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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MATARAM O REI! / Magalhães & Isabel Alçada
MATARAM O REI! / Magalhães & Isabel Alçada

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Mesmo na frente deles um homem de barba preta descarregou uma carabina em cima da família real.

Do outro lado da rua saltou logo um a ajudar.

Pendurou-se na traseira da carruagem e disparou com o cano encostado à nuca do rei D. Carlos.

Matou-o imediatamente. Ergueu-se o príncipe mais velho, de pistola em punho, que também foi abatido.

A rainha, de pé, defendia-se das balas agitando um ramo de flores. O tiroteio continuava, agora cruzado, pois a guarda reagiu, alvejando os assassinos.

Caíram vários corpos e a multidão pôs-se em debandada. Gritavam a uma só voz:

— Mataram o rei! Mataram o rei!

 

 

 

                 O toupeira

A sala estava mergulhada no mais profundo silêncio e o velho cientista permanecia imóvel diante dum ecrã enorme.

A posição do corpo, o olhar fixo e atento não deixavam lugar a dúvidas: estava à espera de uma mensagem e não queria ser interrompido. Ana e João perceberam de imediato que deviam ser discretos. Entraram pé ante pé, encostaram-se à parede e fixaram-se também no painel onde piscavam luzes de várias cores. O fascínio de sempre envolveu-os. Embora conhecessem há muito aquele laboratório e as fabulosas máquinas de viajar no tempo, nem por isso a alegria era menor. Às vezes ainda lhes parecia impossível que a AIVET (1) existisse e os tivesse aceitado como sócios!

 

(1) AIVET significa Associação Internacional de Viagens no Espaço e no Tempo.

 

Não se atreveram a fazer perguntas, mas morriam de curiosidade. Quem estaria a tentar entrar em contacto com o Orlando? Cientistas de um país longínquo? Ou alguém em viagem pelo passado? Talvez o recado viesse do futuro...

Logo que a imagem se definiu e apresentou no ecrã uma cara de feições asiáticas, concentraram-se ao máximo para ouvir o que dizia. Pois a desilusão foi completa. O homem falava numa língua desconhecida e Orlando respondia no mesmo idioma. Que raiva! A expressão de ambos, o tom da voz e os gestos contidos permitiram-lhes no entanto tirar uma conclusão: o assunto era grave.

A conversa não se prolongou. Frases curtas para lá, frases curtas para cá, palavras em código encerrando a comunicação, luzes faiscantes, um besouro contínuo e depois silêncio de novo. Já esboçavam um movimento de aproximação mas um gesto imperioso obrigou-os a recuar.

— Quietos! — murmurou Orlando. — Fiquem quietos.

Por uma ranhura da máquina saía agora uma tira de papel ondulante. Vinha escrita numa letra miúda e incompreensível. A certa altura, porém, o texto desapareceu e surgiram figuras. Não resistiram ao apelo e, deslizando sem ruído, chegaram-se aos aparelhos. Orlando não reparou porque estava totalmente absorvido na leitura dos estranhos gatafunhos. Só quando terminou se dispôs a falar-lhes. Fez rodar a cadeira e endereçou-lhes um sorriso triste.

— Ainda bem que vieram. Preciso muito da vossa ajuda.

Semelhante declaração provocou o maior alvoroço na mente dos dois irmãos. Orgulhosos por serem necessários ao trabalho de um sábio e contentes por poderem valer a um amigo, desataram a falar ao mesmo tempo num tal desvario que o velho cientista teve que os mandar calar:

— Calma. Eu sei que conto convosco e agradeço. Mas como estou cansadíssimo prefiro que se instalem e escutem o que tenho para vos dizer.

Obedeceram-lhe prontamente e aguardaram. As explicações vieram devagar.

— Cometi o maior erro da minha vida — disse Orlando à maneira de confissão. — Até me sinto humilhado.

Os olhinhos azuis não tinham o brilho risonho do costume e a boca descaía numa expressão de tristeza que não lhe conheciam.

— Meti um bandido no nosso grupo — declarou a custo. — Um bandido da pior espécie.

Eles encararam-no atónitos. Tinham tanta dificuldade em acreditar no que estavam a ouvir que nem fizeram comentários.

— Trata-se de um indivíduo muito inteligente. Conseguiu enganar-me a mim e aos meus companheiros. É perito em disfarces. Olhem aqui.

Puxou a tira de papel que ainda há pouco saíra pela ranhura da máquina e mostrou as figuras.

— São fotografias de vários homens — balbuciou a Ana.

— Isso julgas tu. É sempre o mesmo.

Os dois irmãos debruçaram-se mais atentamente e pasmaram. Não conseguiam encontrar a menor semelhança entre as diversas caras. Numa fotografia o homem era gordo e com bigode farfalhudo. Noutra era magro e de sobrancelhas finas. Também variava o feitio do nariz, a cor dos olhos e a idade. Ora parecia novo ora bastante velho.

— Como é que ele consegue este efeito? Faz operações de estética?

— Não. Usa lentes de contacto, capas para os dentes, almofadinhas de silicone para tufar as bochechas, enfim, utiliza os truques normais dos actores. Mas além de transformar as feições tem um talento especial para assumir outras personalidades. Já se fez passar por músico famoso, médico cirurgião, corredor de automóveis, banqueiro... E representa o papel na perfeição. Não se limita ao disfarce. Sabe escolher a maneira certa de estar, andar, falar.

— Mas para quê?

— Para encobrir as suas actividades criminosas.

— Roubos?

Orlando sorriu e abanou a cabeça.

— Pior. Este indivíduo não rouba. Vende.

— Mas isso não é crime!

— É, sim. Porque vende armas. E como não quer perder o negócio, organizou uma rede de colaboradores para evitar a paz nos sítios onde há guerra.

— Que monstro!

— Dizes bem. É um monstro. Sabes qual foi a última que preparou?

— Não.

— Ele fornecia metralhadoras e munições a um país africano onde estalara uma guerra civil. O negócio era muito rendoso porque tanto vendia para um lado como para o outro.

Mas houve conversações e a certa altura os dirigentes mostraram-se dispostos a assinar a paz. Pois no dia do encontro foi tudo por água abaixo.

— Porquê?

— Porque o vendedor de armas bombardeou uma povoação para fingir que um dos grupos não respeitara o cessar fogo. Já não houve encontro nenhum e a guerra recomeçou em força. Morreram homens, mulheres, crianças e vários elementos da Cruz Vermelha que tinham um acampamento na zona.

Ana e João escutavam-no de boca aberta. Ambos recordavam cenas terríveis vistas na televisão. Crianças a chorar, pessoas mutiladas, casas destruídas. Então havia quem fosse capaz de provocar tanta desgraça para ganhar dinheiro?

Ao assombro misturava-se outro motivo de espanto.

— E foi esse homem que o Orlando admitiu na AIVET?

Ele baixou os olhos, envergonhado.

— Exacto. A polícia internacional tinha arranjado provas para o incriminar e andava-lhe no encalço. O tipo soube que estava a ser procurado, disfarçou-se de cientista e veio bater-me à porta.

— E não lhe investigaram o passado?

— Claro que investigámos e tudo batia certo porque ele é de facto muito inteligente. Usou papéis de identificação que pertenciam a um cientista verdadeiro. Quanto mais investigávamos mais nos convencíamos de que era um bom elemento.

Ao terminar a frase Orlando abriu os braços num gesto de desânimo.

— Parece impossível mas é verdade.

— E agora?

— Agora, como fui eu que arranjei este problema, tenho que o resolver.

— Como? Vai dizer à polícia onde ele está?

— Eu dizer, dizia. Mas não sei.

— Fugiu?

— Fugiu, sim. Roubou uma máquina do tempo e desapareceu.

— Mas ele sabe mexer naqueles botões e alavancas?

— Sabe porque eu lhe ensinei.

Uma onda de sangue tingiu-lhe as bochechas.

— Ainda ninguém lhe descobriu o paradeiro? — perguntou a Ana.

— De início não tínhamos pistas porque ele levou escudos magnéticos para envolver a máquina depois da aterragem. Assim é impossível detectá-la.

— Então?

— Agora há uma esperança. Acabei de receber informações animadoras. Capturaram um cúmplice que deu com a língua nos dentes. Já sei o que aconteceu e fui encarregado de ir procurá-lo. Esta tira de papel traz um relato completo e fotografias de todos os disfarces que ele já assumiu. Como se ignora o nome verdadeiro, deram-lhe um nome de código: o Toupeira. Vou partir daqui a nada e gostava que viessem comigo. Querem?

Ana e João até deram um salto na cadeira.

— Claro que queremos!

— Fugiu para o futuro?

— Não. Lembra-te de que no futuro ele seria um homem atrasado para a época. O Toupeira deu um mergulhinho no passado. Foi para o princípio do século XX. E o cúmplice explicou porquê.

Vai montar uma fábrica de metralhadoras fingindo ser o inventor. Mais uma vez mostrou que é inteligente pois escolheu muito bem a época.

Apercebendo-se de que não o entendiam, Orlando explicou melhor:

— Naquela altura já havia armas parecidas com as actuais. As metralhadoras modernas não vão causar grande espanto. Representam apenas um pequeno avanço. Será fácil arranjar operários habituados a um trabalho semelhante e ensiná-los a produzir o que quiser. E como é uma época de revoluções, não lhe faltarão clientes. Mas na minha opinião ele ainda deve ter pensado noutra coisa.

— Em quê?

— Na comodidade. Reparem que no princípio do século quem fosse rico vivia com todo o conforto. Casas grandes, imensos criados, e novidades como água canalizada, iluminação eléctrica, automóveis...

— Tudo como agora?

— Não. Há muitas diferenças. Mas com saúde e dinheiro é uma época bem agradável.

Ana já estava a enfiar-se na máquina do tempo e João seguiu-a vibrante de entusiasmo.

— Ora cá vamos nós em busca do Toupeira! Se depender de mim ele não vende uma única metralhadora. Despache-se, Orlando!

 

Antes de accionar os mecanismos de partida, Orlando disse-lhes para se encherem de paciência.

— Desta vez temos que agir devagar porque as pistas são vagas e se nos precipitarmos pode acontecer que o Toupeira nos descubra a nós antes de nós o descobrirmos a ele. Isso seria muito perigoso. A cautela até vou usar barbas e sobrancelhas postiças. Quanto a vocês, nada de precipitações, hã? E não se descaiam a falar no assunto diante de outras pessoas.

— Pode ficar descansado — prometeu a Ana. — Vou ser cuidadosíssima. Mas se quer que lhe diga a verdade, parece-me uma missão impossível. Não conhecemos o homem, ignoramos que disfarce tomou, também não sabemos onde montou a fábrica nem qual o ano exacto que escolheu...

— Se fosse assim era melhor desistir! As pistas de facto são ténues. No entanto há alguns dados concretos.

O último rasto da máquina que roubou emitiu vibrações no Bairro da Lapa, em Lisboa, no ano de 1907, e portanto vamos para lá.

— Então é fácil — declarou o João, optimista como de costume. — Com certeza a cidade nesse tempo era pequena. Damos uma volta e assim que encontrarmos uma fábrica em construção, zás! Apanhamo-lo num instante.

Impossível não rir com semelhante tirada.

— Para ti nunca há problemas, João. Só que infelizmente as coisas são mais complicadas. A cidade não é tão pequena como julgas, há imensas fabriquetas no interior e nos arredores e o Toupeira procede de forma hábil e engenhosa.

Um pouco descorçoado, João perguntou:

— Nesse caso o que pensa fazer?

— Vamos perseguir o criminoso sem prestar atenção aos aspectos exteriores. Pouco importa o físico, e o vestuário. Temos que captar aquilo que ele afinal nunca muda: o espírito. Por trás de cada disfarce está sempre um homem inteligente, simpático, de gostos requintados, ânsia de dinheiro e poder. Posso garantir-te que o Toupeira se instalou numa boa casa e estabeleceu convívio com gente rica. Talvez até se tenha infiltrado na corte. É nesse meio que temos de o procurar. E sem pressa. Uma fábrica deste género não se consegue pôr a funcionar de um dia para o outro.

Dito isto premiu os botões e eles deixaram-se absorver pelas malhas do tempo.

Quando se instalaram num pequeno palacete do Bairro da Lapa, os dois irmãos sentiram-se invadidos por sentimentos contraditórios. Estavam ali à conta de um indivíduo horroroso. Mas não podiam deixar de reconhecer que o homem tinha bom gosto.

Orlando alugara uma casa estupenda com jardim fazendo-se passar por grande proprietário do Ribatejo que decidira trazer os netos para Lisboa. No primeiro dia outra coisa não fizeram senão andar escada abaixo, escada acima, admirando-se com o espaço de que as pessoas dispunham no princípio do século. Tantos quartos e tantas salas a abarrotar de mobília e enfeites! Vestidos a rigor, sentiam-se príncipes, e como havia espelhos em quase todas as divisões, paravam a olhar-se com uma ponta de vaidade.

Só a meio da tarde lhes apeteceu ir explorar o jardim. Não era muito grande mas tinha um laguinho, canteiros com flores, uma árvore frondosa encostada ao muro. Os ramos entrelaçavam-se noutra copa que pertencia a uma «gémea» do jardim vizinho. Consideravam a hipótese de se empoleirarem nos ramos quando ouviram do lado de lá uma voz esganiçada a gritar com pronúncia inglesa:

— Sofia! So-fi-a!

Ninguém respondeu mas a ramagem deu sinal de si agitando-se levemente. E eles viram então uma cabeleira loira misturar-se aos ramos no movimento de quem se esconde.

Os gritos continuavam:

— Sofia! Where are you?

Pelos vistos a dona da cabeleira não queria ser encontrada. Ficaram à espera de ver o que acontecia. Logo que a inglesa desistiu da busca, a fugitiva voltou-se e sorriu-lhes. Tinha uma cara bonita e grandes olhos escuros muito vivos. Antes de falar, mudou de ramo para ficar mais perto e exibiu a capa do livro que estava a ler.

— Proíbem-me de ler o Eça de Queirós mas eu leio na mesma!

Saltou para o muro com a maior agilidade e deixou-se escorregar até cá abaixo, pouco se importando que o vestido branco ficasse manchado de verde por causa do musgo.

— Chamo-me Sofia — disse, estendendo a mão para cumprimentar à inglesa. — E vocês?

Ana e João apresentaram-se risonhos. Estabelecera-se de imediato uma corrente de simpatia. Aquela rapariga era irresistível e falava pelos cotovelos.

— Então vieram morar para aqui? Ainda bem. Eu adoro ter vizinhos com quem conversar. Espero é que não se importem que faça incursões no vosso jardim para fugir à vigilância da Miss Nelly. Ela é boa pessoa mas muito maçadora. Veio viver connosco para nos ensinar Inglês e até ensina bem. O pior é que tem a mania dos horários. Imaginem que decidiu marcar horas de leitura. Quer que eu leia das três às quatro. Ha! Ha! Ha! Hei-de ler sempre que me apetecer e de preferência livros proibidos...

Interrompeu o discurso com uma expressão malandra, sacudiu a cabeleira e acrescentou:

— Hoje escapei à aula de equitação. Gosto muito de andar a cavalo mas há dias em que ainda gosto mais de mudar os planos que fazem para mim.

Nesse momento o ronco surdo e contínuo de um motor a trabalhar levou-a a dar pulos de alegria.

— Escapei mesmo! Lá vai o automóvel levar as minhas irmãs...

Ana e João entreolharam-se divertidos. Estavam num bairro da cidade e até àquela altura ainda não tinham escutado senão passarinhos a cantar, o sussurro da brisa na folhagem, vozes humanas, os latidos de um cachorro. Motor só um, aquele, do único automóvel que existia na rua! Outra época, sem dúvida.

Sofia ficou por ali até à hora do jantar. Quis conhecer Orlando e bisbilhotar cada recanto da casa. A sua maneira de ser esfuziante e comunicativa facilitou imenso os diálogos porque tinha tanto para contar que não os massacrava com perguntas. Estranhou apenas não encontrar criados.

— Então quem cozinha? Quem limpa as salas e arruma os quartos?

Orlando apressou-se a explicar que preferira deixar o pessoal de confiança a tomar conta da propriedade onde residiam habitualmente. Tencionava contratar gente para os vários serviços no dia seguinte.

Ela achou delicioso.

— Que maravilha! Três pessoas sozinhas neste casarão. Nós nunca vamos para lado nenhum sem enviar parte da criadagem à frente. Quando chegamos ao Estoril para passar férias já limparam o pó, prepararam as camas, puseram flores nas jarras. Agora vocês fizeram-me reparar que nunca entrei numa casa desabitada. Adoro casas desabitadas.

Deixou-se cair num sofá de veludo e suspirou:

— Vamos ser amicíssimos.

Orlando seguia-lhe os movimentos e bebia-lhe as palavras. Aquela rapariga caíra do céu! Se estabelecessem laços de amizade mais depressa se conseguiam integrar e conhecer outras famílias. Não confessava a si próprio mas o enlevo também se devia ao facto de ter pela frente uma menina bonita.

— Tenho a certeza de que vão gostar imenso da minha madrasta — declarou Sofia, peremptória. — São pessoas do mesmo género. A Isabel tem ideias originais e é muito despachada.

Percebendo uma certa interrogação nos olhos que a fitavam, tentou esclarecer logo aquilo que julgou ser a dúvida:

— A minha mãe morreu quando eu nasci. O meu pai casou outra vez há pouco tempo com uma prima afastada muito mais nova do que ele. Nós ao princípio estávamos com medo. As madrastas costumam ser terríveis, não é? Mas tivemos sorte. No dia em que nos foi apresentada como noiva estávamos tão nervosas que nem abrimos a boca. Sabem o que ela fez? Aproveitou um momento em que o meu pai saiu da sala e disse-nos assim: «Vocês comigo não têm que se preocupar porque também fiquei sem mãe em criança e sei como é triste. Farei tudo para nos darmos bem e acho que podemos ser boas amigas.» Depois abraçou-nos. E cumpriu o que disse. Se há algum problema está sempre pronta para nos defender.

Como não conseguia estar quieta muito tempo, levantou-se, sacudiu a saia e fez balançar a cabeleira sobre os ombros.

— É uma querida. Toda a gente gosta dela e o meu pai então parece um parvinho. Bem tenta disfarçar, mas a gente percebe que se derrete com a sua Isabelinha. A paixão até lhe deu para se tornar casamenteiro. Agora quer por força arranjar noivo para uma das minhas irmãs.

— Que idade é que elas têm? — perguntou a Ana, interessada.

— A Carolina tem dezassete. E a Tatão dezasseis.

— Mas são novíssimas!

— Hum... as minhas primas são da mesma idade e já casaram — disse a Sofia com um encolher de ombros. — O pior desta história é que ele arranjou um candidato que ninguém conhece. Deve ser um velho insuportável.

— Porquê?

— Porque o meu pai diz que não sabe quantos anos tem o homem. Isso faz-nos desconfiar. Como casou com uma rapariga mais nova, se calhar acha normal impingir um velho.

Orlando soltou uma das suas gargalhadas roucas.

— E que mal tem um velho?

— Nenhum. É óptimo para avô!

Deu-lhe um beijo sonoro na bochecha e prosseguiu.

— Vamos conhecê-lo no sábado. Ele vive no Alentejo e vem a Lisboa de propósito. Está previsto que apareça a fingir que é só uma visita e depois logo se vê se dá romance. Sabem o que era divertido? Vocês virem também à mesma hora!

— A tua casa? Sem conhecermos a família?

— Claro. Se mudaram para aqui, mais tarde ou mais cedo hão-de aparecer para cumprimentar os vizinhos. Então combinamos já e aparecem no sábado às quatro da tarde. Que tal, hã?

A ideia era tentadora e Orlando resolveu aceitar. Já de saída, Sofia atirou para o ar informações perturbantes:

— O meu pai garante que o homem é simpático, inteligente, muito rico e anda à procura de noiva que lhe convenha. Mas chama-se Flamiano. Com um nome destes deve ser feiíssimo, não acham?

Despediu-se sempre num alvoroço e foi embora, desta vez pelo portão do jardim.

Eles não precisaram de fazer comentários porque pensavam todos a mesma coisa.

Um desconhecido inteligente, simpático, muito rico... Talvez fingisse procurar noiva para estabelecer relações de amizade com famílias importantes. O Toupeira teria decidido adoptar o nome de Flamiano? Nesse caso tratava-se de uma espantosa coincidência!

— A vida é feita de coincidências espantosas! — murmurou o Orlando.

 

No sábado seguinte levantaram-se antes de o Sol nascer pois a impaciência não os deixara dormir em paz. Flamiano não era no entanto o único responsável pela agitação.

Se não andassem em busca de um indivíduo para desmascarar, o nervosismo seria igual porque lhes apetecia imenso introduzirem-se na casa do lado. Já tinham conhecido as irmãs mais velhas de Sofia e conversado com elas por cima do muro. Também já tinham trocado algumas palavras com Miss Nelly, que se mostrara encantada pelo facto de eles saberem inglês. Isabel, a quem as enteadas não se cansavam de elogiar os novos amigos, acenara-lhes risonha uma vez que se cruzaram no passeio. O automóvel estacionado na rua, o motorista fardado a rigor, as várias criadas que circulavam por trás das vidraças numa grande azáfama, enfim, tudo e todos serviam para lhes aguçar o apetite.

Sentiam-se à beira de penetrar num mundo novo e ansiavam por fazê-lo.

Depois do almoço Orlando mandou-os vestir o traje próprio para visitas, o que os divertiu. Era engraçado que existissem roupas diferentes para diferentes horas do dia ou para diferentes ocupações sociais. E só em casas enormes como aquela se tornava possível albergar armários com tamanho suficiente para conter fatiotas de trazer por casa, de sair à rua, de viagem, de passeio, de baile, de visita. Isto ajudou-os a perceber até que ponto construções, mobília e vestuário formam um todo e reflectem a maneira de viver própria de cada época.

Embora se dirigissem ao portão contíguo, Orlando pôs o chapéu e pegou numa bengala esguia com a extremidade revestida a prata. Sem os dois acessórios seria olhado com desconfiança, pois havia regras muito rígidas entre as pessoas daquele meio.

— Se eu não levar a bengala, o mais certo é fazerem troça de nós assim que virarmos as costas. E o pior é que não nos tornam a convidar.

Lá foram portanto aperaltados com os elementos da praxe. Ana fingiu-se aborrecida mas na verdade até achou graça às luvas e ao chapelinho de seda igual ao vestido.

Quem lhes abriu a porta foi um mordomo de expressão impenetrável. Atravessaram uma entrada magnífica com o chão em mármore preto e branco e foram introduzidos numa sala cujas portadas abriam sobre o jardim.

— Tenham a bondade de esperar um instante que a senhora condessa desce já.

O mordomo retirou-se depois de os saudar com uma discreta inclinação de cabeça e eles fizeram um esforço tremendo para conter o riso. Tanta cerimónia e complicação num simples encontro de vizinhos!

Felizmente apareceu Sofia, acompanhada pelas irmãs e Miss Nelly. Trocaram palavras amáveis e também houve risos à socapa, porque era bizarro estarem ali à espera de um pretendente desconhecido que vinha ver se as meninas lhe agradavam ou não! Preparavam-se para fazer imensa troça dele e todas tinham decidido odiá-lo desde o primeiro minuto. Todos menos o pai, claro. Quanto à madrasta, aparentemente não tomara posição contra nem a favor. Sentada ao lado do marido, fazia as despesas de conversa como qualquer boa dona de casa. Sempre que se ouvia um ruído exterior piscava o olho às enteadas, como quem diz: «Lá vem ele, preparem-se.» As meninas remexiam-se na cadeira, furiosas. Tinham passado horas a falar a respeito daquele homem e, palavra puxa palavra, acabaram por construir a imagem de um velho repelente, baboso e careca. A conta dele, quantas discussões!

— Se alguém tem que casar és tu. Carolina. Eu sou mais nova — defendia-se Tatão.

— Ora essa! Tu é que tens fama de obediente. Não és a menina querida do papá? Então agora faz-lhe a vontade. Verás que te cobre de presentes, como aliás já é costume.

— Invejosa! O pai nunca me deu nada a mim que não te desse também a ti.

— Mentira! Ainda o mês passado te ofereceu um colar.

— Mas eu fiz anos.

— E isso que tem? Quando eu fiz anos não recebi colar...

— Pois não. Recebeste brincos.

— Que valem menos.

— Que valem menos porquê? Também são jóias. Discussões do género não eram novidade entre as

duas raparigas. Sendo muito diferentes e muito próximas em idade, entravam em conflito a toda a hora.

Sofia apoiava ora uma ora outra, conforme o caso. Desta vez porém divertia-se a arreliá-las gozando em cheio o facto de ser mais nova.

— Não sei porquê mas palpita-me que o vosso pretendente tem umas mãozinhas sapudas e húmidas... Para carícias deve ser um horror! Ainda bem que eu não tenho idade para casar... Bâ!

Assim se vingava por ter ficado em casa com a Miss Nelly nas noites em que havia baile na corte e não a levavam.

Entretidas com a conversa que corria ligeira só deram conta de que alguém tinha chegado quando ouviram a sineta da porta principal. Fez-se silêncio e a atmosfera carregou-se de expectativa. Poucos segundos depois o mordomo trazia-lhes um rapaz alto, magro, de cabelo preto e olhos azuis, lindo de morrer! Foi tal o pasmo que nem queriam acreditar no que viam. E então quando o pai se levantou de braços abertos, exclamando «Seja bem vindo, meu caro Flamiano», as meninas quase caíram da cadeira.

Sempre atenta ao que a rodeava, Isabel tossiu e deu uma cotovelada no braço de Carolina.

— Tenham maneiras! — sussurrou. — Disfarcem o entusiasmo, se não, é uma vergonha.

As apresentações que se seguiram foram um pouco atabalhoadas mas ajudaram a quebrar o efeito surpresa.

Ana e João também estavam perplexos. Seria possível que o Toupeira tivesse assumido a pele da personagem que ali se apresentava? Era tão inesperado que o próprio Orlando não sabia o que pensar. A única hipótese que lhe pareceu plausível foi ser aquele o verdadeiro aspecto físico do maldito traficante. Quem é novo, elegante, bem constituído, pode transformar-se em mais velho, mais gordo, mais feio. O inverso é que não se torna tão fácil...

João não desfitava os olhos azuis, procurando avaliar se a cor era natural ou efeito de lentes de contacto. E Ana interrogava-se espantada. Por trás de umas feições tão perfeitas esconder-se-iam almofadinhas de silicone?

Flamiano percebeu perfeitamente a impressão que causara e comportou- se como um vencedor desde o primeiro minuto. Beijou a mão à dona da casa e às meninas, tendo o cuidado de reforçar o seu encanto natural com olhadelas rápidas e sugestivas que as deixaram na maior excitação. Mostrava-se muito à vontade e tinha uma voz grave cheia de ressonâncias bem masculinas. Era óbvio que sabia qual o motivo do convite e enquanto ia contando peripécias a respeito da viagem procurava avaliar as possíveis noivas. O modo como se dirigia a cada uma fez indignar o João.

«Este tipo gostava era de casar com todas!», pensou. «Que convencido!»

Escusado será dizer que a irmã não partilhava da mesma opinião. Na cabeça da Ana as coisas encaminhavam-se para concluir que aquele rapaz não podia de forma nenhuma ser o Toupeira.

«Precipitámo-nos. Com certeza o pai da Sofia não iria meter em casa este indivíduo se não soubesse mesmo nada a respeito dele.»

Esquecia-se propositadamente de que ela, o irmão e o Orlando estavam ali apesar de ninguém os conhecer.

Deliciado por se ter tornado o centro das atenções, Flamiano pôs-se a falar de projectos pessoais:

— Ando com imensa vontade de comprar um automóvel mas o meu pai é contra. Diz que são modernices perigosas. Para ele não há meio de transporte que se compare ao cavalo.

— Isso é porque nunca experimentou — disse o dono da casa. — Eu fui buscar o meu a Paris e desde então não quero outra coisa. Este modelo pode atingir trinta quilómetros à hora se a estrada for boa. Daqui a alguns anos há-de haver mais automóveis do que carruagens!

— Também não exageres — atalhou a mulher. — Lembra-te de que são caríssimos e que na maior parte dos sítios não poderiam circular porque não há estradas. O automóvel é um brinquedo de cidade.

Orlando trocou um sorriso discreto com os seus dois companheiros. As pessoas que tinham diante de si não conseguiam imaginar grandes transformações no mundo em que viviam. Novidades como o automóvel, o telefone, os candeeiros eléctricos, eram recebidas como pormenores curiosos de que uns gostavam e outros não. Mas ninguém estava preparado para admitir que se aproximava um autêntico vendaval capaz de modificar por completo a vida de toda a gente e até a maneira de pensar.

Duas criadas empurrando um carrinho de chá interromperam a conversa.

As meninas da casa precipitaram-se a servir Flamiano, ansiosas por lhe agradarem. E ele aceitou o que cada uma lhe oferecia com a mesma expressão dengosa.

Por muito que se esforçassem, não foi possível saber a quem distinguira com a sua preferência. E todas, incluindo Sofia, repetiam de si para consigo:

«Acho que ele gostou mais de mim! Tenho quase a certezinha absoluta!»

 

Flamiano deixou atrás de si uma verdadeira onda de alvoroço. A rivalidade entre as irmãs atingiu o rubro e agora envolvendo as três. A partir daquele dia todos os pretextos serviam para se zangarem e depois iam contar as mágoas aos vizinhos do lado. Deste modo a intimidade com a Ana e o João cresceu rapidamente até se tornarem inseparáveis. Eles evitavam tomar partido porque percebiam muito bem que atrás de cada conflito estava sempre a mesma razão: ciúmes.

Sofia esforçava-se ao máximo por parecer mais velha. Deixou de usar o cabelo caído sobre os ombros e escolhia vestidos bem justos na cintura para lhe salientarem as formas. Raramente se empoleirava na árvore e dava grandes passeios melancólicos pelo jardim, lendo romances ou poemas. Adormecia todas as noites a imaginar cenas românticas em que o rapaz, bastante afogueado e com os olhos em brasa, lhe pegava na mão pronto a declarar-se.

Percebendo que as irmãs acalentavam a mesma esperança, embirrava com elas a toda a hora. Pela primeira vez na vida procurou encontrar-lhes defeitos. Acusava Carolina de ser vaidosa e era quase com maldade que dizia à outra:

— Estás gorda, Tatão. Muito gorda.

Tatão desesperava-se. Sempre fora redondinha mas nunca se importara muito com isso. Agora odiava as próprias bochechas e detinha-se em frente de cada espelho a avaliar-se de frente e de perfil. Quase não comia às refeições mas nos intervalos a fome tornava-se insuportável e em vez de resistir precipitava-se sobre latas de bolachas e biscoitos, o que teve como resultado engordar um pouco mais.

Quanto à Carolina, fazia-se distante. Concluíra que só ela tinha realmente idade para casar e já andava até a pensar no enxoval. Se Flamiano queria escolher noiva naquela família não ia perder tempo com miúdas.

Numa bela tarde de Verão, estando cada uma fechada no seu quarto, ouviram o pai chamar com grande entusiasmo:

— Meninas! Venham cá abaixo! Tenho comigo uma visita muito especial!

Elas quase se atiraram pela escada, certas de que iam ao encontro do noivo. Só não sofreram uma desilusão terrível porque quem estava com o pai era o primo Tomás, que todas adoravam. Caíram-lhe nos braços e ele fez a festa do costume.

— Que saudades! Acho que regressei mais depressa de Paris para as ver. Vocês estão lindas!

Beijos e abraços, Sofia teve direito a rodopiar com os pés acima do chão mas ele apressou-se a pousá-la, declarando:

— Já não tens idade para estas brincadeiras. Estás muito mais velha. Ora mostra-te cá. Hum... Que diferença! Aproveitaste a minha ausência para deixares de ser criança.

A reacção aos elogios foi um vermelhão na face e um sorriso feliz. Ainda por cima ele acrescentou:

— Qualquer dia pedem-te em casamento.

À sua maneira efusiva, passou o braço por cima dos ombros do tio e arrastou-o para a sala.

— Venho cansadíssimo mas valeu a pena. Fiz uma viagem fantástica. Tenho que lhes contar todas as peripécias. Ou melhor, algumas, porque a maior parte não são próprias para meninas. Ha! Ha! Ha! Se soubessem como me diverti!

— Calma aí, rapaz. Olha o que dizes.

Embora o repreendesse, fazia-o com benevolência e cumplicidade, porque Jorge adorava aquele sobrinho e perdoava-lhe todas as maluqueiras. Sempre que Tomás aparecia em Lisboa instalava-se lá em casa para longas temporadas, o que era uma alegria para toda a gente. Ana e João conheceram-no no próprio dia da chegada e renderam-se à simpatia daquele primo. O convívio entre as duas famílias intensificou-se ainda mais porque ele transbordava energia e tinha uma imaginação prodigiosa para inventar programas. As semanas que se seguiram foram um autêntico corrupio de festas, passeios, piqueniques. Orlando acompanhava-os muitas vezes in-tegrando-se sem dificuldade. Assumira o papel de avô baboso, fingia-se particularmente atento à Ana por ser menina e aproveitava para ir fazendo as suas investigações. Espiolhou a vida de todos os que lhe ofereceram a mais leve sombra de dúvida, mas não descobriu nada.

Tinham sempre família, amigos, uma longa história atrás de si.

O único indivíduo isolado continuava a ser Flamiano. Falava das propriedades no Alentejo sem convidar ninguém a visitá-las. E contava imensas graças do pai, da mãe, das irmãs, dizendo que andavam em viagem. Uma longa viagem através da Itália. Seria verdade? Ou não haveria propriedade nenhuma nem qualquer espécie de família?

Também lhe causava estranheza o comportamento do rapaz. Por que motivo não escolhia noiva e se divertia a rondar as três irmãs? Talvez ainda não se tivesse decidido. Mas talvez não quisesse compromisso por estar ali de passagem... O Toupeira teria necessariamente que permanecer isolado e misterioso. Ora, a presença de Flamiano nunca era certa. Às vezes prometia vir e faltava. Outras vezes desculpava-se alegando compromissos de última hora e depois fazia uma entrada triunfal quando já não contavam com ele. Este procedimento não parecia natural ao velho cientista. E desnorteava as meninas. Quanto mais as fazia sofrer mais gostavam dele.

A certa altura Orlando julgou ter encontrado uma pista para poder vir a desmascará-lo. Foi de noite, uma noite de insónia. Farto de se revolver na cama cheio de calor, levantou-se e abriu a janela. Para seu grande espanto, viu Flamiano a amarinhar pela parede da casa do lado apoiando-se nos ramos de uma trepadeira sólida. Movia-se com a agilidade e a segurança silenciosa dos gatos. Quando atingiu o varandim que ladeava os quartos onde dormiam as raparigas, empoleirou-se no gradeamento. Depois, servindo-se de uma corda, içou um embrulho que deixara no relvado.

Encostado ao parapeito, Orlando acompanhava-lhe os movimentos no maior assombro.

«Que raio estará ele a fazer?»

Por muitas voltas que desse à cabeça não conseguiu encaixar o assalto nocturno nas possíveis actividades criminosas do Toupeira. Mesmo que já tivesse conseguido fabricar armas, seria pouco provável que as fosse esconder assim. Uma ideia súbita veio abalar as teorias de Orlando.

«Se calhar o tipo é pura e simplesmente um ladrão vulgar. Adoptou a pose de um ricaço em busca de noiva para conhecer melhor as casas deste bairro e poder esvaziá-las na primeira oportunidade!»

De olhos arregalados para tentar furar a escuridão, manteve-se no seu posto enquanto o rapaz permaneceu no varandim. Não havia dúvida de que se ocupava com uma tarefa qualquer. Mas qual? Tirava coisas do embrulho e remexia-se diante de cada janela, sempre sem fazer o mínimo ruído. Repetia os gestos. Baixava-se. Le-vantava-se. Demorou um tempo infinito até descer pela trepadeira tão cautelosamente como tinha subido.

«Roubar, não roubou nada», concluiu Orlando. «Mas que diabo terá estado a fazer?»

Morto de curiosidade, quis esperar o nascer do Sol mas como se estendera na cama o sono acabou por lhe tomar conta do espírito. Despontavam os primeiros raios quando se voltou para o lado esquerdo com uma ressonadela forte.

Algumas horas depois todos os elementos femininos que habitavam naquelas duas casas desvairaram com o inesperado da situação: durante a noite alguém tinha decorado o rebordo das três janelas com as mais lindas flores.

E ainda por cima escolhera para cada uma as cores a que davam preferência no vestuário. Sofia recebeu rosas brancas, Tatão orquídeas amarelas e Carolina vários ramalhetes que deviam ter sido difíceis de encontrar porque incluíam pétalas cor de pêssego, quase do mesmo tom dos vestidos que sempre usava.

Foi uma loucura! Não restavam dúvidas a respeito do autor daquela proeza sentimental. Só não entendiam que multiplicasse o agrado por três em vez de se concentrar numa. Entre os criados já se efectuavam apostas à socapa.

— Cá para mim vai escolher a do meio — dizia um.

— Hum... Se fosse eu escolhia a mais velha.

— Não querias mais nada?

Riam-se, davam piadas e juntavam as moedas que um deles havia de recolher quando Flamiano se decidisse finalmente a pedir uma em casamento. Só o motorista não participou na brincadeira. Trabalhava ali há pouco tempo e era um homem bem estranho. Passava horas a lustrar o automóvel e pouco falava com os colegas para além do indispensável. Tinha uns olhos ligeiramente oblíquos e de expressão tão fria que intimidava as pessoas. Nem as criadas se atreviam a tentar uma aproximação embora o admirassem de longe, sempre tão bem aperaltado na farda verde com botões dourados. Ignoravam tudo a seu respeito, até o apelido. Sabiam que se chamava Joaquim Abílio e nada mais.

À conta das janelas floridas, Ana e João não tiveram lições senão ao fim da tarde. Isto porque Orlando organizara tudo lá em casa de forma que a vida decorresse igual à das outras famílias com quem se relacionavam. Para isso foi obrigado a contratar imensos criados e alguns professores para darem lições aos netos.

Ora «os netos» andavam delirantes. Não tinham que fazer a cama, nem lavar a loiça, nem sequer arrumar as próprias roupas. A qualquer hora do dia ou da noite podiam mexer no que lhes apetecesse, e se deixassem tudo sujo, espalhado, desarrumado, o problema não era deles pois havia gente paga para repor tudo no mesmo lugar. Quanto às lições, achavam divertidíssimo que os professores viessem a casa em vez de irem eles à escola. Esse sistema permitia uma flexibilidade de horários espectacular. Podiam sempre começar mais tarde, acabar mais cedo, adiar para o dia seguinte ou eventualmente ir fazer outra coisa na companhia do professor. Naquela manhã, por exemplo, a Miss que lhes vinha ensinar Inglês foi com eles ver os arranjos florais e depois ficaram todos para almoçar a convite de Sofia.

— Tenho a impressão de que não me importava muito de viver sempre nesta época — dizia o João.

A irmã também se mostrava entusiasmada mas Orlando fazia questão de lembrar:

— Olhem que esta época só é boa para quem é muito rico e tem saúde.

 

— Se vocês pararem de discutir mostro-lhes o que tenho aqui — disse Jorge às filhas, agitando um envelope que acabara de receber.

As raparigas calaram-se numa alegre expectativa porque a atitude do pai fazia prever boas notícias.

— Mostre! — pediu Carolina.

— Só se me prometerem que durante um mês se limitam a trocar palavras amáveis.

— Ó pai...

Sofia ensaiou um movimento para lhe roubar o envelope mas ele escapou a tempo.

— Primeiro têm que fazer a promessa. Isabel, também impaciente, resolveu intervir:

— Eu tomo a responsabilidade. A partir de agora elas serão meninas exemplares. Vá lá, diz o que tens a dizer.

Como de habitual, Jorge não resistiu a um pedido da mulher.

— Suas Majestades o rei D. Carlos e a rainha Dona Amélia convidam-nos para um baile no Palácio da Pena.

A notícia foi acolhida com grandes manifestações de regozijo:

— Que bom!

— Há tanto tempo que não tínhamos uma festa na corte.

— E ainda por cima em Sintra. Adoro ir a Sintra!

— Vou já tratar do meu vestido — disse a Sofia. — Desta vez não pensem que fico em casa.

O pai abanou a cabeça numa recusa firme.

— Ainda não tens idade para bailes. Ela largou num pranto desabalado.

— É sempre assim! Nesta casa tratam-me como se eu fosse uma criança e não sou criança nenhuma. Tenho idade e tamanho. Até já estou mais alta do que a Tatão.

Jorge tentou acalmá-la:

— Não chores, Sofia. No dia dos teus anos dou uma linda festa para te apresentar à sociedade e a partir daí passas a ir sempre que nos convidarem.

— Não quero festas de anos nem preciso de ser apresentada porque já conheço toda a gente.

Verde de fúria, com os olhos a saltarem-lhe das órbitas, insistiu:

— Quero ir a este baile no Palácio da Pena! O pai tem que se convencer que não sou a Gata Borralheira.

Isabel levantou-se com um sorriso benevolente e ela lançou-se-lhe nos braços, soluçando.

— Calma, Sofia. Tem calma — disse em voz alta.

Mas falando ao ouvido acrescentou: — Fica descansada que eu convenço o pai e tu vais connosco.

O choro apagou-se como por encanto, o que levou Jorge a olhar a mulher cheio de admiração.

«Que jeito que ela tem para educar raparigas», pensou, satisfeito por ter sabido escolher tão boa madrasta para as suas filhas.

Tomás, que assistira a tudo desde o início, não deixou a conversa ficar por ali. Desejando ajudar a prima serviu-se de um argumento que desencadeou uma discussão violentíssima:

— É melhor a Sofia ir a este baile porque não sabemos se terá oportunidade de assistir a outro.

— Que disparate! O rei dá vários bailes por ano.

— Pois dá, enquanto reinar. Qualquer dia vem a República e acabou-se a corte.

Ao ouvir aquilo, Jorge ficou apopléctico.

— A República? Tu deves estar é doido!

— Doido não. Andamos mais perto disso que doutra coisa. O tio não sabe o que se passa? O país está à beira da ruína, as pessoas sentem-se descontentes e há muitas sociedades secretas a conspirar para fazerem uma revolução.

— Qual revolução, qual carapuça. Isso são bandos de tresloucados que nunca hão-de chegar a lado nenhum.

— Então e as bombas? As greves? As manifestações? O tio vive na Lua, ou quê?

— Não vivo na Lua mas não acredito nesses revolucionários. Podem fazer rebentar uma bomba aqui ou ali mas nunca hão-de conseguir organizar-se. Se deitarem as unhas de fora, a guarda cai-lhes em cima como já aconteceu muitas vezes.

— Não esteja certo disso. Olhe que o povo odeia este governo.

— Odeiam os ministros mas gostam do rei.

— Engana-se. Basta andar pelos cafés para ouvir os lamentos. Toda a gente diz que os ministros governam mal porque o rei deixa.

— Ora, ora...

— Não tenha ilusões, meu tio. As pessoas acham que o rei só se interessa por festas, viagens e caçadas. E os republicanos aproveitam para ganhar adeptos. Posso garantir-lhe que já há muito boa gente entusiasmada com a ideia de afastar a família real e eleger um presidente da República como fizeram em França.

As primas escutavam-no embasbacadas. Raramente obtinham informações a respeito do que se passava fora do seu ambiente. Os amigos do pai às vezes punham-se a discutir política, mas como elas não percebiam nada do assunto desinteressavam-se. Jamais lhes passara pela cabeça que alguém quisesse afastar o rei e não dispunham de imagens mentais para enquadrar uma revolução. Quando se lembravam disso viam sempre os mesmos homens feios e barbudos aos tiros pela rua. Cena aterrorizante que procuravam varrer do espírito o mais depressa possível.

Isabel percebeu que se sentiam perturbadas e levou-as para o andar de cima.

— Vamos escolher vestidos que é melhor.

Diante de sedas e veludos depressa recuperaram o bom humor. Ajudadas por Miss Nelly, retiraram os trajes de festa do armário.

Sofia experimentou quatro antes de decidir. Via-se ao espelho contente com a figurinha delicada.

— O branco fica-me bem mas também gosto do azul...

A irmã olhava-a com uma ponta de inveja porque o fato preferido não lhe servia na cintura.

— Não faz mal — disse Isabel. — Vais a casa daquela costureira que trabalha para mim e encomendas-lhe um espartilho.

O baile no Palácio da Pena tornara-se assunto de conversas entusiastas em muitas famílias. Orlando não escapava à regra.

— Vem mesmo a calhar — anunciou. — É uma oportunidade estupenda para verificarmos se o Flamiano conhece outras pessoas porque as meninas hão-de arranjar maneira de o levar.

— E onde é que desencanta um convite para nós? — perguntou a Ana.

— Tenho os meus métodos. Lembrem-se de que não viemos passear. Estamos aqui para cumprir uma missão e por trás de nós há gente que nos apoia.

De nada valeu insistirem porque ele não adiantou mais nada. Por qualquer motivo que ignoravam, preferiu manter segredo e limitou-se a evasivas:

— Depois eu explico. Aliás ainda aguardo novos contactos e algumas instruções.

A perspectiva da festa agradava-lhes tanto que o deixaram em paz e foram procurar as amigas. Apetecia-lhes imenso fazer projectos em grupo. Encontraram a Tatão de saída com Miss Nelly. O motorista esperava junto ao automóvel.

— Queres vir comigo, Ana?

— Aonde?

Em vez de responder, Tatão fez sinal para que se aproximasse e sussurrou-lhe ao ouvido:

— A casa da costureira. Tenho que mandar fazer um espartilho porque a roupa não me serve na cintura.

Ana aceitou. Queria experimentar aquele automóvel antigo e saber o que era um espartilho.

Instalaram-se as três no banco traseiro e Joaquim Abílio tomou lugar ao volante com a expressão impenetrável que o caracterizava. Homem antipático, sem dúvida, mas excelente profissional. Guiava com a segurança de quem realmente domina a máquina. E que máquina! Estofos de cabedal fininho bege-claro, tapetes em pele de carneiro, revestimento interior das portas em madeira envernizada, enfim, um luxo. Quanto ao motor, borbulhava tal qual uma cafeteira de água a ferver. A buzina era uma espécie de pêra de borracha aplicada numa corneta de metal cujo som, entre rouco e estridente, assustava as pessoas e os bichos com que se cruzavam no caminho.

Apesar de já ter dado outros passeios, Ana delicia-va-se com o espectáculo das ruas por ser tudo tão diferente. As mulheres usavam saias até aos pés. E os homens grandes casacos até ao joelho. Quase todos tinham barba ou pelo menos bigode. E todos sem excepção usavam chapéu. Para onde quer que se voltasse, lá estava um chapéu de seda, ou de feltro, ou de palha, ou de pano. Também havia boinas e bonés de pala. As crianças, mesmo as mais pobrezinhas, podiam andar rotas e descalças mas tinham sempre alguma coisa na cabeça.

«Estranho», pensava. «Será que o boné é muito mais barato que um par de sapatos? Ou as pessoas desta época dão mais importância à cabeça do que aos pés?»

Uma sensação incómoda obrigou-a a virar-se e deparou com o motorista a observá-la através do espelho retrovisor. Por um instante pareceu-lhe que o homem tinha pupilas de aço mas ele desviou a vista e concen-trou-se na condução.

Circulavam agora pela Baixa, onde o trânsito era de enlouquecer. Não havia muitos automóveis mas também não havia regras. O único veículo que seguia um determinado percurso era o eléctrico por causa dos carris. Quanto ao resto, barafunda total. Carroças, burros, cavalos, carruagens, automóveis, bicicletas, pessoas a pé e grandes carroções puxados a mulas, cruzavam-se todos alegremente sem respeitar a direita e a esquerda. Relinchos, buzinas, campainhas de eléctrico serviam de música de fundo à gritaria dos vendedores ambulantes que tinham por hábito apregoar as mercadorias, cada um com a sua cantilena própria.

— Quem quer figos, quem quer almoçar? — berrava uma mulher de voz aguda.

— Olha o Diário de Notícias] Olha o Diáriol — anunciava um pequeno ardina de boné aos quadradinhos e saco de pano à tiracolo — ... Notícias... Notícias!

No espelho retrovisor faiscou de novo o olhar de aço que tanto incomodara a Ana. Desta vez porém Miss Nelly também notou e sentiu um calafrio.

«Este homem é esquisito», pensou. «Hei-de perguntar à senhora se tiraram informações antes de o contratarem...»

 

A costureira vivia no terceiro andar de um prédio cuja fachada estava a precisar de obras.

Subiram a escada íngreme de madeira com algumas lascas em falha. Em cada patamar pressentiram uma vizinha à espreita pela ranhura da porta. Pairava no ar um cheiro bastante enjoativo que, se discriminassem, daria pelo menos três elementos: mofo, cano, fritos. Quando entraram em casa da menina Alzira, acrescentaram mais um: cão pouco asseado.

Quem lhes abriu a porta foi uma mulher gordinha com o cabelo preto muito frisado que se desfez em amabilidades:

— Façam favor de entrar. Eu chamo já a minha cunhada.

O corredor infindável com portas de um lado e do outro quase não tinha luz. No chão estendia-se a todo o comprimento uma passadeira de corda entrançada com marcas evidentes de muito uso e do tecto pendia um candeeiro metálico que funcionava a gás.

Foi com uma vaga sensação de desconforto que passaram à sala de costura. Era enorme e com móveis de casa de jantar encostados às paredes. Ao centro uma mesa sólida pejada de tecidos, rendas, bordados e outros acessórios típicos. Por cima das cadeiras desdobravam-se rolos de tecido branco e cor-de-rosa.

— Valha-me Deus! Nem têm onde se sentar. Ó Alzira! — chamou num tom bastante antipático. — Não demores que as senhoras estão com pressa.

Elas ainda esboçaram um leve protesto porque não tinham pressa nenhuma. Mas a mulher cortou-lhes a palavra com um gesto brusco e baixou a voz para se pôr a dizer mal da cunhada:

— É desarrumadíssima. Eu até me envergonho que receba as clientes aqui. Mas o que hei-de fazer? Casei com um homem que tinha uma irmã solteira e agora vou aturá-la para o resto da vida. Como é feia e doente nunca há-de arranjar noivo, para minha desgraça.

Deu um suspiro fundo, rebolou os olhos nas órbitas e voltou a chamar:

— Ó Alzira!

A porta rangeu para dar passagem a uma rapariga ainda nova, muito magrinha e de feições tristes. Deslocava-se como se não pisasse o soalho e fosse arrastada pela própria respiração. Uma respiração ofegante e ruidosa de asmática.

— Isto já passa — disse Alzira, ensaiando um sorriso. — Se fizerem o favor de esperar um bocadinho isto acalma. Acabei de tomar um chá que costuma dar resultado.

— Já devias era ter tomado há mais tempo — resmungou a gorducha antes de sair. — Eu bem te recomendo que tenhas cuidado mas tu pouco ligas. Falar eu ou ladrar um cão é exactamente a mesma coisa.

Por coincidência o cão ladrou na marquise, o que deu um aspecto bizarro à conversa.

Alzira pareceu serenar logo que ficou sozinha com as clientes. Abriu a janela para terem mais luz, desanuviou a mesa e apresentou vários modelos de espartilhos.

Afinal não tinham nada de extraordinário. Tratava-se de uma peça de roupa interior, uma espécie de cinta em pano com tiras fininhas e rijas para apertar a gordura.

Tatão escolheu e estava a provar atrás de um biombo quando se ouviu rodar uma chave no aposento contíguo. A menina Alzira corou até à raiz dos cabelos, atrapalhou-se e deixou cair a caixa espalhando agulhas, alfinetes e botões a toda a volta. Uma reacção assim não podia passar despercebida. As meninas trocaram um olhar interrogativo e Miss Nelly apressou-se a ajudá-la a recolher tudo. Mesmo sem querer, perguntou:

— Foi o seu irmão que chegou a casa? A pergunta ainda a perturbou mais.

— Não. O meu irmão só chega à hora do jantar. Tem uma pequena fábrica de chapéus na rua de cima e trabalha até à noite — gaguejou. — Deve ser... Ou melhor, é o hóspede...

— Têm um hóspede?

Ela engoliu em seco antes de retomar a palavra. As faces ardiam de tão vermelhas e voltou a suspirar com certa dificuldade:

— Sim. Como na casa há um quarto com porta para a escada, o meu irmão resolveu alugá-lo a este senhor.

É uma pessoa muito educada. Também um professor tinha que ter educação, não é verdade?

A medida que falava foi recuperando o autodomínio e embalou a contar coisas com visível prazer:

— Chama-se José Caliça e está em Lisboa há pouco tempo. Não conhece ninguém. Quando sai das aulas vem logo para aqui.

Apontou a parede que os separava e a cara adquiriu um certo reflexo que não engana.

— Passo os dias nesta sala a costurar e ouço-o do lado de lá às voltas com os livros e os papéis. É muito trabalhador. Eu procuro nunca fazer barulho para não o incomodar.

Não foi preciso acrescentar nada para ficarem a saber tudo. A menina Alzira estava apaixonadíssima pelo professor Caliça e ele se calhar nem suspeitava.

— Nunca se vêem? — perguntou a Ana.

— Vemo-nos ao jantar. Ele paga quarto e uma refeição.

— E conversam?

— Hum... pouco. O meu irmão não gosta de grandes conversas à mesa e o professor Caliça respeita esses hábitos, porque é muito delicado. Mas pede-me que lhe passe a água ou assim.

Naquele momento estava até bonita. E elas sentiram-se invadir por uma onda de ternura solidária. Gostariam de poder ir buscar o homem por um braço e dizerem: «Sente-se sozinho? Então leve esta rapariga a sair e verá como se entendem bem.» Também ficaram cheias de má vontade contra os donos da casa que afinal podiam ajudar ao romance e faziam exactamente o contrário, im-pedindo-os de conversar à mesa.

Alzira sentiu-se grata por lhe prestarem atenção, grata pela simpatia que vibrava atrás de cada pergunta. Dis-pôs-se portanto a executar o trabalho num prazo muito curto, acompanhou-as à porta e despediram-se da forma mais calorosa.

Já elas transpunham o segundo patamar quando ouviram passos na escada. Voltaram-se pensando ter esquecido alguma coisa.

Quem lá vinha era o famoso professor Caliça, que todas ansiavam conhecer. A curiosidade sobrepôs-se às regras mais elementares de boa educação e puseram-se a observá-lo, tentando descobrir por trás daquela figura vulgar a pessoa que despertara uma paixão secreta. Tentativa inútil, pois o homem nada tinha de especial. Estatura média, barba muito preta, olhos muito claros. Talvez no contraste houvesse algum encanto.

O patamar era estreito e elas formavam uma barreira que o pobre José Caliça não sabia como ultrapassar. Também não entendia por que o fitavam assim. Jamais fora alvo de admiração e as mulheres em geral não lhe ligavam nenhuma. Embaraçado com o exame sacudiu a roupa e tossiu antes de pedir num murmúrio:

— Dão-me licença?

Desviaram-se logo envergonhadíssimas e ele saltou os degraus a quatro e quatro para se afastar mais depressa. O incidente deixara-o abalado e ele sabia porquê. Tinha vindo para a cidade à procura de uma vida melhor e do convívio com pessoas interessantes. O sonho não se realizara. Nem podia realizar, com aquele ordenado que não lhe permitia sequer alugar uma casa. Ins-talara-se num quarto e ainda se devia considerar feliz porque os donos eram correctos e serviam comida de boa qualidade.

Só a rapariga asmática o incomodava um pouco. Fazia-lhe tanta impressão o respirar ofegante que evitava olhar para ela. Mas tirando isso, não tinha do que se queixar. A vida caseira oferecia-lhe o essencial, embora cinzento, momo, sem graça.

Quanto à frequência de cafés, também o desiludira. Havia grupos animadíssimos onde ele bem gostaria de se integrar. Só que não conseguia devido à maldita timidez que sempre o impedira de fazer amigos.

O único sítio onde se movia como peixe na água era a escola. Os alunos tinham-lhe respeito, quase todos trabalhavam e lá iam aprendendo a ler, a escrever, a cantar a tabuada. Raramente dava castigos ou reguadas porque em geral bastava-lhe abrir os olhos para meter na ordem até os mais traquinas. Alegria verdadeira porém só quando ensinava alguma coisa de novo ao pequeno Abel. Aquela cabecinha era uma autêntica esponja ávida de sabedoria!

A lembrança do aluno preferido fê-lo sorrir e afastar do pensamento as raparigas bonitas, bem vestidas, perfumadas que lhe tinham barrado o caminho no patamar. Preferia esquecê-las, já que representavam um mundo a que ele, professor Caliça, nunca teria acesso.

Confortavelmente recostada no automóvel, Ana também desejava sobretudo esquecer aquela casa tristonha onde toda a gente parecia marcada pela solidão. Mas não era fácil afastar da memória o rosto infeliz da menina Alzira. Devia ser horrível viver assim a trabalhar fechada entre quatro paredes, sem amigos, sem distracções e ainda por cima doente. Não havendo sequer rádio e televisão para ajudar a passar o tempo, que tédio insuportável.

Incomodada, remexeu-se no banco e sem querer deu com os olhos do motorista falseando aço no espelho retrovisor. Uma ideia súbita apagou todas as outras. E se ele fosse o Toupeira! Orlando descrevera-o como um homem muito inteligente, capaz de se adaptar a qualquer situação. Nesse caso talvez tivesse decidido mudar de estratégia e escolher um disfarce completamente diferente dos anteriores: motorista de gente rica.

Quanto mais pensava no assunto mais se convencia de ter acertado em cheio.

«Enquanto andam à procura de um tipo importante, ele passeia-se nas calmas fardado de motorista. É genial!»

 

De regresso a casa Ana correu a procurar Orlando para lhe comunicar as suas novas teorias a respeito do fugitivo. Encontrou-o fechado no escritório com o irmão. Conferenciavam.

Ela interrompeu-os de forma abrupta e pôs-se a falar, a falar, sem conseguir no entanto transmitir uma mensagem convincente porque o único ponto de apoio era fraco. Quem adere a suspeitas que se baseiam apenas num olhar gélido falseando no espelho? Ninguém. E muito menos um cientista. Mas vendo-a tão entusiasmada, Orlando preferiu fingir dar importância à descoberta.

— És boa observadora. Foi óptimo teres reparado no homem. Vamos considerá-lo o suspeito número dois.

Claro que não acreditava no que dizia. O Toupeira não era homem para tolerar uma profissão que o obrigaria a receber ordens.

E desempenhando funções de motorista não dispunha de tempo para montar uma fábrica. Ana apercebeu-se das reticências e desanimou. Mas o irmão ficou excitadíssimo.

— Mais um a quem temos que tirar as impressões digitais — declarou. — O que não vai ser nada fácil porque ele anda sempre de luvas.

— Para que é que te servem as impressões digitais? — perguntou Ana, admirada.

— Para saber se é o Toupeira. O Orlando recebeu indicações nesse sentido. Identificaram marcas de dedos que julgam pertencer ao verdadeiro traficante. Olha.

Mostrou-lhe uma película onde se viam nitidamente marcas de indicador e polegar.

— Agora basta conseguirmos impressões digitais de todos os homens que nos parecerem suspeitos. Depois compara-se e já está! Apanhámos o criminoso.

— Mas como?

— Temos que surripiar objectos em que tenham tocado. No caso do Flamiano aproveitamos o baile. Como está muita gente, no meio da confusão um de nós há-de ter oportunidade de ficar com um copo ou um talher de que ele se tenha servido. Quanto ao motorista, não sei bem. Há o problema das luvas. Mas eu arranjo uma maneira.

A perspectiva de ter que inventar um estratagema para tirar as luvas ao motorista e forçá-lo a pegar numa coisa de vidro ou de metal desencadeou um turbilhão de loucura na cabeça do João. Durante vários dias mal dormiu, a congeminar planos superastuciosos mas completamente impossíveis de concretizar. Para seu desespero, Ana limitava-se a ouvi-lo distraidamente e a dizer:

— Isso não dá.

Não apresentava alternativas porque a cabeça dela também andava à roda, só que o motivo era outro: o baile. Como a data se aproximava desinteressou-se de tudo o resto. Era bom de mais pensar na festa, no palácio, nos vestidos e nas jóias que havia de usar. Bom de mais imaginar-se linda e feliz a viver momentos de sonho. A medida que se concentrava em si própria foi afastando para longe os problemas dos outros. Nunca mais se lembrou da triste menina Alzira e, embora lhe fosse difícil confessar, a verdade é que já nem sequer se preocupava com o Toupeira. Quando sentia uma ponta de remorso, desculpava-se alegando que os seus companheiros estavam alerta e saberiam tratar do assunto.

As meninas da casa do lado também não pensavam noutra coisa senão no baile. Encontravam-se a toda a hora para cochichar, fazer planos. E morriam de impaciência.

Quando chegou o grande dia saudaram-se logo de manhã à janela com guinchos de satisfação.

Demoraram séculos a arranjar-se. Mas valeu a pena porque o resultado foi magnífico. Carolina estava deslumbrante. Sofia muito bonita. Mas ao contrário do que seria de prever, Tatão é que arrancou exclamações de pasmo a toda a gente. A madrasta tinha-se esmerado, fazendo questão de ser ela a vesti-la e penteá-la. Quando saíram do quarto a própria quase não reconhecia a figura que os espelhos lhe devolviam. O vestido de baile em seda amarela muito clarinha era leve e esvoaçava em redor do corpo, tornando-a mais esguia. A cabeleira loira lisa e brilhante, assim enfeitada com pérolas e duas plumas, realçava-lhe o que de mais belo tinha no rosto. E a expressão risonha, feliz, completava o conjunto.

Miss Nelly desfez-se em elogios, as criadas pediram-lhe que rodopiasse para a verem melhor. O pai ficou encantado. Tomás quis valsar com ela no jardim antes de partirem. Mas o melhor de tudo foi ver a surpresa estampada na cara de Flamiano. A noite prometia ser memorável.

Na rua gerara-se grande confusão de carruagens porque o automóvel não chegava para a família e aderentes. Como não tinham conseguido alugar nenhum dos sete táxis que já havia em Lisboa, meteram-se ao caminho a passo de cavalo. A viagem seria longa, mas quem é que se importava? Sempre que paravam numa estalagem bebiam limonada, riam sem motivo, exibiam-se.

Caía a noite quando iniciaram a subida através do bosque. Nessa altura cessaram todas as conversas. Só o trote ritmado dos cascos dos cavalos perturbava a harmonia misteriosa da serra de Sintra ao anoitecer. Alguns raios teimosos atravessavam ainda a folhagem assinalando a presença de um sol que lamentava não participar na festa. Pressentia-se o chão coberto de musgo fofo e húmido. O rumor de águas saltitantes punha um toque de magia na atmosfera.

Lá no cimo o palácio dir-se-ia ter escapado de um sonho fantástico para servir de palco ao delírio. As janelas abertas derramavam luz dourada e já se ouvia música a tocar.

Apearam-se junto de um grande arco em pedra e misturaram-se no verdadeiro cortejo de sedas, veludos, jóias, perfumes que se encaminhavam para o salão. Criados de libré recebiam os abafos ou assinalavam o percurso hirtos como estátuas.

A chegada de uma família com quatro raparigas lindíssimas provocou um murmúrio de entusiasmo. Jorge exultava. Afinal três eram suas filhas! Congratulou-se por ter acedido aos rogos da mulher para levar Sofia.

Nas festas da corte, embora fosse o rei a convidar, era também o último a chegar. As pessoas abriam alas de um lado e do outro para o rei, a rainha e os príncipes fazerem a sua entrada triunfal. A medida que caminhavam em direcção ao trono, os homens baixavam a cabeça e as senhoras inclinavam-se numa vénia profunda.

Quando Carolina retomou a posição vertical verificou que do lado oposto tinha vários admiradores a olhá-la intensamente. Entre eles destacava-se um rapaz fardado de oficial de Marinha que não se lembrava de conhecer. Estremeceu de alegria e fez logo ali planos para espicaçar Flamiano com ciúmes. Planos algo difusos, já que outros não eram possíveis naquele ambiente.

A cerimónia dos cumprimentos prolongou-se pois estava imensa gente e todos tinham que ser anunciados e prestar homenagem ao rei e à rainha individualmente. Ainda não acabara o desfile já os projectos de Carolina se desmoronavam porque o candidato a noivo parecia finalmente ter decidido. Ignorando todas as outras raparigas, plantou-se ao lado da Tatão e nunca mais descolou. Conversava, ria, dizia graças na atitude óbvia de quem quer afastar possíveis rivais. Ela nem queria acreditar no que estava a acontecer. Ao princípio até receou que fosse mais uma das brincadeiras do costume mas vendo Carolina furiosa e Sofia a espumar de raiva, foi-se convencendo de que a batalha estava ganha.

Pela primeira vez na vida brindou as irmãs com um sorrisinho irritante de superioridade, que significava «bem feito! O Flamiano afinal é para mim!». Ambas viraram a cara enjoadas. Carolina aproveitou logo as atenções do oficial de marinha que estava ali perto. Sofia amuou.

— Se calhar tinha sido melhor ficar em casa — resmungava entredentes.

Valeu-lhe o primo Tomás que assistira à cena de longe entre condoído e divertido. Pelos vistos a priminha mais nova já sofria de amores. E que bem lhe assentava a zanga! Achou-a bonita e apeteceu-lhe imenso ir consolá-la. Aproximou-se então com ar muito solene, ofereceu o braço todo dengoso e perguntou:

— Dá-me a honra de ser o meu par?

Sofia quis sorrir mas só conseguiu um esgar ácido. No entanto enfiou o braço e acompanhou-o até à mesa onde seria servido o banquete.

Foi uma refeição longa e animada. As pessoas comiam, bebiam, conversavam. João, habitualmente guloso, é que mal provou o que lhe punham na frente. Arranjara maneira de se sentar perto de Flamiano e seguia-lhe os movimentos numa aflição. Lá estava ele a esborrachar os dedos nos talheres de prata. Ou a pegar delicadamente no copo de cristal. Tantas impressões digitais espalhadas a eito e com certeza tão nítidas. Oh, que desespero não lhes poder deitar a unha! Mas era completamente impensável levantar-se, tirar-lhe a faca e metê-la ao bolso.

Orlando sorriu lá do fundo e serenou-o com um abanar de cabeça ligeiro: «Não te precipites. O baile ainda nem começou.»

Noutra mesa Ana esquecera por completo as missões secretas e só tinha olhos para o companheiro da esquerda. Chamava-se Rufino de Sá, era bonitão e divertidíssimo. Somava ainda a todas essas qualidades o tique muito sugestivo de mordiscar o canto da boca. Não saberia explicar porquê mas aquilo exercia sobre ela um verdadeiro fascínio. Tudo em volta lhe parecia desfocado. Olhava a face morena e falava, falava, entremeando as frases com golinhos de champanhe. Daí a pouco embalara numa total euforia. Ansiava pela dança. Quando mais tarde Rufino lhe passou o braço à volta da cintura e saíram a valsar julgou ter-se transformado num ser flutuante que girava no espaço deixando atrás de si um rasto de luz. Pelas portadas do terraço entrava um cheiro forte a cedro e plantas bravias. Desejou então que aquela noite não tivesse fim.

Tomás continuava a perseguir a prima mais nova para a atazanar. Já lhe moera o juízo com patacoadas. Agora imprimia um ritmo acelerado à dança ao mesmo tempo que lhe sussurrava ao ouvido:

— Nada melhor que a tontura para afastar a loucura... fecha os olhos, priminha, e verás como ficas tonta.

Apertava-a com visível agrado.

— Aposto que não aguentas, aposto que não aguentas...

Os disparates acabaram por surtir efeito. Ela ria-se e lá ia respondendo à letra. Não podia negar que os lábios roçando a orelha provocavam uma carícia agradável. O perfume masculino também não a deixava indiferente. Sentia-se bem nos braços daquele primo chanfrado que valsava a rigor. A certa altura ele abrandou o passo e queixou-se:

— Estou cheio de calor.

— Quem te mandou rodopiar assim? Afinal quem não aguenta és tu.

Fitava-o de cabeça erguida com uma expressão doce e trocista que já não era de criança e sim de mulher.

Pararam de dançar mas ficaram ali ainda um instante. A volta deles circulavam outros pares arrebatados pela música. Não podiam continuar abraçados sem se moverem. Tomás agarrou-lhe na mão e conduziu-a ao terraço.

— Vamos apanhar ar fresco.

No terraço foram surpreendidos por uma lufada húmida que fez arrepiar Sofia. Ele passou-lhe o braço à volta dos ombros como se quisesse apenas protegê-la do frio.

— Então? Ainda estás muito triste?

— Triste, eu? Porquê?

— Males de amor.

— Ora!

— Não negues.

A voz não passava agora de um sopro terno.

— Eu percebi tudo. Gostas do Flamiano e estás com ciúmes porque parece que ele escolheu a tua irmã.

— Que disparate!

— Não mintas.

— Não estou a mentir.

— Então jura que não gostas dele — insistiu puxan-do-a mais para si.

Ela hesitou um segundo pois não queria jurar falso. Aquela presença forte e carinhosa tinha agora outro sabor e o olhar brilhante, muito terno ditava-lhe a resposta.

— Jura que não gostas do Flamiano.

— Juro.

— Então gostas de outro?

A pergunta fê-la estremecer. Gostaria? Preferiu não responder e ele apertou-a com mais força ainda. Estava-se bem assim.

Rolos de névoa branca vindos do mar iam envolvendo a serra muito devagarinho. E a atmosfera tornava-se leve como nos sonhos...

— Isto está a ficar «perigoso» — disse Tomás muito baixinho. — É melhor voltarmos para dentro.

Quando entraram no salão a música cessou porque a orquestra ia ser substituída por outra. Os homens saíram para fumar charutos e as senhoras formaram pequenos grupos de conversa, umas sentadas, outras em pé abanando-se com leques. Sofia não teve outro remédio senão diluir-se na zona feminina mas nem ouvia o que lhe diziam. Demasiado perturbada para conversar, perseguia o vulto do primo com olhos compridos e espantava-se com os seus próprios sentimentos.

— Se calhar apaixonei-me por ele!

João aproveitou aquela pausa para procurar o Orlando e juntos conferenciaram. Ambos tinham ouvido algo que os deixara alerta. Estavam presentes na festa mais dois rapazes que aparentemente ninguém conhecia: Rufino de Sá, que não largava a Ana. E Álvaro de Sousa, o oficial de Marinha que desde o primeiro instante parecera ficar fulminado pela beleza de Carolina.

— Devíamos tirar as impressões digitais aos três.

— Mas como, Orlando? Se meto alguma coisa no bolso ainda julgam que estou a roubar.

— Sê discreto. Aproveita os momentos de maior agitação para surripiares um copo. Eu vou fazer o mesmo. Não podemos sair daqui com as mãos a abanar.

João passeou os olhos pela sala em busca dos alvos. Não foi difícil encontrá-los e todos empunhavam copos. Aproximou-se da irmã com o ar mais natural deste mundo e suspirou:

— Estou cheio de sede.

Ela retirou um refresco de uma bandeja e entregou-lho.

— Então bebe este sumo que é óptimo.

João não reagiu. Fitava o copo de Rufino como se estivesse hipnotizado pelo líquido amarelo.

— Parece que o seu irmão preferia o meu refresco — disse Rufino num tom brincalhão. — E se ainda não tivesse provado, oferecia-lho com todo o gosto.

Sentindo-se completamente idiota, balbuciou qualquer coisa e afastou-se. De longe dardejou olhares enfurecidos mas Ana não lhe prestou atenção.

«Nunca pensei que fosse tão difícil tirar um copo a uma pessoa. Safa!»

De súbito porém alvoroçou-se. O oficial de Marinha acabava de afastar para o lado um pequeno cinzeiro de prata. Era evidente que as marcas dos dedos tinham ficado estampadas na superfície metálica.

«É agora! É agora! Este não escapa.»

Recuou três passos, avançou dois, plantou-se diante da mesa e olhou em volta para verificar se podia ou não meter o cinzeiro no bolso. Vendo as pessoas entretidas, esticou o braço mas hesitou. Hesitação fatal! Um criado solícito recolheu o cinzeiro sujo e pôs outro limpo no mesmo lugar. Que raiva!

Acordes alegres ressoaram de novo. O baile ia recomeçar, formavam-se pares.

Carolina estava encostada no vão de uma janela a conversar com duas amigas quando o pai a procurou. Trazia um sorriso de orelha a orelha.

— Sua Majestade, o rei Dom Carlos, quer dançar contigo.

Depois levou-a pela mão até junto do rei. Ia a rebentar de orgulho. E ela interpretou o convite de maneira muito pessoal.

«Sou a mais bonita! Acho que sou a mais bonita!»

O mesmo pensavam as irmãs e até a Ana, rodopiando cada uma nos braços do seu par.

 

Como as meninas se estavam a divertir imenso e não queriam ir embora, foram dos últimos a sair.

Nos salões semidesertos pairava uma mistura de cheiro a tabaco, perfume, restos de álcool no fundo dos copos. Cadeiras arrastadas ao sabor da conversa, um ou outro leque esquecido no sofá, a frescura da madrugada tomando conta dos aposentos vazios, uma última gargalhada ao fundo do corredor, o rasto invisível que as pessoas sempre deixam atrás de si, compunham aquele ar de fim de festa saboroso e nostálgico.

Carolina aproveitou o momento de recuperar a capa de veludo para se olhar no espelho longamente. Achou-se linda, assim pálida de cansaço e com os cabelos ameaçando soltar-se das jóias e das plumas. Nos olhos cor de mel faiscavam emoções que por um lado a enchiam de prazer e por outro de vergonha. Tinha sido a única menina solteira a dançar com o rei, o que a deixara vaidosíssima.

Mas quanto a isso, tudo bem. Qualquer rapariga se sentiria orgulhosa e com motivo! Também lhe parecia natural envaidecer-se por ter andado toda a noite rodeada de admiradores. Agora relativamente aos negócios do coração, o caso mudava de figura. No início da festa poderia jurar que amava Flamiano e o queria para si. No fim, já não estava tão certa. Álvaro de Sousa, com os seus modos enigmáticos e a sua farda de oficial de Marinha, fizera-lhe perder a cabeça.

«Gosto dos dois», pensava, olhando o espelho. «Não consigo escolher.»

Mas a figura de Álvaro impunha-se. Mesmo sem querer recordava os pormenores mais íntimos de cada olhar e de cada palavra trocada entre ambos. A evocação provocava-lhe arrepios deliciosos pela espinha acima.

«Não consigo escolher», insistia. «Não consigo!»

Na superfície lisa do espelho os olhos cor de mel desmentiam-na porque a verdade era outra. De boa vontade desistiria de Flamiano se ele não ficasse para a irmã. Sempre fora a mais velha, a mais bonita, a mais segura, a mais tudo. Não ia agora ser derrotada pela gorducha da Tatão!

Estes pensamentos agitavam-na e envergonhavam-na. Bem gostaria de os afastar para longe... mas como, se eram tão fortes?

Uma voz familiar veio despertá-la do sonho incómodo:

— Despacha-te, Carolina. Já estão todos lá em baixo.

Era o João. Deitou a capa pelos ombros e desceu a escada tão absorta que nem reparou que o rapaz ficara para trás fitando avidamente um cálice de licor.

«É agora ou nunca... é agora ou nunca...»

Flamiano bebera o líquido xaroposo de um trago e depois pousara o cálice distraidamente no canto de uma mesinha. Não estava ninguém a ver.

«É agora ou nunca...»

Uma estranha paralisia impedia-o de agir. Tão fácil pegar no copo e metê-lo no bolso! Mas quem nunca roubou nem tem alma de ladrão, ao pensar apoderar-se de um objecto alheio hesita e paralisa. Foi preciso um esforço enorme para vencer a relutância. Crispou os dedos em redor do vidro e enfiou a mão direita no bolso do casaco. Depois saiu apressadamente ao encontro de Orlando.

Cá em baixo as meninas acomodavam-se no automóvel, pouco se importando agora de amarrotar os vestidos. Ansiavam estender-se ao comprido e adormecer devagar, acarinhando esperanças bem doces. Todas tinham escutado palavras meigas mas nenhuma recebera uma declaração formal. No dia seguinte talvez os romances continuassem ou talvez não. Sofia interrogava-se:

«Será que o Tomás gosta de mim? Ou tudo não passou de brincadeira?»

Parecia-lhe quase impossível que o primo a encarasse como futura noiva. Ela própria jamais pusera essa hipótese. E no entanto...

Ao seu lado, Tatão suspirava de olhos fechados.

«Tudo indica que conquistei o Flamiano», pensava. «Mas ele ainda não me falou de amor.»

Sentado ao volante, Joaquim Abílio reprimiu um suspiro, mas esse de alívio. Aquela festa prolongara-se demasiado. Estava farto de esperar e enregelado até aos ossos por causa da maldita humidade que mesmo no Verão envolvia a serra de Sintra.

Pôs o motor a funcionar e iniciou a descida para a vila. Os patrões iam pernoitar num hotel confortável gerido por ingleses e ele numa pensão barata mesmo ao pé. Toda a gente aliás ficava nas imediações, uns em casa de parentes ou de amigos, outros espalhados pelos vários hotéis e estalagens de qualidade que já então havia na zona. Só Orlando se esquecera de marcar lugar e agora não havia camas disponíveis em parte nenhuma. Quando disse ao cocheiro que regressava directamente a Lisboa, o pobre do homem ia morrendo.

— A viagem é muito longa, senhor! Mesmo com bons cavalos não se faz em menos de três horas!

— Eu sei, eu sei. Mas... a... é que tenho um assunto urgente a resolver pela manhã. Lamento imenso mas não há outro remédio.

Para o serenar, pôs-lhe algumas moedas extra na palma da mão.

— Siga devagar, hã?

— Fique descansado que nunca tive nenhum acidente — balbuciou o cocheiro antes de fazer estalar o chicote. — O ô ô...

Logo que iniciaram a marcha, João retirou o cálice do bolso e apresentou-o a Orlando com uma expressão triunfante.

— Consegui. Trouxe comigo as impressões digitais do Flamiano.

O velho cientista não respondeu e esboçou um sorriso dúbio que perturbou o João.

— O que é que foi? Um cálice não serve? É de vidro!

— Pois é. E serviria perfeitamente se não o agarrasses assim.

Neste momento as únicas impressões digitais que se podem retirar desse copo são as tuas. Ele ficou passado. Tanto esforço para nada!

— Que estúpido — murmurou.

— Estúpido sou eu, que não te alertei para as precauções que devias tomar. Mas deixa lá que nada está perdido.

Desdobrando um guardanapo no colo, Orlando exibiu um cinzeiro, uma colher e uma pequena moldura com a fotografia da rainha em criança.

— Álvaro de Sousa fuma charuto, Flamiano é guloso e Rufino de Sá curioso.

O último nome fez reagir a Ana.

— Rufino de Sá? O que é que ele tem a ver com o Toupeira!

— Não sabemos e vamos averiguar. Tanto quanto percebi, o oficial de Marinha estava sozinho e o teu par também. Ambos despertaram interesse pois ouvi várias pessoas perguntar quem eram.

— Que disparate, Orlando! Se vieram ao baile é porque receberam convite.

— Então e nós, como é que viemos?

— Connosco é diferente.

— Pois com eles também pode ser. O indivíduo que procuramos sabe mover-se como lhe convém e usa métodos muito engenhosos.

— Quais?

— Não sei. Mas aqui há várias hipóteses. Toda a gente sabe que o príncipe mais novo se prepara para entrar na Escola Naval. Talvez o Álvaro de Sousa tenha utilizado a farda para se insinuar junto dele e obter um convite. As fardas costumam inspirar confiança.

Quanto ao Flamiano, sabemos que veio porque as meninas da família pediram para o trazer. Rufino pode perfeitamente ter utilizado o mesmo estratagema ou então pura e simplesmente apresentou-se lindamente bem vestido e com tanto à-vontade, que não deixou margem aos criados para lhe barrarem o caminho. Às vezes funciona.

— Hum... não acredito.

— Compreendo o que sentes, Ana. Mas não podemos deixar-nos iludir por simpatias. Vou averiguar o caso exaustivamente.

Recolheu as peças no guardanapo e encostou-se para trás.

Aquela hora tardia não circulavam outras carruagens pela estrada de Sintra. O cocheiro cantarolava baixinho para não adormecer. De vez em quando fazia estalar o chicote sem tocar nos animais.

— Ô ô ô...

Embalados pelos solavancos entregaram-se ao cansaço.

Que viagem interminável!

 

Entraram em Lisboa ao alvorecer. A cidade ainda dormia. Só nas zonas do mercado havia grande agitação. Carroças de hortaliça esperavam em fila a sua vez de descarregar e os condutores entretinham-se conversando em grupos de três ou quatro. Um único globo eléctrico derramava uma luz ténue. Aqui e além, archotes espetados em grandes ferros cortavam a última réstia de escuridão projectando clarões de incêndio fumacento e trepidante.

A carruagem seguia o seu caminho cada vez mais devagar porque o cocheiro, vencido pelo sono, cabeceava. Na mão entreaberta as rédeas foram-se soltando e os animais, exaustos e suados, avançavam à toa sem controlo. Ao dobrar uma esquina, porém, assustaram-se com uma briga de cães vadios e partiram à desfilada. O cocheiro sobressaltou-se e puxou as rédeas com força, o que os fez guinar violentamente para a direita.

— Ô ô ô!

Um outro grito lhe respondeu:

— Aiiii!

Um sacão violento fez estacar a carruagem, que quase bateu na parede da casa mais próxima. Acordaram todos num repente para verificarem espavoridos que tinham atropelado um miúdo.

Orlando foi o primeiro a saltar para o chão e eles imitaram-no com a alma num susto, porque o rapazinho jazia sem sentidos entre as patas dos cavalos.

De um momento para o outro juntou-se uma verdadeira chusma de gente que não percebiam de onde surgira. Vendedores ambulantes, peixeiras, padeiros, ardinas e vagabundos esfarrapados formaram de imediato um círculo pronto a agoirar as piores desgraças.

— Está morto! — berrava uma velha envolta em xailes imundos cujo hálito fedia a aguardente. — Já deu a alma ao Criador. E tão novo, coitadinho!

— Alguém o conhece?

— Parece-me que é o filho único de uma pobre viúva!

— Fica sem ninguém no mundo!

Orlando viu-se obrigado a dar cotoveladas a eito para poder chegar perto e tomar-lhe o pulso. Felizmente sentiu as batidas do coração fortes e regulares. Era só um desmaio. Observou-lhe então a cabeça a fim de verificar se tinha havido traumatismo e pareceu-lhe que não.

— Para trás — ordenou em voz firme. Obedeceram-lhe relutantes.

— Alguém sabe onde ele mora?

Um outro miúdo destacou-se do grupo e informou:

— Eu sei. Chama-se Grilo e vive num pátio ao pé de mim.

— Então entra na carruagem para nos indicares o caminho.

O rapaz não se fez rogado e apressou-se a entrar no compartimento estofado a cabedal com um amplo sorriso de satisfação. Nunca na vida tinha passeado dentro de uma coisa daquelas. Que bonito!

Ana e João ajudaram a içar o corpo inerte e partiram logo por entre a populaça pouco disposta a arredar pé.

Mal se tinham afastado e já o ferido acordava. Entreabriu os olhos e fitou com assombro o ambiente em volta.

— Onde estou?

A voz era rouca e ainda pastosa.

— Não te assustes — disse Orlando. — Foi um acidente e vamos levar-te a casa.

— Isto é que é começar bem o dia — brincou o vizinho, que se deliciava a acariciar o estofo com a palma da mão. — Ó Grilo, valeu a pena seres atropelado, hã?

Ele riu-se e fechou os olhos para gozar melhor aqueles balanços suaves que não iam durar muito.

— É ali! É ali! — exclamou o passageiro de ocasião num entusiasmo. — Estamos a chegar.

Desejando que o vissem apear-se, deitou a cabeça fora da janela e soltou um assobio estridente. Só um cão esquelético de pêlo cinzento compareceu à chamada.

A carruagem ficou entalada entre dois muros altos e quase não havia espaço para abrir a porta. Ao fundo da rua um arco de pedra dava acesso ao tal pátio à volta do qual se erguiam casas muito velhas, com a fachada em mísero estado.

O Grilo, ainda combalido, desceu para a rua mas teve que se apoiar no braço de Orlando porque via tudo a andar à volta.

— Mãe! — chamou num tom débil. — Mãe!

Num janelo sem vidros apareceu uma mulher de feições chupadas. Vendo o filho a coxear, desatou num berreiro cego que se tornou dificílimo acalmar. Mesmo depois de perceber que não era grave continuou a chorar desabaladamente, como se aproveitasse a enxurrada de lágrimas para se libertar de tudo o que a fazia sofrer.

Eles estavam horrorizados. E então quando entraram só lhes apeteceu sumirem-se pelo chão abaixo. A casa resumia-se a um compartimento miserável de paredes escurecidas pelo fumo. Numa enxerga de palha coberta de farrapos soerguia-se um farrapo humano. Era o pai. De idade indefinida, lívido, fitava-os com um olhar vítreo e incrédulo. Quem seria aquela gente que ali lhe aparecia assim sem mais nem menos?

Ana encolheu-se, desconfortável no seu vestido de seda coberto de rendas e jóias. Parecia-lhe ter deslizado abruptamente de um sonho para um pesadelo. Não sabia o que dizer nem o que fazer. E sentia-se mal consigo mesma por estar prestes a vomitar. As pessoas que tinha na frente deviam provocar-lhe apenas sentimentos de compaixão mas a verdade é que também lhe causavam náuseas. Desculpou-se invocando o ar abafado, o cheiro fétido. Que horror! A pior miséria habitava ali e aquela família não estava só. Através de um tabique de madeira carcomida pelo caruncho vislumbraram outra mulher do lado de lá. Amamentava uma criança e de vez em quando sacudia-se-lhe o corpo num ataque de tosse duvidosa.

O Grilo fora acomodar-se junto do irmão mais novo e ficaram os dois pasmados a ouvir a história que Orlando contou repetidas vezes.

— Os cavalos assustaram-se e galgaram o passeio — explicava. — Atropelaram o rapaz porque ele não teve tempo de fugir.

Sufocando os soluços, a mulher fez um gesto de grande desânimo.

— Ele é sempre muito despachado — disse num lamento. — Se não escapou foi porque ia com fome. Hoje não temos nem uma côdea de pão para meter na boca. — Limpou as últimas lágrimas e, já mais refeita, continuou: — O meu homem adoeceu e despediram-no. O Grilo vende jornais e o que ganha pouco é. Eu vendo figos na rua mas ontem não vendi nenhum porque as freguesas mais certas estão para fora. E o Abel é pequeno, ainda vai à escola.

Voltaram-se para ele. Dois olhinhos pretos brilhavam com a força e a luminosidade das estrelas. Impossível adivinhar o que pensava. Mas tinha fome.

— Temos passado muito mal — concluiu a mulher.

Aquelas palavras chicotearam a alma do João. Também ele estava cheio de fome porque quase não comera durante a festa. Apercebia-se agora que até lhe doía o estômago. Mas, ao contrário daquela gente, daí a nada poderia comer tudo o que lhe apetecesse.

Pela primeira vez na vida tomava consciência do que significava realmente ter fome.

Aturdido com a experiência, viu desfilar em pensamento as travessas transbordando de iguarias, os bolos em que ninguém tocara, as frutas empilhadas com arte só para enfeitar a mesa do rei.

«Não é justo», pensou. «Não é justo.»

Num impulso procurou a carteira para a oferecer inteirinha, sem mesmo verificar de quanto dispunha. Não pôde fazê-lo porque o miúdo que lhes servira de cicerone se encarregara de o aliviar do «peso excessivo». Habituado a aproveitar distracções alheias, esvaziara-lhe os bolsos com a limpeza de um mestre.

Ao recordar uma leve remexidela na fazenda do casaco à qual não ligara, João reconstituiu o momento do roubo e ficou preso entre sentimentos contraditórios. Devia enfurecer-se contra o pequeno ladrão? Ou compreender e lamentar?

Orlando, que tinha tido a mesma ideia, guardou apenas as notas necessárias para pagar ao cocheiro e deu tudo o resto à mulher.

Sair dali foi um alívio. À medida que se afastavam da ruela infecta, a tensão abrandou mas preferiram não falar no assunto. Dentro de cada um, porém, viajava a certeza de que jamais esqueceriam aquela casa, aquela família, a fome nos olhos pretos e vivos do menino Abel.

 

Abel não se lembrava de ter tomado uma refeição tão farta como naquele dia. Mas a mãe resolvera gastar a esmola a mãos largas. O filho mais velho fora atropelado, estava fraco, precisava de se alimentar. Foi portanto com determinação que colocou em cima da mesa pão, queijo, leite, café, ovos e açúcar. A abundância e a variedade de pitéus fizeram levantar o doente e depois comeram todos juntos, em silêncio.

Quando saiu para a escola, Abel levava consigo um calorzinho bom no estômago que não era habitual. Fez quase todo o caminho a correr e subiu a escada num entusiasmo. Deteve-se no patamar e esperou um instante antes de dar início a um ritual que ele próprio inventara e mais ninguém conhecia: fazer rodar a maçaneta devagarinho para saborear o clic e depois empurrar a porta lentamente de modo a arrancar-lhe três notas de música. A música secreta que lhe permitia entrar noutro mundo.

Miséria, doença, sofrimento, ficava tudo para trás. Naquela sala enorme de paredes brancas com um quadro preto ao fundo, carteiras e bancos ao tamanho de gente pequena, não havia lugar para tristezas. Ali era o reino encantado onde palavras novas lhe desvendavam segredos, ou rabiscos de giz se transformavam nas mais extraordinárias contas de multiplicar e dividir. Também havia um velho globo terrestre para mostrar que a Terra era bem maior do que as pessoas julgavam.

O professor José Caliça esperava-o sentado à secretária a remexer papéis, como de costume, e deu-lhe os bons-dias esboçando um sorriso afável e contido. Pouco ou nada sabia a respeito da vida do aluno e também não sentia essa necessidade. Interessava-lhe a criança, a sua inteligência fulgurante, a sua curiosidade insaciável, e era com delícia que gozava aqueles momentos a sós. Mas nunca lho dera a entender porque estava convencido de que grandes familiaridades o desautorizariam. E também porque não tinha jeito para estabelecer relações próximas com ninguém.

Indicou-lhe a caixa onde guardava os paus de giz e Abel subiu a um banquinho de madeira para escrever a data bem no cimo do quadro. Esmerou-se na caligrafia e a letra saiu muito bem feitinha, revelando já um traço pessoal.

— Quanto tempo falta para começar a aula? — perguntou como sempre perguntava todas as manhãs.

E o professor consultou o relógio como sempre consultava, fingindo duvidar de que ainda houvesse tempo para se debruçarem sobre as páginas de um calhamaço de capa grossa cujo título aparecia em letras douradas e gastas.

— Hum... já não falta muito mas acho que ainda podes ver a Terra Ilustrada.

Retirou o livro da gaveta e colocou-o sobre a mesa. Abel aproximou-se e pôs-se a folhear com mil cuidados. Disfarçadamente, inspirou para absorver aquele cheiro indefinível a papel velho e cola antiga que lhe penetrava os pulmões como uma lufada de ar fresco.

José Caliça observava-o com o coração a rebentar de ternura. Na cara miúda e franzina as pestanas longas e negras até faziam sombra. Por várias vezes se sentira tentado a dizer-lhe: «Se eu tivesse um filho gostava que ele fosse como tu.» Mas nunca o fizera. As palavras envergonhavam-se e ficavam retidas a meio caminho.

— Posso ver a China?

— Claro. Podes ver o que quiseres.

Sabendo de cor a página, depressa a encontrou e debruçaram-se então os dois sobre a gravura a preto e branco onde habitava o chinês de olhos em bico e longos bigodes que tão bem conheciam. Por trás dele balançavam dois barcos com vela de esteira.

— Os juncos...

— Podiam levar quinhentos passageiros a bordo.

Não era a primeira vez que lhe dava aquela informação. Mas era indispensável começar assim para que as gravuras adquirissem cor.

Outro aluno assomou à porta e entrou ainda a esfregar os olhos de sono.

— Bom dia, professor.

— Bom dia, rapaz. Parece que não dormiste bem esta noite.

Ele retirou o boné e foi arrumá-lo debaixo da carteira reprimindo um longo bocejo.

Hoje custou-me imenso a levantar da cama.

João lançava olhares lancinantes à sua própria cama. Sentia-se extenuado, precisava de repousar. E a irmã também. Só Orlando resistia e continuava em análises frenéticas comparando as impressões digitais do Toupeira com as dedadas que recolhera no baile. De pé junto ao parapeito da janela dir-se-ia a imagem do «cientista sem sono». Não o abandonavam por solidariedade. Ana porém já nem o via a ele nem a coisa nenhuma. O quarto e a mobília esborratavam-se numa espécie de pasta azul atravessada alternadamente por cenas boas e cenas más.

— O oficial de Marinha está ilibado — exclamou Orlando com um suspiro de alívio. — Menos um para a gente se preocupar.

— Então e os outros? — perguntou o João, ansioso.

— Os outros por agora continuam sob suspeita.

— Porquê?

— Porque tive azar. A película que me enviaram traz a marca de dedos da mão direita e as que eu obtive na moldura de prata e na colher são da mão esquerda. Assim não posso concluir nada.

— Nesse caso talvez pudéssemos ir-nos deitar — suplicou.

— Sim, claro. Deitem-se, filhos. Eu ainda vou estabelecer uns contactos.

Saiu do aposento tão fresco e cheio de vivacidade que eles se espantaram.

— Os cientistas são assim — disse a Ana com um bocejo infinito.

— A força de espírito transmite-se-lhes ao corpo.

— Pois que lhes faça muito bom proveito — respondeu o João, atirando-se para cima da cama sem tirar a roupa. — Eu cá por mim vou dormir.

Adormeceu no mesmo minuto.

Não saberia dizer se tinha passado muito ou pouco tempo quando um ruído contínuo e surdo o obrigou a retomar a consciência.

— O que é isto? — perguntou estremunhado.

— Tambores?

Deixou-se ficar imóvel, de olhos cerrados, à escuta. Lá fora alguém batucava com a insistência própria de quem quer chamar a atenção. Pancadas secas, breves, cheias de ritmo.

— Não há dúvida, são tambores.

Ainda hesitou em ignorar o chamamento e ir espreitar à janela, mas a curiosidade foi mais forte. Levantou-se meio zonzo, afastou as cortinas e deparou com um grupo de saltimbancos que se preparava para dar o seu espectáculo de rua. Tinham acabado de estender um pequeno tapete mesmo em frente e rodopiavam de braços erguidos com tanta graça e leveza que lhe apeteceu assistir. Enfiou os sapatos e desceu a escada aos tropeções. De caminho ouviu o relógio da sala badalar as cinco horas da tarde e concluiu:

— Ena, pá! Dormi tanto!

Muita gente das casas em redor acorrera à chamada. Encheram-se as janelas, os portões, as grades de cada jardim. Velhos e novos, patrões e empregados, observavam a cena com ar divertido. Ele juntou-se à Sofia, que fora a única das três irmãs a sair do quarto.

Tomás também lá estava bem como Miss Nelly, e a criadagem.

A velha que tocava tambor de vez em quando soltava umas interjeições do tipo «hip... hop...», às quais acrescentava frases curtas e incompreensíveis com pronúncia espanholada. Três rapazes muito novos, de cabelo empastado em brilhantina, atiraram-se para o tapete aos saltos acrobáticos e depois subiram aos ombros uns dos outros numa velocidade incrível. Rodaram então à volta do tapete sem desmancharem a coluna humana, felizes e orgulhosos por terem adquirido tanta destreza e equilíbrio.

A amizade que os unia era quase palpável. Dir-se-ia não serem três pessoas mas sim três elementos de um conjunto indestrutível. Separaram-se com um pinote artístico quando a velha acelerou o batuque e terminou fazendo soar uma pancada mais forte. Alinharam para agradecer as palmas. Vénia profunda à direita, vénia profunda à esquerda, cativaram o público também porque eram iguaizinhos. Embora a idade não fosse a mesma, as feições não lhes permitiriam desmentir os traços de família. Irmãos, de certeza. E filhos daquela mulher que transmitira o mesmo nariz, a mesma boca, o mesmo queixo a todos os seus descendentes.

Uma cópia fiel em versão feminina avançava agora para mostrar as suas habilidades. Trazia uma camisa amarela de mangas largas e saia de cetim azul muito rodada. Bem no centro do tapete fez alguns gestos ondulantes e semicerrou os olhos para se concentrar. Os irmãos postaram-se a olhá-la com muita atenção a fim de indicarem ao público qual a atitude desejável. E o tambor fez-se ouvir agora em surdina numa vaga sugestão de perigo.

A rapariga esticou o corpo e ficou em bicos de pés. Braços e cabeça erguida, cabelos soltos sobre os ombros, encantou toda a gente. Que bonita, que elegante! E flexível, pois dobrava-se para trás como uma flor ao vento. Fez uma ponte perfeita e depois continuou a dobrar-se muito devagarinho até enfiar a cabeça entre os" joelhos e espreitar do lado de lá, risonha e atrevida. Tomás assobiou-lhe três notas de música e explodiram palmas entusiásticas! Num movimento ágil, a pequena acrobata retomou a posição vertical e pôs-se a girar sobre si mesma, o que teve como efeito elevar-se a saia ao nível dos joelhos deixando à mostra uns calções justos de cetim igual à saia.

A partir desse momento a assistência dividiu-se em dois grandes grupos: as mulheres, que continuaram a ver o espectáculo, e os homens que se desinteressaram das habilidades para se fixarem unicamente nas pernas da artista.

Talvez por causa da noite em branco, ou então seria devido às experiências contraditórias da véspera, o certo é que João foi ficando tonto, ou melhor, estonteado. O estômago reduziu-se a uma bola compacta, a garganta tinha um nó e o sangue fervilhava em expansão. Não conseguia desfitar a rapariga e o vaivém da saia provocava-lhe verdadeiros sobressaltos. Descobria assim que é mais saboroso espreitar o que está escondido do que ver à vontade... E que o amor súbito provocava flechadas no coração. Apaixonou-se pela saltimbanca. O pior é que ela só tinha olhos para o Tomás. Quando terminou a actuação aproximou-se da grade toda dengosa, perguntou-lhe se tinha gostado do espectáculo e disse que no domingo seguinte estariam nas hortas.

«Nas hortas?», pensava o João enraivecido de ciúmes. «Será que se contorcem em cima das couves?»

Os irmãos da rapariga não a deixaram muito tempo sozinha. Aproximaram-se também e meteram-se na conversa contando peripécias das viagens que faziam por todo o país.

— Nunca estamos mais de um mês no mesmo lugar — explicaram. — Esta carroça parece fraca mas resiste a tudo. Mesmo com chuva, vento ou buracos na estrada é sempre a andar!

— Dormem na carroça?

— Na carroça e numas tendas de pano.

Uma das criadas suspirou melancólica. De bom grado trocaria o que tinha por uma vida assim livre, aventurosa. Mirou-as de soslaio com inveja de tudo. Até do descaramento da saltimbanca que fazia olhinhos meigos ao senhor Tomás sem vergonha nenhuma.

Não fora só ela a reparar nos trejeitos atrevidos e insinuantes. João remordia-se furioso. E Sofia acabou por virar costas e ir embora de rompante.

Tomás delirou por se sentir desejado.

— Não há dúvida, as mulheres perdem a cabeça comigo. E eu nem faço nada para as cativar. Nasci assim, com encanto natural!

 

Sofia fugiu para o jardim das traseiras em busca do velho tronco de árvore que sempre lhe servira de refúgio quando estava zangada, triste, sonhadora, ou quando desejava ler e escrever às escondidas. Tencionava amarinhar pelos ramos e desaparecer entre a folhagem mas não foi capaz, o que a deixou perturbadíssima. Sentia a mesma agilidade nos braços e nas pernas, a mesma energia. A vontade é que desaparecera. Esconder-se nos ramos já não fazia sentido porque alguma coisa tinha mudado irremediavelmente.

— Fui eu que mudei. Já não sou a mesma.

Emoções contraditórias tomaram-lhe conta do espírito. Apercebia-se que deslizara para outra fase da vida, melhor sem dúvida e mais excitante. Mas ao mesmo tempo, que saudades de ser pequenina!

Olhou então a copa verde com a ternura especial que se reserva para tudo o que fez parte da infância.

Uma respiração ofegante obrigou-a a voltar-se e corou até à raiz dos cabelos quando viu Tomás.

— Por que é que fugiste? — perguntou, fitando-a nos olhos. — Estás zangada comigo?

Sofia baixou a cabeça amuada e não respondeu. Ele aproximou-se mais e pegou-lhe na mão.

— Olha para mim, vá. Não sejas teimosa.

Sofia estava incapaz de se mover e receava que o primo lhe ouvisse as batidas do coração enlouquecido.

Uma brisa morna encheu o jardim de sussurros meigos e empurrou-os um para o outro. Tomás hesitava entre falar e não falar.

«Ela ainda é tão novinha...»

Mas aquela cara fresca, a pele sedosa, os cabelos revoltos cheirando a flores, estavam-se tornando irresistíveis. E a boca redonda pedia um beijo.

«Por que não?», pensou. «Mais tarde ou mais cedo hei-de ter que casar como toda a gente. Uma prima é o ideal. Ainda por cima a mais bonita.»

Tomada que foi a resolução, tornou-se tudo mais fácil. Abraçou-a pela cintura e quase encostou a cara na cara dela.

— Se eu te pedisse para casares comigo, aceitavas? Ela reagiu como se tivesse sido fulminada por um raio. Casar? Aos catorze anos? Mas se dissesse que não, perdia-o...

Tremia ligeiramente sem se soltar do abraço. Tomás percebeu as dúvidas e sorriu-lhe muito terno.

— Claro que não é para casarmos já. Mas podemos ficar noivos. Queres?

— Quero — respondeu num sopro.

Para evitar possíveis olhares indiscretos, puxou-a de forma a ficarem ocultos pelo tronco da velha árvore e deu-lhe então um beijo. O primeiro.

Empoleirado no muro, João tinha desfrutado a cena entre curioso e espantado. Pelos vistos, naquela época em vez de se pedir namoro pedia-se logo para casar. Safa! Um noivado aos catorze anos era uma perfeita loucura.

Nessa mesma noite uma conversa inesperada fê-lo reforçar a ideia de que Sofia se precipitara. Depois de um serão animado em casa das meninas, Tomás chamou-o à sala onde os homens costumavam fumar charuto.

— Estás muito macambúzio...

João encolheu os ombros e procurou disfarçar. Não lhe apetecia nada abrir o jogo.

— Aposto que foi a saltimbanca que te deixou nesse estado — atirou-lhe com ar malandro. — E não tens nada mau gosto, não senhor.

Ele admirou-se. Não manifestara de maneira nenhuma o seu entusiasmo pela rapariga e julgava ter esse segredo bem guardado. Tomás saberia ler o pensamento?

— Experiência, meu caro amigo — continuou o outro sempre no mesmo tom gozão e amistoso. — Eu já passei por isso e por muito mais. Sei reconhecer os sinais de uma paixão fulminante e digo-te que são uma delícia quando a pessoa consegue aproveitar...

Conversavam no vão da janela em surdina.

— Queres tornar a vê-la?

— A quem?

— Ora, João! À saltimbanca.

Que perspectiva excitante! Já à vontade, perguntou:

— Claro que quero. Mas como?

— Vamos às hortas no domingo.

Couves e alfaces voltaram a povoar a mente do João.

— E onde é isso?

— Não sabes? Então digo-te que não sabes nada — exclamou Tomás, animando-se. — As hortas são casinhas de comes-e-bebes espalhadas nos campos à volta da cidade. A malta junta-se para provar uns petiscos, tocar viola, cantar o fado e sacar umas pequenas. Mas há que ter cuidado. Algumas estão com a família e se a gente passa as marcas aparece logo um pai ou um irmão a pedir rixa. É preferível deitar as vistas para as que são livres e dão troco. Que tal, hã? Vamos os dois?

— Os dois? — balbuciou João. — Então e a Sofia?

— A Sofia? Deus nos livre de que ela saiba. Matava-me — declarou com um sorriso triunfante. — Vamos ficar noivos. Ou melhor, já ficámos. Mas por enquanto preferimos guardar segredo. Só falo no assunto ao pai dela daqui a um mês. Escolhemos o dia em que faz quinze anos para anunciar a boa nova à família.

Mostrava-se realmente feliz com o noivado.

— E mesmo assim queres ir para as hortas à procura de miúdas?

— Claro. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Pegou num charuto, cortou-lhe a ponta e acendeu-o riscando um fósforo. Depois soprou uma baforada para cima do João que a muito custo reprimiu um ataque de tosse. A última coisa que desejava naquele momento era parecer um miúdo indigno de participar em conversas de homens. Recostando-se numa poltrona, Tomás falou, displicente e satisfeito:

— Um homem que se preze tem que saber organizar as coisas de modo a ter uma vida dupla. A Sofia vai ser minha noiva, e depois minha mulher, mãe dos meus filhos. Tenciono rodeá-la de conforto, enchê-la de mimos, amor, carinho. — Tomou outra posição, espregui-çou-se com volúpia e acrescentou: — Agora pagode é outra música. Uma pessoa tem que inventar boas desculpas para poder organizar umas escapadelas e ir divertir-se. — Inclinou-se para a frente e piscou o olho. — Uma coisa é o amor e outra a atracção física. O que a gente sente por certas pequenas é uma atracção forte mas pouco duradoura. E até te digo o seguinte: às vezes quanto mais forte é mais depressa passa. Ah! Ah! Ah!

João escutava-o com verdadeiro assombro. Parecia-lhe espantoso que Tomás, além de proceder assim, ainda se gabasse. E com que certeza o fazia! No entanto, em vez de criticar, invejou-o.

— Que dizes? Vamos à procura da tua saltimbanca?

— Vamos, claro.

— Nesse caso ajuda-me a inventar uma desculpa de primeira classe para aldrabar a Sofia e a família toda.

Durante um bom pedaço ficaram para ali a rir e a cochichar como dois velhos amigos de estróina. João adorou sentir-se promovido à categoria de malandrim.

O domingo seguinte amanheceu fresco. No céu corriam nuvens gordas e muito brancas e já se viam bandos de andorinhas esvoaçando para sul. O Verão retirava-se para dar lugar a um Outono luminoso e manso.

João saiu de casa radiante e foi juntar-se ao Tomás no sítio combinado. Partiram para o Campo Grande numa sege alugada, cujo boleeiro não dirigia o cavalo com chicote mas sim cantando-lhe quadras populares.

Fizeram a viagem em grande risota, divertidos com O estratagema que tinham inventado para justificar o passeio. Apearam-se dispostos a gozar bem aquela tarde de liberdade. Não encontraram vestígios da saltimbanca que provavelmente se estaria exibindo noutro local. Mas João não se importou muito porque o ambiente só por si apelava à estúrdia. Sentaram-se debaixo de uma parreira onde vários grupos comiam e bebiam na maior algazarra. A mesa fora improvisada com uma tábua e duas pipas, havia bancos corridos para a chentela mais variada e nas frigideiras chiava o azeite pronto a fritar peixe e pastelinhos de bacalhau. Um rapaz de calças arregaçadas dedilhava a viola e os parceiros cantavam alternadamente versos cómicos e trágicos que sempre arrancavam palmas entre a assistência. Alguns pares dançavam muito juntinhos. Um pouco adiante jogava-se à malha. O vinho corria solto em pequenas canecas de barro.

— Ora vamos lá provar deste néctar divinal! — disse Tomás, estendendo-lhe o jarro. — Experimenta e verás como gostas.

Ele obedeceu, gostou e repetiu. Pouco depois circulava-lhe nas veias uma alegria quente e apetecia-lhe imenso cantar o fado mas não sabia nenhum. Quem abriu a goela foi o Tomás logo que avistou uma morena castiça.

— Esta «desgarrada» é para mim — preveniu antes de se afastar ao encontro da rapariga. — Até logo!

Não se ralou de ficar sozinho. No meio de tanta animação tornava-se fácil confraternizar. As pessoas aliás não estavam ali para outra coisa. Andou de grupo em grupo, jogou com os velhos, dançou com os novos, divertiu-se imenso.

O Sol desaparecia em clarões vermelhos quando começou a debandada. Onde estaria Tomás? Foi procurá-lo, mas não o encontrou e resolveu aguardar. Voltou para a mesa onde agora restava apenas um cliente solitário. Não se lembrava de o ter visto antes e observou-o à socapa, atraído pelo ar misterioso. O homem vestia roupas escuras e tinha um chapéu na cabeça posto de maneira a encobrir os olhos. Ao seu lado repousava um embrulho envolto em jornais e atado com um cordel. Fumava em silêncio e a postura traía uma certa ansiedade. A palavra perigo acudiu aos lábios de João sem ele saber ainda muito bem porquê.

Escurecia e o terreiro ficara deserto. Os donos da venda andavam lá para dentro a arrumar tudo e cá fora alongavam-se as sombras cada vez mais negras. Sentiu um arrepio desagradável e olhou em volta. De Tomás e do boleeiro nem sinais. Ter-se-iam ido embora?

Um trote apressado desviou-lhe a atenção para a entrada. Vinham lá dois polícias a cavalo. O desconhecido sobressaltou-se e, após breves segundos de hesitação, entregou-lhe o embrulho e pediu:

— Esconda isto. Depressa! Vá para as traseiras e espere lá por mim.

Foi tudo tão rápido e inesperado que João nem raciocinou. Pegou no pacote, escapuliu-se para trás da casa e procurou esconderijo entre a parede e uma pilha de caixotes.

O coração disparara a galope. Quem seria aquele homem? Por que motivo receava a presença da polícia? E o que estaria dentro do pacote? Apalpou os jornais estranhando a consistência.

«A primeira vista parece só papel.»

Não tinha sido muito prudente ao aceitar uma missão cujos riscos não podia prever, mas deliciava-se com o sabor da aventura. Manteve-se firme no seu posto até o indivíduo aparecer a chamá-lo.

— Ó amigo — murmurou em surdina. — Amigo, ainda aí está?

João abandonou o esconderijo a rebentar de orgulho.

— Estou, pois. A mim só me apanha quem eu quero.

— Eu logo vi que você era dos nossos.

Aquela frase espevitou-lhe ainda mais a curiosidade e decidiu logo ali não desfazer o engano. Já agora ia até ao fim e ficava a saber tudo. Um frémito de excitação percorreu-lhe o corpo quando o tipo perguntou:

— Você já pertence à Floresta?

Ainda esteve para dizer que sim. Mas receando novas perguntas necessariamente embaraçosas, respondeu:

— Não. Mas estou ansioso por pertencer.

— Então conte comigo para fazer a proposta. E faço-o com muito gosto porque já vi que você é de confiança e tem coragem para enfrentar o perigo.

Se João estava orgulhoso, mais orgulhoso ficou.

— É melhor irmos embora daqui porque a polícia pode voltar. Eles andam atrás da nossa sociedade secreta e deve ter havido denúncia, por isso é que os outros não apareceram. Venha comigo. Ainda há uma última carreira do chora.

O chora era um carroção puxado a cavalos e tinha lugar para vinte passageiros. Aquela hora, porém, foram os únicos a tomar o transporte. Sentaram-se juntos lá ao fundo. Puderam falar à vontade porque as rodas de madeira faziam tanto barulho que tinham a certeza de não serem ouvidos. A conversa permitiu-lhe perceber finalmente qual o tipo de organização secreta a que o homem pertencia.

— Lutamos contra a miséria — repetiu ele várias vezes. — Estamos dispostos a dar a vida se preciso for. Mas as injustiças têm que acabar. Você já viu o estado em que o país está? Há gente que gasta numa noite o que dava para alimentar várias famílias que morrem à fome.

— Lá isso é verdade — concordou o João.

— Vamos acabar com esta corja de sanguessugas de uma vez por todas.

— Como?

— Ora, amigo! À bomba.

Embora não fosse necessário, baixou a voz.

— Temos vários companheiros que fabricam bombas caseiras na perfeição. E juntámos uma boa quantia para comprar armas. Os tiranos combatem-se a tiro.

— O que leva aí nos jornais é uma bomba? — perguntou João, arregalado de pavor.

O homem esboçou um sorriso.

— Não. Aqui só há papéis. É propaganda contra o governo e contra o rei. Se não formos nós, os da Carbonária, a revolução não avança porque os republicanos são moles. Falam, falam e não fazem nada.

Nos olhos escuros faiscou uma expressão alucinada.

— Está para breve — sussurrou. — Eles que se preparem.

Apearam-se no Rossio e antes de se despedirem o desconhecido lembrou:

— Quando quiser, apareça ali no Café Gelo que eu trato de tudo para a sua admissão. Você tem alma de revolucionário! Vai ser um bom elemento na Floresta. O melhor dos companheiros!

 

De regresso a casa João encontrou Tomás, que saltava da sege ainda a trautear uma versalhada.

— Então, desapareceste? Fui à tua procura e já lá não estavas.

— Pois — disse o João. — Desencontrámo-nos e apanhei o chora.

— E correu-te bem o dia?

— Lindamente.

Tomás estranhou-lhe os modos.

— Tens pressa?

— Tenho. É que já é tarde e o meu avô fica aborrecido se me demoro. Até logo ou até amanhã!

Acenou-lhe à maneira de despedida e correu para casa. Ia ansioso por falar com o Orlando! Galgou a escada e precipitou-se esbaforido para o quarto do cientista.

— Que bicho te mordeu? — perguntou Orlando com estranheza.

— Trago notícias. Ou melhor, não são notícias, são suspeitas. Quer dizer, dúvidas.

— Então desembucha. Mas de maneira que eu entenda.

Como tinha muita coisa para dizer não conseguia articular o discurso. Engoliu em seco e escolheu as palavras uma por uma até condensar o essencial em poucas frases.

— Penso que o Toupeira talvez ande a vender armas à Carbonária.

Orlando ficou pasmado.

— A Carbonária? Mas tu sabes o que é a Carbonária?

— Sei. É uma organização secreta de revolucionários que se prepara para fazer explodir bombas, matar o rei e os ministros. E ainda sei mais. O grupo tem um nome de código muito giro: Floresta. Reúnem-se no Café Gelo.

— Não há dúvida de que estás bem informado. Queres explicar-me o que se passou?

João sentou-se na borda da cama e contou tudo sem omitir um único pormenor. Por fim rematou:

— Se acha que posso ser útil, entro mesmo para a Carbonária. Deve ser fácil investigar «rastos de toupeira»...

O velho cientista passou-lhe a mão pela cabeça num gesto de ternura.

— És o melhor dos companheiros, João!

— Toda a gente me diz o mesmo — respondeu im-pante. — Conhecidos e até desconhecidos! Rendem-se ao meu espírito de camaradagem. Mas o que é que acha? Entro?

— Nem penses. Seria perigosíssimo. Sei que estás morto por ir meter o bedelho nas sociedades secretas e admiro o teu espírito de aventura. Mas além de eu não querer que te arrisques, também não vale a pena.

— Porquê?

— Porque a Carbonária não teria dinheiro suficiente para negócios que interessassem ao Toupeira. Os carbonários são gente modesta. E ainda há outro motivo. Estabeleci uns contactos e recebi indicações...

— Já sabe de que é que ele anda disfarçado? — interrompeu o João num alvoroço.

— Não. Há é novas pistas.

— Quais?

— Não vale a pena explicar-te porque não entenderias. São outras formas de identificar o homem.

— Quer dizer que não vale a pena procurar mais impressões digitais?

— Exacto.

— A Ana já sabe?

— Não. Passou o dia metida na casa do lado e nem veio jantar. Estive à espera que vocês chegassem para lhes dar uma novidade mas olha, dou-ta só a ti.

— Que novidade? Ele pareceu hesitar.

— Bem, é que... os novos métodos obrigam-nos a ficar por aqui mais tempo do que eu previa.

— Mas isso é óptimo, Orlando!

— Não ficas aborrecido?

— Não. Adoro!

— E a Ana?

— A Ana vai ficar radiante. Ela nem quer pensar em separar-se das amigas. Posso ir levar-lhe a boa notícia?

— À vontade!

— Então até logo. Eu não demoro.

Afinal demorou porque a casa vizinha tinha mel. Como era habitual, enchera-se de visitas para um serão animadíssimo. Isabel estava sentada ao piano a tocar modinhas brasileiras e as enteadas cantavam em coro. Tinham vozes bem bonitas e muito afinadas.

Ana trocava olhares lancinantes com Rufino de Sá, que se infiltrara no grupo estabelecendo relações de amizade com Flamiano. O oficial de Marinha também estava presente e conversava com outras pessoas mais velhas que João não conhecia. Quando as meninas deram por terminada a canção foram muito aplaudidas. Passou-se então à sala de jantar para uma ceia deliciosa. Tomás não largava Sofia e aproveitava o facto de serem primos para certas aproximações que a namorados não seriam permitidas. Metia-lhe pastelinhos na boca, dizia-lhe segredos ao ouvido e chegou ao ponto de fingir encontrar uma pestana na bochecha para um afago descarado. Julgavam ambos que aquilo parecia natural, mas toda a gente estava desconfiadíssima. O Tomás e a Sofia? Isto vai dar romance?

O pai exultava. Sempre tivera esperança de que ele escolhesse uma das filhas para casar. Preferia a mais nova? E por que não?

Quem o inquietava era o oficial de Marinha. Depois do baile apressara-se a tirar informações. Bom rapaz, boa família. Tinha no entanto um contra gravíssimo: pertencia ao Partido Republicano, e ele jamais aceitaria um genro que fosse contra o rei. Preocupava-o verificar que Carolina retribuía as atenções toda dengosa.

«Ela que nem pense. Nem pense!»

Chegou-se à mulher para lhe falar no assunto mas não foi possível, pois encontrou-a no meio de um grupo.

«Não faz mal. Quer a Isabel concorde quer não proíbo a Carolina de namorar este rapaz e acabou-se.»

João, que ainda não conseguira falar a sós com a irmã, mantinha-se à espreita de uma oportunidade. Quando a viu afastar-se para pousar o prato no aparador, seguiu-a e disse-lhe entredentes:

— Anda cá já. —. O que foi?

— Nada. Vem comigo.

Puxou-a para o átrio onde não estava ninguém e ralhou:

— Então andas a namorar esse tipo? Não sabes que ele é suspeito? Que pode ser o Toupeira?

— Ora, isso são ideias do Orlando. Eu até compreendo, porque quem investiga tem que desconfiar de toda a gente. Mas garanto-te que quanto ao Rufino se enganou.

— Como é que sabes?

— Sei porque ele trouxe um presente para a dona da casa. Queres ver?

Levou-o junto de uma cómoda onde tinham ficado as lembranças com que os convidados daquela noite mimosearam Isabel. Pegou numa lata de biscoitos e exibiu-a triunfante.

— Olha aqui!

O rótulo elegantíssimo anunciava: Biscoitos RU. E por baixo, em letras mais pequenas: Fábrica de biscoitos — Propriedade Rufino de Sá.

— Vês? Quem fabrica biscoitos não fabrica armas. Não te canses à procura do Toupeira nesta casa porque ele deve andar bem longe.

Sorria-lhe, radiosa.

— Tem uma fábrica? — balbuciou o João. — O tipo tem uma fábrica... mas isso pode ser um disfarce.

— Como?

— Sei lá! Há mil hipóteses. Supõe que amassa biscoitos na parte da frente e monta armas nas traseiras...

— Estás louco!

Já se preparava para ir embora mas ele segurou-a por um braço.

— Espera. Tenho outra coisa para te dizer.

— Então diz depressa.

— O Orlando recebeu instruções e temos que ficar onde estamos muito mais tempo.

— Ficamos cá mais tempo? Ó João! Que bom!

Atirou-se-lhe ao pescoço em verdadeira euforia. Precisamente nesse momento surgiu Miss Nelly, que vinha buscar os presentes para os ir arrumar.

— Que irmãos tão amigos! Assim é que é bonito! Depois da ceia as pessoas espalharam-se pelas salas

e formaram-se vários grupos em alegre cavaqueira. Só Tatão se mostrava macambúzia, porque depois das aproximações que lhe fizera no baile Flamiano não atava nem desatava. Muito simpático, muito sorridente, mas quanto a declarações de amor, nada. Realmente não voltara a fazer olhinhos às irmãs. Isso levara-a a pensar que a tinha escolhido a ela. A verdade podia no entanto ser outra.

«Se calhar desistiu das três. Não lhe agradamos, pronto. Que vá procurar noiva noutro sítio...»

Vingou-se da zanga a comer bombons. Comeu tantos que ficou agoniadíssima e foi para a janela respirar ar fresco.

Estava muito distraída a enrolar nos dedos um berloque da cortina quando sentiu que alguém se aproximava. Era ele. Parecia atrapalhado.

— Tatão...

— Sim?

— Tenho que te dizer uma coisa... Ela tentou avaliar rapidamente se se tratava de uma coisa boa ou de uma coisa má. A expressão hesitante deixou-a cheia de incertezas. Mas que podia fazer se não ouvir?

— Diz. Podes falar à vontade. Receando estar à beira de um grande desgosto, chamou a si toda a coragem. E se ele lhe anunciasse que estava noivo doutra pessoa? E se quisesse convidá-la para madrinha de casamento? A agonia agravou-se. Fosse qual fosse a notícia tinha que aguentar firme, esconder a desilusão, felicitá-lo...

Flamiano pegou-lhe na mão com ar muito terno.

— Acho que me apaixonei no próprio dia em que te conheci.

Ela ficou sem voz. Seria possível? A emoção e o excesso de bombons estavam-se embrulhando e a pobre Tatão viu a casa a andar à roda. Para não perder o equilíbrio encostou-se ao parapeito. Tinha agora as duas mãos presas nas dele e escutava-o como num sonho.

— Parecia que andavas interessado nas minhas irmãs.

— Isso foi para te fazer ciúmes. Se reagisses era porque gostavas de mim. Gostas?

— Gosto.

— Então vais aceitar que te peça um sacrifício.

— Sacrifício?

— Sim. Eu não posso pedir-te em casamento antes de os meus pais regressarem de viagem a Itália. Sou o único filho rapaz e ficariam ofendidíssimos. Eles só chegam próximo do Natal. Esperas?

Não foi necessário responder. Debruçaram-se ambos no parapeito mas nem por isso viram o que se passava no jardim. Tatão rejubilava de felicidade. As batidas do coração tinham-se espalhado pelo corpo e palpitavam até nas asas do nariz. Que alegria! Arrependia-se no entanto de ter sido gulosa porque o prazer de escutar palavras doces acabou por ser prejudicado pela enorme quantidade de doces que tinha no estômago.

Sofia assistira de longe às manobras amorosas que se desenrolavam no vão da janela e ria sozinha.

— Ela pensa que é a primeira a receber declarações de amor, mas é a segunda...

Ao fundo da sala Carolina também não tirava os olhos do parzinho. Para disfarçar a irritação abanava-se com o leque. Sentia-se ultrapassada pela irmã, o que não era agradável. E tinha uma certa vergonha dos seus sentimentos, o que ainda era pior.

— Se eu não quero aquele homem para nada, por que é que estou com inveja? — perguntava a si própria. — Serei péssima, ou toda a gente passa por momentos assim estúpidos?

As dúvidas incómodas fizeram-na corar. Com as faces vermelhas e os olhos brilhantes, ficou ainda mais bonita. Se tivesse ouvido os comentários que novos e velhos faziam a seu respeito, esqueceria rapidamente todos os problemas que a afligiam para se deliciar com o sucesso. Mas não ouviu e teve que digerir o mal-estar sem ajuda de ninguém.

Outra pessoa ansiava pelo fim do serão: Miss Nelly. Estava cansada, claro. E naquelas festas nunca se divertia porque tinha um papel secundário. Era apenas a professora de inglês, a acompanhante das meninas. Toda a gente a cumprimentava delicadamente à entrada e à saída e pronto. Só por acaso a chamavam à conversa. Desta vez porém, havia um motivo diferente para desejar que se fossem embora. Apercebera-se que o romance da Tatão avançara e queria saber novidades. Tinha a certeza que ela lhe contaria tudo como sempre fazia e antecipava o prazer das confidências com a sua menina preferida. Contudo foi obrigada a esperar porque a festa acabou tardíssimo.

Rufino de Sá foi dos últimos a sair e ofereceu boleia a Álvaro de Sousa. Pelo caminho fez-lhe imensas perguntas a respeito da família que habitava na casa ao lado. Ele não pode satisfazê-lo porque pouco sabia.

— É um velho simpático. Conheci-o no baile e creio que se chama Orlando. Ou será Rolando? Confesso que não me lembro bem.

— Está há muito tempo em Lisboa?

— Não faço ideia — disse Álvaro de Sousa. — Julgo que não. A Carolina contou-me que se tornaram amigos através de Sofia porque ela dantes tinha a mania de saltar o muro.

— E vive sozinho?

— Sim. Sozinho com os netos. Ignoro se têm mais parentes.

Não estranhou a insistência porque o vira interessado na Ana e achou natural que quisesse investigar a que tipo de família pertencia sem a interrogar directamente, pois seria indelicado.

A conversa resvalou então para assuntos mais agradáveis. Política em geral, os problemas do país, as ideias republicanas.

Álvaro ficou muito satisfeito por saber que Rufino de Sá também era contra a monarquia e até encarava com bons olhos uma revolução. Admirou-se foi que um civil percebesse tanto a respeito de armas. Estava perfeitamente a par de tudo o que se relacionasse com equipamentos militares do Exército e da Marinha. E falou até numas armas mais modernas fabricadas em França que talvez interessassem ao Partido Republicano.

— Ainda estão a ser aperfeiçoadas — explicou. — Mas tenho um amigo que prometeu enviar-me uma amostra logo que ficarem prontas.

— Eu gostava de ver — disse Álvaro de Sousa.

— Claro. Os militares sempre gostam de ver armas, não é verdade? Fique descansado que assim que eu as tenha você é o primeiro a quem mostro. Mas ainda demora uns meses. Só quando o Inverno estiver bem entrado, ou talvez mesmo no princípio do ano é que penso receber a primeira remessa. Lá para Janeiro conversamos outra vez sobre este assunto.

 

Depois daquela noite os dois rapazes tornaram-se inseparáveis. Conversavam imenso e Álvaro não escondia a sua admiração por Rufino de Sá.

— Você devia ter entrado para oficial de Marinha como eu — dizia-lhe muitas vezes.

O outro ria-se.

— Porquê?

— Porque fazia com certeza uma carreira brilhante. Se quer que lhe diga, não percebo como é que se contenta em fabricar bolachas e biscoitos. Uma pessoa inteligente e culta deve procurar outros horizontes.

Rufino mostrava-se muito sensibilizado com os elogios mas justificava-se sempre da mesma maneira.

— Eu não tenho família. A única coisa que herdei do meu pai foi esta pequena fábrica. Custa-me vendê-la. Por isso decidi criar novas marcas e embalagens muito originais para que o negócio cresça. Espero vir a ter grande sucesso e ganhar muito dinheiro.

Sempre que falava dos seus projectos de futuro, falava também do futuro do país.

— Este governo é um atraso de vida. Não pensam no progresso geral. Ora repare no caso da minha fábrica. Só pode tornar-se um sucesso se houver muita gente a ganhar bem para poderem comprar latas e mais latas de bolachas! E o mesmo se aplica a qualquer outro ramo de negócio.

Álvaro concordava plenamente.

— Claro. Mas para isso é necessário que o governo se preocupe com o povo e não com o rei.

— Exacto. A família real é um peso inútil. Têm que ser afastados a bem ou a mal.

Quando a conversa chegava a este ponto era certo e sabido que se punham a falar na revolução. Álvaro de Sousa, embora fosse militar, preferia tentar resolver o caso com o mínimo possível de tiros.

— Se os quartéis estiverem do nosso lado, basta expulsar a família real e implantamos a República sem mortes — insistia.

— Nem pense! Isso são sonhos dourados. Onde é que você já viu uma revolução sem mortos?

— De facto nunca houve. Mas alguma vez há-de ser a primeira.

— Ora, ora! Fantasias! Se queremos mudar alguma coisa, temos que partir para a luta. E de preferência com armas melhores do que as do adversário. Quem tiver as armas mais modernas é que ganha a guerra!

Punha-se então a descrever metralhadoras com tal furor que parecia tudo menos um pacífico fabricante de alimentos.

Dir-se-ia até que lhe dava gozo imaginar cenas de tiroteio, de fogo cruzado nas ruas, assaltos, explosões, destruição.

Álvaro estranhava aquele frenesi bélico, mas desculpava o amigo pensando que talvez andasse um pouco transtornado por causa dos acontecimentos explosivos que naquele Inverno agitavam Lisboa.

Toda a gente sabia que havia grupos a conspirar para preparar uma revolta. Mas também havia espiões que se infiltravam nesses grupos e faziam denúncias. Seguiam-se rusgas e muita gente ia parar à cadeia.

Os jornais contavam o que se passava, uns incitando o rei a mandar prender ainda mais gente, outros incitando as pessoas a revoltarem-se ainda mais contra o rei.

A polícia não tinha mãos a medir e por várias vezes escavacou a redacção dos jornais revolucionários e prendeu jornalistas. Num ambiente assim era difícil manter a serenidade.

Em todas as casas se discutia política até altas horas da madrugada. E como as opiniões nunca eram todas iguais, acabava-se quase sempre em zaragata.

As mulheres em geral sofreram bastante porque se afligiam de ver filhos contra os pais, irmãos contra irmãos, primos de relações cortadas.

Sofia então desfazia-se em lágrimas porque se aproximava o dia dos seus anos e não lhe parecia haver a menor hipótese de se falar em noivado. Tomás continuava lá em casa mas o clima entre ele e o tio azedara bastante. Qualquer frase dúbia fazia saltar faíscas e punham-se os dois aos berros, Jorge a favor do rei e Tomás a favor da República.

Houve alturas em que todos recearam uma zanga definitiva. Mas os laços fortes que os uniam sobrepunham-se e na manhã seguinte tinham feito as pazes.

As coisas acabaram por correr de forma algo imprevista porque Sofia caiu à cama na véspera do aniversário com um febrão horrível e dores de garganta. Cancelaram todos os convites, veio o médico, a família concentrou-se na doente rodeando-a de carinho. Tomás aproveitou as tréguas e chamou o tio para uma conversinha em particular no escritório. Disse-lhe que gostava da prima e queria casar com ela, arriscando-se até a prometer que a faria feliz quer continuasse a monarquia quer viesse a República. Jorge achou graça e abraçou-o comovido.

— Sempre te considerei um filho e devo ter sonhado com este pedido desde que elas nasceram!

A notícia espalhou-se pela casa inteira provocando um alegre alvoroço. A última a saber foi a interessada a quem a febre mergulhara num sono profundo. Quando despertou ainda meia zonza, espantou-se por ver o pai, a madrasta, as irmãs, Miss Nelly e o primo, todos à volta da cama com o mesmo sorriso benevolente. E julgou delirar no momento em que Tomás abriu uma caixinha de veludo, retirou um lindo anel de rubi e lho enfiou no dedo com imensa ternura.

— Gostas?

Ela olhou para o pai e percebeu tudo.

Nada daquilo correspondia à cerimónia que imaginara mas deliciou-se por ser assim natural, próxima e caseira.

Seguiram-se beijinhos, parabéns, risota entremeada pelas recomendações de Miss Nelly.

— Atenção ao contágio! Não se aproximem de mais.

Jorge tossicou para aclarar a voz e depois tomou a palavra com ar solene.

— Gosto muito que te cases com o Tomás. Mas quero fazer um aviso muito sério. Este é o único republicano que eu aceito para genro. E aceito porque já é da família.

Não olhara para Carolina, mas ela corou até à raiz dos cabelos porque sabia muito bem onde o pai queria chegar. Álvaro de Sousa continuava a aparecer lá por casa sempre como amigo. Mas não era segredo para ninguém qual o motivo das visitas. E na semana anterior passara-lhe discretamente um bilhete em que falava abertamente de amor. Respondera pedindo algum tempo para pensar não só porque lhe pareceu mais elegante fazer-se difícil mas também porque hesitava. Com a proibição, terminaram as dúvidas.

— Hei-de casar com ele quer o pai queira quer não queira — decidiu logo ali.

Nessa mesma noite fechou-se no quarto a sete chaves e escreveu uma carta linda em papel violeta cujo envelope cheirava a perfume. Contou-lhe tudo o que se tinha passado e declarou que estava disposta a correr os riscos necessários mas lhe parecia melhor guardarem segredo durante algum tempo. Leu e releu várias vezes o que tinha escrito e achou bem. O pior era fazer chegar a carta ao seu destino. Tinha medo que desconfiassem se fosse ao correio. Também não lhe parecia seguro entregar o envelope às pessoas da casa. Que fazer? Depois de percorrer o quarto em todas as direcções foi encostar-se à janela e ao dar com os olhos na varanda dos vizinhos encontrou a solução.

— Vou pedir à Ana que me ajude!

Ela deve ser óptima para estas coisas. — Pôs-se a enumerar as qualidades da vizinha e ficou encantada. — É simpática, discreta, boa companheira, nunca diz mal de ninguém, está sempre pronta a ajudar toda a gente... Não há dúvida que é a pessoa certa. Vou procurá-la.

A abordagem não a desiludiu. Ana achou divertidíssimo desempenhar o papel de mensageira e carta vai, carta vem, tornaram-se íntimas. A proximidade dava jeito às duas porque sempre que Álvaro aparecia depois do jantar, trazia consigo Rufino de Sá.

Os rapazes tinham combinado nunca falar de política para evitar discussões. Procuravam temas de conversa neutros, ajudados por Flamiano que também gostava de criar bom ambiente. Isto acabou por ser um alívio para toda a família. Ao menos ao serão havia uma pausa. Voltaram a tocar piano, a cantar em coro, a comentar peças de teatro e banalidades do dia-a-dia. Mas lá fora os tumultos cresciam, a cidade fervilhava de acontecimentos excitantes. E pairavam ameaças sobre a família real.

Sempre que ouvia referências ao assunto, Carolina estremecia de medo e excitação. Por um lado receava os efeitos de uma revolta, mas por outro desejava-a pois talvez resolvesse os seus problemas pessoais.

Quem a ajudou a dominar os nervos foi a madrasta que mais uma vez deu provas de bom senso. Percebera perfeitamente o que se passava e resolveu intervir. Na primeira oportunidade chamou-a para falarem em privado.

— Vocês namoram em segredo, não é verdade? — atirou de chofre, — Não negues porque eu sei.

Ela ia balbuciar desculpas mas Isabel cortou-lhe a palavra.

— Não te aflijas porque isto resolve-se — aconselhou. — O rapaz que continue a vir por cá fingindo ser apenas um bom amigo e deixem correr, que atrás de tempo, tempo vem. O teu pai há-de convencer-se de que os republicanos são iguais às outras pessoas e que cada um tem direito a pensar como entender.

— Exacto. E digo-lhe já que eu também sou a favor da República.

— Ora ainda bem. É da maneira que quando casarem não vão discutir política. Mas por agora não confesses essas simpatias ao pai, se não ele proíbe o Álvaro de frequentar a nossa casa com medo que influencie também as tuas irmãs.

Seguira os conselhos à risca e a vida tornou-se ainda mais interessante. As conversas públicas incluíam sempre palavras em código que só eles os dois entendiam, trocavam bilhetinhos às escondidas, agora com a cumplicidade de Ana e da madrasta.

Carolina sentia-se uma verdadeira heroína de romance e andava tão feliz que esqueceu todas as raivinhas contra a irmã do meio.

Passou a interessar-se pelo que lhe dizia respeito. Alegrou-se quando soube que «os flamianos» tinham regressado de Itália. E nas vésperas do grande dia ofereceu-lhe um trevo de quatro folhas em marfim

— Os teus futuros sogros não tardam a aparecer por aí. Isto é para dar sorte no primeiro encontro.

Foi numa tarde de Inverno que Flamiano se apresentou com a família para pedir Tatão em casamento.

Desabara um temporal violentíssimo. Bátegas de chuva desencontradas, raios e coriscos, trovões medonhos, um horror. O efeito, porém, acabou sendo muito engraçado porque entraram todos de roldão encharcados até aos ossos e com os sapatos em mísero estado. O átrio ficou cheio de poças e em vez de cumprimentos cerimoniosos seguiram-se exclamações e troca de palavras que só costumam ocorrer entre gente muito íntima.

— Que tempo horrível — queixavam-se em coro.

— Fiquei numa sopa só de atravessar o jardim!

— Quer mudar de sapatos?

— Tragam toalhas para enxugar os cabelos!

O fragor de uma série de trovões em cadeia sobre-pôs-se à conversa e fez com que a mais pequenina que só tinha cinco anos desatasse num choro convulsivo.

— Tenho medo! Buáá!

Estando a mãe atarefadíssima a libertar-se do casaco que se colara ao vestido, não pôde ir consolá-la. Isabel recebeu-a nos braços com imenso carinho.

— Já passou. Não há perigo, querida. Não chores.

— Mas não podem ficar assim, que se constipam — disse Jorge, consternado. — Não podem ficar assim.

— Claro que não — atalhou Isabel. — Vamos preparar roupas secas para toda a gente. Venham comigo.

Não se instalaram portanto nos salões como seria normal. Subiram para os quartos já numa grande risota.

— Meu Deus, que vergonha! Nunca me aconteceu uma coisa destas — queixava-se a mãe de Flamiano.

O marido tentou recusar por todos os meios as fatiotas que lhe puseram à disposição mas como começou aos espirros, a mulher obrigou-o a mudar-se.

— Tem paciência, Guilherme, se não pões outra roupa, adoeces.

Surgiu então um problema difícil de ultrapassar. Jorge tinha um corpo completamente diferente. Da cintura para cima ainda se resolveu, mas as calças é que não entravam de maneira nenhuma. A única hipótese foi recorrer à farda do motorista e o pobre senhor apareceu então na sala de calças verdes e casaco cinzento, envergonhadíssimo com o ridículo da toilette. De início todos fingiram ignorar mas as filhas não resistiram e largaram à gargalhada.

— Ha! Ha! Ha!

— Nunca vi o pai tão cómico!

O riso alastrou, tornou-se incontrolável, e o próprio Guilherme, que aliás tinha óptimo feitio, divertiu-se à grande. Quando finalmente serenaram, dava a sensação de serem amigos de longa data.

Um pormenor curioso ajudou a entender por que motivo Flamiano elegera Tatão como sua preferida. Foi a roupa dela que serviu à mãe e às irmãs mais velhas porque eram todas do tipo gorduchinho. E até havia uma vaga semelhança nas feições redondas, na pele lisa muito cor-de-rosa. De certo modo Tatão correspondia ao modelo feminino que se habituara a apreciar desde criança.

À noite houve um lindo jantar de festa com amigos, parentes e vizinhos. No meio da alegria geral só uma pessoa destoava: Ana. Estava inconsolável porque Rufino há vários dias que não aparecia. Ela esforçara-se por afastá-lo do pensamento mas num ambiente onde fervilhavam namoros tornara-se difícil não ter par. Passeou pois a sua melancolia de sala em sala.

Preferia que não notassem. Mas Carolina, agora mais atenta aos problemas dos outros, notou. Logo que surgiu uma boa oportunidade aproximou-se e fez-lhe uma proposta.

— Queres que eu peça ao Álvaro que veja se sabe notícias do Rufino de Sá?

— Hum. Não sei se vale a pena. Ele não aparece porque não quer.

— Pode estar doente, pode andar em viagem — lembrou para a encorajar.

— Nesse caso escrevia-me.

— Às vezes as cartas perdem-se no correio.

— Lá isso...

— Então? Falo ao Álvaro?

— Falas?

— Claro. Está combinado. E agora vem comigo para ao pé dos outros e anima-te.

Lá fora a tempestade crescia e surgiam ventos tresloucados. Não amainou durante toda a noite. Só na manhã seguinte, depois de forte aguaceiro, é que o Sol voltou a brilhar.

 

O professor José Caliça olhou o relógio, inquieto. Estava quase na hora de começar a aula e o pequeno Abel não aparecia. Remexeu na caixa do giz, deitou uma mirada ao banquinho onde ele costumava empoleirar-se para escrever a data no quadro e afligiu-se. Se não vinha à escola havia dois dias, provavelmente adoecera. E não seria o único.

«Não admira. Com este frio, estes temporais, e tão mal agasalhados, coitadinhos...»

Quando começou a lição, várias carteiras ficaram vazias e nas outras ressoavam fungadelas e ataques de tosse. Mesmo assim lá foram fazendo cópia, ditado, contas e problemas ao ritmo habitual, mas numa cadência cinzenta, tristonha. Resolveu mandá-los para casa mais cedo. A decisão agradou a todos, porque se os alunos não estavam capazes de aprender ele também não se sentia muito capaz de ensinar. Procurou a esponja e limpou o quadro.

Depois, arrumou e voltou a arrumar a sua papelada, não sabendo o que fazer ao tempo. De súbito porém a porta abriu-se e apareceu o Abel acompanhado pelo pai. Nunca o tinha visto e sentiu-se impressionado com a magreza, as olheiras, a velhice prematura daquele homem.

— Boa tarde, senhor professor — cumprimentou num tom respeitoso. — Trago-lhe aqui o Abel para ele se despedir.

— Despedir? — perguntou incrédulo. — Porquê? Fez-se silêncio. José Caliça olhava alternadamente o

pai e o filho. Este mantinha-se de cabeça baixa e as pestanas grossas projectavam uma leve sombra na cara franzina.

— Aconteceu alguma coisa?

— Aconteceu, sim, professor. O Abel não vem mais à escola. Tem de ir trabalhar.

— Mas... mas...

As palavras não lhe acudiram logo porque sabia que precisava dos termos exactos para convencer o homem a desistir daquele disparate.

— Escute — disse por fim. — O seu filho é o melhor aluno da escola. É um rapaz muito inteligente. Se estudar pode vir a ser alguém, ter um bom emprego, ajudar a família. Agora se o leva... — Ia a dizer «corta-lhe as asas» mas convencido de que ele não entenderia, emendou: — Se o levar, estraga-lhe o futuro. E também se prejudica a si e ao resto da família.

Nos olhos encovados houve um lampejo de grande desânimo.

— Eu preciso que ele ajude a família agora. Estou doente, desempregado e temos passado muito mal.

Arranjou-se-lhe um emprego e vamos aproveitar. Não julgue que não me custa.

— E que emprego é?

— Moço de recados numa mercearia. Vai descarregar sacos de batatas, atender pessoas, fazer limpezas. E como tem que levar encomendas a casa dos clientes, além do ordenado talvez receba algumas gorjetas.

Abel levantou a cabeça e respondeu à pergunta que o professor não formulara.

— Eu aguento — disse muito sério. — Sou forte. José Caliça fitava o corpo magrinho da criança e não

se atrevia a falar. Percebera que não valia a pena insistir mais e morria de pena. A ideia de ver aquele rapazinho tão vivo e tão esperto condenado a transportar pesos às costas sufocava-o. Queria falar e não conseguia porque perdera a voz. Se ao menos pudesse oferecer-se para pagar o ordenado do seu bolso na condição de o deixarem estudar... Mas como, se o que ganhava mal cobria as próprias despesas?

Durante alguns minutos ficaram ali os três especados no meio da sala vazia. Nenhum parecia capaz de pôr fim à despedida. Foi o pai quem ganhou coragem.

— Vá, Abel. Diz adeus ao senhor professor.

Deram um aperto de mão breve, firme. Um cumprimento de homens embora uma das mãos fosse grande e a outra pequenina.

Abel relanceou a vista pelo aposento antes de sair. Depois empurrou o pai na frente. Queria ser ele a fechar a porta. Agarrou a maçaneta com força, fez ranger os gonzos para que soltassem as três notas de música e pela última vez ouviu o clic mágico que encerrava um outro mundo. Já na rua acelerou o passo e nunca olhou para trás.

O professor José Caliça sentou-se à secretária e permaneceu imóvel até escurecer. Primeiro deixou-se invadir por um grande desgosto, uma tristeza infinita. Mas a pouco e pouco irrompeu a ira, o ódio, a revolta.

«Estamos no princípio do século XX e ainda não se acabou com a miséria!», pensava sem sair do mesmo lugar. «Uns com tanto e outros sem nada! Isto tem que mudar! Alguém tem que fazer alguma coisa...»

Entreabriu a gaveta e passeou os olhos pela capa da Terra Ilustrada. Deteve-se ainda um instante e depois fechou a gaveta com um murro tão violento que aleijou o pulso, mas soube-lhe bem a dor física.

Meio atarantado, seguiu pela rua fora sem destino certo. Estava frio, ele tinha calor... Andou, andou, como um sonâmbulo. Remoía vinganças nem ele sabia contra quem. A certa altura uma voz alheia deu forma aos seus pensamentos.

— O povo não precisa de caridade, precisa de justiça! — gritava alto e bom som alguém no meio de um largo cheio de gente. — Temos que lutar para que no nosso país haja lugar para todos e não só para alguns!

Aproximou-se como se tivesse sido atraído por um íman.

Aquele discurso caía-lhe no peito como um verdadeiro bálsamo. Enfiando-se no meio do grupo observou o orador de alto a baixo. Era um homem pequeno, magro, de barbicha preta. Tinha olhos de veludo e uma voz insinuante.

— A monarquia é um verme. Um verme que destrói o país. Mas tem os dias contados — declarou, ao mesmo tempo que passeava a vista pela assistência no jeito de quem se dirige a cada um em particular. — Todos conhecemos a solução porque só há uma. — Após breve pausa, anunciou então a plenos pulmões: — A República! Temos que implantar a República!

Respondeu-lhe uma ovação entusiástica. Caliça também bateu palmas freneticamente.

— Quem é? — perguntou para o lado.

— Não sabe?

— Não estou a reconhecê-lo.

— É um dos chefes do Partido Republicano. O António José de Almeida.

— Ah! Sei muito bem.

Relacionava agora aquelas feições com as imagens que apareciam muitas vezes nos jornais A Luta e O Mundo, ambos dirigidos por republicanos.

— Que bem que fala — murmurou.

O indivíduo com que estabelecera diálogo baixou a voz e atirou-lhe uma frase curta e seca:

— Mas não chega!

— Hã?

— Homens como este fazem falta. Mas não basta haver gente que fale bem. É preciso quem se disponha a pegar em armas para acabar com a corja de sanguessugas que governa o país. Temos que abater os tiranos. — Apontou-lhe uma bonita carruagem que contornava a praça e insistiu: — Os tipos que ali vão gastam numa noite o que dava para alimentar muitas famílias.

— Tem toda a razão — concordou o professor.

— Pode acreditar no que lhe digo porque eu sei.

— Acredito, amigo. E hoje até me sentia capaz de arrastar tudo à bomba.

Ao ouvir aquilo o indivíduo mostrou-se interessado. Os olhos chisparam com um brilhozinho de aço.

— Bombas?

— Sim, bombas. Pudesse eu e iam todos pelos ares.

— Pois se é essa a sua disposição, venha daí comigo tomar uma bebida ao Café Gelo.

O professor seguiu-o. Não sabia ao certo no que se ia meter, mas já ouvira boatos a respeito de reuniões secretas no Café Gelo. Dizia-se que os carbonários se encontravam lá para prepararem a revolução. Ora, o que mais desejava naquele momento era pôr o mundo de pernas para o ar.

— Ainda não me apresentei — disse já a caminho. — Chamo-me José Caliça e sou professor.

— Pois eu chamo-me Joaquim Abílio e sou motorista.

A partir de então a vida do professor mudou radicalmente. Entrou para a Carbonária e passou portanto a ter um enorme grupo. Não havia horas que chegassem para os seus afazeres. Mal acabava as aulas corria para o Café Gelo e ali mergulhava em cheio nas conversas dos revolucionários. Ficava ao rubro com todos os projectos que lhe apresentavam. Nunca fora homem violento mas agora estava disposto a pegar em armas e lutar pela justiça. Ansiava até fazê-lo.

No dia em que lhe pediram ajuda para ir buscar um carregamento de armas, exultou. A operação era arriscadíssima porque julgavam ter havido fuga de informação.

— Receamos que a polícia esteja avisada — dissera Joaquim Abílio. — Por isso as armas não podem ficar onde estão. Temos que ir buscá-las e distribuí-las por vários sítios. Contamos contigo?

— Claro.

— Então fica combinado para logo à noite. Mas eu não posso ir porque tenho que levar os patrões ao teatro. Vais com o Vigia.

— E onde é que me encontro com ele? E como é que o reconheço?

— Procura-o pelas nove horas na Rua do Arco Bandeira, em frente ao Animatógrafo (1). O Vigia espera-te e há-de ter um cigarro ao canto da boca. Mesmo assim só se dará a conhecer se lhe disseres a primeira parte das frases que escolhemos para a senha desta operação.

— E como é?

Joaquim Abílio olhou em volta antes de responder. Depois reduziu a voz a um sussurro:

— Tu perguntas assim: «A esta hora ainda há navio para atravessar o rio?» E ele responde-te: «Saiu um do cais, não sei se ainda há mais.» Nessa altura ficas a saber que é o tipo certo e avançam.

— Para onde?

— Ele to dirá.

José Caliça passou a tarde na maior excitação. Impossível pensar noutra coisa! Como ignorava se a organização previra uma maneira de camuflar os revólveres, decidiu precaver-se. Passou pelo mercado, comprou uma cesta e recolheu folhas de jornal que tinham sido usadas pelas peixeiras.

A noite estava escura e gelada. Quando se aproximou do local viu brilhar o morrão de cigarro, acelerou o passo

 

(1) Esta rua ainda existe na Baixa de Lisboa. O Animatógrafo foi um dos primeiros cinemas da capital. Nesta altura exibia filmes mudos.

 

e foi-se aproximando a assobiar baixinho porque afinal de contas cigarro ao canto da boca qualquer um pode ter. Antes de atirar a pergunta observou-o de soslaio. O homem vestia roupas escuras e tinha um chapéu na cabeça posto de maneira a encobrir os olhos. Encostado à parede e com uma perna encolhida, transmitia mesmo sem querer uma certa impressão de mistério.

Com a atrapalhação enganou-se na senha.

— Por favor sabe dizer-me se ainda há barco para atravessar o Tejo?

O outro reagiu com um ligeiro sorriso de troça. Atirou a beata para o chão, deu um jeito ao chapéu e, certificando-se de que estavam sós, respondeu:

— Quer o amigo dizer «se a esta hora ainda há navio para atravessar o rio».

Ele ficou envergonhadíssimo.

— Claro, pois... era isso mesmo... são sinónimos, compreende...

— Compreendo, sim — respondeu o outro sempre num certo tom de galhofa. — Novato e professor, não é? Pois bem, sempre lhe digo que «saiu um do cais e não sei se ainda há mais...». Vamos?

— Sim. Para onde?

— Basta seguir-me. Não faça perguntas. Entraram num prédio idêntico a todos os daquela rua.

Depois de atravessarem uma porta escura, subiram até ao primeiro andar e só então riscaram um fósforo. Perfilaram-se diante de uma porta onde o Vigia deu três pancadinhas discretas. Ouviram um rumor de passos, repetiram a senha através da frincha e a porta abriu-se como por encanto. Lá dentro esperava-os um grandalhão de braços peludos que os encandeou com a luz forte de uma lanterna. Sem mais palavras conduziu-os pelo corredor fora até a uma sala forrada a papel cheio de verrugas e manchas de humidade. Um relógio antigo e desgovernado bateu onze horas quando eram só nove. Aquilo provocou-lhes grande desconforto. Era como se o tempo lhes dissesse para se despacharem.

— Têm onde levar as armas? — perguntou o matulão.

— Julguei que vocês entregavam tudo preparado — respondeu o Vigia.

— Ninguém me falou nisso.

— Não vale a pena discutirem — atalhou o professor. — Eu trago aqui um bom «meio de transporte».

Estendeu-lhe o cesto e embrulharam as armas naqueles jornais fedorentos.

Já na rua tomaram o caminho da Sé. Depois enveredaram pelas vielas estreitinhas que conduzem ao Castelo de São Jorge. Evitavam falar entre si mas pensavam ambos a mesma coisa.

— Neste bairro não deve haver problema.

Ao virar de uma esquina, porém, foi o grande susto. Dois polícias que tinham acabado de fazer uma rusga numa taberna obrigaram-nos a parar.

— Alto aí!

Detiveram-se e José Caliça teve a grande oportunidade de mostrar até que ponto era corajoso e rápido em situações de perigo. Sorriu aos agentes com o maior à-vontade e foi ele a interpelá-los:

— Querem revistar-nos, não é verdade?

O inesperado da pergunta deixou-os perplexos. E mais perplexos ficaram quando ele arrancou o cesto ao companheiro e o elevou até ao nível dos narizes.

— Levamos aqui peixe fresco para uma patuscada. Revistem à vontade. É carapau do melhor. Uma categoria!

Os polícias afastaram o cesto, enjoados com o fedor.

— Só nos faltava agora revistar cestos de carapau. Ponham-se a andar ou vão presos.

— Então muito boa noite — disse ainda o professor Caliça, fingindo-se vagamente embriagado. — Boa noite!

A história fez o maior sucesso na Carbonária. Passaram a considerá-lo um herói e tratavam-no como tal.

De início José Caliça recebeu elogios com modéstia. Mas a pouco e pouco enfiou-se na pele de um verdadeiro líder revolucionário e já falava nas reuniões com tanto entusiasmo que os outros se calavam para o ouvir. Habituaram-se a pedir-lhe ajuda para as missões mais complicadas e ele aceitava sempre. O perigo excitava-o. Sentia-se mais feliz do que nunca. Para trás ficavam anos de solidão, isolamento, vazio. O destino afinal reservara-lhe uma vida cheia, emocionante. Inventar estratagemas para fazer circular materiais proibidos tornou-se quase rotina. E quis aprender a fabricar bombas, dispondo-se a escondê-las em casa o tempo que fosse preciso.

— Fiquem descansados que comigo não há problema — lembrava. — Vivo num quarto onde não entra mais ninguém. Como não tenho família não há mulheres a bisbilhotar. Sou livre!

Quem sofreu imenso com aquela viragem foi a menina Alzira. Quase não o via porque ele ou não jantava em casa ou comia a correr e saía logo depois para voltar a altas horas.

E ela incapaz de conciliar o sono, à espera de lhe ouvir os passos. Convenceu-se de que arranjara namoro e fartava-se de chorar com ciúmes. O pior é que nem sequer tinha com quem desabafar! Para aliviar a tensão concebeu o plano de ir vasculhar o quarto em busca de cartas ou fotografias da namorada. Ao menos ficava a saber quem era a rival. Mas como pôr o plano em prática? O professor andava sempre com a chave da porta que dava para a escada e não havia hipótese de lha roubar. Quanto à porta de comunicação entre o quarto e a sala de costura, estava presa com um cadeado ferrugento. Decidiu rebentá-lo e substituí-lo por outro igual sem ninguém saber. Executou o plano aproveitando a ausência da cunhada e do irmão, que tinham ido à missa. Recusara-se a acompanhá-los encenando um ataque de asma. E por pouco não teve mesmo, de tal forma se sentia nervosa quando entrou no aposento. De coração aos pulos dentro do peito, remexeu nas roupas, nos papéis, nas gavetas. E de súbito estacou. No fundo do armário, por baixo de uns cobertores, encontrou pólvora! Pólvora, rastilhos e algumas bombas já prontas. Havia também jornais revolucionários e panfletos com frases contra o rei, a rainha, os príncipes.

Uma onda de sangue toldou-lhe a vista.

— Afinal não é outra mulher! — repetiu várias vezes entre espasmos respiratórios que quase a sufocavam. — Não anda ocupado com outra, anda ocupado com a revolução. Então ainda há esperança para mim!!

Repôs tudo no mesmo lugar, tapou as armas e bombas, ajeitando os cobertores de forma carinhosa.

— Fiquem aí quietinhas que o dono já volta — disse em voz baixa, ao mesmo tempo que ria tal qual uma criança tonta. — Aqui no fundo do armário estão muito bem escondidas. Ninguém vos descobre...

Voltou então à sala de costura cantarolando de felicidade.

 

Debruçada no parapeito, Carolina espiava a rua em ânsias porque Álvaro de Sousa prometera fazer-lhe uma visita mas nunca mais aparecia!

Do lado de lá do muro agitava-se outra cabecinha ansiosa: Ana.

Entre as plantas da varanda parecia um cata-vento, a olhar para a direita e para a esquerda sempre que uma figura masculina surgia lá ao fundo.

«É hoje que ele vai trazer notícias do Rufino», pensava. «Ou o próprio Rufino...»

Quando Álvaro apareceu finalmente, ficaram ambas pasmadas. O rapaz vinha numa correria louca, não lhes ligou nenhuma e precipitou-se a tocar à campainha em desvario. Não parou enquanto não abriram e depois quase atropelou o mordomo e entrou na sala sem ser anunciado.

Jorge e Isabel olharam-no estupefactos.

O assombro aumentou logo que abriu a boca. Em vez de dar uma explicação para aquele desatino, perguntou:

— O seu motorista? Onde está o seu motorista? Ofegava como um cão em plena caçada.

— Para que quer você saber do meu motorista?

— Escute... a...

As meninas assomaram à porta, acompanhadas de Miss Nelly. Tinham ouvido o diálogo e morriam de curiosidade. Que motivo podia ter o visitante para precisar desesperadamente do motorista?

— Peço-vos que saiam e me deixem a sós com o vosso pai.

Falara de tal forma que não era um pedido, era uma ordem. Obedeceram mas ficaram à escuta.

— Quer fazer o favor de explicar o que se passa? Isabel levantou-se e agarrou o braço do marido para o acalmar. Já percebera que havia problema e sério. Caso contrário o rapaz não se comportaria assim.

— Sente-se, Álvaro.

— Obrigado. Prefiro ficar de pé.

Limpou o suor que lhe escorria da testa e ia a dizer qualquer coisa quando se ouviu uma cavalgada na rua.

— É tarde — balbuciou. — É tarde de mais!

No minuto seguinte a casa estava cercada pela polícia. Patrões e empregados concentravam-se no átrio, de olhos arregalados, sem saber o que pensar. Faltavam apenas duas pessoas: Tomás, que tinha ido à caça, e o motorista que não aparecera.

— É nesta casa que trabalha um homem chamado Joaquim Abílio? — perguntou o chefe da polícia num tom solene.

— Sim — respondeu Jorge. — É o nosso motorista.

— Trago ordens para o levar preso. Se alguém tentar protegê-lo será considerado cúmplice.

Fez-se um silêncio de cortar à faca. Cúmplices de quê? Teria cometido algum crime? A ideia repugnava a toda a gente. Parecia-lhes impossível que aquele homem, embora reservado e frio, pudesse ser um criminoso.

— Pode saber-se por que motivo querem prendê-lo?

— Conspiração contra o rei — respondeu o chefe num tom mais solene ainda. — Pertence à Carbonária

e fabrica bombas.

Um coro feminino e apavorado repetiu:

— Bombas??

Como o polícia confirmou, desataram numa gritaria, a ajudante da cozinha desmaiou e Jorge, furioso, mandou-as embora dali.

Depois foi tudo muito rápido. Joaquim Abílio estava escondido no quarto e recusou-se a abrir a porta. Rebentaram-na e levaram-no arrastado. De caminho insultou os colegas, os patrões, os polícias e sobretudo a família real, terminando com uma última ameaça:

— Esses pulhas vão ter o fim que merecem! Quando menos esperarem rebenta-lhes uma bomba em cima! Ou apanham um tiro... o fim está próximo...

O mal-estar geral agravou-se quando os dois agentes que ficaram para trás a revistar o quarto apareceram exibindo várias pistolas sem munições, um saco de pólvora e alguns rastilhos.

— Era com isto que ele fabricava as bombas.

— E tinha alguma pronta?

— Não. Se chegou a fazê-las, despachou-as.

O outro agente tossiu como quem pede a palavra e prestaram-lhe atenção.

— Gostaríamos de interrogar o resto do pessoal. Precisamos de saber se há mais conspiradores nesta casa.

— Não há — declarou Jorge em voz firme. — Por todos os outros ponho as mãos no fogo. Trabalham para mim há muitos anos.

— Então como é que explica que as criadas não tenham denunciado a existência das armas?

— Muito simples — disse Isabel. — Este sujeito tinha muito mau feitio e não se relacionava com ninguém. Opunha-se até a que lhe limpassem o quarto, preferindo ser ele próprio a tratar disso. Consentimos porque não nos pareceu importante. Nunca pensámos que tivesse estas actividades.

— Mesmo assim sou obrigado a insistir. Tenho que interrogar toda a gente e revistar tudo de alto a baixo.

Como os donos da casa ficaram consternados, Álvaro de Sousa avançou, fazendo valer os seus galões de oficial de Marinha.

— Não vale a pena. Aqui não há mais conspiradores. Podem ir embora que eu responsabilizo-me.

A farda impunha respeito. Após uma breve hesitação, o chefe deu ordem de retirada.

Jorge ficou gratíssimo e pela primeira vez mostrou-se cordial com o rapaz. Enfiou-lhe o braço e arrastou-o para o salão. A família seguiu-os, curiosa.

— Desde manhãzinha que a polícia não faz outra coisa senão prender gente — explicou Álvaro. — Houve uma denúncia e conseguiram saber o nome de muitos carbonários. O seu motorista pertencia ao grupo.

Quando me disseram, quis avisar para que não fossem colhidos de surpresa mas cheguei tarde.

— Ainda me custa a crer que na minha própria casa se fabricassem bombas!

— Bombas para matar o rei...

A frase gerou algum embaraço, porque todos sabiam quais as ideias de Álvaro. Ele apressou-se a desfazer o equívoco.

— Não olhem assim para mim — disse entre sério e risonho. — Eu sou a favor da República, mas não quero matar o rei. Nem o rei, nem ninguém. Esta ideia de resolver as coisas a tiro e à bomba não é dos republicanos, é dos carbonários. Eles são fanáticos e julgam que basta saírem à rua e matarem umas quantas pessoas para mudarem o mundo.

— São loucos.

— Desvairados. Atiram-se de cabeça e não olham a meios para atingir fins. Estão dispostos a arriscar a própria vida se preciso for.

Aquela afirmação pareceu tão extraordinária às meninas que ficaram mudas. Achavam incrível que alguém se arriscasse a ser preso ou a perder a vida para modificar o mundo que estava tão bem assim. Elas, pelo menos, não tinham razão de queixa.

Felizmente chegou a Ana e puderam dar outro rumo à conversa. Contaram-lhe e recontaram a cena várias vezes, o que a fez cair das nuvens.

— Eu bem desconfiei! Aquele olhar esquisito provocava arrepios.

Os comentários repetiram-se toda a tarde sempre à volta do caso. Tinha sido uma experiência marcante. Só depois do almoço, quando Álvaro se preparava para se ir embora, é que Ana teve oportunidade de o encontrar a sós com Carolina e perguntou:

— Então? Soube notícias do Rufino?

— Soube, sim, Ana. E tenho a impressão de que deves esquecê-lo.

— Porquê? Tem outra namorada?

— Não. Mas julgo que não está interessado em romances, só pensa em negócios. Anda obcecado.

— Obcecado com biscoitos? — perguntou despeitada.

— Biscoitos e não só. Ele agora também negoceia em armas. Chegaram umas metralhadoras muito modernas, que quer comerciar e não pensa noutra coisa.

Ao ouvir aquilo, Ana ficou lívida.

— Metralhadoras? Muito modernas? Tem a certeza?

— Absoluta. Parece que se trata de um modelo experimental que ninguém conhece.

O sangue fugira-lhe da cara até os lábios estavam brancos.

— Tenho que me ir embora. Tenho que me ir embora já.

Saiu espavorida, deixando os amigos contristados.

— Coitada! Ficou chocadíssima!

— Nunca imaginei que gostasse tanto dele. Estavam sozinhos na sala do piano e resolveram aproveitar aqueles momentos preciosos. Carolina baixou-se, fingindo apanhar um lenço. Álvaro inclinou-se também, muito solícito, e deu-lhe um beijo rápido. O pior foi que ela sem querer apoiou-se nas teclas, fazendo soar um acorde musical tão inesperado que toda a gente acorreu a ver a que se devia. As bochechas tingidas de vermelho não deixavam lugar a dúvidas sobre o que se tinha passado ali. O pai percebeu perfeitamente, mas optou por disfarçar. Estava grato ao rapaz e apreciara a atitude firme, masculina, com que soubera impor-se à polícia. Talvez fosse altura de dar ouvidos à mulher que não se cansava de lhe dizer: «Tens que aceitar ideias diferentes das tuas, Jorge. Os tempos são outros e muita coisa pode mudar...»

 

João e Orlando viram entrar uma Ana completamente transfigurada. Branca, com os olhos a saltarem-lhe das órbitas e o cabelo em desalinho, parecia uma alma do outro mundo.

— Descobri o Toupeira — atirou de chofre. — É o Rufino de Sá.

Depois pôs-se a chorar.

Orlando ainda julgou que se tratasse de fantasia pois as investigações não tinham avançado grande coisa e nos últimos dias estavam até suspensas porque apanhara uma gripe fortíssima e caíra à cama com febre, dores de cabeça, dores no corpo todo. Ora, se o Toupeira conseguira até então iludir tantos cientistas, como é que ela podia ter resolvido o assunto sozinha?

O mesmo pensava o João, também diminuído e rabugento porque, embora sem febre, sentia-se mole e adoentado.

— Não digas disparates — disse um.

— Acalma-te — disse o outro. — Isso é a tua imaginação a trabalhar.

— Não é, não — respondeu limpando as lágrimas à manga. — Eu sei, tenho a certeza. — Um novo soluço e continuou: — Nem posso pensar que andei toda entusiasmada com um tipo horroroso que se for preciso mata pessoas inocentes para poder vender mais armas!

Estava tão convicta e tão sentida que começaram a encarar seriamente a hipótese de ser verdade. Orlando levantou-se da cama, pôs-lhe as mãos nos ombros e pediu:

— Explica-te melhor, por favor.

Não foi difícil. Bastou-lhe repetir o que ouvira da boca de Álvaro para deixar os companheiros num frenesi.

— Depressa! Não há tempo a perder! Vai-te vestir, João. E tu prepara-te, Ana, se queres vir connosco.

Empurrou-os para fora do quarto, enfiou a roupa enquanto o diabo esfrega um olho e antes de sair meteu no bolso um revólver e uma bisnaga amarela.

— A carruagem! Quero a carruagem!

Os criados estranharam aquele desatino mas não fizeram perguntas.

— Atrelem os cavalos que eu próprio conduzo — berrava Orlando fora de si. — Depressa.

Escarlate e com os olhos deitando chispas devido à febre e à ansiedade, parecia louco. Ana e João também não fizeram perguntas, o que foi pena, pois uma pessoa doente não raciocina com clareza.

Já iam a meio do caminho quando ousaram falar e mesmo assim a medo:

— Para onde é que vamos?

— Para a fábrica de biscoitos RU — disse Orlando, fazendo estalar o chicote pela milionésima vez. — Depressa!

— E sabe onde é?

— Claro que sei. Vocês julgam que eu tenho andado a dormir, ou quê? Investiguei a vida dos suspeitos que vocês conhecem e de outros que não chegaram a conhecer. Estive nessa maldita fábrica duas vezes, mas o tipo é danado. Ou tem as armas noutro sítio ou conseguiu uma camuflagem perfeita que me enganou.

Dito isto, afrouxou ainda mais as rédeas para os cavalos poderem galopar à vontade. As ruas estavam quase desertas mas nem lhes ocorreu que houvesse um motivo. O que queriam era chegar à fábrica e deitar a unha ao traficante embora não soubessem muito bem como. Tinha sido tudo tão súbito que não havia plano de ataque. Pelo menos um plano concreto. Imaginavam-se a entrar de roldão direitos ao escritório e depois pronto. Apontavam-lhe o revólver e ele rendia-se. Orlando nunca procederia assim, mas a febre baralhava-lhe as ideias.

Rufino viu-os aproximarem-se através da janela do escritório. Sabia muito bem quem eram porque também ele fizera as suas investigações. Depressa descobrira a verdadeira face do cientista atrás das barbas postiças e dos outros disfarces. Mantivera aquela gente sob controlo e quando o velho tentou bisbilhotar na fábrica, não o impediu pois conseguira uma camuflagem perfeita. As armas estavam a ser montadas na cave e só ali trabalhavam dois empregados pagos a peso de ouro. Mais ninguém conhecia o acesso ou sequer a existência das caves.

Convencera-se pois de que se vira livre dos perseguidores sem grande maçada. À cautela, porém, andava sempre armado.

Naquela tarde, quando os viu aparecer tão desnorteados percebeu que se enganara. Mas não lhe convinha abatê-los diante dos operários. Decidiu então pôr-se ao fresco.

«Mais tarde trato-lhes da saúde», pensou já a correr pela escada abaixo. «Não perdem por esperar!»

Atirou-se para dentro do seu automóvel e arrancou acelerando a fundo.

— Orlando! Orlando! Olhe! O Toupeira vai a fugir!

— É ele? — perguntou ainda atarantado.

— É! — disse a Ana sustendo a raiva.

O chicote estalou no ar e lançaram-se numa perseguição curiosa: cavalos atrás de um automóvel!

Não se distanciaram muito porque nesse tempo os automóveis ainda não atingiam grandes velocidades. E não foram longe porque nem uns nem outros se tinham preocupado em olhar para o calendário e não sabiam portanto que viviam uma data fatídica: 1 de Fevereiro de 1908. Conduzindo cegamente, foram enfiar-se numa verdadeira multidão que avançava para o Terreiro do Paço. Rufino buzinou impaciente, mas como não abriram caminho, quis inverter a marcha. Não pôde fazê-lo porque vinha lá ainda mais gente.

— Raios! O que andará esta malta aqui a cheirar?

Imobilizado na rua, só lhe restava uma solução: abandonou a viatura e misturou-se, seguindo o movimento geral para o outro lado da grande praça à beira-Tejo.

Orlando entregou as rédeas à Ana e pediu-lhe:

— Segura os cavalos e espera por nós. Anda, João!

Acotovelando à direita e à esquerda, incentivavam-se um ao outro:

— Não podemos perdê-lo de vista!

— Corre!

A pressa era tanta que não se interrogaram sobre os motivos daquele ajuntamento nem prestaram atenção à carruagem preta que seguia um pouco adiante transportando o rei, a rainha e os príncipes. Só tinham olhos para o casaco castanho que perseguiam, e estavam cada vez mais perto, cada vez mais perto...

Orlando passou a bisnaga amarela ao João e ordenou:

— Assim que o apanharmos dá uma esguichadela com esta tinta e marca-o.

Bagas de suor toldavam-lhe a vista no momento em que finalmente agarrou o Toupeira. João ainda teve tempo de espremer a bisnaga, mas logo a seguir ouviram-se tiros e gerou-se a maior das confusões.

— Socorro!

— Acudam!

Mesmo na frente deles um homem de barba preta descarregava uma carabina em cima da família real. Do outro lado da rua saltou logo mais um a ajudar. Pendurou-se na traseira da carruagem e disparou com o cano encostado à nuca do rei Dom Carlos. Matou-o imediatamente. Ergueu-se o príncipe mais velho de pistola em punho e também foi abatido. A rainha, de pé, defendia-se das balas agitando um ramo de flores. O tiroteio continuava, agora cruzado, pois a Guarda reagiu alvejando os assassinos. Caíram vários corpos e a multidão pôs-se em debandada. Gritavam a uma só voz:

— Mataram o rei! Mataram o rei!

O grito ecoou pela cidade, encheu as ruas, entrou pelas casas.

Ninguém sabia o que ia acontecer a seguir, e o pânico espalhou-se como um rastilho de fogo ao vento. Famílias inteiras fecharam-se em casa e por todo o lado se ouviam os ruídos próprios de aferrolhar portas, janelas, cancelas e portões.

Colhidos de surpresa pelo espectáculo horrível a que acabavam de assistir, Orlando e João soltaram o Toupeira e ele aproveitou para desaparecer.

— E agora? E agora?

— Bisnagaste-o de amarelo?

— Sim.

— Então vamos para casa. Depressa!

Não foi fácil encontrarem a Ana, mas lá deram com ela apavorada num beco malcheiroso.

— Ainda bem que vieram — choramingou. — Mataram o rei...

— Nós vimos — disse o João já a acomodar-se no banco. — Foi pavoroso. O sangue a escorrer aos borbotões pela gola do casaco e o príncipe com a cara desfeita... um horror!

— Cala-te!

Já sem febre, nem dores, nem nada, Orlando conduziu os cavalos em direcção a casa e pelo caminho deu-lhes instruções:

— Vamos utilizar a máquina do tempo para encontrar o Toupeira. A tinta amarela solta umas radiações especiais que posso captar com os meus instrumentos.

— Então e os criados? Vão estranhar que a gente se meta no sótão que tem estado sempre fechado à chave.

— Pois é. Por isso assim que chegarmos a Ana vai despedi-los. Paga o dobro do ordenado para irem contentes e diz que resolvi sair de Lisboa com medo de que haja uma revolução.

— E nem me despeço das minhas amigas?

— Se quiserem vão lá dizer adeus e repitam a mesma desculpa. Têm cinco minutos.

Os cinco minutos transformaram-se em dez porque estavam ambos verdadeiramente desolados com a separação. As vizinhas, nervosíssimas, até choraram, mas pareceu-lhes natural que o avô quisesse pôr os netos a salvo.

— Voltem logo que isto serenar!

— Escrevam!

Eles prometeram tudo e mais alguma coisa. E decidiram que haviam de cumprir as promessas.

— O Orlando tem que nos trazer outra vez ao princípio do século XX!

— Claro — cochichavam. — Se esta máquina existe, por que não havemos de a aproveitar em férias? Em vez de nos deslocarmos para outro sítio, deslocamo-nos para outra época!

Subiram ao sótão mais leves pois a decisão atenuara-lhes o desgosto. Orlando nem se voltou. Ocupado com os botões e visores mandou-os sentar e disse apenas:

— Já o localizei. Partiu na máquina que me roubou e anda às voltas pelos corredores do tempo. Ainda não deve ter decidido em que momento lhe convém mais aterrar.

— Então e nós, fazemos o quê?

— Esperamos com calma, porque já vi que a tinta funciona mesmo. Ele não tem hipótese de voltar a esconder-se. Onde quer que esteja, encontro-o. Reparem aqui.

No visor flutuava uma espiral amarela muito brilhante a indicar o sítio exacto onde se encontrava o Toupeira.

— Como não sabe que está marcado, julga que nos despistou e isso facilita-nos a vida. Vamos aguardar.

No exterior continuavam os tiros e os gritos. As autoridades desdobravam-se em buscas pela casa de todos os indivíduos minimamente suspeitos.

José Caliça foi preso na escada do prédio e convenceu-se de que estava perdido. Logo que vasculhassem o quarto encontravam armas e prendiam-no. Deixou-se arrastar até lá acima, meteu a chave à porta e entrou resignado com o inevitável.

Os polícias viraram tudo do avesso. Gavetas, armários, malas e sacos. Nem o colchão escapou. Mas, para seu grande espanto, não encontraram o menor vestígio de armas, pólvora ou propaganda contra o rei.

Interrogaram-no e ele jurou a pés juntos que era um simples professor da província, que não conhecia ninguém em Lisboa e frequentava o Café Gelo como podia frequentar outro qualquer.

Os dois agentes acabaram por ir embora convencidos da sua inocência. Logo que saíram, aferrolhou-se por dentro e passou revista aos cobertores do armário. Mexeu e remexeu, intrigadíssimo. Que raio teria acontecido aos materiais?

Um rumor na porta que comunicava com a sala de costura fê-lo levantar a cabeça assustado. Não havia no entanto motivo para alarmes. Era Alzira. Vestida de escuro, muito bem penteada, muito bem perfumada, entrou com passinhos furtivos. Sorriu docemente e entregou-lhe um embrulho.

— Escondi as suas coisas aqui para ninguém as ver. O meu irmão e a minha cunhada não sabem. Estão fechados no único quarto que não tem janela, com medo das balas perdidas.

José Caliça queria agradecer e as palavras não lhe ocorriam. Fitava-a olhos nos olhos a transbordar gratidão. Graças àquela rapariga escapara de vários anos na cadeia. Ou de uma viagem para terras longínquas donde provavelmente não haveria regresso.

— Você salvou-me — articulou por fim.

— Fico muito feliz.

A expressão dizia isso e muito mais. Enterneceu-se com aquele amor silencioso. Afinal achou-a bonita. Marimbou-se na asma e deu-lhe um beijo.

— Tenho sido um idiota...

— O Toupeira é um idiota! — disse Orlando.

— Porquê?

— Porque voltou ao mesmo sítio. Olhem ali. Está a caminho da fábrica.

— Vamos atrás dele?

— Claro. E preparem-se porque desta vez tenciono ser violento.

Orlando não mentira. Ultrapassou-o rapidamente e foi esperá-lo no escritório deserto, pois o tiroteio afugentara o pessoal.

Logo que ele assomou à porta, deu um tiro para o ar e aproveitou-se da surpresa para lhe dar também um murro na cara.

Rufino de Sá, ou melhor, o Toupeira, cambaleou e caiu desamparado no chão. Amarraram-no de imediato, mas antes de se irem embora Orlando acendeu um isqueiro com uma expressão feroz que não lhe conheciam.

— Vou pegar fogo à fábrica. E só tenho pena de não poder fazer o mesmo aos esconderijos de todos os toupeiras deste mundo!

Quando se afastaram dali as chamas alastravam pelo edifício com imenso fragor.

Só dois anos depois daquela viagem superemo-cionante é que Orlando obteve autorização para os levar de novo ao princípio do século XX, agora em férias.

— Vocês merecem esta recompensa, porque me ajudaram imenso na altura. Mas não podemos voltar exactamente à mesma data.

— Porquê?

— Porque estamos dois anos mais velhos. Separámo-nos daquela gente no dia 1 de Fevereiro de 1908. Portanto vamos aparecer-lhes em 1910 e como não me apetece ir para o meio de confusões, prefiro deixar passar a revolução republicana de 5 de Outubro. Escolhi a época de Natal. Concordam?

— Sim. Mas ouça lá, eles não vão estranhar uma ausência tão longa?

— Hum... não. Naquele tempo era frequente as pessoas instalarem-se no estrangeiro por longos períodos. Oficialmente estivemos... na Suíça. Serve?

Por que não? Partiram radiantes com a perspectiva de tornarem a ver amigos queridos. E eles receberam-nos de braços abertos. Mas havia grandes mudanças lá por casa.

Tatão estava casada e já tinha um bebé amoroso, rosadinho.

— Igual à mãe — diziam uns.

— À mãe? Que ideia! Às tias!

— Ou melhor, à avó. É a cara chapada da avó. Carolina fora obrigada a esperar. O pai hesitara em aceitar ou não um genro republicano. Apreciava o rapaz, fechava os olhos às visitas frequentes, mas quanto a noivado, preferia ir adiando. Só quando a revolução saiu vitoriosa e a família real foi obrigada a fugir do país se rendeu à evidência. Os tempos eram outros e as coisas tinham mudado, como lhe garantira Isabel.

Assim, na madrugada do dia 5 de Outubro, enquanto a maioria das mulheres tremia de susto por causa do tiroteio e das explosões, Carolina pôs-se à janela sem medo nenhum. Aqueles estampidos pareciam-lhe girândolas de foguetes anunciando a sua festa de casamento.

— Não passa de hoje! Não passa de hoje! — gritava a plenos pulmões sempre que um estrondo de canhão lhe abafava a voz.

Não passou. Nessa mesma manhã Álvaro de Sousa acompanhou os chefes que proclamaram a República na varanda da Câmara Municipal. E à noite fez-se acompanhar pelos pais e apresentou-se em casa dos futuros sogros com um lindo anel de noivado.

Sentindo-se heroína de romance, Carolina confidenciou a Miss Nelly:

— Fiquei noiva no dia em que se implantou a República. O meu destino entrelaça-se com o destino do país.

Para o espírito prático da inglesa, aquilo era um perfeito disparate. Mas vendo-a tão contente, não a desiludiu. Quanto a Sofia, continuava a namorar Tomás sem grande urgência de casar porque tinha outra paixão secreta, à qual se entregava com entusiasmo: escrever.

Começara por fazer um diário pessoal, mas a pouco e pouco distanciou-se de si própria e quis contar o que se passava à sua volta. Muitos anos de leitura somados ao talento natural deram origem a belos pedaços de prosa. O namoro com o primo também ajudou, porque ele era mais velho, experiente, vivido, e não se limitava a dizer-lhe baboseiras. Gostava imenso de conversar com ela, de lhe espicaçar a inteligência. Habituaram-se a discutir assuntos muito diversos, o que a enriqueceu.

Um dia experimentou fazer uma crónica e enviou-a pelo correio a um jornal. Assinou com nome de homem, e dois dias depois ia morrendo de satisfação quando viu o trabalho publicado! Depois continuou, sempre às escondidas. Tomás não desconfiava de nada, mas às vezes trazia-lhe recortes:

— Lê isto que é engraçado. Parece que este jornalista ouviu a nossa conversa da semana passada.

Ela nunca se desmanchou e fazia imenso espanto:

— Que coincidência!

Só quando chegou a Ana não resistiu mais. Uma noite contou-lhe a verdade, mas obrigou-a a jurar que não dizia nada a ninguém.

— Por favor, Ana! Sabes que parece mal uma mulher escrever para jornais. O meu pai ficava fulo e o Tomás também. Não quero discussões.

Ana sorriu-lhe de uma forma algo enigmática, mas prometeu.

— Podes ficar descansada. Eu também odeio discussões. E estou aqui para me divertir.

Divertiram-se imenso. Foi um mês inesquecível.

 

                                                                  Ana Maria Magalhães & Isabel Alçada

 

 

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