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MATARAM O SIDONIO / Francisco Moita Flores
MATARAM O SIDONIO / Francisco Moita Flores

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

“A Vida fê-lo herói, e a Morte O sagrou Rei!”
Um romance que vem da história.
Uma história única para um romance inquietante e arrebatador.

«A Polícia confundira todos aqueles que odiavam Sidónio e a sua política cesarista com assassinos em potência. A Maçonaria queria vê-lo destituído, a Carbonária talvez o quisesse desfeito em migalhas, os católicos queriam mais do que o espavento das missas em que o Presidente participava, os integralistas exigiam uma política de ruptura, os democratas odiavam-no e por aí fora. E neste quadro de ódios, os resultados a que chegara apontavam para um miúdo de 22 anos, fascinado pelo turbilhão das sucessivas rebeliões sindicais, vaidoso da arma que mostrara a Ana Rosa, que, num momento fortuito da sua vida, conseguira estar próximo do objecto de todos os ódios e disparar fortuitamente. E Asdrúbal vivia com essa angústia dilacerante. Nem a arma fora recuperada, nem o rapaz, abatido como um cão, poderia ser interrogado.»
O assassínio do Presidente da República Sidónio Pais, ocorrido em 1918, é um mistério. Apesar de a polícia ter prendido um suspeito, este nunca foi julgado. A tragédia ocorreu quando Lisboa estava a braços com a pneumónica, a mais mortífera epidemia que atravessou o séc. XX e, ainda, na ressaca da Primeira Guerra Mundial. A cidade estava exaurida de fome e sofrimento. É neste ambiente magoado e receoso que Sidónio Pais é assassinado na estação do Rossio em Dezembro de 1918.
Francisco Moita Flores constrói um romance de amor e morte. Fundamentado em documentos da época, reconstrói o homicídio do Presidente-Rei, utilizando as técnicas forenses que, de certa forma, continuam a ser reproduzidas em séries televisivas de grande divulgação sobre as virtualidades da polícia científica. Os resultados são inesperados e Mataram o Sidónio! é um verdadeiro confronto com esse tempo e as verdades históricas que ao longo de décadas foram divulgadas, onde o leitor percorre os medos e as esperanças mais fascinantes dessa Lisboa republicana que despertava para a cidade que hoje vivemos. E sendo polémico, é terno, protagonizado por personagens que poucos escritores sabem criar. Considerado um dos mestres da técnica de diálogo. Moita Flores provoca no leitor as mais desencontradas emoções que vão da gargalhada hilariante ao intenso sofrimento. Um romance que vem da História. Uma história única para um belo romance.

 

 

 

 

Ana Rosa tinha vinte e quatro anos, o cabelo negro e lábios carnudos, sensuais. E estava a morrer. Os olhos também eram negros, agora ainda mais negros, pois cintilavam de febre no centro das negras olheiras fundas, e largas, que lhe marcavam o rosto de cetim. Os ataques de tosse, que terminavam invariavelmente em espasmos de asfixia, também eram negros. Carregavam os primeiros sinais de um luto precoce, que de negro já vestia. O seu homem, soldadinho do Corpo Expedicionário Português, tombara na Flandres ao serviço da Pátria. Dizia-se. Ela apenas sabia que, dois anos depois do casamento, regressara à casa paterna, sozinha e de luto.

O médico Asdrúbal d'Aguiar fechou a maleta e fechou-se num gesto ambíguo. Disse à mãe de Ana Rosa:

- Pouco mais há a fazer.

- Vai morrer? - havia tanto medo na pergunta que respondeu ainda mais ambíguo:

- O futuro a Deus pertence. Ele decidirá - depois, com um sentido mais clínico, rematou a conversa: - A «espanhola» quer levar-nos todos para o cemitério, Alice.

- Eu sei! - gemeu a mulher. - Oh, se não sei! Já me levou o marido e os sogros. - De repente, insurgiu-se, irada: - mas também lhe digo, senhor doutor! Não existe Deus se a minha Ana Rosa se for. É o Diabo quem comanda as nossas vidas e as nossas mortes. Não existirá Deus?

Encolheu os ombros.

- Sobre quem manda, não sei. Sou médico, ainda por cima médico legista. Pouco conheço sobre as matérias divinas. - E, mudando o tom da conversa, rematou: - Vá, vai fazer o que te mandei. Pode ser que ajude a salvar a tua filha. Eu vou cear. Se precisares de mim, é só bateres à porta.

- Não sei como lhe pagar tanta ajuda. Tenho uns ovinhos que...

- Guarda os ovos, Alice, e trata da Ana Rosa. Com a tua força e a que dela resta talvez consigam vencer o Diabo. Boas melhoras.

E saiu. Estava esfomeado. Desde que a pneumónica invadira Lisboa, não houvera uma noite para cear com a família. Quando chegava do Instituto de Medicina Legal, onde era chefe do Serviço de Clínica Legal, tinha à sua espera uma folha com os nomes dos vizinhos e amigos que lhe pediam ajuda. Ao princípio, ainda reagira, contrariado.

- Porque não dizes a esta gente que sou médico de mortos? Faço autópsias, exames anatomopatológicos, sou perito em exames sobre ferimentos, equimoses, hematomas. Sei mais de punhais e de pistolas do que sobre gripe ou tosse convulsa.

Glória beijava-o com ternura e argumentava, disparando as palavras certeiras ao coração do marido.

- Asdrúbal, és demasiado bom homem para te refugiares nessa conversa. Podes saber pouco dessas doenças, mas sabes o que está a acontecer. É terrível! Ainda hoje morreram mais duas pessoas da nossa rua. Um velhote que trabalha numa quinta para os lados do Campo Grande e o senhor Marcelino, da carvoaria de Santa Marta.

- O Marcelino morreu? Mas ainda não há uma semana que estive com ele!

- Uns homens da Misericórdia levaram-no na padiola, embrulhado num lençol. Lá foi a caminho da vala comum do Alto de São João.

- Coitado do Marcelino! Era um bom amigo.

Deve dizer-se que Asdrúbal d'Aguiar organizara a vida, os afectos, o trabalho, em categorias simples mas eficientes. Não reconhecia, fosse quem fosse, por ser poderoso ou de condição humilde. Bastava-lhe saber se era boa pessoa, bondosa e afável, ou se estava perante um exemplo da soberba ou de qualquer outro dos pecados capitais. Portanto, o Marcelino era um bom amigo por ter sido uma boa pessoa. O mestre que ensinava a Asdrúbal, no entardecer da Rua do Telhal, as regras do futebol, um estranho jogo em que os atletas disputavam uma bola com os pés, e que apaixonava os lisboetas, que corriam aos campos de Benfica para assistir aos jogos do Sport Lisboa, ou aos campos do visconde de Alvalade, onde jogava o Campo Grande Sporting Clube e que recentemente passara a denominar-se Sporting Clube de Portugal.

- Esta maldita gripe há-de dar cabo de nós todos - gemeu Glória e, preocupada, perguntou: - Sentes-te bem, não é verdade? Fico com tanto medo que adoeças naquele Instituto. Ainda por cima com a sobrecarga de trabalho que te puseram em cima dos ombros.

A mulher referia-se ao cargo de director interino que, há cerca de dois meses, lhe fora confiado pelo professor Azevedo Neves, que, entretanto, aceitara a pasta do Comércio na última remodelação governamental levada a efeito por Sidónio Pais. Até ao regresso para o cargo que lhe pertencia, Asdrúbal d'Aguiar acumulava as funções de chefe de serviço com as de direcção do novel Instituto de Medicina Legal de Lisboa. Sorriu e beijou-a.

- A influenza não quer saber de cadáveres. Anda sempre à procura dos vivos. Dá- -me então o papel com a lista dos doentes. E uma maçã, que estou cheio de fome.

Pegava na maleta e partia para visitas pela vizinhança, descobrindo doentes e moribundos. Calcorreava o Torel, a Calçada do Lavra e do Moinho de Vento, Santo António dos Capuchos, as hortas do Conde de Redondo até regressar cansado e mortificado por travar um combate tão desigual. A influenza fustigava impiedosamente a cidade desde os inícios de Outubro, lançando o medo e a morte por toda a parte. Por cada dia que passava, surgiam mais xailes negros pelas ruas, homens de cenhos carregados de tragédias, e Lisboa, ainda sobre a pressão dos efeitos traumáticos da Grande Guerra, esvaída de fome, gania prantos e mortos breves, tão apressados que dir- -se-ia que Deus apenas lhes dera vida para que a morte os levasse. Os cemitérios não davam vazão à enchente. No Alto de São João, entravam cadáveres às dezenas. E nos Prazeres. E na Ajuda. E a peste ria-se de tanta amargura fétida. Brincava com a dor de tanta gente, começando por matar os coveiros. Contava-se que o encarregado geral do cemitério da Ajuda sepultou, sozinho, mais de cem corpos com as almas devoradas pela epidemia. Os seus subordinados deitados à terra, e os cadáveres cada vez mais pútridos, cada vez mais exangues, esqueletizados, mirrados, amontoavam-se, provocando o regresso da velha vala comum que os cemitérios municipais tinham jurado extinguir em nome da individualidade e da dignidade de todos os homens. A vala comum regressara ungida pelos demónios que Mouzinho da Silveira e Rodrigo da Fonseca Magalhães julgaram ter vencido setenta anos antes, quando libertaram os mortos das cercas eclesiais.

Asdrúbal d'Aguiar conhecia o poder corrosivo da peste. Saltara de um passado milenar, feito de muitas pestes, para interpelar o século que abrira euforicamente as portas ao som dos hinos que anunciavam a ciência e a resolução de todos os males do corpo, da alma e do mundo. Conhecia a maleita da bancada de autópsias por onde, durante aqueles quase três meses tinham passado dezenas de infelizes antes de irem a enterrar. Os tanatologistas, liderados por Geraldino Brites, não davam vazão à enchente e ele socorria-os, desafogando o tráfego de mortos que chegavam nas padiolas, nos carros de mulas e de bois, em automóveis, ou tão-só embrulhados em sacos de carvão. Gente sem nome, nem família, nem passado, vindos dos recantos negros de enxúndia e lixo, espalhado pela cidade, pelas ruas e pelos pátios, pelas «ilhas» e «vilas» operárias de Xabregas a Alcântara. Gente que respondia apenas pela alcunha, pois chegara antes da reforma republicana do registo civil e do direito ao nome. Raramente contando episódios de família, a alcunha registava histórias de vidas, vindas de muito longe, de galegos e trasmontanos, de minhotos e ribatejanos, almocreves e ganhões, pastores e camponeses, convertidos em serventes de pedreiro, construindo a Lisboa que despertava para as primeiras buzinas das fábricas da tardia era industrial.

O seu colega Geraldino Brites, chefe do Serviço de Tanatologia, autopsiou ou dirigiu as autópsias de indivíduos que apenas respondiam por o Coxo, o Galego, o José das Bestas, a Emília Cerzideira, o Fandanguista, a Velhaca, o Minhoto, o Pilonas e por aí fora. Sem outro nome. Sem idade. Sem paternidade. Por vezes, no livro de entrada dos cadáveres ainda surgia a terra onde se supunha que haviam nascido, pois existe um pedaço de terra íntima na alma de cada homem. E todos eles, andarilhos de muitos trilhos, malteses da riba Tejo, por não se saber a quem pertenciam nem se lhe conhecer a causa da morte, desembocavam na Morgue, ainda há pouco tempo transformada em Instituto de Medicina Legal. Em todos a peste revelava-se de forma semelhante: os pulmões estilhaçados por pneumonias que asfixiavam o tutano dos brônquios. Noutros parecia que tinham explodido, tal era a hemorragia interna que coalhava o tórax dos finados.

Para além desta anatomopatologia apocalíptica, feita de pus e morte, ainda que se soubesse que era um vírus da família da gripe normal, nenhum cientista, herdeiro dos instrumentos de Pasteur e do laborioso positivismo de Comte, conseguira ver na lamela de um microscópio a figura do estupor. Familiar da gripe de todas as invernias, era certo. Todavia, não se compreendia porque matava assim, assassino veloz, que não precisava de mais de três a quatro dias para asfixiar os mais descuidados. Alguns morriam num punhado de horas. Começavam as febres, a falta de ar, os tremores pelo corpo e suores de arrepiar, que ninguém sabia se eram de frio ou de calor, sendo certo que todos tremiam de medo e nem mezinhas antigas, nem os compostos vindos do pilão do farmacêutico, dos boticários, dos sábios que guardavam segredos seculares de chás, tisanas e outras ervas mágicas oriundas das montanhas de Sintra, salvavam da asfixia aqueles que a pneumónica tomava em garrote. Todos mortos. Novos e velhos. Curiosamente mais novos do que velhos. E os vivos sobreviviam entre o desgosto de lutos acumulados, pois havia famílias em que, de proles numerosas, restavam dois ou três e ninguém sabia se esta não era a peste anunciada para o fim dos tempos. E, por todos estes medos à solta, as bruxas da cidade, quase todas proclamadas herdeiras dos dons milagrosos de Sousa Martins, que se finara meia dúzia de anos antes para os lados de Alhandra, garantiam mezinhas retiradas do Livro de São Cipriano, benzeduras que espantavam o Maligno, pois que era esta a sua força. E que ninguém duvidasse! Que o luto era penitência pela remissão dos pecados republicanos. Como já se havia revelado meses antes, na Cova da Iria, para os lados de Ourém, quando Nossa Senhora apareceu a uns pastorinhos, fechando o céu e a terra numa trovoada tão medonha que era a própria evidência de Deus. A peste cruzava a fúria demoníaca com a cólera divina, como se as sete trompetas tivessem anunciado o fim da idade dos blasfemos e ímpios, e os pobres de Cristo finavam-se sem que houvesse dos senhores doutores resposta científica que explicasse tanta lágrima, tanto sofrimento, tanto último suspiro, tanta dor, tanta morte, tantos mortos. E ganhavam fama.

A Rosário do Fraldisqueiro abandonou a canastra que durante anos empinara na cabeça, vendendo sardinha linda, para se dedicar aos milagres. Rezava três padres- -nossos. Depois fazia, com azeite quente, o sinal-da-cruz na testa, no peito e na barriga do crente. Arrumava os trabalhos com mais um padre-nosso para depois recomendar ar fresco e, à noite, leite com aguardente com fartura, abafando até que o Sol nascesse. Não havendo leite, que se reforçasse com três sinais-da-cruz, sempre de costas para as encostas dos cemitérios, encarando o Tejo, que a água do rio é pura, tão pura que foi escolhida por João Baptista para baptizar os filhos de Deus. Ganhava dez vezes mais por cada dia de peste, sem precisar de calcorrear as ruas da Madragoa até à Lapa, canastra pesada de peixe, aturando clientes. Como ela, muitas feiticeiras, recrutadas aos tempos idos e velhos da história, ainda salvaram mais crédulos que a fúria da epidemia descuidara. Nunca se vira liberdade assim no Reino, ou na República, para bruxas e cartomantes, ciganas especialistas nas leituras da sina, santos que enganavam qualquer mau olhado, videntes que reclamavam as almas virtuosas, vindas do outro mundo para, com a sua bondade, afastarem a peste e curarem os clientes do negócio. Trabalhavam com desvelo sob o olhar de bonomia da República, mais indulgente do que a fúria dos tribunais heréticos de outrora.

Lisboa era um mar de doentes. Os hospitais atulhados, alargaram funções às escolas, conventos, armazéns, transformados em enfermarias de campanha, e multidões assustadas, doridas da tosse e das febres, saltavam das filas da maleita para as filas da sopa do Sidónio, multidões esfomeadas, extenuadas, zurzidas pelo racionamento que cortava no pão, no açúcar, no mais humilde dos confortos, transformando a cidade num imenso peito a arder em febre e medo. E a «espanhola» reinava. Orgulhosa e déspota. Escolhendo vítimas, decidindo quem deveria matar, quem deveria ser apenas submetido ao suplício com poupança da vida, que apenas deixaria em leito sofrido. Reinava, e com ela renasciam maldições e culpas. Não foram poucos os sacerdotes que não desperdiçaram tempo para morder as canelas da República infiel, que tão madrasta se revelara para a Santa Madre Igreja. Foram ainda mais os republicanos, sem condição, que consideravam Sidónio Pais culpado de todas as atrocidades. Desde os presos políticos ao racionamento, esse homem ruim que conspurcara a República Velha e inventara outra maneira de matar os famintos, depois de ter deixado morrer tantos heróis à míngua nos campos de La Lys. Um verdadeiro diabo laico que desprezava os sonhos dos seus irmãos que juraram construir a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. E nessa noite em que Ana Rosa estrebuchava, dividida entre morrer e viver. Nessa noite em que Asdrúbal d'Aguiar regressava a casa a altas horas, cansado de tanta mágoa, derreado de tanto andar, vencido pelo trabalho e pela incapacidade de curar, sonhando muito menos do que os heróicos sonhos republicanos, que clamavam vingança contra o ditador, e desejando apenas uma cama onde adormecesse, lobrigou a esposa a acenar freneticamente, mal surgiu à luz dos candeeiros de gás.

- Asdrúbal, vem depressa!

Estugou o passo, ansioso e desperto. A aflição de Glória prenunciava a tragédia.

- O que foi? - gritou de longe, enquanto corria para a mulher. Pensou que um dos filhos adoecera e o coração bateu forte. Só já mais perto perguntou outra vez: - O que foi?

- Trouxeram um recado do Instituto. Mataram o Presidente da República.

- O quê? - da aflição inicial passou para a surpresa. Devia ter percebido mal.

- O Presidente Sidónio.

- Morto? Mataram-no? Tens a certeza?

- É verdade. Mataram Sidónio Pais.

Com uma mão, a mulher limpava as lágrimas do rosto. Com a outra estendeu-lhe o papel assinado pelo seu director, agora governante, Azevedo Neves.

Sidónio estava morto. Cumprira-se o destino, ainda há pouco anunciado, quando se salvara por pouco de um atentado após uma homenagem aos marujos da nossa pobre Armada.

O médico legista entrou em casa. Pousou a maleta e deixou-se cair numa cadeira, pernas trémulas da surpresa e do cansaço. Tornou a ler a mensagem. Era curta e seca: «Preciso de si. Assassinaram o nosso Presidente da República. Estou no Instituto ou em São José. Azevedo Neves.» Como por milagre, o cansaço desapareceu. Mais do que a percepção política do que poderia acontecer, pensava no sofrimento do seu mestre e amigo que acabara de lhe enviar o bilhete. Azevedo Neves integrava, desde Outubro passado, o Governo de Sidónio Pais, saído do golpe militar de Dezembro do ano anterior. E por causa da violência com que a influenza se aproximara de Lisboa, sabendo da onda de devastação que percorria o país de norte para sul, acabara por aceitar um desafio maior. O Presidente conhecia a dimensão assassina da pandemia. Percorrera enfermarias e hospitais, dando ânimo aos doentes, confortando as famílias. Visitara conventos e escolas, transformadas em imensos lugares assistenciais, atulhados de doentes que as instituições de saúde já não conseguiam receber, e tudo apoiado no grande estardalhaço da política feita de espectáculo, do qual era o único protagonista. Pedira a Azevedo Neves e Ricardo Jorge que preparassem a rede hospitalar e assistencial de Lisboa para receber a doença. Embora se fizesse sentir desde Maio, um pouco por todo o lado, aumentara a agressividade a partir dos finais de Junho. Os primeiros mortos surgiram no Norte, entre Amarante e Vila Real. Avançara para Trás-os-Montes e em direcção ao Minho e começou a descer lentamente junto à raia. Em Julho matava desabridamente acima do sistema montanhoso da serra da Estrela. A partir de Agosto, enchia os cemitérios de Castelo Branco, de Portalegre, de Évora, e galopava, assassina, para o Sul, Alentejo fora até ao Algarve. Muitos municípios tiveram de recorrer à requisição civil para sepultar os seus mortos, sem tempo para covais, abrindo valas comuns a eito, sepultando rapidamente, não fosse a espanhola ressuscitar, e cercou Lisboa em finais de Setembro.

As primeiras vítimas chegaram aos cemitérios da cidade na última semana daquele mês. E a fileira não deixou de engrossar os números de dia para dia, chegando a cinquenta enterramentos diários no Alto de São João quando, nos dois meses seguintes, se apossou definitivamente da capital.

Azevedo Neves, ao lado do seu amigo Ricardo Jorge, então director-geral de Saúde, e de outros médicos, fazia parte do estado-maior do exército sanitário, incumbido das defesas de Lisboa contra a influenza, o mais mortal dos inimigos que alguma vez tinham invadido a cidade. Nem a peste negra matara assim, tão desprendida e cruel.

- Vou ter com o professor. Não esperes por mim - disse Asdrúbal, tornando a pôr o chapéu.

Glória correu a buscar o sobretudo e pediu-lhe:

- Come uma sopa. Está quente e deves ter fome.

- Não tenho tempo. Azevedo Neves deve estar desfeito.

- E tu adoeces se não te alimentares.

Envergou rapidamente o sobretudo e respondeu:

- Não. Estou bem. Fecha bem a porta e vê se descansas. Depois deste assassínio, Lisboa não vai ter uma noite calma, de certeza absoluta.

- Fico tão assustada por ti, Santo Deus. Beijou-a e afagou-lhe o rosto.

- Ninguém me faz mal. Até a «espanhola» tem medo de mim. Amo-te. Dá um beijo por mim aos nossos filhos.

- Amo-te. Tem cautela, por amor de Deus. - Asdrúbal ia sair, mas Glória parou-o. - Espera. - Tirou uma banana da fruteira e enfiou-lha pelo bolso do sobretudo. - Ao menos come enquanto vais a caminho.

Beijaram-se rapidamente e Asdrúbal d'Aguiar tornou a sair de casa.

Ainda não tinha quarenta anos. Era entroncado, de estatura média, e tinha um olhar negro. Cintilante. Não era preciso conhecê-lo de perto para se lhe descobrir, de imediato, a timidez que, por sua vez, escondia uma energia sem limite. Ingressara na Morgue de Lisboa a convite do director da altura, o professor Silva Amado. Quando as morgues foram criadas, em 1899, Silva Amado fora indicado pela Escola Médico-Cirúrgica para implementar a organização dos serviços de perícia médico-Iegal. Mas o velho e enorme professor, nos gestos semelhante a um açougueiro, no trato pensar-se-ia estarmos perante um diplomata, era pouco dado a tarefas organizativas e vivia na nauseabunda sala de autópsias como um peixe na água. A anatomopatologia era a sua paixão, o amor único da sua vida, e qualquer cadáver fresco ou podre era um encantamento. Foi ao seu lado que Asdrúbal d'Aguiar deu os primeiros passos na descoberta dos inextricáveis caminhos da morte. Ou como Silva Amado muitas vezes repetia:

- Nestas entranhas descobrimos os caminhos da vida. A morte pouco importa. Um verdadeiro cientista procura com o seu bisturi as razões por que terminou a vida para com elas salvar outras vidas. É esta a missão sagrada da medicina dos mortos!

Aquele edifício no Campo Santana, ao lado da Escola Médico-Cirúrgica, cheirava mal dos alicerces ao telhado e exalava odores pútridos pelas redondezas. Eram raros os transeuntes que não passavam tapando o nariz e em passo de corrida. Ali residia o medo absoluto. Apenas os curiosos perversos eram seduzidos ao local. Logo à entrada, numa sala estreita e comprida, alinhavam-se os cadáveres de desconhecidos recolhidos pelas padiolas da Misericórdia ou trazidos, pela polícia, dos passeios, dos palheiros, retirados do rio, sem nada que os identificasse. Ali ficavam dias a fio, apodrecendo devagar ou rapidamente, conforme vinha frio ou calor. O povo de Lisboa tinha acesso a esta sala para procurar os seus entes queridos. Porém, a maioria dos frequentadores eram testemunhas assíduas, que discutiam acaloradamente as feições, idades, e teciam comentários à degradação cadavérica obsessivamente fascinados pela omnipresença da morte.

Asdrúbal d'Aguiar percebeu logo a intuição felina do seu patrono. Cada autópsia de Silva Amado era um tratado de experimentalismo. Dissecava com precisão cirúrgica e intuía as lesões mortais que se escondiam nos tecidos e órgãos que abrira como se corresse atrás da descoberta certeira.

Sobrava-lhe em talento operacional o que lhe faltava em conhecimento académico. Dir-se-ia mesmo que era o menos erudito de toda a constelação de estrelas que brilhava no firmamento hipocrático de Lisboa dos princípios do século XX. Longe da densidade de Miguel Bombarda, do espírito analítico do recentemente falecido Câmara Pestana, incapaz das teorizações de Júlio de Matos ou de Sousa Martins. Era um operário da ciência, como a si próprio se intitulava. Herdeiro directo de Claude Bernard. E quem o visse de mangas arregaçadas, bata e avental ensanguentados, ditando ordens a assistentes e serventes, abrindo vísceras e zaragateando com cangalheiros, e não lhe ouvisse a perspicácia inteligente com que descrevia quadros de diagnóstico, conforme autopsiava, julgá-lo-ia um talhante da Praça da Figueira.

Asdrúbal d'Aguiar apenas o viu tremer uma vez. Quando chegou o momento da autópsia do seu amigo de sempre Miguel Bombarda, assassinado por um doente de Rilhafoles, dois dias antes da proclamação da República. Quando avançou de bisturi em punho para a incisão no couro cabeludo, hesitou. Não conseguiu controlar dois soluços de choro e passou o instrumento a Azevedo Neves. Aquele cadáver desnudado pertencia ao mais indómito médico, ao sábio que rendia plateias, ao director da Medicina Contemporânea, ao homem que congregara à sua volta uma academia crítica e corajosa.

- Abra o cadáver do doutor Bombarda. Fazemos a autópsia do nosso amigo em conjunto.

Asdrúbal não queria acreditar. O mais prático e eficiente médico legista que alguma vez conhecera diluía-se num pranto de lágrimas silenciosas conforme avançava o exame tanatológico. Afinal, os médicos da morte também choravam os seus mortos.

Quando, vindo da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, o jovem médico chegou à Morgue para ser assistente de Silva Amado, já ali trabalhava o professor Azevedo Neves.

Era o complemento do seu director. Mais meticuloso, menos interessado em resultados clínicos, mais atento a outras abordagens da tanatologia, que estudava até à exaustão, acumulando uma biblioteca enorme sobre a perícia médico-legal. Seco de carnes, barba tratada, óculos pendurados na ponta do nariz, Azevedo Neves era evidência erudita naquela Morgue nauseabunda, merecendo a admiração de todos os colegas. Até mesmo de Silva Amado, que o tratava com uma deferência onde se misturava amizade com apreço. Mas, por vezes, exasperava-o a calma minúcia do outro. E nessas alturas tratava-o por tu.

- Azevedo! Esta merda não vai lá assim. Já fiz quatro autópsias, começámos ao mesmo tempo e ainda não despachaste o primeiro tipo. É preciso eu ir aí fechar esse cadáver?

Azevedo Neves conhecia-lhe o temperamento, sorria e respondia, doce.

- Estou a terminar, professor. Estou a terminar.

E Silva Amado ralhava.

- Esta é agora a moda dos cientistas modernos. Análise e dedução. Não pensam noutra coisa. Análise e dedução! Metem as ventas dentro das entranhas de um morto e chafurdam tanto ou tão pouco que, se o cadáver não estivesse morto, morria de impaciência. Passa-me o alicate! E você aí, deixe de olhar para mim armado em cientista moderno e comece a abrir o próximo cadáver que eu já lá vou. Ainda temos seis pela frente. Não há tempo para o cientismo. Ponha esse eu a mexer e toca a trabalhar.

O aparente desprezo pela eficácia de Azevedo Neves era falso. Ao fim da tarde, discutiam durante horas os resultados do trabalho diário com o entusiasmo de adolescentes.

- Tenha paciência, Azevedo Neves, tenha paciência. Somos médicos, a nossa primeira obrigação é ajudar a medicina a salvar vidas. O problema da justiça vem depois e numa escala muito mais abaixo. Aqui produzem-se actos clínicos. Se os juízes precisarem de nós, ajudamos, mas não nos pagam para fazer justiça. Pagam-nos perícias. E é quando pagam, que o secretário-geral da Boa Hora é um caloteiro, ainda por cima de falinhas mansas. Há mais de seis meses que não lhe conseguimos cobrar um real.

Vivesse esta Morgue do que a justiça nos paga e nem gelo haveria para colocar sobre os cadáveres. Cambada de caloteiros! Como pode avançar um país cuja justiça é caloteira? Diga-me.

- Tem razão. Nisso tem razão - retorquia-lhe. - Mas os caminhos da ciência invadiram a disputada retórica dos tribunais. Podemos e fornecemos provas que nenhuma testemunha pode contraditar. Do seu bisturi saltam evidências que nem juiz, nem advogado de defesa, nem testemunha são capazes de pôr em causa.

- Lá está você. As evidências do meu trabalho servem os meus alunos que querem ser cirurgiões. E quanto aos tribunais sempre lhe digo. As nossas perícias só lhes servem quando lhes dá jeito. A maioria dos exames que nos pedem nem são lidos, garanto-lhe eu. Querem lá os tribunais saber dos nossos exames.

- É verdade. Mas estamos, mesmo que os tribunais não queiram saber, a contribuir para a emergência das ciências forenses.

Era o momento de atacar o conhaque e oferecer um cálice ao antagonista.

- De facto, pensa como o Miguel Bombarda. Defendia que a ciência médica deveria substituir os juízes. Aquele Bombarda era único. Chegou a escrever, na Medicina Contemporânea, que não fazia sentido ser um juiz o presidente do Conselho Médico- -Legal já que não percebia nada de ciência. Doido varrido, homem dos diabos, e o senhor vai pelo mesmo caminho.

Azevedo Neves não respondeu, ficando em silêncio a bebericar o conhaque. Silva Amado repetia sempre o mesmo ataque.

- E você concorda com ele. O seu silêncio é de concordância!

- Apenas estou a saborear o seu conhaque. É excelente - respondeu com polidez. - Não sou um adepto incondicional do monismo mas o professor Bombarda tem razão em muitas das suas teorias.

- Espertalhão é o que o senhor me saiu. É o que eu digo. Estes cientistas modernos perderam a vergonha.

Asdrúbal d'Aguiar ganhou, entretanto, estatuto profissional para participar nestas intermináveis discussões e deliciava-se a ouvi-los. Muitas vezes dera consigo a pensar que gostaria de ser uma síntese daqueles dois homens soberbos. Empirista e cientista. As fundações da estrada que conduziria à descoberta de todas as verdades. Pelo menos, de algumas verdades tantos séculos escondidas nos mantos envelhecidos do conhecimento de senso comum e conhecimento teológico.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DOIS TIROS E DOIS ASSASSINOS

 


Quando chegou ao Instituto de Medicina Legal, percebeu o pandemónio. Populares e polícias misturados olhavam com curiosidade os cadáveres que entravam àquela hora da noite. Vinham ensanguentados, com as roupas descompostas e à entrada de cada um os gritos aumentavam, a ansiedade punha em movimento a turbulenta multidão que esperava a chegada do morto Sidónio Pais. Era um babel. Aos gritos misturavam-se as discussões, política em debate à força de murros e pontapés, e fervilhava ainda mais a agitação popular. Era o seu colega Rodolfo Xavier da Silva quem estava a receber os mortos, rodeados por uma enorme escolta de polícias exaltados.

- O que é isto? - perguntou Asdrúbal d'Aguiar.

- Pessoas que foram mortas no Rossio, ao mesmo tempo que o Presidente, abatidas pela polícia.

- E o professor?

- Está em São José. É lá que se encontra Sidónio Pais.

Esgueirou-se por entre a barafunda de corpos, gritos, berros, que, naquela noite, transformavam o Instituto de Medicina Legal na casa mais animada de Lisboa e dirigiu-se ao hospital em passadas largas. A vozearia ficava para trás, porém, o ambiente era de tensão.

Tinham passado dois meses desde que Azevedo Neves os tinha deixado. Aceitara a pasta governamental, no entanto, apesar da responsabilidade do cargo, rara era a semana em que não passava pelo Instituto de Medicina Legal, a pretexto de ir cumprimentar velhos amigos, regressando ao seio da instituição que organizara e ajudara a crescer, após a saída de Silva Amado, como quem regressa à casa paterna.

Na escuridão, algures de uma ou outra ruela da Baixa, ouviam-se disparos de armas de fogo. Tiros esporádicos e dispersos, mas anunciadores do estado de exaltação que crescia por todos os lados conforme alastrava a notícia da morte do Presidente da República. Já não lhe causou tanta surpresa a multidão que se concentrava aos portões do hospital e que uma força do exército impedia de entrar nas instalações. As conversas eram desencontradas, aflitas e raivosas, carregadas de esperança, outras sedentas de vingança, muitos que rezavam para que Sidónio Pais sobrevivesse, outros tantos que oravam para que ele morresse e, ao longe, para os lados do Castelo de São Jorge, numa das ruas de Alfama, chegou o som de foguetes de alegria que alguns dos presentes, à porta do hospital, acolheram com júbilo.

Ao mesmo tempo que a notícia da morte do Presidente-Rei ganhava força, uma onda de boatos cruzava-a veloz, desmentindo qualquer morte, que fora ferido no braço, que os assassinos foram mortos, que Sidónio, ungido de Deus, jamais poderia morrer às mãos de velhacos, e não se sabia naquilo que se haveria de acreditar. A única verdade inteira e viva é que chuviscava. Uma água miudinha que fazia rebrilhar as pedras frias das calçadas e que chuva assim era amiga da «espanhola» pelo que o medo de morrer era maior do que a mágoa por Sidónio. Lisboa amedrontava-se ao som dos disparos e da iminência de mais mortos. Escondia-se por casas e casebres. Não bastava o império da peste, um destino decidido por caprichos e por disparos traiçoeiros impunha a chegada de novos medos à cidade. Pelas ruas só andavam aventureiros, militantes políticos e alguns bêbados, que saíam, aliviados, das casas de prostituição do Bairro Alto e do Benformoso. Na rua só morria quem queria. Em casa, milhares esperavam a morte assinada pelo vírus maldito ou escondiam-se dela, abafados, ainda que esfomeados, à espera de um novo amanhecer.

Foi encontrar Azevedo Neves num corredor de acesso ao banco do hospital. Com ele estavam várias figuras, fardadas ou bem vestidas, que Asdrúbal d'Aguiar percebeu serem próximas do Presidente. Apenas conheceu Sousa Fernandes, governador civil de Lisboa, e reinava uma agitação febril entre eles. Somente o professor estava alheado, prostrado, parecendo ainda mais magro e pálido do que habitualmente.

- As minhas condolências, senhor professor. Vim logo que soube da tragédia.

- Obrigado, doutor Asdrúbal. É, de facto, uma noite muito difícil para mim.

As palavras saíram-lhe murmuradas, carregadas de uma mágoa cinzenta. Puxou o subordinado por um braço e entrou com ele numa sala. Numa marquesa estava o cadáver de Sidónio Pais. O corpo, apenas desnudado no peito, indiciava a urgência da intervenção clínica para o salvar. Pelos cantos da boca escorrera sangue, agora coagulado, e duas compressas, uma sobre o peito, a outra no abdómen, tapavam os ferimentos por onde a vida teria fugido. Estava fardado e o rosto, já invadido pela rigidez cadavérica, parecia esculpido num mármore cinzento e brilhante. Uma máscara como os bustos dos imperadores romanos, e Asdrúbal d'Aguiar compreendeu, naquela pose de estátua mortuária, o que levava tantas mulheres a perderem-se de amores por ele. Na verdade, poderia não ser a morte do melhor Presidente da jovem República, mas seguramente era o mais belo e varonil de todos eles. Era a primeira vez que o via. Ainda por cima tão perto, e o olhar do perito sobrepôs-se a qualquer outra curiosidade. Asdrúbal notou não existirem incisões cirúrgicas, pelo que a pergunta era uma resposta.

- Já chegou sem vida a São José?

Azevedo Neves assentiu com a cabeça.

- Os dois ferimentos são letais. Foi atingido nos pulmões e no fígado. Deve haver uma grande hemorragia interna.

Não respondeu. Concordava com o diagnóstico. A mágoa do seu director e a presença do cadáver do Presidente da República deixaram-no num recolhimento constrangido, sem saber o que dizer. Ou fazer. Procurou os lugares-comuns que se devem dizer nos momentos de luto, mas não encontrava palavras, até porque a amargura espelhada no rosto de Azevedo Neves merecia maior solidariedade do que a manipulação de palavras artificiais e vulgares. Estava no outro lado da marquesa, hirto, a cabeça pendia sobre o peito. A sobrecasaca e o fato negro davam maior vivacidade à camisa branca e à barba já grisalha, fechado num mutismo de sofrimento e memórias. Passaram longos minutos assim, até que o director do Instituto, agora secretário de Estado, falou. Não era uma conversa. Pressentiu uma confissão e Asdrúbal encostou-se à parede, quieto, silencioso, pois percebeu que era fala que não podia quebrar.

- Sei que muitos dos meus amigos se questionaram das razões que me levaram a apoiar este homem. Logo eu, que cheguei a ser o único deputado monárquico eleito durante a República e aí me bati com todas as minhas forças pelo regresso do rei e pelo fim deste regime, que mais não é do que a evidência do caos. Que fui voz discordante com todas as formas de regime republicano, que nunca deixei de dizer aquilo que pensava e de agir sempre de acordo com as minhas convicções. Sei que vocês, todos aqueles que comigo trabalhavam na Morgue, ficaram surpreendidos e desconfiados, por ter aceite ser seu secretário de Estado do Comércio. Quando ele me convidou, vai agora para três meses, não estava em condições de lhe dizer não, embora já se percebesse que a sua República Nova tinha os dias contados. Aceitei por gratidão. Sidónio Pais teve a sensibilidade que nenhum Parlamento, que nenhum Governo revelou para os grandes desafios que a ciência colocava ao mundo da medicina e da justiça.

Suspirou como se um cansaço infinito se tivesse apoderado dele. Deu um passo na direcção do cadáver e parecia que falava com o Presidente assassinado, e Asdrúbal recolheu-se ainda mais, escutando aquela confissão surpreendente.

- Não sei quantas petições, interpelações, requerimentos, fiz ao longo de todos estes anos para que o ensino da medicina legal e das ciências forenses fosse levado em consideração pelos vários governos. A Morgue, que o nosso comum amigo Silva Amado empurrava com todas as forças e boa vontade, não passava do pesadelo de Tántalo. Jamais seríamos pares entre a comunidade científica europeia enquanto não impuséssemos as reformas decisivas para a administração de uma boa justiça. Pedi para falar com ele logo que foi eleito Presidente da República. A votação maciça que recebeu e as alterações legislativas que transfiguraram a Constituição davam-lhe poderes quase absolutos. Era o momento propício para lhe expor as minhas preocupações. Escrevi-lhe com esperança, mas sem ilusões. Já tomara a decisão de não deixar de lhe escrever a repetir o pedido de audiência. E devo dizer que foi com grande espanto que recebi a notícia de que seria recebido pelo Presidente da República na semana seguinte. Era um bom sinal e não hesitei. Dava-me meia hora para expor o meu assunto. Elaborei um pequeno resumo, sublinhei as propostas e apresentei-me no seu gabinete. Foi cortês e ofereceu-me chá. Pedi-lhe que me ouvisse o Presidente da República e que me escutasse o lente de cálculo infinitesimal da Universidade de Coimbra. Pedi-lhe que não fosse apenas o estadista, mas também o académico sentados, num só, à minha frente. Sorriu delicadamente, fez com a cabeça um gesto de concordância e deixou-me falar durante o resto do tempo. Quando terminei, dei-lhe os documentos que preparara e ele disse-me:

«Muito bem. Percebi as suas preocupações e pode crer que quer o Presidente da República, quer o professor universitário concordam consigo. Brevemente terá notícias do meu gabinete.»

Não chegaram a passar dois meses quando recebi as minutas dos decretos que iria publicar. Enviava-os para saber se havia alguma alteração que eu desejasse propor. Entre a surpresa e a euforia fiz algumas sugestões e devolvi-os no dia seguinte. Estávamos em Junho e começavam a chegar as primeiras notícias preocupantes sobre a pneumónica. Outros dois meses depois era publicado o decreto que fundava os institutos de medicina legal de Lisboa, Porto e Coimbra e o outro que ordenava a criação da Polícia de Investigação Criminal equipada com laboratórios de polícia científica. Essas duas decisões cumpriram o meu sonho e sei, tenho essa certeza como valor absoluto da minha vida, que irão modificar radicalmente a relação da medicina legal com a polícia e com os tribunais. Tenho a certeza, doutor Asdrúbal!

Controlou a emoção que, crescentemente, ia empolgando o monólogo. Da rua chegava o ruído de gritos, de choro do gentio que procurava saber no hospital a confirmação da fatídica notícia. Azevedo Neves, indiferente à arruaça, continuou:

- Poucas reformas da República terão consequências tão dilatadas no tempo como estas. Para bem das ciências médicas e para bem da justiça, - e enfrentando Asdrúbal d'Aguiar, perguntou: - Compreende agora? Como poderia recusar o cargo de secretário de Estado do Comércio que me ofereceu três semanas depois? Não podia. E aceitei. Sem arrependimentos. Grato para o resto dos meus dias e, ainda por cima, a olhar para este tempo com uma ironia paradoxal. Duas das maiores reformas republicanas foram impulsionadas por um monárquico. Não deixa de ser irónico, não é verdade?

Asdrúbal d'Aguiar estava impressionado. Arredado da vida política, pouco atento à turbulência da luta partidária, de atenção virada para o seu trabalho e para as bibliografias médicas que recebia de toda a Europa, aliás, hábito que copiara das práticas de Azevedo Neves, jamais lhe passaria pela cabeça o psicodrama que acabara de escutar em jeito de confissão. De repente, ficou surpreendido consigo próprio. Ele, que sempre antipatizara com Sidónio Pais por considerá-lo vaidoso e déspota, passou a respeitar, no cadáver que estava à sua frente, o homem que desprezara.

- Deixou-me sem palavras, senhor professor - foi a única coisa que conseguiu dizer.

- Surpreendente, não é?

- De facto.

- Será esse o maior legado de Sidónio. Ele foi passado e futuro ao mesmo tempo, foi velho ancião e visionário. Infelizmente nunca percebeu o seu próprio tempo e terminou aqui. Desfeito a tiro. Para seu mal e para mal do país.

- É verdade.

Asdrúbal não conseguira ainda recompor-se da narrativa confessional de Azevedo Neves.

- Depois desta noite, meu caro, duvido da sorte desta República. Este assassínio vai manchá-la para sempre.

- Já se sabe quem fez isto? - perguntou Asdrúbal d'Aguiar procurando conduzir a conversa para territórios profissionais.

- Segundo me contaram há pouco, existem duas versões principais. A primeira é a de que dois homens armados dispararam à queima-roupa contra o Presidente. Um deles terá sido abatido no local pela polícia e o outro foi preso e levado para o Governo Civil. Estavam emboscados atrás dos pilares das escadas que dão acesso à estação do Rossio. Dispararam quando ele ia a passar.

- E a outra versão?

- É a de que o preso disparou duas vezes, atingindo-o como vê. No tórax e no abdómen.

Asdrúbal d'Aguiar fez um gesto de perplexidade. Azevedo Neves percebeu.

- Há algo de errado?

- É estranho, mas é possível.

- O que está a pensar?

- Como é que um homem consegue disparar dois tiros consecutivos à queima- -roupa contra o Presidente da República, que deveria estar cercado de homens armados, e, em vez de responderem à agressão feita mesmo à frente dos seus olhos, matam não sei quantas pessoas que andavam por ali?

Azevedo Neves olhou-o, surpreendido.

- Não mataram apenas um?

- Pelo menos quatro ou cinco cadáveres iam a entrar no Instituto, vindos da Estação do Rossio, quando por ali passei, à sua procura. Não os observei em pormenor, mas eram todos vítimas de disparos com armas de fogo.

- Que coisa estranha!

- Pois, não sei.

- Talvez fossem dois os atiradores e terão sido os disparos desencontrados que desorientaram a polícia.

- É bem possível.

Também Asdrúbal d'Aguiar se inclinava para a primeira hipótese. Porém, ainda era cedo para retirar conclusões. Azevedo Neves encolheu os ombros.

- Seja como for, o caso estará resolvido. Se foram dois, a polícia matou um e deteve o outro. Se foi só um atirador, prenderam-no.

- Claro. Já se sabe o destino a dar ao cadáver do Senhor Presidente?

- Foi por isso que lhe implorei que viesse ter comigo. Preciso de lhe pedir um grande favor.

- Estou às suas ordens, senhor professor.

- Nem o Parlamento, nem o Senado autorizam a autópsia do Senhor Presidente. Tal como não foi autorizada a autópsia do rei D. Carlos nem do príncipe que com ele morreu.

- Eu sei.

- Decidiram que o cadáver seja levado para os Jerónimos e aí se realizarão as cerimónias fúnebres. Mas a notícia já corre e amanhã toda a gente vai saber. Estavam muitos jornalistas no Rossio.

Asdrúbal não conseguiu evitar um sorriso.

- Então, amanhã as primeiras páginas vão estar encharcadas de sangue. Vai ser uma confusão dos diabos. Ainda bem que tomaram a decisão de o levar para os Jerónimos, se não seria impossível trabalhar no Instituto.

- Tem razão. Vão deixar passar alguns dias para que os ânimos acalmem antes do funeral. É por isso que preciso de si.

- Para embalsamar o corpo?

- Para evitar a putrefacção e permitir que o povo se despeça do seu Presidente com caixão aberto.

- Fique descansado, senhor professor. Eu tratarei do assunto.

- Não tivesse investido da qualidade de secretário de Estado, eu próprio me ocuparia do caso.

- Nem pense nisso. Ainda esta noite vou mandar recado ao Moreira Júnior para falar comigo logo pela manhã. É dos nossos colegas aquele que melhor domina as técnicas de embalsamamento.

- É uma boa escolha. Fico-lhe muito grato, doutor Asdrúbal.

- É para mim uma honra ajudá-lo, senhor professor. Apenas lamento que seja por um acontecimento que tanto o magoa.

- Não tenha dúvidas, meu amigo. Não tenha dúvidas.


O dia acordou embaciado. Os chuviscos da noite anterior tinham desaparecido, no entanto, uma estranha neblina, feita de gotículas de água fria e leve, produzia uma atmosfera sem claridade e incerta. Parecia que a cidade acordara triste, de luto. Pela Baixa, grupos sorumbáticos devoravam as primeiras páginas que noticiavam a morte do Presidente em letras garrafais. O Século, cujo repórter testemunhara directamente o crime, junto à entrada da estação do Rossio, exorbitava em pormenores emotivos. Também o redactor do Diário de Notícias vira Sidónio Pais cair, sendo amparado pelo irmão, que seguia logo atrás no momento dos disparos. Os restantes reproduziam a notícia, mas com menos pormenores de testemunho.

Rompendo velhos hábitos, Asdrúbal d'Aguiar saiu de casa, mas não foi directamente para o Instituto. Desceu pela Rua do Telhal, enfiou-se pela rua das Pretas e foi ao quiosque dos Restauradores comprar todos os jornais que noticiavam o evento. Depois cruzou a Rua dos Condes e sentou-se na taberna do Juan Galego, a devorar as notícias e um bolo finto, uma especialidade galega, feita de massa de pão doce salpicado de açúcar, que a mulher de Juan Galego fazia como ninguém. Combinara ali o encontro com o seu colega Moreira Júnior. Pelo menos assim o avisara no bilhete que lhe enviara por volta das duas horas da manhã.

Uma coisa era certa. Os dois jornalistas mais próximos do local do crime eram unânimes em alguns factos significativos. Ambos viram os ferimentos do lado direito do corpo de Sidónio Pais. Também eram coincidentes quanto à versão dos tiros. Quer a um quer a outro, pareceu-lhes que os dois tiros se cruzaram, criando-lhes a convicção de que, efectivamente, estavam dois atiradores junto às arcadas da entrada da estação. Confirmam que viram a polícia matar um deles e, ainda, a captura de um outro, cujo nome era José Júlio da Costa. Finalmente, informavam que o preso gritava a sua inocência, enquanto era arrastado para fora da estação, dizendo não ter feito mal a ninguém. Sabia-se que fora levado para o Governo Civil e que estava a ser interrogado a hora do fecho das edições.

Largou os jornais e bebericou o café com leite. Tudo parecia conforme a primeira versão que Azevedo Neves lhe apresentara na noite anterior. Disparos diferentes, possivelmente combinados entre os dois criminosos para que não houvesse dúvidas sobre o desfecho fatal, e a rápida reacção policial, matando um deles e prendendo o outro. Só assim se justificava a quantidade de mortos pelas autoridades. Com certeza que entre os cadáveres que vira entrar nessa noite na Morgue do Instituto estaria o assassino abatido pela polícia, enquanto os outros não passariam de vítimas acidentais de balas perdidas durante a refrega.

Sentiu-se confortado com a reconstituição imaginária das acções que determinaram a morte do Presidente e com a reposição da ordem pelas forças policiais. Os dois jornalistas eram duas testemunhas de excelência. Não estavam comprometidos, trabalhavam para dois jornais distintos, aquilo que os olhos de um deles viram foi exactamente aquilo que os olhos do outro viram, não era crível que àquela hora da noite, apressados, tivessem combinado factos a publicar, deverão ter corrido para as redacções dos seus jornais para escrever rapidamente para o fecho da edição e, sem dúvida, eram testemunhos vivos e bem presentes quando os relataram. E a polícia saía bem, apesar de não ter evitado a tragédia.

Matara um dos assassinos, prendera o outro e tudo era compatível com os ferimentos que ele próprio vira, naquela noite, no corpo do Presidente. Não relevou os protestos de inocência do preso Júlio da Costa. O medo de também ser abatido poderia tê-lo levado a fáceis desculpas.

Corria que era anarquista, seguidor de Gonçalves Correia, o líder da Comuna da Luz, que jurara a morte de Sidónio Pais depois de o Governo ter desrespeitado o acordo, que o próprio Júlio da Costa mediara, com o fim de pôr termo a uma greve de assalariados agrícolas no Vale de Santiago, no Alentejo. Que estava decidido a lavar com sangue a sua honra manchada perante os seus companheiros de labor, com um objectivo preciso: matar o símbolo máximo do poder que o traíra, assim como aos seus camaradas.

Asdrúbal não compreendeu o motivo. Nem a República Velha, nem a República Nova haviam conseguido extirpar o mito ancestral de que só o sangue lavaria honras, tornando-as imaculadas. A legitimação do preceito permitira que muitas mulheres tivessem morrido às mãos de maridos e namorados, enlameados no carácter pela mera suspeita de crime adúltero. Os duelos vieram da idade antiga, entronizados, desafio de vida ou morte para reencontrar a verdade justiceira. E nenhum tribunal tinha força para condenar homicidas de honra lavada a tiro ou à facada ou a varapau. Nenhum tribunal condena heróis de moral firmada na destreza do gatilho. E sabia que a motivação de Júlio da Costa não era uma excepção, mas uma regra. Não era uma decisão política. Encontrava-se incrustada no mesmo painel de virtudes que levara metade de Lisboa a jurar a morte da outra metade, para se imortalizar honrada.

Nem chegava a ser um motivo. Matar o traidor, matando a traição, era um lugar- -comum. O acerto de contas que nenhuma sentença judicial poderia expropriar. Sempre foram assim. Não havia qualquer razão para não continuar a ser da mesma maneira, pois perdia-se na escuridão do tempo o postulado viril: quem com ferro mata, com ferro terá de morrer.

Asdrúbal compreendia tudo, excepto um detalhe. Embora tivesse sido soldado no exército colonial, soubesse manipular armas, até louvado, um alentejano de Garvão, não dá três voltas à cidade e fica a saber a hora exacta, a arcada exacta, o momento exacto em que se esconde, se prepara e desfere o golpe fatal que lhe há-de enxaguar a honra. Ainda por cima, um soldado iniciado aos dezasseis anos, que aos vinte e quatro anos vira recusado o seu voluntariado para participar na Grande Guerra. Deveriam ser ponderosas as razões de tal recusa, pois ninguém queria ir morrer na Flandres.

Suturava as últimas conclusões sobre o que acabara de ler quando pela taberna irrompeu o seu colega Moreira Júnior. Vinha embrulhado num enorme sobretudo de lã e afogueado.

- Peço desculpa pelo atraso, mas o «americano» falhou. Quando o tempo está assim, os cavalos escorregam e a geringonça pára. Tive de vir a pé - justificou-se enquanto se sentava.

- Não faz mal. Deste-me tempo para ler tudo sobre o crime na estação do Rossio.

- Ainda não estou em mim. Só esta manhã é que o leiteiro me deu a notícia. O teu bilhete não mencionava o assunto do nosso encontro e não liguei uma coisa com a outra.

- Desculpa a hora tardia da mensagem.

- Não me acordaste. A minha empregada recebeu o bilhete e, como marcavas o encontro para as oito horas, não me disse nada. Sabe que me levanto às seis e meia e esperou que eu acordasse. Mas que grande tragédia, Asdrúbal! Tiveste notícias do professor Azevedo Neves?

- Estive com ele ontem à noite em São José, junto ao cadáver do Presidente.

Moreira Júnior ficou ainda mais interessado.

- Ah, foi?! E como é que ele está?

- Tem dois orifícios. Um deles no hemitórax direito e outro na região abdominal. Morreu em minutos.

- O Sidónio?! E o professor? Estou preocupado com ele.

- Abatido, muito chocado, mas está bem.

- Ainda mal tinha aquecido o lugar de secretário de Estado e agora isto. Coitado dele.

Moreira Júnior era um homem alto, corpulento, com robustas pregas de gordura em volta das pálpebras. As mãos eram grandes e fortes. Parecia um dos lutadores de boxe que passavam no animatógrafo do Ginásio. O Juan Galego serviu-lhe o café com leite e o bolo finto sem perguntar nada. Quando os dois amigos desciam as Portas de Santo Antão, honrando a sua taberna, como costumava dizer, queriam sempre a mesma ementa. E o galego era suficientemente astuto para perceber que aquele dia não parecia propício a galhofas. Adivinhou a gravidade da conversa e afastou-se, polindo com firmeza o balcão de mármore cercado de pipas de vinho.

Asdrúbal d'Aguiar foi directo ao assunto.

- A esta hora, o cadáver de Sidónio Pais já deve estar nos Jerónimos. O professor pediu-me que tratasse do embalsamamento e lembrei-me de ti. És o melhor.

- Pois sou! - respondeu, atacando o bolo e, num gesto teatral, sentenciou: - Vai dar-me um gozo do caneco esticar-lhe as peles. Homem, filho da mãe, que tinha as mulheres todas de Lisboa pelo beicinho. Diz-me lá, o que é que o Sidónio tinha que eu não tenho? Já agora, que tu também não tens?

- Manel, não comeces a disparatar. Hoje não é o dia mais apropriado. Por favor. Come o bolo e cala-te.

- Eu calo-me, mas não me fico. Era bonito? Só por ser bonito? Tu és mais bonito do que ele. Até eu, e olha que sei que sou feio. Grande e feio. Mas ele não valia nada. Não sei o que as mulheres viam no Sidónio. Não sei. Eh, homem, que os bolos da Dolores estão cada vez melhores. O raio do galego é que está sisudo. E gritou para o taberneiro:

- Juan, grande estafermo, traz-me mais um bolo. E não me enganes. Fresquinho, a saber a forno.

Percebeu que podia intrometer-se e recomeçou a tradicional guerra de palavras com que ambos se picavam.

- A saber a forno não tenho. Só com açúcar.

- Estás-me a gozar, é?

Trouxe o outro bolo à mesa e Moreira Júnior agarrou-o pelo braço.

- Diz-me uma coisa: sou mais feio ou mais bonito do que o nosso inditoso Presidente da República?

- Não me faça essa pergunta, senhor doutor! - e havia na voz sinais ameaçadores.

- Porquê?

- Pouco sei de beleza masculina.

- Não te armes em manhoso, galego de uma figa! Somos amigos, fala com sinceridade. Olha para mim.

E, armando uma pose de retrato, com a mão fazia um gesto soberbo para o outro lhe apreciar o rosto e o corpo.

- Nem se pode comparar. Embora seja meu cliente e o doutor Sidónio Pais nunca aqui tenha entrado, não há comparação possível.

- Já percebi. Põe-te a mexer daqui e não me gozes.

Asdrúbal meneou a cabeça em ar de censura.

- Nunca mais terás juízo. Devias estar em Rilhafoles.

- Se fosse para lá, expulsavam-me. Pronto, queres que trate do bonito. O feio vai tratar dele com decência, apesar de não o merecer.

- Por favor, Manel. Leva os teus médicos e silêncio.

Parou de comer, observando, desconfiado, o director interino do Instituto.

- É segredo de Estado?

- Não. Acho que não - respondeu sem perceber a perturbação do outro.

- Foi só por causa do embalsamamento que quiseste encontrar-te comigo longe do Instituto?

- Decidi que compraria os jornais para saber o que se passou. Vir de propósito aos Restauradores e não aproveitar para comer os bolos do Juan Galego era um disparate. Sei que também aprecias. Por isso estamos aqui.

- Ah, bom! - exclamou, aliviado, e, ainda mastigando o último pedaço de bolo, abriu o vozeirão para o taberneiro: - Juan, traz dois abafados e não sejas trafulha. Traz do garrafão que tens escondido e não dessa porcaria com que enganas os meus compatriotas, galego de um raio!

O rosto do homem abriu-se num sorriso.

- Com certeza, senhor doutor. Desta casa nunca sairá mal servido. E desapareceu para o interior da taberna.

- Fica descansado que vou embalsamar o homem. Vai ficar rijo que nem um corno. Os bolos do galego são mesmo bons! Bela ideia, Asdrúbal. Talvez ainda coma outro. É isso! Vou comer outro. Não é todos os dias que embalsamo um Presidente da República - e tornou a fazer ribombar o seu grito de comando. - Juan, traz os abafados e mais um bolo. E despacha-te que esta taberna cheira mal. Até os ratos fogem daqui com este cheirete a azedo.

Do interior respondeu-lhe o taberneiro.

- É o cheiro próprio das pipas do vinho. E os ratos gostam. É o que não falta por aí. São ratos e feios.

Apareceu, sorridente, com os copos de vinho e o bolo nas mãos, visivelmente divertido com a conversa. Moreira Júnior empolgou-se.

- Estás a dizer-me que tens a enxovia cheia de ratos, meu grande porcalhão?

- Não o percebo, senhor doutor. Ainda há pouco me acusava de os ratos fugirem por tudo isto estar sujo!

- Não foi isso que eu disse.

- Ah, foi, foi, e eu não lho levo a mal. Os ratos fazem falta para limpar os canos da água suja. Se uma cidade não os tivesse para desentupirem os esgotos, rebentava como uma bomba. Lá no sítio onde os senhores trabalham, não há ratos? Tem de haver.

A argumentação do taberneiro desorientou Moreira Júnior, que, com a atenção repartida entre o bolo, o vinho e a conversa, rematou com frieza:

- Existem muitos, mas tomam banho todos os dias, pois são seguidores dos ensinamentos do nosso colega Ricardo Jorge.

Asdrúbal d'Aguiar soltou a sua primeira gargalhada bem-disposta, desde o dia anterior. A espontaneidade irónica de Moreira Júnior tinha a virtude de o divertir. Em certos aspectos, fazia-lhe lembrar o seu velho mestre Silva Amado, mangas arregaçadas, peito aberto, rasgando cadáveres e sibilando impropérios contra os cientistas modernos.

Pagou o pequeno-almoço e saíram os dois, pelo que não ouviram os insultos com que o Juan Galego apostrofava Ricardo Jorge, dirigindo-se a dois empregados da alfaiataria do Aires, que iam ao mata-bicho.

- Um doido, digo-vos. Quem nunca irá ter com esse Ricardo Jorge serei eu ou alguém da minha família. Nem que a «espanhola» me leve. O homem endoideceu quando foi aquela peste no Porto e não se cansa de apregoar que a gente tome banho todos os dias, que lave as mãos, que mude de roupa, se estiver suja. Onde é que um homem arranja dinheiro para andar a mudar de ceroulas todos os dias. E a pele? A pele não conta? A pele é como as panelas. Conforme as vamos lavando, vão ficando mais fininhas até que abrem buracos. Já imaginaram se a pele se rompe? Um homem deita fora o sangue e as tripas. É doido esse Ricardo Jorge! Um banho por mês e com cuidadinho, que, se um homem perde a pele, já foi. Ainda ontem limparam o Sidónio. Vem no jornal. Leram aquilo que aconteceu? Dois tiros, dois buracos na pele e foi desta para melhor. Um banho por mês e com cuidadinho, muito cuidadinho, que com a pele de um homem não se brinca!


Quando entrou na Morgue do Instituto, Asdrúbal d'Aguiar teve uma sensação de cansaço infinito. Passara a noite em claro, revolvendo-se na cama, preso às imagens desencontradas daquele dia. Vinha-lhe à memória a aflição de Ana Rosa, que se cruzava com o hermetismo cadavérico de Sidónio, a confissão de Azevedo Neves, as inquietações quanto à identidade do homem que disparara contra o Presidente. E agora olhava para uma sala onde os cadáveres estavam empilhados nas macas de zinco, espalhados pelo chão, como se o apocalipse tivesse varrido Lisboa durante a noite. Geraldino Brites, chefe do Serviço de Tanatologia, aproximou-se dele.

- Desde as seis da manhã que as carretas não param de largar mortos. Temos quase vinte para autopsiar.

Olhou com maior atenção os restos mortais que açambarcavam o espaço.

- Isto cheira cada vez pior.

- Temos vários podres. E depois é o gelo. Pomos-lhes gelo em cima, o gelo derrete e a água arrasta a matéria pútrida para todos os lados.

Assumiu uma posição decidida.

- Eu venho ajudar-te. Não tenho exames de clínica legal hoje de manhã. Vamos separá-los. A maioria dos mortos são vítimas da pneumónica. Não têm interesse médico- -legal. Quero todos os cadáveres que foram assassinados, ou que se suicidaram, em primeiro lugar. Onde estão os que morreram na estação do Rossio ontem à noite?

- Um deles entrou como desconhecido e está exposto para ver se alguém o identifica. Os outros estão aqui.

Ao todo era quatro. Todos homens. Dois deles - um era o desconhecido - aparentavam mais de cinquenta anos. O terceiro teria entre trinta e quarenta anos e, finalmente, um jovem, a rondar os vinte anos, foi aquele que mais chamou a atenção do médico legista. Fora atingido por três tiros. Um deles entrou junto à cauda da sobrancelha direita na junção do frontal com o parietal direito; o segundo desfizera-lhe a face esquerda e, pela tumefacção roxa e exuberante, partira-lhe de certeza o malar esquerdo; e tinha ainda um ferimento no braço esquerdo com orifício de entrada e saída do projéctil. Examinou a etiqueta de identificação. Chamava-se Alfredo da Silva Reis, tinha vinte e dois anos, indicavam como profissão carregador da estação do Rossio, ainda era solteiro e morava na Rua do Benformoso. Entrara acompanhado pelo guarda número mil duzentos e setenta e um da Nona Esquadra. Perguntou a um dos serventes:

- Sabes quem é o guarda mil duzentos e setenta e um da esquadra do Rossio?

- Não sei, senhor doutor, mas posso saber.

- Como?

- Tenho um irmão que é guarda e é dessa esquadra. Posso perguntar-lhe.

- É o que vais fazer. Procura o teu irmão. Vê se ele descobre este guarda e que lhe diga que preciso de falar-lhe com urgência.

- Agora?

- Depois das autópsias. Temos cadáveres a mais e gente a menos para trabalhar.

Afastou-se na direcção do colega.

- O Xavier da Silva não te relatou nada de estranho quanto aos cadáveres da estação do Rossio?

- Não. Disse-me que durante a noite se juntou uma multidão a querer saber se estava aqui o Presidente da República, mas aos poucos foi desaparecendo. Sei que não param de chegar pessoas à portaria perguntando o mesmo. Disse ao Félix, que lá está, para pôr um aviso em letras grandes na porta: NÃO SE ENCONTRA AQUI O CORPO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA. Mas não teve efeito nenhum. A esmagadora maioria não sabe ler e tem sido uma manhã de doidos! - depois mudou de tom. - Para além dos cadáveres do Rossio, temos um suicídio. O resto deve ser fruta da época, a pneumónica.

- Vamos começar pelo suicídio. Depois passamos aos suspeitos de morte devido à epidemia.

- E os do Rossio?

- Por enquanto, ficam onde estão. Estou intrigado com uma coisa que me deixou baralhado.

- Foram todos mortos pela polícia. São balas de calibre sete e meio. Pelo menos parecem, pelos orifícios de entrada.

- Dispararam três vezes contra o rapaz. Ninguém sofre três tiros fortuitos e logo dois na cabeça.

Brites ficou surpreendido.

- Pois é! Será o segundo assassino de quem falam os jornais? Não é demasiado jovem?

- Também li nos jornais que o preso, o tal José Júlio da Costa, fez vinte e cinco anos em Outubro. E também é verdade que uma aventura suicida como aquela que foi vivida ontem à noite está mais calhada para moços novos do que para gente mais madura. A probabilidade de morrer num atentado, naquele contexto, é muito grande. Os jovens são mais audazes para cometer actos de tão grande desprendimento.

- Sendo assim, o que fazemos?

- Ficamos à espera. Preciso de falar com o guarda que os acompanhou até aqui. Vamos tratar dos outros.

O Guia de Autópsias, de Azevedo Neves, tornara-se numa bíblia para ambos. Era bem claro nos procedimentos que deviam conduzir as pesquisas do médico legista. Impunha a necessidade de relacionar a vítima com o local do crime, a procura dos nexos de causalidade entre as lesões encontradas e as motivações do agressor, constituindo o exame tanatológico um acto clínico integrado num contexto de relações entre quem matou e quem foi morto. Tornava-se, pois, insustentável qualquer explicação que atribuísse a possibilidade de, no meio de uma multidão, um indivíduo ser objecto de três disparos fortuitos. Nem fazia sentido. Mesmo que o ferimento recebido no braço tivesse sido o primeiro e o impacto não fosse suficientemente forte para o derrubar, o segundo tiro, fosse ele qual fosse, atiraria, de imediato, o jovem ao chão, ferido de morte. Tivesse sido o terceiro tiro o da face esquerda ou aquele que lhe atingira o parietal, já fora disparado com a vítima por terra. Não existia a mínima hipótese de explicar tanta lesão com um acidente casual. Quem disparou contra o jovem Alfredo Reis queria vê-lo morto e bem morto. E alguma razão haveria de existir para que tal acontecesse.

A verdade é que a inquietação do médico legista não ficou por aqui. Dois dos outros mortos, identificados como sendo José Santos Vidal e Luís Furtado Saraiva, tinham um ferimento de bala nas costas e o outro fora baleado no peito, no hemitórax esquerdo, um pouco acima do coração. Adivinhava que o projéctil lhe despedaçara a aorta. Já o cadáver que entrara como desconhecido mostrava dois ferimentos letais. Um no pescoço e outro no hemitórax esquerdo. Ferimentos a mais para ficar satisfeito com a mera explicação de ser vítima de disparos fortuitos. Precisava de tempo para analisar e deduzir, lembrando a jocosidade de Silva Amado.

E entrou nas rotinas da Morgue, acelerando o trabalho de todos os colegas para se despachar cedo. Queria passar pela casa de Ana Rosa para avaliar a sua saúde, ir para sua casa, resistir ao papel que Glória lhe haveria de mostrar com o nome dos doentes que ao longo do dia lhe teriam ido pedir ajuda, cear e dormir. Sentia-se exausto e as pernas pesavam como chumbo. A insónia turbulenta da noite anterior pusera-o de rastos e a sensação de angústia quando estivera em frente ao cadáver de Sidónio Pais, e que julgara sanada com a leitura dos jornais da manhã e a ajuda bem-disposta de Moreira Júnior, regressara com a observação parcial dos mortos do Rossio. Um estado de espírito que fazia a diferença entre a atitude clínica de Silva Amado e de Azevedo Neves. Uma tanatologia forense era obrigatoriamente um salto para além da análise anatomopatológica da consequência da morte. Uma inquietação intelectual que começara há alguns anos, quando se conseguiu aproximar de Azevedo Neves. Desde os primeiros dias de trabalho, na então Morgue de Lisboa, que a atitude do professor o surpreendia e, simultaneamente, o fascinava. Não sabia se eram os gestos, se era o olhar arguto, se apenas uma impressão difusa de que aquele homem era diferente de todos os que conhecera no mundo da medicina.

- Sabia que, se o seu mestre ali estivesse, observando os ferimentos que acabara de analisar, mostrar-se-ia apreensivo, cofiando a barba, ensimesmado, formulando perguntas, até encontrar uma explicação plausível para existirem dois cadáveres várias vezes baleados, como se se tratasse de um fuzilamento, e, ainda, um preso no Governo Civil, soldado reconhecido como inapto para participar numa guerra. A fazer fé na intencionalidade das acções policiais, estariam presentes três supostos assassinos e apenas dois ferimentos no corpo de Sidónio. Ou um deles morrera por excesso de zelo ou o detido estava inocente. Apenas incapaz de exercer a sua função de soldado. E havia mais dois cadáveres. E mais de uma dezena de feridos, que receberam tratamento hospitalar.

Decididamente a história oficial dos acontecimentos da noite de catorze de Dezembro, ainda que confirmada por jornalistas descomprometidos, estava mal contada. Asdrúbal d'Aguiar sabia que o espírito crítico de Azevedo Neves estaria a questionar todos os pormenores e, por momentos, sentiu-se vaidoso por reagir conforme imaginava que o professor reagiria. Na verdade, nunca escondeu a admiração que sentia por aquele homem a quem Silva Amado chamava, com sarcasmo, cientista moderno.


Foi numa noite do primeiro Verão republicano que a primeira conversa entre os dois aconteceu. Asdrúbal d'Aguiar fora ter com ele para assinar uns relatórios e não conseguiu disfarçar o espanto ao ver as condições do escritório da sua residência, na Amadora. Trabalhava afogado em livros e, enquanto ele assinava papéis, o espanto foi aumentando conforme lia os títulos e os autores gravados nas lombadas. Edmond Locard, Brouardel, Reiss, Bertillon, Balthazar, Vervaeck, Lacassagne, Lombroso, Vucevitch, uma verdadeira galeria das maiores figuras mundiais da medicina legal e da polícia científica.

- Está espantado com a desarrumação – desculpou-se o anfitrião, e comentou: - E com razão. Todos os dias juro que amanhã vou pôr ordem neste escritório e todos os dias adio o juramento. Preciso de tempo e digo isto para me enganar. Como pode um homem precisar de tempo quando ele é tão exterior a nós, tão inexorável e impiedoso que se vive sem o podermos controlar, nem parar, nem acelerar? Somos este grande paradoxo. Desejamos a ucronia e a utopia e não podemos viver sem um tempo e sem um lugar. Como vê, sempre consegui arranjar uma explicação mais erudita para a desorganização em que estão os meus livros.

Sorriu, tranquilo, enquanto devolvia os papéis assinados ao assistente. E, sibilino, sentenciou:

- Mas vejo que não é a minha babel bibliográfica que o perturba. Também se interessa pela polícia científica.

Asdrúbal d'Aguiar estremeceu. O olhar penetrante de Azevedo Neves captava- -lhe as emoções. Titubeou uma explicação.

- Na verdade estou a ver autores que só conhecia de citação de rodapé ou de aparatos bibliográficos.

- Pode escolher e levar. Empresto-lhe de bom grado o livro que quiser.

- Obrigado. Muito obrigado!

Não sabia o que escolher, nem dizer. Também lá estavam as lições de Bombarda, os ensaios de Júlio de Matos e, toda enfileirada, e, por acaso, ordenada, a obra de Ernst Haeckel, o grande inspirador de Bombarda e de Celestino da Costa. As lições de Emile Littré e o incontornável Claude Bernard, o homem do experimentalismo e sumo pontífice de todos os candidatos a médicos-cirurgiões. Por fim, conseguiu dizer:

- Basta olhar os títulos e os autores para se perceber que procura explicações muito para além daquelas que encontramos na mesa de autópsias.

- A mesa de autópsias é fundamental, mas não decisiva. Bichat tinha razão naquele célebre artigo de 1803, como se fosse um grito: Ouvrez quelques cadavres! Nem imaginava as profundas consequências do seu alerta.

- Conheço o trabalho. Era um médico brilhante. Foi pena morrer tão novo.

- Sabe qual é a origem da palavra morgue? É um francesismo. Vem do verbo morguer. Significa observar com atenção. Começou por ser um espaço criado nas prisões republicanas de Paris. Uma cave em que a luz entrava por um enorme quadrado aberto no tecto e trancada com grades de ferro. Colocavam aí os presos recém-chegados e os guardas passavam pela sala para lhes fixar feições e, assim, reconhecê-los. Les gardes morguaient les detectes.

- Desconhecia por completo. Mas é curioso esse ritual de fixação de imagens.

- Os estudos antropométricos e de identificação eram rudimentares.

- E de fotografia nem se falava.

- Com o crescimento rápido da cidade de Paris à custa de não-naturais, começou a ser difícil gerir o progressivo aumento de cadáveres desconhecidos retirados do Sena, encontrados nas ruas, em estábulos ou nos buracos onde se abrigavam. A maioria vagabundos, pedintes, imigrados que procuravam Paris em busca de uma nova vida e morriam desvalidos e exauridos pela fome. Era preciso transformar os cadáveres desconhecidos em corpos conhecidos. A defesa da afirmação do indivíduo tornou-se tão importante na vida como na morte. Um princípio sagrado do liberalismo constitucional.

Asdrúbal d'Aguiar nem pestanejava. Sentia-se outra vez o jovem estudante para quem, nos primeiros dias de aulas na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, tudo era objecto de fascínio. Desde as gravuras e pinturas espalhadas pelas paredes dos anfiteatros onde escutava aos primeiros mestres, iniciando-o nos mistérios da medicina.

- Decidiram as autoridades, por falta de melhor condição, colocar os mortos nesses espaços. Assim, os cidadãos de Paris que procuravam os seus desaparecidos podiam morguer através das grades de ferro os mortos recolhidos durante o dia e sem qualquer identificação. Quando o professor Balthazar percebeu que tinha à disposição um exército de cadáveres para cumprir o grito de Bichat, sem preconceitos religiosos por parte das famílias, criou um espaço semelhante na Faculdade de Medicina e a autópsia tornou-se massiva, quer para ensinar os alunos, quer para fornecer perícias aos tribunais. A essa sala chamou-se morgue. A partir daí foi adoptada pelos hospitais escolares de toda a Europa. Em Portugal, atrasados como sempre, só tivemos a nossa Morgue em 1899.

- Eu sei. Dirigida desde logo pelo nosso mestre Silva Amado.

- O melhor tanatologista que conheço - afirmou Azevedo Neves com ar grave. E continuou: - A partir daí, abriram-se caminhos infinitos para a ciência e está a nascer um sol de esperança para a justiça, embora os tribunais não queiram saber do nosso trabalho ou o considerem pouco.

- Eu sei. Li um artigo do saudoso professor Sousa Martins sobre a denúncia das condições de trabalho dos peritos médicos na Boa Hora e é um retrato justo e perfeito.

- Azevedo Neves olhou-o, surpreendido.

- É maçom?

Embaraçado, o então jovem Asdrúbal d'Aguiar gaguejou.

- Não, não. Porque me pergunta isso? Deus me livre.

- Eu sou. Deus não me livrou disso.

Sentiu o chão a fugir-lhe debaixo dos pés e uma vertigem furiosa varreu-lhe o corpo.

- Peço desculpa. O senhor professor desorientou-me e já não sei o que digo. Já ouvi falar da Maçonaria, acho que é uma coisa de republicanos. Não sei. Confesso que não sei.

- Então, deixe-me desorienta-lo ainda mais. Sou maçom e não sou republicano. Apesar do desnorte que hoje reina na nossa instituição parlamentar, creio firmemente nos valores do regime constitucional monárquico.

Estava outra vez em desequilíbrio. Parecia que Azevedo Neves comprazia em coloca-lo em situações delicadas e não disse uma única palavra quando acatou a última tirada.

- Embora seja monárquico, a minha loja maçónica é constituída por menos correligionários meus do que por adeptos da República. - Azevedo Neves não evitou um sorriso ao ver o rubor intenso no rosto de Asdrúbal d'Aguiar.

- Desculpe-me. Apanhou-me de surpresa e... - as palavras ficaram coladas à garganta seca.

- Não se sinta embaraçado. Disse duas palavras que são sagradas para os maçons. Falou de um retrato justo e perfeito. Ora é a incansável procura da justiça e da perfeição que nos move. É uma espécie de fome. Uma fome que não se esgota na forma das coisas e que lhes procura a substância profunda sem se conformar com as respostas fáceis e preconcebidas. Como vê, esta necessidade de conhecer, de não nos conformarmos, auto--satisfeitos, com aquilo que o nosso primeiro filtro de vigilância crítica aceita como bom, é, por outro lado, um imperativo para qualquer cientista forense.

De repente, calou-se, mergulhado nas suas próprias reflexões. Dir-se-ia que uma inquietação profunda, quase infantil, lhe dominava os pensamentos.

- Foram tantos séculos de obscurantismo que temo as euforias que desvanecem os nossos amigos e nos atiram para outro universo de dogmatismos. A ciência não é uma deusa nem a revelação da verdade absoluta.

Asdrúbal d'Aguiar não estava preparado para aquela discussão. Terminara o seu curso há meia dúzia de anos e ainda em princípio de carreira, depois de um primeiro entusiasmo com a polícia sanitária e as propostas de saúde pública de Ricardo Jorge e Sousa Martins, que trabalhara intensamente a relação entre a tuberculose e as condições de habitabilidade, conhecera Silva Amado e os mistérios da anatomia patológica. E, seduzido, ingressara na Morgue de Lisboa, no ano da morte do rei D. Carlos. A tempo de testemunhar uma descoberta que só conhecia da bibliografia científica. O seu colega Rodolfo Xavier da Silva conseguira, pela primeira vez, identificar um cadáver através da comparação das impressões digitais, e foi com alguma surpresa que viu as manifestações de júbilo de Azevedo Neves, levado por um entusiasmo que dir-se-ia ser o autor do trabalho que marcaria a história da dactiloscopia e da medicina legal desse tempo. Tinham decorrido alguns meses depois desse evento quando se desenrolou esta conversa na residência do professor açoriano que um dia, há cerca de trinta anos, nascera em Angra do Heroísmo.

- Já percebi que não partilha do optimismo científico do professor Bombarda.

- O Miguel é um emotivo. Brilhante, mas destemidamente apaixonado pelas suas crenças, e quando a ciência é aceite como o valor absoluto da verdade cai na fé e torna o processo de conhecimento contraditório. Em nome da ciência, combate a fé e a religião e, por outro lado, a fé na ciência torna-a noutra religião. E não é assim. Este é o mais grave erro dos positivistas - e, soltando uma gargalhada divertida, rematou: - Sobretudo dos frades positivistas radicais, como o nosso frade Miguel Bombarda, devoto confesso de Littré e de Ernst Haeckel.

Riram os dois. Não era possível imaginar o arauto maior da virtude científica, que arrasava oponentes nas sessões académicas febris da Sociedade de Ciências Médicas, que assinava artigos devastadores contra os incrédulos na verdade científica, com o hábito de monge.

Desde esse dia que Asdrúbal d'Aguiar acompanhava com particular atenção a acção médica do seu interlocutor, embora não atribuísse grande importância à sua actividade política. Respeitava-lhe a condição monárquica, mas não conseguia ir tão longe na percepção política da vida do país. A República, embora não soubesse bem o que seria, era objecto de esperança, e tinha a certeza de que a agonia do regime monárquico precisava de tratamento a sério. E concordava com Miguel Bombarda. Só a República poderia salvar o país da catástrofe da miséria, desorientação e depressão em que se encontrava.

Agora, passados dez anos sobre esse primeiro dia em que fora a Amadora e partilhara as angústias de Azevedo Neves sobre os caminhos da ciência, era com a desilusão dos ingénuos que constatava a fragilidade da sua República, que a si própria infligia golpes mortais, como aquele que acabara de desferir contra Sidónio Pais.

Consultou o relógio quando saiu do Instituto. Já passava das 5 da tarde e a noite caíra sobre Lisboa. As pernas pesavam-lhe toneladas e o corpo doía-lhe de cansaço. O Campo de Santana estava deserto e frio. Mas parara de chover. De repente, avistou uma carreta, atrelada a uma parelha de bois, que se aproximava. Não lhe deu importância. Trazia, de certeza, mais um cadáver para a Morgue, e aquela evidência era um sinal que o afligia. Por mais recomendações, descomposturas, imprecações, ensinamentos, aos carroceiros, aos boieiros, aos polícias, os roteiros mórbidos dos mortos continuavam a devassar Lisboa. Carregavam-nos em carros de tracção animal, às vezes amontoados, sem discrição, aliciando curiosos, provocando os medos, exalando odores pútridos. As padiolas das misericórdias e das associações mútuas de ajuda já tinham dado o salto em frente, embrulhando os cadáveres em cobertas ou sacos de batatas, porém, o desleixo dos transportes para a Morgue continuava a denunciar uma cidade que não sabia cuidar de si própria.

- Aconchegou-se ao sobretudo e dirigiu-se à Rua de Santo António dos Capuchos. Passaria antes pela casa de Ana Rosa para saber do seu estado. Alice, a mãe, era empregada da sua família desde que casara e fora morar para o Torel, e conhecia a rapariga desde miúda. Alice vira a pneumónica a olhá-la nos olhos. Com escárnio. Roubara-lhe o marido, em Outubro e, em Novembro, levara-lhe os sogros, por quem nutria grande afeição. Agora ameaçava Ana Rosa, a única filha e única réstia da família. O país estava assim. Exposto, indefeso à voracidade pérfida da «espanhola» e não havia rua, nem casa, nem casebre que não tivesse sido atingido pelo luto e, enquanto a cidade dos vivos definhava, as valas comuns cresciam na cidade dos mortos. Nem tempo, nem cabeça havia para reconhecer os números. Num artigo recentemente publicado, Curry Cabral calculara que em cada cem infectados pela influenza oito teriam morrido. Não confiara muito. Sabia que os hospitais, conventos e escolas, transformados em enfermarias, estavam atulhados de doentes e a epidemia não dava sinais de partida. Era cedo para a estatística. Era tarde para quem tivesse sido contaminado pela sombra assassina do vírus. Mas havia um número do qual não duvidava. Só na cidade de Lisboa já tinha provocado muito maior número de vítimas do que os perto de sete mil soldados mortos que, meses antes, tinham sucumbido na batalha de La Lys, frente ao exército alemão, e que deixara o país em estado de choque. Era mais poderosa do que as balas e obuses germânicos, do que as granadas de gás mostarda, do que as baionetas de toda a guerra. Portugal, e segundo se dizia toda a Europa e as Américas, recebia a visita ímpia da morte, sob a forma de um vírus invisível aos olhos de qualquer microscópio.

Ficou satisfeito ao ver Ana Rosa. A tosse amansara. Era bom sinal. Os brônquios haviam resistido à asfixia e a pulsação estava menos acelerada. O oxigénio estava a chegar aos pulmões com mais facilidade e a febre baixara.

- Julgo que a enganaste, rapariga. A «espanhola» pregou-te um grande susto, mas desconfio de que não passou disso mesmo.

- Sinto-me melhor, mas estou muito cansada - gemeu Ana Rosa num murmúrio.

Era linda. Os cabelos negros cintilavam miríades à luz das duas candeias de azeite que iluminavam o quarto.

- Tens bebido muita água? Comeste?

Acenou e os olhos negros, grandes, brilhantes, diziam que sim, porém não havia alegria na expressão do rosto.

- Estás triste, Ana Rosa? Devias estar bem satisfeita, que a pneumónica pregou- -nos um grande susto. Sobretudo à tua mãe que... - de repente, parou olhando em volta: - A tua mãe? Abriu-me a porta e desapareceu?!

Duas lágrimas espreitaram, abraçadas à orla dos olhos negros de Ana Rosa.

- O que aconteceu, Ana? - perguntou o médico em alerta.

- Não sei. Acho que está doente e a culpa é minha.

- A Alice? Mas a minha mulher...

Calou-se. Glória não lhe podia ter dito nada, pois decidira ir directo do Instituto para casa da rapariga que agora soluçava.

- A minha mãe não foi trabalhar. Teve medo de pegar a maleita à senhora sua esposa e agora está com medo de ser despedida.

- Que disparate! - exclamou.

Pegou na candeia de azeite e subiu para o cubículo apenas fechado por uma cortina, que servia de quarto à mãe de Ana Rosa.

– Alice! - gritou - Onde estás?

Ia tropeçando nela. Enroscada sobre um pequeno banco de madeira, embrulhada no xaile negro, estava encostada, com a testa contra a parede, como se procurasse alívio na frescura das pedras. Aproximou a candeia do rosto dela e procurou-lhe o pulso. Alice estremecia de febre.

- Santo Deus, mulher. Estás a arder em febre! Vais imediatamente para o hospital.

- Sabe que não vale a pena, senhor doutor. Estão cheios e não há lugar. Se mandaram a minha filha para casa, mais depressa venho eu, que já estou a ficar velha.

- Mas ao menos és vista por um médico que te observa melhor do que eu e te passa uma receita com o medicamento que deves tomar. Tenho um colega amigo que está a receber doentes no Liceu Camões e vais levar uma mensagem que lhe vou escrever. Vou chamar uma tipóia para te levar e trazer, se for caso disso.

- Pela sua rica saúde, não faça isso. Não tenho dinheiro para as mezinhas quanto mais para pagar a tipóia. Ao menos que se salve a minha filha.

- Deixa-te de conversas tontas e vais fazer aquilo que te digo.

- E a minha filha? - perguntou, assustada. - O senhor sabe que não posso deixá- -la sozinha.

Asdrúbal ralhou:

- Se em vez de te esconderes, tivesses falado com a minha mulher, nada disso era preocupação. Vou chamar quem te leve ao liceu e acabou-se a resmunguice.

Saiu e, ao passar pelo quarto de Ana Rosa, ordenou:

- Não saias daqui e não deixes a tua mãe sair do quarto. Eu já volto!

E precipitou-se para a rua em direcção à sua residência.

Tinha de ignorar a exaustão, esquecer a fome e o sono que tanto ambicionara para essa noite. Aquela mulher ou era rapidamente tratada ou não teria a sorte de Ana Rosa. Há muito tempo que Asdrúbal d'Aguiar percebera na tosse e no arfar uma tuberculose latente, ainda leve, mas que o vírus poderia tornar letal. Nunca contara as suas suspeitas a Glória, mas, embora com discrição, vigiava há vários meses a empregada que lhes lavava a roupa e limpava a casa. Qualquer outro tê-la-ia despedido à descoberta do primeiro sintoma. Era uma ilusão. A tuberculose há muitas décadas que minava os pulmões da cidade. A comunidade científica já conhecia o bicho há muito tempo. Koch identificara o bacilo e baptizara-o com o seu nome. E era manhoso, embora mais preguiçoso do que o maldito vírus da infuenza que, agora, dizimava o país. Mais do que os vírus, bactérias, vibriões identificados em catadupa desde que Pasteur, armado com um microscópio, começara a invadir o mundo, até aí invisível, dos micróbios, o bacilo da tuberculose foi decisivo para varrer definitivamente as teorias dos miasmas, exorbitância ficcional que a medicina escolástica impusera como a causa que explicava todas as patologias inexplicáveis.

Koch seguiu Pasteur. Cabeça debruçada sobre a ocular do microscópio, sondou tecidos e células pulmonares até à exaustão e descobrira o mostrengo, esguio, dissimulado, operário mineiro que se deleitava abrindo galerias infinitas e mortais nos peitos de milhões de homens. E era assassino resistente. Não se conhecia mezinha nem composto químico, benzedura ou cirurgia complicada que o parasse quando ele não queria parar. Por vezes, trabalhava veloz e matava o seu hospedeiro em poucos meses. Outras vezes, preguiçava. Sem pressa, tranquilo, quase inocente. E, subitamente, quase sempre na ressaca de vulgares epidemias de gripe sazonal, transformava-se em Pégaso. Voava tresloucado, destruindo bronquíolos e brônquios, rebentando pleuras, transformando cada lobo pulmonar numa espécie de massa ardida, feita de tecidos retorcidos e fumegantes onde jamais entraria uma gotinha de oxigénio. Ricardo Jorge bem impulsionou os escarradores para prevenir a doença. Sousa Martins, apoiado por D. Amélia, ainda rainha de Portugal, bem labutara na Liga Contra a Tuberculose, importando da Alemanha os sanatórios, hospitais virados e expostos aos ares limpos e frios da Ota, do Caramulo, de Carcavelos, convencidos de que aí estaria o antídoto. Havia a crença de que o bacilo não gostava dos ventos ásperos e virgens de agentes patológicos que sopravam dos mares e pelas altas serranias. Tinha alguma razão quem apostava nos sanatórios. Porém, a força do assassino era maior do que todas as ventanias por mais invernosas e puras que fossem. Resistia e passeava-se tranquilamente pelos pulmões de milhões.

Quando entrou em casa, surgiu uma nova contrariedade. Moreira Júnior alambazava-se à sua mesa. Enorme e mais esfomeado do que o vírus da influenza, abriu os braços num gesto generoso.

- Como não aparecias para cear, fui comendo o que aí havia para a Glória não se zangar contigo por ter cozinhado em vão - e serviu-se de vinho.

A mulher percebeu que o marido vinha tenso.

- Asdrúbal, estás bem?

- Não. Estou mal. Acabo de sair da casa da Alice onde fui visitar a Ana Rosa antes de vir para aqui.

- Ela não veio trabalhar. Estava à espera que chegasses para ... - interrompeu o que estava a dizer e, assustada, perguntou: - A Ana Rosa...?

- Está melhor. A Alice é que está doente. Muito doente.

- Meu Deus!

- Diz ao nosso vizinho Américo que lhe peço o favor de engatar a tipóia na égua, pois preciso de a levar ao Luís de Camões. O Barahona está lá a receber doentes e observa-a.

- Também é pneumónica? - perguntou Glória, aflita.

- É capaz de ser pior. Julgo que foi contagiada e agravou a tuberculose.

Recuou dois passos com a mão na boca, olhos espantados:

- A nossa Alice?! - a voz ficou embargada de emoção. Moreira Júnior, que agora atacava o queijo com grande franqueza de gestos, sentenciou:

- Tuberculose com influenza é morte. Hoje vai ao Barahona... Amanhã é nossa cliente na Morgue.

Asdrúbal reagiu ríspido.

- És capaz de comer e estar calado?

Sem perceber a indignação do outro, perguntou com ingenuidade.

- Disse alguma mentira?

Só então se apercebeu da aflição de Glória e rapidamente procurou emendar:

- Claro que nem sempre é assim. Conheço vários doentes e escaparam.

Ela atalhou a conversa com decisão.

- Ficas aqui. Há duas noites que não dormes e não comes a horas. Eu vou com a Alice. Nem precisas de escrever nenhum bilhete que eu falo com o Barahonal - e saiu apressada.

Moreira Júnior, ainda com as bochechas rechonchudas do pouco de queijo, perguntou:

- Disse alguma asneira?

Asdrúbal deixou-se cair na cadeira em frente ao amigo.

- A Alice é nossa empregada há quase oito anos.

Engoliu o queijo de uma só vez ao mesmo tempo que dava um murro na mesa.

- Já meti água. Mas porque não continuei a comer e fiquei calado? Sou uma besta. Uma besta!

- Não te martirizes! – respondeu-lhe Asdrúbal, servindo-se de vinho. - Como diz o aforismo, quem nasce torto tarde ou nunca se endireita.

- É o meu caso! - comentou Moreira Júnior com toda a sua franqueza infantil. - Nasci desbocado e só arranjo sarilhos. Ainda por cima com a tua mulher, que pôs o assado de borrego na mesa e me deixou vasculhar a tua despensa. Ela não merecia.

- Esquece. Também não disseste nenhuma mentira. Fala-me de ti. Qual é a desculpa que arranjaste para vires dar-me cabo da despensa? Hoje já te ofereci o pequeno-almoço. Fiquei obrigado a oferecer-te o jantar?

- Não, não. Nem vinha para comer, mas como te atrasaste. Sei lá, comecei por petiscar e depois deu-me a fome enquanto esperava por ti. E não me ralhes! Por causa do teu atraso, já não janto em casa e a minha mulher não é mansinha como a tua. Vai ralhar toda a noite.

Asdrúbal d'Aguiar não conteve a risada.

- A Paula tem paciência de Job para aturar um patife como tu.

- É uma santa. Lá isso - admitiu Moreira Júnior e, num gesto de conforto, anunciou: - Estou bem! - e controlou um arroto enquanto retirava o guardanapo do pescoço.

- Passei no Instituto e disseram-me que já tinhas saído. Ouve: é a primeira e última vez que me mandas embalsamar o Sidónio Pais.

- Porque havia de fazer isso? - perguntou Asdrúbal enquanto comia. - Se o embalsamaste porque havia de te ordenar isso outra vez?

Concordou com um gesto da enorme cabeça enquanto palitava um dente.

- Tens razão. Hoje estou com tendência para dizer disparates - e, olhando em volta, inquiriu: - Não há nesta casa um conhaque ou uma aguardente para rebater o assado?

Asdrúbal levantou a cabeça da mesa e também observou a sala.

- Deve estar na cozinha.

- Eu vou buscar. Também vais querer?

- Já agora. Se me ofereces, fico muito grato - respondeu com ironia.

Levantou-se. Era, de facto, um homem enorme que as densas suíças e o cabelo alto ainda mais avantajavam. Começou a falar enquanto se dirigia à cozinha:

- Lá embalsamei o homem, mas foi um sarilho. Nunca vi tanta mulher na minha vida. O Sidónio ou tinha mel ou era um garanhão fugido das cavalariças da Ajuda. Grande cão. Mas que grande cão! Asdrúbal, qual é melhor? O conhaque, ou esta coisa que tens aqui, Scotch qualquer coisa? - perguntou da cozinha.

- É uísque! Traz o conhaque.

O outro respondeu-lhe:

- Já ouvi falar mas nunca provei. Vou levar as duas garrafas. Elas choravam. Algumas histéricas. Eram centenas de mulheres. Será que o raio do homem comeu aquele mulherio todo? Não encontro os cálices. Levo copos de água?

- Os cálices estão aqui.

Surgiu com as duas garrafas sem conter a perplexidade.

- Tive de chamar a polícia, senão levavam o cadáver. Foi preciso uma dúzia de polícias à porta para suster aquele exército de beatas com cio. Uma dúzia! Aliás, eu disse logo ao cabo, ou você me segura esta gente ou eu fujo daqui e não vou embalsamar o Presidente. Metiam medo.

- Não sabia que agora tinhas medo das mulheres - comentou, jocoso, Asdrúbal d'Aguiar.

Agora, depois de comer, sentia-se mais confortado. Após o dia que tivera, sabia- -lhe bem escutar aquele homenzarrão que tinha tanto de qualidades médicas quanto de ingenuidade quase infantil.

- Claro que tive medo. Tu não sabes o que é uma legião de mulheres em fúria. Ainda por cima, clamando vingança sobre os bandidos que lhe mataram o seu homem. Fugi, pois. Não tenho vergonha de dizer. Mas, diz-me, Asdrúbal, o que é que o tipo fazia às mulheres para estarem todas naquele estado? Gritavam, rezavam, lançavam pragas. Raios as partam! Se fosse eu que estivesse ali estendido, a chorarem por mim, não sei, mulheres - fazia contas mentalmente -, talvez a minha mãe e a minha Paula chorassem - e sublinhou com vigor: - Eram centenas, Asdrúbal. Centenas! E eu que vi o tipo todo nu, a propósito, meti num saco a roupa que tinha vestida e enviei-a para a polícia. Mas dizia eu que vi o cadáver nu e não era nada de especial. Formas equilibradas, mas a dar para o franzino. Se o abríssemos, tenho a certeza de que teria alguma adiposidade no abdómen, mas não chega a dez réis de gente aquele que ali está nos Jerónimos à espera da missa de corpo presente.

- Mas era bonito e elegante - comentou Asdrúbal d’Aguiar enquanto se servia do conhaque. - E, segundo ouvi dizer, era um conquistador de primeira água. Até parece que...

Foi interrompido pelo berro que Moreira Júnior soltou enquanto fazia uma careta que lhe dava uma expressão de comicidade:

- Que merda é esta? Tintura de iodo?

- É uísque. A aguardente dos escoceses.

- Tens a certeza de que não é iodo? Mas que grande merda. Dá-me o conhaque para lavar a boca - precipitadamente engoliu um trago e, mais aliviado, exclamou com desprezo: - Só os escoceses é que poderiam inventar esta merda. É tintura! Deve ser bom cicatrizador, não é porcaria para beber.

- Eu gosto.

- Um disparate. Ninguém pode gostar desta mistela - e tornou a servir-se do conhaque.

- Resumidamente, embalsamaste o Presidente e as mulheres não te bateram.

- Saí pelas traseiras depois do serviço feito. Um tal capitão Carneiro exigiu assistir ao meu trabalho e eu deixei. Acho que é um tipo importante. Não sei. Devia ser, pois trazia o traje que serviu de mortalha ao cadáver - ficou calado por instantes enquanto Asdrúbal o olhava com atenção. Começou a acenar afirmativamente com a cabeça e confessou: - Tenho de admitir. Quando o tal capitão Carneiro acabou de o vestir com o traje de gala e deitámos o corpo no caixão, reparei nas trombas do homem. Era jeitoso, sim senhor. Não direi bonito, bonito, mas era jeitoso. O bigode ficava-lhe bem. E a farda. Já reparaste na vida de um médico legista? Nunca vi o Sidónio, a não ser em fotografias, e quando me vem parar às mãos, conheço-o e o tipo já não me pode conhecer. É curioso, não é? Que se lixe. Lá que tinha mulheres em barda, tinha.

- Não notaste nada de anormal no cadáver?

- Não o abri. Apenas o injectei.

- Claro. Mas no hábito externo?

- Ah, é verdade. Suturei os ferimentos que lhe viste no peito e no abdómen. Eram orifícios com diâmetros diferentes.

Asdrúbal d'Aguiar inclinou-se atento à descrição.

- De certeza? Fizeste a medição?

- Não fiz nada. Estás maluco? Disseste-me que era proibido autopsiá-lo. Começava a fazer gestos autópticos, mesmo sobre o hábito externo, e o tal capitão Carneiro levava--me preso. Eu cumpro ordens. Não passo de um miserável médico que estuda anatomia patológica, abro uns cadáveres quando me deixam e embalsamo uns tipos quando me mandam. O Sidónio meteu centenas de pessoas na cadeia. Era o que me faltava, ir parar ao Aljube, já com ele morto, porque andei a fazer exames proibidos. Não. Vi! Vi, suturei e registei. Tenho de dizer ao meu chefe que os ferimentos não são iguais, logo foi atingido por duas armas de calibre diferente, logo existem dois tipos que dispararam contra ele. Pensei mal?

- Não, não. Tens toda a razão.

- Posso não saber sobre mulheres o que esse valdevino do Sidónio Pais sabia, mas sou sério no meu trabalho. Coisa que, julgo, ele não era.

- Continuas a ter razão.

Já lhe restavam poucas dúvidas desde que lera os jornais e vira o cadáver de relance. Dois aventureiros, combinados ou não, tinham disparado quase em simultâneo contra o Presidente da República. Deveria ser o tal homem que estava preso no Governo Civil e um dos cadáveres que se encontravam na morgue. Haviam usado armas de calibres diferentes. Era a única informação complementar que poderia prestar à polícia. Ou, então, os dois tipos assassinados à queima-roupa pela segurança de Sidónio Pais e havia um inocente na cadeia.

Moreira Júnior começou a vestir o enorme sobretudo. Era perceptível que estava indolente.

- Ficava a fazer-te companhia até a Glória trazer notícias da tua empregada, mas tenho a minha mulher à espera e já resta pouco conhaque.

- Quando terminar, ataca-se a garrafa de uísque.

- Deus me livre! É contra os meus princípios morais beber tintura de iodo. Isso mata mais depressa do que a pneumónica. Até amanhã. Agradece à Glória por mim e dá um beijo aos teus filhos. A minha Paula deve estar à espera que eu chegue, armada com o rolo da massa - e saiu.

Asdrúbal d'Aguiar não se levantou da cadeira para o acompanhar à porta. O cansaço era mais forte do que a sua vontade e o conhaque ajudara a fazê-lo cair numa modorra preguiçosa. Retirou o relógio da algibeira do colete e consultou as horas. Era quase meia-noite e estava indeciso. Glória saíra há mais de uma hora e deveria estar com Alice no liceu, perdida na vaga de doentes que ali chegavam. Deveria ter ido no seu lugar. Também estimava Alice e nutria uma ternura especial por Ana Rosa, que viu crescer, dia após dia, ao longo dos últimos oito anos. Foi, então, que se lembrou dos seus filhos, o Asdrúbal e a Maria, que, desde a chegada da pandemia, eram mais as vezes que os via a dormir do que os poucos momentos que pudera brincar com eles. O rapaz tinha quatro anos e ela ia fazer dois.

Acendeu a luz do corredor e, pé ante pé, entrou no quarto. Teve de esperar alguns instantes para se habituar à penumbra, até que lhes viu os tufos de cabelos, que saíam dos cobertores, espalhados sobre as almofadas. Aproximou-se, por entre as duas camas, e sorriu de prazer, observando o sono seráfico. Ficou a olhá-los por instantes e comoveu--se. Existe uma relação estranha entre o amor e as lágrimas que intrigava Asdrúbal. A verdade é que a quietude dos filhos, a paz profunda do sono de ambos, talvez a sua natureza, que deixa indefeso quem dorme, conferia aos rostos das duas crianças expressões de conforto e felicidade que lhe tocavam o coração e lhe picavam as lágrimas. Beijou-os suavemente e deu por si a pensar que não lhe apetecia sair dali. Havia um odor especial naquele quarto. Cheirava a doces e leite quente, e talvez fosse o nariz, dia após dia açoitado com os cheiros nauseabundos da morte, que lhe tivesse implorado que ficasse. Deitou-se no tapete que separava as duas camas, vaidoso, vigilante do sono da sua prole, à espera de ouvir a porta bater, anunciando a chegada da mulher.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


DOIS TIROS E TRÊS SUSPEITOS

 

 

Moreira Júnior sossegara-o. O factor de serem armas de calibres diferentes consolidava os testemunhos dos próprios jornalistas presentes no local do assassínio. Por outro lado, embora houvesse a possibilidade de serem dois conspiradores autónomos, sem ligações entre si, investindo contra Sidónio Pais era uma hipótese remota e uma coincidência de acções que dificilmente se compreenderia. Fora Azevedo Neves que um dia, numa conversa sobre livros policiais, lhe ensinara o ordenamento das hipóteses para a explicação de factos criminais desconhecidos. - A consumação de um crime tem a espontaneidade e a simplicidade dos nossos gestos quotidianos mais superficiais. Devemos partir sempre da hipótese mais simples para a explicação de determinados factos. Se a mais simples não for compatível com a compreensão clara do sucedido, então sobe-se outro degrau para maior complexidade. Se tornar a falhar, colocamos outra hipótese ainda mais sofisticada, até chegarmos às hipóteses fantásticas, por mais invulgares que nos possam parecer.

Aplicando-se este método aos acontecimentos ocorridos na noite de catorze de Dezembro, na estação do Rossio, a hipótese mais simples, e mais coerente, seria admitir que os dois atiradores agiram em conluio. Escolheram posições para o ataque, deverão ter acordado um sinal para agirem, combinaram disparar ao mesmo tempo para que não houvesse dúvidas de que atingiam Sidónio. Correndo o risco de um deles falhar o alvo, tornava-se mais difícil dois homens, quase em simultâneo, à queima-roupa, não matarem o Presidente. Poderia estar preso um inocente. Porém, poderia ser culpado, e um dos assassinados à queima-roupa apenas resultado do descontrolo policial.

Não lhe restavam dúvidas. Não só era a hipótese mais simples como a mais plausível. Conclusão que o levou a admitir a audácia dos conspiradores. Audácia meticulosamente organizada para matar e com a certeza de que o atentado também significava as suas próprias mortes. Não poderia concluir de outra forma quem preparou, para aquele local, o homicídio. Sabia a hora de chegada do Presidente, conhecia, com toda a certeza, o aparato de segurança, pois que o rodeava uma escolta fortíssima desde que fora alvo de um outro atentado frustrado, durante a homenagem à tripulação do vaso de guerra Augusto de Castilho. Os conspiradores tinham consciência clara de que, após os disparos, dificilmente sairiam vivos da armadilha que eles próprios haviam montado. Tudo indicava que um deles se salvara. Afinal de contas, a única anormalidade era um deles ter escapado com vida. Era contraditório, pensou, que num cenário de morte absoluta um deles tivesse sobrevivido. Com a polícia a disparar a eito, que sortilégio teria conduzido a que se tivesse salvo um dos assassinos? Tinha razão Azevedo Neves, o cientista céptico que duvidava da fé no determinismo. A entropia dos fenómenos continha intervalos de variação que abria excepções em qualquer lei que se lhe aplicasse.

Maria virou-se na cama e a mãozinha saiu dos cobertores. Afagou-lha suavemente e um imenso e terno conforto inundou-lhe o peito. Era tão bonita a sua filha! Um dia, quando os dois fossem grandes, desejava poder passear com eles por uma cidade mais feliz e contar-lhes as histórias da Lisboa parda e faminta, em que agora dormiam. Talvez tudo mudasse. Não era possível viver muito mais tempo sob o flagelo mortal da epidemia, com racionamento de pão, centenas de mendigos e ofendidos pela vida aguardando em filas intermináveis a esmola de uma tigela de sopa. Não seria possível sobreviver num país exaurido, que nem tivera tempo para sarar as feridas da terrível Grande Guerra, respirando a custo o ar da vida ainda por cima empestado de bacilos e vírus, exército assassino de que não havia igual memória. Queria acreditar naquele quarto, vigiando os filhos, que haveria de renascer uma Lisboa pejada de flores e acácias, tranquila, sem as paixões políticas que matavam e prendiam tantos homens, todos apaixonados pelos sonhos de construir coisas belas. Uma nuvem escureceu a luminosa fonte dos desejos e a idealização da cidade dos seus filhos, a sua Jerusalém Celeste, toldava-se de nevoeiro. Ainda viu Glória a falar com o seu colega a propósito da doença da empregada e, sem saber como, estava ao pé de Ana Rosa, que sorriu, sem falar. E não percebeu que já não sonhava os sonhos dos homens desfeitos, mas o do sono em que caíra, enroscado como um cão de guarda no tapete, entre as camas dos seus filhos Acordou em sobressalto. Alguém lhe afagava o ombro e levantou-se, estremunhado.

- O que é? Quem foi? - Glória fez-lhe sinal para que falasse baixinho.

- Schiu! Não acordes as crianças. Vem para a cama que estás gelado. Que ideia foi essa de dormires no tapete? Vem.

Segurando-lhe a mão, conduziu o marido cambaleante para fora do quarto. Ainda balbuciou, sonolento:

- Gomo está a Alice?

- Ficou internada. O Barahona está a cuidar dela. Vê se dormes! – murmurou.

E Asdrúbal d'Aguiar dormiu profundamente. Não podia saber que, nessa mesma noite, a mãe de Ana Rosa adormeceria para sempre.


Nessa noite em que Asdrúbal dormia e Alice partiu, com ela partiram mais vinte desgraçados nas padiolas que saíam apressadas, limpando as camas dos hospitais para dar lugar a mais vinte moribundos.

Foi Glória quem soube da notícia. O marido já trabalhava no Instituto àquela hora e ela correu para junto de Ana Rosa, abraçando-a com aquele abraço que só as mães sabem oferecer. E choraram juntas por Alice.

O médico acabara de mandar fechar outro cadáver e assentou no registo da causa da morte, influenza, quando o contínuo lhe veio dizer que o guarda mil duzentos e setenta e um, da esquadra do Rossio, queria falar com o senhor doutor.

Apressou-se a lavar as mãos e a despir a bata. Era o homem que acompanhara os mortos da estação do Rossio. Foi recebê-lo no seu gabinete.

Tinha uma cara rechonchuda que lhe apertava os olhos, dando a sensação de que eram de vidro. Percebia-se que estava pouco à vontade.

- Disseram-me que o senhor doutor queria falar comigo!

Tinha a cabeça descoberta, porém, perfilara-se em posição de sentido perante o clínico.

- Obrigado por ter vindo - respondeu Asdrúbal e questionou: - Como disse que se chama?

- Leandro Silva, guarda mil duzentos e setenta e um, um criado ao seu dispor.

- Senhor Leandro, acompanhou os cadáveres recolhidos na estação do Rossio na noite em que foi assassinado o nosso Presidente da República?

- Saiba vossa senhoria que fui eu.

- Estava no local quando aconteceu a tragédia?

- Então, não estava! Nem me fale dessa noite, pela sua rica saúde, que ainda hoje tremo só de me lembrar do que ali se passou: tremo! - e, ao dizer isto, a hirta posição de sentido murchou.

- Deve ter sido uma grande confusão! - Asdrúbal abria, desta forma, as portas para que ele soltasse a língua.

- Uma grande confusão, fique vossa senhoria a saber. Quando começaram os tiros havia gente correndo em todas as direcções.

- Imagino.

- Não pode imaginar - a excitação do guarda crescia conforme recordava os acontecimentos: - O chefe tinha-me dito. A mim e ao trezentos e vinte e quatro, que é das Terras do Bouro. Saiba vossa senhoria que nasci em Pevidém, concelho de Guimarães, e costumo fazer patrulha com ele. E o chefe disse: «Tu e o vinte e quatro, que é o trezentos e vinte e quatro, ficam aqui.» A ordem era não deixar entrar povo pelo pátio onde chegou o automóvel de Sua Excelência, que Deus lhe tenha a alma em bom repouso. Até Sua Excelência entrar na estação, vi-o ali, ali mesmo a um metro de mim, e fiz-lhe a minha continência. Eu e o vinte e quatro e Sua Excelência respondeu e lá foi a caminho de ser morto.

- Quer dizer que não viu ninguém disparar?

- Não vi, que aquilo deu-se ao virar. Está a ver, vossa senhoria. Ele virou para dentro, para os lados dos comboios, e começou o cagaçal. Não sei se cagaçal é uma palavra bem dita, mas foi isso mesmo. Era só gente a fugir. Santo Deus. Mas eu e o meu camarada avançámos ao contrário. Apanhávamos com o pessoal de frente. Todos a correr, mas avançámos e lá estava Sua Excelência, rodeado de gente importante, mas com dois balázios enfiados no bandulho de Sua Excelência. Nem teve tempo de dizer ai! E já ia desta para melhor. Mas Lisboa está assim. Cheia de bandidos. Ele é a política, ele é o racionamento, já não sei. Matam e roubam com toda a sem-vergonhice. Ainda por cima, a «espanhola» e agora o finado de Sua Excelência!

Falava pelos cotovelos. Já deveria ter contado dezenas de vezes a sua história à família, aos amigos, aos companheiros de taberna. Era um momento alto da sua carreira e mostrava-o, ufano, com toda a inocência. Seria uma boa testemunha se tivesse visto. Sentia-se actor da tragédia e orgulhava-se de ter participado nela.

- Viu o José Júlio da Costa?

- Ai não que não vi. Berrava como um bezerro desmamado, que estava inocente, que não era ele, e mais isto e mais aquilo, mas os meus camaradas já o tinham imobilizado, fazendo uso da força que lhes está distribuída, e levaram-no para o Governo Civil.

- Quer dizer que ele gritava estar inocente?

O guarda compôs um ar grave, inclinou-se para a frente e murmurou, cúmplice.

- Gritam todos o mesmo, senhor doutor. Mas quando lhes encostamos a roupa ao pêlo o caso muda logo de figura. Disse-me o vinte e sete que fez parte do grupo que levou esse Costa, que, logo, mal entrou na viatura, começou a levar nas trombas e quando entrou nos calabouços foi tratamento de choque - não conseguiu evitar uma risada bem-disposta e continuou com os olhinhos a piscar: - Primeiro era que não, que não, que não. Ainda a tareia não tinha chegado ao fim e já gritava que sim, que sim, que sim - e retomando a expressão séria e a posição de sentido concluiu: - Não havia dúvidas. Era ele. Confessou tudo.

Asdrúbal d'Aguiar conteve a repulsa. Conhecia bem as confissões arrancadas sob tortura, aliás, diligência fundamental em qualquer processo-crime apresentado em tribunal. Já interviera em julgamentos suficientes, como perito, para perceber que réu, inocente ou culpado, era objecto de uma justiça prévia feita de bastonadas, pontapés e murros, que deixava bandido, ou putativo bandido, com o rosto disforme e uma ou outra costela partida. E aquilo que mais o surpreendia era a indiferença com que os juízes, perante hematomas e equimoses, por vezes ferimentos profundos, decidiam o caso sem que passasse pela cabeça de algum fazer a simples pergunta: «Como é que isso lhe aconteceu?»

A tortura era a primeira diligência policial incorporada subjectivamente, graças a uma memória milenar de suplícios, em cada confissão julgada como boa no Tribunal da Boa Hora. Era contra esse demónio milenar que Azevedo Neves vinha organizando, há mais de uma década, um pequeno exército de cientistas, tropa fraca sem acolhimento forense que, aos poucos, começava a pisar os calos aos esbirros da violência. Uma vez, durante uma das conversas que rodeavam a bancada de autópsias, avisara-o:

- Não tenha dúvidas, meu caro. Cada passo que damos nesta sala, cada descoberta na nossa Repartição da Polícia Científica, cada conclusão toxicológica do nosso laboratório, são tiros certos contra o coração da prova judiciária assente na tortura e no testemunho. É verdade que os nossos tribunais desconfiam dos estudos de Bertillon e da fichagem dactiloscópica. Que o grande trabalho neste domínio realizado pelo nosso amigo Xavier da Silva levará tempo a ser reconhecido pelos nossos tribunais, mas não tenha dúvidas! Dias hão-de chegar em que a identificação de uma impressão digital valerá mais do que cem testemunhas e cem confissões arrancadas sob espancamento e vileza.

- Como pode confiar tanto nessa certeza?

- A ciência forense é como o bacilo da tuberculose. Avança devagar e não recua. Cada passo, por mais pequeno que seja, é uma grande vitória contra a indignidade do sofrimento provocado.

O mil duzentos e setenta e um permanecia em sentido, impante de satisfação. Asdrúbal d'Aguiar mudou de assunto.

- Foi o senhor e o seu colega que recolheram os mortos?

- E não só, e não só! - Apressado, explicou rapidamente: - Mas eu não matei nenhum. Nem tirei do coldre a arma que me está distribuída. Isso não. Não é que tivesse medo de usá-la, mas não foi necessário. Os mortos estavam mortos e bem mortos.

- É essa a razão que me levou a pedir-lhe o favor de vir falar comigo, coisa que lhe agradeço muito.

A cortesia do médico inchava o peito do guarda e, quase comovido, repetiu:

- Sou um criado às ordens de sua senhoria.

- Consegue recordar-se em que sítio estavam os mortos?

- Claro! - respondeu prontamente. - Estavam todos para lá e Sua Excelência estava para cá. Tal como lhe digo.

- Desculpe-me, mas não percebi. Para lá?

- Das arcadas. Aquilo dos tiros contra Sua Excelência deu-se à passagem das arcadas para a gare. Sua Excelência ia para o Norte, naquelas visitas que ele fazia aos doentes da «espanhola». Deu-se ali. Sua Excelência caiu para cá. Os outros caíram para lá.

- Quer dizer que os cadáveres que vieram para aqui estavam na zona de embarque.

- Exactamente como expliquei ao senhor doutor. Do lado de lá e Sua Excelência tinha o corpo para cá.

- E onde é que prenderam o Júlio da Costa?

- Ali, mesmo no meu meio! – encarniçou-se como se estivesse a prendê-lo. - Estava na arcada, foi ali mesmo, cum caralho! Perdoe-me, vossa senhoria se disse uma palavra feia. Mas nem deu um passo. Ali, mesmo. Os meus camaradas não o deixaram dar um passo que fosse. Ali, mesmo no meio, entre o lado de lá e o lado de cá.

- Debaixo da arcada por onde ia entrar o Senhor Presidente quando foi atingido.

- Exactamente como expliquei ao senhor doutor. Ali, mesmo no meio.

- Senhor Leandro, e esse Costa estava mais para a esquerda ou mais para a direita.

- À esquerda de quem vai de cá para lá. Devia estar escondido, encostado do lado de lá do pilar esquerdo e o bandido disparou para o lado de cá, dando cabo do canastro de Sua Excelência! - depois ajeitou a resposta, tal como percebeu o crime: - Que aquilo foi obra de dois. Devia estar outro escondido no pilar direito, também do lado de lá. E zás! Os dois combinaram disparar ao mesmo tempo para o lado de cá. - Enquanto falava, avançava ou recuava o braço conforme a posição que descrevia.

- Acha que foi assim?

- Não pode ter sido de outra forma, senhor doutor. Já disparei muitas vezes para conhecer a cadência... aquilo foi, pum! Pum! Quase ao mesmo tempo e, mesmo sendo rápido, quando uma pessoa dispara é pum! ... Pum!... Há sempre um intervalo e ali não houve. Pum! Pum! Eram dois. Um deles veio para aqui, que levou logo um tiro nos cornos que foi desta para melhor. Estava caído junto ao pilar direito. Do lado de lá.

- E os outros?

- Mais afastados, mas todos do lado de lá, como disse ao senhor doutor.

Asdrúbal compreendeu a situação, apesar do emaranhado de palavras com que o guarda se explicava. Num papel ia registando as posições dos mortos.

- Queria pedir-lhe mais um favor, senhor Leandro. Gostava que fosse comigo ver os cadáveres e me dissesse, caso se recorde, o local onde apanhou cada um deles.

- Não é favor nenhum - respondeu, solícito. – Lembro-me deles todos. - De repente, parou, desconfiado: - Perdoe-me vossa senhoria, mas qual é o interesse do senhor doutor nestas coisas? Não é para fazer mal aos meus camaradas que tiveram de matar aquela canalha, pois não?

Asdrúbal sorriu, tranquilizador.

- Sou médico, senhor Leandro. Não sou polícia, nem juiz. Limito-me a fazer autópsias e para serem bem feitas preciso de conhecer estes pormenores. O caso está resolvido e a polícia de parabéns. Prestou um bom serviço à República resolvendo o crime. Seja como for, tenho de autopsiá-los.

O guarda recuperou a confiança e desabafou:

- Conte comigo, mas não gabo a sorte ao senhor doutor. Tenho uma profissão ruim, mesmo malvada. Mas vossa senhoria tem uma profissão de merda, com o devido respeito. A lidar com mortos a toda a hora, mal por mal, prefiro fazer patrulhas com o vinte e quatro.

- Tem toda a razão, senhor Leandro - comentou Asdrúbal d'Aguiar, bem- -disposto: - Se pudesse escolher também queria andar em patrulha. Vamos?

- Às ordens!

Saíram do gabinete e dirigiram-se à Morgue. À medida que avançavam a atmosfera ganhava intensos odores contraditórios. Cheirava a carne adocicada e a azedo. O gás sulfídrico da putrefacção distribuía o cheiro peculiar dos ovos podres e o guarda mil duzentos e setenta e um puxou de um lenço com que cobria a boca e o nariz; pálido, grasnava:

- Cheira mal para caralho. Cum caralho! Que cheirete do cacete. Ó que puta de vida a minha!

Quando entraram, a visão de vários cadáveres empilhados sobre as pedras quase o fazia desmaiar. O médico segurou-lhe o braço, espevitando-o.

- Coragem, homem de Deus. O senhor é uma autoridade da República! É uma honra recebê-lo aqui.

O elogio animou-o e percebia-se que fazia um esforço tremendo para não perder a dignidade. Nem o equilíbrio. Mas não tirava o lenço do rosto. Asdrúbal conduziu-o a um canto onde estavam alinhados os cadáveres daquela noite. À primeira vista não os reconheceu. A repugnância e a discreta penumbra da sala perturbavam-lhe a capacidade de observação. Asdrúbal conhecia o remédio para aquele estado de choque e começou a falar naturalmente como se estivessem a apreciar um jardim.

- Dois deles são mais novos e os outros dois cinquentões. Este - apontava para aquele que entrara como desconhecido - foi reconhecido hoje por um vizinho. É de Arganil e parece ser casado. Tem cinquenta e dois anos. Aquele, - e apontava para o que estava ao lado, - é de Aveiro. Tem cinquenta e três anos e chama-se José Vidal. Trabalhava nas obras. - Com o queixo apontou os mais distantes. - Aqueles dois são mais novos. O mais jovem era carregador na estação do Rossio e o outro morava na Rua de São Paulo e era empregado do comércio. Está a ver o peito? A mancha de sangue na camisa? Quer este, quer o Vidal, de Aveiro, foram mortos com tiros no peito e nas costas. Devem ter sido apanhados por balas perdidas. Não concorda comigo?

- Concordo, concordo.

O médico prendera-lhe a atenção e a sensação de náusea começara a desaparecer, embora estivesse desejoso de desertar daquele lugar malcheiroso. Apontou para um dos mortos.

- Esse aí, com o tiro nas costas, era o que estava mais longe das arcadas. Talvez uns quinze, vinte metros para o lado de lá.

- Para a esquerda ou para a direita?

- Para a esquerda - de súbito, empertigou-se: - Esse aí - apontava para o cadáver que fora reconhecido como oriundo de Arganil, - esse aí estava mesmo junto à coluna da direita. Quase de certeza que é o outro assassino. O Costa disparou de um lado e foi este que estava no outro lado. Tem de ser este! O rapazito que ali está com a cara desfeita encontrava-se a dois passos deste, assim caído para a direita. Lembro-me bem, pois havia muito sangue à volta dele. O outro rapaz que vossa senhoria disse ser empregado do comércio estava aí a uns cinco ou seis passos da coluna onde o Júlio da Costa foi preso.

- Do lado esquerdo?

- Exactamente. Do lado esquerdo. E do lado de lá. Cinco ou seis passos. Do lado de lá.

O médico registou no papel com cruzinhas as posições que o outro dissera. Mostrou-lhe o desenho.

- É mais ou menos isto, não é?

Agarrou o papel, observando com atenção.

- Pois. Junto à coluna esquerda foi este - e apontava o homem de Arganil. - Aqui mais afastado, este - e indicou o Vidal, de Aveiro. - O rapazito é aqui. Exactamente. Eram dois passos e havia sangue por todo o lado. Exactamente. E aquele é aqui. Exactamente! Todos do lado de lá. Sua Excelência caiu aqui - com o dedo apontava um ponto no papel e acrescentou: - Do lado de cá!

- Muito bem. Nem sabe quanto lhe fico grato, senhor Leandro. Foram informações preciosas para o meu trabalho.

- É uma honra poder ajudar vossa senhoria num trabalho tão doloroso - e mudando de tom, perguntou, curioso, nariz levantado farejando a sala: - Cheira menos mal ou é impressão minha?

O médico sorriu. Deu-lhe uma palmada amigável nas costas e, desdramatizando a pergunta, brinca.

- O cheiro continua a ser o mesmo. O senhor é que já se habituou um bocadinho. Com mais umas visitas à Morgue, ainda acabo por convidá-lo para ser meu assistente.

- Pela sua rica saúde, senhor doutor! Nem a brincar. Nem a brincar! Isto cheira pior do que os calabouços do Governo Civil. Nem a brincar!

O guarda dera-lhe informações preciosas. Embora não percebesse bem a razão por que as achava preciosas. O caso estava encerrado, Sidónio Pais embalsamado, pronto para as exéquias fúnebres, o Júlio da Costa era autor confesso, independentemente dos métodos utilizados para lhe extorquir a confissão, existia um eventual cúmplice, que fora abatido no mesmo instante em inequívoca legítima defesa, portanto as autópsias que iriam realizar transformavam-se em casos rotineiros que apenas haveriam de confirmar o relatório policial, já redigido, onde, na sequência da refrega, ficaram feridos tantos cidadãos, conduzidos aos hospitais, e tantos mortos, levados para o Instituto de Medicina Legal.

Porém, embora tivesse a certeza de que não havia qualquer contributo a dar, cada vez que procurava arquivar mentalmente os factos ocorridos naquela noite de catorze de Dezembro, por cada resposta encontrada surgiam-lhe sempre perguntas que não o deixavam sossegar. Por vezes, dava consigo a pensar que ficara traumatizado com a morte do Presidente da República. Mas recusava a hipótese. Com excepção de Azevedo Neves, quer ele, quer os seus colegas nunca haviam tentado incursões no mundo da política. As horas do dia não lhe chegavam para o trabalho, para o estudo e para a investigação, pelo que vivia um pouco ausente dos psicodramas que, por vezes, agitavam os parlamentos ou o Governo. Não gostava nem desgostava de Sidónio Pais. Considerava a sua inteligência. Doutorara-se na Universidade de Coimbra, tornando-se lente da disciplina de cálculo infinitesimal, com vinte e seis ou vinte e sete anos. Não era odisseia para qualquer um. E admitia que o facto de um jovem com a previsão de uma carreira académica brilhante desistir para se dedicar à política fora uma decepção. Quando tomou o poder pela força, em Dezembro do ano anterior, a decepção dera lugar à antipatia ao perceber a sua caminhada para a usurpação de poderes e a decisão de prender os opositores. O lente de cálculo infinitesimal transformava-se num político vulgar e caciquista. Agravou-se, ainda mais, quando percebeu o desprezo com que desleixava o apoio às tropas portuguesas que, na Flandres, envolvidas na Grande Guerra, sucumbiam doentes e quase indefesas perante o poderoso exército inimigo. O general Erich Laudendorff desenhou a Operação Georgette, que lançou o Sexto Exército Alemão contra o mal alimentado e mal armado Corpo Expedicionário Português, infligindo uma derrota humilhante e matando mais de sete mil portugueses. A tragédia de La Lys não incomodou sobremaneira o Presidente da República, germanófilo declarado desde que fora embaixador em Berlim. Essa indiferença ainda levou Asdrúbal d'Aguiar a maiores indignações. Porém, meses depois, fazia as pazes com ele. Portugal, por decreto assinado pelo seu punho, integrava os países que, graças ao esforço de cientistas forenses, reconhecia a tanatologia e as ciências correlatas, entregando à Morgue a dignidade de Instituto de Medicina Legal. Culminava um longo processo, com mais de meio século, de afirmação do conhecimento científico nos territórios judiciários, desacreditados pelas sentenças injustas, pelas perseguições vingadoras, pela iniquidade dos próprios tribunais e das peças processuais que, baseadas no senso comum, na subjectividade, no empirismo acrítico, tornavam a confissão de um crime na verdade de todas as verdades, na fé legitimadora da boa sentença condenatória. A confissão era a prova rainha, que confortava juízes e condenava à forca, à guilhotina, ao degredo, aos trabalhos forçados, a penas vis e impiedosas, à morte e ao sacrifício o culpado e o louco, o justo e o pecador, o criminoso e o inocente.

Eu confesso! Era o primeiro passo na sinistra caminhada até ao Hades, ao inferno de todas as culpas.

Voltaire tinha combatido como um leão contra esta justiça superficial e cruel. Victor Hugo transformara Os Miseráveis num romance que era um libelo acusatório contra polícias e tribunais. Alexandre Dumas seguira-lhe os passos, escrevendo o extraordinário Conde de Monte Cristo. Emile Zola zurzia a justiça francesa até ao ridículo, ensaio após ensaio, e, em Portugal, a injusta condenação de Urbino de Freitas, professor da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, suspeito, acusado e sentenciado por ter envenenado as sobrinhas, levantou um clamor de revoltas que se ouviram nos tonitruantes artigos de Miguel Bombarda, nas implacáveis críticas de Câmara Pestana, na acidez literária de Sousa Martins. A rebelião dos cientistas, crentes no determinismo positivista e no experimentalismo laboratorial, reviu-se na severa proclamação de Edmond Locard, que propunha o fim da confissão como meio de prova judiciária e garantia: «No dia em que os cientistas forenses conseguirem, através de laboratórios de polícia, fundamentar a prova, a confissão deixará de ser necessária. E, não sendo necessária, acabará, de vez, a tortura e o sofrimento.» A ciência tinha esta missão sacerdotal a cumprir. Demonstrar cientificamente um indício, transformando-o em prova irrefutável, era o passo decisivo para humanizar a humanidade. A tortura teria os seus dias contados.

Era esta a crença maior que habitava Azevedo Neves e, na qual se iniciara Asdrúbal d'Aguiar.

Um dia emprestou-lhe dois livros de Locard. Intitulavam-se Manuel de Technique Policière e o outro Manuel de Police Scientifique.

- Leia isto. São as nossas bíblias.

Asdrúbal d'Aguiar desatou a rir.

- O senhor professor parece um sacerdote a encaminhar-me para a Bíblia.

- A Bíblia dos padres encaminha-nos para Deus. Estes que lhe empresto encaminham-nos para os comportamentos dos homens. A única finalidade do espírito científico: purificar a justiça, tornando-nos justos nas acções.

- Vou ler com toda a atenção. Pode crer.

Eram sínteses. Vulgatas que articulavam todos os saberes e descobertas, oriundas de várias áreas do conhecimento. Apenas um elo em comum: o método experimental e procedimentos lógicos e deterministas. De certa forma, Locard recuperava os silogismos de Aristóteles. Se A é igual a B, e B é igual a C, então A é igual a C. Chamou-lhe a Permuta de Locard. Qualquer indivíduo que entre num determinado espaço deixa vestígios da sua presença e transportará vestígios do espaço que ocupou. O nexo de causalidade estabeleceria as relações entre os vestígios. Os cientistas pegavam neles e tratavam- -nos nos laboratórios. A impressão digital recolhida era encaminhada para a dactiloscopia, uma mensagem manuscrita para os grafologistas, seguidores dos estudos de Crépieux-Jamim, os cartuchos dos projecteis para a balística, graças aos trabalhos, no domínio da óptica, de Reiss, que transformara os rudimentares microscópios de Pasteur, em potentes objectivas, que ampliavam a mil e a mil e quinhentas vezes. O cadáver era tratado na morgue, que Bichat e Balthazar consagraram como o grande laboratório da anatomia e da anatomia patológica, e assim sucessivamente. Dissecavam, analisavam, testavam, comparavam, recuperando a tradição da ficha antropométrica criada pelo célebre ladrão-comissário Vidocq, pioneiro francês da polícia republicana. Finalmente, reconstituía-se a cena do crime e punham-se os vestígios a interagir. Aqueles que conduzissem à compreensão do acto criminoso e fosse possível relacioná-los com o criminoso ganhavam o estatuto de indícios. Desta «fala» dos indícios com o local do crime e com o criminoso, reconstituídos os nexos de causalidade, a ciência desinteressava-se da confissão, apresentando um discurso coerente, laboratorialmente sustentado. Demonstrava com exactidão matemática que um indivíduo matou outro, num determinado tempo, num local preciso, com esta arma, e só com esta, para roubar ou por paixão, e não valia a pena negar, pois a impressão digital no cano da arma era a sua, exactamente igual a outra que deixara na porta, e essa impressão digital não podia pertencer a mais ninguém e o projéctil encontrado no cadáver fora disparado por aquela arma e por mais nenhuma outra. Apresentavam-se as fotografias em sequência, reconstituindo o crime, os exames dactiloscópicos, os exames balísticos, os exames autópticos, as conclusões médico-legais, e o arguido em silêncio, apenas obrigado a dizer o nome e os antecedentes criminais, sendo seu direito ficar calado ou, se quisesse falar, não dizer fosse o que fosse que o pudesse incriminar.

Foi assim que Asdrúbal d'Aguiar resumiu, em imaginação simples, os livros de Locard. Eram, na verdade, duas preciosas bíblias. No entanto, quando as devolveu, tinha a República alguns meses de vida e os sonhos eram todos belos, não conseguiu deixar de profetizar:

- Obrigado pelo empréstimo de Edmond Locard. Percebi claramente a doutrina e os objectivos. Mas devo dizer-lhe que, sendo católico, é mais fácil Cristo descer outra vez à terra do que implementar serviços de investigação criminal suportados pelas ciências forenses em Portugal.

- Apesar da sua fé, não concordo. Duvido de que Cristo regresse, mas não tenho dúvidas de que, mais cedo ou mais tarde, a medicina legal e as ciências forenses irão fazer as novas polícias de investigação criminal. Sabe porquê?

- Não.

- Porque odiamos o sofrimento e o aviltamento da dignidade humana. Foi o maior legado que o iluminismo nos deixou. A pena de morte acabou. A escravatura terminou. Não vejo como os tribunais vão ser cúmplices da tortura por muito mais tempo. É a vergonha maior da nossa civilização.

- Não leve a mal, mas não me convence. Veja o que tem sido este século. A autoridade policial é sinónimo de violência. Quer durante a Monarquia quer durante este pouco tempo da República, a tortura é o menor dos males da violência da autoridade e da repressão do Estado. Bem sabemos quantos cadáveres já nos passaram pelas mãos, vítimas de atrocidades policiais bem mais graves. E sempre desculpadas.

Azevedo Neves rejeitou com um gesto vivo a argumentação.

- Esqueça a polícia que temos. Esse é apenas um instrumento regulador da ordem constitucional determinada pelo Estado. A polícia científica não confronta a ordem que o Estado reclama. Pelo contrário. Não é mais uma polícia. É outra completamente diferente, fundada na razão, na lógica e suportada pela ciência.


- Talvez tenha razão. Com o devido respeito, julgo esse raciocínio mais do domínio da ficção policial do que dos nossos quotidianos. Edgar Alan Poe ou Conan Doyle podem usar os seus detectives imaginários por esses caminhos da ciência. Mas só na ficção]

- Ainda bem que me fala em ficção. Tenho outro livro de Locard para lhe emprestar.

Levantou-se e dirigiu-se a uma enorme pilha de livros encostados a outra pilha ainda maior. Dedilhou as lombadas até que chegou a um que ainda cheirava a novo.

- Leve este. Verá como ficção e realidade não estão assim tão longe.

- Polices de Roman et Polices de Laboratoire - leu Asdrúbal d'Aguiar e, surpreendido, perguntou: - O grande patriarca também se interessa por ficção?

- Leia, que vai achar graça. Locard responde aí a todas as suas dúvidas. E não seja homem de pouca fé. Verá que desta Morgue, um dia, nascerá um Instituto de Medicina Legal e a polícia científica. Não sei quando, mas acredito que ainda será no nosso tempo. Se o seu Deus quiser, se o meu Grande Arquitecto do Universo o decidir, seremos testemunhas desse parto de esperança para a humanidade.

Acreditando nas dúvidas metafísicas de Azevedo Neves, Deus, ou o Grande Arquitecto do Universo, determinou que, oito anos após esta conversa, Sidónio Pais decretasse a criação da Polícia de Investigação Criminal e do Instituto de Medicina Legal. Asdrúbal sabia que existira um deus menor, batalhador, incansável, que na sombra dos corredores do poder discutira, influenciara, convencera a que esse passo de gigante fosse tão breve. Conseguiu realizar o sonho, mas o seu Grande Arquitecto castigou-o por convicções tão absolutas e fez dele secretário de Estado do Comércio do mais contraditório Governo da República. Penitência que Azevedo Neves aceitou sem protesto.

Asdrúbal d'Aguiar tornou às suas inquietações. O testemunho do guarda Leandro deixava duas questões em aberto. Admitindo que o Cunha de Arganil era o segundo assassino, pois morrera junto à coluna direita e fora claramente executado pela polícia com um tiro no peito e outro no pescoço, o jovem carregador da Estação do Rossio, que estava dois passos atrás dele, fora verdadeiramente fuzilado com dois tiros na cara e um terceiro no braço esquerdo. Porquê? A polícia disparara mais tiros para a direita do «lado de lá», como repetia insistentemente o rechonchudo guarda, do que para a esquerda. E porque matara pessoas bem mais afastadas do local do crime, ocorrido ainda no «lado de cá», e não executaram o Júlio da Costa, que estava quase peito a peito com o Presidente da República? Não sabia. E sabia que nunca haveria de saber. Impôs a si mesmo que não tornaria a perguntar fosse o que fosse. Ponto final!, disse de si para si: o caso Sidónio Pais está morto e esquecido.

Olhou o relógio e percebeu que, mais uma vez, se descuidara com as horas. Passara todo o dia enfiado no Instituto sem falar com a mulher nem ter novidades da sua empregada Alice. Preparava-se para sair da Morgue quando ouviu Silva Brites, o chefe do Serviço de Tanatologia, chamar por si.

- Asdrúbal?

- Sim, Brites. Diz.

- Posso falar contigo por um minuto?

- Se for um minuto. Tenho a minha mulher à espera.

- É rápido. Mas preciso de acabar com uma inquietação que me anda a atormentar.

- Há problemas? - perguntou Asdrúbal d'Aguiar, franzindo o sobrolho.

- Isso pergunto eu. A preocupação passou a surpresa. Eis um trejeito de negação.

- Desculpa, mas não estou a perceber.

- Então, ponhamos as coisas claras.

Geraldino Silva Brites era um pouco mais velho, entroncado, tez morena e, fosse Verão ou Inverno, andava sempre de mangas arregaçadas. Em certos aspectos fazia lembrar o velho professor Silva Amado. Encostou as mãos às ancas e, com frontalidade destemida,explicou-se.

- Desde que o professor foi nomeado secretário de Estado e te designou para o substituíres interinamente sempre tiveste comigo uma relação cordial. Vieste aqui, como é tua obrigação, acompanhar várias autópsias, até nos ajudaste fazendo algumas delas e, de repente, começaste a entrar na tanatologia, passeias misteriosamente entre os cadáveres, examinas um, reviras outro, mal me falas. O que te fiz eu? Tens alguma coisa a apontar à forma como dirijo o serviço?

Caiu em si. Agarrou o braço do colega, quase em aflição, e suplicou:

- Não é nada disso. Desculpa-me, por favor. És uma das pessoas que mais estimo e um dos profissionais que mais respeito.

- Se é assim, não bate a bota com a perdigota. O teu comportamento mudou, sobretudo nos últimos dias, e nunca gostei de meias-tintas. Se tens erros a apontar no serviço, diz. Sei que temos esta merda cheia de cadáveres, que as autópsias estão atrasadas e, por isso, temos mais podres e a merda cheira ainda pior, mas não fui eu quem inventou a influenza.

Admitia. Os seus devaneios em torno da morte de Sidónio, o conflito interior gerado pelas perguntas, que se multiplicavam sem respostas absolutas, não o transformaram apenas num desequilibrado em delírio inquieto. Fizeram dele um tipo mal-educado. Nem sabia como explicar ao outro que se deixara enredar em devaneios patéticos.

- Brites! - afirmou solenemente. - Tenho uma coisa a pedir-te: desculpa-me!

O atlético chefe da tanatologia olhou-o, intrigado.

- Desculpo-te?

- Se te contasse o que me tem dado volta ao miolo, chamavas-me doido.

- Todos somos doidos. É a primeira condição para trabalhar nesta porcaria, ser doido. Inventa lá outra explicação para eu não andar de pé atrás, procurando descobrir, por todos os cantos da sala, o que te incomoda.

Ficou embaraçado. Não sabia se deveria partilhar com o colega as suas dúvidas, que tumultuavam obsessivas, chegando ao ponto, como agora reconhecia, de lhe alterar o comportamento. Porém, admitiu que não tinha coragem de desmentir a verdade que ninguém pusera em causa e fora aceite como definitiva por toda a gente.

- Ando estoirado. Brites. Estoirado!

- Não fujas às minhas perguntas. Sei que não és nenhum cobardolas! - atalhou o outro com firmeza.

Hesitou. A tentação de confessar era forte, mas venceu-a, torneando a verdade.

- Bom, não é nada de extraordinário, mas ainda não tomei qualquer decisão. Nem com o professor falei sobre isto.

- Mas é alguma coisa que eu possa ajudar? - perguntou o colega, sem perceber.

- Tenho andado às voltas com o assassínio de Sidónio Pais. Talvez até arranjasse um motivo para publicar qualquer coisa de interessante, mas, por mais que procure, não encontro nada de extraordinário.

- Foi por isso que trouxeste um guarda para ver os mortos do Rossio?

- Foi! - respondeu com sinceridade. – Peço-te desculpa pela minha indelicadeza.

A expressão de Silva Brites perdera a dureza. Encolheu os ombros com indiferença.

- Não te preocupes com cortesias. Não é o local mais indicado. Pronto! Compreendo agora a tua súbita atenção à Morgue. Começava a andar lixado contigo.

- E com toda a razão. Mas também não tinha grande coisa para te dizer.

- O cadáver desse filho de puta nem entrou aqui. Não tens outra coisa para pesquisar a não ser naqueles desgraçados que a polícia matou?

- De facto! - não conteve um comentário sarcástico: - Percebe-se que eras um grande devoto do doutor Sidónio Pais.

- Um palerma vaidoso que ia destruindo Portugal com a sua vocação para ditadorzeco. Deixou o país de rastos e varrido por ódios e crispações sociais. Ninguém se entende. Por acaso, até tinha algum prazer em abrir esse animal.

Asdrúbal d'Aguiar soltou uma gargalhada.

- Com essa fúria toda, não era uma autópsia. Era um duplo assassínio.

- Podes crer!

E desataram os dois a rir. Asdrúbal apertou-lhe a mão com força num gesto de despedida e afecto.

- Até amanhã, Brites. Não te zangues mais comigo.

- Se calhar fui rude, mas é o meu feitio - redarguiu. - Está à vontade. Se continuares interessado em publicar qualquer coscuvilhice científica sobre a morte desse animal, podes ficar com os cadáveres que ali estão.

- Obrigado. Por acaso gostava de assistir às autópsias.

- Eu aviso-te.

Já não teve tempo para responder. O Brites deixara de lhe dar atenção, ralhando aos berros com um servente que estava a fazer qualquer coisa que o pusera furioso.

Era tempo de correr para casa. Glória devia esperá-lo para jantar há quase uma hora.

A noite estava fria. Um vento cortante soprava de norte, provocando-lhe dores agudas nas orelhas e anestesiando-lhe a ponta do nariz. Noites assim tão gélidas anunciavam que alguns dos cadáveres que iriam receber no dia seguinte tinham sido vítimas de asfixia por monóxido de carbono.

No casario que se desfiava à sua direita, àquela hora, muitos aqueciam-se à custa de queimas de carvão que, por debaixo das mesas envolvidas por enormes cobertas ou pelos cantos dos quartos, alimentavam-se do oxigénio e vomitavam veneno, que matava de forma indolor. Quanto mais se respirava, maior era a sonolência até chegar ao sono definitivo e irreversível. E, mesmo que existisse uma réstia de oxigénio que salvasse a vida dos incautos, o monóxido de carbono ia alimentando a tuberculose, enrijando vasos sanguíneos, assassino doce, delicado e paciente. Foi com surpresa que viu Glória. Conhecia-lhe tão bem as expressões que denunciavam os seus estados de alma, que perguntou enquanto a beijava.

- Que se passou? - e, subitamente, despertou: - A Ana Rosa...

A mulher meneou a cabeça, incapaz de falar, mas já duas lágrimas assomavam, apressadas. Asdrúbal adivinhou:

- A Alice! Morreu?

Respondeu com um abraço que pedia ajuda e, simultaneamente, controlava o soluço do choro.

- Meu Deus!

Penitenciava-se, crivado de culpas, por não estar ali mais cedo. Desbaratara o tempo com intrigas tontas sobre a morte de um homem que não conhecia, enquanto junto aos seus pairava a dor pelo desaparecimento de uma amiga. Alice não era apenas uma empregada como tantos milhares de serviçais que, vindas de todos os cantos do país, chegavam a Lisboa para servir. Com o tempo desenvolvera-se entre ela e o casal uma teia de cumplicidades ditadas pelo afecto.

- A Ana Rosa já sabe?

- Fui eu quem lhe disse. Estou tão triste, Asdrúbal. Perdemos a Alice e agora aquela miúda vai ficar sozinha.

- Não, não vai - respondeu, decidido. - Nós cuidaremos dela. Juro-te, Glória! Não vamos deixar a Ana Rosa sozinha. Os nossos filhos?

- Os teus pais foram para a quinta de Benfica e, como gostam de lá estar, pediram--me para levar os netos. E eu deixei.

- Fizeste bem. Porque não me avisaste mais cedo? Onde está o corpo da Alice?

- Foi para o Instituto. Julguei que soubesses.

- Não, não sabia.

Tinha passado pelos cadáveres mas nem olhara, obcecado com os mortos que o guarda haveria de indicar. As alocuções patéticas desviaram-lhe a atenção da sua própria empregada. Decidiu, e jurou, que seria mesmo a última vez. Não voltaria ao jogo de charadas a propósito de Sidónio Pais.

- A miúda estará melhor?

- Felizmente. Levei-lhe comida. Alimentou-se e já saiu da cama.

- Ainda bem. Nem tudo são desgraças.

Alice era apenas mais um caso, que, agora, tocava o casal por laços de afecto. Porém, apenas mais um entre milhares. Os doentes mais fragilizados por patologias do sistema respiratório desapareciam devorados pelo vírus. Não lhe apetecia comer. Perdera o apetite e, se alguma coisa desejava, era conhecer o maldito micróbio e inventar a alquimia milagrosa que o exterminasse de vez.

- Pobre Ana Rosa! - suspirou magoado. - Vou dar-lhe uma palavra de conforto.

Conhecia a família desde que fora viver com a mulher para a Rua do Telhal, naquele tempo quase nos limites da cidade, e desde então que Alice trabalhava para o casal. Através dela, conhecera o marido, João do Peso, tanoeiro num armazém no Campo das Cebolas e afamado hortesão. As horas que sobravam do braseiro da forja dedicava- -as com paixão extremosa à horta, junto a Rilhafoles, que tratava com infinita dedicação. Couves e nabiças, cenouras e cebolas nasciam naquele palmo de terra como nunca se vira nas outras que lhe eram vizinhas e que se estendiam até ao mercado de Picoas. Era com visível orgulho que oferecia ao senhor doutor toda a sorte de vegetais.

- Com estas couves, faz um caldo que basta o cheiro de uma morcela para ser um petisco do outro mundo!

E Asdrúbal aprendera com ele esta felicidade de tratar a terra com ternura, como se afagasse um ventre generoso. Ganhou o vício. Era frequente sair da Morgue e ir ter com ele, aprendendo, a golpes de sachola, a arte da semeadura, do plantio, da monda. O prazer sensual que desfrutava, dia após dia, percebendo o nascimento de alfaces, tufos de salsa, a pança redonda dos nabos e a generosa fertilidade dos tomateiros, e que contava a Glória com entusiasmo desmedido, ao ponto de ela o rebaptizar:

- És o meu João Semana e o Mestre João do Peso, o José das Dornas.

Ele encolhia os ombros, com visível satisfação: o Júlio Dinis fez do João Semana um poeta e, coitado do Mestre João, que cultivava dois palmos de terra! Jamais será o poderoso pai de Daniel e de Pedro.

Asdrúbal resolveu ir dar umas palavras de conforto à rapariga. Apesar do frio, Ana Rosa estava sentada no degrau da porta, embrulhada num xaile. O luar cintilava no azeviche do seu cabelo e, encolhida, abraçada aos joelhos, olhava o céu. Observou-a com curiosidade. Apesar do rosto fechado pela amargura, era uma mulher linda.

- Ana Rosa, não devias estar aqui ao frio - disse-lhe docemente, sentando-se ao seu lado.

- O frio seca-me as lágrimas.

- Faz-te mal. Estiveste muito doente e eu estou muito triste pela tua mãe.

- Já não sei o que é a tristeza.

- O quê? - perguntou perplexo.

- Só tenho luto no meu caminho e fiquei sem lágrimas. Por tudo doer tanto já não sei viver de outro modo. É por isso que olhava o céu.

- Possivelmente algumas daquelas estrelas são as pessoas que perdeste a iluminarem-te o caminho – confortou-a Asdrúbal d'Aguiar.

- Não via as estrelas, mas a escuridão infinita. Tão negra como a cor do meu coração.

Calou-se, sem encontrar uma resposta que a pudesse ajudar. Sentou-se ao seu lado no degrau, apertando o sobretudo contra o corpo. E também fixou o olhar no céu límpido, salpicado de astros de prata. Ouvia-se o coaxar de uma rã, algures para os lados do Campo de Santana.

- Enganaram-me, doutor Asdrúbal. Deus não gosta de mim.

- Infelizmente não és a única pessoa a quem a desgraça bate à porta.

- Ele não pode gostar de mim. Levou-me tudo. O marido, os meus pais, tudo!

- Não podes culpar Deus da fragilidade dos homens. O teu marido morreu na loucura da guerra, os teus pais na epidemia que está a arrasar o país. E podes crer que, se fôssemos mais sábios e menos guerreiros, talvez já soubéssemos como vencer esta doença.

Deixou a cabeça cair sobre o ombro dele e Asdrúbal estremeceu ao contacto com o calor do corpo de Ana Rosa. Continuou a fixar o firmamento.

- É católico, doutor Asdrúbal?

- Sou. Acho que sou.

- Eu não sou nada.

Asdrúbal d'Aguiar passou-lhe o braço pelos ombros e apertou-a contra si, e Ana encolheu-se no abrigo do abraço.

- Quando sofremos muito, como acontece neste momento, procuramos sempre alguém que seja culpado pelas nossas dores. Deus e o Diabo são aqueles que estão mais à mão para projectar raivas, impotências, angústias.

- Não sei. O céu é tão negro e as estrelas apenas pontinhos de luz. Não sei quem manda nesta escuridão de breu. Não sei onde, em que céu está a minha mãe.

O médico não sabia como confortar Ana Rosa. Apetecia-lhe aquele abraço e censurou-se. Não poderia sentir esse prazer quando ela estava esmagada pela mágoa. Afagou-lhe os cabelos, levantando-se de imediato.

- Vai dormir. Este frio faz-te mal e verás que os dias te ajudarão a ser mais forte.

- É capaz de ter razão - respondeu, erguendo-se do degrau.

Num sussurro, Asdrúbal pediu-lhe:

- Vá. Vai descansar. Se precisares de nós, basta que toques à nossa porta. Juro-

-te que não te deixaremos sozinha.

Acenou com a cabeça. Ele deu dois passos e Ana Rosa chamou-o:

- Doutor Asdrúbal!

- Sim, Ana...

- Pode dar-me um abraço?

Comovido, tomou-a nos braços e apertou-a contra si. Beijou-lhe os cabelos e murmurou:

- Até amanhã, Ana Rosa.

- Obrigada.

Asdrúbal desprendeu-se dela e caminhou apressadamente para casa. O coração ia, ainda, mais apressado e deu por si a pensar que era o ambiente de tensão e luto que o desconcentrava. O intrigante caso de Sidónio Pais enxertado na amálgama de emoções que lhe atormentara o dia levara à desordem do seu mundo moral, que procurava restabelecer com a mesma pressa com que marchava. Quando se encontrou frente a frente com Glória, percebeu, então, a dimensão do cansaço e da mágoa. E abraçaram- -se em silêncio.

Mal jantaram. O desaparecimento de Alice doía-lhes fundo e tudo parecia irreal. Como se fosse um pesadelo que os apanhara acordados e cruelmente levara amigos e vizinhos. E não havia cura. Ricardo Jorge, que, depois da peste do Porto, viera para a capital criar o Instituto de Higiene Pública, e era agora director-geral de Saúde, constituía com Azevedo Neves o núcleo duro, decidido pelo Governo, para travar a contaminação. A voracidade da «espanhola» era insaciável. Bem se esforçavam médicos e Governo. Escolas e conventos convertidos em enfermarias, conselhos atrás de conselhos à população, suplicando o fim de beijos e apertos de mão, implorando que evitassem visitas a doentes, pedindo que ganhassem hábitos de higiene, que, ao menos, se lavassem as mãos, que arejassem as casas, que acautelassem os mais novos, pois parecia que a peste os apreciava sobremaneira, assim como os tísicos, os asmáticos, aqueles que sofriam de bronquite.

Porém, aquela Lisboa corrompida pela fome, adolescente a crescer por barracas e bairros compactos, por «ilhas» e «vilas» operárias, era feita de gente vinda de todos os lados do país, de perto, ali da Aldeia Galega e de Santarém, de mais longe, de Castelo Branco até Vinhais, verdadeiros exércitos de famintos que ocuparam a margem do rio, a começar no Beato e em Xabregas, correndo Santa Catarina e Monte Pedral, acantonando-se em Algés e pelas encostas de Alcântara. Eram jornaleiros e carroceiros, costureiras e serviçais, serventes e pedreiros, caixeiros e operários. Eram os esgotos abertos em ruas térreas onde brincavam cães vadios e crianças seminuas filhas de domésticas e ferroviários, pescadores e peixeiras, estivadores e ganhões, dormindo em casas mirradas, colchões de palha, em magotes e febris, pois não haveria quarto por onde não tivessem entrado, pelas frinchas do frio e da desdita, tifo e tosse convulsa, tuberculose e sífilis, velhos indigentes e prostitutas, carteiristas e vigaristas do conto- -do-vigário. Sousa Martins percorrera pardieiro a pardieiro cada buraco escuro - carregado de enxúndia e odores azedos, os sinais das epidemias que se sobrepunham em movimentos endémicos, sempre latentes, - pregando a salubridade e a higiene. Ganhou fama de santo por estas peregrinações entre pobres moribundos, operários revoltados, ratos e urina nauseabunda. A influenza multiplicara a tosse e o pranto. Lisboa esfomeada gemia à força de tanto sofrimento. E a guerra trouxera mais luto, e a política sidonista, sobressaltada, perigosa e musculada, enchia prisões e vomitava conspiradores, numa estranha digestão em que a República Nova emagrecia, sem vigor e escanzelada, quanto mais se empanturrava da República Velha, desnorteando quem procurasse o norte da vida, pois os heróis de ontem eram os vilões de hoje, num estranho bailado entre amigos e inimigos, faca ou pistola prontas a ganhar o coração do outro.

Quando os pátios das Vacas e das Damas, do Couceiro e dos Bichos, quando as «vilas» Pouca e da Alzira, as «ilhas» das Cobras e do Gavião, e todas as «ilhas», da Porcalhota aos Olivais, ficaram atulhadas, os novos inquilinos de Lisboa procuraram casais de Pedro Teixeira e dos Ossos, e todos os outros, e quintas cada vez mais longe, como a do Jorge, em Belém, ou da Cabrinha, em Alcântara, ali, à beira da ribeira. Porém, a «espanhola» esgravatava em todos os cantos e recantos. Por mais que a Associação Protectora dos Hospitalizados Pobres procurasse consolar doentes e as famílias destruídas, que as irmãs de São Vicente de Paula se dedicassem à salvação de corpos e de almas, e o murmúrio de São Francisco rogasse a força para resistir.


Fazei que eu procure mais

Consolar que ser consolado,

Compreender que ser compreendido

Amar que ser amado

Pois é dando que se recebe,

É perdoando que se é perdoado

E é morrendo que se vive para a vida eterna.


Por cada lágrima enxuta, outras dez tornavam a nascer e, no meio de tanto medo e sobressalto, a morte de Sidónio transfigurava-se em presságio de mais e mais desgraças.

Asdrúbal d'Aguiar não conseguia concentrar-se no jornal. As notícias vinham todas vestidas de luto. Estava cansado, embora sem vontade de dormir. Que seria agora da horta do tanoeiro? Deu por si a imaginar que poderia tomar conta dela, o único sítio de Lisboa onde a terra não cheirava mal e, fértil, paria a eito frutos com sabor a vida. Uma guitarra aproximou-se, gemendo. Ficou atento ao som que vinha da rua. Apesar do manto de desespero, havia quem não deixasse de tocar o fado da Mouraria, do Ginginha, do José Maior e do Calcinha. E não conseguiu deixar de sorrir. Entre o grupo de farristas que àquela hora passava, alguém cantava o poema Alcácer Quibir, de Lopes de Mendonça, vindo-lhe à memória uma das habituais confusões que Moreira Júnior adorava provocar quando o ambiente não lhe agradava. Naquela noite, depois de várias pratadas de «iscas com elas», na tasca do José Magina, para os lados do Largo do Regedor, regadas com tinto em abundância, que celebravam o fim do curso, o grupo de novos médicos escutava um dos fadistas habituais, o fado que, agora, seguia a caminho dos Capuchos:


Se foi Alcácer Quibir

A perda da nossa glória.

Tal nome hoje representa a mais completa vitória


E, pegando no mote, foi por aí fora improvisando a evocação que serviu de homenagem a D. João da Câmara, alguns anos antes, a pretexto da peça que escrevera com o mesmo nome. Mal terminaram os últimos acordes e os aplausos perdoaram desafinações, Moreira Júnior levantou-se e dirigiu-se ao guitarrista. Do alto da sua enorme estatura, olhou o músico e perguntou, tonitruante:

- Posso arrana ?

- Perdão? - balbuciou o outro.

- Pergunto a vossa excelência se posso cantar um faduncho - retorquiu com um sorriso ameaçador.

Um murmúrio percorreu a assistência entre a expectativa e a reprovação. Moreira Júnior, então, proclamou:

- Quero informar este magnífico público, que veio aos fados e se alambazou de iscas benzidas na sertã do nosso divino José Magina, que eu e mais aquele grupo de tipos feios sentados naquela mesa - e apontava para Asdrúbal d'Aguiar e mais quatro colegas, - terminámos o nosso curso e somos, a partir destas iscas sagradas, médicos-cirurgiões. - Alguns aplausos e redobrada atenção prenderam os clientes. - Decidi vir cantar um fado que dedico a todos os presentes e, sobretudo, aos porcos que contribuíram para a nossa festa, oferecendo as iscas que trincámos - algumas risadas aplaudiram a tirada, mas foi sol de pouca dura, pois Moreira Júnior concluiu, virando-se para o guitarrista: - Ataque a música do fado Alberto em que vossa excelência é brilhante, que eu bem o ouvi, enquanto os meus ilustres colegas, em vez de apreciá-lo ou estarem calados, querem celebrar o fim do curso despachando a tiro o nosso augusto presidente do Conselho de Ministros, o nosso amado doutor João Franco. Chegue-lhe!

Asdrúbal ia caindo da cadeira com o espanto, e todos ficaram lívidos, percebendo que dezenas de olhares desconfiados se concentravam na mesa, enquanto Moreira Júnior, gingão, balouçava o corpanzil ao compasso da guitarra e anunciava:

- Da minha própria autoria, o fado «Ó Asdrúbal, não despaches o João Franco».

 

Ó Asdrúbal, não despaches o João

Que governa à turca sem balelas

Porque se lhe estoiras o coração

Nunca mais enfardas iscas com elas


A assistência estava desorientada. Não percebia se o matulão estava a divertir-se ou se era a sério o aviso cantado, enquanto o dono da casa veio espreitar pálido de medo com o desplante.


É certo que o rufia não se enxerga

Pôs o país ao trambolhão

Mas por amor das iscas com elas

Ó Asdrúbal, não despaches o João

Mas por amor das iscas com elas

Ó Asdrúbal, não despaches o João


A estupefacção era geral, embora alguns esparsos aplausos dessem a entender que, naquela taberna, João Franco não era bem-vindo, e enquanto Moreira Júnior agradecia, vaidoso e com alarde, o grupo de jovens médicos apalpava atabalhoadamente as algibeiras à procura de moedas para pagar o jantar. O José Magina aproximou-se rapidamente:

- Também não gosto do João Franco, mas, pela saúde das vossas mãezinhas, não preparem a morte dele no meu estabelecimento. Se a polícia sabe, fecha-me a porta.

- Mas não é verdade! – insurgiu-se Asdrúbal, indignado. - O meu colega inventou isto porque está bêbado e é maluco.

- Seja como for, seja como for. Não tenho nada contra os republicanos, antes pelo contrário, mas saiam. Está tudo pago! Está tudo pago!

Saíram precipitadamente. Já na rua, Asdrúbal d'Aguiar, descontrolado com a cólera, desatou a gritar para o amigo:

- Tu és doido? Queres dar cabo da minha vida? Alguma vez falei que queria matar o primeiro-ministro? Vocês ouviram? É uma vergonha. Fizeste-nos passar uma vergonha enorme. Esta não tem perdão, Manel. Estou farto dos teus disparates.

Com um sorriso glorioso, Moreira Júnior respondeu:

- Não sejas ingrato. Graças ao meu talento ceaste à borla. Ficas a dever-me um jantar. Ah, e um almoço ao nosso bem-aventurado João Franco.

O som da guitarra já levara sumiço e Asdrúbal levantou-se. Tinha vivido episódios rocambolescos ao lado do irreverente amigo e esta recordação sossegava-lhe a mágoa. Foi deitar-se disposto a um sono profundo, mas não conseguiu. Estranhamente, Glória não parava de se mexer na cama, agitada, sobressaltando-lhe o descanso. Porém, de manhã, descobriu a razão do desconforto da mulher. Estava febril, com a respiração arquejante, dominada por uma tosse cava e profunda que lhe parecia arrancar os brônquios. Glória apanhara influenza. Correu a vestir-se, chamou um carro que passava na rua e pediu-lhe que os levasse a São José. Abraçado a Glória, afagava-lhe os cabelos e sossegava-a:

- Vai passar, minha querida. Eu trato de ti. Vais curar-te. Eu sei.

Deixou-a no banco das urgências e galgou as escadarias, aflito. Bateu energicamente à porta do director.

- Doutor Francisco Gentil?

O médico abriu a porta e surpreendeu-se ao ver o transtorno de Asdrúbal d'Aguiar.

- Meu caro Aguiar? Está bem?

- Salve a minha mulher, senhor doutor. Eu sei que é capaz. É o melhor de todos nós.

- O senhor está fora de si. Acalme-se. Que se passa com a sua esposa? Adoeceu?

- Deixei-a no banco. É influenza, de certeza. Sou capaz de jurar.

- Seja aquilo que for, tenha calma. Mesmo que seja influenza não significa uma desgraça. São muitos mais os pacientes que são curados do que aqueles que não têm a mesma sorte - e, em tom de censura, comentou: - Tenha cautela consigo. Tem o olhar contaminado pelo que é o seu quotidiano, no Instituto de Medicina Legal. Esperança, homem, esperança!

E desceu ao encontro de Glória e conduziu-a a um gabinete para a observar. Apesar das palavras de alento do ilustre médico, Asdrúbal d'Aguiar não conseguiu entrar. As pernas tremiam-lhe e sufocava de pânico. Reconheceu um servente que ia a passar e chamou-o:

- Peço-lhe que vá ao Instituto e diga ao Celestino para vir ter comigo. É urgente!

- Vou já, senhor doutor! - e o rapaz acelerou o passo pelo corredor fora.

Precisava de informar que não ia trabalhar e apetecia-lhe chamar todos os colegas para o ajudarem. Confiava em Francisco Gentil, mas temia. O outro era capaz de ter razão. A atmosfera que habitava os quotidianos da Morgue induzia ao diagnóstico de tragédias, mas, fosse como fosse, Glória estava em risco. Conhecia bem a patologia, tinha a dimensão exacta da reduzida acção médica para a combater e sabia que, ou Glória possuía a energia suficiente para vencer a peste ou seria vencida por ela, sem que todo o saber hipocrático investido naquele instante a pudesse salvar. Descuidado do conselho de Francisco Gentil começou a fazer analogias, revisitando algumas das autópsias dirigidas pelo seu colega Geraldino Brites e por si próprio. A influenza não perdoava fragilidades do aparelho respiratório. Bronquites, tuberculoses, asmas, eram portões de um cemitério. E Glória era frágil. Um malmequer que irradiava luz, franzino, doce e fresco, nascido numa manhã orvalhada de Primavera, pois fora em Abril que se apaixonaram, durante um piquenique, numa quinta dos Olivais, celebrando o Domingo de Páscoa. Amaram-se na primeira valsa, dançada ao som de concertina e bandolins, um amor tranquilo e terno. Silva Amado, que fora seu padrinho, sintetizara, com a mesma precisão dos seus gestos cirúrgicos, o casamento de Asdrúbal e Glória: «Quando duas pessoas bondosas se encontram, o céu fica mais luminoso.» Era, de facto, o melhor traço da personalidade de Glória - a bondade. Essa virtude estranha que desprende e se dá com alegria divina. Sobressaltou-se quando ouviu o seu nome. Geraldino caminhava ao seu encontro e Asdrúbal perguntou-lhe, surpreendido:

- Tu? Eu pedi para vir o Celestino.

- Preferi vir eu. Mandei-o chamar o Barahona.

- Não era preciso. Eu...

Brites interrompeu-o.

- Sou tanatologista e não percebo nada de infecções. Quero, apenas, estar contigo.

- E o serviço?

- Não há nada de complicado. Onde está a Glória?

- O Francisco Gentil está a observá-la. Não fui capaz de entrar.

- Eu percebo.

- Estou tão assustado, Brites. Há dois dias perdemos a nossa empregada e, agora, acontece isto com a Glória.

- Está bem entregue. Vais ver que tudo se recomporá.

Ficaram em silêncio, cercados pelo frenesim que agitava o hospital, entupido por doentes, a maioria deles com o mesmo padecimento de Glória. Foi Brites quem viu o Barahona a caminhar apressado. Atrás vinha Moreira Júnior, que esbracejava e gritava.

- Onde é que ela está? O Francisco já a viu?

Asdrúbal apontou a porta do gabinete e acenou afirmativamente. O colega entrou e Moreira Júnior comentou, irritado.

- Vai correr bem. Eu sei que vai! Se não for ela a aturar as minhas bebedeiras, não é a minha mulher quem as atura.

Brites olhou-o com um misto de afecto e desprezo. Sabia que o amigo não tinha outra forma de revelar a preocupação.

- Tens de ser sempre bruto?

- O que é que eu disse? - refilou e, voltando-se para Asdrúbal, perguntou: - Quando é que isto começou?

- Não sei bem. Passou a noite muito agitada e esta manhã percebi que estava a arder em febre.

- Porra, pá. Mil vezes porral

Moreira Júnior não parava. A impaciência fazia-o andar num vaivém constante, enquanto Asdrúbal e Brites se quedavam silenciosos.

- Eu sei como é! - resmungou falando consigo próprio. - Ela é uma flor de estufa, tu és um menino que ainda não largaste o bibe. Como é que vou tratar destas duas criaturas, como? Onde é que estão os teus filhos?

- Com os meus sogros.

- Mudo-me com a Paula para tua casa. Ficamos no quarto deles e tratamos de vocês. É isso. Mudamo-nos para lá.

Asdrúbal não respondia. Conhecia demasiado bem o amigo para perceber que, apesar da imponência do porte, aparentando um Hércules capaz de vencer todos os tormentos, rapidamente se afogava nas mais pequenas tempestades. Amava incondicionalmente tudo o que a vida lhe dera para amar. A mulher, os amigos, a cidade que, desde menino, lhe conhecia as maiores tropelias. Amava envergonhado, capaz das maiores loucuras e das maiores dádivas.

Por fim, Francisco Gentil e o colega saíram do gabinete. Asdrúbal levantou-se ansioso:

- Então? A minha mulher como está?

- Precisa de ficar cá - respondeu Francisco.

- Está assim tão mal?

- É um caso como tantos outros. Todos os dias vemos dezenas de doentes com os mesmos sintomas. A maioria sai daqui pelo seu pé. Vamos tratar dela. Vou arranjar um quarto.

Francisco Gentil afastou-se e Moreira Júnior antecipou-se:

- Barahona, diz a verdade à gente.

- O que queres que te diga? O professor disse a verdade.

Asdrúbal d'Aguiar largou-os e dirigiu-se ao sítio onde estava Glória.

- Vou ter com a minha mulher. Obrigado pela vossa amizade.

Moreira Júnior ia segui-lo, porém, Brites segurou-o por um braço.

- Anda comigo.

- Porquê?

- Porque te conheço e não faz bem à senhora ver-te a chorar.

Saíram os três. À porta do banco deu-se o previsto. Moreira Júnior deixou-se cair de cócoras, escorregando pela parede e, escondendo o rosto entre as mãos, chorou convulsivamente.

Asdrúbal d'Aguiar beijou docemente a testa de Glória. Fervia de febre. E ela abriu os olhos. Um sorriso desmaiado espreitava na face transpirada. Deu-lhe a mão e também sorriu para ela.

- Vais ficar bem. O doutor Francisco Gentil é o melhor de todos nós.

- Eu sei - as palavras saíam-lhe trôpegas, trituradas pela respiração perturbada. - Era bom não te aproximares de mim. Posso contagiar-te.

Forçou um sorriso.

- Não era má ideia. O doutor Francisco Gentil acomodava-nos no mesmo quarto e, pelo menos, fazíamos companhia um ao outro.

As lágrimas banharam os olhos de Glória.

- Hás-de ser sempre o meu menino.

- E tu, a minha menina.

Calou-se. Um violento ataque de tosse fez estremecer o corpo de Glória durante algum tempo. Depois terminou e ela, ainda arquejante do esforço, perguntou:

- O professor disse-me que iam fazer-me um raio X. O que é?

- Uma fotografia - respondeu bem-disposto -, vão fotografar os teus pulmões.

- Não sabia que isso existia.

- Chegou há pouco tempo. É uma descoberta ainda recente. É uma máquina que se aproxima do teu peito e dispara com se fosse de fotografia normal. Emite uns raios invisíveis que atravessam o corpo e sai uma fotografia do organismo. Permite ver o estado de saúde dos teus pulmões.

- Devem estar uma lástima. Parece que estou a ser queimada.

Um novo ataque de tosse interrompeu a conversa. Nesse momento entrou Francisco Gentil acompanhado de dois maqueiros.

- Vou levá-la. Depois contacto consigo.

- Não precisa de mim? - Respondeu-lhe com bonomia.

- Se conseguisse ser médico. Mas não vai ser capaz. Neste caso, não passa de mais um marido. Passe por cá durante a tarde. Se houver outras novidades, eu ligo para o Instituto.

Ficou a vê-la afastar-se. Ainda ergueu a mão num adeus silencioso, mas Glória não viu. Os maqueiros desapareceram na curva do corredor e Asdrúbal encaminhou-se em sentido contrário. O céu estava cinzento e começara a cair uma chuva gelada vinda de noroeste. Estugou o passo na direcção do Instituto. Precisava de trabalhar para ignorar os medos que o assolavam. Quando chegou ao gabinete, o secretário de Estado Azevedo Neves esperava por ele. Ficou surpreendido com a inesperada visita.

- Senhor professor?!

- Precisava de trocar umas opiniões consigo e contaram-me o que aconteceu. Acabei de falar com o Francisco Gentil e sei que a Glória está em boas mãos.

- Estou assustado, professor.

- Compreendo. A brutalidade da epidemia justifica esse alarme. Mas vai correr tudo bem, se Deus quiser - de repente, mudou de conversa: - Sabe que prenderam o doutor Sebastião Magalhães Lima?

A afirmação apanhou-o de chofre.

- Está a falar a sério?

- A polícia descobriu uma carta de Júlio da Costa que o compromete.

- É impossível! Pelo que sei, nem o Júlio da Costa sabe escrever, nem o doutor Magalhães Lima seria capaz de estar envolvido numa ameaça desse género.

- Concordo consigo, mas está mais seguro daquilo que afirma do que eu imaginava - asseverou Azevedo Neves.

- Confesso que tenho pensado no caso. É tudo muito estranho e as notícias que leio sobre as várias confissões de Júlio da Costa e as interpretações conspirativas avançadas pela polícia deixam-me ainda mais confuso.

- Continuo a concordar e, pior do que isso, sinto-me inquieto.

- Nada bate certo, professor - repetiu Asdrúbal d'Aguiar. - Os cadáveres dos mortos assassinados pela polícia ainda aí estão. Pode ir vê-los.

- Já fui - e, com alguma ironia, comentou: - Não seja tão audacioso nas suas conclusões. Assassínio é uma palavra muito forte. A polícia alega que disparou para repor a ordem e em legítima defesa de terceiros.

- É sempre com esse estatuto que chegam aqui, desde que me conheço, as vítimas da brutalidade da polícia. Senhor professor, dois ou três tiros disparados por conspiradores não justificam um preso, quatro mortos e mais de dez feridos nos disparos da polícia. Alguns deles pelas costas. Um dia alguém tem de explicar como é que os tribunais acreditam que baleados pelas costas eram perigosos adversários sobre os quais é possível justificar a legítima defesa.

Azevedo Neves interrompeu-o desconfiado.

- Falou em três tiros disparados pelos agressores do Presidente.

- É fazer contas. Prenderam o Júlio da Costa, que será um dos atiradores, e temos ali dois cadáveres que foram verdadeiramente chacinados com disparos à queima- -roupa. Um ficou sem rosto, o outro tem o pescoço desfeito. Uma violência tão próxima só pode significar isso - de repente, concluiu, sarcástico: - Pese o facto de não estar nenhum polícia baleado na Morgue, nem em São José.

O secretário de Estado do Comércio ficou absorto nos seus pensamentos e, de facto, Asdrúbal d'Aguiar tinha razão. As explicações triunfais apresentadas pelo Governo Civil não satisfaziam cabalmente as suspeitas e as perguntas que se discutiam naquela sala. Por fim, Asdrúbal quebrou o silêncio entre ambos.

- É essa a razão da visita do senhor professor?

Hesitou.

- Não propriamente. Preciso do seu conselho amigo. O novo Presidente da República designou Tamagnini Barbosa para formar Governo. Este solicitou-me ontem à noite que o acompanhasse, ficando com a mesma pasta. Disse-lhe que hoje lhe daria uma resposta.

- Lisonjeia-me pedindo o meu conselho.

- Não me apetece continuar. Cumpri um dever de gratidão para com Sidónio Pais. Com a sua morte extinguiu-se a minha obrigação - soltou um suspiro profundo: - Só Deus sabe como foi doloroso para mim - tornou a ganhar energia e declarou: - Esta afronta a Magalhães Lima ainda me deixa mais desmotivado. Ele é grão-mestre do Grande Oriente Lusitano. É meu irmão por juramento sagrado.

- É assim tão forte o seu vínculo com a Maçonaria? O doutor Magalhães Lima é um dos maiores adversários da Monarquia e o seu papel foi decisivo para derrubar o regime de que o senhor professor é simpatizante.

- Mas somos dois homens livres e de bons costumes. Com visões diferentes do mundo, é certo. Porém, Magalhães Lima é dos patriotas mais íntegros, um dos cidadãos mais impolutos que alguma vez conheci. Por outro lado, se não aceito, Ricardo Jorge e toda a sua equipa, que trabalham no cordão sanitário da cidade, ficam sem apoio. E o senhor sabe, em causa própria, como a situação está complicada. A epidemia não dá sinais de abrandar.

- Tem razãol - disse Asdrúbal d'Aguiar pensando em Glória. Estava inquieto para saber o resultado da radiografia. Fez um esforço para recuperar a serenidade e continuou: - Acho que deve aceitar, embora não creia que seja Governo para durar. Segundo li, espera-se que a influenza comece a diminuir a partir de Janeiro .

- É possível. O número de doentes infectados parou de crescer.

- Deve aceitar o cargo, senhor professor. A situação de Lisboa é demasiado complicada, do ponto de vista médico, para se perder a sua influência no Governo.

- Infelizmente é uma situação difícil, seja qual for o ponto de vista - reflectiu, desalentado: - Não consigo deixar de pensar no Magalhães Lima. Era capaz de apostar uma mão para perceber as razões que levaram a polícia a molestar, por coisa tão ruim, um homem com aquela dimensão moral.

- O senhor professor falou da carta de Júlio da Costa.

- Que não sabe escrever, nem ler, como ainda há pouco sublinhou. Sabe o que tudo isto me faz lembrar? O regicídio.

- Nesse caso não existiram dúvidas nem vidas. A polícia matou de imediato os dois executores. O Alfredo Costa e o Buíça mataram e foram mortos em plena luz do dia e perante centenas de testemunhas.

- Mas o juiz Rodrigues dos Santos deixou que a polícia provocasse uma onda de pesquisas por não acreditar que os dois regicidas actuaram por sua própria conta. Aliás, em certo momento, correu a tese de que os alvos não eram o rei e o príncipe, mas o primeiro-ministro.

- Desconhecia essa versão. É absurda. João Franco não ia na carruagem real.

- É verdade. Ocupava a quarta carruagem do cortejo, bem longe do Costa e do Buíça. Fosse como fosse, a polícia investigou e perseguiu dezenas de republicanos e de maçons. Uma verdadeira bizarria e, agora, repete-se a patetice.

Estava demasiado preocupado com Glória para alinhar no jogo preferido do seu mestre. Provocar uma discussão e enveredar por caminhos pejados de hipóteses, que ia rejeitando ou escolhendo conforme avançava o debate. Azevedo Neves percebeu-lhe a inquietação e preparou-se para sair. Ainda perguntou: - Sente-se com forças para aguentar este barco por mais algum tempo?

- Como o senhor professor entender.

- Muito bem. Apresente os meus desejos de melhoras à senhora dona Glória e, se precisar dos meus préstimos, estou à disposição.

Saiu. De imediato, Asdrúbal d'Aguiar ligou para São José. Desesperava por saber o resultado da radiografia. Foi em vão. Não encontrava ninguém do serviço que o informasse. Exasperado, decidiu ir à procura pelo seu próprio pé. E durante três dias não voltou ao Instituto. Três dias ficou perdido numa angústia cada vez mais desesperada, hesitante entre a razão e a oração, invadido pela febre de Glória, que amargava, sobressaltada ao ritmo da respiração cada vez mais tensa, entrecortada por espasmos, ofegante, ruidosa e final. De nada valeu a ciência de tantos cientistas, a solidariedade de tantos amigos, as promessas delirantes, ajoelhadas e servis, aos pés dos santos, onde procurava a força do poder divino. Glória partiu, indiferente ao pranto, cansada e despedaçada, vencida pela «espanhola». Ao terceiro dia, Asdrúbal renascia, perdido, à procura de um caminho, embora não soubesse qual, para reencontrar o sentido do seu andar, o significado essencial do amor vivido e partilhado. Era um tímido, circunstância que terá contribuído para se fechar num mutismo rasgado por raros monossílabos. Aprendia em silêncio, amava em silêncio, chorava em silêncio.

Ana Rosa soluçava a dor que ele escondia e Moreira Júnior foi embebedar-se no retiro do Basalisa, para os lados do Areeiro, escutando fados que lacrimejavam por ele, na voz da Júlia Florista. Arrastara Xavier da Silva, o homem das impressões digitais, para aquela noite de luto e gemia:

- Como digo à minha Paula que aconteceu esta desgraça? Como se não bastassem os desgostos que lhe dou, agora fica a saber que o seu casal perfeito se desfez para sempre. Não se passava uma única semana em que não me atirasse à cara: «Se tivesses o juízo do Asdrúbal, que nunca deixa a Glória sozinha para andar na rambóia, bem que podia ter mais paciência para te aturar. Os teus pais enganaram-se. Para seres um vadio, não precisavas de estudar para médico!» Achas isto justo, Rodolfo? A verdade é que a minha Paula, com estas descomposturas, ensinou-me a admirar o casal. A Glória era a minha irmã. Aturava-me! Se a minha Paula tivesse metade da sua paciência, eu era o mais feliz dos homens.

Xavier da Silva censurou-o.

- A Paula é uma santa. Não acredito que exista no mundo outra mulher que tivesse a paciência dela para te aturar.

- É essa a ideia que fazes de mim?

- És um dos melhores médicos de Lisboa e, definitivamente, o mais maluco.

Moreira Júnior decidiu exorcizar o luto, embirrando com o colega.

- Como é que um tipo que passa dias a fio tirando impressões digitais, de lupa em riste, à procura de pontinhos dos diabos, pode dizer uma coisa dessas!? Olha para ti, Rodolfo. És um infeliz. Sei que fazes coisas muito importantes, mas és um rato. Descobriste como identificar pessoas através das impressões digitais. Está certo. És o nosso Bertillon. Mas não tens vida. Vives naquele buraco do laboratório no meio de papéis borrados de dedadas. Olha para ti! Trago-te ao Areeiro para ouvires a Júlia Florista, para bebermos uns copos afogando as dores que sentimos pela dor do nosso amigo Asdrúbal e pela sua inditosa esposa, e tu que fazes? Dizes que a minha Paula é uma santa e eu sou um estafermo! É assim que me agradeces? Trago-te para ouvires a maior cantadeira de Portugal, desde que se foi a Severa, e perturbas a fadista e a nossa mágoa?

O outro, com um sorriso paciente, afagou-lhe o ombro.

- Pronto, não és doido. Tu é que estás a perturbar o ambiente, pois não te calas desde que chegaste.

- É proibido falar? O Sidónio já morreu. Fui eu quem o embalsamou. Agora voltou a liberdade. E já agora podia vir mais vinho. Estou seco. Vou buscar mais. – Levantou-se e gemeu: - É da minha natureza. Devo afogar as mágoas. Só morrem por afogamento.

As guitarras trinaram e fez-se silêncio no Basalisa. A casa estava à cunha. Não era todos os dias que um fadista como a Júlia visitava aquele recanto rural do fado vadio. Ainda por cima era uma noite especial. No dia seguinte, seria o funeral do Presidente da República, Sidónio Pais. Lisboa vestia-se de luto para as cerimónias fúnebres, e nas sedes políticas, nas sociedades e associações de socorros mútuos, em casas mais ou menos clandestinas, preparavam-se representações e protestos, tumultuando paixões tão desencontradas de amor e ódio, de mágoa e euforia, de esperança e vingança, que pareciam replicar os fados da Júlia Florista. Há muito que a política deixara de ser um compromisso com a República. Não passava de uma batalha sectária por interesses particulares, de assanhados julgamentos de amor pátrio, mas movidos por ódios incontornáveis. Sidónio ia a sepultar e o regime agonizava.


Quando o Sol despertou nesse negro dia vinte e um de Dezembro, trazia luto sobre Lisboa.

Ana Rosa, assustada, vagueava pela horta, agora abandonada, de seu pai, o tanoeiro que tratava a terra com mãos meigas de amante. As ervas daninhas já tomavam conta de todos os recantos, porém, ainda crescia salsa graças à força da vida que resistia à devastação. Reconheceu um canivete já ferrugento com o qual o pai podava os vegetais. Acariciou o instrumento como se acariciasse o seu dono, com força apertou-o contra o peito. E caiu de joelhos de frente para o Sol, e regou aquele chão sagrado com lágrimas de saudade pelo tanoeiro e Alice, por Glória e por si, órfã sem norte numa cidade desnorteada. As duas vestidas de luto, mergulhadas no mesmo desespero.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O FUNERAL DA MORTE

 

 

Azevedo Neves despediu-se de Asdrúbal d'Aguiar com um abraço à saída do Alto de São João.

- Coragem, coragem! – sussurrou-lhe ao ouvido, e desceu pela estrada transformada em lamaçal, devido à invernia, em direcção à Praça do Chile.

Acompanhava-o Egas Moniz, que também fora professor de Asdrúbal, e seguiam meditabundos.

- Hoje é Dia de Finados. Viemos acompanhar o nosso inditoso discípulo e a estas horas já saiu o cortejo fúnebre do doutor Sidónio Pais! - comentou Egas Moniz e reparou: - Fiquei admirado por encontra-lo aqui. Imaginava-o no funeral do Presidente. Afinal de contas foi um dos seus ministros.

Azevedo Neves sorriu, embora o semblante estivesse triste.

- Tinha de escolher. Entre a política e a amizade, só poderia estar ao lado do meu infeliz condiscípulo e amigo.

- Bom homem, o nosso Asdrúbal. Não merecia esta partida que a vida lhe pregou - desabafou Egas Moniz. - Esta maldita influenza está a dizimar o país.

- E não dá sinais de abrandamento - corroborou Azevedo Neves.

- Não. Ainda ontem jantei com o Francisco Gentil. Desespera, coitado. São José continua atulhado de doentes.

- Bem sei. Todos os dias discuto a situação com o Ricardo Jorge. Fizemos o que era possível para proteger Lisboa, mas a epidemia é mais forte do que o nosso saber. Nunca tantos médicos eufóricos com o poder da ciência foram tão humilhados pelo poder de um minúsculo vírus.

Continuaram a caminhar em silêncio por algum tempo. Só o final da guerra, com o fim do controlo da imprensa, trouxera a público a dimensão da catástrofe que arrasava os países europeus. As notícias de Londres, de Paris, de Roma, de Berlim, davam conta da razia que a influenza provocava em milhões de infectados. Na hora dos balanços sobre as vítimas da guerra, percebia-se que a epidemia fora mais violenta para os batalhões e divisões dos vários exércitos do que a metralha e o gás mostarda, mais forte do que a coragem, mais imponente do que o heroísmo, matando soldadinhos e oficiais sem olhar a cuidados políticos. Tinha o poder do maremoto. A força demoníaca das trevas, donde se libertava invisível e magnânima, reinando acima do poder dos homens.

- O problema é mais do mundo da filosofia e da religião do que da esfera hipocrática - disse por fim Egas Moniz.

Azevedo Neves não conteve o riso.

- Não vai dizer-me que as bruxas de Lisboa vão resolver aquilo que a nossa medicina é incapaz de resolver. Nem Sidónio Pais, que era espírita, conseguiu esse prodígio.

Egas Moniz parou, olhando-o com surpresa:

- Como sabe que ele era espírita?

- Por conversas que trocámos uma ou outra vez. Quando ingressou na Loja Maçónica Estrela d'Alva, em Coimbra, tinha como finalidade aprofundar essa doutrina. Era um devoto seguidor de Allan Kardec.

- E você?

- Eu, o quê? - perguntou Azevedo Neves, sem perceber.

- Discutiu o espiritismo com Sidónio, deve ter uma opinião formada sobre o assunto.

Azevedo Neves ficou embaraçado e permaneceu em silêncio por breves instantes. Por fim, comentou:

- Não sei. Custa-me acreditar em mesas pé-de-galo que dançam e espíritos que dão valentes pancadas nos móveis e nas paredes. Qualquer charlatão pode criar esse tipo de manipulações para iludir os incrédulos.

Egas Moniz retorquiu, bem-disposto:

- Já percebi. O nosso mestre Miguel Bombarda convenceu-o de que a alma é uma crença produzida pelo conhecimento teológico.

- Não vou tão longe. Bombarda tinha uma posição muito radical quanto às virtualidades da matéria e da ciência. Esse monismo materialista despreza a metafísica. Não é o meu caso. Considero que a nossa dimensão ontológica escapa ao bisturi do cirurgião e não é perceptível na bancada de autópsias. Abrimos cadáveres, jamais dissecaremos um espírito. A razão já não habita o corpo morto. Dissolve-se na morte? Emigra para o mundo dos espíritos? Encontra-se com os anjos que ladeiam São Pedro? Confesso que não sei.

- Embora seja maçom e católicol – atirou-lhe o cirurgião.

- E monárquico.

- É verdade. Monárquico.

Azevedo Neves olhou-o de soslaio e insinuou a pergunta.

- Não percebo o repentino interesse pelo espiritismo e pelas crenças do falecido Presidente. É médium?

Egas Moniz encolheu os ombros.

- Estudei Allan Kardec, quase todos os frenologistas, sobretudo a obra de Esquirol, os alienistas e as experiências de Charcot, o que Freud escreveu sobre a psicanálise, enfim, tenho viajado por aí à procura de respostas para o cérebro humano. E de todos estes autores foi o juiz Vidal, um quase desconhecido magistrado de uma comarca do Norte, quem mais me impressionou. É verdade. E porquê? Porque os célebres estudos de Ribeiro Sanches, de John Simon, de Ricardo Jorge, fizeram explodir as nossas crenças, nos Kumotes, em todos os pressupostos que tiver uma manifestação divina. Sabemos agora que são bacilos, bactérias, vírus, fungos e não sei quantos mais animaizinhos que nos parasitam e desintegram a vida. O vitalismo morreu, mas a crença persistiu. Basta ler o nosso saudoso Miguel Bombarda.

- A fé no conhecimento científico como a essência do saber autêntico. Nunca me conformei com esse radicalismo determinista e boas discussões tivemos acerca dessa crença tão segura e absoluta na ciência - confessou.

- A revolução bolchevique que está a sacudir a Rússia dos Czares é outro das derivadas dessa fé. Bombarda lia Heckel como se fosse o criador da bíblia científica, Lenine lê Marx e Engels com a mesma crença redentora.

Azevedo Neves concordou. A euforia laboratorial, nascida do experimentalismo, pusera em causa o entendimento moral que associava degradação urbana, marginalidade, pobreza, prostituição, criminalidade, às epidemias e a causa das patologias humanas e sociais. Recordava o romantismo moral de Pereira de Azevedo ou de Santos Cruz nos seus ensaios sanitaristas que demonstravam a fraternidade entre essa promiscuidade e imoralidade. A constituição do Conselho de Saúde Pública, por iniciativa de Passos Manuel, a reforma de Costa Cabral e a regulamentação sanitarista de Alves Martins bebiam directamente dessa ideologia religiosa. Meio século depois, com a peste bubónica do Porto, em 1899, Ricardo Jorge e Câmara Pestana desferiram os primeiros golpes fatais nessa compreensão moral e caritativa da resposta médica às epidemias. O microscópio transformara em ruínas a herança medicalista construída durante séculos. Quando Virchow aplicou o instrumento ao estudo da anatomia patológica e Roentgen, em 1895, introduziu o raio X como utensílio decisivo do diagnóstico diferencial, dando visibilidade a traqueias, brônquios, pulmões, vítimas de afecções respiratórias, a excitação por tantas descobertas e inovações levara muitos cientistas a tomarem a nuvem por Juno. Egas Moniz tinha razão. Apesar de tantos avanços no progresso técnico e científico permitirem diagnósticos rigorosos, não eram suficientemente poderosos para curar. Koch identificara o bacilo da tuberculose e o vibrião da cólera, Eberth já descobrira o bacilo do tifo, e por aí fora, mas a esta potência do conhecimento dos reprodutores da doença e da morte correspondia a impotência de identificar os remédios que os aniquilariam. Viviam efectivamente no princípio de uma nova idade. A grande obra de Bombarda, O Monismo. Laço entre Religião e Ciência (Profissão de Fé d'Um Materialista), era ingenuamente honesta. A fé científica não conseguia vencer a última peste do Antigo Regime, que, em pleno século XX, dizimava milhões de pessoas.

Finalmente, Egas Moniz interrompeu o silêncio do passeio.

- É estranha esta conversa, não é?

Azevedo Neves não percebeu.

- Não vejo como. É o grande debate que se trava há décadas na nossa Sociedade de Ciências Médicas.

- Mas o país fala de Sidónio Pais, que hoje vai a enterrar.

- Tem razãol - o secretário de Estado do Comércio empalideceu e Egas concluiu:

- Uma pena. Um homem inteligentíssimo que, com a visão messiânica do seu próprio destino, terminou de forma tão trágica.

Azevedo Neves não comentou. Consultou o relógio da algibeira e pensou em voz alta:

A esta hora já deve ir na Rua Augusta. Que Deus lhe perdoe aquilo que os homens não foram capazes de perdoar. E ia. A rua fervilhava.


Sidónio partiu para o Panteão através de um mar. Não era uma multidão, que consegue ser no mesmo instante fúria, pranto, alegria e ternura. Era um mar de gente. Revolto, umas vezes negro e bramindo, outras salpicado de lágrimas salgadas, despedidas magoadas de qualquer cais; um mar colérico e alegre, pejado de gaivotas brancas sobrevoando tempestades. Lisboa mergulhava de luto, vergada pela força da fome e pelo medo da peste. E chorava. Gritava à passagem do cortejo fúnebre. Pragas e raivas. Dores e lamentos. No adeus definitivo ao Presidente-Rei. A Rua Augusta precisaria da largura entre as duas margens do Tejo para acolher aquela vaga imensa que gemia gritos lancinantes, qual fêmea em busca da cria, que berrava ódios, que rezava, que insultava, que aplaudia. Sidónio era na morte aquilo que fora na vida. A síntese perfeita das paixões radicais. O amor e o ódio, a esperança e o desespero, a vida e a morte. Só se espanta quem não viu. Carlos da Silva morreu de comoção no último adeus ao seu Presidente indiscutível. A aortite crónica desfê-lo em pleno pranto, comovido e magoado. O polidor de móveis não resistiu e partiu com o seu D. Sebastião.

Leopoldina, a velha Leopoldina, veio, carregada com os seus oitenta e cinco anos, da Travessa da Ferrugenta à Rua Augusta para morrer esmagada pela multidão, que avançava e recuava em vagas revoltas, conforme o movimento do féretro ou as investidas da polícia, a qual, pela força, queria impor a ordem no caos. Poucos metros acima. Clara de Jesus, moçoila rija de carnes, que imaginara um dia possuir o seu deus formoso, também lá foi para dizer um adeus doloroso aos seus sonhos clandestinos e morreu trucidada pelos turbilhões da Rua Augusta. E Maria de Jesus? O marido ciumento proibira-a de ir ver passar o funeral. Ele sabia que Maria de Jesus jamais fora tocada pelo príncipe de todos os presidentes, que nem uma palavra haviam trocado. Nem um olhar.

Mas por duas vezes suspirara ao ver as fotografias que saíam nos jornais. E ele sabia. Sabia, do fundo incerto e escuro donde nasce o despeito, que ela não suspirava de cansaço, conforme se desculpou, mas por amor escondido no silêncio do olhar para o galante cavaleiro que atravessava o Rossio à frente das tropas regressadas das trincheiras. O ciúme é a paixão em desespero. Não pensa, nem se pensa, e tem ameaças e raivas surdas que se transformam numa sede insaciável de vingança e morte. Por mais que a infeliz jurasse que não podia amar aquilo que desconhecia, que era o marido quem mais lhe falava de Sidónio, que nem o Presidente olharia para uma pobre serviçal, dias a fio de joelhos, sem fé, esfregando soalhos e limpando degraus. Nem ela olharia para outro homem que não fosse aquele a quem jurou amar até que a morte os separasse. Mesmo que o seu marido de hoje não fosse o noivo de anos atrás. E não era. Casara com um amante que lhe segredava ternura, lhe acariciava o rosto e a abraçava com o fulgor dos dias luminosos de Junho, e agora, anos depois, o desejo transformara-se em quezília, os beijos deixaram de ser encontro, mas um orgasmo indiferente, e as palavras doces azedaram com o tempo, ao ponto de jurar dar cabo dela se a tornasse a ver olhar para uma fotografia de Sidónio. Por força seu amante perverso, que, se não a possuía por actos nem palavras, vivia em Maria de Jesus e em todos os seus pensamentos.

Não era assim que ela pensava ou sentia. Mas era assim que ele a imaginava a pulsar de amor por uma imagem quando ela ficava em silêncio, por mais breve que fosse. E desforrou-se nesse dia. O bandido ia a sepultar e nem o pranto de todas as mulheres de Lisboa tinha o dom de o ressuscitar. Desceu à Rua Augusta, pistola à cintura, disfarçada sob o casaco, e riu a bandeiras despregadas, baba a escorrer pelos cantos da boca, à passagem do amante infame que, no delírio dos medos, lhe roubara a mulher. Foi então que a viu. De braço dado com a vizinha do cinquenta e um da sua Rua Damasceno Monteiro. O riso desmaiou nos lábios alvos de ódio, a baba ficou espumosa de tanta cólera e, por força da sua honra ultrajada, decidiu o ciúme que chegara a hora da justiça que o desamor conhece. Nem lhe acudiu a vizinha a gritar que fora ela quem convencera Maria de Jesus a ir espreitar tão imponente luto.

Desferiu os oito tiros da Browning à queima-roupa, abafados pelos cornetins lúgubres das fanfarras e a vozearia de saudade e de discórdias. A honra dele ganhara a purificação suprema, lavada no sangue da infiel, e Maria de Jesus nem teve tempo de lhe pedir perdão. Não por lhe haver sido infiel, mas por ter desobedecido à sua ordem de marido jurado. Afinal não foi preciso Deus separar a promessa que os homens consagraram como liturgia do amor eterno. O seu doce amado de outrora rasgou-a com as balas do ciúme, e Maria de Jesus foi autopsiada no dia vinte e seis de Dezembro, pois mandavam os bons preceitos que o Natal exaltaria as virtudes do amor absoluto. Não ficaria bem que o adultério ultrajasse os dias santificados.

À mesma hora, uma centena de metros adiante, indiferente ao ódio ciumento, o ódio político varava a tiro e a pontapé, num massacre confuso, o sapateiro Pedro Graça, inditoso republicano que celebrava a morte do velhaco que o mandara prender no Aljube sem que para tal houvesse motivo a não ser o seu amor à República.

Um pouco mais adiante, o comerciante Custódio Quaresma morria esmagado pela multidão em vagas revoltas que ora aplaudia, ora apostrofava o Presidente morto. E de mortos, e de fúrias de tempestade, e de raivas em explosão, e de lágrimas que cheiravam a dor, e de medos desencontrados como o rodopio de um furacão se fez o funeral de Sidónio para, finalmente, descansar em paz entre o esplendor da luz perpétua.

Lisboa regressou a casa para descansar, depois desse dia, mais cinzenta e empobrecida, sem nenhum esplendor efémero que anunciasse o apaziguamento da trovoada de paixões que não parava de ribombar pelos céus tristonhos da invernia que embrulhara os sonhos da venturosa República no turbilhão dos desvarios. Nunca houvera em Portugal um funeral com tantos mortos. Nem com tantos vivos perdidos pelos caminhos da vida.


Asdrúbal d'Aguiar não foi trabalhar nesse dia. E também estava de luto. Despedira- -se de Glória no dia anterior e aquele adeus doeu-lhe na raíz da alma. Parecia perdido num labirinto, tacteando na escuridão a saída daquela amargura tão aguda e persistente. Nem a visita do antigo condiscípulo Moreira Júnior lhe trouxera tranquilidade. Estava sozinho no momento em que, na Baixa, mulheres e homens morriam por amor e ódio a Sidónio Pais. Não queria saber de funerais nem das vítimas desta Lisboa amedrontada. Pouco lhe interessavam as paixões irracionais no momento em que lutava contra o seu próprio desgosto. Por isso, decidiu embebedar-se. Afogar em aguardente aquela amargura tão latente e definitivamente irremediável. Ainda hesitou sobre a utilidade de um cálice que recolheu do armário, mas desistiu. Tudo era inútil naquele momento, a não ser a necessidade urgente de sarar as suas feridas, e meteu a garrafa à boca. A bebida abrasou-lhe a garganta e teve o efeito de um chicote sibilante a zurzir-lhe o sangue e a acelerar o coração. Enfiou o segundo gole para intensificar a sensação de conforto e, quase no mesmo instante, alguém lhe bateu à porta. Levantou-se, contrariado, e foi abrir. Era Ana Rosa. Estava trémula, espiga de trigo batida pelo vento, a que o luto dava a aparência de maior fragilidade.

- Ana Rosa?! Hoje não preciso de ti. A casa está limpa e eu nem abri a cama. Deixei-me dormir no canapé - disse em tom de despedida. Queria estar a sós com a sua aguardente.

- Preciso de falar com o senhor doutor. Uma coisa que ninguém sabe! - era visível a angústia da rapariga e, a contragosto, deixou-a entrar. - Desculpe incomodá-lo hoje. Logo hoje, que é um dia difícil para toda a gente! - começou ela e Asdrúbal não percebeu que se referia ao funeral de Sidónio. - Mas tenho um segredo que precisa de saber.

- Um segredo? - perguntou sem compreender que interesse poderia ter nos segredos de Ana Rosa.

- Um rapaz que eu conheço está no sítio onde o senhor doutor trabalha - a voz era um murmúrio lacrimejante: - Mataram-no!

- Lamento, Ana Rosa.

- Mataram-no na noite em que assassinaram o nosso Presidente.

- Como? - a informação era tão inusitada que não resistiu à pergunta: - E quem o matou?

Fez uma pausa antes de responder. Escolhia as palavras de forma calculada.

- Deve ter sido a polícia. Ele trabalhava na estação e chamava-se Alfredo.

Sentiu um baque. Ana Rosa não podia adivinhar que o seu segredo era um bálsamo mais forte do que a aguardente que prescrevera a si próprio. Como se tivesse acontecido um sortilégio divino, a prostração de Asdrúbal desapareceu, com a atenção embicada às palavras dela.

- Um rapaz novo - comentou o médico.

Ana Rosa assentiu.

- Conheci-o na Praça da Figueira. A mãe dele vende peixe e costumava trocar coisas com o meu pai.

- Trocavam o quê?

- Era conforme. Umas vezes tainhas por couves, outras vezes carapaus por batatas.

- E foi aí que conheceste o Alfredo - concluiu Asdrúbal, reconduzindo a conversa para o interior do segredo.

- É verdade. Era um rapaz muito estranho.

- Porquê? - tentou gracejar: - Fazia-te a corte?

Ruborizou, envergonhada, mas o sorriso era triste.

- Não sei. Eu não entendia a maior parte das coisas que ele dizia. Sei que morava na Rua do Benformoso, que, uma vez, fui lá com o meu pai levar uma saca de nabiças. Falava de tudo. Do trabalho na estação, de uma greve que fizera com os outros ferroviários e de coisas muito estranhas.

- Que coisas, Ana Rosa? Não é lá muito estranho falar de política e fazer greve.

- Pois, será como o senhor doutor diz. O problema é outro. O Alfredo disse-me que o país só ia ao lugar quando o Presidente desaparecesse.

Asdrúbal d'Aguiar estava cada vez mais entusiasmado com o rumo da conversa e forçou-a.

- Desaparecesse?

- Pois. Tinha de desaparecer. Morrer. - explicou em desabafo.

- Por aquilo que já sabemos, não era o único a pensar desse modo.

Ana Rosa olhou em volta, como se quisesse confirmar que mais ninguém poderia escutar as suas palavras, e confessou o segredo.

- O Alfredo tinha uma pistola. Mostrou-ma e, como fiquei assustada, guardou-a depressa. Depois, disse-me que estivesse tranquila. Que só a tinha para resolver o problema do país. Foram estas as palavras.

- É estranho. Estranho e tonto. Nenhum dos problemas do país se resolve com uma pistola.

- Só que não era isso que ele queria dizer! - respirou fundo como se precisasse de fazer um esforço para concluir o raciocínio, e desabafou: - Eu julgo que ele queria dizer que tinha a arma para atirar contra o Presidente da República.

- Tens a certeza? - Asdrúbal estava tenso.

- Pelo menos foi o que me pareceu. A verdade é que, desde que soube que o Presidente foi morto na estação e que o Alfredo também morreu, não me sai da cabeça esta conversa.

- Reparaste como era a arma?

- Vi-a por pouco tempo.

- Mas não te lembras se era achatada, ou se era assim para o gordinho, redonda na barriga?

- Não percebo - confessou com sinceridade.

- Se fosse uma pistola, deveria ser quase toda igual. Os cartuchos entram pela coronha. Se for um revólver, as balas entram num tambor, redondo como os tambores das filarmónicas, só que tem uns alvéolos, uma espécie de buraquinhos onde as balas estão guardadas entre a coronha e o cano.

Ela meditou por alguns segundos e depois encolheu os ombros.

- Não sei. Foi tudo tão depressa que não vi. Ou, se vi, fiquei tão assustada que só me lembro de ele mostrar a arma e esconde-la entre a camisa e as calças.

Era um segredo surpreendente. Sobretudo por pertencer a alguém tão indiferente aos resultados da política e tão próxima de si.

- Não contaste este segredo a mais ninguém?

- Só à minha mãe - a voz tornou a embargar-se de comoção. – Contei-lhe quando ela me disse o que tinha acontecido. Como sabe, dois dias depois do sucedido, a minha mãe faleceu.

Assim como faleceu Glória. Varridas furiosamente pela peste. Sem um anúncio prévio. Durante aqueles quatro dias, a tragédia passeou, ufana, pelas ruas do Telhal e de Santo António dos Capuchos, arrasando confortos e multiplicando solidões feitas dos próprios mistérios da epidemia.

- Ainda bem que falaste comigo, Ana Rosa. Não ajuda a resolver o crime, pois parece que está resolvido, pelo que diz a polícia, mas serve para te dar um conselho. Guarda para ti esse segredo. Ninguém precisa de saber que conheceste esse tal Alfredo, que queria endireitar o país com a ajuda de uma arma.

- Acha que é perigoso? - perguntou, assustada.

- Minha querida, nos dias que correm tudo é perigoso. Até respirar, que a epidemia não conhece ricos nem pobres. Eu guardarei o teu segredo como se fosse meu. Agora vai. Acho que vou descansar um bocado.

Ana Rosa baixou os olhos.

- Eu vou. Mas antes de ir gostava que soubesse que estou triste pela infelicidade da minha mãe e pela dona Glória. Elas não mereciam isto.

- Obrigado, Ana Rosa! - respondeu, controlando a emoção. - Também estou magoado pelo infortúnio da tua mãe. Perderam-se duas boas pessoas e ficámos mais sós.

A rapariga saiu, apressada, evitando os soluços da comoção, enquanto Asdrúbal se socorria da garrafa de aguardente para se recompor. A história de Ana Rosa era surpreendente. O rapaz que levara os tiros na cara não era apenas um mero curioso que abandonara, por momentos, o trabalho para ver passar o cortejo presidencial. Estava comprometido politicamente na facção que se opunha a Sidónio Pais. Fora um atributo singular do seu curto mandato. A pulverização ideológica da disputa partidária, que diluíra o sentido de pertença aos democratas, aos evolucionistas, aos republicanos, semeando apoios e inimizades, aplausos e ódios em todos os sectores da vida política. E até entre monárquicos e católicos, que o viam nas missas dominicais com uma assiduidade que lançava perplexidades e desconfianças, não recebia apoios unânimes. O manifesto da Junta de Salvação Pública, que divulgara em Março desse ano, e a desvinculação da União Republicana, partido ao qual pertencia, da sua acção governativa marcaram o início desta dicotomia que transformaria Sidónio num afecto divino ou no farsante que, em nome da liberdade republicana, perseguira a imprensa e atirara para as masmorras centenas de adversários políticos. Eram raros os indiferentes a esta paixão colectiva, bipolarizada em torno de virtudes e defeitos em vez dos combates por ideais políticos. Amar e odiar tornaram-se verbos que faziam parte do nome de Sidónio Pais.

Tornou a recarregar aguardente e a rever o segredo de Ana Rosa. Conforme o álcool galopava pelo sangue assim diminuía a surpresa inicial. Alfredo tinha vinte e dois anos e não haveria uma única utopia romântica que não o habitasse. Não era assim tão estranho que militasse no partido do ódio a Sidónio. Ainda por cima ferroviário, um dos sectores operários mais reivindicativos e sobre os quais a repressão policial se abatera com violência inusitada. Não dissera a Ana Rosa outra coisa que não fosse a repetição do rancor ao fulgor messiânico da acção política do Presidente e - por outra razão bem mais forte - para que não vivesse fora do poder, alimentando as chamas do descontentamento que o haveriam de tornar a convocar em momentos futuros de maior instabilidade. Por força, haveria de morrer!

Aquilo que era o segredo de Ana Rosa não passava, afinal, de uma intenção comum, vulgar e sem estranheza. O próprio Júlio da Costa, diziam os jornais, viera de propósito do Garvão para matar o Presidente. Nem a pistola, ou o revólver, que Alfredo mostrara a Ana Rosa tinha um significado especial. Desde a eclosão da República que as armas surgiam, inesperadas e assassinas, como se o milagre da multiplicação dos pães tivesse ressurgido com efeitos bélicos. Conhecia bem este mundo clandestino através da crescente quantidade de homens e mulheres baleados de morte que entravam na Morgue.

A reviravolta dera-se por volta de 1915. As facas e os punhais, as bengalas e os varapaus, foram perdendo importância na escala de instrumentos mortais, enquanto as pistolas ganhavam velocidade repetitiva na consumação de suicídios e de homicídios. Desde aquele ano, não mais deixaram de ser o principal instrumento protagonista da violência definitiva. E não era só a permanente conspiração política que trouxera as armas de fogo para a ribalta. Contrabandistas, aventureiros, bandidos urbanos e salteadores de estrada acrescentavam mais armas às armas clandestinas. Trocavam, vendiam, matavam, tornando a sua acção letal num porto de abrigo, num conforto que era, em si mesmo, uma ameaça.

Não era, pois, espantoso que o jovem Alfredo vivesse armado contra os seus medos e os seus ódios. Asdrúbal era capaz de apostar, quando a garrafa de aguardente já ia a meio, que nessa noite de Dezembro, aquela hora, na estação do Rossio, seriam mais os homens com armas do que o número de cidadãos apenas armados da curiosidade para ver o Presidente da República.

Desistiu. O segredo de Ana Rosa era apenas uma surpresa. Uma coincidência que agitara o pequeno mundo da rapariga, revolto pela doença e pela tragédia. Nada mais. A não ser a saudade de Glória, da voz que continuava a escutar, como se estivesse ali, ao seu lado, dos passos que ouvia pela casa, ágeis e calmos. Sabia que já não havia tempo para mais um abraço. Asdrúbal ali estava, delirante, abraçado a uma garrafa vazia, magoado e bêbado, sem força para se arrastar para a cama. E adormeceu profundamente.


O que é a morte? A pergunta circulava muitas vezes entre os seus colegas do Instituto de Medicina Legal. Não era, de certeza, a paragem respiratória, como outrora se admitira, pois abundante bibliografia registava casos de indivíduos que conseguiram sobreviver a essa interrupção vital. Nem podia ser a paragem cardíaca, exacerbada pela cultura romântica, que havia centrado no coração todos os centros da natureza existencial. O amor e o ódio, a alma e a espiritualidade, a vida e a morte. Começava, então, a surgir a tese de que a morte orgânica se consubstanciava no momento em que cessavam as funções vitais do cérebro. Porém, tal definição, como todas aquelas que a antecederam, tinha, apenas, uma finalidade técnica, e Asdrúbal sabia que tais decretos hipocráticos não eram consonantes com aquilo que a anatomia patológica e a biologia dos microscópios revelava. Bastava espreitar as lamelas que continham tecidos ou células recolhidos durante as autópsias para se perceber que muitos deles estavam pejados de vida. Como mera hipótese, delirante, é certo, à luz do conhecimento científico já desbravado, seria possível tornar a ressuscitar um rim ou um fígado, um coração ou uma córnea ocular, desde que fossem integrados num outro organismo vivo. A declaração de óbito não implicava a morte definitiva de todos os órgãos do cadáver, como se, em vez de ser um instante, fosse um processo em desenvolvimento, embora irreversível.

Era um mistério fascinante. A impossibilidade absoluta de conhecer, de analisar ao microscópio, ou mesmo na bancada de autópsias, infinitamente soberba e determinada. Geraldino Brites, tanatologista crente no determinismo que encantava Miguel Bombarda, um dia, durante uma autópsia, de bisturi em riste, disse-lhe:

- És demasiado católico e o Concílio de Trento pôs-te a ver a vida a preto e branco. Não é assim!

- Não é assim o quê?

- A separação entre vida e morte. Não é assim! - repetia, enquanto se enfiava nas entranhas do cadáver, e continuou: - Não vivemos e depois vem a morte e, pronto, morremos! É um processo ambivalente. Morremos enquanto vivemos e continuamos vivos depois de morrer.

- Embora com outra perspectiva, os católicos pensam o mesmo.

- Falo de evidências laboratoriais, observadas, fotografadas, bem longe do universo das crenças que asseguram a imortalidade da alma. Não é preciso fé para afirmar que morte e vida fazem parte do mesmo amplexo de expectativas.

- Compreendo. Diariamente morrem células expelidas pela urina e pelas fezes, começamos a morrer depois dos vinte e cinco anos, perdendo milhares de células nervosas que não se voltam a regenerar, o nosso couro cabeludo vai morrendo.

- Nas mulheres, a menopausa marca a morte da capacidade reprodutora. Mas também é verdade que depois do óbito a vida orgânica continua, decompondo-se de forma organizada. É simples e para ti um grande problema.

- Para mim? – perguntara-lhe Asdrúbal d'Aguiar sem compreender.

- Tens de saber qual o exacto momento em que, neste processo organizado de desconstrução da vida, a alma se liberta e vai para o céu - respondera Geraldino num raro acesso de ironia.

Ficara por ali a conversa, que o tanatologista não era dado a incursões pelos territórios da filosofia, porém, era uma inquietação recorrente nas preocupações de Asdrúbal. E agora, bruscamente, compreendia o verdadeiro alcance da palavra morte. Nada tinha de orgânico nem de complexa metafísica. Percebia, depois do desaparecimento de Glória, que significava ausência. Ausência definitiva de um abraço, a impossibilidade física de mais um beijo retribuído, o fim irreversível do ombro quente e doce onde se encosta a cabeça depois de um dia de cansaço. Morrer era, afinal, o óbito de qualquer carícia. E restava a memória. A viagem pelos momentos vividos e que jamais seriam presente. Nem futuro.

Apenas a saudade que vagarosamente se desvinculava de cada sinal, testemunho de quem já partira.

Esses dias de maior saudade, feita de dor e revolta, foram difíceis para o médico. Optou por manter os filhos longe do seu psicodrama e regressou aos quotidianos, amputados da presença de Glória.


O chefe da tanatologia chamou-o para assistir às autópsias das vítimas da fuzilaria policial na estação do Rossio. Não restavam dúvidas. Quer o homem abatido junto à arcada da estação, quer o jovem conhecido de Ana Rosa tinham sido verdadeiramente executados. As queimaduras de pólvora revelavam disparos à queima-roupa contra ambos. Não se compreendia aquela fúria assassina, a não ser por uma única perspectiva: a polícia matara quem acreditava terem sido os autores dos disparos letais contra Sidónio Pais. Nessa noite, pediu a Ana Rosa que jantasse com ele, em vez de esperar na cozinha para levantar a mesa, como fazia habitualmente. Ela aceitou, surpresa e pouco à vontade.

- Ana Rosa, preciso de que te lembres das conversas com o tal rapaz de quem falaste e que foi morto na mesma noite em que assassinaram o Presidente da República.

- Contei-lhe tudo aquilo que sabia.

- Recordas-te se ele te falou de algum amigo? Alguma vez o viste acompanhado de outras pessoas?

Interrompeu a sopa, franzindo a testa num esforço para relembrar Alfredo, o inditoso carregador da estação ferroviária.

- Não. Estava sempre sozinho.

- E ter-te-á falado de alguém? Se a ideia de matar o Presidente era só dele ou haveria mais alguém ligado a esse juramento?

Tornou a hesitar e a menear a cabeça.

- Só falava dele. Da raiva que sentia - e perguntou, curiosa: - Será que o Alfredo está metido no crime?

Asdrúbal encolheu os ombros e limitou-se a responder:

- Não sei, Ana Rosa. Juro que não sei.

Ficou por ali a conversa. Porém, nunca mais houve silêncio à hora de jantar. Desde então, partilhava a mesa com Ana Rosa.

 


Alguns dias depois, estava a examinar um dos sinistrados do descarrilamento de um «americano» quando um servente o interrompeu.

- O senhor Gaspar, o escriturário, tem muita urgência em falar com o senhor doutor.

- Se é assim tão urgente porque te mandou aqui e não veio ele?

- Não sei. Disse que era urgente e estava carrancudo. Ficou à sua espera à porta do gabinete da direcção.

- Diz-lhe que já vou.

Ficava irritado quando lhe interrompiam o trabalho. Perdia a concentração e as longas filas de homens e mulheres que demandavam a clínica médico-legal cresciam conforme abrandava o ritmo de atendimento. Desde que Azevedo Neves fora para o Governo e Asdrúbal d'Aguiar assumira a direcção interina, não se passara um único dia que não fosse chamado para as múltiplas obrigações de direcção. No fundo, o seu maior desejo era que o seu mestre regressasse o mais depressa possível ao Instituto. Mas se o Gaspar estava carrancudo, um funcionário que parecia ter nascido com boa disposição congénita, deveria ser coisa grave.


Dirigiu-se ao gabinete e confirmou o aviso do servente. O escriturário estava branco e visivelmente tenso.

- Ainda bem que chegou, senhor doutor. Acabámos de receber este ofício do tribunal e não quis dar entrada, nem mostrar a ninguém, sem ser lido por si.

Começou a ler a carta, enquanto abria a porta do gabinete, e o coração descompassou-se.

- Pode ir, Gaspar. Obrigado.

Tornou a fechar a porta e a reler o ofício. O juiz de instrução pedia que se realizasse a autópsia de Sidónio Pais. Encheu um copo com água e, mecanicamente, emborcou-o de uma só vez. O nervosismo e a excitação crescente fizeram-no agir de maneira atípica. Saiu da cadeira em direcção à janela, procurando mais luz, e tornou a ler a ordem. Não era possível aquela diligência ser pedida exactamente um mês e três dias depois da morte do Presidente da República. Embora não fosse diferente dos restantes ofícios que regularmente recebiam do tribunal, adivinhava no texto inquietações que vinham despertar as suas. Tornou a sentar-se e releu.

Deu consigo a pensar que estava a tresler. As palavras eram rotineiras. A minuta habitual sem qualquer adjectivação ou questões excedentes. Então porque se sentia assim, naquele frenesim, tão súbito e anormal quanto a carranca do Gaspar? Era a data, descobriu de repente: dezassete de Janeiro. O crime ocorrera a catorze de Dezembro, o cadáver fora embalsamado no dia seguinte, os funerais realizaram-se cinco dias depois. E se o juiz desrespeitara a tradição de não autopsiar magnocídios, a esta distância temporal só poderia ser por razões bem ponderosas. Ou, dito de outra maneira, se fosse indiferente à regra convencional que não se deveriam autopsiar reis, príncipes, presidentes, então teria ordenado a necropsia quando o cadáver fora embalsamado ou nos dias anteriores aos funerais. Teve tempo suficiente para quebrar essa tradição, com a qual Asdrúbal d'Aguiar não concordava. Era o que, de facto, estava escrito no metatexto do ofício. O juiz de instrução quisera cumprir as regras protocolares, mas conhecia motivos, relacionados com a investigação do caso, que o obrigavam a cumprir a lei, em vez de respeitar a regra convencionada.

Não havia outra explicação. Alguém, com a responsabilidade do magistrado, conhecendo factos que ele desconhecia, enquanto mero perito médico-legal. Queria saber mais. Tornou a reler o nome. Alfredo Augusto Ricóis Pedreira. Não conhecia. Talvez já se tivessem encontrado em algum julgamento, mas não identificava nenhum rosto com aquele nome.

Sobressaltou-se quando alguém bateu à porta.

- Quem é? - gritou sem vontade de ser interrompido.

A porta abriu-se e o gigante do Moreira Júnior mostrou a enorme cabeça com um sorriso tão rasgado que as enormes suíças pareciam asas. Reparou na expressão do amigo e comentou:

- Já vi que não te apetece leitão e muito menos iscas de cabidela. Portanto, não te convido até te passar o amuo.

- De facto, estou com muito trabalho.

- E a Rita, a mulher do Vítor do Paraíso do Leitão, fez o seu leite-creme. O tal leite- -creme! - e os olhos arregalaram-se.

- Não posso. Estou aflito com tanta coisa para fazer. Preciso de falar com o professor. Vou à Secretaria de Estado.

Saiu porta fora, com o ofício enfiado na algibeira, deixando o outro boquiaberto.

- Asdrúbal! Falo-te de leitão e leite-creme e tu foges?!

- Fecha a porta do meu gabinete quando saíres. - Atirou-lhe já no segundo patamar das escadas.

- Enlouqueceu! - exclamou Moreira Júnior, sem compreender a brusquidão do chefe do Serviço da Clínica Médico-Legal.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


DOIS TIROS E UM CRIMINOSO

 

 

Após a morte de Sidónio Pais, foi indicado para o seu lugar o almirante Canto e Castro, que indigitou outro militar, Tamagnini Barbosa, para liderar o Governo. Eram remendos. A contraditória aventura sidonista chegava ao fim, insegura, com uma situação ainda mais caótica do que aquela que o arauto da República Nova se propusera a resolver quando, pela força, tomara o poder, em Dezembro do ano anterior. E se não havia dúvidas de que a proposta do Presidente-Rei trouxera ainda mais crispações às paixões partidárias, graças à vocação ditatorial e à destruição das liberdades, não era possível governar um país que morria nas trincheiras da Flandres e, depois, dizimado pela peste e pela fome, um país assustado que não parava de morrer, sem força para renascer.

Foi sem entusiasmo que Azevedo Neves condescendeu em continuar secretário de Estado do Comércio e quando, dias depois, rebentou a insurreição em Santarém, liderada por Cunha Leal e Álvaro de Castro, a sua decisão tornara-se inabalável. A política não era definitivamente a sua paixão. Bastava que chegasse o momento oportuno e pediria a Tamagnini Barbosa que o dispensasse. A alma e alegria que perdera sabia onde reencontrá-las. No seu Instituto. Nos laboratórios e na ponta do bisturi com que a equipa que liderara, e sonhava tornar a liderar, iriam rompendo tabus, rasgando preconceitos, com descobertas atrás de descobertas que entregavam à vida e à justiça um novo sentido carregado de humanidade. E este desejo de regressar ao colo dos seus afectos era tal que não deixara de acompanhar, mesmo à distância, a actividade dos seus colegas e alunos.

Não admira, pois, que o olhar cintilasse com intensidade quando leu o ofício que Asdrúbal d'Aguiar lhe entregou.

- Que significa isto, professor?

O seu substituto nunca se habituara a trata-lo pelo título do cargo político que ocupava.

- O meu amigo Alfredo Pereira está aflito.

- Conhece o juiz?

- Conheço. Um homem sério - tornou a ler e devolveu o papel. - Confesso que me afastei deliberadamente deste caso. Sabia que os meus colegas de Governo me iriam sufocar com perguntas e a posição mais cómoda era não saber para responder com sinceridade que não sabia. O tumulto que a polícia tem gerado, prendendo e libertando dezenas de suspeitos à procura de uma conspiração maior, tem sido o sinal que me chega da desorientação.

- Quiseram incriminar Sebastião Magalhães Lima. Atacaram o Grande Oriente Lusitano.

- Outro sinal de desorientação. Magalhães Lima é o homem de maior grandeza e de maior solidez moral que existe no Portugal republicano. Só quem não o conhece poderia atribuir-lhe uma acção tão vil - e terminou com rispidez: - Magalhães Lima não é um encomendador de crimes.

- Mesmo afastado do assunto, o senhor professor lê jornais, sabe o sobressalto que percorre Lisboa. Não acredita numa conspiração?

Encolheu os ombros com indiferença.

- Que importa acreditar sem provas? Os complôs imaginários que lemos nos jornais são contraditórios entre si, são crenças, estão nos domínios da fé. Isso é matéria exclusiva de igrejas, bruxos e curandeiros. Acreditam porque têm fé. É preciso pensar como Locard.

- Eu sei.

- Parte-se da hipótese mais simples e só depois, se ela falhar, acrescentamos complexidade às sucessivas hipóteses. Ora o que este ofício quer dizer, um mês depois da morte do Presidente, é que a polícia nem consegue aceitar ou negar a hipótese mais simples. Ou melhor, a polícia enchouriça hipóteses e soluções a granel e o juiz Alfredo Pereira nem consegue perceber a mais simples. Como podem procurar conspiradores com tanto zelo e gritaria, se nem sabem explicar como é que Júlio da Costa matou Sidónio Pais? É exactamente isto que o juiz quer saber, neste ofício.

- É também a minha opinião.

- Aquilo que se lê das confissões do presumível assassino é claramente o resultado dos métodos que combatemos.

- A tortura.

- Nem mais. Cada vez que clama inocência leva uma tareia e, depois, confessa. E cada confissão é uma história diferente. Não me espanta. A história da tortura é esse determinismo. O nosso juiz não confia nas virtudes da violência para arrancar depoimentos. É um bom sinal dos tempos.

Asdrúbal d'Aguiar fez um trejeito de discordância.

- Não vejo nada de bom em saber que a polícia inventa culpados à custa de pancadaria.

- A polícia é irrelevante - respondeu o secretário de Estado -, o nosso inimigo é o método. E é velho. Tem centenas de anos de uso. Nem lhe passe pela cabeça que lhe põe fim com meia dúzia de exames forenses. Não estamos no fim de uma caminhada. Pelo contrário. Nós somos apenas o princípio e serão precisas muitas décadas, talvez séculos, para que a investigação criminal não seja um processo de brutalidades e indignidade.

- Talvez tenha razão. Porém, agora preciso do seu conselho. Como respondo a este ofício?

- É simples. Cumpre o que lhe pedem.

- Exumo o cadáver e levo-o para a Morgue?

Azevedo Neves não conseguiu evitar um sorriso.

- Esse sentido prático não é compatível com a sensibilidade do caso.

- Como? - Asdrúbal não compreendeu o que o outro queria dizer.

- O senhor vai realizar um acto pioneiro. Nunca foi autopsiado, quer aqui, quer por essa Europa fora, nem rei, nem rainha, nem presidente de qualquer república. Sabe qual é o grande falhanço do poder republicano? Confundir aquilo que pensam as elites com aquilo que o povo pensa. Meu caro, a União Operária Nacional é um desejo e uma pobre realidade. Não temos indústria. Temos um arremedo de uma revolução industrial, coisa com quase dois séculos de história na Inglaterra ou em França. O nosso sistema escolar, e nele havemos de reconhecer o grande esforço republicano, teve algum impulso nos últimos anos, mas o que resultou? Temos mais crianças nas escolas, eu próprio tenho impulsionado o ensino secundário, mas que elites produzimos? Meia dúzia de bons poetas, entre eles os meus amigos Teixeira Gomes e Leonardo Coimbra. Meia dúzia de escritores. Meia dúzia de pensadores. Outra meia dúzia de cientistas. Meia dúzia de políticos. Meia dúzia de bons actores. E o resto? Uma população pobre, ignorante, rural, fortemente católica, para quem os mortos estão investidos de uma sacralidade mediadora da transumância para os territórios do céu. Para esta gente, uma autópsia tem a força simbólica de um crime de profanação.

Asdrúbal duvidou.

- Não sei. Não me faltam cadáveres na Morgue.

- De desconhecidos, de imigrantes que inventaram Lisboa como a cidade da felicidade e nela encontraram o inferno. Nestes últimos cinquenta anos, quase duplicou a população. Em 1870, Lisboa tinha trezentos mil habitantes. Agora tem mais de quinhentos mil espalhados pelas «vilas» e «ilhas» operárias, que se estendem ao longo do rio, vivendo na pior e mais horrível das condições.

- Não discordo, professor, embora não perceba que relação tem esse retrato social com a autópsia de Sidónio Pais.

- Tem tudo, meu caro. Para essa gente toda, e eram milhares e milhares no funeral, recorda-se? Para todos eles vai ser a violação do corpo do seu herói, do mito. Até já me chegaram notícias de que muitos o colocaram no panteão dos santos, tal como fizeram com o nosso colega Sousa Martins.

Asdrúbal riu, condescendente.

- O professor Sousa Martins suicidou-se quando percebeu que a sua tuberculose era terminal. Os suicidas não podem ser santos. A igreja nem o funeral lhes faz.

- A religiosidade popular é bem mais forte do que as decisões clericais, doutor Asdrúbal. Se proceder estritamente como perito, caem-lhe em cima o Carmo e a Trindade!

- Está a sugerir que não cumpra a ordem do juiz.

- Não. Estou a seduzi-lo para dar grandeza ao acto. Não faça a autópsia na Morgue. Escolha os Jerónimos. Desloque uma equipa completa. Mande vir o Moreira Júnior e os seus rapazes, que fizeram o embalsamamento, para confirmarem as incisões. Dê notícia do que vai fazer. Com solenidade e respeito. Tudo isto pode ser um grande triunfo para a nossa profissão.

- Se a autópsia for branca, não será.

- Nunca pode ser branca. Nós sabemos, e vimos no Hospital de São José, os ferimentos no tronco. Terá sempre um diagnóstico anatomopatológico para fazer e uma conclusão para escrever. E, por outro lado, pode contribuir para romper preconceitos e tabus que nos garrotam a actividade.

Coçou o lobo da orelha, gesto habitual quando precisava de reflectir com rapidez sobre qualquer problema. Na verdade, o professor tinha razão. Não podia realizar a necropsia na Morgue do Instituto, infectada por vagas de mendigos, tuberculosos desconhecidos, sifilíticos sem eira nem beira.

- Como sempre, tem razão. Vou promover a perícia no Mosteiro dos Jerónimos - admitiu, por fim, Asdrúbal d'Aguiar. Porém, a inquietação permanecia. - Se esta solicitação do juiz de instrução corresponde àquilo de que suspeitamos, em vez de uma apoteose da medicina legal vamos ter a polícia de Lisboa à perna.

Azevedo Neves soltou uma gargalhada.

- Prendiam o médico por não confirmar as versões apresentadas? Nunca se atreverão. O pior que lhe pode acontecer, é ser ignorado quer pela polícia, quer pelo tribunal. Mas tal facto não o deve espantar. Tem sido a nossa história.

Conformou-se com a justificação. Ele próprio já fora actor daquela indiferença em vários julgamentos a que o chamaram a depor. Jamais esqueceria um desses interrogatórios, onde passara uma das maiores provações orais, durante duas horas, explicando a um magistrado a diferença entre livores e rigidez cadavérica, e de como todo o esforço tinha sido em vão quando, depois de muito perguntar, o homem concluiu:

- Já chega. Isto é um tribunal, não é um lugar para invenções científicas. O que o senhor está a tentar dizer é que livores e rigidez cadavérica é doença que só atinge os vivos depois de morrerem. É ou não é? Claro que é. Está dispensado.

Saíra furioso e vencido. O bloco de estupidez que estava a julgar da vida de um réu que poderia ficar agrilhoado por mais de vinte anos nem um esforço fizera para perceber princípios básicos do saber tanatológico. Porém, não fora a pior experiência em tribunal. Moreira Júnior, que, com ele, fora responsável por uma perícia a um crime de violação, julgado na comarca de Sintra, ia-o matando de ataque cardíaco. Depois de o médico ter explicado por várias vezes as tipologias de hímen, o juiz concluiu:

- Quer dizer que as mulheres com um hímen complacente podem ter relações sexuais e manterem o hímen intacto.

- É mais ou menos assim. Pelo menos em teoria! - esta foi a última resposta civilizada de Moreira Júnior.

Depois, não resistiu à ironia do comentário e deu-se o cataclismo.

- Em suma. O senhor perito veio aqui para dizer coisa nenhuma. O réu diz que as agressões na região pélvica resultaram dos pontapés com que se defendeu quando a queixosa, segundo ele prostituta e ladra, lhe tentava roubar a carteira.

- Não pode ser. O esperma...

- Qual esperma! - interrompeu o juiz. - Devia ter vergonha de vir para aqui defender uma pessoa que se dedica à má vida.

E o dique rebentou:

- Saiba vossa excelência que não vim aqui defendê-lo. É juiz, não precisa da minha defesa.

- O quê?

- É a única pessoa nesta sala que se dedica à má vida.

O homem transformara-se num tomate vermelho e colérico, e Asdrúbal d'Aguiar sentiu uma tontura.

- O que estás a dizer? - sussurrou aflito.

Sem o ouvir, Moreira Júnior continuou:

- Explico a vossa excelência que a vítima não é prostituta e que deve ser difícil ser juiz, pois deve ter uma vida sacrificada.

Foi o primeiro passe de capote e o infeliz não percebeu que tinha pela frente o mais terrível dos toureiros formados na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa.

- Ah, bom, fui eu quem percebeu mal. Pensei que me insultava.

- Fique descansado. Só insulto catedráticos. Se forem estúpidos, claro. Dizia eu a vossa excelência que a vítima não é meretriz. E mesmo que fosse pouco importava. As lesões que apresenta são compatíveis com o crime de violação e isso é que interessa.

Voltou à condição de tomate avermelhado quando deu uma pancada furiosa na mesa.

- Neste tribunal sou eu quem decide aquilo que interessa ou não interessa.

Moreira Júnior continuou, indiferente aos berros do outro.

- Alguma vez lhe deram vários pontapés nos tomates? Ou, sendo homem, alguma vez lhe tentaram ir ao cu sem vossa excelência autorizar?

O juiz estava à beira de uma apoplexia. Não era capaz de falar. Apenas gesticulava, ofegante. O procurador correu a ajudá-lo. O advogado de defesa também e até Asdrúbal d'Aguiar foi em auxílio do magistrado, suplicando para o colega:

- Manel, pela tua rica saúde, cala-te!

Enquanto socorriam o velho, libertando-o da toga, passando-lhe água pelo rosto, o perito continuava a dissertar alheio ao destrambelho do interlocutor.

- Diria que o cu de vossa excelência teria o comportamento idêntico ao de uma mulher com hímen complacente. E até as lesões nos rebordos do ânus de vossa excelência seriam idênticos aos encontrados nos lábios externos da vagina da vítima. Ora, não se entende como é que vossa excelência, apenas por ter colocado por mera e distante hipótese a possibilidade de alguém lhe ter ido ao CU contra a sua vontade, reage tão lastimosamente e a vítima tem de ser forçosamente prostituta. Por ser mulher? Claro que é por ser mulher. O cu, quer dizer, o ânus de vossa excelência é um buraco sagrado, embora complacente. O hímen da vítima, sendo complacente, é próprio de prostituta.

Irritado, enquanto ajudava o juiz, Asdrúbal d'Aguiar gritou:

- Desaparece daqui. Manel. Sai. Sai!

- Posso sair, mas o meritíssimo juiz continuará sem perceber que a lei não permite que se violem mulheres, nem que se enrabem juízes contra a sua vontade.

- Sai daqui! - berrou o colega.

- Eu saio. Mas vou insatisfeito. Gosto de ensinar. Gosto mesmo - e saiu, enorme, majestoso, do tribunal, enquanto Asdrúbal contava as pulsações do magistrado seminu e a quem o escrivão borrifava a cara com água fresca.

Agora, passados anos sobre esse incidente, dava consigo a rir sozinho da audácia do amigo. De certa forma, Asdrúbal d'Aguiar nutria por Moreira Júnior a mesma admiração que o intimidava quando estava perante Azevedo Neves. Se este era a sabedoria e o bom senso, o outro era a projecção extrovertida e timorata das suas próprias inibições. Uma espécie de alter ego do combate contra a ignorância voluntária e as verdades absolutas herdadas de séculos de preconceitos e medos. O colega, e amigo, era iluminado. Tornara a enorme astúcia que lhe enchia o corpanzil para transformar cada gesto, cada palavra, numa enorme e fatal arma com que dizimava aqueles que elegia como vítimas.


Uma noite, exactamente dois dias depois da implantação da República, entrara como um furacão pela casa de Asdrúbal d'Aguiar. Jantavam e assustaram-se. Glória, preocupada, perguntou:

- Aconteceu alguma coisa à Paula? Está tudo bem com vocês?

- Tudo! - e atirou-se para cima do canapé. - Atravessei Lisboa a pé, da Lapa ao Torel, para te informar de uma decisão. Deixei de ser republicano. Estão aqui a falar com um monárquico de primeira água.

Asdrúbal d'Aguiar largou os talheres, desconfiado.

- Tu? O grande pregador do monismo, o mais acérrimo defensor do positivismo de Júlio de Matos, o grande servo de Miguel Bombarda, como a ti próprio te intitulavas?

- Já não interessa. O grande mestre foi assassinado há três dias por um maluco e eu darei em maluco se for atrás desta bicharada que, em horas, usurpou o poder aos heróis da Rotunda que ontem se bateram pelos nossos ideais. O Machado Santos já não é nada. O António José de Almeida é um zero. Acabaram os tiros e os mortos, e das tocas saltam os oportunistas, medíocres e cobardes que já abocanharam o poder. Malditos!

Levantou-se bruscamente, dirigiu-se para a porta e, engrossando o vozeirão, gritou para a rua:

- Viva o rei! Viva o rei!

O casal ficou ainda mais assustado. Asdrúbal correu a puxá-lo para o interior.

- Não grites, por favor. Nesta rua vivem não sei quantos homens da Carbonária e são todos republicanos. Ao menos, não prejudiques os nossos filhos, que são crianças.

Ficou paralisado por instantes e, por fim, disse:

- Tens razão. Sou uma besta! Desculpa, Glória! Eu não volto a gritar.

- Agradeço-te! – congratulou-se a mulher, mais aliviada. - Ainda estou nervosa depois de ouvir tantos tiros e tantas bombas nesse dia terrível.

- Terrível, dizes bem. Este cinco de Outubro vai marcar o fim dos nossos sonhos.

Asdrúbal d'Aguiar não compreendia a agitação do amigo. Procurou acalmá-lo e descobrir o motivo daquele transtorno tão truculento.

- Queres um copo de água? Vinho?

- Por acaso, bebia um bagaço. Daquele que o teu sogro envia para aqui e não ofereces a ninguém.

Piscou o olho a Glória e tornou ao canapé. Mais tranquilo, acomodou-se, batendo com a mão no joelho.

- Não devia ter gritado da tua porta. Estúpido! - e de seguida, desculpou-se: - Ou gritava ou rebentava. Desculpem. Sabem que sou vosso amigo e dou a vida por qualquer um de vós. Mas rebentava!

Glória serviu-lhe a bebida.

- Vieste de casa e deixaste a Paula sozinha. Estes dias são perigosos e as noites ainda mais.

- A Paula correu comigo. Disse-me que não tinha paciência para me aturar. A minha própria mulher?! E vim ter com vocês.

- Foi uma imprudência. Manel! - tornou Glória. - Andam conspiradores por essas ruas ajustando contas com velhos inimigos à custa da República.

- Estás a ver como tenho razão? O bagaço é uma obra-prima. Enche mais uma vez.

Glória entregou-lhe a garrafa.

- Serve-te à vontade. Eu vou levantar a mesa.

Moreira Júnior emborcou o cálice, estendeu as pernas e desabafou:

- Hoje de manhã, quando descia o Chiado, um tipógrafo do Diário de Notícias que eu conheço de vista passou por mim e cumprimentou-me: «Bom dia, camarada!» Fiquei tão surpreendido que nem fui capaz de responder. Ainda não estava refeito, cruzo o Rossio, e o Seixas, que tem a latoaria na Rua dos Bacalhoeiros, saúda-me: «Bom dia, irmão doutor!» E eu, sem saber porquê, respondi: «Bom dia, irmão Seixas!» Dei comigo a pensar que estava a enlouquecer. Entro no hospital, preocupado com a minha saúde mental, e o porteiro abre os braços com um sorriso que parecia ter mais de oitenta dentes, abraça-me e grita: «Bom dia, primo!» Estás a ouvir-me? Nunca fui primo daquele tipo. Primo?!

Asdrúbal ria a bom rir e também se abasteceu do bagaço de que o amigo era devoto. E Moreira Júnior continuou:

- Sou chamado para uma reunião com o director, os médicos todos presentes, e o Coimbra, que sempre nos tratou por colegas, começa a reunião assim: «Caros cidadãos médicos, obrigado por terem aceite o meu convite para esta reunião.»

- A sério? - perguntou Asdrúbal, divertidíssimo.

- Juro-te!

- O Coimbra?! - não conseguia parar de rir.

- Passou-me uma coisa pela cabeça, perguntei: «Ó Coimbra, sou eu quem está pirado ou foste tu que te passaste? Que porra é essa do cidadão médico? Hoje já me chamaram camarada, irmão, primo e agora sou cidadão! A semana passada era o quê? Continua lá a tratar-me por Manel que não me dá jeito nenhum chamar-te cidadão director, nem muito menos irmão director. E primo, nem pensar. O único que tenho é bêbado, sifilítico e tem hemorroida!.»

- Tu disseste isso?

Também desatou a rir:

- Disse!

- E ele?

- Embatucou. Aquele cabrão ainda na semana passada gozava que nem um perdido por terem morto o Miguel Bombarda, pois, dizia ele, por cada republicano morto cantavam anjos no céu, e hoje vem-me com esta? Caros cidadãos médicos! - imitou, fazendo caretas, e exclamou: - Ranhoso!

- Às vezes, não sei se és um mero mortal ou uma divindade surgida da comédia grega.

- Não tenho razão? Agora somos irmãos, primos, camaradas, e sei lá que mais? Quando entrei na anatomia patológica, fechei a porta com estrondo para que o pessoal olhasse para mim e disse com ar zangado: «Se alguém me chamar primo ou irmão ou cidadão ou outra coisa qualquer que não seja o meu nome, capo-o!» - bebeu um trago e soltou uma gargalhada. - Um preparador meio palerma que lá está, e tem um medo terrível de mim, perguntou: «Desculpe, mas não percebi. Devemos trata-lo por senhor doutor ou por senhor Manuel?» E eu respondi-lhe: «Príncipe. Sou o príncipe dos Capuchos!» Fez uma vénia e disse: «Com certeza, senhor príncipe dos Capuchos.» Ia sair com uma bandeja e gritei-lhe: «Mas não te esqueças: príncipe republicano dos Capuchos!» - quando sossegaram as gargalhadas, perguntou: - Será que estamos todos doidos? Será que a cidade enlouqueceu?

Ao terceiro bagaço estava mais calmo. O gigante sossegava depois de mais um combate contra os seus demónios. Era um inquieto David enfiado num corpo de Golias. Moreira Júnior vinha de uma família abastada, e Asdrúbal d'Aguiar recordava-se da impressão que lhe causara, ainda eram caloiros da Escola Médico-Cirúrgica, e numa noite de folia, pelo Bairro Alto, o grupo de estudantes foi à casa da Rufina Gorda, enfiada num beco escuro da Rua da Atalaia. A velha comandava um grupo de matriculadas que tocavam guitarra, cantavam o fado, sedutora mais-valia para atrair clientes. Eram orgias imperiaisl O resto da assistência sentava-se ao colo dos estudantes, roçando seios valentes pelo rosto dos rapazes, enquanto os abraçavam e acariciavam, uma verdadeira caçada, onde elas eram caçadoras e eles, indefesos coelhos, desvaneciam, seduzidos ao gemer do Choradinho:


Fui encontrar a desgraça

Onde os mais têm prazer

Amor que dá vida a tantos

Só a mim me faz morrer

Eu fui a mais desgraçada

Das filhas de minha mãe

Todas têm a quem se cheguem

Só eu não tenho ninguém...


E continuava, lânguido, triste, banda sonora dos beijos, de dedos indiscretos explorando pernas, coxas e seios, enquanto as variações indicavam novo fado. Estudantes e moças identificavam-se nos gemidos plangentes que confessavam fatalismos e profetizavam destinos trágicos, carregados de sofrimento, amor e lágrimas.


É que tu, de cego amor,

Em teus caprichos ferinos

Ligas risos com tristezas,

Cinges grandes e pequeninos!

E dest'arte do mundo viu

Senhor cicio e muito alto

A fria campa baixar

Sem pompa e espalhafato.


E continuava entre lágrimas ébrias, aplausos desafinados e subidas de pares aos quartos do sótão para negócios de sexo, mascarado de paixão, que as guitarras ampliavam.

Foi numa dessas noites que o jovem latagão Moreira Júnior descobriu num canto da sala das exéquias fadistas, como lhe chamavam, um piano, coberto com toalha de chita, adornado por dois vasos de manjericos. Largou as duas mulheres que tinha no colo, que, sendo pessoa de grandes apetites, abocanhava-as aos pares, e dirigiu-se ao instrumento, despindo-lhe os adornos que a Rufina Gorda compusera para que o piano tivesse alguma função. Experimentou as teclas e fez um trejeito de satisfação razoável. A desafinação não era tão bizarra quanto a toalha de chita de cores berrantes. Puxou de uma cadeira e quando pressentia as notas finais da lamúria


Nascera num berço d'ouro

E não teve uma mortalha


Correu os dedos pelo piano, sobressaltando os aplausos desvanecidos, e à uma, como se despertassem subitamente de um sonho entorpecedor, voltaram-se todos para Moreira Júnior, que, com ar grave, anunciou:

- E agora, Mozart!

Um silêncio inquieto, até desiludido, percorreu a assistência, e a velha patroa perguntou?

- O que é isso?

- Minha santa e virgem Rufina - explicou Moreira Júnior, fazendo vibrar as primeiras notas -, as suas donzelas são deusas mártires, vestais de grande virtude adoradas por todos os deuses de Lisboa. São nuvens de alvura imaculada no azul dos céus, espuma de cristal a dançar nas cristas das ondas e, por tudo o que de divino as habita, devem ser promovidas a ninfas de Lisboa e merecem muito mais do que as notas rascas sobre versos ainda mais rascas. Numa palavra, esta noite irão ao céu por duas vezes. Agora, com esta oferta de Mozart, depois, quando levar as minhas duas almas gémeas para o quarto lá de cima e, então, já não escutarão a música dos anjos, mas as harpas da minha paixão.

O discurso, ainda que mal entendido, provocara um arrepio de comoção que não excluiu a Rufina. Ela sabia que o rapaz tinha dinheiro e mãos largas. Que se sacrificasse um fado a esse Mozart caprichoso. Asdrúbal ficou boquiaberto. Por detrás daquele corpanzil tonitruante, sempre de olhos escancarados e suíças viçosas, escondia-se um pianista de excelência, manápulas febris a fazerem saltar notas com o à-vontade dos grandes músicos. A assembleia de estudantes e matriculadas ficou estupefacta e aplaudiu em frenesim. Agradeceu com uma vénia desajeitada, pegou nas duas moçoilas de seios mais farfalhudos e, sem dizer mais palavras, subiu, contente, ao sótão da Rufina.


Tinham passado anos desde essa noite, que Asdrúbal lhe recordou enquanto despachavam a garrafa de bagaço. De repente, o anfitrião perguntou-lhe:

- Afinal quem és tu?

- Ninguém! - recitou dramaticamente Almeida Garrett.

- Não tens jeito para ser o romeiro. És um epicurista. Assentava-te melhor o papel de Manuel de Sousa Coutinho.

- Excessivo. E estúpido.

- Estúpido?

- É um sebástico que se deixa vencer quando pela frente lhe surge o negativo do seu D. Sebastião. Quer uma pátria sem domínio castelhano e não sabe amar sem sofrimento. Um herói de fachada. Prefiro o Telmo. Um grande personagem! Aí, sim, Almeida Garrett acertou.

- Nem te atrevas a dizer mal. O Frei Luís de Sousa é brilhante.

- Mas denuncia o autor. O Garrett deveria ser hipocondríaco. Projectou os seus medos pessoais na desgraçada da rapariga.

- Da Maria? - perguntou Asdrúbal, surpreendido.

- Matou-a com tuberculose.

- E daí?

- Asdrúbal, põe-me esses miolos a pensarl - gritou, brandindo a garrafa de bagaço. - A acção passa-se nos inícios do século XVII quando não havia diagnóstico para a tuberculose. Garret tinha de a matar com peste ou com a loucura, qualquer coisa, menos tísica! Só depois das Invasões Francesas é que o raio do bacilo ganhou identidade patológica e foram necessários quase cem anos para que Koch o pudesse isolar. Garrett matou a Maria com tuberculose porque era o seu medo maior. O tipo devia borrar-se de medo cada vez que dava um espirro.

Ficaram em silêncio. Moreira Júnior tinha razão. O genial dramaturgo pôs na boca de Telmo todos os sintomas da doença mais assassina do século XIX e que continuava a matar sem piedade.

- Confesso que não te percebo. És um cirurgião competente, pianista de excelência, lês de forma obsessiva e depois...

Não teve coragem para terminar o juízo que ia fazer, mas o amigo concluiu:

- Tenho coisas de doido, não é?

- Não é bem doido. Dizes coisas que ainda não sei como não levaste um tiro de alguém entre tanta gente que pões a ferver.

Sorriu velhaco.

- Não são capazes. Só provoco cobardes.

- Assisti a representações que fizeste um pouco por todo o lado e repete-se sempre a mesma reacção: não sei se hei-de zangar-me ou rir que nem um perdido. Quando me contaram que dois tipos tinham assassinado o rei D. Carlos, no Terreiro do Paço, a primeira ideia que me veio à cabeça foi: um deles é o Moreira Júnior, de certeza! Fiquei aliviado quando soube o nome dos criminosos.

Estava na sua posição predilecta. Recostado no canapé, as pernas esticadas, as mãos cruzadas sobre a barriga.

- Vou confessar-te um segredo - a expressão do rosto era grave e parecia sincero. - Às vezes não sei o que me leva a disparatar. Porém, a maioria das minhas representações, como tu lhes chamas, resultam do ódio profundo pela ignorância voluntária.

- Ignorância voluntária? - questionou Asdrúbal sem perceber.

- Odeio a presunção. Não suporto aqueles que têm o dever de saber e não sabem. Aqueles que se acomodam quietos sem olhar para o que os rodeia, ou, se olham, não conseguem outra coisa a não ser ficar quietos. Odeio o oportunismo, Asdrúbal. Por isso, atirei-me aos indigentes morais que usavam a Monarquia como um escudo para defender os seus interesses mesquinhos e, agora, ainda não passaram três dias sobre a instauração da República e já os vejo, outra vez, perfilando-se para comer da malga que outros cozinharam. E são voluntariamente ignorantes. Preguiçosos. Cobardes! - deu um salto que fez estremecer o outro: - Tu aceitas que animais como o Coimbra, agora todo cidadão, todo republicano, possa chegar a catedrático de histologia por lamber botas como ninguém e sem saber a ponta de um corno da matéria?

- Posso considerar abusivo, mas não tenho poder para impedir essa decisão. Nem refilo.

- Nem eu. Ganharia muito pouco com isso. O refilanço é a matéria-prima da luta político-partidária. Grita-se muito e ninguém liga. Aí, calo-me. Não tenho jeito para gritar em coro de prostitutos. Lê o Camilo. Lê A Queda de Um Anjo e percebes que esse refilanço pegajoso não é mais do que inveja da mediocridade dos outros. Refila a oposição porque deseja ser a situação medíocre. Não ouves um único protesto por não respeitarem o dever de saber.

- Pareces o professor Bombarda a zurzir.

- Coitado do meu querido professor. Que morte injusta! Mas o professor Bombarba cometeu um erro. Aderiu ao Partido Republicano.

- Não sejas tonto. Manel.

- A sério!

- Vais dizer-me que o partido que anteontem venceu um regime com séculos de história não presta. É?

- Sei lá se presta.

- Então?

- Então, nada. Se hoje é bom, não tenho dúvidas de que amanhã vai ser igual aos partidos monárquicos. Por cada homem sábio que surgir, aparecerão cem ignorantes voluntários para o desfazer e usurpar-lhe o lugar a que tem direito por saber. Por estudar, por trabalhar.

- És excessivo! - afirmou Asdrúbal convictamente.

- Sou?! Daqui por um ano falamos e vais ver onde pára o teu Partido Republicano. Tenho a certeza. A ignorância voluntária vai tornar a vencer.

- Como podes ter tantas certezas, se ainda agora tudo começou?

- Veremos.

- Não acreditas no António José de Almeida?

- Veremos.

- No Afonso Costa?

- Veremos.

- No Brito Camacho? No Teófilo?

- Veremos.

Parecia um burro teimoso e Asdrúbal desistiu. E não tornaram a falar das crenças pessimistas de Moreira Júnior, nem da sua cruzada solitária, embora espectacular, contra a ignorância voluntária.


Agora, apenas nove anos depois, ali estavam, mais uma vez, na tasca do Juan Galego, comendo bolos fintos e bebendo abafados. Moreira Júnior mastigava com entusiasmo e não esperou para deglutir quando o amigo lhe disse ao que ia.

- Mas porque carga de água devo assistir à autópsia do Sidónio? Eu embalsamei- -o e pronto!

- Preciso que testemunhes as incisões que fizeste.

Parou de comer e afastou o resto do bolo, enquanto olhava, desconfiado, para o outro.

- Que se passa? Já embalsamaste, sabes onde se fazem as incisões, como se fazem e como são suturadas. É um acto banal. Não me mintas, Asdrúbal. O que há de complicado nessa autópsia? O Brites é um tanatologista brilhante e tu és perfeito.


- Não digas parvoíces - reagiu Asdrúbal, visivelmente incomodado, e terminou seco: - E não te menti. Nunca menti na minha vida.

- Acredito - comentou com sinceridade. - És demasiado certinho e sério para mentiras, mas és suficientemente manhoso para omitires - voltou ao ponto de partida. - Que mistério há nessa autópsia para quereres que eu e a minha equipa sejamos tuas testemunhas? É disso que se trata, não é? Diz-me a verdade, ou peço outro bolo ao galego.

Asdrúbal d'Aguiar não podia resistir mais. O amigo conhecia-o há tempo de mais para aceitar aquela explicação simples, e contou-lhe parte das suas inquietações perante o pedido tão tardio do juiz de instrução e dos conselhos que recebera de Azevedo Neves.

O outro escutou-o com toda a atenção e quando, finalmente, terminou, Moreira Júnior ainda continuou em silêncio por algum tempo e, por fim, disse:

- O professor tem razão. É uma perícia que pede essa grandeza, com Jerónimos e muita testemunha à mistura. Conta comigo. Lá estarei para ensinar o padre-nosso ao vigário.

- Obrigado. Agradeço-te muito.

- Não custa nada - de súbito, estacou. – Diz-me uma coisa: o governador civil vai estar presente?

- Vai. É ele quem tem as chaves do caixão e é o governador de Lisboa. Porquê?

- Odeio essa criatura! - roncou, colérico.

- O Sousa Fernandes? Fez-te mal?

- Faz parte daquele exército de parasitas que subiu na vida à custa de ser sabujo. Um ignorante e autoritário. Uma verdadeira besta!

- Não te preocupes com ele - desdramatizou Asdrúbal. - Não nos vai incomodar.

- Uma verdadeira serpente. Oportunista e venenoso. Uma serpente! - vociferou, enquanto retirava moedas da algibeira para pagar o lanche.

- Vais pagar? – surpreendeu-se Asdrúbal.

- Pago de cinco em cinco anos. Chegou o meu dia - e gritou para o taberneiro; - Juan Galego, traz-me a conta e não abuses. Hoje não é o doutor Asdrúbal quem paga, portanto não me roubes!

 

Estava frio, embora um sol desmaiado iluminasse Lisboa com feixes de luz prateados. Passou por um burro, com ar paciente, carregado de loiça de Sacavém. Esperava o fim do regateio sobre o preço de dois réis entre o dono e um cliente, e mais à frente uma varina quis vender-lhe carapaus. Cadenciou passo rijo em direcção à estação do Rossio, com o pedido do juiz enfiado no bolso do sobretudo. Um automóvel sobressaltou-o quando fez roncar um claxon impaciente pela pachorra de um carroceiro, que descarregava canastas de laranjas para uma das pensões que polvilhavam a rua. Passara um mês, mas precisava de ver o local onde ocorrera o crime. Dificilmente encontraria algum vestígio e, mesmo que o encontrasse, não teria qualquer valor indiciário. Porém, queria compreender o local. De tanto pensar no caso, tinha a certeza de que resolveria algumas das inquietações que o atormentavam com recaídas sucessivas, e que lhe comandavam os passos até ali.

Entrou na estação e havia pouco movimento. Um comboio jazia adormecido num dos cais e chegava um ou outro funcionário. Como imaginava, a passagem das arcadas estava suja, cheia de pegadas de passageiros e de rodados dos carrinhos dos bagageiros, numa lama negra, fina e pegajosa. No local onde caíra Sidónio Pais, havia um punhado de velas, que bruxuleavam, tristes, e no centro estava um ramo de rosas ressequidas. Mentalmente media a distância até à arcada principal. Não distava dois metros, sinal de que os disparos partiram da zona do cais para a entrada, e lembrou-se da narrativa monocórdica do guarda: de lá para cá!

As paredes das colunas que suportavam os arcos pareciam pintadas por uma sujidade poeirenta feita de cinzentos e negros. Colocou-se junto à coluna esquerda e fixou o ponto onde se encontravam as velas. Depois, fez o mesmo em relação à coluna da direita. Se fosse dali que os disparos tivessem partido, tal como descreviam os jornalistas, Sidónio havia sido mesmo atingido à queima-roupa. Ao reconstituir a cena, a relação entre os corpos dos agressores e o corpo da vítima, bastaria um passo para que ficassem frente a frente, praticamente encostados. Naquele contexto, não só a morte era inevitável como não haveria tempo de a polícia e de o grupo que acompanhava o Presidente reagirem em sua defesa. Compreendia agora, com mais precisão, aquilo que lera nos jornais. Olhou em redor com mais atenção. Procurava um cartucho, um sinal de sangue. Porém, tudo desaparecera, dissolvido no movimento diário da estação.

Estava tão absorto nos seus pensamentos que deu um salto quando alguém lhe tocou nas costas. Voltou-se. Era um funcionário ferroviário. Atrás dele, viu um polícia.

- O amigo procura alguma coisa?

- Eu? Ah, sim. Quer dizer, não. Não - titubeou enquanto se refazia da surpresa.

O polícia entrou a matar.

- Ou vieste à procura de qualquer coisa que os teus amigos carbonários perderam por aqui? - a moleza desafiadora do outro continha ameaça de violência iminente.

- Não! - reagiu. - Não é nada disso!

- Então, é o quê, ó camelo?

- Calma, calma! – precipitou-se Asdrúbal d'Aguiar, intuindo a desconfiança dos seus interlocutores. - Sou médico. Sou o director interino do Instituto de Medicina Legal.

A apresentação suspendeu a progressão da ameaça, mas não a afastou.

- Identificação! - ordenou o agente policial.

Apalpou os bolsos do casaco e o coração bateu descompassado. Esquecera-se da carteira no Instituto. Foi então que sentiu o ofício do juiz de instrução e puxou-o com a energia do náufrago a agarrar uma bóia de salvação. Em vez de cumprir a ordem policial, mostrou o ofício enquanto se explicava.

- Recebi esta ordem do meritíssimo juiz a ordenar a autópsia de Sua Excelência o Senhor Presidente da República, Doutor Sidónio Pais. Decidi vir verificar o local do crime antes de proceder ao exame do cadáver. Pode ler. Compreendo que possa ter parecido estranho o meu comportamento, mas apenas estava a querer imaginar o que se passou aqui na noite de catorze de Dezembro.

O guarda lia com dificuldade o texto do ofício e, quando terminou, olhou-o com um misto de repugnância e curiosidade.

- É autopsista?

- Sou médico legista.

- E vai autopsiar Sua Excelência, a que propósito? - havia indignação na pergunta policial. Asdrúbal encolheu os ombros com um sorriso cúmplice.

- Ordens do juiz. Que havemos de fazer? Tal como os senhores, cumpro ordens.

Fora um bom remate. A crispação desvaneceu-se e deu lugar a solicitude.

- É verdade. É a nossa sina. Quem pode, manda, quem não pode, obedece! - sentenciou salomonicamente o polícia. O funcionário era, agora, compincha.

- Precisa de ajuda, senhor doutor?

- Já passou mais de um mês sobre a tragédia. Não vejo nada de interesse. O sítio onde estão as velas foi onde caiu o corpo de Sua Excelência?

- Exactamente. De vez em quando, alguém deixa aí uma vela. Já foi maior a quantidade. Agora, são cada vez menos.

- Algum dos senhores estava cá nessa noite?

- Não. Entrei às seis do dia seguinte - respondeu o funcionário, que se chamava Carlos.

- Estava de folga. O meu comandante deu-me dois dias para acompanhar a minha esposa que tinha apanhado a «espanhola». Safou-se, com a ajuda do Senhor, e eu livrei- -me desta confusão com a graça de Deus!

Asdrúbal interessou-se pelo outro.

- Recorda-se do que viu na estação, quando aqui chegou?

- Já não havia nada. Apenas falatório. Não se falava de outra coisa, pois foi algo nunca visto, não é verdade, senhor doutor? Bem, houve aquela coisa do Buíça com o D. Carlos, mas era rei. Agora com um presidente, nunca passou pela cabeça de ninguém. Logo com este de quem o povo tanto gostava.

O médico cortou a peroração:

- Quer dizer que estava tudo limpo.

- Tinha de estar, senhor doutor. Havia sangue por todo o lado e o chefe quis tudo em condições de servir os passageiros dos comboios das cinco da manhã.

De repente, interrompeu o que estava a dizer.

- Olhe, sinais, sinais, estavam no carro do Alfredo.

- Do bagageiro?

- Exactamente. Ainda está para ali, que o pessoal acha que é de mau agoiro trabalhar com aquilo.

Ficou interessado. Era o carro das bagagens do rapaz que fora atingido com os dois tiros na cara.

- Gostava de vê-lo.

- Venha comigo, senhor doutor. Por aqui.

O guarda acompanhou-os. Mais por curiosidade do que por desconfiança. Caminharam em direcção à zona das bagagens, pelo cais, ao longo do comboio que, percebeu Asdrúbal, através das janelas, estava a ser limpo por varredores.

Carlos comentou.

- Chegou do Porto. Vai partir para lá esta noite. Era aquele que o Presidente da República ia apanhar. Houvera motim de tropas em Penafiel e ele ia lá enfrentá-los. Homem do cacete que não tinha medo de nada! - era indisfarçável a admiração do ferroviário por Sidónio Pais. - Não tinha medo! Fizesse frio, fizesse sol, andava por aí no meio do povo. Até visitava as enfermarias com os apanhados da «espanhola» sem medo de que a peste se lhe pegasse.

A sala das bagagens era ampla. Estava parcialmente pejada de malas, baús, sacos de viagem. Entravam e saíam carregadores que colocavam etiquetas e os arrumavam segundo uma certa ordem que Asdrúbal não percebeu. Talvez tivesse a ver com os destinos de cada um deles.

- É aquele carro! - apontou Carlos.

A um canto, estava um veículo com quatro pequenas rodas de ferro e sobre elas uma larga placa rectangular de suporte de bagagens. Um aro, em forma de U invertido, servia para empurra-lo.

Asdrúbal d'Aguiar aproximou-se e, de cócoras, examinou-o. O suporte para as malas não estava a mais de trinta centímetros de altura, pois as rodas eram rolamentos recuperados de maquinaria mecânica e adaptados ao carrinho que ajudava a transportar, de uma só vez, uma pilha de malas. A placa estava coberta por uma película negra feita de resíduos de carvão e cinza do fumo das locomotivas. Apesar da sujidade percebia-se uma grande nódoa, grossa e escura, que cobria mais de metade e escorria por um dos bordos. Era sangue ressequido. Com a ajuda de um farrapo velho, o médico limpou a sujidade fumarenta com cautela, descobrindo a enorme mancha negra e, para repugnância das testemunhas, passou a mão ao de leve, como uma carícia e susteve-se num ponto particular. Arranhava. Dava a ideia de que as rugosidades que lhe chamaram a atenção eram pedrinhas minúsculas afogadas na massa sanguínea. Raspou com o indicador e recolheu três fragmentos muito pequeninos, pouco maiores do que grãos de areia, e observou-os de perto.

- São esquírolas de ossol - sentenciou. Depois virou-se para o ferroviário. - Está por aí alguém que tivesse visto o sítio onde se encontrava o vosso camarada, assim como o carro, na noite do atentado?

- Ouvi conversas, mas duvido de que alguém saiba ao certo. Quando desataram aos tiros, cada um fugiu para seu lado e havia muita gente que só viera aqui para ver o Senhor Presidente. Uma confusão dos demónios. Depois, a polícia não deixou que ninguém se aproximasse.

- Mas estaria longe, estaria perto das arcadas? - insistiu Asdrúbal d'Aguiar.

- Estava perto! - afirmou convicto.

- Como pode ter tanta certeza? - quis saber o médico.

- Porque durante alguns dias ficou marcado no chão um rasto de sangue que uma das rodas deixou quando trouxeram isso para aqui. Mesmo quando lavaram os sítios onde havia mais sangue, essa linha ainda ficou.

- Tem ideia por onde passou?

- Mais ou menos. Mas já desapareceu.

- Apesar de tudo, se me pudesse dar uma ideia.

O outro encolheu os ombros e saíram da arrecadação. O polícia afastou-se deliberadamente. Causara-lhe uma sensação de nojo ver o médico, com a mão estendida, em concha, com os pedaços de osso do morto aconchegados como se fossem diamantes.

O funcionário da estação tinha razão. As marcas haviam desaparecido graças ao movimento diário de passageiros, de cargas e descargas, e só o montículo de velas bruxuleantes ainda assinalava um dos momentos da tragédia que ali acontecera. Porém, sem se dar conta, o homem prestara uma informação importante.

- O rasto da roda começava por aqui! - e com a mão fazia círculos mais ou menos vagos.

O rapaz, tal como suspeitara, fora abatido com disparos direccionados para o lado direito da arcada. A ser verdade o palpite da testemunha, estaria a mais ou menos três metros do Presidente no momento em que este fora atingido. Asdrúbal sentiu uma onda de revolta. Se, na noite de catorze de Dezembro, pudesse ter avaliado a disposição das vítimas e desenhado as posições relativas de cada uma; se tivesse havido alguém com um pingo de serenidade que recolhesse os cartuchos das balas disparadas, marcando o local onde as encontrara; se alguém tivesse apreendido as armas, identificando os seus utilizadores, fossem polícias ou civis, por certo que seria possível responder a muitas perguntas que ficaram dissolvidas na lama negra que, agora, coalhava o chão da gare. Tinha de se conformar. Jamais as suas inquietações, transformadas em pesadelos, seriam resolvidas. O tempo e a erosão dos quotidianos destruíram os vestígios que Locard reclamava como matéria-prima para a elaboração científica da reconstituição de um crime. A voracidade das conclusões simplistas precipitara o resto. O conforto de terem prendido um possível suspeito e de abaterem o segundo, o testemunho dos dois tiros no peito de Sidónio Pais, a cobertura jornalística que confirmava o desenlace, saciara a narrativa sobre o caso, tornando aparências em verdades inquestionáveis.

Aproveitou o ofício do juiz de instrução para guardar as esquírolas de osso e, com gesto delicado de cabeça, despediu-se.

- Agradeço a vossa ajuda. Foi preciosa.

Afastou-se em passos largos, observado pelo par, que, intrigado, comentava os devaneios do médico.

- O porcalhão não largou o pedacito de osso. Para que quer ele aquilo? - questionou o polícia.

- E reparou como procurava os rodados do carro de carga? Parecia um perdigueiro farejando caça.

- Não se percebe. Toda a gente sabe como mataram o homem e quem o matou. Até veio nos jornais.

- Como mataram Sua Excelência, quer o senhor guarda dizer.

- Ou isso. Ou isso. Estes tipos da Morgue são esquisitos. Deus me livre de trabalhar num lugar daqueles.

O ferroviário fez uma careta.

- Cá por mim, há mistério. Você tem a certeza de que os seus colegas não se enganaram?

O guarda soltou uma gargalhada.

- Também enlouqueceu? - pôs um ar solene quando sentenciou: - Fique-se com esta, meu amigo, a polícia nunca se engana. Nunca!

E afastou-se, majestoso, dando por finda a conversa, e continuou o giro pela estação.


Asdrúbal d'Aguiar tinha pressa em chegar ao Instituto. Precisava de falar com o seu colega do Serviço de Tanatologia, ainda nesse dia, pelo que chamou uma tipóia e pediu pressa para chegar ao Campo de Santana. O condutor espicaçou os cavalos para o trote, cruzando os Restauradores, para ganhar rapidamente a Rua das Pretas.

Desde que chegara o ofício do juiz de instrução que, ele próprio, passara o dia a galope. Mais uma vez quebrara o juramento de não tornar a pensar naquele caso que pusera o país sedento de vinganças e ódios, de lágrimas, e estupefacto. Não tinha dúvidas. Pelo menos queria acreditar que, embora desconhecesse os motivos do magistrado para o pedido de autópsia, se fundamentavam nas suas próprias dúvidas, que ora nasciam ora morriam, conforme se aproximava ou afastava da reconstituição dos factos ocorridos na estação do Rossio, na noite de catorze de Dezembro.

Azevedo Neves emprestara-lhe o pequeno livro de Edmond Locard, Polices de Roman et Polices de Laboratoire. O grande mestre, o organizador da polícia científica, que articulava os locais dos crimes com o determinismo positivista dos laboratórios, o profeta da prova material, que explanara a teoria dos vestígios e dos indícios enquanto território essencial da investigação criminal, sugeria, nesse ensaio, a importância da dedução lógica dos detectives de ficção como o cimento decisivo que tornava coerentes as conclusões que o laboratório demonstraria cientificamente. Parecia um paradoxo. Por um lado, acreditar que só o rigor do conhecimento científico, compartimentando o real em categorias, permitiria o estabelecimento de leis segundo as quais funcionaria a vida, e, por outro, lançar sobre este edifício rígido, demonstrado e verificado em inúmeras experiências laboratoriais, a criatividade dos ficcionistas. Ou seja, Locard exortava ao rigor da prova científica, mas não lhe entregava uma finalidade biunívoca, como se reescrevesse a crença na sublimidade positiva. As mesmas causas, nas mesmas circunstâncias, produziriam sempre os mesmos efeitos. Ou não. O manto de fantasia dos polícias de romance escorava-se no método lógico-dedutivo, a mesma raiz donde nascia a nova polícia científica, mas discorria sobre hipóteses que nenhum laboratório poderia testar. Asdrúbal d'Aguiar deixava-se conduzir pelas suas reflexões como se fosse um detective romanesco, enquanto o médico legista que o habitava não se dava por satisfeito enquanto as suas mais extravagantes hipóteses não estivessem suportadas pelas verdades retiradas da lógica científica de demonstração dos vestígios. Apanhou Geraldino Brites à saída.

- Ainda bem que te encontro. Queria falar contigo.

O chefe do Serviço de Tanatologia sorriu, velhaco.

- O Sidónio. Tiveste uma recaída. Acertei?

Levantou os braços num gesto de desalento.

- Fui um estúpidol Nunca deveria ter esquecido o caso.

- Se te conheço bem, nunca o esqueceste. Ficou sempre em banho-maria.

- Devíamos ter estudado a estação do Rossio logo a seguir ao tiroteio. Ainda encontrei esquírolas de osso. Foi um disparate.

- Ainda me lembrei de te desafiar, mas estavas na fase da negação - ironizou Brites. - Além de que a polícia corria connosco ou prendia-nos.

Do interior do ofício do tribunal, retirou as pequenas esquírolas ósseas que recuperara da carreta de transporte de malas.

- Isto é seguramente do rosto do mais jovem. Estava no sangue que ficou no tampo do carro de bagagens com que trabalhava.

- É possível - comentou o tanatologista.

- O guarda que veio, naquele dia, identificar os cadáveres disse-me que ele morrera com o tronco e a cabeça em cima do tampo onde se colocam as malas. Achas que estas esquírolas podem ajudar? Terão resultado de um murro ou de uma bala? Lembras-te?

- Foi, de certeza, de um dos dois tiros que levou no rosto. Tinha os ossos da cara todos desfeitos.

- E o ferimento no braço?

- A bala rasgou-lhe a subclávia. Todas as lesões propiciariam uma hemorragia abundante.

- Pois! - Asdrúbal d'Aguiar ficou pensativo.

O colega continuou:

- Há pouca coisa boa para contar desse caso - comentou com algum azedume.

- Que queres dizer com isso? - perguntou o legista, desconfiado.

- Esse rapaz foi executado, Asdrúbal! Morto sem piedade. Assim como o outro homem mais velho.

- O que estava caído ao pé da coluna da arcada.

- Não sei onde estavam - respondeu Brites, com secura -, aquilo que sei é que o rapaz foi primeiro atingido no braço e terá caído. Os outros dois tiros, na cara, tal como no pescoço do mais velho, foram disparados a uma curtíssima distância.

- À queima-roupa.

- Se assim lhe quiseres chamar. Quer o terceiro ferimento do rapaz, quer o ferimento no pescoço do homem tinham os rebordos dos orifícios de entrada da bala queimados pela pólvora.

- Desferiram os tiros com as armas encostadas aos corpos - proclamou, o legista, estupefacto.

- Mortos como cães! - respondeu Brites, revoltado. - Vivêssemos num país com alguma decência e a polícia andava à procura dos assassinos que tem na corporação. Esquece as esquírolas que encontraste. São dos ossos da cabeça do rapaz. Uma verdadeira barbárie!

Abotoou o sobretudo. O tanatologista estava visivelmente irritado com a conversa. Calçou as luvas, pôs o chapéu e perguntou:

- Precisas de mais alguma coisa?

Asdrúbal ergueu a cabeça, sobressaltado.

- O quê? Ah, não. Obrigado. Até amanhã.


O colega partiu e ele sacudiu do ofício os restos de osso que recuperara. Eram compatíveis com a descrição que o amigo recolhera durante as necrópsias. Na verdade, cada vez fazia menos sentido a prova testemunhal publicada nos jornais. Tal como não faziam as sucessivas confissões e negações de Júlio da Costa. Não coincidiam com os factos que, aos poucos, iam recuperando. Mas essa conduta, Asdrúbal d'Aguiar compreendia-a. Conforme o grau de espancamentos a que era sujeito, assim surgiam novas versões, se bem que desencontradas e avulsas. Ainda era cedo para que se cumprisse a profecia de Locard. A prova científica dava os primeiros passos nas morgues e laboratórios forenses e a tortura era instrumento velho, herdado de séculos e séculos de hábitos que a extinção da Inquisição não conseguira extirpar e que se perpetuava como o mais precioso recurso do trabalho policial.

Nessa noite, dormiu pouco, trespassado por sentimentos contraditórios. Culpava- -se por não ter insistido nas suas dúvidas iniciais. Depois, encontrava conforto nas suas próprias justificações, que lhe garantiam que aquele caso, ou conjunto de casos, não era da sua conta. E tornava a dormitar, para logo lhe aparecer Glória, que lhe sorria, terna e mansa, e uma dor aguda de saudade tornava a acordá-lo e a fixar a almofada onde se habituara a vê-la descansar, um sono-vigília, sempre com um ouvido desperto aos silêncios e sinais que vinham do quarto dos filhos.

Acariciou a almofada e duas lágrimas quentes escorreram-lhe pelo rosto. Como tinha saudades dela. Santo Deus! E, de repente, sobressaltou-o outra ideia: qual seria a direcção da bala que entrara no braço do rapaz? Se fosse de baixo para cima, poderia admitir que o carregador se colocara em cima da carreta para melhor ver o espectáculo. Se fosse no plano horizontal ao eixo vertical do corpo, teria sido baleado frente a frente. Seria isto importante? Não. Definitivamente não era.

Fosse qual fosse a posição em que recebeu o impacto, teria caído. O facto de estar semi-deitado sobre o carro de transporte de bagagens apenas significava isso mesmo. Que caíra e os restantes tiros de execução foram imediatos à queda, morrendo de imediato.

A cabeça pesava do cansaço e, mal dormia, regressava Glória, terna, a ajudá-lo a despir o sobretudo e a contar-lhe as novidades da vizinhança e as notícias de Lisboa.


Passara tudo tão depressa. Santo Deus! A pneumónica desfizera em três dias os mil projectos sonhados durante os últimos dez anos de partilha de afectos e desafios. E parecia ter sido ontem que, na Igreja de São Roque, haviam jurado amor eterno até que a morte os separasse. Glória, linda de branco, enfeitada de grinaldas, não poderia supor que o juramente sagrado só valeria por uma década, o tamanho da eternidade que a morte interrompia tão bruscamente quando ainda se esfumavam os últimos êxtases dos dias fundadores daquela relação, tão curta de vida e tão cheia de luto. Um luto que a peste ia inundando de negro, casa a casa, família a família, tão estranha e misteriosa que agora, três semanas depois de lhe ter morto a mulher, dava os primeiros sinais de saciedade. Era confuso e estranho o luto de Asdrúbal. Possivelmente como qualquer outro luto. Um rio de saudade magoada escorria-lhe pelo coração e pelas memórias evocadas, e, de repente, os caminhos minuciosos da sua profissão libertavam-no do quebranto, daquele desejo estranho de não viver, para despertar entusiasmado em cada novo desafio. Como aquele que lhe transtornava o sono, invadido por mil cogitações. Quando o delírio é intenso, mais radicais são os caminhos da imaginação. Ao ponto de admitir como provável que fosse um dos polícias a disparar sobre Sidónio. E tornou a acordar, transpirando abundantemente. Não. Um polícia era impossível! Como lhe descrevera o outro, os polícias cercavam o Presidente do «lado de cá» e os disparos vieram do «lado de lá».

Embora fosse cedo - a noite apenas clareava sem ainda dar sinais do amanhecer -, decidiu levantar-se e ir tomar banho. Ana Rosa deixara acesa a fornalha de ferro que tinha o dom de cozinhar e aquecer água. Precisava de aquietar o tumulto de memórias e perguntas que lhe ribombava na cabeça. A autópsia de Sidónio Pais talvez explicasse de forma simples aquilo que agora parecia um mar tormentoso de mistérios. Moreira Júnior tinha razão. Era uma sorte ter sido embalsamado. O bloqueio da putrefacção permitia que pudesse ser estudado com minúcia, tal como ele gostava de trabalhar.

Quando saiu da casa de banho, percebeu que Ana Rosa chegara. Um intenso e aromático cheiro a café inundava a sala. As narinas dilataram-se de prazer e sentiu fome. Era a primeira vez que o apetite despertava desde a morte de Glória. Um sinal de que o luto caminhava vagarosa mas inexoravelmente, fazendo com que lentamente regressasse à vida.

Cumprimentou a rapariga, que, entretanto, lhe servia café e colocava à sua frente um prato com torradas, quando alguém bateu à porta.

- Quem será? - perguntou, surpreendido.

Ana Rosa respondeu, indo abrir a porta. Era Azevedo Neves.

- Senhor professor!? Aconteceu alguma coisa? - perguntou, estupefacto, enquanto se levantava para o cumprimentar.

- Peço-lhe desculpa pelo atrevimento. Admiti que estivesse de saída para o Instituto e decidi bater-lhe no trinco, antes de eu próprio ir para o ministério - olhou para Asdrúbal e, com maior intensidade, para Ana Rosa e comentou: - Espero não vir incomodá-lo?

- Pelo contrário. É uma honra recebê-lo em minha casa. Já tomou o pequeno- -almoço? Quer café?

- Apenas café.

A rapariga afastou-se para a cozinha, seguida pelo olhar crítico de Azevedo Neves, que acabou por acenar com agrado.

- É muito bonita a sua criada.

- A Ana? Era filha da nossa empregada. A pneumónica levou-lhe o pai e depois a mãe. Exactamente uma semana antes de levar a minha mulher.

- A Glória! - recordou com ar grave. - Foi uma pena, uma pena!

Ana Rosa reentrou trazendo uma xícara com café e Asdrúbal d'Aguiar, que conhecia bem o seu mestre, ficou desconfiado. Aquela visita inesperada e os volteios da conversa significavam que o assunto era sério e que não queria mais ninguém a ouvi-lo. Fez um sinal a Ana que, de imediato, saiu:

- Vou tratar do quarto, senhor doutor. Com a vossa licença. E tornou a afastar-se, esguia, esbelta, que a roupa negra do luto ainda mais pronunciava, com evidente aprovação do secretário de Estado. Asdrúbal estava inquieto e impaciente.

- É grave, senhor professor?

- Não direi grave, mas o assunto que aqui me traz exige prudência - respondeu, baixando o tom de voz. Bebericou o café e continuou: - Ontem à noite fui chamado à Presidência do Conselho de Ministros. O Barbosa queria falar comigo. Estava acompanhado do governador civil e você era o tema da conversa.

- Eu? - Asdrúbal d'Aguiar ficou embasbacado. Repetiu, como se não tivesse ouvido bem: - Eu?

Azevedo Neves não conteve um sorriso divertido.

- Tenha calma, homem de Deus. Não estão a pensar convidá-lo para o Governo. Isso sim, é que era uma má e grave notícia!

A ironia com que se referia ao Governo que integrava aliviou a tensão de Asdrúbal.

- Não falavam exactamente de si. O Sousa Fernandes foi fazer queixas ao Tamagnini Barbosa de que um médico do Instituto de Medicina Legal andara na estação do Rossio a fazer uns exames estranhos e umas perguntas ainda mais estranhas.

- É verdade, fui eu! - confessou, surpreendido, e não foi capaz de deixar de perguntar: - Como é que eles souberam?

- Não sei. Souberam e quiseram averiguar do que se tratava.

- Quem teria sido?

Asdrúbal estava dividido entre a curiosidade e a estupefacção. Jamais lhe passara pela cabeça que uma visita tão rápida e sem valor pudesse chegar com aquela velocidade aos ouvidos do primeiro-ministro. Azevedo Neves continuou, sem relevar a importância que o outro dava ao sucedido.

- É claro que percebi que tinha sido o meu amigo que andara a observar o local do crime e respondi sem violar os segredos que a nossa obrigação deontológica obriga a guardar. Que era natural haver peritos a fazerem perguntas e a visitarem a estação do Rossio. Que naquela trágica noite não morrera apenas o Senhor Presidente da República, pois vários cadáveres tinham entrado na Morgue. Era natural que quisessem fechar os relatórios referentes às várias vítimas. Enfim, procurei apaziguar-lhes a ansiedade, enquanto não falasse consigo.

- Já sei - interrompeu Asdrúbal d'Aguiar: - Foi o raio do polícia!

- O polícia? - agora era o outro que estava intrigado.

- Um polícia que me queria prender por não levar identificação comigo. Seguiu todos os passos que dei na estação. É claro que foi ele quem foi fazer queixa.

Azevedo Neves sorriu.

- Esqueça isso. Embora o governador civil continue desconfiado e só a custo tenha engolido a minha explicação. A verdade é que tudo isso é irrelevante. Importante, realmente importante, foi a sua diligência. Devo dizer-lhe que fiquei orgulhoso. Só um verdadeiro cientista forense põe de parte a bancada de autópsias e toma como primeira obrigação estudar o local do crime. Não só fiquei orgulhoso de ver um perito do nosso Instituto a trabalhar assim, como, e agora é mesmo grave, passei uma noite de insónia à espera de falar consigo. Valeu a pena, doutor Asdrúbal? Descobriu alguma coisa interessante?

Os olhinhos, por cima das lunetas, brilhavam com tal intensidade que surpreendia Asdrúbal como se fosse a primeira vez que se predispunham a uma discussão académica. Na verdade, aquele homem respirava, pensava, agia, prenhe do entusiasmo dos sonhadores. Nunca mostrara vaidade por ocupar a cadeira de ministro. E bem sabia como os ministérios rapidamente transformavam os homens simples de outrora em pavões inchados de jactância, cínicos, dispostos às acções mais vis para defenderem o seu lugar, que, a maioria das vezes, lhes caíra nas mãos por obra e graça de meros acidentes da política partidária. No seu curto mandato, Azevedo Neves desenvolvera uma reforma profunda na organização do ensino secundário, que, seguramente, lhe roubava muito tempo de governação. Mas não se passara uma única semana que não visitasse o Instituto de Medicina Legal, que saíra do seu génio organizador e se transformara na barriga onde a polícia científica dera os primeiros passos da sua gestação.

- Foi uma pena não termos feito o exame do local logo a seguir à tragédia, senhor professor.

- Tem toda a razão. E a culpa é minha, só minha! - reagiu revoltado.

- Culpa? A polícia não nos deixaria dar um passo.

- Estou no Governo, meu caro. Embora não seja lá grande atributo, estava em condições de pôr uma equipa do Instituto na estação do Rossio. No meio da desorientação que se gerou, teria sido fácil e eu, em vez de dar prioridade à nossa obra, deixei-me ir atrás das minhas emoções e preconceitos.

- Penso que está a ser excessivo, professor. A sua conduta foi irrepreensível.

- Veremos. Veremos! - rematou, visivelmente aborrecido.

Ficaram os dois em silêncio. Azevedo Neves tamborilava os dedos na xícara que tinha à sua frente, cenho carregado, controlando a discussão que ia dentro de si.

Asdrúbal d'Aguiar rompeu o ambiente de embaraço.

- Recolhi dois ou três elementos interessantes. O primeiro já tínhamos observado na Morgue. Duas das vítimas do tiroteio não foram devidas a disparos acidentais. Foram pura e simplesmente executadas. Um verdadeiro fuzilamento.

- A polícia quis mesmo matá-los - concluiu Azevedo Neves.

- Exactamente. Morreram os dois do lado direito da arcada no sentido da entrada para a gare. Júlio da Costa é preso sobre a esquerda.

- A versão oficial é que os conspiradores estavam escondidos atrás das colunas.

- Se for verdade, Sidónio foi abatido à queima-roupa. Verifiquei as distâncias, a dinâmica dos corpos em movimento. Sidónio a caminhar para a gare, Júlio da Costa e o outro, mesmo que não dessem um passo na sua direcção, teriam de forçosamente fazer um movimento de corpo oposto para procurarem a posição de tiro. Ficariam praticamente frente a frente. Sidónio não podia escapar de uma agressão a tão curta distância.

- Compreendo. As armas ficariam encostadas no corpo do Presidente.

- O que exclui, de imediato e categoricamente, uma outra versão, segundo a qual Júlio da Costa é o autor dos dois disparos assassinos. Nessa noite, no Hospital de São José, ambos vimos os ferimentos. Um deles está no hemitórax direito, o outro na região hipocondrial. Tem de certeza o pulmão direito perfurado e o fígado rasgado.

- Concordo consigo. Mas aonde quer chegar?

- A tão curta distância, caso Júlio da Costa tivesse puxado duas vezes o gatilho, os orifícios de entrada estariam muito perto um do outro. E não estão. Os disparos tinham de ser de supetão, consecutivos, rápidos. Não haveria tempo para escolher outro local do corpo. Um segundo que fosse e a polícia matava-o.

- E nem disparou contra ele - pensou Azevedo Neves em voz alta. - Começou a matar quem estava para o lado direito.

- Chegamos ao outro ponto essencial. Há um tipo que morreu instantaneamente junto à arcada, com um tiro no peito e outro no pescoço.

- O eventual parceiro de José Júlio da Costa.

- E há um outro, a dois ou três metros de distância, que é baleado no braço esquerdo e a seguir desferem-lhe dois tiros na cara à queima-roupa. Trabalhava na estação, era carregador e morreu sobre o carro de transporte de bagagens que usava na sua função. Estou em crer que estaria de pé sobre o veículo para melhor ver o cortejo.

- Ou para disparar melhor! - atirou Azevedo Neves, sibilino, adivinhando as angústias do colega.

Asdrúbal d'Aguiar fez um gesto de desalento.

- Esse é o grande mistério.

- Existem outros mistérios - a gravidade rouca do professor chamou-lhe a atenção.

- Outros mistérios?

- Não quero influenciar o seu trabalho. Peço-lhe que não me pergunte, pois posso estar enganado.

- Não estou a percebê-lo, senhor professor.

Azevedo Neves estava muito inquieto. Preocupado.

- Quando realizar a autópsia, doutor Asdrúbal, analise com minúcia a natureza dos ferimentos que vimos no Presidente, naquela noite, em São José. Não me peça que lhe confidencie as minhas dúvidas. Examine com cuidado. O senhor e o Brites são médicos experimentados e confio nas vossas conclusões - e mudando rapidamente o tom da conversa, desabafou: - Bom trabalho, doutor Asdrúbal. Reparou como o nosso caminho produz resultados mais simples e mais lógicos do que todos os estratagemas inquisitoriais? A criação da Polícia de Investigação Criminal vai ser a mais importante decisão do Governo de Sidónio Pais. Agora, o tempo é de arranjar instalações condignas, transformar a nossa Repartição de Polícia Científica num verdadeiro laboratório ao serviço da PIC, recrutar os futuros investigadores, formá-los e colocarmo-nos todos ao serviço da justiça.

- E a anatomia e a anatomia patológica?

- Serão ambivalentes. Servirão para formar futuros médicos, médicos legistas e disciplinas subsidiárias. A toxicologia, a citologia, enfim, um mundo infinito de saberes que ajudarão a que termine de vez esse pesadelo de termos uma justiça ignorante e injusta.

- É um sonhador. Mesmo que tenha razão, levará décadas a realizar esse projecto.

- Outros continuá-lo-ão. Difícil foi começar. Começámos! Sidónio Pais entregou- -nos essa dádiva. Honremo-la, fazendo-lhe uma boa autópsia. Aparecerei pelos Jerónimos. Ah, e anime-se! Não existe em Lisboa um médico que tenha em casa uma empregada tão bonita. Passe bem.

Percebeu o tom brejeiro de Azevedo Neves. Provocava-o para o arrancar do luto em que Glória lhe deixara o coração. Era uma dor contínua que se dissipava por instantes durante uma conversa interessante ou um trabalho mais exigente. A saudade doía e, apesar de já não estar ali, ouvia-lhe as palavras, o som dos passos, as gargalhadas cristalinas que lhe orvalhavam os olhos. Glória, esposa breve, mãe tão breve, amor desabitado, órfão, que doía em Asdrúbal como um ferro em brasa cravado no coração.

Ana Rosa entrou. Alta, olhos cintilantes, o avental branco sobre a roupa preta que realçava a formosura das formas e perguntou:

- O senhor doutor não precisa de mais nada? Posso levantar a mesa?

- A casa é tua, Ana. Vou trabalhar.

E saiu. O professor tinha razão. Ana Rosa era linda.

De repente, descobriu que ela era a sua companheira de solidão, a voz e os passos que se repetiam, as conversas durante o jantar. Ana Rosa era a ausência de silêncio na sua solidão. Se não estava em casa quando ele chegava do Instituto, sentia-lhe a falta. Não encontrava a gravata certa para o fato, se Ana Rosa não lhe escolhesse os tons. E, pior do que isso, era com ela que repartia preocupações, discutia desafios e projectos sem limites de resguardo da intimidade. Asdrúbal sentiu-se assustado. Afinal, as dependências em relação a Ana Rosa tinham crescido como o cordão que salta da roda do tear, interminável e apertado, tranças tão entrelaçadas num abraço tão infinito que o tear deixava de fazer sentido. Assim como ela fazia falta à sua vida. Não queria acreditar no achado que se revelava com o comentário lisonjeiro de Azevedo Neves, porém, Ana Rosa regressou, cabelo cintilando azeviche, o sorriso leal, dedicado, a pose esbelta e a ternura que lhe formoseava a entoação das palavras. Não era possível amá-la! Glória estava ainda tão presente, era saudade tão intensa, que Ana Rosa só podia ser um desejo delirante.

Contudo, por mais que fugisse da evocação, ela regressava na impaciência por tornar a casa, de sentir a presença de Ana, os passos, o sorriso, a voz mesclada de sensualidade e doçura. Achou-se tão idiota que, quando estoirou o golpe militar de Paiva Couceiro, reclamando as virtudes do Portugal monárquico, confidenciou a Moreira Júnior os seus devaneios. O gigante amigo de sempre, abraçado à garrafa de aguardente, excitado com as vicissitudes políticas, comentou, indignado:

- Que se passa contigo? O Paiva Couceiro propõe-se derrubar o regime, tem o Norte do país por sua conta, o Sardinha e a rapaziada do integralismo deixaram cair a máscara e preparam-se para tomar o país de assalto e tu falas-me da história de amor entre um viúvo e a sua empregada? Eu deixo a minha Paula e venho a correr para aqui preocupado com a Pátria e tu falas-me de um folhetim de cordel? Que raio de cabeça é a tua? Ou não sabes o que se passou no Porto?

- Sei.

- E não te preocupas? - Moreira Júnior parecia um tribuno do Senado republicano: - A Pátria de pantanas, a República cada vez mais raquítica e tu respondes: «Sei.» E pronto! Asdrúbal, aquilo no Porto foi mau de mais. O Couceiro formou as tropas, hasteou a bandeira da Casa de Bragança, cantou o hino da Carta e nem um miserável guarda- -republicano reage com um tiro? Ao menos um murro! O Sardinha e o Almeida Braga falam em nome de Portugal e o Tamagnini encolhido?! O Júlio da Costa Pinto apronta tropas em Monsanto para tomar Lisboa e eu explico tudo direitinho e tu? Já agora, tens mais aguardente? A minha Paula proibiu-me de beber em casa. Desconfio de que também anda armada em conspiradora. Só que, em vez de embirrar com a República, dá-me cabo da cabeça.

Asdrúbal abriu outra garrafa e ofereceu-lha:

- Empanturra-te que esta é a última.

- Chega, acho que não a vou beber toda - respondeu Moreira Júnior, enchendo o copo. De súbito, parou. Levantou os olhos para o amigo e exclamou, estupefacto: - És tu!

- O quê? - agora era Asdrúbal quem estava surpreendido.

- O viúvo és tu e a empregada... é a tua empregada!

- Não é bem assim, não é bem assim. Estava a falar-te sobre a natureza do amor e do luto.

Moreira Júnior empertigou-se ainda mais, dando um murro na mesa.

- Não me mintas. O viúvo és tul

- Porque te atiras a mim com esses gritos? Despachas-me a aguardente e ainda por cima berras comigo?!

- Conheço-te, grande manhoso - agora estava eufórico. Dava grandes passadas pela sala, gesticulando com largos gestos enquanto evocava a conversa. - Cá está porque este artista não sabe nada do que se está a passar. A política está a ferver e ele com a Ana Rosa enfiada no toutiço. Um artista! Estive quase uma hora a pregar para os peixinhos e o manhoso a atirar-me com a fábula do viúvo e da menina.

- ManeL - disse por fim -, és o meu maior amigo, tenho vergonha de falar disto, sinto-me culpado por causa daquilo que me vence e não tenho forças para resistir. Conheces-me bem de mais para desatares aos gritos como se a Monarquia ou a República fossem o teu desígnio. E não são.

- Quem te disse? Que sabes tu de mim, Asdrúbal?

- Que és um cirurgião de primeira água, um anatomopatologista excepcional, um homem com um coração tão grande que é maior do que tu, um amigo fiel de todas as horas boas e das mais terríveis horas da minha vida, o mais solidário dos colegas e o maior farsante que Lisboa viu em toda a sua história.

Moreira Júnior tornou a sentar-se. Em silêncio, com ar circunspecto. Por fim, condescendeu:

- Tens razão. Sou um grande farsante. Tenho a certeza de que sou o melhor que Lisboa viu. Quanto ao resto, talvez tenhas razão. Gostei do elogio, embora goste mais da tua aguardente.

- Começas outra vez a desconversar.

- Desculpa.

- Eu é que devo pedir desculpa. A Deus e à memória da minha mulher.

- Pára aí. Vamos combinar o seguinte. Eu paro com a farsa e tu com o melodrama. Para ouvir lamentos, prefiro um bom fado. De acordo?

- Já não digo mais nada.

- Assim está melhor.

O silêncio invadiu a sala. Asdrúbal procurava adivinhar o que ia na cabeça cabisbaixa do amigo, que se recolhera como se estivesse em reflexão profunda. Por fim, impacientou-se e perguntou:

- Então?

- Então, o quê?

- Não estavas a pensar no que te contei?

- Não.

- Mas pediste que nos calássemos.

- Para saborear a aguardente em condições espirituais perfeitas.

- Manel?!

- O que queres que eu te diga?

- Aquilo que pensas.

- Não penso nada.

- Como é possível?

- Asdrúbal, vou fazer o sumário. Sei como gostavas da Glória. Infelizmente morreu. Choraste-a e sei que sofres pela perda. Este capítulo está arrumado. - Tornou a encher o cálice e continuou: - A Ana Rosa é viúva. Mais grave: é linda, sensual e gosta de ti. Fim do segundo capítulo - bebeu um trago e proclamou: - E tu gostas dela! Fim do terceiro capítulo.

- É diferente. Não sei se gosto, se a amo. É a minha angústia e a minha mágoa.

Encolheu os ombros com indiferença.

- Deixa de adjectivar. Pára com essa lamúria desgraçada. Amam-se! O amor não é uma descoberta de alquimistas. Não foi Eros que inventou o amor. Fomos nós. Construímos caminhos, vamos por eles, lado a lado, vencendo obstáculos, vencendo dificuldades, entregando-nos um ao outro nas coisas mais banais. Ficamos felizes pelas vitórias do outro, solidários na mágoa, sempre inteiros na dádiva. Respondemos com um abraço ao abraço, com um afago à lágrima, com um beijo à alegria. E continua assim, sem parar. É esta a construção do verdadeiro amor. Crescer quando o outro cresce, partilhar o sofrimento quando a caminhada dói mais, não deixar que nenhum caia, apoiando-se quando vergam para voltar a endireitar a coluna e andar mais, amar mais, até à entrega final e definitiva, quando de tanto viver e de tanto amar só restar cinza. Somos cinzas da mais extraordinária fogueira, feita de chamas cadentes, que deu sentido à vida. E acabou-se a conversa!

- Porquê?

- A última vez que falei tão a sério durante tanto tempo acabei casado com a minha Paula. A única alma gémea que entende a minha loucura.

- Uma grande mulher.

- Porque é amada por um grande homem. E sabes porque sou tão grande? Porque ela me sabe amar. Eu sei que sou difícil. Mas olha que ela não é fácil. Agora meteu-se- -lhe na cabeça que bebo demasiada aguardente.

- Tem razão. Abusas.

- Só na tua casa. Nunca bebo.

- Não contaste o último capítulo.

- Desse tratas tu. Deixa-te de perplexidades e angústias e põe-te ao caminho. A Ana Rosa merece ser feliz e tu mereces ser feliz. Está tudo afinado e pronto! Não tenho mais nada a dizer, vou beber o último cálice e vou-me embora, que a minha Paula já deve estar a preparar uma insurreição contra mim. Agora a sério. Como é possível não haver um guarda-republicano que tivesse disparado um único tiro contra o folclore monárquico do Paiva Couceiro? Nem um murro!

- O país está desorientado e a República doente.

- Pois está. Para que se criou a Guarda Republicana? Para guardar a República. Porque não a defende? É a mesma coisa que teres um cão para proteger a tua casa e ele pôr-se de barriga para o ar á espera de festas quando entra o ladrão. Não percebo nada. Nem um murro, Asdrúbal?!

Não respondeu. Pensava nas palavras que o amigo dissera sobre a construção do amor. Um caminho que se talha e se percorre até ao infinito. Ficou a matutar no assunto e decidiu que não voltaria a fugir com desculpas, nem culpas, nem preconceitos. Iria andando. O destino só existe depois de ter sido vivido. Veria onde chegaria o seu caminho, com Ana no pensamento e a Rosa no coração.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


UM TIRO E DOIS CRIMINOSOS

 

 

A autópsia de Sidónio Pais decorria nos claustros do Mosteiro dos Jerónimos. Solene. Quase majestática. Para além do juiz e do procurador, encontravam-se os médicos, os técnicos do Instituto e a equipa que embalsamara o cadáver, e as conversas eram murmuradas, quase um ritual de velório e bem longe da informalidade dos quotidianos da Morgue. O caixão já chegara, mas ainda estava fechado. Esperavam pelo governador civil, Sousa Fernandes.

De entre os presentes, destacava-se, pela imponência da altura e pela exuberância das suíças, o descontraído embalsamador Moreira Júnior. De braços cruzados atrás das costas, admirava os claustros.

- Soberbo. Isto é soberbo! - e voltando-se para o jovem desenhador Celestino provocava-o: - Isto é que vale a pena. Celestino. Em vez de passares a vida enfiado na Morgue a desenhar as macacadas das autópsias, vinhas para aqui, sentavas-te comodamente e inspiravas-te nestes claustros para desenhar e pintar. É soberbo! Ainda por cima, arejado.

Celestino aquiesceu com um sorriso envergonhado.

- De facto, é um ambiente inspirador. Aqui há uns anos fiz uma aguarela.

Moreira Júnior gritou, indignado:

- Uma aguarela? Ó homem, isto merece pastel! Pastel, tela e talento. É soberbo e tu fazes uma aguarela? Isso é a mesma coisa que te sentares à frente de um novilho assado no espeto e ficares satisfeito com uma canja. Olha-me estes torneados! Uma aguarela? O teu chefe, de facto, dá cabo da sensibilidade de um grande artista como tu! - e levantou a voz em tom provocatório para que Geraldino Brites ouvisse.

O chefe do Serviço de Tanalogia respondeu com um olhar frio à exuberância do gigante. Brites era um pragmático, uma espécie de homem-máquina, que raramente sorria, incapaz de um jogo humorístico, vocacionado para a execução prática dos seus actos médicos, sem grandes inquietações existenciais. Azevedo Neves nomeara-o chefe do Serviço de Tanatologia por admirar esta essência eficaz que lhe determinava as acções. Além do rigor médico, que dirigia com argúcia rara para os segredos da anatomia patológica.

- Disse algum disparate? - voltou à carga Moreira Júnior, na esperança de irritar o colega. - Aqui o Celestino há muito que deveria ter deixado aquele buraco de esterco em que trabalhas. É um artista, digo-te eu! E isto - com os enormes braços parecia querer agarrar os claustros - não é soberbo? Celestino, segue o conselho deste teu amigo. Manda as autópsias do Brites à fava e segue a tua vocação. Cada um é para o que nasce. O meu colega nasceu para andar com as trombas enfiadas nos intestinos mal-cheirosos dos cadáveres e tu nasceste para a arte!

Brites controlou um sorriso e atirou ao outro.

- E se fosses à merda?

Asdrúbal d'Aguiar interveio.

- Juizinho, pessoal. Temos aqui um juiz e um procurador. Não precisam de saber a massa de que vocês são feitos.

- Disse algum disparate? - retorquiu Moreira Júnior. - Estou a admirar os Jerónimos, a falar de pintura e esse assassino de mortos não pensa noutra coisa a não ser em esquartejar o Presidente, esse pai da Pátria, esse deus que neste momento deve andar pelos céus à procura de tropas para conspirar contra o Deus verdadeiro e lhe roubar o trono.

A sorte é que os magistrados se haviam afastado do grupo, conferenciando entre si.

- Manel, por favor! - suplicou Asdrúbal, querendo compor sobre o riso uma máscara de seriedade. - Se o governador civil chega e te ouve a falar assim, vai haver sarilho.

Brites interrompeu-o.

- Deixa-o falar. O governador civil seria um grande homem se metesse este tipo na cadeia.

A quezília era aparente. Os dois cirurgiões eram amigos de velha data, colegas de curso e de mil aventuras estudantis calcorreadas pelas ruas mais clandestinas do Bairro Alto.

- Brites - e Moreira Júnior apontava-lhe o dedo: - Serás sempre um carniceiro!

- E tu, doido varrido!

- Concordo - respondeu com condescendência.

Asdrúbal d'Aguiar declarou com firmeza.

- Basta, rapazes. O governador civil acaba de chegar.

De facto, Sousa Fernandes, acompanhado do director da Casa Pia, cumprimentava o juiz e o procurador à entrada dos claustros e, juntos, dirigiram-se à equipa médica. Trocaram cumprimentos cerimoniosos, mas era notória a indisposição de Sousa Fernandes. Era esguio, alto, rosto anguloso e um olhar frio e distante. Feitas as apresentações, Asdrúbal d'Aguiar perguntou:

- Podemos começar?

- Já que o nosso juiz insiste nesta diligência invulgar e despropositada, faça-se a sua vontade! - proclamou o governador civil de mau humor.

Sidonista convicto, chefe supremo da polícia de Lisboa, não percebia como uma verdade que se metia pelos olhos dentro precisava de ser confirmada pela autópsia, devassa profana do corpo do seu herói-mártir às mãos de carbonários e maçons.

Uma bancada de dissecação fora montada junto do túmulo de Alexandre Herculano. O grupo de médicos e serventes retirou o cadáver embalsamado da urna e desnudou-o, enquanto o preparador da secção de fotografia, Raul Abreu, ia fotografando conforme as indicações que Asdrúbal d'Aguiar ditava, para o dactilógrafo Rodrigo da Silva, cada movimento, minuciosamente. Agora, já ressequido pelo efeito do embalsamamento, Sidónio Pais parecia um boneco ridículo, desconjuntado, impossível de imaginar garboso e altivo em cima do seu cavalo branco.

Visivelmente repugnados com a diligência, quer o governador civil e o acompanhante, quer os magistrados procuraram manter alguma distância. Asdrúbal dirigiu-se ao juiz.

- Tendo em conta que sabemos que as lesões mortais se encontram no tronco do Senhor Presidente da República, sugiro a vossa excelência que autorize a dispensa da abertura da cabeça.

- Claro. Tem toda a razão. Está autorizado - balbuciou Alfredo Pereira.

Asdrúbal d'Aguiar regressou para junto da equipa e disse ao Geraldino Brites:

- Não lhe abras a cabeça. O juiz dispensou o exame.

Foi então que Moreira Júnior rebentou com o cerimonial discreto com que se desenrolava a diligência judiciária. Protestou colocando o vozeirão a ribombar pelos claustros.

- Mas assim não se percebe donde lhe nasceu o corno!

Quem estava em torno do cadáver estremeceu de espanto.

O grupo mais afastado ficou embasbacado.

- Por favor, Manel! - suplicou, incomodado, o director interino do Instituto.

Porém, o vozeirão do outro duplicou a sonoridade.

- Estou a dizer-te. Quando o embalsamámos, eu vi. O nosso Presidente usava aquele penteado todo puxado para a frente, tal como está agora, para esconder a careca e o corno que lhe estava a nascer. Ó Ravara, levanta aí a melena do homem e vais ver.

Nesse instante, ouviu-se um berro de Sousa Fernandes. Estava colérico e indignado.

- Não levanta nada. Haja respeito pela excelência do morto.

Os homens entreolharam-se, inquietos, e, por momentos, um silêncio dramático parou todos os gestos. Apenas se ouviam as passadas de Sousa Fernandes avançando, ameaçador, sobre Moreira Júnior.

- Quem é o senhor? Quem lhe deu autorização para profanar a memória digna e respeitável deste grande homem que o país ainda hoje chora?

Moreira Júnior franziu o sobrolho, irritado com a altivez do antagonista, e atirou- -se à ironia, a sua arma preferida para qualquer discussão.

- Saiba vossa excelência que não profanei coisa alguma. Pelo contrário. É graças ao meu trabalho que temos aqui um Presidente seco e estaladiço e não profanado pela putrefacção. E, para que não restem dúvidas, eu não identifiquei que tipo de corno era.

- O quê? - o governador civil não queria acreditar no que ouvia. Porém, a magia da resposta deixou-o sem mais palavras.

- Jamais me passaria pela cabeça dizer que estava a nascer um corno de boi a Sua Excelência. Tendo em conta a sua aura divina, fiquei convencido de que era um corno de unicórnio. Mitológico e transcendental - e, voltando-se para a equipa, que, paralisada, assistia à discussão, dirigiu-se ao seu discípulo Artur Ravara com voz de comando. - Artur, levanta essa tampinha de cabelo da careca do Senhor Presidente, para que o senhor governador civil não me julgue um mentiroso.

O jovem médico hesitou, aflito com a ordem. Porém, esta fora de tal modo convicta que, espantado, Sousa Fernandes aproximou-se do cadáver de Sidónio. Ouviu- -se a voz tonitruante de Moreira Júnior.

- Faz o que te disse!

Quase num reflexo, levantou a madeixa de cabelo e a estupefacção tomou conta dos presentes. Na verdade, na articulação dos parietais com o frontal uma protuberância sobressaía na careca de Sidónio.

- Ali está a prova - apontou o médico gigante, esboçando um gesto dramático e reforçando a sua razão com uma récita shakespeariana: - É corno ou não é corno?

Geraldino Brites apalpou a proeminência e respondeu, solene:

- Não é corno. É um quisto sebáceo.

- Ah, bom! Assim estou mais descansado. Afinal, Sidónio era humano. Até tinha quistos sebáceos. E era careca, tal como avisei - comentou Moreira Júnior com ar de quem ficara aliviado e, tranquilamente, dirigiu-se para junto da bancada de dissecação e disse para Asdrúbal e Brites: - Resolvida esta questão essencial sobre a condição genuinamente humana do nosso Presidente, cumpram a vossa obrigação. Estou ao vosso dispor.

Brites mordia os lábios para não rir. Conhecia os espectáculos de Moreira Júnior e tinha a certeza de que tinha acabado de assistir à solução que inventara para flagelar o governador civil, como castigo pela soberba autoritária. Testemunhara inúmeras vezes episódios semelhantes, que punham em estado de choque os velhos catedráticos da Escola Médico-Cirúrgica. E, na verdade, Sousa Fernandes afastou-se, vergado, limpando o suor da testa com um lenço de alvura imaculada, enquanto repetia, atónito:

- Isto não aconteceu. Isto não aconteceu.

Foi nesse instante que viram o secretário de Estado do Comércio a caminhar na direcção deles. Azevedo Neves cumprimentou os magistrados e reparou na palidez de Sousa Fernandes.

- Senhor governador civil, está bem?

- Aquele gigante, das suíças em banda, é louco, não é?

- O doutor Moreira Júnior? - perguntou, divertido. - É um médico de grande qualidade.

- Ia-me matando do coração. Estou desfeito, excelência. Desfeito!

- O que se passou? - perguntou, intrigado.

Foi o juiz quem, descontraído, explicou.

- Uma pequena quezília filosófica. O seu colega admitia a natureza divina do Presidente da República por lhe garantir o nascimento de um corno.

- Como? O quê?

Porém, o magistrado resolveu-lhe, de imediato, a surpresa.

- Afinal, não passava de um quisto sebáceo.

Azevedo Neves não quis saber mais nada. Embora tivesse estima por Moreira Júnior, aborrecia-o deveras a maneira como ridicularizava aqueles de quem não gostava. Conhecia as suas raras qualidades profissionais, que ele apoucava com teatralizações que conduziam, a quem não o conhecesse, a duvidar da sua competência. E foi com visível má disposição que se aproximou dos médicos que começavam a examinar o hábito externo do cadáver.

- Não humilhe mais o governador civil. Eu conheço-o, Moreira Júnior. A dignidade deste acto e a importância de que se reveste não permitem mais brincadeiras - observou superficialmente os trabalhos e pediu-lhe: - Descreva as incisões a que procedeu para o embalsamamento e confirme-as.

Moreira Júnior perdeu, de imediato, a pose de anarquista temperamental e, circunspecto, informou das suas diligências tanatocráticas. A presença da grande eminência da medicina legal impunha-lhe seriedade. Aliás, a única coisa que respeitava com devoção: o conhecimento erudito e sério que dispensava o autocratismo dos «novilhos», como costumava apelidar os catedráticos que pouco mais conheciam do que a imposição da sebenta do costume.

- Fiz seis incisões. Duas na região carotídea, duas nas regiões inguino- -abdominais, para injectar a artéria cural, e duas nas faces internas dos braços para encontrar as artérias humerais. Procedi ao embalsamamento e suturámos com fio de seda cirúrgico. Qualquer das incisões não terá mais do que sete centímetros.

A segurança do relato, que os peritos iam confirmando no cadáver, a formalidade do médico, fez com que o seu antagonista e os magistrados se aproximassem com curiosidade. Porém, o verdadeiro e competente Moreira Júnior, ressuscitado dos territórios da farsa, com a pose de um médico imaculado, corria o risco de recaída com tão estreita e imprudente aproximação da sua vítima, Sousa Fernandes. Relatada para o dactilógrafo a observação do que descrevera, Azevedo Neves comentou:

- Fez um excelente trabalho, doutor Moreira Júnior. Os meus parabéns a si e à sua equipa. O embalsamamento está excelente.

- Obrigado, senhor professor.

- Sendo assim - e voltou-se para o juiz -, os médicos que procederam ao embalsamamento do Senhor Presidente da República podem ser dispensados, caso o meritíssimo juiz o entenda.

- Claro, claro. Podem retirar-se. Muito obrigado pela vossa presença.

Alfredo Pereira percebera a intenção de Azevedo Neves. O rastilho do gigante poderia incendiar-se outra vez e fazer explodir o governador civil.

Nos cumprimentos de despedida, o ambiente ia azedando mais uma vez. Moreira Júnior, em vez de estender a mão a Sousa Fernandes, perfilou-se, bateu os tacões dos sapatos e, com uma vénia, cumprimentou:

- Um criado às suas ordens. Como disse o senhor secretário de Estado, sou um excelente embalsamador.

E retirou-se, majestático, em passadas largas, à frente dos seus colaboradores, enquanto o atónito Sousa Fernandes fechava e abria a boca sem conseguir articular uma palavra.

Uma sensação de alívio atravessou o espírito de todos e Asdrúbal d'Aguiar informou:

- Vamos começar!

Brites cortou o fio de sutura que fechava os dois ferimentos produzidos pela bala. O orifício na região mamaria direita tinha uma forma oval, como um olho negro aberto para as profundezas onde se esconderia a alma vital de Sidónio. Um buraco onde caberia a ponta do dedo mindinho, mas tão poderoso e definitivo que a vida, a essência do amor, do pensar, da energia e das vontades, por ali desaparecera, frágil, fugaz, como pétalas de malmequer em mãos de namorado.

Azevedo Neves ficou com a expressão carregada quando fixou o segundo orifício, tão negro quanto o primeiro, porém parecia o desenho de uma cruz de forma tosca.

- Essa lesão na região hipocondrial, junto ao rebordo costal, é esquisita - comentou.

- Parece um orifício de saída de um projéctil! - respondeu Asdrúbal d'Aguiar.

O Dr. Brites parou o exame, observando o cadáver com mais atenção.

- Li que fora baleado duas vezes. Onde está o outro orifício de entrada? - perguntou, surpreendido.

Percorreu o tórax e o abdómen por apalpação. Os dedos pareciam cem patas de centopeia por cada centímetro de pele.

- Não encontro nada! - estranhou.

- Voltem-no e procurem nas costas. Por vezes, as massas musculares contraem- -se, absorvendo o impacto do projéctil, e fica um sinal ínfimo como se fosse a cabeça de um alfinete! - sugeriu outra vez Azevedo Neves.

Todos concordaram. Qualquer deles já observara situações semelhantes àquela que era, agora, colocada pelo professor. O juiz Alfredo Pereira aproximou-se, curioso.

- Há algum problema?

- Não, nada de especial. São exames de rotina.

Mudando repentinamente de conversa, deu-lhe o braço, afastando-o discretamente da bancada de dissecação, conduzindo-o para junto do grupo onde estavam o governador civil, o procurador e o director da Casa Pia. E perguntou com aparente interesse:

- E a nossa justiça? Como vai?

O juiz não percebeu a manobra de diversão e respondeu bem-disposto.

- O senhor secretario de Estado não quer que lhe responda, pois não?

- Vai assim tão mal?

- Permita que lhe responda com a delicadeza de uma outra pergunta? Como vai o nosso Governo?

Azevedo Neves esboçou um sorriso triste.

- Muito possivelmente num estado semelhante ao da nossa justiça.

O juiz percebeu o trocadilho e perguntou, preocupado.

- A sério?

- O senhor secretário de Estado está a brincar - cortou o governador civil -, Tamagnini Barbosa, com a ajuda do nosso Presidente Canto e Castro, vai pôr esta choldra na ordeml - e concluiu, apressado e obsequioso: - Com a ajuda do Excelentíssimo Senhor Secretário de Estado do Comércio, claro.

- Não sei, senhor governador civil. Confesso que não sei. Não se passa um dia que seja que, ao levantar-me, não saia de casa pensando no Instituto e nas aulas de anatomia patológica.

- Vossa excelência faz muita falta a este Governo. Muita falta mesmo! - ripostou o governador civil, ainda mais servil. - Vossa excelência representa o casamento moral entre aquilo que de melhor a Monarquia nos deixou com o que de melhor a República foi capaz de dar ao país - e acrescentou, malicioso: - Que tem de muito pouco, diga-se em abono da verdade.

Nenhum dos interlocutores respondeu. Azevedo Neves estava inquieto e, ao contrário da sua natureza tranquila e discreta, um frenesim incontrolado apoderara-se dele. De súbito, saudou os presentes com um cumprimento de despedida.

- Bem, vou indo.

- Não fica até ao fim? - perguntou o procurador, surpreendido.

- Não posso, nem devo. Sou membro do Governo. Vim fazer uma visita de cortesia e fico satisfeito por saber que a diligência está a correr bem. Nem podia ser de outro modo. O doutor Brites é um tanatologista competente e o doutor Asdrúbal d'Aguiar um perito de qualidades raras a quem confiei o Instituto de Medicina Legal durante esta minha provisória passagem pelo Governo.

O governador civil ainda não esquecera Moreira Júnior.

- O outro gigante ordinário e tresloucado não regressa, pois não?

O secretário de Estado do Comércio sorriu.

- Não, não regressa. Mas não o tome por ordinário nem tresloucado. É o mais gentil dos homens, que não deixa morrer a criança brincalhona que o habita.

- Criança? Naquele corpanzil? - duvidou.

- Acredite, acredite. Conheço-o bem.

Afastou-se. Passou junto à equipa que realizava a necropsia e despediu-se. Asdrúbal d'Aguiar estava preocupado.

- O que estamos a ver não bate certo com a versão da polícia, nem dos jornais! - sussurrou.

- Eu percebi! - respondeu-lhe entre dentes. - Depois falamos. Nem uma palavra sobre o vosso trabalho com o governador civil.

- E se ele perguntar?

- Desviam a conversa. Remetem para exames posteriores. Depois falamos.


Azevedo Neves saiu dos claustros, após confirmar que o grupo das autoridades continuava afastado do grupo de peritos. A repugnância pela operação era mais forte do que a curiosidade e, naquele momento, aquela atitude dava jeito. A autópsia de Sidónio Pais revelava que havia qualquer coisa de errado nas versões oficiais.

Os peritos voltaram a embrenhar-se no exame autóptico. O cadáver estava aberto e o chefe da tanatologia, utilizando uma sonda fina, introduzida no ferimento ovular, acima do mamilo, procurava soluções de continuidade na caixa torácica. Asdrúbal d'Aguiar seguia a operação com o nariz quase enfiado no interior do cadáver. Brites introduziu a sonda mais profundamente.

- Estás a ver? Atravessa o grande peitoral, o segundo espaço intercostal, a pleura parietal costal, a pleura visceral e o lobo inferior do pulmão direito.

- Corresponde às lesões no pulmão direito - Asdrúbal confirmava o raciocínio, observando o lobo pulmonar negro-acastanhado.

- E o diafragma está perfurado. Na direcção do fígado.

- Já lá vamos! - disse, reconfirmando a sequência das lesões.

Brites encostou-se ainda mais ao seu chefe.

- Isto vai dar confusão.

- Não sabemos. Ainda não sabemos. Baixou o tom de voz e segredou: - Asdrúbal, ou paramos agora ou não vai dar para parar depois.

- O quê?

- Percebes-me. Ou paramos agora ou a história dos dois tiros no peito do Presidente vai para o lixo.

Parou o exame e olhou o colega nos olhos. A expressão era grave.

- Estás a pedir-me que minta.

Brites era demasiado prático para grandes conversas sobre a ética forense.

- Deus me livre. Aquilo que vimos até agora não nos obriga a mentir. Mas o passo que a seguir vamos dar é decisivo. E, se o dermos, estou ao teu lado para o bem e para o mal.

- Eu sei.

- Nunca deixei um amigo pendurado. O que decides?

A razão desta discussão segredada dizia respeito à previsível descoberta do local onde o projéctil, depois de percorrer o hemitórax direito de Sidónio, teria feito ricochete para retroceder e tornar a sair. Forçosamente atingira a coluna vertebral. A sonda apontava uma tal trajectória que não seria difícil encontrar o ponto de retorno do projéctil. Afinal, o ponto minúsculo, mas tão essencial que, caso fosse levado a sério, não seria uma mera conclusão médico-legal. Representaria uma lesão mortal nas versões oficiais sobre o assassínio de Sidónio Pais e, por arrastamento, um verdadeiro terramoto nas consequências políticas geradas em torno do caso, e qualquer dos dois peritos percebia como esta descoberta seria, em si mesma, uma metáfora trágica sobre a justiça que se continuava a realizar nos tribunais. Cada golpe de bisturi sobre as lesões que se adivinhavam já, apenas olhando a cavidade torácica, seria um golpe no regime de confissões e testemunhos. Um bisturi que descarnava a verdade para além dos exercícios especulativos e subjectivos, de palavras confessadas e memórias testemunhadas. Uma dissecação que seria um murro nas verdades vividas pelos jornalistas do Diário de Notícias e de O Século, que, nessa noite viram, bem à frente dos olhos - e poderiam jurar com a generosidade nascida da alma -, um Presidente baleado por um conspirador, logo abatido pela polícia, e um outro ser preso e levado para os calabouços.

O próximo golpe de bisturi dir-lhes-ia: «Vocês não viram.» Podiam clamar com a mais pura e cristalina das inocências: «Nós vimos!» E o bisturi responderia com firmeza: «Confundiram causas com resultados. Um dos dois dos vossos conspiradores não está envolvido nesta morte.»

Toda a equipa ficou suspensa da decisão de Asdrúbal d'Aguiar. Por instantes baixou a cabeça em recolhimento e tornou a erguê-la, fitando os seus colaboradores.

- O juramento maior que guardo dentro de mim foi prometido a Hipócrates. Mesmo manipulando mortos, estou ao serviço da vida e da verdade. Prefiro mil vezes a morte do que trair a minha honra, traindo o meu juramento - depois do desabafo, ordenou serenamente: - Abre os tecidos moles entre a oitava e a décima vértebra. É por aí que se encontra o ponto de ricochete.

Com a agilidade da perícia experimentada, o Dr. Brites iniciou a incisão de cima para baixo e todos, incluindo o fotógrafo, o desenhador, o servente, o dactilógrafo, olharam à uma, com a respiração suspensa, para o bisturi veloz. Passaram poucos segundos que pareceram horas, quando, com a ponta do instrumento, o perito levantou a aba do tecido que rasgara.

- Está aqui. Fez ricochete no bordo direito da face anterior da nona vértebra dorsal.

Asdrúbal deu a segunda ordem e a Celestino pareceu-lhe que a voz estava rouca.

- Muito bem. Examinemos então a segunda trajectória, de trás para a frente, para confirmar se é compatível.

A gravidade do momento que estavam a viver impusera uma concentração tensa e até Geraldino Brites parecia ter perdido a fácil agilidade com que autopsiava. Os gestos tornaram-se lentos, minuciosamente curiosos, analíticos, cuidados.

- No regresso, atravessou o diafragma.

- Penetrou na face interna do fígado, junto ao rebordo posterior, até à face convexal - com o auxílio de uma lupa, Asdrúbal analisava o fígado dissecado em cima da bancada, enquanto o colega examinava as paredes interiores da cavidade em que se tornara o cadáver de Sidónio, esvaziado de vísceras.

- Rompeu a cartilagem costal que corresponde às sétima, oitava, nona e décima costelas, e também os tecidos moles do hipocôndrio do lado direito. São feridas de saída do projéctil, compatíveis com o ferimento que se observa no hábito externo.

Asdrúbal inclinou-se para verificar o exame do colega e acenou afirmativamente.

- Não há dúvidas. É isso mesmo.

O dactilógrafo, ainda atónito, perguntou:

- O que é que eu escrevo?

O responsável pela peritagem respondeu-lhe com rispidez:

- Escreves o que acabaste de ouvir. É essa a tua função.

Precipitado, começou a bater nas teclas da máquina, cometendo erros sucessivos que o obrigavam a emendas quase palavra a palavra, enquanto Celestino observava o seu chefe como se olhasse para Deus. E desenhava. Tinha a consciência de que testemunhava um dos momentos mais graves da vida daquele médico e descobriu que a coragem é um diálogo sereno com os valores maiores em que um homem acredita. Sabia que Asdrúbal tinha consciência de que a honestidade científica das suas soluções iriam levantar todos os demónios das profundezas do ódio e das crenças para arremeterem contra si, que almas de todos os torcionários e inquisidores clamariam vingança contra aquele homem, abrigado apenas na sua tranquilidade moral, desafiando todos os poderes e verdades mistificadas. Gostaria de pintar com aquela sensação de liberdade que via no rosto de Asdrúbal d'Aguiar. À memória veio-lhe o quadro Nenúfares, de Monet. A lânguida displicência de estarem ali, no meio das águas, tão livres e tão abrigados no azul- -arroxeado do entardecer, um instante tão leve mas tão definitivo, que lhes garantia a imortalidade fixada na tela, como se uma poderosa divindade pudesse assegurar-lhes a felicidade eterna.

Celestino estremeceu, como se acordasse de um sonho, à voz de Asdrúbal. Acabara de medir a distância entre os dois orifícios.

- Dezasseis milímetros e oito décimas. Quer isto dizer que o projéctil entrou, num plano horizontal, ao nível da quarta vértebra dorsal, fez ricochete na nona vértebra e saiu pela região hipocondrial, num plano horizontal que corresponde à décima primeira vértebra.

- Exactamente! - confirmou Geraldino Brites.

- O disparo foi produzido de cima para baixo. O desenho ovalado da ferida de entrada significa que o atirador estava sobre o lado direito do Presidente. O projéctil partiu da direita para a esquerda, de cima para baixo.

- É verdade. Se tivesse sido atingido de frente o orifício era circular - comentou o tanatologista. - Foi uma sorte a besta do Moreira Júnior ter embalsamado este tipo. Passado este tempo, o estado de putrefacção não permitiria retirar nenhuma informação. Ouviste o que ele disse ao governador civil? Estava disponível para embalsamá-lo! - Brites não conseguiu conter o riso: - É completamente doido!

Sousa Fernandes aproximou-se, desconfiado, ao ver dos dois médicos a conversarem em sussurro.

- Descobriram alguma coisa estranha?

Brites interpôs-se, evitando o embaraço da mentira que incomodaria Asdrúbal d'Aguiar.

- Estava a dizer ao meu colega e director que essa balela que puseram a correr pelos jornais que as últimas palavras do doutor Sidónio Pais foram: «Morro bem. Salvem a Pátria!» é uma monumental falsidade.

- O que está a dizer? - começou o governador civil ruborizado de cólera.

- Aquilo que acabei de dizer - reagiu com firmeza Geraldino Brites, e explicou: - Jamais poderia proclamar essa tontice do «morro bem, salvem a Pátria», porque as lesões que apresenta no pulmão são tão graves e a hemorragia de tal forma violenta que qualquer movimento respiratório o afogava em sangue.

- Não é possível. Eu estava perto dele e ouvi que...

Brites cortou, sibilino.

- Não ouviu nada! Não podia ter ouvido. A primeira acção respiratória após ter sido atingido fê-lo gorgolejar sangue pela traqueia, pela faringe e pela boca - e voltando- -se para Asdrúbal d'Aguiar perguntou: - Na noite do assassínio, quando viste o cadáver em São José, não tinha sangue na boca?

Asdrúbal assentiu com um gesto da cabeça.

- Claro! - reforçou Geraldino: - A hemorragia foi de tal forma abundante e rápida que lhe invadiu o aparelho respiratório.

- Eu ouvi! - repetiu, teimoso, Sousa Fernandes.

- Não ouviu nada, embora gostasse de ter ouvido. Morro bem. Salvem a Pátria! Fica bem para mistificar um mártir, mas não passa de propaganda. Bastava respirar para se engasgar com o sangue.

Sousa Fernandes explodiu:

- O senhor sabe com quem está a falar? Como se atreve a desmentir-me? Eu não lhe admito.

- Não vale a pena ficar colérico, senhor governador civil. Não sou político e estou- -me nas tintas para aquilo que vendem. Se acham que é bom para as vossas conveniências que o Senhor Presidente da República vos tenha deixado como testamento salvar a Pátria, pois salvem-na, que bem precisa. Mas que não vos entregou esse fardo na noite do crime, ai isso é que não entregou. Sou tanatologista, os cadáveres falam comigo e nunca mentem.

Voltou as costas a Sousa Fernandes e perguntou a um empregado:

- Onde posso lavar as mãos?

O governador civil ficou petrificado. Voltou-se para Asdrúbal d'Aguiar.

- É verdade?

- É. Os cadáveres falam.

Teve pena do homem. Depois do espectáculo montado por Moreira Júnior, agora levara a punhalada definitiva de Geraldino Brites. Deu-lhe uma palmada tranquilizadora no braço, confortando-o:

- Não se preocupe em excesso, senhor governador civil. Os mortos falam com os médicos legistas, mas estamos obrigados ao silêncio de sepulcro. Jamais isto se saberá. É poesia. Não interessa às ciências forenses.

Cumprimentou Sousa Fernandes com um gesto cerimonioso da cabeça e afastou- -se em direcção à sua equipa, que o esperava junto ao cadáver. Ordenou para o servente:

- Acabámos. Recolhe as vísceras, cose-o e torna a vesti-lo.

O fim da autópsia distendera o ambiente tenso gerado pelas descobertas terríveis que tinham realizado.

- E agora? - perguntou Brites, enquanto lavavam as mãos num lavatório móvel feito de ferro forjado, esguio, com pernas entrelaçadas e bacia de porcelana branca.

- Vou informar os magistrados que terminou o nosso trabalho e que só teremos conclusões depois de outros exames.

- Quais exames?

- Da roupa que o Presidente vestia. Precisamos de saber se o tiro foi disparado ou não à queima-roupa.

Concordou com um gesto silencioso. Asdrúbal despiu a bata, vestiu o casaco e dirigiu-se ao grupo de testemunhas.

- Meritíssimo juiz, o nosso trabalho está terminado. Quando a minha gente colocar o Senhor Presidente no caixão, o senhor governador civil pode fechá-lo.

- E valeu a pena tudo isto? - perguntou Sousa Fernandes, visivelmente mal- -disposto.

- Vamos ver. Temos de examinar as peças de vestuário que o doutor Sidónio Pais envergava naquela noite.

O outro fez um gesto de impaciência e retorquiu, incomodado:

- Será que isto nunca mais termina? É um absurdo tanto exame, tanta ciência, tanta palermice, quando sabemos tudo aquilo que se passou. Toda a gente viu. Foi o José Júlio da Costa e o outro bandido, que foi para o quinto dos infernos, quem cometeu o sacrilégio de assassinar o nosso Presidente! Quais são as dúvidas? Eu estava lá. Eu vi! - proclamou, exaltado.

Asdrúbal trocou um rápido olhar com o juiz e respondeu com secura:

- É possível que tenha sido como vossa excelência diz. Eu não sei. Não vi, nem a minha missão é julgar. Sou perito médico. Nada mais do que isso. Do meu trabalho resultam relatórios e não sentenças.

- Desculpe-me, doutor Asdrúbal. Acho que me enervei - o governador civil procurava controlar-se. - Não percebo nada dessas coisas de peritagens e exames forenses. É tudo muito complicado.

O juiz pôs termo à lamúria.

- Vou providenciar para que lhe cheguem às mãos as peças de vestuário que precisa - com um gesto de despedida, cumprimentou: - Meus senhores!

E saiu. O procurador foi no seu encalço e Asdrúbal d'Aguiar dirigiu-se à equipa. O servente tornara a fardar o cadáver.

- São todos meus convidados para almoçar. Conheço o guarda de uma quinta aqui por cima da Casa Pia que faz uns galos no forno que são de bradar aos céus.

Foi por pouco que a equipa não desatou a aplaudir. A autópsia começara ao meio- -dia e eram quase quatro horas da tarde. Estavam esfomeados.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

UM TIRO SEM UM CRIMINOSO

 

 

Poucos dias depois chegaram as roupas que Sidónio Pais vestia na noite de catorze de Dezembro e, com o exame, a confirmação. O disparo fatal não fora à queima-roupa. Atingiram-no a mais de trinta e três centímetros de distância. Dificilmente teria sido um dos dois possíveis atacantes apresentado triunfalmente pela polícia. Adivinhasse o governador civil que a sua história caíra por terra e morreria de apoplexia.

Asdrúbal d'Aguiar decidiu recolher todo o material resultante das perícias e fechou-se em casa para escrever os relatórios. Precisava de concentração e os quotidianos do Instituto eram um verdadeiro rebuliço. Além de que estaria perto de Ana Rosa e pressentia a sua alegria intensa por tê-lo ali, sentado e silencioso, pesquisando notas e pensando cada palavra que escreveria. Ana Rosa deixava-o sozinho, ficando quieta, ausente mas presente, atenta ao próximo pedido de café.

E Asdrúbal escrevia, tranquilo, confortado e seguro, embora soubesse que redigia o mais terrível relatório da sua vida. Cada folha era uma arma disparada contra a verdade autoritária da polícia republicana. Uma denúncia. Uma revolta. Mais uma das muitas que iam matando a República devagarinho. Porém, era perito forense. Jurara a verdade a Hipócrates e, se a sua existência se multiplicava em milhões de dúvidas e embaraços, possuía a certeza única de que jamais trairia um juramento. A honra dessa promessa de vida impregnava as páginas que, ao terminar, levou, a correr, ao seu mestre de sempre.

Não conseguia deixar de fixar Azevedo Neves, que, com a sua habitual expressão atenta, óculos encavalitados no nariz, lia página após página sem um único sinal denunciador do que lhe ia na cabeça. De vez em quando, consultava as fotografias ou os desenhos do vestuário do Presidente, espalhados à sua frente, e retomava a leitura com uma calma exasperante. Asdrúbal d'Aguiar transpirava e o coração galopava desordenadamente, aumentando a aceleração conforme diminuíam as páginas para o outro terminar o relatório da autópsia. Por momentos, adivinhando as partes que o outro estava a ler, reconstituía mentalmente os passos tanatológicos daquela maldita necropsia e reconfirmava as análises e conclusões. Assaltavam-no hesitações, mas nenhuma dúvida. Confirmara e tornar a reconfirmar com o Brites cada milímetro, cada instante, de todos os exames forenses. A turbulência que estava a viver naquele momento não tinha qualquer fundamento e recordou-se das palavras de Moreira Júnior ao analisar o texto, quando, a propósito de qualquer coscuvilhice política, e da garrafa de aguardente, o visitou na última noite de trabalho.

- Nem de mais, nem de menos. Está no ponto!

Azevedo Neves chegou ao fim. Deixou cair a última página sobre a resma já lida, vagarosamente retirou os óculos e, sem um único comentário, ar circunspecto, levantou- -se com as mãos cruzadas atrás das costas e dirigiu-se à janela que dava para a rua, de costas voltadas para Asdrúbal d'Aguiar. Dois funerais armados sobre carretas, puxadas por quatro homens cada uma, saíam do Instituto. Eram desvalidos que iam a enterrar. Habituara-se a reconhecer os mortos pela quantidade de gente que os acompanhava, assim como pelos estandartes que surgiam no início da procissão fúnebre. Estes apenas eram seguidos por um padre, que lia a vulgata à frente do féretro, e três homens esfarrapados, dois deles descalços. Era aquela Lisboa que nem poetas, nem escritores, nem ministros, nem deputados pareciam conhecer. Talvez com excepção de Abel Botelho. Lera há pouco tempo o seu último romance, intitulado Amanhã, e imaginava o casario disforme, desconjuntado, feito de miséria e tristeza, donde, com toda a certeza, teriam vivido, pensando melhor, sobrevivido, aqueles dois infelizes que agora partiam a caminho do Alto de São João.

Enquanto observava as imagens, a memória percorria o documento que o chefe de serviços lhe entregara, como se estivesse a reconstituir a autópsia de Sidónio Pais. Suspirou profundamente e voltou-se para o seu interlocutor.

- É um trabalho notável, doutor Asdrúbal. Perfeito!

- Obrigado, senhor professor - a voz saiu-lhe rouca -, fi-lo com toda a dedicação e o meu melhor saber.

- Eu sei. Mais ninguém conseguiria este nível de minúcia.

Asdrúbal d'Aguiar continuava expectante. A serenidade do professor não correspondia à reacção que esperava. Nem um sobressalto, nem tão-pouco uma pergunta carregada de dúvidas. Por fim, Azevedo Neves rompeu o embaraçoso silêncio que envolvia o ambiente.

- Apenas confirma aquilo que já suspeitava!

- Perdão? - Asdrúbal cambaleou. - Suspeitava?

- Desde a noite em que vi os ferimentos no Hospital de São José. O orifício no abdómen tinha rebordos exteriores e irregulares. Por ali jamais entrara um projéctil. Saíra depois de fazer ricochete na coluna vertebral. Apenas me enganei no local. O ricochete foi na nona vértebra - e continuou tranquilo: - Embora o senhor admita a possibilidade da existência de resíduos de pólvora no capote, não existiram mesmo. O capote estava limpo. O tiro não foi disparado à queima-roupa.

Abria e fechava a boca como um peixe fora de água. O professor reparou no atabalhoamento do médico legista e sorriu.

- Não tenha dúvidas. Estudei o capote minuciosamente. Ao tempo era secretário de Estado do Comércio, mas nunca deixei de ser médico legista.

- Claro. É claro! - redarguiu o outro, ainda não refeito da surpresa.

- Sabe o que isto significa? - perguntou Azevedo Neves.

Asdrúbal d'Aguiar acenou afirmativamente. O seu semblante estava agora carregado, como se as conclusões dos exames periciais fossem uma ameaça.

- A prova material é implacável, doutor Asdrúbal. Implacável. Desfaz os mais sinceros e idóneos testemunhos pessoais. Afinal de contas, os jornalistas ouviram, viram e escreveram com toda a convicção sobre um facto que não aconteceu.

- Tem toda a razão - murmurou.

- Como vê, o nosso Locard, que tantas vezes discutimos, está aqui, nestas páginas. Os critérios científicos são mais assertivos e silenciosos do que os resultados dos espancamentos que Júlio da Costa tem sofrido.

- É a primeira vez que isto me acontece - Asdrúbal d'Aguiar estava visivelmente embaraçado. - Nem as testemunhas falaram verdade, nem o preso confessa a verdade. Que devo fazer, professor?

Azevedo Neves olhou-o, surpreendido.

- Está a perguntar-me o que deve fazer?

- Senhor professor, vai ser um escândalo. Fizemos a autópsia no dia dezassete de Janeiro, Sidónio Pais morreu há mais de um mês. Durante este tempo, não houve jornalista que não falasse do assunto. Todos os dias! Ou sobre os eventuais cúmplices do atentado, desde a Maçonaria ao Partido Democrático, a vida do preso foi coscuvilhada de alto a baixo, inventaram mil maneiras de não deixar de se falar no assunto. É verdade que todos os dias as notícias são diferentes e até contraditórias. Pararam de embirrar com o Sebastião Magalhães Lima, atiraram-se a Afonso Costa. Ontem descobriram que poderia ser um grupo monárquico, hoje já se fala de uma quadrilha de católicos. Os únicos dois factos que são imutáveis e inquestionáveis desde a noite de catorze de Dezembro são estes: Sidónio Pais foi abatido com dois tiros no peito e José Júlio da Costa é o assassino confesso.

- Embora haja notícias de várias confissões e também de que está louco, clama inocência e pede uma pistola para se suicidar.

- Seja como for - cortou com firmeza fora do habitual. - Para a opinião pública existem estas duas verdades indiscutíveis e indesmentíveis.

- Tem razão.

- Será que as minhas conclusões estão erradas?! Tenho passado as noites sem dormir a pensar nisto. Será que fiz tudo como deve ser?

Azevedo Neves não respondeu. Tornou a abrir o relatório e a passar as páginas mecanicamente, fixando uma palavra aqui, outra acolá. Empurrou o maço de papéis, esticou as pernas, recostando-se no cadeirão, e de mãos cruzadas sobre o peito, com o olhar fixo nas biqueiras dos sapatos, falou.

- Percebo aquilo que vai dentro de si. Não estudei psiquiatria, assunto que apaixonava o nosso Miguel Bombarda e pelo qual o nosso comum amigo Júlio de Matos morre de amores. Não passo de um curioso em psicanálise. As coisas que li de Charcot cheiraram-me a frivolidade e devo confessar que, apesar de lhe reconhecer qualidades superiores, a obra de Freud perturba-me mais do que me fascina. São áreas da medicina sobre as quais possuo uma robusta ignorância. Porém, atrevo-me a adivinhar as tempestades que lhe vão na alma e na cabeça.

Asdrúbal d'Aguiar deixou-se cair numa cadeira, expectante e atento ao que o seu amigo e mestre dizia.

- Sabe que fez um trabalho rigoroso. Não existe um único perito médico-legal que possa ataca-lo. Quer aqui, quer no estrangeiro. É notável e o senhor sabe isso. Não invista contra ele dúvidas que nada têm a ver com o exame que realizou.

Encolheu as pernas, pousou os cotovelos sobre os joelhos e continuou a dissertação como se não tivesse interlocutor.

- Está eufórico por ter feito uma descoberta formidável.

Asdrúbal agitou-se na cadeira.

- Quer dizer, eufórico é uma palavra excessiva. Eu...

- Não é nada! - cortou Azevedo Neves. - E tem todos os motivos para se sentir feliz. No fundo, a sua vontade é dá-lo a conhecer, publicá-lo, demonstrar pela denúncia que os suportes científicos da investigação criminal não se compadecem com verdades jornalísticas mais ou menos romanceadas.

- Professor, eu...

- Não me interrompa. Sei que é isso que sente. Porém, não é apenas um excelente médico legista. É um homem prudente e bom, além de apreciar a pacatez e a discrição. Quando há pouco me dizia que nunca lhe tinha acontecido coisa igual, o que me estava a dizer é que o cientista Asdrúbal d'Aguiar se confrontou pela primeira vez com o cidadão Asdrúbal d'Aguiar. E tem razão. Neste momento, o conhecimento público da sua descoberta seria um enorme triunfo da ciência e do nosso Instituto. Mas também se tornaria num escândalo que fragilizaria ainda mais esta inditosa República - soltou uma risada e comentou, irónico; - Coisa que, para um monárquico como eu, saberia a mel.

Riram os dois. Asdrúbal aquiesceu:

- Seria nomeado par da nossa Monarquia.

- Ou príncipe! - gracejou o professor. Recompôs o ar sério e sugeriu: - Seja astucioso.

- Como?

- Por enquanto, guarde o relatório só para si. Invente uma desculpa que dê a entender ao juiz que, daquilo que ele próprio desconfia, o senhor tem a certeza. O próprio magistrado lhe ficará grato de adiar por mais algum tempo a bomba que lhe vai pôr nas mãos. Siga o meu conselho. Invente um pretexto, adie, faça qualquer coisa, mas guarde o relatório em lugar seguro - e inclinando-se, quase tocando com a cabeça na do seu interlocutor, murmurou, sibilino: - Por enquanto...

Asdrúbal d'Aguiar aquiesceu com um gesto e confessou:

- Tem razão. Mas nem preciso de inventar nada. Para o relatório estar completo falta proceder ao exame da arma que dizem ter apreendido ao José Júlio da Costa. Só examinámos as roupas e o cadáver.

- Ora aí tem uma boa desculpa. Não peça por ofício. Vá falar com o juiz. Eu conheço-o. É um homem ponderado e justo.

- É uma boa ideia. Desculpe o tempo que lhe tomei, mas tenho passado uns dias ruins sem saber o que fazer! - estava visivelmente mais descontraído quando estendeu a mão a Azevedo Neves.

- Ainda bem que o ajudei. Fico satisfeito. E mais uma vez parabéns pelo trabalho.

- Obrigado, senhor professor.

O chefe do Serviço de Clínica Médico-Legal preparava-se para sair quando Azevedo Neves o chamou.

- Doutor Asdrúbal!

- Sim, senhor professor?

- Mas não morreremos sem que esse trabalho seja publicado.

Cambaleou.

- Vai ser a nossa desgraça.

- Se não formos prudentes. O senhor merece esse momento de glória. Vá com Deus!

Asdrúbal saiu. O sossego momentâneo que experimentara com a solução de adiamento sugerido pelo amigo desaparecera. Só a ideia da publicação da autópsia de Sidónio Pais pôs-lhe o coração a bater aos trambolhões. De júbilo. E de medo.


Saiu, decidido. Era, como sempre, o caminho da sensatez, de uma sabedoria recolhida dos grandes palcos da erudição, de uma cultura científica profunda e crítica, mas sem nunca deixar de sinalizar os percursos da vida e da natureza humana. Azevedo Neves era a personificação do verdadeiro sábio. Alguém que conseguira uma comunhão perfeita entre a erudição que lhe permitia sonhar utopias e, simultaneamente, gerir as relações psicoafectivas com delicadeza inteligente. Só assim se compreendia que o monárquico Azevedo Neves se preocupasse em não sujeitar a República a um enxovalho. O trabalho executado pelos peritos do seu Instituto provocaria um terramoto nas hostes da autoridade policial, movido por uma população farta de gestos repressivos e dezenas de assassínios em nome de uma autoridade que não se conseguia impor devido ao intermitente conflito político.


O juiz Alfredo Pereira escutou o médico sem abrir a boca. Nem pestanejava. Os olhos azul-claros pareciam não ter expressão, braços cruzados sobre a secretária e cabeça avançada na direcção do interlocutor. Quem os visse, julgaria tratar-se de uma confissão. Asdrúbal foi minucioso na explicação, evitando termos técnicos, deixando bem clara a diferença, e a razão da mesma, entre os ferimentos de entrada de balas e os de saída. Rabiscou, num papel que o juiz lhe estendeu, um desenho tosco sobre a trajectória interna da munição disparada contra Sidónio Pais. Ao fim de quase quarenta minutos de explanação, respirou fundo e desabafou:

- É isto, meritíssimo juiz. Não sei se ficou com alguma dúvida.

Foi então que este abandonou a posição de estátua em que se quedara desde o início do monólogo. O semblante revelava preocupação. A voz saiu rouca quando perguntou, desconfiado:

- Para a situação ser ainda mais delicada só faltava que dissesse que o tiro não foi disparado à queima-roupa.

- De facto, não foi, meritíssimo juiz. A arma que matou o Senhor Presidente da República encontrava-se seguramente a mais de trinta e dois a trinta e três centímetros do capote. Tendo em conta a roupa, a espessura do resto da indumentária e as naturais folgas entre as várias peças de vestuário, de certeza, a mais de quarenta centímetros do corpo. Não havia orla de queimadura, nem resíduos de pólvora, se bem que pudessem ter existido antes do exame pericial e caído devido à manipulação do capote.

- Em linguagem vulgar está a dizer-me que a arma deveria ter sido disparada acima dos quarenta centímetros, podendo ser a um, ou a dois, ou a três metros.

- Ou a quatro, ou a cinco. Ou mais.

Subitamente bateu com as palmas das mãos na secretária, levantando-se abruptamente.

- Más notícias. Más notícias - e desatou a andar num vaivém agitado por detrás da secretária, de braços cruzados, com uma das mãos a cofiar a barba loura. De vez em quando, meneava a cabeça e repetia: - Más notícias. Nada bate certo. Nada! - e continuava a passear no vertiginoso vaivém.

Asdrúbal permaneceu em silêncio, à espera de que o juiz saísse da excitação com que digeria as notícias que recebera. Por momentos, este estacou, olhando-o penetrantemente.

- Tem a certeza de que mediu todas as palavras que me disse?

- Absoluta, meritíssimo. Discuti com os colegas mais reputados as conclusões que acabo de lhe transmitir.

- Más notícias. Muito más! - e voltou a calcorrear o gabinete de trás para a frente, da frente para trás, até tornar a parar e a fixar o olhar no peito. - Quantas pessoas sabem disto?

- Incluindo vossa excelência, sabemos quatro. O meu colega Geraldino Brites, que comigo fez a autópsia e o exame do capote, e o nosso director, ainda que esteja noutras funções, o professor Azevedo Neves.

- O secretário de Estado do Comércio.

- Exactamente, e que eu substituo interinamente. Aliás, foi ele quem me recomendou que partilhasse com vossa excelência as conclusões a que chegámos antes de o relatório ser dactilografado e formalmente enviado para este tribunal.

- Eu conheço-o. Participou em vários julgamentos a que presidi. É brilhante!

Asdrúbal sorriu.

- Sou suspeito ao corroborar vossa excelência, pois trata-se de um dos meus maiores amigos e do mais extraordinário pensador que conheço sobre estas matérias.

- Eu sei. Não é nada suspeito. Está a dizer a verdade, que já o vi várias vezes citado em obras que li de peritos estrangeiros. É uma eminência da medicina legal europeia.

- É um grande homem, meritíssimo.

- É possível, não o conheço assim tão intimamente. Adiantaria outra qualidade ao seu mentor. É um grande macaco.

- Perdão? - Asdrúbal d'Aguiar reagiu, sobressaltado, e o juiz sorriu, tornando, finalmente, a sentar-se.

- No bom sentido, meu caro. Foi de um grande cavalheirismo pedir-lhe que viesse ter comigo para receber as notícias antes que se espalhassem por outras bocas e outros ouvidos.

- É verdade, meritíssimo juiz.

- Não me fale em verdade que já não consigo ouvir essa palavra. A esmagadora maioria das verdades que aqui me chegam são absolutas mentiras mascaradas de beatice velhaca. Talvez seja o único que me traz uma verdade em que desgraçadamente tenho de acreditar.

- Desconfiávamos de que seria assim. Embora não conheça o processo, pelo menos aquilo que vem nos jornais é contraditório com as nossas conclusões.

Alfredo Pereira exaltou-se.

- Os jornais, os jornais! Aquilo não é um Governo Civil é uma banca de venda de notícias. Já disse isto ao governador civil. Você não tem uma polícia, tem uma casa de putas onde cada uma quer mostrar aos clientes que é melhor do que a outra. É uma cambada que se julga importante porque o nome de cada um deles apareceu no jornal - a irritação de Alfredo Pereira ia em crescendo. - Sabe quantas confissões já li desse palerma do Júlio da Costa? Cinco! E nenhuma é igual à outra. Farto de tanta mentira, eu próprio presidi a dois interrogatórios. Nenhum deles é igual entre si nem igual aos restantes cinco. - A indignação trouxe-lhe o rubor às faces e a agitação dos braços tornou-se expressiva, para terminar, colérico:

- E nenhum dos sete depoimentos coincide com as conclusões que acaba de me apresentar.

Suspirou, vencido, quase enrolado sobre si como se quisesse controlar a desorientação que manifestara de forma tão exuberante.

- Na primeira confissão, diz que foi ele, combinado com outro, que matou o Presidente. Mas não se lembra do nome do cúmplice. Na segunda vez, responde que foi ele sozinho quem disparou duas vezes, quase encostado à vítima. Na terceira, estive presente e jurou pelas alminhas que estava inocente. Que fora ao Rossio com intuitos de matar Sidónio, mas desistira quando ouviu dois disparos que atingiram o homem. Depois, voltou a confessar, mas só disparara uma vez, e por aí fora. Uma série de aldrabices. Conforme é a tareia que leva dos guardas, assim é a minúcia daquilo que inventa ou que lhe põem na boca para ele dizer. Uma confusão, doutor Asdrúbal! - gemeu e, com ar de lamento, começou a queixar-se dos polícias: - Ainda por cima querem fazer de mim parvo. Entram aqui, servis, todos cheios de salamaleques, impingindo-me histórias de conspirações tenebrosas deste grupo, daquele grupo, do outro. São tantos grupos que se devem contar pelos dedos os cidadãos de Lisboa que não quiseram matar o Sidónio Pais! E o juiz de instrução é tonto, não há problema, hoje vamos contar-lhe mais esta e toca a prender quem lhes vem à cabeça e a espancarem a eito o palerma do dia que lhes ficou mais a jeito. Não consigo acreditar em nada. Sou juiz de instrução vai para seis anos e nunca ouvi tanta mentira como neste processo.

Calou-se, abandonado nas suas desilusões, expressão ausente, visivelmente cansado. Tornou a suspirar profundamente e sentenciou:

- Nunca vi nada assim. Nunca!

- É, de facto, um grande sarilho.

Asdrúbal d'Aguiar sentiu necessidade de desanuviar a tensão que habitava as preocupações do juiz. Deviam ser quase da mesma idade e não era difícil de perceber que ambos obedeciam a critérios éticos muito restritos. Embora o juiz fosse mais sanguíneo e Asdrúbal fleumático. Adiantou como desculpa:

- Lamento trazer-lhe ainda mais preocupações.

Encolheu os ombros.

- Ao menos trouxe-me verdades em que acredito - em tom de desabafo, acrescentou: - Este processo é um desastre desde o princípio. Os polícias que tomaram conta da ocorrência cometeram erros atrás de erros. E sabe o que é lamentável? É que não os cometeram por má-fé, mas por manifesta ignorância. Uma verdadeira cambada de imbecis. E brutamontes! Ouvem tiros e nem olham para quem os deu. Desatam a disparar a eito. Mataram quatro pessoas e feriram mais meia dúzia. Dez pessoas baleadas e nem se preocupam em saber quem eram, se estavam armadas, quem disparou. Prendem o palerma mais à mão, levam-no para o Governo Civil, dão-lhe uma tareia monumental que até Barrabás haveria de confessar qualquer crime. No dia seguinte, lêem os jornais que noticiam que foram dois atiradores, que um foi morto e o outro está preso, e devem ter feito uma festa, embebedando-se porque a coisa estava safa. O crime ficara resolvido. Só falta justificar os restantes mortos e os desgraçados que foram baleados e estão vivos. É fácil. Uma parte foram vítimas de balas fortuitas, os restantes estão ligados à conspiração, pois aquilo não fora obra de dois assassinos. Tem de forçosamente haver uma organização de gente poderosa que preparou o atentado. Pronto! É esta palhaçada a investigação deste processo. Não sabem quantas armas apreenderam, nem auto de apreensão existe. Não procuraram as cápsulas dos cartuchos que ficaram pelo chão e não tenho dúvidas de que não o fizeram porque a maioria delas deveriam ser das suas próprias armas. Nada! Toca a prender suspeitos imaginários e a apresentar teses sobre grupos de conspiradores - com desprezo evidente, rematou: - São tão estúpidos que ainda não perceberam que eu sei que o Júlio da Costa não sabe ler nem escrever. Assina o nome. E mal! Já viu a minha vida?

- Não lhe gabo a sorte - admitiu Asdrúbal.

- Se ao menos houvesse uma única certeza, com a confusão que para aí vai, bastava-me uma única certeza e não demorava mais do que um mês para espetar com o Júlio da Costa no banco dos réus a responder a um tribunal. Até os depoimentos dos guardas, que legitimaram a prisão preventiva do homem, são verdadeiros desastres. Um bom advogado de defesa desfá-los em menos de nada - desabafou o juiz.

- Os guardas testemunham que viram Júlio da Costa disparar contra o Presidente?

- Testemunham. E juram! Só não sabem explicar porque mataram e feriram tantos infelizes e não atingiram o matador. Acha que isto é de gente normal? Será que são doidos ou sou eu que estou a ficar doido?

- De facto, não faz sentido – limitou-se a responder:

- Claro que não faz sentido.

Ficaram em silêncio por momentos. Por fim, o juiz perguntou:

- Vai mandar-me já o relatório?

- Vossa excelência deu-nos um prazo de quarenta dias para lho enviar. Ainda só passou uma semana.

Alfredo Pereira olhou-o, desconfiado.

- O que me está a querer dizer?

- Que, quando o prazo estiver perto do fim, cumpro as vossas ordens e, antes disso, vamos pedir a restante roupa da vítima para ser submetida a exames periciais.

O juiz esboçou um gesto de desalento.

- Até nisso foram desleixados. Sabe que perderam o dólmen que o Presidente tinha vestido?

- Perderam? Perderam, como? - perguntou, surpreendido.

- Perderam! Pura e simplesmente. É ou não é de doidos?

- Um grave desleixo, de facto. Mas, como ia dizendo, o meritíssimo juiz, quando tiver disposição, ou quando lhe chegarem formalmente as perícias ao cadáver e à roupa do Presidente, envia-nos mais um ofício acompanhado da arma e das munições apreendidas ao Costa para poderem ser examinadas.

- O senhor está a brincar comigo.

- Por amor de Deus, meritíssimo juiz. Nunca falei tão a sério.

- Depois de tudo aquilo que lhe contei, acredita que a polícia vai entregar a arma que apreenderem àquele tonto?

- Exactamente por ter percebido claramente aquilo que me contou é que estou a sugerir-lhe esta diligência. Tendo razão, como acredito que tem, sou capaz de jurar que nos vão enviar uma Browning, calibre sete e meio, com um carregador cheio, com excepção de dois projécteis.

- Porquê dois projécteis?

- Porque não sabem o que nós sabemos e vão querer induzir a ideia de que as duas munições que faltam correspondem aos dois tiros que Sidónio Pais tinha no peito.

Por instantes, ficou pensativo. Não estava seguro do raciocínio de Asdrúbal d'Aguiar.

- Essa armadilha punha fim à teoria de que teria havido um segundo atirador.

- Pelo contrário. Destrói a tese de que ele disparou dois tiros. Sabemos que Sidónio recebeu apenas um deles. Naquele momento, vinha cercado do seu estado- -maior, do governador civil, do irmão, e de não sei quantos polícias. Se os tiros foram à queima-roupa e só um deles perfurou Sidónio, diga-me, meritíssimo juiz, quem dos seus acompanhantes recebeu a segunda bala?

- Mais ninguém da comitiva foi atingido! - respondeu, perplexo.

- Como vê, a mistificação pode ser desmontada com o exame da pistola.

Ficou em silêncio outra vez. Pensativo. Atormentado por lhe serem pedidas decisões sobre matérias onde crime, política e vingança se misturavam de forma sinistra.

- Não percebo porque me está a sugerir esse caminho.

- Para ganhar tempo - garantiu Asdrúbal d'Aguiar com sinceridade. - Sei que é um homem justo. Vejo que sofre por ter prova suficiente para manter José Júlio da Costa detido preventivamente, mas não tem a prova necessária para o acusar. Tal como disse, os testemunhos dos seus guardas não aguentam o interrogatório de um advogado de defesa competente.

- É verdade!

O médico legista hesitou. Apetecia-lhe ser mais leal com aquele homem que via à sua frente, revoltado e esmagado pela angústia. Porém, tinha receio de ser demasiado violento. O juiz percebeu o embaraço e desafiou-o :

- Diga o que pensa. Não tenha receio. Esta conversa não sairá deste túmulo onde faço de conta que estou vivo, mas, na realidade, me sinto sepultado.

- Pois bem, seja como pede. Não tenho qualquer dúvida de que jamais Júlio da Costa será acusado. Nem por vossa excelência, nem por outro juiz que o venha a substituir com o rolar dos anos.

- Como pode ter tanta certeza? Ainda há pouco me sugeria que lhe enviasse a pistola, para ganhar tempo?!

- Meritíssimo juiz, desde a noite do crime que este caso me persegue. Quis esquecê-lo, ignorar que não era coisa que me dissesse respeito. Procurei pisá-lo, rasga- -lo, evitá-lo. Jurei a mim próprio mil vezes que tudo estava certo e era apenas a minha mente delirante que inventava perguntas sem respostas. Sentia-me quase curado desta intriga interior, que me perturbava o sono e passeava nos meus pesadelos, quando, passado um mês sobre o assassínio do Senhor Presidente da República, surge no Instituto o pedido de autópsia solicitado por vossa excelência. E a doença regressou e com maior violência. Era um pedido de autópsia extemporâneo, surpreendente, e só tinha uma explicação. O juiz de instrução, o homem que conhecia todo o processo, também não encontrava respostas para estabelecer os nexos de causalidade necessários para justificar uma relação directa entre vítima e agressor. Desconheço se as dúvidas que o atormentam são iguais àquelas que me tiraram o sono. Porém, creio que não são muito diferentes.

O juiz estava experimentado por muitos anos de profissão e foi directo ao assunto.

- Pode ser que tenha razão. Mas anda à volta daquilo que me quer contar sem ir directo ao assunto.

Ficou a olhá-lo, surpreendido. Sorriu, malicioso.

- Tem razão. Vou directo ao cerne da questão. Em linguagem escorreita, o projéctil entra por cima do mamilo direito, faz ricochete nas vértebras e sai, perfurando o fígado. Que significa isto? Que, se fosse José Júlio da Costa a empunhar a arma que disparou, a trajectória do projéctil deveria ser exactamente ao contrário. De baixo para cima, fazendo o ângulo inverso e, assim, saindo por cima do mamilo. Para executar o crime, tal como a autópsia mostra, tinha de erguer o braço ao nível da cabeça, ou mais alto e disparar de cima para baixo. Num movimento que seria visto e anulado. Não! Não foi visto. Além de que não foi um disparo de curta distância, como a ausência de queimaduras de pólvora no capote demonstra.

- Está a querer dizer-me que foi o homem abatido junto à coluna direita quem matou Sidónio.

- Talvez. Mas, com maior certeza, o carregador da estação.

- O rapaz!? - estranhou o juiz.

- Imagine que estava de pé sobre o carro onde transportava as bagagens. Era natural que subisse para lá. A multidão era grande. Ficaria com uma perspectiva de visão que dominaria todo o espaço. Estava a cerca de três, quatro metros do Presidente. Bastaria apontar naturalmente e disparar.

- Onde foi buscar esse raio de ideia?

- Visitei a estação. O rapaz estava caído sobre o seu carro de transporte de malas. Com os joelhos no chão e o corpo em cima da placa que suporta a bagagem. O carro, com quatro rodas, tem a chapa de suporte das bagagens a trinta centímetros do solo. Altura suficiente para tornar coerentes os resultados da autópsia com a bárbara execução. O primeiro tiro deve ter-lhe atingido o braço, caiu e, a seguir, foi executado com dois disparos, estes, sim, à queima-roupa, na cara. É esta a razão que leva os polícias a dispararem mais para a direita e menos para a esquerda. Não viram o atirador, mas pressentiram a zona donde ouviram as explosões e reagiram primeiro nessa direcção, e depois a eito, na sequência da desorientação. É do lado direito da estação que surgem mais feridos nos hospitais. É no lado direito que morrem dois indivíduos que foram vítimas de uma execução sumária. Por outro lado, o sentido do projéctil que vitima Sidónio Pais vem da direita para a esquerda, de cima para baixo. O ângulo de ricochete não excede os trinta graus, o que significa que um homem normal, empunhando normalmente uma pistola em posição de disparo, mesmo em movimento rápido, faria com que a arma estivesse, no mínimo, à altura do pescoço do Presidente, ligeiramente inclinada para a frente.

- Agora não percebi - interrompeu o juiz. - O ferimento está acima do mamilo.

- Por isso mesmo. É um gesto excessivo para quem dispara de supetão, estar frente a frente com a sua vítima, erguer o braço armado até a uma altura desproporcionada em relação ao desejo do resultado. Além de que é incómodo e mais difícil de executar.

Fez uma pausa por breves instantes, observando a reacção do outro, à espera de que tivesse compreendido o seu raciocínio. E depois continuou:

- Tudo é coerente se, em vez de aceitarmos as confissões contraditórias de José Júlio da Costa, admitirmos a hipótese, mais do que provável, de que o disparo foi feito a curta distância, mas não à queima-roupa, versão que é definitivamente falsa. Se admitirmos que a pistola estava a dois ou três metros de distância, empunhada por Alfredo Reis, tudo se torna coerente.

- Mesmo que houvesse pessoas entre agressor e vítima, a bala teria voado sobre as suas cabeças até ao peito de Sidóniol - deduziu o magistrado.

- Exactamente - confirmou Asdrúbal. - A arma teria sido empunhada naturalmente, aproveitando a confusão, e o disparo realizado com grande grau de segurança para atingir o alvo. É esta naturalidade que não permite à polícia identificar, de imediato, o autor e leva os agentes a dispararem em todas as direcções.

O juiz Alfredo Pereira ficou em silêncio. Com o rosto encaixado entre as mãos, rememorando o percurso narrativo da conversa com o médico. Confrontava as informações demonstradas com aquelas que o outro lhe adiantava, enquanto hipótese coerente de reconstituição dos factos ocorridos na noite de catorze de Dezembro, na estação do Rossio. Mesmo que não tivesse acontecido conforme a narrativa do clínico forense, os resultados que se podiam extrair dos exames da polícia científica e da tanatología deixavam claro que jamais poderia ter sucedido conforme o processo que, dia após dia, recebia recomposição, alterações, testemunhos díspares, que constituíam entre si e dissolviam, como ácido, quaisquer que fossem as provas recolhidas no dia anterior ou aquelas que surgiriam no dia seguinte. Há muito que aquele processo- -crime deixara de ser um processo de conhecimento e se transformara numa mistela tão insalubre e flatulenta quanto a sopa do Sidónio. Por fim, enfrentou o médico:

- O senhor, ou os seus serviços, tragam-me um indício, por menor que seja, que confirme aquilo que me acabou de dizer e eu abandono definitivamente a versão da polícia e, de imediato, libertarei José Júlio da Costa.

Asdrúbal d'Aguiar soltou uma gargalhada, que, de imediato, controlou.

- Perdoe-me. E perdoe-me não nos entendermos.

- O quê? - perguntou, intrigado.

- Não sou advogado de Júlio da Costa. Não lhe vim pedir ajuda. Sou um simples perito médico.

- Percebeu-me mal, doutor Asdrúbal. Eu é que lhe estou a pedir que traga alguma decência a este processo. Decência procedimental, claro está. Eu conheço o vosso trabalho científico e não o desprezo.

- Fico satisfeito. Deve estar entre os poucos juízes que nos consideram - ironizou o médico.

- É natural. As ciências médico-forenses conquistaram, numa dúzia de anos, territórios que sempre foram exclusivos da acção judicativa - e, com um gesto de tolerância, rematou: - Vão ganhar num punhado de anos aquilo que os juízes acumularam durante séculos.

- Não quero ganhar nada, meritíssimo!

- Mesmo que objectivamente não queira nada para si, cada uma das vossas investigações é um golpe duríssimo no poder.

- Como assim?

- Expropriam a liberdade do juiz.

- Meritíssimo?! Nem pensar.

- Condicionam-lhe a liberdade de consciência. - Teimou.

- Não.

- Reduzem o intervalo de erro, logo reduzem a liberdade de acção de cada decisão judicial.

- Mas... - titubeou Asdrúbal, porém o contendor atalhou:

- Antes das vossas descobertas, a sentença era decidida conforme a lei e a consciência do julgador.

- E ainda é assim! - protestou.

- No que respeita à lei. Mas impuseram limites éticos à consciência. Em suma: puseram em causa o nosso poder absoluto! - soltou uma risada bem-disposta. - Ficaria pasmado se soubesse aquilo que alguns conselheiros e desembargadores pensam do vosso Brouardel, do vosso mestre Locard, do seu amigo Azevedo Neves e de todos os arautos da polícia científica em geral. - Subitamente, mudou de expressão. Ficou sério, quase carrancudo. - Eu faço parte do pequeno grupo de magistrados, felizmente cada vez maior, que implora e quer a vossa ajuda. Não quero morrer como inquisidor.

Asdrúbal não sabia o que responder.

- Pois! - foi a única coisa que soube dizer.

- Repugna-me ser herdeiro e cúmplice de uma história que elegeu a tortura como instrumento de prova e tem nas suas entranhas as labaredas dos autos-de-fé. Sabe qual é o meu maior medo?

Alfredo Pereira entrara pela via confessional e Asdrúbal, percebendo a angústia, decidiu ficar em silêncio.

- Decidir mal. Ser injusto. Ordenar o degredo ou vinte anos de cadeia a alguém que desconheço, que vejo e oiço durante o tempo de um julgamento e devo decidir. Ditar dez ou quinze anos de prisão apreciando factos que conheço na aparência e nem me atrevo a procurar o âmago. Será que está a falar verdade? Será que está condicionado pela tareia que levou no dia anterior? Será que as testemunhas são credíveis? Sabe que, quando comecei a minha carreira como magistrado numa comarca de Trás-os-Montes, o perito de clínica legal era o barbeiro da vila, que aparava cabelos e arrancava dentes? Que durante um julgamento tive um perito de venenos que era boticário? Procurava ervas especiais, dizia ele, que, depois de benzidas, curavam quebrantos e tuberculoses. E eu decidia, fundamentando as minhas sentenças sobre os saberes de bruxos, curandeiros e boticários. Além dos testemunhos das partes envolvidas, que mal sabiam falar e jamais viram um livro à sua frente. Foi assim que comecei, doutor Asdrúbal. Renegando as utopias de liberdade e de justiça que me embebedaram a alma durante os anos de faculdade, em Coimbra. Renegando Kant, renegando Rousseau, esquecendo o positivismo eufórico do meu mestre Manuel Emídio Garcia, exilando Hegel, ignorando a importância da crítica da razão para aceitar, com a submissão dos indefesos, o vendaval de irracionalidade e ignorância que dia após dia passava pela minha sala de audiências.

Calou-se. Era óbvia a sua irritação. Respirou fundo e levantou-se da secretária com as mãos nos bolsos, procurando dissimular a tensão, e as palavras brotaram-lhe quase sussurradas:

- Passados tantos anos desde esses dias fundadores da minha carreira é com um desalento profundo que percebo que muito pouco mudou. Habitamos um país sinistramente analfabeto, doutor Asdrúbal. Sabe qual é a razão principal por que caiu a Monarquia? Porque o poder monárquico ignorou a importância da Cartilha Maternal de João de Deus. Sabe qual é a razão para que a República, que ainda só tem oito anos e já se percebe que está com os pés para a cova, chegou a este estado? Embora mais preocupados com a instrução, não ligaram à Cartilha Maternal de João de Deus. Não são as coisas políticas o grande problema do país e do Estado. É este analfabetismo grosseiro, profundo, antigo, que amordaça a esperança e derrota qualquer sonho. Como se pode ser um juiz justo, um juiz para realizar um programa idealizado pelos iluministas num país obscuro? De que valem as lições de Beccaria ou a ética de Montesquieu, se o pão da cultura, o fermento da inteligência não medra? É por acreditar que não podemos continuar assim que confio no vosso esforço para saber mais, para entregar ao conhecimento a dignidade da razão crítica, e peço-lhe um indício. Um único indício e transformo este processo num valente murro na mesa.

Asdrúbal d'Aguiar fitou a pose de desafio do juiz e mordeu os lábios. Aquela confissão ditada pela angústia confinava com os desafios que Azevedo Neves colocara aos seus discípulos. Era a outra face da mesma moeda e, com uma estranha amargura, abriu os braços num gesto de desalento.

- Não tenho mais nada para lhe dizer, meritíssimo juiz.

- Se não tem, procure! - insistia com bravura. - Procure entre os vestígios que recolheu e transforme-os em indícios, como diz o vosso Locard. Coloque a arma na mão do verdadeiro assassino e traga-me o relatório. Por mais simples que seja.

- Não tenho nada - admitiu, vencido.


- Como? Não tem nada e consegue reconstituir o crime?

- A culpa é minha. Só minha! Tivesse seguido o meu instinto e talvez a nossa conversa fosse outra.

- Posso saber do que está a falar?

- Sobre a impossibilidade de satisfazer o seu pedido. O local do crime não foi analisado.

- Mas o senhor esteve na estação.

- Quase um mês depois.

- E então?

- Já tudo mudara. Tinha de ser logo. Recolher os cartuchos, identificar o calibre das armas, fotografar a posição dos cadáveres, medir as distâncias em relação ao sítio onde Sidónio Pais foi alvejado. Recuperar o projéctil que o matou e que, seguramente, ficou no chão e, depois, proceder aos exames médico-legais de acordo com as informações recolhidas. E nada disto foi feito! Os dois jornalistas, que foram testemunhas directas, publicaram a verdade que acreditaram ver, a polícia ficou satisfeita por prender um homem e ter morto um qualquer, que terá sido o segundo atirador, e foram todos embora felizes e satisfeitos por terem cumprido a sua missão - abriu os braços num: gesto de abandono. - A verdade analfabeta que hà pouco zurzia, e com razão, vai vencer mais uma vez. E trazer-lhe este resultado foi uma vitória do acaso.

- Do acaso? - perguntou, curioso.

- Se não tivesse sido embalsamado, um mês depois de sepultado a putrefacção era tal que já não seria possível ver com minúcia as lesões que acabámos por descobrir.

Ficaram os dois em silêncio. Entardecia e a Boa Hora ia ficando mais deserta e silenciosa, conforme os funcionários e magistrados iam saindo no fim de mais um dia de trabalho.

Ana Rosa acudiu-lhe à memória e sentiu saudades. Surgiu como uma nuvem repentina que procurava afastar e ela desaparecia com um sorriso de prata, acenando um adeus que era um abraço.

O juiz Alfredo Pereira interrompeu o silêncio. Havia amargura na sua voz.

- Quer dizer que vai tudo ficar assim.

- Temo que não haja nada mais para fazer, a não ser a proposta que lhe falei. Envie a arma para perícia.

- Propõe-me um adiamento - declarou com tristeza.

- Perdoe-me a frontalidade, mas não invejo as alternativas que tem ao dispor. Ou aceita os procedimentos policiais e leva Júlio da Costa a julgamento...

- Ou?...

Asdrúbal encheu o peito de ar, para ganhar coragem, e declarou de um fôlego.

- Ou salva a tranquilidade da sua honra sem correr riscos e vai empurrando o processo para a frente.

- Se o vosso relatório policial chega ao processo, não tenho outro remédio.

- Acredite que vai chegar.

Agora as palavras eram calculistas. Aqueles dois homens com fome de justiça pareciam conspirar contra o próprio sistema que serviam.

- E depois envio a arma. Arma que não sei onde pára.

- Ainda melhor. Oficia ao governador civil para que seja ele a enviá-la.

- O Sousa Fernandes? Se o dólmen do Presidente desapareceu, quem me garante que a arma está guardada?

O calculismo cedeu o passo à avidez. A ironia, quando é cínica, torna-se a mais canalha das armas. Asdrúbal d'Aguiar olhou o outro com um sorriso cáustico.

- O que não falta no Governo Civil são pistolas. Depois de oito anos de golpes e conspirações, atentados e insurreições, existem mais armas em Lisboa do que grãos de trigo nos armazéns da cidade.

- Na verdade!

O magistrado ia dizer qualquer coisa, mas calou-se. Era notório que nada daquilo lhe agradava. Não tinha condições para libertar o preso, por outro lado, os resultados apresentados pelo médico pulverizavam todas as provas incriminatórias e, finalmente, a sua consciência de juiz insurrecto contra a velha ordem inquisitorial rebelava-se perante uma eventual acusação que levasse à condenação de Júlio da Costa. Por fim, decidiu com convicção, enquanto estendia a mão a Asdrúbal d'Aguiar.

- Muito bem. Dentro em breve terá notícias minhas. Foi um prazer tê-lo conhecido.

- O prazer foi meu, meritíssimo juiz. Fico à sua disposição.

Ia sair quando Alfredo Pereira perguntou:

- Ah, outra coisa. E essa história das impressões digitais vai para a frente ou não?

- Desculpe, mas não percebi.

- Os estudos sobre impressões digitais. Li umas coisas de Bertillon e, até, do nosso Rodolfo Xavier da Silva. É mesmo verdade que não existem duas iguais?

Asdrúbal d'Aguiar sorriu, divertido.

- É mesmo verdade - e, carregado de ironia, disparou: - Os tribunais de quase toda a Europa reconhecem as impressões digitais como prova irrefutável. Veja se consegue convencer os seus colegas juízes a seguirem o mesmo caminho.

O juiz respondeu com a mesma ironia.

- É difícil. Estou em crer que é mais fácil um pecador enganar São Pedro e entrar no céu.

Asdrúbal saiu. Alfredo Pereira perdeu a pose e abandonou o corpo na cadeira. Naquele preciso momento, depois daquela conversa terrível, apenas lhe apetecia uma coisa: abandonar a carreira, que já ia longa e fora o seu sonho de menino. E duas lágrimas cinzentas, como aquela tarde de Lisboa, correram-lhe, silenciosas, pelo rosto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

IN DUBIUM PRO REUM

 

 

Asdrúbal d'Aguiar enviou para o juiz de instrução o relatório da autópsia e as perícias nas roupas de Sidónio Pais no mesmo dia em que perdeu o cargo de director interino do Instituto de Medicina Legal. O Governo de Tamagnini Barbosa não durara dois meses e, finalmente, Azevedo Neves regressava ao cargo que entregara provisoriamente. Estava saldada a dívida com Sidónio Pais.

- É bom tê-lo de volta! - cumprimentou Asdrúbal. - Sem o senhor professor à frente desta barca era difícil chegar a bom porto.

- Não seja tão modesto, meu caro. Fez um óptimo trabalho durante a minha ausência.

- Esforcei-me, é certo. Mas este gabinete pertence-lhe por direito natural.

Asdrúbal foi passando em revista os problemas que tinha no Instituto: pastas de pessoal, tesouraria, movimentos da tanatologia, da clínica médico-legal, da toxicologia, da polícia científica.

- Sei que vai entregar esta repartição à nova Polícia de Investigação Criminal. Contudo, devo dizer-lhe que mantenho algumas reservas quanto a essa dependência orgânica.

- Não seja preconceituoso. Acha que a PIC vai desprezar o laboratório da polícia científica? Nem pense. Os novos investigadores não terão nada a ver com os homens que andam por aí extorquindo confissões e testemunhos a toque de cacete. A dactiloscopia tem mais força do que qualquer confissão. A balística é mais poderosa do que qualquer mistificação ou testemunho. A toxicologia desfará qualquer dúvida sobre envenenamentos e os futuros investigadores criminais não deixarão de aproveitar o conforto que a ciência lhes entrega. Aliás, conforto e menos trabalho - e com ironia amarga exclamou: - Espancar um indivíduo para lhe arrancar uma confissão é cansativo. Identificar uma impressão digital apenas precisa de uma lupa e de boa luz para comparar. É um descanso!

Azevedo Neves regressava com um novo ânimo. Até a sua atitude se havia modificado. Estava jovial, alegre, como se o tivessem libertado de um fardo pesado e incómodo. Parecia um peixe liberto de um pequeno aquário e devolvido ao mar infinito.

- E o relatório da autópsia de Sidónio?

- Foi hoje o contínuo entrega-lo na Boa Hora. Chegou a ler a cópia que lhe enviei?

- Duas vezes. Está brilhante. Uma verdadeira lição de medicina legal. Um trabalho objectivo, sustentado.... Excelente!

- E perigoso! - acrescentou Asdrúbal d'Aguiar.

- Se a verdade é perigosa, então tem razão. Se o juiz for tão esperto quanto o julgo, vai saber ler o que o senhor escreve e até aquilo que não está escrito, e vai deixar o caso morrer sem grandes consequências. Veremos como reage. Se pedir imediatamente os exames periciais à pistola é sinal de que não compreendeu. Se tardar no pedido, é a certeza de que a sua consciência não lhe permite acusar um inocente.

- Seja como for, José Júlio da Costa continuará preso.

- Por enquanto.

Asdrúbal d'Aguiar olhou-o desconfiado.

- O que me está a querer dizer, senhor professor?

- Que o Estado, a República, a polícia, a justiça, não têm condições políticas nem sociais para vir dizer ao povo: José Júlio da Costa não matou Sidónio Pais. Esta é uma verdade perigosa, como você lhe chama.

- Mas é verdade!

- E ainda há outra mais perigosa que é complemento da primeira. Ou seja, Júlio da Costa não matou o Presidente e não sabemos quem o matou. Já imaginou o terramoto que esta notícia causaria, depois de tanta arruaça, prisões e espectáculos jornalísticos?

Asdrúbal d'Aguiar fez um gesto de dúvida.

- Não sei se podemos ser tão categóricos. Pode ter sido Júlio da Costa o autor do crime, embora as versões não sejam compatíveis com as nossas descobertas. Ele sofre seguramente de uma patologia mental. Se o pudéssemos submeter a um exame psiquiátrico...

- O meu caro doutor Asdrúbal é perito, não é juiz. O juiz terá essa competência, mas duvido de que peça tal exame. No limite, chegávamos à conclusão de que é inimputável.

- Como pode ter tanta certeza? - perguntou, surpreendido.

- Um dos nossos maiores psiquiatras e um dos meus melhores amigos afirma que Júlio da Costa está a desenvolver uma esquizofrenia.

- Júlio de Matos! - decifrou Asdrúbal d'Aguiar.

- Pois.

- E o homem fica preso?

- Imagine que o põem na rua. O homem a quem o país conhece, embora sem julgamento, como o assassino confesso do Presidente da República?! Das duas, uma. Ou é rapidamente morto pelos saudosistas do Presidente-Rei, ou é atirado para o panteão dos heróis republicanos pelos adversários e inimigos de Sidónio Pais. Confesso que não sei qual dos dois caminhos seria o mais trágico. Já imaginou um louco transformado em herói?

Asdrúbal indignou-se:

- Os jornais não são os julgadores e as suas verdades não passam de manchas de azeite que estão à superfície da realidade. Este caso é exemplar. Os dois jornalistas contaram aquilo que viram e escreveram de boa-fé. Mas testemunharam uma aparência, sobre a mancha de azeite, e não viram aquilo que na verdade se passou.

- Tem razão. Mas passaram a mensagem e a polícia ajudou à festa.

- A justiça não pode ser comandada por notícias mais ou menos sérias, mais ou menos interessadas. Muito menos tem o direito moral de acusar e ajudar ao julgamento e destruir a vida de alguém. Seja de quem for e, neste caso, de um tonto.

Azevedo Neves sorriu com displicência.

- Não deixa de ser delicioso ouvir um homem com a sua idade, talentoso, culto, tão assanhado contra os julgamentos na praça pública. Meu caro Asdrúbal, somos herdeiros de uma história milenar feita de vingança e de justiças privadas, onde não havia lugar para a justiça do Estado.

- Seja como for - insistia o chefe do Serviço de Clínica Legal -, a condenação pública de Júlio da Costa é extemporânea e injusta.

- Não percebe os jornais.

- Não?

- São o pretexto. Meros mediadores. Não existe neste caso, como noutros, alguém que não esteja interessado na notícia. Aqui, foi a polícia que os usou. Contou com a invulgar ajuda de dois jornalistas que presenciaram o crime e aproveitaram para reforçar a tese de que tinham resolvido num ápice o assassínio do Presidente.

- E aí temos um condenado sem julgamento.

- Com a nossa alma medieval saciada pela execução desta justiça privada.

A conversa ganhara uma intensidade tal que tinham abandonado os papéis que um passava ao outro, enterrados em cada um dos sofás que decoravam o gabinete. Asdrúbal d'Aguiar estava preocupado, mas tranquilo. Pediram-lhe que cumprisse o seu dever e cumpriu-o com rigor. Azevedo Neves ficara silencioso, mas havia uma sugestão de sorriso no rosto e os olhos brilhavam.

- Ou muito me engano ou o senhor professor está satisfeito com a conclusão do caso. Se o juiz confiar nos nossos exames, jamais haverá julgamento. Tudo se resumirá a este carnaval noticioso.

- É justo! - limitou-se a dizer.

- Estamos a falar do homicídio do Presidente da República - teimou Asdrúbal - Por sinal, seu amigo e Presidente do Governo de que fez parte.

- É verdade - respondeu tranquilo. - Que Deus o tenha em bom descanso.

- E não o incomoda estar um inocente preso e não chegarmos a uma conclusão sobre o autor da sua morte?

- Claro que incomoda. Mas não é por esse ângulo que olho este caso.

Levantou-se. Acendeu um charuto e caminhou, vagaroso, até à janela. Olhou de relance o movimento da rua e voltou-se para Asdrúbal d'Aguiar.

- Todo este psicodrama é uma trágica metáfora sobre as encruzilhadas da justiça. Aconteceu em França com o caso Dreyfuss e, agora, de maneira mais intensa, acontece em Portugal. Já reparou nos sortilégios que a vida produz? Depois de décadas e décadas de combate contra a tortura, contra a crença nas virtudes da confissão, levantando todas as reservas contra o valor absoluto da prova testemunhal, temos procurado um pouco por todo o mundo civilizado entregar cientificidade à prova judiciária. Um combate feito de denúncias de injustiças, feito de descobertas nos vários domínios da ciência. Veja o trabalho de Bertillon sobre as tipificações dactilares.

Asdrúbal fez um trejeito de discórdia.

- Bertillon portou-se mal no caso Dreyfuss. O seu testemunho sobre grafologia desfez o jovem oficial.

- Eu conheço Bertillon. Comete o pecado da vaidade. Os seus trabalhos de dactiloscopia são notáveis. Já não se pode dizer o mesmo no domínio da grafologia, onde está a anos-luz dos estudos de Crépieux-Jasmin. Mas tem razão. Esse erro de Bertillon custou caro àqueles que lutavam pela prova material cientificamente testada. Mas não foi o único erro. E não será o último. Desde o grito de Bichat para voltarmos a atenção para os cadáveres, passou um século. Chegou Claude Bernard e o experimentalismo, Balthazar e a necropsia forense, Pasteur e a revolução total nos conceitos de vida, graças ao microscópio, Brouardel e a afirmação do saber no domínio da toxicologia, da medicina legal, no estudo dos tecidos e das células, Reiss com o impulso à óptica e à física forense. Um esforço brutal para convencer tribunais e juízes da força da prova material. Debates académicos, discussões em jornais da especialidade. Veja o que se escreveu, e debateu, em torno do caso Joana Pereira ou do nosso desafortunado colega Urbino de Freitas. Errámos muitas vezes, é certo. Mas construímos um processo de conhecimento mais rigoroso, mais próximo da verdade, construímos as armas que podem servir a justiça com mais segurança do que qualquer confissão extorquida ou qualquer testemunho subjectivo. Somos os precursores de uma nova forma de investigar crimes e, como todos os pioneiros, sujeitos ao erro, mas capazes de vencer.

Aspirou longamente o fumo do charuto e adivinhava-se o prazer que lhe ia na alma, quando proclamou:

- E você pôs a cereja em cima deste bolo, construindo a mais dramática das metáforas.

Asdrúbal d'Aguiar soergueu-se no sofá. Olhava, atónito, para o seu mestre sem compreender o alcance das palavras.

- Eu?

- Salte da posição de perito médico-legal e abra o seu coração de poeta.

Asdrúbal d'Aguiar desatou a rir.

- Poeta, não. Nunca escrevi um verso.

- Poeta, sim. Só um homem com uma sensibilidade superior sai deste inferno onde trabalha e corre ao horto do vizinho para semear couves e recolher cenouras. Essa fome de criação e transfiguração do mundo é poética. A sua cereja é esta, pois é um homem apaixonado.

O coração de Asdrúbal deu um salto. Deu consigo a procurar descobrir se o professor adivinhava o segredo que guardava imaculado sobre Ana Rosa. Mas não. O entusiasmo de Azevedo Neves centrava-se naquele trabalho forense.

Aproximou-se de Asdrúbal com passo solene.

- Confesso que tive responsabilidades na condução da vontade de Sidónio Pais para criar a Polícia de Investigação Criminal e os institutos de medicina legal. Mas foi ele quem assinou os decretos. Foi ele quem ficará para a história como o homem que pôs o Estado e o país a reconhecerem o fim do regime judicial de inspiração inquisitorial. Dever-se-á a Sidónio Pais o reconhecimento insofismável da prova científica como resposta privilegiada do processo-crime.

- Concordo. Pese não ser grande adepto das suas políticas, concordo. Mas não vejo onde está a metáfora que tanto parece encanta-lo.

- Abra os olhos, homem de Deus! Você não percebeu que foi exactamente sobre a morte de Sidónio, do porteiro que abriu as portas à prova material, que o psicodrama teve a sua apoteose?

- Não! - admitiu com sinceridade.

- Meu caro, a morte de Sidónio foi vista por testemunhas isentas, os jornalistas, que a descreveram com todos os pormenores. Foi confessada por um hipotético suspeito, imediatamente preso. Tudo estava justo e perfeito. A prova testemunhal directa contou com sinceridade aquilo que viu. Júlio da Costa confessou aquilo que o fizeram confessar. Outro dos hipotéticos criminosos estava morto. Repito: estava tudo certo! Há cem anos, cinquenta anos, era suficiente para apaziguar consciências e angústias, o julgamento já tinha sido realizado e Júlio da Costa estava definitivamente condenado por um qualquer juiz que dormiria tranquilo sobre a sua decisão.

Fez uma pausa. Apagou o charuto, apertando-o com força contra o fundo do cinzeiro, e continuou:

- Entra a sua equipa em campo e o que acontece? Desfaz em pó a prova testemunhal, demonstrando que os dois tiros vistos e corroborados pelos jornalistas não eram dois, mas apenas um. Ao desfazer esta evidência aparente, própria do testemunho, mas falsa perante gestos tanatológicos, pulveriza a teoria dos dois atiradores. Só existe um, pois só existe um disparo! Então quem foi? O Júlio da Costa ou o outro executado junto à coluna da arcada? Júlio da Costa tem de confessar. É torturado. Confessa várias versões. E qual é o resultado? São todas falsas. Porquê? Porque o tiro, ou os tiros, que imagina ou admite ter disparado narra-os sempre, em todas as confissões, como se tivessem sido à queima-roupa. E é verdade. Se fosse ele o autor, o disparo seria à queima-roupa. O que demonstrou a ciência forense? Apenas uma verdade indesmentível. O tiro mortal foi disparado a uma distância superior a trinta e dois centímetros. Logo, não foi à queima-roupa, logo, Júlio da Costa não pode ser o seu autor. É isto, não é verdade?

- É, é isso - admitiu Asdrúbal d'Aguiar. - Além de termos demonstrado que o tiro foi de cima para baixo e não de baixo para cima.

- Como vê, aí tem a cereja no bolo. É no próprio cadáver do Presidente que se reconhece a importância da prova material, da fundamentação científica, que se faz a demonstração da nossa razão. É em torno do seu cadáver que a fragilidade da confissão e a superficialidade da prova testemunhal se desmoronam perante o poder grandioso da prova forense. É esta a metáfora trágica. Foi no próprio cadáver do Presidente que abriu as portas das ciências forenses que estas vencem os ancestrais métodos de prova através do testemunho e da confissão.

Asdrúbal d'Aguiar estava com o queixo apoiado nas mãos cruzadas, esmagado contra o sofá, digerindo as palavras de Azevedo Neves. Como sempre, tinha razão. Da tragédia sobressaía, cintilante, reforçado e vigoroso, o poder da prova material. Sidónio Pais, tão polémico durante a vida, transformara a sua morte num vendaval judiciário. É extraordinário, não é?

E reconhecia: estava comovido. Construíra a carreira com devoção, trabalhando sem condições, sempre disponível para responder de forma disciplinada e competente às tarefas de que o incumbiam. Sabia que os outros colegas consideravam que a ausência de ambição era um defeito que fragilizava o reconhecimento da sua personalidade médica, mas era crítica que não o incomodava. Amava aquilo que fazia com o desprendimento que habita o amor autêntico e, talvez por timidez, sempre evitara os grandes palcos da disputa erudita, remetendo-se sempre para a posição do aluno que aproveitava todas as oportunidades para aprender um pouco mais. Esta simplicidade, quase franciscana, era o seu ambiente de maior felicidade, mais ouvinte do que falador, mais cientista de laboratório, fechado no silêncio das suas experiências e reflexões, do que revelando-se autocriticas nos seus domínios de conhecimento. Por vezes, martirizava-se por não publicar os seus trabalhos que outros com menos qualidade quase impunham às revistas científicas e aos jornais médicos. Contavam-se pelos dedos de uma mão, e sobravam, os estudos da sua autoria. Incluindo os Archivos de Medicina Legal, criados e dirigidos por Azevedo Neves hà cerca de quatro ou cinco anos. E agora, como uma potente bomba, tinha nas suas mãos o mais poderoso caso de medicina legal que no país alguma vez ocorrera. Sentia-se atordoado, precisando de ar livre, de caminhar sobre as suas próprias inquietações.

- Asdrúbal!

Quando Azevedo Neves tratava alguém sem formalismo, significava afecto e sinceridade radical.

- Não sei o que fará do seu excelente trabalho, mas não duvide das suas qualidades. É um médico legista como há poucos na Europa. Não seja tão tímido ao ponto de não reconhecer o seu próprio mérito. É uma honra trabalhar consigo.

A voz embargou-se-lhe e não foi capaz de responder ao elogio. Despediu-se com um gesto gentil. Desceu em direcção ao Intendente. Não sabia porquê, apetecia-lhe ir para próximo do rio, saborear a aragem fria, caminhar sem destino certo. Nos últimos meses, tinha experimentado um conjunto de factos e acontecimentos que alteraram a sua vida por inteiro. O primeiro, e identificava-o com precisão, fora o dia em que Azevedo Neves o chamara ao gabinete e lhe comunicara:

- O Senhor Presidente da República acaba de me convidar para secretário de Estado do Comércio do seu Governo e eu não posso recusar por razões que não vêm ao caso. Vai ser nomeado director interino do Instituto enquanto eu estiver fora.

Resistiu ao desafio. Que havia outros com mais capacidade, outros mais antigos, que o Brites era aquele que tinha maior responsabilidade sobre os ombros, que não seria capaz, e outras tantas desculpas que terminaram com a decisão final do chefe.

- Não aceito desculpas. É o mais capaz, embora não seja o mais destemido. Falta- -lhe arrojo. Invente-o.

Desde então, vivera de sobressalto em sobressalto. A invasão de Lisboa pela influenza, multiplicando os cadáveres que entravam na Morgue, as visitas nocturnas a vizinhos doentes, a morte de Glória, o caso de Sidónio Pais, com consequências que ameaçavam devastar o sistema judiciário e o próprio poder republicano.

Nesses três meses estivera no epicentro das decisões mais difíceis, dos sofrimentos mais tormentosos, gerindo os seus desgostos, às vezes com vontade de fugir, outras, com a determinação dos audazes. É verdade que desgostava do poder. A experiência como director do Instituto confirmava essa falta de prazer. Cansavam-no rotinas, reclamações dos funcionários, assinar requisições sem fim autorizando despesas, processos, acções. O regresso de Azevedo Neves era um alívio. Sobretudo, dava-lhe mais disponibilidade para partilhar o seu tempo com Ana Rosa, rosa que, cada dia, crescia mais viçosa, feita trepadeira que lhe invadia os sentidos e enroscava no coração. Um pedaço cada vez maior do seu pensamento e o jogo de emoções parecia não ter fim. Reprimia as palavras, iludia os olhares, por vezes era capaz de jurar que Ana lhe desnudava a alma como se lhe dissesse: «Vem, amo-te!», e outras vezes percebia-a longe, enclausurada em mutismos e silêncios que não compreendia, e atemorizava-se. Era tudo tão estranho, tão bizarro, que se tornava num paradoxo. Um temporal durante uma tarde cheia de sol. O desejo como uma fala quando os olhares se cruzavam, o temor, ao mesmo tempo amor e desamor, em cada silêncio, em cada afastamento. E por cada momento de ausência soltava-se a necessidade da presença, e em cada encontro uma voz que gritava: «Não pode ser!» E mil vozes que respondiam: «É aí, ao seu lado, o teu lugar.» Depois, fugia e desistia de fugir. Depois, aproximava-se e desistia quando a proximidade era junto ao coração. Ainda na noite anterior, terminado o jantar, ficaram imóveis nos olhos um do outro, presos, fascinados, como se o tempo tivesse parado para lhes prestar atenção.

- Que estás a pensar, Ana Rosa?

- Não sei.

E as palavras romperam o encantamento. Precipitada, começou a arrumar a mesa, perturbado, pegou no jornal, disfarçando a inquietude. Mais uma vez jurou que resistiria. Admitia mesmo afastar-se definitivamente. Procuraria uma casa na Lapa, perto de Moreira Júnior, e, por certo, a Paula agradeceria a todos os anjos do céu essa decisão, um forte motivo para que o marido ficasse ali na conversa. Com ela e com Asdrúbal, sem vontade de provocar confusões e rebates falsos por todos os cafés de Lisboa. Porém, afastava o projecto de despedida à primeira representação dos seus quotidianos sem Ana Rosa. Só de imaginar o afastamento era intensa a dor da saudade. Tinha de admitir. Estava apaixonado por ela.

Rememorando este tempo de encontro, sofrimento, descobertas e desafios, reparou que palmilhara a cidade até à Praça da Figueira. Era hora de movimento. Automóveis cruzavam-se com os «americanos», carroceiros espicaçavam parelhas de bois com almocreves que regressavam das quintas dos Olivais e, no meio da confusão, os gritos das varinas e os pregões dos cauteleiros prometendo a «grande».

Percorreu a Rua da Prata e sentiu um arrepio de frio. A temperatura baixara. Estugou o passo, olhando a artéria, à procura de um café onde encontrasse uma bebida que lhe trouxesse mais calor.

Entrou no Martinho da Arcada e pediu uma aguardente. A seu lado estava sentado um indivíduo esguio, com rosto fino e um bigode curto, bem tratado. Garatujava umas palavras num caderno e era evidente que estava ébrio. Tacteou a mesa à procura do copo donde bebia, e bruscamente derrubou-o, entornando o resto do líquido. Olhou para Asdrúbal, sentado na mesa ao lado.

- Acho que fiz disparate. Sujei-o?

Asdrúbal d'Aguiar passou a mão pelo sobretudo. Estava seco.

- Não. Estragou os seus papéis.

- E uma metáfora sobre a minha vida. Também a tenho deixado verter, estragando aquilo que está à minha volta.

Era a segunda pessoa que, naquele dia, lhe falava de metáforas. O empregado limpou a mesa e tornou a servi-lo. Asdrúbal d'Aguiar pediu que também lhe enchesse o cálice.

- Não é cliente do Martinho. Está de passagem?

- Estou – olhou-o surpreendido. - Como sabe que não sou cliente?

- Porque eu sou.

A resposta era ainda mais estranha do que a pergunta. Havia qualquer coisa de singular naquele indivíduo franzino, quase obscuro, que cambaleava em direcção ao seu copo. Curioso, perguntou-lhe:

- Trabalha na Baixa?

- Sobrevivo na Baixa. É aqui, no Martinho, o meu trabalho e o meu sossego. Acredita no espiritismo?

Asdrúbal foi apanhado de surpresa pela pergunta e respondeu, evasivo:

- Não. Acho que não.

O outro riu, satisfeito, emborcou o cálice e comentou:

- Acho que não é uma resposta mais inteligente do que um rotundo não. Significa que não acredita, mas admite a hipótese de acreditar. É o problema do país. O senhor é o país.

Asdrúbal d'Aguiar sorriu, condescendente para a arenga do bêbado, e ripostou bem-disposto:

- Não exagere, meu amigo. Não passo de um pobre médico legista sem eira nem beira.

- Médico legista. Muito bem! Pode não ser o país, mas é de um homem como você que o país precisa.

Fez um sinal com os dedos e o empregado dirigiu-se à mesa para tornar a servi-lo.

- Tem de autopsiar o país! - proclamou.

- Não estamos mortos.

- Diz você. Estamos mortos, embora possamos renascer. Antes que tal aconteça, é urgente a sua arte para conhecer as patologias que nos colocaram neste sepulcro sem esperança - e, erguendo o cálice num brinde, saudou-o solenemente: - Avé, descrente médico legista, salvador urgente de uma Pátria cadavérica. Bebamos ao seu bisturi e à sua argúcia, que deles ressuscitará um tempo límpido e esperançoso.

Tocou o copo de Asdrúbal. Não conseguia compreender se o outro se divertia à sua custa ou se era o delírio da bebedeira, porém, não estava habituado a beber àquela velocidade. Levantou-se, deixou algumas moedas e justificou-se:

- Estou atrasado. O país espera a minha autópsia.

- Cumpra o seu dever, cidadão. E leia Alan Kardec. Estarei aqui à sua espera para discutir espiritismo e o renascimento de Portugal.

Estendeu-lhe a mão.

- Chamo-me Asdrúbal. Asdrúbal d'Aguiar. Foi um prazer.

Cumprimentaram-se.

- Por aqui conhecem-me por Fernando Pessoa. Apareça. Mesmo que eu seja outro, aqui estarei sentado e firme no combate que travo contra o absinto, neste campo de batalha.

Saiu aliviado. O nome não lhe era estranho, mas não sabia donde. Encolheu os ombros com indiferença. Mais um bêbado tão solitário quanto ele. A aguardente ferrou- -lhe um torpor pesado nas pernas e decidiu que não era boa ideia passear junto ao rio. Agora que o Sol se pusera, o frio estalava. Enroscou-se no sobretudo e voltou para trás. Talvez o Juan Galego ainda tivesse bolos fintos. A verdade é que quanto mais andava, maior era a secura da boca provocada pelo frio ou pelo efeito da aguardente. Deu consigo obcecado por chegar à tasca do galego e emborcar meia dúzia de abafados.

Quando entrou, sobressaltou-se com o grito:

- Asdrúbal!

Numa das mesas, entre os comensais que enchiam o estabelecimento, Moreira Júnior estendia-lhe os enormes braços:

- Vieste salvar-me. Senta-te!

Parecia ainda mais gigante com o gorro de orelhas que tinha enfiado na cabeça.

- Qual é a tua aflição?

- Não consigo comer mais. Come esse bolo por mim.

Num prato à sua frente estava o bolo finto, encaracolado, branqueado de açúcar.

- Apostei com o galego que comia os bolos que ainda tinha para vender. O vigarista trouxe-me seis! - baixou a voz: - Come sem dar nas vistas, senão perco a aposta.

- Quem te manda apostar sem saber o que apostas?

- Quando saio do hospital, já os vendeu todos. Nunca há. E hoje, que me atrevo a apostar, apresenta-me seis bacamartes.

- Comeste cinco? Mas são enormes!

- Estás a ver a minha aflição? Come sem mexer os queixos.

- Não consigo.

- Tens de conseguir.

- É impossível. Além de que não fui eu quem apostou. Preciso de beber qualquer coisa.

- Também eu. Estou tão enfartado que ainda morro.

- Como fazemos?

- Espera. Não abras a boca. Rumina, Asdrúbal, rumina!

- Rumina tu. És alarve, não o sejas! - e gritou: - Juan, dois abafados e parabéns. Ganhaste a aposta!

Desatou a comer tranquilamente perante o ar desdenhoso de Moreira Júnior.

- Com amigos como tu, um homem não precisa de inimigos.

- Era o que me faltava. Comer como se fosse uma vaca para ganhares uma aposta estúpida. Paga e não enganes o galego.

O taberneiro serviu os abafados com um sorriso zombeteiro.

- Não lhe disse? O senhor doutor tem mais olhos do que barriga.

Deitou-lhe um ar furioso.

- Galego, filho da puta. Enganaste-me!

- Ainda não. Só quando pagar e eu fizer o troco.

Afastou-se assobiando e Moreira Júnior voltou-se, indignado, para Asdrúbal.

- Ouviste o que ele me disse? Tu ouviste?

- Deixa-te de fitas. Já tens quarenta anos e pareces um miúdo da primária. Adoras gozá-lo. Hoje foste gozado. Qual é o mal?

Ficou em silêncio, amuado, observando o amigo a comer. Asdrúbal reparou nos olhos esbugalhados do outro fixados em si e parou de mastigar.

- O que foi? Vais pedir-me o resto do bolo para ganhares a aposta?

- Não. Estava a pensar. Quando estou demasiado cheio preciso de ficar quieto para pensar.

- Como as jibóias.

- É isso. Como as jibóias. O governador civil quer lixar-me.

- Quem? O quê? - perguntou Asdrúbal sem perceber a relação entre os bolos do galego e o governador civil.

- Pediu informações a meu respeito no hospital. O Coimbra chamou-me e mostrou-me o ofício.

- Provocaste-o quando autopsiámos o Sidónio, nos Jerónimos.

- Pois foi.

- E o Coimbra, o que fez?

- Safou-se bem. Escreveu-lhe uma carta onde me põe nos píncaros da lua. Um médico de excepção, um farol da ciência, um cidadão exemplar e mais umas merdas correlativas. Safou-se bem.

- Estás a ver? Andas sempre a gozá-lo e ele dá-te uma bofetada de luva branca.

- É verdade - admitiu com alguma humildade. - Decidi responder à nobreza dele com uma nobreza maior. Vou deixá-lo em paz durante seis meses.

- Só seis meses? O Coimbra salvou-te a pele.

- Pois salvou, mas isso não o torna inteligente. É um estúpido sensato. Só isso. Merece seis meses de paz. Estão garantidos, que eu sou homem de palavra. Pede mais dois abafados, que decidi cortar relações com o raio do galego.

Asdrúbal desatou a rir:

- És únicol - e fez sinal ao homem para servir os abafados. O taberneiro aproximou-se com a garrafa e comentou:

- O seu amigo perdeu a língua. Deve ser dos bolos que comeu em excesso.

Ficou à espera da resposta de Moreira Júnior, mas foi em vão. Continuou carrancudo, com os olhos pregados ao tampo da mesa. Encolheu os ombros, bem- -disposto, e foi atender outros clientes.

- O tipo quer provocar-me. Vou pagar um dinheirão e ainda me provoca.

- Tu mereces. És o provocador da República!

A tirada descompôs a máscara de Moreira Júnior. Desatou a rir às gargalhadas.

- Às vezes sou meio tonto, não sou?

- Ó Manel, finalmente um acto de contrição! - respondeu, jocoso.

O outro mudara de tom. Agora mais descomprimido, perguntou:

- E tu, homem caseiro, amigo da natureza e das hortas em geral, o que te deu na cabeça para descer até este antro de malfeitores? A Ana Rosa foi à terra?

- Não me gozes. Estou em crise, Manel. Há horas que ando por aí à procura de um caminho por onde possa ir em frente.

- Que se passa? - perguntou, preocupado.

- O professor Azevedo Neves regressou ao Instituto e tivemos uma conversa muito séria sobre as minhas investigações ao assassínio de Sidónio Pais.

- E então?

Asdrúbal d'Aguiar narrou-lhe a conversa. Não tinha qualquer reserva para com Moreira Júnior e descreveu pormenorizadamente todos os passos que realizara, como fizera e os resultados a que chegara. O amigo escutava-o com uma atenção grave. Deixara de ser farsante para assumir a sua qualidade de médico. Até se esqueceu de que cortara relações com o galego e pediu mais dois abafados, enquanto ouvia a narrativa.

Quando terminou a confidência, Moreira Júnior perguntou:

- E o que diz o professor?

- Está eufórico.

- É o que eu imaginava.

- Porquê?

- Ele e o Instituto são uma só alma. Ainda por cima, tem carácter. Foi mexendo os cordelinhos para te facilitar a vida e deixa-te liberto para tomares a decisão que entenderes. É de homem!

- Exactamente.

Estava preocupado. Coçou várias vezes a testa, descompondo o gorro e a figura era ridícula. Enorme, as suíças fartas, os olhos pequeninos espetados na enorme cabeça com o gorro à banda. Pediu mais abafado e coçou a cabeça, descompondo outra vez o adereço, que lhe caiu para a testa.

- Gostava de te dar a minha opinião, mas acho que não estou capaz. Ou já não sei fazer diagnósticos ou então direi que estou bêbado.

- Também eu.

- Não te posso dar um conselho de amigo, neste estado. Se fosse o paspalho do Coimbra que estivesse aí, dizia-lhe já: atire-se aos tipos. Publique imediatamente essa história toda para se saber o estado a que chegámos. E o Coimbra que se lixasse. Poupava-me os seis meses de abstinência que impus a mim próprio sem o provocar.

- Tens razão. Amanhã nem me lembraria do que me dissesses. Foste generoso em ter escutado as minhas angústias. Vou pagar os bolos da aposta.

- Não. Os bolos, não!

- Faço questão.

- Davas cabo de mim. Eu pago os bolos.

- Então, pago o vinho.

- Não pagas nada. Eu pago os bolos e o vinho.

- Ao menos o vinho. Ó Manel, eu...

- Manel, nada! Eu pago.

- Pago o bolo que comi.

- Pago tudo e não protestas.

- Não estou a protestar.

- Estás bêbado.

- E tu também.

- Abre os olhos, Asdrúbal. Estás numa pátria de gente mesquinha. As tuas aflições são porque a tua investigação descobre a careca à mesquinhez da polícia e dessa corja de incapazes. A minha aflição é que, se tu pagares a aposta, vou sofrer a mesquinhez do raio do galego para o resto da minha vida. Entre ter de deixar de ser freguês, e nunca mais comer os bolos que o raio do vigarista faz como ninguém, e pagar a aposta, prefiro pagar.

- Podíamos dividir.

- Não é uma questão de honra. É de guloseima. Eu pago e acabou a conversa! - olhou para o copo e rematou: - E acabou o vinho. Bebemos outro para a despedida?

- Só se for eu a pagar!

- Então, vou pagar e a seguir bebemos mais dois abafadinhos, fresquinhos e bem cheirosos.

Levantou-se e a sala, por instantes, ficou em silêncio, atenta ao homem descomunal que se aproximava, cambaleante, do balcão. Foi a mulher do galego quem o atendeu. A cabeça dela não chegava ao peito do médico. Perguntou-lhe, sorridente:

- Precisa de algo, senhor doutor? - a pronúncia galega era indisfarçável.

- Minha querida e excelente amiga Dolores - recitou lá do alto -, venho fazer contas consigo que o seu marido engana-me sempre. Siempre!

Ela riu, divertida, enquanto fazia o troco.

- O senhor doutor é o nosso cliente preferido. Quando está muito tempo ausente, fico com saudades suas. Volte sempre!

- Ora aqui está uma prova de que Deus não existe! - exclamou.

A mulher sobressaltou-se:

- Que dice, óstea!

- Como é possível ter casado uma mulher tão virtuosa com um galego fuinha? Se existe, não é justo. A senhora merecia um príncipe. Ou melhor, um rei! E não digo um Presidente da República porque têm pouco tempo de vida. Entram a dez e saem a trinta! Buenas noches, Dolores.

- Buenas noches, doutor!

Voltou para a mesa, sentou-se e disse:

- Já podes mandar vir os abafados.

Só então reparou que Asdrúbal dormia a sono solto, encostado à cadeira. Sacudiu- -o com energia.

- Asdrúbal! Asdrúbal!

Acordou, sobressaltado.

- Hã? Onde está? Onde é que ele está?

- Ele, quem? - perguntou, atónito, Moreira Júnior. - O galego?

- Qual galego?

- Não sei. Tu é que perguntaste onde é que ele está?!

- Perguntei? Não sei. Vamos beber o abafadinho - disse, sonolento.

- Acabou-se. O Juan Galego escondeu-o. E agora como é que vais para casa? Consegues estar mais bêbado do que eu!

- Não estou nada bêbado. Queres ver?

Levantou-se, mas as pernas vergaram. Abraçaram-se um ao outro, cambaleantes, trôpegos, e saíram do estabelecimento. Não terão andado mais de uma dúzia de metros quando se estatelaram no chão, abraçados e embrulhados nos capotes. Uma mulher vinha a subir as Portas de Santo Antão e Moreira Júnior, que via Lisboa a rodopiar, gritou por ajuda, julgando ver a mulher do galego:

- Dolores!... Salva-nos, Dolores!

E deixou cair a cabeça sobre a barriga de Asdrúbal, que dormia outra vez, enroscado, contra as pedras da calçada. Desta vez, foi Moreira Júnior quem acordou em sobressalto. A mulher batia-lhe com a sombrinha.

- Malvado!....

- Dolores!?... Estás a bater-me...

- Quem é essa Dolores? - reconheceu a voz estridente e agressiva que gritava. Soergueu-se sobre o braço para ver melhor, mas a rua girava na cabeça dele.

- Responde-me, malvado. Quem é essa Dolores?

- É a minha mulher! - e deixou-se cair outra vez em cima do outro, rindo descontroladamente.

- Eu é que sou a tua mulher e chamo-me Paula.

Asdrúbal acordou.

- Paula? É a minha querida Paulinha?

- Não sou querida de ninguém. Há mais de uma hora que espero por ti à porta do Nacional e tu nos copos com os amigos e com essa Dolores que dizes ser a tua mulher!

- Não é verdade, Paula. Eu sou testemunha! - balbuciava Asdrúbal. - Tu é que és a mulher dele. A Paula e o Manel. Almas gémeas.

- Levantem-se do chão, que é uma vergonha. Dois médicos nesse estado miserável. Levantem-se!

- Ajudem-me. Eu morro se não me ajudam! - suplicava, atarantado, o gigante.

- Para fazeres as fitas que fazes, bem podias desaparecer. Arranjo-me para sair de casa, compro os bilhetes, fico de plantão à porta do teatro e venho a descobrir-te nesta situação, caído no chão, perdido de bêbado a gritar pela Dolores? E tu, Asdrúbal? O sensato, o bonzinho, o educadinho, a fazeres as mesmas figuras deste ordinário?

- Eu não sou ordinário - resmungou Moreira Júnior. - Estou bêbado, mas passa.

- A minha não passou - choramingou Asdrúbal. - Vejo Lisboa ao contrário.

- Paula, por favor - balbuciou Moreira Júnior. - Ajuda estes dois infelizes. Olha para o nosso estado. Tem dó.

- Piedade. Tem piedade! - emendou Asdrúbal.

Já se começara a juntar um grupo de curiosos assistentes do espectáculo, quando surgiu um polícia.

- A senhora precisa de ajuda? Estes dois rufias estão a incomodá-la?

- Rufias? - reagiu Moreira Júnior.

- Somos nós! - disse Asdrúbal, procurando compor a pose. - Rufia é de mais.

O polícia voltou a perguntar:

- Conhece-os? Posso prendê-los por vadiagem!

- Não. Não é preciso - contemporizou Paula, percebendo que a situação se degradava a olhos vistos. Mas era tarde de mais. Moreira Júnior encheu o peito de ar e gritou:

- Rufias?!. Vadios?!

- Foi o que o senhor nos chamou. Rufias, vadios! - e Asdrúbal d'Aguiar espetava o dedo no peito do polícia. - Você é que faz parte de uma organização de rufias e assassinos. Eu sei do que falo. Rufias e assassinos!

- Eu como esse animal mais depressa do que um bolo finto do galego.

Moreira Júnior ia lançar-se sobre o polícia, mas um tropeção salvou a agressão e tornou a cair.

O polícia não se fez rogado. Puxou do apito e desatou a soprar com grande estridência. Agora era Paula quem implorava clemência ao polícia, enquanto Asdrúbal, tentando levantar o amigo, se estatelava ao seu lado.

Moreira Júnior gemeu.

- Já viste o que eu aturo? A minha própria mulher chama a polícia contra mim?! A minha Paula? - e desatou a chorar.

Asdrúbal, encostado ao outro, retorquiu:

- Não sei se chamou a polícia, mas rufia não! E não sou capaz de me levantar.

Paula, aflita, puxava por eles, implorava que saíssem dali, enquanto o polícia não parava de apitar e a multidão era cada vez maior.

- Vamos embora. Por favor, vamos embora. Peço-vos por tudo.

- Silêncio! - cortou Moreira Júnior com um gesto brando. - Estou a urinar pelas calças abaixo.

- Rufia?! Vadio?! - protestou Asdrúbal.

Um grupo de polícias chegou em grande correria. Aquele que parecia o chefe ordenou:

- Prendam-nos e levem-nos para a esquadra, e acompanhem a senhora para apresentar queixa.

Poucos minutos depois, Asdrúbal d'Aguiar e Moreira Júnior dormiam a sono solto nos calabouços da esquadra do Rossio. Quando acordaram, a enxovia estava cheia de prostitutas, vadios, gatunos. A cabeça de Asdrúbal parecia-lhe que ia estoirar no instante seguinte, enquanto o gigante gemia:

- Se apanho água, bebo um caldeirão!

- Fala baixo, fala baixo - sussurrou-lhe.

Não queria acreditar que estava preso, nem se lembrava do que acontecera na noite anterior. Sobressaltavam na memória imagens difusas onde se misturava a polícia e a mulher de Moreira Júnior, uma conversa estranhíssima com um tal Fernando Pessoa e bolos fintos. Nada fazia sentido, como se fosse um pesadelo febril, e não conseguia rever os actos que praticara para estar ali, encostado à parede da cela, à espera, lado a lado com outros companheiros de noitada.

- Manel, o que fizemos para estar aqui? Não matámos ninguém, pois não? - as palavras ribombavam na cabeça estralejante de dores.

- Não sei. Tenho a boca tão seca que me custa falar.

- Estamos presos! - Tinha vontade de se beliscar para confirmar que não dormia

- Foi a minha Paula que nos mandou prender.

- A tua mulher? - perguntou, espantado. - Não acredito. Que te mandasse prender ainda vá que não vá, mas eu não lhe fiz mal nenhum.

- Pois. Não sei. Tenho sede.

Asdrúbal perguntou ao velho andrajoso que dormitava e acordava encostado ao seu ombro:

- Prenderam-me?

O outro olhou para ele, desconfiado.

- O que achas? Estás aqui porque pediste?

- Não! - respondeu, desarmado com as perguntas.

- Então, mete o nariz na tua vida. Quando chegares ao Governo Civil logo te explicam a razão para teres sido arrecadado.

Não havia conversas. Cada um dos reclusos estava mergulhado nos seus silêncios, nos segredos que não queria partilhar. Deu consigo a pensar que conhecia aquela dúzia de pessoas que conviviam no mesmo infortúnio. Eram assim, quase iguais àquelas prostitutas, aos três funcionários públicos - não tinha dúvida de que eram funcionários públicos por causa dos fatinhos cinzentos e escuros que habitavam todas as repartições do país -, os estivadores e carroceiros, que, em pesado sono, curavam bebedeiras, os homens e as mulheres que, dia após dia, iam ao Serviço de Clínica Legal do Instituto para que ele avaliasse escoriações e ferimentos, sífilis e gonorreias. Cheiravam ao mesmo suor azedo, velho, que, pela frequência, permanecia no seu gabinete de exames periciais. Pressentiu a tuberculose em dois deles e um dos funcionários, gemia, transpirava, e o esforço para respirar dizia a Asdrúbal que estava contaminado pela influenza, tal como não tinha dúvidas de que o vadio que dormitava sobre o seu ombro ficara seco da sífilis, que o devorava a galope.

Moreira Júnior não deixava de olhar para o funcionário com dificuldade em respirar e sussurrou:

- Ou nos levam daqui depressa ou vamos morrer todos de pneumónica!

Parecia que, finalmente, uma entidade divina o ouvira. As chaves giraram barulhentas na porta da cela e um polícia gritou:

- Manuel Moreira Júnior.

- Sou eu!

- Venha comigo.

Hesitou, entreolhando o guarda e Asdrúbal.

- Sozinho?

- Porquê? Tem medo? Aqui ninguém o come. Toca a despachar.

- Vai, vai - empurrou-o Asdrúbal d'Aguiar. - Vê se ao menos descobres porque viemos aqui parar.

O gigante saiu perante olhares de despeito, e até raiva, da maioria dos que ficavam. De repente, sentiu dores mais agudas na cabeça, preocupado com o destino do amigo. A ordem de saída não significava, necessariamente, que estava em liberdade. Veio-lhe à memória a conversa sobre o pedido de informações que o governador civil fizera ao director do Hospital dos Capuchos. Aquela saída à ordem áspera do polícia poderia significar o agravamento da situação em que se encontravam. Procurou afastar a ideia, fazendo um esforço para rememorar os factos que, na noite anterior, teriam motivado aquele despertar inusitado numa cela pejada de vagabundos, desordeiros e prostitutas. Inquietou-se por Ana Rosa. Deveria estar preocupada com a sua ausência sem qualquer justificação, e sentia uma necessidade imensa de suplicar que o deixassem telefonar-lhe.

Não teve tempo. A porta da cela tornou a abrir-se e surgiu o mesmo carcereiro.

- Vá lá, vadiagem. Tudo a andar para o Governo Civil. Depressa e em fila!

Sentiu-se mesmo vadio quando enfileirou entre os companheiros de calabouço. Não sabia porquê, mas no meio de tanto transtorno surgiu-lhe uma secreta esperança: talvez o colocassem na mesma cela onde estava José Júlio da Costa e, então, conseguiria estudar o homem que há tanto tempo discutia.

Foram enfiados numa carroça fechada com aros de ferro que mais parecia uma fortaleza sobre rodas atrelada a uma parelha de cavalos. Espreitou por uma das estreitas vigias e ficou aliviado. Até conseguiu sorrir. Moreira Júnior, carrancudo, caminhava pelos Restauradores ao lado de Paula, visivelmente irritada. Ao menos aquele anarquista louco, de gorro à banda e suíças eriçadas, afastava-se de maiores aflições.

Os cavalos eram rijos. Depois do trote nos Restauradores, subiram a Rua Garrett em passo rijo, para tornarem ao galope conforme enfiavam na direcção do Governo Civil, e foi aos gritos do cocheiro que pararam, aos solavancos, no pátio principal.

Tornou a escutar o som ruidoso das chaves na porta traseira do furgão. Um polícia com um caderno na mão esperava por eles. Ao seu lado, estava outro a brincar com um bastão.

- Saiam e alinhem lado a lado! - ordenou.

Asdrúbal sentia tonturas. Ainda segurou o casaco do homem que saíra à sua frente para não se desequilibrar e, desengonçado, perfilou-se entre uma prostituta com o peito escanzelado e um dos estivadores tuberculosos. Os guardas remiraram-nos um a um.

- Qual de vocês se chama Asdrúbal d'Aguiar?

O coração sobressaltou-se quando ouviu o seu nome. Levantou o braço.

- Sou eu!

- Tu vens comigo, que o nosso adjunto tem umas contas para te apresentar! - ordenou com um sorriso sarcástico e, ríspido, ordenou aos restantes: - E vocês acompanham o meu camarada até às celas, até ordem em contrário.

Seguiu-o com dificuldade e intrigado. Não sabia quem era esse tal adjunto nem a razão para o tratamento especial. Inquietava-o não se recordar dos motivos que o tinham posto naquela condição e este era agora o seu tormento. E Ana Rosa devia sentir-se perdida sem saber nada dele. Alguma coisa de muito grave acontecera. Olhou para as mãos enquanto subia as escadas e ficou mais tranquilo. Não havia sinais de sangue, nem tinha qualquer ferimento que lhe indicasse que se envolvera numa briga. Não poderia ter sido uma das loucuras do Moreira Júnior, pois não fazia sentido o provocador da República, como lhe chamava, sair em liberdade e ele estar ali na iminência de conhecer o tal adjunto misterioso que tinha as tais contas para lhe apresentar. Enquanto assim pensava, cada vez mais curioso, o guarda conduzia-o por um corredor largo e penumbroso, onde os passos ecoavam nas lajes do caminho. Pararam junto a uma porta que o polícia abriu e logo um outro surgiu vindo do interior.

- Está aqui o Asdrúbal para o nosso adjunto, meu primeiro!

- Fica à minha guarda. Podes ir.

O primeiro observou-o com atenção, remirando-o dos pés à cabeça. Parecia que passava revista militar e Asdrúbal amaldiçoava-se por não perceber nada de patentes e hierarquias; o polícia sorriu, cordial:

- Faça o favor de me acompanhar, senhor doutor.

O cumprimento delicado sossegou-o. Assim como o pequeno corredor por onde seguiram, com o soalho atapetado por uma passadeira azul-escura e quadros nas paredes alusivos à história da polícia de Lisboa. Era, sem dúvidas, uma zona de comando, pelo que deduziu que adjunto deveria significar coadjutor do comandante. Aceitou a sua própria explicação e sossegou. Não era num espaço luxuoso como aquele que o iriam torturar.

O primeiro tocou discretamente com os nós dos dedos numa porta e ouviu-se uma ordem militar:

- Entre!

Abriu-a, perfilou-se e informou:

- Trago-vos o doutor Asdrúbal d'Aguiar, meu comandante.

- Deixa entrar o senhor doutor e fecha a porta. Não quero ser incomodado.

Deu passagem ao médico e fechou a porta com discrição. Asdrúbal estava perante um homem de porte atlético, cinquentão e completamente calvo. O queixo era levantado, dando-lhe uma pose marcial. Saudou-o sem lhe estender a mão.

- Muito prazer em conhecê-lo, doutor Asdrúbal. Aceita um café?

Surpreendido, respondeu com visível embaraço, dominando a ansiedade.

- Agradeço, se não for grande o incómodo.

- Não é nada. Gostamos de tratar bem os nossos convidados.

Com um gesto de cabeça fez sinal a uma segunda figura que estava na sala. Foi então que Asdrúbal reparou nele. Um tipo com cara de fuinha, embrulhado numa gabardina escura. Era um agente da Polícia Civil. Conheciam-se à légua e o médico, após os breves instantes de tranquilidade, pressentiu a ansiedade outra vez a crescer. Aquele homem de aspecto sinistro fazia parte do séquito de esbirros do governador civil, responsáveis pela prisão de dezenas de homens sob suspeita de conspiração contra Sidónio Pais.

- Doutor Asdrúbal, sabe porque está aqui, não sabe?

Respondeu com sinceridade ingénua mas cautelosa.

- Confesso a vossa excelência que não sei.

- Não sabe? - retorquiu, compondo um ar glacial.

- Recordo-me de estar com um colega a discutir assuntos médicos numa tasca ali às Portas de Santo Antão e bebemos de mais. Confesso que, desde que acordei nos calabouços da esquadra do Rossio, estou a fazer um esforço terrível para recordar o que se passou a seguir. Não estou habituado a beber e a memória bloqueou.

- Apanhou uma valente bebedeira na companhia do seu amigo Manuel Moreira Júnior! - informou o adjunto, e concluiu: - Uns copos rijos, de vez em quando, para um homem descomprimir, é um grande remédio. Até os médicos se tratam assim, quando estão em baixo.

Não entendeu se havia algum remoque na tirada pretensamente sábia, pois distraíra-se com a chávena de café que o primeiro lhe colocara nas mãos. Bebericou e a ressaca começou a apaziguar.

- Sente-se! - ordenou o oficial. - Beba o seu café.

Obedeceu e pelo canto do olho percebeu que o esbirro da Polícia Civil estava atrás de si. Não se importou sobremaneira. A bebida quente estava a fazê-lo renascer para a vida, ao mesmo tempo que lhe excitava os sentidos. Um erro que o adjunto iria lamentar, se descobrisse que lhe servira uma chávena de alento. Estava, agora, preparado para a guerra, fosse ela qual fosse, e foi gentil.

- Muito obrigado pelo café. Estou à sua disposição - declarou enquanto colocava a xícara sobre uma mesa.

- Ora bem! - começou o outro enquanto se sentava no bordo da secretaria, braços cruzados e olhar fixo no preso. - Os nossos serviços sabem que ontem, por volta do meio-dia, chegou à Boa Hora um minucioso relatório da autópsia do falecido doutor Sidónio Pais, assim como a peritagem que realizou à farda que envergava na noite em que foi assassinado.

- É verdade. Deve ter chegado ao tribunal por volta dessa hora! - confirmou, impassível, dissimulando a tensão que lhe provocara a descoberta do motivo que determinara aquele interrogatório.

- Muito bem. Quero que saiba que não está detido. É um homem livre e só a confusão que se gerou ontem à noite, entre si e o seu colega, justificou a acção da polícia para evitar qualquer conflito. Não fosse esse desastrado incidente e tê-lo-ia convidado para esta conversa noutras condições.

- Peço desculpa e agradeço-lhe a gentileza. Reconheço que devemos ter sido mesmo desastrados.

- Está esquecido! - contornou a secretária e sentou-se com displicência. Tornou a encarar o médico. Agora com maior frieza.

- Seja como for, acho que temos um grande problema entre mãos, doutor Asdrúbal d'Aguiar. Um problema que pode resolver com a mesma facilidade com que decidi a sua liberdade.

- Não compreendo o que me quer dizer.

- Digamos que o senhor doutor, ao rever as suas notas sobre os exames que referi, percebeu que se enganou nalgumas das conclusões que enviou ao tribunal.

A insinuação era demasiado óbvia, mas o café fizera o milagre da vida e o médico legista reagiu em sintonia com o clima que o outro criara.

- Enganei-me? - perguntou com falsa ingenuidade.

- Ficamos todos em paz. A polícia fez o seu trabalho, prendendo o assassino do Senhor Presidente, o senhor juiz de instrução fica em paz, porque pode confiar no trabalho dos polícias, e, finalmente, o senhor não só fica em paz como tem pela frente uma carreira brilhante. O professor Azevedo Neves saiu agora do Governo, mas, de certeza, que lhe vão encontrar um alto cargo político. Não tardará a que torne a director do Instituto de Medicina Legal e, desta vez, sem ser um mero substituto.

Baixou a cabeça para não denunciar a cólera. Passou as mãos pela testa e levantou-se. Por fim, conseguiu falar:

- Resumindo. Vossa excelência forçou a minha presença aqui para me convidar a falsificar perícias médicas e, em troca, garante-me a colocação como director do Instituto.

O outro sorriu, divertido.

- É um resumo um pouco atabalhoado, mas é uma boa síntese.

Ao sorriso do interlocutor, Asdrúbal d'Aguiar respondeu com outro sorriso.

- Só há um pequeno detalhe para que a proposta de vossa excelência surta o efeito que deseja.

- E qual é?

- As minhas notas estão correctas, os exames periciais estão certos e são indiscutíveis. Nem mil testemunhas, nem dezenas de confissões conseguirão contraditá- -lo.

- Cale-se! - gritou, colérico.

- Pode calar-me, mas não cala a verdade enviada a tribunal. Foi testada, discutida com os melhores especialistas, ninguém a cala - a cólera descontrolara-o, perdendo o sentido da fragilidade da situação em que se encontrava.

- Doutor Asdrúbal - ameaçou o adjunto -, o senhor está a brincar com o fogo!

- Engana-se. Não brinco com o meu trabalho. É fétido, por vezes, é imundo, mas é sério e honrado! Se me conhecesse melhor, sabia que jamais me poderia fazer semelhante proposta. Prefiro ser preso por vadiagem, por um dos seus polícias de giro, do que manchar a honradez do meu ofício de médico com a tal paz que me oferece.

A firmeza de Asdrúbal d'Aguiar fê-lo recuar. Foi a vez de o polícia fuinha entrar em cena. Segurou o braço do médico, insinuante.

- Vá lá, doutor, acalme-se. Não foi aqui dito nada que o possa ofender dessa forma!

Sacudiu-o tão bruscamente que o polícia recuou em desequilíbrio.

- Largue-me. Tem as mãos mais infectas de injustiças do que a podridão dos cadáveres com que trabalho.

- Quer brincadeira não é? - zombou o adjunto. - Pois vai tê-la e com fartura.

- Faça aquilo que entender. Não sou fanfarrão, nem gosto de brigas. Mas fique a saber, prenda-me, mande-me matar, aquilo que entender. Jamais violarei os princípios que norteiam a minha vida. Digo-lhe mais. Depois de tudo aquilo que tenho passado nos últimos meses, são esses princípios que me prendem à vida. Não tenho vivido com prazer, mas não vou suicidar-me destruindo a honra dos meus juramentos - olhou os dois com dureza e concluiu: - Disse-me que era um homem livre. Pois bem, vou sair por aquela porta e fazer de conta que esta conversa não aconteceu. Já é tarde. Devem andar à minha procura no Instituto. Com a vossa licença!

Abriu a porta e saiu. As pernas tremiam-lhe quando desembocou no corredor mais largo e resistiu, com esforço, à tentação de olhar para trás. Esperava ouvir a cada passo a explosão do tiro que o haveria de varar pelas costas. Quando começou a descer a escadaria, calculou mentalmente onde era a saída. Teria de virar à esquerda e a última barreira seriam as sentinelas. Compôs um ar natural e bem-disposto, passou o túnel de acesso e cumprimentou os plantões com um sorriso cordial. Ao perceber a rua, nem deu conta de um automóvel que lhe passou rente ao corpo, ansioso por chegar ao Chiado. A agitação do movimento matinal nas ruas era febril e, finalmente, sentiu-se em segurança. O terror ficara espalhado pela rua. Precisava de mais café e de água, e não sabia porquê desatou a rir ao recordar a sede matutina de Moreira Júnior. Decidido, enfiou-se pela Brasileira, como se fosse um furacão. Pediu água, torradas e café, e caiu numa mesa vazia ao fundo da sala. Fez uma promessa. Jamais tornaria a embebedar-se!

Ainda passou os olhos pelos jornais. O Século anunciava a posse de Domingos Sequeira como primeiro-ministro e respectivo ministério. Não levou a sério a solenidade da notícia. De certa forma, a bala que matara Sidónio Pais estilhaçara a utopia republicana. O Governo de Tamagnini Barbosa durara pouco mais de um mês e já se percebia, no encarniçamento da luta política que contextualizava a notícia, que este ministério era o primeiro estertor de uma morte breve. Desinteressou-se. Quando apenas haviam decorrido oito anos sobre a saga do cinco de Outubro, a discussão entre partidários da República Nova e da República Velha era sinal de que as paixões partidárias do jovem regime herdaram por inteiro as mazelas decrépitas do rotativismo liberal que, os então republicanos, castigavam impiedosamente. Era como uma maldição que vitimava a política portuguesa, transformando sonhadores em párias, doutrinadores de ontem em oportunistas de hoje, num estranho e sórdido desejo de ser grande e voluntariamente submeter-se à pequenez do egoísmo desenfreado. Asdrúbal d'Aguiar, que lera deliciado, quando jovem estudante, páginas de fulgor de Teófilo de Braga e Manuel d'Arriaga, que quase soletrara O Intransigente, seduzido pelo herói romântico, poeta e criança, Machado Santos, que lera com alguma desilusão as críticas de Antero de Quental e de Eça de Queirós ao positivismo republicano, agora, tão poucos anos depois, exausto do faccionismo medíocre, olhava-os como homens cansados, vergados a um destino retorcido que a todos arrastava para os limites do descrédito e, por vezes, do desprezo. Ali mesmo, à sua frente, noutra mesa, Bernardino Machado discutia amargamente com José Relvas. Embora não escutasse as palavras, era clara, nas expressões dos rostos, a amargura turbulenta mas já vazia, já sem sentido, já tão nula como as duas metades do mesmo zero.

A analogia levou a pensar em Guerra Junqueiro, o arauto da utopia, o republicano artilheiro que bombardeava com versos a mediocridade dos partidos monárquicos. Com que aflição não escreveria agora o estrebuchar agonizante de todos os seus sonhos redentores? Asdrúbal desistiu. Não lhe interessava. A sua trincheira não era ali na amargura do efémero. Era uma batalha de mais longa duração, que cruzava regimes e governos, e se estendia aos territórios dominados pela ignorância ressabiada, herança prodigiosa consagrada por autos-de-fé e sentenças tão divinas quanto injustas. À memória veio-lhe Edmond Locard, a suave mas determinada convicção de Azevedo Neves, a crença cada vez mais desabrochada de que seria possível transformar verborreia e retórica, sofismas e juras de fé, torturas e espancamentos, num processo de conhecimento sustentado por certezas inabaláveis arrancadas da bancada de autópsias e dos laboratórios forenses. Agora sabia, depois da conversa com o enérgico adjunto, que as forças inimigas tinham rosto. Não eram apenas demónios académicos ou literários. A justiça de todos os países desenvolvidos era dominada por inspectores Javert, símbolo maior criado por Victor Hugo para zurzir impiedosamente a injustiça feita de fé sem provas ou feita de provas que se fundavam na fé.

Confortado com o pequeno-almoço tardio, fez-se ao caminho. Precisava da sua Ana Rosa, de tomar um banho, de perder aquele ar amarfanhado de mendigo e regressar ao Instituto. Sorriu ao imaginar a má disposição de Moreira Júnior. Na anatomia patológica dos Capuchos andariam, àquela hora, todos os funcionários de pé ante pé para não magoar a ressaca do provocador da República.

Um servente do Instituto abordou-o logo à entrada. Estava assustado:

- Ainda bem que chegou, senhor doutor. O pessoal tem andado em alvoroço à sua procura e a coisa complicou-se quando correu o boato de que estava preso no Governo Civil.

- É verdade, Juvenal, prenderam-me!

- Não pode ser! - exclamou, incrédulo.

- Mas está tudo resolvido. Devo ter doentes à espera.

- Não tem, que o senhor professor deu ordens para serem vistos pelo doutor Ravara. Ah, já me esquecia! Está no seu gabinete uma mulher aflita, que diz que não sai do Instituto enquanto não tiver notícias do senhor doutor.

- Uma mulher? - estranhou: - Quem será?

- Não sei, mas é bem linda!

Asdrúbal d'Aguiar caminhou, decidido, para o gabinete sem conseguir imaginar quem o esperava em tamanha aflição. Nem Glória ia ao Instituto quando, por razões de serviço, não ia dormir a casa.

Abriu a porta e Ana Rosa, lavada em lágrimas medrosas, abraçou-o com a força do náufrago segurando a sua tábua de salvação.

- Ó senhor doutor...- e desabou, convulsivo, o choro que guardara dentro de si.

- Ana Rosa! - o abraço quente e carente levou-o a corresponder. - Que te aconteceu, rapariga?

- Tive tanto medo de ficar sem si.

E as lágrimas não paravam, oriundas da fonte da generosidade infinita. Nem o abraço. Asdrúbal d'Aguiar sentiu-se bem naquele amplexo quente e o corpo dela encostado a si despertou todos os gestos de ternura. Afagou-lhe os cabelos, beijou-lhe o rosto, deixou-se ficar assim, abrigado no corpo de Ana, reconhecendo mistérios que julgara perdidos para sempre.

Por fim, desprendeu-se. Ficaram de mãos dadas enquanto ela se explicava. Que chegara à sua casa para lhe preparar o pequeno-almoço e tratar do quarto e que estranhou não ver nada desarrumado. Decidira ir ao mercado de Picoas, pois sabia que ele gostava do pão da forneira da quinta do Lumiar e era dia de ela ir vender. Foi quando ouviu dois polícias a conversarem sobre a prisão de dois médicos na Baixa e falaram no seu nome. Que perdera o norte e correra ao Instituto para saber se era verdade. Que até falara com o senhor professor que costumava ir lá a casa e, quando lhe deu a notícia, ele saiu porta fora, muito apressado.

- O professor Azevedo Neves?

- Esse mesmo. Desculpe ter vindo aqui, mas estava tão assustada e agora que o vejo fiquei tão contente...

Olhava-a, emocionado. Os cabelos negros de azeviche revoltos emolduravam um rosto esculpido a cinzel. E os olhos brilhavam com a mesma cor do cabelo e os lábios húmidos, sensuais, ainda tremiam de aflição. Também Asdrúbal tinha lágrimas no olhar e não conseguiam largar as mãos um do outro. Ana Rosa, rosa desabrochada de mil cores, aproximou-se mais do corpo dele e tocaram-se. Ao de leve e não conseguiam largar as mãos, e Ana fechou os olhos de rosa, e Asdrúbal, enlevado no madrigal de Rosa, beijou- -lhe docemente os lábios, como se beijasse pétalas, e ela acariciou-lhe o rosto. Rosa desejosa que desejava o seu desejo e ele respondeu com uma carícia mais quente e segredou-lhe ao ouvido:

- Estarei sempre aqui, minha princesa!

Bateram à porta e o encantamento quebrou-se. Asdrúbal segredou-lhe:

- Espera por mim ao fim da tarde.

- Espero por si todas as tardes e em todas as madrugadas.

E largaram as mãos. Ana Rosa saiu apressada, cruzando-se com o contínuo que interrompera o idílio e que entregou um bilhete ao médico.

- Chegou agora mesmo para o senhor doutor, vindo do Hospital dos Capuchos.

- Obrigado.

Fechou a porta e abriu o bilhete. Era de Moreira Júnior, que lhe escrevia:

«Vai haver merda. O teu chefe interrogou-me com a firmeza de um gendarme e não resisti. Contei-lhe tudo. Saiu furioso. Eu estou morto. Já bebi um cântaro de água para despachar a ressaca e a Paula está tão zangada que corro o risco de ser despachado. Espero que te tenham dado uma valente tareia no Governo Civil. É justa e que te sirva de lição para não me levares por maus caminhos. Um abraço. Manuel.»

Ficou preocupado. Não lhe agradava saber que Azevedo Neves se envolvera naquela confusão. Ainda por cima, quando já tudo terminara. Pelo menos, estava convencido disso, depois da firmeza com que enfrentara os dois polícias mais importantes que alguma vez conhecera. De repente, lembrou-se de que tinha de falar com Geraldino Brites, o segundo perito dos exames periciais sobre Sidónio Pais enviados para a Boa Hora. Precisava de contar o que lhe acontecera, não fosse o tanatologista ser incomodado pelos polícias à paisana a soldo do governador civil.

Atravessou o corredor em direcção à Morgue. O Brites autopsiava uma mulher ainda nova, sempre de mangas arregaçadas e movimentos ágeis sobre o cadáver. Era extraordinário apreciar a eficácia com que realizava um exame autóptico. Os dedos pareciam ter faro, ligeiros, identificando lesões e patologias à velocidade do relâmpago. Ao ver Asdrúbal d'Aguiar, soltou uma gargalhada:

- Olha o presidiário. É no que dá ainda ires atrás da conversa desse maluco do Moreira Júnior! - exclamou, sem deixar de trabalhar.

- Foi uma grande bebedeira, tenho de reconhecer.

- Com o Moreira Júnior é tudo grande. Ele é grande, tem uma cabeça grande, uns braços grandes, uma loucura grande e as bebedeiras sempre foram forçosamente grandes. Cuida-te, que ele mata qualquer um!

- O problema que aqui me traz não tem a ver com ele - interrompeu a conversa com o nariz no ar. - Sou eu que estou mais sensível ou isto hoje cheira pior do que é habitual?

- Trouxeram dois afogados podres. Cheira mal até ao Campo dos Mártires da Pátria - enquanto explicava ia cortando em finas fatias o fígado amarelo e negro da mulher, que, de vez em quando, se desfazia ao toque da faca. - Está feito em papas - comentou enquanto analisava o órgão.

- Cirrose?

- Cirrose e definitiva - voltou-se para o servente e disse-lhe: - Podes fechá-la. A causa da morte é cirrose hepática.

Dirigiu-se ao lavatório e, enquanto lavava vigorosamente as mãos, perguntou:

- A conversa que vamos ter é grande ou pequena?

- Meia hora!

- Então ainda despacho o último antes do almoço. Tornou a dirigir-se ao servente que atulhava o tórax e o abdómen do cadáver, recolhendo as vísceras a eito. Quando acabares de coser a mulher pede ajuda ao Inácio e ponham o atropelado em cima da pedra. Eu já volto.

Saíram da Morgue e foram para o gabinete do chefe de serviço. Asdrúbal ficou boquiaberto. Havia dezenas de frascos contendo dedos, corações, rins, quase todas as peças anatómicas, algumas delas repetidas. O cheiro a formol era intenso e a desar- -rumação esplêndida.

- Como consegues trabalhar neste gabinete?

- Não tenho outro. Senta-te e não fumes que o formol faz explodir o edifício.

Sentou-se e narrou as peripécias que vivera, dando mais relevo à conversa ocorrida no Governo Civil. Calou-se e instintivamente pegou num cigarro para o levar aos lábios.

- Nem te atrevas! - gritou Brites com brusquidão. - Já te disse que isto pode explodir - e, mais sereno, questionou: - Quer dizer que os tipos, para além de trafulhas, querem que os outros se tornem na mesma pandilha.

- Mais ou menos. Tomei uma decisão. Brites - e a expressão de Asdrúbal endureceu: - Depois de o juiz enviar a pistola para exame, vou publicar esta autópsia.

- Vais assinar a tua sentença de morte, queres tu dizer - comentou, jocoso.

- Hoje fiquei com a certeza de que as conclusões da polícia são uma verdadeira mistificação. Estou decidido, vou publicar!

- Publiques o que publicares, nunca reconhecerão que Júlio da Costa não é o assassino.

- Mas não terão força para o levar a tribunal.

- Isso é verdade. Com o relatório divulgado, mesmo que seja só entre académicos, não vai haver julgamento.

- É o meu objectivo. Um dia alguém perguntará porque não foi julgado o assassino confesso de Sidónio Pais, e vão ser humilhados.

- Não duvido. E quiseste falar comigo, para quê?

- Não te quero forçar a viver riscos que não desejas. Mas és o segundo perito dos exames forenses que fizemos ao cadáver e à roupa de Sidónio Pais. Preciso da tua autorização para usar o teu nome.

- E toda esta conversa foi para me fazeres essa pergunta?

- É uma situação melindrosa e não quero arranjar-te problemas.

Levantou-se da cadeira em jeito de despedida.

- Não arranjas problemas nenhuns. Usa o meu nome como entenderes, pois confio em ti. Já falaste com o chefe?

- Vou dizer-lhe hoje ou amanhã.

- Fazes bem. Esses aldrabões merecem ser desmascarados. Tenho de ir embora. Ainda faço mais uma autópsia antes de almoço. Até logo! - e saiu apressado, tornando a arregaçar as mangas da bata.


Passaram-se vários meses desde aquele dia. E vários governos. Depois de Tamagnini Barbosa, empossado após a morte de Sidónio e que não chegaria a ver o mês de Fevereiro, veio José Relvas, que não entraria nesse Abril de 1919, e, em nome do recomeço da tradição republicana mais pura, sucedeu-lhe o Governo de Domingos Pereira, que se despedia do país no dia de São Pedro, para jurar lealdade o presidente do Conselho de Ministros Sá Cardoso, que, naquele ano de destrambelho político, conseguiu chegar ao Natal sem ser demitido. Um feito militar!, que o primeiro-ministro era coronel. Governar durante seis meses um país em rebelião social e política foi trabalho homérico. Passavam quatro meses sobre o assassínio de Sidónio Pais quando Azevedo Neves recebeu um ofício do juiz do caso. Juntava uma pistola Browning e solicitava exame pericial à arma que matara o Presidente-Rei. Não conteve um sorriso.

O juiz percebera a armadilha policial e fugira dela com a habilidade dos justos. Foi isto que disse a Asdrúbal d'Aguiar, que, entretanto, chamara.

- Quem nos garante que foi esta a arma que disparou contra Sidónio Pais? - perguntou enquanto a observava.

- Ninguém - respondeu Azevedo Neves.

- Não foram recolhidos os cartuchos disparados pelo eventual assassino nem existe projéctil. Nada pode ser comparado com nada. O resultado desta dedução é zero.

- Claro. O juiz sabe que vai ser esse zero. E sabe porquê? O seu trabalho pericial convenceu-o definitivamente da farsa montada na noite de catorze de Dezembro.

Asdrúbal agradeceu o cumprimento. A Browning era uma das armas mais vulgares que surgia associada a dezenas de homicídios, sendo quase uma moda entre conspiradores, polícias, revolucionários e delinquentes de toda a espécie. Deveriam existir centenas nos depósitos do Governo Civil.

- Pela primeira vez, desde que trabalhamos juntos, sinto uma grande vontade de desobedecer a uma ordem do senhor professor - confessou com alguma irritação na voz.

Azevedo Neves interpelou-o surpreendido.

- Porquê? Peço-lhe apenas aquilo que o juiz me pede. Para examinarmos a arma.

- É um embuste, senhor professor! - respondeu com firmeza. - Esta pistola não revelará outra coisa que não seja aquilo que é: uma pistola!

- E então? - perguntou Azevedo Neves, sem perceber a irritação do seu chefe do Serviço de Clínica Legal.

- A nossa função é relacionar objectos, feridas, vestígios e instrumentos que permitam estabelecer nexos de causalidade entre um sujeito e um determinado crime. Mesmo que a ingenuidade nos levasse a acreditar incondicionalmente que esta arma pertence a José Júlio da Costa e que a utilizou contra Sidónio Pais, quatro meses depois não seria possível relacioná-la com o crime.

- Tem razão.

- Não pode haver qualquer conclusão nesse sentido, nem no seu contrário.

- Concordo consigo.

- Então porque fazemos o exame?

- Apenas porque um juiz nos pede. É nossa obrigação. Apenas servimos a lei com o nosso saber.

- Que, como lhe disse, não vai além de dizermos que esta pistola é uma Browning e que se encontra em bom estado para disparar. Mais nada!

- Mais nada dirá, então.

O director do Instituto não reconhecia Asdrúbal d'Aguiar naquela irritação tão pouco dissimulada. Era um homem controlado, que cultivava o autodomínio como disciplina pessoal.

- Meu caro Asdrúbal, é capaz de partilhar com um amigo a razão dessa crispação tão incendiada? Juro que não percebo tanta acidez.

Asdrúbal sentou-se no braço do sofá e suspirou profundamente. Acendeu um cigarro, que aspirou longamente.

- Tem razão. Desculpe-me. A verdade é que este caso me persegue desde a noite em que aconteceu e o senhor professor me chamou a São José para deixar a meu cargo o embalsamamento do Presidente. Recorda-se?

- Foi uma das mais terríveis noites da minha vida. Como posso esquecê-la?

- Confessou-me o seu segredo, que jamais partilharei com alguém. Aceitou governar com Sidónio para lhe agradecer a criação dos institutos de medicina legal e da Polícia de Investigação Criminal. O país e a República jamais poderão reconhecer aquilo que fez pela modernização das ciências forenses - e concluiu: - Devo admitir que a conversa que tivemos nessa noite foi decisiva para mim. Não nutria grande simpatia por Sidónio Pais. Depois dessa noite, passei a considerá-lo. Embora fosse tarde. Ele já estava morto.

- Era um homem controverso, com virtudes e defeitos em excesso.

- Pelo menos merecia uma investigação séria à sua morte e percebi que, desde o tiro fatal, a polícia se comportara como os inquisidores do Antigo Regime. Prender a eito, torturar, precipitar resultados. De que vale o trofeu José Júlio da Costa, um doente mental, se não existe uma relação fundamentada entre ele e a vítima, se tudo se transformou num amontoado de perseguições e conspirações sem uma única motivação coerente? É repugnante, senhor professor.

Azevedo Neves contemporizou.

- Andámos muito, mas ainda vai demorar para vermos alterado esse comportamento inquisitorial.

- Seja como for, é falso! - cortou Asdrúbal. - Todos sabemos que a história que a polícia vendeu não é verdadeira. Este exame tardio da pistola apenas quer dizer que nem o juiz embarcou nessa crença de auto-de-fé.

- Concordo consigo, mas não percebo ainda aquilo que o leva a resistir ao exame da arma.

- Tornamo-nos cúmplices da mistificação que foi vendida como verdade.

- Só seremos cúmplices, se ficarmos calados ou mentirmos.

- E dizemos o quê, senhor professor? Soltem o Júlio da Costa, que não é o autor da morte do Sidónio?! Não posso garantir que foi o jovem quem o matou, apesar de os nossos exames apontarem nesse sentido. Como também não posso afirmar que não foi Júlio da Costa, embora saibamos que a história revelada é falsa.

- Não me compreendeu, doutor Asdrúbal.

Olhou o director com curiosidade.

- Não?

- O senhor não é polícia, nem juiz. É médico e cientista forense. Já lho disse há vários meses e repito-o. Publique o seu trabalho. Faça uma perícia séria à arma com as conclusões dóceis que já sabe que vai obter e publique.

- Não sei. Quem se vai interessar por uma autópsia, por perícias no vestuário do Presidente e na putativa arma que o matou?

- Pouco importa. Somos cientistas, a nossa função é investigar e apresentar resultados demonstrados. Não temos competência para mais, mas é suficiente para nos distanciarmos dessa mixórdia. E você merece. O seu trabalho prestigia este Instituto. Prestigia a ciência portuguesa. É o reconhecimento de um grande investigador pela comunidade científica. Que importam os disparates da polícia? Dir-me-á que, graças a esses disparates, está preso injustamente um homem. É verdade. Mas, graças ao rigor do seu trabalho, jamais será julgado.

- Como pode ter tanta certeza?

- Pela demora do juiz em enviar esta arma para exame. Passaram quatro meses desde o assassínio do Presidente da República. Quatro meses! Este ofício tem uma intenção. Arrastar o processo até ao esquecimento. Se fosse um juiz menos escrupuloso, há muito que Júlio da Costa estava julgado e condenado. Publique. Os nossos Archivos estão abertos para o acolher - Azevedo Neves referia-se à revista Archivos de Medicina Legal, que dirigia.

Asdrúbal ficou em silêncio. Há quatro meses que vivia com aquela turbulência interior, feita de revolta e indignação. Desesperava em cada notícia que narrava as aventuras e desventuras da odisseia policial a propósito de efabulações conspirativas desvairadas. Apetecia-lhe escrever ao director do jornal de ocasião desmentindo cada palavra. Passara-lhe pela cabeça desmascarar cada manobra do Governo Civil. O luto por Glória desvanecera-se nesta guerra que enfrentava contra as falsidades oficiais e Ana Rosa habitava-o. Sabia como tudo acontecera e não podia dizer que sabia. Era um pesadelo que lhe roía a consciência. Bastaria uma reconstituição; uma simples reconstituição, para rebentar definitivamente com a versão do preso. Colocá-lo perante um outro indivíduo que fizesse de conta que era Sidónio e mandá-lo repetir as posições e os gestos da acção criminosa para, de imediato, se perceber que a versão de que olhara a vítima nos olhos e lhe enfiara as balas «tomando-lhe» o corpo era falsa. Aliás, tudo era falso.

A polícia confundira todos aqueles que odiavam Sidónio e à sua política cesarista com assassinos em potência. A Maçonaria queria vê-lo destituído, a Carbonária talvez o quisesse desfeito em migalhas, os católicos queriam mais do que o espavento das missas em que o Presidente participava, os integralistas exigiam uma política de ruptura, os democratas odiavam-no e por aí fora. Até o partido a que Sidónio pertencera tinha rompido com ele. E neste quadro de ódios, os resultados a que chegara apontavam para um miúdo de vinte e dois anos, fascinado pelos protestos operários e pelo turbilhão das sucessivas rebeliões sindicais, vaidoso da arma que mostrara a Ana Rosa, e que, num momento fortuito da sua vida, conseguira estar próximo do objecto de todos os ódios e disparar fortuitamente. E Asdrúbal vivia com essa angústia dilacerante. Nem a arma fora recuperada, nem o rapaz, abatido como um cão, poderia ser interrogado.

Pegou no ofício e na arma que Azevedo Neves lhe mostrara.

- Muito bem. Vou fazer o exame, ou seja, proclamar a evidência de que esta pistola é uma pistola. Sabe que não escreverei uma única sílaba a proclamar que é a arma do crime. Não sou capaz de entregar essa almofada de conforto a um processo que, em vez de ser sobre um crime, está apenas carregado de intenções.

- Eu faria o mesmo. Procederia como o senhor.

Asdrúbal hesitou, antes de falar.

- Posso fazer-lhe uma pergunta?

- Entre nós não há segredos.

- Pois bem. Trabalhou com Sidónio Pais. Embora não fosse um apoiante activista e, por vezes, até reservado em demasia, eram amigos. Como pode viver com a tranquilidade que revela quando falamos sobre o caso, sabendo que quem o matou jamais será julgado?

Azevedo Neves acusou o toque. Passou a mão pela testa como se organizasse as ideias e respondeu, enigmático.

- É uma questão de amor.

- Perdão?! - reagiu o outro, deveras surpreendido com a resposta.

- As circunstâncias em que ocorreu o crime e os resultados forenses a que a nossa equipa chegou são uma verdadeira apoteose.

- Cada vez compreendo menos.

- Asdrúbal - tornava a tratá-lo com a proximidade que apenas destinava aos mais íntimos -, em palavras vulgares aquilo que o senhor e a sua equipa estão a dizer é o seguinte: depois da vossa investigação trapalhona ao homicídio de um Presidente da República, investigação que desprezou todos os preceitos da polícia científica, que nós representamos e conhecemos, vocês vão perceber que precisam de nós como um faminto precisa de pão e água, como uma gazela precisa de prados, como um leão precisa de presas para caçar. Dir-me-á que é um falhanço da justiça. É verdade. Mas tem falhado tanto! Veja o caso Joana Pereira, o caso Urbino de Freitas, o caso Sara de Matos. Todos os grandes crimes foram resolvidos de forma injusta pela justiça. O caso Sidónio Pais é apenas mais um, a que outros se seguirão. Mas este tem um aspecto essencial. Abriu a porta da esperança para a prova judiciária. As suas investigações científicas vão pô-los de pé atrás. Sabem, agora, que a nossa verdade não se satisfaz com historietas e versões construídas artificialmente. Sabem que à retórica opomos factos testados na mesa de autópsias ou no laboratório. Sabem que a nossa verdade é mais positiva, segura e não tem piedade da versão especulativa - parou o discurso e sorriu para Asdrúbal:

«Pareço-lhe cínico, não é verdade? Deveria estar a clamar justiça para um amigo. Infelizmente, a minha indignação não resolveria o crime. Não se resolve, é verdade. Mas estamos perante a maior vitória da medicina legal portuguesa e de uma vitória estrondosa da ciência forense europeia. A nossa prova material vale infinitamente mais do que todas as provas testemunhais e todas as confissões inventadas, construídas ou forçadas. É esta a razão da minha tranquilidade. Diria mais, da minha alegria. O senhor deu corpo a vinte anos de trabalho intenso. Faz parte da comunidade que, por esse mundo fora, combate a iniquidade judicial e o autoritarismo do poder sem escrúpulos - soltou uma risada. - Se estivesse vivo, Miguel Bombarda rejubilaria com esta grande vitória das ciências forenses. Reforçaria a sua fé no saber supremo da ciência».

- Como? Sempre criticou a euforia cientista de Bombardal - comentou Asdrúbal, desconfiado.

- E continuo a criticar. O conhecimento científico apenas nos dá instrumentos para interpretarmos ou modificarmos o real. Jamais explicará a finalidade última da nossa dimensão ontológica. Para tanto, necessitaria de conhecer para além da morte e, isso, não existe, nem existirá, laboratório que o consiga. Curvo-me com humildade ao poder do conhecimento científico, mas não me ajoelho como um crédulo. Preciso de Deus.

Asdrúbal d'Aguiar olhou-o com curiosidade. Revelava-se, depois de tanto viver, o mesmo homem que tão forte impressão lhe causara, há muitos anos, quando ingressara na Morgue. Jamais abandonara o seu grande amor, mesmo sendo ministro, estudando, dedicado às ciências forenses com a fidelidade de um servo, combatendo, em permanente preocupação com a construção organizada do edifício que seria o santuário da prova material científica, indiferente à vaidade, comprometido com os valores da amizade e da ajuda mútua. Asdrúbal d'Aguiar sentiu-se um homem de sorte por tê-lo encontrado logo no início da sua carreira. Conseguira o maior dos mestres, respeitado pelos seus pares além-fronteiras, e, seguramente, um dos seus melhores amigos. Despediu-se com o cumprimento.

- Quanto à publicação depois lhe direi o que vou fazer.

E saiu, levando a arma consigo. Era a segunda vez que Azevedo Neves o desafiava para publicar. Por mais tímido que fosse, não podia deixar de sentir uma ponta de vaidade por tal proposta. Tinha autorização do seu colega Geraldino Brites, que, com ele, assinara as peritagens. Questionava-se quanto à sua qualidade, às capacidades como perito forense, e admitia que não se revia no panteão dos heróis da ciência onde Azevedo Neves o queria colocar. Incomodava-o essa visibilidade pública. Aceitar subir o degrau de glória que lhe exigiria mais trabalho, maior disponibilidade para debates académicos, maior nudez publicista quando, dentro de si, continuava a viver o médico surpreendido pela dimensão dos desafios judiciários, que se deliciara, e tinha saudades, de sachar a horta do pai de Ana Rosa e testemunhar, deleitado, o despertar dos pimentos e a elegância das vagens do feijão. Quanto mais caminhasse pelos projectos propostos por Azevedo Neves, menos caminho sobrava para as conversas de fim de tarde com os vizinhos da Rua da Fé, com o albardeiro António Beirão, da Rua de São José, ou para ir comer bolos fintos do Juan Galego defronte ao Pátio do Tronco. E pior do que tudo isto. Não teria tempo para o amor crescente por Ana Rosa, que, em vez de desaparecer, se tornara numa madrugada intensa, prendendo-lhe o peito e os sentidos. E não sabia escolher.

Jamais imaginara aproximar-se do altar das liturgias científicas, fosse na Faculdade de Medicina, fosse na Sociedade de Ciências Médicas, procurando sempre um lugar nas últimas filas, capaz de escutar, suficientemente dissolvido na massa de ouvintes para não ser visto. E na noite em que Glória se finou, a dor com que se quebrou o vínculo do amor foi tão aguda e insuportável que adquiriu a convicção de que a viuvez seria a solidão sem qualquer outro rosto. Uma viagem pelo resto dos seus dias sem um apeadeiro onde quisesse sair para seguir nessa jornada. Porém, Ana Rosa era outra coisa que nunca experimentara. Um tormento febril, o soneto de Camões, uma dor que dói e não se sente, uma cantiga de Bernardim, as manhãs claras e orvalhadas dos quadros de Monet, a épica de Beethoven. E se ela o servia, tratando-lhe da casa e dos filhos, ele servia-a a ela no desprendido silêncio que deseja, mas não quer desejar. A verdade é que desde aquela manhã, depois de ter sido preso, em que trocaram um beijo quente que confortou o frio de ambos, decidira interditar devaneios e fomes.

Naquela noite, ao entrar em casa, ela esperava-o, tensa, olhos abertos, redondos, medrosos, e quando Asdrúbal a enfrentou, apenas disse:

- Não sei se sou capaz.

- Nem eu, Ana Rosa - afagou-lhe o rosto e deixou-se cair numa cadeira. Ela sentou--se à sua frente e perguntou:

- Bateram-lhe na polícia?

Não conseguiu evitar um sorriso.

- Porque me perguntas isso?

- Não sei. Tenho medo da polícia.

Suspirou profundamente. No fundo das suas hesitações sobre se devia ou não publicar o trabalho sobre Sidónio, possivelmente era o medo da polícia que o fazia estremecer.

- Não, não me bateram. Gostava de falar contigo sobre nós.

Ana Rosa tornou a ficar hirta. Num silêncio trincado entre os dentes.

Asdrúbal continuou:

- De repente, ficamos os dois sozinhos e nem sei o que se passa dentro de mim. Não sei se é amor, se é medo por te amar tanto. Aquilo que sinto, quando estou sem ti, é uma saudade infinita. Uma fome ardente de tornar a perceber a tua presença, a tua voz, os teus passos, as tuas palavras. E por cada dia que passa, mesmo trabalhando aqui tão perto de casa, parece-me que a ausência é uma distância que vai até ao outro lado do mundo. Uma saudade que dói.

- Também eu fico com saudades - murmurou Ana Rosa e, com um gesto abandonado, rematou: - Mas não sei se sou capaz de amar outra vez. A vida ensinou-me que o amor tem a morte dentro de si.

- Compreendo.

- Todos aqueles que amei, não me deram tempo. Deus não me deu tempo para saber como eram valiosos. Enviou a morte para depois lhes sentir a falta.

- É o que me acontece quando recordo Glória.

- Apesar de tudo tem os seus filhos.

- Eu sei.

Ficaram em silêncio. Por cada um deles escorriam memórias magoadas que não havia qualquer palavra que as pudesse estancar. A influenza dizimara amores e deixara lutos. Em meados de Janeiro de 1919, terminara a matança, desaparecendo de Lisboa com a mesma velocidade com que entrara. Com o mesmo rasto clandestino que deixara perplexos todos os médicos que, durante três meses, lhe deram combate de dia e de noite. Nunca se chegou a saber quem seria aquele vírus enviado pelos demónios de todos os infernos de todas as crenças. Desapareceu sem rasto. Apenas luto. Uma cidade mais negra, mais sofrida, medrosa de que o assassino regressasse outra vez.

- Estou cansado - disse, finalmente, Asdrúbal.

- Também foi um dia ruim para mim - respondeu Ana Rosa.

Abraçaram-se e ele beijou-a na testa.

- Até amanhã, Ana Rosa.

- Até amanhã, doutor Asdrúbal!


E assim continuaram a viver. Existindo cada vez mais um no outro, mas querendo acreditar que não existiam. Embora doesse cada vez mais a ausência. Uma estranha saudade que se saciava na presença dela, nas palavras comuns com que falavam das bagatelas quotidianas, que ganhava a alegria de um corcel à solta, por uma simples graça trocada entre os dois. Porém, Ana Rosa não suspeitava, e se o pressentisse não o dizia, e Asdrúbal encerrava o seu segredo no fundo do coração.

No dia seguinte, combinou encontrar-se com Moreira Júnior. Como sempre, apenas combinaram a hora. O local nunca mudava. Queria pedir-lhe conselho. Sobretudo queria ganhar força para decidir se merecia esforçar-se pelo seu acto de militância hipocrática. Uma coisa era escrever um relatório de autópsia que ficaria perdido entre as centenas de página de um processo. Bem diferente era a decisão de publicar as perícias de forma autónoma, individualizadas de outros espaventos processuais. Sabia que tal decisão tinha a força de um tiro contra a testa da polícia, contra a autoridade soberba que não admitia outra verdade a não ser aquela em que acreditava. E expôs o assunto ao gigante, levantando todas as certezas e todas as dúvidas que a vontade de publicação suscitavam. Ao fim de meia hora de exposição, Moreira Júnior berrou:

- Não voltes a fazer-me isto, Asdrúbal. É a última vez!

- O que aconteceu para ficares tão zangado? - perguntou, atónito.

- É impossível. Nunca mais, ouviste? Nunca mais me convidas para partilhar assuntos dessa gravidade na taberna do galego. Perdi o apetite. Não se pode perder o apetite quando comemos um bolo finto. É um crime!

- Não era a minha intenção. Desculpa.

- As desculpas não servem para uma circunstância destas. Não posso dizê-lo em voz alta, que o raio do galego fica inchado como um pavão, mas esta tasca é um santuário. Não existe melhor bolo finto desde Santiago de Compostela até aos Algarves. Porra, Asdrúbal. Isto não se faz! Foi-se-me o apetite.

Não o levou a sério. Encolheu os ombros e respondeu:

- Pede um abafadinho que isso passa.

- Para fazer fome, preciso de ginjinha.

- Pede duas e acabas a tua louvaminha ao bolo finto.

Fez um gesto de concordância e gritou:

- Juan, traz duas ginjinhas cheias. Roubas sempre um bocadinho.

- Vão carecas as duas, doutor. Tão cheias que não sobra copo.

- Isso é que é falar!

Desatou a dissertar sobre as virtudes do abafado e da ginja, do vinho tinto e da aguardente, como se não tivesse havido a conversa que os sentara ali naquele fim de tarde. Entusiasmado com a dissertação, emborcou o líquido num ápice e o resto do bolo desapareceu à força de trincadelas entusiasmadas. Moreira Júnior recompunha-se do choque e Asdrúbal, que lhe conhecia a alma, sabia que o outro vomitava toda aquela retórica enquanto ganhava tempo para digerir as inquietações que lhe expusera. Por fim, limpou as mãos no lenço, tornou à gravidade inicial e, baixando a voz, segredou.

- Não me contaste nenhuma novidade - desatou a rir com o ar de perplexidade no rosto de Asdrúbal. - Qual é o teu espanto? Mandaste-me embalsamar o homem. Fui eu quem lhe suturou os ferimentos e eram tão diferentes que a história que puseram cá fora só podia ser verdadeira se metesse ao barulho dois homens, armados com pistolas de calibres diferentes. Quando, à falta de melhor, a polícia informou que o matador era esse tal Costa, cheirou-me a estrume mas não liguei.

- Eu já te dera a entender. Leste o relatório que enviei para o juiz.

- Também não te liguei. Não mereces.

- O quê?

- Não mereces. És demasiado certinho para tratar com essa corja de aldrabões, ratos da mesma ninhada. Políticos e polícias nasceram da mesma barriga. Não há polícia sem política, nem política sem polícia. Seja qual for a política, seja qual for a polícia. Olha o nosso Ricardo Jorge, que deixa esvair o seu talento à procura de uma polícia sanitária que nos salve da merda e das pestes. Esforços vãos, Asdrúbal d'Aguiar! A malta gosta de viver na merda e de ser governado por ela. É por isto que deixei de ser republicano e já não quero ser monárquico. Prefiro ir ver a Palmira Bastos representar, escutar a Júlia Florista, apreciar La Traviatta, no São Carlos, e comer bolos fintos do galego.

- Quer dizer que não publicavas as conclusões a que cheguei.

- Pelo contrário. Quero dizer que não hesitava um segundo. Esse teu trabalho é uma pedrada na cabeça do poder tonto que nos governa e governará. Podem assassinar todos os Presidentes da República. Passados, presentes e futuros. Serão sempre substituídos por outro lacrau que logo saltará debaixo das pedras com o peito cheio de medalhas e bigode envernizado. Perguntas-me se eu publicava? Isso não é um trabalho erudito. Nas minhas mãos seria um varapau para zurzir a estupidez. Aceita o convite do professor e vai-te a eles.

O legista ficou em silêncio. Sabia descontar os exageros de Moreira Júnior, embora entendesse as preocupações que lhe abriam as portas para o disparate. Ou aquilo que ele queria dizer através da encenação de disparates.

- Vocês têm razão. Vou publicar.

- Ora aí está uma boa decisão. Dá cabo dessa instituição analfabeta. Mata-os!

- Não sou panfletário.

- Seja como for. Mata-os!

- És doido.

- A tua decisão deixou-me esfomeado. E se fôssemos ao Jardim do Regedor despachar umas iscas com elas? Aproveitávamos para preparar o assassínio destes republicanos decrépitos e dos monárquicos moribundos. Não percebes que tens na mão uma bomba carbonária? Vais lixar o país das crenças. Os republicanos de gema vão chorar por lhe roubares o seu herói Júlio da Costa, grande vítima e sublime vingador dos oprimidos de Sidónio. Os monárquicos, os integralistas, os palermas da República Nova, ficam a saber que o seu Presidente-Rei foi abatido por um salteador anónimo, um rufia que matou outro rufia. É o fim da história. Merece iscas com elas!

- Não. A última noitada que fiz contigo apanhei a maior bebedeira da minha vida e acordei na prisão. Só jantamos juntos se a tua mulher vier connosco.

- A minha Paula? - perguntou, desiludido.

- É a única pessoa que tem poder sobre a tua loucura.

- Estás a estragar tudo - comentou, desanimado: - Ela não nos deixa divertir.

- Não te deixa fazer disparates - corrigiu Asdrúbal. - Obrigado pelo conselho. Vou para casa.

Levantou-se para sair enquanto Moreira Júnior lamuriava.

- A vida é muito injusta comigo. O meu maior amigo faz uma descoberta histórica e, em vez de celebrarmos, ameaça-me com a minha mulher. Com a minha própria mulher!

- A Paula não é uma ameaça. É uma santa.

- Pronto, está bem. Eu já sei que sou o mau da fita. Ganhaste. Já não me apetecem as iscas. Também vou para casa. Adeus. Deus vai castigar-te por seres tão ruim.

Asdrúbal d'Aguiar soltou uma gargalhada e atirou-lhe:

- Terá mais dificuldade em perdoar a tuas blasfémias.

- Pouco me importa. Quero ir para um céu ou para um inferno que tenha os bolos fintos do galego. Adeus.

- Adeus, Manel.


Afastaram-se em direcções opostas. A decisão de publicar a sua investigação deu- -lhe força para outra decisão. O medo morreu naquele instante. Nessa mesma noite, forçosamente, teria de falar com Ana Rosa. Não havia tempo para mais indecisões depois de semanas e semanas de silêncios forçados pelo preconceito. Não valia a pena esconder a fome de vida que, ao longo dos últimos tempos, escondera na sombra de mil pretextos. O fantasma de Sidónio, as circunstâncias do seu assassínio, as verdades impuras que lera e calara, tinham chegado ao limite da sua força. Era agora ou nunca mais gostaria de si. Estava decidido. Iria escrever e dizer. Para os Archivos de Medicina Legal e com Ana Rosa. As duas faces da mesma inquietação. O mesmo caminho iluminado onde a racionalidade e o afecto tinham o mesmo significado. Sem a dimensão afectiva da razão jamais ganharia energia para os combates pelas ciências forenses que Azevedo Neves profetizava. Sem esta afeição por Ana Rosa, feita de desejo conhecido, de dedicada saudade, da solidão amarga da sua ausência, tão desprendido e apreendido, não seria o homem livre que sufocava dentro de si, pronto para todas as batalhas da vida contra a morte.

Quando terminou o jantar e os filhos foram para a cama, despediu-se deles com um beijo quente. Afagou-lhes os cabelos, ajustou-lhes a roupa das camas e, tornando a beijá-los, segredou-lhes com ternura:

- Até amanhã. A Ana Rosa vai ler-vos o vosso conto. O papá está no escritório a trabalhar.

Não olhou para ela. Adivinhava as suas expressões, a sua presença envolvente, os seus passos como presença que não quer ser ausência e dirigiu-se ao escritório. Retirou da gaveta a pasta onde tinha os apontamentos do seu trabalho sobre Sidónio Pais e tornou a organizá-los. Sentiu que deveria começar a escrever naquela noite. Sabia que tinha de falar com ela nessa noite. Releu o relatório da autópsia que enviara para o tribunal. Era um texto sucinto, mas claro. Uma boa sinopse, pensou, e meteu uma folha de papel na máquina de dactilografar. Escreveu Exames Periciais no Cadáver do Presidente da República Dr. Sidónio Pais, no Vestuário e na Arma Agressora. Tinha a certeza de que o nome próprio deveria ser em maiúsculas e duvidou da qualificação que atribuía à arma. Duvidava de que fosse aquela Browning, porém, não possuía qualquer prova de que não era o instrumento fatal. Optou por deixar a qualificação - agressora - , não podendo ser acusado de logo no título pôr em causa as verdades oficiais, pedestais do mártir e herói vingador. Ficaria bem assim e assinou.

Retirou a folha de rosto e colocou a primeira página de texto na máquina no momento em que Ana Rosa surgiu à porta do escritório.

- Os meninos já dormem. Precisa de mais alguma coisa? - os olhos dela cintilavam.

Mesmo nos momentos de maior tristeza, cintilavam, iluminando-lhe o rosto e o sorriso.

- Hoje preciso, Ana Rosa. Precisamos os dois.

Saiu da secretária e sentou-se num dos sofás, indicando-lhe o outro para que ela se sentasse. Ele não sabia, mas o coração da mulher batia tão descompassado quanto o seu. Precipitadamente, acendeu um cigarro, e Ana compreendeu a dimensão da conversa, encolhendo-se no sofá.

- Tenho fugido a este momento, Ana. Temos fugido os dois. E não vale a pena fugir por mais tempo porque não existe estrada que nos separe e por todos os caminhos que partirmos acabamos sempre por encontrar-nos.

Ela fitava-o fixamente, imóvel, como se não respirasse. Apenas o corpo ficara mais contraído, atenta à narrativa.

- Embora ainda sejas jovem, já conheceste o lado mais ruim que a vida nos pode fazer sentir, magoando-nos até aos confins da sensibilidade. O sofrimento tem uma virtude. Ensina-nos a saborear os momentos mais felizes, ensina-nos a procurar a felicidade, afastando-nos dele. Ninguém quer sofrer, todos os homens e mulheres aspiram à felicidade. Ninguém quer sobreviver apenas à tragédia e à mágoa. O nosso pranto perante a morte daqueles que amámos não é suficiente para que a felicidade possa ser o outro lado do sofrimento. Assim como o amor não é o inverso do ódio, nem a paz a parte contrária da guerra. Não somos assim, embora nos tenham ensinado os sinais da vida dessa maneira - aspirou o cigarro profundamente e fitou-a por instantes. - Percebes-me, Ana Rosa?

- Percebo mas não sei. Não sei! - hesitava, agora assustada, os olhos tímidos fixados nos joelhos. - Não sei - rematou, esperando ouvi-lo.

- Encontrámo-nos lutando contra os nossos lutos. E desde então não se passou um único dia em que não tivéssemos necessidade de partilhar a presença um do outro. Mesmo que as únicas palavras que trocássemos não passassem de um cumprimento. O teu sorriso iluminava os meus dias. A minha força tranquilizava os teus dias. Ao ponto de não necessitarmos de palavras para sabermos aquilo que cada um sente. Ao ponto de precisarmos tanto um do outro que o nosso encontro é a força para vencermos cada dia e tornou-se num conforto que nos abriga do sofrimento.

Esmagou o cigarro contra o cinzeiro, descarregando a tensão que crescia conforme avançava a conversa. Ana Rosa observava cada um dos seus gestos e a seguir mergulhava num mutismo que fixara como alvo os joelhos unidos.

- Construímos uma ideia do amor que mete cavaleiros andantes e cinderelas. Todos nós quisemos acreditar nos contos de fadas que nos prometiam que o par romântico, ao findar a história, foi feliz para sempre. Nós sabemos, por experiência vivida, que nenhum amor é feliz para sempre. Mas, se é assim o amor, quer dizer que não existe como sentimento ensinado, mandamento para a felicidade. Ao longo destes meses descobri duas coisas que mudaram a minha vida por completo. Sei que Sidónio Pais não morreu como nos querem fazer crer e sei que a felicidade não é uma dádiva do amor que nos obrigam a aprender. E foi contigo que percebi que a felicidade é um combate, uma necessidade que exige trabalho, que nos põe à prova, que nos desafia, que se constrói e desconstrói, que se exalta, fervilha e logo desaparece, como se fosse um suspiro. Descobri, afinal, que amar não é a entrega egoísta a outro. Ninguém é feliz no egoísmo. Ninguém ama uma só pessoa, uma só paisagem, uma só árvore. É grande o espaço que sobra para o sofrimento que, mais cedo ou mais tarde, afoga amantes e não amantes. Foi aquilo que a pneumónica revelou quando varreu a cidade, convertendo-a em lágrimas, pranto e luto. Que importou à nossa felicidade que, por esses dias, um casal tenha jurado amor eterno por entre os escombros das mágoas de uma cidade inteira? É como se o incêndio que devastou uma imensa floresta protegesse duas rosas que sobreviveram à morte de um imenso roseiral. Dir-se-á que foi milagre, pois permaneceu o dom da vida. Mas seguramente as duas rosas não podiam ser felizes sem a presença das outras irmãs rosas. Foi esta a outra grande descoberta, Ana Rosa. Sei que, juntos, somos capazes de salvar o roseiral, pois aprendemos que a felicidade se constrói, não se recebe, que o amor não é uma fantasia de conto de fadas, mas a entrega absoluta à arte de erguer, na comunhão das nossas energias, a felicidade de muitos por mais tempo do que o tempo efémero dos que foram felizes para sempre.

«Deves estar espantada por me ouvires falar tanto. É verdade. Até nisso somos almas gémeas. Preferimos o conforto de ouvir. Mas a pneumónica ensinou-me a mais terrível das lições. É tão breve o nosso tempo, é tão volátil, tão definitivamente passado, que ninguém sabe o tamanho do futuro e, mesmo que tenha muitos anos, será breve para gozar o esplendor da felicidade construída, pois a ela devora o tempo e, quando se esfuma, já não há tempo para recomeçar outra vez. Anda comigo, Ana Rosa. Sei que juntos podemos viver essa dádiva divina de construir sonhos para lá de qualquer calendário. Anda comigo, Ana Rosa, que este caminho que partilhamos vai para lá do infinito e precisamos da força um do outro para o vencermos. Anda comigo, princesa. Já sabemos que não seremos felizes para sempre, mas este conto de fadas não tem dragões, mas tem batalhas para que sejamos felizes construindo a felicidade dos outros».

Ana Rosa ruborizou-se. O brilho tornara ao olhar, aumentando-lhe o brilho do cabelo de azeviche e do rosto límpido de todas as invernias. As mãos dos dois encontraram-se e ela murmurou:

- Não sei, talvez seja como diz. Mas tenho a certeza de que só sou rosa com esperança quando estou ao pé de si. Não sei o que seria de mim, se o perdesse.

- Nem eu, se te perdesse. Vamos, Ana Rosa?

Ela respondeu-lhe com um beijo que era a eternidade e ficaram abraçados nos primeiros passos do caminho.


Já rompia a madrugada sobre Lisboa quando Asdrúbal regressou ao escritório. Determinado, com a segurança dos grandes momentos, meteu o papel na máquina e começou a escrever a morte de Sidónio Pais.

 

 

                                                                  Francisco Moita Flores

 

 

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