Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
MATÉRIA DE MEMÓRIA
Não tenho mais nada. A rigor, talvez nunca tenha tido realmente alguma coisa. Um sofá-cama forrado de novo, quadros, poucas roupas, algumas recordações desagradáveis - e as calçadas, as calçadas da minha rua, da minha cidade, do meu mundo.
Ontem chegou o cabograma da Western. Eu estava bêbado, abri mas não consegui firmar a vista e lê-lo. Deixei-o jogado ao lado do sofá. Ao acordar, a dor no alto da cabeça e o cheiro da bebida podre em algum canto da sala trouxeram-me à realidade e ao telegrama. “Chegarei quinta-feira pela manhã pt Boac pt Selma.” Datado de Lisboa. Meu nome trocado, sempre esse erro idiota que de início me exasperava e agora apenas me cansa: Tito, em lugar de Tino.
Foi bom: sem o telegrama talvez passasse o dia a amaldiçoar a bebedeira da véspera e os motivos que me fizeram beber. Afinal, já não sou o belo Tino, o todo-poderoso Tino. Alguns amigos suspeitam, mas só eu sei que não passo do pobre Tino, o fraco, o velho Tino. Quatro doses de mau uísque e fiquei bêbado, babei-me, disse desaforos a uma porção de gente e fiz um gesto pornográfico, gratuito e boçal, em plena rua.
O decadente Tino. Foi esse, por sinal, o título da crônica que o Mário dedicou à minha arte. O decadente. Tinha então 33 anos e alguns cretinos chegaram a me chamar de gênio. Mário botou o dedo na ferida: abri o jornal despreocupado, não esperava pela porrada já um tanto fora de propósito, Mário jamais escrevera uma linha sobre minha pessoa ou obra, nem mesmo por ocasião das exposições. Quando ganhei o prêmio do Salão - Mário nem sequer deu notícia. Todo mundo se admirava, dois amigos inseparáveis, companheiros de farra, éramos vistos em todos os cantos de braços dados - e Mário me ignorava em sua coluna diária. Até que um dia apareceu a crônica caudalosa, cheia de dados técnicos e de profecias - que, diga-se de passagem, realizaram-se todas - e o título em letras grandes, destacadas: O Decadente Tino.
Isso agora não mais importa. É quinta-feira, Selma, vem vindo pelo ar, de algum ponto do azul - se acaso o céu lá fora estiver azul - o avião trará Selma de volta e isso não me faz sentido. Afinal, ela tem quase cinquenta anos e há seis que não nos vemos. Isso sim, faz um certo sentido.
O decadente Tino. Preciso tirar esse quadro daqui, perto do banheiro. Até hoje não o vendi, sempre o escondi e não vejo agora motivos para continuar a escondê-lo. Vou vendê-lo, doá-lo. Selma gostava dele, foi o único que a interessou, dez anos de vida em comum sob o mesmo teto, só esse quadro mereceu-lhe um dia o olhar e a observação:
- É alegre!
O quadro é triste, muito triste mesmo, triste como todas as coisas que fiz e faço. Não é o quadro que é ou era alegre. Ela é quem estava alegre - foi o que descobri depois que ela saiu e eu fiquei em casa olhando o quadro que me pareceu estranho e perplexo só porque Selma gostara dele. Quando Selma voltou, pela madrugada, eu fingi que dormia mas observava ainda, da poltrona em frente, o quadro que ela julgara alegre.
Dias depois, tentei fazer outro, realmente alegre, usei tintas claras, estava de mão treinada em motivos decorativos e leves - Selma passou pelo quadro sem olhar, sem sequer reparar que eu estava pintando.
Bom, isso já ficou amarrado ao passado e um homem sadio - dizem meus amigos de hoje - não pode ficar preso ao passado, é tocar os burros para frente e viver o momento, o único momento que realmente exige e importa.
Preciso deixar de beber. Não deixarei a pintura unicamente porque ela me faz ganhar algum dinheiro e esse momento real que me exige e importa, também exige e importa em dinheiro. O passado é grátis, não custa nada - e talvez seja por isso que eu apelo tanto para ele.
Pinto qualquer coisa para qualquer um e por qualquer preço. Até estampados para fábricas de tecidos já faço também - eles pagam bem e não exigem muito. E eu preciso de dinheiro: é a única coisa que aceitam lá no bar onde bebo. Houve tempo em que aceitaram uns quadros, o meu Movimento em Três Tempos deu-me bebida por quase um ano, ficou na parede da escada que sobe para o segundo andar, na penumbra do bar ninguém pôde ver até hoje no que ele consiste, mas assim mesmo recebi elogios e fui citado na Enciclopédia da Arte Brasileira por causa dele: “Tino de Oliveira, carioca, autor de Movimento em Três Tempos, hábil colorista, após a fase cubista encontrou-se na pintura informal, onde vem realizando experiências de alto nível”.
“Encontrou-se.” Onde mesmo me encontrei?
Quando escovo os dentes estou sempre garoto, escovar os dentes me parece um rito infantil. Escovo os dentes e vejo que pouco ou nada cresci, a cara escura e magra de hoje não dá para esconder o menino bochechudo a quem recomendavam: escove em todas as direções, da direita para a esquerda, de cima para baixo. O gosto de dentifrício me dá bem-estar, como se tivesse praticado uma boa ação.
Não farei a barba. Será pretexto para evitar qualquer fraqueza mais tarde. Quem sabe, durante o dia, uma calçada hostil ou alguma lembrança não domesticada me faça correr em direção a Selma trazida do céu - já vejo agora, o céu está mesmo azul, irremediavelmente azul, como azul sempre esteve quando levava Selma para longe. Pior é que com barba ou sem ela me dê repentinamente vontade de ir ver Selma - e a mão misteriosa me leve de rastros até o aeroporto. O melhor que faço é ficar trancado em casa, não tenho telefone, poucas pessoas sabem onde moro, e, felizmente, de há muito João e sua mulher ignoram minha existência, não sabem se estou vivo ainda ou se morto estou no fundo da terra. Eles que esperem por Selma, afinal, são filho e nora, talvez tenham filhos e Selma ficará irritada ao saber que tem netos.
Faz bem pensar nisso mais uma vez: Selma vindo, vindo no azul, despejada na terra como um ovo apodrecido. Deve estar feia, aqueles braços pródigos já perderam forma, a pele amarelou e partiu-se em pedacinhos. O brilho do olhar mongólico talvez subsista e isso talvez ainda dê para fazer sofrer. Na realidade, eu deveria ir ao aeroporto, tomá-la em meus braços sem nenhum remordimento, tranquilo, e beijá-la com humildade.
De uma forma ou outra - pensando funcionalmente - deveria ir ao aeroporto em busca do abraço interrompido naquela mesma noite e naquele mesma hora em que Julinha morreu.
Talvez desça para tomar café. Depois me fecharei a chave. Barbado e escuro, como um náufrago. Ninguém pensará em mim, só Selma tem motivos para lembrar alguma coisa. Afinal, ela sabe que existo ainda, tem trocado cartas com vários amigos comuns, sabe do meu endereço, das minhas frustrações, da minha solidão.
Não sabe, e nenhum amigo sabe, que ela é culpada de tudo e que eu a perdoo, do fundo do coração a perdoo. Mas ela não sabe que é a culpada. Ela nem sabe que eu a perdoo.
- Média com pão e manteiga.
Constantino é o mesmo de quinze anos atrás. A única diferença é que agora é o dono. Era rapaz de copa no botequim da Tijuca, aquele botequim sórdido que fazia quina com o edifício onde fomos morar logo depois de casados. Constantino fazia biscates, encerava nossa casa às sextas-feiras, tomava conta das plantas de Julinha quando íamos passar dias fora, na fazenda dos amigos de Selma.
Constantino engordou, ficou calvo e generoso, comprou bar bem apanhado aqui em Copacabana, quando me mudei para cá desci para comprar cigarros, dei de cara com ele - e o tempo pareceu ter parado entre nós, como se ele ainda fosse encerar uma casa que não era mais, regar plantas que também não eram mais.
- Tanto tempo!
- Nem tanto assim.
- Como vai d. Selma?
- Anda por aí...
- Ouvi dizer que está na Europa...
- É. E você?
- Comprei isso. Trabalhei a vida toda para os outros. Chegou minha vez.
- Estou morando aí em cima, no 703.
- Olha, precisando de um rapaz para a limpeza...
- Obrigado, já tenho pessoa que cuida disso.
- E o pessoal? Tem visto Valdomiro?
- Valdomiro? Nunca mais o vi.
Mentira. Via Valdomiro de vez em quando mas não gostava de pensar ou falar nele. Nem iria abrir janelas para Constantino. Constantino não sabia nada de minha vida. Encerara uma casa que nunca existiu realmente, regara plantas que nunca foram plantadas.
- Prazer em revê-lo.
- Às ordens, Tino.
Tomei o café. Bem quente, como Selma gostava. Sua boca - se algum gosto tivesse sua boca - teria o de café. “É nervoso, é nervoso” - dizia. Do café adquiriu outro hábito: o fumo. Fumava dois a três maços por dia. “É nervoso, é nervoso!”
- Você não exagera?
- O café me bota em liquidação. O fumo me tranquiliza.
Os maços de cigarro abertos pela casa. “Onde está o meu isqueiro?” Ela gostava de um isqueiro vagabundo, presente do rapaz que andou apaixonado por ela uns tempos. Ignoro se o rapaz teve o que queria - o isqueiro me fez ir muita vez embaixo dos móveis para catá-lo com a ponta dos sapatos.
- Hoje eu vi o isqueiro embaixo da cama.
Selma se abaixava e trazia o isqueiro na ponta da vassoura. Isqueiro que negava fogo, ela não usava outro, me pedia fósforo.
- Por que você não me dá um isqueiro de presente?
Nunca pensara na hipótese de dar qualquer presente a Selma, e se pensasse em presente, dificilmente pensaria num isqueiro. Minto: houve época em que comprei um par de meias, achei-as bonitas e apropriadas à sua pele. O par de meias andou nos meus bolsos, nunca tive coragem ou oportunidade de abordar Selma e dizer: “tome, comprei isso para você”. Tinha medo que ela estranhasse o presente. Poderia imaginar que eu julgava suas pernas bonitas. E eu morreria de vergonha se ela suspeitasse que algum dia, por algum motivo, eu a desejaria.
Lá sei por que, ela nunca imaginou que podia me excitar. Tomava liberdades, quantas vezes a vi quase nua andando pela casa! Sentava diante de mim como se eu fosse uma criança ou um impotente. Na hora de sair, ao chegar à porta, levantava a saia e ajeitava a cinta ou o elástico das meias. Suas pernas, ao longo do sapato de salto alto, eram esguias, bem feitas. A calça deixava transparecer a brancura pesada do fim das coxas. Mas ela nem olhava para trás, nem sabia que eu a comia com os olhos.
Pois comprei o par de meias - cor da carne de Selma, meu Deus! - e o par de meias andou pelos bolsos, até que um dia, indo o terno para o tintureiro, ela veio com as meias na mão:
- Você precisa revistar os bolsos dos ternos que vão para o tintureiro. Olhe o que ia indo para lá!
Jogou-me as meias.
Fiquei encabulado, “é encomenda de uma amiga” - menti, mas creio que inutilmente, Selma nem ligara nem ouvira a explicação, para ela tanto fazia que desse ou não desse meias a mulheres. Devia supor que eu aliviava minha viuvez em algum canto e isso lhe bastava. Afinal, ela também consolava a própria viuvez à sua moda, não tinha nada com a minha vida nem eu com a dela, o fato de vivermos sob o teto comum era exigência de ordem prática, não abríramos o inventário que o advogado insistia em não abrir nunca, enquanto o bolo deixado pelo pai de Julinha estivesse unido, mais lucro e menos despesas daria.
Gosto de mulheres com meias. Julinha, que me lembra, usava meias raras vezes, e só para sair. Uma noite, quase lhe pedi que botasse meias antes de ir para a cama, e tinha direitos para pedir isso. Tinha direitos mas não tinha coragem e ela nunca me adivinhou essa vontade, que hoje já não mais escondo.
Depois que ela morreu, e com o passar dos anos, fui ficando sem-vergonha, um caso perdido, ou talvez fosse o desejo que já precisasse de estímulos mais fortes: o decadente Tino presenteava todas as mulheres que iam para a sua cama:
- Tome, essas meias ficam bem em você.
Elas então experimentam. A perna nua se alonga para fora da cama e a seda vai tomando forma e peso.
- Deixa tirar as meias, Tino.
- Depois... depois...
E por falar nisso, preciso comprar um par de meias para Enedina. As mocinhas das lojas perguntam pela cor:
- Cor de carne.
- Clara ou morena?
- Mais ou menos...
Trazem a amostra:
- Assim?
- É. Exatamente isso.
Reparo então que a meia é da cor da minha própria pele. Todas as mulheres que possuí foram da minha cor, moreno forte. Só Selma era branca e só Selma nunca foi nada para mim. Em compensação, há Enedina agora, que é mais morena que eu, carregada no bronze. Essa dificuldade impediu ao decadente Tino comprar até hoje um par de meias para ela.
Enedina é minha empregada. Quando Selma embarcou para a Europa e eu fiquei sozinho, montei meu atual apartamento. Pedi ao zelador do prédio que me arranjasse alguém para a limpeza, cuidasse de minha roupa, uma empregada para meio dia de serviço. Na mesma tarde apareceu Enedina: mandei entrar, mostrei o apartamento, sala, quarto, banheiro, quitinete.
- Preciso fazer comida?
- Não. Só arrumar, lavar o banheiro, uma vez por semana mudar a roupa da cama, fazer o rol das coisas, tomar conta disso tudo, sabe, sou viúvo...
- Preciso vir na parte da tarde?
- Não. Basta a parte da manhã.
- Aceito. Oitenta mil cruzeiros mensais.
- Também aceito.
Olhei Enedina. Era moça, bonita, pernas longas e fortes, boca sadia, ancas violentas.
- Olhe, Enedina, eu sou pintor, entende, pinto quadros, porcarias e outras coisas. vivo só, viúvo e só, e já estou muito velho para andar por aí procurando mulher...
Enedina abriu dois olhos amendoados, como a dizer que não tinha nada com minha vida, eu era dono do meu nariz e da minha casa, podia trazer as mulheres que quisesse, ela seria apenas empregada, estava habituada a servir gente assim.
- Não, Enedina, não é isso que você está pensando. Vou fazer uma proposta, aceitando ou não - o caso não é para você ficar zangada comigo. Dobro seu ordenado, em vez de 80, pago-lhe 160 mil cruzeiros por mês. E você será minha mulher também, além da limpeza, além do rol, sabe, o dia que eu a desejar levarei você para a cama e você será minha. Fará parte de suas obrigações, não incomodarei você todos os dias, pode ficar tranquila que não sou um fauno...
- O quê?
- Fauno. Fauno é o sujeito que não sai de cima de mulher. Procurarei você vez por outra, duas ou três vezes por semana, não mais. Será coisa rápida, em cinco minutos faremos isso, sou rápido nessas coisas. Evidente que isso não implicará em nenhum outro compromisso, nem de sua parte nem da minha.
- E se eu pegar um filho?
- Não há perigo. Sou estéril.
Enedina fez cara espantada.
- Sou estéril, não impotente. Impotente é que é isso que você pensou. Estéril é aquele que não pode ter filhos por causa de uma insuficiência...
Senti-me imbecil dando tantas explicações.
- Aceita ou não?
- O senhor parece maluco.
- Você aceita?
- 160 mil cruzeiros?
- 160 mil cruzeiros.
- Não quero que o senhor pense que eu seja uma vagabunda...
Fiz cara generosa, não, não pensava isso. Aumentava o ordenado para que ela se tratasse, usasse boa roupa de baixo, bons sabonetes, andasse sempre limpa.
- O senhor pensa em tudo, hein?
- Aceita?
- Aceito.
- Ótimo. Pode vir amanhã.
- A que horas?
- Tome uma chave do apartamento. Venha cedo, gosto de acordar e encontrar tudo arrumado.
- A que horas o senhor acorda?
- Tem dias que nem durmo. Isso não será de sua conta. Você virá às sete horas, haverá sempre o que fazer.
- Então amanhã, às sete?
- Amanhã às sete.
Enedina deu-me as costas. Um quadril redondo e forte, as pernas longas e firmes, a figura jovem, sadia. Desejei-a naquele instante. Cheguei-me pelas costas quando ela botava a chave na fechadura.
- Já?
Fomos para a cama - Enedina era dócil, passiva. Deixava-se possuir sem arroubo, sem entusiasmo, mas com ternura. Em menos de três minutos estava de pé novamente, correndo ao banheiro, a sua nudez deixara um visgo forte na minha pele, sentia no corpo um gosto doloroso e ácido, como a casca de uma fruta.
- Volto amanhã mesmo?
- Volta.
Daí para cá Enedina nunca deixou de vir. Passo semanas sem procurá-la. Até que acordo atacado. Reviro na cama de um lado para outro ouvindo o barulho que ela faz arrumando a sala ou lavando o banheiro. Chamo-a. Ela vem, dócil, silenciosa, entrega-se sem prazer mas com generosidade.
Certa manhã ela tardou. Justamente naquele dia eu a desejava com impertinência. Mal ela abriu a porta, agarrei-a com brutalidade e levei-a para a cama.
- Enedina, você nunca sentiu prazer comigo...
Aquilo me saiu como uma queixa.
- O senhor nunca me espera... é tão... afobado.
Com ela eu usava de todos os meus direitos, só pensava em mim, satisfazia-me depressa e depressa saía da cama, temia que uma intimidade demorada me desse repugnância dela. Mas naquele dia dei-lhe dinheiro, que ela comprasse um pijama novo, para usar comigo.
Pijama que ela estreou na manhã seguinte: foi a primeira vez que não a procurei. Ela chegou, foi direto ao banheiro, botou o pijama e veio deitar na minha cama. A transparência de sua carne cor de malva era excitante através do pijama branco. Naquela manhã acredito que Enedina sentiu prazer, um prazer à maneira dela, resignado e submisso, mas espontâneo, prolongado. Não lhe disse nada, nem nada lhe perguntei. Mas ela deve ter notado que eu fiquei lisonjeado. As mulheres percebem isso.
E Enedina ficou refúgio, escoadouro. Para que procurar mulheres na rua, pagar prostitutas, correr o risco de doenças ou de paixões por mulheres que sempre são de outros homens e de outras preocupações? Enedina vinha-me todas as manhãs, pontual. Querendo-a ou não, dava no mesmo. Se passava muito tempo sem procurá-la, ela ficava reticente, estranha, mas não dizia nada.
Eu procuro ser honesto com ela e o sou, de fato. Só uma coisa me dá remorsos: aquela desculpa da esterilidade. Posso engravidar Enedina, dei a desculpa porque foi a única que me ocorreu na hora. A mentira nos bastou, a mim e a ela. Não me incomoda mais.
Houve intervalo nesse tempo todo. Enedina, certa manhã, disse que recebera carta da família, na Bahia, um parente estava mal, exigia a presença dela. Ela passou quatro a cinco meses fora mas me deixou substituta, uma loura espalhafatosa que arrumava o apartamento tão bem quanto Enedina. Certa manhã chamei-a para a cama, ela veio, dócil também, mas gozou muito e isso me deu mal-estar, pensei que ela fingia para me prender ou me tirar alguma coisa.
Ficou apenas nessa vez, nunca mais a procurei. E preferi esperar que Enedina voltasse.
Enedina tarda. Ou não é ela quem tarda, fui eu que acordei mais cedo por causa da bebedeira de ontem e do telegrama agora aberto e sofrido. Daqui a pouco a chave dela penetrará na fechadura, ela talvez se alarme com o fato - para ela inédito - de me encontrar acordado e tão acordado. Mas ela nada sabe de mim, afinal de contas. Ignora e ignorará sempre que há um telegrama no meu dia e na minha vida, que Selma está chegando do céu, um raio cego despejado em dia de sol - e por isso mais inesperado ainda. Enedina sabe dos meus gostos, dos meus quadros, do modo meio sórdido com que me satisfaço na cama. Mas nada sabe realmente de mim.
Ei-la finalmente, a lingueta da fechadura correu e se encolheu no escaninho embutido da porta.
- Bom dia.
- Bom dia.
- Tudo bem?
- Não se admira de me ver acordado?
- Está no seu direito.
- Bem, isso é verdade.
Enedina vai até a quitinete, enche a chaleira de água, acende a boca do fogão.
- Já tomei café lá embaixo.
- Farei outro. Faz parte de minhas obrigações. Café nunca é demais - o senhor sempre disse isso.
Posso explicar que a frase não é minha, é de Selma, mas não profanaria Enedina com o nome de Selma.
- Você é boa, Enedina.
- O senhor também é bom para mim.
Olho Enedina nos olhos:
- Enedina, hoje estou sem vontade.
Ela volta para o fogão, onde fica esperando a água ferver.
- Você está estranhando, não?
- Para falar a verdade, estou.
- Recebi um telegrama.
- Má notícia?
- Sim... quer dizer, um pagamento que não saiu, tenho uma dívida para pagar...
- Está sem dinheiro? Enedina volta-se rapidamente.
- Hoje estou - levado pela mentira ia adiante - mas amanhã recebo um pagamento, um sujeito aí me comprou dois quadros, vai pagar amanhã sem falta.
- Tenho algumas economias, se for coisa pequena talvez possa ajudar.
- Obrigado, Enedina, você é boa.
- O café também está bom - Enedina toma sua xícara e insiste com os olhos. Estendo a mão, apanho meu café.
- O jeito é trabalhar, o senhor hoje não precisa de mim.
Em pouco o apartamento está limpo novamente.
- Ontem teve pifão?
Enedina leva para a lixeira as garrafas vazias. Pela primeira vez parece uma estranha. Na hora de ir embora ela me procura outra vez.
- É muito dinheiro?
- Que dinheiro?
- O que o senhor deve.
Já nem lembrava mais.
- É... quer dizer, um pouco.
- Se o senhor não me leva a mal, eu posso ajudar, tenho algum guardado.
- Obrigado, Enedina, já disse que não preciso, eu me arrumo sozinho. Amanhã vou receber dinheiro, obrigado, mas não é preciso...
Enedina olha mais uma vez o apartamento, dá com a garrafa de soda escondida embaixo do sofá, apanha-a e leva-a para o armário sob a pia.
- Pronto, o apartamento está em ordem. Até amanhã.
- Escute, Enedina, vou lhe pedir um favor...
A pressa com que ela abandona a porta me enternece e me dá uma ideia súbita e idiota: casar com Enedina.
- Olhe, recebi um telegrama que me aporrinhou, não é por causa do dinheiro, é que não esperava, enfim, coisas pessoais que não envolvem dinheiro. Não quero sair de casa hoje. Mas pode ser que me dê vontade de sair logo mais. Há uma pessoa que vai chegar e eu não posso nem quero ir a seu encontro, entende? Eu me conheço um pouco, programo atitudes, mas na hora vai tudo abaixo, acabo indo que nem um cão atrás da migalhinha. Você quer me prender aqui dentro?
- Prender?
- É. Leve minha chave, todas as minhas chaves, o chaveiro está em cima da mesa. Feche-me por fora e só abra amanhã.
- E se o senhor quiser sair para almoçar ou jantar?
- Eu me arranjo, tem presunto na geladeira, conservas, café, leite, uísque, não vou morrer de fome...
- Mas...
- Enedina, é um favor, tá?
Os olhos amendoados piscam para ficar duros e firmes:
- Tá.
Apanha o chaveiro, indico a chave, ela abre a porta. Vejo a lingueta correr novamente, em sentido contrário agora. O barulho do chaveiro recolhido. Passos pelo corredor, a porta do elevador se abrindo. Um estalido metálico e o elevador deslizando pelas paredes, coágulo de sangue no meio de artérias de concreto armado.
Pronto.
Estou só. Preso e só. Selma pode chegar, o avião pode explodir ao descer, ela pode explodir ou querer vir esta noite mesmo até aqui e ser minha. Nada disso importa. Estou só, preso e livre, estranhamente livre, imensamente livre e onipotente em minha prisioneira liberdade.
O garoto que ia se matar no dia em que a mãe morreu. O caixão aberto no meio da sala, o lenço branco escondendo o rosto cinzento, as chamas das velas pingando cera ao longo dos castiçais azinhavrados. Vontade houve: foi ao armário da cozinha, abriu a gaveta dos talheres, apanhou a faca comprida com que o pai se especializara em cortar fatias de presunto. Levou a faca para os fundos do quintal.
- Aqui ninguém me vê!
Ninguém via, mas a faca estava cega, teve antes de abrir o fio. O pai tinha a pedra de amolar perdida em um canto do barraco de ferramentas. Achou a pedra sem dificuldade: molhou a faca e ficou amolando, de um lado para outro, vendo formar a gosma escura em torno do fio de aço polido.
- Pronto, agora está boa.
Pensou em experimentar no próprio dedo mas sentiu repugnância em se ferir.
- Não, enfio na barriga, que é lugar macio e sem osso.
Levou a faca escondida no peito até os fundos da cerca, no lugar mais distante do quintal. Ali levavam o Olavinho. Olavinho tinha bunda gorda e branca, era condescendente. Dava a todos. Ele nem tinha ainda nada, mas já se esfregara nas gordas polpas de Olavinho. Em compensação, os guris mais taludos enfiavam direto e Olavinho gostava, era uma mulher, não havia dúvida.
Ficava-lhe apenas o encantamento: tirar as calças no meio do mato, a luz do sol batendo em sua carne branca, e pecar com o outro. Tinha a sensação de que ninguém mais sabia fazer aquilo, só “eles” haviam descoberto a brincadeira. E a mornidão do sol abençoava o pecado - anos mais tarde, ao longo de toda a vida, sempre que sentisse cheiro de capim amassado lembraria Olavinho e sua carne macia, condescendente.
Agora arriava a calça, sem Olavinho mesmo, apenas para a barriga surgir nua e a faca poder entrar à vontade.
De repente, teve imensa pena de si, tão criança ainda, dez anos apenas, e já suicida. Diriam: não suportou a morte da mãe, a carranca do pai, a idiotice do irmão. Matou-se o coitadinho, com a faca de cortar presunto na barriga nua, em pleno sol.
Ninguém veria. Mas apareceu o Rubens, primo por parte de mãe. Viera obrigado ao enterro, não dava importância ao fato de ter a tia morrido, aborrecia-se no velório, resolveu visitar o quintal dos primos, onde não fazia muito vinha brincar também.
Rubens era taludo, quatorze anos já, tinha buço e órgão genital compacto, mostrava a todo mundo para provar que era homem, já tivera mulher, uma tal de Dalva, que havia sido deflorada em Paquetá.
Rubens viu o garoto arriar a calça, não percebeu a faca ao lado. Deu um pulo e agarrou-o por trás.
- Deixa, deixa - gemia.
O garoto fugia, envergonhado.
- Não, não, o que eu quero é morrer!
- Deixa de ser bobinho, venha cá que eu...
A faca afiada entrou rijo pelas virilhas do primo. O sangue espirrou.
- Ai desgraçado! Você me matou!
Rubens curvava-se sobre a barriga, com as mãos parecia segurar os intestinos. O sangue empoçava no chão.
Os gritos atraíram o pai, os tios, tias, primos, conhecidos, parentes e todos os desocupados que da rua olhavam o processamento do velório.
- Um crime, mataram meu filho, quê que houve, isso não tem explicação, uma bandalheira, não respeitou o enterro da mãe, foi ele o culpado, deu ou não deu, ia dar mas doeu, isso não, foi a primeira vez, nunca, meu filho é homem, e esta faca, meu Deus, quê que houve?
- Eu queria me matar.
Rubens torcia-se no chão, do seu corpo saía cheiro de porco esfolado.
- Capou meu filho, isso é que é!
- Foi ele quem provocou, um abusado.
- Quem provocou foi seu filho.
Deu ou não deu, ia dar - a discussão recomeçava.
A faca varejada pelo pai para o quintal do lado. O tio apanhou Rubens e o levou para dentro. Logo a ambulância parou à porta. Rubens esvaía-se em sangue. Mas conta como foi, não foi nada, meu filho não é disso.
Da rua, os acontecimentos pareceram estranhos porque relacionados com a defunta. Correu que a morta não estava morta, que ia ressuscitar, que se mexia no caixão. À chegada da ambulância muita gente correu apavorada para não ver o cadáver surgir de entre as velas, como um milagre.
- Eu queria era me matar!
Até que o pai prestou atenção ao que ele dizia:
- Você ia se matar? Mas por quê?
- Não quero mais viver.
- Por quê?
- Vou sentir medo de mamãe!
- Medo? Mas ela morreu!
- Por isso mesmo.
- E o Rubens? Quê que te deu para fazer aquilo?
- Ele quis abusar, meti-lhe a faca na barriga.
- Não, não foi na barriga, desgraçado, você parece que inutilizou o seu primo... isso vai dar bode...
O padre chega para encomendar o corpo e o assunto ficou temporariamente abafado. Não deixaram o menino ir ao cemitério. À noitinha, quando o pai e o irmão voltaram sozinhos e abandonados, o telefone tocou.
- Rubens foi operado. Vai ficar sem aquilo.
O irmão escandalizado:
- Viu o que você fez?
O pai estava tonto, noites sem dormir, a doença da mãe, depois a morte, o enterro, e mais aquilo ainda por cima. Passou a mão pela cabeça do filho:
- Então você vai ter medo de sua mãe, hein? Seu bobinho, ela morreu, não volta nunca mais para nós, está no céu.
- Eu não acredito no céu.
- De qualquer forma ela não volta mais. Nisso você pode acreditar.
- Mas vou ter medo do mesmo jeito.
O pai pensou um pouco:
- Bem, você dormirá comigo esta noite. Dormirá comigo até que o medo passe...
Concordou com a cabeça, envergonhado.
Seria pior. Todas as suas mentiras tinham consequências funestas: dormiria com o pai, um homem grande e repugnante, cheio de ruídos desagradáveis durante a noite. Dormiria na mesma cama da mãe, onde ela dormira e morrera.
Além disso, não era medo que ele sentia: apenas um grande vazio em torno da vida de todos e dele. Não se conformava à ideia de que a mãe estivesse jogada no fundo da terra - ela que não deixava os filhos brincarem com terra para não se sujarem. Àquele instante, ela devia sentir frio ao longo do corpo inerte, sem ninguém para lhe deitar uma coberta, como ela fazia nas noites de inverno, quando acordava durante o sono para ver se os filhos estavam agasalhados.
- Por que não enterraram mamãe no jardim?
O pai riu.
- A polícia não deixa.
- Quê que tem a polícia com a vida da gente?
- Muita coisa.
- Ninguém devia morrer.
O pai segurou-lhe a mão.
- Promete ao papai ser amigo dele, nunca mais querer se matar?
A mão do pai tinha o mesmo peso da mão de Rubens querendo apalpá-lo. Mas não tinha faca para matar o pai. Nem adiantava matar mais ninguém, a morte não resolvia nada para ninguém.
E o pai durante a noite urinou duas vezes, roncou alto, roçou o rosto de barba crescida pela cara dele, apavorada e nauseada, encolhida num canto.
O sono veio tarde, quando o cansaço venceu repugnância e medo. Ele dormiu profundamente. Acordou de repente: o pai sentado na beira da cama, a carantonha enorme e descabelada, chorava convulsamente.
Depois apareceu a outra mulher. Ele já não dormia com o pai, voltara a dormir no quarto de antes, as duas camas paralelas, o irmão começara a pintar aquarelas que causavam pasmo na família:
- Um talento!
Sucesso fez o pôr do sol em Paquetá que o irmão pintou num piquenique programado pelo pai, no dia seguinte ao do seu casamento com a mulher que foi morar com eles. O mar incendiado, o céu de camadas azuis e cor-de-rosa, nuvens arrumadas pelos lados, ao centro as gaivotas espacejadas simetricamente.
- Um talento!
Mais tarde, um luar prateado deslizando sobre palmas de coqueiros imaginários numa curva imaginária ao lado de um mar imaginário. O pai embargou:
- Um gênio!
Mexeu amigos, tratou atestados e certidões, aparecia em casa com papéis solenes e selados, o irmão tirou retratos 3 x 4 e foi matriculado nas Belas-Artes.
- E o outro?
O outro não queria nada com pincéis, nada com o lápis. A faca de presunto foi achada, enferrujada, o português que comprava garrafas vazias ficou com ela.
Rubens, já cicatrizado, ficou caladão, diziam que estava seriamente doente, deu de fazer versos - a família tinha instintos inconfessáveis: poetas medíocres, pintores medíocres, suicidas medíocres. Quiseram botar Rubens no convento mas os frades não o aceitaram, os homens adultos da família diziam entre os dentes, falando dos frades:
- São uns safados!
Um dia, ele pegou no pincel do irmão e fez dois riscos verticais cortados por dois riscos paralelos. Destino - foi o nome do quadro.
Riram:
- Esse menino deu para brincar!
Fez versos também. Saíram maus - ele foi o primeiro a descobrir. Tentou a prosa. Escreveu o Testamento de um Defunto Sem Juízo. O pai riu, achou macabro e erros de palmatória, não meu filho, não dá para nada, o melhor que você faz é estudar para o comércio, talvez saiba ganhar dinheiro.
Ganhou dinheiro roubando a carteira da bolsa da madrasta. Dinheiro que não chegou a gastar: o pai deu-lhe surra de rebenque, o irmão comprara um, durante o passeio a Petrópolis, o rebenque pendurado ao longo da parede foi a única arma que o pai encontrou para justiçar o filho.
Antes de acabar a dor da surra, ele pegou no rebenque do irmão e jogou-o fora. Depois resolveu fugir de casa.
O pai viu a mala.
- Olhe, você tem feito muitas besteiras. Querendo, faça mais uma. Mas se sair por essa porta nunca mais voltará. Eu não deixo!
A mala aberta em cima da cama era apenas uma atitude. Na realidade, não desejava abandonar a casa. Mas em brios, teve de exagerar. Botou suas roupas, seus livros, uma cópia do Testamento de um Defunto Sem Juízo e foi embora. A madrasta chegou à janela e viu o enteado fazendo a curva da esquina, sem olhar para trás.
Não olhou para trás mas voltou para trás.
Andou o dia todo, a mala arrastando. Subiu uma ladeira que nunca soubera existir ali pelos sítios de sua casa: viu a cidade lá de cima e enterneceu-se com sua própria solidão, com seu voluntário exílio.
À noite, quando as luzes da rua se acenderam e a fome e o sapato apertaram, nem se deu ao trabalho de arranjar o pretexto para voltar: entrou no peito por dentro de casa. E como o único a se admirar da volta fosse o irmão, teve presença de espírito para espinafrá-lo porque já se apossara de um suéter que havia esquecido de emalar.
O pai não disse nada mas a madrasta riu:
- Olha quem voltou!
Ele arriou a calça e mostrou o sexo:
- Olha!
A madrasta deu um grito. O pai veio lá de dentro, procurou pelo rebenque, a mão rolou pela parede vazia:
- Esse miserável!
Tirou a correia das calças, as lambadas fizeram marca pelas pernas do rapaz:
- Eu te mato, menino!
Quando acabou a surra, antes que o pai se refizesse do esforço, ele correu ao quarto da madrasta:
- Olhe!
A madrasta gritou mais forte ainda e começou a chorar. O pai atirou-lhe em cima o peso de vidro, a cabeça fez um barulho surdo mas não abriu.
O irmão, no dia seguinte, pintou quadro alusivo àquilo tudo: um demônio-vermelho, cheio de rabo e chifres, expulso por um anjo afrescalhado. Ao fundo, uns vitrais góticos.
- Isso está uma merda!
- Você diz isso por despeito. O demônio é você mesmo.
- Já sei. O demônio sou eu, você é o anjo, e os vitrais é a igreja onde nosso pai come a puríssima esposa!
- Você é um cretino! Olhe, aquela história do Rubens, ele me contou, disse que foi você que provocou!
Ele encheu o peito.
- O que fiz no Rubens posso fazer em você. É só se meter comigo que eu arranco isso fora.
- Arranca nada! O Rubens me contou. Você deixou, depois é que quis bancar o homem!
A bofetada entrou na cara do irmão como colher no meio de mingau. O quadro caiu no chão e foi pisado com raiva.
- Esse menino precisa de reformatório - a madrasta metendo o bedelho. O pai veio novamente, viu o estrago na cara do filho mais velho e na obra-prima recém-fabricada.
- Caraça! Isso é que é! Caraça!
O enxoval apressado. Qualquer coisa servia, lá não havia luxos. Na véspera, o pai foi à estação, precaver-se com os bilhetes, não queria perder o dia marcado para a admissão dos novos alunos, podiam depois não aceitar o rapaz e ele ficaria com o prejuízo em casa. A madrasta fez-lhe sanduíches, na hora da despedida fez solenidade.
- Eu te perdoo.
- Não preciso de perdão de ninguém.
O pai olhou a mulher.
- É a última! De amanhã em diante ele não atrapalhará mais!
O trem resfolegando. Na plataforma, o irmão puxou o caderno de esboços e tomou notas de um quadro: o trem, homens acenando chapéus, a fumaça do trem confundida com as nuvens por cima da estação.
- Esse quadro vai sair uma droga!
- Não estou pedindo opinião!
- Mas estou dando do mesmo jeito.
O apito, o chefe do trem correndo com a bandeirinha.
- Até a volta. Vê se você se emenda!
Olhou a cara do pai e sentiu que ali estava uma coisa importante: um pai. Lembrou-se daquela noite em que acordara e o vira chorando.
- Pai, querendo me bater me bata, mas não chore agora.
O pai chorou ao ouvir isso.
E ele se foi, sozinho, levando dentro de si um mundo de culpa e de lágrimas.
O trem fugindo pelos subúrbios, as casas espacejando pela janela de vidro. Lá longe o colégio interno, cheio de regulamentos e castigos. A madrasta àquela hora batendo boca com as vizinhas, “fiquei livre daquele traste!”, a intrusa. Rubens caladão, pelos cantos, mijando pelas virilhas, através de um tubinho de borracha. Aquilo tudo era obra dele, ele era alguém, marcara-se no destino dos outros. O irmão tomando apontamentos, “é um esboço, sabe”, o trem, a fumaça do trem, a roda do trem, o chefe do trem, uma coisa cheia de trem. Ele cheio de trem também, ele dentro do trem, enchendo-o com um destino.
São dez horas de quinta-feira. Enedina fechou-me aqui dentro, fui à geladeira e chupei um cacho de uvas que queimavam de geladas. Talvez aproveite o resto da manhã para pintar alguma coisa, acabar aquele quadro que prometi ao Humberto.
Na verdade, as uvas já estão passadas e não tenho jeito nem modo de pintar nada hoje. A qualquer momento sentirei uma força me impelindo para a rua, o avião vem chegando e tem encontro comigo, só descerá à pista quando eu lá estiver para unir as duas pontas do seu destino: Selma e eu.
Pânico entre os passageiros, “ele ainda não chegou”, telegramas para toda a parte, urgente, urgente, prioridade absoluta, ir ao aeroporto, por isso Selma telegrafara, “chegarei quinta-feira, Boac”. Boac, boaca, croaca e cloaca - Selma.
A dos braços pródigos que nunca foram acariciados devidamente. Selma de olhos cinzas, mongólicos. Selma da boca lascada, lábios finos que tremem brancos e que Valdomiro profanou e outros profanaram - lábios de vício, que bebiam tudo e tremiam, violetas e escarlates, pavorosamente frios - oh dor de corno!
Logo que Selma se foi, incapaz de pintar por alguns tempos, comecei a escrever. Estão aqui na escrivaninha, há muito tempo que não mexo nesses guardados, o pó foi acumulado e com ele o esquecimento, desenhos, esboços também, a condecoração que me arranjaram no Chile, uma exposição de caridade para a qual enviei quadros, me mandaram pelo correio a condecoração, fizeram-me cavaleiro ou comendador - já não lembro mais, está aqui o papel em caracteres góticos, tem também este diploma, o da primeira comunhão, nunca o joguei fora e já era tempo de ficar livre dessas coisas, uma das lembranças mais fortes de minha mãe, ela dizia que o menino vestido de branco e de faces rosadas era eu, e que o Jesus, por trás do padre que me dava a hóstia, era meu amigo e me faria feliz. Odeio esse Jesus que tapeou a mim e à minha mãe.
Eis os cadernos finalmente, meus primeiros esboços, aquilo que seria o roteiro para o Movimento em Três tempos, uma carta do Godinho datada de Corumbá, o aviso do juiz intimando a comparecer à audiência, no caso de Barra-Mansa - afinal, o Valdomiro aproveitou-se não apenas de Selma, mas de todos nós.
E aqui, o caderno dos cadernos, a bíblia das bíblias. Espano mas é inútil, o pó entranhou no papelão da capa. Minha letra era aproveitável então. Está aqui. Diário de 1940. Diário de 1938. Um Acontecimento. O Que me Ficou em 1944. O Trágico 1945 (o diabo que não me lembro mais porque o 1945 foi trágico). Uma carta que Selma escreveu e esqueceu de mandar, eu guardei para ter alguma coisa que guardar de Selma e para nunca esquecer que ela não prestava mesmo.
Se Julinha tivesse lido isso tudo? Bem, Julinha já era morta, e se viva fosse e lesse tudo isso, ficaria apenas admirada, de não se falar nela numa dessas páginas que aqui estão, amarelando e pedindo lixo.
Boletim de notas do colégio. Décimo-sexto numa turma de quarenta. Não era brilhante; meu irmão era o primeiro em turmas de cem. Vou ler tudo para passar o tempo, quando acabar já a noite caiu e Selma aterrou, o avião que se dane sem mim, o que importa é Selma não me incomodar mais - o fantasma dela já incomoda e eu lhe sou fiel, de forma amarga mas fiel. Não preciso estar perto de Selma para Selma ser Selma. Isso, na verdade, talvez seja o que doa mais, e de forma irreparável.
Mas nem só de Selma vive um homem. Aqui estão cadernos antigos: provam, entre outras coisas, que antes dela já havia, em gestação, uma fórmula, um roteiro, um plano-piloto para Selma.
Ela apenas surgiu no momento e na intensidade exatos: o campo estava arado, bem estrumado - é isso que provam os cadernos.
O mais remoto deles fala do colégio. Selma já era casada e mãe da Julinha e, distante delas, eu arrastava ainda a minha virgindade como um dever, um fardo, um impaciente não-saber-nada.
Ele estava no canto mais afastado do pátio.
Àquela hora, no velho casarão do internato, a maior parte dos alunos ficava reunida em torno do padre-prefeito, ouvindo histórias de martírio dos primeiros cristãos, a maldade dos soldados romanos, a pureza das virgens, a fúria dos imperadores, o heroísmo dos santos que eram obrigados a jogar grãozinhos de incenso diante dos ídolos pagãos.
- Não jogo! Meu Deus é outro!
O imperador bradava:
- Aos leões!
Os leões eram da Númia - lugar que tinha leões ferocíssimos. E padre-prefeito abria a boca no escuro, rugindo como deviam rugir os leões da Númia.
Às vezes havia os milagres. Diante dos mártires, muitos leões famintos curvavam-se de joelhos. O imperador, possesso, mandava entrar os gladiadores. O machado cortava o pescoço dos santos e o sangue dos mártires era semente de novos cristãos.
Ele andava em maré de depressão, havia recebido péssimas notas no primeiro semestre, e, de repente, sozinho, perdido no imenso pátio que começava a escurecer, teve vontade de chorar. Foi para um canto onde ninguém o visse. Distraiu-se tanto em procurar um abrigo que, quando o encontrou, já tinha esquecido o impulso que o levara ali para chorar.
- Tenho de chorar!
As lágrimas não vinham. Pensou na morte da mãe e na maldade do pai, a boçalidade do irmão, o colégio, as notas baixas e a humilhação de ser um dos últimos em tudo, ele sozinho, órfão e só num mundo que parecia bastar a todos, menos a ele.
O primeiro soluço veio forçado, tirado a ferro do fundo de sua carne. Mas os outros vieram naturalmente. Logo não houve mais soluço, chorava por estar chorando e um pranto macio descia, aliviando-o, enternecendo-o.
Tinha as vistas molhadas quando viu o vulto à sua frente. Vulto que se chegou mais, e antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, sentiu o beijo na boca, desajeitado.
- Você!
O beijo escorregara um pouco do sal das lágrimas: sentia na boca o gosto do pranto. Aquilo era um beijo.
Antes mesmo de penetrar no corredor de mangueiras que dava para o pátio - já a noite tragara mangueiras e pátio - o vulto sumira nas sombras e deixara, marcado a sal, um beijo em sua carne.
Ele se detestava - e, ao mesmo tempo, contra a vontade, se encantava. O episódio de Rubens, a faca entrando na carne macia do outro, o sangue espirrando, sua honra (ou aquilo oculto que ele não sabia o que era mas que inchava dentro dele) estava salva aos olhos de todos e aos próprios.
Agora não. No escuro do pátio, profanado em sua solidão, e por entre lágrimas, alguém o violara, deixando-lhe na boca o sabor de carne suada e aquecida. E - o que era pior - gostara, sentia-se mais leve e consolado, encantado e corrompido.
Seria mesmo Antônio Carlos? Se fosse outro nada mais faria sentido, ele teria nojo daquele contato de boca com boca.
Antônio Carlos era um segundanista, e logo nas primeiras semanas de colégio começou a ouvir boatos pelas bandas dos mitórios. Não, não se tratava de caso comum nos internatos, sexo desencontrado ou invertido. Havia casos assim, davam na vista e ninguém ligava.
Mas Antônio Carlos era diferente, gerara lenda que alguns acreditavam, muitos duvidavam e todos propalavam: era uma menina internada à força no colégio. Uma viúva amigara-se com o padre-despenseiro do colégio, há alguns anos. A viúva tinha filha, não queria separar-se dela. Mas não havia colégios perto, internatos para moças só nas grandes cidades, e custavam caro. A viúva morava ao pé do colégio, o padre era despenseiro, vivia sempre pelas hortas e pela vila onde comprava mantimentos para a comunidade. Dormia fora do colégio o mais das vezes. A menina chegou à idade escolar, os dois combinaram: a própria viúva trouxe aquele menino gordinho, desajeitado no uniforme cáqui. O padre-despenseiro colaborou internamente, fazendo a fiscalização dos papéis a seu modo. O menino foi admitido sob o nome e número de Antônio Carlos, 97.
Quando lhe contaram a história, não deu importância. Tanto lhe fazia: problema de Antônio Carlos e de outros, não dele. No fundo, pena do colega: vivia arredio, ninguém o queria para os jogos, não era escalado para nada, vivia pelos cantos, de livro na mão, incompatibilidades gerais ou por ofensas declaradas ou por assédios vergonhosamente repelidos.
Eram vizinhos de dormitório, volta e meia trocavam-se sabonetes ou pasta de dente. Imerso em seu próprio problema, ele se esquecia do outro: Antônio Carlos não existia.
Não existia mas existiu, de repente: chegou, silencioso e rasteiro como um réptil, a boca na boca, um pouco de pecado, um pouco de brinquedo.
Naquela noite ficou acordado, olhando para a outra cama, onde Antônio Carlos, virado para ele, olhava-o também. No outro dia, sem nada combinarem, encontraram-se na gruta mais afastada do pátio, onde antigamente a imagem da Virgem recebia novenas de maio.
Não tiveram coragem de repetir o beijo na boca. Foram-se chegando um ao outro, se estudando. Sentiu na face a respiração do outro, os olhos acesos. O peito tremia.
Duas virgindades mortas no mesmo chão e no mesmo abraço.
Padre-prefeito era homem bom. Tinha problemas também, não se dava com o reitor, um monsenhor avançado na idade e nas honras eclesiásticas, formado em Olinda, reduto reacionário do clero. Padre-prefeito era formado em Roma - um liberal.
Ele não entendia nada disso, Olinda ou Roma eram duas cidades estranhas. Até que ficou um feriado preso no salão de estudo justamente por causa de Olinda e Roma.
Abriu o Atlas, procurou os dois nomes. Eram distantes. E no entanto, as duas cidades invadiam sua vida e ele ficava sem feriado, a comunidade inteira no estudo, lá fora um dia de sol quente deslizando inutilmente.
Fora uma discussão entre o reitor e o padre-prefeito. Ganhou o mais forte, padre-prefeito veio comunicar que a direção do colégio havia suspendido o feriado. Os demais professores haviam recebido dispensa de véspera, o jeito era a comunidade amargar no salão de estudo as horas do dia vazio e lento.
A boçalidade do castigo irritou-o. Não suportaria mais aquele colégio onde os alunos sofriam por causa de Roma e Olinda; sua vida era coisa pessoal e intransferível, não podia ficar ao sabor de disputas entre jesuítas e dominicanos.
Naquela mesma noite, levando Antônio Carlos para a gruta, botou as cartas na mesa:
- Sabe, nós precisamos fugir.
- Não posso.
- Sua mãe não deixa?
- Não posso. Nem adianta explicar, mas não fale mais nisso. E olhe, não quero que você fuja.
- Só fugirei se você for comigo.
Antônio Carlos encostou a cabeça em seu peito, e apertou-o nos braços, com ternura.
No dia de Santa Cecília, padroeira do coro, programaram piquenique numa represa próxima.
Padre-prefeito deu ordem:
- Podem tomar banho.
Antônio Carlos não havia levado calção, ficou pelas bordas. Um sujeito fez a proposta:
- Antônio Carlos, trouxe outro calção. Eu empresto.
- Obrigado, não sei nadar.
Padre-prefeito ouviu.
- Não seja bobo, menino, você é um moleirão, precisa tomar banho, vista o calção de seu colega e dê uns mergulhos.
- Não posso, padre, estou resfriado.
- Isso é mentira, você é moleirão.
A turma rodeava Antônio Carlos, queriam todos ver nuas aquelas pernas que tentavam o colégio inteiro.
- Vamos, não seja trouxa!
Ele ouviu um colega dizer para outro:
- Você vai ver, aquilo é que são coxas!
Engalfinhou-se com o colega dentro d’água. Padre-prefeito ordenou que os separassem. Pingados, tremendo de frio, diante do padre:
- Que foi isso? Por que brigaram?
- Esse camarada ofendeu o Antônio Carlos.
Padre-prefeito passou a mão pela cabeça dos dois, deixem disso, vão brincar e não criem casos, senão o reitor não deixa mais fazer piquenique, vocês estragam o prazer e o direito dos outros, é preciso, acima de tudo, ordem.
Após o incidente, Antônio Carlos passou a evitá-lo. O resto do piquenique foi uma fuga. Na hora da refeição - padre-prefeito mandara assar três leitões - Antônio Carlos fugiu: haviam, tão logo à chegada, colocado os pratos no mesmo lugar, para almoçarem juntos.
Viu Antônio Carlos longe, levando o prato para perto de uns sujeitos antipáticos, a turma do Golias, o maior da turma, o que comia os garotinhos de onze e doze anos, o que ameaçava todo mundo, que perseguia o próprio Antônio Carlos.
Na viagem de volta, viu Antônio Carlos de braço com Golias, cantando:
O sol ao despontar
nos convida a brincar...
Ele seguia, sozinho e escuro, comendo pedaços de capim que ia arrancando da beira da estrada. Por que Antônio Carlos fazia aquilo? Por que Antônio Carlos, sempre só, pouco comunicativo, de repente se misturava com os mais barulhentos, os de alegria mais ruidosa e depravada?
À noite, após o silêncio geral, quando padre-prefeito apagou as luzes do dormitório, ele arriscou olhar para a cama ao lado, onde Antônio Carlos estava de costas para ele.
Cansada, a turma logo dormiu. O banho da represa e a caminhada de ida e volta atuavam na turma, todos roncavam. Só ele virava de um lado para outro, cansado também, mais sofrido que cansado, insone, vontade de gritar em meio da noite para que todos soubessem que Antônio Carlos era mau.
Súbito, Antônio Carlos se levantou. Num pulo estava sob suas cobertas, peito contra peito, boca contra boca.
- Você me defendeu! Como você é bom!
Antônio Carlos, sempre passivo, vinha agora sem respeitar nada, nem a possibilidade de um flagrante. E sob as cobertas, os dois gemiam, desforrando um dia de separação e ódio.
- Vamos fugir!
- Vamos!
Mas ele sentia agora que jamais fugiria com Antônio Carlos. Quebrara-se alguma coisa. A sofreguidão com que ele se entregara aos outros, a Golias, aos adversários, dava-lhe dimensões insuspeitadas no amor. Dentro dele, alguma coisa murchara definitivamente, alguma coisa nunca mais se recomporia.
- Fujo!
Amar era ser de outra pessoa, seu destino passaria a depender de outros, Roma e Olinda, jamais aceitaria essa gratuidade do sofrimento, Antônio Carlos alegre, de braços com Golias, e ele remoendo o pó dos caminhos, sofrendo porque não participava - a não ser do pó.
- Fujo!
Passou a evitá-lo. Morreram os silêncios durante as aulas, as aproximações na hora do recreio. Antônio Carlos só existia agora na gruta. Ele ia disposto a dizer que tudo acabara, que não queria mais nada.
Antônio Carlos deu para chorar, fazer cenas e descuidos. Um dia, correu que alguém tinha visto Antônio Carlos mudar de blusa, nasciam dois seios - cheios de leite! - acrescentavam.
No domingo seguinte, um dos bedéis chamou Antônio Carlos na fila:
- Noventa e sete!
Antônio Carlos seguiu o bedel.
- Olha, padre-prefeito acha que você está muito pálido e molengão. Mandou que eu desse uma física em você.
Foram para os bambuais. Lá - soube-se depois - o bedel mandou Antônio Carlos tirar a roupa, obrigou-o a tirar a roupa. Quando o corpo surgiu, trêmulo, o bedel varou.
Possuiu-o à força, às dentadas.
Depois foram expulsos os dois. A notícia correu e muita gente ficou tonta:
- E ninguém aproveitou!
Olhavam-no com raiva: “esse aí comeu!”
A cama de Antônio Carlos. O colchão enrolado sobre o estrado, o travesseiro saindo do meio, como recheio de rocambole. Travesseiro com gosto de Antônio Carlos. A pasta de dente caída num canto e ele guardou o tubo. Usava-o de quando em vez e sentia saudade da boca que nunca mais o beijaria. Um dia deu-lhe uma imensa saudade de tudo aquilo. Foi para um canto da gruta e masturbou-se pensando na boca que o sabia acariciar.
Depois do pecado tentou se confessar, contar tudo ao padre. Mas não mais acreditava nos padres. De qualquer forma, olhando os pátios desertos do colégio - como tudo ficou deserto de repente! - decidiu tomar uma atitude. Não adiantava explicar aos padres, nenhum deles entenderia. A rigor, ninguém entenderia mais nada de sua vida, ele que tocasse os burros para a frente agora, tinha diante de si a vida desdobrada e compacta para ser vivida inteira e solitária. Faria dela um assunto pessoal e intransferível - era a frase que se repetia sempre.
Esperou a noite.
Com a roupa do corpo, um pão no bolso, pulou a janela do dormitório.
A escuridão assustou-o. Pensou novamente na gruta, na vida, no amor - tudo unido na única massa, no único muro sem forma e sem fundo que afrontava seus olhos sob forma de noite.
E fugiu.
O embrulho cor-de-rosa continua em minha mão. Não tenho vontade de abri-lo, libertar lacraias que esperam, silenciosas, para me devorar. A memória não precisa de matéria. Do pequeno trajeto que fiz, do armário até esta poltrona, lembrei coisas de há muito submersas nos meus porões. Devo cavar a esmo, memória devassando ângulos adormecidos ou mortos, em escala impossível de precisar: um minuto de memória equivalendo a anos de matéria.
Talvez, nada esteja realmente morto. Simples foco em cima e tudo se agita, fantoches indormidos penetram-me novamente. O passado maciço, palpável como este embrulho cor-de-rosa que tenho nas mãos. Penetrante como o foxe que o rádio do vizinho toca. The Continental, música antiga, o filme de Fred Astaire e Ginger Rogers dançando o mesmo The Continental na varanda do hotel de luxo.
O pai, aos domingos, pagava cinema e lanche na cidade, iam os dois, o irmão fazendo a Belas-Artes, copiou uma cabeça de Beethoven que lhe valeu elogios e registro em jornal. Era um sujeito já importante e podia ler os jornais.
- Tem filme bom no Paté.
- Não gosto, quero ver o do Alhambra.
O Alhambra pegou fogo, era um cinema decorado à mourisca, e a extravagância impressionava o irmão. Na tela que o fogo lambeu, Fred Astaire dançava Night and Day e Ginger Rogers, de negligé diáfano, sapateava com as coxas à mostra. Coxas brancas e longas aparecendo aos olhos virgens do irmão. Ele não sabia que eu não era mais virgem, mas não adiantava contar nada para ele, não entenderia nem faria questão de entender a história de Antônio Carlos. Talvez duvidasse de mim - e eu às vezes me surpreendo duvidando também. Um rubor então me sobe ao rosto e eu me perdoo.
O pai era bom quando se esquecia de ser cruel. Em período de calma chegava a ser carinhoso. Sempre que chegava do trabalho beijava a madrasta, vinha até nós, envergonhado de nos beijar, passava a mão por nossas cabeças. Meu irmão, que nunca tivera aborrecimentos com ele, beijava-lhe o rosto. Eu apenas a mão. E sentia que qualquer coisa dentro de mim gostava daquela mão cansada que acariciava minha cabeça:
- Tudo bem, filho?
A madrasta mudara. Vencida a fase da repugnância pela sua presença dentro de casa, habituava-me com seus modos plácidos, sua segurança. Não se metia com minha vida, deixava-me fazer o que bem entendesse, tinha até preferência por mim - desde que percebera papai mais chegado pelo irmão.
Ela elogiou meu desenho:
- Está bonito!
- Ainda não acabei.
Era uma cabeça também, mas não de Beethoven. Uma cabeça com três faces, uma delas de homem, outra de mulher, a do meio, esparsa e fluídica, servia de tecido conjuntivo aos dois rostos. Qualquer psiquiatra veria naquilo a cabeça de Antônio Carlos. Mas não era. É que eu começava a ver os objetos. Não me interessava o seu aspecto exterior, nem o lado pelo qual se torna atingido. Queria ver tudo ao mesmo tempo, as faces ocultas. Mais ainda: queria materializar o próprio peso do objeto. Para botar tudo isso na tela plana e sem fundo, abria largas pinceladas de cores berrantes. O espaço mutilado ia se enchendo de pedaços esparsos, coisas e percepções. Meu irmão chamava-me de louco, papai não dava opinião mas a madrasta, por instinto ou para bajular-me, achava bonito.
- Gosto disso aí.
O pai andava triste pelos cantos da casa. Ficava horas em silêncio, olhando fundo para todos nós. Um dia, a madrasta atirou com meu quadro ao chão:
- Tire essa imundície daqui de cima!
- Mas era o quadro que a senhora achava bonito!
Mal chegava da rua, o pai ficava no canto, caladão, cabeça baixa. Eu encontrava, às vezes, a madrasta chorando. As refeições eram silenciosas, incomodavam. Os dois não dormiam mais juntos, papai levou para seu quarto uma cama de armar e lá passava as noites. Na mesa, os talheres e os pratos do velho eram separados e guardados num armário especial.
Mas eu estava preocupado com minhas pesquisas, descobri um caderno de Juan Gris e me entusiasmei sabendo que minhas descobertas haviam preocupado outros. Comprei uma biografia de Cézanne e abria novos campos para o estudo. Meu irmão continuava a copiar cabeças, cabeças e cabeças, Beethoven, Napoleão, Goethe, Júlio César, Getúlio Vargas, Carlos Gomes, depois das cabeças, as mãos. Os modelos de gesso pendurados pelas paredes davam a seu quarto um aspecto sombrio de gruta de promessas.
Um dia, o irmão ia ao cinema e foi tomar bênção ao pai. Ele recusou a mão, afastando-o com brutalidade.
- Chega pra lá, garoto!
Mais tarde, o velho comunicou que ia passar meses fora de casa, na fazenda de um amigo. Ia sozinho, não podia levar ninguém. A madrasta abaixou a cabeça e foi para o quarto chorar. O irmão abriu a boca e eu fechei a minha, já há muito não a abria para o espanto. O velho arrumou a mala e se foi. Não falou com ninguém. Na porta, parou um instante e olhou para todos nós, geral e neutro.
Aquilo tudo nos parecia incompreensível.
- Arranjou amante - dizia o irmão.
Talvez fosse isso, e fosse ou não fosse dava no mesmo: estávamos sozinhos.
Na semana seguinte bateram à nossa porta. Fui atender. Vi dois enfermeiros e um soldado.
- É aqui que mora o sr. Torquato de Oliveira?
- É.
- Somos da Saúde Pública. Vamos desinfetar a casa.
- Desinfetar o quê?
- A casa. Está aqui a ordem do Serviço Nacional da Lepra.
Esticou-me a papeleta amarela onde o nome do pai vinha logo após as iniciais SNL. E como continuasse na porta, apatetado, um dos homens contou o resto:
- Seu pai foi internado no leprosário. Deu-nos autorização para desinfetar a casa. Desculpe o mau jeito.
Desculpei.
Não queimaram as cabeças e as mãos de gesso do irmão. Mas a maior parte da mobília e roupas foi toda para a fogueira que armaram no quintal dos fundos.
Papai foi um homem, naquilo tudo. Fomos procurados por advogado, o velho deixara instruções e ações de seguro, o procurador só teve trabalho foi em demover a madrasta: desejava ir para junto do marido.
- Meu lugar é lá.
Quando se convenceu que não podia ir, que o velho era um morto vivo, que ninguém poderia fazer nada por ele, aceitou espartanamente a situação: dedicou-se a nós com mais carinho e abnegação.
Fomos morar no Rio Comprido, um edifício de sete andares, próximo à praça principal do bairro. Apartamento confortável, saleta, sala, três quartos. A madrasta ficou num deles. Nos primeiros tempos, o irmão e eu dividimos um outro quarto para dormir, reservando o terceiro para atelier. Mas deu-se o esperado, a ruptura doméstica da arte: as cabeças de gesso, as estátuas de Vênus que ele entronizou no atelier, justamente no canto de melhor luz, pra tirar sucessivas e horrendas cópias - davam-me náusea. Os meus desenhos inspiravam-lhe horror, levei para casa uma reprodução de Braque, o irmão disse que aquilo era para dar pesadelos e teve um, gritou a noite toda, angustiado por um camarada que tinha os olhos amarelos e a boca verde.
As discussões não azedaram mais porque resolvemos a situação, atendendo ao conselho da madrasta; cada qual tomou um quarto e levou consigo seus esboços, desenhos e modelos. Talvez não fosse agradável dormir em contato com tintas, colas, gesso e cheiro de aguarrás, mas eram percalços da arte, davam-nos ares boêmios e evitavam conflitos desnecessários.
Não foi só Braque quem inspirou pesadelos a meu irmão. Tive um também, que começou mal e acabou pior. Já tínhamos quartos separados e sonhei que a máscara mortuária de Beethoven crescia, crescia, cuspindo-me um rio de gesso grosso e repugnante que me aprisionava em suas garras pastosas. Acordei com o gesso entrando-me pela boca, tão nauseado que pensei em vomitar. Levantei, fui à copa beber um gole d’água. Na volta, quis ir ao quarto do irmão arrancar a máscara da parede e quebrá-la. Ele já gastara cadernos e cadernos copiando e recopiando aqueles olhos empapuçados, as bochechas caídas e pétreas. Depois daria uma desculpa, esbarrei, não vi a máscara, ela caiu ao chão, e talvez nem fosse preciso, o irmão já fazia coisas mais importantes, copiava na Escola modelos vivos.
A porta do quarto estava encostada. Entrei na ponta do pé para não acordá-lo. De início não compreendi. Pensei que fosse o jeito esparramado que ele tinha ao dormir: ocupava a cama toda. Mas firmei a vista e vi que ali, naquela cama de solteiro, havia dois corpos. Cheguei mais perto. Dormiam seminus e abraçados. Olhei bem para não ter dúvida, nem pensar mais tarde que fora uma alucinação.
Era a madrasta.
Bem a casa não me enojava mas não me atraía. Fui permanecendo por comodismo, preguiça em tomar decisão. Curioso é que os dois sabiam fingir e no início os odiei por causa disso. Quem olhasse de fora diria que o amante dela era eu. A madrasta fazia minhas vontades, tratava-me melhor que a ele. Minha roupa andava impecável, botão caído da camisa era na mesma hora pregado. Ela chegava bem perto de mim para partir a linha com os dentes, e por duas ou três vezes tive o ímpeto obsceno de abraçá-la e possuí-la também. Acredito que ela deixasse. Mas era bandalheira demais.
O irmão foi aos poucos se submetendo a meus caprichos, qualquer berro que dava em casa e os dois se curvavam, medrosos, humildes. Ponto de discórdia que sobrou foi a máscara de Beethoven, continuou no mesmo prego, sem saber que escapara por pouco. Neste assunto, a madrasta não tomava parte na discussão, chegava a me defender, a mim e a meus quadros que ela honestamente não entendia. Tínhamos também disputa quando havia morangos com creme à sobremesa, ou banana frita. Discutíamos, o irmão e eu, tamanho e peso de cada um, para divisão exata e honesta. Ela nos deixava discutir, até que chegávamos a um acordo. Meu irmão comia a sua porção e ia tomar ar na rua, enfartado de creme ou de banana frita. Ela então me chamava secretamente na copa e me dava uma cumbuca com os melhores morangos.
Mas depois de tudo isso ela ia dormir com o irmão. Via quando passava para o quarto dele, depois que eu apagava a luz do meu.
Habituei-me com aquilo. Afinal, ela era moça, longe dos quarenta anos, o marido leproso e distante, nada de mais que se entregasse ao filho mais velho. Nenhum dos dois consultou minha opinião e se houvesse consultado, certamente eu lhes daria a minha bênção.
Volta e meia encarava a madrasta e achava-a desejável. Afinal, ela podia ter me escolhido, e não seria mau uma mulher daquelas para minhas noites. Ou mesmo que não me escolhesse, mesmo que preferisse o irmão, podia ao menos me aceitar também. Mas era falta de juízo minha. O pai talvez a perdoasse se a soubesse amante de um dos filhos. Não a perdoaria sabendo-a dos dois ao mesmo tempo.
Pensando nisso, eu exagerava na minha complacência. Vez por outra passava a noite fora, em casa de amigos. Ao fim do ano ia para um sítio no Estado do Rio e os dois passavam um mês ou dois sozinhos. Quando voltava, ela me recebia com a mesma solicitude, recriminava meu desleixo pela saúde, consertava minhas roupas e defendia meus quadros do mau-gosto do irmão. Um dia, na mesa, após uma discussão, chegou a dizer que me achava mais inteligente.
O irmão abaixou a cabeça e não disse nada.
Naquela noite, percebi barulho no quarto ao lado. Ela foi até lá, discutiram em voz baixa, nem se deitaram. Ela voltou para o próprio quarto. Minutos depois foi ele quem foi ao quarto dela. Nova discussão, dessa vez atenuada pela distância. Mesmo assim, ouvi pronunciarem meu nome. A briga ameaçou piorar, ele voltou para o quarto e se fechou a chave. Logo ela voltou também, e ele custou a abrir. Finalmente não discutiram mais. Ouvia o ranger da cama, mais furioso que o das outras noites.
No dia seguinte, a melhor porção da carne assada, que era minha já por direito e tradição, pela primeira vez foi para o prato do irmão.
Na verdade, quem devia ter sido escolhido era eu.
Abro o embrulho empoeirado. Papéis de diversas épocas. Até um esboço acadêmico dos meus primeiros tempos - e por mais que pareça idiota - a máscara mortuária de Beethoven. Não tinha nada para fazer e a máscara pendurada no prego dava sopa. Apanhei o lápis e a cópia saiu até que regular.
A carta do Valdomiro oferecendo o exemplar de sua novela, A Vida. Foi por essa época - papai no leprosário, descoberta de Cézanne e das teorias modernas - que Valdomiro apareceu em nossa vida. De início, sua intromissão a tudo contaminou. Depois, a madrasta e o irmão tomaram outros rumos, eu me casei, e logo após o casamento, Valdomiro reapareceu de forma inicialmente incômoda, depois ridícula. Aqui estão nossos primeiros contatos: a carta babosa em que ele comunicava que dera à luz um livro.
Não sei mais o motivo que nos aproximou. Sei que, por ocasião do livro, já existia sua influência. Valdomiro era o personagem mais proeminente do edifício onde morávamos, sua vida e seus amores faziam parte do folclore interno, folclore que porteiros e moradores antigos tinham empenho e glória em conservar e transmitir aos novos.
Certa tarde, eu estava seco, tentara inutilmente achar solução para um quadro que esboçava, perdera boa quantidade de azul da Prússia numa mistura idiota com nanquim, desejava um pistacho de Mondrian com paralelas contrastantes - mas a mistura deu em droga, ou era eu que estava ruim. A capa do livro de Valdomiro despertou-me uma vontade imbecil.
Fui aos guardados da casa, onde a Remington do pai enferrujava. Escapara não sei como da fogueira que a Saúde Pública promoveu em nosso quintal.
Arranjada a motivação, a máquina e o papel, faltou-me o que realmente escrever. Tentar uma teoria sobre minhas próprias experiências? Era exagero. Escrever carta ao pai contando que sua mulher era amante de seu filho? Sórdido demais. Nem Valdomiro se atreveria a isso.
Valdomiro não saía da cabeça, onde fosse o pensamento, Valdomiro aparecia, como totem enorme e desgovernado, pedindo a eternidade de uma página de má literatura.
Aqui está o que saiu. Devia ter mostrado isso a Selma, mas faltou-me coragem na época devida. E Selma, mesmo que lesse, pouco se incomodaria. Talvez apreciasse saber que Valdomiro era ou havia sido assim.
Afinal, estou agora fechado a chave, não pretendo me matar nem dormir. Velarei, lúcido, minha própria vergonha. Ou dor. Talvez não seja mais dor ou vergonha, mas é o passado, o meu passado. Minha história. Sinto-me morto em alguma parte e por algum motivo.
E vamos ao Valdomiro.
“Era um edifício como todos os demais da cidade, tão igual que também possuía seus casos escabrosos, quase todos provocados e levados a efeito no apartamento do Valdomiro, solteirão de meia idade e de inteira burrice, metido na política local, candidato crônico a vereador pelo bairro, e que, não se sabe como nem por que, escreveu uma novela intitulada A Vida, onde deita moral contra a jogatina, os cassinos, a sociedade, a corrupção política, os homens endinheirados, e enaltece os pobres, as virtudes e o patriotismo. Inebriantes mulheres fumando cigarros turcos em longas piteiras de marfim do mais fino lavor, em alcovas de luxo asiático, são condenadas em altos brados porque pervertem o pobre Damasceno, um desajustado social, abnegado chefe de família que joga na sedução do mefistofélico pano verde a tranquilidade do lar, o sustento dos filhos e o dinheiro do banco do qual era caixa.
Apesar de tanta moral, Valdomiro não obteve o sucesso que esperava. Propalou que reinava deslavada decadência na literatura pátria e universal, e dedicou-se então às mulheres, no que foi plenamente compensado e recompensado de suas amarguras.
Passou a ser disputado por várias mulheres. Grossos escândalos sacudiram a moral das famílias do edifício, máxime em certa tarde de setembro, quando um marido, traído já há tempos, resolveu acompanhar a esposa prevaricadora até ao antro de sua vergonha, motivo pelo qual foi dar com os costados e com o revólver no apartamento do Valdomiro.
Ao ver a esposa transpor a soleira fatal, mortas as esperanças de um remotíssimo equívoco, o marido revelou-se um temperamental, quis dar tiros, berrou que ia dar tiros, e unindo à ameaça um gesto condizente, puxou do revólver, um velho Taurus já enferrujado e desacreditado, mas que serviu para dar tremedeiras em todo mundo de maneira geral e no Valdomiro de maneira muito especial.
Aproveitando a saída de emergência, Valdomiro saiu do apartamento deixando a mulher abandonada à ira e ao Taurus do marido. Precipitou-se pelas escadas, procurando uma solução qualquer. Mas o cérebro estava embotado, não pensava nem sentia nada, a não ser - conforme confessou no dia seguinte - uma forte vontade de ir à latrina.
Foi quando, segundo ele pensou na hora, a Providência Divina se fez sentir: ao descer o primeiro andar, deu com a porta semiaberta de um dos apartamentos fronteiros à escada. Não necessitaria forçar porta alguma, havia uma aberta, à sua disposição. Bem protegido, explicaria a situação: um mal-entendido, um equívoco, apelaria para a solidariedade dos vizinhos e esperaria que a ira e o revólver de seu perseguidor, amainados pela espera, fossem recolhidos pelo bom-senso, pela prudência ou pela polícia.
No apartamento aberto morava uma sexagenária, dona de alguns bens, vivendo em conforto e respeitabilidade.
Desde que se mudara para o edifício, a velha reparou naquele homenzarrão de rosto grande e bochechudo. Ela enviuvara há quinze anos, tivera um amante nos primeiros anos de casada, e nada mais. Ao morrer o marido, ficara sem um afeto, sem filho, um sobrinho, uma companhia, um afilhado, um ex-admirador. Nada. Nada e ninguém. Ela então não suportou ver Valdomiro todos os dias, nasceu-lhe a paixão feroz, uma doença que a levaria ao túmulo ou à cadeia - conforme confessava a si mesma, em dias de maior desespero.
Espreitava-lhe a hora de sair e de chegar, conhecia as mulheres que lhe frequentavam o apartamento, os hábitos de cada uma. Temia a loura que Valdomiro recebia às quartas-feiras. Era perigosa, satisfazia Valdomiro, as olheiras provavam no dia seguinte. Desprezava a magrinha viciada que vinha cheia de cautelas, essa não oferecia perigo, Valdomiro explorava-lhe o dinheiro, nada lhe dava em troca, nem mesmo indiferença: batia-lhe na cara e a tarada gostava disso.
Havia outras enfim, todas perfuradas e dissecadas pelo olhar da velha. A mulata que passara gonorreia no Valdomiro; a senhora do médico da praça da Bandeira que curava Valdomiro com sulfas e penicilinas reforçadas; a irmã do capitão Tavares que substituíra a própria cunhada no leito fatal, uma morena bonita de olhos verdes, de ancas redondas. Finalmente, a Beatriz, zeladora das filhas-de-Maria na matriz dos Sete Santos Fundadores, que ia à missa todos os dias de véu branco e faixa azul a cingir-lhe os castos rins, mas que depois ia fazer o café para Valdomiro, arrumar-lhe o apartamento e rebolar os referidos e castos rins de prazer, em sua cama de devasso.
Com o correr dos anos, a paixão aumentou de gana. Ela fora a macumbas e novenas, percorrera igrejas milagrosas e terreiros afamados, praticou conjuros e exorcismos, banhou-se em ervas bentas e afrodisíacas regadas a esperma de garanhão para despertar encantos, bebeu leite de égua grávida, apelou para Deus e para o Diabo, fez novena ao piedoso frei Galvão - um franciscano que morrera em cheiro de santidade e era recomendado para os casos desesperados. Baixinho a princípio, aos brados depois, procurou certa noite vender sua alma e o que lhe restava do corpo ao Demônio, em troca de uma hora de prazer com Valdomiro.
Tantas fez, tantas divindades invocou, tantas macumbas pagou, que naquele dia entra-lhe pela porta a dentro, apavorado e belo em sua excitação, o eleito de sua carne.
- Minha senhora - Valdomiro tentou explicar - estou envolvido em lamentável equívoco e apesar de...
A velha sabia de tudo. Ouvira os berros do marido ultrajado, deixara a porta semicerrada à espera. Além do mais, o marido já atingira o corredor do primeiro andar e conclamava aos berros a que o adúltero aparecesse em cena para morrer ‘como homem!’. Mas a proteção estava reforçada, o próprio Valdomiro cooperara, ajudando a velha a deslocar um armário para trancar melhor a porta. A velha preparou-lhe ainda um cafezinho para rebater o nervoso que lhe punha as pernas a tremer. Finalmente, ela se explicou. Condicionou sua cumplicidade a alguns momentos de cama. E nem adiantou a Valdomiro ponderar que naquele transe por que passava, ‘naquela provação’, como disse - ser-lhe-ia custoso submeter-se a tanto. Tentou adiar, outro dia topava. Mas a velha preferia o pássaro na mão e o Valdomiro na cama.
Quando se viu despido, ao lado daquele corpo encarquilhado - só então teve noção de que os fados lhe eram adversos, que a Providência Divina, apressadamente vista na porta semicerrada, nada mais era do que nova cilada de seus inimigos temporais e intemporais, que afora a perdição de sua alma, desejavam a perdição de seu bem tratado corpo. E havia, por cima, uma circunstância trágica naquilo tudo. Já há muito que as mulheres lhe causavam fastio, mantinha relações apenas para as contentar, ele porém, já esfriara em sua fúria inicial, achava o sexo sensaborão, evitava novas conquistas e procurava se livrar de antigas.
A velha exigia-o. Valdomiro apelou para a imaginação, buscou detalhes eróticos que conhecia, inventou outos, relembrou as mulheres que possuíra, as que não possuíra, recitou mentalmente dois terços do Julgamento de Frineia, que um dia, na adolescência, achara lúbrico.
A tais esforços deveu Valdomiro um início de virilidade. Mas na mesma hora ouviu as ameaças do marido que esbravejava no corredor:
- Eu dou um tiro neste filho-da-puta! Hoje sai um cadáver daqui de dentro!
Valdomiro sabia que o cadáver anunciado era o dele. Esfriou de vez. A velha tomou a iniciativa. Ameaçou gritar, chamar o perseguidor até seu quarto, escancarar as portas do apartamento. E naquela mesma cama onde se sentia impotente, ele terminaria varado.
Valdomiro viu-se nu, ensanguentado na cama estranha, a cara contraída pela morte. Não desejava encerrar seus dias de maneira tão cruenta e inglória.
A velha não cedia, queria satisfação, nunca mais teria oportunidade. Foi então que Valdomiro propôs. A velha aceitou, excitada. E Valdomiro, todo grandalhão e desajeitado, para não sair cadáver daquela cama, procedeu a uma lenta peregrinação pelo corpo enregelado da velha.
Graças ao recurso, o incidente terminou sem consequências: nem tiros nem cadáveres. O marido, desesperançado de punir o sedutor de sua esposa, e para descarregar sobre alguém suas compreensíveis iras, fez a prevaricadora descer cinco andares debaixo de grossa pancadaria.
Chamara-se a polícia. Mas os dois policiais que compareceram limitaram-se a impedir que o marido sovasse mais ainda a mulher. Que era belo espécime de prevaricadora, digna de finais como aquele. Os policiais recusaram-se ainda, em face de solicitações que propugnavam por uma solução pacífica, a dar busca em todos os apartamentos a fim de trazer o pecador à luz do dia e da execração pública.
Só se viu Valdomiro no dia seguinte, à tarde, a cara muito contrita, enrolado num cachenê escocês a lhe proteger a garganta que estava inflamada, a voz rouca, a língua cheia de câimbras.”
Não devia estar mexendo nesses papéis. Recortes de jornais, apreciações sobre meus quadros. O cretino que me chamou de pintor genial. A maioria dos recortes dá a opinião sensata: pintor medíocre, homem medíocre.
Tudo e todo medíocre.
Novas páginas, outras recordações. Tentativas de fixação quando ainda estava indeciso entre a pintura e a literatura. Um início de conto que nunca foi acabado.
A carta do diretor do leprosário comunicando oficialmente a morte de papai. A madrasta passara com ele os últimos instantes. Ele mesmo sugerira um novo casamento para ela.
- “Case-se, você ainda é muito moça.!
Ela então, em prantos, confessou que era amante do irmão mais velho. O pai não estrilou. Também não aprovou. Virou para o lado e morreu.
A madrasta guardou luto mas continuava, às noites, indo ao quarto do mano. Casaram-se. Quiseram-me como testemunha no casamento civil, já que dispensaram o religioso. Não fui. Testemunha de quê? Das trepadas noturnas? Ninguém tinha nada com isso, que trepassem quando quisessem e como pudessem.
Foram para São Paulo, o irmão lecionaria numa cidade do interior, pintura logicamente. Levou as cabeças de Beethoven, as mãos e os pés de gesso.
Outro dia, esbarrei com um rapaz barbado, na Gávea, tentando fixar um instantâneo urbano. Pelo azul do céu reconheci o dedo do irmão. Com duas perguntas tive a certeza: havia sido aluno dele. O rapaz chamou-o de “mestre”.
De início me escreviam cartas. Queriam saber de minha saúde - os hipócritas. Nunca respondi. Minha saúde ia boa - mandei dizer por conhecido comum. Não tiveram filhos - e eu lhes sou grato por isso.
Bom, o embrulho cor-de-rosa volta para cima do armário, donde nunca deveria ter saído. Ou deixo perto da lixeira, amanhã Enedina o jogará fora. Mas não há de que me libertar, os papéis não me prendem - a prisão está dentro de mim mesmo e eu não posso - ainda - jogar-me na lixeira.
Aqui está uma última lembrança. O retrato que tirei de Julinha no primeiro dia e no primeiro momento em que a vi. Julinha de short, parte das pernas cobertas pela porta do carro conversível. Sentada, ao volante, a mãe.
Até hoje - nem mesmo agora - consigo descobrir que aquela mãe era Selma.
É Selma!
O letreiro apagou. Posso fumar e desapertar o cinto de segurança. Deixamos Recife há cinco minutos e dentro de quatro horas estaremos no Rio Nenhuma emoção em pisar esta terra. Quando subi no avião, em Dakar, pensei: a próxima terra que pisar será a minha. Afinal, isso devia representar alguma coisa para quem volta.
A verdade é que pisei o asfalto do aeroporto de Recife sem pensar em nada. Nem mesmo em mim. Coisa idiota, pensei em Tino: faz muito tempo, pouco antes de Julinha morrer, ele foi a uma reunião de artistas plásticos em Recife. Mandou-nos um postal, a curva do rio sob a ponte, a cidade branca no primeiro plano, o mar ao longe, com a franja de recifes quebrando as ondas. E as notícias: chegara bem, boa hospedagem - e Julinha desconfiou que ele devia estar no mesmo hotel e no mesmo quarto de Marta. Julinha teve ciúmes do marido e, por mais estranho que pareça, eu também tive. Talvez por causa disso, pisei Recife deprimida. Senti um cheiro estranho, algo de Tino e de mim mesma, entranhado no mesmo cheiro de graxa e de pneus que me subia do chão. Não acompanhei os demais passageiros até o restaurante, fiquei pela pista, indo e vindo, medindo com passos um lugar onde Tino pisara sem pensar em mim.
Fui tomar café quando os passageiros já voltavam para o avião. Então sim, o gosto da terra voltou, entrando-me pela garganta, como um sacramento. Na Europa o café é droga - e eu preciso de café.
- Aceito.
A aeromoça me traz café. Mas o café de bordo é requentado, feito em Lisboa, e está frio. Em todo caso, posso ter pretexto para fumar depois, e olhar a paisagem lá embaixo. A asa do avião corta metade da vista, vejo o oceano verde, palmeiras ao lado da terra, o navio enorme e branco boia nas águas como um sapo inchado, vagaroso. Para onde vai este navio? Afasta-se da costa, parece que busca a África, deve ser a África. Sei um pouco de geografia agora, talvez mais do que Tino - que só sabe aquilo que aprendeu nos livros. Se ele estivesse em Dakar levaria para o hotel uma negra, ele gosta de negras e mulatas - por isso sempre me olhou com desprezo. Minha carne branca deve repugná-lo. Mas não importa. Não estraguei minha vida nem meu corpo em vão, apanhei e usei o que estava à minha mão e ao meu modo. E fui feliz - de uma certa maneira. Mas não fui feliz à minha maneira - o que não dá para me considerar infeliz.
Mulher quietada - eis o que sou. Há Tino para contrariar isso tudo, mas que seria de minha vida se não fosse Tino? Sem ele nada faria sentido: nem minha solidão, nem minha aventura, nem esta viagem, nem este regresso. Ele é a montanha imóvel que marca o caminho. Longe ou perto não importa, ele é quem me sustenta em órbita. Tino vive em mim e eu sou dele - afinal estou próxima do fim e aprendi a amar.
- Como se sente ao voltar para casa?
- Eu? Ainda não senti nada.
- Reparei em você no Recife. Estava triste.
- Cansaço.
- Fui atrás de você até o café. Vi que tomou duas xícaras.
- Gosto de café. Me deu saudade.
- De quê?
- Bom, na minha idade...
- Sua idade não tem nada a ver com a pergunta. Se já passou dos quarenta deve saber que a vida agora é que toma sentido.
- O senhor calcula mal. Já passei dos quarenta e não acho sentido algum.
Encaro sem simpatia o sujeito que desde Lisboa vem periodicamente sentar-se na poltrona ao lado da minha. Balzaquiana sozinha pelo mundo, se não é ainda bela, deve ser rica - pensam. E avançam. Mas estou cansada. Seis anos de abordagens em aeroportos, navios, trens, hotéis, automóveis, passeios, excursões coletivas - cansa. No início, apreciava a sofreguidão com que se atiravam, querendo aproveitar a brevidade dos encontros, as oportunidades com horas certas de terminar. Mas o homem a meu lado é-me desagradável, tem a untuosidade do Valdomiro - e isso me faz mal.
- “Sou injusta, nenhuma mulher poderia desprezar um homem que fez o que Valdomiro me fez.”
O avião ronca, atravessando agora nuvens brancas. Fecho os olhos.
- Vou descansar um pouco, não quero chegar ao Rio com sono.
- O voo é sem escalas?
- Parece.
- Pensei que parássemos na Bahia, desejava saltar em Salvador.
O homem puxa conversa, sabe que o avião voará sem escalas até o Rio. Quando me vê fechar os olhos, acende um cigarro e sai da poltrona. O padre que circula pelo corredor senta-se na poltrona vazia. Mas, ao me ver, percebe o erro. Pede desculpas e vai para seu lugar, quatro filas adiante. Aproveito então o lugar vazio para me estirar melhor, esparramo-me nas duas poltronas.
Sei que não conseguirei dormir, nunca dormi em avião, em carro ou trem. Vou chegar abatida e mais velha do que realmente estou, mas não importa. Ninguém me esperará. João e sua mulher estarão lá, mas eles não representam nada para mim. Haverá os netos e isso sim, me incomodará um pouco. Queria ter netos, mas de Julinha com Tino. João é idiota e sua mulher é débil mental. Meus netos terão sangue podre - não terei nenhum orgulho deles.
Mandei telegrama para Tino apenas por desencargo de consciência. Sei que não irá. Como sei que pensaria mal se não lhe mandasse o telegrama. Afinal, somos parentes e amigos, tivemos e temos interesses em comum. Mandei o telegrama e cumpri o meu papel. Não estamos brigados, nunca brigamos realmente, ele estranharia se não o comunicasse da minha volta. Mas não irá ao aeroporto, dará depois uma desculpa, não pude, tinha compromisso, estive doente, e na verdade não irá apenas porque se esquecerá do telegrama ou acha que a minha chegada não vale o incômodo. Nós dois cumprimos o ritual, e ele - amanhã ou depois - telefonará pedindo desculpas, querendo saber de mim, da minha saúde - e nem se assustará se eu disser que estou com câncer no colo do útero ou que me casei com um ciclista búlgaro.
Jamais desconfiou que eu o amava. Nunca, em momento algum, ele pôde notar uma fraqueza minha, um olhar descontrolado.
Julinha sim, percebeu naquele dia - já no princípio do fim. Foi cruel manter essa placidez durante tantos anos de convivência sob o mesmo teto. Ele - eu tenho certeza - jamais suspeitou. Mas Julinha percebeu num só olhar.
Um engulho na garganta.
- O avião teve queda, apenas isso. Quando há quedas sinto essa vontade de desmaiar, náusea que me bota a testa fria, mãos crispadas. Na realidade, foi só isso. Para ser sincera, sempre que penso em Julinha - aquele dia em que ela suspeitou de tudo - sinto esse tremor aqui dentro, como cólica. Mas desta vez não foi a lembrança de Julinha, foi o avião, a queda, há quedas horríveis, uma vez, na Europa, em avião menor, caímos num poço que deu pânico em todo mundo. Foi queda agora, tenho certeza.
- O avião não teve queda?
A aeromoça curva-se.
- Sente-se mal?
- Não, obrigada, é que levei um susto.
- Tenho comprimidos, é só me avisar.
- Obrigada.
Foi queda do avião, lógico, se não a aeromoça não me ofereceria comprimidos. Julinha soube de tudo num relance. Não sei como fui fazer aquilo. Uma criancice. Temi que me interpelasse ou que contasse a Tino. Ela preferiu o silêncio. Bem verdade que exagerou o silêncio - até a morte. O médico estranhara sua falta de reação, “ela precisa querer viver, só isso”. Ou: “a medicina fez o que podia e devia, agora depende dela, basta querer”.
Mas Julinha não quis. Foi se entregando, o que era pequena coisa cresceu, inchou até a morte. A enfermeira apareceu na porta e nos chamou. Pensei alegremente: Julinha vai falar comigo, já pode falar comigo! Fui ao quarto. Julinha estava morta - morreu sozinha e placidamente, pude ainda fechar-lhe os olhos, estavam tranquilos seus olhos, eu não devia temer o último olhar de minha filha, ela compreenderia, aliás ela compreendeu - o grande e único idiota sempre foi Tino. O imbecil. O amado e imbecil Tino, fraco como um passarinho.
Afinal, pensando bem, é melhor que ele não vá ao aeroporto. Seis anos é muita coisa, estou mais velha - o que esse sujeito veio dizer aqui não conta, ele pensa que sou rica e uma mulher de minha idade, com bastante dinheiro, ainda dá caldo. Valdomiro o dizia. Mulher depois dos quarenta é que vale. Sabemos tudo então, e não nos envergonhamos de amar. Tudo sai como eu quero agora - sou onipotente na cama. Mas Tino nunca saberá de minha onipotência. Para ele - o fraco - eu serei o bagaço jogado fora, apodrecido e mesquinho. Jamais conhecerá minha fortaleza, minha generosa fortaleza.
Inútil fortaleza.
Quando muito pensará que sou vagabunda, que andei de homem em homem simplesmente para encher o tempo e ter o que fazer. Certa noite, em que saí com Valdomiro, ele me olhou com nojo e li em seus olhos: “Puta!” Uma velha puta - é o máximo que poderá pensar de mim. E quem esperará uma puta velha? Só mesmo meu filho, talvez minha nora, os netos que deverão ser tolos como o pai. Entretanto, se Tino fosse me esperar, talvez eu tivesse coragem. Afinal, pouco me resta de tempo útil e não seria nada de mais se fosse franca com ele. Tomaria seu braço, diria que não tenho para onde ir - o que é acima de tudo uma verdade. E iria a seu apartamento. Deve morar num apartamento sujo e mal arrumado, cheio de tintas, pincéis e aqueles quadros idiotas que nunca entendi. Ele me cederá sua única cama, fará o sacrifício e irá para o sofá. E durante a noite irei eu ao sofá. Se ele me quiser, que me tome e eu serei sua como nunca fui de homem algum. Se me repelir, posso encerrar alguma coisa em minha vida. Ou da minha vida. Pelo menos, cumprirei uma obrigação que se arrasta penosamente há tanto tempo.
É preciso coragem. Ele me conheceu quando era moça e desejável. É difícil que se interesse agora, quando estou mais velha e feia. Verdade que os homens ainda me olham. Homens de todas as idades, adolescentes me comem com os olhos e homens maduros fazem papel de idiota como esse camarada que vem vindo outra vez. Fecharei os olhos para que ele me veja adormecida e passe por mim sem parar.
O homem faz sombra sobre meu rosto. Apesar de estar com os olhos fechados, percebo a indecisão dele, “sento ou não sento?” Ele aproveita e me observa bem. Sinto o exame e viro o rosto para ângulo mais favorável. O homem repara na testa lisa, nos cabelos grisalhos - um dos meus fortes é o cabelo grisalho e por igual. A boca, nada tenho a temer da boca, é lascada como uma fenda, os lábios pousam um sobre o outro como se nunca se houvessem aberto. Mas os olhos? Ali estão os anos todos. Com os olhos abertos, o verde-cinza tem chamas. Mas fechados, inertes, espessos, toda a verdade de minha vida está ali.
Sinto que o homem não me olha o rosto. Analisa-me por inteiro, desce ao colo, chega às pernas que estão cruzadas e encobertas pela poltrona da frente. Percebo, ele se prepara para sentar na poltrona ao lado, mas a sacudidela do avião joga-o para trás. Um outro passageiro esbarra nele, os dois trocam-se desculpas, atribuindo-se culpas, se o avião caísse realmente eu queria ver quem pediria desculpas a quem. O incidente faz o homem perder a vontade de sentar, ele segue até a cauda do avião.
Não abrirei os olhos até chegar ao Rio. Isso evitará que ele sente ao meu lado e puxe conversa. Pensarei em toda a minha vida, como num filme. Desde que fiquei viúva tentei pensar na vida - e já a julgava encerrada. Depois veio Tino, a morte de Julinha, minha viagem - e eu nunca pensei ordenadamente em tudo. Sempre evitei olhar para trás. Toquei para a frente - foi minha forma de esquecer. Nada com o passado. Mas o passado ressurgiu: das graxas da pista de Recife subiu-me o telegrama de Tino: “Após viagem surpreendentemente rápida, piso o asfalto de Recife. Estou bem hospedado. Marta manda lembranças”.
Essas quedas no poço eu não posso evitar - nem mesmo o avião evita certas quedas. Posso é evitar a precipitação de todas as quedas - os motores do avião também fazem força para evitar a queda das quedas. Tenho motores que me impelem para a frente e me sustentam no alto e no presente. Mas é preciso, agora que volto - e volto não apenas para o Rio, mas para o meu passado, àquilo que posso chamar de passado - que rememore tudo, sem pressa, como se assistisse ao filme feito sobre a minha vida e no qual eu não mais pudesse interferir. Evidente, minha vida não merece um filme, mas agora, olhando tudo em conjunto, tenho imensa pena de mim mesma e vontade de recomeçar tudo, outra vez.
O dia em que Julinha nasceu. Ouvia falar que a maternidade é sagrada, meu marido me tratava como ídolo, como se eu fosse gerar um Deus. Gerei Julinha, quatro quilos de carne fraca e já sofredora. Teve pneumonia nos primeiros dias e isso me valeu aborrecimentos. Às vezes esqueço o nome do meu marido: André. Nome apropriado a um marido morto. Meu finado André. André, o bobo. Que morreu sem saber de nada. Pensou que eu lhe botara chifres, mas pelo que sei agora, André foi o único homem que morreu sem chifres.
Morreu sem chifres mas sem amor. Logo depois de Julinha, veio João - esse nasceu pesadão, uma saúde agressiva, se o jogasse num tanque cheio d’água, no dia seguinte o retiraria com vida. Me fez ficar inchada como porca, os últimos meses de gravidez foram um martírio. E deu no que deu.
Mas no dia em que Julinha nasceu eu não sabia de nada ainda. Não sabia que seriam minhas, as mãos que fechariam seus olhos, vinte anos mais tarde de vida curta e sofrida. Não sabia de nada, e paradoxalmente, já sabia de tudo. Não gostava de ninguém, não amava a ninguém. André não se queixava, tinha-me todas as noites, e apesar de ter sido cretino algumas vezes - principalmente quando desconfiou que eu o traía - ele me amava com sinceridade. Mas eu nunca o amei, já o sabia quando ele era vivo, e sei-o agora de forma tão integral que até me tranquiliza e redime.
A maternidade tampouco me marcou. João sim, marcou-me, deformando-me o períneo. Só tive coragem de fazer a operação no estrangeiro, longe dos olhos de Tino. Eu não me perdoaria se ele soubesse - e creio que, de certa forma, ele também não me perdoaria.
Apesar do períneo, não posso queixar-me. Nem os homens que andaram comigo: todos gostaram. Até Valdomiro, que me confessou andar desinteressado de mulheres. Quanto a André, era frugal, mal dava para o próprio consumo e nunca, que me lembre, me fez sentir prazer. Mas é possível que nos primeiros tempos de casada eu tenha sentido prazer. De qualquer forma, era um prazer diverso do que sou capaz de sentir agora. Chegara a pensar em deficiência minha, fui a médicos que me julgaram fria, deram-me remédios e livros de psicologia sexual. Um médico decente teria aconselhado: tenha o Valdomiro. Eu tinha André. De noite vinha por cima de mim, deixava-me aqui dentro um visgo que me repugnava. Depois caía para o lado e adormecia. Eu tinha de me levantar e ir ao banheiro, às vezes sujava-me as coxas e eu tinha de tomar banho. André dormia pesadamente, satisfeito como uma vaca à qual tiraram o leite do úbere. Eu ficava com o esperma e com o filho dentro de mim. Partos e curetagens dolorosas e repugnantes. O nascimento de Julinha sempre me comoveu. Afinal, eu desejei uma filha e ela me consolou de algumas coisas. No fundo, eu adivinhei que através dela é que minha vida faria sentido.
Fez, mas de outro modo.
João foi um fardo para carregar. O desgraçado inchou dentro de mim como um boi, rompeu-me toda na hora do parto. Foi malcriado e cheio de vontade - até que se imbecilizou e casou. Logo depois do nascimento de João - os pontos mal cicatrizados, Andre me sentiu tão fria que se irritou:
- Você tem outro!
Ele estranhava que eu jamais pudesse corresponder àquela montada avara que dava em cima de mim. Vinha direto, gozava e caía para o lado, vaca ordenhada. Desde que senti pequena epilepsia, deixava-me de lado, com os pontos do parto ainda vivos e doloridos.
Até que o carro da embaixada do Ceilão pegou-o em cima da calçada. Imprensou-o contra o poste. Recebi o corpo devidamente ensacado, a papeleta do Instituto Médico Legal e o atestado de óbito, já de firma reconhecida.
O embaixador do Ceilão foi ao enterro e mandou-me uma cesta de flores brancas - no Ceilão as flores brancas demonstram solidariedade na dor - foi o que me explicaram, até hoje não procurei confirmar. O que ninguém explicou foi ter o próprio embaixador me cantado durante a missa de sétimo dia. O embaixador não tirou os olhos de mim. Falava francês e espanhol, ele me telefonava pedindo cama. Não teve. Ou fui eu quem não quis, ou o francês e o espanhol dele eram fracos para isso.
No entanto, a partir do dia em que André morreu, muitas coisas começaram em minha vida. Inclusive, e principalmente, Tino. Mas isso já é outra e mais cruel história.
O Ceilão, além de país exótico, é generoso também. O embaixador pagou-nos indenização compensadora. “Vale mais que o pobre André” - pensei na hora em que passei o recibo. Além do mais, e sendo justa para com André, deixou-nos ele apólices, uma casa, alguns terrenos, afora pequenas importâncias provenientes de seguros pessoais. E todas as suas ações na companhia que importava peças para motores. Não ficamos ricos da noite para o dia, mas a morte de André trouxe-nos alguma abastança.
Comprei carro, uma Lincoln conversível que fazia sucesso quando Julinha e eu saíamos de capota arriada. As mulheres desviavam o olhar para demonstrar que não nos invejavam. Os homens olhavam, admirados ou obscenos. Até que um dia encontramos, na praia Vermelha, um rapaz que não nos olhou.
Tinha prancheta montada e pintava olhando em direção ao Pão de Açúcar. Eu e Julinha quisemos espiar o quadro, moderei a marcha do carro para ver melhor. Vi riscos apenas, o camarada fazia cubos e triângulos, usava cores espalhafatosas, não copiava o Pão de Açúcar, aproveitava apenas a luz natural para melhor empregar as tintas - conforme mais tarde fui saber.
Julinha comentou:
- Olha aquele maluco!
O rapaz, impassível, levava o pincel através de camadas de vermelho berrante que se confinavam, no alto da tela, com manchas cinzentas. Não fosse a prancheta, os pincéis, e não pareceria um pintor: vestia short, pernas musculosas e cabeludas queimadas de praia, o sinal de sangue na omoplata esquerda - e minha primeira ideia, quando passei a desejá-lo, foi beijar aquele sinal de sangue.
Parei o carro. Em nossa direção vinha a carrocinha de sorvete. Julinha pediu:
- Vamos tomar sorvete?
O rapaz despertou à palavra sorvete. Maquinalmente meteu a mão no bolso do short e apanhou dinheiro. Estendeu-o ao sorveteiro. Não tirava os olhos do quadro nem mesmo para lamber a casquinha que pingava. Julinha passou à sua frente, olhou-o de todos os lados, eu continuava atrás dele. Voltamos para o carro após o sorvete. Foi quando Julinha quis tirar a fotografia. O Corcovado atrás do carro fazia figura, ela tinha comprado filme colorido, a paisagem tentava.
- Quem bateria uma fotografia de nós duas com esse fundo?
O rapaz não ouviu. Julinha desceu do carro:
- O senhor podia bater uma chapa?
O rapaz jogou fora o resto da casquinha que se transformara em pasta informe. Pousou o pincel num banco. Curvou-se para a máquina, examinando-a: uma Rolleiflex então último tipo. Eu permanecia em frente ao volante, a porta aberta. O estofado do carro era vermelho vivo e fazia contraste nas fotografias coloridas.
- Onde disparo?
- Aqui. Aperte este botão até o fim, depois é soltar.
- E a distância?
- É focar aqui, até obter imagem nítida. A luz já está regulada.
Julinha tomou posição na calçada, apoiada na porta do carro aberta. O rapaz virou-se, a cabeça baixa, examinando a máquina que lhe causava admiração. Só depois, já de frente para nós, levou a máquina aos olhos e nos viu.
Tenho até hoje, na carteira, o que Tino viu através da máquina: o estofo vermelho do carro, o Corcovado que não saiu direito, Julinha sorrindo atrás da porta - corpo inteiro - e eu ao volante, na pose de nova rica que me ficava muito mal.
Se Tino sempre me desprezou, teve seus motivos. Pelo visor da máquina viu uma mulher ridícula. No entanto, pelo mesmo visor, viu Julinha e gostou dela.
Seis meses depois estavam casados.
O oceano desaparece lá embaixo. As luzes do avião se acendem. Tudo escuro lá fora. O letreiro luminoso piscando: Não fume - Fasten seat belt. O camarada que puxa conversa comigo olha para cá. Amarrada, tenho de me limitar à própria cadeira. Deixo vazia a poltrona ao lado e ele aproveita. Senta-se, amarra-se como se fosse ficar amarrado ali o resto da vida.
- Há embaraço pela frente.
Tem ar de entendido.
- Coisa grave?
- Não, nada de grave, temporal em cima de Alagoas, o comandante vai ganhar altura para ficar acima das nuvens, estive na cabina agora mesmo.
- Demorará muito?
- Medo?
- Não. Apenas não gosto de enjoar. Prefiro que o avião caia logo a me repugnar aqui em cima.
- Pois eu prefiro sair daqui com vida.
- Houve tempo em que preferia isso, também.
O avião começa a jogar. O ronco dos motores cresce. O aparelho faz esforço para ganhar altura, furar as nuvens em busca do céu manso.
- Daqui a pouco passa, é o que eu digo, faço sempre esse trajeto, conheço a rota...
- Pois é a última vez que viajo.
- Viagem de recreio?
- Mais ou menos. Acabou-se o recreio. Esperar agora pelo fim.
- Que fim?
- O fim das aulas, do colégio, de qualquer coisa. O fim.
- Pois eu viajo novamente para a semana. Sou fiscal de companhia e tenho de viajar muito, cubro o Brasil inteiro, mais a América Central até o México. Mas venho agora da Europa, passei dias em Lisboa.
- Vi o senhor em Lisboa. Pensei que fosse português.
- E você me pareceu nórdica. Sueca ou coisa que o valha.
Esse camarada quer me cantar. A citação da sueca é velha. Todos dizem que pareço Greta Garbo. Querem é cama. Depois mandam Greta Garbo às favas. Até Valdomiro, tão ignorante, chamou-me de sueca, só que Valdomiro pensava que a Suécia fosse no Mediterrâneo, perto da Itália. Dizia que meus olhos tinham luz de sol meridional.
Ouço, ao meu lado:
- Seus olhos têm um raio de luz meridional.
Pela primeira vez olho para o homem. É imponente, um belo homem, alto, bem penteado. A camisa elegante, um sujeito preocupado em agradar.
- Foi bom você me encarar. Vejo-a melhor agora. Acertei, um sol meridional no verde-cinza dos olhos, mais verde que cinza, não?
- Ninguém chegou a um acordo.
- Muita gente assim?
- Muita. Já tive vinte homens.
- E nenhum marido no meio disso?
- O primeiro.
- Já sei. O verdadeiro amor. Depois, para esquecer ou para vingar, arranjou os outros dezenove.
- Nada disso. Não amei ninguém até hoje. Para ser exata, amei um homem, mas este nunca teve opinião sobre meus olhos. Se lhe perguntasse, seria capaz de dizer que são vermelhos. Ou ausentes, como os das estátuas gregas.
- E por causa dele arranjou vinte amantes?
- Não. Mas saiba de uma coisa: estou disposta a não ter mais amante nenhum. Encerrei a faxina. Acabou o recreio - como disse há pouco.
- Você quer casar comigo?
- O quê?
O homem prepara-se para repetir mas o avião cai para o lado e sacoleja fortemente. Sinto o vazio descer-me pelo estômago. Quando recomponho a fisionomia, olho para o lado. O homem está lívido, sua, o colarinho incomoda e ele tem de passar o dedo para afrouxá-lo, não o consegue. Faz uma careta e desabotoa a camisa, de alto a baixo:
- Desculpe, o avião está jogando muito, quando se pega temporal aqui é assim.
O lábio treme, desgovernado. Os olhos se empapuçam. O homem, que minutos antes tinha quarenta anos, surge de repente com uma idade brutal: é quase um velho.
- Acho que vou lá atrás. Comi alguma coisa em Recife que me fez mal.
Procura desapertar o cinto. A aeromoça o interrompe:
- Por favor, não se levante agora, atravessamos uma turbulência forte, é perigoso o senhor andar, pode cair e se machucar.
- Mas eu queria... estou me sentindo mal...
- Use o saquinho.
A aeromoça mete a mão na sacola presa à poltrona da frente e de lá retira o saco de papel grosso e pardo, com as iniciais em letras azuis: Boac. For motion sickness.
- É impermeável.
O homem mete a cara lá dentro e incha as bochechas, como se soprasse uma bola do tamanho do mundo. Viro o rosto, para não constranger o homem e para evitar náusea igual.
Afinal, há mais de trinta anos que nenhum homem me faz essa proposta: casar. Foi o enjoo, quando a turbulência passar ele nem se lembrará de que me pediu em casamento.
Não lhe sei o nome. Nem ele nada sabe de mim. Foi uma náusea, começou a sentir-se mal e perdeu o sentido das palavras, disse qualquer coisa para disfarçar a vontade do vômito, o estômago foi mais fraco, está aí o sujeito - um porco.
- Pronto. Foi alguma coisa que comi em Recife, suporto qualquer viagem, estou habituado, viajo semanalmente, navio, trem, avião, é a primeira vez que isso me acontece, estou envergonhado, creia-me, sou forte de estômago, foi o bolinho de lagosta que comi em Recife...
Do homem vem um gosto azedo que me repugna. Tento sorrir mas receio virar a cara e dar com seu rosto decomposto ainda pelos espasmos.
- Vou sentar-me em outro canto, você me perdoe, foi repentino, não pude evitar.
- O senhor me propôs casamento, sabe? - resolvo enfrentá-lo e sinto pena do homem, tem a cara congestionada; nas mãos, sem saber o que fazer com ele, o saco de papel pardo que engordou de matérias podres.
- Não zombe por favor, pedi-a em casamento, e daí? Que mal há nisso? Você é livre para aceitar ou recusar. O vômito não tem nada com isso.
- E se eu aceitasse?
- O problema é seu. Interessa-me apenas isso: casar com você. Só devíamos casar com as mulheres depois que elas tivessem vinte amantes.
- Dezenove: o primeiro foi marido.
O azul vara de repente o avião. As nuvens ficam embaixo da asa. A luz do letreiro, tão destacada quando o avião estava dentro das nuvens, empalidece.
- Apagaram o letreiro?
O homem firma a vista.
- Parece. De qualquer forma, vou desapertar o cinto e lavar o rosto. Nada resiste a um vômito.
A aeromoça serve café e refrigerantes.
- Passou, temos tempo firme pela frente, até o Rio.
Faz bem ver novamente o céu azul. O avião ronca suave, o sol atravessa as janelas e aquece a coragem. Bolas. Tive medo. Não da morte propriamente dita, Mas de dar um grito, fazer papelão no meio das nuvens.
Mais feliz foi o outro, vomitou na hora do pânico, For motion sickness, botou tudo para fora e embrulhou no saquinho pardo. Eu não podia botar meu medo num saquinho pardo: ele ficou em mim, esquentando-me como vinho.
Há céu azul agora, daqui a pouco o avião perderá altura e rolará na pista. Pela janelinha não verei nada, mas na certa estarão me esperando. João, pelo menos, com a mulher imbecil ao lado, os filhos todos - eu terei de fazer o papel de avó, esses garotos lembrarão sempre de mim na atitude que eu tomar agora no aeroporto. Deverei beijá-los, achá-los crescidos e inteligentes. Afinal, são meu sangue - e eu odeio meu sangue. Tudo que me aconteceu de bom e de belo está fora de mim - como o céu azul agora. Dentro, só imundície e horror - o vômito do sujeito deixou no avião um gosto azedo que persiste ainda. O porco. Talvez aceite sua proposta, não é todo dia que se recebe proposta assim. Nada me impede de aceitá-la. Sou livre, tenho dinheiro próprio, não tenho laços com ninguém, afora o laço com o passado que não chega a ser laço, apenas uma sugestão, uma possibilidade de, a qualquer avaria, voltar correndo para um porto e nele me abrigar, esperando o fim.
Devia ter descoberto isso logo que fiquei viúva. Foi preciso que acontecesse tudo. Tino e Valdomiro, o amor sem posse, e a posse sem anor, para que eu descobrisse o meu mistério. Não, não descobri meu mistério, isso ninguém descobre, é mistério mesmo. Aceitei o mistério - é mais importante que entender o mistério. Agora sim, estou tranquila, realizada - o mistério, mesmo aquele que existe em mim, já não me preocupa mais. Só não quero que o avião jogue novamente, seria horrível puxar esse saquinho pardo e metê-lo na boca.
O camarada está indócil. Foi ao banheiro, está lavando o rosto e se perfumando. Penteará os cabelos, ajeitará o colarinho. Depois virá sentar-se novamente, “a senhora aceita minha proposta”, o homem desejou sempre uma espécie de mulher e agora encontra uma que lhe convém - ou já não há mais tempo para procurar melhor. Foi sincero ao me fazer sentir isso e não posso desprezá-lo. Mas o vômito!
Vi Tino vomitar uma vez, pifão que o imbecil tomou solitário, ficou verde, decomposto, foi beber água na geladeira mas acabou correndo para o banheiro.
Nem fechou a porta. E eu ouvi os esgares todos. Não tinha saquinho, teve de abaixar a cabeça até quase enterrá-la no vaso. Fui fazer-lhe café, o miserável não o quis tomar, “isso piora”, emborcou na cama, lívido, para roncar e esquecer. Esquecer o quê? A bebedeira? Mas a bebedeira fora para esquecer também, e o quê? O fracasso de sua arte? O decadente Tino, como o chamara Mário naquele artigo que Tino lia e relia pelos cantos e depois me olhava com cara desesperada?
Talvez o motivo para tanta bebedeira fosse alguma aventura de rua, uma daquelas mulheres que prendiam Tino por dois ou três meses e para as quais comprava pares de meias de seda. Meias cor de carne - eram sempre morenas as mulheres de Tino, não queria carnes brancas como a minha, Greta Garbo não lhe significava nada, nem amava raios de sol meridional. Desejava coisas quentes e breves - Julinha não lhe agradou por causa disso, era uma beleza tranquila, repousante, e Tino colocou-a de lado, foi procurar outras e esquecer o fracasso de tudo.
Gostava quando Tino vinha bêbado e adormecia. Seu sono era brutal e eu podia, sob o pretexto de ajudá-lo, ficar em seu quarto, sentada em sua cama. Muito vez sua cabeça vinha até meu colo e eu o aceitava, maternal.
Seus cabelos em minhas pernas, o meu calor aquecia-o e ele então parava de gemer. Trazia na boca o cheiro azedo de bebida, mas era um gosto doce em sua boca, como um leite saído do meu seio. Podia, se fosse audaciosa, beijá-lo naqueles momentos. Mas tinha medo, ele podia despertar subitamente e eu não suportaria o olhar que ele me mandaria depois.
O camarada saiu do lavatório e conversa com a aeromoça. Pede qualquer coisa. Virá depois sentar-se aqui. Até chegar ao Rio terá tempo bastante para me propor casamento outra vez. Ou será que sua proposta foi causada pelo enjoo? A gente começa a ver tudo turvo, a realidade volta, intacta. E até o Rio, ele terá tempo para explicar o descuido ou a brincadeira.
Talvez queira apenas me cantar - e isso é raro na idade dele, aparenta 48 anos mas deve ter mais que isso, vi bem na cara dele, quando vomitou. Com 48 anos não vai cantar mulher de minha idade. Preferirá gente mais moça. Eu só sirvo para ser cantada por homens de pouca idade, dos 25 aos trinta anos ainda impressiono. Um homem de quase sessenta não pode encontrar nada em mim - a menos que essa história de Greta Garbo seja verdadeira e ele tenha uma fixação em sua vida.
De qualquer forma, ele me propôs casamento. Por enjoo da viagem ou da vida - não importa. Talvez seja desquitado ou viúvo. Não teve amores contrariados, as mulheres que desejou ele possuiu ou esqueceu rapidamente, não fez como eu, que fiquei idiotamente amarrada a um fantasma, a um homem que vivia sob o mesmo teto, dormia entre as minhas coxas e nunca foi meu. Não adiantou Valdomiro ter me ensinado tudo - eu aprendi muito com Valdomiro, mas só pude aplicar seus ensinamentos com os outros, com aqueles que não me importava vencer ou perder. Para esses eu não tinha medo de abrir o jogo, se ganhasse, a vaidade ficaria satisfeita; se perdesse, eu não perdia realmente nada e na verdade nunca perdia. Mas com Tino seria diferente. Se eu perdesse, se eu perdesse...
- A senhora não perdeu nada?
- Eu?
Olho e vejo o homem em pé, a cara recauchutada por vaselinas e cremes.
- Não perdeu a paciência por me ter aturado?
- Não... quer dizer, me preocupei.
- Com minha proposta?
- Não. Com o seu...
Aponto o saquinho pardo.
- Pensei que a senhora tivesse dado importância à minha proposta.
- O avião jogou muito. Fiquei preocupada.
- Não foi nada de mais. Estou habituado a essas viagens.
- O senhor já me havia dito isso.
- Não zombe. Sou veterano dessas viagens. Foi alguma coisa que comi em Recife.
- O senhor falou em bolinho de lagosta.
- Vou ser sincero. Foi bebida. Tomei umas doses em Recife, esperava viagem plácida, a turbulência não fez bem ao álcool e acabei fazendo aquele papelão.
- Me pedir em casamento?
- Não. O vômito. Estava lúcido. Estou ainda. E repito: quer casar comigo?
- Estou pensando.
- Pensando?
- Até o Rio talvez tenha uma resposta.
- Mas...
- Estou brincando. Se a proposta surgiu por causa da bebida ou do enjoo, o senhor tem tempo para retirá-la e ninguém perderá nada.
- A proposta foi séria. Repito-a mais uma vez, sem bebida, sem enjoo, sem turbulência, veja, o avião está tranquilo: quer casar comigo?
Encaro o homem. Parece agora um conhecido antigo, uma cara comum a muitas pessoas e que me dá a impressão de ter sido íntima em determinada fase da vida.
- Afinal, nós nem sabemos nossos nomes.
- Meu nome é André.
- André?
- Gosta?
- Meu marido chamava-se André.
O homem olha para o lado:
- Meu nome é mesmo André. Não tenho outro para a ocasião. Sei que devo parecer ridículo.
- Ridículo não, mas...
- Desagradável?
- Também não. Monótono.
- Sim, reconheço, deve ser monótono, um André depois do outro. Foi há muito tempo?
- O quê? que fiquei viúva? Foi.
- Também sou viúvo.
O homem tem um sobressalto:
- Seu nome não é Marina, é?
- Não, Selma.
- Ainda bem. Seria cruel se fosse também Marina.
- Cruel não. Monótono.
- Mas a viuvez não me representou nada. Antes de Marina morrer já estávamos separados.
- Meu marido morreu tão logo nasceu meu segundo filho. Um acidente.
- De avião?
- Não. Automóvel. Embaixada do Ceilão.
- Essas embaixadas! A minha foi a do Peru.
- Atropelamento também?
- Não. Fugiu com o adido cultural da embaixada do Peru. Fascinada pela arte inca. Acabou morrendo em Cusco, de tédio, o adido era um vigarista.
- E o senhor?
- Melhorei de vida, ganhei bastante dinheiro. Comecei a viajar - mas nunca fui ao Peru. Nem tive a ideia de casar-me. Só agora, e de repente.
- Bem, digamos que aceite sua proposta. Imponho de início uma condição: passar a lua-de-mel no Peru.
- Em Cusco?
- Qualquer cidade serve.
- Também gosta da arte inca?
- Não, não gosto de arte alguma.
- Nem eu.
- Mundo pequeno, hem?
- Pequeno não. Monótono.
A aeromoça vem com a bandeja. Saladas, sanduíches. O homem sente fome, apesar do vômito recente. Eu recuso o lanche.
- Apenas café. Bem forte.
O homem limpa os beiços com o guardanapo de papel alvo, com as mesmas letras azuis do saquinho pardo: Boac.
Depois sente sono.
- Tomei duas dramaminas para curar o enjoo, essas drogas dão um sono desgraçado, contêm éter dimetilaminoetil-benzohidrílico.
- O senhor é químico?
- Não. Um viajante experimentado.
O viajante experimentado vira para o lado e dorme dimetilaminoetil-benzohidrilicamente.
André sabia o nome das estrelas do céu. O nome das plantas em latim. Gabava-se disso. Ainda bem que Tino não o conheceu, não nos perdoaria se soubesse que meu marido, pai de Julinha chamava as avencas de nomes complicados que terminavam em “us”.
Mas Tino também sabe coisas esquisitas, os nomes das tintas, eu dizia que o céu estava azul e ele, para contrariar, dizia que aquilo não era azul - e dava um nome técnico, sem sabor.
Agora, um outro André surge em minha vida e sabe o que contém um comprimido. Dorme satisfeito e experimentado. Apesar de toda a experiência, queria levantar-se na hora do vômito, se fosse experimentado saberia que não se pode levantar naquele momento, o recurso era o saquinho mesmo, fazem saquinhos para horas assim.
“Sou um viajante experimentado.” Ele disse isso com vários sentidos. Mas sabe que em outras viagens sou mais experiente que ele. Valdomiro me deu o atestado: “agora você é realmente uma mulher. Um corpo que funciona”.
Sou um corpo que sabe funcionar. Como os ginastas que cuidam do físico e sabem mexer cada músculo do corpo. Como os sábios que conhecem o nome das plantas em latim. Sei o que sou. Sinto pelo cheiro do homem o que ele deseja de mim. O camarada que viaja na poltrona à minha frente é impotente, tem belo aspecto, olha superiormente as mulheres, mas é impotente. O piloto que nos guia é inibido, talvez seja até pederasta. Esse André aqui a meu lado é tipo regular. Para a idade que tem, talvez seja excepcional. Tino é imaginativo. Podia ficar nua diante dele, provocá-lo - mas ele estava distante. Só lhe serve a mulher distante. Ama fantasmas - o idiota. Eu nunca fui fantasma para ele. Muito presente em sua vida, muito quotidiana, só faltávamos dormir juntos.
Depois que Julinha morreu, ele quis ir embora, montar apartamento. O advogado aconselhou-nos a não abrir o inventário, eram necessários dois, o de Julinha e o de André, ambos deixaram bens. O melhor seria não mexermos no monte, dava mais dinheiro assim. A retirada era toda minha, Tino não queria receber nada da parte de Julinha.
Pedi que ficasse morando comigo, a casa era grande para que eu a ocupasse sozinha. E Tino nunca teve ganho certo, vivia do que a arte lhe dava - muito pouco e raro.
Não é orgulhoso, tampouco, justificava-se para os amigos que o acusavam de imoral por aceitar aquela situação, dizia que o artista deve depender economicamente dos outros, dos burgueses abastados.
A mim não tapeava. Ele dizia isso na rua, para se fazer de forte diante dos outros, eu sabia, porém, que ele lutava por se libertar, ganhar dinheiro para viver sozinho. E aproveitei a vantagem até que um dia ele bateu asas e voou.
Fui má. Antes que ele se fosse com sua dignidade, eu me antecipei e de certa forma o mandei embora. Resolvi apressadamente iniciar esta viagem, alugar a casa, ou vendê-la. Ele não tinha onde cair morto e recebeu o golpe sem estrilar. Foi minha única vingança contra ele. E foi a única vez que senti fraqueza em seu olhar. Se fosse mais honesta, poderia ter sido clara. Poderíamos morar juntos para sempre. Para sempre eu podia sofrer aquela situação - afinal, eu o tinha de certa maneira, e isso me fazia feliz também de certa maneira. Tino amava fantasmas. Bastava ser fantasma para dele merecer já não digo amor ou culto, mas respeito.
Dei-lhe o golpe de misericórdia. Vi em seus olhos a surpresa. Evidente, não sentiria falta de mim. Mas sentiria a ausência do meu conforto, do meu quotidiano. Afinal, eu era dona de casa, cuidava de suas roupas, de suas coisas, como se fosse mãe ou esposa falida.
Fingia nisso uma atitude indiferente, ou entediada. Era importante que ele não suspeitasse de mim. Que ele ignorasse que eu o amava, que eu o queria para mim com todas as minhas forças: as naturais e as artificiais, aquelas que Valdomiro despertou em mim.
E só depois de muito tempo foi que descobri uma coisa ignóbil. Já na Europa, pensando em tudo com serenidade, descobri o sórdido que ele era e foi. Tino já era então um fantasma, desses que só incomodam na hora em que os fantasmas incomodavam. E descobri que foi Tino quem me atirou para cima do Valdomiro. Foi ele quem preparou tudo, serviu de alcoviteiro quase. Imagino Tino dizendo para Valdomiro: “minha sogra está viúva há muito tempo, ainda é moça, por que você não tenta?”
Isso o livraria de alguns problemas. Eu podia buscar outros na rua, podia me casar novamente e ele seria expulso de casa. Valdomiro entraria com sua condição de garanhão, garanhão experimentado como esse André é viajante experimentado. Tino não perderia nada, e enquanto eu tivesse Valdomiro, Tino estaria tranquilo, minha carne quietada, não correria o risco de me apaixonar por outro, casar e o expulsar.
Pensou em tudo, o miserável, menos em que eu o amava. Que eu trocaria tudo, tudo o que aprendi com Valdomiro, tudo o que gozei na Europa, por um momento inexperiente e curto em seus braços.
Valdomiro contava-lhe tudo, como eu era por dentro, como eu era na hora do amor. Contou o me ensinou e como eu reagi.
Tino me olhava meio surpreendido, no início; depois nauseado. Mas aí eu entrava na fase do desespero, já não me importava com sua opinião, passei a me dedicar a Valdomiro, até que um dia recebi o atestado: “você está no ponto”.
Valdomiro saiu de meus braços e foi contar a Tino, “ela agora está no ponto”.
Tino entrou tarde àquela noite, veio bêbado, como bêbado vinha agora muitas vezes. Passou a noite acordado. E no dia seguinte, pela manhã, ouvi-o telefonar a um amigo e chamar Valdomiro de canalha.
Ele tinha usado Valdomiro, Valdomiro me pervertera, Tino sabia que agora eu não me amarraria a homem algum, com o dinheiro que tinha e os truques que sabia, seria mulher independente e solitária. Estava certo de que jamais o expulsaria de casa. Foi quando dei o golpe:
- Tino, vou alugar a casa.
- Está no seu direito.
- Pretendo viajar, Europa.
- Valdomiro vai?
- Vou sozinha.
Depois de algum tempo murmurou:
- Preciso arranjar um lugar para mim.
- Não tem pressa, Tino. Até tratar de tudo, bote aí uns dois meses. Precisando de qualquer coisa, eu ajudo.
- Obrigado, tenho uns quadros vendidos, outros a vender, saberei me arrumar.
- Mas afinal você tem direitos também. Parte do que Julinha deixou é seu.
- Não penso nisso. Fica tudo para a senhora, não quero nada do que foi de Julinha, era dela, só dela, eu sempre fui pobre.
- Mas é de seu direito.
- Que fique como paga dos anos em que morei aqui... em que vivi com a senhora. Sabe, comida, roupa lavada, isso custa dinheiro...
- Custa nada, Tino. Foi um prazer tê-lo aqui comigo esses anos todos. Eu ficaria muito sozinha se você me abandonasse após a morte de Julinha. Você bem sabe como é o João, não podia contar com ele para nada.
- Mas casa e comida, durante quase dez anos, vai alto. Não me considero com direito algum sobre o que Julinha deixou. Não quero nada.
Eu tomava café e abaixava a cabeça para que ele não visse meu olhar. Gozava sua atitude, seu bom-mocismo. Estava aí a paga por ter comprado meias cor de carne para morenas que eram quase mulatas. Por nunca ter olhado para minhas pernas quando arrumava a blusa bem à sua frente e levantava a saia. Ia embora agora, o meu passarinho, o meu idiota imbecil e amado. Que buscasse nas ruas e nas mulatas o que quisesse. Pelo retrato que Valdomiro fez de mim, ele devia me julgar uma bacante - e agora, durante esses anos em que estivemos separados, talvez ele tenha se excitado ao pensar em mim, nas oportunidades que teve. O idiota que nunca soube que eu trocava todo o meu prazer, que a bacante ficaria uma pombinha a seus pés só para tê-lo nos braços e amá-lo sem reservas, sem mistérios, como as mães amam, como as cadelas amam.
Apesar do céu azul, o avião sacode agora, como se passasse por nuvens. Tomou altura, os aviões quando não caem ficam tomando mais altura. O homem ao meu lado acorda. Já me chama de Selma. E é André, como o outro. Após tantos nomes em minha vida, eis que parece que vou recomeçar tudo: André.
- Alguma novidade?
- O avião tomou altura.
O homem olha pela janela:
- Estamos afastados da costa. Sobre o mar o voo é mais calmo, o tráfego menos intenso. Sabe, há muitos aviões nesse instante indo e vindo na mesma rota. Mas não se alarme, cada qual leva um plano de voo, uma altitude específica. Não se preocupe.
- Não estou preocupada.
O homem faz cara séria ao lembrar que dormira ao meu lado. A experiência deve advertir-lhe, as mulheres aproveitam o sono e estudam a cara, as rugas, os pensamentos, a espessura, e a fragilidade do homem.
- Sou feio quando durmo?
- Não reparei.
- Prometo que dormiremos em quartos separados.
- O senhor não está indo muito longe?
- Por quê?
- Afinal, não lhe dei esperança alguma.
- Tenho intuição.
- O senhor é um homem prendado.
- Pode zombar. Mas fique certa: daqui a algumas horas sairemos por aquela porta, juntos.
Olho a porta. O letreiro vermelho com a palavra Exit. É melhor sair pela porta, rumo à cama, que ser atirado no espaço, como um fruto que cai:
- Sabe que o admiro?
O homem pigarreia:
- Não é zombaria?
- De início, julguei-o convencido, um pouco antipático. Mas vejo-o tão seguro de si, tão... tão...
- Experiente?
- Isso, experiente, que já estou simpatizando com o senhor. Talvez aceite sua proposta. E olhe, passei por muita coisa em minha vida: honestamente, não esperava receber proposta assim. Por causa disso, talvez, é que esteja atraída a aceitar.
- Acabará aceitando. E para esclarecer um pormenor: tenho dinheiro também, não pense em golpe.
- Como sabe que tenho dinheiro?
- Uma mulher de sua idade, para viajar pelo mundo, sem subvenção masculina, deve ter bens próprios, bens de raiz...
- Bens da raiz? O senhor usa uns termos...
- Quero casar por motivos internos e externos. Os internos são difíceis de explicar assim de repente, levam tempo. Os externos são simples, estou cansado de viver sozinho, você me atrai, aquilo que disse há pouco não foi brincadeira, você é bonita, um tipo estranho, misterioso, apropriado para um homem como eu.
- Vai repetir a história de Greta Garbo?
- Quê que tem? Você lembra mesmo Greta Garbo.
- Com raio de sol meridional nos olhos?
- Sim. Uma Greta Garbo latinizada. Um tipo atraente.
- Mesmo em minha idade?
- Quê que tem sua idade?
- Já me imaginou numa cama?
O homem sobressalta-se, apesar de se esforçar para demonstrar que é experiente em todos os assuntos.
- Posso ser franco?
- Pode.
- Quando a vi, no aeroporto de Recife - só a reparei em Recife - olhei suas pernas. É o tipo de perna que gosto. Evidente, olhando suas pernas, imaginei-a na cama. Mas isso foi em Recife. Um homem como eu, quando é obrigado a olhar para uma mulher como você, a primeira coisa que ainda pode pensar é: como será essa mulher na cama comigo? Agora, a primeira motivação passou. Ou melhor, existe ainda, mas em plano menor. Tenho mais curiosidade do que desejo. Quero-a para mim, inteira, pernas e olhos, e sangue e carne, toda. Toda, para tudo.
- Bom, o senhor reconhece que o primeiro impulso foi igual ao de todo mundo?
- Não me culpe por isso.
- Muito bem. Serei agora a sincera. Quando tomamos o avião, em Lisboa, o senhor me pareceu um imbecil.
- Por quê?
Olho divertida para o homem. É fraco, posso destruí-lo com um olhar. Há uma aflição ingênua e desarmada em seus olhos.
- Sei lá. O senhor em um jeito de segurar a mala... anda cheio de si. Parece preocupado em inspirar confiança aos outros. No entanto, não confia muito em si mesmo.
- Disso tudo uma coisa é certa. Sei dar confiança aos outros e você precisa de confiança. Vale dizer, você precisa de mim.
- Não sei se esse convencimento lhe ficava bem ou mal.
- Não compreendo.
- Quero dizer, se me atrai ou repele.
- Ótimo! Quanto mais tempo duvidar melhor.
- Melhor para quem?
- Para ambos!
Tenho um engulho e viro a cara para o lado.
- Disse alguma besteira?
- Creio que o avião jogou outra vez.
- Não percebi.
Reparo a cabina, os passageiros calmos, a aeromoça conversando com uma senhora inglesa, um homem abrindo as páginas de um livro com a espátula de osso.
- Quer descansar um pouco?
- Agradeço. Daqui a pouco passa.
“Quanto mais tempo duvidar melhor.”
Esse imbecil acaba de repetir a mesma frase de Julinha naquele dia. Ela não suspeitava de nada. Até que cometi aquela imprudência. Tino deixara a carta em cima de sua mesa de trabalho, ele recebia cartas e Julinha não ligava para as cartas do marido, deviam ser de amigos, gente esquisita e anormal que falava em coisas estranhas. Julinha não tinha nada a favor ou contra o dadaísmo, o impressionismo, Léger ou Braque. E Tino recebia cartas, amigos e amigas, pintores e pintoras, gravadores e gravadoras, escultores e escultoras.
Eu apanhei a carta, não pretendia ler, apenas aferir, sentir o peso de um objeto dele, apenas isso. Não sei o que me deu, abri o envelope e li. Uma gravadora de São Paulo. Não falava em Braque nem Léger. Falava de um passado recente e um futuro próximo. Eram amantes, ela vinha ao Rio para ficarem juntos, quando Tino estivera em São Paulo ela arranjara tudo e dera-lhe tempo e amor.
Não vi quando Julinha veio pelas costas.
Errei em ter virado bruscamente. Ela viu minha cara transtornada, viu o ciúme, o despeito. Foi um erro, devia ter evitado o cara a cara, o olhar no olhar, duas mulheres sabem quando amam o mesmo homem.
Julinha não disse nada. Tomou-me o envelope e foi para o quarto. Mais tarde, apareceu com os olhos vermelhos. À noite, ouvi discussão no quarto deles. Tino estava meio bêbado, deixou a porta aberta, dava explicações confusas, deixou Julinha aturdida. Não eram encontros de amor, eram interesses de expositores, campanhas, coisas vagas e indolores que amorteciam Julinha. Tino pedia calma, que ela não fosse desconfiada, não duvidasse dele. Até que Julinha disse a frase:
- Quanto mais tempo duvidar, melhor.
Duvidou enquanto pôde, para evitar a certeza. Mas passou a vigiar-me e a vigiar Tino. Não sei até hoje o que aquele imbecil fez ou deixou de fazer, o fato é que seu procedimento foi aumentando as suspeitas dela. Alguma coisa de errado vivia entre eles, Tino uma noite foi dormir no sofá da sala e nunca mais dormiram juntos.
Julinha comia e dormia mal. Evitava falar comigo, ficar a sós comigo. Fiz o que pude para demonstrar que sua suspeita era descabida, eu não amava Tino.
Já era tarde, o mal estava feito, tudo me acusava, todo o meu passado, as iniciais que bordara no guardanapo de Tino, o suéter branco que lhe fizera no último inverno, o isqueiro de ouro que lhe dei no Natal.
Passei a sair acintosamente com Valdomiro, ficava dependurada ao telefone conversando com ele, marcando cinema ou teatro. Julinha me olhava, repugnada e triste, perseguia-me com olhos implacáveis que liam a verdade no fundo dos meus olhos e no fundo da minha carne. Julgou que o jeito de Tino ao me falar, encabulado e nervoso, fosse amor também. Não conhecia o marido - e surgiu-lhe a certeza: nós nos amávamos. Impossível que vivendo sob o mesmo teto, ao longo de tantos anos, não fôssemos amantes. Tudo então fez sentido para ela.
- “Quanto mais tempo duvidar melhor.”
Não duvidava mais. Um desmaio no banheiro. Exames, depressão nervosa, má alimentação, abuso de barbitúricos. Jogava fora os remédios. Até que chegou o fim.
Ouvi o barulho e não dei importância. Alguém arrastara móvel no andar de cima. Ou no de baixo, localizo mal os ruídos. O que me inquietou não foi o barulho, foi o silêncio que se seguiu. Tudo ficou tão quieto e parado que de repente tive medo.
Chamei Julinha. Chamei-a uma segunda vez, sem resposta. Sabia que ela não me responderia, ultimamente não falava comigo. Ao ouvir o meu chamado, viria do quarto até a sala e ficaria a meu lado, esperando que eu falasse.
Julgava-a já a meu lado, silenciosa e humilde. Quando levantei os olhos, não vi ninguém. Fui então ao seu quarto. A porta semiaberta e semiaberto o pijama de Julinha, deixando ver um pouco de sua nudez magra e sofredora. O pijama de flores azuis em fundo branco, a curva da anca bem acentuada na posição do desmaio. Era um corpo bonito, jovem, embora indormido, sem amor. Apesar do corpo bonito e da curva anca, Julinha estava só. E como morta.
Levantei-lhe a cabeça. Os lábios contraídos, como de quem guarda um segredo ou prende um grito. Tino tinha ido a Recife, reunião de artistas plásticos, ela recebeu o telegrama, “após viagem surpreendentemente rápida, cheguei bem”. Julinha não ligou para o telegrama, deixou-o pela casa, para que eu lesse e me incomodasse, sabíamos que Marta, ex-amante de Tino, estava em Recife também, e Julinha queria que eu soubesse disso.
Chamei a empregada e levamos Julinha para a cama. Fui ao banheiro. A caixinha de papelão amarelo, rompido às pressas, daquele papelão saíra o vidrinho mágico, as cápsulas cor de laranja que levavam Julinha para o sono e o esquecimento.
Lúcida, enfrentei eu o telegrama e a solidão daquela noite. Julinha, com menos idade, menos corrompida diante da vida, fugira para o esquecimento.
Volta e meia entrava em seu quarto, fiscalizando-lhe o sono. A cama de casal tão pouco usada agora, o corpo de Julinha ocupava um espaço insignificante.
Não me alarmei até a tarde do dia seguinte. Passei a mão pela testa de Julinha, tentei abrir-lhe os olhos. Julinha me olhava embaciada como um peixe álgido, distante, de um mundo submerso, de imponderáveis águas. Chamei o médico. Não encontrei o médico habitual. Apelei para outro, um vizinho.
Foi mais vizinho que médico. Tomou a pressão, auscultou o coração de Julinha. Aceitou o café que a empregada lhe trouxe. O homem olhava para mim, queria me impressionar.
- Doutor, é sério?
Fez mistério:
- É e não é. Abusou do barbitúrico. Isso seria uma leviandade, um incômodo apenas, que passaria com o tratamento específico. Mas há um detalhe sério. A senhora é viúva, não?
Minha cara espantou-o:
- Não, não me julgue mal, não é indiscrição do vizinho, é um pormenor que ajudará o médico. Seu marido morreu do coração?
- Acidente. Um carro.
- Sabia se ele sofria do coração?
- Não.
O médico fez cara responsável:
- Há umas batidas, um sopro, aconselho o eletrocardiograma como precaução, ela não devia abusar dos barbitúricos, tem lesão na certa, essa mania é recente?
- Mais ou menos. De uns dois meses para cá.
- É tempo de recuperar ainda, se o órgão estiver em condições não será sério. O vício é pior, custa a tirar...
O homem embromava, olhava minhas pernas.
- Sabe que a senhora se parece com Greta Garbo?
- Já me disseram isso. E quando posso mandar fazer o eletrocardiograma?
- Ela precisa de repouso. Amanhã ou depois. Enquanto isso, qualquer coisa é só me chamar, estou às ordens, tive muito prazer em me aproximar da senhora.
Mandei-o embora. Prometi-lhe uma gravata ou flores para sua senhora - quando se recusou a receber o preço da visita.
Julinha continuava deitada, os olhos abertos agora, escancarados, como se vissem fantasmas no teto. Não havia pavor naqueles olhos. Apenas cansaço. Olhava o teto para não me olhar. Ouvira o que o médico dissera, percebera que ele me cantara, já estava habituada a isso, todos os homens me cantavam, era uma viúva desejável e cômoda, todos os homens me cantavam até mesmo diante dela, mais moça e mais bonita. O único homem que não me cantou foi Tino mas Tino estava longe e ela estava só e fatigada.
Tão fatigada que me pediu café. Já há dois meses não me dirigia a palavra. À noite, o vento batendo com a janela de seu quarto, despertou-a do sono em que recaíra. Ela sabia que a empregada tinha ido embora, teve necessidade do café, e não tinha outro jeito, estava muito fraca para levantar.
Ouvi sua voz:
- Mamãe!
Eu já estava desabituada àquela palavra: mamãe. Um momento de reconciliação para comigo mesma, após longo período de culpa e secura humana.
Fui à cozinha fazer café. Quando entrei em seu quarto, equilibrando a bandeja com a xícara, fui direto à mesinha-de-cabeceira, não acenderia a luz de cima, podia cansar Julinha. Apertei o comutador do abajur e vi o rosto de Julinha, violentamente contraído, os olhos esbugalhados, na dor do espasmo.
Chamei a ambulância, a equipe que atendeu queria armar a tenda no próprio quarto mas eu preferi o internamento em clínica especializada, uma hora depois estávamos instaladas em confortável apartamento, Julinha envolta pelo imenso cortinado de matéria plástica, os manômetros acusando a pressão dos tubos, o cheiro de desinfetante - tudo limpo e preciso, e eu me senti tranquila, sabendo que Julinha superaria a crise, que fora até bom a crise, ela agora tomaria cuidado, todos tomaríamos cuidado com ela.
Tino voltaria logo, pedi o interestadual, ouvi a voz distante, no distante Recife, Tino se assustou, viria no dia seguinte, telefonaria para a companhia pedindo o primeiro avião, tranquilizei-o, não há perigo, susto apenas, ela andou abusando, foi o seconal, tem lesão cardíaca, já tirou radiografias, o eletrocardiograma é otimista, com cuidado, repouso, evitando aborrecimentos e emoções, não será nada.
Chegou mesmo no dia seguinte, veio direto do aeroporto, a cara cansada e sofrida. Eu estava bem instalada ao lado da filha - ela me chamara de “mamãe” e isso era importante para nós duas - pela manhã havia enxotado João que viera oferecer os préstimos - o idiota. Julinha recobrara a consciência, fazia gestos do fundo de seu mundo de matéria plástica. Eu botava a mão naquele mundo plástico e sentia frio.
O médico:
- Amanhã ela estará completamente recuperada. Podíamos mandar tirar a tenda mas é bom que fique até amanhã, respirará melhor e melhor descansará.
Tudo certo e bom. A crise vencida, a perspectiva de uma convalescença longa e repousante. Julinha tentava sorrir às vezes e só teve um olhar desesperado quando me viu entrar no quarto, com Tino ao lado. Fixou-nos na moldura da porta, como que a pedir que não entrássemos. Mas foi breve a dúvida. Depois forçou o sorriso.
- Tudo bem? - Tino tinha os olhos claros quando fez a pergunta.
Ela estava de olheiras, fedendo a mulher ainda, dormira e se fartara com Marta, parecia um pouco cansado de fuçar no esterco.
- Sim - respondi - dentro do susto não podia ser melhor. Julinha se recuperará e tomará cuidado agora, foi um aviso.
Saímos para o corredor e Tino viu passar o carrinho que trazia o almoço do apartamento vizinho.
- Vou almoçar na cidade. Depois volto.
- Não precisa. Tem almoço aqui, daqui a pouco vem o nosso, já pedi para nós dois.
Tino almoçou a meu lado, intimidade recente que a preocupação comum unia e abençoava. Parecia que se rompia a barreira entre nós. Ele deixava de ser Tino - o meu Tino - para ser quase filho meu, amável, polido, querido, pouco beijado ainda, que era preciso amparar, proteger, amar.
Passamos a tarde assim. Vez por outra íamos ao quarto, olhar Julinha pela capaça transparente e fria. O peito dela arfava, o oxigênio deixava escapulir um hálito gelado.
À noite, o médico trouxe o resultado geral dos exames. Julinha tivera síncope de fundo cardíaco, um ligeiro espasmo. Tão benigno que não deixara marca alguma, a recuperação se limitaria ao repouso. Quanto à tenda, já estava sendo retirada.
Corremos ao quarto. Julinha - sentada na cama, os travesseiros apoiando as costas - sorriu para nós. Os enfermeiros empurravam os compactos tubos de gás, a matéria plástica se recolhia como a vela de um barco cujo motor voltara a funcionar de novo.
Estava tão bom ali, tão íntimo, Julinha recuperada e sorrindo para nós, Tino próximo e meu, tudo bom e breve - que senti vontade de chorar. Fui para outro quarto.
Nem cheguei a chorar. Senti alguém vir pelas costas e me agarrar. Senti seu corpo de alto a baixo, contra o meu. Ia virar o rosto. Meus braços eram envolvidos por suas mãos, ele sentia necessidade de acariciar alguém - e talvez não se sentisse suficientemente puro para acariciar Julinha agora.
A enfermeira apareceu na porta do quarto. A fisionomia trazia a notícia.
Corremos para perto de Julinha. E continuei entorpecida pelo abraço de Tino mesmo quando vi, insignificante sobre a cama, o cadáver de minha filha.
- Aquilo lá embaixo é Vitória.
- Já?
- Já. Desejava ver a Bahia, ao menos de cima. Você podia me ter acordado.
- Também adormeci. Não a Bahia. Ou melhor, quando vi ao longe essa enseada pensei que fosse a Bahia.
- Mas é Vitória. Tem essas nuvens por cima, sempre que passo por aqui encontro essas nuvens.
- Então é o fim da viagem. Daqui a uma hora estamos no Rio.
- Um pouco mais, ainda.
- Tanto faz agora. Estou chegando. Seis anos lá fora é alguma coisa. Sabe, tenho a impressão que foi ontem.
- Ontem o quê?
- Que fugi.
- Pelo fato de ter pedido que você se case comigo, não se sinta obrigada a falar sobre o passado. Não importa o que você tenha feito ou deixado de fazer. Importa é o meu pedido.
- Ainda está decidido?
- Por que não? Do aeroporto, iremos para minha casa. Amanhã começarei a tratar dos papéis. Na outra semana seremos marido e mulher.
- Para que tanta pressa?
- Não podemos gastar tempo e palavras à toa. Na nossa idade - o homem olha com confiança para o próprio peito - podemos dispensar as inutilidades que cercam essas coisas. Nosso passado só interessa a um e a outro de forma particular. Importa agora o futuro comum que poderemos ter. Essa é nossa verdade.
O homem apanha minha mão e leva-a à boca. Um beijo de cavalheiro, aguado, ridículo.
- Isso é completamente imbecil.
- O quê que é imbecil?
- Isso tudo, o casamento, o beijo na mão, o senhor aqui ao meu lado mantendo uma conversa absurda.
- Tive vontade de beijar sua mão. Beijei-a. Foi simples, ninguém morreu, o avião não caiu, o mundo continuou.
- Imagino se o senhor daqui a pouco tiver vontade de me beijar na boca.
- Podemos deixar isso para mais tarde, a menos que o avião resolva cair.
- E se cair?
- Se não sentir pânico antes, beijarei sua boca como você quer que seja beijada.
- Como sabe que desejo ser beijada?
- Há muito tempo você não beija ninguém. Guardou sua boca para o beijo que nunca foi dado. Mas chegou a hora agora, a hora antes do fim.
- O senhor nem sempre é cortês.
- Devemos dispensar isso, também. Mas saiba: desejo beijá-la. Quero tirar uma dúvida aqui dentro.
- Por que o senhor não me deu primeiro o beijo? Geralmente o beijo vem antes da proposta de casamento.
- Fiz isso com outras e nunca deu certo.
- Esse eu lhe disser que amo alguém?
- Não importa, está dentro do meu esquema.
- O senhor me desconcerta.
- Você é que se desconcerta. O seu passado não me interessa. Esse amor é um fantasma que você carrega por capricho, para manter esse ar enigmático e tolo. Para ser franco, esse amor não me interessa, porque nunca interessou realmente a você.
- O senhor está sendo brutal.
- Sou um homem experiente.
- Mas está enganado. Já que o passado não lhe interessa, procure saber o futuro, o futuro mais imediato, o que vai me acontecer daqui a uma hora. Mandei telegrama para esse homem. Ele está só, desde que fui embora ficou só, não viveu com mulher alguma, está à minha espera. Esse homem irá ao aeroporto, me esperará. Quando olhar para mim, entenderá tudo. Já nos castigamos bastante, tanto eu como ele tínhamos de resgatar certa coisa, pagamos o preço do resgate - quase uma vida - o senhor não entende nada disso e nem precisa entender. Sou uma idiota contando isso para um estranho. Mas aqui acabo a conversa.
Olho para fora e vejo ao longe a Guanabara: - é o fim da viagem.
- Apenas uma pergunta?
- O senhor não disse que o passado não interessava?
- A pergunta é sobre o futuro.
- Então pergunte e depois vá embora.
- E se esse homem não estiver no aeroporto?
Olho o homem com nojo:
- Está! Sei que está!
- Mas se não estiver?
- Então me caso consigo ou com o diabo. Dá na mesma.
- Obrigado pelo diabo.
O homem levanta, vai para a frente. Não parece amuado. Senta e abre uma revista. Olha mais uma vez para fora e sinto vontade de gritar o nome de Tino. E de repente me surpreendo chorando, mansinho, como costumo chorar antes de dormir e depois de ter pensado muito e de ter pena de mim mesma.
O fim. Quando saí do Rio pensei que me surgisse alguém que desejasse casar comigo. Até isso acaba de acontecer. Mas encontrarei Tino no aeroporto. Ele adivinhará tudo: os homens que me cantaram, os que me possuíram, os que me amaram. Apresentarei André e talvez lhe diga:
- Vou me casar com este homem. Vomitou a bordo, mas é um homem experimentado. Eu também sou uma mulher experimentada, remember Valdomiro.
Ele pensará que foi uma conquista de hotel, um romance comum na base de viagem, das oportunidades rápidas. André olhará Tino e compreenderá: é ele! Tino olhara André e pensará num conquistador comum, não saberá que eu talvez me case com um conquistador comum se ele não me quiser hoje mesmo, para mãe, amante, esposa - já não posso escolher e aceito qualquer coisa a seu lado. Tino olhará André e o julgará calhorda, com desprezo dirá entre os dentes: um calhorda - e terá raiva de mim.
Já há movimento a bordo. Daqui a pouco acenderá o aviso para apertar os cintos. O céu é azul e íntimo agora, sinto que volto para casa, enfim. Naqueles terra lá embaixo está enterrada Julinha. Está enterrado o outro André que me pagou essa viagem e, morto, ainda me sustenta. Naquela terra me enterrarão um dia
Volta para nada. Ver Tino já não é obrigação nem desejo. É uma consequência. “Tudo está ficando medonhamente fácil”, até voltar para ele é fácil agora, e no entanto, foi difícil deixá-lo.
Se ele não me quiser, talvez aceite a proposta de André. Será mais um homem em minha vida - apenas isso. Quanto ao casamento, nem eu nem ele acreditamos realmente nisso. Não posso recusar esta oportunidade, estou mais próxima do meu fim - do que do fim dessa viagem. Todos os caminhos agora levam ao fim. Se acaso André quiser mesmo casar, aceitarei. Casarei com ele, dormirei com ele e o desmascararei. Nenhum homem me humilhará mais, basta Tino e como basta!
Sinto lá fora as nuvens de minha terra, o céu da minha cidade. Volto para casa, sinto isso bem. Tudo parece meu de repente, até André ali, ajeitando a valise, é mais meu agora - ele que ainda não foi nada para mim.
Acendem a luz: “Amarrem o cinto. Não fumem”. Isso me dá súbita vontade de fumar. André foi apanhado longe da poltrona, sentou-se na cadeira que ocupou antes de vir falar comigo, amarra-se com experiência e medo.
Eu me amarro também. Parece a mesma coisa: voltar e me amarrar nessa cadeira. Estou tão perplexa como no dia em que, com um tremor no corpo, me amarrei em um outro avião para a viagem de ida e fuga. Sou a mesma, saí agora mesmo de casa e sinto no rosto o beijo convencional que Tino me deu na hora da partida.
Ou estou errada? Tudo mudou realmente, eu também. Apenas Tino não mudou em mim. Por isso essa sensação de voltar para ele. Tino continuou, fiel e intacto, dentro de mim.
A asa do avião quebra o azul lá fora. O Rio lá embaixo. Nada mudou - parece. As montanhas no mesmo lugar. Barcos, velas na Guanabara, o mesmo tom de sol, a mesma cor de mar. Tino é um animalzinho insignificante na pele dessa cidade. E esse animalzinho insignificante é tão grande dentro do meu corpo e tão dolorido dentro de minha saudade.
Mais outra volta. O avião perde altura e eu me aproximo do solo. Me aproximo de Tino. E parece que estou fugindo dele. Agora é que começo verdadeiramente a fugir dele. Sinto no estômago um peso, vontade súbita de pegar o saquinho pardo e soltar tudo, sair do avião vazia e livre.
A roda foi para fora, percebi o corpo do avião tremer. Daqui a pouco, por esta vidraça onde agora vejo mar, verei Tino aproximar-se. Ele andará de encontro ao cansado corpo do avião, com aquele passo indeciso, como quem não sabe pisar ainda.
Sinto os motores diminuindo a força, quebrando a potência. Potência e impotência, a pista recebe a ave que pousa. Estou de volta. Ave na pista finalmente, o chão, sou Selma como antes, sinto agora a minha história, sou um fato para mim mesma. Sou Selma. Tino é Tino. E descubro que nada aconteceu realmente em minha vida.
Sou o único. Sei, a mãe mandou telegrama para todo mundo, inclusive para Tino. Mas sou o único a vir esperá-la. O único suficientemente estúpido para um gesto de cortesia. Ou de dor.
Espero uma estranha e desagradável estranha que um dia abriu as pernas para gozar e meses depois abriu novamente as pernas para parir.
Quê que eu tenho com o abrir de pernas de uma mulher? Repugnantes bichos que só querem e só fazem isso mesmo, abrir as pernas com dignidade. E que dignidade tem Teresa? Abriu-se toda, um compasso branco à espera de uma coisa que nunca teve.
Impotente, chamou-me.
Impotente. Por quê? Porque não tenho atração pelo mundo branco e fofo que a mulher pode me dar? Ora, tenho potência para outras coisas. Rir, por exemplo, de todos, até de minha mãe - a vagabunda que deitou com o genro sob o mesmo teto da filha. É o que sabem fazer as mulheres: trepar. Na rua, parecem santas, cheias de recato, de pudentes gestos. Se um bêbado passa e diz em voz alta: “a vida é uma merda!” ficam vermelhas, baixam os olhos, e morrem de confusão e vergonha. Depois sobem no elevador, vão para os amantes, escancaram as pernas, mete, mete, dizem nomes grosseiros e repugnantes para se excitarem ou excitarem o homem, depois são eleitas mães do ano, morrem um dia em cheiro de santidade, quando deviam morrer em cheiro de esperma.
A companhia já avisou, o avião está no horário, daqui a meia hora rola na pista.
Boac. A mãe gosta dessas coisas, em vez de ficar quieta em casa, num canto, anda nos navios, nos aviões, nos hotéis, conhece homens e deita-se com todos. Não respeitou Julinha, não respeitou nada e ninguém, não respeitou nem o filho, soube que Teresa me lançou na cara: “sua mãe dorme com outro!”
Não tenho raiva nem de Teresa, nem de Tino, são burgueses estúpidos e gozadores. Mas como posso perdoar a mãe?
E ei-la que vem. De Boac. Um avião luminoso no meio deste céu. Ela virá, luminosa também, sempre que regressa vem luminosa, e vai definhando até ficar velha outra vez, depois viaja novamente e novamente vem luminosa - rotina decadente - uma tola mãe.
Quem ainda a quererá? Uma velha agora. Nem Tino a quer mais, recebeu o telegrama - tenho certeza - não aparece porque tem outros compromissos e amantes, é um artista burguês e avaro, talvez nem se lembre que matou Julinha e já trepou com a mãe. É um porco, só pensar em gozar.
Quem ainda pensa em sofrer? Só eu, parece. No partido me chamam de anacoreta e talvez o seja. Um anacoreta do Partido comunista devia ser mais respeitado, mas como ser respeitado se a mulher me chama de impotente e a mãe deita com todo mundo?
Aqui estou à espera de o avião rolar na pista. Beijarei, submisso, a sua mão, mão que fez carícias abomináveis em homens que eu odeio e desprezo sem conhecê-los. Ela nem ficará contente em me ver, ou de saber que vim esperá-la. Mandou o telegrama por mandar, para ser notada e ter o que fazer na véspera da viagem, é um dos ritos que ela se impõe, avisar que vai chegar ou que vai partir, que está bem ou que estranhou a cama do hotel de Veneza. E que dormiu sozinha e sentiu falta de macho. Cama vazia é sempre ruim para ela, eu a conheço bem, é minha mãe. Mandou o telegrama talvez para chatear o gerente do último hotel, ou querer passar por importante, insinuar que tem um mundo de pessoas a esperá-la. Enche os formulários, dá trabalho aos boys, tudo para mandar telegrama a pessoas que no fundo ela detesta.
A mãe se surpreenderia se pelo menos metade dos que receberam seu telegrama comparecesse aqui no aeroporto. No fundo, ela deve suspeitar que sou o único, o único que nunca a perdoou, e por isso, nunca a esqueceu.
E no entanto, ela me chamou de pederasta. Aceitou como verdade a intriga de minha mulher e endossou a voz: um pederasta. Mas eu não sou veado. Mais fácil um burguês como Tino virar veado do que eu. Sei o que quero e desprezo o que não quero. Por isso desprezo as mulheres com suas bundas enormes e brancas que homens como Tino cobiçam. O que eu amo não tem bunda nem ninguém mais deseja. Sou o único, também, que sabe desejar realmente alguma coisa.
Sou bonito, agradável ao olhar, decorativo - como me chamam no partido - e por isso as mulheres me olham e me mostram as pernas longas sob meias de seda. Essa aeromoça já passou perto de mim três vezes, quer ser notada e desejada por mim. Mexe com a bunda tal qual Teresa mexia a sua, antes. Hoje, Teresa mexe a bunda para os outros, ninguém mexe a bunda para mim impunemente.
Eis a aeromoça. Vem falar comigo.
- Seu Azevedo?
- Não.
- Desculpe.
Faz cara alheia:
- Procuro um sr. Azevedo, Araripe Azevedo, José, está aqui na passagem, essa gente perde tudo, até passagem de avião.
- Não perdi passagem alguma, não sou José, nem Araripe, nem Azevedo. Mas sabia que você vinha falar comigo.
Ela abre os olhos, a passagem está na mão para que eu veja, ela não mente, procura realmente um sr. Azevedo, Araripe Azevedo, José.
- Convencido, não?
- Pederasta.
Ela hesita, pensa e repensa no significado da palavra. Eu ajudo:
- Pederasta quer dizer isso mesmo: veado!
Antes mesmo de qualquer expressão, ela já está de costas.
Agora a bunda não mexe mais, caminha normalmente. Essa vai ter o que contar às amigas.
Mas a moça para diante de um homem, aquele é o Azevedo, procura nos bolsos a passagem, mostra a carteira de identidade para provar que é Azevedo, Araripe Azevedo, José. A moça entrega-lhe a passagem e ele guarda na carteira, cheio de cautela, como se embrulhasse uma relíquia.
Ela agora me olha, desafiando, quer mostrar que procurava mesmo um Azevedo, achara o Azevedo, não tem culpa de eu não ser o Azevedo nem de um Azevedo haver perdido a passagem, é paga para procurar os Azevedos Araripes Josés que perdem passagens e aviões ou se apavoram nas horas de tempestade. Ela não tem culpa das tempestades, nem tem culpa de que eu seja pederasta nem de que haja pederastas no mundo, é como outra qualquer, trabalha, e isso a torna respeitável. Mas sua bunda não é respeitável.
Eu a olho com superioridade. Essa eu corri, como a uma puta qualquer. Essa sabe que sou pederasta, eu mesmo o disse. Mas não sou pederasta, Teresa no fundo sabe que não sou pederasta.
Devo estar adiantado, mas é melhor assim. Antigamente eram os trens, esperavam-se os trens, todo mundo andava de trem. Agora são os aviões. Mudaram os transportes mas eu continuei o mesmo. Chego adiantado aos aeroportos, como chegava adiantado às estações. Lá e cá a distração e o tédio são os mesmos. Aqui, pelo menos, há alguma coisa além do tédio. Vejo fatos estranhos. Aquele avião ali vai correr na pista e pegar altura. Lá dentro devem estar todos amarrados, se o avião cair no mar, amanhã sairão os nomes nos jornais. Se tudo correr bem o avião sobe, todos irão a seus destinos, e mais dia menos acabarão todos no jornal do mesmo jeito, todo mundo morre.
O avião ganhou altura e ninguém morreu - foi melhor assim. A mãe deve chegar, mas pelo outro lado. Embora o céu seja imenso e o mundo redondo, estou esperando que o avião dela venha daquele lado e não do outro. E Tino não vem mesmo, ele é quem devia esperá-la, se há alguém que devia estar aqui é ele. Afinal, quem morou com ela e por ela foi sustentado durante quase dez anos? Eu?
Eu fui dar duro na rua, não quis saber do dinheiro deixado pelo velho, que se fartassem os porcos, fui para o partido e lá me realizei. Ninguém sabe disso - que sou um homem realizado - mas eu desprezo os que me desprezam. Teresa me julga impotente e pederasta, a aeromoça julgou-me maluco, na rua me tomam por obscuro funcionário, mas ninguém sabe que cumpro missão importante, ajudo a sociedade, ajudo a evolução e o progresso - sou um Homem com H maiúsculo, isso está no hino da minha ex-célula. Agora não há mais célula, mas o trabalho, o perigo e a glória são os mesmos.
Tino não virá mesmo, falta pouco para o avião descer e ele não chegou. Sou o único a esperar a mãe, e isso depois do que ela fez comigo e Julinha. Não tenho alegria alguma em que ela volte, secretamente preferia que ela nunca mais voltasse, a presença da mãe no Rio é motivo de zombaria no partido, fazem alusões torpes sobre ela, me chamam de pequeno-burguês e me pedem mais dinheiro, pensando que ela me dê alguma coisa. Eu então me sacrifico e me endivido para arranjar dinheiro, todos pensam que o dinheiro veio dela e as chacotas diminuem até que surja nova necessidade de dinheiro.
Sim, a mãe não deveria ter voltado e eu não deveria ter vindo. Vim de teimoso, uma submissão a horários e a regulamentos que me cansa e prejudica, ontem informei na repartição: “amanhã chego mais tarde, vou esperar minha mãe no aeroporto”.
Se a vida fosse só de fórmulas, tudo estaria bem. Deviam transformar o mundo em imensa repartição, o regulamento afixado na parede, o chefe para resolver os casos omissos, contínuos, obrigações específicas de cada um, hora de entrar e sair, respeito, asseio, ordem e promoções por antiguidade. O que atrapalha o mundo é que não há um regulamento afixado no muro mais alto. Para se saber o que é certo ou do que está na hora, precisamos contratar advogados e ir aos tribunais - e isso sem falar nos problemas em que advogados ou tribunais não resolvem.
O caso da mãe, um exemplo. A minha vergonha, outro.
A aeromoça continua me olhando, lá longe. Está me mostrando àquele homem grosso e de chapéu, deve estar dizendo: aquele é pederasta. O homem tem cara de assassino e me olha com medo. O Araripe Azevedo José ou Azevedo Araripe José - jamais adivinharei a ordem exata dos nomes - está de costas para todo mundo, olha com atenção o painel daquela parede, o avião de Santos Dumont subindo como um fantasma - glória nacional.
Glória nacional sou eu também, cumpro minha missão e ninguém olha para mim, com exceção da aeromoça e do homem de chapéu. Chegou mais um camarada agora, magrinho, estão disfarçando mas falam de mim, a aeromoça conta como foi, “um pederasta, tudo porque perguntei se era o Azevedo”, o homem magrinho está agitado mas o homem de chapéu é calmo, segura-o pelo braço e a aeromoça continua falando, falando.
O homem magrinho vai agora para o lado, aborda o Azevedo, conversam em voz baixa, Azevedo parece que não gostou, mas o homem magrinho segura-o pelo braço e vai levando-o, de mansinho, para a porta, o Azevedo gesticula e parece aflito, baixa a cabeça, o homem magrinho vai contar para ele que sou pederasta, estão todos reunidos contra mim.
Eis agora, apontam realmente para mim, o Azevedo faz um gesto cômico, parece dizer que não me conhece, que nunca me viu na vida - e isso é verdade.
E do outro lado chega a aeromoça outra vez. O homem de chapéu vem atrás. Dirigem-se a mim.
- Foi o senhor que ainda há pouco disse que era pederasta?
- Fui.
- O senhor quis me ofender ou se punir?
- Nem uma coisa nem outra. Quis afastá-la de mim.
O homem de chapéu interfere.
- Não me leve a mal, mas podia convidar o senhor a me acompanhar.
- O senhor é empresário de cabaré de pederastas?
- Não, não recruto pederastas para cabaré algum. Sou da polícia, inspetor Soares. O carro está lá fora.
- Estou esperando uma moça, minha mãe, vem da Europa, seis anos fora, não fiz nada, estou tranquilamente esperando uma pessoa, posso ir à polícia depois.
- Depois é tarde. Tem de ir agora.
- Mas não fiz nada.
- E quem disse que o senhor fez alguma coisa?
- Mas não posso ser preso sem mais nem menos. A Constituição...
- Não adianta citar a Constituição, estou convidando o senhor a cooperar com a polícia, há motivos fortes para esse convite, não se trata de uma prisão, mas se for o caso, a prisão poderá ser decretada imediatamente.
- E qual o motivo? Quê que fiz de errado?
- Recusa-se a cooperar com a polícia. Isso já é motivo. O senhor é obrigado a ajudar as autoridades no bem comum.
- Mas estou esperando a mãe, não vem ninguém esperá-la. Ela precisa de alguém aqui.
- O avião ainda demora e talvez dê tempo de o senhor voltar, se tudo correr bem. Evidente, com o senhor colocando dificuldades o negócio será mais demorado. Já podíamos estar no carro. Veja aqui a aeromoça, não se recusou, vai também nos acompanhar.
- Ela está presa também?
- Presa não. É convidada também.
- Mas isso é uma prisão absurda, deve haver algum equívoco, eu não fiz nada, não conheço essa moça, ela veio até aqui com uma passagem, perguntou se eu havia perdido o bilhete, só isso, não sei de mais nada.
- O senhor não precisa se antecipar. Mais tarde dirá o que sabe ou o que desejar. No momento, só interessa que o senhor nos acompanhe voluntariamente ao carro.
- Voluntariamente?
- Não sejamos exigentes em matéria de palavras. Voluntariamente é uma expressão que fica bem, tanto para mim, tanto para o senhor.
- E a moça também vai?
- Vai.
- Voluntariamente?
- Mais ou menos.
Seguimos os três. Isso não está fazendo sentido, a mãe vai descer e não tem ninguém esperando por ela. Se ao menos Tino pudesse vir.
- Poderia dar um telefonema?
- Mais tarde. Agora não.
- Mas não posso deixar minha mãe assim, ela vem de fora, precisará de alguém aqui para providenciar uma porção de coisas.
- Ela viaja sozinha?
- Sim.
- Pode ficar descansado, ela saberá se virar.
A brutalidade do policial não me surpreende. todos terminam pensando isso da mãe, ele nem a conhece e já sabe que ela sabe se virar.
O policial para na porta do carro e faz sinal à aeromoça:
- Por favor.
A aeromoça curva-se para entrar, a saia parece que vai estourar de tão apertada, vejo-lhe as pernas bonitas sob as meias - uma fêmea de luxo essa aí.
Entro também. Não estou entendendo mais nada. Lá no banco tem um sujeito já. É o Azevedo que perdeu a passagem. Não tenho nada com isso mas não estou gostando.
Vamos os seis, em silêncio. Na parte de trás, o Azevedo, a aeromoça e eu. Na frente, o homem magrinho, o homem de chapéu e o motorista, este fardado de polícia mesmo. Os lá da frente são conhecidos entre si, já repetiram a mesma situação uma porção de vezes, vão observando a paisagem e pensando em seus problemas pessoais.
Aqui atrás somos estranhos, nunca nos vimos antes, há meia hora atrás éramos completamente desconhecidos um para o outro. Mas agora essa moça sabe que sou pederasta - e eu não sou realmente pederasta - sei que o homem do canto é um Azevedo, Araripe José, que perdeu a passagem e todos sabemos que a aeromoça é uma boa mulher para aquilo - e nada mais. Se de repente o carro explodisse e nos jogasse numa ilha deserta - a aeromoça seria disputada por todos esses homens, o mais feroz seria o inspetor Soares, tem tipo de gostar de mulher. Mas ela me escolheria, sou bonito e pederasta - e ela se apaixonaria por mim. Este Azevedo talvez ficasse de vilão, tem cara de contrabandista. Mas o carro não vai explodir, vai é para a polícia.
Se pudesse avisar Tino. Mas o calhorda nem telefone tem, recebeu o telegrama e não apareceu, mesmo que eu mande alguém avisar - sei vagamente o endereço - não adiantaria, ele não iria e eu não teria empenho em que fosse, deitou com a mãe e não merece vê-la.
Mas ela sentirá não ter ninguém - afinal seu porto de origem é aqui, vai ficar deprimida sabendo que ninguém foi esperá-la, lá fora deve ter pensado muitas vezes no regresso e nunca o imaginou solitário e vazio. A culpa não é minha. É dessa aeromoça, desse Azevedo. Afinal, talvez tenha caído em alguma cilada, já houve tempo em que o negócio podia me preocupar, mas agora ninguém persegue mais os comunistas, somos quase governo, temos elementos em todos os cantos, a prisão não pode ser por causa disso.
Mas é prisão do mesmo jeito e eu nunca fui preso. Sou dos moderados e o partido só me usa em missões decorativas. Não tenho base doutrinária, nem meu tipo convence. Dizem que ainda tenho consciência de classe - o que equivale a um insulto. Além do mais, todos conhecem a fortuna da mãe, a vida que ela leva, e isso me impediu de subir no partido. É melhor assim, não quero responsabilidades, gosto de receber ordens, saber o que vou fazer, se estiver errado a culpa nunca será minha, isso pode ser covardia ou impotência, mas é cômodo e meu único vício burguês é esse, não gosto de me amolar.
A rigor, já começo a me amolar agora. O inspetor Soares tem a nuca suada e gorda, cabeluda como um bicho. Quando o carro sacode a nuca mexe, e o chapéu, enterrado na cabeça, parece que espreme a carne do pescoço para trás. O homem magrinho continua nervoso, olha para a rua e volta e meia faz um gesto impaciente. O Azevedo está calado em seu canto. É o culpado de tudo. A aeromoça se espreme contra ele, para evitar que suas pernas toquem em mim.
Era assim que a mãe andava no carro, espremia-se contra mim para não encostar em Tino. Isso poderia passar despercebido a Julinha, ao próprio Tino. Mas eu sabia, no fundo ela queria estar agarrada ao outro. Também esta aeromoça quer se esfregar em mim mas tem medo, eu a espantei e ela então caiu para o lado do Azevedo, sabe que o Azevedo não oferece perigo nem está preocupado com ela, talvez nem sinta as pernas dela roçando nas suas.
De uma forma geral, não devia estar pensando nisso, afinal estamos presos, convidados ou não o fato é que isso se chama ir em cana. Em outras épocas, a situação podia se complicar, mas agora é fácil quebrar o galho, com dois telefonemas desfaço qualquer equívoco, não tenho o que temer, não há nenhum comunista preso e a polícia nunca tomou conhecimento de minhas atividades políticas. Na realidade, limitou-me a ir a reuniões e a dar dinheiro. Na repartição, distribuo jornais e vendo livros comprometidos. Minha subversão é essa e ninguém vai preso por isso, temos franquias democráticas, representantes no Congresso, a opinião pública está a nosso lado.
O mais importante é que não fiz nada, posso provar que estava no aeroporto esperando a mãe, o telegrama dela está em meu bolso. Também não tenho nada com o Azevedo, nunca o vi, não tenho culpa de a aeromoça ter me perguntado se era ou não o Azevedo. A menos que a moça tenha aproveitado a presença da polícia para se queixar: aquele homem ali me ofendeu.
Mas eu não a ofendi, disse apenas que era pederasta para mandá-la embora, posso me chamar disso, se disse a palavra veado podia ter faltado com o respeito mas não chegou a ser ofensa, o ofendido no caso seria eu e eu não fiz queixa alguma.
Pensando bem, não tenho mesmo nenhum motivo para me queixar.
Estava com febre e gritei durante a noite. Usava ainda o mesmo quarto de Julinha e ela continuava a dormir. A mãe e o pai dormiam também. Na escuridão da noite e no tremor da febre - eu estava só e infeliz. Então gritei uma segunda vez, uma terceira e quarta, até que o pai e a mãe acordaram.
- Quê que há, filho?
- Pesadelo, pai.
A mãe sabia o que era:
- Quer vir dormir comigo?
- Quero.
O pai e a mãe discutiram em voz baixa, o velho era contra minhas idas para a cama da mãe e eu então exagerava meus pesadelos para contrariar o velho. A discussão dessa vez foi maior, eu não ouvia as palavras, apenas a música das falas sopradas, para que eu não escutasse.
- Você está perdendo seu filho!
A frase final de todas as discussões.
Logo o pai aparecia na porta, trazendo os travesseiros, estremunhando e cambaleante de sono. Eu então me levantava.
- Leve seus travesseiros, rapaz!
E me olhando com raiva:
- Você é um caso perdido!
Sempre esquecia de levar meu travesseiro, o da mãe era grande e nele cabíamos os dois. Mas o velho dava importância ao pormenor, eu agarrava aquele retângulo de algodão e me enfiava na cama da mãe. O lugar do pai era na beira, havia a zona neutra entre as duas depressões do colchão, nessa zona neutra ficava eu, tinha repugnância de deitar no lugar do pai, ainda quente daquele corpo pesado que cheirava a fumo.
A mãe me esperava e me oferecia a ponta de seu travesseiro. Seus braços me escondiam o rosto, para que eu não visse os fantasmas da noite. Então eu dormia, e podia sonhar com os fantasmas do mundo e da noite e não sentia medo, chegava a desprezar os monstros que vinham me importunar: “podem me amedrontar que eu não grito, estou nos braços da mãe” e passava a mão nos ombros dela, certo de minha segurança, onipotente na minha guarda.
No dia seguinte, o pai me olhava atravessado e rosnava em voz baixa para a mãe. Ela ria ou fazia cara aborrecida:
- Você exagera! Não há perigo algum!
O pai então me olhava fundo e eu sem entender passava a odiá-lo. Mas nunca o odiei tanto quando recebemos o saco enorme que a ambulância deixou em nossa sala. Dentro daquele saco estava o pai. Julinha teve ataque e foi para a casa de um conhecido. A mãe chamou a funerária e arrumaram o saco no caixão. Uma parenta do velho queria ver o que tinha dentro, mas não se deixou ninguém ver, no necrotério avisaram que a trombada fora violenta e a cabeça estava fora do lugar. Quando soube disso, fui até o caixão olhar o saco. Não dava para perceber nada, mas não sei por que, senti que a cabeça devia estar no meio do corpo, havia um volume na altura do que seria a barriga do pai.
Fiquei longo tempo olhando aquilo, um saco comprido e sem forma, a saliência no meio, inchando como um tumor. Sim, era a cabeça do velho, a cabeça que me beijava e me ameaçava dar surras porque gostava de dormir com a mãe. Tive ódio do velho: nem pena nem medo. Ele morrera ignorando tudo, ainda. Eu agora dormiria impunemente com a mãe, sem ninguém me ameaçar, sem ninguém para dizer que eu estava me perdendo. Agora minha vida começava em liberdade e sem rancor, agora as noites seriam minhas e não haveria mais lugar para o medo e o ódio.
A mãe chorava, e os amigos vinham abraçá-la. Na hora do enterro, ela colocou flores no caixão. Naquilo que seria normalmente a cabeça do velho. Mas eu prestara bastante atenção, sabia que ali não havia mais nada, apenas o vazio, o saco fazia uma depressão e não precisava meter a mão ali para sentir que estava oco. Então, como um último favor ao velho, apanhei as flores que a mãe jogara e coloquei-as no lugar certo, ou que me parecia o certo: no meio do corpo, junto à saliência. Não tinha culpa de terem feito aquilo com o velho. Não fora eu quem lhe arrancara a cabeça e a colocara junto ao estômago e ao sexo. E foi quando pensei nisso que apanhei novamente as flores. Joguei-as para baixo, onde deviam estar os pés. Minha mãe não tinha o direito de jogar flores no pai. Ela agora seria apenas minha, não seria de mais ninguém.
E então ela foi de Tino.
Pelas imediações de nossa casa havia uns garotos estranhos e desagradáveis. E Jerônimo, metido a valente, que me dava surras sem eu ter feito nada. Uma tarde, Jerônimo me chamou para o canto:
- Olhe aqui, você é molenga, todo mundo bate em você.
- É.
- Quer que eu seja seu protetor?
Jerônimo era o mais forte das redondezas. Sua aliança era disputada, valia pela impunidade total, com ele eu podia me meter com qualquer um, ninguém bateria no aliado de Jerônimo.
- Quero.
Jerônimo fez cara sofredora:
- Mas faço condição...
Olhei espantado para ele. Jerônimo tinha fama de comer garotos como eu. Impossível que viesse agora para cima de mim. Poderia comer o que quisesse na base da pancada, como fazia com quase todos os outros. Bunda e complacência não teria de mim, apesar da proposta tentadora, a proteção que equivalia pelo reinado em todo o bairro.
- Você aceita?
- Depende...
Jerônimo vermelho, confuso, não devia ser o que estava pensando, se fosse ele dizia logo, nem precisava fazer pacto, era muito forte para isso.
- Olhe, estou gostando de sua irmã...
- Julinha?
- É.
Olhei Jerônimo com superioridade. Tinha-o nos meus pés.
- E daí?
- Jerônimo abanava os ombros, sem saber o que realmente pedir:
- Olhe, quero apenas ficar perto de vocês, ir sempre à sua casa, passear junto, sabe, tenho medo de que ela goste de outro...
Aceitei.
Jerônimo, um a um, foi quebrando a cara de todos os meus desafetos. Mas Julinha não queria nada com ele, vivia metida nos estudos ou em brincadeiras com outras meninas. Meninas que gostavam de Jerônimo. Mas Julinha não dava importância a isso.
Uma tarde fui ter com ela, no quintal:
- Julinha, vamos brincar na chácara?
- Não.
- Nós precisamos de uma moça para servir de namorada do Jerônimo.
- Jerônimo é o mocinho?
- Não. O mocinho sou eu. Jerônimo é o bandido, vem roubar você e eu aí mato Jerônimo.
O enredo era da lavra de Jerônimo e devia conter sutilezas que me escapavam. Bem verdade que o bandido, após raptar a mocinha, e enquanto o mocinho andasse procurando o seu esconderijo, ficaria de posse da mocinha na cabana de folhas de coqueiro armada nos fundos do terreno. Mas Julinha recusava, mesmo ignorando esses detalhes.
Voltei para Jerônimo.
- Mixou?
- Mixou. Ela não quis vir.
- Jerônimo me sacou na cara:
- Veado!
E se foi, sem mais palavra.
E à tarde daquele dia, depois do banho, limpinho numa roupa nova, fui me juntar ao grupo. Era o rei e tinha o direito de cuspir nos sapatos de quem entendesse. Mas não precisei cuspir. Um guri de outra rua cuspiu em cima do meu.
- Você não enxerga, seu filho da mãe!
Fiz ares de rei ofendido. E preparava-me para avisar Jerônimo quando o guri cuspiu na minha cara:
- Não xinga minha mãe!
Eu não compreendera o golpe, ainda.
- Xingo sim, sua mãe é uma puta.
Então Jerônimo cresceu diante de mim:
- Seu fedelhaço, não ofende o rapaz, veado não tem vez.
E me quebrou a cara como nunca quebrara a de menino algum.
Daquele dia em diante subiu outro rei: tinha irmão complacente que tomava nas coxas. Voltei para casa e odiei Julinha e sua virtude. Não podia mais ir à rua. Qualquer guri me desacatava e eu não podia reagir, Jerônimo me rondava, aparecia de repente, me quebrava novamente a cara. E além das surras, Jerônimo passou a dizer que eu dera, que era veado mesmo, meu breve reinado foi justificado por minha pessoal complacência, Jerônimo chamava Julinha de magricela, gostara era mesmo de mim, mas estava farto e preferia agora a irmã do outro.
E Julinha um dia me perguntou, à vista da mãe:
- João, quê que é veado?
A mãe gritou com Julinha e desde esse dia não me deixou dormir mais com ela.
Então, descobri que a vida estava trancada para mim. Na rua, a surra e a vergonha. Dentro de casa, o desprezo. Sentia, além do mais, que tudo estava preparado. Preparado para surgir uma nova situação.
Julinha guardava a virtude para quê? A mãe me repelia de junto de si, para quê? Para quê ou para quem?
Anos mais tarde, tudo fez sentido e resposta. Julinha era moça então, a mãe tinha carro e era a mulher mais bonita que havia em todo o bairro. Saíram a passear de capota arriada e voltaram ao cair da noite com um sujeito de short e prancheta. Estava pintando em algum lugar e se conheceram. Mamãe convidou-o, ele veio jantar conosco, gostou e ficou. Casou com Julinha e deitou com a mãe.
Então, fiquei o que sou.
- Quem é o senhor?
A aeromoça já se identificou, o Araripe Azevedo José ou Azevedo Araripe José também já se explicou ao comissário. Agora sou eu. Mas que é que eu vou dizer?
- Não fiz nada.
- Eu perguntei quem é o senhor.
O policial pede que mostre a carteira de identidade. O comissário toma nota de tudo, num livro enorme. Olha bem o retrato para ver se eu sou eu. A aeromoça sentou na cadeira e mostra as pernas para o comissário, para o policial, para o Araripe Azevedo José. Na verdade, quer mostrar as pernas para mim.
- Eu não fiz nada, quero ser solto, estou esperando a mãe.
- Pois vá esperar a mãe mais tarde. Agora tem de aguardar.
- Aguardar o quê?
O comissário sai para outra sala sem responder. O policial explica:
- O delegado. Este é o comissário, não pode tomar providência alguma, temos de esperar o delegado, ele é quem vai decidir sobre vocês.
- Mas decidir o quê?
O policial dá de ombros, puxa do bolso um charuto e vai fumá-lo da janela. O Araripe Azevedo José ou Azevedo Araripe José senta no banco comprido, bem em frente à aeromoça. Está calmo, parece habituado àquilo, a frequentar as delegacias e os equívocos. A aeromoça não descruza as pernas, está nervosa, mas apesar disso faz ar de ofendida para o meu lado. Araripe Azevedo José oferece-lhe cigarro e ela aceita. O homem cata fósforos no bolso, a aeromoça espera e me olha, como a me cobrar fósforos. Tenho isqueiro - presente de minha mãe - mas não vou acendê-lo para ela. O policial percebe que precisam de fósforos e vem acender o cigarro da aeromoça. Ela puxa uma baforada e agradece, cheia de si. Descruza as pernas e torna a cruzá-las, mas em outro sentido. E tem o ar superior e definitivo só porque tem pernas bonitas. Ora, eu também sou bonito e isso só me vale aborrecimentos.
Foi durante o jantar que Tino botou as cartas na mesa:
- Precisa casar.
O caso foi desagradável. Julinha deixara cair um vaso de flores em cima do carro do vizinho. Houve bate-boca e quando meti a cara na janela, o vizinho me chamou de veado, à frente de todos. Julinha então já sabia o que era ser veado. Foi para dentro, chorou, trancou-se no quarto da mãe e lá discutiram a meu respeito. Tino chegou à noitinha, para o jantar. Era agora o dono da casa, nada se fazia sem consultá-lo, não entrava com tostão para as despesas da casa, a mãe era rica e ele aproveitava. Exagerava no seu poder sobre a casa e sobre as duas mulheres que o amavam.
E durante o jantar tentaram resolver o meu destino.
- Se não casar, a fama ficará para o resto da vida.
Na verdade, eles sabiam que eu não era veado. Apenas não gostava de mulheres, preferia ficar em casa, colecionar selos, ouvir música. Mas havia os vizinhos, Tino, Julinha, a mãe.
- Mas casar com quem? ou contra quem?
- O problema é seu.
A mãe agora era ríspida comigo, já amava Tino e desconfiava que eu sabia que ela amava o genro. Não me odiava, mas queria se ver livre de mim, mandar-me para outra casa e outra mulher, a fim de ficar sozinha e poder trair Julinha à vontade.
Quando percebi que ela me enxotava, resolvi aceitar o desafio:
- Caso. Se é assim, caso.
Saí da mesa e da casa, já que me expulsavam, nada tinha a fazer ali. Tanto me fazia casar com Alice ou Margarida, qualquer uma servia. Tempos depois acabei casando com Teresa a quem não conhecia e a quem minha beleza impressionou.
- É o homem mais bonito que vi na vida.
Um amor de sentidos e na cama lhe dei sentido e a deixei sem sentidos. Vieram os filhos e as chateações. E agora veio o fim, esse alheamento que afinal procurei e conquistei. Ela trata dos filhos e dos amantes, deixa-me à vontade, de início tinha ciúmes, dolorosos para ela e para mim. Agora, não ligo mais, e embora ela também pense que eu seja veado, procura esquecer isso, pois a sustento e ela precisa do meu dinheiro e do meu nome. Os filhos, bom, vieram contra a minha vontade e eu os ignoro.
Na verdade, tenho ignorado tudo na vida. É meu processo de viver e de sofrer menos. Continuo vivendo e sofrendo, mas isso já está fora de mim. É que não consegui, ainda, esquecer que tudo podia ser melhor e mais puro. Quando digo isso, me chamam de frade. Talvez devesse ser frade, mas me meti no partido, lá também lutam para melhorar e purificar o mundo. Não me chamam de veado e se limitam a tomar o meu dinheiro.
Um dia darei um berro e o mundo tremerá a meus pés. Há sempre um Jerônimo à disposição para nos garantir um reinado. Só que ainda não consegui descobrir o que deverei dar em troca.
A aeromoça acaba o cigarro e abre a bolsa. Tira o bâton e repassa os lábios diante do espelhinho. O Araripe Azevedo José não tem bâton nem lábios para repassar, enfrenta a chateação fumando e olhando o teto, em busca de auxílio ou inspiração para o caso.
A sala está vazia, só nós três, eu, a aeromoça e o Araripe. Não há indícios de que o delegado realmente exista.
Isso tudo não deve passar de pesadelo. Eu devia estar esperando a mãe, a essa hora o avião já rolou na pista e ela se viu sozinha. Pessoalmente, pouco se me dá que a mãe sofra ou goze. Acho que ela já gozou muito, deve sofrer um pouco agora. Ou talvez nem sofra por se achar sozinha na própria terra. Mas ela, sofrendo ou não, pouco me importa, importa é meu dever, eu devia estar lá, não para que a mãe gozasse ou sofresse, apenas para que eu próprio me livrasse de uma obrigação específica.
A aeromoça acaba os retoques e vai até a janela. Lá fora para um carro da rádio-patrulha, sai de dentro um preso e um guarda com grossos revólveres nos quadris. A aeromoça olha o guarda e talvez o deseje. O revólver deve ser símbolo fálico inconsciente para uma virgem e essa aeromoça deve ser virgem, tem carnes duras, vejo bem agora. De cotovelos fincados no peitoril, ela inclina a bunda para trás. Se estivéssemos sozinhos, eu iria me encostar nela. Mas o Araripe Azevedo José impede.
O carro da rádio-patrulha foi embora, o guarda e o preso entraram em algum lugar, a aeromoça sai da janela e vem falar comigo.
- O senhor está entendendo alguma coisa?
- É para entender?
- Não sei. Lamento ter metido o senhor na embrulhada.
- Foi você que me meteu nisso?
- Involuntariamente.
- Dá na mesma. Devia estar no aeroporto agora, a mãe vai chegar.
- O culpado foi o senhor mesmo. Foi tão...
- Bruto?
- Não, não. Ia dizer indecente mas prefiro dizer ríspido.
- Ríspido?
- Sim.
- Espero não lhe aborrecer dizendo o que penso.
- Em absoluto. O senhor pode pensar o que quiser. Desde que não diga.
- Pois então vou dizer. Vá à merda.
A aeromoça faz um movimento de repulsa mas se domina. Imagino que me dará as costas, tal como no aeroporto, quando disse que era pederasta. Mas ela já esperava por isso ou pior. Olha nos meus olhos, séria.
- Afinal, o que é que o senhor pretende provar? Que é mesmo homem? Eu não duvido. Não acreditei naquilo que o senhor disse no aeroporto. Mas francamente, acho que não há motivos para o senhor continuar com essa brincadeira sem sentido.
- E quem lhe diz que a brincadeira não tem sentido?
- Olhando em seus olhos. O senhor tem medo.
- Isso não prejudica o que perguntei. Saiba, nada faz sentido, nem esse uniforme ridículo que lhe botaram, nem o fato de eu mandar a senhora à merda, nem o fato daquele sujeito ter perdido a passagem, nem muito menos o fato de estarmos todos presos. Você sabe por que estamos nesta delegacia?
- Sei. A polícia anda procurando os camaradas que assaltaram uma joalheria. Sabe que fugirão para o Sul. Os aeroportos estão vigiados desde ontem.
- E por que me meteram nesta embrulhada? Não assaltei joalheria alguma, nem pretendo ir para o Sul
- Mas o senhor se comprometeu. Mais tarde talvez lhe explique a razão. Agora vem chegando o delegado e creio que nosso caso será resolvido.
A porta se abre do outro lado e entra um homem de bigodes, terno branco engomado. Cara enrugada, um tremor nos olhos e no canto da boca.
Esse homem sofre de hemorroidas. Conheço o tipo: tiques na cara e esse andar cauteloso, de pernas abertas. É homem irritado, tem apenas uma preocupação na vida: os esfíncteres. Troca a glória, o amor e o poder por um minuto de sossego no rabo. No fundo, deve ser homem feliz e realizado. Tem no que pensar. Afere a vida de forma positiva e simples. Não se preocupa com o socialismo nem com a salvação da própria alma. Jamais meterá um tiro na cabeça. Sabe o que significa a carne - um pouco de dor. Olha os outros com desprezo, não o desprezo comum que os policiais têm pelos outros. Mas o desprezo daqueles que sabem que têm um rabo. Para ele, nós não temos rabo. Ter hemorroidas é ter um rabo, elevar o rabo ao primeiro plano e viver em relação a ele. Viva o delegado e seu rabo.
Bom a aeromoça também tem rabo, mas em outro sentido. E ela tem consciência disso. Mas apesar disso é boa pessoa, procura ser boa para comigo porque sou bonito.
- São esses?
O guarda que aparece diz que sim. O delegado nos olha a todos e repara justamente no rabo da aeromoça. Faz pouco do meu e nem se incomoda em imaginar o horrendo rabo que deve ter o Araripe José Azevedo.
- Por favor, entrem em meu gabinete.
Entramos todos. O Araripe vai na frente, para na porta para dar lugar à aeromoça, mas eu passo no meio e sou o primeiro a entrar. Todos me olham com raiva, mas estou preso e não vou gastar minha pouca liberdade com liberalidades burguesas que herdamos de séculos obscuros. Viva o progresso também.
- Os senhores sabem o que estão fazendo aqui?
A cara do delegado procura ser informal mas é apenas calhorda. A aeromoça responde que não, o Araripe José abana os braços. Respondo eu:
- Sei.
Todos me olham. O delegado não esperava pela minha resposta e antes que eu diga qualquer coisa, se antecipa:
- Estamos procurando uns camaradas.
- A função da polícia é essa - procuro ser condescendente.
- Sim, nossa obrigação é essa. Procurar sempre uns camaradas. Às vezes acertamos, mas na maioria dos casos erramos.
A aeromoça se intromete:
- Creio que dessa vez a polícia errou. Não fizemos nada.
- A senhora conhece estes dois cavalheiros?
Ela titubeia:
- Bem, aqui é o senhor José Araripe Azevedo, tem bilhete em ordem para viajar até Buenos Aires, a companhia não venderia a passagem sem antes examinar certos papéis: passaporte, atestado de vacina, imposto de renda...
- E o outro?
- O outro... diz que esperava pela mãe, ela viaja pela Boac, o avião está no horário, vem da Europa, tudo coincide realmente, houve apenas um equívoco, encontrei a passagem no chão e fui até ele.
- E quem lhe garante que essa mãe exista?
- Todo mundo tem mãe, delegado - abro a boca para me defender.
- Ninguém pediu sua opinião.
O Araripe resolve dar a sua:
- Não fiz nada, vou protestar pelos jornais, isso é desaforo, perdi minha passagem no hall do aeroporto, a aeromoça achou, já estava me preparando para embarcar, agora perdi o avião, tem gente me esperando em Buenos Aires, vou perder um negócio, isso não pode ficar assim.
- Tem razão. Isso não vai ficar assim. Os senhores serão detidos até nova ordem.
O delegado aperta a campainha e manda chamar o inspetor Soares.
- Inspetor, já interroguei os detidos do aeroporto. Pode levá-los para sua seção.
O inspetor nos olha neutramente, é homem sem hemorroidas e talvez mais perigoso. A aeromoça começa a chorar, o Araripe tenta consolá-la.
- Tudo foi culpa do senhor.
A culpa é minha, segundo a abalizada opinião do Araripe. Não entendo porque, mas concordo com ele, a culpa deve ser minha. Mas na realidade, a culpa é mais uma vez da mãe. Só ela realmente é culpada de tudo. Mas ninguém sabe disso. Vou ao delegado:
- É a mãe, ouviu.
Mas ele não me dá importância.
Estamos agora numa sala escura e mal mobiliada. Araripe Azevedo José teve crise de choro e ficou num canto, olhando as paredes. A aeromoça não está à vontade entre dois homens desconhecidos, mas alguma coisa faz com que ela goste da situação. Minha proximidade talvez, ela nunca viu homem tão bonito em sua vida, e tão próximo a ela.
Eu não sinto mais nada. Não entendo o que está se passando comigo, deve ser um equívoco. Mas o conde de Monte Cristo também foi preso por equívoco e ficou preso aquele tempão. Não sou Monte Cristo nem conde, apenas um plebeu que foi ao aeroporto esperar a mãe. Mãe que já deve estar nos braços de Tino agora, tenha ou não tenha ele ido buscá-la. Os safados se amarão e a mãe perguntará vagamente por mim. Tino dirá qualquer coisa e ambos me desprezarão, em silêncio.
Por maior que seja o desprezo deles por mim, o meu por eles é ainda maior. Todos temos razões para desprezar os outros, mas as minhas razões são mais profundas, embora poucas.
Houve aquela manhã em que Julinha foi à cidade e os dois ficaram sozinhos em casa. Estava na biblioteca, lendo um livro de cultura marxista, de repente o silêncio da casa me surpreendeu. Fui ao quarto de Tino, cautelosamente: estava vazio. Julinha, na pressa de sair, deixara-o desarrumado. Investiguei o banheiro. Estava aberto, ninguém dentro. Só o quarto da mãe fechado: dentro, os dois, sem me respeitarem. Tive vontade de esmurrar a porta e atrapalhar o prazer deles. Mas voltei na ponta dos pés até a biblioteca. Mandei às favas a cultura marxista e esperei que os safados saíssem. Logo a porta do quarto da mãe se abriu e ela foi ao banheiro. Vi seu vulto passar pelo corredor. Esperei por Tino, ele teria de voltar para seu quarto, a fim de arrumar-se. Mas a mãe saiu do banheiro e Tino não passou pelo corredor que eu divisava de minha poltrona. Fui procurá-lo, impossível que continuasse deitado na cama da mãe, sabendo-me em casa e sabendo que a qualquer momento Julinha podia regressar.
Encontrei-o no andar de baixo, tomando uísque com Valdomiro. Não tinha visto Valdomiro entrar, mas ele ali estava, há muito, e pela primeira vez notei que Tino odiava Valdomiro. A mãe desceu logo e tratou-os tão alheia que qualquer um dos dois podia ter sido o homem com quem ela estivera deitada.
Fora o próprio Tino que introduzira Valdomiro na intimidade de nossa casa. Era conhecido seu dos tempos de solteiro, gozava de diversas famas, inclusive a de garanhão com as mulheres, e, paradoxalmente, a de pederasta. Mas a presença de Valdomiro em nossa casa, após a morte de Julinha, teve apenas uma finalidade - a de encobrir aos olhos de todos as verdadeiras relações da mãe com Tino. Afinal, eram dois viúvos que coexistiam na casa - eu passava fora grande parte do tempo e os dois, juntos, teriam de procurar um tapume para suas trepadas. Foi então que Tino se lembrou daquela amizade dos tempos de solteiro e trouxe Valdomiro para jantar. Os três deviam estar combinados, pois daí em diante Valdomiro ficou com a fama de ser o amante da mãe, e assim era tacitamente recebido e aceito. O problema da viuvez da mãe estava resolvido, encontrara um achego, um homem solteiro, a qualquer momento podia sair a notícia do casamento e tudo ficaria decente aos olhos de todo mundo.
Mas eu sabia de tudo, do disfarce. Achava até natural que os dois tivessem bolado aquela situação para encobrir a bandalheira. O tapume funcionava, mas para os outros. Para mim, o disfarce era vil e não disfarçava nada, eu estava dentro do tapume também - isso eu fazia sentir com minha presença em casa. Valdomiro, apesar de perto dos cinquenta anos, já devia estar quase impotente. Só tinha atração por moças púberes ou por rapazes também púberes. A mãe não o atraía sexualmente, embora tivessem feito excelente camaradagem, a mãe era capaz disso também. Os dois saíam juntos, iam a teatros, cinemas, chegaram a fazer uma estação de águas semiclandestina em Caxambu. Mas a mãe mandara um cheque para Tino e Tino foi. Lá, dormiram ele e Valdomiro num quarto, a mãe em outro. Sei lá, mas talvez tenham feito orgias a três - talvez a mãe fosse capaz disso também.
Eu perdoava tudo. Até que um dia me aborreci seriamente com a história. A mãe não cuidava mais de mim, minha roupa, meus negócios, nada mais lhe interessava a não ser trepar com Tino e ostentar Valdomiro. Telefonavam-me da repartição, um aviso qualquer, a mãe atendia e se esquecia de transmiti-lo. Mas a mãe sabia de cor todos os telefonemas que chegavam para Tino. Farejava traições e tinha ciúmes quando pintoras, escultoras, gravadoras ou qualquer mulher telefonava para seu amado: Tino ficava horas ao telefone, provocando a mãe.
Certo dia, Marta telefonou para Tino. Houve bate-boca desagradável ao telefone, parece que Tino dera o bolo num encontro e Marta ameaçava romper, mas Tino se ralava, só faltou chorar - o miserável. Quando desligou, a mãe já entrara no quarto. Tino rondou sua porta, sem coragem de entrar. Eu então, para facilitar, desci aos aposentos de baixo e fiquei na sala, bem sob o quarto da mãe, de lá ouviria os ruídos. Percebi quando Tino abriu a porta. Pelo barulho dos passos, a discussão foi azeda. A mãe telefonou para Valdomiro. Vestiu-se como uma puta, botou a saia mais colante que tinha - e mãe já começava a engordar um pouco - sempre tivera as pernas grossas, a bunda inchada dentro da saia para tentar mais ainda.
Valdomiro chegou de carro e não saltou. Buzinou do lado de fora e esperou que ela saísse. Tino já havia descido, tomava uma batida de maracujá que eu havia feito na véspera, queria se embebedar. Ou apenas era uma atitude, a mãe quando o visse bebendo teria pena e talvez ficasse, renunciando sair com Valdomiro. Chantagem declarada. Eu fingia que lia os jornais, mas percebia tudo. A mãe desceu, a saia colante provocava, Tino olhou ansiado para o corpo da mãe e o envolveu num desejo feroz, cheio de ódio. A mãe, antes de sair pela porta - e como sempre fazia quando Tino estava perto - parou um instante. Levantou a saia sob o pretexto de ajeitar as meias ou a cinta que prendia as meias - não entendo muito disso. Suas pernas faziam bom efeito sobre o sapato alto e sob as meias de seda. Tino bebeu um gole olhando aquelas pernas bem feitas - a mãe fazia isso para provocá-lo - mas ele fingia que não percebia, nem olhava. Ambos me ignoravam e a mãe exagerou ao levantar a saia, vi até suas coxas, já nuas, as meias subiam até pouco acima dos joelhos. Naquele instante senti um calor estranho dentro de mim e descobri, com nojo, que era capaz de desejar a mãe.
Foi ali que decidi casar rapidamente, com a primeira que me aparecesse, antes que eu fizesse alguma besteira e começasse a sofrer por causa da mãe, agora em outro sentido.
Não fiz besteira alguma, mas continuei sofrendo.
E naquele dia, Tino também sofreu. A comédia parecia terminar em drama. Tino trouxera Valdomiro para encobrir suas trepadas com a mãe. Mas Tino não renunciara a uma ou outra aventura lá fora. O telefonema de Marta estragara o caldo e a mãe apelou para a vingança. Era traída; trairia também. E usou Valdomiro para isso. Chamou-o. Valdomiro morava sozinho, no Leblon. E Tino, que inventara Valdomiro, viu o desastre. Sabia do que Valdomiro era capaz. Mulher que lhe caísse nas mãos, dificilmente o largava. Tino sabia disso e sabia que a mãe, experimentando Valdomiro, nunca mais o largaria. E aí podia se dar o pior. A mãe casar-se com Valdomiro e ele seria expulso da casa, não poderia continuar vivendo com a mãe casada, os inventários teriam de ser abertos e ele daria o fora.
Talvez este cálculo não tenha passado por sua cabeça na ocasião. No momento, só a carne contava, a saia colante da mãe, os olhos verdes. A cara do Valdomiro, fauno experimentado, contando para os amigos o que fizera com a sogra do Tino. Isso sim, estava na cara e no olhar de Tino. Tão logo a mãe entrou no carro e Valdomiro fez manobra em direção ao Leblon, Tino saiu também.
Eu fiquei sozinho. E decidi casar logo.
Escolhi Teresa, pois sabia que ela detestava a mãe. E eu, desde que senti que era capaz de desejá-la, também passei a detestar a mãe. Assim o meu casamento era apenas a soma de dois ódios. Evidente que não podia dar certo. Teresa me aceitou placidamente, eu era o homem mais bonito que ela tinha visto - e isso era verdade. Mas logo que pôde me botou chifres e eu não sofri com isso. Na verdade, só senti um chifre. O que minha mãe botou em meu pai, depois de morto. Doía tanto que parecia meu, o chifre.
Teresa me botou chifres mas não me desprezava, ainda. Foi preciso que o acaso trabalhasse contra mim. Estávamos casados há uns dois ou três anos e esperávamos o ônibus numa rua central. Nisso, um táxi parou do outro lado e dele saíram a mãe e Valdomiro. Ora, Valdomiro tinha carro, o táxi me pareceu surpreendente. Mais surpreendente foi o táxi que veio em seguida. Com Tino. A mãe e Valdomiro já tinham entrado no edifício suspeito. Tino entrou logo depois. Outra orgia a três? Ou Valdomiro exagerava no seu zelo de acobertar o amor de Tino e da mãe, levando-a até o quarto para que o outro trepasse? Mas por que não trepavam em casa? Os dois já moravam sozinhos, então.
Desconfiei que Tino perdera o controle da situação e fiscalizava, sordidamente também, o romance que ele mesmo provocara.
E assim como eu, Teresa também percebeu. Olhou-me nos olhos. Ela me respeitava, ainda. Mas naquele instante, Teresa me olhou nos olhos e passou a me desprezar.
Então, a vida ficou sórdida demais para mim e eu resolvi ser comunista.
- O senhor é comunista?
- Sim, pela graça de Deus, sou comunista.
O inspetor Soares examina os papéis à sua frente e me fixa por cima dos óculos.
- Sabe que o senhor é fichado?
- Não, não sabia, não tomei nenhuma cautela para evitar o fichamento, mas ignorava que a polícia o soubesse. Nunca me envolvi em nada. Minha única atividade partidária é pagar mensalidades e distribuir ou vender folhetos e livros de propaganda.
- E o senhor queria que a polícia ignorasse isso?
- A polícia ignora muita coisa.
- É melhor deixar os comentários para mais tarde.
O inspetor passa a examinar outra pasta. Esta referente ao Araripe Azevedo José. Que é José de Azevedo Araripe, pela ficha policial.
- O senhor é José de Azevedo Araripe?
- Não. Sou José de Araripe Azevedo - corrige o próprio.
- Tem identidade?
Araripe Azevedo José mostra a carteira que exibira no aeroporto para a aeromoça. O inspetor toma nota dos nomes trocados.
- Precisamos revisar esses arquivos.
Abre a pasta do Araripe Azevedo José. Não há nada lá dentro.
- Está vendo? O senhor não tem nada aqui dentro. Terá agora.
- Mas como? Eu não fiz nada, ia embarcar a negócios e...
- Não interessa. O senhor foi detido, isso é uma ocorrência. A polícia tem de tomar nota de tudo. Da próxima vez que o senhor for detido, haverá dentro dessa pasta um memorando relativo ao caso de hoje.
- Mas que caso? Não vejo caso nenhum. Eu ia para Buenos Aires...
- Ninguém está duvidando de que o senhor ia para Buenos Aires. Nós estamos procurando exatamente uns camaradas que estão fugindo e que na certa irão para Buenos Aires ou para qualquer outra cidade do exterior. O senhor não leu os jornais?
- Não leio jornais.
- Faz mal. Inocente ou culpado, o senhor deveria ler jornais. Assaltaram uma joalheria.
- E o senhor me acha com cara de assaltante de joalherias?
- Claro que não. Nenhum assaltante de joalheria tem cara de assaltante de joalheria. Isso mesmo é que depõe contra o senhor. Sua viagem a Buenos Aires foi marcada há uma semana, não?
- Mais ou menos.
- Por isso depõe contra também. O autor intelectual do roubo, os autores, aliás - acentua o inspetor, olhando para mim - já estavam de passagens compradas para o exterior. Pegamos o homem.
- E por que me prendem?
- Bolas, o homem que prendemos foi o chefe dos três.
- Que três?
- Os três que realizaram o assalto material. Esses já estão presos e confessaram.
- Confessaram o quê?
- Que cumpriram ordens de um tal José, homem de negócios que viaja sempre e tem um secretário que é comunista. Por isso perguntei ao cavalheiro ao lado se era comunista. Ele respondeu que sim.
- Respondi que pela graça de Deus sou comunista. Mas posso esclarecer que também pela graça de Deus não sou secretário desse senhor aqui ao lado.
- Bom, veremos isso mais tarde. Por ora, esperamos que certas coisas se esclareçam. Só nos falta encontrar o fruto do roubo. Estamos examinando as cargas...
- Podem revisar toda a minha bagagem - diz Araripe. - Está no aeroporto.
- Ora bolas sr. José de Azevedo Araripe...
- José de Araripe Azevedo.
- Tanto faz. Acha que somos anjinhos? Se o senhor é mesmo o homem que procuramos, evidente que as joias não estarão em sua bagagem. O roubo deve ter seguido, disfarçado, por terra, mar ou ar. Já está talvez em Buenos Aires. Ou aqui mesmo no Rio. Estamos apenas procurando isso. Só então poderemos esclarecer os pontos obscuros da história.
- Por que não tentam me acarear com os assaltantes? Eles poderão dizer se sou o homem que mandou ou planejou o assalto.
- Isso fica para o fim. Se fizermos a acareação agora, eles poderão confirmar que o senhor foi o autor intelectual do roubo, para esconder o verdadeiro mandante. Aí, tanto o senhor como a polícia podem ficar complicados.
- É, o caso está muito complicado - comentou em voz alta.
O inspetor olha-me seriamente.
- Afinal, ninguém perde por esperar. Nem a polícia, nem os senhores.
- Bem, eu já perdi a chegada da mãe.
O inspetor faz cara profissional.
- Lamentamos. Mas não faltará oportunidade de o senhor vê-la brevemente. Poderá explicar tudo, ela entenderá.
- E eu perdi minha viagem. Tinha negócios em Buenos Aires, sou representante de lã...
- A polícia já havia cancelado sua passagem. Quando tudo estiver resolvido, o senhor terá uma passagem para ir a Buenos Aires. E as desculpas da polícia. Procuramos ser gentis, na medida do possível.
Há silêncio, à citação da gentileza policial. Afinal, é a primeira vez que penetro no mundo de delegados, detetives e inspetores, e afora a amolação geral, tenho de reconhecer que não são grosseiros, esbirros, verdugos, como lá no partido diziam e eu mesmo imaginava por conta própria.
O inspetor corta o silêncio, voltando-se para a aeromoça.
- E finalmente, vamos à senhorita.
Ela se apruma na cadeira - é a única que está sentada, ocupando a única cadeira em frente à mesa do inspetor. Descruza as belas pernas e torna a cruzá-las em sentido contrário. Vejo um pedaço de suas coxas morenas. O inspetor parece que vê também, pois faz pausa exagerada ao meter o pescoço para a frente a fim de quebrar a cinza do cigarro no cinzeiro ao lado da mesa.
- Bom, a senhorita está em estado de graça policial. Ainda não existe, ao menos para meu setor. Nem sequer tem ficha. Sua identidade?
- Estou providenciando. Sou nova na companhia. Uma semana apenas. O departamento do pessoal da companhia está providenciando.
- Sim, sim, já previa isso.
Outra pausa e outra quebra de cinza, dessa vez o cigarro nem tem cinza. A aeromoça percebe o interesse do inspetor e descruza as pernas novamente.
- Podia saber por que arranjou esse emprego?
- Ué? Porque precisava de trabalhar. Não tenho pai, minha mãe trabalha, pagou-me os estudos, agora já é hora de eu trabalhar também. Uma amiga me arranjou o lugar. Estou fazendo estágio em terra e um curso especializado. Enquanto aprendo como tratar os passageiros no ar, vou treinando com eles em terra. Por isso me meti nessa embrulhada.
- Sim, sim, evidente, embrulhada, lamentamos muito, mas a senhorita terá de continuar detida. Talvez o problema se limite a apenas isso. Com a senhorita está a chave da questão. Ou não. De qualquer forma, precisamos de sua presença e não podemos liberá-la, como seria de nossa vontade.
O inspetor levanta-se, fecha uma pasta com vários documentos e chama o guarda.
- Providencie alojamento para três. Os dois homens passarão a noite na sala de explosivos. Podem dormir nas cadeiras. A senhorita, se quiser, pode ficar com os homens. Mas se prefere, pode usar a sala ao lado onde há um sofá. Lamento muito, mas isso aqui não é hotel e não nos convém detê-los em outra repartição policial aparelhada com quartos e camas. Amanhã, talvez, tudo esteja resolvido.
Começo a sentir sono e penso em disputar o sofá:
- Podíamos fazer um revezamento no sofá? A moça descansava um pouco e depois íamos, em turnos, descansar também. Não posso passar a noite acordado e não sei dormir sentado.
- Como queiram. Os senhores dispõem de duas salas separadas e de um sofá. Banheiro, naturalmente que podem usar o meu. No mais, resolvam o problema como queiram. Sair é que não podem. Nem telefonar. Amanhã cedo serão chamados. E se tudo correr bem, estarão livres.
Tiramos a sorte para ver quem dorme primeiro. Por gentileza sugerida pelo Araripe Azevedo José, a aeromoça fica no primeiro turno e vai se deitar, deixando a porta apenas encostada. Jogamos a moeda e eu perco. A moça dormirá até uma hora. Depois dormirá o Araripe Azevedo José, até as quatro. Daí em diante, dormirei eu. O expediente na repartição começará às sete. Não será sono demorado, mas dará para quebrar o cansaço.
- Que maçada!
Araripe não tem vontade de conversar. É tão inocente como eu, mas está preocupado.
- As lãs... perdi um negoção.
- De qualquer forma, a hipótese da polícia é viável. Eles tinham que prender um homem que viajaria para fora, e um outro que pertencesse ao Partido Comunista. Nisso, eles foram perfeitos. Aqui estamos. Só que há muita gente que viaja para o exterior e há muita gente no partido também.
Araripe não diz nada e se amarra na cadeira. Fecha os olhos e parece dormir. Lãs.
A luz baça do aposento só faz reflexos no vidro do relógio que marca as horas. Dez e meia, ainda. Teremos muito tempo pela frente. A aeromoça é a mais prejudicada, foge do esquema, nada tem a fazer ali. Talvez a polícia a tivesse detido na suposição de cumplicidade. Mas nem eu sou secretário do Araripe, nem o Araripe, preocupado com lãs, é planejador de assaltos. Ela não é cúmplice de nada.
Sala de explosivos. Não vejo explosivo nenhum na sala. Apenas armários com pastas. O mapa da cidade assinala os locais onde se fabricam ou vendem armas e munições. Confiro meu bairro. Duas ruas após a minha, há um sujeito que vende pólvora. Para quê? Preciso tomar nota disso tudo para ceder ao partido ou o partido já tem mapa mais atualizado desse comércio todo? Não, o melhor que faço é não fazer nada. De qualquer forma, o equívoco da polícia teve um mérito: esqueci a mãe e Tino. Que se amem os dois. Não tenho nada, também, a ver com isso.
Estou preso. Faço esforço para me convencer disso, mas não sinto realmente a prisão. Tenho a impressão de que, quando quiser, sairei por essa porta, não há ninguém do outro lado. Assim, estou preso porque quero. Para evitar a amolação de receber a mãe - até que assim foi melhor. Amanhã direi: fui preso por equívoco, passei a noite nos explosivos com um homem que sonhava com lãs e uma moça que tinha belas pernas. É uma boa desculpa e chega a ser heroica. Na minha família, creio, nunca ninguém foi preso, nem de verdade, nem de equívoco.
Monte Cristo foi preso por equívoco, mas os tempos são outros, pelo menos é o que me dizem no partido. Às vezes um grande drama pode começar assim, mas comigo nada de grande acontece, nem mesmo um grande equívoco, ou uma grande injustiça. O que me aporrinha é justamente o menor, tudo comigo é mesquinho, pequeno. Até mesmo minha vergonha, que podia ser grande e gerar um poema ou uma batalha social - ficou reduzido a trepadas de balzaquiana com pintor fracassado - Tino e a mãe - pois o drama de minha mulher não chega a ser drama, nem comédia é. Não é nada, apenas.
Araripe Azevedo José está de olhos fechados mas ainda não dorme. Fechou os olhos para evitar conversa - e eu lhe sou grato por isso. Afrouxou o laço da gravata e tem agora o aspecto de um viajante cansado. A noite vai custar a passar para todos. E esta disponibilidade em que estou agora, me comove. Nunca me senti tão livre - agora que estou preso. Posso sentar na cadeira e esse direito que o inspetor me deu é uma coisa sagrada, como se fosse um poder sobrenatural. Entre o poder de ressuscitar um morto em praça pública e o direito de me sentar nesta cadeira da sala de explosivos, prefiro o último. Nunca uma cadeira foi tão minha quanto essa. Nunca fiz uma ação tão livre e consciente como sentar nesta cadeira.
Não vou ressuscitar morto mas vou chatear o Araripe.
- O senhor podia me emprestar os fósforos?
Araripe nem abriu os olhos. Catou a caixinha no bolso e me estendeu.
- Desculpe mas podia me ceder também um cigarro?
Ele abre os olhos, seu olhar está cheio de lãs e sono. Apanha o maço e escolhe um cigarro para mim, outro para ele. Acendo ambos os cigarros. Não gosto de fumar e só pedi cigarro para amolar o Araripe Azevedo José.
- Que maçada!
Ele diz isso olhando para mim e não sei precisar se a maçada é a minha presença ou a prisão. Araripe Azevedo José quando fala tem sempre uma porção de sentidos. Daria um ótimo humorista mas é apenas um homem preocupado com lãs. Fecha os olhos novamente e o cigarro apaga entre seus dedos. Jogo o meu no chão e reparo que há um aviso na parede: É proibido fumar. Explosivos. Imagino se a sala explodisse. Se pudesse telefonar, indagaria aos meus superiores do partido se eles têm algum interesse em que a sala de explosivos da polícia central vá para o ar. A oportunidade é boa e eu faria uma ação heroica, haveria ato público e eu seria evocado como o camarada-mártir, haveria uma célula em Brás de Pina com o meu nome, e quando a revolução triunfar, eu serei inscrito no monumento que vão erguer em homenagem aos mártires que lutaram e morreram pela causa. O chefe já me mostrou a maqueta do monumento, é alto, em estilo moscovita, será feito de mármore nacional e terá, em cima, um alto-falante. Todos os dias, os nomes dos que morreram serão relembrados. É a posteridade, sem dúvida, mas não posso explodir a polícia central sem autorização. Talvez o partido não pretenda isso e se o fizer, terei o nome inscrito no rol dos traidores, serei lembrado como lacaio do imperialismo estrangeiro e a posteridade odiará meu nome. Merda para os que virão depois de mim!
Sim, o melhor que faço é gozar minha liberdade, sentar nesta cadeira e esperar que alguma coisa aconteça. Não há dúvida, estou em plena disponibilidade, sou realmente um homem livre. E se isso não é grande coisa, nem me traz glória alguma, pelo menos não dói.
Talvez tenha adormecido e não vi o que se passou. Araripe Azevedo José não está na cadeira, foi dormir no sofá. Em seu lugar, a aeromoça. Essa dormiu bem, está descansada, mas continua a dormir na cadeira, sem reservas, espalhou-se como pôde, vejo-lhe as pernas, os joelhos, até mesmo um ângulo de coxa, apertado pela saia. A maquilagem se desmanchou e a cara real aparece agora, cansada, um pouco mais jovem e assexuada como o de garota suada, após uma corrida.
Antes de sentar ali, ela me viu cochilando. Devo ser feio dormindo, mesmo assim ela aproveitou, olhou-me bem, está na cara que minha beleza a impressionou, conheço as mulheres e sei que ela aproveitou meu rápido sono para me examinar.
Vou pagar-lhe na mesma moeda, só que com vantagem. Vejo-lhe a coxa e ela não chegou a ver a minha. Bem verdade que nenhuma mulher se impressiona com as minhas coxas, mas isso é assunto delas.
O relógio continua sendo o único ponto brilhante que reflete a luz desbotada desta sala de explosivos. Tudo aqui é escuro, os móveis já perderam o brilho, o assoalho é apenas lavado, a polícia é sórdida.
Uma hora e quarenta minutos. Creio que dormi bastante, e isso é contra meus hábitos. Na realidade, estou fugindo de minha rotina. Quando anteontem comuniquei na repartição, “olhe, amanhã não venho na parte da manhã, vou esperar a mãe que chega da Europa”, fiz minha última ação comum. Depois tudo que fui fazendo ou que me obrigaram a fazer foge de meus hábitos. Edmundo Dantés sem dúvida, só que o Monte Cristo viveu em época mais complicada e seu equívoco foi mais profundo. Bem verdade que não sei ainda o que me espera, mas creio que amanhã estará tudo resolvido. Nessas horas, a verdade é simples e cabe na boca de um policial boçal. Se o inspetor disse que amanhã está tudo resolvido - tudo deverá estar resolvido. Eles são onipotentes, criam o caso e sabem como desvendá-lo. Tenho de confiar placidamente neles, e mesmo que não confiasse, dava na mesma. Tinha de esperar de igual forma.
Perdi o sono, agora. Quando Araripe Azevedo José vier me chamar, talvez faça uma gentileza e ceda meu direito à aeromoça. Já descansei e será difícil pegar no sono outra vez.
A mãe deve estar dormindo agora com Tino - e dormindo é força de expressão. Que ao menos sejam felizes, e se fartem. A mãe deve estar mais velha, fique logo com ele. E Tino também já entrou na reta final. Sabe que fracassou como artista, só não morre de fome porque aceita trabalhos vis, volta e meia faz desenhos para fábricas de tecido. Antigamente tinha escrúpulos, acreditava-se gênio, e expulsou o publicitário que lhe foi pedir um quadro para servir de propaganda a uma excursão de ricaços que visitariam os museus da Europa. Lembro a cena. Tino botando o homem para a rua, a mãe babando-se de orgulho em ver o genial amante recusando o pão pela arte - ela lhe dava o pão e a carne e Tino podia se dar a luxos assim.
Hoje, Tino sabe que não vale nada, sua pintura é fraca, outros que começaram depois dele já o superaram, e se Tino não foi fracasso completo deve-o unicamente à mãe. Ele talvez não saiba, mas eu sei. Aquele prêmio do Salão, único que Tino conseguiu, foi cavação da mãe. Vira-a uma tarde fazendo lanche com um membro do júri. Na certa deitou com ele. A mãe era capaz disso para dar um pouco de alegria ou de orgulho a Tino.
Mas de nada adiantou. Mesmo sem transpirar a intromissão da mãe, ninguém levou a sério o prêmio e, se não houve protestos maiores pela concessão, foi pela insistência com que Tino se inscrevia. O pessoal do júri premiou-o, um deles comeu a mãe, Tino viajou por aí, e deixou de incomodar o museu dando lugar a elementos mais jovens e melhores. A arte também é sórdida.
Mais arte tem a aeromoça. Suas coxas aparecem cada vez mais, é a saia que está subindo ou é o corpo que está descendo? Vejo agora o elástico das meias, são coxas gorduchas, gosto delas assim. Teresa tinha coxas iguais, depois do casamento engordou e ficaram flácidas, com pequenas varizes. Mesmo assim há quem goste de Teresa, já perdi a conta dos amantes que ela teve. Guardei alguns. O primeiro deles, porque me fez sofrer um pouco. Depois me habituei muito mais depressa do que esperava. Lembro Tino também, embora o porco só tenha estado com ela uma única vez.
Foi dormir lá em casa, bêbado, só porque a mãe tinha ido a São Paulo com Valdomiro. A mãe fazia isso para castigar Tino, na certa soubera de algum caso e, para desforrar, arrebanhou Valdomiro e foi com ele a São Paulo. Tino então tomou um pifão obsceno, tentou agredir o major que ia saindo do cinema. Depois, vendo duas freiras que esperavam condução, avançou em cima delas: “suas filhas da puta!” O guarda prendeu-o, mas os amigos interferiram, um deles me telefonou e eu dei o endereço. O táxi deixou-o na porta, na hora em que eu saía, tinha uma reunião no partido, havíamos recebido bom material de propaganda da Tchecoslováquia, o chefe da célula ia fazer a distribuição, eu não podia faltar.
Tino, logo que pôde cantou Teresa, ou nem precisou cantá-la, a égua se ofereceu e treparam, em minha própria cama.
Quando cheguei, Tino estava na varanda.
Examinou alguns folhetos de propaganda que trouxera e elogiou a boa impressão em cores. Nesse tempo eu já não tinha nada com Teresa, ignoro se ele mentiu ou não a respeito da gonorreia. Mas era possível. Ela deitava com muita gente desclassificada, fornecedores de porta, padeiros, tintureiros, sei lá quem mais, e volta e meia ia a médicos, talvez Tino não mentisse, embora fosse grosseiro.
A aeromoça nunca teve gonorreia, talvez nem saiba o que seja isso. Tem cara de virgem, cara e carnes, é durinha, vejo-lhe cada vez mais as coxas, são tenras, elásticas. Na verdade, estou me excitando. Vou levantar-me em silêncio, chegar-me bem perto. A blusa está frouxa também, se tivesse coragem podia torcer um pouco a gola e via-lhe o seio. Mas agora que tenho outro ângulo, vejo quase todas as coxas, até o sombreado da calça. Ninguém me vê agora, estou só e onipotente nesta sala de explosivos, e nada vai explodir, só o meu desejo cada vez mais forte. E para atingir ao orgasmo, nem precisarei tocá-la, basta vê-la, assim como está, sou onipotente realmente, onipotente e autossuficiente, além do mais, gozar assim é mais higiênico, posso me masturbar tranquilamente olhando as coxas da aeromoça, e é o que estou fazendo.
Podia até deixar cair um pouco de esperma no sapato dela, ela nem perceberá. Mas sou higiênico, vou me lavar depois, agora é hora de sentir prazer, amanhã ela acordará e não suspeitará que foi gozada apor mim.
Pronto. Vou me lavar no banheiro do inspetor Soares. Tenho em minha mão não sei quantos milhões de brasileiros que jamais nascerão, que morrerão nos ralos e nos esgotos da polícia central. A aeromoça foi gozada, e embora continue com membranas intatas e carnes não acariciadas, foi conspurcada por mim.
O banheiro do inspetor Soares é razoável para um policial. Os médicos urinam em pias, policial devia urinar em cinzeiros ou copos. Mas a privada do inspetor Soares é excelente, e a pia está limpa. Lavo a mão e a gosma corre pelo ralo. Estou mais leve, e, ao mesmo tempo, desiludido. São percalços da arte, da minha arte, agora posso voltar a olhar as coxas da aeromoça, e mesmo que veja sua vagina não me excitarei mais. Já a deflorei a meu modo, que ela agora vá dormir com outros e se possível, engalicar outros também.
A masturbação fez passar o tempo. Já são quase quatro horas, e daqui a pouco vou acordar o Araripe Azevedo José. Estou cansado realmente, e acredito que volte a dormir, se o sofá for razoável. De qualquer forma, vou dar chance ao Araripe. Ele verá a aeromoça com as coxas de fora e poderá masturbar-se à vontade, até às sete horas tem muito tempo para isso. Talvez ele não queira, não seja disso, ou quem sabe, esteja realmente preocupado com lãs.
A aeromoça vira a cara para outro lado, mas as coxas continuam à mostra, acredito que há mais coxa agora. Mas eu não posso me queixar, tive o meu quinhão, que o resto da manada humana se farte agora com essa eguinha que aqui está, para mim ela já cumpriu sua missão.
Estou satisfeito e devo pagá-la, de alguma forma. Dinheiro não. Ela não entenderá a razão do dinheiro. Mas o Araripe deixou-me um cigarro. Vou colocá-lo dentro de sua blusa. Amanhã, ela pensará que foi o Araripe, fumará o cigarro e não saberá que eu a paguei pelo prazer que me deu.
E agora, vamos acordar o Araripe.
- Já dormiu muito, pode ir embora agora.
Abro os olhos e antes de entender alguma coisa, sinto a dor no pescoço. Dormi de mau jeito, o braço do sofá é muito alto e vou levar alguns dias de pescoço duro, até endireitá-lo novamente. Aperto a cabeça e vejo a cara do inspetor Soares: cansada, barbada. Muita gente na sala, fiz papelão dormindo à frente dessa gente toda.
- Que horas são?
O guarda olha o relógio:
- Sete e meia!
Sento. Passo as mãos pelos cabelos e sinto um pouco de mau hálito. Mas não há jeito de escovar os dentes agora. Cigarro resolveria. Lembro que alguém me deu cigarro ontem, procuro-o nos bolsos, mas a cara barbada do inspetor Soares me faz lembrar a aeromoça.
- Estou livre?
- Completamente. Pode agora ir ver sua mãe.
- Mãe?
Estou confuso, dormi pesadamente, dei o cigarro a uma puta com quem estivera deitado, ou estivera deitado com a mãe que chegara?
A confusão dura pouco. O inspetor toma cafezinho e manda o guarda me servir um. A memória volta, inteira.
- E os outros?
O inspetor passara a noite em claro, só agora noto isso. Está com a mesma roupa da véspera, o colarinho sujo, o nó da gravata caiu para o peito.
- Os outros? Os outros estão presos.
- Presos?!
- Queria que os soltasse depois de tudo?
Estico as pernas. Para não parecer palerma, fico calado e finjo que compreendo.
- Quer dizer que estou livre?
- Sim, sim, pode ir, desculpe o mau jeito, mas não podíamos proceder de outra forma. A Interpol só conseguiu localizar o Gonzalez pela madrugada de hoje. Já estava em Montevidéu. Confessou tudo.
- Quer dizer, está tudo resolvido?
- Sim, passamos a noite em claro, mas pegamos os três.
- Mas não foi um só que prenderam em Montevidéu?
O inspetor olha para minha cara.
- E aqueles dois que passaram a noite aqui? O senhor acha que são anjinhos?
- Anjinhos propriamente não. Mas pareciam inofensivos.
- Inofensivos? Pois olha, deixaram o senhor se meter nesta embrulhada. Se a Interpol não prende o Gonzalez em Montevidéu o senhor iria ficar preso por muito tempo, talvez até pelo resto da vida. Houve morte no assalto.
- E quem iria me confundir com o Gonzalez?
- Eu mesmo, toda a polícia até. Quem podia provar que o senhor não era Gonzalez?
- Bem, isso é verdade.
Passo pela sala dos explosivos, vejo a cadeira onde dormira a aeromoça. Há agora o guarda barrigudo e mulato escrevendo no caderno enorme. Sentado na mesma cadeira onde duas coxas se amassaram contra o meu desejo.
- Posso ir, então.
- Um momento. Tenho uma encomenda para o senhor, vamos até o gabinete.
Acompanho o inspetor Soares. Dois ou três funcionários passam e o cumprimentam:
- Parabéns! Bonito caso!
Soares ri, modesto.
- Foi a Interpol. Eu só ajudei.
Agora, estou na sala onde ontem fomos interrogados. O inspetor está cansado, mas alegre.
- Eu bem que desconfiava.
- Inspetor, o senhor não me leva a mal, mas eu não estou entendendo nada. Reconheço, isso não é da minha conta, mas afinal, passei a noite aqui, perdi o desembarque de minha mãe, não pude avisar em casa, mereço uma explicação.
- Pois não, o senhor tem razão, que explicação deseja?
- Quero saber, primeiro: por que fui detido; segundo: por que estou sendo solto.
O inspetor senta-se na cadeira giratória atrás da mesa, toma ares de banqueiro:
- Assaltaram uma joalheria na cidade. Roubaram joias e valores num total aproximado de 100 a 150 milhões de cruzeiros. Os autores materiais foram presos, menos um, o qual foi morto pelos autores intelectuais do assalto. Tínhamos que localizar a quadrilha. Sabíamos que o chefe era um senhor que viaja comumente para o exterior, tem firmas exportadoras e importadoras de uma porção de coisas - peças para automóveis, bicicletas, válvulas de televisão, couros, cortiça, peles de cobra, papel...
- Lãs...
- É possível. Na realidade, o sujeito é vigarista internacional, búlgaro de nascimento, veio muito cedo para o Brasil. Não tem sotaque nem cara de estrangeiro. Seu nome é Arno Avric Slov.
- Talvez Slov Avric Arno.
- Pode ser. Faz-se passar por José de Araripe Azevedo, tem carteira de identidade com esse nome. Já assaltou banco no Chile e matou um gerente de hotel em Roma.
Abaixo a cara para que o inspetor não veja se estou espantado ou divertido.
- O sr. Slov tem um sócio, boliviano de nascimento e argentino de naturalização, Gaston Herrera Aguirre Gonzalez. Comunista profissional, agiota, traficante de cocaína, explorador de mulheres etc. Gonzalez tinha ido de carro para o sul e foi-lhe fácil passar a fronteira. Mas a Interpol estava vigilante, pegou-o em Montevidéu. Ia esperar Slov no aeroporto, dividiriam o resultado do roubo e Slov seguiria para a Argentina; Gonzalez para o Egito, tinha passagem comprada em nome do capanga que foi morto.
- Não está muito complicado esse negócio?
- Nem tanto. Pois os dois tinham uma grande auxiliar, o cérebro de tudo isso, que arranjava papéis oficiais, certificados falsos, planejava tudo.
- A Ku Klux Klan?
- Não. A aeromoça.
Dessa vez suspendo a cara e não me incomodo que o inspetor veja meu espanto.
- A aeromoça?
O inspetor confirma com a cabeça, rodando na cadeira giratória, como se estivesse explicando para um auditório a teoria da relatividade.
- Ela mesma. Com aquela carinha. Tão esperta que, quando se notou perdida, deu um golpe de mestre, implicando-o na história.
- A mim?
- Não foi ela quem se dirigiu ao senhor, no aeroporto?
- Foi. Veio com o bilhete na mão e perguntou se eu não era o Araripe Azevedo José.
- Pois ninguém perdera bilhete algum. Slov viajaria com o passe que já tinha arranjado há muito. A passagem excedente era para justificar a entrada da moça no avião. Que por sinal não era aeromoça. Slov levava na maleta um casaco para ela, a qualquer momento ela trocaria de roupa e o que parecia uniforme de aeromoça viraria um simples tailleur. Fugiria com Slov, de quem é amante...
- Amante?
Na verdade, não tenho motivo nenhum para me admirar.
- Pois fugiria com Slov, receberia em Montevidéu a sua parte no roubo e ficariam todos impunes. Quando ela percebeu a chegada da polícia no aeroporto, deu o golpe de mestre, implicando-o. Vimos a moça exibindo o bilhete para você. Ora, ignorávamos a identidade e o tipo do terceiro parceiro. Sabíamos apenas que era comunista. O senhor se confessou comunista, teve um comportamento suspeito em tudo...
- Suspeito?
- Todo criminoso procede como o senhor procedeu. E o golpe da menina foi ajudado pela sorte. Sua prisão atrapalhou tudo. Na companhia aérea, a aeromoça era realmente estagiária, e sua história fazia sentido. Slov tinha registro de negociante, havia comprado passagem em nome de Araripe Azevedo José e ainda tinha passe. Só o senhor atrapalhava. Não tinha ficha alguma, exceto a de comunista. Até apurarmos que o senhor era modesto funcionário, que realmente esperava a senhora sua mãe que vinha da Europa, foi um tempão. E estaríamos perdidos ainda, não fosse a Interpol ter prendido Gonzalez.
Parou de rodar na cadeira giratória. Levanta-se.
- Compreendeu, agora?
A rigor, tenho muitas objeções a fazer na história, mas já que ela faz sentido para a polícia, não vou me meter nisso. Estou livre, e embora ache a história complicada, numa coisa ela está certa: eu não assaltei joalheria alguma.
Levanto-me também.
- Bom, se é assim, eu também felicito a sagaz instituição policial do meu país. E vou me embora.
- Um momento.
Por instante suspeito que o inspetor esteja blefando, inventando um romance para me abrir a defensiva. Volto-me. Vejo-o catando na gaveta.
- Tenho uma encomenda para si.
Procura um pouco e acha.
- A aeromoça, quando foi presa, pediu-me para devolver este cigarro ao senhor.
Apanho o cigarro e fico sem saber o que fazer com ele.
- Não vai fumá-lo?
O inspetor está de isqueiro aceso. Não tenho outra solução senão meter o cigarro na boca. O inspetor aproxima o isqueiro.
- Não gosto de fumar em jejum, mas vá lá.
Puxo uma tragada. O inspetor tem cara cansada, mas diabólica.
- Bonita mulher, não?
Acho obsceno o comentário referente a uma criminosa e saído da boca de um policial. Mas o inspetor toma meu silêncio em outro sentido:
- O senhor aproveitou a noite, não?
Jogo fora o cigarro.
- O senhor está insinuando alguma coisa?
O inspetor faz ar generoso.
- Isso é da vida, rapaz, você não sabia de nada, passou parte da noite com ela, ela gostou de si, parece-me, deixou-lhe o cigarro. “Diga àquele senhor que espero que tenha gozado bastante.” Isso ela me disse quando eu estava lhe colocando as algemas nos pulsos. Como vê, não estou insinuando nada...
Saio, sem olhar para trás.
Na rua, respiro fundo e tomo café no botequim próximo. São oito e pouco. Penso em dar um pulo em casa, tomar banho, fazer a barba, trocar de roupa. Mas estou em cima da hora, minha repartição abre às nove, ontem faltei, e nunca faltei ao trabalho. Vou direto. Depois telefono para casa. Teresa não se incomodará em saber se dormi na prisão ou num rendez-vous. Quanto à mãe e Tino, que se virem: não me sinto mais ligado a ninguém e a nada.
Dou uma gargalhada, afinal.
O chefe está atrasado, são quase onze horas e só agora chegou. Examinou o livro de ponto, tomou nota dos que faltaram, mas de repente deu um berro lá de sua sala.
- Quem é esse Edmundo Dantés que assinou o ponto?
E por mais que pareça incrível o tempo passa depressa. Estou só, um estreito espaço bastando para eu ser eu. Enedina levou as chaves, Selma deve estar chegando e já não posso - ainda que de repente queira - ir vê-la. Arrumei papéis e desarrumei lembranças. Posso agora pintar - sou um homem livre e libertado. Quarenta anos e livre. Estou tão preparado para ser livre que posso me matar ou ser camelô na cidade. Tão livre que posso ver Selma, só para me contrariar e provar que posso fazer tudo, inclusive vê-la.
Bem verdade que Enedina levou as chaves, e pelo menos isso eu não posso fazer. Mas nada diminui a onipotência de minha liberdade. Tino, artista decadente e fracassado - é um homem livre, e esta é a sua maior vitória. Já está longe o tempo em que Selma, fantasma ausente ou presente, me arrastava como um cão sem olhos. Bastava apanhar o sabonete com que Selma se lavara - e sofria. E vinha Valdomiro e a levava para os apartamentos suspeitos e eu ia atrás, ver Selma entrar em pocilgas para ser do homem que eu mesmo inventei para ela. Se meus amigos soubessem do que sou capaz, do que fui capaz - ninguém me estenderia a mão. Mas estendem a mão ainda, um pouco de respeito, de ironia, mas estendem a mão. Não sabem da onipotência da minha sordidez.
Quando Selma esteve resfriada - e isso lembro agora - quase resolvi agarrá-la na cama e beijá-la. A febre tornava-a excitante, eu tinha pretextos de entrar em seu quarto, ela mesma me pedia que lhe aplicasse injeções, oferecia-me o braço pródigo e antes de espetar a agulha eu podia apertá-la a fim de juntar a carne para a picada. Saía então de seu quarto com uma forte vontade de chorar e de a possuir. Nesse dia, já nem sei mais por que, olhei a empregada que então nos servia. Era um bofe, embora limpa. Excitado como estava, não foi repugnante levá-la para meu quarto.
Selma percebeu. Despediu-a no dia seguinte, e quando se recuperou do resfriado, a primeira providência que tomou foi arranjar empregadas horrendas. Não queria bandalheiras dentro de casa. Por isso tomou um trem e foi a São Paulo com Valdomiro, desforrar os dias de recesso. Hospedaram-se no Othon e lá ficaram, duas ou três semanas.
Coincidência ou não, logo à segunda semana eu tinha uma exposição coletiva. Tencionava não comparecer pessoalmente, mas sabendo Selma em São Paulo, e com Valdomiro o Rio tornou-se insuportável.
Pretexto tinha: a exposição foi concorrida e Selma, pela primeira e única vez, compareceu à inauguração, com Valdomiro a tiracolo.
Fui na véspera para o Flórida. Cheguei à tarde. Após o jantar, imaginei que Selma e Valdomiro teriam feito algum programa e passei pela portaria do Othon. Vi o registro dos hóspedes. Valdomiro Monteiro e sra. - Apartamento 802. Os porcos. A chave do 802 pendurada no escaninho da portaria, os dois estavam fora.
Fui beber em qualquer canto. Havia ganho dinheiro, um grupo de industriais paulistas cotizou-se para comprar três quadros de cada expositor, nunca tive tanto dinheiro no bolso. Podia ir a uma boate, mas era perigoso, Selma estaria em uma delas e seria ridículo dar de cara com ela. Preferi a zona dos inferninhos, entrei num que me pareceu bem iluminado.
Bem iluminado por fora, mas escuro por dentro. O garção acendeu a lanterna e me arranjou a mesa mais próxima do tablado onde o trio paraguaio gemia guarânias. Harpa, violão e acordeão. E uma cantora de olhos medonhos que cantava, voz arrastada, agressiva:
Sufro al pensar que el destino
logró separarnos
Guardo tan belos recuerdos
que no olvidaré
- Cachaça.
- No tenemos.
O garção também paraguaio, uma cara de bugre tentando ser amável.
- Gim.
- Sólo tenemos uísque, señor.
- Você é gringo?
- Como?
- Gringo. Quer dizer, estrangeiro.
- Si. Soy paraguayo.
- Todo mundo aqui é paraguaio?
Apontei o conjunto que continuava:
Mi corazón en tinieblas te busca con ansias
rezo tu nombre pidiendo que vuelvas a mi.
O garção fez cara amarga.
- Si, si, somos todos del Paraguay.
- Então venha o uísque.
O garção segue, submisso, sofredor.
Olho o conjunto. De início parecia trio, mas é quarteto, há um contrabaixo também, afogado no escuro. A cantora tem bom corpo sob o vestido prateado e colante. Os dentes são brancos e os lábios são fortes.
A canção acaba e chamo o garção.
- Peça àquela cantora para vir sentar aqui.
- Maria Ignês? Le gustó Maria Ignês?
- Não é da sua conta se me gustou ou não. Vá chamá-la. Já fiz sinal e ela topou.
O garção foi lá dentro, a cortina que dá para os fundos esconde sua resignada figura noturna. Logo depois a cortina se abre e Maria Ignês vem. É mais baixa do que me pareceu no palco, um pouco mais gorda. Tem dificuldade em andar com o vestido colante.
Levanto-me, ofereço-lhe a cadeira.
- Gracias. Mui gentil, señor.
- Não sou gentil. Apenas gostei de você.
- Le gustó mi canción?
- Não. Quer dizer, gostei também de sua canção. Mas gostei principalmente de você. Vamos ser práticos. Quer sair comigo?
- No puedo. Y los hermanos…
- Los hermanos? Que hermanos?
- Mis hermanos, señor, los muchachos que cantan conmigo.
- Ah, eles são seus irmãos...
- Si, somos seis hermanos el más viejo murió en el Paraguay. Nosotros huímos de casa.
Um pianista surge de outro canto e começa a tocar.
- Vamos dançar?
- Con mucho gusto.
Passo a mão pela sua cintura e ela deixa-se grudar, sinto-lhe o corpo sob o vestido de escamas frias.
- Maria Ignês você é uma bela mulher.
- Mui amable, señor.
- Quero sair com você.
- Pero, los hermanos...
- Você diz que vai sair com um amigo.
- Es imposible señor, mis hermanos saben que no tengo amigos, jamás tuve un amiguito.
- Pois tem um agora. Los hermanos precisam ir se habituando.
- Pero...
- Não tem pero nenhum, se você não quiser ir falar, falo eu. Digo que fico com você. Estou com bastante dinheiro, em hotel de luxo, los hermanos irão para casa e eu lhes darei uma gorjeta.
- No es amable de su parte.
- Eu falarei com seus irmãos.
- Entonces, yo misma hablaré.
Maria Ignês some atrás da cortina. A conversa lá dentro demorou, houve idas e vindas, volta e meia uma cara de paraguaio surgia por trás da cortina para me espiar e analisar. Creio que dei ótima impressão aos hermanos de Maria Ignês. Ela voltou, já sem o vestido colante, mas de tailleur escuro, uma frasqueira com seus objetos de lambuzar a cara.
- Estoy pronta.
Ia fazer sinal para chamar o garção mas não foi preciso. O camarada já vinha atrás de Maria Ignês, com a nota pronta, inclusive uns hipotéticos uísques que ela não chegara a tomar comigo.
Fui generoso, dei gorjeta alta. Maria Ignês reparou a nota graúda que o garção botou no bolso e teve um momento em que pareceu interessar-se por ele.
- Hasta mañana Cândido.
O garção suspirou, era cândido e triste suspirando, apesar de a gorjeta ter sido alta e de estar satisfeito por eu ir embora. Era o último freguês.
Na porta, os hermanos de Maria Ignês, com seus instrumentos, pareciam incorporados a uma manifestação à minha pessoa. Mas não devia ser isso. Tão logo me viram foram para o lado, o sujeito do contrabaixo fazendo esforço em deslocar o pesado instrumento. Já não tinha mais o ar alegre e barulhento lá de dentro, quando rebolavam maracas e cantavam rumbas e guarânias. Eram quatro sujeitos tristes, cabisbaixos, e parecidos entre si, como os paraguaios se parecem uns com os outros. No caso, com a agravante de serem hermanos entre si e hermanos de Maria Ignês.
Que foi minha aquela noite mesmo, e teve espasmos demorados e bilíngues. No outro quarto estavam os hermanos. Maria Ignês informou que eles não tinham onde dormir, e como havia desejo e dinheiro, resolvi alugar apartamento maior, com dois quartos, num deles ficamos eu e ela, no outro os hermanos com seus instrumentos, suas cabeleiras desgrenhadas, suas guarânias.
No dia seguinte, ao abrir o jornal, dei de cara com um retrato de Selma e Valdomiro. Valdomiro fora entrevistado e apresentava Selma como esposa. Deitou falação sobre diversos problemas artísticos, literários e políticos, citou-me como um dos pontos altos da fase contemporânea.
Selma aparecia de lado, no clichê borrado só o braço redondo e branco a identificava. Aquele pedaço de braço deu para fazer sofrer - e acordei Maria Ignês para mais amor. Ela estava atordoada, começou a dizer coisas em guarani. Os hermanos, ao lado, discutiam num idioma estranho e exaltado.
Fui até eles.
- Parem de brigar e toquem uma coisa bonita.
Voltei para cama. Do outro lado veio o som da harpa e logo o quarteto, compenetrado, começou:
Sufro al pensar que el destino
logró separarnos…
Assim vivi quase uma semana. E não vivi mais porque certa tarde, voltando de um encontro com conhecidos de São Paulo, vi um quadro repugnante em cima da minha cama. Maria Ignês possuída quase que pelos quatro hermanos ao mesmo tempo.
- Seus sacanas! Rua!
Chamei os porteiros do hotel, empurraram os hermanos e Maria Ignês para a porta da rua, um dos hermanos não dava no elevador com seu enorme contrabaixo, fi-lo rodar pelas escadas, foi um escândalo dos diabos.
Na mesma noite tomei avião e voltei ao Rio.
Quando cheguei em casa, encontrei Selma sozinha, num canto escuro chorando.
O homem enjaulado dá um urro. Está só, mas os fantasmas que o acompanham escorrem da parede, viscosos, e o afogam. Ele tem vontade de gritar, mas sua boca perdeu o hábito do grito. Urra, como se animal fosse, e não passa de um animal impotente. Vontade de arrebentar a cabeça contra as paredes, quebrar os móveis, abrir as veias para que o sangue substitua o grito e ele possa se consumir, mansamente, como cigarro esquecido aceso.
Mas a porta está fechada e ele olha o céu. É límpido, azul; e sabe que ela virá, nada acontecerá ao avião e ele pousará na pista, cansada ave, trazendo-a de volta.
A empregada levou as chaves, ele assim o quis, “leve as chaves, Enedina, quero ficar preso o resto do dia”. “Pensarei humildemente em minha vida, como se lesse ou soubesse de uma história estranha acontecida a outra pessoa.” Neutro. Mas agora sabe que o avião se aproxima, lá de cima ela verá as nuvens do mesmo céu, o sol que aquece a vidraça de sua janela é o mesmo que esquenta a asa do avião que a traz. Tudo é o mesmo e nada mudou para ele - descobre isso agora, vendo que o sol é o sol de outros mormaços e lembrando que ela, às vezes, chorava sem explicação.
O animal enjaulado não tem forças para morrer como um gladiador, tranquilo. Luta e espuma. Começa a catar pelos cantos, procura nas gavetas, vai aos armários - é um desespero que lhe cai como um ataque. Ele cai ao chão e procura alguma coisa. Súbito, levanta. Não treme quando abre o armário e mete a mão no bolso de um terno antigo. Sabe, “elas estão aqui”. A mão cata entre a fazenda do bolso, há um pouco de fumo misturado com os fiapos da costura, “não está neste bolso, mas no outro”, e os dedos encontram metal e há barulho de chaves.
- Estão aqui!
A empregada levara seu chaveiro, ele queria ficar só mas havia chaves escondidas, desde o início ele sabia que as chaves estavam ali naquele bolso. Cumprira o rito, fizera o possível, a escamoteação possível, mas agora a chave penetra na fechadura e a lingueta corre. Barbado e escuro como um náufrago, ele abre a porta e está na rua.
- Depressa, para o aeroporto!
O motorista arria bandeirinha e corre. Um avião passa sobre a cidade, talvez seja o dela, ele olha pela janela, um bimotor, não, não deve ser esse, ela vem da Europa, Boac usa quadrimotores. O céu azul é mais azul à medida que ele se aproxima. Ela vem vindo. Tudo começa a fazer sentido, afinal. Vou encerrar isso, tirar esta teima - já não é amor nem desejo, é teima, quero provar que tudo já passou ou que tudo pode se iniciar agora - o passado então seria o noviciado exato para esta espécie de consagração. Selma e eu. Isso sim, faz sentido agora - consagração - porque até então nunca fez sentido.
O tráfego é confuso, o animal está novamente enjaulado, jaula movediça que lhe impede o avanço. Lá em cima o azul é estrada sem empecilhos, confortável, o avião desliza e breve pousará. Mas ele continua preso por todos os lados; é um prisioneiro do tempo e do trânsito engarrafado, arrepende-se de ter saído de casa, ao mesmo tempo tem raiva de não chegar no momento preciso. Selma olhará em volta, não verá ninguém e irá para qualquer canto. Será difícil achá-la e achando-a ou não, pouco importa, importa é estar lá no momento em que sua carne, seu sangue, sua alma e seu gosto novamente sentirem esta terra-túmulo.
Finalmente, a torre do aeroporto. Mais alguns instantes e estarei lá. Não há avião chegando nem partindo, o céu é intocável, como se nunca violado. Mas este céu já se fendeu - chaga azul - levando Selma longe, engolindo-a, total. Este céu em breve se abrirá novamente, para devolvê-la, depois de a ter sugado.
A mão do guarda cai horizontalmente à frente do carro.
- Quê que há?
- Seus documentos, por favor.
Homem e motorista catam os documentos.
- Mas para que desejam documentos? Alguma revolução?
O guarda tem bigodes e dá explicações:
- Estamos procurando uns sujeitos.
Toma nota dos nomes no papel amarelo e o carro prossegue.
Mais um avanço ainda, o sinal vermelho, outro guarda auxiliando um carro oficial a encostar na vaga. O homem enjaulado livra-se da última grade e salta.
O movimento do aeroporto é normal.
- Seus documentos.
- Outra vez?
Agora é um detetive que lhe pede os documentos. Ele apanha a carteira.
- O senhor usa bigodes?
- Usei. E daí?
- Nada. Está no seu direito. Obrigado.
- Mas o que é que já, afinal?
- Serviço de rotina. Houve um assalto na cidade, os ladrões devem estar procurando fugir, as estações de trem e de ônibus também estão vigiadas, já prendemos alguns suspeitos.
- E o senhor me acha suspeito?
- Eu não acho nada. Estou apenas procurando saber quem é quem. Temos uma pista, não faz meia hora prendemos três sujeitos aqui, dois homens e uma aeromoça, pareciam inocentes e talvez sejam inocentes mesmo. Mas podem ser culpados também. Nunca se sabe.
- Pois não sou culpado nem inocente.
Desejava acrescentar qualquer coisa, dizer que tinha repugnância em aceitar a classificação de inocente, mas de repente tem de olhar para trás. Um peso às suas costas, vento insensível. Silêncio cuja mudez estoura em sua nuca, como bofetada.
Vira-se.
Vê apenas a mulher entrando no táxi. Ao lado, um homem elegante. O carregador bota na mala as bagagens, o homem elegante tira a carteira do bolso e dá gorjeta.
Ele olha a mulher, não a viu inteira, apenas o lado do rosto meio oculto pelo chapéu. Mas o feitio da perna que viu entrar no carro dá-lhe a certeza.
- É ela.
Preso no chão, sem coragem do avanço ou do recuo. O homem elegante entrou também no carro, acomodou-se junto à mulher. O carro faz manobra e agora passará por ele, em outro sentido. Verá melhor.
Vê. A mulher sorri para o homem: os mesmos lábios lascados e finos, o mesmo nariz petulante, só o olhar não pode ver, o véu do chapéu cobre a parte de cima do rosto.
- É ela!
E ela dentro dele é uma perplexidade mansa, e feita de ódio. Ali está, finalmente, Selma na terra outra vez, Selma ao alcance de seu braço e de seu grito. Bastaria gritar:
- Selma!
E o carro estancaria, ela teria de saltar, de apresentar aquele homem (amante? marido? qualquer coisa?) mas ele teria coragem e a agasalharia em seu peito e diria: nunca mais!
Nunca mais o quê?
O carro some na esquina, o cano de descarga deixa a fumaça azulada que marca o rastro de Selma.
- O senhor vai embarcar?
Tino se esquecera do detetive, mas ele permanecera ali, incômodo como um dever. A voz do policial soa falsa, como em pesadelo: o seu presente. O passado ficara ali, na fumaça que pouco a pouco se dissolve e confunde com o ar incolor e presente.
A voz do detetive é presente também. O seu único presente.
- Não, não vou a lugar nenhum.
- Esperando alguém?
- Também não. A rigor acho que houve um equívoco.
O policial não entende e Tino segue pela rua, sem vontade de tomar carro. Faz com os próprios pés a mesma curva que o carro de Selma fizera, e só não completa a volta porque o trânsito da outra rua é maior e um ônibus quase o atropela.
- É ela!
Seu passado agora não é mais que uma frase: é ela. Isso lhe basta. Suficiência conseguida após tantos descaminhos, após solidão e lágrimas, buscas e desencontros.
- É ela!
Vontade de fugir para qualquer canto onde ela não pudesse jamais penetrar. Nem deixar, sequer, o rastro da fumaça azulada. Em dias antigos ele teria reação contrária, a vontade de ir atrás, disputar lugar no mesmo carro, sofrer a seu lado, ver Selma possuída ou flagelada pelo homem que a acompanha. Mas agora sente-se cansado a seu modo e faz sua opção: sofrer com todo mundo e como todo mundo tentar esquecer o que deve ser esquecido. Transcender.
Mas transcender o quê? Sua arte fora fracasso igual. Na verdade, nunca sentira o chamado, a arte nunca lhe bastara. Como Selma: também nunca lhe bastara.
E descobre, subitamente, que Selma foi o pretexto para justificar a derrota. Explicar sua solidão. Selma foi a barreira edificada pacientemente para nunca ser vencida. Para contê-lo em seus limites. Nunca tivera coragem ou potência para espiar o outro lado do muro. Respeitara os limites e criou Selma, Selma cresceu dentro dele, intransponível muralha, cercando-o, isolando-o. No estreito espaço que lhe sobrou, foi vã e impotente agitação. Seu grito - se tivesse coragem e força para merecê-lo - seria oco, ninguém o ouviria.
- É ela.
E pensa, quando para diante de um sinal, que talvez não tenha sido ela. Já não tem certeza de ter visto os lábios lascados nem o feitio da perna tão pervagada pelo seu desejo. Podia ser outra. Vontade de regressar ao aeroporto, afinal nem se informara, deveria ter perguntado no balcão da Boac, ver a lista dos passageiros. Mas acha inútil, agora, qualquer caminho. Sendo ou não sendo Selma, sentira o muro, a impossibilidade de galgá-lo e enfrentar as asperezas e a liberdade do outro lado. Sente-se velho para isso. Não tem forças para vencer a muralha, ou derrubá-la. Aceita a muralha, sabendo agora a fortaleza de suas pedras, sua resistência, sua solidez, suas raízes que se afundam nele mesmo e penetram em regiões obscuras onde a mãe, a infância, os temores noturnos e o sexo eram coisas imprecisas que o angustiavam durante a noite e que de dia, iluminados pelo sol e pela segurança do quotidiano, perdiam importância e peso.
Lembra que não vira João nem sua mulher no aeroporto. Se fosse Selma, João deveria estar lá, só a morte podia tirá-lo da obrigação de esperar a mãe - embora a odiasse. Isso lhe dá certeza de que a mulher do carro não é Selma. Mas o feitio da perna, o lábio lascado, a petulância do rosto em olhar para a frente?
Sim, era o mesmo rosto lateral que tantas vezes vira, no carro do Valdomiro. Ele se escondia pelas esquinas para ver os dois passarem. Valdomiro ao volante, sorrindo, ela olhando para a frente, o mesmo perfil nórdico, a mesma boca fendida, o mesmo alheamento pela paisagem que ia escorrendo pelos lados. Paisagem que, sem ela suspeitar, era feita também por ele, imóvel e trevoso como o ladrão à espera do seu momento.
Vai apanhar cigarro no bolso e encontra as chaves. Arrepende-se de ter saído de casa e sente remorso por ter enganado Enedina. Apanha as chaves e se livra delas. Joga-as num canteiro.
- Suas chaves!
O homem que vem atrás vê as chaves caídas, faz o gesto de apanhá-las, a cortesia é importuna.
- Não são minhas.
Segue avante, e inundado de remordimentos. Ao ouvir de algum canto o foxe antigo, sente aos poucos uma tranquilidade vazia, oca, como se algo lhe fosse retirado de dentro. Murcho, estranhamente lúcido, avança mais um pouco. E súbito, se surpreende lembrando, baixinho, a canção antiga que o acompanha agora, não uma saudade, mas um roteiro para o nenhum destino que vê aberto diante de si:
You must remember this
a kiss is still a kiss
a sigh is just a sigh
The fundamental things apply
as time goes by….
Ar refrigerado é carícia com que o bar o recebe. Pela porta de vidro vê as mesas escuras, e, em torno, os homens são sombras anoônimas que se identificam pelo gesto igual de segurar o copo. A jaqueta branca dos garções marca a possibilidade de corredores entre as mesas.
Fecha a porta e o murmúrio das vozes todas é mais alto agora e, paradoxalmente, mais impreciso. No andar de cima, o homem que ri alto marca a presença humana: o resto é amorfo e imaterial, como as paredes lisas onde pingos de luz amortecem a escuridão.
Só no patamar da escada há claridade azulada e indistinta: seu quadro ainda está lá, Movimento Em Três Tempos. O casal que desce passa pelo quadro sem olhá-lo, o quadro foi assimilado pela parede, é um aleijão na sombra - e ninguém se dá ao trabalho de olhá-lo. O casal passa por ele agora e também não lhe dá importância, criador e criatura não são nada no escuro do bar e o quadro ao menos tem a vantagem do apoio e da solidez da parede.
- Bolas, até que apareceu!
O gerente do bar é ainda o Campos, os mesmos óculos, o mesmo jeito de recusar cheques de clientes duvidosos.
- Tudo bem?
- Andou sumido um tempão, não?
- Trabalho.
Campos abre a gaveta e procura papéis.
- Olhe, há aqui umas coisas para você.
Coloca em cima do balcão um maço de cartas, bilhetes, recados, o postal que alguém lhe mandara de Madri, um detalhe da Gran Via, carros, gente. Ele apanha aquilo tudo e joga no balde onde os garções guardam os cascos vazios.
- Não vai ler?
- É coisa antiga. Não vale a pena
E Campos já está servindo sua dose, seu uísque preferido, puro, sem soda e sem gelo.
Uma mulher alta passa por ele, em busca do lavatório.
- Essa aí é a pequena do Cláudio agora.
Campos informa e espera o resultado. Em outros tempos, Tino se interessaria. Havia até a tradição do bar: pequena que o Cláudio arranjasse, mais cedo ou mais tarde passaria pela mão e pelos joelhos dos demais. Mas agora ele não sente interesse pelas pequenas do Cláudio.
- Bofe. Muito alta.
- Dizem que é um espetáculo na cama.
Sente náusea do uísque puro, ou, quem sabe, náusea do Campos e de suas informações.
- Esse uísque ainda é o meu?
- Sim, é o mesmo, aqui não brincamos em serviço.
- Pois olhe, é uma droga.
- Quer outro?
Toma novo gole e sente que a náusea passou.
- Não, pode deixar, está bom.
A moça alta passa por ele outra vez e se encaminha para a mesa mais funda do bar. Tino firma a vista e vê Cláudio: o mesmo terno branco de pernambucano próspero, o mesmo soriso idiota, o mesmo anel de ouro na mão que sabe fazer dinheiro e negócios escusos.
- Vou para cima, odeio o Cláudio e suas vagabundas.
Um momento de indecisão ao subir a escada. Irá esbarrar com o quadro - e o seu quadro é uma espécie de Selma às avessas. É sua melhor obra em quase vinte anos de pesquisa e trabalho. A única que realmente valeu alguma coisa, a única que fugiu aos padrões convencionais, às repetições. E agora está abandonada e imersa no bar sórdido onde só se pensa em trepadas, em imóveis, em negócios, em anedotas de barbearia.
Entre enfrentar Cláudio, seus anéis de ouro, sua prosperidade, suas mulheres de bundas confortáveis e complacentes, prefere a escada. Vai de olhos baixos para não ver o quadro. Ao atingir o patamar, faz a volta sobre si mesmo para dar as costas àquele retângulo onde as cores - pela única vez - obedeceram a seu instinto e a seus dedos. E tem a mesma sensação do aeroporto. Talvez tivessem substituído o quadro, muitos pintores gostariam de ter obra pendurada ali - e teriam bebida grátis para o resto da vida. A hipótese é viável, talvez o tivessem substituído, por outro de proporções iguais por causa da simetria local.
Embora de costas, Tino sente que o quadro ainda é o seu.
- É ele!
Como no aeroporto, não precisa pesquisar a certeza. Atinge o segundo andar e reconhece amigos na mesa mais próxima. Antes mesmo de ser atingido pela gargalhada com que o recebem - ele sabe que, com diferença de poucas horas, acabara de dar as costas a seu passado, a seu fracasso. Confusamente, sente-se livre agora, liberto de grades e muros e quadros e bocas e azuis e canções. Pesa menos, despojado está de si mesmo, e dentro dele brota, imaculado, o homem que durante anos guardou silenciosamente a vez de entrar em cena, para substituir o outro.
No escuro, ninguém percebe a troca. E ele está mais leve, como se tivesse ficado nu ao passar pelo quadro e ninguém reparasse em sua nudez. Ele não sente vergonha de sua nudez.
- Você não tem vergonha?
- Tanto tempo!
- Pensei que estivesse na Bulgária.
Os amigos - que amigos? - são os mesmos. As frases são as mesmas e mesmo é o rito geral.
- Sabem de uma coisa?
Tino fica de copo na mão, sem aceitar a cadeira que puxam para a mesa. Há o silêncio cansado, ninguém quer saber nada, esperam qualquer coisa para divertirem-se mais e Tino, diga o que disser, dará no mesmo, haverá risos, respostas inteligentes.
- Vão pra puta que os pariu!
- Já está assim?
- Você não é disso.
- Senta homem, depois ofende.
- Não me sento com cornos, com impotentes, com pederastas.
O garção pede que Tino fale mais baixo.
Aceita a cadeira e senta. Confere as caras, são as de sempre. Há um homem penetrado pelo escuro, no canto da mesa. Alguém acrescenta:
- Este é o Andrade, gênio da nova geração.
Apesar do escuro, percebe que o gênio ri, modesto.
- Faço o que posso - diz, estendendo a mão.
Tino cospe-lhe na mão. E antes que alguém se espante, cospe novamente em cima da mesa:
- Seus cornos! seus veados!
- Está bêbado.
- Tino pode beber à vontade que não fica bêbado. Ele está lúcido e lúcido é assim mesmo: um burguês que fracassou na pintura e agora banca o humanista. No fundo, é um corno de Deus.
O gênio da nova geração limpa a mão no guardanapo de papel.
- Já tinha ouvido falar de você. Disseram-me que era medíocre e malcriado. Mas não sabia que era idiota também.
Um conhecido sai de outra mesa e junta-se ao grupo:
- Sabem a melhor do Tino? Foi amante da sogra, viveu com ela mais de dez anos!
- Aquela dormiu com todo mundo, não é vantagem.
Tino olha e sente vontade de chorar, dizer em voz alta um ato de contrição aprendido na infância. Mas quem entenderia sua contrição? Quem entenderia seu ato?
Despeja pela goela o resto do uísque - o Campos enchera quase o copo e ele sente a ardência estranha no fundo do estômago, não almoçara, ficara em casa remexendo papéis, depois o aeroporto, não tivera fome nem pensara nisso.
- Porcos!
Um sujeito levanta-se:
- Venha, Tino, deixe de brincadeiras. Ninguém está zangado com você. Afinal, você é um artista, tem direito a excentricidades.
- Isso está superado - diz o gênio da nova geração. - O artista de hoje não pode ser o boêmio irresponsável e descomprometido do século passado. Há que haver uma consciência...
- Merda para a consciência de vocês todos. Não sou artista. Sou apenas um sujeito que perseguiu um objetivo e fracassou. Fracasso por fracasso, tudo dá na mesma.
- Mas...
O garção traz nova dose. Tino tem repugnância em beber mais álcool, o estômago recebera mal a dose anterior e a cabeça está vazia, suas palavras saem de uma caixa oca e ele não percebe se o que está dizendo faz ou não sentido.
Agora, o ouvido é o único órgão que funciona, ouve vozes distantes e próximas, perde noção do espaço e o riso da moça lá do fundo é mais próximo que a gargalhada de sua mesa quando o gênio da nova geração diz:
- O artista fica impotente aos quarenta anos!
- E Picasso?
- E Chaplin?
- E Goethe?
- E Leonardo da Vinci?
- O quê?
- Leonardo, sim senhor, quê que tem? O fato de ser pederasta não invalida a questão.
A porta lá embaixo, ao bater no batente, soa mais forte em seus ouvidos que a discussão imbecil:
- Vou-me embora!
Procura a carteira mas alguém faz gesto largo e generoso:
- Deixa isso para lá. Hoje quem paga é o gênio da nova geração.
- Custa caro ser gênio?
- No fundo, vale a pena.
- Mas Miguel Ângelo quando fazia o túmulo de Júlio II...
- A noiva do Oliveira é o melhor rabo da cidade. Está agora apaixonada pelo Guilherme.
- Guilherme?
- Aquele camarada que escreveu O Mosteiro de Tijolos de Feltro?
- É.
- Um obsceno. Não vale nada.
O gênio da nova geração é condescendente.
- Guilherme tem algum valor. O Mosteiro contém erros de palmatória mas possui força. Os outros romances são razoáveis...
- Você diz isso por especulação. No fundo, considera o Guilherme uma besta.
- Tino foi chamado de gênio quando começou.
- Isso é uma província! Todo mundo é gênio. Mas gênio é o Amaral: comeu a mulher do próprio pai.
- A mãe?
- Não, a madrasta.
- Então viva Tino que comeu a sogra!
Tino emborca a nova dose num só gole e se levanta de vez:
- Vocês são repugnantes.
- E você é um dos nossos, Tino. Durante muitos anos quem pontificou nesta mesa? E aquela história da velha do Valdomiro? Lembra-se, naquela noite nós saímos daqui às cinco da manhã.
O gênio da nova geração diagnostica:
- O que está se passando com Tino é natural. Tédio e repulsa pela mocidade. Está no ponto, agora, de fazer sua obra-prima.
- Tino jamais fará coisa melhor que o Movimento em Três Tempos.
- É um bom quadro. Foi comprado por um ricaço de São Paulo.
- Não. O quadro está no museu.
- Pois eu pensava que o quadro tinha ido para a Europa.
Tino já está de pé.
- Não mijo em cima de vocês porque vocês não são dignos de minha urina. Mas esse geniozinho de merda aí do canto tem razão. Vou fazer agora minha obra-prima.
- Retirar-se à vida privada?
- Casar com a empregada?
Tino recua e desce os primeiros degraus. Agora, está de frente para o quadro. Por um instante se surpreende de ter feito realmente um trabalho aproveitável. Há muito não pensava nele, mas apesar da bebedeira e da escuridão, percebe que em sua obra há movimento, o ritmo é excelente, “foi pena ter perdido a minha oportunidade” - o quadro revela um artista de possibilidades, não há dúvida, o tempo que separa autor-obra é tanto e tão denso que pode dizer para si mesmo:
- Eu me perdi por nada!
Levanta o pé, o mais alto que pode. Quer atingir o meio do quadro, mas não consegue. O pontapé pega na moldura e apenas um pequeno canto fica rasgado. O quadro entorta na parede.
E antes que alguém o contenha, agride e urra. As mãos que deram ritmo àquelas linhas, cores àqueles espaços - são as mesmas que entram pela tela e a mutilam. E rasga, e puxa e fura. O pó branco, remanescente de tintas ordinárias, arde em suas narinas. Finalmente o quadro cai: a moldura é pisada com raiva.
Bebera tanto que não ouvia mais nada ou o bar inteiro está realmente em silêncio?
Desce o restante da escada e percebe que todos estão de pé, olhando-o.
No escuro, as caras são irreconhecíveis e mudas. Muralha impenetrável e sólida, feita de sombras e testemunhos.
Abre a porta e recebe de volta o mormaço da rua. A carícia úmida do ar refrigerado fica para trás. Movimento em Três Tempos. Não haveria três tempos, nem movimento. Não haveria matéria daquela memória para mais ninguém.
Procuro as chaves e lembro que as joguei fora. Esperarei que Enedina volte. Não sei onde passar a noite e tenho a suspeita: não fechei a porta com a chave. E mesmo que a tenha fechado, há o recurso do porteiro. Ele tem chave da porta de serviço, em último caso vou acordá-lo, digo que perdi a minha e nem preciso dar satisfações - O apartamento é meu e tenho direito de entrar nele - com ou sem chaves.
Vomitei na rua - e fiquei lúcido instantaneamente. Comi alguma coisa depois, sinto-me bem, ao menos fisicamente. Por dentro estou cansado e, paradoxalmente, tranquilo.
Sim, a porta está fechada, o jeito é apelar para o porteiro. Ele não vai com a minha cara, não lhe dou dinheiro pelo Natal e trago, às vezes, mulheres para dormir comigo. Mas ele é empregado do prédio e funciona para isso, nada tem com a minha vida.
A cara de sua mulher é horrenda quando surge na porta semiaberta; descabelada e gorda como um pudim. Vai lá dentro e traz o molho de chaves.
- O senhor conhece?
Não preciso conhecer a chave. Ela está amarrada a um papel com a indicação do número do meu apartamento.
- É essa. Obrigado. Desculpe o incômodo.
Há muito tempo esta porta não é aberta. Enedina usa sempre a porta social - afinal, ela é alguma coisa acima de empregada. Gostaria de tê-la agora, seria bom encontrá-la na cama, amormaçada pelo sono, e possuí-la. Na realidade, estou ficando velho e preciso de um corpo ao lado do meu para as minhas noites vazias.
Deixei o apartamento desarrumado, andei mexendo em papéis, está tudo fora do lugar. Mais tarde, quando Enedina chegar, ela não desconfiará de que fugi desta prisão. Não tenho nenhum motivo para enganar Enedina - mas a traição que cometi, fugir da prisão a que eu mesmo me condenei - cria um vínculo entre eu e ela, além da carne, além do fato de ser ela minha empregada e de eu ser o seu patrão. Tenho agora um mistério para ela, alguma coisa que esconder de seus olhos ingênuos.
Afinal, ela pouco ligará, mas isso é importante para mim. Traí Enedina. E me sinto preocupado e comovido como quando traía Julinha. Esta, eu traía com outras mulheres, e tinha de tomar cuidados repugnantes para enganá-la.
Com Enedina não preciso cuidados. Enganei-a e sinto apenas ternura pelo fato de a ter enganado.
Enfrento o apartamento e arrumo o que posso - amanhã ela acabará o resto. Normalmente devia beber um pouco, mas as doses que tomei no bar me tiraram a vontade. A rigor, não tenho mais vontade nem prazer de beber. Não há sequer um motivo decente ou indecente para beber.
Amanhã vou à fábrica. Lá precisam de desenhistas, de mês em mês as modas passam e eles precisam inventar novos estampados, novos desenhos, novas cores. Tenho bossa para isso, e levo sobre os demais a vantagem da técnica mais sólida. Sempre recusei esse trabalho, mas foi um erro. Aceitava encomendas quando ficava apertado em dinheiro. Mas vendia um ou dois quadros, mandava a fábrica às favas e voltava à pintura. A fábrica, então, chamava outros, que acabavam se transformando em funcionários, com salários fixos, direitos, férias, aposentadoria, pensão para as viúvas, taxa de prevenção de acidentes de trabalho. A segurança. A segurança e a fábrica.
A fábrica
FÁBRICA
F Á B R I C A
Lembro dessa palavra numa crítica. Um teórico de São Paulo colocava restrições em minha pintura mas admitia que eu possuía “excelente fábrica”. Domínio técnico, segurança, pensão para viúva. Mas a minha arte não deixou pensões, nem serei viúva de mim mesmo.
Não serei viúva. Viúva é Selma e odeio viúvas. Nem sei por que esqueci esse pormenor: Selma é uma viúva. Hoje não deve ser mais, na certa casou, aquele homem que tomou o carro com ela deve ser marido, não tinha cara de amante, vi quando puxou a carteira para dar gorjeta ao carregador, escolheu a nota menor, se fosse amante tiraria qualquer nota.
Sou virgem. Homem virgem nunca profanado. Afinal, olhando tudo em conjunto, vejo que resisti às profanações.
Na infância, Rubens tentou me violar e eu lhe meti a faca nas virilhas.
Selma quis me profanar - mas eu não meti nada em Selma, mas a conservei distante, embora próxima. Dei-lhe corda e ela foi para longe, voltou - não é mais nada para mim. Corto a corda e ela que vá para onde bem entender.
Quanto ao Movimento em Três Tempos, este tentou me violar também, ficou suspenso sobre mim muitos anos, pronto a me devorar. Mas este eu destrocei, sem faca e sem virilhas, mas em agressão igual. Ou defesa igual.
E disso tudo resto eu, intato de meus escombros. Posso realmente começar alguma coisa, qualquer coisa. Posso fabricar a fábrica, ela não me mutilará, ela não me penetrará nem me engolirá. Eu é que escolherei a fábrica. Eu a terei.
Selma. Movimento em Três Tempos. Fábrica.
Selma, primeiro movimento; Movimento em Três Tempos, segundo movimento; fábrica, terceiro movimento.
Sou um geômetra, acima de tudo.
O dia está começando. Passei a noite em claro. A Terra deu uma volta sobre si mesma desde que acordei, na manhã de ontem, e li o telegrama: “Chegarei quinta-feira pela manhã pt Boac pt Selma pt”.
Velei, até agora. Fiz, também, uma viagem em torno de mim mesmo, e chego a outra ponta despido e nu, como feto que se liberta de sua placenta. Há aderências ainda, mas estas eu vomitei no bar e na rua.
O homem novo pode ir para a fábrica. As fábricas só deviam admitir homens novos. Que os homens velhos se refugiam em conventos, nas artes, no amor. Tudo velharia. O roteiro do homem novo é a fábrica. Salário, pensão, aposentadoria, prevenção contra acidentes, o amor na hora do amor, o sono na hora do sono, a morte na hora da morte, a salvação da carne em lugar da ressurreição da carne, viva o século 20.
E viva Enedina também.
Sinto seus passos no corredor. Ainda não são seis horas e ela já está chegando.
A lingueta da fechadura corre e ela me liberta. Na verdade, ela não me traz a liberdade. Inconsciente parteira, ela me abre a porta. E não ouvirá meu choro porque seus ouvidos são ásperos para entenderem a verdade do meu nascimento.
- Tudo bem?
- Tudo.
Enedina é uma cara assustada que passa os olhos pelo apartamento em busca de alguma coisa. Pergunto:
- Veio cedo hoje.
- Cedo?
Olha o relógio e se admira de não ser sete horas.
- Meu relógio deve estar adiantado.
Segue para a copa onde vai preparar café. Sua presença dentro de casa é reconfortante. Há um cheiro de mulher pelo ar e depois do café a tomarei em meus braços. Estou bem, fisicamente. Pouco de fome apenas. Pedirei que Enedina faça um pequeno almoço. Ontem não comi quase, e ainda por cima vomitei. Mas o enjoo passou e sinto-me bem. Na verdade há muito já estou preparado para enfrentar a vida nova, o homem novo. Talvez seja cretinice chamar de novo o homem que me acompanha há tanto tempo. Pode não ser uma classificação verdadeira, mas é estimulante.
- Ontem o senhor não comeu.
- Como é que sabe?
- Tudo que deixei na geladeira continua lá.
- Dormi o dia inteiro, só agora estou com fome. Aliás, você podia me fazer um bife, uns ovos, coisa rápida.
- Por que não pediu logo? Agora tome primeiro o café.
- Primeiro você. O almoço fica para depois.
Seguro-a pelos braços, num rito antigo que ela obedece passivamente. Mas desta vez há tristeza em Enedina. Mais tristeza que resignação. A cabeça está voltada para o lado e a puxo para mim. Estou sentado na cama e ela em pé. Encosta seu corpo em minha cabeça e eu a abraço pela cintura, deixando que meu rosto sinta o pulsar de seu ventre. Seus dedos acariciam meus cabelos - maquinalmente parece - percebo Enedina distante. Afinal, é natural que ela esteja cansada de servir para isso. Talvez goste de alguém e seja repugnante submeter-se a um homem decadente como eu. Ela nada suspeita do homem novo que acaba de nascer.
- Enedina, você é boa para mim. Gosto de sua cintura.
Aperto sua carne entre meus braços.
- Vem!
- Hoje não.
- Por quê?
- Não estou disposta.
Tenta se livrar mas eu a seguro com força.
- Pela última vez, vem! Depois não a incomodarei mais, reconheço, tenho sido grosseiro com você...
- Não é isso.
Procuro sua boca. Nunca a beijara, não sentira necessidade disso antes. Ela se surpreende com o beijo e me aceita. Estamos deitados agora, não tiramos a roupa e busco em sua boca o sabor novo que há muito não sinto em mulher nenhuma. Enedina geme, e é doce beijar Enedina.
- Vem!
De repente, ela me toma a mão e a beija com afago.
Fico sem entender:
- Quê que há com você?
- Nada.
Ela procura se aprumar, mas não deixo que se levante. Olho-a nos olhos. Há desejo e tristeza nela.
- Quê que há hoje?
- Nada. Não tenho nada com a vida do senhor.
- Mas quê que eu fiz de errado com você? “Isso”? Mas isso nós já fazemos há muito tempo.
- O senhor me mentiu.
- Eu?
- Sim. Está no seu direito, pode mentir para quem quiser, inclusive para a sua empregada, que é paga para o serviço geral. Geral, incluindo “isso”. Mas não precisava fazer o drama de ontem.
- Que drama? Ficar preso em casa o dia todo? Isso incomodou a alguém?
- Incomodou. Vim aqui pela noitinha para lhe fazer o jantar e não o encontrei. Para que aquela cena das chaves, ficar preso, para quê?
Abaixo a cabeça.
- Enedina, de agora em diante muita coisa estranha vai acontecer comigo.
Caio para o lado e esqueço de tudo. Sinto a sua carícia em meu peito e percebo que ela quer alguma coisa.
- Sabe? Vou trabalhar numa fábrica. Ganharei dinheiro certo, não atrasarei seus pagamentos e haverá mais conforto em casa.
- Nunca reclamei. O senhor tem sido bom para mim.
- Podia ter sido melhor.
- Resolveu aquele problema do dinheiro?
- Que problema?
- Aquele que me falou ontem.
Já não lembrava mais.
- Foi mentira, Enedina. Chega de mentira.
O desejo vem subitamente e a possuo com simplicidade, como se fosse um direito. E um prazer. Enedina corresponde e isso é raro nela, poucas vezes sentiu prazer comigo.
Beijo-a na boca e noto que isso a faz feliz.
Olho-a nos olhos, novamente, após o prazer:
- Quer vir morar comigo?
- Aqui?
- Sim. Como... como se fôssemos casados...
- Isso é loucura! O senhor está maluco!
- Preciso de você, Enedina. Quero arrumar minha vida e você é necessária para isso.
- Mas parece coisa de português: casar com a empregada!
- Não será casamento, moraremos juntos apenas...
Sinto-me mau.
- Quer casar mesmo? Sou viúvo, você é solteira, acho que podemos, embora o casamento nada acrescente à nossa vida.
Ela está tonta.
- Quê que o senhor sabe de minha vida para me propor isso?
- Nada. Sei que você é boa, me satisfaz na cama, é minha amiga, podemos viver bem, com conforto. Estou envelhecendo e preciso dessas coisas.
- Sabe que eu tenho um filho?
Não sabia e faço força para que ela não perceba que estou admirado. Com algum esforço a tranquilizo:
- Não tem importância. Pode trazê-lo também.
E depois de hesitar:
- Quem é o pai?
Há hesitação também em Enedina. Vai falar qualquer coisa mas vira para o lado e começa a chorar. Nua como está, suas espáduas tremem no ritmo do choro - e eu a procuro para mais um beijo. Ela tenta esconder a cara mas não consegue. Beijo-a, e sua boca tem gosto de lágrimas.
Há ternura em mim por aquelas lágrimas. Há inocência em sua boca e fogo em seus sentidos nessa segunda posse. Descubro que havia perdido o melhor com ela, sempre me contentara com a primeira vez que era ao mesmo tempo a última. Ela corresponde melhor dessa vez, suas lágrimas terminam secando ao fogo com que se entrega e ama.
- Meu amor!
Há muito tempo não ouço isso e sinto vergonha, não a de possuir minha empregada, mas a de ser amado em silêncio por ela.
- Vamos casar?
Ela me beija e uma terceira vez nos deixa em letargia, dormimos abraçados, o suor comum secando em nossas peles, nossas bocas juntas e uma segurança tranquila adormecendo meus sentidos e pensamentos.
Hoje, ela veio para ficar.
Trouxe suas coisas, eu mesmo mandei um carro buscar. Enedina tem boas roupas, bom gosto, sempre ganhou bem, esteve em casas de bom tratamento.
Está envergonhada ainda, e evita meu olhar. Depois de ter trazido suas coisas, foi em casa de uma parenta buscar o garoto.
Aproveitei e fui à fábrica. O gerente ficou satisfeito, assinei contrato cheio de estampilhas, vou ser descontado para os Institutos, e o ordenado acabou sendo maior que o pedido. Viverei bem e é provável que vá morar em apartamento maior e mais confortável. Fisicamente, já estava preparado e exigindo essa nova vida. Só precisei demolir aqui, dentro de mim.
Enedina veio com o garoto, finalmente. É magrinho, de quase cinco anos. Não fiz perguntas, mas não sei onde Enedina arranjou esse garoto. Ela está comigo há cinco anos e nunca faltou ao serviço. Não me lembro de sua gravidez. Bem verdade que ela passou uns meses fora, na Bahia parece, e me deixou aquela loura espalhafatosa. O tempo que ela ficou fora daria para justificar o filho: quase sete meses.
Sim, ela foi à Bahia para ter a criança longe dos outros. Ou perto do pai. Mas assim sendo, quem seria o pai? Pela época, eu também poderia ser pai do garoto. Ela já havia sido minha várias vezes e nunca tomava cuidados. Menti-lhe dizendo que era estéril, mas ela acreditou nisso.
O pensamento me intranquiliza. Olho bem o guri. É triste e encabulado como o garoto que estava encubado em mim, à espera do adulto que não houve. Por fidelidade ao garoto que fui, tentarei ser agora o adulto que faria sentido.
Enedina arruma suas coisas. O garoto vem para o meu lado e me olha com desconfiança. Tento ser amável mas temo que ele estranhe e comece a berrar. Deixo-o num canto, atarefado em destruir os pincéis que jogarei fora.
Olho-o mais uma vez e vejo que é parecido comigo. Mas é impressão passageira. É que todos os meninos tristes se parecem um pouco comigo.
Carlos Heitor Cony
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