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MÉDICO DE HOMENS E DE ALMAS-P.3 / Taylor Caldwell
MÉDICO DE HOMENS E DE ALMAS-P.3 / Taylor Caldwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MÉDICO DE HOMENS E DE ALMAS

Terceira Parte

 

"A vida pertence a Deus, pois a atividade da mente é vida e Ele é essa atividade. A pura auto-atividade da razão é a mais abençoada e eterna vida de Deus.

Dizemos que Deus vive, eterno e perfeito, e que a vida contínua e eterna é de Deus, pois Deus é a vida eterna."

ARISTÓTELES

A razão divina como primeiro móvel

 

 

"Sara bas Eleazar a Lucano, filho de Diodoro Cirino:     "Saudações, meu mais querido amigo, meu único amado. O Dia da Expiação[1] terminou, e eu me regozijo na paz de Deus, sabendo que Ele me perdoou e que estou inscrita no Livro da Vida. Uma bela tranqüilidade pousou sobre Jerusalém. Da minha janela posso ver o Templo, brilhando como um escudo de ouro à luz da lua, e a cidade faísca sem cessar, como um campo de vaga-lumes. As colinas são de cobre, o vento um hálito de lagar de vinho e, lentamente, abaixo de mim, as folhas amarelas tombam de uma árvore como pequenas chamas. As mulheres estão no quintal, tirando água da cisterna, e suas vozes são calmas. Das janelas e portas da hospedaria vem o cheiro forte de carneiro assado, de pão, de especiarias e o faiscar das lâmpadas, pois que o homem de novo foi perdoado por Deus e há um tranqüilo regozijo, já que todos conhecem Seu amor e Sua promessa dos tempos.

       "Ah! Se ao menos estivesses aqui, a meu lado, segurando minha mão e gozando desta paz! Se ao menos viesses uma vez a Jerusalém! Contudo, sempre quando falo assim de ti, desvias os olhos dos meus, como se temesses um terror na cidade. Não compreendo isso, mas recordo as últimas palavras de nosso querido amigo, José ben Gamliel, antes de morrer, há dois anos, à vista do Templo: "um dia Lucano virá ter aqui e encontrara Aquele que está procurando em todos os dias de sua vida."

“Rezei hoje para que tivesse júbilo na alma e pela tua saúde e felicidade”. Rezo assim todos os anos, durante esses longos sete anos em que nos conhecemos. Por muitas e muitas vezes tu me imploraste que me casasse e te esquecesse; não há uma só carta que me escrevas que não contenha essa admoestação e essa súplica. Mas como pode uma mulher que ama esquecer aquele a quem ama? Como pode uma fonte encher-se de água, se a sua nascente secar? De onde virá o vinho, se a vinha perecer? Pedir-me que me deite com outro homem é pedir que degrade meu espírito, que me entregue como mulher dissoluta, mesmo que antes de tomar a mão de um estranho eu passasse sob o dossel nupcial. Minha alma está casada com a tua.

“Queridíssimo bem-amado, encontramo-nos pela última vez em Tebas e embora tuas palavras fossem de recusa eu vi a luz em teu rosto quando me olhaste”. Conversamos baixinho, sob as sombras do teu jardim, mas o que falamos em nossos corações não eram as palavras de nossas almas e de nosso entendimento. Por que não podes esquecer tua amargura contra Deus? Disse-te freqüentemente, como o disse José ben Gamlid, que Deus criou o homem perfeito e integral, sem a ameaça da doença e da morte. Mas os homens desobedeceram a Deus e com a sua desobediência, trouxeram essas coisas para o mundo. Foi o homem quem se exilou da alegria, quem atraiu para ele próprio o espírito do mal, quem fez com que a maldição caísse sobre a terra.

"Aonde quer que eu vá, através de todas as cidades e portos, ouço o teu nome, como o de um grande médico. Sei que não te importas com isso, que desejas apenas aliviar a dor, dar conforto, retardar a morte. Apesar disso, é uma felicidade para mim Ouvir-te aclamado pelos pobres, pelos abandonados, pelos escravos e pelos oprimidos. Falam de ti nas praças dos mercados.

“Embora nunca o tenha conhecido, senão através de tuas palavras, lamentei contigo a morte de teu velho amigo e professor, o médico Keptah”. Rezei pela alma dele hoje, pois Deus disse que é bom rezar pelas almas dos mortos que dormem na terra. Sua memória é para nós uma bênção.

“Às vezes, quando estou mais triste, recordo-me de tuas histórias sobre Roma e rio alegremente”. Compreendo que no mundo de hoje pouca coisa existe que desperte o desejo de rir, pois a Pax Romana disfarçada em paz mundial, trouxe opressão, sofrimento e exploração a todos os povos do mundo. Poder é corrupção, e está na natureza do homem insultar o que domina e o desejo de dominar vive em nós, como negra enfermidade.

“Regozijo-me por não teres sofrido mal algum, meu querido, quando visitaste Roma uma ou duas vezes por ano, durante todos estes anos”. Como eu gostaria de ver tua bela mãe, tua encantadora irmã, teus irmãos, e todos os teus amigos. Posso rir durante horas quando estou lendo a respeito do teu antigo preceptor, Cusa, o esperto velhaco.

“Tive uma experiência estranha, embora quando eu a contar tu possas nada ver de estranho nela, a não ser os pensamentos sentimentais de uma mulher de vinte e quatro anos, que precisa encher sua vida solitária com prodígios, imaginações e fantasias”.

“Jerusalém, como sabes, está cheia e rodeada de peregrinos, que vêm de toda a Terra de Israel nos dias santificados”. Os ricos podem encontrar acomodações confortáveis nas hospedarias e nas tavernas ou nas casas de amigos, quando comemoram o Ano Novo em agradável companhia, em mesas festivas e em tranqüila conversação. Mas os pobres procuram as brechas que possam encontrar na cidade abarrotada ou acampam fora das grandes muralhas, em tendas ou cavernas. Freqüentemente eu caminho entre os amontoados de centenas de peregrinos que ficam para fora das portas, observando suas vestes toscas, seus pés nus, suas barbas emaranhadas, suas crianças que choram, seus bandos de cabras, e ouvindo suas vozes marcadas pelos dialetos da Galiléia e de Samaria, de Moab, Perea e Decápolis. Divertem-se no Ano Novo e suas faces morenas mostram-se piedosas e olham para o Templo com amor apaixonado, observando a mais insignificante das Leis com muita gravidade. Dormem ao uivo agudo dos chacais e sua comida é pobre, o vinho azedo. Ainda assim, são felizes, e a alegria e as preces, nas vertentes empoeiradas das colinas para alem das muralhas, têm significado mais profundo e maior ressonância do que as que ouvimos nas casas-grandes, circundadas de jardins, dentro da cidade. Certa vez tu observaste, amargamente, que os pobres rezam com maior paixão porque não têm prazeres, apenas Deus. Nisso eles são, realmente, abençoados, pois se um homem não tem Deus, nada tem, e se tem Deus, então tem tudo o mais com Ele em seu coração.

“Ao crepúsculo, no dia do Ano Novo, os peregrinos amontoaram-se nas ruas estreitas e tortuosas de Jerusalém, seus filhos nos braços ou a segui-los de perto, e eram um rio quente e multicolorido, movendo-se sob nuvem prateada de pó”. Desci da minha liteira, num impulso, e acompanhei-os para além das portas, onde seus repastos frugais estavam servidos em toalhas estendidas no chão. E a lua levantava-se sobre eles e abrilhantava suas fogueiras. Muitos foram os convites que me fizeram, a fim de que me reunisse a uma família para compartilhar do pão, do vinho ou de um pouco de carne, pois, como eu estava humildemente trajada, pensavam que fosse uma jovem mulher sem família, ou que me tivesse perdido entre as caravanas aglomeradas. Ouvi as canções deles, seu riso, as vozes de seus filhos, que corriam e tinham fome, os gritos de seus animais, suas orações. De repente, oprimiu-me uma solidão, uma nostalgia. Fiquei de parte, junto de uma árvore retorcida, olhando para as fogueiras que estalavam nas vertentes das colinas e olhando seus reflexos naqueles rostos simples. Foi então que um jovem aproximou-se de mim, vestido com um manto azul, rústico, os pés metidos em sandálias presas com cordas ásperas.

“Aquele rapazinho não poderia ter mais de dezoito ou dezenove anos”. Ficou a meu lado, solenemente alto, e sorriu-me. Instantaneamente, parecemos ficar a sós e infinitamente solitários, juntos. Era como se um círculo de silêncio nos rodeasse, e vozes e gritos diminuíram, fazendo-se como que um sonho. Havia no rosto dele profunda sabedoria e delicadeza, ternura imensa, como se compreendesse que eu não tinha ninguém e tivesse piedade de mim. Trazia na mão um copo de barro, cheio de vinho, que me ofereceu. Tomei-o e bebi-o, tão simplesmente quanto ele o dera a mim. Imediatamente, meus olhos encheram-se de lágrimas e os soluços sufocaram-me e eu desejei contar àquele jovem todo o meu sofrimento, meu exílio e minha tristeza. Ele tomou o copo vazio da minha mão, enquanto eu tentava controlar-me. Esperou até que eu me visse mais segura, e depois me disse, na mais doce e mais forte das vozes "Sara bas Eleazar, eleva teu coração e seca tuas lágrimas, pois Deus está contigo e tu não estás só."

“Fiquei atônita e muda”. Como sabia ele meu nome e a tristeza do meu espírito? Sorriu-me profundamente e uma fogueira próxima inflamou-se e vi seus olhos azuis, que se pareciam a estrelas infinitas. Senti que ele tudo sabia, não só a meu respeito mas a respeito de todo o mundo, e que nele havia uma paz para além de qualquer imaginação, para além de todo o amor e esperança.

“As lágrimas cegaram-me, e quando eu as enxuguei e meu coração deixou de estremecer o jovem se fora”. Cheguei a pensar que tinha sonhado aquilo, mas o gosto de vinho estava em meus lábios. Súbita e horrível sensação de perda se apoderou de mim e eu o procurei entre os peregrinos mas não tornei a vê-lo. Não pude dormir, naquela noite, mas, a cada vez que choro, um conforto me vem, que não é conforto vindo de homem.

“Chega”. Mesmo a lembrança dele deixa-me sonhadora e dá-me uma sensação de alegria. Seria um anjo, vestido humildemente, como eram os anjos que Abraão abrigou em sua tenda? Gostaria de acreditar nisso, quase acredito nisso. Agarro-me à lembrança do rosto dele.

"Estou enviando esta carta para Atenas, para tua casa, onde deves permanecer durante mais algumas semanas. Saúdo-te agora, meu querido Lucano, com todo o amor do meu coração e do meu espírito, e penso em nosso próximo encontro. E um destes dias, em tuas buscas de meu irmão Arieh, hás de encontrá-lo. Agora ele tem nove anos, e tudo em mim diz-me que está vivo e que um dia será restituído aos braços de sua irmã e de seu povo. Deus esteja contigo."

 

Lucano tinha, de inicio, refletido na terra de seu povo. Grécia, esperando encontrar ali um lar. Mas depois de algum tempo, a amarga certeza lhe veio de que também ali era um estrangeiro e de que, na verdade, não tinha lar em parte alguma. Nascera em Antioquia, e Antioquia não fora seu lar; vivera nas proximidades de Roma, e vira-a ocasionalmente, mas ali também era um estrangeiro. Visitara todos os portos e cidades ao longo do Grande Mar e tivera casas pequenas em muitas delas, quando deixava os navios, e ainda assim em parte alguma possuía um lar, gozava da companhia de amigos ou tinha paz. Os desgraçados, os humildes, os pobres, os abandonados e esquecidos, os escravos, os miseráveis pequenos mercadores dos bazares e lojas abençoavam-lhe o nome e beijavam-lhe as mãos e os pés. Mas era um estrangeiro, sempre um estrangeiro em terra estranha, e embora soubesse muitas línguas, era como se um estranho falasse com ele. Suas únicas satisfações estavam em confortar e curar, e nas cartas que recebia de sua família e de Sara bas Eleazar. Uma inquietação terrível e uma ansiedade dolorosa, bem como sensação de inanidade, estavam sempre presentes nele, dando-lhe a sensação de alguém que procura água no deserto.

Três anos antes comprara uma pequena casa, que ficava próxima aos arredores de Atenas. Quando voltava para sua casa de Atenas ou para suas outras casas, não era como se voltasse para um ponto que lhe fosse familiar, com vozes e jardins familiares, mas como um viandante, cansado e detendo-se apenas por uma noite.

Ali estava a terra de seus pais, mas não era a sua terra, embora o esteta que nela vivia se regozijasse com sua pura beleza luminosa, suas Planícies ossudas, suas colinas prateadas e faiscantes, suas pedras reluzentes, seus mares de azul intenso, seus telhados rosados ou de leve tom castanho, sua história inscrita em mármore, seus templos brancos, seus carvalhos empoeirados, seus loureiros, oliveiras e murtas, seus vinhedos sob o céu brilhante, seu glorioso Partenao[2] elevando-se nobremente na Acrópole[3] como uma coroa de pedras preciosas. Ali estava a terra de Hélio[4], a terra de Demóstenes, de Péricles[5], de Homero, de Fídias, de Sócrates e Platão, de toda a ciência e arte, graça e poesia, da própria alma civilizada do homem, da fronte calma dos deuses, do Olimpo. Ali, a lei e a justiça tinham colocado os pés poderosos no mármore e naquela atmosfera seca e adstringente se haviam desdobrado as asas das deidades, as filosofias. Ali os oráculos[6] falavam, e as frotas de Jasão[7] paravam em cada porto. Ali, naquela terra, o heroísmo tinha feito sua estrada, com um escudo igual à luz e uma espada que se parecia ao corisco, e ali as montanhas fixavam seus olhos em Maratona[8] e as Terrnópilas[9] ainda vibravam com a lembrança daqueles poucos que haviam derrotado as hordas dos persas. A glória mostrava-se na fronte da Grécia, para que todas as cidades a vissem, e jamais seria apagada.

Aquela Grécia moderna não era a Grécia de Péricles, mas continuava a viver como sonho imóvel, eterno e ainda não-imitado. E ali, como sempre, Lucano era um estrangeiro, preparando suas poções, solitário, anônimo, a não ser para os pobres e para os abandonados, cultivando seu jardim, no qual plantava flores e ervas, bebendo seu vinho a sós, preparando seus repastos frugais com suas próprias mãos, lendo, meditando, escrevendo suas cartas e observando as estrelas. Quase sempre ao amanhecer, quando o pálido sol mal atirara seus raios fracos sobre Atenas e a cidade apenas começava a mover-se, Lucano passava pelo Templo de Teseu[10] e subia a longa escadaria branca que levava ao topo da Acrópole e ao Partenao. Ali, sozinho, errava entre a colunata onde Sócrates ensinara e passava com delicadeza a mão sobre as colunas dóricas que pareciam de prata à luz primeira do sol. Fixava os olhos respeitosamente nas estátuas aladas que pareciam prontas a voltar para o espaço vazio e reluzente e ficava de pé diante do frontão ocidental do templo de Zeus, ou movia-se através da cella para admirar a imensa estátua de Atenas com seu grande elmo e sua imponente e nobre face. Errava dali para o frontão ocidental, a fim de se maravilhar com o grupo de Fados reclinados, em seus delicados drapejamentos de mármore, e que se pareciam mover à brisa seca e luminosa. Como médico, pensava na genialidade do escultor que esculpira a figura reclinada de Ilisso no frontão ocidental e que dera ao alabastro o aspecto de carne. Ali, a sabedoria tremia na pedra e a beleza pusera sua mão nas sombras luzentes dos baixos-relevos, no corpo prateado, no rosto grave e no casto seio, como no perfil imperial e nos membros imaculados. Ali havia silêncio, mas presenças imortais podiam apenas ser observadas para além das fronteiras dos olhos, como um coro translúcido, e toda aquela reunião poderosa esculpida em mármore esperava apenas por algum chamado misterioso para se movimentar em uma vida igual à dos deuses, para encher os ouvidos com imortais canções e vozes sonoras. Por fim, a fria turquesa do céu erguia-se entre        as colunas brancas, pintadas e nítidas, e os mantos das cariátides[11] tornavam-se de ouro.

Ali, Lucano sentia-se menos solitário do que entre homens. De pé entre as estátuas, vestido de branco, era uma delas. Movendo-se entre elas, era como se tivesse sido a primeira a acordar. No meio da beleza, do solene heroísmo e da gelada grandeza, podia esperar de novo que, assim como o homem criara tudo aquilo, havia uma possibilidade remota de que os homens se tornassem homens uma vez mais, falando com majestade e poesia, revelando segredos da eternidade. Seus passos ecoavam entre as colunas e ao longo das colunatas e às vezes, enquanto andava, quase acreditava ter ouvido passos mais fortes atrás dos seus, passos de pés heróicos, que tinham descido pelos frontões para o chão branco e reluzente.

O sol tornava-se de um ouro mais brilhante e a cidade, lá embaixo, movia-se visivelmente, os telhados róseos ou de um amarelo-pálido movendo-se dentro da luz, e vozes inquietas e imperiosas levantavam-se da Acrópole como um vôo de pássaros alvoroçados. Sua solidão voltava então e ele fugia do Partenao.

Por que não era possível ao homem, quando atingia as culminâncias da glória, mantê-la? Por que devia ele tombar do céu? Seria porque mesmo nas alturas ele cometeria as loucuras e os crimes que levam inexoravelmente à extinção? Tucídides[12] escrevera: "A espécie de acontecimentos que uma vez teve lugar, terá lugar novamente, pelas razões da natureza humana." Ali é que estava a tragédia.

Lucano sabia pela sua inquietação crescente, que em breve estaria a caminho outra vez. Dentro de duas semanas devia aceitar o posto de médico em um navio que fazia rota entre Creta e Alexandria, e consentira em se empregar assim durante três meses. Procuravam-no muito, não só pelos seus poderes curadores mas por cobrar honorários pequenos. Sempre distribuía aquilo que ganhava entre a tripulação quando se despedia.

Certa manhã, descendo do Partenao e sentindo aversão ao pensar no retorno a sua casa solitária, que ficava no fim do Caminho Panatenaico, meteu-se entre a multidão da Agora e errou por entre Stoa de Átalo, fervilhante de homens, ruído, comercio e lojas. Os pequenos gregos negros eram mais ativos e mais efervescentes do que os romanos e muito mais astutos, muito mais alegres e charlatanescos. Roubavam com ares modestos em suas vinte e uma pequenas lojas, ao fundo dos passeios e colunatas. Seus deuses eram mais coloridos e pretensiosos, pois ali não prevaleciam as severas leis romanas de valores; ainda assim, suas mercadorias tinham encanto. Como sempre, mesmo naquela hora matinal, quando as lojas se estavam movimentando e os mercadores ruidosamente andavam por ali, abrindo portas e espanando suas mercadorias, um orador fervoroso já estava sobre a plataforma, arengando para as turbas indiferentes. Era um velho, de barba grisalha e revolta, e com um bastão nas mãos. Lucano parou para ouvir suas palavras incoerentes. Ele gritava, sacudindo o bastão e lacerando a barba:

- Arrependei-vos, arrependei-vos! O Reino de Deus está próximo!

O homem devia ser judeu, pois eles estavam sempre exclamando essas palavras, que ninguém ouvia. Lucano olhou para a impressionante biblioteca pública e lembrou-se de devolver alguns livros antes de sua viagem. Homens e mulheres começavam a subir os degraus para as portas abertas. Jovenzinhas, vestidas com trajes de um escarlate brilhante, ou amarelos, ou azuis, haviam-se reunido na casa da fonte para encher seus jarros. Tinham vozes como as dos papagaios, enquanto trocavam tagarelices e riam e empurravam-se para obter posição da fileira dupla. E agora havia o tribunal, muito solene, e declarando, com suas amplas colunas e arcos, que a regra da lei era a que regia a humanidade civilizada e não a regra dos homens. Lucano sorriu, cinicamente. Fixou os olhos com frieza sobre os dois legionários romanos que estavam de sentinela às portas de bronze. Onde o puro poder existia não havia lei, a não ser a lei da força. Ouvia músicos ensaiando no odeum, para os concertos e representações do dia. Parou por um momento a fim de olhar a casa redonda, onde os burocratas acocoravam-se e vomitavam suas opressivas regras, na forma imemorial de todos os homens maus e opressores. Uma enorme procissão de devotos começava a subir a Acrópole, para honrar Palas Atenas, levando pombas que se debatiam em seus braços. Lucano desviou-se para o lado, a fim de deixar que a procissão passasse, e ao olhar para o rosto perturbado dos fiéis sentiu de novo sua velha e crônica tristeza.

Agora, a cidade estava inteiramente viva e ruidosamente ensurdecedora, o céu pesado e azul, polido de sol e sem uma nuvem. O calor soprava pelas ruas e das colunas próximas. Que significavam todas aquelas atividades, aquela veemência, aquelas rápidas idas e vindas, aqueles pés velozes e determinados, aquele comércio, aquelas moças risonhas, aqueles mercadores vociferantes? Um grupo de advogados, vestidos de branco e com rostos solenes, subiu os degraus do tribunal, conversando em voz baixa, como se suas preocupações contivessem toda a vida e toda a morte. Era maravilhoso acreditar que o próprio ser tem significação, coisa que ele não tem. Mas que aconteceria ao mundo se os homens cessassem de acreditar que sua existência tinha alguma importância? São eles mais sensatos do que eu? Pensou Lucano, inquieto. Passou pelo Templo de Heléstion[13], o teto de musas vermelhas brilhando como imensos rubis dentados sob o sol furioso.

Caminhara muito, estava cansado e com fome e desejava estar em sua casa silenciosa, em seu jardinzinho com o tanque cheio de lírios-d'água, cor-de-rosa, a fazer sua primeira refeição com leite de cabra, pão escuro e mel. E ali estava o mercado de escravos, os mercadores já arranjando da melhor maneira sua mercadoria humana. Lucano desviou os olhos, nauseado como sempre; tinha por hábito passar por aquela alta plataforma de madeira, e evitava olhar para os escravos, pois não podia suportar aquela agonia.

Por alguma estranha razão sentia, agora, um peso nos pés e um grande cansaço, e parou abruptamente diante da plataforma. Os mercadores estavam repreendendo e estalando chicotes; uma mulher soluçava, um homem suplicava, uma criança chorava. Ali estavam expostos à venda os que tinham ficado cobertos de dívidas, os que não tinham lar e ofereciam-se como escravos, os que transgrediram alguma lei insignificante e alguns criminosos. Três bonitas jovenzinhas, de rostos morenos e olhos grandes e negros, vestidas lindamente, estavam sendo arranjadas em grupo coquete, sobre almofadas de seda carmesim. Não se sentiam absolutamente impressionadas; passavam entre elas uma vasilha de doces e olhavam os compradores que se aproximavam, arqueando as sobrancelhas. Enquanto durasse a sua beleza, estavam certas de ter boas casas, muitos agrados e mimos. Atiravam para trás seus longos cabelos negros, alisavam os pescoços e murmuravam entre elas numa língua estranha, rindo de seus próprios e divertidos comentários. Estavam sentadas na plataforma, afetadamente cingindo ao corpo as suas vestes, de forma a mostrar bem todas as curvas das pernas, das coxas e seios, sob a fazenda diáfana.

Os mercadores ainda não tinham muito que vender, pois era cedo demais. Algumas mulheres rechonchudas, evidentemente esplêndidas cozinheiras a julgar pelas panelas arranjadas a seus pés, algumas crianças nos braços de moças apavoradas e chorosas, alguns jovens que não tinham qualquer graça ou força particulares, um velho ou dois, e um grupo de prisioneiros carrancudos. Lucano começou a mover-se, mas o cansaço permaneceu, e ele ali ficou. Atraiu a atenção de três bonitas moças, e as vozes delas ergueram-se, animadas, pipilantes. Um mercador correu para ele e agarrou-lhe o braço:

- Senhor, exclamou. - Olha para estas moças, virgens vindas de Arábia! Irmãs! Não encantariam tua casa? Todas sabem tocar citaras e outros instrumentos para enfeitiçar tuas horas! Todas sabem dançar como ninfas!

Lucano sacudiu o braço daquele aperto. As moças contemplavam-no com arrebatamento e batiam as mãos. Estavam atraídas pela sua aparência.

- Apolo! Gritou o mercador. - Estas são as tuas Graças! E o preço é ridiculamente baixo para elas todas!

- Não estou interessado disse Lucano.

O mercador curvou-se e disse-lhe ao ouvido, com ares entendedores:

- Senhor, tenho um rapaz bonito e gorducho, de só dez anos, que vem também da Arábia e foi castrado...

Lucano voltou-se a meio para ele, cheio de poderoso impulso de atirá-lo ao chão com um golpe. Mas, naquele momento, ouviu o ressoar de correntes, um grito e uma bofetada, e outro mercador conduzia um homem para a plataforma e Lucano virou-se para olhar, o rosto já suando de cólera. O escravo estava literalmente vestido de correntes, que pendiam e tilintavam de seus punhos algemados e terminavam em argolas de ferro em torno de seus tornozelos. Ninguém, a não ser um perigoso bandido, era assim acorrentado. O chicote do mercador estalava por sobre o corpo, as pernas e os ombros do homem, mas ele movia-se com dignidade, como se não sentisse dor e não estivesse absolutamente consciente do lugar onde estava.

Ali estava, agora, as correntes brilhando à luz ardente do sol. Achava-se completamente nu, e a pele era de um castanho escuro, lustrosa e brilhante como seda. De ares régios, soberanos, muito alto, peito semelhante a dois peitorais unidos de uma armadura de bronze, com músculos ondulantes e pernas e braços maravilhosamente bem-feitos, ele contemplava o céu, com expressão remota e imutável. As feições eram negróides, ainda assim majestosas. Usava o cabelo preto e frisado em duas tranças curtas, torcidas juntas. Um anel de ouro fora passado através do septo de seu nariz. Seus olhos pretos brilhavam ao sol como dois poços.

Lucano aproximou-se mais da plataforma, fascinado. Soube, com Instintivo conhecimento que, a despeito das feições e da cor, aquele homem não era criatura da selva. Era um soberano; ignorava todos em derredor, mas não pela cega ignorância de um animal. Os olhos grandes e reluzentes irradiavam sofrimento mas um sofrimento tranqüilo e resignado e, ao mesmo tempo, inteligente. Então, ele viu Lucano, e os dois jovens olharam-se em silêncio, um do alto da plataforma, outro do chão ardente.

O mercador, vendo aquilo, agarrou de novo o braço de Lucano:

- Senhor! Muito barato: Absurdamente barato. Um escravo forte, que, se for conservado cuidadosamente acorrentado, ganhará muito bem sua manutenção. Olha para estes músculos! Olha para estas mãos, para estas pernas! Senhor, tenho vergonha de dizer-te o preço!

O escravo olhava para Lucano e um misterioso entusiasmo, uma ansiedade, brilhou em seus olhos. Deu um passo para a frente, e as correntes rangeram. Havia uma busca apaixonada na face do escravo, agora, uma súplica, uma esperança.

- Seu nome disse o mercador, esfregando suas mãos levantinas - é Ramo.

- Que fez ele? Murmurou Lucano, elevando os olhos para os olhos apaixonadamente indagadores do escravo.

O mercador tossiu e coçou o queixo barbudo.

- Bem... Bem... Nada, senhor. - E acrescentou, confidencialmente: - Para te dizer a verdade, Apolo, ele é mudo. Não pode falar.

Veio para Atenas há algum tempo, caminhou pelas ruas, espiou o rosto das pessoas. Foi encontrado, esse pagão, no próprio Partenao, movendo-se entre as estátuas, invadindo os templos. O vigia viu-o, durante a noite, caminhando à luz de tochas, às vezes levando uma lanterna.

Dizem que tinha braceletes e tornozeleiras de ouro, mas acredito que seja mentira, pois tudo quanto tem é essa argola de ouro no nariz. Foi levado diante da justiça, interrogado por intérpretes em muitas línguas, e sempre sacudiu a cabeça. Deram lhe um estilo e uma tabuinha para escrever, mas ele sacudiu a cabeça. Naturalmente é um bárbaro, vindo de alguma selva longínqua ou do deserto.

- Como sabes, então, que ele se chama Ramo? Perguntou Lucano. Aproximara-se um pouco mais da plataforma e seu coração batia, em pesada compaixão.

O mercador ergueu os ombros.

- É o nome que o povo de Atenas lhe deu, pois foi uma curiosidade pelas ruas, durante muitos meses. Bandos de crianças zombeteiras seguiam-no.

- Então? Indagou Lucano, quando o mercador cessou, abruptamente, de falar.

- Bem, agora, senhor, sabes quanto são supersticiosas as turbas. Começaram a dizer que ele tinha olho mau. Repararás quanto são estranhos e luminosos os seus olhos. As mulheres começaram a dizer que o olhar dele as fazia abortar, e quando passava através de um campo, durante a noite, um camponês o viu, e jurou, depois disso, que todas as suas ovelhas morreram e suas oliveiras murcharam. Os falatórios aumentaram e crianças tombavam na rua, em convulsões, quando ele passava. Moças gritavam que eram tomadas pelo demônio, durante a noite, depois que os olhos dele as tinham fixado o mercador riu e piscou um olho: - Nós, mercadores, somos homens práticos. Sabemos que seu único mal é não ter dinheiro.

- Ele não é um escravo disse Lucano, amargamente. - Tinha algum dinheiro!

O mercador meditou, os olhos ambíguos sobre o jovem grego.

Coçou a barba rala.

- Tinha moedas de ouro com inscrições estranhas, mas de grande peso. Eruditos as examinaram, mas não puderam declarar qual a origem delas. Apesar disso, comprou comida com essas moedas, embora ninguém saiba onde se alojava. O caso tornou-se sério quando comprou várias fôrmas de pão e deu-as a um grupo de escravos encadeados que trabalhavam numa estrada. É verdade que tais escravos não são bem alimentados... Naquela noite os escravos fugiram.

Disseram que o olho mau tinha dissolvido o ferro... Devemos pensar em quanto são ignorantes e supersticiosos os...

- Como chegou ele a ser vendido como escravo? Perguntou Lucano, em voz áspera e alta.

- Senhor, o tribunal não mais podia esconder seu conhecimento dessa criatura e das coléricas queixas contra ela. Como te disse, foi interrogado; não pôde falar, não se pôde defender. Decidiram que se tratava de criminoso que representava muito perigo. Foi atirado na prisão. Os juízes não são supersticiosos, com certeza, mas são criaturas do povo. Recordarás que Sócrates foi considerado como tendo pervertido os jovens e ridicularizado os deuses. Os juízes não acreditavam naquilo, verdadeiramente, mas havia a turba a considerar, a turba que tem votos. Daí a taça de cicuta. Nós hoje o compramos do carcereiro, e assim ele aqui está.

- Sem crime algum, apenas por buscar alguma coisa! Disse Lucano.

- Sim. Que estaria ele buscando, senhor? - O mercador olhou com firmeza para Lucano. - És homem sensato, ó Apolo, e belo como os deuses. O que estaria ele buscando a errar pelas ruas, dia e noite, e olhando com timidez para todos os rostos?

Lucano disse, secamente:

- Eu o comprarei. Mas tu lhe retiraras as correntes.

Tirou o manto de capuz de sobre os ombros e estendeu-o para Ramo que, os pulsos tilintando, recebeu-o, com dignidade, cobrindo o corpo despido. Então, para tristeza de Lucano, os olhos do escravo encheram-se de lágrimas, e ele sorriu, um sorriso trêmulo, uma grande alegria iluminando-lhe as feições.

O mercador saltou sobre a plataforma, lambendo os lábios. Ruminava sobre o preço enquanto removia as correntes. Depois, fez um ar feroz para Lucano e pediu uma alta soma. Lucano atirou-lhe desdenhosamente uma bolsa sobre a plataforma e o mercador agarrou-a com avidez, pondo-se a contar o dinheiro, os lábios molhados. Exclamou, encantado:

- Senhor, fizeste um grande negócio! Não te arrependerás disto!

- Vem disse Lucano para o escravo, que, rapidamente, saltou da plataforma e ficou de pé a seu lado. Uma corrente fina tilintava, pendendo-lhe do pulso; Lucano compreendeu que devia apanhar uma ponta e levar assim a sua compra. Agarrou a corrente, que se partiu entre suas mãos fortes, atirou-a para longe, como se fosse um objeto infeccionado.

- És livre disse Lucano. - Segue-me até minha casa. Até nossa casa.

 

A pequena casa, pintada de azul-claro e de telhado rosado, ficava dentro de um pátio fechado. Um tanque, onde flutuavam lírios-d'água cor-de-rosa e grandes folhas verdes, bem como pequeninos peixes dourados, erguia-se no centro do jardim. Uma grande figueira dava sombra escura sobre um banco de pedra. Algumas árvores frutíferas, cítrico e maçãs, e uma grande tamareira espalhavam-se em derredor dos muros. Lucano, além de tratar do seu jardim, cultivava algumas rosas que lhe recordavam Rúbria. Jasmins rodeavam a casa austera.

Podiam-se ver, do jardim, as colinas prateadas da Grécia, marcadas aqui e ali, com a escuridão dos ciprestes pontudos, o prateado escuro das oliveiras e o azul puro dos céus.

O interior da casa, que continha apenas três cômodos, fora caiado de branco, contra o qual a mobília pobre lançava sombras escuras no esplendor do sol matinal. Ali, as cortinas das janelas eram de um tecido pesado e espesso, azul, e o mesmo material barato pendia das esquadrias das portas. O piso de lajedo vermelho mostrava-se despido. Lucano levou até sua casa o homem que ele comprara e Ramo olhou ao seu redor mudo e indiferente. E sempre seus olhos reluzentes voltavam-se para o rosto de Lucano, com ansiedade e indagação.

Este foi ter à nascente de seu jardim a nascente que alimentava o tanque e trouxe um grande jarro de leite de cabra. Colocou-o, espumoso e fresco, sobre a mesa de madeira, sem toalha, cortou algumas fatias de pão escuro, colocou-as com um pouco de queijo barato, sobre a mesa, e acrescentou àquilo uma vasilha de madeira cheia de frutas e uma tigela de mel. Ramo observava-o em completo silêncio, de pé, no centro da sala. Então Lucano disse-lhe delicadamente:

- Esta é a nossa refeição. Senta-te comigo e come.

Ramo ficou a olhar, estupefato. Lucano, observando-o, repetiu aquelas palavras em latim, depois em alguns dos dialetos mediterrâneos. Não teve resposta. Tentou o egípcio, e depois uma mistura de babilônio hebraico, aramaico e africano. Finalmente, chegou à conclusão de que Ramo havia compreendido todas aquelas línguas e que só o terror o impedira de dar conhecimento disso. Então, Lucano ergueu os ombros e disse em grego:

- Há alguma razão que te leva a recusar compreender-me. Se eu soubesse qual é essa razão, compreenderia. Até que confies em mim, podes guardar o silêncio como te parecer. - Olhou com firmeza para Ramo, e continuou: No idioma grego, a palavra que significa "escravo" também significa "coisa". Para mim és um homem, portanto nem um escravo nem uma coisa.

O majestoso rosto negróide de Ramo não se modificou, mas uma lágrima correu de sua pálpebra e seus lábios estremeceram. Lucano desviou os olhos por um momento, depois tornou a encarar o homem de cor. E disse, muito docemente:

- Vejo que me ouves. Não és também surdo?

Durante um longo momento Ramo não respondeu; depois, quase imperceptivelmente, sacudiu a cabeça. Lucano sorriu, e fez-lhe sinal para que se sentasse em um dos dois bancos que estavam junto à mesa.

Ramo, porém, ergueu as mãos sobre a cabeça, juntou as palmas, deixou-as assim tombar sobre o peito, depois caiu de joelhos e tocou o chão com a testa em oração silenciosa. O rosto de Lucano ensombrou-se de tristeza, mas esperou, polidamente. Ramo ergueu-se e sentou-se à mesa; o manto de Lucano tombava-lhe dos ombros, e o grande anel de ouro que Ramo trazia no nariz reluzia ao sol. Lucano dividiu o pão e deu metade ao outro. Começaram a comer. A luz enchia o pequeno aposento despido e colocava um halo dourado em derredor da cabeça de Lucano. E Ramo, comendo e bebendo, não cessava de observar o médico.

- Eu poderia levar-te amanhã ao pretor e dar-te tua liberdade disse Lucano, calmamente. - Mas isso não te adiantaria. As autoridades te agarrariam, te atirariam na prisão e te entregariam aos vendedores de escravos, mais uma vez. Dentro de duas semanas partiremos da Grécia por algum tempo, pois que sou médico, médico de um navio, com algumas casas aqui e ali, para repousar. No primeiro porto eu procurarei um pretor romano e tu terás tua liberdade, e assim poderás partir para tua terra.

Olhou para Ramo. Então, para surpresa sua, ele sorriu, radiante, e sacudiu a cabeça. Levantou sua grande mão morena, apontou para si próprio, depois para Lucano, e inclinou-se.

- Não mantenho escravos falou Lucano, severamente. – O dono de escravos, ante meus olhos, é mais degradado que os próprios escravos. - Estudou demoradamente o outro homem e rematou: - Ah! Compreendo! Queres dizer que aonde eu for tu também queres ir?

Ramo confirmou com um gesto, o sorriso ainda mais radiante.

- Por quê? Perguntou Lucano.

Ramo fez sinal de que desejava escrever, e Lucano levantou-se, trazendo-lhe uma tabuinha e um estilo. Ramo começou a escrever, lenta e cuidadosamente, em grego, depois estendeu-a a Lucano:

"Chamo-me Ramo, senhor, pois foi esse o nome que os gregos me deram, e meu próprio nome nada significará para ti. Deixa-me ser teu servo, quer me libertes ou não, pois meu coração disse-me, vendo-te esta manhã, que aonde fores eu devo ir, pois tu me conduzirás até Ele."

Ramo escrevera corretamente em grego, mas era um grego erudito, afetado e pomposo. Lucano ergueu as sobrancelhas louras e bateu o estilo contra os lábios.

- Não compreendo disse. - Quem é esse "Ele" ao qual devo conduzir-te?

Ramo sorriu, um sorriso brilhante. Tomou novamente o estilo e a tabuinha, e escreveu:

"Ele é o que livrará meu povo da maldição atirada sobre Cam[14], meu velho pai, e a Ele procuro, e através de ti irei encontrá-lo, e só através de ti, a quem Ele tocou.

Lucano contemplou longamente a tabuinha. Finalmente, sacudiu a cabeça.

- Entendo a religião judaica. Foi Noé quem censurou seus filhos porque o encontraram ébrio e despido. Lançou maldição especial sobre seu filho Cam, o de pele preta. E verdade que o homem negro foi verdadeiramente amaldiçoado, mas não por qualquer deidade, apenas por um homem. Se há Deus, e eu sei que há, Ele não amaldiçoou nenhum de Seus filhos. Nem deu a qualquer homem ordem para amaldiçoar qualquer de Seus filhos, mas só lhes ordenou que fizessem o bem a todos.

Falava relutantemente; sua cólera contra Deus fazia-lhe o rosto corado. E disse, meio para si próprio:

- Tenho uma questão com Deus, cuja existência não posso negar. Começo a compreender que tu acreditas existir, em algum lugar do mundo, um homem que pode anular a maldição lançada contra os filhos de Cam, e afastar deles o ódio. Pensas que só os filhos de Cam sofrem a raiva e o ódio dos homens? Não. Todos somos angustiados uns pelos outros. - Falou com alguma impaciência: - E como é possível que eu, encolerizado contra Deus, possa conduzir-te a quem quer que seja que te possa ajudar, e a teu povo?

Ramo não respondeu. Depois de alguns instantes, levantou-se com dignidade, tomou a mão de Lucano e apertou-a contra sua testa.

Tornou a sentar-se e estudou o grego atentamente. Suave resplendor de satisfação surgia em seus lábios grandes e espessos, e em seus olhos brilhava a ternura. Lucano levantou-se, procurou sua bolsa de médico, e disse:

- Deixa-me examinar tua garganta, a fim de ver se há alguma razão física para a tua mudez.

Ramo sacudiu a cabeça, mas abriu a boca, obedientemente. Lucano voltou-lhe o rosto para o sol, abaixou-lhe a língua com uma espátula de prata. A garganta era notavelmente clara e sadia, a laringe não mostrava nenhum distúrbio patológico e as cordas vocais estavam em perfeita ordem. Lucano sentou-se e descansou o rosto na palma da mão.

- Podes falar disse ele se quiseres. Tu é que não queres falar?

Ramo negou aquilo com um veemente gesto de cabeça.

- Já falaste algum dia?

Ramo indicou que assim era. Levantou dez dedos para indicar os anos.

- Quem te pôs mudo, então?

Ramo alcançou a tabuinha e o estilo, e encheu-a com sua escrita minúscula e bem junta:

"Senhor, sou rei de uma pequena nação secreta da África, terra que não conheces. Fica perto de uma das antigas minas e tesouros de Salomão que escondemos de todos os homens, por causa de sua avareza. Quando eu era um rapazinho, meu pai mandou-me para o Cairo, onde aprendi os vários idiomas da humanidade, pois meu pai desejava tirar seu povo da escuridão para a luz. Era um homem justo e nobre. Como o de meu pai, meu coração afligia-se com os sofrimentos de todos os filhos escuros de Cam que, sem saber por quê, sofriam nas mãos de outros que os escravizavam e matavam. Foi no Cairo que tive conhecimento da maldição de Noé. Uma noite, porém, quando havia apenas um ano que eu era rei, tive um sonho, ou visão, de um homem com um rosto que parecia de luz, vestido de luz, e com grandes asas brancas. Ele pediu-me que andasse pelo mundo todo, procurando Aquele que nos libertaria e faria com que não mais nos desprezassem e escravizassem. Assim, saí, sozinho, com moedas de ouro em quantidade suficiente, retiradas do tesouro de Salomão, na tentativa de encontrar o nosso Salvador."

Ramo pegou uma tabuinha nova e continuou escrevendo:

"E através de todo o mundo, onde errei, procurando, vi apenas terror e desespero, ódio, morte e opressão entre todos os homens. Vi a mão de cada homem voltada contra seu irmão. Não ouvi bênçãos e sim apenas maldições. E isto afligiu-me. Quando estavam secas as minhas lágrimas, mas não acalmado meu desgosto, descobri que não mais podia falar. Quando eu encontrar aquele que procuro, porém, não só a maldição que pesa sobre meu povo será anulada, mas eu tornarei a falar, em regozijo."

Lucano ficou sentado durante muito tempo, lendo e tornando a ler as tabuinhas. Sentia-se doente de piedade. Como é sem esperança a busca deste pobre homem! Comentava ele, consigo mesmo. Pensou na carta de Sara. Hesitou. Depois, ergueu os ombros, dirigiu-se a um cofre rústico de madeira onde guardava suas cartas e tirou dele um rolo. Pelo menos a carta de Sara poderia confortar Ramo, que era supersticioso e ingênuo. Como médico, Lucano sabia que a fé ajuda com freqüência onde a medicina nada pode fazer. Colocou o rolo na mão de Ramo, e disse, com voz dura, e sem emoção:

- Isto me foi escrito por uma mulher que amo. É uma judia. Se te dá conforto, então não lamentarei ter violado sua confiança.

Ramo desenrolou o pergaminho e começou a ler. Imediatamente, lágrimas saltaram-lhe dos olhos e ele sorriu, radiante; era como alguém que tivesse recebido suspensão de uma sentença de morte. E assentia continuamente com a cabeça, o peito erguendo-se em deleite.

Quando terminou a leitura, comprimiu o rosto com as mãos e balançou-se lentamente em sua cadeira.

Lucano disse, secamente:

- Deves compreender que isto foi escrito por uma jovem impregnada de sua fé, com a promessa de um Messias sempre soando em seus ouvidos. Eu, porém, não acredito nisso. Sou um médico, um cientista, enfrentando todos os dias a vida crua e a morte, e para os homens não há significação nem numa coisa nem noutra. Quem é o filho do homem para que Deus o visite, ou quem é o homem para que                Deus se ocupe com ele? Estudei também astronomia, e há galáxias e constelações de tal magnitude que a mente vacila com a simples contemplação delas. Que vem a ser, para Deus, este mundo minúsculo?

Minha única discordância, e é uma discordância insignificante, está                 no fato da mão Dele ter escorregado e nos ter feito, dando-nos apenas

Sofrimentos e morte.

Voltou-se para Ramo, e seu rosto estava pálido e severo.

- A única esperança que podemos ter é a de fazer sozinhos nosso caminho, diminuir a opressão do homem pelo homem, aliviar suas dores. Se achas que na Terra de Israel realmente vive aquele que te pode ajudar, vai em paz.

Ramo mostrou-lhe o rosto, reluzente de lágrimas e alegria. E escreveu, na tabuleta:

- "Tu me levarás até Ele"

- Não disse Lucano, - Jamais irei a Israel, por muitas razões. Podes ir embora amanhã. Eu te darei dinheiro.

Ramo escreveu:

- "Não. Aonde fores, eu irei. Não me peças que te deixe. Meu coração diz-me que devo permanecer contigo, e que tudo irá bem!"

Lucano ficou comovido, apesar de sua severidade. E disse:

- De há muito vivo só. Portanto, se assim o desejas, fica comigo, e sê meu amigo.

Encontrou, nos dias que se seguiram, uma grande e misteriosa consolação na presença de Ramo, que cuidava dos jardins e cozinhava suas refeições simples, e o assistia nos cuidados da fila de miseráveis que vinham à sua porta, pedindo cura. Era uma paz estranha para ele, pelas noitadas, quando se podia sentar com Ramo, junto de um jantar humilde, contar coisas de si próprio ao mudo, falando-lhe de sua família, de seus amigos.

- Não sou muito sensato disse-lhe, certa vez. - O homem mais sensato que conheci foi meu velho professor, Keptah, que agora está morto. Tinha língua eloqüente, e se estivesse ainda vivo eu te enviaria para ele, pois não tenho consolo nem esperança verdadeiros para dar-te.

Ficou profundamente interessado ao descobrir que Ramo sabia preparar ervas de maneiras estranhas, e foi grato pela compreensão que tinha dos doentes que vinham a sua casa, e pelas suas maneiras hábeis e delicadas em relação a eles. Embora conhecesse aquele homem escuro havia apenas dez dias, era como se sempre tivesse morado com ele, e cogitava em como podia ter vivido sem aquela augusta e silenciosa presença. Sentavam-se juntos, ao crepúsculo, olhando as colinas que mudavam de aspecto, ouvindo os pássaros, e vendo a asa imensa da noite ir descendo lentamente sobre a terra. Liam juntos os livros de Lucano e o médico comentava-os, escrevendo Ramo nas tabuinhas seus próprios comentários. Sentavam-se, contentes, Ramo vestido com as roupas baratas que Lucano comprara para ele, o anel brilhando em seu nariz.

Quando Lucano fechou a casa e saiu para o navio, Ramo o acompanhou. Mantendo sua promessa, quando o navio atracou em Antioquia, Lucano levou Ramo ao pretor romano, e libertou-o, pagando-lhe dali por diante um salário.

Passou-se um ano, mais outro, e Lucano tinha mais de trinta anos quando voltou para sua casa dos subúrbios de Atenas, onde ficaria apenas alguns meses. Era como se tivesse saído dali uns dias antes. O caseiro, um agricultor local, fizera bom trabalho, e tudo estava limpo e em ordem, as árvores carregadas de frutos, e as flores, desabrochando.

A única mudança estava neles próprios, o sofrimento, a dor e a morte que tinham encontrado pesava duramente em Lucano, mais do que nunca. Ramo, entretanto, estava mais sereno, tinha mais habilidade e paz e havia nele uma atmosfera de quem aguarda algo.

 

Lucano falou a Ramo da sua procura em relação ao rapaz, Arieh, que, se estivesse vivo, teria então doze anos de idade.

       - Jamais olhei para um rapazinho dessa idade sem reparar no meu dedo mínimo disse ele seja na rua, na Agora de Atenas, nos templos, entre os meus pacientes e em cada alameda e atalho do mundo que conheço. Mas ele está morto, com certeza; quem o roubou era pessoa repleta de maldade e malícia para com Eleazar ben Salomão, que jamais prejudicou quem quer que fosse, e fez sua fortuna como um homem justo. - Ficou pensativo, depois continuou: - Por que os homens odeiam outros homens, por inveja, despeito, ou por não serem de sua raça ou cor? É uma interrogação que vem sendo feita há muito tempo, que se torna corriqueira e monótona de tão repetida.

Mas é aí que está a tragédia do homem.

Falava com Ramo como jamais falara com outro homem, nem mesmo com Keptah, Cusa ou José ben Gamliel. O primeiro ensinara-lhe coisas e repreendera-o, e ele se sentira rebelde; o segundo fora seu professor, com amor, e o considerara algo assim como um tonto; o ultimo tentara apaixonadamente conduzi-lo para Deus, quando seu coração estava mais amargo. Ramo, porém, sorria para ele e cruzava as mãos.

Explicou a Ramo que não tratava dos ricos e dos homens de posição que podiam ter outros médicos, aos quais pagassem grandes salários. Mas com o tempo ficara perspicaz; e ele percebeu que com muita freqüência alguns camponeses prósperos, desejando poupar salário, vinham pedir-lhe caridade. Lucano disse:

- Quando descubro quem são, e tenho um sentido oculto muito desenvolvido que me serve bem, de vez em quando, nessas descobertas, cobro-lhes um honorário simbólico. Por que tomariam meu tempo quando podem pagar um médico e outros necessitam de meu auxílio? Trato dos ricos apenas quando me procuram em desespero, quando os demais médicos os consideram casos perdidos.

Quando Lucano disse isso, Ramo procurou uma tabuinha, e escreveu: "Mas todos os homens sofrem, e é bom ajudá-los." Lucano contemplou-o em melancólica admiração; ali estava alguém que sofrera tormentos por parte dos homens, e tinha compaixão.

Um dia, quando se aproximava a ocasião de Lucano tornar a embarcar no navio, uma liteira magnificente, carregada por seis belos escravos negros, parou à sua porta, e o que dirigia e falava em grego eloqüente suplicou-lhe que visitasse seu senhor, que estava às portas da morte e fora abandonado pelos médicos que o tratavam. Lucano quis recusar, pois andava muito cansado naqueles dias. Torrentes de infelizes formavam-se à porta de sua casa desde o alvorecer, e também ao crepúsculo.

E disse:

- Se os médicos de teu senhor o abandonaram, eu, que trato das piores doenças, a bordo de um navio e nas cidades, não poderia ajudá-lo. - A curiosidade do médico aguçou-se nele, e perguntou:

- Que sente o teu senhor?

- Está morrendo em todos os seus órgãos, senhor. Os filhos estão desorientados. Ouviram falar de ti, e sentem-se dispostos a pagar-te um salário enorme pelo teu auxílio.

Lucano ficou pensativo. Usara grande parte do legado de Diodoro em caridade, e naquela ocasião possuía muito pouco dinheiro.

Começou a sacudir a cabeça. Pelo menos uma vintena de homens, mulheres e crianças doentes esperavam em seu jardim, alguns deitados no chão, outros tombados sobre o banco, ainda outros prostrados nos degraus da entrada. Ramo, porém, tocou-lhe no braço e fez um gesto de assentimento, humildemente. Lucano relanceou os olhos pelos pacientes, e muitos deles eram portadores de moléstias crônicas; Ramo, que aprendera coisas e tinha um misterioso poder de cura que lhe era próprio, poderia examinar e tratar alguns daqueles tristes infelizes.

- Não demorarei mais de uma hora, então disse Lucano, relutantemente entrando na liteira, que o levou. Mas, ainda assim, sua curiosidade fora despertada. A liteira deslizou rapidamente pelas ruas movimentadas de Atenas, depois saiu da parte mais freqüentada e passou para um ponto onde existiam vilas e jardins agradáveis, com paredes brancas sobre as quais se debruçavam flores rosadas e roxas.

Parou num portão de ferro delicadamente trabalhado, mostrando Apolo e seus enigmas, e um escravo abriu o portão e o fez entrar num jardim onde ele viu uma casa solitária, a uma certa distância.

Lucano olhou com admiração para a casa, pois era uma verdadeira miniatura de vila, reduzida em escala de tamanho magnificente para uma forma pequena e delicada. Os mosaicos do pátio eram cor-de-rosa e cada pequenino canteiro fora rodeado com ladrilhos azuis, como um halo cor de turquesa. Havia apenas uma fonte, uma bacia baixa, de mármore, cheia de água faiscante e lírios, e sua figura central era um delfim, pousado sobre a cauda; de sua boca aberta jorrava um jato iridescente. A própria casa brilhava, alvacenta, ao sol, com colunas pequenas mas perfeitas à moda jônica.

Ele ficou tão impressionado com aquela visão deliciosa que nem reparou, de início, em três homens de meia-idade que descansavam, juntos, num banco recurvo de mármore, do outro lado da fonte, sombreado pelas murtas. Estavam formalmente vestidos de togas brancas, com as quais formavam agudo contraste, pois, apesar de altos, não tinham atitudes aristocráticas, e suas feições eram grosseiras. O olho clínico de Lucano reparou nas mãos grandes, retorcidas pelo trabalho, nos olhos pequenos, nas peles escuras e oleosas, marcadas de bexigas, no cabelo áspero e grisalho. Observou, também, que todos eles usavam anéis de considerável valor, e que suas sandálias eram feitas do melhor couro. Pareciam libertos toscos, vestindo os trajes de seus senhores. Sua parecença uns com os outros era notável, e ele percebeu, imediatamente, que se tratava de irmãos.

O primeiro, evidentemente o mais velho, disse:

- Meus cumprimentos! - E acrescentou, rapidamente, na voz monótona e incerta dos que tiveram nascimento humilde: - Bem-vindo à casa de Flégon, meu pai. Meu nome é Turbo, e estes são meus irmãos, Sérgio e Mele.

Lucano retribuiu as reverências dos três homens com um murmúrio cortês, sem mostrar que para ele a voz de Turbo nada tinha do sotaque dos atenienses elegantes e cultos.

Sérgio e Mele contentaram-se em permitir que seu irmão falasse por eles. Sua passividade era a passividade dos que estão habituados a obedecer. Ainda assim, conforme Turbo continuava a falar, Lucano reparava que todos aqueles homens mostravam certa qualidade de força e um orgulho áspero e defensivo. Começou a sentir-se bem-disposto em relação a eles. Turbo dizia:

- Nosso pai, Flégon, está doente. Assim tem estado há quase um mês, e tivemos os melhores médicos. Mas e fez uma pausa – ele os manda embora, declarando que são todos tolos ou malandros.

Lucano olhava em torno do jardim com admiração e, vendo aquilo, os três irmãos ergueram mais o corpo, e sorrisos tímidos apareceram em seus rostos, de certa forma já sorridentes.

- Pode bem ver-se que nada foi desperdiçado. Quais são os sintomas de vosso pai?

Os irmãos mais moços olharam para Turbo, que disse:

- Ele se diz muito fraco, e meu pai sempre foi homem que falou a verdade, sem exagero. Tem dor em todo o corpo. Sente a espinha rígida. Não há uma noite, jura ele, em que durma sem dor, e não pode comer.

Os sintomas sugeriam artrite, foi o que Lucano comentou. Turbo, entretanto, sacudiu a cabeça:

- Não. Todos os médicos nos disseram que não há artrite, não há inchação ou deformação das juntas, nenhum estropiamento. - Seus pequenos olhos tornaram-se menores, como que perplexos: - Não podemos, é certo, aceitar a palavra dos escravos, há cinco escravos nesta casa. Interroguei-os severamente. Juram que meu pai come com grande apetite, tal como um jovem. Não come diante deles que se devem retirar. Ele nos diz que dá a comida a seu grande cão, que jamais o abandona, e que ele próprio apenas bebe um pouco de vinho, como remédio. Deve um homem acreditar em seu velho e digno pai, ou deve aceitar a palavra de escravos?

Lucano ficou silencioso, mas inclinou a cabeça, com diplomacia.

Depois perguntou quantos anos tinha Flégon, e disseram-lhe que ele tinha setenta e três.

- Uma boa idade comentou ele. - Devemos lembrar que os velhos têm seus caprichos muitas vezes.

Turbo ficou ofendido:

- A mente de meu pai é tão vigorosa quanto a de um jovem, Lucano, e tão cheia de vida como uma árvore nova. Até um mês atrás ele caminhava como um homem moço, e sua voz podia ser ouvida em toda parte. Sua mão era pesada... E olhava de esguelha para os irmãos.

- Agora, interrompeu Lucano, a carne dele murchou de repente, não pode caminhar sem auxilio, sua cor tornou-se cinzenta e sua voz mostra-se fraca e trêmula.

Turbo coçou a orelha e olhou para os pés e os irmãos o imitaram com tanta precisão que Lucano se esforçou para conter um sorriso.

Naquele silêncio ele podia ouvir o cântico da fonte. Finalmente, Turbo disse, sem encará-lo:

- Não, não é isso. A cor dele é excelente, a voz mais forte do que nunca, e a carne gorda. Acontece, apenas, que se queixa e declara sofrer de forma angustiante. Sempre foi homem dominador e...

- E? Indagou Lucano, quando Turbo se calou.

- E ainda é dominador, o que nos anima. - A voz rude se havia modificado, como que perplexa: - Deita-se na cama, não anda, e seu gênio...

       Lucano esperava, mas Turbo não estava disposto a discutir o gênio do pai.

- Temos receio de que esteja para morrer disse ele, simplesmente. - Consultamos os sacerdotes, em nosso desespero. Ele diz que os sacerdotes são uns imbecis, e nós uns tolos supersticiosos.

O retrato de um velho poderoso e irascível começava a se formar na mente de Lucano. Sentia-se curioso por ver o paciente e disse isso.

Turbo curvou o dedo e chamou o escravo que estava no portão.

- Desejo ver teu pai a sós acrescentou Lucano.

O escravo conduziu-o para dentro da casa, que era tão delicadamente bela no interior como no exterior, e fora construída, desenhada e mobiliada por um mestre. Ali havia de novo beleza e luxo em escala menor. Lucano refletiu que aquela poderia ser uma vila de brinquedo de algum cavalheiro romano ou pompeano, e, recordando a rusticidade dos três irmãos, conjecturou se seria possível que a mãe deles fosse pessoa de origem humilde, casada com um cavalheiro de Atenas. Sacudiu a cabeça, olhando os pequenos vestíbulos iluminados, os murais nas paredes, a brancura dos forros, o belo mármore das colunas, as cores dos pisos e a excelência do mobiliário.

Foi levado a um dormitório onde a luz do sol entrava, o piso polido resplandecendo com seus tapetes persas e liberalmente ornado de flores. Um velho de grande porte estava deitado num leito de marfim esculpido, incrustado de couro, com folhas e flores de esmalte. Ao lado dele estava uma mesa de pernas de marfim, na qual tinham colocado Uma vasilha de prata, cheia de frutas. Sementes de uvas e caroços de ameixas bem como miolos de maçãs, tinham sido atirados sobre um tapete que merecia a admiração de César. Um grande cão de pêlos castanhos, muito feio e feroz, levantou-se rosnando quando Lucano entrou, e o velho sentou-se de súbito na cama, lançando olhares irados ao médico.

- Quem és tu? Indagou, em tom furioso. Lucano percebeu, imediatamente, que ali não estava um ateniense culto, nem um erudito, nem um aristocrata. Tudo quanto havia no rosto dos filhos se reproduzia na face barbuda do pai, e ainda mais. Contudo, o velho era realmente cheio de vida, e seus ombros e músculos do peito, bem como os braços encordoados, pareciam os de um forte trabalhador, que nada conheceu em sua vida além do trabalho físico e árduo, o qual não lhe causou incômodo algum.

Lucano aproximou-se da cama, sentou-se numa cadeira e pôs o estojo a seu lado. Sorriu para os olhos impetuosos que eram mais brilhantes do que os dos filhos e não viu neles a névoa da idade.

- Sou o seu médico disse calmamente. - Seus filhos chamaram-me.

- Outro! Berrou o velho, lançando uma torrente de obscenidades. - Eles nunca deixarão de gastar o meu dinheiro? Vai embora, patife!

Lucano cruzou as mãos sobre os joelhos, placidamente. Se o velho estava enfermo, tal coisa não era evidente. Nem se podia acreditar que estivesse mentalmente doente, pois não havia incerteza nele, nem violência sem alvo, nem guinchos em sua voz. Tinha um temperamento violento, mas sabia controlar sua língua, força animal nas linhas de seu nariz bulboso e de sua boca, e um temperamento profundamente desconfiado que traía o camponês analfabeto.

- Deves preocupar-te com a ansiedade em que estão teus filhos disse Lucano. - Por isso é que estou aqui. Se não puder ajudar-te, então nada tens a pagar-me.

As sobrancelhas brancas, tão ferozes e carrancudas, apertaram-se sobre os olhos de Flégon.

- Ah! Exclamou ele, atirando-se para trás, para os travesseiros bordados. Estendeu a mão para uma maçã, mordeu-a com os dentes mais brancos e mais compridos que Lucano jamais vira. Mastigou selvagemente, depois atirou a maçã para longe. O cão rosnou para Lucano e começou a andar em volta dele, como um lobo que esperasse o momento de atacar.

- Meus filhos! Gritou Flégon, a voz exaltada, cheia de cólera e nojo. - Esperam que eu morra, para agarrar meu dinheiro! Deixa-me dizer-te, médico branco mentiroso e sacudiu um dedo grande e moreno diante do rosto imóvel de Lucano -, que de mim nada receberás!

O cão estava começando a deixar Lucano nervoso, de forma que o médico franziu o cenho e murmurou uma palavra. O animal ficou imóvel como pedra. Lucano tornou a murmurar, e o cão tombou subitamente sobre o ventre, descansou a cabeça maciça entre as patas e fechou os olhos. Vendo aquilo, Flégon disse:

- Um mágico! Um homem que faz encantações! Vieste envenenar-me!

- Não sou mágico! disse Lucano. - Isto é algo que me foi ensinado pelo meu primeiro professor, também médico. Pensei perceber um alarme autêntico em teus filhos. Entretanto, tu falas que eles esperam pela tua morte e quase os acusaste de me pedirem que te envenenasse.

O velho recostava-se em seus travesseiros, arquejante, os olhos fixos no chão. Estava assustado.

- Tira-o dessa feitiçaria pediu e eu poderei conversar contigo.

- Certamente disse Lucano. - Mas ele me perturba andando em volta de mim e rosnando. Chama-o para junto de ti, e manda que se deite a teu lado e me deixe em paz.

Estalou os dedos e o cão ergueu-se num salto sobre os pés, rosnando novamente e preparando-se para se acercar de Lucano. Flégon chamou-o, com voz rancorosa, e as orelhas do animal abateram-se, ele choramingou, depois aproximou-se do leito e deitou-se ao lado dele.

Seu dono continuava a olhar para Lucano, com cauteloso respeito e contínuo medo.

- Falarei contigo disse ele mas isso nada adiantará. É muito possível que eu esteja sendo envenenado lentamente, por ordem de meus filhos. Disse isso aos três outros médicos, cujos salários poderiam resgatar um escravo valioso. Mas os três não acreditaram.

         Digo-te, também, meus filhos estão esperando a minha morte, estão planejando a minha morte.

- Então, basta que proíbas que venham a tua casa disse Lucano.

- Ah! Eles subornaram meus escravos.

Algo deslizou sobre o rosto, como óleo, com secreta esperteza.

Entretanto, agora estava disposto a falar, em sua raiva, pois Lucano lhe prestava grande atenção. Flégon tornou a encher-se de vigor.

- Deixa-me falar-te de meus filhos, de meus preciosos filhos. Turbo, o primeiro, é um ladrão. Nasceu ladrão, tem vivido como ladrão, e morrerá como ladrão.

Estendeu a mão para um cacho de uvas, começou a comê-las com gosto, cuspindo as sementes. Não oferecera vinho ou qualquer fruta a Lucano. Fechou os olhos, saboreando o que comia e estalando a língua. Disse, depois, num tom profundo e carinhoso: - Dos meus próprios vinhedos, amadurecidas sob o melhor sol. - Abriu os olhos e fixou-os furibundos em Lucano. - Turbo roubou dos meus cofres, nesta casa, uma opala das mais valiosas, pela qual me haviam oferecido uma fortuna. Usa-a abertamente, como bandido que é, no dedo de sua mão direita, e tu a poderás ver. Sérgio, meu segundo filho, tem a mente de uma ovelha. E a alma também. Apesar disso, é o mais vil dos meus conspiradores, e um mentiroso incurável. Quanto a Mele, é libertino com meu dinheiro. Gasta-o todas as noites nos mais dispendiosos bordéis de Atenas, e desperdiça o que me pertence com mulheres dissolutas.

Lucano recordou-se do rosto dos filhos. Apertou um pouco os lábios, e perguntou:

- Teus filhos são casados, Flégon?

O velho soltou mais blasfêmias e obscenidades.

- Sim, E com mulheres odiosas como eles mesmos, que escondem sua vilania sob rostos lívidos e palavras doces. Nenhuma delas trouxe dotes aos maridos. Proibi que viessem a minha casa, bem como seus rebentos.

Assumiu a expressão de um velho angustiado e indefeso, solitário, traído e abandonado. Uma lágrima deslizou-lhe pela face.

- Ainda assim falou Lucano -, deste-lhes casas próprias, penso eu.

- Disseram-te isso? - Flégon tornou-se imediatamente cauteloso.

- Não. Eu apenas tirei conclusões. Teria sido esta a atitude de um pai amoroso.

Flégon suspirou profundamente e deixou que Lucano o visse enxugar a lágrima com a ponta do dedo.

- Sim confirmou.

- E também lhes deste muito, espontaneamente?

- Sim. Eu vejo, meu jovem médico, que és homem de compreensão. - Tornou-se excitado, e continuou: - E, em troca de tudo quanto lhes dei e fiz por eles, nada me deram a não ser ódio, a não ser roubos, conspirações, mentiras e libertinagens. Estou abandonado para morrer, para temer pela minha vida, por não ter outra companhia a não ser a dos escravos.

Sua excitação aumentava. O médico tornou a apertar os lábios.

Havia naquela excitação uma deliberação bem calculada. Lucano estendeu a mão para seu estojo médico e dele tirou um frasco que continha pílulas brancas. Numa taça, deitou um pouco de vinho.

- Não disse Flégon, recuando e encolhendo-se, em recusa exagerada. - Não posso confiar em ti.

- Muito bem falou Lucano, pousando a taça e a pílula. - Não precisas tomá-la. Pensei apenas em aliviar as dores de que teus filhos me falaram.

Depois de um momento tornou a colocar a pílula no frasco.

Flégon pensou um pouco, depois disse:

- Que sentiria eu com esse remédio?

- Já te disse: terias alívio de tuas dores.

Flégon umedeceu o lábio barbado com a ponta da língua.

- Dá-me essa pílula pediu, rudemente.

Com um ligeiro sorriso, Lucano obedeceu. O velho bebeu o vinho sofregamente.

- Agora disse Lucano deves falar-me de tuas dores, preciso examinar-te.

Com nova e surpreendente docilidade, e mesmo com entusiasmo, Flégon respondeu às perguntas e submeteu-se ao exame. Lucano foi cuidadoso, usando toda a sua experiência. Era o que suspeitava. Flegon gozava da mais completa e perfeita saúde. Tinha o corpo e o físico de um homem pelo menos vinte anos mais jovem. Seus músculos pareciam de ferro, suas juntas eram flexíveis. Lucano chegou a uma conclusão. Sentou-se e olhou gravemente para Flégon.

- Teu caso não é para ser levado em brincadeira disse, muito sério.

Durante um momento, Flégon ficou satisfeito, mas logo depois falou, assustado:

- Trata-se de doença fatal? - E o tom avermelhado do seu rosto ficou menos intenso.

Lucano sacudiu a cabeça, com gravidade.

- Não é fatal. Contudo, é um caso que deve ser estudado cuidadosamente.

Flégon ficou de novo satisfeito.

- Tu és o primeiro médico inteligente que me visita, juro por Mitras! Todos os outros ousaram informar-me de que minha saúde era perfeita e que eu estava tão sadio quanto uma maçã. Que mentirosos! Que ignorantões!

- Pensavam apenas em seus salários disse Lucano, mostrando solidariedade.

- Isso, isso! - Colocou a mão no peito e revirou os olhos. – A dor já está deixando meu coração! Ele se está aquietando, e já não salta. Não posso dormir durante a noite porque minha garganta e as minhas têmporas latejam.

Lucano não duvidou de que o velho realmente sofresse daquilo. Seu pulso mostrava-se forte demais, rápido demais, a pressão muito alta, apesar dos sons cardíacos normais. O médico levantou-se.

- Desejo conversar com teus filhos falou.

Flégon olhou para ele, astutamente:

- E que lhes dirá?

- Que tua... Doença... Merece toda a consideração e deve ser cuidada imediatamente.

Flégon remexeu-se, instalou-se melhor nas almofadas.

- Deixa, então, que seus corações se aflijam! Deixa que passem noites sem dormir, sabendo o que fizeram, em sua avidez e ódio. Deixa que sintam a cólera dos deuses, que recomendaram ao homem: honra teus pais!

Lucano deixou o quarto e caminhou lentamente através da casa, que tomava cada vez mais o aspecto de uma jóia preciosa, a seus olhos.

Foi para o jardim. Os três filhos ergueram-se agitados, de seu banco, e vieram imediatamente ao encontro dele.

- Que se passa com meu pai? Indagou Turbo, e sua voz rude estava trêmula.

Lucano observou os três. Relanceou os olhos para a mão direita de Turbo e viu que o mais maravilhoso anel de opala estava no dedo indicador do rapaz. Brilhava com luzes róseas e azuladas, e parecia conter crepúsculos dourados. Olhou para Sérgio, para seu rosto sadio e ansioso, para sua expressão sincera. Olhou para Mele, que parecia menos um freqüentador de bordéis do que o cão de Flégon. E franziu as sobrancelhas, e depois fingiu voltar ao presente, com um sobressalto.

- Deves perdoar-me disse. - Mas sou um admirador de opalas, e vejo em tua mão, Turbo, uma delas, e maravilhosa.

Turbo, durante um momento, ficou perplexo, pois era evidente que sua mente estúpida não se movia com grande agilidade. Depois, seus olhos pequenos brilharam de orgulho e ele estendeu a mão para que Lucano pudesse admirar a jóia.

- É muito antiga e tem grande tradição disse ele. – Minha esposa descende de respeitada linhagem de eruditos. Seus antepassados receberam este anel do próprio Péricles. - Suspirou: - Não sou homem culto. Mas respeito este anel de todo o meu coração, e vou deixá-lo a meu filho quando morrer. Não queria aceitá-lo de minha esposa, mas nós nos amamos ternamente, e ela o colocou à força no meu dedo.

Sérgio falou, pela primeira vez, e sua voz enferrujada mostrava tratar-se de homem de poucas falas. Disse a Turbo, afetuosamente:

- Foi no décimo aniversário de teu casamento que tua esposa te deu esse anel, meu irmão. Fica-te bem, embora não sejas um erudito. Teu filho, contudo, há de trazer honra a teu nome.

Turbo suspirou:

        - Ainda assim, meu pai deseja muito este anel. Muitas vezes fico pensando se não sou um filho desobediente por não o dar a ele de presente.

- É teu, e de teu filho disse Mele, também falando pela primeira vez. Tua esposa ficaria magoada se desses o anel a meu pai. É preciso ter consideração para com as mulheres.

Lucano sentou-se no banco, mergulhado em seus pensamentos.

Turbo corou profundamente, de súbito, e bateu as mãos.

- Deves perdoar-me, Lucano disse ele. - Eu deveria ter mandado vir vinho para ti, mas estava pensando apenas em meu pai.

Um escravo apareceu e ele ordenou-lhe que trouxesse vinho.

- Meu pai vai ficar zangado disse Mele. - Tu mandaste vir o melhor vinho.

Turbo falou, e agora havia nele uma dignidade nova:

- A adega de meu pai pode ser pequena, mas é uma das melhores de Atenas, e eu a mantenho bem abastecida. Ele pode fornecer um pouco de vinho a Lucano. Mas ainda não me disseste, Lucano, qual é a terrível moléstia que aflige meu pai.

O médico falou:

- Sabe-se que a doença de um homem não pode ser separada daquilo que ele é e de seu ambiente. Primeiro preciso fazer-vos algumas perguntas, que desejo me sejam respondidas com toda a sinceridade.

- Perguntas! Exclamaram os irmãos, em coro, e Lucano viu, pelas suas expressões, que não era fingida a ansiedade de seus rostos, e que a afeição dedicada ao pai mostrava-se neles profunda e sem afetação. O rosto do rapaz tornou-se, de certa forma, tristonho.

O escravo trouxe uma bandeja de prata com quatro taças, e Turbo serviu o vinho, observando ansiosamente Lucano para ver se ele o apreciaria. A bebida era deliciosa, e Lucano foi sincero em sua apreciação. Os três irmãos rodearam-no e beberam com o que aparentemente esperavam fosse o mais aristocrático dos gestos de apreciação... E com comedimento.

- Vosso pai disse Lucano, depois de uma série de sinceros cumprimentos deve ter herdado muito dinheiro e indicava o jardim e a casa.

Os irmãos relancearam os olhos uns para os outros e hesitaram.

Turbo então ergueu a cabeça:

- Há pessoas que escarnecem dos humildes murmurou ele.

- É privilégio delas, embora estejam erradas. Somos pessoas humildes, mas ganhamos bem e fizemos nossas fortunas. Meu pai era muito pobre, embora livre. Teve uma pequena fazenda, seca, e de terra má.

Meus irmãos e eu não nos podemos recordar de um dia, em nossa infância e adolescência, em que nos sentíssemos bem alimentados, embora todos trabalhássemos pesadamente com nosso pai. Nossa mãe morreu quando éramos crianças.

Turbo corou e tossiu.

- Tu nos pediste que fossemos sinceros. Meus irmãos e eu demos esta casa a nosso pai, cinco anos atrás. Ele jamais tinha morado numa casa que não fosse humilde e marcada pela pobreza. Tomamos para o trabalho os melhores arquitetos. Desejávamos dignificar a velhice de nosso pai, recordando-nos de seus sofrimentos; do telhado cheio de goteiras de sua casa e do piso sujo. Desejávamos que ele tivesse os deleites e luxos que merecia.

- Nada achávamos que fosse bom demais para ele disse Mele, o rosto simples iluminando-se. - Mandamos buscar tesouros de todos os pontos da terra, a fim de ornar esta casa. Nunca em sua vida ele tivera nada de seu, em particular, nem a dignidade de um lar que não se mostrasse cheio de crianças e de animais. Bastava que ele dissesse o que desejava, e nós lhe dávamos imediatamente, pois é nosso pai e sofreu muito.

         - O mobiliário disse Sérgio custou-me dois anos de rendas. Tive orgulho de poder dar a meu pai essa satisfação.

- Estou vendo falou Lucano, compassivo. - Vosso pai não teria preferido morar com um de vós?

- Não. É homem orgulhoso e não gosta de crianças, e temos muitas. Queria uma casa sua. - E Turbo sorria, compreensivo.

- E fazeis fortunas? Perguntou Lucano, que estava intensamente interessado.

- E honestamente afirmou Turbo, bem depressa. - Os deuses nos foram muito bondosos. Fazemos sacrifícios, regularmente, em sua honra. As coisas aconteceram assim: quando eu era jovem e trabalhava na fazenda, percebi que corria o perigo constante de passar fome, até mesmo miséria. Tinha grande admiração pela boa cerâmica, que era exposta nas lojas. Assim, aprendi com um ceramista, famoso pelos seus belos vasos e estatuetas, bandejas e trabalhos em camafeus, feitos em branco, sobre o mais profundo tom vermelho, ou azul. Depois de alguns anos, ele expressou sua admiração pelo meu trabalho, declarando que eu tinha a mão mais segura e sentimento de arte e beleza.

- Olhou para Lucano, desafiante: - Não acreditas nisso?

Lucano estendeu a mão, tomou a de Turbo, e examinou delicadamente os seus dedos. Maltratados como estavam pelos infinitos anos de uma juventude dedicada a trabalhos pesados, os dedos tinham a forma espatulada que marca o verdadeiro artista.

- Sim respondeu, respeitosamente. - Acredito em ti.

- Obrigado falou Turbo, com uma humildade que era, em si mesma, inocente orgulho. - E aqui estão meus irmãos. Eu consegui que o ceramista os empregasse. Sérgio revelou extraordinário poder para produzir formas, invariavelmente perfeitas, quase sem perdas. Ele ainda faz girar o torno, pois não confiamos em outro para isso. E Mele inventou um polimento que é nosso segredo.

“O ceramista, que não tinha filhos, deixou-nos sua fábrica”. E nossa mercadoria é procurada no mundo inteiro, mesmo em Roma.

Temos uma frota de navios que nos pertence; e empregamos muita gente e muitos escravos. Se pudéssemos produzir o dobro do que produzimos, poderíamos vender todas as bandejas e vasos e objetos de arte, mas com isso sacrificaríamos nossa alta qualidade. Preferimos manter a fábrica do menor tamanho possível de forma que nosso produto não deixe de receber inspeção pessoal nossa, pois todos levam nosso nome, e ninguém, em parte alguma, deve ficar desapontado.

Estava em pé, e parecia ainda mais alto.

- O palácio de César está cheio de trabalhos nossos. Os vasos têm preços iguais aos das jóias, e urnas funerárias são compradas pelos grandes patrícios de Roma.

- Infelizmente disse Mele, com tristeza nosso pai escarnece de nosso trabalho e não permite que sequer a cabeça de um deus feita por nós apareça nesta casa.

- Mas os egípcios declaram que só seus antigos artistas podem comparar-se conosco falou Sérgio, os olhos iluminados. – Têm nos mandado objetos que estimam muitíssimo, a fim de que os copiemos para eles. Nossas estatuetas de Apis[15] e cabeças de Isis estão nos mais resplandecentes de seus templos. Mas é Turbo quem as desenha, quem produz o pergaminho de onde eu as copio. E é Mele quem lhes dá o polimento.

- Sem o polimento, e tua magistral compreensão do meu desenho, o que faço não tem valor disse Turbo. Suspirou: - Meu pai nos considera tolos inúteis continuou -, embora as grandes damas de Roma, do Egito e de Atenas usem nossos medalhões no pescoço, em correntes consteladas de pedrarias, ou os mandem incrustar em braceletes de valor inestimável. Certo senador famoso compra nossos vasos e jura que os prefere às mais belas de suas escravas. Deves perdoar-me se pareço e star lançando gabolices, Lucano.

Este nada disse.

- Talvez continuou Turbo, timidamente, tu me permitisses mandar-te de presente alguns de nossos trabalhos.

O jovem grego ficou emocionado e disse:

- Eu ficarei em débito para convosco. - Depois, ergueu a cabeça: - Preciso fazer perguntas grosseiras, e peço-vos que as respondais.

Por que amais vosso pai?

Os homens ficaram a olhá-lo, boquiabertos, com espanto sincero, durante alguns momentos. Então, Turbo gaguejou:

- Por que nós o amamos? É uma pergunta estranha! Não foi ele quem nos deu vida e nos tornou possível termos o que temos, nossas adoráveis esposas e nossos filhos amorosos? E não está recomendado que um homem deve honrar seus pais?

Lucano recordou-se do Mandamento dos judeus: "Honra teu pai e tua mãe..." Mas, ainda assim, havia pais que não mereciam ser honrados.

Turbo, calorosamente, falou:

- Meu pai também não sofreu bastante? Bem pouco é que possamos aliviar e tornar mais alegres os dias de sua velhice, pois ele nunca pôde satisfazer o estômago, quando era jovem, e nunca usou senão andrajos.

Lucano meditou na estranheza e na inocência do amor, e como o amor pode ser explorado pelos indivíduos brutais. Levantou-se.

- Preciso dizer de novo uma palavra a vosso pai. Dei-lhe um remédio. Mas isso eu vos posso dizer quando eu tiver terminado a consulta e feito a prescrição, a saúde dele estará recuperada por muitos anos, pois é um homem forte.

Os irmãos chamaram sobre ele muitas e jubilosas bênçãos, e Lucano deixou o jardim. Dirigiu-se até o dormitório de Flégon. O velho estava consideravelmente calmo, encostado tranqüilamente em seus travesseiros, e quando viu Lucano levantou de leve a cabeça e deu ao médico um sorriso quase agradável.

- Minha dor passou disse ele. Depois, o rosto modificou-se, fez-se mais uma vez enigmático e desconfiado. - Falaste com meus filhos?

Lucano sentou-se deliberadamente e serviu-se de um cacho de uvas, fixando durante todo o tempo seus brilhantes olhos azuis no rosto de Flégon. Depois de alguns momentos o rosto do homem tornou-se sombrio e estúpido.

- Eles te mentiram acrescentou, com algo de monótono na voz alta.

- Acho que não disse Lucano. - Há muitos anos sou médico, e os médicos adquirem um sentido a mais que os possibilita perceber mentiras. - Seus olhos estavam cheios de ressentimento. Apesar disso, também tinha pena de Flégon, que podia invejar os filhos, ressentir-se de seus sucessos, posição e fama, pois fora apenas um pobre camponês analfabeto. Além disso, era bem evidente que ele sabia ser amado pelos filhos e por isso os atormentava.

- Vai embora disse Flégon, abruptamente, virando a cabeça no travesseiro, erguendo seus ombros poderosos. - Sou um velho fraco, abandonado, enganado, solitário. Deixa-me com os meus deuses, pois pelo menos eles são os únicos consoladores dos homens.

- É verdade disse Lucano. - Mas eu duvido que acredites nos deuses. Vou dar a teus filhos alguns bons conselhos, antes de deixar esta casa. Vou dizer-lhes quem na realidade és tu, e o que honestamente pensas deles. Sugerirei, também, que te levem de volta a tua pequena fazenda, e nunca mais te visitem, pois acredito que isso será melhor para eles, para sua paz de espírito. Há ocasiões em que os filhos devem abandonar os pais, por amor deles próprios.

Flégon teve um impulso, erguendo-se da almofada; os dentes apareceram entre os lábios barbudos, e os olhos faiscaram com o mais selvagem medo, com ódio.

- Tu me destruirás! Bradou, amaldiçoando Lucano numa linguagem tão expressiva que o médico admirou seu sabor e imaginação. Esperou, pacientemente, até que Flégon se exaurisse, e explodisse em lágrimas verdadeiras. Depois disse com bondade:

- Não farei isso, não desiludirei teus filhos a teu respeito, se me obedeceres imediatamente, e continuares a me obedecer.

         - Maldito sejas gritou Flégon. - Possam os abutres dilacerar teu fígado!

Parou, percebendo que Lucano não se mostrava impressionado, antes um tanto entediado. Depois, choramingou:

- Dize-me o que devo fazer. Mas, bom médico, tem piedade de um velho! Seria capaz de mandar-me de volta para aquele miserável retalho de terra, que está cheio de pedras e espinhos, para viver de novo meus dias na miséria?

- Farei isso, com certeza afirmou Lucano. A não ser que obedeças. O primeiro passo é saltar agora mesmo dessa cama, vestir-te com tuas melhores roupas, pendurar um ornamento ao pescoço.

Então, irás para o jardim comigo, para cumprimentar teus filhos como um pai amoroso, beijando-os e abraçando-os. E irás fazer-me um juramento, aqui em segredo, de que jamais tornarás a mentir a teus filhos, nem os censurarás falsamente, e nunca mais fingirás estar doente para despedaçar-lhes o coração. - Parou, depois rematou, com severidade: - O juramento que te peço é o mais sério dos juramentos pois, embora não acredites nos deuses, há magia nele e, se o violares, alguma desgraça monstruosa tombará sobre ti.

Flégon arregalava os olhos para ele, tomado do mais completo terror, e Lucano ria interiormente, mantendo os lábios apertados para evitar uma gargalhada.

Flégon atirou para o lado a colcha e saltou da cama, pálido e trêmulo, nu e grande, como um Hércules ancião, seus músculos morenos movendo-se como seda. Com mãos tiritantes vestiu-se, usando uma túnica do mais fino linho, comprida, presa à cintura esbelta com um cinturão de ouro, e colocou braceletes de ouro nos braços. Pendurou um ornamento ao pescoço. Penteou os compridos caracóis grisalhos e a barba. Ficou magnífico.

Então, Lucano administrou-lhe um juramento fantasista, que inventou na hora, chamando os deuses para ouvi-lo, enquanto Flégon se ajoelhava diante dele. Finalmente, aspergiu o velho com algumas gotas de vinho e tornou a adverti-lo severamente. Ajudaria o velho a erguer-se, mas Flégon saltou sobre os pés como um atleta, e apertou seu grande punho nodoso contra o peito.

- Sou algum inválido? Perguntou, com voz trovejante. - Posso ter idade para ser teu avô, médico dissimulado, mas poderia partir-te a espinha com minhas próprias mãos.

- Acredito, disse Lucano. Toma cuidado, daqui por diante, para não partires o coração de teus filhos, pois sobre ti cairia imediatamente a desgraça.

Deu a Flégon o frasco que continha as pílulas brancas.

- Isto te acalmará por algumas noites, durante as quais, disse Lucano, virtuosamente poderás refletir com serenidade sobre teus pecados.

Flégon caminhou através da casa em grandes passadas, seguido por Lucano. O velho parava aqui e ali, a fim de chamar orgulhosamente a atenção do médico para alguns objetos inestimáveis, que Lucano admirava com a devida atenção.

- Observarás disse Flégon, estufando o peito que meus filhos não são para serem desprezados.

Seu rosto largo resplandecia; subitamente, ele se libertara da inveja e do ressentimento, e Lucano ficou a meditar em quanto seriam felizes os homens se libertassem da baixeza, do ódio e da malícia.

Entraram no jardim e os filhos ficaram estupefatos e emocionados quando viram seu vigoroso pai apressando-se em direção a eles. Seus olhos encheram-se de lágrimas e nem puderam falar. Tombaram aos pés dele, humildemente, e ele os ergueu com grandes gestos, como se os perdoasse, mas, na verdade estava perdoando a si próprio, como Lucano bem compreendia. E abraçou e beijou um por um, gozando seus abraços que o perdoavam.

- Que médico, este! Exclamou Flégon, os braços a rodear os filhos. - Que presente lhe poderemos dar por ter-me restituído imediatamente a saúde?

Antes que Turbo pudesse responder entusiasticamente, Lucano, o rosto sério, disse:

- É uma bênção quando aquele que foi aliviado pelo seu médico lhe dá um presente de suas próprias mãos.

Flégon, com um sorriso jubiloso, pensou um pouco. Mas ainda era um camponês, com a sovinice do camponês. Então, como se chamasse toda a gente a testemunhar um ato de supremo sacrifício, tirou um bracelete do braço, peça ricamente ornada de pedras preciosas, e meteu-o nas mãos de Lucano. Seus olhos pestanejavam, cheios de lágrimas.

- Que os deuses te abençoem! Disse, em voz rouca, e com toda a sinceridade.

 

Lucano foi reconduzido a casa na liteira de Turbo, e viu-se sorrindo, satisfeito. Cogitava em quantos de seus pobres pacientes estariam à espera de seu tratamento. Ramo trataria bem disso, pois tinha a mais terna das piedades e as mãos muitíssimo hábeis. Era amado, apesar da sua cor, da qual os gregos desconfiavam. Lucano refletia sobre os gregos modernos, que viviam das passadas glórias de seu país, e exaltavam-no, embora não estivessem agora produzindo grandes homens.

Por quê? O poeta Ésquilo[16] escrevera: "Deus nunca é um anteparo. Não há defesa para aqueles que desprezam o grande altar da justiça de Deus!"

Ficou surpreendido ao perceber o silêncio que reinava em torno de sua casa, quando despediu a liteira. A porta do jardim estava aberta para trás, estalando ao vento áspero e seco, e parecia o eco de cena e incompreensível desolação que viesse da casa. O jardim mostrava-se vazio; não havia pacientes à espera, ali. Uma como que mudez suspendia-se sobre tudo, tal como o faria uma ausência. De súbito, Lucano sentiu que seu coração batia muito depressa, e correu para o jardim, chamando pelo nome de Ramo. Então, viu que algum mal havia tombado sobre seu pequeno e bonito jardim: a pequena estátua de Eros[17], que enfeitava o tanque cheio de lírios, fora derrubada na água e esmagada. Os canteiros foram pisados brutalmente, galhos arrancados das árvores e frutas espalhadas. As moitas de jasmins estavam atiradas ao chão, e agora ele via uma grande mancha negra nas paredes de sua casa como se um fogo se tivesse elevado ali, logo apagado.

Correu para dentro da casa, a cabeça trovejante com um ruído interior. Também ali reinava a destruição. Poucas cadeiras, a mesa, sua cama, e a cama de Ramo tinham sido atiradas e despedaçadas. Os quadros, que ele próprio pintara e pendurara nas paredes brancas, haviam sido arrancados e pisados, as molduras, inutilizadas. Suas vasilhas e panelas estavam destruídas. O armário onde guardava a maior parte de seus instrumentos cirúrgicos fora aberto, e não havia instrumentos ali; os frascos conservados tão cuidadosamente estavam quebrados, seus sacos de ervas abertos, as ervas espalhadas. E, sobre tudo, suspendia-se abandono e desolação.

Atônito, Lucano pôs a palma das mãos na cabeça e ali ficou estático. Olhava em volta de si sem acreditar no que via, pestanejando. Por que aquele vandalismo? E onde estava Ramo, seu amigo, seu auxiliar?

Começou a correr pela casa, gritando, as pernas trêmulas. Pensava, confusamente, que os médicos de Atenas, sempre ciumentos dele, e desprezando-o, tivessem feito aquilo, mas seus pensamentos espalhavam-se, num emaranhado desespero. Ramo não estava na casa. Mais uma vez correu para o jardim, depois para os muros, tão maltratados.

Foi ali, finalmente, caído e sangrando, que encontrou Ramo inconsciente. Ajoelhou-se ao lado dele, chorando alto, pois viu que Ramo não só fora espancado da maneira mais selvagem, mas algum instrumento agudo chicoteara a parte superior de seu rosto, e de seus olhos corria sangue. Estava cego. Aqueles olhos, inconscientes e cegos, voltavam-se para o céu ardente de luz.

   De início, Lucano pensou que ele estivesse morrendo. Levantou-o contra seu peito, e febrilmente examinou-o, tateando-lhe o pulso.

Estava muito fraco e irregular, mas o negro ainda tinha vida. Lucano, a cabeça girando como num pesadelo, deitou delicadamente o amigo de novo no chão e correu para dentro de casa, em busca de seu estojo médico, com o qual voltou. Deu estimulantes a Ramo mantendo sob seu nariz uma garrafa de cheiro pungente, forçando líquidos entre seus lábios entreabertos. Trabalhava febrilmente, sem nada mais pensando senão em salvar seu amigo. Repetia baixinho para si mesmo, uma e muitas vezes: "Isto é um sonho! Isto não aconteceu! Ninguém maltrataria uma alma tão boa! Ninguém faria uma coisa destas à minha casa!”.

Não ouviu passos que se aproximavam, e levou um susto violento quando uma voz rude e assustada falou a seu lado:

- Senhor, eu fugi quando eles fizeram isto... Tive medo... Estavam tão furiosos... Perdoa-me... Oh! Que fizeram a este pobre homem?...

Lucano levantou os olhos azuis, que estavam selvagens e dilatados.

Viu que seu visitante era um pobre camponês de cuja esposa estava tratando com bons resultados.

- Síton! Disse ele, a voz rouca. - Que é isto? Quem fez isto?

Síton acocorou-se junto dele, as lágrimas correndo pelo rosto queimado de sol. Mas, respondendo, mantinha o olhar assustado por cima do ombro.

- Senhor, se eles soubessem que eu voltei para te contar, também me matariam. Procuravam-te, teriam te assassinado, era uma mulher, Gata, que disse ter Ramo olhos maus... Há muito tempo ouvira dizer isso na cidade... Ela teve um aborto, e seu marido levantou o povo contra ti.

Agora Lucano, fel em sua garganta, compreendia. O marido de Gata era um camponês próspero, com muitos e excelentes vinhedos, um homem mau, hipócrita e mentiroso, que se lamentava constantemente, dizendo-se oprimido pelos ricos e poderosos de Atenas, que não lhe pagavam o justo preço pelas suas uvas. Entretanto, era o mais rico de todos os camponeses, em muitas milhas ao redor, e sua avidez fizera-se bastante conhecida. Ele, com a esposa e filhos, vivia em aposentos que porcos teriam desdenhado, embora suas contas de ouro nos bancos da cidade fossem a inveja dos advogados, dos médicos, dos legisladores e dos escribas. Duas semanas antes trouxera sua esposa desleixada, de olhos suínos, para que Lucano a tratasse, declarando-se inteiramente pobre, impossibilitado de pagar qualquer quantia pelo parto de seu quinto filho. Acreditara que, vivendo tão longe dele, o médico nada soubesse da sua fortuna, mas um paciente sussurrara aos ouvidos de Lucano, e este dissera friamente ao homem que ou ele pagaria uma quantia muito modesta ou teria de ir a um outro médico da cidade, cuja cobrança pela consulta seria dez vezes maior. Os dois tinham ido embora, guinchando ameaças e sacudindo os punhos fechados, chamando Lucano de ladrão e opressor.

- Veio aqui hoje, em tua ausência, senhor chorava Síton, ainda olhando medrosamente por sobre o ombro. - Sabes que ele tem os camponeses à sua mercê, pois que lhe devem muito dinheiro.

No ano passado apenas os vinhedos dele produziram, e os dos outros deram pobre colheita. Aparentemente, estivera vigiando para arranjar uma ocasião em que não estivesses em casa... Veio logo depois que partiste, e declarou aos pacientes que estavam à espera que tu usavas a eles todos para experiências maldosas, que eras um feiticeiro, que eras homem muito rico desejando a morte dos pobres, pois sabes que os médicos de Atenas têm estado pleiteando o controle dos nascimentos entre os miseráveis. Compreendes quanto são inflamáveis os homens estúpidos e ignorantes de mente, como acreditam depressa no mal e na malícia, embora tu os tenhas ajudado tantas e tantas vezes durante estes anos e os tenhas curado. O marido de Gata disse que havia em tua casa ouro de procedência escusa, que pertencia ao povo...

Síton olhou para Ramo, que estava começando a gemer, em agonia. O camponês fungou, limpou o nariz e os olhos com as costas da mão, enquanto Lucano se conservava ajoelhado, estupidificado.

- Eu estava aqui, senhor, por causa dos meus furúnculos, que estavas fazendo desaparecer. Que podia eu fazer diante daquela turba que gritava, que pedia a tua morte ou o teu banimento? Atacaram Ramo e deixaram-no como morto... Senhor, precisas ir embora daqui imediatamente. Eles voltarão e hão de matar-te.

Lucano respirou profundamente.

- Ajuda-me a levar Ramo para dentro e arranja-lhe a cama. Preciso pensar.

- Senhor, deves partir imediatamente!

- Ajuda-me. E enquanto levo Ramo para casa, corre já, se tens alguma misericórdia e gratidão, até a casa de Turbo, o ceramista, e dize-lhe que Lucano, o médico, suplica-lhe que lhe envie uma liteira para meu amigo, e que nos dê abrigo em sua casa.

Por trás do remoinho trovejante e da angústia de sua mente, um pensamento frio surgiu. Não tinha amigos entre os miseráveis que socorrera. Não se associara com os homens ricos, educados e inteligentes de Atenas. Turbo era sua única esperança.

Síton hesitava. Levantou-se torcendo as mãos. Choramingava:

- Senhor, se eu te ajudar eles se vingarão em mim!

Lucano levantou-se. Ficou de pé, mais alto do que o camponês, e seus olhos ardiam de ódio e nojo.

- E eu te digo, Síton, que, se não me ajudares, um mal maior cairá sobre ti!

Síton olhou para ele, meio acocorado diante do médico, vendo a luz terrível no rosto do outro, e não duvidou do que Lucano dizia nem por um só momento. Soluçando, ajudou Lucano a erguer Ramo e a levá-lo para dentro de casa, depois fugiu. Lucano meteu uma adaga aguda em seu cinturão, apertou os punhos, e sentiu-se cheio de ódio. Voltou sua atenção para Ramo, esparramado na cama. O homem moreno gemia, tornava a gemer, e agitava-se levemente. Lucano examinou-lhe os olhos, e tornou a chorar. A córnea estava dilacerada e sangrando, as pupilas torcidas e apertadas. Ramo ficaria cego da mesma maneira que era mudo. O coração de Lucano torcia-se e latejava, mas suas frias mãos de médico iam tratando dos olhos arruinados enfaixando-os. De novo administrou estimulantes, embora pensasse: Seria melhor que ele morresse do que acordasse para saber que os homens são animais que só merecem a morte. Os homens ricos, poderosos e privilegiados, não são maiores em sua maldade do que os oprimidos, escravizados e sem lar. Fui um ingênuo!

Sentia-se destituído de tudo, vazio e seco como o pó. O ódio era nele como um poço escancarado, esperando para devorar a maldade que era o homem, e escondê-lo para sempre. Sentou-se ao lado de Ramo, segurando-lhe a mão fria, as lágrimas rolando-lhe pelas faces.

Sara escrevera-lhe, alegremente, dizendo-lhe que seu nome era abençoado em todos os portos e que os pobres o adoravam. Lucano riu alto, amargamente.

A mão de Ramo foi se aquecendo na sua, os lábios mudos moveram-se sob as ataduras brancas dos olhos. Lucano curvou-se sobre ele, e disse, delicadamente:

- Tu me ouves, querido amigo?

A cabeça moveu-se, em resposta; os gemidos roucos continuavam, e Lucano reparou, pela primeira vez, que Ramo, afinal, podia articular alguns sons, embora fossem apenas gemidos.

- Vamos receber auxílio, Ramo. Fica tranqüilo. Seremos levados para um lugar seguro.

Procurou seu estojo e dele tirou um frasco com xarope de ópio. Ramo devia dormir, não devia começar a pensar no que lhe acontecera, e nas pessoas que o espancaram. Levou o frasco aos lábios de Ramo e disse:

- Bebe um gole.

Ficou a pensar no porquê de não lhe dizer: "Bebe tudo!" Mas seu treinamento de médico advertia-o, embora seu espírito se sentisse amargurado para além de qualquer apreciação. A morte seria misericordiosa, mas ele era constrangido a evitá-la. Depois que Ramo bebeu e se tornou sonolento, Lucano ainda ficou sentado, segurando-lhe a mão, e o outro finalmente adormeceu, um leve sorriso de paz em seus lábios grossos.

Pareceu a Lucano que demasiado tempo se passara. Teria o acovardado e ingrato Síton tido receio de obedecer-lhe? Não duvido disso, pensou Lucano. São cães, ovelhas e chacais, por natureza. Não mais terei piedade deles, e lhes voltarei as costas pelo resto de minha vida. Minha vida terminou. O que restar eu devotarei ao meu pobre e afetuoso amigo, e serei seus olhos e sua voz. Tocou em sua adaga, e teve desejo de usá-la, como uma outra adaga fora usada em Ramo.

O imenso e brilhante silêncio envolveu a casa. Lucano colocou os dedos, ternamente, sobre os olhos enfaixados, e sussurrou:

“Eu Te escarneci e Te odiei porque fazias sofrer os homens, e não tinhas piedade deles e os deixavas nas trevas. Mas agora sei que és severamente justo e que não merecemos senão o que temos, e ainda menos do que temos. Se Tu rejeitaste o homem, é porque ele não merece aceitação. Dá-me alguma sabedoria. Deixa-me raciocinar o porquê de teres criado este mundo, o porquê de seres onisciente, e de teres sabido o que o mundo seria, e quão detestável seria. Como podes Tu, que lançaste as constelações radiosas sobre as trevas, perdoar-me pelas minhas blasfêmias contra Ti? Ilumina-me! E tem piedade deste bom, deste querido amigo, que tem estado à Tua procura e chorado por Ti, até perder a voz. Tem piedade! Piedade!”

Seus dedos, sobre os olhos enfaixados, começaram vibrar misteriosamente. Desejou retirá-los, temeroso de renovar as dores de Ramo. Mas parecia estar paralisado, e o delicado estremecimento de seus dedos permanecia sobre as faixas. Finalmente, depois de longos momentos, pôde levantar as mãos. Havia nelas uma fraqueza estranha, um entorpecimento, que começou a correr pelo seu corpo como se o sangue dele se estivesse esvaindo.

Houve súbita movimentação no pátio e no jardim, o pisar de pés decididos, e Lucano saltou e puxou a adaga para fora da bainha.

Sentia o desejo apaixonado de matar, como fome em suas entranhas. A cortina despedaçada viu-se posta de lado e foi Turbo quem entrou, Turbo, de rosto transtornado e manchado de lágrimas. E atrás dele estavam escravos armados. Ao vê-lo, Lucano começou a soluçar, soluços sem lágrimas. Estendeu os braços e cambaleou em direção do ceramista, e Turbo tomou-o nos braços, apertando-o contra o peito.

- Não te aflijas, querido senhor disse o ceramista. – Estou aqui para levar-te, e também ao teu servo, à minha casa. E sinto-me honrado!

 

O procônsul romano em Atenas era um homem jovem, ambicioso e expedito. Jamais fora soldado, e sua família era grande em Roma. Lá ele cometera consideráveis indiscrições, o que tornara necessário que a família usasse dinheiro e influência para tirá-lo de Roma por algum tempo. Fora educado para as leis e era muito inteligente.

Lucano, durante toda aquela semana, estivera atirando o nome de seu pai adotivo ao rosto do procônsul, quando pedia justiça. O procônsul, embora admirasse a aparência, o intelecto e a força de Lucano, achava o grego muito tedioso. Lucano era, evidentemente, um cavalheiro, e o procônsul, que também o era, estava inclinado a se mostrar indulgente e grave. Mas o assunto era tão insignificante! O procônsul reclinava um cotovelo elegante sobre a mesa e ficava a olhar bondosamente para Lucano. Atrás dele, em seu gabinete de trabalho, as flâmulas de Roma pendiam majestosamente, e os soldados perfilavam-se com as faces que as águias imperiais rematavam.

- Meu caro Lucano dizia o procônsul, melifluamente. - Compreende-se, como te disse, tua indignação. O camponês rico de que se trata está arrependido e disposto a pagar os reparos da tua casa.

Que mais desejas? Está disposto a pedir-te perdão em público, e confessa que sua mulher tentou pessoalmente o aborto. Ajoelhará diante de ti. Chorará a teus pés. Sejamos razoáveis.

Lucano olhou-o com toda concentração possível de seus furiosos olhos azuis.

- Eu quero que ele seja punido. Quero que seja sentenciado a um longo período na prisão. Que adianta o arrependimento dele para meu amigo Ramo, que ficou cego? As lágrimas do camponês lhe restituirão a vista e removerão seus ferimentos e contusões?

- Tu és tão inexorável suspirou o procônsul. Ofereceu-lhe vinho, mas o grego o recusou com um gesto de desdém. - Consideremos, Lucano. Teu servo, um negro escravo...

- Já te disse, milhares de vezes, que ele não é um escravo! - gritou Lucano. - É verdade que o acusaram erradamente de uma tolice qualquer e ele foi aprisionado. Comprei-o, e já te mostrei os papéis de sua liberdade, liberdade que lhe dei! Como podes pedir-me que aceite o arrependimento do camponês por ele? Se tivesse injuriado minha pessoa, talvez eu chegasse a perdoá-lo. Mas não tenho o direito de oferecer perdão em nome de meu amigo, que não só é mudo, mas agora está cego. Onde está a justiça romana? Continuou ele, amargamente. - Toda a minha vida ouvi falar na justiça romana, e meu pai adotivo a reverenciava: "justiça igual para todos os homens!”.

Que falsidade! Que mentira!

O procônsul tornou a suspirar:

- Teu servo não é apenas um negro, mas um bárbaro. O camponês é um cidadão da Grécia, embora eu pense, particularmente, que os gregos são superestimados. Estou falando dos gregos modernos, que se alimentavam da reputação dos seus antigos grandes homens como as bancarrotas se alimentam do seu capital. Deixa-me ler-te uma regra e um regulamento. - E apanhou um manuscrito, do qual leu: - "Um cidadão de Roma, ou um cidadão de qualquer país que esteja sob a jurisdição da Pax Romana, em certos direitos de dignidade, recurso à lei e à justiça de seus pares." Mas teu servo bárbaro não é homem de origem clara. Nem mesmo é egípcio. Não tem categoria. É homem de cor; não é um homem branco. E tu me pedes que condene um rico cidadão grego, que envia seus impostos para Roma, que é amigo de políticos gregos, mandando-o para a prisão! Precisamos analisar o assunto dentro de um quadro de referências, sem preconceitos, e com senso comum. Já imaginaste o que os cidadãos de Atenas julgariam de uma sentença de prisão imposta a um simples camponês, que honestamente acreditava ter Ramo olho mau?

Malditas sejam tuas regras e regulamentos! Berrou Lucano, enquanto batia duramente com a mão aberta sobre a mesa elegante. - O que vem a ser a lei quando esta se opõe à justiça? Advogados e juízes são asnos abomináveis e deveriam ser suspeitos. Peço justiça para Ramo. É um homem, e foi injuriado quase mortalmente por outro homem; se eu não tivesse chegado a tempo, ele teria morrido. Não tem ele os direitos de um homem, seja qual for a sua origem? Sua qualidade de homem deve ser desprezada? - Respirou profunda e furiosamente.

- Que vem a ser Atenas para mim? Jamais voltarei aqui, onde misericórdia foi paga com ódio.

O procônsul sorriu, um sorriso quase coquete.

- Isso não será desagradável para os médicos atenienses, que estão extremamente revoltados contra ti. Os médicos dizem que tu os privas de pacientes que lhes pagariam consultas. Sentem que os prejudicaste com teus tratamentos gratuitos e que os clientes esperam pela tua volta.

- Eu só ajudei os que não podiam pagar...

O procônsul ergueu os ombros:

- Quem se importa com esse rebanho irresponsável? Além disso e ele tossiu -, dizem-me que aceitaste pacientes ricos, cujos casos eram perdidos, e que pagariam quantias elevadas.

- Curei muitos daqueles que os médicos consideraram casos sem esperança. Se provei que os médicos estavam errados, e humilhei-os em sua ignorância, não é culpa minha.

Lucano batia os punhos sobre a mesa, e seu rosto mostrava-se vermelho e colérico.

O procônsul tossiu mais fortemente:

- Não te disse isso antes, mas os médicos escreveram-me queixando-se de que praticas a magia e a feitiçaria, e isso é uma séria acusação.

Lucano estava perplexo.

- Estás tentando dizer-me que os médicos da Grécia, esses médicos modernos, dão ouvidos a tão bárbaras superstições?

- Oh! Deves saber que eles vão ao oráculo de Delfos, e que todos os homens são supersticiosos, Lucano! Mesmo os médicos. Uma queixa em particular, fala de um comerciante rico que sofria de câncer e que tinha apenas um mês de vida. E tu o curaste.

- Conheço esse comerciante. Seu nome é Cálias. Isso se passou há dois anos. Eu lhe disse que os médicos tinham razão, mas dei-lhe uma poção para aliviar-lhe as dores. Morreu. Tenho certeza disso!

- Não morreu. Está vivo e são, e retirou-se para suas propriedades em Cós.

Lucano estava incrédulo:

- Então os médicos estavam errados, e eu estava errado. Veio procurar-me com o corpo cheio de feridas. É provável que se tratasse de alguma moléstia de pele que se pudesse confundir com câncer, todos nós nos enganamos.

O procônsul sacudiu a cabeça.

- Não. Os médicos estavam certos e tu também o estavas. Por alguma forma de magia tu o curaste, e os mágicos são vistos com profunda suspeita, acreditando-se que estão ligados às forças mais trevosas do inferno!

- Já ouvi antes coisas ridículas, mas esta é a pior! Os médicos apenas se ressentem da minha presença. E os que não podem pagar a consulta? Devem morrer por falta de auxílio?

- Faço honra à tua compaixão, Lucano, embora a deplore. Devo dizer-te, agora, que o camponês fará penitência, mas deves esquecer os danos sofridos pelo teu servo. Para mim, punir o camponês será colocar toda Atenas em torno de meus ouvidos, e é da política de Roma, da explícita política de Tibério César, nosso divino Imperador, manter a paz nas províncias.

- Jamais chegaste a pensar que um ato de justiça romana inspiraria respeito à Grécia, que inventou a democracia? Já ouviste, como eu tenho ouvido, o povo zombar de Roma? Eles não praticam a democracia, mas, como todos os hipócritas, fingem venerá-la. Declara-lhes que todos os homens têm recursos iguais perante a lei... - Mesmo um antigo escravo, um negro, um servo, que foi estupidamente machucado por um grego? Que é teu servo?

Lucano rangeu os dentes. Aquela discussão perdurava, e sempre terminava daquela maneira. Relanceou vagamente os olhos pelas mãos.

Usava sempre o anel de Diodoro e o anel que Tibério lhe dera. Jamais tornara a pensar neles. Mas agora seu rosto corou, e ele se excitou.

Tirou do dedo o anel de Tibério e fê-lo rodopiar sobre a mesa.

- Olha para este anel! Exclamou ele. - Eu te juro, por todos os deuses, que o próprio Tibério, que honrava meu pai e me honra, deu-o a mim para que eu usasse sempre! Duvidas disso? Escreve a Plócio, o bem-amado comandante dos pretorianos, no Palácio Imperial, que é meu amigo, e pergunta-lhe! Tibério ama-o como a um filho, e confia nele acima de todos os homens. E ele é como um irmão para mim.

O anel magnificente jazia sobre a mesa, brilhante e reluzente, e o cônsul, que adorava anéis, ao notar o enorme valor daquele, ficou mudo de espanto. Estava assustado. Apanhou o anel respeitosamente, e examinou-o com reverente temor.

- Se não fizeres justiça no que se refere a esse camponês -, disse Lucano, que desprezava os que usavam nomes e influência - eu mandarei este anel a César e lhe pedirei sua própria justiça, pois ele não permitirá que eu seja humilhado e meu pedido seja rejeitado desdenhosamente.

O procônsul manteve o anel entre os dedos, como quem segura um objeto sagrado e disse, a voz trêmula:

- Por que não me falaste nisso antes, nobre Lucano?

- Não pensei em tal coisa. Não pensei que um funcionário romano precisasse do nome de César para cumprir com seu dever! – O rosto de Lucano brilhava de escárnio. - Meu pai adotivo era um nobre, um tribuno justo, mas os de sua espécie se extinguiram. Ele jamais precisaria de uma quinquilharia vinda das mãos de César para agir!

O procônsul umedeceu os lábios com a ponta da língua. Levantou-se, ainda segurando o anel, curvou-se diante de Lucano e, suplicando-lhe perdão, recolocou-lhe o anel no dedo. Depois, voltou-se para seus soldados e disse-lhes em voz que retinha de cólera:

- Prendei imediatamente aquele canalha, e atirai-o na prisão, a fim de esperar o que me parecer melhor. Deve um romano sofismar diante de seu dever? Ide! O nobre Lucano foi imperdoavelmente insultado por um mero camponês, e eu o vingarei!

- Tu não ficarás sem a tua vingança, disse Lucano a Ramo, preparando-se para remover as ataduras de seus olhos cegos. - Tenho a palavra do procônsul romano, dada ontem, de que prenderia o marido de Gata e o entregaria à justiça.

Estendeu as mãos, delicadamente, para as ataduras, mas Ramo afastou a cabeça daquele toque delicado, e sua grande boca retorceu-se.

Lucano recuou, e ficou apavorado quando viu uma lágrima rolar de sob o pano.

- Que é isso? Interrogou, consternado. Ramo agarrou-lhe a mão, articulando silenciosamente, mas em desespero.

- Não chores falou Lucano, assustado. - Magoarás o que resta de teus olhos.

O belo quarto que Turbo destinara a seus hóspedes brilhava com a luz do sol. Lucano, sacudindo a cabeça diante de sua própria falta de consideração, puxou as cortinas sobre as janelas. Depois recordou-se, sentindo o coração abater-se, de que Ramo jamais tornaria a ver o sol. Voltou-se para o servo, e viu as lágrimas que corriam. Pôs a mão na testa dele:

- Não chores tornou a dizer, em voz sussurrante. Depois, mais alto, falou: - Pensas que me dá prazer imaginar que mesmo aquele camponês, que destruiu teus olhos, deve sofrer pelo que fez?

Compreendes que eu só desejei que ele aprendesse que não se podem fazer essas coisas aos inocentes; que ele não pode, impunemente, devastar o lar de um homem, que não pode prejudicar os que não o prejudicaram? Ele será homem melhor depois de levar alguns açoites, depois de passar algum tempo atrás das grades. A lei é a lei.

Voltou para Ramo, que mais uma vez agarrou-lhe a mão. Turbo, humildemente animado, entrou no quarto.

- Ah! As ataduras vão ser retiradas hoje disse ele, dando, ao passar, pancadinhas amistosas nas costas de Ramo. Olhou significativamente para Lucano e inclinou-se. Parecia oprimido. - Senhor - continuou num murmúrio -, o próprio procônsul, o procônsul romano, espera aí fora, para dizer-te uma palavra.

- Trá-lo aqui respondeu Lucano. - Quero que ele veja por si mesmo o que pode ser feito sob a sua jurisdição, e o que pode ser consertado só depois de insistentes pedidos!

Seu tom autoritário fez com que Turbo tornasse a se curvar.

- Mandarei meu melhor vinho! Exclamou ele, ansiosamente. - E vinho para seus centuriões, no pátio. - Parou: - Achas que o nobre procônsul honrará esta casa?

- O procônsul romano disse Lucano, ambiguamente - apreciará qualquer coisa de valor.

Lucano quase esquecera o procônsul. Com um toque tão leve como o de uma pluma começou a remover a espessa atadura dos olhos feridos. Tentava ignorar o lento escorrer das lágrimas que deles vinham. Esperava apenas que a ferida estivesse curada, que não existisse infecção. Mas suspirava, sabendo que a luz diminuída revelaria olhos afundados, pálpebras murchas e pupilas para sempre destruídas.

- Ah! Murmurou se eu pudesse dar-te um dos meus olhos, meu querido Ramo! Eu o arrancaria de sua órbita para colocá-lo na tua! Peço apenas que não sofras dores daqui por diante, e que consigas te resignar.

- Resignação, com uma fortuna, mesmo sem olhos, pode ser uma recompensa disse uma voz suave junto de Lucano. E ele voltou-se, para ver o procônsul, que ali estava, sorrindo agradavelmente.

- Cumprimentos, nobre Lucano! Trago-te excelentes notícias!

- Bom falou o médico, as sobrancelhas franzidas e voltando ao trabalho. - Poderás ver que isto é coisa das mais delicadas. Estou com esperança de que os olhos de Ramo estejam cicatrizados, e que não exista qualquer inflamação.

O procônsul quedou-se numa atitude elegante e apertou os lábios, enquanto olhava para o negro. Todo aquele ardor por causa de um miserável, de um desgraçado sem nacionalidade, que pouco mais era do que um escravo! Esses gregos... Era impossível entendê-los.

Naturalmente havia a lembrança de Tucídides, de Xenofonte, de Ésquilo, que consideravam todos os homens valiosos e, Deus, Todo-misericordioso, amando todos os Seus filhos. Mas aquilo não passava de filosofia. Os homens lidavam era com a matéria bruta da vida, e só durante o repouso, com um vinho como aquele, é que se poderia falar nesses nobres assuntos, virtuosamente, e congratular-se consigo mesmo pela sua sensibilidade.

- Ah! Sim disse ele -, entreguei o camponês à justiça, meu caro Lucano. Os magistrados informaram-me hoje que, quando ele lhes for apresentado, ordenarão sua execução. Além do mais, e isso alegrará o teu servo, suas terras e seu dinheiro serão confiscados e entregues a vitima em recompensa.

Lucano teve um sobressalto violento, e Ramo, deitado em sua cama, sentou-se de repente, torcendo as mãos.

- Execução! Exclamou Lucano. - Eu te pedi justiça, não assassinato!

O procônsul não estava acostumado a ouvir ninguém falar-lhe dessa maneira, e muito menos um grego. Fechou o rosto, furioso, para Lucano.

- Não me fales dessa maneira, filho adotivo de Diodoro Cirino, disse ele, a voz fria. - Podes ser um médico e cidadão de Roma, o herdeiro de uma fortuna romana, pois disso me informaram ontem, mas eu... Eu sou um romano!

- E eu sou um homem! Exclamou Lucano, o rosto sombrio.

- E que é um romano, afinal, senão um homem também? Ah! Terei que aparecer diante dos magistrados. Então direi o que devo dizer: que a justiça deve ser temperada pela misericórdia.

O procônsul sorriu, e tornou a bebericar o seu vinho.

- Foste tu, caro Lucano, quem me perseguiu como uma sombra, pedindo o castigo do camponês. Agora, recuas.

Lucano apertou as mãos e olhou, angustiado, para os olhos zombeteiros do procônsul.

- Sim, disse ele -, pedi justiça, acreditando que se tratasse de alguns açoites e umas tantas semanas na prisão. Isso, porém, é monstruoso.

O procônsul levantou as sobrancelhas, cuidadosamente depiladas, sob o remate de seu elmo bem trabalhado.

- Vê o que deseja o teu servo, disse. - Não sentes que ele está puxando teu braço? Com toda a certeza não queres ignorar alguém que te é tão precioso.

Recostou-se a uma coluna de ônix, os olhos faiscantes de jovialidade. Lucano ainda contemplou o por um momento, depois voltou sua atenção para Ramo, que forçou a se deitar novamente.

- Acalma-te falou, severamente, - Não deves debater-te. Isto pode causar-te dores, mas a dor será de curta duração. - Relanceou os olhos para o procônsul, por cima do ombro: - Peço-te que esperes até que eu complete este trabalho.

- Eu tenho apenas vinte gregos insistentes à minha espera - disse o procônsul. - Isto não tem importância, naturalmente. Uma casa encantadora. Estive observando-a. Ah! Quando chegará o dia em que escravos e camponeses e homens de trabalho pesado consigam adquirir maravilha igual!

Lucano não lhe deu resposta. A última atadura manchada de sangue estava agora em seus dedos suaves. O procônsul, de súbito interessado, esticou o pescoço. Lucano aspirou profundamente o ar, depois retirou o derradeiro pano. Fechou os olhos, para não ver a horrorosa ruína no mesmo momento.

O silêncio rodeava-o, e sua testa porejava suor. Ninguém se moveu, e então o procônsul disse:

- Ora, mas o escravo nada tem de mau nos olhos! Que tolice é esta?

Imediatamente, os olhos do médico abriram-se. Olhou para Ramo, que lhe sorria, radiante. Os grandes, límpidos e negros cílios estavam perfeitos, brilhantes e sem qualquer cicatriz. Lucano, mudo, curvou-se para o negro, pestanejando para afastar o enevoado de seus próprios olhos. Estava incrédulo. Não podia acreditar numa coisa daquelas. Agarrou o queixo de Ramo em seus dedos suados e movimentou-lhe a cabeça de um lado para o outro. Correu a abrir para trás as cortinas. Seus joelhos estremeciam. Voltou para o leito, e ficou a olhar os olhos que se levantavam para seu rosto, sem poder acreditar no que via.

A habilidade médica não podia ter realizado tal coisa. Mais uma vez ele se enganara! Recordou-se da peste, do câncer de Cálias, de outros casos estranhos que atendera, e agora havia aquilo. Gritou para Ramo:

- Podes ver-me? Em nome de Deus, podes ver-me, meu amigo?

Ramo confirmou com um movimento de cabeça. Estendeu a mão e tocou a de Lucano, e uma luz pura irradiava de seu rosto. Ergueu então a barra das vestes do médico e beijou-a, como quem beija a barra da veste de um deus, encostando a cabeça à anca de Lucano, como uma criança.

- Eu te digo, falou Lucano, através de lábios gelados que vi os olhos dele! Sou médico. Aqueles olhos estavam diminuídos, rasgados, sangrando; a pupila se havia retraído, desaparecendo; o fluido vital se escapara deles. Ele estava cego!

O procônsul deixara de sorrir. Recuou alguns passos e olhou com medo para Lucano. O médico estava repetindo:

- Ele estava cego! Gritava. - Conheço a cegueira quando a vejo! Isto não podia ter acontecido!

- Feitiçaria! Murmurou o romano, recuando um pouco mais. Tossiu. Relanceou os olhos para o anel de Tibério, na mão de Lucano, e parou. Depois, disse: - Meu caro Lucano, bem sabes quanto os gregos são sensíveis à feitiçaria. Aconselho-te que deixes Atenas o mais discretamente possível. Eu, como romano, estou acima de superstições, mas tenho que administrar este maldito país e não quero transtornos.

A cabeça de Lucano remoinhava, com ruídos confusos e relances de luz. Correu para o procônsul, levou a mão ao braço dele, mas o romano, assustado, recuou.

- O camponês! Disse Lucano. - Que vai ser do camponês depois de eu me ter enganado desta maneira terrível?

- Tratarei de que seja solto, depois de passar um mês na prisão por assaltar o servo de Lucano, prejudicar-lhe a casa e incitar levantes disse o procônsul. E fugiu dali. O som de suas sandálias apressadas levantava ecos. Turbo entrou, timidamente:

- Senhor disse ele -, o nobre procônsul correu para fora desta casa como se as Fúrias estivessem a perseguí-lo. Tê-lo-ei eu ofendido, de alguma forma?

- Não disse Lucano, abstraído. Apontou para Ramo. Tu vês que ele não está cego, Turbo. Eu tinha me enganado de uma maneira terrível. Não sou um bom médico; engano-me demais.

Contudo, estou feliz por me haver enganado...

Turbo aproximou-se de Ramo e olhou para os olhos sorridentes dele. Fixou então os seus em Lucano. Ramo ergueu-se da cama, levantou as mãos acima da cabeça, as palmas juntas, trouxe-as ao peito e prostrou-se aos pés de Lucano.

- Meu pobre amigo disse o médico, em voz trêmula. - Deite tantos dias de sofrimento, por dizer-te que estavas cego. Peço-te que me perdoes.

 

Em anos posteriores, Lucano pensou com freqüência na época que se seguiu à sua rápida fuga de Atenas embora para ali voltasse, quase sem ser notado, muitas vezes depois como um período "árido". Movimentava-se através do Império sussurrante, fulgurante, efervescente, e ia desatento, embora a habilidade e a delicadeza, como médico, aumentassem. Nunca tendo sido loquaz, tornou-se ainda mais silencioso. Sua vida pessoal fez-se mais sóbria; era semente em sua casca, esperando a primavera e as águas da primavera, a fim de se transformar em árvore. A semente, que era ele próprio, não se moveu durante aqueles anos, não lançou galinhos verdes, antes manteve-se ressecada e sem muitos pensamentos ou emoções. Cada vez se tornava menos comunicativo. Apenas quando Sara aparecia inesperadamente em algum porto, seus olhos azuis brilhavam, e seu belo rosto iluminava-se. Mas via Sara somente uma ou duas vezes por ano. Ramo não podia falar com ele. Tinham organizado um eloqüente código de sinais, que lhes convinha melhor do que a palavra. Andavam como espíritos benevolentes, mas silenciosos, através dos portos fervilhantes, e sentavam-se calados nas pequenas casas e jardins de Lucano, bem como ficavam encostados às amuradas dos navios, observando as estrelas e a lua, as auroras e os crepúsculos. Lucano preferia chegar à noite às suas casas para evitar cumprimentos da multidão, como acontecera algumas vezes. Quando visitava Atenas, tinha que inventar algumas pequenas mentiras para recusar a hospitalidade de Turbo. Milhares de pessoas amavam-no, milhares olhavam-no como a um deus. Ele evitava-as, a não ser quando o procuravam angustiadas ou cheias de dor. Sua sensibilidade aumentou e havia nele uma espécie de melancólica expectativa. Esperava ansiosamente as cartas vindas de sua casa, e deleitava-se especialmente com as de Prisco e Aurélia, mas as poucas cartas com que as respondia eram breves. Parecia alguém que morresse de fome, e ainda assim tivesse tremenda aversão pelo alimento.

Ia a Roma uma vez por ano, e de cada vez pretendia demorar-se mais tempo. Invariavelmente, porém, depois de poucos dias, uma inquietação se apoderava dele, e partia, entre exclamações de lástima, de censura e de amor.

Certa vez disse à mãe:

- Não me perguntes o que há de mau comigo, pois não sei. Quando procuro em minha mente, nada acho a não ser pó, e mesmo nesse pó encontro sempre o movimento da dor. Tenho medo de me aventurar mais profundamente.

Às vezes, ele relia a vasta quantidade de escritos que Keptah lhe deixara. Um escrito, especialmente, ele lia e relia, franzindo as sobrancelhas, em perplexidade, mas sentindo que palpitava aquela dor sufocada. "O que procura no homem a significação da vida procura uma desilusão, pois os homens nada são exceto em sua relação com Deus. Não centralizes teu coração na humanidade, pois que ela é quimera, miragem. Houve os que glorificaram o homem, os que elevaram a humanidade como um absoluto em si própria; eles declararam, com veemência, que o homem só tem valor em suas manifestações externas. Este ensinamento alcançou quase todos os países civilizados, para mal deles, pois a lei de justiça e misericórdia não tem raízes nos homens, mas em Deus, e sem Ele os homens realmente não podem existir, sem Ele que os fez. O homem é apenas o receptáculo da graça; não é a própria graça."

Quando Lucano lia aquilo, era como se portões antigos e enferrujados rangessem, em seus gonzos, implorando dentro dele, desejando serem abertos. Mas ele se afastava. Não sentia mais a cólera apaixonada contra Deus, pois agora bem raramente Nele pensava. Se Deus se introduzia em sua mente, ele encolhia-se, cansado, pois Deus era realmente um grande enigma para Lucano, e não devia ser despercebido, nem cogitado, nem levado ao combate, nem olhado apenas de forma abstrata, pela fé, ou racionalizado através da ciência. As vezes, pensava nas épocas inúteis passadas antes dele, nas épocas de sombra que tinha diante de si, e uma fadiga imensa dominava seus sentidos. Fitava as estrelas e recordava-se das conjecturas dos astrônomos egípcios, que perguntavam se aquelas poderosas constelações não seriam planetas infinitos, girando em torno de sóis, e se novas constelações, com novos mundos e novos sóis, não estariam sendo constantemente criadas. Aquele pensamento intensificava a exaustão espiritual de Lucano e trazia-lhe uma sensação de futilidade.

Uma vez, em Corinto, um velho sacerdote, muito pobre, muito humilde e muito sensível dissera-lhe:

- Quando estou deitado em meu catre, durante a noite, uma estranha segurança se apodera de mim, como se eu tivesse recebido uma mensagem. Deus nunca está ausente dos negócios dos homens, embora com muita freqüência nós não estejamos conscientes da presença Dele. Mas agora eu sei que uma tremenda revelação está próxima, mas a forma ainda não é clara para mim. Deus se manifestará poderosamente a Seus filhos, de novo, como fez em épocas passadas, e a própria terra lateja em expectativa. Sinto isso! Sei isso! Porque o mundo inteiro perdeu a visão de Seu rosto, e de novo Ele a revelará, talvez em cólera, mas, seguramente, também com amor.

- Por que essa folha amarelecida numa floresta infinita? - perguntara Lucano cinicamente. - Por que esse grão de areia numa praia sem fronteiras? Por que esse fragmento insignificante num vendaval? Isso é fantasia!

Estavam sentados no empoeirado jardim do sacerdote, no qual os frangos ciscavam esperançosos. O sacerdote sorrira e apontara para uma galinha rodeada de muitos pintos. Eles seguiam-na, às vezes, escondendo-se sob suas asas, às vezes perambulando a distância.

- Eles conhecem-lhe a voz dissera o sacerdote. – Aquela pobre galinha não sabe contar, mas conhece o que lhe pertence. Se um dos pintos se perde, o menor, o mais sujo, o mais fraco, ela o procura e o encontra. Talvez aquele pequenino pense na razão de sua mãe se preocupar com ele, com sua plumagem reles, com sua absoluta inutilidade como ave, e com sua insignificância. Como pode ela, talvez pergunte a si próprio, saber onde estou, se tem tantos filhos; e que lhe importa que eu tenha minha parte de alimento, que receba proteção e afeto? Digo-te, meu caro Lucano, que para o amor nada é inútil, nada é demasiado, nada é quantidade exagerada, nada é muito pouco.

O amor jamais abandona. Para Deus, esse fragmento insignificante em que nos encontramos é tão caro quanto a Sua mais vasta coroa de estrelas, no espaço que fica para além da nossa compreensão.

E acrescentara:

- Tu raciocinas com a tua mente, que é a escrava cega de teus cinco e incertos sentidos. Os maiores filósofos gregos, que adoravam a razão, finalmente tiveram de voltar ao Misterioso, ao Desconhecido, e sempre com relutância, pois Ele está para além de sua razão, essa minúscula, pequenina faísca numa caverna escura e inexplorada. Deus só pode ser compreendido pelo espírito.

Lucano, contudo, entorpecido pelo cansaço, levantara-se e saíra dali. Não desejava revelação alguma. Havia ocasiões em que anelava a morte.

Quando recebia cartas de sua irmã Aurélia pensava nela como numa criança. Ao voltar a Roma, em uma de suas raras visitas, ficou perturbado ao vê-la atingindo a idade adulta. E agora, que ela estava para se casar, Lucano devia assistir ao casamento dela com Clódio Flamínio, filho de antiga e aristocrática família. A moça tinha dezenove anos, ultrapassara de muito a época normal do casamento, o que preocupara Íris, sua mãe. Pretendentes não faltaram, em profusão, pois a filha de Diodoro Cirino, com seu dote, era um bom partido além de ser extremamente bela. Aurélia, entretanto, não mostrara urgência de se casar aos quatorze, dezesseis, ou mesmo dezessete anos. Sorria da ansiedade de sua mãe e não se preocupara quando Íris lhe dissera:

- As moças da tua idade já são esposas e mães há anos. Estás pensando em te tornares uma Virgem Vestal?

Lucano, porém, sabia que sua irmã não tinha devoção especial para os deuses, embora os aceitasse serenamente. Suspeitava, também, que ela não fosse de inteligência acima do comum, pois ouvira o velho Cusa queixar-se de sua falta de gosto pelos livros.

- Não é companheira para um Péricles! Resmungou ele, certa vez, para Lucano. - A filosofia fica além de suas possibilidades. Não se interessa por política, ações, leis e bancos, como todas as outras mulheres de Roma. Nem sabe da existência do mercado de ações, negócios, casas de corretagem na parte norte do Fórum, como as outras mulheres romanas de sua idade sabem muito bem. Mesmo suas amigas, jovens matronas, sentam-se com ela, tagarelando sobre seus investimentos e discutindo casos sensacionais dos tribunais, ou se gabando de suas próprias contas bancárias, ou das de seus maridos, antecipando acontecimentos sociais, viagens de inverno ao sul, as modas mais recentes, jogos e gladiadores, e ela ali fica, sorrindo agradavelmente, mas bocejando.

- Parece nada desejar disse Íris, cujo cabelo maravilhoso era agora uma cascata de pura prata. - Mas até quando uma mulher que já não é jovem pode contentar-se com uma lareira, sem desejos?

Certa vez, Lucano, persuadido por sua aflita mãe, conversou com Aurélia, quando ela tinha dezoito anos, uma solteirona já. Fez aquilo com relutância, pois acreditava que não se devia interferir na vida dos outros. Mas disse:

- Por quê, minha irmã, não te preocupas com o teu futuro? Nossa mãe é muito velha, e viveu para além do tempo normal de vida, pois tem cinqüenta e quatro anos. Como podemos esperar que viva muito mais tempo, para proteger-te? Teu irmão, Prisco, é um soldado de Druso, e é pai de família; nosso irmão mais novo está metido entre seus livros, e deseja ser professor. Provavelmente jamais se casará.

Esperas viver teus dias nesta terra, como a irmã indesejada de Prisco, quando nossa mãe morrer e ele trouxer sua esposa e sua família para esta casa, como herdeiro que é?

Mas Aurélia dera-lhe apenas um profundo e lento sorriso, chamara-lhe a atenção para um bando de borboletas amarelas que flutuavam sobre as rosas. Fora inútil. Ainda assim, estava para se casar, com grande alivio para Íris, e o jovem tinha a idade de Aurélia. Lucano devia ir de novo a Roma para o casamento.

Agora, enquanto Lucano se apoiava na beirada do pequeno mas veloz galeão romano que o apanhara em um porto africano perdido, posse a pensar insistentemente em Aurélia. Íris, que conhecia tão fortemente o amor, não arranjara o casamento para a filha: ao contrário de outras mulheres, acreditava na necessidade do jubiloso consentimento da noiva, no que se referia ao matrimônio que ia contrair. Sua amiga, a esposa de Plócio, embora muito mais nova do que ela, organizara um encontro entre a família de Clódio Flamínio e Íris, e Clódio e Aurélia. A primeira vista, haviam, aparentemente, sentido amor um pelo outro, embora o jovem pudesse ter escolhido noiva mais adequada, de quatorze ou quinze anos, e não uma mulher de dezenove. Aquela altura, Lucano percebera certa nota enigmática nas cartas de Íris, tal fato o deixara perplexo e nada explicara. Íris deveria mostrar, sem dúvida, mais felicidade e alívio com a expectativa do casamento entre membro de tão distinta família patrícia e sua filha. Embora a inquietação de Lucano reaparecesse a cada vez que tinha necessidade de pensar nos que o amavam, e em seus negócios pessoais, forçou seu interesse por aquele caso.

Toda uma seqüência de quadros levantou-se diante dele, mostrando-lhe a irmã em sua infância e idade adulta. Via seus tranqüilos olhos castanhos, cheios de luz, ouvia-lhe o riso delicado. Via-se correndo para apanhar um pássaro caído, mantendo-o contra o peito; via os cães da propriedade seguindo-a com olhos de adoração e orgulho, e mesmo os touros mostrarem-se calmos quando ela se aproximava deles. Os cavalos veneravam-na e os servos não sabiam mais o que fazer por ela. Observando o porto quente e abarrotado, com suas turbas veementes movendo-se nas docas, e ouvindo os gritos intermináveis do Oriente, farejando seus odores, fétidos ou aromáticos, Lucano pensava naquilo. Ali havia um enigma que lhe aguçava o interesse.

Ramo estava ao lado dele e observava o carregamento do navio. O rosto, africano e majestoso como de costume, tinha um ar de busca ansiosa, e ainda assim de confiante espera. Seu cabelo negro e crespo estava agora entremeado com mechas de um cinza carregado, mas seu corpo não mostrava sinais da idade, retendo sua força muscular e sua agilidade. Os olhos úmidos observavam cada rosto que se aproximava.

Por instinto, através de todos aqueles anos, sabia quando Lucano se voltava para ele, e quando começava a pensar nele, e relanceou os olhos para Lucano, sorrindo com amor. Depois, recomeçou a estudar a turba das docas.

O navio saiu, e pareceu imobilizar-se sem navegar, sobre a seda azul e plana de um mar tranqüilo. A praia ficou para trás como se retraísse. O sol olhava lá de cima, de um céu branco de tão ardente, e as velas mal se enfunaram. O próximo porto de escala era o mais acima, no continente onde um carregamento de especiarias estava à espera. Ali chegariam dentro de duas horas. Lucano sentou-se sob o toldo de listras brancas e vermelhas da coberta. Havia alguns outros passageiros, pois o navio era correio e cargueiro. O grego começou a pensar em sua vida, todo o seu temperamento, até então, fora objetivo pois que se forçara a ser assim, temendo o subjetivo, sabendo que se desse à introspecção ficaria reduzido ao desespero. Olhou para trás, para a sua vida, como alguém que, de pé na montanha mais alta, pudesse olhar para as planícies onde estão as cidades, os rios distantes, o oceano longínquo, os campos e as aldeolas. Ainda assim, quando agora olhava para sua vida, era como se tudo fosse obscuro, sem sentido, infrutífero, desprovido de cor. Esqueceu os incontáveis milhares de pessoas que curara e consolara, ou que guiara com misericórdia para a morte inevitável, mas tranqüila. Jamais pensara assim em si próprio, e aquilo perturbou-o, aquela sua falta de raízes fora escolha própria, e ele fizera sua própria vida. Agora, via-se diante de si mesmo, e via-se como alguém que nada dera e nada recebera, alguém que jamais faria falta. Sua melancolia tornou-se em sua boca sabor pesado de metal, pedra sobre seu peito. Ramo olhou para ele, da amurada em que se apoiava, e pensou: Meu Senhor está desgostoso.

Procura, embora não saiba o que e quem procura.

Antes do arrebol o navio atracou no porto seguinte, e um centurião subiu a bordo, acompanhado de seis soldados. O centurião também trazia consigo a sua família; era um homem moreno, de tipo adunco, como a maior parte dos soldados romanos, mas sua expressão mostrava-se delicada e paciente, e aquilo atraiu o interesse errante de Lucano.

Era coisa pouco habitual um oficial romano falar bondosamente com seus soldados e mostrar um aspecto de tão tolerante compreensão.

Quando falou com os escravos que traziam os pertences de sua casa - via-se que retornava a Roma, pois não era jovem sua voz rascante revelava estranha profundeza e compaixão. E ele sorria aos escravos, encorajando-os. Ainda assim, a atitude era meio arrogante, o corpo, largo, forte e poderoso, apesar da idade; e o rosto queimado de sol, embora curtido, conservava linhas de uma intolerância passada.

Caminhava com firmeza, e olhava em torno de si com o ousado escrutínio de um romano. Quando seus olhos divisaram Ramo, encostado à balaustrada, Ramo vestido com a roupa pobre de um escravo ou de um liberto sem recursos, não os desviou, embora por um instante hesitassem.

Depois, sorriu para Ramo, como um homem sorri para seu irmão, e Ramo sorriu, em retribuição.

Instalou a família numa coberta mais abaixo, com o auxílio de seus escravos e servos, e voltou sozinho para a coberta superior. Olhou para o mar, satisfeito, e depois para o céu, sorrindo. Abriu as pernas grandes e morenas e equilibrou-se contra o leve balanço do navio, os polegares metidos no amplo cinto de couro onde ficava sua espada curta. Removeu o elmo e enxugou o rosto suarento. A expressão tornou-se jovial, e ele relanceou os olhos para Lucano. Era evidente que desejava companhia, e o médico levantou-se polidamente convidando O soldado a tomar com ele um pouco de vinho. Ramo desceu e trouxe para cima o vinho e três taças, servindo o líquido vermelho. O médico esperou um olhar de surpresa ou de afronta no rosto do romano, pela presença tão natural do negro, e pelo seu espanto ao ver que sua participação no vinho era tolerada por Lucano. Mas o centurião aceitou o vinho de Ramo, com um sorriso bondoso, e depois sentou-se junto de Lucano, que se apresentara enquanto esperavam pelos serviços de Ramo.

- Deixei a Judéia há três semanas disse ele para reunir-me à minha esposa e minhas duas filhas que estiveram gozando o ar seco do deserto. Minha família não está muito bem suspirou ele, mas imediatamente o ar de paz voltou a seu rosto. - Agora, fui reformado, tenho uma pequena propriedade perto de Nápoles e ali pretendo viver o que me resta de vida, sem remorsos nem mais ambições. - Seu nome era Antônio, e ele continuou: - Houve um tempo em que acreditei que para mim não houvesse outra vida a não ser a de soldado e guardião de Roma. Houve um tempo em que fui o mais orgulhoso dos homens e, envergonha-me confessá-lo, o mais impaciente.

Lucano mostrou-se interessado. Orgulho e impaciência não eram sentimentos vistos como censuráveis pelos romanos, mas como parte mesmo do caráter nacional.

O centurião deu um olhar tímido, hesitante, e Lucano ficou muito intrigado. O olhar tinha algo de infantil, uma certa candura. Ramo, que estava de pé ali perto, aproximou-se mais.

- Mas tudo isso não te deve interessar, Lucano, disse o soldado, como quem se desculpa. - Deves perdoar os devaneios de um velho. - Bebeu seu vinho e olhou sonhadoramente para o céu. - Ainda assim, sinto-me impelido a falar com quem quer que deseje ouvir. - Levou a taça aos lábios e ainda ficou contemplando o mar que subia, e um ar de exaltação e candura brilhou em seus olhos altivos.

- Realmente, estou muito interessado disse Lucano, fazendo sinal a Ramo para que servisse mais vinho. Antônio agradeceu a Ramo e o médico tornou a espantar-se.

O centurião afastou os olhos do mar e ficou a olhar para a taça que mantinha nas mãos morenas. E disse:

- Durante muito tempo vivi em Cafarnaum. Ali estive em meu posto, até que a meu pedido volto para Roma. Deves compreender, Lucano, que os judeus se parecem muito aos romanos. Têm o mesmo orgulho, a mesma tenacidade e amam seu país; também são astutos, embora sejam igualmente muito religiosos. Negociam. E rezam. São excelentes negociantes. E dão esmolas aos pobres.

- Sim disse Lucano com um sorriso afetuoso, - Compreendo. Meu pai adotivo era assim. Ele também costumava dizer, com freqüência, que os romanos e os judeus eram muito parecidos.

Antônio confirmou com um movimento de cabeça. Estava muito sério, como um velho soldado.

- Os judeus detestavam-me, como detestam todos os romanos...e irmãos não detestam uns aos outros? E ainda assim, com a passagem dos anos, tornamo-nos excelentes amigos. Aprendi, não só a vulgata e o aramaico, mas também o hebraico dos sábios, e às vezes eles me visitavam, embora sem grande freqüência, e falavam de muitas coisas comigo. Eu cooperei, há alguns anos, na construção de uma sinagoga que, sendo as de Cafarnaum muito pobres, fazia-se muitíssimo necessária. Não sou homem pobre, e dei dinheiro meu, com generosidade, para a sinagoga. Sim, éramos amigos, gostando uns dos outros, os judeus e eu. Minha filha mais velha casou-se com um jovem e erudito judeu, e vive com ele em Jerusalém. Têm três filhos, que são belos - acrescentou, os olhos umedecidos.

Lucano ouvia, cortesmente, mas começava a se entediar. O centurião tinha um ar muito grave, e o médico lembrou-se de que os antigos soldados são às vezes muito cansativos e dados a divagações que eles acham, em retrospecto, verdadeiramente portentosas.

- Deixei meu servo com minha filha e sua família, disse Antônio, sempre olhando para sua taça. - Devo falar-te a cerca desse servo, pois que é importante. Foi meu companheiro de infância e era escravo. Éramos como irmãos. Quando entrei para o exército, meu pai deu-me aquele escravo, e eu o libertei pois queria-lhe um grande bem. Seu nome é Crético, e ele tem cinqüenta anos, dois mais do que eu. Jamais foi um escravo para mim, Lucano, disse o centurião, levantando os olhos para desafiar o outro.

- Homem algum é realmente escravo respondeu Lucano. O sol estava descendo rapidamente e o mar tornara-se de púrpura, o céu uma conflagração.

Antônio fixou no grego um olhar penetrante.

- Deves lembrar-te de que os gregos têm uma tradição. Fazem a libação ao Deus Desconhecido, antes de beberem.

- Sim disse Lucano, o coração apertado e sentindo-se cheio de uma dor amorfa, ainda assim impaciente. - Meu pai fazia isso.

Antônio ergueu a taça para que Ramo lhe servisse mais vinho.

Mas, quando servido, não chegou os lábios à taça. Olhou para o espaço, diante dele, para o escarlate glorioso do céu.

- Eu vi o Deus Desconhecido disse, num tom muito calmo.

Lucano franziu as sobrancelhas. O homem se estava fazendo tedioso. Sabia existirem entre os romanos essas superstições, embora eles insistissem em se dar como realistas. Não havia santuário algum em todo o mundo, dedicado que fosse a qualquer obscuro deus do Oriente, da Grécia ou da África, que eles não tivessem visitado, afetando sempre desprezá-los. Mas estavam sempre ali e deixavam dinheiro para os templos e enchiam-se de amuletos.

- Sim disse Antônio, cuja voz tremia. - Eu vi o Deus Desconhecido. Mas agora Ele não é desconhecido! Meus olhos viram-No a distância, há apenas alguns meses. Precisas acreditar em mim - acrescentou, implorando, percebendo o desinteresse de Lucano.

- Não duvido que acredites nisso, falou Lucano, voltando o rosto para o centurião. O cabelo dourado, agora prateado nas têmporas, fazia halo para sua nobre cabeça, e o arrebol refletia-se em seus olhos de um azul de gelo.

- Eu acredito! Exclamou o centurião, com voz de poderosa exaltação! - Precisa ouvir; não deves duvidar! É imperioso que acredites, que todos os homens acreditem!

Lucano, algo desgostoso, murmurou. Mas a dor aumentava em seu coração, desabrochando como flor imensa e vermelha, e ele não sabia por quê. Desejava desculpar-se; nunca tendo sido emotivo, a não ser na cólera, ficava embaraçado diante da impetuosidade, diante da ansiosa imaturidade e insistência. Moveu-se, constrangido, em sua cadeira, mas não podia sair dali, não seria decente. Olhou para Ramo, cujo rosto escuro ele notou estava iluminado, como que arrebatado. O grego disse:

- Conta-me sobre esse... Sobre esse homem...

O centurião estendeu a mão e agarrou o braço de Lucano.

Os dois olhos dele luziam como um fogo escuro.

- Isto devo eu dizer a todos os homens; que vi Deus, que estive em Sua presença, embora não ousasse me aproximar demasiado Dele.

- Compreendo disse Lucano, penosamente. - Eu próprio estive no Pátio dos Gentios, em várias sinagogas. Mas não fui admitido no pátio interno, onde estão os manuscritos, e os altares. Teus amigos judeus admitiram-te ao santuário, embora isso seja proibido aos Gentios?

A mão que agarrara seu braço tornou-se mais forte, e o centurião inclinou-se para ele, trêmulo. A luz carmesim brilhava em cada ruga de seu rosto bronzeado, nas suas órbitas, ao longo da linha de seu nariz aquilino.

- Precisas ouvir! Disse. - Não, não fui admitido diante do altar nem diante dos manuscritos. Mas vi Deus, e isso há apenas alguns meses. - Levantou a mão, em solene gesto de juramento: - Juro-te que O vi, com estes olhos, e que Lhe ouvi a voz.

O homem é louco, refletiu Lucano.

O centurião tocou seus próprios olhos com os dedos.

- Com estes olhos! Exclamou e, de súbito, havia uma lágrima em seu rosto. Ramo estava de pé, ao lado dele, e a respiração do negro vinha forte, seus próprios olhos reluziam. – Lucano, disse o centurião, em voz de profunda urgência -, tu deves recordar que os judeus ensinam, há muitos séculos, que um Messias nasceria entre eles, um Rei. E nasceu, e está agora na Terra de Israel. Eu O conheci antes que chegasse a Cafarnaum. É jovem, na carne de um homem, e talvez não seja assim tão Jovem. Há muitos falatórios. E Ele tem realizado muitos milagres.

A boca de Lucano comprimiu-se até que dela desaparecesse toda a cor. De súbito, sentia-se esclarecido. E disse, friamente:

- Penso que compreendo. Tenho uma amiga, uma mulher, que me falou nesses milagreiros judeus, nesses místicos. Muito antes que os médicos gregos compreendessem que a mente doente pode infeccionar o corpo, os judeus sabiam disso. E assim, os milagreiros, libertando e curando a mente enferma, podem restaurar a saúde do corpo. Isso não é novo, Antônio. Nem mesmo é milagre, embora não saibamos, naturalmente, o que vem a ser a mente, nem possamos explorar seus mistérios com um escalpelo ou uma sonda.

Sentiu-se, de repente, tomado de estranho terror. Não queria ouvir mais nada. Antônio, porém, agarrara de novo seu braço, e o rosto do soldado estava trêmulo, cheio de uma profunda emoção.

- Lucano, eu tudo sei sobre as tradições e as crenças dos judeus. Vivi na Judéia muito tempo, e meus amigos confiaram em mim. Esse Homem não é um simples milagreiro. Ele é o Messias. Ele é Deus. Pensas que só eu acredito nisso? Não, multidões de judeus acreditam nisso, desde que Ele apareceu pela primeira vez entre Seu povo para exortá-lo.

- Os judeus são pessoas excitáveis, murmurou Lucano. Sentia o coração pulsar nos ouvidos, e quadros e lembranças tentavam formar-se diante de seus olhos, que se fechavam para aquelas visões.

Acrescentou, desesperado: - Quando a mente está dominada pela histeria, o corpo torna-se doente. Todos os médicos compreendem isso.

O centurião sorriu, e aquele sorriso era infinitamente doce.

- Ele não é um médico. Seus seguidores O chamam rabi, isto é, mestre. Conheci muitos desses rabis, homens devotos, que podem curar através de orações, e que passam seus dias ensinando o povo e confortando-o.

O sol intumescido e vermelho mergulhou no mar e marinheiros apareceram com lanternas, pendurando-as pelo convés. Levantou-se um vento fresco e as velas inflaram e fizeram o navio deslizar mais depressa pelo mar de púrpura.

- Mas esse rabi não é um daqueles que vieram antes Dele - disse Antônio, numa voz trêmula. - Ele é o Deus Desconhecido dos gregos, dos egípcios antes deles, e dos babilônios e caldeus antes dos egípcios. Ele é o Messias. Como sei? Quando ouvi falar Nele através de meus amigos que me visitavam em Jerusalém e Cesaréia, soube, instantaneamente, quem Ele era! Precisas acreditar em mim!

- Como soubeste? Perguntou Lucano, abstraído.

O centurião bateu no peito com o punho fechado.

- Como pode qualquer homem sentir a verdade, a não ser conhecendo-a? Ele conheceu-a através de seu coração.

Deixou cair o punho sobre o joelho, e suspirou:

- Falei-te de Crético meu amigo, meu liberto. Ele caiu doente, não da mente, mas do corpo. Chamei para ele os melhores médicos, não poupei dinheiro, não poupei esforços. Sentei-me à sua cabeceira durante muitos dias, e ele não me conheceu. Vomitava sangue, excretava sangue, e o sangue marcava sua pele. Seus olhos nadavam em sangue, e o sangue formava crosta em seus lábios. Sua carne murchava a cada dia, até que ele ficou semelhante a uma sombra.

Lucano teve um sobressalto. A doença branca! A assassina, incurável e temível moléstia, para a qual não havia lenitivo, a doença que matara Rúbria e, matando-a, matou o espírito dele próprio! Olhou fixamente para o centurião, e umedeceu os lábios com a língua, os lábios que estavam frios e rígidos.

- Disseram-me que Crético ia morrer, continuou o centurião -, que não havia remédio para a sua enfermidade. A qualquer hora, dia ou semana, ele tinha de morrer.

- Não há cura falou Lucano, em voz monótona.

O centurião confirmou com um movimento de cabeça, e seus olhos iluminaram-se e encheram-se de lágrimas à luz das lanternas balouçantes. E disse baixinho:

- Mas Crético curou-se, instantaneamente.

- Impossível! Exclamou Lucano.

- Impossível para o homem, Lucano, mas não para Deus. Crético foi curado de um momento para o outro, levantou-se de seu leito, as faces coradas de vida e saúde, abraçou-me e disse-me: "Ele tocou minha mão enquanto eu dormia e disse-me que me levantasse e deixasse meu leito!”.

- Quem! Perguntou Lucano. - Que é isto que estás me dizendo?

- É o que estou lhe dizendo. Foi o Deus Desconhecido.

Perdoa-me, sou apenas um rude soldado, não tenho eloqüência, e conto mal a minha história. Eu disse que meus amigos judeus tinham me falado do Messias, e um dia Ele veio a Cafarnaum. Meus servos correram a contar-me que o estranho rabi judeu vinha à nossa cidade, e que se dizia ser Ele o Messias. Três dos meus amigos, anciãos judeus, estavam sentados a meu lado, consolando-me, pois Crético morria. Só conseguia arrancar do peito um vagaroso hausto depois do outro, e havia um rumor em sua garganta. Tinha os olhos voltados para cima e vidrados, o tiritar gelado da morte estava sobre ele, que gemia nas profundezas de seu corpo. O médico acabara de sair, sacudindo a cabeça.

A lembrança daquelas horas fazia estremecer a voz do centurião. Cobriu o rosto com as mãos e continuou:

- E pedi aos meus amigos, aos anciãos judeus, que fossem ter com Ele e Lhe suplicassem que curasse meu servo, meu querido Crético. Foram procurá-Lo. Ele estava pregando ao povo. Disseram-Lhe que viesse até a minha casa. Os anciãos lhe disseram que eu construíra uma sinagoga para eles, e era seu amigo. Assim, rodeado pelos seus seguidores e por algumas pessoas do povo, e acompanhado pelos anciãos, Ele se aproximou da minha casa.

As lanternas balançavam-se no escuro frescor da noite, a lua navegava sobre as velas altas, como uma inundação de água prateada. Lucano esqueceu Ramo, esqueceu tudo, menos aquela história incrível.

- Eu os ouvi chegar disse o centurião, e agora sua voz se fizera rouca e lenta. - Sabia que Deus vinha à minha casa e sabia que não era digno de que Ele se aproximasse do meu limiar. Corri ao quarto de dormir, fugi da casa. O sol estava alto e quente, e ali eu O vi!

Com estes olhos eu O vi!

“Lucano, tu precisas acreditar em mim”. A poeira envolvia o povo e Ele, que estava no centro, era de um amarelo dourado. Ele era alto, entre os outros, um jovem de rosto belo, e a poeira amarela ficava luminosa em torno de Seu corpo. Vi-Lhe os olhos, como o céu, vi Seu sorriso, e de novo senti que Ele era Deus.

“Minhas pernas tremiam e parecia-me que a terra e os céus se tornavam incandescentes em torno Dele”. Atirei meus braços para a frente, a fim de impedi-Lo de se aproximar, pois eu não o merecia.

Baixei a cabeça, pois era sacrilégio fixar os olhos Nele. E disse:

"Senhor, sou homem de autoridade, um romano, tenho soldados às minhas ordens, e se eu disser a um deles Vai e se eu disser a outro deles Vem, eles me obedecem. Tudo quanto ordeno é feito quando eu o ordeno. Portanto, Senhor, dize apenas uma palavra, e meu servo ficará curado."

Lucano estremeceu e apertou as mãos uma contra a outra. A brisa da noite estava parecendo gelo contra seu rosto. Mas ele disse, consigo mesmo: "Não! Não! Isso é impossível!”.

- Então continuou o centurião, quase num sussurro eu O ouvi falar e Sua voz parecia vir do céu e da terra ao mesmo tempo, e Ele disse as pessoas que o rodeavam: "jamais encontrei fé tão grande em Israel!" E Lucano, quando eu abri os olhos, Ele se fora, e as pessoas com Ele, e só meus amigos ali estavam. Entramos na casa e encontramos meu servo curado.

Acima dos sons da noite e do trovejar das velas, Lucano ouviu a mais leve das exclamações, como que um eco. Assustou-se e olhou estonteado em torno de si, vendo que Ramo já ali não estava.

Levantou-se, e teve que agarrar-se à cadeira, pois seus joelhos sentiam-se fracos. Ficou a olhar para o centurião, sem dizer palavra.

- Precisas acreditar repetiu o centurião. - Olha para mim e vê que não minto. Sei que não minto! Ele curou meu servo e transformou minha alma!

Lucano virou a cabeça e afastou-se dali.

 

Lucano e Ramo comeram juntos, na cabina, uma ascética refeição. O grego estava mais silencioso do que de costume e mal podia comer.

Ramo estava sentado a seu lado, e Lucano via que o rosto do negro irradiava contentamento, e que seus pensamentos o absorviam por inteiro. Falou-lhe, então, lenta e cuidadosamente:

- Ramo, deves lembrar-te de que não há médico que saiba tudo o quanto há para se saber. O homem é muito misterioso. Filósofos e médicos, bem como sacerdotes, têm em vão tentado explorar o seu mistério. A magia, a necromancia e a feitiçaria talvez não sejam o que têm parecido ser. É possível que elas operem através de leis naturais ainda desconhecidas para nós. Uma vez, meu professor, Keptah, disse-me que nos livros sagrados da Babilônia estava escrito que um dia os homens se moverão através do oceano, sem velas, que um dia voarão como pássaros através dos continentes. E que, algum dia, em sua incontinência, destruirão a terra em que vivemos. Todos os filósofos conheceram essas profecias, mas temeram contá-las ao populacho. Hás de recordar Sócrates, que foi forçado a morrer por causa de seus pensamentos e idéias.

“Se alguém hoje, neste moderno mundo romano de força, poder e materialismo, proclamasse o que os babilônios e judeus há séculos sabem, seria chamado louco, idiota ou mágico, e tratariam de eliminá-lo”.

Apesar disso, acredito que todas essas coisas acontecerão. A história que ouvi esta noite, dos lábios do centurião Antônio é, sem dúvida, verdadeira... Do ponto de vista dele. Talvez o rabi judeu, o mestre, conheça alguns segredos que parecem sobrenaturais para nós, mas que são parte de leis naturais que ainda não descobrimos. E, como já disse, e isso parece muito razoável para mim... Os médicos que tratavam do servo de Antônio cometeram algum erro. O servo não estaria mortalmente enfermo e, de qualquer maneira, teria recuperado a saúde.

Lucano partiu um pedaço de pão, ficou a olhar pateticamente para ele, depois pousou-o sobre a mesa.

- Vi que te comoveste muito com a história do centurião. Pensaste que o rabi judeu é o que tens esperado. Não te iludas.

Olhou para Ramo, cujo rosto continuava radiante, com firmeza:

- Eu te disse que podes falar, que não há nada de organicamente errado com tua garganta ou teu aparelho fonador. Estás tomado pela histeria. Um destes dias, entretanto, falarás e não será um milagre.

A cabeça de Lucano doía, e pequenos tremores, que pareciam de água gelada, corriam sobre sua pele. Suas juntas doíam. Levantou-se da mesa, e disse:

- Tenho frio. Vou deitar-me.

Puxou o biombo para junto de sua cama, entre ele e Ramo, e apanhou seu estojo médico. Apalpou o próprio pulso, que parecia normal. A pele estava quente, mas normal. Examinou-se, e nada encontrou de errado. Ainda assim, sentia-se dominado pela sensação de estar profundamente enfermo. Disse consigo mesmo: Não sou homem influenciável mas, por qualquer idiota razão que seja, as palavras daquele centurião me impressionaram.

Foi para a cama e ouviu Ramo fazer seus preparativos para deitar-se na sua própria. Quando Ramo olhou por trás do biombo, Lucano fingiu estar adormecido. O negro apagou a lanterna com um sopro e tudo ficou silencioso, a não ser pelos murmúrios e estalidos do navio, pelo som distante dos remos batendo na água quando o vento tombava, e algumas vozes longínquas dos vigias. Depois de algum tempo Lucano adormeceu, mas agitadamente, tomado de pesadelos em que predominava o terror.

Estava num vasto quarto cavado, cujas paredes e forro pareciam nuvens, sem começo nem fim. Estava sozinho, dominado por uma sensação de inanidade universal e medo. Então, diante dele, uma grande cruz ergueu-se, branca como a neve, e sombras rosadas corriam por ela, de alto a baixo, e através. Seu topo erguia-se até o infinito, e seus braços envolviam o universo. Lucano estava ao pé dela, e começou a chorar, dizendo consigo mesmo: "Fiz o possível para não me lembrar!" E exclamou, em voz lacrimosa: "Senhor! Vem a mim!”.

Mergulhou no espaço profundo, negro como a noite, e sem-fim. E então, da mesma vastidão, dos confins da criação, ouviu alguém chamá-lo ternamente: "Eu não me esqueci de ti, á Meu servo! Desde o início dos tempos. Eu te conheço, e tu ouvirás a Minha voz.”.

       Lucano acordou num sobressalto violento, em plena escuridão. O navio gemia e murmurava consigo mesmo. Ele começou a dormitar de novo, tremendo ao pensamento de seus sonhos. Chegou a pensar que via uma faísca de luz, mas ela desapareceu. Remexia-se na cama, inquieto. Sua carne parecia quente como fogo, e Lucano disse consigo mesmo, vagamente, que tinha febre. Tombou adormecido, de novo, e de novo a desolação impregnou seus sonhos agitados numa sensação de perda e de busca. Estava num deserto fulgurante e ardente, de areias que pareciam imensas ondas do mar. A sede consumia-o. Errava daqui para ali, procurando um oásis, ou um sinal de vida, ou uma palmeira, ou uma linha de camelos contra o horizonte em chamas.

Tombou de borco na areia ardente e disse consigo mesmo: Agora devo morrer, pois em torno de mim há a inutilidade da minha vida, como um deserto, e nada existe para estancar a minha sede.

Instantaneamente, água fresca correu contra seus lábios, e ele bebeu sofregamente, sem poder se saciar. Seus olhos estavam cegos pela luz que o envolvia, e ouviu, então, uma voz que dizia, suavemente: "Eu sou o único que pode saciar tua sede, á Meu servo, Lucano!”.

Agora estava tropeçando numa estrada estreita, juncada de pedras lisas, que subia para a montanha altaneira, cujo topo desaparecia entre nuvens. A montanha não tinha árvores, nem relva, nem vegetação.

Suas rochas e rochedos de tons amarelados e esbranquiçados pareciam nadar em fogo. Monstruosas cabeças feitas de pedra, como as de uma Medusa, ou as cabeças das Fúrias, avançavam dentre os rochedos, ou empinavam-se à sua passagem. Lucano tinha as costas curvadas, com uma carga terrível, que ele não podia ver, e seus ombros gritavam de dor sob aquele peso. Tombou contra o lado de um rochedo, e arquejou desesperadamente, dizendo consigo mesmo que não conseguiria ir mais adiante. E alguém falou, com uma voz que enchia todo o espaço: "Vinde ter Comigo, todos os que estais sobrecarregados, e eu vos darei repouso!”.

Lucano acordou de novo, empapado em suor. O navio gemia, balançando. A escuridão era sufocante, e ele fez um movimento para se levantar, para procurar água, mas tornou a tombar, adormecido. E agora estava com fome, uma fome para além de todas as existentes, como jamais conhecera ou imaginara. Dentro dele havia um poço retumbante de angústia e desejo. Mordia as mãos e gemia. Então, no meio da dor, viu duas mãos que partiram pão e deram-lhe um pedaço que ele devorou e que o satisfez. E uma voz disse: "Esta é a Minha verdade, e só ela pode aliviar a tua fome.”.

Encontrava-se, depois, entre a destruição das cidades. Via a curva do mundo, e ela estava envolvida em fumaça. Caminhava entre as ruínas, de horizonte a horizonte, sob um céu tenebroso. Não havia lua, nem estrelas, nem sol, nem esperança. E cidades lançavam fumaça, como esqueletos incendiados. Então, bem para longe e para cima, Lucano viu a estrela que vira quando criança, e ela se movia.

Começou a segui-la, correndo furiosamente. E, ao fazer isso, ouviu um coro de vozes poderosas, cantando de dentro de toda a eternidade, como se multidões incontáveis se regozijassem. E gritou: "Esperai por mim! Estou perdido!”.

Os sonhos tornaram-se mais confusos, mais insistentes, correndo um atrás do outro, emergindo, separando-se, espiralando-se até desaparecer, para retornarem mais clamorosos, mais confusos, mais carregados de temor e profecias. Ele debatia-se para acordar e, através da vigia, um feixe de luz solar se derramou em seu rosto contraído.

Alguém mantinha uma mistura de água e vinho junto de seus lábios, dizendo:

- Estás doente. Bebe e repousa!

Tornou a adormecer, mas era como se jazesse num leito de fogo, e gemia. Mãos moviam-se sobre ele e seu corpo empapava-se como que inundado.

Ouviu vozes preocupadas em torno, depois do que lhe pareceu um tempo infinito. Olhou, mas nada pôde ver senão as luzes das lanternas, embaçadas como arco-íris. Algo quente e acido estava em sua boca, e ele engoliu, e toda a sua garganta inflamou-se. Uma frialdade úmida envolveu-o, e Lucano suspirou grato. Sentiu que lhe erguiam a cabeça, e que lhe deitavam água entre os lábios. Apareceram lanternas, e retraíram-se; o sol veio e se recolheu; a lua brilhou através da vigia, mas quando ele estava olhando já eram as estrelas que ali apareciam.

Auroras vinham atrás de crepúsculos e ele disse, em voz alta: "Estou morto?" Ninguém respondeu. Lucano sentia-se exausto, seu corpo não tinha peso. Sua cabeça era um globo de vidro flamejante. Desejava repousar, mas os pesadelos saltavam sobre ele.

Então, certa manhã de um dia fresco e aperolado, acordou e viu um estranho vestido de branco, que sacudia a cabeça num movimento afirmativo, junto a seu leito. Não se podia mover, mas ouvia o navio e o lamento das velas. Uma chuva cinzenta atirava-se contra a vigia, e ouvia-se o som das cortinas batendo. O estrangeiro, em sua cadeira, movimentava a cabeça e dormitava. Mas Ramo não estava ali.

Lucano, com súbita e calma lucidez, soube que estivera perigosamente doente durante muito tempo. Ficou deitado, quieto, exausto, sua carne úmida e entorpecida, a mente clara. Mas que febre era aquela que o assaltara? Não tivera premonição dela, não sentira qualquer sintoma se avolumando. Virou-se na cama e viu que havia nas cobertas a umidade de seu próprio corpo. Pensou em seus sonhos, e a lembrança deles oprimiu-o.

O estranho gemeu e moveu-se, sacudiu a cabeça e abriu os olhos.

Vendo Lucano desperto, debruçou-se sobre o doente e disse bondosamente:

- Estiveste doente durante quatorze dias, senhor, mas estás recuperando a saúde. Sou o médico do navio. Durante muitos dias não acreditei que pudesses viver. Mas, graças aos deuses, tua vida te foi devolvida.

Lucano tentou falar, mas sua voz era apenas um sussurro:

- Foi malária, sem dúvida.

- Não senhor. Foi uma doença misteriosa, Tomei conta de ti desde que teu servo desapareceu, e os passageiros te ouviram gritando entre estas paredes.

Lucano ficou imóvel, olhando para o outro homem. Molhou com a língua os lábios secos, e o médico deu-lhe água, bocejando e sorrindo com o contentamento de quem devolveu a vida ao seu paciente.

Então, Lucano disse, num sussurro rouco:

- Ramo? Foi embora?

- Sim, senhor. Mas que podemos esperar de servos, que são desleais e egoístas e só pensam neles mesmos? Quando o navio atracou, à meia-noite, na primeira noite de viagem, ele deve ter saído, abandonando-te, pois que desde então não mais foi visto. Ah! Deixou-te uma carta nessa tabuinha aqui sobre a mesa.

- Lê essa carta para mim pediu Lucano, enquanto sua fraqueza o envolvia.

O médico, erguendo os ombros, pegou a carta e começou a lê-la.

A luz aperolada estava agora impregnada de rosado e ouro, e o navio balançava levemente.

Ramo escrevera: “Perdoa-me, senhor, pois devo deixar-te, quando o navio atracar, esta noite”. Preciso ir encontrar aquele que estive procurando e sobre o qual o centurião nos falou na hora do crepúsculo.

Olhei para ver se estavas acordado, mas estavas dormindo, então vi que seria melhor não esperar, pois se me tivesses pedido eu não poderia deixar-te. A busca de toda a minha vida está em Israel, e quando eu O vir, Ele levantará a maldição do homem sobre os filhos de Cam, e eu tornarei a falar, adorando-O. Deixo-te com preces e lágrimas, pois eu te amei mais do que a meu pai e meus irmãos, e foste, não meu senhor, mas, meu amigo."

Lucano pensou com desespero naquele homem solitário, negro, mudo e indefeso, andando a pé para atingir sua esperança. Seria um estranho, pois só podia fazer gestos. Haveria florestas que teria de atravessar lutando, desertos, montanhas para galgar, cidades e aldeias hostis. Haveria, sempre, homens hostis. Ele iria morrer de sede, ou de fome, ou atacado pelos animais selvagens, ou mesmo poderia ser de novo agarrado e vendido como escravo. As lágrimas vieram, fracas, aos olhos de Lucano e ele voltou a cabeça no travesseiro sem nada dizer.

Finalmente adormeceu, e quando acordou, ao crepúsculo, sua força voltara e ele não podia compreender. Tornara-se quase emaciado, mas estava novamente forte.

Mandou chamar o centurião naquela noite, e mostrou-lhe a carta de Ramo, dizendo, amargamente:

- Não duvido que acredites teres contado a verdade, e que tudo corresse, para ti, exatamente como descreveste. Eu mesmo, como médico, tenho uma explicação própria para o caso. Mas tua história despropositada, Antônio, enviou meu amigo para sua morte certa.

O centurião disse, gravemente:

- Não. Eu o enviei para a sua verdadeira vida.

 

- Não está na hora, meu filho, de dizeres algo? Perguntou Íris, sentada com Lucano nos jardins outonais.

- Não há nada a dizer,replicou este em voz melancólica. Sua lassitude, que era de espírito e não de corpo, não o abandonava. A irmã, Aurélia, estava casada havia seis meses e já esperava um filho no lar de seu marido.

- Eu devia me sentir feliz por não nos teres deixado desta vez - disse Íris, com um suspiro meditativo. Talvez não devesse insistir pelas tuas confidências, pois podes ficar aborrecido e de novo partir.

Ele tentou sorrir para a mãe, mas tudo era um esforço. Íris estava a seu lado, à luz fria do sol, e seus olhos fixavam-se nas árvores de folhas caducas, cujos ramos despidos eram como que ouro áspero contra o azul do céu. Uma fragrância de vinho, maçãs, louro, tâmaras maduras soprava docemente no ar irisado, e as colinas distantes mostravam-se cor de ameixa. Lucano pensou que o rosto da mãe pouco mudara através dos anos, e que sua translúcida aparência era como a de um rosto de criança. Tinha o corpo ainda esbelto, os olhos continuavam a possuir a coloração viva de sempre, as mãos eram claras e castas.

- Quando eu for, Prisco e sua família ficarão contigo, nesta casa, e há também meu irmão, Gaio Otávio. Não estás feliz com tua nora e as crianças que estão agora contigo? A casa ressoa com o riso delas.

- Esqueces algo importante falou Íris. - Tu foste o filho da minha juventude. Tenho agora cinqüenta e cinco anos, e já ultrapassei os anos de expectativa, portanto estou velha, e minha memória volta para Antioquia, e vejo-te como um bebê, num cobertor a meus pés, tomando sol, enquanto eu ficava na minha roca. Nem Prisco, nem Aurélia, nem Caio são tão queridos para mim, meu primeiro e sempre lembrado filho.

Lucano, sentado com ela no pórtico externo, estendeu a mão e colocou-a sobre as dela. Íris sorriu-lhe com lágrimas nos olhos.

- Se ao menos estivesses casado murmurou, levantando a mão dele até o rosto por um momento. - Se estivesses casado com Sara bas Eleazar. Cheguei a amá-la como a uma filha, desde que ela veio no verão e permaneceu conosco até se restabelecer de sua febre pulmonar. Vê-te e ama-te como eu via e amava Diodoro. Que maior tesouro pode existir do que o amor? Ela te seguiu em muitas cidades e muitos portos. Por que a repeliste sempre?

- Já te disse, minha mãe. Não há lugar na minha vida para o amor de uma esposa, de filhos, de uma lareira tranqüila. Uma vez tu me disseste que eu era egoísta. Talvez tivesses falado a verdade. Nada sei além disso; sou como a casca de um coco, flutuando sem rumo no mar, sua parte vital removida, e sendo atirada de um lado para o outro pelas marés. Outrora tive uma batalha... Já não tenho batalhas, pois meu próprio espírito está cansado de morte, e nada me parece ter qualquer importância. Não deixei esta casa porque me faltou vontade para deixá-la. Magoei-te e peço-te perdão. Mas tu és aquela para a qual a verdade tem de ser sempre dita.

Voltou o rosto para o outro lado, e ela o viu de perfil, severo e pálido, como pedra, gasto pelos anos até uma figura ascética. Lucano falou:

- Outrora eu sabia o que queria, e estava cheio de esperança. Houve um tempo em que, a cada manhã, levantava disposto para a luta. Mas, aproximando-me agora dos quarenta anos, pode ser que minhas forças vitais estejam sendo drenadas, e que a hesitação da idade venha tomando conta de mim. Lembro-me de que José Ben Gamliel citava-me suas Escrituras, embora não me recorde das palavras exatas.

“Era uma advertência aos jovens para que não se esquecessem de seu Criador nos dias de sua juventude, antes que os maus dias de invalidez e cansaço os envolvessem, quando eles dissessem: Não tenho prazer nos meus dias.” - Lucano sorriu de leve e penosamente: jamais me esqueci de Deus. Ele perseguiu minha vida, até alguns anos atrás, quando, de súbito, se afastou de mim e deixou o campo onde batalhávamos diariamente. Sinto falta do meu velho Adversário e pela primeira vez, em meses, Íris percebeu um divertimento ambíguo na voz dele.

- Mas Keptah me disse que Deus jamais abandona os homens falou Íris.

Lucano ergueu os ombros.

- Pois eu te digo que a mim Ele deixou. Há um grande silencio onde outrora Ele estava, e não mais discutimos. Talvez seja porque Ele sabe que venceu, e que eu não valho mais nada como adversário.

Minha vaidade está ferida acrescentou, com um ligeiro sorriso.

Íris, porem, sabia que seu filho não estava tão fraco como acreditava estar. Ouvia-o, à noite, na grande biblioteca de Diodoro, andando de um lado para o outro. Sentia-lhe a fervente inquietação, como se ele estivesse procurando algo. Muito tempo depois de estarem todos adormecidos, a lâmpada de seu quarto ainda ardia, às vezes até a madrugada. Um homem totalmente desprovido de interesse, ou de ardor, afrouxaria, tornar-se-ia apático. Entretanto, os olhos de Lucano mostravam-se exaustos, atormentados.

- Que desejas tu, meu filho? Perguntou Íris, cheia de dor e piedade.

- Nada desejo. Posso dizer, verdadeiramente, que nada desejo.

E esse é o meu terrível transtorno.

A conversa entediava-o, e Íris sabia disso. Ambos observavam as folhas caírem, as pontas dos ciprestes tornarem-se tocadas de luz, e as colinas escurecerem em sua coloração. Depois de prolongado silêncio, Íris falou:

- Eu tive receio de que visses Clódio.

- E eu fiquei horrorizado quando o vi, o jovem aleijado desde sua infância pela paralisia e que não pode andar sem o auxílio de dois fortes escravos. Por que minha irmã, que é tão bela, desejou esse homem?

Mas tal pergunta me fiz antes de compreender.

Ficara aterrorizado quando Clódio viera àquela casa para vê-lo, e à sua noiva e família. O jovem tinha um rosto simples e gentil com olhos sinceros e feições delicadas. O perfil aquilino, típico dos patrícios romanos, era mais suave nele, e sua expressão mostrava-se sonhadora.

Lucano esperara, ansiosamente, que pelo menos ele possuísse um pouco de intelectualidade, algum poder interior, certa força de espírito e caráter. Clódio, porém, era tão transparente quanto Aurélia, e da mesma forma sem complexidade, embora da mesma forma impenetrável.

Do que eles falavam? Lucano ouvia, sem qualquer sensação de que invadia a intimidade de ambos. Desejava saber. A autêntica e simples verdade lhe foi então revelada: eles amavam todas as coisas, sem malícia, sem hipocrisia, sem medo, fosse um escravo ou uma folha, um cão ou um cavalo, a relva ou uma árvore, um homem ou um pequenino animal fugitivo. De início, Lucano ficou aterrorizado. O mundo os roubaria, com o tempo, daquele amor absoluto; era infantil e estúpido acreditar que viveriam num jardim brilhante e adorável, onde o mal jamais entraria. Pensou em quando a morte entrasse na casa deles, eventualmente para atingir um filho amado ou um servo querido, ou um deles próprios. Pensou na doença que lançaria sombras sobre o aconchego de sua lareira, ou na natural ansiedade de viver, na petulância, na irritação, ou em alguma longa e irremediável moléstia. Que seria, então, do jardim e do amor?

Um dia, encontrou sua irmã sozinha, brincando com alguns gatinhos no jardim, e sentou-se ao lado dela, tentando falar-lhe daquelas coisas. Falou como a uma criança, e ela ouvia, sorridente, os lábios rosados entreabertos, seus grandes olhos castanhos suaves e translúcidos. "Ela não me compreende, absolutamente!", disse Lucano, consigo mesmo, impaciente. Aurélia então dissera:

- Eu te compreendo, meu irmão. Clódio e eu conversamos sobre isso muitas vezes. Sabemos, certamente, que o mundo está cheio de dor, de morte, de injustiça e de miséria. Não temos olhos? Somos crianças? Temos ouvido e visto tudo isso.

Levantara nas mãos um gatinho branco e beijara-lhe a cabeça pequena. Lucano podia ouvi-la murmurando palavras de afeto ao animalzinho, que saltou para o ombro da moça e pôs o focinho contra o queixo dela, mostrando-se contente.

- Mas, continuou Aurélia, sabemos também que o amor é inexaurível, que sempre haverá algo para amar; o mundo está cheio de coisas para amar! Uma existência não é bastante para o amor.

Lucano pensara, alucinadamente: Como é incrível, como é lastimável essa inocência!

Aurélia sorrira-lhe com ternura.

- Pensas que somos crianças, sem razão ou compreensão. Pensas que somos vulneráveis. Esperei por Clódio, embora não soubesse da existência dele, até o dia em que ele veio com seus pais a esta casa. Mas eu soube que era ele imediatamente. Não temos medo de viver, Lucano.

Aquilo deixou Lucano mudo. Procurara o núcleo brilhante dos olhos da irmã, não como homem, mas como médico. E uma luz pura o enfrentara, delicada e forte. Aurélia, sentada na relva como uma criancinha, junto de seu irmão, encostou a cabeça nos joelhos dele em completa confiança.

- Não sou uma erudita, Lucano, pois os livros são velhos e o mundo é jovem e cheio de glória. Mas, quando vi Clódio, lembrei-me do que Keptah me dissera um dia: "Sócrates disse que um homem bom não precisa temer nem esta vida nem a morte.”.

- O mundo esta tão cheio de males quanto de beleza, falou Lucano, rudemente.

- É porque o mundo odeia, e não ama respondeu Aurélia.

Um cachorro entrou no jardim, correndo e latindo, e Aurélia chamou-o, saltando sobre os pés e correndo a consolá-lo e a brincar com ele. Lucano ficou sozinho, inteiramente imóvel. Quando se levantou para entrar na casa, meditativo, sentia-se vulnerável e sensibilizado.

- Eles serão felizes sempre, disse ele, agora, à mãe. – Jamais haverá um fim para sua felicidade e para seu amor. E eu confesso que isso é um grande mistério para mim, que já não sou um jovem.

Íris sorriu-lhe, e Lucano teve a revelação de que sua mãe era semelhante a Aurélia.

- Estou contente, murmurou ela. - Sim, estou contente, porque um dia, e eu o sinto em meu coração, encontrarás também esse amor e essa felicidade.

Sara bas Eleazar veio ao jardim e encontrou Lucano sozinho.

Caminhava vagarosamente, pois estivera doente durante muitos meses, e era hóspede naquela casa, onde todos a amavam pela sua delicadeza e caridade. Estava com trinta e cinco anos, já não era jovem, mas seus olhos cor de violeta pareciam tão radiantes como se fossem os de uma criança, e o rosto doce, e tão bem talhado, dava-lhe certa serenidade, tocada de melancolia. O corpo delgado escondia-se sob um traje de lã da cor de seus olhos, que Íris fizera para aquecê-la, para afagar seu corpo que se recuperava, e ela usava um xale branco sobre os ombros. O cabelo escuro, com camadas grisalhas, era usado, simplesmente, numa coroa de tranças sobre a cabeça pequena, e a linda boca curvava-se em leve sorriso. Havia em suas faces um rubor constante, e aquilo quando ela se aproximou de Lucano, que se levantou para recebê-la era a primeira coisa que o médico, inevitavelmente, via nela, em especial ao cair da tarde. A mão da moça mostrava-se de um calor fora do comum.

Lucano recordou-se de que Hipócrates advertia os médicos que jamais tratassem pessoalmente das pessoas amadas, pois podiam fechar os sentidos contra a verdade que suspeitavam, ou que eles confundiam desastradamente, pela sua frenética ansiedade.

- Tossiste muito hoje, minha querida Sara? Perguntou, conduzindo-a até a cadeira onde Íris estivera sentada, e envolvendo-lhe os ombros frágeis bem aconchegadamente no xale, a fim de protegê-la contra a frescura do ar da tarde. Ela sorriu-lhe docemente.

- Não. Tossi muito pouco estes últimos dias, Lucano.

- Recusas a atenção dos melhores médicos de Roma, Sara!

Precisas deixar que eu chame alguns deles para examinar-te disse ele.

Ela apertou o rosto contra a mão pousada em seu ombro:

- Eu estou muito bem. Não te alarmes. Bastas para mim, como médico. - Olhou para as colinas, calmamente, e com paz. – Terei pena de deixar tua casa, mas preciso voltar a Jerusalém, para os dias santificados. Vou embora depois de amanhã.

- Mas não estás boa de todo: A viagem será exaustiva demais, Sara. Sabes que fiquei aqui por tua causa?

De novo ela sorriu, pois sabia que aquilo apenas em parte era verdade.

- Não fiques aflito murmurou ela. - Sinto falta do meu povo.

Lucano sentou-se ao seu lado, debruçado para ela, estudando-lhe o perfil frágil, um camafeu puro, na luz dourada da tarde. Se Sara, disse ele consigo mesmo, estivesse doente, não teria aquela calma; o corpo, quando cheio de pressentimentos de sua própria calamidade, manifesta seu constrangimento no repuxar de um olho, na distensão de uma narina, na contração de um lábio. Seus penetrantes olhos de médico nada disso encontravam no rosto de Sara. A expressão dela, como sempre, era de tranqüila alegria, de esperança realizada.

Ficou sentado em silêncio ao lado dela, sentindo os ossos fracos da mão de Sara, a maciez de sua pele acetinada. Olharam ambos para as colinas e vales, durante muito tempo. E Lucano pensava: Por que não me caso com ela e mantenho-a comigo, a esta querida que há tantos anos amo? Tenho perambulado por todo o mundo, pois não possuo um lar, e sempre fugi do amor. Mas agora já não sou jovem, e é possível que minha lassitude, meu vazio, meu desespero torturante sejam resultado da falta de raízes, da sensação do que perdi, ou jamais atingi, da significação da vida. Se me casar com Sara, então terei um lar, uma lareira, uma companheira amorosa para o resto dos meus dias. Posso comprar uma pequena propriedade, uma vila, onde tivéssemos nossos próprios vinhedos e pomares, e embora agora já seja muito tarde, talvez um filho. Eu me privei do que os homens sempre procuram em suas vidas.

Moveu-se com um acesso da antiga inquietação. Disse para Sara, inclinando-se junto dela, ignorando o triste estremecimento que de novo se apoderara dele:

- Sara, minha bem-amada, queres casar-te comigo e permanecer em Roma, construindo uma casa comigo?

O tranqüilo perfil dela manteve-se tão imóvel, tão inalterado, enquanto a moça olhava para as colinas, que Lucano pensou não ter sido ouvido, por estar Sara mergulhada em seus pensamentos. - Estou me sentindo vazio disse ele, levando a mão dela a seus lábios.

Sara então disse:

- Ficaste vazio para que possas ser cheio de alegria e paz para além de tua imaginação, Lucano. O amor conta-me isso, mas não me conta como. Não, Lucano. Não posso casar contigo, pois casando contigo eu te afastaria do teu destino, que não encontrarás em meus braços. Deus chama os homens das cidades, de suas lareiras, de suas esposas e filhos, de tudo quanto eles amam, e Sua voz não pode ser ignorada. Ele te chamou.

- Isso é tolice disse Lucano. - Estou vazio porque tenho recusado amar por medo do que o amor pode fazer a um homem.

Tenho tido medo de viver, Sara, e peço-te, agora, que vivas comigo como minha esposa.

Ela sacudiu a cabeça, leve mas firmemente.

- Não pode ser, Lucano. Outrora, quando deixaste Alexandria, acreditei que fosse possível. Mas, durante estes anos, eu vi que era impossível, pois pertences a Deus. Tu O desejas com um desejo terrível, e ele será satisfeito, pois tu Lhe pertences.

Sara tinha ido embora e Lucano estava sozinho com sua família. A velha e dolorosa inquietação se apoderara dele novamente. A casa estava cheia, mas não havia ali ninguém com quem pudesse falar, e isso espantava. Havia seu irmão solteiro, Gaio Otávio, eternamente ocupado com seus livros, jovem sério, que vivia uma existência absorvente e secreta que lhe pertencia por inteiro. Lucano sabia que ele tinha grande intelecto, mas, estranhamente, sentia-se menos capaz de conversar com aquele Gaio sem sorriso do que com qualquer outro membro do pessoal doméstico. Havia uma grande formalidade e cortesia entre os irmãos, porém Lucano não podia penetrar na reserva do jovem. Esses pedantes. Dizia ele, consigo mesmo. São mesquinhos e egoístas. Teimosos e veladamente arrogantes. Vivem acastelados numa torre de marfim, onde imperam sozinhos.

Prisco, o feliz e alegre soldado, voltara a casa de suas campanhas com Druso, ao qual jamais criticava por suas loucuras patentes e sua falta de organização, comentando-as, apenas em tom humorístico.

Entre todos os filhos da casa, era aquele que Lucano mais queria.

Entretanto, ficava a pensar, às vezes, se Diodoro o teria achado satisfatório, pois Prisco aceitava tudo com uma pilhéria; com simples contentamento, e nunca se mostrava sério, fosse a propósito do que fosse. O rosto redondo e moreno e os olhos castanhos faziam Lucano recordar Rúbria, agudamente. Tinha as maneiras joviais dela, seu humor, seu riso fácil e a faísca nos olhos. Gostava da guerra e gostava da paz; gostava de seu dever e gostava de sua família. Nunca se sentia mais feliz do que quando tinha hóspedes em casa. Possuía muitos amigos e visitava-os em sua volta. Era evidente que gozava a vida, não lhe fazia exigências despropositadas, amava os jogos, o teatro, os dados, todos os gladiadores, as noitadas de bebidas com companheiros. Gracejos e alegria bem-humorada em geral. Adorava os filhos. Quando Lucano falava de política sentia-se tão entediado quanto Aurélia, e punha de parte o assunto com um forte piscar de olhos e um sorriso, saindo para inspecionar a grande propriedade agrícola. Lucano suspeitava de que Prisco, que o amava, também o achava tedioso.

Apesar disso, Prisco era o chefe da família, e Lucano sentia a urgente necessidade de fazer o exuberante capitão olhar com seriedade o mundo em que vivia. Tinha uma grande fortuna, influência política e militar, tinha filhos, e isso era o mais importante. Assim, certa noite, Lucano chamou Prisco em seus aposentos, e o soldado entrou gingando, com suas pernas fortes e morenas, vestindo uma túnica simples. Estivera brincando com os filhos antes que eles se recolhessem, e seu cabelo áspero e preto mostrava-se despenteado. Em seus lábios grossos e vermelhos havia um sorriso. Cumprimentou afetuosamente Lucano, mas seu coração abateu-se quando viu a expressão grave do mais velho.

Prisco tentou evitar o que temia fosse uma conversa pesada, fazendo vários comentários enérgicos sobre a colheita de uvas, as condições dos pomares, seus planos para reabastecer o rio com maior número de peixes, suas observações sem maldade quanto à frouxidão dos escravos e libertos, suas suspeitas sobre a honestidade de seus capatazes. Tinha a voz feliz, o rosto sem rugas, as maneiras sossegadas.

Lucano disse:

- Como sabes, Prisco, logo irei embora. Deves ter tolerância para comigo; és o cabeça desta casa, e o que pensas e o que dizes é da maior importância não só para a tua família mas para o teu país.

- Oh! Certamente! Disse Prisco, servindo-se de um cacho de uvas purpúreas, de um prato que havia sobre a mesa. Suspirou. Era paciente, e gostava de Lucano. - Eu sempre cumpro meu dever.

Acho fácil, devo confessar.

Sentou-se e comeu suas uvas com prazer, cuspindo as sementes na mão e colocando-as em uma pequena pilha, sobre a mesa, pois era muito ordeiro.

- Teu verdadeiro dever, disse Lucano, não é fácil.

- Já me disseste isto muitas vezes falou o soldado. Esfregou uma maçã na manga curta da túnica. - Mas eu nunca entendo e tu não podes perdoar isso.

- Desconfio que entendes bem demais disse Lucano, sombriamente. Prisco mordeu a maçã e ofereceu a Lucano o prato, que ele recusou impaciente. Prisco ergueu os ombros.

- Talvez tudo seja bastante verdadeiro disse mas estou vários séculos atrasado, penso. Que posso fazer a propósito de Roma, agora, em minha geração? Sejamos razoáveis, Lucano. - Os olhos castanhos estavam, de súbito, privados de riso, e se mostravam duros quando os fixou no outro homem.

- Teu pai morreu fazendo o que podia falou Lucano.

As espessas sobrancelhas de Prisco franziram-se, encontrando-se.

- Sim disse ele e, como disseste, morreu. Que proveito tiveram suas advertências, sua morte? Moveu uma polegada algum homem? Tornou algum senador corrupto menos corrupto? Inspirou em Cícero, um Cincinato? Fez César menos do que ele é? Lembro-me de que me disseste que os césares não arrebatam o poder. Que o poder lhes é imposto por um povo degenerado que perdeu sua virtude e sua força, e que prefere segurança à varonilidade, facilidade ao trabalho, e circos ao dever. O que meu pai disse no dia em que morreu despertou a consciência de algum homem? Ficou inscrito para os tempos vindouros? Não. Ele não pôde, nem mesmo durame a sua existência, fazer uma só coisa que fosse para deter o curso da História.

- Tu não me entendeste bem, Prisco. Sei que era inevitável que Roma se tornasse o que é. As repúblicas decaem para democracias, e as democracias degeneram em ditaduras. Isso é um fato imutável.

Quando há igualdade... E as democracias sempre trazem igualdade... O povo torna-se descarado, perde o seu poder e a iniciativa, perde o orgulho e a independência, perde o esplendor. As repúblicas são masculinas, e assim geram as ciências e as artes; são orgulhosas, heróicas e viris. Dão ênfase a Deus, e O glorificam. Roma, porém, tombou numa democracia confusa, e adquiriu traços femininos, tais como materialismo, avidez, anseio de poder e utilitarismo. A masculinidade nas nações é demonstrada pela lei, idealismo, justiça e poesia, e a feminilidade pelo materialismo, dependência de outros, sentimentalismo flagrante, e ausência de gênio. A masculinidade é visão, a feminilidade ridiculariza a visão. Uma nação masculina produz filósofos, e respeita o indivíduo; uma nação feminina tem o desejo insensato de controlar e dominar. A masculinidade é aristocrática, a feminilidade não tem aristocracia e é feliz apenas quando encontra uma porção de rostos que a ela se pareçam exatamente, e uma porção de vozes que façam eco para seus próprios e insignificantes sentimentos, desejos, medos e loucuras. Roma tornou-se feminina, Prisco. E nações femininas, como homens femininos, morrem, inevitavelmente, ou são destruídas por povos masculinos.

Prisco tentou tornar o assunto mais leve. Disse, gracejando:

- Meus soldados, as legiões de Roma, não são mulheres, Lucano.

- Mas franziu as sobrancelhas, pensando. Que devia um homem fazer? Ele estava absolutamente impotente onde o povo preferia, unanimemente, a escravidão à árdua liberdade.

Ele disse então:

- Consinto em afirmar que tens razão. Mas eu já te disse que meu pai nasceu tarde demais. Morreu com o coração despedaçado. Eu nasci ainda mais tarde. Não pretendo morrer com o coração despedaçado. Que adiantaria a minha tentativa para chamar um só homem que fosse à sobriedade e ao heroísmo? Nada resolveria.

- Mais uma vez me entendeste mal, Prisco. Compreendo que não podes deter a História, pois podridão e morte são inevitáveis nas repúblicas. A única sociedade que pode durar no mundo, com grandeza, é a sociedade aristocrática, governada por homens sábios escolhidos, sacerdotes, cientistas, heróis, artistas, poetas, filósofos. As repúblicas geram políticos exigentes, e esses políticos criam sempre, infinitamente, democracias e morte. Se os homens quisessem ao menos vigiar atentamente, de forma que a masculinidade não se separasse de uma nação! Mas isso nunca acontece.

“Prisco, tu, como esposo e pai, e mais particularmente como pai, podes cultivar a masculinidade de homens nobres e livres em teus filhos; um homem deve começar sempre por sua própria família, e então estender sua atividade aos seus vizinhos”. Pode fracassar, mas pelo menos tentou. O homem não é julgado pelos seus fracassos, mas pela ausência de esforços. Pelo menos, o homem é julgado separadamente, nunca é julgado como a massa.

Prisco estava irritado.

- Eu não fiz este mundo, Lucano. Não posso modificá-lo.

Devo bater a cabeça contra a parede e esmagar meu crânio? Vivo minha vida o mais utilmente possível, servindo minha pátria, fechando meus olhos para seus defeitos fatais, que não posso eliminar, gozando minha existência, minha família, meu lar, meus amigos. Perdoa-me, mas com toda a tua filosofia jamais gozaste a vida. Quem, então, é mais feliz?

- E isso é tudo, no que se refere a viver, Prisco? Indagou Lucano, melancolicamente, sabendo muito bem que seu irmão compreendera. - Apenas gozar a vida? Seguramente. O homem deve ter maior destino do que esse. Sua vida tem uma significação maior, além deste mundo.

Prisco levantou-se, estendeu os braços sobre a cabeça, bocejou.

- Deves dizer-me, Lucano e havia em sua voz robusta uma leve zombaria.

Lucano ficou silencioso. De repente, pensou em Keptah, em José ben Gamliel, em todos os filósofos e devotos que conhecera. Disse, com hesitação:

- É possível que o destino do homem esteja além de sua morte, e o que ele faz aqui decida esse destino.

- Tu não acreditas nisso! Falou Prisco, rindo. - És o mais cético dos céticos. Já te ouvi falar muitas vezes nesta casa.

Lucano ficou em silêncio outra vez, desprezando a si próprio. Viu a terrível responsabilidade dos adultos, sejam pais ou irmãos. Viu que devem estar sempre ensinando aos jovens que eles são mais do que animais; que suas vidas têm uma significação mais sutil e maior do que superficialmente parecem ter. Lucano pôs a cabeça entre as mãos, pois, subitamente, sentiu pequenas fisgadas e a sensação de que a comprimiam. Prisco, contemplando, apertava os olhos.

- Não te acuses, Lucano. Sempre falaste de acordo com a tua convicção, embora falasses amargamente. Poderias tu me ter feito diferente do que sou? Não.

Sim, pensou Lucano, com fel na boca. E disse:

- E estás satisfeito, Prisco? Não desejas nada mais além daquilo que possuis?

Seria possível que Prisco estivesse hesitante? Lucano levantou os olhos, esperançoso. Prisco estava sério, agora, e coçava o queixo, enquanto flexionava, abstraidamente, um braço musculoso. Depois falou, como para consigo mesmo.

- Ouvi rumores em minha última campanha. Rumores loucos, talvez. Vinham da Síria, ou talvez da Armênia, ou Egito, ou Israel. Não me recordo. Mas o boato diz que Deus está se manifestando em algum lugar, e que bem depressa modificará o mundo.

Olhou para Lucano e riu meio encabulado.

- Claro está que são falatórios loucos. Nossa religião está cheia de manifestações de deidade, e como sabes, os deuses estão sempre se envolvendo e interferindo com esses homens, ou discutindo acaloradamente entre eles próprios. Ainda assim e ele fez uma pausa esse rumor parece ser inteiramente diferente. Uma grande revelação está para vir, segundo dizem. E o mundo será regenerado. - Deu uma palmada nas costas de Lucano: - Portanto, anima-te, meu irmão.

Talvez nem tudo esteja perdido.

E lá se foi, cantarolando. Se Lucano tivesse prestado atenção, perceberia que os passos de Prisco não eram tão enérgicos quanto de costume; que, de certa forma, arrastavam-se como se o soldado estivesse pensando. Mas Lucano não ouvia. Um grande terror, uma grande fome, uma grande inquietação se apoderaram dele, e o médico recordou, embora tentasse não recordar, seus sonhos horríveis de quando estivera doente, tomado pela febre.

 

- Não podemos descer em Creta, senhor Lucano disse o comandante do navio.

- Por quê? Indagou preocupado. - Tenho quatro pacientes lá, e prometi ir vê-los nesta época. Eles estão sob meu tratamento.

- Senhor, está amanhecendo disse o comandante, significativamente. - Se me quiseres acompanhar eu te mostrarei a razão.

Lucano acompanhou-o para o convés superior. O mar, calmo e azul, riscado com o vermelho e ouro da aurora, desenrolava-se em torno deles. Não estavam longe de Creta, verde e iluminada pelo primeiro sol, rodeada por um halo esbatido de espuma. Um grande navio de guerra romano estava próximo do porto, suas altas velas brancas sacudindo-se ociosamente à brisa matinal, suas flâmulas drapejando contra o céu. Circundando-o, como pequenos peixes em redor da mãe, havia uma atividade febril de barcos pequenos, que pareciam densamente aglomerados de gente que estava para subir a bordo do navio de guerra, sob um chuveiro de chicotadas. Suas vozes lastimosas, fracas e distantes, ecoavam através da água.

O capitão debruçou-se à amurada e ficou a palitar os dentes pensativamente. Era um levantino velhaco e moreno, de bigodes pretos.

- Houve uma insurreição disse ele, observando com interesse. - O povo desta cidade, inspirado pelos jovens, ousou desafiar Roma e pedir sua liberdade! Não é ridículo que uma ilha tão pequena... E a ilha inteira está fervendo, desafie o poder e a força de Roma? Que ganharam com isso? Suas ruas estão empilhadas de corpos jovens; homens, mulheres e crianças, aos montes, foram apanhados e escravizados, e agora estão sendo levados a Roma, a fim de serem vendidos. Tolos mesquinhos! Nunca houve para eles a menor esperança.

Mas, segundo ouvi, enquanto lutavam, chamavam pelos gregos, pelos egípcios, pelos sírios, a fim de que se reunissem a eles na batalha por liberdade! Receberam apenas expressões de simpatia ou silêncio.

Disseram-me que mandaram mensageiros com tochas, correndo, durante meses, através do mundo, pedindo um levante geral contra o tirano de Roma. Mas os outros preferiram lançar expressões de apoio moral em seus tribunais de leis, e saíram para jantar. Outros países, segundo ouvi, apressaram-se a assegurar aos procônsules romanos, e aos tribunos, que não tinham a intenção de se unir "à desordem", e desejavam apenas uma oportunidade de continuar a coexistir amistosamente com Roma. - O homem riu asperamente.

Mais barcos pequenos carregados com rebeldes iam correndo ansiosamente em direção do navio de guerra, como que para aplacá-lo.

Lucano via agora nuvens de fumaça e pequenas línguas de fogo erguendo-se da cidade. Pensou nos cretenses que haviam lançado um golpe furioso contra o Império, suplicando e rezando para que as nações submetidas a eles se juntassem. Mas estiveram sozinhos, como todos os homens que lutam pela liberdade estão sozinhos. E os povos pusilânimes, soluçando sentimentalmente por eles, preferiram não ser valentes. Os homens oferecem sua escravidão, sua sujeição, seu sofrimento, foi o que Lucano pensou com amargura. Nunca são realmente oprimidos. Permitem a opressão.

Mas talvez o amor instintivo da liberdade vivesse em toda parte, severamente abafado e ainda assim existindo, embora numa ilha tão pequena, num povo tão pequeno, que ousara levantar mãos valorosas contra a Roma Imperial. Lucano sacudiu a cabeça. Sempre era tarde demais. Não podia suportar os gritos e lamentos e brados dos homens, mulheres e crianças escravizados, e desceu. Sua porta abriu-se sem que batessem, e o comandante entrou, sentou-se junto dele numa cadeira e ficou a olhá-lo.

- A morte disse o comandante - é sempre o preço que o homem deve estar preparado a pagar pela sua dignidade.

- Quando ele perde sua dignidade como homem, já não é mais homem disse Lucano. - Os crerenses, que parecem ter sido esmagados, tiveram seu homem de glória. Que Deus esteja com eles.

- É evidente que ninguém mais estará disse o comandante, com um riso sufocado. - Mas é possível que eles não tenham sequer a simpatia dos deuses, que achem os homens deploráveis.

O navio fez a volta e afastou-se. No porto seguinte, Lucano recebeu cartas de sua casa, mas nenhuma, conforme esperava, de Sara bas Eleazar.

Prisco fora reunir-se a Plócio em Jerusalém. Escrevera: “Acho os judeus muito interessantes”. Atualmente, toda a Judéia ressoa com o nome de um mestre judeu, um Jesus de Nazaré, que prefere falar com a plebe a se reunir aos homens sábios da cidade. Corre o rumor, entre a população fervilhante, de que Ele é o seu Messias, aquele cuja vinda foi profetizada nos velhos tempos, e que os livrará de Roma! Não é ridículo? Os sacerdotes desprezam-No, como camponês de pés descalços. Vive rodeado de seus seguidores, tão destituídos de tudo quanto Ele próprio.

Naturalmente, ninguém de importância O leva a sério. Alguns de nossos soldados declaram que Ele realiza milagres como um verdadeiro deus. Precisamos descontar os exageros dos ignorantes, e nossos soldados são supersticiosos. Gosto da Judéia; o clima é salubre; o povo de fisionomia franca. Além disso, não se precisa ter medo de comer em suas tavernas, mesmo na mais humilde, porque tudo quanto se refere a alimento é manejado com a mais escrupulosa limpeza. Na noite passada os oficiais foram convidados a jantar com Herodes Antipas, que é homem cauteloso, e que parece, a esta altura, andar muito preocupado. Ouvi dizer que é abstêmio em seus hábitos, o que possivelmente será falso, pois bebeu mais do que nós, depois se debulhou em lágrimas e falou de um João que tinha mandado matar por causa de sua selvagem rebelião, que agitava o povo. Isso aconteceu há quase dois anos; ainda assim parece perturbar Herodes. O país está fervendo.”.

Lucano leu e releu aquela carta, e pensou no centurião Antônio.

Sacudiu a cabeça. Um rabi judeu, obscuro, iletrado, miserável! Riu, levemente. Seria ele o Deus Desconhecido a que se referia o centurião? Deus se manifestaria, sem dúvida, na pessoa de um grande rei, de um poderoso sábio, de um nobre, de um patrício. Mas aquilo, sem dúvida, estava de acordo com a natureza mística dos judeus, que viam Deus em toda parte. Então, Lucano pensou em Sara e no que ela lhe escrevera, havia anos, sobre o jovem que dela se aproximara, chamando-a pelo nome e a consolara.

Ficou pensando naquilo. Disse consigo mesmo que em todos os países há sempre boatos sobre milagreiros, sobre rápido aparecimento de deuses vestidos de luz, de estranhos acontecimentos. Um mundo reduzido à subserviência e sujeição, sob os romanos, voltava-se para os mitos e superstições.

Apesar disso, terrível inquietação apossou-se de Lucano. Sentiu a Judéia puxar por ele, como se fosse irresistível maré. Começou a pensar em fazer uma visita a seu irmão, em Jerusalém, e então encolheu-se interiormente. Não desejava saber daquele perturbador misticismo dos judeus; estava farto de homens como José ben Gamliel.

No porto seguinte recebeu numerosas cartas, não só de sua casa, mas de Sara, e de estrangeiros em Jerusalém. E quando leu a carta de Sara, fez-se imóvel e frio como pedra, e toda a emoção entorpeceu-se nele, pois agora sabia que Sara tinha morrido. Ela escrevera:

“Quando esta carta chegar às tuas mãos, meu bem-amado, meu muito querido Lucano, eu terei ido reunir-me a meus pais, pois estou morrendo”. Não sofras, não chores. Regozija-te comigo por ter sido eu chamada por Deus, que jamais esteve ausente de mim num só momento de minha vida. Reza por mim, se quiseres. Quando deixei Roma, sabia que levava a morte comigo e estava feliz. Voltei para Jerusalém a fim de morrer em meu lar, sem remorsos, sem anseios, sem desejos mundanos, pois que me ia reunir a meus pais e a outros que me amaram. A morte não é uma calamidade, quando morremos; só é uma calamidade para aqueles que ficam, pois a morte é libertação, alegria, paz e beatitude eternas. Os dias dos homens são curtos e cheios de perturbações. O que há no mundo que nos ofereça consolo? Não te desgostes. Estarei sempre contigo e rezarei por ti. Nossa separação será breve. Deus esteja contigo, e possa Ele trazer-te Sua abençoada paz.

Dos céus olho para ti, quando tiveres esta carta nas mãos, e rezo para que não chores. Encontrarás meu irmão, Arieh. Antes de ficar confinada ao leito eu vi Aquele que estás procurando, misturei-me com as multidões pelas ruas, e toquei-Lhe as vestes. Ele voltou-se e sorriu-me compassivamente, dizendo-me que não desanimasse; que minhas preces já tinham sido ouvidas. Traze meu irmão para casa, pois agora sei, sem a menor dúvida, que o encontrarás. Adeus, mas só por pouco tempo, meu Lucano. Beijo teus lábios e teus olhos."

Lucano não chorou, como Sara temera. Nada sentia, a não ser um grande vazio e silêncio, um abandono de toda a sensação. Leu, calmamente, as cartas dos estranhos de Jerusalém, amigos de Sara, cartas grandiloqüentes assegurando-lhe que ela morrera sem dores; que seu corpo fora levado à sepultura de seus pais, e que Sara lançara seu último suspiro com um sorriso cheio de paz. Havia cartas dos advogados que eram os curadores da fortuna da família de Sara, fortuna reservada para o filho de Eleazar ben Salomão, que agora devia ter mais ou menos vinte anos. Eram homens céticos, aqueles advogados.

Apesar disso, Sara os convencera, e eles expressavam sua confiança em que Lucano poderia encontrar o filho de Eleazar, o irmão de Sara, e devolvê-lo a seu povo.

Lucano pôs de lado as cartas e serviu-se de um pouco de vinho.

Bebeu lentamente, cogitando, de maneira vaga, no porquê de nenhum vendaval levantar-se nele, no porquê de não ter paixão ou desgosto por alguém que amara com tanto carinho. Então, como médico, soube que estava misericordiosamente entorpecido pelo choque. Bebeu mais e mais, até que as paredes de sua cabina enviesassem. Tornou a beber, e tombou sobre o leito, onde passou vinte e quatro horas sem acordar.

Quando voltou a si, teve violentos vômitos, e sentiu-se vagamente grato pelas náuseas e pelo corpo dolorido, pela cabeça estrondejante, pois, preocupado com sua miséria física, não podia pensar.

Dias depois, enquanto o navio fazia seu caminho, sentiu-se como se movesse num mundo vazio. Trabalhava em silêncio. Não sorria mais, nem mesmo um pouco. Temia adormecer, pois via em sonhos os rostos dos que amara e perdera. Ouvia suas vozes amorosas. E disse a eles:

- Não me consoleis, pois estais mortos e na sepultura não há recordações.

Os meses monótonos e descoloridos se passaram, gotejando uns sobre os outros, como turvas poças d’água. Escrevia cartas breves à família. Receava perdas novas, outras notícias dolorosas. Tinha medo e tremia quando recebia cartas. Mas Aurélia teve um belo filho, e estava de novo grávida. Cusa tinha dois netos. Gaio pensava em casar-se com uma virtuosa donzela de velha e sólida família, mas pobre.

"Ela me agrada", escrevia Íris. "É muito erudita. Era inevitável que Gaio, se um dia chegasse a casar, o fizesse com uma jovem assim. Há quase um ano que aqui estiveste, meu filho. Compreendo que em teu desgosto por Sara não desejes ver nossa felicidade, nem ouvir as vozes de teus sobrinhos e sobrinhas, nem mesmo a voz de tua mãe. Mas estou ficando muito velha. Volta para a tua casa, nem que seja por alguns dias, a fim de que eu te possa ver outra vez."

Lucano, porém, não podia ir para casa. Encolhia-se à idéia de viver, e dos rostos deles, temia seu amor e seu consolo, e sua ternura.

Podia agora recordar Rúbria sem dor. Mas não podia recordar Sara sem agonia, uma agonia que jamais o deixava. Em cada porto, quando o navio atracava, ele procurava entre a multidão o rosto dela. Quando chegavam cartas, procurava uma que fosse dela. Caminhava, em sua desolação, tratava dos enfermos, sentava-se nos jardins de suas pequenas casas, lia, comia, dormia. Vivia como um espectro. Uma vez, muito calmamente, abriu sua bolsa de médico e olhou para um remédio que havia preparado, e que, dado numa taça de vinho, aliviaria a dor, mas, tomado em quantidade traria morte rápida. Esteve com o frasco na mão até que ele ficasse quente entre seus dedos. Depois, colocou-o de lado. Mas sempre pensava nele, em sua horrível solidão, em seu frio desespero.

Soube, num porto, que apenas por uma hora não encontrara com seu irmão Prisco. Este lhe deixara uma carta, antes de partir para Roma, onde iria passar algumas semanas de licença. Escrevera sobre o entusiasmo com que ia ver sua família e censurara o irmão por negligenciá-la. Mandava a Lucano uma mensagem de Plócio, e depois passava a discorrer sobre Jesus de Nazaré, o mestre judeu mendicante, cuja influência crescia na Judéia. Escrevia superficialmente, mas era bastante claro que estava profundamente impressionado: "Falei muitas vezes com os que dizem terem sido curados por ele instantaneamente, pelo toque das mãos. Na verdade, havia um mendigo aqui, que eu conhecia de vista, sentado contra a parede do templo, e que era cego de nascença. Em certa ocasião dei-lhe esmolas, pois seu rosto era nobre e possuía considerável conhecimento. Depois, um dia, encontrei-o rodeado de muita gente excitada, e seus olhos estavam abertos, e ele enxergava! Eu não podia acreditar naquilo, meu caro Lucano! O homem não era um mistificador, eu o juro, contudo olhava para mim, com olhos abertos e vivos e, quando eu lhe falei, correu para mim, agarrou minha mão, e exclamou: “O Filho de Deus abriu-me os olhos, quando eu Lhe implorei que o fizesse”!”.

"Na verdade, meu irmão, isto eu mesmo vi, e não o posso duvidar. Contaram-me que aquele mestre fez viver um morto, tirou a loucura da mente de homens, e que todos, ao som de sua voz, sentem êxtase e alegria. Vai de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, curando, dizem, e quando o povo fala nele é como se estivesse tomado de arrebatamento divino. E ele ApoIo, aparecendo sob o disfarce de um pobre carpinteiro judeu? Ou Mercúrio? Ou Eros? Haverá proximamente alguma grande revelação? Os eruditos, e uma casta daqui, que se dá o nome de fariseus, riem em voz alta, ou se encolerizam. Sentem-se ofendidos ao saber que um homem, sem nada possuir, sem erudição, sem família, sem poder pessoal, sem recomendações de homens distintos, pode atrair para si multidões, no momento em que aparece. Receiam que ele venha a advogar um levante contra os romanos, por parte dos judeus, e aqui o medo é legítimo, pois sua influência entre o povo é estupenda. Nesse caso, se houver um levante, haverá muito derramamento de sangue, e eu não gosto de pensar nisso, pois cheguei a admirar os judeus e visito as casas dos que não pensam que a presença de um gentio e, pior, de um oficial romano, é insultuosa. Mas Israel é um país muito pequeno, e não tem importância. Só quando ali estou é que tenho a impressão de que algo de portentoso está para acontecer. Não é estranho? Voltarei dentro de três meses para lá."

Prisco escrevia a respeito de Pôncio Pilatos, o procurador.

“É homem pacífico, mas vacilante, e prefere sua biblioteca e a companhia de sua esposa aos banquetes e à política”. Gosto de conversar com ele. Os judeus aborrecem-no. Declara que vivem com um pé neste mundo e outro no próximo, e que sua piedade é incompreensível.

A Herodes, ele despreza como a um tolo efeminado, a um tempo cheio de superstições gregas e de profecias judaicas. Disseste-me, certa ocasião, que Roma fora profundamente tocada pelo Oriente, e se influenciara demasiado por ele. E que a mente ocidental jamais poderá compreender a oriental. Isso é verdade no caso de Herodes. O encontro do Oriente e do Ocidente, nele, desordenou-lhe o espírito e criou confusão em sua mente.

"O procurador não deixou de ser tocado pelas histórias do mestre judeu. Mas não se perturbou com a agoureira profecia de que Jesus incitará os judeus contra Roma. Declarou que um dos seus soldados lhe dissera que quando os fariseus, que são mercadores emproados, e advogados e médicos muito orgulhosos, desafiaram Jesus a trair sua missão real e perguntaram lhe se era certo os judeus prestarem homenagem a César, Jesus replicara que se deve honrar as leis do mundo, que são de César, em vez de honrar as do mundo sobrenatural, que são de Deus. Não é isso sofisma? Mas muito inteligente, deves confessar. Pôncio achou muito divertida essa história. Disse que o homem deveria ser advogado, pois faria fortuna."

Depois, Prisco acrescentava algumas palavras estranhas.

"Recordo-me de nossa última conversa, em casa, e quando me recordo, penso nesse mestre judeu de pés descalços, miserável. Os pensamentos vêm simultaneamente. E isso é muito esquisito."

Lucano ficou sentado muito tempo com a carta de Prisco na mão. De vez em quando estremecia. Sua fria mente grega o censurava, mas não podia conter-se, e lia e relia a carta. Por mais de uma vez o suor porejou de sua fronte, acompanhado de um anelo desesperador.

Então destruiu a carta, como quem destrói algo que o está atirando a um turbilhão.

        - Superstição! Exclamou, em voz alta. - Histórias idiotas!

Quando chegou a Atenas soube, por uma carta de Íris, que Prisco voltara a Jerusalém. A esposa de Gaio estava para ter um filho. Cusa andava adoentado, lamurioso. Lucano pôs a carta de lado, desatento.

Havia uma outra, que lhe era dirigida em caligrafia estranha, e vinha de um lugar do qual jamais ouvira falar, na África.

"Querido e bem-amado amigo! Esta carta é de Ramo, que pensa em ti constantemente e reza por ti sem cessar."

Lucano não podia acreditar naquilo. Ficou a olhar para a carta, incrédulo, e depois sentiu a primeira alegria, desde há muito tempo.

Ramo estava vivo! Não morrera, não se perdera, não fora vendido como escravo.

- Ó Deus! Exclamou em voz alta, encantado. Apertou a carta contra o coração, e lágrimas subiram-lhe aos olhos.

A carta continuava: “Só agora voltei para minha gente, trazendo paz e felicidade comigo”. Depois que te deixei e ainda suplico que me perdoes fiz meu caminho, através de meses de lutas e esforços, até a Terra de Israel. Das minhas privações não falarei, pois agora elas nada são. Eu esperava hostilidade, por ser o que sou, mas em toda parte, embora não falasse, encontrei a bondade que é oferecida aos peregrinos que se dirigem a um lugar sagrado. Fui alimentado e abrigado sem que me fizessem perguntas, e assim compreendi que Deus me estava protegendo. Nenhum lar humilde se fechou para mim, em parte alguma, e em cada oásis deram-me água, vinho e alimento, junto das caravanas solitárias. Minha cor não foi desprezada. Mas essa é a menor das maravilhas, e eu não falarei dela.

“Cheguei a Israel, e imediatamente procurei por Ele, Aquele que eu vinha procurando”. E encontrei-O na cidade de Naim. Não ousei aproximar-me, pois a multidão era muito grande, e eu era um homem de pele escura, sem lar, os pés esfolados, sem dinheiro. Posso falar Dele? Que palavras pode usar um homem para dizer que esteve em presença de Deus? Como foi que Ele me apareceu? Como o sol? Estas palavras não O descrevem. Eu O segui, atrás da multidão, desejando         aproximar-me mais. Podia ouvir-Lhe a voz, embora estivesse tão distante; era como um trovão abafado e muito bondosa. Soube que Ele vinha com freqüência àquela cidade, onde o povo é pobre e vive oprimido pelos romanos e desprezado pelos eruditos. São agricultores miseráveis e pequenos comerciantes, gente muito humilde.

"Ele aproximou-se das portas, de Naim, e um homem morto, o filho de uma viúva, ia sendo levado para fora. Um grande grupo de amigos dela a acompanhava. O Senhor, vendo-a, teve compaixão dela, pois a mulher chorava desconsoladamente, e depois de um longo e carinhoso olhar para a mãe, Ele dirigiu-se à padiola e fixou os olhos nos que a carregavam, e estes imediatamente, ficaram imóveis. Ele levantou Sua mão e disse ao filho morto: “Jovem, levante-te, eu te digo”!”.

“Lucano, precisas acreditar nisto, pois eu o vi, e jamais te disse uma mentira”! Declaro que o morto sentou-se e começou a falar em voz vaga e confusa, como alguém que é acordado subitamente de um sono profundo em que tivera sonhos agradáveis. Mas o Senhor tomou-lhe delicadamente a mão, ergueu-o da padiola e deu a mão dele à mãe, que se agarrou ao filho, abraçando-o, depois atirou-se aos pés Daquele que lho restituíra. O povo recuou, aterrorizado, e então alguém glorificou a Deus com gritos muito fortes, exclamando: "Um grande profeta ergueu-se entre nós e Deus visitou o Seu povo.”.

"Lucano, eu O vi. Com estes meus olhos, com os olhos que tu me devolveste, eu O vi.”

“Deslizei atrás Dele, pensando comigo mesmo: “Se Ele não me devolver a minha voz, não terei pena, pois eu O vi, e que mais necessita um homem”“? Queria, entretanto, aproximar-me mais Dele; queria ver Seus olhos brilharem sobre mim, embora eu seja um homem de pele escura. Seguramente, pensei, Ele não me desprezará, Ele, que me fez; seguramente Ele anulará a maldição de Noé sobre meu povo. Ele estava conversando com os Seus seguidores, jovens como Ele próprio; então, subitamente, parou. Olhou por sobre o ombro, e Seus olhos iluminaram-se sobre mim. Sorriu, e pareceu esperar. Então, de repente, senti algo mover-se em minha garganta, tremer em minha língua e imediatamente minha voz estava em meus lábios, e eu exclamei:

"Abençoado sou, que vi o senhor nosso Deus!"

“Devo ter caído desmaiado no chão, pois quando acordei estava sozinho sob o crepúsculo ardente e poeirento, e quando levantei sabia o que devia fazer”. Devia voltar para a minha gente e trazer-lhe a mensagem de vida e alegria, pois eu tinha visto Deus, eu O conhecera, e a maldição fora afastada de nós.

“Que a paz esteja contigo”. Possa a Sua paz descer sobre ti, e possa Ele chamar-te para Si. Pois Ele é O que tens estado procurando.

Adeus. “Mas nós nos encontraremos outra vez, onde os homens não se odeiam nem se desprezam mutuamente, mas compreendem mutuamente seus corações.”

Lucano pôs a carta de lado, e de novo sentiu a pesada náusea do coração, e a depressão, o imenso repúdio. Ele, como médico, acreditava saber o que acontecera a Ramo. O homem vira o que desejava ver, a histeria que o silenciara fora de súbito libertada e ele tornara a falar.

Era muito simples.

Mas e o jovem que se erguera, o que estava "morto"? Também aquilo era simples demais. O homem sofrera um ataque de catalepsia.

Estivera em estado de animação suspensa. Felizmente para ele não tinha sido fechado numa sepultura, para acordar com a boca sufocada pela terra! Aquele mestre judeu devia ser uma espécie de médico, que percebera não estar o homem realmente morto.

Eu tenho muitas explicações, Lucano começou a pensar. Depois parou, impressionado. Preciso sempre raciocinar, pensou, de súbito. Preciso sempre afobar-me para explicar as coisas à luz da razão? Que me trouxe a razão, a não ser desgosto? Entretanto, tudo quanto não é lógico me parece revoltante. Infantil, mesmo profano.

E, sem saber por quê, começou a chorar.

 

Lucano voltou a Atenas. Era um dia quente de início de primavera, e mesmo aquele ar seco e adstringente tinha vida, uma alegria. As mulheres que vendiam flores sentavam-se em suas barracas com pequenas montanhas de louro, violetas, rosinhas, anêmonas e papoulas diante delas. E apregoavam, com vozes roucas. As ruas deixavam escorrer a vida. Jamais fazia muito frio, e ali, ainda assim, quando vinha a primavera, com florações e uma atmosfera azul e brilhante, o povo tornava-se animado de uma espécie de júbilo e prazer. As pequenas lojas ecoavam com as vozes dos compradores e havia por toda parte o cheiro de salsichas e alhos que se coziam. Crianças corriam e gritavam, lutando pelas sarjetas. Velhos sorriam uns para os outros, cofiando suas barbas, e conversavam com vozes eruditas. As colinas mostravam-se viçosas, cobertas de um verde puro. Sobre a Acrópole, o Partenao era uma coroa de luz gelada. A poderosa estátua de Atenas recortava-se contra o céu. Em toda parte havia uma aceleração, uma espécie de senso de antecipação. Moças e moços andavam de mãos dadas, sorridentes. Bebês riam no colo das mães. Os soldados romanos encostavam-se às paredes dos edifícios, bocejavam, sorriam, coçavam o queixo e olhavam entusiasmados para as mulheres. Os cavalos, puxando bigas, empinavam-se. Cães ladravam. Advogados e homens de negócios tinham parado em seu alvoroço e caminhavam calmamente, esquecendo de discutir seus problemas.

Lucano sabia que aquilo era o início da Páscoa dos judeus. Havia uma sinagoga ali perto, mas o médico desviou-se dela. Tinha a sensação de estar fugindo, alvoroçado, de alguma coisa, a cabeça baixa. Mas aquilo era ridículo. Havia descido a terra à meia-noite, e fora para a sua casinha solitária. Tinha muitos antigos pacientes a visitar, e faria isso no dia seguinte. Não era pessoa que caminhasse calmamente, pelo simples prazer de caminhar, e não sabia por que fora levado, naquele dia, a andar pela cidade. Mas havia nele uma sede em ver seu próximo, e não se fartava de olhar. Não sou jovem, pensava. Nunca fui pessoa de se misturar com outras para gozar-lhes a companhia. Por que me sinto mal assim? Sorriu para uma velha florista e comprou-lhe um pequeno ramalhete de lírios brancos. Caminhou, mergulhando o nariz nas flores, cuja fragrância quase o estonteava.

Resolveu voltar a sua casa e escrever cartas que de há muito devia à sua família. O jardim estava silencioso e cheio de sol. Tudo tinha uma patina de luz, tal como ele jamais vira antes. Cada folha nova era recoberta com aquela luz, cada flor nela mergulhava. Ela faiscava na fonte e iluminava cada grão de terra. As paredes da pequenina casa brilhavam, como se fossem polidas. Lucano olhou para o céu. Jamais ele estivera tão claro ou mais brilhante. Nem uma só nuvem se via ali.

Comeu sua refeição, parca e frugal, e bebeu seu vinho. Ouviu o silêncio de sua casa. Era como se algo tivesse retido uma respiração poderosa e a estivesse mantendo assim. Nada se movia. Agora, tudo refletia radiosidade, mesmo sua taça simples de prata, mesmo seu garfo e sua colher, mesmo os lados de suas mãos, mesmo o piso de madeira branca, bem esfregada. Os olhos de Lucano começaram a arder com tanta luz. Sentiu um cansaço dominador e pensou: Vou deitar-me e repousar.

Deitou-se e fechou os olhos. Esperava dormir durante o calor das primeiras horas da tarde. Mas havia um resplendor, uma iridescência, atrás de suas pálpebras. Sentiu que começava a suar. Todo o seu corpo parecia esticar-se em agonia. Não podia repousar. Levantou-se; sentia-se muito fraco. Seria de novo a febre. Perguntou-se alarmado, pensando nos pacientes que devia visitar no dia seguinte e nas turbas que se reuniriam à sua porta. Não podia faltar-lhes, pois que esperavam por ele. Foi, tropeçando, pela casa, naquela tremenda inundação de luz, e apanhou o estojo. A mão tateante chegou ao fundo e fechou-se sobre algo frio e metálico, e ele retirou dali a cruz que Keptah dera a Rúbria e que Rúbria lhe dera. Olhou-a, brilhando ofuscantemente em sua palma, como se ardesse ao sol. E agora lhe queimava a carne.

Pestanejando, pousou a cruz e ficou a contemplá-la, e todos os seus sonhos, tudo quanto ouvira, voltaram-lhe em trovejante clamor. Mas que tinha aquela cruz a ver com o miserável mestre judeu, na Israel distante que, segundo diziam, levantava os mortos, realizava milagres e arrastava consigo as multidões? Que tinha aquela cruz dos caldeus, dos babilônios, dos egípcios, a ver com alguém tão distante, alguém tão humilde e desconhecido no mundo dos homens?

Não havia repouso naquela casa; não havia repouso em parte alguma para quem estava tão embaraçado, tão acossado e tão desolado. Lucano foi para o jardim, arquejante, procurando sombra. Mas não havia sombra, não havia proteção contra o sol. Tudo estava dentro de uma luz sem sombras, reunido em flamejante cristal. Então, de súbito, uma escuridão tombou sobre a face da terra, engolindo toda a luz, extinguindo-a, levando-a pela frente como uma maré, e banindo-a.

Ah. Pensou Lucano. Teremos um temporal, um temporal que refrescará o ar! Olhou para o céu, e o céu estava muito escuro[18].

Onde estava o sol? Contemplou o céu negro, buscando. Tudo se mostrava inteiramente imóvel. Nenhum grilo erguia sua voz. Os pássaros silenciavam, embora tivessem estado murmurantes durante toda a manhã.

O médico olhou para a cidade. O Partenao era um contorno apagado, de prata pura. A cidade imergia na escuridão. Foi quando ele ouviu um som abafado, como do mar, e soube que era a voz da cidade, cheia de pânico e interrogações. Correu para o seu portão. A estrada que por ele passava estava vazia. Olhou para longe e viu, vagamente o gado deitado na relva, como que adormecido.

O ar mostrava-se tão claro como água e, como água, límpido e fresco. Portanto, pensou Lucano, não é uma tempestade de poeira. Sentou-se num banco e sentiu a frialdade da morte correr por sobre seu corpo. Recordou-se dos velhos mitos que falavam da cólera dos deuses. Haveria um dia em que os deuses, nauseados com os homens retirariam o sol e mergulhariam a terra em trevas eternas e na morte. Moveu o corpo, inquieto. Levantou-se e caminhou, dando voltas e voltas pelo jardim. Um aroma de rosas e lírios ergueu-se no ar, como se as flores tivessem sido esmagadas sob um pé gigantesco. A cidade começou a brilhar e faiscar com lanternas e tochas rapidamente acesas. Lucano percebeu que, muito provavelmente, um imenso rio de seres humanos estaria começando a correr para o Partenao, a fim de suplicar aos deuses ali que levantassem de sobre a terra aquela terrível e inexplicável escuridão. Quanto a ele próprio, estava consumido, não de ansiedade por si mesmo, mas por uma interrogação apaixonada. Como alguém que fora instruído pelos maiores cientistas do mundo, começou a fazer conjeturas. Acreditava se que um dia o sol consumiria a própria força, e este planeta, a terra, rolaria pelo espaço, reunindo gelo e frio mortal, e toda a vida se extinguiria nele. Mas isso, diziam os astrônomos, levaria idades e idades para acontecer, o sol morreria devagar, ficaria avermelhado, apagar-se-ia pestanejando, como lava. Isso ocorreria depois de milênios, jamais ocorreria instantaneamente. Mas o que se passara, então, ocorrera num abrir e fechar de olhos, entre uma respiração e outra. Lucano procurava novamente o sol, o sol que se retraíra. Seria possível que ele se tivesse atirado para longe de seus filhos e se tivesse ido reunir a seus irmãos radiantes?

Uma enorme sensação de excitamento correu de súbito por ele todo, e também um terror que antes jamais conhecera. Onde, entre as constelações ardentes, estava agora o sol? Que caos estava causando entre a fraternidade bem organizada, aquele intruso que vinha de um canto do universo? Que planeta iria devorando em sua passagem chamejante?

Então, sentiu que não estava sozinho. Firmou os olhos em torno, no luar, na luz das estrelas. Havia sombras pálidas movendo-se em torno dele, no jardim, ou era apenas ilusão de seus olhos cansados?

Seu coração saltou. Sombras passavam junto dele, e pensou ver os rostos de Rúbria, Keptah e Sara, sorrindo nebulosamente.

Flutuavam, como flocos de neve, e então de súbito! Ali estava Diodoro, forte, valoroso, sua mão levantada em cumprimento. Havia José Gamliel oh! Aquilo era loucura! Com um olhar carinhoso as muitas sombras femininas, mulheres que ele socorrera, estava Aurélia, animada e sorridente. Uma multidão passou por ele, parou diante dele, cumprimentando-o, com silêncio e afeição. Lucano sacudiu violentamente a cabeça, arquejou, fechou os olhos.

Então, a terra ergueu-se como um vagalhão, estremeceu, convulsionada, e deslizou sob os pés. Um retumbar profundo subiu, como que de suas entranhas. Levantou-se um vento, um furacão, que tombou rapidamente, recomeçou, uivando, de tal forma que a respiração do médico abafou-se em sua garganta. Agora, ele já não era o médico, o filósofo ou o cientista. Era um homem, e estava dominado pelo medo. Levantou-se, tremendo, os dentes castanholando. Caminhou pelo jardim, que parecia espectral. Sua carne tremia, como em acesso de febre intermitente. Foi até a fonte, e ouviu sua água que saltava. Entrou na casa. Forçou-se a acender uma lâmpada. Ficou ali, de pé, olhando estupidamente para ela. Apanhou um livro e tornou a pousá-lo. Sua cabeça latejava.

Em dado momento tentou falar razoavelmente consigo mesmo. Recordou a astronomia que estudara. O sol não se podia destacar dos "perambulantes" seus filhos, os planetas. Aonde ele fosse, os planetas também iriam. "Certamente, certamente", disse ele, em voz alta, para o silêncio pesado que o envolvia, e sacudia a cabeça em aprovação, como que satisfeito. Mas sabia que aquela era uma reflexão idiota. O sol se fora, e o céu, lá em cima, estava muito escuro. Todas as razões do homem, suas reflexões mais profundas, não podiam alterar aqueles fatos. Ele não conseguia ligar um nome, uma teoria, ao que era impenetrável, não podia ajustar o desconhecido ao que conhecia. Apesar disso, a mente de Lucano disparava, como pássaro estonteado, tentando, febrilmente, explicar o que não podia ser explicado. De novo a terra trovejou sob seus pés e um longo gemido derramou-se pelo ar frio.

Teria o mundo se inclinado por trás de outro planeta? Mil soluções rodopiavam em sua mente, e ele as rejeitava imediatamente, como absurdas. Então, pela primeira vez, pensou em sua família de Roma, com um tremor. Pensou em Prisco, que estava em Jerusalém. Se o mundo estava sendo destruído misteriosa e inexoravelmente, então todos os homens deviam morrer juntos. Pânico, egoísmo, medo, terror, ansiedade, amor, tudo isso, nada poderia afastar a fria mão do destino. Acendeu outra lâmpada, depois outra, até que a casa ficasse cheia de luz. Sentou-se e fixou os olhos à frente.

Voltou a si com um sobressalto, consciente de que tombara num sono doentio, dominado pela coisa horrorosa que viera sobre o mundo. Suas lâmpadas estavam piscando, quase apagadas. Levantou-se para reabastecê-las. Então, reparou que uma luz acinzentada aparecia nas portas e janelas, como luz da madrugada. Correu de novo para o jardim. A luz tornou-se mais forte, mas muito lentamente. A terra já não deslizava, estremecia ou roncava; estava firme. Lucano olhou para o céu. Ampla extensão rosada ali se via, como se o crepúsculo se estendesse de horizonte a horizonte. A terra perdeu seu ar espectral, e a cor veio voltando, de momento a momento. Os pássaros piavam ou tagarelavam excitadamente, nas árvores. A fonte cantava mais alto, como que liberta. A voz da cidade chegou a Lucano e tinha som de regozijo, embora com uma nota mais alta de histeria. Então, o colorido rosado separou-se, como uma cortina, e o sol saltou no céu, como um guerreiro com seu escudo de ouro.

Lucano respirou profundamente. Nunca o mundo, nunca nem mesmo em seus tempos de criança, parecera-lhe tão claro, tão querido, tão precioso, agora que fora libertado da morte. E da morte ele fora sem dúvida libertado, como um pássaro é libertado de mão raivosa e próxima. As fundações da terra tinham sido sacudidas, e o sol se perdera. Mas agora o terror e a cólera se tinham ido, e uma doçura erguia-se das flores e da relva, como se a terra exalasse a respiração que retivera por demasiado tempo, apavorada. Lucano apertou os dedos contra o rosto e suspirou profundamente.

Com certeza, pensava agora, há uma explicação científica para isto. O fato de eu não conhecer a causa do fenômeno não significa que ele esteja fora de uma explicação. A tarde ia terminando e ele tinha fome. Sentou-se e comeu um pouco, e jamais o vinho tivera tão agradável gosto, jamais o pão e o queijo lhe tinham parecido tão saborosos. Escreveu cartas, e uma delas se dirigia a um astrônomo de Alexandria, comentando a escuridão, perguntando-lhe se ela fora observada ali, qual seria a causa e se poderia acontecer de novo.

Quando dormiu, naquela noite, foi como se tivesse tido suspensão de uma sentença, e com aquela suspensão tivesse vindo não só o perdão, mas vida, paz e tranqüilidade, como no primeiro dia que o mundo conhecera e em que o homem acabava de nascer.

 

Vários dos pacientes que vieram procurar Lucano no dia seguinte lhe eram desconhecidos. Estavam em estado de choque, muito pálidos, e tinham perdido a voz. Ele os tranqüilizou, sorridente, dizendo que nada do que ocorrera no dia anterior deixava de ter explicação por parte dos homens da ciência. Era bem provável que se tratasse de um eclipse. E só as crianças tinham medo de eclipses. Os astrônomos egípcios, muito tempo antes, não tinham mostrado possibilidade de predizer eclipses, não só para o futuro imediato, mas também para épocas ainda não concebíveis? Podiam ter confiança nos letrados, nos homens que compreendiam, que podiam fazer o mapa dos céus, marcar as fases da lua, o movimento das estrelas com precisão. Lucano, com seus pacientes aglomerados em derredor, demonstrou um eclipse com uma maçã e uma noz. Eles ficaram muito interessados, seguindo as explicações boquiabertos e com olhos alargados e, como tinham feito na véspera, sacudiam a cabeça, sensatamente, uns para os outros, e declaravam que durante todo o tempo tinham sabido que se tratava de uma coisa daquelas. Eles não sabem mais do que eu, pensou Lucano secamente.

- Tudo isso está muito bem disse um velho, sacudindo a cabeça e olhando com ar astuto para o médico. - Mas tu nada explicaste. Isto é coisa que fica para além das explicações dos homens. - Os outros riram-se alegremente dele, chamaram-no de barbudo grisalho, mas Lucano não riu. Os olhos fortes e agudos do velho o transpassaram. E ele disse:

- Bem, vamos ver teus tornozelos reumáticos outra vez, meu amigo. Tenho um novo ungüento que, acredito, irá aliviar-te.

- Tive esperança, ontem disse o velho que se tratasse do fim do mundo, pois não somos todos perversos, um insulto para o céu?

Os outros riram-se dele ainda mais alto mas fixavam-lhe, de certa forma, olhos maldosos. Os homens, meditava Lucano, não gostam de ser chamados maus e de afronta para os deuses, e que tenha cuidado aquele que lhes disser a verdade.

Além da família de Turbo, havia apenas uma outra família rica de Atenas, da qual Lucano tratava. O nome do pai era Cleonte, e ele se gabava de descender da família de correeiro, célebre no tempo de Péricles. Ele e sua esposa, bem como uma filha viúva, moravam em esplêndida vila próxima da Acrópole, cujos jardins eram rodeados de altos muros e vigiados por escravos armados com espadas ou cimitarras à moda do Oriente. Lucano não gostava de ninguém daquela família, mas Cleonte era portador de uma doença ainda não conhecida que interessava o médico. Periodicamente, rebentava-lhe enorme erupção de pele, que se tornava lívida, depois empalidecia e ao fim de alguns dias estourava em furúnculos horríveis. O médico jamais vira uma coisa assim e estava escrevendo um tratado sobre o assunto. Eliminara as fontes habituais das erupções de pele como causa. A dieta do homem fora restringida de maneira severa. Tratando-se de pessoas de forte gênio e tendo sua esposa igual temperamento, tudo isso acompanhado da fama péssima de usurário, era detestado por todos quantos o conheciam, inclusive por Lucano. O médico estava começando a formular uma teoria, segundo a qual o próprio temperamento do homem era o causador das crises. A carne dele mostrava-se esburacada como uma pedra velha, e um dos olhos ficara inutilizado para sempre. Não se tratava de coisa nova, isso de se dizer que os maus humores podiam atuar somaticamente, mas aquela demonstração era tão extraordinária que intrigava Lucano.

Naquela tarde, ele foi à luxuosa mansão de Cleonte. Cobrava ao velho, invariavelmente, uma quantia elevada, mas dava-lhe, também invariavelmente, alívio temporário. Foi recebido imediatamente nos compartimentos emparedados onde Cleonte passava o tormento de seus dias. A erupção chegara havia uma semana, e já estava supurando. Lucano tratou dos furúnculos, enquanto Cleonte se queixava, batia as pálpebras e blasfemava. Era homem minúsculo, de corpo intumescido, uma vesguice onde sofrera a doença no olho, e um rosto pequeno, tão enrugado quanto uma noz.

- Depois que estiveste aqui pela última vez, meu bom Lucano, disse ele lastimosamente -, eu tive um alívio de muitas semanas e pensei estar curado. Se não tivesses chegado agora, tenho certeza de que morreria dentro de poucos dias.

Mostrou a Lucano uma erupção nova, em uma das nádegas, mas essa intumescência tomara o tamanho de um punho de homem. Lucano passou um pouco de ungüento ali, depois de banhar o local em água muito fria.

- Tu não vens com a necessária freqüência disse o velho, zangado. - Acrescentei um novo médico ao pessoal da minha casa, mas ele não é melhor do que os outros. Mandei açoitá-lo em várias ocasiões pois ele tem boca violenta e blasfema, quando se zanga, embora, quanto ao resto do tempo, seja um miserável de temperamento carrancudo, frio e reservado.

- E que te disse ele? Perguntou Lucano, abstraidamente.

Dentro de poucos dias a erupção degeneraria num formidável furúnculo, que teria de ser lancetado.

O velho saltou na cama e sacudiu o punho fechado.

- Da última vez que tive essas erupções, chamei-o, ele me examinou, e então disse, ousou dizer, o cão, que não era minha carne que adoecia e sim meu espírito! Eu devia tê-lo mandado para a prisão, ou açoitado até morrer, ou vendido para as galés. Mas paguei dinheiro demais por ele.

- Um médico? Um novo médico? - Lucano levantou a cabeça, alertado.

O homem era, então, consideravelmente esperto.

- Comprei-o no mercado, por uma soma esplêndida, posso dizer-te! Dizem que foi educado em Tarso, mas eu juraria que recebeu o pouco que sabe de alguma parteira ou de um açougueiro! Sabes o que aconteceu ontem? Quando o sol desapareceu, e compreenderás que não sou um ignorante, tive consciência de que se tratava de um eclipse. Ouvi minha mulher e minha filha se lamentando; os escravos tinham fugido para as adegas. Então, aquele velhaco, aquele novo médico, veio até meu quarto, olhou-me com olhos que pareciam de fogo. E nada disse. Apenas ficou ali durante um bom pedaço de tempo, olhando para mim, até que eu pensei enlouquecer. Ah! Quando ficar bom de novo, vou usá-lo para qualquer serviço! Preferivelmente, é natural, para cuidar da pocilga.

Recostou-se em seus travesseiros e deu a Lucano a melhor imitação de um sorriso agradável.

- A dor já está cedendo, meu Lucano. Eu te sou grato.

Lucano deu ao escravo assistente um jarro do ungüento e indicou como devia usá-lo a cada duas horas, dias e noites. Caminhou então para o vestíbulo e chamou o vigilante.

- Gostaria de conversar com o novo escravo falou, em voz baixa. - Penso que posso deixar ao médico algumas instruções relacionadas com o tratamento, quando não estou aqui. Como se chama ele?

- Seu nome é Samos, pois dizem que nasceu lá, senhor - falou o vigilante, respeitosamente. - É um cão rabugento. Não duvido de que outrora fosse ladrão, pois foi ferreteado de uma forma bastante desagradável.

Mandou buscar vinho para Lucano, que se sentou numa cadeira confortável, no vestíbulo cheio de sol, e então mandou chamar Samos.

O escravo voltou com um rapaz alto e moreno, cabelos pretos e profundos olhos azuis, ombros largos fortes, e a atitude de um rei.

Caminhou em direção a Lucano, silenciosamente, e seus movimentos eram solenes. Então, parando diante do médico, levantou a mão, ergueu o cabelo da testa e mostrou, desdenhosamente, a marca do ferrete. Era de um violeta escuro, empolado e repelente. Deixou cair de novo o cabelo e disse, a voz mal-humorada:

- Que desejas de mim?

A compaixão cresceu em Lucano. Pediu ao vigilante que saísse dali e fez sinal a Samos para que se sentasse a seu lado. Este, porém, disse, com sua voz amarga:

- Não. Sou apenas um escravo, sempre fui um escravo. Não sejas magnânimo comigo. Não desejo a amizade dos homens nem a sua bondade. Sou inimigo de todos os homens.

- É assim? Perguntou Lucano, com um pequeno sorriso, embora sua compaixão aumentasse. - Então, fica diante de mim, de pé, como um escravo, se acreditas que és. Como a um colega médico, quis fazer-te algumas perguntas. - Parou, e acrescentou, em voz mais baixa: - Acredito que estais bem certo em teu diagnóstico da erupção e dos funinculos de Cleonte.

O rosto de Samos modificou-se; sua boca ampla e sensível moveu-se, os grandes olhos azuis pestanejando, como se evitassem lágrimas. Não era velho. Lucano imaginou que ele não teria mais de vinte e dois anos. O jovem hesitava. Depois, com uma blasfêmia abafada, puxou uma cadeira para frente e sentou-se nele olhos furibundos.

- Estou certo disse, e sua voz era desafiante. - Mas que pode um homem fazer com alguém como Cleonte, a não ser chamar padres e pedir que exorcizem seu demônio? E é possível que ele próprio seja um demônio.

Lucano riu baixinho.

- Quem sabe? Murmurou. - Mas, dize-me. Foste, realmente, educado em Tarso?

Samos olhou para o lado. Seu perfil era forte e clássico, com as faces finamente cinzeladas, e excelente queixo tucano Sentiu um abalo dentro de si próprio; o médico, mais novo do que ele, lembrava-lhe alguém, vagamente, e a recordação era dolorosa, Então, o escravo disse:

- Nasci em certa casa de Samos. Tinham ali um esplêndido médico, e eu seguia-o sempre, e finalmente fui seu assistente. Aquele médico, que estava ficando velho, recomendou-me a meu senhor, que era quase tão cruel e perverso quanto este Cleonte, e a um comerciante internacional, para que ele me mandasse estudar em Tarso. E eu fui. Passei ali três anos e diplomei-me com coroa de louros, e meus professores foram todos homens bons, gentis e aqueles anos foram toda a felicidade que conheci.

Uma lágrima deslizou pelas suas pálpebras e ele pestanejou furiosamente, retirou um lenço do cinto e assoou o nariz. Depois, ficou a olhar, abstraído, para o piso branco e polido.

- Enquanto estive em Tarso percebi que não mais poderia ser um escravo. Devo libertar-me ou morrer. Assim disse a um dos meus professores, mas ele me aconselhou paciência. Médicos não se suicidam. Se eu ganhasse bastante, em presentes dados pelo meu senhor, poderia, eventualmente, comprar minha liberdade. Mas ele não conhecia meu senhor que era menos generoso do que Midas. Não recebi presentes, nem mesmo esperava presente algum. Depois de um ano, fugi. - Parou e reteve o fôlego. - Fui capturado e mandado de volta.

Esperava a morte ou, no mínimo, ser mandado para as galés. Mas meu senhor gastara muito dinheiro comigo, de forma que me mandou marcar com o ferrete. Então, tornei-me um lobo selvagem, segundo ele, até que me vendeu. E assim vim ter a esta casa, que é igual à dele.

Lucano olhava para ele com uma compaixão tão vivida que chegava a doer fisicamente:

- Gostaria de ficar comigo? Perguntou. - Gostarias que te comprasse? Se o conseguir liberto-te, pedindo apenas que sejas meu companheiro pois sou solitário e não tenho amigos.

Samos teve um sobressalto e virou-se sobre as nádegas para encarar Lucano, com expressão incrédula. Viu os olhos radiantes e azuis do médico, o sorriso delicado, o cabelo dourado que se tornava grisalho, e percebeu que Lucano não estava gracejando. Lançou um grito abafado, baixo, e caiu de joelhos diante do outro homem, descansando a cabeça em seus joelhos, sem uma só palavra. Então começou a chorar, não com lágrimas, mas com os soluços secos do homem que, encarando a morte, vê lhe prometerem a vida. Passou os braços em derredor da cintura de Lucano e agarrou-se a ele, sempre mudo.

Lucano pôs a mão na cabeça que repousava em seu joelho. O cabelo de Samos era liso como seda, muito espesso e ligeiramente crespo. Lucano suspirou e deixou que ele ficasse a seus pés, agarrado ao seu corpo como uma criança, até que se controlasse um pouco mais. Então, disse, com a máxima delicadeza:

- Fica aqui, enquanto eu falo com Cleonte. E reza.

Soltou os braços que o prendiam, e que eram macios, embora musculosos, e voltou ao quarto de Cleoute. Este estava meio adormecido, seu sofrimento aliviado, mas quando viu Lucano levantou a cabeça dos travesseiros.

- Ah! Disse ele que tesouro és tu, meu Lucano. Há muitas noites que não durmo, e agora estou como uma criança em berço macio.

- Eu quis examinar a erupção de tuas nádegas mais uma vez falou Lucano, fingindo estar de novo interessado. - Está cedendo e é possível que não chegue a supurar. É um lugar difícil para ter tal tormento, pois pode estender-se perigosamente.

Sentou-se e encarou Cleonte com uma expressão que tinha esperança! Era bondosa.

- Estive conversando com teu escravo, Samos. Acredito que foste roubado. Isto é, o jovem nada poderá fazer por ti ou pela tua família.

Cleonte gritou de raiva e bateu seu punho fechado nos travesseiros.

- Eu sabia disso! Exclamou. - Maldito seja aquele mercador, aquele abutre imundo! Eu nunca devia ter confiado nele. Tinha péssima reputação. Ah! Mandarei Samos para as galés. - Sugou suas gengivas desdentadas e seus olhos reluziam de prazer: - Será uma felicidade para mim, pensar nele ali! Mas fui roubado, depenado! Qual será minha vingança! - Inclinou-se para Lucano, astuciosamente: - Não me podes dar uma carta dizendo que o miserável tentou envenenar-me? Então poderei mandar executá-lo. - Uma gota de saliva apareceu no canto de sua boca, e ele lambeu-a.

Lucano fingiu considerar o assunto judiciosamente. Depois, sacudiu a cabeça:

- Lembrei-me de que preciso de um escravo para minha casa. Queres vendê-lo a mim? Ele é muito orgulhoso e arrogante.

Os olhos duros e agudos de Cleonte interrogaram o rosto do médico. Tornou a reclinar-se, grunhindo:

- Bem, vamos, ele me custou um dinheirão.

O médico assentiu com a cabeça:

- Solidarizo-me contigo, Cleonte. Quanto pagaste por ele?

Ele apertou os olhos astutos. Cleonte sabia tudo sobre Lucano; sabia tudo quanto se dizia na cidade. Aquele tolo, mas talentoso médico, era rico. Se era louco bastante para tratar da plebe de graça, adquirindo assim a reputação de um deus, deveria pagar por aquela loucura e por aquela reputação. Assim, Cleonte falou numa soma tremenda, além dos recursos imediatos de Lucano. O médico ficou, ao mesmo tempo, zangado e preocupado.

- Ora essa, esse é o preço do médico mais qualificado, para além de todo o preço. Isso é o resgate de um príncipe!

Cleonte ergueu os ombros. Estava outra vez sonolento.

- Então disse conservo-o, faço dele o que quero, mando-o açoitar todos os dias, neste quarto, para gozar a cena.

Lucano conhecia sua obstinação. Levantou-se:

- Se não me venderes Samos, jamais voltarei aqui, e então, com toda certeza, morrerás. Estou falando sério, Cleonte acrescentou, severamente.

Cleonte abriu os olhos, assustado.

- Tu não abandonarias um velho!

- Com toda certeza abandonarei. Não duvido de que tenhas pago um preço alto por Samos mas não o que dissestes. Ofereço-te, agora, e pela última vez, trezentos sestércios de ouro, cunhados recentemente. Toma-os, ou procura outro médico.

- Tu me condenarias à morte!

- Sem dúvida alguma.

- Por que queres Samos, aquele cão!

- Já te disse. Ele tentou meu capricho. Em minha juventude domei cavalos selvagens.

Cleonte calou-se, arquejante, furioso e despeitado. Desejava que Lucano fosse um escravo. Mandaria açoitá-lo regularmente, mandaria ferreteá-lo com ferros quentes até que a carne dele torrasse.

Gritou:

- Dá-me o dinheiro, e que o Hécate persiga teus sonhos!

Lucano sorriu:

- Retira tua maldição, ou não será possível minha volta amanhã para continuar teu tratamento. - Atirou uma bolsa sobre a cama.

E, agora, assina um recibo de venda para mim.

Alguns minutos depois voltava ao vestíbulo onde Samos estava a sua espera. Samos olhou-o com olhos azuis e selvagens, os olhos torcendo-se desesperadamente. Lucano tomou-lhe o braço.

- Vamos para casa disse, como dissera a Ramo havia muito tempo.

Lucano colocou todas as lâmpadas que tinha sobre a mesa, na qual pusera seus instrumentos agudos e brilhantes. Samos estava sentado numa cadeira, ao lado da mesa, rígido e na expectativa, olhos fixos, com amor e devotamento, no outro homem. O médico misturou uma poção numa taça de vinho e entregou-a a Samos.

- Isto aliviará tua dor disse. - Não sei até aonde terei sucesso na diminuição desta marca terrível do ferro, mas farei o melhor possível.

- Terás sucesso afirmou Samos. - Caro senhor.

- Não me chames senhor disse Lucano. - Chama-me pelo meu nome.

- Ficarei sempre contigo, queira tu me dês ou não a minha liberdade, Lucano.

- Amanhã eu te levarei ao pretor romano, e terás tua liberdade. Poderás não gostar da vida que levo. És jovem, e na altiva expressão de teu rosto vejo ambição. Não faças juramentos, dos quais poderás te arrepender.

Lucano sorria, e ainda estendia a taça.

- Como poderia jamais me arrepender? Perguntou Samos, apaixonadamente. - Tu me trouxeste para tua casa como um amigo, o único amigo que conheci! Tu te ofereceste para me libertar, a mim, que preferia morrer a continuar escravo. Só peço para te servir eternamente.

- Ainda assim disse Lucano - és jovem; és excelente médico. O mundo será teu. Como homem livre, serás cidadão de Roma. A fortuna pode vir a tuas mãos. Primeiro, antes de todo esse brilhante futuro, e eu não te manterei ligado a tua promessa, a marca deve ser removida. Bebe isto já.

Samos, a mão tremendo, tomou a taça. Olhou para sua profundidade sombria.

- Ópio, murmurou. Olhou para os olhos de Lucano, depois colocou         devagar a taça sobre a mesa, tomou um grande fôlego, e falou:

- Não.

Lucano examinou-lhe o rosto e depois fez um movimento de aproximação.

- É doloroso tornar-se um escravo, mas é mais doloroso tornar-se livre. Compreendo. Preferes tomar tua liberdade com sofrimento, pois assim limparás o coração. Contudo, advirto-te de que será angustioso.

Samos agarrou-se aos lados da cadeira e ergueu o rosto.

- Estou pronto disse.

- Fecha os olhos para que o sangue não pingue neles.

Lucano ergueu uma lâmina afiada e estreita. Examinou de novo a marca. Feia como era, não se tratava de cicatriz antiga, e a pele, em de redor, estava ainda fina e flexível, pois Samos era jovem. Podia tirar cuidadosamente a marca, sem magoar os tecidos que ficavam abaixo dela, e poderia puxar as margens intocadas, reunindo-as. Quando a ferida cicatrizasse, haveria apenas uma ruga comprida e fina, da linha dos cabelos até as sobrancelhas, e dentro de poucos meses aquela ruga estaria branca e passaria despercebida. Lucano explicou ao outro o que ia fazer, e Samos aprovou com um gesto de cabeça. Sua boca empalideceu, em antecipação, e ele se tornara rígido.

Lucano correu a lamina de alto a baixo com um toque delicado e o corte abriu como uma boca, sangrando. Mas não havia grandes vasos sangüíneos abaixo. Samos não pestanejou; estava bem imóvel.

Lucano limpou o sangue que pingava e recortou a marca. Samos fez-se branco como a morte e suas falanges cresceram nas mãos apertadas.

Mas ele não se moveu. Lucano começou a suar, em sua rapidez de trabalho; lágrimas de sangue corriam da ferida e rolavam em gotas vermelhas pelas faces de Samos. Algumas juntavam-se, em pequenas poças, aos cantos de sua boca. As lâmpadas crepitavam e se debatiam Contra uma brisa ligeira que vinha da janela.

O médico, preocupado com a dor que estava provocando, relanceou por um instante os olhos para o rosto tenso de Samos. De novo a sensação de um rosto familiar lhe veio.

- És muito corajoso disse, com voz trêmula. - És um homem bravo e nobre, Samos.

A marca jazia sobre um pequeno pires, má como o olho de um demônio, e já encolhendo. Lucano apanhou agulha e linha. Samos tinha o ar exausto e o médico só desejava que ele desmaiasse. Mas a orgulhosa expressão da boca do jovem não afrouxava. Lucano começou a suturar habilmente, e falava em voz suave do trabalho que fazia entre os pobres, dos casos estranhos que tinha encontrado. Samos sorria levemente. A pele macia e jovem tinha que ser esticada para se encontrar. A cicatriz, porejando pequenas gotas de sangue, já não sangrava.

- Abre teus olhos, Samos disse Lucano, e deixou-se cair numa cadeira, limpando o suor com as costas da mão. Samos abriu os olhos e sorriu para ele com orgulho e alegria. Depois de alguns instantes, Lucano cobriu o ferimento que já parara de sangrar.

- Ah! Disse ele estou contente com isto. Ficará melhor do que eu esperava. Mas agora deves beber uma taça de vinho comigo, pois estou exausto!

Rindo, com a voz trêmula, serviu duas taças de vinho. Samos estendeu a mão para uma, a sua mão esquerda. Lucano colocou a taça naquela mão, e então parou, abruptamente. Seu coração também pareceu parar, e houve um trovejar em seus ouvidos. Seu rosto tornou-se mais branco e mais imóvel do que o rosto de Samos.

O moço olhou para ele e ficou assustado.

- Lucano! Exclamou. - Isto foi demais para ti! Parece que vais desmaiar!

Levantou-se, cambaleante, e passou os braços em torno dos ombros de Lucano. A boca do médico abriu-se silenciosamente, e então ele arquejou. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Levantou-se e ficou de pé ao lado de Samos, tentando falar, e conseguindo apenas crocitar. Depois, olhou para Samos e disse na mais calma das vozes:

- Tu não és Samos. Esse não é teu nome. Teu nome é Arieh ben Eleazar, e és um judeu, que eu estive buscando há vinte anos!

Levantou a mão esquerda do jovem, que estava estupefato, e voltou-a para a luz. O dedo mínimo era torcido e dobrado fortemente para dentro, na direção dos outros dedos. E Lucano olhou nos olhos de Arieh, vendo ali os olhos de Sara. Estalou em choro abafado.

- Deus é bom gaguejou ele. - Acima de todas as coisas, Deus é bom!

 

Imediatamente, Lucano escreveu aos advogados de Sara bas Eleazar, em Jerusalém. Disse a Arieh:

- Deves partir pelo próximo navio, que chegará depois que minha carta alcance os advogados. Eu te acompanharia, pois isto é uma coisa muito cara para meu coração, mas tenho contrato de dois meses com outro navio e não posso romper minha palavra. Mas irei encontrar-me contigo mais tarde, em Jerusalém, talvez.

Arieh, porém, disse-lhe:

- Não me peças que te deixe. Não tive muita experiência, e quero ser teu assistente durante esses dois meses.

Lucano sorriu; sabia que Arieh dera aquela desculpa para não se separar dele. Assim, Lucano concordou, e Arieh, caminhando com a altivez e agilidade de um jovem que está libertado, foi com ele. Lucano, que se sentia como se um horrível abscesso tivesse sido finalmente lancetado nele, purificando-o, começou então a ensinar a Arieh sua antiga religião, nas vigílias noturnas. Arieh fora educado, indiferentemente, na religião greco-romana da casa de seu primeiro senhor, e depois em Tarso, por seus professores. Ouvia Lucano com a mais profunda atenção e fazia perguntas pertinentes:

- É estranho descobrir que sou judeu disse, certa vez, sacudindo a cabeça. - Meus senhores odiavam os judeus. Diziam-nos avarentos e astutos, sendo, eles próprios, os homens mais perversos, ávidos e espertos do mundo! Meu primeiro senhor, em particular, não podia dormir, por causa de seus planos, e jamais eu o vi regozijar-se, a não ser quando tinha arruinado um outro homem.

Quando Arieh andava, Lucano recordava o que Eleazar bem Salomão dissera de seu filho: "Ele é um jovem leão!" Perguntou a Arieh sobre lembranças que pudesse ter do passado.

Arieh franziu as sobrancelhas, tentando lembrar-se.

- Disseram-me que eu tinha nascido em Samos, e que por isso deram-me esse nome. Eu tinha dois anos de idade quando fui comprado para ser um brinquedo nas mãos dos filhos do meu primeiro senhor; fui comprado de um bloco de escravos. Isso é tudo quanto sei.

Fez uma pausa, e depois continuou: - Tive um sonho que me perseguiu durante toda a minha infância, e que às vezes ainda tenho.

Eu estou num jardim, grande e belo. Vejo colunas brancas, mas não vejo estátuas como mais tarde vi em outras casas. Vejo uma profusão de flores em toda parte, e fontes brilhantes. Tenho um cãozinho branco, que é meu. Muito belo e muito sossegado. Um jovem aparece no jardim, atira-me no ar e beija-me. Há uma jovenzinha, também, com cabelo preto, que brinca comigo.

Arieh passou a mão pela testa que ia cicatrizando:

- O sonho mistura-se. Era no mesmo dia ou em outro? Estou com duas mocinhas no jardim, e elas correm e brincam comigo. O jardim está muito silencioso e muito brilhante, ao sol. Meu cãozinho não está ali e eu sinto falta dele. De repente, dois homens escuros, quase nus, aparecem. Olho para eles sem medo, embora não os reconheça como reconheço os que me guardam. Eles atiram-se sobre as mocinhas e levantam em suas mãos algo que brilha ao sol. As mocinhas tombam de borco. Eu rio e bato as mãos, pois penso que se trata de uma brincadeira. Então, sou agarrado por um dos homens, que se movem como sombras. Uma mão é posta sobre a minha boca e eu começo a me sentir sufocado. Não posso respirar. Então, algo preto tomba diante de meus olhos. Isso é tudo do que me recordo. Minha lembrança, a seguir, é de uma casa estranha, e crueldade, e pancadas. Quanto mais tarde foi isso eu não saberia dizer. Deve ter sido um sonho, rematou Arieh, sacudindo a cabeça.

- Não disse Lucano -, não foi um sonho.

Arieh mostrava um desejo intenso de tudo saber sobre a família, seu pai, sua irmã. Lucano jamais se cansava de falar em Sara. Uma vez, enquanto estava falando, percebeu que Arieh o contemplava com uma expressão impenetrável.

- Ela era a mais adorável, a mais doce e a mais bondosa das mulheres dizia ele, numa voz que acreditava ser desapaixonada.

Lucano bateu amistosamente no ombro de Arieh: - Sinto-me como se fosse teu pai disse - é verdade, podias ser meu filho, pois não sou jovem. - Sentia-se confortado.

Pintou para Arieh um pequeno retrato de Sara. O rosto claro, os olhos sinceros e o belo sorriso irradiavam da madeira, como se fossem de carne, e o pescoço branco era altivo.

- Ela parece uma divindade disse Arieh.

Aquilo fez rir Lucano.

- Não fales como um grego ou um romano! Exclamou. - Teus concidadãos olharão para ti ofendidos e revoltados se chamares divindade a qualquer ser humano. Sentemos-nos e estudemos de novo Moisés, que libertou teu povo dos egípcios. Acho que a história te fascina. E, como filho de Eleazar ben Salomão, é melhor que te apliques mais às tuas lições de hebraico.

Cresceu entre eles um apego que era como o profundo devotamento do homem que tem um filho único, e cujo coração fala a esse filho. O misterioso senso de consolo e realização crescia em Lucano dia a dia, como se tudo quanto ele amara estivesse corporificado em Arieh, a quem ensinava como se ensina uma criança. Jamais se cansavam de conversar. Lucano, falando de sua própria vida, vivia-a de novo, contando-a a Arieh. Quando pararam num porto, um mensageiro veio a bordo, entregando a Arieh uma grande bolsa de ouro e alegres mensagens dos advogados de Jerusalém. "Esperamos a chegada do filho de Eleazar ben Salomão", tinham eles escrito. "Ele será purificado no Templo e devolvido a seu povo. Louvado seja Deus porque Ele te encontrou."

Arieh distribuiu o dinheiro entre os membros da miserável tripulação. Foi às galés e deu a vários escravos ouro bastante para que comprassem sua liberdade. Durante dias e noites, depois disso, o pequeno navio atroava com gritos jubilosos e saudações aos deuses.

Marinheiros beijavam as mãos de Arieh quando o moço passava por eles, e o jovem ficava embaraçado.

Lucano agora podia falar integral e amorosamente de Deus, com Arieh. Seu espírito estava liberto. Ele se parecia a alguém que espera por um chamado que virá, com certeza, e espera com serenidade. Foi franco com Arieh, e explicou seu ódio antigo por Deus.

Entretanto, durante todo o tempo eu estava secretamente enraivecido, pois Ele não se manifestava a mim, mas parecia ignorar-me. Desafiava-o e não tinha resposta. Isso foi imperdoável!

Contou a Arieh tudo quanto Keptah e José ben Gamliel haviam contado, e quando Lucano assim falava era como se seus queridos professores ali estivessem, a seu lado, sorrindo e aprovando com movimentos de cabeça. Falou a Arieh das profecias babilônicas e egípcias.

Falou também no estranho mestre judeu sobre o qual Prisco escrevera e que Ramo vira:

- Não ouvimos mais falar Dele disse Lucano. - Outrora, contavam-se muitas histórias, até dois meses atrás. Desde então, só existe silêncio. Perguntei a várias pessoas, em vários portos, pedindo mais notícias, porém recebi apenas sorrisos de mistificação. Escrevi a meu irmão Prisco, várias vezes, pedindo mais notícias, entretanto, nenhuma veio. Ele não me tem escrito. Terá voltado para Roma? Escrevi a minha mãe, há dois dias.

     - Encontraremos o rabi judeu em Jerusalém disse Arieh, intensamente interessado. - Ele invade meus pensamentos. Repete-me de novo a profecia de Isaías.

Quando encontravam uma pequena sinagoga judaica nos portos, Lucano levava Arieh a visitá-la. Mas não podiam penetrar além do Pátio dos Gentios.

- Compreendo que não me possa aproximar do Santo dos Santos enquanto não for purificado dizia Arieh, olhando em derredor, com curiosidade. - Mas por que proíbem os gentios de entrar? Deus é o Deus de todos os homens. Meu povo deve ser uma raça orgulhosa e obstinada.

- Se não fosse assim, não teria sobrevivido à passagem dos tempos disse Lucano. - Um homem deve preservar o que há de melhor nele e em seu povo. Ainda assim, como dizes, Deus é o Deus de todos os homens. Entretanto, prestei atenção nas cerimônias dos templos gregos, romanos e egípcios. Apenas os sacerdotes, os eleitos, podem partilhar dos mistérios. Apenas os sacerdotes bebem os vinhos dos sacrifícios e comem os animais sacrificados. Há coisas que devem ser afastadas dos vulgares e dos estúpidos, pois eles podem corromper.

Os sacerdotes ordenados abençoam e realizam seus atos mas deves recordar que para isso foram ordenados.

- Meu povo é um povo sacerdotal dizia Arieh. - E só tem ordenado que os homens amem-se mutuamente e façam-se mutuamente justiça, não como assunto filosófico, mas como ato de fé. É um mandamento estranho.

Contemplou Lucano com movimento solene de cabeça. Tocou com a mão o ombro do outro.

- Sim, Ele chamou-te.

Um grande temporal armou-se certa noite e o navio foi forçado a recolher-se a um pequeno porto que já estava repleto de navios que para ali tinham corrido diante do mugido do vento e do assalto das vagas. Quando o dia amanheceu, incendiando o céu, o mar ainda estava tumultuoso, e os navios maltratados oscilavam em seu ancoradouro e receavam partir de novo. Lucano e Arieh estavam de pé no convés agitado de sua embarcação, e viam que seu vizinho mais próximo era um navio magnificente, de esplêndida madeira. Suas velas forradas jaziam como montanhas de seda lustrosa no convés. O comandante era, aparentemente, homem sem prosápia, embora estivesse agora andando de cá para lá, com expressão preocupada, e os dois amigos vissem-no morder os lábios.

- É um navio particular, o brinquedo de algum homem muito rico disse Lucano. Fez sinal ao comandante, que veio relutantemente até a amurada de seu navio incrustado com ébano, madrepérola e dourado. O médico reparou que o navio não tinha figura de proa representando uma cabeça de mulher ou uma sereia.

- Há alguma coisa que não vai bem a bordo? Indagou Lucano, em grego. O capitão sacudiu a cabeça. Lucano tentou o aramaico e o capitão fez ansioso sinal afirmativo, respondendo:

- Sim, há algo que vai muito mal. Meu glorioso senhor, o dono deste navio e olhou em derredor, com orgulho -, está de cama, doente. Nosso médico morreu ontem à noite, no temporal; foi atirado contra uma parede e teve a cabeça esmagada.

- Que doença tem teu senhor?

O comandante sacudiu a cabeça:

- Quem sabe? Há mais de dois meses está assim deitado como quem foi tomado de doença mortal. É de Jerusalém. Seu médico era muito famoso. Há dois meses meu senhor recolheu-se ao leito, chorando violentamente, e não quis ver a esposa nem os filhos, nem a mãe nem o pai. O médico ficou estupefato. Então meu senhor disse que sairia pelos mares para esquecer, mas o que estava tentando esquecer ninguém sabe. Não saiu da cama, e está morrendo de momento a momento; torce as mãos e não fala.

Lucano disse a Arieh, em voz baixa:

- Ao que parece o homem está mentalmente enfermo. – Olhou para o comandante e disse, com certa hesitação: - Sou médico. Gostaria de ver teu senhor.

O rosto do comandante iluminou-se; era evidente que amava seu amo.

- Espera, senhor! Eu arranjarei para receber-vos a bordo, pois receio, verdadeiramente, que a morte se esteja aproximando.

Foi difícil para Lucano e Arieh a passagem para o outro navio, pois os dois barcos jogavam sem cessar, mas não em ritmo um com o outro. O comandante recebeu-os conto se fossem reis.

- Oh! Deus é bom exclamou. - Meu amo não morrerá agora!

Jamais Lucano vira navio tão maravilhoso; um augustal romano, ou mesmo um César, teria se sentido orgulhoso de possuí-lo. As cobertas eram de teca, as paredes de ébano incrustado com artístico desenho de flores e folhas em pérolas, ouro e prata. Brilhavam ao sol ardente. Lucano disse ao comandante:

- Sois judeus, pelo que vejo, pois não há aqui estátua de deuses nem murais de animais. Qual é o nome de teu amo?

- Hilell ben Hamram disse o comandante, e olhou para Lucano e Arieh esperando um ar de respeitoso temor. - Conheceis, sem dúvida, a família dele, não só a mais rica de toda a Judéia, mas famosa por seus médicos, advogados e eruditos. E meu amo é amigo do próprio Pôncio Pilatos. O Rei Herodes Antipas lisonjeia-se de recebê-lo como hóspede.

Lucano sorriu levemente. O jovem Arieh ouvia com interesse. O médico dirigiu-lhe um aceno:

- Vamos ver o nosso paciente.

Foram levados para duas cobertas abaixo, cada qual mais esplêndida do que a outra, cheias de luz, tecidos, madeiras e mobiliário preciosos.

- Sabei que meu amo não tem escravos disse o comandante, adoração na voz. - É contra os princípios de um judeu devoto.

Lucano não pôde evitar de dizer, um gesto indicando Arieh:

- Tu sabes muito, meu comandante, sobre os nomes importantes de Israel. Com certeza reconhecerás o filho de Eleazar ben Salomão, que tem estado dando a volta ao mundo a fim de se aperfeiçoar nas artes da medicina?

Arieh corou; Lucano se estava divertindo com aquilo. Os olhos do comandante arregalaram-se e ele olhou para Arieh:

- O filho de Eleazar ben Salomão! Mas o filho dele foi roubado, em criança, e ficou perdido.

Estava perdido, mas foi encontrado disse Lucano. - Vamos. Esta é a porta do teu amo?

Silencioso, sem retirar os olhos de Arieh, o comandante abriu uma porta escondida atrás de uma cortina de brocado de ouro, e os médicos entraram num aposento tão luxuoso em sua magnificência oriental que eles ficaram deslumbrados. Cortinas de brocado de prata pendiam das janelas, tapetes persas cobriam o piso. O navio jogava e oscilava, mas o grande leito dourado estava parafusado com firmeza ao chão. Nele, sob cobertas ricas, jazia um homem que não teria mais de vinte e nove anos. O rosto parecia de mármore antigo. O cabelo preto espalhava-se em leque, por sobre os travesseiros bordados e suas feições mostravam-se finas e austeras. Quando Lucano e Arieh se aproximaram, ele não se moveu.

- Hilell ben Hamram disse Lucano, educadamente, curvando-se sobre ele -, sou Lucano, um médico, e vim para ajudar-te.

- E eu sou Arieh ben Eleazar, também médico, e teu concidadão disse Arieh, com profunda compaixão em sua voz.

O enfermo não se moveu. Era como se já tivesse ultrapassado a capacidade de ouvir. Arieh então pareceu escutar algo. Colocou a mão sobre a fronte fria de Hilell e disse:

- Ouve, ó Israel, o Senhor Nosso Deus é Um!

Hilell manteve-se imóvel. Os dois médicos observaram-no ansiosamente. Lucano levantou a mão dele, fraca e gelada, e tateou-lhe o pulso.

Colocou o ouvido sobre o peito quase sem arquejo. O coração revelava-se lento e fraco. Quando Lucano tornou a endireitar o corpo, viu que lágrimas lentas filtravam-se de sob as pálpebras fechadas. Arieh sentou-se ao lado de Hilell, tomou-lhe a mão na sua, mantendo-a com força, e Lucano ficou impressionado com a beleza do quadro que formavam aquele belo rapaz e seu irmão, que ele confortava silenciosamente. O sol derramou-se através da janela e repousou nos rostos deles.

- Não chores disse Arieh, carinhosamente - Deus está contigo, e Ele te ajudará com o Seu poder.

As lágrimas correram mais depressa de sob as pálpebras do outro, e Arieh teve a impressão de que os dedos do enfermo apertavam-se contra os seus. Disse, então:

- Eu estava perdido, e Ele encontrou-me. Eu era um escravo, e Ele libertou-me. Eu era um estranho, e Ele trouxe-me para meu povo.

Louvado seja Ele, Rei dos Reis! Pois nada está fora de Seu poder, e Ele não silenciará quando Seus filhos chamarem por Ele.

Hilell gemeu, e foi como se o som não viesse apenas de sua carne, mas de seu espírito. Não abriu os olhos, mas sussurrou:

- É tarde demais. Ele me chamou, e eu Lhe voltei as costas. Não O esqueci, e um dia soube que não poderia viver sem Ele, embora o que Ele me pedia fosse árduo. Por isso, fui procurá-lo novamente.

Era tarde demais. Os romanos O haviam matado, O haviam cravado na cruz como a um criminoso.

Lucano teve um violento sobressalto. Agarrou os ombros emaciados de Hilell em suas mãos e a seda macia rangeu sob seus dedos:

- Quando se passou isto? exclamou.

Durante alguns momentos Hilell não respondeu, e foi como se tivesse tombado no sono da morte. Então, disse baixinho:

- Foi na Páscoa, quando a terra escureceu.

Lucano sentou-se abruptamente. Seu coração estava saltando e havia em seus ouvidos um som trovejante. Apertou a mão contra eles, a fim de aclará-los. Depois de alguns instantes estendeu mecanicamente a mão para seu estojo e tirou dali um frasco que continha um estimulante. Suas mãos tremiam enquanto punha um pouco daquele líquido na taça de vinho que estava sobre uma mesa de limoeiro, ao lado do enfermo. Levou a taça aos lábios de Hilell e exclamou, peremptoriamente:

- Bebe isto! Então, deves contar-nos, pois essa é a história que temos estado a procurar!

Hilell bebeu sem abrir os olhos. e Lucano tornou a deitar-lhe a cabeça no travesseiro. O mar, radiante, atirava relances de luz e sombra dentro do aposento; gaivotas gritavam junto das janelas e as vozes de muitos marinheiros ecoavam ao vento. O cheiro quente de alcatrão, do sal e do peixe misturava-se a um odor aromático, que se assemelhava ao da mirra. Lucano e Arieh esperavam que Hilell falasse. Um leve colorido começou a insinuar-se em suas faces de marfim; seus lábios cinzentos foram tomando um tom de coral, e o suor secou em sua fronte. O homem então abriu olhos trágicos, escuros e atormentados.

- Vós O procurais? murmurou. - Mas Ele está morto. Vi as três cruzes, minúsculas, diminuídas, no distante Local dos Crânios, contra um céu turbulento, de nuvens róseas e lilás, imenso e fervente, e dali vinha para a terra uma luz horrenda. E as pessoas me contaram, ali onde eu estava, que um dos que estavam nas cruzes era Jesus de Nazaré, que Ele fora condenado por escarnecer da Lei e ser causa de insurreições contra Roma. E enquanto ali fiquei, uma sensação de morte e perda tombou sobre mim, o sol retirou sua face radiante e a terra estremeceu. As pessoas tombaram de borco, com um grande grito de terror e luto. Era tarde demais, tarde demais para sempre, e não Lhe pude dizer que eu O seguiria.

- E então? perguntou Lucano, quando Hilell silenciou, virando a cabeça para o outro lado, angustiado.

O enfermo fez um gesto fraco.

- Não sei. Fugi daquele lugar maldito, naquela noite, e fui para Cesaréia, onde passei uns dias sem propósito. Depois, fugi para o mar, pois nada mais para mim tinha qualquer valor.

- As antigas profecias dizem que Ele tornará a erguer-se - falou Lucano. Curvava-se sobre Hilell, que sacudiu a cabeça.

- Como é possível? murmurava ele. - Sim, ouvi de meus servos que aqueles que O seguiam tinham dito isso. Mas Ele era apenas um homem. - Olhou para Lucano, e seus olhos imploravam: - Ele morreu! Precisas dizer-me, por amor da paz de minha alma, que Ele era apenas um homem, afinal, e que eu não O traí, verdadeiramente, que eu não O feri!

- Os homens não O têm traído sempre? perguntou Lucano, com tristeza. - E não o trairão sempre, neste mundo sem fim? Não O traí eu próprio, embora tivesse visto a estrela de seu nascimento e ouvisse falar Dele desde a minha infância? Tu te arrependes, a penitência é tudo quanto Ele pede.

Hilell chorava.

- Então não estou perdido e Ele me perdoou?

- Ele não desprezará um coração arrependido disse Lucano, limpando o rosto do enfermo com uma toalha molhada em água fria.

- Mas, conta-nos.

Passou-se algum tempo, antes que Hilell pudesse falar. Torcia seus dedos finos e olhava para as janelas brilhantes, como se visse algo para além delas.

- Eu estivera visitando Herodes, que é amigo de minha família, em seu palácio de Cesaréia. Deveis saber que isso se passou há quase um ano. Eu, minha esposa e meus filhos, que estavam também comigo, mas como o Dia da Expiação se aproximava eu não podia permanecer com Herodes, que em parte é grego, e homem caprichoso, que a um dado momento é grego, e logo depois judeu. Não sou homem piedoso, nem observo a Lei estrita. Ainda assim, não pude suportar por mais tempo a conversação de Herodes, nem suas maneiras. Ele sacrifica em templos romanos, depois vai a Jerusalém para purificar-se e atira cinzas à cabeça, pede perdão e empilha ouro nas mãos dos sacerdotes. Assim, mandei caladamente minha família para Jerusalém, e depois de um ou dois dias para lá também fui.

Fez uma pausa, e Lucano tornou a refrescá-lo com o vinho e o estimulante.

- Deveis saber que eu ouvira falar muito no rabi judeu que estava ensinando o povo, na poeira das cidades e atalhos. Herodes falou dele com um riso constrangido. Havia muitos que o acusavam de incitar os judeus à rebelião contra o opressor romano. Herodes, porém, estava constrangido por causa da morte de João, o Batista, conforme o chamava o povo, pois de certa forma Herodes é homem erudito e pensava ser João o Elias, tendo, de início, poupado a vida dele. João o denunciara, a ele, o tetrarca[19], por se ter casado com Herodíades, a esposa de seu irmão.

“Compreenderás, Lucano, que estas coisas estavam muito vagas em minha mente, pois o que era um pobre rabi judeu, vindo da Galiléia, em relação aos ricos e poderosos”? Sempre há profetas, pois os judeus geram profetas como os gafanhotos, filhotes. Um a mais ou a menos não tem importância. Eu nem sequer teria dado atenção àquelas histórias se Herodes não me tivesse parecido caprichoso e perturbado, de uma forma pouco comum, e não se tornasse imprevisível e selvagem desde que mandara executar João.

“Compreende-se que Herodes pudesse ter esquecido João como se esquece um sonho violentamente colorido depois de certo tempo, se aquele rabi judeu não tivesse aparecido na trilha dos passos do outro”. Herodes disse-me que João lhe falara Dele. Então, contou-se que o rabi estava realizando grandes milagres, e todo o palácio ecoava com as notícias. Dizia-se que era Ele O Messias. O estranho é que só os escravos e os miseráveis libertos é que falavam Dele com tal expressiva paixão e excitamento. Mas os governantes ouvem o que dizem os escravos e, assim, os boatos sobre o Messias chegaram aos ouvidos de Herodes e ele ficou fora de si.

Lucano enxugou o rosto do homem. Arieh conservava-se em silêncio e Hilell não largara a mão dele.

- Estava quente aquele dia em que deixei Herodes e guiei minha biga, rodeado de meus servos, a cavalo e a pé. A poeira parecia fogo branco, e eu enrolei um pano sobre meu nariz e meus olhos.

Então, à beira da estrada, vi um pequeno grupo de homens sentados em pedras, sobre a terra, junto de uma pequena aldeia, e crianças que, timidamente, se aproximavam deles.

“Por que parei”? Um dos meus homens cavalgou até a minha biga e disse-me, com veemência, que ali estava o humilde rabi, com seus amigos, e tive curiosidade de ver o homem que indignara Herodes de tal maneira, e sobre o qual contavam-se histórias tão incríveis. Assim, guiei a biga até junto Dele e de Seu pequeno bando de seguidores e crianças e ouvi, com um sorriso, o que dizia Aquele que parecia tão pobre e humilde quanto um mendigo, comentando comigo mesmo: É Deste que estão falando?

“Ele estava contando uma história, uma parábola, e os judeus vivem tão cheios de histórias como uma romã de sementes”. Seu sotaque era tosco pois tratava-se de um camponês da Galiléia, um carpinteiro, segundo me disseram. Relatava muito bem a sua história, com muita eloqüência. Olhei para Seu rosto empoeirado, para Suas vestes simples e para Seus pés, enquanto Ele ali estava, sentado na pedra, e fiquei impressionado com o que dizia. Ele falava de um fariseu, e os fariseus são homens muito devotos e rigorosos, que defendem a Lei como as Legiões defendem Roma... que ia ao Templo para rezar, e ao lado dele estava um publicano[20] sem importância, que, sem dúvida, o fariseu considerou insuportável. E o fariseu, melindrado e contrariado com a presença do publicano, puxou a ponta de seu turbante sobre o nariz para não ser ofendido pela proximidade do outro e pela sua mesquinha ocupação.

Os olhos de Hilell modificaram-se, tornaram-se ansiosos e quentes ao olhar para Lucano:

     - Era uma história muito interessante, e eu não gosto dos fariseus. Eles me aborrecem com sua piedade excessiva, que está só na letra e não no espírito da Lei. Queria divertir-me, e divertia-me ver aquele homem, pobre e andrajoso, falar assim dos fariseus, que são o terror da Judéia, com suas constantes acusações aos padres, a propósito de o povo não observar convenientemente todo o ritual. São cansativos e perigosos aqueles fariseus, sempre farejando heresia.

O enfermo arquejou um pouco, e mais uma vez Lucano refrescou-o. Ele recostou-se em seus travesseiros e seus olhos fizeram-se sonhadores:

- Uma história excelente. O rabi disse que o fariseu rezava a Deus, dizendo: “Graças, Senhor, pois não sou como os outros homens, adúlteros, ávidos, injustos e nada sabendo sobre a Tua Lei”.

Não sou como esse miserável publicano, que não deveria profanar Teu Templo com a sua presença. Eu jejuo em todos os jejuns e pago escrupulosamente os dízimos." E o fariseu estava muito contente consigo mesmo. O publicano, porém, batia no peito, chorando, e não levantava os olhos, exclamando apenas: "Senhor, tem piedade de mim, que sou um pecador!”“

Hilell estava tão melhor que pôde rir baixinho.

- E o rabi disse aos que O seguiam: "Digo-vos que aquele publicano valia mais do que o fariseu, e Deus o confortou mas não confortou o fariseu. Pois o que se exalta será humilhado, mas o que se humilha será exaltado."

“Preciso contar-vos sobre aquele rabi”. O sol estava vívido mas no rosto Dele mostrava-se ainda mais fulgurante e intenso, pois Sua emoção era mais do que a emoção de um homem. Sentava-se como um príncipe em seu trono e a gente se esquecia de que se tratava apenas de um membro do Amuratzem[21] sobre uma pedra, e que Seus pés estavam lavados pelo pó. Sorria como um pai. Olhava para seus seguidores com olhos azuis e carinhosos, e eles ouviam reverentes. Sua barba era dourada, e Suas mãos descansavam em Seus joelhos. Falava como quem está coberto de autoridade.

“Foi então que as crianças, andrajosas e descalças que se tinham mantido afastadas, aproximaram-se timidamente Dele”. Enquanto eu estivera ouvindo o rabi, suas mães se juntaram a elas, pobres mulheres que se vestiam de farrapos, com jarros aos ombros. Empurravam os filhos para Ele, olhando em derredor, humildemente, como que implorando perdão. E Seus seguidores disseram: "Não perturbai o Mestre, e levai daqui vossos filhos, pois Ele está cansado e não deve ser interrompido quando fala com Sua sabedoria."

Hilell suspirou profundamente e fechou os olhos.

- Mas o rabi chamou as crianças, abriu-lhes os braços e disse aos seus seguidores: "Deixai vir a mim as criancinhas, e não as censurais, pois destes pequeninos é o Reino do Céu." E as crianças rodearam-No, subiram-Lhe ao colo, envolveram-Lhe o pescoço com os braços, rindo e beijando-O. E Ele as mantinha contra Seu corpo. E eu juro que tornei a emocionar-me, pois sou pai e conheço a doçura dos beijos do amor das crianças. O rabi disse a Seus seguidores: "Quem não receber o Reino de Deus como uma criancinha, não entrara para além de suas portas.”.

Hilell abriu os olhos, que estavam de novo atormentados.

- Compreendi o rabi, embora antes jamais tivesse compreendido. Desci de minha biga, aproximei-me Dele, e meus servos disseram ao povo que abrisse passagem para mim. Ele observava-me, enquanto eu ia chegando, e sorria-me como a um irmão que reconhecesse. E esperava. Meus servos gritavam: "Fazei caminho para Hilell ben Hamram, que é homem poderoso em Israel, pois dirige uma cidade e sua família é famosa e tem muito ouro!" E o rabi nada disse, e só esperou por mim, embora o povo recuasse, assustado.

"Parei diante Dele perto o bastante para tocar-Lhe o ombro, e Ele fixou-me em silêncio. Disse-Lhe: “Bom Mestre, o que devo eu fazer para merecer a vida eterna”?" Ele tornou a sorrir para mim, e disse, com sua voz que se fizera sonora: "Por que me chamas bom! Ninguém é bom, apenas Deus. Conheces os Mandamentos, e não deves matar, roubar, dar falso testemunho ou cometer adultério. Deves honrar teu pai e tua mãe." Eu Lhe disse: "Desde a minha juventude respeito os Mandamentos."

"Ele ficou silencioso por tanto tempo que eu pensei ter sido dispensado de ali ficar, isso da parte Dele, um pobre rabi ignorante, com seu sotaque vulgar. Então Ele levantou os olhos e disse-me, em tom meditativo: “Falta-te uma coisa: vende o que tens, pois és rico, e dá o resultado aos pobres”. Então, terás os tesouros do céu.”.

Hilell ergueu-se em seus travesseiros e olhou para Lucano, os olhos implorantes:

- Médico! Compreendes quanto aquilo era incrível! Por que teria Ele de pedir-me que também eu fosse um mendigo?

Lucano olhou para o oceano, que podia ver através da janela, e disse baixinho:

- Ele pede a cada homem que Lhe entregue o que mais ama no mundo, e é evidente que tu colocavas teu dinheiro acima de todas as coisas.

Hilell gemeu, e tornou a deitar-se.

- É verdade. Agora, compreendo. Afastei-me Dele, horrorizado. Ele viu minha agitação, e disse-me, muito suavemente, em voz baixa: "Vem, segue-Me.”.

Hilell passou a mão pelo rosto:

- E pedia-me que O seguisse que me tornasse um de seus seguidores sem lar, a mim, Hilell bem Hamram! Disse-Lhe que aquilo era loucura. Então, Ele voltou-se para seus seguidores e disse muito tristemente: "Como é difícil aos ricos entrarem no Reino do Céu!" E levantou -se. Começou a falar, de novo, para os que O rodeavam, e eu voltei para a minha biga e me afastei dali.

Lucano e Arieh não falaram. Hilell olhava de um para o outro, suplicante.

- Fui educado em Atenas e em Roma. Sou homem de erudição, de poder, influência e fortuna. Sou um homem do mundo. Sou Hilell ben Hamram e Ele me pedira o impossível.

- Compreendo. Compreendo quanto aquilo te deve ter parecido incrível disse Lucano, com um suspiro. - Pois eu próprio não O censurei e odiei, quando Ele levou a querida de meu coração, e não jurei vingar-me Dele? Eu não sabia, como tu não sabias, que Ele toma apenas para dar, priva e logo oferece Seu conforto, cega, para que possamos ver a Sua luz. Quem sou eu para censurar-te, Hilell bem Hamram?

Indicou Arieh, com um gesto da mão:

- Quem pode conhecer os mistérios de Deus? Ele entregou este jovem em minhas mãos, depois de mais de vinte anos de procura, e agora sei que quando Ele me deu Arieh foi para me libertar de meu ódio e levar-me para Ele.

Hilell fixou os olhos em Lucano, viu como Arieh encostava a cabeça ao ombro do amigo, e dizia:

- Abençoados somos nós, pois Ele nos visitou.

Lucano estendeu sua mão a Hilell:

- Vejo bem que nunca O esqueceste, que Ele está em tua vida e em teus sonhos, que não poderias fugir Dele. Repousa, consola-te, pois sofreste muito e Ele te perdoou e apenas pede que tu O sigas e jamais O deixes. Vem conosco para Israel, onde nós o encontraremos outra vez, porque, com toda a certeza, Ele não está morto, mas vive.

 

Hilell ben Hamram levantou-se da cama, animado e jovem novamente. Não permitiu que Lucano e Arieh o deixassem. Eles, em seu navio, atendendo à tripulação, seriam seguidos pelo seu barco magnífico, até que terminasse o contrato de Lucano. Este e Arieh então passariam para bordo do outro navio e iriam todos juntos para Israel.

- Eu estava morto, e tu me chamaste à vida! exclamava ele para Lucano, abraçando-o.

Quando paravam rapidamente nos portos, Hilell insistia em compartilhar das casas de Lucano, com ele e Arieh. Deitava-se numa esteira, no chão, comia as refeições frugais que Lucano arranjava, e seguia-os aonde quer que ele e Arieh fossem fazer tratamentos e visitar pacientes que os esperavam. Mas sua atitude, como a atitude de Arieh, enchia de respeitoso temor os pacientes humildes. A noite, sentados em torno da mesa e comendo à luz da lâmpada, Hilell contava aos companheiros o que sabia e o que ouvira sobre Jesus de Nazaré. Seu rosto de fino marfim resplandecia, seus olhos escuros faiscavam e a alegria morava neles.

- Dizem-me meus servos que os seguidores do Mestre espalharam-se, depois de Sua crucifixão, temerosos dos romanos, pois tinham sido proscritos como arruaceiros. Eu os levarei para a minha casa de Jerusalém, e nós nos sentaremos entre eles e falaremos Dele!

Lucano ouvia com profunda atenção as histórias de Hilell. Quando estava sozinho, durante a noite, começou a escrever aquelas histórias.

Escrevia com a força e precisão translúcidas de um erudito grego, e também com a calma, com a clemente eloqüência desse erudito. Parecia-lhe ter testemunhado tudo aquilo com seus próprios olhos; enquanto escrevia, via as cenas, ouvia as vozes das pessoas. Começou, assim, seu Grande Evangelho, escrito para todo o mundo e para o mundo dos homens, pois sabia, embora Hilell não o soubesse, que Deus se revestira de humana carne, não só pelos judeus, mas também pelos gentios.

- Como sabes, Lucano dizia Hilell -, de há muito temos uma profecia que diz que o Messias seria da casa de Davi, e dizem que Jesus é dessa casa. Ouvi contar que Sua Mãe foi visitada pelo Anjo Gabriel, que lhe falou no nascimento do Messias que viria. Mas em Israel deves verificar por ti mesmo essas coisas.

Lucano pensava na Mãe do Messias, cujo nome era desconhecido de Hilell. Uma noite, ele se recordou do que José ben Gamliel lhe contara a respeito dela, quando seu Filho era menino e visitara os anciãos e doutores do Templo. A mais doce e terna das emoções apoderou-se de Lucano. A mãe de Jesus começou a corporificar, para ele, todas as queridas mulheres que conhecera: Íris, sua mãe, Rúbria e Sara, e sua sensata e infantil irmã Aurélia, que amava todas as coisas que tinham sido criadas.

Esperava ardentemente estar na presença de Maria, embora não lhe soubesse o nome. Desejava ouvir dos próprios lábios dela a história do nascimento Dele, Sua infância, juventude, e idade adulta. Seguramente, ela poderia contar-lhe mais do que qualquer de seus seguidores. Guardara o Filho em seu ventre, alimentara-O em seu seio.

Ensinara-O a andar; lavara Suas roupas, tecera-as, cosera-as. Afligira se com as doenças de que O tratara, e sentara-se junto do leito Dele, à noite, vigilante. Quando Lucano pensava em Maria, uma sede apaixonada de sua presença e de sua voz se apoderava dele, e ele a amava. Ela era o grande Mistério, e era uma mulher; e as mulheres sempre lhe confiavam seus mais profundos mistérios.

- Quando soubermos o que ela pensou, o que ela fez, saberemos tudo disse ele a Arieh e Hilell.

- Ela foi apenas um instrumento de Deus falou Hilell.

- Foi Sua Mãe, e as mães não sabem tudo a respeito de seus filhos? perguntou Lucano. - E por que aquela mulher foi escolhida para ser Sua Mãe? Há uma razão para que todas as mulheres sejam escolhidas, e ela pode dizer-me.

- E os homens não amam suas mães? perguntou Arieh. - Ele não a amou acima de todas as outras criaturas? Não a ouvia ternamente, quando pequenino, quando jovem, quando homem? Sim?

- Ela é, sem dúvida, a abençoada de todos os tempos disse Lucano.

Registrou a história do centurião Antônio e de seu servo.

Registrou a história de Ramo, que vira o Messias erguer um jovem de entre os mortos e dá-lo de novo a sua mãe. Mas a primeira parte de seu Evangelho ele deixou aberta para quando visse Maria. Uma coisa o perturbava. E disse a Hilell:

- Quando o Messias veio pela última vez a Jerusalém, disseste-me que o populacho judeu margeava seu caminho, juncando-o de folhas de palmeiras, que o asno em que Ele montava ia pisando. E que aquele povo o saudava como o Altíssimo, e se aglomerava em derredor Dela para beijar-Lhe as vestes, erguendo seus filhos a fim de que Ele os visse e os abençoasse. E quando Ele foi levado ao local da crucifixão, seu povo encheu o caminho e chorou e uma mulher enxugou-Lhe o rosto, quando Ele tombou sob o chicote romano, e um pobre e miserável judeu carregou-Lhe a cruz. Por que, se assim O amavam, permitiram Sua morte, e denunciaram-No, e espalharam seus seguidores, depois de tudo quanto, em Sua misericórdia, o Senhor fizera por eles?

Hilell respondeu:

- As relações entre os judeus e os romanos são precárias, e os altos sacerdotes e sábios de Israel fizeram bem o seu trabalho. Agiram como mediadores entre seu povo e Roma, prometendo que não haveria revoluções sangrentas contra Roma, que não permitiriam agitadores entre o povo, pois temiam que, se tais coisas acontecessem, Israel fosse destruída pelos romanos como outras nações o foram. E há os jovens chamados essênios, que são muito devotos e passam meses no deserto, rezando pelo Messias e pela libertação de Israel, do poder de Roma. Dizia-se que Jesus era um deles, embora eu não saiba se isso é ou não verdade.

“E há os fariseus sombrios, rostos azedos, que se colocaram como guardiães da Lei”. São mercadores banqueiros, advogados e doutores.

Não vivem alegremente, nem permitem que os outros assim vivam.

Desprezam os pobres, os humildes, os sem lar, os Amuratzem e os camponeses. Sugeriram, mesmo, que se devia proibir que um Amuratzem se aproximasse demais do altar, pois são iletrados e vestem-se rusticamente!

"E há a turba, a turba da praça do mercado, que não ama nem seu país nem Deus, a turba petulante, ignara, que aflige todas as cidades e todas as nações, sempre exigindo, ávida, ansiosa por diversões com lascivos apetites animais, desordeira, desenfreadamente inquieta, incapaz de aprender seja o que for, disputadora e dependente. Não tendes turba assim em Roma, e Roma não morrerá dela, e dos postos que ela impõe aos que lhe são superiores, a fim de mantê-la na ociosidade?

“Agora”, quando o Messias causou tal comoção através de toda a Judéia, falando com os delicados, os trabalhadores e os humildes, prometendo-lhes que Deus jamais os abandonará, antes ama-os, curando-os carinhosamente, e dizendo-lhes que embora não tivessem dinheiro, não eram desprezados por Deus, como os fariseus os desprezam; assegurando-lhes que são tão valiosos aos olhos do Todo-Poderoso como qualquer imperador, ou rei, ou padre vestido de seda, ou fariseu, isso originou a cólera destes. Além disso, pareceu aos fariseus que o Messias não era muito rigoroso quanto à Lei, interpretando-a para Seus seguidores como nenhum fariseu a interpretaria. Aos olhos deles, Ele estava rebaixando Deus ao nível dos mais humildes, lançando heresias que destruiriam a força espiritual de Israel. Quando Seus seguidores O aclamaram como o Messias, os fariseus ficaram enfurecidos, pois não era crença deles que o Messias viria para os judeus como o mais poderoso dos reis, vestido de glória, altivez, e poder, circundado por uma hoste angélica, e que expulsaria imediatamente os romanos, fazendo-os fugir para sempre? Ainda assim, ali estava um Homem humilde, membro do Amuratzem, da Galiléia, desconhecido de todos, a não ser pelos três últimos e curtos anos, um Homem anônimo, de sandálias de corda e vestes grosseiras, falando a língua comum dos camponeses... e diziam, abertamente, que Ele era o Messias! Não era aquilo uma blasfêmia contra Deus, contra a profecia? perguntavam os fariseus. Pior: Ele não negava ser o Messias!

“Os seguidores, e também o povo, sentiam-se confusos”. Ali estava o       Messias, e contudo não falava com ódio de Roma, condescendia, mesmo, em curar alguns romanos. Entretanto, os seguidores e o povo, que através Dele tinham tido alegria e alívio, amavam-No e conheciam-No. E aceitavam-No. Eram eles os que O aclamavam na estrada de Jerusalém, e choravam quando Ele levava Sua cruz ao Calvário.

Esperavam, até o último instante, que quando um romano batesse um cravo através de Seus pés, os céus se abrissem e a cólera descesse sobre a terra.

“E havia os sacerdotes, muitos deles membros da classe dos fariseus, honestamente horrorizados com os Seus ensinamentos”. Receavam, também, que os romanos usassem o Messias e suas palavras como uma desculpa para a retaliação, para o derramamento de sangue, para leis opressoras... depois de tudo quanto os sacerdotes haviam feito para acalmar Roma e manter certa liberdade para seu povo.

“Assim, tens os sacerdotes, assustados por seu povo e por sua fé; tens os que fizeram de si próprios os guardiães da Lei, os fariseus, que detestam os humildes; tens a turba guinchadora, sempre em busca de uma vítima”. E tens Roma, vigiando constantemente os sinais de rebelião contra seu poder. Considerando tudo isso, o que espanta é que Lhe tenham permitido viver tanto! Eventualmente, Ele veio a ser denunciado aos funcionários romanos, e isso foi o fim. Ou o começo - acrescentou Hilell.

Suspirou, e continuou:

- Contaram-me que muito antes de Sua morte Ele a profetizou. Disse que nascera para morrer como morreu. Deus desejara que assim fosse, desde o início dos tempos, para reconciliar Seu povo com Ele; para mostrar que Ele jamais o abandonara, que o amava e desejava perecer por ele a fim de que esse povo pudesse ver a verdade, a luz e a vida, a vida eterna e a misericórdia sem limites. Envolveu-se a si próprio em carne para demonstrar que nada era impossível, com Deus.

Os homens que O mataram, foram, finalmente, apenas seus instrumentos instituídos. Sem sua morte, como sem Sua vida, não haveria a realização das profecias.

Lucano ficou silencioso durante muito tempo. De vez em quando sacudia a cabeça, em aprovação. Depois disse:

- Não sabes o que aconteceu depois?

Hilell hesitou:

- Não. Mas Seus seguidores disseram que Ele se ergueria de entre os mortos, no terceiro dia, pois que lhes havia dito isso.

Lucano sorriu:

- Ele levantou-se falou. - Podes animar-te, meu querido amigo. Levantou-se! Sei disso em minha alma.

O júbilo e a clara e brilhante segurança enchiam seus dias. Era como um jovem, repleto de palavras e envolto por mensagens. Olhava em derredor e era como se nada tivesse visto antes, como se pela primeira vez lhe tivessem sido dados visão, ouvidos e compreensão. A treva e o desgosto o haviam deixado, como temporal que passa. Quando sorria aos amigos ou àqueles que tratava, o sol parecia brilhar em seu rosto. Tocava a cruz, que usava sempre em seu peito. E escrevia seu Evangelho.

Eles tinham a intenção de descer em Jopa, mas um temporal surgiu e foram levados para fora de sua rota, até Cesaréia. Lucano, Hilell e Arieh estavam juntos, na amurada do navio, observando a aproximação da costa da Judéia, e Lucano pensava: Aqui está meu lar, do qual fugi sempre. O porto de Cesaréia era um comprido contraforte negro de pedra, que avançava pelo mar adentro, e Hilell explicou que de um lado os galeões romanos carregavam e descarregavam a carga, e que do Outro desembarcavam passageiros ou os tomavam a bordo. Disse, sorrindo:

- Tenho um amigo querido, um oficial romano, que foi designado para esta região há três anos. Gostareis dele: um tipo mordaz e oblíquo, sem ilusões.

Por trás do maravilhoso navio de Hilell imensa nuvem negra formava torre enorme, sublinhada pelo ouro refulgente do sol que descia; o mar fluía, como rubi líquido. Marte, uma jóia de âmbar, levantava-se contra o edifício enevoado. O navio deslizou pelo contraforte movimentado que era o porto; vários galeões e embarcações menores estavam ancorados, suas velas frouxas manchadas de escarlate pelo poente. Uma lombada baixa de colinas era vista para além do porto, bronzeada e despida, e o ar pungia, com os odores do Oriente.

Hilell apontou para as colinas, e disse, com certa amargura:

- Os romanos arrancaram do nosso chão nossos ciprestes escuros para fazer seus navios. - Os olhos azuis de Arieh estavam agudos e penetrantes ao olhar para a terra de seus pais. E seus lábios fremiam de emoção. Vendo isso, ele pôs a mão no braço do jovem, apertando-o afetuosamente. Tinha uma irmã jovem e bela, Lea, de quinze anos, pronta para o casamento. Começou a planejar o matrimônio entre ela e Arieh, o filho de Eleazar ben Salomão, um nome nobre em Israel.

O navio, habilmente manobrado, deslizou para dentro do porto, todas as suas alegres flâmulas adejando, suas velas inclinadas contra o temeroso céu do poente. Foi saudado por outros navios, e Hilell cumprimentava, seu rosto bonito sorrindo. Os marinheiros gritavam lá do mastro. As docas agitavam-se, movimentando-se com a aproximação da noite; lanternas começaram a aparecer no crepúsculo que descia rapidamente. Certo número de soldados romanos estavam de pé, ociosos, observando o trabalho, e o oficial veio correndo, com passo leve, até o cais onde ancorou o navio de Hilell.

- Hilell! chamou ele, a voz forte e satisfeita. - Cumprimentos!

O elmo reluzia como fogo, refletindo o sol que desaparecia depressa e que brilhava, em tons vermelhos, sobre seu rosto masculino bem marcado. Começou a rir, de pé no cais, os polegares metidos no cinturão largo, as pernas nuas separadas, a túnica batendo ao vento ligeiro. Então, o pranchão saiu do navio e ele correu, subindo e rindo para bordo. Hilell caiu-lhe nos braços, e ambos abraçaram-se.

- Como sabias que chegaríamos aqui? perguntou Hilell. O romano deu uma vasta piscada, fingindo não ver Lucano e Arieh, que estavam ali perto.

- Como sei? perguntou ele. - Gostaria que acreditasse, seu judeu místico, que um anjo inclinou-se e sussurrou aos meus ouvidos, ou que um oráculo me disse, ou que um sacerdote mencionou tal coisa ao examinar as entranhas de um animal sacrificado. Mas não. Minha obrigação era saber, exatamente, onde estiveste navegando nestes últimos dois meses, e quem tinhas a bordo.

Já não sorria. Voltou-se abruptamente para Lucano, que olhava atentamente para ele.

- Não me conhece, Lucano, filho de Diodoro Cirino? - perguntou ele, em voz grave e desapontada.

Lucano teve um sobressalto. Retirou os cotovelos da amurada.

- Não! exclamou. - Não pode ser! Plócio!

E, agarrando o braço de Plócio, não podia falar.

Hilell olhava espantado para os dois. Plócio lhe disse:

- Esses gregos! São muito emotivos, embora finjam não o ser. - Segurou Lucano, afastando-o para vê-lo melhor, e seus olhos de soldado estavam úmidos. - Bem, aqui estas, finalmente; mais uma vez nos encontramos. Eu estava em Jopa, há dois dias, e ali ouvi dizer que o navio não atracaria. - Parou, depois disse, como alguém que está profundamente comovido: - Lucano, jamais nos escrevemos, mas eu sempre soube onde estavas, pois César tinha-te sob sua proteção.

- Não posso crer disse Lucano. - Estou muito feliz! És realmente tu, Plócio, meu querido amigo, depois de todos estes anos!

- Riu um pouco, para esconder quanto estava emocionado, mas as lanternas desabrochavam em luz e as tochas carmesins dançavam diante de seus olhos.

- Juro por Castor e Pólux que não mudaste! disse Plócio.

Pousara as mãos nos ombros de Lucano, e ele se inclinava para a frente, a fim de observar-lhe o rosto. - Ainda és um jovem e no entanto tens idade bastante para mostrar barba grisalha. – Olhou para Hilell, e disse: - Este é o nosso querido Hermes, que fugiu dos braços de Júlia e do qual eu te falei. - E ria.

- Também tu não mudaste disse Lucano, de certa forma mentirosa, pois Plócio estava mais gordo e mais robusto do que ele se recordava, e tinha a estrutura pesada de um homem de quarenta e seis anos. As sobrancelhas, abaixo do elmo, estavam misturadas com fios brancos.

- Ah! - disse Plócio - Os deuses não me deram o segredo da juventude eterna, como te deram, meu querido Lucano. Sob este elmo tenho a cabeça calva. Poucas vezes o tiro, pois tenho receio de que, como aconteceu com Ésquilo, uma águia pense ser minha cabeça uma pedra e atire sobre ela uma tartaruga. Prefiro, entretanto, recordar que também Péricles era calvo e mantinha o elmo na cabeça por essa mesma razão. - Riu de novo, e seu riso ressoou por sobre a água.

Abraçou Lucano mais uma vez, depois deu-lhe palmadas nas costas.

Lucano apresentou-o a Arieh.

- Sim, sim, compreendo disse Plócio, cordialmente. – Ouvi falar em Arieh ben Eleazar, pois os advogados zumbem a respeito dele, em Jerusalém. Sabia que estava contigo nesse navio. Hilell, estou contente por ver que não estás doente, como me haviam informado.

- Estou muito bem respondeu o outro. - E agora deves nos arranjar alojamento para a noite, Plócio, pois pretendo permanecer aqui alguns dias.

O rosto de Plócio modificou-se, tornou-se sombrio e impenetrável. Voltou-se para o lado e não olhou para Lucano, quando disse:

- Está tudo arranjado, pois que sabia que chegaríeis aqui; Pôncio Pilatos ofereceu bondosamente a casa dele para vosso uso, pois estará em Jerusalém algumas semanas. Acredito que deseja retornar a Roma, pois sua esposa tem estado... perturbada... há algum tempo.

- Tua própria casa seria muito boa disse Hilell. Franziu ligeiramente as sobrancelhas. - Prefiro não ser hóspede de Pôncio Pilatos.

- Minha casa disse Plócio foi vendida recentemente.

Estou agora adido ao pessoal da casa de Pôncio Pilatos. Não deves ficar na ofensiva, meu querido Hilell! Sei que nunca tiveste simpatia pelo procurador...

- Não gosto de Herodes, que construiu para ele aquela bonita casa! disse Hilell, em tom veemente.

Plócio estudou-lhe o rosto, astutamente, e falou:

- Queres dizer que não gosta mais dos romanos. Bem, então vai para uma taverna, saduceu[22] de pescoço duro! E goza as pulgas e os cães.

Hilell hesitou. Olhou para Lucano e Arieh. Depois, ergueu os ombros.

- Bem, se meus amigos não fazem objeção, iremos para a casa de Pilatos... sem prazer.

- Eu prefiro ir para onde fores disse Lucano.

Plócio olhou para ele estranhamente.

- Acho que não, quando te disser que teu irmão adotivo, Prisco, está na vila de Pilatos, naquelas colinas que ficam lá adiante, e espera por ti.

- Prisco! Há tanto tempo não tenho notícias dele! Pensei que estivesse em Jerusalém! e Lucano mostrava-se de novo encantado.

- Estava até algumas semanas atrás e o tom de Plócio era estranho e reservado. - É amigo de Pilatos, e esteve em visita a ele. - O soldado parou, depois disse: - O ar aqui é mais salubre do que em Jerusalém e ele tem estado ligeiramente doente.

Hilell percebeu, na voz de Plócio, a reserva e o tom de quem deseja evitar algo, mas Lucano, dominado pela alegria de ver seu velho amigo e pela notícia da presença de seu irmão na cidade, não percebeu. Os três foram para a grande biga de Plócio, puxada por quatro cavalos pretos. A última luz tombava sobre a terra, e, quando a biga saiu, Lucano olhava ansiosamente em derredor.

Havia pouco para ver naquela escuridão, a não ser o faiscar ocasional de uma luz em vasta e distante fortaleza, ou uma lâmpada numa casa pequena, ou um bosque de ciprestes que pareciam lanças, recortando-se contra a lua amarela que se ia erguendo. Moças e rapazes, soltando gritos roucos e guturais, corriam na frente da biga e de seus cavalos, tocando para casa seus rebanhos, ou um bando de cabras, ou ovelhas marrons com focinhos pretos. Lucano imaginou, pelo cheiro da poeira, que a terra era seca, arenosa e friável. À medida que subiam as colinas baixas, a cidade ficou abaixo dele, com seus telhados rasos reluzindo, suas ruas estreitas inquietas com suas luzes e com seus portais dourados. Havia tão pouco para ver naquela rápida escuridão, e no entanto Lucano estava profundamente excitado, como nunca estivera em sua vida. Não eram os odores intensos e profundos, pungentes e quentes sobre a brisa do mar, pesados com uma sugestão de incenso, de especiarias, exalações pela própria terra, o que o comoviam. Não era o cheiro picante das árvores e da relva ressecada, nem da poeira. Ele conhecia bem o Oriente. Os odores ali apenas eram mais consistentes do que em Alexandria ou no Cairo, em Tebas ou na Síria.

Nenhum daqueles odores comovia Lucano, mas apenas a idéia de que ali tinham vivido os sábios e os profetas, os patriarcas e os homens poderosos, os homens de Moisés, Davi, Saul, Elias, que aquela era a terra de Golias, de Caza, de reis e guerreiros, de Samuel.

Ali tinham retumbado os trovões dos tempos. Ali Deus caminhara, como um terremoto. Ali o Sinai mugira, trovejara e ficara entorpecido pelos coriscos. Ali os Mandamentos tinham sido dados aos homens.

Ali se havia erguido a concepção de que o homem podia ser mais do que homem, e que lhe ordenavam que assim fosse. Ali, naquela pequena região, os gigantes, os Titãs[23],e tinham realmente saltado da terra e o retumbar de suas vozes ecoara mesmo no silêncio. Ali havia mais sabedoria do que a Grécia concebem, mais grandeza do que Roma conseguira sob o sol. Não existia ali uma polegada de terra que não fosse abençoada, não havia uma árvore que não se erguesse em maravilha. Ali os heróis espirituais tinham tido o seu ser, e suas sombras caminhavam em cada estrada. Ali, uma jovenzinha levara Deus em seu ventre, e ali Ele se manifestara ao homem, ali Ele vivera e ali morrera, e ali preferia falar como homem.

Estou em meu lar, pensou Lucano, e nele havia profundo arrebatamento, porque Deus, naquele pequeno pedaço de terra, fizera Seu próprio lar, entre os que escolhera para ouvi-Lo.

Os que cavalgavam diante da biga levavam tochas, como flâmulas escarlates. Refletiam uma árvore ocasional, uma pedra, um caminho apedregulhado, rostos, lombos de cavalos. Lucano viu que se iam na direção de dois palácios impressionantes. Plócio apontou para um deles.

- Pilatos disse. - Apontou para o outro: - Seu querido amigo, o tetrarca de Jerusalém, Herodes Antipas. - Os edifícios brancos, de colunas, brilhavam à luz do luar. O palácio de Herodes rematado por um domo dourado. Legiões romanas começavam a margear a estrada, saudando.

A cidade jazia lá embaixo, toda em telhados rasos, prateados, de fogo pelas tochas e pelo pálido fulgor das lanternas. De algum lugar vinha o lamento de uma mulher.

- Amanhã eu vos mostrarei um dos nossos grandes templos - disse Plócio, orgulhoso. - Duas vastas estátuas, uma de Zeus e outra de Apolo, de frente uma para a outra, Zeus de mármore, Apolo de pórfiro vermelho. Esta é uma região muito estranha! Os judeus desprezam nossos templos em toda parte, desviam o rosto deles e são o povo mais religioso que existe! Eu vos digo, não há meios de compreender os judeus. Os piores, entre eles, cospem, quando passamos. Muitos dos nossos soldados casaram-se com bonitas donzelas judias, mas só depois da mais dolorosa circuncisão, e só depois de prolongado choro por parte das mães e de escândalos por parte dos pais. Até parecem selvagens da mais negra África.

Ele ria.

- Desejam manter-se e à Lei, sem eiva alguma, disse Hilell.

Plócio piscou um olho para Lucano.

- É como vos digo, continuou -, são muito estranhos. Detestam Herodes, mesmo quando ele fica de pé em seu Templo de Jerusalém e espalha cinzas na cabeça e faz sacrifícios. Olham suas lágrimas com desdém. Ah! Mas como são emproados! - Animou os cavalos com um estalido de chicote. - Mas esta terra tem para mim uma curiosa fascinação. Prisco terá muito que contar-vos. É preciso descontar muita coisa, ele não está realmente bem.

- Por que não? perguntou Lucano, com o primeiro alarma, levantando a voz sobre o ruído da biga.

Plócio ergueu os ombros.

- Esteve de serviço na crucifixão de um miserável rabi judeu, e parece que lhe fizeram algum feitiço. Os judeus têm encantações próprias, e eu já te disse que odeiam os romanos. Estou feliz por ver-te aqui. Conseguirás afastar com risos as superstições de teu irmão. - Mais uma vez sua voz mostrava-se estranha.

Lucano relanceou os olhos para Hilell ben Hamram, e os dele olhavam silenciosamente para a dança das tochas contra o vento.

       - Como sabes continuou Plócio, guiando habilmente seus grandes cavalos-, a família de Prisco não está com ele, e até a crucifixão Prisco era o mais alegre e o mais robusto dos homens, o meu oficial predileto. Freqüentava também as prostitutas mais elegantes e fanfarronava pelas tavernas. Entretanto acrescentou -, lembro-me de que ele tinha freqüentes crises de melancolia e tornava-se meditativo, mesmo antes dessa crucifixão, e discutia comigo a respeito de Roma, desejando se convencer de que a nossa nação não era verdadeiramente depravada, perdida e corrupta. Não recorda meu tio, o senador, que verdadeiramente morreu por sua pátria, como qualquer general numa batalha, e sem razão alguma? Mas agora devo dizer-te que Prisco mudou.

- De que forma?

A voz de soldado de Plócio tornou-se evasiva:

- Sou médico, por acaso? Trouxe-o para Cesaréia, pois que o amo como a um filho. Não te alarmes disse Plócio, bondosamente.

Pode ser coisa sem importância. Tanto Pilatos como Herodes mandaram-lhe seus melhores médicos, a meu pedido, e dois estão agora com ele e poderás conversar com ambos. A mim dizem muito pouco, Prisco passa o tempo em sua cama e parece ter alguma dificuldade para comer. Estoura, às vezes, em lágrimas misteriosas, mas os médicos não permitem que se façam perguntas. Esses médicos são arrogantes e tomam liberdade mesmo com soldados. - Tocou o braço de Lucano, amistosamente, com o cabo de seu chicote: - Ah! Eu te deixei preocupado! Sossega. Garanto-te que Prisco está sendo tratado, por seus amigos, como um sátrapa da Pérsia. Como irmão, e médico, curarás logo o rapaz, com lógica e razão.

Lucano estava alarmado com a maneira evasiva de Plócio, mas sabia que este também era obstinado e não desejava continuar discutindo Prisco. Disse então:

- No dia daquela crucificação houve trevas, não houve?

- Houve. E dizem, também, que muitos viram os mortos pelas ruas e pelas casas. São pessoas muito supersticiosas! O sol realmente escureceu, e ficou perdido durante muito tempo. Mas foi apenas um temporal de poeira. - Hesitava. - Prisco pode contar-te, se o persuadires a falar. Chorou como uma mulher quando eu lhe falei, nas poucas ocasiões em que me deixaram aproximar-me dele.

- E por que chora ele? indagou Lucano, obstinadamente.

Plócio sorriu-lhe com exasperação.

- Tenho receio de te falar, meu querido amigo, pensando no teu riso. Ele declara que foi Deus, ou talvez Zeus, ou Hermes, ou Osíris, ou Apolo, que morreu naquela cruz de criminosos! Não rias de mim, eu te imploro. Estou repetindo apenas o que teu irmão me disse.

Lucano ficou silencioso, e Plócio olhou para ele, divertido.

- Não te preocupes disse, tornando-se de certa forma aflito.

- Estou certo de que ele não está louco, mas é apenas vítima de algum encantamento ou de sua própria imaginação.

- Por que está ele aqui? perguntou Lucano, em voz baixa.

De novo Plócio hesitou:

- Eu sugeri isso, pois, durante muito tempo, ele andou estonteado em Jerusalém e os soldados repararam nisso e na sua palidez, nas maneiras abstraídas, nas súbitas explosões de lágrimas. Queria eu, por acaso, que esse escândalo fosse relatado em Roma, e a Tibério, que mudou selvagemente para pior, e agora odeia todo mundo? Não podia deixar que Prisco caísse em desgraça, que voltasse a Roma para ser punido por um comportamento que falasse em detrimento de sua fama como soldado romano. Isso é muito mau em Jerusalém, eu te digo! Desde aquela crucifixão houve muita turbulência ali, e muitos soldados são parte da loucura histérica, Pilatos foi forçado a banir os seguidores do rabi crucificado, a fim de restabelecer a paz e finalmente eles fugiram da cidade. Mas as coisas ainda andam muito agoureiras por lá. A ralé bate-se com freqüência contra os que murmuram ser realmente o rabi o Deus judeu. Bem sabemos o que é, em toda parte, o populacho do mercado, em nome de Marte! Nada mais quer do que levantes e conflitos, pois seus componentes tem almas de animais e amam a excitação, seja qual for a causa. São anônimos, o tumulto lhes dá oportunidade de assumirem a postura de homens e tornarem-se importantes, mesmo que seja apenas diante da lei, que eles odeiam, naturalmente.

A voz de Plócio expressava uma irritação mal-humorada, e Lucano não tornou a falar. Compreendia que aquela cólera não era dirigida contra ele, mas contra as turbas universais da plebe. Plócio resmungava, furiosamente:

- Ah! Se ao menos nós, soldados, tivéssemos permissão para reprimir a ralé! Outrora era permitido, e era salutar. Mas, agora, a ralé, em toda parte, tem de ser bem tratada, instalada, alimentada e divertida, pois tornou-se um terror. Contudo, quem a fez assim? Os estadistas venais, que desejam seu apoio, malditos sejam!

Lucano percebeu que agora subiam através de jardins luxuriantes, pois odores suaves prevaleciam em toda parte, bem como a fragrância resinosa das árvores. Viu fontes luminosas, distantes, à luz do luar, como náiades dançando na solidão contra as trevas da noite.

Ouviu o monótono bater dos pés dos soldados e em cada portão brilhavam elmos e espadas nuas. A cúpula dourada da casa de Herodes rivalizava com a luz da lua. Os cavateiros e as bigas entraram pelo último portão e a casa de Pilatos estava diante deles, luzindo como se fosse feita de alabastro.

Uma vez no magnificente vestíbulo iluminado, cheio de estátuas, de flores e de lindo mobiliário, Plócio sugeriu que seus hóspedes se retirassem para os quartos que os esperavam e descansassem até a hora do jantar. Lucano percebeu que seu amigo estava constrangido e tomado de pensamentos secretos e desejoso para se livrar dele por algum tempo. Pôs-lhe a mão no braço e disse-lhe:

- Plócio, eu não estou cansado. Gostaria de conversar com os médicos de Prisco, pois estou muito ansioso. E também há muito tempo que não vejo meu irmão.

- Certamente, meu querido Lucano! falou Plócio, cordial.

- Considera esta casa como tua, na ausência de Pilatos. - Sorriu a Hilell e deu-lhe uma palmada no ombro: - Senti falta de ti! declarou. Olhou para Arieh e piscou um olho. - Não há nada como uma fortuna para trazer ao lar os que se perderam! Os escravos vos levarão aos vossos apartamentos, meus caros amigos, e mais tarde, ao jantar, ficaremos à vontade e falaremos de muitos lugares. - Meteu os polegares no cinturão, depois tirou o elmo. Realmente, estava calvo, mas sua calvície aumentava-lhe o aspecto viril. Tocou no cotovelo de Lucano, evitando-lhe os olhos. - Vem disse. - Os médicos estão agora com Prisco e podem dizer-te muita coisa que não sei.

 

Ele não falou, enquanto conduzia Lucano através de aposentos cada qual mais belo do que o outro. Escravas estavam cantando em alguma parte, acompanhadas pelos sons feiticeiros de flautas e harpas.

Riso macio vinha de detrás das cortinas. Luzes de lâmpadas iluminavam colunas de mármore multicolorido. As paredes cobertas com murais brilhavam com tais coloridos que as criaturas ali pintadas pareciam mover-se numa vida secreta, mas absorvente, que lhes era própria. Os pisos de mármore fulguravam e toda a casa tinha sido recentemente perfumada. Lucano refletia que Herodes realmente construíra uma casa esplêndida para seu amigo, o procurador de Israel. Havia relances de ouro e prata por toda parte e as lâmpadas eram de vidro de Alexandria. Conforme os dois amigos, silenciosos, passavam de um aposento para outro, o vento agudo e pungente do mar soprava em torno deles. Em certo momento Lucano viu, de passagem, o zinibório dourado da casa de Herodes, através de colunas lisas, e ouviu o som de vozes distantes e a monótona troca de senha das sentinelas. Fora disso, uma atmosfera pesada de silêncio jazia sobre todas as coisas.

Chegaram a uma alta porta de bronze, e Plócio bateu nela de leve.

A porta foi imediatamente aberta por um escravo armado, que se inclinou. Plócio disse:

- O nobre Lucano, que é hóspede de Pôncio Pilatos, deseja conversar com os médicos do capitão Prisco. Trazei-os até ele.

O escravo saudou ligeiramente Lucano, sorriu um pouco e apressou-se a sair, como que perseguido. Lucano observou aquilo, as sobrancelhas cerradas. O escravo conduziu-o a uma antecâmara e indicou-lhe uma cadeira estofada em tecido de ouro, entre muitas outras.

Trouxe-lhe vinho numa salva de prata. As taças eram incrustadas com pedras preciosas de várias cores. Lucano bebeu, agradecido, pois descobriu que o vinho tinha um delicioso odor e um gosto de mel de rosas. As lâmpadas, muito trabalhadas, crepitavam ao vento leve e os pés de Lucano enterravam-se no rico e colorido tapete da Pérsia. Ali uma pessoa podia deslizar para certo langor, tão gracioso e adorável era o ambiente e tão forte o vinho. Mas Lucano estava ansioso demais.

Olhou para as portas de teca, intricadamente esculturadas, e esperou os médicos, com impaciência.

Chegaram finalmente, e inclinaram-se com dignidade e, como colegas que eram, Lucano se levantou e inclinou-se também para eles.

Eram homens de meia-idade e Lucano percebeu que um deles era judeu e o outro grego. Apresentaram-se. O grego disse:

- Chamo-me Nícias, e este é o médico Josué.

O grego tinha uma atitude sutil e fria, que indicava natureza impessoal. O médico judeu era menor e havia uma vivacidade e uma inteligência inquietas em seus olhos negros e brilhantes.

Ambos estavam vestidos formalmente, de togas azuis, barradas de ouro.

Ambos usavam anéis de médico, trabalhados com pedras preciosas e fulgurantes. Era evidente serem homens de muita honra e importância e estarem surpreendidos diante das vestes humildes de Lucano.

Sentaram-se ao lado dele, puxando suas cadeiras para mais perto do visitante, no gesto imemorial dos médicos que estão para entrar em conferência de muita importância, a propósito de um paciente de valor. Beberam o vinho que o escravo trouxe e olharam para a frente, com ar meditativo. Lucano ainda esperava. Médicos de posição não deviam ser apressados de maneira vulgar. Tinham sua dignidade a manter e, assim, sentiam-se portentosos.

Nícias fez perguntas sobre Atenas e Lucano foi forçado a responder cortesmente. Nícias mencionou Sócrates, que era seu filósofo predileto, e Lucano respondeu com erudição. O grego ficou satisfeito.

Josué inclinava-se para a frente, a fim de ouvir.

- Consta-me que foste educado em Alexandria, nobre Lucano disse Josué, com ar de leve condescendência. - Acredito que Alexandria perdeu um pouco de sua fama nestes últimos cem anos. Eu próprio fui educado em Tarso. Qual é a tua opinião sobre os méritos rivais das escolas que citei?

Lucano, devorado pela ansiedade, ainda assim respondeu com forçada calma. Percebia que aqueles homens o estavam sondando para ver se lhe faltava cultura, antes de confiarem nele e antes de decidir se mereceria ou não sua confiança integral. Era, pensava ele cheio de impaciência, como uma dança majestosa e sagrada, na qual um estrangeiro se introduziu, e durante a qual deveria ser determinado se ele poderia ser admitido ao ritual.

- Eu vos asseguro, meus nobres colegas disse ele, com imensa exasperação, finalmente -, que sou capaz de compreender vosso jargão médico e que tive muita experiência e conheço a maioria dos tratamentos modernos! Portanto, suplico-vos que considereis minha natural ansiedade! Falai-me de meu irmão.

Ambos os médicos deram a impressão de se sentirem ofendidos, por um momento, embora os olhos do judeu não pudessem reprimir um faiscar divertido. Lucano, espantado, pensou ter visto Josué piscar, mas não podia ter certeza, pois o rosto dele permanecia grave e retinha a atitude do médico, clássica através dos tempos: cabeça pensativa e projetada para a frente, o cotovelo direito no braço da cadeira, o dedo indicador da mão direita em parte escondendo a boca sensível. Nícia debatia solenemente. Então, Josué, depois de relancear rapidamente os olhos para ele, decidiu, ao que pareceu, que já tinha havido formalidade bastante. Deixou cair a mão e disse, imediatamente:

- É verdade que estás ansioso, Lucano. Deixa-me pôr-te ao corrente com rapidez.

Nícias lançou-lhe um olhar gelado, que não pareceu desconcertá-lo.

- Teu irmão tem câncer no estômago; a doença invadiu amplamente também o fígado. Pediste que falássemos. Não acredito em frases vagas, por isso contei-te. Compreendes que, em tais condições, ele não pode viver. Fizemos quanto nos foi possível. Demos-lhe comida altamente temperada, para despertar-lhe o apetite, que é fraco, e todo o vinho que ele deseja, além de anódinos para suas dores, que são tremendas.

Lucano ali ficou, transfixado, o coração doente de desespero. Josué olhava-o compassivamente. Nícias cruzara os dedos brancos sobre o regaço.

- Pode viver um mês, talvez dois meses, mas, com certeza, não durará muito.

Era como se ele estivesse polidamente discutindo o tempo com dois amigos aristocráticos e que o assunto não tivesse importância pessoal. Lucano, lutando contra seu abatimento, odiou-os, de maneira desarrazoada e, por isso, concentrou-se em Josué, no qual pressentira mais calor humano, mais bondade.

- Há quanto tempo meu irmão está doente? perguntou, com voz trêmula.

Josué encolheu os ombros, eloqüentemente.

- Já estava doente quando foi trazido para cá. Imagino que a doença esteja nele há uns oito meses. E é a responsável pelo seu abatimento, sua abstração, sua perda de carnes, o acinzentado do rosto, sua aversão pela carne, suas raras, mas copiosas hemorragias de estômago, seu andar vacilante, seus tornozelos inchados. Está nos últimos estágios de sua moléstia. Nada podemos fazer por ele a não ser aliviar-lhe as dores e tranqüilizá-lo. Soubemos, também, que a doença causou instabilidade de gênio, acessos de choro, pois embora ele não saiba que está mortalmente doente, seu corpo envia ao cérebro sinais de angústia e o pressentimento da morte.

Nícias disse, a voz calma e reprovadora:

- Isso é uma teoria tua, não-aprovada, Josué. Isso de que o cérebro chega a receber qualquer mensagem. Estou firmemente convencido de que o coração é a sede das emoções e pressentimentos. Prefiro as teorias de Aristóteles, embora, por alguns, eu seja considerado antiquado.

Os "alguns" eram aparentemente, o próprio Josué, e os olhos dos médicos cruzaram-se por alguns momentos, em rápido combate.

- Oh! exclamou Lucano, quase fora de si. – Precisamos discutir as várias teorias? Disseste, Josué, que meu irmão tem câncer. Isso é certo?

- Absolutamente certo falou Josué, ofendido. Seus olhos mostravam simpatia e ele continuou: - Desejas examiná-lo pessoalmente?

Os três médicos levantaram-se. As pálpebras pálidas de Nícias ergueram-se ao ver o estojo rústico e barato de Lucano, onde os frascos produziam rumor, como acontece com os médicos mais simples. Nícias abriu a porta de teca, com ar de altaneira resignação diante de homens menores e importunos. O dormitório que ficava ali era magnificente, repleto do mais belo mobiliário e com um leito dourado. Quatro escravos estavam às ordens, vestidos de túnicas brancas. Lucano, porém, correu para o leito, exclamando:

- Meu querido Prisco! Aqui estou, finalmente!

Agarrou uma lâmpada que estava sobre a mesa de mármore, e levantou-a sobre a cama. Prisco ali jazia e Lucano ficou atônito até o coração diante de seu aspecto e quase incapaz de reconhecer, naquele homem cinzento e magro, seu jovem e querido irmão. As pálpebras, como que feitas de pedra, desciam sobre olhos abatidos, a boca se contraíra, apertando-se contra os dentes. Durante um terrível momento Lucano pensou que o irmão já estivesse morto, pois não parecia respirar.

- Ele dorme, sob influência das nossas drogas disse Josué, cheio de piedade. Pôs a mão no ombro de Lucano: - Assim, pelo menos, tem uma paz temporária e por isso devemos agradecer a Deus misericordioso. Ele sofre muito.

Lágrimas inundaram os olhos de Lucano, enquanto ele contemplava o irmão, à luz da lâmpada que erguera. Ali jazia um jovem que lhe era mais querido do que seu irmão e sua irmã pelo sangue, pois ele dera vida a Prisco, que estava morto. Ali estava o irmão da bem-amada Rúbria, e morrendo como ela morrera. Ali estava o querido do coração de Íris. Ali estava o filho de Diodoro, aquele guerreiro virtuoso e valoroso, cujo nome jamais fora esquecido. Ali jazia a casa de Diodoro, o filho mais adequado e mais valioso para o nome do soldado morto do que o erudito e melindroso Gaio, que estremecia ao ver espadas e flâmulas. Ali estava alguém que fora alegre e moreno como uma noz, inocentemente alegre e altivo, alguém que se regozijava por viver, que amava seu país e seus deuses. Lucano recordava-se do temperamento de Prisco, afetuoso, considerado, bom, ainda assim forte, jubilosamente ativo e animado, amável, solícito e cheio de risos. Lucano não podia suportar aquilo. Pousou lentamente a lâmpada, apertou os dedos contra os olhos, para fechá-los contra aquela visão extremamente dolorosa.

- Sim, é triste disse Josué, suspirando.

Nícias aproximou-se do leito, caminhando, como um dos mais solenes dos deuses, fixou os olhos em Prisco, como os fixaria num teorema.

Prisco moveu-se. Lucano, os olhos ainda cobertos, ouviu a voz mais fraca, animada por um frágil encantamento:

- Lucano! És tu! Eu tenho esperado...

Lucano tombou de joelhos e agarrou a mão magra e diminuída do outro nas suas. Estava fria, seca ao seu toque, e o pulso mostrava-se erradio. Viu os olhos de Prisco, toldados pela dor e pela exaustão, embora eles se tivessem iluminado pela alegria de vê-lo.

- Querido Prisco, gaguejou Lucano, lutando para controlar a agonia que se apoderara dele. - Sim, eu aqui estou. Tens dores?

Os dedos magros apertaram-se nas mãos de Lucano, como os dedos de uma múmia. Prisco umedeceu os lábios ressecados, depois olhou resolutamente para Lucano.

- Dor disse ele, em sussurro, e com esforço - é tudo quanto um homem suporta. Isso tu me disseste um dia, Lucano. Um soldado compreende a dor, está habituado a ela. Mas há a dor do espírito...

Tiveste notícias de casa recentemente?

Disse a palavra "casa" em tom de desesperado anelo.

- Tudo vai bem falou Lucano, engolindo o bolo amargo que sentia na garganta. Prisco nunca mais voltaria para casa, nunca mais faria saltar os filhos em seus ombros, nunca mais veria sua esposa nem se deitaria com ela, acariciando-lhe os compridos caracóis escuros e roçando a boca pelas suas faces onde havia covinhas, pelos seus seios.

Nunca mais veria os pomares, seu gado e seus cavalos. Nunca mais nadaria no cristal verde do riacho, nem beberia vinho de suas uvas. As adoráveis e simples coisas que davam alegria e prazer, que os homens recebem como naturais, jamais seriam dele outra vez. Porque Prisco estava morrendo e Lucano imediatamente compreendera isso. O coração do médico apertava-se. Então, instantaneamente, sorriu, pois Prisco o observava com ansiedade.

- Tudo bem? perguntou o jovem soldado.

- Tudo bem respondeu Lucano. Prisco suspirou e fechou por um instante os olhos, contente.

Lucano começou a examiná-lo, delicadamente, e sua última esperança de que tivesse havido um diagnóstico errado veio a morrer. Na região direita do estômago havia uma grande massa palpável, que podia ser facilmente tateada através da delgada camada de carne que expirava.

Os dedos de Lucano moveram-se para o fígado e ali também havia aquela massa. As glândulas linfáticas periféricas estavam muito intumescidas, especialmente a supraclavicular. O exame custou a Prisco as dores mais insuportáveis, apesar de ter sido delicadíssimo, mas, como soldado, ele se manteve rígido e calado. Os olhos ansiosos não se afastavam do rosto de Lucano, não para buscar ali uma expressão de alívio mas pela alegria de vê-lo. Sabia, em sua alma, que não viveria muito mais.

Disse, em voz fraca:

- Minha mãe. Minha esposa, meus filhos. Deves contar-lhe...

Não pôde controlar um gemido, quando Lucano encontrou um ponto particularmente doloroso, mas continuou: - ...que eu morra em paz... de um acidente, talvez. E rapidamente. Eles não devem saber... Ah!... suspirou, quando Lucano retirou as mãos tateantes.

- Tu compreendes, Lucano...

- Sim disse Lucano. - Eu compreendo.

Pôs a palma da mão contra o rosto febril, como um pai; seu peito ergueu-se. Tentou sorrir:

- Mas não está tudo perdido acrescentou, em tom consolador, e na forma mecânica de um médico.

Prisco rolou a cabeça no travesseiro.

- Tudo está perdido disse ele, calmamente.

- É preciso ter esperanças, falou Josué.

- Não desejo mais viver disse Prisco, com simplicidade. - Tu falas de meu corpo, bom Josué. Não me importo com o meu corpo. - Pôs sua mão na de Lucano, como uma criança exausta. - Preciso falar com meu irmão, sozinho disse ele. - Há muito a dizer, antes que eu parta para a minha longa viagem.

- Compreendo disse Josué, sentindo seu próprio desgosto, pois viera a tomar-se de carinho por Prisco, como todos quantos o conheciam. - Mas não deves cansar-te.

- A não ser que me alivie da minha carga, não conseguirei reunir-me em paz a meu pai, minha mãe e minha irmã disse Prisco. - Disponho de pouco tempo.

- Só os deuses sabem disso, falou Nícias, friamente. Inclinou a cabeça e Josué o seguiu saindo ambos do quarto, de onde saíram também os escravos. Prisco ficou a olhá-los enquanto saíam, e depois, forçando-se a algum vigor, disse a Lucano:

- Ergue-me sobre os meus travesseiros, querido irmão, de forma que eu possa falar mais facilmente.

Lucano ergueu-o e ficou apavorado com a leveza do corpo do soldado, com a ausência de carne. Contudo, obrigou-se a sorrir, confortadoramente. A cabeça de Prisco tombou sobre os travesseiros erguidos, e ele arquejou, enfraquecido, por alguns momentos. Fechou os olhos.

- Devo falar disse, com algo da maneira imperiosa de Diodoro. Não me digas que não me canse. O que tenho a dizer, devo dizer, Lucano.

- Sim disse Lucano. A mão de Prisco procurou a sua, e o jovem sorriu, levemente.

- É uma história terrível falou, depois de alguns momentos, e seu rosto modificou-se, tornou-se cadavérico, como se tivesse morrido atormentado naquele momento. Então começou a sua história.

As lâmpadas crepitavam ou aumentavam de intensidade à brisa marinha que vinha através das colunas, lá fora. Os odores do Oriente corriam com o vento e os sons das fontes sonoras. Prisco falou com firmeza, com a urgência da derradeira força, e Lucano não o interrompeu nem uma só vez.

Plócio fora designado para Jerusalém e ali estava havia bastante tempo. Achara a cidade fascinante e cheia de excitamento. Os judeus eram um povo estranho, mas nunca monótonos ou fracos. Olhavam para os romanos friamente e evitavam-nos, mas não quando se tratava dos comerciantes ricos, dos políticos e dos proprietários de navios cargueiros. O povo inferior, mais humilde, desprezava-os, a não ser quanto aos altos sacerdotes, cujas famílias estavam ligadas ao comércio e tinham fortunas a fazer.

- O povo é ao mesmo tempo tão realista e tão materialista quanto nós, romanos disse Prisco -, e ainda assim cheio de devoção e misticismo. Mesmo o mais grosseiro e exigente dos comerciantes, mercadores e manufatureiros põe de parte as preocupações mundanas nos dias santificados e torna-se tão pouco ligado ao mundo quanto as sombras, esquecendo tudo. O Templo está repleto de fumaça dos sacrifícios e do cheiro do incenso, e há choro e lamentos em certos dias santificados, e regozijo e dança em outros. Os judeus choram eternamente mesmo quando sorriem. E falam de um Messias que os libertara de Roma, e que colocará Seu pé sobre o peito prostrado de Roma, jamais permitindo que ela torne a levantar-se.

Prisco, jovem e cheio de curiosidade, ouvira muita coisa sobre aquela religião dos judeus, pois desejava ser amigo dos que rejeitavam sua amizade. Ninguém, entretanto, queria discutir religião com ele, nem mesmo os mercadores e comerciantes que conhecia. Nesse assunto eles se encolhiam e seus rostos gordos e corados pelo vinho se tornavam sombrios e desviavam-se. Começaram a surgir rumores de um rabi estranho, vindo do campo, sem erudição, descido das colinas da Galiléia, pertencente a um povo desprezado em Jerusalém, pelos mundanos e pelos cultos. Era homem sem nome de família e sem fortuna. Nada tinha, a não ser a roupa pobre que o cobria e as sandálias de corda que trazia nos pés. Não possuía cavalo nem liteira, nem sequer o mais insignificante dos asnos. Ainda assim, quando veio a Jerusalém, foi rodeado pelas multidões, que se moviam para onde Ele se movia, ouvindo-O. Dizia-se que Ele curava os enfermos, levantava do túmulo os mortos. Os sacerdotes riram-se, de início, depois se encolerizaram. Aquilo nada significava para Prisco, que jamais pudera entender os judeus, suas muitas seitas rixosas, sua insistência em certos rituais, suas constantes e veementes discussões sobre as belezas da significação dos antigos profetas mesmo a turba das ruas discutia essas coisas! Viam a religião com severidade e devoção e observavam-na meticulosamente. Nem tinham dúvidas cínicas a propósito dela, como tinham os gregos, nem as mundanas superstições dos romanos.

Aquilo explicava, sem dúvida, a excitação no que se referia ao rabi que diziam erguer os mortos, curar os doentes e realizar muitos outros milagres. Explicava também o ódio dos altos sacerdotes patrícios, que detestavam o povo comum e achavam indignos seus sacrifícios pobres.

O rabi estava invadindo suas sagradas atribuições e desviando o povo de seus deveres. E, o que era quase tão ruim quanto isso, dizia-se que Ele incitava o povo contra Roma. Tal coisa era perigosa.

Disseram, finalmente e com intensa excitação, que Ele era o Messias. Viria salvar Seu povo de Israel do poder de Roma, com suas hostes de anjos que expulsariam as legiões romanas para fora dos muros de Jerusalém. Pela primeira vez, então, Pôncio Pilatos, que jamais interferia nas questões judaicas, pois era homem discreto, ficou preocupado. Que os judeus brigassem entre eles, como faziam, interminavelmente, a propósito de uma doutrina ou outra, desde que suas brigas não afetassem a autoridade de Roma. O tetrarca, Herodes, meio grego meio judeu, recebeu a visita dos altos sacerdotes, que declararam estarem os judeus em perigo por causa dos ensinamentos daquele miserável rabi, que não apenas afirmava ter vindo para fazer cumprir as leis dos profetas e dizer que os sacerdotes estavam enganando e oprimindo o povo, como também estava causando confusão e separação inamistosa nas relações pacíficas entre os judeus e seus senhores, os romanos. Herodes discutiu o assunto com Pilatos, que visitava Jerusalém, lugar do qual não gostava, sentindo-se contrariado por lhe ter sido imposta aquela visita. Chamou Plócio e Prisco para interrogá-los. Plócio ergueu os ombros e declarou que os padres estavam sempre frenéticos e que não se devia levá-los muito a sério. Prisco falou a Pilatos dos boatos sobre os milagres, e Plócio riu. Pilatos estava mais preocupado com um possível levante de judeus do que com o rabi como Pessoa.

- Não sei ao certo o que aconteceu depois continuou Prisco, a voz fraca, mas insistente e olhando fixamente para o irmão, os olhos vívidos e estranhos. - Os assuntos dos judeus nada representavam para mim. Consta-me, entretanto, que os altos sacerdotes pediram a morte do rabi errante, de pés machucados, e que Ele foi levado diante de Pilatos para julgamento. Pilatos não o encontrou em falta, mas a ralé uivava, pedindo-Lhe a morte, não porque particularmente o detestasse, mas porque desejava excitação. Era na Páscoa judaica, e eu estava ali, e tive ordem para manter a paz. Durante a Páscoa os judeus se nos dirigem chamando-nos egípcios, e isso é incompreensível e insultante. Meus amigos judeus se afastam de mim durante esse período.

Foi na véspera da Páscoa. O excitamento na cidade, a propósito do rabi, foi crescendo até uma altura insuportável. Grupos brigavam pelas ruas e amaldiçoavam os soldados que os separavam. Então Prisco recebeu ordens para executar o rabi, causador dos distúrbios, com dois ladrões que tinham sido condenados à morte. Era apenas mais uma tarefa desagradável, e Prisco cumpriu suas ordens.

Era costume, segundo a lei romana, que os condenados à mais vil das mortes, na cruz, fossem chicoteados antes da execução. Prisco ordenara a dois de seus oficiais inferiores que tomassem a si a tarefa. O rabi estava na prisão, aguardando o castigo final. Ele próprio esperou pela hora em que levaria os soldados e os carrascos ao lugar de costume, um monte conhecido como Gólgota, ou Local dos Crânios[24].

Ficou montado em seu cavalo, entediado a ponto de sentir fadiga, pois passara horas em sua taverna favorita na noite anterior; sentia-se impaciente por lhe ter sido dada aquela tarefa mesquinha. O criminoso não passava de um miserável judeu, abatido pela pobreza e indigno da atenção de um alto oficial como ele. Olhou em derredor, para a multidão turbulenta e excitada, com olhos levemente curiosos. Mas os judeus estavam sempre excitados, e com freqüência pelas coisas mais insignificantes. Ouviu maldições abafadas que lhe eram dirigidas, enquanto estava ali em seu cavalo, entre seus oficiais também montados, mas os judeus, principalmente quando se aproximavam seus dias santificados, freqüentemente amaldiçoavam os romanos, embora nos outros dias pudessem tratá-los de forma amistosa. Nada daquilo tinha importância. Chegou a rir, bem-humorado, a gracejar com seus oficiais, e a bocejar.

A multidão ia se reunindo ao longo da passagem estreita que levava da prisão ao Local dos Crânios. Prisco ficou subitamente interessado pelas expressões de muitas daquelas pessoas. Os volúveis judeus rapidamente ficaram silenciosos, de maneira pouco comum.

Centenas de mulheres choravam abertamente e outras levantavam seus filhinhos ao alto, como fazem as mães que desejam dar a seus rebentos a visão de um alto potentado ou de um príncipe que se aproxima. Muitos homens torciam as mãos e choravam em silêncio, ou batiam no próprio peito. Uma atmosfera de fatalidade pairava sobre a cidade e sobre o povo. Uma luz quente e misteriosa banhava a terra; era como se o sol, perdendo sua natural coloração dourada, se tivesse tornado violentamente incandescente. E as vestes das pessoas tomavam colorido vivo. Vermelhão e azul, listras vermelhas e brancas, amarelas e pretas, cor-de-rosa e esmeralda reluziam como se fossem estalar em chamas. Os rostos fizeram-se avultados, cada linha, cada desenho de nariz ou boca, cor de olhos, brilho de fronte ou queixo, mesmo os mais distantes, adquiriam selvagem nitidez e veemência. O cheiro do suor impregnava o ar escaldante. Não havia sacerdotes naquela multidão aglomerada, e ainda assim estranhamente silenciosa. Eles tinham feito seu trabalho e estavam no Templo, preparando-se para a Páscoa. Prisco relanceou olhos inquietos para o céu. Ali, sobre as montanhas cor de bronze, o firmamento mostrava uma cor peculiar. Era como se uma caldeira invisível fervesse para lá do Local dos Crânios, atirando para cima seu vapor que se condensava, em tons de vermelho pálido e roxo. O vapor queimava e movia-se. Prisco chamou para aquilo a atenção do oficial que estava mais perto dele. O oficial era jovem e supersticioso e olhou com desânimo para aquele movimento colorido e maligno.

Quem vai ser executado? indagou.

- Apenas três criminosos respondeu Prisco.

O jovem oficial tocara um amuleto e sacudira a cabeça, murmurando: - Não gosto disto. Há coisas sinistras aqui.

Prisco rira-se dele, mas mudou o cavalo de posição. Espirrou. O ar violento, tão flamígero, estava cheio de um pó quente amarelo, e ele suava sob a armadura.

Houve, então, uma turbulência diante dos portões da prisão. Um grito trovejante assaltou os ouvidos, e depois um profundo gemido, seguido de lamentações. Prisco e seus oficiais cavalgaram até mais perto dos portões. Um homem estava sendo arrastado para fora por soldados a pé. Era alto, tinha cabelos dourados e barba igualmente dourada. Parecia prostrado. Usava uma veste rasgada, branca, e sobre ela um manto carmesim, de tecido grosseiro. Em Sua cabeça erguida havia uma coroa de espinhos, que ali fora enterrada, e Seu rosto branco estava riscado de sangue.

- Que é isto? murmurou o jovem oficial a Prisco, mas este não podia responder.

Porque vira o rosto do criminoso, o qual, apesar do sangue e da sujeira, era nobre para além do que se pode imaginar, e calmo, delicado, parecendo irradiar luz que lhe fosse própria, maior ainda do que a claridade furiosa do sol. Tinha a atitude de um rei, majestoso e sagrado, e faltava-lhe qualquer medo. Um horror frio, que ele não podia explicar, apoderou-se de Prisco. Aquele homem não era um criminoso, e sim pessoa do mais alto sangue. Suas vestes tomavam a majestade da púrpura dos reis e a coroa de espinhos era uma coroa de ouro. O horror cresceu em Prisco. Era aquele miserável rabi, na verdade? Era aquele o camponês sem família e sem fortuna? Parecia incrível. Ele tinha o aspecto de um imperador, embora os soldados o empurrassem e batessem Nele, rindo-se Dele, como fazem todos os grosseiros subordinados, e cuspindo-Lhe no rosto.

- Saudações, Rei dos judeus! gritavam os soldados, e a ralé do mercado uivava. Mas centenas de mulheres soluçantes tombaram de joelhos e estenderam seus braços para a frente e centenas de homens se lamentaram, o rosto sulcado de lágrimas, e centenas de crianças choraram. A cena era caótica demais para um simples par de olhos e os olhos de Prisco ficaram frenéticos, na tentativa de abarcar todas as coisas. Finalmente, só podia ver o condenado, que estava cambaleando sob as pancadas dos soldados.

Prisco esporeou o cavalo e as mãos tremiam segurando as rédeas. Fez sinal aos seus oficiais e começaram a trotar largo em direção às portas da cidade, que já estalavam, ao se abrirem. Prisco disse para si mesmo: Quem é este que está para morrer? Olhou para trás, por sobre os ombros. Uma cruz fora atirada aos ombros do enfraquecido rabi, e ele oscilava desesperadamente sob ela, tentando manter o passo sob o peso e sob as pancadas dos soldados. O horror aprofundou-se em Prisco. Levantou a mão à armadura, procurando seu amuleto, um talismã contra o mal. O metal, porém, queimou-lhe os dedos e ficou molhado com o seu suor.

Em volta e junto dele, ouvia os uivos mais ensurdecedores, berros, gritos e lamentações. A luz estava insuportável; era como se dezenas de sóis se tivessem reunido ao seu ardente irmão. A claridade feria as pálpebras e inflamava a fronte. A fedentina da humanidade e o gosto ácido do pó levantado nausearam o jovem romano. Sua cabeça doía violentamente e era como se os ossos, dentro dele, estremecessem e fremissem. Todas as cores reluziam, selvagemente demais para ele, que entrecerrou as pálpebras para escapar à fúria da luz e da violenta coloração. Os edifícios próximos e distantes dançavam desvairadamente ao seu redor, ondas de calor estremeciam sobre todas as coisas, dando-lhes aspecto de loucura e instabilidade. E além do Gólgota as nuvens vermelhas e roxas derramavam-se pelo céu como línguas faiscantes, espalhando-se sobre o firmamento aquecido ao branco, saltando de detrás do cobre da montanha.

Um grito maior assaltou o ar terrível e de novo Prisco olhou por sobre os ombros. O criminoso tombara no chão; uma jovem, o rosto coberto de lágrimas, estava enxugando o rosto Dele. Um soldado gritara peremptoriamente com uma pessoa que estava de lado, e o homem, de pele escura e imenso de corpo veio imediatamente, e ergueu a cruz dos ombros do condenado. Com a assistência dos soldados, colocou a cruz sobre seus próprios ombros, levantou-se de sua posição curvada, e um sorriso profundo espalhou-se em suas feições. Olhou para o céu, e de sua carne queimada de sol porejavam lágrimas e suor. Moveu-se, docilmente, como alguém que está em sonho extático e com forças, sem desfalecimento. Era como se levasse aos ombros a liteira de um rei, orgulhosamente. E atrás dele tropeçava o criminoso. Seus lábios movendo-se. A população seguia, como um rio multicolorido, gritando ou gemendo, sacudindo os punhos no ar ou chorando. E sobre tudo aquilo derramava-se aquela claridade fragmentada e irreal.

Então Prisco ouviu uma voz que falava um aramaico confuso, mas puro, seguro e forte, como a voz de um governante:

- Filhas de Jerusalém! Não choreis por mim, mas por vossos filhos. Pois, atendei, os dias estão se aproximando em que os homens dirão: "Abençoados são os estéreis e os ventres que jamais conceberam e os seios que jamais amamentaram!" Então, eles começarão a dizer às montanhas: "Tombai sobre nós!" E às colinas: "Escondei-nos!"

Prisco ficou estonteado com aquela voz e com as estranhas palavras que ela articulara. Era como se milhares de oráculos tivessem falado, era como se Apolo, comovido com a agonia dos homens, tivesse chorado por eles. Era como se Zeus houvesse atirado coriscos e trovões pelo céu. E o povo, tão ruidoso, tão insistente, tão choroso, tão despedaçado pela dor, ficou silencioso por um momento.

- Quem é Ele? exclamou o jovem soldado, dirigindo-se a Prisco. E este não lhe podia responder.

A estrada que subia quente e íngreme estava diante deles, erguendo-se para o Gólgota. E Prisco disse consigo mesmo, em terrível e inominável desespero: Não devo olhar para trás outra vez! Mas não podia fugir à consciência das tremendas lamentações que se misturaram àquela luz de fatalidade, lamentações que seguiam o condenado como se fosse maré de dor e desespero. E acima daquela maré estridulavam os guinchos da plebe do mercado, refocilando-se, como sempre, em seus instintos de ódio, de ameaça e de ansiedade para obter uma vítima.

As paredes amarelas da cidade, recortadas de ameias, ficaram para trás, e o caminho estreito ergueu-se fortemente para o Monte do Gólgota, cujo topo cor de cobre parecia lançar fumaça, de um fogo infernal que lhe fosse próprio. Pedras saltavam sob os cascos do cavalo de Prisco e caíam atrás, rolando. Ele ouvia o ruído dos cavalos, daqueles que o seguiam, e suas maldições abafadas, assustadas. Estonteado, olhou para a paisagem rural, batida de calor, para as colinas em terraços, com sua carga de ciprestes e oliveiras, seus recortes de hortas verdes. Mas tudo mostrava aquele clarão sinistro de pesadelos, movimentado e sem substância. O suor corria pelo rosto de Prisco e ele tirou o elmo para enxugar a cabeça e as faces. A respiração vinha com enorme esforço. Não devo pensar! exclamava ele, para si próprio. Estou doente, estou vendo com olhos de doença. Isto não tem significação, isto é apenas a execução de alguém que se tornou um criminoso aos olhos de Roma, um incitador das multidões contra nossa autoridade.

Mas o terror e o horror cresceram nele como uma explosão, comprimindo o coração, a mente, os órgãos e a carne. Estava apavorado com o céu que via sobre o monte. As flamas coloridas levantavam-se mais altas, devoradoras. Poderia, realmente, sentir-lhes as palpitações.

Seu espírito supersticioso de romano acovardou-se. As lamentações enchiam o ar funesto.

Prisco disse, ao oficial que estava mais próximo:

- Mantende a multidão à distância. Que não cubra o topo do monte. Deve ficar embaixo! Quem sabe o que nos fará? Somos poucos, e ela se compõe de milhares, aumentados pela excitação e pela emoção.

Os oficiais deram a volta com seus cavalos indóceis e cavalgaram contra a multidão, mas Prisco não olhou para trás. Arquejando, deixou tombar a cabeça no peito e esperou. Depois de algum tempo pareceu-lhe que os gritos e lamentações diminuíam ligeiramente, à proporção que seus oficiais e soldados voltavam a pé para o povo a fim de impedir que subissem pessoas ao último ponto. Então Prisco viu que duas cruzes estavam sendo agora levantadas contra o céu agoureiro violáceo, deixando um lugar entre elas. Podia ver claramente os homens nus, embora estivesse ainda a alguma distância e mais abaixo.

Tinham os rostos escuros e contorcidos; seus braços estendiam-se na cruz em agonia. Um deles gritava.

Agora os oficiais estavam novamente em derredor dele, e o mais jovem disse:

- Nós os mantivemos para trás. Não se farão intrusos, pois nossos homens estão de espadas desembainhadas.

Agora Prisco sentia-se impelido a olhar para trás. O povo cobria as extensões mais baixas do monte como turbulenta floresta de muitas cores. Mexiam-se constantemente, sacudindo e estremecendo em todas as suas partes. E diante deles a pequena procissão daquele que conduzia a cruz chegou com o condenado e alguns soldados. O rabi subia, com movimentos fracos, a cabeça curvada. Ainda assim, seu aspecto era régio; rei cativo aguardando a execução. Prisco contemplou-o com terrível intensidade, e naquele momento Jesus levantou o rosto e o azul de Seus olhos luziu em Sua face. Seu manto vermelho arrastava-se de seus ombros e era um ornamento real.

Apesar das precauções havia um grupo esperando no topo do monte, algumas mulheres silenciosas, um ou dois jovens vestidos pobremente e, para cólera indesejável de Prisco, alguns fariseus e escribas, que ele reconheceu. Reunindo toda a sua força, Prisco cavalgou pelos últimos e mais difíceis alcantilados e disse aos fariseus, em voz velada:

- Que estais fazendo aqui, numa execução romana de humildes criminosos?

Um deles fez uma altaneira cortesia e replicou:

- Estamos aqui como testemunhas, pois há um tolo rumor de que esse estúpido miserável, Jesus, não morrerá, mas descerá vivo da cruz e levará o povo à anarquia e ao levante contra a paz. Diremos ao povo, mais tarde, o que tivermos testemunhado e assim tudo terminará.

Prisco não soube por que disse em voz alta:

- Não, não terminará! Isto nunca terminará! - Bateu com o punho contra a espada e o suor rolou-lhe pelo rosto.

Os fariseus franziram as sobrancelhas, consultaram-se uns aos outros, levantaram os ombros e os escribas escarneceram. Prisco, porém, a respiração audível no silêncio temeroso do topo da montanha, voltou sua atenção para as mulheres. Entretanto, realmente só viu uma esbelta mulher de idade não-determinada, pois seu rosto liso e pálido tanto poderia ser a face de uma jovenzinha como a de uma mulher madura, serena, mas rígida de dor. Pensou consigo mesmo: Ela é Sua esposa, Sua irmã, Sua Mãe? Não, não é possível que seja Sua Mãe, pois tem um ar de eterna juventude, é muito bela, mais bela ainda do que minha mãe adotiva, Íris, ou que minha irmã Aurélia. A mulher olhou para ele, como se lhe ouvisse os pensamentos, voltando para Prisco a profundeza azul de seus olhos. Alguns caracóis de seu cabelo, dourado como o sol, tinham escapado do turbante azul-escuro e se agitavam sobre sua fronte branca, ao sopro do vento árido. Sua boca era suave e descolorida, cheia de ternura. Mas foi sua imobilidade que impressionou Prisco, a imobilidade de seu corpo jovem, a imobilidade de sua notável beleza. Estava vestida de linho branco e nistico e trazia um manto azul, do mesmo material. Prisco desejou falar-lhe, pois tinha nobre atitude naquela atmosfera de calado desgosto. Não soube por que desmontou e aproximou-se dela. A mulher observava-o, vendo-o chegar, e sua face dolorosa estava voltada para ele.

O homem tentou fazer áspera a voz:

- Quem és tu, e quem são esses que contigo estão?

Ela disse, delicadamente:

- Sou Maria, Mãe Dele, e estes são nossos amigos.

Prisco teve vontade de ordenar-lhe que descesse. Hesitou. Ela continuava a olhar tranqüilamente para o moço e seus olhos transpassavam-no. Tinha as mãos cruzadas frouxamente; duas mulheres estavam de pé ao lado dela, como aias junto de uma rainha.

Choravam, mas ela não chorava. Uma profunda dignidade envolvia-a.

- És Sua Mãe disse Prisco, desajeitadamente. Pensou em Íris, e na mãe que jamais conhecera, e teve uma piedade imensa por todas as mães do mundo.

Maria inclinou a cabeça e seus olhos continuavam a implorar.

Prisco fez um gesto incerto.

- Não é uma visão agradável para uma mulher falou ele.

- Mas de há muito eu sabia disto respondeu ela. O homem ficou a olhá-la, pestanejando. E ela sorriu um pouco, e Prisco tornou a pensar, outra vez, incoerentemente, no sorriso compassivo de Íris.

Como era possível que aquela pobre mulher sentisse piedade dele, o executor romano de Seu Filho? Desejou falar mais com ela, mas os olhos o haviam deixado para ver o Filho, agora chegando ao topo. Um tremor, como de reflexo na água, correu sobre seu rosto e ela deu um único passo, as mãos estendidas, na eterna atitude de uma mãe. As mulheres abraçaram-na e mantiveram-na afastada. As cores do céu sulcado de rosa e púrpura flutuaram em seus rostos.

Os oficiais de Prisco olhavam, espantados, para seu oficial desmontado, que se dignara aproximar-se e falar com uma pobre judia.

Viram a expressão de desespero, a ansiedade, os olhos apavorados e ficaram ainda mais pensativos e constrangidos. O jovem oficial resmungou algo, baixinho, suas encantações contra os acontecimentos maléficos. Os fariseus e escribas mantiveram-se afastados, aqueles de aspecto frio e sem falar, e estes escarnecendo e gracejando entre si.

Prisco, olhando para o prisioneiro silencioso que estava de pé junto dele e vendo as gotas de sangue que rolavam pela Sua face sem palavras, sangue que vinha dos espinhos da coroa, vendo Seu absoluto sofrimento, exclamou:

- Vamos acabar com isto, em nome dos deuses! - Voltou-se um lado, com um gesto desordenado e hesitante: - Onde estão o vinho e a taça? perguntou a um de seus oficiais, que ficou a olhá-lo estupidamente por alguns momentos e depois procurou em seu alforje e retirou dali um frasco de vinho de soldado e uma taça grosseira. Desmontou para vir colocar ambas as coisas nas mãos trêmulas de Prisco. - Ópio também disse Prisco, desejando dar ao condenado alguma espécie de entorpecimento contra sua dor. Sem falar, o oficial polvilhou um pouco de ópio, de uma sacola de lã, sobre a superfície do vinho que servira.

A luz temerosa e estupenda aumentara, como um olhar furioso e ameaçador do Olimpo. Prisco aproximou-se do condenado e tudo silenciou naquele momento. As mulheres cessaram de chorar. Agora, diante de Jesus e olhando bem de frente para Ele, Prisco não conseguia levantar a voz, presa em sua garganta. Os olhos, que pareciam os de um deus, olhavam-no diretamente, como que sondando sua própria alma, e Prisco pensou, com terrível estupefação: Quem é Ele?

- Bebe gaguejou. - Isto Te ajudará...

Mas Jesus sacudiu levemente a cabeça, em negativa. Contudo, inclinou aquela cabeça, com gratidão. E agora o olhar que derramou sobre Prisco era suave para além de toda a suavidade que se possa imaginar e da maior, da mais incrível bondade e delicadeza. Prisco recuou diante daquele olhar, ainda mais aterrorizado e temeroso do que antes, até esbarrar contra seu cavalo.

- Que seja consumado! gritou. - Que acabemos com isto!

- E apertou o rosto contra o pescoço do cavalo, que tremia.

Agarrado ao animal. os olhos fechados, ouviu, vindo lá de baixo, o som de um mar doloroso, o ímpeto das lamentações e dos prantos.

Mas, acima deles - Prisco não conseguia forçar -se a olhar veio o som das marteladas. Por que estava tudo tão silencioso ali? Por que aquele condenado não gritava, quando os cravos lhe eram introduzidos na carne?

Então, Ele falou, em voz alta:

- Pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem.

Prisco sentiu um arrepio horrível correr-lhe pela carne, e seu cavalo assustou-se com o aperto de suas mãos. Está Ele implorando a Seu Deus, perguntava Prisco a si mesmo, na trovejante confusão de sua mente. Por que devem os deuses perdoar e a quem devem perdoar? A mim? Ao povo? Aos carrascos? Que loucura é esta? Por que deve qualquer homem perdoar seus Inimigos ou implorar aos deuses que os perdoem, quando está sofrendo agonias e tem a morte sobre si?

O jovem soldado desejava que as trevas descessem sobre ele, que pudesse desmaiar e nada mais ver. Mas a luz horrenda atravessava suas pálpebras e ele levantou a cabeça, afastando-a do pescoço do cavalo, e foi compelido a ver. Os carrascos tinham terminado seu trabalho: o condenado fora despido, a não ser pelo pano que lhe rodeava os rins.

Os homens começavam a levantar a cruz entre os dois ladrões, contra o céu temeroso. A cruz era maior do que as outras e, em contraste com a madeira escura e áspera, o corpo do homem suspenso parecia branco e macio como o alabastro, dando a impressão de refulgir. Ele parecia inconsciente de Sua angústia; seus olhos calmos observavam a mulher, Sua Mãe, e Ele sorria amorosamente, como para consolá-la e tranqüilizá-la. Então, aqueles olhos a deixaram e olharam para as turbas inquietas que estavam nos planos mais baixos da montanha, varreram a cidade lá no fundo, suas retorcidas paredes amarelas banhadas naquela claridade terrifica, seus telhados e cúpulas iluminados. Ergueu o peito num grande e tempestuoso suspiro e, por um momento, fechou Seus olhos.

Ali, o silêncio era pavoroso. Maria sentara sobre uma grande pedra, o rosto nas mãos, duas mulheres ajoelhadas a seu lado, confortando-a. Os amigos Dele, pobres como Ele próprio, estavam juntos, sem afastar os olhos do homem condenado. Eram jovens obviamente humildes, e suas barbas pequenas moviam-se em seus queixos ao mais leve sopro de vento e em seus rostos as lágrimas rolavam.

O jovem centurião tocou o ombro de Prisco, como quem se desculpa:

- Os soldados estão esperando o sinal, nobre Prisco - murmurou. – Como sabes, a lei permite-lhes dividir os pertences dos que são condenados à morte.

Prisco olhou para ele, confuso, pois tudo nadava diante de seus olhos. Fez um gesto abrupto. Os soldados impacientes dividiram as vestes de Jesus, queixando-se entre eles, de serem elas de tão pobre material e de não haver ali bolsa de dinheiro ou qualquer outra coisa que representasse valor. Descontentes, e depois de bocejar, afastaram-se um tanto e se ajoelharam, começando a jogar dados. Demorariam um pouco para descer, pois os crucificados morriam lentamente. Era entediante. As mulheres pareciam estátuas. Então, Prisco viu que sobre a cabeça do moribundo um escrito fora cravado, e ali estava, em letras gregas, romanas e hebraicas.

 

"Este é o Rei dos judeus".

 

Uma explosão de cólera atordoante invadiu o coração de Prisco diante daquela zombaria. Fechando os punhos, forçou-se a aproximar-se da cruz e levantou os olhos para o homem suspenso. Seus lábios tremiam. Tentou falar. Os olhos misteriosos voltaram-se para baixo com um sorriso complacente que continha ao mesmo tempo agonia e compaixão. Prisco pôs a mão contra a parte mais baixa da cruz e sentiu-se cheio de desejo de entregar-se e chorar. Voltou-se e viu que sua mão estava manchada de sangue, e ficou olhando para aquele escarlate brilhante, estupidificado. Como o estalido alto de ossos, podia ouvir o ruído dos dados dos soldados e a excitação de suas apostas.

Um grupo de escribas e fariseus também se aproximou da cruz.

Um dos fariseus levantou os olhos para o moribundo e disse, severamente:

- Ele salvou outros! Que salve a Si próprio, se é o Cristo, o escolhido de Deus!

A atenção dos soldados jogadores foi atraída por aquela voz, e eles explodiram em risos. Um deles, muito jovem, veio até a cruz, uma taça de vinho na mão. Seu sorriso era incerto, não maldoso, antes estúpido. Levantou a taça para Jesus, quase que amistosamente, e disse:

- Se és, realmente, o Rei dos Judeus, salva-Te!

Mas o moribundo não falou. Seus olhos começaram a empalidecer, a vidrar, e Ele dava a impressão de ter mergulhado em insondável meditação.

Um dos ladrões gemeu de maneira terrível. Voltou sua cabeça hirsuta e torturada para Jesus, as feições brutais retorcidas. Tentou cuspir naquela face heróica, mas sua saliva caiu no chão e ali ficou, reluzente. Ele gritou:

- Se és o Cristo, salva-Te e salva-nos! e voltou a gemer e a blasfemar com escárnio.

Prisco moveu-se, convulsivamente. Desejou levantar a espada e golpear a boca do ladrão. Mas, antes que pudesse arrancar a arma, o outro ladrão disse, em voz apagada e de censura:

- Não temes sequer a Deus, vendo que estás sob a mesma sentença! E nós aqui estamos com justiça, realmente, pois recebemos o que nossas ações mereciam. Mas este homem nada fez de mal!

Prisco estava transfixiado. Sua mão tombou da espada. O segundo ladrão voltou a cabeça para Jesus e suas feições grosseiras estremeceram, as lágrimas fluindo de seus olhos atormentados. Seu peito ergueu-se, e seus braços torceram na cruz.

- Senhor, lembra-Te de mim, quando entrares em Teu Reino.

E esforçava-se para o lado de Jesus, como se sua miserável alma fosse impelida por uma força tremenda, como se todo seu espírito estivesse sendo atraído para seu companheiro.

Jesus, durante alguns momentos, não pareceu ter ouvido as palavras dele. Depois, ergueu Sua cabeça, deixando Sua serena contemplação da cidade lá embaixo, das turbas chorosas, e falou. Sua voz ainda estava forte, clara, ainda delicada. Contemplou o segundo ladrão com uma compaixão que não era deste mundo, e sorriu:

- Em verdade eu te digo que ainda hoje estarás comigo no Paraíso!

De novo olhou para Sua Mãe e de novo uma luz correu sobre seu rosto lívido, no qual o sangue rolava como rubis. Como se tivesse ouvido uma ordem, ela ergueu a cabeça tombada e Mãe e Filho olharam-se, como se comungassem as palavras que não deviam ser ouvidas por ninguém. Prisco observava-os e seu coração se descompassava de medo e de um curioso anelo.

Passou-se tempo sem conta. Prisco tombara num estado de devaneio. Pensava que sempre estivera assim, a cabeça contra o pescoço do cavalo, aquela doença sempre dentro dele. Pensava que jamais tinha conhecido nada em sua vida a não ser o brilho dos elmos dos soldados ajoelhados, que jogavam e suas mãos reluzentes, a luz dançando em suas armaduras. Eternamente, ele vira aquelas nuvens que ferviam coloridas, como vapor, subindo para o céu aquecido ao branco. E eternamente, sua visão havia fixado as três cruzes. E eternamente contemplara a branca figura contra a madeira escura, os tendões forçados e latejantes, os pés alvos como a neve. Estava gelado dentro da eternidade e nunca mais deixaria aquele lugar, e nunca mais saberia de outra coisa!

Os jovens amigos de Jesus se haviam arrastado até a cruz e tinham tombado contra ela, como que abatidos por um raio, sua postura abandonada na imobilidade da dor, suas cabeças encostadas ao lenho. As mulheres estavam sentadas à parte. Maria olhava para a frente, como que contemplando os tempos, sua nobre cabeça erguendo-se entre as das duas mulheres.

O jovem centurião tornou a aproximar-se de Prisco. Estava muito pálido, e murmurou:

- Prisco, não gosto disto! Há algo horrível aqui!

Prisco umedeceu os lábios febris.

- Dá-me vinho pediu. O centurião deu-lhe vinho, servindo cautelosamente. Mas seus olhos fixavam o céu, assustados. Prisco tomou a taça e bebeu sofregamente; era um vinho pobre e ácido e nauseou-o. Atirou o resto no chão e estremeceu.

Era a sexta hora. A luz apavorante latejava mais cegadora do que nunca, como se reunisse para uma imensa conflagração. Prisco passou a mão pelo rosto e encontrou riachos de suor. Os dois ladrões, crucificados antes, estavam tombando na inconsciência da morte.

Jesus, entretanto, ainda olhava para a cidade e para os outros montes, como que pensando, como que inconsciente de que estava morrendo.

Então, a luz desapareceu. Desapareceu tão completamente como se meia-noite tivesse caído sobre a terra. Os soldados ajoelhados, que jogavam, levantaram-se num salto, com um grito de terror. O centurião, com pavor renovado, agarrou o ombro de Prisco, procurando proteção. Da multidão, lá embaixo, veio um gemido poderoso. Nesse momento, o chão ergueu-se como um navio sobre gigantesco vagalhão e estremeceu. Um som de trovoada rasgou as trevas. A terra balançou e sacudiu e de algum lugar veio um vasto gemido, ao mesmo tempo da terra e do céu.

- É verdade, é verdade! gritou Prisco, mas não sabia o que queria dizer com aquilo. Agarrou o pescoço de seu cavalo, para se manter de pé. Um pensamento vago lhe veio de que devia tranqüilizar seus homens, mas as pernas tremiam sob seu corpo.

Então o ar ficou impregnado de uma voz poderosa, sonora, forte e cheia de exultação:

- Pai, em Tuas mãos entrego o Meu Espírito!

As trevas acentuaram-se e os soldados gaguejavam, incoerentemente, juntos. Os fariseus e escribas recuaram pela montanha abaixo, articulando silenciosamente e agarrando-se aos braços uns dos outros. Prisco, porém, olhou para a cruz do meio com olhos desolados. A Figura que ali estava era a única luz na escuridão temível, e que parecia de fogo branco, dando a impressão de que se esticava e alcançava o próprio céu acima da montanha. A terra, que fugia trêmula e ofegante, parou, ficou imóvel.

Prisco ouviu seu jovem oficial, o centurião, falando em voz velada e trêmula:

- Na verdade, esse homem era um justo!

E tombou de joelhos, depois prostrou-se e os outros soldados, igualmente transidos, tombaram em torno dele, implorando a seus deuses auxílio e salvação.

Uma imensa náusea apoderou-se de Prisco. Afastou-se de seu cavalo e com alguns passos fracos aproximou-se da cruz do meio e de sua fulgurante Figura. Jesus estava morto e Sua cabeça tombara para Seu Peito. As gotas de sangue pingavam, escuras, sobre Sua carne, naquela treva profunda. Prisco olhou para as figuras silenciosas dos amigos de Jesus, e sua cabeça doía, uma dor lancinante. Tornou então a encostar a mão na cruz e, dessa vez, chorou.

 

Lucano inclinava-se bem perto do irmão, mantendo na sua a mão fria e latejante dele. Não tivera consciência do tempo que se passara. A luz da lâmpada continuava a queimar no rosto desbotado de Prisco, do qual corriam rios de suor. Muito tempo se passara. Prisco fechou os olhos velados e houve silêncio. Lucano olhou em derredor, como quem está sonhando. Nem ele nem Prisco tinham percebido que os servos se haviam introduzido caladamente no aposento, para anunciar o jantar. Não sabiam que Plócio terminara por se alarmar, e viera; mas depois, vendo os dois com as cabeças juntas, e ouvindo que Prisco estava falando e não quisera deter-se, afastara-se, franzindo as sobrancelhas e apertando os lábios.

Lucano ergueu a cabeça. Estava cheio de respeitoso temor, de desgosto, e ainda assim sentia-se repleto de júbilo e segurança. Tocou a fronte de Prisco com a mão, e este abriu os olhos.

- Não há nada mais disse o soldado, a voz moribunda.

Houve rumores de que no terceiro dia Ele se ergueu de entre os mortos, mas os rumores foram abafados e Seus seguidores banidos.

Fugiram da cidade, tomados de medo. Foi então que eu fiquei muito doente e estonteado. A dor começou no estômago, e eu sabia que Ele me condenara à morte, pela parte que tomei na Sua execução.

Lucano, porém, sorrindo alegremente, colocou a palma da mão contra a face acinzentada e murcha do irmão.

- Não! exclamou ele. - Como poderia Deus condenar-te?

Está profetizado, desde tempos imemoriais, que Ele morreria dessa maneira, pela salvação de todos os homens, não só pelos judeus. Eu sempre soube isso. Ele te odiou? Não. Ele te amou! Falaste de Seu olhar Compassivo sobre ti, e de Sua compreensão. Ele deseja que te aproximes mais, que repouses em Seu coração, e que sejas um com Ele. Ouve! Eu te digo que Ele te ama, e que está sempre contigo!

Os olhos abatidos de Prisco iluminaram-se. Encostou a face na mão de Lucano e lágrimas correram ao longo das pálpebras.

- É verdade? indagou, aflito. - É verdade?

- Sim, é verdade. E Ele ergueu-se! Oh, verdadeiramente, Ele ergueu-se de entre os mortos!

- E é Deus, com certeza?

Lucano inclinou-se para a frente e beijou a testa do irmão. Seus olhos estavam próximos, os escuros e os azuis. Lucano sorria amorosamente e com força. Prisco murmurara, aconchegando o corpo murcho mais junto do irmão e adormecendo subitamente, em absoluto estado de abatimento. Não parecia respirar, sequer. Uma expressão de paz e contentamento instalou-se em suas feições agonizantes. Era como alguém que tivesse chegado ao lar, depois de uma viagem terrível, onde encontrara monstros ameaçadores. Era como alguém que tivesse sido exilado no deserto ardente, e então fosse chamado de volta.

Lucano levantou-se e olhou para o homem abatido, que dormia.

Juntou as mãos e murmurou:

- Ó, Tu que me trouxeste dos espaços vazios, das trevas, da esterilidade, por Teu amor e por Tua misericórdia eterna! Ó Tu que és compassivo para além do que se possa imaginar! Tu, que obcecaste a minha vida para me trazer a Ti! Tu, que conheces os sofrimentos dos homens, porque os sofreste! Oh! santificado és em minha alma, e Te imploro que aceites a minha vida a fim de que Te possa servir! Sempre Te amei, mesmo quando discutia Contigo pela minha falta de compreensão! Tem piedade de mim, um pecador, um homem sem importância! Ouve minha voz que Te chama.

“Tem piedade de meu pobre irmão, a quem foi outorgado o mérito de ver-Te em nossa carne”. Ele Te ama, e Te conhece. Dá-lhe paz, dá-lhe alívio para suas dores. Se ele tem de morrer, concede-lhe, então, morte tranqüila, sem mais angústia. Não és Tu compassível para com Teus filhos? Chamam eles por Ti em vão? Não, jamais eles chamam por Ti sem Teu auxílio e Teu consolo! Aqui está meu irmão, que Te ama. Sê misericordioso para com ele, e conduze-o para Ti!

Prisco dormia como criança cansada. O suor secava em seu rosto.

Lucano curvou-se e beijou-o, a voz sussurrante e carinhosa. Então, apagou as lâmpadas e saiu do aposento.

Entrou na sala de jantar, onde estavam Nícias, Josué, Arieh, Hilell e Plócio. Não o sabia, mas sua pessoa brilhava como a lua, e os outros espantaram-se, fixando os olhos nele. Lucano olhou para Arieh e Hilell e exclamou:

- Durante todo este tempo estiveste ouvindo meu irmão. E eu vos digo que ele conheceu Deus, e O viu crucificado, e é abençoado por isso! E, com certeza, conforme foi dito, Deus ergueu-se de entre os mortos! Ergueu-se, louvado seja Seu Nome.

Os outros ficaram sentados, como estátuas, e empalideceram.

Então, Josué levantou-se e estendeu a mão a Lucano. Disse:

- Eu sabia. Desde o princípio eu sabia!

Arieh e Hilell levantaram-se, estenderam suas mãos a Lucano e sorriram. Lucano via-lhes as lágrimas. Plócio perturbou-se, franziu as sobrancelhas e apertou os lábios.

 

Muito depois de estarem todos dormindo, a não ser os vigilantes do vestíbulo e os guardas, Lucano escrevia seu Evangelho da Crucifixão.

As portas de seu quarto estavam abertas para a voz marinha do vento e para os odores aromáticos dos jardins. As vezes, como que em meio de um sonho, o estilo na mão, levantava sua cabeça dourada para ouvir o canto selvagem e doce dos pássaros noturnos e o incessante murmúrio das fontes. Em derredor dele ardiam lâmpadas de ouro, prata e vidro e, com freqüência, sem os ver, o médico fixava os olhos nos murais.

Quanto, pensava ele, tinha Prisco contado, e quanto tinha ele visto, espiritualmente, através dos olhos moribundos do irmão? Prisco não era um jovem de grande poder descritivo, entretanto conduzira Lucano através daquelas horas de grandiosidade e terror do Gólgota, de uma forma tal que era como se o médico tivesse testemunhado tudo com seus próprios olhos. Era como se ele próprio tivesse tocado a cruz, tivesse visto nela o Homem, tivesse recebido seu esplendente e misericordioso sorriso, tivesse olhado para Maria e se sentido despedaçado de dor por ela, tivesse ouvido os uivos e lamentações do povo.

Qual era aquele grito que Deus lançara da cruz, em hebraico, e que Prisco recordava, mas não podia traduzir? Lucano parou, pensativo.

Como grego, era preciso no que escrevia e nada colocaria em seu Evangelho a não ser o que Prisco vira e recordava e o que, através dos olhos do irmão, misteriosamente, ele próprio discernira. Enquanto Lucano escrevia, os olhos freqüentemente enchiam-se de lágrimas e o coração intumescia de amor. As vezes, não podia suportar a própria emoção e, levantando-se, caminhava em seu quarto, inquieto de cá para lá. Não havia cansaço nele. Ocasionalmente, bebia um pouco do doce vinho judaico ou comia uma tâmara e um pedaço de pão. E, agora, também não havia nele desgosto por Prisco. O jovem oficial estava seguro; vira Deus com seus próprios olhos, O desgosto que Lucano Sentia era por sua mãe, por Íris, e por aqueles que amavam Prisco e chorariam por ele. Mas eu não posso chorar por ele, pensava Lucano. Ele foi abençoado.

Os pássaros noturnos silenciaram e, então, subitamente, o ar frio da madrugada foi rasgado pelos cânticos de outros pássaros e as fontes soaram mais próximas. O Evangelho da Crucificação estava terminado.

Haveria outras partes a acrescentar, depois de conversar com Maria e os Apóstolos. Feixe rosado de sol, fino e tênue, entrou através de uma coluna branca e Lucano levantou-se e caminhou para a colunata que ficava além de sua porta.

Jamais tivera vista tão bela e tão pacífica, ali do alto daquela colina. O mar, para o ocidente, estava da cor das uvas maduras, fluindo para leste, onde as luzes subiam. O porto agitava-se com altos galeões, seu mais alto mastro branco apenas tocado de um tom róseo e fugitivo.O céu ocidental arqueava-se em púrpura e em seus pontos mais baixos as estrelas continuavam a brilhar de leve à proporção que desciam para o horizonte arredondado da terra. Como cansada Ártemis, a lua pálida as seguia, mergulhando para repousar. Cesaréia mal acordara; a cidade ficava entre o mar e a colina em que se erguia o palácio de Pilatos, aglomeradas massas de telhados rasos e brancos rebrilhando como neve. Junto daquele monte erguiam-se montes similares, argênteos pelas oliveiras, murmurantes pelas palmeiras e ciprestes, embora alguns fossem despidos, como que de bronze. Os jardins, porém, que desciam levemente, afastando-se dos palácios gêmeos de Pilatos e Herodes, estavam viçosamente verdes, cheios de passagens de pedregulhos brancos ou vermelhos, encantadores, com seus frescos caramanchões e canteiros, fragrantes pelas árvores resinosas. O ar puro fluía sobre tudo aquilo clarificando-se e fazendo-se iridescente à proporção que a terra se iluminava, e as estátuas brancas, disseminadas através dos jardins, começavam a brilhar ligeiramente.

Lucano suspirou, com prazer e realização. Vento limpo elevou-se do mar e a crista da água faiscou, num delicado tom de rosa. O médico olhou para o céu do oriente, amplo e puro, fremindo com luz escarlate, e acima daquele lago de fogo trêmulo o firmamento tomara um tom de jade, insondável e intenso. Lucano deixou a colunata e voltou para o palácio, caminhando sem rumor sobre o caminho apedregulhado.

Franziu então as sobrancelhas. Não havia janelas dando para aquele lado da colina e, em conseqüência, ela era despida e amarela, cheia de saliências sulfurosas. Mesmo a luz que estava começando a aparecer ali era de uma tonalidade limão, como o deserto, e o ar que dela se levantava mostrava-se entorpecido e quente. Lucano passara, instantaneamente, da beleza para a fealdade. Teve consciência, pela primeira vez, de estar cansado, e seus olhos arderam. Desceu um trecho da colina, sentindo o desmoronamento da terra amarela e seca sob suas sandálias, ouvindo o retinir dos pedregulhos que saltavam sob seu passo. Ali, tudo era desolado, e a desolação fora criada pelo homem.

Sentou-se numa das saliências, suspirando e esfregando os olhos.

Fixou-os, depois, na ondulação dos montes vizinhos, que se iam iluminando de momento a momento. Dentro de alguns minutos o sol saltaria sobre o monte que ficava mais para leste, como um guerreiro em armadura de ouro.

Ouviu, então, um ruído e um rolar de pedras e, baixando os olhos, deparou com um cão amarelo, da própria cor da terra. O cão, vendo-lhe o olhar, parou e olhou também para ele. Era um animal de tamanho médio, e cada pêlo de seu bonito pelame crespo brilhava no ar agudo e despido. Havia-lhe algo de estranho e sinuoso, algo de selvagem e tímido, muito prudente. Sua cabeça rasa adiantava-se, olfateando, e seus olhos luziam como rubis selvagens. Lucano sentiu-lhe a desconfiança e sorriu. Não se tratava de um cachorro de alta raça, elegantemente tratado e mimado, alimentado com acepipes das mesas patrícias. Aparentemente, fora maltratado, já que olhava irado para Lucano e o médico podia ver-lhe o rápido movimento das costelas, pois que ele arquejava um pouco.

O médico era muitíssimo amigo de animais. Assobiou de leve, estendeu a mão e estalou os dedos. O cão saltou para trás alguns passos, sem retirar dele seus olhos selvagens. Então, de repente, ficou inteiramente imóvel, a cabeça ainda avançada, os olhos fixos nele, como que espantados. Atrás dele havia uma moita de arbustos empoeirados, ressecada pelo pó amarelo. Lucano sorriu ao ver uma ninhada de quatro filhotes, meio crescidos, saindo dali, gemente, e juntando-se em torno do cão maior que, ao que parecia, era a mãe deles.

- Vem, murmurou Lucano, estendendo a mão e estalando os dedos para tranqüilizá-los. A cadela ergueu as orelhas, e de sua garganta veio como que uma interrogação esperançosa. Então, sua boca abriu-se mostrando os dentes, num sorriso quase humano de alegria e afeição, e ela saltou para Lucano, subindo a ladeira e atirando-se, malcheirosa, pungente e empoeirada, contra o peito dele. As patas de unhas agudas plantaram-se nos ombros do médico e o animal farejou-lhe o pescoço e o rosto, lambendo-lhe depois as faces em beijos frenéticos. Ele não se sentiu revoltado pelo seu cheiro de carniça. Manteve-a nos braços e falou com ela como um pai. Pobre criatura! Lembrava-se que Deus abençoara os animais da terra, bem antes de ter criado o homem. O coração selvagem batia contra o de Lucano como num anelo e num amor febris. Os filhotes subiram desconfiadamente a ladeira, observaram estupefatos o que fazia sua mãe e examinaram Lucano, cheirando-lhe os tornozelos. Ele continuava a afagar a mãe e a falar com ela, e o animal a ele se agarrava como se desejasse fundir-se em seu corpo. De sua garganta vinha um sussurro inefável de desolação e suplica.

Como os animais eram consoladores! Nunca se mostravam maus e viviam sem hipocrisia, de acordo com suas naturezas. Caçavam, não por prazer, e sim para conseguir alimento. Tinham inocência selvagem, adorável espírito brincalhão e sua lealdade era segura e sem malícia. Os gregos declaravam que eles não tinham almas. Mas aquilo, com certeza não era verdade. Tinham almas de crianças, simples e sem astúcia e mesmo suas paixões eram infantis e não-corruptas, como as paixões dos homens. Conheceriam Deus? Quem poderia responder tal coisa com segurança? Incapazes de virtude, eram, portanto, sem verdadeira culpa. Mesmo o tigre audacioso, o leão terrível, o pesado elefante, as serpentes multicoloridas eram incapazes da verdadeira perversidade, da qual o homem era capaz. Portanto, por que Deus não os amaria?

A cadela enrijeceu de súbito nos braços de Lucano. Ergueu a cabeça, tensamente, rosnou, afastou-se bruscamente dele, saltou para o chão com um uivo que pareceu ao médico, de repente, muito familiar. Ouvira-o na Síria, nas redondezas de Alexandria, nas colinas Prateadas da Grécia. Ficou atônito. A cadela uivou para seus filhotes, que saltaram dos pés de Lucano, rodearam a mãe e fugiram com ela para dentro das moitas, onde desapareceram instantaneamente. Eram chacais, o mais odiado e mais odioso dos animais, os transmissores da raiva, os comedores de carniça, os desprezados pelos homens e pelos animais! Lucano jamais os vira antes, pois eram criaturas da noite, os espoliadores. Olhou para suas mãos, que realmente tinham acariciado chacais, e para seus pés, sobre os quais se haviam deitado chacais, e sentiu-se tomado de estonteante estupefação, pois sabia que eles tanto odiavam quanto temiam o homem e o evitavam como a própria morte.

Olhou para trás, e lá em cima da colina, amarela, quente e empoeirada, viu um grupo de soldados petrificados, entre eles Plócio e Josué, o médico, bem como um homem que ele jamais vira, mas no qual reconheceu um romano. O homem vestia uma toga branca, tinha rosto pálido e severo e nariz aquilino. Era calvo, e só possuía, em torno das orelhas, uma franja rala de cabelos escuros. Seus braços nus traziam braceletes de ouro e anéis brilhavam em seus dedos, ao primeiro sol. E todos aqueles homens estavam absolutamente silenciosos, com expressões apavoradas. Lucano levantou-se. Achava ligeiramente tolo aquilo de ser encontrado naquela horrível ladeira. Começou a subir. Então Plócio deu um passo para a frente, com um aspecto estranho.

- Eram chacais, Lucano, disse em tom esquisito, olhando profundamente para os olhos do outro homem.

- Sim, eu sei disse Lucano, sorrindo. - Preciso lavar já as mãos. Eles são portadores de raiva.

A expressão estranha de Plócio fez-se mais acentuada.

- Eles ficaram sentados em derredor de ti disse. - E a mãe beijou-te. Jamais ouvi falar de uma coisa destas. - Estremeceu, e ainda olhava para Lucano com olhos maravilhados.

- Eu não percebi logo de início que se tratava de chacais - falou Lucano, como que compelido a desculpar-se. Então, viu que havia lágrimas nos olhos do soldado. Teve um sobressalto. - Prisco!- exclamou. - Prisco!

Plócio sorriu, um sorriso peculiar.

- Não, ele não está morto Ele ... está muito melhor.

Parecia abstraído, enquanto acabavam de subir juntos a ladeira.

Então Josué, destacando-se do grupo, desceu ao encontro deles. Seus olhos buliçosos estavam úmidos e ele estendeu a mão a Lucano, ajudando-o a subir a montanha, em silêncio. O estranho esperava, e olhava com curiosidade para o médico.

Josué disse uma coisa misteriosa.

- Não me espanto dos chacais. Não me espanto de não terem fugido dele, de o terem beijado.

- Nem eu, falou Plócio.

Lucano riu.

- Pobres criaturas -, disse. Desejava ir ver, imediatamente se seu irmão precisava de assistência. Mas agora estava face a face com o estranho. Plócio dirigiu-se a ele:

- Nobre Pôncio Pilatos, este é nosso querido e bem-amado médico Lucano, filho de Diodoro Cirino.

Pôncio Pilatos, então o altaneiro procurador de Israel, fez uma coisa sem precedentes. Levantou os braços, descansou-os nos ombros de Lucano e beijou-lhe o rosto. Os outros observavam, estupefatos, pois aquele homem frio e imperioso, habituado a adulações, jamais falava, a não ser de maneira impessoal, rapidamente, fosse com quem fosse, como se homem algum fosse digno de sua consideração.

E Lucano pensou: Aqui está o homem que tentou salvar Jesus, mas a plebe do mercado, assassina como sempre, não consentiu que ele o fizesse. Também teria ele se emocionado, como Prisco? Pilatos sorria-lhe, os pálidos sulcos de suas faces se aprofundando.

- Ouvi César falar muito de ti disse ele. - Uma vez César me disse: "Um dia encontrei um homem justo, incorrupto e bom, sem artifício nem avidez. Seu nome é Lucano, e ele é médico. Recordo-me dele nos meus momentos mais tenebrosos.”.

Lucano corou, embaraçado.

- César me honra muito disse mas isto não é verdade. Eu fui o mais cego dos homens, o mais amargo, o mais irredutível e sem mérito.

Pilatos tomou-lhe a mão e examinou o anel de Tibério.

- Há muito tempo o possuis, mas nunca o enviaste a César e nunca lhe pediste nada. Só isso já é maravilhoso. - Examinou, então, o anel de Diodoro. - Usas este anel com dignidade, Lucano. - Suspirou: - Mandei minha esposa para Roma, pois está doente do espírito. - Parou e depois recomeçou: - Mas tive um sonho, duas noites atrás, dizendo-me que devia voltar para cá. Acredito em sonhos. Minha mulher teve um, dos mais estranhos, bem antes, e eu devia tê-la ouvido mas não ouvi.

- O sonho falou a verdade, nobre Pilatos disse Josué.

Tomou o braço de Lucano, delicadamente: - Vem, vamos ver teu irmão, que deseja falar contigo.

A ansiedade de Lucano retornou e ele esqueceu de maravilhar-se ante as palavras de Pilatos.

- Ele dormiu durante a noite? Está sentindo dores?

- Dormiu durante a noite e não está sentindo dores falou Josué, num tom ambíguo. Olhou longamente para os olhos de Lucano, como se ali procurasse algo.

Lucano começou a andar depressa e agora somente o médico judeu o acompanhava, o qual disse, enquanto subiam os degraus de mármore branco que levavam à casa:

- Nícias está junto de teu irmão. Não fala, e chora.

- Por quê? exclamou Lucano, tomado de pressentimentos funestos.

- Tu verás por quê. Eu te digo, teu irmão está muito melhor.

Lucano começou a correr, e Josué bufava atrás dele, exclamando:

- Já não somos jovens e eu não sou um atleta como tu, meu querido Lucano!

Mas este corria como o vento, através dos brilhantes aposentos iluminados pelo sol, e chegou ao apartamento de Prisco. Quando um escravo abriu a porta, Lucano atirou-a para trás, precipitadamente, meteu-se pela antecâmara e depois no dormitório. Correu para o leito de Prisco, esperando ver ali um cadáver, mas viu, para sua completa estupefação, que Prisco estava sentado, recostado em seus travesseiros, comendo com prazer sua primeira refeição. Ao lado dele, sentado em silêncio, estava Nícias, a cabeça baixada para o peito, como que em meditação.

- Bem-vindo sejas, bem-vindo sejas! disse Prisco, pousando uma grande taça de leite de cabra. - Querido irmão Lucano! Tu me ajudaste; dormi como uma criancinha a noite passada e acordei sem dores, apenas esfaimado.

Lucano fixou os olhos nele, estupidificado. O rosto magro de Prisco estava liso e colorido com um rosado levíssimo. Seus olhos fundos irradiavam mocidade. Ele estendeu os braços:

- Eu poderia sair agora mesmo desta cama, pois estou bem! - disse ele. - Olha para mim. Tenho o aspecto de um doente? Mas preciso ficar aqui, é o que esses doidos médicos dizem, quando a saúde lateja, alta e forte, em meu corpo!

Nícias levantou-se e fez uma profunda reverência a Lucano.

- Ó Esculápio! murmurou o médico. - Realizaste um milagre. - Apanhou a mão frouxa de Lucano e beijou-a, humildemente. Tinha os olhos cheios de lágrimas.

- Eu nada fiz, a não ser rezar por ele gaguejou Lucano.

- Isto foi o bastante, disse Nícias. - Deus nega alguma coisa a seus irmãos?

- Isso foi o bastante disse Josué. - Deus nega alguma coisa aos Seus escolhidos?

O peito de Prisco ergueu-se num profundo soluço seco e ele encostou a cabeça no braço do irmão.

- Em meus sonhos disseram-me que quando meu irmão chegasse ele me libertaria da dor.

Lucano levou a mão à fronte, esfregando-a, estonteado:

- Não compreendo murmurou. Então, afastou num repelão as cobertas de sobre o corpo do irmão, apalpou-lhe o estômago, o fígado e as glândulas. Os funestos tumores tinham desaparecido. A carne estava delgada e emaciada, mas firme, e o pulso mostrava-se forte.

Lucano endireitou o corpo:

- Não é possível! exclamou ele. Olhou para Nícias e Josué e seus olhos imploravam. - Estávamos enganados!

- Não, disseram eles, sorrindo-lhe.

- Através de ti Deus realizou Seu milagre, para que nós o testemunhássemos disse Josué. - Ele curava homens, tocando-os ou com a Sua palavra; assim curou teu irmão, a teu pedido. Bem-aventurado és tu, Lucano, pois és um dos Seus, e vimos com nossos olhos e ouvimos com nossos ouvidos, e glorificamos o Seu Nome.

Lucano sentou-se abruptamente e ficou de olhos fixos à frente.

Depois, tornou a levantar-se e examinou Prisco, minuciosamente. Não havia tumor algum fazendo resistência a seus dedos. O soldado levantava um cacho de uvas e comia-as com satisfação. Os olhos estavam pousados com suavidade em Lucano.

- Eu sabia que tu me podias ajudar repetia ele. – Conhecia minha doença, e ela era mortal. Tu, porém, me curaste.

Lucano sentou-se e desviou o rosto, onde as lágrimas corriam.

Oh! Que me tivesses escolhido, a mim, que Te odiava. exclamava ele, consigo mesmo. Oh! Que condescendestes comigo, quando eu Te rejeitava, através de todos os anos de minha vida! Perdoa-me, Pai, pois eu não sabia o que fazia!

Voltou o rosto para os médicos, e disse:

- Não fui eu quem curou meu irmão, mas apenas Deus, não sou eu quem tem o mérito, mas apenas Deus. Louvado seja Ele, porque é bom e misericordioso, e ouve seus filhos e não os aflige sem razão.

Josué mergulhou os dedos em vinho e traçou a figura de um peixe sobre o mármore da mesa.

- Em grego, o que é isto, se arranjado como anagrama? - perguntou ele a Lucano.

- Cristo, disse Lucano.

- Este é o sinal dos cristãos, falou Josué. - Tu os encontrarás por este sinal.

 

Embora Pôncio Pilatos, um romano de categoria Eqüestre[25], fosse invariavelmente cortês para com Hilell ben Hamram e Arieh ben Eleazar, era evidente, para o supersensível Lucano, que ele não amava os judeus. Aquilo ficou bastante aparente na expressão de alívio que teve quando ambos os jovens judeus partiram para Jerusalém a fim de reunir notícias para Lucano, sobre o paradeiro dos cristãos que se haviam espalhado. Pilatos disse a Lucano:

- Sou amigo de Herodes, mas ele é grego pela metade. Quanto aos judeus, não os compreendo. Quando construí um aqueduto, muito necessário para uso deles, e não havia dinheiro no Tesouro, confisquei os fundos do Templo. Os deuses, mesmo esse Deus Judeu, devem curvar-se diante das necessidades humanas. Pois, ao que parecia, com aquela confiscação eu cometia o mais vil dos crimes. Houve levantes, que fui obrigado a abafar asperamente, e muitos morreram.

Nós, romanos, aceitamos nossos deuses com realismo, e também com alguma ironia. Mas sorri sarcasticamente a um Deus onipresente e judeus se atirarão à tua garganta, mesmo que sejam teus amigos! Eles não gracejam com o seu Deus, como gracejamos, civilizadamente, com os nossos. Sua Lei está acima de qualquer sensata lei humana! Tenho dez anos de convivência com judeus e estou desesperadamente cansado de seu fanatismo, de sua devoção ao seu Deus. Falam Dele, discutem por causa Dele, estão cheios de seitas onde mantêm suas diferenças de opinião.

“Vamos tomar os judeus intelectualmente continuou Pilatos impaciente”. Discutem eles as filosofias do mundo, a história, as artes, as ciências? Gostam de boatos? Não! Eles são eruditos.

Entretanto, juro-te, meu bom Lucano, que suas discussões se centralizam quase que no que um de seus comentaristas particulares quer dizer quando interpreta a mínima Lei de Deus! São loucos, totalmente loucos. Desprezam nossos deuses, chamam-nos maus espíritos, e a nós denunciam como adoradores de ídolos. Não tenho reverência particular pelos nossos deuses, mas sinto-me pessoalmente insultado, pois trata-se de uma afronta feita a Roma. Se o Deus deles é tão Poderoso, por que não os liberta de nossa mão? Eu, com um sorriso, tenho feito esta observação aos sacerdotes e eles me olham com olhos furiosos, conservando-se em silêncio.

Lucano ouvia e nada dizia. Pilatos tornou a suspirar, repuxando, inquieto, as dobras de sua toga.

- Eu tenho pedido a Tibério que me chame de volta a Roma, e espero ser atendido. Minha pobre esposa, Prócula, agora está lá, quase fora de si. Teve um sonho sobre o Homem cuja execução ordenei.

Um rabi judeu ou um mestre, que estava levantando o povo contra Roma. Não o considerei culpado, mas Herodes estava frenético. Ele e os altos sacerdotes asseguraram-me solenemente que o rabi incitava o povo, que havia muitas testemunhas de outra seita judaica, os fariseus, que são homens de respeitabilidade. Eu próprio acredito que Ele estava apenas zombando dos sacerdotes, aos quais ofendeu com alguma liberdade em Sua própria interpretação da Lei. Que Lei, a deles!

Estão realmente dispostos a morrer por seu Deus, a abandonar tudo por Ele, e isso é uma coisa que causa loucura.

- Não te preocupes disse Lucano, calmamente. – Estava nas profecias, desde o início dos tempos, que Ele morreria assim. Tu foste apenas Seu instrumento.

Pilatos fixou os olhos nele, curioso. Depois, sacudiu a cabeça.

- Meu querido Lucano, tu não deves ouvir esses judeus. Esta não passa de mais uma das suas numerosas e rixentas seitas, esses homens que se dão o nome de cristãos. Há apenas duas semanas fui forçado a ordenar o massacre de alguns galileus que, quando ofereciam sacrifícios, pediam a seu Deus que destruísse Roma e libertasse dela a terra santa. Temos nossa própria lei e ela deve ser mantida.

- Um massacre? - Lucano olhou para ele com horror.

Pilatos ergueu os ombros.

- Já te disse que esses judeus são loucos. E tresandam insurreição. Acredito, inteiramente, que aquele seu rabi, que eu tive de mandar executar, lançou um encantamento sobre minha esposa e por isso ela teve aquele sonho.

- E agora, que há com os cristãos? indagou Lucano, em voz baixa.

Pilatos mexeu-se, encolerizado, em sua cadeira esculpida.

- Eu os exilei de toda a Judéia. O povo olha carrancudo para mim, em Jerusalém, por causa de sua nova seita e de seu chefe executado, e sacode os punhos às minhas costas e profetiza-me coisas más. Dei ordens para que seus seguidores, que agora se chamam cristãos, declarando-O Cristo, o esperado através dos tempos, sejam caçados, aprisionados e destruídos. São um perigo para Roma.

Lucano levantou-se e foi até as colunas, e através delas olhou para Cesaréia, rebrilhante ao sol ardente. e para além de Cesaréia, para o mar purpúreo, com suas enceguecedoras cristas de luz. O porto estava muito movimentado. Mas aqui, como nos jardins lá embaixo, tudo era frescor, e as abelhas zumbiam sobre as flores, enquanto as fontes dançavam.

- É um alívio disse Pilatos, bebendo um pouco de vinho, e depois esfregando fatigadamente as mãos sobre o rosto marcado de rugas falar com um homem sensato, que não seja um judeu. Ouvi falar do milagre que realizaste a favor de teu irmão, a quem muito carinhosamente quero. Estou doente, Lucano, e minha carne pesa sobre meu corpo. Minha alma está agitada, embora não consiga saber qual a razão disso. Que valem os deuses para os homens? É presunçoso pensar de outra maneira. Além disso, sinto-me certo de que Apolo tocou-te, deu-te o seu misterioso poder de curar.

- Queres que eu te cure? perguntou Lucano, sem se voltar para ele.

Pilatos riu, meio encabulado.

- Eu te digo que já não durmo. Não rias de mim! Mas vejo o rosto daquele rabi, que me pareceu um homem delicado, sem maldade particular, a não ser o fato de incitar o povo. Terá Ele lançado um encantamento também sobre mim, quando olhei para o Seu rosto?

Lucano voltou para junto de Pilatos, Sentou-se ao lado dele e contemplou-o com compaixão:

- Eu te darei uma poção, nobre Pilatos, que te fará dormir esta noite. Alegra-me saber que vais voltar para Roma, pois algo aqui te oprime.

- É isso mesmo suspirou o procurador. Depois, fez-se um pouco mais animado, e continuou: - Mas chega de judeus e de seu Messias! Falemos de assuntos mais importantes e mais eruditos. Sabes há quanto tempo não tenho uma conversa inteligente com alguém?

Estive estudando a teoria aristotélica da origem espiritual de todas as coisas. Aquela teoria diverte-me, pois nossos deuses não são tudo quanto há de menos espiritual, embora sejam imortais? Os romanos, que são dualistas, preferem a teoria dos epicuristas, com sua explicação mecânica do universo. Sua teoria de Demócrito[26], a teoria atômica da origem de toda a matéria, é mais realística e atrai a mente racional. Nossa virtus romana é uma qualidade moral e social. Recordarás que nosso Imperador Augusto disse: "Quem ousará comparar a estes poderosos aquedutos as ociosas pirâmides, ou os famosos, mais inúteis, trabalhos dos gregos?" Concordo com ele. Como romano, prefiro a nossa virtus ao incompreensível aretê dos gregos, que procuram e exigem uma excelência mental e de espírito que fica para além da capacidade humana.

Lucano sorria, abstraidamente:

- Devo discordar, pois sou grego. O homem é mais do que um animal. Os romanos são realmente materialistas, epicuristas, e assim inventaram a democracia, que leva consigo a semente da destruição.

Os olhos exaustos de Pilatos faiscaram com interesse novo. Entusiasmou-se.

- Mas dizem que foram os gregos que inventaram a democracia, meu caro amigo!

Lucano sacudiu a cabeça:

- Não a espécie de democracia dos romanos. Era a democracia da mente, a reunião ilimitada de homens de intelecto e não a simples e grosseira reunião de corpos físicos da turba para seu próprio interesse e para exploração dos que se lhe avantajam intelectualmente. Não concordo com Platão, mas tu recordas suas advertências de que a cidade caíra quando um homem de bronze lhe guardar as portas. O mundo romano está guardado por homens de bronze. Muito depois de Roma ter caído, o aretê dos gregos continuará a iluminar a mente dos homens, porque as coisas do espírito são mais importantes para ele do que as coisas do corpo.

Pilatos olhava para ele, incrédulo:

- Não estás falando sério, estás?

- Estou, com toda a certeza. Entretanto, não temas por tua Roma e Lucano sorria ambiguamente. - Haverá sempre nações materialistas seguindo-a através dos tempos, e sua virtus continuará a dominá-las: a crença de que aquedutos e departamentos sanitários, edifícios públicos e pão, ciência, circos e estradas podem satisfazer os anseios da alma humana. A luta iniciou-se séculos atrás entre homens de mentalidade que reverenciam o espírito humano e homens grosseiros que não só declaram que o espírito não existe como afirmam que esgotos, encanamentos, negócios prósperos e comércio são o único significado da vida.

Pôncio refletia. O brilho pálido do constrangimento estava refletido em seu rosto. Bebeu um pouco mais de vinho, e disse:

- Não sou um obtuso, um homem completamente materialista. Acredito na mente humana, embora ela pereça com o corpo. Acredito mais no bem-estar físico do povo.

Seu constrangimento crescia. As feições finas enrijeceram, enquanto ele pensava.

- Não posso afastar aquele Homem da minha mente disse, desassossegado, como se ele e Lucano não tivessem falado de outra coisa. - Tuas poções serão recebidas por mim com alegria, Lucano.

- Olhou de esguelha para o médico. - A cura de teu irmão, feita por ti, não se enquadra, certamente, na maneira formal e aceita dos médicos inteligentes. Podes curar-me sem poções, Lucano.

Lucano debruçou-se para ele, e havia um faiscar de luz tão vívido em seu rosto que Pôncio encolheu-se supersticiosamente e tateou um amuleto, que trazia sob a túnica.

- Sim! exclamou Lucano, sentindo em si um poder arrebatador. Estendeu ao elegante romano o anel de Tibério. – Deves cancelar o banimento dos cristãos, imediatamente!

- Estás louco! exclamou Pôncio, fitando os olhos no magnífico anel. - Eu te digo, tu não conheces esses judeus enlouquecidos pela idéia de Deus! Nem sabes quem se tornou Tibério. Agora, é um homem temível e selvagem. Deu-me apenas uma ordem: manter ordem na Judéia. Eu te digo: ele é apavorante!

- A ralé corrompeu-o, tal como ele disse que aconteceria - falou Lucano, severamente, ainda oferecendo o anel.

- Se eu cancelasse o banimento dos cristãos judeus, então haveria de novo desordem, levantes, e Tibério me trataria com severidade.

Que representa essa gente para ti, um grego, o filho adotivo de um nobre romano?

- Contar-te, exigiria toda uma existência disse Lucano. - Mas sinto que algo doloroso está sobre ti. Disseste que aquele Jesus obceca teus sonhos e que não te deixa em paz. Achas que terás paz enquanto não abandonares a perseguição a Seu povo e a Seus seguidores? Eu te digo que não! - Tirou o anel do dedo e apertou-o contra a palma da mão de Pilatos. Envia isto a César. Escreve-lhe que eu te pedi que tuas ordens contra os judeus fossem levantadas.

Dize-lhe que te supliquei, e que tu, diante deste anel, não tinhas o direito de recusar minha solicitação.

Pilatos, amedrontado, girou reverentemente o anel na palma da mão. Estava perplexo. E disse:

- Se esses judeus promoverem novos levantes e eu for acusado por isso... - Hesitou, e depois disse: - Entretanto, esse é o teu pedido, embora incompreensível para mim! E quem sou eu para ousar desobedecer os desejos de César, implícitos neste maravilhoso anel?

Pôs o anel na bolsa e o alívio levou-o a diminuir a tensão, do mesmo modo que um doente se sente aliviado depois de ter tomado um remédio excelente.

- Francamente, disse ele, não me sinto feliz a propósito das ordens que dei contra os cristãos. Não gosto dessas discussões sobre religião, que é coisa insignificante. Os deuses romanos riem. O Deus judeu jamais ri.

Endireitou o corpo:

- Já estou aliviado! Minha depressão está desaparecendo, bem como a minha melancolia. E, por antecipação, estou gozando a decepção de Herodes.

Falava de Herodes com maliciosa alegria.

- Houve um judeu miserável que foi a Jerusalém. Chamavam-no João, o Batista, e ele gritava ser o mensageiro que vinha antes de Deus. Gritava estar anunciando o Messias judeu. Herodes ouviu falar naquilo, seu espírito judaico vibrou, excitado, embora ele seja tudo menos religioso, sendo antes um realista. Interrogou João. Ao que parece, houve caloroso desentendimento entre ambos, entre Herodes, o culto tetrarca de Jerusalém, e aquele selvagem e iletrado habitante do deserto! Por que Herodes chegou sequer a interrogá-lo está além da minha compreensão, a não ser por ter ele superstições judaicas na cabeça. Seja como for, mandou destruir João prudentemente. Eu estava em Roma, nesta ocasião, e Herodes, até hoje, recusa-se a discutir João, o que me diverte. Compreendi, entretanto, que Herodes ficou desapontado, mais tarde, com Jesus, embora também a ele interrogasse. Seu desapontamento alcançou alturas de raiva frenética. Sabes o que penso? Herodes esperara, na parte judaica de sua alma, que ali realmente estivesse o Messias judeu, vindo para libertar a Judéia das mãos de Roma e levantar Seu povo como reis sobre todo o mundo!

Pilatos estava agora em muito boa disposição. Sentia a saúde voltar a seu corpo, a tranqüilidade à sua alma. Serviu uma taça de vinho a Lucano e fez-lhe um brinde.

- Foi um belo dia aquele em que nos visitaste, Lucano disse. - E agora sei por que tive aquele sonho.

- Também eu sei, falou Lucano, com um sorriso enigmático.

Hilell ben Hamram escreveu a Lucano, de Jerusalém.

“Encontrei Maria, a mãe de Jesus”. Ela mora fora das portas de Jerusalém, com um jovem chamado João, que é como seu filho. Ouvi dizer que há um Pedro, o seguidor de Jesus de Nazaré, em Jopa, escondido. Verme.

“Ficarás contente ao saber, meu querido Lucano, que Arieh bem Eleazar viu com bons olhos minha linda irmã, Lea”. Há muitas festividades aqui, pois Arieh recebeu o patrimônio de seu pai. Vem ter conosco, vem ser feliz conosco.

 

Lucano permaneceu na casa de Pilatos até ter certeza de que seu irmão estava completamente restabelecido. A saúde de Prisco voltava rapidamente; o corpo emaciado consumia alimento em proporções enormes.

O rosto tomou sua velha e risonha tonalidade bronzeada. Estava resplandecente de entusiasmo. Ele e Plócio esgrimiam no pórtico externo o jovem não se furtava àqueles jogos atléticos. Lucano sentia-se repleto de felicidade. Prisco voltaria à sua propriedade e à sua família, e Íris se regozijara.

- Não tenho muita confiança em meus vigilantes dizia Prisco, sombriamente. - Ficarei lá pelo menos um ano, se César permitir, antes de me aventurar em outra campanha.

Tentou persuadir Lucano a voltar com ele, mas este sacudiu a cabeça:

- Tenho muito que fazer aqui disse. E não explicou o quê, embora Prisco e Plócio ficassem a olhar, curiosos, para seu rosto.

Quando Prisco, um dia, insistiu para que Lucano pelo menos voltasse a Roma com ele por um pequeno espaço de tempo, o irmão mudou de assunto. Ele, Prisco e Plócio estavam gozando o ar brilhante da tarde, frio e vivo naquela montanha. Lucano levantou-se e disse, rindo:

- Estou cansado de ver-vos lutar, gladiadores desajeitados.

Atirou para o lado o manto e ficou de pé, vestido apenas com a túnica, e flexionou os músculos. Embora muitos fios grisalhos se mesclassem ao dourado de seus cabelos e houvesse linhas ascéticas em seu rosto grego, no corpo ele era um jovem. Prisco vaiou-o e dirigiu-se para ele na posição do lutador, enquanto Plócio observava, sorrindo.

O jovem se aproximou de Lucano e estendeu o braço para agarrá-lo. O médico esperou até que os dedos apertassem seu ombro, então curvou-se rapidamente para trás e Prisco voou por cima de seu ombro e foi cair duramente na relva. Plócio estava estupefato e nem mesmo podia aplaudir. Prisco ficara deitado no chão, pestanejando e sacudindo a cabeça enquanto Lucano ria.

- Um corisco me atirou aqui! exclamou Prisco, levantando-se. Correu de novo para Lucano e este, quase sem se mover, atirou-o mais uma vez ao chão. Aquilo excitou Plócio, que era vigoroso e robusto. Pediu uma luta com Lucano e voou também pelos ares. Ambos estavam agora muito excitados.

- É muito simples explicou Lucano, como quem se desculpa. - Nem vos posso dizer quanto isto me ajudou a manter-me em vantagem quando atacado por desordeiros e ladrões, nas cidades. Aprendi a lutar assim com o meu professor chinês, em Alexandria, sob juramento de que manteria o segredo.

Contudo, podia revelar o segredo do arremesso do disco, o do boxe, o da esgrima, e do salto em distância. Chegou, mesmo, a derrotar na esgrima o habilíssimo Plócio.

- Ufa! exclamou este, enxugando o suor do rosto com seu grande braço. - Tu pareces um rapazinho!

- Não se trata de força disse Lucano, que se estava divertindo. - Trata-se de usar a força habilmente, gastando a menor quantidade possível dela.

Prisco e Plócio queriam levá-lo ao circo próximo a Cesaréia, mas Lucano não gostava dos jogos nem da brutalidade dos gladiadores.

Quando Pilatos anunciou que devia voltar para Jerusalém e se ofereceu para levar o médico em sua companhia, Lucano aceitou animadamente. Chegara a ocasião de partir. Abraçou o desconsolado Prisco e deu-lhe recados amorosos para a família, em Roma. Então, acompanhando Pilatos e Plócio, despediu-se de Cesaréia e de Josué, o médico, que ele viera a amar não apenas como a um colega, mas como a um irmão.

Plócio insistiu para que Lucano visitasse o templo de Zeus e Apolo da cidade, quando a caravana de cavalos e bigas deixou a montanha.

Herodes construíra o templo, imenso e magnífico, para seu amigo Pilatos, e o procurador orgulhava-se dele. Comprida colunata dupla, de colunas gigantescas, conduzia ao templo, alternando o mármore branco com pórfiro vermelho-escuro, o que dava ao todo uma aparência exótica. O forro alto da colunata era pintado em afresco, com deuses e deusas às cambalhotas, centauros, ninfas, dríades e náiades, satiros[27] e Pãs, seus membros lisos e voluptuosos entrelaçados, seus rostos risonhos e maliciosos. O ar brilhante dava-lhes aparência de movimento e vida. O piso era feito de mármore multicolorido, em círculos vermelhos e azuis sobre fundo branco. Mas o templo alto, largo e imponente, mostrava-se estranhamente austero, e ali ficava revelado o inquieto espírito grego de Herodes, pois não havia afresco e nem baixos-relevos nas reluzentes paredes brancas, bem como nos forros. Duas estátuas enormes defrontavam-se, em posição sentada, três vezes maiores do que o tamanho natural de um homem, Zeus, com sua barba, feito em mármore branco, e Apolo, em mármore vermelho. Olhavam um para o outro, com rostos frios e sobrenaturais, as mãos sobre os joelhos como que em desafio. Diante deles havia altares, onde o incenso fumegava. E havia um altar raso, no qual brilhava uma lâmpada de ouro e onde havia a inscrição: "Ao Deus Desconhecido.”.

Lucano ficou parado, meditativo, diante daquele altar despido de ornamentos, que a lâmpada iluminava. Pilatos colocou um dedo nos lábios, pensativo, e ficou a olhar para a pedra grande e simples. Plócio deixou cair algumas moedas numa caixa de bronze que estava aos pés de Zeus. Cada respiração ou movimento voltava em eco das paredes e do forro, e até o leve silvar da lâmpada podia ser ouvido. Lucano virou a cabeça e olhou para a poderosa figura de Zeus, com sua barba, suas feições severas, seus olhos profundos. O grego recordou-se de Moisés e sorriu, tristemente, ao pensar em Herodes, homem que se despedaçava entre dois mundos, entre duas religiões. O rosto de Apolo, embora divagante, tinha uma expressão mais inquieta: as órbitas cavadas davam um aspecto de inconstância às suas feições, bem como de desafio. Era como se mesmo na escultura de suas vestes, no posicionamento de sua cabeça tremenda, ele estivesse para erguer-se e solicitar uma luta a Zeus, pelo controle da humanidade. E Zeus, numa atitude de repouso olímpico, ali estava em divina segurança e grandeza. Lucano teve a certeza de que, naquela luz mutável e radiante, um sorriso ligeiro pairava nos lábios barbados do deus.

O grupo tomou um caminho estreito, próximo ao velho mar, cuja coloração cerúlea era tal que seduzia os olhos. Muito calmo, o mar jazia como um piso azul estendido até o horizonte, no qual os navios, suas velas brancas flutuando, deslizassem majestosamente. Os cavalos apressaram o passo na estrada, pois até Jerusalém a caminhada era longa. O ar mostrava-se límpido e agradável, embora a poeira amarela se levantasse em nuvens, pois ali o chão era arenoso. Para a esquerda dos viajantes levantavam-se as montanhas, baixas e retorcidas, algumas bronzeadas e nuas sob o sol incandescente, outras marcadas com terraços curvos de pedra, fechando trechos de terra cultivada, esmeraldina e fértil. Olivais, que pareciam de prata velha, atiravam para cima seus galhos retorcidos; carneiros pastavam ou dormiam sob aquelas árvores, deixando seus excrementos para fecundá-las. Moitas de tamareiras subiam pelas encostas, e entre suas frondes poeirentas era possível enxergar o ouro quente dos cachos de suas frutas. Vinhedos banhavam-se de sol, nos terraços em degraus, e árvores frutíferas recortavam-se contra as pedras amarelas. Ciprestes formavam grupos em sentinela, escuros e vigilantes, suas lanças sem tremores. Nas encostas mais baixas das montanhas, frescas e luxuriantes, o gado pastava e pequenas nascentes surgiam da terra, borbulhando como o mercúrio. Crianças guardavam, preguiçosamente, aquele gado. Um bando de gansos comia o grão espalhado e seus componentes brigavam entre si. Aqui e ali Uma casa baixa aparecia dentro de seus recortes verdes de chão, circundada por vinhas e flores. Mulheres ficavam, à porta, sentadas nos degraus, e levantavam a cabeça para ver o grupo de viajantes com o seu estrépito. Alguns cães ladravam. A manhã era nova e os pássaros estavam silenciosos, no calor.

Lucano estava em paz naquela pacífica região rural, o mar à direita, a montanha à esquerda. Ia sentado na biga de Plócio, os homens montados cavalgavam na frente, levando os fasces, as águias e os estandartes de Roma, suas espadas largas à cinta, os elmos reluzindo ao sol. Plócio começou a cantar cantigas libertinas de soldados.

Pôncio Pilatos ia em sua própria biga, esculpida em bronze, palidamente silencioso, a cabeça baixa, como que pensando. Um escravo mantinha-se de pé, ao lado dele, segurando um pára-sol de seda purpurina. Camponeses descalços, vestidos com roupas suarentas, em preto, laranja-escuro ou azul-escuro, caminhavam ao longo da estrada, levando cestas de frutas na cabeça, ou legumes em outras cestas que carregavam nos braços. Moviam-se para um lado, silenciosamente, para deixar passar o grupo importante, e ficavam a olhá-lo, depois, com olhos violentos e ressentidos. Um homem ia espicaçando um burro obstinado, que seguia as bigas com zurros escarnecedores, como uma fieira de rudes blasfêmias. E o camponês sorria, sombriamente.

Espalhadas aqui e ali, estavam as fortalezas de pedra de Roma, nos telhados das quais havia soldados que faziam sua saudação.

Estandartes pendiam, sonolentamente, no ar quieto e ardente. Um odor forte erguia-se dos pinheiros que os camponeses sangravam para obter resina. Moças fofocavam junto aos poços onde enchiam suas jarras. E aqueles homens olhavam para as bigas e para os cavalheiros com olhos sombrios, de repúdio, as dobras de seus turbantes cheias de poeira iridescente, seus pés morenos descalços e flexíveis. Então, pensou Lucano, isto não é tão pacífico quanto eu pensava. O povo odeia os romanos, essa gente simples da terra, ao contrário de seus irmãos mais sofisticados das cidades, que fazem negócios com o inimigo, e riem e bebem com ele. O grupo parou para comprar figos e tâmaras de um camponês, que, silenciosamente, vendeu-os em grandes folhas verdes, e para beber água de uma nascente fresca e esticar o corpo. Mais tarde, os viajantes sentaram-se num arejado bosque de pinheiros para comer excelente carne fria de aves, de vaca, azeitonas, romãs, língua de cordeiro em conserva e beber vinho.

- Eu detesto viajar queixava-se Pôncio Pilatos, limpando cuidadosamente as mãos num guardanapo branco, de linho. - E, principalmente, nesta terra estrangeira. O vinho é odioso.

Mas o vinho parecia doce, melífluo e suave aos lábios de Lucano.

O rosto de Pilatos mostrava-se avermelhado e ele suspirava. Disse a Lucano, com um olhar afetuoso:

- Dormi como uma criança, graças a ti, meu querido Lucano, e embora às vezes meus pensamentos sejam pesados, já não me sinto deprimido. Mandei a César o anel que te deu, e ele devolverá a ti por um mensageiro.

Continuaram seu caminho. As montanhas ferviam com o calor.

Passaram por aldeolas de casas feitas de barro amarelo, protegidas por moitas de ciprestes escuros. A terra dançava, em ondulações quentes, e o mar faiscava como fogo azul. Aqui e ali as montanhas tomavam curioso aspecto quadrado, sulfuroso e áspero. Paredes brancas, ao longo da estrada, derramavam para fora flores arroxeadas ou cor-de-rosa. Em certo momento ouviram o trovejar brando de uma catarata estreita, numa encosta de montanha. Pequenos vales, de um verde vívido, metiam-se como dedos entre as elevações dos montes.

Aqui, ao longo desta estrada, indo para Jerusalém, vindo de sua terra, Ele deve ter caminhado muitas vezes, pensava Lucano. Ele conheceu esta poeira, estas aldeolas, onde parara para se refrescar, estes ciprestes, estas flores, estes pequeninos prados. Terá Ele sentado naquela pedra que ali está, falando com seus cansados seguidores? Terá Ele levantado a mão para um cacho de tâmaras, naquele grupo de tamareiras que ali está? Terá Ele comido um punhado dessas pequenas azeitonas pretas, pingando salmoura? Terá sorrido a estes carneiros?

Terá fixado os olhos neste mar cintilante? Terá apreciado o sabor de uma romã vermelha? Há um poço ali, como um espelho azul. Terá Ele banhado naquela água Seus pés cansados? E que terá Ele dito, em sua delicadeza, àquelas moças que estão junto da cisterna? E que pensou Ele das fortalezas redondas ou quadradas de Roma, levantadas no chão de Seu país? Deve ter olhado para os estandartes e para os soldados, pensativo.

O ar é aqui tão luminoso e cheio de silêncio, terá Ele ouvido o ruído dos cascos dos cavalos romanos e das rodas das bigas romanas, como eu o ouço agora? Lucano sentia-se cheio de humildade e respeitoso temor.

Fizeram a volta a um flanco de montanha que avançava, e uma planície rasa, onde rebrilhavam papoulas vermelhas ficou à direita deles, mostrando igualmente estranhas flores amarelas, todas ardentes sob o sol. E havia um campo de trigo, ouro puro, levemente recurvo, com ceifeiros ao trabalho, gritando uns para os outros em rústico aramaico. Pararam em sua tarefa durante alguns momentos, para ver o grupo passar, ruidosamente. E seu silêncio era agoureiro. O céu flamejante arqueava-se sobre as montanhas e a luz refazia-se terrível sobre as colinas bronzeadas. Pilatos aprovaria sua nudez evidente, pois não precisavam os romanos dos seus ciprestes para os navios que construíam? O fato de com aquilo fazerem desoladas as colinas não era importante.

Então, ouviram o que lhes pareceu o mais doloroso lamento ou cântico:

- "O Senhor é o meu pastor!" gritavam vozes rudes, em hebraico. - "Nada me faltará. Ele me faz repousar em pastos verdejantes. Leva-me para junto de águas, de descanso...!”.

Ali, a terra era ressecada e fiável e no ar rodopiava a poeira. As montanhas despidas, que iam escurecendo lentamente, levavam a pequena distância suas cabeças sombrias.

- Um funeral judaico disse Plócio, apontando para a direita, com seu chicote.

- Vamos ver pediu Lucano, e Plócio fez parar sua biga imediatamente, pois nada podia negar a Lucano, nem mesmo aquela tolice. Os cavaleiros retardaram o ritmo de sua marcha, depois frearam os animais e esperaram, tomados de curiosidade. A biga de Pôncio Pilatos emparelhou-se com a de Plócio, e ele disse:

- Que aconteceu?

- É um funeral judaico, respondeu Plócio. – Lucano desejava observar.

As sobrancelhas de Pilatos juntaram-se, incrédulas.

Homens barbudos e fatigados, vestidos de preto e cobertos de pó, levavam um ataúde preto, e mulheres, vestidas com roupas de cor cinza, seguiam-nos, chorando. Um deles ia ao lado, cantando o Salmo de Davi, um gorro preto na cabeça, as mãos postas, os olhos levantados para o céu. A cena, naquele lugar poeirento e seco, naquele pobre cemitério e naquele silêncio ardente, era infinitamente dolorosa. Os carpidores não tinham notado que os romanos se haviam detido para observá-los. Estendiam-se sobre a terra crestada, em fileira patética.

O cantor exclamava:

- "Ele refrigera minha alma! Guia-me pelas veredas da justiça por amor de Seu nome! Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque Tu estás comigo, e Tua vara e Teu cajado dão-me coragem!”.

Outros homens reuniam-se a ele, em voz mais fraca; os que levavam o ataúde curvavam-se sob o peso dele, pois eram velhos. As mulheres ergueram vozes agudas e desesperadas, em desgosto, e seguiam os homens batendo no peito. E então Lucano viu que havia um outro homem separado do cortejo, um jovem que não olhava para o céu e sim para o chão, e que não juntava sua voz às vozes dos cantores. Seu rosto estava terrivelmente pétreo. Parecia inconsciente de todas as coisas. Os poucos que estavam presentes não olhavam para ele, a não ser o cantor, o rabi, que relanceava para o jovem olhares de censura e elevava ainda mais sua voz.

"Bondade e misericórdia com certeza me seguirão por todos os dias da minha vida!"

O jovem sobressaltou-se, olhou em torno de si alucinadamente, e levou as mãos ao rosto. Um grito horrível escapou de seus lábios, súbito e agudo, depois ele tornou a ficar imóvel.

Lucano não saberia dizer por que desceu da biga e ficou de pé no chão e por que começou a caminhar em direção ao grupo que realizava o funeral.

- Que acontece com ele? perguntou Pilatos, com certa petulância. Os soldados montados, reunidos em grupo, observavam Lucano, os olhos fixos nele.

O rabi cantor agora murmurava preces e então viu Lucano que se aproximava, vestido com sua leve túnica branca bordada, debruada de ouro, e com o rosto severamente belo, a cabeça amarela. O velho rabi pestanejou, olhando confuso para ele; seus olhos orlados de vermelho estavam injetados pela poeira e pela dor. Então, um ar de fria afronta passou sobre seu rosto moreno e ele viu os outros na estrada, os odiados e arrogantes romanos com seus fasces coroados de águias, suas bigas ricas, seus belos cavalos, seus elmos, suas espadas e seus estandartes.

- Precisas ser aqui um intruso? perguntou o rabi a Lucano.

As feições contorciam-se desesperadamente. Exclamou: - Deixa-nos, vós, romanos, vós, adoradores dos maus espíritos! Vós poluís este lugar onde nossos mortos sagrados dormem sob a terra!

Lucano ergueu a mão e disse, muito delicadamente, em aramaico:

- A paz seja contigo, rabi.

Ouvindo aquela saudação judaica, o rabi ficou silencioso. Olhou bem para o rosto de Lucano e só viu ali amor, bondade e simpatia para com seu sofrimento. Seria aquele homem também um judeu, tocado no coração por aquele pequeno funeral de pobres? Os olhos do rabi encheram-se de lágrimas. Olhou para os que conduziam o ataúde, que tinham parado junto da sepultura recém-aberta na terra ocre.

- A paz seja também contigo disse em voz trêmula o rabi.

Depois, murmurou: - É minha filha, minha única filha, que morreu. Minha pequenina, o cordeirinho da minha velhice e tão bela.

Morreu esta manhã, de parto, e ali está o marido dela, que não se quer conformar e que mal diz Deus em seu coração.

Lucano olhou para o jovem marido, tão abalado, tão silencioso, com as mãos sobre o rosto. Estava de pé, sob a luz cegante, vestido de preto, alto e esbelto, e tão só como apenas aqueles que sofrem a morte do amor podem estar sós.

- Ele está desolado, rabi disse Lucano, que pensou em Rúbria.

O rabi bateu no peito e as lágrimas rolaram pelo rosto sulcado de rugas.

- E não estou eu desolado, senhor, eu, o pai, um viúvo, que não tem senão um neto fraquinho? Ainda assim, louvo a Deus e inclino-me diante de Sua vontade, e sei que Ele dá e que Ele tira. Mas para o marido de Rebeca há esperança, pois é jovem e tem seus pais, e se casará de novo, apesar de seus juramentos, de seus gritos de ódio contra Deus e de todo o seu desespero.

Lucano, porém, não acreditava naquilo, pois na atitude do enlutado esposo ele via agonia ilimitada. Hesitou. Depois, lentamente, aproximou-se do jovem e pôs a mão no ombro dele. O moço não se moveu, mas murmurou, incoerentemente:

- Oh! Se ao menos Ele estivesse aqui, Ele que parou para falar conosco e que fazia erguer os mortos! Ele chamaria minha esposa, e ela se levantaria e voltaria para os meus braços!

Lucano olhou em derredor, na luz ofuscante. Os que carregavam o ataúde o tinham colocado à beira da sepultura, e esperavam. Todos eles fixavam agora o rabi, Lucano e o esposo, na estonteada imobilidade da dor.

Lucano disse ao jovem marido:

- Ele não está morto, mas vivo. Ele não é surdo, mas ouve. Ele não se foi, mas está entre nós.

Sua cabeça começou a girar, no calor e na luz, mas um arrebatamento vagaroso se ia desdobrando em seu coração.

- Vamos até a sepultura disse, tomando o braço do esposo.

O jovem resistia, como se fosse de pedra. Eu te disse falou o rabi que ele não se quer conformar, e não se curva à vontade de Deus. - E o velho chorava alto. - Conforma-te, Davi!

- Tem esperança, Davi! disse Lucano, e de novo puxou o braço do marido. Davi deixou cair as mãos e voltou para Lucano um rosto seco como a própria poeira, abatido e pálido, ainda assim bonito. Seus olhos reluziam como fogo.

- Esperança! gritou, com voz horrenda. - Eu não amava senão minha esposa, e éramos como crianças, juntos, e agora ela nada mais é senão barro e seu espírito fugiu para longe de mim!

Lucano estava tremendo, e não sabia por quê. Tudo pareceu expandir-se e contrair-se diante dele, e todas as coisas tinham uma aura cristalina a seus olhos, e havia nele uma ordem, como uma grande voz imperiosa.

- Vamos até a sepultura repetiu.

Os lábios mordidos de Davi tremiam, seus olhos fixavam-se, vazios de expressão, no rosto de Lucano. E agora não resistia. Caminhava ao lado do grego, a cabeça baixa. Os outros observavam-nos vir, seguidos pelo rabi, que rezava. Então, pararam ao lado da sepultura e do ataúde.

Lucano estava silencioso. Fixou os olhos no ataúde e sentiu subir em si um tumulto, e a ordem mais alta, a tal ponto que seus ouvidos nada mais distinguiam a não ser ela. Então, disse:

- Abri o ataúde, para que eu possa ver a moça.

Os outros ficaram imóveis, absolutamente imóveis, como estátuas brancas e cinzentas, e olharam para Lucano com olhos desvairados e úmidos.

A voz de Lucano ergueu-se, fortemente:

- Abre o ataúde, quero ver a moça!

As lágrimas correram, de repente, pelas faces de Davi. Encostou-se ao ombro de Lucano, e disse, em voz rouca:

- Vós o ouvistes. Eu sou o marido dela. Abri o ataúde. Eu lhe verei o rosto pela última vez.

Os homens barbudos olharam, desalentados, para o rabi, cujos velhos lábios contorciam-se. Então ele disse, com voz fraca:

- Ele é o marido, eu sou apenas o pai. Abri o ataúde, pois antes ele não lhe queria ver o rosto.

Eles abriram o ataúde, forçando sua tampa frágil, coberta de preto. Os pregos guincharam, em protesto. Mas a tampa abriu-se. Lucano inclinou-se para o ataúde e viu, nas profundezas de sua madeira nova, uma jovem, que não teria mais de quinze anos, jazendo, amortalhada, as mãos cruzadas sobre o peito. Lucano ergueu o pano de sobre seu rosto e um odor de ervas e óleos fragrantes ergueu-se no ar aquecido.

Davi tombou de joelhos, soluçando alto, e agarrou o lado do ataúde, olhando para a esposa morta.

A moça era muito bonita. O rosto mostrava-se distante e sereno como se ela dormisse. Tinha a carne pálida e translúcida como alabastro. O cabelo preto derramava-se em torno dela como um manto e os lábios inocentes sorriam de leve. Era impossível acreditar que estivesse morta. Lucano ficou pensativo. Os judeus enterravam seus mortos antes do pôr-do-sol, no dia em que morriam. Curvou-se ainda mais para o ataúde; o seio jovem não tinha respiração, os lábios eram frios e imóveis, as narinas estavam rígidas. O médico sentiu em si um imenso tremor. Seria possível que aquela moça não estivesse morta, mas apenas em estado de catalepsia? Seus olhos de médico estudaram ansiosamente as feições calmas.

Levou a mão ao rosto suave e branco. Estava gelado como o alabastro, mas não rígido. A verdade é que ela morrera naquela mesma manhã e o calor do dia retardara a rigidez. A voz imperiosa soava cada vez mais alto dentro dele. e agora Lucano ouvia as palavras: "Toma essa mulher pela mão e levantava-a!”.

- Sim, Senhor disse ele, em voz alta. Tomou a mão da moça, gelada demais naquele calor feroz. Lucano tornou a hesitar. Então, segurando a mãozinha flácida, sentiu o escoamento de forças, a fraqueza familiar que se apoderava dele, como se as energias lhe abandonassem o corpo. Como que de uma imensa distância ele ouvia os gemidos de Davi e o pranto das mulheres. Porque algum poder se estava concentrando nele. E esse poder mantinha apartados o mundo e tudo quanto nele havia.

Lucano disse:

- Acorda, Rebeca, pois não estás morta, apenas adormecida!

Diante dessas palavras profundas e misteriosas, os outros cessaram de chorar e Davi, ajoelhado junto do ataúde, deixou tombar as mãos dos lados do corpo e olhou para Lucano. Uma enorme radiosidade brilhava no rosto dele.

A mão que estava imóvel na de Lucano ia aquecendo-se rapidamente. As narinas dilataram-se, os lábios moveram-se. Os seios jovens ergueram-se, num hausto profundo. Os olhos dela abriram-se, escuros e úmidos, fixando-se confusos, em Lucano. O médico sorriu-lhe carinhosamente, puxando-a pela mão, fazendo-a erguer-se em seu ataúde, e ela sentou-se, atirando o cabelo para trás, como uma pessoa que fosse acordada em meio de seus sonhos.

Vendo aquilo, os enlutados ergueram a voz, num grito de pavor; e recuaram. Mas o rabi e Davi permaneceram junto do ataúde, sem voz, o velho curvando-se como um junco sobre sua filha. Foi só Davi que se atirou aos pés de Lucano e apertou a fronte contra ele, cobrindo-o de lágrimas e beijos.

O rabi desatou num hino arrebatado, de mãos postas, erguendo o rosto barbudo para o céu.

- Ela estava morta e Tu a ressuscitaste! Ó Rei dos Reis! Ó Senhor do Universo! Louvado seja o Nome do Senhor!

Lucano curvou-se e ergueu Davi, pondo-o de pé, e o jovem agarrou-se a ele.

- Ele mandou-te para nós exclamava. - Oh! bem-aventurados somos porque tu nos visitaste, em Seu Nome!

- Louva a Deus, porque Ele fez isto e não eu falou Lucano.

- Porque Ele é a Ressurreição e a Vida.

Voltou-se, sorrindo, arrebatado de alegria, mas fraco em todo seu corpo. Só olhou para trás uma vez. As mulheres estavam ajudando a moça a sair de seu ataúde e o marido beijava-lhe as mãos. O velho rezava. Agora, o ar atroava com exclamações confusas de regozijo.

Os homens do grupo de viajantes tudo tinham visto, e observavam Lucano aproximar-se com terror em seus rostos. Ele sorriu-lhes, tranqüilizando-os.

- A moça não estava morta. Dormia, apenas disse, subindo de novo para a biga. E se foram eles, com o ruído das patas dos animais e das rodas dos carros mas em silencio.

Então, Pilatos, inclinando-se de sua biga, disse a Lucano, e havia uma nota aguda e trêmula em sua voz altaneira:

- Os judeus enterram seus mortos antes do pôr-do-sol. Ela não estava morta, então?

Era como se fizesse uma súplica.

- Ela não estava morta disse Lucano. Plócio, porém, olhou-o longamente, e seu rosto de soldado mostrava-se profundamente emocionado e reverente. Lucano tombou adormecido, de súbito, como alguém que estivesse esmagadoramente exausto.

Lucano acordou quando foi feita a muda de cavalos. O ar da tarde refrescara, e Plócio o cobrira com seu próprio manto áspero de soldado. Para a direita, o mar era uma planície imensa e resplandecente de luz, brilhante demais para que nela se pousassem os olhos, e descolorida. O céu se fizera um arco côncavo e o colorido cerúleo queimara-se e desaparecera, tomando a pureza de uma chama branca. A região se modificara; contra os céus pálidos e ardentes erguiam-se montanhas vazias, de coloração quase preta, feitas de dobras e dobras de pedra.

Cactos altos orlavam a estrada, apresentando frutos escuros e espinhentos, e os emaranhados cardos, cobertos de poeira, como sebes mortas, espalhavam-se sobre campos sombrios, tão sem vida como os campos da morte. Mesmo os ciprestes tinham desaparecido e não havia oliveira ou palmeira que redimisse a terra ou as montanhas. Aqui e ali, as montanhas mais escalvadas mostravam projeções de pedras esbranquiçadas e rompidas. Casas de telhados rasos, da cor da terra ressecada, erguiam-se no silêncio e no abandono.

As estradas, porém, viam-se cheias de pessoas ruidosas, montadas em camelos ou burros, a caminho de Jerusalém. Levantavam-se ecos de todos os lados. O grupo de viajantes desviou-se do mar e apressou o passo, com os novos cavalos. Lucano olhava para a desolação provocada pelos romanos com a retirada dos ciprestes e pensou que ali a própria terra fora amaldiçoada. Mesmo os tanques ocasionais de água salobra, onde as cabras bebiam, pareciam sem vida e cor de chumbo. Aquele era o progresso de que Pôncio Pilatos falara, aquela selvagem devastação, aquela solidão, aquele deserto invasor. Onde os homens caminhavam, ávidos e rapaces, a morte se seguia e a terra se crestava.

- Uma região medonha disse Pôncio Pilatos. E Lucano respondeu:

- Não era medonha enquanto o homem aqui não chegou. Fealdade segue sempre o passo do homem, que deforma tudo quanto vê ou toca.

Pilatos franziu as sobrancelhas, diante daquela resposta áspera.

Depois disse:

- Não encontrarás em Jerusalém nenhum encanto e vais achá-la peculiar. Lamento que não venhas ficar comigo, em minha casa. Disseste que vais ser hóspede de Hilell ben Hamram, que espera por ti.

Meu querido Lucano! Os judeus sabem contar as histórias mais estranhas! Tu te banharás em misticismo.

Lucano respondeu:

- Tenho estado a cogitar no porquê de Deus ter escolhido o povo judeu para nele nascer, em vez dos gregos, com sua cultura, ou dos romanos, com seu poder. Mas agora eu sei.

Estremeceu, sob o manto que Plócio colocara por cima dele, e dormiu de novo, pois sua exaustão era enorme. Mas, enquanto dormia, sua mente estava movimentada e triste. Pensava nos dois mil judeus da Síria, que o legado Varo mandara crucificar por pregarem rebelião contra Roma. Pensava nos terrenos de execução, perto de Cesaréia, onde os judeus eram frequentemente crucificados, “por”.

incitação contra o Império". Pensou nas miríades, nos incontáveis crimes que o homem cometia contra o homem, através dos tempos, e nos gemidos que incessantemente chegavam aos ouvidos de Deus, e perguntava a si mesmo, em sua sonolência, por que Deus não destruía esta raça humana de devastadores, aquele horror que estava sobre a terra brilhante, aquele inimigo de seu irmão e inimigo de todas as coisas inocentes, aquele pária do qual os animais sem pecado fugiam apavorados, cheios de medo e horror, aquele arrasador de cidades e de civilizações, aquele saqueador, fazedor de guerras e o mais vil dos criminosos, aquele hipócrita e mentiroso, aquele assassino e traidor, aquele inquieto espírito mau que caminhava, como Lúcifer, para baixo e para cima, na terra, vendo o que poderia destruir. Mas também eu não tenho mérito, pensou Lucano, pois houve um tempo em que pensava ser o homem o injustiçado e não o pecador.

Abriu os olhos. A biga na qual viajava ia subindo um monte pedregoso, de um tom negro-azulado. Ali parou, e Plócio apontou com o chicote.

- Jerusalém disse ele.

Ali estava Jerusalém, no Monte Sião, para o ocidente, a sombra da terra, naquele entardecer, um azul vago e empoeirado contra o horizonte que se avermelhava, curvando-se sobre a cidade. Em derredor do Monte Sião erguiam-se outros montes de um tom castanho-esbranquiçado, recortados em pedra ou cobertos de estreitos terraços que pareciam degraus caprichosos nos quais cresciam ciprestes, louro, oliveira, palmeira, vinhedos, romãzeiras e alfarrobeiras, e árvores amarelas, verdes, ou cor de ameixa, por causa das frutas. Alta em seu monte próprio, Jerusalém parecia fazer parte dele, uma parte de tom castanho-pálido, que dava a impressão de ter sido convulsivamente expulsa da terra, e não feita pelo homem. Os muros tortuosos e cheios de seteiras, recortados e assustadores, torciam-se protetoramente em derredor da cidade, seus portões e torres guardados, os estandartes de Roma flutuando nas alturas maiores. Ladeiras de um tom castanho-acinzentado subiam até os muros, fervilhantes de poeira. Caravanas já tinham acampado, para passar a noite; abaixo dos muros, fogueiras já estavam acesas e havia movimento inquieto de lanternas por ali. Ninguém podia entrar na cidade depois do pôr-do-sol. Os que eram apanhados pela noite armavam suas tendas, fervilhavam em torno de suas pequenas aldeias provisórias, cuidavam de seus cavalos e camelos, e esperavam pela manhã. As portas estavam fechadas e os caminhos alcantilados, bem como as escadarias, encaminhando-se para os muros, mostravam-se desertos.

Enquanto Lucano observava, a noite rápida começou a inundar a cidade e as montanhas circundantes, como água escura, e o relampejar vermelho das tochas saltou dentro dos muros, e as lanternas brilharam em seu interior. Uma lua cúprica ergueu-se sobre um monte daquela mesma cor, e Marte parecia um topázio junto dela. As cores deixaram as montanhas que ainda eram férteis e estavam plantadas e o cenário todo ficou de um castanho-amarelado puro, sob o céu que se ia fazendo púrpura acima de um lago de desolado fogo carmesim. Lucano pensou que jamais vira paisagem tão desprovida, tão contida, tão sombria, tão sem vida, a não ser pelas fogueiras, tochas e lanternas. Um vento frio da montanha, que não trazia odores nem fragrância, tocou-lhe o rosto. Habituado às cidades que acordavam à noite e ressoavam de vozes altas e risos, Lucano percebeu o silêncio pesar sobre aquela cidade, como se ela tivesse engolido todos os ecos e clamores. Daquela altura, podia ver sobre os muros e observar as ruas estreitas e tortuosas a que as tochas conferiam sombras avermelhadas, e que se mostravam cheias de uma turba sem voz. E ali, alto e impressionante, estava o templo de mármore amarelo, silencioso, com suas torres douradas, rodeado de jardins imóveis e cercado além dos jardins por uma infinidade de casas de telhados planos, todas construídas com as tonalidades impregnantes de castanho-amarelado, que se repetiam na terra e nas próprias montanhas. Apenas ocasionalmente alguns maciços de ciprestes negros apareciam na cidade aglomerados como para proteger.

- Compara isto com Cesaréia, que construímos disse Pôncio Pilatos, em voz fria e enojada. Lucano, porém, compreendia que a cidade se havia recolhido em si própria a fim de se proteger contra o conquistador, e que se muitas de suas Colinas estavam mortas, os romanos é que tinham feito aquela coisa maldosa e ávida. A antiga cidade repudiara seus senhores e seu ar pensativo era o do desespero.

O grupo dos viajantes movimentou-se pela montanha rapidamente, os legionários cavalgando à frente, com seus estandartes e seus fasces. A acritude da poeira dos tempos estava nas narinas de Lucano.

Brechas de luz faziam brilhantes as ameias dos muros, que agora se levantavam diante deles. As bigas e cavalos passaram rudeniente através dos acampamentos, e ao clarão das tochas que ficavam perto das tendas era possível apanhar a súbita brancura furiosa de olhos taciturnos e observadores. Burros, cavalos e camelos desviavam-se para lhes ceder lugar, gritando e protestando. Crianças reuniam-se em grupos para observar-lhes a passagem. Agora, das montanhas cheias de ecos, vinha o uivo dos chacais, fantástico e sobrenatural. A lua era um crânio amarelo no céu escuro.

Os cavaleiros e as bigas tiveram alguma dificuldade na subida da colina que levava à cidade, e pequenas pedras escorregavam atrás deles. Um portão se estava abrindo e uma corneta romana soou sua saudação, acordando ecos agudos e saltitantes. Entraram na cidade através de fileiras de soldados que os saudavam. E então estavam nas ruas estreitas e empoeiradas, cujas lojas se viam fechadas e cujos moradores mostravam-se silenciosos. Eles se foram, com estrépito, sobre as pedras lisas e pretas. Grupos de famílias apareceram nos telhados planos e viraram o       rosto aos romanos. A luz das lâmpadas, portais resplandeciam, dourados, contra a escuridão pegajosa, e as janelas empalideciam. Era uma cidade sitiada, silenciosamente raivosa, orgulhosa em sua poeira. Para Lucano, habituado ao colorido Oriente, Jerusalém não parecia oriental, pois não tinha alegria, riso, música, pés apressados e vozes jubilosas. Teve a impressão de que o tempo se havia instalado ali, como uma sepultura de pedra, e não poderia jamais ser retirado. E as tochas metidas em seus soquetes antes diminuíam do que aumentavam a vida confinada da cidade. As sombras vermelhas moviam-se nas paredes como as sombras de uma conflagração que queimasse nas habitações dos mortos.

- Durante o dia há mais vida aqui disse Plócio, como que surpreendendo os pensamentos de Lucano. - Os judeus não folgam durante a noite; são um povo sombrio.

Viraram numa rua mais larga, cheia de tochas iluminadas e de luar cor de limão, guardada por paredes mais altas. Agora, Lucano podia sentir a fragrância dos jardins e a frescura das fontes, podia ouvir vozes ocasionais e, uma vez ou outra, o som de um alaúde ou de uma lira arpejando timidamente contra a quietude da noite. Ali moravam os administradores romanos e os judeus ricos que colaboravam com os romanos, e tomavam alguns dos costumes romanos para seu uso. Os viajantes pararam num portão, e Plócio disse:

- Hilell ben Hamram, teu hospedeiro, mora aqui! Nós vamos seguir como o nobre Pôncio Pilatos para sua casa.

Um portão preto, de ferro, abriu-se e Hilell apareceu, sorridente e bonito, em suas vestes brancas.

- Saudações, amigo, falou ele. - Eu vos esperava mais cedo.

- Lucano teve de parar para ver um funeral judeu disse Pilatos, secamente. - Felizmente pôde evitar que uma mulher fosse enterrada viva. Como vós, judeus, tendes pressa de vos livrar de vossos mortos, antes do pôr-do-sol! ... Eu muitas vezes penso nos muitos infelizes que acordam na terra, e penso em seu terror antes que morram, sufocados na escuridão.

O rosto de Hilell modificou-se sutilmente, àquele insulto, mas ele continuou a sorrir. Lançou um olhar afetuoso a Plócio e convidou todos para tomar vinho. Pilatos, porém, disse estar cansado, e movia-se inquieto em sua biga. Hilell estendeu a mão a Lucano e ajudou-o a descer. Seu aperto era quente e cheio de advertências, pois percebera a cólera no grego. Plócio deu um sorriso alegre para Hilell e o saudou, pondo-se o grupo em movimento. Ainda segurando a mão de Lucano, Hilell conduziu-o a um grande jardim, cheio de fontes e da fragrância dos jasmineiros e das flores que desabrochavam pela noite. A grande casa de mármore no meio do jardim refletia o luar, como ouro. Lucano suspirou de prazer, consciente de seu cansaço. Agora, era Arieh ben Eleazar quem descia correndo os degraus de mármore, em direção a eles, estendendo as mãos e gritando o nome de Lucano. Encantados, abraçaram-se.

Os dois jovens levaram Lucano para um grande salão, e o médico olhou em derredor, com interesse. Hilell era um cosmopolita; as paredes de mármore, de murtas cores, tinham sobre elas as mais finas e coloridas tapeçarias, brocados, sedas, tecidos constelados de pedras preciosas, reluzindo e faiscando à luz de muitas lâmpadas altas e candelabros de bronze coríntio, instalados em mesas esculpidas de mármore, ébano e limoeiro. Grandes vasos persas e vasos vindos de Cataio erguiam-se ao longo das paredes e nos cantos, e deles levantavam-se altos e odorosos lírios, rosas, galhos de jasmins e lustrosas folhas de um verde profundo. Exóticas gelósias orientais decoravam as janelas, incrustadas em ouro, prata e marfim, e deixavam passar o frescor perfumado dos jardins. Cadeiras cobertas com brocados e sedas tingidas mantinham-se em torno de pequenos tapetes persas. Lucano entrara em muitas belas casas, antes, mas achou que aquela era a mais repousante. Não via estátuas em parte alguma. No centro do vasto salão uma fonte prateada jorrava água numa bacia redonda, e enchia o ar de perfume. Os três homens sentaram-se em um macio divã romano, cor de romã, e um servo lhes trouxe vinho romano, um prato de tâmaras e figos rolados em nozes, e outros doces delicados.

Lucano, fatigado, estendeu os ombros com prazer. Seus amigos olhavam para ele, afetuosamente. Arieh disse:

- Minha casa, que era de meu pai, é mais humilde do que esta, mas dentro de alguns dias deves também ser meu hóspede. – Sua mão ainda segurava a de Lucano, como faz um filho.

- Não estou aqui para tagarelar, disse Lucano. Mas sorria. - Deves lembrar-te de que já não sou jovem, e que ainda tenho muito que aprender e fazer. - Hilell o observava preocupado. – Outrora, continuou Lucano, eu não tinha esperança. O mundo era inteiramente corrupto e sem Deus. Vivia na amargura e no desespero. Como me disse meu irmão Prisco, porém, a Revelação foi dada ao homem por Deus, e jamais o mundo tornará a ser o mesmo. Esperança e júbilo foram outorgados ao mundo, uma era nova iniciou-se, cheia de grandes acontecimentos. Eu fui chamado para ajudar essa era em seu desenvolvimento e levar as boas novas a todos que encontrar.

Hilell hesitava:

- Estive em Jopa, vi Pedro, um dos apóstolos de Cristo, o mais destacado entre eles. É homem de seus trinta e quatro anos, impetuoso e impaciente, de certa forma dogmático. Sua maneira de falar é rude e direta. Deves lembrar-te de que ele não teve, ou teve pouco contato com os gentios. É um pescador da Galiléia, homem do campo. Judeu muito devoto, de poucas luzes sobre o mundo. Apesar disso, impressiona e é cheio de ardor. Está escondido numa pequena casa de Jopa e passa o tempo no telhado, olhando para o mar e rezando.

Hilell tornou a hesitar, depois riu, um pouquinho:

- Quando cheguei, ele não me olhou com bondade. Durante muitos dias recusou ver-me, desconfiado. Depois censurou-me, em seu idioma galileu. Eu era um judeu corrupto, foi o que me disse em pleno rosto. Tinha relações familiares com gregos e romanos e outros povos abomináveis. Que achava eu dos Livros Sagrados? Era evidente, declarou, olhando escarnecedoramente para as minhas roupas, que eu vivia para o prazer, e que era muito possível serem os Mandamentos apenas palavras para mim. Eu era homem de fortuna; como me seria possível compreender os pobres e os humildes? O Senhor não viera morrer pelas pessoas como eu. Sua mensagem seria incompreensível para mim. Apesar disso, depois que eu o deixei dizer tudo quanto de repreensivo e desdenhoso quis, ouviu minha história, embora não deixasse de reparar nos meus anéis e nas minhas sandálias de prata.

Amaciou, finalmente, e recordou-se de mim como do rico que falara ao Senhor. Então, começou a chorar, e disse: "Por que te estou censurando, eu que O neguei três vezes e fugi quando O levaram e O crucificaram?”.

Hilell serviu mais vinho a Lucano.

- Depois, em tons vacilantes continuou: "Quando Ele voltou, para nós, e esteve conosco, disse-nos que devíamos dar as boas notícias a todas as nações. Confesso que fiquei horrorizado. Somos poucos e somos judeus, não temos amigos nem dinheiro. Fomos banidos pelo procurador romano. Que podem os gentios compreender sobre Ele, e que lhes podemos dizer? Não os conhecemos, Para nós eles têm sido abominações. A Lei diz que devemos ficar de parte e não nos deixar corromper pelos gentios. Os não-circuncisos estão fora da Lei, são imundos, e seus hábitos não são os nossos. Fracos e sem poder, devemos ir entre os estrangeiros, com seus ídolos e seus deuses vis e seus costumes indizíveis! Devemos falar-lhes de nosso Messias, que acreditamos ter vindo só para este povo. Vim a Jopa não só para me esconder da cólera dos romanos, que nos declarou insurretos, mas para rezar e tentar compreender. Todas as noites fico neste telhado, pensando. E então tenho visões. Devo fazer conforme Ele ordenou, mas ainda há uma náusea em meu coração e eu me encolho diante dos gentios e de todos os seus trabalhos, crueldades e abominações."

Hilell sorria, divertido:

- Embora jamais eu tenha olhado os gentios com o ódio e o terror daquele homem humilde e enfático, compreendi. Falei de ti. Disse-lhe que tinhas vindo para falar com ele. És um grego, um pagão! Adoraste falsos deuses, falas língua estranha e não és circunciso.

Então ele recomeçou a chorar, e censurava-se, confessando estar de novo cometendo o pecado de orgulho e rejeição. Consentiu em ver-te.

Antes que eu o deixasse, batizou-me. Não é o mais amável dos homens, e hás de encontrá-lo rude e mesmo insultuoso, com a língua áspera de um homem do campo.

“Encontrei também mais dois apóstolos, Tiago e João, irmãos, filhos de um tal Zebedeu, também galileus”. São chamados os Boanerges, filhos do trovão, e isso os descreve exatamente. Vivem fora de muros. A Mãe de Cristo mora com eles, como sua mãe, pois assim Deus ordenou. São muito jovens e possuem uma espécie de violenta e fanática dedicação. Há neles, mesmo, uma sugestão de vingança. Ouvi dizer que desejavam ver Cristo enviar o fogo do céu sobre a aldeia samaritana que mostrou pouca vontade de ouvi-Lo. Mesmo quando censurados por Ele, ainda respiravam chamas. Não te olharão com bondade, embora eu os tenha persuadido a ver-te.                Hilell suspirou:

- Mesmo entre os santos, entre os que caminharam com Ele, comeram e dormiram junto Dele, e ouviram diariamente a Sua voz, há dissensão. Alguns deles insistem, com veemência, em que antes de um homem se tornar cristão deve passar pelo judaísmo e precisa ser circunciso. São os mais velhos que se agarram ferozmente à Lei dos velhos tempos. Os mais jovens dizem que não é necessário; têm sua própria interpretação. Os anciãos acreditam que quando Cristo falou na missão das "cidades de Israel" quis dizer, literalmente, tal coisa. Os mais jovens acreditam, com firmeza, que Ele quis falar em todos os homens. Não só estão separados, escondidos, por causa do decreto de Pôncio Pilatos, mas estão separados também pelas suas opiniões. Eu me senti muito pessimista.

- Eu não, disse Lucano, com firmeza. - Deveis recordar, meus amigos, que os apóstolos são apenas homens, e os homens diferem uns dos outros. Irei ver Pedro o mais depressa possível.

Uma jovem entrou, deslizante, para o salão, vestida com uma palla branca, um véu de gaze na cabeça. Teria mais ou menos quinze anos e era extremamente graciosa, corpo amadurecido e gentil, belos olhos escuros sob sobrancelhas finas, pele branca como a neve. O pescoço era uma esbelta coluna, a boca uma rosa, e sob a gaze que trazia na cabeça pequena tombava a massa de ondas e caracóis escuros. Tinha uma expressão tímida, mas coquete, e era, ao que se deduzia, bem consciente de sua beleza. Hilell levantou-se e tomou-lhe a mão.

- Ah! Lea! disse ele, afetuosamente. Trouxe-a até junto de Lucano, e disse: - Esta é minha irmã, que dei a Arieh como noiva. Não é ele um jovem de sorte?

Sorria a Lea, com orgulho. Muitos braceletes incrustados de pedrarias tilintavam nos pulsos da moça, e um colar pesado de gemas rodeava-lhe o pescoço. Suas sandálias eram de prata. Lucano ficou ternamente divertido. Lea, embora jovem, querida, e guardada cuidadosamente, mostrava um ar bastante mundano. Respondeu-lhe baixinho em grego, que falava com perfeição. Arieh ficou em pé ao lado dela, seus olhos azuis-escuros brilhantes de amor. Ela fingia não lhe perceber a presença, embora suas faces proeminentes mostrassem certo rubor. Falou com o irmão arrogantemente, como fazem os jovens mimados.

- Por que nosso hóspede não está em seus aposentos, repousando? Estás em falta, Hilell!

- Estou, sim concordou. Bateu as mãos e o vigilante do salão entrou imediatamente. - Tu conduzirás o nobre Lucano aos seus aposentos, Simão disse ele. Pensou um momento, depois acrescentou: - Conhecerás minha esposa na hora do jantar. As crianças estão deitadas. Meus pais, e ele hesitava, não jantarão conosco, pois são velhos e tiveram febre.

Lucano compreendeu, imediatamente, que os pais de Hilell não aprovavam que seu filho recebesse gentios sob seu teto. Fez um gesto de assentimento gravemente:

- Espero que tenham melhorado falou. E não pôde deixar de acrescentar, com certa malícia: - Gostarias que eu os examinasse, e se necessário, receitasse para eles?

Hilell disse com certa rapidez:

- Obrigado, meu querido amigo. Mas eu não gostaria de me impor assim. Além disso, eles confiam apenas nos médicos da família.

Precisamos ter paciência com os velhos. Eles têm suas peculiaridades.

- São muito cansativos, disse Lea, petulantemente. - Nunca me falam sem desaprovação ou censuras. Pensam eles que vivemos nos velhos tempos, quando as moças ficavam segregadas e mantidas de longe, vestidas antiquadamente e escondiam os cabelos depois que se casavam. - Sacudiu seus bonitos caracóis, e continuou: - Este é um mundo moderno, e devemos ter maneiras modernas, que são mais agradáveis e esclarecedoras.

          Hilell riu, e puxou um de seus caracóis, carinhosamente:

- Lembra-te de honrar teus pais, Lea disse ele.

Ela arrebatou-lhe o caracol das mãos, exasperada.

- Isso é muito bom para ti, meu irmão falou. - Não tens que passar a tarde ouvindo reprimendas, como eu. Não sou modesta; não sou versada nas leis dos profetas; não tenho consideração para com os patriarcas; sou ignorante dos costumes piedosos; graves dúvidas são expressas a meu respeito; serei uma esposa como as dos romanos, e meus filhos ficarão negligenciados e não lhes ensinarei os deveres sagrados. E quanto à tua esposa, Débora, ela é quase tão má quanto eu, com seu cabelo escondido e seus olhos baixos e seu silêncio em presença dos homens! Se tu não insistisses, ela não apareceria em tua mesa e comeria sozinha, humildemente. Para todos eles, eu sou uma Jezabel[28].

- Vai embora, pequena disse Hilell. - Já falaste bastante.

- Tu não sabes como eu sofro! exclamou Lea, batendo o pezinho bonito. - Além disso, és um homem, não uma moça!

- Tuas maneiras são deploráveis falou Hilell, tornando-se severo. - Bem se vê que és muito maltratada, e com isso nos solidarizamos. Estás cansando nosso hóspede.

Lea saiu correndo do salão, sacudindo a cabeça. Hilell explicou a Lucano, desculpando-se:

- Ela é filha da velhice de meus pais, e foi excessivamente mimada. Só eles são culpados. Deleitam-se com a beleza dela, e só temem pela sua alma. Ela se tornará uma matrona judia como deve ser, assim que se casar, e sem dúvida fará aos próprios filhos as censuras que agora ouve, e se afligirá por eles.

- Ela é uma alegria para meus olhos disse Arieh. – Tem estado a me dar instruções sobre a Lei, e suspira por causa da minha ignorância. É a mais doce das mulheres.

Quando chegou aos aposentos que lhe tinham sido destinados, Lucano olhou com prazer em derredor. Saiu para uma sacada e lançou o olhar para Jerusalém, que brilhava com lanternas e tochas.

Lavou as mãos em água perfumada e recebeu de um servo guardanapos brancos. Belos trajes novos, de fino linho, foram preparados para ele com muito tato. Lucano despiu as vestes grosseiras que usava, e que estavam empoeiradas e manchadas pela viagem, e calçou as sandálias feitas com o mais fino couro. Relanceou os olhos para a cama rica, com grande desejo de repousar. De algum lugar, na casa, ouvia-se uma harpa distante, e ele suspeitou que aquela música alegre era tocada por Lea, como um desafio. Por uma razão que não sabia qual, ouvindo aquela música de dança, seu coração se animou. Havia nela uma inocência, uma afirmação. Ela acreditava na vida, e abraçava-a animadamente.

Um servo levou-o através de salas luxuosas até o salão de jantar, onde Hilell, Arieh e Débora, a esposa de Hilell, o esperavam. Débora era uma mulher jovem e gorducha, vestida muito modestamente, com um traje azul. Um tecido azul cobria-lhe completamente o cabelo.

Seus braços e pescoço estavam escondidos. O rosto redondo da senhora fez Lucano lembrar o de Aurélia, e seus olhos castanhos, que ela levantou rapidamente, uma vez, para o rosto dele, baixando-os a seguir, eram vivos, apesar da sua atitude. Uma covinha esboçava-se no canto de sua boca empertigada, e falava de uma capacidade de rir que ela guardava, provavelmente, para o esposo. Não usava jóias. Sentou-se ao pé da mesa luxuosa, junto de Lea, e não falou uma só vez. Lea relanceava os olhos para ela, impaciente, mas acabou por ignorá-la. A moça reuniu-se impudentemente à conversação, discordou, riu, gracejou e comportou-se realmente como uma jovem de mimada beleza, da maneira moderna. Débora porejara desaprovação, e Lea fungava, atirava seus caracóis e fazia tilintar seus braceletes.

- Tens um excelente cozinheiro disse Lucano, descobrindo que tinha fome. Os bolinhos de peixe estavam temperados e suculentos, o cordeiro assado bem coberto de molho e os legumes e saladas bem condimentados. Havia bolos folhados, recheados com passas, ameixas secas e tâmaras cobertas com sementes de papoulas.

O vinho era romano, da melhor qualidade. Velas em candelabros de prata brilhavam sobre a toalha branca, na qual corriam fios de prata.

Colheres e facas eram pesadamente trabalhadas com recortes e ornamentos, as taças de ouro maciço incrustadas com pedras preciosas, os saleiros também de ouro e com pedras, o mesmo acontecendo aos pratos.

- Vivemos como camponeses disse Lea, descontente. – Não é que eu deseje o que não é apropriado. Mas gostaria de maior elegância e variedade. A mesa da minha melhor amiga é encantadora.

- Cala-te, menina disse Hilell, automaticamente. - Lucano, eu às vezes desejo que se tivesse conservado o velho costume que excluía as mulheres da mesa de refeição dos homens.

- Ela é jovem disse Arieh. Voltou-se para sua prometida esposa e perguntou, gravemente: - Disseste que sou ignorante, e sou mesmo. Repete-me algumas das leis de Moisés em relação a templos e sacrifícios.

Lea ergueu altivamente a cabeça, e com voz severa começou a instruir Arieh. Lucano ouvia com divertido afeto, e Arieh com respeitosa humildade. Débora não falou, mas uma ou duas vezes Lucano percebeu-lhe uma covinha no rosto. A felicidade daquela jovem família impressionou profundamente Lucano. Ouvindo Lea e percebendo a sua inocência, as faces rosadas e o faiscar dos olhos, bem como a flexibilidade daquele pescoço e daqueles braços nus, pensava em Rúbria e Sara, as mortas que ele amara com tamanha ternura, e dizia consigo mesmo que na realidade não existia a passagem dos anos, a fadiga, a dor, o desespero, a separação, a morte. O mundo e os planetas, os sóis incontáveis, vibravam de eterna mocidade, e as constelações e galáxias regozijavam-se com isso. Uma sensação jubilosa invadiu-o. Tudo quanto amara estava com ele para sempre.

Naquela noite, antes de adormecer, ouviu o uivo dos chacais dentro dos portões, e pareceu-lhe que aqueles uivos eram vozes bradando na solidão, esperando conforto, aguardando serem admitidas na companhia dos bem-aventurados.

 

Lucano recebeu um convite para jantar com Pôncio Pilatos, e estava para recusar, impaciente, quando Hilell lhe disse:

- Foste seu hóspede na casa de Cesaréia. E, seja lá pelo que for, tu o impressionas. Ele se sente muito inquieto, desde a crucifixão de Cristo. Custa-te dar-lhe algum conforto?

- Sim, pois meu hospedeiro não foi convidado. E isso é uma grande descortesia.

Hilell sorriu:

- Digamos que seja. Os romanos, porém, pouco observam a cortesia em relação àqueles que conquistaram. Ia dizer que ele não gosta de judeu. Seríamos intolerantes se fôssemos intolerantes para com a intolerância.

- Isso é sofisma disse Lucano. Mas aceitou o convite.

Hilell vestiu-o de maneira elegante.

- Os romanos, tão materialistas, deixam-se deslumbrar pelos trajes ricos e apropriados disse ele. - Desprezam a simplicidade e gostam de uma exibição de riqueza.

Lucano vestia uma túnica azul e sobre ela uma toga do linho mais delicado, embora pesado, debruado de ouro. As sandálias eram douradas, trazendo lingüeta de couro com incrustações de pedras preciosas sobre o peito do pé. Nos braços dele Hilell colocou braceletes ornados de gemas.

- Estás realmente magnífico disse, bondosamente. - Pareces uma das mais nobres estátuas gregas.

Deu ordem para que à hora do crepúsculo uma liteira levasse Lucano à casa de Pôncio Pilatos, casa grande, instalada dentro de altos portões e de jardins ricamente floridos, animados pelas fontes que dançavam ao ar avermelhado pelo sul poente. Soprava, entretanto, uma brisa vinda da região da Rua dos Queijeiros, que todas as fragrâncias das árvores, da relva e das flores não conseguiam dominar.

Pilatos disse, torcendo o nariz:

- A fedentina é abominável.

Lucano, recordando que devia ser polido, absteve-se de comentar as fedentinas de Roma, e especialmente os odores que emanavam do Trans-Tibre, quando o vento mudava. Pilatos mostrava-se preocupado, ao levar Lucano para um salão ainda mais suntuoso do que o salão de Hilell. Lucano ficou estupefato com aquele esplendor, que parecia excessivo e de mau gosto. A fonte central era pesadamente perfumada, e o perfume revelava-se enjoativo. A casa parecia repleta de bonitas escravas, sentadas em almofadas sobre o chão branco e reluzente, tocando harpa, alaúde e flauta, atirando para trás seus longos caracóis de cabelos.

- Iremos para o telhado disse Pilatos -, onde há frescor e de onde temos bela vista para a cidade: Estou esperando outros hóspedes. - Seu rosto remoto sorriu, friamente. - Nada menos do que o próprio Herodes Antipas e seu irmão. Ele deseja falar contigo, e deves compreender que tal coisa é uma condescendência! Houve um tempo em que não gostavam um do outro, mas agora somos excelentes amigos. Foi uma questão de diplomacia.

- Falaste de mim a Herodes? perguntou Lucano, perturbado.

- Sim. E, a propósito, ele enfadou-se comigo por eu ter cancelado o banimento da seita daqueles que se dizem cristãos. Está inclinado a não gostar de ti.

Pilatos ria-se com um bom humor súbito e conduzia Lucano por vários lances de escadas, cujos degraus de mármore, muito largos, estavam cobertos com tapetes persas. Durante aquela subida Lucano teve relances de ricos apartamentos. A música seguia-os. O telhado era amplo e comprido, com parapeitos de altas pedras perfuradas em desenhos complicados; o piso mostrava tapetes espalhados, e havia cadeiras baixas e divãs cobertos com toldos listrados de seda, em várias cores, as mesas instaladas com lâmpadas que aguardavam. As escravas seguiram-nos e recomeçaram a tocar.

Lucano interessou-se pela vista da cidade, observada daquelas alturas. O vermelhão ardente do crepúsculo atingia os montes pedregosos ou desenhados em terraços, montes que rodeavam a cidade, dando-lhe um aspecto ardente. As paredes tortuosas e recortadas em ameias de Jerusalém tinham um ar melancólico. Um colorido fosco e avermelhado recobria as ruas apertadas e estreitas como reflexo de fogo. Um som monótono e sussurrante subia das ruas, abafado e murmurante. Lucano podia ver o torum romano, suas paredes e colunas brancas brilhando como neve contra a luz ardente; o teatro romano, como taça dentada; os palácios erguendo-se acima da infinita e interromnida planície de casas menores com seus telhados iluminados pelas pinceladas vermelhas do sol. Dominando tudo, via-se o Templo, alto dentro de suas próprias muralhas, as torres douradas em incandescência, as paredes rosadas. Como ficava voltado para leste, visto daquele ponto do terraço de Pôncio Pilatos, o céu que ficava por trás dele mostrava um tom profundo de azul-pavão, contrastando com o firmamento flamejante do ocidente. A distância, havia um grande maciço de ciprestes escuros, amontoados ou espalhados por um jardim verde.

- É o Getsemâni[29] disse Pilatos, notando o interesse de Lucano. Havia em sua voz uma nota peculiar. Sentaram-se os dois sob um dos toldos e beberam vinho. Pilatos tornou-se silencioso, como que pensativo. A música erguia-se em torno deles e uma das jovens cantava docemente. Lucano ouvia. A cadência não lhe era familiar, parecia-lhe dolorosa e obcecante. Aramaico era a língua da canção:

 

Quanto é misericordioso o Senhor nosso Deus!

Sua misericórdia é mais ampla do que o mar,

Sua afetuosa bondade envolve a terra e o céu,

E Suas palavras são júbilo para meu coração.

Quem pode conhecer o Senhor e Seus sagrados pensamentos?

As colinas O conhecem, ou as cinzentas montanhas?

Ou a vasta região inculta onde o homem não chega?

Ou o tigre em seu caminho, ou as árvores solitárias em sua majestade?

Ou a mulher que adormece com um infante ao seio,

Ou o moribundo sozinho em sua dor? Ou os rios dourados

Que correm para os oceanos, ou os jardins de madrugada?

Nos lugares mais secretos Ele é conhecido!

 

       Lucano olhou para a moça, e os grandes olhos negros dela pareciam cismados sob as sobrancelhas e seu rosto mostrava-se liso e pálido. O médico surpreendia-se com as palavras da canção e relanceou os olhos para Pilatos, que, aparentemente, não estava ouvindo. O cotovelo do romano descansava no braço de sua cadeira, e seus dedos encobriam-lhe em parte o rosto. Estava absorvido em seus pensamentos, esquecido de seu hóspede. Então, disse, sem retirar a mão do rosto, como se falasse consigo mesmo:

- É impossível que Ele se tenha levantado de entre os mortos!

Seus seguidores levaram-No embora, curaram-No, pois Ele foi retirado da cruz depressa demais.

Lucano esperava, sem falar. A música desceu para um tom mais baixo, que nada interrompia. Pilatos disse, então, a voz ainda mais distante:

- Eu não me surpreenderia Se aquele velho patife devoto, José de Arimatéia, tivesse tido interferência nisso. É conselheiro, e dizem que justo e bom. Conheci-o, e apesar do meu ceticismo, não pude apanhá-lo em sofisma ou futilidade. Foi José quem suplicou o corpo Dele e o colocou na sepultura. Ouvi falar muito daquele Homem, que, confesso, não mostrou a meus olhos qualquer culpa verdadeira! Foi o alto sacerdote, Caifás... E não nos podemos opor aos sacerdotes sem correr perigo, eles podem usar de muita malícia. E eu tive ordem para manter a paz nesta reino, a qualquer custo. Posso ser censurado por isso?

Agora, olhava agudamente para Lucano.

- Não, disse o grego, um tanto hesitante.

Pilatos continuou:

- José é um homem rico. É possível que o suborno tenha entrado em algum lugar e Jesus possa ter sido retirado da cruz ainda vivo, e levado para a casa de José, a fim de que ali o tratassem e curassem. - O romano movia-se, inquieto. - Por causa dos rumores de que Ele se ergueria de entre os mortos, ao terceiro dia, coloquei guardas junto ao túmulo, para que não se fizesse qualquer chicana. O grande sacerdote e havia pedido isso.

Parou. Desviara a cabeça, de forma que o médico não podia ver-lhe o rosto. Lucano tornou a esperar. Então, o procurador suspirou:

- Os homens são muito supersticiosos, e também histéricos. Meus guardas vieram depois falar comigo, e eu os ouvi, incrédulo. Estavam quase incoerentes. Tinham mantido fogueiras acesas junto ao túmulo, bebido vinho, jogado dados e contado galhofas. Teria sido o vinho misturado a alguma droga por aquele onipresente patife, o velho José?

- Ele jurou-me, solenemente, que não houve tal coisa. Ainda assim, meus homens declararam, com juras e temerosos olhares em derredor, que antes da madrugada do terceiro dia uma grande luz brilhou em orno da sepultura e eles tombaram ao chão, sem sentidos. Quando acordaram, a pedra maciça e pesada fora retirada para trás e ali no sepulcro nada mais havia a não ser roupas, um banco de pedra vazio, o cheiro das especiarias e ungüentos!

Olhou para Lucano, suplicante:

- Como pode um homem sensato acreditar que tal coisa seja sobrenatural? Foi um gracejo sombrio, realmente, com a intenção de enganar e lançar o temor no peito dos simples, uma simulação para dar como realizada a profecia feita. Tu, Lucano, és homem educado, de família nobre. Espera que eu acredite em tal tolice referente a um miserável e iletrado rabi vindo da Galiléia? Quem podia inspirar menos os deuses?

- Que desejas que eu diga? perguntou Lucano, em voz baixa.

- Dize-me o que pensas dessa tolice.

E Pilatos inclinou-se para ele. Lucano pôde ver que o homem estava perturbado, e colérico por se sentir perturbado.

Tateando entre suas vestes, o médico encontrou e mostrou, à luz vermelha do sol, a cruz que trazia pendente do pescoço. Pilatos fixou os olhos nela.

- Séculos atrás, disse Lucano, aquele Homem foi profetizado. Os rumores a respeito Dele espalharam-se por todo o mundo civilizado. Os egípcios decoraram suas pirâmides com este Signo. Os gregos ergueram altares ao Deus Desconhecido. As Escrituras dos judeus, escritas anteriormente, falam Dele, de Sua missão, de Seu nascimento, de Sua vida, e de Sua morte.

Pilatos estava aterrorizado. A luz escarlate do último sol refletia-se em cheio sobre seu rosto. Olhava para Lucano com olhos penetrantes:

- Acreditas nisso? indagou, a voz apavorada.

- Sim. Acredito. Sei que é assim.

Pilatos ficou silencioso durante algum tempo. Depois disse, a voz alterada:

- Então, que será de mim, que O entreguei à morte?

- Foste apenas um instrumento.

- Os deuses são vingativos...

- Ele não é vingativo. Não temas.

Pilatos meditou:

- Curaste teu irmão, que estava morrendo...

- Não. Deus curou-o. Eu também fui apenas um instrumento.

- Dize-me o que devo fazer! exclamou Pilatos, subitamente desesperado. Olhava para Lucano, tomado de temor. – Pensei demais nisto. Aquela mulher que ia ser enterrada... não estava morta?

- Eu te disse: ela não estava morta. Não há mortos.

- Tu falas por enigmas, como os oráculos de Delfos.

- Os homens fazem das coisas mais simples enigmas e mistérios, Pôncio.

- Estou perdido disse Pilatos, em tom desesperado. O coração do supersticioso romano batia depressa. - Quem és tu, Lucano? - perguntou.

Lucano franziu os sobrolhos.

- Sou o que sabes que sou.

- Mas tens poderes misteriosos.

- Não. Não tenho poder, nem mérito. Só Deus os tem.

- Então Ele permitiu que os tivesses.

Lucano sacudiu a cabeça, Mas naquele momento um escravo chegou, anunciando a presença de Herodes Antipas, o tetrarca de Jerusalém, e de seu irmão, Herodes Filipe. As escravas tocaram música triunfal, e outras jovens correram pelo telhado, atirando cestas de pétalas de rosas pelo piso enquanto outras pulverizavam perfumes no ar. Pilatos foi ao encontro de seus convidados e, enquanto as lâmpadas do telhado eram rapidamente acesas, Lucano olhou com curiosidade para os dois homens. Antipas levou-o a recordar, imediatamente, uma raposa vermelha: tinha rosto estreito e irritado, e seus movimentos eram impacientes e bruscos. Usava barba curta avermelhada, e Lucano lembrou-se de que Antipas deixava crescer a barba para os próximos dias santificados dos judeus, mas depois a retirava. Filipe, porém, o mais jovem, era mais alto, de aparência mais nobre, belos olhos negros e líquidos, o rosto clássico de estátua, e maneiras tranqüilas e dignas.

Parecia estar absorvido em sombrios pensamentos. Antipas retribuiu o cumprimento de Lucano, e a sua inclinação, com uma palavra rápida e um relance de desagrado nos olhos cor de avelã. Filipe, entretanto, sorriu-lhe e perguntou-lhe pela saúde, indagando cortesmente quais as suas impressões de Jerusalém.

Os homens sentaram-se e beberam mais vinho, enquanto a noite fluiu sobre a cidade e as tochas arderam e as lanternas reluziram lá embaixo. Antipas estava de mau humor, era evidente, e confinou sua conversação caprichosa a Pilatos. Outrora tinham sido inimigos, mas agora eram amigos. Filipe relanceava os olhos para ele, ocasionalmente, e suas sobrancelhas pretas franziam-se. Conversava bondosamente com Lucano, e disse-lhe que muito ouvira falar nele. Ouvindo aquilo, Antipas olhou por sobre o ombro, ameaçadoramente, para Lucano, e disse, num tom agudo e matreiro.

- Sim. E precisamos falar sobre isso.

Deu um repelão com o ombro vestido de brocado azul e coçou a barba. Antes de se voltar de novo para Pilatos lançou um olhar venenoso para o irmão, que o recebeu, imperturbavelmente.

Um gongo soou e todos se levantaram para descer à sala de jantar, que reluzia de mármores, tapeçarias bordadas, pedras preciosas e ricas lâmpadas. A refeição era luxuosa. Antipas pouco comeu, e bebeu vinho com parcimônia. Queixava-se ao poderoso romano de uma porção de assuntos insignificantes. Nada lhe era agradável em Jerusalém, nem em seus negócios particulares. Seu rosto suavizou-se um pouco apenas quando falou de sua esposa, Herodíades. Ouvindo aquilo, Filipe endireitou-se em sua cadeira e olhou para o irmão com olhos acesos, e sua boca tomou linhas duras e amargas.

- Como eu gostaria de morar em Roma! exclamou Antipas.

- Ali temos apenas civilização e realidade. Mas aqui tudo é Deus, tudo é observância religiosa, tudo é entediante discussão religiosa!

Mesmo o alto sacerdote só sabe falar de comentários. Para os judeus nada mais existe, a não ser Deus.

Lucano disse:

- Demócrito escreveu, há mais de quatrocentos anos: "Se alguém escolhe as coisas da alma, escolhe a porção divina; se escolhe as coisas do corpo, escolhe o que é simplesmente mortal.”.

- Isso está muito bem falou Antipas em tom desagradável, com um sorriso de escárnio. - Mas o homem também é mortal, e os mortais devem ser alimentados. - Fez uma pausa, depois disse, quase ameaçadoramente: - Ouvi coisas estranhas a teu respeito, Lucano! Dizem que realizas milagres!

Deu um breve sorriso, e Lucano respondeu, sentindo em si um movimento idêntico de desagrado:

- Não. Não realizo milagres. Só Deus os realiza.

As faces dele estavam coradas, pela afronta.

- Ah! disse Antipas. - Isto é excelente. Já tivemos bastantes milagreiros na Judéia! Ou charlatães! Confio em que não estás aqui para incitar o povo. Ou para proclamar que trazes uma única missão de Deus.

- Estou aqui apenas para descobrir a verdade e registrá-la - disse Lucano, encolerizado. Pilatos começou a sorrir. Filipe ouvia, com a taça de vinho junto aos lábios, apenas o olhar estava alerta, brilhando sobre Lucano.

- E eu aqui estou para manter a paz e a ordem entre meu povo, disse Antipas.       - Serei impiedoso para com os desordeiros.

Seus olhos rebrilhavam, ameaçadores.

- Estas azeitonas judaicas são deliciosas, se posso dizer isto em minha própria mesa falou Pilatos. - Que é isso, Lucano? Pareces ter pouco apetite. Meu cozinheiro é excelente, e o leitãozinho assado está ótimo.

- Talvez nosso digno visitante não goste de carne de porco - falou Antipas, com um sorriso maldoso. Lucano recusou-se a responder àquela agulhada e permitiu que uma jovem escrava o servisse de um pouco de leitão.

Começava a cogitar na razão de se mostrar Antipas tão evidentemente agitado e irritável. O tetrarca pôs um punhado de azeitonas judaicas na boca, mastigou-as sombriamente, depois cuspiu os caroços.

- Então disse ele estás aqui para descobrir a verdade e registrá-la. Dize-me, és cristão?

- Fui cristão desde o dia em que Cristo nasceu disse Lucano.

Antipas quase deixou cair a taça, em seu espanto. Ficou boquiaberto.

- Que disseste? indagou, incrédulo. Filipe inclinou-se para a frente, em sua cadeira, e o sorriso sutil desapareceu do rosto de Pilatos.

- Estás louco? exclamou Antipas, batendo com a mão na mesa. - Ninguém ouviu falar em Cristo até quatro anos atrás! Foi então que aquele galileu apareceu pela primeira vez!

- Entretanto, eu O conheci desde o dia em que nasceu. Foi a minha própria falta de mérito que me levou a esquecê-Lo durante muitos anos, foi a minha própria obstinação e cólera.

Lucano olhava de frente para Antipas, que estava estupidificado.

- Deixe-me explicar.

Tirou a cruz de sob as vestes mais uma vez e mostrou-a a Antipas, que recuou, subitamente. Lucano falou-lhe em Keptah, nos caldeus e babilônios, nos egípcios e nos gregos, em suas antigas profecias.

Falou-lhes nos Magos, na grande cruz de seu templo secreto, em Antioquia. Falou-lhes na Estrela que vira quando menino e no movimento dela para leste. Muitos dos escravos que se alinhavam ao longo das paredes inclinavam-se ansiosamente para a frente, a fim de ouvi-lo, e entre eles havia os que tinham os olhos cheios de lágrimas.

- Eu estava em Atenas no dia da Sua crucifixão disse Lucano, em voz baixa e urgente. - O sol desapareceu e houve sons e gemidos de terremotos. Ouvi, em minhas caminhadas, rumores de que a mesma coisa aconteceu em todo o mundo conhecido. Achais que foi uma coincidência?

O vermelhão do rosto estreito de Antipas desapareceu e foi substituído por uma tonalidade lívida. Ficou silencioso, mas seus olhos corriam de um lado para o outro, como se buscassem um ponto de evasão. Lambeu os lábios. Pôncio estava meditabundo, brincando com a taça que tinha na mão. Filipe sorria, e erguia a cabeça como se tivesse tomado uma profunda resolução.

Antipas, subitamente, começou a tremer, como que tomado de cólera interior. Disse, finalmente, em voz contida e furiosa:

- Tudo isso é tolice. Eu próprio falei com Jesus. Esperava que Ele fosse o Messias. Desejei ver pessoalmente os milagres que Lhe atribuíam. - Atirou um furioso e furtivo olhar para Pilatos: - Conheço as profecias do Messias. Toda a minha vida eu as ouvi. – De novo lambeu os lábios e relanceou os olhos para Pilatos: - O Messias deveria livrar os judeus do... do opressor. Tu me perdoas, Pôncio?

Essa era a verdadeira profecia! Mas esse Jesus declarou que Ele não era deste mundo; que as coisas de César não Lhe diziam respeito. Eu fiz com que O trouxessem até mim.

Fez uma pausa, e seu tremor se tornou evidente:

- Apesar do alto sacerdote, que o acusava não só de perturbar a Lei como de incitar o povo e provocar levantes, em detrimento da segurança do povo judeu, eu O mandei chamar para interrogatório.

Se Ele fosse o Messias, ter-se-ia revelado diante de mim em glória e milagres, e se teria transformado diante de meus olhos. Mas, para meu grande desapontamento, Ele era apenas um camponês galileu, miserável, vestido rusticamente. Fiz-Lhe perguntas. Implorei-Lhe que se revelasse, se era o verdadeiro Messias. Mas ele ficou em pé diante de mim, em silêncio, e não respondeu. Eu, o tetrarca de Jerusalém! Só ficou a olhar para mim, como se não me tivesse ouvido. Eu fora bem informado de que Ele me chamara "aquela raposa". Estava disposto a perdoá-Lo, se Ele fosse de verdade o Messias, pois os deuses não têm reverência pelos homens, nem mesmo pelos reis.

Pela primeira vez, Antipas bebeu sofregamente seu vinho, estendendo a taça para que lhe tornassem a encher. Sacudia e tornava a sacudir a cabeça.

- Um miserável galileu! A imprudência Dele, asseverando ser o Messias de todos os tempos! Ali estava, e só fixava os olhos em mim, sem responder. Por que não respondeu? Falava bastante entre seus seguidores e ante o povo! Cheguei a uma conclusão, apenas: diante da majestade da autoridade, e cheio de medo, Ele não podia falar.

Perdera a língua. Portanto, não era o Messias, mas apenas um insurreto. Era somente um camponês tomado pela pobreza, que iludira as pessoas ignorantes, de mentalidade simples. Fiquei indignado, tanto contra a blasfêmia como contra a insurreição que Ele tinha instigado. E disse-Lhe, portanto: "Não és o Messias. És uma falsidade, um mentiroso.”.

Não posso descrever minha cólera e meu desapontamento, e aquele Seu olhar fixo em mim. Assim, entreguei-O à justiça, e para zombar de suas pretensões atirei-Lhe sobre os ombros um manto vistoso e mandei-O embora.

Filipe falou:

- Também te encolerizaste contra o chamado João Batista. Ele invectivou-te por causa de tua esposa, Herodíades. Permitiste sua morte, a pedido de tua mulher.

Os olhos dos irmãos chocaram-se visivelmente, como espadas que se cruzassem.

Então, Antipas olhou para o irmão com ódio, e disse:

- Não sejas ambicioso. Eu sou o tetrarca de Jerusalém e o amigo de Pôncio Pilatos.

Filipe ergueu os ombros:

- Falas dos que são crédulos. No entanto, pensaste que João era Elias renascido.

Antipas virou-lhe o rosto e dirigiu seu olhar avermelhado e malévolo para Lucano.

- Portanto, devo advertir-te, embora sejas hóspedes de meu querido amigo, Pôncio Pilatos, e cidadão romano, que não permitirei mais desordem entre meu povo, nem mais incitamento. Procura a verdade, se assim o queres, mas não entre os ignorantes e os iludidos. Falei-te a verdade. Contenta-te com ela.

Não há nada mais louvável do que a franqueza falou Pilatos, sorrindo.

- Lucano, como todos os gregos, é supersticioso disse Antipas, com outro olhar de ódio.

- Ainda assim, procurarei a verdade afirmou Lucano, olhando friamente para Herodes. - Quem me pode impedir isso?

As narinas de Antipas dilataram-se e ele respirou audivelmente.

- Sou homem civilizado. Conheço meus deveres como convidado de Pôncio Pilatos. Mas tenho uma disputa contigo, muito nobre Lucano. - Teve um riso zombeteiro, e prosseguiu: - A meu pedido, Pôncio baniu os cristãos. É homem justo, um administrador da Lei Romana. Agora, tu o influenciaste para que cancelasse o banimento, apesar das minhas solicitações e dos meus argumentos. Isto dará início a novos conflitos e a desordens perigosas. Estou preparado para enfrentá-los.

Pôncio sorria:

- Eu presto obediência a César. Tibério deu a Lucano um anel magnífico. Lucano pediu-me que cancelasse o banimento e colocou o anel em minha mão. Tibério tem grande consideração por ele, e eu não podia deixar de obedecer ao seu pedido. - Parecia estar divertido.

Herodes Antipas disse, então:

- Eu venero César. Mas mesmo os Césares podem ser iludidos.

- É verdade falou Pilatos, brincando ociosamente com a haste de sua taça. Lucano apertou os lábios. Ia falar, quando viu que Pilatos e Herodes Filipe trocavam olhares significativos, e que a mão de Filipe fechara o punho sobre a toalha de seda da mesa. Então, Pilatos sacudiu a cabeça levemente, como que negando, e ergueu a palma da mão, num gesto de quem pede paciência.

Antipas falou diretamente com Lucano:

- Eu te disse a verdade. Que podes aprender de outra maneira, a não ser através de Pilatos e de mim, senão mentiras? A quem farás perguntas? Aos desprezíveis seguidores de Jesus? Vieste armado de superstições. As criaturas imaginam muitas coisas, e o que nos falaste te foi ensinado em tua inocência e pode ter sido fantasia de tua parte, ou imaginação de criaturas anônimas, cheias de crenças na feitiçaria e na magia. Lembro-me de quando também eu era criança sonhei que veria o Messias com meus próprios olhos!

- E assim O viste disse Lucano.

Antipas tornou a bater com a mão na mesa, em completa exasperação. Apelou para Pilatos, com seus olhos movimentados, como a dizer: "Que se pode fazer com um louco destes?" E falou:

- Compreendo que és um homem culto, maravilhosamente dotado na arte de curar. Sem dúvida, encontraste sábios e eruditos.

Ainda assim, tu, que nunca viste aquele galileu, para aqui vens trazendo uma crença obstinada. Verdadeiramente, isso é demais para que o suporte um homem de inteligência! - Voltou-se para Pilatos: - Suplico-te que restabeleças o banimento contra os que se dizem cristãos, em nome da paz do Império, em nome de César.

- Não tinha alternativa disse Pilatos, calmamente, abrindo as mãos num gesto de quem se rende. - Havia o anel de Tibério. A significação do anel é de que o possuidor pode usar o nome de César, como se fosse o próprio César a falar. Compreendes isso, meu querido Antipas?

Antipas pensou no caso, seus pequenos dentes amarelados mordendo o lábio inferior. Os olhos faiscavam, aprofundavam-se, reluziam. Finalmente, falou com Lucano, num tom modificado, suplicante:

- Perdoa-me se pareci ameaçar-te. Tenta compreender. Ouvi dizer que amas profundamente o povo judeu. Desejas que esses conflitos e desordens voltem, e com eles a morte dos inocentes? Desejas ver a mão de Roma descer com violência sobre esta pequena região, que suportou tanto, sofreu tanto? Que tens a ver com Israel, para que assim a destruas?

- Não vim destruir disse Lucano. - Vim apenas em busca da verdade.

- Sim, sim falou Antipas, impaciente. - Eu não estava falando disso. Mas quando conseguiste que Pôncio Pilatos cancelasse o banimento dos ignorantes e desordeiros cristãos, que têm considerável violência e fanatismo abriste, outra vez, a porta dos transtornos desesperadores. Os judeus são povo amigo de discussões e combatem-se mutuamente por uma interpretação da Lei. Discordam furiosamente. O banimento espalhou os cristãos, e os manteve separados, evitando que discutissem com seus companheiros judeus. Agora, aparecerão de novo, e estará tudo perdido.

- Espero que não disse Lucano, sério. - Seguramente, Ele é um homem de paz. Com o tempo, Seus seguidores compreenderão isso.

- Não disse Antipas. - Tu não conheces os judeus.

Então, Filipe falou:

- Nem tu, disse, calmamente. - Não foste amigo de teu povo. Foste um inimigo.

Um grande silêncio pairou sobre a mesa. Todos ficaram parados, como estátuas. Antipas olhava apenas para o irmão, e Lucano e Pilatos olhavam apenas para ambos. Então, depois de um longo momento, Antipas disse, baixinho:

- Filipe, tu ousas falar assim comigo?

- Sim, ouso disse Filipe, em voz suave. - És um homem pequeno, mau. Digo-te isto em plena face. Não tens estatura, nem honestidade, nem dignidade, nem presença.

E fixava os olhos em seu meio-irmão, com aversão.

Antipas explodiu numa gargalhada atirando a barba para cima.

- Oh! exclamou. - Ele não me perdoou por lhe ter tomado sua esposa, Herodíades! Insultaste-me em presença de meu amigo, mas eu te perdôo tua falta de compostura. Chamaste-me "pequeno". Se fosses de maior estatura eu não poderia ter arrebatado de ti a tua esposa. Quem é, portanto, o homem maior?

Seus olhos dançavam sobre Filipe, zombeteiros e malignos.

Os lábios do outro ficaram lívidos, mas ele falou, em voz baixa:

- Não te tenho ódio por causa de Herodíades. Se eu a amasse e se ela me amasse, não terias possibilidade de seduzi-la. Não me sinto diminuído, porque ninguém pode diminuir outro homem sem consentimento dele. Falas de compostura. És tu quem não a tens.

Lucano estava embaraçado. Não se habituara a tão crua discussão, a tais insultos, especialmente entre homens aparentados.

Então, Pilatos interveio, falando agradavelmente:

- Tu erraste, Antipas, quando procuraste uma coroa. Ninguém procura uma coroa com César. Estás em más graças com ele. Ainda hoje recebi uma carta dele sugerindo que te removesse discreta e espontaneamente. César nem sempre sugere, e sim ordena. Por que esperar uma ordem?

Antipas ficou tão branco quanto a morte e sua barba ruiva fez-se destacada contra a coloração estranha que tomou sua carne.

- Estás gracejando, sussurrou.

- Não, falou Pilatos, ainda agradavelmente. - César olha com simpatia para teu irmão. - Bebericou algum vinho, enquanto Antipas agarrava-se à beirada da mesa e inclinava-se para ele, arquejante. - Chamei-vos aqui esta noite para contar-vos isso, a ti e a Filipe. Tens tua Herodíades, tens tua fabulosa fortuna. Sugiro, portanto, que deixes a Judéia. Será mais agradável para todos.

Lucano quase teve compaixão do desesperado Antipas, e desviou os olhos. A humilhação não devia ter sido infligida diante de um estranho como ele.

- Eu apelarei para Agripa, disse Antipas, em voz guinchada e confusa.

- Não o faças, advirto-te. Tua atitude não será bem-vista.

- Pensei que fosses meu amigo, Pôncio.

- É como teu amigo que te transmito esta mensagem. Se fosse teu inimigo, mandaria uma ordem peremptória e te removeria publicamente diante dos rostos zombeteiros de teu povo.

Antipas virou-se para seu irmão e a mão saltou para a adaga que usava. Filipe fixou os olhos nele, com altaneiro desdém.

- Tu fizeste isto! exclamou Antipas. - Tu me traíste, tu conspiraste contra mim, para te vingares!

- Sugiro, disse Pilatos, que nenhum mal venha a Filipe. Na verdade, designei meu oficial-chefe, Plócio, para guardar a casa de Filipe, no caso de seres indiscreto bastante para violar os desejos de Tibério e fazer com que a Filipe aconteça... um acidente.

Lucano levantou-se e disse, friamente:

- Estou cansado. Devo implorar da tua generosidade, Pilatos, que me desculpes.

Antipas voltou contra ele sua cólera. Apontou para Lucano, com um dedo que tremia:

- Foste tu, usando o anel de César, que não só induziste Pilatos a cancelar o banimento dos cristãos, como sugeriste meu exílio para proteger teus andrajosos amigos!

Pilatos ergueu uma das mãos, em admoestação:

- Ninguém te traiu, Antipas, nem teu irmão nem eu próprio. Acabemos com estas acusações.

Fez sinal a um escravo e mandou vir uma liteira para Lucano. O grego inclinou-se para os que ficavam à mesa, e deixou a casa.

- Sugiro também, disse Pilatos a Antipas, que nada aconteça a Lucano. Ele está sob proteção de Tibério e sabes em que homem sanguinário o César se tornou.

 

Lucano contou a seus amigos, Hilell e Arieh, o que se passara na casa de Pilatos. Eles ouviram com profundo interesse, depois Hilell disse, jubilosamente:

- Agradeçamos a Deus a remoção de Herodes Antipas!

- Apesar disso, Pilatos não o deveria ter humilhado diante de mim.

- Ele é um homem inescrutável, e teve suas razões.

E Hilell continuou, para dizer que Maria, a Mãe de Cristo, havia voltado a seu povo para uma visita a Nazaré. Houvera morte entre seus parentes.

- Eu a visitarei ali disse Lucano. Hilell comentou que a viagem era demorada.

- Entretanto disse ele poderás ver a Galiléia, onde Ele primeiro ensinou. É um lugar belo! Mas há ali uma pequena cidade, chamada Tiberíades, construída por Herodes em louvor de César. Os judeus a vêem como uma abominação, e não a visitam. Nem o Cristo a Visitou. Falou num monte próximo, na sinagoga, que é simples e humilde, como é o povo. Mas não há pressa. Fica conosco até o casamento de Arieh e Lea.

- Devo ir tratar dos meus assuntos disse Lucano, pesaroso.

- Então, esperaremos até que regresses.

Naquela noite, ao ficar sozinho, Lucano escreveu o que ouvira de Pilatos e de Herodes Antipas sobre Jesus. Seu Evangelho crescia. Nada colocou ali de suas próprias opiniões, apenas as informações que lhe eram dadas. Às vezes, vinha-lhe um desejo dominador. Se ao menos tivesse visto pessoalmente o Cristo, se ao menos tivesse podido falar com Ele, olhar para Seus olhos maravilhosos. Eu não o teria desertado quando seus seguidores o abandonaram em pânico, pensava.

Na manhã seguinte, bem cedo, foi de liteira até a casa de Tiago e João, fora das portas. Hilell mandara uma mensagem aos dois jovens irmãos, que concordaram, embora um tanto mal-humorados, em receber Lucano. Hilell escrevera-lhes dizendo que, se não fosse Lucano, a ordem de banimento teria sido mantida. Uma vez fora das portas, e descendo a colina de Sião, Lucano olhou através da quente e ardente poeira. Embora a manhã fosse nova, as paredes amarelas de Jerusalém reluziam com uma luz terrível. Deslumbradora e sinistra incandescência iluminava as pedras das paredes e as montanhas onduladas e pedregosas. Mesmo as colinas cultivadas mantinham-se rígidas, desdobrando-se em amarga desolação.

As casas amontoadas fora das muralhas subiam pela montanha de um tom cinza-amarelado e ardente à luz. A maior parte delas era pobre, com pequenos retalhos de jardins empoeirados, palmeiras, pinheiros, oliveiras e árvores frutíferas a arquejar em torno delas.

Jamais Lucano vira terra tão ressecada, tão árida, tão cheia de pó. Os servos que levavam a liteira começaram a arquejar quando subiam uma das colinas, e pararam, finalmente, aliviados, diante de uma pequena casa amarelada, ainda mais pobre do que as outras. Um jovem estava de pé nos degraus, a expressão sombria, esperando em silêncio, a fronte carregada. Deveria ter feito algum comentário, porque veio ter com ele outro jovem com o rosto muito estreito e pálido, sobrancelhas negras e exuberantes, boca cheia, porém dura, e uma quantidade de cabelos encaracolados, castanhos, tombando de sua cabeça alta. O primeiro homem estava vestido de cinzento, e trazia por cima desse traje um manto verde. O segundo usava um traje de tom amarelo-fosco. Ambos pareciam muito pobres. Nada disseram, quando Lucano desceu da liteira. Apenas ficaram a olhar para ele, ali, de pé.

- Sou Lucano, médico, e hóspede de Hilell ben Hamram - disse Lucano, tentando sorrir diante do olhar formidável, combinado, que os outros haviam fixado nele. - Vós me esperáveis?

Os dois entreolharam-se. O mais velho não tinha o rosto tão estreito quando o do irmão, porém mostrava um nariz longo e fino, barba, cabelo escuro e boca mais delgada. Aparentava ar mais moderado do que o do outro, que era de indômito fanatismo e gelada selvageria. Disse, em aramaico, empastado pelo sotaque galileu:

- Nós te esperávamos.

Não fizeram outra saudação a Lucano.

- Eu sou Tiago, filho de Zebedeu de Cafarnaum, e este é meu irmão, João. E Tiago indicava o irmão mais moço, o do rosto intimidador e grandes olhos vingativos, que tinha a fixidez de um temperamento arrebatado. "Filhos do trovão!" Como a descrição estava bem aplicada àqueles dois homens. Lucano sentiu-lhe a intensa hostilidade, sua relutância em falar com ele e sua apaixonada desconfiança.

- Sou cristão disse, caminhando para ambos, e esperando abrandá-los. Mas eles não lhe responderam. Com um movimento de cabeça, Tiago indicou a Lucano que os seguisse, e levaram-no em silêncio para o fundo da casa, pequena e miserável, onde as paredes lançavam alguma sombra dentro da luz violeta. Havia ali um jardim, apenas poeira amarela e pedras; dois bancos de madeira ficavam perto da parede da casa. Os irmãos sentaram-se em um e tornaram a pregar olhos perscrutadores em Lucano, que se sentou no outro banco.

Suspirou. Aqueles homens iam ser difíceis. Ele era o estrangeiro, o incircunciso, o imundo. Se tivessem vinho ou pão não iriam oferecer-lhe, nem mesmo iriam agradecer-lhe tê-los redimido.

Pensara em falar-lhes de Keptah, dos caldeus, dos babilônios, de José ben Gamliel, dos gregos e de seu Deus Desconhecido e de todas as profecias que tinham vindo com o correr dos tempos, não só dos judeus, mas de outros. Mas viu, imediatamente, que não só eles não poderiam entender, mas ficariam incrédulos e ainda mais ressentidos do que antes. Olhando gravemente para eles, cogitou no porquê daqueles que haviam caminhado com Jesus serem tão pouco hospitaleiros, tão sem caridade para com o estrangeiro, tão duros e violentos.

Sob o duplo e inamistoso olhar, Lucano falou com hesitação do Evangelho que estava escrevendo. Disse-lhe que em suas viagens ouvira falar muito no Messias. Desejava apenas que eles lhe contassem o que tinham sabido, de forma que ele pudesse continuar seu trabalho.

- Eu nunca O vi, mas amei-O durante muitos anos disse ele, - delicadamente.

João falou pela primeira vez, a voz firme:

- Nós te diremos o que vimos com os nossos olhos.

Respirou profundamente, e o arrebatamento frio e selvagem de seus olhos tornou-se mais concentrado.

- Mas tu não compreenderás. Viste-O? Ouviste-O? Sem isso nada podes saber.

Sim, pensou Lucano, vós O conhecestes e O ouvistes, mas Sua delicadeza e amor não estão em vós, nem Sua caridade. Sereis bons evangelistas, mas haverá pouca misericórdia ou ternura, ou bondade no que dizeis ou fazeis.

Tiago disse, a voz comida:

- Se ao menos Ele tivesse fulminado esta cidade, quando ela ousou rejeitá-Lo! Por que não trouxe Ele a fúria do céu contra esta cidade?

Lucano não respondeu. Descansou as mãos nos joelhos, e esperou. Os irmãos trocaram outro olhar. Não eram gêmeos, mas via-se que se faziam inseparáveis. Conversavam um com o outro através de olhares eloqüentes, e tinham pouca necessidade de palavras. O calor terrível penetrava mesmo aquela sombra empoeirada e Lucano enxugou a testa e as faces com o lenço. Os outros recomeçaram a contemplá-lo, e agora, pela primeira vez, aparecia curiosidade em seus rostos abrasados. A calma de Lucano, sua gravidade, a beleza de seu semblante, o azul sereno de seus olhos tinham começado a impressioná-los e a diminuir um tanto sua animosidade natural pelo estrangeiro.

Foi João, o mais jovem, que começou a falar em frases curtas e relutantes. Mas, depois de algum tempo, foi tomado por um arrebatamento incontrolável. Seus olhos adquiriram luz vívida e interior, e ele fixou-os no céu ardente. Eloqüência surgiu em sua voz.

- No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus! Louvado seja o Seu Nome! Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens!

João falou dos milagres de Cristo, de Seus ensinamentos, de João Batista. Quando estava falando sobre a selvagem veemência de João Batista, sua voz tomou uma qualidade lírica e enfática. Ali estava alguém que falava de cólera e vingança de Deus contra os incréus, do julgamento que viria, de proclamações apavorantes. Ali estava um que advertia, que não falava de misericórdia! O apaixonado cidadão do deserto, o comedor de mel agreste e gafanhotos, o vociferante, barbado, seminu diante de Deus, estava próximo do coração de João. Ele apertava as mãos finas contra os joelhos e estremecia de deleite e júbilo.

- Eu tive grandes Revelações! exclamou ele, batendo nos joelhos com os punhos. - Do Dia do Julgamento, das tremendas coisas que acontecerão, dos ferventes poços do inferno dentro dos quais as almas perversas cairão como flocos de neve, de querubins e serafins vingadores, dos bons e dos maus que serão separados pela eternidade, da cólera de Deus e dos condenados perpetuamente! Eu próprio escreverei sobre essas coisas!

- Sim, sim disse Lucano, abrandando-o. - Mas eu vim para saber das palavras Dele e de Seus milagres.

Não gostava do fulgor terrível nos olhos do jovem João.

As narinas dilatadas de João estremeceram. Ele estava tendo as mais pavorosas visões com seus olhos interiores, e regozijava-se com elas, vingativamente. Teve um sobressalto ao ouvir a voz de Lucano, e olhou para ele como um cego. Tiago disse:

- Nosso visitante perguntou sobre as palavras de Deus e sobre Seus milagres entre os homens. Fomos testemunhas. Continua.

Assim, João, cujos gestos tornaram-se mais eloqüentes, mais arrebatados, disse a Lucano o que ele desejava saber. O tempo passou, sufocante, com o calor e a poeira irritante, e Lucano ouvia com toda a sua alma. A voz de João tomou tonalidades triunfantes de júbilo. Quando outros, falando de Cristo, tinham palavras de amor e terna alegria, João falava com crescente exaltação e poder. As vezes, não se podia conter e levantava-se, pondo-se a andar de cá para lá, o rosto estreito flamejante. Parecia crescer em estatura e força, caminhando da sombra de um tom violeta forte para a ainda mais forte fulguração da luz, de forma que suas feições mostravam-se iluminadas e ensombradas, alternativamente, suas mãos a um momento obscurecidas, e a outro momento assemelhando-se a mãos feitas de chama. A despeito de si próprio Lucano estava fascinado, tanto pela maneira estranha do jovem evangelista como pelas histórias que ele relatava. Às vezes, Tiago interrompia, quando João, cansado, parava por um momento para esclarecer uma parábola ou uma história. E João o contemplava, impaciente, os olhos profundos. Durante as pausas, Lucano escrevia, rapidamente, com seu estilo, para que as informações fossem precisas. Uma ou duas vezes pensou: Este homem apenas desanimaria os considerados, os delicados, os compassivos. Mas será um pilar de pavoroso fogo para os lânguidos, os apagados, os egoístas, os indiferentes, os céticos, os apáticos, e para os que são capazes de visões e escarnecem dos exatos. Será o terror dos materialistas. Atrairá as paixões, e pode acender paixões mesmo nos mais complacentes.

Quando João relatava o que vira e ouvira, não era com o deslumbramento, a felicidade e o desgosto expressos pelos outros a Lucano.

Contava a história com ar de furioso desafio, como que raptando a incredulidade, e pronto a esmagá-la.

Contou sobre a crucifixão, sem a dor, o medo, a melancolia de Prisco, mas com raiva e agonia, o seu rosto vingativo tornou-se ainda mais acentuado. Às vezes, Tiago movia-se, constrangido, não em desacordo com o irmão, mas pela visão dos seus olhos furibundos e pelo tom de sua voz. E, às vezes, João olhava para Lucano com uma violência que indicava acreditar quase que o próprio Lucano se incumbira de transpassar com os cravos a carne sagrada. Eu estou aqui condenado como os perversos gentios que destruíram o Corpo de Cristo, refletiu ele, e está claro que ele me acredita consignado ao mais fervilhante inferno.

A hora do meio-dia veio com luz intolerável sobre a pequena e pobre casa, e a sombra diminuiu. Agora, João estava exausto; tombou no banco e cobriu com as mãos o rosto suarento, soluçando alto.

Murmurava, continuadamente:

- O Dia do Julgamento Eterno! Eu o vi em minha alma e minha alma estremece de medo, contudo está exaltada!

Duas cabras aproximaram-se do lado da casa, procurando sombra, mais cardos e relva seca. Tiago entrou na casa e trouxe um balde de bronze, passando a ordenhar os indiscretos animais. Levou o balde para dentro e retornou trazendo três canecas de barro e um prato com pão preto e um pouco de queijo. Colocou tudo no banco, a seu lado, bondosamente, para o irmão.

- Vamos repousar e comer disse.

- Aproxima-se o dia em que não mais haverá o que comer e o que beber disse João, a voz trêmula. Apesar disso, deixou tombar as mãos. Seu rosto pálido estava manchado pela pressão desesperada de seus dedos. Olhou para as três canecas onde espumava o leite de cabra, e sua boca abriu-se, como que para protestar. Ainda não estava preparado para comer e beber sem constrangimento com o gentio, ou para aceitar sua presença com equanimidade. Tiago, porém, tomou uma das canecas e deu-a a Lucano, apresentando-lhe o prato de estanho onde estavam o pão e o queijo. Lucano sorria-lhe, com gratidão, e o rosto de Tiago tomou um aspecto de incerteza encabulada.

Compreenderás que a alma de meu irmão ainda não se conformou com os acontecimentos disse ele.

- João franziu as sobrancelhas, implacável. Em silêncio, tomou também uma caneca, mas recusou o alimento.

- Temos ordens para levar as notícias a todas as nações do mundo disse ele, como que litigiosamente.

- Eu sou uma "das nações do mundo" disse Lucano, que ao mesmo tempo sentia piedade e algum constrangimento diante daquele homem orgulhoso, maltratado e arrebatado. João bebia o leite, sombriamente. Seus pensamentos já haviam abandonado Lucano e era como se conversasse apenas consigo mesmo, agora, e intimamente rezasse com crescente fervor. Tiago, entretanto, olhava para Lucano, cada vez mais incerto, como se sua opinião se estivesse modificando e ele se arrependesse de se ter mostrado pouco hospitaleiro, de início.

Falou, finalmente:

- Não pense que somos ingratos em relação ao que fizeste por nós.

João levantou a cabeça, e disse, escarnecedor:

- O Senhor não permitiria que fôssemos perseguidos durante muito tempo!

Lucano não fez comentário algum. Sua liteira chegou, e ele levantou-se para sair, agradecendo a Tiago o bom leite e o alimento. Tiago levantou-se e seguiu-o até a frente da casa, mas João permaneceu em seu banco, a cabeça baixa e o peito arquejante. Quando Lucano entrou na rica liteira e ergueu a mão em despedida, Tiago hesitou, depois ergueu desajeitadamente a própria mão, saudando-o. E voltou-se rapidamente. Lucano sentiu piedade maior pelos irmãos. Tinham sido exortados a realizar uma tarefa gigantesca entre estrangeiros; seus espíritos temiam-na, mas mesmo assim precisavam obedecer.

Quando os portadores da liteira subiram os quentes degraus brancos que levavam às portas de Jerusalém, pararam para descansar por um momento, e daquela altura Lucano podia ver a pequena cidade de Belém, a distância, toda ela de reluzentes casas quadradas, amarelas, com seus telhados planos. Ali Jesus nascera, naquele lugar empoeirado, e ali, nas montanhas próximas, brilhara a grande Estrela e os pastores tinham ouvido as vozes dos anjos trazendo a mensagem dos tempos. Uma região de portentos, uma região das mais estranhas e constrangedoras!

Hilell esperava, nos jardins, onde as fontes irradiavam frescor. Lucano olhou em derredor, com satisfação. Os muros transbordavam de flores, que se espalhavam em nuvem de púrpura. Passagens calçadas com lajes retorciam-se em torno de tanques quebrados, em cuja água nadavam peixes dourados, e moitas de um amarelo brilhante mostravam-se consteladas de flores. Os oleandros floridos exibiam corolas róseas em sua espessa folhagem verde. Canteiros de rosas vermelhas e brancas eram rodeados de passagens pequenas, avermelhadas ou cor de castanha, cuidadosamente rastejadas. Tamareiras, altas e esbeltas, ricas de frutos, lançavam sombras, como as alfarrobeiras. As fontes tagarelas e fulgurantes atiravam água sobre a relva, que reluzia vividamente, num verdor quase impossível. Lucano bebeu um pouco de vinho gelado e contou a Hilell o que fora sua visita a Tiago e João.

- Há homens que fazem a vida difícil para os pacíficos - Comentou Hilell, sacudindo a cabeça bonita.

- Amanhã sigo para Nazaré e Galiléia disse Lucano.

- O cancelamento da proscrição dos cristãos causou muito excitamento em Jerusalém disse Hilell. - A propósito, Pôncio partiu subitamente para Roma, esta manhã, e mandou-me um recado animador, cheio de satisfação. Ele jamais gostou da Judéia. E um grupo de centuriões veio, com toda a importância, trazer para ti uma mensagem de Tibério, com o teu anel.

Deu a Lucano o maravilhoso anel, que este colocou no dedo.

Depois abriu a carta de César.

“Saudações ao nobre Lucano, filho de Diodoro Cirino”:

“Foi com alegria que recebi o anel que te dera, e que estou devolvendo”. Sou agora um velho, e muito cansado. Muitos anos atrás esperava, cinicamente, receber este anel em muitas ocasiões. Mas os anos se passaram e havia silêncio Quando o anel finalmente chegou, por intermédio de Pôncio Pilatos, com o pedido que lhe fazias a respeito de certa proscrição lançada sobre pequena seita judaica, e que devia ser cancelada por ele e, por conseqüência, por mim próprio, fiquei surpreendido. Nada pediste para ti próprio. Meditei. Tenho pensado muitas vezes em ti, meu caro Lucano. Ouvi muito a teu respeito, notícias vindas da casa de Diodoro Cirino. Ficarás satisfeito ao saber que tua família vai bem. Teu irmão, Prisco, foi chamado a Roma para uma longa licença. Ouvi dizer que o curaste de moléstia monstruosa.

Ficarás surpreendido se te disser que não sou cético a esse respeito?

Aceitei integralmente a história. Nas minhas horas mais difíceis volto meus        pensamentos para ti. Às vezes, sinto-me tentado a ordenar que voltes a Roma, para poder conversar contigo e olhar teu rosto. Entretanto, sei que não desejas isso, embora obedecesses ao chamado. Não devo dar ordens a homens como tu, nem mesmo para meu próprio prazer. Vejo-os como outrora os romanos viam os seus deuses: não são para receberem ordens sequer de Césares.

“Ouviste, sem dúvida, as histórias mais horríveis sobre as minhas crueldades e opressões, nos últimos tempos”. Não as negues, mesmo para ti próprio. São verdadeiras. Estou repleto de ódio, e o meu ódio cresce com o tempo. Vingo-me naqueles que me corromperam no povo de Roma, em suas criaturas, nos senadores e tribunos, e nos políticos, e em todos os ávidos e desavergonhados abutres que me rodeiam. Houve um tempo em que sonhei fazer Roma novamente Roma, cheia de virtude, paz, justiça e honra, como teu pai sonhou.

Que César pode prevalecer contra seu povo? Ele o profana. Arrasta sua púrpura pelas sarjetas. Ensurdecem-no com suas esfaimadas exigências. Desonram-no com seus apetites. Enferrujam-lhe a espada com as suas línguas babosas. Estou perdido. Pensa em mim com bondade, se quiseres, pois te amo como um pai.”.

Lucano não pôde evitar as lágrimas lendo aquela carta, e deu-a a Hilell para que a lesse. Hilell, que começou a ler friamente, terminou bastante comovido.

- Pobre homem, murmurou, finalmente. - Como deve ser amargurado e sofrido, para confiar assim em alguém.

E continuou:

- Apesar da advertência de Pilatos, Herodes Antipas apelou para seu cunhado Agripa, em Roma. Agripa tem muita influência. Portanto, haverá um adiamento na partida de Antipas de Jerusalém, até que se veja qual o poder de Agripa junto de César. Adiamentos são as armas formidáveis dos príncipes. Não haverá imediato recomeço de perseguição aos cristãos, aqui, mas nada se pode dizer quanto ao futuro. Tudo dependerá da própria discrição deles, que, como se trata de homens fervorosos, é coisa que lhes falta. O alto sacerdote está furioso, e manda mensagens constantes a Antipas. Quem sabe o que trará o futuro? De uma coisa podemos estar seguros: trará modificações, para bem ou para mal.

“Tenho amigos em muitos pontos do mundo”. Os judeus cristãos tentam fazer proselitismo em Damasco, e há ali muita cólera. Isso disseram-me hoje. Parece que alguns dos mais jovens e mais fervorosos discípulos de Jesus chegaram àquela cidade, e pregam e exortam constantemente levando suas notícias aos mais piedosos judeus em suas próprias residências. Recebi esta manhã uma carta de meu bom amigo, Saulo de Tarso, cidadão romano, membro de nobre casa judaica, advogado de grande magnitude e oficial romano. Vai a Damasco para abater a insurreição e as desordens naquela cidade. Toma a sério seus deveres romanos. Pretendia visitar-me aqui, mas trabalhos de último momento, no tribunal de leis, o impediram. Saulo é homem de poder bastante grande, e severo. Receio pelos cristãos de Damasco.

Lucano ficou pensativo e ansioso. Então, depois de ter meditado, de súbito se sentiu aliviado, misteriosamente consolado.

- Não te aflijas falou, espantado com suas próprias palavras.

- Tudo correrá bem.

- Não gosto de premonições disse Hilell, sorrindo pois sou homem de mentalidade lógica e não muito dado ao otimismo. Mas quando dizes que tudo irá bem, sinto que falas com a língua dos anjos, e não com a língua dos homens.

 

Hilell desejava fornecer uma escolta a Lucano, até Nazaré e Galiléia. Este, porém, recusou, com gratidão. Necessitava apenas de um cavalo forte e robusto, com resistência suficiente para aquele longo e acidentado percurso. Passaria muitas noites na estrada, em tavernas. Hilell ficou horrorizado. Mesmo conhecendo Lucano como conhecia, parecia-lhe incrível que um cidadão romano, de família nobre, médico de fortuna considerável, amigo de César, pudesse viajar como homem comum.

- Não estou tentando mostrar-me humilde disse Lucano, sorrindo. - Só desejo viajar mais depressa, sem nada que me preocupe, e ver a região.

O cavalo que Hilell forneceu a Lucano era um árabe de tranqüila disposição e habituado a longas viagens no pó e nas montanhas.

Lucano prendeu à sela seu estojo de médico, um cobertor, e seu material de pintura; Hilell insistiu em acrescentar uma cesta com comidas e vinhos. Lucano envolveu a cabeça num turbante, contra o sol ardente, e cobriu as pernas com um manto pesado. Com apreensão, Hilell despediu-se dele, acenando com a mão para o amigo.

Era pela manhã, bem cedo. Lucano deixou Jerusalém, e o ar já estava quente. O cavalo, descansado, trotava energicamente. Cruzaram o rio Cedron sobre uma ponte de pedra. O céu mostrava um profundo tom dourado, que se refletia em veios e sombras sobre as águas estreitas e quietas, com suas ondulações de colorido mais brilhante.

As margens eram guardadas por ciprestes de pontas negras. Hilell aconselhara o itinerário através de Betânia e Jericó, de forma que Lucano chegasse ao rio Jordão, seguindo-o até a Galiléia, que visitaria em primeiro lugar. Depressa o viajante encontrou-se em região erma, desolada, de um tom castanho-esverdeado, despida de árvores, a terra emaranhada de cardos, toda rodeada de colinas baixas e rasas, cor de bronze, e reluzentes sob o calor. A estrada rústica e estreita mostrava-se vazia, pois era pouco freqüentada, os demais preferindo o caminho mais longo da Via Mare, próximo do mar.

Às vezes, Lucano passava por uma fortaleza romana solitária, de cujo topo os soldados, com curiosidade, olhavam para ele. Certa ocasião foi detido e interrogado informalmente por um oficial, que não compreendia como um homem vestido tão humildemente podia ter cavalo tão belo, em tal estrada. Quando Lucano revelou sua identidade, o oficial ficou mais perplexo que nunca, mas tornou-se respeitoso.

Convidou Lucano a tomar vinho com ele, e o médico, que tinha sede, aceitou e entrou no interior mais fresco da fortaleza, sentando-se num banco de pedra para beber o vinho com o jovem oficial. Depois de algumas perguntas indiscretas, Lucano respondeu dizendo que ia visitar Tiberíades. O oficial reparou nos esplêndidos anéis do médico e disse:

- Embora judeu algum tentasse roubar-te, nem mesmo os bárbaros samaritanos, haverá caravanas mesquinhas, pobres, pelas estradas, que não hesitarão em cortar-te o pescoço por esses anéis.

Assim, Lucano guardou-os em seu estojo.

Ao continuar o caminho encontrou, de fato, uma ou duas pequenas caravanas de camelos, burros e homens de rostos violentos, que fixaram os olhos em seu cavalo. Lucano, porém, olhou também para eles. Era homem de alta estatura, trazia uma espada à cinta e seus olhos mostravam-se frios e desassombrados.

Chegou a Betânia, trotando sob ondulantes vagas de calor. As ruazinhas apertadas eram forradas e encobertas por uma poeira flutuante, amarela, e o povo movia-se ruidosamente, tagarelando e discutindo, as faces severas escuras pelo sol, as cabeças protegidas com turbantes pretos, brancos ou marrons, acompanhando roupas empoeiradas das mesmas cores. As lojas minúsculas ferviam de gente, todos parecendo irritados, e cães ladravam, crianças brincavam nos degraus das ladeiras, e as mulheres, com seus jarros à cabeça, paravam para trocar mexericos. Cheiro forte de carne assada, vinho ácido, ervas, alho, entranhas de animais suspendia-se sobre a pequena cidade, e Lucano sentiu-se satisfeito por sair dela dentro de pouco tempo. Então, veio de novo a região erma. As montanhas modificaram-se, tornaram-se monótonas, cor de terracota, com projeções de vilarejos amontoados, recobertos de uma tonalidade cinza-esbranquiçada. As planícies que rodeavam Lucano eram abandonadas, com ar infinitamente solitário e deserto, crestadas e vazias. Uma palmeira ocasional, que mais parecia um bastão empoeirado, lutava pela sua miserável vida, num chão escuro e friável, onde se espalhavam grandes pedras redondas e negras.

Moitas raquíticas, semimortas, abafadas pelos cardos que tudo submergiam, e pelas altas massas de cactos, só aumentavam a melancolia daquele cenário selvagem. E o sol, como um orbe esbraseado, despejava para baixo suas cataratas de insuportável luz.

Era meio-dia quando Lucano chegou, num tanque de água intensamente azul, naquela tarde abandonada, mantido por uma nascente subterrânea. Para seu deleite, salgueiros novos, de um tom verde-amarelado, sacudiam seus galhos em derredor dele, deixando que sua ramagem delicada se balançasse ao ar quente. Amarrou o cavalo, depois que o animal bebeu o quanto quis daquela água fresca, e deu-lhe um saco de aveia. Então sentou-se à sombra dos salgueiros e abriu sua cesta de comida. Comeu uma porção da deliciosa ave assada, recheada com miolo de pão, ervas e cebolas, alguns bolos de aveia, que cobriu de mel, e dois deliciosos pastéis. Bebeu o excelente vinho de Hilell, que tivera o cuidado de mergulhar antes na água fria. Era como se estivesse sentado no centro de uma miragem, com a terra selvagem e estéril a rodeá-lo, as colinas pedregosas fumegantes pelo calor e pela poeira a pequena distância. Em parte alguma via criatura viva; imenso silêncio jazia sobre a terra e as colinas. Sentiu sonolência, sacudiu a cabeça e tornou a montar.

Teve cuidado de manter-se na estrada que passava por fora de Jericó, mas pôde ver a cidade propriamente dita, toda aglomerada, casas marrons, de dois andares, separadas por maciços de ciprestes, abatidos sob o calor. E, mesmo àquela distância, pôde ouvir o clamor de vozes. Agora, encontrava rebanhos de carneiros pastando na relva crestada, e pastores de rostos sombrios. Ou numerosas cabras guardadas por meninos suarentos e ruidosos. Acelerou o passo de seu cavalo na direção do rio Jordão, pois a noite caía subitamente naquela região e Hilell lhe falara numa taverna próxima ao rio. Quase imperceptivelmente, a terra começava a fazer-se mais fértil. Um monte ocasional mostrava terraços que fechavam pequenos tratos de relva ou de paineira e oliveiras, mesmo de alguma fruta. Vinhedos atiravam sua fragrância ao ar ardente. Lucano subiu uma montanha despida, as pedras rolando em torno dele, ruidosas naquele silêncio. Alcançou o topo, e ali, abaixo dele, estava o estreito e tortuoso Jordão, de um verde incrível, margeado de salgueiros e de altas árvores refrescantes.

Sentindo o cheiro da água, o cavalo desceu rapidamente a montanha, e aumentou sua velocidade.

Alcançando os altos barrancos do rio, Lucano desmontou, e homem e cavalo deslizaram e desceram com dificuldade pela terra quente e úmida, até a água. O cavalo bebeu, sofregamente, e Lucano banhou a cabeça, o rosto e as mãos. A doçura da fertilidade estava no rio esmeraldino, que se dobrava fortemente, à distância. Pequenas granjas erguiam-se próximo dele, as casas brancas, claras sob o sol, ou abrigadas sob ciprestes e outras árvores. Daquele lugar, mesmo as montanhas que estavam em toda parte mostravam aspecto menos impressionante e terrível. Uma criança, com um bando de gansos, aproximou-se de Lucano, olhando-o curiosamente, com grandes olhos negros. Lucano cumprimentou bondosamente a menininha. Ela hesitou, depois respondeu em aramaico, com o sotaque dos samaritanos. Ele fez-lhe sinal para que se aproximasse, desejando dar-lhe um dos doces de sua cesta, mas ela não se chegou mais. Pensava que ele fosse um judeu, e os samaritanos estavam sempre em conflito com seus companheiros judeus, considerando-os demasiado cultos, demasiado superiores e pregando-lhes peças durante os dias santificados, tal como acender fogueiras nas montanhas, para embaraçar os sacerdotes. De súbito ela deu um riso estridente, pôs a língua para ele com atrevimento, e correu, fugindo com seus gansos, que silvavam e grasnavam atrás dela.

Lucano, tornando a montar, seguiu o rio, incrivelmente tortuoso, e arejou seus sentidos com as pequenas granjas, os sons vindos do gado e carneiros, o chilrear de muitos pássaros nas árvores de um verde escuro, os campos dourados de cevada, aveia e trigo, sob a luz que descia, e com as agradáveis casas das granjas, brancas e quadradas, com seus alegres jardins. As vertentes das montanhas eram ali cultivadas, e pareciam ter sido recobertas com imensos, gigantescos tapetes persas, multicoloridos. Agora, a luz descia mais depressa. O rio modificava-se, correndo, dourado, entre seus barrancos. O céu tomou rubor escarlate e fez-se cor de jade sobre as montanhas. O ar tornou-se mais frio.

Lucano então encontrou a taverna próxima do rio, com um pátio cujo piso era de pedras lisas, reluzentes e negras. Era uma taverna pequena, mas limpa. O taverneiro recebeu Lucano com prazer, reparando em seu cavalo. Nem mesmo o aramaico corrente de Lucano o incomodou, ou esfriou seu coração samaritano. Não era sempre que abrigava viajantes com cavalos tais, e as maneiras de Lucano, pelo menos, asseguravam ao taverneiro que ali não estava um homem abatido pela pobreza. Ficou tão satisfeito com aquele visitante que resolveu não lhe cobrar mais do que três vezes o preço da tabela, pelo alimento e pelo quarto. Levou Lucano para um pequeno aposento, limpo, de frente para o rio, e garantiu-lhe que o leito era confortável, nele não existindo pulgas ou piolhos. Lucano olhou para o piso nu, de madeira branca, e confirmou com um movimento de cabeça.

Sentou-se cansado à beira da cama, bocejando. A taverna enchia-se com as vozes rudes dos homens e seu riso alto. Cavalos batiam com as patas no estábulo. Pés roçavam nas pedras do pátio, e algumas das moças que serviam soltavam risadas alegres. Através das gelosias rústicas que cobriam uma janela pequena, um aroma de terra fértil, uvas e esterco invadia o quarto, acompanhado pelo bom cheiro de cabrito assado e do pão que cozia, bem como da sopa espessa e temperada.

Uma arrumadeira, sem bater na porta, trouxe para Lucano um jarro de água quente, bacia, e toalha de linho áspero. Ele deu-lhe uma moeda, e a moça ficou tão surpreendida e encantada que o surpreendeu com um risinho amplo, examinando-o mais de perto. A aparência dele agradou-lhe, embora a pele clara do médico estivesse quente e vermelha, queimada pelo sol. A moça lhe fez uma mesura e deixou-o, descendo para a cozinha, a fim de falar sobre o cavalheiro estrangeiro que lhe dera tão valiosa moeda.

Lucano abriu as gelosias e olhou para o céu alaranjado sobre as montanhas. Ouviu as vozes sussurrantes do rio, que falava consigo mesmo entre suas árvores e salgueiros. Lavou cuidadosamente o rosto, fazendo careta, e passou óleo na pele queimada. Desceu, então, um lance curto de degraus de pedra, entrando na sala de refeições comum, onde pelo menos dez viajantes já estavam sentados. Uma imensa lareira de pedra estava com o fogo de lenha e, num espeto, a carne girava lentamente, tendo ao lado uma jovem que a ia banhando com a gordura que dela pingava. O piso da sala era de lajes, as paredes caiadas. Os outros viajantes silenciaram ao ver Lucano, seus rostos morenos tornando-se vigilantes, enquanto tentavam identificá-lo como judeu, galileu ou samaritano. Tinham retirado seus turbantes, e mostravam cabelos rusticamente penteados. Aqueles olhos luziam à luz misturada da lareira e das lâmpadas.

       Lucano saudou-os, cautelosamente, em aramaico. De início, não lhe responderam. Ergueram os ombros e trocaram olhares. Depois, responderam, com voz cansada. Os galileus eram quase tão louros quanto ele, assim como muitos dos judeus. Mas Lucano não tinha aparência judaica, apesar da perfeição de sua linguagem. Agora, os olhos que reluziam tornavam-se desconfiados. Lucano sorriu para todos, mas eles não lhe retribuíram o sorriso. Então o médico pensou, com ansiedade, em seu estojo lá em cima, com seus anéis. Tinha fechado à chave a sua porta, mas ladrões jamais se deixam deter por uma porta fechada à chave. Lembrou-se de Cusa e de sua habilidade e tornou a sorrir. Os homens durante algum tempo não falaram; sentiam uma presença estranha. Relanceavam os olhos para os trajes pobres de Lucano e ficavam perplexos. Ele tinha um ar de segurança e calma, apesar de suas roupas, e os viajantes já haviam tido conhecimento de seu belo cavalo. Ele era misterioso, com suas maneiras principescas, e aqueles homens não gostavam de mistérios.

Ao redor da mesa, havia pouco vociferante, caiu um silêncio cismarento. A sopa era espessa e boa, carregada com especiarias e ervas, e com pedaços de carne cozida e farinha. Os viajantes comeram, em silêncio pesado, olhando ocasionalmente para Lucano, que estava apreciando a refeição. Os criados, tendo tido notícias de sua generosidade, serviam-no em primeiro lugar, com deferência, na esperança de maior largueza. Ele recebeu os pedaços mais macios do cabrito assado, e a ração mais suculenta da ave cozida. Do vinho, execrável, sua taça era mantida cheia. Seu prato via-se constantemente renovado com as tâmaras mais maduras e muitas azeitonas salgadas e legumes cozidos. Uma das criadas, com floreio, abriu a fruta de um cacto e, requintadamente, retirou-lhe a polpa com uma colher, para que ele não se machucasse com os espinhos da casca.

Tudo aquilo os viajantes notaram, com mescla de ressentimento e aumentada hostilidade e desconfiança. Lucano comeu com apetite.

Terminando a refeição, abriu a bolsa e depositou o que era considerado uma gratificação enorme, ao lado do seu prato. Os viajantes remexeram-se em seus lugares, entreolhando-se.

Um deles, homem arrogante, barbado, olhos coléricos, falou, grosseiramente:

- Quem és tu, senhor?

- Eu? perguntou Lucano, surpreendido. - Sou médico, e chamo-me Lucano.

- Romano? foi a pergunta, repleta de desprezo.

- Não, Grego. - E Lucano sorria.

- Falas o aramaico muito bem, senhor.

- Falo muitos idiomas.

Pela primeira vez, Lucano teve noção da hostilidade reinante.

- Usas espada. Os médicos costumam usar espadas?

- Numa região pacífica? indagou outro.

Lucano olhou para sua espada, depois para os rostos ameaçadores.

- Sou excelente espadachim disse, calmamente. - Fui o melhor atleta de Alexandria.

Ninguém lhe respondeu, mas todos eles olharam-no ferozmente.

Um deles falou, finalmente, constrangido diante da firmeza azul dos olhos de Lucano:

- Somos gente pacífica. Não gostamos de armas.

Lucano ergueu os ombros.

- Eu durmo com a espada na mão disse ele, levantando-se.

Pensara em sair por ali a pé, depois do jantar. Desistiu da idéia.

Foi para o quarto e trancou cuidadosamente as gelosias e a porta. Tirou a espada da bainha e colocou-a na cama. Subitamente, sentia-se exausto. Deitou-se e adormeceu instantaneamente. Conservou a lâmpada acesa.

Levantou-se logo depois do amanhecer, e tornou-se depressa querido do estalajadeiro por não protestar contra a vergonhosa soma de sua conta. O homem despediu-o com bênçãos e as criadas reuniram-se nu pátio para guinchar-lhe adeuses. Seguiu o rio, tanto quanto lhe era possível, mas às vezes a estrada se afastava dele, e de novo era o ermo, durante algum tempo. Agora, muitas das altas colinas mostravam-se interrompidas e bronzeadas, da cor da terra, contra o céu embranquecido e flamejante. Faziam voltar, em eco, o ruído do trote do cavalo. Lucano sentiu-se sozinho, num mundo de vasta desolação; às vezes, via casas sombrias nas colinas, com um ou dois ciprestes poeirentos, e ficava a cogitar em como era possível um ser humano morar em lugar tão terrível. Quando a estrada voltava de novo para junto do rio brilhantemente verde, ele se regozijava, e descia as suas margens para banhar seus braços e pernas aquecidos. Era meio-dia quando comeu o que vinha embrulhado no guardanapo de sua cesta e bebeu algum vinho, arquejando sob o calor insuportável. Recortes do rio reluziam, esmeraldinos, em trechos que ficavam entre as árvores. Mas em suas mãos havia frescura, claridade e calma.

Lucano cavalgou entre minúsculas aldeias, e os cães seguiam-no, ladrando e saltando aos cascos de seu cavalo. Agora estava na província de Decápohs, e notou que o povo se ia fazendo mais louro e mais alto, de olhos azuis ou cinzentos e cabelos e barbas de um tom castanho-claro. Quando passou por um rebanho de cabras, na estrada, o camponês levantou os olhos para ele, sorriu agradavelmente, e saudou-o com o chicote. Cavalgando através da aldeia, passou pela pequena casa de um carpinteiro; o homem estava rodeado por seus quatro filhos e tagarelavam enquanto iam trabalhando na madeira crua, amarelada, que tinha odor resinoso. Lucano pensou em Jesus e em seu pai adotivo. Assim Ele trabalhara, com martelo, plaina e serrote, fabricando o mobiliário simples da zona rural. Assim, José O advertira por ter entortado um prego mal batido. Lucano sentiu-se mais próximo de Cristo junto daqueles carpinteiros do que se sentira em Jerusalém, ou com João e Tiago. Uma mulher saiu da casa com um balde de leite e algumas tigelas, e pai e filhos pararam de trabalhar para beber longamente. A mulher tinha na mão uma roca e sorriu para Lucano. A Mãe de Cristo teria aparecido assim, para refrescar seu Filho e seu marido?

Naquele crepúsculo ele passou para a província da Galiléia, e teria continuado até o próprio mar da Galiléia, mas encontrou uma pequena hospedaria exatamente quando a noite caiu. Estava na região de Jesus, e quando se envolveu no cobertor, naquele lugar pobre, sentiu que tinha chegado à sua pátria.

 

Continuando o caminho, na manhã seguinte, Lucano ficou impressionado pela grande modificação na paisagem e no povo da Galiléia.

Passou por um vilarejo de pequenas casas brancas, brilhando com luz enceguecedora sob o sol do amanhecer, rodeadas de reduzidos jardins férteis e de granjas, tendo, para além, montanhas de um negro especial, brilhante, interrompidas e ásperas, todas contra um céu descolorido, de ardente radiosidade. Tanto as roupas dos homens quanto as das mulheres, que passavam por ele na estrada ou eram vistos atendendo a rebanhos de carneiros de focinhos pretos, eram ali mais alegres. Entre as vestes de um tom roxo escuro ou preto, via outras, amarelas, vermelhas e azuis. As pessoas ali eram mais altas do que as de Decápolis ou da Judéia, e excessivamente louras, com cabelos dourados ou ruivos, e olhos brilhantes, azuis ou de um cinzento claro; suas peles mostravam-se pálidas ou rosadas.

Os homens usavam foices nos cardos e cactos, preparando a terra recoberta para trigo e árvores, e havia neles um ar animado, simples, bondoso e rústico. Crianças tomavam conta de carneirinhos e de aves domésticas, junto de pequenos riachos ondulantes que fugiam do verde Jordão, e riam-se, patinhando na água ou atirando pedras nelas. Mulheres estavam sentadas no limiar das portas, amamentando crianças ou fazendo girar o fuso, ou repreendendo crianças que começavam a andar, cambaleantes. Uma paz profunda e tranqüila se espalhava sobre aquela região rural, que as montanhas de basalto e o calor não conseguiam abalar.

Lucano deixou o rio para seguir a estrada, que subia por um monte escuro e dentado, coberto de saliências de pedra da mesma cor. Alcançou o topo a fim de dar ao seu cavalo um espaço para respirar e olhou em derredor e para o que jazia lá embaixo. Instantaneamente ficou atônito e tomado de respeitoso temor pela cena. Era como alguém que tivesse lutado penosamente para subir montanha escura e nua, vindo do inferno, e subitamente se visse defrontando o Paraíso, imbuído de inefável radiosidade. Porque, numa taça de montanhas que se desdobram, pálido heliotrópio amarelado, estava o mar da Galiléia, brilhante e inteiramente imóvel, celestialmente azul e fulgurante, com sombra de um azul mais escuro riscando sua lisura incandescente. Ali havia não apenas calma, mas uma paz que não era da terra, mais do que completo silêncio. Mesmo quando observava, a taça de montanhas clareou, e pareceu enroscar-se em torno do mar, como píton protetora, suas concavidades cheias de luz dourada, crespa. As silenciosas sombras purpúreas, sobre o mar, aprofundavam-se por cima da expansão azul.

O rio Jordão retorcia-se afastando-se do mar, e era verde -esmeralda, rodeado pela fertilidade rica dos salgueiros e das árvores, da sombra e da terra quieta e fecunda. Nenhuma voz e nenhum movimento interrompiam a abafada quietude, embora na vertente escura, abaixo de Lucano, estivessem plantados palmeiras e olivais, bem como vinhedos e árvores frutíferas. A folhagem das oliveiras tinha o aspecto de prata cinzelada; as palmas verdes não oscilavam no ar puro e sem vento, as romãs deixavam-se pender dos galhos, como pedras preciosas. Os carneiros dormiam em torno das oliveiras, sua lã de um tom de ouro pálido. Não havia ali grito de pássaro, rompendo a aurifulgência.

A paz que ficava para além da compreensão, a luz que não pousava na terra nem no mar estavam como que colhidas em cristal radiante, eterno e imutável.

Lucano ficou sobre seu cavalo, como uma estátua, durante muito tempo, respirando o ar brilhante e banhando-se naquela paz que infundia respeitoso temor. Então viu Tiberíades à beira da água, a cidadezinha construída por Herodes Antipas em honra de Tibério, amaldiçoada e evitada pelos judeus, pois fora erguida no local onde ficava o velho cemitério que se chamara Rakkath. O basalto negro da montanha fora usado para construir as fortalezas romanas que guardavam a cidade, e também muitas das casas, embora as do centro fossem brancas e cor de açafrão, com telhados rasos e brilhantes.

Lucano pensou: Aqui está o que Ele conheceu, e foi aqui que Ele caminhou, e ensinou e trouxe os homens para Si, sem discussão. Ele conheceu este mar de turquesa e estas montanhas de âmbar sombreadas de violeta.

Começou a lenta descida para o vale e para o mar, sobre a pequena e rústica estrada. Chegara exatamente ao fundo quando ouviu ruído de cascos, e seis soldados e um centurião vieram a meio galope da fortaleza, dirigindo-se a ele, de armadura e elmos, com espadas nas mãos, refletindo a luz como se fossem de fogo. O centurião vinha à frente e saudou-o, com um sorriso sombrio:

- Saudações ao nobre Lucano, filho de Diodoro Cirino disse, em latim, gozando a surpresa do outro. Era homem robusto, de meia-idade, com o rosto aquilino dos romanos, olhos ásperos e pele tisnada de sol. - Sou Aulo, o comandante da fortaleza.

- Saudações, Aulo disse Lucano. - Mas como soubeste que eu vinha?

- Teu amigo, Hilell ben Hamran, escreveu-me e pediu-me que te prestasse todas as honras e conforto.

Lucano, embora dizendo a si próprio quanta solicitude havia em Hilell, de certa forma ficou desgostoso. Tinha esperado encontrar uma pequena hospedaria onde pudesse permanecer por alguns dias, meditando naquele lugar sagrado, e perambulando por onde entendesse, explorando o território. Mas não podia fazer outra coisa senão sorrir agradecido a Aulo, que o observava. E o soldado disse, seu rosto áspero suavizando-se:

- Fui um jovem subalterno sob o comando do heróico Diodoro, e amava-o como a um pai, pois era um grande homem, cheio de virtudes. Agrada-me, agora, atender seu filho adotivo.

Os soldados circundaram Lucano e o centurião, e trotaram na direção da pequena cidade, passando através dos portões da fortaleza.

Levaram o hóspede para dentro da fortaleza, para uma pequena sala onde era servida uma refeição simples. Aulo puxou cerimoniosamente uma cadeira para seu hóspede. Havia ali uma sombra azul, e um frescor se mantinha dentro das paredes de pedra escura.

- Não posso oferecer-te asas de avestruz ou pontas de línguas de flamingos, como se come em Roma disse Aulo. - Temos, porém, bom peixe do mar, pão escuro umedecido, um ganso, frutas e vinho da região. - Parou e piscou um olho: - Tomarias primeiro uma taça desta excelente aguardente síria? É forte e faz com que um homem esqueça suas mágoas.

Lucano pensou que ainda era cedo para a aguardente, mas aceitou, polidamente. O licor parecia âmbar, na taça, mas ácido e ardente na língua e na garganta. Apesar disso, depois de alguns goles Lucano sentiu-se animado, riu e gracejou com o centurião. Seu rosto queimado do sol enrubesceu, os olhos azuis faiscaram. Parecia de novo um jovem. Aulo contou-lhe que tomara aposentos para ele na melhor hospedaria de Tiberíades, à margem forrada de basalto do mar, onde o médico estaria confortavelmente instalado.

- És hóspede de Roma disse o centurião. - Todos sabem que estás sob a proteção de César.

Aulo fez uma pausa. Em sua carta, Hilell apenas mencionava que Lucano desejava dar a volta à região, que o interessava como viajante e como médico. Estava interessado, também, na medicina judaica. Depois da assinatura, Hilell desenhara o contorno de um peixe. As linhas de sol em derredor dos olhos enérgicos do centurião aprofundaram-se.

Tornou a encher a taça de Lucano com mais aguardente e fingiu fazer o mesmo na sua. Tinha observado a reserva inicial de Lucano, e não havia nada melhor para soltar a língua de um homem do que uma boa aguardente. Lucano teceu elogios a propósito dos pequenos peixes frescos, que tinham sido grelhados sobre o carvão de lenha; encantou-se com o ganso bem cozido que fora recheado com farinha de pão, ervas e cebolas; a salada, a fruta e os queijos mostravam-se simples, mas de excelente gosto. O profundo silêncio plácido em derredor deles e depois a aguardente e a comida diminuíram um tanto a maneira naturalmente taciturna de Lucano. Olhava para Aulo, afetuosamente:

- Jamais tive tão esplêndida refeição disse ele, recostando-se no banco para bebericar seu vinho e gozar a sensação de bem-estar.

Aulo sorria, cogitando em qual seria a verdadeira razão que levara Lucano a visitar aquele lugar. Lucano fora hóspede de Pôncio Pilatos, daquele áspero e altaneiro patrício, tinha jantado com Herodes Antipas.

Era protegido de Tibério. Rico, filho adotivo de uma casa nobre.

Aulo não acreditava que o simples desejo de passeio o impelisse, nem que ele viesse procurar ali qualquer interesse em medicina. Podia bem ser que fosse um belo e muito perigoso espião. Aulo coçava o queixo e refletia. Não tinha apenas de proteger a si próprio, mas a muitos de seus soldados, que o amavam.

Como quem o faz distraidamente, mergulhou um dedo em sua taça, e devagar correu o dedo molhado sobre a mesa, desenhando um tosco peixe. Então levantou rapidamente os agudos olhos negros para Lucano. Este viu o desenho úmido, riscado com vinho. Seu rosto modificou-se, tornou-se delicado, embora surpreendido. Devolveu o olhar de Aulo. Depois, deliberadamente, molhou seu próprio dedo e desenhou a mesma imagem. Aulo franziu as sobrancelhas, ainda desconfiado, e muito surpreendido, disse:

- As coisas tornaram-se mais tranqüilas em Jerusalém depois da crucifixão daquele judeu galileu, Jesus? Ouvi dizer que tinham corrido muito mal durante algum tempo.

Lucano olhou pensativamente para a parede. Também ele estava desconfiado. Abriu a bolsa e tirou seus anéis, colocando-os nos dedos. Eles cintilaram ao crepúsculo frio, na pequena sala de refeições, e Aulo olhou-os com admiração:

- Este anel disse Lucano me foi dado por César quando eu era jovem. Jamais o usei, até três meses atrás, quando o dei a Pôncio Pilatos e ele o enviou a César. - Esperou um momento, depois disse:

- Pilatos tinha banido os cristãos, que são homens inocentes. Pedi-lhe que cancelasse o banimento, e isso foi feito. Ouviste falar que o banimento foi cancelado?

- Sim, disse Aulo. Cruzou os braços musculosos sobre a mesa e seus olhos encontraram-se diretamente com os de Lucano. – Eu não sabia que estava na causa, Lucano. - Olhou para os dois desenhos dos peixes, que tinham secado, em vermelho, sobre a madeira branca. - Posso perguntar por quê?

Mas Lucano disse:

- Quando Jesus esteve aqui na Galiléia, tu O ouviste pessoalmente?

- Sim. - O rosto do centurião era inescrutável.

- Eu ouvi falar Dele quando era criança, no dia em que Ele nasceu. - E Lucano contou, rapidamente, a Aulo, o que soubera, observando-o cautelosamente enquanto falava. O rosto de Aulo se foi iluminando lentamente, abrandando-se, e um vagaroso clarão exultante brilhou em seus olhos. Quando Lucano terminou de falar e mostrou-lhe a cruz na corrente de ouro que lhe pendia do pescoço, Aulo ficou muito tempo em silêncio. Depois, murmurou:

- A paz seja contigo, Lucano.

- E contigo, Aulo.

Observando a expressão de Lucano, viu que não mais precisava temer. Levantou-se, e fez sinal ao médico para que o seguisse lá para fora, para a luz deslumbrante. Apontou para um monte não muito distante, no qual havia uma pobre sinagoga, feita de basalto, com portas pintadas de branco e um telhado raso, de lajes.

- Ali Ele falou, freqüentemente. Eu não podia entrar, é natural, mas ouvia da porta. Seguido de Seus discípulos, Ele ficava de pé na praia e falava ao povo. E, certo dia, eu O ouvi pregar ao ar livre, sobre o monte, e fiquei entre o povo, homens e mulheres pobres da região. E ouvi. - Aulo parou. O sol tombava com vivacidade sobre seu rosto sereno. - Digo-te, Lucano, que era impossível ouvi-Lo sem sentir o coração comovido. Quem é Ele?, perguntava eu a mim mesmo. Que deuses falaram assim, nossos deuses venais, caprichosos e cruéis? Que esperança de paz e alegria trouxeram eles aos homens em sua corrupção e em sua abstração, gozando de divinos prazeres? Mas este Homem fala da misericórdia e do amor de Deus por Seus filhos, de Seu desvelo permanente da vida eterna em beatitude, da piedade de Deus e do desejo de que os homens vão ter com Ele, não apenas para louvá-Lo e se prostrarem diante Dele, temerosos, mas para regozijarem com Ele através da eternidade, partilhando de Sua própria felicidade.

“Que espécie de homem é este”?, perguntava eu a mim mesmo, estupefato. Por que fala Ele com tamanha autoridade, como quem traz mensagem de um grande Rei? Por que o povo olha para Ele com tanta alegria e amor, e queda-se em silêncio, de forma que nem uma só de Suas palavras se perca? Por que seguem-No como um séquito, e aglomeram-se em derredor Dele para olhar-Lhe o rosto e tocar-Lhe as vestes? As crianças, nos braços maternos, riam-se de prazer, e Ele lhes sorria, com um rosto que se parecia ao próprio sol. Ainda assim, o que podia impressionar alguém em Sua aparência? Usava as vestes de um camponês galileu, com pobres sandálias de corda, e não tinha dinheiro, nem servos. Caminhava a pé.

“Este lugar é tranqüilo, LucanO, mas desde a hora em que Ele apareceu por aqui veio com Ele esta paz que observas, esta profunda e santa paz, e nunca mais daqui saiu”.

"Um dia, meu amigo, eu estava à beira da multidão, ouvindo, e Ele falou ao povo numa oração que devia ser dita: “Pai, abençoado seja Teu Nome”! Venha o Teu Reino! Dá-nos nosso pão cotidiano e perdoa nossos pecados, pois também nós perdoaremos a quem quer que tenha dívidas para conosco. E não nos induzas em tentação." A voz Dele ressoava sobre as montanhas como trovoada de verão, e o povo rezava com Ele. E quando terminaram a oração, os olhos Dele de súbito me encontraram, pensativo e embaraçado, e Ele me sorriu por sobre as cabeças do povo. Daquele momento em diante pertenci-Lhe, e teria morrido por Ele, alegremente. Mas não posso explicar por quê, já que sou um romano, e Ele era apenas um judeu galileu, um carpinteiro.

“Tal milagre não se deu apenas comigo”. Vários de meus homens também O ouviram, e Ele tomou-lhes o coração com Suas mãos.

Aulo suspirou.

- Eu estava transformado. O mundo de Roma não era importante para mim. Minhas ansiedades e perturbações desapareceram.

Eu tinha paz. Senti-me completo de exultação. A terra já não era povoada por inimigos, mas por amigos. Eu só tinha um desejo: aperfeiçoar-me de forma a me tornar digno de deitar-me a Seus pés e olhar para Ele, eternamente. Como se pode explicar tal coisa? É preciso ter a própria experiência. Mas isto eu posso dizer: vejo agora todas as coisas como se delas irradiasse uma luz que lhes fosse própria. A lua jamais brilhou com luz tão prateada, antes, nem jamais o sol foi tão radiante aos meus olhos. Os homens, para mim, já não têm uma categoria, e não acho que devam ser reverenciados pela simples posição e fortuna mas somente pela virtude. Portanto, todos os homens são agora meus irmãos, mesmo os mais baixos entre eles. Às vezes, digo comigo mesmo: Mas és um romano, o senhor do mundo! E isso nada significa para mim. De novo advirto a mim mesmo: Temos a liderança da terra toda. E uma voz em meu espírito responde: A nação que procura a liderança da terra está fadada à morte, pois é uma nação má, sejam quais forem as suas altaneiras pretensões. Os homens procuram liderança apenas para dominarem e escravizarem os outros homens.

Aulo e Lucano olharam para a paisagem que os rodeava. A luz se modificara. As montanhas estavam lavadas por um violeta profundo, em várias tonalidades. O mar havia tomado a cor de uma água-marinha, riscada de cobalto, e o céu era de esmalte azul. Lucano sentiu que daquilo tudo vinha emanação espiritual, profunda, vasta, imutável, como se seres invisíveis e celestiais estivessem suspensos sobre todas as coisas, com asas de sol.

- Um dia disse Aulo, em voz baixa trouxeram dez leprosos até Ele, mulheres, homens e crianças que choravam. Gritavam para Ele, pedindo misericórdia, e as pessoas afastavam-se, medrosas. Mas Ele os tocou e levantou Suas mãos sobre os doentes, que ficaram instantaneamente curados. E a grande multidão regoziJou-se, e os que tinham sido doentes tombaram-Lhe aos pés, beijando-os. Vi isto com meus próprios olhos! Deves acreditar em mim.

- Eu acredito em ti, disse Lucano, delicadamente.

Naquela noite, Lucano escreveu tudo quanto o centurião lhe contou durante um período de longas horas, todas as parábolas que Cristo contara na Galiléia, todas as coisas gloriosas que Ele dissera. Lucano recordou-se da pedra que fora misteriosamente removida da sepultura onde O haviam colocado depois da crucificação. Assim como a pedra fora removida, sem que o fosse por mãos humanas, assim a pedra que fecha um coração morto pode ser removida para o lado, apenas pelo       amor de Deus, e o coração tornará a viver.

- Faze-me digno de escrever a Teu respeito, digno de seguir-Te, e lança sobre mim a Tua graça, ó Pai! rezou ele humildemente.

Herodes construíra Tiberíades em louvor de Tibério, os judeus não entravam no local da profanação. Mas Herodes mandara apanhar muitos galileus e os obrigara a trabalhar e a ter casas na cidade. Eram miseráveis que tinham visto, conhecido, e amado Jesus, bem como os de Caná, Magdala e Cafarnaum, cidades próximas do mar.

Que alívio e júbilo devia Ele ter levado àquelas vidas pobres e lutadoras! Fizera suportável sua sorte, a sorte dos que se esfalfavam contra o chão negro e ríspido, e moviam as pedras escuras da região, e eram oprimidos pelos romanos e pelos seus próprios senhores.

A hospedaria à qual Aulo levara Lucano era muito grande e agradável, e o hospedeiro homem bondoso, que se sentia orgulhoso de sua mesa simples, mas farta, e da limpeza de seus quartos. O edifício levantava-se na praia, juncada de grandes pedras de basalto, pesadas e negras, que despencavam pela inclinação ligeira que se dirigia à água azulada. Diante dela havia um terraço de piso de lajes, e grandes salgueiros com troncos esbranquiçados, marcados de castanho, inclinavam-se para as vagas pequenas, levemente onduladas. Lucano sentou-se no terraço, numa cadeira confortável, sozinho, embora em torno dele viajantes bebessem em mesinhas e comessem doces, conversando com grande gesticulação e vozes animadas. Muitos deles eram simples negociantes. Lucano ficou satisfeito quando eles se levantaram e entraram na hospedaria para a refeição da noite. Agora, podia observar as montanhas acentuarem ainda mais o violeta profundo de sua coloração, e o mar refletir-lhes a imobilidade. Momento a momento, a paisagem se tornava mais silenciosa ainda, mais vasta, mais envolvente.

O céu escureceu para um violeta intenso, e a água modificou-se com ele. O sol deixou a terra. A lua crescente, de um branco ardoroso, levantou-se acima de uma das montanhas e olhou a própria imagem nas águas: as estrelas dançaram. não apenas no céu, mas no mar. Da pequena sinagoga do monte, à esquerda de Lucano, veio o cântico dos sacerdotes, quebrando a quietude.

Deus tinha visto e ouvido tudo aquilo. Tinha rezado naquela pequena sinagoga. Tinha fixado os olhos naquela mesma lua, naquela água cor de jacintos, tremeluzente de estrelas, naqueles salgueiros, naqueles ciprestes negros, naquelas moitas com suas flores amarelas, que se assemelhavam a lírios, naquelas romãs junto do rio verde, naquelas palmeiras e oliveiras que rodeavam Tiberíades, naquele vale tão verde.

Bem-aventurado sou, pois que me deste vida para Te conhecer, disse Lucano, em seu coração. Sou indigno; tem misericórdia de mim, um pecador.

 

Lucano permaneceu poucos dias apenas em Tiberíades. Durante esse tempo perambulara pelo vale e pelos montes, ficou em pé à porta da sinagoga e ouviu as preces dos que estavam lá dentro. Ficou em pé onde Cristo ficara, e dali olhou, lá embaixo, o mar da Galiléia, sempre mutável, sobrenaturalmente azul e tranqüilo. Depois, partiu para Nazaré, à procura de Maria. Desejava vê-la, àquela que dera à luz Deus, e O amamentara e O embalara em seus joelhos, e O levara aos mestres e ao Templo, e O amara acima de tudo o mais, e O vira morrer da morte odiosa dos perversos. Pensando nela, Lucano a reverenciava em seu coração e o fato de nela pensar era uma alegria. Bem-aventurada era ela acima de todas as mulheres de todas as gerações.

Aulo separou-se dele com tristeza.

- Se não nos tornarmos a encontrar na terra, então nos encontraremos no céu disse ele, abraçando Lucano.

Enquanto seu cavalo subia a colina pedregosa, Lucano olhava para trás, para o mar, e pensava que só no Paraíso devia existir paz assim, vasta e azul tranqüilidade, tão envolvente calma. Então, no topo da montanha, ele olhou para Nazaré, à distância, sobre as colinas ressecadas e escuras, com suas projeções de pedras quebradas. As casas de telhados planos eram da cor circulante, brilhando ao sol e rodeadas, espaçadamente, por espessas árvores verdes e ciprestes pontudos, que pareciam sombrios contra o céu ardente. A cidadezinha empoleirava-se ali, como se colocada pela eternidade, para não ser movida de novo, para não ser perdida. Para além dela, as montanhas distantes se iam desdobrando uma após outra, em profunda tonalidade castanha, como uma barreira. Ondas de calor estremeciam sobre o cenário amplo, dando-lhes aparência sobrenatural. Lucano desceu o monte, para um pequeno vale juncado espessamente de enormes pedras de basalto negro, entre as quais havia relva esparsa, pálida e crestada à luz do sol. Ali, carneiros pastavam, guardados por pastores sentados nas pedras. Os homens olhavam fixamente para Lucano, seus turbantes abrigando-lhes os rostos queimados de sol. Ele saudou-os, e os homens retribuíram-lhe a saudação, cheios de curiosidade. Olhando para eles, Lucano pensava: Eles O viram, conheceram-No, falaram com Ele e talvez muitos tenham brincado com Ele, em sua infância.

Uma grande sensação de entusiasmo ergueu-se nele, ao deixar o vale, pondo-se a subir o monte para Nazaré. Nuvens de poeira branca e ardente seguiam-no, rodeavam-no, sufocavam-no, forçando-o a tossir. Ele porém, conservava os olhos em Nazaré e esporeava o cavalo, desejando sombra. As montanhas devolviam o eco do galopar e do tropeçar do cavalo, e do rolar de pedras à sua passagem. Então, finalmente, estava na periferia de Nazaré, nas pequenas e alcantiladas ruas estreitas, onde a poeira rodopiava e onde fervilhavam crianças brincando. As ruas eram margeadas por minúsculas lojas abertas, que vendiam cordeiro e carneiro assados, salsichas, vinho barato, artigos domésticos, sandálias e tecidos de cor. O ruído foi quase um alívio para Lucano, depois do silêncio das montanhas e, enquanto cavalgava através de mais ruazinhas, espessa e purpúrea sombra era atirada ocasionalmente por um carvalho, uma alfarrobeira, pinheiro alto ou um cipreste, uma acácia, ou um grupo empoeirado de tamareiras. No centro de uma praça redonda, pavimentada de pedras lisas, feitas, principalmente, de basalto preto, havia um poço, e moças ali estavam enchendo seus jarros e tagarelando; as cordas rangiam e os baldes deixavam pingar gotas brilhantes ao sol. As donzelas olharam Para Lucano e sobressaltaram-se; seus olhos, azuis, cinzentos ou de um castanho claro tornaram-se curiosos sob os véus coloridos. Era um lugar pobre. Não havia casas bonitas, nem jardins ornados de pontes, nem paredes altas de onde cascateassem flores vermelhas ou rosadas.

Não se viam liteiras, nem bigas, nem homens ou mulheres bem-vestidos.

Atrás de algumas das casas cresciam pequenos retalhos de verduras, ou vinhedos que se apoiavam em estacas. Todas as ruas mostravam-se ruidosas, com cães e burros, estes últimos pacientes e pesadamente carregados com produtos para as lojas. Lucano parou junto à cisterna e perguntou às moças se poderiam indicar-lhe onde ficava a casa de Maria, Mãe de Jesus.

Elas olharam para aquele homem alto e louro, em seu cavalo preto, e o aprumo dele tornou-as tímidas e prudentes. Deram risinhos abafados, olharam-se umas às outras, e então uma delas, sem dizer palavra, apontou para uma rua que saía da praça. Lucano seguiu, deixando as moças sussurrando alvoroçadamente. Aquela rua ainda era mais pobre do que as outras, e havia poucas casas nela. Eram casas excessivamente baixas, com escadas curtas que levavam aos terraços planos, onde as pessoas se podiam reunir depois do crepúsculo, em busca de frescor. Através de portas abertas Lucano podia ver os degraus de pedra que desciam, em forte declive, para as frias adegas subterrâneas, onde as famílias passavam as horas quentes do dia e faziam suas refeições.

Lucano parou o cavalo e olhou em derredor, hesitante. O animal movia-se, impaciente, e sacudia a cabeça e a cauda para livrar-se da multidão de moscas. Na luz enceguecedora do meio-dia a pequena rua alcantilada tinha ar de infinita desolação, e a poeira ondulava sobre ela. Não havia ninguém por ali. Lucano escolheu a casa mais próxima, apeou, chegou à porta aberta, e olhou para dentro, depois para os degraus que desciam para o aposento abaixo, tipo adega, mas fresco. Havia poucos e pobres artigos de mobiliário no quarto minúsculo, acima dos degraus. Uma ou duas cadeiras feitas em casa, um banco, uma mesa. As paredes eram caiadas e reluziam com os reflexos do sol lá fora. Da adega vinha um grugulejar agradável de água. Lucano chamou e, não recebendo resposta, entrou pela porta estreita e olhou para os degraus; pôde ver um pequenino poço no piso da adega, um piso de pedra, algumas panelas de ferro, e uma chaminé preta.

Tornou a chamar. Agora, ouviu-se o roçagar de roupas e uma mulher apareceu no fundo, levantando os olhos para ele, silenciosamente.

- Estou procurando Maria, a Mãe de Jesus, senhora disse Lucano. - Fiz uma longa viagem para falar com ela.

Sem responder, ela subiu os degraus, e Lucano viu, pelo reflexo da luz, que era jovem e flexível, vestida com um tecido barato, azul-escuro, e usando véu branco. Enquanto ia subindo os degraus, o rosto levantou-se para o médico, e ele percebeu que a mulher era extremamente bela, de faces lisas e pálidas adelgaçando-se no queixo onde havia uma covinha. Tinha o nariz delicado, os lábios de um rosa suave e os olhos azuis mais encantadores que o médico já vira. Um caracol de cabelo dourado escapara de seu véu. Seu corpo e sua esbeltez eram os de uma jovenzinha, e seus pés, descalços, muito brancos.

Então, em pé diante dele, cheia de simples dignidade, ela disse:

- Sou eu.

Lucano estava estupefato. Segundo tudo quanto ouvira, Maria devia ter agora quarenta e oito anos, e ainda assim mostrava o aspecto e a juventude de uma jovem princesa, gentilmente nobre e infinitamente suave. Não havia rugas marcando-lhe o rosto, e ela sorria, indagadora, para Lucano, mostrando dentes pequenos, que pareciam pérolas perfeitas. Contudo, olhando-a, ele percebeu que ela sofria uma sutil modificação, tornava-se mais velha, enchia-se de desgosto e tristeza, curvava-se um pouco. Então, de novo, estava misteriosamente jovem e ereta, calma como uma estátua, com a fronte lisa e branca.

Lucano, sem saber por quê, começou a tremer. Estava dominado pela reverência e pelo amor. Desejava ajoelhar-se diante dela e beijar-lhe as mãos que o trabalho gastara. Entretanto, Maria fixava nele um olhar sem curiosidade, e seus olhos azuis pareciam transpassar-lhe a alma.

- Sou Lucano, médico grego, senhora murmurou ele. - Vim de longe para ver-te pois amo e sirvo teu Filho, embora nunca O tenha visto, a não ser em meus sonhos.

Ela não se mostrou surpreendida. Sorriu-lhe ternamente, e falou, com voz sussurrante como a de uma harpa que fosse suavemente tangida:

- Sentemo-nos atrás da casa, na sombra, Lucano.

E conduziu-o para trás da casa, onde havia um banco contra a parede. Todos os seus movimentos eram cheios de graça, flexíveis como os de um salgueiro, e havia nela uma alta majestade. Sentaram-se, lado a lado, e Maria olhava para a distância, sonhadoramente.

Imediatamente, Lucano teve certeza de que ela tudo sabia a seu respeito, mas ele não podia dizer como isso se dava.

Duas ou três cabras ocupavam-se em mordiscar alguns cardos baixos, na relva pálida. Algumas aves domésticas ciscavam no pó. E, para além delas, os vinhedos subiam em estacas e enchiam o ar quente e seco com o seu perfume. Maria, sentada, tinha as mãos cruzadas no regaço adorável, com seu perfil delicadamente tranqüilo.

Lucano começou a falar. Disse-lhe de sua longa amargura, depois de sua longa busca. Contou-lhe as histórias de Jesus, que ouvira, e falou de sua visita a Tiago e João. Ela nem uma só vez lhe dirigiu qualquer pergunta, nem mesmo o interrompeu. Seu perfil adoçava-se com suas visões. A pequena sombra azul aumentou; uma cabra veio farejar os joelhos de Maria e os franguinhos alvoroçavam-se em torno de seus pés. Os montes pálidos à distância tornaram-se de um castanho-dourado, sob um céu também dourado.

Então, tendo terminado sua história, Lucano ficou silencioso.

Olhava para o perfil de Maria, e ele parecia-lhe concentrar as feições de todas as mulheres que amara: sua mãe, Íris, Rúbria e Sara. A tranqüilidade dela invadiu-o e ele sentiu-se repleto de paz. Esqueceu que ali estava uma pobre mulher galiléia, a viúva de um pobre carpinteiro.

Ela mantinha os tempos em suas mãos imóveis, e era rainha entre as mulheres. E outra vez a modificação misteriosa apareceu, movimentando fluidicamente as feições dela, dando-lhe a um momento um aspecto envelhecido e sofredor, e então, imediatamente, fazendo dela uma jovem, uma virgem, um ser puro e intocado.

- Queres saber a meu respeito disse ela muito docemente - e sobre meu Filho. Eu te direi. Mas primeiro deves refrescar-te - acrescentou, em tom maternal. Levantou-se, caminhou até os vinhedos e apanhou um cacho de uvas e trouxe-o a Lucano. Eram uvas grandes e redondas, ambarinas, com riscos vermelhos e roxos, reluzentes como pedras preciosas. Ele as tomou da mão dela e começou a comê-las. O suco era tépido e doce, e sua sede acalmou-se. Olhou com gratidão para Maria; era como se com aquelas frutas ela lhe tivesse dado vida, e Maria sentou-se, sorrindo-lhe, o rosto luminoso dentro da sombra.

Começou a falar, e todo o ar ardente em derredor encheu-se com sua voz delicada e musical. Falou de sua velha prima, Isabel, cujo esposo era Zacarias, um sacerdote. Não tinham filhos, o que para eles era muito doloroso. Viviam numa cidade pequena da Judéia, e gostavam muitíssimo da jovem Maria, que tinha apenas quatorze anos e que os visitava com freqüência, quando a caminho de Jerusalém para os grandes dias santificados. E eles a acompanhavam, e a seus pais, pelo resto da viagem. Sempre, com seus pais, vinha seu noivo, José, um carpinteiro, homem bom e amistoso.

Um dia, enquanto Zacarias oficiava como sacerdote no templo de sua pequena cidade, um anjo apareceu diante dele, junto do altar onde o velho queimava incenso sozinho, em sua sala sacerdotal. O povo esperava lá fora, rezando, àquela hora. Zacarias, vendo o anjo, ficou muitíssimo perturbado e cheio de medo, mas o anjo Lhe disse:

Não temas, Zacarias, pois tua petição foi ouvida e tua esposa Isabel te dará um filho a quem chamarás João. Deverás ter alegria e júbilo, e muitos se regozijarão com o seu nascimento, pois que ele será grande diante do Senhor. Não beberá vinho nem bebidas fortes, e será repleto do Espírito Santo, mesmo desde o ventre materno. Levará de volta ao Senhor muitos dos filhos de Israel, e ele próprio ira ter diante de Deus no espírito e poder de Elias, a fim de voltar o coração mais para seus filhos e dar aos incrédulos a sabedoria dos justos, preparando assim para o Senhor um povo perfeito.

Mas Zacarias exclamou, em voz alta:

- Como saberei de tal coisa? Sou velho, e minha esposa vai avançada em anos!

O anjo respondeu-lhe:

- Sou Gabriel, que está na presença de Deus, e fui mandado para falar contigo e trazer-te as boas novas.

Então, Gabriel parecia encolerizado diante da dúvida de Zacarias, e continuou:

- Ficarás mudo, incapacitado para falar até o dia em que essas coisas aconteçam, porque não acreditaste nas minhas palavras, que a seu tempo serão confirmadas.

O anjo ficou ali por um momento, palpitando na luz, suas poderosas asas dobradas. Desapareceu então e Zacarias se viu sozinho diante do altar cheio de fumaça, e em seu espírito havia terror e espanto. Quando saiu da sala não podia falar, e as lágrimas rolavam pelas suas velhas faces, sabendo assim o povo que ele tivera uma visão. Visões não eram coisa rara para aquele povo simples e piedoso. Lendas sobre aparecimentos de anjos e presságios corriam através de suas conversações. Fizeram perguntas a Zacarias, excitadamente, mas ele apenas podia fazer gestos mudos e maravilhados.

Zacarias era homem pobre, apesar de ser sacerdote, e voltou à sua miserável casa e olhou para sua esposa, chorando silenciosamente. Mais tarde, para grande e incrédula alegria dela, Isabel concebia, em sua velhice, e escondeu-se durante cinco meses, dizendo:

- Isto é a graça que o Senhor me fez, nos dias em que se dignou retirar meu opróbio entre os homens!

Maria parou e olhou para Lucano, e seus olhos azuis estavam brilhantes e sorridentes, entre lágrimas. Era como se de novo se regozijasse com sua prima Isabel, naquele milagre, e recordasse com ternura e compreensão as palavras dela.

Ia aproximando-se o tempo para seu próprio casamento com José, que ela amava, e de quem era noiva. Tinha quatorze anos, estava preparada para o casamento, mas às vezes perturbava-se, sem saber se poderia ser uma excelente esposa para aquele bom homem: Era a única filha de seus pais, e fora carinhosamente mimada por eles, e o pouco de que eles dispunham lhe tinha sido dado com devotamento e amor. Sua mãe poupava-lhe muito trabalho, e ela não tinha, como as demais jovens, todo o conhecimento da vida de uma esposa e dona-de-casa. Sabia fiar e costurar, cozinhava um pouco, e tratava de um pequeno jardim. Seus pais se haviam preocupado mais com sua piedade do que com deveres humildes, pois eram muito devotados ao Senhor seu Deus e falavam sempre Dele, e não apenas nas orações.

O rosto de Maria transformou-se enquanto ela falava, olhando para o céu, com tranqüilo êxtase. Desde o tempo em que era muito pequenina, mal sabendo andar, amara e conhecera Deus. Ele enchia seus dias como o sol. Maria conversava com Ele quando se deitava em seu catre pobre, seu coração regozijava-se Nele com apaixonada fé e júbilo. Raramente podia pensar em outra coisa, e sua vida inteira ficava absorvida em adoração. As árvores e a terra falavam-lhe Dele. Ele estava em cada flor da primavera que via, e Sua presença irradiava-se do céu e no âmago dos frutos. Via Sua sombra à noite, quando a lua era cheia, e vivia, respirava com o pensamento Nele. Às vezes o arrebatamento tomava-a, de maneira quase insuportável, e ela fugia de junto de seus pais, amigos e parentes, para meditar sobre Ele. Cada pedra, cada estrela, cada árvore tinha um halo de ouro, pois Ele estava ali.

Muitas vezes ela chorava sem saber por quê, e seu coração tremia. Seu espírito expandia-se e crescia, e Maria desejava apenas servi-Lo, e passar sua vida refletindo sobre Ele.

Mas dos deveres domésticos conhecia muito pouco, e às vezes a mãe censurava-a docemente, e censurava-se também por não ter sido melhor mestra daquela jovenzinha. Maria, finalmente, ficava também perturbada, pensando na bondade de José, e cogitando em se poderia ser uma boa matrona judia, como ele devia esperar, abençoando as velas, observando cada pormenor das leis sanitárias e dietéticas, fazendo-se uma honra para a casa do esposo.

Assim, certa noite, subiu a escada que levava ao telhado daquela casa, onde ela nascera, a fim de rezar ao Senhor seu Deus e pedir-Lhe consolo e orientação. O céu estava da cor de ameixas maduras, o calor da cidadezinha cedera um tanto, e havia paz sob as estrelas. Uma grande lua dourada tremeluzia sobre todas as coisas, atirando sua luz amarela sobre muros e árvores, e formando no chão desenhos dourados e complicados. Vento fresco soprava, vindo das montanhas, e no ar havia o perfume dos jasmins. Maria ficou a cogitar naquilo, pois o tempo estivera seco e quente e as flores haviam murchado. Então a brisa encheu-se do perfume de lírios e rosas, erguendo-se como incenso em derredor dela. A lua cresceu, as montanhas banharam-se em cobre, e os telhados, em torno de Maria, estremeciam sob a luz dourada. Ela não sabia por quê, mas seu coração contraiu-se e a moça reteve o fôlego.

Momento a momento o ar foi ficando mais esplendente, sob a luz. Maria estava de pé, as mãos postas, rezando inocentemente. Uma sensação de algo sobrenatural invadiu-a. Poderia ter gritado, em sua alegria temerosa. Voltou a cabeça, e um anjo poderoso estava a seu lado, mais brilhante do que a luz. Suas vestes brancas agitavam-se como faíscas luminosas, suas asas deixavam tombar fagulhas prateadas e seu rosto era mais belo do que qualquer rosto mortal. O coração de Maria estremeceu, num misto de veneração e temor, e seus lábios gelaram.

Pensou que ia tombar desmaiada ali no telhado. Teve um movimento para cobrir o rosto, pois o anjo irradiava uma luz ofuscante.

Então ele disse, muito suavemente:

- Ave, cheia de graça! O Senhor é contigo. Bendita és tu entre as mulheres!

As mãos de Maria pararam a meio caminho, paralisadas por aquela saudação. Sua cabeça rodava e seu corpo tremia. Que queriam dizer aquelas palavras? Sua respiração prendia-se na garganta, e conseguiu libertar-se, finalmente, num alto soluço seco. Era muito jovem: sonhara com anjos, e agora um estava a seu lado e ela se sentia tomada de terror.

Ele disse, na mais bondosa das vozes:

- Não temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus, Eis que conceberás em teu ventre e pariras um Filho, e dar-lhe-ás o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus Lhe dará o Trono de Seu pai, Davi, e reinará eternamente na Casa de Jacó. E o Seu Reino não terá fim.

Maria, aquela jovenzinha, não podia falar. Olhava vaga e estonteadamente em derredor. Pensou que estivesse sonhando e que suas meditações tivessem imaginado tudo aquilo. Mas a pequena cidade jazia em torno dela, em sua luz alaranjada, e a fragrância das flores intoxicava seus sentidos. Podia sentir sob os pés o piso áspero, e a mais leve das brisas tocava-lhe o rosto jovem. Não estava dormindo: com um canto dos olhos podia ver aquela palpitante presença ali perto, e seu coração estremecia. Pensou no que o anjo dissera. Ela conceberia em seu ventre, e pariria um Filho... Sua cabeça moveu-se lenta, em humilde negação.

- Como se fará isso, pois eu não conheço varão?

O anjo sorriu, e aquele sorriso era como um relance de sol. Maria, involuntariamente, recuou e fechou os olhos.

- O Espírito Santo descerá sobre ti e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a Sua sombra. E por isso mesmo o Santo que há de nascer de ti será chamado Filho de Deus.

Maria umedeceu os lábios frios. Pensou nas profecias referentes ao Messias. Levantou as mãos pequenas e ficou a olhar para elas, vendo as marcas produzidas pelo trabalho. Olhou para a rusticidade de suas vestes, recordou-se de que era uma jovem de apenas quatorze anos, e filha de um camponês da Galiléia. Como poderia ela ser a escolhida, e não uma princesa de Israel, rodeada de trombetas e de colunas de mármore, de fontes perfumadas e servidores? Sua mente entorpecida lutava com as reflexões que lhe acudiam. Olhou para o anjo e cogitou, estonteadamente, no porquê de estar ele a contemplá-la uma jovenzinha iletrada, sem importância alguma com tanta reverência. E por que mantinha as mãos postas diante dela, como diante de uma rainha? As lágrimas corriam-lhe dos olhos.

O anjo inclinava a cabeça, como perante a majestade.

- Vê Isabel, tua parenta, que até concebeu um filho em sua velhice; e este é o sexto mês da que se diz estéril. Porque para Deus nada é impossível.

Maria ficou pensativa. E foi como se uma grande onda de luz a envolvesse, afogando-lhe o ser por completo, e tudo se fez claro para ela.

Em voz alta e jubilosa, exclamou:

- Eis aqui a escrava do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra!

O anjo dobrou o joelho diante dela; e enquanto Maria o contemplava ele desapareceu. Mas ali, onde ele estivera de pé, permaneceu uma luz, como que do reflexo da lua, luz que refluiu, girou, tal farrapo de névoa, durante alguns momentos, antes de se extinguir de todo.

Maria cobriu o rosto com as mãos e chorou. Não sabia se chorava de medo ou de alegria, pois ambas as sensações se mesclavam nela. O primeiro pensamento foi para seus pais. Desceu a escada e entrou na casa minúscula. Joaquim e Ana estavam adormecidos e ela podia ouvir-lhes a respiração tranqüila, na escuridão. Desejou acordá-los e falar-lhes da visitação. Suas faces estavam quentes e ruborizadas. Eles acreditariam? Compreenderiam? Ou sorririam para ela, com delicadeza, e diriam de novo, como tantas vezes antes o tinham feito, que tudo fora apenas um sonho? Pensou em José, seu noivo. Teve um impulso de correr até a casa dele, com sua estranha revelação. Todo o seu espírito, então, recuou. Encostou-se contra a parede escura e ficou a pensar. Devia ir ter com Isabel e imediatamente. Aquela velha prima, tão estranhamente grávida, devia ser a primeira a saber. Com pés que não se moviam mais pesadamente do que a respiração, Maria passou pelo quarto dos pais e foi ter ao seu pequeno aposento, onde lhes escreveu um rápido recado, dizendo que ia imediatamente ver Isabel e que eles não deviam temer, pois retornaria em segurança.

Sozinha na cidade adormecida, onde todos dormiam, menos ela, partiu a pé para a longa viagem, sem hesitação, sentindo-se guardada e protegida com carinho. Jamais tinha saído à noite, a não ser acompanhada. Mas cada ruazinha brilhava com luz amarela, e ela podia ver as portas claras dos ciprestes contra a luz e o movimento suave da sombra protetora das árvores na escuridão macia e aveludada. Sentia-se repleta de paz e segurança. Os cães não ladravam à sua passagem pelas casas sem luz. Uma ou duas vezes, em ímpeto de sua juventude, ela saltava ou corria um pouquinho. Havia força a encher-lhe o corpo. Como poderia, sem dinheiro ou comida, encontrar seu caminho distante para Ain Karim, na Judéia? Tratava-se de uma viagem de vários dias e noites, mesmo cavalgando sobre burros. Ela sabia, apenas, que chegaria lá, que era querida, que nada de mal lhe aconteceria.

Confiantemente, deixou Nazaré, e a estrada estreita que corria para o sul estava diante dela, suas pedras britadas surgindo, agudas, à luz do luar.

Caminhou longamente, sem exaustão, e não encontrou quem quer que fosse. Às vezes, via os pastores adormecidos nas vertentes das montanhas pálidas, descansando entre seus carneiros. Passou através de uma ou duas aldeolas, onde não havia movimento algum. Colinas despidas e escuras apertavam-se contra o céu incandescente. Subitamente, Maria teve sede e olhou em torno, pela vasta e silenciosa região rural; ali, as colinas eram cultivadas, e ela viu bosques de oliveiras filigranados em prata sob a luz, e palmeiras adejando suas frondes ao ar tépido da meia-noite.

Então ouviu o rumor de um pequeno regato, e encontrou-o, correndo dourado entre as pedras negras. Ajoelhou-se à margem dele e bebeu no côncavo das mãos, profundamente, e era como se bebesse um vinho confortador. Levantou as mãos para o tronco de uma tamareira jovem, alcançando um cacho quente de tâmaras maduras, e satisfez sua fome. Então recomeçou sua jornada, cantando baixinho, seus pés de criança brilhando sob as vestes pobres, e a poeira erguendo-se atrás dela. De vez em quando mal podia controlar seu júbilo, e de outras vezes meditava, em seu coração simples. Toda a dúvida desaparecera. Algo latejava em seu corpo, forte e firme, e era como um coração novo e vigoroso, e ela, inocentemente, cogitava no que poderia ser.

Resolveu descansar, embora não sentisse fadiga. Encontrou um maciço de fresco carvalho e deitou-se na relva que ficava embaixo deles, adormecendo instantaneamente, enroscada como uma criança protegida, a face encostada à palma da mão. Quando acordou, o céu nadava em escarlate e pérola, e as montanhas de ocre refulgiam.

Encontrou outro regato e lavou as mãos e o rosto, bebendo água depois.

Saiu da estrada para um pomar de romãzeiras e comeu com prazer alguns frutos. Encheu a bolsa com dois ou três para comer mais tarde, e continuou seu caminho, cantando agora em voz alta.

Algumas horas mais tarde, quando o sol estava alto, uma caravana alcançou-a, uma pobre caravana de dois camelos e alguns burros, carregados com mercadoria para as cidades. Os três homens da caravana tinham as feições grosseiras dos montanheses de lugares remotos.

Ainda assim, um deles, vendo-a, instantaneamente desmontou do burro em que viajava e sem dizer palavra ajudou-a a subir para as costas do animal. Tudo pareceu natural e justo para Maria, que de vez em quando dormitava. Quando acordava, sempre encontrava a mão escura do homem mantendo-a firme sobre a sela. Ninguém lhe fez perguntas. Quando a caravana parou para repousar, os homens taciturnos partilharam com ela seu pão, queijo e vinho. Tratavam-na com grande cortesia. Seus olhos inquietos não tinham interrogações nem espanto diante daquela jovenzinha, tão clara e tão sorridente, assim sozinha e desprotegida. Dormiram na estrada, aquela noite, e os homens estenderam no chão, para Maria, um cobertor grosseiro. Ela ficou deitada, sem dormir, ouvindo os queixumes dos camelos ajoelhados, o bater dos pés dos burros, os uivos distantes dos chacais. Uma pequena fogueira crepitava no centro do acampamento. Acabou por adormecer, tomada de grande júbilo.

Assim seguiram. Às vezes os homens sombrios cantavam orações, e ela, montada no burro, reunia-se a eles, timidamente. Às vezes ficavam os homens a olhar-Lhe para o rosto tranqüilo e infantil, e sorriam como pais. Traziam-lhe cabaças cheias de água fresca, davam-lhe frutas. Passaram através de uma região selvagem, e os poucos que encontraram pensaram que ela fosse uma filha, viajando com seus parentes.

Chegaram finalmente a Ain Karim, aquela pequena aldeia, e como se soubessem os homens ajudaram-na a descer do burro e, hesitante, um deles tocou-lhe o rosto quente, ternamente, com as costas da mão.

Maria desejava agradecer-lhes, mas os homens acenaram-lhe um adeus e partiram. Ela tomou o caminho da casa de Isabel e Zacarias, uma pobre casa cor de argila, empoleirada num recorte da vertente da colina, entre ciprestes e outras árvores. Mal amanhecia. Maria bateu à porta fechada da casa, depois entrou. A velha Isabel já estava acordada, cuidando das tarefas domésticas. Fixou os olhos em Maria, tomada de absoluta estupefação, depois um grande tremor apoderou-se dela, que estendeu as mãos para sua jovem prima, exclamando, em voz alta e estranha:

- Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto de teu ventre! E de onde vem a mim esta dita, que me venha visitar a Mãe do meu senhor? Porque assim que chegou a voz de tua saudação aos meus ouvidos o menino deu saltos de prazer no meu ventre! Bem-aventurada és tu porque creste, porque se hão de cumprir as coisas que da parte do Senhor te foram ditas!

O rosto enrrugado dela estava transformado e seus olhos ardiam. Estendeu os braços a Maria, e ambas abraçaram-se, como mãe e filha, cheias de compreensão, sem perguntas. Beijaram-se e sussurraram ternamente contra as faces uma da outra. Encantamento as tomava todas, arrebatamento umedecia-lhes os olhos. Então Maria recostou-se nos braços de sua prima e olhou para o rosto dela, jubilosamente.

Em sua voz inocente e pura, o êxtase elevou-se, como um cântico:

- Minha alma engrandece ao Senhor e meu espírito se alegrou por extremo em Deus, meu Salvador! Por Ele ter posto os olhos na baixeza de Sua escrava; pois eis aí, de hoje em diante me chamarão bem-aventurada todas as gerações. Porque me fez grandes coisas, que é Poderoso; e santo é o Seu Nome. E Sua misericórdia se estende de geração em geração sobre os que O temem. Ele manifestou o poder de Seu braço; dissipou os que no fundo de seus corações formavam altivos pensamentos. Depôs do trono os poderosos, e elevou os humildes. Encheu de bens os que tinham fome; e despediu vazios os que eram ricos. Tomou debaixo de Sua proteção a Israel, Seu servo, lembrado da Sua misericórdia! Assim como tinha prometido, a nossos pais, a Abraão e a sua posteridade, para sempre!

Lucano ouvia-a, sem se mover em seu banco. A voz de Maria, ao recordar aqueles dias, elevara-se como o cascatear de sinos suaves. E, como acontecera entre ele e seu irmão Prisco, o médico ficou a pensar em quanto aprendera através das palavras de Maria e quanta visão mística interior lhe fora concedida, através dos olhos e das falas dela.

O rosto de Maria, que olhava para o céu, mostrava-se vívido de júbilo, e ela levantou as mãos, de forma que as palmas ficassem douradas pela luz. Lucano olhava-a com amor e respeito temeroso, olhava aquela mulher que trouxera Deus sob seus seios de criança, e que O dera à luz num estábulo. Inclinou-se para ela, que deixou tombar as mãos, e olhou-o, sorridente, o que levou o médico a pensar que jamais vira semblante tão gracioso e tão nobre, nem conhecera ninguém assim dotado de uma beleza que não era terrena. Hesitou, depois tomou-lhe as mãos e beijou-as, dizendo:

- Feliz sou eu por ter ouvido estas coisas de teus lábios, Senhora. Não mereço tal felicidade.

Contemplava-a com reverência, e pensava: Realmente, ela é a que não tem pecado, a que nasceu e viveu sem pecado, a que suportou o mal sem jamais ter sido tocada por ele. Ela conheceu a dor, mas não a culpa. Ela chorou, mas não por transgressões próprias. Ela amou, mas seu amor era puro como o luar. Ela caminhou entre o terror e o desgosto. Mas não há sombras em seu espírito, nem impureza em suas mãos. Ela é bendita entre as mulheres.

- Só Deus pode julgar se um homem merece ou não a felicidade disse Maria, docemente. - Tu sofreste muito, e Ele te trouxe para junto de Si.

       As sombras da tarde alongavam-se rapidamente, e um vento árido e quente movimentava a poeira. As cabras berraram. Maria levantou-se e disse:

- Vou ordenhar estas cabras e, se quiseres, comerás e beberás comigo.

- Deixe-me ajudar-te disse Lucano. E ambos ajoelharam-se no chão terroso e ordenharam as cabras, o líquido tépido espumando nos baldes. Então Maria trouxe pratos com pão e queijo, pequenas azeitonas pretas, alguns bolinhos que tinha cozido mais cedo e uma bandeja de madeira com frutas. Sentaram-se, em silenciosa satisfação comendo.

E Maria começou de novo a falar. Contou a Lucano que permanecera com Isabel até o nascimento do pequeno João. Este, desde o instante em que nascera, era animado e emitia enérgicos gritinhos de contentamento. E contou que, no instante em que a criança saíra do ventre materno, a fala fora devolvida a Zacarias.

O velho sacerdote erguera as mãos para o céu, enquanto seus amigos vinham ter com ele, um por um, beijando-lhe a barba, em congratulação, e o velho exclamava, em voz alta:

- Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu Seu povo e porque nos suscitou um Salvador poderoso, na casa de Seu servo, Davi. Segundo o que tinha prometido por boca de Seus Santos Profetas, que viveram nos séculos passados: que nos havia de livrar de nossos inimigos, e das mãos de todos que nos tivessem ódio; para excitar a Sua misericórdia a favor de nossos pais e lembrar-se de Seu santo pacto, segundo o juramento que Ele fez a nosso pai, Abraão, de que Ele nos faria esta graça; para que, livres das mãos de nossos inimigos, O sirvamos sem temor, em santidade e justiça diante Dele, por todos os dias de nossa vida!

Exaltado, e cheio do Espírito Santo, ele tornou a exclamar, enquanto seus amigos agrupavam-se em derredor dele, boquiabertos e pensativos:

- E tu, ó Menino, tu serás chamado o Profeta do Altíssimo, porque irás ante a face do Senhor, a preparar os Seus caminhos. Para dar ao Seu Povo o conhecimento da salvação, a fim de que ele receba o perdão de Seus pecados, pela bondade e misericórdia de nosso Deus, com que lá do alto nos visitou nesse sol do Oriente, para alumiar os que estão nas trevas, e na sombra da morte, para dirigir nossos pés no caminho da paz!

Maria contou como voltara para seus pais, e para José, que estava grandemente perturbado. Contou seu casamento com José, e o decreto de Augusto César de que todos os seus súditos, através do mundo, deviam ser contados, e sua viagem, com José, para Belém. Hesitando agora, e narrando em voz baixa e trêmula, contou o nascimento de seu filho, falou dos anjos que apareceram aos pastores das montanhas e que estavam cheios de medo por terem visto a Estrela. E como foram conduzidos ao estábulo onde seu Senhor estava deitado em Sua manjedoura. Muito daquilo Lucano ouvira por outros, mas ouvia agora com a absorção de quem escuta pela primeira vez. Porque a voz doce e modulada de Maria era música para ele. As colinas em derredor de Nazaré tornaram-se da cor dos limões maduros e o céu fez-se dourado por sobre elas. O ruído da cidadezinha penetrava agora naquela pobre e miserável rua.

Maria se estava fatigando; uma sombra pálida aparecia em seu rosto liso, e seus olhos azuis escureciam de cansaço. Assim, quando o sol começou a desaparecer abruptamente, lavando toda a terra com uma luz súbita e violenta como a de uma conflagração, Lucano levantou-se e beijou a mão de Maria.

- Deixa-me voltar amanhã, por alguns momentos suplicou.

- Desejo saber como Foi a infância de teu Filho. Nesse entretempo vou procurar uma hospedaria.

- Há apenas uma na cidade disse Maria, suas roupas movimentadas pelo vento da tarde. - E muito pobre.

- Não faço questão de luxo disse Lucano.

Maria acompanhou-o até a frente da casa, e ele tornou a ficar abalado pela empoeirada desolação da ruazinha, onde cabras erravam sobre pedras pequenas e crianças gritavam dentro das casas fechadas, e enquanto abutres cortavam o céu ardente. Maria ensinou a Lucano onde encontraria hospedagem, e ele desceu a rua. Olhou para trás e ela levantou a mão, sorrindo-lhe.

A hospedaria, como receara Maria, mostrava-se realmente abominável, uma casinha rústica, com um poço aberto no pátio pavimentado com pedras pretas. Lucano era o único hóspede, e o hospedeiro, homem de barba cinza-avermelhada, recebeu-o com gratidão, mostrando-lhe o melhor dos quatro quartos existentes, um aposento minúsculo, o piso coberto de junco, com cama estreita e uma cadeira, a lâmpada pendurada na parede de madeira. Mais tarde, Lucano estava sozinho no miserável refeitório comum, mas o dono da casa apresentou, orgulhosamente, cerveja fria, vinho, um prato de carneiro, morno e muito oleoso, metade de uma ave assada, dura e cheia de gordura amarela, alguns nabos machucados e uma tigela com romãs, tâmaras e uvas.

- A cerveja vem do Egito disse o estalajadeiro, de pé ao lado de Lucano. - Eles fazem a melhor cerveja do mundo; os romanos são pobres imitadores.

Tossiu, como quem se desculpa.

- Não sou romano falou Lucano, sorrindo. – Tomarás comigo um copo de cerveja. Tem excelente aspecto.

O estalajadeiro disse, alegremente colocando um dedo ao longo do nariz:

- Ah! Eu ainda tenho coisa muito melhor do que isto! - Piscou, como um conspirador, e disse: - Tenho uma aguardente esplêndida!

Lucano pensou com desconfiança naquela mistura de cerveja com aguardente. Mas estava cansado, e também repleto de um estranho sentimento de exultação.

- Se tomares comigo falou, polidamente.

O estalajadeiro ficou encantado, mas, sendo homem honesto e notando as vestes simples de Lucano, hesitou:

- O preço da aguardente é muito alto. Talvez não o possas pagar, meu bom senhor. Custa três siclos[30] a garrafa. Por causa dos impostos altos que os romanos colocam sobre essa mercadoria. Eles, com seus impostos infernais! Um homem não pode viver, é o que te digo!

Se exportamos, a alfândega aí está, de mão estendida e com muitas folhas de papiro. Se importamos, e somos gente pobre que precisa importar muito, aí está de novo a alfândega, com a papelada burocrática, a mão estendida e suas estampilhas.

- Os burocratas não deixarão de estar sempre conosco disse Lucano, com um suspiro de solidariedade. - Mas tomemos um pouco de aguardente e esqueçamos o governo, seus impostos e seus funcionários que se apropriam do trabalho do povo.

O estalajadeiro trouxe, reverentemente, uma empoeirada garrafa de aguardente.

- Precisamos importá-la da Síria disse ele porque nossa gente não vê com bons olhos as bebidas fortes. Mas ficarias estupefato se soubesses quanto é importada e bebida! Olha para os selos e para os carimbos sobre eles. É aguardente autêntica, e não ilícita, feita nas colinas por homens furtivos.

Lucano examinou cortesmente o selo, e aprovou com um movimento de cabeça. O hospedeiro trouxe dois cálices pequenos, e Lucano encheu-os. O estalajadeiro sacudia a cabeça contra a quantidade, mas não disse uma só palavra de censura ou protesto. Sentou-se ao lado de Lucano, e os olhos velhos reluziam. Falou:

- Aguardente é o sangue da velhice, e eu sou um velho e preciso de calor, mesmo neste clima. Já que estamos próximos da Síria, muito mais próximo do que Jerusalém...

Tornou a tossir.

Lucano sorriu:

- Já te disse que não sou romano. Sou grego, e, como grego, admiro contrabandistas.

- Burlar um governo opressor não é burlar disse o hospedeiro, com ar sensato.      - Como é possível fazer outra coisa? Além disso, quem ganha o dinheiro que ganhamos: o governo, ou nós? Devíamos recordar aos governos um dos grandes Mandamentos: Não roubarás! Mas, em toda a história do mundo, houve outra coisa a não ser governos ladrões?

- Nunca concordou Lucano. - Os governos, por sua natureza, são ladrões.

Bebericou cautelosamente sua aguardente. Não era da melhor qualidade, e pareceu queimar e cauterizar o estômago. O estalajadeiro bebeu com satisfação e disse:

- Ah! - Mas tanto ele quanto Lucano beberam apressadamente um grande gole da cerveja. O velho tinha uma mancha num olho e aquilo dava-lhe uma aparência muito maliciosa.

- Se não houvesse impostos não haveria dinheiro para soldados disse ele e se não houvesse soldados não haveria guerras nem conquistas, e se não houvesse guerras nem conquistas os homens poderiam aprender a viver juntos em paz. Mas não é o que os governos querem! Fazem guerra por cobiça, para ter proveitos!

Tinha trazido, prudentemente, outro prato, e servia-se da refeição de Lucano, que o médico não achara particularmente apetitosa. O velho continuou a investir contra os governos e comentou que Samuel tinha advertido o povo que nunca pusesse um rei sobre ele próprio, pois dessa maneira vinha o desastre. O estalajadeiro não era apenas velho, mas pobre, e apesar disso tinha mente aguda, fazendo com que Lucano o ouvisse com interesse. Os simples, pensou ele, são muitas vezes uma fonte de sabedoria, e os intelectuais da cidade poderiam ouvi-los com proveito.

- Meu nome é Isaque disse o hospedeiro, expandindo-se, suas faces murchas enrubescidas. - Também sou viúvo. Não é sempre que tenho hóspedes, e às vezes chego a fatigá-los. - Ajustou à cabeça o barrete preto, de algodão.

- Tu não me fatigas disse Lucano, que bebeu um pouco mais da aguardente. Dessa vez ela não lhe pareceu tão atroz. Seu ventre aqueceu-se e as poucas lâmpadas do aposento pareceram mais brilhantes. Ambos tragaram mais cerveja. Lucano resolveu que um pedaço da ave, um bolinho, algumas azeitonas e um cacho de tâmara eram o bastante. Depois de provar a ave, decidiu concentrar-se nos bolinhos recheados com sementes de papoulas e passas, nas azeitonas e nas frutas. Estava começando a sentir-se bastante tranqüilo. A aguardente tomara, agora, um sabor verdadeiramente estranho. Lucano já não acreditava que aquilo viesse da Síria; fora destilada perto de Nazaré.

Isaque comia com satisfação o carneiro.

- Tens o estômago delicado, senhor? indagou ele.

- Muito delicado respondeu Lucano, gravemente. - Carneiro não me faz bem.

Bebiam com gosto, e Isaque passou a contar alguns gracejos judaicos, maliciosos e picantes, e Lucano ria. O médico viu-se observando, fascinado, duas compridas rachaduras na caiação das paredes. Davam a impressão de rios tortuosos, e as manchas de cada lado tomavam o aspecto de aldeias férteis. Abruptamente, pousou seu cálice de aguardente. Isaque se tornara muito conversador. Seus gracejos aproximavam-se do obsceno, tal como acontece com os velhos.

- Ah! disse ele, como quem se desculpa -, quando um homem já não é potente deve divertir-se com palavras maliciosas. Isso ilude quem ouve, e pensa que realmente ali está um homem libertino.

Davi procurou esposa jovem para mantê-lo aquecido. Eu prefiro a aguardente.

- Um bode é muito potente, disse Lucano. - Um bode tem a mente sã, em sua velhice? Não; ele vai para a panela ou para o espeto.

Isaque começou a gostar de Lucano. Seus olhos ficaram enevoados e ele colocou a mão nodosa no braço do médico.

- Como és compreensivo! disse.

Lucano bebeu um pouco de cerveja. Pousou os cotovelos sobre a mesa rústica e escalavrada.

- Estou fazendo algumas pesquisas disse, com ar despreocupado. - Estou interessado num certo Jesus, que era filho de Maria e de José, o carpinteiro. Podes falar-me deles?

Instantaneamente, o rosto de Isaque tornou-se fechado e vigilante. Fixou os olhos em Lucano, desconfiado. Depois disse, assumindo indiferença:

- Oh! Maria e José. E Jesus.

- Não sou espião falou Lucano. - Não sou romano.

Isaque não estava tão animado quanto Lucano esperava, nem sua língua se soltara suficientemente. Apertou os olhos, fixando-os no médico, e disse, em tom espantado:

- Quem falou em espiões? Por que viriam espiões a esta obscura cidade, e a que propósito? Uma família judia, humilde, a de Jesus, Maria e José! Que importância teriam eles para o mundo? O pai e o filho eram carpinteiros, simples, gente honesta, como são todos em Nazaré. - Cofiou a barba, olhando cada vez mais agudamente para Lucano, e acrescentou: - Disseste que Maria mandou-te a esta hospedaria? Preciso agradecer-lhe, quando a vir, pois é ela uma das minhas primas muito distante e deseja-me bem.

Subitamente, bateu com força na mesa, com a mão, e um bonito rapaz aproximou-se, imediatamente, dizendo:

- Que desejas, avô?

Isaque falou num hebraico tão perfeito e culto que Lucano ficou surpreendido. Percebeu que aquilo era para que ele não entendesse, ele, um médico grego que viajava, e que não podia, com certeza, compreender a linguagem erudita. Isaque disse:

- Ezequiel, vai imediatamente à casa de nossa prima Maria e pergunta-lhe se é verdade que mandou este estrangeiro para cá, este grego, e se ele merece confiança, o que deseja que lhe digamos. Ele pode estar mentindo. Olha-o bem, de forma que o possas descrever para ela. Seu nome, segundo declara, é Lucano e ele é médico. Está, também, de posse de um belo cavalo árabe e parece que dinheiro não lhe falta. Temos que ser muito cuidadosos, precisamos nos lembrar de Pilatos e Herodes.

Ezequiel estudou com firmeza os traços de Lucano, guardando-lhe as feições de memória, e o médico bebeu mais cerveja e comeu um punhado de uvas, fingindo não entender o hebraico. O moço falou:

- Ele tem anéis belíssimos e maneiras civilizadas.

Lucano sorriu consigo mesmo. O jovem deixou o aposento e Isaque falou de maneira desarmante:

- Como eu disse, somos gente simples. Falei com meu neto em um dos nossos dialetos, sugerindo que, já que as noites esfriaram, ele pusesse mais um cobertor na tua cama.

- És muito bondoso respondeu Lucano. - Meu cavalo está instalado?

- Ah! Sim, senhor. Também disse a Ezequiel que lhe levasse água fresca.

Beberam sua cerveja em confortável silêncio. Isaque terminou, abstraidamente, o prato de carneiro. Depois, disse:

- Tenho um quarto onde durmo e vivo. Gostaria de mostrá-lo ao senhor.

Levantou-se, suas vestes solenes arrastando-se como mantos reais, apesar de sua pobre qualidade. Levou Lucano a um pequeno quarto atrás das instalações do refeitório, e acendeu uma lanterna na parede.

O quarto estava mobiliado com simples cadeiras, uma grande mesa, uma cama estreita, uma cômoda, e tudo era brilhante. Isaque disse:

- Observarás que esta mobília não é esculpida, nem dourada, nem especialmente fina. Mas é excelentemente trabalhada, lisa e polida. José e Jesus fizeram para mim estas coisas, e não havia melhores carpinteiros na Galiléia. José, ai de nós, morreu, e também Jesus, infeliz mente. Agora teremos de comprar mobílias de artesãos bem inferiores.

Lucano pousou a mão nos móveis, e pensou: Então Ele fez isto, Ele, o Senhor de tudo! Ele não desdenhou ser um carpinteiro Ele que criou as galáxias, e as constelações, e os sóis que ardem pela eternidade. Aplainou esta madeira para que ela brilhasse como seda, fez esta cama, esta mesa. E, sem dúvida, Ele teve tanto orgulho deste trabalho quanto da criação das Plêiades[31]!

O médico desejava não só colocar as mãos, mas os lábios, naquela mobília calma e simples que conhecera as mãos de Deus. Seus olhos umedeceram-se. Sentou-se numa cadeira. Isaque o observava. Viu a emoção de Lucano e franziu as sobrancelhas, perplexo.

- Havia outros homens deste lugar disse Lucano. - Conversei com Tiago e João. E logo verei Pedro.

- Oh! Sim falou Isaque, descuidadamente. - Eu os conheci bem.

Também ele sentou-se. Dentro de alguns momentos Ezequiel voltava, os olhos brilhantes de excitamento, dizendo:

- Avô, Maria declara que podes falar livremente com este homem pois ele amou Nosso Senhor e está escrevendo a respeito Dele, e fez uma longa viagem para ouvir falar Dele!

- Maria nunca se pode enganar disse Isaque, suspirando de alívio, e despedindo o neto. Voltou-se para Lucano e falou animadamente: - Pergunta o que quiseres sobre Jesus. Maria é uma prima distante, que eu amei desde que ela era uma criança. Um bebê tão adorável, uma jovem tão adorável! Ela tem uma inocência eterna e uma sabedoria sobrenatural. Conhecê-la é sentir a alma repleta de doçura, como que de mel. Não disse eu à minha esposa, quando Maria nasceu: "Ela foi concebida e nascida sem pecado! Basta olhar-lhe o rosto para saber isso"?

Pôs as velhas mãos engelhadas sobre os joelhos e deixou o rosto barbado tombar contra o peito.

- Maria e José eram da casa de Davi. As profecias conhecidas sobre o Messias falam nisso, e elas declaram, também, que o Redentor de Israel nasceria em Belém, e que morreria como Ele morreu, em Jerusalém. Isto foi conhecido durante séculos. Ainda assim, quando as profecias se realizaram, as pessoas recusaram-se a aceitá-las, a não ser os muito humildes e desamparados.

Isaque falou longamente. Muito do que ele disse Lucano também sabia, mas havia muito que lhe era desconhecido. A lâmpada faiscou na parede; insetos, com seus sons estridentes, meteram-se pelo quarto e dele tornaram a sair. Havia lá fora o cricrilar dos grilos e, às vezes, a voz de uma ave noturna. Isaque contou a Lucano sobre o tempo da purificação de Maria, depois do nascimento de seu Filho, segundo a Lei de Moisés, e de como ela O levara a Jerusalém, a fim de apresentá-Lo a Deus. José era um homem pobre e delicado, e tinha pouco dinheiro para o sacrifício habitual, e tudo quanto pôde pagar foi um par de toutinegras que levou numa gaiola a Jerusalém.

- Ele não podia pagar os preços daqueles que estavam no Templo disse Isaque, com alguma amargura. - Como é possível que homens sejam tão ávidos a ponto de fazerem dinheiro com assuntos sagrados?

Falou no velho Simeão, que tinha sido muito devoto e que, quando no Templo, por ocasião da apresentação, olhou para o infante Redentor e sentiu-se instantaneamente tomado pelo poder do Espírito Santo. Tinha-lhe sido revelado que ele não morreria sem que visse o Cristo do Senhor. Tomara a criança nos braços, chorando, rezando, e exclamara:

- Agora é, Senhor, que despedes Teu servo em paz, segundo a Tua palavra, porque meus olhos já viram o Salvador que nos deste, o qual aparelhaste ante a face de todos os povos, como lume para ser revelado aos gentios, e para glória do Teu povo de Israel!

Simeão abençoara depois Maria e José, e dissera então à jovenzinha:

- Eis que aqui está Posto este Menino para a ruína e para a salvação de muitos em Israel e para ser o alvo a que atire a contradição. E será essa uma espada que transpassará tua própria alma, a fim de descobrir os pensamentos que muitos terão escondidos no coração.

- Eu estava ali continuou Isaque, abrindo as mãos. – Ouvi essas palavras com meus próprios ouvidos. Pois Maria ficou espantada ou assustada? Não. Ela parecia saber de tudo, embora seu rosto jovem se tornasse triste diante das palavras de Simeão.

- E quando os três voltaram para Jerusalém? perguntou Lucano, suavemente.

- Tornaram-se o que o povo percebeu. Uma boa mãe e dona-de-casa: era Maria. Um consciencioso carpinteiro: era José. Um menino tranqüilo e bonito: era Jesus. Eram um só, com seus vizinhos.

Ouviste falar nos Zelotes? Sim. Eles apenas queriam livrar sua terra sagrada da mão dos romanos. Havia muita conversa secreta sobre insurreição, e sobre a expulsão dos romanos de nosso país, os romanos com sua arrogância e seus impostos. A Galiléia teve um entusiasmo particular por esses assuntos, pois para os simples tudo é simples. Os galileus não pareciam conscientes de que Roma era a senhora do mundo, de que tinha centenas de legiões armadas e poderosas. Para os galileus, que viam poucos romanos, o sonho de expulsar as legiões para o mar e libertar a terra santa não tinha complicação alguma.

Bastava que se tivessem algumas facas afiadas, pedras, e vontade. Os judeus tinham sido libertados da Babilônia e do Egito. Podiam, com o poder de Deus, ser libertados de Roma.

“Todos os nossos Zelotes eram jovens”. Tentaram incluir em seu meio Jesus, nosso jovem carpinteiro. Mas Ele não se interessou. Seus olhos olhavam sonhadoramente para a distância. Aquilo aborreceu os patriotas. Como podia um jovem não se preocupar com a expulsão dos ateus daquela região de Deus, purificando os lugares sagrados?

Jesus tornou-se pouco popular. Houve alguns que disseram, escarnecedoramente, que Maria, tendo apenas aquele Filho, nutria ambições por Ele. Ela O mandara à Escola de Shammai. Uma vez Jesus disse aos mais obstinados, que foram vê-lo na casa de Maria e de seu pai adotivo, José: "Meu Reino não é deste mundo!" Aquilo era incompreensível. Um reino para um galileu? O jovem estava louco! Os Zelotes fizeram-se escarnecedores e os anciãos sacudiam a cabeça. Maria estava educando aquele jovem para além de Seus desertos e de Seu destino. Ele era muito estranho; perambulava pela região rural e sorria às flores, aos animais e aos pássaros. Às vezes sentava-se numa grande pedra lisa e meditava sob o sol. Digo-te, Lucano, que não há homem mais detestado do que o homem que se mostra diferente de seus vizinhos. Sentem-se violados e ameaçados se alguém ousa ser o que eles não são. Quando ele está numa comunidade, deve conformar-se com suas idéias e costumes. De outra forma, é um cão pária, que ofendeu mortalmente o que é aceito. Deve pentear o cabelo e a barba da maneira habitual, deve falar como os outros falam. Indiferente ao que é aceito, torna-se um inimigo. O povo é muito estúpido, não é mesmo, senhor?

- Mais crimes se realizaram através da estupidez do que através dos exércitos disse Lucano. - Poderíamos ter piedade dos estúpidos, se eles não fossem tão invencíveis, tão vociferantes, tão positivos. Mas eles são terríveis em seu poderio universal.

- Mas é possível ter pena deles, senhor?

Lucano refletiu, depois sacudiu a cabeça:

- A não ser que tenha nascido com um defeito mental, o homem não pode ser perdoado por ser um tolo, um descarado, ou tão completamente igual ao seu vizinho quanto possível.

Isaque cofiou a barba.

- Não foi Jesus quem violou qualquer das leis cerimoniais levíticas ou aborreceu Seus professores com perguntas heréticas, ou expressou dúvidas sobre os regulamentos dos fariseus. Ainda assim, mesmo para os olhos mais estúpidos, Ele não era como os outros, daí a mortificação de muitos dos vizinhos. Recitava as preces e salmos, na sinagoga, com fervor e devoção, as lágrimas correndo-Lhe pelas faces.

José ensinou-Lhe coisas de Sua tribo e de Sua casa. Ensinou-Lhe o ofício de carpinteiro, pois os judeus antiquados acreditam que não é bastante cultivar a mente. Devemos aprender a usar também as mãos, pois é uma coisa bela conhecer um ofício tão bem quanto os livros.

Em tudo isto Jesus observou meticulosamente os costumes. Talvez fosse o olhar distante de Seus olhos, as Suas maneiras. Seus silêncios, Seus sorrisos, a maneira pela qual Ele caminhava. Como criança, Ele brincou tal uma criança, e era forte, cordial, e tinha uma risada clara e infantil. Ainda assim, não era como os outros.

“Nós, os muito poucos que compreendíamos as profecias, e como Ele tinha nascido e para que fora destinado, não O achávamos estranho”. Mas os vizinhos sentiam-se ofendidos por Ele. Era mais belo do que os jovens de Sua própria idade? Isto é duro de responder. Só sei que olhar para Ele era sentir o coração vacilar, mesmo entre aqueles que não sabiam quem Ele era, Fazia-se perturbador para quantos O observavam, e os homens não gostam de se sentir perturbados.

A luz amarela olhava para dentro do aposento e algum animal de carapaça dura raspava as pedras do pátio. Isaque falou no aparecimento de João Batista no vale do Jordão, exclamando:

- Eu, realmente, vos batizo com água! Um mais poderoso, porém, um de quem não sou digno de desatar os cordões da sandálias, virá e vos batizara com o Espírito Santo e com o fogo.

João era homem de temperamento furioso. Jesus sabia que ele era Seu parente. João não usava manto, como os fariseus, trajes de púrpura com longas franjas brancas, nem trazia a cabeça coberta com o gorro pontudo dos levitas. Era homem selvagem, morador do deserto, uma barba que parecia feita de bronze, rosto moreno, voz forte, que inspirava medo. Às vezes mugia como um touro, quando estava encolerizado, e o estava freqüentemente. Vestia-se com a pele dos animais. Mas falava com autoridade, e o povo ouvia, mesmo os romanos que encontrava. Seu fervor era impulsionante, como o sol.

Falava constantemente no Redentor, que estava para vir. O povo tornou-se excitado! Os dias dos romanos estavam contados! O Cristo atiraria todos os romanos para o mar e libertaria Seu povo de Israel, sentando-se num trono de ouro, e o mundo fixaria os olhos Nele e diria: "Como é poderoso o Rei e como é poderosa Israel!" O Sinai trovejaria e faiscaria novamente e a Lei seria de novo proclamada por toda a terra, e os arcanjos ficariam de pé no céu, acima do Templo de Jerusalém. Os corações das pessoas alvoroçavam-se de esperança e júbilo, quando ouviam João, embora de nada dissesse do que esperava toda a gente. Acreditavam naquilo em seus espíritos, pois caso contrário, como reconheceriam o Sagrado? Esqueciam-se das profecias.

- Meu neto Ezequiel desceu o Jordão para ser batizado por João continuou contando Isaque. - Havia grande aglomeração às margens do rio, e acima do murmúrio zumbidor ele pôde ouvir João gritando exortações, enquanto batizava, pedindo penitência e prometendo o perdão dos pecados. Nos intervalos de tais pronunciamentos ele inseria sua opinião da humanidade em geral que era muito baixa e muito fraca. O último de seus gritos para o povo era: "Raça de víboras, quem vos advertiu que fugísseis da ira que vos esta ameaçando? Rezai, portanto, frutos dignos de penitência, e não comeceis a dizer: "Nós temos por pai Abraão", porque eu vos declaro que poderoso é Deus para fazer com que destas pedras nasçam filhos a Abraão. Porque já o machado está posto à raiz das árvores. E assim, toda árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo.”.

“As mulheres choravam e os homens golpeavam o peito, e as crianças gritavam, e todos desciam para a margem do rio a fim de serem batizados e confessarem os miseráveis pecadores que eram”. Não duvido de que ao mesmo tempo que sentiam um frêmito de santidade e pureza sentiam-se insuportavelmente excitados com a idéia da chegada do Salvador, que faria deles príncipes, em Israel, à sua mão direita. Alguns deles eram de Nazaré, e meu neto estava entre esses.

"João estava no meio de uma condenação ainda mais veemente dos crimes da humanidade, pois era homem que não tinha paciência com o menor dos pecados e pouca compaixão havia em sua alma, quando, subitamente, Jesus apareceu acima dele, no barranco do rio.

Que fez o povo levantar instantaneamente a cabeça e olhar para Ele, com súbito silêncio? Estava de pé no barranco do profundo rio verde, e um feixe de luz solar fazia com que brilhassem seu cabelo e sua barba dourados. Olhava para João e para o povo soluçante com Seus piedosos olhos azuis.

“Ezequiel contou-me que Ele tinha a majestade de um rei, o esplendor de um grande potentado, a glória de um profeta, a autoridade de um Moisés, ali, de pé, com Suas roupas de camponês e Seus pés descalços”. Sentia-se que uma Visão aparecera, e mesmo os que O conheciam sentiam-se tomados de respeitoso temor, pois nunca O tinham visto envolvido em poder sobrenatural.

"Vendo-O, João parou sua fala de censura, e chorou, estendendo as mãos para seu parente. Então, Jesus, no meio daquele silêncio inexplicável, desceu o barranco e pediu que João O batizasse. João ficou horrorizado. Cruzou os braços sobre o peito, depois de tocar na testa com os dedos. E disse, em voz fraca: "Mas eu é que devia ser batizado por Ti." Jesus sorriu meigamente e olhou para o rosto das pessoas que ali estavam. Inclinou a cabeça, entrou na água e esperou, calmamente. O povo tomava completamente os barrancos. Alguns de Nazaré murmuravam para seus vizinhos: “Mas é Jesus, nosso vizinho, nosso carpinteiro, o filho de Maria e José, que conhecemos”!" Ficavam a olhar para os dois homens no rio, um de aparência tão selvagem, o Outro tão Silencioso e tão cheio de dignidade. E assim João batizou-O, erguendo a água verde em suas mãos trêmulas, o rosto maravilhosamente humilde, e com lágrimas nos olhos. As árvores espessas e as moitas lançavam sombras esmeraldinas sobre os dois, e ainda assim a barba e a cabeça de Jesus pareciam douradas.

“Foi imediatamente depois do batismo que uma coisa estranha aconteceu, embora tivesse havido certa discussão quanto aos pormenores”. Jesus ficou subitamente luminoso, como se as árvores se houvessem afastado bruscamente a fim de deixar passar o sol e sua luz rigorosa, e fosse deslumbrador demais aquele momento para que se pudesse olhar para Ele. Um pássaro branco surgiu, não se saberia dizer de onde, e pousou-Lhe no ombro. E uma grande Voz foi ouvida, saindo do céu: "Tu és aquele meu Filho especialmente amado e em Ti é que tenho posto toda a minha complacência."

"Ezequiel jura que isto aconteceu, meu caro Lucano, disse Isaque, enxugando as lágrimas de seus velhos olhos com a manga de sua veste, e Ezequiel jamais mentiu em sua vida. Voltou para Nazaré muito agitado e contou-me, explodindo depois em soluços. “Eu ouvi a voz de Deus”!", exclamava e tornava a exclamar, tapando os ouvidos com as mãos, como se tentasse reter aquele som. Estava fora de si de arrebatamento e medo, e ele é, habitualmente, um jovem de muita compostura.

“Quando nossos conterrâneos nazarenos voltaram para casa, muitos deles estavam nas condições de Ezequiel”. Aglomeravam-se em torno da casa humilde de Maria e Jesus, onde eles viviam sozinhos desde a morte de José. Gritavam que Jesus viesse falar com eles, e finalmente Jesus saiu para o limiar da porta, e as pessoas caíram prostradas diante Dele, que as abençoou, sorrindo, com aquele Seu sorriso bondoso e compassivo. Conhecia Sua gente e sabia quanto eram pobres aquelas pessoas, como eram desprezadas pelos levitas e fariseus, como eram oprimidas pelos impostos romanos, como eram sem defesa. Amava-as; eram sua gente.

“Mas alguns em Nazaré ficaram terrivelmente zangados e escarnecedores”. Declararam que não tinham visto nada de milagroso no Jordão.

Quê! Aquele carpinteiro com Seus ares e Suas graças! Aquele filho de Maria, que ainda era mais pobre do que eles próprios? Que presunção! Profetas jamais vinham de Nazaré, nem de gente como eles. Se vizinhos mais iludidos declaravam que O tinham visto iluminado e ouvido uma voz que viera do céu, e se um pássaro branco pousara no ombro Dele, não passava de uma auto-alucinação. Era, mesmo, blasfêmia.

“Coléricas discussões surgiram entre amigos e vizinhos, entre pais e filhos, entre mães e filhas, entre vizinhos e vizinhas”. Foi logo depois disso que Jesus deixou Nazaré, e disseram que Ele fora para o deserto, em meditação.

“Ele é um Zelote falavam alguns, sombriamente”. - Vai nos causar transtornos com Roma. Nossa vida não é dura bastante como é, sem maiores aflições? Não vos recordais do que nos aconteceu quando os romanos caçaram os Zelotes, apenas alguns meses atrás?

Era muito tarde, agora, e Isaque, embora exaltado, era velho e se fatigara. Lucano poderia ter ouvido durante toda a noite. mas, vendo o rosto exausto de seu hospedeiro, levantou-se, desejou-lhe uma boa noite e foi para seu quarto.

Sozinho, escreveu seu Evangelho. A luz da lua amarela pousava em seu ombro, e a lâmpada fazia-se mais fraca. Um cão solitário ladrou, e chacais distantes responderam, com suas vozes selvagens.

Lucano escrevia rapidamente, sem parar, enquanto não completou a história contada por Isaque. Finalmente, a madrugada deu tom de pérola ao céu e os pássaros cantaram, cumprimentando o sol que ainda não nascera. Lucano deitou-se em seu leito, rezou, e adormeceu tranqüilamente. Sonhou que estava de pé na margem do Jordão e que, no rio, Alguém vestido de luz emergia em direção dele, o que o fez tombar de joelhos. Sentiu-se submergido em radiosidade e colocou as mãos sobre os olhos.

 

Pela manhã, o jovem Ezequiel bateu à porta do quarto de Lucano abrindo-a, o médico viu que o rosto dele estava cheio de medo e incerteza. Meteu um pacote nas mãos de Lucano e gaguejou:

- Isto chegou de Tiberíades esta manhã, trazido para Li por um soldado romano.

- Não tenhas medo disse Lucano, bondosamente, tocando o ombro do moço. - São apenas cartas para mim, enviadas pelo amigo de Jerusalém, Hilell ben Hamram.

Sentou-se na cama e leu as cartas que tinham sido entregues na casa de Hilell. Havia uma de Íris, outra de Aurélia, sua irmã, outra de Prisco, e ainda outra de Plócio. Leu-as todas com amor. Às vezes, suspirava. Tornaria a ver aqueles que tinham seu afeto? Sua mãe estava velha. Mas, pela primeira vez, não Implorou que ele voltasse a Roma, ao menos para uma visita. Escrevia:

"Caro Filho, deves fazer o que teu espírito ordenar, e eu compreenderei. Tive um sonho no qual me disseram que já não pertences à tua família, e que Deus te chamou e deves obedecer. Lembra-te, porém, com amor, de nós, pois realmente estás sempre em nossos corações."

Havia muitas notícias felizes da família, e Lucano regozijou-se com elas. Mas Tibério César ia declinando, e Roma secretamente esperava que ele morresse, pois se tornara terrível e crudelíssimo, totalmente sem compaixão ou piedade. Seus crimes eram legião. Era como se tramasse contra seu Império e seu povo uma vingança horrenda. Lucano suspirou. Que o povo sentisse a cólera de seus governantes, pensou, pois é ele o culpado de seus excessos.

Agora lia a carta de Hilell, com profundo interesse e excitamento. Antes de mais nada, Hilell estava esperando pela volta de Lucano para realizar o casamento de Arieh ben Eleazar e Lea.

Tivera um visitante em sua casa: “Hás de lembrar-te, meu querido Lucano, que te escrevi sobre Saulo de Tarso, ou Gaio Júlio Paulo, como é conhecido em sua cidadania romana”. É um fariseu, e foi antigamente um dos homens de convicções religiosas mais conservadoras e profundo observador da Lei, apesar de sua posição entre os romanos e de sua alta categoria como administrador e advogado. Era, também, homem orgulhoso e arrogante, de língua muito flexível, como acontece a muitos advogados, e das opiniões mais rígidas. Em parte isso correspondia ao seu temperamento. É dado a intensos entusiasmos e dogmatismos, e a acessos de altivez. Jamais deixaria alguém esquecer-se de que ele é ao mesmo tempo cidadão romano e judeu de família nobre e influente. Insolência, para ele, era coisa insuportável, que devia ser punida de imediato. Para um jovem, mostrava-se imensamente rígido, em seu orgulho, e terrivelmente honesto. Nos tribunais de leis, seu gênio forense era muito temido e admirado.

"Acima de tudo, sempre foi um judeu devoto, odiando os que sequer ousavam duvidar da Torá[32] em seu mínimo pormenor. Quando ouviu falar em Jesus, o humilde Nazareno, e nos boatos de que Ele era Filho de Deus, ficou ultrajado e pessoalmente insultado. "Nada de bom jamais veio de Nazaré", escreveu ele certa vez. “Quando Deus nos mandar o nosso Messias, Ele chegará como o relâmpago, entre uma companhia de arcanjos, e com as trombetas do Senhor nosso Deus, e todos O conhecerão e as nações do mundo se curvarão diante Dele”.

Como ousa esse camponês, esse carpinteiro, esse Jesus de Nazaré, ser proclamado o Salvador, pelos ignorantes? Isto é uma blasfêmia diante de Jeová. Estou cheio de indignação e justa afronta. A lei foi violada por massas idiotas e iletradas. Sabes que sempre desprezei os ilerados que cantam suas preces por ouvi-las, e nada sabem da verdadeira Lei e suas implicações. Se eu pudesse fazer o que desejo, confinaria essa gente aos pátios externos do Templo, pois cheiram mal e seus rostos estúpidos são uma afronta diante da glória de Deus! E seus sacrifícios deveriam ser rejeitados.”.

“Receio, Lucano, que minhas cartas a ele só tenham aumentado sua cólera”. Como podia eu, Hilell ben Hamram, de uma grande família judaica, um erudito, um homem de posição, venerado no Templo, estar tão iludido com os boatos relativos a esse Jesus, a esse Homem das colinas despidas, das ravinas e barrancos de Nazaré. Algum encantamento fora atirado contra mim. Isso era intolerável! E agora, os Cristãos espalhados estavam causando muitos transtornos em Damasco, discutindo com os vizinhos, zombando da lei, declarando que o Messias nascera de uma virgem, numa família humilde, e pregara através de Israel, ultrajando os sacerdotes que são os guardiães da Lei, falando contra os fariseus que administram a Lei e chamando-os de uma geração de víboras e hipócritas. E então Ele fora justamente crucificado por incitar o povo contra Roma, para perigo mortal desse mesmo povo!

“Como administrador romano ele seguira seu dever, segundo as leis, indo a Damasco para abafar o que os romanos chamavam insurreição, mas que ele declarava ser blasfêmia”. Cavalgava com sua companhia de colegas advogados, e com um séquito de soldados romanos, cheio de vingança e fúria. Tão inflamado ia que não parava numa hospedaria sequer para passar a noite, mas cavalgava para Damasco como um turbilhão.

“E agora, como meu amigo e hóspede de minha casa, conta-me a mais maravilhosa e estranha das histórias”. Está cheio de paixão e excitamento ao repetir o fato, como se eu fosse um descrente e ele o evangelista que precisa me convencer.

“Estava ele cavalgando à frente de seu séquito, na estrada de Damasco, seus cabelos e suas vestes voejando ao vento provocado pelo seu galope”. Subitamente, o animal que ele montava nitriu e empinou no ar, tendo Saulo um trabalho imenso para dominá-lo, Os que o acompanhavam empinaram também, e os homens, lutando contra seus cavalos e blasfemando, fizeram círculos na estrada, estalando os chicotes, enquanto as patas dianteiras dos animais batiam no ar num frenesi e os arreios brilhavam ao luar como prata agitada.

"Então, diante de Saulo, uma luz tremenda apareceu, como sol novo, e no meio dela surgiu uma Figura radiante, coroada de espinhos, e envolvida em luminosidade enceguecedora. E a Figura ergueu as mãos feridas e disse a Saulo, em voz imensa, ainda assim suave, “Saulo, Saulo, por que Me persegues”?”.

Saulo fixou os olhos na Figura, abrigando-os contra a luz. Um tremor horrível apoderou-se dele, e uma sensação da mais devastadora culpa e de poderosa adoração. Não sabia o que fazer, ou o que responder. Sua alma estava estraçalhada e derrotada. Aquele era o Messias que ele estava para perseguir e cujos seguidores ia disposto a destruir! Olhou para a Face gloriosa e seu coração saltou de júbilo, humildemente. A criatura humana de forma alguma poderia suportar a visão. Saulo foi abatido pela vertigem, e tombou de seu cavalo.

“Houve alguns, entre os que o acompanhavam, que nada viram”. Outros declaravam ter percebido luz deslumbradora que os enchera de terror. Fosse como fosse, Saulo voltou para Jerusalém homem transformado, elevado, cheio de lágrimas, repleto de alegria e angústia que se mesclavam, e de apaixonado amor. Ele vira o Ressuscitado. Toda a sua natureza veemente aceitava o que aquela mesma natureza ainda não havia muito rejeitara com desdém e repulsa.

"Agora, está em minha casa. Declara que vai procurar Pedro, em Jopa, imediatamente, para ser batizado e para receber instruções. Irá, então, cuidar de sua própria missão. Disse-me: “Ele, Nosso Senhor, não veio apenas para os judeus, mas para os gentios”! Eu me tomarei uma voz para os gentios, e hei de levá-los à salvação!" Lembra-te que isto estava sendo dito pelo altaneiro Gaio Júlio Paulo!

“Consegui persuadi-lo a esperar até a tua volta, quando retornasses da visita a Maria e à Galiléia”. Ele ainda é homem muito impaciente, e de início recusou. Não podia adiar por um instante o trabalho que deve fazer. Contei-lhe tudo a teu respeito, meu querido amigo. E agora ele declara que tu e ele ireis juntos até Pedro. Não sei o que Pedro fará com ele, Pedro, o pobre galileu, o humilde pescador. Saulo é um homem impetuoso e mesmo agora não consegue esquecer-se de que pertence a uma nobre família judia e é cidadão romano. Está imbuído de entusiasmo e adoração. Discutirá com Pedro, e Pedro com ele?

Saulo acredita ter recebido uma incumbência especial de Nosso Senhor, incumbência que, segundo ele próprio insinua, ainda é superior à dos apóstolos. Será ele arrogante para com Pedro? Humildade é coisa que dificilmente lhe chegará à alma. Pedro viu, e acreditou.

Saulo não viu o Senhor em carne, mas agora acredita, com uma exultação que, às vezes, é assustadora. Chega a fazer-me discursos, adverte-me, a mim que há tanto tempo tentei convencê-lo. É como ter um temporal em casa; passeia de cá para lá a noite inteira, murmurando consigo mesmo, e rezando.

"Ontem, disse-me: “Estou muito interessado nesse Lucano, e nas histórias que a respeito dele me contaste”. Mas é um gentio, e deve ser convencido por mim, pois os gentios tem corações endurecidos, e eu tenho ordem para trazê-los à Fé." Consegui reter o riso. As vezes ele quase chega a convencer-me de que sou um homem ignorante, e inconsciente da mensagem do Messias.

"E agora, meu querido Lucas, nós te esperamos."

Aquela era a primeira vez que Lucano era chamado pelo diminutivo afetuoso. Leu e tornou a ler a carta de Hilell. E seu excitamento cresceu. Tinha a impressão de que ele e Saulo iriam entender-se, pois nenhum dos dois vira o Messias em carne. Apenas com seus espíritos O haviam visto, e seguramente a visão do espírito era mais pura do que a visão dos olhos mortais. Pensou em Saulo com súbita afeição, que era inexplicável. Sorriu, ao pensar no homem orgulhoso e veemente, cidadão romano como ele era cidadão romano. Saulo realizaria grandes coisas. Falaria com enfática autoridade. Seria um açoite para os apóstolos, que ainda suspeitavam dos gentios e temiam-nos. Seria um açoite para os gentios.

Lucano apanhou seu material de pintura, depois de ter jantado em seu quarto. Queria retratar Maria, para os tempos vindouros.

Pensou em suas feições tranqüilas e belas, em sua majestade, em sua graça, em seu aspecto sereno e sobrenatural. Pensou nos olhos percucientes, mas suaves, no sorriso heróico, nas maneiras doces. Começou a trabalhar. Mas Maria lhe fugia. Era, ao mesmo tempo, velha e imortalmente jovem, simples, contudo profunda. Como poderiam simples tintas descrevê-la, a ela, a Mãe de Deus?

Lucano foi, a pé, ver Maria pela última vez. A rua despida e silenciosa em que ela vivia deprimia-o. A passagem mostrava-se repleta de buracos, nos quais a poeira quente e branca se aninhara. As janelas e portas fechadas, escondendo-se do sol, reluziam à sua passagem. Algumas cabras empoeiradas e alguns frangos corriam ao movimento de seus passos. As colinas cor de sépia dançavam em ondulações de calor, sob um céu esbraseado. Lucano sentia-se satisfeito ao saber que Maria iria depressa para Jerusalém, onde moraria com o jovem João, a cujo cuidado seu Filho a deixara. João falara nela com lágrimas e profunda devoção, a voz faltando-lhe, e por isso Lucano não temia que ela fosse negligenciada pelo moço.

Maria atendeu à batida de Lucano em sua porta, que abriu, sorrindo gentilmente e conduzindo-o a descer o inclinado lance de escada de pedra que dava para o aposento de baixo, parecido a uma adega, onde havia frescura. Preparara uma refeição para seu hóspede, sobre a mesa de madeira: mel em favo, pão fresco, torcido como rosca, frutas e queijo, leite de cabra e vinho. Uma luz fraca, azulada, difundia-se pelo aposento pobre, onde Maria era uma sombra brilhante. Enquanto Lucano comia ela o observava, as mãos cruzadas no regaço, o belo rosto tranqüilo. Lucano pintara-lhe o retrato em madeira, mas, fixando agora os olhos nela, sentia-se frustrado.

Pensara que tivesse obtido, pelo menos, uma imagem apropriada daquela Mãe. Entretanto, ela mudara, novamente; era uma donzela tímida, digna e correta, os olhos sonhadores, distantes. Parecia lançar luz de sua própria carne, de forma que em torno dela havia uma cintilação.

Lucano disse:

- Senhora, teu Filho sempre soube quem Ele era? Desde Sua infância?

Maria meditou, depois inclinou a cabeça:

- Acredito que sim. Sei que sim. Mesmo em Seu berço, que José meu marido fez tão amorosamente com suas próprias mãos, Ele parecia estar sempre meditando. Foi o mais doce dos bebês. Jamais chorava, nem mesmo quando tinha fome. Parecia conhecer-nos desde o dia em que nasceu. As vezes, à noite, eu erguia uma lâmpada sobre Ele, para ter certeza de que tudo estava bem, e de que Ele dormia.

Abria então Seus olhos queridos e sorria, tranqüilizando-me.

“Foi um menino forte e vigoroso, obediente, mas muitas vezes silencioso”. Divertia-se com os brinquedos que José fazia para Ele e brincava como as outras crianças brincam. Mas, no meio de seus brinquedos, ficava de súbito imóvel como se pensasse ou refletisse. Era isso que aborrecia as outras crianças, isto, e Seu súbito afastar-se delas para ficar sozinho.

“Não falamos com Ele sobre Seu nascimento e Sua missão”.

Havia como que um entendimento entre nós todos. Certa vez, Ele me encontrou chorando, pois eu compreendia, vagamente, Seu fado inexorável, segundo as profecias e segundo o que o velho Simeão dissera no Templo. Sou mãe, Lucano. Meu Filho era mais querido para mim do que a própria vida, e às vezes meu coração quase se despedaçava quando eu ousava pensar se a humanidade seria digna Dele. Quando Ele me viu chorando, e então tinha dez anos de idade, veio ter comigo, abraçou-me e apertou-me contra Seu peito de menino, calado e consolador. Não me fez perguntas. Enxugou delicadamente meus olhos, e eu não consegui aplacar a força dos meus soluços. Finalmente, Ele disse: "Não deves chorar, minha Mãe, pois eu estou sempre contigo.”.

Maria calou-se, e, embora sorrisse, havia lágrimas em seus olhos. Suas mãos tranqüilas começaram a tremer.

- Quando Ele me deixou, depois que João o batizou, e retirou-se para o deserto durante quarenta dias, foi como se para mim toda a luz tivesse desaparecido da vida, pois compreendi que já não O tinha mais, que dali por diante Ele pertencia a Deus e ao mundo.

José morrera. Segui meu Filho através do país muito freqüentemente, e Ele se preocupava comigo, que já não era jovem. Às vezes, quando o povo o rodeava, ouvindo-O, eu ficava à margem da turba, não desejando perturbá-Lo com a minha presença. Mas Seus olhos sempre me encontravam, e às vezes tornavam-se tristes. Houve sempre, entre nós, o maior amor e devotamento. E compreensão. Muitas vezes, quando Ele estava mais longe, aparecia-me em sonhos, cheio de ternura e consolo. Sabia que eu era uma mulher, e mãe, e que sofria por Ele, e que sempre pensava Nele como fruto do meu próprio ventre e o querido de meu coração, acima de tudo.

Fechou os olhos, em dor profunda, e Lucano sentiu que ela pensava na crucifixão, pois seu rosto empalideceu e tornou-se rígido.

Depois de um momento recomeçou a falar, em voz baixa.

- Houve uma noite estranha, de que me recordo, quando Ele tinha quatorze anos. Durante todo o dia trabalhara na oficina, pois era um carpinteiro maravilhoso, e tinha muitas encomendas.

Estava fatigado. Mas, naquela noite, ao crepúsculo, deixou a casa e subiu para a colina que ficava atrás de nossa habitação. Não havia ninguém por ali, pois era a hora da refeição noturna. Eu jamais vira o céu tão vermelho como estava então, como se o firmamento se incendiasse. Mesmo as montanhas flamejavam, como pedras reluzentes. Não sei por que O segui. Fiquei de pé, abaixo Dele, na pequena passagem de pedra, e levantei os olhos para onde Ele estava. Meu Filho vestia uma roupa branca, que eu fiara e costurara para Ele, e parecia uma estátua, de pé, contra a paisagem fulgurante. Não se movia, era como se esperasse. Tão grande e inspiradora de respeitoso temor era a cena, tão flamejante de fogo fosco, que fechei os olhos por um momento. Quando os abri de novo, ele não estava sozinho.

“Um grande anjo escuro, alto e majestoso, estava em pé diante Dele, e eu senti que aquele anjo era só maldade, embora tivesse um rosto sombriamente belo”. Parecia estar vestido ao mesmo tempo em flama e noite, e suas asas poderosas refletiam o crepúsculo, como basalto esculpido.

“Ele e meu Filho contemplavam-se mutuamente, em silêncio, e meu coração estremeceu de terror, ao vê-los assim se defrontando”.

Falaram? Não sei. Embora tudo estivesse silencioso, não ouvi uma só palavra. Meu Filho era muito jovem, mas alto e ereto, e não mostrava receio diante do terrível anjo de rosto belo, que era sarcástico e cheio de orgulho.

“Então, enquanto eu os observava, o anjo abaixou-se e levantou nas mãos um punhado de terra, mostrando-o a meu Filho, e então ouvi um riso leve e escarnecedor”. Como compreendi, não sei, mas ele estava mostrando a Jesus a inutilidade do mundo. Atirou a terra e pisou sobre ela, e foi então que ouvi o leve cascatear de trovão, que parecia vir do próprio anjo.

“Então, Jesus também abaixou-se, levantou alguma terra em Suas mãos, e segurou-a ternamente, esfregando-a entre Seus dedos”. Era terra seca e sem verdura, mas, quando Ele a segurou, ela subitamente floresceu num ramalhete de espessas folhas verdes de onde surgiam minúsculos lírios, que se curvavam. Pude sentir-lhes a fragrância que o vento trazia.

“O anjo olhou para as flores, recuou e cobriu o rosto com as mãos”.

Então, com um grito tremendo, desapareceu, e meu Filho ficou sozinho.

“Corri, descendo o caminho da colina, para a minha casa, e logo depois Jesus voltava”. Olhou muito para mim, depois abraçou-me, e beijou-me na face. Agarrei-me a Ele. Nada dissemos. Sentamo-nos e fizemos a nossa refeição.

Lucano fixava os olhos naquela adorável mulher que tanto vira e tanto sofrera. Ela sorria de leve, de novo tomada pelos seus sonhos.

Então, o médico ajoelhou-se ao lado dela e tocou-lhe os pés com os lábios, trêmulo de respeito e de amor. Ela desceu os olhos para Lucano, e seu rosto mostrava-se iluminado. Pôs a mão na cabeça do homem, e ele pensou em Íris, sua mãe.

Maria tornou a encher o copo de vinho e deu-o ao médico, que, sempre de joelhos, bebeu-o, sentindo-se maravilhosamente revigorado.

- Meu caro filho disse ela -, não chores. Não sou eu a mais abençoada das mulheres? Regozija-te comigo por Ele ser meu Filho.

Subiram juntos os degraus, saindo para o clarão incandescente do meio-dia, que, entretanto, fazia a ruazinha parecer ainda mais desolada do que antes.

- Devo deixar-te agora, Senhora disse Lucano. – Tenho muito que fazer.

Ela confirmou, com um movimento de cabeça.

- Eu sei. Que a paz seja contigo, Lucano.

Ele deixou-a, caminhando vagarosamente, na descida da rua estreita. Então, chegando ao fim, voltou-se, e olhou para Maria.

Ela estava de pé, contra o cenário de fundo das montanhas ardentes e bronzeadas, e pareceu a Lucano que a Senhora se fizera muito alta, que estava vestida de pura luz, e que seu rosto irradiava luminosidade, como a lua, quando está em seu auge. Tinha o aspecto incrivelmente belo e cheio de paz, intrépido. A rua já não se mostrava desolada.

       Ela ergueu a mão, para Lucano, em adeus e em bênção.

 

 

[1] É o décimo dia após o Ano Novo judaico, quando Deus escreve em seus livros os destinos dos homens, dando-lhes uma oportunidade de se arrependerem de suas faltas. (N. do T)

[2] Célebre templo de Atenas, dedicado a Minerva, decorado com trabalhos de Fídias.

[3] Cidadela da antiga Atenas, sobre um rochedo. O cume era coberto de templos, entre os quais estava o Partenao.

[4] Sol

[5] Orador e estadista grego célebre, exerceu a melhor das influências sobre seus concidadãos, fazendo-se chefe do partido democrático. Dá-se seu nome ao século mais brilhante da história da Grécia (499-429 a.C.)

[6] Acreditavam os pagãos que seus deuses lhes davam respostas, através dos sacerdotes e sacerdotisas. Essas profecias eram levadas muito a sério e um dos oráculos mais respeitados era o de Delfos.

[7] Figura mitológica que se celebrizou, pela busca do Velocino de Ouro, conduzindo os Argonautas à Cólchida. Foi educado pelo Centauro Quirão.

[8] Cidade que se celebrizou, na Ática, pela vitória dos gregos sobre os persas, no ano 490 a.C.

[9] Célebre desfiladeiro da Tessália, onde Leônidas, com trezentos espartanos, tentou deter o exército de Xerxes. Não o conseguiu, porque um traidor, Efialta, indicou aos persas um caminho que permitia contornar o monte. O sacrifício desses trezentos homens ficou célebre na história da Grécia. (Notas do tradutor)

[10] Herói grego, a que se atribui, entre outras proezas, a destruição do monstro de Creta, o Minotauro.

[11] Estátua de homem ou de mulher, que sustenta uma cornija. (Notas do Tradutor)

[12] O maior dos historiadores gregos, autor da Guerra do Peloponeso (460-395 a.C., aproximadamente). (N. do T)

[13] Deus grego do fogo e dos metais, o Vulcano dos latinos (N. do T)

[14] Segundo filho de Noé, amaldiçoado por seu pai por ter zombado dele ao encontrá-lo em postura pouco digna, embriagado pelo efeito que desconhecia do vinho. Seus descendentes são os chamados camitas. (N. do T)

[15] Boi sagrado, que os egípcios consideravam como expressão da divindade sob a forma animal. (N. do T)

[16] Chamado o pai da tragédia grega. Pensador e poeta lírico (525-456 a.C.). (N. do T.)

[17] O deus do amor, Cupido. (N do T)

[18] Ocorreu nessa hora um grande terremoto em Nicéia. No ano IV da 202ª Olimpíada. Flégon escreveu que uma grande escuridão inexplicável aos astrônomos cobriu toda a Europa. De acordo com Tertuliano os relatórios romanos registram uma escuridão completa e universal que afligiu o Senado então reunido e lançou a cidade em tumulto, pois não havia tempestade nem nuvens. Os relatórios dos astrônomos gregos e egípcios registram que a escuridão foi tão intensa que até mesmo os cientistas se alarmaram. O povo gritava em pânico pelas ruas, os pássaros abrigaram-se nos ninhos e o gado procurou os estábulos. No entanto não existe registro de eclipse que, aliás, não era esperado. Era como se o sol se houvesse retirado de seu sistema. Os relatórios maia e inca também anotam essa ocorrência, levando-se em conta a diferença de tempo. (N do T.)

[19] Governador de uma das quatro partes em que se dividiam alguns Estados, fossem elas províncias ou governos (tetrarquias). (N do T)

[20] Cobrador de rendas públicas em Roma. (N. do T.)

[21] Casta pouco versada nas coisas da religião, de cultura limitada. (N do T)

[22] Membro de uma seita judaica que negava a imortalidade da alma. (N do T)

[23] Filhos do Céu e da Terra que, revoltados contra os deuses, tentaram alcançá-los amontoando montanha sobre montanha, sendo fulminados por júpiter. Daí a expressão "trabalho titânico", para algo que exige esforço imenso, quase sempre infrutífero. (N. do T)

[24] A denominação de Local dos Crânios deve-se a palavra calvário (caveira) depois usada como Calvário, nome que se ligou ao monte Gólgota onde se faziam as execuções dos criminosos. (N do T)

[25] Referência a descendência dos habitantes da colônia (Julia equestris colonia) estabelecida por César na Helvécia. (N do T.)

[26] Filósofo grego do quarto século a.C. que ria constantemente da loucura humana. Dizia que o ser consiste numa porção de átomos movendo-se no vácuo. (N do T)

[27] Ninfas eram as divindades das águas e florestas; dríades, as divindades menores das florestas; náiades, as das fontes e rios; sátiros, semideuses de pernas e pés de bode, que habitavam as florestas. (N. do T)

[28] Figura bíblica, mulher de Acabe, rei de Israel, assassinada e devorada por cães. (N do T)

[29] Aldeia próxima de Jerusalém, onde ficava o Monte das Oliveiras, no qual Jesus teve sua última Vigília. (N. do T)

[30] Moeda usada entre os hebreus, também como peso (6 gramas). (N. do T)

[31] Constelação do hemisfério boreal. A Mitologia dá esse nome às sete filhas de Atlas e Phone, que se mataram de desespero e foram transformadas em estrelas. (N. do T)

[32] Nome dado pelos judeus à lei mosaica (Pentateuco). (N. do T)

 

 

                                                                                            Taylor Caldwell

 

                      

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