sabes de quem sou filha? Mas estava numa ilha distante, um lugar selvagem no fim do mundo. Ali nunca tinham ouvido falar do bravo e nobre guerreiro Eyvind que levara a paz às Ilhas Brilhantes, nem da encantadora Nessa que personificara as esperanças e a identidade do seu povo durante os tempos sombrios. Para aquela gente, Creidhe e os seus companheiros eram apenas viajantes atirados pelo mar para o lugar errado: uma maçada. Tinha de estar agradecida pela ajuda que lhes tinham oferecido. Sentia-se quente e seca e dormira um pouco. Finalmente, a anciã afastou-se e deixou-a sair.
Creidhe atravessou um pequeno pátio onde pastavam algumas galinhas magricelas e, seguindo o som de vozes, entrou numa cabana maior. Lá dentro estavam alguns homens em redor de uma lareira. Thorvald e Sam estavam a comer. Pelo menos, Sam tinha um osso de carneiro na mão e a boca cheia; havia um tabuleiro em cima de um banco ao lado de Thorvald, mas Creidhe percebeu, pelo seu aspecto pálido e distante, que ainda lutava contra a dor de cabeça, incapaz de comer. A jovem aprendera a ler-lhe as expressões ao longo dos anos, desde a infância. Naquele momento, ele devia estar quase cego pela dor, mas fazia os possíveis para não dar mostras de qualquer fraqueza perante aquele pequeno grupo de homens da ilha reunidos para partilharem aquela refeição e observar os estranhos subitamente chegados ao seu meio. E havia outra coisa; Creidhe pensara nela quando encontraram aqueles três homens no carreiro da praia. A partir daquele momento, Thorvald não olharia para um homem de meia-idade sem pensar: Tu és o meu pai? O teu nome é Somerled? Por todos os antepassados, aquilo ia ser uma estadia de tortura se insistisse no silêncio dela e de Sam e mantivesse o seu até ter a certeza. Mas Thorvald era assim; nunca ia pelo caminho mais fácil.
Na lareira rude ardia um pequeno fogo alimentado por esterco de animal. Creidhe avançou para se colocar em frente dele, decidindo que não se deixaria intimidar pelo olhar selvagem dos homens ali reunidos, nem pelo fato de não haver uma única mulher no meio deles. Talvez aquele fosse apenas um local de reunião de pescadores; as suas aldeias eram, provavelmente, mais longe, em qualquer parte mais hospitaleira da ilha, em vales escondidos, em terrenos verdejantes e ondulantes como os das Ilhas Brilhantes. A jovem estremeceu, recordando as falésias íngremes, as vagas poderosas, os picos altos e escarpados que tinham visto do Sea Dove. Os rostos fechados daqueles homens, os seus olhos cautelosos, falavam de uma vida de luta, de uma existência gravada pela face dos elementos. Subitamente, a sua casa pareceu-lhe muito, muito longe. Talvez estivesse apenas um pouco assustada. Não podia ser de maneira nenhuma; estava ali para ajudar Thorvald, não para o impedir de fazer o que ele queria.
— Boa noite. — Creidhe usou um tom cortês e confiante enquanto estendia as mãos para as aquecer. — Obrigada por nos terem dado abrigo.
Seguiu-se um silêncio, como se tivesse dito uma coisa espantosa ou totalmente inapropriada. Então, um dos homens virou-se para Thorvald e murmurou algo acerca de comida e bebida.
— Queres comer alguma coisa, Creidhe? — perguntou Thorvald com a voz constrangida que a dor de cabeça lhe impunha.
Creidhe olhou para o homem que falara.
— Obrigada — disse ela. — Apenas um pouco. Tenho estado doente. — Na verdade, sentia uma fraqueza nas pernas e uma tontura na cabeça.
— Toma — disse Sam, movendo o banco para arranjar espaço para ela. — Senta-te, pareces esgotada. — O jovem olhou para o lenço apertado em redor da cabeça, mas não fez qualquer comentário.
— Obrigada. — Creidhe sentou-se; o jovem no outro lado afastou-se como um animal selvagem e o que estava de pé, por trás, também se afastou, como se ela lhes pudesse transmitir alguma doença. Talvez cheirasse mal; falta de água para se lavar, não podia fazer nada. Todos os homens estavam a olhar para ela; aquela expressão estranha em todos os rostos, como se o menor movimento da parte dela fosse do maior interesse. O homem mais velho, Einar, tirara alguma carne de um pote e colocara-a numa tigela; não a passou a Creidhe, entregando-a antes a Thorvald com um movimento de olhos na direção dela.
— Toma — disse Thorvald, colocando-lha nas mãos. Os seus olhos desafiaram-na a falar da dor de cabeça. Ela manteve-se calada. O guisado tinha uma cor estranha, bolhas de gordura e não havia, sequer, uma colher, ou um pedaço de pão para o levar à boca. Os homens continuavam a olhar para ela.
— É melhor comeres — aconselhou-a Sam. — Eles dizem que vamos sair daqui amanhã. Temos de ir ver o chefe deles; ver se descobrimos madeira para o Sea Dove. Estes tipos estão de passagem a caminho de um lugar chamado Fiorde do Conselho. Foi sorte termos aparecido quando eles estavam aqui. Toma.
O jovem vasculhou na algibeira e tirou uma pequena colher de osso de baleia; sempre fora um tipo cheio de recursos. Creidhe comeu em silêncio, sentindo a pressão de muitos olhos na sua pessoa. Não parecia haver razão para tanta descortesia.
— Diz-me uma coisa — disse Thorvald após alguns momentos — quantos vivem nestas ilhas e onde estão? Vocês falam como nós; devemos ter os mesmos antepassados. Há quanto tempo vivem aqui? De onde vem o vosso povo?
Einar estava sentado em frente de Thorvald, usando um dedo para rapar o molho do seu prato.
— Fazes muitas perguntas — observou ele, franzindo o sobrolho.
— Não te quero ofender — disse Thorvald cuidadosamente. — Se eu tivesse parentes nestas ilhas gostaria de ter a oportunidade de os conhecer, mais nada. Tenho a certeza de que os meus amigos pensam do mesmo modo. Algum de vocês veio de um lugar chamado Ilhas Orcades, conhecido também por Ilhas Brilhantes? Há aqui homens da Noruega? Do Ulster?
— Não temos nada com isso, é evidente — murmurou Sam, tirando os últimos pedaços de carne do seu osso. — Mas é interessante. Boa refeição, esta; a melhor que tive em muitos dias. Como é a pesca nestas águas? Aposto que tem correntes traiçoeiras. O que é que apanham mais? Bacalhau? Peixe vermelho?
Alguns dos homens começaram a falar ao mesmo tempo; aquele tópico, aparentemente, era ao mesmo tempo seguro e interessante. Em menos de nada, Sam era o centro de uma conversação animada que incluía muitos movimentos de mãos, se bem que não houvesse sorrisos; aqueles homens tinham um aspecto sinistro. Creidhe fez um esforço para comer. A qualidade da cozinha não tinha nada a ver com a sua, mas não se podia dar ao luxo de ser exigente. Só esperava que lhe ficasse no estômago.
— Thorvald — sussurrou ela no meio daquela conversa acerca de barcos, redes de pesca e ventos. — Estás com um aspecto terrível. Diz-lhe que precisas de te deitar.
— Eu estou bem. — O jovem estava sentado perto dela, encostado à parede de olhos fechados. O seu rosto estava branco como a cal.
— Nesse caso, digo-lhes eu. Estás a ser estúpido.
— Estou bem, Creidhe. Come.
A carne era rica e gordurosa; talvez, ali, as ovelhas conseguissem criar uma camada extra de gordura para as ajudar a suportarem o frio que naquele mesmo momento entrava naquela pequena sala. O vestido quente, o xale de lã, o lenço e as botas de pele de ovelha não conseguiam aliviar os tremores de Creidhe. A jovem tinha sede, uma sede terrível. Havia um jarro na mesa mais distante, talvez de água, mas no meio daquele barulho de vozes ninguém ia ouvir pedindo cortesmente uma bebida. Creidhe começou a levantar-se para o ir ela mesma buscar, mas surgiu na sua frente o mesmo rapaz que se afastara quando ela entrara, estendendo timidamente uma mão e oferecendo-lhe uma taça. A sua mão tremia tanto que a água transbordou; que tinha ela para causar reações tão estranhas?
— Obrigada — disse Creidhe, sorrindo-lhe e segurando na taça. O jovem curvou a cabeça com um ligeiro sorriso nas feições e regressou ao seu canto. Se os outros podiam fazer perguntas, decidiu Creidhe, também ela podia.
— Onde estão as mulheres desta comunidade? — A pergunta foi feita a Einar, que não se juntara à conversa sobre a pesca, mas que mantivera a sua atenção em Thorvald e nela mesma, quase como se temesse que ambos fugissem, se bem que não houvesse para onde fugir. — Elas não comem convosco à noite?
Os olhos duros de Einar olharam para ela. O homem abanou a cabeça e depois virou-se para Thorvald.
— Amanhã — disse ele concisamente. — Amanhã vamos para Água Brilhante. O governador encontrar-se-á lá conosco. É a ele que compete responder às vossas perguntas, não a mim.
— O governador? — perguntou Creidhe. — Que governador?
Nem por aquela pergunta mereceu uma resposta direta; o tipo continuava a responder a Thorvald, como se ela fosse invisível.
— O governador das Ilhas — disse ele gravemente. — O líder do povo dos Facas Longas. Os estrangeiros devem, todos, ser vistos por ele; será ele a decidir do vosso destino.
A dor de cabeça foi responsável por Thorvald não ter reagido àquela declaração. Foi Sam que avançou, franzindo o sobrolho, abandonando abruptamente a conversa acerca de redes de pesca e marés.
— Destino? Que queres dizer com isso? Tudo o que queremos é alguma madeira e um telhado enquanto reparamos o nosso barco. Pagaremos por isso, como já te disse; com trabalho, se for preciso. Ajudar-vos-emos em tudo o que for necessário. Ninguém está aqui a falar de destino.
— É um nome estranho, povo dos Facas Longas — observou Creidhe. Não havia maneira de lhe pararem os tremores, que não eram inteiramente devidos ao frio. — Quem são eles?
Um instante mais tarde teve a resposta, porque aquele nome fora dito com um certo orgulho e via as armas que os homens usavam à cintura, todos eles, apesar de aquilo parecer apenas um posto avançado de pesca. Com as suas rígidas expressões e peles com cicatrizes, aqueles ilhéus tinham inteiro direito ao título.
— Esse governador — continuou Sam. — Ele tem nome?
Einar cuspiu para o chão de terra; o homem estivera a tirar os restos de carne de carneiro dos dentes com uma lasca de osso.
— Faz as tuas perguntas amanhã. Partimos cedo; podeis dormir ao pé de nós. Subida íngreme. A rapariga é capaz?
Era impossível continuar a ignorar a falta de educação do homem.
— Se te estás a referir a mim — disse-lhe Creidhe num tom gelado, levantando-se — eu tenho ouvidos e língua e sou perfeitamente capaz de usar ambas as coisas. Sou capaz de ir onde Thorvald e Sam vão e tenho intenção de o fazer. Ora, aqui o meu parente tem uma enorme dor de cabeça e precisa de se deitar. E queremos ir ao nosso barco buscar as nossas coisas...
— Não! — disse Einar de modo cortante. — Não é seguro para ti...
O homem pôs-se de pé e deu alguns passos na direção dela. Talvez não tivesse intenção de a tocar, mas ela recuou e, ao mesmo tempo, Sam colocou o seu grande corpo entre os dois. Thorvald abrira os olhos, mas parecia demasiado aturdido para perceber o que estava a acontecer.
— Vamos, vamos — disse Sam em tom neutro — não é preciso isso. Terras diferentes, costumes diferentes, eu sei. Mas nós não gostamos de homens que maltratam mulheres, lá nas Ilhas Brilhantes. Mantém as mãos afastadas de Creidhe, se sabes o que é bom para ti. Ela é descendente de reis: é uma senhora.
A atenção do ilhéu virou-se para Sam, se não para as suas palavras. Os seus olhos fixaram-se nos maxilares quadrados e no corpo robusto do jovem, nos seus braços musculosos e viu determinação por baixo do pedaço de tecido que ainda lhe ligava a cabeça ferida.
— Tu és guerreiro? — perguntou.
Creidhe viu Sam abrir a boca para responder que não, que era apenas um pescador que não queria lutar com ninguém, mas não teve oportunidade. Thorvald já estava de pé com uma mão encostada à parede para se manter firme.
— É evidente que sim — anunciou ele com uma firmeza que contrastava com a sua alarmante palidez. — Na terra de onde vimos, nenhum miúdo chega aos doze anos sem saber manejar uma lança e uma espada. Um povo ilhéu, se não souber defender-se, pode esperar a aniquilação.
— Ótimo — disse Einar após uma pausa considerável, durante a qual várias expressões conflituosas passaram pelas feições habitualmente plácidas de Sam. Isso vai agradar ao governador.
A ocasião parecia adequada para aproveitar a pequena vantagem, apesar de as palavras de Thorvald terem perturbado Creidhe; chamar-lhes um exagero era pouco. A jovem chamou a si toda a sua coragem.
— Eu quero o meu saco, o que deixei no barco. E nós precisamos de uma cama para Thorvald, ele está doente. E a promessa de que estaremos em segurança até chegar a... a...
— Água Brilhante, não é? — Thorvald disse o nome numa voz que não era mais do que um suspiro. O esforço anterior parecia ter-lhe tirado as poucas forças que lhe restavam.
— Dormir — disse o homem, apontando para o fundo da sala, onde uma porta se abria para um espaço maior. Alguns dos homens estavam a sair por ela; os seus bocejos sugeriam que fora um dia duro. Um deles quase dormitava junto da lareira. A sala fria ficou ainda mais fria. A anciã regressou e ficou à porta como um mensageiro da Terra mãe, com os seus olhos encovados e as mãos enrugadas. — Dormir — disse o homem de novo, fazendo um movimento com a cabeça na direção da velha. — Em segurança aqui. — Era uma espécie de resposta, mas não o suficiente.
Creidhe agarrou-se ao braço de Sam.
— Sam, diz-lhe! Eu preciso das minhas coisas. — Parecia um capricho de rapariga e uma petulância e ela não queria ser desagradável; o seu papel era ajudar Thorvald, não levantar obstáculos. Não era o pente que era importante, ou as roupas limpas, ou ainda os objetos úteis. Era a Jornada; não podia permitir que aquela gente lhe pusesse as mãos em cima.
— Não te aflijas, Creidhe — disse Sam. — Não tenciono ir para a cama sem dar uma vista de olhos ao Sea Dove. Ainda há luz suficiente, nesta altura do ano. Eu trago-te as coisas de que precisas, se as conseguir encontrar.
Fiel à sua palavra, o jovem estava de regresso pouco depois à porta da pequena cabana que abrigava Creidhe e o seu carrancudo guardião. Antes que Sam pudesse abrir a boca, a velha tirou-lhe o saco das mãos e enxotou-o.
À luz da mesma minúscula lâmpada que iluminara o ato de fiar da anciã, Creidhe tirou as suas roupas encharcadas, o novelo de lã e as agulhas e os outros haveres para os pôr a secar o melhor possível nas prateleiras vazias das camas. A Jornada parecia incólume e estava totalmente seca. As outras coisas estavam numa confusão, tal como o seu cabelo. No entanto, sentia-se satisfeita por os seus pertences terem sobrevivido; se não os tivesse guardado tão bem, ter-se-iam, sem dúvida, perdido na tempestade.
A jovem lutou para passar o pente nas madeixas emaranhadas. Pareceu-lhe que tentar desatar os nós era como conseguir informações úteis daquela gente estranha e pouco faladora. Ela sabia que a velha a compreendia, tal como os homens. No entanto, só resmungava e franzia o sobrolho e Einar parecia acreditar que as mulheres tinham pouca capacidade de compreensão. Zangara-se rapidamente quando ela o desafiara. Quanto aos outros, com os seus olhares nervosos e de lado, aborreciam-na quase tanto como a rudeza de Einar. Não gostava daquilo. Não gostava mesmo nada, mas quando conhecessem o governador das Ilhas, provavelmente outro pescador cheio de importância, dir-lhe-ia o que pensava, com ou sem Thorvald. O seu pai ensinara-lhe que a honestidade era o melhor caminho; a sua mãe ensinara-a a ser corajosa e franca. Como podia ajudar a causa de Thorvald se se deixasse intimidar?
— Ai! — encolheu-se Creidhe quando o pente encontrou outro nó. A tarefa estava quase acabada; de manhã usaria o lenço sem discutir para evitar que o vento lhe emaranhasse de novo os cabelos. A jovem bocejou. Que lugar aquele, tão abandonado. Era impensável que o pai de Thorvald tivesse preferido ficar ali, se podia ter ido para outro lado qualquer. As pessoas eram tão caprichosas e estranhas como os ventos e as marés, impossíveis de compreender. Esperava que encontrassem Somerled rapidamente, ou pelo menos que soubessem o que lhe tinha acontecido. Nada no mundo a faria ficar naquelas ilhas um instante mais do que o necessário.
Uma subida íngreme: em parte era, mas era, também, uma longa caminhada. Thorvald já se sentia melhor e achou que estava a dar uma imagem de alguma força ao fazer um esforço para acompanhar o passo rápido dos ilhéus, apesar de saber que devia estar a ser uma tarefa difícil para Creidhe com as suas botas grandes de mais. O jovem achou que, para sobreviver ali, era preciso ganhar rapidamente o respeito daquela gente. Eles percebiam de ventos, de marés e de peixe e admiravam a força: a única coisa que os impressionara fora a rápida defesa de Creidhe por parte de Sam. Creidhe. Por todos os deuses, pensou Thorvald enquanto observava a sua luta obstinada para acompanhar os homens que trepavam por aquele carreiro alcantilado e escorregadio, que lhe dera para vir com eles? Premonições e sentimentos vagos não eram base para uma viagem daquelas. Certamente que ela sabia isso; sempre fora uma rapariga prática. A sua presença era mais um obstáculo do que uma ajuda; ia causar todo o gênero de complicações com aqueles ilhéus, disse ele para si próprio. Tudo nas suas maneiras gritava que se sentiam pouco à vontade com a sua presença e, pior ainda, sentia que ela estava assustada apesar da sua manifestação de confiança. Conhecia-a bem; vira a mudança no seu olhar quando aquele homem, Einar, quase a tocara. A situação não era já suficientemente difícil com o Sea Dove danificado e eles próprios sob escolta armada? Como podia continuar com a missão a que se dedicara se tinha constantemente de se preocupar com Creidhe?
Pararam num pequeno pedaço de terra plana perto do topo de uma secção particularmente íngreme do carreiro. De um lado, o declive mergulhava no abismo, ao passo que do outro subia bruscamente. Viam-se algumas ovelhas esguias a pastar, inconscientes do perigo de queda, se bem que se mantivessem do lado de fora das crias. Os homens passaram em redor uns odres com água; alguns acocoraram-se na beira do carreiro e outros sentaram-se nas rochas, distendendo as pernas. À distância, muito longe, via-se uma coluna de fumo. Por baixo via-se um lago cintilante, largo e tranqüilo sob o céu claro, as suas margens subindo, alcantiladas, até umas montanhas vestidas de verde e uns picos rochosos e nus. Tinham trepado o suficiente para ver até longe para oeste, onde uma longa e estreita baía parecia ter sido cortada por entre umas falésias escuras. Havia mais ilhas na sua boca; uma pequena, outra incrivelmente íngreme não muito longe e outra, mais distante, que parecia usar um manto de nuvens naquele claro dia de Primavera.
— Fiorde do Conselho — disse Einar, apontando para oeste.
— A aldeia principal do teu povo é ali? Uma casa do conselho, onde pode ser convocada uma Assembléia? — perguntou Thorvald. O jovem vira do Sea Dove que havia muitas ilhas, espalhadas para norte e para sul, apesar de achar que aquela ilha vestida de nuvens devia ser o ponto mais a oeste. Guerreiros. Teriam medo de uma invasão, ali? Certamente que não; o lugar era demasiado remoto para atrair atenções indesejadas. Além disso, era mais desabrigado do que se poderia imaginar; que haveria ali que valesse a pena? Era claro que o perigo também podia vir de dentro. Aquele domínio devia conter muitas aldeias, cada uma com os seus habitantes e códigos de conduta. Mas, como seria possível sustentar uma disputa séria naquele terreno tão agreste? Quase não se via uma única parcela de terra plana. Eles não precisavam de guerreiros, precisavam de criaturas lendárias que pudessem voar como águias ou nadar como focas. — A tua casa? continuou ele.
— O povo dos Facas Longas vive aqui na Ilha das Tempestades, na Ilha das Torrentes e na Ilha de Leste — disse Einar, abrangendo tudo com uma mão. — Mais algumas a norte. E a sul, as outras.
— Outras?
— Um flagelo; uma raça maldita. — Aquelas palavras foram ditas em voz baixa, como se até a menção do nome fosse um perigo. — Aqueles-Cujo- Nome-Não-Se-Diz.
Thorvald sentiu arrepiarem-se-lhe os pêlos do pescoço.
— Não... não são humanos? — Pergunta estúpida; o tipo de pergunta que faria uma rapariga, não um homem que se declarara ousadamente um guerreiro ainda não havia muito tempo.
— Não vou falar disso aqui — murmurou Einar. — Não é seguro. Estamos em guerra; não há tempo para conselhos. Vamos, temos de continuar.
Thorvald pôs a sua trouxa ao ombro e seguiu Einar. O carreiro, ali, era íngreme, subindo para contornar a encosta acima do lago; a alguma distância à frente, caía de novo na direção do que parecia ser uma pequena aldeia. Sam caminhava perto da frente da fila. Thorvald reparou que o amigo transportava tanto o saco de Creidhe como o seu, ao mesmo tempo que mantinha uma viva conversação enquanto continuava. A Thorvald doíam-lhe as pernas e as costas ainda sentiam a tensão daquele último e desesperado esforço nos remos. As mãos também lhe doíam, se bem que um tipo chamado Skolli as tivesse untado no dia anterior com uma espécie qualquer de gordura malcheirosa, o que parecera ter ajudado um pouco. O jovem manteve a mente fixa no caminho na sua frente. Governador das Ilhas. O título parecia possível para um homem que possuíra, em tempos, o desejo ardente de ser rei. Ensaiou o que talvez dissesse e as perguntas que faria. Pensou nas informações que poderia fornecer. Não muita coisa: até o nome da sua mãe poderia ser de mais. Talvez devesse fazer-se de parvo e esperar que Sam e Creidhe mantivessem as bocas caladas quando fosse preciso. Talvez fosse melhor deixar que fosse Somerled a falar. Se fosse Somerled. Conseguiria ele descobrir alguma coisa? Haveria alguma coisa no sangue que dissesse este é o meu pai, este é o meu filho, um reconhecimento instantâneo para além da voz, da aparência, coisas prováveis e lógicas? O jovem estremeceu. Em breve teria a resposta e talvez lamentasse o impulso que o arrastara até ali. E se lhe saísse um monstro?
Ouviu-se um súbito e cortante grito dos homens atrás e abaixo de si. A fila parou abruptamente, estendendo-se ao longo do estreito carreiro. Thorvald virou-se e o coração subiu-lhe à boca. Creidhe saíra da pista. Estava numa minúscula plataforma saliente, uma superfície escorregadia, suficientemente grande apenas para sustentar os seus pés. A jovem olhava para oeste, para o mar, os olhos fixos naquela longínqua ilha coberta de nuvens como se ela tivesse o poder de a puxar através do ar na sua direção. O menor movimento e Creidhe mergulharia no precipício, indo esmagar-se nas rochas protuberantes ou afogar-se nas águas do lago. O homem imediatamente atrás dela gritava-lhe que tivesse cuidado; o outro à sua frente corria para ela. A jovem estendeu os braços, não para pedir ajuda mas como se quisesse voar, como se quisesse abraçar o ar que a separava da visão que estava a ter, uma coisa qualquer assombrosa que mais ninguém conseguia ver. Thorvald sabia que ela cairia no momento em que lhe tocassem.
— Não! — gritou ele num tom urgente mas baixo, como que para não a assustar. — Não, assim não! Eu vou lá!
O jovem começou a descer o carreiro; os ilhéus encostaram-se uns aos outros para o deixar passar. O seu coração batia com toda a força e tinha a testa cheia de suor gelado. Ele estava ao corrente daqueles transes e do perigo de os quebrar abruptamente. Havia mulheres sábias na família de Creidhe, sacerdotisas; não se crescia na vizinhança de tais pessoas sem ter uma compreensão do poder de uma vidente e da devastação que ele podia provocar. Thorvald prosseguiu cuidadosamente, reprimindo o instinto de correr. Por trás de si podia ouvir o som de Sam a descer — quem mais desceria daquela maneira, tão depressa, atirando com uma chuva de pedras pelo precipício abaixo? — se bem que não conseguisse imaginar como poderia ele ajudá-lo.
— Para trás — disse ele por cima do ombro. O jovem estava, agora, muito perto de Creidhe e aproximava-se lentamente, fazendo os possíveis para que a sua sombra não batesse no rosto dela e para não a assustar com movimentos súbitos e sons inesperados.
— Creidhe? — Thorvald manteve a voz baixa, calma. — Creidhe? Que estás a ver?
O rosto dela estava virado para longe, os olhos sempre fixos naquela ilha distante, misteriosa, do outro mundo, com os seus declives cinzento-azulados, violeta-escuro e verde-musgo, erguendo-se graciosamente de uma vasta extensão de água envolta em neblina. Um manto branco agarrava-se aos pontos mais altos.
— O que é, Creidhe? Que estás a ouvir? Diz-me. Sou o Thorvald. Diz-me.
O jovem aproximou-se de lado, colocando os pés silenciosamente na parede rochosa. Era tão fácil enganar-se, precipitar-se para a agarrar e falhar por um cabelo; era capaz de a ver a cair com os olhos muito abertos e aterrorizados, os cabelos louros como um estandarte, o vento arrebatando-lhe o último grito.
— Creidhe?
Atrás de si, Sam parara e mantinha-se imóvel. Os outros homens estavam silenciosos. Até as gaivotas, que tinham seguido os seus passos circulando e gritando, se tinham calado; era como se a ilha inteira tivesse prendido a respiração.
— Creidhe? — Thorvald avançou mais um passo. Já estava suficientemente perto para lhe tocar, mas não o faria, ainda não. O jovem podia ver-lhe os olhos, grandes e estranhos; talvez fosse possível ter um vislumbre da visão se olhasse profundamente para eles. A jovem tinha as faces coradas; o vento libertara-lhe alguns cabelos do lenço que lhe tapava a cabeça e fazia-os flutuar em frente da testa. Havia uma espécie de auréola nas suas feições que aterrorizou Thorvald; era como se ela pertencesse inteiramente a outro mundo, um mundo a que ele não tinha acesso. O jovem viu-a exalar um profundo e trêmulo suspiro e depois outro e viu a mudança no seu rosto, a dúvida e a confusão sobrepondo-se à visão enquanto ela regressava a si. Creidhe ergueu as mãos para tapar os olhos e iniciou um passo para a frente. Então, ele agiu, mais depressa do que pensava ser capaz, agarrando-a pela cintura e puxando-a para trás, sã e salva. O jovem podia senti-la tremer; chorava, agora, escondendo o rosto com ambas as mãos como se, não podendo ver o que estava na sua frente, pudesse regressar ao estranho mundo que a arrebatara. Thorvald segurou-a com força pelos braços, não fosse ela afastar-se dele e precipitar-se. Os ilhéus aproximaram-se, falando todos ao mesmo tempo. O tom parecia ter um tom de aprovação. Thorvald gostaria de merecer a sua aceitação de uma maneira mais fácil.
— Creidhe! Acorda! Vamos! — O jovem abanou-a ligeiramente; a sua posição ainda era precária e agora que o perigo era menor sentiu uma súbita zanga substituir o terror. Thorvald engoliu as palavras que lhe vieram à boca porque, no fim de contas, ainda tinham de chegar à aldeia. — Já chega, Creidhe. Enxuga o rosto e continua. Estás a atrasar-nos.
Trêmula, ela fez o que lhe mandavam apesar de lhe correr pelas faces um rio de lágrimas. O jovem não percebeu se eram devidas à visão ou à sua perda. Talvez não passasse de um artifício. As mulheres faziam aquilo por razões muito femininas.
— Vamos — disse ele, empurrando-a na sua frente ao longo do carreiro.
— Segura na minha mão. — A voz de Sam soava de novo estranha, áspera. — Já falta pouco. Pelo menos, é o que dizem. É uma ilha bonita. Não me importava de lá ir para dar uma olhadela.
— Ah! — A exclamação veio de um homem entroncado com as feições marcadas pelo tempo, com uma barba sedosa, que seguia ao lado de Sam. — A Ilha das Nuvens? Não tenhas pressa. É uma travessia terrível. Chamam-lhe a Corrente dos Loucos. É uma sorte conseguir fazê-la uma vez por ano, na altura da caçada.
— A sério? — perguntou Sam, caminhando firmemente ao longo do carreiro com os dois sacos às costas e uma mão estendida para trás, segurando na mão de Creidhe para a guiar. — Nesse caso é desabitada? Parece um lugar agradável. Mas estranho.
— É estranho sim senhor. É onde moram os loucos e os feiticeiros. Chamam àquele pico a Velha. Ou antes, a Bruxa. Ninguém se aproxima da Ilha das Nuvens. É proibido, até para os que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se- Diz. É um lugar de morte; amaldiçoado.
— Exceto em altura de pesca — acrescentou outro homem.
— Aquela ilha come homens — disse o primeiro. — Chupa-os e deita fora os restos. A tua mulher que afaste os olhos daquele lugar; é demoníaco. Nós não vamos lá.
— Exceto em altura da caçada.
— Estou a ver — disse Sam pensativamente. — E quando é que é a altura da caçada?
Mas não recebeu nenhuma resposta. Einar berrara uma ordem lá da frente; os seus homens calaram-se e desceram lentamente o resto do caminho até o terreno se tornar plano na margem do lago e surgir um aglomerado de casas com telhado de turfa, apertadas entre um ribeiro turbulento e o monte vestido de verde. O Fiorde, com a sua vista para a misteriosa Ilha das Nuvens não se podia ver dali. Creidhe mantinha os olhos no carreiro, seguindo os passos de Sam. Se ela tivesse feito aquilo durante a viagem toda, pensou Thorvald, carrancudo, tê-los-ia poupado a uma carga de trabalhos. Era estranho: ela nunca tivera visões, pelo menos que soubesse. Na verdade, Creidhe sempre fora uma pessoa prática, sensível, sempre ocupada com os seus bordados e a sua culinária, ao mesmo tempo que a sua irmã mais velha Eanna aprendia as coisas do espírito. Creidhe não entrava em transe nem saía dos carreiros como se esperasse ter asas. Esperava que não acontecesse de novo, ou a sua responsabilidade ainda seria maior. O seu coração ainda lhe batia descompassadamente; não devia ser tão forte como pensava. E estavam quase a chegar. Tinha de pôr os pensamentos em ordem; tinha de estar pronto.
— Lembrem-se — sussurrou ele para os outros dois. — Lembrem-se do que vos disse. Deixem a conversa para mim.
Já estavam em terreno plano e o carreiro era suficientemente largo para permitir que caminhassem lado-a-lado. Sam amparava Creidhe com um braço; ambos viraram a cabeça para ele. Thorvald viu, para sua surpresa, que o grande e corpulento Sam estava pálido como um fantasma. O rosto de Creidhe estava marcado pelos sulcos das lágrimas; a jovem parecia exausta e triste. Ambos olharam para ele e depois viraram-se continuando a andar. Havia alguma reprovação nos seus olhos. Que se passava com eles? Ele salvara Creidhe, não salvara?
Entraram na aldeia, se se podia chamar aldeia àquele conjunto decrépito de minúsculas cabanas, pátios estreitos e ruelas serpenteantes. Alguém fazia soar um sino no alto do monte; boas-vindas, talvez, para aqueles viajantes raros. Por que razão, nesse caso, lhe soava como um toque de aviso? Thorvald rangeu os dentes. Aquele lugar estava a afetá-lo negativamente e não podia permitir que isso acontecesse. Ele era o chefe daquela expedição e um chefe tem de ser forte. O jovem endireitou os ombros e ergueu a cabeça, dirigindo-se aos homens que os tinham levado até ali e fazendo com que a sua voz soasse firme e confiante: não era um pedido, era uma exigência.
— Levai-me ao governador destas Ilhas — disse ele. — Quero falar com ele.
Mas não seria uma coisa fácil, porque lhe disseram que não era possível ir até àquele potentado. Teriam, em vez disso, de esperar que ele aparecesse. Em seu devido tempo, disseram-lhe os homens da escolta, seriam mandados chamar. A rapariga iria para outro lado qualquer; não era apropriado ela ficar na mesma casa que eles. Sam e Thorvald protestaram. Creidhe não estava bem, precisava dos amigos junto dela e eles eram responsáveis pela sua segurança. Quanto à própria Creidhe, estava excepcionalmente silenciosa, agarrada ao seu saco com as duas mãos. O seu olhar era extremamente vago, como se ainda estivesse a ver os últimos fragmentos da visão. Finalmente, apareceu um par de mulheres e Thorvald, descansado quanto à sua aparência prática e terra-a-terra, permitiu que levassem Creidhe para uma das pequenas casas. Era menos uma coisa em que pensar.
Os dois homens foram conduzidos até uma casa um pouco maior e mais bem conservada do que as outras. Esperaram numa pequena antecâmara. Havia ilhéus em cada uma das portas, mas se era para evitar que entrasse mais gente, ou para impedir que os recém-chegados saíssem, não sabiam. Tentaram meter conversa com eles, mas foi inútil. Tudo o que Thorvald soube foi os seus nomes: o homem da barba sedosa era Orm; o outro, o mais novo, Svein. Trouxeram-lhes comida: um chouriço de sangue, rico e escuro e um prato com ovos. Os dois jovens agradeceram. Também lhes deram água; eles teriam preferido cerveja. Talvez aquela gente não a soubesse fabricar, porque não parecia haver terreno para cereais. Esperaram muito tempo e o dia foi passando. Tinham muito tempo para pensar: demasiado tempo. Por fim, Sam estendeu-se no chão com a cabeça no seu saco e adormeceu. De vez em quando, resmungava, talvez a sonhar com tempestades. Thorvald sabia que o seu amigo estava ansioso por causa do Sea Dove; custara-lhe muito deixá-lo sem proteção.
A noite estava a cair quando foram, finalmente, chamados. Os sinais tinham sido bons: tinham-lhes trazido água para se lavarem, mais roupas secas e um casaco quente para cada um. Mesmo assim, Thorvald recordou a conversa acerca do destino. Tinha de assumir o controle logo desde o princípio; não se podia esquecer de que aquela era a sua demanda e que tinha de fazer o melhor possível. Aquelas ilhas eram um teste. Nelas descobriria quem era. Talvez o seu pai estivesse ali. Talvez Somerled ainda fosse o mesmo homem, impiedoso, impulsivo, cruel. Talvez tivesse mudado. Poderia um homem mudar? Poderia ele próprio libertar-se de um passado sombrio e começar de novo? E, se assim fosse, não poderia o seu filho, também, esforçar-se deixando a sua marca no mundo, encontrar o seu destino e vocação? Thorvald estremeceu. Provavelmente, a verdade que iria descobrir só confirmaria aquilo de que já suspeitava: que o sangue do seu pai putrefato, o seu espírito irrecuperavelmente mergulhado na maldade. Que era esse o seu legado, uma sombra inelutável, tornando também Thorvald incapaz de boas ações e de pensamentos dignos. No entanto, pelo menos, ficaria a saber, de uma maneira ou de outra. Saberia a verdade.
— As minhas saudações. — O homem que se mantinha sob a lanterna da sala, à sua espera, não estava rodeado por cortesãos, por guerreiros, por pescadores ou gente da sua família. Tinha apenas um guarda com ele, um homem enorme com os ombros de um touro e uns olhos pequenos sempre alerta. Thorvald e Sam atravessaram a sala com dois ilhéus atrás de si. Thorvald reparou no teto baixo, na pequena lareira e na falta de tapetes nas paredes. Se aquele era o domínio do governador, era bem pobre ao lado da grande sala do conselho das Ilhas Brilhantes. Quanto ao homem propriamente dito, era suficientemente formidável. Olhava para eles de frente enquanto se aproximavam, avaliando com os seus olhos escuros e a boca transformada numa linha fina, não deixando transparecer nada. Era de estatura mediana e medianamente constituído, mas rijo e esguio. Estava na força da idade: os seus cabelos eram escuros como a asa de um corvo, com algumas mechas grisalhas nas têmporas e com as mesmas cicatrizes paralelas na face direita que tinham visto nos outros homens, um padrão de cinco linhas desenhadas com precisão. O traje que vestia não tinha nada de majestoso, era de simples lã e tinha um único enfeite formado por uma estreita orla com desenhos de cinzento-claro sobre cinzento-escuro. Os seus cabelos estavam atados atrás com uma fita do mesmo tecido. A impressão era austera. Os dois homens pararam a alguns passos dele. O grande guarda mexeu-se ligeiramente, os seus dedos movendo-se na direção do cabo do machado.
— E as nossas para ti — disse Thorvald, imitando o seu tom cortês. — És o homem a quem chamam o governador destas Ilhas?
— Meu senhor — disse Orm rapidamente num tom apologético — estes são os dois viajantes que deram à costa na Baía Sangrenta. A mulher...
— Podes sair. — O governador falou sem ênfase. Um momento mais tarde, os ilhéus tinham desaparecido; a obediência era, pelos vistos, automática e instantânea. O guarda-costas não se mexeu. — Por favor, sentai-vos. — O governador indicou o banco de pedra e sentou-se ele próprio num que se lhe opunha. — Os vossos nomes?
Sam abriu a boca, mas Thorvald foi mais rápido.
— Vimos das ilhas a sudeste, a que alguns chamam Orcades e outros Ilhas Brilhantes — disse ele sem nunca desviar o olhar do governador. — Como já dissemos àqueles que nos trouxeram aqui, fomos afastados da nossa rota e o nosso barco ficou danificado. O meu nome é Thorvald; o do meu amigo é Sam.
— Sam Olafsson de Stensakir. O barco é meu e eu estou ansioso por repará-lo e regressar a casa. Esperávamos...
O governador ergueu uma mão; Sam calou-se.
— E tu? — perguntou o governador fixando intensamente Thorvald. — És irmão dele? Parece-me pouco provável. És marinheiro dele? Acho que não; a tua maneira de falar sugere, pelo menos, uma educação rudimentar. O teu amigo deu o nome do seu pai com orgulho. Por que não fizeste o mesmo?
— De ti — replicou Thorvald com o coração a bater com toda a força — também não sabemos o teu nome nem a tua linhagem. O título de governador não te foi dado no berço, suponho. — Sam deu-lhe um murro nas costelas; Thorvald ignorou-o. — Quanto a mim, sou dono de mim próprio e vou para onde quero. Não preciso de outra identidade. Gostaria de estar a dizer a verdade; a vida seria, assim, muito mais simples.
— O meu nome é Asgrim — disse o governador. — Aqui, somos de muitas raças. Chamamos Ilhas Perdidas a estas terras: um refúgio de fugitivos e de banidos, homens que vêem o mundo para lá destas praias através de um véu de amargura e desconfiança. Não contentes com isso, fazemos guerra uns aos outros.
Rapidamente, Thorvald pensou de novo no que ia dizer.
— Asgrim — disse ele pensativamente. — Um bom nome nórdico. Os teus ascendentes são dessa terra? Há quanto tempo vive gente nesta terra? No lugar de onde vimos, a existência destas ilhas é apenas uma conjectura: quase uma lenda.
Asgrim juntou as mãos, os seus olhos escuros fixando intensamente o rosto de Thorvald.
— Einar mencionou o teu gosto por perguntas — disse ele suavemente. — Também tenho algumas para ti, mas, antes de responderes, farias bem se prestasses atenção à minha pessoa e ao poder que tenho aqui. O povo dos Facas Longas obedece-me em tudo. Não fora a minha liderança e teriam perecido há muito. Esta terra é implacável e não somos os seus únicos habitantes. O meu povo está sempre em luta. Só aprenderam a jogar um jogo, um jogo que têm de jogar para poderem sobreviver: o meu jogo. Enquanto aqui estiveres, farás o mesmo. Os fracos e os desobedientes não podem sobreviver num lugar como este. E agora, responde-me. Como viestes aqui parar? Que quereis?
Seguiu-se uma breve pausa.
— Sam disse a verdade — disse Thorvald. — Estamos aqui acidentalmente; houve uma tempestade e o nosso barco foi arrastado para esta costa apesar dos nossos esforços para virarmos para leste. Quanto ao que queremos, dissemo-lo ontem: madeira para reparar o Sea Dove para que nos possamos ir embora.
— Sabemos que a madeira deve rarear — acrescentou Sam. — Não é surpresa nenhuma, nas nossas ilhas é a mesma coisa. Trabalharemos no que for preciso até pagar aquilo de que necessitamos. Eu tenho ferramentas; posso fazer as reparações, preciso apenas do material...
Asgrim ergueu de novo a mão, cortando as palavras de Sam.
— Sim, eu ouvi a história. Pescador, não é assim? Disseram-me o suficiente para saber que tu, pelo menos, és quem dizes ser. Esta gente conhece os do seu meio. Mas tu — disse ele, virando-se para Thorvald — tu és outra coisa. Diz-me, por que trouxeste uma mulher nesta expedição? Uma mulher de excepcional beleza e ainda por cima muito nova? Só vejo uma razão para isso, que não condiz com o que penso de ti, nem do teu amigo. A rapariga é mesmo para vos aquecer a cama, à vez?
Sam ficou vermelho que nem um tomate.
— Estás a insultá-la e a ofenderes-me com essa sugestão, meu senhor. Creidhe é boa rapariga; não se passa nada disso, absolutamente nada e espero que metas isso na cabeça dos teus homens, porque se alguém lhe põe as mãos em cima...
— Sam — avisou-o Thorvald e a torrente de palavras deste esmoreceu até se transformar num resmungo zangado.
— Ainda não ouvi resposta nenhuma — observou Asgrim friamente. — A rapariga deve ser a namorada deste homem, visto que uma simples pergunta provocou uma emoção tão grande. Ela deve ser agradável, certamente, bem-feita e bonita. Uma mulher assim atrai o olhar. Quem é ela?
— Uma amiga de infância, meu senhor. — Thorvald ficou de certo modo surpreendido com as repetidas alusões à beleza de Creidhe. Nunca pensara nela naqueles termos. Beleza excepcional? Dificilmente. Creidhe era... bem, era Creidhe. O jovem decidiu que a verdade era a melhor opção. — Tem dezesseis anos, é de alto nascimento e ainda não foi prometida a nenhum homem. É virgem.
— E é bom que assim continue — grunhiu Sam.
— Mas, meu senhor, para ser honesto contigo — continuou Thorvald — a rapariga não veio com o nosso consentimento. Creidhe escondeu-se no barco; quando demos com ela já a tempestade nos arrastava para longe das nossas costas. Não tivemos outra hipótese senão continuar com ela a bordo. Sabes como são as mulheres; quando metem uma idéia na cabeça, nada as demove. Suponho que Creidhe achou que partia para uma aventura.
— A sério? — As sobrancelhas escuras de Asgrim ergueram-se, incrédulas. — Uma viagem de pesca? As mulheres da tua ilha devem ter poucas ocasiões de divertimento.
Thorvald encolheu os ombros com indiferença.
— É nova — disse ele. — Por vezes, nem sabe o que faz. — A visão de Creidhe na pequena saliência com os braços estendidos e os olhos cegos para o mundo estava firmemente gravada na sua memória.
— Assim me disseram — observou Asgrim. — Um incidente no caminho para aqui. A rapariga quase morreu. Foi falta de cuidado. Interroguei os que a acompanhavam; foram castigados severamente. Visitantes como vós são raros nas nossas costas e devem ser protegidos.
— Castigados? — Sam parecia surpreendido. — A culpa não foi deles. Creidhe fez aquilo sozinha. Foi como se algo se tivesse apropriado dela, algo que nenhum de nós podia ver.
— Sim. Parece que essa jovem é mais do que caprichosa: é instável, se assim se pode dizer. Representa um perigo para si própria e para os outros.
— Oh não! — disse Sam ansiosamente. — Creidhe é boa rapariga, uma rapariga de confiança. É uma grande fiadeira e uma ótima tecedeira, uma cozinheira maravilhosa a mulher ideal para qualquer homem. — O jovem apercebeu-se do olhar penetrante de Thorvald e corou violentamente. — É este lugar — acrescentou ele em tom de desculpa. — Ela ficou apanhada por esta estranheza toda. Quer dizer, como é possível uma enseada ter o nome de Baía Sangrenta.
— É apenas por causa das baleias — disse Asgrim suavemente. — Em tempos, os homens dessa aldeia orgulhavam-se com o tamanho dos animais que conseguiam apanhar com os seus pequenos barcos: a areia ficou vermelha em muitas ocasiões. Hoje, andamos mais ocupados com outra pesca; há mais de cinco anos que não pescamos uma baleia. Quanto a Creidhe, é preciso guardá-la bem. Ela é uma criatura de grande encanto e com grandes qualidades, se tu disseste a verdade. Um tesouro, na verdade. Felizmente, esta aldeia está bem protegida e há aqui mulheres que podem fazer companhia à tua amiga assim que vocês continuarem.
Seguiu-se um breve silêncio.
— Continuar — acabou por dizer Thorvald. — Continuar para onde?
Asgrim espreguiçou-se com os braços ligados atrás da cabeça.
— Sabes — disse ele expansivamente — eu acho que não respondeste a uma única das minhas perguntas. Felizmente, a jovem senhora foi muito mais comunicativa. Continuamos amanhã, depois de teres algum tempo para pensar? Está a fazer-se tarde e vocês têm um longo dia pela frente. Que não se diga que o governador destas Ilhas se esqueceu do que significa ser um bom anfitrião.
O homem bateu as palmas e ouviu-se o som de homens a aproximarem-se, o tilintar de recipientes e o cheiro de carne assada.
— Só um momento — disse Thorvald, ao mesmo tempo que um arrepio de desconfiança lhe percorria a espinha. — Já falaste com Creidhe? Por que não nos disseste? O que é que se passa aqui?
Pelos ossos de Odin, talvez Asgrim já soubesse a verdade acerca da sua demanda; talvez Creidhe lhe tivesse dito tudo. Não, Creidhe seria leal à sua palavra. Se havia alguma coisa a dizer em favor de Creidhe, era que a jovem era de confiança. Ela não falara, fiel à sua promessa.
— O quê, mais perguntas? — O governador sorriu levemente. — É muito simples, Thorvald. Não é difícil de perceber. Trocamos informações, pergunta por pergunta, resposta por resposta. Não se faz isso no local de onde vens? E há outra parte, em que as coisas ainda são mais simples. Tu queres uma coisa, que eu te posso dar. Mas deves merecê-la. Como este domínio é meu tens de a merecer segundo as minhas condições. Disseram-me que tu sabes alguma coisa acerca das artes da guerra. Nós podemos usar esse talento; na verdade, é precisamente o que queremos. Mas vais achar a guerra que levamos aqui estranha e frustrante, porque está tudo dependente do vento, das marés e dos poderes misteriosos dos nossos inimigos, que estão fora do alcance das lanças e das facas. Temos muito pouco tempo para agir; isso requer um planejamento muito meticuloso.
Entraram na sala alguns ilhéus com jarros, taças e pratos com carneiro e peixe cozido.
— Conta — disse Thorvald, muito interessado — conta mais. Quem são esses inimigos e onde vivem? Por que estás em guerra com eles? Qual é a natureza dos ataques deles?
— Talvez — observou Asgrim — aprendas a ter paciência durante a tua estadia conosco, Thorvald. Espero que sim. Essas perguntas constantes cansam. Vamos, come e bebe. Falaremos disso amanhã.
— Eu, — Thorvald ficou surpreendido por ouvir Sam falar, porque o tom do seu anfitrião ficara extremamente frio — eu sentir-me-ia melhor se soubesse que Creidhe está bem. Parece que as mulheres não vêm comer aqui; parece que aqui é assim. Mas, tenta compreender, ela é apenas uma rapariga e nós somos responsáveis por ela.
Asgrim aproximou-se da mesa de pedra onde estavam colocados os pratos; o governador utilizou uma faca pequena e bem afiada para cortar algumas fatias de carne, colocando-as num prato a seu lado. A maior parte dos homens que os tinham acompanhado desde a baía estavam, agora, na entrada. Deviam ser horas de jantar, mas não parecia haver qualquer convívio; estavam todos silenciosos e de rostos fechados. Thorvald não via o homem que caminhara à frente de Creidhe naquela manhã, nem o que a seguira.
— Fica descansado, rapaz — disse Asgrim a Sam com um trejeito que podia ser um sorriso — não há lugar mais seguro nestas ilhas para a tua amiga do que aqui, em Água Brilhante. Não te preocupes. Ela tem uma lareira quente, boa comida e companhia feminina em abundância. Imagino que deve estar muito mais confortável do que no teu barco. Confia em mim. A rapariga é um tesouro e eu sei cuidar das coisas preciosas. E agora bebe; temos trabalho pela frente e tu precisas das tuas forças.
Mais tarde, quando os dois homens se instalavam no pequeno quarto que lhes tinham dado para dormir, Sam murmurou a Thorvald:
— Ouviste o que ele disse? Artes da guerra? Por que lhe disseste que todos os miúdos das Ilhas Brilhantes eram guerreiros antes dos doze anos? Sabes o que vai acontecer. Vamos acabar na linha da frente e mortos antes do Verão.
— Shhh — murmurou Thorvald. — Baixa a voz, há homens a dormir do outro lado da parede e aposto que eles têm ordens para contar tudo o que ouvirem. Talvez eu tenha exagerado um pouco.
— Um bocado? Eu posso dar um jeito com os meus punhos quando desafiado, mas seria de pouca utilidade com uma espada nas mãos. Artes da guerra? A minha única arte é a arte da pesca.
— Tudo bem, Sam. Eu sei o que estou a fazer.
Seguiu-se uma pausa.
— Ninguém diria — resmungou Sam. Thorvald não respondeu.
— Achas que é ele?
— Não sei. — Era mentira, claro; o jovem tinha quase a certeza depois daquela conversa. Não que o homem se parecesse com ele, salvo, talvez, os olhos. Era mais um pressentimento, não o chamamento do sangue que imaginara, antes um reconhecimento alarmante e mais temerário. Aquele homem escondia muita coisa; tinha segredos, conspirava e planeava. Tinha de o desmascarar; tinha de descobrir o que se escondia para lá daquela máscara austera e controlada. Asgrim intrigava-o. Todo o local o intrigava: uma ilha de feiticeiros e loucos, uma guerra contra um inimigo com poderes extrafísicos, uma caça que teria de ser feita no momento exato era, na verdade, uma demanda, um desafio maior do que imaginara. E havia de conseguir; mostraria a Asgrim, que podia ou não ser o seu pai, do que era capaz. Talvez conseguissem juntos a vitória: tal pai tal filho.
— É uma oportunidade — disse ele suavemente, não muito certo de que Sam ainda estivesse acordado. — Uma hipótese de descobrir o tipo de homem que ele é. Talvez seja o meu pai e talvez não. Talvez eu lhe diga e talvez não. De qualquer maneira, temos de ganhar a nossa madeira. Continuar é bom. Posso falar com os homens, descobrir quem veio até aqui há dezoito anos. De qualquer maneira, parece que eles precisam mesmo de nós, meio guerreiros ou não. Parece que podemos ajudá-los. Este lugar é estranho, interessante. Quero descobrir mais coisas.
O jovem virou-se para o outro lado, sabendo que o sono demoraria a chegar.
— Thorvald? — chamou Sam em voz baixa no escuro.
— O que é?
— E se nós morrermos e Creidhe ficar aqui sozinha?
— Confia em mim — disse Thorvald. — Vai correr tudo bem. E agora, dorme; ouviste o que o homem disse. Vamos precisar das nossas forças todas.
A luz estava a diminuir. Margaret sentou-se ao tear com a lançadeira na mão e com os fios de lã cinzentos e castanhos-escuros em frente dos olhos cansados. Era demasiado tarde para trabalhar; era melhor desistir e ir para a cama. No entanto, continuou ali a olhar cegamente para a teia de lã e a imaginar outra, azul e vermelha, e as mãos pequenas e habilidosas da sua sobrinha, como aves cheias de graça, percorrendo impecavelmente a sua superfície. Por que não chorava como as outras mulheres todas? Por que razão as coisas cresciam, cresciam no interior do seu peito, quando o seu coração já tinha tantos fardos? Por todos os deuses, o castigo era demasiado grande para um erro tão pequeno. Em dias como aquele, parecia-lhe que estava condenada para sempre.
— Vem, tens de comer qualquer coisa. Deixa isso por agora.
A voz de Ash era calma e sem variações, como sempre. Ela não virou a cabeça, mas sabia que ele estava na soleira por trás dela, conhecia cada ruga, cada linha das suas feições graves, a preocupação nos seus olhos, as roupas simples e práticas que usava, a maneira de vestir que refletia o seu papel, que era ao mesmo tempo de guardião e companheiro, criado da casa e amigo. Ao longo dos anos, vira os seus cabelos passarem de ruivos-escuros a cinzentos. Aquilo não era vida para um homem, na melhor das hipóteses era uma meia vida.
— Anda lá — disse ele de novo, insistindo gentilmente. — Não vês nada com esta luz, dás cabo dos olhos.
Ela levantou-se relutantemente e virou-se para olhar para ele, sabendo que ele veria a palidez das suas faces e as lágrimas por derramar.
— Ele volta, sabes? — disse Ash. — Os filhos têm o hábito de partir; conhecem o mundo e conhecem-se a si próprios. Thorvald ama-te. Com o tempo, lembra-se disso.
Margaret estremeceu e passou por ele a caminho da grande sala. Havia pão e cerveja em cima da mesa, um queijo de ovelha e um prato com pequenas cebolas. Ash era tão bom para ela; não merecia tanta bondade.
— Ele odeia-me — disse ela. — Disse-me. Olhei para os olhos do meu filho quando ele disse aquelas palavras e vi Somerled a olhar para mim. Não posso fugir do que fiz; é uma maldição, não só para mim, mas também para Thorvald.
— Vem, senta-te — disse Ash. — O pão é bom, eu corto-te uma fatia. — As suas mãos tinham dedos longos e seguraram na faca à vontade enquanto cortavam o pão e o queijo e lhe colocavam o prato na frente.
— Não consigo comer — disse Margaret, sentindo um nó no estômago. Desde que Thorvald se fora embora que uma nuvem de incerteza lhe ensombrava os dias e lhe assombrava os sonhos durante a noite; não havia meio de lhe escapar. — A culpa é minha, Ash. Se lhe tivesse dito tudo mais cedo, quando ele era mais novo, talvez ele se tivesse habituado à idéia. Não teria feito isto. — Ela meteu a cabeça nas mãos, odiando a própria fraqueza.
— Estás preocupada com ele; eu também estou — disse Ash. — Mas Thorvald não é nenhum fraco. Tu ensinaste-o a ser desembaraçado, a aceitar os desafios.
Ela conseguiu um ligeiro sorriso.
— E, graças a ti, o meu filho é capaz de manejar a espada e o arco, se bem que nunca to tenha agradecido.
— Thorvald não gosta da minha presença nesta casa — observou Ash calmamente, metendo na boca um pedaço de pão e outro de queijo. — Há muito que sei isso. Ele não percebe a nossa relação. Quer ser o único centro do teu mundo; e não percebe que é exatamente isso.
Margaret bebeu um gole de cerveja; por que era que tudo lhe sabia a cinza? Era como se uma mortalha tivesse descido sobre ela no dia em que contara a verdade a Thorvald. Na ocasião, não se apercebera das conseqüências para ela, para os seus velhos amigos e para toda a gente. Naquele dia, devolvera a vida a Somerled.
— Isto aqui parece diferente sem as visitas de Creidhe — observou Ash calmamente, esmigalhando o pão com os dedos.
Subitamente, Margaret foi incapaz de reprimir uma lágrima, que lhe escorreu pela face. Ela limpou-a com dedos furiosos; não daria mostras de fraqueza, nem sequer ali, sozinha com Ash. Tudo o que lhe restava era a sua força.
— Tens saudades dela — disse ele, olhando-lhe para o rosto. — Tens mais saudades dela do que de Thorvald: a luz dos teus olhos. Ela é quase tua filha.
— Tu estás aqui há demasiado tempo, Ash — disse Margaret amargamente. — Por vezes, penso que me conheces melhor do que eu própria.
Ele não disse nada. Ficaram os dois em silêncio, sem apetite.
— Devias ir-te embora — disse Margaret, finalmente. — Sabes isso muito bem. Aqui não há nada para ti. Nem vida, nem futuro. Devias ir-te embora, arranjar uma herdade, uma mulher jovem, uma família. Ainda não estás tão velho que não possas ser feliz.
Ash sorriu; havia tanta tristeza naquelas palavras, tanta resignação, tanta culpa e tanta dor.
— Sabes muito bem que não vou — disse ele com toda a simplicidade. — Conheces-me. Além disso, por que razão havia eu de seguir os teus conselhos se tu não segues os meus? Estávamos a falar de Creidhe, que é como uma filha para ti. Apesar disso, ela não é tua, se bem que gostes muito dela. Por que não te libertas e arranjas uma vida nova, livre dos grilhões do passado? Aconteceu tudo há muito tempo. E tu continuas nova, podes ter mais filhos, se quiseres: a tua própria filha.
Ela riu-se, um som áspero, amargo, rapidamente reprimido.
— Dar ao mundo outra criança para partilhar a maldição que carrego comigo? Não me parece.
Ele olhou para ela, muito sério.
— Que será preciso — perguntou-lhe ele — para tirar esse peso dos teus ombros? Uma vida inteira de solidão? Ainda não chega?
— Não sei — suspirou ela, abraçando-se a si própria. — Tenho medo que o meu filho cresça igual ao pai. Tenho mais medo disso do que de tudo o resto. E tenho medo por Creidhe; ela foi arrastada para algo que a pode engolir e destruir. O amor dela por Thorvald deixa-a aberta a grandes sofrimentos. Se, ao menos, ela não tivesse ido com ele...
— Um viajante precisa de um farol que lhe mostre o caminho — disse Ash, embrulhando o pão num pano e cobrindo o queijo. — Enquanto ela estiver com ele, a nossa casa estará mais escura. Talvez ela tenha um papel a desempenhar. Pareces cansada; devias ir deitar-te.
— Tenho sonhos. Não tenho vontade nenhuma de adormecer.
— Margaret?
Ela olhou para ele, vendo a bondade inabalável nos seus olhos cinzentos, reparando em novas linhas nas suas feições gastas e sabendo o que ele ia dizer.
— Nós dormimos os dois em camas frias. — A voz de Ash era muito doce. — Não precisas de estar sozinha durante os teus sonhos.
Ela abanou a cabeça, desamparada.
— Não posso. Sabes isso muito bem. Não tenho nada para te oferecer; não tenho nada para dar. Não consigo afastar as sombras do passado; Somerled há de estar sempre entre nós.
— Mesmo assim — disse Ash, pondo-se de pé — estarei perto, caso precises de mim. Sabes isso.
— És muito bom, Ash. E eu não valho esses cuidados todos.
Ele não disse nada. Havia um pato entre eles, uma espécie de combinação que não permitia um beijo na mão, na face, ou o simples bater de mãos da dona-da-casa para o servo. Ela levantou-se: mais um dia passado e mais uma noite para suportar. Onde estariam eles, o seu filho com o seu rosto pálido e intenso e os seus olhos irrequietos; a sua querida Creidhe de cabelos dourados e mãos habilidosas? Tê-los-ia devorado o oceano, ou estariam numa qualquer praia longínqua contemplando o olhar sem piedade do homem que ela pensara amar um dia? Que os deuses os protegessem; que os deuses fossem tão misericordiosos com eles como tinham sido consigo, presa como estava na teia que ela própria tecera.
— Boa noite, Ash — disse Margaret.
CAPÍTULO QUATRO
Chamam-nos; chegou a hora.
Não aprenderam nada?
Nem a sagrada cruz ou o ferro frio,
podem impedir estas trevas.
Que Deus me permita ficar de ora.
NOTA À MARGEM DE UM MONGE
Ela conseguiu fingir. Não chorou; não pediu para ficar ou, pelo menos, para que não a deixassem na aldeia com aquelas estranhas que, apesar dos seus esforços para a receberem bem, continuavam a portar-se de maneira muito estranha. Havia homens de guarda em redor de Água Brilhante e ninguém lhe dizia por que razão. Estava uma guerra em curso; fora a única coisa que conseguira que as mulheres lhe dissessem. Os homens que não estavam de guarda à aldeia tinham de partir. Era terrível ter que sorrir e apertar a mão a Sam e a Thorvald postados na sua frente com os sacos às costas, de bordão na mão e vestidos com roupa que sugeria uma longa viagem. Custava-lhe fingir que não se importava, manter a boca fechada quando tudo na sua alma gritava: levai-me convosco, por favor!
Houve um momento, quando Sam lhe perguntou gentilmente se tinha a certeza de ficar bem, em que quase lhes disse que se sentia preocupada e lhes pediu para ficarem. Mas sorriu de novo e disse que estava tudo bem. Ela sabia que eles tinham de trabalhar para pagar a madeira de que necessitavam. O governador explicara-lhe que num lugar como aquele havia sempre cabanas e barcos a necessitarem de reparações depois de uma tempestade, carreiros a endireitar, gado para tratar. Asgrim parecera-lhe um homem bem-educado, ao mesmo tempo autoritário e simpático. Perguntara-lhe se estava bem de saúde e assegurou-a de que ficaria bem em Água Brilhante. Tivera alguma dificuldade em não o perscrutar de perto, procurando sinais de parecença com Thorvald. Tentara não olhar fixamente para ele. Quanto a conclusões, não chegara a nenhuma. Podia ser Somerled, mas também podia não ser. No fim de contas, parecia pouco provável um homem tão simpático ter um passado tão maldoso. Como estavam de partida, cabia a Thorvald descobrir, de uma maneira ou de outra.
A jovem despediu-se a custo e ficou a ver a longa fila de homens serpentear pelo carreiro acima em direção a oeste, fixando os olhos nos cabelos ruivos de Thorvald, uma nota solitária de cor no verde-acinzentado da encosta, afastando-se cada vez mais até desaparecerem por trás de uma curva. Creidhe vira uma luz de desafio nos seus olhos; isso era bom. A amargura daqueles últimos dias em Hrossey desaparecera do seu rosto e ele olhava em frente. Não demorariam, certamente, muito tempo a fazer o trabalho que tinham a fazer e a regressar com a madeira. Falar das suas preocupações só os teria retardado e ela estava ali para ajudar, não para colocar dificuldades. Além disso, provavelmente, essas preocupações não tinham razão de ser, eram apenas saudades de casa e uma conseqüência do que acontecera naquela primeira manhã no alto da falésia, no carreiro. Tentara recordar-se do sonho fechando os olhos, tentando trazê-lo de volta, mas era-lhe cada vez mais difícil, o sonho estava a esbater-se. Fora uma espécie de voz, uma canção, mas apenas na cabeça; sem palavras, uma música mágica que se mantinha chamando, chorando. Aqui, estou aqui! Por vezes, pensava que era como se umas mãos se estendessem na sua direção, mãos em busca de amor, de amizade, mãos carentes. Vem, diziam as mãos. No entanto, ao mesmo tempo, as mãos abraçavam aquela ilha envolta em brumas, envolvendo-a como uma barreira de proteção. Teria ido se pudesse, voando com asas invisíveis, transpondo a distância amparada apenas por um sonho.
Não falara do que sentira, nem sequer a Thorvald. Duvidava, até, que fosse capaz de partilhar algo tão estranho e poderoso com a sua própria mãe, com a sua própria irmã. Agora, Thorvald e Sam tinham-se ido embora e com eles Asgrim, o governador, com a maior parte dos seus homens. A pequena força armada com lanças podia ser vista a patrulhar os carreiros e ruelas de Água Brilhante de dia e a montar guarda de noite, mas estava tudo calmo.
Creidhe decidiu dedicar-se ao bordado. Não poderia sair dali; as mulheres tinham deixado isso bem claro. Era permitido um passeio até ao lago e até à curva que dava para a mancha verde murada, mas mais nada; a jovem tentara um dia e vira-se escoltada de volta por dois dos homens armados de lanças. Era para sua segurança, tinham-lhe dito as mulheres. Nenhuma delas saía dali.
A Visão que a assombrava, aparecendo-lhe claramente nos sonhos, encontrou um lugar na Sua Jornada. A princípio, as mulheres foram curiosas, amontoando-se à sua volta. Era evidente que não havia ali nenhuma costureira para fazer aquele trabalho tão detalhado. Creidhe foi obrigada a mostrar-lhes, um pouco, como se fazia, desembrulhando um pouco o tecido para revelar as cores vibrantes e pormenores meticulosos, um padrão nada tradicional com as suas imagens perfeitas, os seus motivos convencionais e orlas regulares, mas um fluxo orgânico, envolvente e sempre a mudar. Elas soltaram exclamações, espantadas, impressionadas, talvez um pouco assustadas: nunca tinham visto nada semelhante. Uma admirou as minúsculas árvores, outra os animais escondidos na folhagem, outra ainda a figura que parecia uma rapariga a voar e a Lua ao seu alcance. Uma estendeu um braço para tocar; Creidhe voltou a enrolar o seu trabalho, deixando apenas exposta a parte ainda vazia. O sonho, a visão, crescia no tecido com cores violeta e azul-escuro, verde-claro, cor de musgo e cor de líquen, o cinzento das rochas sob o impulso da maré, o subtil colorido da pele de uma foca. A Jornada continuou; era como se tivesse metido no seu saco uma grande provisão de agulhas e de lã, porque se tinham passado muitos dias sem que estivesse ocupada.
Ninguém era capaz de fazer um trabalho tão exigente durante o dia todo. Vira, entretanto, as outras a fiar e oferecera-se para ajudar; aquilo pareceu surpreendê-las, mas quando se tornou evidente que ela era mais do que capaz, arranjaram-lhe uma roca e um fuso e deixaram-na fiar com elas na cabana comunal durante uma manhã inteira. A jovem ofereceu-se para cozinhar; na verdade, esforçou-se na cozinha e produziu algo mais agradável do que a infindável dieta de peixe cozido e carneiro requentado. Mas Gudrun, em casa de quem Creidhe estava hospedada, tornou claro que a hóspede não poderia esforçar-se daquela maneira. Creidhe tinha de descansar, comer bem e recuperar da doença. Os seus protestos entraram em ouvidos moucos. Creidhe tornou-se irrequieta. Em casa, os seus dias eram preenchidos; estava sempre ocupada. A ociosidade fazia com que se sentisse pouco à vontade e passou a percorrer a secção de carreiro permitida quatro vezes cada manhã enquanto pensava miseravelmente nas viagens diárias a casa da tia Margaret e como tinha saudades delas. Pobre tia Margaret; devia estar tão preocupada por causa de Thorvald. Quanto à família de Creidhe, tremia só de pensar na sua inquietação e de como essa inquietação devia aumentar a cada dia que passava sobre a sua ausência. Porque o tempo enlouquecera com cortinas de chuva e uma bruma densa e baixa e ninguém parecia esperar o regresso dos homens. Por vezes, as mulheres falavam daquilo em voz baixa, nervosamente. Creidhe interrogou-as, mas as suas respostas não lhe diziam nada. Ela continuou a fiar, a coser e esperou.
Não havia muitas crianças na aldeia. Um par de rapazes parecia ir e vir com peixe e ovos e havia um miúdo de uns doze anos com um estrabismo terrível e umas maneiras furtivas e tímidas, mas não um bebê, ou uma criança. Creidhe sentia saudades da sua irmã Ingigerd e de Brona com a sua perspicácia e sorriso pronto. Imaginava como ela se devia sentir, sabendo que Sam fora na expedição com Creidhe e esperando dias a fio sem qualquer notícia.
Uma das mulheres estava à espera de bebê; quando chegasse a hora, coisa que deveria ser dentro de uma ou duas luas, equilibraria um pouco as coisas. Creidhe falou no assunto a Gudrun e, como de costume, recebeu uma resposta que não lhe disse nada. A jovem voltou a comentá-lo às outras e recebeu olhares vazios. Era um desafio encetar uma conversação acerca do tempo, quanto mais tópicos mais sérios. Creidhe falou à mulher grávida, Jofrid, da sua experiência como parteira e ofereceu os seus serviços em caso de necessidade. Para dizer a verdade, ela esperava fervorosamente já estar a caminho de casa quando o bebê estivesse para nascer; quem imaginaria que uma outra viagem no Sea Dove seria tão atrativa? Jofrid acenou com a cabeça nervosamente quando Creidhe lhe falou nos gêmeos que ajudara a nascer em Hrossey, dos rapazes que ajudar a vir ao mundo com sucesso, dos muitos casos fáceis, como parecia ser o caso de Jofrid, porque ela parecia jovem e forte, se bem que desproporcionalmente receosa.
— É o teu primeiro filho? — perguntou-lhe Creidhe, certa de que a resposta seria sim; por vezes acontecia aquilo, sobretudo quando as mães não estavam por perto para as tranqüilizar. Jofrid abanou a cabeça com os olhos no chão. Creidhe olhou para Gudrun; não havia crianças de roda das saias de Jofrid quando se sentaram para fiar, nenhum bebê às suas costas quando saíra da cabana.
— É o terceiro. — Gudrun disse aquilo com um grande à vontade enquanto dobava a lã, transformando-a numa bola. — Perdeu dois. Se se aguentar até ao Verão, pode ser que consiga ficar com esse.
— Oh — disse Creidhe. — Oh, lamento. Mas, como já disse, ajudei a nascer muitos bebês; posso ajudar...
— A ajuda é sempre bem-vinda, se for o caso — disse Gudrun, que era uma daquelas mulheres cuja idade parece indeterminável; as feições muito marcadas, franzina, cabelos apanhados na nuca e olhos argutos condiziam com uma certa sobriedade de maneiras. — É claro que, por essa altura, provavelmente já te terás ido embora. Talvez não haja caçada esta estação. Rezemos para que Jofrid não se adiante.
Talvez não estivesse a entender qualquer coisa, pensou Creidhe. A jovem mediu cuidadosamente as palavras:
— Fala-me dessa caçada. Os homens também falaram dela. De que vão eles à caça? Há veados ou raposas por aqui? Lobos? — A jovem nunca vira nenhum daqueles animais, mas conhecia-os pelas histórias do seu pai. Há muitos anos, na Noruega, Eyvind fora considerado um caçador inigualável. — Ou estavas a falar da caça à baleia? Ouvi dizer que era uma coisa comum, aqui, antes da guerra.
— Descobrirás se ficares aqui tempo suficiente — disse Gudrun. — Já perdemos maridos e irmãos, filhos e pais por causa dela ao longo dos anos. É claro que, este ano, pode ser diferente.
— Porquê, diferente? — Um súbito pressentimento atingiu Creidhe quanto à natureza do trabalho de Thorvald e de Sam.
— Deixa-me entrançar-te o cabelo, Creidhe. — Uma mulher chamada Helga, uma das mais amigáveis daquele grupo severo, avançou com um pente numa mão e um pedaço de fio na outra. — Vira-te para mim... isso.
Com aquilo, as respostas esvaíram-se. Ninguém falaria mais da caçada ou da falta de crianças e Creidhe sentou-se muito pensativa enquanto Helga lhe penteava e entrançava os cabelos. As longas madeixas louras de Creidhe eram objeto de muita admiração entre as mulheres; nenhuma delas tinha os cabelos daquela cor, ou daquele brilho, espessura e abundância. Sombrias e silenciosas como eram a maior parte do tempo, deliciavam-se, por isso mesmo, a pentearem-se e a vestirem-se, quase como se aquilo fosse uma espécie de brinquedo que lhes tivesse sido previamente proibido. A jovem reparou que também lhe queriam emprestar um xale favorito, ou a melhor saia, juntamente com o que passava por ser uma delicadeza: carne fresca de enguia e carneiro seco ao vento. Era como se estivesse a ser engordada para o mercado; não era um sentimento confortável. Teria trocado todas aquelas coisas por uma conversa honesta. Tinha tantas saudades de Thorvald e de Sam. Por vezes, os rapazes podiam ser cegos e falhos de subtileza, mas, pelo menos, podia conseguir deles respostas diretas. Com alguma sorte, estariam de regresso dentro de pouco tempo, porque a Lua crescera e diminuíra desde que eles tinham partido e certamente que àquela hora já deviam ter pago o preço das poucas pranchas de madeira de que precisavam.
Os dias passaram. Estabelecera-se uma rotina; Creidhe levantava-se de madrugada para percorrer o carreiro através da aldeia com uma pausa no ponto mais ocidental para perscrutar a íngreme encosta no caso de avistar Thorvald e Sam de regresso. Depois do passeio, regressava para junto de Gudrun para tomar o pequeno-almoço, juntando-se, depois, às outras para fiar. Todas elas passavam as manhãs a fazer aquela tarefa, salvo as poucas que levavam todos os dias uns pequenos barcos para o lago para pescar; era estranho, mas com todos os homens ausentes, ou de guarda, era essencial. Creidhe não era convidada para essas expedições. Mais tarde, quando as mulheres regressavam às suas cabanas para preparar a comida ou tratar dos animais, Creidhe tirava a Jornada do saco e deixava a sua mente flutuar livremente enquanto os seus dedos retomavam a complexa história, o quebra-cabeças intricado de imagens. Ao crepúsculo, Gudrun preparava outra refeição, olhando para a sua hóspede quando esta levava a comida à boca, quase como se Creidhe fosse uma criança doente que temesse perder. Era difícil fingir que gostava da comida; o queijo da ilha era de fraca qualidade, tinha pouco sabor e tinha uma textura duvidosa e, por vezes, Creidhe pensava que seria capaz de matar por um pedaço de pão fresco. O grão era escasso, um luxo num dia de festa. Depois do jantar não havia outra coisa a fazer senão ir dormir. Não lhe permitiam que alimentasse o gado ou tratasse da horta desgarrada e desalinhada. Impediam-na de limpar peixe e de lavar pratos, não fosse estragar as mãos.
Com tão pouco que fazer, Creidhe resolveu executar, pelo menos, uma tarefa: supervisionar os últimos tempos da gravidez de Jofrid, certificando-se de que aquele bebê chegaria ao mundo são e salvo. A jovem ensaiou mentalmente as possíveis complicações. Uma apresentação de costas: difícil mas possível, procuraria os sinais e viraria o bebê no útero antes de ele estar pronto. Gêmeos: não lhe parecia que Jofrid tivesse mais do que um bebê, mas, em todo o caso, tinha de ter a certeza de que as outras mulheres sabiam como ajudar. Outras complicações que poderiam ocorrer: ensaiou-as todas mentalmente. Seria capaz. Entretanto, obrigou Jofrid a beber leite, a comer peixe e a descansar à tarde com os pés elevados apesar dos protestos das outras mulheres, que diziam que ela tinha animais para tratar. As outras que fizessem esse trabalho, disse Creidhe a Jofrid com firmeza, pelo menos a partir dali até que o bebê nascesse e estivesse a ser amamentado. Jofrid ficou a olhar para ela de boca aberta, sem cor e sem dizer nada; por vezes, Creidhe pensava se ela não seria simples demais.
Gudrun, como mulher mais velha da aldeia, organizou as outras no sentido de tratarem da vaca e das crias de Jofrid e de lhe manterem a cabana asseada. Mesmo assim, Creidhe sentiu o peso dos seus olhares, como se os seus esforços para ajudar fossem de algum modo bizarros, inapropriados e condenados ao insucesso. A jovem endireitou os ombros e continuou. Alguém tinha de fazer alguma coisa.
O Verão estava a chegar. Em casa, os carneiros já deviam ter nascido e os dias eram mais longos e mais claros. Ali bem podia ser ainda Inverno, porque nunca se sabia o que a manhã traria: chuva, granizo, tempestades, nuvens baixas e brumas terríveis eram fenômenos comuns, se bem que de vez em quando o Sol mostrasse o seu rosto como que para lhes recordar a estação e nas vertentes íngremes por cima de Água Brilhante as ovelhas chamavam as suas crias desobedientes. Se havia lobos ou outros animais selvagens para caçar, parecia que não freqüentavam aqueles lados, porque as ovelhas andavam à vontade durante o dia, livres de pastores ou cães. A rapariga estrábica tinha gansos e galinhas para guardar; os dois rapazes desapareciam todas as manhãs, regressando antes do anoitecer com uma rede de marisco, ou enguias, ou ovos de diferentes tamanhos e feitios. Pelos vistos, eles podiam ir onde Creidhe não podia. As regras eram difíceis de compreender. Continuava a ser suposto a jovem usar o lenço quando saía à rua, cobrindo totalmente os cabelos louros, se bem que as outras mulheres não estivessem sujeitas a esse édito. Ela perguntou e não obteve resposta, exceto que era uma regra e que tinha de ser obedecida. De fato, o lenço era útil. Naquele lugar, nunca se sabia quando os céus se abriam, despejando água a rodos.
Numa manhã assim, depois de uma tempestade de Primavera, começaram as dores de Jofrid. Ainda era cedo, perigosamente cedo. As mulheres chamaram Creidhe, não por confiança nas suas capacidades como parteira, mas porque Jofrid pedira a sua presença. A grávida estava estendida numa enxerga na cabana de Gudrun, os olhos esbugalhados de medo, a fronte pálida e cheia de suor. Creidhe examinou-a, ao mesmo tempo que murmurava palavras de conforto. O nascimento não seria para já; certamente que as dores não eram grandes? Vivamente, Creidhe pediu-lhe que se levantasse e que caminhasse no intervalo das dores; não só apressaria o processo, como lhe tiraria, por momentos, a mente da barriga. Gudrun, mais séria do que o costume, se isso era possível, pôs uma chaleira ao lume e vasculhou numa arca em busca de roupas. Helga entrou transportando um jarro de leite e um pedaço de pão para ser partilhado depois do trabalho árduo que tinham pela frente. O rosto de Helga estava quase tão ansioso como o de Jofrid. Enquanto ajudava a mãe expectante a caminhar de um lado para o outro do quarto, Creidhe olhou para o exterior e viu homens na soleira vestidos com roupa de viagem e, por trás deles, a chuva a cair.
Gudrun foi ter com eles e teve lugar uma conversa insistente em voz baixa.
A determinada altura, Gudrun olhou para Creidhe e perguntou:
— Quanto tempo?
— Ela ainda agora começou. A criança não nasce antes do anoitecer. — Evidentemente, um bebê podia sempre surpreender, mas as dores de Jofrid não pareciam muito fortes. Era mais preocupante o fato de a criança querer nascer já, pelo menos um ciclo lunar antes do tempo. Seria, certamente, pequeno e fraco. Creidhe esperava que Jofrid pudesse pôr de lado o seu pânico irracional de modo a dar à luz em segurança e que o seu leite fosse copioso. Aquela criança tinha de sobreviver; Creidhe prometera a si própria que Jofrid não perderia outro filho enquanto ela tivesse o poder de fazer qualquer coisa acerca disso.
— Continua a andar — insistiu ela quando Jofrid fez uma pausa, ofegante, depois do mais normal dos espasmos. — Será mais fácil se te mexeres agora, prometo-te...
À entrada, Gudrun continuava a falar com os homens e a jovem ouviu as suas vozes subirem ligeiramente de tom. Tens de ir buscá-lo... carreiro... não se pode passar... pelo menos até amanhã... e ela?
Então, Gudrun disse:
— Sem Asgrim aqui, esta criança está condenada.
Não fazia sentido. Os homens saíram e a porta foi fechada por causa da chuva. As duas mulheres continuaram a andar para baixo e para cima, para baixo e para cima.
— Por que é que mandaste chamar Asgrim? — arriscou Creidhe. — Ele é o pai do bebê?
Aquelas mulheres falavam pouco sobre assuntos pessoais; eram tão fechadas como lapas. Creidhe ouvira dizer que o homem de Helga se chamava Skolli, e que era ferreiro. Também descobrira que Gudrun era viúva e que tinha filhos crescidos. Mas Jofrid nunca mencionara um marido; se tinha um, não era, certamente, em Água Brilhante. Se, na verdade, o governador era o marido daquela jovem assustada e o pai dos seus bebês perdidos, as probabilidades de ele ser Somerled eram menores. Asgrim parecera-lhe muito social para ser um assassino. Uma mulher e um filho torná-lo-iam um homem comum.
— O bebê não é dele — disse Gudrun, pondo um fim abrupto às especulações de Creidhe. — E não pode estar aqui a horas. A criança só devia nascer no Verão. Então, ele já estaria de regresso; já teria feito o que foi fazer. Eles vão, mas não podem estar de regresso senão amanhã de manhã. O bebê está condenado. Não pode sobreviver.
Creidhe sentiu uma fúria súbita.
— Não digas isso! — disse ela asperamente. — Como podes dizer esse disparate? Já te disse, eu ajudei a nascer muitos bebês e não vejo razão para este não nascer bem, apesar de ainda não ter chegado a hora. Temos de ajudar Jofrid, não preocupá-la. Um homem não faz a diferença, certamente.
— A criança foi amaldiçoada. — Helga disse aquilo do lugar onde estava, junto da mesa, onde estava a dobrar roupa. O seu tom era de resignação.
— Como amaldiçoada? Vocês não têm aqui sacerdotes ou mulheres sábias que saibam fazer um círculo e dizer palavras de proteção? — Creidhe não vira nada do gênero durante a sua estadia em Água Brilhante. Ficara surpreendida, mas era uma das coisas acerca das quais decidira não fazer perguntas, visto que aquela gente nunca lhe respondia a nada.
— Isto está para além do poder de qualquer sacerdote — resmungou Gudrun, mas havia uma nota de incerteza na sua voz.
— A minha mãe é uma mulher sábia, assim como a minha irmã. O mais simples dos rituais ajuda nestas ocasiões — disse Creidhe. — Eu não tenho poderes para chamar os espíritos, mas deve haver aqui alguém que...?
— Na aldeia, não — disse Helga, olhando de soslaio à direita e à esquerda como se as paredes tivessem ouvidos. — Além disso, Asgrim não gosta que eles venham aqui. Não confia neles.
Não confia em quem? As complicações nunca mais acabariam? Por que não seriam capazes de ver que aquilo não ajudava Jofrid em nada? A jovem mãe gemia, o rosto branco como o leite e Creidhe viu-se forçada a deixá-la deitar-se uma vez mais, uma figura sem energia, patética, na enxerga, a barriga inchada e tensa como um fruto maduro.
— Eremitas, cristãos. Eles são capazes de vir, se os mandarmos buscar. Os rios vão cheios; não é um passeio fácil. Os rapazes podiam lá ir. Mas o governador ficaria furioso. Ele diz que eles fazem mais mal do que bem. Intrometidos.
— O governador não está aqui — disse Creidhe firmemente. — Se os pregadores cristãos puderem ajudar, chamemo-los. Vivem muito longe, esses eremitas?
Gudrun fixou-a por momentos, perplexa, e depois abriu a porta com dificuldade por causa do vento e assobiou estridentemente com os dedos na boca. Pouco depois apareceram os dois rapazes. Deram-lhes instruções e um saco a cada um para se defenderem da chuva. Esta caía com tanta força que o dia parecia que estava a acabar e o carreiro no exterior da cabana de Gudrun era uma torrente lamacenta e gorgolejante. A porta foi novamente fechada. As mulheres esperaram.
Depois de uma manhã de trabalho árduo e poucos progressos, Jofrid adormeceu. Passou-se muito tempo depois de os rapazes terem partido no meio da tempestade. As mulheres comeram algum pão, duro e bolorento, mas bem-vindo, mesmo assim e uma sopa aguada de peixe que Helga preparara. Até Gudrun, cujas feições duras nunca mostravam qualquer emoção, parecia esgotada; a mulher sentou-se com a sua tigela de sopa nas mãos, olhando para a lareira onde algum esterco de vaca seco, fazendo faíscas, ardia sem providenciar um grande calor. Umas lâmpadas de óleo de foca, em cima de umas prateleiras de pedra, espalhavam uma luz suave sobre a silhueta de Jofrid, agora misericordiosamente tranqüila no seu sono. Creidhe esperava que ela não acordasse já; apesar dos encorajamentos da jovem, Jofrid passara a manhã num estado de intenso terror.
As mulheres tinham dito a Creidhe que estava a chegar uma parteira chamada Frida, mas a sua chegada não trouxe confiança. Na verdade, produziu-se até o contrário, porque a anciã, que chegou a meio da manhã embrulhada em xales, não era outra senão a velha que montara guarda a Creidhe na primeira noite na enseada com o nome desagradável de Baía Sangrenta. A mulher ergueu as sobrancelhas com aparente desdém perante os preparativos de Creidhe e teria assumido total controle imediatamente se Jofrid não se tivesse agarrado à mão de Creidhe com os olhos esbugalhados de terror.
Agora, Jofrid dormia e Frida descontraíra-se um pouco. A velha sentou-se à mesa, deitando pedaços de pão na sopa e chupando-os através dos poucos dentes negros. As suas mãos estavam imundas, as unhas cheias de fuligem. Creidhe bebeu a sua sopa, escutou os estalidos do fogo e a chuva a bater sem descanso no exterior. Ao cabo de algum tempo, pareceu-lhe distinguir outro som, um chamamento distante, como se alguém estivesse preso num lugar profundo sem poder fugir. Sentiu um frio gelado no coração; pensou, instantaneamente, em Thorvald. Fez um esforço para normalizar a respiração. Devia ser o vento. Que mais havia de ser? Aquele era um dia de Inverno na Primavera e, com alguma sorte, Thorvald e Sam estariam protegidos e seguros algures dentro de uma casa qualquer, num canto qualquer daquela ilha. Fora Asgrim que os levara. Talvez os eremitas não viessem, no fim de contas. A ventania fustigava a cabana, fazendo matraquear as portadas. Só um louco andaria na rua num dia daqueles; seria atirado da falésia como uma folha por uma brisa de Outono.
— Só um louco, ou um cristão, seria capaz de sair à rua com uma tempestade destas — observou secamente Gudrun, pondo-se de pé com alguma relutância.
— Ou um deles — acrescentou Helga num sussurro.
— Shhh! — disse Frida. — Não digas isso; não tentes o destino.
— Ela está acordada. — Creidhe estivera a olhar para a enxerga; a jovem viu os olhos de Jofrid abertos, a princípio tranqüilos recordando um sonho bom e depois alerta, o rosto cada vez mais branco de terror. Jofrid abriu a boca e gemeu com um som pesado e áspero vindo das profundezas da barriga, um som de desespero que gelou o sangue de toda a gente. Enquanto agarrava de novo na mão de Jofrid e lhe aconchegava a almofada, ocorreu subitamente a Creidhe que, apesar de ter perdido antes dois bebês, aquela mulher daria tudo para não ter aquele; que era a perspectiva do nascimento em si que a aterrorizava. Creidhe afastou rapidamente o pensamento; certamente que não era verdade. As mulheres não gostavam todas de crianças? Sempre imaginara que seria assim quando desse um filho a Thorvald, um bebê de cabelos ruivos como o pai, como duas ervilhas da mesma vagem. A jovem sabia que não tremeria nem choramingaria como Jofrid, antes levaria até ao fim o processo com a mesma eficiência que fazia tudo, com o mínimo incômodo para toda a gente, se bem que fosse bom ter Nessa junto de si; uma rapariga precisava da mãe em ocasiões daquelas. Creidhe imaginara Thorvald com o bebê nos braços, um sorriso de orgulho substituindo o olhar sombrio e furioso que tantas vezes lhe ensombrava as feições. Creidhe franziu o sobrolho. Era cada vez mais difícil reter aquelas imagens na memória. Se Thorvald não casasse com ela quando regressassem a casa, casaria algum dia?
Ao fim da tarde, a tempestade escurecera o céu de um modo tão pesado que o pôr do Sol por trás das nuvens fez pouca diferença, limitando-se a aumentar a escuridão. Creidhe ouvira de novo, ao longo da tarde, aquele grito distante que lhe provocava arrepios e soube que as mulheres também o tinham ouvido, se bem que não falassem nisso. A jovem reparou no que elas faziam; da primeira vez, Helga mexeu no fogo e verificou as lâmpadas todas, enquanto Gudrun tratava de Jofrid, falando em voz alta e constantemente até o grito cessar. Depois, Gudrun abriu a porta, chamou e os homens que guardavam a aldeia aproximaram-se. Creidhe ouviu as ordens de Gudrun com consternação: vigiar em redor da casa com ou sem tempestade até aquilo acabar. Não poderiam abandonar os seus postos fosse sob que pretexto fosse, ouvissem o que ouvissem, vissem o que vissem.
Da segunda vez, Gudrun foi até às janelas e colocou umas barras de ferro no lado de dentro das portadas, onde havia umas concavidades para as colocar. Frida sentou-se à lareira a olhar, em silêncio. Na verdade, a anciã mal saíra dali; Creidhe suspeitou que a parteira deixaria todo o trabalho para ela, assumindo, depois do nascimento em boas condições, o êxito. Não tinha importância. A criança tinha de viver, assim como Jofrid; nada mais tinha importância. Da terceira vez, o som foi mais alto, mais perto.
— O que é isto? — O coração de Creidhe batia com toda a força; o vento não soava assim, como se estivesse zangado. — Que gritaria é esta?
Mas elas não lhe responderam. Gudrun olhou para Helga, ambas olharam para Frida e as três fizeram o mesmo sinal ao mesmo tempo: as duas mãos na testa, com a ponta dos dedos, e depois cruzadas no peito, um feitiço de proteção, pensou Creidhe, se bem que não lhe fosse familiar.
— Eles estão a chegar — disse Gudrun.
Um momento mais tarde ouviram-se umas pancadas na porta. Jofrid lançou um grito estrangulado, ao mesmo tempo que Creidhe não conseguiu reter uma exclamação de susto. As mulheres ficaram geladas. As pancadas repetiram-se.
— Vimos em nome de Deus! — disse uma voz de homem por cima da tempestade. — Deixai-nos entrar, por favor!
Gudrun foi abrir a porta, enquanto Helga, com uma cortina, escondia a enxerga de Jofrid. Creidhe pôs-se de pé quando os três homens entraram. Um era muito jovem, pouco mais do que um rapaz, com os cabelos ainda por rapar. O segundo usava a tonsura que Creidhe vira no irmão Tadhg e nos seus companheiros, em Hrossey; a fonte lisa como a de um bebê e, na nuca, o cabelo curto e bem cortado. Esse tinha feições feias mas agradáveis e uma voz suave com um sotaque gutural; tinha, supôs Creidhe, as mesmas origens do próprio Tadhg e fizera, certamente, a mesma viagem perigosa desde o Ulster. O terceiro homem ficou à porta com um capuz a cobrir-lhe a cabeça. A sua capa pingava.
— Não esperava ser chamado — disse o segundo homem desatando a capa e passando-a para as mãos estendidas de Helga. — Pelo menos num dia como este. Deus castiga-nos em dias como este; recorda-nos as nossas fraquezas, recorda-nos que somos pequenos perante as forças da Sua criação. Disseram-me que está uma criança para nascer.
Helga pedira, também, a capa ao mais novo e estava a pendurá-la perto da lareira; um autêntico ribeiro escorria do pesado tecido de lã. As capas estavam remendadas; acontecia o mesmo com Tadhg e com os seus companheiros, que viviam na maior das austeridades. Creidhe sentiu o mal-estar esvair-se; talvez, finalmente, tivesse encontrado alguém em quem podia confiar. Em Hrossey, os homens não podiam estar à cabeceira de uma parturiente, mas a jovem aprendia, a cada dia que passava, que aquela ilha tinha as suas próprias regras.
— O bebê de Jofrid vai nascer antes de tempo — disse Gudrun secamente. — Ouvistes o vento e nós sentimo-nos atormentadas. Pensamos que uma oração ou duas... — O seu tom era hesitante. — Mal não faz.
— Isso quer dizer que Asgrim regressou ao acampamento. — A voz do eremita era calma; não parecia sentir-se ofendido perante os modos bruscos de Gudrun. — Não creio que tivésseis pedido a nossa ajuda se ele estivesse aqui.
— Asgrim anda muito ocupado com os seus assuntos — disse Gudrun, colocando a chaleira ao lume. — Está demasiado longe para vir com este tempo. A rapariga pediu que vos chamássemos. Não vejo nenhum mal nisso.
— Mas também não vês nenhum bem, pois não? — O eremita avançara, mas ficara a alguma distância da enxerga; a pequena cortina escondia apenas parcialmente Jofrid. — A oração tem um grande poder, Gudrun. Nosso Senhor vela por todas as Suas criaturas; só precisamos de nos virar para Ele. Uma coisa que caiu em ouvidos moucos no caso de Asgrim, infelizmente. Ainda bem que nos mandaste chamar. — O monge virou-se para Creidhe, que estava junto da cortina. — Eu sou o irmão Breccan — disse ele. — Trouxe comigo o irmão Colm — disse ele indicando o jovem com o queixo — e o irmão Niall. Não sei o teu nome, se bem que tenhamos ouvido falar da tua chegada e dos teus companheiros. Uma longa viagem.
— O meu nome é Creidhe, filha de Nessa. — A jovem respondeu-lhe quase sem pensar, porque se sentia cada vez mais consciente do escrutínio silencioso da figura encapuzada que se mantinha na soleira da porta. Não lhe via o rosto, mas sabia que toda a sua atenção estava fixada nela e só nela. Era uma sensação desconfortável. — Ainda bem que vieram — conseguiu ela dizer. — Na minha ilha existe uma comunidade como a vossa. O nosso povo tem muito respeito por eles. Espero que possam ajudar. — Creidhe gostaria de poder dizer: Jofrid está aterrorizada, elas estão sempre a falar de pragas e maldições e eu acho que devíamos andar para a frente com isto, mas não podia dizer aquilo diante de Gudrun e das outras. O irmão Breccan tinha um rosto honesto; o seu nariz bulboso e retorcido e as suas feições avermelhadas não conseguiam esconder a boa vontade dos seus olhos.
— Também eu — disse ele concisamente.
— A rapariga diz que é parteira. — O tom de Frida sugeria uma profunda desconfiança.
— Eu posso ajudá-la a dar à luz como deve ser — disse Creidhe calmamente. Por todos os antepassados, por que razão não entrava aquele tipo de uma vez por todas e não deixava de a fixar? Aquelas ilhas pareciam cada vez mais estranhas. — Pensamos que pudesses fazer uma prece ou duas para afastar o medo que todas elas receiam. Eu não sei o que é, mas Jofrid precisa de se concentrar no que está a fazer e tu podias...
O irmão Breccan sorriu de novo.
— Tu pertences à nossa fé? — perguntou-lhe ele. O jovem, o irmão Colm, sentara-se à mesa com os olhos cuidadosamente afastados da cortina e da enxerga, envolvendo a malga de sopa de peixe que Helga lhe dera com as mãos, para as aquecer. O outro continuava imóvel.
Creidhe abanou a cabeça.
— A minha mãe é... sacerdotisa dos Folk e a minha irmã também — disse ela. — Somos da velha fé. Mas respeitamos a tua. Os irmãos só têm praticado o bem nas Ilhas Brilhantes. Por favor, ajuda-nos.
— Tudo o que acontece é da vontade de Deus; vamos pedir a Sua misericórdia. — Era imaginação sua ou o tom daquele monge sorridente tinha a mesma lugubridade das palavras de Gudrun, de Helga e de Frida? Creidhe estremeceu e nesse momento o homem que se mantinha na soleira afastou o capuz da cabeça e deu um passo em frente.
— Bem, bem, Gudrun — observou ele suavemente — aparece-te cada um à porta. Nunca ouvi dizer que as mulheres dos Folk fossem louras; não é suposto serem pequenas e de cabelos escuros? — O monge tirou a capa num movimento fluido e deixou-a cair em cima de um banco sem se preocupar com o movimento precipitado de Helga para o fazer por ele.
Creidhe fixou-o. Os modos daquele homem não podiam ser mais diferentes dos de Breccan; as suas palavras pareciam uma espécie de desafio. A jovem esquecera-se de Somerled. Mas agora, ao olhar para aquele par de olhos escuros de uma intensidade penetrante, a demanda de Thorvald regressou-lhe à mente e teve um pressentimento angustiante. Teria dito o que não devia? Mas não. Ficou descansada. O homem que se aproximou da luz da lâmpada para se sentar ao lado de Colm era demasiado velho. Na parte de trás da sua cabeça tonsurada, os cabelos do irmão Niall eram totalmente brancos. As sobrancelhas eram da mesma cor alva, incongruentes sobre uns olhos negros, penetrantes. O rosto era suave, esbelto e tinha poucas rugas. A jovem reparara no mesmo fenômeno em Hrossey; se era devido à vida simples que levavam, labutando nos campos e subsistindo de um peixe ou dois, uma côdea de pão duro, dormindo em cima de pedras e pedindo alegremente ao seu deus uma bênção, ou se era, simplesmente, dos seus corações e mentes abertas, todos os irmãos da Ilha Sagrada possuíam umas feições serenas, despreocupadas e jovens, como se os anos passassem por eles mais levemente devido à sua bondade. Aqueles três tinham o mesmo aspecto; a Creidhe, pareceu-lhe que eles traziam a luz que faltava àquele lugar.
— O meu pai veio das terras nevadas — disse ela, já que parecia necessária uma resposta. — Um guerreiro de fama considerável. Penso que seria melhor continuarmos.
Porque Jofrid lhe agarrara subitamente na mão com dedos frios e duros como o ferro, lançando um longo gemido, um som parecido com um grunhido, que Creidhe reconheceu imediatamente. Em breve, a parturiente teria de começar a fazer força. Não faltava muito.
Talvez aquela cabana fosse a maior da aldeia, mas permitia pouca privacidade, com ou sem cortina. A jovem podia ver como Colm estava pálido, como se preferisse estar noutro lugar qualquer.
— Despachem-se — disse ela aos homens enquanto Jofrid gritava de dor, apertando-lhe a mão com uma força incrível. Em seguida, Creidhe ficou de tal modo ocupada que registrou apenas vagamente que o irmão Breccan andava pelos cantos da sala rezando numa língua que ela reconheceu como sendo Latim, mas da qual não compreendeu nada. Colm, com os olhos fixos no chão, seguia atrás do monge do Ulster com um pequeno frasco de água na mão, com a qual borrifava de vez em quando o chão, a pedra da lareira, a mesa e a porta que estremecia sob a ventania, como se fosse saltar dos gonzos e estatelar-se no solo a qualquer momento. A voz de Breccan era firme, clara, infinitamente tranqüilizadora. O terceiro homem, o irmão Niall, permanecia na sombra, junto da parede. Olhando para ele de soslaio, Creidhe apanhou um brilho de metal no seu flanco, nas pregas do seu hábito castanho gasto: uma faca? Desde quando andavam os eremitas cristãos armados? Como se se tivesse apercebido do seu exame, o homem de cabelos brancos virou ligeiramente a cabeça; olhou para ela e um pequeno sorriso, divertido, curvou-lhe os lábios. O brilho prateado desapareceu, o monge cruzou tranquilamente as mãos. No entanto, Creidhe não crescera em vão na casa de um Pele-de-Lobo. A jovem reconheceu o seu porte, aparentemente tranqüilo, mas com todos os músculos do corpo atentos. Pronto para se movimentar a qualquer momento: pronto para qualquer sarilho. O irmão Niall, pressentiu ela, nem sempre fora um homem de Deus.
Ao mesmo tempo que o lamento do vento e os grunhidos de sofrimento de Jofrid, o fluxo de orações continuou. O rosto duro de Gudrun parecia cansado, esgotado e as feições mais suaves de Helga coradas e ansiosas. Frida estava sentada como uma estátua antiga e desaprovadora e aquele homem, Niall, mantinha uma presença silenciosa e vigilante na sombra. Jofrid estava exausta, os seus olhos muito abertos fixando o vazio e parecia inútil insistir com ela, mas Creidhe continuou. A criança tinha de nascer, ou morreriam as duas. Continua a tentar... força... continua a puxar... Era imaginação de Creidhe ou os esforços da parturiente eram cada vez mais fracos? Creidhe rezou para que não fosse assim; Jofrid tinha de manter o vigor suficiente para expelir o bebê. A jovem ouvira falar de casos em que a mãe perdia a vontade e a criança tinha de ser retirada do seu corpo à força; Creidhe sabia que não conseguiria fazer isso. Mesmo com o mais competente dos cirurgiões, não conhecia nenhum caso em que a mulher tivesse sobrevivido. Por vezes, a criança sobrevivia. Geralmente, morriam as duas num lago de sangue.
— Jofrid, — disse Creidhe — na próxima vez, não pares de fazer força. Creio que vi a cabeça dele há um momento. — Senta-a — ordenou ela a Gudrun. — E tu acrescentou ela, acenando com a cabeça na direção do rosto sombrio de Frida — ampara-lhe as costas. Helga, arranja um pano limpo; segura no bebê quando ele sair e verifica se respira. E agora...
Então, Jofrid gritou, fez força, todas trabalharam em conjunto e a minúscula cabeça do bebê apareceu cheia de cabelos escuros e pegajosos, seguida pelo rosto branco-azulado. Creidhe teve um sobressalto.
— Pára de fazer força!
— Tem o cordão à volta do pescoço — observou Frida secamente, ao mesmo tempo que espreitava mais de perto, levando um dedo sujo às feições pequenas e fechadas. — Está morto.
Mais atrás, o fluxo de orações continuava. Um pedido de misericórdia, um lamento de morte? Quem poderia dizer?
— Não digas isso! Não lhe toques! — Creidhe sentiu o seu rosto corar, as lágrimas caírem-lhe pelas faces e sentiu uma raiva imensa. — Helga, vê se ela não faz força, é vital. Jofrid, isto vai doer um pouco. Não te mexas. Tens sido muito corajosa; aguenta-te um pouco mais.
Tinha de ser rápida, antes que o espasmo seguinte tomasse conta da barriga de Jofrid e lançasse o bebê para o exterior, estrangulando-o devido ao cordão em redor do pescoço, roubando-lhe a vida no momento do nascimento. Maldita Frida. A criança não estava morta; Creidhe não permitiria que isso acontecesse.
A jovem enviou uma prece aos espíritos que, eventualmente, a quisessem ajudar. Firmemente, colocou uma mão por baixo do minúsculo crânio para o amparar, sentindo a fragilidade da tênue vida e inseriu a outra no interior de Jofrid em busca do cordão. Jofrid gritou, um som animalesco de dor e de medo.
— Não faças força — disse Helga com a voz a tremer. — Respira devagarinho, Jofrid. Não faças força.
Depressa, um dedo, dois entre o cordão e o pequeno pescoço, segurando-o firmemente por causa da camada de muco e de sangue, ah, conseguira; e enquanto Jofrid arquejava e Helga a acalmava com voz trêmula, Creidhe passou o cordão por cima da cabeça do bebê e libertou-o.
— Aaaah! — Jofrid expeliu todo o ar que tinha nos pulmões e, com um último grito, a criança nasceu. Ficou imóvel e azul nos braços de Creidhe.
— Eu disse-te — disse Frida.
— Chega! — Espantosamente, fora Gudrun a falar. — Cala essa boca!
Ficaram por um longo momento a olhar para o recém-nascido: um rapaz, pequeno, perfeito, mas muito quieto.
— Onde? — sussurrou Jofrid. — Dá...?
As faces de Creidhe estavam cheias de suor. A jovem não conseguia falar. Aquilo ainda não tinha terminado.
— Dá-mo — disse Helga. A mulher pegou no bebê, que ficou nos seus braços imóvel e sem responder, como um peixe em cima de um cepo. Helga abriu-lhe a boca e inseriu nela um dedo para lhe limpar as vias respiratórias.
— Não vale a pena — resmungou Frida, mas ninguém a estava a ouvir: todos os olhos estavam fixos na criança. Até o vento acalmara no exterior das paredes da cabana.
Helga segurou o bebê pelos tornozelos e pô-lo de cabeça para baixo. O jovem, Colm, prendeu a respiração. Aquela prática era comum, desimpedindo os pulmões para permitir que o bebê respirasse; mas, como qualquer rapaz de dezesseis anos, nunca testemunhara um parto. Helga deu-lhe uma palmada nas costas e depois outra; não houve sinal de vida.
— Maldito — resmungou Frida e nesse preciso momento a pequena boca abriu-se para revelar um muco que deixava de ter a cor azulada da morte para se tornar violáceo e depois cor-de-rosa e ouviu-se um vagido no compartimento iluminado pela lâmpada, um arquejo, uma proclamação soluçante de presença. Jofrid irrompeu em lágrimas.
— Muito bem — disse Creidhe, fungando. — Embrulha-o, ele é muito pequeno. Portaram-se todas muito bem.
Durante alguns momentos, o mais puro alívio substituiu tudo o mais. A jovem supervisionou o que faltava fazer; a lavagem e a mudança de roupa. Creidhe manteve os olhos na criança, agora nos braços da mãe e tentando atabalhoadamente agarrar num mamilo; com o tempo, alimentar-se-ia bem, era um lutador. A jovem obrigou Jofrid a beber um pouco de leite quente. Creidhe tentou perceber, envolta na bruma do cansaço, por que razão Jofrid não parara de gritar; por que razão Gudrun não conseguia, senão, um ligeiro sorriso; por que razão Helga, ocupada a cortar pão e queijo e a servir uma cerveja aguada, continuava a olhar nervosamente para a porta e para as janelas sempre que o vento as abanava. O vento soprava de novo. Mas agora já não tinha importância. Fosse pelas orações de Breccan, pela habilidade de Creidhe, ou pelo fato de, ao fim todas se terem portado bem, a criança estava viva e isso é que interessava.
A jovem apercebeu-se de que estava demasiado cansada para continuar e como tudo se passara de acordo com os seus desejos, sentou-se à mesa com a comida e a bebida na sua frente. As outras ficaram de pé ou sentaram-se em volta do compartimento. Por que estavam tão caladas? Na enxerga, Jofrid ainda soluçava baixinho com a criança nos braços. Gudrun mantinha-se sentada à parte, de rosto fechado. No outro lado, Frida fazia o mesmo. Com gente daquela, pensou Creidhe, esgotada, qualquer mulher choraria. Helga estava a cortar o resto do pão. A faca estremeceu nas suas mãos. Breccan e o rapaz pareciam calmos; estavam a comer com entusiasmo. Creidhe suspeitou que aquela refeição magra era um festim para eles. O outro, o irmão Niall, não comia nem bebia. Mal se mexera do seu lugar, na sombra.
Creidhe estava demasiado cansada para comer. A jovem não resistiu, cruzou os braços em cima da mesa e pousou a cabeça neles, só por um momento... Levantar-se-ia daí a momentos para que Helga pudesse descansar...
Aconteceu tudo muito depressa: oh, tão depressa. Uma súbita mudança no vento, uma subida mudança na sua voz; por cima do seu uivo, vozes de homens, não palavras de desafio, antes gritos de medo. As lâmpadas tremeluziram e apagaram-se, todas, mergulhando a sala na escuridão à exceção da leve luz provocada pela lareira. Um terror frio apoderou-se do coração de Creidhe e ela começou levantar-se sem saber o que se estava a passar, o que fazer, ao ver nos estranhos olhares dos presentes não o choque, não o medo, mas um terrível fatalismo: a aceitação de uma inevitável crueldade.
— O que é? — murmurou ela, mas ninguém lhe respondeu. O irmão Breccan estava de novo a rezar com uma voz menos firme e, com a respiração entrecortada, Colm juntou-se-lhe, as duas vozes em conjunto, não em Latim, dessa vez, mas numa língua mais antiga: Kyrie eleison, Christe eleison...
As vozes aproximaram-se. Estavam ali, no interior da cabana, se bem que a porta e as portadas estivessem fechadas por causa do vento. Forças como aquelas entram como querem; não precisam de autorização. Era um grito, uma canção, uma música terrível que soava no interior da cabeça e atingia o cérebro, vibrando nos ouvidos, insinuando-se na boca e no nariz, pulsando na própria respiração, arrancando todos os sons do corpo do ouvinte, como se lhe quisesse sugar todas as forças. Ressoava no sangue, ressoava nas veias, ressoava no coração. Creidhe esfregou os olhos, se bem que não houvesse nada para ver. A jovem levou as mãos aos ouvidos, mas a canção continuava, rasgando-lhe o espírito e a vontade, procurando roubar-lhe a identidade. Ela aspirou profundamente e deixou sair o ar. Não se era impunemente filha dos seus pais sem saber o que era a coragem. Yyrie eleison... Christe eleison...
— Fora! — Creidhe levantou-se com as mãos ainda nos ouvidos e os olhos abertos para a escuridão, ao mesmo tempo que lhe faltava a respiração. — Por todos os antepassados, desapareçam daqui! — Era uma loucura esperar obediência a uma ordem daquelas; ela não era uma mulher sábia. No entanto, tinha de tentar por amor ao pai e à mãe e à sua sabedoria. Pelo menos, tinha de tentar.
O terrível som decaiu e fluiu, como se uma força maligna circulasse no interior do compartimento. Creidhe pensou sentir uma espécie de riso, um riso amargo, triste, um lamento de derradeira desolação e um grito sarcástico de troça, tudo ao mesmo tempo. O som percorreu a câmara uma, duas, três vezes e, com um último grito terrível de tremenda intensidade, pareceu rodopiar na direção da lareira, insinuou-se na chaminé e morreu; o compartimento ficou numa escuridão total.
Durante um longo momento, ninguém falou. Até Jofrid estava silenciosa. Então, houve um movimento e surgiu uma pequena luz vacilante: alguém estava a acender uma vela nas brasas por baixo das cinzas da lareira. Acendeu-se uma lâmpada. A luz tocou nos cabelos brancos do irmão Niall enquanto ele atravessava o compartimento, acendendo todas as lâmpadas de óleo de foca. As suas feições estavam impassivas.
Creidhe estava gelada. Mais fria do que nunca, mesmo quando ensopada e miserável por baixo do convés do Sea Dove depois de um dia de viagem infindável. Estavam todos a olhar para Jofrid. Jofrid já não chorava. Estava sentada na cama com o rosto cor de cinza e olhos vazios. O bebê jazia no seu colo ainda embrulhado no cobertor de lã. Ninguém disse nada.
Foram os passos mais longos que Creidhe alguma vez deu: na direção da cama de Jofrid. A jovem fez um esforço para olhar para baixo. O bebê estava imóvel, já não tentava mamar; os olhos, vagos, não procuravam discernir a luz da sombra; as mãos minúsculas, como duas flores, estavam imóveis, mais pálidas do que o tecido em que se mantinham abertas. Creidhe não precisou de olhar de novo para perceber que estava morto.
Depois, durante alguns momentos, tudo foi confusão. Creidhe não chorou. Na verdade, não sabia se o que sentia era dor ou ira, ou apenas o reconhecimento gelado do fracasso. Todo aquele dia de trabalho, toda aquela noite de esforços tinham sido inúteis. Sentia dor, certamente. Fosse qual fosse a força que provocara aquilo, por que a deixara salvar primeiro o rapaz, por que a deixara gozar aquele pequeno triunfo para depois lhe tirar?
A jovem sentou-se com a cabeça entre as mãos e deixou que os outros fizessem o que tinha de ser feito. Jofrid regressou à sua própria cabana com Helga a seu lado. Frida desapareceu. Entraram alguns homens, falaram com Gudrun e voltaram a sair, levando consigo os eremitas: até os monges tinham de dormir. Creidhe estava consciente da presença de Gudrun movendo-se pelo compartimento juntando pratos, tirando a palha da enxerga, arrumando coisas. Era tarde; devia ir deitar-se, ou seria apanhada pela manhã. Mas não parecia capaz de se mexer. Gudrun desaparecera na parte norte da cabana, onde estavam armazenadas as suas coisas para o Inverno; o som de um mugido e o de baldes a tocarem uns nos outros sugeria que talvez se demorasse um pouco. Creidhe sentiu o peso do cansaço e das saudades de casa. Por todos os deuses, como conseguira que tudo desse errado? Estava tão certa de poder ajuda-las. Havia ali uma feitiçaria maligna, horrores para além do pior dos pesadelos. Regressa, gritava algo dentro dela, uma voz que não conseguia calar, se bem que sentisse vergonha dela. Oh, por favor, regressa depressa. Quero ir para casa.
— É difícil.
Creidhe olhou, estupefata; pensara que estava sozinha, mas parecia que o irmão Niall não tinha ido com os outros. O monge estava ali na sua frente, do outro lado da mesa, fixando-a com as suas feições graves.
— Estás a chorar; ou devias, se ainda tivesses forças. Não é tanto a morte desta criança que te magoa, é antes o fato de não teres conseguido evitá-la. Essa pode ser a lição mais difícil deste mundo, não conseguir evitar o inevitável. Ficar a olhar enquanto outros destroem a tarefa que sabes poder desempenhar na perfeição. É uma lição difícil de engolir. Para alguns, é impossível não fazer qualquer coisa, não lutar. Sabem que estão a fazer o que está certo, o que deve ser feito; como é possível não tentar? No entanto, numa ocasião como esta, a ação só piora as coisas. Um enigma.
Creidhe sentiu de novo a raiva.
— Suponho que me vais dizer que a criança morreu por vontade de Deus e que eu devo aceitar isso? — perguntou ela em ar de desafio e viu os cantos da boca dele torcerem-se, divertidos. — Como te atreves? Qual é o deus capaz de ficar contente com o fato de Jofrid ter perdido os seus três filhos? Qual é o deus que decide que a vida de um bebê deve acabar antes sequer de ele ter hipótese de respirar como deve ser? Por que me daria eu ao trabalho de o salvar e depois...
As suas palavras esvaíram-se.
— Como eu disse antes — não havia julgamento na voz de Niall — foi o teu orgulho que ficou ferido; pensaste que podias ser uma heroína, que conseguirias fazer o que esta gente achava impossível, e falhaste. E agora, estás mesmo a chorar. Suspeito que elas tentaram avisar-te, mas tu não as quiseste ouvir.
As lágrimas começaram a correr livremente; ela procurou um lenço, fungando.
— Elas nunca me disseram nada; nunca me falaram do que aconteceria. O que foi aquilo, afinal de contas? Aquele vento, aquelas vozes? — Para lá da sua angústia, Creidhe sentiu uma espécie de gratidão; irritante, talvez, mas, pelo menos, ele estava a falar com ela.
— O inimigo deles foi gravemente ferido e riposta como pode — disse Niall, sentando-se na sua frente e cruzando as mãos no tampo de pedra. O povo de Asgrim nunca compreendeu o que significa viver aqui, um lugar muito antigo, um lugar selvagem. Não se perturba um domínio destes sem se pagar um determinado preço. À superfície, Aqueles-Cujo-Nome-Não- Se-Diz parecem-se conosco; homens e mulheres comuns. Falam a nossa língua; até se parecem conosco. Mas não são como nós. Os primeiros que chegaram aqui encontraram um povo que já cá vivia, um povo envolto em magia e com poderes para além do entendimento dos da nossa espécie. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz vêm da união de duas raças. Se não forem controlados, são muito perigosos. Não sabemos como têm estes poderes, esta magia, que retiram do fundo dos seus corpos. Ainda não conseguimos descobrir como esta música estranha nos atinge aqui, na Ilha das Tempestades, quando os seus cantores vivem a sul e raramente põem o pé nas nossas praias. Tudo o que sei é que esta magia é terrível, um grande poder utilizado deficientemente por falta de controle, por falta de liderança. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz nem sempre estiveram em guerra com a tribo de Asgrim. O povo das Facas Longas cometeu um erro e agora pagam-no com as vidas dos seus recém-nascidos.
— Um erro? — Creidhe sentiu-se ao mesmo tempo fascinada e repugnada. A voz do eremita mantivera-se calma e tranqüila; o monge não parecia afetado pela estranha visita e mais parecia que estava a falar do tempo.
— É verdade. Por um golpe do destino, algo foi roubado: uma coisa de grande valor para Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Até que seja devolvido, ou substituído, essas vozes ouvir-se-ão em cada nascimento, o povo das Facas Longas é caçado e perde o futuro; à medida que o tempo vai passando, os tênues laços que o ligam a estas ilhas vão-se desapertando, porque a caça diminui o seu número. Um povo mal governado; o seu governador não é grande coisa.
Creidhe tentou compreender, a sua cabeça zumbindo devido à falta de sono.
— Uma coisa de grande valor? Que coisa? Um tesouro? Armas? Um talismã?
Niall sorriu ligeiramente.
— A última coisa que mencionaste estará, provavelmente, mais perto da verdade. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz perderam o símbolo da sua fé: a pedra da sabedoria. Perderam aquilo que mantém os seus incríveis poderes sob controle. Foram os homens de Asgrim que lhe tiraram e a colocaram fora de alcance, exceto para os que têm a sua bênção. Agora, o seu povo está preso a isto até encontrar uma solução.
— Por que não me disseram? Por que não me explicaram nada?
Os olhos de Niall semicerraram-se.
— Eu tenho uma teoria; posso discuti-la contigo, mas não aqui, onde podemos ser ouvidos. — Ouviam-se os sons provocados por Gudrun a tratar do gado. — Mas suponho que o conhecimento da situação não teria mudado as tuas intenções. Estou certo?
Creidhe sentiu as faces corarem.
— Achas que sou louca — disse ela, sentindo-se castigada.
— Louca na tua coragem, talvez.
— Falaste numa solução. O governador falou de guerra. Isso preocupa-me. Os meus amigos foram com ele. Eles não são guerreiros; um é pescador e o outro um... um estudioso, suponho que se lhe pode chamar assim. Que guerra? O povo de Asgrim luta contra Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, esse povo que é capaz de uma magia tão terrível? Que hipóteses têm homens normais contra feitiços tão perversos? — O pensamento de ver Thorvald a combater já era suficientemente mau; Thorvald à mercê de um demônio qualquer era uma coisa impensável.
— Perverso? É tudo relativo. — Niall franziu o sobrolho. — Asgrim devia abrir a mente a todas as possibilidades, expandir um pouco a sua visão. Ele passa muito tempo a aperfeiçoar as capacidades dos seus homens com o fito na caçada. Não faz qualquer esforço para investigar algumas alternativas, para encontrar outra saída.
— A caçada de que estão sempre a falar, mas sobre a qual não falam. Que caçada é?
O monge abriu muito os olhos cor de carvão e ergueu as sobrancelhas.
— Os homens de Asgrim andam à caça do que perderam e não conseguem encontrar, mas que têm de encontrar se querem sobreviver. Procuram aquilo que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz desejam mas que não podem vir buscar, já que esta ilha lhes é proibida. O... o que é que tu lhe chamaste? O talismã deles.
— Ah. — Ela tentou imaginar o que poderia ser: uma pedra, uma jóia, um osso sagrado com a forma de um animal. — Então, é mais ou menos uma caça ao tesouro do que uma caça a um animal? Eu pensei...
Ele sorriu; era uma expressão sem alegria.
— Ambas as coisas — disse ele. — Duas coisas numa.
Ouviu-se um restolhar, o ranger da porta das traseiras da cabana.
Gudrun estava de regresso.
— Tenho de ir — disse o irmão Niall, levantando-se agilmente. Não dava mostras de cansaço. — Não vale a pena flagelares-te. Não podemos evitar o inevitável. Este povo é culpado da própria desgraça.
Creidhe sentiu-se chocada.
— Isso é uma visão estranha para um monge cristão. — Não pôde ela deixar de dizer.
— Achas? — O monge estava a vestir a longa capa. Esta ainda não tinha secado e cobriu-lhe o corpo, pesada e escura. — Creidhe? — O tom da sua voz baixou subitamente, tornando-se num sussurro. — Temos de falar, os dois, amanhã. Talvez não estejas segura, aqui. Devias pensar... — O monge calou-se; Gudrun tinha regressado, bocejando ruidosamente enquanto abafava a lareira. — Boa noite — disse suavemente o eremita, dirigindo-se para a porta. — Talvez apareça amanhã de madrugada, antes de partirmos. Vivemos tempos tristes, Gudrun. — E, com aquilo, desapareceu.
Os pensamentos sombrios mantiveram Creidhe de olhos bem abertos até os primeiros alvores entrarem na cabana de Gudrun e então, abruptamente, a exaustão venceu e ela adormeceu. Tencionava levantar-se cedo e caminhar pelo carreiro que atravessava a aldeia, como era seu costume. Esperava apanhar o eremita sozinho, no exterior; as suas palavras de aviso tinham-na preocupado. Além disso, era um alívio poder ter uma conversa com pés e cabeça, apesar de os comentários do irmão Niall, por vezes, serem quase incompreensíveis. Mas ficou até muito mais tarde presa à rede de sonhos perturbados, quando foi acordada pelo som de vozes zangadas. A jovem levantou-se rapidamente, vestiu a túnica, meteu os pés nos sapatos e penteou os cabelos o melhor que pôde no canto escuro em que dormira. Estava só: a voz de Gudrun era uma das que ouvia no compartimento. Creidhe encaminhou-se para lá e depois parou, gelada, ao ouvir o que diziam.
— Há muito que te devia ter expulso desta ilha! — A voz era asperamente autoritária: Asgrim tinha regressado, demasiado tarde para a criança, mas tinha regressado e, pelo som da sua voz, vinha furioso. — Vocês são um bando de ignorantes. Que pensavam conseguir? Tornei bem claro que estavas proibido de vir a Água Brilhante, mas continuas a vir aqui cuspir as tuas doutrinas de tolerância e indulgência. De que serviu a Jofrid, ou a nós? Alguma vez alguém dos Facas Longas se virou para a tua cruz nestes anos todos que vocês têm aqui passado como autênticos parasitas? O episódio da noite passada só ilustra aquilo que já todos sabemos: as vossas preces são completamente inúteis. O nosso inimigo continua encarniçado contra nós e mais uma criança sucumbiu apesar das vossas litanias sem significado. Quanto a ti, tinhas obrigação de saber como é. Existem regras e as regras são para serem cumpridas, a não ser que queiramos mergulhar num caos total. Tem de ser assim para tua inteira proteção.
— Foi a rapariga que nos convenceu. — Creidhe mal reconheceu a voz de Gudrun, de tão amortecida. A mulher parecia quase assustada.
— A rapariga? — O tom de Asgrim era mordaz. — Como pôde ela influenciar-te? O papel dela já está determinado. Sabes que é assim.
— Quando vimos que não chegarias a tempo — disse Gudrun — pareceu-nos que uma oração ou duas não fariam mal nenhum.
— Regras, Gudrun — ralhou-lhe Asgrim. — Nenhum de nós se pode dar ao luxo de acordar isto.
— Não voltará a acontecer — disse Gudrun. Ouviu-se uma tosse polida.
— Regressemos ao assunto que temos em mãos. — Aquela voz era calma e ponderada: era a voz do irmão Niall. Creidhe sentiu-se percorrida por uma onda de alívio e saiu do canto onde dormia. Estavam os três de pé, Asgrim ainda com a pesada capa e as botas enlameadas e com uma faca à cintura, Gudrun à lareira e o eremita tranquilamente perto da porta com a capa pelos ombros, pronto para a viagem. Não havia sinal do irmão Breccan ou do jovem, Colm. O governador, certamente, não viera sozinho. Devia ter trazido alguns homens consigo. Talvez...
— Thorvald e Sam — disse ela subitamente, entrando na sala — vieram? Eles vieram? — Para casa: iria para casa e o pesadelo acabaria. O irmão Niall fixava-a zombeteiramente; a jovem reparou que estava a ser mal-educada.
— Peço desculpa. — Creidhe dirigia-se ao eremita. — Adormeci. Vais-te embora?
— Ah — disse Asgrim antes que Niall pudesse responder. — Creidhe. Disseram-me que fizeste os possíveis para ajudar nos tristes acontecimentos da última noite. Estamos em dívida contigo. Lamento, mas vim sozinho, apenas com Skapti, o meu guarda. Os teus jovens amigos estão muito ocupados. O irmão Niall ia-se agora mesmo embora. Depois, acho que um pequeno-almoço nos faria bem.
Gudrun virou as costas e começou a fazer tilintar potes e frigideiras.
— Não te atrases por nossa causa, irmão. — A voz de Asgrim era gelada.
— Ah. — O tom de Niall era um eco da do outro. — Temos um assunto pendente; não me lembro de responderes à minha sugestão. Limitaste-te a perder as estribeiras. Eu acho que a meditação é uma excelente ajuda para o autocontrole. Devias tentar, um dia des...
— Chega! — troou Asgrim. Os pratos fizeram barulho em cima da mesa. — Vai-te embora! A tua sugestão não merece uma resposta, é ridícula. Uma rapariga solteira sozinha no alto daquele monte numa casa de homens? É uma pura loucura!
— Nós juramos celibato, todos nós — disse Niall monotonamente. — Creidhe ficaria em segurança no eremitério, muito mais do que aqui. E o que aconteceu esta noite? Estas visitações não transpõem a nossa soleira. Pelo menos, devias dar uma hipótese à tua jovem hóspede. — Ele olhava diretamente para Creidhe, tentando enviar-lhe uma mensagem qualquer com aqueles olhos escuros e enigmáticos.
— Oh — disse ela, surpreendida. — Oh... posso ir para lá? — Sempre era preferível àquela prisão: acabariam os silêncios estranhos, as manifestações fantásticas, deixaria de ver a sorumbática Gudrun e a carrancuda Frida. Melhor ainda, haveria gente com quem falar, homens bons, honestos como os irmãos da Ilha Sagrada. — Não quero parecer mal-agradecida — disse ela para Asgrim — mas gostaria de ir. Só até Thorvald e Sam regressarem. Acho que vou; muito obrigada.
A jovem sorriu para o eremita; ele inclinou cortesmente a cabeça.
Havia qualquer coisa no silêncio que se seguiu que a deixou muito pouco à vontade. Gudrun deixara de fingir que estava a cozinhar e estava, agora, muito quieta; Asgrim respirou profundamente.
— Está combinado — disse tranquilamente o irmão Niall. — Eu espero enquanto arranjas as tuas coisas. Nós vivemos frugalmente, mas ficarás quente e serás bem alimentada. E, como dizes, é só até os teus amigos regressarem. É muito melhor assim. — O monge levou a mão ao puxador da porta.
— Não me parece. — Asgrim já não gritava: o governador manteve a voz muito suave. — Creidhe — disse ele, virando-se para ela e segurando-lhe nas mãos — não gostarias de estar aqui quando os teus amigos chegarem? Eles podem estar de volta dentro de um dia ou dois. Por que não ficas conosco mais um pouco? Estou certo que Jofrid gostaria muito; disseram-me que ela gosta muito de ti e, é claro, ela vai precisar que a consoles depois da perda que sofreu. — Asgrim suspirou. — Outro rapaz; mais um pedaço de futuro que desapareceu. Jofrid chora sem cessar. Creidhe, eu sei que não queres perder a chegada dos teus amigos. Eles vão ter tanto para te contar.
O governador olhou para Gudrun.
— Asgrim tem razão — disse Gudrun. — Além disso, tu ajudaste-nos mais do que seria de esperar; o que aconteceu não teve nada a ver contigo. Tu fizeste o possível. Deixa-nos pagar-te o que te devemos. Fica mais um pouco; os teus amigos gostarão de te ver aqui quando regressarem.
Creidhe nunca a ouvira falar durante tanto tempo.
— Bem... — disse ela. A jovem pensou na longa viagem de Thorvald de regresso a Água Brilhante; imaginou o seu sorriso quando a visse de novo, sã e salva. Aquilo valia, certamente, mais um ou dois dias de espera. No entanto, o irmão Niall dissera que ela, ali, não estava segura; e aquelas vozes que transportavam consigo a morte? E se regressassem? Ele não tivera oportunidade de lhe explicar o que significavam. — Não sei. Thorvald e Sam vão mesmo regressar brevemente? — Parecia-lhe que estava ali há uma eternidade à espera.
— Sem dúvida, minha cara — disse Asgrim, sorrindo. — Eu venho agora mesmo do acampamento onde eles estão. Eles falam muitas vezes de ti com afeto. Terei muito prazer em te falar das façanhas deles à mesa do pequeno-almoço, isto se Gudrun ainda não se esqueceu de como se cozinha.
— Creidhe devia ir comigo — disse Niall firmemente. — Estou certo que é o mais acertado. No fim de contas, não é longe; tenho a certeza que nós...
— Chega. — A voz de Asgrim era cortante como uma lâmina. — A rapariga fica aqui à espera do namorado dela; ela tem sido muito paciente, não achas? Além disso, terá muito tempo, depois da chegada deles, para ir lá acima visitar o teu estabelecimento, se ela quiser. Os rapazes podem acompanhá-la: não há nada de impróprio nisso. Que dizes, Creidhe?
— Por favor, fica, Creidhe — disse Gudrun. — Jofrid precisa de ti.
Aquilo foi tão inesperado que Creidhe quase não conseguiu responder.
— Creio que já te demoraste o suficiente, irmão Niall — disse Asgrim, e nesse momento a porta abriu-se para revelar um homem muito grande vestido de cabedal e armado com uma lança. — Adeus, irmão Niall — acrescentou o governador.
— Lamento — conseguiu Creidhe dizer. — Gostaria de poder ir; gostaria de poder conversar contigo e com os outros. Mas preciso de estar aqui quando Thorvald e Sam regressarem; é disso que eles estão à espera.
O irmão Niall acenou com a cabeça. O monge parecia indiferente ao gigante de olhar feroz nas suas costas e ao olhar severo do governador.
— Lembra-te — disse ele tranquilamente a Creidhe — nós estamos lá, se precisares. A nossa porta está sempre aberta. Sobe o carreiro a leste do vale e encontra-nos. Um bom dia para ti, Gudrun.
O homem de cabelos brancos virou-se e saiu; o grande guarda afastou-se para o deixar passar. Por trás dele, Creidhe avistou o irmão Breccan e o jovem Colm, esperando no exterior. A chuva transformara-se num chuvisco fino. A jovem virou-se para o governador.
— Conta-me — disse ela avidamente. — Fala-me de Thorvald e de Sam.
Na Ilha das Nuvens a chuva caía com um sussurro frio, refrescante, cobrindo as encostas, prateando os campos e pondo as aves a cantarem umas com as outras. Guardião estava na encosta leste com Pequenino nos calcanhares, olhando para a Ilha das Tempestades. Os seus olhos fixavam-na penetrantemente: pequenos barcos aproximavam-se da praia distante, empurrados pelo vento, de regresso da pesca. Algum fumo elevava-se de lado na atmosfera, vindo do abrigo do Fiorde do Conselho. As gaivotas gritavam por cima da Ilha do Dragão, competindo pelos melhores bocados. Ali, na ilha, as aves não precisavam de guerrear daquela maneira. Ali, elas compreendiam-no e ele a elas. Elas davam-lhe o necessário para manter Pequenino vivo: alguns ovos cuidadosamente escolhidos; os próprios corpos, capturados gentilmente, com amor. A execução feita na perfeição, como devia ser, com mãos fortes e suaves e palavras de respeito pelo sacrifício feito. Os homens eram diferentes. Vinham com ódio nos corações, para onde não pertenciam. Quando matava um homem, não via razão para ter misericórdia.
Mais tarde, Pequenino mexeu-se durante o sono, choramingando. Guardião não dormia. Estava sentado em frente dos restos da fogueira confinada pelo anel de pedras e escutava as vozes. Havia uma tempestade por cima do Fiorde do Conselho, mas os seus ouvidos eram os de um caçador. Aquela canção chegada longe e profundamente, abrindo caminho através do turbilhão do vento e do dilúvio. Guardião colocou uma mão sobre o ouvido de Pequenino, posto a descoberto pelo cobertor coçado. A outra mão foi ao próprio pescoço, tocando no ornamento que usava, um estreito círculo de cabelos entrançados em tempos de um louro brilhante, agora manchado e sem cor, mas forte: a parte mais forte dele. Sula. O seu nome era o talismã que os mantinha em segurança. As vozes carpiram ao vento, declinaram e fluíram com as vagas, choraram amargamente a perda que sentia profundamente no seu coração. Não lhes prestaria atenção. Sula, mantenho-me fiel à promessa. Sou-te fiel.
A música subiu de tom até se transformar num choro, num lamento frenético que lhe rasgava o coração. Pequenino chorou nos seus sonhos e Guardião deitou-se a seu lado, curvando o corpo para se aconchegar ao dele e estendendo um braço para o proteger. Esperou. Finalmente, as vozes enfraqueceram e desapareceram, completa a colheita até à próxima vez, e à seguinte. Quantas estações, quantas crianças ainda para o povo dos Facas Longas? Não ia pensar naquilo. O que acontecia ao povo de Asgrim não era da sua conta; a loucura deles é que tinha provocado aquilo.
Pequenino gemeu de novo, mexendo-se na escuridão.
— Estou aqui — murmurou Guardião. — Dorme. Estás em segurança. Estarei sempre aqui.
CAPÍTULO CINCO
Em quem há de um homem confiar?
Num deus silencioso, num irmão ausente?
O coração chora para o vazio, impotente.
NOTA A MARGEM DE UM MONGE
Estavam acampados no topo de longo fiorde, num local onde, em tempos, existira uma aldeia com telhados de turfa e uma casa substancial para conselhos e reuniões. Se bem que não fosse muito longe de Água Brilhante, podia ser uma terra diferente, de tal modo era tudo diferente. Havia muitos homens no acampamento, dormindo comunalmente na casa do conselho. Os seus dias eram empregues numa espécie de preparativos para a guerra. Havia uma regra que ninguém quebrava: ninguém saía dali sem o consentimento de Asgrim. E ninguém pedia para ir a parte nenhuma. Havia um acordo não expresso por palavras que dizia que as saídas do acampamento só aconteciam quando o governador tinha assuntos a tratar. Geralmente, ficavam de guarda dois ou três homens no carreiro que se dirigia para leste, apenas para ficarem descansados. Thorvald percebeu que, desde o princípio da Primavera até meio do Verão, pelo menos, aqueles ilhéus não mantinham qualquer contato com as suas mulheres e filhos, com os amigos, com as suas comunidades. Aquilo era necessário por causa da caçada.
Os dias eram passados na manutenção dos barcos e das armas, na preparação do equipamento de combate. Estavam sempre ocupados, se bem que Thorvald fosse muito crítico quanto àquilo tudo, já que as coisas não andavam para a frente. O jovem manteve-se calado. Quanto ao governador, percorria o acampamento inspecionando os trabalhos dos homens, sempre seguido por um ou outro dos seus grandes guarda-costas. As suas críticas eram ásperas e vexatórias. O governador andava tenso, como se esperasse qualquer coisa. Mantinha-se fechado, dormindo à parte numa cabana reservada para esse propósito e comendo as suas refeições quase sempre em silêncio. Aparecia à noitinha para dar ordens ríspidas para o dia seguinte. O par de formidáveis guerreiros que o serviam como guarda pessoal era um incentivo adicional à obediência.
As leis de Asgrim eram absolutas e ele não hesitava em fazê-las cumprir pela força, se necessário. Uma vez, um dos homens foi apanhado a beber do barril da cerveja. Thorvald não testemunhou o castigo, mas fosse ele qual fosse, o culpado ficou sem se ter de pé durante três dias. Os dois homens responsáveis pela quase queda de Creidhe na falésia nunca mais tinham aparecido. Quando Thorvald perguntou por eles, Orm resmungou algo acerca do lago e de um certo precipício, regressando depois a um silêncio total.
Com ou sem Asgrim, precisavam de madeira para reparar o Sea Dove. Parecia apropriado, portanto, fazer o que lhes pediam. Assim que se soube a sua profissão, Sam passou a remendar os pequenos barcos que estavam nas lagoas deixadas pelas marés, por baixo do abrigo. Havia uma provisão razoável de madeira já aparelhada: traves de pinho e de freixo, e pedaços de outras, algumas já aparelhadas, outras como as marés as tinham atirado para a praia. Sam fez amigos e meteu ombros à sua tarefa com vontade, observando a Thorvald que não demoraria muito até rumarem para casa com o Sea Dove como novo. O mastro ia ser um desafio, mas o jovem reparara num pedaço de madeira que poderia trabalhar; fizera nele uma marca, apenas para ter a certeza. Assim que aquelas amostras de barcos estivessem prontas, pediria polidamente o que lhe era devido e pronto.
Quanto a Thorvald, o caso não era assim tão simples. Em Hrossey, aproximara-se do círculo da sua mãe e do de Eyvind e Nessa, o grupo que mantinha a ordem e a cultura nas Ilhas Brilhantes. O jovem estava acostumado a discussões abertas sobre estratégia, planejamento de esforços no comércio ou numa aliança, na discussão de assuntos de justiça e lei. O debate excitava-o; as idéias intrigavam-no.
Ali, não tinha essa possibilidade. Aqueles ilhéus não passavam de simples fazendeiros e pescadores; nunca questionavam o julgamento do governador e, aparentemente, nunca procuravam saber mais do que o pouco que ele lhes dizia.
Era evidente que uma das regras que Asgrim lhes impunha era o segredo. Sam parecia conversar durante o dia todo e os seus companheiros respondiam-lhe prontamente. No entanto, à hora do jantar, Sam só tinha histórias de ventos, de marés e de improváveis bacalhaus enormes para contar. Para Thorvald, meter conversa com aqueles homens era como andar às cegas através de um labirinto de ruelas e becos. O jovem precisava de saber o que se estava a passar. Queria saber. Como filho do homem que se intitulava governador, podia haver ali um lugar para si, um lugar e um propósito, se fizesse tudo como deve ser. Era evidente, pela maneira como se faziam ali as coisas, que a eficiência não era grande, e ele sabia como remediar a situação. Mas aqueles homens eram extremamente obstinados, tristes e silenciosos e ele não sabia como quebrar a barreira que erguiam à sua volta.
Passaram-se muitos dias sem que Thorvald conseguisse qualquer informação sobre a natureza da caçada de que falavam. O jovem trabalhara ao lado de alguns homens na preparação das armas e compreendera alguns passos da batalha, observando-os e armazenando o que ia aprendendo. O jovem quis falar com Asgrim. Cada vez lhe parecia mais provável que aquele autocrata silencioso fosse Somerled; a sua autoridade impiedosa e língua cáustica acentuavam essa suspeita. Na sua mente, Thorvald colocou o homem na história que Margaret lhe contara, uma história cruel de conquista e fratricídio sangrento e achou que Asgrim assentava nela como uma luva. E as suas maneiras secretas, evasivas, ocultas. Thorvald via naquilo e nos olhos escuros e vigilantes um reflexo desconfortável de si mesmo.
Decidiu fazer a Asgrim algumas perguntas incisivas sem desvendar a verdade da sua missão. Assegurar-se-ia de que conseguiria respostas que provassem a sua teoria, de uma maneira ou de outra. Se Somerled se tornara no governador das Ilhas, conseguira o que ninguém esperava. Forjara uma vida; tornara-se, mais uma vez, um líder de homens. Por outro lado, tornavam-se evidentes, a cada dia que passava, as imperfeições da liderança de Asgrim. O jovem ansiava por começar, por fazer mudanças. Tudo o que necessitava era de uma explicação. Se o governador lhe contasse a razão daquela caçada, estava certo de poder fornecer sugestões, começando por algo que acordaria aqueles aspirantes a guerreiros de uma mentalidade que parecia aceitar a derrota antes, sequer, de começar a batalha. Mas Asgrim preferia manter-se indisponível. Depois da primeira entrevista, não mostrara inclinação para conversar com Thorvald ou com Sam e aquele começou a acreditar que se limitariam a ganhar a madeira de que precisavam e que regressariam à Baía Sangrenta sem mais palavras. A sua frustração cresceu. Precisava de saber se Asgrim era merecedor de saber a verdade. Ao fim de algum tempo, começou a suspeitar de que Asgrim já sabia e que preferira não o reconhecer publicamente. Decididamente, o governador evitava-o.
Entretanto, havia trabalho para fazer e Thorvald descobriu, até um determinado ponto, que não podia continuar a permitir que eles o fizessem tão mal. Se havia uma coisa que Ash lhe ensinara fora a fazer o melhor uso do que se possuía, fosse ele material em bruto, talento ou espírito de iniciativa. Além disso, a atitude deles irritava-o. Por que se davam ao trabalho de lutar se já partiam derrotados?
Os homens estavam a acabar uma fornada de lanças. As hastes tinham sido cortadas com machados, enxós e facas dos ramos de um grande freixo morto, um tesouro valiosíssimo lançado para a praia por uma tempestade de Primavera e armazenado até à Primavera seguinte. As pontas eram de ferro. Os pontos mais altos daquela ilha tinham minério de ferro e na encosta por cima daquela enseada abrigada trabalhava dia e noite uma forja. O seu fogo brilhante, alimentado com esterco e turfa, era o coração daquela colônia de homens.
Aquelas lanças eram de arremesso, de pontas longas e delgadas, algumas com a forma de folhas e outras triangulares, ou farpadas. Eram mais rudes do que as que os homens de Eyvind usavam em Hrossey, de qualidade inferior, de acabamento tosco; no entanto, eram capazes de provocar danos se usadas com habilidade. Thorvald estava a dar forma ao topo de uma haste, onde a ponta seria colocada. Tinham feito, naquele dia, mais de dez, assim como algumas flechas. A sua enxó movia-se cuidadosamente, suavizando a madeira.
— Reparei — disse ele casualmente — que estamos a fazer muitas lanças, assim como flechas. No entanto, vocês já têm uma grande provisão. Perdem muitas, é?
O homem a seu lado deu um grunhido de assentimento. Os outros acenaram com as cabeças sem fazerem uma pausa na sua firme labuta.
— É claro que — continuou Thorvald — vocês sabem como deixar a cunha mais ou menos solta?
Os homens olharam para ele sem comentar, sem expressão.
— Não? É muito simples. Trata-se de ter a certeza de que o inimigo não vos atira de volta as que vocês falharem. Mantenham a cunha no lugar, segurando a ponta da lança, assim, estão a ver? Até estarem prontos para lançar, mas devem deixá-la um pouco solta para ser facilmente tirada. Então, antes de fazerem o lançamento, tiram a cunha.
— Uma lança sem ponta nunca matou um homem — observou Orm com a sua barba sedosa, olhando para Thorvald sem expressão. — A não ser que se lhe acerte num olho, talvez.
— Repara — disse Thorvald. As lanças já acabadas estavam encostadas à parede de pedra; o jovem escolheu uma que ele próprio fabricara, bem equilibrada. Havia um alvo para testar esse mesmo equilíbrio antes de serem declaradas prontas: um homem de palha com uma pele extra de serapilheira. Alguém utilizara barro colorido para desenhar umas feições rudes, uns olhos penetrantes e uma boca trocista.
Thorvald tirou a cunha da lança, fazendo de modo que todos vissem o que estava a fazer. O jovem ergueu o braço, tomando o peso à arma, apontou e lançou. Ouviu-se um silvo e um baque.
— Eu disse-te — disse Orm, carrancudo. — Cai.
Mas já os outros corriam para o homem de palha, apontando e exclamando.
— Olha! Mesmo no alvo e a haste separou-se da ponta.
— É magia — disse Ranulf com voz tensa. — É um mistério.
— De fato — disse Wieland, aproximando-se e inserindo um dedo no buraco que a arma fizera no peito do homem de palha, no lugar onde seria o coração — não é provável que o inimigo consiga devolvê-las, se tiver de andar à procura das pontas para as amarrar de novo às hastes antes de as lançar. — O homem olhou para Thorvald com os olhos semicerrados. — Como é que isso funciona? Como é que isso se faz?
Thorvald esboçou um sorriso.
— Não é feitiçaria nenhuma, podes ter a certeza. Trata-se apenas de um movimento para a frente. Enquanto a lança percorre o ar, a força com que é impelida mantém a ponta no lugar. Só quando a arma atinge o alvo é que as duas coisas se separam. Depois da batalha, é possível reunir as duas coisas e fazer lanças de novo. É muito simples, mas retarda o inimigo na fase inicial do ataque, o que te dá vantagem. — Os homens olharam para ele de olhos esbugalhados, silenciosos; o jovem pensou detectar uma ligeira mudança nos seus olhos. — Querem tentar? — perguntou ele.
A partir daquele momento, os homens passaram a colocar as cunhas de maneira diferente, de modo a saírem com facilidade. A uma sugestão de Thorvald, Ranulf e Svein foram buscar a provisão ao armazém e passaram algum tempo a modificá-las. Entusiasmado com aquele pequeno sucesso, Thorvald continuou com as suas perguntas.
— Que armas é que o inimigo tem? Parece que nós temos poucas espadas, facas e até lanças. Este material é bom para uma primeira fase. E quando avançarmos?
Silêncio de novo, não exatamente hostil, simplesmente sem expressão. Einar, um dos primeiros a recebê-los na Baía Sangrenta, era o mais velho e o mais pronto a contribuir com mais do que um grunhido ou um suspiro. O homem olhou para Thorvald de olhos semicerrados, maxilares apertados e depois virou a sua atenção para a corda do arco que estava a experimentar. Não responder parecia uma espécie de defesa, um muro de proteção que tinham aprendido a erguer em redor de si próprios. Aqueles homens não eram estúpidos: Thorvald vira com que rapidez eles aprendiam, uma vez despertado o interesse. Wieland, em particular, um jovem com cabelos cortados à escovinha e olhos tristes, parecia pronto a abraçar idéias novas. Aquilo era, simplesmente, uma profunda resistência, como se, lá bem no fundo, estivesse uma crença que o grupo não podia alterar, por mais que tentassem. Aquilo enfurecia Thorvald; não valia a pena, era uma perda de tempo, e ele resolveu mudar aquilo nem que lhe levasse o Verão inteiro. Trataria, primeiro, dos homens e deixaria o líder para o fim. Aqueles homens precisavam de ajuda; tinha de pôr, por algum tempo, a sua demanda de parte. Além disso, era a melhor maneira de mostrar ao seu pai a sua iniciativa, as suas qualidades, dedicando todo o seu esforço àquela tarefa! Se ele era, realmente, o seu pai.
— Esse inimigo tem machados? Espadas? — perguntou-lhes ele. — Ou vamos atacar uma fortaleza inexpugnável?
Uma longa pausa. Talvez, pensou Thorvald, se tivesse enganado e os ilhéus fossem lentos de pensamento.
— Ajudava — acrescentou ele, chamando a si o que lhe restava de paciência — se eu soubesse o que temos pela frente.
Orm clareou a garganta.
— Pergunta ao governador — resmungou ele. — É melhor que seja ele a explicar-te.
— O governador não fala comigo — disse Thorvald. — Por que não me dizem vocês?
Os homens olharam uns para os outros com olhares furtivos, receosos.
— Lanças de ossos vivos — murmurou um deles.
— Dardos envenenados — disse outro.
— Pedras — resmungou outro e os outros acenaram com as cabeças. — Grandes pedras que vêm pelo ar; decapitaram um homem no Verão passado.
— Vento, vagas, marés — disse Orm. — O inimigo tem aquilo que nós não temos: feitiçaria. Mas é melhor não te dizermos mais nada. Pergunta a Asgrim. Ele sabe. O governador sabe o que fazer.
— De qualquer maneira, que queres tu dizer? — perguntou um deles, com a voz a subir de tom, desconfiada. — Ajudava, disseste tu? Ajudava quem? Ajudava o quê?
Thorvald viu-se, subitamente, sem resposta, porque não podia dizer o que lhe ia na cabeça: Se eu soubesse a verdade acerca da situação, podia ajudar-vos a ganhar a guerra. E, depois desse, outro pensamento, se bem que não soubesse de onde tinha vindo. Podia liderar-vos.
— Não interessa — disse ele, como que por acaso. — Não tenho nada a ver com isso, claro. No fim de contas, só estou de passagem. — A pretensão de indiferença não parecia estar a resultar: os homens estavam todos a olhar para ele de maneira suspeita. — Eu mostro-vos uma maneira de meter mais flechas nestas aljavas. Vocês falaram em dardos envenenados? Já pensaram em usar alguns, também?
Thorvald sabia, claro, que Asgrim estava a vigiá-lo. Asgrim vigiava toda a gente. O que era razoável porque Thorvald, por seu lado, vigiava o ameaçador chefe de guerra. O jovem aprendeu os hábitos diários do governador, a sua disciplina, os meios que utilizava para se assegurar de que os homens andavam sempre um pouco cansados, um pouco receosos, não pensando, assim, em questionar as suas ordens. Thorvald reparou nas diferenças entre um dos grupos, mais pronto a falar e a sorrir, trabalhando exclusivamente nos barcos num dos extremos da baía, e os outros, Einar e os seus companheiros, unidos na sua reticência e naquela expressão severa. Thorvald tentou imaginar se eles só veriam a morte no futuro; reunira informação suficiente para saber que muitos se perdiam sempre que defrontavam aquele estranho inimigo. Entre vigiar o governador e tentar fazer compreender àqueles homens que nada mudaria a não ser que arranjassem algumas idéias novas, os seus dias eram sempre muito cheios. À medida que o tempo passava, o jovem viu a sua mente cada vez menos preocupada com Somerled e com perguntas acerca do seu caráter, ou acerca do caráter do seu pai, e mais com coisas práticas, como a de se assegurar de que os homens sabiam a técnica base de estancar o sangue de um ferimento, ou colocar novas penas numa flecha. Estranhamente, parecia estar a divertir-se.
Tinham chegado à ilha há quase duas luas. Thorvald já sabia os nomes dos homens quase todos e aprendera um pouco acerca de cada indivíduo, mas pouco. Era como se eles achassem que uma troca de palavras era uma coisa que não valia a pena. O jovem não conseguira iluminar o olhar de desânimo que todos eles pareciam possuir, como se os seus esforços estivessem destinados a um insucesso inevitável. Mudar aquele olhar tornou-se, para ele, numa outra demanda, porque não gostava de ver homens mergulhados no desespero, especialmente quando uma grande parte desse mesmo desespero se devia a uma má liderança.
Dedicou-se a um de cada vez. Wieland parecia o alvo ideal, porque o jovem estava sempre muito atento quando Thorvald explicava qualquer coisa nova e podia ser visto muitas vezes a mostrar aos outros maneiras diferentes de amarrar a ponta de uma flecha, ou de segurar no escudo. Mas Wieland era um homem reservado. Tinha o hábito de observar, não de falar. Assim, foi por Skolli, o ferreiro, que Thorvald começou, sabendo que, mesmo em tempo de desespero, um artesão tem o seu orgulho. O jovem manteve-se na soleira da pequena forja, observando, de braços cruzados, o ferreiro a martelar um pedaço de ferro até o transformar na ponta aguçada de uma lança. Skolli usou as tenazes para erguer o metal cada vez mais escuro e mergulhá-lo no barril de água. O vapor ergueu-se na atmosfera.
— Trabalhaste aqui durante toda a tua vida? — perguntou Thorvald, como que por acaso.
Skrolli lançou um grunhido enquanto virava o ferro na água.
— Fiorde do Conselho, Baía Sangrenta, ilhas exteriores.
— Como é que aprendeste o ofício?
— O meu pai. — A ponta de lança saiu do barril, foi colocada de novo na bigorna e foi cuidadosamente inspecionada. — Ele veio do outro lado do mar. Sempre a queixar-se. Dizia que o ferro, aqui, era de má qualidade, de segunda categoria. Estou a ver que é verdade. As tuas armas são de melhor qualidade, superiores. Dá-me um pouco desse ferro e eu faço dele uma coisa de que qualquer homem se poderá orgulhar.
Thorvald sentiu-se encorajado.
— É claro que — disse ele espontaneamente — se estas ilhas fizessem comércio com, por exemplo, as minhas, ou com as que estão a norte, terias o ferro de boa qualidade que quisesses. O governador já pensou nisso?
— Ah — grunhiu Skrolli, pondo de lado a peça terminada e inclinando-se para limpar a fronte com um trapo. O homem suava as estopinhas. — Comércio? Quem tem tempo para pensar nisso, com a caçada pela frente? Um homem não pensa em comércio quando luta pela sobrevivência. Não que algumas armas decentes não ajudassem; nisso tens toda a razão.
— Portanto, não tens hipótese de melhorar o material — disse Thorvald, sentando-se no banco junto da porta. O calor vindo da forja era intenso; o jovem tirou a capa dos ombros. — E o corte? Eu não sei muito, mas trabalhei com homens que tinham pertencido à guarda pessoal de um Jarid, tenho algumas idéias... É claro que terias de me dizer se não fossem práticas. Eu acho que, com este ferro e a tua habilidade, poderíamos produzir uma espécie diferente de ponta de lança, mais apropriada a este terreno... — Thorvald pegou num galho carbonizado e começou a desenhar no banco, pronto para a troça de Skolli, ou para o seu silêncio. — Duas espécies, talvez, uma com um rebordo à volta, assim, e a outra maior e mais estreita, fácil de lançar e fácil de arrancar. Hastes mais longas e mais leves para estas, para que os homens as possam transportar com facilidade através dos campos. Que achas?
— Interessante. — Skolli tirou o graveto da mão de Thorvald, apagou o diagrama e começou de novo. O olhar no rosto do homem surpreendeu e aqueceu o coração de Thorvald; aquilo despertara, na verdade, a sua atenção. — Eu podia obliquar o rebordo para baixo e deixar uma aresta ao longo do centro, o que lhe daria um pouco mais de peso quando do lançamento — continuou o ferreiro. — Essa teria a cunha removível, ao passo que a outra ficaria fixa para o combate corpo-a-corpo, não que se veja muito disso na ilha.
Seguiu-se uma pausa enquanto Skolli olhava para o seu desenho, pensativo.
— Na ilha? — perguntou Thorvald.
— A Ilha das Nuvens — disse Skolli, absorto. — A caçada é lá. Repara, acho que consegui. Que pensas disto?
— Excelente — disse Thorvald. — Quando é que podes fazer uma fornada?
— Amanhã. Quero aperfeiçoar o desenho mais um bocado, assegurar-me de que é mesmo assim. Os tipos que se despachem com as hastes. Hjort é o melhor homem para cortar a madeira, e aquele pescador, Knut, também não é mau. E descobre como testá-las. Arranja qualquer coisa para que a diferença seja grande; a nova versão e a velha versão. É capaz de ser difícil convencer os tipos a mudar.
— E Asgrim? Conseguiremos persuadi-lo a mudar?
— Não sei — resmungou Skolli, que estava outra vez a desenhar. — Nunca ninguém se atreveu.
Os desenhos novos eram bons. Testadas em corrida, contra alvos estacionários e por homens de diversas estaturas e constituições, provaram ser superiores em tudo e depois de Einar as ter aprovado com um aceno de cabeça não demorou muito tempo até os outros concordarem e darem uma palmada nas costas de Skolli, congratulando-o pelo seu trabalho. Skolli disse-lhes que o trabalho era seu, mas que a idéia era de Thorvald. Na ocasião, ninguém comentou. Mas Thorvald detectou uma mudança sutil a partir dali. Os homens sentiam alguma relutância em deixá-lo tomar a liderança nas manobras em curso; na verdade, até se treinavam muito pouco no combate corpo-a-corpo. Mas começaram a ouvir os seus conselhos acerca de armas e táticas e, ocasionalmente, um dos homens de mais confiança, Einar ou Orm, davam a sua opinião ou reconheciam o bom senso das sugestões de Thorvald.
O jovem começou a juntar informação. Einar já estava preparado para falar mais abertamente sobre o que estava para vir; e uma manhã, nas poças deixadas pela maré por baixo do abrigo, Thorvald encontrou o homem a caminhar junto da água, as suas botas deixando marcas ao lado das deixadas pelas gaivotas e andorinhas-do-mar, e perguntou-lhe diretamente:
— Skolli disse-me que a caçada terá lugar na Ilha das Nuvens. — Dali, a silhueta da ilha podia ser vista claramente para lá da boca do fiorde, escura e misteriosa com as suas encostas envoltas em nuvens, no meio da extensão prateada de água. — Eu percebo as tuas dificuldades como chefe dos homens; eles parecem derrotados e não se treinam como guerreiros que vão enfrentar um desafio desta natureza. Asgrim não te facilita as coisas.
Einar olhou de soslaio para ele, franzindo o sobrolho.
— Devias ter cuidado com o que dizes, Thorvald. Os recém-chegados não têm direito a nenhum tratamento especial. O governador não gosta desse tipo de conversa.
Thorvald falou calmamente.
— Eu não estou a criticar o governador, nem a ti. Vejo muito bem que ambos tentam fazer o melhor possível nestas circunstâncias difíceis. Não quero adiantar-me, mas acredito que posso contribuir com alguma coisa, se me deixarem.
Einar não disse nada. O homem ergueu as sobrancelhas numa expressão interrogativa, prudente.
— Dás-me autorização para comandar os homens em alguns exercícios de combate? Talvez discutir contigo e com Orm algumas idéias para organizar melhor os dias de trabalho deles, para que todos eles sejam testados, física e mentalmente? Creio que, se conseguirmos fazer isso, se conseguirmos ocupar melhor o tempo deles, para que não tenham tempo de pensar no medo que os assalta, talvez possamos mudar o modo de eles pensarem nisto, nesta caçada.
— Ah sim?
— Sim. Eu acredito que sim, Einar. Mas não posso fazer isso sem mais informações. Preciso que me fales na caçada, na batalha, ou lá o que é. Quem é o inimigo, que armas possui, quais são as suas vantagens? Fala-me do terreno e nas dificuldades que encontraram lá. Diz-me quando teremos de estar prontos. Diz-me por que razão os homens estão tão desanimados, tão aterrorizados que nem trabalham como deve ser. Diz-me isso e eu ajudo-te a mudar as coisas.
Thorvald esperou algum tempo, nervoso. Arriscara-se muito. De todos, Einar era o único que parecia ter a confiança dos homens. Era o que mais se aproximava de um verdadeiro líder. Asgrim não contava. Esse fazia as suas próprias regras e não levava em linha de conta as opiniões dos outros. Como governador era ineficaz e isolava-se arrogantemente dos seus homens, protegido pelos dois enormes guardas que andavam sempre na sua sombra, provocando o medo em todos. Um chefe de guerra não podia liderar convenientemente se os seus homens não o conheciam. Não podia liderá-los em condições se eles tinham medo dele. Talvez, por isso, as coisas tivessem corrido mal com Somerled nas Ilhas Brilhantes. Thorvald sentiu um nó no estômago. Podia ajudar o pai naquela guerra, tinha a certeza. Mas talvez ninguém o pudesse ajudar. Talvez ele estivesse fora de alcance. Talvez Asgrim não quisesse um filho.
— Difícil — disse Einar em tom baixo. — Asgrim prefere que não falemos disso. Especialmente com estranhos. Precisarias da aprovação dele para fazeres o que dizes. Não podes agir sem ele, a não ser que queiras enfrentar Hogni, ou Skapti, ou ambos.
— Bem, não. — Thorvald pensou nos dois guarda-costas com os seus olhos ameaçadores e pescoços espessos, musculados. — Mas não posso deixar que as coisas continuem assim. Não está certo.
— Por que te preocupas? — perguntou Einar, sem expressão.
— Porque... — Thorvald sentiu-se, momentaneamente, perdido. — Porque eles são todos bons homens e eu não gosto de ver homens bons a desistir. É a única resposta que tenho para te dar.
— Hum! — disse Einar, olhando para Thorvald com uma expressão um tanto diferente nas feições gastas. — Suspeito que não sabes no que te vais meter, mas admiro a tua coragem. E vais necessitar de alguma ajuda. Mas há uma maneira certa e outra errada de fazer as coisas. Eu não vou contra as ordens do governador. Não sobrevivi a cinco viagens à Ilha das Nuvens por ser estúpido. — A sua mão moveu-se para tocar nas cicatrizes paralelas que tinha na face. Thorvald já sabia que aquilo era um distintivo de honra, uma cicatriz nova cada vez que um homem participava na caçada e regressava para contar a história. Cinco era o máximo, sinal de que era um guerreiro veterano. — Precisas de saber uma coisa ou duas — continuou Einar. — Não se trata, exatamente, de ganhar uma batalha. Trata-se de permanecer vivo enquanto tentamos descobrir o que procuramos.
O coração de Thorvald bateu com mais força: finalmente, informação, algo que podia ser utilizado.
— E que procuram vocês? — perguntou ele.
— Uma criança — disse Einar com alguma relutância. — Um prisioneiro.
— Um dos vossos? Prisioneiro da tribo que vive lá?
— Acontece que — disse Einar — não é bem uma tribo de guerreiros, é uma força da natureza, um inimigo que usa a feitiçaria e outros truques para nos derrotar. Nós só temos algumas lanças e flechas, ao passo que o inimigo só precisa de abrir a boca para as entranhas dos homens se desfazerem.
— Que queres dizer? — Aquilo era muito estranho. Uma criança! Como podia uma criança valer a perda de tantas vidas, o dispêndio de tanto esforço? Havia ali uma história qualquer e ele tinha de a descobrir.
— Já disse mais do que devia — resmungou Einar. — Se queres saber a história da caçada, vai ter com Asgrim. Só voltaremos a falar disso depois.
Thorvald calou-se. Meia história sempre era melhor do que nada. Mas esperava mais.
— É — continuou Einar, virando-se para se dirigir para o abrigo vou falar com os outros, em particular com Orm. — Nós sabemos que tu tens idéias novas. Sabemos que queres ajudar. Mas não vai ser fácil persuadi-los. Compreenderás quando Asgrim te falar daquilo que enfrentamos aqui. Se nós parecemos derrotados antes mesmo de a batalha começar, é porque há uma boa razão. Vais ter uma tarefa difícil pela frente.
— Eu não, nós — corrigiu-o Thorvald. — Nós temos uma tarefa difícil pela frente. Um desafio.
— Veremos — disse Einar.
Ainda não tivera oportunidade de falar com Sam. O pescador trabalhava durante o dia todo, ora na praia reparando os barcos, ora no Fiorde, tirando do oceano cheio de truques e surpresas a alimentação dos homens. À noite, dormiam todos na casa comprida, nas plataformas de terra erguidas de cada lado. Ali, a conversa nunca era privada e era sempre interrompida por queixas ruidosas daqueles que queriam dormir.
Sam apanhou Thorvald uma tarde, quando os fabricantes de armas estavam a arrumar tudo e os pescadores transportavam o produto da pesca para o abrigo. A chuva caía com intensidade; naquelas ilhas era possível, num só dia, testemunhar todas as estações do ano. Sam transportava aos ombros um saco que parecia ensopado; estava no carreiro, na areia escura, com os seus olhos escuros sem maldade cheios de ansiedade. Parecia mais magro; mais velho, de certo modo.
— A pescaria foi boa? — perguntou Thorvald. Sam olhou para ele em silêncio.
— Não me digas que foste contagiado — exclamou Thorvald, zombeteiramente alarmado. — A falta de capacidade para falar, quero dizer. Estou a ficar maluco. Mas o teu grupo fala muito, não fala? Tenho reparado.
— Thorvald. — Sam pousou o saco. O jovem parecia alarmantemente sério.
— O que é? O que é que te preocupa?
— Nem sequer devias perguntar-me — disse Sam.
— Ora, diz lá. O que é que se passa?
Sam suspirou.
— Não sabes contar? Já reparaste que a estação está a acabar? Sabes há quanto tempo estamos aqui?
Thorvald fixou o amigo. Que se passava?
— Eu disse-te que isto ia levar tempo — disse ele cuidadosamente. As feições plácidas de Sam pareciam quase zangadas; nele, era uma coisa pouco comum. — Tenho de avaliar a situação, perceber quais são as intenções do homem. Não é fácil falar com ele...
— Já te esqueceste de Creidhe? Ela está sozinha e ninguém me diz quando voltamos. E se lhe acontece alguma coisa? Quer dizer, nós viemo-nos embora e a deixamos...
Thorvald não conseguiu evitar que as sobrancelhas se erguessem, descrentes, se bem que estivesse a fazer os possíveis para compreender.
— É disso que se trata? Creidhe está bem, Sam. Ela disse que não se importava que viéssemos para aqui, não te lembras? Creidhe é uma rapariga forte. Além disso que lhe pode acontecer na aldeia? Ela tem tudo aquilo de que gosta: a companhia de mulheres, confortos domésticos, tempo para tecer e bordar e coisas para ir fazendo. Aposto que a esta hora já ela organizou tudo à medida dos seus desejos. Nem sequer se deve ter apercebido da nossa ausência. Não te preocupes com Creidhe.
— Preocupo, pois — disse Sam teimosamente — e tu também te preocuparias se deixasses o teu pequeno mundo por um momento ou dois.
Thorvald não respondeu. O seu amigo nunca lhe falara daquela maneira.
— Se a coisa te soa mal, lamento, mas é a verdade — continuou Sam com as faces a ficarem vermelhas. — Passa-se aqui qualquer coisa de que eu não estou a gostar e da qual não quero fazer parte. Reparar um barco ou dois não custa nada e ajudar estes tipos na pesca também não, mas eles andam assustados, muito assustados e se pensas que Creidhe está sã e salva com aquela gente e que se esqueceu da família e dos amigos, és estúpido. Algumas das histórias que tenho ouvido provocam-me um nó no estômago. — O tom da sua voz transformou-se num sussurro quando alguns homens passaram perto a caminho de uma caneca de cerveja e do jantar. — Aquele tipo, Asgrim, não presta para nada. Eu sei que ele pode ser o teu pai e talvez não gostes que eu diga isto, mas tenho de o dizer. Estes tipos vão-lhe todos comer à mão, mas não como acontece em Hrossey com Eyvind: não o fazem por respeito. Estes homens têm medo do governador e com razão.
Thorvald encontrou a sua voz.
— Que queres dizer com isso, histórias? — Talvez Sam soubesse mais acerca daquela história estranha da criança prisioneira e feitiçarias. — Que andam eles a dizer?
— Que querem ir para casa, tal como nós. Mas não podem. Têm mulheres nas aldeias, mas não podem vê-las, ou estar com elas. Só no Inverno. Ele não os deixa ir.
— Está uma guerra em curso — disse Thorvald, franzindo o sobrolho. — Os homens não vão a casa durante uma guerra.
— Mais uma coisa. Vem aí uma espécie de batalha, um teste qualquer. Ninguém diz quando ganharmos, ou até se ganharmos. Eles dizem se eu morrer, diz a Helga que tenho um pouco de prata escondida por baixo da lareira, ou se eu morrer, podes ficar com a minha rede. Não soa bem. Estes tipos não são mais guerreiros do que eu, Thorvald. Eu não vim aqui para lutar.
— Estamos a melhorar — disse Thorvald. — O grupo com quem trabalho tem feito avanços, tanto em matéria de capacidade como no fabrico de armas. Pode ser que não precises de ser guerreiro, Sam. Talvez nenhum dos teus pescadores precise de tomar parte nisto.
— Já ouviste falar no que acontece quando um tipo se quer ir embora? — perguntou Sam pesadamente.
Thorvald esperou.
— Asgrim é que dita a lei, aqui. Um jogo, não foi o que disseste? Grande jogo. Sabes o que aconteceu àqueles dois que seguiam Creidhe? Morreram e foram atirados ao mar, foi o preço do erro que cometeram por quase a terem deixado cair da falésia. E a culpa nem sequer foi deles. É claro que, se Asgrim decide que tu és demasiado útil, batem-te em vez de te matarem, o suficiente para evitar que desobedeças de novo, mas não para te deixarem deficiente, já que os deficientes não podem combater. Aqueles dois tipos grandes, Skapti e Hogni, é que fazem esse trabalho sujo por ele. Não quero que Creidhe fique nesta ilha, Thorvald. Acho que devíamos ir para casa.
— É claro — disse Thorvald após um momento de silêncio. — Mas ainda temos a questão do Sea Dove.
— Já ganhamos, certamente, a madeira de que necessitamos — disse Sam. — Só nos resta pedi-la.
— Nesse caso, pede.
— Eu?
— Por que não?
— Pede tu. Esta viagem é tua, não minha. Pede a madeira, pergunta-lhe se ele é o teu pai, pergunta-lhe por que razão castiga homens que só querem uma vida pacífica com as suas redes e famílias. Foste tu que me trouxeste para aqui, juntamente com Creidhe. — A voz de Sam quebrou; nem parecia ele.
— Tenho uma sugestão — disse Thorvald. — E se regressasses com a tua madeira, visses se Creidhe está bem e começasses a reparar o barco? Eu vou mais tarde, depois...
— Depois da batalha? Tu queres entrar nela?
— Temos trabalhado muito; estes homens têm aprendido umas coisas. Eles podem vencer com o que eu já lhes ensinei e com o que ainda lhes vou ensinar até ao Verão. Pelo que ouvi dizer, parece que o que eles têm a fazer é ir buscar além um prisioneiro. Não deve ser impossível.
Sam colocou de novo o saco de peixe aos ombros e virou-se para subir na direção do abrigo.
— Estás a divertir-te, não estás? — Perguntou ele por cima do ombro. — Não te consegues afastar, nem sequer com a vida de Creidhe em risco. Se estás à procura de provas de que és filho dele, conseguiste.
— Ora vá-la, Sam — protestou Thorvald. O estranho comportamento do amigo estava a deixá-lo cada vez menos à vontade. — A vida de Creidhe em risco? Não acredito. Se não gostasses tanto dela, não te teria passado pela cabeça essa possibilidade.
— Pergunta-lhe — grunhiu Sam. — Pergunta-lhe esta noite.
As coisas passavam-se de maneira simples durante aquela última parte do dia, entre o crepúsculo e a hora de deitar. A estação ia avançada e o dia de trabalho era longo. O sono vinha rapidamente depois da refeição. Havia uma lareira no centro da grande cabana, com uma abertura rudimentar por cima que não escoava a totalidade do fumo. Eram acesas duas lâmpadas e os homens reuniam-se em redor do fogo onde um ou dois deles cozinhavam o peixe apanhado, geralmente uma espécie de guisado que continha uma dose bem grande de espinhas aguçadas. Por vezes, tinha alguns vegetais, a maior parte das vezes cebolas que algum deles tinha trazido da sua aldeia. Por vezes aparecia um par de miúdos escanzelados com algumas mensagens. Desse modo, um dos homens soube que a mãe tinha morrido devido a um frio qualquer de Primavera e outro que uma vaca sua tivera gêmeos, um macho e uma fêmea. Nenhum dos homens pediu autorização para regressar a casa. Não havia dispensas: pelo menos enquanto durasse a caçada.
Enquanto o jantar cozinhava, conversava-se um pouco, quase tudo comentários de pescadores respeitantes ao dia de trabalho, à faina, ao tempo e um ou outro comentário sobre um ponto esquisito na rede. Thorvald reparara na popularidade de Sam no meio daquele grupo e também reparara que Sam tinha sempre muito cuidado, não revelando nada de especial e nunca fazendo perguntas delicadas. Ocorreu-lhe que talvez tivesse subestimado o amigo.
Os fabricantes de armas falavam pouco. Já cansados devido ao tempo que levavam a chegar ao abrigo, sentavam-se, derreados e silenciosos, e quando o jantar estava pronto comiam sem proveito aparente. Trabalhar, comer, dormir, pareciam apenas passos necessários numa existência imutável e sem qualquer alegria. Thorvald sentou-se, noite após noite, entre eles e perguntou a si próprio se, a seu tempo, não ficaria como eles: um animal subjugado a uma carga pesada, obediente ao chicote e à voz do dono. O jovem estremeceu. Não era verdade: ele já estava a mudá-los. Ia ensinar-lhes novos truques, novas maneiras. Acenderia uma centelha qualquer nos seus olhos parados, custasse o que custasse; deixaria a sua marca antes de se ir embora.
Asgrim tinha o hábito de descer da sua cabana a tempo de comer. Ali não havia mesas formais, não havia bancos, apenas as grandes plataformas de terra que serviam de cama, de assento e de armazenamento a uma comunidade de trinta homens. O único que dormia fora daquela casa escura e fumarenta era o próprio governador. E os seus dois guardas pessoais, Hogni e Skapti, os maiores e mais silenciosos de todos. De ombros largos e caras de pau, eram irmãos e passavam as noites, por turnos, no exterior da cabana do governador.
Thorvald pensou muitas vezes em sentar-se perto de Asgrim e iniciar uma conversação tão casualmente quanto possível, tentando conseguir algumas pistas e tentar compreender aquele estranho padrão de vida e o conflito entre as ilhas. Tinha tantas perguntas para fazer: qual era, exatamente, a natureza daquele inimigo? Quantos eram? Utilizavam mesmo a feitiçaria nos seus assaltos, ou isso era produto de um medo supersticioso? Por que razão estavam as forças de Asgrim reunidas naquele único lugar, servindo de alvo Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz que vinham do mar, como ouvira dizer que era seu hábito? E por que razão os homens não podiam falar daquilo?
Tudo o que tinha a fazer era estar presente na ocasião adequada e perguntar. Mas, fosse como fosse, estivesse onde estivesse, Asgrim estava sempre no outro lado, ou no fundo da casa, sentado entre homens mais altos e maiores, de modo a Thorvald não lhe poder atrair a atenção. E com tantos homens reunidos num espaço tão pequeno, sempre com o pensamento no descanso, parecia sempre impossível passar por eles e tentar chegar ao governador; na verdade, havia algo de tão estranho nos sentimentos espessos, fumarentos e derrotados à partida daqueles comensais silenciosos que o impediam de fazer quaisquer perguntas antes de lhe surgirem no pensamento.
Assim, Thorvald deixou passar o tempo: demasiado tempo. O jovem não achou que o tivesse desperdiçado. Em frente das suas malgas de guisado sem sabor, aproveitara para observar. Já sabia quais eram os homens que tinham o favor de Asgrim: Orm, Skolli e Einar. Já sabia quais eram os que o governador vigiava com um ligeiro franzir de sobrancelhas: Svein, Wieland e, estranhamente, Sam que, tanto quanto Thorvald podia ver, não dera um passo em falso desde que ali tinham chegado. O homem que fora chicoteado por roubar já não atraía a atenção de Asgrim; uma lição parecia ser suficiente.
Não tinha outra hipótese senão tentar naquela noite. Maldito Sam e as suas ansiedades patetas. Se Thorvald não tivesse abordado o assunto, o amigo fá-lo-ia, provavelmente, por ele, enviando-os aos dois imediatamente de regresso antes de Thorvald poder terminar o que ali fora fazer; antes de descobrir o que queria. Tinha de confrontar Asgrim naquela noite e fazer, com alguma habilidade, com que o homem lhe respondesse.
O jovem esperou. Sentaram-se, cozinharam e comeram, desenrolaram os cobertores, descalçaram as botas e instalaram-se, amontoados, nas prateleiras de terra. Um ou outro foi ao exterior fazer as suas necessidades e Thorvald seguiu-os sorrateiramente. Asgrim estava a caminho da sua cabana solitária com as sombras indefinidas de Hogni e de Skapti, uma de cada lado. Chovia; a oeste, um raio perfurou o céu escuro seguido por um terrível e profundo trovão, como se os gigantes da terra dissessem, zangados: Quem se atreve a perturbar o nosso sono?
— Quero falar contigo — disse Thorvald secamente, saindo da sombra e atravessando-se no caminho de Asgrim. Um instante mais tarde já Hogni o imobilizava pelo pescoço, ao mesmo tempo que Skapti, respirando pesadamente, lhe encostava uma lança ao rosto.
— Ah sim — observou Asgrim, detendo-se. A chuva caía agora pesada e firmemente. — Thorvald. Tens andado muito ocupado.
Hogni mexeu ligeiramente uma das mãos: a dor no pescoço e na cabeça aumentou, sugerindo-lhe que a inconsciência não estava longe.
— Matas um homem só porque se atreve a falar-te? — conseguiu ele dizer, tentando recordar-se se Ash o ensinara a livrar-se de um aperto daqueles. — Não admira que o teu exército seja tão pequeno. — A ponta da lança estava tão próxima do seu rosto que podia ver cada marca de ferrugem no ferro, cada gota de água que corria através do metal escuro. Não fecharia os olhos.
— Achas que devo deixar-te viver? — O tom de Asgrim era ligeiro. A ponta da lança tremeu.
— Depende do que queres — disse Thorvald com dificuldade. Ah, já se lembrava: a finta e o joelho, era esse o truque. — Queres ganhar, ou queres que as coisas continuem como estão? — Subitamente, o seu corpo ficou mole; por um instante, não mais, a surpresa fez aliviar o aperto de Hogni e Thorvald aproveitou para rodar e atingir o adversário com um pontapé bem colocado na dobra da perna. Hogni gemeu; Skapti tentou apanhá-lo descontroladamente com a lança.
— Muito lento — disse Thorvald com a respiração entrecortada do lugar onde estava, por trás do governador. — Devias contra-atacar com um golpe por baixo, seguido de um pontapé. Se quiseres, mostro-te como é, amanhã.
Ouviu-se um rugido de fúria da parte dos dois guardas quando eles se aproximaram, um de cada lado, de dentes cerrados, as feições contorcidas por idênticas caretas de furiosa frustração.
— Chega, homens — disse Asgrim calmamente. — Com este tempo, não; esta chuva está a encharcar-nos. Ide deitar-vos.
— Mas... — disse Skapti, olhando para ele e depois para Thorvald. Asgrim olhou para ele.
— Sim, meu senhor — resmungou Skapti. Hogni flectia os dedos das mãos de um modo que sugeria que ainda não tinha terminado com Thorvald e isso não incluía lições de combate corpo-a-corpo. Os dois guarda-costas viraram-se sem mais uma palavra e desapareceram na escuridão.
— Bem — disse Asgrim friamente — suponho que não tencionas ficar aqui à chuva a noite toda. Segue-me.
A cabana do governador era confortável sem ostentação; o alojamento prático e solitário de um chefe de guerra experimentado. Tinha uma mesa de pedra, dois pequenos bancos e uma plataforma para dormir, onde se via um cobertor dobrado. Tinha uma lareira, ainda quente. Asgrim espevitou as brasas, acrescentou-lhe esterco de vaca e acendeu algumas lâmpadas com um graveto. A luz revelou mais alguns pormenores: parecia que o governador era um homem culto, porque havia um ou dois rolos de pergaminho num nicho por trás de uma faca, de uma espada e de um arco. Asgrim foi buscar uma vasilha com cerveja e encheu duas taças de barro rude.
— Senta-te, Thorvald. Recupera o fôlego.
Thorvald sentou-se. Agora que tinha a oportunidade, não sabia por onde começar. Se errasse, seria despachado sem uma única resposta. Asgrim tinha o rosto fechado e os olhos eram ilegíveis. No entanto, convidara Thorvald a entrar.
— Quando aqui cheguei — disse Thorvald — tu falaste-me de um processo. Uma pergunta, uma resposta. Eu tenho muitas perguntas, mas poucas respostas que te possam interessar.
Asgrim murmurou qualquer coisa que poderia ser um assentimento. O governador sentou-se em frente de Thorvald com uma taça na mão.
— Como é que jogamos este jogo? — perguntou Thorvald. — Talvez devas ser tu a começar, já que estás no teu território. Que queres saber de mim?
Os lábios finos de Asgrim torceram-se num sorriso.
— Vejo que aprendeste qualquer coisa, no fim de contas. Por que razão estás aqui e que procuras? — A pergunta saiu seca, rápida como uma lâmina na escuridão.
O coração de Thorvald bateu com força e depois acalmou-se em obediência à sua vontade.
— Acredito que tenho aqui alguns parentes. Falaram-me de um homem que navegou até estas ilhas, um monge cristão que esteve fora durante muitas estações e que regressou meio enlouquecido pelo que viu. Resolvi vir até aqui e tentar descobrir que o terá confundido aquele homem de fé. Ao mesmo tempo, descobrir se os meus parentes viajaram até estas paragens e o que lhes aconteceu.
— E os teus companheiros?
— Como já disse, um veio porque o barco é dele e eu precisava dele. A rapariga não foi convidada.
— Foi o que me disseste.
— É a verdade. Não tenho razão para te mentir. Na verdade estou aqui neste momento porque Sam quer ir-se embora. Ele quer a madeira que lhe prometeste para começar a reparar o Sea Dove.
Asgrim acenou lentamente com a cabeça.
— E tu?
— Isso são três perguntas.
— Responde e terás as tuas três respostas.
— Tens uma maneira muito rebuscada de conseguir informações na véspera de uma batalha. Não admira... — Thorvald calou-se ao ver o olhar nos olhos escuros do governador. Aquele homem dispunha da vida e da morte com a mesma facilidade com que enchia uma caneca de cerveja. — Muito bem — disse Thorvald. — Eu preferia ficar mais um pouco. Tenho tentado trabalhar com os teus homens, melhorar as armas e o modo de usá-las. Quero fazer muito mais. Acho que posso ajudar-te. Mas não sem mais informação. Os homens falam pouco.
— Os homens obedecem. Um exército tem de obedecer.
— Há quanto tempo travas esta guerra? Quantas ganhaste até agora? — Thorvald esqueceu-se de ser cauteloso. — Estes homens estão cansados, derrotados à partida. Só pensam na derrota. Não consegues grande coisa assim...
Asgrim ergueu de novo a mão.
— São essas as tuas perguntas? — perguntou ele suavemente. Aborrecido, Thorvald sentiu-se enrubescer. O jovem bebeu uma golada de cerveja: era de muito melhor qualidade do que a beberagem que era servida no abrigo.
— Desculpa — disse ele. — Agradecia-te que me falasses da natureza do inimigo a quem chamas Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz: quantos são, onde vivem, como atacam. Não te posso ajudar se não souber isso. Por vezes, ouço falar de uma batalha e por outras, de uma caçada; são as duas a mesma coisa? Que criança é essa que procuramos? Já percebi que temos de ir até à Ilha das Nuvens. Por que razão estamos tão mal preparados para esse combate? Estes homens não treinam com as espadas e as lanças de arremesso, a não ser que eu os obrigue. Parecem pensar que não vale a pena.
— Estamos tão mal preparados? — Thorvald olhou para as próprias mãos.
— Não gosto de ver tanto potencial desperdiçado. Aqui há força, talento, se conseguirmos ultrapassar a atitude negativa. Eu acho e consigo, se me deres uma oportunidade. Se me forneceres informação.
— Hum, — disse Asgrim, bebendo um pouco de cerveja. — E tu podes ser um espião, se bem que os espiões não vão direitos ao quartel-general do inimigo pedir informações detalhadas dos seus planos. Thorvald, talvez já te tenhas esquecido do que me disseste quando aqui chegaste. Pesca, uma tempestade, o desejo de reparar o barco e regressar a casa na primeira oportunidade. Não foi assim?
— Isso é outra pergunta — disse Thorvald. — Primeiro, tens de responder a umas perguntas, acho eu. — O jovem sentiu um suor súbito no pescoço: ali, naquela cabana isolada, era fácil acreditar nas histórias acerca de súbitos e fulminantes castigos. Bastava olhar para as feições pálidas e impassíveis, para os olhos escuros e argutos, para ver o seu próprio reflexo. Por que é que não trabalhamos os dois juntos? Como pai e filho?
— Há aqui uma coisa que me faz uma certa confusão — disse Asgrim, levantando-se para ir buscar ao nicho na parede um dos pergaminhos enrolados. — Sam quer regressar a casa, tu queres ficar. Por outro lado, não sabemos o que se passa na cabeça da rapariga; talvez queira esperar por ti, talvez não. São duas coisas difíceis de conciliar.
— Sam não quer saber de guerras. Ele podia regressar à Baía Sangrenta, se tu lhe permitisses. Podia visitar Creidhe no caminho de regresso e reparar o amado barco. Depois, quando eu acabasse o que desejo fazer aqui... — As palavras de Thorvald morreram lentamente enquanto o governador desenrolava o pergaminho em cima da mesa, colocando pequenas pedras nos cantos para o manter esticado. Asgrim pegou numa das lâmpadas de pedra de sabão e colocou-a de maneira a poderem ver o desenho meticuloso, nítido e complexo na superfície enrugada e acastanhada do pergaminho.
Era um mapa desenhado por um especialista, um mapa que mostrava as ilhas detalhadamente, as curvas e fissuras da linha da costa, os lagos, os rios e as correntes marinhas, os montes, os vales e as minúsculas aldeias. Aqui e ali viam-se palavras, palavras que Thorvald leu: Ilha das Tempestades, Ilha das Correntes, Ilha do Dragão. Arco do Troll, na boca do Fiorde do Conselho. Dedo da Bruxa. A oeste, isolada, a Ilha das Nuvens. A sul, havia ilhas sem nome, terras apenas esboçadas pela pena, como se esses territórios estivessem para lá de uma barreira que não podia ser ilustrada por meio de imagens, ou de texto. As terras d’Aqueles-Cujo-Nome- Não-Se-Diz. Thorvald ficou a olhar para o mapa, incapaz de dizer uma palavra. O jovem conhecia aquela escrita: já a vira antes.
— Algumas das tuas respostas estão aqui — disse Asgrim calmamente.
— Que belo trabalho — disse Thorvald asperamente. O jovem tossiu para aclarar a voz. Chegara a ocasião, tinha de agarrar a oportunidade. — Dou-te os meus parabéns.
Asgrim não respondeu. A sua mão moveu-se para abarcar as ilhas esboçadas a sul.
— Um mapa não mostra tudo — disse o governador. — Não mostra os anos de insucesso, as mortes, a amargura. O nosso inimigo tem um poder que não podemos sequer, imitar; os meus homens sabem isso, viram-no. O seu desespero não é surpreendente. Todos nós sofremos as nossas perdas: pais, irmãos, camaradas. Incluindo eu. — Asgrim inclinou a cabeça.
— Lamento — disse Thorvald, fazendo um esforço para controlar a voz agora que tinha a prova, agora que sabia. — Perdeste alguém de família? — Somerled podia ter casado de novo, provavelmente até o fizera; o exílio não significava, forçosamente, o isolamento total. No entanto, era estranho: nunca lhe ocorrera a possibilidade. Podia ter ali uma madrasta e uma tribo inteira de meios-irmãos. Sempre imaginara Somerled sozinho.
— Uma filha — disse Asgrim calmamente, percorrendo suavemente com os dedos a superfície da Ilha das Tempestades e das ilhas mais a norte. — Uma rapariga tão bonita como a tua amiga, com os mesmos cabelos louros e o mesmo sorriso inocente. Foi levada, roubada, chacinada. E também um rapaz. Mas esse era louco. Os seus esforços disparatados para endireitar o mundo amaldiçoaram-nos o futuro. Nunca teria chegado a lado nenhum; era muito parecido com a mãe. E tu?
A pergunta foi tão abrupta depois daquela declaração amarga que Thorvald quase não percebeu o seu significado.
— Tens família? — perguntou Asgrim, olhando para ele do outro lado da mesa. Entre ambos, jazia o mapa com toda a sua complexidade surpreendente, última peça de um quebra-cabeças cuja solução ainda não era conhecida do seu desenhador.
— Tenho — disse Thorvald com o coração a bater com toda a força. — Mas não vou falar dela enquanto não responderes às minhas perguntas. As regras do teu jogo são para ser cumpridas, não são? — No momento em que mencionasse o nome de Margaret, a verdade seria conhecida, e tudo mudaria. Agora, que estava tão perto, o jovem sentiu, curiosamente, alguma relutância em dar o passo seguinte. Como estranho, podia provar o seu valor. Melhor ainda, pensou ele, aceitaria o desafio, transformando aquele grupo de ilhéus desiludidos numa força de combate com alma e disciplina. Melhor ainda, ganharia a batalha e só então revelaria a verdade. Consegui, e sou teu filho. Não te desapontarei, como outros fizeram.
— Como sabes — disse Asgrim — vivemos numa terra de segredos, de passado estranho, de presente difícil e de futuro desconhecido. Sentimos alguma relutância em divulgar a nossa história; custa-nos muito fazê-lo. Tenho-te observado, esperando até que seja apropriado revelar-te, porque se, como dizes, desejas ter um papel a desempenhar nela, deves tomar conhecimento de um certo número de coisas.
— E que concluíste? — Thorvald conseguiu fazer com que a sua pergunta parecesse despreocupada, como se o seu desejo de saber a verdade lhe interessasse pouco. De fato, mal conseguia esperar. Finalmente, Asgrim ia contar-lhe tudo. O seu pai confiava nele.
O governador esboçou o seu fino sorriso habitual.
— Concluí que me podes ser útil. Pensava que a tua conversa sobre armas fosse a gabarolice habitual de um rapaz da tua idade, um exagero destinado a impressionar. No entanto, as tuas ações e o teu evidente empenhamento em melhorar os esforços dos homens, parecem provar que estava enganado. Se o teu desejo de ajuda é genuíno, acredito que possamos trabalhar em conjunto. Desse modo, deves saber a verdade.
Thorvald esperou.
— Deves compreender — continuou Asgrim — que isto, nestas Ilhas, nem sempre foi assim, o povo das Facas Longas contra Aqueles-Cujo-Nome- Não-Se-Diz, as batalhas, a caçada, o assassínio de crianças...
— Espera um pouco — interrompeu-o Thorvald. — Eu sei que o objetivo da caçada é apanhar uma criança, mas ninguém me falou em assassínio nenhum.
— Faz tudo parte da história; uma longa história de sofrimento. Quando nos instalamos nas Ilhas Perdidas, a vida não era assim. Viemos para estas ilhas como exilados, como banidos, camponeses, pescadores e eremitas, fugindo todos de qualquer coisa, buscando todos algo diferente. Forjaram-se laços; não se pode sobreviver numa terra destas sem eles. Construímos as nossas aldeias e os nossos barcos. Apascentamos o nosso gado nas encostas, forjamos uma vida, criamos os nossos filhos e filhas. Nas Ilhas a sul, na Ilha das Sombras e na Ilha dos Sonhos, vivem aqueles que já aqui estavam antes de nós. Vemo-los pouco.
— Ouvi falar em feitiçaria e magia — disse Thorvald hesitantemente. — Fiquei com a impressão de que essa tribo a que chamas Aqueles-Cujo- Nome-Não-Se-Diz não é inteiramente humana.
O dedo de Asgrim percorreu de novo o mapa, detendo-se na pequena e isolada Ilha das Nuvens.
— Os Invernos, aqui, são longos — disse ele — e os Verões brumosos e tempestuosos. Um clima que provoca medos supersticiosos. Eu mantenho os homens ocupados o melhor que posso e sei, mas as suas imaginações levam a melhor. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz são da nossa raça. Falam a nossa língua. Mas não são como nós. Pensa-se que havia aqui outra raça mais antiga, uma raça que possuía poderes invulgares e que era de uma selvajeria pouco comum. As duas raças cruzaram-se e, com o tempo, transformaram-se num único povo: um povo diferente de qualquer outro, Thorvald. Uma praga, uma maldição.
Seguiu-se um ligeiro silêncio, durante o qual Thorvald tentou decidir a pergunta seguinte.
— Disseram-me — arriscou ele — que essa tribo prevalece graças ao uso de bruxarias e feitiços. Como podemos lutar contra isso? Penso que é o que os homens temem, não a perspectiva de uma batalha normal.
Asgrim sorriu retorcidamente.
— O inimigo e a ameaça são reais; eu perdi o meu único filho. Conheci a dor deste conflito, tal como todos eles. Os antepassados d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz já viviam nestas ilhas muito antes de nós aqui termos chegado em busca de refúgio. O cruzamento de raças deu-lhes faculdades que nós não possuímos, uma força que emana da própria terra. Eles usam essa força contra nós com efeitos devastadores.
— Ventos, marés, clima — disse Thorvald com ar absorto.
— Exatamente. Chama-lhe magia, se quiseres; os meus homens acham que é isso mesmo. Está para além das nossas possibilidades, Thorvald. O nosso número baixa a cada confronto. Além disso, temos as crianças. Isso foi o golpe final. Não admira que só vejas desespero nos olhos dos meus homens. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz roubam-nos o nosso próprio futuro.
Asgrim sentou-se de novo com as mãos apertadas em cima da mesa. Finalmente, Thorvald via algum sentimento nos seus olhos cor de carvão.
— Conta-me a história — disse ele, pegando na bilha e servindo a ambos mais um pouco de cerveja. No exterior da cabana de pedra, o vento erguia-se; a chuva batia como um malho.
— É uma história triste, Thorvald, uma história que fez de nós velhos antes de tempo. Em tempos, vivemos aqui em paz. Eles deixavam-nos em paz; nós não nos aventurávamos até às ilhas onde eles viviam. Havia encontros de acaso de vez em quando, uma borrasca súbita que atirava um barco para uma praia indesejada, um pedido de uma ovelha ou duas em anos de colheitas más. Havia tolerância entre nós, mas não havia quaisquer laços de amizade, ou alianças. Havia uma espécie de conselho, uma vez por ano no Verão, na Ilha das Sombras, que lhes pertence. Eles são um povo de muitos segredos; os seus ritos são determinados por uma rede de leis complexas. Não permitem que mais de três de nós compareçam às reuniões: o governador e dois dos seus homens. Nos primeiros tempos como chefe de guerra, fui a vários conselhos; Einar também. Descobrimos algumas coisas acerca deles. — A voz de Asgrim desceu subitamente de tom, transformando-se num sussurro. — Foi assim que conhecemos Máscara-de-Raposa.
— Máscara-de-Raposa? — Aquilo estava a ficar cada vez mais estranho.
— O sacerdote deles, ou homem sagrado. Um visionário, um guardião da sabedoria antiga. Quando eu me tornei governador já Máscara-de-Raposa era velho. Velho, cego e aleijado. Não aparecia muito, mas eles tinham por ele o maior respeito e reverência, como se ele não fosse uma criatura deste mundo, antes meio-ancião, meio-animal selvagem, capaz de lhes transmitir a sabedoria das rochas e dos poços profundos, dos animais selvagens e das estrelas eternas. Máscara-de-Raposa era o centro da sua existência, a pedra angular da sua crença. Máscara-de-Raposa manteve-os sãos e salvos; disse-lhes como viver as suas vidas, como sobreviver. Sabes, aquele sacerdote aleijado, aquele velho é apenas um de uma longa linhagem de videntes. Máscara-de-Raposa não é um indivíduo singular, é um título; um cargo, por assim dizer.
— Como o de governador.
Asgrim acenou com a cabeça.
— Exato, se bem que não seja um líder tal como nós o entendemos no povo dos Facas Longas. Máscara-de-Raposa não lidera o seu povo na guerra. Máscara-de-Raposa fala: eles ouvem-no e seguem o que ele diz.
— Não parece muito assustador — observou Thorvald, pensando que, na verdade, não era muito diferente do povo de Nessa, outra raça antiga das ilhas. Aquela gente agarrava-se ao conhecimento do céu e da terra, da água e do fogo. Thorvald achava que estavam condenados, mais tarde ou mais cedo, a ser absorvidos por gente mais flexível, gente mais dada à mudança. Mas não era um pensamento que expressasse diante da sua mãe. Não falava dele a Eyvind que, como nórdico, estava ferozmente empenhado na preservação da cultura ancestral da sua mulher. Nem a Creidhe, filha das duas raças.
— Não era assustador — disse Asgrim — até Máscara-de-Raposa ter morrido. Isso aconteceu há algum tempo. Eu era jovem, então, os meus filhos ainda eram crianças, tanto ele como ela. É costume d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, depois da morte, escolher outro para substituir o vidente. Eles fazem isso com alguma cerimônia. Mas, dessa vez, nenhum candidato preenchia as condições. Um Máscara-de-Raposa é escolhido por circunstâncias de nascimento; segue-se um teste para determinar a sua aptidão. Se nenhum membro da tribo preenche essas condições, Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz ficam sem a sabedoria antiga, sem a liderança de que necessitam para viver, para sobreviver nestas terras selvagens. Não havia nenhum visionário; assim, procuraram fora da tribo.
— Estou a ver — disse Thorvald suavemente, sem tirar os olhos das feições duras de Asgrim, da sua boca apertada. — Uma criança? Foi disso que falaste, de roubarem uma criança?
Asgrim abanou a cabeça.
— Nós não sabíamos por que razão eles tinham começado a atacar, a afundar os nossos barcos de pesca, a atacar as nossas aldeias na costa, a cantar os seus cânticos noturnos e a encher-nos as cabeças com pesadelos. Convocamos um conselho; fui até à Ilha das Sombras com mais dois homens e convencemos Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz a sentarem-se e a explicarem-se, tentando conseguir um acordo. Eles expulsaram-nos à pedrada, com flechas feitas de osso e com música enfeitiçada que nos encheu as cabeças de visões. Depois disso, preparamo-nos para a guerra. Enfrentamos os seus ataques o melhor que pudemos; ensinei o que sabia sobre guerra ao meu povo e tentamos proteger os nossos campos, o nosso gado, os nossos barcos. Perdemos muitos homens. Mas só percebi o que eles queriam quando a levaram. O governador estava a perder o controle das suas emoções; a sua voz tremeu e surgiram nos cantos da sua boca umas rugas de dor.
— A tua filha? — arriscou Thorvald. Asgrim acenou com a cabeça.
— A minha única filha. Não como vidente: um Máscara-de-Raposa deve pertencer ao povo deles. Roubaram-me a minha filha durante a noite. Não conseguimos resgatá-la: os ventos e as correntes derrotaram-nos sempre. Eles serviram-se dela, Thorvald. Esperaram até à sua primeira menstruação e depois passaram-na de homem em homem para que a criança que trouxesse no ventre fosse de todos, um verdadeiro filho da tribo. É a prática odiosa que seguem. Sula deu-lhes um filho e morreu por causa disso. Coisa de pouca importância para Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Já tinham o vidente que desejavam: Máscara-de-Raposa tinha renascido.
Thorvald tossiu para aclarar a voz. Fora até àquelas ilhas à procura de respostas; e aquilo era mais do que procurava. Não admirava que, por vezes, o governador parecesse um homem estranho. Era um peso, uma dor e uma culpa que rivalizavam com o fardo que Somerled transportara consigo quando abandonara as Ilhas Brilhantes.
— Lamento — disse ele, sabendo que qualquer palavra seria inadequada. — Nesse caso, prossegues esta guerra por vingança? Para os fazeres pagar pelo sofrimento da tua filha?
Asgrim sorriu friamente.
— Não, Thorvald. Não quero que morram mais homens simplesmente para que eu fique de consciência tranqüila. A minha filha morreu; nenhum derramamento de sangue pode devolve-la. Se dependesse da minha vontade, tentaria negociar, chegar a uma trégua. Na verdade, já tentei isso e voltarei a tentá-lo. Não sou eu a desejar continuar este conflito, são eles: a tribo d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz.
— Mas porquê? Eles já têm o que queriam, o vidente...
— Já não têm. Durante algum tempo, pouco, houve alguma paz, uma paz que se instalou com alguma dificuldade. Então, subitamente, Máscara-de-Raposa desapareceu. Raptado. Foi levado para um lugar onde só um louco ousaria ir. Foi rodeado por uma barreira de proteção que só o mais inteligente e tortuoso seria capaz de atravessar. E a situação mantém-se. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz não o conseguem trazer de volta: o lugar onde ele está escondido lhes é proibido. Pôr o pé nesse local é transgredir a sua mais antiga lei. O próprio Máscara-de-Raposa está acima dessa lei; pode pôr o pé onde muito bem lhe apetece. Dizem que ele continua vivo algures naquela última ilha a ocidente e como os seus ataques contra nós se baseiam nessa crença, temos de a honrar, se bem que a sua sobrevivência seja um milagre. A ilha é perigosa, rodeada pelas águas mais traiçoeiras, cheia de truques e armadilhas, um lugar que só nos atrevemos a visitar no Verão, quando ocorre uma conjuntura especial de ventos, marés e clima. No entanto, temos de tentar. Só quando o conseguirmos trazer de volta é que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz param de nos castigar, roubando-nos as nossas esperanças: eles matam-no todos os nossos recém-nascidos.
— O quê? Mas isso é incrível! Como é que agüentas isso? Certamente que os teus guerreiros podem prever isso, seria fácil...
— Este assunto ultrapassa os meios puramente físicos — disse Asgrim sem expressão. — Não pode ser resolvido com espadas ou lanças. Foi lançada uma maldição sobre o povo dos Facas Longas. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz já não precisam de pisar a nossa terra, ou erguer uma mão contra nós. Bastam as vozes, que uivam na noite. Desde que Máscara-de-Raposa foi raptado, há cinco anos, nem um dos nossos filhos viveu para ver o Sol nascente. A nossa gente está condenada, a não ser que consiga trazer de volta o vidente.
Thorvald não encontrou nada para dizer. Esperara ouvir falar de armas, de campanhas, de estratégias e vantagens. Não podia contribuir com nada naquele caso. Aquilo parecia mais uma história antiga, parte verdade, parte imaginação bizarra. No entanto, era-lhe contada como se Asgrim lhe estivesse a apresentar os seus planos para o treino de combate do dia seguinte.
— Quem é que raptou o vidente? — perguntou. — E quem é que o guarda?
— Quem o raptou? Um estrangeiro louco, um tipo que não devia estar no seu perfeito juízo. Foi um dia negro. Nós pensávamos que os tempos de morte e sofrimento tinham terminado. O fato de termos sido traídos por um dos nossos foi um golpe duro. Por causa dele, o sacrifício de Sula foi em vão. Para Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, suponho que o castigo é apropriado: a criança deles foi raptada e, por isso, roubam-nos as nossas, todas elas à nascença, até encontrarmos Máscara-de-Raposa e devolvê-lo ao povo a que pertence. Sem o seu vidente, Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz são uma força poderosa. Sem o seu controle, a música selvagem deles provoca uma tal devastação que quase nos enlouquece. Eles não se conseguem governar, parece, a não ser que esse coração bata de novo de acordo com o seu conhecimento antigo, são e salvo no meio do seu estranho círculo. Eu próprio o testemunhei, nos meus esforços inúteis para conseguir a paz. Há um ancião d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz que, no passado, foi a voz do seu povo no conselho e que falava sabiamente, apesar de ser um velho estranho. Mediante certas condições, conseguimos algumas reuniões secretas entre esse ancião e eu próprio; temos de seguir determinadas regras e é um pouco arriscado. Já fui a uma ou duas dessas reuniões com Skapti. Foi por esse homem que fui informado do destino de Sula, do rapto de Máscara-de-Raposa e da maldição que nos lançaram até que a criança lhes seja devolvida. Para nós, o fim está muito próximo, a não ser que consigamos o objetivo rapidamente. É esse o propósito dos nossos preparativos, Thorvald: viajar até à Ilha das Nuvens e entrar em combate para resgatar o vidente e devolvê-lo ao povo a que pertence.
— Desculpa — disse Thorvald, tentando perceber se perdera alguma coisa — mas há mais alguma tribo na Ilha das Nuvens com quem tens de combater para conseguir chegar ao vidente? Esse Máscara-de-Raposa não é um rapaz novo? Não seria fácil ir lá e apanhá-lo, com ou sem correntes traiçoeiras? — O jovem já se via a velejar na direção da ilha e a cumprir a tarefa com facilidade, regressando triunfante depois de ter posto tudo em pratos limpos. Sam ajudá-lo-ia; Sam gostava de crianças.
— Fácil? Não, Thorvald, não é nada fácil. Há cinco anos que os meus homens levam a cabo a caçada durante os poucos dias do ano em que as condições a tornam possível. Temos tido enormes perdas. Aquele que procuramos está protegido por uma grande força dos elementos. Não lhe chamarias fácil se conhecesses a Ilha das Nuvens.
— Asgrim — perguntou Thorvald com alguma hesitação, porque havia ali segredos, velhas e profundas dores. — Quem é que raptou Máscara-de-Raposa? E porquê?
Nesse momento, ao uivar do vento e ao bater da chuva juntou-se o arranhar da porta e o som de uma voz pesada e áspera: a de Skapti, ou talvez a de Hogni.
— Meu senhor! Um mensageiro, meu senhor!
Em seguida, tudo se passou com muita rapidez. Dois homens, ensopados, entraram e conferenciaram por breves instantes, entrecortadamente e inaudivelmente com o governador, enquanto as suas roupas pingavam o chão à sua volta. Skapti manteve-se junto da porta meio aberta, olhando para Thorvald. Tudo o que o jovem ouviu da mensagem foi um nome de mulher, Jofrid, e algo acerca de ainda ser muito cedo. Fosse qual fosse o significado da mensagem, provocou um olhar no rosto de Asgrim que Thorvald achou inquietante: o olhar furioso de um homem que vê frustrados os seus planos há muito delineados. Um instante mais tarde, viu o governador a respirar profundamente e a fazer um grande esforço para manter uma expressão calma. Asgrim já dava ordens enquanto estendia um braço para a sua capa, calçava as pesadas botas, cingia a espada e pegava na lança.
— Skapti!
Parecia que o guarda ia acompanhar Asgrim aonde ele ia naquela noite de vento gritante e chuva copiosa. O governador parecia que se ia embora sem se preocupar mais com Thorvald, mas virou-se antes.
— Fui chamado, como vês. Escusado será dizer-te que a nossa conversa deverá ficar entre nós. Os homens sabem de tudo, mas não falam; este assunto deixa-os pouco à vontade. Thorvald, para minha surpresa, os homens parecem estar a responder aos teus esforços para os treinar, o que só pode ser vantajoso para nós na caçada. Quero que continues, se bem que na minha ausência seja Einar a comandar. Se conseguires trabalhar com ele, melhor. Quanto a Sam, vê se consegues persuadi-lo a ficar mais um pouco. Ele é um tipo grande e forte. Tenho a certeza que sabes que ele pode ser útil. Diz-lhe que eu garanto que poderá regressar a casa são e salvo quando isto tudo terminar.
Com isto Asgrim desapareceu na noite camuflado pela silhueta indistinta do seu guarda-costas. Os mensageiros olharam um para o outro, pálidos e sem fôlego. Pareciam ambos prontos a cair de exaustão.
— Vamos — disse Thorvald aos dois homens, apagando as lâmpadas e abafando a lareira. O jovem sentiu-se tentado a ficar na cabana para investigar os possíveis segredos que pudessem existir nos alojamentos privados de Asgrim. Por outro lado, Hogni andava por ali algures e Thorvald ainda sentia os seus grandes dedos no pescoço. — Vocês precisam de comer e de um lugar quente para dormir. Sigam-me.
Não lhe parecia nada estranho assumir alguma responsabilidade. Na verdade, pareceu-lhe inteiramente apropriado.
Não precisou de falar com Sam, porque no dia seguinte o amigo regressou mais cedo dos barcos amparado por dois homens e com o pé direito de tal modo ferido que foi necessário cortar-lhe a bota. Caíra-lhe em cima uma âncora, ou fora deixada cair: um acidente muito feio. Os homens disseram que Sam tivera muita sorte. Não parecia haver ossos partidos, mas o ferimento era doloroso e ele não podia pousar o pé no chão. Orm aplicou-lhe o ungüento verde que parecia ser um medicamento para tudo; Hjort envolveu a extremidade ferida num pedaço de tecido. Sam encarou o seu azar com boa cara, como fazia com quase tudo. Não precisou que lhe dissessem que não podia regressar a Água Brilhante, quanto mais à Baía Sangrenta. Era como se o destino tivesse conspirado para os manter a ambos no acampamento; o momento do acidente não fora nada oportuno, mas o jovem não disse nada a Sam. Por sua vez, Sam não perguntou a Thorvald nada sobre a noite anterior e Thorvald apreciou a sua discrição. Andava demasiado ocupado para explicações.
Com Asgrim fora e Skapti com ele, apresentou-se uma breve oportunidade. Hogni continuava no acampamento e a sua atitude para com Thorvald não podia ser descrita como cordial. O papel de Hogni era perigoso e o tempo escasseava.
Havia três maneiras de lidar com a situação. Primeira, Thorvald podia esperar que Hogni questionasse a sua autoridade e até lutasse por ela, esperando salvar alguma reputação. O jovem poderia, ou não, sobreviver. Segunda, Thorvald podia ignorar o olhar furioso de Hogni e oferecer-se para lhe ensinar, assim como aos outros, um ou dois truques que aprendera com Ash. Talvez ganhasse, desse modo, a confiança do guarda-costas. Havia uma terceira hipótese, que foi a que Thorvald escolheu: o primeiro passo de uma estratégia que, se corresse bem, o levaria até à Ilha das Nuvens.
Já tinham uma boa provisão de lanças. O primeiro tipo era baseado num modelo que Thorvald vira Eyvind usar, uma lâmina elegante com uma estria que percorria o centro e com o que se podia chamar umas asas na base. Aquele tipo de ponta podia penetrar e ser puxada com relativa facilidade. A segunda era mais estreita, um triângulo comprido com uma ponta extremamente precisa. Thorvald explicara as vantagens daquele tipo de lâmina em combate corpo-a-corpo, quando o oponente usava roupa protetora, como uma camisa de malha de ferro, por exemplo. A explicação deixara-os sem expressão. Ou uma jaqueta de couro, acrescentara Thorvald, como as que Hogni e Skapti tinham. O jovem demonstrou como a ponta da lança podia penetrar bem num ponto vulnerável, já que a sua cabeça fora desenhada para isso mesmo. Era claro que um homem tinha de desenvolver alguma perícia no seu uso. Mostrar-lhes-ia.
Um dia ou dois mais tarde depois da partida de Asgrim, Thorvald fez um pedido a Hogni. Antes, assegurou-se de que estavam sós. Os homens precisavam de praticar em combate corpo-a-corpo, disse ele, para estarem preparados e para testar as armas como devia ser. Não era de esperar que o inimigo ficasse imóvel como um homem de palha. Todos sabiam que Hogni e Skapti eram os melhores em combate corpo-a-corpo. Não o testemunhara Thorvald ainda há pouco? Na verdade — o jovem esfregou o pescoço — levaria algum tempo a esquecê-lo. Os homens riram-se. Por isso, disse-lhes ele, a partir daquele dia lutariam uns com os outros, aos pares, vigiando-se e aprendendo mutuamente. E como Hogni era um tipo talentoso, seria ele o primeiro a demonstrar o que sabia.
Hogni grunhiu e cuspiu para o chão. Não havia maneira de saber se aquilo significava consentimento ou troça.
— Acontece — disse Wieland hesitantemente que não vai haver muito disso. Corpo-a-corpo, quero dizer. Mesmo na ilha. Não vai haver esse tipo de combate. Nunca temos essa hipótese.
— Não que não gostássemos, se a tivéssemos — acrescentou Orm, coçando o queixo. Mas...
— É quase sempre flechas — disse Knut. — Levaram-nos seis homens, da última vez. Além das lanças e das outras coisas...
— Desta vez — o tom de Thorvald era confiante, forte, a voz de um líder — teremos lanças melhores e flechas melhores. E saberemos como usá-las. Desta vez, vamos atacar também com as nossas inteligências. Vamos levar a batalha ao nosso inimigo. Desta vez estaremos prontos.
— Quem é que vai lutar com Hogni, afinal? — perguntou um dos pescadores. Ouviu-se um murmúrio geral e algumas risadas, uma cotovelada aqui e um gesto além. Por fim, estavam interessados. — E quando é que começamos?
Hogni pôs-se de pé. O homem era uma cabeça mais alto do que todos os outros e parecia um touro.
— Por que não agora? — perguntou ele, olhando para Thorvald.
— Por que não, na verdade? — Thorvald devolveu-lhe o olhar. — E como fui eu quem teve a triste idéia, suponho que o primeiro desafio é para mim. Só espero que não me mates. Skolli tem mais uma fornada de pontas de lança a arrefecer na forja e gostava de estar aqui amanhã para ver se são boas. Vamos lá. — O jovem mostrou um sorriso negligente, se bem que o seu coração batesse com toda a força; os ensinamentos de Ash tinham sido duros, mas havia limites para o que um homem podia conseguir contra um oponente daquele tamanho. — Começamos?
Não era preciso vencer, apenas sobreviver. Apenas isso. A sua demonstração de agilidade na noite da partida de Asgrim devera-se, quase unicamente, à sorte e às circunstâncias, e Thorvald estava desconfortavel- mente consciente disso. O jovem considerava-se um lutador médio; até à data contara com a capacidade para aprender rapidamente e com o seu talento como observador.
Era evidente, pela maneira como Hogni flectia os braços e dobrava os joelhos, preparando-se, que aquele gigante não tencionava ser benevolente com ele. Os homens formaram um círculo em redor dos dois combatentes. Thorvald avistou Sam na retaguarda, apoiado no ombro de um tipo e pálido como o leite de uma cabra. Orm estava a aceitar apostas; os homens juntaram-se para poderem ver melhor. Se morresse com o crânio esmagado, ou com o pescoço partido, pensou Thorvald, olhando para os braços maciços do guarda-costas, para os seus ombros formidáveis e para os seus pequenos olhos vingativos, teria conseguido, pelo menos, um dos seus objetivos. O que fizera até ali acordara-os; despertara neles uma centelha. Era, exatamente, aquilo de que necessitava e usá-lo-ia se saísse dali vivo.
Era importante, disse Thorvald para si mesmo enquanto Hogni se aproximava, baixando-se e erguendo-se com um grande impulso de ombros, era importante demorar o combate o mais possível para demonstrar o mínimo de força e habilidade, providenciar um bom espetáculo para que os homens se sentissem divertidos e animados. Seria bom, devaneou ele enquanto Hogni o atirava dolorosamente ao chão, fazendo-lhe doer cada osso do corpo, seria bom parecer que estava a ganhar em determinado ponto, apenas para manter uma certa credibilidade. O jovem rolou, contorceu-se, pôs-se de pé e conseguiu dar um ou dois pontapés; Hogni grunhiu, surpreendido, dorido talvez, e deu um passo atrás. O que importava, disse Thorvald a si próprio enquanto o seu oponente juntava as duas mãos para lhe desferir um golpe no pescoço e nos ombros, qual martelo, o importante, à parte o não morrer, claro, era que Hogni vencesse. Do modo como as coisas estavam a decorrer, isso não seria um problema.
O jovem deteve o golpe com o braço esquerdo; era um golpe de quebrar os ossos e Thorvald cambaleou, tentando manter-se de pé. Hogni rugiu e carregou com a cabeça baixa, uma massa de músculos. A multidão rugiu de excitação.
Thorvald saltou. A manobra não fazia parte do repertório de Ash: surgiu-lhe de repente como a única opção possível. O jovem trepou de modo estranho para as costas de Hogni, as pernas em redor do pescoço do homem, o rosto ao nível das suas nádegas, olhando para o grupo de espectadores. Hogni endireitou-se, as mãos como tenazes em redor das pernas cruzadas de Thorvald. Este apertou as coxas com força e rezou. Estava pendurado, a cabeça contra as calças malcheirosas de Hogni e os braços lutando por conseguir vantagem. O jovem podia ouvir Hogni a resfolegar, tentando respirar enquanto as pernas do seu oponente lhe apertavam cada vez mais o pescoço.
O barulho vindo da multidão era incrível. Alguns deles tinham começado uma espécie de cântico que dizia: Hog-ni, Hog-ni, mas outros gritavam encorajamentos que diziam: “É assim mesmo, miúdo!”, e algumas sugestões: “Enterra-lhe os dentes, miúdo!”
Hogni abanava-o, rangendo os dentes. O gigante virou-se, fazendo-o girar e fazendo-o sentir-se tonto. Aguenta-te, aguenta-te... O aperto estava a abrandar. Thorvald sentia os dedos a soltarem-se, conseguia ouvir o assobio das tentativas agonizantes de Hogni para respirar. O gigante devia ter o rosto vermelho, quase a desmaiar. Hogni cambaleou; o chão subiu subitamente na direção da cabeça de Thorvald.
Chegara a ocasião. Thorvald abrandou o aperto mortal das suas pernas no pescoço de Hogni e segurou o homem pelo cinto para evitar que ele caísse. Mesmo a tempo: o guarda-costas podia ter uma aparência animalesca, mas era um lutador formidável. Hogni respirou rapidamente, colocou-se de novo em posição e com um hábil movimento dos braços e das mãos arrancou o adversário do dorso, atirou-o pelo ar e fê-lo aterrar, com um baque surdo, de costas no centro do círculo formado pelos espectadores.
— Au! — disse Thorvald após um momento. — Creio que me partiste qualquer coisa.
Ouviu-se um coro de vivas e o grito de guerra: Hog-ni, Hog-ni. Uma porção de mãos puseram Thorvald de pé, sacudiram-lhe a poeira do corpo, afagaram-lhe os cabelos e deram-lhe palmadas nos ombros. Os homens gostam sempre de um bom perdedor.
Endireitando-se, Thorvald viu-se a olhar diretamente para os olhos do guerreiro que fora, discutivelmente, o vencedor daquele combate. O rosto de Hogni estava alarmantemente vermelho; o suor escorria-lhe pela larga testa. O homem estava radiante.
— Nada mau, esse truque — observou ele, estendendo uma grande mão. Nada mau para um recém-chegado. Mas não conseguiste agüentá-lo, pois não?
Thorvald apertou a mão; mesmo depois daquele reencontro, a força do aperto de Hogni continuava a ser extremamente forte.
— Bem — disse ele, sorrindo também — hão de aparecer outras oportunidades. Suponho que não me ensinas o golpe que utilizaste comigo na outra noite, pois não?
Enquanto o Sol descia na direção do horizonte, Guardião fabricava as suas lanças: um pedaço de uma velha árvore lançada pelo mar a seus pés: uma lasca de osso de um grande gigante das profundezas, retirado com uma oração. Algumas tinham pontas de ferro, arrancadas dos corpos dos que tinham manchado aquela praia para lhe roubarem a coisa preciosa que ele guardava. Pequenino temia o cheiro do ferro; enquanto Guardião esfregava, amaciando o metal, o outro observava por entre as rochas, um par de olhos brilhantes na sombra.
— Não é a lança que mata — disse Guardião. — As mãos dos homens é que matam, quando seguram na lança. Isto é uma mera ferramenta.
Pequenino não respondeu; a sua sabedoria era diferente. Ao longo dos anos, Guardião aprendera a aproximar-se dela, não mais do que isso. Compreendia, apenas, o mistério do dom de Pequenino e o perigo que representava.
As lanças estavam alinhadas ao longo da parede de rocha cheia de musgo; a luz do pôr do Sol incidia nelas com uma luz vermelho-sangue. Guardião fabricara-as com amor, desejando que cada morte que provocassem fosse um ato de limpeza, um sacramento, um grito de verdade. Assim jurara há muito tempo e manteria esse juramento até ao dia da sua morte.
Na sombra, Pequenino tremia.
— Vem — disse Guardião. — Fogo; comida — continuou ele a dizer, estendendo uma mão num gesto de encorajamento e, após uns momentos, o outro avançou e aproximou-se da fogueira ainda a tremer, como se agitado por uma força invisível. Guardião espevitou o fogo; o peixe que apanhara às primeiras horas do dia estava pronto, escamado, ao lado das pedras.
À medida que a noite descia, as chamas aqueciam as feições ansiosas de Pequenino e as tremuras cessaram. Baixinho, Pequenino começou a murmurar e o fogo adquiriu a cor verde do oceano profundo, a cor azul do céu de Verão e a escura do flanco de uma velha baleia. As pedras aqueceram. Quanto ficaram prontas, Guardião colocou o peixe em cima delas e cobriu-o com cinzas e terra. O murmúrio cresceu lentamente, transformando-se numa canção. O céu escureceu e contra o cinzento da noite de Primavera surgiram as primeiras estrelas distantes, solitárias, doces como as notas que Pequenino lhes dirigia, chamamento e eco, pergunta e resposta perfeita, deslumbrante.
CAPÍTULO SEIS
Três ovos, hoje: uma colheita aceitável.
Depois do pequeno-almoço, esta lenta caligrafia.
Recordações perturbadoras, cruéis como uma aça.
NOTA À MARGEM DE UM MONGE
Por vezes, a jornada fluía-lhe por entre os dedos, parecendo que se fazia a si própria. Se semicerrasse os olhos, conseguia ver as imagens a moverem-se, a mudar, descrevendo uma vida própria nos limites da sua estreita orla, uma paisagem de lã, mas possuindo, no entanto, uma liberdade, que ofereciam às pessoas que seguiam o seu sólido caminho na terra e que respiravam o ar verdadeiro. Por vezes, sentia-se tão desanimada que não conseguia enfiar a linha na agulha de osso para dar um único ponto.
Eles não tinham vindo. Asgrim prometera, mas eles não tinham vindo. Creidhe sabia que se estava a portar como uma criança ansiosa, mas não conseguia evitar a angústia que se apoderara dela, ou a ira que a acompanhava. Asgrim fora amável, arranjando tempo para se sentar a seu lado e contar-lhe tudo sobre o que Thorvald andara a fazer: reconstruindo velhos muros deitados abaixo por uma tempestade, ajudando a transportar por barco provisões até comunidades isoladas e escavando diques. Aquilo fizera-a sorrir; Thorvald possuía um certo sentido da sua própria importância e não era conhecido por ser especialmente prestável quando tinha as qualidades suficientes para uma determinada tarefa. Um trabalho árduo e básico como aquele far-lhe-ia bem.
Asgrim assegurara-lhe que os rapazes tinham amplamente merecido a madeira de que necessitavam e que estavam a prestar uma ajuda final antes de a irem buscar e reparar o Sea Dove. Tinham ganho amizades com a sua boa vontade e feitio fácil. Ambos tinham falado nela muitas vezes com preocupação evidente e afeto óbvio. Asgrim dissera que lhes diria que estava bem e em perfeita segurança. Era uma pena ela ter tido de testemunhar o que acontecera a Jofrid; era uma dificuldade provocada pela outra tribo, uma maldição e uma tristeza, mas não era algo com que os visitantes tivessem de se preocupar. O povo dos Facas Longas estava habituado àquilo. Um dia, arranjariam uma solução. Ela tinha de esquecer o assunto, atirá-lo para trás das costas. Dentro de dois dias, talvez três, Thorvald e Sam regressariam, dissera Asgrim. Creidhe far-lhe-ia um favor especial se fizesse companhia a Jofrid durante mais algum tempo e se ficasse mais alguns dias enquanto os seus amigos consertavam o barco. Gudrun também gostaria, assim como as outras mulheres. Tinham passado a gostar dela.
Assim, Creidhe esperou dois dias, três, deslocando-se todas as manhãs até à extremidade da aldeia, os olhos perscrutando em vão a encosta em busca de sinais de vida para além das ovelhas e cabras errantes. Asgrim regressara ao acampamento, fosse ele onde fosse, com o seu guarda-costas, um homem muito grande, caminhando silenciosamente a seu lado. Esse homem medira Creidhe de alto a baixo com os seus pequenos olhos e com um ar meticuloso e conhecedor, como se ela fosse uma bezerra ou uma porca premiada, até que Gudrun o pusera fora da cabana. Agora, estava longe juntamente com o governador e Creidhe não esperou dois ou três dias, antes sete, nove, quinze e mais uma lua e Thorvald continuava sem regressar. Sentada na sala de trabalho a fiar enquanto Jofrid cardava a lã, Creidhe foi forçada a reconhecer aquilo que sentia. Thorvald não correspondera às suas expectativas. Fora grosseiro com ela e com Sam. Estavam ambos habituados; acontecera muitas vezes e isso podia ser desculpado com o fato de Thorvald não se aperceber de que os magoava. O jovem esquecera-se dela. Ela também podia perdoar isso; Sam vira como ela estava ansiosa, podia ver a preocupação nos seus olhos, mas Thorvald achara, pelas suas declarações otimistas, que não se importava. Desta vez, no entanto, o egoísmo de Thorvald não tinha explicação. Ela tentara; na verdade recordava-se das vezes em que o desculpara, justificara o que ele fizera, simplesmente para justificar a sua crença nele. Os dias iam passando e Thorvald continuava ausente. No entanto, era livre de regressar: Asgrim confirmara-lho. Aquela atitude só podia ter uma explicação: Thorvald não queria saber dos seus sentimentos. Na verdade, não pensara nela uma única vez desde que partira naquela manhã com o cajado na mão e os olhos fixos na sua demanda muito pessoal. Não só lhe era indiferente a própria Creidhe e a sua família como a vida de Sam e a de todos aqueles que esperavam em Hrossey, que não sabiam se estavam mortos ou vivos. E Margaret? Pensara nela alguma vez, na sua dor e sentimento de culpa que deveria sentir, sabendo que fora por sua causa que ele partira naquela jornada? Creidhe sentiu-se forçada a reavaliar Thorvald, e o resultado deixou-a insatisfeita, não só com o objeto do seu afeto, mas também consigo própria.
— Pareces zangada — disse Jofrid docemente, passando a carda pela lã emaranhada.
Creidhe fez rodar o fuso e deixou que o fio torcido de lã lhe passasse pelos dedos. O que fiar tinha de bom era que, uma vez apanhado o jeito, não era necessário pensar; eram as mãos, simplesmente, que faziam o trabalho todo.
— Zangada, não, estou apenas um pouco triste. Não percebo por que razão Thorvald e Sam não estão aqui.
Pelas pálidas feições de Jofrid passou uma centelha de luz, que morreu logo a seguir. A jovem mal recomeçara a falar depois daquela terrível noite em que perdera o bebê. A sua voz era um sussurro apologético, o seu comportamento o de uma pessoa totalmente derrotada. A jovem agarrava-se a Creidhe como uma sombra. Tornara-se um hábito trabalharem as duas juntas todas as manhãs; de tarde Creidhe sentava-se na cabana de Jofrid e bordava, enquanto Jofrid tratava do gado ou ficava sentada em silêncio, por vezes, observando-a. Regressar a casa de Gudrun para jantar e dormir era um alívio. A grande e obstinada Gudrun amaciara um pouco; havia uma amabilidade relutante nos seus comentários sóbrios, nas suas tentativas para cozinhar algo diferente.
— Desculpa — continuou Creidhe, falando mais consigo própria do que com Jofrid. — Eu sei que parece egoísmo da minha parte preocupar-me com estas coisas. Mas não esperava ficar tanto tempo fora de casa, mais nada. Tenho saudades da minha família. — A jovem conseguia vê-los, como se estivessem ali na sua frente. Eyvind de um lado para o outro, ralado e com um sentimento de culpa, se bem que não tivesse nada a ver com aquela situação; devia pensar que falhara nos seus deveres de pai ao permitir que aquele desastre acontecesse. Nessa calada com Ingigerd nos braços, escondendo a sua preocupação como sempre, procurando sinais no fogo e na água, procurando respostas no seu espírito. Brona, tentando fazer as suas tarefas e as de Creidhe e mordendo as unhas por causa de Sam. A tia Margaret, segunda mãe de Creidhe, estática e silenciosa nos degraus da sua casa, olhando para oeste. Ash estaria algures atrás dela, vigiando-a fielmente. — Tenho imensas saudades de todos.
Jofrid baixou a cabeça, aparentemente concentrada na sua tarefa. A jovem deixou cair uma mão-cheia de lã cardada no cesto ao lado de Creidhe; entre as duas tinham preparado a quantidade suficiente para começar um cobertor ou uma túnica quente para um dos homens.
— Jofrid?
Não houve resposta; Creidhe não esperava uma.
— Tu tens marido? Ele está com os homens de Asgrim? — Creidhe ainda não tentara aquela pergunta direta; aquela ocasião parecia-lhe tão boa como outra qualquer.
Um assentimento. As mãos de Jofrid pararam de trabalhar.
— Como é que ele se chama?
— Wieland — sussurrou Jofrid, suspirando um pouco ao dizer o nome, um pouco triste.
— Ele é pescador?
— Já não é — disse Jofrid. — Agora é guerreiro. — Um momento mais tarde rolava-lhe uma lágrima por uma das faces. — Ele... — A voz tremeu; caíram mais lágrimas e a jovem levou as mãos ao rosto.
— Oh... Desculpa, eu não queria... — começou a dizer Creidhe, mas, tal como começara, o momento desapareceu. Jofrid passou uma mão pelas faces, pegou de novo na carda e regressou ao silêncio.
Depois daquele arremedo de conversa, Creidhe engoliu a sua frustração e prosseguiu a espera enquanto a Primavera se transformava em Verão e os cordeiros das encostas engordavam. Não tinha quaisquer notícias de Thorvald e de Sam. Quanto ao irmão Niall e seus companheiros, nunca mais os vira; a jovem supunha que Asgrim lhes proibira o acesso à aldeia de Água Brilhante. Creidhe pensou para si própria que as mulheres deviam ter gostado das suas vozes calmas e sensatas entre elas. Talvez as orações de Breccan fossem impotentes para afastar aqueles gritos de morte, mas, pelo menos, davam algum consolo. Face a uma dor daquelas, Creidhe achava que os deuses em que se acreditava importavam pouco, se se tinha fé ou não. Tudo era bom, desde que ajudasse.
À medida que o tempo ia passando, parecia a Creidhe que as mulheres se iam acostumando à sua presença, quase como se ela fosse uma delas e, por causa disso, começou a ouvir coisas que não eram destinadas aos seus ouvidos, farrapos de conversas que as preocupavam. A princípio, a jovem esquecia-os. Sentia-se só, preocupada e desapontada com Thorvald. Estava a exagerar. Mesmo assim, como digna filha do seu pai, Creidhe aprendera a ouvir e quanto mais ouvia mais medo sentia, mais segredos e sombras perigosas se lhe agarravam ao espírito.
Gudrun, mexendo em tachos à lareira, falando com Helga enquanto Creidhe mudava de sapatos no quarto interior: uma coisa tão linda, tão pequenina... é uma pena... E a resposta de Helga, apressada: Shhh...
Frida, convidada para jantar numa outra noite, mastigando silenciosamente o carneiro cozido e olhando para Creidhe com os seus olhos brilhantes e hostis. Mais tarde, a cerveja; uma piada da parte de Gudrun, algo acerca do tamanho dos narizes dos homens que as fizera rir a todas exceto a Frida, cujos lábios esboçaram apenas um sorriso. Mais tarde, enquanto Frida punha o xale pelos ombros e Gudrun lhe abria a porta: cuidado... muita amabilidade... depois é mais difícil...
Helga, na sala de trabalho numa manhã soalheira e Creidhe oferecendo-se para ajudar a fiar. Havia uma maneira melhor de ajustar os fios da teia, de agarrar na lançadeira de osso de baleia torcendo o pulso, que tornava mais fácil o trabalho, se ela lhe deixasse mostrar como se fazia. Creidhe fez uma demonstração: os fios alinharam-se na perfeição. A jovem observou enquanto Helga tentava uma primeira vez e depois uma segunda para ter a certeza; Creidhe felicitou-a pela sua facilidade de aprendizagem.
Helga sorriu.
— Oh, obrigada. Tu és uma rapariga tão inteligente, Creidhe, tão amável, que é uma pena... — A mulher corou e virou as costas.
— O que é que é uma pena? — perguntou Creidhe calmamente. De repente, a sala ficou silenciosa.
— Que não fiques cá — disse Gudrun do lugar onde estava sentada a fiar. — Que é uma pena ires-te embora assim que os teus amigos regressarem.
Era uma resposta lógica. Mas Creidhe sabia que não era a resposta que Helga quase lhe dera. Havia algo, algo que elas não diziam e que tinha que ver com ela. Desejava que Asgrim regressasse depressa para lhe poder perguntar diretamente.
Então, numa ocasião em que o ar estava a ficar cada vez mais quente, finalmente, com um toque de Verão, elas deram-lhe um presente. Um vestido de boa lã que não fora feito naquelas ilhas, suspeitou a jovem, um vestido que viera ali parar vindo de longe e posto de parte para uma ocasião especial. Aquelas mulheres não tinham a habilidade nem as ferramentas para fazer um trabalho daqueles. Era bege-pálido com uma estreita orla verde no pescoço e na bainha, bordada com pequenas flores e aves: um trabalho de habilidade e amor. As mangas eram estreitas, ao passo que a saia caía em folhos graciosos. Tinha, também, fitas verdes para os cabelos, para completar a toillette. Era um presente maravilhoso, mas totalmente inapropriado.
— Eu não posso ficar com isto — disse Creidhe, sem graça. — Mais parece um... um vestido de casamento. Vocês devem ficar com ele para uma de vocês, para uma das vossas filhas... — A jovem calou-se. Aquela aldeia tinha poucas raparigas; o par de rapazes e a rapariga estranhamente estrábica eram as únicas crianças que existiam. — Vocês não devem desperdiçar um vestido destes comigo continuou ela se bem que vos agradeça a generosidade...
— Fica com ele — disse Gudrun, quase zangada. — Prova-o. Deves ficar muito bonita, com esses cabelos louros e tudo.
— Quando o teu amigo regressar — acrescentou Helga — há de gostar de te ver com ele!
— Anda lá, rapariga — disse Gudrun.
Creidhe foi empurrada e espicaçada até ao quarto interior, onde não foi capaz de recusar os pedidos insistentes para se despir e provar o vestido. O corte não era mau, o corpete um pouco apertado e a cintura um pouco larga, mas era confortável. Como já fizera o que elas queriam, retiraram-se; apenas Jofrid ficou penteando os cabelos de Creidhe, atando-lhe as fitas no cabelo e ajeitando os folhos da saia para que caíssem com mais perfeição. O vestido era de um corte estranho, permitindo mostrar mais do que era considerado respeitável em sua casa. Mesmo em ocasiões de festa, Creidhe e Brona usavam sempre vestido de cerimônia e sobreveste devidamente abotoada, ou uma saia lisa e uma longa túnica, que era o traje tradicional do povo da sua mãe. Aquilo era mais um vestido de noite, justo no peito e nas ancas, um vestido que ela não fazia tenção de usar em frente de Thorvald e Sam, se bem que fosse interessante ver o olhar nos seus rostos. A jovem mirou-se no pesado espelho de bronze de Gudrun; a imagem devolveu-lhe o olhar mal iluminado pela luz da lâmpada, indistinto, preocupado, num rosto pálido e oval. Os cabelos caíam-lhe pelos ombros e pelas costas. Jofrid manteve-se atrás dela como um fantasma ansioso.
— Creidhe.
O sussurro de Jofrid era tão suave que Creidhe pensou, a princípio, que o imaginara: minúsculo e intenso, um sopro de perigo.
— O que é? — sussurrou ela, também.
— Tens de te ir embora. Amanhã de manhã.
— O quê? — O choque fez com que falasse em voz alta.
— Shhh! — disse Jofrid. — É perigoso. Não podes ficar aqui.
O coração de Creidhe batia com toda a força. A jovem abriu a boca para perguntar qual era o perigo, para onde havia de se ir embora, mas o momento passara. Jofrid, ao ouvir as outras regressarem, remetera-se ao silêncio; a jovem continuou a pentear os longos cabelos de Creidhe, amaciando-lhe as madeixas brilhantes e os seus olhos voltaram a não ter qualquer expressão. Era como se nada tivesse acontecido.
Creidhe deixou-se admirar e acariciar, excitada. Submeteu-se a mais fitas nos cabelos, a pequenos ajustamentos no vestido e a um par de suaves chinelas mais apropriadas do que os sapatos de todos os dias. Tornou-se evidente que não poderia recusar o vestido; relutantemente, a jovem aceitou-o, sabendo que nunca o poderia usar, salvo, talvez, na privacidade do seu próprio quarto, divertindo-se com Brona. Naquele posto avançado, entre aquela gente carrancuda, vestir aquele vestido extravagante era arvorar-se como única, diferente, especial, e a jovem não via qualquer razão para isso. Quando todos os pormenores ficaram a seu contento, as mulheres afastaram-se e admiraram-na com alguns comentários acerca da sua amabilidade, do seu desejo de ajudar, da sua inteligência e como se sentiam felizes por lhe poderem agradecer. Jofrid não dizia nada; a jovem olhava para o chão ou para os cantos da sala, como se pretendesse estar ausente. Mas depois de tudo acabado, depois de Creidhe ter despido e dobrado o belo vestido, Jofrid olhou para ela da porta e a mensagem estava, mais uma vez, firme e clara nos seus olhos: Vai-te embora! Agora, ou será demasiado tarde.
Creidhe passou a noite sem dormir, tentando ordenar os pensamentos enquanto o coração lhe batia no peito como um tambor, em pânico, e o corpo se lhe enchia de suores frios. Pouco antes do amanhecer, acalmou. No outro lado do pequeno quarto, Gudrun continuava a ressonar por baixo dos cobertores; a cerveja correra livremente na noite anterior e com alguma sorte a mulher dormiria mais do que habitualmente. Creidhe arrumou as suas coisas. Não havia tempo para procurar tudo e, assim, meteu no saco tudo o que encontrou: a faca, o material de bordar, um xale, o pente que Sam lhe fizera e, na bolsa exterior, o rolo da jornada. Então, com as botas de lã de ovelha numa mão e o saco aos ombros, percorreu em bicos dos pés a sala principal da cabana onde a fogueira estava reduzida a um monte de cinzas frias e onde a luz cinzenta da madrugada se inseria pelas frinchas e fendas da porta. Tudo feito em perfeito silêncio, porque apesar de ser uma rapariga e não estar destinada a ser um caçador, ou um guerreiro, Creidhe aprendera algumas coisas na casa do seu pai. Para um homem tão grande, Eyvind movia-se com a ligeireza de movimentos de uma sombra, silencioso como um falcão quando era preciso. Creidhe aprendera, também, como olhar e escutar, como aproveitar uma oportunidade. A jovem soltou o ferrolho da porta da frente da cabana de Gudrun, abriu-a, fechou-a sem um som e colocou de novo no lugar as pedras que impediam que ela oscilasse e batesse. Com o capuz na cabeça, a jovem deixou-se ficar, por instantes, encostada à parede, alerta para qualquer perigo. O lugar estava calmo; nenhum cão ladrou e nenhum pássaro cantou antecipando uma saudação ao Sol nascente, se bem que já se visse uma claridade pálida anunciadora por baixo do manto escuro que cobria as casas. Se havia homens de guarda à aldeia, não estavam à vista. Aquela hora da manhã, era provável que estivessem junto de uma fogueira algures, aquecendo as mãos e partilhando um jarro de cerveja e um pedaço ou dois de carneiro. Pelo menos, esperava que assim fosse.
A primeira parte foi fácil, com ou sem bruma. Percorrera aquele caminho todos os dias, com ou sem chuva, desde o dia da sua chegada a Água Brilhante. Silenciosa como um fantasma, Creidhe passou pelas cabanas e pelos anexos, pocilgas e galinheiros e chegou até ao local onde uns degraus num muro de pedra marcavam o fim do território que podia percorrer, a fronteira de uma terra proibida. A jovem olhou para trás por cima do ombro. Ao fundo, a bruma escondia, de algum modo, a morada de Gudrun, a casa comunal e as cabanas de Jofrid e de Helga. Creidhe levantou as saias e passou por cima do muro, passando para um carreiro irregular e cheio de vegetação. Subitamente, ouviu-se uma ave, reconhecendo confiantemente a madrugada. Creidhe respirou fundo, sentindo o ar úmido e frio, sentindo algo estranho no coração, talvez medo, misturado com uma sensação de liberdade que ia muito para além do fato de estar a abandonar a pequena aldeia e aquelas mulheres silenciosas, de segredos calados. Ainda não sabia bem o que era: senti-a dentro de si, forte mas elusiva, bela mas perigosa. Para além da dúvida, aquele sentimento estava relacionado com a visão que tivera naquela manhã na vereda da falésia, algo maravilhoso, poderoso e inefavelmente triste. Não sabia o que era; sentia, apenas, uma profunda gratidão por ainda se manter viva algures no seu espírito. Ajustando o saco que levava aos ombros, Creidhe pôs-se a caminho e começou a subir o vale, afastando-se de Água Brilhante. A seu tempo, a bruma matinal desfez-se e a rapariga estrábica levou os seus gansos a pastar. Então, nada mais se viu na encosta, para além da aldeia, senão as lentas e pálidas silhuetas das ovelhas a pastar.
— Ela não está aqui — disse calmamente o irmão Niall com uma facilidade nada de acordo com a sua tonsura e hábito. — Não há sinal dela, apesar de Colm ter estado toda a manhã lá fora a tratar da horta. Ele teria visto Creidhe se ela tivesse passado por aqui. Disse isso mesmo aos dois rapazes que apareceram por aqui à procura dela. Fizeste esta caminhada para nada.
Os dois rapazes tinham aparecido no eremitério por volta do meio-dia, respirando com dificuldade e tinham sido mandados de volta com uma breve resposta depois de terem bebido alguma água. E agora Gudrun percorrera o vale e subira a encosta, de rosto vermelho, a suar e com uma nota de medo na voz.
— Para onde havia ela de ter ido? — arquejou ela. Deve ter vindo para aqui.
O irmão Niall abriu as mãos num gesto que indicava uma perplexidade impotente. Era engraçado, pensou Creidhe enquanto permanecia imóvel, observando tudo através da frincha da porta do quarto daquela cabana pequena e perfeitamente asseada. Nunca vira, à exceção do seu pai, um homem parecer tão impotente.
— Não faço idéia — disse o irmão Niall. — Compreendo a tua preocupação. Não sei o que lhe terá passado pela cabeça. Esperemos que Creidhe tenha ido, apenas, passear ao longo do lago, ou tenha ido apanhar flores ao campo. As raparigas fazem coisas dessas. É claro que pode ter tentado ir até à Baía Sangrenta. E todos sabemos como é perigoso uma rapariga passear sozinha na praia. Receio que seja tarde de mais. Asgrim não vai gostar nada.
Gudrun torceu as mãos. Creidhe nunca a vira assim, nem sequer durante a noite das vozes. Aquela mulher grande e capaz parecia desfeita.
— Serás bem-vinda, se quiseres vir rezar um pouco conosco — acrescentou o irmão Breccan da mesa cheia de rolos de pergaminho, tinteiros de pedra-sabão e penas num jarro de barro onde estava sentado ao fundo do compartimento. — Talvez Deus tenha uma resposta para ti. Um pouco de reflexão pode providenciar grande conforto a um espírito perturbado.
Por todos os antepassados, aquele ainda era igual a Niall: dois hipócritas de rosto rapado. Creidhe olhou em silêncio enquanto Gudrun seguia os eremitas e vasculhava os cantos da cabana com o olhar, como se em busca de provas de que a estavam a enganar.
— Como vês — disse o irmão Niall numa voz gentil e sem expressão — só estamos os dois aqui e Colm lá fora no campo, algures. Se quiseres, chamamo-lo para que lhe possas tu mesma perguntar. A não ser que queiras inspecionar os alojamentos de três homens, todos eles celibatários e ao serviço de Deus? O monge ergueu as sobrancelhas. Não digas sim, rogou Creidhe a Gudrun. Se a mulher desse mais um passo na direção da porta, vê-la-ia. Aquele monge de cabelos brancos parecia gostar de correr riscos.
Gudrun grunhiu uma resposta qualquer, na qual Creidhe pensou discernir o nome Asgrim, girou nos calcanhares e desapareceu pela encosta abaixo. Era uma grande caminhada até Água Brilhante, e nada fácil. Esperaram os três em silêncio. Após um intervalo suficientemente longo, o irmão Breccan aproximou-se da porta da frente, um pedaço de madeira maciça e pesada que devia ter pertencido a um navio porque tinha cravos em lugares improváveis.
— Bem, bem — observou o irmão Niall enquanto Creidhe saía do seu esconderijo e retomava o seu lugar à mesa. O monge foi buscar um jarro a uma prateleira de pedra na parte mais longínqua do compartimento, encheu uma caneca e entregou-lhe. — Parece que os sarilhos andam atrás de ti, não andam?
— Peço desculpas — disse ela. A jovem já explicara as razões da sua súbita chegada não anunciada, o modo como a sua intranqüilidade crescera na aldeia até se transformar num medo real. Ao recordar-se dos avisos velados do irmão Niall e da sua oferta de ajuda, esperara que lhe dessem asilo. Ali estaria, sem dúvida, em segurança. As pessoas não faziam mal aos homens de fé, nem àqueles que asilavam. Os irmãos tinham-na recebido tranquilamente, ouvido o que tinha para dizer, tinham-na alimentado com vegetais e tinham-lhe dado uma cama quente. Enquanto comia — a caminhada trouxera-lhe de volta o apetite que perdera recentemente — Breccan fizera alguns ajustamentos no compartimento onde dormiam na cabana. Colm dormiria com a vaca e a cria no estábulo, anunciara ele alegremente; era o local mais quente de todos, para além de uma boa lição de humildade. Ele e Niall estenderiam os cobertores no compartimento exterior, deixando a hóspede sozinha. Creidhe começara por protestar, mas depois da caminhada estava suficientemente cansada apesar de ainda nem sequer ser meio-dia e adormecera numa das camas no instante em que se deitara. Acordara há pouco quando Gudrun batera à porta. Gudrun tinha-se ido embora, mas podiam aparecer outros; e a jovem apercebeu-se, sentada junto daqueles homens tranqüilos, com o sol da tarde a entrar pelas portadas abertas, de que não voltaria a Água Brilhante nem que Gudrun, Asgrim ou outro qualquer lhe pedissem.
— Não te desculpes — disse Breccan. — A nossa casa está aberta para ti; aqui, estás segura.
Niall não fez qualquer comentário.
— É só até os outros regressarem — acrescentou Creidhe apressadamente. — Não falta muito; Asgrim disse... — A jovem calou-se.
— Asgrim disse dois dias, parece-me que foi o que ouvi. — O tom de Niall era pensativo. — Isso já foi há algum tempo. Receio, minha querida, que o governador tenha outros planos para os teus amigos, planos que os manterão afastados daqui até, pelo menos, meio do Verão.
Creidhe ficou horrorizada.
— Que planos? Ele disse que eles já tinham ganho a madeira de que necessitavam. Asgrim disse que eles iam regressar.
— Sim — concordou Niall. — O governador diz muitas coisas e cada uma tem um propósito.
— Maldito seja! — Creidhe levantou-se de punhos cerrados. — Vou até lá ter com eles, é o que vou fazer. Estou farta de tanta regra: cobre o cabelo, fica na aldeia, não faças perguntas esquisitas. Thorvald e Sam têm de regressar; as nossas famílias precisam de nós em casa.
— Perguntaste a alguém por que razão? — A voz de Niall era suave. — Por que há de cobrir o cabelo? Por que não há de andar pela aldeia livremente?
Creidhe olhou para ele de lado.
— É claro que perguntei. Mas ninguém me dizia nada. Suponho que tem que ver com... os espíritos, as vozes, ou seja lá o que for que a outra tribo faz para os aterrorizar. Eu não tenho medo deles. Agora, era ela que mentia; estava aterrorizada, mas, de momento, a ira era maior. Vou lá, encontro Thorvald e Sam e ninguém me vai impedir.
— Hum. — Niall olhou para ela fixamente com os seus olhos escuros. — Mas hoje, não. Não chegarias lá antes do anoitecer e, se queres evitar Água Brilhante, tens de ir pelo carreiro íngreme, o que pode ser perigoso, mesmo com essas botas. — O monge olhou para o irmão Breccan e este foi para junto da lareira. — Eu posso responder a algumas das tuas perguntas, Creidhe. Meras suposições, talvez, mas fruto da minha longa estadia nestas ilhas, tanto perto da tribo de Asgrim como da outra. Na verdade, acho que seria bom saberes alguma coisa antes de...
Creidhe fez uma careta.
— Antes de eu ir a correr tentar mudar o mundo? — A jovem sentou-se e cruzou os braços em cima da mesa. A sua superfície de pedra brilhava de tão bem limpa; as penas, a tinta e os rolos de pergaminho estavam alinhados num dos extremos, tudo pronto para o exercício de um intelectual. — Tens razão, claro. Estou a comportar-me como Thorvald, atirando-me para a luta sem estudar o terreno. — Fora, exatamente, o que Thorvald fizera, pensou ela, quando seguira Asgrim e abandonara Água Brilhante. Apesar de não lhe ter dito nada, já decidira que o governador era o seu pai; a jovem vira a decisão nos seus olhos. Talvez tivesse razão. Agora já devia saber, de uma maneira ou de outra. Havia uma maneira simples de dominar as pessoas, que era evitar qualquer pergunta. — O meu pai teria vergonha de mim acrescentou ela.
— Teria? Bem, façamos como ele gostaria que fizéssemos, tranqüila e cuidadosamente. Por mim, aprendi o valor do conhecimento antecipado; não podemos derrotar um inimigo que não compreendemos. Infelizmente, Asgrim nunca aprendeu isso. Assim, a situação fica cada vez pior para o povo dos Facas Longas, estação após estação. Esta gente merece melhor.
Breccan pegara num balde e saíra, fechando a porta. Do rapaz, Colm, não havia sinais para além de uma cabeça inserida numa das janelas algumas horas antes e de um pedaço de queijo passado para o exterior sem mais explicações. Breccan fora avisá-lo, no caso de aparecer mais alguém à procura dela.
— Temos alguns dias pela frente, pelo menos — disse Niall, vendo, talvez, alguma ansiedade no rosto da jovem. — Ele vai saber que tu estás aqui; conhecemo-nos há muito tempo. Ele vai perceber que eu te tenho aqui, longe do seu alcance; mas não se vai apressar. Asgrim anda ocupado. Está a preparar as suas forças para a caçada. Neste preciso momento está a preparar-se, segundo me informaram, para navegar no vosso barco da Baía Sangrenta até ao acampamento para fazer algumas reparações. Suspeito que tem em mente um trabalho muito especial para esse navio. Asgrim tem muito com que se ocupar, por agora. No entanto, temos de estar preparados. O que quer dizer, receio bem, que continuarás aqui como numa espécie de prisão. Terás de ficar no interior da cabana até decidirmos o que fazer.
Oh. Talvez, no fim de contas, tivesse cometido um grande erro. Talvez aqueles homens não fossem nenhuns monges cristãos à semelhança do irmão Tadhg e dos outros. Aquele que tinha na sua frente ainda usava um punhal; ela vira a sua mão mover-se para o seu punho quando Gudrun batera à porta. Vira-o ajustar o hábito mais tarde para esconder o metal brilhante.
— Não é nada bom, eu sei. Tu deves ser uma rapariga ativa. Fizeste a caminhada até aqui num tempo notável.
— Em casa, estou habituada a ir todos os dias a casa da minha tia Margaret para trabalharmos juntas. Por vezes, vou a cavalo; ainda é longe. Detesto estar fechada. — Creidhe corou. — Peço desculpa, não quero parecer ingrata. Por favor, conta-me o que sabes acerca disto tudo. Estou preocupada com Thorvald. Ele, quando se lhe mete uma idéia na cabeça, esquece tudo o resto. Na verdade, não é capaz de tomar conta de si próprio. E Sam é apenas um pescador, que espera que os outros sejam sempre tão honestos como ele. Foi por isso...
Niall esboçou um pequeno sorriso.
— Foi por isso que vieste com eles?
— Bem, foi. Suponho que parece uma tolice, mas pareceu-me que eles precisavam de alguém... — Creidhe calou-se de novo.
— Alguém que conseguisse ver a situação por outro prisma e tivesse respostas? Receio que desta vez não. Vocês os três caíram numa armadilha muito traiçoeira, complexa e muito antiga, uma luta que já quase aniquilou todos aqueles que aqui vivem, tanto do lado do povo dos Facas Longas, como do lado d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. E, é triste dizê-lo, por tua causa e daquilo que representas, não vai ser fácil desenredar-te.
— Por causa do que represento? — repetiu Creidhe, sem compreender.
Niall estendeu um braço e segurou numa mecha dos seus cabelos dourados, torcendo-os gentilmente.
— Apenas tu, não os rapazes. Eles obrigaram-te a cobrir o cabelo por uma boa razão. A filha de Asgrim tinha o cabelo assim, louro e brilhante, da cor do trigo maduro. A filha de Asgrim foi raptada por causa do cabelo, raptada e violada pelos homens d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Passou por todos durante uma lua inteira. É assim que a tribo tem um filho, um filho especial, cuja concepção e nascimento pertence a todos. Chamam-lhe Máscara-de-Raposa, um vidente poderoso, um sacerdote e um sábio. Uma criança assim só pode nascer de uma mulher que seja ao mesmo tempo Sol e Lua; os cabelos como os raios do Sol da manhã e a pele branca como o brilho da Lua na neve.
Creidhe olhou para ele espantada.
— A filha dele? Que coisa terrível! Que lhe aconteceu? — Mas parecia que a jovem já sabia a resposta; estava gravada nas feições austeras do monge, na cuidadosa neutralidade dos seus olhos.
— Morreu; era muito nova, teria, talvez, treze anos quando a raptaram. Mais nova do que tu, Creidhe. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz estavam sem qualquer vidente há alguns anos, desde que o último morrera. Estavam em permanente agitação; precisam desse tipo de liderança para manter a ordem, todo um padrão de vida. Sem ela, são como um machado afiado nas mãos de um louco, manejado de qualquer maneira, pronto a destruir o amigo ou o inimigo. Ouviste a música bárbara deles; viste os danos que pode provocar. Eles não usavam esses poderes quando Máscara-de-Raposa estava com eles. A rapariga serviu o propósito para que foi raptada; a sua morte não teve qualquer significado. Para eles, não passou de uma incubadora.
Por baixo do ultraje que sentia, Creidhe pensava com toda a rapidez.
— Cabelos louros, sim, suponho que tenho de os cobrir porque me podem ver, porque me arrisco a ser... raptada. — A jovem estremeceu, tentando imaginar a rapariga sozinha no meio daqueles monstros, destruída a sua vida. Tentou imaginar-se a si própria, raptada também e usada da mesma maneira... Era horrível, impossível. Coisas daquelas não aconteciam. — Por que só eu? — perguntou ela, ouvindo o tom de medo na própria voz. — Por que não hão de todas as mulheres cobrir os cabelos? E como é que tu sabes isso tudo? Pensei que nenhum de vós podia ir à aldeia, pensei que tinham sido banidos.
— Quanto a isso — disse Niall não somos bem-vindos nos domínios de Asgrim, isso é verdade. Mas já estou aqui há muitos anos, Creidhe, já aqui estava quando começaram os sarilhos. Houve um tempo, nestas ilhas, em que os homens faziam comércio sem receio; em que as pessoas viajavam livremente de aldeia em aldeia e falavam abertamente dos seus assuntos. Nesses tempos, o povo dos Facas Longas e o d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se- Diz encontravam-se uma vez por ano num conselho. Custa a acreditar, agora, mas é verdade. Hoje em dia, as informações chegam apenas pela voz de Asgrim, que é o único que pode falar com o inimigo e, mesmo assim, com alguma dificuldade, suponho. Os meus jovens mensageiros, os que me trazem peixe e novidades, mantêm-me informado sem que se saiba. Perguntas: Porquê só eu? As mulheres louras são raras nestas ilhas. Nestes anos todos que aqui tenho passado, apenas vi duas raparigas com esse tipo de cabelos: Sula e tu. Suponho que a tua mãe veio de uma terra a leste: Noruega, talvez?
Creidhe esboçou um sorriso.
— A minha mãe pertence à velha raça das Ilhas Brilhantes: é uma mulher de cabelos escuros e de aspecto franzino. Mas tu já sabes isso. O meu pai é que é louro e com olhos da cor do céu.
O monge não respondeu. Dentro do pote a seu lado estava uma pena. Niall pegou nela e rodou-a entre os dedos com um ar ausente.
— Tu és escriba? Desenhador? — perguntou Creidhe, tentando fixar a mente numa coisa normal, tentando tranquilizar-se, assegurar-se de que não estava a ter um pesadelo. A jovem pensara nos instrumentos colocados em cima da mesa; pareciam incongruentes naquela paisagem brutal e abandonada.
Por um momento, Creidhe pensou que ele não ia responder. Finalmente, ele pousou a pena e disse:
— Nós praticamos esta arte, os três, de uma maneira ou de outra. Ajuda a passar o tempo. Tu sabes ler?
— Oh não. Gostava, claro; Thorvald sabe ler, a mãe dele ensinou-o e eu quis aprender, mas parece que não tenho o jeito necessário. A tia Margaret disse que não tinha importância, que eu tenho talento para outras coisas. Mas gostaria muito de ser capaz de escrever o meu nome; fazer contas: escrever coisas.
— Outras coisas? Que coisas são essas, para as quais a tua tia Margaret diz que tens talento?
A jovem corou de novo: que estupidez.
— Coisas de raparigas. Fiar, tecer, bordar. Cozinhar e fazer trabalho de parteira. Cuidar de crianças e ensiná-las. Thorvald acha que estas coisas não são importantes, mas são. Têm de ser. São a alma da comunidade, mantêm tudo junto... — balbuciou Creidhe; era evidente que aquilo não tinha qualquer interesse para ele!
— Tens algum desses trabalhos contigo?
— Tenho. Mas não o mostro a ninguém. Pelo menos, não muitas vezes.
O sorriso dele era prudente; algo provocara um certo constrangimento entre os dois.
— Nem eu o meu, Creidhe. Nós os dois não confiamos muito nas pessoas e, se calhar, temos razão. Talvez, quando nos conhecermos melhor, possamos trabalhar lado-a-lado. Mas agora está a fazer-se tarde e eu penso que os meus colegas estão de regresso; talvez tragam ovos.
— Oh, mas tu não acabaste! E Asgrim e os rapazes... por que é que ele os tem lá e como é que...?
A porta rangeu e abriu-se, deixando entrar Breccan e Colm. O último lançou uma olhadela a Creidhe e retirou-se para junto da lareira com um balde de leite numa mão e um cesto de ovos na outra. Creidhe pensou que ele ainda era suficientemente jovem para achar perturbadora a presença de uma mulher tão perto de si; os outros, devido à idade ou à disciplina, não pareciam minimamente perturbados. O barracão da vaca devia ser, provavelmente, uma bênção para Colm a julgar pela maneira como ele olhava para ela de esguelha, como um pretendente tímido.
— Como já disse — Niall cruzou os braços casualmente — ainda temos alguns dias e com a restrição de atividades fora de portas, temos muito tempo para falar. E tu precisas de mais comida e mais sono. Vamos devagar. Há aqui muita coisa para desembrulhar. Ah, quatro ovos. As galinhas devem ter-te ouvido chegar.
— Vou regressar — declarou Sam, fazendo peso no tornozelo ligado e gemendo de dor. O ferimento estava a demorar muito tempo a sarar; talvez houvesse qualquer coisa partida, no fim de contas. — Vou-me embora, nem que tenha de ir de rastos. Isto é ridículo. Quero o meu barco, quero ver Creidhe e quero ir para casa. Como o governador não está cá, não preciso de pedir autorização, pois não? Ou é a ti que é suposto pedir, já que te armaste em chefe na ausência dele?
O jovem olhou de relance para Thorvald e deu outro passo hesitante ao longo da praia. Estavam os dois sozinhos; mais acima, junto do abrigo, os homens lutavam a fingir sob a supervisão de Hogni. Thorvald já tinha ensaiado o corpo-a-corpo e agora eles ensaiavam possíveis escaramuças, oito contra oito, enquanto os restantes observavam. Estariam prontos a meio do Verão; faria com que assim fosse.
— Chefe? — Thorvald ergueu as sobrancelhas. — Dificilmente, já que sou aquilo a que eles chamam um recém-chegado, no fim de contas. Limito-me a partilhar os conhecimentos que tenho. Tu viste como eles eram, Sam. Autênticos alvos numa batalha. O mínimo que eu podia fazer era ajudá-los um pouco.
— Hum. Mas estás a gostar, não estás? Tratado como se fosses alguém especial, o herói em que eles todos se revêem e que lhes resolve os problemas todos? Não te estou a conhecer, Thorvald, a sério que não.
— De qualquer modo — disse Thorvald, sentindo-se algo tagarela apesar de os comentários de Sam serem um disparate, claro — sabes muito bem que não consegues dar mais de seis ou sete passos sem cair. Sabes muito bem que não consegues chegar à Baía Sangrenta, principalmente com um carregamento de madeira aos ombros. Suponho que o plano é esse, já que estás à espera de alguma madeira para o Sea Dove. Sabes muito bem que ainda não posso regressar. Estes homens dependem de mim. Sem a minha ajuda serão novamente derrotados: derrotados, mutilados, mortos e atirados de novo para o desespero, até que o inimigo acabe com eles até ao último. Queres que eu deixe que isso aconteça quando posso fazer algo para o evitar? Põe de lado as tuas preocupações, Sam. Isto é muito maior do que tu, eu e o Sea Dove. — Era tão grande, de fato, que lhe começara a consumir os pensamentos, noite e dia. Nas Ilhas Brilhantes, o mais próximo que estivera de influenciar um homem, de tomar uma decisão de alguma importância, fora juntar-se ao debate quando convidado para os conselhos com a sua mãe. As suas contribuições, se bem que recebidas com respeito, tinham sido sempre periféricas. Nunca se achara essencial em qualquer das discussões, em nenhuma das tentativas. Nunca tomara parte numa aventura, na qual a vida e a morte estivessem em jogo; nunca tivera homens dependendo de si. Aquilo era vital. Quase acreditava que fora enviado de propósito para aquilo.
Sam cerrou os maxilares obstinadamente. Desistira de tentar andar e apoiara-se no pedaço de madeira que usava como bengala.
— E Creidhe? — perguntou ele. — Esqueceste-te dela, não esqueceste, nessa tua missão de impressionar esse teu pai?
Subitamente, a raiva apoderou-se de Thorvald. O jovem ergueu um braço como que para desferir um golpe, mas desceu-o ao ver o olhar de Sam.
— Tento na língua! — disse ele asperamente. Em seguida, respirou profundamente. Um líder não perde o controle com facilidade e ele era ali um líder, apesar de tudo. De fato, Sam tinha razão. Os homens viravam-se cada vez mais para Thorvald em busca de liderança e encorajamento e ele via neles um certo desabrochar, tanto em termos de luta como em termos de confiança. — Creidhe veio porque quis — disse ele, forçando a voz a permanecer calma. — Sabes isso muito bem. Não há razão para ela não esperar mais um pouco por nós. Desde que partamos antes das tempestades de Outono, chegamos facilmente a casa. Uma passagem pelas Ilhas do Norte, talvez, e depois uma viagem cuidadosa até Hrossey. Temos muito tempo.
Creidhe podia esperar. A sua mãe podia esperar. Aquilo era uma missão, um desafio a sério, real.
— Acabas por fazer o que queres, claro — resmungou Sam. — Acabas sempre. Mas não me podes obrigar. Desta vez, não. Tenho um mau pressentimento que tem que ver com Asgrim, com esta porcaria da caçada e com Creidhe. Assim que este pé estiver bom, vou ter com ela e se tu não estiveres lá quando o Sea Dove estiver pronto, vamos para casa sem ti.
Thorvald sorriu levemente.
— Vai ser bom, só vocês os dois. — Magoava-o o fato de Sam não o apoiar, o fato de Sam não compreender a magnitude do que estava a tentar fazer ali, o significado de tudo aquilo. Ganharia a batalha daquele Verão, resgataria, finalmente, Máscara-de-Raposa e devolveria a paz há tanto tempo desejada por Asgrim para a sua tribo. Certamente que nenhuma rapariga, nenhum barco, era mais importante do que aquilo?
— Tu és cego, não és? — grunhiu Sam, virando-lhe as costas.
Thorvald não fazia idéia do que ele estava a dizer e não lhe apetecia perguntar-lhe. O ferimento, a inação forçada, transformara-o numa pessoa bem estranha; a sua disposição sempre amável e alegre fora substituída por um temperamento doentio e por uma melancolia desassossegada. Bem, o problema era de Sam, não dele. Asgrim regressaria em breve, a sua última viagem fora para fiscalizar os postos avançados e recrutar mais alguns homens para aumentar o número de efetivos que Thorvald estava a treinar no acampamento. Tinha de fazer com que, quando o governador regressasse, tivessem algo para lhe mostrar.
À medida que a confiança em Thorvald crescia, os homens iam começando a falar mais abertamente e o jovem aprendeu o suficiente acerca da natureza da batalha que estava para vir e do terreno em que ela seria travada, descobriu como restringir a estratégia aos mais apropriados naquelas condições tão difíceis. Qual era o tamanho das forças inimigas? Grande: vinham de todas as direções, apareciam e desapareciam como lhes apetecia. No último Verão, tinham dado conta de muitos homens de Asgrim antes de o restante do exército dos ilhéus ter conseguido atravessar a Corrente dos Loucos de regresso ao Fiorde do Conselho. Portanto, aquela tribo tinha muitos homens, bem armados, inteligentes e engenhosos. Tinham a vantagem de conhecer o território. O tempo de duração da caçada? Dois dias, se tivessem sorte; os barcos ficariam na Ilha das Nuvens durante a noite porque a travessia era traiçoeira mesmo em plena luz do dia e havia presenças misteriosas. Nenhum homem queria pôr o pé naquela praia na escuridão. Dois dias e regressariam a casa de novo, fosse qual fosse o resultado; se não conseguissem passar enquanto a estranha calma de Verão embalava as águas turvas da Corrente dos Loucos, o mar engoli-los-ia, se o inimigo não o fizesse. O terreno? Um lugar terrível, cheio de súbitos e íngremes precipícios, buracos, falhas e cavernas. Pouca cobertura, além de que o inimigo conhecia aquilo como as palmas das mãos. Havia aves por toda a parte, o solo, em alguns lugares, era escorregadio devido aos seus excrementos e o ar estava sempre cheio com os seus gritos e bicadas dolorosas. Teriam de proteger os novos; um risco adicional. Mais alguma coisa? Bem, havia a bruma, a chuva sempre a cair, o frio; as mãos vindas de sob a água, e as vozes...
Uma guerra na qual as formações organizadas, e as cunhas eram totalmente inapropriadas. Os Pele-de-Lobo seriam bem utilizados. O medo do inimigo parecia ser uma barreira a ultrapassar e uma força pequena de profissionais de elite seria de grande utilidade, para não falar daqueles fanáticos seguidores de Thor com a sua total falta de instinto de sobrevivência. Era interessante. Thorvald pensou no pai de Creidhe, que fora, em tempos, um daqueles guerreiros; na verdade, apesar de Eyvind ser agora mais um árbitro e um homem de família do que um soldado, as pessoas, nas Ilhas Brilhantes, continuavam a referir-se a ele como o Pele-de-Lobo, Filho de Thor, como se só tivesse existido um. Bem, ali não havia daqueles guerreiros; até os melhores homens de Asgrim viam aquele conflito com alguma perturbação, ou com uma aceitação fatalista. Thorvald esforçava-se por mudar esse estado de espírito. Decidira conhecer melhor os homens, inserindo em cada, um sentido de objetivo. Começava a dar resultado. Einar tornara-se num amigo e Skolli num aliado. Wieland estava mais pronto a partilhar as suas idéias do que antes, se bem que continuasse pouco naturalmente sombrio.
Skapti fora um desafio. Fora necessário despoletar uma situação na qual o segundo dos dois grandes guarda-costas, que os homens temiam ainda mais do que o irmão, Hogni, foi elogiado pela sua destreza, pelas suas capacidades especiais e convencido de que era vital para aquele empreendimento. O próprio Hogni ajudara. Skapti, disse ele a Thorvald, calmamente, tinha muito jeito para lançar facas. Não havia ali grande necessidade daquela destreza; força bruta e escrúpulos mínimos era o que Asgrim exigia dos seus guarda-costas. Mas Skapti era um artista com as facas.
Thorvald deu uma tarde de folga aos homens e pô-los a competir em jogos de várias espécies: luta livre, corrida, salto e escalada, puxar um barco para a praia, desatarem nós e, para coroar o concurso, lançamento de facas. O alvo era uma porta de madeira, na qual estava desenhado um homem com o coração pintado de vermelho. Cinco pontos para a cabeça, dez para o coração e um para um ponto qualquer do corpo. Após cada ronda, Thorvald afastava mais um pouco o alvo.
Na ronda final, apenas quatro lançadores conseguiram atingir o homem de madeira, dois numa perna e um num braço. As grandes mãos de Skapti empunhavam as facas com uma precisão delicada. O guerreiro fez um triângulo nítido com os seus mísseis, cada um deles atravessando o pequeno coração vermelho. Thorvald felicitou-o calorosamente, ofereceu-lhe uma bebida e depois outra. Ao fim da tarde já ele tinha persuadido o grande guerreiro de que o sucesso da caçada dependia da capacidade de Skapti para ensinar aos homens todos os truques que conhecia, não apenas com as facas, mas todo o seu considerável repertório de luta. Se Hogni e Skapti trabalhassem com ele, disse Thorvald, teriam um grupo de guerreiros de primeira qualidade por alturas do Verão.
Alguns dos homens tinham olhado de lado para Thorvald; o passado de Skapti não jogava a seu favor como professor e eles pensavam, sem dúvida na pancada que receberiam se não cumprissem os objetivos. Thorvald ignorou os olhares.
— Precisamos de ti, Skapti — dissera ele no fim, dizendo a verdade porque sem aquele guerreiro formidável como aliado os homens teriam de continuar sob a autoridade rígida de Asgrim. — Ajudas-nos? Queres fazer parte do projeto?
Skapti, curiosamente hesitante, falara com um constrangimento pouco habitual.
— Tens a certeza? — perguntou ele, fixando os pequenos olhos em Thorvald. — Tens a certeza de que me queres a mim e não outro qualquer?
— Tenho, Skapti. Confio em ti. Na verdade, não sei o que seria de mim sem ti. Que dizes?
O sorriso feroz de Skapti e o brutal aperto de mão a Thorvald tinham sido a resposta necessária. E a confiança de Thorvald parecia fundada, até à data. Tanto Hogni, como Skapti, pareciam deliciados com as suas novas funções como instrutores de guerra. Tudo o que Thorvald necessitava era de tempo. O jovem esperava ter o suficiente.
Skapti e Hogni cumpriram as suas funções sem necessidade de muitas palavras. Ambos conheciam o seu ofício; se assim não fosse, Thorvald não lhes teria confiado a tarefa. Já tinham o respeito dos homens devido ao seu tamanho e força, um respeito misturado com algum medo porque aqueles dois eram, há muito, o instrumento da dura justiça de Asgrim e ninguém se esquecia disso.
Asgrim tinha o hábito de ficar por ali um pouco, ladrando uma ou duas ordens ríspidas, passeando pelo acampamento, observando os esforços dos homens e pondo-os nervosos, desaparecendo depois durante um dia, dois, três, por vezes mais. Levava sempre Skapti ou Hogni com ele, por vezes ambos. Recentemente, Hogni e Skapti tiravam à sorte para determinar quem ia ou ficava e era aquele que perdia que partia ao lado de Asgrim, se bem que não dissessem nada ao governador. Thorvald encarregara Hogni dos treinos diários de combate, ao mesmo tempo que Skapti ficava com a responsabilidade de se assegurar de que cada homem, pescadores incluídos, atingiam um determinado nível de treino, tanto em combate armado como desarmado. Havia recompensas: uma faca melhor, um cobertor mais quente, o privilégio de liderar a sessão de canto depois do jantar, se se podia chamar aquilo canto. Thorvald retirara da memória um conjunto de velhas sagas de guerreiros heróicos e mulheres sedutoras, ferozes trolls maus e gigantes do gelo ameaçadores e contava-as o melhor que sabia. O jovem encorajou a invenção de outras e iniciou-se uma certa competição, com Orm a ser o campeão até à data.
As ausências do governador tornaram-se mais freqüentes e mais duradouras. Dizia-se que ele andava a ver se conseguia umas tréguas com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Quando estava no acampamento, Asgrim observava em silêncio, de olhos semicerrados e lábios apertados. Não tentava restringir os esforços de Thorvald, nem os elogiava. A determinada altura, sugeriu que Thorvald podia, também, fazer uso da sua cabana enquanto ele estava ausente; não se devia pôr de lado a oportunidade de dormir numa boa cama. Aquilo parecia indicar um certo reconhecimento. Mas Thorvald disse que preferia dormir ao lado dos homens e dizia a verdade.
Até os pescadores andavam ativamente envolvidos. Naquele dia, usavam os escudos feitos recentemente para desviar os golpes da equipe adversária, tentando ultrapassar, teimosamente, uma determinada linha delimitada por um par de postes de ferro enterrados no solo. A equipe que defendia tinha lanças. Estas não eram armas de treino: as armas de treino eram um luxo a que aquele exército não se podia dar, já que era pobre em ferro e madeira. Ao ouvir a pressão dos corpos, os gritos e o estrondo das pontas das lanças nos escudos, Thorvald só esperava que Hogni os detivesse antes de alguém sair seriamente ferido. Cada homem tinha um papel a desempenhar na caçada: um par guardaria os barcos, enquanto o resto invadiria a Ilha das Nuvens. Utilizando cada camponês, cada pescador, podia reunir uma força de vinte e sete homens. Enviaria Hogni e Skapti com um grupo cada um, enquanto Einar comandaria o resto, com Orm ou Wieland ao lado. Cada um deles tinha mostrado uma certa capacidade de liderança. Se mantivessem o sangue-frio, as hipóteses de derrotar o inimigo eram melhores do que boas. Encontrar Máscara-de-Raposa e resgatá-lo são e salvo seria a sua própria tarefa.
Sam estava acocorado nas rochas, grande e grosseiro, mexendo na ligadura que lhe atava o pé ferido.
— Que estás a fazer? — perguntou Thorvald. — Não tires isso. É suposto manter o ungüento tapado...
— Estou farto disto — disse Sam pesadamente, desenrolando a ligadura. — Estou farto disto tudo. O que o meu pé precisa é de apanhar água salgada e ar fresco. Sempre me dei bem com isso. — O jovem sentou-se numa rocha plana e meteu o pé inchado e vermelho numa pequena poça que refletia o céu ensolarado. Tinham tido poucos dias de verdadeiro Verão; aquelas ilhas tinham um clima terrível, se bem que a pesca não fosse má. — A partir de agora, vou passar a fazer as coisas à minha maneira — disse Sam. — Se aquele tipo, o Asgrim, me der ordens de que não gosto, não as cumpro. Pode ser que seja o governador, mas não é meu patrão. Quero sair daqui, Thorvald.
— Sim, tornaste isso muito claro. — A voz de Thorvald era tensa. — Sam?
— O que é?
— Devias fazer o que te mandam. Devias fazer parte disto. Nós precisamos de todos os homens capazes.
— Homens capazes? — perguntou Sam, olhando para o seu pé inchado no meio do mexilhão e das algas como uma criatura do mar.
— Isso sara antes do Verão. Não me abandones, Sam, preciso de ti. Pensa no que os outros dirão se te fores embora. E não desafies Asgrim. Não seria muito sensato da tua parte.
— Isso é uma ameaça?
— Chama-lhe o que quiseres. Ninguém lhe desobedece sem pagar a fatura, mais nada. Sabes isso muito bem, foste o primeiro a dizê-lo.
— Eu disse que ele era cruel. O homem não tem coração.
— Isso não é justo. Vivemos circunstâncias extraordinárias e ele faz os possíveis para manter a disciplina. Estes homens não são guerreiros. Há algo no inimigo que os aterroriza. Asgrim acha que é a sua presença que os mantém unidos. Pelo menos é o que eu penso. Não percebe que a chave para um bom desempenho é o respeito e a confiança, combinados com uma sólida preparação.
— Desempenho — disse Sam sem expressão. — Como um cavalo, ou um cão de caça, queres dizer? Pode ser que tenhas os teus métodos, Thorvald, mas o chefe é Asgrim. Se um homem não desempenha o seu papel, ele, simplesmente, livra-se dele. Se ainda procuras provas de que ele é o teu pai, creio que as tens na tua frente. Somerled não matou o próprio irmão a sangue-frio e não fez frente a todos aqueles que se puseram no seu caminho? Parece que não melhorou desde então. — O jovem fez uma pausa. — Eu devia pedir desculpa por ter dito isto, mas não peço. Eu sei que tu achas que ele pode ser o teu pai, mas há algo nele de que eu não gosto, Thorvald. Não confio nele.
— Estás enganado. Fica aqui, ajuda-me e eu provo-te que estás enganado. Asgrim tem andado a lutar contra o impossível. Imagina como se deve sentir ao perder a mesma batalha ano após ano; ver os seus homens a morrer sem resultados práticos. Imagina um inimigo que mata crianças no dia em que vêem a luz do dia. Ele faz os possíveis, mas está desesperado e os homens desesperados, por vezes, tornam-se cruéis. Provavelmente, pensa que é a única maneira.
— Nesse caso, por que é que te deixa fazer o trabalho dele? — perguntou Sam rudemente. — A mim, parece-me que ele te está a usar.
Thorvald não respondeu. Havia uma resposta óbvia, mas não diria qual era.
— Estás orgulhoso por ser filho dele, não estás? — No rosto honesto de Sam, o seu olhar era gelado.
— Se ele for o meu pai — disse Thorvald num sussurro — acho que devo ser o melhor filho possível. Mais nada. Ficas comigo?
Sam abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas fechou-a logo a seguir. Um dos homens gritara qualquer coisa e os restantes estavam a pousar lanças e escudos e corriam para a praia, apontando para o mar. Sam levantou-se cuidadosamente, utilizando o ombro de Thorvald para se apoiar e olhou também para o oceano. Era um barco remado por dois homens em pé, um barco maior do que os que estavam no areal. A embarcação prosseguia pesadamente numa rota algo errática. Os remadores eram Egil e Helgi, que tinham ido com o governador na última viagem deste. Ao leme estava o próprio Asgrim. Os remadores remavam, os músculos inchados pelo esforço e o Sea Dove raspou nas conchas e nas pequenas rochas antes de encalhar, todo de lado, na areia escura. No lugar do buraco havia agora uma variedade de pranchas e remendos, rudemente cravados e unidos, como se uma espada finamente forjada tivesse sido remendada com um pedaço de ferro, ou um bordado delicado com pedaços de lã por cardar. Sam ficou a olhar, horrorizado.
Asgrim, primeiro a saltar para terra, caminhava na sua direção.
— Thorvald, Sam. Ele ainda navega, como vêem. Que tal vão os progressos dos homens?
— De acordo com o previsto — disse Thorvald de modo ausente. O jovem estava a olhar para o amigo. Sam dera um passo hesitante em frente e depois outro. A expressão do seu rosto era ao mesmo tempo cômica e incrédula.
— Quem remendou o meu barco? — conseguiu ele dizer. — Chamam a isso uma reparação? Pelos ossos de Odin, uma criança era capaz de fazer melhor. Onde é que os teus homens aprenderam a construir barcos? Com um cozinheiro, ou com um pescador? — O jovem chegou a coxear até junto do Sea Dove e estendeu uma grande mão para tocar primeiro na madeira em bom estado e depois, com desgosto, na linha irregular onde começava o feio remendo.
— O remendo é temporário, claro — disse Asgrim suavemente. O governador estava a olhar de perto para Sam, reparou Thorvald, talvez à espera de uma resposta especial. — Precisamos dele aqui; é um barco capaz de transportar mais homens do que os outros e a sua construção, de boa qualidade, dar-lhe-á vantagem nas correntes fortes da Ilha das Nuvens.
— Ninguém vai velejar nele com este remendo horrível no casco — disse Sam secamente. — Ele só vai para o mar depois de eu o reparar como deve ser. E ninguém mexe nele sem eu dizer. Estou a falar para todos. — O jovem olhou em ar de desafio, virando a cabeça não só para Asgrim e Thorvald, mas também para o semicírculo de guerreiros, pescadores e guarda-costas reunidos na praia para ver o Sea Dove.
— Belo barco — grunhiu um dos pescadores. — Nunca vi nada igual.
— Espero que tenhas ouvido o que eu disse — disse Sam, virando os olhos azuis para Asgrim.
— Ouvi. — O governador parecia imperturbável. — É evidente que deves ser tu a fazer as coisas à tua maneira e a escolher os ajudantes, recordando, claro, que devem ter todos a sua quota diária de treino de combate. Tenho a certeza de que Thorvald está de acordo. As minhas desculpas pelo remendo. Só quero vê-lo reparado, falaste nisso muitas vezes, e como não estavas capaz de o ir buscar... Foi uma solução de emergência, mais nada. E tens de substituir o mastro; nós temos um tronco de abeto para isso. Não é perfeito, mas é capaz de servir. É uma grande tarefa, Sam, e não tens muito tempo. Tens a certeza de que és capaz?
A expressão nos olhos de Sam foi a resposta.
— Vou começar já — disse o jovem. — Onde é que está o meu saco das ferramentas? Knut? Vamos, toca a andar.
— Thorvald? — Einar falou com algum acanhamento enquanto os dois observavam, naquela manhã, os homens a praticarem tiro ao alvo. Mais ao longe, na praia, o Sea Dove estava rodeado por um enxame de ajudantes escolhidos por Sam; a maior parte do remendo feito já tinha desaparecido.
— Sim?
— Preciso de te dizer uma coisa confidencial. Espero que não a aches imprópria.
Thorvald virou-se para olhar para o homem mais velho. A expressão de Einar era invulgarmente severa, mesmo para um homem que raramente sorria.
— É claro que não — disse o jovem calmamente, apesar de se sentir pouco à vontade. — O que é?
— Tens de ter cuidado — disse Einar, baixando a voz até se transformar num sussurro. — Muito cuidado. Ele pediu-me para te vigiar, para ter a certeza de que tu não ultrapassas os limites.
— Que queres dizer? — Thorvald sentiu-se, subitamente, gelado. Asgrim não confiava nele? Não fora o próprio governador a pedir-lhe que assumisse a chefia?
— Não te posso dizer mais. O problema é que tu estás a ser-lhe útil, muito útil, e se conseguires o objetivo, ele não te vai impedir, pelo menos até isto acabar. Mas ele vê como os homens olham para ti e não gosta nada. Ele está a avaliar-te: se és uma vantagem, uma ameaça ou, a longo prazo, um obstáculo. Eu já vi aquele olhar antes, Thorvald. Ele não é homem para se ter como adversário.
— Por que me estás a dizer isso? — perguntou Thorvald. O jovem estava dividido entre a raiva e a dor. — Não te pões também em perigo?
— O que é que achas, louco? — respondeu Einar, colocando uma mão no ombro do jovem. — Limito-me a pedir-te que tenhas cuidado. — O tom da sua voz mudou abruptamente. — Acabou a rodada e todos os homens acertaram no alvo pelo menos uma vez. Estão a melhorar.
— Sim — disse Thorvald, reconhecendo que fosse o que fosse que povoasse os seus pensamentos, o seu pai, a sua identidade, o seu futuro, nada era mais importante do que o aperfeiçoamento das capacidades e coragem daqueles homens e o reacordar da sua esperança. — E ainda hão de melhorar mais. Vem, vamos dizer-lhes isso.
Creidhe sentia-se desconfortável se as suas mãos permaneciam muito tempo desocupadas. Depois de uma boa noite de sono, sentou-se à mesa com o saco a seu lado e a Jornada nos joelhos. O tecido estava desenrolado apenas o suficiente para mostrar os últimos pontos que fizera algum tempo antes em casa de Jofrid. Ela enfiou um fio de lã verde-musgo na agulha — atravancara a lareira do quarto de trabalho da tia Margaret com tintas e corantes até conseguir aquela cor — e começou a bordar. Aquela parte do padrão era mais suave, uma calmaria na corrente veloz da Jornada. O que estava a bordar significava confiança e abertura, uma coisa pouco comum naqueles tempos mais recentes. A jovem desenhou um monte e um pequeno edifício com uma cruz no topo. A parte seguinte continuava na sua mente: mãos apertadas; uma adaga meio escondida; um ovo, a sua forma simples e perfeita.
O irmão Niall estava sentado no outro lado da mesa, observando-a em silêncio. Os outros tinham saído; depois das orações da manhã havia trabalho para fazer: tratar do gado e da horta, porque tinham de ser auto-suficientes em tudo, dissera-lhe Breccan ao jantar. Até tinham um pequeno barco, que o tinha trazido a ele e a Colm até àquelas ilhas vindos da sua terra, louvado fosse o Senhor, e que estava agora guardado num local não muito longe da Baía Sangrenta. Se Colm não lhe tirara o encerado, já devia estar mais ou menos invisível.
Após algum tempo, Niall desenrolou um dos rolos de pergaminho e colocou pequenas pedras nos cantos. O monge foi buscar um pequeno jarro com água, raspou um pouco de pó para dentro de um tinteiro, mexeu e esperou. Em seguida, pegou numa pena e começou a escrever. Olhando para cima, Creidhe viu as palavras a fluírem através do pergaminho, com precisão e regularidade, críticas e tão bem-feitas como as pegadas de uma lontra, de uma lebre, de uma gaivota ou de uma andorinha. No alto da página havia uma letra maior com padrões em redor de cores tão profundas e sutis como as que ela estava a bordar no seu próprio trabalho. Havia folhas, espirais, serpentes retorcidas e pequenas criaturas de olhos estranhos com asas e escamas. A pena continuou; naquele dia, Niall estava apenas a acrescentar texto em filas perfeitamente alinhadas. No entanto, no meio daquela ordem, a jovem conseguia ver alguma desordem: em redor da estrutura nítida, sinais de fuga. A jovem virou a sua atenção para o seu próprio trabalho. As suas mãos moviam-se industriosamente desenhando uma flor, uma nuvem, uma pequena ovelha. Trabalharam os dois durante algum tempo em silêncio, ambos concentrados em cada tarefa.
— Reparei — a voz de Niall quebrou a quietude — em pequenas irregularidades no teu trabalho; deliberadas, suponho. O padrão, aqui na margem, é interrompido, há um carreiro para fora, por assim dizer, por entre esta fila de videiras. É muito interessante.
A sua primeira reação foi dobrar o tecido rapidamente para cobrir o que tinha feito; era um segredo a não partilhar e, certamente, a não discutir. Mas, não bordara o que sentira mais naquela pequena casa de homens? Confiança? A jovem desdobrou mais uma vez o seu trabalho, tocando com um dedo na parte que ele mencionara.
— Tens uma boa visão — disse ela.
— Para um homem de idade? Sim, mais ou menos. És capaz de me explicar esse padrão? Parece ser uma coisa prodigiosa. Algumas pessoas chamar-lhe-iam um talismã poderoso. Não é o teu Thorvald, evidentemente. Os olhos dele são menos perspicazes apesar da tenra idade.
— Eu digo-te o que isto significa, esta interrupção aqui na margem, se me disseres o que significa essa escrita que vai até à margem do teu manuscrito. Parece que as letras estão a tentar fugir.
A pena deteve-se. Niall sorriu; Creidhe prendeu a respiração porque a expressão dele era uma combinação de tristeza, pena, aceitação, tudo misturado com um olhar levemente culpado, como o de um rapaz apanhado a fazer uma asneira qualquer.
— Creidhe — disse ele calmamente. — Acho que a tua visão ultrapassa a minha; vai direto ao coração das coisas. Muito bem, eu digo-te, se queres. Mas, primeiro, as senhoras.
— Está bem.
A jovem desenrolou um pouco a Jornada em cima da mesa, o suficiente para que ele pudesse ver as partes que ela fizera naquele dia e a parte anterior. As imagens daquela última parte eram sombrias e estranhas; o seu medo e intranqüilidade viam-se nas sombras, nas mãos apertadas e apenas avistadas, nos rostos que sorriam em sinal de boas-vindas e gritavam ao mesmo tempo de furioso repúdio. A jovem não lhe mostrou o local onde bordara a Ilha das Nuvens.
— É difícil de explicar — disse ela. — Devido ao que é, ao poder que tem, é preciso ter cuidado. Eu faço mais um pouco todos os dias, se posso. Chamo-lhe a Jornada. Estes pontos são muito mais do que simples pontos, estas imagens são mais do que simples linha, são uma... escapatória. Se não fizesse isto, o amor, o ódio, o medo e a alegria cresceriam até não poderem caber num objeto tão pequeno. Tornar-se-ia demasiado perigoso, demasiado poderoso. Assim, faço este pequeno carreiro aqui, na margem: uma escapatória. Não é regular; não pode ser um padrão, ou arriscar-se-ia a perder-se no conjunto. É assim que fazemos tudo. Cada cobertor, cada tapete, cada peça de vestuário possuiu esta irregularidade. É uma forma de proteção para aqueles que os usarem mais tarde. Até a tia Margaret os faz, agora, se bem que seja uma tradição do povo da minha mãe, não do dela.
— Respeitas muito essa tua tia, pelo que vejo. Ela é irmã do teu pai?
Creidhe pressentiu uma casualidade estudada naquela pergunta; a jovem começou a sentir uma sensação esquisita na espinha, uma espécie de formigueiro.
— Oh não — disse ela. — A tia Margaret não é do meu sangue; é uma velha amiga dos meus pais, mais nada. Eu penso nela como uma tia e uma amiga ao mesmo tempo; ela não tem filhas, apenas Thorvald e tem sido muito boa para mim, ensinando-me tudo o que sabe acerca de fiar e tecer. Ela gosta da minha companhia, acho eu; a sua vida seria muito solitária sem os nossos tempos juntas.
— O teu amigo Thorvald é filho dela?
Creidhe acenou com a cabeça.
— O único, sim. O marido da tia Margaret morreu. Ela nunca voltou a casar, se bem que tivesse muitos pretendentes. E agora, respondes à minha pergunta?
— Respondo, pois. Qual era a pergunta?
Ela olhou para ele, surpreendida e ele devolveu-lhe o olhar, os olhos brilhantes devido a uma emoção que ela não conseguiu interpretar. Creidhe estremeceu; parecia que estava à beira de um precipício, como que num momento de descoberta. Veio-lhe à mente que talvez tivesse compreendido tudo mal.
— Diz-me o que é isso, esses lugares onde a escrita quase desaparece da margem da folha onde trabalhas.
— Ah sim — disse Niall suavemente, enrolando as mangas do hábito rude para que o tecido não borrasse a tinta molhada e esticando o braço para tocar numa irregularidade no alto da página. O manuscrito era um trabalho extremamente artístico, uma criação que rivalizava com a Jornada e, certamente, realizado com o mesmo amor e carinho. — De certo modo, a resposta é a mesma. A nossa regra está aqui escrita: boa, mas restrita. A minha própria regra é ainda mais rigorosa, imposta de acordo com um voto, assim como a disciplina que todos seguimos, mas mais áspera e mais particular no meu caso. — O seu olhar deixou o pergaminho e fixou-se na distância, como se tivesse visto algo ao longe, ou há muito tempo. A intensa escuridão daqueles olhos evocava uma imagem de Thorvald no alto da falésia, cabelos ao vento, a carta do pai na mão e palavras amargas nos lábios. — Para alguns homens e para algumas mulheres, suponho — continuou Niall — a maior dificuldade é não poder agir quando sabem que podem ter alguma influência no mundo; não poder resolver quebra-cabeças quando o intelecto o exige; ignorar soluções que estão perante os seus olhos. Mas alguns homens não deviam agir; alguns homens, parece, só causam destruição, quer tenham, ou não, essa intenção. Estes pequenos versos que estás a ver, tentando sair da página como animais tentando escapar de uma jaula, são divagações de alguém que luta contra as grilhetas que impôs a si próprio, mais nada. As palavras são seguras, acho eu; na verdade, ao substituírem a ação, desempenham a mesma função das tuas escapatórias, permitindo que o que é perigoso se dissipe antes que provoque qualquer dano. Isto tem um certo custo para mim, assim como para ti, como fazedores destes mapas da alma, mas é um preço que vale a pena; não concretizar estas coisas é como secar e morrer. Eu divago, Creidhe. Respondi à tua pergunta?
Ela acenou com a cabeça, incapaz de responder. Parecia-lhe que ele respondera a várias perguntas e o fato de as ter apreendido todas, naquele momento, era esmagador.
— Não sei que dizer. — Era uma resposta coxa para o que fora, na sua essência, uma revelação dos seus sentimentos mais íntimos.
— Não há necessidade de falar mais nestas coisas — disse Niall calmamente, baixando as mangas até aos punhos e estendendo um braço para pegar na pena. — Acho que nos compreendemos mutuamente. Lamento não ter conhecido os teus amigos antes de Asgrim os ter levado. Lamento muito.
Continuaram ambos a trabalhar em silêncio por algum tempo e se a confusão de pensamentos e sentimentos fizeram com que a pena e a agulha se movessem com menos liberdade, nem o eremita de cabelos brancos, nem a jovem o disseram. Finalmente, foi Creidhe quem quebrou o silêncio.
— Há algumas coisas que devemos discutir. Ontem, não explicaste tudo. Asgrim é a ameaça da outra tribo; não a compreendo muito bem e tenho de a compreender, já que estou em perigo. E os rapazes; preciso de saber quais são os planos dele para eles.
— Sim, Creidhe, precisamos, na verdade, de falar disso, porque sinto que cada vez estás menos segura aqui. Penso que dentro de um dia ou dois vamos ter de te mudar para outro lugar, antes que Asgrim decida que a nossa hospitalidade já durou muito. Ele suspeita de mim há muitos anos. Eu sou um dos poucos que pode desafiar a autoridade dele; apesar de, devido ao fato de ser um clérigo, o faça apenas com palavras, não com atos. — O monge esboçou um sorriso torcido. — Daqui a pouco, eu e Breccan vamos preparar as tuas coisas; depois, decidiremos o que fazer. Mas ainda não. Quero pedir-te um pequeno favor. — A sua voz ganhara um leve tom de acanhamento.
— Um favor? — perguntou Creidhe. Niall hesitou.
— Não quero falar do passado — disse ele. — És capaz de respeitar isso?
— Claro. — Thorvald quereria, certamente, falar do passado. Mas Thorvald não estava ali e ela não tinha nada que se meter nos assuntos secretos daquele homem. Além disso, prometera a Thorvald e quando mais Niall lhe contava, mais dificuldade tinha em guardar segredo. — Se é isso que queres.
— Por outro lado — disse ele — gostaria muito de ouvir falar um pouco da tua vida em casa: a tua família, os teus amigos, o mundo em que vives quando não andas no mar em busca de aventuras. Espero que perdoes as tolices de um velho.
— Um velho? — A jovem ergueu as sobrancelhas.
— Não é o que pensas?
— Bem, tens cabelos brancos. É suposto...
— Quando vim para aqui era novo. Quando pus os pés nesta ilha o meu cabelo já era da cor que vês agora. Se isso me faz velho, sou um velho. És capaz...?
— É capaz de ser uma chatice para ti. A maior parte da minha vida tem sido passada em frente de um tear, ou diante de tachos e panelas.
— Mesmo assim.
Ela contou a sua história cuidadosamente, desenhando-lhe um quadro: os tempos de paz nas Ilhas Brilhantes, o nascimento e a criação do gado, a colheita das sementeiras, o governo de uma sociedade fruto de duas raças a antiga dos Folk, o povo da sua mãe, cujos reis tinham reinado durante gerações; e os nórdicos recém-chegados, a raça do seu pai, que agora vivia ao lado dos outros e que era mais numerosa. A jovem falou da existência de várias religiões: de eremitas cristãos como ele, vivendo nas Ilhas Brilhantes lado-a-lado com sacerdotisas da velha fé, a sua própria irmã era uma dessas mulheres sábias e os que acreditavam nos deuses das terras nevadas, Odin, Thor, Freyr. Creidhe falou no seu pai, como ele liderava o povo com sentido de paz e justiça; da sua mãe, cuja sabedoria e perspicácia resolvera muitas disputas entre as diversas raças das ilhas ao longo dos anos. Como Niall não a interrompesse, não lhe cortasse a palavra, ela continuou e falou nas suas irmãs e no seu pequeno irmão que morrera antes dos cinco anos. Falou de Margaret e de Thorvald, este quase da idade da sua irmã mais velha, Eanna, a que era sacerdotisa. Após algum tempo, Creidhe reparou que ele parara de escrever e que estava com o queixo encostado a uma mão, com um olhar distante, escutando muito simplesmente.
— Eu estou ligada a uma promessa, sabes? — disse ela, já perto do fim. — Thorvald fez dezoito anos no último Outono. Então, na Primavera, a mãe dele entregou-lhe uma coisa. Foi essa coisa que provocou esta viagem. Não sei se ele conseguirá encontrar o que procura. Para ele, é da maior importância; uma busca de identidade, por assim dizer.
— Hum! — disse o irmão Niall. — Tarefa difícil, não só para esse jovem. Tu és uma amiga leal, Creidhe; és uma filha digna dos teus pais. — O seu tom de voz era tão baixo que ela mal o ouviu, apesar do silêncio que reinava na cabana. — É provável que, no fim, tenha uma amarga desilusão. Mais valia ter ficado em casa e continuar com a vida que tinha. Pelo menos, é o que eu penso.
— Tal como tu — disse Creidhe cuidadosamente — Thorvald tem muita dificuldade em não agir. É por isso que tenho de saber o que anda a fazer com Asgrim. Tenho o pressentimento de que está metido num sarilho qualquer.
— Vamos chamar o irmão Breccan — disse Niall, levantando-se — e pensar num plano de ação. Receio que colocar o nosso futuro nas mãos de Deus seja inadequado na presente circunstância.
— Só mais uma coisa, antes de o chamares. — Creidhe hesitou. Tinha de dizer aquilo; só esperava que ele não se ofendesse. — Acreditas que um homem pode mudar? Tu disseste qualquer coisa acerca... acerca de uma vingança destruidora, como se fosse esse o único caminho possível. Não és cristão? O irmão Tadhg dizia-nos que o Deus cristão ama até os pecadores; que um homem só precisa de se virar para Ele para começar uma vida nova. Se praticou o mal, Deus perdoa-lhe e deixa-o tentar de novo. Se acreditas nisso, como podes falar assim de um homem acorrentado ao mal?
— Ah. Falas por experiência própria; cresceste entre os bravos e virtuosos e isso ensombrou de algum modo a tua capacidade de julgamento, acho eu. Eu sou o cristão que Breccan conseguiu fazer de mim quando chegou a estas ilhas. As intenções dele eram boas.
O seu tom de voz era frio como o gelo e os seus olhos não tinham expressão. Pode um homem mudar? Podemos passar a vida inteira a debater esse ponto sem chegar a uma conclusão. Chamo os outros?
Foi assim que Creidhe tomou conhecimento de toda aquela história retorcida: como, depois da rapariga, Sula, ter dado à luz a criança de que eles necessitavam, Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz a tinham perdido antes do seu segundo ano de vida. O bebê fora raptado, levado pelo próprio filho de Asgrim, irmão de Sula, não para junto do povo dos Facas Longas, mas para a Ilha das Nuvens, onde ainda se mantinha escondido, cinco longos anos depois. A ilha era interdita à tribo d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz: a sua tradição decretava que era mortal um homem aproximar-se do local. Sendo um homem santo, o próprio Máscara-de-Raposa era, aparentemente, a única exceção à regra. Quanto ao resto, talvez fosse mesmo mortal, com ou sem tradição. As correntes entre a ilha e o Fiorde do Conselho eram temidas por todos os pescadores do povo dos Facas Longas e evitadas em qualquer estação, salvo durante um breve período de tempo por ocasião do meio do solstício do Verão, quando uma estranha calmaria descia sobre o oceano agitado e um homem podia atravessar e regressar em segurança no intervalo entre o nascer do Sol de um dia e o crepúsculo do seguinte. Mesmo assim, os pescadores só o faziam se necessário. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tinham lançado uma maldição sobre o povo dos Facas Longas quando Máscara-de-Raposa foi raptado. Até ser resgatado e devolvido à sua própria tribo, nenhum bebê Faca Longa sobreviverá para ver o Sol nascente duas vezes. As vozes vinham, cantavam e eles desapareciam nas trevas.
Daí a caçada: todos os Verões, os homens embarcavam nela, ano após ano, e todos os Verões os sobreviventes ensangüentados regressavam com os corpos dos que tinham caído e os que tinham conseguido recuperar. Asgrim levara-os e conduzira-os cinco vezes àquela armadilha mortal; aquele Verão seria a sexta. Durante todos aqueles anos, nem um único bebê dos Facas Longas sobrevivera. Ninguém sabia ao certo que tribo vivia na Ilha das Nuvens, apenas que eram ferozes como animais selvagens, numerosos e peritos em magia. O povo dos Facas Longas nem sequer sabia se o próprio Máscara-de-Raposa ainda lá vivia, mas era evidente que Aqueles-Cujo- Nome-Não-Se-Diz acreditavam que sim, continuando a puni-los até o vidente ser encontrado.
— Estou a ver — disse Creidhe. Enquanto Niall e Breccan contavam a história, ela estivera a cozinhar; a jovem tirou os bolos da frigideira suspensa por cima do fogo e colocou-os num prato. Colm também estava presente; os seus olhos brilharam à vista daqueles bolos dourados e estaladiços e ao sentir o aroma das ervas e da manteiga a chiar. De fato, era apenas uma mistura de ovos, farinha e um pouco disto e daquilo. O truque estava na maneira de amassar a farinha. — Acham que Asgrim persuadiu Thorvald e Sam a ajudá-los neste empreendimento? Participar nele. Não consigo pensar em Sam a fazê-lo de livre vontade.
— E Thorvald? — perguntou o irmão Niall, cortando o seu bolo e olhando para ele com gosto. — Sim, Creidhe, essa parece ser a explicação para uma ausência tão prolongada. Uma troca, talvez; eles ajudam-nos nos preparativos para a caçada e ganham a madeira necessária para repararem o barco. Ouvi dizer que Asgrim tinha ido à Baía Sangrenta e tinha levado o barco para o Fiorde do Conselho. Isso deu-me que pensar.
Creidhe sentiu o coração a bater com força.
— Eles não deviam lutar... quer dizer, Sam não percebe nada de guerra e Thorvald...
— Estranhamente, não é com isso que estou preocupado — disse Niall. — Hum, tu sabes mesmo cozinhar. Não, receio que a partida repentina desses dois jovens, seguida por uma longa ausência, não passa de uma estratégia para os manter longe de ti, Creidhe. Tu estás em perigo. Se Asgrim conseguir acabar este conflito sem perder mais vidas, nada o deterá. Ao fim de cinco longos anos, os seus homens estão profundamente desanimados. Em breve começarão a questionar a sua liderança, a questionar o seu papel como chefe de guerra. E as mulheres também; este conflito, não só lhes rouba os filhos, como lhes chacina os homens, deixando-as com o fardo adicional de tratar do gado, dos campos e da vida inteira da comunidade. Só há rapazes para pescar, uma vez que Asgrim leva os homens todos. São as mulheres que passam dias cansativos no lago e com magros resultados. É um fardo pesado para o povo dos Facas Longas. Asgrim não se pode dar ao luxo de mais uma caçada.
Creidhe esperou.
— A nós, parece-nos — disse Breccan com o seu sotaque suave — que contigo no nosso seio, Asgrim tem os meios para fazer um acordo com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Até agora, os homens dele têm sido incapazes de resgatar Máscara-de-Raposa daquela ilha fortaleza. Este Verão vai trazer-nos mais uma expedição condenada ao fracasso! Assim, ele agarra a oportunidade de uma alternativa. Convoca uma reunião com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, uma coisa que nós sabemos ser ainda possível, apesar de eles já não comparecerem nos conselhos nem falarem com quaisquer outras pessoas dos Facas Longas. Em troca, não haverá mais mortes nem vozes durante a noite. Para conseguir a paz, Asgrim oferece-lhes outra rapariga de cabelos louros: tu.
Seguiu-se um silêncio. Creidhe conseguia sentir o bater do seu coração, o frio que lhe subia pela espinha. Se não tivesse saído da aldeia, talvez já tivesse sofrido o mesmo destino da filha de Asgrim.
— Esperem — disse ela, franzindo o sobrolho. — Foi a própria filha dele que eles raptaram, que raptaram e trataram de maneira cruel. Certamente que nenhum pai procuraria que isso acontecesse a outra rapariga, certamente que ele recusará essa idéia, apesar de eu ser uma estranha. Ele foi amável comigo.
— Talvez — disse Niall. — Mas receio que seja mesmo esse o objetivo de Asgrim. Já o teria feito antes do nascimento do filho de Jofrid, prevenindo, assim, mais uma morte. A chegada antecipada do bebê tornou-o impossível; como já disse, nestes tempos de conflito, Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz só negociam com o próprio governador e eu imagino que uma reunião dessas leva tempo a preparar. Aquele bebê perdeu-se, mas ele pode salvar os homens e permitir que as mulheres da sua tribo possam, de novo, ter filhos sem medo. Ele tem de dar qualquer coisa ao adversário antes de começar a caçada e essa coisa és tu. Não temos muito tempo.
— Não acredito que ele faça isso — disse Creidhe suavemente. — Depois da perda da própria filha. Como é possível?
— Tu julga-o pelos homens que tens conhecido até agora, Creidhe; o teu pai, talvez. Eu tenho razões para duvidar de Asgrim. Houve algumas... irregularidades... quando do rapto da filha dele, que não melhoraram em nada a opinião que eu tinha dele. Como governador, ele agarra-se ao poder, mas os dedos estão-lhe a fugir. Em tempos desesperados, os limites dos homens alteram-se.
— Niall tem razão, Creidhe — disse Breccan. — Se não fosse a persuasão de Asgrim, os teus amigos já estariam aqui há muito tempo. Ele tem-nos lá forçadamente até conseguir este... arranjo. Não temos muito tempo. Amanhã, ou no dia seguinte, vamos levar-te para um lugar seguro.
— Para onde? — perguntou ela sem expressão, pensando em encostas íngremes, falésias e mares agitados. — E Thorvald? E Sam? Como é que eles me hão de encontrar?
— Eu posso levar uma mensagem — disse o jovem Colm, corando de timidez. — Eu posso ir até lá e oferecer-me para dizer algumas preces, teria tempo para dar uma palavra ou duas antes de eles me expulsarem. É claro que teria de ir quando o governador estivesse ausente. Aqueles dois rapazes são capazes de me dizer quando será a ocasião certa. Conheço-os bem.
Breccan sorriu.
— Ótimo. Tem cuidado. Temos de dar tempo para que Creidhe consiga chegar ao seu destino antes de chamarmos a atenção de Asgrim. Ele foi para a Baía Sangrenta, não foi, para levar o barco para o acampamento?
— Foi o que me disseram — disse Niall. — Mas pode já lá não estar. Possivelmente, fará um pequeno desvio no caminho. — O monge virou-se para Creidhe. — A baía onde estava o vosso barco é o lugar ideal para o embarque para a Ilha das Sombras, onde moram os anciãos d’Aqueles-Cujo- Nome-Não-Se-Diz. Se eu fosse o governador, não deixaria escapar a oportunidade de os sondar, de, possivelmente, finalizar um acordo. Acho que vamos ter uma visita muito em breve.
— Para onde é que eu vou?
— Para já, para junto dos nossos irmãos no norte. Ah sim — ele vira o seu olhar de surpresa — nós não estamos sós nestas ilhas. Este local atrai aqueles que procuram Deus na solidão e na vida dura. Temos dois irmãos no outro extremo desta ilha com um barco e há outro eremitério na Ilha das Tempestades. É melhor ires para ao pé deles até conseguirmos falar com os teus amigos. Lamento, Creidhe, isto pode ser assustador, mas não te vou insultar dizendo-te outra coisa que não a verdade.
Creidhe estremeceu.
— Mentiria se dissesse que não estou assustada. Só queria que houvesse outra solução, uma que não envolvesse morte ou sofrimento. Se o meu pai estivesse na posição de Asgrim, sei que ele conseguiria reunir um conselho, juntar todas as partes, falar abertamente sobre a situação e tentar um acordo que conviesse a todos. Não faria as coisas às escondidas.
— Asgrim não tem feito as coisas às escondidas — disse Niall severamente. — É evidente que as mulheres da aldeia devem saber do que está para te acontecer.
— Sim. — A voz de Creidhe era firme, recordando as refeições especiais, as escovadas de cabelo, o vestido verde. — E uma delas avisou-me. Uma que teve coragem suficiente para isso, se bem que tivesse acabado de perder o filho. Aqui há boa gente. Por que é que Asgrim não procura outra solução?
— Talvez acredite que não há. Não te esqueças, o adversário dele luta com maldições e feitiços, vozes que trazem a morte e exércitos de força sobre-humana. Eu já tentei imaginar outra solução. Estou inclinado a acreditar que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz seriam capazes de aceitar outra coisa; bastaria apresentá-la de maneira que eles compreendessem, mais nada. Persuadi-los a uma interpretação ligeiramente diferente da sua tradição.
— É uma fé bárbara — disse Breccan. — Eles são surdos à palavra de Deus e à Sua infinita misericórdia. Daria tudo para conseguir chegar até eles, mas eles não querem ter nada a ver conosco. A tribo de Asgrim é pouco melhor: ele teme a verdade de Deus.
— Hum! — A resposta de Niall podia significar qualquer coisa. — Devias partir logo de manhã, Colm. Certifica-te de que sais de lá antes de Asgrim chegar com o barco ao Fiorde do Conselho. Sê discreto; não te metas com ninguém. Suponho que os teus amigos não pertencem à fé Cristã, pertencem? — perguntou ele a Creidhe com as sobrancelhas erguidas.
— Bem, não. Sam adora Thor, um bom deus para um pescador. Thorvald não pensa muito em religião. Ele diz que se um homem não é capaz de depender apenas de si mesmo, não é homem.
A boca de Niall esticou-se ligeiramente num dos cantos.
— A sério? Bem, Colm terá de fazer o melhor que puder. Uma palavra ou duas, só precisamos disso; um aviso, suficientemente específico para lhes dar a entender a urgência, mas não muito detalhado. Não queremos ninguém a desafiar Asgrim.
— E Creidhe pode ir logo a seguir. Temos de esperar apenas o suficiente para ter a certeza de que ela não vai cair em cima de Asgrim ou dos homens dele, mas tem de já estar longe daqui no caso de ele decidir vir à procura dela. A ocasião ideal seria ao nascer do dia de depois de amanhã. Então, Colm já terá regressado e nós saberemos se ele conseguiu falar com os rapazes. — Breccan franziu o sobrolho. — Um de nós tem de ir com Creidhe, enquanto o outro ficará para responder às perguntas. O monge trocou um olhar complicado com Niall — Ele há de vir em pessoa e tu és o único capaz de lidar com ele.
— Queres dizer que minto impunemente, arriscando-me à desaprovação de Deus para o resto da minha vida? Sim, eu compreendo. Além do mais, tu és mais novo. Suponho que teria dificuldade em acompanhar o passo da nossa jovem amiga através dos campos, a julgar pela rapidez com que ela subiu esta encosta. Muito bem, está combinado. E agora, viremos a nossa atenção para os restos deste excelente pequeno-almoço. Que pena não poderes ficar conosco, Creidhe. Adorava ver o que serias capaz de fazer com umas cavalas frescas.
O plano parecera, se não infalível, pelo menos razoável. O homem que usava um nome tirado de uma história ouvida na infância esperou sozinho no eremitério pela chegada de um governador zangado, imperioso, exigindo o regresso do produto do seu acordo. Colm partira no dia seguinte e Creidhe no outro, subindo o vale às primeiras luzes do dia com Breccan a seu lado. Desapareceram nos montes como duas sombras, o cabelo da jovem cuidadosamente escondido e de saco às costas: o seu estranho bordado ia consigo para toda a parte. Colm ainda não regressara. Niall mungiu a vaca, alimentou as galinhas, passou uns olhos experientes pela horta e regressou para dentro de casa. O monge não conseguia escrever; tinha a mente noutro lado qualquer. O Sol passou por cima da sua cabeça, começou a descer para oeste e o rapaz continuava sem aparecer. Colm estava atrasado um dia. Niall recolheu os ovos e limpou o estábulo, atirando a palha suja para a horta. Colm tinha orgulho nos seus alhos e cebolas; não podia negligenciá-los. O brilho frio do longo crepúsculo de Verão espalhou-se pelo céu. Niall acendeu uma única lâmpada, mais para se tranqüilizar do que por necessidade. Estava tudo calmo. Os últimos gritos queixosos das aves soaram através do ar e, por baixo deles, ouvia-se o velho e profundo rugido do mar. O monge esperou, sozinho na noite.
Ao amanhecer, tomou uma decisão e, de cajado na mão, dirigiu-se para sudoeste, pelo carreiro acima, para o Fiorde do Conselho. Antes de o Sol se ter erguido dois dedos acima do horizonte, deu de caras com Colm por terra com a cabeça contra umas rochas, de mãos abertas, desamparado no cascalho da vereda. Recebera um único golpe; não havia muito sangue. Niall virou-o e fechou-lhe os olhos sem vida. O monge tentou fazer o que era apropriado, ajoelhando de mãos postas e murmurando uma oração: Pater noster... mas faltaram-lhe as palavras. Aquele rapaz precisava era de Breccan para o ajudar a conseguir a recompensa que o esperava, não de um mal fadado que não podia pôr a mão em nada sem reduzir tudo a cinzas. O rapaz era alto e pesado. Niall não conseguiria carregá-lo aos ombros. O monge instalou-o o melhor que pôde, uma cruz feita com dois paus entre as mãos cruzadas no peito e amparado por algumas pedras para que não caísse pelo precipício abaixo. Quando Breccan regressasse, voltariam ali e levá-lo-iam para casa.
Esperou de novo. Muito tempo; demasiado. O monge passou outra noite à escuta. A casa estava fria. Niall não acendeu a lareira, mas acendeu uma lâmpada; Breccan precisaria dela para encontrar o caminho quando regressasse. Se regressasse. Ocorreu a Niall que, se o que sentia no coração fosse igual ao que mostrava exteriormente ao mundo, podia ter rezado e tirado da oração algum proveito. No entanto, os deuses não estavam do seu lado, nem nunca tinham estado. Era justo: duvidara durante muito tempo da sua eficácia. Naquela noite desejaria ter fé, mas o desejo não era suficiente.
O tempo passou. Em determinada ocasião ouviu passos no exterior e dirigiu-se instantaneamente para a porta de faca na mão.
— Niall? — disse uma voz quase irreconhecível e quando este abriu a porta, Breccan caiu no interior da cabana, tremendo e respirando com dificuldade. Niall acendeu mais algumas lâmpadas, acendeu a lareira e foi buscar cobertores. O monge esperou; o outro ainda não conseguia falar. Quando as palavras surgiram vinham acompanhadas de lágrimas e o ruivo do Ulster não tentou retê-las. Atacados... na passagem... Aqueles-Cujo- Nome-Não-Se-Diz... demasiado tarde para ajudar...
— Está tudo bem — disse Niall. A sua voz soava distante e fraca, como se viesse de outro local qualquer. — Está tudo bem; tens de beber qualquer coisa, toma, e de te aquecer. Deixa-me ver se estás ferido.
Breccan tinha um ferimento feio na cabeça e um dos pulsos torcido. Niall foi buscar ungüentos e ligaduras, ligou-lhe o braço, limpou-lhe o ferimento da cabeça e meteu, finalmente, o amigo na cama.
— Colm? — segredou Breccan, ao mesmo tempo que as pálpebras se fechavam sobre os seus olhos sombrios.
— Ainda não chegou — disse Niall calmamente. — Dorme. Falaremos disso tudo amanhã.
O monge baixou a luz das lâmpadas e ficou na escuridão escutando o próprio coração a bater com força, com força e insistentemente. Mais valia desistir: de que valia? Se estava condenado ao fracasso, a transformar o ouro em escória e a esbanjar o que havia de mais precioso, para quê continuar? No entanto, por uma razão qualquer, já sentira aquilo antes e continuava a sentir. Talvez tivesse estado à espera durante aquele tempo todo, aqueles anos todos, para perceber o que tinha de ser feito. A mente sussurrava-lhe qualquer coisa, uma coisa terrível, uma coisa extrema, uma coisa que até gelava o sangue de um homem que acreditava que a sua vida não tinha qualquer valor. Não permitiria que aquilo tomasse forma, pelo menos enquanto Breccan jazesse ferido e o rapaz no monte, por sepultar. No entanto, aquele meio pensamento girava na sua mente. Teria de tomar uma decisão, mais tarde ou mais cedo.
CAPÍTULO SETE
Quem se atreve a acordar o passado?
O passado brilha como o nascer do Sol
E corta como uma faca bem afiada.
NOTA À MARGEM DE UM MONGE
No momento em que a agarraram, Creidhe só teve um pensamento; sobreviveria, acontecesse o que acontecesse. Eles saíram da bruma num silêncio total com longos braços, rostos pálidos, encapuzados, de olhos selvagens e brilhantes e de maxilares cerrados, decididos. Breccan começou a erguer o seu cajado; então, com um grunhido de surpresa, caiu por terra, ao mesmo tempo que o seu oponente lhe batia na cabeça com uma moca curta e robusta. O coração de Creidhe batia com toda a força; a jovem podia sentir o suor frio que lhe percorria o corpo, conseguia cheirar o próprio medo. As mãos deles, segurando-lhe os braços atrás das costas, eram frias como gelo e fortes como o aço. O seu instinto dizia-lhe para lutar e fê-lo durante alguns momentos desesperados, tentando libertar-se, dando pontapés e usando as unhas para arranhar e rasgar. No entanto, apercebeu-se rapidamente, através de uma névoa provocada pelo medo, de que eles, simplesmente, afrouxavam o aperto, evitavam os seus golpes e voltavam a segurá-la com força. Eram muitos, altos, silenciosos e fortes. Tornou-se rapidamente evidente que tentar fugir era perfeitamente inútil. Breccan estava sem sentidos e os seus esforços para resistir só serviam para precipitar o mesmo tratamento. Então, deixaria de ter esperança de escapar. Preocupava-a ainda mais um outro pensamento. Era evidente que eles tinham a preocupação de não a ferir, de não a deixar marcada. Seguravam-na com cuidado e moviam-se cautelosamente para que ela não sofresse qualquer ferimento na sua tentativa desesperada para escapar.
Em seguida, conduziram-na para fora do carreiro, sempre sem uma palavra. Breccan foi deixado onde caíra. Dois dos homens caminhavam a seu lado, com dedos finos segurando-lhe os braços. Os outros seguiam à frente e atrás. A jovem não vira qualquer arma, à exceção da moca que atingira o seu companheiro. Creidhe esperava que ele não tivesse ficado muito ferido. Pelo menos, poderia regressar e contar o que acontecera.
O passo era vivo e depois de algum tempo rumaram a oeste, aparentemente de regresso ao Fiorde do Conselho. Seguiram o curso de um rio que corria rápido, batendo nas rochas. Aqui e ali o terreno era pantanoso, saturado de água; os homens asseguraram-se de que ela não escorregava e caía, se bem que as suas botas estivessem totalmente enlameadas. Creidhe arriscou um olhar à esquerda e à direita; não gostou do olhar dos seus captores. Percebeu imediatamente quem eram e o que queriam. Os seus rostos, os seus olhos, os seus estranhos trajes feitos de pele ordinária diziam-lhe que não pertenciam ao povo dos Facas Longas, antes àqueles de quem Niall falara. E sabia o que significavam aqueles cuidados todos com ela, aquela preocupação em não danificar a sua prisioneira, que tinha de ser entregue à tribo sem qualquer marca: um troféu perfeito. Enquanto tropeçava nas rochas e escorregava no cascalho, Creidhe pensava. Uma rapariga que era ao mesmo tempo o Sol e a Lua era uma coisa muito poética, mas as conseqüências disso estavam para além da imaginação. O que acontecera à outra rapariga, Sula, era cruel e odioso. Talvez eles acreditassem que se justificava, permitindo que cada homem da tribo fosse o pai da criança que ela daria à luz. Mas não desculpava uma tal brutalidade. Agora, era a vez de Creidhe; seria seu destino dar à luz o novo vidente, um Face-de-Raposa renascido. A jovem viu-o no modo como aqueles homens olhavam para ela, no modo como a conduziam cuidadosamente, pelo toque das suas mãos. Nos seus olhos misteriosos havia uma mistura de temor supersticioso e luxúria. Creidhe estremeceu. Aquilo não ia acontecer. Não permitiria que acontecesse.
A jovem utilizou um truque que a mãe lhe ensinara. Começou a respirar lentamente, permitindo assim que o coração batesse mais devagar e tornando a mente mais clara e mais capaz de raciocinar. Creidhe ponderou a situação enquanto caminhava com os seus captores silenciosos e implacáveis à sua volta. Não valia a pena gritar. Quem a ajudaria? Eles estavam combinados, o povo dos Facas Longas e Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Tinha de fugir da armadilha sozinha, sem qualquer ajuda.
Foi uma longa caminhada, para além da distância que já tinha percorrido com Breccan desde o eremitério por cima de Água Brilhante. Creidhe tentou reconhecer o caminho que levavam, sabendo que esse conhecimento seria vital se conseguisse escapar, mas a bruma espessa estava demasiado baixa, escondendo quaisquer marcas e ela teve de se deitar a adivinhar. Achou que tinham ultrapassado um desfiladeiro alto e estavam agora a ir na direção da praia do Fiorde a oeste, se se podia chamar àquilo praia: umas falésias íngremes rodeavam o estreito canal na sua quase totalidade. A bruma escondia a encantadora ilha a oeste, o reino místico e envolto em nuvens que ainda via em sonhos. A jovem conseguia avistar outras ilhas mais próximas: uma estreita e incrivelmente íngreme e junto dela um baixo e robusto arco. Estavam a chegar a um local do outro lado do fiorde, em frente daquelas pequenas ilhas, um local onde havia uma pequena faixa de terreno plano junto à água e um par de cabanas rudes na encosta mais acima. As pequenas moradias pareciam vazias, desertas. Os seus captores tinham começado a murmurar entre eles; ela não conseguia perceber o que diziam. Percebeu, apenas, uma palavra com nitidez: Asgrim. Aquilo não a surpreendeu. Já vira, entre as figuras altas e desgrenhadas d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, um homem que não era daquela raça, um que vira em Água Brilhante, quando o governador regressara à pressa e quando o filho de Jofrid fora sepultado. Aquele guerreiro enorme não era outro senão o guarda-costas pessoal de Asgrim e a sua presença ali entre o inimigo dos Facas Longas dizia-lhe que as suspeitas de Niall eram fundadas. Ela não estava a ser raptada. Estava a ser trocada: Asgrim conseguira a paz para o seu povo e o preço era o seu próprio futuro.
Infelizmente para o governador, pensou Creidhe amargamente, não fazia tenção de ficar prisioneira senão o estritamente necessário. Tinha de arranjar um plano rapidamente, porque naquela estreita faixa de terra, naquele canal abrigado, estava um barco comprido e baixo, feito de peles por cima de um esqueleto de madeira. A seu lado estavam mais homens d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz à espera. Eram todos altos, magros e de rostos fantasmagoricamente pálidos. Estavam todos imóveis, uma imobilidade que falava de coisas antigas, de uma identidade que fazia parte até das rochas daquelas ilhas selvagens, duradoura e profundamente enraizada. Parecia emanar deles uma força sombria. Usavam armas: lanças de osso, arcos e aljavas, pequenas mocas. Não tinham nada feito de ferro. Os seus trajes eram de peles curtidas rudemente por cima de camisas de lã grosseira. Aqui e ali, viam-se algumas capas esfarrapadas, um colar de conchas em redor de um pescoço, um pequeno osso pendurado de um fio. As suas bocas, fechadas devido a uma disciplina feroz, contrastavam com a fome dos seus olhos, uns olhos ferozes, sombrios, que regressavam sempre à silhueta de Creidhe, uma vez e outra, apesar de a jovem estar bem coberta pelo vestido e pela capa, pelas botas e pelo lenço. O vento soltara-lhe um caracol e este esvoaçava-lhe, dourado e fino, através do rosto. Era aquilo, acima de tudo, que atraía os seus olhares e Creidhe viu nas máscaras dos seus rostos aquela mistura de veneração supersticiosa e desejo. Por um momento, o terror e a repulsa quase a esmagaram. Tinha de se abstrair; não podia deixar que o medo a paralisasse. Só as pessoas fracas agiam assim e ela era forte.
Um plano, precisava de um plano. Mas nada se apresentou imediatamente. O barco estava a ser preparado para partir. Sete homens para a acompanharem seis para remar e um para guarda-la, supunha ela. O irmão Niall falara na Ilha das Nuvens, a sul. Na praia, o grande guarda-costas mantinha-se imóvel, vigilante. O seu rosto parecia ter sido trabalhado a partir de um pedaço de rocha, tão pouco revelava, enquanto aqueles selvagens a metiam no barco e a colocavam à ré com o guarda a seu lado.
As opções dardejavam a mente de Creidhe, para serem descartadas uma a uma. Tentar fugir: nem sequer conseguiria sair do barco. Gritar: um esforço inútil. Provavelmente, todo o povo dos Facas Longas estava a par do que lhe estava a acontecer e estava a gostar. Gudrun estava a par e Helga também, apesar dos seus sorrisos e pequenos presentes. A jovem concedeu uma exceção a Jofrid, uma mulher de coragem surpreendente. Aquele grande guarda-costas estava a par, mesmo quando a percorrera com o olhar, na aldeia. Niall e Colm estavam longe, fora de alcance e Breccan jazia ferido algures na bruma. Quanto a Thorvald e Sam, eram como que dois fantasmas de uma outra vida, visto que não os via há muito tempo. Mesmo assim, o momento era de expressar, de algum modo, o que sentia.
— Que vergonha! — gritou Creidhe para o guarda-costas. — Não passas de um fantoche de Asgrim e Asgrim não merece ser governador! Como me pudeste fazer uma coisa destas? Eu só estou aqui por acaso!
O grande guerreiro caminhou na direção do barco. Por um breve momento de fazer parar o coração, ela pensou que ele a ia ajudar, que ia fazer com que eles a deixassem ir-se embora. Mas o homem e mais alguns outros puseram as mãos na proa, empurrando com toda a força. O barco baixo rangeu no cascalho e entrou na água. Os homens d’Aqueles-Cujo- Nome-Não-Se-Diz subiram para bordo e pegaram nos remos. Deram a volta ao barco com perícia e começaram a remar firmemente em direção a águas profundas.
Uma das lições do seu pai fora manter a calma em situações difíceis. Creidhe sentou-se e ficou quieta por algum tempo, fazendo mentalmente uma lista das suas possíveis vantagens. Não estava atada. Já ninguém a segurava: agora que a tinham em segurança no barco, possivelmente pensavam que podiam deixá-la com as mãos livres. No fim de contas, à parte a luta inicial e as breves explosões de gênio, parecia uma prisioneira complacente. A jovem continuava com o saco às costas e nesse saco havia algumas coisas úteis, simplesmente não era possível tirá-las sem ser observada. Infelizmente, Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz eram sete, ela era só uma, já estavam na água e a pequena embarcação oscilava e saltava de uma maneira familiar e desagradável, fazendo Creidhe recordar a sua chegada àquelas ilhas isoladas.
A bruma estava a dissipar-se e, olhando para oeste, ela viu-a no momento em que o véu se abria, erguendo-se à distância como uma visão adorável: a Ilha das Nuvens sempre com o seu manto de bruma, como que chamando-a, gritando-lhe: Aqui! Aqui!
E a resposta, claro, era aquela. Aquele era o único lugar onde eles não a podiam seguir, o único domínio em que não podiam entrar para a resgatar. Ali, estaria a salvo do povo dos Facas Longas e d’Aqueles-Cujo- Nome-Não-Se-Diz. De maneira a rumarem para sul, para as suas ilhas, aqueles remadores tinham, primeiro, de sair do Fiorde e aproximar-se daquelas duas pequenas ilhas, a alta, cheia de reentrâncias e a que tinha o arco baixo. Tinham de contornar a Corrente dos Loucos.
Muito bem; esqueceria, por algum tempo, o que ouvira acerca da força da água que separava aquela ilha mais a oeste da Ilha das Tempestades; esqueceria que nenhum pescador com apreço pela própria vida ia naquela direção, de Inverno ou de Verão. Não pensaria na probabilidade de morrer gelada, pensaria apenas em permanecer dentro dela durante o mais curto espaço de tempo possível. Não pensaria em tubarões ou serpentes marinhas, ou em correntes capazes de a puxarem para o fundo ou de a varrerem para lá do seu destino e para lá do fim do mundo.
A jovem olhou para o mar. O irmão de Gudrun afogara-se na Corrente dos Loucos, apenas mais um dos muitos homens das ilhas perdidos naquelas correntes instáveis, nos caprichos do vento e nos súbitos turbilhões. Olhou para os remadores, vendo como eles lutavam para manter uma rota estável. Até ali, nos limites do canal entre o Fiorde e a Ilha das Nuvens, a corrente continuava a puxá-los para oeste, como se a Corrente dos Loucos exigisse um tributo, avisando-os de que estavam quase a pagá-lo. A jovem abençoou os Verões passados nas Ilhas Brilhantes, quando brincara em águas paradas com Eanna e Thorvald e aprendera a nadar. Não importava se as águas paradas eram quentes e abrigadas. Ela era capaz de o fazer. Não tinha escolha.
Atrás deles, a faixa de terra transformara-se numa mancha na base da íngreme falésia. A pequena silhueta do guarda-costas de Asgrim podia ser vista na praia, olhando para eles. O barco estava próximo do grande e estreito ilhéu; a tripulação estava a tentar mudar de rota, contornando a margem ocidental dessa ilha e rumando a sul. Pelo canto do olho, Creidhe vigiava o movimento dos remos. A jovem sentiu a força da corrente, reconhecendo a mesma tração, a mesma insistência que sentira quando Thorvald e Sam lutavam para levar o Sea Dove em segurança para a praia contra todas as probabilidades. Se fosse uma mulher sábia, perita na velha tradição, como a sua irmã, poderia invocar a ajuda das forças submarinas, talvez a Tribo das Focas, porque, sem dúvida, também moravam ali, sob as vagas, podendo responder ao chamamento de uma sacerdotisa numa ocasião de grande necessidade. Como não tinha essas capacidades, Creidhe fez o que sabia. Esperou pelo momento ideal, o momento em que o barco atingiu a crista de uma vaga e os homens d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz lutavam arduamente contra aquela estranha corrente. Um deles falou asperamente gritando uma ordem e nesse preciso momento o homem que estava sentado a seu lado distraiu-se. Creidhe ergueu-se; o barco oscilou violentamente. Os homens gritaram; o seu guarda pôs-se de pé com a velocidade de um raio, agarrando-a por um braço enquanto a embarcação se empinava na crista de uma vaga. Mas era tarde. Prendendo a respiração, Creidhe saltou.
A entrada na água foi como que um torno a apertar-lhe o peito, aspirando-lhe o ar que tinha nos pulmões; só depois de conseguir chegar à superfície em busca de ar é que percebeu como estava fria. A corrente já a afastara um pouco; os homens da tribo d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz estavam a ignorar o perigo e estavam a dar a volta ao barco para remarem na sua direção. A embarcação aproximou-se; Creidhe voltou a prender a respiração e mergulhou, permitindo que o oceano a transportasse para lá do alcance dos seus perseguidores. Por todos os poderes, o frio era maior do que alguma vez imaginara; não admirava que tantos se tivessem perdido naquelas águas. A jovem manteve-se debaixo de água o mais que pôde. As saias puxavam-na para baixo; Creidhe tentou tirar as botas de pele de ovelha. O saco não era para tirar, mas representava um peso imenso nas suas costas. Conseguiu, de novo, chegar à superfície a tossir, engasgada e com os cabelos em cima do rosto. O barco estava próximo e eles estavam a olhar na sua direção com os remos parados e olhares furiosos: aquela perda seria terrível para Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz e mais terrível ainda para o povo de Asgrim. As forças já lhe estavam a faltar; não poderia continuar por muito mais tempo. A corrente que a afastara para oeste empurrava-a cada vez mais; não era naquela direção que ela queria ir. Eles ainda não a tinham visto, se bem que estivessem muito próximos, a pá do primeiro remo estava quase ao alcance das suas mãos...
A água redemoinhou e um golpe de vento fez estremecer a superfície. Creidhe estendeu um braço e, agarrando na haste do remo, puxou com todas as forças. Apanhado de surpresa, o remador largou-a e o remo caiu na água. Ouviu-se um grito seguido de um movimento geral para o mesmo lado do barco, que adernou perigosamente. Agarrando no remo, Creidhe cerrou os dentes, deu um impulso e a Corrente dos Loucos levou-a. Olhando para trás, observou, com olhos espantados, o que estava a acontecer, porque era digno de uma história qualquer antiga sobre pesadelos de conseqüências desastrosas. Ergueu-se uma vaga: não uma vaga muito grande, uma vaga moderada, mas como que guiada por uma vontade inexorável. O céu escureceu; o vento começou a soprar. A água ergueu o barco, virou-o lentamente, deu-lhe um piparote gentil e os homens da tribo d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz foram atirados ao mar. Creidhe não viu o que lhes aconteceu depois. Talvez se tivessem afogado; o que sabia era que tinham desaparecido quase instantaneamente. Talvez tivessem nadado na direção da praia, mas, se o tinham feito, não havia sinal deles. Tudo o que sentia era o bater do seu coração, o som da sua respiração, o peso da roupa que a puxava para baixo, a dor terrível nos braços e pernas enquanto se agarrava ao remo, desesperada por se manter a flutuar. A corrente puxava com força para oeste, fazendo-a girar desamparadamente; umas vezes virada para trás, outra para o Sol, umas vezes para baixo, outra para cima, enquanto a forma sombria da Ilha das Nuvens se aproximava gradualmente e o seu corpo ficava cada vez mais frio e a mente enevoada e hesitante, recusando-se a obedecer à sua vontade. A jovem repetiu para si própria, vezes sem conta, um feitiço de sobrevivência: Não vou morrer, não vou morrer.
Enquanto os seus braços e pernas iam ficando dormentes, de modo que não sentia os seus movimentos, recordou o que Nessa dissera depois de Kinart ter morrido. Creidhe ainda era muito nova, tinha apenas quatro anos, mas recordava-se. Kinart tinha-se afogado: tinha-se afastado e só o tinham encontrado quando já era demasiado tarde. Fora um acidente, tinham dito as pessoas. Mas Nessa tinha a certeza de que fora a Tribo das Focas que lhe levara o filho como pagamento por um favor que lhe tinha feito. Se era verdade, Creidhe tentou imaginar porque favor estaria ela agora a pagar. Pela sua própria loucura, talvez, por pensar que a sua presença naquela maldita viagem seria uma ajuda para Thorvald. Thorvald... nunca mais o veria, nem aos seus pais, nem às suas irmãs... nunca mais regressaria a casa... por todos os antepassados, tinha tanto frio... talvez fosse mais fácil se se deixasse ir, porque começava a sentir muitas dores, ninguém sabia onde estava e só lhe apetecia dormir... muito fácil, deixar ir...
Algo surgiu a seu lado. O seu coração contraiu-se; num ápice ficou totalmente acordada, antecipando o momento da mordedura de uma qualquer criatura do mar. Mas não: o que flutuava à tona de água era uma construção familiar de madeira e pele, flutuando de casco para cima, mantida à tona por ar aprisionado no seu interior e engrinaldada com uma confusão de cabos emaranhados. O barco flutuava sozinho; não havia homens, mortos ou vivos, agarrados ao casco ou aos cabos. Não se via nenhum em qualquer direção daquele vasto mar. A praia de onde viera estava agora mais distante do que a forma graciosa e envolta em nuvens da ilha onde estivera em pensamento.
Não vou morrer. Recuso-me a morrer. Trepar para cima do barco parecia-lhe impossível. Mesmo assim, tinha de tentar, porque sair daquele abraço gelado da água era, certamente, a sua melhor hipótese de sobrevivência. Trepar, trepar com a ajuda daquelas cordas, e teria uma hipótese. Uma mão... duas... um pé... por todos os poderes, o seu corpo iria sofrer as conseqüências daquilo tudo se sobrevivesse... puxar... era tão difícil, não conseguiria içar o próprio corpo para cima do barco... respirar fundo uma vez, duas... agora, uma onda vinda de trás, levantando-a num abraço gentil, um último esforço... agarrar, torcer, agora, depressa, os braços e as pernas em redor das cordas, o coração a bater como um tambor, depressa, agarrar enquanto podes... e, então, a simples exaustão total... o casco espantoso e sólido do barco por baixo de si... o embalar das ondas... o frio terrível é de gelar os ossos... a escuridão...
Algo mudara desde o regresso de Asgrim. Thorvald sentiu-o, apesar de não saber exatamente o que era. O governador parecia irritado, perturbado; percorria o acampamento, ia à forja, descia e ia até aos barcos, mas Thorvald sentia que durante a maior parte do tempo Asgrim não estava a ver o que estava diante de si. Havia um olhar pensativo naqueles olhos escuros, a testa pálida franzida que sugeria que a mente do governador andava ocupada com outras coisas, com coisas secretas. Skapti não regressara com ele e quando Hogni lhe perguntou onde estava o seu amigo, Asgrim respondeu asperamente que tinha ido tratar de uns assuntos pessoais e que regressaria a seu tempo. Aquela momentânea perda de controle, tão invulgar naquele homem, deixou Thorvald pensativo. Parecia-lhe que Asgrim estava à espera de qualquer coisa. Ouvira falar em negociações. Teria Skapti sido despachado para junto d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz para tentar um acordo de paz? Pouco provável: o governador dissera que o inimigo só falava com ele. Além disso, um assunto como um tratado de paz requeria subtileza, astúcia e inteligência. O guarda-costas possuía aquelas três qualidades numa arena de combate, mas não era nenhum diplomata.
Na ausência de Skapti, Einar ocupou o seu lugar como guarda pessoal, visto que Hogni não podia estar de serviço dia e noite. Hogni também começara a andar de sobrolho franzido; tinha saudades do irmão e dava mostras disso, apesar de tentar esconder esses sinais de fraqueza. Os homens começaram a murmurar e a conversa rodava à volta de uma espécie de acordo, de um tratado; talvez não tivessem de lutar, talvez pudessem, finalmente, ir para casa. Asgrim não dizia nada. Andava de um lado para o outro, carrancudo, e era evidente que estava à espera de qualquer coisa.
Thorvald começou a andar também irritado. Enquanto Sam trabalhara freneticamente para desfazer o remendo no Sea Dove e pô-lo como era antes do rombo, ele próprio trabalhara com ardor para Asgrim. O aviso de Einar não conseguira evitar a sua aproximação: um líder era inútil se não tinha o respeito dos seus homens. Se tinha de correr riscos pessoais, paciência. Quando não estava a comandar os treinos, ensinando, encorajando, por vezes ameaçando para conseguir o resultado que queria, falava com os homens: tentando conseguir o maior número possível de informações sobre a Ilha das Nuvens e as campanhas que tinham tido lá lugar, tentando descobrir como poderiam ter conseguido uma vitória decisiva em vez de derrotas estúpidas. Quando o longo dia chegava ao fim, a última lâmpada apagada e o grupo de homens ressonava na meia-luz da pálida noite de Verão, Thorvald permanecia acordado com a cabeça cheia de planos, esquemas, estratégias. Havia ali muita coisa em jogo; se falhassem em mais uma caçada, duvidava que aqueles homens tivessem o ânimo necessário para tentar de novo, o que significava que tudo tinha de ser perfeito até ao mínimo pormenor. Assim que chegassem à Ilha das Nuvens, tinha de estar preparado para tudo.
E estaria. Estariam. Era uma pena que Asgrim parecesse incapaz de mostrar um apreço genuíno pelos seus esforços; o governador continuava irritantemente afastado. Como chefe de guerra, pensou Thorvald, era tempo de o governador mostrar que era um verdadeiro líder. Se a história de Margaret estava certa, Somerled fora mal aconselhado e cruel, mas fora um verdadeiro líder. Conseguira coisas. A falta de apoio de Asgrim retirava entusiasmo aos homens e enfraquecia-lhes a confiança. Thorvald pensou que teria, dentro em breve, de se confrontar abertamente com o governador; teria de lhe fazer a pergunta diretamente. Certamente que, como filho, era de esperar o total apoio do pai naquele empreendimento. Talvez só precisasse de lhe dizer a verdade.
Fizeram um mapa na areia molhada, descrevendo Orm e Skolli os contornos da ilha, as suas enseadas estreitas, o seu único pico rochoso, as suas falésias e recifes enquanto Thorvald os desenhava cuidadosamente. Wieland preparara a mistura para que o mapa se agüentasse. Knut, mordendo o lábio, concentrado, acrescentava pormenores sob a forma de pequenas pedras, gravetos e algas. Alguns outros amontoavam-se à sua volta em círculo, coçando as cabeças ou os queixos. Muitos estavam perplexos pelo que parecia ser um jogo de crianças, mas à medida que a Ilha das Nuvens ia tomando forma com as suas grutas, formações rochosas, lugares escondidos e perigosos, começaram a acenar com as cabeças e a fazer sugestões; não havia um lugar perto da falésia com uma queda de água e um buraco mesmo ao lado onde se podiam esconder dois homens? A ilhota no ponto mais ocidental devia ser maior e o canal que a separava da costa devia ser mais estreito. Havia agrupamentos rochosos aqui e ali, onde as aves nidificavam. Sim, era mesmo aquilo. Pelos ossos de Odin, a construção era uma maravilha: só lhe faltava estar viva para ser perfeita.
— E agora digam-me — disse Thorvald, depois de tudo acabado para sua satisfação. — Onde é a aldeia dessa tribo sem nome que vive na Ilha das Nuvens? É evidente que só podemos desembarcar num lugar, o que limita as nossas opções iniciais. Einar diz-me que, por vezes, eles atacam assim que nós pomos pé em terra. Mas nem sempre; em alguns anos, esperam até nós chegarmos a um determinado ponto. Que ponto é esse, exatamente?
— Não sei de nenhuma aldeia — disse Orm, aproximando-se para ver melhor a areia esculpida. — Nunca vimos nenhuma, nem sinais de habitação para além das armadilhas que nos estendem. Talvez seja aqui. — O guerreiro apontou na direção do lado mais ocidental da ilha, entre o local de desembarque e a encosta íngreme, mais no interior. — Era o único local onde parecia haver terreno suficiente para construir casas, se bem que, provavelmente, fosse pouco abrigado dos ventos chicoteantes vindos de oeste. Onde há de ser, a não ser que vivam no mar? Nós nunca vimos cabanas, telheiros ou barcos naquela ilha. Vimos algumas ruínas, mais nada.
— E estas grutas? — perguntou Thorvald. — Eles devem viver num lugar qualquer. Há outros lugares escondidos na ilha? Eles não têm filhos? Devem fazer fogueiras. Viram alguma vez algum fumo?
Einar abanou a cabeça.
— Apenas as brumas que eles invocam, para afastar um tipo dos carreiros e fazê-lo cair das falésias.
— Estou a ver — disse Thorvald após um momento. — Nesse caso de que lado vêm eles quando atacam? Talvez a solução seja essa. Temos de meter isto na cabeça de maneira diferente, este Verão; precisamos de compreender o modo como o inimigo age antes de desembarcarmos. Eu tenciono minimizar as perdas. Vamos vencer e vamos fazê-lo com o menor número possível de perdas. E agora vamos falar da caçada do ano passado. Orm?
— Foi um massacre — grunhiu Orm com os olhos fixos na escultura elegante e efêmera que tinham feito.
Thorvald esperou, mas ninguém parecia ter nada a acrescentar. O jovem respirou fundo.
— Passo a passo, é o que preciso que me digam — disse-lhes ele calmamente. — Eu sei que foi mau. Sei que foi assustador e que muitos dos vossos camaradas foram mortos. É por isso que é preciso metermos nas nossas cabeças o que aconteceu, precisamente para evitar, na próxima vez, os mesmos erros.
O jovem olhou para cima, alertado por uma mudança no silêncio. Um círculo de rostos olhava para ele, para o lugar onde ele estava ajoelhado junto do mapa desenhado na areia: o rosto de Orm, sinistro devido à recordação das mortes; o de Knut, mais novo, os lábios retorcidos numa tentativa de sorriso, porque gostara de ter ajudado; o de Wieland, cheio de cicatrizes, triste, resignado; muitos homens, todos eles fixando-o, todos eles procurando qualquer coisa, uma solução, uma saída. Ele podia dar-lhes a solução, a saída, se conseguisse que compreendessem.
— Pode ser que não haja uma próxima vez. — O governador aproximara-se em silêncio; agora, estava inserido no círculo, a sua sombra tapada pela do grande Hogni por trás de si. Este inclinou-se para ver o que Thorvald fizera; Asgrim olhou para ele apenas de relance.
Thorvald ergueu-se. Sentiu-se possuído por uma ira súbita, mas lutou por parecer calmo.
— Sim, ouvi falar de um acordo. Fiquei surpreendido. Se tu tivesses sofrido tantos reveses e perdas ao longo dos anos, a minha mente só pensaria em vingança, não em tréguas. Há uma hipótese de derrotar este inimigo de uma vez por todas, mostrar-lhe que sois guerreiros capazes e corajosos. Um homem de sangue quente não desperdiça uma oportunidade assim, avança de encontro a ela.
— A mim, parece-me — divagou Asgrim com os olhos escuros fixos em Thorvald e com uma expressão impossível de compreender — que o teu interesse é muito pessoal. Fizeste um bom trabalho, ninguém nega. Mas, pergunto a mim próprio por que razão. Não é coisa de recém-chegado.
Thorvald sentiu-se corar, apesar dos seus esforços para conter a ira. As palavras saíram-lhe da boca antes de as conseguir evitar.
— Que esperavas? Que este recém-chegado ficasse de lado a ver os teus homens serem chacinados mais uma vez? Que me divertisse, simplesmente, a consertar umas lanças e uns arcos malfeitos, sabendo que toda a campanha estava destinada ao fracasso? Se era isso que esperavas, não percebo por que nos trouxeste para aqui. Devias ter-nos dado a madeira que te pedimos, mais nada, e acenado com um adeus.
O pé do jovem mexeu-se, desfazendo a pequena ilha, transformando- a num monte amorfo de areia; ouviu-se um suspiro de decepção no círculo de homens.
— Não era preciso estragares tudo — disse Knut, ultrajado. — Depois de tanto trabalho.
— Tens razão. — Thorvald ouviu o som gelado da sua própria voz. Não se lembrava de se ter zangado tanto, desde o dia em que Margaret lhe dera a carta e mudara toda a sua vida. — O trabalho tinha um propósito e esse propósito é a vitória e o auto-respeito. Só depois disso é que vem a paz tão desejada pelos teus homens. É assim tão difícil compreenderes que um homem pode querer colocar os seus talentos ao serviço de outros, liderá-los num determinado objetivo?
Seguiu-se um silêncio gelado. Após alguns momentos, os homens começaram a afastar-se na direção da beira-mar ou na direção dos alojamentos sem dizerem uma palavra. O coração de Thorvald parecia um tambor; estava apanhado entre a fúria e o medo. O rosto do governador estava pálido e os maxilares apertados. Provavelmente, nunca ninguém lhe falara naquele tom. Thorvald manteve-se imóvel, fixando os olhos de Asgrim, esperando uma salva retaliatória de palavras mordazes.
— Não voltes, nunca mais, a fazer isso. — A voz do governador era mortalmente calma. — Se tens dúvidas quanto à qualidade da minha liderança, fá-lo em privado. Eu escuto-te, desde que os teus argumentos sejam baseados em fatos, não em emoções. Estás menos a par da inteligência dos meus homens do que pensas, se pensas que esta troca de palavras não danificará a tua reputação entre eles. Eles conhecem-me. Confiam em mim. Eu sou um deles. Tu és novo, ainda não foste testado, ainda não tentaste nada. Tem mantido-os ocupados durante estes tempos difíceis e isso foi uma coisa útil. Mas ainda não lutaste ao lado deles, ainda não sofreste nem choraste com eles por um irmão, um pai, um camarada caído. Ainda não sabes o que é a cólera d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Ainda não viste desaparecer a luz dos olhos de uma criança no dia em que respira pela primeira vez. Como podes saber o que eles querem? Nem sequer ainda começaste a perceber o que tudo isto significa para eles.
Aquilo foi como se Asgrim lhe tivesse dado um murro no rosto. Hogni mantinha-se a uma pequena distância, mudando o peso do corpo de um pé para o outro. Mais longe, as vozes dos homens podiam ser ouvidas enquanto eles se encaminhavam para o abrigo.
— Estás enganado — disse Thorvald. O jovem não conseguia impedir que a voz lhe tremesse. — É precisamente nessas ocasiões que entram em jogo a estratégia e uma boa técnica. Nessas ocasiões, quando os homens arriscam mais, é que um recém-chegado é bem-vindo. Eu estou de fora; vejo o assunto com outros olhos e posso imaginar as necessárias soluções. Se desistes e consegues umas tréguas, os teus homens vivem um pouco mais até à próxima vez que as outras tribos se decidam virar para ti. Monta um ataque sólido, planejado com precisão e executado com disciplina e eles podem ganhar a paz e a fé em si próprios. Se fizeres isso, liderarás um povo forte. E eu acredito que posso conseguir-te isso. — Havia outras palavras que lhe tremiam nos lábios: Não sabes que sou teu filho não percebes que podemos mudar o futuro, tornando-o melhor? Mas o jovem mordeu-as.
— Falas com paixão — disse Asgrim — apesar dessa conversa de estares de fora. Não consigo compreender as tuas razões para essa dedicação a uma causa estranha. Trabalhaste arduamente durante esta estação; eu vi isso muito bem. O teu amigo também. — O governador olhou de relance para a praia, para o local onde Sam continuava a trabalhar no casco do Sea Dove. — Mas compreendo a paixão dele; o barco é a vida dele. Tu és mais um enigma. Parece que, se tivesses vindo aqui parar mais cedo, mais cedo tentarias controlar os nossos esforços para provar que sabes mais do que nós sobre as nossas vidas. Expulsaram-te das Ilhas Brilhantes por te meteres onde não eras chamado? — As sobrancelhas do governador ergueram-se interrogativamente.
Thorvald voltou a corar.
— Já que falamos disso, tenho uma pergunta para te fazer. Tu não és, também, um recém-chegado? Não é cada um de vós um refugiado de outro lugar, vindo para estas ilhas para esquecer? As Ilhas Perdidas: um lugar onde um homem pode atirar com o passado para trás das costas, os seus erros, os seus delitos, os crimes que cometeu, as boas ações que nunca fez, tudo posto cuidadosamente de lado agora que vive onde o passado não o pode perseguir? Certamente que os únicos que nasceram e foram criados nestas ilhas são os mais novos. A língua que falas é a nossa; o teu modo de vida não me parece um exílio de há muitas gerações. A mim, parece-me que os Facas Longas são tão estrangeiros como eu. Eu só estou a tentar ajudar-te. Como te atreves a julgar-me? — O jovem percebeu que estava a tremer. Estava a perder o controle, algo que queria evitar a todo o custo.
— Eu não te estou a julgar, Thorvald — disse o governador calmamente. — Procuro, simplesmente, descobrir se, nos meus planos para o futuro, tu és uma oportunidade ou uma ameaça. As tuas maneiras e as tuas palavras dizem-me que tu és um líder e o povo dos Facas Longas só tem um líder.
— Eu não sou uma ameaça para ti — replicou Thorvald, perguntando a si próprio se estava a dizer a verdade. — Não agi assim por querer provocar qualquer dano à tua causa ou minar a tua autoridade. Talvez os meus motivos sejam difíceis de compreender. Em casa, eu era... tinha... sentia que estava a mais, que andava à deriva. Eu... — Deuses, parecia uma criança confusa a gaguejar. O jovem fez um esforço para respirar lentamente. — Eu perdi o meu pai; nunca o conheci. Tentei encontrar um lugar para mim mesmo, desempenhar um papel e ter um propósito, e viajei até aqui na esperança, pelo menos, de descobrir ambas as coisas.
— Hum — disse Asgrim, franzindo o sobrolho. — A pergunta é: queres, simplesmente, substituir-me? Tu já me conheces, Thorvald. Sabes, certamente, que essa ambição pode tornar a tua vida mais curta.
— Ouvi dizer que podes ser impiedoso, sim. Compreendo isso, pelo menos em parte. Um líder deve agir com decisão num lugar como este, ou perde a autoridade.
O governador acenou com a cabeça.
— Diz-me uma coisa — disse ele, — por que parou aqui? Por que não foste para sul, para o Ulster, ou para leste, para a terra dos teus pais? Isto é um canto escuro do mundo, Thorvald, escuro e proibido. Este lugar não recebe bem os estranhos. Essa escolha parece-me caprichosa: não é a decisão de um homem racional.
Thorvald respirou fundo.
— Pensei que talvez encontrasse aqui um parente meu, que talvez tenha vindo para aqui há muito tempo — disse ele. — Quis descobrir se era verdade. Foi essa a única razão para a minha escolha. Já disse isto antes, penso e suspeito que Creidhe também já o deve ter dito.
Algo surgiu no rosto do governador, uma sombra, uma mudança diminuta, que desapareceu quando ele impôs mais uma vez o rígido controle às suas feições.
— Tinha-me esquecido — disse Asgrim de modo ligeiro. — Que parente é esse? Estas ilhas não são muito populosas; ninguém chega aqui sem o meu conhecimento. Que tipo de homem era ele?
Thorvald engoliu em seco.
— Teria mais ou menos a tua idade, talvez quarenta anos, talvez um pouco menos; um homem novo quando veio para aqui, de ascendência nórdica.
— Qual era a aparência dele?
Thorvald não conseguiu evitar que a sua boca se torcesse num trejeito de troça.
— Mais ou menos como a minha, imagino. Nunca o vi. Ele viajou para estas ilhas um ano antes de eu nascer.
Os olhos de Asgrim semicerraram-se.
— Estou a ver — disse ele lentamente. — E tens um nome para esse homem?
— Um homem pode mudar de nome. — Thorvald sentia o coração a dançar loucamente, como se quisesse saltar-lhe do peito. — Provavelmente, até mudou, suponho, quando aportou a estas costas como muitos outros, para esquecer.
— Mesmo assim.
— Somerled — disse Thorvald. — O nome dele era Somerled.
Seguiu-se um longo silêncio. Hogni tossiu levemente e mexeu os pés; do abrigo vinha o cheiro de peixe frito em óleo e ergueu-se do buraco no telhado uma coluna de fumo, que desapareceu rapidamente por ação do vento. O céu estava vermelho, o Sol punha-se a oeste para lá da sombra acinzentada da Ilha das Nuvens. Thorvald olhou para o rosto de Asgrim. O homem era um mestre a controlar as suas emoções; durante longos momentos pareceu não ter qualquer reação. Quando a teve, foi um sorriso furtivo, sem humor, que gelou o coração de Thorvald.
— A sério? — disse Asgrim. — Somerled. Não há nenhum homem nestas ilhas com esse nome. Que te era esse Somerled para o teres vindo procurar tão longe de casa, já que desapareceu antes de o teres sequer, visto?
Thorvald girou nos calcanhares, incapaz de suportar a malícia nos olhos escuros de Asgrim, a crueldade nos seus lábios finos.
— Não interessa — disse ele, quase sem reconhecer a própria voz, que lhe parecia vir de um lugar qualquer, distante. — Não tem importância.
Só depois de se ter afastado dez, doze passos na direção do abrigo e do falso conforto dos companheiros que, provavelmente, ainda pensavam pior de si do que o governador, é que Thorvald ouviu a voz leve e trocista de Asgrim atrás de si.
— O teu pai?
E pronto. Viajara até tão longe, dera tanto de si na tentativa de conseguir algo que valesse a pena e fosse duradouro, provando que tinha valor. Encontrara o pai e o pai queria tanto saber dele que nem sequer se dera ao trabalho de o reconhecer. No entanto, era ele e Asgrim sabia-o: Thorvald reconhecera-o pelo desdenhoso erguer das sobrancelhas, pelo tom irônico e cruel da sua voz. Ele era Somerled. Somerled encontrara o seu lugar nas Ilhas Perdidas, uma terra onde não havia lugar para o seu filho.
Thorvald sentou-se sozinho nas rochas por cima da praia pedregosa. As pequenas ondas iam e vinham à luz do crepúsculo e o som que faziam era um suspiro, triste, resignado. Nós mudamos, mas continuamos as mesmas. Tudo é como foi. Tudo é como é. Tudo é como será. O jovem atirou uma pedra para a água e depois outra. O céu escurecera até ficar cinzento como a pele de uma foca, com laivos de um brilho fraco que era ao mesmo tempo a recordação de um dia e a antecipação de outro. Ali, a noite, no Verão, não era mais escura do que aquilo. Thorvald podia ouvir os chamamentos solitários das aves, voando de falésia em falésia, um contraponto lúgubre aos murmúrios do mar.
Não havia mais nada a dizer. Nada mais para fazer. Se um pai não quer reconhecer o próprio filho, mesmo quando este faz os possíveis para lhe agradar, então é evidente que este não tem valor neste mundo, não será assim? Se não está preparado para reconhecer o filho quando está no exílio, um homem que compreenderá, certamente, o que significa ser expulso como uma coisa sem valor, que será do filho? Thorvald estremeceu. Por que se dera a tanto trabalho? Por que confiara nos seus instintos em vez de pensar? Zangara-se: zangara-se com a mãe por lhe ter escondido a verdade, por não ser a criatura perfeita que ele achava que ela era, por... não sabia o quê. Margaret era humana, no fim de contas. Devia ter dezessete anos quando se deitara com Somerled e tivera um filho que viria a crescer sombrio e retorcido como o pai. Ficara furioso com Eyvind, que fora o maior amigo do seu pai e que o banira para sempre da terra onde fora Rei. Que espécie de homem era capaz de tomar uma decisão daquelas? O barco, tinham dito eles, era uma pequena embarcação de pele e as provisões mínimas. Fora uma decisão extremamente cruel. Nem parecia uma coisa do pai de Creidhe, que era conhecido por ser um homem sábio e justo. Desejava, agora, ter falado com Eyvind. Acima de tudo, Thorvald zangara-se consigo mesmo, porque no dia em que Margaret lhe contara a verdade, reconhecera que era o filho do seu pai. Transportava em si a crueldade de Somerled, a sua ambição, a sua auto-suficiência. Somerled tornara-se rei porque era impiedoso e obstinado. Agora, era governador pelas mesmas razões. A sua conversa acerca de partilhar a dor e o sofrimento com os seus homens era um disparate sentimental, uma brincadeira de mau gosto. Asgrim não era líder por favor, era líder por ter um punho de ferro e pela maneira como alimentava o medo do seu povo por Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Thorvald sabia, para sua vergonha, que possuía no peito a mesma determinação, a mesma teimosia e crueldade. Sabia que o fazia morder e rosnar àqueles que tentavam dobrá-lo. Sabia que o fazia ficar cego, por vezes, às necessidades dos que o rodeavam. Creidhe dissera-o e Creidhe nunca mentia. Na ocasião, fingira que não a ouvia. Mas ouvira, compreendera e aceitara; aceitara aquela energia sombria que tinha dentro de si, uma energia que podia conseguir coisas maravilhosas, coisas que mais nenhum homem podia conseguir, mas que também podia conduzi-lo ao maior dos desesperos.
Deuses, como desejava ter Creidhe ao pé de si, sentada muito quieta como era seu hábito, imóvel e tranqüila, a ouvir, simplesmente. Podia dizer-lhe qualquer coisa, sabendo de antemão que ela compreenderia e perdoaria. Creidhe era a única pessoa com quem podia falar quando estava de mau humor; se contasse os seus pensamentos a outra pessoa qualquer, seria apelidado de louco. Por vezes, até ele pensava assim, se Creidhe não estivesse junto dele para o consolar e tranqüilizar. Era verdade que, por vezes, tinha a mania que sabia tudo, mas, de uma maneira estranha, ela era-lhe essencial. Percebeu que tinha saudades dela há muito tempo sem se aperceber.
Bem, se Asgrim conseguisse as tréguas, pensou Thorvald ferozmente, atirando outra pedra para o mar, veria Creidhe dentro de pouco tempo já que tudo aquilo acabaria, o seu trabalho com os homens completamente desperdiçado, as armas fabricadas com tanto carinho armazenadas e a tribo d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz e seus acólitos da Ilha das Nuvens teriam vencido mais uma vez sem a menor resistência. Orm, Wieland, Knut e os restantes pensariam que estavam salvos, que a paz era bem-vinda, até começar tudo de novo. E começaria: guerras daquelas não terminavam assim sem mais nem menos. Algo provocaria o reacender do ódio, aquelas tribos entrariam de novo em guerra e o povo dos Facas Longas seria vencido por não ter permitido que ele os comandasse, porque, por essa altura, já teriam esquecido tudo o que lhes ensinara. Não valia a pena, tudo aquilo era inútil. O jovem lançou outra pedra. Fútil. Um desperdício. Maldito Asgrim e mais o seu tratado. Maldito riso cínico. Como se atrevia ele a troçar? Thorvald ficou ali sentado durante muito tempo, sempre com os mesmos pensamentos. Um passo em frente, dois para trás, parecia ser sempre assim com ele. Era como se lhe tivessem lançado uma maldição quando ainda estava no ventre da mãe: uma maldição lançada por Somerled como aviso para o resto dos seus dias, dizendo-lhe que tudo o que fizesse, ou em que tocasse, se desfaria em cinzas. O jovem esquecera-a na tentativa de fazer daquele grupo de ilhéus uma força de ataque disciplinada. Acreditara na tarefa e, durante algum tempo, acreditara em si próprio, o que só provava como a sua capacidade de julgamento era defeituosa, porque bastara a Asgrim Somerled um momento para destruir a visão do seu filho. Que espécie de homem podes ser se tens um pai que te trata como um recém-chegado intrometido?
Na sua mente, algures, ouvia a voz de Creidhe, calma, cuidadosa, dizendo: Há outros que te amam, Thorvald, outros que acreditam em ti. A tua mãe... Não te esqueças de Margaret, de Ash, dos teus amigos. Mas ele fechava os pensamentos àquelas palavras meio recordadas, meio imaginadas, porque naquela noite estava para além de qualquer conforto. Creidhe não estava ali, nem Margaret, nem mingúem, senão Sam, que ressonava junto dos outros no abrigo, cansado por um dia de trabalho honesto no barco. Thorvald estava sozinho com o oceano e com a noite, sozinho no local ideal para um homem cujo espírito mais parecia um pequeno eco das praias desoladas, dos montes íngremes, das falésias monstruosas e das vagas ferozes daquela terra esquecida dos deuses. Era possível acabar com tudo, claro. Numa ilha daquelas, estava tudo à mão, a resposta era fácil, bastava dar um passo para cair da falésia quando não havia ninguém por perto para acudir e dizer Não! Thorvald pensou naquilo, ponderou os métodos, qual seria o mais rápido e mais asseado. Somerled podia ter-se matado. A sua viagem para o exílio fora desesperada, um desafio muito maior do que a terrível viagem a bordo do Sea Dove. O barco de Sam era grande e robusto e tinha três pares de mãos para o governar. Somerled estivera sozinho. Ele não sabia sequer, se havia terra para oeste da praia onde o seu maior amigo o pôs à deriva. No entanto, não escolhera a saída mais fácil de uma faca afiada e de uma viagem rápida e sangrenta para o esquecimento. Somerled continuara; cerrara os dentes e seguira uma qualquer voz interior até àquele lugar selvagem para começar de novo a sua vida. Para quê? Para se tornar governador de uma gente desgarrada à mercê dos habitantes mais antigos e mais perigosos das Ilhas Perdidas? Para fazer uma filha e um filho e perder ambos numa fútil luta pela sobrevivência? Não era recompensa nenhuma, não era satisfação nenhuma. Mas ficara. Escolhera aquela terra e decidira sobreviver. E Thorvald sabia que também sobreviveria apesar de todos os seus pensamentos sombrios. Não sabia porquê; não compreendia. Sentia apenas o bater firme do coração, o pulsar regular do sangue, a pausa entre o expirar e o inspirar, a força. Mas sabia. Vou continuar. Ainda não chegou o meu momento. Até naquilo parecia ser o filho do seu pai.
Finalmente, começou a nascer o dia e pouco depois surgiu Sam com o sobrolho franzido no rosto habitualmente plácido.
— Passaste aqui a noite? Não é o melhor começo para um dia de trabalho.
Thorvald não disse nada.
— E está frio, com ou sem Verão. Toma. — Sam deixou cair um cobertor por cima dos ombros do amigo. Seria um gesto infantil recusá-lo; Thorvald enroscou-se nele, não confiando em si próprio para falar porque, subitamente, parecia que tinha lágrimas nos olhos: que tolice.
— Ouvi dizer que tiveste uma discussão com Asgrim — disse Sam sem nenhuma ênfase especial. — Disseste-lhe?
Thorvald acenou com a cabeça.
— Mais ou menos — conseguiu ele dizer. — Ele preferiu não me reconhecer; suponho que já estava à espera.
Seguiu-se um curto silêncio.
— Lamento — disse Sam em voz baixa. — Lamento, mas não estou surpreendido. Ele tem o seu próprio mundo, aqui, e não há nele lugar para mais ninguém.
Os dois jovens permaneceram sentados enquanto o céu ia clareando por cima das suas cabeças e um ou dois dos homens passaram por eles a caminho dos barcos. Seria um bom dia de pesca: um dia agradável, suave, um dia em que as Ilhas Perdidas usavam um rosto que desmentia toda a sua selvajaria.
— Thorvald?
— Hum?
— O Sea Dove está quase pronto. Os tipos arranjaram-me um mastro melhor do que eu esperava e parece que há uma vela pertencente a um barco que naufragou aqui há um ano ou dois. Não me apetece nada utilizá-lo na porcaria da caçada de Asgrim; provavelmente, vai acabar no fundo do mar e nós com ele naquela Corrente dos Loucos. E eu não sou um guerreiro, sabes isso muito bem. Eu sou capaz de o ter pronto depois de amanhã. Eu acho que devíamos ir buscar Creidhe à aldeia, com ou sem guardas e devíamos ir para casa. O tempo parece que se vai agüentar. Não me interpretes mal. Não te estou a pressionar. Eu sei que é difícil para ti e que tens de ser tu próprio a decidir. Mas, para que saibas, há um tipo que quer ir comigo, desde que Asgrim não dê pela coisa enquanto não estivermos suficientemente longe. No entanto, se estivesse no teu lugar, eu não ficava. Era o que te queria dizer.
Por alguns momentos, Thorvald não respondeu; fazê-lo seria admitir o seu fracasso. Finalmente, disse:
— Dou-te uma resposta esta noite. Pode ser?
— Claro — disse Sam muito sério. — Eu digo-te o que posso fazer. Por que é que não vais trabalhar comigo, hoje, para o Sea Dove? Tu tens bom olho para os pormenores; podes ser-me útil. Knut tem-me ajudado, mas ele é melhor nos trabalhos mais rudes. Pensa nisso. Prometo não falar muito.
A oferta do amigo deixou Thorvald sem palavras.
— Olha que não se trata de um privilégio entre amigos — disse Sam com um sorriso. — Tenciono fazer-te trabalhar a sério, para ver se acabamos o trabalho.
— É melhor irmos comer qualquer coisa. Vai ser um dia longo.
Mais tarde, Thorvald reconheceu que a sugestão de Sam fora, não só amável, como notavelmente inteligente. O trabalho duro impedia-o de estar sempre a pensar; estava tão ocupado para pensar para além do próximo cravo, da próxima prancha, da brocha e do alcatrão. Mal terminava um trabalho, Sam arranjava-lhe logo outro, ou pedia a sua ajuda para erguer uma carga pesada, ou perguntando-lhe se a junta entre duas tábuas estava perfeitamente alinhada e vedada. Knut trabalhava em perfeito silêncio, feliz por fazer o que lhe mandavam. Foi com surpresa genuína que Thorvald reparou, enquanto aparava a superfície interior da última das pranchas de substituição, que o Sol já estava a descer mais uma vez para lá da Ilha das Nuvens e que estaria, em breve, demasiado escuro para trabalhar. Reparou também, nesse preciso momento, sem se dar conta, que tomara uma decisão.
Knut terminara o seu dia de trabalho e ia a caminho do jantar. Sam estava a arrumar as ferramentas; o fato de estar longe de casa tornara-o ainda mais metódico. Thorvald saltou do Sea Dove para a areia da praia.
— Sam?
— Hã?
— Queria dizer-te — Thorvald interrompeu o que ia dizer devido ao som de vozes zangadas vindo do acampamento; ouvia-se, agora, o som de passos a correr e o brilho de alguns archotes. O jovem pensou ouvir o tom trovejante de Skapti, mas o homem que gritava era Asgrim.
— Que estará a acontecer? — resmungou Sam.
— É melhor irmos ver — disse Thorvald, sentindo uma estranha sensação no estômago, uma premonição gelada de que algo iria mudar. Vamos.
Os dois amigos começaram a andar na direção do acampamento.
— O que é que me ias dizer?
— Não interessa. Pode esperar.
A sensação atingiu-o de novo, uma excitação, um certo medo, uma antecipação. Talvez aquilo ainda não tivesse acabado. Talvez os planos para uma trégua tivessem falhado; que outra coisa faria Asgrim perder as estribeiras em frente dos homens todos? Fazei com que seja verdade, viu-se Thorvald a rezar a um deus qualquer que, eventualmente, o estivesse a ouvir. Fazei com que seja verdade; deixai-me liderá-los. Tenho direito.
Quando chegaram ao abrigo já o governador não estava presente. Os homens estavam muito calados. Procediam à rotina habitual de cozinhar o jantar e de preparar as camas, mas Hogni e Einar estavam ausentes e não apareceram quando o peixe foi servido. Thorvald perguntou a Orm o que acontecera, mas este, tal como os outros, não sabia praticamente nada. Skapti estava de volta e dissera qualquer coisa ao governador, uma notícia que não lhe tinha agradado nada. Asgrim levara-o para a sua cabana, assim como Einar e Hogni. Não queriam ser perturbados. Era tudo o que sabiam.
— Achas que isto significa o fim das tréguas? — arriscou Thorvald em voz baixa.
Os homens olharam para ele: Orm, Wieland, Skolli. Enquanto o seu coração se enchia de esperança, os olhos deles enchiam-se de uma terrível resignação.
— Que outra coisa havia de ser? — disse Wieland, sem expressão. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz rejeitaram a oferta; a caçada vai ter efeito.
— Ainda não sabes. — Thorvald sentiu-se obrigado a dizer aquilo, se bem que tivesse a certeza de que o homem tinha razão. Teria dificuldade em persuadi-los de que aquilo não significava boas notícias.
— Ele, amanhã, diz-nos — grunhiu Orm. — E isto vai continuar, como sempre. Vou-me deitar. Apaguem a lâmpada, sim?
Thorvald andava há muito tempo a dormir mal. No entanto, naquela noite, não lhe pareceu correto abandoná-los e sentou-se com eles numa das prateleiras de terra, iluminados por uma única lâmpada de óleo de foca junto da entrada, para além do brilho da lareira. O jovem viu que Sam também estava acordado, envolto no cobertor, de olhos fixos em Thorvald. Nenhum deles disse nada. Talvez soubessem os pensamentos um do outro. O Sea Dove estava pronto para partir; ainda nada estava decidido.
O chamamento surgiu amortecido. Hogni estava à porta, lançou um pequeno assobio e fez um gesto com a cabeça. Thorvald levantou-se cuidadosamente para não pisar nenhum dos homens adormecidos; o jovem estava consciente de que Sam o seguia e esperava que o Hogni mandasse o pescador de volta, mas o guarda-costas conduziu-os pelo carreiro acima até à cabana de Asgrim. O governador estava à espera com Skapti e Einar. As rugas na boca e testa de Asgrim eram visíveis à fraca luz da noite; o homem parecia velho. Einar estava pálido e silencioso e o grande guerreiro Skapti nervoso como um rapaz, mexendo os pés com freqüência, cruzando e descruzando as mãos. Hogni ficou no exterior, junto da porta.
— Thorvald, Sam. — O governador olhou para eles sem expressão, sem denunciar fosse o que fosse; a sua voz, no entanto, era tudo menos firme. — É melhor sentarem-se. Einar, dá-lhes um pouco de cerveja.
Sentaram-se todos. Ninguém se atreveu a desobedecer a Asgrim. Thorvald sentia-se confuso. Esperava ser chamado se as tréguas ficassem sem efeito; esperava receber instruções: Põe os homens a treinar outra vez, continua o que começaste, porque preciso de ti. Mas, por que fora Sam também chamado? Por que se estavam todos a portar de modo tão estranho, como se as notícias fossem demasiado más?
Quando os dois se sentaram com uma caneca de cerveja na mão, Asgrim tossiu para clarear a voz e disse:
— Não sei como vos hei de dizer isto. Tenho más notícias para vós. Chocantes e muito tristes. Foi Skapti que as trouxe de Água Brilhante. — O governador calou-se, mexendo as mãos; os outros pareciam estátuas. Foi Sam que quebrou o silêncio com uma voz que soou áspera e descontrolada, uma voz que Thorvald nunca ouvira antes, um som que lhe provocou um nó no estômago sem que percebesse por que razão.
— O que é? — gritou Sam, pondo-se de pé num salto. — Diz-nos! O que é?
— Calma, calma, senta-te, por favor — disse Asgrim, avançando com os braços estendidos para obrigar Sam a sentar-se de novo. Sam empurrou-o e ergueu um punho, mas já Einar, como um relâmpago, se interpunha entre os dois como um escudo. O rosto de Sam ficou escarlate.
— Senta-te, Sam — murmurou Thorvald. — Faz o que ele diz. Ouçamos as notícias, por favor — acrescentou ele, dirigindo-se a Asgrim com uma polidez exagerada. — Se achas que não as conseguimos agüentar, sejam elas quais forem, podes ter a certeza de que o fato de protelares o momento da verdade não contribuirá para nos deixar menos apreensivos.
— Trata-se de Creidhe, não é? — conseguiu dizer Sam. — Aconteceu alguma coisa a Creidhe.
E ao mesmo tempo que o silêncio se instalava mais uma vez e Asgrim inclinava a cabeça para olhar para as próprias mãos, Thorvald sentiu um frio terrível percorrer-lhe o corpo, começando na vizinhança da cabeça e alastrando gradualmente.
— O que é? — conseguiu ele dizer em voz áspera. — Que aconteceu?
— A tua amiga foi raptada. — A voz de Asgrim tremia. — Foi levada pelos nossos inimigos. E...
Ninguém conseguiu deter Sam. O jovem atirou-se, agarrou Asgrim pelos ombros e abanou-o com força.
— O quê? — rugiu ele. — Disseste-nos que ela estaria em segurança! Quando é que isso aconteceu? Por que não foste atrás dela? Sabes muito bem o que eles lhe vão fazer...
As palavras morreram-lhe na garganta quando Einar lhe tapou a boca com a mão e, com a ajuda de Skapti, o afastou de Asgrim.
— Calma, Sam. — Algo acontecera com a voz de Thorvald; só conseguia murmurar. — Temos de ouvir o resto. Deixa Asgrim acabar. — Porque aquilo não era tudo. Podia vê-lo nos olhos do pai.
— Ela andou a passear pelos arredores da aldeia de manhã cedo, enquanto estavam todos ainda deitados. As mulheres disseram que, provavelmente, tinha ido visitar os eremitas, aqueles cristãos malucos que vivem no alto do monte, mas Skapti estava perto do local e viu-os levarem-na. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz vieram do mar; foi tudo muito rápido. O barco deles veio e foi-se embora quase sem nos apercebermos.
Thorvald olhou para Skapti, que continuava a segurar em Sam, se bem que este já tivesse deixado de se debater.
— Onde é que tu estavas? — ouviu-se ele a dizer. — Por que não a ajudaste? Ela não passa de uma rapariga. — Curiosamente, o jovem sentiu que talvez estivesse a falar para si próprio.
As feições abrutalhadas de Skapti coraram. O homem abriu a boca e fechou-a de novo.
— Ele tentou, Thorvald — disse Asgrim gentilmente. — Mas não conseguiu chegar a tempo. Então... — O governador fez uma pausa.
— Ela afogou-se — disse Skapti, largando subitamente Sam, de modo que este ficou de novo sentado ao pé do amigo. — Eu vi. Ela estava de pé e o barco ia em direção à Corrente dos Loucos. Foram todos varridos e afogaram-se. Aquele lugar é maldito. Mais valia não ter vindo aqui...
— Tudo bem, Skapti — disse Asgrim de modo seco, e o guarda-costas calou-se, limpando o nariz à manga da túnica. — Receio que seja verdade continuou o governador, sentando-se em frente de Thorvald. Aquela corrente é mortal. Não sei que te hei de dizer. Uma rapariga tão bela, tão delicada. As pessoas já gostavam dela, na aldeia. Isto é típico do nosso inimigo; eu próprio sofri o mesmo e sei o que deves sentir.
— Tu? — gritou Sam. — Sabes o quê, seu egoísta de...
— Sam. — Thorvald colocou um braço em redor dos ombros do amigo e este, com um estranho soluço, levou as mãos ao rosto. Thorvald também gostaria de chorar, ou de gritar em voz alta a sua dor e a sua fúria. Mas o momento exigia algo mais e o jovem, procurando no fundo da alma, conseguiu-o. — Quero saber exatamente como é que vocês permitiram que isto acontecesse. — O seu tom era preciso, frio. — Disseram-nos que Creidhe estava em segurança. Não nos deixaram ir ter com ela a Água Brilhante. Vocês dizem que se afastou. Creidhe não é nenhuma criança e não é estúpida. Ela não se afastava assim.
— Talvez não — disse Asgrim calmamente. — Mas o comportamento dela é... era... imprevisível, não o podes negar. Ela não saiu do carreiro a caminho da Baía Sangrenta? Talvez ela tenha tido uma das Visões dela e tenha ido cair nas mãos d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz.
— E esses eremitas de que falaste? — perguntou Thorvald.
— É a primeira vez que ouço falar em cristãos. Quero uma resposta como deve ser; desconfio que nos têm andado a esconder a verdade. Se esta morte tivesse acontecido na minha ilha, haveria uma investigação e haveria uma compensação. Estou profundamente desiludido. — As palavras saíam-lhe suavemente; parecia ter descido sobre ele uma calma fria, permitindo-lhe continuar aquele jogo sombrio, se bem que sentisse crescer dentro de si uma fúria selvagem, como um animal selvagem tentando libertar-se. Não podia permitir que fugisse. Tinha de manter o controle.
— Os eremitas? Geralmente, são apenas aborrecidos — disse Asgrim. — Estão aqui há muito tempo. Há mais noutras partes das ilhas, quase todos vindos do Ulster. Parecem sentir-se bem isolados, exceto um, intrometido, que não sabe estar calado. Talvez tenha sido ele a persuadir a tua amiga a afastar-se. Vou fazer com que seja interrogado, se é esse o teu desejo.
Thorvald ergueu as sobrancelhas e cerrou os lábios. A seu lado, Sam chorava miseravelmente; Einar aproximara-se do pescador. O braço de Thorvald continuava em redor dos ombros de Sam; os soluços pareciam atravessar o seu próprio corpo, sobressaltando-lhe o coração e tirando-lhe a força de vontade, mas o jovem não o tirou. Podia fazer aquilo, era o líder.
— Suponho que não há a menor hipótese — disse ele — a mais ínfima das hipóteses...?
Asgrim abanou a cabeça.
— Na Corrente dos Loucos? Nenhuma. Ela morreu, Thorvald. Lamento, lamento muito. Que mais posso eu dizer?
Aquilo estava a ficar cada vez mais difícil; Thorvald fez um esforço para respirar mais lentamente. O jovem olhou para Asgrim, fixamente, e este devolveu-lhe o olhar sem pestanejar.
— As reparações no barco acabaram — disse Thorvald. — Decidimos ir para casa. Temos de dar a notícia à família de Creidhe. O tempo parece estar bom. Estamos a pensar partir depois de amanhã.
— Mas... — Einar e Skapti falaram ao mesmo tempo e calaram-se ao mesmo tempo.
— Estou a ver — disse Asgrim. — E compreendo as tuas razões, se bem que recorde as tuas palavras, ditas ainda não há muito tempo. Disseste: Se eu tivesse sofrido o que tu sofreste, só procuraria vingança, não tréguas. Mudas de idéias assim tão depressa?
Sam calara-se, se bem que os seus ombros ainda estremecessem. Einar procurou na algibeira, tirou um pedaço de tecido cinzento e amarrotado e estendeu-o ao pescador. Thorvald manteve-se calado.
— Compreendes, certamente, que depois deste acontecimento terrível eu não posso continuar a considerar a possibilidade de tréguas com o nosso inimigo — disse Asgrim. — Como é possível pensar em paz com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz? Raptar uma das nossas raparigas em plena luz do dia quando estávamos em conversações, à espera da resposta deles; foi uma coisa bárbara, um ultraje. Depois disto, só pode ser a guerra.
Outro silêncio. Skapti suspirou; Sam utilizou o lenço para limpar os olhos e depois, ruidosamente, para se assoar.
— Esperava — Asgrim abriu as mãos numa espécie de apelo — que ficasses a meu lado nesta empresa, Thorvald, para que liderasses os meus homens. Esperava que Sam nos emprestasse o barco para que pudéssemos, talvez, atravessar aquelas águas traiçoeiras onde Creidhe morreu de modo tão cruel. As capacidades dele como marinheiro, também; os nossos homens não são tão bons. Podias ajudar-nos muito, ambos. Poderiam fazer a diferença na caçada. Mas compreendo que queiram ir-se embora. Nenhuma vingança conseguirá trazer Creidhe de volta, nem a minha Sula. Deves fazer o que achares melhor.
Thorvald esperou. O jovem viu os sinais de incerteza, uma ligeira mudança nos olhos do governador, a mudança de posição das mãos em cima da mesa, na sua frente. Asgrim sabia que não podia fazer aquilo sem a ajuda de Thorvald. Era um presente; a oportunidade por que Thorvald esperava há muito, mesmo contra a sua vontade. Aceitá-la era aceitar o preço que custara.
— Nós ficamos. — A voz de Sam saiu abafada, mas as palavras suficientemente claras. — Ficamos até ao fim da caçada. Vamos varrer aquela escumalha da Ilha das Nuvens e depois vamos atrás dos outros. Pelo martelo de Thor, se algum dos animais que pôs as mãos na Creidhe sobreviver a isto, hei de fazê-lo nadar no próprio sangue quando lhe puser as mãos em cima. Podeis contar conosco. Creidhe não merece menos.
Depois daquilo, não havia mais nada a dizer. Asgrim ofereceu-lhes um lugar para dormir na sua cabana, mas eles declinaram a oferta. Hogni e Skapti escoltaram Sam até ao abrigo, um de cada lado; já não havia punhos cerrados nem gestos ameaçadores. Uma vez no abrigo, os outros foram acordados e a cerveja correu; era evidente que tencionavam continuar a beber durante a noite, oferecendo assim, ao pescador, um esquecimento temporário. Thorvald não se demorou. Parecia-lhe ser imperativo afastar-se o mais possível deles, mas era noite e os carreiros por cima da baía perigosos, Mesmo assim, o jovem caminhou um bocado à luz do luar até encontrar uma pequena cavidade por baixo da falésia, um lugar de onde poderia ver a luz da lâmpada do abrigo e a que passava pela porta da cabana de Asgrim, deixando ver a silhueta de Skapti no exterior, jazendo pesadamente no solo irregular.
Thorvald olhou para o oceano escuro. Aquilo que tinha dentro do peito crescia, feroz, tentando libertar-se; o jovem dominou-se, porque um verdadeiro líder tinha de saber dominar as suas emoções. Um homem a sério não grita a sua dor, não se queixa às estrelas, aos deuses, não culpa a maldade do inimigo ou as fraquezas dos amigos. Um homem a sério é forte. Mesmo sozinho na noite, numa falésia às escuras, não entra em desespero. Por isso, manteve-se sentado em silêncio, respirando como vira Creidhe fazer quando ele a arreliava e ela tentava não chorar; um, dois, três inspira, um, dois, três expira. Parecia estar a fazer efeito, ou quase; o jovem conseguiu evitar que o som saísse, um som que ele sabia ser um uivo de dor, o grito de um animal ferido. No entanto, era estranho: não parecia ser capaz de reter as lágrimas que lhe corriam, como um rio, pelas faces abaixo, lágrimas cuja origem não compreendia porque no seu espírito só sentia um vazio.
Guardião não esperava ver uma deusa naufragar na sua ilha. Vira o barco aproximar-se, vira e não acreditara nos seus olhos, apesar de ter orgulho na sua visão. Do ponto onde estava, no alto da falésia, num dia claro, era possível avistar até coisas pequenas: pequenas vagas brincando, um bando de andorinhas passando como uma flâmula prateada por cima do Arco do Troll, fumo nas cabanas do Fiorde do Conselho. Ficou a olhar por alguns momentos vendo o súbito brilho dourado, o tecido pálido sobrepondo-se à pele escura que cobria o barco. Tentou tirar algum sentido daquilo. Então, quando se tornou evidente que a Corrente dos Loucos entregava aquele presente à sua própria Ilha Guardião foi tomar posse dele.
A princípio, Pequenino partiu à frente, contente com a expedição, porque tinham estado durante muito tempo imóveis, olhando simplesmente. A maré e o vento tinham dito à Guardião que ainda não eram horas da caçada, mas que esta se aproximava. Nem o menor dos sinais escapava à sua observação, nem a menor das pistas, ou não estaria pronto para eles. As suas lanças, os seus mísseis e as suas armadilhas esperavam. Mas acima das suas armas estavam os seus ouvidos e olhos, a sua ligeireza de pés e a própria ilha. Tinham passados muitos dias em observação e Pequenino estava cada vez mais inquieto.
Assim, foi o primeiro a chegar ao cascalho da pequena ilha; o primeiro a chegar ao barco virado com a sua carga emaranhada, inerte, nas cordas retorcidas ao longo do casco; o primeiro a estacar e a recuar, espantado. Guardião também parara devido a algo que não compreendia totalmente: um sentimento de viragem, de mudança, ao mesmo tempo prodigiosa e terrível. Os seus dedos tocaram no colar prateado em redor do seu pescoço, descorado pela poeira; os seus olhos fixaram-se na silhueta inerte sobre o casco do barco. Os seus cabelos estavam escurecidos pela água, emaranhados e desordenados; no entanto, espalhavam-se-lhe pelo rosto, pelos ombros e desciam-lhe pelo dorso como uma cascata de brilho solar. Guardião engoliu em seco. Sula tinha morrido; nunca mais regressaria. Vira-a, pequena e de rosto cinzento, como uma imitação ridícula da sua risonha e divertida irmã. Aquela era outra, alguém que jazia imóvel e silenciosa, as mãos pálidas enroladas nas cordas, as roupas ensopadas e a pingar e um pé branco, pequeno, à vista por baixo da bainha do vestido de lã. Aquela trazia um saco às costas, que também estava ensopado. Já era tarde, o Sol já só estava três dedos acima do oceano. Poderia uma deusa afogar-se, ou morrer de frio? Guardião fez um esforço e aproximou-se, passando pelo lugar onde Pequenino estava, tremendo, bem ao pé da forma escura do barco naufragado. Guardião tirou a faca do cinto e começou a cortar cuidadosamente: nada se podia desperdiçar porque viviam daquilo que o mar dava e do que a caçada deixava para trás. Daria uso às cordas, à madeira, à cobertura de pele, a tudo.
Em determinado ponto tornou-se necessário carregar aquela figura inerte e Guardião percebeu que era uma mulher. Poucos segundos depois, a cortina dourada de cabelos caiu-lhe do rosto e ele descobriu que ela era espantosamente branca e que ainda estava viva, mas por pouco tempo. Então, parou. A recuperação do barco podia ficar para o dia seguinte; se a maré o levasse durante a noite, talvez fosse porque o destino assim o exigia. Daqueles dois inesperados presentes do mar, era evidente qual deles era o mais precioso.
Guardião chamou Pequenino:
— Depressa! Cobertores! — Mas Pequenino tinha desaparecido no meio das rochas acima da praia. Não era surpresa nenhuma. Quando os homens vinham à ilha, era sempre para magoar, para matar. Vinham com as suas lanças de pontas de ferro, com as suas florestas de setas e olhares furiosos. Pequenino tinha de ter medo, só recordava os anos de caçada, nada dos tempos anteriores. Tinha apenas um ano quando Guardião o levara para ali, os cabelos dourados da sua mãe apenas uma vaga e terna recordação na sua mente infantil. Naquele mundo, um estranho significava terror, sangue e morte. Assim, escondeu-se nas sombras, vigilante, enquanto Guardião carregava a mulher nos braços e a levava para um lugar seco e seguro.
Era preciso ser rápido. Ela estava pálida como a Lua e a respiração lenta e entrecortada. Guardião sentiu a frialdade da sua pele e viu que não tremia: estava quase a desistir, então, permitindo que o seu espírito a abandonasse. No entanto, continuava a respirar. Guardião chamou de novo, mas não obteve resposta. Pequenino apareceria quando tivesse fome; não havia mais ninguém para o alimentar. Guardião moveu-se com a eficiência de um homem que vive há muito tempo sozinho e está habituado a arranjar soluções. Arranjou madeira e fez uma fogueira no interior do pequeno abrigo. Arranjou cobertores; tinham poucos e já estavam muito coçados, mas havia outras coisas armazenadas, troféus da caçada: capas, túnicas e uma jaqueta de pele de ovelha. Depois de estar quente, depois de acordar, envolvê-la-ia nessas coisas. Havia também, algures, dois vestidos de Sula; por que razão os levara para ali, não sabia, salvo que, assim que soube que ela morrera, não lhe parecera dever deixar a mais pequena recordação entre aqueles que lhe tinham roubado a infância, a inocência e, eventualmente, a vida. Tinha, também, os seus sapatos. Oferecer-lhos-ia: um presente. Mas ainda não. Tinha de lhe tirar aquela roupa toda molhada, envolvê-la em cobertores e deixá-la durante algum tempo junto da fogueira.
Guardião sabia que ela poderia vestir as roupas da sua irmã. Sula era uma rapariga frágil, magra, pouco mais do que uma criança. Aquela rapariga era... era... as mãos tremiam-lhe enquanto a estendia na capa estendida junto da fogueira, a cobria com mais duas e depois com os cobertores. Guardião estendeu um braço para lhe afastar os cabelos dourados da fronte pálida. Aquela rapariga era, simplesmente, a coisa mais bela que vira em toda a sua vida, ou que esperava ver algum dia. Sentou-se junto dela por alguns instantes, observando-lhe o rosto, desejando ver-lhe alguma cor nas faces, um leve bater das longas pestanas. Aquela rapariga era um milagre de curvas suaves e elegantes superfícies planas, de cores brancas, rosas e douradas; uma criatura de graça aterrorizadora e torturante cuja presença a seu lado, junto da fogueira, lhe enchia o coração com um tumulto de sentimentos e o corpo com uma confusa mistura de prazer e dor. Ocorreu-lhe que talvez tivesse razão quando a vira pela primeira vez; talvez ela fosse mesmo uma deusa. Que mulher conseguiria provocar tal devastação simplesmente por permanecer ali deitada?
O fogo ardia, quente. Guardião sabia que Pequenino regressara; a luz das chamas refletiu-se nos seus olhos entre as rochas, no exterior da cabana. Pequenino continuava assustado; não voltaria ali enquanto Guardião não o convencesse de que não havia perigo.
Tinha de tratar das roupas molhadas. Guardião estendeu-as: um vestido, uma túnica e uma peça fina de roupa interior. Estava tudo rasgado e danificado pelo mar. Tinha de lhe arranjar qualquer coisa, fazer-lhe qualquer coisa; tornara-se bom nisso ao tomar conta de Pequenino, que trouxera pouca coisa. Ainda não vira o que continha o saco que ela trazia às costas, uma coisa preciosa, sem dúvida, pensou Guardião, ou tê-lo-ia largado na água. Estava completamente saturado.
Pelo canto do olho, viu Pequenino aproximar-se timidamente. Guardião pegou no peixe que apanhara, envolto em algas e colocou-o ao lume, sabendo que Pequenino ficaria mais tranqüilo se o visse a fazer coisas rotineiras, familiares. Ainda não podia cozinhar, as chamas estavam demasiado altas; mas tinha de as manter assim para que a rapariga acordasse. Depois, não imaginava o que poderia fazer. O saco: as coisas dela ficariam arruinadas. Guardião desapertou o cordão que o fechava, começou a tirar cuidadosamente os objetos do seu interior e estendeu-os a secar em cima da pedra lisa perto da fogueira. Pareciam, todos, coisas prodigiosas, secretas e mágicas. Um pente de osso de baleia com pequenos animais marinhos gravados; ainda tinha uma pequena mecha dos seus cabelos. Uma tesoura de ferro, bem afiada; e uma pequena faca de trabalho. Guardião secou as duas coisas cuidadosamente, sabendo como a ferrugem lhes podia ser prejudicial. Pequenino aproximara-se e olhava intensamente; o ferro fê-lo hesitar. Guardião também não se sentia à vontade ao tocá-lo, ao cheirá-lo, mas habituara-se àquele metal maldito por ser essencial para a sua sobrevivência. Um pedaço de tecido forte, que se desdobrou para mostrar muitas bolsas pequenas com agulhas de osso, outros delicados instrumentos cujo nome ele não conhecia e meadas de lã colorida, as cores da sua ilha; azul como à tardinha, vermelho como ao crepúsculo, dourado como ao amanhecer, cinzento como as focas... A magia devia ser poderosa. Guardião colocou-as em cima da pedra cuidadosamente, primeiro as cores claras, depois as escuras, primeiro a alvorada, depois o crepúsculo, depois a noite. Aquele pequeno saco era, em si, um mundo: e ela, o que era?
Havia outras coisas, coisas interessantes: alguma roupa, uma corda enrolada, uma pederneira, um jarro firmemente arrolhado que ele não abriu, um recipiente de pedra-sabão pouco profundo e um pedaço de pavio. E ervas, num saco oleado, mas este desfizera-se e as ervas estavam estragadas. Guardião ficou a olhar para o que estava na sua frente. Para uma deusa, tinha uma mente muito prática; dificilmente teria arrumado as coisas melhor do que ela. Só lhe faltava um anzol, pensou ele.
Pequenino aproximou-se e deu uma cotovelada em Guardião. Tinha o nariz frio.
— Tens fome? Eu sei, vou já cozinhar o peixe. Quando ela acordar...
Pequenino deu-lhe outra cotovelada, ao mesmo tempo que emitia um pequeno som, cheirando o saco. E Guardião reparou que havia outro compartimento, uma bolsa no lado de fora, firmemente fechada com a ajuda de um pedaço de guita. Parecia impossível que um receptáculo tão pequeno pudesse conter tanta coisa. Desataram os dois a guita e Guardião retirou o rolo de tecido fino que estivera tão bem guardado no interior. Era muito estranho; o saco estava encharcado, como era natural depois de ter passado tanto tempo na água, mas aquilo estava perfeitamente seco e limpo. Guardião arranjou espaço na pedra e, lentamente, desenrolou o tecido.
Guardião ficou a olhar para ele durante muito tempo, num grande silêncio, os seus olhos deslocando-se lentamente ao longo do padrão intrincado de pequenas imagens e cores vivas, um mundo de mistério e maravilha, revelado num complexo trabalho de lã. Podia vê-lo movendo-se, envolvente, como se a história que contava, a verdade que continha, estivesse sempre a mudar, tal como o espírito do homem e da mulher cresce e muda, procurando avidamente a mudança. Guardião achou que era capaz de ficar ali eternamente sentindo o Sol nascer e pôr-se, as estações pintarem a paisagem com cores novas no mar e no céu sem, no entanto, conseguir ver tudo. A história da rapariga estava ali e também a de outros, porque havia um homem no princípio, um guerreiro de cabelos amarelos como os dela e com uma marca no braço. Havia uma mulher, uma sacerdotisa, pensou ele, porque alguns animais flutuavam no ar à sua volta, uma coruja, uma lontra, um cão e a seus pés uma criança, o seu próprio Pequenino. A própria deusa aparecia no padrão, voando no céu, tocando na Lua com os cabelos dourados a esvoaçarem. Um barco no meio de uma tempestade; a deusa e os seus companheiros no seu interior... e, ali, a Ilha das Nuvens...
Guardião deu-se conta, a determinada altura, de que Pequenino decidira que era seguro, finalmente, e que subira para os seus joelhos para ver melhor. Estudaram ambos o tecido mágico. Após alguns momentos, Guardião começou a contar a história a Pequenino tal como a via. Era importante utilizar a linguagem para que Pequenino pudesse compreender, se bem que, até à data, o pequeno ainda não tivesse dito uma palavra. Guardião era jovem e forte, mas não o seria para sempre. Que aconteceria a Pequenino, então? Assim, Guardião tentava, o melhor que podia, ensinar àquele que estava à sua guarda tudo o que achava ser útil: acender uma fogueira, encontrar abrigo, falar e fazer-se compreender. Não era fácil. Aquilo que Pequenino sabia, estava-lhe entranhado no espírito. Ninguém lhe ensinara aquilo que era capaz de fazer. As outras coisas, aquilo que um homem precisava de saber para sobreviver, escapavam-lhe.
— Este aqui é o pai dela — disse Guardião num sussurro para não perturbar a deusa. — Vês, um homem perfeito com cabelos da cor do Sol, como os dela. E aqui está a mãe dela, uma mulher sábia; estes animais são os seus amigos espirituais, como os papagaios-do-mar e as focas são os nossos. Este é o irmão dela, como tu, mas que ela teve de deixar para trás. Vê até onde ela foi, longe, longe através do mar... muito mais longe do que nós... com dois fortes companheiros. Um tem cabelos vermelhos como o fogo, ao passo que o outro tem cabelos claros, talvez seja o irmão mais velho. Ela veio até estas ilhas, mas ficou ferida e assustada... Estás a ver aqui, as vozes, os rostos... eles assustaram-na e ela fugiu...
Pequenino tinha o polegar na boca; os seus olhos estavam fixos na imagem, o seu corpo quente e descontraído encostado ao de Guardião. O seu medo tinha desaparecido. O jovem murmurou qualquer coisa, não uma palavra, antes um som que queria dizer: Mais.
— Tens de perceber — disse Guardião — que aqui há muitas, muitas histórias; cada vez que um homem olha para estas imagens, vê uma coisa diferente e depois mais uma. É possível passar uma vida inteira a olhar, a aprender. Mas, hoje, só te conto uma. Ela percorreu um longo caminho pelo monte acima até chegar a uma pequena casa onde habitavam uns amigos. — Ele conhecia a casa, ele próprio estivera lá, há muito tempo. Recordava-se do irmão Niall, um homem de cabelos brancos e de um outro, mais novo. Tinham sido amáveis com ele. O seu pai batera-lhe por ter ido até lá. — Amigos... mas... — O padrão terminava ali. A última coisa que ele viu foi uma mão, estendendo-se no vazio. — Mas que, no fim, não puderam ajudá-la — disse Guardião e olhou para cima. A deusa continuava deitada junto do fogo, as curvas do seu corpo mal escondidas pelos cobertores quentes que ele lhe estendera por cima. A luz das brasas tocou-lhe na cortina dourada dos cabelos e na palidez das faces, mostrando-lhe um par de olhos tão azuis como o céu do Verão, totalmente abertos e a olharem para ele.
CAPÍTULO OITO
Bela é a voz de uma criança,
bela é a voz de uma mulher a cantar.
Mas, mais belo ainda, é o silêncio.
NOTA À MARGEM DE UM MONGE
Quando, finalmente, saiu do estado febril em que se encontrava, Creidhe pensou se não imaginara: o jovem alto, escorreito, cheio de cicatrizes, de olhar perigoso, com roupas esfarrapadas e um ar selvagem que sugeria algo mais ou menos do que um simples ser humano; e a criança andrajosa nos seus joelhos, meio a dormir, de polegar na boca guardado pelo mais improvável dos guardiões. A jovem recordou os olhares nos rostos de ambos, confusos, encantados; a jovem ainda ouvia o fluxo gentil da voz dele contando, de maneira extraordinária, a sua própria história. Nunca ninguém vira a Jornada totalmente desdobrada, salvo ela; ninguém que ela conhecesse podia ter relatado o seu significado como aquela criatura feroz com as suas palavras e gestos suaves. A jovem recordava-se disso e da maneira como ele começara e como parara abruptamente quando se apercebera de que ela estava acordada. Depois, recordou-se de outras coisas, da sua gentileza, do seu próprio medo, não tanto dele, porque era evidente, a partir do momento em que ouvira pela primeira vez a sua voz, que ele não lhe queria mal, mas da ilha e dos outros que também viviam nela, aqueles que mantinham Máscara-de-Raposa cativo e que, todos os Verões, combatiam ferozmente contra as tropas de Asgrim.
Fora para ali porque sentira que estaria segura; infelizmente, havia muito pouca lógica na sua decisão. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz não a podiam seguir até ali; o mesmo acontecia com os outros. A jovem lembrou-se do seu medo ao descobrir que estava nua sob os cobertores e do modo como ele afastara o olhar quando necessitara de se aproximar, como se soubesse o que ela sentia. Ele alimentara-a com peixe, bocado a bocado como se ela fosse um pássaro no ninho; segurara uma caneca nos seus longos dedos, tentando fazer com que ela bebesse. Acima de tudo, reparara que, assim que o jovem se apercebera de que ela estava acordada, a criança desaparecera. Ela estava ali e, no momento seguinte, já não estava. A jovem concluiu que não passara de imaginação.
Pouco depois, deitada junto da fogueira no interior da minúscula cabana, olhando para o exterior através da porta aberta enquanto o crepúsculo de Verão se espalhava pelo céu, começou a sentir a febre a tomar-lhe conta do corpo como o mar não fizera e começou a tremer, a arder e tudo ficou enevoado. Aquilo continuou durante algum tempo e ela deixou de se preocupar com pequenos pormenores, como, por exemplo, ter sede ou estar a expor a sua nudez a estranhos; essas coisas não tinham consequência. O seu corpo doía e tremia, a cabeça zumbia-lhe, estava encharcada em suor, sentia-se gelada... queria morrer, ou, se isso não fosse possível, queria ir para casa, queria tanto ir para casa...
A febre durou vários dias, enquanto a estação se encaminhava para o solstício de Verão. Se havia outras tarefas que o seu guardião supostamente fazia, pusera-as, era evidente, de lado. Ele passava-lhe um pano pela testa, fazia-a engolir água, mudava-lhe os cobertores que a cobriam e fazia os possíveis para que o seu corpo se mantivesse limpo. Manteve o fogo aceso e quente; cozinhou comida que ela não conseguia engolir. Nos seus raros momentos de lucidez, tornou-se cada vez mais evidente para Creidhe que não havia ali nenhuma criança; como podia haver? Quando vira aquela pequena figura nos joelhos do jovem, pensara em Máscara-de-Raposa, uma criança de seis anos, e aparentemente cativa algures naquela ilha. Mas tudo o que vira através da bruma da febre fora uma criatura qualquer, pequena e selvagem, talvez um cão, se bem que não fosse esse o seu aspecto, aproximando-se delicadamente do lugar onde o jovem cozinhava o jantar nas brasas, debicando um pedaço ou outro e escondendo-se de novo. A jovem pensou pouco naquilo; a doença roubara-lhe o sentido das coisas. Não fora assim e sentir-se-ia só, abandonada e com medo. Tal como estava, a vida era apenas calor e frio.
Houve uma noite em que os seus ossos pareciam feitos de gelo, os dentes batiam como castanholas e apesar de o jovem lhe empilhar cobertores e capas em cima, ela continuava a tremer e o frio a entrar, estendendo os seus longos dedos, procurando roubar-lhe a centelha de vida que ainda lhe restava. Nessa noite, a jovem viu o terror nas suas duras feições. Por fim, ele deitou-se a seu lado e cobriu-a com o próprio corpo, com os braços e as pernas, apertou-a, coração contra coração e lentamente o frio terrível foi desaparecendo e ela caiu num longo sono sem sonhos. Quando acordou, pouco depois da alvorada, ele tinha-se afastado, mas por trás dos seus joelhos dobrados a criatura parecida com um cão estava enroscada a dormir, uma bola de pele cinzenta em desalinho com o nariz pontiagudo metido por baixo da cauda. A jovem soube, nessa manhã, que a febre desaparecera e que iria ficar boa de novo.
O jovem tinha falado pouco. As suas palavras tinham-se resumido a: Come, dorme, bebe isto. Creidhe suspeitava de que tinha pairado incessantemente, ao longo dos dias e noites de doença, de coisas que não imaginava: talvez tivesse falado de casa, das suas preocupações com Thorvald e Sam, que não sabiam para onde ela tinha ido. Agora que tinha a mente desanuviada, que o jovem estava do outro lado da fogueira a fazer qualquer coisa com uma faca e a olhar para ela com aqueles olhos estranhos e luminosos, olhos da cor das profundezas do mar, não sabia o que dizer. Na verdade, nem sequer sabia se ele a entenderia. Por vezes, dava a impressão de que era um animal prestes a fugir. No entanto, compreendera a história da jornada: a sua história. Talvez também isso tivesse sido um produto do seu delírio febril.
Finalmente, a jovem disse uma coisa perfeitamente prática.
— Preciso de roupa. Penso que já me posso levantar, tentar cuidar de mim própria. Deves ter outras coisas para fazer.
Ele curvou a cabeça numa espécie de aceno.
— Saia, túnica, sapatos pequenos — disse ele. — Tenho isso; vou buscá-los. Um presente.
— As minhas velhas coisas servem... — começou Creidhe a dizer, mas parou porque lhe parecera grosseiro. Quando os olhos de um homem tinham aquela expressão, sem sinal de perfídia, não era possível evitar a sua amabilidade. — Obrigada — disse ela. — Suponho que estão todas estragadas. Qualquer coisa serve. — Ela ficou a olhar para ele, para o seu rosto seco, um rosto jovem mas circunspecto e autocontrolado, para as mãos ágeis e sujas, para os olhos estranhos. — Salvaste-me a vida — acrescentou ela em voz baixa. — Estou-te grata.
A sua grande boca suavizou-se um pouco sem chegar a esboçar um sorriso.
— O mar trouxe-te até à minha praia — disse ele. — O meu nome é Guardião; foi-me dada essa tarefa. Aqui, estás salva.
Creidhe teve alguma dificuldade para se sentar; a jovem enrolou os cobertores em redor de si própria, esperando que ele lhe arranjasse rapidamente algumas roupas. Uma coisa era saber que o jovem a tocara, que a lavara e que a limpara enquanto estivera doente; outra era sentir-se exposta e vulnerável, agora que voltara a si. Se calhar, ele tinha coisas velhas armazenadas. A jovem tentou imaginar-se vestida como ele, roupas com penas cosidas por cima, mas não conseguiu. Ocorreu-lhe que tinha muitas perguntas para fazer, perguntas importantes, e que não tinha idéia por onde começar.
— Salva — repetiu ela. — Mas aqui não é seguro, pois não? E a caçada?
Os olhos dele encontraram os dela, firmes por cima das chamas baixas da fogueira.
— O meu nome é Guardião — disse ele de novo. — Serás protegida. Juro pelas pedras e pelas estrelas, pelos ventos e pelas aves. Eles não se aproximarão de ti.
As suas palavras e tom provocaram-lhe um arrepio, como uma recordação de algo sombrio e antigo. A jovem não duvidou, nem por um momento, de que aquela estranha criatura dizia a verdade.
— Guardião? — perguntou ela cuidadosamente. — É esse o teu nome?
Ele acenou com a cabeça gravemente e voltou a pegar na faca; estava a envolver o punho em qualquer coisa, um trabalho elaborado, um desenho decorativo feito com um fio entrançado.
— Não tens outro nome? — perguntou-lhe ela. — Aquele que a tua mãe e o teu pai te deram?
Não recebeu qualquer resposta.
— O meu nome é Creidhe — disse ela. — Venho de um lugar distante chamado Ilhas Brilhantes. Vim até aqui porque... — A jovem não sabia bem como continuar, já que não tinha a certeza de que ele compreenderia.
— Fugiste de Asgrim? — Havia um tom estranho na sua voz, um tom de perigo; o fato de ele ter tratado dela, pensou Creidhe, devia, provavelmente, ter ultrapassado o seu padrão habitual de vida. Havia qualquer coisa de guerreiro nele, um guerreiro que existe essencialmente em histórias e sonhos. Talvez, na verdade, se tivesse mesmo afogado na Corrente dos Loucos e tudo aquilo fosse uma visão do outro lado do mundo.
— Fugiste d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz? — acrescentou ele.
— De ambos — disse Creidhe após alguns momentos de pausa. — Fui... negociada. Eles iam levar-me. Foi então que saltei do barco e escapei.
Ele esperou um pouco antes de falar de novo; tinha as mãos ocupadas, enrolando o fio entrançado em redor do punho da faca, por cima, por baixo.
— Trouxeste a tua história para a minha ilha — disse ele. Creidhe acenou com a cabeça, sentindo um nó na garganta.
— Eu não a mostro às pessoas — disse-lhe ela. — Nunca ninguém viu senão uma pequena parte dela. É uma coisa... secreta, privada.
Ele não disse nada; as suas mãos continuaram firmemente a fazer o trabalho, hábeis, fluidas. Por trás dele, a um canto, ela via uma sombra pequena e escura e um par de olhos brilhantes.
— Eu acho... eu acho que, se calhar, estive a sonhar — disse Creidhe. — Pareceu-me ouvir-te contar a história, a minha história. Mas, como foi possível? Como foi possível teres reconhecido a minha mãe, o meu pai?
Ele olhou para ela e sorriu e ela pensou ver naquele sorriso uma mensagem, algo nascente, doce, profundamente perigoso.
— Estava lá tudo — disse Guardião. — Eu sabia que virias: para te sentires segura.
Creidhe desejou ter ali a mãe, ou a irmã Eanna. Só uma mulher sábia podia compreender aquilo, ela não passava de uma rapariga comum com habilidade para bordar e com algumas idéias estranhas na cabeça. Não conseguiu encontrar nada para dizer. Quanto mais perguntas fazia, menos compreendia as respostas.
— Roupa — disse Guardião, levantando-se e pondo o seu trabalho de lado. — Estão prontas, Creidhe. — A sua voz era hesitante ao pronunciar o seu nome pela primeira vez; o jovem olhou para ela de relance, timidamente, como se não soubesse ao certo se lhe podia chamar assim.
— Obrigada — disse ela, esboçando um sorriso. Não era um sorriso por aí além; Creidhe ainda se sentia fraca, sentia a cabeça estranha e estava perfeitamente consciente da sua nudez por baixo do cobertor rude que mantinha enrolado em redor do corpo. Apesar disso, fê-lo corar como um rapaz envergonhado. Murmurando algo que ela não compreendeu, ele virou-lhe as costas e saiu da pequena cabana.
A jovem esperou. Por baixo da prateleira de pedra junto da entrada, algo rastejou e olhou para ela. Creidhe sentiu-a mais do que a viu, porque como Guardião tinha saído da cabana, a criatura retirara-se mais ainda, receosa se o homem não estava presente. Creidhe tentou imaginar que tipo de animal viveria na Ilha das Nuvens para além dos papagaios-do-mar, das outras aves marinhas e das focas. A jovem tentou imaginar quando se mostraria o resto da tribo e qual seria o papel de Guardião no seu seio. Ele não parecia um seguidor nem um líder, antes ele próprio. Talvez se mantivesse completamente à parte. Devia fazer-lhe perguntas acerca da tribo e acerca da caçada. Devia fazer-lhe perguntas acerca de Máscara-de- Raposa. Mas não queria. Não queria contemplar o futuro, porque lhe parecia que o povo dos Facas Longas e Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz lhe tinham barrado o caminho. Ela viera até às Ilhas Perdidas com Thorvald, seu melhor amigo e a quem amava. Pensara apoiá-lo na sua missão e ajudá-lo a regressar a casa quando tivesse terminado. Na verdade, fora ela que lhe encontrara a resposta, uma resposta que não lhe podia comunicar porque estava ali, naufragada numa ilha e sozinha, procurada pelas tribos daquela longa guerra, incapaz de regressar. Além do mais, sentia-se fraca como uma criança; na ausência de Guardião, tentou levantar-se e sentiu as pernas faltarem-lhe.
No entanto, sentia uma calma estranha, a certeza de que fizera o que devia. Enquanto uma pequena brisa entrava pela porta e murmurava através do fogo, ocorreu a Creidhe que estava sã e salva e que, ridiculamente, se sentia melhor do que alguma vez se sentira desde que deixara Hrossey. Imaginou Nessa em casa, à lareira, atirando para o fogo uma mão-cheia de ervas secas e procurando respostas nas chamas. Viu Eanna na encosta solitária, morada das mulheres sábias, em frente da sua própria lareira com os braços abertos e os olhos fechados, para ver melhor com os do espírito. Estariam a vê-la, a sua mãe, a sua irmã? Talvez, se se concentrasse muito, se fixasse a mente nelas, pudessem sentir a sua presença. Creidhe fechou os olhos e começou a oscilar, ao mesmo tempo que entoava um cântico em surdina. Algumas coisas não conhecem fronteiras.
Quando voltou a si, mais uma vez, um pouco tonta porque demorara mais do que era sua intenção, viu que Guardião regressara e voltara a sair silenciosamente, sem que ela desse por isso. O jovem deixara uma pilha de roupas dobradas junto dela, pousada com cuidado nas pedras lisas junto da lareira. Naquela primeira noite ele tirara-lhe do saco as lãs coloridas; ela vira como ele as estendera a secar numa sequência de cores, das mais claras às mais escuras, do dia para a noite. A sua própria sequência devia ter-lhe parecido ao acaso. O vermelho-sangue junto da meia-noite e a pervinca azul aproximando-se do sol amarelo, se bem que esse aparente caos tivesse o seu próprio padrão: ela sabia qual pertencia a qual. Pegando no saco, a jovem verificou que as meadas estavam de novo no seu lugar, cada uma no lugar exato onde as costumava deixar.
Não havia sinais de Guardião. Até a pequena presença na sombra tinha desaparecido. A jovem desdobrou as coisas que lhe tinham deixado, esperando ver uma espécie de túnica e umas calças, uma capa de pele e talvez umas botas, se tivesse sorte. Percebeu, ao primeiro toque, que estava enganada. Por um momento, os seus dedos encontraram o toque suave da lã e ela sentiu um arrepio; ainda há pouco as mulheres de Água Brilhante lhe tinham dado de presente um vestido de lã. Um vestido de sacrifício, fora isso. Aquele era mais simples, mas, à sua maneira, tão bem-feito como o outro. Não tinha penas. Uma longa camisa de homem, cortada na bainha e nas mangas e perfeitamente rematada; o tecido era velho mas ainda estava bom, de um azul-esbatido e os novos pontos tinham sido feitos com uma cor mais escura, parecida com a cor do mar sob o céu de Outono. O fio, tinha a certeza, vinha da sua própria provisão; tivera dificuldade em conseguir aquela cor. O trabalho era quase perfeito. Havia uma saia comprida, habilidosamente feita de pedaços de outras peças de roupa, pensou ela, com um cordão a fazer de cinto. Uma outra saia fora alterada para fazer uma espécie de combinação sem mangas, com as orlas cosidas com outro fio. Creidhe dera àquela linha o nome de olho de coração, em nome de uma flor que crescia, na Primavera, nas falésias perto da sua casa, em Hrossey. Uma tonalidade profunda, brilhante, algures entre o vermelho e o púrpura, uma cor que gritava a sua satisfação no verde, no castanho-escuro e no cinzento dos campos.
Devia estar a regressar e, com ele, a pequena sombra. Um pouco hesitante nas pernas ainda trêmulas, Creidhe vestiu a saia e a túnica. Havia um cinto, um cordão de lã cinzento e azul, e ela atou-o à cintura. Era estranho: suficientemente estranho para lhe provocar de novo um arrepio. Quando as mulheres, em Água Brilhante, a tinham feito vestir o vestido verde bordado, aquele que lhe marcava as formas como se ela fosse um objeto de comércio, estava apertado aqui e mais largo ali, como seria de esperar com um vestido feito para outra pessoa. Mas aquele servia-lhe perfeitamente. As mangas chegavam-lhe exatamente aos pulsos, a saia fluía perfeitamente pelas ancas abaixo e o cinto atava-lhe a cintura na perfeição, sobrando apenas uns pedacinhos franjados para além do nó. Os cabelos do pescoço de Creidhe eriçaram-se. A jovem tentou imaginar Thorvald a lidar com aquela situação: viu, imediatamente, o amigo carrancudo, irritado, atirando-lhe a primeira peça de roupa que tivesse à mão. Pega, veste isto, diria ele, virando depois as costas e continuando com qualquer coisa que valesse mais o seu tempo.
A jovem passou os dedos pelos pontos coloridos e perfeitos nos pulsos da camisa. A maior parte dos jovens que conhecia nem sequer sabiam enfiar a linha numa agulha. Os pescadores eram capazes, claro, mas não era a mesma coisa. Era evidente que aquilo levara tempo e concentração, cuidado e imaginação. Ela pensou nos olhos dele: verdes, muito verdes, misteriosos, insondáveis; nas mãos de dedos longos, habilidosos, perigosos... A Jornada revelara-lhe os seus segredos espontaneamente. Por que razão estava Guardião ali? A Creidhe, parecia-lhe que ele era Outro; que estava para lá do que ela sabia acerca da Ilha das Nuvens a tribo feroz, a caçada, Máscara-de-Raposa, a longa e amarga disputa. A sua mãe tinha um vestido velho, metido no fundo de uma arca. Era uma peça de vestuário com todas as tonalidades do mar, uma coisa difusa, envolta em encantamentos sombrios de um poder antigo. Só fora usado uma vez, numa noite em que Nessa fizera uma profunda magia para salvar o seu povo e o homem que amava. O vestido fora um presente: um presente da Tribo das Focas. Nessa pagara um preço terrível pela sua ajuda numa ocasião de grande necessidade.
Creidhe abraçou-se a si própria e foi sentar-se nas pedras junto da fogueira. Aquela suave peça de vestuário de lã, aquele traje cuidadosamente preparado, extremamente sedutor na sua simplicidade, certamente não era tão perigoso como o vestido de Nessa. Aqueles pequenos pontos, feitos com tanta delicadeza e com linhas tiradas do seu saco, pareciam mais uma proteção do que uma ameaça. Além do mais, por razões práticas, não tinha mais nada para usar e aquilo era muito melhor do que um monte de penas.
A jovem olhou para o fogo. O combustível que Guardião utilizava ardia com pouco fumo, mantendo o local seco e quente. Creidhe olhou para o exterior e aventurou-se a circundar a cabana, tentando perceber em que lugar específico da ilha se encontrava. Um carreiro estreito, quase imperceptível, descia por encostas cheias de gelo na direção oeste. Para leste, o terreno subia, íngreme, na direção de rochedos escarpados cobertos de nuvens; deles vinha um vento frio, fazendo estremecer a erva. Na parte norte da cabana havia um precipício abrupto sobre o mar; as aves circulavam por ali. Era necessário muito cuidado ali, de noite. Tal como a Ilha das Tempestades, aquele local oferecia um abrigo escasso; parecia à mercê do mau tempo e do vento e Creidhe não via nada que crescesse acima da altura do joelho. Para o homem e para os animais, os afloramentos rochosos podiam fornecer proteção e súbitas ravinas servir de esconderijo. De pé à entrada, Creidhe via a minúscula enseada onde naufragara o barco.
Por todos os antepassados, oxalá aquele capacete desaparecesse depressa para que pudesse começar a fazer qualquer coisa de útil. A existência de Guardião parecia ser solitária e difícil. Ela já lhe roubara bastante tempo, tempo que seria mais bem passado a... a pescar, ou a caçar, ou a fazer outra coisa qualquer. A jovem pegou nos cobertores, dobrou-os e limpou tudo o melhor que pôde. Até aquele pequeno esforço a deixou a arfar e com as pernas a tremer. Podia fazer o jantar, mas isso seria perturbar a rotina das coisas. Cozinhar era uma coisa para mais tarde; a jovem observara isso durante a doença. No entanto, havia uma tarefa que podia desempenhar: a jornada. Apesar de as mãos lhe tremerem devido à febre recente, o tecido e as lãs chamavam-na, ansiosos por novos bordados. A jovem desenrolou-o, as cores do arco-íris sobre a pedra cinzenta, dando vida ao pequeno espaço da cabana. Ela olhou de relance do complexo entrelaçado do padrão para a linha colorida, simples e pura que percorria o decote, as mangas e a bainha do vestido. Ela não queria reconhecer a verdade, mas lá estava ela, visível, nítida. O irmão Niall reparara nas escapatórias no seu trabalho, nos locais onde ela permitia que a dor e a alegria daquilo que representava saíssem e se dissipassem antes que o seu poder crescesse até um determinado ponto. Mas ali, naquela ilha, algo mais acontecera. A Jornada ultrapassara os seus limites e já não podia ser contida. Agora, havia outras mãos, ajudando-a a avançar.
Creidhe enfiou uma linha na agulha e selecionou um cinzento-suave e um verde muito escuro. A jovem tentou mostrar o que vira, no canto: a pequena criatura que dormira na esteira e que fugira no momento em que ela acordara. O pequeno rosto estava difícil. Por vezes, parecia uma coisa; outras vezes, outra; agora um pequeno cão hirsuto, depois um pequeno animal caçador, um daqueles animais das histórias do pai, uma doninha, uma raposa, um gato, porque tinha o focinho pontiagudo, as orelhas grandes e uns olhos ferozes. No entanto, por vezes, tinha uma forma diferente mas nebulosa, como se o que desejava mostrar ao mundo fosse uma insinuação, uma sugestão do que estava por trás. Quando já estivesse suficientemente forte para se aventurar até mais longe, pensou Creidhe, talvez encontrasse rebanhos ou tribos daqueles animais na ilha. Talvez fosse a sua fraqueza a impedi-la de distinguir melhor as formas. Conseguia ver Guardião com toda a nitidez, mas não ia pô-lo na Jornada. Fazer isso parecia-lhe uma coisa muito perigosa.
A jovem inseriu a agulha com firmeza, esquecendo o tempo e o lugar, como sempre que uma pessoa está muito concentrada num trabalho. O que conseguiu, no fim, era menos uma descrição e mais uma sugestão, menos uma imagem e mais uma idéia: os olhos, o focinho delicado, as sombras, a timidez e a total estranheza. A jovem achou que conseguira, pelo menos, retratar a criatura, apesar da dificuldade em ver como ela era realmente, com as suas fugas e mudanças. Depois de terminar aquela parte, bordou de novo a Ilha das Nuvens, dessa vez muito pequena, cercada por um par de braços, as mãos curvadas para dentro para manter o pequeno fardo são e salvo. Fora dessa parede protetora, a tempestade rugia, brilhante, sangrenta; para lá da barreira, a Corrente dos Loucos varria sem piedade aqueles que se atreviam a aproximar-se. No interior dos braços protetores, a ilha permanecia à parte, sozinha, inviolável.
Guardião regressou com peixe da parte ocidental da ilha, onde as grandes vagas batiam na base de uma pequena ilhota habitada apenas por milhares de aves. Para lá das suas falésias e aglomerados rochosos, nada mais senão o oceano vazio, até ao fim do mundo. Creidhe continuava a bordar, levando a orla sinuosa e rastejante até ao local onde bordara as coisas misteriosas e prodigiosas. A jovem não fez menção de esconder o trabalho. Era estranho deixá-lo à vista, como se deixasse Guardião penetrar-lhe no espírito e ver um local que mais ninguém vira, nem sequer Thorvald. A sua boca torceu-se num leve sorriso divertido. Guardião já vira, certamente, muito mais do que Thorvald; mas ela não o pudera evitar. Ainda bem que ele parecia tímido, assim como assustadoramente capaz.
— Por que estás a sorrir? — Ele já tinha escamado e arranjado o peixe na praia; agora, estava a limpá-lo e estendendo algumas algas para o embrulhar, pronto para ser cozinhado.
— Por nada, a sério. — Não era coisa que lhe pudesse dizer, certamente. — Estava a pensar em como é estranho estarmos aqui os dois, sozinhos. No Verão passado eu estava em casa com os meus pais, com as minhas irmãs e com os meus amigos. Nunca pensei que os antepassados me conduzissem até aqui.
— Os dois, não — corrigiu ele, muito sério. — Os três.
— Queres dizer o...? — Creidhe olhou de esguelha para o lado de lá da fogueira; a criatura parecida com um cão estava sentada junto do seu dono com os olhos fixos no peixe suculento.
— Sim, o meu irmão.
Creidhe engoliu em seco. Guardião era, inegavelmente, uma pessoa invulgar, como seria de esperar de um homem a viver num local tão remoto. Mas nunca pensara que não tivesse o juízo todo.
— Teu irmão? — perguntou ela, chocada.
— Não um irmão a sério — disse ele — mas penso nele como tal. Somos parentes.
A mente dela girou, deu outra volta, tentando dar uma forma aceitável àquelas palavras. Seria ele uma espécie de sacerdote e aquela criatura o seu companheiro? Ela conhecia alguns casos. Nas Ilhas Brilhantes, a mulher sábia, Rona, que fora a professora de Nessa e depois de Eanna, possuía uma estranha afinidade com cães. Creidhe decidiu fazer uma pergunta inocente.
— Como é que ele se chama?
— Pequenino.
Ela pensou um pouco naquilo.
— O mesmo tipo de nome que Guardião — comentou ela. Do outro lado das chamas, ele olhou para ela com sobriedade.
— Fomos nós que os escolhemos — concordou ele. — Não precisamos dos que as outras pessoas nos deram. Esta é a nossa ilha, o nosso refúgio.
Tinha de ir com cuidado.
— Eu tenho orgulho no meu nome — disse ela — no nome da minha mãe e no do meu pai. Creidhe foi o nome que eles me escolheram. Também posso chamar a mim própria Filha de Nessa, Filha de Eyvind e sentir alegria nisso, sabendo que transporto no meu sangue a sua coragem e bondade. Isso não faz com que eu seja menos eu própria.
Guardião permaneceu silencioso enquanto os seus dedos embrulhavam o peixe nas algas e atravessando-o de viés com o que parecia ser um osso afiado.
— Peço desculpa — disse ela, pensando, talvez, que o tinha aborrecido. — Não quero ser intrometida. Só estou um pouco ansiosa, mais nada. Não sei, exatamente, quem és, ou... ou quem é Pequenino e disseram-me que há uma tribo muito perigosa nesta ilha; as mulheres de Água Brilhante disseram-me que morrem aqui muitos homens todos os Verões, em combate. Eu acho que os guerreiros de Asgrim podem não encontrar Máscara-de-Raposa, mas é possível que me encontrem a mim. Eles tinham planejado oferecer-me como uma espécie de substituto, para não terem de vir até aqui mais uma vez este Verão. Não sei se estás a par da história...?
— Conheço a história. — O tom da sua voz era grave, calmo. — É verdade, morrem aqui muitos homens por ocasião da caçada. Mas tu estás segura. Eu prometi.
— Sim, mas...
— Eu prometi. Não precisas de ter medo.
— Sim, eu sei — disse ela após um momento. — E não duvido do que dizes. Mas, sinto-me... perturbada. Vim até estas ilhas com uns amigos, dois rapazes. Asgrim levou-os. O governador mentiu-me acerca de diversas coisas. Pode ser que também tenha mentido quando me disse que os meus amigos só o estavam a ajudar a reparar os estragos feitos pela tempestade nas aldeias, em troca da madeira de que necessitavam para consertar o nosso barco. Tenho medo que tente envolvê-los na caçada. E se eu estou aqui, protegida por ti, Thorvald e Sam não estão. — Ele estava a avivar as brasas e a colocar o peixe em cima das pedras quentes.
— Eles são guerreiros, esses teus companheiros? — perguntou ele.
— Não — disse Creidhe. — O problema é esse. — Sam não é, de modo nenhum, um guerreiro e Thorvald só finge que é. Seria perigoso serem apanhados ambos nisto tudo. Mas... Thorvald tem o hábito de fazer coisas destas e, por vezes, é muito difícil fazer com que veja as coisas como deve ser.
— Se eles não podem lutar — disse Guardião — Asgrim não os trará com ele à Ilha das Nuvens.
— Espero que tenhas razão. — Creidhe estremeceu. A jovem começou a guardar a Jornada, as agulhas e as linhas nas respectivas bolsas, assim como a tapeçaria luminosa, dobrada e guardada em segurança.
— Se eles vierem — disse Guardião — morrerão, assim como os homens de Asgrim. Se não no Verão passado, este Verão. Se não este Verão, no próximo.
Creidhe achou aquela afirmação muito pouco tranqüilizadora, mas não fez qualquer comentário.
— Diz-me uma coisa — Guardião sentou-se nos calcanhares, olhando para ela — por que trouxeste contigo esses protetores, se eles não podem lutar por ti? Qual foi o objetivo ao escolher esses companheiros?
— Oh. Bem, acontece que não os escolhi, propriamente. A expedição era de Thorvald e Sam veio porque o barco é dele e sabe velejar. Eu não fui convidada. Vim com eles porque achei que se meteriam em sarilhos sem mim. Como vês, estava enganada. Eu é que me meti em sarilhos. — A jovem tentara manter um tom de voz ligeiro, brincalhão; infelizmente, as lágrimas apareceram sem serem convidadas enquanto falava e arruinaram o efeito. Creidhe limpou-as com uns dedos irritados; era suposto ser forte, capaz. Assim, não.
Guardião pôs-se de pé e saiu sem uma palavra. Junto da fogueira, Pequenino ficou a olhar para ela com os seus olhos grandes e estranhos.
— Para ti, está tudo bem — murmurou ela, zangada. — Ficas sentado à lareira, dormes numa cama, dão-te comida e depois foges e escondes-te quando as coisas ficam difíceis. — As orelhas dele torceram-se; Pequenino pestanejou. Era a primeira vez que não fugia para não ficar sozinho com ela. — Desculpa — disse ela. — Não é o que eu penso, a sério. Estou preocupada, mais nada. — Pelos antepassados, a criatura era mesmo estranha; quanto mais olhava para ele, menos percebia que espécie de animal era. — Que animal és tu? — murmurou ela. — Diz-me; mostra-me. — Mas Pequenino limitou-se a olhar para ela com os olhos a brilhar à luz da lareira.
Guardião regressou de rosto sombrio. Trazia algo na mão.
— Sapatos pequenos — disse ele, ajoelhando-se junto de Creidhe e colocando-os no chão. — Acho que devem servir-te; tu tens pés pequenos, mãos pequenas. Por favor, usa-os. Um presente.
Ela reparou como os dedos dele percorriam a pele suave das botas, quase de certeza umas botas de mulher, porque eram, na verdade, pequenas e fabricadas com delicadeza, as costuras fortes e bem-feitas, a pele suave e bem curtida. As mãos dele pareciam relutantes em deixá-las ir; via-se que lhe eram muito preciosas.
— Tens a certeza?
— Por favor. Um presente. Amanhã, se já estiveres boa, levo-te e mostro-te, para que possas compreender que estás segura aqui, conosco. Para isso, precisas de sapatos. Experimenta-os.
Creidhe calçou-as; as botas serviam-lhe, não tão bem como as roupas, porque estas tinham sido feitas para uma rapariga diferente, mas eram suficientemente confortáveis para andar. Creidhe começou a pensar, a ponderar várias possibilidades e a reuni-las de maneiras diferentes.
— Obrigada pelo presente — disse ela, tocando na mão de Guardião. A jovem arrependeu-se instantaneamente; ele comportou-se como um animal assustado e ela sentiu o próprio coração a sobressaltar-se de um modo estranho. — São muito bonitos. Sentir-me-ei orgulhosa por usá-los. Tu és generoso com os teus presentes; e eu não tenho nada para te dar.
Ele afastara-se para o outro lado da fogueira; manteve-se ocupado com o peixe durante algum tempo, acrescentando turfa e deitando água numa tigela para Pequenino.
— Tu podias... — começou ele, hesitante. — Tu podias dar... eu não devo pedir...
— É melhor continuares — disse Creidhe secamente, imaginando o que um rapaz naquela situação poderia esperar de uma rapariga que não tinha com que pagar uma refeição e sabendo que, provavelmente, seria a última coisa que Guardião lhe pediria.
— O bordado — disse ele — a história... Ele gosta de uma história quando vai para a cama. Se pudéssemos olhar para ela outra vez...
Mais uma vez, a simplicidade dele deixou-a sem palavras. Ela olhou para ele por cima das chamas e ele retribuiu-lhe o olhar, muito solene.
— É pedir demasiado — disse ele. — Essa coisa que tu fazes é mágica e secreta. Mas nós vimos a nossa ilha nessa história. Olhar de novo para ela seria...
— Depois do jantar, então — disse Creidhe calmamente. — Uma história na hora de ir para a cama não é má idéia. — A jovem olhou para as pequenas botas, praticamente novas. Umas botas de criança, quase; ainda bem que tinha pés pequenos.
— Estás outra vez a chorar — disse Guardião, consternado. — Por favor, não...
— Está tudo bem, não é nada... — Creidhe tentou secar as lágrimas, tentou deter o fluxo, mas não conseguiu; só naquele momento, ao olhar para as botas, tão pequenas, tão amorosamente preservadas, é que a realidade do que lhe acontecera lhe entrou no coração com todo o seu terror. — Oh deuses, oh, peço desculpa... — A jovem levou as mãos ao rosto.
Creidhe ouviu-o aproximar-se, ouviu o roçagar das penas do seu traje, o pisar suave dos seus pés no solo. Mas foi Pequenino o primeiro a chegar a ela, saltando-lhe para o colo com as pequenas e duras patas de cão e a cauda peluda e chicoteante e foi a língua de Pequenino que lhe lambeu as lágrimas. Creidhe não sabia se rir, se chorar, ou ambas as coisas. Guardião sentou-se a seu lado com as feições pálidas de preocupação e os olhos profundos cheios de ansiedade. O jovem ergueu uma longa mão na direção do rosto dela, mas não lhe tocou; os seus dedos pairaram numa das faces, acompanhando a sua curva como se fosse um eco da sua forma. A respiração de Creidhe morreu-lhe na garganta. A vontade de cobrir a mão dele com a sua era muito forte; há muito que estava só, sem qualquer carinho. Mas não seria tola a esse ponto. Sem compreender bem porquê, sentiu que tinha o poder de causar grandes estragos, que aquele rapaz forte era muito mais vulnerável do que ela, apesar de ser ela quem estava a chorar.
Pequenino ajudou, metendo-se entre os dois; a criatura colocara-lhe as patas da frente nos ombros e lambia-lhe o rosto meticulosamente. O momento de perigo passara.
— Já estou bem — disse Creidhe, levantando-se e colocando Pequenino no chão. — Desculpa; geralmente, não sou rapariga para chorar. Foram os sapatos. Foste tão amável; penso que foi isso que provocou as lágrimas.
— Culpa minha — Guardião recuara alguns passos: demasiado perto, ainda. — Magoei-te?
— Não, Guardião — disse ela, respirando fundo. — A tua gentileza fez-me lembrar a minha casa e a minha família. Foi por isso que pareci magoada.
— A sacerdotisa? O homem com uma marca no braço?
— Sim. Mas estão todos muito longe e eu sei que não posso ir ter com eles; não vale a pena chorar por causa disso. Talvez devêssemos tratar do peixe; devem ser horas de jantar.
— Há um homem com essa marca no braço, nestas ilhas — disse Guardião a olhar para ela. — Conheci-o, em tempos.
— Sim. Eu sei.
— Conhece-o?
Ela acenou com a cabeça.
— É amigo do meu pai. É o pai de Thorvald. A cicatriz é a prova. A prova de que são irmãos de sangue. O meu pai tem a outra. Depois de a ver percebi quem era o irmão Niall; a maneira como ele falou convenceu-me, se bem que nunca o tenha dito de maneira clara. Mas Thorvald ainda não sabe. Ele foi com Asgrim. Tudo correu mal. Toda a nossa viagem, sabes, toda a empresa foi pensada com esse objetivo, com o objetivo de Thorvald encontrar o pai. Thorvald queria que isto se mantivesse em segredo. Depois do que aconteceu, não vejo razão para mais segredos.
— Um homem bom — disse Guardião em voz baixa. — Um homem solitário. O mundo dele mudará por inteiro quando souber que tem um filho. — Havia uma tristeza infinita na sua voz.
— Sim — disse ela. — Pode haver nisso uma grande dor, mas também uma grande alegria, acho eu. Mas eles precisam de mim e eu não estou lá para os ajudar.
— Não — disse Guardião. — Tu estás aqui. Foi por isso que choraste, por a Corrente dos Loucos te ter trazido para a minha ilha, afastando-te do teu amigo?
Creidhe olhou para ele; só os antepassados sabiam o que ele via nos seus olhos.
— Não — murmurou ela e depois tossiu levemente para clarear a voz. — E agora — acrescentou ela, tentando falar em tom normal — creio que devíamos comer o peixe antes que se estrague. Eu cozinho amanhã, se quiseres. Dizem que sou muito boa cozinheira, se tiver os ingredientes apropriados.
Mais tarde, depois da frugal refeição e quando estavam os três sentados à luz da noite de Verão, Creidhe tirou a Jornada e estendeu-a nas pedras ao lado da fogueira. Ainda havia espaço para mais imagens; o padrão intrincado ainda podia crescer e desenvolver-se. Mas o tecido não duraria para sempre; as lãs coloridas chegariam ao fim, com o tempo. Não havia material daquele na Ilha das Nuvens.
Creidhe olhou para Guardião, sentado no chão com as longas pernas cruzadas, ao lado de Pequenino, as mãos ocupadas mais uma vez com o padrão entretecido do cabo da faca.
— Está pronto — disse ela. — Mas ele parece cansado.
— Conta. — A voz de Guardião era baixa. — Por favor.
— Oh. Mas eu não sei...
— Conta como quiseres. Há aí muitas histórias.
— Sim, há — concordou Creidhe, tocando com os dedos no pequeno desenho de um homem com uma cicatriz num braço e pensando num outro que tinha uma igual. Começara tudo com aqueles dois: Eyvind e Somerled. Quando aqueles dois rapazes pegaram numa faca, cortaram mutuamente os braços e juraram lealdade eterna, quem diria que acabaria por se chegar àquelas ilhas nos confins do oceano, onde a filha de Eyvind andara à deriva nos braços da Corrente dos Loucos enquanto o filho de Somerled continuava em perigo, cego perante a verdade que ela descobrira?
— Era uma vez — disse Creidhe — um rapaz chamado Evind, que sempre quisera ser guerreiro. Não um guerreiro antigo, compreendes, antes um guerreiro muito especial...
Nem tudo o que contou estava na Jornada, pelo menos com a precisão e exatidão que ela colocou nas suas palavras. Mas estava o essencial: o olhar do seu pai, a pele de lobo que ele trazia nos seus largos ombros e os dois cães a seu lado, como dois guardas. A cicatriz.
Num determinado ponto, Pequenino aproximou-se dela com mais cuidado do que quando ela chorara e subiu-lhe para o colo, onde se aninhou aparentemente concentrado nas imagens da Jornada enquanto Creidhe tocava nelas e contava a história. Mais tarde, ela apercebeu-se de que Guardião pusera de lado o seu trabalho e se aproximava silenciosamente para se sentar aos seus pés, de joelhos erguidos contra o peito e os braços em volta deles, como uma criança. Também ele fixou as imagens no tecido, como se estivessem vivas. O jovem estava imóvel e muito perto; se ela tivesse estendido uma mão, ter-lhe-ia tocado nos cabelos negros como as asas de um corvo, emaranhados e selvagens. Havia uma pena neles, verde-azulada, e um pedaço de alga seca.
A história estava perto do fim.
— Foi assim que Eyvind se tornou no maior Pele-de-Lobo de sempre — disse Creidhe suavemente — e soube que era seu destino ser algo diferente. Nas Ilhas Brilhantes aprendeu que o amor, não a guerra, é que é a essência de uma vida bem vivida. — A jovem estava a ter uma sensação muito estranha; se bem que os seus olhos lhe dissessem que a pequena criatura nos seus joelhos ainda tinha um focinho pontiagudo, orelhas de cão e pêlo cinzento e hirsuto, a forma que sentia no colo tinha o feitio e o peso de uma criança aninhada, a sua cabeça tocando-lhe no peito, as suas pernas penduradas nas suas coxas, tal como a sua irmã Ingigerd em inúmeras noites à luz da candeia, aninhada no seu colo e escutando histórias de bravura e magia. Creidhe prendeu a respiração, espantada. Poderia acreditar no que as suas mãos tocavam, no que os seus sentidos lhe diziam? Era impossível; a lógica assim o dizia, no entanto o seu coração reconhecia a verdade, uma verdade mais profunda do que a compreensão humana.
— Portanto — disse Guardião com uma voz estranhamente forçada — a cicatriz não era meramente uma promessa, era um sinal de amor.
Creidhe fechara os olhos; a jovem mexeu uma mão cuidadosamente para tocar na pequena pessoa que estava sentada nos seus joelhos. Os seus dedos percorreram o delicado pescoço de uma criança, uma cabeça redonda, umas madeixas de cabelo emaranhado que, era evidente, não viam um pente há muito tempo, tal como os de Guardião. A jovem afagou os caracóis emaranhados o mais gentilmente que conseguiu; sentira o choque percorrer aquele frágil ser quando se mexera.
— Sim — disse ela — é um sinal de amor, se bem que, na ocasião, nenhum deles se tivesse apercebido disso. Ligou-os para sempre. Ainda os liga, um de cada lado do oceano, de cada lado do arco dos anos. O passado segue-nos; transportamo-lo no nosso espírito, no nosso sangue. — A criança suspirou, encostando-lhe a cabeça ao seio; a jovem sentiu que ele metia o dedo na boca e que fechava os olhos. Uma mão pequenina estendeu-se e agarrou-lhe uma prega do vestido. Pequenino aninhou-se nela e adormeceu. Creidhe não abriu os olhos. A jovem sentiu-se atingida por um sentimento de prodígio e terror; uma história triste, muito triste, uma história terrível para ambos. — Ele deve ter seis anos — disse ela em voz baixa ou quase.
— Tinha quase um ano quando fiquei com ele. — A voz de Guardião era tão suave que ela mal conseguia ouvi-lo, apesar de ele estar muito perto dela. — Suportamos cinco vezes a caçada.
Ingigerd tinha seis anos. Ingigerd era capaz de coser uma bainha, mugir uma cabra, ou atar os próprios sapatos. Ingigerd era capaz de correr, nadar e ir ao galinheiro buscar ovos com um cesto.
— Ele parece... muito frágil e assusta-se com facilidade — disse Creidhe.
Guardião não disse nada. Possivelmente, as suas palavras tinham-lhe soado como uma crítica.
— Por que é que ele não se mostra como é na realidade? — perguntou ela. — Mesmo agora, não posso vê-lo... — Ela abriu os olhos e olhou para baixo. — Oh — disse ela, e ouviu a própria voz a tremer. Ali, na Ilha das Nuvens, o impossível tornava-se realidade.
— Ser caçado significa ter medo. — Guardião levantou-se e afastou-se.
— Des... desculpa — gaguejou Creidhe, vendo como a boca dele se cerrara. — Eu sei que não posso, sequer, imaginar a vossa vida aqui, como deve ser duro, como deve ser difícil para ti mantê-lo seguro e bem de saúde. Este lugar é agreste e solitário. E a outra tribo? Eles ajudam-te?
Guardião olhou para ela em silêncio. O jovem mantinha-se na sombra, uma silhueta alta e remota; grande, de rosto pálido como uma máscara e com dois buracos negros no lugar dos olhos. As penas do seu vestuário agitavam-se ligeiramente sob a brisa; todo o resto, à sua volta, estava imóvel. A criança nos seus joelhos dormia. A sua pequena silhueta era agora perfeitamente visível, os seus membros magros, o seu rosto triangular e estranho mas certamente humano e os seus cabelos uma miniatura dos caracóis selvagens de Guardião. A roupa era a mesma, uma mistura de peles e penas, se bem que, por baixo, Creidhe pudesse ver uma peça de roupa de lã, feita para o seu tamanho, tal como a roupa que ela agora usava. Os seus sapatos eram feitos de umas botas maiores, cosidas com pedaços de pele.
— É um rapaz muito bonito — disse ela, conseguindo esboçar um sorriso. — Um rapaz encantador. Vê-se que tomaste bem conta dele. E estou a ver que ele... não é como as outras crianças. É filho da tua irmã?
Guardião acenou com a cabeça, franzindo o sobrolho.
— Disseste que o passado nos segue, que o transportamos conosco. Pequenino e eu estamos livres do passado. Temos os nossos próprios nomes, o nosso próprio lugar. Só uma coisa me prende ao passado: a promessa que fiz a ela, que tomaria conta dele. O resto foi posto de lado. — A mão dele moveu-se para tocar no que o Pequenino tinha ao pescoço: um colar de cabelo entrançado, velho, desbotado. — Foi-me dada uma tarefa; é essa a minha vida.
Creidhe estendeu a mão para enrolar a Jornada; com a outra, amparou a criança adormecida.
— Compreendo — disse ela — por que razão não reconheces que és filho de Asgrim.
— Eu não sou filho de homem nenhum — disse Guardião. — E o meu irmão não é filho de nenhum homem. — O tom da sua voz era profundamente frio; Creidhe pensara que nunca teria medo dele, mas agora não tinha tanta certeza. A jovem quis perguntar-lhe: Que vai acontecer quando ele crescer, qual vai ser o futuro dele aqui? Ela estava a pensar novamente em Ingigerd, roliça e saudável, alegre e inteligente, crescendo no meio das pastagens viçosas das Ilhas Brilhantes e cercada pelo amor. A única maneira de lhe fazer a pergunta era, talvez, bordá-la na Jornada.
— Isto há de acabar um dia — foi o que acabou por dizer. — A guerra, as vozes, a caçada. Então, talvez ele não se sinta tão assustado.
— Isto só acabará quando estiverem todos mortos.
Guardião tinha uma maneira estranha de dizer as palavras: não era, pensou Creidhe, o discurso de um homem com uma língua nativa diferente, antes o de um homem que não estava habituado a falar. A jovem pensou, de novo, na tribo que vivia na Ilha das Nuvens.
— Quando estiverem todos mortos? — perguntou-lhe ela, alarmada com o tom amargo da voz dele.
— Os homens de Asgrim. Só quando morrerem todos é que acaba a caçada. Então, estamos em paz, Pequenino e eu; então, eu faço uma vida para ele.
— Aqui, nesta ilha?
— Não há outro lugar. — Guardião aproximou-se para tirar a criança dos joelhos dela; a jovem sentiu o toque inadvertido das mãos dele, como se a tivessem queimado e, no mesmo momento, viu a mudança no rosto dele. A presença de Pequenino, pensou ela, era, de certo modo, uma bênção.
— Mostras-me amanhã, como disseste? — perguntou ela. — A ilha, a outra tribo e o que acontece quando chega a caçada?
— Se estiveres suficientemente forte. Não quero cansar-te.
— Eu estou habituada a andar — disse Creidhe. — Não haverá problema. — A jovem pôs-se de pé e sentiu-se imediatamente tonta. A febre, no fim de contas, tinha desaparecido há pouco. — Problema... — murmurou ela, ao mesmo tempo que os joelhos se lhe dobravam.
Ele foi muito rápido. Pousou a criança nos cobertores, deu dois passos atrás e apanhou-a antes que ela atingisse o chão. Creidhe sentiu-se transportada e pousada no calor de uma capa de lã dobrada e estendida. A sua visão comportava-se de maneira estranha; as paredes da cabana pareciam mover-se lentamente à sua volta e a luz da fogueira, refletindo-se nas superfícies fendidas das pedras maciças, formava desenhos sombreados, formas de homens e animais, uma dança antiga guardada na sua memória monolítica. As feições de Guardião estavam enevoadas; o jovem inclinou-se e ela pensou que conseguia ver o oceano nas profundezas dos seus olhos.
— Desculpa — murmurou ela. — Pensava que já estava boa...
— Shhh. — Ele colocou-se a seu lado de pernas cruzadas e estendeu um braço para a cobrir com um cobertor até ao queixo. — Cansada. Minha culpa. Pedi demasiado.
— Não — disse ela suavemente. — Culpa minha. Não me apercebi, a princípio, de como o amas. De como a amavas. Sula. Estes sapatos eram dela, não eram?
— Agora, são teus — disse Guardião. — Amanhã vou andar contigo, mostrar-te a ilha. Dorme, agora.
Ela esperou que ele se afastasse, que se fosse instalar no outro lado da cabana, no outro lado da lareira, ou junto da entrada. Mas ele ficou onde estava, muito perto dela, sentado muito direito na semiescuridão. Creidhe fechou os olhos. Estava, na verdade, cansada, no entanto o sono parecia longe porque tinha a mente cheia de perguntas e o seu coração, por qualquer razão, batia apressadamente, como se tivesse estado a correr. A jovem tentou pensar em coisas tranqüilas: uma gaivota cavalgando as correntes de ar, as belas cores de um olho-de-coração nos campos da sua ilha, a voz da sua mãe dizendo-lhe que estava tudo bem... Não, não podia ser; tinha, mais uma vez, os olhos rasos de água, as lágrimas prontas a rolarem, perdendo-se nas mechas do seu cabelo. E surgiu uma mão para as enxugar, tão leve que ela quase pensou que era apenas um sussurro da brisa, só que era a mão dele e ela sentiu-a em cada canto do seu corpo. A jovem reteve a respiração. Os dedos dele tocaram-lhe no cabelo, afastando-o da fronte, gentilmente, cuidadosamente. Lentamente, docemente. Ela respirou de novo, suspirou e, contra todas as probabilidades, caiu instantaneamente no sono.
Como havemos de nos sentir quando o prêmio que merecemos nos cai no colo e descobrimos que o seu custo está para além do que podemos pagar? Como podemos continuar, sabendo que a nossa oportunidade para brilhar foi comprada com a vida do nosso melhor amigo? No dia a seguir à notícia da morte de Creidhe, Thorvald foi ter com o governador e disse-lhe que não estava preparado para comandar os homens, que lhe parecia haver outros mais aptos para desempenhar esse papel; Einar, por exemplo, ou Orm. De fato, não acreditava, mas obrigou-se a dizê-lo, quanto mais não fosse para negar que uma parte do seu espírito continuava a gritar: Sim! É a tua hora! Porque lhe parecia que uma parte de si mesmo devia ter sido estrangulada à nascença.
— Depois de refletir — disse ele, mantendo o olhar fixo nos impenetráveis olhos escuros de Asgrim. — Não acho apropriado Sam e eu participarmos nisto. Creidhe não gostaria que nos vingássemos à custa da vida dos teus homens, ou das nossas. Além disso, não foi a tribo da Ilha das Nuvens que a matou, foram Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Por que razão havemos de combater para resgatar o seu vidente quando eles agiram tão selvaticamente contra nós? Não faz sentido. Vamos para casa.
No seu espírito, talvez esperasse que Asgrim lhe contrapusesse algum argumento, que lhe pedisse.
— Muito bem — disse o governador. — Se pensas assim. Devo dizer que estou desapontado. Pensava outra coisa de ti, Thorvald. Mas já passamos sem ti e voltaremos a fazê-lo, suponho. Receio que as perdas vão ser grandes. A notícia vai cair mal entre os homens. E és capaz de ter alguma dificuldade em convencer Sam.
— Esse problema não é teu — disse Thorvald. — Ele conforma-se. Ainda há pouco, a única coisa que queria era regressar a casa.
Naquele dia, o jovem evitou o mais possível os outros, falando pouco, ficando para trás de modo a empacotar os seus magros haveres, antecipando uma partida não desejada. Hogni andava por perto, não estava a trabalhar com os homens nem estava de serviço, ora sombriamente encostado a um canto do abrigo, ora sentado no exterior em cima de umas pedras com os braços em redor dos joelhos, tão triste como um cão. Finalmente, Thorvald sentiu-se compelido a ir ter com ele e perguntar-lhe o que se passava.
— Nada — grunhiu Hogni com o sobrolho franzido.
O guarda-costas era um homem de tamanho e maneiras intimidantes, mas Thorvald viu o olhar perdido nos seus pequenos olhos. O jovem sentou-se ao lado dele.
— Mesmo assim — disse ele e esperou.
As mãos de Hogni não estavam quietas, os dedos tamborilavam nos joelhos e depois retorciam-se. Thorvald olhou para os homens na praia, praticando com as facas; o jovem sentiu-se, curiosamente, desligado daquilo, agora que tinha decidido não continuar. No entanto, reparou que a habilidade de Wieland tinha melhorado; o seu lançamento tinha melhorado imenso e ele estava a começar a evidenciar um estilo muito próprio. E Orm também não estava nada mal. Acabara de assustar Hjort com a sua perícia.
— O meu mano — conseguiu dizer Hogni, subitamente. — Skapti. Anda esquisito. Calado. Nem parece ele. Anda qualquer coisa a roê-lo, mas não diz nada.
Thorvald já suspeitava de algo parecido; vira-o no comportamento de Skapti na noite anterior.
— Hum — disse ele. — Custa-te vê-lo assim, não?
— Errado. — Hogni esfregou a sola da bota na terra, afastando algumas pedras. — Há qualquer coisa errada. Nunca o vi assim. Quase nunca.
— Perguntaste-lhe o que se passa?
— Tentei. Nada, — disse ele. — Ando preocupado, Thorvald. Não gosto do que vejo nos olhos dele. A caçada vem aí, precisamos todos de estar o melhor possível. Concordas que é assim.
Thorvald sentiu um arrepio, um sopro de vento frio que lhe atravessou os ossos. Talvez fosse uma premonição, mas acerca de quê, não sabia. O jovem respirou fundo. Não pertencia àquele lugar; aqueles não eram os seus homens. Fora tolo ao pensar que pertencia àquele lugar. A caçada era um assunto de Asgrim.
— Acontece — disse Hogni, rudemente — que eu pensei que talvez Skapti falasse contigo. Ele gosta muito de ti. Tenta ser igual a ti. Talvez te diga a ti o que não me diz a mim.
Thorvald abriu a boca para dizer não, não haveria tempo, porque iria para casa no dia seguinte. O jovem encontrou os olhos ansiosos do guarda, viu a expressão de tristeza no rosto grande e ossudo. De certo modo, não conseguia dizer as palavras, porque lhe pareciam mais uma traição.
— Skapti tenta ser igual a mim? — perguntou ele. — Não me parece. Ele era capaz de me derrubar apenas com um dedo.
— Tem sido bom trabalhar contigo. Todos concordam que é verdade. Tu não és o recém-chegado convencido que pensávamos que eras. Skapti também pensa assim. Ele disse que tu tens miolos e coragem. Falas com ele?
— Vou tentar. — Não havia maneira de recusar.
— Sabia que podia contar contigo — disse Hogni com uma careta que lhe revelou duas filas de dentes partidos. O homem já tivera mais do que a sua conta de combates.
Tinha de fazer tudo naquele dia: não só falar com Skapti, uma coisa que Thorvald achava não valer de nada, mas também convencer Sam de que tinham de seguir o plano original e rumarem a casa enquanto o tempo estava bom. Sam estava no meio dos guerreiros, treinando-se com a lança. As feições amáveis do pescador tinham uma expressão dura, feroz, nada dele. Os seus olhos estavam vermelhos e encovados. Devia haver algumas cabeças doridas; todos eles tinham bebido até tarde, enquanto Thorvald estivera no alto da falésia sozinho. De manhã, Einar acordara-os à hora habitual, sem exceção, e eles tinham ido trabalhar pouco depois sem se queixarem. Aqueles homens estavam a aprender o significado da disciplina. Alguns estavam a aprender o significado da liderança. No entanto, recordou Thorvald, Asgrim é que era o chefe de guerra deles, não ele. Asgrim dissera que se arranjariam. Thorvald era dispensável. Ir-se-ia embora, então, e se nunca visse a força que treinara para ganhar aquela batalha, que importava? Fora suficientemente louco para se envolver, louco por se importar, por pensar que haveria, ali, um lugar para ele. Estúpido e arrogante. Os deuses tinham-lhe exigido um preço terrível por aquela arrogância, um preço que levaria toda a sua vida a pagar com sentimentos de culpa e de dor. Tinha de regressar e dizer a Eyvind e a Nessa que a filha de ambos morrera por sua causa. Tinha de dar parte a Margaret das conseqüências do seu orgulho e da sua ambição. A inteligência e a coragem, se as possuía, não o iam ajudar nessa missão.
Sam parecia estar a fazer os possíveis para nunca estar sozinho. Se não estava a lançar facas com Orm, ensaiava a escalada da falésia com Wieland, com ou sem pé ferido. Knut e outros pescadores também estavam envolvidos; de todo o conjunto de homens, os únicos que não estavam a praticar qualquer coisa eram aqueles que tinham ido pescar qualquer coisa para a refeição comunal. E Skapti. O governador aparecera com a sua sombra, Hogni, para observar; manteve-se perto dos lançadores de facas com uma expressão severa, fazendo um comentário de vez em quando. Os homens pareciam nervosos com a sua presença e faziam pior do que antes. Thorvald estava morto por ir ter com eles para os tranqüilizar e encorajar, mas não o fez. Se Hogni estava de serviço, isso significava que Skapti estava sozinho, algures. Decidiu ir procurá-lo.
O instinto levou-o à mesma falésia onde estivera de vigília na noite anterior, sozinho com a sua dor. Não foi difícil avistar Skapti, um verdadeiro gigante. O guarda-costas estava perigosamente perto da beira, olhando para oeste. O coração de Thorvald parou; tinha diante dos olhos a visão de Creidhe, Creidhe com o olhar fixo na Ilha das Nuvens e com os pés a escorregarem para fora do carreiro. O jovem aproximou-se com precaução.
— Skapti — disse ele em voz baixa, aproximando-se para se sentar nas rochas, perto do guerreiro. — Senta-te homem, estás a assustar-me. Anda lá, senta-te aqui ao pé de mim.
Skapti grunhiu algo parecido com um desaparece. Thorvald ficou onde estava sem dizer nada.
— Estou a falar a sério — resmungou Skapti após uns momentos. — Não tenho nada para te dizer. Lamento que a rapariga tenha morrido e não vou falar mais do assunto. E agora deixa-me em paz. Se eu decidir saltar, não tens nada com isso. — O guerreiro deu um passo; a biqueira da bota dele já estava fora da beira. Thorvald engoliu em seco.
— Tenho, sim — disse ele, fazendo um esforço para manter o tom de voz de todos os dias. — Não temos treinado os homens durante a estação toda para a caçada, tu, eu e Hogni? Estás a dizer-me que não queres viver para ver o fruto desse trabalho? Ora vamos, Skapti, eu estou a contar contigo. Quem mais tem a hipótese de sair incólume do combate? Nós precisamos da tua equipe num flanco e da de Hogni no outro. Os homens não confiam em mais ninguém. Não podes atirar isso assim fora.
Skapti hesitou na beira da falésia, estendendo um braço para se equilibrar. O seu rosto ficou, subitamente, muito branco. Pela mente de Thorvald passaram várias hipóteses, nenhuma delas prometedora. Não fora difícil agarrar em Creidhe e puxá-la para trás. Creidhe era uma rapariga leve. Aquele gigante arrastá-lo-ia consigo, bastando, simplesmente, inclinar-se mais um pouco.
— Vamos fazer o seguinte — disse Thorvald. — Façamos um acordo. Primeiro, conversamos, só um bocado, e depois eu vou-me embora e deixo-te sozinho. O que fizeres depois, é contigo.
Skapti produziu um som ininteligível.
— Acontece — disse Thorvald num tom casual — que, primeiro, terás de te sentar. Ver-te assim, a balançar, faz-me ficar enjoado. Anda lá, homem, senta-te aqui ao pé de mim. Isso mesmo. — O jovem ouviu a sua própria respiração a sair enquanto o guerreiro se afastava da beira e se aproximava para se deixar cair nas rochas. Skapti também respirava pesadamente e as suas feições estavam esverdeadas.
— Aposto que foi Hogni que te mandou — arriscou o guarda-costas, carrancudo.
— Falei com ele, sim, mas a idéia de vir falar contigo foi minha. A caçada aproxima-se; se estás chateado, ou doente, ou se não estás satisfeito com alguma coisa, eu preciso de saber, para poder ajudar.
— Não foi o que ouvi.
— Ah sim?
Skapti abanou a cabeça.
— Asgrim diz que tu te vais embora. Diz que tu já não nos queres comandar. — O guerreiro virou a cabeça subitamente para fixar ferozmente os seus pequenos olhos nos de Thorvald. É verdade?
— Como é que eu posso ficar? — As palavras saíram-lhe zangadas, contra a vontade de Thorvald. — Creidhe morreu. Ela morreu porque eu estava aqui a fazer isto, em vez de estar a tomar conta dela. Tenho de ir para casa. Tenho de contar o que aconteceu ao pai dela. À sua maneira, ainda vai ser pior do que qualquer batalha. Ele é um homem formidável. Havias de admirá-lo, acho.
— Ah sim? Que é ele, um chefe de guerra, uma espécie de rei?
— Não exatamente. Um líder de homens, certamente. Em tempos, foi um Pele-de-Lobo, em Rogaland. Isso dá-lhe uma certa reputação. Não sei se tu...? — O jovem calou-se. Era evidente que Skapti sabia exatamente o que era um Pele-de-Lobo e achava isso impressionante.
— Isso explica tudo. — O grande guerreiro acenou com a cabeça, os olhos plenos de tristeza e de mais qualquer coisa que Thorvald não percebeu bem. — A filha de um Pele-de-Lobo. Não admira.
— Não admira o quê? — perguntou Thorvald, sentindo um arrepio na espinha.
— Nada — resmungou Skapti, olhando para o chão.
— Nada, não. Tu estavas lá. Conta-me!
— Não sei se gostarás de ouvir, sendo amigo dela e isso tudo. Não foi agradável. Ainda tremo e tenho pesadelos.
Thorvald fez um esforço para respirar normalmente.
— Conta-me, Skapti — disse ele em voz baixa.
— Bem, sabes, não foi exatamente como Asgrim disse. A maneira como ele contou fez parecer que a rapariga cometeu uma loucura, pondo-se de pé no barco, provocando um acidente e fazendo com que se perdesse uma série de homens. Mas eu vi. Vi o que ela fez e fiquei a matutar. E agora sei. Filha de um Pele-de-Lobo; faz sentido. — Skapti estremeceu. — Ainda piora as coisas. Assim, ainda é mais difícil continuar.
— O quê? — Thorvald lutava para manter a calma. — O que é que Creidhe fez?
— Foi deliberado. Não foi nenhuma estupidez. Tentou escapar. Pôs-se de pé e mergulhou. A princípio, pareceu que tinha ido ao fundo de vez, mas, depois, apareceu um pouco mais longe. Quando eles a viram, remaram na direção dela e entraram na Corrente dos Loucos. Ela fez aquilo de propósito. Eles andaram às voltas com os remos, tentando alcançá-la, tentando não perder o controle do barco. A rapariga agarrou num remo, puxou-o, o remador desequilibrou-se e o barco virou-se. Então, desapareceram todos. Que rapariga corajosa. Que espírito lutador. E bonita, também. Bem-feita. — As lágrimas rolavam pelas faces de Skapti; ele não fez qualquer tentativa para as evitar. — Acho que não consigo continuar, Thorvald. Acho que não posso continuar com isto.
— Continuar o quê? — Deuses, mais valia não ter tomado conhecimento daquilo; era mesmo de Creidhe lutar sempre, agarrar-se à esperança até ao fim. Recusava-se, simplesmente, a desistir. Podia vê-la na água, a pele pálida a ficar azul com o frio, os dedos agarrados a um remo, murmurando para si própria: Não vou morrer, enquanto as vagas se erguiam para a levar para o fundo, para lhe tirar o último fôlego.
— Tudo — murmurou Skapti, olhando para as próprias botas. — As coisas dele. As coisas de Asgrim. De que vale? Nós cumprimos ordens, obedecemos, combatemos as guerras dele e morremos na caçada porque não temos outra hipótese. Mas, onde é que isto vai dar é que eu gostaria de saber! Quanto tempo mais? Quantas vezes mais? Olha para Wieland. A mulher dele perdeu três filhos, Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz cantaram, ela perdeu três bebês e Asgrim nem sequer o deixa ir a casa para a consolar. A caçada é muito importante. — Skapti cerrou os punhos. — Mas, por quanto tempo mais? Cinco anos, e mais antes disso, quando nós rechaçávamos os ataques deles. E as outras coisas... ele pensa que me pode pedir o que quiser, tudo. Eu sempre obedeci. Ele é o governador. Ele é que sabe. Mas não posso mais. Acho que seria melhor eu não estar aqui. Assim, ele já não me obrigava. — O grande homem era a imagem da miséria.
— Este Verão pode ser diferente — disse Thorvald. — Já te tinha dito. É apenas uma questão de pensares a caçada de maneira diferente e de estares preparado como deve ser. Quando aqui cheguei, os homens andavam por aí sem disciplina, sem técnica. Eu não sou um guerreiro profissional, como tu, mas fui bem ensinado. E vi aqui muito potencial. Percebi que Asgrim não estava a utilizar como deve ser os homens que tinha. É uma coisa que acontece quando um líder deixa de ter esperança. E agora, olha para eles. São fortes, estão bem treinados e concentrados na tarefa. Trabalham em equipe. As armas são melhores, a maneira como as usam é melhor, toda a atitude mudou. Esta caçada pode ser diferente, Skapti, eu sei: a primeira que eles vão ganhar.
Skapti resmungou qualquer coisa.
— O que é que disseste?
— Sem ti, não — disse Skapti. Thorvald sentiu um aperto no coração.
— Asgrim pode liderar-vos... sim, eu sei o que disseste... mas ele pode, desta vez, levar-vos à vitória. O trabalho de campo está feito. Além disso, ele não me quer. A sério que não.
— Digamos que ele faz isso — disse Skapti, olhando fixamente para os olhos de Thorvald; os do guerreiro estavam cheios de lágrimas, vermelhos. — Digamos que ele nos lidera e que nós conseguimos resgatar Máscara-de-Raposa. Digamos que nem todos morrem na tentativa. Isso é bom, concordo. Mas, e depois? Eu estou farto, estou farto dele e das regras dele, farto de cumprir ordens de que não gosto, porque tenho medo de dizer não. E se eu tenho medo, imagina os outros!
Thorvald sentiu de novo um arrepio, algo ao mesmo tempo excitante e extremamente perigoso.
— Não sei por que me estás a dizer isso — disse ele. A sua voz transformara-se num murmúrio, se bem que não estivesse mais ninguém à vista.
— Acontece — disse Skapti, olhando nervosamente à esquerda e à direita — que nunca tivemos um líder como tu. Nunca ninguém lhe fez frente. Se te fores embora, as coisas continuarão na mesma.
As palavras pairaram no ar entre os dois, as que tinham sido ditas e as que eram demasiado perigosas para serem ditas em voz alta.
— Pois — conseguiu dizer Thorvald. — Acho... acho que não devemos continuar a discutir isso. Nem sequer aqui. Não é que eu não queira ficar. Mas não posso. A culpa é minha se Creidhe morreu. Vou ficar com esse peso na consciência para o resto da minha vida. Mas tenho de o reconhecer e ir para casa; reconhecer que nunca fui aqui outra coisa senão um estranho.
— E o peso ainda será maior se te fores embora — disse Skapti. — É essa a minha opinião.
Finalmente, os dois homens regressaram, Skapti cabisbaixo e silencioso, Thorvald caminhando rapidamente e com a mente fixa numa única coisa: tomara uma decisão, a única possível, e agarrar-se-ia a ela. Eles podiam ganhar aquela guerra sem ele; faria com que acreditassem que era possível. Quanto à perspectiva tentadora a que Skapti aludira, o depois, não se permitiria pensar nela. Era demasiado perigoso.
Tinham estado ausentes mais tempo do que pensava. O jantar estava a ser cozinhado e os homens sentados à volta da fogueira, tal como quando ele ali chegara: cansados e desanimados. Provavelmente, extenuados. Parecia que tinha sido um dia difícil, apesar de Thorvald não ter tomado parte nele. O jovem perdera a oportunidade de apanhar Sam sozinho e o tempo estava a escassear. O tempo tinha a mania de ficar mau de repente, ali e, geralmente, fazia-o sem aviso. Teria de tentar novamente à noite, chamar o amigo sob um pretexto qualquer. Tinham de partir no dia seguinte: havia um limite para a sua capacidade de se manter agarrado àquela decisão.
Asgrim ainda não aparecera. Hogni também estava ausente. Deuses, os homens estavam mesmo com mau aspecto: Einar muito sério, Skolli a olhar para a sua caneca de cerveja. Wieland pálido e exausto. Quanto a Sam, a expressão do seu rosto só podia ser descrita como furiosa. Era evidente que um dia de treino com as ferramentas de combate nada fizera para lhe acalmar a raiva. Era evidente que a maioria tinha estado a beber até tarde, na noite anterior, recordou Thorvald a si mesmo enquanto se sentava junto de Skapti na prateleira de terra. No entanto, sentiu-se muito pouco à vontade. Era cada vez mais evidente que a tristeza, a desaprovação e a animosidade lhe eram dirigidas.
Pouco se disse até o guisado ter sido tirado do pote e o pão escuro cortado e dividido. Thorvald não conseguiu engolir a comida; doía-lhe o estômago. A seu lado, Skapti comia estoicamente. Foi Einar, o mais velho, que quebrou o estranho silêncio.
— Então, Thorvald, Asgrim disse-nos que te vais embora amanhã. Que nos abandonas.
— Não se eu tiver uma palavra a dizer — grunhiu Sam em voz baixa.
Thorvald não disse nada; de que valia? Eles não podiam compreender as suas razões.
— Custou-nos a acreditar — disse Wieland bruscamente, surpreendendo Thorvald por ser um homem reservado, um homem de poucas palavras. — Que te virasses contra nós, que nos abandonasses assim sem mais nem menos. Especialmente agora. Como pudeste fazer uma coisa dessas?
— Quer dizer — acrescentou Skapti — nós sabemos o que aconteceu à rapariga, foi uma coisa terrível, perturbou-nos a todos, oh, se perturbou. Mas eu pensei que, exatamente por isso, ainda tivesses mais vontade de continuar. No fim de contas, passas a ser um de nós.
— É isso mesmo — disse Orm. — Agora já sabes como nos sentimos. Todos nós perdemos alguém: um amigo, um irmão, um pai. Filhos à nascença. Olha para Wieland, ali, o último perdeu-o na última Primavera, o bebê que a tua rapariga ajudou a nascer. Parece que ela fez o melhor que pôde por nós. Por que não fazes tu o mesmo?
— Pensava melhor de ti — resmungou Knut, o jovem pescador. — Pensava que ia ser diferente, desta vez. Só prova que não se pode confiar num recém-chegado. — Houve um murmúrio geral de concordância; o seu tom era ameaçador.
— De qualquer maneira — disse Sam — se eu não vou, tu também não podes ir. Já pensaste nisso?
Seguiu-se um breve silêncio.
— Suponho que tenho de explicar — disse Thorvald relutantemente. Era a segunda vez que passava por aquilo; o jovem sentiu um desejo profundo de que tudo aquilo acabasse e que o Sea Dove já estivesse a caminho, apesar de a viagem só poder terminar mal. — Não espero que vocês compreendam. É só... é só... — Thorvald parou e respirou fundo; eles estavam zangados e eram muitos. Não era o momento de aparecer com uma declaração qualquer, desconexa, sobre os seus sentimentos. Era o momento de demonstrar uma verdadeira capacidade de liderança. Se ainda fosse capaz. O jovem pôs-se de pé e afastou os braços.
— Sabem — disse ele — quando cheguei aqui, não sabia o que fazer de vocês. Tanta força e tão pouca aplicação; tanto potencial e tão pouca vontade de o desenvolver; tanta habilidade e tão pouca coesão. Havia líderes entre vós, mas estavam demasiado desanimados. Havia combatentes capazes, mas perdiam o seu tempo a fazer de guarda-costas. Havia inteligência, mas não estava a ser usada. Vi um exército sem esperança. No entanto, vi um exército.
Os homens estavam todos silenciosos.
— Bem — disse Thorvald, virando a cabeça para fixar cada um deles. — Olhem para vocês, agora. Que equipe! Que grupo de combate! Vocês adquiriram destreza, habilidade e capacidade; adquiriram capacidade de cooperação, disciplina e vontade de continuar. Vocês adquiriram aquilo que faz um homem levantar-se de madrugada sem se queixar e ir para o campo treinar, mesmo quando a cabeça lhe dói tanto que quase estoura. — Ouviu-se uma pequena risada geral. — Vocês têm líderes como Einar, como Skapti, como Hogni, que vos treina até estardes meio-mortos de pé e que se mantêm junto de vós nos bons e nos maus tempos. Já não sois uma escumalha, sois uma força com direito a serdes reconhecidos. Tendes o que nunca tivestes antes: a vontade de vencer. Não fui eu quem vos deu isso, fostes vós que o conseguistes através de trabalho duro e determinação.
Seguiu-se um momento de pausa e depois um aplauso geral e um viva. Thorvald reparou em Asgrim e Hogni à porta, observando. Então, Einar falou.
— Bem dito. É verdade, temos mais hipóteses nesta caçada e sabemo-lo. E parece que não temos outra hipótese senão experimentarmos, já que não há possibilidade de tréguas. Mas, tu subestimas-te, Thorvald. Só há uma coisa diferente do ano passado e do anterior; tu. Sem ti, continuaríamos a mesma... como é que tu disseste...?
— Escumalha — disse Skolli.
— Exatamente. Não podes deixar-nos. Foste tu que nos transformaste no que somos. Foste tu que tiveste as grandes idéias; atacar de três pontos ao mesmo tempo, adulterar as armas, neutralizar as armadilhas. Não o podemos fazer sem ti.
— Eu disse-te — murmurou Skapti ao lado de Thorvald
— Fica até ao fim da caçada — pediu-lhe Einar. — Então, enchemos-te o barco e vocês os dois podem ir para casa, se é isso que querem.
— Ou podem ficar — disse Skapti com os olhos a piscarem nervosamente na direção de Asgrim.
— Ou podem ficar — concordou Einar, muito sério. — Que dizes, homem?
Então, ouviu-se um coro de vozes e muitos homens a avançarem ao mesmo tempo, cada um para pedir pessoalmente a Thorvald, todos eles com o mesmo olhar no rosto, um olhar que o fez compreender que o que conseguira ali era maior do que imaginara. Pusera esperança nos corações deles, mostrara-lhes um futuro sem medo. Agora, tirava-a de novo. O jovem não percebera quão associado estava à fantasia daquela gente; nem sequer imaginara algo semelhante senão quando Skapti pronunciara as palavras fatais: Se te vais embora, a esperança de mudarmos aqui as coisas desaparece. Para aqueles homens, o futuro não incluía a liderança de Asgrim, um futuro em que a sua própria posição era crítica. Ocorreu-lhe que Asgrim seria um perfeito louco se o deixasse ficar.
Thorvald ergueu uma mão e o tumulto acalmou-se.
— Estais a esquecer-vos, talvez — disse ele — que uma amiga minha se afogou nestas águas. Assumo essa responsabilidade. Devia tê-la protegido, mas não o fiz porque a minha mente estava no nosso trabalho aqui e esqueci-me dela. É meu dever levar a notícia da sua morte à sua família o mais rapidamente possível. É essa a principal razão para...
— Nós compreendemos a tua dor, Thorvald. — Asgrim aproximara-se da lareira e estava agora de pé, envolto na sua capa escura, varrendo-os a todos com o olhar. O silêncio era total. — Já todos nós sentimos o mesmo. Nas Ilhas Perdidas, a morte é o pão-nosso de cada dia. Mas sejamos práticos. A tua jovem amiga desapareceu: não a podemos ressuscitar. Tu estás longe de casa há muito tempo, mais do que uma estação. Que diferença faz se a família de Creidhe só receber a notícia depois do solstício de Verão? Nenhuma, penso eu. Permite que acrescente a minha voz aos dos meus homens. Tu dizes a verdade e di-la com voz inflamada, a voz de um homem novo. Nós temos necessidade absoluta de verdadeiros líderes de combate, homens que possam conduzir-nos à batalha com esperança e propósito. Eu aceitei a tua decisão de nos deixares, já que não te podia obrigar a ficar. Mas lamento tê-lo feito. Posso pedir-te, uma última vez, que fiques até depois da caçada? Precisamos de ti, Thorvald, de ti e de Sam. — O governador acenou com a cabeça na direção de Sam. — Fica conosco. Vinga a tua amiga. Ajuda-nos a capturar Máscara-de-Raposa. Foi essa a razão, acredito, porque os deuses te enviaram às Ilhas Perdidas nas asas do vento de leste. Esta é que é, estou convencido, a tua demanda.
Ouviram-se gritos de novo, desta vez mais altos. Alguém colocou uma caneca na mão de Thorvald. O jovem teve a sensação curiosa de que já não controlava a sua vida, que uma força maligna assumira o controle e que fazia de propósito para o magoar e para lhe pôr as fraquezas a nu. Ele desejava, absolutamente, dizer sim, mas sabia que não podia.
— Eu não... — murmurou ele.
O olhar sombrio de Asgrim cruzou-se com o seu através da fogueira.
— Por favor, filho — disse o governador. — Faz isto por mim.
Thorvald sentiu o coração parar, ao mesmo tempo que cessava a respiração. Contra vontade, o jovem acenou levemente com a cabeça; era o suficiente. Só depois de os homens terem recomeçado a gritar, de tal modo que até o telhado vibrava, é que o batimento do seu coração voltou ao normal, ele voltou a respirar e olhou para Asgrim, perguntando a si próprio se aquilo não seria mais um truque cruel. O governador sorriu, um mero franzir dos lábios. Asgrim disse algo mais, mas Thorvald não percebeu porque estava envolvido num enorme abraço de urso de Skapti seguido de várias sapatadas violentas nos ombros e de uma série de murros amigáveis nos braços, maneira de agradecer daqueles homens todos. Wieland, de lábios cerrados, tinha lágrimas nos olhos. Hogni irradiava felicidade. Einar quis logo ali discutir um plano tático em que tinha estado a trabalhar. Orm queria beber com ele. E Skolli, parecia, tinha um presente: um presente que tinha exatamente para aquele momento.
— De todos nós — disse o ferreiro rudemente. — A lâmina foi feita por mim, claro; guardei um pedaço de metal para ela, melhor do que o habitual. Einar fez o punho; dente de narval. Knut cobriu-o, já que tem jeito para nós. Os rapazes fizeram o cordão, poliram-no, desenharam a bainha e tudo o mais. Espero que gostes. Uma espécie de agradecimento. Não precisavas de nos ajudar. Ter-te-ia dado na mesma, mesmo que te fosses embora. Mas é melhor assim. Podes usá-la na caçada. Pode ser que te dê sorte.
Pelos ossos de Odin, tinha lágrimas nos olhos. Que se passava com ele? A faca era perfeita; ajustava-se à sua mão como se fosse uma extensão do próprio braço, finamente equilibrada, elegante e estreita. O punho era quente, o osso branco-amarelado quase da cor da palma da mão. Até a bainha era uma maravilha, a pele gravada com um entrelaçado de vinhas e criaturas. Não sabia que havia homens tão habilidosos entre eles. Não podiam ter feito aquilo na última Primavera; um homem esgotado pela dor, um homem que acredita que não vale nada, não tem o espírito suficiente para criar coisas bonitas. Era verdade? Fora mesmo ele que os mudara?
— Obrigado — disse ele rudemente. — Vou usá-la com orgulho; vou liderar-vos ainda com mais orgulho. Sois ótimos combatentes e uns grandes amigos. E agora, alguém falou em cerveja?
O jovem permitiu a si próprio uma bebida, coisa que não fizera antes, mas manteve-se atento, porque um líder não se pode dar ao luxo de perder o controle das suas emoções. O jovem viu, uma vez, Sam a olhar para ele com uma expressão esquisita no rosto, mas decidiu ignorá-lo. Ele queria ficar, não queria? Bem, parecia que iam mesmo ficar, pelo menos até ao solstício de Verão. Portanto, Sam conseguira o que queria; não havia razão para olhar para ele daquela maneira tão desaprovadora. Quanto ao governador, Asgrim chamara-lhe filho. Provavelmente, era outro jogo, um jogo que podiam ambos jogar. Primeiro, comandaria a caçada e resgataria Máscara-de-Raposa. Depois, Asgrim descobriria que as regras tinham mudado.
Em Hrossey, numa praia virada para oeste, pouco depois do pôr do Sol, estavam três mulheres, muito calmamente, em redor de uma pequena fogueira. Uma era jovem, esguia, pálida. A sua expressão era distante e séria; os seus cabelos castanhos entrançados numa única trança, caíam-lhe pelas costas. Usava uma saia, uma longa túnica cinzenta e um pequeno saco de pele ao pescoço. Era Eanna, sacerdotisa dos mistérios, irmã de Creidhe. Tinha os olhos fechados e os braços abertos; o fumo da fogueira subia, retorcido, mostrando-lhe visões do passado, do presente e do possível futuro.
Margaret e Nessa esperavam. Procuravam respostas; restava saber se Eanna lhes podia dar. A mulher sábia, geralmente, não celebrava os rituais ali; a sacerdotisa morava sozinha no seu local secreto e se os Folk queriam saber a verdade, iam ao encontro dela. Mas Nessa, que era mãe de Eanna, estava grávida há muito tempo e a criança não podia ser posta em risco. O grande desejo de Nessa e de Eyvind por um filho era conhecido, se bem que não falassem dele abertamente. Mas não era tudo. Nessa era a última sacerdotisa dos Folk, a antiga raça das Ilhas Brilhantes. Se a chegada dos nórdicos não tivesse alterado a vida das ilhas para sempre, o filho de uma princesa assim seria o Rei, porque era assim que o determinava a lei dos Folk, pelo lado feminino. Mas já não havia reis nas Ilhas Brilhantes; mesmo assim, aquela criança seria o símbolo da sobrevivência da velha raça e da velha fé. Nessa deixara de andar a cavalo; também não viajava de carroça e o santuário de Eanna ficava muito longe. Assim, a mulher sábia viera até à praia, não muito longe da casa da família, e fizera as suas invocações enquanto o Sol se punha no mar. Tinham escolhido aquele local por uma razão. Nessa tinha medo da Tribo das Focas, a raça que vivia no mar e que lhe roubara o pequeno Kinart. Temia-os acima de tudo, enquanto o bebê crescia no seu ventre e lhe sentia os pontapés vigorosos contra as paredes do útero. Ela não sabia se a Tribo das Focas ficara apaziguada quando lhe levara o filho, se bem que quando a tinham ajudado, há longos anos, parecessem tê-lo feito de boa vontade, por amor às ilhas. Nessa temia pelo bebê e temia por Creidhe. Não lhe parecera, na ocasião, apropriado invocar ela própria os antepassados; Nessa sabia que não estava suficientemente afastada, psicologicamente, para ter a visão e deslindar o seu significado calma e friamente. A sua filha é que era a sacerdotisa. Eanna carregaria esse fardo por ela.
Margaret não parecia ter muita confiança em deuses, ou em espíritos ancestrais. Nas raras ocasiões que pedira a sua ajuda, achara o resultado tudo menos útil. Além disso, pensou ela, carrancuda, enquanto a mulher sábia erguia os braços lentamente na direção do céu violeta e acinzentado, suspeitava que teria cometido os mesmos erros na sua vida se tivesse tido fé, mesmo que Freya, ou Thor, ou um dos outros tivesse decidido tomar conta dos seus assuntos. Margaret sentia-se fadada para fazer tudo mal. Assim, a maior parte das vezes, limitava-se a cumprir as tarefas necessárias para levar a sua vida em frente: dirigir os campos, os celeiros e as vacarias, a casa e a horta; fiava e tecia, bordava, desenhava e fazia roupa. Antes, tinha Thorvald: ao mesmo tempo uma bênção e uma desgraça, o seu único filho, o filho de Somerled. Mas tinha-se ido embora e ela não conseguia perceber como era possível ele ter deixado tanto vazio, um buraco que falava de uma verdade que ela negara durante muito tempo: amava o seu filho, apesar do pai. Era dela, era bom rapaz, muito bom rapaz apesar dos seus defeitos. Tinha saudades de Creidhe, a sua rapariga dourada, a sua aprendiz luminosa; mas era a perda de Thorvald que mais lhe custava. Assim, fora com Nessa, não só para apoiar a amiga, mas também por saber que notícias de Creidhe eram, também, notícias de Thorvald.
Fora da vista, para lá de uma pequena elevação, Ash e Eyvind esperavam para as acompanharem a casa. Os rituais da mulher sábia não eram para homens, se bem que havia muito tempo, tanto que agora parecia uma nova vida, Eyvind tivesse estado perto, quando Nessa e a velha sacerdotisa, Rona lhe tinham concedido abrigo. Naquela manhã, Ash parecera cansado. Margaret suspeitou que ele não dormira. Talvez tivesse sido ela a mantê-lo acordado, pela maneira como andou de um lado para o outro durante a noite, atormentada pelas recordações. Havia uma solução, uma solução simples; durante aqueles últimos tempos sombrios, sentira-se atraída para ele com uma urgência que nunca sentira antes, nem sequer nos seus primeiros tempos de viuvez, quando era pouco mais do que uma rapariga. Pensava na carne, nos desejos do corpo, em secar e morrer, privada depois de tanto tempo. Tinha trinta e seis anos, certamente demasiado velha para ter uma paixão, certamente demasiado tarde para ser consolada com facilidade por mãos gentis e pelo corpo duro e ardente de um homem. No entanto, o desejo estava presente e ela parecia ter cada vez mais dificuldade em o abafar. Mulher estúpida, dizia a si própria, mulher louca, com um filho crescido, uma casa para governar e um corpo que se recusava a admitir que era demasiado tarde para mudar. Se nunca dormira com Ash naqueles dezoito anos que levavam de vida em comum na mesma casa, por que o haveria de fazer agora? A resposta veio-lhe instantaneamente, sem ser convidada. Porque, após dezoito anos, ele continua presente e ainda te ama.
Eanna estava a emergir do transe, fazendo pequenos gestos com as mãos e os braços para acordar o corpo, cantando em surdina uma melodia. Nessa estava sentada nas rochas, já que se cansava, agora, com facilidade devido ao tamanho do bebê e ao fato de ter sido sempre uma pessoa frágil. Os olhos de Eanna abriram-se: cinzentos, grandes, cegos por um momento enquanto mudava da visão do espírito para a visão do corpo. A jovem pestanejou e inclinou a cabeça. Então, endireitando as costas, deixou-se cair de pernas cruzadas junto da pequena fogueira e Margaret passou-lhe uma malga de água. Ninguém lhe perguntou: Que viste? A resposta viria a seu devido tempo. Eanna bebeu muito, estremecendo ao mesmo tempo e tossiu para aclarar a voz. Não é simples regressar de um transe profundo; esgota o corpo e entorpece a vontade.
— Foi confuso — disse-lhes ela, finalmente. — Muitas imagens pequenas, desordenadas. Inclino-me mais para o passado recente do que para o que está para vir: Creidhe com uma criança nos joelhos e umas cores, umas cores maravilhosas, como se todos os tons das quatro estações se agitassem e mudassem à sua volta, passando. Um homem aos pés dela. Não era Thorvald, nem Sam, antes outro, de olhar selvagem, se bem que estivesse quieto, sentado. Estavam ambos sós; o mar, o céu e a magia separavam-nos do mundo dos homens. — Eanna fez uma pausa; não diria tudo, nem sequer à sua própria mãe. Era necessário pensar nas conseqüências de partilhar uma visão na sua totalidade. Uma vidente carrega um fardo pesado.
— Creidhe estava bem? Parecia feliz? — perguntou Nessa, trêmula.
— Bastante bem. Parecia cansada, mas não descontente. Mais magra. A criança era estranha, uma criatura parecida com uma ave. — Nessa acenou com a cabeça.
— Eu também já vi essa imagem.
Margaret não disse nada; não perguntaria nada. Esperou com as mãos apertadas uma contra a outra.
— Não vi nada acerca de Sam — disse Eanna. — Vi Thorvald, numa falésia à noite, a chorar. E um homem de cabelos brancos, vestido como um sacerdote cristão. Escuridão e luz, uma ligação qualquer... morte e vida em equilíbrio. Vi homens armados e sangue derramado.
— Nenhum sinal, nada que nos diga que vêm para casa? — perguntou Nessa. — Não que eu espere respostas precisas; celebrei este rito vezes suficientes para saber que as imagens não são fáceis de interpretar.
— Gente a cantar durante o nascimento de uma criança — disse-lhes Eanna num sussurro. — Não um som alegre, antes um som de partir o coração, um lamento que não era deste mundo. E a voz de Creidhe, desafiadora, plena de coragem. E lágrimas. É tudo o que vos posso dizer. Senti a presença de Creidhe com muita força. Eu sei que ela não foi treinada nas artes de uma mulher sábia, mas pareceu-me que ela estava a tentar comunicar comigo, a tentar dizer-me qualquer coisa. Talvez que nos ama e que nos tem no seu coração. Talvez só isso.
Nessa acenou com a cabeça moderadamente, pondo-se de pé e reclinando-se ligeiramente para agradecer; apesar de ser sua filha, o respeito devido a uma mulher sábia devia ser demonstrado.
— Obrigada — disse ela. Nessa não choraria. As notícias tinham sido boas e más; ponderaria nelas durante algum tempo e esperaria que o coração lhe dissesse qualquer coisa.
— Obrigada — disse Margaret, pensando que nunca vira o seu filho chorar, nem sequer em criança. Parecia-lhe que aquelas notícias escassas só lhe faziam doer ainda mais o coração; e preferia que não lhe doesse de todo. Eanna passou a noite com a família. De manhã regressou ao santuário, uma minúscula cabana de pedra nos montes, construída numa faixa de terra onde um salgueiro inclinado pelo vento crescia junto de um aglomerado rochoso parecido com uma velha. Junto da porta passava lentamente um ribeiro; a lareira, no interior de umas pedras lisas, dava para um vale vestido de verde e, mais abaixo, para um lago circular, cintilante. Eanna acendeu o fogo e sentou-se por alguns momentos sob a abóbada do céu de Verão. A mãe dera-lhe provisões; pão, vegetais frescos, um queijo de ovelha e um saco de feijões. O pequeno gato de Eanna estava zangado por ela ter passado a noite fora de casa. Algo apaziguado por uma fatia de queijo, sentou-se nas rochas perto dela como uma sombra, lambendo os beiços. Margaret dera à jovem sacerdotisa uma capa quente feita por ela, cinzenta com uma estreita orla azul e pequenos cães e flores bordados.
Eanna pensou na sua visão. Dissera-lhes exatamente o que vira; não se podia falsificar a sabedoria dos antepassados. Por outro lado, não falara de algumas partes. Tinha de pensar na saúde da mãe; Nessa tinha de dar à luz aquele filho e, mesmo depois, havia algum risco, porque já tinha ultrapassado a idade ideal. Era importante que Creidhe estivesse de volta a tempo. Eanna podia dizer as preces de que ambos necessitavam, celebrar o ritual adequado à ocasião. Podia pedir a ajuda dos antepassados. Mas, chegada a hora, o que era necessário era um par de mãos fortes e experientes e uma voz calma e confiante para dominar a situação. As mãos de Creidhe, a voz de Creidhe. Mas se chegaria a tempo, ou se regressaria de todo, Eanna não sabia. Sabia, apenas, que o jovem que vira, sentado junto dos joelhos da irmã, como se também ele fosse uma criança em transe devido a uma história na hora de ir para a cama, tinha um olhar estranho, um olhar que lhe dizia qualquer coisa, qualquer coisa relacionada com as suas histórias de criança. As longas mãos ossudas, a palidez, os estranhos olhos profundos, que pareciam refletir o mistério líquido do oceano: não eram aquelas as marcas da Tribo das Focas?
CAPÍTULO NOVE
Reconhecimento.
Expiação.
NOTA À MARGEM DE UM MONGE
— Não te afastes de mim — avisou-a Guardião enquanto desciam a íngreme encosta na direção da enseada. — Não deves vir aqui sozinha, pelo menos até ao fim da caçada. Não é seguro.
— Mas tu disseste — começou Creidhe, utilizando mãos e pés para poder acompanhar o passo longo dele.
— Não é por causa deles. Eu protejo-te. É por causa das armadilhas que foram colocadas aqui para o inimigo. Não tens tempo para saber onde estão todas. Depois da caçada, são desmanteladas; na próxima estação, armadilhas novas, para que o inimigo não se possa lembrar. Eu mostro-te.
E mostrou, enquanto Pequenino, aparentemente consciente dos súbitos perigos e sabendo como se manter afastado, vagueava na sua forma de cão, farejando os arbustos e as pedras, correndo atrás das aves e comportando-se exatamente como um pequeno cão tirando partido de uma saída num dia de Verão. Creidhe ainda não tivera oportunidade de ver a transformação; a jovem supunha que, eventualmente, se habituaria àquela mudança de uma forma para outra. Havia ali um prodígio que ela nunca tinha experimentado e desejou que a sua irmã Eanna o pudesse ver. Eanna, sendo sacerdotisa, talvez soubesse a resposta.
O tempo estava pouco quente; o vento de oeste chicoteava o mar e fazia flutuar os longos cabelos de Creidhe. Apesar de tudo, o Sol mostrou-se, erguendo-se bem alto para lhes recordar que estavam próximos do solstício do Verão e da caçada.
Armadilhas. Tantas armadilhas, engenhosas, inteligentes, cruéis; a jovem não imaginava que aquela paisagem despida pudesse esconder tantas ciladas para os incautos. Creidhe abençoou os antepassados por a terem depositado ali inconsciente, de modo a não ter tentado atravessar a praia e subido o monte em busca de um abrigo, de uma gruta, de um buraco qualquer. Porque a verdade era que não havia segurança em lado nenhum, salvo nos lugares exatos por onde Guardião a conduzia. Havia buracos semeados com ossos afiados; súbitas saliências que pareciam seguras, mas que eram mantidas escorregadias com uma camada de uma substância que cheirava a peixe; cordas suspensas de longas cordas, que um passo incauto num determinado ponto libertavam e que atingiam a vítima indefesa, esmagando-lhe o crânio. Não tinha a certeza de como aquilo funcionava e nem perguntou. Guardião levou-a até um local onde nidificavam os papagaios-do-mar, para lhe mostrar a vista da grande ilhota, a oeste. As vagas, ali, batiam com força: para lá do ilhéu só a visão da margem mais longínqua do mundo. Desceram na direção da encosta rochosa perto da baía estreita. Alguns túneis perfuravam o terreno que pisavam, uma rede de passagens sombrias, algumas naturais, outras transformadas pelo trabalho do homem. Não viram sinais da outra tribo nem das suas vagabundagens.
— Há muitas passagens subterrâneas — disse-lhe Guardião muito sério — algumas seguras, outras perigosas. Esta, onde estamos agora — disse ele, apontando para uma abertura entre as rochas, suficientemente grande para admitir um homem — vai dar a uma gruta onde se podem esconder três guerreiros. Na maré baixa pode-se sair pelo outro lado, permitindo a retirada e o reagrupamento. No ano passado, eles souberam disso e fizeram uso dela.
— E desta vez? — Daquela vez ia ser diferente; o seu maxilar cerrado dizia-o claramente.
— Desta vez, quando o último homem entrar, a rocha vai mudar de posição; pode ser feito por meio de um ajustamento, uma alavanca, que é acionada de cima. Vão ficar presos lá dentro. Vão encontrar a entrada de baixo mais estreita, suficiente, apenas, para um coelho, ou uma gaivota. Mas, é claro, permite que a maré entre.
— Estou a ver — disse Creidhe, estremecendo. O olhar de Guardião era frio; era evidente que aquilo, para ele, era uma rotina. Em que mundo fora cair?
— Há mais — disse Guardião. — Lá em cima, na montanha, por trás da cascata, ao longo das falésias. No carreiro que percorremos para descer até aqui, há muitos lugares onde o chão cede por baixo de um pé descuidado; na praia, existem muitos locais onde as rochas e o mar se fecham sobre um homem; na encosta, carreiros que não vão dar a parte nenhuma, caminhos onde a menor bruma tapa qualquer saída. Eles são loucos ao virem aqui. Não se pode vencer a Ilha das Nuvens.
— E os outros? E...?
— Tenho mais para te mostrar — disse ele, pegando-lhe na mão. O jovem estava a olhar para os rochedos escarpados que coroavam a ilha. — Quando vires, percebes que, aqui, estás segura, tu e Pequenino. Ainda há dúvidas nos teus olhos, Creidhe. Não devias duvidar de mim. Eu cumpro as minhas promessas.
Subiram por um declive acima, abrandando Guardião o passo para que Creidhe o pudesse acompanhar. A jovem ainda não tinha recuperado totalmente da doença e do que se lhe seguira; doíam-lhe as pernas.
— Guardião?
— O que é? Queres descansar?
— Não, posso continuar. Estava a pensar. Tu tens algum barco? Para pescar, talvez? Deixas alguma vez esta ilha?
Ele sorriu; não havia alegria naquele sorriso. O seu olhar era gelado.
— Não preciso de um barco para pescar — disse ele. — Mas tenho barcos. Não os tenho aqui, à vista. São pouco utilizados. Eu não posso deixar a ilha.
— Por causa dele? — Creidhe olhou para Pequenino, escavando a terra junto de um arbusto rasteiro, perseguindo um animal qualquer. — Não há mais nenhum lugar seguro para ele? As ilhas do norte? Ou outro lugar qualquer, como, por exemplo, as minhas ilhas? Isto é tão... tão isolado; pareces tão só.
— Tu estás aqui, agora.
— Sim, mas... — A jovem não terminou a frase. Dizer Eu não vou estar aqui para sempre seria tentar o destino. Podia dizer Eu só vou estar aqui até Thorvald me vir buscar. Mas isso era, provavelmente, falso. Thorvald devia estar, conhecia-o bem, metido num ambicioso esquema qualquer e, se calhar, já não se lembrava dela. Sam, talvez; Sam não se esqueceria.
— Não posso levá-lo. — Guardião parara com os olhos fixos nela, com uma voz quase zangada. — Não há nenhum lugar seguro para ele. Só aqui. Toda a gente o quer. O povo de Asgrim, para que possam negociar e conseguir a paz. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz por causa do que ele é. Os irmãos, os cristãos, são os únicos que se mantêm à parte, os únicos que tentaram opor-se a Asgrim. Mas não têm poder nenhum. O único refúgio é aqui. Ficamos aqui, o meu irmão e eu.
— Para sempre?
— Para sempre. Foi essa a minha promessa.
Guardião conduziu-a a uma rede de grutas e fendas na parte norte, no outro lado do monte, onde só havia falésias escarpadas e aves de bicos afiados, um lugar escondido que nenhum invasor seria capaz de descobrir, já que a sua entrada era muito perigosa e muito periférica. A descida até à entrada deixou-a aterrorizada, mas não disse que não. Guardião conduziu-a pela mão, os seus pés ágeis e seguros na superfície rochosa escorregadia, abrindo o caminho. No interior estava escuro, mas não tanto que não conseguisse ver o que estava armazenado em numerosas prateleiras talhadas nas paredes daquela caverna estreita e sombria. Havia ali armas suficientes para um exército, se bem que um pouco diferentes das que o seu pai e os seus homens utilizavam nas Ilhas Brilhantes. Havia muitas lanças pequenas, de arremesso, com pontas aparentemente feitas de osso, habilidosamente entrançadas e atadas, decoradas com tufos de penas. Havia setas do mesmo material e também de pinho, que ele devia ter resgatado do mar. Os arcos, pensou ela, deviam ser do povo dos Facas Longas porque lhe pareceram familiares, de madeira boa, sem dúvida um presente do mar, já que as árvores, praticamente, não existiam naquelas ilhas varridas pelo vento. As facas estavam alinhadas numa prateleira de madeira presa por cordas; todas tinham punhos de pele, de lã ou de outro material qualquer e quando Guardião tirou uma para a mostrar, ela viu brilhar a lâmina de ferro, sem um único vestígio de ferrugem.
O seu pai teria ficado impressionado; a manutenção cuidadosa das armas era uma coisa a que ele dava valor. Não havia ali machados. Como filha de um Pele-de-Lobo, Creidhe percebeu que a maior parte daquele arsenal era constituído por armas de lançamento a curta distância. A jovem não viu qualquer espada, escudo, ou grandes lanças de arremesso.
— Já só há poucas — disse Guardião, testando o fio com o dedo. Surgiu, imediatamente uma gota de sangue. — Tirei a maior parte daqui, já que a caçada se aproxima. É necessário te-las suficientes aqui e ali, porque os homens de Asgrim podem atacar de diversos lados. Lanças, dardos, pedras. Não posso trazê-las quando os homens já estão na ilha.
— Estou a ver — disse Creidhe após uns momentos. — O que é aquilo? — A jovem reparara noutro tipo de arma de arremesso, algo parecido com uma seta mais comprida, farpada e com a ponta de osso algo descolorida. Creidhe estendeu o braço para indicar a arma, mas Guardião agarrou-lhe no braço, puxando-o para trás. O coração começou a bater com toda a força. A jovem percebeu que ele tinha força suficiente para lhe arrancar o braço.
— Não! — disse ele. — Um só toque e podes morrer. Desculpa. Magoei-te. Eu mostro-te. — O jovem abrandou o aperto e segurou-a pelo pulso. A palma da mão dele estava cheia de calos e os dedos eram rugosos, mas o toque era suave. — Estás ferida?
— Não — murmurou ela com o coração bater com toda a força.
— Veneno. Assustaste-me.
— Não estou ferida. Seria uma estupidez tocar nelas. Guardião, tu tens aqui armas suficientes para um exército inteiro. — Havia outra pergunta lógica a seguir, mas não foi a que ela fez. — Onde está Pequenino?
— Ele não entra aqui. Tem medo do ferro.
— Oh. — Ela olhou para os estranhos olhos dele, uns olhos onde era possível vislumbrar as profundezas insondáveis do oceano. Estava escuro dentro da gruta, mas os olhos dele brilhavam. Pareciam ter luz própria, instável e perigosa. — E tu? Tu és irmão dele; parente, pelo menos. O ferro não te deixa, também, pouco à vontade?
Ele continuava a segurar-lhe na mão com dedos quentes e fortes. O senso comum dizia a Creidhe que devia ter medo, e ela tinha, mas não dele.
— Mentiria se dissesse que não. O meu sangue retrai-se quando estou perto deste metal. Mas eu chamo-me Guardião, sou guerreiro e sou protetor. Sobrevivi cinco vezes à caçada; tenho sido fiel ao meu voto. Não me posso dar ao luxo de ter medo, porque Asgrim perceberia e exploraria a minha fraqueza. Assim, uso as armas que eles deixam para trás. Aprendi por mim próprio a manejá-las, a lançá-las como se não tivesse medo.
— Custa-me a acreditar que Asgrim seja teu pai.
— Também a mim. Mas é verdade. Sou filho dele, assim como Sula. Seria bom que um homem assim não casasse nem engendrasse filhos. Eu vou matá-lo. Este Verão, no próximo ou no outro. Hei de matá-lo pelo que fez.
Creidhe sentiu-se gelada. A voz dele era sem expressão, como se aquilo fosse inevitável.
— Gostava de regressar — disse ela em voz baixa. — Estou a ficar cansada.
— Vamos. — Guardião virou-se, segurando-lhe ainda na mão. — Por aqui, ao longo desta beira. Aguenta-te; olha para cima, não olhes para baixo. Vamos para a cabana para descansares. Foi uma caminhada muito grande para ti.
— Eu sinto-me bem. — Mas não sentia; e ainda ficou pior quando percorreram uma estreita passagem nas rochas; ela sabia que ele não a deixaria cair, mas Guardião apontou para cima e ela viu os crânios. A jovem ficou a olhar e pestanejou; continuavam lá. Apesar das centenas de aves apinhadas na face norte da falésia, lutando por espaço, ali não se via uma gaivota, uma cria no ninho, uma mãe a alimentar os filhos com peixe suculento no bico. No entanto, havia ali muito espaço: seguro, nichos profundos e fendas oferecendo abrigo. Mas não havia espaço para as aves. Cada espaço, cada recanto, cada fenda, estava ocupada com um crânio limpo e sem olhos de um homem. Em filas, aos dois e três, aqui um isolado, ali dois encostados um ao outro. Alguns eram velhos, a desfazerem-se, sem dentes; outros eram mais novos, com tufos de cabelo e pedaços de pele agarrados ao osso nu. Um tinha um capuz de pele com orelheiras, se bem que não houvesse nada para cobrir. Muitos tinham sinais de ferimentos: uma fenda entre os olhos, um queixo esmagado, maxilares que não se ajustavam. Creidhe ficou imóvel na beira, petrificada. Eram tantos, demasiados, para os poder contar. Tinham sido todos colocados ali, olhando de órbitas vazias para o mar. Troféus. Indicadores. Um testamento dos anos de sobrevivência.
— Creio que vou vomitar — disse ela, fechando os olhos. Colocados ali um a um, ano após ano, caçada após caçada. Colocados ali por um homem que passava pelas armadilhas com passo tão seguro como um animal, instintivamente; que atravessava as falésias e entrava nas grutas com tanta facilidade como um ser qualquer das histórias, pouco humano. Que caçada era aquela, exatamente?
— Vem. — A voz de Guardião era firme, gentil. — Não vomites; abre os olhos e segue-me. Eu tenho-te segura; não vais cair. A cabana é já ali em cima.
E, evidentemente, não vomitou e não caiu porque ele era Guardião e se ele dizia que a protegia, ela sabia que era verdade. A jovem também sabia, com um sentimento estranho na boca do estômago, que estava cheia de medo. De quê, exatamente, não sabia; parecia tolice chamar-lhe fatalidade, destino, morte, no entanto, eram essas as palavras que tinha na cabeça. Quando chegaram ao abrigo, Pequenino estava lá, sentado à lareira, uma criança envolta num cobertor coçado, oscilando para trás e para a frente, gemendo tão suavemente que mal se podia ouvir.
— Descansa — disse Guardião. — Deita-te; exigi demasiado de ti. Queria mostrar-te... esqueci-me que é... estamos aqui há muito tempo...
— Não peças desculpa. Foi melhor assim. — Creidhe sentou-se ao pé da criança; estava cheia de frio e embrulhou-se no seu cobertor. — Guardião?
— Hum? — Ele estava a acender a lareira e a pôr água ao lume. Ela tentou imaginar onde teria ele encontrado o recipiente e os outros apetrechos de cozinha. Presentes do mar? Mais troféus da caçada?
— Não há mais ninguém nesta ilha, pois não? Só tu e... Máscara-de-Raposa.
Ele pestanejou e cerrou os lábios.
— Não pronuncies esse nome — O tom da sua voz era frio.
— Muito bem. Mas é verdade, não é? Não há outra tribo; tudo, a caçada, todos os anos, é só tu, um homem, sozinho, contra eles.
— Eu sou Guardião. — Aquela declaração simples, verdadeira, dita sem ênfase, era de cortar a respiração na sua coragem.
— Por todos os antepassados — disse Creidhe — um homem, sozinho contra tantos. É... é terrível. Parece uma lenda, uma história antiga, demasiado estranha para que acreditemos nela. No entanto, é verdade. Eu vi-os, eu vi os homens que tu mataste. Tenho de acreditar.
— Desaprovas? Eu ajo de acordo com uma promessa solene. Tenho de proteger o meu irmão.
— Sim, mas... — Tinha dificuldade em compreender, se bem que desconfiasse há algum tempo, antes já de ele a ter levado àquela gruta secreta e de lhe ter mostrado o arsenal e a parede de rostos mortos. O homem que fizera aquilo era o mesmo que segurava na criança com mãos tão gentis como as de uma mãe, o mesmo que lhe fizera o vestuário enquanto ela estava a dormir, que escutara, arrebatado, a sua história. Aquele homem matara e voltara a matar, ano após ano. Roubara os filhos, os irmãos e os pais ao povo dos Facas Longas.
A jovem sentiu uma leve pressão no flanco; a criança tinha-se encostado a ela, tinha metido o dedo na boca e tinha os olhos quase a fecharem-se. Ingigerd deixara de chuchar no dedo aos dois anos e meio, tendo-se apercebido de que havia coisas mais interessantes a fazer durante o dia.
— Preciso de te perguntar uma coisa — disse Creidhe — de que, provavelmente, não vais gostar.
— Continua. — Os olhos de Guardião estavam desconfiados
— Eu sei que ele é teu parente: filho de Sula. Sei que deve ter sido muito cruel para ela e compreendo que isso te deve ter deixado furioso. Devias ser muito novo quando o raptaste: doze, treze anos?
Ele inclinou a cabeça.
— Novo, sim. Ainda não era homem.
— Foi um ato de homem, o que fizeste, e dou-te os parabéns pela tua coragem; poucos o teriam conseguido. Mas, quando olho para ele, não vejo um rapazinho como os das minhas ilhas, alegres, ativos, felizes. Parece-me... profundamente triste. Está muito magro e assusta-se com facilidade. Nesta ilha, ele leva uma vida muito solitária, apesar da tua companhia. Por favor, não fiques ofendido, sei muito bem que te tens sacrificado por ele. Na verdade, toda a tua existência gira em volta dele, da sua preservação. Mas esta criança não é normal. Não pertence, apenas, à tua linhagem, à linhagem de Asgrim, pertence também aos outros. Seja o que for que pensemos do que a tua irmã sofreu às mãos deles, uma coisa bárbara, esta é a criança d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Esta criança é Máscara-de-Raposa. Já perguntaste a ti próprio se não teria sido melhor para ele tê-lo deixado onde estava?
Guardião olhou para ela do outro lado da fogueira; os seus olhos pareciam, agora, muito escuros, as suas pálidas feições uma máscara de choque e de dor. Creidhe sentiu-se mais pequena perante aquele olhar: era como se ele a tivesse perfurado com uma daquelas lanças envenenadas, mas continuou.
— Para Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, Máscara-de-Raposa é um vidente, um homem sábio, venerado, respeitado. Entre eles, teria um lugar especial; seria amado e protegido. Não estaria melhor com eles do que aqui? Além disso, se nós regressássemos, haveria paz. Não haveria mais necessidade de armadilhas, de lanças. Não haveria mais mortes. As mulheres do povo dos Facas Longas poderiam ver os seus filhos crescer e desenvolverem-se. Se o devolvesses, ele seria feliz. E tu ficarias livre.
A jovem esperou, pensando que Guardião não responderia, de tal modo a sua expressão era de sofrimento. A criança tinha-se encostado ainda mais e estava quase a adormecer; ela encostou-o ao seu joelho, embalando-o. Era tão leve, parecia um gato, um pequeno pássaro, um pequeno conjunto de pele e ossos. Os seus cabelos pareciam um ninho, emaranhados e sujos. Ela pensou se conseguiria penteá-los.
Guardião ficou por alguns momentos a olhar para ela, silencioso. Creidhe não lamentava ter falado; aquilo precisava de ser dito. Mas lamentava tê-lo magoado. A criança era o propósito da sua vida. Ela era, provavelmente, o primeiro estranho a pôr os pés na ilha fora da época da caçada e ele não tinha razões para confiar nela. No entanto, dera-lhe asilo. Agora, as suas palavras tinham-no ferido mortalmente.
Guardião inclinou-se para o fogo. Acrescentou-lhe combustível, deitou água quente numa tigela, acrescentou-lhe água fria de um balde que tinha junto de si e olhou para ela.
— Estás com frio — disse ele. — Deixei-te exausta. Talvez queiras lavar-te, aquecer-te... Eu já me esqueci dessas coisas, passou-se tanto tempo... Creio que te ofendemos, eu e o meu irmão... Somos sujos, desleixados...
Creidhe esboçou um sorriso.
— Não me ofendeste, de maneira nenhuma. Simplesmente, deixas-me espantada, perplexa. Não sei que pensar de ti. Lamento muito se te aborreci, tenho o maior respeito pelo modo como tens olhado pela criança. Só que... este lugar é tão remoto e... não interessa. Não tenho nada com isso. Tenho a mania de interferir na vida das outras pessoas. Thorvald diz que eu sou uma intrometida. — Creidhe ouvia-se a si própria a tagarelar como uma criança nervosa. — E sim, gostava muito de me lavar, estou habituada a fazer isso todos os dias. E gostava de fazer algo aos cabelos do teu irmão, penteá-los, talvez cortá-los, mas só se não te importares.
— Faz o que quiseres, desde que ele não se assuste. Cometi muitos erros. Não sabia como educar uma criança; tudo o que fiz foi tentar aprender por mim próprio. Agora vou pescar enquanto tu te lavas. Ainda não perdi as boas maneiras todas. — O seu tom de voz mudou, ficou mais sombrio. — Creidhe?
— Sim?
— Mostras-nos outra vez o teu trabalho, esta noite? Contas mais? — O seu olhar era, agora, diferente; havia uma fome nele que provocou nela um arrepio, um arrepio que não era de medo, algo inteiramente diferente, um sentimento arrebatado, perigoso, novo.
— Mostro, se quiseres.
— Obrigado. E eu também te digo. Digo-te por que razão o meu irmão não pode voltar, por que razão seria ainda mais cruel para ele do que o exílio aqui, entre os papagaios-do-mar e as focas. Mas não já; por favor, lava-te e descansa. Logo à noite, quando ele estiver a dormir.
Enquanto a criança dormia à lareira, Creidhe despiu-se, lavou-se o melhor que pôde com a pequena quantidade de água que Guardião lhe dera e voltou a vestir-se. Não havia sinal das suas roupas originais e a jovem deduziu que tinham ficado demasiado estragadas para ser salvas. Guardadas noutra gruta qualquer, suspeitava, devia haver outras túnicas, calças, capas e botas, tiradas aos proprietários daqueles crânios de órbitas vazias, na face da falésia. De que outro modo poderia ele ter-lhe feito aquelas roupas e as da criança, além das suas enquanto crescia, transformando-se num homem? Tinha, por isso, de lhe pedir outro favor. Não podia usar indefinidamente a mesma roupa, nem sequer numa ilha no fim do mundo apenas com três habitantes.
Desejava ter um pedaço de sabão; o que trouxera de casa desaparecera há muito e não metera nenhum no saco quando deixara o Fiorde do Conselho. Apesar disso, sentia-se melhor. O seu cabelo, pelo menos, estava mais limpo, se bem que todo emaranhado. Creidhe sentiu-se tentada a tirar a tesoura e a cortá-lo curto, mas decidiu, em vez disso, pentear as longas madeixas e entrançá-las. Depois de uma visita à privada, um buraco alarmante nas rochas que dava diretamente para o mar, Creidhe sentou-se com o pente na mão e iniciou o longo e cansativo trabalho de devolver alguma ordem aos seus cabelos. A jovem olhou de relance para a criança adormecida. Não sabia por onde começar com ele, mas certamente que uma lavagem ao rosto não o assustaria demasiado. Tentaria quando ele acordasse.
Creidhe observara Guardião a caminho da pesca, uma silhueta alta, esbelta, no seu traje coçado, esvoaçante, caminhando com grandes passadas pela encosta nua e ventosa, a caminho da costa ocidental da ilha. O jovem parecia passar como uma sombra pela paisagem, pisando o solo com tanta leveza que não deixava quaisquer pegadas. Tão novo: nem sequer era mais velho do que Thorvald, que parecia, tantas vezes, um rapazinho. Que vida para um rapaz. Tantas oportunidades perdidas, para ele e para Pequenino., que parecia mais um frágil proscrito do que um visionário. Que futuro para eles? No entanto, Guardião era forte. Não precisava de piedade. O jovem tinha um ânimo inquebrável; talvez fosse suficientemente forte para tomar conta do seu pequeno parente. Guardião via a morte com ligeireza; no meio do sangue e do terror, ainda arranjava tempo para alguma ternura, fazia de pai e de mãe, de irmão e de amigo. Creidhe achou, enquanto arrastava o pente pelos cabelos emaranhados, que aquela história só poderia acabar mal. Porque, o que quer que ela quisesse, ou apesar do que quer que Guardião quisesse, os homens de Asgrim atacariam. Tão certo como o Sol se seguir à Lua no céu, tão certo como o Verão se seguir à Primavera, a caçada regressaria e o sangue voltaria a ser derramado na praia solitária da Ilha das Nuvens. Desejar que não atacassem era desejar a morte dos filhos da tribo de Asgrim, desejar que mães jovens, como Jofrid, tivessem ainda mais desgostos.
No fim de contas, teria de utilizar a tesoura: alguns nós recusavam-se a ceder. Creidhe cortou aqui e ali e atirou as sobras para o fogo. O resto estava mais ou menos. Não podia fazer melhor; os dias em que lavava os cabelos com sabão e os enxaguava com camomila eram coisa do passado. A jovem entrançou-o e atou-o com dois pedaços torcidos de lã. Nos cobertores, Pequenino continuava a dormir, enroscado e com uma mão na face. Creidhe tentou imaginá-lo em Hrossey com a sua família, sentado nos joelhos de Brona e brincando com um cordel, ou correndo atrás de Ingigerd enquanto esta atravessava o pátio para ir ver as cabras ao redil. Imaginou-o às cavalitas de Eyvind, ou ao colo de Nessa. Mas não era ele; a criança que aparecia nos seus pensamentos era outra, um rapaz robusto de cabelos claros cujos olhos brilhantes e sorriso doce diziam que era da sua raça, não o Kinart que se tinha perdido, mas um outro como ele: o seu irmão, o irmão que não tinha. Pequenino, pensou ela, só tinha Guardião como família; talvez não precisasse de mais ninguém. Apesar disso, era tão vulnerável como um pintainho no ninho e ela temia por ele. Na sua forma humana, parecia não ter quaisquer capacidades.
Guardião dissera-lhe para descansar. A jovem percebeu que não queria dormir; passavam-lhe pela mente imagens sombrias, logo abaixo da superfície e ela não lhes abriria a porta provocada pelo sono. Assim, desenrolou a Jornada, pegou na agulha e começou a bordar.
Mais tarde, quando a criança acordou, falou com ela em voz baixa, mostrou-lhe a água e o pedaço de tecido e fez o gesto de quem lava a cara. Os seus grandes olhos observavam-na, muito sérios. Estava muito mais sujo do que Guardião. Talvez o jovem guerreiro nadasse no mar. Creidhe mergulhou o tecido na água previamente aquecida, espremeu-o e passou-o pelo rosto da criança.
— Menino lindo — murmurou ela. — Vais sentir-te muito melhor; eu sinto-me, pelo menos. — Parecia uma tolice; que importância tinha aquele pequeno ritual doméstico naquele lugar selvagem e remoto? — Muito bem. Agora, as orelhas... — Ele era tão pequeno; Creidhe sentiu-se de novo maravilhada com o rosto estranho, triangular; o pescoço, parecido com o caule de uma planta ainda jovem; as mãos de dedos longos com as unhas sujas e quebradas; mãos que eram uma miniatura das de Guardião. Os olhos também eram iguais, verdes-escuros e fluidos, como a luz através da água. — Pronto, assim está melhor. Agora, vou tentar pentear-te o cabelo. — A jovem mostrou-lhe o pente, passando-o pela ponta da sua trança. — Vês? O meu está preso, fi-lo enquanto estavas a dormir. Senta-te aqui na minha frente para eu ver o que posso fazer. Pode ser que doa um bocadinho. Diz-me, se isso acontecer, que eu paro logo.
Devia doer consideravelmente; aquele cabelo não devia ver um pente desde, provavelmente, o primeiro ano de vida de Pequenino. Creidhe apetecia-lhe cortar os nós e as madeixas retorcidas e a porcaria agarrada, palha, penas, gravetos, deixando-lhe o crânio livre para lhe poder lavar. Mas não era possível; sem a tesoura de ferro, a única maneira era continuar a penteá-lo lenta e meticulosamente. A jovem suspirou e começou e, para distrair a criança, ia cantando enquanto trabalhava. A sua irmã Ingigerd adorava canções; agora, conhecia muitas e juntava-se entusiasticamente a Creidhe e Brona quando estas atingiam o refrão. Creidhe cantou uma sobre um pescador que apanhou um bacalhau tão grande que quase lhe fez virar o barco no regresso a casa. Cantou uma sobre a Tribo Perdida, das Ilhas Brilhantes, e sobre a importância de deixar no exterior da casa leite e bolos em certas noites do ano, para que eles não pregassem partidas. Cantou uma sobre o Sol e a Lua e por que razão seguiam um atrás do outro no céu. No fim desta última já tinha conseguido desembaraçar uma pequena seção do cabelo da criança, transformando-a em madeixas sedosas. O jovem permanecera sempre imóvel, submetendo-se silenciosamente ao cerimonial. Não fora possível evitar os puxões; a jovem pensava por que razão o estava a submeter àquilo. Quem queria saber se ele andava sujo e desleixado senão ela?
— Chega por hoje — disse ela gentilmente, pousando-lhe uma mão no ombro. — És um lindo menino; se fosse a minha irmã, estaria a gritar e a queixar-se. Ela tem mais ou menos a tua idade, mas é maior do que tu e tem cabelos longos e dourados como os meus. Compreendes o que eu estou a dizer, Pequenino?
Ele olhou para ela com aqueles olhos muito grandes, consciente, pelo menos, de que ela estava a falar com ele.
— Eu quero ajudar-te, se puder. Posso ensinar-te canções, histórias. E outras coisas, também. Números. Jogos. Muitas coisas, se quiseres. — Quem sabia quanto tempo estaria ali? Certamente que tudo o que pudesse ajudar aquela criança abandonada a tornar-se uma criança normal seria bom. Era evidente que não poderia ajudar Guardião nas outras atividades, mas aquilo, pelo menos, podia fazer.
A mão de Pequenino estendeu-se e pousou-lhe na manga por um momento, os seus dedos delgados e pálidos como hastes de trigo. Em seguida, levantou-se e foi até à entrada, esperando por Guardião. Creidhe estremeceu enquanto ia lavar a tigela, o pedaço de tecido e guardar o pequeno pente que Sam lhe fizera. Aqueles dois, um sem o outro, eram incompletos. Precisavam um do outro para sobreviver. Sem Guardião, Pequenino morreria: de frio, de fome, de tristeza. Sem Pequenino, Guardião deixaria de ter um objetivo na vida, não teria razão para continuar. Quando Sula lhe arrancara a promessa, certamente que não se apercebera das limitações do futuro do seu irmão: como ele desistiria de si próprio para se manter fiel.
Sentaram-se à lareira, Guardião, Creidhe e Pequenino. A jornada mudara de novo. Silenciara Guardião; o jovem estudava-a com olhos sombrios. Creidhe observou que o seu cabelo estava encharcado e atado atrás com um cordel, deixando-lhe o rosto ossudo livre. Era sempre assim quando ele regressava da pesca, com o fruto prateado do seu trabalho pendurado no ombro. Ela reparara nos olhares que ele lhe lançava, na tímida admiração, em algo interior muito forte. A jovem podia ver o reflexo disso no seu próprio olhar. Talvez Guardião soubesse pouco acerca do mundo para lá daquela ilha, de como as pessoas viviam as suas vidas. Por isso mesmo, talvez, ela apercebeu-se de que os jovens que conhecera em Hrossey eram crianças ao pé dele.
Já tinham comido e Pequenino estava sentado nos seus joelhos, inclinado para ver o melhor possível. Creidhe perguntou a si própria se a criança conheceria algumas palavras; talvez tivesse nascido antes de tempo e não tivesse crescido como os outros rapazes, apesar de ter sido criado de maneira diferente. Ela sabia de crianças com deficiências. Em Hrossey, ajudara a nascer dois bebês assim. A mãe levara um coice de uma vaca enquanto estava grávida. A criança, uma rapariga, sobrevivera, mas era lenta a andar, a falar e a compreender. E Moya, que vivia perto de uma caverna da Tribo Perdida, uma câmara subterrânea onde eles se reuniam, à noite. O bebê de Moya nascera surdo. Dizia-se que os moradores do local lhe tinham tirado o poder de ouvir porque estavam fartos de ouvir a voz de Moya, a dela e a do seu companheiro, que eram conhecidos por estarem sempre a discutir. Provavelmente, os da Tribo Perdida pensaram que estavam a fazer um favor ao bebê.
A jornada estava totalmente aberta. Guardião continuava a olhar para a parte que ela fizera naquele dia, filas de rostos olhando em frente, cada um bordado no momento em que retinha a respiração, cada um mostrando o que lhe ia na mente naquele momento preciso: a minha filha, nunca mais a vejo... a minha mulher... a minha terra... como isto dói, nunca mais acaba... Tenho medo... a escuridão... Em redor daquela faixa de espíritos inquietos, Creidhe bordara uma barreira que poderia ser de pedra, ou de fumo, ou de alguma manifestação que não era deste mundo; fosse o que fosse, era evidente que aqueles homens estavam presos no seu interior, condenados a ficar ali para sempre a olhar, cada um deles revivendo eternamente o momento da sua morte. Por cima, Creidhe bordara o Sol e a Lua, o arco-íris, nuvens, aves voando. Fosse qual fosse a estranha razão da perplexidade daqueles homens, o ritmo da terra e do céu continuava, indiferente. No fim de contas, as vidas mesquinhas representadas por baixo tinham pouco significado.
— Conta isto — disse Guardião, estendendo um dedo para tocar numa boca a gritar, num olhar fixo, apavorado. — Conta porque fizeste isto. — A sua voz era tensa, quase acusatória e não olhava para a jovem.
— Não, — disse Creidhe — agora não, pelo menos antes de ele se ir deitar. Eu não bordei isto por uma razão determinada, ou para o comentar. Por vezes, bordo o que me vai na cabeça; eu vi isto hoje, não apenas os objetos, antes a essência deles. Por vezes, estas imagens, parece que... que se fazem a si próprias. Muitas vezes, nem tenho a certeza daquilo que os pontos me vão mostrar. Só quando acabo é que percebo. Não consigo explicar-te, a ti ou a outra pessoa qualquer. Tu tens, apenas, de olhar, pensar e decidir o que queres ver.
Guardião olhou para ela de lado com um olhar gelado.
— Achas que o que eu estou a fazer está errado — murmurou ele. — É o que eu vejo aí. Achas que sou selvagem e cruel.
— Não ouviste o que eu disse. A Jornada não mostra o que eu penso. Mostra o que deve ser visto. Não assumas que te estou a julgar, Guardião. Eu tento não julgar ninguém. Em vez disso, ajo como acho que devo agir e, entretanto, vou fazendo o meu bordado.
— Isso tem muito poder. — Os seus olhos estavam fixos nos minúsculos pontos, nos pequenos rostos selvagens, nas bocas agonizantes. — Magoa-me.
— Nesse caso, não olhes. Eu tenho uma história para contar a Pequenino, que começa na outra ponta da Jornada. Repara, Pequenino, está aqui um rapaz mais ou menos da tua idade e tamanho. Era o meu irmão, assim como tu és o irmão de Guardião. Bem, não exatamente; Kinart e eu tínhamos a mesma mãe e o mesmo pai.
Ela tencionava contar uma história curta, na qual a jovem Eanna, Kinart e Creidhe conheciam o seu amigo Thorvald e partiam numa aventura, atravessando um campo onde havia um grande touro. Mas a história prolongou-se e só terminou quando atingiu o ponto que devia atingir: quando o seu irmão, que ainda não tinha feito cinco anos, se afastara da família, na praia e fora encontrado, flácido e pálido, nos baixios. Então, Creidhe ainda nem sequer tinha quatro anos, mas recordava-se de todos os pormenores e apesar de não ser uma rapariga chorona, quase se desfizera em lágrimas ao ver a dor terrível do seu pai e a aceitação estóica da sua mãe ao ver que, finalmente, a Tribo das Focas reclamara o pagamento da dívida.
— Eles ajudaram a minha mãe numa tarefa mágica — explicou ela com a voz entrecortada. — Foi necessário fabricar uma harpa a partir dos ossos de um homem assassinado: uma harpa que dizia a verdade. O testemunho desse instrumento salvou a vida do meu pai e o futuro das nossas ilhas. Nessa ocasião, as mulheres do mar não pediram qualquer pagamento a Nessa; na verdade, deram-lhe a harpa de presente. Mas ela sempre acreditou que, mais tarde ou mais cedo, lhe cobrariam a dívida, e cobraram. Nessa pagou com a vida do seu único filho. Desculpa — pestanejou Creidhe, e enxugou os olhos. — Não tencionava contar esta história tão triste. Aconteceu há tanto tempo.
A jovem sentiu o Pequenino olhar para ela e erguer uma pequena mão para lhe tocar nas faces molhadas, um toque tão suave como o de uma pena. Ela rodeou-o com os braços, gentilmente, para não o assustar e fechou os olhos por um momento. Hrossey estava muito, muito longe. No seu espírito, algures, aquele momento continuava presente, olhando, impotente, enquanto a morte fazia desaparecer o sol da sua vida.
— Conheces muitas histórias acerca dessa tribo a que chamas Tribo das Focas? — A voz de Guardião continuava tensa; não havia dúvida de que estava preocupado com ela. No entanto, não podia esperar que ela se sentisse indiferente perante a panóplia de armas e os crânios na falésia.
— Muitas. Dizem que eles vivem em algumas partes das Ilhas Brilhantes; a Ilha Sagrada, onde os eremitas cristãos têm a sua comunidade, era uma delas. Mas creio que a chegada dos irmãos afastou dela o povo do mar.
— Alguma vez os viste?
— Não; pouca gente os viu. Dizem que as mulheres são muito bonitas e sedutoras; muitos pescadores suspiram por elas.
— Por que razão havia essa gente de afogar uma criança? — Creidhe inclinou a cabeça e olhou para Pequenino.
— Não sei — murmurou ela. — As anciãs dizem que a Tribo das Focas não sente o amor, a vida e a morte como nós. Para eles, a vida de uma criança não tem qualquer valor. Suponho que a levaram como forma de pagamento e que descobriram que não tinha qualquer utilidade para ela. Mas, não devíamos falar disto em frente de...
— Essa história é falsa — disse Guardião, friamente. Creidhe ficou espantada.
— Não é, não — protestou ela. — A minha mãe estava lá, ela sabe...
— Nem toda. Não está certo dizer que esse povo do mar afogou o teu irmão. Isso é uma acusação terrível, uma afirmação assassina. Não foi isso que aconteceu.
— Como é que sabes? Como podes ter a certeza?
— Sei, assim como tu sabes que o teu bordado mostra a verdade, mesmo quando uma força exterior guia a tua agulha. Lamento que o teu irmão se tenha afogado; compreendo a dor do teu pai. — Guardião estava a olhar para Pequenino, de olhos sombrios. A sua expressão fez parar o coração de Creidhe, de tal modo estava plena de amor e medo. — O que matou o teu Kinart foi um acidente, mais nada. Os Folk da terra e do mar não cobram dívidas àqueles que os honram. Não é assim que as coisas acontecem. Os homens e mulheres de boa vontade não têm razão para temer esses Folk.
— Não é verdade. Histórias destas têm sempre um cunho de verdade...
— As histórias estão erradas. Advêm do medo. Mas tu não devias ter medo. Não são as tribos antigas que não têm coração, são as dos homens.
— Os homens podem ser bem cruéis, é verdade — disse Creidhe, pensando em Somerled. — Mas também podem ser bons e nobres, bravos e fortes. O meu pai é assim. — A jovem olhou de relance para a imagem bordada de Eyvind, com a qual começava a Jornada: o guerreiro vigoroso de cabelos dourados com a pele de lobo pelos ombros. — E há os outros: homens que se esforçam por ser corajosos, leais, virtuosos, mas que falham; homens que começam bem, mas que se perdem. Mulheres que são egoístas, ou preguiçosas, ou ciumentas; outras que são sensatas e carinhosas. De toda a espécie.
Creidhe começou a dobrar, uma vez mais, a Jornada; as imagens daquele dia tinham sido sombrias, cheias de tristeza, mas a escolha não era sua; ela só bordava o que via.
— Estás triste — observou Guardião. O jovem não se aproximara para se sentar junto dela, ficara a alguns passos de distância, de pé, de braços cruzados. O vento estava mais forte, inserindo-se nas fendas das paredes de pedra, fazendo com que as chamas da lareira tremessem e vacilassem e agitando as penas da túnica de Guardião.
— Não exatamente triste. — Creidhe pensou, por momentos, naquilo. — Penso que sinto mais qualquer coisa para além da tristeza. Sinto-me... impotente. Há aqui muito sangue derramado, muitas mortes, muitas perdas; gostaria de poder mudar as coisas, mas não sei como. Tenho medo pelos meus amigos, que estão com Asgrim; não sei nada deles. Tenho medo por Pequenino e por ti... os riscos que corres são tão grandes que a minha mente mal os abarca. Estou muito longe de casa Guardião; parece que tudo o que acontece aqui ainda me afasta mais.
— Gostarias que o mar não te tivesse trazido para a minha ilha? — O seu rosto estava sombrio; a jovem não conseguiu ver nele qualquer expressão.
— É esquisito, mas não consigo dizer isso. Sempre acreditei que tinha um papel a desempenhar, na jornada de Thorvald e, apesar de estar separada dele, continuo a acreditar que assim é. Só espero descobrir em breve que papel é esse. O que me disseste hoje alarmou-me. Os espíritos andam inquietos, Guardião. Eu não acho que sejas um homem cruel. Mas é uma crueldade não permitires que eles repousem, finalmente.
— Eles é que foram os causadores. — De novo aquela declaração.
— É verdade que eles vieram até aqui na certeza de enfrentarem a morte. A caçada é um tempo de sangue. Mas eles vieram em busca da paz para a sua tribo, tentando salvar o futuro. Não para magoar Máscara-de-Raposa, apenas para o devolver a quem ele pertence. Eu não gosto do que Asgrim fez; não gostei do que ele me fez. Mas sou capaz de compreender as suas razões. Guardião, eu ajudei a nascer um bebê enquanto estive em Água Brilhante, um rapaz que teria morrido sem a minha ajuda. Não conseguia compreender o terror que ia no rosto da mãe, mesmo depois de o bebê ter nascido bem. Então, vieram Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, as vozes, e levaram-no. O bebê morreu nos braços dela, um rapaz que, momentos antes, era saudável. Foi uma coisa cruel, terrível. Foi o terceiro bebê perdido por Jofrid. Não compreendes por que razão os homens de Asgrim estão decididos a acabar com isto? Se esta guerra continua, o povo dos Facas Longas desaparece.
Guardião olhou para ela.
— Tu defendes aqueles que te venderam ao inimigo?
— Eu não os defendo — disse Creidhe, tremendo. — Se os defendesse, não teria tentado escapar. Eu também tenho as mãos manchadas de sangue, não és só tu: naquele dia, os homens afogaram-se por minha causa. Mas compreendo o desespero de Asgrim. Em tempos destes, os homens agem de uma maneira que pode parecer extrema em tempos de paz. O que eu não compreendo é por que razão, tendo derrotado o teu adversário e tendo-o morto, não lhe permites que repouse. Se tiras a cabeça do corpo de um homem, ele não pode continuar. Condenas o seu espírito à solidão.
Ele não respondeu. Pequenino saiu dos joelhos da jovem e saiu para o exterior do abrigo. Creidhe pôs-se de pé, pronta a segui-lo, porque já era tarde e o terreno era traiçoeiro.
— Não é preciso — disse Guardião em voz baixa. — A Lua está a nascer; ele vai olhar para ela, como sempre que está Lua cheia. Mais tarde, adormece. Senta-te; vou contar-te uma história.
Creidhe sentou-se com as mãos no colo.
— Quando o povo de Asgrim veio para estas ilhas, havia paz — disse Guardião, acocorando-se junto dela e utilizando as suas longas mãos para ilustrar a história. — Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tinham o seu vidente, o seu Máscara-de-Raposa. Eles ouviam a sua sabedoria e esta ajudava-os a viver lendo-lhes os ventos e as marés, a altura ideal para as sementeiras através da lua e a altura ideal para a colheita, cuidava-lhes dos animais e dos filhos. Uma vida dura, mas ordenada. As ilhas eram quase despovoadas; havia muito espaço para o povo dos Facas Longas e eles instalaram-se e iniciaram as suas vidas. Cada clã ficou com a sua ilha; os locais de pesca eram partilhados. Máscara-de-Raposa era um ancião, estava cego e as suas pernas eram inúteis. Não saía do seu lugar; Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz cuidavam dele, levavam-lhe comida, mantinham-lhe a cabana limpa e seca. Quando precisavam de conselhos, iam ter com ele. No virar das estações cantava para eles e nessas canções frisava a importância de as suas vidas serem bem vividas.
Creidhe acenou com a cabeça; já sabia aquilo por intermédio do irmão Niall.
— Então, Máscara-de-Raposa morreu. Não havia outro para ocupar o seu lugar, nenhum filho de uma mulher de cabelos dourados cuja pele rivalizasse com a palidez da neve. Sem a sabedoria de que necessitavam, Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tornaram-se selvagens e perigosos. Não demorou muito para que a guerra estalasse com o povo dos Facas Longas, um conflito durante o qual morreram muitos ao longo dos anos. Então, eles raptaram a minha irmã e, durante algum tempo, a guerra cessou. — Guardião fechou os olhos.
— Não precisas de falar nisso se...
— Para ti, parece simples, não parece? — O seu tom era amargo. — Sula já não sofre; morreu. Deu-lhes a criança, eles colocaram-na na posição de amor e respeito que um Máscara-de-Raposa merece e pronto. Melhor para ele; melhor para todos. É o que tu achas.
Creidhe não respondeu.
— Parte do que pensas que aconteceu ao meu irmão é verdade. Se os homens de Asgrim o tivessem entregado simplesmente Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, Pequenino teria, na verdade, sido um vidente venerado, tal como o seu predecessor. Mas, primeiro, eles queriam partir-lhe as pernas e cegá-lo.
— O quê? — A voz de Creidhe era um sussurro estrangulado.
— Esse ritual deveria acontecer assim que ele fosse desmamado — disse Guardião friamente. — Eu raptei-o mesmo a tempo. Eles acreditam, sabes, que, para desempenhar cabalmente o seu papel, Máscara-de-Raposa tem de ser exatamente como o velho. Eu sei. Estive no meio deles. Para isso, tive de lhes ganhar a confiança. Eles acreditam que fechar os olhos do corpo é abrir os do espírito, que retirar a capacidade de andar é prender o vidente à sua tribo. Assim o diz a tradição. Se ele regressar, eles fazem-no e eu não creio que ele seja capaz de sobreviver a isso.
— Oh, não... — Creidhe mal conseguiu falar. Aquela criança tão frágil, que se enroscara com tanta confiança nos seus joelhos: não admirava que Guardião o protegesse com uma dedicação tão violenta. — Oh não...
— Asgrim sabe isso. Talvez os homens dele também saibam. No entanto, o governador não percebe por que razão eu raptei o meu irmão. Para Asgrim, justifica-se sacrificar uma criança para o bem da tribo. Mesmo que seja da sua família. Ele já mostrou que não quer saber dos laços de sangue. Não foi o seu legado que nos uniu, a Sula e a mim, e que me liga, agora, ao filho dela.
— Não sei que dizer — murmurou Creidhe, envolvendo-se nos próprios braços — salvo que lamento ter duvidado do que disseste; se eu estivesse na tua posição, não sei se teria tido a coragem de fazer o mesmo. Isto é... muito triste, nem dá para acreditar. Não tenho uma resposta para te dar. — Era inevitável, a caçada continuaria, mais homens morreriam e Guardião arriscaria a sua vida vezes sem conta. A sua mente mostrou-lhe os homens de Asgrim a avançarem e a serem mortos um a um, os seus corpos espalhados pela ilha. Thorvald e Sam estavam com Asgrim; iriam, também eles, jazer no meio do seu sangue antes de aquele Verão acabar?
— Nem sempre é triste — disse Guardião. A caçada só acontece uma vez no ano e termina rapidamente. Temos longos períodos de calma. Os Invernos são duros; por vezes, ele fica doente, cheio de tosse e isso perturba-me. Mas também são tempos bons. Depois da caçada, podemos andar livremente pela ilha, sem receio de qualquer ataque. A Ilha das Nuvens é um lugar muito bonito e tem muitas belezas. Uma floresta de pedra; um poleiro tão alto como o ninho de uma águia. Creidhe?
— Sim?
— Eu tentei ensiná-lo, mostrar-lhe como desenvencilhar-se sozinho. Tentei falar-lhe, para que ele pudesse ir aprendendo algumas palavras. Mas, por vezes, esqueço-me; por vezes, penso que ele não é capaz de aprender. Eu posso protegê-lo dos homens de Asgrim; posso mantê-lo a salvo de qualquer ataque, mas, e se eu for ferido, ou me afogar enquanto pesco? E se eu ficar doente e morrer? Ele ficará só. Tu dizes que, de certo modo, eu errei, que ele não é como as outras crianças. Nesse caso, falhei e falhei na promessa que fiz à minha irmã. Isso entristece-me; mete-me medo.
Creidhe estendeu as mãos e tocou nas dele.
— Não — disse ela. — Eu estava enganada. Ele tem, em ti, o melhor exemplo que podia ter. — A jovem fez um esforço para esconder as lágrimas; não podia mostrar-se fraca. — Tu ama-o e és forte. Conheces a ilha e como sobreviver nela; podes ensinar-lhe isso. E... enquanto aqui estiver, posso ajudar. Talvez o possa ensinar a falar, e outras coisas. Posso tentar, de qualquer modo. Se quiseres. — Apesar de tudo, apesar de Thorvald, de Sam e de tudo o que deixara para trás, não podia fazer outra coisa.
A boca dele arqueou-se num sorriso.
— Quero, sim — disse ele, desviando os olhos dos dela no que pareceu o mesmo súbito e inexplicável ataque de timidez que ela observara antes. A jovem ainda tinha as mãos dele nas suas; ele moveu os dedos e as suas mãos maiores envolveram as dela e Creidhe sentiu a sua força, a força das mãos de um guerreiro.
A luz entrava pela porta; a Lua estava a nascer. Sentaram-se os dois em silêncio, de mãos juntas, enquanto o espaço sombrio ficava prateado à sua volta. O rosto de Guardião, pálido como nunca, parecia encher-se de um brilho estranho, os seus olhos estranhamente brilhantes, a sua pele translúcida devido à luz. Creidhe viu, pela expressão do rosto do jovem, que também ela brilhava daquela maneira; era como se ele tivesse uma deusa diante de si. A jovem prendeu a respiração.
No silêncio surgiu uma melodia, uma melodia de uma pureza tão grande que Creidhe pensou, por um momento, se os olhos de Guardião lhe estariam a dizer a verdade, ou se um espírito da noite os tinha honrado com a sua presença. As notas subiram de tom num arco perfeito, dolorosas na sua intensidade e permaneceram no ar, ecoando em cada rocha e arbusto da encosta, no mar, na Lua e nas estrelas, caindo depois, como uma cascata maravilhosa, até se transformarem em silêncio. E de novo subiu, parando o bater do coração, enchendo os olhos de lágrimas, banhando o espírito com um bálsamo de profunda sabedoria. Ao mesmo tempo que continuava, a luz no interior do abrigo intensificava-se, pulsando, brilhando, radiante e forte. Creidhe estava consciente de que Guardião se levantara e que estavam os dois a caminhar juntos na direção da saída. Ficaram os dois de mãos dadas a olhar para a Lua cheia no pálido céu de Verão, brilhante de certeza; para Pequenino sentado nas rochas de pernas cruzadas, os olhos fixos naquele disco de luz. Olhando e ouvindo enquanto Pequenino oferecia o seu hino maravilhoso e sem palavras à beleza daquele espírito celestial. Os braços de Guardião rodearam os ombros de Creidhe e os de Creidhe a cintura de Guardião. Ficaram os dois em silêncio enquanto a melodia subia e descia de novo, nobre, doce, plena de um poder antigo.
O vento amainara; a ilha estava em silêncio, não se ouvia um restolhar, um único grito. As águas escuras do oceano brilhavam sob aquela luz estranha, brilhante e perigosa. A Creidhe, parecia-lhe que a melodia atingira todos os cantos do mundo; Asgrim, no meio dos seus guerreiros, sonhando com a caçada; Thorvald e Sam, estivessem eles onde estivessem; Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, desejosos do regresso do seu vidente. Parecia-lhe que aquele hino de amor devia ter atingido, até, as Ilhas Brilhantes e que as ultrapassara. Já não duvidava das capacidades de Pequenino. Talvez nunca viesse a aprender a falar como qualquer ser humano; talvez nunca viesse a brincar como as outras crianças. Depois daquilo, parecia não ter importância.
A melodia aproximou-se do fim, desaparecendo numa ondulação extremamente bela, uma filigrana de pequenas notas rodopiando cadenciadamente. Pequenino bocejou e pestanejou. Creidhe e Guardião separaram-se; nenhum deles, se apercebera, talvez, da posição em que tinham estado, um corpo contra o outro, abraçados.
— Descansar — disse Guardião, pegando a criança ao colo. Pequenino pôs os braços em redor do pescoço do jovem e encostou-lhe a cabeça ao peito, como uma criança qualquer depois de um longo dia de brincadeira, não como o receptáculo da voz antiga da Lua. — Hora de ir para a cama.
A criança já estava a dormir quando ele lhe colocou a cabeça na almofada. Então, Guardião olhou para Creidhe à luz da lareira, os olhos líquidos, perigosos, e Creidhe devolveu-lhe o olhar sem pestanejar, se bem que o seu coração batesse com toda a força. Um momento depois, ele virou-lhe as costas, retirando para o outro lado da lareira para desenrolar o seu cobertor e Creidhe preparou-se para dormir junto de Pequenino. A melodia terminara, mas, à luz suave do luar, o seu poder e beleza permaneciam. Esta canção é eterna: sempre a mudar, mas sempre a mesma. Ela chama-me e despede-se de mim. Eu morro e nasço de novo. Eu canto sempre o mesmo, no seu todo, limpo, puro; eu canto a Única História.
Com uma certa dificuldade, porque já não eram novos, os dois eremitas transportaram Colm para casa numa prancha e enterraram-no não muito longe da horta que ele tratara com tanta energia e amor. Breccan disse uma oração; Niall manteve-se de pé com a cabeça inclinada e as mãos juntas, e a cadência pacífica e justa da oração misturou-se, no seu cérebro, com outra, uma cadência de pensamentos sombrios, pensamentos que falavam mais de vingança e sangue do que de tristeza e aceitação. Mais tarde, Breccan serviu-lhe uma caneca de cerveja, obrigou-o a beber e serviu-se a si próprio.
— Tencionas tornar-me insensível para me salvares de mim próprio? — perguntou Niall ao seu amigo eremita sem lhe olhar para os olhos.
— Não, velho amigo. Só pretendo soltar-te a língua um pouco. Meios primitivos, talvez, mas eu também estou cansado e triste. Deus levou-nos o nosso jovem companheiro; Colm, neste momento, está em boas mãos. No entanto, sinto a sua falta e a da rapariga, que sofreu um destino tão terrível às mãos d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. A maldade do homem é muito forte neste lugar; nestas ocasiões, a dúvida assalta-me. Nós conhecemo-nos há muito tempo. Devíamos conversar. É melhor não guardarmos as nossas dúvidas para nós próprios.
— É uma maldição — disse Niall, olhando para a sua cerveja. Não havia qualquer expressão no seu rosto. — Tudo aquilo em que toco se transforma em poeira. É uma maldição que transporto comigo. Pensei que estaria livre dela nestas ilhas, mas parece que não é possível. Pensei que, por inação, poderia cumprir o que prometi, que não provocaria mais danos. Pareceu-me que uma vida contemplativa me ajudaria, mas esta sombra do passado segue-me para onde quer que eu vá; não me posso esconder dela. Que achas? É uma maldição? Nunca tive tempo para estas coisas, sabes isso muito bem. Se tivesse a tua fé, seria muito mais simples. Confiar implicitamente numa divindade de amor e perdão é uma coisa muito cômoda; desse modo, enjeitamos as nossas responsabilidades. Se pudesse, também fazia isso. Mas um homem não pode fingir que tem fé.
— Estes tempos e estas mortes não são fáceis — disse Breccan, solenemente — mesmo para um homem que está consciente da Graça de Deus. Acredita-me, nós somos totalmente responsáveis pelas nossas ações. Pensas que não sinto dor, ou culpa, pelo que ocorreu? Eu vi Creidhe ser raptada. Sou um homem fisicamente capaz, Niall. Imaginas que não pergunto a mim próprio se não poderia ter feito mais do que fiz? Se não a poderia ter salvo? Pensas que não luto com a minha consciência pelo fato de a ter levado daqui, arriscando-me a ser atacado em campo aberto? No entanto, é verdade, na minha dor e incerteza o amor de Deus é uma consolação. Assim como acontece contigo, meu amigo, quer te apercebas, quer não. Tu ainda não te apercebeste do quanto mudaste nestes anos de exílio.
— Estás enganado — disse Niall num murmúrio. — Eu não mudei nada. Aprendi, simplesmente, a controlar-me ainda mais. Sei quais são as soluções, sofro porque não as posso executar, grito internamente: Age, age agora, assume o controle e endireita as coisas. Mas não posso agir. Já mostrei antes aquilo de que sou capaz, o poder que sou capaz de exercer e o que ele pode provocar. Jurei que mudaria de caminho. Não vou quebrar esse juramento.
Os dois homens ficaram uns momentos calados diante da pequena lareira; o jarro de cerveja esvaziou-se lentamente. No exterior, o céu escurecia, transformando-se numa semiescuridão misteriosa, num crepúsculo de Verão, com uma lua cheia no céu, pálida e lustrosa.
— Sabes — observou Breccan — há uma falha no teu argumento.
— Sei — disse Niall.
— O que é que despoleta essa tua maldição? A ação ou a inação? O que é que tu fizeste mal, no fim de contas? Nós não podíamos ter recusado abrigo à rapariga, sabendo o que sabemos acerca de Asgrim. Fui eu que a levei, não tu. Foi Colm que se ofereceu para ir ao acampamento. Não creio que possas considerar-te como culpado deste desastre, Niall.
— Não — disse Niall — talvez não. Mas pergunto a mim próprio por que razão Creidhe e os amigos terão vindo às Ilhas Perdidas!
— Ah. O passado segue-nos. É verdade, o passado não pode ser refeito. Farias bem se te recordasses disso e que te capacitasses de que não és o mesmo homem que deu aqui à costa há alguns anos, nem o mesmo homem que confrontou, um dia, Asgrim com a verdade da sua maldade e que foi afastado por isso. Não esqueço como me recebeste, a mim e ao jovem Colm; como nos deste abrigo apesar do teu desejo de viveres sozinho. Foi a graça de Deus, irmão; e agora também é. Ele tocou-te, mesmo contra a tua vontade.
— Achas? — O tom de Niall era gelado.
— Acho, meu amigo. E agora, chega. Não podemos continuar no passado, salvo se pudermos tirar dele uma lição. Mas podemos, no entanto, influenciar o futuro. Um pouco contra a minha opinião, acredito que é um assunto que não podemos deixar de lado.
Niall olhou para ele de relance, os olhos escuros subitamente alerta.
— Que estás tu a propor? Que façamos de Asgrim um homem de paz?
O seu tom de voz era cáustico.
— Não sugiro tanto — disse Breccan suavemente. — Só Deus pode conseguir isso. No entanto, não pretendo deixar que o assassínio de Colm passe sem, pelo menos, expressar o meu ultraje aos seus prováveis perpetradores. Também acho que o rapto de Creidhe deve ser formalmente comunicado a Asgrim, como governador das Ilhas Perdidas; não importa o fato de ele, sem dúvida, já estar ao corrente, o que interessa é que há maneiras certas de fazer as coisas e é chegada a ocasião de lhe lembrar. O rapaz não merecia aquele fim cruel. Creidhe devia ter ficado sob a proteção do governador, não devia ter fugido, assustada. Devemos-lhes isso, pelo menos, acho eu.
— Queres ir ao Fiorde do Conselho, depois do que aconteceu?
— Não acredito que ele queira acabar com nós os três — disse Breccan friamente. — Pensei ir buscar os rapazes amanhã, a caminho de Água Brilhante. Ir com eles. Isso tornará um ataque menos improvável. Que achas?
Niall ficou silencioso. Era o silêncio intenso de um homem que anseia por dizer sim e que luta interiormente por dizer não.
— Além disso — acrescentou Breccan calmamente — devemos isso aos amigos de Creidhe, aqueles dois rapazes, contar-lhes a nossa versão do que aconteceu. Podíamos falar-lhes do tempo que ela passou conosco. Os pequenos pormenores podem ser de grande ajuda, sabes isso muito bem. Devíamos vê-los, tenho a certeza.
Niall olhou para o chão de terra.
— Asgrim não nos vai deixar entrar — disse ele convictamente. — Ele tem medo que influenciemos os homens. Não conseguiremos passar o perímetro do acampamento.
— Ora vamos — disse Breccan — com o teu talento para a tortuosidade, sei que há de arranjar uma solução.
Niall sorriu friamente.
— Isso sei eu — disse ele amargamente. — Mas acho que, aqui, o tortuoso serás tu, irmão.
Os dois rapazes não eram particularmente obedientes. Tinham dez ou onze anos, eram bons pescadores e caçadores de aves e tinham as suas próprias regras. Como coletores de comida e transportadores de mensagens tinham ganho alguma reputação na ilha porque, de fato, eram indispensáveis. Quando Niall e Breccan chegaram ao acampamento de Asgrim por volta do meio-dia, levavam os rapazes com eles, tão junto de si que qualquer ato de violência atingiria, também, os rapazes. Além disso, Breccan transportava ao ombro um bom pedaço de carneiro e Niall um queijo de cabra, e os homens de Asgrim tinham fome, mas isso não impediu os dois enormes guardas de lhes impedirem o caminho, apontando-lhes as lanças ao peito.
— Onde pensam que vão? — grunhiu Skapti. — Não pode entrar ninguém no acampamento.
— Especialmente a tua espécie — imitou-o Hogni. — Vocês, rapazes, toca a andar, o governador tem uma mensagem para Gudrun, quer que a leveis imediatamente.
Os rapazes, pagos adiantadamente e com a promessa de que receberiam mais, não se moveram. Niall e Breccan mantiveram-se calados. Aproximaram-se mais alguns homens.
— O que é que vocês querem, no fim de contas? — perguntou Skapti.
— O governador não vos recebe — disse Hogni. — Nada mudou. Não precisamos aqui de pregadores, não temos tempo para isso.
— Estamos aqui para ver os dois homens das Ilhas Brilhantes — disse Niall asperamente. — Thorvald e Sam. Eles estão por aí?
O irmão esperava uma recusa imediata. Nunca tinham sido admitidos no acampamento de Asgrim; até a aldeia de Água Brilhante lhes fora recusada, se bem que isso não os tivesse impedido de aparecer por lá na ausência do governador. Mas, para surpresa de Niall, a menção dos dois jovens pareceu mudar tudo. Um dos guardas olhou para o outro; ambos resmungaram qualquer coisa em voz baixa.
— És capaz de perguntar a Thorvald se me pode receber? — perguntou Niall polidamente. — Eu espero aqui pela resposta dele.
Mais resmungos, no meio dos quais se ouviram os nomes de Asgrim e Thorvald. Não era possível ver qualquer coisa do acampamento, porque os corpos dos dois enormes guardas e dos outros que se tinham aproximado bloqueavam a visão.
— Trazemos uma pequena contribuição para o vosso jantar — disse Breccan — e é pesada. Por favor, levai-a; podeis ficar com ela, quer consigamos o nosso propósito ou não. Tenho a certeza que os preparativos para a guerra abrem o apetite.
— Obrigado — grunhiu Hogni. — Segura aqui. A carne e o queijo foram levados por mãos ansiosas. Eu vou buscar Thorvald e perguntar-lhe o que ele acha. Fiquem aqui e nada de brincadeiras.
— Brincadeiras? — As sobrancelhas de Niall ergueram-se de uma maneira extravagante. — Nem saberia por onde começar.
Skapti ficou com a lança apontada ao coração de Niall. A sua expressão, no entanto, alterara-se.
— Thorvald é vosso amigo? — perguntou ele acanhadamente.
— Não exatamente. Um contato, apenas. Um amigo de um amigo. Ele é bom guerreiro?
— O melhor — disse simplesmente Skapti. — O melhor que por aqui apareceu. Um ótimo líder: duro mas leal, percebes? Inteligente. E não tem medo de arriscar o cabedal. O tipo de chefe que um guerreiro é capaz de seguir até onde for preciso.
Niall não respondeu.
— Interessante — disse Breccan, quebrando o silêncio. — E é um recém-chegado. Isso significa o virar da maré.
— Podes dizê-lo — resmungou Skapti. — Mas não o suficiente para deixarmos entrar uns pregadores no acampamento. Não penseis que, por isso, sois bem-vindos.
— Bem — disse Breccan, sorrindo — a esperança é a última coisa a morrer. E o outro rapaz, Sam?
— Bom rapaz. É bom em barcos. Útil.
— Rezo — disse Breccan, subitamente muito sério — para que ele, tu e os outros todos cheguem ao fim do Verão sãos e salvos, meu amigo. Estes tempos são duros. Deves ter sabido que também nós sofremos uma perda.
— Não tenho nada a ver com isso. — A boca de Skapti fechou-se como uma armadilha e os seus pequenos olhos tornaram-se distantes.
Esperaram algum tempo. O grupo de homens dispersou um pouco e foi possível avistar a baía onde Asgrim tinha a sua cabana e os anexos, os seus barcos e a faixa plana de terreno para os treinos de combate. Havia homens a treinar, disparando flechas para alvos de palha. Niall observou-os. Havia muito barulho: gritos, risos. No entanto, a atividade era disciplinada. Entre eles movia-se um homem de cabelo ruivo, encorajando, fazendo sugestões e demonstrações. Era evidente, pela maneira como os homens paravam para o ouvir, atenta e seriamente, pela maneira como gravitavam à sua volta, pela maneira como olhavam para ver se ele estava a olhar antes de largarem a corda do arco, que era ele o líder. Era evidente pela sua posição: muito direito, descontraído, confiante, mas encontrando tempo para ouvir quando eles tinham algo para lhe dizer, sempre pronto com uma palavra ou um elogio quando eles o mereciam. Niall observou-o intensamente e, subitamente, o jovem virou a cabeça para olhar para o alto da encosta, para o lugar onde eles esperavam. O cabelo era o de Margaret, vermelho-escuro, brilhante e bem penteado. Os olhos escuros, desconfiados, perscrutadores, avaliadores, calculistas, eram um espelho dos seus.
— Tudo bem? — murmurou Breccan nas suas costas.
Niall acenou com a cabeça. Teria de chamar a si todas as suas forças, porque o jovem caminhava agora encosta acima na direção deles com o segundo guarda-costas a seu lado. Nas suas costas, os jogos de guerra continuavam. Não havia sinal de Asgrim.
— Bom dia — disse o homem de cabelos ruivos, parando no carreiro diante deles com uma expressão neutral. As suas feições eram pálidas e intensas, o maxilar firme, a boca de lábios finos. Vestia roupas simples, uma túnica de lã e calças, botas leves de pele e um bom cinto; como líder, parecia ter poucas pretensões. — Hogni disse-me que nos tínheis trazido comida; obrigado pelo presente, os homens estão fartos de peixe. Não permitimos visitantes no acampamento. Pensei que Asgrim tinha tornado isso claro. — O jovem olhou para os dois garotos. — Toca a andar, rapazes — disse ele num tom algo suave. — Ide comer qualquer coisa e depois ide ter com o governador. Ele tem mensagens para vós. — Os rapazes obedeceram instantaneamente, afastando-se sem uma palavra. — Bem — continuou o jovem olhando para os dois eremitas com um olhar penetrante — estou a ver quem sois e pergunto a mim próprio se não terei sido pouco cortês. Mas regras são regras e a caçada aproxima-se. O meu nome é Thorvald. Não vos posso receber no acampamento. Por isso, pergunto-vos aqui a razão da vossa presença. Fizestes uma longa caminhada apenas para entregar um pedaço de carneiro, uma coisa que os rapazes podiam ter feito. Os vossos nomes?
— Eu sou o irmão Breccan e este é o irmão Niall. Trazemos uma mensagem. Queremos dar parte de um assassínio. O nosso companheiro, Colm, foi morto quando vinha para aqui há alguns dias e o seu corpo foi abandonado na encosta.
Thorvald franziu o sobrolho.
— Lamento ouvir isso. Eu respeito os homens da tua religião, temos homens como vós nas nossas ilhas, homens sábios, de conhecimento. É uma coisa lamentável. Mas é a Asgrim que deveis dizer isso, não a mim. Eu sou apenas o chefe de guerra. Não sou governador.
Não, pensou Niall com o coração a bater com toda a força, mas devias ser.
— Nós sabemos isso — disse ele, fazendo algum esforço para falar. — Mas é contigo que queremos falar. Nós demos abrigo à tua amiga, Creidhe, antes de ela ser raptada. Queremos oferecer-vos as nossas condolências. O seu rapto foi um golpe terrível; se houver a menor possibilidade de a resgatar, queremos que saibas que faremos tudo para te ajudar. Creidhe passou alguns dias conosco e nós conversamos um pouco. Há alguns assuntos... — Não era possível continuar. À medida que Niall falava, o jovem guerreiro ia perdendo o controle, o seu rosto pálido ia ficando cada vez mais pálido e os seus olhos traindo uma angústia que acordou em Niall velhas e dolorosas recordações.
— Vejo que ainda não conheces a história toda — disse Thorvald calmamente. — Devo dizer-te que Creidhe está morta. O barco d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz naufragou na Corrente dos Loucos. Disseram-me que foi ela mesma que provocou o naufrágio. Todos os que iam no barco se afogaram. — A sua dignidade era espantosa; o jovem falava com uma cortesia limitada, fazendo um esforço evidente para esconder a sua própria angústia. O coração de Niall gelou ao ouvir a notícia. Habitualmente, sobrepondo o intelecto ao sentimento, diria que a morte fora o melhor que poderia ter acontecido à jovem, tão cheia de vitalidade e calor, do que a que esperaria junto d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. No entanto, o coração tinha, agora, uma palavra a dizer. O golpe fora atroz.
— Lamento — disse Breccan com as feições coradas plenas de tristeza. — Mal consigo acreditar. Uma jovem tão alegre, tão corajosa. Devíamos falar mais acerca disto...
— Eu acho que não — disse Thorvald. — Isso já é passado. A caçada está a chegar, é uma questão de dias, vamos precisar de toda a nossa vontade, de toda a nossa energia. De que vale falar do que já aconteceu? Só provocaria inquietação e minaria a nossa confiança. Estás a pensar em rezar pelos outros que também morreram? As orações não mudam nada. Nós temos uma tarefa pela frente e as nossas mentes devem estar concentradas nela, unicamente.
Niall sentia o quanto aquele discurso estava a custar ao rapaz; os nós dos dedos de Thorvald estavam brancos, se bem que a sua voz parecesse tranquila.
— Nós já rezámos as nossas orações — disse Breccan. — Estávamos mais a pensar nalguns conselhos. Conselhos e informações.
— Thorvald? — disse Skapti em voz tensa. — O governador vem aí.
Era verdade: Asgrim aproximava-se do carreiro com as suas escuras feições carregadas.
— Sim — disse Thorvald de modo ausente. — Sim, obrigado. Conselhos? Que espécie de conselhos pode um monge dar a um soldado? Pedir perdão aos deuses no momento em que uma lança o atinge no coração? — O seu tom era gelado, demasiado gelado para um rapaz, mas Niall percebeu a centelha de interesse nos seus olhos.
— Não nos mandes embora — disse Niall num sussurro. — Nós podemos ajudar-te. É provável que estejas em perigo, mais perigo do que imaginas.
E foi nesse preciso momento que Asgrim chegou até junto deles, de feições severas e de faca na mão.
— Skapti! Hogni! — disse ele, asperamente, e os dois guardas puseram-se um de cada lado dos eremitas, de armas prontas. — Eu trato disto, Thorvald — continuou o governador suavemente. — Eu conheço estes homens; eles são uns intrometidos e só arranjam sarilhos, por mais presentes que tragam. Não têm nada de valor para nós. Vou mandar escoltá-los para fora daqui. Vai, filho; os homens precisam de ti.
O olhar de Thorvald continuava intensamente fixo no irmão Niall; havia uma pergunta nele.
— Estes homens vêm dar conta de um assassínio — disse ele — e também de qualquer coisa acerca de Creidhe. Acho que devíamos ouvi-los, intrometidos ou não. Não podemos deixar de ouvir o que eles têm para dizer...
As sobrancelhas de Asgrim franziram-se.
— Um assassínio, dizes tu? Que infelicidade. Muito bem, ouvi-los-ei em privado nos meus alojamentos. Se houver alguma coisa que te diga respeito, dir-te-ei depois. Parece-me justo. E agora vai, Einar está a chamar-te. Parece que não podem passar sem ti.
Thorvald manteve-se firme.
— Gostaria de falar pessoalmente com estes homens — disse ele. O pequeno sorriso de Asgrim não lhe chegava aos olhos.
— Isto não tem nada a ver com o papel que desempenhas aqui, Thorvald. Eu trato do assunto. Talvez mais tarde tenhas a tua oportunidade. Espero que compreendas o que te estou a dizer.
Por um momento, Thorvald olhou-o nos olhos, imóvel. Então, disse:
— Muito bem. — E virou-se, regressando para junto dos homens.
— Hogni, Skapti — a voz do governador era áspera — levem estes dois para os meus alojamentos. E ficai de guarda cá fora. Eles não podem falar com ninguém e ninguém pode falar com eles. Compreendido?
— Sim, meu senhor.
Mas quando chegaram à cabana de Asgrim, não foi o que aconteceu. Breccan foi levado para a antecâmara, onde se sentou tranquilamente num banco, ao mesmo tempo que Skapti pairava à entrada, encostado à sua lança. Hogni empurrou Niall para a câmara interior e o governador seguiu-o. Hogni saiu; a porta foi firmemente fechada. Parecia que a audiência ia ser privada.
— Muito bem. — A voz de Asgrim tinha o tom afável de um anfitrião; os seus olhos eram venenosos. — Aqui estás tu no nosso acampamento, em desafio total às minhas ordens para que ficasses longe de qualquer aldeia ou aglomerado populacional do povo dos Facas Longas. Nunca achei que fosse louco, irmão. No entanto, parece-me um ato da maior estupidez. Tu viste as forças que temos aqui; estão todos extremamente bem armados e as ordens que têm não incluem ser amáveis com sacerdotes. Oh, tenho a certeza que tens uma arma contigo, algures, não tem sido sempre assim? Pensei em pedir aos meus guardas que te revistassem, mas decidi que não. Um ferimento pode ser uma coisa complicada. Além disso, não acredito que estejas aqui como assassino; não juraste permanecer de fora dos assuntos dos homens? Um voto de inação? Não, eu acho que vieste aqui em busca de informações. Infelizmente, não tenho nenhuma para te dar. Vocês os dois vão-se embora, imediatamente, e não voltarão a aproximar-se deste local, ou dos meus homens. Estamos entendidos?
Seguiu-se um breve silêncio. Niall manteve-se direito e fixou os olhos de Asgrim. Os seus dedos tocaram no ferro frio por baixo do hábito; era capaz de matar, bastava-lhe querer. Fora mais bem ensinado do que alguma vez Asgrim imaginaria.
— A morte do rapaz — disse ele em tom neutro. — Colm. O rapaz estava com Breccan desde a infância. Ele estava de fora disto tudo, era um inocente. Tu não podes culpar Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz da morte dele; qual é a tua razão para teres feito aquilo? Porque o trabalho tem a tua marca, Asgrim. Colm foi calado. Sabes do que estou a falar. Que plano foi esse, uma combinação com o teu inimigo, para poderes atravessar outro ano sem perdas inúteis? Era isso que tinhas em mente quando a rapariga chegou aqui com os seus cabelos dourados? Aposto que os teus homens foram logo ter contigo. Viram a oportunidade, tal como tu. Outra oportunidade. Tu falhaste a primeira; o teu filho tratou disso. Com doze anos era mais homem do que tu nunca serás. Perdeste essa oportunidade. Mas, agora, havia outra rapariga, uma que tu tinhas a certeza de poder utilizar.
— Que se passa, Niall? — perguntou-lhe Asgrim com ar cansado. — Que esperas conseguir com isto? Persuadir o povo dos Facas Longas de que as suas esperanças estão numa caçada após outra, Verão após Verão, mutilações sangrentas após mutilações sangrentas? Essa situação não leva a lugar nenhum.
— E assim — continuou Niall, como se o governador não tivesse falado — afastaste os companheiros dela o mais rapidamente que pudeste, confinaste-a à aldeia com Gudrun como cão de guarda e iniciaste negociações. Infelizmente, parece que a rapariga era mais corajosa do que tu pensavas e o resultado foi a morte e mais um falhanço teu. Demonstraste a tua incapacidade mais uma vez, sem contar com a caçada, o exercício mais fútil que eu alguma vez vi.
— Não há um único homem da minha tribo que não me apoie nisto — disse Asgrim. — E tu sabes que é assim. Estás aqui há tempo suficiente para saber como as coisas funcionam. Tentares confrontar-me com qualquer sentimento de culpa da minha parte é pura perda de tempo. Não nego o que acabas de afirmar. Nós, aqui, fazemos o que é preciso para sobreviver. Algumas ações podem parecer cruéis, mas são para o bem comum.
— Até agora, o teu recorde prova o contrário.
— Achas que eras capaz de fazer melhor? — A voz de Asgrim tinha, agora, um tom nervoso; dos dois homens, quem se mantinha calmo e controlado era o outro.
— Sei que era. Disse-o na última vez, quando era a vida da tua própria filha que estava em questão.
— Ah! Um mongezinho cuja existência se baseia em observar enquanto os outros fazem o trabalho árduo e tomam as decisões difíceis? Eu sei tudo acerca de ti, Niall. Sei mais acerca de ti do que outra pessoa qualquer nestas ilhas. Recordo-me do dia em que aqui chegaste.
— Também eu. Talvez não tenhamos mudado muito desde então. As boas-vindas, se bem me lembro, não foram nada calorosas.
— Tu não eras, então, um monge e duvido que isso se tenha alterado nestes anos todos. Não precisas de me dizer por que razão estás aqui hoje, eu sei qual é. Queres ver o rapaz, Thorvald. Falar-lhe de mim, da minha maldade, das minhas ações malditas; persuadi-lo a não me ajudar. É isso?
— Ele e o amigo merecem a verdade. Imagino que se devem sentir culpados pela morte da rapariga.
— Culpa, culpa, todos temos culpa, faz parte da existência do homem. No caso de Thorvald e de Sam, está a resultar, a julgar pela agressividade deles. Não podes vê-los. Thorvald está ocupado. O rapaz provou ser muito útil. Com ele a comandar, temos hipótese este Verão, uma boa hipótese. Preciso dele na caçada. Não podes falar com ele.
— Estou a ver. — Niall cruzou os braços. — Isso interessa-me, Asgrim. Salta à vista que o rapaz é competente; os teus homens seguem-no com grande dedicação e eu detecto uma nova esperança na sua maneira de andar e no seu comportamento. Mas há algo de estranho em tudo isto. Creidhe disse-me que os amigos dela só estavam aqui no acampamento para ganhar a madeira de que necessitam. Já percebi, claro, que os retiveste aqui até conseguires o teu infeliz acordo com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. E agora, Creidhe está morta, mas tens, nada mais nada menos, do que Thorvald como comandante do teu exército e tudo pronto para pores a vida dele em risco noutra guerra. Ora, por que razão havia um jovem inteligente de fazer isso?
Asgrim sorriu levemente.
— Porque pensa que eu sou o pai dele — disse ele suavemente. — Finalmente, consegui uma coisa nunca antes conseguida: reduzi-te ao silêncio. Dói-te? A sua capacidade, a sua dedicação, toda a sua energia de jovem virada para a minha causa; ganhei tudo isso à custa da sua crença de que, finalmente, encontrou o homem que o abandonou, antes de ele ter nascido. Foi o que ele veio aqui procurar e foi o que conseguiu em troca da morte da sua amiga. Neste momento, só pensa em provar que é merecedor da minha confiança. Acredita que, se provar ser bom, haverá, no fim, uma espécie de reconhecimento. Um abraço, talvez, ao mesmo tempo que uma promessa de poder futuro.
— Não lhe disseste a verdade? — Niall podia ouvir a sua própria voz a tremer. De repente, sentiu um frio mortal.
— É claro que não. Ele é inestimável. Já te disse. Um ótimo chefe de guerra, um genuíno ponto de referência para os meus homens. É evidente que não lhe ia dizer.
— E depois da caçada?
Asgrim não respondeu. O governador começou a brincar com uma caneca de cerveja vazia que estava em cima da mesa, evitando olhar para o outro homem.
— Responde, Asgrim. E depois da caçada?
— Bem, bem, meu velho adversário, toquei num nervo sensível, não toquei? E não é preciso muito para perceber. Na verdade, é tudo muito simples: deste asilo à rapariga, enviaste o rapaz para avisar Thorvald, a tua estúpida viagem até aqui, hoje... Quem diria que um homem tão inteligente como tu havia de ter coração? Mal consigo acreditar. Depois da caçada, ele vai para casa, claro. Ou não, conforme as circunstâncias.
Niall cerrou os punhos para se obrigar a manter imóvel. Em tempos, não teria tido necessidade de uma ajuda tão primitiva. Era perito nesse jogo. Não podia ter mudado tanto.
— Ou não? — perguntou ele de sobrancelhas erguidas. — Não te podes dar ao luxo de o deixar ficar, penso eu.
— Bem, não — disse Asgrim. — O valor dele dura, precisamente, até ao momento em que acabar a caçada. Depois disso, vai, de uma maneira ou de outra.
Niall respirou fundo e deixou sair lentamente o ar.
— Deixa-me levá-lo — disse ele calmamente. — Por favor. — Asgrim riu de troça.
— Por todos os deuses. O excepcional, o impenetrável irmão Niall a pedir? Nunca pensei ver esse dia. Mas, é claro que não podes falar com ele. Penso que já enumerei, pelo menos, três razões para isso. Um homem não deve ter filhos se, depois, tenciona virar-lhes as costas, não achas?
Niall olhou para ele friamente.
— E tu percebes disso, evidentemente — disse ele.
— Tento na língua! Tu não estás em posição de me julgar. Além disso, posso lembrar-te que estás nos meus alojamentos, com guardas armados por trás da porta? Vou-te dizer o que vai acontecer. Tu e o teu companheiro vão sair daqui rapidamente enquanto as minhas forças estão na falésia, a sul, a praticar com cordas e pesos. Ides direto para casa e ides ficar longe daqui e de Água Brilhante até a caçada estar acabada.
— Eu não estou sujeito às tuas leis, Asgrim — disse Niall calmamente. — Tornei isso bem claro no dia em que pus os pés nesta ilha. Então, já não te tinha em boa conta e os anos não fizeram nada para melhorar a minha opinião.
— Mesmo assim, farás o que eu disse. Se não, terás de enterrar em breve outro companheiro. Então, será como quando vieste para aqui: terás uma vida muito solitária. Se o aviso não te chega, podes ter a certeza de que a tua desobediência não contribuirá em nada para o futuro de Thorvald. Os acidentes acontecem com frequência entre os guerreiros. E agora vai e mantém a boca fechada. Estamos entendidos? — O olhar de Asgrim era duro e a sua boca estava tensa. Niall aprendera, há muito, a ler o rosto daquele homem, o seu comportamento e os seus gestos. Por baixo da máscara de autoridade, o monge reconheceu o medo.
— Estamos. Farei como mandas, por agora. Mas é possível que aches outros menos obedientes, Asgrim. Sinto aqui uma mudança e acho que tu também sentes. Terão os teus homens descoberto a esperança? Eles não vão renunciar a ela só porque tu queres.
— Estás a dizer disparates. Sempre disseste. Já não tenho paciência. Os meus guardas vão escoltar-te até ao alto da encosta. Despacha-te e dá-te por feliz por eu te deixar ir.
— A tua hospitalidade, como sempre, não tem igual — disse Niall suavemente enquanto Asgrim abria a porta e passavam à antecâmara. Breccan continuava sentado, calmo e calado e com a cruz de madeira nas mãos. O monge estivera a murmurar algumas orações, talvez, e os guardas tinham estado a ouvir. As armas tinham sido postas de lado; os dois homens pegaram nelas assim que Asgrim apareceu.
— Levem-nos ao alto da encosta — ordenou o governador — e certifiquem-se de que não voltam.
Os homens tinham saído do campo de treino; agora, estavam a escalar a falésia no outro extremo da baía. Podiam ser vistos claramente do carreiro da encosta, organizados em equipes de quatro, um em cada extremo da corda por razões de segurança e outros subindo ou descendo, uma dança de força e destreza. Da praia, o homem de cabelos ruivos observava-os, uma figura direita, de ombros quadrados, nas suas simples roupas de guerreiro, de costas para o abrigo e para o carreiro por onde Niall e Breccan trepavam. Ninguém reparou na partida dos eremitas. Os homens estavam concentrados na instrução, preocupados em fazer tudo certo e Thorvald tinha toda a sua atenção focalizada nos seus homens, sem dúvida elogiando os seus progressos e corrigindo as suas fraquezas. Era evidente que era um líder nato.
Os monges atingiram o alto da encosta.
— Pronto — disse Breccan aos guardas. — Chegámos; daqui, vamos direto para casa.
— E nada de voltar para trás — avisou-o Hogni. Ele estava a falar a sério.
— Nós sabemos quando não somos desejados. — A voz de Breccan era calma. — Rezarei por vós.
— Não é preciso — resmungou Hogni.
— Mesmo assim — disse Breccan. — Bem, vamos embora. Espero que gostem do carneiro.
Niall fizera o caminho todo calado. Não se preocupava com a sua segurança; dava pouco valor à sua vida e, de fato, só continuava vivo devido a uma promessa. Mas o bem-estar dos outros era outra questão. Aqueles enormes guerreiros podiam ser o instrumento de um castigo que Asgrim tencionasse infligir-lhes por desobediência. No entanto, vira a maneira como eles falavam com o jovem líder, a expressão nos seus rostos ao olharem para ele.
— Diz a Thorvald para ter cuidado — disse ele em voz baixa. — Tem de ter muito cuidado. Diz-lhe que lamento muito não termos podido conversar um pouco.
— Não entrego mensagem nenhuma — grunhiu Skapti e com aquelas últimas palavras os dois guarda-costas viraram as costas e regressaram ao acampamento.
— Para casa — disse Breccan com firmeza. — A vaca precisa de ser mugida, as galinhas precisam de ser alimentadas e eu preciso de alguma meditação, um bom jantar e ir para cama cedo. Vamos. O caminho ainda é longo para dois homens que já ultrapassaram a juventude.
Niall não respondeu. O monge estava a olhar para o acampamento.
— É um belo rapaz — comentou Breccan. — Um filho de que qualquer pai se orgulharia. Parece ter uma grande força interior, apesar do que lhe caiu em cima.
— Sim — disse Niall. — Tem a força que falta ao pai. É como se o meu coração tivesse sido espetado num pau e colocado ao lume. Como é possível um homem afastar-se numa altura destas e não tentar intervir? No entanto, fazer qualquer coisa seria provocar ainda mais estragos. Mal consigo aguentar: Creidhe morta, aquela rapariga tão corajosa, e o rapaz à mercê de Asgrim... Eu devia voltar para trás. Devia confrontá-lo. Mas não posso. Que me deu para me atar, assim, a uma promessa?
— Tempo — disse Breccan, colocando uma mão no ombro do outro homem. — Dá a ti próprio algum tempo. Não fales de espetos e lume. Só agora é que descobriste que tens um coração. Deixa-o bater um pouco.
Os dois monges começaram a atravessar as encostas mais baixas, onde a erva e algumas flores pálidas eram comidas por ovelhas esguias e de pêlo comprido. Durante algum tempo, caminharam em silêncio. Finalmente, Niall disse:
— Há uma resposta para isto, eu sei que há. Uma resposta que está para além da compreensão de Asgrim. E pressinto que não reside numa oração.
CAPÍTULO DEZ
Em tempos de trevas, o homem simples pede luz.
Em tempos de confusão, pede clareza.
Eu, simplesmente, peço que alguém ouça.
NOTA À MARGEM DE UM MONGE
— Não podíamos estar mais prontos — disse Thorvald, observando as pequenas ondas que morriam a seus pés. — E ainda bem. Dizem que faltam poucos dias.
Sam acenou com a cabeça.
— Knut diz que se percebe pela água. Uma calmaria. Ainda não é seguro, mas dentro de alguns dias será possível. Não que seja fácil, seja em que circunstâncias for, passar a Corrente dos Loucos. Mas teremos hipótese de regressar inteiros se fizermos as coisas como deve ser. Não gostava nada de ficar lá.
— Amanhã levamos os barcos para a Baía Pequena — disse Thorvald. — Disseram que ainda há algumas cabanas velhas. Podemos acampar na praia até o mar nos deixar atravessar até à Ilha das Nuvens. Temos de estar prontos; prontos para partir de madrugada quando chegar o dia crítico.
Sam olhou para ele.
— Estás excitado, não estás? — perguntou ele friamente.
— Não, Sam, não estou excitado. Estou, simplesmente, a fazer o que um líder deve fazer: antecipar o que pode acontecer, assegurando-me de que está tudo pronto.
— Um líder. Sim, tornaste-te num desses, não tornaste? Tal como o teu pai. Não me surpreende. Tu preocupas-me, Thorvald. Que vai acontecer quando isto tudo acabar?
Thorvald cruzou os braços e olhou de lado para o amigo. Sam estava igual a si mesmo, sério, honesto, confuso. Era um alívio depois da máscara agressiva que usara após terem sabido da morte de Creidhe.
— Pensei que querias participar na caçada — disse Thorvald. — Há alguns dias atrás, ninguém te teria impedido. Que aconteceu ao teu grande desejo de vingança? — Sam não respondeu. O jovem começou a caminhar ao longo da praia, afundando as botas na areia escura. Thorvald caminhava a seu lado. A luz estava a diminuir e as aves gritavam por cima, voando a caminho dos seus abrigos sob um céu cor de violeta. Thorvald manteve um tom de voz ligeiro —, por que não me dizes qualquer coisa?
— Está bem. — A voz de Sam era áspera. — Regressamos vitoriosos, para que os problemas de Asgrim se resolvam. Ele agradece-te e oferece-se para carregar o Sea Dove com provisões. Dizemos adeus e vamos para casa. Damos a notícia da morte de Creidhe à família dela e fazemos de Eyvind um inimigo para o resto das nossas vidas. Em seguida, continuamos a partir do ponto onde tínhamos ficado. Que te parece?
— Parece-me que faz sentido, como sempre da tua parte, Sam, é o que me parece.
— A pergunta é: E tu, ficas feliz? Depois disto? — Thorvald não conseguiu evitar uma risada amarga.
— Feliz? Quando é que eu alguma vez fui feliz?
Os dois jovens caminharam em silêncio durante alguns momentos, passando pelas formas sombrias dos pequenos barcos encalhados na praia e pelo vulto maior do Sea Dove. O casco parecia perfeito; mal se via o lugar onde começava e acabava o remendo.
— Como podes dizer isso? — perguntou subitamente Sam. — Como se a morte de Creidhe não mudasse nada, como se nada na tua longa e pessoal história de injustiça e miséria tivesse mudado? Isso é um disparate, Thorvald. Devias esquecer isso tudo e fazer o que tens de fazer. Pelo menos, é a minha opinião.
Thorvald ficou chocado, por momentos e não disse nada. Finalmente, disse:
— Pensei que era o que estava a fazer. Não podes negar que me tenho mantido ocupado.
— Não é isso que eu queria dizer — resmungou Sam. — Acontece que não és o único a sentir-se mal. Quando ela morreu, foi como se a luz tivesse desaparecido. Não espero que compreendas; tu tens a cabeça cheia de esquemas e estratégias, coisas que estão para além de tipos normais como eu.
Seguiu-se uma pausa; os dois jovens estavam nas rochas, no extremo da baía, por baixo da falésia onde tinham testado as perigosas subidas e descidas.
— Estás a dizer — perguntou Thorvald — que eu não quero saber de mais nada senão desta oportunidade para provar o meu valor, para comandar e vencer por Asgrim? Eu ter-me-ia ido embora; eu disse-lhe isso. Disse-o a todos. Tu ouviste-me.
Sam não respondeu.
— Não me posso dar ao luxo de ser fraco, Sam. Eles confiam em mim; tudo depende de mim. As coisas aconteceram, simplesmente, não fui eu que as fui procurar. Agora, parece-me que não há outra hipótese se não continuar. Mas...
— Mas o quê? — grunhiu Sam, nitidamente pouco convencido. A voz de Thorvald era um murmúrio.
— Tu achas que a morte de Creidhe não representou nada para mim. Pelo menos, foi o que eu percebi. Sam, eu nunca pensei que me doesse tanto. Foi como se... se me tivessem cortado um braço, como se me tivessem furado um olho. Depois disto, nunca mais serei o mesmo. Estás a ouvir? E agora deixa-me em paz, tenho uma batalha para ganhar e não posso pensar em mais nada.
Sam ficou onde estava. O jovem manteve-se de pé nas rochas, sólido, firme. Thorvald olhava para o mar; à luz difusa do crepúsculo, podiam ver as vagas a esmagarem-se, brancas, no recife.
— Desculpa — disse Sam em voz baixa. Thorvald respirou fundo.
— Não — disse ele. — Eu é que devo pedir desculpa e também agradecer-te. Tu deste o teu tempo e a tua energia ao teu barco, ao passo que eu tenho andado de tal modo envolvido que mal te tenho falado. Tu és um verdadeiro amigo, Sam. Não sei como me aguentas. Eu tenho de seguir em frente. Espero que compreendas isso.
Sam acenou com a cabeça.
— Pelo teu pai, sim. E por Creidhe.
— E por mim. Não posso fazer outra coisa. Quanto a depois, vamos para casa, claro. Que outra coisa havíamos de fazer? Espero que o teu ajudante continue à espera em Stensakir.
— Quanto a isso — disse Sam — tenho um voluntário ansioso por descobrir um lar novo longe de tudo isto e por um trabalho honesto: o jovem Knut. Mas tudo a seu tempo. Temos uma batalha pela frente. Aliás, duas batalhas; uma com a tribo da Ilha das Nuvens e outra com o mar e eu não sei qual delas prefiro.
— Tens medo? — perguntou Thorvald.
— Do mar não; vai ser duro, mas tenho a certeza de que o Sea Dove se aguenta. Quanto ao combate, a conversa é outra. E tu?
Thorvald pensou naquilo.
— Não tenho medo da caçada — disse ele lentamente. — E acho que também não tenho medo de morrer; a minha vida não tem sido uma coisa maravilhosa, no fim de contas. Mas o pensamento de falhar aterroriza-me, Sam. Desta vez não podemos perder. Tenho de fazer o impossível para que os homens consigam. Tenho de resgatar Máscara-de-Raposa. É a única coisa que interessa: capturar o vidente e conseguir a paz para este povo. É essa a minha missão. Só depois de a ter levado a cabo é que posso pensar em regressar.
Pairava uma bruma baixa sobre a Ilha das Nuvens, escondendo a paisagem, as rochas úmidas, os arbustos e a erva. A umidade não impediu Guardião de pescar; o jovem saiu cedo, assim que o céu começou a clarear e regressou a pingar com uma fiada de peixes no cordel. Pequenino também saíra, sob a sua forma de cão; agora, sacudia-se vigorosamente, espalhando gotas de água em todas as direções, no interior da pequena cabana.
Guardião pousou os peixes, pegou num saco e esfregou os cabelos emaranhados, que lhe ficaram espetados no alto da cabeça, numa confusão total. As suas roupas fumegavam ao calor da lareira que Creidhe espevitara.
— Só mais alguns dias — observou ele. — Três, quatro, talvez. Quando o céu clarear, mostro-te onde te podes esconder, tu e Pequenino, para quando eles vierem.
— Oh — disse Creidhe. Aquilo era real; não podia fingir que não ia acontecer. — Não posso ficar aqui, então?
Guardião olhou para ela com olhos sombrios.
— Aqui não é seguro — disse ele. — Demasiado aberto, fácil de encontrar. Vou levar-te para outro lugar. Terás de ficar lá. Eles vão permanecer dois dias na ilha; durante a noite, ficam nos barcos, ao largo. Durante esse tempo, não posso ir ter contigo. Tens de ficar escondida e calada. É sempre muito difícil para Pequenino. Desta vez vai ser melhor por tu estares aqui.
— Oh. — Parecia não haver mais nada a dizer. A jovem imaginou a criança confinada, muda e cheia de medo, escondida num lugar qualquer, completamente só. Esperando o regresso do irmão e receando que ele não regresse de todo.
— O que é? — perguntou Guardião, acocorando-se ao lado da jovem e começando a preparar o peixe. — Tens medo? Se ficares escondida, não há problema. Pequenino porta-se bem. Eu ensinei-o a comportar-se como deve ser. Não vos deixaria sós durante tanto tempo, mas não tenho outra hipótese. Não posso permitir que eles o apanhem. Ou a ti, Creidhe.
Ela acenou com a cabeça, sentindo a inevitabilidade daquilo tudo, aquele sentimento esmagador de desgraça que não conseguia afastar por mais que tentasse.
— Eu faço isso. Tu já os apanhaste — disse ela, porque não havia dúvida de que uma atividade prática, como cozinhar, era uma grande ajuda em momentos de dúvida.
— Como queiras. — Ele passou-lhe a faca e ficou a observá-la enquanto a jovem limpava o peixe com as suas mãos pequenas e experientes. Quando ela olhou para cima, viu que ele estava a sorrir, um sorriso de uma doçura de tal modo desarmante, que lhe fez acelerar o coração.
— O que é? — perguntou ela. — O que é que se passa? Achas que não sou capaz de fazer uma coisa de todos os dias? Faço isso todos os dias, em casa.
Guardião acenou com a cabeça; o sorriso desaparecera, mas o jovem continuava a olhar para ela.
— Pensei que tivesses pessoas para te servir — disse ele acanhadamente.
— Tenho, suponho — disse Creidhe — se lhes pedir. Nós temos muitos homens e mulheres a trabalhar na nossa casa. Mas eu gosto de cozinhar, assim como gosto de tecer, bordar e ensinar crianças. Faço esses trabalhos porque acho que são importantes; porque acho que são uma alegria.
Guardião acenou com a cabeça.
— Vê-se que tens essas tarefas no coração — disse ele. Creidhe sentiu as faces corarem, aquecendo-lhe, de certo modo, a alma. Era desconcertante ouvir aquele rapaz feroz traduzir em palavras os seus pensamentos mais íntimos.
— Sim — disse ela, cortando o peixe em pequenos bocados. — Este gênero de trabalho une as pessoas; dá-lhes algo a que se agarrarem; transforma as pequenas coisas num todo. Tal como uma boa sopa, para a qual contribuem o mar, a horta e os campos e nós juntamos tudo com mãos carinhosas, fazendo algo de novo e partilhando-o com aqueles de quem gostamos. Ou uma canção. — A jovem olhou para Pequenino, que estava sentado, envolto num cobertor, junto da lareira. — A melodia dele vem da terra, do ar e do fogo; das profundezas do mar, da Lua e das estrelas. É um grande dom, maior do que qualquer outro. Ele abre as nossas mentes às vozes das coisas antigas. Nunca pensei ouvir semelhante coisa da parte de uma criança.
O silêncio caiu entre os dois. Creidhe colocou o peixe na frigideira com uma colherada de óleo de foca que ele tinha dentro de um jarro e colocou-a nas brasas, a um dos cantos da lareira.
— Tens de tomar o pequeno-almoço — observou ela, estudando as feições magras de Guardião, a sua palidez, as suas olheiras. Por momentos, ele sorrira; mas a caçada estava próxima. A jovem nem queria acreditar no que ele ia fazer. Pequenino também. Gostava de o ver engordar mais um pouco. Se eu estivesse em casa dar-lhe-ia queijo, papas de aveia e vegetais.
Guardião não respondeu. O lume cuspiu e crepitou quando algumas gotas de chuva caíram pelo buraco aberto no teto. No exterior da cabana, a bruma estava tão próxima que não se via absolutamente nada. Num dia como aquele, a Ilha das Nuvens, com o seu solo íngreme, as suas falésias e fendas, era um lugar onde só um louco andaria à solta.
— Eu não pretendo criticar-te Guardião — disse Creidhe. — Eu sei que tu não lhe podes dar esse tipo de comida.
— Ele está magro. Fraco. Eu sei.
— Mas é saudável. Não podes fazer mais nada.
— Por vezes, os barcos deles trazem provisões — disse Guardião. — Pão, carne, queijo. Essas coisas podem ser roubadas. Se puder, fá-lo-ei.
— Oh, não faças — disse Creidhe apressadamente. — Não te arrisques demasiado, por favor...
Ele olhou para ela de muito perto.
— É o que eu faço — disse-lhe ele, algo confuso.
— Ficaria muito infeliz — explicou Creidhe cuidadosamente — se corresses ainda mais perigo só porque eu disse que Pequenino precisava de comer melhor. Se o fizeres, ainda ficarei mais preocupada. Por favor, tem cuidado.
— Não devias ter medo. Não ficarás com ele a cargo, sozinha. Eu já fiz isto cinco vezes; tornei-me especialista.
— Não é a perspectiva de ter de tomar conta de Pequenino que me preocupa. És tu. Já pensaste que podes ficar ferido, que podes ser capturado, ou morto? Já me falaste em acidentes, de doenças; é evidente que já pensaste nessas possibilidades. Isso é muito mais perigoso. Arriscas-te muito mais.
— Penso nisso, sim. Mas só antes. Assim que a coisa começa não fica espaço na minha cabeça para essas preocupações. Eles não me matam. Isto segue um padrão, ano após ano e eu conheço o padrão. Estou pronto para tudo o que eles possam fazer.
Ela não disse nada, limitando-se a estender a mão e a enroscar os dedos nos dele. Um momento depois, a outra mão dele pousou na dela. Creidhe sentiu um arrepio; o coração bateu-lhe com mais força.
— Eu não tenho importância, salvo como guardião dele — disse Guardião. — Só ele é importante, a sua segurança, o seu bem-estar. E, agora, também o teu. — O jovem disse aquilo com toda a simplicidade. Ao mesmo tempo, o seu polegar acariciou o pulso dela, hesitante, suave, como se lhe estivesse a enviar uma mensagem, para a qual não tinha palavras.
— Acontece — disse Creidhe, sentindo dificuldade em manter a voz calma — que tu podes dizer que não tem importância. Mas não podes impedir que as outras pessoas se preocupem contigo, não apenas porque dependem de ti, mas também porque significas qualquer coisa para elas. Pequenino gosta de ti, tu és a família dele; tu és o mundo dele, Guardião. Ele não te vê como um simples Guardião e abastecedor de comida. Para ele, tu és o pai, a mãe, o irmão e o melhor amigo.
— E tu? — sussurrou ele.
— Não sei. — A voz de Creidhe continuava, também, um sussurro. — No fim de contas, só aqui estou há alguns dias... — No entanto, algures, no interior do seu espírito, estava uma verdade que ela temia reconhecer, uma verdade que tinha a ver com Thorvald, com os laços que existiam entre os seus pais, ainda poderosos e verdadeiros após tantos anos e muito a ver com a aceitação de que a rapariga que deixara as Ilhas Brilhantes para ajudar um amigo tinha desaparecido, substituída por uma mulher com necessidades totalmente diferentes e expectativas totalmente diferentes. Como era possível ter mudado tanto tão depressa?
— Não devia ter falado nisto — disse Guardião firmemente, retirando a mão. — Estou há muito tempo afastado das pessoas. Desculpa se me esqueci de me comportar como deve ser. É claro que não queres estar aqui. É evidente que preferias estar em casa junto do teu pai, o guerreiro de cabelos dourados; com a tua mãe, a sacerdotisa. Com as tuas irmãs e os teus companheiros. Lá, tinhas tudo; aqui, não tens nada. Desculpa as minhas palavras precipitadas.
Creidhe sentiu de novo um arrepio, um frio provocado por algo que estava para vir. Durante todos aqueles anos em que tomara conta daquela criança, apercebeu-se ela, Guardião nunca se considerara outra coisa senão o guardião de Pequenino. A promessa que fizera a Sula era toda a sua existência. E agora, depois de tanto tempo, as coisas tinham mudado. Ela mudara-as; perturbara o equilíbrio da vida dele. Que lhe podia dizer? Que o seu desejo de ficar ali era mais forte, mais feroz, mais irresistível do que tudo o que sentira antes? Como lhe havia de dizer aquilo por meio de palavras? Quais seriam as palavras adequadas para explicar o turbilhão que lhe ia no coração e as ondas de calor que lhe invadiam a carne? Era ridículo; uma rapariga prática, a espécie de rapariga que nunca se esquecia de levar consigo uma faca, uma pederneira e um pente quando ia de viagem, não podia permitir que aqueles sentimentos se sobrepusessem ao sentido prático.
Guardião levantou-se e dirigiu-se para a entrada, onde ficou a olhar para a bruma matinal. Era como se toda a ilha estivesse a chorar.
— Podia dizer-te muitas coisas. — Creidhe conseguiu encontrar a voz, se bem que lhe faltassem as palavras. — Tantas, que um só dia não bastava para as dizer todas; nem uma noite. Não vou lhe dizer esta manhã. Depois da caçada, talvez tenha tempo e possa começar. Por agora, só quero dizer uma coisa. Não me parece que faça diferença o fato de eu ter aparecido aqui, que não pertenço a esta ilha, que só te conheço a ti e a Pequenino há pouco tempo. O senso comum não é para aqui chamado. Eu senti o chamamento desta ilha muito antes de ter posto os pés pela primeira vez em Água Brilhante, um chamamento antigo e poderoso, para além de tudo o que tu possas imaginar. Algo me trouxe aqui. E quero dizer-te que, enquanto durar a caçada, ter-te-ei no meu coração todos os momentos. O meu medo por ti não é por seres guardião e garantia de sobrevivência, mas por seres um homem que eu admiro muito, um homem de coragem incrível, de grande força e bondade. Nunca conheci ninguém como tu. Por isso, a tua dor é a minha dor. Se morreres, será... mudará a minha vida para sempre, Guardião. Deixarei de ser quem sou. É tudo o que te posso dizer por agora. — A voz da jovem vacilou; a jovem fez um grande esforço para se dominar. — E este peixe parece que já está cozinhado. Devíamos comer; é melhor seguirmos a rotina diária, mesmo em tempos como este.
Mais tarde, a bruma desvaneceu-se e Guardião levou-a por uma vereda que ele parecia conhecer, mas que, para Creidhe, era invisível. Pequenino seguia-os numa correria permanente; quase era preferível que se mantivesse permanentemente sob aquela forma, porque como criança, era muito menos auto-suficiente. No entanto, Creidhe estava consciente de que ele era humano, um rapaz de seis anos de idade, nascido de uma mãe muito jovem e indubitavelmente humana. A transformação era uma espécie de disfarce que, por vezes, provava ser conveniente, mas mais nada. Não se podia pedir a Pequenino que assumisse uma forma ou outra. Naquilo, ele era o seu próprio dono e senhor.
— Não olhes para baixo — disse Guardião, subindo a encosta à frente dela. A sua disposição alterara-se por completo desde a mútua troca de palavras anterior; o jovem caminhava rapidamente e os seus olhos estavam brilhantes. Ocorreu a Creidhe que aquela mudança poderia ser atribuída a algo que ela dissera. A jovem sentiu-se, ao mesmo tempo, lisonjeada e alarmada. — Espera até chegarmos ao topo.
A energia de Creidhe estava toda concentrada na marcha; olhar era a menor das suas preocupações. Doíam-lhe as pernas. Pequenino circulou uma vez à sua volta e desatou a correr monte acima.
— Já não estamos longe — disse Guardião com a respiração quase normal. — Toma, segura na minha mão. — E quando percebeu que ela estava demasiado cansada, que fazia um grande esforço para continuar, recusando-se a dizer-lhe fosse o que fosse, ele disse simplesmente: — Vem — e pegou-lhe ao colo como se ela não pesasse mais do que Pequenino. Creidhe não teve outra hipótese senão envolver-lhe o pescoço com os braços e encostar-lhe a cabeça ao ombro. A jovem não estava muito certa do que estava a sentir; a melhor maneira de descrever o fluxo de sensações que aquela proximidade lhe provocava era que se sentia confusa. Assim que Guardião pegou nela ao colo, o seu passo aumentou de velocidade; tornou-se evidente que, no fim de contas, o jovem tinha estado a andar lentamente para não a cansar. Começaram a subir a uma velocidade incrível; o peso adicional, aparentemente, não significava nada para ele e o jovem atravessou a encosta rochosa e íngreme sem pôr, uma única vez, um passo em falso. Pequenino trepava, saltava, serpenteava; ladrou, uma vez, perante um animal escondido por baixo de uma pedra. O Sol espreitou por entre as nuvens, uma luz brilhante, dourada e branca, e eles atingiram o topo da encosta.
— Fecha os olhos por um momento — disse Guardião, colocando cuidadosamente Creidhe no chão, de frente para ele. O jovem tinha as mãos em redor dos braços dela; ela tinha as suas nos ombros dele e, subitamente, tornou-se difícil respirar, se bem que tivesse sido ele a carregar com ela pela encosta acima, não o contrário. — Vira-te; não olhes sem eu dizer.
Creidhe obedeceu, sentindo as mãos do jovem em redor da cintura quando ele a colocou a seu lado.
— Agora — disse ele. — Já podes abri-los. Não é a vista mais bonita do mundo? Estamos no ponto mais longínquo que o homem atingiu. Adoro este lugar, Creidhe. Aqui é o ponto de encontro da terra com o céu, é aqui que os oceanos descansam. Daqui, vê-se tudo. Se eu tivesse uma melodia como a de Pequenino, cantá-la-ia, para que os ventos a levassem a todos os cantos da terra.
Creidhe acenou com a cabeça; a jovem não tinha palavras. Estavam a olhar para leste, para as Ilhas Perdidas; as silhuetas altas e rígidas das ilhas pareciam estar à deriva na bruma, como lugares apenas existentes nas lendas ou na memória antiga. O mar lavava-as, prateado, cinzento-escuro, verde-profundo, mudando como uma criatura viva, com mais mudanças de humor do que seixos há numa praia. Por cima, o Sol brilhava, lavando as rochas nuas do topo do monte com uma luz pálida, tocando nos cabelos loiros de Creidhe e fazendo-os brilhar. Para oeste, na direção oposta, podiam ver a longa encosta, a última ilhota varrida pelas ondas, onde os papagaios-do-mar e as outras aves marinhas voavam nas asas do vento e, para lá, o oceano selvagem, até ao fim do mundo. Ali era o reino do gelo, das grandes baleias, dos monstros e dos turbilhões. Só um louco, ou um visionário, tentaria essa aventura.
Podiam ter estado muito tempo a olhar, ou talvez não. Creidhe sentia no espírito um estranho sentimento de retidão, a certeza de estar no tempo certo no lugar exato, como raramente acontece na existência desordenada do homem. Mas não estava consciente da situação mais imediata, que, talvez, devesse ter tentado evitar: o fato de que os braços de Guardião a tinham rodeado por trás e que estavam, agora, cruzados firmemente no seu peito, apertando-a; o fato de que estava encostada, de modo que todo o seu corpo tocava o dele. A boca dele estava colada ao seu cabelo; as suas mãos descansavam nas dele, como se só pudessem estar ali. Aquela proximidade enchia-a de sensações ao mesmo tempo maravilhosas e entontecedoras; aquilo não era um sonho, uma visão ou produto da sua imaginação, era real e muito forte, acordando todas as fibras do seu corpo. A jovem não se mexeu; ficou imóvel como uma pedra. Ambos sentiam, talvez, que, para eles, não haveria muitos mais momentos de tanto contentamento.
Finalmente, Guardião disse:
— Os barcos, além, no Fiorde do Conselho. Juntaram os barcos perto do extremo oeste, prontos para partirem de madrugada no dia em que as águas acalmarem. Estás a ver?
Ela semicerrou os olhos; o mar estava brilhante à luz do Sol de Verão e era muito longe.
— Sete, oito... Conto nove barcos pequenos — disse Guardião. — E mais um: um barco que eu nunca vi antes. É maior e mais robusto do que os outros.
Creidhe não via nada; talvez a vida selvagem aguçasse a vista. No entanto, o seu coração parou. Por vezes, não é preciso ver as coisas para as compreender.
— O barco de Sam — disse ela. O Sea Dove. Que outro barco havia de ser?
Os braços de Guardião abriram-se; o jovem afastou-se dela, protegeu os olhos com a mão e olhou através da Corrente dos Loucos.
— Parece-me ser um barco de pesca — disse ele. — Pode transportar muitos homens. Asgrim apoderou-se dele, talvez, para o utilizar na caçada.
Creidhe não disse nada; o conflito de sentimentos tornava-lhe qualquer palavra impossível.
— Achas que não? — O tom de Guardião era cortante. — Achas que os teus companheiros vão participar na caçada ao lado do governador? Não disseste que eles não eram guerreiros?
— Não sei que pensar. Sam não desistiria facilmente do Sea Dove. Espero que não lhes tenha acontecido mal nenhum. Por que haviam eles de vir até aqui? Seria malfeito. Nem Thorvald seria capaz de fazer uma asneira tão grande, acho eu.
Guardião olhou para ela com olhos sombrios e maxilar cerrado.
— Vêm buscar-te — disse ele.
A jovem pensara naquilo, mas não o dissera; o pensamento enchia-a de prazer e dor ao mesmo tempo, uma exaltação e um horror tão grandes que quase sentiu enlouquecer. Calma, disse ela para si própria. Pensa.
— Não me parece — conseguiu ela dizer. — Como é que Thorvald sabe que eu estou aqui? Eles pensam que eu me afoguei; alguns homens de Asgrim estavam a observar da praia quando eu virei o barco. Eles deviam ter ido para casa. Eu pensei que eles tinham ido para casa. — A voz de Creidhe tremia. Thorvald estava ali, tão perto, do outro lado, pronto para embarcar para a ilha em que ela se encontrava; que o teria impelido a fazer tal coisa? E Guardião estava ali a seu lado, Guardião, com as suas mãos fortes e figura esguia, Guardião com as suas palavras tímidas e o seu sorriso maravilhoso; Guardião com as suas armadilhas, os seus truques e o seu arsenal formidável, pronto a enfrentar todos os guerreiros que aqueles oito, nove barcos transportassem... Thorvald e Guardião... Algures, nos seus pensamentos, a Jornada desdobrou-se e ela viu o que iria bordar a seguir e o seu espírito contraiu-se.
— Eu não tenho dúvidas — disse Guardião sem expressão. — Ele vem buscar-te. Que mais havia de ser? Ele sabe que estás viva. Não precisa de ver para saber; sente-o no coração. — O seu tom de voz era gelado, como o de um homem habituado à solidão.
— Não me parece — disse-lhe Creidhe. A luz, o bom tempo e o local tinham desaparecido. Thorvald tem tendência para agir com o cérebro; normalmente, põe de parte os sentimentos. No entanto, viajara até às Ilhas Perdidas. Que fora essa viagem, senão uma busca desesperada para tentar salvar um coração destroçado?
Guardião virara-lhe as costas, estudando os barcos distantes que ela não conseguia ver.
— Se o teu amigo vem por causa de Pequenino — disse ele — eu mato-o.
Não recebeu qualquer resposta. O animal com aspecto de cão estava ao lado de Guardião, pequeno, desleixado, as orelhas pontiagudas mal chegando aos joelhos do rapaz, uma coisa pequena, magricela. Na frente de ambos, o céu e o mar brilhantes estendiam-se a perder de vista, uma faixa maravilhosa de luz e sombras, uma imagem de eternidade. Os antepassados deviam, certamente, ter-se empenhado de modo especial naquele lugar, assinalando-o, mantendo-o à parte; esse empenho devia, também, ter atingido aquele homem e a criança que ele tanto amava. Certamente, por isso mesmo, sobreviveriam. Creidhe afastaria as imagens que vira, imagens essas que exigiam ser bordadas na Jornada; as imagens que não permitiria a si própria criar. Quanto a Thorvald, o jovem sempre fora dono das suas próprias decisões. Os riscos eram, certamente, calculados.
— Vem — disse Guardião abruptamente. — Vamos regressar. Consegues descer?
— Claro.
Ele não lhe deu a mão, avançando sem lhe oferecer ajuda. Algo nos seus ombros e no seu rosto a forçaram a manter-se silenciosa durante o caminho todo, até à cabana. Só quando já estavam dentro do abrigo é que ela lhe perguntou:
— Não me ias mostrar o esconderijo? Não seria melhor eu saber onde é? Não pode ser muito longe.
Guardião nem sequer se virou para a sua rotina habitual, avivando as brasas e pondo água ao lume. Encostou-se à parede de pedra e olhou em frente de maxilar cerrado. Foi Creidhe que pôs a água ao lume e tratou da criança.
— Espero — disse ela cuidadosamente — que não tenhas decidido que já não podes confiar em mim. Não nego que fiquei preocupada com o que viste e com o que disseste. É verdade que tenho medo por Thorvald. Por Thorvald e por Sam. Eles são velhos amigos meus e eu não quero magoá-los. Tenho saudades da minha família; não fiz esta viagem até às Ilhas Perdidas a pensar que nunca mais regressaria a casa. É verdade e tu tens de compreender. — Ela sentou-se nos calcanhares junto da lareira e olhou para ele. Guardião não se movera; não olhou para ela. — Apesar disso, é verdade o que eu disse antes. Tudo. E prometo-te solenemente que me vou esconder com Pequenino durante a caçada, sem fazer barulho, e que o protegerei o melhor que puder. Se Thorvald for à minha procura enquanto durar a caçada, suponho que terá de partir sem mim. É assim que vai ser. Eu não vou entregar Pequenino aos homens de Asgrim, Guardião, ainda por cima depois de saber o que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz lhe querem fazer. Sinto-me muito magoada por teres pensado isso de mim, mesmo por um momento.
Seguiu-se um longo silêncio. Então, ele disse, muito calmamente.
— A tua dor é a minha dor, Creidhe.
Ela acenou com a cabeça, sentindo um nó na garganta.
— E a tua a minha, como já te disse — disse ela. — A tua alegria a minha alegria, se a conseguirmos encontrar. Eu tomo conta dele na tua ausência.
— Creidhe? — O tom mudara de novo; agora era feroz, urgente. Ele acocorou-se junto dela, muito perto.
— Sim? — As suas mãos continuaram o que estava a fazer, alimentando o fogo, deitando água numa malga.
— Eu já te disse que não vou ser derrotado. É verdade. Apesar disso, se... se algo acontecer, quero que o leves contigo. Leva-o para longe, imediatamente, leva-o para a tua ilha, para um lugar onde eles não possam ir buscá-lo...
A jovem podia ouvir a voz entrecortada de Guardião e isso alarmou-a mais do que as suas palavras.
— É evidente que levo — disse ela. — Dou-te a minha palavra. Juro por... qual foi o voto que fizeste, foi um voto maravilhoso e solene... pelo vento e pelas asas...
— Pelas pedras e pelas estrelas. — O jovem terminou as palavras por ela. — Obrigado, Creidhe.
— Mas não será preciso — disse ela firmemente. — Vais sobreviver. Os antepassados protegem-te; a Ilha das Nuvens protege-te. Guardião, é melhor mostrares-me o esconderijo hoje. Já não temos muito tempo.
— Sim, em breve. Não tenhas medo. Daqui a pouco. Depois, teremos tempo para nós os dois. Agora, tenho de ir à pesca, tenho de arranjar o peixe suficiente para os dias em que estiveres sozinha. Não podemos fazer fogueiras enquanto eles estiverem aqui.
Ele aproximou-se da entrada e depois virou-se para olhar para ela; o olhar gelado desaparecera-lhe do rosto.
— Estou a exigir demasiado de ti — disse ele. — Esse homem, Thorvald, pareceu-me sentir uma certa doçura na tua voz quando falaste nele. Vi que o teu rosto mudou. Tu fizeste uma longa viagem por causa dele. Pai e mãe, irmãs e a tua terra natal, deixaste tudo isso para o seguir. Foste raptada por causa dele e quase te afogaste. Agora, ele vem à tua procura e tu escondes-te dele. Como posso pedir-te uma coisa assim? Quando o mar te trouxe até à minha ilha, não compreendia essas coisas. Como podes ficar silenciosa quando o teu homem vem à tua procura?
— Não sei. — Agora, era a voz de Creidhe que tremia. Ela olhou para Pequenino; o Pequenino tinha o seu pente na mão e estava a tentar passá-lo pelos seus cabelos emaranhados. Não era uma tarefa fácil; o jovem tinha os olhos trocados de tanta concentração. — Não sei como vou fazer; só sei que vou fazer, porque tem de ser. E agora vai, se queres apanhar peixe suficiente para vários dias. Suponho que teremos de fazer uma espécie de sopa.
Mais tarde, sentaram-se calmamente à luz da lareira enquanto o Pequenino adormecia, enroscado nos cobertores. Tudo o que se via dele era um tufo de cabelos escuros.
— Não desdobraste o teu trabalho esta noite — disse Guardião. — Esta noite não há histórias.
— Não me apetece. Nem bordar, nem contar histórias.
— O que vês perturba-te? Alarma-te? — O jovem tinha o dom de acertar no que ela queria deixar por dizer.
— Algo parecido. Não quis assustar Pequenino, tão perto da caçada. Por vezes, as imagens são sombrias, um mau presságio. É melhor não lhes dar forma.
Guardião estava a acabar o punho da sua faca, entalando as pontas dos cordões, arrancando uma linha solta com dentes aguçados e muito brancos.
— O meu irmão está no teu trabalho — comentou ele. — Isso quer dizer que vai correr tudo bem, que ele vai sobreviver?
Creidhe estremeceu.
— Bordar a Jornada não é a mesma coisa que prever o futuro — disse ela. — Eu não sou uma deusa dos espíritos, cuja agulha planeja cuidadosamente as vidas dos homens e das mulheres, cujo trabalho tem o poder de alterar o que está para vir.
Seguiu-se um pequeno silêncio.
— Tem certeza? — perguntou Guardião.
— Eu sou uma mulher comum. Não sou uma vidente como a minha mãe, ou uma sacerdotisa como a minha irmã, nem sou particularmente boa ou corajosa. Podes ficar tranquilo, não tenho poderes nenhuns. A Jornada é apenas a minha maneira de escrever o que sinto e, por vezes, os meus sentimentos são muito fortes. A minha viagem às Ilhas Perdidas é a prova de que sou uma pessoa comum, como me falta sabedoria. Pensei que poderia ajudar Thorvald, pensei que ele precisava de mim. Parecia-me terrivelmente importante estar com ele, estar a seu lado; na verdade, até um passado recente só pensava nele. — A jovem pensou no que dissera, sentindo-se algo relutante e olhar para a Creidhe da Primavera anterior, uma Creidhe em cuja mente a perspectiva de casar e assentar tinha a primazia sobre todo o resto. — Quando me escondi no barco de Sam, portei-me como uma rapariga tola — disse ela.
— Tola? — As mãos de Guardião detiveram-se; o jovem olhou para ela solenemente. — Não acho que sejas tola, Creidhe. Se não és uma deusa, foste tocada por uma deusa; reparei logo nisso quando te avistei, flutuando na direção da praia da minha ilha. Tens tantas coisas profundas em ti; sabedoria, bondade, amor.
— Mesmo assim — continuou ela, fazendo um esforço, torcendo as mãos — foi uma tolice. Pensei que Thorvald veria... pensei que se tornaria evidente para ele, que ele e eu... pensei que ele mudaria. Que conseguiria mudá-lo. Mas não foi o que aconteceu. Ou um homem aprende e muda, ou nunca aprende nem muda. Thorvald é como o pai dele, transporta as trevas no coração. Se, um dia, ultrapassar isso, não será por minha causa.
Guardião não comentou. A faca estava terminada; o jovem estava sentado com os joelhos encolhidos, com os braços a rodeá-los e fixava o fogo.
— Desculpa, estou outra vez a falar demais — disse Creidhe. — Estas coisas não te interessam.
— Interessam, sim. Ele é como o pai? O pai dele mudou. Ele contou-me muita coisa da sua juventude.
Creidhe ficou espantada.
— O pai de Thorvald falou-te do passado dele? A razão por que foi exilado? Quando? — Guardião não devia passar de um rapazinho.
— Eu sentia-me infeliz. Eles foram meus amigos: os dois eremitas e o rapaz que vive com eles. Teria ficado com eles se não fosse Sula. Asgrim tinha me proibido de ir a casa deles. Niall desafiou-o; o governador não gostou nada. Quando regressei, bateu-me. Na altura, desejei que Niall fosse o meu pai. Ele é um homem bom.
— Ele assassinou o irmão — disse Creidhe. — Foi Rei, uma vez, na minha terra. Foi responsável por muitas coisas más. Mas tens razão. Ele é a prova viva de que um homem pode mudar. Mas Niall diz que não. Ele diz que, por baixo, é o mesmo homem de sempre... Acabo de pensar numa coisa.
— Em quê?
— Quando ouvimos falar pela primeira vez no governador, Thorvald pensou que era ele o pai que procurava. Eu pensei o mesmo quando o conheci. Tem a mesma idade e a mesma aparência, e é um homem de autoridade, tal como Somerled, o pai de Thorvald. Se Thorvald se convenceu de que o governador é pai dele, isso explica por que razão ficou, por que razão o Sea Dove está além no meio da frota de Asgrim. Thorvald está a tentar agradar-lhe e provar-lhe que é digno de ser seu filho. — Assaltaram-na de novo imagens de sangue e de morte; a jovem levou as mãos aos olhos, mas não conseguiu fechá-los. — Se, ao menos, eu tivesse hipótese de falar com ele, de lhe dizer que está enganado.
— Por que havia ele de acreditar? — O tom de Guardião era confuso. — Bastava-lhe falar no assunto e muitos homens lhe diriam que era impossível. Eu sou o único filho de Asgrim; Sula foi a sua única filha. Qualquer homem destas ilhas pode atestar isso. Não compreendo.
— Não — disse Creidhe. — Não é fácil compreender Thorvald, ou amar. Não percebo como Sam e eu o aturamos. Ele queria guardar segredo. Queria descobrir que espécie de homem era o pai antes de lhe dizer. Sabes, Somerled abandonou as Ilhas Brilhantes antes de saber que tinha um filho. O próprio Thorvald só soube do pai na última Primavera, quando a mãe dele achou que já era tempo de ele saber a verdade.
— A mãe dele?
— Eu chamo-lhe tia Margaret, se bem que não seja do meu sangue. Uma mulher muito boa, corajosa, especialista na arte da agulha e do tear. Foi ela que ensinou o que sei. Uma mulher muito só, que ama muito o filho, mas que tem dificuldade em lhe dizer.
— É uma história muito triste — disse Guardião. — Um homem que poderia ter sido um bom pai, mas que não teve essa hipótese. Um homem que não merece ser pai, mas que ganha a lealdade de um filho que não é seu. No entanto, eu não consigo ter pena de Thorvald. Não gosto nada dele.
Creidhe não disse nada. A jovem tinha uma pergunta na ponta da língua, mas não sabia como fazê-la; era um assunto delicado.
— Eu... — começou ela.
— Eu... — disse Guardião no mesmo momento. Calaram-se ambos; nenhum deles tentou continuar. Creidhe foi para um dos lados da fogueira, arranjando a cama para se deitar ao lado de Pequenino. Guardião desdobrou o seu cobertor no outro lado, como era seu hábito. Entre ambos, as brasas brilhavam, aninhadas entre as pedras; naquela noite, o calor do fogo, o fogo não parecia oferecer grande conforto, porque o coração de Creidhe estava gelado, sentindo aproximarem-se as trevas.
A jovem permaneceu acordada durante algum tempo, olhando, através do buraco no teto, para o crepúsculo cinzento-azulado de Verão. Não precisava de virar a cabeça para saber que Guardião também estava de olhos abertos a alguns passos de distância.
— Guardião?
— Sim?
— Queria fazer-te uma pergunta, mas não sei se a devo fazer. — Uma pausa.
— Eu também tenho uma pergunta para te fazer — disse ele. — Pergunta tu primeiro. Se souber, respondo-te.
— Estava a pensar... estava a pensar se tu me poderias falar de quando raptaste Pequenino Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Eu sei que deve ser difícil para ti, mas pensei que me pudesses contar.
— Tens a certeza que queres saber?
— Tenho.
— Depois de eles a terem levado — a voz dele era muito baixa, mas as palavras saíam rapidamente, como se o jovem tivesse o desejo de contar aquilo há muito tempo — eu quis logo ir atrás dela. Pensei que podia lutar com eles, salvar a minha irmã, se fosse suficientemente rápido. Tinha armas, um pequeno barco e corri para a praia. Mas ele deteve-me. O meu pai deteve-me. Fechou-me; não pude ir.
— Talvez ele tivesse medo de te perder também a ti. Mas, ele não foi atrás deles? Ele e os guerreiros?
— Ah! — Uma explosão de troça. — Ninguém foi atrás d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Asgrim manteve-me prisioneiro durante muito tempo, na nossa própria casa. Não me deixava sair, apesar de eu me fartar de gritar, de lhe pedir. Quando me libertou era demasiado tarde. Ela já tinha passado de mão em mão; já lhe tinham destruído a inocência.
Cuidado, muito cuidado, agora.
— E a tua mãe? Ela não tentou fazer nada? — Um pequeno silêncio.
— A minha mãe morreu há muito tempo. Quando nós éramos muito pequenos. Praticamente, não me lembro dela.
— Conta-me o resto, Guardião.
— Era Inverno; não podia ir. O mar estava muito bravo e o vento era gelado. Esperei; esperei em silêncio. Odiei-o. A amargura parecia um veneno nas minhas veias. Assim que pude, fui ter com o irmão Niall. Várias vezes. Palavras doces, silêncio, bondade e corações abertos. Asgrim ia-me sempre lá buscar. Então, chegou a Primavera e eu meti-me no barco.
Creidhe escutava-o e desejava, com todas as suas forças, levantar-se, dar aqueles poucos passos, abraçá-lo e oferecer-lhe o pouco conforto que lhe podia oferecer. A força do seu desejo espantava-a; silenciava-a por completo. A jovem deixou-se estar, com o coração aos pulos.
— Tinha aprendido algumas coisas durante o tempo de espera. Sabia que não podia simplesmente aparecer lá, um miúdo com armas pequenas, e trazer logo Sula para casa. Assim, atraquei, fui até à aldeia deles e saudei-os, se bem que me soassem na boca como fel. Persuadi Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz de que era amigo, um rapazinho, apenas, que não constituía uma ameaça. Assim, deixaram-me ficar e eu vi a minha irmã.
— Estiveste lá no princípio, então? Antes de Pequenino nascer?
— Sim, Creidhe. Fiquei com ela, sem esperança de a poder levar para casa. Sula estava assustada, doente e desesperada. Ela só era mais velha do que eu um ano e o que eles lhe fizeram magoou-a muito, não só o corpo, mas também a alma. Ela estava a ponto de abrir os pulsos, ou de entrar pelo mar adentro. Fiquei junto dela. Ela suportou a gravidez e deu à luz. Assim que o bebê nasceu, as coisas mudaram. Sula estava fraca e doente, mas adorou o filho assim que o viu. Não interessava que fosse filho d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, o fruto de uma crueldade sem palavras. Era dela; quando ela olhou para ele pela primeira vez, Pequenino ficou-lhe para sempre no coração. E no meu, Creidhe.
— Compreendo — disse ela docemente. — Deve ter sido muito difícil para ti; tão difícil que me custa acreditar como pudeste suportá-lo.
— Eu queria tirar os dois de lá. Mas Sula estava muito magra, muito pálida, parecia uma sombra, incapaz de dar mais de três passos. Encolhia-se ao menor som; tinha medo de sair da cabana que lhe tinham dado. Ela sabia que quando o bebê deixasse de mamar, quando ela já não o pudesse alimentar, eles tirar-lhe-iam. Ela sabia que, quando eles fizessem isso, eu lutaria e que não conseguiria contra tantos. Eles celebrariam o ritual e Pequenino tornar-se-ia Máscara-de-Raposa. Se sobrevivesse. Nós sabíamos e, por isso, tínhamos de o tirar de lá.
— Mas ela morreu — disse Creidhe num sussurro.
— Ela morreu. Sula nunca esteve bem em si, enquanto esteve lá, nem sequer antes de Pequenino nascer. Era a antítese da minha irmã, sempre doce, sempre alegre. Qual é a rapariga que passa por uma coisa daquelas sem enlouquecer? Ela aguentou até o filho ter um ano; ensinou-o, em segredo, a comer outras coisas, a alimentar-se das coisas que lhe davam, peixe, ovos, vegetais. Eu ajudava-a no que podia, mas não era fácil. Não era normal um homem estar na cabana de uma mulher. Mas talvez eu parecesse uma criança; fosse como fosse, deixaram-me ficar junto dela, suficientemente perto para perceber quando ela ficou doente de morte. Sula sabia que tinha chegado a hora dela; falei-lhe em fugir, mas ela mandou-me calar. Ela sabia que não podia escapar, mas ajudou-me a planejar a nossa fuga; ensinou-me a cuidar de um bebê, se bem que ela ainda fosse, praticamente, uma criança. Eu chorei; não havia maneira de me convencer de que ela estava a morrer. Sentia-o e Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz sabiam-no. Juntaram-se, como necrófagos em redor do corpo ainda quente do animal.
Creidhe estava quase a chorar. A jovem esperou em silêncio.
— Aconteceu mais cedo do que eles esperavam, de noite, depois de uma caça à baleia e de um festim. Dormiam todos; todos menos Sula e eu. Ela morreu em silêncio, na escuridão; vi o espírito dela a sair do corpo. Cortei uma mecha dos cabelos dela e guardei-a na minha túnica. Coloquei-lhe umas conchas nos olhos. Depois, peguei no bebê, desci até à praia e fugi num dos barcos deles antes do nascer do Sol. Ele esteve sempre quieto à proa, olhando para o céu; sabia o que estava a acontecer. Rumei à Ilha das Nuvens. A Corrente dos Loucos acalmou-se para nos deixar passar.
Creidhe sabia o que acontecera: tudo desde o princípio. Mas era diferente ouvi-lo daquela maneira. A simplicidade, a tristeza e a coragem destroçaram-lhe o coração.
— Ela confiou-me — disse Guardião. — E eu cumpro a promessa feita.
— Por que vieste para a Ilha das Nuvens? Por que não regressaste a casa, onde as pessoas te teriam ajudado? Eu sei que o teu pai não foi bom para ti, mas...
— Não compreendes — disse Guardião. — Ele vendeu-a. Asgrim vendeu-a. Trocou-a por uma promessa de paz. Exatamente como fez contigo. Eu sei. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz disseram-me.
Creidhe ficou incapaz de falar.
— É verdade. — A voz de Guardião era sem expressão. — O governador não quer saber dos laços de sangue. Foi o sangue da minha mãe que nos manteve unidos, a Sula e a mim, o mesmo sangue que me liga a Pequenino. Foi o sangue da minha mãe que me trouxe para esta ilha. Asgrim desprezava-nos, a mim e à minha irmã. Nós não éramos os filhos que ele desejava: uma filha dócil e um filho obediente. Em Sula, ele via uma rapariga de pele e cabelos claros, um tesouro que ele podia utilizar para suspender temporariamente os combates, os ataques, os feitiços d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Não se interessava se ela era sua própria filha. Em mim, ele via um rapaz sonhador, um filho que preferia conversar com monges cristãos a sonhar com o poder, uma criança cujo sangue maternal era evidente nos seus olhos e na sua recusa em obedecer. Em mim, ele via o único que podia evitar que ele atingisse o seu objetivo. Não podia levar Pequenino para casa. Asgrim teria pegado nele e tê-lo-ia devolvido Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz.
— Ele vendeu-a, sabendo o que eles lhe fariam? A própria filha? Por todos os antepassados, não admira que me tenha feito o mesmo! Aquele homem não tem coração?
— Ele escolheu mal — disse Guardião calmamente. — Tudo lhe correu mal. Qualquer outro teria feito as coisas de outra maneira. Mas não Asgrim. Asgrim vai a caminho das trevas. Se não for eu a matá-lo, será outro qualquer. Este ano, no ano que vem. Não se pode confiar naquele homem.
— Ele escolheu mal? Escolheu o quê?
— A ela. A minha mãe. Não conseguiu aguentá-la por muito tempo. Ela preferiu regressar ao mar.
Creidhe sabia, inconscientemente. Nos olhos de Guardião, nas suas mãos, no carácter fora do comum, em coisas difíceis de explicar.
— Não quero falar disso. — A voz dele era hesitante.
— Da tua mãe? Por que não?
— Porque tu ficas com medo. O que disseste da tua família, do teu irmão se ter afogado... Vais ficar com medo de mim. Não quero falar disso.
— Eu já sei — disse Creidhe. Ele ficou calado.
— Guardião?
Não obteve resposta.
— Eu tenho medo da caçada — disse Creidhe — e do que possa acontecer. Mas nunca terei medo de ti.
Ela ouviu-o respirar fundo, um grande suspiro. Era evidente que o jovem esperava, há muito, aquele momento; que a sua confiança lhe era preciosa. E como ela desejava estar junto dele, abraçando-o, não ali, sozinha com o corpo em fogo e a cabeça cheia de sentimentos que a arrepiavam e aterrorizavam. Não havia lógica nenhuma naquela situação. Diziam que a Tribo das Focas era capaz de fazer aquilo; que eram peritos em sedução, em encantamentos. No caso de Guardião, não acreditava, com a sua timidez e doçura. Não havia ali nenhuma magia, pensou ela, apenas a atração natural entre um homem e uma mulher, uma atração tão grande que podiam ser duas metades de um todo. As pessoas diziam que uma coisa assim só nas histórias, para deslumbrar. Mas Creidhe sabia que não era assim, porque crescera no meio da personificação dessa atração: Eyvind e Nessa, um o complemento do outro.
Não ia ser fácil adormecer. A jovem mexia-se, inquieta, virando-se de um lado para o outro.
— Guardião?
— Sim?
— Não tinhas uma pergunta para me fazer?
— Tinha e tenho. Mas não te posso fazer. É... não posso... não tenho palavras. Sei que te vais ofender. Não consigo dizer...
Ela ouviu-o virar-se, tal como ela, de um lado para o outro, inquieto; a jovem sentiu, sem precisar de olhar, que ele estava de olhos abertos, olhando para o céu. Não era difícil perceber a natureza da pergunta.
— A tua história é muito triste — disse ela suavemente — demasiado triste para uma história de embalar, apesar de ser uma história de grande coragem. Tu salvaste-o; cumpriste a tua promessa. Mas, esta noite, penso que necessitamos de outra história e eu conto-te, se tu quiseres.
— Por favor.
Creidhe mal o ouvia. O jovem estava demasiado longe; mais longe do que devia estar. No entanto, não conseguia tomar uma decisão.
— Já te falei da tia Margaret, a mãe de Thorvald — começou ela.
— Eu não quero ouvir a história de Thorvald. Estou farto dele. — Creidhe descobriu que estava a sorrir.
— Não é a história de Thorvald. É uma história que fala de Thorvald. E não me interrompas. No fim, vais gostar. A tia Margaret ensinou-me a fiar, a coser e a tecer. Eu adoro tecer; e parece que sou muito boa. Os meus cobertores são autênticas tapeçarias que são oferecidos como presentes de casamento ou a visitantes oficiais, como os chefes de guerra dos Caitt ou os jaris de Rogaland. Sinto orgulho por o meu trabalho ser assim valorizado, mas também triste, porque dá-lo é como dizer adeus a uma parte de mim mesma.
— Mas — disse Guardião — assim, tu partilhas o teu dom com os outros; a beleza que fazes viaja para longe e alegra muitos corações. Isso é bom. Mas, interrompi outra vez a história; peço o teu perdão.
— Bem — continuou Creidhe — pouco antes de sair de casa e vir para aqui, acabei um cobertor. Era um pouco diferente dos outros; escolhi eu própria o padrão e as cores e enquanto trabalhava nele... — a jovem sentiu-se corar na escuridão, feliz por ele não a poder ver — não pensei vê-lo na parede de um nobre qualquer, ou a decorar o quarto de uma dama. Sempre o imaginei na minha própria cama: a cama que eu partilharia com o meu marido na minha primeira noite de casada.
Silêncio.
— O cobertor era de uma bela cor azul-escura; eu própria fiz a cor. Tinha faixas vermelhas, um padrão de riscas estreitas e uma orla que eu desenhei no fundo, com árvores e animais. Fiz tudo com um grande amor; se se pudesse contar a história com que eu sonhava enquanto fazia o cobertor, seria uma história de luz e calor, de abraços, de alegres regressos a casa, de crianças sorridentes e do cheiro do pão acabado de sair do forno. De beijos e de gente a tocar-se, de suspiros de tirar a respiração, de... de um mundo de felicidade, que eu desejava enquanto tecia aquele pedaço de lã, Guardião. Quando acabei, dobrei-o e guardei-o em casa da tia Margaret e fui para casa. Então, fiz as malas e fui atrás de Thorvald para as Ilhas Perdidas.
Nem um som. A sua inclinação para interromper desaparecera.
— Então, eu era uma rapariga diferente — disse Creidhe cuidadosamente. A parte seguinte ia ser muito difícil de pôr em palavras. — Pensava que o amava. Pensava que aquilo é que era o amor, gostar tanto de um homem sem nos importarmos que ele nos magoe, que nos ignore, que nos bata, até. Eu pensava que não tinha importância o fato de ele não dar valor às coisas de que eu gostava. Os meus sonhos falavam sempre de um dia em que as coisas mudariam; um dia em que ele me veria como eu sou na realidade, e dormiríamos os dois por baixo do cobertor azul, marido e mulher, como eu sempre imaginara. Ele é meu amigo e companheiro desde crianças. Quando saí do barco, ainda acreditava nessa mudança: que estávamos destinados a viver juntos: Thorvald é capaz... é capaz de ser um bom homem, apaixonado e bom, quando se lembra.
— Não gosto dessa história, Creidhe.
— Queres que pare? — Seguiu-se uma pausa.
— Não disse ele. Quero ouvir o resto.
— Não foi Thorvald que mudou, fui eu. Mudei quando vim para aqui. O nosso barco quase naufragou e Sam ficou ferido. Thorvald ficou zangado comigo. Então, atingimos as Ilhas Perdidas e Asgrim levou-os. Depois disso, aprendi o que é a solidão, o medo e o que significa não poder ajudar, mesmo quando acreditamos que somos capazes de tudo. Aprendi que não podemos contar com os nossos amigos; aprendi que os estranhos podem tornar-se nossos amigos. Aprendi muitas coisas quando vim para as Ilhas Perdidas. Aqui, descobri a coragem, a lealdade e a resistência, num lugar que eu pensava ser selvagem. Descobri imaginação, bondade e generosidade. Vi uma beleza que eu nunca pensei existir neste mundo. — A sua mão descansou na silhueta adormecida de Pequenino, envolta no cobertor coçado. — Vi que o amor pode sobreviver mesmo nas piores circunstâncias. Que uma criança pode manter a fé apesar de ter de suportar o que muitos homens não suportariam, que pode manter-se verdadeira até se tornar ela própria num homem. Aprendi tudo isto.
Guardião não emitiu um som.
— E... e descobri que estava a iludir-me a mim mesma nos meus sonhos de futuro. Não podemos fazer com que um homem, ou uma mulher, nos ame; não podemos ajustar o outro à nossa visão de par perfeito, aquele que gostaríamos de abraçar acima de todos os outros. Esse outro é ele próprio; não muda só porque nós queremos. Tem o seu próprio caminho. Depois de muito tempo, reconheci que é assim. Se agirmos assim, poderemos ter, com o tempo, uma vida satisfatória: uma sociedade, na qual a amizade, a familiaridade e a confiança desempenham o seu papel. Há muitos assim. Não é o que acontece com a minha mãe e o meu pai, a mulher sábia e o guerreiro de cabelos dourados. Eles olharam um para o outro e souberam; o que existe entre eles é eterno, profundo, uma ligação que não tem fim. Ainda se vê nos olhos de ambos, em cada vez que se tocam. A voz dela quebrou e transformou-se num sussurro. Eu aprendi que não posso aceitar menos do que isso.
Seguiu-se um longo silêncio.
— A tua história de embalar chegou ao fim? — A voz de Guardião soava de modo estranho, como se os seus pensamentos o fizessem ter dificuldade em falar.
— Ainda não — disse Creidhe. Aquela história seria mais bem contada pelos outros sentidos: pelo suave tocar dos dedos, dos lábios, do sussurro da respiração e o lento movimento do corpo. Mas ainda era cedo, muito cedo. — Mas falta pouco. Tenho sonhado todas as noites desde que cheguei às Ilhas Perdidas: tantos sonhos, alguns sombrios e odiosos, outros tão doces que, quando chega a madrugada, não quero acordar. Muitas vezes, tenho o mesmo sonho do Inverno passado, quando estava a tecer o cobertor azul. E devo dizer-te que o homem que partilha comigo o seu calor, enquanto estou a dormir, não é Thorvald. Desde que me tocaste pela primeira vez que sei que é assim.
Ela ouviu um súbito e abrupto movimento e depois um silêncio total.
— Não imagino que possamos manter esta situação por muito mais tempo — disse ela — o teu cobertor aí e o meu aqui, quer dizer. Mas, Guardião... meu querido... penso que devemos esperar um pouco mais. A caçada está próxima. Tenho medo por ti, por Pequenino, por Thorvald e também por Sam. Farei como prometi: protegerei a criança. Aquilo que tens de fazer consterna-me e aterroriza-me. Não consigo perceber como sobreviveste estes anos todos. É isso que me obriga a pedir-te para esperar, apesar de desejar deitar-me a teu lado, tocar-te e... — Não estava a conseguir; os seus sentimentos ameaçavam levar a melhor sobre o seu senso comum. A jovem respirou fundo. — Aquilo que existe entre um homem e uma mulher deve ser partilhado com alegria — continuou ela. — Penso que devemos esperar até termos ultrapassado estes tempos de trevas. De outro modo, entraremos em desespero, procuraremos um no outro um modo de afastar o medo, de expulsar as sombras. Eu não quero que seja assim. Quero que seja uma coisa alegre, brilhante como o Sol, esperançosa, como imaginava enquanto tecia o cobertor. — Deuses, o seu coração parecia um machado a cortar madeira, e tinha o rosto a arder. Nunca, nunca teria falado assim a Thorvald; nem sequer sabia se estava a fazer as coisas como deve ser. Possivelmente, não era, de todo, o que ia na cabeça de Guardião. Ele tinha pela frente uma tarefa terrível; talvez os seus pensamentos estivessem concentrados em emboscadas, sortidas e mortes. Não suportava pensar que fosse assim.
— Eu... eu gosto muito da resposta — disse Guardião. Parecia que ele estava a sorrir. — Parece que não preciso de fazer a pergunta. Pergunto a mim mesmo se não estou a sonhar, Creidhe.
— Não — disse ela a tremer. — Estás acordado. Estamos ambos e parece que vamos continuar assim durante mais um bocado.
— A distância é pequena, entre esse lado da lareira e este — disse ele. — No entanto, parece que estamos um de cada lado do mundo. Nunca pensei que tivesse importância o lugar onde estendo o meu cobertor.
— É só mais alguns dias, mais nada. Boa noite, Guardião,
— Boa noite, minha querida. — A voz dele era muito suave na meia escuridão.
Só conseguiu adormecer de madrugada. Então, já Guardião tinha saído, talvez para estender o seu cobertor noutro lugar qualquer, talvez para patrulhar as suas armadilhas, as suas armas e os seus locais de vigia. A jovem só acordou quando ele regressava com Pequenino nos calcanhares, já o Sol ia alto.
Ele sorriu-lhe, um sorriso doce e triste, e disse:
— Temos de ir. Esta manhã. Vou levar-te para o esconderijo. Eles vêm amanhã. Vejo-o na água.
O coração de Creidhe deu um pulo enquanto ela saltava dos cobertores com os olhos ainda ensonados.
— Amanhã? Já? Eu pensei...
— Sim — disse Guardião muito sério. — Eu também pensava que não era para já. Temos de juntar tudo o que está aqui: cobertores, roupa, o trem de cozinha, tudo o que possa denunciar a nossa presença. Mais tarde, venho apagar os vestígios de fogo e cobrir o nosso rasto. — O jovem calou-se e olhou para ela. — Lamento — disse ele finalmente. — Lamento que tenhas de suportar isto por minha causa. Mas não quero que sintas medo.
Creidhe não encontrou palavras de conforto. O dia seguinte era real; o dia seguinte olhava-a nos olhos. O dia seguinte era Thorvald enfrentando Guardião de espada na mão e propósito no coração. Se Thorvald vencesse, poderia regressar a casa, para junto da sua família. Se Thorvald vencesse, Pequenino seria entregue Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. E Guardião morreria; ela sabia que ele lutaria até à morte para defender a criança. Na sua mente, Creidhe podia ouvir a sua voz, severa, determinada: Se os teus amigos vierem para resgatar Pequenino, mato-os.
Enquanto dobrava os cobertores e as capas, Creidhe esforçava-se por pôr os seus pensamentos em ordem. Pensou no que os seus pais fariam perante uma situação daquelas. Nessa, ainda uma verdadeira sacerdotisa apesar da sua vida entre a família e os Folk, procuraria ajuda na meditação, na adivinhação, no transe e na oração. Nessa agiria de acordo com a sabedoria dos antepassados. Creidhe não era uma mulher sábia. Por vezes, o que aparecia na Jornada, parecia refletir uma sabedoria antiga, uma sabedoria que fluía pelas imagens de lã independentemente dela, mas isso, agora, não era ajuda. Ela sabia o que a Jornada exigia a seguir. Estava claro na sua mente e transformou-lhe o frio que sentia num mau presságio. Quanto a Eyvind, nunca teria permitido que as coisas chegassem àquele ponto. Se ele estivesse ali, juntaria as partes num conselho e faria com que falassem abertamente. Insistiria que continuassem reunidos até chegarem a uma solução. Era a maneira dele, uma questão de justiça e eqüidade. Mas isso era nas Ilhas Brilhantes, um lugar próspero, de aldeias pacíficas, de barcos bem cuidados e campos cheios de gado saudável. Quem teria a força necessária para impor esse pensamento no autocrático Asgrim e no seu aterrorizado povo, ou nos terríveis homens da tribo d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz? Como poderiam o governador, o seu filho e os homens que tinham raptado e conspurcado Sula sentar-se à mesa do mesmo conselho? Se ao menos estivesse ali o irmão Niall, ou Breccan. Creidhe admirava a sua calma, as suas vozes experientes e os seus conselhos sábios.
— Creidhe? — Guardião acabara de juntar os potes e as panelas, os ferros do espeto e o seu cobertor esfarrapado. O peixe que tinham cozinhado na noite anterior estava pronto, numa panela de barro tapada.
— Chegou a hora?
— Leva isto — disse Guardião. O jovem segurava na mão a faca em que estivera a trabalhar, uma arma afiada, útil, cujo punho de osso tinha agora uma intrincada rede de cordões; torcidos, em nó e às voltas, que fez lembrar a Creidhe as vagas do oceano e as criaturas de longos membros que nele viviam.
— Obrigada — disse ela, pegando-lhe. — Espero não precisar de a usar. — A jovem olhou para Pequenino, que tentava dobrar, como ela, o seu próprio cobertor, em quadrado. Com a língua entre os dentes, o Pequenino ajoelhou-se e alisou a lã esfarrapada com as suas pequenas mãos de dedos longos. — Suponho que eu e ele vamos ter de ficar muito calados e quietos até eles se irem embora. Eu não estou habituada a magoar pessoas. Não sei se...
— Shhh — disse Guardião. — Leva-a. Fico mais descansado por saber que te pode se defender e a ele. Vai correr tudo bem; o esconderijo é difícil de encontrar e o povo dos Facas Longas tem medo da Ilha das Nuvens.
O esconderijo era, de fato, difícil de encontrar: uma gruta sombria, à qual se ia dar por um rebordo ainda mais estreito e mais perigoso do que aquele que ia dar ao arsenal de Guardião, situada no alto do flanco sul das íngremes encostas da ilha. O jovem já lá tinha colocado sacos de pele com água e um conjunto de velhas capas no chão de pedra, peles de ovelha, mantas de lã e de pele, restos de outras caçadas.
— É pequeno — disse Guardião — e não podes acender uma fogueira; não podes acender uma candeia. Têm de se manter juntos um do outro para se manterem quentes. Lamento muito, a sério que lamento. Lamento muito tudo isto.
Pequenino transportara ele próprio o seu cobertor. Agora, estava a estendê-lo junto da parede, puxando-o até ele ficar direito. Era evidente que ele sabia exatamente o que estava a acontecer e o que lhe era exigido.
Creidhe olhou em volta, para aquele espaço limitado. A entrada estreita deixava a gruta numa semi escuridão, mesmo àquela hora da manhã. A jovem olhou para os sacos de água, para a panela com o peixe congelado e para o chão de pedra onde, ela sabia, os cobertores que tinham trazido seriam poucos para aliviar as costas e o pescoço dorido. Creidhe olhou para a criança, que se sentara de pernas cruzadas no cobertor e que olhava para ela com os seus olhos da cor do mar, duas poças de uma escuridão fluida no seu rosto estranho, triangular. Creidhe pensou em Sula.
— É um bom esconderijo, Guardião — disse ela com firmeza. É seco e seguro. Estou certa que ficaremos bem, os dois. Alguma vez pensaste em... em te esconderes conosco até eles se irem embora? Não te encontravam.
— Quando estiverem todos mortos, deixará de haver caçada. Eu vou lutar até deixarem de vir à minha ilha. Prometi. E agora tenho de ir, Creidhe. Tenho muito que fazer.
— Oh... Já te vais embora? Não te posso ajudar, só até o Sol se pôr? Ainda é tão cedo...
— É melhor ficares aqui. — A sua voz era firme mas gentil; os seus olhos enviaram-lhe uma outra mensagem, na qual o amor e a dor, o desejo e a confusão estavam presentes. — Podes falar com ele hoje, até ao anoitecer. Depois, têm de ficar ambos calados até isto acabar.
— Não vens ter conosco esta noite? — Apesar de todos os seus esforços, a voz de Creidhe soou baixa e pouco firme.
— Não, minha querida. Tenho de te deixar e só regresso depois de eles se terem ido embora. A partir de agora, a partir do momento em que sair daqui, só devo pensar na caçada; não posso ter o pensamento noutra coisa. Lamento...
— Pára! — Creidhe cortou-lhe a palavra. — Pára de pedir desculpa, como se a culpa fosse tua! É claro que lamentas. Todos nós lamentamos, os três, por não podermos ficar juntos, por não podermos apanhar sol, estar perto das outras pessoas e viver as nossas vidas sem medo. Isto é um lugar de loucos, para gerar tanta miséria e tanto terror. Um dia, tudo isto mudará. Faremos com que mude. E agora é melhor dizeres adeus a Pequenino e ires antes que eu comece a chorar. Preferia não o fazer; não o quero preocupar.
No entanto, as lágrimas ardiam-lhe nos olhos enquanto via Guardião ajoelhar-se, uma figura longa e esbelta nas suas roupas de penas, e pegar no Pequenino ao colo. As suas mãos afagaram-lhe cuidadosamente os cabelos escuros emaranhados.
— Tenho de ir, irmãozinho — disse Guardião suavemente. — Tu vais ser corajoso, eu sei, como sempre tens sido, e vais estar calado e portar-te bem. Desta vez, não vais ficar sozinho. Agora, temos Creidhe; temos luz no nosso escuro esconderijo. Creidhe fica contigo até eu regressar. Com ela estarás seguro. Adeus, Pequenino.
A criança não disse uma palavra, não emitiu um som quando Guardião o depositou no cobertor e se virou para Creidhe.
— Tenho de ir.
— Sim. — E devia deixá-lo ir, devia deixá-lo sair daquele lugar sem outra coisa na cabeça que não a sua estratégia de sobrevivência. No entanto, ao vê-lo ali pálido e solene na sua frente com aqueles olhos sombrios, viu que não podia afastar-se, simplesmente, para o deixar passar.
— Também tens de te despedir de mim — sussurrou ela.
— Sim — disse Guardião sem se mexer. A voz dele também não era mais forte. — Mas não tenho palavras.
— Não precisas de palavras. — Creidhe deu um passo na direção dele e, rodeando-lhe o pescoço com os braços, beijou-o. Apenas um pequeno beijo, dissera ela a si própria, apenas um breve beijo de despedida para ter alguma coisa enquanto ele estivesse ausente. Mas os lábios dele entreabriram-se para os dela, a sua respiração tornou-se mais rápida, os seus braços rodearam-na num desejo feroz de possessão e Creidhe percebeu que um beijo breve não era o suficiente. O corpo da jovem apertou-se, com força contra o dele, a boca abriu-se, esfomeada e as mãos enclavinharam-se na carne do jovem: queria lá saber do que dissera acerca de esperar até que os tempos de desespero passassem. Os dedos de Guardião tinham-se afundado nas suas longas e brilhantes mechas louras. O corpo da jovem ardia de desejo, o mesmo que sentira na noite anterior, que lhe dirigira palavras de amor, mas mais profundo, mais apressado, selvagem, naquele momento de separação. Algures, no interior do seu espírito, ela sabia que, se as visões sombrias representavam a verdade, nunca mais o abraçaria daquela maneira.
Finalmente, pararam para respirar, lenta e entrecortadamente e separaram-se com dificuldade, os braços ainda agarrando, relutantes. Creidhe olhou para os olhos de Guardião e viu neles não só uma força assustadora, uma coragem espantosa e uma lealdade a toda a prova, mas também medo: o medo da sua própria mortalidade. Ele devolveu-lhe o olhar, como se quisesse gravar na memória as suas feições, para que, no meio do combate, a pudesse ter consigo.
— Que os antepassados estejam contigo, meu querido — sussurrou Creidhe. — Que eles velem por ti a cada momento e te tragam em segurança para junto de nós.
Guardião inclinou a cabeça e pegou-lhe nas mãos para as beijar.
— Adeus, Creidhe — disse ele suavemente. — Quero que saibas que, aconteça o que acontecer, trouxeste alegria à minha ilha, uma alegria que nunca pensei ser possível. E agora vou-me embora.
E, abruptamente, tão abruptamente que fez parar o coração da jovem, ele largou-lhe as mãos, virou-se e desapareceu.
Ela não queria chorar, apesar de ainda sentir o calor do corpo dele na sua pele, apesar do sabor do seu beijo ainda fresco e insistente na sua boca. Não choraria por causa de Pequenino. Creidhe sentou-se no cobertor, colocou a criança no colo e viu o vazio nos seus olhos, uma tristeza a que ele não dava voz porque prometera portar-se bem e ficar calado e, tal como o seu parente, Pequenino cumpria o que prometia. Creidhe pensou em todos os anos anteriores, quando ele ainda era mais novo e suportara tudo aquilo sozinho.
— Bem — disse ela — não precisamos de ficar completamente calados até ao pôr do Sol. Ainda bem. Pensei em contar-te uma história, uma história que a minha irmã Bronna conta, às vezes, sobre um guerreiro que foi matar um grande troll, e no caminho descobriu uma série de amigos novos, uns amigos muito estranhos. Queres ouvir? Ótimo. Aconteceu assim...
No solstício de Verão, as noites eram mesmo curtas nas Ilhas Perdidas. Os homens estavam à beira-mar à espera do momento em que o Sol emergiria do lugar onde estava escondido, na ponta leste do mundo, trazendo a luz suficiente para saber se Einar tivera razão. Thorvald sentia o coração a bater de antecipação; tinha de estar sempre a recordar a si mesmo que tinha de se manter calmo, acontecesse o que acontecesse. Um líder incapaz de controlar os seus próprios sentimentos não poderia controlar os seus homens. O jovem respirou lentamente, olhando através da grande extensão cinzenta de água entre a ponta mais ocidental da Ilha das Tempestades e a massa distante, sombria, da Ilha das Nuvens. Mais perto, do outro lado das águas abrigadas do Fiorde do Conselho, as duas ilhotas junto da sua abertura; as agulhas íngremes da Ilha do Dragão e a silhueta atarracada do Arco do Troll. Para lá delas estendia-se a Corrente dos Loucos, onde Creidhe se afogara.
O céu pálido ficou, subitamente, cor-de-rosa, depois laranja-escuro e depois dourado.
— Aqui vamos nós — resmungou Einar, fixando as águas abaixo deles, o caminho aquático que ia daquela praia àquela ilha a oeste, envolta em nuvens.
Asgrim não disse nada. Estava ao lado de Thorvald de braços cruzados e boca cerrada. Thorvald podia imaginar o pensamento do governador: Outra madrugada, outra hipótese. Talvez desta vez este ano seja diferente. Talvez ganhemos e termine o sofrimento. Que seja hoje. E, com aquele pensamento, outro: Se calhar, vamos perder outra vez. Não é assim há cinco anos? Não quero ver os meus homens a morrer. Não suportarei mais uma falha. Que não seja hoje. Thorvald pensou que seriam aqueles os pensamentos do governador. Quanto a ele, tinha os pensamentos em ordem. Tinha a estratégia na cabeça, os planos, os conhecimentos dos homens, do terreno e da missão. Tinha respostas para tudo o que a Ilha das Nuvens lhe opusesse. Confiava em Einar e em Orm. Dissera a Hogni e a Skapti tudo o que eles precisavam de saber. A sua estratégia final era desesperada e Sam era o único que tinha conhecimento dela. Seria posta em prática se tudo o resto falhasse; com sorte, não precisaria de se arriscar tanto.
O céu clareou. Uma ave gritou; uma outra respondeu. Por cima das suas cabeças, a luz floresceu e o coro de chilreios e assobios tornou-se num hino cada vez maior à madrugada. Passara-se mais uma noite: chegara um novo dia. As águas da Corrente dos Loucos passaram da cor da ardósia para a cor da pérola e depois para a pura azul-esverdeada pálida de um ovo de pata. Durante um curto período de tempo, o pequeno grupo de homens permaneceu silencioso, imobilizado pela imensidão do momento. Finalmente, Asgrim deu um grande suspiro e Einar, com uma careta feroz atravessando-lhe as feições cheias de cicatrizes, disse:
— Parece que vamos a caminho, homens.
Em seguida, as coisas seguiram um padrão bem ensaiado, tudo de acordo com os planos meticulosos de Thorvald. O resto dos homens estava à espera junto dos barcos já preparados, porque Einar predissera que aquele seria um dia de rara calmaria nas águas daquele estreito escuro, tornando a Corrente dos Loucos navegável para marinheiros experimentados. Os homens não precisavam que lhes dissessem que os sinais eram bons; eles viam-nos nos olhos dos seus líderes, e apressaram-se a lançar à água a sua coleção de pequenos barcos numa ordem predeterminada. A maioria daqueles barcos levava apenas dois ou três homens e Thorvald designara um líder para cada um. Estes eram os mais inteligentes do grupo: Orm, Wieland, Einar, Skolli. O Sea Dove podia levar um número maior e nele iriam Thorvald, Sam, Knut, Hogni, Skapti e vários outros homens.
Asgrim não ia. O governador, numa decisão que chocara todos, anunciara que, naquele Verão, confiava a missão a Thorvald, como era próprio de um pai para com o filho. A sua presença só confundiria a cadeia de comando. Ele conhecia os planos de Thorvald para a batalha e achava-os bons. Esperaria o regresso no Fiorde do Conselho e prepararia tudo para que qualquer ferido pudesse ser tratado. Era melhor assim.
Aquela declaração deixara os homens de queixo caído. No caso de Thorvald, provocara também uma onda de sentimentos, que ele fez um grande esforço para suprimir. O reconhecimento de Asgrim enchia-o de calor. Justificava as suas ações e devolvia-lhe a identidade. Mas, por baixo da grande alegria, permaneciam outros impulsos mais frios; nele, era raro o coração sobrepor-se ao intelecto. Asgrim era um homem cruel e impopular. Tinha razões para governar como governava, mas depois da caçada deixaria de as ter. Como chefe de guerra, Asgrim era inepto. Provara-o cinco vezes. Como chefe do povo dos Facas Longas não era melhor. As pessoas andavam inquietas, receosas. Não confiavam no seu governador. O reconhecimento do filho não alterava o estado de coisas. Depois da caçada, pensou Thorvald, haveria mudanças. O povo dos Facas Longas tinha de ser governado com justiça, em paz e tinha de ter voz nas decisões da comunidade. Aqueles homens, Einar, Wieland, Knut, aqueles homens corajosos e decentes não mereciam um tirano. Nenhum laço entre pai e filho era mais importante do que colocar as coisas no seu devido lugar.
Mas, primeiro, tinha de vencer aquela batalha. Dois dias, tinham dois dias e uma noite; dois dias até as águas da Corrente dos Loucos começarem a agitar-se de novo, atirando com qualquer barco de pantanas. Dois dias, resgatar o vidente com o mínimo de perdas: fora o que Thorvald lhes prometera. Se não cumprisse a promessa, disse ele a si próprio enquanto lançavam à água do Fiorde do Conselho o Sea Dove, não merecia nada da parte de Asgrim nem da parte dos homens. Se não conseguisse a vitória, não merecia ser seu líder.
A princípio, remaram; as águas do Fiorde eram abrigadas dos ventos dominantes e os progressos com a vela erguida eram erráticos e lentos. Uma vez passado os braços de terra que se projetavam a oeste, uma vez em frente do Arco do Troll e da monstruosa e denticulada silhueta da Ilha do Dragão, sentiram as velas enfunadas por um vento de feição, um vento que Thorvald ainda não sentira nas Ilhas Perdidas, firme e quente de leste. As proas dos barcos cortavam a água suavemente, deixando atrás uma esteira de espuma. Puseram os remos de lado. A Corrente dos Loucos estendia-se, plácida e brilhante à sua volta, descansando, dormindo, sustendo a respiração para deixar passar os intrusos. Agora que estavam no mar, havia poucas aves no ar; os gritos das gaivotas, que escoltavam diariamente os barcos de pesca do povo dos Facas Longas não estavam à vista. Sem a música áspera dos seus gritos o ar parecia vazio, as nuvens altas mais distantes; e quando Thorvald olhou para trás, a alta silhueta da Ilha das Tempestades, com os seus cumes escarpados e nus e falésias íngremes, retrocedia, como num sonho. E na sua frente, a oeste, cada vez mais perto, violeta suave, cinzenta-escura e verde profundamente impenetrável, estava a silhueta misteriosa da Ilha das Nuvens.
CAPÍTULO ONZE
Eu copio os salmos: a minha caligrafia é satisfatória.
Copio-os ano após ano nesta casa tranquila.
Escrevo, como, durmo.
Hoje, algo em mim se agita e estremece.
Está para acontecer qualquer coisa.
De profundis clamavi ad te Domine...
NOTA À MARGEM DE UM MONGE
Fora uma noite sem sono. Agora, imóvel, encostado à rocha, sombra com sombra, Guardião via-os aproximarem-se. Estava tudo pronto. Depois de cinco caçadas, quase não precisava de pensar no que fazer; todos os seus sentidos estavam sintonizados na dança da defesa e da sobrevivência, no combate e na morte. Lá muito no fundo, fechara-os à chave: o seu Pequenino, cujo corpo frágil ainda sentia nos braços e a sua deusa, cujo beijo doce ainda sentia nos lábios. Não estavam esquecidos, estavam à parte até que a caçada terminasse mais uma vez, permitindo, então, que regressassem aos seus pensamentos. Naquele dia, no dia seguinte, seria tudo uma questão de passo rápido, agudeza de olhar, vontade forte e pontaria irrepreensível. Naquele dia e no seguinte, um único guerreiro tinha de se transformar num exército.
O vento era favorável aos homens de Asgrim. Os pequenos barcos velejavam a grande velocidade através da calmaria enganadora da Corrente dos Loucos e chegariam à sua ilha quando o Sol já fosse alto. Estava um daqueles dias bons, raros, que aconteciam de vez em quando no Verão, com nuvens brancas correndo através do céu azul e em que o ar estava quente. Naquele dia não choveria, o que tornava mais difícil a tarefa de Guardião; a bruma e a chuva davam-lhe vantagem, porque conhecia as encostas traiçoeiras como as crianças conhecem as suas mães. Praticamente metade dos crânios que possuía eram de homens que tinham morrido, não das suas lanças e flechas, ou das suas armadilhas, mas por terem caído de uma falésia ou por terem ido direto a um súbito, profundo buraco nas rochas. Conseguira recuperar os restos de alguns, nos lugares onde pudera. Os homens de Asgrim tinham capas quentes, botas de pele e casacos de ovelha. Tinham lanças e facas. Nada podia ser desperdiçado na Ilha das Nuvens.
Quando ficaram mais perto, mas não tanto que o pudessem ver, Guardião mudou para outro ponto de observação, onde tinha uma provisão de flechas. O jovem semicerrou os olhos, observando através de uma fenda entre as rochas que protegiam aquele refúgio em forma de concha, em algum lugar por cima do local de desembarque. Guardião olhava para um barco em especial, um barco que se destacava pelo seu tamanho ao lado dos outros, mais baixos e de construção simples, do povo dos Facas Longas. Aquele barco era robusto, bem construído, um navio que qualquer pescador teria orgulho em chamar seu. Trazia vários homens a bordo. Guardião conhecia cada um dos seus inimigos pelo nome, porque vivera no meio deles até os doze anos. A medida que o barco se aproximava, ele ia identificando Hogni e Skapti, que eram maiores do que os restantes. Knut vinha a bordo e reconheceu outros. Estavam a baixar a vela, pegando depois nos remos para guiar o navio através da estreita baía. Mas, afinal, não conhecia todos. O tipo alto, de pele clara, que dava ordens, era um estranho para ele. O que estava à proa, de lança na mão, perscrutando as rochas por cima das praias em busca de sinais de vida, tinha cabelos tão vermelhos como o sol de Inverno e um olhar de feroz determinação no rosto. Tinham vindo, então; os amigos de Creidhe tinham preferido ser seus inimigos. Não teria contemplações. Eles estavam ali e se se atravessassem no seu caminho, morreriam.
No ano anterior, Guardião atacara no momento em que as forças de Asgrim ficaram ao alcance de tiro, matando cinco homens com as suas flechas antes de os invasores terem completado a subida até o pequeno planalto por cima da praia. Naquele ano, o seu plano era esperar. Nunca usava o mesmo caminho duas vezes; a surpresa era uma das suas armas principais. Segui-los-ia até se separarem, como certamente fariam se fossem à procura de Pequenino. Seguiria um grupo, depois outro e deixaria que a ilha desempenhasse o seu papel. Ao cair da noite, regressariam aos barcos. O povo dos Facas Longas tinha medo de ficar na Ilha das Nuvens depois do anoitecer. Tentariam de novo no dia seguinte, até ao momento em que teriam de regressar a casa antes que a calmaria fosse substituída pela turbulência habitual do estreito. Abateria o maior número possível naquele dia. Conhecia-os: era uma gente desanimada, que se assustava com facilidade, que se confundia com facilidade. No dia seguinte, teria troféus para acrescentar à sua coleção e o inimigo estaria mais fraco. Depois, seria apenas uma questão de limpeza.
O jovem observava. As suas mãos ansiavam por pegar no arco, espetar uma flecha nas costas largas de Skapti ou no forte peito de Einar, que estava a reunir um pequeno grupo de homens para lá daqueles rochedos. O olhar de Guardião aguçou-se. Aquilo era um começo diferente do habitual por parte das forças de Asgrim. Pareciam estar organizados, formando três grupos e ao mesmo tempo havia homens colocados em pontos estratégicos, armados com arcos e lanças de arremesso. O olhar nos seus rostos também era diferente. Guardião sentiu o perigo naqueles maxilares cerrados, naqueles olhos ferozes. Perigo e desafio. De onde tinha vindo aquilo? Não tinha tempo para pensar; tinha de agir, rápida e invisivelmente, seguindo um ou outro daqueles pequenos pelotões, aquele que parecesse mais ameaçador. Tinham deixado homens a guardar os barcos; o tipo grande, louro, estava entre eles. Creidhe dissera que ele era pescador; aquele era o barco dele. Antes, nunca tinha ficado ninguém de vigia na praia.
Os grupos afastaram-se, espalhando-se pela encosta acima. Caminhavam cautelosamente, alguns espetando o solo em busca de armadilhas, enquanto outros cobriam os camaradas com escudos e armas, virados para fora. Os escudos eram coisa nova; nas caçadas anteriores, não havia mais de dois ou três entre eles. Alguém tinha andado ocupado, Guardião observou-os; seguiu-os por uns momentos. Os seus olhos estavam no homem de cabelos vermelhos. Creidhe dissera: Thorvald não é um guerreiro. Era evidente que Creidhe estava enganada, Guardião percebeu-o instantaneamente. Os homens seguiam-no, olhando para ele em busca de orientação. Guardião percebeu que fora ele quem planejara antecipada e cuidadosamente aquela defesa. Não fora Asgrim o causador das expressões diferentes nos seus rostos.
O amigo de Creidhe, não só era um guerreiro, como era o chefe. E o governador não estava presente.
Guardião avançou pela face da falésia, atravessou túneis, trepou pelas rochas, desceu encostas escorregadias cheias de pedras, acocorando-se, correndo, agarrando-se, escondendo-se. Ano após ano, caçada após caçada, praticara aquela navegação rápida, movendo-se como uma sombra naquele terreno rochoso e íngreme. O jovem avançava como um fantasma, como um sopro de vento.
O grupo de Skapti contornou o lado norte da ilha, rodeando as falésias, espreitando em buracos, fendas e grutas. O grupo de Hogni dirigiu-se para sudeste. Ali, a encosta oferecia uma ampla vista das ilhas onde Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tinham a sua estranha morada. E os guerreiros de Thorvald, com Einar no comando, avançaram pelo centro, sempre protegidos pelos escudos e de armas em riste como se, finalmente, tivessem aprendido a usá-las. Atingiram uma crista no topo das montanhas rochosas que rodeavam a Velha. Ali, pararam a coberto de um aglomerado rochoso, talvez para planejar o movimento seguinte. O avanço fora bem executado, suave e ordenadamente. Mas Guardião fora mais rápido. O jovem estava agora empoleirado bem acima do lugar onde eles pensavam estar escondidos. Ali, naquela fenda entre as rochas, tinha lanças de arremesso e dardos embebidos em veneno retirado de um certo molusco de concha raro. Um presente; a ilha fornecera-lhe os meios necessários. Guardião supôs que o inimigo subiria lentamente, talvez espalhando-se ainda mais para procurar possíveis esconderijos. Se investigassem as grutas no lado norte, encontrariam algumas surpresas. Não chegariam à câmara do lado sul, onde os seus dois entes queridos estavam escondidos. O jovem certificara-se disso.
Tinham evitado as mais óbvias das suas armadilhas, o que demonstrava mais inteligência do que ele esperava. Era evidente que aquele Thorvald achava que era esperto. Guardião deixá-lo-ia iludir-se a si próprio durante mais algum tempo. Então, mostraria ao homem de cabelos vermelhos quão louco fora por acreditar que qualquer homem podia ser mais astucioso do que a Ilha das Nuvens.
— Mantenham-se acocorados — sussurrou Thorvald. — Se eles tiverem engenho, vão esperar até que nos afastemos o mais possível para atacar. E se mandássemos dois homens lá para cima para aquela ravina para nos cobrirem com os arcos?
— Eu vou — voluntariou-se um dos homens.
— Eu vou contigo — disse um outro.
— Vão lá, então — sussurrou Thorvald. — Devagar. Quando lá chegarem, escondam-se por trás daquela rocha grande e fiquem de vigia. Se virem algo a mover-se, disparem.
— E se for ele? — perguntou alguém. — Máscara-de-Raposa? — A voz era jovem, com uma nota de acanhamento.
— É pouco provável — disse Thorvald. — Eles devem tê-lo fechado em algum lugar, acorrentado numa gruta, ou numa cabana. Tudo o que mexe é inimigo. Salvo nós, claro. E agora, vão.
Os dois homens afastaram-se sorrateiramente, mantendo-se acocorados enquanto trepavam na direção do espaço entre as rochas. Os outros esperaram em silêncio. Quando os trepadores estavam, talvez, a dois terços do alto, ouviu-se um som de matraca, algo a rolar do alto da encosta e uma chuva de pedras pequenas caiu sobre Thorvald, Einar e o resto do grupo. Os homens cobriram as cabeças com os escudos, ou acocoraram-se, protegendo as cabeças com os braços, enquanto a chuva de pedras se transformava numa tempestade, passando de pedras do tamanho de punhos a pedregulhos suficientemente grandes para esmagar o crânio de um homem. O barulho era ensurdecedor; Thorvald pensou ouvir uma voz, um grunhido, como se um gigante tivesse, subitamente, acordado: Quem se atreve a por os pés na minha ilha? E também ouviu um grito de dor, de um dos homens no alto da ravina. Um dos mísseis, pelo menos, atingira o alvo.
A avalancha de pedras parou; apenas uma ou duas continuava a rolar loucamente pela encosta abaixo.
— Mantenham-se quietos — disse Einar em voz baixa. — Depois disto, eles estão à espera que recuemos. Egil, vai lá acima ver quem está ferido. Thorvald? Que fazemos?
— Onde é que pensas que eles estão? — Thorvald arriscou uma olhadela rápida por cima das rochas onde estavam escondidos, virando a cabeça para perscrutar a encosta. Havia muitos pontos estratégicos lá no alto, maciços de arbustos retorcidos, pilhas de rochas grotescas, ondulações manhosas de terreno. Não era possível saber onde se escondia o inimigo, mas uma coisa era certa: aquilo não fora um desmoronamento natural.
— Einar?
Era um dos homens mais novos, Ranulf. O seu rosto estava pálido como o leite e a sua voz tremia.
— O que é? — disse Einar, irritado.
— Não ouviste? — murmurou Ranulf. — A voz?
— Cala-te — disse alguém de mau humor. — É claro que ouvimos. Se deixássemos que isso nos detivesse, não chegávamos a lado nenhum. Tens de aprender a tapar os ouvidos neste local, ou enlouqueces.
Passou por eles um sopro de vento a cheirar a maresia. Por cima das suas cabeças, as aves circulavam, gritando. Fosse o que fosse que tivesse silenciado as gaivotas naquela manhã, enquanto os barcos se faziam ao mar, não calara os habitantes daquela ilha, porque o céu estava vivo com tantas asas.
Egil regressou com uma expressão severa.
— Thorkel levou com uma pedra na cabeça; assim, de repente, não consigo ver se o ferimento é grave. Posso voltar lá e ajudá-lo a descer. Skolli está bem, apenas um pouco abalado. Parece que eles estão lá em cima, a sul, por trás daquele rochedo que parece um punho. Não é possível atacá-los lá, estão em vantagem. Vou lá em cima?
— Traz o Thorkel para baixo — disse Einar. — E não te demores. Vais ter de o levar para junto dos barcos, não podemos deixá-lo aqui. Depois, volta para aqui o mais depressa que puderes. Leva o jovem Ranulf contigo e tem cuidado com as armadilhas, estão por toda a parte. Skolli fica conosco; nós vamos continuar. — O guerreiro olhou para Thorvald. — A não ser que haja mudança de planos?
Thorvald abanou a cabeça.
— Não. Mas não vamos para cima, porque ficamos à vista deles. Egil tem razão; seria um convite ao ataque. Se eu fosse o inimigo, utilizaria flechas, apanhando-nos no momento em que nos mostrássemos. Se Asgrim estivesse aqui, que faria a seguir?
— Retiraria e reagruparia — disse Einar. — Faz sentido. Continuar a subir parece-me um suicídio.
— Hum — disse Thorvald. — E retirar é, exatamente, o que o inimigo espera que façamos. Aproximem-se todos. Tenho uma idéia...
No flanco sul da ilha, os homens de Hogni caminhavam ao longo de um estreito carreiro, tentando não olhar para baixo. A linha de costa da Ilha das Nuvens era, pelo menos, mais hostil para os intrusos do que a Ilha das Tempestades, que também tinha a sua quota de precipícios de fazer parar o coração e cristas aguçadas como agulhas. Em determinado ponto, Wieland avançou sozinho para experimentar um carreiro que prometia ser bom, mais largo e menos inclinado, que parecia ir dar ao ponto estratégico que tinham como objetivo. O guerreiro já dera um passo, dois, nas rochas planas da orla da falésia, quando o seu pé escorregou estranhamente. Wieland abriu os braços em busca de equilíbrio, mas no instante seguinte já mergulhava na direção das vagas furiosas, lá em baixo. O homem gritou e o som ecoou de modo estranho nas fendas rochosas, como se um coro de homens invisíveis gritasse em conjunto. Hogni abraçou-se a si próprio. A corda que tinha em redor da cintura, ligando-o a Wieland, esticou-se violentamente. Por trás de Hogni, dois outros homens saltaram para o apoiar e equilibrar, partilhando o peso. Os três guerreiros prenderam a respiração e depois começaram a puxar como tinham ensaiado na falésia perto do acampamento de Asgrim. Foi rápido e eficiente; em breve surgia o rosto branco como o leite de Wieland na borda do precipício, trêmulo e todo arranhado, mas mais nada. O rebordo fora esfregado com uma substância qualquer que o tornava escorregadio como um recife coberto de algas, mas que não podia ser detectado a olho nu.
— Portanto, não querem que vamos por aqui — observou Hogni. — Pergunto a mim próprio o que esconderão eles lá em cima? Muito bem, demoramos mais tempo. Vamos precisar das cordas outra vez; parece que o único caminho para o topo é ir reto.
Os homens continuaram. Na mente de cada homem, se bem que ninguém o mencionasse, estava o conhecimento de que fora Thorvald a ter a iniciativa das cordas. Sem elas Wieland estaria morto e Jofrid não teria nem filhos nem marido à lareira. Um dos homens começou a assobiar baixinho, um som furtivo que era em parte uma melodia de desafio vitorioso, em parte a expressão de um corpo a tremer de tensão nervosa.
— Cala-te — disse Hogni, irritado, e continuaram a avançar em silêncio, cuidadosamente, os olhos fixos na encosta, no carreiro e na retaguarda, perscrutando a paisagem em busca de sinais do inimigo.
Era evidente que os seus opositores esperavam que eles passassem por ali; podia-se presumir, então, que havia guerreiros à espera no alto, mas o grupo era vulnerável ali, em fila, onde as flechas, bem apontadas, podiam apanhá-los um a um. As cordas seriam, então, uma desvantagem.
— Depressa — disse Hogni. — Até àquela rocha que parece uma velha com um grande nariz. É ali que começamos a trepar. O grupo de Einar já deve estar lá em cima; nós queremos atingir aquela crista ao mesmo tempo que eles, para sabermos se alguém viu alguma coisa. Toca a andar.
Os homens de Skapti foram pelo lado norte, evitando os carreiros pelas falésias, porque naquele lado da ilha eram praticamente impraticáveis; era menos perigoso avançar em campo aberto, correndo de abrigo em abrigo e esperando que o inimigo estivesse noutro lugar qualquer. Progrediram bem, se bem que a subida fosse muito inclinada; as pernas doíam e quanto mais subiam sem sinais do adversário mais nervosos ficavam os homens. Tinham-lhes ordenado que não falassem e eles seguiam as ordens; só um louco atrairia as atenções. Mas um homem não podia calar os seus pensamentos e todos pensavam o mesmo: Foi ali, naquele amontoado de seixos, que perdemos Kolbein no ano passado. Além, onde os arbustos se curvam por ação do vento, vimos Havard morrer com um dardo envenenado. Além é a falésia onde caíram quatro homens durante a segunda caçada. Skapti percebeu o que lhes ia nas mentes, mas sentia-se impotente para alterar a situação, porque também se sentia atormentado pelas mesmas imagens: tantos camaradas perdidos, tantos homens bons chacinados e tudo para nada. Para além daquela litania de perdas, havia outro pensamento na mente de Skapti: obediência cega, culpa terrível, crimes e mentiras. O homem pestanejou e cerrou os dentes. Era um guerreiro e naquele dia chefiava um grupo de homens. Não tinha tempo para aquilo.
— Para a frente, homens — disse ele e começaram a trepar a íngreme encosta. Naquela parte da ilha, os contornos mergulhavam em bolsas aqui e ali, lugares bem protegidos por rochas, onde se podiam encontrar abrigos razoáveis. Havia restos de paredes rochosas e cabanas em ruínas, abandonadas. Os homens pararam num daqueles pequenos refúgios para recuperar o fôlego, deixando um homem de vigia no exterior; podia ser um esconderijo confortável, mas também era o local ideal para se ficar encurralado. A porta das traseiras, se assim se podia chamar, dava para um precipício, uma falésia habitada por aves marinhas que terminava nas águas raivosas lá bem no fundo. Skapti olhou em volta, procurando sinais do inimigo; um buraco daqueles devia ter algumas pistas, alguma evidência de habitabilidade. O guerreiro procedeu a uma busca exaustiva, mas não viu nada. Os homens descansaram um pouco as pernas e partilharam alguma água de um odre, ao mesmo tempo que verificavam as armas murmuravam palavras tranqüilizadoras. Todos concordavam que, entre aquele avanço inquietante através de uma paisagem que não parecia deserta, antes parecia estar sempre a observá-los, respirando, esperando, e uma investida aberta com guerreiros armados, preferiam a última hipótese.
Eram horas de continuar. Skapti abriu a boca para dar a ordem, mas depois fez uma pausa. Um dos homens mais novos, Hjort, estava a brincar com qualquer coisa, um minúsculo pedaço de cordel, ou fio, que só chamou a atenção de Skapti por causa da sua cor pouco habitual, vermelho-violeta. Aquilo parecia deslocado num lugar tão sombrio, tão cinzento e tão verde.
— O que é isso? — perguntou Skapti. — Hjort?
— Um pedaço de lã, mais nada.
— Deixa-me ver. — Skapti pegou no pequeno fio e segurou-o entre os dedos, sentindo a suavidade e regularidade da lã. — Lã de bordado: um utensílio de mulher, tão bem tingido como a melhor lã de uma dama. Onde é que arranjaste isto?
Hjort estava com um certo ar de culpa; não percebia a razão daquele súbito interesse.
— Estava além. Naquelas rochas.
Skapti atravessou o pequeno abrigo e perscrutou as prateleiras de pedra em busca de mais pistas, mas não encontrou nada. Momentos depois, disse:
— Nada. É melhor pormo-nos a andar se queremos chegar lá acima ao mesmo tempo que os outros. Toca a andar atrás de mim. — O guerreiro meteu o minúsculo fio de lã na algibeira e, de lança na mão, saiu do refúgio de rosto tranqüilo. Mas, por dentro, Skapti estava tudo menos tranqüilo. A culpa cravava-lhe as garras, o remorso e a confusão roíam-lhe o coração. Não podia mostrar aquilo a Thorvald. Era uma mensagem dos deuses apenas para ele, para o lembrar do mal que fizera. Porque vira o que os outros homens não tinham visto, ou não tinham compreendido: um único e longo cabelo estava enroscado na lã colorida, cabelo esse tão louro como o trigo sob a luz do Sol.
Os três grupos encontraram-se num determinado ponto no alto do flanco da Velha, onde o terreno era ligeiramente menos inclinado. Uma concavidade verdejante, por trás de uns arbustos raquíticos permitia que se reunissem ali todos; de ambos os lados foram colocados homens com os arcos prontos. Por cima, as nuvens acumulavam-se. O Sol aparecia e desaparecia, tão inconstante como uma jovem esposa aborrecida. O grupo de Thorvald fora o primeiro a chegar àquele ponto de encontro. Hogni perguntou a Einar como tinham feito e este disse, coçando as costas:
— Não perguntes.
Tinham subido um a um utilizando alguns homens como isco e trepando mais depressa do que estavam acostumados. Até o ferreiro, Skolli, estava ofegante, e tinha um peito que parecia um barril de cerveja.
Era a altura para trocarem as informações que tinham conseguido. Thorvald foi o primeiro a falar.
— Eles estavam a vigiar-nos de um ponto estratégico, por trás de um ressalto. Atiraram-nos com pedras; como vêem, sofremos três baixas, mas Egil e Ranulf estão desarmados e devem estar de regresso. Não sabemos se Thorkel está apenas atordoado, ou se o ferimento é mais sério. Os tipos que estão nos barcos farão o que puderem por ele. Esperava que o inimigo nos atirasse com flechas depois das pedras, mas não tiraram proveito da vantagem. Quando chegamos ao lugar onde tinham estado, já lá não estava ninguém. Apenas pegadas no solo. Hogni?
Hogni fez uma careta.
— Quase perdemos Wieland. Foi salvo por uma corda. Os rapazes portaram-se bem. Viemos pelo caminho mais íngreme, foi uma escalada dura. Não tenho mais nada para dizer. Não vimos sinais do inimigo. Mas, diria que têm qualquer coisa naquelas grutas ao sul, a que não querem que deitemos a mão. O carreiro que Wieland estava a experimentar com os pés foi engordurado com uma substância qualquer. Por que haviam de se preocupar com o local se ele não vai dar a nenhum lugar especial?
— Esta gente não é estúpida — disse Einar. — Algumas das armadilhas devem ter sido colocadas à sorte. Quero dizer, que têm eles a esconder senão o vidente? Não me convences, Hogni. É demasiado óbvio.
— Mesmo assim — observou Thorvald — a informação pode ser útil. Temos de considerar todas as possibilidades, por mais pequenas que sejam. Obrigado, Hogni. E tu, Skapti?
Skapti parecia pouco à vontade.
— Estamos todos aqui, não tivemos baixas nem ferimentos. Nada a relatar, exceto... — O grande guerreiro hesitou.
— Exceto o quê? — perguntou rispidamente Thorvald.
— Bem, encontramos uma velha cabana que mais parecia um esconderijo, abrigada e seca, com uma nascente perto e uma vista para o ancoradouro. Suponho que a utilizam. Há muito pouca coisa do gênero neste lugar maldito. Mas, se estiveram lá, fizeram um bom trabalho, porque não há rastro nenhum. Deixaram, apenas, uma coisa para trás.
— O quê? — Thorvald grunhia de impaciência; o Sol já estava a ultrapassar o zênite e tinham feito poucos progressos.
Hjort abriu a boca para falar, mas Skapti foi mais rápido.
— Um fio de lã de uma túnica, ou de uma capa — disse ele. — Esteve lá alguém, isso é certo.
Seguiu-se uma curta pausa e depois Thorvald disse:
— Obrigado. Pode ser que seja útil, essa informação. Muito bem, pessoal, não vejo como havemos de prosseguir. Não tivemos um ataque como deve ser. Não conto com a queda de pedras. Ainda não vimos o inimigo, quanto mais enfrentá-lo. Algumas teorias quanto ao fato de eles não nos terem atacado na baía enquanto estávamos a puxar os barcos para terra? De que estão eles à espera?
Seguiu-se um longo silêncio. Thorvald quase podia ver os seus homens a pensar.
Foi Einar, com as suas feições muito sérias cheias de cicatrizes, que falou. Os seus dedos brincavam com o colar de conchas que usava ao pescoço, talvez um talismã.
— A mim, parece-me que eles tencionam cansar-nos primeiro, e atacar-nos depois, quando estivermos mais fracos. Prevejo que se atirem a nós antes do anoitecer.
Hogni acenou com a cabeça.
— Têm de atacar, mais cedo ou mais tarde; é apenas uma questão de tempo.
— Hoje não há nevoeiro — observou Orm. — Não chove. Nos outros anos, sempre nos atacaram com nevoeiro. Quando ele desce, é como se eles conseguissem ouvir e nós não. Apanharam três dos nossos homens com aquelas pequenas lanças de osso, o ano passado. Atiraram com quatro de uma falésia abaixo na segunda caçada. Hoje está um tempo excepcional; é por isso que estão a agüentar. Isso pode ser uma vantagem para nós.
— Mais alguém? — Thorvald estava a pensar rapidamente, adaptando os seus planos ao momento. Ninguém falou. — Muito bem — disse ele — já passamos por isto antes, mas talvez devamos repensar. Vocês acham que o inimigo é constituído por... trinta? Quarenta homens?
— Mais do que nós — disse Einar. — Nós perdemos muitos todos os anos desde que isto começou; o inimigo é sempre o mesmo.
— São muitos, isso é certo.
— Qual foi o número maior que vocês viram? — perguntou Thorvald. — Já percebi que a maneira de eles atacarem é traiçoeira, pela calada; mesmo assim, preciso de ter uma idéia.
— Acontece que — disse Skapti — eles são muito rápidos. Como se não fossem humanos. Vê-se um de vez em quando a lançar um dardo por entre umas rochas, ou a correr pela face da falésia, ou a mergulhar na água, mas assim que a gente o vê, ele desaparece.
— A maior parte das vezes, só vemos as lanças a saírem do nevoeiro — acrescentou Orm. — A ilha protege estes tipos. Esconde-os.
— Compreendo — disse Thorvald — e já percebi que não entram em combate corpo-a-corpo; pelo que me disseram até agora, eles desenvolveram técnicas que tornam isso desnecessário, mesmo impossível. O terreno ajuda-os, percebe-se bem. Mas, respondam-me a uma coisa. Pode-se dizer que nunca viram mais de um ou dois desses homens ao mesmo tempo? Pensem bem, com cuidado e despachem-se, porque temos de continuar. — O jovem olhou em volta, pelo círculo de homens sentados nas rochas, ou acocorados na erva. Eram bons homens, leais e corajosos. Era uma pena não serem um pouco mais inteligentes. Quase desejava que Asgrim estivesse ali.
— E as vozes? — perguntou alguém. — As vozes vêm de toda a parte; mais vozes do que o número dos nossos homens, mulheres e crianças da Ilha das Tempestades.
Thorvald ia responder que nunca ninguém tinha morrido por causa de uma voz, mas depois lembrou-se do que lhe tinham dito acerca d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz e das vozes que matavam os recém-nascidos.
— Vocês são guerreiros — disse ele. — Esqueçam as vozes; não passam de um artifício para vos desencorajar e fazer-vos esquecer a vossa força, a vossa coragem. Querem que vos diga no que eu acredito? — Seguiu-se uma série de acenos de cabeça e grunhidos de encorajamento. — Acredito que o inimigo é menos numeroso do que vocês pensam. Percebe-se pela maneira como atacam. Eles são ágeis e capazes, conhecem a ilha, são inteligentes e estão bem preparados. Com essas qualidades e com a ajuda do tempo, conseguem repelir ataques convencionais indefinidamente, apesar de vocês serem muitos mais do que eles. Pelo menos, suspeito que é assim. Pergunto a mim mesmo por que razão eles não se escondem e esperam que a Corrente dos Loucos nos obrigue a regressar a casa. Por uma razão qualquer, preferem assolar-nos. Muito bem, homens, já tornei claro o que quero fazer aqui. Não vamos permitir que este padrão continue. Vamos dar a volta a esta caçada. Vamos usar a mesma táctica deles. Pequenos grupos, três ou quatro no máximo, sempre cobertos, procurando qualquer coisa que esta gente possa ter deixado para trás: armas, pistas, o material com que fazem as armadilhas. Eles devem comer e dormir num lugar qualquer, devem deixar vestígios de fogueiras, a não ser que comam o peixe cru. Estejam sempre vigilantes; estejam atentos a qualquer sinal, seja ele qual for. E agora, separem-se e sigam as ordens dos vossos chefes. Se virem um inimigo, capturem-no, se puderem. Nós queremos o vidente, e só essa gente é que nos pode dizer onde ele está. Se tiverem de matar, matem. Percorram a ilha e trabalhem em equipe. Cubram os vossos camaradas. Vocês estão à procura do inimigo e de Máscara-de-Raposa. Não se esqueçam de quem é que anda à caça. Einar, Hogni, Skapti, nomeiem dois outros líderes dos vossos grupos, tal como planejamos, e separem-se.
— E tu? — perguntou Hogni, simplesmente curioso.
— Eu fico por minha conta — disse Thorvald tensamente. — Só mais uma coisa.
Os homens esperaram.
— Não vamos regressar aos barcos ao anoitecer. Vamos ficar aqui.
— O quê? — disse alguém, e os outros mandaram-no calar, mas os olhares eram de choque e de alarme.
— Sempre ficamos no mar de noite — disse Svein num sussurro horrorizado. — Ninguém dorme na Ilha das Nuvens.
— Assim — disse Thorvald o território que ganhamos no primeiro dia, tem de ser atravessado de novo no segundo. Não admira que nunca tenham encontrado o vidente. E eu não falei em dormir. Vamos deixar os mesmos homens a guardar os barcos, juntamente com os feridos. O resto reúne-se aqui. As ordens são estas. Einar conhece-as, assim como os outros chefes. Todos eles concordaram. Se quereis vencer, tendes de ficar em terra. O inimigo parece gostar de surpresas. Vamos surpreendê-lo esta noite. E agora vão. Encontramo-nos aqui ao anoitecer.
Não havia muito por onde pegar: duas pistas minúsculas e a sua convicção de que, por mais bizarro que parecesse, estavam a lidar, não com uma tribo de guerreiros selvagens, mas, na pior das hipóteses, com uma mão-cheia deles. Não fazia sentido, considerando as maciças perdas dos anos anteriores. Mas a superstição e o medo podiam desempenhar um papel importante naquele gênero de conflitos e quanto mais Thorvald pensava nos acontecimentos do dia, mais convencido ficava de que tinha razão. O inimigo era extremamente inteligente. Tirava um excelente proveito das vantagens que tinha: velocidade, mobilidade, o terreno e, nas caçadas precedentes, a natural propensão da Ilha das Nuvens para atrair o nevoeiro, a chuva e o vento. Muito provavelmente, a única coisa que limitara os seus assaltos durante aquele dia, fora o tempo bom. O povo dos Facas Longas prosseguira nas suas caçadas ano após ano apesar das perdas, da falta de coesão como unidade de combate, da lamentável falta de capacidade no manejo das armas e da liderança disparatada por parte de Asgrim. Aquela persistência obstinada não fora benéfica para o povo do governador. O inimigo era engenhoso. A única maneira de o derrotar era fazer o mesmo. O número, ali, não tinha importância.
Thorvald recapitulou o dia. Até ali, não tinham perdido nenhum homem: um progresso considerável face ao recorde de Asgrim até à data. Tinham atravessado uma parte considerável da ilha: isso também era bom, mas insignificante, a não ser que tirassem vantagem desse avanço ficando em terra durante a noite. Não tinham encontrado Máscara-de-Raposa. Assim, numa análise final, não tinham conseguido nada. Apenas duas pistas e um palpite. Muito bem, contaria apenas com esse pouco.
Algum tempo depois, quando o Sol já estava baixo e se erguia no mar uma bruma ligeira e brilhante, não uma verdadeira névoa, antes um espectro, o grupo de três homens de Hogni encontrou-se com Thorvald num local onde as falésias viradas a sul se precipitavam no mar alarmantemente e onde uma pequena nascente deixava cair uma longa coluna de água na direção das rochas em baixo. Nas margens daquele pequeno regato, o musgo e as pequenas plantas trepadeiras cobriam as rochas molhadas e, de vez em quando, aves minúsculas mergulhavam para encher os bicos com aquela água límpida antes de se lançarem de novo no céu. Thorvald estava deitado de barriga perto da borda, espreitando por cima da rocha. Quando ouviu os outros aproximarem-se, torceu o corpo e afastou-se da beira.
— Alguma coisa? — perguntou ele.
Hogni acocorou-se junto dele, uma figura sólida nas suas roupas de pele gastas que tinham sido certamente, em tempos, um uniforme de um tipo qualquer.
— Vi um deles — disse ele. — Perto daqui. Perseguimo-lo, obrigou-nos a correr. Não disparou nada, se bem que tivesse um arco e flechas. Jovem, de aspecto selvagem. Pensei que o tínhamos encurralado, mas desapareceu no meio das rochas e não conseguimos descobrir para onde foi. Este lugar está cheio de grutas e de túneis. Penso que tens razão; estes tipos estão a tentar cansar-nos antes de atacarem. — Hogni olhou para o céu. — E têm de o fazer rapidamente, o dia vai passando.
— Talvez ataquem de noite — disse Svein. — Eles conhecem o local e nesta altura do ano nunca fica muito escuro.
— E tu? — perguntou Hogni com os pequenos olhos fixos em Thorvald. — Que estás aqui a fazer? Aquilo era só eu a pensar. Viste alguma coisa? Não ouviste nada?
— Absolutamente nada — disse Thorvald. — Apesar de tudo, penso que tens razão. Ali em baixo há grutas, ou uma coisa parecida, e eu gostaria muito de vê-las. A pergunta é: como? Depois do que aconteceu com Wieland, seríamos estúpidos se confiássemos nestes carreiros estreitos e a falésia parece que está a cair aos bocados.
— Cordas — disse Hogni. — Temos algumas. — Eu podia segurar-te, se quiseres tentar. É claro que, se eles estiverem lá dentro, será como agitar uma galinha presa por uma pata diante de um cão esfomeado. Sei muito bem em que ponta da corda gostaria de estar.
Thorvald pensou nas opções. A luz estava a diminuir; mas ainda tinha tempo. Era um grande risco, mas se o seu instinto não o enganava, podia ser o ponto de viragem.
— Acho que vou tentar — disse ele. — Nunca servi de isca antes; será a primeira vez. Só quero dar uma olhada. Precisamos de ter uma certeza razoável de que o vidente está ali antes de desperdiçar tempo a obrigá-lo a sair.
— Engraçado — observou Hogni. — Ele é apenas um miúdo, não é? Máscara-de-Raposa, quero eu dizer. Os miúdos são barulhentos; eu sei que é assim. Tenho um par deles, apesar de não os ver há muito tempo. E este tem o quê? Seis, sete anos? Como é que eles fazem com que ele fique calado é o que eu gostaria de saber!
— Ele não é uma criança normal — disse o quarto homem, Paul. — Ele é um vidente, no fim de contas. Dizem que é metade rapaz, metade animal; que muda de forma por meio de feitiçaria. É esse o significado do nome: Máscara-de-Raposa. Esconde-se transformando-se num animal.
— Uma raposa? — perguntou Thorvald de sobrancelhas erguidas. — Não é lá grande disfarce. Aqui, faria melhor se se transformasse num ganso-patola, ou num papagaio-do-mar.
— É um nome antigo — disse Svein. — Antes dele, tinha-o outro tipo. A tradição vem de longe.
— Mesmo assim — disse Hogni, obstinado, inspecionando a corda que tinha atado em redor da cintura — o fato é que os miúdos são naturalmente barulhentos. Se ele está ali, devia ser possível ouvir qualquer coisa. Mantenham os ouvidos abertos. E agora vamos embora, homens. Svein, tu seguras na ponta da corda. Paul, mantém o arco pronto e os olhos bem abertos e diz-me logo se vires alguma coisa. Ficamos aqui expostos e aquele tipo desapareceu perto daqui há pouco tempo. Vamos tentar só uma vez.
Thorvald começou a descer a falésia, as mãos e os pés sondando, tateando, agarrando-se em busca de apoio, a corda ainda solta mas firmemente segura nas mãos dos homens, em cima. O jovem sabia que Hogni era capaz de agüentar com o seu peso no caso de uma queda súbita e que os três homens tinham a força necessária para o puxar, mas isso não impedia que o seu coração soasse como um tambor, ou que a sua respiração parecesse a de um homem depois de uma longa corrida enquanto descia pela vertiginosa face da falésia. Thorvald dirigiu-se para o lado oeste da queda d’água, evitando a rocha molhada e mais escorregadia. Não era possível passar ali despercebido. Caíam pequenos seixos, pequenos pedaços de pedra desfaziam-se sob os seus dedos ou sob os pés, caindo nas rochas abaixo. Talvez tivesse sido uma idéia estúpida. Provavelmente, era. Por outro lado, se o inimigo fosse tão inteligente como Thorvald suspeitava, era provável que tivesse escondido o seu tesouro naquela parte pouco provável e inacessível da ilha. Por isso, toca a andar, para baixo e com cuidado, sentindo a corda tensa lá no alto, encontrando uma fenda para colocar o pé, a raiz de uma planta obstinada para a mão estendida e sempre procurando, procurando através daquela extensão de rocha desigual em busca de uma gruta qualquer, ou de um buraco suficientemente grande para abrigar algo maior do que o ninho de uma gaivota. E escutar: porque, para lá dos gritos das aves, do barulho da água da cascata e do bater do seu próprio coração, tinha de haver outro som qualquer. Um suspiro de criança, um passo abafado, o tilintar do metal; se o seu instinto estava certo, quem estava escondido ali, naquela desolada parede de rocha, tinha de se denunciar de qualquer maneira, se mantivesse os ouvidos bem abertos. Só mais um pouco... mais um pouco... O jovem agarrou-se às rochas e esperou, imóvel como um morto.
A Jornada jazia estendida no chão, uma jóia de cores brilhando à luz difusa que entrava pela abertura estreita da gruta. Creidhe não tencionava olhar para o seu trabalho antes de terminar a caçada, porque olhar era imaginar as imagens que não fizera, as coisas terríveis que tinha alojadas na mente e que se recusavam a sair. Mas o dia era longo e o silêncio forçado fazia com que ainda fosse mais longo. Não podia contar histórias, ou cantar, ou até andar de um lado para o outro com medo de revelar a sua presença através do som de um passo, do restolhar da roupa, ou por deixar cair um objeto qualquer. E não podiam dormir durante o dia; isso seria um convite a uma noite sem sono, durante a qual os medos que já assolavam Creidhe redobrassem de intensidade na escuridão.
Pequenino preocupava-a. Não que o Pequenino os pudesse denunciar devido a um som qualquer; ele era, se não outra coisa, pelo menos invulgarmente obediente aos pedidos de Guardião, compreendendo perfeitamente o que lhe era pedido. Era o olhar de profunda tristeza no seu pequeno e estranho rosto que lhe fazia doer o coração, uma dor superior ao medo de ser apanhado, superior ao terror de saber que Guardião estava em algum lugar a travar uma batalha tão desigual que parecia impossível sobreviver mais um ano. Nos olhos de Pequenino estava aquilo tudo e muito mais; havia neles algo ainda mais forte, uma tristeza tão profunda como a mensagem de alegria prodigiosa que ela ouvira na sua melodia. Os olhos dele contavam uma história que não tinha nada a ver com o fato de ele ter seis anos e estar fechado numa gruta numa semiescuridão sem poder andar. Havia coisas antigas na mente daquele pequeno vidente, coisas do espírito que Creidhe sabia estarem para além da sua compreensão. Tudo o que podia fazer era tentar consolá-lo, e esperar tranquilizar-se a si própria.
Assim, olharam para a Jornada, usando as mãos e os olhos para trocarem uma espécie de comentários. Pequenino indicara com os dedos as histórias que Creidhe contara antes: Eyvind, o guerreiro, e o seu inteligente amigo Somerled; Eyvind conquistando a sua pele de lobo e tornando-se, mais tarde, líder de homens. Depois, a história do pequeno Kinart, que a Tribo das Focas levara e afogara. Talvez. E Creidhe e as suas irmãs; Creidhe deixando a sua casa, velejando para longe; Creidhe virando um barco e chegando à Ilha das Nuvens. As mãos de Pequenino descansaram suavemente na lã escura que representava a imagem da ilha, lã cinzenta como a pele das focas, verde-escura e violeta, como o crepúsculo. Depois, o jovem atingiu o local onde se via a sua própria imagem, pouco mais do que um par de olhos na sombra. O pequeno cobriu-a com a mão e apontou para si próprio. Creidhe acenou com a cabeça. Sim, tu estás na Jornada. Eu não podia bordar a ilha sem bordar a ti também.
O Pequenino descobriu a imagem de Creidhe no bordado, uma figura mole em cima de um barco virado ao contrário. Na descrição, umas mãos pálidas saíam da água para guiar o barco desgovernado na direção da praia. Pequenino afagou os cabelos dourados da figura de lã e depois estendeu os dedos para afagar a longa trança de Creidhe, que caía para a frente enquanto a jovem olhava para a Jornada. Creidhe acenou de novo com a cabeça, sabendo o que se iria seguir.
A pequena mão de Pequenino moveu-se através dos pontos que Creidhe bordara desde que chegara à ilha: ele mesmo sob a forma canina; as caveiras com as suas bocas abertas num grito silencioso; a bruma, a chuva, a pequena lareira com uma panela ao lado. Ele olhou para ela, com uns olhos muito grandes. A sua mão estendeu-se de novo, tocando no tecido vazio ao lado daquelas últimas imagens, como se buscassem algo. O pequeno apontou na direção da abertura da gruta, onde a luz sugeria que o Sol estava a pôr-se; olhou para ela, o rosto tão ansioso como o de um cachorro apanhado em falta. Não eram precisas palavras para nada. A sua mensagem era clara. Onde está ele? Onde está o meu irmão? Por que não puseste Guardião na tua tela?
E quando ela não lhe respondeu, não porque necessitasse de silêncio, mas porque não tinha uma resposta, Pequenino ficou mais agitado do que ela alguma vez vira. Sempre sem um som, ele puxou o saco de Creidhe, tentou tirar o tecido dobrado onde estavam guardadas a lã e as agulhas e, quando não conseguiu, imitou, com gestos, o que ela devia fazer. Agora, faz agora, põe o meu irmão na tua tela, agora, hoje! Os seus olhos estavam aterrorizados, a boca torcida, as mãos frenéticas enquanto tentavam mostrar à jovem aquilo que desejava. Creidhe estendeu os braços para lhe segurar nas mãos, mas Pequenino afastou-se violentamente. O coração de Creidhe batia com toda a força. Ela apontou na direção da abertura da gruta, tentou mostrar-lhe: Não tenho luz para bordar, não há luz suficiente, o que era verdade. Mas não era aquela a verdadeira resposta. Mas não lhe podia dar. Não vou bordar essa parte, porque vejo nela a morte. Sei que Guardião estava errado quando disse que eu tinha o poder de mudar o futuro com as minhas agulhas e as minhas lãs coloridas. Não é verdade. Como poderia ser? Se eu achasse que era verdade, teria bordado a imagem dele há muito tempo. Tê-lo-ia mostrado alegre e a sorrir, com uma mão na minha e a outra numa das tuas, Pequenino. Mas não voltarei a bordar, porque a imagem que apareceria no tecido não seria uma imagem boa, seria uma imagem má. Apareceria, mesmo contra a minha vontade. Na verdade, estava mesmo na sua frente, via-a mesmo com os olhos abertos. Como podia aquela caçada acabar sem uma morte, uma morte que lhe despedaçaria o coração? Creidhe sentiu umas lágrimas quentes a caírem-lhe dos olhos e a rolarem-lhe pelas faces; a jovem tentou reprimi-las, mas elas não obedeceram. Creidhe cobriu o rosto com as mãos; assim não podia ser, a adulta ali era ela e tinha de ser forte. Um momento mais tarde, sentiu Pequenino a subir-lhe para o colo e a rodear-lhe o pescoço com os braços. Ela baixou os braços para o abraçar e, quando o fez, sentiu que também ele estava a chorar, o seu frágil corpo tremendo convulsivamente, mas sem um único som. Pequenino chorava como se todo o seu espírito estivesse cheio de dor. Creidhe embalou-o, desejando poder consolá-lo com palavras, com uma pequena canção, com o conhecimento do que estava errado, para que o pudesse ajudar. Na outra noite, quando ele cantara para a Lua na sua dança imponente através do céu, Pequenino parecia poderoso, velho e sábio. Agora, aninhado nos seus braços, não passava de uma criança só e miserável. Creidhe apertou-o contra si, fechou os olhos e rezou aos antepassados com todas as suas forças. Por favor, fazei com que tudo saia certo. Por favor, fazei com que tudo acabe bem. Não deixeis que Thorvald mate Guardião. E não deixeis que Guardião mate Thorvald. E, por favor, permiti que esta criança seja feliz aconteça o que acontecer. Ele não merece isto; é tão pequeno.
Finalmente, Pequenino adormeceu contra o seu peito, com as pestanas cheias de lágrimas; ela envolveu-o em cobertores e instalou-o o mais confortavelmente que pôde. Em seguida, Creidhe aproximou-se da entrada, vendo a luz do Sol mudar enquanto o astro mergulhava no horizonte. Desejou que Guardião ouvisse a mensagem: O teu irmão ama-te; tu és tudo para ele. E eu amo-te. Gostaria de te ter dito. Por favor, tem cuidado, estejas onde estiveres. Tenho-te no coração a cada momento. Quero que saibas isto; quero que o saibas no fundo do teu coração.
A luz, no exterior, ficou cor de laranja e depois vermelha. As gaivotas trocavam gritos; ouvia-se uma débil música aquosa, vinda do ribeiro que descia pela falésia abaixo, perto do esconderijo. Creidhe sentou-se muito quieta. A sua respiração ficou mais lenta; o seu coração começou a bater a um ritmo certo. Se entrasse em pânico não ajudaria Guardião ou Pequenino. Não podia influenciar o que estava a acontecer. Prometera proteger o Pequenino, mas não podia fazer mais nada.
Ouviu-se um som no exterior, por cima da entrada da gruta e uma pedra caiu aos ressaltos, passando a dois passos do rosto dela. Creidhe sobressaltou-se, alarmada. Silêncio. Talvez tivesse sido apenas um desmoronamento natural da falésia. Mas não: a jovem ouvia, agora, um movimento, como uma bota a escorregar e pela abertura da gruta passou uma cascata de seixos. Creidhe ficou gelada. Recuar para o interior seria arriscar-se a ser detectada por menor que o barulho fosse. Ficar onde estava significava ser vista instantaneamente se, de fato, estava um homem a descer pela falésia, ou um grupo de homens numa missão de busca. Certamente que não era Guardião, que podia pisar qualquer terreno com a segurança de um animal selvagem.
Outra pedra. Os sons tinham cessado. Com uma lentidão dolorosa, Creidhe afastou-se de gatas da abertura, aproximando-se das sombras do interior da gruta, onde a criança dormia. Onde a criança, de repente, começou a rolar de um lado para o outro, inquieto, esfregando os olhos no seu sonho, deixando sair, depois, um pequeno queixume antes de cair num sono calmo. Um som muito débil, muito ligeiro: uma pista mortal. Quem estava lá fora? Teriam ouvido o choro de Pequenino? Na semiescuridão, os dedos de Creidhe estenderam-se para agarrar o punho da faca que Guardião lhe dera e, cerrando os dentes numa estranha mistura de raiva e terror, encolheu-se onde estava, à espera.
Ouviu-se um grito vindo do alto da falésia, áspero e sem palavras, um grito de dor. A corda agitou-se violentamente e depois imobilizou-se. Thorvald agarrou-se à rocha com o coração aos pulos. Um momento mais tarde ouviu-se a voz de Paul a gritar.
— Volta para cima, depressa!
O jovem obedeceu. A nota de horror daquelas palavras chocadas não admitia outra coisa. O jovem trepou, escorregando desajeitadamente, fazendo o possível por minimizar a sua dependência do homem que segurava na corda; quem sabia o que estava a acontecer? Apesar dos seus esforços, uma das mãos de Thorvald escorregou, ele perdeu o equilíbrio e ficou a balançar no vazio, a três batimentos do coração de distância do mar selvagem na base da falésia. A corda aguentou-se; graças aos deuses por Hogni.
— Depressa, despacha-te! — gritou a voz mais uma vez e Thorvald agarrou-se desesperadamente a um arbusto, começando, de novo a subir. Com o coração a bater como um martelo e o corpo encharcado em suor, o jovem subiu os últimos metros e chegou à plataforma onde estavam os seus companheiros. Só que eles já não estavam de pé. Svein estava de bruços nas rochas, imóvel salvo por alguns movimentos dos dedos das mãos. Nas suas costas estava espetada uma flecha. Paul estava a armar o seu arco com as mãos a tremer enquanto olhava para a encosta verdejante na sua frente, onde não parecia haver ninguém. E Hogni, tentando desajeitadamente desatar a corda que o unia a Thorvald, estava da cor da cinza e tremia
— O que...? — começou a dizer Thorvald, desatando a sua própria ponta da corda e caindo de joelhos junto do homem ferido. O jovem virou Svein e percebeu imediatamente que era demasiado tarde: aquele guerreiro tinha a morte nos olhos, nada o faria regressar. Por trás de si, Paul perdia flechas metodicamente, ao mesmo tempo que praguejava.
Hogni ajoelhou-se do outro lado de Svein, em frente de Thorvald e estendeu uma mão para fechar aqueles olhos subitamente fixos e opacos.
— Thorvald? — murmurou o grande guerreiro.
Thorvald sentiu-se abruptamente gelado até aos ossos. O jovem olhou para os olhos pequenos e aterrorizados de Hogni, para o tremor das suas mãos fortes. Do peito de Hogni, mesmo abaixo do ombro, surgia a ponta de uma lança; aquele projétil finamente trabalhado perfurara-lhe a sua pesada túnica de pele com a facilidade de uma agulha de coser. Thorvald levantou-se lentamente. O jovem fez um esforço e rodeou o guerreiro para ver a outra metade do longo dardo que saía das costas de Hogni; para observar a escura e oleosa camada que o revestia e que se misturava com o sangue do grande guerreiro. Svein morrera rapidamente, durante o espaço de tempo que ele levara a subir a falésia. Hogni fora ferido, mas continuara a segurar na corda, cobrira o seu camarada e seguira as suas ordens, sabendo que tinha a morte no corpo.
— Apanhou Svein no coração. — A voz de Hogni era um murmúrio rouco. — Paul feriu-o, creio. Ouvi um grito e depois ele fugiu. — A voz começava a faltar-lhe. — Tenho de ir... abrigo. É preciso... falar... irmão...
— Talvez possamos fazer qualquer coisa — disse Thorvald, tentando recordar qualquer coisa que pudesse ter aprendido acerca de venenos e antídotos. — Não posso tirar o dardo; mas, se fizermos um corte no ferimento e o ligarmos com força, talvez...
— Não há esperança — disse Hogni, respirando com dificuldade. — Esta coisa não... já vi antes... pouco tempo... não muito... vamos para baixo enquanto... posso... Skapti...
Thorvald sentiu um aperto no coração. Não valia a pena contestar o que era, provavelmente, verdade.
— Devíamos tirar o dardo, pelo menos — disse ele. — Ficas mais confortável. Eu...
— Não! — conseguiu dizer o guerreiro. — Não toques... espera... Skapti...
— Muito bem — disse Thorvald com o coração a bater com toda a força. — Esperamos pelo teu irmão. Consegues andar, Hogni?
— Força suficiente... — murmurou o grande guarda-costas.
— Paul! — chamou Thorvald. — Vamos, temos de o levar para o abrigo. Svein, por agora, fica aqui. E esperemos que aqueles miseráveis se dêem por satisfeitos, por agora. Por todos os deuses, hão de pagá-las. Vamos — disse ele para Hogni, que se tinha levantado e que, oscilando, tinha colocado um braço em redor dos ombros de Thorvald e o outro em redor dos de Paul. — Vamos ter com os outros antes que chegue a noite. Custa-me muito deixar um guerreiro para trás, mas não temos outra hipótese.
— Eu venho cá amanhã com dois camaradas — disse Paul. A sua voz soava de um modo estranho; quando Thorvald olhou para ele, viu que o rosto do arqueiro estava cheio de lágrimas. — Enterramos Svein, se pudermos. Já ficaram muitos dos nossos homens sem receber os ritos próprios neste maldito lugar.
Então, Hogni emitiu um gemido, estremeceu e o guerreiro foi percorrido por um grande tremor. Thorvald e Paul desceram a encosta abrupta à luz do crepúsculo com o grande guarda-costas cambaleando entre os dois. Quanto ao inimigo que lhes montara a emboscada e disparara aqueles dardos venenosos com uma crueldade mortal, desaparecera como uma sombra.
Mais acima, na escuridão de uma gruta pouco profunda, estava Guardião sentado, sozinho. Doía-lhe o braço, no lugar onde lhe acertara a flecha disparada por Paul; o jovem envolvera o ferimento num bocado de pano, porque não podia deixar nada que revelasse a sua passagem pela encosta. Colocou a dor num determinado ponto da mente, onde deviam ficar distrações como aquela. Era essencial permanecer alerta, manter-se sempre um passo à frente.
Tinham-no surpreendido. Tinham-se aproximado perigosamente do local onde estavam escondidos os seus dois entes queridos. Aquele Thorvald era esperto. A mão de Guardião quase pegara no arco para disparar uma única flecha, cortando a corda que sustinha o amigo de Creidhe na face da falésia, perto da gruta secreta. Teria ficado satisfeito por ver cair o homem de cabelos vermelhos; ter-se-ia esmagado nas rochas e o mar tê-lo-ia levado. Aqueles que invadiam aquela ilha, aqueles que procuravam fazer mal a Pequenino não mereciam melhor. Mas Guardião não conseguiu disparar; com aquele ferimento na parte de cima do braço, não podia apontar convenientemente e, se falhasse, ter-se-ia exposto a um contra-ataque. Thorvald teria de esperar.
Os homens estavam, agora, reunidos. Podia ouvi-los a falar e conseguia ouvir os sons que o homem ferido emitia. O veneno podia demorar algum tempo se o guerreiro era forte. Guardião podia atacar de noite; a ilha ajudá-lo-ia enviando vozes para a escuridão, usando todos os seus truques e armadilhas. Mas as forças de Asgrim eram substanciais e estavam juntas, com sentinelas a vigiar, e Guardião cometera um erro. Deixara-se ferir, o que limitaria a sua capacidade de manter o assalto uma vez começado.
Não podia, portanto, ser naquela noite, contra todos ao mesmo tempo. Nos outros Verões, eles tinham-se assustado com facilidade, tinha sido fácil dispersá-los, tinha sido fácil apanhar um a um à medida que iam fugindo. Guardião percebeu que, desta vez, ia ser diferente. Este ano, eles traziam um verdadeiro líder: o recém-chegado, o intruso, o arrogante Thorvald, metido numa contenda que não era da conta dele e fazendo-o com uma competência espantosa. Um homem daqueles não queria saber de Pequenino, salvo como troféu de guerra, um prêmio a conquistar. E não queria saber de Creidhe. Tratara-a mal e não merecia a sua lealdade.
Guardião semicerrou os olhos na semiescuridão, escutando as vozes baixas dos homens abrigados na concavidade por baixo da gruta.
Que faria Thorvald no dia seguinte? Como agiria um homem como ele? O jovem tentou concentrar-se no intruso, mas a sua mente não cooperava. Em vez disso, imaginou Pequenino e Creidhe calados na pequena gruta, escutando os sons no exterior, sabendo que alguém se aproximava, abraçados um ao outro, assustados e sós. Recordou o último abraço de Pequenino. Sentiu o beijo de Creidhe, o seu corpo maravilhoso, suave, vibrante, contra o seu, cheio de ternura e promessa. Guardião fechou os olhos. O jovem jurara que não pensaria neles até aquilo acabar; a caçada exigia toda a sua força e vontade. No entanto, tinha-os no coração, enchendo-o e afastando tudo o mais, salvo a visão de uma felicidade que ele nunca acreditara ser possível e um medo redobrado.
No fim de contas, tinha a resposta diante de si, os seus planos e a sua estratégia. Não atacaria, ficaria de guarda. Matar muitos era bom, porque reduzia a capacidade de Asgrim em futuras caçadas. Mas o essencial era proteger o seu tesouro; salvar Pequenino e assegurar-se de que Creidhe não era capturada. Antes do amanhecer instalar-se-ia na falésia virada a sul, por cima da cascata. Se Thorvald regressasse, Guardião matá-lo-ia. Se viessem mais homens com ele, matá-los-ia também. Só faltava um dia, só mais um dia para o inimigo retirar. Depois, regressaria a paz e poderia ir buscar os seus dois entes queridos.
— Quanto tempo? — perguntou Thorvald em voz baixa. Passara-se algum tempo; tinham atingido o ponto de encontro muito depois dos outros e, agora, Hogni estava encostado a uma grande pedra, tremendo de febre enquanto Skapti, com o rosto da cor da cinza, passava um pano molhado pela fronte do irmão. Os outros rodeavam-nos, calados e muito sérios à luz estranha da noite de Verão. Nem todos estavam presentes, porque Svein não fora a única vítima. Um dos homens do grupo de Einar caíra numa armadilha e fora parar no fundo de um precipício, nas rochas, a uma distância impossível do ponto onde os companheiros estavam chocados e impotentes. E um do grupo de Orm fora varado por uma lança; uma das suas armas, devolvida pelo inimigo. Helgi morrera a gorgolejar, engasgado com o próprio sangue. Os homens estavam silenciosos; ninguém queria dormir. De cada um dos lados da concavidade onde se encontravam, dois arqueiros montavam guarda com lanças de arremesso, se bem que não fosse fácil, naquela meia-luz, visar um alvo em movimento.
Skapti tratou do dardo. Com as mãos protegidas da camada venenosa por um pedaço de lã espessa tirada da sua própria túnica, conseguiu quebrar, com um estalido seco, a haste que saía do peito palpitante do irmão e puxou a outra parte das costas de Hogni com um som de sucção desagradável. Hogni não gritou; ele era um guerreiro, muito resistente. Emitiu, simplesmente, um pequeno gemido e cerrou os punhos. Thorvald ligou o ferimento; um pequeno ferimento, mas o suficiente para roubar àquele gigante robusto a sua parte do futuro que todos desejavam.
Agora, estavam todos à espera, como fantasmas reunidos à luz do crepúsculo, sem uma fogueira ou um abrigo, sem risos nem histórias, ou uma caneca de cerveja para os ajudar a comemorar as vidas e as mortes de tantos homens bons. Thorvald sentiu os olhares deles e imaginou os seus pensamentos: Tu é que és o culpado. Foste tu que o mataste com os teus belos planos, com as tuas sortidas, mandaste-os como carneiros para o matadouro. Isto era suposto ser uma grande vitória. Agora, Svein, Alof e Helgi morreram e Hogni é um moribundo. O que é que te dá o direito de pensar que és melhor do que Asgrim?
— Quanto tempo tem ele? — perguntou Thorvald de novo, sentado de pernas cruzadas ao lado do guerreiro. — Tens a certeza de que não podemos fazer nada?
— Ele é grande e o dardo não fez muito sangue — disse Einar em voz baixa. — É mau; quer dizer que vai demorar mais tempo. Durante a noite. Esperemos que o inimigo não decida atacar.
— Não há...?
Skapti abanou a cabeça.
— Um homem não sobrevive a isto — disse ele com uma voz áspera, sofredora. — A maioria morre rapidamente. O meu irmão luta. Ele é assim.
Pelo grande corpo de Hogni passou uma convulsão; os seus braços agitaram-se para cima e para fora, as suas costas arquearam-se e os seus pés matraquearam convulsivamente o solo. Em seguida, ficou de novo imóvel, a respiração asmática como único som, salvo os débeis gritos das aves noturnas. Era evidente, pelo cheiro, que ele perdera o controle das entranhas; Einar, calmamente, limpou-o o melhor possível naquele espaço confinado.
— Thorvald? — A voz de Skapti era fraca como a de uma criança, sem raiva.
— O que é?
— Importas-te de pedir aos homens que se afastem um pouco? Não muito; é que eu tenho de lhe dizer umas coisas antes... umas coisas que eu tenho de dizer enquanto ele é capaz de as compreender. Tu não, Einar, fica aqui. Hogni? Consegues ouvir-me?
— Não é preciso... — As palavras de Hogni saíram numa espécie de assobio.
— É preciso, é — disse Skapti calmamente. — Tenho de te dizer isto, ou não poderei continuar, por isso cala-te e ouve-me. Thorvald?
Depois de ter mandado os homens afastarem-se, o jovem ficou ao pé de Wieland e de Orm, não fora de alcance das palavras de Skapti, mas, pelo menos, a uma distância respeitável dos dois irmãos.
— Preciso de ti aqui perto — disse Skapti. — Se não te importas.
Sem dizer uma palavra, Thorvald regressou para junto de Hogni.
O jovem segurou numa das mãos do grande guerreiro e Skapti na outra, enquanto Einar molhava o pano num odre e o levava às pálidas feições de Hogni.
— Não demora nada — disse Skapti, olhando para Einar — Tu sabes como foi sempre conosco, guarda-costas do governador, velando por ele, tratando dos assuntos dele. Desde sempre: desde miúdos. Acontece que houve mais do que isso. Para mim, pelo menos. Assuntos especiais: coisas de que tu nunca soubeste, Hogni. Eu não gosto de guardar segredos, especialmente do meu próprio irmão. Não me sinto bem. Mas foi o que fiz. Nunca te consegui falar do que Asgrim me mandava fazer. Ter-me-ias desprezado. Na primeira vez, ele persuadiu-me de que tinha de o fazer para que os ataques parassem. “Tu és o meu braço direito, Skapti” disse-me ele. “Façamos isto pela paz.” Foi o que eu fiz, sem te dizer nada, e não me pareceu que fosse errado, mas a coisa correu mal. Depois disso, ele passou a dominar-me. Asgrim sabia como ficarias se soubesses que eu te tinha mentido. E disse-me que tínhamos agido bem; que o fizéramos pelo povo dos Facas Longas, pelas crianças todas que tínhamos perdido. Disse que tínhamos acabado com os anos maus. Na primeira vez, com Sula, acreditei nele; as outras coisas que fiz, fazia-as porque ele me metia medo. Mas na última vez, com a amiga de Thorvald, foi diferente. Senti-me mal, senti que algo sombrio e sujo se tinha metido dentro de mim. Percebi que tinha estado sempre errado. Errado o tempo todo ao fazer o trabalho sujo de Asgrim, errado por não te ter contado a verdade, Hogni. O governador é um homem mau. Devia ter-lhe feito frente.
Thorvald estava arrepiado, se bem que só tivesse compreendido parcialmente. Hogni estava calmo, com o olhar fixo no rosto duro do irmão.
— Fala claro, Skapti — disse Thorvald asperamente. — Que queres dizer com isso da primeira e da última vez? Primeira vez o quê, exatamente?
Skapti inclinou a cabeça.
— É que — disse ele — toda a gente pensou que Sula foi raptada, roubada; as pessoas admiraram-se por Asgrim não ter ido atrás dela, mas ele não é um homem a quem se possa dizer nada. Eu fui o único a saber que ele fez um acordo com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz; o único para além de Asgrim e de Erling, o irmão da rapariga. A filha do governador não foi raptada, foi vendida. Asgrim trocou-a com o inimigo por uma promessa de paz.
Seguiu-se um silêncio absoluto. Thorvald podia ver, pelos olhares admirados de Einar e de Hogni, que nenhum deles estava ao corrente dos fatos em relação ao homem que seguiam como governador e chefe de guerra. Mais longe, onde os homens estavam sentados junto das rochas, não se ouvia um som. Thorvald tinha a certeza de que eles tinham ouvido tudo. O jovem chamou a si todas as suas forças para fazer a pergunta seguinte.
— E Creidhe? — O jovem não conseguiu manter a voz firme.
— Sabes — disse Skapti, que agora chorava abertamente — eu quase que acreditei que estava a fazer uma coisa boa. Asgrim é bom, dá-nos a volta. Ele fechou o filho, não o deixou ir atrás de Sula. O rapaz quase enlouqueceu. Um bom rapaz. Um pouco sonhador, apesar disso, nunca gostou de lutar, não era capaz de pegar numa arma. Toda a gente pensava que ele ia acabar como eremita, como aqueles tipos no alto do monte. Finalmente, foi libertado, demasiado tarde para a rapariga, mas, mesmo assim, ele foi atrás dela assim que o tempo o permitiu. Mas, enquanto ela esteve com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, tivemos paz. E sabia bem. Quase nos chegamos a esquecer de como é bom. Então, o rapaz raptou Máscara-de-Raposa e começou tudo de novo.
— Fala-me de Creidhe — disse Thorvald, tentando manter a calma.
— Nós vimos logo, mal ela pôs os pés na ilha. O cabelo, quero dizer. Ela teve de o cobrir; tivemos que esperar até Asgrim conseguir um acordo, certificar-se de que nos deixariam em paz assim que a tivessem. Mantivemo-la na aldeia até ele conseguir outro encontro com o inimigo.
Thorvald manteve-se imóvel enquanto o frio o percorria lentamente, compreendendo que tinham estado a brincar com ele. Não conseguia falar.
— Tiramos você e Sam do caminho — continuou Skapti. — Então, ele conseguiu o encontro, apresentou-lhes as condições, eles concordaram e marcaram uma data e o local. Ele disse-me o que eu tinha a fazer. No fim, a rapariga facilitou-me as coisas, foi passear com um dos monges. Eu estava lá. Certifiquei-me de que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz a levavam, vi-os partir de barco. Ela chamou-me, pediu-me para a ajudar. Nessa altura, eu já sabia que o meu coração estava errado. Todos nós queremos a paz, mas não a qualquer custo. Uma rapariga tão bonita, tão corajosa. Teria dado uma boa esposa, qualquer homem que ficasse com ela seria um homem de sorte. Quando a vi pôr-se de pé e atirar-se ao mar... quando a vi na água... Soube que tinha praticado uma maldade. Errei na primeira vez e errei na segunda. Errei quando matei o miúdo que ia ter convosco para vos dizer a verdade, Thorvald. Matar um homem em combate é uma coisa. Assassiná-lo a sangue-frio é outra. Os deuses enviaram-me um sinal, hoje, lembraram-me que não passo de um bandido. Mais valia ter feito com que Asgrim me matasse, em vez de entregar assim uma rapariga inocente àqueles selvagens, não uma, mas duas vezes. Mais valia não ter nascido. — Skapti passou uma das suas grandes mãos pelo rosto. — Pronto, contei-te tudo, meu irmão. Não espero que me perdoes. Não mereço isso. Só queria que soubesses a verdade antes de ires. Os irmãos não devem ter segredos uns para os outros.
Thorvald olhou para Einar; Einar encontrou o seu olhar com uma expressão na qual o desgosto, a ânsia pelo perdão e a impotência se misturavam.
— Vocês sabiam — murmurou Thorvald. — Sabiam desde o princípio o que ia acontecer a Creidhe e nenhum de vocês tentou impedi-lo. Aceitaram a minha ajuda, disseram que eram nossos amigos, meus e de Sam, mas estiveram sempre ao corrente das intenções de Asgrim... Por todos os deuses, não acredito, mas tenho de acreditar. Estou a ver a verdade no teu rosto, Einar; vejo-a na voz de Skapti. Suponho que o ferimento que impediu Sam de regressar a Água Brilhante também não foi um acidente. Talvez nem todos tenham sido cúmplices no que Asgrim fez à própria filha, mas foram todos cúmplices no caso de Creidhe. — O jovem queria dizer mais, mas mordeu as palavras porque continuava a ser o líder e um líder não perde o controle. Vocês nunca quiseram a minha ajuda e o meu pai também não. Ele manteve-me no comando apenas para que eu não me apercebesse do que ia acontecer a Creidhe, senão quando já fosse demasiado tarde. Ele deixa-me continuar a comandar-vos apenas porque Creidhe lhe fugiu e eu tornei-me, subitamente, útil.
— Skapti... — Por breves momentos, tinham-se esquecido do homem que jazia ali às portas da morte.
— O que é, irmão?
— Está... a ficar... frio — sussurrou Hogni. Os membros do guerreiro estremeciam agora com mais freqüência, um sinal do que estava para vir. A sua pele estava cinzenta, cheia de suor e os olhos encovados. Os dentes batiam.
— Toma. — Wieland apareceu ao lado de Thorvald com uma espessa capa de lã nas mãos. Thorvald pegou nela e cobriu o moribundo.
— Thorvald... — conseguiu dizer Hogni. — Tens de... perdoar... tens de... mudar...
Mas Thorvald não respondeu. A sua mente enevoara-se, transformando-se num caos de fúria, dor e desapontamento, impedindo-o de falar e fazendo-o levantar-se, virar as costas e dirigir-se para a extremidade da concavidade onde se encontravam, onde ficou imóvel, sozinho, olhando para a escuridão. O seu pai mentira-lhe. Todos lhe tinham mentido. Acreditara que aqueles homens o respeitavam, que confiavam nele, acreditara que o achavam digno da liderança que lhe fora parar às mãos de maneira tão estranha. Fora ingênuo, estúpido, enganado. Fora um louco, cego pelo seu sucesso com as cordas, as lanças e os discursos de esperança. Fora tolo e egoísta, tal como o pai. Como pudera esquecer-se da história de Somerled, uma história de crueldade, de ambição feroz e de carnificinas? Somerled assassinara o próprio irmão por uma questão de liderança; quase destruíra o povo de Nessa apenas para poder colocar uma coroa na própria cabeça. Somerled podia ter, agora, um nome diferente, mas era o mesmo homem. Thorvald deu um pontapé furioso nas pedras. As pessoas não mudavam, Não podiam. Fora um louco por acreditar que o seu pai o reconheceria publicamente, um idiota por pensar que Asgrim o poderia amar. O homem nunca quisera saber de laços familiares. Não sabia o que era o amor. Provavelmente, esquecera Margaret no momento seguinte ao seu pequeno encontro casual que, infelizmente, dera origem a um filho sem sorte, sem mais valor neste mundo do que o próprio pai. Porque um filho sai ao seu pai: não podia escapar a essa fatalidade. Não o demonstrara naquele dia, com três homens mortos nas encostas da Velha e um bom soldado a morrer ali lentamente, envenenado? Estava amaldiçoado pelos deuses; soubera-o no momento em que a mãe lhe contara a verdade e sabia-o agora, finalmente, de modo amargo. Falhara com Creidhe, falhara com aqueles homens e falhara consigo próprio. A sua missão não passava de uma mentira.
— Thorvald?
— Deixa-me em paz! — grunhiu ele, sem se virar para ver quem falara.
— Thorvald, vem para o pé de nós. Tens de nos ouvir.
— De que é que vale? — perguntou asperamente Thorvald. — O que é que vocês me podem dizer?
— Todos os homens merecem ser ouvidos — disse Wieland calmamente, colocando-se no seu campo de visão. — Hogni está a morrer e quer o comandante a seu lado.
— Eu não sou comandante nenhum — disse Thorvald ferozmente. — Todos vocês sabem isso. Todos vocês sabem por que razão Asgrim me trouxe para o acampamento. Foi uma armadilha, para que eu não me apercebesse o que se estava a passar. Ele é que é o vosso verdadeiro comandante.
Wieland olhou para ele com o rosto sombrio.
— É aí que te enganas — disse ele. — Vem para o pé de nós e nós explicamos-te. Não deixes que Hogni morra sabendo que viraste as costas ao irmão, Thorvald. Ele tem de ver a tua força e tu tens de reconhecer a dele. Anda lá, homem.
Juntaram-se de novo; havia um espaço nas rochas entre eles, onde era suposto Thorvald sentar-se, perto do lugar onde Hogni jazia de olhos fechados e com a cabeça no colo do irmão. De vez em quando, o seu corpo torcia-se e estremecia à medida que o veneno se ia espalhando e Orm e Einar aproximaram-se dele para lhe segurar nas pernas e nos braços, no caso de o guerreiro se ferir ou ferir alguém
— Depressa — murmurou Skapti, olhando para Wieland. — Já falta pouco, ele tem de ouvir.
— Queremos contar-te o que vai nas nossas mentes — disse Wieland com os olhos postos em Thorvald. — Tu não compreendeste. Nós não negamos a verdade e não estamos à espera de desculpas. Sim, sabíamos quais eram as intenções de Asgrim a respeito da rapariga e não gostamos. Mas não sabíamos que era tua amiga, era uma estranha e para nós é mais fácil sacrificar um estranho. A verdade é essa.
— Como se sacrificar um dos seus não fosse um problema para Asgrim — disse Orm. — Não acredito; não acredito que ele tenha entregue a própria filha.
— Thorvald — continuou Wieland — tu não imaginas o que tem sido para nós. Mas posso contar-te a minha parte nesta história toda. Não gosto de falar nela, mas vejo que tem de ser. É a única maneira de te poder explicar. Eu sou casado há seis anos; a minha mulher chama-se Jofrid. É uma jóia de rapariga, irmã de Orm. Éramos namorados desde os doze anos. Casamos no ano anterior à primeira caçada. Jofrid adora crianças; as outras mulheres estão sempre a pedir-lhe que as ajude com as delas, ela é muito boa com crianças. Acalma os rabugentos e cativa os envergonhados. No Outono depois da primeira caçada, estávamos à espera do nosso primeiro filho. Eu fiz um berço e Jofrid bordou muitas coisas. Mal podíamos esperar. No dia em que ela deu à luz, apareceram as vozes; chamaram o espírito do nosso filho e ele nasceu morto. Foi o castigo por termos falhado a caçada.
No ano seguinte foi a mulher de Hjort que perdeu o filho e a filha de Einar deu à luz um filho deformado, que morreu pouco depois. No ano da terceira caçada, Jofrid ficou grávida outra vez. Pedi a Asgrim que me deixasse levá-la para longe, para leste, para outras ilhas, para que pudesse dar à luz em segurança. Mas o governador não nos deixou ir. No fim de contas, o barco não era meu; além disso, ele precisava dos homens todos para a caçada. Assim, ficamos e voltou a acontecer. Na primeira vez, choramos juntos e confortamo-nos um ao outro, com esperança numa próxima vez. Na segunda vez, Jofrid ficou calada. Não queria falar no assunto, nem a mim nem às outras mulheres. Talvez tivesse falado com os cristãos, mas Asgrim não os deixava aproximar da aldeia. Aquele tipo, Niall, tinha-o desafiado várias vezes e ele não gostava de ver a sua autoridade posta em questão. Jofrid mudou. Era como ter um fantasma em casa. Arrumou o berço e meteu os bordados que tinha feito numa arca. Era como se o nosso filho nunca tivesse nascido. Falhamos outra vez na quarta caçada. Morreram três bebês nesse ano, todos antes de o Sol nascer no segundo dia de vida. Jofrid ajudou a nascer esses bebês, mas ela não me contou nada. Estava fechada para o mundo, demasiado assustada para falar, assustada só de pensar fosse no que fosse. Já não queria saber das crianças das outras mulheres; nem sequer queria olhar para elas. Então, veio a quinta caçada, no ano seguinte. O padrão foi o mesmo. Voltamos menos e sem o vidente. E, no fim do Outono, Jofrid ficou outra vez grávida.
Wieland fez uma pausa; a voz faltara-lhe aqui e ali, como se fosse chorar, se pudesse. Estava um homem a morrer; tinham de ser postos de lado outros sofrimentos.
— Dizem que a tua amiga, Creidhe, foi quem ajudou o meu filho a nascer — continuou ele num murmúrio. — Salvou-o, porque ele nasceu enrolado no cordão. Salvou-o, para depois Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz o levarem dos braços de Jofrid. O meu filho. E eu nem pude estar ao pé dela para lhe secar as lágrimas, ou para chorar com ela. Não a pude proteger, não pude evitar que os meus filhos morressem. — Finalmente, Wieland não conseguiu reter as lágrimas; o guerreiro calou-se, soluçando. Orm estendeu um braço e colocou uma mão no ombro do companheiro mais novo.
— Eu não contei isto para desculpar o que fizemos. — Wieland fez um esforço para se controlar e conseguiu-o endireitando os ombros e enxugando as lágrimas das faces, no lugar onde cinco cicatrizes paralelas assinalavam que tinha passado por cinco caçadas. Todos nós sabemos que não temos desculpa, que foi uma violação cruel das leis da hospitalidade e das que, supostamente, devem proteger os inocentes. Contei apenas para explicar que somos homens normais, com corações normais. Todos nós temos as nossas mulheres e as nossas famílias, as nossas namoradas, os nossos anciãos. Temos os nossos barcos de pesca, os nossos carneiros, os nossos pequenos campos. Pelo menos, tínhamos: não muito, talvez, mas era o suficiente para sobrevivermos. Não pedimos mais nada: a vida que tivemos em tempos e a crença em nós próprios. A hipótese de vermos os nossos filhos crescer.
— Não sei por que me contas isso. — Thorvald ouviu a sua própria voz áspera e fria, como se pertencesse a um estranho. — Não tem nada a ver comigo. Fosse qual fosse a minha importância neste jogo de poder por parte de Asgrim, morreu com Creidhe. Já não faço parte disto.
— Errado... Thorv... errado... — Era a voz de Hogni. O guerreiro continuava de olhos fechados, agarrando no braço do irmão com tanta força que tinha os nós dos dedos brancos.
Thorvald ajoelhou-se junto do moribundo; ali, pelo menos, podia fingir, durante mais alguns momentos, que ainda tinha um papel a desempenhar.
— O que é, Hogni?
— Tu... comanda... — conseguiu dizer Hogni, meio engasgado. — Tu... vence...
— Como é que posso comandar? — perguntou Thorvald calmamente, segurando na mão do grande guarda-costas. — Eu não sou ninguém. A minha liderança é baseada numa mentira. Eu não sou nada.
— Tu... comanda... Promete-me... — Hogni fez um esforço para abrir os olhos; podia estar a morrer mas a sua expressão era de desafio feroz. — Promete!
Thorvald sentiu um nó na garganta; o sangue batia-lhe nas têmporas.
— Como posso prometer? — murmurou ele.
Os olhos de Hogni fecharam-se. O guerreiro não disse mais nada.
— Está bem. — Thorvald encontrou a voz. O jovem olhou para Skapti, que segurava o irmão nos braços. O guerreiro tinha os olhos vermelhos e inchados; o luar permitia ver as cicatrizes no seu grande rosto. — Perdôo ao teu irmão o que ele fez. Skapti fez coisas horríveis, é verdade. O fato de as ter feito a mando de Asgrim não o desculpa. Eu gostava muito de Creidhe; fazia parte de mim. A morte dela pesa-me muito, assim como a Sam. Mas Skapti pagou caro por isso e há de continuar a pagar até morrer. Mas, pela minha parte, não precisa de carregar esse fardo. Eu perdoo-lhe. Tem a minha amizade; na verdade, nunca deixou de a ter.
Skapti exalou um grande suspiro e acenou com a cabeça. Hogni não respondeu; por um momento, Thorvald pensou que o guerreiro tinha morrido. Então, os seus olhos abriram-se de novo, fantasmagóricos à luz do luar, duros e exigentes.
— Tu... comanda... — disse ele firmemente. — Promete.
Thorvald ficou calado. Não ia prometer, se não podia cumprir.
— Precisamos de ti, Thorvald — disse Einar. — Não podemos fazer isto sem ti.
— Eu? — disse Thorvald, trocista. — Um boneco de Asgrim, a quem todos vocês mentiram? Não me parece. — Maldição, parecia uma criança petulante a quem tinham tirado um brinquedo. Por que não o deixavam em paz? Que mais queriam dele?
— Thorvald — disse Orm, pondo-se de pé — tu és o melhor chefe que alguma vez tivemos. Tu és a única hipótese de conseguirmos vencer.
— A única hipótese de nos vermos livres de Asgrim — acrescentou Einar.
— Chefia-nos amanhã — disse também Wieland — e depois disto tudo. Estamos fartos de ter medo de dizer não. Ajuda-nos a encontrar Máscara-de-Raposa e ajuda-nos, depois, a encontrar o que tínhamos e que perdemos.
— Acontece — disse Skapti, com o irmão moribundo, mole e pálido encostado ao peito — que não tínhamos esperança nenhuma até tu chegares.
— Mas...
— Começou tudo como tu disseste, tu e Sam, impedidos de interferir. Mas nós vimos, rapidamente, que tipo de homem eras. Tu conseguiste-nos tempo. Preocupaste-te conosco. Foste inteligente e não te importaste de partilhar conosco os teus conhecimentos. Tu tinhas idéias, vias longe. Enfrentaste Asgrim. Só outro homem conseguiu isso, desde que ele é governador. Enfrentaste Hogni e eu, mesmo sabendo que te podíamos fazer em pedaços. Tu és o nosso líder, Thorvald. Tens de continuar.
Ouviu-se um coro de aprovação: sussurros, murmúrios, acenos de cabeça. Não muito alto: estavam na ilha, era de noite e nenhum deles se esquecia do inimigo.
Thorvald agradeceu a luz difusa, porque sentia as faces coradas devido a uma lamentável perda de controle e as lágrimas fizeram-lhe arder os olhos.
— Como é possível vocês dizerem isso? — conseguiu ele dizer. — Eu sou como ele! Eu não sou melhor do que Asgrim! Prometi-vos baixas mínimas e já morreram três homens. Estamos, neste momento, a assistir à morte do melhor. E ainda não temos o vidente. Até agora, tenho sido um fracasso. — Apesar das palavras, o jovem sentiu o calor regressar ao coração.
— A verdade é que — disse Skapti em tom de desculpa — nenhum de nós acreditou nisso das perdas mínimas. Os homens morrem numa batalha. Nunca o conseguirias sem perdas. Mas soava bem; deu-nos coragem. Nós confiamos em ti, Thorvald. A segunda parte da promessa é que interessa. Encontra o vidente. Chefia-nos amanhã, apanhemos Máscara-de-Raposa, regressemos a casa e ponhamos tudo em pratos limpos. Diz que sim. Precisamos de ouvir isso.
Naquele preciso momento, Hogni começou de novo com convulsões, dessa vez maiores e Thorvald inclinou-se para aquele corpo sacudido violentamente, enquanto Einar segurava nas pernas do moribundo envenenado e Skapti, soluçando, o abraçava. Quando o espasmo terminou, Thorvald percebeu que não conseguia reter por mais tempo as lágrimas. Pegou numa das mãos do grande guerreiro e levou-a ao rosto.
— Hogni — disse ele calmamente — espero que me possas ouvir. Não sei se consigo. O mais provável é que Asgrim vença mais uma vez. Tudo aponta nesse sentido. Tudo o que te posso dizer é que prometo dar o meu melhor. Espero que fiques contente. E, outra coisa, és um homem de sorte. Tens o melhor irmão e os melhores camaradas que um tipo pode ter. E agora descansa, grande guerreiro. Thor está à tua espera; o seu chamamento soa nos teus ouvidos. Descansa.
Então, todos se revezaram, um a um, no meio das convulsões cruéis que agitavam cada vez mais o corpo de Hogni, despedindo-se com uma palavra, um afago: tudo muito simples mas com muita força, cada um abençoando-o à sua maneira. Depois de acabarem, sentaram-se de novo em círculo, silenciosos e, por fim, os espasmos cessaram e Hogni ficou imóvel como uma criança nos braços do irmão. A Lua já não estava cheia, mas brilhava, fria; iluminou as feições fortes e rudes do guerreiro e suavizou a dor nos seus olhos pequenos e nas rugas em redor da sua boca cerrada. O astro iluminou o momento em que a boca, por fim, se descontraiu, os olhos ficaram fixos e as mãos se abriram, não mais apertando os braços do irmão.
Skapti chorara todas as lágrimas que tinha. O guerreiro pousou Hogni no chão, cobriu-lhe o rosto com uma capa e sentou-se a seu lado de pernas abertas, olhos fechados, completamente exausto. Durante largos momentos, ninguém falou. Finalmente, Einar disse-lhes que eram horas de render a guarda e Ranulf e Hjort levantaram-se, enquanto os outros se agitavam, estendiam as pernas e passavam o odre de água de mão em mão.
Thorvald levantou-se e olhou para os seus homens. Era preciso dizer qualquer coisa, rapidamente, antes que as suas expectativas se transformassem em algo mais do que o desejo geral de que ele continuasse o líder. Não iam gostar, pelo menos a curto prazo; paciência, mas tinham de se habituar a aceitar as suas decisões, mesmo as que parecessem erradas, a princípio.
— Homens! — disse ele calmamente. As cabeças deles viraram-se; o jovem conseguiu instantaneamente a atenção de todos. — Vou ser breve — disse-lhes Thorvald. — Tivemos quatro baixas e ainda não temos o vidente. Não tenciono ter mais; vou precisar de todos, quando regressarmos ao Fiorde do Conselho. Tenciono capturar Máscara-de-Raposa. Não regresso sem ele. Não permitirei que o sacrifício de Hogni, de Svein, de Alof e de Helgi tenha sido em vão. O preço tem sido alto; por isso, só aceito a vitória. Vamos fazer o seguinte. Assim que houver luz suficiente, Paul vai tratar de arranjar alguns homens para trazerem Svein e Helgi para aqui. Quanto a Alof, não podemos fazer nada; o corpo dele está fora do nosso alcance. Os restantes regressarão aos barcos. Assim que os nossos camaradas mortos estiverem a bordo, vocês vão para casa. Não teremos mais baixas. Temos de pensar no futuro, um futuro no qual todos vocês têm um papel a desempenhar na reconstrução da vossa comunidade destruída.
— Espera aí — disse Skolli. — Isso não faz sentido. Como podemos levar o vidente se nos formos já embora? A Corrente dos Loucos vai ficar calma até ao crepúsculo de amanhã, se seguir o padrão habitual. Só precisamos de pensar em abandonar a ilha amanhã à tarde.
— Nós não vamos desistir — disse Thorvald, sentindo os lábios esticados num sorriso triste. — Estamos, simplesmente, a devolver ao nosso inimigo a sua táctica preferida: a surpresa.
— Queres dizer que vamos voltar aqui depois de escondermos os barcos? — perguntou Paul.
— Não — disse Thorvald. — Tu, Einar, Skapti e os restantes vão fazer o que eu acabo de dizer. Viram as costas à Ilha das Nuvens e regressam ao Fiorde do Conselho. Ides deixar esta praia pela última vez. Dou-vos a minha palavra de que nunca mais tereis de enfrentar outra caçada.
Seguiu-se um silêncio, enquanto os homens tentavam compreender. Ninguém parecia preparado para fazer a pergunta óbvia. Finalmente, foi Skapti quem falou; Skapti, que continuava sentado de pernas abertas e olhos fechados, ao lado do corpo do irmão.
— E tu, o que é que tu vais fazer? — perguntou ele. — Tencionas ser um herói solitário? Pensas que te vamos deixar fazer isso?
Thorvald sorriu.
— Eu, um herói? Não. Tenho um plano. Sam e eu vamos ficar, com um barco. Paul quase que acertou. Vamo-nos esconder e esperar. Tenho uma boa idéia de onde pode estar o vidente; creio que quase o encontrei, hoje, antes de o inimigo apanhar Svein e Hogni. Mas não tenciono ser nenhum herói, não tenciono escalar a falésia sozinho, nem fazer nenhum feito de armas espetacular, podes ter certeza. Apenas uma surpresa. O inimigo verá a nossa partida, seguida por um longo período de tempo, durante o qual tudo estará calmo. Tenciono esperar até eles terem a certeza de que fomos todos embora e de que o vidente está são e salvo. Tenciono esperar até que eles apareçam. Então, rapto a criança e ponho-me a andar daqui para fora.
— Hum — disse Orm. — E quanto tempo é que vai durar esse período?
— Até depois de amanhã, se for preciso — disse Thorvald. — Até o inimigo ver que a Corrente dos Loucos não permite a navegação.
Einar assobiou.
— Isso é uma loucura, Thorvald! Ninguém consegue atravessar a Correntes dos Loucos depois da calmaria! Por que é que pensas que a caçada é nesta ocasião?
— Sam é um grande marinheiro — disse Thorvald com mais confiança do que a que sentia. — É a única maneira. O meu plano é este. São as minhas ordens. Recolher os nossos mortos, assegurarmo-nos de que eles chegam aos barcos, cobrir os camaradas no caminho para a praia e para casa o mais depressa possível. Knut leva o Sea Dove. Einar fica no comando. Não pode haver mais mortes. Alguma pergunta?
— Eu tenho uma — disse Skapti. — Não achas que o inimigo vai estar a vigiar-nos quando partirmos? Contar os barcos, quer dizer? Se tu tencionas regressar, vais precisar de um barco; onde é que o vais pôr? Eles vão lá abaixo e chacinam-vos aos dois.
— Sam está a tratar disso — disse-lhe Thorvald com mais confiança do que a que sentia. — Enquanto temos estado aqui, ele e Knut andaram a explorar a linha de costa à procura de outras baías, tentando encontrar os barcos do inimigo. Eles têm de ter um ou dois; de outra maneira, como é que eles pescam? Se pudermos, fugiremos num dos deles. Quanto a passar despercebidos, seremos só dois e teremos cuidado.
— Pelos ossos de Odin, Thorvald — grunhiu Skapti. — Primeiro, dizes que nos vais chefiar e logo a seguir mandas-nos embora e ficas aqui sozinho a fazer as coisas. Dá-nos uma hipótese, sim? Nós queremos ajudar. Devemos-te isso. — O guerreiro olhou para a silhueta imóvel de Hogni. — E aos camaradas que morreram. Como é possível fazeres tudo sozinho, apenas com a ajuda de Sam? Sam não é nenhum guerreiro, por mais que pensemos que sim.
— Tens uma tarefa para cumprir — disse-lhe Thorvald. — Tens de levar Hogni para casa e assegurar-te de que ele vai para junto do pai da Guerra, como ele quereria. O mesmo quanto aos outros. Além disso, tu és um dos meus capitães. Os homens vão precisar de ti nos barcos e quando lá chegarem. As minhas ordens são estas, Skapti.
— Nós ficamos todos a lutar ao teu lado, se nos deixares — disse Einar. — Mas ficar depois de a corrente mudar é uma loucura. Não queres pensar melhor?
— É a única maneira — disse Thorvald. — Nunca deixei que o coração escolhesse o caminho por mim, mas desta vez ele está a enviar-me uma mensagem que eu acho estar certa. Vou resgatar Máscara-de-Raposa e levá-lo comigo. Não à força, não indo à procura dele, não com habilidades. Vou esperar, simplesmente. Confiem em mim.
— Está bem — disse Einar de modo algo pesado. — E Asgrim? Que lhe dizemos?
— Digam-lhe o que quiserem — disse Thorvald. — Mas é melhor dizerem-lhe a verdade. Digam-lhe que o governador destas ilhas nunca mais tentará comprar a paz à custa da vida de uma rapariga. Digam-lhe que vai haver mudanças.
— Ficas, então? — A voz de Skapti continuava rouca devido às lágrimas. — Mesmo depois disto tudo?
— Primeiro, tenho de tratar de Máscara-de-Raposa. Depois falamos. Por agora, descansem e pensem no regresso a casa. Eu e alguns dos que comandaram esta expedição ficamos de guarda aos nossos camaradas que tombaram. Amanhã, deixam esta ilha pela última vez. Prometo-vos.
Então, os homens deitaram-se, ou encostaram-se às rochas, enquanto Thorvald e Skapti montavam guarda no extremo sul, enquanto Einar e Orm faziam o mesmo no extremo norte. A Lua continuava a percorrer o céu, remótica e pálida e, por vezes, parecia vir da sua forma, fria e distante, uma música tênue, não uma melodia, antes a recordação de uma, uma vibração misteriosa do ar, sutil, enganadora, assustadora no seu poder. A melodia entrou na mente de todos os homens, esquadrinhando-lhes os pensamentos, fazendo-os suspirar, gemer ou tapar as orelhas com as mãos. Alguns dos mais novos choraram, receosos; os outros consolaram-nos com palavras em voz baixa. Wieland tinha as mãos no rosto, imóvel como uma pedra.
No ponto de sentinela mais a sul, Skapti olhou para a noite, silencioso. Quanto a Thorvald, que estava perto dele, tinha na mente um turbilhão de pensamentos sombrios. No fim de contas, era um líder; era desejado, respeitado, amado, até. Sentia o coração quente e as faces coradas; vinham-lhe aos lábios palavras de tributo à lealdade dos seus homens. E levaria Máscara-de-Raposa. Sabia que conseguiria do fundo do coração, como um animal que escolhe a sua presa. Podia e teria sucesso: precisava, apenas, de ter paciência e a habilidade de Sam para atravessar a Corrente dos Loucos. Evidentemente, havia a possibilidade de Sam e Knut não encontrarem um barco para o regresso. Se assim fosse, teria de usar um dos deles, um dos pequenos e esperar que o inimigo não os tivesse contado. Haviam de conseguir, de uma maneira ou de outra.
Não era aquela parte da expedição que não o deixava saborear a alegria de saber que, no fim de contas, era aceito e reconhecido pelos seus homens. Era o depois que o perturbava. Ele sabia o que queria: ele próprio como líder e apoiado pelos mais inteligentes: Einar, Orm, Wieland, um conselho que governaria com justiça. Paz, prosperidade, preocupação com os melhores métodos de pesca e agricultura, um tratado com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz; mais tarde, barcos melhores, comércio com as Ilhas Brilhantes e com outras terras mais a leste... Oh sim, estava otimista quanto ao futuro, as perspectivas eram brilhantes. Era capaz: seriam todos capazes.
Havia apenas uma falha naquela imagem sedutora. Ele era filho de Asgrim: filho de Somerled. Apesar de isso lhe dar alguma legitimidade como governador, também o marcava como legado do pai. Somerled conseguira o poder nas Ilhas Brilhantes e usara-o para matar, para destruir, para devastar o que existia desde tempos imemoriais, apenas por uma questão de autoridade absoluta. Somerled fora para aquelas ilhas e conseguira novamente o poder com um nome suposto. Como Asgrim, conduzira o seu povo a uma espiral de morte, derrota, dor e devastação. Thorvald era filho desse homem. Era feito à imagem de Somerled: sentia-o no sangue, aquelas trevas, aquela necessidade feroz de reconhecimento, de controle. Cegara-o para o perigo que Creidhe corria. Tornara-o cruel para a sua mãe. No fundo, era igual ao pai: se lhe dessem o poder, talvez matasse, destruísse e queimasse, tal como Somerled. Quem poderia garantir que não arriscaria as vidas do seu povo, tal como Asgrim, o homem que vendera a própria filha? Sula fora meia-irmã de Thorvald: era estranho pensar naquilo. E o rapaz, qual era o nome que eles tinham dito? Erling? Uma espécie de irmão. Thorvald nunca tivera um irmão, ou uma irmã. Supunha que o rapaz não devia ter durado muito naquele ambiente selvagem da Ilha das Nuvens, ainda por cima se era tão sonhador como eles diziam. Os nativos deviam ter-se desembaraçado rapidamente dele. Mas a criança que ele raptara ainda vivia. Thorvald sentia-o. Pensava tê-la ouvido, um som minúsculo vindo daquela gruta, naquela tarde, como um suspiro durante o sono. Tinha a certeza de que não fora uma ave; tinha a certeza de que não fora imaginação, mas a morte interviera antes que tivesse podido investigar melhor; a curiosidade de Thorvald matara Hogni, quando o guerreiro tentava manter a corda firme. Thorvald transformara o seu camarada num alvo perfeito.
Por isso, tinha de continuar. Devia-o a Hogni; devia-o a todos. Tinha de continuar e se se transformasse num homem igual ao seu pai, esperava que alguém tivesse a coragem de o matar antes de provocar demasiados danos. Ou que tivesse ele próprio a coragem de o fazer com as próprias mãos. Não tinha um amigo leal para o mandar para o exílio se se transformasse num perigo. Sam regressaria a casa. Creidhe tinha morrido. Estava sozinho entre os seus homens, sozinho perante a perspectiva de um poder que o excitava e aterrorizava. Como é possível um homem não sair ao pai? Como pode ele conseguir a força necessária para renegar o sangue que lhe corre nas veias, sombrio e irresistível, empurrando a mente, enchendo-lhe o coração, poluindo-lhe o espírito? Sem Creidhe para o aquietar, sem Sam para o apoiar, como poderia seguir aquele caminho sem os conduzir ao desastre?
CAPÍTULO DOZE
Pousa a tua pena, irmão; tapa o teu tinteiro.
Este texto está gravado no coração
Com faca e sangue.
NOTA A MARGEM DE UM MONGE
À medida que a luz ia desaparecendo, no segundo dia, Creidhe forçou os membros entorpecidos a obedecerem-lhe e juntou as magras provisões que lhes restavam. Estivera tudo calmo durante muito tempo; apenas se ouvia o pipilar das aves por cima do barulho das ondas nas rochas. Não tinham caído pedras naquele dia, nenhuma bota tinha perturbado as pedras soltas por cima da abertura da gruta. Não ouvira gritos, sussurros, trocas de palavras furtivas. Nada: era como se a Ilha das Nuvens estivesse deserta, à exceção dela própria e da criança. O seu coração vacilava e o frio tomara conta dela, se bem que mantivesse uma expressão calma por causa de Pequenino. Se o que os seus sonhos lhe diziam era verdade, tinha de sair pelos seus próprios meios daquele esconderijo precário; teria de ajudar a criança a trepar pelo mesmo caminho íngreme que Guardião os obrigara a descer. Teria, também, de transportar as provisões. Se ele não regressasse, teria de o fazer. Se ele não regressasse, ficaria com o coração destroçado.
Tinha muito tempo para imaginar um futuro na ilha, apenas ela e Pequenino, enfrentando sozinha os Invernos, a fome e a solidão. Pensara na alternativa: mas se entregasse a criança, seria a sua morte, muito provavelmente. Cada vez pensava mais naquilo. Não podia ser; não o permitiria. Creidhe respirou profundamente e fechou os olhos. Agora, sei. Sei por que lutaste tanto por ele. Se for preciso, farei o mesmo. Ele merece. Uma vida solitária; uma vida difícil. Tivera tanta sorte, a sua vida fora, até ali, tão confortável. Na Primavera anterior, antes de ter embarcado no Sea Dove e partido para um mundo diferente, teria ficado chocada só de pensar que passaria dois dias e uma noite dentro de uma gruta minúscula sem fazer qualquer barulho, utilizar um balde para as suas necessidades e comer peixe frio que de frescura já não tinha nada. Em casa, tinha os seus cobertores quentinhos. Orgulhava-se das refeições que cozinhava para agradar ao pai, sem pensar em como era bom ter farinha, manteiga e vegetais à mão sempre que precisava.
Pequenino estava pronto. O Pequenino dobrara o seu cobertor e calçara os sapatos e agora olhava para ela muito sério, com uma expressão desconfiada nos profundos olhos azuis. A luz fraca de fim de tarde entrava pela abertura da gruta, tocando-lhe nas feições pálidas e dando-lhe um ar saudável. Creidhe passara mais tempo a tratar-lhe do cabelo, já que tinha pouco mais que fazer e agora o cabelo saí-lhe do crânio com muito melhor aspecto. A jovem reparou que Pequenino recolocara os pedacinhos de erva e as pequenas penas que ela lhe tirara.
A Jornada foi dobrada e pronta para partir; o seu saco apertado. Os seus cobertores estavam dobrados junto da parede e os baldes tapados. Esperaria mais um pouco. Não muito; os dias de Verão prolongavam-se, mas tinham de chegar ao alto da falésia, atravessar a ilha e chegar ao abrigo antes que ficasse demasiado escuro. Trepar por ali acima, pensou Creidhe friamente, ia ter mais a ver com rezas e dentes cerrados do que com habilidade. Pequenino ficaria mais seguro se mudasse de forma: era uma pena não poder pedir para o fazer.
Só mais um pouco e a Corrente dos Loucos já teria mudado, tornando a travessia para o Fiorde do Conselho numa impossibilidade até ao Verão seguinte. Podiam sentar-se junto da abertura da gruta e deixar que o Sol lhes tocasse nos rostos. A jovem instalou-se, encostando-se à rocha e olhando para sul, onde se viam as ilhas d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, erguendo-se do mar como enormes baleias escuras. Pequenino acocorou-se ao lado dela, agarrado ao seu cobertor. Não fizeram qualquer som; tinham prometido silêncio até ao regresso de Guardião e talvez, apesar dos seus pressentimentos, apesar da ansiedade anterior de Pequenino, o impossível ainda pudesse acontecer. Esperaria até não poder mais.
Creidhe deu por si com a mente às voltas, como uma criança, fazendo combinações com os espíritos, que eram sinceros apesar dos seus disparates. Há muito tempo, teria sido: Se eu coser isto bem, talvez o pai me deixe ir com ele a cavalo a Stensakir, amanhã. Se eu emprestar o meu xale a Brona, apesar de saber que, provavelmente, nunca mais o vejo, talvez Thorvald deixe de estar zangado comigo. Agora, tolamente, era: Se eu for paciente, se não chorar, se acreditar, talvez Guardião não esteja morto. Por favor, faz com que ele não esteja morto.
As feições de Pequenino não mostravam apreensão ou esperança. O pequeno limitava-se a estar sentado, à espera do que se seguiria. Tão emaranhada estava naquela rede de pensamentos, que foi apanhada de surpresa quando Guardião apareceu de repente, deslizando silenciosamente como uma sombra, acocorando-se junto de Pequenino, tocando-lhe nos cabelos com uma mão suja, pousando-lhe os lábios na fronte pálida e virando para ela um sorriso de dentes brilhantes e uns olhos plenos de alegria.
— Acabou — disse ele simplesmente. — Foram-se embora.
Então, Creidhe viu a ligadura manchada de sangue no braço esquerdo dele, uma nódoa negra na têmpora e tentou falar, mas conseguiu, apenas, emitir um som de alívio, de amor e de confusão. Nada de lágrimas: prometera a si própria. Seria forte, como aqueles dois.
— Vamos, meus queridos — disse Guardião. — Vamos para casa.
Então, a impossível vereda foi transposta com pés tão ligeiros como os de uma gaivota e a falésia escalada como se tivessem asas. A mão dele na dela parecia uma âncora, uma canção, como a luz do Sol depois de um longo Inverno. Subitamente, o dia era maravilhoso. Quando atingiram o topo, Guardião fez uma pausa, agarrando-lhe sempre na mão, para olhar para o mar, virando as costas ao pôr do Sol, semicerrando os olhos na direção do Fiorde do Conselho.
— Consegues vê-los? — perguntou Creidhe, sentindo uma sombra, porque tinha outra pergunta para fazer e a resposta ia esfriar-lhe o júbilo instantaneamente.
— Não, Creidhe. Eles foram-se embora cedo, pouco depois da alvorada. Pensei que fosse um truque para me apanharem desprevenido. Esperei. Mas não; limpei a ilha da presença deles.
Ela não perguntou se ele acrescentara alguns troféus à sua coleção. Não era preciso muito para imaginar como tinha sido o dia.
— Tens a certeza, então, de que eles se foram embora?
— Tenho. Estive a vigiá-los e contei os barcos, um a um. O barco dos teus companheiros também ia com eles. E agora a Corrente dos Loucos já não está calma; só voltará a haver possibilidade de atravessar no próximo Verão. Chegou o tempo da paz.
Pequenino trepara sem ajuda. O pequeno estava a uma certa distância a olhar para o mar, mas para sul, na direção das ilhas d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz e parecia muito calmo. Para além da resposta possessiva ao regresso do seu parente, não demonstrara qualquer emoção. E Creidhe tinha de fazer a pergunta.
— Thorvald — conseguiu ela dizer. — Ele esteve cá? Tu...? — Era impossível dizer o que tinha de dizer. A jovem estremeceu ao ver Guardião semicerrar os olhos e cerrar os dentes.
— Veio, sim. Era ele que os comandava; eles seguiam as ordens dele.
Thorvald? Não podia ser verdade; Guardião estava enganado, certamente.
— Thorvald não é um guerreiro. Além disso, nós não somos de cá...
— Ele era o líder deles, Creidhe. Um líder capaz: o povo dos Facas Longas lutou mais por ele do que nos outros anos todos por Asgrim. Mas eu continuo aqui e eles foram-se embora.
— Guardião, tens de me dizer. Tu...?
Ele olhou para ela, muito sério.
— Eu não matei o teu amigo — disse ele — se bem que o pudesse ter feito. Havia quatro homens no grupo dele; matei dois e deixei que a ilha se encarregasse dos outros. Ele está vivo e foi-se embora.
Não havia mais nada a dizer. Creidhe sentiu-se aliviada, mas logo a seguir desapontada, confusa e até um pouco divertida ao ver o olhar no rosto de Guardião, onde eram evidentes o orgulho, o ciúme e a linha fina da boca. Sob esses sentimentos todos, um outro: um desejo profundo que, em breve, se sobreporia a todos os outros sentimentos. Ali, na ilha, nada se lhe oporia, nem costumes, nem família, nem perspectivas futuras. A jovem sentiu-o na alma e leu o seu reflexo no rosto de Guardião quando se viraram na direção da velha cabana. Sentiu-o quando ele lhe rodeou a cintura para ajudá-la a descer uma encosta íngreme; ouviu-o na respiração dele e na sua. Quase lhes fora negado; as imagens persistentes dos seus sonhos pareciam torná-lo impossível.
Ele tinha preparado tudo para o regresso dela e da criança; só os fora buscar depois de estar tudo pronto. A lareira ardia entre as pedras e havia peixe fresco, pronto para ser cozinhado. Havia água quente.
Ele dissera-lhe: Vamos para casa, e era o que sentia, naquele canto perdido do mundo, onde as paredes eram feitas das mesmas pedras de que era feita a ilha e onde o buraco, por onde saía o fumo, se abria para um céu que ia ficando com a cor indefinível de um longo crepúsculo de Verão. Guardião tirou a faca e preparou o peixe; Pequenino sentou-se no lado oposto de pernas cruzadas, solene, observando tudo. E Creidhe, tendo reparado que Guardião não estendera o seu cobertor, deixando-o dobrado a um canto, pegou no seu e no dele e colocou-os lado-a-lado. Ele olhou para ela, de olhos brilhantes, mas não disse nada.
— Deixas-me limpar essa ferida enquanto o peixe está a assar?
— Isto não é nada.
— Deixas?
— Se queres.
Ele estava estranhamente diferente e quando Creidhe começou o processo percebeu porquê. Não era o ferimento em si, um golpe profundo, provavelmente provocado por uma flecha: Creidhe lavou-o e ligou-o com um pedaço de tecido rasgado de uma peça de roupa antiga feita por Guardião. O problema era a proximidade, o aflorar da pele, especialmente depois de ele ter tirado a camisa para lhe permitir o acesso ao braço bem musculado que a flecha tinha ferido. As mãos da jovem tremiam; a respiração dele alterou-se. O outro braço do jovem envolveu-a e os dedos afagaram-lhe os cabelos; os lábios dele tocaram-lhe no ombro e os seus olhos fecharam-se ao sentir a doçura salgada da sua pele. O peixe crepitou nas brasas; Pequenino continuava sentado em silêncio, olhando, muito sério.
— Eu desejei-te na última noite — sussurrou Guardião. — Desejei-te na escuridão. Tentei afastar-te dos meus pensamentos, mas não consegui.
— Nem eu — murmurou Creidhe com a mão no peito dele, sentindo o calor do seu corpo esguio.
— Pergunto a mim próprio se serás capaz de dar um nó — disse Guardião — ou se terei eu próprio de o fazer.
— Estás a brincar comigo. — Creidhe ficou um pouco surpreendida. A jovem fez um esforço para regressar ao que estava a fazer, ao mesmo tempo que sentia o rubor a subir-lhe às faces.
— Ofendi-te? — Ele parecia outra vez desconfiado, tímido, como um animal selvagem. Creidhe pensou que ele nunca tivera oportunidade de aprender as regras, se as havia; tinha doze anos quando abandonara a sua tribo por aquela vida de exílio.
— Muito — disse Creidhe — com uma gravidade trocista, conseguindo atar as pontas da ligadura e prendendo-as razoavelmente. — Talvez devesses ir buscar outra camisa, se tiveres mais alguma. É costume ter roupa vestida numa noite como esta. E eu gostaria de ter algum tempo para mim própria, se for possível. E não te preocupes com o peixe, eu olho por ele.
Guardião acenou com a cabeça, sério como uma coruja. O jovem levantou-se e, levando Pequenino pela mão, saiu da cabana sem dizer mais nada.
Era, apercebeu-se Creidhe, a sua noite de núpcias. Imaginara aquela ocasião vezes sem conta, sentada diante do tear. Via-se vestida com uma saia e uma túnica de lã de uma cor azul suave e uma grinalda de flores na cabeça. Teria os cabelos lavados com camomila, antes de os escovar até brilharem. Brona ajudá-la-ia; a sua família assistiria com orgulho ao ouvi-la pronunciar os votos. Haveria música, dança, uma grande festa e, certamente, um dos bolos de Zaira. Mais tarde, na tranqüilidade do quarto, o despir, a doce troca de carícias... então, nunca pensara seriamente no que viria depois. Sempre houvera uma espécie de bruma entre esse momento e o acordar para a madrugada, aquecida pelo corpo do marido e pelo cobertor azul. Aqueles sonhos eram uma fantasia de rapariga, encantadora, mas irreal. Estavam tão longe daquela noite como a terra das estrelas.
Aquela noite não teria boda; não haveria ervas para perfumar os cabelos e o corpo; não haveria cobertas de lã nem cama macia. Apenas a noite e a ilha. Creidhe despiu-se e, tremendo, lavou-se o mais rapidamente que pôde no que restava de água quente. Nem sequer pôde mudar de camisa. A jovem limpou-se a uma das velhas capas e voltou a enfiar a saia e a túnica que Guardião lhe fizera. O peixe estava a assar bem e ela virou-o nas brasas. Creidhe soltou os cabelos e penteou-os, atando-os depois com uma fita na nuca, deixando-os cair pelas costas. E pronto: a noiva estava pronta. A jovem tirou o peixe das brasas, envolto em algas e colocou-o num prato, pensando se voltaria, um dia, a comer pão.
Quando Guardião e Pequenino regressaram, aquele vestia uma camisa diferente. Era muito parecida com a primeira, velha e maljeitosa, mas não tinha manchas de sangue. O jovem lavara o rosto e as mãos no ribeiro e fizera um esforço para pôr alguma ordem nos cabelos. Agora, estava à entrada, hesitante, com Pequenino um passo atrás.
— Estás... muito bonito — disse Creidhe, olhando para ele. — Sinto-me orgulhosa de ti. Gostaria de te poder mostrar aos meus pais; é assim que se faz, geralmente. Mas a nossa família, aqui, é Pequenino. Vamos comer o peixe?
Guardião não disse nada, mas os seus olhos, fixos nela, falavam por ele. Tu és a minha deusa. Aquele olhar silenciou Creidhe; tirou-lhe o apetite pelo peixe, mas a jovem obrigou-se a comê-lo. Ele dera-se a algum trabalho para organizar aquela festa, acendera a lareira para ela, mesmo depois de dois dias de duros combates. Não ia magoá-lo por nada deste mundo.
— É estranho — disse ele após alguns momentos. — Não consigo comer.
— Não? — disse Creidhe. — Mas o peixe está bom.
— Não consigo comer — repetiu Guardião, de olhos brilhantes. — No entanto, tenho fome. Uma fome terrível.
— Eu também me sinto assim — murmurou Creidhe. — Mas temos, primeiro, de deitar Pequenino.
A Lua estava a diminuir. No entanto, parecia que Pequenino tinha necessidade de a ver progredir no espaço, saudando-a mais uma vez com uma melodia. Creidhe pensava que a criança estaria exausta depois da tensão e do desconforto daquele tempo de espera, esgotado pela preocupação da segurança de Guardião, contente por estar de regresso à cabana e enroscar-se no seu canto mais uma vez. Esperava que ele adormecesse no momento em que acabasse de comer. Em vez disso, o Pequenino saiu da cabana e foi-se sentar nas rochas, pequeno, muito direito e com a Lua a refletir-se nos seus estranhos olhos. Creidhe cometera o erro de se esquecer, por breves momentos, de que aquela criança de seis anos não era uma criança normal. Era impossível imaginar as visões que aquele pequeno vidente tinha na mente, que tipo de sentimentos se agitavam no seu espírito. A sua melodia começou suavemente, tristemente. Não era um hino de vitória, uma história triunfante acerca de mais uma caçada, de mais uma experiência sombria. Era um lamento. Talvez a música sem palavras daquilo que não podia acontecer; talvez uma recordação dos homens que tinham derramado o seu sangue na ilha naquele Verão e nos anos precedentes. Creidhe não sabia. A jovem olhava para Guardião, do outro lado da lareira, e ele olhava para ela. Nenhum deles se mexeu. Ambos reconheceram que não se poderiam tocar enquanto Pequenino não estivesse a dormir, porque seria demasiado perigoso. Assim que unissem as mãos, assim que unissem as bocas, assim que unissem os corpos, nada faria parar o fogo que brotara neles, até à consumação final. E, pensou Creidhe, esse processo seria rápido uma vez começado. Não que tivesse alguma experiência do assunto, mas parecia-lhe que agüentar seria uma impossibilidade.
A melodia de Pequenino soou através da noite, penetrante e triste, falando de perdas e de solidão, de dor, de desentendimentos e de desperdício. Creidhe inclinou a cabeça; não lhe parecia errado estar tão alegre, sentir o corpo arder de antecipação enquanto aquela criança dava voz àquela música profundamente melancólica.
— Ele canta sempre assim depois da caçada — murmurou Guardião. — É sempre a mesma. Não é para ti, ou para mim.
— Então, para quem é? Para ele?
— Talvez. Não tem palavras; penso que a mensagem é diferente para cada pessoa. Acho que ele está triste por a caçada se repetir, ano após ano.
— Ou por causa de tantos homens mortos — sugeriu Creidhe. Guardião cuspiu para o chão.
— Os homens não significam nada — disse ele em voz baixa enquanto a criança continuava a cantar à luz, no exterior. — Por que havia ele de ter pena deles?
Creidhe não respondeu, pois fazê-lo, honestamente, seria ofender amargamente Guardião, e ela não queria feri-lo, nunca. Especialmente naquela noite. Mas a jovem fez a si própria uma pergunta em silêncio, uma pergunta que não tinha resposta. Se ele está triste, quer dizer que ele desejaria que a caçada tivesse acabado de modo diferente? Talvez ele queira, apenas, regressar a casa. E talvez para ele, a sua casa não seja a Ilha das Nuvens. Aquela criatura poderosa, cuja canção ia direto ao coração, era, ao mesmo tempo e apenas, um rapazinho. Como podia compreender o que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz pretendiam dele? Como podia compreender que, se regressasse ao local onde tinha nascido, à nascente da sua sabedoria, sacrificaria o olhar e o movimento, talvez a vida antes de chegar a ser homem? O desejo de regressar parecia-lhe ser uma parte muito poderosa da canção. As promessas eram uma coisa difícil e perigosa. O que mantinha o vidente na Ilha das Nuvens era, talvez e apenas, a promessa de uma criança ao seu irmão, a promessa de se manter calado, de se portar bem.
— Em nome de Odin, o que é isto? — perguntou Sam, arrepiado, que lutava por encontrar uma posição cômoda para o seu longo corpo na depressão por baixo das rochas onde os dois homens se tinham abrigado para passar a noite. — Parecem aquelas vozes de que eles estão sempre a falar, umas vozes que roubam almas. Se conseguirmos atravessar aquele estreito, vou ter um prazer pessoal em te estrangular, Thorvald, seu teimoso miserável. Prefiro uma boa tempestade em mar aberto em qualquer dia. — O jovem levou as mãos às orelhas e fechou os olhos com força. — É como se estivesse dentro da minha cabeça. Não admira que o povo de Asgrim tenha tanto medo. Este lugar é maldito e não consigo perceber como me obrigaste a ficar. Quando concordei, não sabia que ia ficar sem o Sea Dove.
Thorvald estava sentado de pernas cruzadas, de costas retas, mantendo a calma através de exercícios respiratórios, apesar daquele som ameaçar desequilibrar-lhe os pensamentos, falando de morte, de sangue e de erros.
— Tu és o melhor marinheiro das Ilhas Brilhantes, Sam — disse ele. — É evidente que consegues regressar ao Fiorde do Conselho. É evidente que o consegues fazer. Mesmo com isto.
O jovem olhou na direção do pequeno barco, encalhado não muito longe do lugar onde se tinham escondido. Enquanto Thorvald liderara os seus homens na busca infrutífera pelo vidente, Sam e Knut tinham seguido outras ordens. Como Thorvald suspeitara, o inimigo tinha barcos na Ilha das Nuvens, escondidos numa pequena enseada, à qual se chegava unicamente descendo uma falésia extremamente íngreme onde as aves marinhas nidificavam. Algumas concavidades e recortes pouco profundos permitiam que os barcos ficassem abrigados num semiabrigo. Os barcos estavam ali há muito tempo; não parecia que o inimigo se aventurasse no mar com muita freqüência. No entanto, pareciam bem conservados e alguns deles tinham até sinais de terem sido reparados de modo algo excêntrico, mas eficaz. Sam escolhera o mais forte. Lá dentro tinha um par de remos e uma espécie de vela. A embarcação era pequena, leve, um barco feito para pescar perto da costa e em águas calmas. Ao lado do Sea Dove era um mosquito ao lado de uma gaivota, um rato ao lado de um cão de caça. Thorvald suspirou. Sam tinha razão; no Sea Dove, talvez tivessem algumas hipóteses de atravessar o estreito, mesmo depois da calmaria. Naquela casca de noz, feita de pele por cima de um esqueleto de madeira, precisariam de toda a maestria, que no seu caso era praticamente nula e de toda a sorte que os deuses se dignassem conceder-lhes. Mas fora a única maneira. O Sea Dove era grande, forte, destacava-se na flotilha de barcos menores. O inimigo não era estúpido. Contar os barcos à chegada e à ida era apenas uma questão de bom senso, como Einar dissera. O número de barcos era igual. O número de homens não, mas Thorvald achara isso de pouca importância. Tinham perdido quatro; se mais um ou dois desaparecessem antes de as embarcações abandonarem a ilha pela última vez, era pouco provável que o inimigo reparasse. Se reparasse, não ligaria uma coisa à outra. Ficar na ilha depois de a Corrente dos Loucos acordar de novo era uma estupidez. O restante da campanha de Thorvald, se bem que com pouco sucesso no seu objetivo primário, não fora planejada de forma tola, ou executada descuidadamente. Tinham ganhado terreno; tinham perdido muito menos homens do que normalmente, com Asgrim; tinham retirado ordenadamente e abandonado a ilha sem outras baixas. O inimigo julgá-lo-ia por isso; aquela gente não fazia idéia da surpresa que a esperava. Quantos seriam? Dez, cinco, três? Poucos, pensou Thorvald, muito poucos. Chegado o momento, sabia que entre ele e Sam seriam capazes de resgatar o vidente.
— Cala-te, cala-te — resmungava Sam com os ouvidos tapados. O jovem pescador era a imagem da desolação, enrolado de qualquer maneira na capa e de olhos cerrados como se, pelo fato de não poder ver, pudesse deter o tormento daquela voz sobrenatural.
— Sam — disse Thorvald — não te esqueças de que te devo um favor. Eu prometi, lembras-te, pagar-te e tu disseste que não.
Sam grunhiu qualquer coisa.
— O quê?
— Eu disse: esquece. — O tom de voz de Sam era constrangido, quase zangado. — O que eu tinha em mente já não pode acontecer. Esquece os favores. Se conseguir chegar inteiro a casa já me dou por contente.
— Que tinhas tu em mente? — perguntou Thorvald. O jovem, não só estava curioso, como aproveitava a ocasião para esquecer um pouco a melodia que lhe ecoava no cérebro, como se quisesse acordar tudo o que estava escondido dentro dele.
— Nada — grunhiu Sam. Após um momento de silêncio, o pescador acrescentou: — Creidhe morreu. Não a podes trazer de volta. Por isso, não me podes pagar o favor. E agora esquece o assunto, sim?
Thorvald ficou calado. A vida estava cheia de pequenas surpresas. Com a melodia a pairar à sua volta, o jovem permitiu-se pensar, por breves momentos, num outro tipo de futuro, um futuro possível antes daquela viagem, daquela expedição, do povo dos Facas Longas, de Asgrim. Uma vida que seguia um padrão de que os homens como Sam gostavam, uma vida de trabalho, de casamento e de filhos, durante a qual trabalhavam nos campos, pescavam, ou participavam em conselhos. O jovem tentara imaginar a cabana em Stensakir com Sam e Creidhe à porta, imaginara Creidhe à espera com o filho de Sam nos braços enquanto o Sea Dove se aproximava à hora do crepúsculo. Era estúpido. Errado. Só de pensar ficava irritado.
— O que é que te mordeu? — perguntou Sam, de olhos abertos, fixos em Thorvald, na sombra.
— Nada — disse Thorvald, irritado. O jovem estava aborrecido consigo próprio por perder o controle com aquela facilidade e por uma coisa tão pouco importante. Creidhe estava morta; tinha de o aceitar. Sam que tivesse os seus pequenos sonhos; não tinham importância nenhuma.
— Estou a ver que te irritei — disse Sam sem expressão. — Não vale a pena. Nunca teria acontecido, ela e eu. Era impossível.
— Porquê? — Thorvald não conseguiu deixar de perguntar.
— Bem, é óbvio. Eyvind e Nessa andavam à procura de um homem conveniente para ela e outro para Brona, para daqui a um ano ou dois. Não andavam à procura de um pescador, nem sequer de um tipo inteligente como tu, Thorvald. Eles andavam à procura de chefes de guerra e de fidalgos, príncipes dos Caitt, talvez um rei dos Dalriada. Justificava-se. As filhas de Nessa têm o sangue real dos Folk; os filhos delas podiam vir a ser Rei e como Nessa não teve rapazes, ainda é mais importante. Como seria possível escolherem-me a mim para pai de príncipes? Foi um sonho, mais nada.
Thorvald sentiu os lábios esticarem-se numa espécie de sorriso.
— Creidhe tinha muita personalidade — comentou ele. — Se ela se interessasse por um tipo qualquer, era capaz de dar a volta a Eyvind, mais tarde ou mais cedo.
Seguiu-se um silêncio.
— Sam?
Não obteve resposta.
— Sam, o que é?
— Sabes — disse Sam num tom estranhamente abafado — tu és um tipo inteligente, mas, por vezes, és mesmo cego. Eu, casar com Creidhe? Impossível. Ela nunca pensou em mim desse modo, nem por um momento.
— Não sabes ao certo... — disse Thorvald, se bem que, intimamente, concordasse.
— Sei, sim, tal como sei que o Sol se põe todos os dias. Creidhe nunca gostou de mais ninguém senão de ti. Por vezes, ficava doente ao ver todo aquele amor desperdiçado num homem demasiado preocupado consigo próprio para reparar, sequer, nela. Eu estaria presente quando ela precisasse de mim. Ter-lhe-ia dado tudo o que ela quisesse.
— Oh sim — disse Thorvald, sarcástico, antes de o poder evitar — uma cabana de duas divisões, um marido que só sabe falar de peixe e um filho todas as Primaveras: teria sido um belo presente.
Uma vez as palavras ditas, não as podia engolir. Tornou-se impossível continuar sentado ao pé do amigo. Thorvald levantou-se e desceu até à praia aos tropeções na semiescuridão, onde ficou a olhar para o mar com os punhos cerrados. Malditos amigos, maldita ilha, maldita melodia, que agora se dirigia para um fim plangente, deixando apenas o seu eco. Maldito espírito sombrio que o fazia magoar aqueles que procuravam apenas dizer a verdade. Maldito pai por ter feito dele o homem que era.
— Thorvald? — Sam aproximara-se calmamente e agora estava em cima das rochas, a seu lado.
— Deixa-me em paz.
— É melhor vires para cima — disse Sam suavemente. — Podemos ser vistos. Não vale a pena estragar a única hipótese que temos.
— Cala-te.
— Tu és um homem, não uma criança. — A voz de Sam era notavelmente uniforme.
— Não quero falar mais acerca do assunto. — E não vou deixar sair nenhuma lágrima, porque tu tens razão: eu sou um homem.
Sam esperou um pouco e disse:
— São coisas boas. Uma casa, comida na mesa, um bebê no berço. Não devias fazer troça dessas coisas, coisas de que Creidhe gostava. Mesmo assim, eu sabia que não tinha hipótese. Contigo era diferente. Se quisesses mesmo, podias ter conseguido: és educado, inteligente e és filho de um nobre. Um marido conveniente, desde que a mulher em questão gostasse de ti.
— Ah! — Thorvald tentou um encolher de ombros negligente. — Eu? Devia estar no fundo da lista de Eyvind, muito depois de ti, pescador. Bastava-lhe saber quem era o meu pai para me pôr fora da competição. Sangue mau. Tu sabes o que Somerled fez nas Ilhas Brilhantes. Viste o que ele fez aqui. Já te falei de Sula e de Creidhe. O filho de um homem assim não pode ser o marido de uma princesa de sangue real das Ilhas Brilhantes. Aliás, não serve para marido de mulher nenhuma. Desculpa ter-te falado daquela maneira. Mas, agora, já não posso engolir o que disse. Fui cruel, mas eu sou assim. Sou igual ao meu pai.
Seguiu-se uma curta pausa e depois Sam disse, suavemente:
— Foi a coisa mais estúpida que eu já ouvi. Não acredito nisso.
— É verdade. Sinto-o como uma sombra e não me consigo libertar dela. Eu não sou uma pessoa que tu queiras ter por amigo, Sam. Basta olhares para o lugar onde estamos e o que estamos a fazer para perceberes.
— Queres que te diga o que penso?
— Se quiseres. Não posso mudar a verdade.
— Eu acho que não te pareces nada com Asgrim. Olho para ele e vejo um líder cansado e desanimado, que recorre ao medo como único meio de controlar as pessoas; um homem derrotado, que perdeu a noção do bem. Por que outra razão desistiria da própria filha se não fosse assim? Pelo contrário, olho para ti e vejo um tipo inteligente, capaz, mas que pensa demasiado em si próprio. Um homem que exige demasiado de si próprio também, e que se castiga por não atingir os objetivos que se propõe. Um homem fechado e que, por vezes, não reconhece que precisa dos amigos. Um tipo que tem medo de rir, medo de amar, medo dos seus próprios sentimentos, porque é a coisa mais difícil de controlar. Sabes uma coisa? Vejo um homem muito parecido com a mãe dele, não com Asgrim. Não que sejas igual a lady Margaret. Um homem é ele próprio, na hora da verdade. O caminho é nosso, Thorvald, não nos é destinado por um equívoco, ou pelos nossos antepassados. Tu ainda agora começaste. Eu vi como os homens olhavam para ti, ontem. Tu começaste a mudar as coisas e para melhor. Lamento muito que Creidhe não esteja aqui para ver. Lamento que nunca mais tenhas a hipótese de lhe dizer o que me disseste a mim: que perdê-la era perder um pouco de ti mesmo. Oh sim, lembro-me muito bem; como seria possível não me lembrar? E agora vamos, temos de nos esconder outra vez. Aquela maldita melodia parou e, aqui a falar, podemos chamar a atenção. E eu quero voltar para casa. Apetece-me muito sentar-me outra vez à lareira.
— Mesmo sem Creidhe?
Sam não respondeu e alguns momentos depois os dois homens regressaram ao abrigo e instalaram-se desconfortavelmente. Podiam ouvir o mar a rugir na Corrente dos Loucos. Não havia necessidade de falar no dia seguinte; tinham tudo cuidadosamente planejado e cada um sabia o seu papel. Mais tarde, Sam quase adormeceu, mas Thorvald permaneceu acordado, recordando o espantoso discurso de Sam com o som das vagas como pano de fundo. Sam era um homem simples e via as coisas com simplicidade. Não podia esperar uma análise profunda da sua própria situação por parte de um homem daqueles. Não podia esperar que ele expusesse, em termos claros e inflexíveis, o que era, sem dúvida, a verdade. Pelo menos, uma espécie de verdade. Se fosse possível acreditar que era assim tão simples, seria uma grande consolação. Teria esperança, ou quase. Aqueles sentimentos eram, de certo modo, estranhos para Thorvald; não o visitavam com freqüência. E não tinha a certeza se seriam bem-vindos. O jovem sentou-se calmamente na escuridão, pensando naquilo e esperando pela manhã.
Esgotado pela força da sua voz interior, o Pequenino adormeceu assim que se deitou. Guardião e Creidhe ficaram a observá-lo durante alguns momentos. Agora que chegara o momento, Creidhe sentia uma estranha incerteza, porque apesar das mensagens que o seu corpo lhe enviava há já algum tempo, o território era novo, estava em águas desconhecidas e não sabia ao certo como avançar. A jovem sabia os rudimentos básicos, claro; crescera numa herdade. Sabia, também, algumas subtilezas, porque Eyvind e Nessa eram um exemplo terno e consolador. Creidhe vira a ternura de um pelo outro, as carícias mútuas e as mensagens que os seus olhos enviavam mutuamente, ainda cheias de paixão e promessas apesar dos anos passados, com cinco filhos e uma série de anos ao serviço das duas comunidades das ilhas. Apesar disso, a teoria era uma coisa e a prática outra. Numa palavra, a jovem sentia-se tímida.
— Aquilo que disseste — o tom de Guardião indicava que também ele estava confuso — acerca de ser costume uma pessoa lavar-se e lavar as roupas, quer dizer... eu acho que, se calhar, há mais qualquer coisa, se bem me lembro.
— Mais?
— Palavras — disse ele. — Palavras de promessa. Não devia haver isso? Um anel, ou outro talismã qualquer?
Creidhe sorriu ao ver a palidez dele e a solenidade dos seus olhos Teria de ser ela a tomar a iniciativa, com ou sem nervos.
— Há palavras — disse-lhe ela. — Tu tens de segurar nas minhas mãos, assim e devemos dizer aquilo que queremos para os dois, um voto, uma promessa. — Subitamente, enquanto Guardião fechava as pequenas mãos dela nas suas de dedos longos e fortes, ela ficou muito quieta, consciente da seriedade da situação. Aquele momento era um ponto de viragem; era o fim do Eu e o começo de Nós. Viver um momento assim era dar um presente precioso e receber, em troca, um igual.
— Diz tu primeiro. — A voz de Guardião era um pouco constrangida. — Eu não sei o que dizer.
As palavras surgiram sem querer; Creidhe falou em voz baixa, porque Pequenino dormia apenas a dois passos do lugar onde estavam de mãos juntas e olhos fechados.
— Prometo ser tua, amar-te e estar sempre a teu lado enquanto vivermos. — disse ela com a voz a tremer.
Guardião tossiu nervosamente para aclarar a voz.
— Juro proteger-te e amar-te sempre — disse ele. — A minha casa abrigar-te-á, a minha lareira aquecer-te-á e eu caminharei a teu lado até ao fim dos meus dias. Prometo-te solenemente.
— Pensei que tinhas dito que não sabias o que dizer — sussurrou Creidhe. — Foi maravilhoso o que disseste. Fizeste-me chorar.
— Oh não... oh não, por favor, não...
Alarmado, Guardião ergueu uma mão para limpar a lágrima que lhe corria pela face, mas foi imediatamente abraçado, porque Creidhe não agüentava mais. Com os lábios no pescoço dele e com o corpo a arder, ela murmurou:
— Não devíamos acabar assim, a meio caminho. Eu devia dizer: Juro pelas pedras e pelas estrelas... — A boca bela afagou-lhe o queixo, embriagada de desejo. Creidhe sentiu as mãos dele nas costas, apertando-a com força. E ouviu as palavras dele, ternas e tímidas, apesar do seu corpo esguio e forte.
— Juro pelo vento e pelas aves, até à morte e para lá dela. Tu és o meu amor, a minha deusa, a minha mulher.
— E tu és o meu amante e marido, a minha outra metade. E penso que chegou a hora, finalmente, de tentar isto...
Quando chegou o momento, inexperientes como eram, desenvencilharam-se sem dificuldades maiores. Umas mãos esfomeadas lidaram rapidamente com os impedimentos de uma túnica, de um cinto ou de uma saia; lábios ardentes deixaram a sua sutil mensagem na pele suave de um ombro, de um seio, das fendas secretas do corpo; a respiração transformou-se em suspiros, em arquejos, em semi-murmúrios de amor e desejo. Era verdade, nenhum deles desempenhara aquela tarefa antes, mas eram jovens e saudáveis e feitos um para o outro. Através da estreita abertura por cima da lareira, a Lua, decrescente, observava tudo; a mão esbelta e áspera dele na pele dela; os cabelos cor de trigo dela espalhados, como uma torrente dourada, em cima do corpo rijo dele; os lábios de ambos unindo-se, traquinas, saboreando, até que, demasiado cedo, não conseguiram agüentar e atingiram o êxtase juntos numa urgência doce e misteriosa. Guardião movia-se como o mar, firmemente, com força, contendo ferozmente o desejo, adorando a sua deusa, a sua mulher de pele branca e rosada, de cabelos dourados, tal como a vira pela primeira vez à lareira, se bem que, espantosamente, ali, nos seus braços, as suas faces corassem de paixão e os seus lábios, as suas mãos e o seu corpo, oferecendo-se, lhe inflamassem o desejo. E Creidhe, que esperava ter algumas dores e talvez algum desapontamento, como é normal com as raparigas na noite de núpcias, descobriu, encantada, que era uma verdadeira filha do seu pai, generosa para o parceiro e sentindo-se deliciada com o que recebia dele. Finalmente, ele golpeou-a, com força e ela apertou-se contra ele, estremecendo e gritando ambos quando Guardião ejaculou dentro dela e o corpo de Creidhe respondeu, arqueando-se de dor e prazer. Depois, foi o silêncio. Deslumbrados, espantados, descrentes, ficaram nos braços um do outro enquanto os corações abrandavam gradualmente. A Lua brilhava por cima deles, remota e imparcial e o único som que se ouvia naquela noite de Verão era o do Pequenino a dormir.
Passados alguns momentos, Guardião mudou de posição e ficou de costas, assegurando-se de que Creidhe podia descansar a cabeça no seu ombro e enroscar-se nele o mais confortavelmente possível naquela cama dura. O jovem puxou o cobertor e cobriu-a. E em breve ela dormia como uma criança com o braço por cima do peito dele, os cabelos, como uma carícia, sobre a pele dele, os lábios abertos num ligeiro sorriso. Mas Guardião ficou acordado, olhando para o céu, e os seus pensamentos já estavam no dia seguinte, no Verão seguinte e nos anos vindouros.
Creidhe acordou cedo. Ficou imóvel por alguns momentos, pensando nas sensações do seu corpo, as dores de satisfação, que eram um sentimento inteiramente novo, o calor do corpo de Guardião, a sua respiração na sua testa, agitando-lhe ligeiramente os cabelos. Ele dormia profundamente, enroscado em redor dela numa atitude de proteção. O interior da cabana estava frio; a lareira transformara-se num monte de cinzas. E Pequenino não estava à vista, o seu cobertor todo amarrotado e as botas perfeitamente alinhadas junto à parede, no seu canto. A tremer, Creidhe saiu de sob os cobertores, cuidadosamente para não acordar Guardião e meteu-se na saia e na túnica, acrescentando-lhes, depois, uma capa quente. Meteu os pés nos pequenos sapatos que tinham pertencido a Sula. Ainda havia brasas por baixo do cobertor de cinza; ela soprou-as, colocando por cima alguns gravetos que não tinham ardido para provocar as primeiras chamas. Havia uma provisão de madeira e de turfa. Guardião era um homem previdente.
Creidhe estremeceu, pensando em como teria sido se as suas visões tivessem sido verdadeiras e ele tivesse caído perante as forças de Asgrim durante a caçada. Como se teria arranjado sozinha com o Pequenino, tão frágil, durante o Inverno? O pensamento era aterrorizador. Guardião era um homem, forte e capaz, habilidoso e inteligente. Acima de tudo, estava determinado a cumprir a sua missão. Mas, tinha doze anos quando fugiu para aquela ilha, uma criança. Como era possível compreender um tal encarceramento, uma tal dedicação àquela vida de luta e sacrifício? O jovem vivera tudo sozinho, apenas com o seu pequeno sobrinho: sozinho durante aqueles anos todos, com o vento e as tempestades, as falésias e o mar tempestuoso. Talvez fosse do sangue que lhe corria nas veias, o sangue da mãe, que tornava possível essa resistência. Ela pertencera à Tribo das Focas, a raça tão temida pelo povo de Creidhe. As pessoas da Tribo das Focas eram diferentes, eram capazes de viver ao mesmo tempo em terra e no mar, temiam o ferro, os seus corpos eram semelhantes aos dos homens e das mulheres, mas tinham diferenças sutis. Para além dos seus dedos estranhos, longos e finos, da sua palidez e dos seus olhos profundos, que podiam mudar de cor, Guardião era um homem perfeito; a sua forte compleição, que Creidhe sentira na noite anterior enquanto saboreava cada canto do seu corpo esbelto e musculoso, o modo como se completavam na perfeição, movendo-se como um todo, parecia prová-lo sem qualquer dúvida. Talvez fosse mais filho de Asgrim do que da mãe, se bem que nunca o reconhecesse. Ali, não era Guardião. O outro, era Pequenino, o vidente cuja mãe transportava nas veias, ao mesmo tempo, o sangue da Tribo das Focas e o do povo dos Facas Longas e o sangue dos homens d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, os homens que o reclamavam como Máscara-de-Raposa e a quem pertenceria até ao fim da sua vida uma vez celebrado o ritual de estropiação.
Ajoelhada à lareira, Creidhe sentiu um arrepio. O fogo pegara e ardia com alguma segurança, espalhando uma luz rosada e quente pelas feições de Guardião ainda adormecido. A caçada terminara. Estava sã e salva, por agora, aquela pequena família tão nova, mas que era, indiscutivelmente, a sua. Mas haveria outros Verões e outras caçadas. Naquele momento, ficaria contente se Pequenino regressasse para poder tê-lo debaixo de olho. Devia estar um frio de rachar, no exterior, e ele não calçara as botas. Que andaria ele a fazer?
Creidhe saiu para o ar da manhã. O nevoeiro pairava, baixo; a jovem conseguia ver até uma distância, talvez, de vinte passos, antes de a cortina branca velar por completo a encosta. Pequenino, sob a forma canina, estava um pouco abaixo, de orelhas espetadas, como que à espera. Creidhe abriu a boca para o chamar, mas fechou-a logo a seguir, gelada de terror. Emergindo da bruma, surgiu um homem, um homem alto de cabelos claros que ela reconheceu, se bem que as faces largas e sorriso luminoso, apanágio de Sam em Stensakir, tivessem sido substituídos por um olhar mais duro, o olhar de um guerreiro. O jovem tinha uma lança na mão e era evidente, pela maneira como pegava nela, que aprendera a usá-la. Pequenino virou as costas e correu para junto dela. Em seguida, por trás de Creidhe e à esquerda, ouviu-se um pequeno som: um único passo nas pedras da encosta. A jovem virou-se e deu de caras com Thorvald a menos de quatro passos de distância, de sobrolho carregado, boca cerrada, os olhos escuros muito abertos num rosto branco como a cal, um reflexo, sem dúvida, do seu. Que sentimento era aquele que estava a sentir? Alegria ou angústia? Alegria pelo reencontro, ou um terror inconsciente?
Falaram os dois ao mesmo tempo, pouco firmes, dizendo uma única palavra: o nome um do outro. Por trás de si, Creidhe podia ouvir os passos de Sam aproximando-se, já sem se preocupar com o barulho que pudesse fazer; a jovem também podia ouvir os passos pequenos e rápidos de Pequenino. Um instante mais tarde, surgiu Guardião à entrada da cabana com um olhar no rosto que os silenciou a todos, porque parecia uma força terrível e antiga da natureza, sombria e implacável. O jovem estava completamente nu, sem qualquer arma de ataque ou de defesa, mas Creidhe viu Thorvald dar um passo atrás. Naquele momento, a imagem apoderou-se de novo da jovem, fria e inevitável: não era na caçada, no dia anterior, era naquela manhã, afinal de contas era verdade, a terrível visão dos antepassados era real. Uma noite apenas, tivera apenas uma noite. Agora, as trevas iam regressar e Pequenino seria levado... Thorvald, apertando o arco na mão, não vacilou um instante, nem sequer naquele momento de fazer parar o coração. A jovem viu os dedos dele moverem-se ligeiramente, preparando-se para largar a flecha na direção do peito de Guardião. A jovem viu o subtil movimento da mão direita de Guardião, onde tinha uma tira de pele com uma pedra, tudo o que tivera tempo para agarrar quando acordara subitamente, sentindo o perigo. Por trás, Creidhe ouviu os passos de Sam aproximando-se. Pequenino agitava-se em redor dos pés da jovem, inconsciente do perigo.
Até os antepassados se enganavam, por vezes, certamente, certamente que não eram assim tão cruéis? Devia ser possível alterar as coisas. Por que outra razão se teria sentido impelida a fazer aquela viagem? Os dedos de Thorvald retesaram-se na corda do arco; a mão de Guardião recuou, pronta para largar a pedra. Subitamente, ouviu-se a voz de Creidhe.
— Não! — gritou ela, e atirou-se para a frente, inconsciente para tudo, senão para a necessidade de os parar, de os salvar, custasse o que custasse. A jovem sentiu-se como se tivesse asas, como se transportada pelo vento, os braços abertos, as pernas mal tocando no solo, tal era a urgência. Então, sentiu uma dor terrível no braço esquerdo e outra na cabeça, e caiu inconsciente.
Thorvald era um líder. Nem naquele momento o esqueceu. Creidhe jazia no solo pedregoso. O sangue escorria-lhe do braço, onde a sua flecha a ferira, mas fora a pedra que a fizera cair; a jovem levara com a pedra que lhe era destinada. O rosto de Sam estava contorcido de angústia, estava quase a chorar. Com um aceno da mão, rápido, Thorvald silenciou-o. Tinham um momento para agir, não mais. Porque o inimigo estava indefeso. Quando Creidhe caíra, o tipo lançara um grito terrível, o grito de dor de animal selvagem e deixara-se cair aos pés dela, sem se preocupar com Thorvald ou com Sam. Guardião amparou-lhe a cabeça e os seus longos dedos apalparam o local onde a pedra lançada pela sua funda acertara, provocando-lhe um grande galo na pele pálida. Os seus olhos pareciam cegos pelo choque. As suas mãos tremiam visivelmente, como se tivesse cometido um ato demoníaco, inimaginável: como se tivesse morto uma deusa. A seu lado, o pequeno cão observava, imóvel.
Thorvald olhou para Sam e acenou com a cabeça. Sam deu dois passos em frente e quando aquele tipo de aspecto selvagem se virou para ele e começou a levantar-se, a sua lança atingiu-o na nuca, fazendo-o cair de borco no chão. O vento agitava-lhe os cabelos emaranhados, frio, implacável, à luz da madrugada. O animal parecido com um cão continuava por perto, ganindo e lambendo o rosto branco do homem caído por terra.
— Creidhe! — arquejou Sam, deixando cair a lança, afastando o corpo do guerreiro e ajoelhando-se para a erguer nos braços.
— Pelos ossos de Odin, ela esteve viva este tempo todo, prisioneira! — O jovem apalpou-lhe o pescoço e inclinou-se para lhe escutar a respiração. — Louvada seja Freya, ainda respira! Depressa, temos de parar a hemorragia. Que lhe deu, para fazer uma coisa daquelas?
Thorvald reprimiu uma lágrima súbita. Creidhe estava viva. O seu coração foi atingido por uma confusão de sentimentos sem sentido. Portanto, era mais fácil fazer aquilo que sabia ter de ser feito. Mesmo depois daquilo, continuava a haver uma missão e ele não podia desviar-se dela até estar terminada.
— O vidente — disse ele em voz rouca. — Temos de encontrar o vidente...
— O quê? — A voz de Sam parecia um rugido. O jovem rasgara um pedaço da sua camisa e ligara o ferimento do braço da jovem. Agora, estava a envolvê-la na sua capa. Os cabelos de Creidhe, soltos, espalhavam-se pelos seus joelhos como um ribeiro dourado.
— Temos de o encontrar. Não deve estar longe. Não saio daqui sem ele. — Virando a cabeça, Thorvald começou a andar na direção da pequena cabana, onde ardia uma fogueira no meio de algumas pedras. O interior era rude, mas tinha sinais de alguma vida doméstica; havia peixe pronto para ser cozinhado, capas penduradas nas paredes, potes e panelas. Havia um espaço para dormir. O jovem viu como estavam estendidos dois cobertores, um ao lado do outro, em desordem, e outro mais longe, junto de um par de botas para criança. Thorvald pensou em Creidhe ali deitada à mercê daquele animal selvagem. A evidência dizia-lhe que não só estivera prisioneira, como fora usada; não havia dúvidas de que aquela esteira primitiva fora o lugar onde o tipo se satisfizera à custa dela. A fúria encheu-o, quase se sobrepondo à disciplina que aprendera a impor a si mesmo. O jovem colocou o arco a tiracolo e tirou o punhal do cinto. O inimigo era apenas um homem. Sempre acreditara, no fundo, que assim era. Aquele homem condenara aquele soldado honesto, Hogni, a um fim lento e cruel pelo veneno. Aquele miserável raptara-lhe a sua maior amiga, Creidhe, a sua sombra leal, a quem ele ligara pouco ao longo de todos aqueles anos, a quem censurara, de quem fizera troça, sem reconhecer que a amava até ao dia em que pensou que tinha morrido. E, afinal, tinha estado sempre viva ali, prisioneira daquele filho do diabo. Aquela criatura infernal tinha-a raptado e tinha-se servido dela, tratara uma criança inocente como uma puta vulgar. Mas, agora, ia morrer. Como poderia ser de outra maneira?
Thorvald saiu da cabana. O tipo continuava imóvel com o pequeno cão a seu lado, ansioso. Sam estava a envolver Creidhe na sua capa. A expressão no seu rosto fez com que Thorvald se sentisse pouco à vontade, porque era o olhar de um homem que tomou uma decisão e que não permitiria que o fizessem mudar de idéias.
Thorvald ajoelhou-se junto do guerreiro com a faca na mão. Demoraria apenas um instante: um simples golpe na garganta e vingaria Creidhe, Hogni, Svein, Alof, Helgi e todos os homens que tinham morrido ao longo dos anos. Fácil: rápido. O pequeno cão ganiu de novo, olhando para ele com uns olhos vermelhos, estranhos, num focinho triangular. Pelo martelo de Thor, nunca vira um cão como aquele em toda a sua vida, ou um gato, ou outro animal qualquer de que se recordava. Parecia um animal saído de uma história de magia e mistério, uma coisa que não pertencia ao mundo dos homens, velha, misteriosa, estranha... Thorvald sentiu os pêlos arrepiarem-se-lhe na nuca e um frio percorrer-lhe o corpo ao olhar para aqueles olhos líquidos. Por todos os deuses, conseguira, vencera... O jovem descobriu que estivera a prender a respiração e deixou-a sair num longo suspiro. A sua mão, segurando o punhal, tremia como uma folha.
— Despacha-te! — disse Sam asperamente. — Temos de regressar ao Fiorde do Conselho e depois para casa. Creidhe está ferida, tem frio e eu vou levá-la para as Ilhas Brilhantes, nem que morra. Maldito seja o teu vidente. Não desperdiço nem mais um momento do meu tempo. Se vais matar esse tipo, despacha-te e vamos embora, porque ainda temos pela frente o pesadelo da travessia.
Sam tinha razão, claro. Por um milagre qualquer, Creidhe fora-lhes devolvida e, agora, Thorvald tinha a hipótese de remediar tudo, dizer-lhe o que sentia, emendar os seus erros... Tinham de salvá-la. Tinha de se despachar para que pudessem ir-se embora rapidamente. Thorvald olhou para o rosto imóvel do homem, um rosto magro e forte, marcado por um maxilar forte, uma boca firme e severa apesar da inconsciência, umas longas pestanas escuras e uns cabelos emaranhados. O jovem encostou a faca à garganta, a faca que os seus homens lhe tinham feito como sinal da sua liderança, um sinal de respeito e confiança. De que estava à espera? Era um guerreiro, não era? Devia ser tão fácil como degolar um carneiro, mais fácil, de fato, já que a vítima estava indefesa, oferecendo a carne para o sacrifício. Mas a mão de Thorvald não se mexia. Porque naquelas feições sérias e disciplinadas estava a sombra do rosto de um outro homem; aquele tipo selvagem tinha os traços de Asgrim nos maxilares, nas faces, na robustez dos ossos. Aquele tipo era o filho do governador. Era o miúdo que raptara Máscara-de-Raposa há cinco anos: o rapaz que as pessoas diziam ser um sonhador, sem talento para os jogos de guerra. Um rapaz que sobrevivera e se transformara num homem e que, nesse processo, ensinara a si próprio como ser um exército de um só homem. Tal era a força que tinha dentro de si: uma força moral fantástica. O coração de Thorvald ficou dividido entre o ódio e a admiração. Pelo que fizera, aquele homem merecia a morte. Não tinha dúvidas da atitude de Skapti, de Einar, de Skolli; esperariam que Thorvald o fizesse. Mas o jovem não conseguia fazer o gesto; não conseguia que a arma fizesse o seu trabalho.
— Anda lá! — gritou Sam com um tom cortante na voz.
A criatura com aspecto canino aproximou-se. Tocou no joelho de Thorvald; o jovem podia sentir o seu pequeno corpo a tremer, quase como que o movimento de um corpo líquido, uma vibração constante. Thorvald continuou de joelhos, imóvel, com a faca na mão. Se aquele homem era filho de Asgrim, era seu irmão. Não sentia qualquer ligação; na verdade, sentia nojo, aversão e uma vontade de acabar com o tipo e com os seus atos de violência deliberada. Mas não podia matar o seu próprio irmão. Fazê-lo seria provar que não era melhor do que Asgrim, que gerara ambos, porque não fora pelo crime de fratricídio que Somerled fora expulso das Ilhas Brilhantes para sempre, chegando através das estrelas e por entre recifes até àquele canto distante do mundo? Ali, recomeçara de novo a sua vida maldita como Asgrim, governador das Ilhas.
Thorvald meteu a faca na bainha e pôs-se lentamente de pé. Não era igual ao pai. Era ele próprio e escolheria o seu próprio caminho. Quanto àquele seu meio-irmão, que causara tanta perturbação e tantas mortes, aquela criatura selvagem que lhe roubara Creidhe, que ficasse por sua própria conta.
— Thorvald! — gritou Sam. — Eu vou-me embora e se tu não estiveres no barco a tempo, Creidhe e eu vamos sem ti. Estou a falar a sério.
Havia um tom novo na voz de Sam, um tom de determinação e esperança renascidas apesar da viagem que tinha pela frente. Thorvald também sentiu uma esperança nova enquanto olhava para o pequeno animal estranho a farejar o homem imóvel no chão e a olhar para cima, como que em busca de tranqüilização. Tinha razão para ter esperança. Tinha Máscara-de-Raposa. Espantosamente, Creidhe estava viva. E no outro lado da Corrente dos Loucos, no Fiorde do Conselho, os seus homens esperavam-no. O vento soprava com força de oeste, agitando os caracóis escuros e selvagens do guerreiro e percorrendo-lhe o corpo com os seus dedos gelados. Não precisava de usar a faca, pensou Thorvald; o clima acabaria com o tipo mal ele saísse dali.
O pequeno animal ganiu. Sam desaparecera na encosta envolta em nevoeiro com Creidhe nos braços.
— Está bem, pronto — resmungou Thorvald, sem saber ao certo com quem estava a falar. Durante os treinos para a caçada ele tornara-se mais forte. Na última Primavera, não teria sido capaz de arrastar um homem adulto para o interior da cabana sem ficar esgotado, sem fôlego. Thorvald estendeu o homem nos cobertores tentando não pensar em Creidhe, porque, se o fizesse, a fúria apoderar-se-ia dele de novo. O jovem cobriu o homem com o que tinha à mão: capas, cobertores, peles e outras peças de roupa. Deitou alguma turfa para a lareira. Era o suficiente; não sentia nada pelo tipo, irmão ou não. O tipo é que escolhera aquela ilha, no fim de contas; a Ilha das Nuvens que o safasse, já que gostava tanto dela. Quanto à tribo feroz, o exército selvagem que Asgrim acreditava enfrentar, era apenas um homem, o seu próprio filho, mais nada, um homem e a ilha. Thorvald não diria a verdade aos outros; deixá-los-ia acreditar numa vitória há muito desejada!
Tinha de ir; não podia pôr de parte as ameaças de Sam. Thorvald deu alguns passos para pegar no pequeno animal, mas este tinha-se afastado um pouco e estava a puxar qualquer coisa encostada à parede, uma correia, ou um cinto. Não, era um saco, bem fechado e apertado: um saco familiar, o saco que Creidhe trouxera consigo das Ilhas Brilhantes, cheio de coisas tolas, nomeadamente o bordado e as lãs coloridas. Só uma rapariga se lembraria de trazer consigo aquelas porcarias numa viagem ao fim do mundo!
O animal começou a rosnar; pegara no saco com os seus pequenos dentes aguçados e não o queria largar. Por todos os deuses, pensou Thorvald, seria bom que tivesse razão, para não chegar ao acampamento de Asgrim apenas com um cão enfezado nas mãos. Sentia que estava certo. Escutara cuidadosamente o que os homens diziam acerca da natureza daquilo que caçavam.
— Está bem, pronto — disse ele, estendendo um braço para pegar no saco e esperando que o animal não lhe ferrasse os dentes. — Levamos também isso. Creidhe ficaria fula se deixássemos isto aqui; ela gosta muito deste bordado. Ponho-o às costas e levo-te, a ti, ao colo...
Mas não ia ser assim. O animal viu-o pegar nos pertences de Creidhe e depois saiu da cabana a correr. Thorvald sentiu um baque no coração. O cãozinho era minúsculo e muito ágil; era capaz de fazê-lo correr a ilha toda enquanto Sam regressava ao Fiorde do Conselho, levando consigo o seu único meio de fuga.
Mas quando saiu da cabana, deixando o guerreiro estendido, imóvel, junto da lareira, o animal de aspecto canino descia a encosta em direção ao ancoradouro, parando de vez em quando para ver se Thorvald o seguia. Não precisava de capturá-lo, de o prender, de o forçar a abandonar a Ilha das Nuvens. Era evidente que Máscara-de-Raposa decidira regressar a casa.
Passara-se muito tempo desde que o homem de cabelos brancos aprendera a manter um pequeno barco a flutuar em mar aberto. Então, era jovem e forte, de cabelos escuros e brilhantes como a madeira polida do carvalho. Aprendera rapidamente, tendo de escolher entre morrer, faltar a uma promessa, ou navegar, viver e permanecer fiel a si próprio. Aprendera da maneira mais dura possível. Uma lição assim não se esquece. Agora, as suas mãos moviam-se com eficiência, aparelhando e carregando o barco com as coisas que trouxera: menos coisas do que as ferramentas básicas de sobrevivência que lhe tinham permitido levar consigo quando o tinham enviado para o exílio. Tinha alguma água, uma capa extra e alguma corda. Não levava comida: esperava não precisar. Não levava linha de pesca. Aquela viagem só tinha um propósito.
O homem lançou o pequeno barco à água da Baía Sangrenta, empurrando-o ao longo da areia escura antes de subir para bordo. O processo era tudo menos elegante; já não era um homem novo, pensou ele enquanto pegava nos remos, mas também não era tão velho que não agisse quando achava necessário. Esperara muito tempo, receoso de que aquela decisão o forçasse a quebrar um voto que não devia. Prometera ao seu único amigo, ao seu único e verdadeiro irmão, que quando aportasse a qualquer lugar, depois da sua longa viagem, se esforçaria por ser sensato e equilibrado, um verdadeiro condutor de homens. Mas, como podia uma criatura imperfeita como ele manter uma promessa solene, senão afastando-se do mundo dos homens? Desejava ardentemente liderar, ansiava pelo respeito e admiração dos homens, mas sentia que, por mais poderoso que pudesse ser, nunca se sentiria satisfeito. Assim, a única coisa a fazer era eliminar essa possibilidade de poder, ou faltaria à promessa, provocando uma era de trevas. No entanto, o desejo de poder sempre existira, de algum modo, ao longo dos anos, durante a sua vida como monge, vivendo o dia-a-dia em redor das horas, das Matinas Completas, empunhando a pena e escrevendo outras coisas que não mensagens secretas de estratégia e intriga. Misturara pigmentos, embelezara as suas páginas delicada e engenhosamente. Copiara as Escrituras para Breccan. Até desenhara mapas para o governador, apenas para não perder o jeito, por assim dizer. Aprendera que mungir uma vaca e trabalhar na horta era, para os fiéis, um verdadeiro ato de oração. E vira os patéticos esforços de Asgrim para estabelecer ali uma comunidade, reparara nas injustiças e nas loucuras que o governador impunha aos ilhéus assustados. Desafiara-o enquanto o povo dos Facas Longas se desgastava numa guerra fútil contra um inimigo que não conhecia, contra um adversário que não compreendia.
Mas não podia intervir. Avançar e tomar o lugar de Asgrim, como ansiosamente desejava, seria tornar-se, mais uma vez, no líder que mostrara ser nas Ilhas Brilhantes: um líder que só sabia governar através da crueldade e do terror, um governador menos digno, ainda, do que Asgrim. Estivera por pouco, algumas vezes. Uma delas, pouco depois de chegar e cheio de saudades, confrontara-se com Asgrim e vira o medo nos olhos dele, um medo que acordava nele recordações amargas. Niall retirara, optando pela solidão, por uma vida de estudo. Mais tarde, quando os homens do Ulster apareceram e ele descobrira com espanto que a amizade ainda era possível, no fim de contas, travara conhecimento com o rapaz, Erling. Uma mente perspicaz, uma vontade forte, apesar dos seus modos sonhadores: Niall descobrira em si próprio o desejo de proteger o jovem do pai, dar-lhe a oportunidade, pelo menos, de crescer e aprender, livre da influência negativa de Asgrim, que não o achava digno de ser seu filho.
Havia uma centelha de qualquer coisa rara em Erling. Breccan apercebera-se disso, também, enquanto o rapaz fazia perguntas sem fim acerca das Escrituras, procurando encontrar significado nas histórias de Cristo e dos seus discípulos, coisas que não faziam parte do padrão da sua própria vida entre o povo dos Facas Longas. Bem, Erling quebrara, certamente, o padrão, mas não como Breccan esperava, que desejava que o rapaz fosse para o eremitério e, em devido tempo fizesse, também, o voto de pobreza, de castidade e de obediência. Erling surpreendera toda a gente. Suportara os castigos corporais do pai, os abusos, o encarceramento, esperando até chegar a ocasião para fugir. Então, roubara a criança Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Espantara todos raptando o vidente e colocando-o fora do alcance. Um ato daqueles, de uma extrema coragem, de um dedicado auto-sacrifício, era, certamente, digno de se transformar numa lenda.
O problema, disse Niall para si mesmo enquanto aproava o pequeno barco a sul, na direção da Ilha das Nuvens, o principal problema era que o heroísmo de Erling não conseguira nada para além de uma momentânea amolgadela na autoridade de Asgrim. As vozes continuavam a surgir durante a noite; as crianças continuavam a morrer. A caçada continuava com a sua colheita de morte e desespero. Provavelmente, o vidente morrera no primeiro Inverno na Ilha das Nuvens, no meio da bruma e da chuva. Era natural que o rapaz não tivesse podido fazer melhor, porque a capacidade de argumentar com lógica e o gosto por histórias não eram os dons ideais para uma vida de luta contra o frio, a fome e a solidão. Provavelmente, já não havia nenhum vidente. Mas havia quem ainda tivesse fé nele. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tinham fé, o povo dos Facas Longas caçava-o e aquela guerra estúpida continuava. Com o tempo, destruiria a todos.
Antes, Niall teria ficado no eremitério, observando, pensando. Teria visto os barcos saindo no solstício do Verão e regressando no dia seguinte com menos alguns homens a bordo. Breccan teria rezado pelos guerreiros de Asgrim e ele teria ajoelhado tranquilamente ao lado do seu irmão, respeitando a sua fé. Se Deus preferia recompensar a coragem do povo dos Facas Longas com o falhanço, quem era ele para o criticar?
Mas agora era diferente. Deixara-os levar a rapariga, a própria filha de Eyvind, que ele devia ter protegido, aquela jovem encantadora com os cabelos cor de manteiga e olhos azuis sinceros do seu amigo, suaves como um céu de Verão sem nuvens, de extrema bondade e simplicidade. A jovem era a imagem do pai, mas era-lhe superior, porque também tinha a inteligência rápida da mãe, a sua capacidade de entendimento. Mas, agora, Creidhe estava morta: e a culpa era sua, a culpa era de Somerled, a mão, de novo, de Somerled, transformando tudo em cinzas. Podia ter agido mais cedo, mas preferira não o fazer. Mas, agora, tinha de fazer qualquer coisa. Era demasiado tarde para Creidhe, mas não para o rapaz. Não, um rapaz não: um homem. O seu filho. O seu filho, Thorvald, a imagem de Margaret na atitude digna, no ar de autoridade contida, nas feições orgulhosas e nos cabelos ruivos... No entanto, tinham sido os seus próprios olhos escuros e perturbados no rosto daquele guerreiro, que tinham olhado para ele, os seus próprios olhos, plenos de convicção e propósito, olhos que nunca conseguira dominar, como era desejo de Eyvind. Asgrim, provavelmente, tinha vergonha do seu próprio filho. Para Niall, não era assim. O monge reconhecera, logo naquele primeiro momento esmagador, que o seu coração, afinal de contas, não estava gelado para sempre; que aquele jovem era como ele próprio devia ter sido, um grande líder sem entraves, livre dos grilhões do passado, grilhões que Somerled nunca conseguira afastar de si. Se pudesse ter gritado para que todo o mundo o ouvisse, teria gritado: Ele é meu filho.
Por isso, era hora de agir. Asgrim podia prosseguir com a caçada, ano após ano, destruindo as vidas dos seus homens, como se fossem meras ferramentas. Mas não permitiria que acontecesse o mesmo a Thorvald. Thorvald viveria; seria um líder como aquela gente nunca tinha visto.
Niall pensara no seu plano durante muito tempo. Achou que teria sucesso, sem grandes danos para quem quer que fosse. O que era um vidente, no fim de contas, senão alguém que podia aconselhar razoavelmente as pessoas quanto às suas vidas? Os pormenores não tinham importância. Nove em cada dez homens de Rogaland tinham mães de cabelos claros. Os restantes tinham pouco significado: provavelmente, tanto como ele, que era um miserável. Certamente menos do que o castigo que impusera ao seu próprio irmão num tempo em que apenas conhecera a luxúria do poder, a luta amarga para fazer de si próprio aquilo que acreditava ser: Rei dos homens. Podia suportar o ritual. À sua maneira, até talvez fosse interessante, se fosse capaz de permanecer consciente enquanto levavam a cabo a cirurgia.
O pequeno barco deslizava através do oceano, oscilando como um brinquedo nas águas profundas entre a Ilha das Tempestades e as ilhas ao sul, lar misterioso d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Niall olhou à sua volta, retendo tudo na memória: os tons da água; o céu grande e pálido cheio de gaivotas; as silhuetas íngremes e escuras das ilhas, franjadas de falésias habitadas por milhares de aves marítimas. O dia estava bom; o Sol estava quente, o ar fresco e as focas nadavam de um e de outro lado do barco, como se o escoltassem.
Gostaria de ter podido ver Thorvald mais uma vez, só mais uma, antes de lhe tirarem a visão. Gostaria de ter podido olhar para o seu filho e dizer-lhe como se sentia orgulhoso por ter gerado um jovem como ele; como lamentava por não o ter visto crescer. Uma tolice. Nenhum rapaz gostaria de ter Somerled como pai. Thorvald era o que era, precisamente porque o seu pai não estivera presente enquanto ele crescera. Estivera livre da sua influência. Margaret fizera um bom trabalho. Niall gostaria de ter podido dizer-lhe.
Breccan não ficaria feliz. Breccan descobriria que ele se tinha ido embora, lamentaria e rezaria por ele. Se o homem do Ulster o pudesse ver agora, pensou Niall, descobrindo que tinha um sorriso sem qualquer amargura nos lábios, ficaria surpreendido. Porque o homem de cabelos brancos trouxera consigo quatro coisas ao deixar a Ilha das Tempestades pela última vez. A primeira era a capa, já que tinha de se manter quente para poder usar as mãos com eficácia. O barco não navegava sozinho. A segunda era a corda; era uma loucura viajar sem uma corda. A terceira era a água, para o manter vivo em caso de emergência. A quarta era a cruz de madeira que trazia ao pescoço. Niall descobrira que podia pôr facilmente de lado a pena e o pergaminho, sabendo que não poderia voltar a escrever. O último salmo estava escrito, copiado na perfeição, as maiúsculas desenhadas com folhas e flores e, aqui e ali, o texto, os locais onde os seus pensamentos tinham desafiado os limites do manuscrito, ansiando, atingindo e ultrapassando as margens. Aquele trabalho estava feito. Não haveria mais cartas, ou mapas. Um homem não pode escrever na escuridão. Não voltaria a velejar, não trataria da horta, não iria à aldeia, ao lago ou ao alto do monte. Estava mentalizado; a decisão para acabar com a vida que levava era sua. No entanto, a cruz ainda lhe pendia do peito, um pedaço simples de madeira de freixo, que lhe parecera, até ao dia em que conhecera o seu filho, apenas um símbolo sem qualquer significado de uma fé que pertenceria sempre a outros, como Breccan e Colm, mas nunca a si próprio. Somerled, crente de um deus de paz e perdão? Somerled, convertido por um ruivo do Ulster a um caminho de bondade e de luz? A idéia era tão absurda que até Eyvind, o melhor e mais tolerante dos amigos, se riria dela. No entanto, a cruz: o monge fechou-a na palma da mão e fechou os olhos numa oração. Deprofundis clamam adte, Domine... Sempre, como antes, apenas as palavras, um eco de Breccan e de Colm, os movimentos como padrão para os seus dias, para que pudesse continuar a viver aquela vida de clausura, aquela imitação grotesca de existência... No entanto, naquele momento, não era o eco, eram palavras sentidas, intensas, majestosas, diretas ao coração, porque aquela voz terrível falava-lhe de sacrifício e redenção, de uma vida infinitamente mais valiosa do que a sua, falava de salvação, não apenas de duas tribos desafortunadas de um grupo de ilhas isoladas, mas da espécie humana, para sempre. Aquela voz murmurava-lhe ao ouvido como o rolar de um trovão distante, falando de pais e filhos. Aquela voz fazia-o chorar e tremer. Fazia-o desejar profundamente o estado de graça.
Niall continuou a navegar firmemente e as ilhas a sul aproximaram-se cada vez mais enquanto o Sol lhe passava por cima da cabeça. As gaivotas gritavam; a água abria-se por baixo do casco da embarcação. A sua mão esquerda tocava na madeira quente da cruz e a direita segurava no leme enquanto o vento o empurrava na direção do seu destino. O momento das trevas, o momento em que tudo se decidiria, seria o momento do acordar; o desaparecimento da visão humana seria o da madrugada da alma, comprada com amor e sacrifício. A voz cantava-lhe no espírito, ao mesmo tempo aterrorizadora e consoladora. Esperara por aquilo toda a sua vida.
Creidhe começou a emergir da inconsciência. Primeiro, foram os sons: o estalar de uma vela, passos no tombadilho, a voz de Sam, curta, tensa. Depois, o movimento: uma ondulação, para baixo e para cima, familiar desde a viagem indescritível a bordo do Sea Dove. Era como se tivesse uma faca encostada às têmporas. Estava deitada sobre algo fofo, uma capa, estendida sobre uma superfície agreste, desconfortável: as pranchas do convés de um barco, provavelmente. Doía-lhe o braço. Tinha algo a ligá-lo, com força e de modo artesanal. À medida que a visão regressava através do nevoeiro que lhe envolvia os olhos, também regressava a memória, dolorosa como um pontapé na barriga. Guardião... Pequenino... Creidhe sentou-se abruptamente e quase vomitou de dor. A jovem tentou falar, mas não conseguiu. O pequeno barco, não o Sea Dove, mas uma minúscula e frágil embarcação de madeira e pele, era sacudida com uma violência que ultrapassava a tempestade que tinham sofrido durante a viagem das Ilhas Brilhantes. A espuma estava por toda a parte, fina e torrencial; enquanto tentava respirar, passou-lhes por cima uma vaga e ela ficou numa poça fria e com as roupas completamente ensopadas. Foi então que viu Thorvald com um balde, ou outra coisa semelhante na mão, as feições tensas enquanto se dobrava para baldear a água que inundava aquela amostra de barco. O vento fustigava-lhe os cabelos ruivos e as roupas com dedos gananciosos. Havia vozes nele, gritando, vozes iradas: Pensas que podes atravessar a Corrente dos Loucos, tu, um simples homem e ainda por cima um recém-chegado? Louco! Por trás dele, via Sam a lutar com a vela, perfeitamente equilibrado, como um verdadeiro marinheiro, lendo a ondulação como se fosse uma extensão do próprio corpo. Creidhe fez um esforço para se pôr de joelhos; obrigou a cabeça a virar-se numa direção e noutra apesar da dor, obrigou os seus olhos a procurarem da proa à popa, em todos os cantos do barco, recusando-se a acreditar no que sabia ser verdade: Thorvald não era capaz daquilo, os antepassados não permitiriam... A jovem viu apenas os dois homens, o mar tormentoso à sua volta e, por trás deles, a Ilha das Nuvens, desvanecendo-se já na bruma da memória, como se não tivesse passado tudo de um sonho, uma fantasia de rapariga tola, como se fosse possível ela poder alterar o padrão de algo tão antigo, tão grandioso e tão terrível; mas que podia, de certo modo, se fosse suficientemente corajosa, se amasse verdadeiramente. Dos seus lábios saiu um grito de pura angústia. Aquele lamento primitivo, de arrancar o coração, imobilizou Thorvald com o balde na mão e obrigou Sam a fazer uma pausa, o rosto branco como a cal, enquanto lutava para evitar que o pequeno barco os atirasse ao mar.
O grito terrível transformou-se numa torrente de palavras. Creidhe conseguia ouvir a sua tagarelice selvagem, sentia-se a si própria agarrando as roupas de Thorvald e gritando a sua furiosa dor enquanto olhava para ele, mostrando o jovem, pela sua expressão desorientada, que não compreendia o que ela lhe estava a tentar dizer. Mas, agora que começara, parecia que nada a faria parar.
— Onde está ele? Onde estão eles? Que lhes fizeste? Mataste-o, mataste-o, não mataste? Destruíste-o para teu benefício, para alimentares o teu orgulho... como pudeste, Thorvald? Deixaste Pequenino entregue a si próprio. Eu prometi olhar por ele, prometi, ele é tão pequenino, ele não pode...
Thorvald esbofeteou-a. Foi um golpe calculado, pouco doloroso, apenas o suficiente para a fazer parar. Ela olhou para ele, chocada. Naquele momento, ele parecia um estranho.
— Onde está ele, Thorvald? — murmurou ela com os dedos ainda enclavinhados na túnica dele. — Que lhe fizeste? Responde-me!
Ele ouvira-a, tinha a certeza; ele compreendera aquelas palavras por cima do rugido do vento e da música irada da Corrente dos Loucos.
— Creidhe — disse ele cuidadosamente — tu acabas de passar tempos terríveis, vê-se perfeitamente e falaremos deles quando Sam nos conseguir levar até ao Fiorde do Conselho. Estas águas são perigosas; tens de ficar muito quieta e deixar-nos governar o barco...
— Diz-me! Diz-me o que fizeste! Onde está ele? Onde está...?
— Pára, Creidhe. Tu estás salva, está tudo bem. Nós estamos aqui, vamos tomar conta de ti. Foi um choque, eu sei. Para nós também foi. Pensamos que estavas morta...
— Thorvald! — disse Creidhe com os dentes cerrados. — Onde está a criança? — E naquele preciso momento ela viu as pequenas orelhas, pontiagudas como as de um pequeno cão, a única parte visível do vidente no meio das cordas da embarcação, por trás do seu pequeno saco e de duas outras trouxas. Pequenino estava ali; eles tinham-no trazido. Tinham-no trazido e iam entregá-lo a Asgrim e, se o tinham trazido, queria dizer que Guardião estava morto.
— Creidhe? — A voz de Thorvald suavizara-se um pouco. — Prometo-te que daqui para a frente será tudo diferente. Acabou tudo. Estás sã e salva. — Era o tom de voz de um homem a tentar tranqüilizar uma mulher assustada, dizendo-lhe que estava tudo bem, acreditando que era o suficiente; acreditando que ela não podia compreender o verdadeiro significado das coisas e que, portanto, não valia a pena tentar explicar-lhe. Ela também achou que ele travava uma batalha com a sua própria ira, com o seu próprio tumulto de sentimentos. Mas não lhe apetecia ser simpática. Não naquele momento.
— Creidhe? — perguntou Thorvald calmamente. — Compreendeste o que eu disse? — Tinha de fazer a pergunta seguinte, se bem que já soubesse a resposta; estava ali, no frio que sentia no corpo e no aperto que sentia no coração.
— Diz-me — sussurrou ela. — Diz-me, Thorvald. Que fizeste? Que aconteceu ao homem que estava comigo na ilha?
Por vezes, as mentiras são necessárias, mesmo quando um homem é um líder. Para Thorvald, aquele era um desses momentos. Quase não suportava olhar para Creidhe, olhar para aqueles olhos que, certamente, deviam estar aliviados, agradecidos ou pedindo desculpa: — tinham-na salvo, não tinham? A ela e ao vidente? Mas o olhar dela era de fúria, acusatório e trágico. Perante o seu terrível poder, a sua coragem pareceu naufragar e ele tentou encontrar as palavras certas. O jovem não quisera bater-lhe; fora a única maneira de a acalmar. Ela estava histérica; se não a tivesse controlado, talvez tivesse virado o barco como fizera com o d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, afogando-os naquelas águas vorazes. Não estava furioso por causa dela, estava furioso por causa de todos os homens que tinham abusado dela, que a tinham mantido prisioneira, que a tinham transformado numa imitação grotesca dela própria. Batera-lhe, quando, no fundo, tudo o que queria era abraçá-la, oferecer-lhe afeto e consolação. Mas não tinha tempo para aquilo; ainda estavam apenas a meio caminho da salvação e era evidente a luta de Sam a cada instante que passava, lutando por manter a rota através daquelas correntes erráticas e daqueles ventos insanos. Tinha de lhe responder. E só havia uma resposta possível, porque ela fora ferida, abusada e aterrorizada e precisava absolutamente de se sentir segura. Precisava de ter a certeza.
— O homem que te tinha prisioneira? O miserável que raptou o vidente e que começou isto tudo? Matei-o. Era ele ou eu. Sam também teria morrido. Acabou, Creidhe. Acabou e nós vamos levar-te para casa.
Por um momento, ele esperou que ela deixasse de lhe agarrar na camisa e o abraçasse em busca de conforto; que poderia, por breves instantes, abraçá-la, talvez apenas como um irmão, qualquer coisa, fosse o que fosse, para lhe poder mostrar o que a sua língua confusa e os seus olhos eram incapazes de fazer por ele. Mas Creidhe largou-o, levou ambas as mãos ao rosto e caiu num silêncio terrível, um silêncio anunciador de um profundo choque. A jovem parecia estar para além das lágrimas, para além de qualquer consolo, para além de qualquer ajuda. Então, Sam gritou uma ordem e Thorvald agarrou-se ao leme que oscilava loucamente, deixando de ser possível fazer qualquer coisa senão seguir as ordens de Sam enquanto a embarcação prosseguia na sua rota louca através das águas ondulantes. Aquilo era uma batalha, dois homens e uma casca de noz contra a Corrente dos Loucos. As histórias eram verdadeiras; não se podia prever o que viria a seguir, uma rajada caprichosa de vento, um súbito redemoinho, sugando como uma criatura raivosa das profundezas, um turbilhão que os puxava na direção das rochas. Sam parecia furioso; o seu sobrolho estava carregado e a boca, geralmente afável, era uma linha fina de cólera. Quando Thorvald olhou novamente para Creidhe, um pouco mais tarde, viu que o pequeno e estranho animal saíra sem ser visto do seu esconderijo e que se abrigara nos seus braços, estendendo o pescoço de vez em quando para lhe lamber o rosto pálido, onde a bofetada de Thorvald deixara uma marca rosada e púrpura. Os olhos da jovem fixavam a íngreme Ilha das Nuvens. Naquele momento, Thorvald pensou ver nela um ser de uma história antiga: tão remota como uma deusa.
O mar castigou-os até à Ilha do Dragão e ao Arco do Troll; quase até à boca do Fiorde do Conselho. O rosto de Sam estava cinzento de exaustão e Thorvald obedecia às suas ordens quase inconscientemente. Creidhe seguia sentada no tombadilho com o pequeno animal nos braços. As suas roupas estavam encharcadas e os cabelos, saturados de água, caíam-lhe pelos ombros curvados. Era como se, subitamente, tivesse ficado cega e surda, como se não se apercebesse do perigo que corriam ou do horror que enfrentara na ilha. A jovem não parecia compreender que tinha sido salva. Thorvald pensou se a experiência não lhe teria perturbado a mente; até ali não dissera nada que fizesse sentido. Mas não podia ser. Assim que passassem o Arco do Troll o mar ficaria mais calmo; aquelas correntes não podiam continuar a segui-los até ao fiorde, onde as falésias altas ofereciam proteção, salvo dos ventos cruéis de oeste. Estavam quase lá e tinham Máscara-de-Raposa. O jovem permitiu a si próprio, prudentemente, pensar no futuro imediato: em Einar, em Skapti e nos outros quando soubessem que tinham vencido, que um futuro de paz já não era um sonho impossível. Seria agradável. Seria agradável apertar-lhes as mãos e ver o calor a regressar aos seus rostos severos, ouvir a alegria nas suas vozes cansadas. Ficaria muito contente; o futuro encarregar-se-ia do resto.
— O pior já passou — observou Sam, mais ou menos no seu tom normal enquanto se dirigia para o leme. — Assim que chegarmos à Ilha do Dragão, fica a faltar apenas um trecho difícil, mas podemos contorná-lo, a norte. Parece que, afinal, não vamos dormir com os peixes esta noite. Espero que Knut tenha tomado conta do meu barco.
Quando lhe cedeu o lugar, dirigindo-se para a proa, Thorvald pestanejou, espantado e ouviu, por cima do rugido incessante do mar, o grito de sobressalto de Sam. O pequeno barco seguia firmemente na direção do abrigo do Fiorde. A estibordo avistava-se a silhueta íngreme e denteada da Ilha do Dragão; depois a forma atarracada do Arco do Troll e por trás deste último as encostas rochosas da Ilha das Tempestades, sólidas e escuras. Mas o jovem não estava a olhar para aquilo, porque, a bordo, acontecia algo prodigioso: nos braços de Creidhe, que continuava silenciosamente sentada, não estava nenhum cão, nenhum gato nem qualquer animal terrestre, estava uma criança toda esfarrapada de membros esqueléticos e com uma cabeça cheia de cabelos emaranhados. O coração de Thorvald parecia um tambor. Uma transformação daquelas não podia ser real, mas estava a acontecer, indubitavelmente, diante dos seus olhos. O jovem sentiu uma alegria imensa. O seu instinto acertara: tinham resgatado o vidente e a missão fora cumprida.
— Pelo martelo de Thor! — exclamou Sam, incrédulo.
— Conseguimos — disse Thorvald em voz rouca. — Resgatamos Máscara-de-Raposa.
Num instante, a luz do Sol transforma-se em sombras, a luz em escuridão: basta um piscar de olhos, se os antepassados assim o quiserem. Estavam a passar o estreito entre os dois ilhéus, o do Troll e o do Dragão. Thorvald viu a criança a estender os braços esqueléticos para abraçar Creidhe, apertando com força. O jovem viu os dedos de Creidhe a afagarem-lhe os caracóis emaranhados, movendo-se com uma grande suavidade; viu o vidente pressionar o seu pálido rosto triangular contra a face de Creidhe, não exatamente um beijo, antes um gesto de afeto, de respeito... de adeus... e depois, rápido como um raio, o Pequenino subiu para a amurada e mergulhou nas águas turbulentas que rodeavam a Corrente dos Loucos. Gelados de pavor, os três jovens ficaram a ver os braços magros a movimentarem-se, pálidos como varas de salgueiro, nas águas agitadas; enquanto a corrente o levava na direção daquele estreito canal, para o sul. Então, abruptamente, o oceano engoliu-o e Máscara-de-Raposa desapareceu.
Thorvald aspirou desesperadamente, como se, também ele, se estivesse a afogar.
— Muda de rumo! — gritou ele. — Pára, volta para trás!
Sam olhou para ele sem se mexer.
— Não posso — disse ele pesadamente. — O barco não deriva e o vento está de feição. A não ser que queiras esmagar o barco e afogar-nos aos três.
Era verdade: aquele canal só era navegável em dias muito calmos e a remos. Além disso, o vento já os levara até ao Arco do Troll. Mesmo que conseguissem virar, de que serviria? Não havia sinais da criança. Mesmo supondo que, por milagre, o rapaz sobrevivesse às águas geladas, como o encontrariam? Sam tinha razão. Tentar ir em busca dele seria o sacrifício inútil das suas próprias vidas.
Thorvald sentiu-se invadido por um tumulto de sentimentos: amargura, raiva, angústia, desapontamento e o frio reconhecimento do insucesso. A tremer, o jovem disse:
— Como pôde ele fazer aquilo? — gritou ele para Creidhe. — Como é que o deixaste fazer aquilo? Deste cabo de tudo!
Creidhe olhou para ele com o rosto da cor da cinza e com os olhos muito abertos, muito estranhos. A jovem não disse uma palavra.
— Não compreendes o que isto significa? — A voz de Thorvald saía-lhe áspera e descontrolada e o jovem tentou suavizá-la. — Há homens bons na Ilha das Tempestades, homens que combateram e sofreram durante anos por isto! Aquela criança era a sua última esperança de paz! Dei-lhes a minha palavra de que a traria!
— Chega! — grunhiu Sam. — Cala essa boca e faz qualquer coisa de útil, porque ainda não estamos livres de perigo.
Mas Thorvald não parecia capaz de parar. O silêncio de Creidhe, a sua expressão vazia, de olhos muito abertos, enchia-o de terror, porque lhe parecia a confirmação de uma verdade que quase esquecera: errara mais uma vez, a missão era um fracasso e o povo dos Facas Longas ficava, mais uma vez, condenado a lutar contra a miséria e a infelicidade, ao mesmo tempo que a sua amiga se transformava numa concha vazia diante dos seus olhos. A culpa era sua. Falhara redondamente. O jovem acocorou-se junto de Creidhe e agarrou-a pelos ombros.
— O que é que te deu? Não compreendes nada? — disse ele. — O que é que eu vou dizer ao meu pai? Como é que vou dizer aos homens que encontramos o vidente e que o deixamos fugir por entre os dedos?
— Thorvald! — rugiu Sam. — Deixa-a em paz!
Subitamente, as lágrimas começaram a rolar pelas faces de Creidhe.
A jovem não tentou enxugá-las, limitando-se a olhar para Thorvald, muda como antes. Talvez tivesse enlouquecido. Thorvald sentiu um arrepio. Que grande notícia levaria ao pai dela quando regressassem.
— Pelos ossos de Odin — disse ele. — Diz qualquer coisa!
— O que é que tu queres que eu diga? — A voz dela soou débil e longínqua.
Thorvald respirou fundo e largou-a lentamente. A culpa não era dela; não podia acusá-la, nem devia estar zangado. Ele é que era o líder. A responsabilidade era toda sua.
— Desculpa — disse ele. — Descontrolei-me. A verdade é que a expedição correu mal e regressamos derrotados para junto do povo do meu pai.
Seguiu-se um momento de silêncio e depois Creidhe começou a rir com um riso terrível, louco, que o fez ranger os dentes. Os olhos doces e sinceros dela estavam cheios de amargura.
— O povo do teu pai — disse Creidhe numa voz confusa, hesitante. — Essa tem piada. Armas-te em condutor de homens em nome do povo do teu pai; invades a ilha, trinta guerreiros contra um; matas um homem que só agiu por amor; raptas uma criança inocente e tentas sujeitá-la a um futuro de sofrimento indescritível! Foi o teu pai que te pediu para fazeres isto tudo, Thorvald? É verdade?
O jovem olhou para ela, tentando tirar sentido das suas palavras.
— Que queres dizer com isso de um futuro de sofrimento indescritível? — perguntou ele. — O vidente veio conosco de livre vontade. Tu viste como ele estava magro e fraco; foi um milagre ele ter sobrevivido na Ilha das Nuvens. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tê-lo-iam protegido. Máscara-de-Raposa é o vidente venerado deles; seria tratado como um rei, como um deus.
O olhar de Creidhe tornou-se frio, de cólera.
— Isso é mesmo teu, Thorvald. Tu sempre correste atrás das coisas sem quereres saber dos pormenores. Não admira que estivesses ansioso por comandar aqueles homens. Não admira que te tenhas convencido de que Asgrim é o teu pai. É evidente que ele nunca se deu ao cuidado de te dizer o que aconteceria a Máscara-de-Raposa quando o entregasses Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Ele não te falou no ritual, pois não?
Houve um momento de silêncio carregado. De maxilar cerrado, Sam conduzia o pequeno barco para norte de um trecho de água cuja superfície eriçada deixava antever algum perigo submarino: um recife submerso, ou restos da traiçoeira Corrente dos Loucos.
— Que ritual? — Thorvald manteve a voz calma e prudente, se bem já sentisse uma premonição nas palavras de Creidhe.
— A mutilação. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz teriam cegado e estropiado Pequenino, para o tornar igual ao velho vidente, aquele cuja morte despoletou tudo isto. — Creidhe fungou e passou uma mão pela face. — Eles acreditam que um vidente não pode dizer as profecias sem passar primeiro pela tortura. Mas não é verdade; eu ouvi-o. Ele pode fazê-lo. Ele... ele podia fazê-lo.
Thorvald engoliu em seco. Quase desejava que Creidhe tivesse mantido aquele comportamento estranho e frio, porque lhe estava a custar cada vez mais vê-la a chorar abertamente. Abruptamente, a jovem voltara a si, a rapariga que era a sua sombra desde a infância, a jovem cuja morte ele não conseguira chorar em voz alta.
— Isso é terrível — disse ele mais gentilmente. — Não, não me disseram nada. Suponho que os homens não sabiam. Deixaste-o ir por causa disso? Não percebes que ele não pode ter sobrevivido nestas águas?
— Deixar? — perguntou Creidhe. — Eu não tenho influência sobre Pequenino. Ele faz o que quer. Eu não esperava que ele fizesse aquilo. Nem depois de ver morrer Guardião. Tu não podes compreender a dor dele.
— Creidhe... — Thorvald hesitou; ela não passava de uma rapariga, no fim de contas. — Teria sido melhor se a criança tivesse sido entregue Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, por mais cruel que possa parecer. Podíamos ter conseguido a paz para o povo dos Facas Longas, para os homens, para as mulheres e para as crianças. Tem havido muitas mortes de crianças ao longo destes anos todos de caçadas, bebês mortos por Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz antes, sequer, de verem o segundo dia de vida. Achas que uma coisa destas deve continuar por causa de um miúdo? O povo de Asgrim sofre há anos. Não sei como lhes hei de dar a notícia. Como enfrentá-los? Como enfrentar o meu pai?
— Thorvald — disse Creidhe, olhando-o fixamente — Asgrim não é o teu pai.
De novo aquele frio. Sentira-o mesmo antes de ela ter dito aquilo.
— Que queres dizer? É claro que é. Foi ele que me disse...
— Ele não é o teu pai. E a cicatriz?
— Cicatriz? — repetiu Thorvald ao mesmo tempo que a vela estalava ao vento e eram afastados da rota. — Que cicatriz?
Creidhe olhou para ele com os olhos azuis muito abertos.
— Quer dizer que não sabias? A tia Margaret não te disse?
— Dizer-me o quê? De que estás a falar?
— Não disse; estou a ver que não. Nunca me passou pela cabeça falar disto. Pensei que soubesses. O meu pai tem uma igual no braço. Eu vi-a.
Thorvald olhou para ela.
— Então... — começou ele.
— E já a vi aqui nas ilhas, mas não foi no braço de Asgrim.
— Mas... — A cabeça de Thorvald começou a andar à roda. O acampamento, os treinos, o trabalho todo com os homens... As expressões de desconfiança de Asgrim, o reconhecimento implícito de paternidade por parte do governador... tudo mentiras, tudo fingimento, mais uma demonstração da sua total inaptidão, a herança que fazia com que tudo aquilo em que tocava se transformasse em pó. Não era verdade. Não podia ser verdade.
— Por Freyr — observou Sam. — Que reviravolta. Mas deve ser um alívio, acho eu, descobrir que o governador não é o teu pai. Pelo menos, eu não gostaria de ter um pai como ele. A pergunta é: se não é ele, então quem é?
— E o mapa? — perguntou Thorvald subitamente, agarrando-se a tudo. — Eu vi o mapa, Asgrim tinha-o na cabana dele, com penas e tintas. Era um mapa desenhado pela mesma mão que escreveu a carta que a minha mãe tinha, tenho a certeza...
A boca de Creidhe abriu-se num sorriso alegre.
— Foi outro homem que fez o mapa, Thorvald. Um homem com uma cicatriz no braço. Esse é que é o teu pai. Ele é que é Somerled, se bem que use um nome diferente, agora. Passou-se muito tempo desde o dia em que ele abandonou as costas de Hrossey. Foi uma viagem desesperada: uma viagem tão desesperada, tão horrível, que lhe embranqueceu os cabelos.
As palavras dela soavam-lhe a verdade. Uma estranha calma apoderou-se de Thorvald, como se uma tempestade violenta tivesse passado e varrido tudo à sua frente, deixando a paisagem nua.
— Um homem de cabelos brancos — disse ele. — O eremita. Queres que eu acredite que Somerled, Somerled, se tornou cristão? Um homem que torturou o próprio irmão até à morte e que impôs um reino de terror e de sangue nas Ilhas Brilhantes?
— Não quero saber se acreditas ou não — disse Creidhe secamente. — O irmão Niall é que é o teu pai. As coisas podem mudar muito em dezoito anos, Thorvald. Um rapaz cresce e transforma-se num homem. Aprende o que é a coragem, a devoção e o sacrifício, ou torna-se egoísta e cego. Uma rapariga fica a saber que estava errada acerca de muitas coisas importantes, tão importantes que, perdê-las, é como se morresse. Talvez um homem possa perceber que o perdão é possível, por maiores que tenham sido os seus erros. Pergunta-lhe.
Thorvald não respondeu. Tinha uma imagem na mente, a imagem de uns olhos escuros a olharem para os seus com uma inteligência penetrante, de uma voz ao mesmo tempo suave e incisiva, de umas feições austeras devido à autodisciplina, por baixo de uma cabeça de cabelos brancos tonsurados. Pensara que o monge era um ancião. O tipo tinha querido falar com ele a sós... não aproveitara a oportunidade... deixara que Asgrim o dominasse, não compreendera... Creidhe tinha razão, convencera-se demasiado cedo de que tinha razão. Ficara cego. Que louco fora.
— Creidhe? — disse Thorvald suavemente.
Ela olhou para ele com uns olhos vermelhos e inchados.
— Desculpa — disse ele, com um esforço, sentindo a amargura no coração. — Lamento muito.
— Pelo que fizeste, — as palavras de Creidhe pareciam gotas de chuva gelada — nunca te poderei perdoar, Thorvald. Nunca.
Não havia mais nada a dizer, se bem que não fosse justo da parte dela, pensou Thorvald, culpá-lo pela morte da criança. Talvez estivesse a falar do malogro da expedição, uma expedição que só provara a sua total incapacidade. Em silêncio, continuaram a navegar por entre os braços de terra na direção da segurança do Fiorde do Conselho.
CAPÍTULO TREZE
— Pelo martelo de Thor! — exclamou Sam. — Uma recepção de boas-vindas! — Não estava nada à espera. Porque, navegando na direção deles, no meio da grande baía, progredindo firmemente contra o vento, vinha a silhueta compacta e agradável do Sea Dove. À medida que a sua pequena embarcação se ia aproximando, o jovem podia ver algumas figuras familiares a bordo: Orm ao leme; o grande Skapti à proa; e, sentado em cima de um fardo, a meio do tombadilho, um homem vestido com o hábito castanho e coçado dos eremitas cristãos, com uma expressão de ansiedade desesperada nas feições rudes.
Vou ter de lhes dizer agora, pensou Thorvald. Tenho de encontrar as palavras certas. Tenho de lhes dizer que não cumpri a minha promessa: que falhei.
Mas quando se aproximara do Sea Dove e Skapti estendeu um gancho para encostar a pequena embarcação ao barco maior, Breccan chamou-os com uma voz tensa, angustiada.
— Thorvald! Tens de me ajudar!
Seguiu-se uma história extraordinária, confusa. Apesar disso, o clérigo, de rosto branco como a cal, contou-a com a voz inegável da verdade. Breccan falou de um homem que se tinha ido embora, navegando para as ilhas do sul para se oferecer como vidente Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz... Um homem que não era vidente, mas que, apesar disso, era tão persuasivo, tinha um tal dom da palavra que, possivelmente, teria sucesso na sua missão bizarra... Um eremita que estava disposto a sacrificar a visão e a mobilidade se, com isso, acabassem os anos de dor e perdas inúteis nas ilhas... Que estava preparado para ser um cego estropiado se isso salvasse o seu filho.
— Sabes — disse Breccan com toda a simplicidade — ele sabia que, mesmo que sobrevivesses à caçada, Thorvald, os teus dias estavam contados. O governador tem medo de ti: este ano, tu serviste os objetivos dele, mas a longo prazo as tuas capacidades, o teu poder, a liderança que exerces sobre os homens dele são uma ameaça demasiado grande para a sua autoridade. Como poderá Asgrim deixar-te viver para além deste Verão?
— Gostava de o ver tentar qualquer coisa — resmungou Skapti. — As coisas mudaram.
— Com isto — Breccan continuou — Niall tenciona acabar com a guerra, permitindo-te, assim, assumires o controle com mais facilidade. Pelo menos, é o que eu penso. Ele tem-se mantido à parte estes anos todos, com medo do que poderia provocar se se opusesse a Asgrim. — O monge do Ulster tentava explicar calmamente, controlar a voz trêmula. — Mas não podia ver a vida do filho em perigo sem intervir. Ele já tinha falado dessa possibilidade, mas eu não lhe dei crédito; é um esquema louco, bárbaro e Niall é um homem de lógica fria, de ações meticulosas e de um autodomínio perfeito. Nunca pensei que ele fosse para a frente com isto. Fez as coisas como deve ser: manteve-me acordado até tarde, para que eu dormisse até depois das Matinas. Quando acordei já ele ia longe e com este vento é capaz de já estar perto da Ilha das Sombras, onde eles celebram o ritual. Precisamos do Sea Dove, Sam, e contigo aos comandos. E precisamos de ti, Thorvald. Niall, a mim, não me ouve, nem a nenhum dos homens do povo dos Facas Longas. Mas ouve, certamente, a voz do filho. Tens de o fazer mudar de idéia. Se ele fizer o que tenciona, perdoa a violência, os rituais primitivos, as práticas pagãs daquelas almas perdidas.
E enquanto Thorvald olhava para ele em silêncio, espantado, Breccan olhou por cima do ombro do jovem e viu quem vinha com eles no pequeno barco de madeira e de pele.
— Creidhe! Por todos os santos!
Thorvald reparou que Skapti não conseguia deixar de olhar para Creidhe e que o grande guerreiro parecia ter os olhos rasos de água. O jovem reparou que Breccan se movia em perfeito equilíbrio no barco, o que não era uma surpresa, compreendeu ele, se se pensasse na longa viagem que o monge fizera desde as costas do Ulster. Thorvald e Sam saltaram para o Sea Dove. Seguiu-se uma breve discussão.
— Creidhe não pode ir conosco — disse Sam sem expressão. — Ela foi ferida, está exausta e, além disso, quando aqueles selvagens a virem, vocês sabem o que eles vão decidir. Ao escolherem o monge, eles arriscam-se, têm de confiar na palavra de um inimigo. Se ficarem com Creidhe, têm outra vez a rapariga de cabelos dourados, os meios de criar, de novo, aquele maldito Máscara-de-Raposa. E nós somos poucos. Ela não pode ir.
— Eu levo-a para terra no barco pequeno, se vocês quiserem — ofereceu-se Orm, olhando para Thorvald. — Mas...
— Eu vou no Sea Dove. — O tom de Creidhe era frio e peremptório. — Tenho de lá ir. Tenho de lá estar quando tudo acabar. — A jovem permanecia no pequeno barco oscilante, agarrando na corda que Skapti deixara cair para os ajudar a subir para o Sea Dove. — Tu estás em dívida comigo, Thorvald — disse ela.
Thorvald abriu a boca para argumentar, mas fechou-a de imediato.
— Tu não podes deixar Creidhe com Asgrim — observou Breccan calmamente. — Seria o mesmo que entregá-la ao inimigo.
— Eu vou convosco. — Creidhe começou a subir, mas Skapti estendeu os braços, agarrou-a por baixo dos braços e, com um puxão, colocou-a no tombadilho do Sea Dove. Orm desceu para o pequeno barco.
Finalmente, Thorvald encontrou a voz.
— É melhor dizer-lhes — disse ele em voz pouco firme enquanto Orm pegava nos remos e se dirigia para a praia onde se viam alguns homens à espera. — Diz-lhes que falhei. Encontramos Máscara-de-Raposa; tivemo-lo durante algum tempo. Mas... — o jovem virou-se para Creidhe. — Mas ele escapou-nos. Diz-lhes que lamento muito. Diz-lhes que lamento mais do que tudo na minha vida.
Orm acenou com a cabeça, fez força nos remos e a pequena embarcação afastou-se na direção da praia. No Sea Dove, Creidhe sentou-se de novo em silêncio e sem expressão. Parecia que lhe faltava qualquer coisa; como se algo lhe tivesse sido arrancado do espírito, deixando um buraco vazio. Skapti tirou a sua espessa capa de feltro, colocou-lhe pelos ombros e ela agarrou-se a ela, tremendo. Sam estava a olhar para a vela com olhos conhecedores e fazendo um gesto para o grande guarda-costas, para que fosse para o leme. O Sea Dove estremeceu, endireitou-se e avançou de novo para oeste. O Sol ainda não atingira o zênite. Talvez ainda fossem a tempo.
— Obrigado, Thorvald — disse o irmão Breccan em voz calma. — Foi uma alegria tão grande para ele descobrir que tinha um filho. Ele tem muito orgulho em ti.
Thorvald mordeu o lábio, receoso de falar e de perder o controle que lhe restava. Apesar dos esforços para o dominar, o seu coração parecia querer desfazer-se em pedaços.
— Eu percebo que deve ser difícil — continuou Breccan, sentando-se junto de Thorvald, longe da azáfama de Sam e de Skapti. — Se não fizermos nada, se deixarmos que Niall faça o que decidiu, pode ser que a paz volte às Ilhas Perdidas. As mortes, as almas roubadas, o terror e o derramamento de sangue podem acabar. Podemos consegui-lo se não fizermos nada. E tu serás um herói para esta gente.
Thorvald olhou para ele.
— Ele não pode fazer uma coisa dessas — murmurou o jovem. — Não se pode sacrificar assim, sem mais nem menos. Uma vitória conseguida assim não compensa.
Os olhos de Creidhe, profundamente azuis, estavam fixos nele, como se conseguissem ler-lhe o espírito, e o jovem sentiu uma tristeza profunda, duradoura, porque não tinha uma resposta. Quem era ele para se meter em assuntos tão grandes e perigosos, padrões antigos de vida, de poder e de fé? Que fizera naquelas ilhas desde que chegara senão aumentar a tristeza? Thorvald fechou os olhos porque não conseguia suportar o olhar de Creidhe, ou de Breccan, ou de todos eles, não fosse ver o reflexo da sua própria miséria.
Até ali, tudo bem. A rápida percepção auditiva de Niall e o dom da palavra tinham sido úteis. A língua era a mesma, se bem que diferente na inflexão e na ênfase, com uma certa aspereza em alguns sons; Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tinham compreendido rapidamente o seu propósito. Se estavam preparados para aceitar a oferta era uma coisa que não sabia. O monge sentia-se cansado; a longa viagem tirara-lhe as forças. Enquanto caminhavam na direção dos edifícios baixos da aldeia, pensou que podia fixar a si próprio alguns objetivos, que tornariam aquilo mais fácil de suportar. Tinha de manter a dignidade. Tinha de saber lidar com o medo e com a dor. Alguns padrões eram sempre úteis. Não gritar, esse era o primeiro objetivo.
Não perder o controle da bexiga nem dos intestinos: isso seria difícil em determinada altura. Não mudar de idéias e pedir misericórdia. Sabia que conseguiria esse, o mais importante. Tinha, simplesmente, de pensar no filho, um homem infinitamente mais merecedor de um futuro do que ele, um homem que não existiria se não fosse ele. A única coisa que conseguira: o seu único legado. Para preservar Thorvald suportaria muito mais. Suportaria tudo o que lhe quisessem fazer.
Puseram-no numa cabana baixa e escura com guardas no exterior. O monge esperou. Depois de muito tempo, apareceu um idoso alto e sentou-se a seu lado, os olhos escuros fixos nos seus, o rosto escarpado cinzento na sombra. Seguiram-se algumas perguntas, não muitas, mas todas difíceis de responder. Se Niall respondesse mal, expulsá-lo-iam e teria sido tudo em vão. Não se podia enganar. Não podia hesitar. Não fora sempre bom em jogos, um subtil utilizador de máscaras, um manipulador habilidoso das crenças e emoções dos outros? Assim, tentou adivinhar, respondeu e pensou ver as feições fortes do ancião descontraírem-se um pouco e os seus olhos profundos, estranhos, suavizarem-se. Terminada a inquisição, o ancião retirou-se. Seguiu-se outro grande período de espera.
O monge ouvia Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz a conferenciar em voz baixa, mas não percebia o que diziam. De vez em quando passavam em frente da entrada da cabana onde ele estava e, uma vez ou duas, espreitaram: rostos magros, cheios de rugas; olhares escuros, intensos; colares de osso; roupas de pele, cheirando a ranço, como se não tivessem sido secas convenientemente. Niall esperou e enquanto esperava murmurou para si próprio o salmo que copiara no seu último ato como homem letrado no mundo dos homens com visão: speravit anima mea in Domino... E após alguns momentos a voz minúscula, poderosa, pareceu falar de novo, um sopro de tranqüilidade, um murmúrio de esperança e o ritmo do seu coração diminuiu um pouco, o seu cérebro desanuviou-se e sua respiração normalizou-se. Fé... Tinha de ter fé para poder ultrapassar aquilo, confiar em Alguém cuja sabedoria ultrapassava a de qualquer mortal, deixar-se ir... finalmente, desistir e aceitar a vontade de Deus... Como conseguiria fazê-lo, ele, que fora sempre dono de si próprio, que desbravara o seu próprio caminho, que fora senhor, não só da sua própria fé, mas também da daqueles que se atravessaram no seu caminho?
— Fé, — murmurou a voz, terrível na sua verdade simples. — Esperança... Amor...
E apesar de Niall pensar que conseguiria aguentar-se, esconder os sinais de fraqueza enquanto eles estivessem a levar a cabo o ritual sombrio, perante aquele terrível murmúrio tremeu como o pequeno ramo de uma árvore sob uma brisa de Primavera. Sentir o coração aberto assim e deixar que a luz o tocasse era a coisa mais difícil que alguma vez fizera. Na sombra da pequena cabana, o irmão Niall ajoelhou-se no chão de terra com a cruz entre as mãos. Os seus lábios moveram-se numa oração.
— Vê, a porta, finalmente, está aberta — sussurrou ele, sentindo as lágrimas quentes rolarem-lhe pelas faces. — Sê bem-vindo...
Não soube quanto tempo se passou. Pela posição do Sol, estava ajoelhado há muito tempo. Doíam-lhe as articulações; Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tiveram de o pôr de pé. Sentia a mente vazia, lavada; as coisas que eles faziam pareciam não ter qualquer ligação com ele. Na verdade, mal compreendia os seus propósitos. Tiraram-lhe as roupas todas; o hábito coçado, as sandálias, a camisa e a roupa que trazia por baixo para se manter quente. Os seus dedos agarraram na cruz quando um deles agarrou no cordel onde estava pendurada. Então, largou-a. Havia um propósito naquilo, se bem que, por um momento, lhe tivesse escapado. E, de súbito, compreendeu e não pôde evitar um arrepio. Era evidente que iam celebrar o ritual naquele momento, imediatamente. Tão depressa; não pensava que fosse tão cedo. Passara o teste. Se conseguiria representar o papel que a si próprio destinara, era uma incógnita. Esperava conseguir, para que a paz pudesse ser duradoura. Que levassem a cruz, porque, agora, a força estava no seu coração e protegê-lo-ia de tudo. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz vestiram-lhe uma túnica, uma peça de lã escura fina, com muitas conchas. Deram-lhe uma malga com um líquido de odor forte a beber. O monge tinha sede; deu uma golada e afastou-a.
— Bebe, bebe — disse o homem mais alto com insistência e com o sobrolho franzido. — A dor é muito grande... bebe, dormir...
Mas Niall não conseguiu beber, porque lhe parecia que devia suportar aquilo em todo o seu terror e grandeza, ou não serviria para nada. Além disso, não queria que os seus sentidos se sentissem entorpecidos pela droga, as pálpebras cerradas num falso repouso, nem sequer por um instante. Queria ficar de olhos abertos para o céu até ao último instante, para a luz, para um mundo que nunca percebera que era belo até ao dia em que vira o seu filho.
Conduziram-no para o exterior, não como um prisioneiro, antes com um respeito que raiava o medo. Havia muita gente em volta do recinto relvado e ele pôde ver que havia uma grande pedra ao centro, uma monumental laje de granito com a erva luxuriante em redor da sua base salpicada aqui e ali de flores, pequenas e de cores vivas. Amarelas, rosas, azuis, vermelhas, cada uma um reflexo suave da alegria da estação. Algumas ovelhas olhavam para ele do campo cercado de muros, um pouco mais longe, uns animais esguios e de pêlo longo, de olhos plácidos e bocas sempre a mastigar.
Os homens conduziram-no até perto da laje e a assistência começou a entoar cânticos. Havia ali mulheres, magras, de olhar selvagem, mulheres tão ferozes como os homens, vestidas com o mesmo tipo de peles e túnicas ou calças de lã rude por baixo. O monge não viu qualquer criança. O ancião esperava junto da laje de pedra. Os seus cabelos eram tão longos e emaranhados como a lã das ovelhas e nos seus olhos, escuros e profundos, podia ver-se um propósito duro como o ferro, mas, também, respeito e compaixão. Junto dele estava um homem atarracado com umas cordas nas mãos.
— Não é preciso vendares-me — disse Niall. A sua própria voz soava-lhe longínqua, como se pertencesse a outro homem, a uma outra vida. — Eu vim de livre vontade.
— Vai ser difícil — disse o homem alto erguendo as sobrancelhas. — Ninguém consegue ficar imóvel depois de lhe tirarem os olhos.
— Nesse caso, segura-me com as tuas mãos. — Niall olhou para o segundo homem, tentando um sorriso tranqüilizador. Não sabia ao certo se conseguiria a expressão; subitamente, sentia-se estranho. O seu coração recusava-se a obedecer às suas ordens para que abrandasse o ritmo; faltava-lhe a respiração.
O homem atarracado acenou com a cabeça.
— Eu seguro-te — grunhiu ele. — E mais alguns. Será rápido.
Niall estendeu-se na laje, de costas. O céu estava extremamente brilhante, mas não fecharia os olhos perante aquele último vislumbre do dia. Tinha um arco azul por cima de si, tão azul como o olhar de Eyvind que tanto o espantara com a sua sinceridade, há muito tempo, em Rogaland. Decidiu outra coisa enquanto o homem atarracado lhe colocava uma mão forte de cada lado da cabeça, imobilizando-o, e sentia as de quatro homens nos braços, nas pernas, como se a dor pudesse fazer com que todo o seu corpo entrasse em convulsão e desviasse a faca. Talvez não usassem uma faca, antes outro instrumento qualquer, uma colher, ou outra coisa parecida, ou até umas unhas afiadas. Não olhara para ver as ferramentas que teriam à mão. Decidiu, fazendo um esforço para normalizar a respiração, que suportaria aquilo da mesma maneira que Eyvind, o seu único amigo, o seu irmão do coração, o homem que gostaria de ter sido se fosse possível poder escolher. Eyvind, energicamente não cristão, era, no entanto, a imagem da fé, da esperança e do amor: um homem exemplar, como criança e como homem. Eyvind ficaria imóvel e silencioso; Eyvind era forte. Que aquele sacerdote, ou fosse o que fosse, utilizasse a faca com a rapidez e a limpeza de Eyvind quando Somerled o vira pela primeira vez, degolando um carneiro num momento de puro e perfeito sacrifício a Thor. Aquele golpe, misericordioso na sua certeza, e aqueles quentes olhos azuis tinham mudado a vida de Somerled para sempre. Que o ato daquele dia marcasse outra mudança: depois de cego, depois de ter os ossos partidos, que o seu espírito se dirigisse para a luz.
— Estás pronto, irmão? — murmurou o homem alto.
Niall não pôde acenar com a cabeça porque a tinha entre duas fortes mãos, como se estivesse entalada num torno. O monge engoliu em seco e, com uma certa dificuldade, conseguiu dizer:
— Estou — murmurou ele.
Uma viagem desesperada: quatro homens, forçando um barco a dar o seu máximo na direção da costa onde, dissera-lhes Breccan, Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tinham o santuário. O homem do Ulster conhecia-o; nos primeiros tempos, ele e os seus irmãos tinham levado a Palavra ao coração daquele domínio pagão. Na verdade, tinham persistido durante algum tempo, até se tornar evidente que aquelas mentes seriam sempre surdas à palavra de Deus. Tinham retirado: a sua missão, naquele lugar isolado, não era converter pagãos, era rezar, encontrar a solidão e a verdade, à semelhança daqueles que procuravam a voz de Deus nos desertos da Terra Santa. Mas Breccan ainda se lembrava do local e indicou-lhes a direção com bastante precisão.
O vento soprava de oeste e a navegação era difícil, mesmo depois de terem ultrapassado o pesadelo da Corrente dos Loucos. Apesar disso, com a destreza de Sam, que era capaz de conseguir coisas incríveis apesar das condições adversas, progrediram razoavelmente. As focas cruzavam a esteira branca do Sea Dove. A pequena embarcação que Niall levara era muito mais lenta, por isso tinham, pelo menos, algumas hipóteses de chegar a tempo. Por outro lado, a rota de Niall era mais curta, a direito para sul a partir da Baía Sangrenta, o dia estava mais claro; o Sol brilhou, pálido, numa grande extensão de céu azul.
Creidhe não conseguia deixar de tremer. Os homens afadigavam-se à sua volta e ela via os seus olhares de esguelha, os seus sobrolhos franzidos, mas pareciam não ter qualquer significado. Já nada fazia sentido. A sua mente girava em círculos: Se eu não tivesse ido para a ilha, se eu não estivesse lá, eles não teriam apanhado Guardião desprevenido. Se não tivesse tentado detê-los, Guardião ainda estaria vivo. Se Guardião não tivesse morrido, não teriam levado Pequenino e Pequenino não teria feito o que fez... A culpa foi minha... e agora morreram os dois. A dor estava no seu espírito, sentia um nó no estômago. Os gritos, a fúria e as lágrimas não a tinham diminuído. A jovem sabia que a transportaria toda a vida consigo; tornara-se parte dela, tal como Guardião e Pequenino. Para sempre... O voto de Guardião murmurado ao seu ouvido: As paredes da minha cabana abrigar-te-ão, a minha lareira aquecer-te-á, caminharei a teu lado até ao fim dos meus dias. Para ele, esses dias tinham chegado depressa.
Ela sabia. Vira-o nas suas visões, nos pontos que se recusava a bordar, nas imagens que não queria rever. No entanto, Pequenino pedira-lhe que completasse o trabalho. Coloca-o no teu bordado, agora, agora!
Se o tivesse feito... talvez se se tivesse atrevido... não, era uma loucura. Se os antepassados queriam que ela perdesse ambos, a sua pequena família, os seus entes queridos, que assim fosse. Nenhuma rapariga, só porque tinha uma agulha e lãs coloridas tinha o poder de contradizer uma sabedoria tão antiga. No entanto, nunca pensara, quando se sentira impelida a seguir Thorvald, quando se sentira atraída pela Ilha das Nuvens no carreiro por cima de Água Brilhante, que acabaria daquele modo, com tanta dor. O seu coração encontrara a felicidade naquele lugar solitário. E Thorvald matara-o; fora Thorvald, o centro do seu mundo desde que se recordava, que lhe destruíra a felicidade. Era o que a sede de poder podia fazer a um homem: podia fazer dele um assassino.
Creidhe mexeu-se, pouco à vontade, sentindo a mordedura do frio através da capa de Skapti. Estava a ser injusta, claro. A dor terrível que a atingira não lhe retirara a capacidade de raciocinar. Se Thorvald não o tivesse matado, Guardião teria acabado com ele, assim como com Sam. Guardião matara inúmeros homens na sua missão de proteger o seu pequeno sobrinho. Teriam sido as órbitas vazias de Thorvald, assim como as de Sam, que ficariam a olhar para ela daquelas saliências rochosas semelhantes a predadores na face norte da falésia, se Thorvald não se tivesse defendido.
A jovem olhou de relance para Thorvald, que tomara o seu lugar ao leme; o jovem estava branco como a cal, os seus olhos semicerrados e ferozes, a boca marcada por rugas de tensão. A jovem compreendia o que ele sentia; não o compreendera sempre? Encontrar finalmente o pai e perdê-lo cruelmente, antes de se encontrarem, antes de poderem falar um com o outro, era terrível. Mas não era mais terrível do que a morte de Guardião e o afogamento de Pequenino e ela não era capaz de olhar para Thorvald sem se sentir inundada de amor e saudade. Já não era uma criança, já sabia o que era o amor; sabia o que significava perder alguém querido. Os seus olhos passaram pela figura do seu velho amigo e não sentiu qualquer simpatia no coração. Se ainda continuava junto dele, se obedecia ao impulso de continuar a seu lado naquela última viagem a caminho do desconhecido, não o fazia por Thorvald, antes pelo seu pai, o monge de cabelos brancos. Naquela terra de gente estranha, Niall fora a voz da sabedoria, da bondade, da moderação. Vira nele algo que se harmonizava com as palavras do seu pai, quando este falava daquela criança solitária que fora seu amigo e inimigo há muitos anos atrás. Que dissera ele? Algo acerca de uma centelha de grandeza, de bondade, de tal modo escondida que poucos a podiam ver. Creidhe achava que a perigosa viagem, os anos de solidão e as dificuldades sentidas naquelas ilhas tinham forjado no espírito de Somerled um novo homem, um homem cuja centelha se transformara numa chama de calor e compaixão, por mais que ele dissesse que não. Era por aquele homem e pelo seu próprio pai que estava ali, olhando para outra ilha a aproximar-se e observando os homens enquanto eles arriavam a vela do Sea Dove e o aproximavam da baía à força de remos. Creidhe não sentia medo, ou apreensão, ou arrependimento. Já não estava zangada, ou magoada. Sentia apenas frio, uma dor no peito e as vozes dos antepassados ao ouvido, aconselhando-a a continuar. Tinha de fazer aquilo; com o tempo, compreenderia porquê.
Os homens saltaram do barco para a água de armas na mão. Até Breccan segurava no seu bastão. Não encontraram qualquer resistência; Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz não tinham uma única sentinela na baía. Havia um caminho que seguia por entre as rochas; no alto da encosta parecia haver cabanas com telhado de turfa e, mais acima, ouvia-se um cântico ritmado, um som poderoso que ressoava profundamente.
— Uma cerimônia — disse Breccan, muito pálido. — Talvez já tenham iniciado o ritual. Vamos, temos de nos apressar.
— Cuidado — avisou Thorvald. — Não podemos aproximar-nos às cegas. Mantenham as armas prontas e olhem à volta. Deixem a conversa para mim. Skapti, vamos precisar de ti.
— Não podes deixar Creidhe sozinha no barco — disse Sam.
— Ela que se esconda — disse Thorvald secamente. — Skapti é o mais forte de todos, não podemos fazer isto sem ele. Vamos precisar todos dele.
— Não gosto nada — resmungou Skapti, olhando para Creidhe com olhos ansiosos antes de saltar, também ele, do barco para a água e de seguir os companheiros até à praia. — Esconde-te, rapariga. Nós não nos demoramos.
Creidhe esperou algum tempo antes de os seguir: pouco antes de desaparecerem de vista, mas o suficiente para que não se virassem e não a mandassem regressar ao Sea Dove. A jovem levantou a saia, mas molhou-a na mesma enquanto caminhava na direção da estreita faixa de areia negra. Havia ali barcos baixos e compridos, gêmeos da embarcação que ela virara na Corrente dos Loucos, matando os seus ocupantes. Creidhe tremeu, inclinando-se para segurar na saia. Talvez estivesse a ser tola. Talvez devesse obedecer a Thorvald, que parecia acreditar que era ele que comandava. Seria ela apenas um estorvo, que mais valia esconder-se onde não pudesse prejudicar nada nem ninguém?
Uma ave marinha, totalmente branca, voou por cima da sua cabeça, gritando queixosamente para o céu vazio. O cântico subiu e desceu, um som hirto que parecia tão velho como as falésias nuas das ilhas, uma coisa para lá da memória humana. Creidhe alisou as roupas molhadas. As cores suaves na bainha os pontos pequenos e cuidadosos de Guardião atingiam-na no coração como uma flecha aguçada. Continua, parecia gritar a ave. Continua, cantavam as vozes no alto da encosta. Creidhe endireitou as costas e ergueu a cabeça. Enquanto Thorvald, Sam, Skapti e Breccan se dirigiam decididamente na direção do local do ritual, Creidhe seguia-os silenciosamente, tão tranqüila e pálida como um espírito. À ave que voava por cima da sua cabeça juntou-se uma segunda e uma terceira, os seus gritos juntaram-se ao cântico e por trás daqueles sons podia ouvir-se um outro, o som infindável do mar. Os passos de Creidhe eram silenciosos; no entanto, num determinado ponto, Sam virou a cabeça para olhar para trás e quase deixou cair a sua faca.
— Creidhe! — disse ele, horrorizado e naquele preciso momento os outros homens atingiram o topo do carreiro.
Creidhe viu Thorvald imobilizar-se, olhando para além dela; a jovem viu Skapti erguer a sua arma, prestes a lançá-la. A mão de Breccan segurou no cajado com força, mas ela sabia que o monge só o usaria para se defender. Um momento mais tarde, o cântico morreu e ouviram-se uns gritos, as vozes ultrajadas d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz num desafio feroz, e a jovem pôde ver Thorvald gesticular para os outros: não, não ataquem, embainhando a espada e erguendo as mãos, vazias, como se pretendesse dizer ao inimigo que viera em paz. A jovem podia ouvir um barulho de vozes zangadas, transformando-se num rugido; era de esperar. Não se interrompia de ânimo leve um ritual solene. Dois d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz aproximaram-se e agarraram em Thorvald pelos braços. Skapti gritou para o seu chefe, exigindo-lhe que o deixasse utilizar a sua arma, ou, pelo menos, os punhos, e o rugido aumentou, o som perigoso de uma multidão frustrada por não ter conseguido atingir o seu propósito. Creidhe começou a correr, tropeçando nas pedras. A jovem atingiu o topo do carreiro e parou a olhar.
Havia uma larga extensão de terreno em frente dos edifícios baixos de pedra da aldeia. A erva crescia, fresca e verde, salpicada de pequenas flores de cores vivas, mas estava a ser pisada por um grande ajuntamento, homens e mulheres, magros, marcados pelas intempéries e de aspecto selvagem, vestidos com roupas rudes por baixo de peles mal curtidas. Alguns tinham ornamentos de osso ao pescoço, seguro por cordões de pele; a maior parte tinha cabelos longos e entrançados, aqui e ali com pequenos ossos, brancos, cor de creme ou amarelos.
Os seus olhos tinham uma única expressão: uma expressão de fúria. Era evidente que os visitantes inesperados tinham interrompido uma cerimônia extremamente solene.
No centro do círculo estava um grupo de homens, cinco ou seis, e entre eles estava outro mais alto, que parecia comandá-los. O ancião estava a olhar para Thorvald com um olhar de fúria. Nas mãos tinha um pequeno instrumento de osso, algo entre uma faca e uma colher. O objeto estava manchado de vermelho. E o coração de Creidhe bateu descompassadamente de horror, se bem que pensasse que nada mais a poderia atingir, ao mesmo tempo que os seus companheiros se agitavam, revelando o que sentiam.
Numa grande laje de pedra estava estendido um homem de costas, vestido com uma leve túnica de lã. O homem parecia descontraído, como se estivesse a dormir; não estava acorrentado, ou atado, se bem que as marcas vermelhas nos braços e pernas sugerissem que fora sujeitado por aqueles homens magros e de olhar feroz que ainda se encontravam a seu lado. A sua cabeça estava rapada à frente, tal como a do irmão Breccan; do lugar onde estava, petrificada, Creidhe podia ver-lhe os cabelos brancos, pálidos como as penas de um cisne e a mancha de sangue que lhe cobria o rosto, manchando-lhe de vermelho as madeixas brancas como a neve. A jovem sentiu-se engasgada com o choque e arquejou violentamente. Então, Thorvald, um homem capaz de se dominar na perfeição, que não se importava com as pessoas e com o mundo, de tal modo estava habituado a mostrar o que sentia, deixou sair um grande grito, afastou os homens que o seguravam como se eles fossem de palha e lançou-se na direção da laje ritual. O jovem movia-se como um raio furioso, como uma ave a caminho do ninho. Naquele momento, nada no mundo o teria detido. Os homens que estavam junto da laje afastaram-se ao verem o seu olhar.
Skapti moveu-se. Com a lança na mão, o guerreiro atravessou o espaço e aproximou-se de Thorvald, uma presença maciça, furiosa. Thorvald estava inclinado sobre a pedra, falando suavemente. Creidhe viu-o levantar a cabeça do homem ferido e colocar-lhe um braço cuidadoso por baixo dos ombros. A expressão do ancião tornara-se alarmantemente tensa e os homens à sua volta puxaram das suas facas como que sob uma ordem silenciosa. Ao lado de Creidhe, Sam também puxou da sua faca. As armas apareceram imediatamente em redor do círculo, armas de osso, de pele, de pedra. Dentro de momentos, aquele ritual transformar-se-ia num caos de sangue e morte. Não podia ser. Aquilo não podia acontecer.
— Parem! — gritou Creidhe e, avançando um passo para que todos a pudessem ver, retirou a grande capa que trazia em redor dos ombros, a capa de Skapti, para revelar os seus longos cabelos louros ao sol da tarde de Verão. — Parem todos imediatamente! Não podem ferir mais esse homem! Ele é um sacerdote cristão e não pode ser um verdadeiro vidente!
O silêncio que se seguiu foi profundo, um silêncio de choque, de descrédito e de surpresa: um silêncio de algo próximo do terror enquanto os homens e mulheres d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz olhavam, de rostos cada vez mais pálidos, de olhos enlouquecidos fixos na silhueta esguia de Creidhe, nas suas roupas encharcadas, na capa rude e nos cabelos que lhe caíam pelos ombros. Até o ancião ficou imóvel. Por trás dele, Thorvald estava encostado à laje de granito, segurando nos braços o monge ferido. Breccan aproximara-se e estava a usar a faca de Thorvald, rasgando pedaços do seu hábito e tentando estancar o sangue do ferimento.
— Morta — sussurrou o ancião, olhando para Creidhe. — Morreu na Corrente dos Loucos. Morta, mas continua a andar.
— Não — disse Creidhe, não encontrando dificuldade em lhe agüentar o olhar porque parecia estar para além de qualquer medo. — Eu estou viva, como vês, em carne e osso, salva pela intervenção dos antepassados e por um ato de grande bondade. Salva para isto. Deixa partir o eremita; já não o podes utilizar, o ritual foi interrompido. Ficou imperfeito e os espíritos não gostam. Fica comigo em vez dele. Eu ofereço-me, se as hostilidades cessarem como resultado disso. Não tenho nada a perder.
— Creidhe! — A jovem ouviu o grito horrorizado de Sam, viu pelo canto do olho dois homens da tribo agarrarem no pescador antes que ele se pudesse aproximar dela. Breccan olhou para ela, enquanto tratava do seu amigo eremita, de olhos chocados.
— Não podes fazer isso, Creidhe — protestou ele. — Se calhar, não sabes o que te vai acontecer...
— Sei, sim — disse ela secamente.
O ancião pousou o instrumento que tinha na mão; este ficou em cima de uma pequena pedra para outros usos que ela não queria adivinhar, uma longa faca serrilhada de metal; um cacete pesado e curto; espetos aguçados de osso. O ancião avançou dois passos na direção dela e olhou-a intensamente nos olhos. Os seus longos dedos ergueram-se para lhe tocar nos cabelos brilhantes, percorrendo-lhe as madeixas sedosas; com a outra mão afagou-lhe o pescoço, onde a pele cor de pérola estava exposta através da abertura da túnica que Guardião lhe fizera. Por trás de si, algures, Sam arquejava de fúria. Skapti avançou um passo com o rosto tempestuoso, mas foi detido pela mão de Thorvald.
Ouviu-se uma outra voz, uma voz cheia de dor, mas que soava, de algum modo, controlada.
— Creidhe... — conseguiu dizer Niall — assim não... Eu... eu...
— Shhh. — Era a voz de Thorvald, a voz que ela sempre desejara ouvir, terna e sincera. Aquele tom de voz não era para ela, era para o seu pai. — Shhh. Vai correr tudo bem. Irmão...? — Thorvald virou-se para Breccan e o homem do Ulster substituiu-o, segurando no homem ferido. Creidhe agüentava o olhar do ancião; a jovem ainda não conseguira ver o que já fora feito, mas, pelo menos, Niall estava vivo e estava consciente. Talvez, entre todos, conseguissem levá-lo e salvá-lo. Talvez a paz fosse possível e Thorvald pudesse fazer algo da sua vida.
— Aceitas a oferta? — perguntou ela calmamente ao homem alto. — Eu sou jovem e saudável. A minha mãe deu à luz cinco filhos. Eu e as minhas irmãs crescemos saudavelmente. Por favor, deixa que estes homens se vão embora. A guerra acabou.
Seguiu-se um período de silêncio: um momento igual ao que acontece quando a maré muda e tudo fica em suspenso. A jovem olhou para Thorvald. Este, olhando para ela, parecia sem qualquer defesa. Se a tribo aceitasse a sua oferta, a paz seria conseguida; ele tinha o pai e o futuro na sua frente, novo e esperançoso, vibrante de possibilidades. Finalmente, o caminho abria-se na sua frente, límpido e a reto.
— Creidhe — começou ele, e parou, como se as suas próprias palavras o chocassem. Orgulho, e confuso, e uma grande e profunda tristeza podiam-se ler no seus olhos. — Creidhe...
— Está tudo bem, Thorvald. — Creidhe ouviu a sua própria voz como se fosse a de um estranho, breve, fria e remota. — A escolha não é tua, é minha.
— Não! — A sua voz era um sussurro áspero e o jovem tinha os punhos cerrados. — Não...
— Vem — disse o ancião, fazendo um gesto da direção da assistência e duas das mulheres aproximaram-se e agarraram Creidhe pelos braços, aparentemente para a levarem. Talvez a fossem meter numa cabana escura, como tinham feito com Sula. Então, de noite, os homens iriam ter com ela. A jovem sentiu o cheiro a ranço dos corpos das mulheres, o toque áspero e duro das suas mãos, a luz nos seus olhos. Para Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, Creidhe era a esperança renascida.
— Não! — O tom de Thorvald mudara; agora, era um tom de comando. — Não! Não a podem levar!
As mulheres pararam, segurando em Creidhe. A jovem olhou para o carreiro que descia na direção da praia, na direção do Sea Dove. Fuga, asilo. Afastou esse pensamento.
— Não podemos? — repetiu o ancião. — Vocês são quatro; nós somos muitos. Não temos medo de morrer por isto. Esperamos por isto durante muitas estações
— Não podeis levá-la. — Thorvald deu um passo em frente, enfrentando o ancião; a sua mão deslocou-se na direção da espada. — Tem de haver outra maneira. Creidhe é... — O jovem ficou sem voz e sentiu as faces corarem violentamente, contrastando de modo estranho com a autoridade dos seus modos. — Ela é minha — disse ele simplesmente. Creidhe olhou para ele. Thorvald era esperto, não havia dúvida; quem, senão ele, se lembraria de utilizar aquele argumento, por mais falso que fosse? O jovem era demasiado esperto.
O homem alto olhou de relance para a laje do ritual onde o homem do Ulster estava sentado junto do seu amigo, limpando-lhe o sangue do rosto branco como a cal.
— Um ou outro — disse ele. — Não podeis levar ambos. Os deuses estão zangados; vocês apareceram aqui, num local a que não pertencem e interromperam o ritual. Ficamos com o homem, se quereis a mulher. A mãe de Máscara-de-Raposa tem de estar pura, intocada, limpa. De que outro modo podemos saber que a criança é filha da tribo? Se a mulher da cor do Sol e da Lua é tua, nesse caso não nos serve. Ficamos com este homem a quem ela chama sacerdote. Ele é corajoso: merecedor. Temos de completar o ritual.
— Nesse caso, lutaremos — disse Thorvald, puxando pela espada — e tu vais descobrir o poder de quatro contra muitos. Prefiro morrer a deixar que ponhas as mãos em cima deles. Skapti?
A seu lado, a boca de Skapti abriu-se num esgar que afastou a assistência; a maneira como segurava na lança mudou e o homem deixou de ser um gigante pesado, desajeitado, para se transformar numa coisa maravilhosa, vivo, tenso, pronto como um predador. Em redor do círculo, Sam lutava contra os que o seguravam, gritando; Breccan segurava o irmão Niall nos braços e não podia ajudá-los, se bem que os seus lábios se movessem numa oração, que talvez fosse mais poderosa do que qualquer arma. Creidhe apercebeu-se rapidamente do que estava para acontecer, como se se tratasse de pequenos pontos no seu bordado, para que a história perdurasse quando já se tivessem todos apagado da memória dos homens: um confronto terrível heróico, não de quatro contra muitos, mas de dois, Thorvald e Skapti, costas com costas, lutando como lobos, como dragões, como verdadeiros heróis; Skapti e Thorvald ensangüentados enquanto os outros olhavam, impotentes; Thorvald a morrer perante os seus próprios olhos, Niall mutilado, a paz conseguida à custa de uma dor imensa. Errado, estava tudo errado: os antepassados tinham-lhe mentido.
— Não! — gritou ela, arrancando-se das mãos ossudas que a seguravam. — Não! Não está certo, não pode estar certo, tem que haver outra maneira! — A jovem olhou selvaticamente para o céu e do seu peito saiu um grande grito, um lamento de frustração e de dor. Até os deuses deviam ter ouvido aquele apelo. Era um som primitivo de dor. — Ajudai-nos! — gritou ela para o céu por cima da sua cabeça. Então, Creidhe fechou os olhos. O eco vibrante da sua voz subiu no ar; em redor, ficaram todos silenciosos. Parou o som de metal contra metal, as quedas, as palavras, as respirações apressadas. Apenas o sussurro do vento e o murmúrio do mar.
Por fim, a canção. Chegou-lhes aos ouvidos como um doce sussurro de esperança; alojou-se nas mentes de todos como a voz do que estava para vir, clara e prometedora; tocou-lhes nos corações como um bálsamo. A canção flutuou, e percorreu o ar e até as aves se calaram perante o seu encanto. Era uma melodia simples; sem valor, sem arte, mas o seu poder era tanto que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, homens e mulheres, caíram por terra, prostrados como se na presença de um deus. Sam, Thorvald e Skapti ficaram estáticos. E Creidhe abriu os olhos, olhando para o carreiro que se dirigia para sul. Nele encontrava-se uma figura pequena e esfarrapada, de braços e pernas escanzelados; cabelos emaranhados que lhe caíam pelos ombros. Enquanto a jovem olhava, estarrecida, ele abanou-se como um cão e as gotas de água espalharam-se à sua volta como uma chuva prateada. O Pequenino aproximou-se, sozinho e firmemente nos seus sapatos molhados e nas suas roupas de penas encharcadas e com o rosto delicado, pálido e triangular e os olhos como dois faróis, brilhantes, confiantes e verdadeiros. O pequeno continuava a cantar, um cântico suave, maravilhoso, terrível e único. Enquanto ele se aproximava, abrindo caminho por entre a assistência até junto da laje onde se encontrava o ancião numa postura de profundo espanto, a canção de Pequenino mudou, transformando-se numa melodia de alegria que enchia os corações, fazendo chegar as lágrimas aos olhos e transformando as feições do pequeno num sorriso tão feliz que Creidhe sentiu um aperto no coração. A criança deu dois, três passos na direção da laje ritual e inclinou-se para ajudar o ancião alto, que estava de joelhos a levantar-se, como se fosse Pequenino o mais idoso. Então, o homem, chorando, estendeu os braços e Pequenino abraçou-o com tanta ternura que mais parecia estar a abraçar o próprio pai. Os longos dias de exílio tinham terminado. Máscara-de-Raposa regressara a casa.
O coração de Creidhe parecia um tambor, tinha o corpo ensopado em suor. As mulheres tinham-na largado, prostrando-se como os outros. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz ergueram-se e aproximaram-se da criança e do homem que o tinha nos braços. Por alguns momentos, os intrusos foram esquecidos. Creidhe abriu caminho com os cotovelos até junto de Breccan, onde ele continuava a amparar o homem de cabelos brancos. Junto deles, o espaço era pouco; Thorvald mantinha-se numa atitude de ataque, de arma na mão e Skapti andava de um lado para o outro, brandindo a lança para afastar quem se aproximasse. Mas nenhum deles estava, agora, a olhar para eles; os olhares estavam todos postos em Máscara-de-Raposa, os ouvidos atentos à voz que continuava a cantar, enchendo o ar com uma melodia acerca de vidas novas e de caminhos verdadeiros.
Creidhe debruçou-se; era a primeira vez que via com nitidez o homem ferido. O seu rosto parecia o de um fantasma, de tal modo que quase se poderia pensar que estava morto, exceto o seu único olho escuro e penetrante, brilhando, perspicaz e resistente. A sua boca tensa era uma rede de dor. O monge mantinha-se silencioso. E onde estivera o seu olho esquerdo havia um enorme buraco, por onde saía o sangue aos borbotões. As mãos de Breccan tremiam, como se o monge quisesse reter o fluxo. Ligar o ferimento seria inútil sem um pedaço de tecido limpo, água e ervas curativas.
O pai de Creidhe falara-lhe na autodisciplina severa de Somerled. Aquilo, no entanto, ultrapassava tudo o que ela era capaz de imaginar. Niall não conseguia controlar a respiração; no entanto, ainda não gritara, nem uma vez. Creidhe encontrou o seu único olho, brilhante de dor e disse:
— Ele ficaria muito orgulhoso de ti. Ficará, quando nós lhe dissermos. Não só por hoje, mas por tudo. Cumpriste a tua promessa.
A jovem viu os lábios de Niall mexerem-se numa tentativa para reconhecer as suas palavras; o monge não podia acenar com a cabeça, não podia falar, ou gritaria, choraria, ou desmaiaria e, assim, quebrar o que ela suspeitava ser uma regra terrível, auto-imposta. Então, o olhar dele dirigiu-se para Thorvald, de pé com a arma na mão, pronto para defender até à morte o seu pai, os seus camaradas, a companhia tantas vezes desejada na sua infância. Havia tanto amor naquele olhar, que Creidhe sentiu-o no seu próprio coração.
— Temos de o levar para o barco e para fora daqui — disse Breccan. Preciso de ligaduras e de bálsamos, de ervas para as dores. Achas que eles nos deixam ir embora?
Mas Creidhe não lhe respondeu, porque naquele momento o amontoado de gente rodeava o ancião e a criança e a melodia morreu lentamente, em todas as direções, seguida por um profundo silêncio. A jovem viu o ancião pousar a criança no solo, perto do local onde os instrumentos para o ritual estavam prontos. O homem robusto, com braços como troncos de árvores, pegara novamente nas cordas. Pequenino manteve-se muito quieto, de olhar tranqüilo, de mãos descontraídas. Era uma criança. Como poderia compreender?
O ancião virou-se para Thorvald, olhando para a ponta da sua espada, firme.
— Deixai esta ilha — disse o homem alto com gravidade, fazendo um gesto com a mão para envolver Thorvald, Creidhe e os dois monges, assim como a figura indefinida de Skapti por trás deles. — Levai este homem convosco e tratai-lhe do ferimento. Ele é muito forte: merecedor da honra que lhe concedemos. Um verdadeiro sacerdote, de corpo e alma. Tê-lo-íamos venerado. Não podeis fazer menos, porque este homem foi forjado, através de uma vida de treva, transformando-se numa arma de fé. Deveis deixar-vos guiar por ele, porque é um homem sábio. Quanto a nós, este é um dia de alegria, porque o nosso verdadeiro filho regressou, o nosso amado espírito o nosso Máscara-de-Raposa. Recebemo-lo nos nossos corações e somos de novo um só. Falta, apenas, o ritual e, para isso, não podemos ter aqui estranhos. — Os seus olhos desviaram-se na direção dos espetos de osso, da colher e da moca.
— Obrigado. — A voz de Thorvald era a voz de um líder. O jovem embainhou a espada e fez um gesto na direção de Skapti, que baixara ligeiramente a lança; a expressão do grande guerreiro continuava feroz, desafiadora. — Vamo-nos embora imediatamente. O ferimento do meu pai é terrível; ele precisa de cuidados urgentes. — Havia uma nota de censura nas suas palavras.
O ancião olhou para ele, imperturbável.
— Ele é forte — disse ele. — E agora, ide.
Um olhar na outra direção do círculo e Sam foi libertado. Estavam livres. Skapti passou a lança a Sam e começou a levantar Niall nos braços. Thorvald foi o primeiro a avançar pelo carreiro abaixo.
— Creidhe? — disse Sam suavemente. — Acabou. São horas de ir para casa. — E o jovem pôs-lhe uma mão no ombro, como se a quisesse guiar.
— Não! — exclamou Creidhe, afastando-o com alguma violência. — Não! Eu não posso permitir que isto acabe assim, prometi a Guardião... — A jovem atravessou o relvado nas pequenas botas de Sula e pegou na criança. Ouviu um grito rouco vindo da parte da assembléia; Thorvald ficou subitamente imóvel e Skapti parou com o monge ferido nos braços. Os olhos do ancião fixaram-se na criança; era evidente que, a partir dali, a tribo não escolheria outro ser humano senão Máscara-de-Raposa. O pequeno rosto estava tranqüilo e límpido. Os olhos verdes, profundos, cambiantes como o mar, olharam para Creidhe e Pequenino ergueu uma mão para lhe tocar na face.
— Eu sei como funciona o ritual — disse Creidhe, tremendo mas tentando manter a voz firme. — Eu compreendo as suas razões. De modo a poder dizer a verdade, a cantar as canções, Máscara-de-Raposa tem de perder a visão do mundo. Para o guiar no caminho da verdade, o vidente tem de deixar de ver como um homem, viajar pelas estrelas através de visões, de sussurros e recordações. Mas tu não podes inutilizar esta criança. Eu podia dizer-te que ela é muito pequena, frágil e inocente. Podia dizer-te que ao celebrares o ritual para que o vosso vidente possa desempenhar o papel que lhe destinas, és muito capaz de o matar. Mas sei que não ouvirás as minhas palavras. Por isso, vou deixar que o vidente fale por mim. Tu ouviste a canção dele enquanto saía dos braços fortes do mar e vinha para junto de vós mais uma vez, cheio de amor e sabedoria, pronto para se entregar à tua tribo como guia e homem de sabedoria para o resto da sua vida. Ele ama-te: isso vê-se nos seus olhos. Ele já tem a sabedoria e o conhecimento dos antepassados. Máscara-de-Raposa só tem seis anos, mas as suas canções enchem-nos os corações de esperança. Eu ouvi-o na Ilha das Nuvens, onde vivi a seu lado antes de vir para aqui. A voz dele cantou para a Lua enquanto ela atravessa o céu; abriu caminhos que eu nunca pensei serem possíveis. Tu ouviste-o hoje. Quem, entre vós, duvida das notas alegres do seu regresso a casa? Quem pode questionar a sua sabedoria, a sua compreensão muito maior do que a nossa, muito para lá da das estrelas sob as quais nós acendemos as nossas pequenas candeias para afastar a escuridão? Eu digo-te que esta criança já é sábia; aos seis anos, já é um verdadeiro ancião. O seu espírito é brilhante; ele tem, dentro de si, toda a luz dos antepassados.
A jovem sentiu o peso ligeiro da criança nos braços, as cócegas que os seus cabelos emaranhados lhe faziam na face; os seus braços delgados em redor do seu pescoço. Era preciso que a ouvissem, pediu ela; era preciso que compreendessem a verdade, ou não cumpriria a promessa feita a Guardião.
— Não é preciso cegar a criança — continuou ela, fazendo um esforço para manter a voz firme. — Ele já tem, dentro de si, os olhos do espírito totalmente abertos. Não precisais de o estropiar. Não regressou ele para vós através do mar desde a Ilha das Nuvens? Máscara-de-Raposa regressou a casa; regressou a casa porque quis. Ele não vos abandonará de novo, servir-vos-á fielmente e durante muitos anos. Peço-vos, pensai nisto, e não magoeis aquele que vos ama acima de tudo.
Seguiu-se um pequeno silêncio e depois alguns murmúrios e resmungos entre a assistência. O homem com as cordas não se movera. Talvez não estivesse consciente dos olhos de Sam fixos nele com um brilho perigoso. O pescador estava perto dele; entre os dois homens a distância era curta, suficiente para o jovem poder atirar a lança com segurança. O ancião franzia o sobrolho e coçava o queixo.
— Creidhe! — disse Thorvald. — Temos de ir, o meu pai está ferido, tenho de o ajudar.
Ela virou-se um pouco e olhou para ele sem expressão, com os braços em redor da pequena figura da criança.
— Nesse caso, vai-te embora — disse ela secamente.
— Não sejas estúpida — começou a dizer Thorvald, mas calou-se quando o ancião começou a falar. O ancião não estava a olhar para Creidhe, ou para Pequenino, ou para Thorvald, como líder daquele bando de intrusos. Em vez disso, estava fixo no homem que jazia, sangrando, nos braços de Skapti.
— Que dizes? — perguntou ele e havia um profundo respeito na sua voz. — Ela não passa de uma rapariga, não podemos guiar-nos pelas suas palavras. Mas o vidente confia nela, agarra-se a ela como a um amigo do coração. A nossa tradição exige que Máscara-de-Raposa cumpra o ritual. No entanto, o que ela diz é verdade. Que devemos fazer?
E Niall, chamando a si todas as suas forças, respondeu-lhe com um suspiro esganiçado.
— Em que outra voz vais tu confiar se não na da criança? Que outro caminho vais seguir senão o dele? Ele fala pela voz de Deus. Creidhe está a dizer a verdade; não sabe falar de outra maneira. Se a sua voz não te chega, pergunta ao vidente.
O ancião inclinou solenemente a cabeça. Todos os olhares se viraram para a criança nos braços de Creidhe. A jovem sentiu a pequena mão dele na sua face, os seus dedos frios, o seu toque suave. O pequeno estava a dizer-lhe adeus.
— Espero que tenhas razão, Pequenino — murmurou ela. — Desde que fiques são e salvo... ele ficaria feliz por isso, acho eu... — Por um momento, ela sentiu o abraço da criança e também o abraçou; o Pequenino só tinha seis anos de idade, apesar de toda a sua sabedoria, e toda a sua vida seria de sacrifício e resignação. O seu fardo não seria leve. Então, ele afastou-se e a jovem viu o seu pequeno sorriso, estranho e tranqüilo e o seu olhar da cor do mar. A jovem pousou-o no chão; as suas mãos tocaram-lhe nos braços frágeis uma última vez e depois largou-o.
O Pequenino cantou outra canção. A sua melodia suave flutuou e todos se quedaram imóveis. As suas notas delicadas rodearam a pedra antiga e, a um gesto do ancião, os homens d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz pegaram nos instrumentos, colocaram-nos num saco e fizeram-nos desaparecer. As suas frases cadenciadas seguiram o pequeno grupo de intrusos enquanto eles se afastavam para sul e os homens e mulheres d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz se afastavam para os deixar passar. A canção subiu de tom para encher o ar com a sua vivacidade, com a sua doce, forte, mensagem de amor, de lealdade, de aceitação, vibrando na madeira do Sea Dove quando os homens o empurraram para a água, soando nas suas velas como um vento de verdade enquanto rumavam ao Fiorde do Conselho.
Skapti e Thorvald é que governavam o barco; Sam estava ocupado a mexer nas suas provisões, procurando panos para fazer ligaduras, água fresca e os meios para fazer uma tala, porque era evidente que a perda de um olho não era o único ferimento de Niall. A sua perna direita estava inutilizada, os ossos da perna tinham sido esmagados por um único golpe da moca. Sam encontrou um tônico forte num pequeno frasco de metal, tapado por um pedaço de osso envolto em pele e, desta vez, Niall bebeu sem protestar, engolindo a bebida que o pescador lhe oferecia com dois goles custosos. A sua respiração estava mais difícil; Creidhe só desejava que ele gritasse, porque o silêncio devia custar-lhe muito. Quando a bebida fez efeito e a pestana começou a pesar no único olho do monge, Sam e Breccan colocaram-lhe a tala na perna, com os dedos habilidosos de Creidhe a atarem os nós dos pedaços de tecido em redor da madeira de pinho que tinha sobrado dos trabalhos no Sea Dove. Os ossos de um homem não se consertavam com facilidade. Talvez o membro solidificasse como devia ser; com sorte, voltaria a andar, se bem que não como antes. Niall permaneceu consciente. Creidhe ouviu o assobio da sua respiração e sentiu os tremores que lhe percorriam o corpo. Tanta dor... Até o seu pai, certamente, teria gritado sob aquela agonia. No entanto, ao olhar para cima, a jovem viu uma espécie de paz nas feições brancas do monge, uma aceitação nas profundezas sombrias do seu único olho escuro que falava de uma alegria que transcendia qualquer dor. Fosse o que fosse que tinha encontrado naquele dia, parecia um escudo duro e resistente.
Quando acabou, Sam virou a sua atenção de novo para o barco e Breccan permaneceu junto do ferido com Creidhe no lado oposto.
— Descansa — disse o homem do Ulster em voz baixa. — A viagem está quase a acabar.
Niall emitiu um pequeno som que significava um agradecimento ou um reconhecimento.
O olhar de Breccan estava pensativo e o seu rosto agradável muito sério.
— A palavra de Deus — disse ele abstratamente — Tu disseste que ele fala pela voz de Deus. Como pode ser? Esta gente é pagã, descrente. Os seus ritos são selvagens e cruéis. Partirem as pernas à criança, tirarem-lhe os olhos... isto é uma coisa do diabo, não a palavra do nosso pai. No entanto... no entanto, a própria criança... A mensagem dele, tão poderosa, tão boa... Ele alterou a minha percepção, fazendo-me ver na escuridão? Não compreendo...
— Irmão... — O murmúrio da voz de Niall perdera alguma clareza; a bebida forte fazia-o tropeçar nas palavras, mas eles ouviram-no. — Muito que aprender... tu e eu... toda a vida...
Breccan olhou para Thorvald, que ia agora ao leme, com as feições concentradas, enquanto o Sea Dove cavalgava as ondas na direção do mundo dos homens.
— Tu vais começar uma vida diferente, meu amigo — disse ele suavemente. — Creio que os tempos mudaram para ti. O teu filho tem uma grande tarefa pela frente nestas ilhas. Ele vai precisar de ti. — Mas havia uma pergunta no seu tom de voz.
— Achas? — perguntou Somerled, sorrindo.
Era noite, mas o Verão apenas via o Sol esconder-se ligeiramente por trás do fim do mundo, deixando uma luz fria e estranha nas encostas redondas, no lago tranqüilo, nas paredes de pedra da cabana, do celeiro e da robusta casa grande. Perto da costa ocidental de Hrossey, a luz filtrava-se através das fendas da porta e das portadas das janelas, acrescentando a sua frialdade ao brilho vacilante da pequena candeia de Margaret.
A dama estava na sala do tear, a malga de óleo de foca com o seu pavio junto de si, numa prateleira de pedra e olhava, à luz difusa, para a peça meio acabada que tinha estendida no tear. Era muito simples, sem cores, apenas os tons naturais da lã, branco e creme e o sombrio, rico e escuro do seu rebanho especial de ovelhas de pêlo negro.
O desenho tinha apenas simples listas nas pontas e um ponto uniforme, forte; Margaret era habilidosa e aquela peça teria muito valor. Mas nunca teceria como Creidhe, com verdadeira magia nos dedos, com uma delicadeza no coração quando decidia as cores e tons brilhantes, as complicadas barras, os desenhos vivos e arrojados. Era preciso ter mais do que simples habilidade para fazer o que Creidhe fazia; era preciso amor.
Margaret pegou na pequena lâmpada e foi descalça à grande sala onde tudo estava perfeitamente arrumado, a mesa limpa, a lareira pronta, os potes e as panelas lavados e alinhados. No quarto minúsculo a seguir, dormiam as suas criadas, cansadas dos dias de trabalho na casa ou nos campos. A pequena criada que trouxera consigo na grande viagem de Rogaland era agora uma matrona, casada com um homem das ilhas, mãe de cinco filhos e com uma herdade própria para tratar.
Margaret estremeceu. As recordações daqueles dias aproximavam-se naquelas noites, entrando-lhe no vestido e impedindo-a de dormir. Tantas mudanças, tantas oportunidades e quase todas elas desperdiçadas. Tudo o que conseguira salvar dos tempos sombrios fora o seu filho e, agora, parecia que também ele se tinha perdido. Estava-se no pino do Verão; a cevada crescia, luxuriante, as ovelhas estavam gordas e até o vento tinha perdido a sua mordedura feroz. Mas Thorvald não regressara; o lugar de Creidhe em frente do tear continuava vazio. Não havia alegria na casa. Na estação mais alegre do ano, a sua casa era um lugar sombrio. Os seus pés descalços sussurraram no chão de pedra, dirigindo-se para onde umas pesadas portadas cobriam a única e estreita janela da grande sala. Os seus dedos abriram o fecho; a dama abriu-as com um rangido e olhou para o exterior.
Não se viam quaisquer estrelas; a claridade da longa noite de Verão escondia-as. A paisagem parecia um lugar de sonho, coisas normais transformadas por aquela semiescuridão. As formas compactas das ovelhas eram como que pequenos outeiros prateados emergindo da erva; as pedras dos telhados moviam-se sob a ação do vento ligeiro, como se tivessem vida própria. Uma capa, pendurada para secar, abria as asas como um animal pronto para levantar vôo na direção da Lua invisível. O ar chegou-lhe às narinas puro e frio.
Margaret suspirou. Aquilo não era nada bom. Como era possível continuar naquele estado? Parecia um ribeiro interrompido no seu curso, enchendo, enchendo sempre, mas sem nunca conseguir ultrapassar a barreira por os desgostos lhe pesarem tanto. Não estava certo. Numa noite daquelas, com o mundo lá fora, grandioso, maravilhoso, como podia ficar ali como uma mulher encarquilhada, fechada de tal maneira que a única coisa que conseguia sentir era o desgosto? Oh, ter de novo dezessete anos e ter a hipótese de tentar outra vez, recomeçar de novo. Margaret fechou as portadas. Que loucura, desejar tal coisa. Não havia segundas hipóteses. Se houvesse, quem poderia garantir que não voltaria a cometer o mesmo erro? Só havia uma vida e essa vida seria o que os deuses quisessem. A dama imaginou-a: dez anos, vinte, se tivesse sorte. Meia-idade, terceira idade, passadas em obediência aos seus próprios princípios de restrição, controle, ordem, disciplina... sempre só, se Thorvald não regressasse, só, sem pai nem mãe, irmã ou irmão, marido ou filhos à sua volta... Que tinha ela? As suas capacidades, certamente, se bem que não fossem grande coisa depois de ver o que a sua aluna era capaz de fazer com o tear. No entanto, fora ela que ensinara a Creidhe e outras raparigas, que agora desenvolviam a sua atividade em diversas partes das ilhas. Sentia uma certa satisfação por causa disso. A sua casa, a sua herdade... ambas eram bem dirigidas, ordenadamente e eram prósperas; mas o crédito pertencia a outro, pensou ela. A sua mente pensou em Ash com alguma relutância, sentindo que os seus pensamentos estavam a ficar demasiado perigosos. Tinha amigos, amigos velhos e verdadeiros. Mas Nessa estava à espera de bebê e a sua pequena família parecia ter-se fechado sobre si própria naqueles tempos de risco e preocupações. Sem Creidhe, Margaret sentia-se afastada daquele círculo de amor e proteção, limitada às suas ofertas para os ajudar com o gado, ou a alguns presentes de lã, ou queijo. Participava nos conselhos, por vezes, como viúva de um antigo chefe de guerra da ilha e como proprietária de terras, mas aquelas coisas significavam cada vez menos. Talvez, com trinta e seis anos, estivesse a ficar velha.
Domínio, disse ela para si própria, pegando na lâmpada e regressando ao seu quarto. A dama fez um esforço para normalizar a respiração; conseguiu reter as lágrimas que lhe ardiam nos olhos. A autopiedade não era uma coisa produtiva; não resolvia nada. Se a lógica, a razão e a força de vontade não lhe mostravam o caminho, tinha, muito simplesmente, de aceitar que o destino a transformara numa solteirona seca, envolta nas sombras do passado. Era um castigo: um castigo dos deuses pelo que tinha feito. No entanto, naquela noite, algo se agitava nela, uma pequena voz, uma canção murmurada, terrível, mas maravilhosa, dizendo-lhe que não era verdade... ainda estava viva, lá muito no fundo... tinha, simplesmente, de respirar, de abrir os olhos e de mudar... seria fácil...
Assim, quando os seus passos passaram por uma determinada porta coberta apenas por uma cortina de lã, Margaret fez uma pausa e ficou silenciosa. No interior do quarto, o homem que até ali estivera acordado, escutando-lhe todos os passos, todos os movimentos de dúvida, viu a luz da sua pequena lâmpada através do tecido e disse, muito suavemente:
— Estás bem? — perguntou Ash.
Margaret engoliu em seco e sentiu o coração a acelerar. Não sabia o que dizer; talvez uma simples afirmativa e depois uma fuga na direção do santuário que era o seu quarto. No entanto, a voz dele parecia-lhe abrir-lhe algo no fundo da alma, tocando em todos os cantos de onde, até ali, todas as sensações tinham estado ausentes.
— Estou gelada — murmurou ela, batendo os dentes como se as palavras fossem verdadeiras. A lâmpada agitou-se na sua mão; o óleo caiu nas lajes de pedra. Um momento mais tarde, ele estava à entrada junto dela, estendendo uma mão para a lâmpada e com uma peça de roupa, uma camisa, talvez, para tapar a nudez. Ele sempre fora cuidadoso, sempre observara as regras de conduta entre criado e patroa; nunca o vira assim, despido, em todos aqueles anos que levavam de vida partilhando a mesma casa. Aquelas mesmas regras deviam tê-la obrigado a desviar o olhar, em vez de o fixar. Mas Margaret compreendeu que não conseguia. Gostava do corpo dele: esbelto, compacto, seco, o corpo de um homem que trabalhara duramente e que tivera pouco descanso. O peito dele estava coberto de pêlos cinzento-escuros; os ombros dele eram fortes, os braços musculosos, apesar da compleição esbelta. À luz difusa da lâmpada, os olhos dele encontraram os dela, firmes e simples, se bem que ela não deixasse de ver neles alguma cautela. As palavras escaparam-lhe de novo; não sabia que lhe dizer porque, se lhe perguntasse, e ele dissesse não, como era provável, achava que nunca mais poderiam ser amigos. E ele era o seu único e verdadeiro amigo, o seu melhor companheiro; ao longo daqueles anos todos tão solitários, provara-o vezes sem conta, se bem que ela o tivesse recompensado pela sua lealdade.
— Já o disse antes — o tom de Ash era suave — mas creio que tenho de arranjar coragem para dizer de novo. Servir-te-ei até ao meu último suspiro: com o meu trabalho, as minhas mãos, com toda a vida que tenho dentro de mim. — A voz dele transformou-se num sussurro, tal como a dela. — E com o meu corpo, se quiseres. Para te aquecer, se preferires. Se houve uma coisa que aprendi alguma coisa nesta casa foi a exercitar o meu autodomínio.
Era um homem corajoso, pensou Margaret, sentindo, contrariada, as lágrimas, finalmente, a rolarem-lhe pelas faces
— Eu preferia... Eu... — A voz dela tremia; por todos os deuses, tinha de ser assim? Mal baixava a guarda todas as defesas caíam? Era como se tivesse de novo dezessete anos, tremendo em frente do primeiro namorado.
Ash pousou a lâmpada e estendeu a mão para lhe afagar o rosto; as lágrimas dela caíram-lhe por entre os dedos.
— Diz — disse ele.
Margaret respirou fundo. A dama estendeu um braço e a camisa que Ash tinha diante de si caiu no chão frio de pedra. As mãos dela moveram-se de novo e ele, por sua vez, respirou fundo, desta vez bruscamente.
— Preferia mostrar-te, talvez — disse ela docemente, aproximando-se de modo que o seu corpo se encostasse ao dele, sentindo o seu calor, a sua força. Subitamente, deixou de ter medo, deixou de se sentir insegura. — Mas uma senhora não faz as coisas assim; pelo menos, foi o que me ensinaram em rapariga. A não ser que o homem seja o seu marido.
Ash não disse nada; os lábios dele beijaram-lhe os cabelos e as mãos percorreram-lhe as costas, pressionando-a contra si.
— Eu pensei... — disse Margaret, fechando os olhos. As sensações já eram mais fortes do que a disciplina, o controle, a lógica fria. Sentia apenas o coração batendo com força contra o peito, a carícia maravilhosa das mãos dele, o corpo vigoroso dele despertando o seu, como se fosse uma rapariga e ele fosse o seu primeiro e único amor. — Eu pensei... que tu talvez quisesses que... que isto fosse... fosse...
— Mais tarde — sussurrou Ash. — Mais tarde falamos.
— Vem, então — disse Margaret, afastando-se, pegando-lhe na mão e conduzindo-o ao longo do escuro corredor na direção do seu quarto. — Vem e sê bem-vindo, querido amigo.
— Confesso que tenho tido pouca prática. — Ela ouviu a voz dele à luz difusa do quarto tranqüilo; reconheceu, pelo tom de voz, que ele não estava a brincar. Ela estendeu um braço a desatar a fita da camisa de noite, mas Ash já lá estava, com dedos ágeis e seguros. O corpo dele estava, de novo, colado ao dela: quente, duro, sem necessidade de palavras.
— Também eu — disse-lhe ela, tirando a camisa pela cabeça. — Passaram-se muitos anos. Por que esperamos tanto? — Subitamente, ela percebeu como fora tola; tantos anos perdidos, anos que podiam ter sido preenchidos com amor, com risos, com alegria partilhada. Teriam tido filhos.
— Shhh — disse Ash, deitando-a a seu lado, corpo contra corpo, a doce harmonia de dois corpos nus. A idade, a timidez e a falta de prática deixaram de ter importância; a linguagem do corpo é imediata, poderosa e tem as suas próprias regras. — Esperamos por esta noite, mais nada. E pelas que se seguem.
Mais tarde, quando a meia-luz fria começou a transformar-se no presságio do Sol nascente, Margaret ouviu Ash dizer-lhe ao ouvido:
— Amo-te.
E ela ter-lhe-ia dito o mesmo, mas as regras que impunha a si mesma não lhe permitiam mentir.
— Não sei se sou capaz de amar de novo — disse ela acariciando-lhe a curva das costas onde a espinha acabava e começavam as nádegas bem musculadas: o corpo dele era uma delícia, um mundo de descobertas. — Tu sabes que eu me deitei com o meu marido e com outro homem. Meu querido, nunca senti tanto prazer como o que me deste esta noite. Nunca pensei que fosse possível um prazer assim.
— Honras-me — disse Ash em voz baixa porque havia mais gente na casa e a manhã estava a chegar. — Tu disseste... antes... falaste de casamento, penso. Ouvi corretamente? Seria lady Margaret, filha de Thorvald, Braço-de-Ferro, capaz de casar com um empregado? Como é possível?
— Ouviste muito bem — disse Margaret, sentindo o tom cauteloso da voz dele; tinha-o aborrecido, de algum modo. — Se bem que tu não sejas um empregado, meu querido, e tu sabes isso.
Seguiu-se um silêncio. Ash afastara-se dela; ela sentiu frio. Por fim, ele disse, muito calmamente:
— Casarias com um homem que não amas?
Ela sentiu parar o coração. Ele era o seu querido amigo, tão sábio, tão bom, tão generoso e magoara-o.
— Eu só disse que não sei se consigo — disse-lhe ela. — Tudo o que te posso dizer é que não sei se serei capaz de aprender se não estiveres a meu lado. Na verdade, não sei se serei capaz de continuar sem ti. Algo mudou esta noite; as sombras afastaram-se, como se tivéssemos aberto uma porta para deixar o Sol entrar. Como se tivéssemos quebrado uma barreira e nos tivéssemos libertado. Não sei o que é. Só sei que não quero passar mais nenhuma noite sozinha nesta cama, sem o teu corpo para me aquecer, os teus braços para me abraçarem, o teu coração contra o meu. Só sei que não quero continuar sem ti a meu lado, não como empregado, mas sim como marido. Isto devia ter acontecido há muito tempo, quando éramos jovens. Talvez isto seja amor. Seja o que for, parece o sol da Primavera, o cheiro da chuva depois de uma longa seca. Com o tempo, perceberei o que é. Se me ajudares. — Tão doce, tão nova, aquela sensação de deixar andar as coisas, de partilhar, de saber que nunca mais teria de as fazer sozinha.
— Amo-te — disse ele de novo, tão docemente que ela mal o ouviu, e apertou-a contra si. Uns momentos depois, dormiam nos braços um do outro. Quando as mulheres da casa se levantaram, acenderam o lume e começaram a preparar o novo dia, ainda eles estavam nos braços um do outro.
CAPÍTULO CATORZE
A voz dele
Um suspiro no vento de oeste
Uma canção nas águas
Um murmúrio no coração
A voz dele e um novo dia.
NOTA À MARGEM DE UM MONGE
Quando o Sea Dove chegou ao Fiorde do Conselho já os corpos de Helgi e de Svein tinham sido enterrados com o ritual próprio. Tinham sido rezadas orações por Alof, que continuava à deriva algures, nas águas da Ilha das Nuvens, separado da sua ilha para sempre. Com Hogni seria diferente. Hogni era um guerreiro de profissão e tinha de ter o ritual dos guerreiros.
— Não pode ser esta noite — disse Einar a Thorvald enquanto os homens se apressavam na direção do lugar onde o Sea Dove estava encalhado e onde muitas mãos conduziam o monge ferido e a rapariga exausta até ao abrigo acima da baía. — A mulher dele ainda não chegou; ela vive no outro lado da ilha, na aldeia de Starkfell, de onde os barcos partem para a Ilha das Tempestades. Vai demorar algum tempo até ela chegar com as crianças. São miúdos, ainda; o mais novo foi o último a nascer na ilha antes de começar a caçada. Além disso, convocamos um conselho para esta noite. Asgrim não queria, mas nós insistimos. Tens de falar por nós, Thorvald, e rapidamente, antes que ele comece tudo de novo.
— Esta noite? — A cabeça de Thorvald girava-lhe, tentando lidar com tudo o que acontecera, tanto para uma só cabeça. O vidente devolvido, o seu pai, Creidhe, depois os homens e agora aquilo... O jovem respirou fundo e endireitou os ombros. — Sim, é claro que tem de ser esta noite. Vocês fizeram bem em tê-lo convencido. Mas, primeiro, tenho de ir ver se o meu pai é bem tratado; ele foi terrivelmente ferido.
Os olhos de Einar abriram-se.
— O teu pai? — repetiu ele, virando a cabeça para olhar para os homens que transportavam o eremita ferido para o interior do abrigo. — O cristão é teu pai?
— É uma longa história. E agora diz-me rapidamente, eles estão todos aqui, Wieland, Orm, Skolli? Se eu os liderar eles apoiam-me?
— Apoiamos-te, sim. — A boca de Einar distendeu-se num grande sorriso de satisfação. — E com ferro, se for preciso.
— Espero que a força não seja necessária — disse Thorvald. — No fim de contas, ele é só um homem. — Por outro lado, Asgrim mantivera o povo dos Facas Longas sob o seu poder ao longo daqueles anos todos de dificuldades e sofrimento. Era um homem forte e um bom orador.
— Não te preocupes com o eremita — disse Einar. — Skolli tem jeito para consertar ossos e há uma mulher que percebe de ervas e coisas assim. Não fiques espantado, Thorvald. Há baixas em todas as caçadas. As mulheres vêm ajudar a tratar dos feridos e reclamar os mortos. Nestas ocasiões, Asgrim permite que elas entrem no acampamento. Além disso, as notícias correm depressa. Assim que se soube que tinhas ido para sul para te confrontares com o inimigo, as pessoas começaram a aparecer vindas de Água Brilhante, da Baía Sangrenta, de toda a parte. Elas sentem que as coisas estão a mudar. Querem estar aqui quando isso acontecer.
Ainda era dia quando se reuniram no abrigo, se bem que o Sol já se tivesse posto, porque o céu ainda tinha a cor pálida e fria das noites de Verão. O irmão Niall estava estendido numa esteira no extremo da longa câmara; Skolli retirara-lhe a tala provisória, endireitara-lhe os ossos da perna esmagada o melhor que pudera e ligara-lhe de novo o membro, enquanto o homem de cabelos brancos tremia e mordia o lábio, mas sem nunca gritar. Em seguida, uma boa dose de um bálsamo concedera ao eremita algum repouso e agora ele descansava com as mãos descontraídas e as feições em paz. O lugar onde estivera o seu outro olho estava coberto com um chumaço e uma ligadura, em redor da cabeça tonsurada, ajudava a mantê-lo no lugar. Junto da esteira estava sentado Breccan, pálido mas calmo e Creidhe, silenciosa e branca como a cal. Sam permanecia perto, na sombra.
Asgrim estava a demorar algum tempo para descer da sua cabana. Após alguns cumprimentos iniciais, algumas palavras de felicitações, uma expressão de choque ao ver Niall ferido e Creidhe viva, regressara rapidamente para os seus alojamentos privados, não protestando quanto ao fato de o local onde todos dormiam estar ocupado com mulheres e eremitas cristãos. Talvez, observou Orm, secamente, o governador se tivesse apercebido de que estava encostado a um canto e estivesse, agora, a tentar descobrir como libertar-se. Skapti estava de vigília junto do corpo do irmão numa pequena antecâmara. O governador já não tinha guardas pessoais. E já todos sabiam a verdade acerca do que Asgrim fizera à própria filha. A questão era: que iria fazer Thorvald?
Era esquisito as pessoas fazerem os trabalhos de rotina normais, cozinhar peixe, passar pratos de mão em mão, sentarem-se nas prateleiras de terra para comer, homens e mulheres juntos. Não era um festim alegre: muitos tinham morrido, demasiados tinham sofrido. No entanto, ouviam-se vozes murmurar de antecipação, sem medo. Aquele seria o primeiro conselho desde que a guerra começara; o primeiro desde muito antes da caçada. Muito dependia dele. Os homens conheciam Thorvald; as mulheres não e a dúvida estava nos seus olhos.
O tempo passou. Skapti entrou para se juntar a eles. O guerreiro sentou-se ao lado de Thorvald e pegou num prato com comida. Passado algum tempo, Einar saiu e regressou. Esperaram mais algum tempo até que Thorvald, tomando uma decisão, levantou-se.
— Einar, Skapti, vão lá buscá-lo. — disse ele secamente. — As pessoas estão cansadas; quanto mais cedo começarmos, mais cedo acabamos para podermos ir dormir.
— Não é preciso. — A voz vinda da entrada era sem expressão, discreta. — Comecemos, façam favor. Não vejo necessidade para isto, como disse a Einar. Não há nada para discutir. Mas como os homens insistiram, suponho que tenho de os ouvir. — Os olhos escuros encontraram-se com os de Thorvald, enigmáticos, ilegíveis. — Quem é que se vai sentar no topo, tu ou eu?
— Eu estou bem aqui, entre os meus homens — disse Thorvald, imitando o tom cauteloso do outro, se bem que o seu coração batesse com toda a força e tivesse as mãos suadas. — Por quem és, ocupa o teu lugar.
Asgrim deslocou-se para a cabeceira da longa lareira. O governador tinha um traje escuro e um cinto com uma fivela de prata; os seus cabelos estavam atados atrás e as mãos descontraídas ao lado do corpo. Se tinha algum pressentimento, não dava sinais disso.
— Muito bem — disse ele. — Tenho de admitir que fiquei surpreendido quando Einar e os outros pediram formalmente um conselho logo a seguir à caçada e com um dos nossos sem receber, ainda, os ritos funerários. — Ouviu-se um som de trovão da parte de Skapti, como um rugido de aviso por parte de um cão. — Pensei que preferissem cerveja e companheirismo numa noite destas — continuou Asgrim, imperturbável. — Mas, enfim, aproveito a oportunidade para felicitar o jovem que, parece, nos salvou a todos. Ver o Sea Dove aproximar-se com a missão cumprida foi uma bela visão. — O governador virou-se uma vez mais para Thorvald, acenando com a cabeça com uma certa graciosidade. — O vidente foi devolvido ao seu povo e os dias de caçada terminaram. Agradecemos-te do fundo dos nossos corações, Thorvald. Esta nunca foi a tua guerra. Nunca foi a tua missão. Sentimo-nos muito felizes por a tua amiga Creidhe estar viva. Estamos gratos a Sam pelo papel que ele e o seu barco desempenharam. Não sabemos como havemos de pagar o vosso valor e persistência. É claro, faremos com que regresseis a casa generosamente abastecidos e o barco em perfeitas condições.
Thorvald tinha de responder. Ouviram-se várias vozes, todas elas zangadas.
— Que queres dizer, nunca foi a guerra dele?
— Regressar a casa? A casa dele, agora, é aqui!
— Deixem Thorvald falar!
A voz de Einar silenciou-os a todos, calma e segura.
— Ainda não — disse ele. — Thorvald falará depois de mim. Fui eu que convoquei o conselho; pelas regras da precedência, compete-me a mim estabelecer o assunto em discussão. Talvez alguns de vocês tenham esquecido isso. Já se passaram muitos anos.
— Muito bem. — O tom de Asgrim era gelado.
— Todos nós sabemos o que Thorvald fez — disse Einar. — E outros, também; eu ouvi a história toda e é evidente que todos os homens e a mulher que foram no Sea Dove desempenharam um papel importante no processo de paz. Não são precisos agradecimentos formais ou recompensas. Thorvald sabe o que eu sinto. É demasiado grande para traduzir em palavras.
Seguiram-se acenos de cabeça, grunhidos de assentimento, olhares e sorrisos na direção de Thorvald. Apesar das suas palavras cuidadosas, Einar estava nervoso; o guerreiro tinha as mãos unidas atrás das costas e as cinco cicatrizes viam-se com nitidez na palidez do seu rosto. Mandaria gravar mais uma, mas seria a última. Wieland estava sentado ao lado da mulher, uma jovem magra de rosto triste e cansado; os dedos dele estavam entrelaçados nos dela e ela tinha a cabeça encostada no ombro dele.
— De qualquer modo — continuou Einar — o que vos quero dizer é que este conselho não é para assinalar o fim da caçada, como tal, ou para agradecer àqueles que o conseguiram, já que estão a par da nossa gratidão. Este conselho é para decidir o que fazer a seguir.
As palavras permaneceram no ar cheio de fumo do abrigo durante um longo momento.
— A seguir? — repetiu Asgrim. — Que queres dizer com isso?
— A eleição de um governador. — Orm pusera-se de pé. — É possível quando o povo decide. Eu acho que até me lembro como se faz, se todos estes anos sem conselhos como deve ser não me fizeram esquecer...
— Estou a ver. — O tom de Asgrim continuava sem expressão e as suas feições maliciosas. — Um desafio. É claro que tens razão. Em tempos, houve regras. Mas, em tempos de conflito, como aquele a que temos assistido, essas coisas têm de ser postas de lado. Um conflito, devo salientar, a que vocês sobreviveram devido à qualidade da minha liderança, da minha vontade inexorável em me opor ao inimigo. Quem, entre vós, teria feito o que eu fiz por vós? Se não fosse eu, muitos mais teriam perecido. O povo dos Facas Longas teria desaparecido há muitos anos. Não podeis continuar sem mim. Tentai e Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz estarão de novo à vossa porta já amanhã com outra exigência qualquer e quando vocês não puderem pagar, eles regressarão para vos levar os filhos, cantar-lhes na sua jornada para o esquecimento...
— Chega! — Fora Wieland, espantosamente, que falara, Wieland que se levantara com um dedo acusatório apontado para Asgrim. — Como te atreves a falar assim diante da minha mulher e diante das outras mulheres do nosso povo que viram os seus filhos sacrificados desse modo? Como te atreves a ensombrar as nossas mentes com as tuas mentiras assustadoras? A guerra acabou! O vidente foi devolvido! Não queremos saber mais das tuas falsidades e da tua crueldade! — O jovem deixou-se cair na prateleira de terra e a mulher passou-lhe um braço pelos ombros. Ouviu-se um coro de vozes, masculinas e femininas, todas elas de aprovação.
— Bem dito, rapaz — disse Asgrim, cruzando os braços. — Estou a ver que as emoções andam à solta nos tempos que correm. Mas tem sido duro para todos. É por isso que não me parece que a ocasião seja a melhor para um debate formal acerca de assuntos tão sérios. Vocês não estão bem. Deviam deixar passar, pelo menos, alguns dias, tempo para falar no assunto, tempo para permitir que Hogni descanse e que todos procedam a um período de luto conveniente, de alguma dignidade. Além disso — o governador olhou para o fundo do abrigo, onde Breccan estava sentado junto do seu amigo — temos aqui estranhos, gente que não devia ser admitida nesta assembléia. Tu falaste de regras, Einar. Uma delas é essa.
— O irmão Niall é meu pai. — Thorvald ficou espantado pelo orgulho que sentiu ao dizer aquilo, pela coragem que sentiu quando falou. No fim de contas, talvez não fosse assim tão difícil. — Eu acho que é possível vires a descobrir que as regras lhe permitem estar aqui por direito e por parentesco. Sam e eu, apesar de recém-chegados, somos teus guerreiros e merecemos o nosso lugar entre vós. O irmão Breccan está aqui para tratar de um homem ferido; assim como Creidhe. Prossigamos. Pelo que sei, se há candidatos à liderança, deve ser-lhes dado tempo para falar, para apresentarem as suas queixas, um de cada vez. Depois, podem pedir que dois ou três falem em seu apoio. Depois, o povo escolhe. É assim?
Asgrim olhou para ele.
— Já passou muito tempo desde a minha eleição para governador — disse ele, muito sério. — Substituí no cargo um homem que morreu e não tive oposição. O que tu sugeres pode ser demorado. Se houver muitos pretendentes, passamos aqui a noite.
— Só há dois pretendentes. — A voz profunda de Skapti percorreu a câmara. — Tu e Thorvald. E nós não precisamos de ouvir ninguém que nos ajude a escolher entre os dois. Vai ser tudo muito rápido.
Os olhos escuros de Asgrim pousaram-se em Thorvald.
— É verdade? — perguntou ele. — Tencionas concorrer contra mim? — O tom de voz era o mesmo que sempre fizera tremer os homens.
— Não — disse Thorvald, provocando um coro de exclamações que ele silenciou com uma mão erguida. — Eu quero ser o líder destes homens e destas mulheres. Quero guiá-los e ajudá-los a conseguirem um futuro melhor, um futuro no qual trabalhemos todos juntos pela paz e pela prosperidade. Não quero concorrer contra ti. Mas, se for eleito governador, quero que te vás embora daqui para sempre.
Os olhos de Asgrim semicerraram-se alarmantemente.
— E já que comecei — continuou Thorvald, aproximando-se para se colocar ao mesmo nível do governador e virando-se para a assistência — que este seja o meu discurso formal. Nós conseguimos uma grande vitória; ganhamos o futuro. Não preciso de te dizer como isso é precioso. Todos nós sabemos que não o podemos desperdiçar; que temos de trabalhar juntos para reconstruir o que se perdeu e aproveitar novas oportunidades. Eu lutei ao vosso lado. Vi a vossa coragem e a vossa camaradagem, a vossa visão e o vosso empenhamento. Alguns de vós não me conheceis. Eu sou um recém-chegado e isso é uma coisa que tendes de aceitar. Mas a minha promessa não se altera: se me escolherdes como líder, esforçar-me-ei arduamente para conseguir o melhor futuro para as ilhas, para todos os homens, mulheres e crianças. Sois boa gente e não mereceis menos. Não vou enumerar as faltas de Asgrim; se ainda não percebestes que ele vos desvalorizou, insultou com a sua falta de confiança e procurou aterrorizar até o mais forte de vós, então nada do que eu possa dizer alterará a vossa opinião. Ofereço-me a mim próprio, muito simplesmente, para o substituir. Não me chamarei a mim próprio governador. Não posso governar sozinho; se me escolherdes, instituirei um conselho de homens eleitos para me aconselharem. Convocaremos uma Assembléia regularmente para resolver as nossas disputas à face da lei e discutiremos, também, a forma de conseguirmos uma trégua formal com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, para prevermos o futuro. Mas isso é para mais tarde. Primeiro, temos de nos assegurar de que todos têm aquilo de que necessitam, que as colheitas são semeadas e colhidas, que o gado é bem tratado, que os barcos e as casas são reparadas. Disseram-me que temos uma grande dívida para com as mulheres da ilha por terem continuado a tratar de tudo com grande dificuldade. Sois todos trabalhadores esforçados: bons trabalhadores. Sois fortes de espírito; apercebi-me disso na Ilha das Nuvens e vejo-o nos vossos rostos, esta noite. Passastes por grandes dificuldades e sobrevivestes. Se me elegerdes, ajudar-vos-ei a continuar, a tirar o melhor partido deste tempo de paz. Governar-vos-ei com justiça e lealdade. Dar-vos-ei tudo o que tenho. Juro.
O discurso foi saudado por um coro de vivas, por aplausos e pelo bater de botas no chão de terra.
— Discurso estimulante — observou Asgrim secamente. — Eu não desejo fazer nenhum depoimento emotivo. Limito-me a apontar que Thorvald é um homem muito novo e que, apesar do seu inegável sucesso na caçada, nunca foi um líder em tempo de paz. Não permitais que a euforia do momento altere o vosso julgamento ou vos faça esquecer o bom senso. Tereis de viver durante, pelo menos, três anos, com aquilo que decidirdes esta noite à face da lei de que Einar gosta tanto. Thorvald não é um de nós. É um recém-chegado que chegou às nossas ilhas por acidente. Não testemunhou aquilo de que o nosso inimigo é capaz. Não sofreu o que nós sofremos. As mulheres não o conhecem e eu vejo, pela dúvida nos olhos delas, que não confiam nele. Quem sabe no que ele se transformará se o elegerdes? Num tirano? Num fraco incapaz? Ponde-o no comando e tudo pode acontecer.
Ouviu-se um murmúrio geral e então uma mulher levantou-se, uma figura alta, sólida, de idade indeterminada, com os cabelos atados na nuca e com uma expressão severa.
— Isso é tudo muito bonito, Asgrim — disse ela sem expressão — mas, o que tu nos ofereces é melhor? Sinto-me revoltada ao ouvir-te como se representasses as mulheres depois do que nos obrigaste a passar. Nós obedecemos às tuas ordens e vivemos segundo as tuas leis há muito tempo e toda a nossa existência tem sido só medo e desconfiança. Tu obrigaste-nos a fazer coisas que poderíamos ter evitado se não estivéssemos demasiado assustadas com os teus rufiões para desobedecer. — A mulher lançou um olhar de relance para Skapti. — Qual de nós deixaria ir o marido, os filhos, os irmãos, ano após ano, sabendo que podiam regressar estropiados, ou mortos, ou que podiam, até, nem regressar? Sabendo que não valia a pena? Qual de nós o teria permitido se não tivesse medo de falar? Foste tu que nos obrigaste a praticar os teus próprios crimes, Asgrim, em nome de uma paz que nunca poderá acontecer, pelo menos enquanto fores tu a governar. Tu fizeste com que nós enganássemos a rapariga para poderes dá-la; fizeste-nos conspirar contra uma criatura que só demonstrou bondade para conosco. Agora, ouço dizer que aconteceu o mesmo com Sula: a tua própria filha. Isso põe-me doente. Põe doente qualquer homem ou mulher no seu perfeito juízo. Mas não são os teus crimes que nós rejeitamos, foi a maneira como tu nos transformaste, tornando-nos iguais a ti. Não quero ter essa nódoa nas minhas mãos. Não quero ter esse sabor na boca. No que me diz respeito, qualquer líder é melhor do que tu, quer seja Orm, Einar, ou outro qualquer. Se os homens acham que o jovem Thorvald é o homem indicado, eu apoio-o, assim como as mulheres aqui presentes. — A mulher sentou-se abruptamente, de rosto vermelho.
— Bem dito, Gudrun — disse Einar calmamente. — Thorvald, penso que podemos considerar isto como um discurso de apoio à tua candidatura. Mais alguém quer acrescentar algumas palavras?
Ouviram-se muitas vozes; ergueu-se no ar uma floresta de mãos.
— Quem escolhes, Thorvald? — Einar sorria.
— Eu gostaria de os ouvir a todos, se pudesse — disse Thorvald, sentindo as faces coradas. — Mas é tarde e precisamos todos de dormir. — O olhar do jovem percorreu a assistência: o próprio Einar, veterano de muitos combates; Skolli, com os seus ombros quadrados de ferreiro; o robusto Orm e o Wieland de olhos tristes. Sam estava na retaguarda, alto e loiro. E havia outro que estava sentado calmamente, sem exigir nada, fixando simplesmente, com os seus olhos pequenos e vermelhos, a figura de Thorvald com uma expressão tão leal como a de um cão.
— Skapti — disse Thorvald. — Quero que Skapti fale por mim. — O jovem percebeu, pela respiração de Asgrim, que aquilo era a última coisa que o governador esperava. O grande guerreiro era, sem dúvida, o único com que Asgrim contava como aliado.
Skapti pôs de pé toda a sua estatura. A assembléia calou-se.
— Eu sou um homem de poucas palavras — disse Skapti. — Não sou nenhum orador. Cometi alguns crimes, todos vós sabeis, ou sabereis dentro de pouco tempo. Foi ele que me obrigou — disse ele, olhando para o governador, cujas feições se tinham tornado tão rígidas como uma máscara — mas isso não é desculpa. Eu pensava que tinha acabado tudo. Quase acabei com a vida. Mas ele puxou-me para trás, Thorvald. O melhor amigo que se pode ter. O melhor líder que se pode ter. Graças a ele, posso ir em frente, agora, mesmo sem o meu irmão. — Uma lágrima surgiu na sua larga face; o gigante enxugou-a com o punho. — Mesmo sem Hogni, tenho razão para viver. Thorvald devolveu-me a fé, a fé de que posso fazer o que está certo. Deu-me esperança.
— Ele deu-nos esperança a todos — disse Orm calmamente.
— Não podeis passar sem ele —disse Skapti. — Ele é o melhor. — Depois daquele discurso, tudo se desenrolou rapidamente.
Asgrim, de rosto duro como uma pedra, recusou apontar qualquer homem ou mulher para falar por ele. Votou-se; o resultado não foi surpreendente para ninguém. Depois de os gritos, as aclamações, o rufar dos pés e as palmas terem morrido, Thorvald virou-se para o homem que até ali era o governador. O jovem escolheu cuidadosamente as palavras; seria bom que aquilo se concluísse com dignidade, se bem que os seus dedos ansiassem por se fechar na garganta de Asgrim pelo que ele fizera a Creidhe.
— Sairás da tua cabana e desta área logo que possível depois da alvorada — disse ele asperamente. — Não regressarás à Ilha das Tempestades nem à Ilha das Torrentes. Não te quero ter por perto, para que não perturbes os nossos esforços. Os teus crimes tiraram-te a hipótese de continuares nesta comunidade. Não tentaremos nada contra ti na tua viagem, seja ela para onde for. — O olhar de Thorvald percorreu a sala, fixando os olhos furiosos de muitos homens. — Se quiseres, podes levar um dos barcos mais pequenos e partir do Fiorde do Conselho para o destino que escolheres. Por favor, leva o que te pertence contigo. Queremos começar de novo.
Asgrim não disse uma palavra. A sua boca era uma linha fina e o rosto parecia o de um fantasma. Certamente, esperava luta; a derrota, talvez. Mas era evidente que não esperava um repúdio como aquele. Os seus olhos escuros percorreram a câmara, perigosos como os de uma serpente e depois virou-lhes as costas e saiu porta fora. Einar fez menção de o seguir, mas Thorvald disse:
— Não, deixa-o. Ele fará o que lhe mandaram. Não tem outra hipótese.
Quando acordaram na manhã seguinte, ainda cansados depois do breve descanso, mas já discutindo os novos desafios, o trabalho que tinham pela frente, Asgrim já se tinha ido embora. A sua cabana estava vazia, tinha desaparecido tudo: a cama, a arca, as armas, as penas, a tinta e os pergaminhos. Um dos barcos tinha desaparecido; parecia que o governador queria tentar a sorte na Corrente dos Loucos, a não ser que tencionasse circundar os ilhéus e rumar a sul. Fizeram-se apostas, na brincadeira, para saber quem venceria se Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz e Asgrim se encontrassem. Depois viraram a sua atenção para coisas mais importantes. A meio do dia, uma mulher de rosto severo entrou no acampamento com dois rapazes: a mulher de Hogni e os seus dois filhos. Ao fim do dia, reuniram-se todos à beira-mar para enviar o marido para o seu longo descanso.
Tinham construído uma bela jangada de madeira e o guerreiro foi colocado em cima dela, coberto por uma capa de feltro azul e com as armas a seu lado; a lança, o machado, as facas e o chuço. Hogni levava o elmo de pele colocado na cabeça, a couraça, também de pele, no peito, as suas melhores botas de Inverno, a capa de pele de ovelha, as calças de lã espessa e a túnica. As feições do guerreiro estavam distorcidas devido ao sofrimento da sua morte; não se podia disfarçar aquilo. Mas o irmão lavara-o com mãos grandes e gentis, penteara-lhe os cabelos e instalara-o o mais serenamente possível. Todos sabiam que o espírito já não sentia as dores da última noite cruel, quando o veneno se espalhara pelo corpo todo. Fora um ataque que nenhuma fortaleza humana podia suportar.
Encheram a jangada de panos embebidos em óleo, ramos secos, tudo o que ardesse bem e depressa. Esperaram num local onde a corrente arrastaria a embarcação, até o Sol se pôr para lá do fim do mundo e o céu ficar com a cor azulada e branca das noites de Verão. Estavam todos presentes, todos os que tinham sobrevivido à última caçada: Orm, Einar e Wieland; Skolli, o ferreiro e Knut, o pescador, com o recém-chegado Sam a seu lado; os mais novos, Ranulf, Thorkel, Paul e outros. Breccan não estava, nem o ferido Niall, que não se podia levantar. Creidhe também ficara na aldeia, mas as outras mulheres estavam junto dos seus homens, muito sérias e silenciosas. A mulher de Hogni, flanqueada pelos dois filhos, estava junto de Skapti e de Thorvald, perto da jangada onde o seu marido esperava a hora ideal
E a hora chegara. Skapti devia ter dito as palavras de despedida, mas quando chegou a ocasião pareceu incapaz de falar. A sua boca abriu-se, os seus olhos encheram-se de lágrimas e as suas largas feições cederam. Assim, foi Thorvald quem falou.
— Vai, guerreiro, na tua última jornada. — O jovem não gritou. O seu tom de voz não era nem alto, nem estridente, era baixo, respeitoso, íntimo: era como se estivesse a falar com Hogni, diretamente, honestamente, como se estivesse a falar com um amigo. À sua volta, os homens engoliam em seco, esfregavam as faces, assoavam os narizes. — Foste sempre bravo e forte, honesto e franco. Ensinaste-nos bem: todos nós temos ferimentos para o provar, de uma maneira ou de outra. Deste-nos tudo o que tinhas; tudo o que eras. Descansa, agora, certo do amor do teu irmão, da tua mulher e dos teus filhos. Vai na tua jornada, transportado pelo vento. Vai direto para a mão direita do deus, porque morreste como viveste, como um verdadeiro Pele-de-Lobo. Fica a saber que, neste lugar, os teus filhos crescerão em paz e segurança, porque faremos um mundo novo para eles, para todos: um mundo onde não possam regressar o sangue e a dor. Chegou a hora de nos despedirmos. Vamos! — Thorvald olhou para Skapti, para Einar e para os dois miúdos de sete ou oito anos que se mantinham agarrados, de olhos esbugalhados, às saias da mãe. Os quatro avançaram e começaram a empurrar a jangada para a água; o mar chegou-lhes aos joelhos, depois às coxas e, finalmente, a embarcação ficou livre.
— Cuidado — disse Thorvald para o miúdo mais pequeno, que tropeçara, arriscando-se a cair na água gelada. — Agarra na minha mão.
Skapti deu um último empurrão e a jangada começou a afastar-se, enquanto os outros regressavam à areia negra onde estava Orm com um archote aceso e Paul, o arqueiro, a seu lado. Mas Skapti continuou metido na água até aos joelhos, vendo a jangada levar-lhe o irmão cada vez para mais longe, para oeste, para a sua última e longa jornada.
Então, Paul colocou uma determinada seta no arco, esticou-o com força e Orm aproximou o archote, incendiando-lhe a ponta. A corda vibrou; a seta descreveu um arco no ar e foi cair na jangada. Uma chama vacilante, um brilho súbito, e a jangada ficou envolta em fogo quase instantaneamente, transformando o guerreiro num archote. Hogni ardeu durante muito tempo; viram-no atravessar o Fiorde do Conselho na direção das silhuetas invisíveis do Arco do Troll, da Ilha do Dragão e da Corrente dos Loucos. Ficaram todos a vê-lo desaparecer, uma luzinha na noite de Verão, e depois regressaram todos juntos.
As crianças tremiam, bocejavam, cansadas da estranheza daquela cerimônia. A mãe apertava-os contra as saias; quando Thorvald lhe falou, ela olhou-o nos olhos, como que a avaliar o homem por quem o seu marido dera a vida.
— Ele era um homem bom e corajoso — disse Thorvald em voz baixa. O jovem olhou para os dois rapazes. — Faremos com que não vos falte nada — acrescentou ele, sem saber como o faria, mas sabendo que, a partir dali, aquelas coisas seriam da sua responsabilidade e que tinha de aprender rapidamente. — E agora é melhor descansarem e aquecerem-se. Há uma lareira no abrigo, lá em cima. Aquele edifício fora, em tempos, o local de encontro do povo dos Facas Longas, nos tempos anteriores à caçada. Seria bom devolvê-lo ao seu propósito original.
— Nós vamos para casa — disse Gerd. As suas feições gastas tinham uma expressão de coragem; o mesmo olhar que Hogni teria naquele momento. — Esta noite, para Água Brilhante. Amanhã, para Starkfell. Estivemos fora muito tempo; o gado precisa de cuidados.
Thorvald ia protestar, dizendo que era noite, que o caminho era longo e perigoso. Mas o jovem mordeu as palavras; à sua volta, todos os homens estavam a colocar pequenas trouxas às costas, a apertar as capas e a pegar em chuços para ajudar na escalada. Skapti regressou do mar, limpou o nariz à manga da camisa e segurou nas mãos dos rapazes.
— São horas de ir — disse o grande guerreiro. — Se não te importas.
— É claro que não — disse Thorvald. — É evidente que tens de ir. Leva o tempo que quiseres. Mas não te esqueças que preciso de ti aqui, Skapti. Conto contigo para me ajudares e aconselhares. Vou convocar um conselho para a próxima lua cheia e quero todos os homens presentes.
— Estarei presente. — Os olhos de Skapti brilhavam.
— Entretanto, temos todos de pensar no futuro, no que há a fazer e na melhor maneira de o conseguir. Temos todos um papel a desempenhar. Lamento muito por Hogni não estar aqui, muito mesmo.
— Ele está a ver — disse Skapti. — Não tenhas dúvidas. E agora, é melhor irmos. Vamos embora, rapazes, toca a andar.
A história de Asgrim ainda não tinha acabado. Thorvald e o seu grupo ficaram no Fiorde do Conselho durante mais alguns dias, até que Niall estivesse suficientemente bom para poder ser transportado. Alguns dos homens, os que não tinham família, ficaram para ajudar. A maioria foi para casa tratar dos campos, dos barcos ou de outros modos de vida e para passar algum tempo com a família antes do longo trabalho de reconstrução da comunidade. No segundo dia, Thorvald estava sentado no exterior do abrigo com Sam e Knut, remendando a vela do Sea Dove, quando Paul apareceu a correr vindo do acampamento, tropeçando nas palavras, desejoso de dar uma notícia. O jovem não parecia preocupado, apenas excitado. Obrigaram-no a sentar-se, deram-lhe cerveja e esperaram até que recuperasse o fôlego. Os outros homens, alertados, juntaram-se em redor dele para ouvir.
A família de Paul vivia num local isolado, uma minúscula aldeia no lado noroeste da Ilha das Tempestades, instalada no alto de uma falésia, muito acima do mar. O jovem fora para lá naquela manhã, tencionando atingir a herdade antes do anoitecer e fazer uma surpresa à mãe. Percorrera um carreiro através da falésia durante a maior parte da jornada; não era um caminho seguro, mas era mais rápido e Paul conhecia bem o terreno. Foi assim que o viu: o barco de Asgrim.
— Ia para norte — disse o arqueiro — e ia bem depressa. Pela posição, achei que tinha estado na Baía Pequena e que tinha prosseguido esta manhã. Provavelmente, vai para as ilhas exteriores; só lá há meia dúzia de pessoas e talvez ele pense que lhe possam dar asilo, já que eles não sabem o que aconteceu aqui. O vento era favorável. Ele deve ter contornado a Corrente dos Loucos pelo norte. Quanto a mim, gostava de ter podido acertar-lhe com uma seta, mas Thorvald deu-lhe um salvo-conduto e, além disso, estava, provavelmente, fora de alcance. Ou longe de provocar sarilhos. Pelo menos, era o que eu pensava. — O jovem bebeu um gole de cerveja e limpou a boca com a mão.
— Que aconteceu? — perguntou Knut apressadamente, porque todos pressentiam ali algo de prodigioso, uma conclusão sombria. Era visível nos olhos do jovem.
— A coisa mais estranha que eu alguma vez vi — disse Paul num tom subitamente receoso. — O mar estava calmo, a brisa era constante e o barco parecia perfeitamente controlado. Então, vi umas... umas mãos, ou uns braços, ou... Não sei o que era aquilo, mas vi, em redor do barco, puxando, empurrando. Ouvi-o gritar. O único som naquele oceano todo. E então... e então eles afundaram o barco, viraram-no, partiram-no todo, desfizeram-no em bocados. A última coisa que vi foi uma... — Paul engoliu em seco — uma mulher, uma coisa parecida com uma mulher, estendendo os braços e abraçando-o, só que não foi como se uma mulher abraçasse o marido, sabem o que quero dizer, foi como que uma execução... ela continuou abraçada a ele mesmo depois de ele cair na água... Um momento mais tarde só se viam pedaços de madeira a flutuar. Tudo perfeitamente calmo.
Durante um momento, ninguém falou. A imagem nas mentes dos homens roubava-lhes quaisquer palavras.
— A Tribo das Focas — disse Knut, finalmente, com a voz a tremer. — Eles vieram buscá-lo.
— É claro, a mulher dele pertencia à Tribo — disse Paul, acenando com a cabeça. — Retribuição, foi o que foi. Vejam o que ele fez à própria filha. À filha. Tinha de ser. Mesmo assim, gostava de lhe ter acertado com uma seta. Teria ficado mais satisfeito.
Thorvald estremeceu. Talvez tivesse sido justo; por outro lado, não desejava um fim daqueles a homem nenhum. As ilhas, assim parecia, exerciam o seu próprio castigo em seu devido tempo.
Arranjaram-lhes uma cabana em Água Brilhante, aconchegada e seca. Havia um quarto minúsculo para Creidhe, não muito maior do que um canto para arrumações e com uma prateleira para ela dormir. Gudrun oferecera-lhe uma cama, assim como Jofrid, uma Jofrid ainda triste, porque os filhos que perdera ensombrá-la-iam para sempre, mas, pelo menos, uma jovem com esperança nos olhos. Wieland mantinha-se por perto, olhando pela mulher como uma vaca pela cria. Mas Creidhe não quis morar com as mulheres da aldeia. Assim, ficou alojada com Breccan, Niall, Thorvald e Sam, até que todos seguissem o seu caminho. Niall tinha febre e, entre os dois, Creidhe e Breccan passavam-lhe um pano pelo corpo a arder, administravam-lhe bálsamos e asseguravam-se de que os visitantes faziam o menor barulho possível. Thorvald tinha muitos visitantes, apesar da pausa que propusera no conselho. Os homens procuravam o seu conselho acerca das ovelhas, dos barcos, dos filhos que viviam nas ilhas mais afastadas. Falavam-lhe das ansiedades das mulheres, dos medos dos filhos. Pediam-lhe que falasse no funeral de um ancião. Queriam construir um templo, restaurar a casa do conselho, imitar a construção do Sea Dove para construir barcos melhores, se conseguissem a madeira. Alguns deles já falavam de comércio e tratados. Thorvald escutava, comentava e felicitava-os pela iniciativa. Dava-lhes conselhos. Sam olhava para ele, maravilhado. Seria aquele o mesmo homem que ainda há pouco se revoltava contra a herança do seu sangue, em Hrossey? Seria aquele o mesmo rapaz que mal sabia o que fazia quando pediu emprestado o Sea Dove e o seu mestre desgraçado e partiu para aquela viagem louca para o desconhecido?
Por vezes, o irmão Niall estava lúcido, se bem que como um cordeiro recém-nascido, com o rosto cheio de suor. Nessas ocasiões, Breccan e Creidhe descansavam e era Thorvald que se sentava junto do pai, limpando-lhe a fronte com um pano, segurando-lhe na mão e falando-lhe em voz baixa. Nessas ocasiões, podia ver-se uma expressão nova no rosto de Niall. O monge sempre usara uma máscara, sabendo que ela não o protegeria das farpas do mundo, mas reconhecendo que podia, pelo menos, esconder os seus sentimentos quando o feriam. Se tivesse sentido amor antes, e talvez o tivesse sentido, um amor duradouro e leal, aquela máscara tê-lo-ia escondido bem. Agora, pusera aquele artifício de lado. Era maravilhoso ver o olhar que ele lançava com o seu único olho ao filho e o seu reflexo nos olhos de Thorvald.
Niall queria ir para casa. Queria as suas penas, as suas tintas, os seus pergaminhos; queria a tranqüilidade do eremitério, o vazio da encosta sob o céu pálido. O monge falou da vaca, das galinhas, da pequena horta que Colm fizera.
— Em breve — disse Breccan. — Quando estiveres bom.
Sam já quase acabara de abastecer o Sea Dove para o regresso às Ilhas Brilhantes. O povo dos Facas Longas era generoso; o barco faria a viagem mais bem abastecido do que quando saíra de Stensakir para aquela viagem louca. Fariam uma rota diferente, desta vez, disse Sam: mais para leste do que para sul, a princípio, para rodear as costas das Ilhas do Norte antes de rumar a casa. Knut também ia, não apenas porque, sem Thorvald, Sam não conseguiria manobrar sozinho em alto mar, mas pela mudança, pela aventura, pela oportunidade. Os olhos do jovem pescador brilhavam de antecipação. Estariam prontos dentro de um dia ou dois.
Discutira-se um pouco, entre o povo dos Facas Longas, acerca de Creidhe. Pelo menos quatro dos homens solteiros fizeram perguntas sobre se a mulher de cabelos louros tencionava ficar nas ilhas e, se sim, se era verdade que não pertencia nem a Sam nem a Thorvald, que era apenas uma amiga. A resposta dependia de quem perguntava. Desistiram de perguntar a Sam, que quase lhes arrancou as cabeças com a resposta brusca de que Creidhe ia para casa com ele, claro, e que eles já deviam saber que não lhe deviam fazer uma pergunta estúpida daquelas. Skapti, questionado sobre o assunto quando regressou a Água Brilhante, parecia acreditar que havia um entendimento entre a rapariga e Thorvald, entendimento esse que o novo líder estabelecera sob determinadas condições quando negociara com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz a sua libertação. A notícia espalhou-se rapidamente e os homens deixaram de fazer perguntas. No entanto, alguém ouviu Skapti comentar que Creidhe era a namorada de Thorvald, só que tinham tido um arrufo, porque a rapariga era uma sombra dela própria, mal comia, pálida e exausta, e nunca trocava mais de uma palavra ou duas com Thorvald, se bem que os olhos dele a seguissem muitas vezes com uma expressão que o grande guerreiro parecia conhecer bem. Ele próprio a tivera durante algum tempo. Agora, reconhecia que tinha sido tolo, um pouco como um cão perdido a olhar para uma princesa. Mas, agora, tinha mais que fazer, tinha a família de Hogni, Gerd e os miúdos, para se preocupar. Não tinha tempo para sonhos. Lamentava que a rapariga parecesse tão triste. Havia ali uma história que só Creidhe conhecia, mais ninguém, e ela não a contava a ninguém.
— Pai? — chamou Thorvald junto da esteira, enquanto os outros dormiam.
Niall virou um pouco a cabeça para poder ver o rosto do filho.
— O que é?
— Breccan disse que tu podes sair daqui dentro de um dia ou dois, agora que a febre baixou. Ele tem de regressar ao eremitério, de qualquer maneira; tem de tratar dos animais, os rapazes não podem continuar lá. Mas...
— Mas o quê, Thorvald? Sentes-te embaraçado por ter um pai clérigo? Tens outro ofício para mim? Talvez um em que eu avance com uma espada na mão e uma pala no olho?
Thorvald corou.
— Esperei muito tempo por ti — disse ele, olhando em redor para ver se alguém o estava a ouvir. — Toda a minha vida. Esperava que preferisses ficar aqui, ao meu lado. Para me ajudar. Eu tenho muito que aprender. Eu posso fingir que sou o líder que eles querem, forte, sábio, justo. Mas, na verdade, não sei nada de nada. Tenho andado a inventar à medida que vou avançando. No fim de contas, foi Creidhe quem ganhou a batalha, não fui eu.
— Ah — disse Niall com um sorriso torcido — um pouco de humildade. — É bom ver isso. É uma qualidade que eu devia ter aproveitado quando tinha a tua idade, mas que me faltou. Thorvald, tu és o líder que eles querem. Escolheram-te. Respeitam-te e amam-te. Se a verdade te espanta e te faz ser humilde, é assim que deve ser. A confiança deles em ti aumentará com os anos.
Seguiu-se um silêncio.
— Pai?
— Hum?
— Não sei se conseguirei fazer isto sozinho.
— Tu não estás sozinho. Estás rodeado de homens e mulheres bons e fortes, com vontade e leais, cujos corações estão virados para um futuro de paz e prosperidade. Além disso, não estarei longe. Espero poder descer a encosta de vez em quando e a minha porta estará sempre aberta para ti.
— Não é a mesma coisa. Tu és mais sábio do que eu; tens uma autoridade muito maior, basta quereres utilizá-la. Tu é que devias ser o líder do povo dos Facas Longas. Devia ter sido assim há anos, acho eu, quando aqui chegaste.
— Oh não. Oh não — O rosto de Niall ficou sombrio. — Isso nunca. Eu desafiei Asgrim, é verdade. Mas desisti de lhe tirar o poder das mãos, apesar de ele ser um tirano. Não te esqueças do que sabes acerca de mim, Thorvald. Eu sou o que sou agora. Mas cometi crimes que fizeram os homens estremecer de horror. Fui um homem cego, naqueles dias, e segui um caminho retorcido e lamacento, um caminho que nem o próprio Demônio teria imaginado. Se perguntas a ti próprio por que razão eu não quero o poder deste mundo de homens, aí tens metade da resposta. Um homem cujas mãos estão manchadas com o sangue do próprio irmão não pode liderar. Um homem que não pode agir sem mergulhar nas trevas todos aqueles em que toca deve ser posto de parte; deve colocar-se onde não tenha tendência para intervir. Eu tornei-me eremita. Deixei de procurar Asgrim; deixei-o seguir o seu próprio caminho. Até ao dia em que rumei à Ilha das Sombras.
— O que mudou na tua mente? — murmurou Thorvald. E Niall disse, simplesmente:
— O amor.
Após alguns momentos, Thorvald pegou na mão do pai, engoliu em seco e perguntou-lhe:
— Tu disseste que eu tinha metade da resposta. Qual é a outra metade?
— Descobri que Deus tem sentido de humor. Desempenhei, durante estes anos todos, o papel de um monge: permaneci ao lado dos meus irmãos e decorei as palavras que eles diziam com verdadeira fé; copiei as escrituras, não porque acreditasse numa única palavra, mas porque não queria perder a prática de ler, de escrever, de traduzir. Discuti filosoficamente com Breccan: tinha verdadeiro prazer nisso. Fiz o possível para que o meu cinismo não confundisse o rapaz. Encontrei uma certa calma no padrão de vida deles; a ordem e a disciplina da vida deles servia-me. Mas eu não era cristão. A minha mente estava cheia de dúvidas e descrenças. Vi aquilo de que os homens são capazes. Tinha tanta culpa no coração que não era capaz de acreditar num deus bom e luminoso, por mais eloqüência que Breccan pusesse na sua defesa. Até agora.
— Que queres dizer?
— Foi uma brincadeira de Deus: Ele deixou-a ficar para o fim, enquanto testava a minha resistência durante estes anos todos. Foi simples, Thorvald, simples e esmagador. Tu chegaste, Creidhe disse-me que eu tinha um filho e eu vi-te, vi a maravilha que tinha feito. Não sabia nada de ti, antes. Algo mudou dentro de mim; algo se abriu, se partiu, se estilhaçou. É tudo aquilo de que Deus precisa. Deixei de lhe resistir e ouvia a Sua voz. Ele, agora, ri-se, se calhar. Ganhou a batalha e eu pertenço-Lhe. — O olho de Niall brilhava. Thorvald achou que a luz que brilhava no rosto do monge tinha pouco a ver com a luz da candeia. Aquela luz vinha do interior da alma.
— Não sei que dizer — disse Thorvald ao pai — salvo que, se estas notícias chegarem ao irmão Tadhg, nas Ilhas Brilhantes, ele ainda vai ficar mais espantado do que eu.
Niall sorriu.
Ah, Tadhg. Creidhe disse-me que ele ainda era vivo e que ainda percorre as ilhas com o saco às costas e o livro de histórias. Como eu temia esse homem! Ele tinha um poder extraordinário; o amor de Deus ainda era mais forte nele. Sim, ele há de achar piada. E vai ficar encantado. Uma vez, ofereceu-se para me ensinar os caminhos da fé dele e eu não o quis ouvir. Thorvald?
Thorvald sentiu a mudança no tom de voz do pai e não respondeu. O jovem sabia o que ele ia dizer.
— Que aconteceu a Creidhe? Ela não fala comigo, ou com Breccan. Parece que não fala com ninguém. Eu ouvia-a na Ilha das Nuvens, orgulhosa e forte, enfrentando Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, protegendo a criança com todas as forças. Mas, depois disso, algo mudou terrivelmente... a rapariga bondosa e sorridente transformou-se num fantasma, num ser sem espírito e sem esperança. Ela sofreu um desgosto qualquer que nós desconhecemos, tenho a certeza. Mas Creidhe recupera facilmente e é corajosa, tal como o pai dela. Não compreendo. Não consegues falar com ela?
A breve risada de Thorvald foi amarga, trocista e cheia de dor.
— Eu? Eu sou a última pessoa em quem ela confia, pai. Eu era amigo dela. Ela veio nesta viagem unicamente por minha causa, para me proteger e para me guiar. Achei que tinha sido tola por causa disso, mas eu é que fui o tolo. Foi a intervenção de Creidhe que nos conseguiu a paz. Mas algo mudou. Ela está ferida e assustada. Esteve prisioneira na Ilha das Nuvens e não tenho dúvidas de que aquele homem abusou dela. Mas, parece-me que ela ainda não percebeu que está sã e salva.
— O homem?
— Estava lá um guerreiro; era ele que a tinha a ela e ao miúdo prisioneiros. Devia estar há muito tempo sem uma mulher, imagino. — Thorvald podia ouvir a ira na própria voz. — Penso que era filho de Asgrim.
— Erling? Aquele rapaz calado e sonhador ainda está vivo ao fim destes anos todos naquela ilha? Mas claro, faz sentido; quem mais teria o amor e a força para preservar a criança durante aqueles anos todos?
— Amor — repetiu Thorvald com alguma amargura. — Ele não mostrou grande amor por Creidhe; abusou dela, desonrou-a. Tu viste no que ela se tornou.
Niall ficou silencioso durante alguns instantes. Em seguida, disse:
— Isto não parece nada do rapaz que eu conheci, Thorvald. Mas, foi muito tempo e os homens mudam quando as circunstâncias são extremas. Ele morreu no último combate, suponho? Um fim triste para um jovem tão pacífico.
— Começo a acreditar que não é o mesmo — disse Thorvald — porque este não era nenhum pacifista. Era um assassino, profissional, experimentado e impiedoso. Merecia o castigo que nós lhe demos. Na verdade, ainda merecia pior.
Niall esperou.
— Quase o matei — disse Thorvald com uma certa relutância. — No fim, algo me deteve a mão. Provavelmente, não sobreviveu. Foi ferido e eu deixei-o onde estava. — Não diria a verdade toda, não fosse parecer fraco.
— Estou a ver. Portanto, acabou tudo para ele e também para Creidhe, os tempos maus. No entanto, ela parece mergulhada em desespero. Pergunto a mim mesmo porquê? Pelo que vi, quando testemunhamos a morte cruel de um bebê que ela tentou salvar, Creidhe não me pareceu uma pessoa que entre facilmente em desespero.
— Eu pensei que — havia sofrimento na voz de Thorvald — uma vez salvo o vidente, depois de ver que ele estava feliz e que não sofreria, ela me perdoaria por me ter metido onde não era chamado. Que talvez tudo voltasse a ser entre nós como antes.
— E como era isso?
— Era... — Perante o olhar perscrutador do pai, Thorvald tentou contar a verdade. — Durante aqueles anos todos, desde que éramos crianças, ela seguiu-me sempre, como uma sombra, sempre presente, ouvindo, esperando, caminhando nos meus calcanhares. Quando estava triste, ela consolava-me. Quando me sentia ferido, ela ajudava-me. E era mais nova; muitas vezes, eu ficava impaciente, ou zangava-me, e ela chorava, ou remetia-se ao silêncio. Eu... habituei-me àquilo, a tê-la por perto. Tomei-a como certa, pai. Até que pensei que tinha morrido. Então, eu... — Niall esperou.
— Mal podia acreditar como me doía. Não compreendia como podia um homem sofrer daquela maneira e continuar.
— Mas tu continuaste.
— Os homens precisavam de mim — disse simplesmente Thorvald. — Os meus sentimentos não eram importantes. A minha dor, a culpa que sentia... não tinham importância quando o futuro do povo dos Facas Longas estava em jogo. Fechei-as dentro de mim e continuei.
— E agora, que Creidhe regressou, continuas a tomá-la como certa? — As sobrancelhas de Niall arquearam-se, interrogativamente.
— Não! — disse Thorvald ferozmente. — Nunca! Quando soube que aqueles tipos andavam a falar dela; se ia para casa, se ia casar com um deles, fiquei tão furioso que tive de desaparecer para não ter de pôr as mãos num deles.
— Porquê, Thorvald? Isso parece-me pouco razoável, na circunstância. Ela é uma rapariga bonita e aqui há poucas mulheres casadoiras.
— Nunca pensei muito nisso antes — murmurou Thorvald. — No casamento, quero dizer. Tinha a mente noutras coisas. Além disso, sabia que Eyvind nunca permitiria... mas quando eles começaram a falar... Como poderia Creidhe casar com outro qualquer? Não seria... não seria... — O jovem não conseguiu continuar.
— Mas, tu não lhe dizes o que sentes?
— Tu viste-a, pai. Ela já não quer saber de mim. Não quer saber de ninguém. É como se uma parte dela tivesse desaparecido, como se lhe tivessem tirado uma coisa qualquer. Não sei como posso ajudá-la.
— Tens de a deixar ir para casa — disse Niall calmamente. — Para junto da família, para junto do povo dela.
Thorvald inclinou a cabeça.
— Thorvald, ela não é para ti. As almas como ela tocam-nos profundamente, encantam-nos com a sua beleza e bondade transparente. Somos atraídos por elas como moscas por uma candeia. Talvez queiramos possuí-las o mais possível, esperando que alguma da magia passe para nós e nos faça melhores, mais inteligentes. Mas não são para ti ou para mim, filho. As nossas serão sempre a dúvida e a luta. É essa a nossa natureza. Tu tens um papel a desempenhar entre os teus homens, um papel nobre e merecedor, e desempenhá-lo-ás bem. Talvez, com o tempo, te cases e tenhas filhos, ou talvez não. Mas tens de continuar a sorrir, agradecer aos teus amigos pela sua bravura e apoio e dizer-lhes adeus quando o Sea Dove partir. Nós temos o nosso próprio caminho.
E apesar de Thorvald quase não compreender o discurso do pai, porque o monge parecia não a estar a falar com o filho, ou com Creidhe, antes com outras pessoas, parecia que as palavras de Niall tinham a sabedoria da sua longa experiência, dos seus anos de contemplação e estudo.
— Estás cansado, pai — disse Thorvald. — É tarde. Devias tentar dormir. — O jovem ajeitou Niall na esteira e colocou-lhe por baixo da nuca uma almofada de penas de ganso.
— Thorvald?
— Pai, tens de deixar de falar e tens de descansar, se queres ficar melhor...
— Preciso de uma pena, de tinta e de um pergaminho. Amanhã. Tens de...
— Tu não estás suficientemente bom para escrever. Ainda não.
— As minhas mãos não têm nada de errado. Amanhã. Por favor. — Thorvald suspirou.
— Suponho que posso mandar alguém buscar-te essas coisas. É assim tão urgente? Tens anos pela frente.
— Tenho de escrever uma carta. Antes de o Sea Dove partir.
— Oh.
— A tua mãe merece, pelo menos, uma carta. Eu tratei-a da mesma maneira que tu trataste Creidhe. Vai ser duro para ela quando o Sea Dove regressar sem o filho.
— Ela não vai querer saber. — Thorvald sabia que não era verdade.
— Disparate — disse Niall, estendendo o braço para agarrar na mão do filho quando Thorvald lhe ajeitou os cobertores. — Apesar de muitas vezes não o dizerem, as mães amam sempre os filhos. Margaret sempre foi uma rapariga fechada. Era uma das coisas que eu gostava nela. Vê se me trazem a pena e a tinta amanhã.
— Sim, pai.
Quando Guardião acordou, estava tudo mortalmente calmo. O jovem soube instantaneamente que se tinham ido embora, porque sentia o ritmo e oscilação da ilha em cada fibra do seu ser; estava sintonizado com ela. O local estava deserto, com exceção das focas e das aves. E dele próprio.
Apesar disso, procurou. Procurou como quando se preparara para a caçada, com um cuidado meticuloso, com um propósito frio, com pés ágeis e a capacidade de visão de um predador. Guardião vasculhou a ilha de ponta a ponta, desde as praias rochosas às falésias vertiginosas, da baía escondida à gruta mais profunda, até as pernas lhe tremerem de cansaço e a visão se enevoar de exaustão. Então, regressou ao abrigo e tentou limpar o sangue seco da cabeça. Sentou-se junto da lareira apagada com a mão no colar que usava, uma coisa pálida, apagada, feita de madeixas dos longos cabelos da sua irmã. As botas de Pequenino estavam encostadas à parede; a sua curta capa jazia amarrotada no chão. Guardião estendeu a mão para o cobertor onde, ainda naquela manhã, estivera aninhado com Creidhe; o jovem levou o tecido gasto ao rosto e pensou sentir, ainda, o seu aroma. Guardião não chorou. Ficou sentado, vazio, silencioso. Tinham levado Pequenino. Guardião não cumprira a promessa. Creidhe tinha-se ido embora. Fora o seu próprio golpe que a atingira; ferira-a. E agora tinham-na levado. O jovem manteve-se sentado durante longos momentos, pensando se conseguiria mexer-se de novo, pensando se a dor e o sentimento de culpa fariam com que deixasse de ser o homem que era, um lutador, um guardião digno do nome que escolhera para si próprio, ou se deixaria apenas para trás uma concha para ser quebrada e dispersa pelo vento. Quase adormeceu por estar ali tanto tempo com o cobertor tão perto, talvez sonhasse com a sua deusa. Talvez conseguisse esquecer a visão de Pequenino frio, ferido, a sangrar, assustado, a imagem de Creidhe correndo, caindo, jazendo pálida e imóvel na encosta rochosa. Talvez conseguisse esquecer o triunfo nos olhos do homem de cabelos vermelhos. Mas não adormeceu, porque lhe parecia que tinha de se manter de vigília. Assim, ficou sentado de olhos abertos e com o tempo ouviu a canção, vinda de muito longe, tão longe que quase não a conseguia ouvir, mas ouvia, como se Pequenino lhe estivesse a dedicar. Era um fragmento transportado pelo vento, umas notas que já quase não se ouviam quando lhe chegaram aos ouvidos, mas ele compreendeu-as.
Então, surgiram as lágrimas. A melodia suave, sem palavras, disse-lhe que Pequenino estava vivo, salvo, feliz. Mas as lágrimas também eram de dor, um desgosto que lhe despedaçou o coração, o suficiente para o fazer gritar de dor. Pequenino estava em casa, regressara à Ilha das Sombras. E estava feliz. Fosse o que fosse que lhe tinham feito com as facas e mocas enquanto Guardião estava sem sentidos, inútil, a sua canção transportava a sua mensagem de paz, perdão, amor e esperança. E aquilo era o mais amargo, porque dizia a Guardião que ele estivera errado. Parecia que o que o Guardião pensara ser proteção era prisão. Acreditara que a vida que conseguira para Pequenino era melhor, mais livre, mais segura. Mas tudo o que fizera fora manter a criança afastada do seu verdadeiro lugar. Durante todo aquele tempo, aqueles anos, enquanto via o seu pequeno parente crescer, o protegia de todo o mal e o guardava tão ferozmente como um lobo protege as suas crias, vira sempre a tristeza nos olhos da criança e nunca percebera que era ele a causa. Escondera Pequenino e pedira-lhe para se manter silencioso enquanto a caçada seguia o seu curso e o rapaz obedecera-lhe. As crianças bem-comportadas não obedecem sempre aos mais velhos? No entanto, durante todo aquele tempo, na mente profunda e estranha do vidente, estivera sempre uma tristeza terrível, secreta. À medida que os anos passavam e sobreviviam a uma caçada após a outra, a tristeza de Pequenino devia ter-se aprofundado ao saber que o mais leal dos seus irmãos nunca o deixaria ir para casa.
A amargura daquela revelação roeu o espírito de Guardião. A canção terminou e o jovem ficou imóvel, olhando para a lareira apagada sem a ver e com o cobertor coçado encostado ao peito. Não podia negar a verdade. A tarefa que fora o objetivo da sua vida não passara de um erro cruel. Tinham morrido homens para nada. Não precisava de ter feito de si mesmo um guerreiro. Não precisava, sequer, de ter fugido para a ilha.
De manhã, o jovem desceu à baía escondida onde tinha os barcos. O melhor, o único que usara uma vez, tinha desaparecido. Os outros estavam danificados, as peles rasgadas, os esqueletos de madeira partidos; mesmo supondo que fosse capaz de chamar o povo da sua mãe, e eles conseguissem acalmar a Corrente dos Loucos para o deixar passar, só o poderia fazer depois de construir um barco suficientemente forte para atravessar o traiçoeiro estreito. E depois? Guardião vira os olhos escuros daquele homem, uns olhos ferozes, implacáveis, de posse. Havia um laço entre eles, entre a sua deusa e o amigo de infância; não apareciam juntos no bordado, onde ele próprio nunca conseguira um lugar? Não fora para proteger Guardião que ela se interpusera naquele último momento de desespero. Fora para proteger o homem de cabelos vermelhos. Quando, finalmente, tivesse o barco pronto, já ela estaria longe, na sua ilha, sã e salva, fora de alcance. O jovem sabia, assim como sabia as horas das marés: no próprio sangue.
Não tinha para onde ir. Com uma dor no coração, reconheceu-o. O povo de Asgrim detestava-o: por cada vida que tirara ao longo dos anos de caçada haveria um homem à espera de vingança, na praia. Não podia seguir Pequenino. Nunca mais veria o seu ente querido porque Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tinham boa memória e apesar de terem violado Sula, ele próprio ferira-os profundamente quando lhes raptara o vidente. Não podia viver entre os homens. Não sabia como. Só conhecia a ilha e a caçada.
A disciplina que impusera a si próprio durante tantos anos não desaparecia com facilidade. No segundo dia após ter perdido os seus dois entes queridos, Guardião percebeu que tinha frio e fome e que o ferimento na cabeça precisava de cuidados. Tomou uma decisão: a única que podia tomar. Ser forte ou desistir. Viver ou morrer. O jovem acendeu a lareira com uma grande quantidade de turfa e deixou-a a arder em segurança no meio das pedras. Foi buscar água fresca. Foi à pesca e apanhou os peixes à moda do povo da sua mãe, com as mãos e com palavras carinhosas. Matou-os com respeito e gratidão, porque a sua espécie tinha-o sustentado e a Pequenino durante muito tempo. Levou-os para a cabana e colocou-os nas brasas a assar.
Em seguida, arrumou tudo. Os cobertores e as capas foram dobrados e armazenados. O mais difícil foi guardar as botas de Pequenino, a sua capa e o chapéu de pele de ovelha que ele sempre se mostrara relutante em usar. No entanto, Guardião também o guardou. Aquelas peças de vestuário nunca mais seriam precisas. Talvez olhasse para elas de vez em quando; ou talvez não. Como recordações, eram desnecessárias.
A dor por aquela perda nunca o abandonaria; estava-lhe entranhada no fundo da alma. Ocorreu-lhe que nunca mais teria botas de pele, roupas quentes, artefatos de ferro e pedaços de madeira. A caçada terminara. Teria de passar a ser frugal.
Guardião comeu o peixe. Depois de acabar, ficou sentado a olhar para o fogo durante algum tempo, pensando que, se deixasse a mente à deriva talvez a visse de novo, muito séria e calada no outro lado da lareira, olhando para ele por cima das chamas com os seus doces olhos azuis plenos de mistério e encanto. Mas não a conseguiu ver. Talvez a visse unicamente em sonhos durante o resto da sua vida.
Após um certo tempo, Guardião pegou na faca que utilizara para pescar e sopesou-a na mão, pensativo. Então, rapidamente, antes que pudesse mudar de idéias, cortou o pequeno colar que usava ao pescoço e o objeto caiu-lhe na mão, uma madeixa suave de cabelos entrançados. O jovem olhou para ela por um momento e disse mentalmente: lamento. Mas estávamos ambos errados. E atirou o colar para o fogo.
No dia seguinte, visitou a gruta mais afastada, onde estavam armazenados muitos artigos provenientes das caçadas. Entre eles, bem lá no fundo, estavam os restos das roupas que Creidhe usava no dia em que a Corrente dos Loucos a lançou para a ilha. Estavam demasiado estragadas para se poderem usar, mas ele lavara-as, secara-as e colocara-as ali; como podia deitar fora algo que estivera em contato com a pele dela? O jovem levou-as para o exterior, tirou uma pequena faca e uma agulha de osso da algibeira, a sua preciosa linha, e confecionou uma peça de roupa para si próprio, uma que pudesse usar secretamente por baixo da camisa, junto ao coração. Vestiu-a e pensou que a sentia contra si, quente, suave, generosa, forte. Guardião pôs de lado os apetrechos e regressou à cabana, onde estava tudo arrumado e limpo. O jovem comeu e dormiu. Na manhã seguinte, foi buscar apetrechos para cavar e para deslocar pedras, foi até ao local que escolhera e começou a construir. Não interessava se a tinham levado. Não interessava se a iam levar para longe, para o outro lado do mar, demasiado longe para a poder seguir. Creidhe fizera-lhe uma promessa. Tinha, também, de manter a fé.
A mensagem chegou quando Eyvind estava em conselho na sua própria casa. Ele, Ash e mais cinco homens, representando as diferentes aldeias de Hrossey e as ilhas a sul. A ameaça dos Caitt era real, apesar das promessas de paz dos seus chefes de guerra; naquele dia, o conselho debatia, calma e urgentemente, em quem se podia confiar. Sabia-se, na casa de Eyvind, que aquelas reuniões não deviam ser interrompidas. Assim, quando Nessa afastou a cortina de lã da entrada e entrou na sala, o seu marido pôs-se de pé, não conseguindo disfarçar a súbita palidez do rosto. No outro lado da mesa, Ash levantou-se lentamente.
— Ela está de volta — disse Nessa simplesmente. — O barco atracou em Stensakir ontem à noite. Sam mandou um rapaz avisar-nos. Pediram cavalos emprestados em Grim e estarão aqui por volta do meio-dia.
Eyvind não sorriu, mas os seus olhos brilhavam quando segurou no braço da mulher para a acompanhar ao exterior da câmara, para a privacidade do átrio.
— Vou imediatamente ter com eles — disse ele, vendo a ansiedade nos olhos de Nessa, o modo como ela apertava as mãos uma na outra por cima da barriga inchada. Não fora aquilo e ela teria, provavelmente, tomado parte no conselho daquele dia. — Levo Ash comigo...
— Eyvind? — Ele esperou.
— Temos de mandar uma mensagem a Margaret. Eu tenho um homem pronto para partir. Creidhe chegou sã e salva, assim como Sam e um outro homem. Mas Thorvald não veio com eles. Não sei como lhe dar a notícia.
— Onde é que está Thorvald? Ele está vivo? — Nessa abanou a cabeça.
— Não sabemos. Temos de esperar até que Creidhe chegue a casa.
Ash aparecera silenciosamente por trás deles. Eyvind virou-se para ele.
— Gostaria que me acompanhasses a cavalo a Stensakir — disse ele muito sério — porque parece que o Sea Dove está de volta, finalmente e a minha filha vem nele. Mas receio que as notícias não sejam todas boas.
— Que aconteceu? — Ash já estava a tirar a sua capa do cabide, na entrada, preparando-se para partir.
— Não sabemos — disse Nessa suavemente. — Apenas que Thorvald não veio com Creidhe e com Sam. Temos de esperar que cheguem. Mas não podemos permitir que Margaret saiba a notícia por acaso. Tenho um homem pronto...
— Eu digo-lhe. — A voz calma de Ash não admitia réplica. — Vou buscá-la e trago-a para aqui. Ela vai querer estar aqui: ouvir o que aconteceu da boca de Creidhe. Vou imediatamente. São boas notícias, em parte, pelo menos; sinto-me feliz por ti. — As suas feições secas, bem definidas, estavam tão bem controladas como sempre; tal como Margaret, nunca dava a entender o que sentia.
— Lamento — disse Nessa, pousando a mão na dele. — Lamento muito. Talvez não seja tão mau como parece. Vai com cuidado.
Na cozinha, a azáfama era grande e a maior parte era provocada por Brona. Quando Nessa regressou à sala do conselho para apresentar uma explicação acerca do comportamento do marido e para se despedir dos homens, a sua filha assumiu o controle das servas, ordenando a preparação de um carneiro com alho e iniciando, com as suas próprias mãos, uma empada especial com ovos, queijo de cabra e cogumelos secos. Eyvind dirigiu-se a cavalo para nordeste, mais depressa do que a sua mulher gostava, se bem que Nessa compreendesse a urgência. Quanto a si, o sentimento que tinha no peito era tanto de ansiedade como de alívio e alegria; ansiara durante aquele tempo todo pelo regresso de Creidhe, preocupara-se, rezara e esperara por aquele dia, mas agora sentia qualquer coisa esquisita. Não era só o fato de Creidhe regressar sem Thorvald, se bem que Nessa soubesse que só isso era causa para desgosto. Sempre estivera ao corrente da inclinação do coração da filha. Mas aquilo que sentia era mais profundo, mais sombrio, um sussurro dos antepassados. Algo estava errado.
Brona cantava, terminando a empada com um enfeite de pastelaria no topo. A jovem estava corada e bonita, as mãos ágeis enquanto trabalhava. A seu lado, Ingigerd observava, solene como uma pequena coruja.
— É possível que Creidhe não tenha fome — comentou Nessa, torcidamente, da entrada. — Se a viagem foi longa, ela vai querer, muito simplesmente, dormir. Tens farinha na cara e na saia, filha. Talvez fosse melhor penteares-te e mudar de roupa. Ingi e eu metemos isso no forno por ti.
Brona olhou para a mãe, muito corada. A jovem não disse nada.
— É claro que, — continuou Nessa solenemente — Sam pode decidir ficar em Stensakir e deixar que Eyvind traga Creidhe para casa.
— Eu não... — começou Brona, mas depois mordeu as palavras. Por vezes a capacidade da mãe de ver para além do que era óbvio era desconcertante. — Eu só...
— Estou a brincar contigo, filha. — Nessa sorria. — Espero que ele venha, já que é um homem responsável. Vai lá e veste as tuas coisas bonitas. Estou contente por te ver sorrir. Nem consigo acreditar que eles tenham regressado.
Mas depois de Brona ter beijado a mãe e de ter partido a correr para o seu quarto com Ingigerd nos calcanhares, o sorriso de Nessa morreu. A dama meteu a empada no forno e ficou junto do fogo a aquecer as mãos e a olhar para as chamas. Apesar do calor da cozinha, sentia um frio interior que não havia meio de desaparecer.
As feições de Sam estavam tensas de ansiedade enquanto cavalgava e o jovem sentia um nó no estômago. A presença de Eyvind só piorava as coisas, porque depois do primeiro abraço de boas-vindas, em que pai e filha se fecharam nos braços um do outro enquanto ele segurava nas rédeas dos cavalos, pouco mais se dissera e ele podia ver Eyvind a olhar para Creidhe não com alegria e alívio, antes com incredulidade e choque. Depois de ter cumprimentado o pai, Creidhe não disse mais nada. Foi Sam que disse a Eyvind, em poucas palavras, que Thorvald estava bem e que decidira ficar nas Ilhas Perdidas. Foi Sam que apresentou Knut, que viajava com eles, e que explicou a sua presença. Sam disse para si próprio que, se calhar, teria de ser ele a contar a história toda ao formidável Eyvind, a Nessa e à mãe de Thorvald. Porque o silêncio de Creidhe não era daquele dia. Durante a longa viagem, enquanto ele e Knut conversavam, brincavam e conduziam o Sea Dove através do oceano na direção das Ilhas Brilhantes, Creidhe estivera sempre fechada dentro de si própria, muda, gelada. Ela percebia o que ele dizia: mudava de lugar quando ele lhe dizia e ajudara nas raras ocasiões em que ele lhe pedira. Preparara comida para os dois homens, comera pouco, ou nada. Não admirava que Eyvind olhasse insistentemente para ela. A sua formosa filha estava da cor da cinza, o rosto redondo magro e marcado, como o de uma mulher velha. Os olhos azuis doces tinham perdido o brilho. Estava assim, recordou Sam, desde o dia em que a tinham resgatado da Ilha das Nuvens. Excetuando a breve e estranha cena em que desafiara Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz acerca do destino do vidente. Mas nem naquela ocasião fora a Creidhe que ele conhecia. A jovem parecera-lhe feroz, orgulhosa e distante. Parecera-lhe uma rainha. E assim que percebera que a criança estava salva, transformara-se no que era agora, como se toda a vida lhe tivesse sido drenada do corpo. Como havia de explicar aquilo?
Quando chegaram os quatro à grande casa onde viviam Eyvind e Nessa e Sam viu a família reunida no exterior para os receber, os seus olhos pousaram de imediato em Brona, com os seus quinze anos, vestida com uma túnica e uma saia de lã verde e uma fita a condizer nos cabelos longos e escuros. A jovem sorriu, um sorriso generoso, brilhante, de delícia, muito simples. A sua pele estava tostada pelo sol e tinha as faces rosadas; os seus olhos cinzentos dançavam, vivos. Brona correu para abraçar Creidhe, assim que esta desceu do cavalo ajudada por Eyvind. Depois, Brona virou-se para Sam e olhou para ele timidamente através das longas pestanas. Sam não conseguia tirar os olhos dela. Há muito tempo que o jovem não via um quadro tão simples, tão saudável; a visão provocou-lhe um estremecimento de prazer por todo o corpo. Talvez, no fim de contas, o seu velho mundo ainda existisse.
— Bem-vindo a casa, Sam — disse Brona. O sorriso parecia ser só para ele.
— Estás com bom aspecto, Brona.
— E tu pareces cansado. E deves ter fome. Fiz uma empada.
Como um raio de sol, pensou Sam. Como um sopro de ar do mar.
O jovem seguiu-a para dentro de casa, chamando a si toda a sua coragem. Se tivesse de contar sozinho a história, contá-la-ia e diria a verdade. No fim de contas, também tomara parte nela: uma parte maior e mais sangrenta do que sonhara quando partira de Stensakir para ajudar Thorvald na sua sombria missão. Contá-la-ia e regressaria à sua velha vida.
Mas foi Creidhe quem contou a história com uma voz clara e precisa, com uma distância fria que manteve a família toda silenciosa. Sentaram-se todos à mesa; ninguém comeu muito. Custava a acreditar na história de Creidhe, mas eles sabiam que ela não mentia e, além disso, nem Sam nem Knut a contradisseram. Num determinado ponto, Sam tentou interromper, como se uma parte da história tivesse ficado por contar; ninguém perdeu o olhar que Creidhe lhe lançou, um olhar que silenciou imediatamente o pescador.
Tinham de acreditar. Tinham chegado, os três, a umas ilhas distantes, onde os jovens tinham sido forçados a treinarem-se como guerreiros, já que o Sea Dove ficara danificado e tinham de ganhar a madeira necessária para o reparar. Com o tempo, Thorvald tornara-se numa espécie de senhor da guerra e levara as suas forças à vitória contra outra tribo. E encontrara o seu pai, o que lhe dera duas razões para ficar quando os outros regressaram a casa. Somerled era um monge, um cristão. Estivera em perigo de vida e eles tinham-no salvo. Agora, tinha um nome diferente. No fim, Sam e Creidhe tinham-se despedido de Thorvald e tinham regressado a casa.
— O irmão Niall, Somerled, é um bom homem; tem um lugar nas ilhas, assim como a sua fé, e agora tem um filho. — O tom de voz de Creidhe alterara-se um pouco; momentaneamente, os seus ouvintes apanharam um eco do seu antigo calor. — E Thorvald mudou. Em algumas coisas. É um homem muito mais importante lá do que alguma vez seria em Hrossey. — A jovem falava, agora, diretamente para Margaret, uma Margaret que, apesar da sua calma aparente, apertava as mãos com força e estava suspensa de cada palavra.
— Os homens respeitam-no muito — continuou Creidhe. — Eu acho que ele vai fazer um bom trabalho.
— Creidhe — disse Eyvind cuidadosamente — onde estavas tu enquanto Sam e Thorvald faziam os preparativos para a guerra? Que andavas a fazer?
Creidhe olhou para o pai com uns olhos grandes e vazios.
— Nada de especial — disse ela.
Sam abriu a boca; Creidhe olhou para ele; e fechou a boca mais uma vez.
— Tu estás cansada, filha — disse Nessa com um ligeiro franzir de sobrancelhas. — Creio que estamos a exigir muito de ti. Por que não vais descansar? Temos muito tempo para conversar. — A dama olhou para Sam e para Knut. — Por favor, aceitem a nossa hospitalidade esta noite. É uma longa viagem a cavalo depois de um dia tão longo.
— Obrigado — disse Sam — mas acho que é melhor ir para casa. Estive muito tempo fora; tenho de ver como está o barco, arranjar alojamento para Knut e começar a faina da pesca o mais depressa possível. Mas volto dentro de pouco tempo. Se não for nenhuma maçada. — O jovem não conseguiu deixar de olhar na direção de Brona enquanto dizia aquilo; ela estava sentada com a irmã no colo e lançou-lhe um sorriso e um olhar ardente.
— Serás bem-vindo — disse Nessa, apesar de Eyvind não ter feito qualquer comentário. — Agradecemos-te por teres trazido a nossa filha sã e salva, apesar de a viagem ter sido uma loucura.
— Viagem que, sem dúvida, o meu filho te persuadiu a fazer. — O tom seco de Margaret não escondia o fato de que estava quase a chorar. — Eu também te quero agradecer, Sam; e a ti, Knut, por teres vindo com eles. Ainda bem que já estás em casa. Espero que Thorvald nos visite, um dia. Parece que a distância é menor do que vocês supunham.
Creidhe quebrou o silêncio que se seguiu.
— Tenho uma carta para si, tia Margaret. Deram-me para que lhe entregasse.
Margaret olhou para ela com os seus olhos escuros muito atentos, como se quisesse defender-se de mais sofrimento.
— Não é de Thorvald — acrescentou Creidhe, e tirou um pequeno pergaminho da bolsa que tinha no cinto. A carta estava atada com um cordel encarnado.
A mão de Margaret tremia quando pegou nele.
— Desculpem-me — disse ela e levantou-se, afastando-se na direção da porta. Os homens levantaram-se respeitosamente. Junto da entrada, Margaret fez uma pausa e virou-se para eles. O seu rosto estava pálido; os olhos estavam marejados de lágrimas.
— Ash? — chamou ela e estendeu uma mão. Ele atravessou a sala em três passadas e passou-lhe um braço pelos ombros em frente de toda a gente. Ficaram todos a saber o que se passava, sem necessidade de quaisquer palavras. O casal saiu e a porta fechou-se.
— Eu estou bem, mãe — protestou Creidhe enquanto Nessa lhe aconchegava os cobertores à luz difusa do quarto que a jovem partilhava com Brona. — A sério. Tu é que devias estar a descansar, com essa criança na barriga. Tens a certeza de que não é um par de gêmeos? Devias ter-me dito antes.
— Não tinha a certeza. — A expressão de Nessa era muito séria enquanto se sentava na cama, perscrutando as feições magras e os olhos parados, sem vida, da filha. — Estou tão contente por estares em casa, Creidhe. — A dama desejara falar com Creidhe acerca do bebê, dos seus medos quando do parto e do preço que a Tribo das Focas lhe poderia exigir. Creidhe compreendia aquelas coisas melhor do que Eyvind. Creidhe consolá-la-ia, tranquilizá-la-ia e dar-lhe-ia conselhos práticos. Mas não podia sobrecarregar Creidhe com os seus problemas. Sentia que aquela sua filha, antes tão forte e capaz, transformara-se no espaço de uma única estação, numa pessoa tão frágil e delicada como um ovo. Tinham de ir com cuidado; tinham de dar tempo ao tempo. — Dorme — disse Nessa, afastando-lhe o cabelo da fronte. — Já estás em casa.
— Mãe? — A voz da jovem era um suspiro.
— Sim?
— Não deixes que o pai encha o Sam de perguntas. Eu já vos contei o que aconteceu. Saberão mais pela carta do irmão Niall. Mais nada. Sam tem de voltar à vida que tinha. Ele não teria ido se não fosse Thorvald.
— E tu?
Creidhe olhou para ela.
— Eu? — perguntou ela sem expressão.
— Que vais fazer?
— Não sei — disse Creidhe, e fechou os olhos.
Durante algum tempo, Nessa pensou que Creidhe chorava a perda de Thorvald, a quem sempre fora profundamente leal desde a infância, a quem seguira até ao fim do mundo. Eyvind fizera o possível por arrancar a verdade a Sam, mas com pouco sucesso. O guerreiro descobriu que Creidhe estivera prisioneira por um breve período de tempo; de que havia a possibilidade de ter sido abusada durante esse tempo. Ao ouvir aquilo, Eyvind quase descarregou a sua fúria sobre Sam por não a ter protegido, por não ter previsto um tal ultraje, mas a dignidade natural e dor óbvia de Sam esfriaram a fúria do homem mais velho. Era evidente que o pescador dera o seu melhor; era evidente, também, que o que acontecera naquele lugar remoto não só magoara Creidhe, como provocara em todos uma mudança profunda.
Thorvald, um condutor de homens: era um pouco difícil de engolir, porque apesar de o rapaz ser inteligente e capaz, era também taciturno, volátil e sujeito a acessos de autodesprezo. Quem seguiria um homem assim? Sam também estava diferente: mais duro, mais velho. E Somerled. Esse era o mais espantoso. Somerled, um eremita. Somerled, um cristão que, revelara Margaret depois de ter lido a carta, preferira a solidão e o saber depois de ter corrido o risco de se deixar seduzir, de novo, pelo poder. Somerled cumprira, de fato, a sua promessa; tornara-se o homem que Eyvind lhe rogara que fosse. Era estranho e prodigioso. Era profundamente comovedor, como se, finalmente, um artista terminasse uma tapeçaria e o trabalho se revelasse uma coisa bela, quando a princípio tudo levaria a crer que fosse uma coisa torta, feia. Somerled devia ser um homem verdadeiramente feliz, pensou Eyvind apesar da ansiedade que sentia por Nessa, para não falar em Creidhe. A mudança nela era chocante, assustadora; deixava-o profundamente inquieto.
Todos concordaram que ela precisava de tempo. Assim, o mês das colheitas veio e terminou, os dias ficaram cada vez mais pequenos e os ventos mais frios e a família movimentou-se à sua volta com cuidado, evitando perguntas estranhas, exigindo-lhe pouco, poupando-lhe a necessidade de comparecer em reuniões públicas, como casamentos e dias de festa. E viram, com grande desgosto, que o tempo, por si só, não curava a dor que Creidhe sofria. A jovem fazia a sua rotina diária mais ou menos normal, ajudando na casa e indo a casa de Margaret para fiar ou tecer. Andava sempre asseada e falava a todos com uma cortesia distante. Mas parecia uma imitação da velha Creidhe, outra rapariga tentando imitar aquela que eles conheciam e amavam e que não sabia que, em tempos, ela fora o centro vibrante das atenções quando entrava num lugar qualquer. Não era o atributo da beleza, ou do encanto, da gentileza, ou da bondade, eram todos eles juntos com mais qualquer coisa, algo esquivo cujo nome ninguém conhecia, mas cuja perda todos lamentavam.
Com o tempo, habituaram-se. Enquanto Creidhe estivera ausente, Brona assumira muitas das responsabilidades domésticas da irmã e agora mantinha-as, planejando-as antecipadamente para que tudo estivesse sempre pronto em caso de visitas, supervisionava Ingigerd, preparava refeições especiais. Era para Brona que a pequena Ingi se virava, depois da mãe; esta irmã mais nova era tímida em relação à nova Creidhe, que não gostava de contar histórias, de mimos ou de lhe pentear os longos cabelos. Quanto a Nessa, fechava-se cada vez mais sobre si própria à medida que a data do parto se aproximava. A dama escondia a sua preocupação para não preocupar Eyvind mais do que o necessário. E Eyvind deixou de procurar possíveis pretendentes quando viajava pelas ilhas consultando os proprietários de terras e participando em conselhos, porque era evidente que já não era apropriado e talvez nunca mais fosse. Faltava Brona, claro. Todos sabiam da preferência de Brona; Sam tornara-se visitante freqüente e se bem que, por vezes, conversasse sozinho com Creidhe e parecesse capaz de lhe animar um pouco as feições, passava a maior parte do tempo a olhar para Brona e ela para ele com uma expressão indesmentível. E Eyvind, que nunca pensara que as filhas de Nessa, descendentes da antiga linhagem real dos Folk, pudessem casar com camponeses ou pescadores, olhava para Creidhe, abatida e desanimada, e para Brona, cintilante de saúde e felicidade e sabia que teria de dizer sim quando Sam, finalmente, conseguisse a coragem para lhe falar no assunto. Mas não já, no entanto; eles que esperassem um pouco e que provassem que o que sentiam era forte e sério. O próximo Verão não estava longe.
Quando faltava apenas um mês para o bebê de Nessa nascer, a filha mais velha de ambos, Eanna, a sacerdotisa, chegou com o seu gato num cesto e instalou-se por algum tempo. A sua presença trouxe a calma; a jovem mulher sábia era profundamente respeitada nas ilhas como guardiã dos costumes antigos dos Folk, uma fé que perdurara ao lado de outras mais novas, como os rituais de Odin, de Thor e de Freyr trazidos pelo povo de Eyvind e os ensinamentos cristãos espalhados pelo irmão Tadhg e seus camaradas. A família de Eyvind seguia os velhos costumes apesar da juventude do guerreiro em Rogaland e da sua vida como guerreiro de Thor. As ilhas tinham-no mudado; Nessa mudara-o.
Eanna consultara os antepassados a propósito de Creidhe. Enquanto observava Creidhe, a sacerdotisa guardava algumas imagens na mente; pensava em certos conhecimentos que guardara para si até ali. Devido à sua posição, Eanna estava instalada numa pequena casa à parte, mas tomava as refeições com a família. O gato desertara e aproximara-se de Ingi, que andava com ele por toda a parte, mostrando-lhe os cantos da casa, o pátio, os estábulos e os campos murados. Eanna observava. A sua família era infeliz, profundamente, apesar da aparência. Havia segredos. Algumas coisas estavam destinadas a permanecer secretas e assim deviam continuar. Mas não aquilo, fosse o que fosse. Aquilo estava a destruir a sua família. Nessa andava pálida e ansiosa, Eyvind demasiado calado, a criança passava por Creidhe em bicos dos pés, como se esta fosse um fantasma. Brona era a única que parecia feliz, mas até ela parecia cansada.
Eanna tentou a sua sorte uma tarde, quando Nessa tinha ido descansar por ordem do marido e as mulheres andavam ocupadas nos campos. Brona levara Ingi e fora apanhar ovos; um olhar da irmã mais velha dissera-lhe que devia demorar-se. Eanna sentou-se com Creidhe num banco em frente das chamas da lareira de turfa.
— Eu preciso... — começou Creidhe a dizer, levantando-se.
— Não. — A voz de Eanna era calma mas firme; um tom que não admitia réplica. — Deixa-te estar aí. Quero falar contigo.
Creidhe voltou a sentar-se, muda. Os seus cabelos louros estavam presos atrás com rigidez. Não havia cor nas suas faces. As suas mãos torciam-se no colo.
— Brona disse-me que tu deixaste de bordar a Jornada — disse Eanna.
Creidhe pestanejou; a pergunta espantou-a.
— Porquê, Creidhe?
Creidhe começou a falar, hesitou e tentou de novo.
— Não consigo — disse ela, — sem forças.
— Não consegues? Por que não?
— Porque... porque não consigo ver o que vem a seguir. — Havia um som sem esperança na voz de Creidhe, uma terrível resignação. — Vejo tudo branco, como se tivesse feito qualquer coisa mal e tivesse parado. Não sei o que hei de fazer.
Eanna suspeitou que ainda ninguém conseguira mais de Creidhe desde que ela regressara a casa. A gentileza da família não fora de grande ajuda. Talvez fosse melhor adotar outra atitude.
— Isso é muito egoísta da tua parte, Creidhe.
Creidhe não respondeu.
— E a mãe? A última coisa de que ela precisa neste momento é de ti, a vaguear pela casa preocupada apenas com as tuas tristezas, quando tem uma criança com que se preocupar. Ela anda tão preocupada contigo que nem dorme e precisa muito de dormir. Tu não eras egoísta.
— Ela não precisa de se preocupar. Não precisa de se preocupar comigo. — O tom de voz de Creidhe não mudara.
— Não? Nesse caso, tenta comportar-te um pouco mais como uma mulher viva e menos como uma boneca de trapos, sim? Se parasses um pouco para pensar na mãe, verias que ela anda aterrorizada com o nascimento, com medo que o bebê morra, com medo que a Tribo das Focas lhe roube outro filho como pagamento pelo favor que lhe fez em tempos. E o pai tem medo de a perder a ela ou ao bebê, ou ambos. Ingi parece fingir que tu não estás aqui: já viste como ela te evita? Isso é bom para uma criança? Fosse o que fosse que tenha acontecido, tu deves falar, atirar tudo cá para fora. Estás a magoar toda a gente. Isso tem de parar.
Creidhe olhou para as mãos e não disse nada.
— Responde-me, Creidhe. — De novo aquele tom: não a voz de uma irmã, antes a de uma sacerdotisa, idosa e exigente.
— Eles deviam dar-se por felizes — disse Creidhe, olhando para cima. — Sam e eu regressamos sãos e salvos, Thorvald é feliz, Somerled tornou-se um homem bom... Que mais querem eles?
— Querem a velha Creidhe. Querem que tudo seja como antes.
— A velha Creidhe já não existe. Morreu. Morreu quando... quando...
Qualquer coisa, pensou Eanna. Por fim, qualquer coisa, se bem que a irmã tivesse mordido o lábio e tivesse deixado de falar.
— Quando Thorvald decidiu ficar e te mandou para casa? — arriscou ela. — Pelo menos, é o que a mãe pensa.
Creidhe olhou para ela com os olhos muito abertos, surpreendida.
— Thorvald? — repetiu ela.
— Pareces espantada — disse Eanna, secamente. — No entanto, passaste a tua infância a segui-lo por todo o lado como um escravo fiel. Foste com ele nessa viagem louca. É evidente que esperavas qualquer coisa disso tudo. — Era cruel, talvez. Mas se a crueldade forçasse Creidhe a acordar, acenderia uma centelha nos seus olhos, nem que fosse de ira, então, usá-la-ia.
— Eu não casava com Thorvald nem que ele fosse o último homem do mundo — disse Creidhe naquela voz miúda, fria. — Sinto-me feliz por ele ter encontrado o pai e um futuro, para bem da tia Margaret. Mas é só isso. Espero nunca mais o ver na minha vida.
— Creidhe — disse Eanna calmamente. — Thorvald magoou-te? Foi ele que...?
— Que o quê? — Era evidente que Creidhe ia facilitar as coisas à irmã.
— Sam disse qualquer coisa... sugeriu... ao pai, que tinhas sido magoada, de certo modo, quando estiveste prisioneira... que talvez algum homem te tivesse forçado...
— Sam não sabe nada. Não percebe nada de nada. E Thorvald também não. Tudo o que ele quis foi vencer uma guerra e impressionar o pai. Nem no fim compreendeu o que fez quando... quando...
Eanna aproximou-se e pegou nas mãos da irmã. Estavam tão frias como as de um cadáver.
— Conta-me, Creidhe. O que é que ele fez? Que coisa foi essa tão terrível, que tu nem te atreves a bordá-la na Jornada?
Creidhe abanou a cabeça e fechou os olhos.
— Não posso. Não consigo contar-te. De certo modo, se não contar, se não partilhar isto, posso guardá-lo... guardá-los... como eles eram, vivos dentro de mim, no fundo da minha alma. Consigo vê-los e ouvi-los... Se falar deles, desaparecem e se isso acontecer não sei se conseguirei continuar, nem sequer a fingir...
Finalmente, a verdade. Posso guardá-lo... Não Thorvald, nem Sam, mas outro. E Eanna pensou que talvez soubesse quem era.
— Procurei no fogo por ti — disse ela lentamente. — Fiz um padrão de bom augúrio, procurei o conselho da mãe Terra. Tenho coisas para te dizer, irmã, se as quiseres ouvir.
— Não é preciso — disse Creidhe sem expressão. — É demasiado tarde para mudar as coisas.
— Nunca é tarde — disse Eanna. — As coisas estão sempre a mudar. E não o fiz por ti, acredita-me, fi-lo pela mãe e por Margaret, ambas tão ansiosas pelos filhos que tanto amam. Os antepassados têm muito a dizer a teu respeito e da tua viagem. Parece-me que a verdade é mais complexa do que a história que tu contaste à família.
— Eu não menti.
— Talvez não; e Sam é leal. Disseram-me que ele se recusa a preencher os espaços em branco. Eu vi uma criança na história, uma criança poderosa e um guerreiro jovem. Não falei a ninguém destes dois por serem o que são. A mãe tem razão para estar ansiosa por causa da Tribo das Focas. Como já te disse, ela tem medo por causa do bebê.
— Isso é um disparate! — Creidhe desprendeu as mãos das de Eanna. — Eles nunca o levariam e também não levaram Kinart! Os da Tribo das Focas amam as ilhas e protegem todos aqueles que honram os poderes antigos. Eles dão valor à vida; não roubam crianças. Isso são histórias antigas contadas à lareira às crianças para as manter afastadas das praias perigosas. Eles não farão mal à mãe ou ao bebê.
— Pareces muito segura disso. — Eanna observou Creidhe de perto.
— Tenho a certeza. Ele disse-me.
— Quem?
Silêncio. Creidhe fechou a boca, que se transformou numa linha fina.
— Deixa-me dizer-te uma coisa, Creidhe. Eu tive uma visão na última lua cheia, quando desenhei um círculo e me mantive vigilante durante toda a noite. Vi um homem, selvagem e feroz, despedaçando rochas com um martelo, trabalhando como se quisesse associar todo o seu ser ao que estava a fazer. Usava umas roupas diferentes, decoradas com muitas penas. Era um homem muito esbelto, desgastado pelo tempo, com cabelos escuros atados atrás com uma fita de pele. Jovem; pouco mais velho do que tu. A encosta onde ele estava era íngreme e coberta de erva; voavam muitas aves por cima. Não percebi o que ele estava a fazer, talvez um muro para abrigar algumas ovelhas, talvez uma cabana para o gado. Chovia e ele continuava a trabalhar como se não a sentisse. Falava para si próprio enquanto trabalhava e eu percebi o teu nome. Muitas vezes. Ele repetia-o como se fosse uma espécie de talismã. Eu já o tinha visto antes, em visões. A última vez também te vi a ti bordando a Jornada e com uma criança toda esfarrapada nos joelhos.
Eanna olhou para a irmã. O momento era parecido com aquele em que um dique começa a transbordar; primeiro, tremeu uma lágrima nos olhos azuis, que lhe caiu para a face, logo seguida por outra, depois outra, depois outra e, num silêncio total, Creidhe levou as mãos ao rosto e chorou. Eanna não disse nada. Não lhe ofereceu o conforto de uma carícia ou de umas palavras. Ambas sabiam que as visões dos antepassados mostravam o antes, o agora e o depois misturados, juntamente com um cruel talvez e um podia ter sido. Cada um interpretava o seu significado como se estivesse a resolver um quebra-cabeças, um quebra-cabeças com muitas soluções possíveis.
Os ombros de Creidhe tremiam e a jovem continuava com o rosto metido nas mãos, como se tentasse conter o fluxo da dor. Tinha guardado aquelas lágrimas durante muito tempo.
— A Tribo das Focas — disse Eanna, finalmente. — Estás a chorar por um dos da Tribo das Focas.
— Não precisas de te preocupar — disse Creidhe meio sufocada. — Ele está morto. Thorvald matou-o.
Eanna absorveu aquilo. Creidhe dissera: Ele está morto,
— E a criança? — perguntou ela.
— Está bem e feliz... um grande vidente... salvou o povo e conseguiu a paz. Mas foi demasiado tarde para Guardião.
— Guardião. É esse o nome? E tu ama-o. — Não havia julgamento naquele tom de voz.
— Com toda a minha alma. — Creidhe disse aquelas palavras num tom de voz tal, que a irmã sentiu um formigueiro na espinha; não era a voz de uma rapariga apaixonada, era um juramento profundo, real. — Nunca pensei que um laço assim fosse possível... Ele não merecia morrer, era tão corajoso, tão leal e tão forte...
— Viste-o morrer? Testemunhaste-o? — Cruel, de novo, mas tinha de aproveitar a vantagem que conseguira; Creidhe tinha de lhe contar tudo.
— Não. Eu estava inconsciente. Disseram-me mais tarde. Thorvald. Foi ele que me disse. Eles eram inimigos. Um jurou proteger Pequenino... o vidente... e o outro jurou caçá-lo. Guardião morreu por minha culpa. — A voz muito baixa, agora, como a de uma criança. — Tentei detê-los. Se não o tivesse feito, Guardião teria ganho. Ele era muito melhor. Nunca perdeu uma batalha, até àquele dia.
— Nesse caso, Thorvald teria morrido. — Nenhuma resposta.
— Sabes, Creidhe — disse Eanna cuidadosamente — como são difíceis de decifrar as mensagens dos antepassados; podemos passar uma vida inteira sem o conseguirmos. Na verdade, alguns de nós não fazem outra coisa. Diz-me uma coisa, será possível tu estares errada? Achas que será possível esse homem estar vivo? — Eanna não contou a Creidhe a sua própria interpretação da visão, nem a sua quase certeza de que ela lhe mostrara o agora, não o antes. Creidhe abanou a cabeça.
— Por que havia Thorvald de mentir? Por que havia de poupar a vida de Guardião? Thorvald odiava-o pelo que ele fizera, por todos os homens que ele matara ao longo dos anos, por fazer com que a guerra continuasse. Nunca compreendeu por que razão Guardião o fez, nem sequer sabia o que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tencionavam fazer a Pequenino. É claro que o matou.
— Mesmo assim.
— Não tentes consolar-me com falsas esperanças, Eanna. É uma crueldade. Desejaria ter as tuas visões, ouvi-las, encontrar consolo nelas. Mas não acredito nelas. Não vejo nenhuma razão para Thorvald me dizer aquilo se não fosse verdade.
— Porque tinha ciúmes? — perguntou Eanna suavemente. Creidhe olhou para ela por um momento e depois desatou a rir perdidamente, um som que gelou a irmã, de tal modo era amargo.
— Thorvald? Com ciúmes? Ele nunca olhou para mim, sequer. Thorvald só gosta dele mesmo.
— Não houve alguém que disse que ele agora é um condutor de homens? Respeitado? Um homem egoísta não pode ser um condutor de homens.
— Talvez tenha mudado — concordou Creidhe relutantemente. — Um pouco, só.
— E também pode ter mudado no que respeita ao que sente por ti. Isso faria alguma diferença para ti, Creidhe?
— Nada pode fazer diferença.
Eanna respirou fundo e deixou sair um suspiro. Não passaria tudo daquilo, de um argumento atrás do outro, sempre à roda?
— Creidhe — disse de novo a sacerdotisa — eu quero fazer-te um pedido e dar-te um conselho. Não te vou dizer que deixes de ter piedade de ti própria e que arranjes outro homem; pela tua voz, percebo que este foi o único, e lamento, se bem que, ao contrário de ti, eu ache que nada é certo. Peço-te, como tua irmã, que fales com a mãe hoje, que a tranqüilizes e que lhe prometas que a ajudas quando do nascimento, como sempre. Pode parecer-nos óbvio, mas ela precisa de o ouvir da tua boca. E tens de lhe falar da Tribo das Focas.
— Mas...
— Não interessa quanto lhe dizes ou como lhe dizes. Certifica-te, apenas, de que ela deixa de ter medo. Ela precisa de ti, Creidhe. Todos nós precisamos.
— Tu não, certamente. — O tom de voz era seco.
— Ficarias surpreendida — disse Eanna. — E agora o pedido. Quero que comeces outra vez a trabalhar na Jornada.
— Não posso...
— Tu disseste que não sabias como iria ser daqui para a frente. Mas eu acho que há uma parte do teu trabalho que tu és capaz de fazer, mas que não queres fazer porque tens medo. Se ele morreu e a criança está salva, de que tens medo? — Aquilo também não foi nada caridoso; as faces pálidas de Creidhe ainda ficaram mais pálidas. — Por isso, tira o teu trabalho cá para fora, tira as tuas linhas e faz essa pequena parte, pelo menos. E escuta o que os antepassados te murmuram ao ouvido, irmã. Por mais escuro que esteja o dia, por mais difícil que seja o caminho, eles estão sempre presentes. Arranja espaço no teu coração para eles, por mais destroçado e triste que esteja. Talvez fiques surpreendida.
CAPÍTULO QUINZE
Esta vida contemplativa é muito mais segura, acredita-me, tanto para mim como para aqueles que se cruzam no meu caminho. Não esqueço o passado; lembro-me do que fui. Ao olhar para ele, não sinto a falta do que outros homens têm: o calor da família, a segurança do lar e da comunidade e um lugar no mundo dos homens. Essa é a vida do nosso filho, não a minha. Ele não precisa de ter medo de mim. Nunca o desafiaria. Ele já é um homem melhor do que eu alguma vez serei e agradeço-te por isso do fundo do coração. Tratei-te mal; não sabia mais. Em troca, deste-me um presente sem preço. Prometo-te que o ajudarei, que o aconselharei e que o amarei como um bom pai deve fazer. É tudo o que te posso dar como recompensa.
Quero que saibas que a minha vida de trevas se transformou em luz não só por causa do regresso deste filho que não sabia que tinha, mas também por causa do amor e orientação de um Deus cuja existência, até ao último Verão, era, para mim, um mistério maior do que Thorvald. Não sou digno de tanta alegria: festejo, maravilhado, cada dia. Com toda a sinceridade, desejo-te uma vida de igual contentamento. Por me teres dado este filho e por o teres criado até se tornar no homem que é, não mereces menos.
EXTRATO DE UMA CARTA
Era novamente Primavera: passara-se um ano desde que Margaret dera a carta ao filho e o enviara a correr, através do oceano, em busca do homem que era o seu pai. Agora, os montes verdes de Hrossey tinham cordeiros novos e nas falésias a sul de Whaliback os dentes-de-leão floresciam em grande profusão sob o calor suave do sol.
Creidhe estava cansada de tecer. Fizera um certo número de cobertores simples, pesados, e uma tapeçaria para ser oferecida a um nobre em Rogaland. Eyvind ia lá no Verão com uma delegação em busca de oportunidades de comércio junto dos Jaris da região. O desenho da tapeçaria não era da sua autoria; as idéias que em tempos tinham sido a sua força tinham desertado da sua mente. A jovem já não procurava criar novos tons, novas cores, ou orlas intrincadas. Fizera o que Margaret lhe pedira e estava bem-feito, mas não era obra sua. Fosse o que fosse que tivesse perdido quando Guardião morrera, era o mesmo que criara os seus belos e mágicos trabalhos. Não valia a pena continuar a tentar. Não conseguia.
As costas doíam-lhe e os olhos estavam fartos da tarefa monótona: o trabalho era simples, tinha a cor natural da lã do rebanho de Margaret e a única habilidade requerida era manter a urdidura justa. Creidhe levantou-se, espreguiçou-se e caminhou ao longo da grande sala da casa de Margaret. De Margaret e de Ash. Tinha de se habituar ao fato de que eles se tinham casado; tinha de se acostumar à visão espantosa de uma Margaret feliz. Aqueles dois, que tinham partilhado a casa como patroa e empregado, tinham-se transformado pelo que acontecera. Pareciam um par de jovens apaixonados, tocando-se mutuamente à passagem, trocando sorrisos tímidos e murmurando palavras doces. Creidhe vira corar as feições de Margaret; vira um certo olhar nos olhos cinzentos de Ash que significavam, muito simplesmente, um desejo ardente. Receberam Creidhe em sua casa com alegria, como sempre fora o caso; preocupavam-se com ela, tal como os pais. Por outro lado, também era evidente, quando Creidhe se despedia e ia para casa, que ficavam satisfeitos por ficarem sozinhos, com exceção dos discretos e bem treinados homens e mulheres da herdade. Os laços entre Ash e Margaret podiam interpretar-se no modo como se moviam, como olhavam um para o outro, em cada nota das suas vozes.
Creidhe sentia-se feliz por eles. Mas, por baixo dessa felicidade, havia algo difícil de suportar, uma recordação dolorosa da alegria que podia existir na descoberta do par perfeito e no golpe mortal sofrido quando esse par morre. A jovem tentara, arduamente, abstrair-se desse sentimento. Tentara ser um pouco como Margaret em tempos fora, calma, distante, atravessando os dias imune à dor ou à alegria. Mas Creidhe não conseguira. Bastava uma coisa pequena, observar, por exemplo, Sam e Brona partilhando uma anedota à lareira, ou a maneira como o pai segurava o recém-nascido nos braços, como se o bebê fosse um tesouro mais valioso do que todo o ouro na caverna de um dragão, ou reparar na mão áspera de Ash estendendo-se para tocar nos cabelos ruivos da mulher num gesto de ternura. Coisas como aquelas reavivavam a dor de Creidhe de tal modo, que a jovem sentia o coração despedaçado, incapaz de suportar a sua intensidade.
Um ano. Era evidente que a família esperava que ela já estivesse melhor, que tivesse começado a esquecer. Mas tudo parecera piorar, tudo a fazia recordar-se. O nascimento do pequeno irmão, Eirik: fora uma ocasião de alegria porque, uma vez a sua mãe tranqüilizada a propósito da Tribo das Focas, de uma maneira um tanto vaga, o parto decorrera calma e facilmente. Eirik era um rapaz robusto de cabelos louros, bem constituído; saía ao Pele-de-Lobo que era o seu pai. E Creidhe pensara em Guardião, que tão bem tomara conta do seu pequeno e frágil parente; Guardião, a quem a lâmina rápida de Thorvald roubara a possibilidade de ter um filho ou uma filha para amar como amara Pequenino. A jovem agarrara-se à esperança, durante algum tempo, de que talvez transportasse no ventre o seu filho, mas não fora assim. Fora um dia bem negro, aquele em que o período lhe aparecera; tão negro que quase contara toda a verdade a Brona, para poder dizer em voz alta o nome de Guardião. Mas não o fizera; Brona sentia-se feliz, isso fazia Sam feliz e por que razão haveria Creidhe de estragar essa alegria merecida? Eles não tinham culpa do que lhe acontecera. Além disso, manter a verdade dentro de si, secreta, parecia-lhe necessário; o pior seria quando as recordações começassem a desvanecer-se. Eram tudo o que lhe restava.
A jovem sentou-se nos degraus com o saco a seu lado e deixou que o sol tépido da tarde a aquecesse. Em breve, iria para casa; estava um dia bom para caminhar e as viagens solitárias de sua casa até a casa de Margaret e a volta eram, de certo modo, calmantes. Sob o grande céu, com a música do mar nos ouvidos e a curva suave da encosta na sua frente, era capaz de se lembrar de como era pequena na memória dos antepassados, quão minúscula e insignificante era a sua dor na longa história do seu povo. Não lhe provocava alívio, mas fazia com que a aceitação se aproximasse mais. Ainda não a conseguira, porque a aceitação parecia-lhe ser a morte da esperança. E, sem esperança, de que valia a pena viver? A princípio, pensara que não tinha esperança nenhuma, mas não podia ser: se a esperança não existisse, algures no interior do seu espírito, porque se dera ao trabalho de regressar a casa? Por que não atirar-se de uma falésia, ou cortar os pulsos com uma faca, pondo fim à dor de uma vez por todas?
Tivera razões para continuar, claro: ajudar o filho da sua mãe a nascer, ver Sam e Brona casados e evitar mais desgostos à sua família. Mas ela sabia que, mesmo sem elas, nunca conseguiria pôr fim à sua vida. A vida era demasiado preciosa para ser tratada com tanto desprezo. Cabia aos antepassados decidir quanto tempo devia durar um ser humano, não aos homens, ou às mulheres. Se ainda estava viva, apesar da dor, era porque havia um propósito. E propósito significava, de certo modo, esperança.
Apesar disso, não seguira os conselhos da sua irmã Eanna, pelo menos não na totalidade. Tirara a Jornada do saco, olhara para ela e guardara-a de novo. Renovara a provisão de lãs coloridas, substituíra agulhas perdidas e afiara a sua pequena tesoura. Mas não bordara um único ponto. Os seus dedos pareciam não ter vontade para essa tarefa e a sua mente não tinha um padrão de idéias.
O Sol estava quente; o seu calor fazia-lhe doer menos as costas e fazia-lhe reviver as mãos entorpecidas. Por cima, passavam pequenas nuvens gordas; a jovem podia ver a sua sombra através da encosta, dos diques e dos aglomerados rochosos. Luz... sombra... luz... sombra... Uma gaivota passou-lhe por cima, gritando alto, com voz áspera. Uma voz silenciosa, feroz no seu apelo, ouviu-se por trás daquele chamamento, gelando-lhe o sangue. Borda-o no teu trabalho, agora, agora! Pequenino acreditava, assim como Guardião. Seria possível que também Eanna, uma mulher sábia, acreditasse que Creidhe, com a sua agulha e lãs, tinha um poder extraordinário? Poderia tê-lo salvo? Precisaria apenas, na verdade, de bordar a sua imagem no tecido para determinar se teria seguido em frente, ou se teria tombado sob a espada de Thorvald? Creidhe estremeceu. Não era nenhuma deusa, apesar das palavras doces de Guardião. Era uma mulher de carne e osso, normal, fraca, impotente... e era demasiado tarde.
Uma lógica fria falou no seu coração: a voz da sua irmã, a sacerdotisa, ou talvez a sua própria voz. Se é demasiado tarde, nesse caso não pode provocar dano nenhum. Porque não tentas? Porque não acabas o que começaste? Pelo menos, o esforço de fiar, de tingir e pôr de parte todos esses materiais não terá sido em vão. Pega no teu trabalho outra vez. Enfia a linha na agulha. Vê se a tua mão faz um ponto, ou dois, ou três. Não continuar é o mesmo que morrer. Significa que desististe da vida. Avança com a Jornada. Guardião não merece menos.
Foi estranho descobrir, depois de tanto tempo afastada da mais querida das suas tarefas, que os seus dedos lhe obedeciam instantaneamente, que a escolha da cor, o ponto de partida e o padrão surgiam como sempre na Jornada, sem qualquer decisão da sua parte; como as suas mãos trabalhavam cada vez mais rapidamente e os seus olhos perscrutavam a extensão vazia do tecido cada vez com mais intensidade à medida que as imagens que a encheriam se formavam na sua mente, prontas para serem desenhadas pela agulha e pela lã, dando-lhes uma forma física. A jovem bordou enquanto o Sol ia descendo, a brisa subindo e as ovelhas se dirigiam para o redil com as suas crias. Creidhe bordou enquanto o céu arrefecia e escurecia; a jovem continuou até quase não conseguir distinguir o azul-marinho do verde das searas, o vermelho do púrpura. A certa altura, Ash apareceu com uma capa e colocou-lhe pelos ombros; acendeu uma candeia e pousou-a nos degraus. Um pouco mais tarde, Margaret trouxe-lhe um pouco de sopa e de pão e deixou tudo a seu lado. Um homem passou por ela em direção a norte, provavelmente com uma mensagem para Nessa e Eyvind, para que soubessem que ficava ali naquela noite. À parte essas pequenas coisas, não a perturbaram. A jovem não tinha consciência do tempo, do lugar, do frio ou da escuridão, apenas da necessidade de continuar, uma necessidade tão feroz e urgente como a súplica de Pequenino naquele dia, quando os dois tinham esperado, escondidos enquanto a caçada rugia por cima deles, nas falésias da Ilha das Nuvens.
Creidhe estava enroscada nos degraus quando Ash e Margaret foram ver se tudo estava bem, pouco depois do jantar. A jovem tinha a cabeça encostada a uma mão; a outra apertava o tecido contra o peito. As agulhas e as linhas tinham sido guardadas; Creidhe sempre fora uma trabalhadora ordenada. A sua respiração era calma; as suas longas pestanas estavam pacificamente fechadas sobre os olhos azuis. A jovem dormia como uma criança.
Enquanto Ash transportava Creidhe para a cama que a mulher lhe tinha preparado, Margaret pegou na Jornada, no pequeno saco e levou tudo para dentro, ao abrigo do orvalho. Aquele bordado sempre fora o trabalho mais precioso de Creidhe e o seu maior segredo. Apesar disso, a curiosidade foi superior a Margaret. Quando Ash regressou à sala, ela estava junto da mesa com o tecido de cores delicadas e intrincados pormenores misteriosos aberto diante de si, sob a luz dourada de uma candeia. Margaret estava imóvel, em transe.
— Olha — disse ela simplesmente — olha para isto.
Estava tudo ali: uma vida inteira e também uma outra, secreta, de visões doces, terríveis e estranhas. Estava ali uma família com o seu calor e a sua força, as suas alegrias e tristezas. Depois, as imagens mostravam um passado mais distante, no qual dois rapazes rasgavam a carne com uma faca de caça e faziam um juramento de lealdade. As imagens moviam-se no tempo. Não contavam uma história. Por vezes, nem sequer mostravam o que podia ser real ou possível, mas diziam sempre a verdade. Ninguém, ao olhar para aquele trabalho maravilhoso, podia duvidar. Ali estava a própria Creidhe, voando pelo céu e estendendo os braços para tocar na Lua. Ali, Thorvald, sozinho. A sua pequena figura fora bordada com grande cuidado, os cabelos vermelhos voando ao vento, selvagens, os olhos escuros, a expressão ameaçadora. O barco, a viagem, a imagem das ilhas íngremes, escarpadas, solitárias no oceano vazio. Uma ilha envolta numa bruma perpétua, sobrevoada por aves. Depois, coisas estranhas: olhos escondidos em arbustos, uma parede de rostos gritantes, mãos na água, guiando um pequeno barco através de mares selvagens.
Creidhe deixara um espaço em branco antes de começar de novo, como se a história tivesse uma parte desconhecida, ou ainda não decidida. No lado direito daquele espaço vazio, a jovem bordara o trabalho daquele dia. Uma imagem de tanta alegria e amor que provocou um nó na garganta de Margaret. Um homem e uma mulher voando, ou flutuando, de mãos dadas; ele escuro, esbelto, feroz na aparência; ela arredondada, de olhos azuis, com longos cabelos dourados dançando em redor das feições deslumbradas. Pareciam pairar no ar, ambos e em redor deles uma nuvem de pequenas coisas, coisas belas, como se Creidhe quisesse mostrar ali todas as belezas do mundo, bastava que as pessoas abrissem os olhos para elas: aves de muitas espécies, peixes brilhantes, escaravelhos com carapaças brilhantes. Um animal parecido com um cão, ou um gato, ou talvez uma raposa: Margaret recordava-se de ter visto raposas em Rogaland e aquele animal tinha o mesmo aspecto prudente e os mesmos olhos vivos. Flores, cereais e ervas, musgo e fetos frondosos. Dentes-de-leão vibrantes, rosa-púrpuras, celidónias, ranúnculos amarelos. Homens a trabalhar: um pequeno texto em tinta negra, se bem que Creidhe não soubesse escrever; uma peça de roupa da cor de um dente-de-leão; um par de pequenas botas, de criança. No meio daquele friso circular prodigioso, os dois olhavam um para o outro como se fossem o único homem e única mulher do mundo. Só mais tarde, depois de passado o primeiro choque, é que Margaret reparou noutra figura: na base, sentada de pernas cruzadas em cima de uma pedra, estava uma criança toda esfarrapada a cantar.
— Temos estado completamente enganados — murmurou Margaret, percorrendo com os dedos os cabelos brilhantes da alegre jovem voadora. — Ela não encontrou crueldade e abuso naquela ilha, ela encontrou o amor.
— Encontrou-o e perdeu-o — disse Ash. — Mas, o que é isto? — Ele apontou para a parte em branco, a parte que Creidhe preferira não bordar.
— Não faço idéia — disse Margaret. — Ou não sabe o que aconteceu, ou está relutante em bordá-lo. Talvez ele tenha morrido, ou a tenha mandado embora, se bem que me pareça pouco provável se esta imagem for verdadeira. Eanna é capaz de saber um pouco mais, mas, se é assim, guarda-o para si própria, sempre o fez. O mais certo é a dor de Creidhe não ser por Thorvald; o amor que ela pode ter sentido pelo meu filho eclipsou-se perante isto. Estas imagens têm um poder enorme. É como se os deuses falassem através dela. Compreendo por que razão ela deixou de bordar; e por que razão, assim que começou, só parou quando acabou.
— Pergunto a mim mesmo se é assim — devaneou Ash. — Pergunto a mim mesmo se ela acabou mesmo?
Ao fim de um ano nas Ilhas Perdidas, Thorvald já aprendera a ser prudente. Apesar disso, o barco estava pronto, uma cópia quase perfeita do Sea Dove e os homens estavam mortos por testá-lo em mar aberto. Não havia dúvidas de que precisavam de estabelecer contato com outras terras, particularmente com as Ilhas Brilhantes, agora mais conhecidas sob o nome nórdico de Ilhas Orcades, as Ilhas das Focas. Precisavam de madeira para construir barcos — o jovem sabia que Eyvind tinha um acordo com o jarid e Freyrsfjord nesse sentido e de ferro de qualidade. Precisavam de gado para substituir o que se perdera ao longo dos anos de caçada. Não tinham muito para oferecer em troca, mas isso mudaria no futuro; Thorvald trataria disso. Entretanto, uma viagem àquelas ilhas, apenas para encetar as primeiras discussões, era desejável. Uma vez lá, seria melhor se Thorvald encetasse o processo aproximando-se dos homens influentes que conhecia pessoalmente, como Grim e Thord. E com Eyvind. Não tinha muita vontade de se encontrar de novo com Eyvind, mas tinha de o fazer e quanto mais cedo melhor, dissera-lhe Niall. Eyvind estaria zangado, sem dúvida. Mas Creidhe regressara a casa há algum tempo, desde que o Sea Dove tivesse feito boa viagem e o pai dela estaria reconciliado, em parte, com o que Thorvald fizera. Eyvind ainda tinha força suficiente para arrancar a cabeça a um homem com um só golpe, mas isso não queria dizer que o fizesse. O Pele-de-Lobo era um líder; por mais furioso que estivesse por a filha ter fugido, ouvi-lo-ia, certamente. Provavelmente, Creidhe já estava casada e com o primeiro filho a caminho, brincou Ranulf, e teria esquecido Thorvald por completo. Este não respondeu. Tinha assuntos a tratar com Creidhe, assim como com o pai dela, assuntos que lhe ocupavam mais os pensamentos do que desejava.
Partiram na Primavera. Depois de passarem as Ilhas do Norte, rumaram a sul e quando avistaram as Ilhas Brilhantes circundaram a costa oeste até à baía abrigada de Hafnarvagr. Deixaram ali o Swftwing fundeado e arranjaram cavalos para se deslocarem até à casa de Thorvald, a norte. O jovem informou os seus companheiros de que aquela viagem seria feita segundo uma ordem preestabelecida: primeiro a mãe, para que ela não soubesse da sua chegada por outros; depois, enviar uma mensagem a Eyvind e a Nessa, uma mensagem formal dele próprio como emissário das Ilhas Perdidas, pedindo encontros sobre comércio e tratados. Depois, Creidhe, se os seus pais não a tivessem já casado com um nobre qualquer e ela tivesse ido para Caitt, ou para Rogaland. Um encontro a sós com Creidhe. Teria de pedir isso a Nessa.
Aquilo aborrecia-o, irritava-o, era como uma pedra no sapato: a necessidade que tinha dela, a recordação dela, o fato de saber que tinha falhado. O fato de que ela não lhe perdoara: nunca lhe perguntara o que fizera de tão errado, ao ponto de estragar a velha amizade de ambos. O jovem esperava que o tempo, o fato de estar em casa, e o apoio da família a tivessem feito mudar de idéias; que seria da velha Creidhe a recebê-lo à porta da casa dos pais, de braços abertos e com aqueles olhos azuis assestados na sua direção. Havia uma rapariga nas Ilhas Perdidas, filha de um dos líderes da região norte, que aparecera nos últimos dois conselhos em Água Brilhante. Thorvald trocara apenas uma ou duas palavras com ela, mas reparara como ela o fixava, friamente, solenemente, como que a avaliá-lo. A jovem tinha uns cabelos escuros e suaves, uns olhos verdes serenos e não se comportava como as outras raparigas na sua presença, sempre com risinhos e comportamentos tímidos. Ele gostava disso. Gostava dela. Mas não era Creidhe, nem nunca seria.
Até um determinado ponto, tudo correu como planejado. Skapti, Ranulf e Orm soltavam exclamações, maravilhados perante a suavidade e gentileza dos contornos do terreno, das ovelhas gordas e lustrosas, dos campos murados plantados com aveia e centeio luxuriantes. De oeste soprava um vento áspero, transportando chuva; Ranulf, estremecendo, comentou que o clima, pelo menos, era parecido. No entanto, era uma ilha bonita; provavelmente, Knut, disse Orm, encontrara uma mulher e não devia ter vontade nenhuma de regressar a casa.
Até ali, tudo bem. Chegaram a casa de Margaret e desmontaram no pátio. Thorvald sentiu-se nervoso, como se ainda fosse o jovem impulsivo que dirigira palavras de ressentimento à mãe, partindo depois sem qualquer explicação. Quando Ash apareceu na entrada com uma expressão de espanto, os seus modos foram mais bruscos do que era sua intenção.
— Ash, estou a ver que continuas cá. Por favor, diz à minha mãe que estou aqui com três companheiros. Espero que eles possam ficar.
O jovem não sabia ao certo como ia responder Ash; parecia que o empregado, impassível, estava a reprimir um sorriso divertido. Mas Ash não teve oportunidade de lhe responder, porque Margaret apareceu ao lado dele e, um instante mais tarde, corria para Thorvald com maneiras muito pouco próprias de uma dama e o jovem desmontou para sentir os braços dela em redor do pescoço num abraço que ela não lhe dava desde a infância. Quase teria chorado, se fosse essa espécie de homem. Era bom. Era mesmo muito bom. A seu lado, sentiu que Ash dava as boas-vindas aos seus companheiros como se fosse o dono da casa e convidando-os a ficar o tempo que quisessem, já que a casa era grande e podia facilmente receber vários visitantes.
Thorvald ainda só tivera tempo de pestanejar de surpresa quando a sua mãe se afastou, recuou e se aproximou de Ash, agarrando-lhe na mão como uma rapariga apaixonada.
— Estamos casados — disse Margaret com um sorriso novo, que Thorvald achou, foi forçado a admitir, agradável. — Digo-te já, para que não haja mal-entendidos.
— Oh... — Thorvald não encontrou palavras. Em tempos, teria achado a idéia repugnante. A sua própria mãe, lady Margaret, filha de Thorvald, Braço-de-Ferro, casada com um... um empregado? Mas tivera tempo para refletir desde a última Primavera. Como criança e jovem, desprezara a contribuição de Ash para a sua educação, quando tinha de suportar os treinos infindáveis de combate com e sem arma, de equitação e de estratégia. Acabara por compreender, no decorrer da caçada, que sem os ensinamentos de Ash, sem o seu paciente ensino das artes da guerra, ter-lhe-ia sido impossível ganhar a confiança de Hogni, de Skapti e dos outros homens. Nunca os poderia ter liderado em combate. Ash nem sempre fora um empregado. Se ficara junto de Margaret aqueles anos todos, fizera-o por escolha. Thorvald viu naqueles calmos olhos cinzentos, virados para Margaret numa atitude tranqüilizadora, que Ash ficara por amor. Como podia o filho de Margaret mostrar ressentimento perante aquele momento de felicidade? Ele próprio não lhe tinha facilitado as coisas, ou a Ash.
— Bem, são boas notícias — disse ele com algum esforço. — Que surpresa. Os meus parabéns aos dois.
— Vens por muito tempo? — perguntou Margaret e Thorvald sentiu-se aliviado por não ter de explicar que a visita seria breve, que nunca regressaria para juntar os cacos da sua velha vida.
— Talvez um ciclo de lua. Preciso de falar sobre comércio; conto-lhe mais assim que estivermos instalados. Mãe, como é que está...?
— Creidhe? Não muito bem, Thorvald. Terrivelmente mudada. Ainda luta para tirar algum sentido daquilo tudo, acho eu. Contou-nos muito pouco. Sam está ótimo. Namora Brona e está feliz como um porco no chiqueiro.
— Creidhe ainda não se casou, então? — Iam a subir os degraus e ele falou em voz baixa, apenas para os ouvidos da mãe. O jovem tentou manter a voz fria e desinteressada.
— Não, Thorvald — disse Margaret, e a ele pareceu-lhe, estranhamente, que ela tinha pena dele. — Ela está muito triste; demasiado triste para pensar nessa perspectiva. Temos andado todos muito preocupados. — Era uma afirmação sem qualquer censura. Depois de entrarem, ele teve de apresentar os companheiros e não pôde perguntar-lhe mais nada.
Enviaram um mensageiro e enquanto esperavam pela resposta o pessoal da casa entrou numa grande e eficiente azáfama, preparando uma ótima refeição de carne assada acompanhada por uma cerveja particularmente boa. Skapti, sorridente, namoriscou as servas; Orm iniciou com Ash uma longa discussão acerca de ovelhas e Ranulf instalou-se confortavelmente à lareira com uma caneca de cerveja na mão e os pés estendidos na direção das chamas. Thorvald passou algumas mensagens à mãe e ouviu algumas novidades. Mais um filho para Eyvind e Nessa; uma decisão para breve: deviam ser estreitados os laços preferencialmente com Rogaland, ou com Caitt? Um grande conselho em Freyrsfjord no Verão, a que Eyvind deveria comparecer, se bem que sentisse alguma relutância em separar-se de Eirik durante tanto tempo: e se a criança aprendia a andar, protestara o guerreiro, e ele não estava presente para ver?
O mensageiro da casa de Eyvind chegou rapidamente; devia ter sido despachado mal o outro chegara. Iriam ter com Eyvind na manhã seguinte. Eyvind não conseguiria reunir todos os proprietários em menos de três dias, mas queria estar com Thorvald a sós no dia seguinte. Nessa e Eyvind estavam contentes por Thorvald ter chegado a casa são e salvo e mandavam cumprimentos a Margaret e a Ash.
Só Skapti foi com ele. Ranulf tinha uma dor de cabeça monstruosa e não pôde sair da cama e Ash quis mostrar a Orm os seus dois melhores carneiros e falar com ele acerca de lã. Thorvald sentia-se um pouco aliviado; o encontro daquele dia não ia ser fácil. Talvez só Skapti tivesse uma idéia do que representava para ele.
Não foi uma cavalgada longa. A chuva tinha cessado; em seu devido tempo chegaram a uma elevação de terreno e diante deles, do outro lado de uma manta de retalhos feita de campos murados de diversas cores, surgiu uma grande casa de telhado de colmo e mais algumas construções em redor de um pátio onde várias pessoas se moviam com propósito, algumas conduzindo cavalos e outras cães pela trela. Thorvald não viu ninguém conhecido. Os dois homens desceram a encosta. Thorvald ensaiou mentalmente o que diria a Eyvind. A barriga agitava-se-lhe, como se não fosse um condutor de homens, antes um jovem tolo apanhado a fazer uma asneira qualquer.
— Thorvald? — disse Skapti em voz baixa. O guerreiro estava a apontar na direção do muro de pedra que rodeava o campo mais exterior onde se podiam ver duas figuras de cestos na mão, baixando-se para apanhar ervas que cresciam na lama, junto de um pequeno regato. Duas figuras; duas não, três, porque uma rapariga transportava um bebê no dorso, atado com um pedaço de tecido, um bebê com os cabelos da mesma cor dos dela. O coração de Thorvald deu um baque e depois voltou a bater. Sem uma palavra, o jovem deu a volta ao cavalo e Skapti seguiu-o. Um pouco mais tarde, ambas as raparigas estavam direitas, vendo-os aproximarem-se.
Os homens foram até ao muro e desmontaram. O silêncio era pesado; Thorvald e Skapti ficaram a olhar para Creidhe, uma Creidhe que quase não reconheceram, porque estava tão magra e pálida que mais parecia um fantasma. Fosse o que fosse que a afligira naqueles últimos dias nas Ilhas Perdidas, não sarara depois do seu regresso. A jovem tinha olheiras e a boca cerrada. A visão da rosada e alegre Brona a seu lado só fazia com que o estado de Creidhe ainda parecesse mais chocante.
Brona encontrou a voz.
— Bem-vindo a casa, Thorvald. Que bom ver-te. E tu...?
— Skapti — resmungou o grande guerreiro, baixando a cabeça numa espécie de cumprimento. — Tu deves ser a irmã de Creidhe.
— Sou. O meu nome é Brona. Estou noiva de Sam. Ouvi falar muito de ti. Não foste tu que venceste Thorvald uma vez, numa luta? Ou talvez tenha sido o teu irmão. Sam disse-me que ele foi um grande guerreiro, também. — Brona olhou de relance para a irmã e depois para Thorvald. — Creidhe, vou levar o cesto para casa, acho que já apanhamos o suficiente. Vou mostrar a Skapti onde é a cavalariça e apresentá-lo à mãe.
Creidhe manteve-se silenciosa, olhando na direção do mar, para longe de Thorvald.
— Queres que leve Eirik? — ofereceu-se Brona.
— Não — disse Creidhe sem se virar. — Ele está a dormir. Eu levo-o. — Na verdade, o bebê dormia profunda e pacificamente no dorso da irmã com a cabeça loura e pequena encostada ao pescoço dela e com um polegar na boca. As suas pálpebras agitavam-se suavemente. O bebê estava a sonhar.
Brona afastou-se em passo vivo na direção da casa. Skapti seguiu-a, conduzindo os dois cavalos pela brida. A jovem não sabia se Eyvind queria ou não, mas Creidhe e Thorvald ficaram os dois sozinhos.
— Que belo bebê — comentou ele, olhando para o petiz. — Os teus pais devem ter ficado contentes.
A jovem não disse nada. O silêncio prolongou-se.
— Estás com um aspecto horrível — disse Thorvald finalmente. — Doente. Triste. Não sei o que hei de dizer-te. — Era verdade; não valia a pena disfarçar.
— Não precisas de dizer nada, Thorvald. — A voz de Creidhe era sem expressão.
O jovem tentou outra abordagem.
— O meu pai está bem. O irmão Breccan também. Ele, agora, tem um pequeno grupo de seguidores em Água Brilhante. Tem esperança de batizar três ou quatro no próximo Natal. Ambos mandam cumprimentos.
Creidhe recebeu a notícia com um aceno de cabeça. Era melhor do que nada.
— Com que então, Sam e Brona vão casar-se — disse ele. — O teu pai concorda? Surpreende-me. Sam e eu sempre acreditamos que Eyvind não aceitaria senão um Jarl para ti e para as tuas irmãs. Fico contente por Sam; é bom homem e um grande amigo. Sempre pensei que era a ti que ele preferia.
Então, ela olhou para ele com uns olhos muito grandes e uma expressão desconfiada.
— É estranho, não é, como pensamos que sabemos aquilo que nos interessa — disse ela. — E como nos podemos enganar. Durante muito tempo, pensei que eras o único homem no mundo. Se via uma rapariga a olhar demasiado para ti, apetecia-me matá-la. Depois, durante algum tempo, desprezei-te. Agora, só gostaria que te fosses embora e que ficasses longe de mim.
Durante uns momentos, Thorvald não conseguiu dizer nada. As palavras dela tinham-no magoado mais do que poderia imaginar.
Creidhe voltou a olhar para longe, para oeste, sem expressão nas feições.
— Tornaste bem claro o que pensas de mim — conseguiu ele dizer, finalmente — e suponho que tenho de o aceitar, se bem que esperasse... tinha uma leve esperança de que as coisas pudessem ser um pouco diferentes entre nós, que talvez pudessem ser como eram antes...
— E como era isso, Thorvald? Tu a fazeres a tua vida e eu atrás de ti, invisível até tu achares que precisavas de ser consolado? Era isso que esperavas? — Ela virara-se para ele; a ira nos seus olhos era, pelo menos, melhor do que a simples indiferença anterior. — Tenho pena da rapariga que casar contigo. Ela estará sempre em segundo lugar, ou talvez em terceiro. Depois de ti e da missão que tiveres em mente no momento.
Thorvald engoliu em seco.
— Isso nem parece teu, Creidhe. — O jovem sabia que as suas palavras eram frágeis.
— Parece sim. Simplesmente, já não sou o que era. Se não gostas do que sou agora, procura uma razão na tua maneira de ser. Mas não interessa. Depois de hoje, nunca mais nos voltaremos a ver.
— Creidhe! — A palavra saiu, vibrante de sentimento; o jovem não conseguiu evitá-la. — Não digas isso!
— Já disse.
— Pelo menos, diz-me... pelo menos, dá-me uma hipótese...
— Dizer-te o quê? — A voz dela era fria e tensa.
— O que eu fiz de tão terrível, o que não pode ser perdoado. Esperava mais amizade da tua parte. Pelos vistos, estava enganado. Mas perder a tua amizade toda é... é... — Thorvald parou, alarmado por ouvir as suas próprias palavras. E considerava-se ele um condutor de homens.
— Perder uma parte de ti próprio — disse Creidhe calmamente. — Não acredito que ainda não tenhas percebido isso, Thorvald. Sempre foste tão inteligente, tão bom em quebra-cabeças. Terias entregado Máscara-de-Raposa Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, se bem que a intenção deles fosse cegá-lo e estropiá-lo. Tudo para tua glória. Isso já foi suficientemente mau. Ao raptares o vidente, limitaste-te, apenas, a ferir-me profundamente. Mas mataste o homem que era a minha outra metade. Arrebataste-lhe a felicidade, assim como a minha, com um único golpe da tua espada. Por tua causa, só tenho meia vida. Por tua causa Guardião nunca conhecerá uma existência para além do horror daqueles anos na ilha e dos dias sombrios da caçada. Foi o que tu fizeste. Mas, agora, já não podes mudar nada. Não o podes devolver. — A voz dela parecia a de uma vidente, profunda e estridente. As suas palavras fizeram vacilar o coração do jovem. Ela estava enganada a respeito dele, profundamente enganada, e ele queria explicar. Queria dizer-lhe tudo, como a sua missão tinha começado, talvez, apenas para impressionar Asgrim, para provar o seu valor, mas que se transformara noutra coisa muito maior: a vontade de conseguir a paz, devolver aos homens o orgulho perdido, construir uma nova comunidade. Ansiava por lhe contar tudo o que aprendera. Mas já não tinha importância. Não o podes devolver, dissera ela. Se percebera bem as suas palavras, podia, sim. Podia devolver-lhe a única coisa cuja perda lhe esvaziara a vida e lhe retirara a alegria dos olhos; mas ao fazê-lo, perdê-la-ia para sempre.
— Creidhe — disse ele cuidadosamente, sabendo que não tinha outra hipótese — em nome dos laços que nos uniram em tempos, da amizade que partilhamos durante aqueles anos todos, peço-te que me escutes. Isto é importante: não te apercebes de como é importante. Por favor, não me vires as costas; por favor, fala. Quem é esse Guardião? Estavas a referir-te ao jovem que te tinha prisioneira na Ilha das Nuvens? O filho de Asgrim, Erling?
— Ele não gostava desse nome — disse Creidhe calmamente. Thorvald apercebeu-se da mudança de tom; suavizara-se, ficara mais quente. — Ele chamava-se a si próprio Guardião, porque era esse o objetivo da sua vida, proteger o filho da irmã. Ele chamava à criança Pequenino. Nunca Máscara-de-Raposa: vivia no horror do que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz fariam ao rapaz se lhe pusessem as mãos em cima.
— No fim, estava errado.
— Errado, sim; mas não viveu para o descobrir. E eles quase o fizeram.
— Se não fosses tu. Foste muito corajosa naquele dia. Parecias uma deusa.
Então, aconteceu algo inexplicável: num total silêncio, as lágrimas começaram a cair pelas faces de Creidhe abaixo. A jovem levou as mãos ao rosto para as enxugar, como qualquer criança. No seu dorso, o seu pequeno irmão continuava a dormir, esquecido. Thorvald ficou petrificado; aquela mudança súbita, primeiro fria e depois aquele fluxo de lágrimas, encheu-o de angústia. Ela era a sua maior amiga e não lhe podia tocar, não lhe podia oferecer um abraço de consolação. Ela detestava-o. Dissera-o.
— Creidhe. — A sua voz era insistente. — Pára. Pára de chorar, por favor, não consigo suportar. E ouve-me. Tens de me ouvir. — A sua mente já estava na ilha remota, embebida nos caprichos da Corrente dos Loucos, na natureza selvagem do tipo, na quantidade de homens mortos: era evidente que aquilo era impossível, ridículo. Mas tinha de lhe dizer. — Senta-te aqui. — O jovem procurou um lenço na algibeira e entregou-lhe com as mãos a tremer. — Assim está melhor. Deixa-me ver a tua cara, Creidhe. Tens de olhar para mim enquanto eu te digo isto.
A jovem ergueu os olhos marejados de lágrimas para ele; as suas faces estavam molhadas e os seus lábios tremiam.
— Menti-te, Creidhe. Só o fiz uma vez e fi-lo porque pensei ser o melhor para ti. Pensei que tinhas sido feito prisioneira e que tinhas sido violada. Pensei que o teu comportamento era devido a isso: choque e terror. Por isso, menti.
— O que... o que é que estás a dizer?
— Tê-lo-ia morto. Por conta dos quatro homens que morreram durante a caçada; ao longo dos anos, ele matou muitos mais, homens bons, homens honestos como o irmão de Skapti, que morreu lenta e cruelmente, envenenado. Pensei que o homem tinha abusado de ti. Mantive-me pronto, de espada na mão, enquanto ele jazia ali aos meus pés, inconsciente. Mas, não te esqueças, então, ainda acreditava que Asgrim era meu pai. Isso fazia daquele Erling uma espécie de irmão. Quando chegou a altura, não consegui. Não podia matar o meu irmão. Arrastei-o para dentro da cabana e deixei-o lá.
Creidhe estava muda, os olhos muito abertos do choque, fixando os dele. Naquele momento, o jovem compreendeu que a felicidade dela era infinitamente mais importante do que a sua.
— Ele ainda está vivo, Creidhe. Ele era o único habitante da ilha, não era? Alguns dos homens têm-me dito que têm visto o fumo de uma pequena fogueira. Eles dizem que é a Tribo das Focas, como pescadores que são. Mas há alguém na Ilha das Nuvens; só pode ser esse Guardião.
Os olhos dela resplandeceram. As suas faces coraram. A sua boca curvou-se num sorriso de tanta alegria que os olhos dele se encheram de lágrimas. Um instante mais tarde, a jovem punha-se de pé e atirava-se ao pescoço dele e, cruelmente, Thorvald sentiu o corpo dela contra o seu, frágil e magro, mas fazendo-o pensar em como as coisas poderiam ter sido se não tivesse sido tão cego.
— Oh! — suspirou Creidhe. — Oh, Thorvald, oh, Thorvald, obrigada! Quando podemos regressar? Temos de estar lá no solstício de Verão, por causa da maré... oh, Thorvald, meu querido, meu amigo, não imaginas como me fizeste feliz! Só de pensar que ele tem estado lá este tempo todo sozinho, deve ter pensado... oh, que terrível, sem Pequenino, sem mim, teria ele acreditado... mas não desistiu, esperou por mim... quando podemos ir?
Para quem estivesse a observar de longe, e vários membros da família de Creidhe estavam a fazer justamente isso, a interpretação era óbvia. Uma discussão, uma argumentação, lágrimas e em seguida um grande abraço, moderado pela presença do pequeno Eirik: que outra coisa senão um arrufo de namorados, que terminara da melhor maneira possível? Em seguida, Creidhe a correr para casa apesar da criança no dorso, Creidhe levando Thorvald pela mão, Creidhe com as feições radiantes e felizes: como interpretar de outra maneira aquela mudança?
Nessa estava à espera nos degraus da entrada. A dama era uma mulher sábia, uma sacerdotisa, apesar de ter posto o ofício de lado por uma vida de esposa e mãe, conselheira e árbitro. Ela, pelo menos, sabia que as coisas raramente são o que parecem.
— Mãe! — chamou Creidhe, sorrindo. — Mãe, vou voltar lá! Ele está vivo, está à minha espera! — E a jovem atirou-se ao pescoço de Nessa, abraçando-a com uma força que parecia ter ressuscitado súbita e miraculosamente. Eirik acordou e começou a emitir sons que sugeriam que tinha fome; o petiz era uma criança forte. Nessa olhou por cima do ombro da filha, para os olhos escuros de Thorvald. A dama viu a dor no rosto dele, o olhar ferido, perdido, transformar-se, por uma ordem interior qualquer, na expressão calma, cautelosa, de um homem de negócios, de um líder. O jovem era, sem sombra de dúvida, um digno filho do seu pai.
— Bem-vindo, Thorvald — disse Nessa, estendendo os braços para desatar o pano que segurava a criança. — É bom ver-te.
— Obrigado. Sinto-me feliz por ter voltado, se bem que um pouco nervoso, devo dizer. Creidhe tem mais novidades para ti; provavelmente não te vão agradar, nem ao pai dela, receio bem.
Nessa pegou em Eirik; o petiz estava encharcado e a começar a berrar.
— Creidhe conta-me a mim primeiro e depois falamos as duas com Eyvind — disse ela encaminhando-se para dentro de casa. — Depois de dar de comer a este tirano. O meu marido está no campo; tens algum tempo para pôr em ordem os teus pensamentos. Brona arranja-te um pouco de cerveja. — A dama fez uma pausa, reparando nos punhos fechados dele. — Thorvald — disse ela — nós temos passado por tempos muito preocupantes, tempos difíceis. Devo dizer-te que tudo o que possa devolver um sorriso ao rosto de Creidhe e avivar-lhe o andar é bem-vindo da parte de Eyvind. Seja o que for. Mesmo que isso signifique perdê-la de novo.
— É ridículo — disse Eyvind, andando de um lado para o outro no interior do quarto de ambos. — É demasiado longe. Nunca mais a vemos.
— Pergunta a ti próprio — disse Nessa — se não irias até lá, se fosse eu que estivesse naquela ilha. Pergunta a ti próprio se deixarias que alguém te impedisse.
— Que tem o tipo para oferecer? — perguntou Eyvind, carrancudo. — Pelo que Creidhe diz, ele só sabe lutar. Que tipo de vida pode um tipo assim oferecer à nossa filha?
Nessa não respondeu, limitando-se a olhar para ele. Os seus lábios curvaram-se num ligeiro sorriso.
— Conosco foi diferente — disse ele após uma curta pausa. — Eu fiz o possível por mudar. Tu ajudaste-me a mudar.
— E Creidhe ajudará Guardião, se for preciso — disse Nessa tranquilamente.
— Talvez. Mas aquele tipo não é um homem comum; o tipo é uma mistura de homem e animal marinho. Que vai ser dos filhos deles? Como poderão viver no meio dos homens? É impensável.
— Pelo que Creidhe — diz disse Nessa — Guardião é muito homem.
— Tu não és casada — disse Eyvind à filha rigidamente. — A aliança que propões não pode ser sancionada. A tua reputação...
— Nós tocamos votos, pai — disse Creidhe. — Votos solenes à luz da Lua e das estrelas, promessas testemunhadas pelos próprios antepassados. Nós somos marido e mulher, para sempre. Nenhum juramento é mais legal.
— E se tiveres um filho? — perguntou Nessa à filha na privacidade do seu quarto. — Como conseguirás, sozinha na ilha, tão longe de toda a gente? Por mais capaz que seja, não me parece que Guardião possa ser de grande ajuda nisso. Como poderás olhar por um bebê sem uma casa quente, boa comida e gente para te apoiar? Não tens medo do que possa acontecer?
— Havemos de nos arranjar — disse Creidhe com inteira confiança. — Não te esqueças, Guardião tomou conta do filho da irmã quando ele era do tamanho de Eirik. Ele é um bom ganha-pão, mãe.
— Nunca mais te vemos — disse Eyvind para Creidhe, secamente. O seu tom de voz era desolador. — Nunca mais regressas. É evidente que aquele tipo é selvagem e diferente; não pode, nunca, viver no meio dos homens.
— Surpreendes-me, pai — disse Creidhe, segurando-lhe na mão. — Sempre foste generoso na tua avaliação dos homens. Como podes dizer uma coisa dessas quando nem sequer conheces Guardião.
— Já ouvi o suficiente acerca dele — grunhiu Eyvind.
— Ele pode aprender — disse Creidhe. — Não muito rapidamente; ele tem vivido sozinho na ilha, exceto quando teve lá a criança, desde os doze anos. Vai levar tempo. Mas, um dia, havemos de regressar. Nunca digas nunca.
— Eu ia contigo, se pudesse — disse Eyvind para Thorvald. — Pelo menos, conheceria o tipo e poderia avaliá-lo antes de dar o meu consentimento. Não gosto dele, apesar das descrições todas de Creidhe. Parece-me um tipo muito pouco conveniente.
Thorvald não disse nada, se bem que, interiormente, concordasse inteiramente.
— Maldito conselho! Maldita viagem a Freyrsfjord! Não podia vir em pior altura.
— Não podemos atrasar mais a nossa partida — disse Thorvald. — Como já vos dissemos, Creidhe tem de atravessar o estreito para a ilha no solstício de Verão, ou as marés tornarão a travessia demasiado perigosa. — Thorvald e Creidhe tinham-se dado ao cuidado de não contar a verdade toda acerca da Corrente dos Loucos: que, na verdade, só a podiam atravessar durante dois dias no ano. — E o conselho é crucial. Rogaland pode oferecer-te excelentes perspectivas de comércio; proteção, também, em tempo de guerra. Tens de estar lá para reforçar os laços.
Eyvind olhou para ele algo zombeteiramente.
— Já te apercebeste, claro, de que o rei norueguês pode meter na cabeça colocar aqui um soberano, um dos seus chefes de guerra preferidos, um Jarl, aqui, nas Ilhas Brilhantes? Seria esse o preço a pagar pela madeira e pela proteção contra invasores do sul.
— Mesmo assim.
— Sim, tens razão; eu já decidi, por isso tenho de lá ir defender a minha causa.
— Nada te impede de ir às Ilhas Perdidas num outro Verão e ver com os teus próprios olhos se Creidhe está bem e a prosperar com o marido. — Havia uma pergunta no tom de voz de Thorvald.
— Achas que ele não se importa? — Ambos sabiam que Eyvind não se estava a referir a Guardião.
— De maneira nenhuma — disse Thorvald suavemente. — Aliás, não tenho dúvida nenhuma. Ele está morto por saber notícias tuas.
— Não sei — disse Eyvind. — Depois destes anos todos, depois de tantas mudanças. Não sei se suportaria vê-lo de novo.
— Um bom pai teria dito não — disse Eyvind a Nessa. O seu tom de voz era pesado. — Um bom pai teria pensado um pouco.
— Como podias ter dito não? Viste o aspecto dela. Imagino que, em tempos, também olhei para ti assim: como se tivesses a minha felicidade na palma da mão.
— Em tempos?
— Ainda olho, meu querido, acredita-me. E Creidhe também olhará assim para Guardião daqui a vinte anos, quando forem de meia-idade, quando tiverem a vida organizada, tal como tu e eu.
— Meia-idade? — Eyvind ergueu as sobrancelhas. — Para mim, ainda tens a idade de Creidhe, e tão misteriosa e sedutora como na primeira vez que te vi. — Ele olhou para a criança que dormia no colo dela. — Temos tido tanta sorte. Tanta sorte.
— Sim — concordou Nessa suavemente. — Não podemos negar a mesma felicidade à nossa filha.
— É estranho — observou Nessa, vendo o pequeno barco à vela a zarpar de Hafnarvagr. — Afinal, a Tribo das Focas sempre me levou um filho.
— Pensei que querias que ela fosse. Foste tu que me persuadiste.
— E quero. Quero que ela seja feliz. Mas isso não quer dizer que me doa menos. Nunca hei de ver os filhos dela; nunca hei de conhecer as filhas dela, as filhas que transportam nas veias o sangue real que eu jurei proteger.
— Nunca digas nunca. — O tom de Eyvind era suave. — Uma vez, Eanna disse-me que tudo muda. Creidhe há de regressar, um dia e o marido há de vir com ela. Tenho a certeza.
Ao lado de ambos, na praia, Ingigerd, uma miúda de sete anos saboreando pela primeira vez o seu papel de irmã mais velha, esforçava-se por evitar que o irrequieto Eirik saísse do carreiro e caísse à água. Brona e Sam estavam de braço dado, acenando enquanto a embarcação ficava cada vez menor nas águas prateadas.
— Bem — disse Margaret com a voz a tremer e enxugando os olhos — isto exige uma boa cerveja, uma boa lareira e uma boa conversa entre amigos. A nossa casa está aberta para todos; vamos até lá, celebremos e gozemos a companhia uns dos outros.
— Celebrar? — repetiu Eyvind. — Não sei se haverá motivo para júbilo.
— É claro que há, pai — disse Brona, dando uma risada. — Viste-te livre de duas filhas no mesmo ano! Que mais podes querer? Vamos embora. Estou cheia de fome. A tia Margaret disse-me que tem bolo de especiarias. — Com os olhos a dançar, a jovem abriu o caminho de regresso aos cavalos e os outros seguiram-na.
As suas filhas tinham uma qualidade rara, pensou Eyvind: o dom da felicidade. O guerreiro não sabia de onde vinha. Se tinha de as deixar ir para ver brilhar e crescer essa chama, melhor. Quem era ele para as impedir?
— Não lancem âncora — disse Creidhe aos homens com aspereza. — Nem encalhem o barco. Mantenham-no estável enquanto eu saio borda afora com os meus sacos. Depois, vão-se embora. Não esperem.
— Creidhe — protestou Thorvald enquanto aproximavam o Swftwing da estreita enseada, único lugar seguro para se poder desembarcar na Ilha das Nuvens. — É ridículo. Pelo menos, temos de ter a certeza de que ele está aqui e preparado para te receber. Além disso, não podes levar tudo. Temos de ir a terra com as tuas coisas. Vais estar aqui um ano inteiro.
Enquanto tinham esperado no Fiorde do Conselho que a Corrente dos Loucos acalmasse, Thorvald ordenara que o barco fosse carregado com as provisões necessárias à estadia de Creidhe na ilha. Como amigo dela, como líder, ali, não podia fazer menos.
— Eu vou ficar aqui mais tempo do que isso — disse Creidhe. — E não vou levar as provisões. Só preciso do meu pequeno saco e daquele rolo de cobertores.
— Pelos ossos de Odin, Creidhe. — Thorvald passou os dedos pelos cabelos, frustrado. — Não há cereais nesta ilha, ou vegetais, ou um abrigo como deve ser, ou gado... Pelo menos, leva o saco de farinha e a trança de cebolas. Tens de levar as ferramentas. E não te podemos deixar cair à água, temos de te levar a terra...
— Guardião tratará do meu sustento.
— Creidhe...
— Ele tratará do meu sustento. Isto é importante, Thorvald. Não percebes quanto. Tem a ver com o que ele é; com o que fez aqui. Levar estas coisas, que ele não me pode oferecer, é insultá-lo, e desafiar a sua razão de viver. Eu só levo o que trazia na última vez que aqui estive: as roupas que trago no corpo e o meu saco. Mais nada.
— E isto? — desafiou-a Thorvald, apontando para o rolo de cobertores coberto com um oleado, que ela insistira em levar. Não tinhas isto, antes.
Creidhe corou.
— Isso é diferente. — É um presente. Fui eu que escolhi. Não venhas a terra. Não te esqueças, ele só conhece a caçada. Sente muita animosidade por ti. Não sabemos se ele não ataca mal ponhas o pé em terra; tem sido sempre assim.
Finalmente, chegaram a uma espécie de compromisso. Enquanto Thorvald e Orm seguravam no barco com água até à cintura, utilizando os remos para impedir que ele oscilasse demasiado, Skapti saltou borda afora. Creidhe trepou para cima da amurada com o saco às costas e o rolo dos cobertores por baixo do braço. Skapti carregou-a nos braços até à praia, pousou-a na areia molhada e chapinhou ruidosamente de regresso ao barco.
— Adeus — gritou Thorvald, mas ela pareceu não o ouvir. A jovem ficou durante um momento a olhar para o carreiro rochoso e íngreme, na direção do terreno mais horizontal, lá no alto. A baía pouco mais era do que uma fissura na falésia e o carreiro um desafio para as pernas mais fortes. Não havia sinal de vida na ilha, com exceção das aves que sobrevoavam no céu, enchendo o ar com os seus gritos repetitivos. Creidhe respirou fundo e começou a trepar.
A jovem virou-se, uma vez, mas não para lhe dizer adeus. Creidhe pousou o rolo e gesticulou bruscamente. O significado era óbvio: virem o barco, vão-se embora, saiam daqui como prometeram. Os homens viraram o Swftwing à força de remos; não se foram imediatamente embora, afastaram-se apenas o suficiente, para que Creidhe continuasse a sua escalada. Thorvald não tencionava ir-se embora sem ficar com uma idéia, pelo menos, de que ela ficaria bem.
Quando Creidhe se aproximou do topo, surgiu uma figura acima dela. O homem ficou ali um momento, escuro e imóvel, como um homem de pedra. Tinha uma lança na mão direita, um arco a tiracolo e uma aljava. A brisa agitava as pequenas penas que lhe decoravam a roupa; fazia-lhe esvoaçar os cabelos em frente das feições magras, ferozes. Thorvald sentiu um arrepio, uma recordação de morte. Mal conseguia respirar.
Creidhe parou e olhou para cima. A jovem deixou cair o rolo de cobertores no chão e abriu os braços. Quanto a Guardião, a sua extrema imobilidade pareceu durar apenas um momento. Deixando cair a lança e passando o arco por cima do ombro e deixando-o cair, cobriu a distância tão depressa como um gamo. O jovem chegou ao pé dela e fez uma pausa. Em seguida, deu um passo em frente e ambos se abraçaram, não apaixonadamente, não selvaticamente, mas com a maior suavidade e Thorvald pensou ver, na verdade, duas metades de um todo, juntando-se prodigiosamente. Havia uma justeza na sua postura imóvel, um sentido de perfeição: a cabeça de Guardião inclinou-se por cima da cabeça de Creidhe, a testa dela encostada ao pescoço dele. Thorvald sentiu-se de tal modo confuso, que ficou tonto e quase desmaiou. Nunca mais voltarei a sentir isto, pensou ele, espantado. Este tumulto de emoções, o coração dilacerado: nunca mais voltarei a sentir isto. E pensou que, como condutor de homens, ainda bem que era assim. Mas, como homem, sentiu a derrota, porque era como se a Primavera da vida tivesse passado por si com a sua turbulência e as suas promessas. Então, virou-se, ladrou uma ordem e rumaram a casa.
— ... levaram-no... — murmurava Guardião com a boca encostada ao cabelo dela. — Eles levaram-no... eles levaram Pequenino...
— Eu sei — disse Creidhe, sentindo o coração dele no peito, saboreando o calor do corpo dele. — Ele está bem, Guardião, está bem e feliz. Foi ele que quis ir. Eles não lhe fizeram mal. Não houve ritual nenhum, ninguém o cegou.
— Estavas lá? — perguntou ele, espantado.
— Estava lá e fui eu que os impedi. Pensei que estavas morto, meu querido. Não havia mais ninguém para o ajudar.
— Eu estava enganado, Creidhe. Enganado. Este tempo todo... — Ele estava a ficar cada vez mais agitado; a jovem sentia-o tremer todo.
— Shhh — disse Creidhe. — Temos muita coisa que contar antes que as coisas possam fazer sentido. Tu fizeste tudo por amor e isso é que importa. E ele também: por que outra razão havia de ficar aqui, senão por amor a ti, a sua única família? Meu querido, acabo de fazer uma grande viagem. Vamos para casa?
Os dois jovens treparam juntos até ao topo do carreiro, ele pegou nas suas armas e meteu o rolo de cobertores debaixo do braço. Creidhe reparou numa mudança nele; estava mais magro, tal como ela, e as feições mais duras, de certo modo, como se tivesse envelhecido mais de um ano desde que ela o vira pela última vez. O cabelo estava diferente. Estava penteado e atado atrás com uma fita de pele. Apenas algumas madeixas lhe caíam para a testa. A jovem estendeu um braço para lhe acariciar os caracóis nas têmporas, para lhe afastar as madeixas dos olhos.
— Estás... lindo — disse-lhe ela. — Estou tão feliz por teres esperado. Tão contente que nem tenho palavras.
— Tinha de esperar! — murmurou Guardião. — O nosso voto foi para toda a vida. Teria esperado até ao fim dos tempos. Até mais, se pudesse.
Continuaram a caminhar. Creidhe reparou que o caminho não era o mesmo que ia dar ao velho abrigo, o lugar onde ela levara com a pedra na cabeça.
— Onde vamos? — perguntou-lhe ela.
A voz de Guardião soou, subitamente, extremamente tímida.
— Construí-te uma casa, como prometi — disse ele. — Uma boa casa, quente e segura. Suficientemente grande para três, apesar de Pequenino se ter ido embora.
Creidhe sorriu.
— Suponho que havemos de ter um filho, ou uma filha, dentro de algum tempo — disse ela. — No próximo Verão, se os antepassados tomarem bem conta de nós. A nossa casa ficará cheia.
Aquilo silenciou-o por completo, mas Creidhe não perdeu a mudança nos seus olhos, nem o sorriso doce e hesitante que lhe curvou a boca solene. Aquilo seria um passo importante para que tudo ficasse certo, finalmente.
A casa estava numa dobra abrigada de terreno, junto de um pequeno ribeiro. Ele dissera a verdade; era espaçosa e bem construída, com um telhado de erva segura por pedras penduradas e paredes de rocha aparelhada. Creidhe podia ver alguma madeira aqui e ali; tinha feito parte, talvez, de um barco. Havia dois quartos; o maior tinha uma lareira central, onde ardia um pequeno fogo. Havia um espaço seco para armazenar turfa, pregos de madeira para pendurar roupa e prateleiras de pedra lisa. Havia uma ampla plataforma para dormir, suficientemente grande para dois.
Creidhe exclamou, deliciada:
— É maravilhosa! Adoro-a! E tenho mesmo o que falta... — A jovem fez-lhe sinal para pousar o rolo em cima da plataforma. — Importas-te de abrir isso, por favor? Pode ser que precises de utilizar a faca para cortar o atilho, creio que os nós estão muito apertados...
Nada se perdia na Ilha das Nuvens. Guardião não cortou o cordel, desfez os nós com dedos longos e ágeis. O conteúdo do rolo desenrolou-se parcialmente, um alegre cobertor de lã azul e vermelha.
— É do tamanho exato.
— É fantástico — disse Creidhe com um nó na garganta enquanto observava as diversas expressões no rosto dele, enquanto via as recordações nos seus líquidos olhos verdes. — Fi-lo exatamente para esta cama.
Guardião desenrolou completamente o cobertor, que cobria a plataforma de uma ponta à outra, da cabeça aos pés. Os seus dedos acariciaram a superfície suave, o azul profundo vivo, o vermelho cor de sangue, a orla intrincada de pequenas árvores e pequenos animais.
— Para mim? — perguntou ele a custo.
— Para ti. Para o meu marido.
Nem sempre os sonhos se tornam realidade. Na verdade, a maior parte das vezes dão-nos versões confusas e retorcidas da verdade, mostrando-nos o que desejávamos, ou o que temíamos. Não foi assim com Creidhe. Quando ela acordou na manhã seguinte, na Ilha das Nuvens, foi exatamente como sonhara enquanto tecia aquela coisa maravilhosa com lãs coloridas, enquanto tecia as suas belas visões. Quase igual. O sol da manhã entrou através da entrada da bela casa de Guardião, tocando no cobertor com a sua luz vibrante, cheia de vida. A jovem deixou-se estar sob ele, quente, com dores lânguidas no corpo. Os braços do marido rodeavam-na, fortes e firmes, protegendo-a de qualquer mal. E se ele não era o homem dos seus sonhos, que importância tinha? Era o seu único amor, o desejo do seu coração. Sem ele, teria passado a vida incompleta. Quem havia de se deitar por baixo do cobertor azul senão ele?
Creidhe encostou-se a ele, sorrindo, e sentiu a mão dele nos cabelos, puxando-a para si. O seu desejo por ela era grande; dos dois, fora ele quem sofrera mais. Tinha de ir suavemente, lentamente e ajudá-lo o melhor que pudesse. Com o tempo, talvez ele conseguisse dar o passo seguinte, tentar novos caminhos, conhecer outra gente. Guardião tinha capacidades que alguns homens sem escrúpulos poderiam tentar explorar; teriam de enfrentar alguns perigos, perigos que ainda nem sequer tinham forma. Precisavam de tempo. Certamente que os antepassados, se vivessem bem as suas vidas, se apercebessem que tinham sido abençoados, lhe concederiam.
NOTA DA AUTORA
Na localização, geografia e terreno, as Ilhas Perdidas parecem-se muito com as Faroe, um grupo de dezoito ilhas situadas aproximadamente a meio caminho entre a Noruega e a Islândia. Mas Máscara-de-Raposa não é um romance acerca das Faroe. O cenário e as personagens existem, algures, entre a história e a mitologia e as próprias Ilhas Perdidas são, parte realidade, parte imaginação. Alguns nomes utilizados neste livro são traduções livres dos nomes atuais de várias partes das Faroe e outros são pura invenção. Por exemplo, a Ilha das Torrentes (Streymoy) e o Dedo da Bruxa (Trollkonufmgur) estão próximos de nomes atuais da Faroe. Dei outros nomes a vários lugares de acordo com a natureza da história.
Em Máscara-de-Raposa, os locais dos acontecimentos podem ser encontrados num mapa das Faroe, se bem que eu tenha tomado alguma liberdade criativa no que diz respeito ao terreno e às distâncias. A ilha mais ocidental, Mykines, que tem uma cobertura semipermanente de nuvens, é a Ilha das Nuvens e o lago interior de Sorvágsvatn, com o seu precipício e a sua queda de água, é Água Brilhante. O Fiorde do Conselho é, na realidade, Sorvágsfordur e a cidade de Sorvágur assinala a localização aproximada do acampamento de Asgrim. Windswept Vagar tornou-se a Ilha das Tempestades e Midvágur é a Baía Sangrenta. Esta aldeia ainda é palco de alguns dos mais sangrentos grindadráp, durante o qual cardumes de baleias-piloto são conduzidos até à praia para ali serem chacinadas.
Quanto à Corrente dos Loucos, nos nossos dias um barco pequeno faz a travessia regular entre Vagar e Mykines, exceto com tempo muito mau. A população permanente de Mykines, onde Guardião construiu a casa para a sua mulher, tem quinze habitantes corajosos, juntamente com um grande número de papagaios-do-mar, gansos-patola e outras aves. A ilha tem, na verdade, um único e perigoso local de desembarque. A travessia é dura, mas eu fi-la de helicóptero, um meio de transporte comum nas Faroe. Sobrevoamos picos rochosos que em Maio ainda estão cobertos de neve. O estreito entre Vagar e Mykines é perigoso para barcos pequenos. Figura nas velhas histórias da viagem de S. Brendan e na história de Tim Severin, The Brendan Voyage, como de navegação particularmente difícil. As lendas nascem facilmente em redor de locais tão perigosos; as histórias acerca da Corrente dos Loucos e da Tribo das Focas não passam de avisos codificados, destinados a manter os pescadores afastados do perigo.
O primeiro livro desta série, O Filho de Thor, fala numa viagem viquingue às Orcades e foi, em muitos aspectos, baseado em fatos reais ou possíveis. Máscara-de-Raposa é um pouco diferente. Sabemos que as Faroe foram colonizadas por gente do sul da Noruega e das Orcades mais ou menos por esta ocasião. Também se sabe que alguns monges irlandeses foram até estas ilhas distantes, provavelmente muito antes da chegada dos nórdicos. É uma terra inóspita e foi colonizada pelo povo mais corajoso e mais tenaz. O clima é extremo, os canais estreitos entre as ilhas perigosos e a terra difícil de cultivar. A pesca não tem rival. Os registros escritos acerca destes antigos colonatos são poucos e raros, com muitos relatos a serem postos no papel muitos séculos depois dos fatos.
Portanto, quanto da história de Máscara-de-Raposa é verdadeira, ou podia ser, ou quanto é fantasia? O que se segue é, pelo menos, possível, ou até provável: a existência de eremitérios isolados nas ilhas e as viagens de cristãos intrépidos, como Breccan; a presença de colonos como Asgrim e o seu povo dos Facas Longas, esgravatando a vida no mar e criando as tenazes ovelhas das ilhas cujos descendentes, de pêlo encaracolado e multicolorido, vagueiam hoje pelas encostas. A viagem de Thorvald, Sam e Creidhe no seu barco de pesca a partir das Orcades também é possível, se bem que pudesse ter sido uma viagem terrível com uma tripulação tão pequena. No entanto, se S. Brendan a pôde fazer numa embarcação minúscula feita de pele de boi desde a costa ocidental da Irlanda, eles podiam tê-lo feito no seu barco robusto, desde que o tempo estivesse do lado deles.
O povo da Tribo das Focas é baseado em fontes folclóricas. A existência destas criaturas oceânicas, nem benignas, nem malignas para o homem, apenas profundamente Outros, é mencionada nas velhas histórias de muitos povos habitantes das ilhas.
Quanto Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz e ao seu pequeno vidente, Máscara-de-Raposa, são pura imaginação. A História não nos diz se eram um povo que habitava as Faroe antes da chegada dos cristãos, mas podiam ter habitado. Criei uma raça baseada na natureza bravia do meio-ambiente local. Se tivessem existido, não tenho dúvidas de que a sua cultura e crenças estariam enredadas nas forças da natureza, das quais dependia a sua sobrevivência.
Juliet Marillier
O melhor da literatura para todos os gostos e idades