Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
MÉDICO ESPACIAL
Muito longe, na periferia da Galáxia, onde os sistemas estelares eram raros e as trevas quase absolutas, o Hospital Gerai do Sector Doze flutuava no espaço. Nos seus trezentos e oitenta e quatro pisos estavam reproduzidos os ambientes de toldas as formas de vida inteligentes conhecidas da Federação Galáctica, um espectro biológico que ia das formas da metana ultra frígida, passando pelos tipos mais normais, respiradores de oxigénio ou cloro, até às criaturas mais exóticas cuja existência dependia da conversão directa de radiação «dura». Os seus milhares de vigias estavam sempre cheias de luz — luz na perturbante variedade de cores e intensidades necessárias para o equipamento visual dos seus funcionários e dos seus pacientes extraterrestres — de modo que, para as naves que se aproximavam, o grande Hospital parecia uma enorme e cilíndrica árvore de Natal.
O Sector Geral representava um milagre duplo de engenharia e psicologia. O seu abastecimento e a sua manutenção eram assegurados pelo Corpo de Monitores — o braço executivo e policial da Federação — que também tratava da sua administração, mas o atrito tradicional entre os membros militares e civis do pessoal não existia. Nem havia quaisquer dissensões notáveis entre as dez mil criaturas que formavam o quadro médico, composto por cerca de sessenta formas de vida diferentes, cota sessenta diferentes conjuntas de maneirismos, odores corporais e atitudes perante a vida. Talvez o seu único denominador comum fosse a necessidade de todos os médicos, fosse qual fosse o seu tamanho, feitio ou número de pernas, curarem os doentes.
O pessoal do Sector Geral era um grupo de criaturas dedicadas, mas nem sempre sérias, que eram fanaticamente tolerantes esta relação a todas as formas de vida inteligente — se não fosse assim eles não estariam ali, para começar. E orgulhavam-se de que nenhum caso era demasiado grande; demasiado pequeno ou demasiado desesperado. O seu conselho ou assistência era procurado por autoridades médicas de toda a Galáxia. Todos eles pacifistas, travavam uma guerra constante, sem quartel, contra o sofrimento e á doença fossem de indivíduos ou de populações planetárias inteiras.
Mas havia ocasiões em que o diagnóstico e o tratamento de uma cultura interstelar doente, implicando a remoção cirúrgica de preconceitos profundamente enraizados e valores morais insanos sem a cooperação e o consentimento Mo paciente, podiam, apesar do pacifismo dos doutores encarregados do caso, conduzir à guerra. Ponto final.
A criatura trazida para a sala de observações era um grande espécime — com uma massa de cerca de quatrocentos e cinquenta quilos, segunda os cálculos de Conway — e lembrava uma pêra Vertical, gigantesca. Cinco espessos apêndices tentaculares cresciam da estreita secção da cabeça e um pesado avental de músculos na base evidenciava um método de locomoção semelhante ao dos caracóis, ainda que não necessariamente lento. Toda a superfície do corpo parecia em carne viva, lacerada, como se alguém a houvesse querido esfolar com tens escova de arame.
Para Conway não havia nada de invulgar sobre o aspecto físico do paciente ou o seu estado — seis anos no Hospital do Sector Geral, no espaço, tinham-no habituado a visões mais espantosas — portanto aproximou-se para proceder a um exame preliminar. Imediatamente, o tenente do Corpo de Monitores que acompanhara a maca do paciente até à sala aproximou-se também. Conway tentou ignorar o bafo na sua nuca e olhou a criatura mais de perto.
Cinco grandes bocas estavam situadas por baixo da raiz de cada tentáculo, quatro delas abundantemente fornecidas de dentes e a quinta servindo de alojamento ao aparelho vocal. Os tentáculos propriamente ditos mostravam um alto grau de especialização nas suas extremidades; três deles eram simplesmente manipulatórios, um continha o equipamento visual do paciente e os membros restantes terminavam numa massa ossuda, com uma extremidade córnea. A cabeça não possuía quaisquer feições: era apenas uma cúpula óssea, sobre o cérebro da criatura.
Não havia muito mais que ver, num exame superficial. Conway voltou-se para pegar nos seus aparelhos de sondagem profunda e tropeçou no monitor.
Irritado, disse: — Tenente, está a pensar a sério em estudar medicina?
O tenente corou e o seu rosto tornou-se numa horrível mancha de cor sobre o verde-escuro do colarinho do uniforme. Empertigado, disse: — Esse paciente é um criminoso. Foi encontrado em circunstâncias que indicam que ele matou e devorou o outro membro da tripulação da sua nave. Manteve-se Inconsciente durante a viagem até aqui, mas recebi ordens para o manter sob vigilância, pelo sim, pelo não. Farei o possível por não o incomodar, Doutor.
Conway engoliu em seco e olhou para a maça córnea, terrivelmente perigosa, com que, sem dúvida, a espécie do paciente abrira caminho até ao cimo da sua árvore evolucionária. Disse secamente: — Não se esforce muito, Tenente.
Usando os olhos e um explorador portátil de raios X, Conway examinou cuidadosamente o paciente, por dentro e por fora, retirou vários espécimes, incluindo secções da pele afectada, e enviou-os para a Patologia com três páginas bem cheias de comentários. Depois deixou o doente e coçou a cabeça.
O paciente tinha sangue quente, respirava oxigénio, estava habituado a uma gravidade normal e a pressões também normais, o que, quando se considerava a forma geral da besta, lhe dava a classificação fisiológica de EPLH. Parecia estar a sofrer de um epitelioma bem desenvolvido e espalhado, e os sintomas eram tão evidentes que ele devia ter começado o tratamento seta esperar pelo relatório da Patologia. Mas uma doença cancerosa na pele não tornava, normalmente, uma criatura inconsciente.
Isso podia indicar complicações psicológicas, e nesse caso teria de procurar auxílio especializado. Um dos seus colegas telepáticos seria a opção óbvia, se não fora o facto de os telepatas raramente poderem trabalhar com cérebros que não fossem já telepáticos e das mesmas espécies que eles. Excepto em casos muito raros, a telepatia era um circuito de comunicação estreitamente fechado. O que o levava ao seu amigo GLNO, o empata Dr. Prilicla...
Atrás dele, o tenente tossiu baixinho e disse: — Quando acabar o exame, Doutor, 0'Mara gostaria de lhe falar.
Conway moveu a cabeça afirmativamente. Sorriu e disse: — Vou mandar alguém vigiar o doente; guardá-lo tão bem como você está a guardar-me.
Ao dirigir-se à enfermaria principal, Conway destacou uma enfermeira humana — uma enfermeira de muito boa aparência — para ir servir na sala de observações. Devia ter enviado um dos FGLI Tralthanos, uma espécie que tinha seis pernas e era tão forte que perante uma das suas criaturas um elefante terreno teria parecido uma criatura tão frágil como uma sílfide, mas sentia que devia alguma coisa ao tenente, pela maneira como o tratara a princípio.
Vinte minutos depois, ao fim de três mudanças de couraças protectoras e uma travessia da secção de cloro, um corredor pertencente aos respiradores de água AUGL e as enfermarias ultra-refrigeradas das formas de vida de metano, Conway apresentou-se no gabinete do major 0'Mara.
Como Psicólogo-Chefe de um hospital multiambiental flutuando nas trevas frígidas da periferia da Galáxia, ele era responsável pelo bem-estar mental de um quadro de dez mil criaturas de oitenta e sete espécies diferentes. 0'Mara era um homem muito importante no Geral do Sector. Era também, confessadamente, o homem do qual era mais fácil alguém se aproximar, no hospital. 0'Mara tinha o orgulho de dizer que não se preocupava com quem se dirigia a ele ou quando, mas se essa pessoa não tivesse uma razão muito boa para o incomodar com os seus problemazinhos parvinhos, então não esperasse sair ileso das mãos dele. Para 0'Mara os médicos eram pacientes, e era crença geral que o alto nível de estabilidade entre o variegado e muitas vezes delicado bando de extraterrestres era devido ao facto de eles terem demasiado medo de 0'Mara para perderem o juízo. Mas naquele dia ele estava com uma disposição quase sociável.
Isto não demorará mais de cinco minutos e será melhor que se sente, Doutor — disse ele num tom amargo quando Conway parou perante a sua secretária. — Já observou o nosso canibal?
Conway disse que sim e sentou-se. Descreveu brevemente o que verificara em relação ao paciente EFLH, incluindo a suspeita de que podia haver complicações de natureza psicológica. Ao terminar, perguntou: — Tem quaisquer outras informações sobre ele, além do canibalismo?
Muito poucas — disse 0'Mara. — Foi encontrado por uma nave-patrulha dos Monitores, numa nave que, ainda que não danificada, estava a emitir sinais de socorro. Ê evidente que ele estava demasiado doente para governar a nave. Não havia outro ocupante, mas como o EPLH era uma espécie nova para a equipa de socorro, esta passou a nave a pente fino e descobriu que devia ter havido outra pessoa a bordo. Verificaram isso através de uma espécie de livro de bordo e diário pessoal gravado pelo EPLH e do estudo dos indicadores das escotilhas e de outros dispositivos protectores cujos pormenores não nos interessam neste momento. Entretanto, todos os factos indicam que havia duas criaturas a bordo da nave, e a gravação do livro de bordo sugere muito fortemente, que a outra teve um fim triste nas mãos e nos dentes do nosso paciente.
0'Mara fez uma pausa e atirou com um pequeno maço de papéis para o colo de Conway, que viu que se tratava de uma cópia dactilografada das secções mais importantes do livro de bordo. Só teve tempo de descobrir que a vitima do EPLH fora o médico de bordo. 0'Mara começou a falar de novo.
Não sabemos nada sobre o seu planeta de origem, excepto que se situa em qualquer parte na outra galáxia — disse ele, num tom não muito animado. — Portanto, e como só explorámos ainda um quarto da nossa própria galáxia nossas possibilidades de encontrar o lugar de onde ele veio são desprezíveis...
Conway disse: — Os lans não poderiam ajudar?
Os lans pertenciam a uma cultura originária da outra galáxia, que estabelecera uma colónia no mesmo sector da Galáxia onde se situava o Hospital. Eram de uma espécie invulgar — classificação GKNM — que entrava no estado de crisálida na adolescência e sofria uma metamorfose que a tornava de uma lagarta de dez pernas numa bela forma de Vida alada. Conway tivera um deles como paciente três meses antes. O paciente tivera alta havia muito tempo, mas os dois médicos GKNM, que tinham vindo ajudar Conway a tratar do paciente, tinham permanecido no Geral do Sector para estudar e ensinar.
Uma galáxia é um espaço muito grande — disse 0'Mara, com uma óbvia falta de entusiasmo. — Mas tente falar com eles! No entanto, voltando ao seu paciente, o maior problema é o que vamos fazer ao doente, depois de você o curar.
Prosseguiu: - Compreende, Doutor: esta bestinha foi encontrada em circunstâncias que mostram muito concludentemente que é culpada de um acto que todas as espécies inteligentes que conhecemos consideram um crime. Sendo a força de polícia da Federação entre outras coisas, o Corpo de Monitores tem a obrigação de tomar certas medidas contra os criminosos como este. Devem ser julgados e reabilitados ou punidos como parecer adequado. Mas como poderemos dar a este criminoso um julgamento justo, se não sabemos nada sobre ele — é possível que exista uma multidão de circunstâncias atenuantes? Por outro lado não o podemos deixar partir em liberdade...
— Porque não? — Perguntou Conway. — Porque não apontá-lo na direcção geral de onde ele veio e dar-lhe um pontapé judicial no fundo das calças?
0'Mara respondeu a sorrir-se: — Porque não deixamos o paciente morrer e poupamos uma quantidade de trabalho?
Conway não disse nada. 0'Mara estava a usar um argumento desleal e ambos sabiam disso, mas também sabiam que ninguém seria capaz de convencer a secção policial dos Monitores de que curar os doentes e punir os malfeitores não eram de importância igual no Arranjo das Coisas.
0'Mara voltou a falar: — O que eu quero que você faça é descobrir tudo quanto possa sobre o paciente e o seu passado, depois de ele voltar a si e durante o tratamento. Sabendo como você é um coração mole, ou um cabeça mole, espero que você se colocará do lado do paciente durante a cura e se apresentará como um advogado de defesa não oficial. Bem, não me importarei muito desde que você obtenha informações que nos permitam convocar um júri dos seus iguais. Compreende?
Conway disse que sim.
0'Mara aguardou precisamente três segundos e depois disse: — Se não tem nada mais que fazer que preguiçar nessa cadeira...
Imediatamente depois de ter saído do gabinete de 0'Mara, Conway entrou em contacto com a Patologia e pediu que o relatório do EPLH lhe fosse enviado antes do almoço. Depois convidou os dois GKNM Ians para almoçarem com ele e acordou uma conferência com Prilicla, sobre o paciente, pouco depois. Feito tudo isso, sentiu-se livre para tratar das suas rondas.
Durante as duas horas que se seguiram, Conway não teve tempo para pensar no seu novo paciente. Tinha cinquenta e três doentes a seu cargo, juntamente com seis médicos em várias fases de treino e um quadro adequado de enfermeiros. Os doentes e o pessoal médico compreendia onze tipos fisiológicos diferentes. Havia instrumentos e procedimentos especiais para examinar aqueles pacientes extraterrestres, e quando ele era acompanhado por um praticante cujas necessidades de pressão e gravidade eram diferentes das dele e das do paciente que tinha de ser examinado, então a «rotina» das suas rondas tornava-se um serviço extremamente complicado.
Mas Conway observava todos os seus pacientes, incluindo aqueles cuja convalescença estava bem adiantada ou cujo tratamento podia ter sido entregue a um subordinado. Estava bem consciente de que aquilo era um procedimento estúpido que somente servia para lhe dar muito trabalho desnecessário, mas a verdade era que a promoção dele a Médico-Chefe era ainda demasiado recente para que estivesse habituado à delegação da responsabilidade em grande escala. Tentava estupidamente fazer tudo por suas próprias mãos.
Depois das rondas devia dar uma lição sobre partos a uma turma de enfermeiros DBLF. Os DBLF eram criaturas peludas, multípedes, parecendo lagartas muito grandes, e eram nativas do planeta Kelgia. Respiravam a mesma mistura atmosférica que ele, o que significava que poderia fazer isso sem usar um fato de pressão. A esse conforto puramente físico adicionava-se o facto de que, como as fêmeas Kelgianas concebiam somente uma vez uma Vida e depois produziam quadrigêmeos que eram invariavelmente divididos em pares, o assunto sobre o qual iria falar era elementar e não exigia grande concentração da sua parte. Deixava uma larga secção do seu espírito livre para se preocupar com o suposto canibal, na sala de observações.
Meia hora depois encontrava-se com os dois doutores Ians, comendo a inevitável salada no refeitório principal do Hospital — aquele que servia para os Tralthanos, Kelgianos, humanas e as várias outras criaturas de sangue quente e respiradoras de oxigénio que faziam parte do quadro do pessoal. A salada era mais ou menos apetecível, comparada com as coisas que ele tinha de comer quando convidava outros colegas extraterrestres, mas pensava que nunca seria capaz de se habituar à ventania que eles criavam durante o almoço.
Os cidadãos GKNM de Ia eram uma forma de vida grande, delicada e alada que parecia uma libélula. Aos seus corpos esguios como uma vareta mas flexíveis estavam presas quatro pernas de insecto, manipuladores, os órgãos sensoriais usuais e três tremendos pares de asas. As maneiras deles à mesa não eram verdadeiramente desagradáveis — acontecia apenas que eles não se sentavam para comer, pairavam no ar. Aparentemente, comer enquanto voavam ajudava as suas digestões e era muito como um reflexo condicionado.
Conway colocou o relatório da Patologia sobre a mesa e pôs a terrina da salada em cima dele, para que não voasse. Disse: — Por aquilo que acabo de vos ler parece um caso muito simples. Mas direi que é invulgar, uma vez que o doente surge notavelmente isento de qualquer tipo de bactérias nocivas. Os sintomas dele indicam uma forma de epitelioma, isso e nada mais, o que torna a inconsciência um tanto ou quanto perturbadora. Mas talvez alguma informação sobre o seu ambiente planetário, períodos de sono, etc., possa esclarecer as coisas1, e é por isso que lhes queria falar.
- Sabemos que o paciente vem da vossa galáxia. Podem dizer-me alguma coisa sobre ele?
O GKNM que estava à direita de Conway deslizou alguns centímetros para trás, afastando-se da mesa, e disse através do seu Tradutor: — Receio ainda não ter dominado as dificuldades do vosso sistema de classificação fisiológica, Doutor. Qual é o aspecto do cliente?
— Desculpe, esqueci-me disso — confessou Conway. Ia explicar em pormenor o que era um EPLH, mas resolveu fazer antes um esboço nas costas do relatório da Patologia. Poucos momentos depois ergueu o desenho e disse: — Parece-se mais ou menos com isto.
Ambos os Ians caíram no chão.
Conway, que nunca vira os GKNM pararem de comer ou voar durante uma refeição, ficou impressionado pela reacção.
Disse: — Conhecem-nos, então?
O GKNM que se encontrava à direita fez ruídos que o Tradutor de Conway reproduziu como uma série de ladridos, o equivalente extraterrestre de um ataque de gaguez. Por fim ele disse: — Conhecemo-los. Nunca vimos um, não conhecemos o seu planeta de origem, e até agora não tínhamos a certeza de que eles tivessem existência verdadeiramente física. Eles... eles são deuses, Doutor.
Mais uma pessoa muito importante!... pensou Conway, com a súbita sensação de que lhe faltava o chão debaixo dos pés. A experiência dele com pessoas dessas dizia-lhe que os casos delas nunca eram simples. Mesmo que o estado do doente não tivesse nada de sério, havia inevitavelmente complicações, nenhuma das quais era de natureza médica.
— O meu colega está a deixar-se arrastar um pouco pelas emoções — interveio o outro GKNM. Conway nunca fora capaz de notar qualquer diferença entre os dois Ians, mas fosse como fosse, aquele tinha o ar de ser uma libélula mais cínica, mais fatigada do mundo. — Talvez eu possa dizer-lhe o pouco que sabemos, e o que tem sido deduzido quanto a eles, em vez de enumerarmos todas as coisas que não são...
A espécie a que o paciente pertencia não era numerosa, explicou o médico Ian, mas a sua esfera de influência na outra galáxia era tremenda. Estavam muito avançados nas ciências sociais e psicológicas, e individualmente a inteligência e capacidade mental deles era enorme. Por razões que só eles conheciam não procuravam com muita frequência a companhia dos outros, e nunca se encontrara mais que um em qualquer planeta, durante um período de tempo apreciável.
Eram sempre os supremos senhores, nos mundos que ocupavam. Por vezes, o seu domínio era benévolo, por vezes duro — mas a dureza, quando vista a um século de distância, resultava sempre ser disfarçadamente benévola. Usavam as pessoas, populações planetárias inteiras, i' até culturas interplanetárias, puramente como um meio de resolver os problemas que eles próprios estabeleciam, o quando o problema estava resolvido partiam. Pelo menos era a impressão recebida por observadores não muito imparciais.
Numa voz tornada átona e impassível só por causa do processo de tradução, o Ian prosseguiu: —... As lendas parecem concordar em que quando um deles desce num planeta nada mais traz do que a nave e um companheiro que é sempre de uma espécie diferente. Usando uma combinação de ciência defensiva, psicologia e simples habilidade para o negócio, sobrepõem-se aos preconceitos locais e começam a acumular riqueza e poder. A transição da autoridade local para o domínio planetário absoluto é gradual, mas eles têm muito tempo. São imortais.
Conway ouviu o garfo cair no chão, como que multo longe. Passaram-se alguns minuto® antes que pudesse readquirir a firmeza, quer nas mãos, quer no espírito.
Havia algumas espécies extraterrestres na Federação que possuíam vidas muito longas, e a maior parte das culturas médicas avançadas — incluindo a da Terra — tinha os meios de prolongar consideravelmente a vida com tratamentos rejuvenescedores. A imortalidade, entretanto, era uma coisa que não tinham, nem tinham sequer tido a oportunidade de estudar alguém que a possuísse. Até àquele momento. Agora Conway tinha um paciente para cuidar, para curar e, acima de tudo, para investigar. A menos que... mas o GKNM era um médico, e um médico não diria «imortal» se quisesse referir apenas à longevidade.
—? Tem a certeza? — grasnou Conway.
A resposta do Ian foi demorada porque incluiu o detalhe de muitos factos, teorias e legendas referentes a esses seres que se sentiam satisfeitos por dominar nada menos que um planeta de cada vez. No fim dela, Conway não estava certo de que o seu paciente fosse imortal, mas tudo quanto ele ouvira parecera indicar isso.
Hesitante, disse: —• Depois do que ouvi, talvez não devesse fazer esta perguntai, mas na vossa opinião essas criaturas são capazes de cometer um acto de assassínio e canibalismo...
— Não! — disse um Ian.
— Nunca! — disse o outro.
Não havia, de resto, qualquer indício de emoção nas respostas traduzidas, mas o seu volume foi suficiente para que toda a gente; no refeitório, levantasse os olhos.
Poucos minutos depois, Conway ficou só. Os Ians tinham pedido autorização para ver o legendário EPLH e depois haviam-se afastado apressadamente, dominados por uma mistura de admiração e receio. Os Ians eram boas pessoas, pensou Conway, mas pensou também que a salada só era boa para os coelhos. Pôs a salada de parte e marcou um bife com todos os matadores.
Aquele dia prometia ser longo e duro.
Quando Conway voltou para a sala de observações os Ians já tinham partido e o estado do doente não se alterara. O tenente continuava a guardar a enfermeira de serviço — muito de perto — e começou a corar, por qualquer razão. Conway fez um movimento grave, com a cabeça, mandou à enfermeira que se retirasse e estava a ler de novo o relatório da Patologia quando o Dr. Prilicla chegou.
Prilicla era uma criatura semelhante a um aranhiço, frágil, proveniente de um mundo de baixa gravidade. Tinha a classificação de GLNO e usava constantemente anuladores de gravidade para não ser esmagado por acelerações que os outros seres consideravam normais. Além do ser um médico muito competente, Prilicla era a pessoa mais popular no Hospital, porque a sua faculdade empática impedia que a pequena criatura fosse desagradável para qualquer pessoa. E, ainda que possuísse também um par de grandes asas irisadas, sentava-se à hora das refeições e comia esparguete com um garfo. Conway gostava muito de Prilicla.
Conway descreveu-lhe resumidamente o estado do EPLH e tudo quanto sabia. Terminou, dizendo: —... Sei que não pode conseguir muito de um doente inconsciente, mas ajudar-me-ia se pudesse...
— Parece haver aqui uma incompreensão, Doutor — interrompeu Prilicla, usando as palavras que nele se podiam mais aproximar de dizer a alguém que estava errado. — O paciente está consciente...
— Recue!
Avisado tanto pelas palavras como pela radiação emocional de Conway perante o pensamento do que a maça ossuda do paciente poderia fazer ao corpo frágil como casca de ovo de Prilicla, o pequeno GLNO saltitou para trás, até se colocar fora do alcance. O tenente aproximou-se cautelosamente, os olhos fitos no ainda imóvel tentáculo que terminava naquele monstruoso cacete. Durante alguns segundos ninguém se moveu ou falou, enquanto exteriormente a criatura parecia continuar inconsciente. Por fim Conway olhou para Prilicla. Não teve necessidade de falar.
Prilicla disse: — Detecto radiação emocional de um tipo que emana apenas de um cérebro que está consciente de si próprio. Os processos mentais parecem lentos e, considerando o tamanho do paciente, também fracos. Em pormenor, está a irradiar sensações de perigo, impotência e confusão. Há também indicações de um objectivo fundamental
Conway suspirou.
— Portanto ele está a fingir-se de morto — disse o tenente numa voz soturna, falando principalmente para si próprio.
O facto de o paciente estar a simular a Inconsciência preocupava menos Conway que o monitor. Apesar da quantidade de material de que dispunha para diagnóstico, acreditava firmemente em que o melhor guia de um médico perante qualquer desarranjo era um doente comunicativo e cooperador. Mas como poderia ele iniciar uma conversação com um ser que era um semideus?
— Nós... nós queremos ajudá-lo — disse ele, acanhadamente. — Compreende o que estou a dizer?
O doente permaneceu imóvel como antes.
Prilicla disse: — Não há qualquer indicação de que ele o tenha ouvido, Doutor.
— Mas se está consciente... — Conway calou-se e encolheu os ombros.
Começou a montar de novo os seus instrumentos e com a ajuda de Prilicla examinou de novo o EFLH, dando atenção especial aos órgãos da visão e da audição. Mas não houve qualquer reacção física ou emocional enquanto o exame esteve em curso, apesar das luzes intermitentes. Conway não viu qualquer indicação de desarranjo físico nos órgãos sensoriais, ainda que o paciente se mostrasse completamente ignorante de todos os estímulos externos. No plano físico estava inconsciente, insensível a tudo quanto se passava em volta, ainda que Prilicla insistisse em que não estava.
Que semideus mais doido, mais confuso, pensou Conway. Porque seria que 0'Mara lhe mandava sempre os casos mais estranhos? Disse em voz alta: — A única explicação que posso encontrar para este estado peculiar de coisas é que o cérebro com o qual está em contacto tem todos os contactos com o seu equipamento sensorial bloqueados ou interrompidos. O estado do paciente não é a causa disso, de modo que o problema terá uma base psicológica. Creio que a besta tem necessidade urgente de assistência psiquiátrica.
«No entanto — prosseguiu ele — os feiticeiros podem trabalhar com, mais eficiência num doente que esteja fisicamente bem, de modo que creio que primeiro teremos de tratar desta doença da pele...»
No Hospital fora preparado um específico contra o epitelioma do tipo daquele que afectava o paciente e a Patologia já dissera que ele era adequado ao metabolismo do EPLH e não produziria efeitos secundários perigosos. Demorou apenas alguns minutos até que Conway medisse uma dose de teste e a injectasse subcutaneamente. Prilicla aproximou-se dele apressadamente, para ver o efeito. Sabiam ambos que aquele era um dos raros milagres da medicina de acção rápida—o efeito devia surgir numa questão de segundos, em vez de horas ou dias.
Dez minutos depois nada acontecera.
— O tipo é duro — disse Conway, e injectou a dose segura máxima.
Quase imediatamente a pele na área enegreceu e perdeu a sua aparência seca, craquelada. A área negra alargou-se rapidamente enquanto olhavam, e um dos tentáculos agitou-se ligeiramente.
— Que está a fazer o espírito dele? — perguntou Conway.
— Mais ou menos o mesmo que antes — respondeu Prilicla. — Mas depois da última injecção surgiu uma angústia crescente. Detecto sensações de um cérebro que tenta tomar uma decisão... que está a tomar uma decisão...
Prilicla começou a tremer violentamente — um sinal claro de que a radiação emocional do paciente se intensificara. Conway abrira a boca para fazer uma pergunta quando um som seco, de algo que se rasgava, atraiu de novo a sua atenção para o paciente. O EPLH estava a fazer força e a atirar-se contra o arnês que o prendia.
Duas das correias já se tinham partido e ele conseguira libertar um tentáculo. O que possuía a maça...
Conway esquivou-se apressadamente e evitou por um centímetro que a cabeça lhe desaparecesse de cima dos ombros - ainda sentiu aquela arma terrível a roçar-lhe pelos cabelos. Quase no fim da trajectória a massa ossuda tocou-lhe no ombro e atirou-o de tal modo através da pequena sala que ele quase fez ricochete na parede. Prilicla, cuja cobardia era uma excelente característica de sobrevivência, já estava agarrado com as suas patas de pontas de ventosa, ao tecto, que era o único lugar seguro no compartimento.
Da sua posição, deitado no chão, Conway ouviu outras. correias estoirarem e Viu mais dois tentáculos a tactearem o espaço. Sabia que dentro de momentos o paciente estaria completamente livre1 do arnês e capaz de se mover na saia à vontade1. Pôs-se rapidamente de joelhos, agachou-se e depois mergulhou na direcção do EPLH enfurecido. Enquanto se agarrava estreitamente com os braços em torno do corpo do monstro logo abaixo das raízes dos tentáculos, Conway foi quase ensurdecido por uma Série de rugidos que vinham de orifício aural, ao lado do ouvido dele. O ruído traduzia-se como — Socorro! Socorro! — Simultaneamente viu o tentáculo que tinha na ponta a grande maça óssea a virar a ponta para baixo. Houve um estrondo e no chão, no lugar onde ele antes estivera, apareceu um buraco de oito centímetros de diâmetro.
Ao agarrar-se ao paciente daquela maneira, ele fizera uma coisa aparentemente louca, mas Conway mantinha a cabeça no seu lugar, sob mais que um aspecto. Abraçado assim ao EPLH abaixo do nível daqueles tentáculos que se agitavam loucamente, Conway estava no lugar mais seguro da sala.
Então viu o tenente...
O tenente tinha as coitas encostadas à parede e estava meio deitado, meio levantado. Um braço pendia-lhe, como que solto, mas na outra mão tinha a arma. Firmava-a entre os joelhos e um olho estava fechado numa piscadela diabólica enquanto o outro apontava o cano. Conway gritou desesperadamente para que ele esperasse, mas o ruído do paciente não deixou ouvir a sua voz. Aguardou a todo o momento o clarão © o choque das balas explosivas. Sentiu-se paralisado com medo e nem sequer pôde abrir os braços e soltar-se.
Então, subitamente, tudo acabou. O paciente caiu para o lado, contorceu-se e imobilizou-se. Metendo no coldre a arma que não chegara a disparar, o tenente pôs-se de pé com dificuldade. Conway libertou-se e Prilicla desceu do tecto.
Não muito à vontade, Conway disse: — Creio que não pôde disparar comigo ali pendurado...
O tenente abanou a cabeça. — Sou um bom atirador, Doutor. Podia tê-lo atingido sem tocar em si. Mas ele gritava constantemente: «Socorro!» Essa espécie de coisa prejudica o estilo de um homem...
Foi só vinte minutos depois, após Prilicla ter levado o tenente para cuidar de um número quebrado, e quando Conway e o GLNO estavam a colocar no paciente um arnês muito mais forte, que notaram a ausência da peie escurecida. O estado do paciente voltara a ser aquele que era antes do tratamento. Pelo que parecia., a tremenda dose que Conway lhe administrara tivera apenas um efeito temporário, e isso era indubitavelmente peculiar. De facto, era até absolutamente impossível.
Desde o moimento em que a faculdade empática de Prilicla começara a colaborar no caso Conway tivera a certeza de que a base do problema era psicológica. Sabia também que um espírito severamente deformado podia fazer tremendos danos ao corpo onde estava alojado. Mas aquele dano tratava-se num nível puramente físico e o seu método de reparação — o tratamento desenvolvido e provado constantemente pela Patologia — era também um facto físico, bem concreto. E nenhum espírito, qualquer que fosse o seu poder ou grau de desarranjo, poderia ignorar ou negar por completo um facto físico. O Universo tinha, no fim de tudo, certas leis físicas.
Tanto quanto Conway podia ver, havia apenas duas explicações possíveis. Ou as regras tinham sido ignoradas porque o Ser que as criara tinha também o direito de as ignorar ou alguém, de algum modo — ou qualquer combinação de circunstâncias, ou qualquer dado mal interpretado — andava a transtornar tudo. Conway preferia infinitamente a segunda teoria porque a primeira era sem dúvida demasiado perturbadora para ser considerada seriamente. Queria desesperadamente continuar a pensar no seu paciente com um «p» minúsculo...
No entanto, quando saiu da sala, Conway foi visitar o comandante Bryson, o capelão do Corpo de Monitores, e consultou esse oficial durante algum tempo sobre motivos semiprofissionais — Conway gostava de ter um máximo de segurança. A sua visita seguinte foi ao coronel Skempton, o oficial encarregado do Abastecimento, Manutenção e Comunicações, no Hospital. Ali ele requereu que fossem enviadas ao seu quarto cópias completas do livro de bordo do paciente — não apenas as secções referentes ao crime — juntamente com quaisquer outros dados disponíveis. Depois foi à sala de operações AUGL» demonstrar técnicas operatórias em formas de vida submarinas. Antes do jantar pôde trabalhar duas horas na Patologia e durante esse tempo descobriu muita coisa sobre a imortalidade do paciente.
Quando voltou ao quarto havia ali um maço de folhas dactilografadas que tinha quase cinco centímetros de altura. Conway gemeu, pensando no seu período de recreio de seis horas e em como o iria despender. O pensamento de como teria gostado de o passar trouxe-lhe uma imagem bem viva da muito eficiente e impossivelmente bela enfermeira Murchison, com quem andara a encontrar-se nos últimos tempos. Mas a enfermeira Murchison trabalhava com a Maternidade FGLI e os seus períodos livres só voltariam a coincidir dentro de duas semanas.
Mas nas presentes circunstâncias talvez fosse melhor, pensou Conway enquanto se sentava para longo período de leitura.
Os homens do Corpo que tinham examinado a nave do paciente tinham sido incapazes de converter as unidades de tempo EFLH na escala humana com qualquer espécie de exactidão, mas tinham podido estabelecer quase definitivamente que muitas das gravações tinham alguns séculos de existência e que algumas delas datavam de dois mil anos, ou mais. Conway começou com a mais antiga e progrediu cota muito cuidado até chegar à mais recente. Descobriu quase de imediato que não eram tanto uma série de diários gravados — as referências a assuntos pessoais eram relativamente raras — como um catálogo de memórias, algumas altamente técnicas e de estilo muito pesado. Os dados relativos ao crime, que ele estudou depois, eram muito mais dramáticos.
... O meu médico está a tornar-me doente — dizia a parte final — está a matar-me. Tenho de fazer alguma coisa. Ê um mau médico pois deixou-me adoecer. Tenho de me livrar dele de qualquer maneira...
Conway colocou a última folha no monte, suspirou e preparou-se para adoptar uma posição mais condutora ao pensamento criador; Isto é: com a sua cadeira inclinada bem para trás, os pés sobre a secretária, o corpo assentando praticamente sobre a nuca.
Que sarilho, pensou ele.
As peças separadas do quebra-cabeças — ou a maior parte delas, de qualquer maneira — estavam agora nas suas mãos e precisavam apenas de ser ajustadas. Havia o estado do doente, não sério pelo que dizia respeito ao Hospital, mas indubitavelmente mortal se não fosse tratado. Depois «havia os dados fornecidos pelos dois Ians em relação àquela raça semidivina, ansiosa de poder, mas de essência beneficente, e os companheiros que nunca eram da mesma espécie e que viajavam sempre ou viviam com eles. Esses companheiros estavam sujeitos a substituição porque envelheciam e morriam enquanto isso não acontecia com os EFLH. Havia também os relatórios da Patologia, o primeiro que recebera, escrito, antes do almoço, e o último, verbal, fornecido durante as duas horas que passara com Thornnastor, o diagnosticador - -chefe FGLI da Patologia. Na considerada opinião de Thornnastor o paciente EFLH não era um verdadeiro imortal, e a considerada opinião de um diagnosticador estava tão perto de" ser uma certeza tão firme como urna rocha que por certo não havia qualquer diferença. Mas enquanto a imortalidade fora posta de parte por várias razões fisiológicas, os testes tinham fornecido provas de tratamentos de longevidade ou rejuvenescimento de tipo não selectivo.
Por fim, havia as leituras de emoções fornecidas por Prilicla, antes e durante a sua tentativa de tratamento do estado da pele do paciente. Prilicla relatara uma constante radiação de confusão, angústia e impotência. Mas quando o EFLH recebera a sua segunda injecção ele enfurecera-se, e a explosão de emoções que surgira do seu espírito tinha, segundo as próprias palavras de Prilicla, quase frito o cérebro do empata. Prilicla fora incapaz de dar uma leitura detalhada de uma tão violenta erupção de emoções, principalmente porque se preparara para o nível inicial, e muito mais suave, em que o paciente estivera a irradiar mas concordava na existência de uma Instabilidade do tipo esquizóide.
Conway afundou-se ainda mais na cadeira fechou os olhos e começou a ver as peças do quebra-cabeças a entrarem suavemente nos seus lugares.
Tudo começara no planeta em que os EHLIH foram a forma de vida dominante. A seu tempo, tinham alcançado uma civilização que incluía o voo interstelar e uma ciência médica avançada. A duração da Sua vida, inicialmente já grande, fora tão estendida que uma espécie de vida relativamente curta como o lans podia ser perdoada por supor que eles eram imortais. Mas um alto preço tivera de ser pago pela sua longevidade; a reprodução da espécie, o instinto normal paira a reprodução da espécie em indivíduos mortais, teria sido a primeira coisa a desaparecer; depois a sua civilização teria sido dissolvida — ou antes, despedaçada — numa massa de individualistas fervorosos, viajantes, interstelares, até que, por fim, ficara a depressão psicológica, surgida quando o receio da deterioração puramente física se extinguira.
Pobres semideuses, - pensou Conway.
Evitavam a companhia uns dos outros pela simples razão de que estavam fartos dela — séculos após séculos dos costumes, dos hábitos de falar, das opiniões uns dos outros e do simples e absoluto aborrecimento de olharem uns para os outros. Tinham apresentado a si próprios enormes problemas sociológicos — tomando conta de culturas planetárias atrasadas ou deformadas e puxando-as pelos atacadores das próprias botas, e fazendo actos filantrópicos semelhantes — porque tinham espíritos tremendos, porque tinham tempo mais do que bastante, porque tinham de lutar contra o aborrecimento e principalmente, porque deviam ter sido boas pessoas. E porque o preço <de tal longevidade fora um medo cada vez maior dia morte, tinham de ter os seus médicos pessoais — sem dúvida os melhoreis que conheciam — a atendê-los constantemente.
Só uma peça ido quebra-cabeças não acertava, e assa era a estranha maneira por que o EFLH se opusera às suas tentativas para o tratar, mas Conway não tinha dúvida de que era um pormenor fisiológico que podia esclarecer-se bem depressa. O facto importante era que ele agora sabia como proceder.
Nem todas as doenças respondiam ao tratamento, apesar de Thornnastor afirmar o contrário, e ele teria concluído que a cirurgia seria indicada no caso EPLH se tudo aquilo não estivesse enublado com considerações de quem e o que o paciente era, e do que se supunha que ele fizera. O facto de o paciente ser um semideus, um assassino e, em geral, o tipo das criaturas que não se preocupavam com pormenores que não o deviam preocupar.
Conway suspirou e saltou para o chão. Começava a sentir-se tão confortado que lhe parecera ser melhor ir para a cama antes que adormecesse.
Imediatamente depois do pequeno-almoço, no dia seguinte, Conway começou a preparar coisas para a operação do EFLH. Ordenou que trouxessem os instrumentos e o equipamento necessários à sala de Observações, deu instruções pormenorizadas para a sua esterilização — supunha-se que o paciente matara já um médico por tê-lo deixado adoecer, e por certo» não gostaria que outro o deixasse apanhar outra doença por falta de assepsia — e requereu a ajuda de um cirurgião Trallthano para o trabalho mais delicado. Depois, quando faltava meia hora para começar, Conway falou com 0'Mara.
O Psicólogo-Chefe ouviu o seu relatório e a proposta de acção sem fazer comentários, até acabar, e depois disse: — Conway, compreende o que poderá acontecer neste Hospital se essa coisa se libertar? E não falo apenas de se libertar fisicamente. Está mentalmente perturbada, se não estiver absolutamente psicótica. De momento encontrasse inconsciente, mas pelo que me diz a compreensão que tem da ciência psicológica é tal que nos podia levar a comer pelos seus apêndices manipuladores, apenas por nos falar.
«Preocupo-me com o que pode acontecer quando essa criatura acordar».
Fora a primeira vez que Conway ouvira 0'Mara confessar que estava preocupado com alguma coisa. Segundo se dizia, anos atrás', quando uma nave perdida chocara contra o Hospital, levando a destruição e a confusão a dezasseis pisos, o major 0'Mara também ficara preocupado...
— Estou a tentar não pensar nisso — disse Conway, num tom apologético — Confunde tudo.
0'Mara encheu os pulmões de ar e deixou que ele se escapasse lentamente através do nariz — um hábito seu que valia por vinte frases escaldantes. Disse friamente: — Alguém deve pensar nessas coisas1, Doutor. Creio que não tem dúvidas em que eu observe a operação?...
Aquilo não era mais do que uma ordem dada com cortesia, e não podia haver outra resposta senão um igualmente polido: — Terei muito prazer nisso senhor.
Quando chegaram à sala de Observações, o «leito» do paciente já fora levantado até uma altura confortável e o EPLH estava bem seguro. O Tralthano tO’Mara o seu lugar perante o equipamento ide anestesia e registo e tinha um olho no 'doente e outro no equipamento, enquanto os seus dois outros olhos se 'dirigiam para Prilicla com o qual discutia um escândalo particularmente picante que surgira no dia anterior. Corno as duas criaturas em causa eram respiradores de cloro PVSJ, a questão poderia ter apenas um interesse académico para eles, mas pelos vistos o Interesse académico era intenso. Nó entanto ao verem O'Mara, a exploração do escândalo terminou imediatamente. Conway deu o sinal para principiar.
O anestésico era um daqueles que a Patologia declarara seguros para uma forma de vida EPUH, e enquanto ele era administrado, Conway notou que o seu espírito se estava a desviar à tangente, na direcção do seu ajudante Thralthano.
Os cirurgiões dessa espécie eram na realidade dois — uma combinação de FGLI e OTSB. Presa às costas coriáceas do enorme e elefantino Traltlhano estava uma criatura pequenina e quase sem cérebro que vivia em simbiose com ele. A primeira vista o OTSB parecia uma bola peluda com uma longa cauda de cavalo a sair dela, mas uma observação mais de perto mostrava que a cauda eira formada por dúzias de pequenos manipuladores, a maior parte dos quais incorporava órgãos visuais sensíveis. Por causa da relação que existia entre o Tralthano e o seu simbiota, a combinação FGLI-OTSB eram os melhores cirurgiões da Galáxia. Nem todos os Tralthanos queriam viver com um símbiota, mas os médicos FGLI usavam-no como um distintivo.
Subitamente, o OTSB correu sobre as costas do hospedeiro e aconchegou-se sobre a cabeça em forma de zimbório, entre as hastes oculares, a cauda suspensa na direcção do paciente e abrindo-se ligeiramente. O Tralthano estava pronto a começar.
Para benefício do equipamento de gravação, Conway disse: — Observe-se que se trata apenas de uma doença de superfície e que toda a área da pele parece morta, seca e prestes a cair em pedaços. Durante a retirada das primeiras amostras de pele não foi encontrada qualquer dificuldade, mas nas últimas houve uma resistência à retirada, em certa extensão, e verificou-se haver uma pequena raiz, com cerca de seis milímetros, invisível a olho nu. Isto ê: ao meu olho. Portanto parece evidente que o estado vai entrar numa nova fase. A doença está a começar a aprofundar-se, em vez ide permanecer na superfície, é quanto mais depressa actuarmos melhor.
Conway deu os números de referência do relatório da Patologia e as suas próprias notas preliminares sobre o caso e depois prosseguiu: —... Como o paciente, por razões que não são de momento claras, não responde à medicamentação, proponho a extracção cirúrgica dó tecido afectado, irrigação, limpeza e substituição por pele artificial. Um OTSB guiado por um Tralthano será usado para nos certificarmos de que as raízes também são extraídas. Excepto pela área considerável a ser coberta, que tornará isto num trabalho longo, o processo é simples…
— Desculpem-me, Doutores — interrompeu Prilicla. — 0 doente continua consciente.
Uma discussão somente cortês do lado de Prilicla, iniciou-se entre o Tralthano e o pequeno empata. Prilicla sustentava que o EPLGE continuava a pensar e irradiar emoções e o outro afirmava que havia bastante anestésico no sistema para o tornar inteiramente insensível a tudo durante seis horas, pelo menos. Conway entrou também na discussão quando ela começou a tornar-se pessoal.
— Já tivemos esse problema — disse ele, irritado. — Desde a sua chegada, o paciente tem estado fisicamente inconsciente, excepto durante alguns minutos, ontem, mas Prilicla detectou a presença de pensamentos racionais. Agora, sob o anestésico, está presente o mesmo efeito. Não sei como explicar isto, provavelmente será necessária uma investigação cirúrgica da estrutura cerebral para tal, e para isso teremos que esperar. O que importa de momento é que ele está fisicamente incapaz de se mover, ou de sentir dores. Podemos começar?
Acrescentou para Prilicla: — «Mantenha-se à escuta, pelo sim pelo não...
Durante cerca de vinte minutos trabalharam em silêncio, ainda que o procedimento não exigisse um alto grau de concentração. Era como se retirassem as ervas de um jardim, excepto que tudo quanto ali crescia era como ervas e havia que retirar as plantas uma a urna. Ele esfolaria uma área afectada da pele, os apêndices finos como cabelos do OTSB explorariam, sondariam e arranhariam as raízes, e ele esfolaria outro segmento. Conway antecipada a mais aborrecida operação da sua carreira.
Prilicla disse: — Detecto um aumento de angústia ligado a, um maior sentido de objectivo. A angústia está a tornar-se intensa...
Conway grunhiu. Não podia pensar noutro comentário.
Cinco minutos depois o Tralthano disse: — Temos de trabalhar mais devagar, Doutor. Estamos numa secção em que as raízes são muito mais profundas...
Dois minutos depois, Conway disse: — Mas eu posso vê-las! Qual é a profundidade delias, agora?
— Dez centímetros — respondeu o Tralthano. — E, Doutor, estão a aumentar visivelmente de comprimento enquanto trabalhamos.
— Mas é impossível! — Explodiu Conway. Depois acrescentou: — Ternos de passar para outra área.
Ele mentiu o suor a correr peia testa e a seu lado Prillicla começou a tremer — mas não por causa do que o paciente estava a pensar. A própria radiação emocional não era agradável, porque na noiva área e nas duas escolhidas ao acaso depois dela o resultado era o mesmo. As raízes dos pedaços de pele estalados aprofundavam-se a olhos vistos.
— Suspender — disse Conway numa voz rouca.
Durante longo tempo ninguém falou, Prillica tremia como se um vento forte soprasse na sala. O Tralthano afadigava-se com todo o equipamento, os quatro olhos focados num trabalho sem importância. O'Mara olhava intensamente para Conway, também de um modo calculador e com urna forte quantidade de simpatia nos seus firmes olhos cinzentos. A Simpatia era porque ele sabia reconhecer quando um homem estava genuinamente aflito, e o cálculo era devido à dificuldade que tinha em saber se o problema se devia ou não a alguma falta de Conway.
— Que aconteceu, Doutor? — disse ele suavemente.
Conway abanou a cabeça, furioso. — Não sei. Ontem o paciente não respondeu à medicamentação, hoje não responde à cirurgia. As suas reacções a qualquer coisa que tentemos fazer por ele são loucas, impossíveis! E agora a nossa tentativa para aliviar cirurgicamente o seu estádio desencadeou qualquer coisa que aprofunda essas raízes o bastante para penetrar os órgãos vitais dentro de minutos se a sua presente rapidez de crescimento se mantiver, e sabem o que isso representa...
- A sensação de angústia do paciente está a diminuir — disse Prilicla. — Ainda está empenhado em pensamento objectivo.
O Tralthano juntou-se à conversa. Disse: — Notei factos peculiares sobre essas raízes que unem os pedaços de pele doente ao corpo. O meu simbiota tem uma visão extremamente sensível, como sabem; e informa que as raízes estão bem presas de ambos os lados, de modo que é impossível saber se a pele está a agarrar-se ao corpo ou se é o corpo que está a agarrar propositadamente a pele ao corpo.
Conway abanou a cabeça distraidamente. O caso estava cheio de contradições loucas e impossibilidades absolutas. Para começar, nenhum paciente, por muito mal que estivesse mentalmente, seria incapaz ide anular os efeitos de uma droga suficientemente poderosa para produzir a cura completa em meia hora, e isso apenas em alguns minutos. Além disso a ordem natural das coisas era a de que uma criatura com uma área doente da pele se libertasse dela e a substituísse com tecido novo, e não agarrar-se a ela, desesperadamente, houvesse o que houvesse. Era um caso pasmoso e desesperado.
No entanto, quando o paciente chegara, parecera um caso simples — Conway sentira-se mais preocupado com o passado do doente do que com a doença, cuja cura considerara uma questão de rotina. Mas ignorara qualquer coisa, durante o caminho. E por causa desse pecado de omissão o doente iria provavelmente morrer dentro de poucas horas. Talvez ele tivesse feito um diagnóstico apressado, por se sentir demasiado seguro de si próprio. Fora criminosamente descuidado.
Eira verdadeiramente horrível perder um paciente em qualquer momento, e no Geral do Sector perder um paciente era uma ocorrência extremamente rara. Mas perder um cujo estado seria considerado muito grave, em qualquer parte da Galáxia civilizada... Conway praguejou fortemente, mas deteve-se porque não tinha as palavras necessárias para descrever como ele se sentia em relação a si próprio.
— Calma, filho.
Era O’Mara, apertando-lhe o braço e falando como um pai. Normalmente, O'Mara era um tirano mal-humorado e com uma voz de toiro, que, quando alguém se dirigia a ele pedindo auxílio, começava a fazer comentários sarcásticos enquanto a pessoa atingida se afligia e desavergonhadamente resolvia os seus próprios problemas. O seu presente comportamento, incaracterístico, indicava alguma coisa. Indicada que Conway tinha um problema que não era capaz de resolver.
Mas na expressão de O'Mara havia mais alguma coisa que simples preocupação por Conway, e no fundo o psicólogo estava um tanto ou quanto satisfeito por as coisas terem decorrido assim. Conway sabia que se o major estivesse na sua posição teria tentado com a mesma energia, ou talvez com mais, curar o paciente, e ter-se-ia sentido igualmente desanimado com o resultado. Mas ao mesmo tempo o Psicólogo-Chefe devia ter estado desesperadamente preocupado com a possibilidade de uma criatura de grandes e desconhecidos poderes, que estava mentalmente desequilibrada, ficar à solta no Hospital. Além do que O'Mara devia também perguntar a si próprio se, ao lado de um EPLH, consciente e vivo, ele não pareceria um rapazinho pequenino e ignorante..;
— Tentemos começar outra vez pelo princípio — disse O’Mara, interrompendo os seus pensamentos. — Descobriu alguma coisa na história do doente que o possa levar a querer destruir-se a si próprio?
— Não! — Disse Conway com veemência, — Pelo contrário! Ele queria desesperadamente Viver. Estava a ser submetido a tratamentos de rejuvenescimento não selectivos, o que significa que toda a estrutura celular do seu corpo era regenerada periodicamente. Como o processo de armazenagem da memória é um produto do envelhecimento das células cerebrais, isso devia praticamente deixar a sua mente em branco depois de cada tratamento...
— É por isso que esses livros gravados parecem memórias técnicas - disse O’Mara. — É exactamente o que eles são. Mesmo assim, prefiro o nosso método de rejuvenescimento, mesmo pensando que não vivemos tanto tempo, regenerando apenas os órgãos danificados e deixando o cérebro intocado...
Conway interrompeu-o, perguntando a si próprio qual seria a razão por que o taciturno O’Mara se tornara tão falador, — Bem sei. Mas o efeito dos tratamentos de longevidade continuados, como sabe, é o de dar ao seu possuidor um medo crescente de morrer. Apegar dia solidão, do aborrecimento e da existência nada natural, o medo aumenta sem cessar, com o decurso do tempo. Era por isso que ele viajava sempre com o seu médico particular - estava desesperadamente receoso de contrair doenças ou de um acidente que pudesse ocorrer entre os tratamentos, e é por isso que eu posso simpatizar até certo ponto com os sentimentos dele quando o médico que o devia manter de boa saúde o deixara adoecer. Ainda que aquela coisa de ele o ter devorado depois...
— Portanto você está do lado dele — disse O´Mara, secamente.
— Ele podia fazer uma bela exposição de defesa — retorquiu Conway. — Mas eu dizia que ele tinha um receio desesperado de morrer, de modo que devia estar a tentar constantemente encontrar um médico melhor... Oh! — Oh, o quê? — disse O’Mara.
Foi Prilicla, o sensitivo das emoções, quem respondeu: — O Dr. Conway acaba de ter uma ideia.
— Que é? Não há necessidade alguma de manter segredo! — A voz de O’Mara perdera o seu suave tom paternal e havia um brilho no seu olhar que dizia que ele estava contente por essa suavidade já não ser necessária. — O que é que há?
Sentindo-se feliz e excitado mas ao mesmo tempo muito pouco seguro de si, Conway dirigiu-se ao intercomunicador e ordenou algum material muito pouco vulgar, verificou de novo se o paciente estava bem preso, ao ponto de não poder mover um; músculo, e depois disse : — Creio que o paciente está perfeitamente são e nos temos estado a deixar enganar por uma série de engodos psicológicos. No fim, o mal está em qualquer coisa que ele comeu.
— Tinha apostado comigo próprio em como você acabaria por dizer isso — confessou O'Mara. Parecia agoniado.
O material chegou: uma vara de madeira, aguçada, e um mecanismo que a empurraria para baixo, segundo um certo ângulo, e a uma velocidade determinada. Com o Tralthano a ajudá-lo, Conway montou tudo e colocou a aparelhagem em posição. Escolheu uma parte do corpo do paciente que continha alguns órgãos vitais que, no entanto, estavam protegidos por quase quinze centímetros de músculos e tecidos adiposos. Depois colocou a vara em movimento. Estava a tocar a pele e descia à velocidade de cerca de cinco centímetros por hora.
— Que demónio vai você fazer? — Berrou O’Mara. — Pensa que o paciente é um vampiro ou que é?
— Evidentemente que não — respondeu Conway.— Estou a usar uma a vara de madeira para dar ao paciente uma melhor oportunidade de se defender. Creio que não espera que ele vá deter uma vara de aço! — Fez sinal ao Tralthano para que se aproximasse e uma vez Juntos observaram a área onde a vara estava a entrar no corpo do EPLH. Prilicla dava informações sobre a radiação emocional com poucos minutos de intervalo. O’Mara andava de um lado para o outro, murmurando ocasionalmente a si próprio.
A ponta já penetrara cerca de seis milímetros quando Conway notou o primeiro endurecimento e espessamento da pele. Estava a formar-se numa área aproximadamente circular, com dez centímetros de diâmetro, cujo centro era a ferida criada pela vara. O explorador de Conway mostrou uma massa esponjosa, fibrosa, a formar-se debaixo da pele, a uma profundidade de cerca de treze milímetros. A massa espessava-se visivelmente e tornava-se opaca ao explorador, e passados dez minutos tornara-se numa placa dura, óssea. A vara começara a dobrar-se de uma forma alarmante e estava prestes a quebrar-se.
— Creio que as defesas estão agora concentradas neste ponto, portanto será melhor extraí-las — disse Conway.
Conway e o Tralthano cortaram rapidamente a carne em volta e separaram a placa óssea, que foi imediatamente transferida para um receptáculo estéril, coberto. Conway preparou rapidamente uma injecção — uma dose de modo algum próxima do máximo do específico que tentara no dia anterior — aplicou-a e depois foi ajudar o Tralthano a reparar a ferida. Aquilo era trabalho de rotina e demorou cerca de quinze minutos. Quando acabou, não havia dúvidas de que o paciente estava a responder favoravelmente ao tratamento.
Por cima das felicitações do Tralthano e das horríveis ameaças de O’Mara — o Psicólogo-Chefe queria que líhe respondessem imediatamente a algumas perguntas — Prilicla disse: — Fez uma cura, Doutor, mas a angústia do paciente aumentou. Está, quase a perder o domínio sobre si próprio.
Conway abanou a cabeça, a sorrir-se. — O paciente está fortemente anestesiado e não pode sentir nada. No entanto, concordo em que no momento presente... — Apontou com a cabeça para o contentor estéril —... O médico pessoal dele deve estar a sentir-se muito aflito.
No contentor o osso extraído começara a amolecer e a largar um líquido ligeiramente arroxeado. O líquido agitava-se e chocalhava suavemente no fundo, como se tivesse um espírito próprio. O que, na verdade, era o caso...
Conway estava no gabinete de O’Mara a fazer o seu relatório sobre o EPLH e o major estava a ser muito amável numa linguagem que por vezes tornava os cumprimentos impossíveis de distinguir dos insultos. Mas aquela era a sua maneira de ser, segundo Conway começava a compreender, e o Psicólogo-Chefe era cortês e simpático somente quando estava profissionalmente preocupado com uma pessoa.
E ele continuava a fazer perguntas.
— ... Uma forma de vida inteligente, anfíbia, uma colecção organizada de células sub-microscópicas, semelhantes a vírus, pode constituir o melhor médico possível — disse Conway, ao responder a uma delas. — Residirá dentro do paciente e, desde que disponha dos dados necessários, dominará qualquer doença ou mau funcionamento orgânico, a partir do interior. Para um ser que tem um medo patológico da morte, deve ser urna solução perfeita. K neste caso era-o, porque aquilo que aconteceu não era propriamente de culpa do médico. Surgiu por causa da ignorância ido paciente quanto à sua própria história fisiológica.
Conway prosseguiu: — Tal como eu vejo as coisas, o paciente começou a tomar os seus tratamentos de rejuvenescimento numa fase primitiva do seu tempo de vida biológico. Quero dizer que ele não esperou pela meia-idade ou pela velhice para iniciar o tratamento de regeneração. Mas nesta ocasião, ou porque se esquecesse, ou porque fosse descuidado, ou porque estivesse a trabalhar num problema que demorava mais do que o usual, envelheceu mais do que acontecera anteriormente e arranjou esta doença de pele. A Patologia diz que provavelmente é uma doença comum na sua espécie e que o caminho normal seria o de o EPLH libertar-se da pele afectada e continuar a vida normalmente. Mas o nosso paciente, porque o tipo do seu tratamento de rejuvenescimento causava danos na memória, não sabia disso, de modo que o seu médico pessoal também não sabia.
Conway continuou: — Esse... médico residente sabia muito pouco da história médica do corpo do seu paciente-hospedeiro, mas a sua divisa devia ser a de manter o status quo a todo o custo. Quando os pedaços do corpo do paciente ameaçavam separar-se, ele segurava-as, sem compreender que isso devia ser um acontecimento normal, como a perda de cabelo, ou a mudança de pele num réptil, em particular porque o seu amo insistia em que a ocorrência não era natural. Deve-se ter travado uma luta ardente entre os processos corporais do paciente e o seu médico, com o espírito do paciente furioso por causa do médico. Por isso, o doutor teve de tornar o doente inconsciente, para melhor fazer o que considerava ser o que era correcto.
«Quando lhe demos as injecções de teste, o doutor neutralizou-as. Eram uma substância estranha, a ser introduzida no corpo do paciente dele... E sabe o que aconteceu quando tentámos a remoção cirúrgica. Foi só quando ameaçámos os órgãos vitais subjacentes, com essa vara, obrigando a doutor a defender o seu paciente, nesse ponto...»
O’Mara disse secamente: - Quando você começou a pedir varas de madeira, pensei em metê-lo a si num arnês bem apertado.
Conway sorriu-se. Disse: — Vou recomendar que o EPLH reabsorva o seu médico. Agora que a Patologia lhe deu uma ideia mais completa da história médica e fisiológica do patrão dele, ele deve ser o melhor dos médicos pessoais, e o EPLH é suficientemente inteligente para compreender isso...
O’Mara retribuiu o sorriso. — E eu que estava preocupado com o que poderia acontecer quando ele acordasse. Mas mostrou ser um tipo muito amigável e agradável. Encantador, para falar verdade.
Quando Conway se ergueu e voltou para sair, disse matreiramente: — Ê por isso que ele é tão bom psicólogo. Ê sempre amável para com as pessoas...
Conseguiu fechar a porta atrás dele antes da explosão.
A seu tempo, o paciente EPLH, que se chamava Lonvellin, recebeu ata e a procissão constante de doentes extraterrestres entregues aos seus cuidados fez com que a memória de Lonvellin se desvanecesse na memória de Conway. Não sabia se o EPLH voltara à sua galáxia ou se continuava a vaguear em busca de boas acções para fazer, e tinha muito que fazer para pensar em qualquer dessas coisas. Mas Conway ainda não acabara o caso do EPLH.
Ou mais precisamente: Lonvellin ainda não se esquecera de Conway...
— Gostaria de se ausentar do Hospital durante uns meses, Doutor? — Disse O'Mara quando Conway se apresentou no gabinete do Psicólogo-Chefe em resposta a uma chamada urgente através das comunicações gerais. — Seriam umas férias... quase.
Conway sentiu que a sua inquietação inicial se tornava em pânico. Tinha urgentes razões pessoais para não sair do hospital durante alguns meses. Disse: — Bem...
O psicólogo ergueu a cabeça e fitou Conway com um par de olhos cinzentos firmes que viam tanto e que abriam os espíritos de uma maneira tão analítica que davam a 0'Mara o equivalente a uma faculdade telepática. Disse secamente: — Não se preocupe em agradecer-me, a culpa é sua, por curar doentes tão poderosos e influentes.
Prosseguiu apressadamente: — Ê uma missão importante, Doutor, mas constará principalmente de trabalho de secretaria. Normalmente seria entregue a alguém ao nível de diagnosticador, mas esse EPLH Lonveillin tem estado a trabalhar num planeta que ele diz necessitar urgentemente de assistência módica. Lonvellin requereu ao Corpo de Monitores assistência hospitalar e pediu que você, pessoalmente, dirigisse os aspectos médicos. Aparentemente não é necessário um Grande Intelecto para tal trabalho, mas sim alguém com uma maneira peculiar de olhar para as coisas...
— È muito amável, senhor — disse Conway.
Sorrindo, 0'Mara acrescentou: — Já lhe tinha dito que estou aqui para fazer mirrar cabeças e não para as inchar. E agora aqui está o relatório da situação, neste momento...— Passou a Conway o processo que estivera a ler e levantou-se. — Poderá lê-lo quando estiver a bordo. Esteja na Escotilha Dezasseis para embarcar na Vespasian às 21.30, e entretanto espero que trate dos pormenores. E, Conway, não mostre essa cara de quem viu toda a família morta. Muito1 provavelmente ela esperará por si. E se não esperar você terá outras duzentas e dezassete DBDG para caçar depois. Adeus e boa sorte, Doutor.
Fora do gabinete de O'Mara, Conway tentou descobrir como iria preparar tudo nas seis horas que lhe faltavam para o embarque. Tinha de dar uma lição básica de orientação a um grupo de alunos dentro de dez minutos, e era muito tarde para passar o trabalho a outro. Isso ocuparia três das suas seis horas, ou quatro se ele tivesse pouca sorte — e aquele era um dia de pouca sorte. Depois, uma hora para gravar instruções sobre os seus doentes mais graveis, e por fim jantar. Tinha apenas o tempo indispensável para o fazer. Começou a correr para a Escotilha Sete no piso centésimo oitavo.
Chegou à antecâmara da comporta de ar exactamente quando a escotilha interior se abria e enquanto dominava a respiração começou mentalmente a contar os alunos que passavam por ele. Dois DBLF Kelgianos que ondulavam como grandes lagartas prateadas; depois um PVSJ de Illemsa, os contornos do seu corpo membranoso esbatidos pelo nevoeiro de cloro dentro do seu invólucro protector; um octopóide AMSL Creppeliano, respirador de água, cujo escafandro fazia altos ruídos borbulhantes. Eram seguidos por cinco AACP, uma espécie cujos antepassados remotos tinham sido uma espécie de vegetais móveis. Moviam-se lentamente, mas as garrafas de CO2 que tinham consigo pareciam ser a única protecção de que necessitavam. Depois outro Kelgiano...
Quando entraram todos e a escotilha se fechou de novo, Conway falou. Muito desnecessariamente e apenas como um meio de quebrar o gelo, ele disse: — Estão todos?
Inevitavelmente, todos responderam à uma, fazendo com que o Tradutor de Conway emitisse um uivo de oscilações. Suspirando, ele iniciou o processo habitual da sua apresentação e dar boas-vindas aos novos colegas. Foi só no fim dessas formalidades1 corteses que ele conseguiu fazer recordar discretamente os princípios de funcionamento do Tradutor e a conveniência de falarem cada um de sua vez, para não o sobrecarregarem...
Nos seus mundos originais todos eles eram gente muito importante, medicamente falando. Só no Geral do Sector é que eles eram caloiros, e para alguns deles a transição da mestres respeitados a simples alunos podia ser difícil, de modo que era necessário muito tacto quando se tratava com eles, naquela fase. No entanto, mais tarde, quando começassem a habituar-se, poderiam ouvir descomposturas por causa dos seus erros, como toda a gente.
— Proponho que comecemos a nossa visita pela Recepção — disse Conway. — Ê aí que serão tratados os problemas de admissão e tratamento inicial, Depois, desde que o ambiente não exija uma protecção complexa para nós e o estado do doente não seja crítico, visitaremos as enfermarias adjacentes para observar os procedimentos de exame nos pacientes recém-chegados. Se alguém quiser fazer perguntas em qualquer momento, está livre para as fazer.
«No caminho para a Recepção usaremos corredores que deverão estar repletos. Há aqui um complicado sistema de precedência que governa os movimentos do pessoal médico inferior e superior — um sistema que: aprenderão com o tempo. Mas de momento tenham em conta apenas uma regra. Se a criatura que aparecer na vossa frente for maior que vocês, saiam do caminho dela.»
Ia dizer que nenhum doutor no Geral do Sector seria capaz de propositadamente atropelar um colega e matá-lo, mas pensou outra coisa. Muitos extraterrestres não tinham Um sentido de humor e um comentário desses, ainda que inofensivo, podia conduzir a complicações infindáveis. Em vez disso, disse: — Sigam-me, por favor.
Conway ordenou aos cinco AJCP, que eram os que se moviam mais rapidamente no grupo, que o seguissem e estabelecessem o ritmo para os outros. Depois iam os dois Kelgianos cujo andar ondulante era apenas um, pouco mais rápido que o das formas vegetais que o seguiam. O respirador de cloro vinha atrás e o octopóide Creppeliano vinha no fim de modo que os ruídos do seu escafandro davam a Conway uma indicação audível de que a sua cauda de cinquenta metros estava inteira.
Enfileirados corno estavam, não fazia sentido que Conway lhes falasse, de modo que fizeram a primeira parte da sua viagem em silêncio —- subiram três rampas e passaram por cerca de duzentos metros de corredores direitos e angulares. A única pessoa que encontraram na direcção oposta foi um Nidiano que usava uma braçadeira indicando que era um interno de dois anos. Os Nidianos tinham em média um metro e vinte de altura, de modo que ninguém esteve em perigo de ser esmagado. Alcançaram a escotilha interna que dava acesso à secção dos respiradores de água.
No vestiário anexo Conway dirigiu o aprontamento dos dois Kelgianos e depois envergou Um fato ligeiro. Os AAOP disseram que o seu metabolismo vegetal lhes permitia existir debaixo de água durante longos períodos sem protecção. O Illensano estava já protegido contra o ar carregado de oxigénio de modo que a água igualmente venenosa não o preocupava. Mas o Creppeliano era um respirador de água e queria tirar o seu escafandro — tinha oito pernas e precisava de as esticar, segundo dizia. Mas Conway proibiu-o de fazer isso, lembrando que só iria estar na água quinze minutos, no máximo.
A escotilha abriu-se para a enfermaria AUGL principal, um grande tanque sombrio com água verde, tépida, com sessenta metros de profundidade e cerca de cento e cinquenta de largura. Conway descobriu rapidamente que levar os alunos da escotilha para a entrada do corredor, no outro lado, era corno tentar mover um, rebanho em três dimensões através de geleia verde. Com, a única excepção do Creppeliano tinham todos perdido o seu sentido de direcção na água logo nos primeiros momentos. Conway teve de nadar freneticamente à sua volta, gesticulando e gritando ordens, e apesar dos elementos1 refrigeradores e desumidificadores no seu fato; o interior tornou-se bem depressa corno um banho turco sobreaquecido. Algumas vezes perdeu a calma e dirigiu as suas acusações para outro lugar que não a entrada do corredor.
E durante um momento particularmente caótico, um paciente AUGL, um dos nativos de Chalderescol II semelhantes a peixes, couraçado, com doze metros de comprimento -nadou pesadamente para eles. Aproximou-se até cinco metros, causando um quase pânico entre os AACF, disse: - Estudantes! — e afastou-se. Os Chalderescolenses eram notoriamente anti-sociais durante a convalescença, mas o incidente também não ajudou Conway a manter a calma.
Pareceu terem-se passado muito mais de quinze minutos quando se reuniram no corredor do outro lado do tanque. Conway disse: — A trezentos metros ao longo deste corredor está a escotilha de transferência para a secção de oxigénio1 da Recepção, que é o melhor lugar para ver o que acontece aqui. Aqueles entre vocês que usam protecção contra a água (deverão despir os fatos, os outros deverão sair imediatamente...
Enquanto nadava com eles para a escotilha, o Creppe11iano disse a um dos AAQP: — O nosso, segundo dizem, está cheio de vapor sobreaquecido, mas é necessário que se tenha feito algo muito mau para sermos enviados para lá — Ao que o AACP respondeu: — O nosso Inferno também é quente, mas nele não há qualquer humidade...
Conway esteve prestes a pedir desculpa por ter perdido a calma no tanque, temendo haver ofendido alguns sentimentos extraterrestres, mas era óbvio que eles não tinham tomado muito a sério o que ele dissera.
ATRAVÉS da parede transparente da SUA galeria DE observação, a Recepção mostrava uma sala enorme, sombria, contendo três grandes mesas de comando, uma das quais estava ocupada. A criatura sentada junto dela era outro Nidiano, um pequeno humanóide com mãos de sete dedos e a pele coberta de pêlo espesso, encaracolado e vermelho. Luzes indicadoras na mesa mostravam que se acabara de estabelecer contacto com uma nave que se aproximava do hospital.
Conway disse: — Escutem...
— Identifique-se, por favor — disse o ursinho vermelho numa voz crepitante e sonora — que foi transformada pelo Tradutor de Conway num inglês átono e que chegou aos outros num kelgiano, illensano ou outro falar igualmente átono. — Paciente, visitante ou pessoal — e espécie?
— Piloto, com um paciente/passageiro a bordo» — foi a resposta. — Ambos humanos.
Houve urna curta pausa e depois ouviu-se: — Por favor transmita a sua classificação fisiológica ou faça um contacto de visão total! — Disse o Nidiano com um piscar de ditos muito humano para os observadores na galeria. — Todas as espécies inteligentes dizem que as suas espécies são humanas e pensam que as outras não o são. O que cada um chama a si próprio não tem significado no que diz [respeito aos preparativos de acomodações para o doente...
Conway desligou o altifalante que reproduzia a conversa entre a nave e o recepcionista e disse: — Ê uma boa ocasião para vos! Explicar o nosso sistema de classificação fisiológica. De uma maneira breve, pois que terão aulas especiais sobre o assunto.
Pigarreando, começou a dizer: — No nosso sistema de classificação de quatro letras, a primeira determina o nível de evolução física, a segunda denota o tipo e distribuição dos membros e os outros dois a combinação das necessidades do metabolismo, da pressão e da gravidade, o que por sua vez dá uma indicação da massa física e da forma do tegumento protector possuído pela criatura. Devo observar que, no caso de algum de vocês se sentir inferiorizada pela sua classificação, que o nível de evolução física não tem relação com o nível de inteligência...
«As espécies com o prefixo A, B e C são respiradoras de água. Na maior parte dos munidos a vida originou-se no mar e esses seres desenvolveram uma aflita inteligência sem terem de sair dele. De D até F têm-se respiradores de oxigénio, de sangue quente, e é nesse grupo que se inclui a maior parte das espécies inteligentes da Galáxia, enquanto os tipos G e K são também respira/dores de oxigénio, mas semelhantes a insectos. OS L e M são criaturas de gravidade ligeira, e têm asas.
«As formas de vida que respiram cloro estão contidas nos grupos O e P, e depois delas vêm os tipos mais evoluídos fisicamente e os mais estranhos; devoradores de radiação, criaturas de sangue frígido ou cristalinas, e entidades capazes de modificar à vontade a sua estrutura física. Aqueles que possuem poderes extra-sensoriais suficientemente bem desenvolvidos para tomar os apêndices ambulatórios ou manipuladores desnecessários recebem o prefixo V, qualquer que seja o seu tamanho ou forma.»
Conway admitiu que havia anomalias no sistema, mas eram devidas à falta de Imaginação dos seus autores. Uma das espécies presentes na galeria era um caso a apontar — o tipo AACP comi o seu metabolismo vegetal. Normalmente o prefixo A indicava Um respirador de água, uma vez que nada havia mais baixo no sistema que as formas de vida piscatórias. Mas os AACP eram vegetais e as plantas tinham surgido primeiro que os peixes.
—... Damos grande importância a uma rápida e precisa classificação dos doentes que entram, pois que muitas vezes eles não estão em condições de a fornecerem por si próprios? - Prosseguiu Conway. — O ideal é chegar-se a um estado de eficiência que nos leve a estabelecer uma classificação depois de orarmos três segundos para um pé de extraterrestre, ou para uma secção do tegumento.
«Mas olhem para aqui» — disse ele, apontando.
No painel de comando havia três visores iluminados e indicadores adjacentes adicionavam pormenores às informações contidas nas imagens. A primeira mostrava o interior da Escotilha Três, que continha dois serventes humanos terrestres e um grande transportador de macas. As ordenanças usavam fatos de serviço pesado e cintos anti-gravidade, o que não surpreendeu Conway porque a Escotilha Três e os pisos anexos eram mantidos a 5G com uma pressão correspondente. Outro visor mostrava o exterior da escotilha com os seus mecanismos automáticos de transferência e a nave prestes a estabelecer contacto, enquanto a terceira imagem era transmitida de dentro da nave e mostrava o paciente.
Conway disse: — Podem ver que é uma forma de vida grande, atarracada, possuindo seis apêndices que lhe servem simultaneamente de braços e pernas. A pele é espessa, multo dura e toda corroída, e está incrustada em alguns lugares coto uma substância seca acastanhada, que por vezes cai em flocos quando o paciente se move. Dêem particular atenção a essa substância castanha e a características que parecem faltar no corpo. Os indicadores mostram um metabolismo de sangue quente, respirador de oxigénio, adaptado a uma gravidade de 4 G. Quem quer classificá-lo?
Houve um longo silêncio e depois o AMSL Creppeliano mexeu um tentáculo e disse: — FROL, senhor.
— Muito perto — disse Conway — No entanto, acontece que eu sei que a atmosfera desta criatura é uma espécie de sopa densa e quase opaca, e a sua semelhança com uma sopa é aumentada pelo facto de as suas camadas inferiores estarem cheias de pequenos organismos aéreos, dos quais a (criatura se alimenta. Você ignorou o facto de que ele não temi boca para comer e absorve a comida directamente pelos buraquinhos que dão à pele uma aparência de corrosão. No entanto, quando viaja no espaço, a comida tem de ser pulverizada por cima dele, donde essas incrustações acastanhadas.
— FROB — disse imediatamente o Creppeliano.
— Correcto.
Conway perguntou a si próprio se aquele AMSL era um pouco mais esperto que os outros ou apenas um pouco menos acanhado. Prometeu a si próprio tomar atenção naquele grupo de alunos. Precisava de um assistente esperto nas suas enfermarias.
Despedindo-se com um aceno do peludo recepcionista, Conway reuniu o seu rebanho a sua volta e dirigiu-se com ele para a enfermaria FGLI, cinco pisos abaixo. Depois disso foram a outras enfermarias até que Conway resolveu apresentar-lhes o complexo e avançado departamento do Hospital sem o trabalho constante e eficiente do qual o tremendo estabelecimento que era o Geral do Sector não poderia funcionar, e a multidão dos seus pacientes e do seu pessoal não poderia viver.
Conway estava a sentir-se esfomeado e era o momento de lhes mostrar onde todos comiam.
Os AACP não comiam da maneira normal mas montavam-se durante o período de sono em terra especialmente preparada e absorviam os alimentos dessa maneira. Depois de os ter acomodado, depositou o PVSJ nas profundezas escuras e ruidosas da sala onde os respiradores de cloro comiam, e ficou com os dois DBLF e o AMSL.
O refeitório maior, o que era destinado aos respiradores de oxigénio, estava próximo. Conway colocou os dois Kelgianos junto de um grupo da sua espécie e depois, com um olhar esfomeado para a sala dos Superiores, correu de novo para cuidar do Creppelliano.
Para alcançar a secção que tratava dos respiradores de água era necessário um passeio de quinze minutos através de alguns dos corredores com mais denso tráfego. Criaturas de todas as formas e tamanhos batiam asas ou barbatanas, ondulavam e por vezes caminhavam junto deles. Conway habituara-se a ser afastado pelos elefantinos Tralthanos e a ter de se desviar cuidadosamente dos (pequenos e frágeis LSVO, más o Creppeliano era como um polvo couraçado a pisar ovos — havia ocasiões em que o AMSL parecia ter medo de se mover. Os sons borbulhantes do seu escafandro tinham aumentado nitidamente, também.
Conway tentou acalmá-lo começando a falar das suas anteriores experiências hospitalares, mas sem muito sucesso. Depois, subitamente, dobraram uma esquina e Conway viu o seu velho amigo Prilicla a sair de uma enfermaria lateral...
O AMSL começou a gritar e as suas oito pernas fizeram subitamente marcha-atrás. Uma delas bateu violentamente nas das pernas de Conway e fê-lo cair violentamente. O octópode fugiu pelo corredor fora, sempre a gritar.
— Que demónio! — Disse Conway, e foi muito pouco em relação ao que pensara.
— A culpa foi inteiramente minha. Assustei-o — Disse Prilicla enquanto se punha rapidamente de pé. — Aleijou-se, Doutor?
— Assustou-o?
A suave criatura de Cinruss, semelhante a um aranhiço, apresentou desculpas. — Sim, receio isso. A combinação da surpresa e do que parece ser uma neurose xenofóbica causou uma reacção de pânico. Ficou muito assustado mas não perdeu inteiramente o domínio de si próprio. Sofreu alguma coisa, Doutor?
— Só a minha dignidade — «resmungou Conway, pondo-se de pé para correr atrás do Creppeliano, que já não se via e quase não se ouvia.
A corrida na esteira do AMSL tornou-se num rápido ziguezague que era meio corrida e meio valsa. Aos seus superiores ele gritava: — Desculpe! - e aos iguais e inferiores berrava: — Arreda! — Aproximou-se bem depressa do AMSL, provando mais uma vez que dois pés são muito melhores que oito, e estava quase a apanhá-lo quando a criatura se meteu numa arrecadação de roupa. Conway parou, a escorregar, junto à porta ainda aberta, entrou e fechou-a firmemente atrás de si.
Tão calmamente quanto a falta de fôlego lhe permitia, disse: — Porque foi que fugiu?
As palavras explodiram subitamente do AMSL. o Tradutor filtrou todos os tons emocionais mas pela simples rapidez da fala era evidente que o Creppeliano estava a ter o equivalente a um ataque de histeria, e ao escutá-lo compreendeu que a leitura emocional feita por Prilicla fora correcta. Era uma neurose xenofóbica e não havia engano possível.
O’Mara dará cabo de ti se não tiveres cuidado contigo, pensou ele, amargamente.
Dadas mesmo as mais altas qualidades de tolerância e respeito mútuo, havia ainda ocasiões em que ocorriam atritos inter-espécies no Hospital. Situações potencialmente perigosas nasciam da ignorância ou da incompreensão, e uma criatura podia tornar-se xenofóbica até um ponto que afectava a sua eficiência profissional, a estabilidade mental ou ambas as coisas. Um médico terrestre que tivesse horror às aranhas não podia cuidar devidamente de um paciente Cinrusskino. E se um dos Cinrussíknos, como Prilicla, fosse tratar um doente terrestre com esse complexo...
Era da competência de O’Mara, como Psicólogo-Chefe, detectar e erradicar esses males — ou, se tudo o mais falhasse, retirar os indivíduos potencialmente perigosos — antes que esse atrito resultasse num conflito aberto. Conway não sabia como O’Mara reagiria perante um enorme AMSL que fugia em pânico perante uma criatura frágil como o Dr. Prilicla.
Quando os nervos do Creppeliano começaram a acalmar-se, Conway ergueu a mão para lhe chamar a atenção e disse: — Compreendo agora que o Dr. Prilicla se assemelha fisicamente a uma espécie predadora, pequena e anfíbia, nativa do seu planeta, e que na sua juventude assistiu a um episodio extremamente assustador com um desses animais. Mas o Dr. Prilicla não é um animal e a semelhança é puramente visual. Ele está longe de ser uma ameaça, mas você poderia tê-lo morto se o tocasse sem cuidado.
Conway terminou num tom sério: — Sabendo disso, seria capaz de fugir outra vez se encontrasse de novo essa criatura?
— Não sei! — Confessou o AMSL. — Talvez...
Conway suspirou. Não pôde deixar de recordar as suas primeiras semanas no Geral do Sector e as horríveis criaturas de pesadelo que afligiam o seu sono. O que tornava as criaturas particularmente horrorosas fora o facto de não serem frutos dia sua imaginação, mas realidades físicas que em muitos casos estavam apenas a algumas anteparas de distância.
Ele nunca fugira desses pesadelos que mais tarde se tinham tornado nos seus professores, colegas e eventualmente, amigos. Mas, para ser honesto consigo próprio, isso não fora devido tanto à resistência intestinal como ao facto de o extremo medo provocar em Conway uma tendência paralisante, em vez de o fazer fugir.
— Creio que necessita de assistência psiquiátrica, Doutor — Disse ele suavemente ao Creppeliano. — O psicólogo-chefe do Hospital ajudá-lo-á. Mas aconselho-o a não o consultar imediatamente. Passe uma semana ou mais um pouco a adaptar-se ã situação antes de ir falar com ele. Verificará que ele ficará muito mais satisfeito consigo por ter feito isso...
Silenciosamente, acrescentou: ... E é menos provável que a mande embora, por ser incapaz de servir num hospital multiambiental.
O Creppeliano deixou a arrecadação sem necessidade de muita persuasão, depois de Conway lhe dizer que PrilliCla era o único GLNO que de momento havia no Hospital, e que não era provável que os seus caminhos se cruzassem duas vezes no mesmo dia. Dez minutos depois o AMSL estava no seu tanque de jantar e Conway corria para o seu próprio jantar pelo caminho mais curto.
Por um golpe de sorte ele viu o Dr. Mannein numa mesa vaga, no recinto dos Superiores. Mannen era um terrestre que fora o superior de Conway e agora era um Médico-Chefe, bem a caminho de atingir a categoria de diagnosticador. Estava autorizado a reter três gravações fisiológicas — A de um Tralthano especialista em microcirurgia e duas que tinham sido feitas por cirurgiões das espécies de baixa gravidade LSVO e MSVK — mas, apesar disso, as suas reacções eram razoavelmente humanas. Naquele momento ele estava a comer uma salada com os olhos voltados para o céu — e para o tecto da sala — para não ver o que comia. Conway sentou-se na frente dele e fez um ruído que exprimia simultaneamente simpatia e uma interrogação.
— Tive um Tralthano e um LSVO na minha lista esta tarde; dois trabalhos bem longos — disse Mannen, a custo. — Sabes como isto é, estou a pensar demasiado como eles. Se esses malditos Tralthanos não fossem vegetarianos ou se os LSVO não se sentissem agoniados perante qualquer coisa que não pareça alpista... Hoje és qualquer outra pessoa?
Conway abanou a cabeça, — Apenas eu próprio. Não te importas que coma carne?
— Não. Limita-te a não falar nela.
— Não falarei,
Conway conhecia demasiado bem a confusão, a dupla visão mental e a severa perturbação emocional que surgia quando uma gravação fisiológica se integrava excessivamente no espírito de um operador. Recordava-se de que apenas três meses antes se apaixonara loucamente — loucamente — por um grupo de especialistas visitantes de Melf IV. Os Melfanos eram ELNT, criaturas de seis pernas, anfíbias e vagamente semelhantes a caranguejos, e enquanto metade do seu espírito tinha insistido em que tudo aquilo era ridículo, a outra metade pensava amorosamente naquela carapaça maravilhosa e sentia-se como se uivasse à Lua.
As gravações fisiológicas eram decididamente uma bênção muito confusa, mas o uso delas era necessário porque nenhum ser isolado podia pensar em reter no cérebro todos os dados fisiológicos necessários para o tratamento dos pacientes num hospital multiambiental. A incrível massa de dados necessários para tomar cuidado deles era fornecida por meio de gravações do educador, que eram simplesmente os registos cerebrais! de grandes especialistas médicos das várias espécies. Se um doutor terrestre tivesse de tratar um paciente Kelgiano, tomava uma das gravações fisiológicas DBLF até que o tratamento estivesse completo, e depois apagava-a. Mas os Médico-Chefes com deveres de professor eram muitas vezes obrigados a reter essas gravações por longos períodos, o que não era de modo algum divertido.
A única coisa boa, do seu ponto de vista, era a de que eles estavam em melhor situação que os diagnosticadores.
Eram a elite do Hospital. Um diagnosticador era um daqueles raros seres cujo espírito era considerado suficientemente estável para reter permanentemente até dez gravações fisiológicas, ao mesmo tempo. Aos seus cérebros cheios de dados era dada a missão de investigação original na medicina xenológica e o diagnóstico e tratamento de doenças novas em formas de vida até então desconhecidas. Havia um princípio bem conhecido no Hospital que se dizia ter tido a sua origem no próprio O’Mara, e segundo o qual qualquer pessoa suficientemente sã para ser um diagnosticador era doido.
Os dados fisiológicos não eram a única coisa que as gravações imprimiam: as memórias completas e a personalidade da entidade que possuía esse conhecimento também eram impressas no cérebro receptor. Na verdade um diagnosticador que sujeitava a si próprio à mais drástica forma de esquizofrenia múltipla, com as personalidades alienígenas que compartilhavam o seu espírito tão completamente diferentes que em muitos casos nem sequer tinham um sistema de lógica em comum.
Conway fez regressar os seus pensamentos àquele lugar e àquele momento. Mannen falava de novo.
— Uma coisa curiosa com o sabor dia salada é a de que nenhum dos meus outros alter-egos parecem preocupasse com isso — disse ele, sempre a olhar para o tecto. — A Visão sim, mas não o sabor. Não gostam muito dela, mas não sentem repugnância. Ao mesmo tempo, há espécies que têm uma tremenda paixão por ela. E falando de tremendas paixões, como vai isso entre ti e a Murchison?
Qualquer dia ouvir-se-iam as engrenagens a partir os dentes, da maneira como Mannen fazia tão depressa as mudanças.
— Se tiver tempo, vê-la-ei esta noite — respondeu ele cuidadosamente. — Entretanto, somos apenas bons amigos.
— Ah — disse Mannen.
Conway mudou de assunto com igual violência, falando apressadamente da sua nova missão. Mannen era o melhor do mundo, mas tinha o doloroso hábito de pregar rasteiras às pessoas. Conway conseguiu manter a conversa afastada de Murchison durante o resto da refeição.
Tão depressa se separou de Mannen dirigiu-se ao intercomunicador e falou com os médicos das várias espécies que iriam passar a instruir os alunos, depois: do que olhou para o relógio. Faltava quase uma hora para embarcar na Vespasian. Começou a caminhar um pouco mais apressadamente do que era próprio de um Médico-Chefe...
A tabuleta sobre a entrada dizia: «Piso de Recreio, Espécies DBDG, DBLF, ElNT, GKNM & FGLI». Conway entrou, trocou a bata por uns calções e começou a procurar a enfermeira Murchison.
Uma iluminação hábil e uma decoração realmente inspirada dava ao piso de recreio a ilusão de um espaço tremendo. O efeito geral era o de uma pequena praia tropical entre duas arribas, aberta para o mar que se estendia até um horizonte que uma névoa de calor tornava indistinto. O céu era azul e sem nuvens — Os efeitos realistas de nuvens eram difíceis de reproduzir, segundo lhe dissera um engenheiro da manutenção — e a água da baia era de um azul carregado, coto tons turquesa. Batia contra a praia dourada, ligeiramente inclinada, cuja areia era quase demasiado quente para os pés. Só o sol artificial, que era demasiado avermelhado para o gosto de Conway, e as verduras alienígenas sobre a praia e as arribas, impediam que ela parecesse como uma baía tropical em qualquer parte da Terra.
Mas o espaço era precioso no Geral do Sector, e as pessoas que trabalhavam juntas, ali, tinham de se divertir juntamente também.
O aspecto mais efectivo, ainda que completamente invisível, daquele lugar, era o facto de ele ser mantido a metade da gravidade normal. Meio G significava que as pessoas fatigadas podiam repousar mais confortavelmente, e aquelas que se sentiam cheias de vigor podiam sentir-se ainda mais vigorosas, pensou Conway, amargamente, enquanto uma onda forte mas lenta avançava pela praia e se quebrava sobre os seus joelhos. A turbulência na baía não era produzida artificialmente, mas variava na proporção do tamanho, número e entusiasmo dos banhistas que a usavam.
Projectando-se de uma das arribas havia uma Série de plataformas de mergulho, ligadas por túneis ocultos. Conway subiu à plataforma mais alta, de quinze metros, e dai tentou encontrar uma DBDG fêmea com um fato de banho branco, de apelido Murchison.
Não estava no restaurante da outra arriba, nem nas águas pouco profundas junto à praia, nem na água verde-escura sob as plataformas de salto. A areia estava coberta de formas reclinadas que eram grandes e pequenas, coriáceas, escamudas e peludas — mas Conway não tinha dificuldade em distinguir os DBDG terrestres porque eram os únicos seres inteligentes da Galáxia com o tabu da nudez. Sabia que toda a gente que usava roupas, mesmo que muito poucas, era o que ele considerava um ser humano.
Subitamente, viu de relance um pouco de branco parcialmente oculto por duas manchas, uma verde e outra amarela, que a ladeavam. Devia ser a Murchison, sem dúvida. Tomou uma referência rápida e voltou para trás.
Quando Conway se aproximou da multidão que rodeava Murchison, dois homens do Corpo e um interno do piso oitenta e sete afastaram-se com uma relutância óbvia. Numa voz que, com seu desgosto, se tornara mais aguda, ele disse: — Olá! Desculpa-me por ter chegado atrasado.
A Murchison fez uma pala sobre os olhos e levantou a cabeça. — Acabo também de chegar — disse ela, com um sorriso. — Porque é que não te deitas?
Conway deitou-se na areia, mas continuou apoiado num cotovelo, a olhar para ela.
A Murchison possuía uma combinação de características físicas que tornava impossível para um membro masculino do pessoal terrestre olhar para ela de uma maneira clínica, e a exposição regular ao sol artificial mas rico em raios ultravioletas dera-lhe um bronzeado profundo, tornado ainda mais rico pelo perturbador contraste comi o seu fato de banho branco. Os cabelos castanhos-escuros agitavam-se perante a brisa artificial, e ela tinha os olhos novamente fechados e os lábios ligeiramente entreabertos. A respiração era lenta e profunda, como a de uma pessoa perfeitamente repousada ou adormecida, e as coisas que ela fazia ao fato de banho faziam também coisas a Conway. Pensou subitamente que se ela fosse telepata naquele momento se levantaria e correria para salvar a vida...
Abrindo um olho, ela disse: — Parece que queres soltar um rugido e bater com os punhos no peito acabado de rapar...
— Não é rapado — protestou Conway. — A falta de pêlos é natural. Mas quero que estejas séria por um momento. Gostaria de te falar a sós. Quer dizer...
—> Importo-me pouco com peitos, portanto não te sintas atrapalhado por isso.
— Não me sinto — disse Conway. — Não nos podemos ver livres deste jardim zoológico?... Oh, um estoiro!
Estendeu o braço rapidamente, cobrindo os olhos dela, ao mesmo tempo que cobria os dele.
Dois Tralthanos, com um total de doze pés elefantinos, passaram a poucos metros deles e mergulharam na água, fazendo saltar areia e água num raio de cinquenta metros. As condições de meio G que permitiam aos normalmente lentos e maciços FGLI cabriolar como cordeiros permitia também que a areia que eles lançavam ao ar ficasse nele suspensa por muito tempo. Quando Conway se certificou de que os últimos grãos já tinham caído, tirou a mão dos olhos da Murchison. Mas não inteiramente.
Hesitando, e de uma maneira um tanto ou quanto acanhada, deslizou a mão sobre o suave contorno do rosto dela até a colocar sob o queixo. Depois, lentamente mergulhou os dedos no macio emaranhado dos caracóis, atrás da orelha da jovem. Sentiu-a tornar-se hirta para depois logo se acalmar.
— Estás a ver o que te queria dizer? — Disse ele, com a boca seca. — A menos que gostes destes monstros de meia tonelada a atirarem areia para a tua cara...
A Murchison disse, a rir-se: — Estaremos sós logo, quando me fores levar a casa...
— E então que acontecerá? — disse Conway desgostoso. — A mesma coisa que da última vez. Iremos pé ante pé até à tua porta, para não acordar a tua companheira que tem de entrar de serviço cedo, e depois esse maldito servo aparecerá aos trambolhões... — Furioso Conway começou a imitar a voz gravada do autómato. —... Percebo que vocês são criaturas de classificação DHDG e são de géneros diferentes,, e noto mais que estiveram estreitamente justapostos durante dois minutos e quarenta e oito segundos. Nessa circunstância devo respeitosamente recordar-vos a Regra Vinte e Um, Subsecção Três, sobre o tratamento das visitas nos Aposentos das Enfermeiras DBDG...
Quase a sufocar de riso, a Murchison disse: — Lamento muito. Deve ter sido uma grande frustração para ti.
Conway pensou com amargura que a expressão de piedade fora um tanto ou quanto estragada pela gargalhada reprimida que a precedera. Inclinou-se mais e pegou-a pelo ombro. Disse: — Foi e é. Quero falar contigo e não terei tempo para te acompanhar a casa esta noite. Mas não quero falar aqui: foges sempre para a água quando te vês entalada. Bem, quero mesmo entalar-te... e fazer-te algumas perguntas sérias. Isto de sermos simples amigos está a dar cabo de mim...
A Murchison abanou a cabeça. Tirou a mão dele do ombro dela, apertou-a e disse: — Vamos nadar.
Segundos depois, enquanto a perseguia nas ondas, ele perguntou a si próprio se ela no fim, não seria um pouco telepata. Por certo que nadava com uma rapidez suficiente,
A meio G a natação era uma coisa maravilhosa. As ondas eram altas e curtas e o mais pequeno salpico parecia ficar no ar durante segundos, enquanto as gotas brilhavam vermelhas e cor de âmbar ao sol. Um mergulho mal executado por uma das formas de vida mais pesadas — os FGLI, em especial, tinham muito ventre a virar — podia causar efeitos verdadeiramente espectaculares. Conway bracejava loucamente atrás da jovem, na frente de uma dessas vagas titânicas, quando um altifalante começou a rugir na arriba.
— Doutor Conway — berrou ele. — Doutor Conway, apresente-se na Escotilha Dezasseis para embarcar, por favor...
Iam a caminhar apressadamente pela praia quando a Murchison disse, muito seriamente para os hábitos dela: — Não sabia que ias partir Vou mudar de roupa e irei despedir-me de ti.
Na antecâmara da escotilha havia um oficial do Corpo de Monitores. Quando viu que Conway tinha companhia disse : — Dr. Conway? Partimos dentro de quinze minutos, senhor — e desapareceu tacticamente. Conway parou perante o tubo de transferência e a jovem fez o mesmo. Ela olhou para ele mas não havia qualquer expressão particular no seu rosto, apenas belo e muito atraente. Conway começou a falar-lhe da sua nova e importante missão, ainda que não quisesse falar de nada disso. Falou rápida e nervosamente até que ouviu o oficial de Monitores voltar através do tubo. Então puxou com força a Murchison contra ele e beijou-a também com força,
Não conseguiu saber se ela lhe correspondera. Tudo fora muito súbito, muito pouco suave...
— Estarei fora três meses — disse ele, numa voz que tentava explicar e desculpar-se simultaneamente. Depois, com uma ligeireza forçada, concluiu: — E de manhã não sentirei nem um bocadinho de remorso.
Conway foi acompanhado ao seu camarote por um oficial que usava um caduceu de médico sobre a sua insígnia e que se apresentou como sendo o major Stillman. Ainda que falasse calma e cortesmente, Conway teve a impressão de que o major não era pessoa que se impressionasse com alguma coisa ou pessoa. Disse que o comandante gostaria de falar com Conway na sala de comando depois de fazer o primeiro «salto», para lhe dar pessoalmente as boas-vindas a bordo.
Pouco depois; Conway encontrou-se com o coronel Williamson, o comandante da nave, que lhe concedeu liberdade de movimentos. Era uma cortesia rara numa nave do Governo, e impressionou Conway, mas ele não tardou a descobrir que, ainda que ninguém lhe dissesse nada, ele viu-se simplesmente no caminho de toda a gente que estava na sala de comando e perdeu-se por duas vezes no interior da nave. O cruzador pesado Vespasiam, dos Monitores, era muito maior do que Conway pensara. Depois de ser guiado de volta por um homem do Corpo com um rosto demasiado Inexpressivo, decidiu que passaria a maior parte do tempo da viagem na sua cabina familiarizando-se com a sua nova missão.
O coronel Williamson dera-lhe cópias das informações mais pormenorizadas e recentes que tinham chegado através dos canais do Corpo de Monitores, mas ele começou por estudar o que O’Mara lhe dera.
A criatura chamada Lonvellin ia a caminho de um mundo sobre o qual ouvira rumores muito desagradáveis, num sector praticamente inexplorado da Pequena Nuvem de Magalhães quando adoecera e fora levado ao Geral do Sector. Pouco depois de ter sido designado curado recomeçara a viagem e algumas semanas depois entrara em contacto com o Corpo. Declarara que as condições que encontrara no mundo eram sociologicamente complexas e medicamente bárbaras, e que seria necessário auxílio no aspecto médico antes que ele pudesse actuar eficientemente contra as muitas doenças sociais que afligiam aquele planeta verdadeiramente desgraçado. Perguntara também se algumas criaturas com a classificação fisiológica DBDG poderiam ser enviadas para actuarem como colectoras de informações porque os nativos eram dessa classificação e mostravam-se violentamente hostis a toda a vida que não fosse do planeta, um facto que prejudicava seriamente as actividades de Lonvellin.
A circunstância de Lonvellin pedir auxílio era surpreendente só por si, em vista da enorme inteligência e da experiência da sua espécie na solução de vastos problemas sociológicos. Mas naquele caso as coisas tinham tomado um rumo desastroso, e Lonvellin estava demasiado ocupado com o uso da sua ciência defensiva para poder fazer mais alguma coisa...
Segundo o relatório de Lonvellin ele começara por observar o planeta do espaço durante muitas rotações, analisando as emissões de rádio através do seu Tradutor e tomando nota, em particular, do baixo nível de industrialização que contrastava tão estranhamente com a existência de um espaço porto em funcionamento. Quando colhera e analisara todas as informações que julgara necessárias, escolhera o que pensara ser o melhor locai para pousar.
Pelos dados que possuía, Lonvellin julgara que o mundo — o seu nome nativo era Etla — fora uma colónia outrora próspera que entrara em decadência por razões económicas e que tinha muito poucos contactos com o exterior. Mas tinha alguns, o que significara que a primeira e em geral mais difícil tarefa de Lonvellin, a de levar os nativos a confiar numa estranha e talvez visualmente horrível criatura que caíra do céu, fora grandemente simplificada. Aquela gente sabia da existência de extraterrestres. Portanto ele desempenharia o papel de um pobre extraterrestre, assustado e um pouco estúpido, que fora forçado a pousar para reparar a sua nave. Para isso seriam necessários vários pedaços completamente inúteis de metal ou rocha, e fingir grande dificuldade em levar os Etlanos a compreenderem o que ele pretendia. Mas por pedaços de coisas sem valor ele podia trocar artigos de grande valor, e não tardaria que os nativos mais empreendedores soubessem disso.
Nessa fase Lonvellin esperava ser explorado desavergonhadamente, mas não se importou. A pouco e pouco as coisas mudariam. Em vez de lhes dar coisas de valor, oferecer-se-ia para lhes prestar serviços ainda mais valiosos. Dir-lhes-ia que a sua nave era irreparável e a pouco e pouco acabaria por ser aceite como um residente permanente. Depois disso, tudo seria uma questão de tempo, e o tempo era uma coisa de que Lonvellin estava particularmente bem fornecido.
Pousara junto a uma estrada que passava entre duas pequenas cidades e não tardou a ter oportunidade de se revelar a uni nativo. O nativo, apesar do cuidadoso contacto de Lonvellin e de muitas palavras de acalmia através do Tradutor, fugiu. Poucas horas depois, projécteis pequenos e grosseiros com cargas químicas começaram a cair sobre a nave, enquanto toda a área em volta, que era densamente arborizada, foi saturada com produtos químicos voláteis e incendiada.
Lonvellin fora incapaz de prosseguir sem saber porque seria que aquela espécie, que tinha experiência de viagens espaciais, era tão cegamente hostil aos extraterrestres, e como não podia fazer perguntas pessoalmente pedira a ajuda dos humanos terrestres. Pouco depois, os especialistas de Contacto Alienígena do Corpo de Monitores tinham chegado, medido a situação e desembarcado.
Muito à vontade.
Descobriram que os nativos tinham um medo terrível dos extraterrestres porque acreditavam que eles eram portadores de doenças. O que era muito mais peculiar era o facto de eles não se preocuparem com os visitantes da sua própria espécie ou da uma espécie muito semelhante, cujos membros tinham afinal, mais probabilidades de transmitirem doenças. Era um facto médico bem conhecido que as doenças que afligiam os extraterrestres não eram transmissíveis aos membros de outras espécies planetárias. Qualquer espécie que conhecesse o» voo interstelar devia saber isso, pensou Conway. Era a primeira coisa que uma cultura interstelar aprendia.
Estava a tentar extrair qualquer sentido dessa estranha contradição, usando um cérebro fatigado e alguns trabalhos volumosos sobre o programa de colonização da Federação, quando a chegada de Stillman trouxe uma bem-vinda interrupção.
— Chegaremos daqui a três dias, Doutor — disse o major. — Creio que chegou o momento de aprender alguma coisa sobre espionagem. Quero dizer que tem de aprender a vestir roupas etlanas. São muito atraentes, ainda que pessoalmente eu não tenha joelhos para usar saiotes...
Stillman explicou que Etla fora contactada em dois níveis. Num eles tinham pousado secretamente e depois tinham usado a linguagem e as roupas nativas, sem necessidade de qualquer outro disfarce porque a semelhança fisiológica era muito estreita. A maior parte das suas informações posteriores fora obtida dessa maneira, e até então nenhum dos agentes fora descoberto. No outro nível, os homens ido Corpo tinham confessado a sua origem extraterrestre, falando através do Tradutor, e a sua história fora a de que tinham sabido dos males da; população nativa e tinham vindo prestar assistência médica. Os Etlanos tinham aceitado a história, revelando o facto de ofertas semelhantes de auxílio haverem sido feitas no passado, e de que uma nave do Império era para ali enviada de tempos a tempos com os mais modernos medicamentos, mas apesar disso toda a situação médica continuava a piorar. Os homens do Corpo tinham sido bem recebidos, mas a impressão dada pelos Etlanos eira a de que os consideravam como outro grupo de azelhas bem intencionados.
Naturalmente, quando o assunto da descida de Lonvellin veio à fala, o Corpo teve ide aparentar uma ignorância completa, e as opiniões expressas situaram-se fortemente numa posição mediana.
Stillman acentuou-lhe que se tratava de um problema muito complexo, e se tornava pior com cada relatório enviado pelos agentes secretos. Mas Lonvellin tinha um belo plano para acabar com tudo aquilo. Quando Conway o ouviu, desejou subitamente não ter impressionado Lonvellin com o seu talento médico. Gostaria muito mais de voltar para o Hospital, naquele momento. Ser tornado responsável pela organização da cura de uma população planetária inteira dava-lhe uma sensação estranha a meio do ventre…
Etla estava repleta de doença e sofrimento e de ideias estreitas e supersticiosas; a sua reacção a Lonvellin dava uma imagem chocante da sua intolerância perante espécies que não se assemelhavam à nativa. As duas primeiras características desenvolviam a terceira, que por sua vez piorava as duas primeiras. Lonvellin tinha esperanças de quebrar esse círculo vicioso causando uma melhoria acentuada na saúde da população — uma melhoria que pudesse ser notada mesmo pelo mais estúpido e preconceituoso nativo. Então os homens do Corpo confessariam publicamente que tinham actuado sob as ordens de Lonvellin, o que deveria levar os nativos a envergonharem-se do seu ódio aos extraterrestres. Durante o aumento temporário de tolerância que se seguiria, Lonvellin começaria a tentar ganhar a confiança deles e por fim entraria no seu plano original a longo prazo, para os tornar de novo numa cultura sã, feliz e progressista.
Conway disse a Stillman que não era perito nesses assuntos, mas que o plano lhe parecia muito bom.
Stillman respondeu: — Eu sou-o e é. Se resultar.
No dia seguinte ao previsto para a chegada, o comandante pediu a Conway para ir à Sala de Comando por uns minutos. Estavam, a calcular a sua posição para darem o «salto» final e a nave emergira relativamente perto de um sistema binário, uma estrela do qual era uma variável ide curto período.
Maravilhado, Conway pensou que era a espécie de espectáculo que tornava as pessoas pequenas e solitárias, levando-as a sentirem a necessidade de se juntarem urnas às outras e de falarem para restabelecer a sua identidade perante toda aquela magnificência. As barreiras conversacionais abateram-se e o comandante Williamson começou imediatamente a falar com Conway em tons que sugeriam três coisas — que o comandante, no fim de tudo, podia ser humano, que tinha cabelos e que os ia deixar baixar um pouco.
— Dr. Conway - começou ele a dizer, num tom apologético. — não pense que estou a criticar Lonvellin, Em particular porque foi um paciente seu e talvez seja também seu amigo. Nem quero que pense que estou aborrecido por ele ter um cruzador da Federação e outras naves mais pequenas a fazer recados piara ele. Não é isso...
Williamson tirou o boné e endireitou a cinta com o polegar. Conway viu um pouco de cabelo grisalho, ralo, e uma testa com profundas rugas, até então escondidas pela pala do boné. O boné voltou ao seu lugar e ele tornou-se novamente num oficial superior, calmo e eficiente.
—... Para falar sem rodeios. Doutor — prosseguiu ele — Lonvellin é aquilo a que chamamos um amador bem dotado. Essa gente arranja sempre problemas para nós, os profissionais, perturbando as programações e outras coisas. Mas isso também não me preocupa, porque a situação que Lonvellin descobriu ali precisa sem dúvida de que se faça qualquer coisa. Aquilo que eu quero sublinhar é que, além das nossas tarefas de exploração, colonização e manutenção da ordem, estamos habituados a resolver problemas sociológicos como este, ainda que ao mesmo tempo eu deva confessar que não há ninguém dentro do Corpo que tenha a habilidade de Lonvellin. Nem podemos de momento sugerir qualquer plano melhor que o sugerido por Lonvellin...
Conway perguntou a si próprio sei o comandante estava a querer chegar a qualquer coisa ou se estava apenas a desabafar. Williamson não lhe parecera ser homem para queixumes.
O comandante terminou apressadamente: — ... Sendo a pessoa com maior responsabilidade depois de Lonvellin neste projecto, é justo que saiba o que pensamos, assim como o que estamos a fazer. O número de pessoas que temos a trabalhar em Etla é quase o dobro do que Lonvellin conhece, e vêm mais a caminho. Pessoalmente, tenho o maior respeito pelo nosso amigo de longa vida, mas não consigo deixar de pensar que a situação é mais complexa do que o próprio Lonvellin pensa.
Conway manteve-se silencioso por um momento e depois disse: — Gostava de saber porque é que uma nave como a Vespasian está a ser usada no que é na essência um projecto de estudos culturais. Pensa que a situação é também... mais perigosa?
— Sim — respondeu o comandante.
Nesse momento a tremenda estrela dupla que o visor mostrava desapareceu e foi substituída pela de um sol normal do tipo G e, a cento e sessenta milhões de quilómetros, o pequeno crescente do planeta que era o seu destino. Antes que Conway pudesse fazer qualquer das perguntas que estava ansioso por fazer, o comandante informou-o de que tinham completado o «salto» final, que daí até à descida ele seria um homem muito atarefado, e acabou por o pôr muito delicadamente fora da sala com o conselho de que dormisse tanto quanto possível antes de pousar.
De volta ao seu camarote, Conway despiu-se, pensativo e, como uma parte do seu espírito teve o prazer de verificar, quase automaticamente. Tanto Stillman corno ele tinham usado durante os últimos dias o traje Etlano — blusa, saiote e uma cinta com bolsas, uma boina e uma capa que descia até meio da perna e que se destinava a ser usada ao ar livre. Sentia-se agora completamente à vontade nele, até quando jantava com os oficiais da Vespasian. De momento, a única coisa que o incomodava eram as últimas palavras ditas pelo comandante.
Williamson pensava que a situação em Etla era suficientemente perigosa para justificar o uso de uma nave de combate das maiores que o Corpo de Monitores possuía. Porquê? Onde estava o perigo?
Por certo que não havia nada semelhante a uma ameaça militar em Etla. O pior que os Etlanos poderiam fazer era o mesmo que tinham feito à nave de Lonvellin, e isso apenas magoara os sentimentos da criatura. O que significava que o perigo vinha de qualquer coisa exterior.
Subitamente, Conway pensou que sabia o que era que preocupava o comandante. O Império...
Alguns dos relatórios continham referências ao Império. Até aí era a grande incógnita. As naves de exploração do Corpo de Monitores não tinham estabelecido qualquer contacto com ele, o que não era surpreendente porque aquele sector da Galáxia não devia estar programado para qualquer levantamento cartográfico nos cinquenta anos seguintes, e ninguém teria lá entrado se não tivesse havido problema com o projecto de Lonvellin. Tudo quanto se sabia sobre o Império era que Etla fazia parte dele, e que enviava socorros médicos a intervales muito longos.
Para o espírito de Conway a qualidade do auxílio e os intervalos entre a sua chegada diziam muitas coisas tristes sobre as pessoas responsáveis pelo seu envio. Não podiam ser medicamente avançados, pois que se o fossem os remédios que enviavam teriam detido, mesmo que temporariamente, algumas das epidemias que varriam Etla nessas ocasiões. E quase por certo que eram pobres, pois que se não o fossem as naves chegariam a intervalos mais curtos. Conway não ficaria surpreendido se o misterioso Império não fosse mais que um mundo-mãe e algumas colónias periclitantes, como Etla. Mas o mais importante de tudo era que um Império que regularmente enviava auxílio à sua desgraçada colónia, fosse ele grande, médio ou pequeno, não parecia a Conway que pudesse ser particularmente malévolo ou perigoso. Pelo contrário pelo que sabia parecia-lhe de louvar tal Império.
Enquanto se rebolava na cama, pensou que o comandante Williamson tinha uma predisposição especial para se preocupar demasiado.
A Vespasian pousou. No visor principal da sala de comunicações, Conway viu uma larga superfície de cimento branco, gretado, que se estendia até à periferia distante de quase um quilómetro, onde os pormenores da vegetação e da arquitectura que teria tornado a paisagem alienígena se perdiam na névoa do calor. Poeira e folhas secas cobriam o cimento e pequenos farrapos de nuvens estavam espalhados desordenadamente por um céu muito semelhante ao da Terra, A única outra nave no campo era um correio dos Monitores que estava pousada perto do bloco de escritórios abandonados que fora cedido pelas autoridades de Etla para servir de base de superfície aos visitantes.
Atrás de Conway, o comandante disse: — Doutor, compreende que Lonvellin não pode abandonar a sua nave e que qualquer contacto físico nesta fase destruiria as nossas actuais boas relações com os nativos. Mas este visor é formidável. Um momento...
Houve um estalido e Conway viu-se a olhar para a sala de comando da nave de Lonvellin, com uma imagem de Lonvellin em tamanho natural, abrangendo a maior parte do visor.
— Cumprimentos, amigo Conway — berrou a voz do EPLH através do altifalante. — Ê um grande prazer vê-lo de novo
— 0 prazer é meu em estar aqui — respondeu Conway. — Confio que esteja de boa saúde...
A pergunta não fora apenas uma formalidade cortês. Conway queria saber se tinham havido mais «desentendimentos» no nível celular entre Lonvellin e o seu médico pessoal, a inteligente e organizada colónia de vírus que vivia no seu corpo. O médico de Lonvellin causara uma boa agitação no Geral do Sector, onde eles ainda estavam a discutir se ele havia de ser classificado como um doutor ou uma doença...
— A minha saúde é excelente, Doutor - respondeu Lonvellin e foi logo direito ao assunto. Conway fez voltar apressadamente o seu espírito àquele momento e concentrou-se no que o EPLH estava a dizer.
As instruções que Conway recebera eram gerais. Devia coordenar o trabalho dos oficiais médicos do Corpo que recolhiam dados? Em Etla, e, porque os aspectos sociológicos e médicos do problema estavam estreitamente ligados, fora aconselhado a manter-se ao corrente das novidades surgidas fora da sua especialidade. Com a chegada dos últimos relatórios, o problema sociológico parecia ainda mais confuso, e Lovellin tinha esperança de que um espírito treinado para a complexidade de um hospital multiambiental seria capaz de encontrar uma linha sensata entre a multidão de factos contraditórios. O Dr. Conway compreenderia sem dúvida a urgência da matéria, e desejaria começar imediatamente a trabalhar...
— ... E eu gostaria de obter informações sobre o terrestre Clarke, que está a trabalhar no Distrito Trinta e Cinco, para que eu possa avaliar devidamente os relatórios dessa criatura... — disse Lonvellin sem uma pausa.
Enquanto o comandante Williamson estava a dar a informação pedida, Stillman tocou no braço de Conway e fez-lhe sinal para que ambos saíssem. Vinte minutos depois, estavam na traseira de um camião coberto, a caminho do perímetro do campo. A cabeça de Conway e uma orelha estavam envolvidas por ligaduras, e ele sentia-se angustiado e um pouco estúpido.
— Ficaremos escondidos até sairmos do espaço porto e depois sentar-nos-emos Junto do condutor — disse Stillman, - Muitos Etlanos viajam connosco, mas se os virem vir da nave isso trará suspeitas. Creio que devem ver alguns dos vossos pacientes tão depressa quanto possível.
Num tom grave, Conway disse: — Sei que os sintomas são puramente psicossomáticos, mas os meus pés parecem estar numa fase avançada de congelamento...
Stillman riu-se. — Não se preocupe, Doutor — disse ele, — O Tradutor ligado ao seu ouvido dar-lhe-á conhecimento de tudo quanto acontecer, e você não terá de falar porque eu explicarei que o ferimento que tem na cabeça lhe afectou a fala. Mais tarde, quando aprender um pouco da linguagem, uma boa ideia é fingir-se gago. Um impedimento desse género disfarça o facto de não se conhecer bem o idioma local ou o sotaque; a deficiência maior esconde as menores.
«Nem todos os nossos agentes secretos têm treino linguístico avançado e esses estratagemas são necessários — acrescentou ele. — Mas a coisa principal a recordar é não ficar em qualquer lugar o tempo bastante para que notem mais coisas estranhas no comportamento...»
Nesse ponto o condutor notou que Iam passar por uma loura com, a qual ele ficaria feliz durante o resto da sua Vida. Stillman continuou: — Apesar das sugestões grosseiras do nosso Briggs, talvez a nossa melhor protecção resida na nossa atitude perante o trabalho. Se fôssemos agentes hostis tendo a intenção de praticar sabotagens, ou de recolher informações para um futuro acto de guerra, teríamos muito mais probabilidades de sermos apanhados. Estaríamos tensos, tentando com dificuldade sermos naturais, demasiado desconfiados e mais inclinados a cometer erros por causa disso.
Conway disse secamente. — Você faz, parecer isso demasiado fácil. — Mas sentiu-se reconfortado.
O camião deixou-os no centro da pequena cidade e começaram a passear por ela. A primeira coisa que Conway notou foi que tanto os peões como os veículos andavam mais devagar, ou tinham parado. Depois viu a razão.
Vinha um grande carro pela rua. Pintado e coberto de panos vermelhos, não» tinha propulsor próprio, ao contrário do que acontecia com os outros veículos. Curtas pegas projectavam-se a intervalos, de cada lado, e a cada pega um Etlano caminhava, coxeava ou arrastava-se, empurrando o carro. Antes de Stillman tirar a boina e Conway o seguir, ele sabia já que estava a ver um funeral.
— Agora vamos visitar um hospital local! — disse Stillman, quando se encontraram mais adiante. — Se me perguntarem alguma coisa, direi que estamos a procurar um parente que está doente e se chama Mennomer, o qual foi admitido há uma semana. Em Etla é um nome como Smith. Mas não é provável que sejamos interrogados, porque quase toda a gente trabalha nos hospitais e o pessoal está habituado a que as pessoas que ali servem em tempo parcial entrem e saiam a todo o momento. Se encontrarmos algum médico do Corpo, como pode muito bem acontecer fingiremos não o conhecer.
«E no caso de você estar preocupado com a possibilidade de os seus colegas Etlanos quererem ver debaixo das suas ligaduras — disse Stillman, lendo praticamente o pensamento de Conway — eles têm muito que fazer para se sentirem curiosos sobre ferimentos que já foram tratados...»
Passaram duas taras no hospital sem terem de contar a sua história sobre o parente doente. Era evidente desde o princípio que Stillman conhecia os cantos da casa e que provavelmente trabalhara lá. Mas havia sempre muitos Etlanos em volta para que Conway lhe pudesse perguntar se fora um Observador dó Corpo ou um enfermeiro clandestino. A certo momento viu de relance um médico dó Corpo a observar um médico Etlano a esvaziar uma cavidade pleural, com uma expressão que mostrava quanto ele desejaria arregaçar as mangas e entrar na festa.
Os cirurgiões usavam roupas amarelas em vez de brancas, algumas das técnicas operativas estavam próximas do barbarismo e a ideia das enfermarias de isolamento ou de compartimentação nunca lhes Ocorrera — ou talvez lhes: tivesse ocorrido e o fantástico grau de sobreocupação a tornasse impraticável. Considerando as poucas facilidades de que dispunham e o problema gigantesco que tinham de enfrentar era um hospital muito bom. Conway aprovou-o e, pelo que vira do pessoal, aprovou-o também.
— É boa gente — disse Conway a certa altura. — Não posso compreender corno se comportaram para com Lonvellin; não parece ser desse tipo.
— Mas são — respondeu Stillman gravemente. — Qualquer coisa que não tenha dois olhos, duas orelhas, dois braços e duas pernas, ou que tenha essas coisas mas não nos lugares certos, passa um mau bocado. É uma coisa que deve ter sido incutida neles num tempo muito primitivo — qualquer coisa como o ABC deles. Gostaria de saber porquê.
Conway manteve-se silencioso. Pensava se a razão por que fora enviado para ali era a de organizar os serviços médicos do planeta e que andar por ali a passear com um traje tão cómico em frente de um pequeno pedaço do quebra-cabeças não ia resolver o grande enigma. Era tempo de pensar em fazer algum trabalho sério.
Como se lesse novamente os pensamentos de Conway, Stillman disse: — Creio que chegou o momento de voltarmos. Quer trabalhar nos gabinetes ou na nave, Doutor?
Stillman era um bom ajudante de campo, pensou Conway. Disse: — Nos gabinete por favor. Perco-me com demasiada facilidade na nave.
E assim Conway viu-se instalado num pequeno gabinete com uma grande secretária, um botão para chamar Stillman e algum equipamento vital de comunicações. Depois do seu primeiro almoço no refeitório dos oficiais passou a comer no gabinete com Stillman. Por vezes dormia no gabinete e por vezes não dormia. Os dias passavam e os olhos começavam a parecer seixos quentes e ásperos, de tantos relatórios que lia. Stillman trazia-os constantemente. Conway reorganizou a investigação médica, mandando chamar alguns dos médicos do Corpo, para discutirem problemas, ou determinando a partida de outros que por qualquer razão não se conseguiam adaptar à situação.
Um grande número de relatórios tratava de assuntos que não lhe diziam respeito: eram cópias de informações enviadas pelos homens de Williamson sobre problemas puramente sociológicos. Dera-os admitindo a possibilidade de conterem alguma indicação útil ao seu problema, como acontecia com muitos. Mas em geral eles apenas aumentavam a sua confusão.
Amostras de sangue, biopsias, espécimes de todos os géneros, começavam a afluir. Eram imediatamente carregados num correio — o Corpo colocara agora três deles à disposição — e levados ao diagnosticador-chefe da Patologia, no Geral do Sector. Os resultados eram transmitidos por sub-rádio à Vespasian, gravados, e as bobinas colocadas sobre a secretária de Conway poucos dias depois. O computador principal da nave, ou antes, a parte dele que não estava a ser utilizada na retransmissão do Tradutor, estava também ao dispor dele, e gradualmente uma ideia geral muito vaga começou a surgir na inundação de dados relacionados e não relacionados. Mas era uma ideia que não fazia sentido a ninguém, e multo menos a Conway. Estava perto do fim da sua quinta semana em Etla e ainda tinha poucos progressos a comunicar a Lonvellin.
Mas Lonvellin não estava a exigir resultados rápidos. De vez em quando, Conway dava consigo a pesar se a Murchison seria tão paciente como era Lonvellin.
Respondendo à sua chamada, o major Stillman, de olhos vermelhos e com o uniforme normalmente bem vincado apenas um pouco amachucado, entrou e sentou-se. Trocaram bocejos e depois Conway falou.
— Dentro de poucos dias teremos uma ideia dos abastecimentos e dá distribuição necessários para curar esta gente — disse ele. — Todas as doenças sérias foram registadas juntamente com a informação da idade, sexo e localização geográfica do paciente, e da quantidade de medicamentos necessários. [Mas antes de inundar isto de medicamentos ficarei mais satisfeito se souber exactamente como é que está a situação.
«Francamente estou preocupado — prosseguiu ele. — Penso que talvez estejamos a substituir a louça com o touro ainda à solta na loja.»
Stilman moveu a cabeça afirmativamente, ainda que Conway não soubesse se o fizera por concordância ou fadiga.
Num planeta que era um verdadeiro poço de doenças, por que motivo a mortalidade infantil ou as mortes resultantes de complicações ou infecções durante o parto eram tão poucas? Porque era que havia uma tendência tão grande para as crianças serem saudáveis! e os adultos cronicamente doentes? Sem dúvida que uma grande proporção da população nascia cega ou deficiente devido a doenças herdadas, mas eram relativamente poucos os que morriam jovens. Suportavam as suas deformidades e desfigurações até ao fim da meia-idade, onde, estatisticamente, a maior parte deles morria.
E havia ainda provas estatísticas de que os Etlanos eram culpados de grandes exibicionismos em matéria de doenças. Adquiriam; um grande número de doenças de pele desagradáveis, que causavam a consumição ou a deformação gradual dos membros, e algumas combinações horríveis de ambos os processos. E era seu costume não fazer nada para esconder os seus males. Pelo contrário: Conway tinha por vezes a impressão de que eles eram como rapazinhos a mostrar os joelhos esfolados aos amigos...
Conway só compreendeu que estivera a falar em voz alta quando Stillman o interrompeu subitamente.
— Está enganado, Doutor! — disse ele, num tom duro, que não lhe era habitual. — Esta gente não é masoquista. Seja o que for que houve aqui, estão a tentar lutar contra isso. Estão a lutar, com pouco auxílio, há mais de um século, e sempre a perder. Surpreende-me que ainda tenham uma civilização. E usam; poucas roupas porque acreditam em que o ar livre e a luz do sol são bons para tudo quanto os aflige, e na maior parte dos casos têm muita razão.
«Essa crença é-lhes imprimida desde muito novos — prosseguiu Stillman, com o tom a perder gradualmente a sua dureza, tal como o seu ódio aos extraterrestres e a crença de que o isolamento das doenças infecciosas é desnecessário é perigoso, na verdade, porque eles crêem que os germes de uma doença combatem os de outra, de modo que ambos resultam enfraquecidos...»
Stillman estremeceu, ao pensar em tal coisa, e calou-se.
— Não pretendo criticar os nossos pacientes, Major — disse Conway. — Como não tenho respostas sensatas para esta coisa, o meu espírito procura respostas estúpidas. Mas você falou na falta de assistência do Império aos Etlanos. Gostaria de saber mais pormenores disso, principalmente sobre a distribuição. Melhor ainda gostaria de falar nisso ao representante do império em Etla. Já o descobriram?
Stillman abanou a cabeça e disse secamente : — O auxílio não surge com o aspecto de um bodo aos pobres. Consta de medicamentos, evidentemente, mas a maior parte toma o aspecto de livros de medicina referentes às doenças existentes aqui. Estamos a tentar descobrir como é que eles chegam ao povo...
— De dez em dez anos, uma nave do Império descia e o Representante Imperial ia ao seu encontro — explicou Stillman. — Depois de descarregar e entregar a encomenda partia de novo, tendo-se demorando apenas algumas horas. Aparentemente, nenhum cidadão do Império ficava em Etla mais um segundo do que era necessário, o que se compreendia facilmente. Então, o Representante Imperial, um indivíduo Chamado Teltrenn, começava a distribuir o auxílio médico.
Mas em vez de usar os meios de distribuição de massa para pôr as autoridades médicas locais em data com esses novos métodos e dar aos clínicos locais tempo bastante para se familiarizarem com a teoria e os processos antes de os medicamentos chegarem. Teltrenn mantinha em segredo todas as informações até ao momento em que pudesse fazer-lhes alguma visita pessoal. Depois, entregava tudo como se fosse um presente pessoal do glorioso Imperador, ganhando não pequena glória para si, por ser o intermediário, e os dados que podiam ser distribuídos por todos os médicos em três meses, chegava a eles pedacinho a pedacinho ao longo de seis anos...
— Seis anos — disse Conway, estupefacto.
— Tanto quanto apurei, Teltrenn não é uma pessoa muito enérgica - disse Stillman. — O que torna as coisas piores é o facto de pouca ou nenhuma investigação médica ser feita em Etla, devido à ausência do mais vital auxiliar do investigador! — o microscópio. Etla não pode fazer equipamento óptico de alta precisão e aparentemente nenhuma nave do Império pensou em trazê-lo.
Stillman terminou num tom amargo: — Tudo isto resulta no facto de que o Império é que pensa em tudo que diz respeito à medicina, em Etla, e pelos vistos o Império não é muito inteligente no plano médico.
Conway disse firmemente: — Gostaria de ver a relação entre a chegada desse auxílio e a incidência das doenças imediatamente depois. Pode ajudar-me nisso?
— Há um relatório que acaba de chegar e que talvez lhe possa ser útil — respondeu Stillman. — uma cópia dos registos de um hospital do Continente Norte desde a última visita feita a ele por Teitrenn. Os registos mostram que ele levou nessa ocasião alguns dados úteis sobre obstetrícia e um medicamento contra o que designámos por B-18. A Incidência do B-18 decaiu rapidamente dentro de semanas, ainda que os números gerais resultassem os mesmos porque ao mesmo tempo a F-21 começou a surgir...
B-18 era uma doença semelhante a uma gripe muito séria, fatal às crianças e aos adultos jovens em quarenta por cento dos casos. F-21 era uma febre benigna, não fatal, que durava três a quatro semanas e durante a qual largos vergões, em crescentes concêntricos, apareciam no rosto, membros e corpo. Quando a febre decrescia os vergões tornavam-se de um roxo escuro e mantinham-se durante toda a Vida do paciente.
Conway abanou a cabeça, furioso. Disse: — Uma das coisas que não está bem em Etla é o Representante Imperial!
Pondo-se de pé, Stillman disse: — Queremos também fazer-lhe algumas perguntas. Divulgámos abundantemente esse facto pela rádio e pela: imprensa, de modo que agora temos a certeza de que Teitrenn se está a esconder de nós propositadamente. Provavelmente a razão é a consciência da sua culpa na má administração dos negócios, aqui. Mas um relatório psicológico, baseado no que ouvimos a respeito dele, foi enviado a Lonvellin.
— Obrigado -disse Conway.
Stillman moveu a cabeça num gesto de concordância, bocejou e saiu. Conway carregou no botão do comunicador, contactou a Vespasian e pediu para estabelecerem uma ligação pela rádio com Lonvellin, que estava a oitenta quilómetros de distância. Continuava a estar preocupado e queria tirar do peito o peso que tinha sobre ele, ainda que não soubesse o que seria esse «peso».
—... Tem procedido muito bem, amigo Conway, ao cumprir tão depressa a sua parte no projecto, e eu tenho de facto muita sorte em dispor de assistentes de tal qualidade e com tal ardor — disse Lonvellin depois de ele ter acabado de falar. — Ganhámos já a confiança dos médicos de Etla na maior parte das áreas e está aberto o caminho para iniciarmos a instrução em grande escala nas últimas técnicas curativas. Você voltará portanto ao Hospital dentro de poucos dias, e peço-lhe para não partir com a sensação de que não realizou de uma maneira inteiramente satisfatória a tarefa de que tinha sido incumbido. Essas dúvidas de que fala não têm qualquer razão de ser,
«A sua sugestão para que essa criatura chamada Teitrenn seja afastada ou substituída como parte do programa de reeducação é correcta — continuou Lonvellin, pesadamente — e eu já tinha essa ideia no espírito. Uma razão adicional para o retirar do lugar que ocupa é o facto bem documentado de que ele é largamente responsável pela manutenção da larga intolerância das formas de vida extra-planetárias. A sua outra sugestão de que essas ideias podem ter a sua origem não em Teltrenn mas no Império, podem ou não ser correctas. No entanto, isso não exige uma busca imediata do Império e a sua investigação, como propõe.»
A voz traduzida de Lonvellin era lenta e necessariamente sem emoções, mas Conway teve a impressão de um endurecimento nas palavras que se seguiram: — Vejo que Etla é um mundo fechado, mantido em quarentena. O problema pode portanto ser resolvido sem levar em consideração as influências do Império ou compreender em absoluto as várias inconsistências que nos perturbam. Elas tornar-se-ão mais simples quando a cura estiver completa, e as respostas que procuramos são de importância secundária perante um problema repleto de sofrimentos,
«A sua afirmação de que as Visitas da nave Imperial, que ocorrem a dez anos de intervalo e duram apenas algumas horas, são um factor principal neste problema, não tem valor. Talvez eu deva sugerir que, inconscientemente talvez, você está a dar muita importância a esse ponto apenas para que a sua curiosidade referente ao Império possa ser satisfeita.»
Tens muita razão, pensou Conway. Mas antes que ele pudesse responder, o EPLH respondeu: — Desejaria tratar Etla como um problema isolado. Trazer a isto o Império, que pode ou não ter também necessidade de auxílio médico, alargará o âmbito da Operação para além dos limites possíveis.
«Entretanto, e apenas para eliminar essa sua evidente angústia, poderá dizer ã criatura chamada Williamson que tem autorização minha para enviar uma nave exploratória em busca desse Império e informar das condições existentes nele. No entanto, no caso de ele ser encontrado, a nave não deverá mencionar o que estamos a fazer em Etla, enquanto a operação não estiver terminada.»
— Compreendo, senhor — disse Conway, e desligou. Era estranho que Lonvellin lhe tivesse puxado as orelhas por ser curioso, e depois, quase imediatamente, o tivesse autorizado a satisfazer essa curiosidade. Lonvellin estava mais preocupado com a influência do Império do que pretendia confessar, ou acontecia que o grande monstro estava a tornar-se menos duro com a idade ?
Ligou para o comandante Williamson.
O comandante soprou um par de vezes quando Conway acabou de falar e havia um embaraço visível na sua voz quando respondeu: — Há dois meses que ternos um bom número de oficiais, gente do contacto cultural e médico, a procurar o Império. Um deles obteve sucesso e enviou-nos um relatório preliminar. Trata-se de um oficial médico que não tem estádio ligado ao projecto de Etla e sabe muito pouco sobre o que está a acontecer aqui, de moldo que não será tanto informador como deve desejar. Enviar-lhe-ei uma cópia juntamente com dados sobre Teltrenn.
Tossindo um pouco, Williamson terminou: — Lonvellin será informado disto, naturalmente, mas deixo à sua discrição a escolha de quando o deverá informar.
Subitamente, Conway soltou uma gargalhada. — Não se preocupe, Coronel. Vou passar algum tempo a estudar a informação. (Mas se ele descobrir que já o tinha feito, poderá dizer a Lonvellin que a missão do bom subordinado é antecipar os desejos dos seus superiores.
Continuou a rir-se mesmo depois de Williamson desligar. Não se rira muito depois da sua chegada a Etla. Naquele planeta ninguém se ria muito
Conway começava a ter saudades do Geral do Sector. Sentia-se feliz por ir regressar dentro de poucos dias, apesar da sua insatisfação perante o muito que ainda ficava por fazer. Pensou em Murchison.
Também não fizera isso muitas vezes em Etla. Enviara-lhe duas vezes mensagens, juntamente com os espécimes. Sabia que Torneador, da Patologia, as faria chegar ao seu destino, ainda que Torneador fosse um FGLJ tendo apenas um interesse muito distante pelos problemas emocionais dos OBDG terrestres. Mas a Murchison não era muito dada a demonstrações de afecto. Talvez pensasse que a dificuldade de lhe enviar às ocultas urna resposta o encorajaria demasiado, ou talvez aquele beijo dado a correr, na escotilha, tivesse feito com que ela resolvesse, cortar completamente com ele. Era uma garota muito peculiar. Muito séria, extremamente dedicada, absolutamente sem tempo para homens.
A primeira vez que ela concordara em o acompanhar fora porque Conway fizera uma operação excepcional e quisera celebrar isso, e antes trabalhara com ela num caso sem nunca pretender ir além das relações de trabalho. Desde então encontrava-se regularmente com a jovem e fora a inveja de todos os DBDG machos do Hospital. O único problema era o de que não havia nada que justificasse a inveja...
A sua lúgubre cadeia de pensamentos foi interrompida pela chegada de um homem do Corpo que colocou uma pasta sobre a secretária e disse: — O material referente a Teltrenn, Doutor. O outro relatório é Confidencial para o Comandante Williamson e tem de ser copiado. Estará aqui dentro de quinze minutos,
— Obrigada — disse Conway. O militar saiu e ele começou a ler.
Sendo Um mundo-colónia que não tivera oportunidade de crescer naturalmente, Etla não tinha fronteiras naturais ou forças armadas, mas a polícia que mantinha a lei no planeta era tecnicamente formada por soldados do Imperador e estava sob as ordens de Teltrenn. Fora uma força desses soldados/polícias que atacara, e continuava a atacar, a nave de Lonvellin. A primeira vista, Teltrenn surgia como possuidor de uma personalidade que era orgulhosa e sedenta de poder, mas a crueldade geralmente encontrada nessas personalidades estava ausente. Nas suas relações com a população nativa — o Representante Imperial não nascera em Etla — Teltrenn mostrava imparcialidade e consideração. Era evidente que ele olhava do alto para os nativos — quase como se eles fossem membros de «uma espécie inferior. Mas não os desprezava abertamente e nunca fora cruel para com eles.
Conway pôs de parte o relatório; era outro pedaço daquele insensato quebra-cabeças, e ele sentiu-se Imediatamente farto de toda àquela estupidez. Levantou-se e correu para a antecâmara, batendo a porta com estrondo. Stillman agitou-se um pouco e olhou para cima.
— Os papéis que vão para o diabo até amanhã de manhã — disse Conway, furioso, — E esta noite vamos nos dar o luxo de dormirmos nos nossos camarotes!
— Dormir? — disse Stillman, sorrindo-se. — Que é isso?
— Não sei — confessou Conway. — Pensei que você soubesse. Ouvi dizer que é uma sensação nova, uma felicidade impossível de exprimir e que Se torna num hábito...
Uma vez fora do bloco de escritórios encontraram uma noite agradavelmente fresca. Havia nuvens no horizonte, mas por cima deles as estrelas pareciam amontoar-se, brilhantes, milhentas e frias. Aquela era uma região densa do espaço, um» facto também provado pelos meteoritos que cortavam o ar com intervalos de poucos minutos. Tudo aquilo constituía uma visão inspiradora e calmante, mas Conway não podia evitar as preocupações. Estava convencido de que lhe escapava alguma coisa, e a sua angústia era muito maior ali, debaixo daquele céu, do que alguma vez o fora no gabinete. Subitamente desejou ir tão depressa quanto possível o relatório sobre o Império.
Disse para Stillman: — Já alguma vez pensou numa coisa e depois Se sentiu terrivelmente envergonhado por ter pensamentos desses?
Stillman resmungou), considerando a pergunta como simples retórica, e depois continuou a caminhar para a nave. Subitamente, ambos pararam.
No horizonte, ao sul, o sol pareceu começar a nascer. O céu tornou-se de um azul-claro que logo passou a turqueza e voltou a ser negro, enquanto as bases das nuvens distantes ardiam em rosa e ouro. Então, antes sequer que pudessem admirar aquele glorioso e impossível nascer do sol e reagissem perante ele, viram-no tomar-se numa mancha de um rubro furioso, no horizonte. A seguir sentiram um ligeiro choque através das solas dos sapatos e mais tarde ainda ouviram um ruído como um trovão distante
— A nave de Lonvellin! — Disse Stillman.
Começaram a correr.
A sala de comunicações na Vespasian era um turbilhão de actividade com o comandante a servir de centro calmo e determinado. Quando Stillman e Conway chegaram já tinham sido dadas ordens à nave correio e a todos os helicópteros disponíveis para carregarem equipamento de descontaminação e salvação e acorrerem à área da explosão para prestar todo o auxílio necessário. De resto, não havia qualquer esperança ide Salvar a força Etlana que cercara a nave, mas havia fazendas isoladas e pelo menos uma pequena aldeia na área periférica. Os socorros teriam de enfrentar o pânico e os efeitos das radiações, porque os Etlanos não tinham experiência alguma de explosões nucleares e quase por certo resistiriam à evacuação.
No campo, quando Conway vira a nave de Lonvellin explodir e compreendera o que isso significava, sentira-se fisicamente mal. Agora, ao escutar as ordens urgentes mas não apressadas de Williamson, suores frios corriam-lhe pela testa e pela espinha. Lambeu os lábios e disse: — Comandante, tenho uma sugestão urgente a apresentar...
Não falou em voz alta, mas havia qualquer coisa na sua voz que fez com que Williamson se voltasse imediatamente.
— O acidente acontecido a Lonvellin significa que passou a ser o chefe deste projecto, Doutor. Não tem necessidade de tantos rodeios.
— Nesse caso — disse Conway na mesma voz baixa e tensa — tenho ordens para si. Anule todas as tentativas de socorro e ordene que toda a gente regresse à nave. Suba antes que sejamos também bombardeados...
Conway viu-os a todos a olharem o seu rosto branco, a suar, e os seus olhos aterrorizados, e pôde vê-los a todos a tirarem conclusões erradas. Williamson pareceu furioso, embaraçado e completamente desorientado durante alguns segundos, depois do que a sua expressão endureceu. Voltou-se para um oficial que estava a seu lado, deu uma ordem e depois voltou-se para enfrentar de novo Conway.
— Doutor — começou ele a dizer num tom ríspido, acabei mesmo agora de ligar a nossa barreira anti-meteórica secundária. Qualquer objecto sólido com mais de dois centímetros de diâmetro, vindo de qualquer direcção, será detectado a uma distância de cento e cinquenta quilómetros e automaticamente desviado por pressores. Portanto posso assegurar-lhe, Doutor, que não corremos perigo de qualquer ataque hipotético com mísseis atómicos. De resto, a ideia de um bombardeamento nuclear, aqui, é ridículo. Não há energia atómica em Etla, sob qualquer aspecto. Temos instrumentos... Deve ter lido o relatório.
«A minha sugestão — prosseguiu o comandante, num tom idêntico ao que usava para sugerir que o praticante de astrogação fizesse uma alteração no rumo — é o de que enviemos o mais depressa possível socorros aos sobreviventes da explosão - que deve ter sido causada por uma avaria no reactor de Lonvellin...»
— Lonvellin nunca deixaria que acontecesse uma avaria no reactor da sua nave! — Disse Conway numa voz rouca, - Como muitos seres com longa vida ele sofria de um constante e crescente medo de morrer, quanto mais longa ia sendo a sua vida. Tinha o melhor dos médicos pessoais para que a doença não encurtasse a duração da sua vida já tremendamente longa, e da conclui-se que ele não se teria exposto ao perigo de usar uma máquina que não estivesse em condições absolutamente perfeitas.
«Lonvellin foi assassinado e a razão por que atingiram primeiro a nave dele terá sido a de eles odiarem tanto os extraterrestres. E estou satisfeito por saber que pode proteger esta nave, mas se partirmos agora eles não lançarão outro míssil e a nossa gente lá fora e muitos mais Etlanos não terão de morrer...»
Não valia a penai, pensou Conway desesperado. Williamson parecia furioso, embaraçado e obstinado — furioso por ter dado ordens aparentemente insensatas, embaraçado porque Conway parecia estar a comportar-se como uma velhota assustada, e obstinado porque pensava que quem tinha razão era ele e não Conway. Deixe-se de ser parvo e mexa-se, pensou Conway, furioso. Não podia dirigir palavras como essas a um coronel dos Monitores rodeado por oficiais inferiores, e pela razão adicional de que Williamson não tinha nada de parvo. Era um oficial inteligente, muito competente e muito razoável. Acontecera apenas que não fora capaz de adicionar os factos devidamente. Não tinha qualquer preparação médica, nem dispunha de um espírito tão maldoso e desconfiado como o de Conway...
— Tem um relatório sobre o Império para mim — disse ele, em vez de dizer o que pensava. — Posso lê-lo?
Os olhos de Williamson viraram-se de relance para a bateria de visores que os rodeava. Todos mostravam cenas de uma actividade frenética — um helicóptero a ser aprontado para o voo, outro a levantar com uma carga certamente excessiva, e uma corrente de homens e material de descontaminação a sair através da escotilha da nave correio. Disse: — Quer lê-lo agora...?
— Sim — disse Conway, e depois abanou rapidamente a cabeça quando outra ideia lhe surgiu. Tentara desesperadamente fazer levar Williamson a subir deixando as explicações para depois, quando houvesse tempo para as dar, mas agora era evidente que teria primeiro de tratar disso, e depressa. Disse: — Tenho uma teoria que explica o que está a acontecer aqui e o relatório deverá confirmá-la. Mas se lhe disser o que penso que se encontra nesse relatório antes de o ler, isso dará à minha teoria o crédito necessário para que tenha em conta o que lhe disser e saia imediatamente daqui?
Fora da nave, ambos os helicópteros subiam no céu escuro, a nave correio estava a fechar a escotilha e uma porção de transportes de superfície, tanto de Etla como dos Monitores, estava a dispersar-se para o perímetro. Mais de metade ida tripulação da nave estava fora dela, juntamente com todos os homens do Corpo, baseados em terra, que podiam ser dispensados, todos a dirigirem-se para o local da explosão e todos a aumentarem a distância entre eles e a Vespasian em cada momento que passava.
Sem esperar pela resposta de Williamson, Conway apressou-se a dizer: — Creio que isto é um verdadeiro Império, e não uma Federação mais ou menos livre como a nossa. Isso significa uma grande organização militar piara o manter unido e assegurar o cumprimento das ordens do Imperador, e o governo dos vários mundos deve também ser essencialmente militar. Todos os seus cidadãos devem ser DBDG como os Etlanos e nós próprios, e pessoas muito normais, excepto quanto à sua antipatia peitos extraterrestres, que eles até agora não têm tido muita oportunidade de conhecer.
Conway suspirou profundamente e prosseguiu: - As condições de vida e o nível tecnológico devem ser semelhantes aos nossos. Os impostos devem ser altos, mas isso deve ser negado pelos meios de comunicação dominados peito governo. Creio que este Império deve ter alcançado a fase de instabilidade; digamos que compreende entre quarenta a cinquenta sistemas habitados...
— Quarenta e três! — Disse Williamson, num tom de surpresa.
—... e penso que toda a gente nele sabe de Etla e mostra simpatia pela sua tragédia. Devem considerá-lo como um mundo debaixo de uma quarentena constante, mas fazem tudo quanto podem para o ajudar...
— Certamente! — Interrompeu Williamson. — O nosso homem estava num dos planetas exteriores do Império apenas durante dois dias, antes de ser enviado ao Mundo Central para conferenciar com o Grande Chefe. Mas teve tempo de ver o que as pessoas pensam sobre Etla. Há imagens dos Etlanos em sofrimento quase por toda a parte para onde ele olhou. Em certos lugares elas ultrapassavam os anúncios comerciais, e o Governo Imperial dá apoio a toda essa caridade! Parecem ser boa gente, Doutor,
— Tenho a certeza disso, Comandante — disse Conway num tom selvagem — Mas não» pensa que é um pouco estranho que a caridade combinada de quarenta e três mundos só consiga trazer aqui uma nave a intervalos de dez anos?
Williamson abriu a boca, fechou-a e mostrou-se pensativo. Toda a sala ficou silenciosa, excepto quanto às mensagens que chegavam. Depois, subitamente atrás de Conway, Stillman praguejou e disse numa voz arrastada: — Estou a ver onde ele quer chegar. Temos de subir imediatamente!
Os olhos de Williamson passaram de Conway a Stillman e voltaram ao ponto de partida. Ele murmurou: — Um pode sofrer de uma loucura temporária, mas dois...
Três segundos depois estavam a ser dadas ordens para fazer regressar todo o pessoal, e a urgência das ordens era acentuada pelo ruído estridente da sereia do Alarme Geral. Depois de toldas as ordens que tinham sido dadas minutos antes terem sido invertidas, Williamson voltou-se de novo para Conway.
— Continue, Doutor — disse ele num tom lúgubre. — Creio que começo também a compreender.
Conway suspirou e começou a falar.
Etla começara por ser uma colónia normal, com um único espaço porto para a descida do equipamento inicial e dos colonos, depois do que as cidades tinham sido erigidas nos lugares mais convenientes pelos seus recursos naturais e a população planetária aumentara magnificamente. Mas depois eles deviam ter sido atingidos por uma vaga de doenças, ou uma sucessão de doenças, que ameaçara aniquilá-los a todos. Ouvindo da sua tragédia, os cidadãos do Império tinham-se associado, como as pessoas fazem perante os amigos em dificuldades, e não tardou que o auxílio chegasse.
Devia ter começado por pouca coisa, mas aumentara rapidamente com a divulgação de notícias sobre a desgraça da colónia. Mas pelo que dizia respeito aos Etlanos a assistência continuara a ser pequena.
Os centavos dispensados por uma população planetária inteira somavam no fim enormes quantias, e quando dezenas de mundos eram contribuintes, as quantias tornavam-se em qualquer coisa que não podia ser ignorada pelo Governo Imperial ou pelo próprio Imperador. Porque mesmo naqueles dias, o Império devia ser já demasiado grande e a inevitável corrupção, estaria já no seu interior. Mais e mais receitas eram necessárias para manter o Império e/ou para manter o Imperador e a sua corte no luxo a que se sentiam com direito. Era natural assumir que eles podiam ter dito a si próprios que a caridade começava pelos da casa, e se tivessem apropriado de uma grande parte desses fundos para o seu próprio uso. Depois, gradualmente, à medida que a caridade para com os Etlanos fora objecto de publicidade e encorajamento, esses fundos tinham-se tornado numa parte essencial das receitas da administração.
Fora assim que tudo começara.
Etla fora colocada numa estreita quarentena, mesmo pensando que ninguém com um pouco de juízo teria querido ir lá. Mas então surgira a ameaça de uma calamidade: os Etlanos, ainda que sem ajuda, deviam ter começado a curar os seus males. A lucrativa fonte de receitas iria secar. Tinha de ser feita alguma coisa e bem depressa.
O governo devia ter considerado que, no plano ético, não havia grande diferença entre a retenção dos meios de auxílio que podiam ter curado os Etlanos e mantê-los doentes introduzindo algumas infecções relativamente benignas de tempos a tempos. As doenças deviam ser fotogénicas, para terem o máximo efeito nos cidadãos de bom coração — doenças desfigurantes, na sua maior parte, ou que deixavam os doentes aleijados 0 deformados. E tudo era feito para que o número dos nativos sofredores não baixasse, de modo que as técnicas de ginecologia e assistência infantil em Etla eram bem avançadas.
Logo de inicio, um Representante Imperial, psicologicamente preparado para assumir esse cargo, fora instalado para assegurar que o nível da saúde no planeta era mantido no ponto desejado. Fosse como fosse os Etlanos tinham deixado de ser gente, para se tornarem em animais valiosos quando doentes, e era assim que o Representante Imperial parecia olhá-los.
Conway deteve-se nesse ponto. O comandante e Stillman pareciam doentes — era exactamente como ele se sentia desde que a destruição da nave de Lonvellin fizera com que todas as peças do quebra cabeças se reunissem.
— Ele disse: — Uma força nativa suficiente para repelir ou destruir visitantes acidentais está sempre às ordens de Teltrenn. Por causa da quarentena, é natural que os visitantes sejam todos extraterrestres, e os nativos foram ensinados a odiar os alienígenas, independentemente das formas, número ou intenções...
— Mas como podem eles ser... tão impiedosos?! — Disse Williamson, estupefacto.
— Provavelmente começou como um simples desvio de fundos — disse Conway, fatigado. — Mas depois, gradualmente, as coisas fugiram-lhes das mãos. Agora pela nossa interferência, ameaçámos destruir um negócio muito escuro e muito rendoso, do próprio Imperador. Portanto o Império está a tentar dar cabo de nós.
Antes que Williamson pudesse responder, o chefe das Comunicações informou que ambos os helicópteros tinham voltado à nave, assim como todo o pessoal que estivera ao alcance do som da sereia o que significava toda a gente na cidade. Os outros não poderiam voltar à Vespasian senão dentro de horas, e tinham recebido ordem para se esconderem até que uma pequena nave exploradora viesse às ocultas, para os levar. Quase antes de o oficial ter acabado de falar o comandante ordenou: — Subir a nave! — e Conway sentiu-se tonto por um momento, enquanto as grelhas antigravitacionais da nave compensavam o impulso de emergência. A Vespasian subiu rapidamente para o espaço, com a nave do correio apenas dez segundos atrás dela.
— Eles devem ter pensado que eu era muito estúpido... — começou Williamson a dizer, mas foi logo interrompido pelos relatórios dos tripulantes regressados. Um dos helicópteros fora alvejado a tiro e os homens dá cidade tinham recebido ordem da polícia para ficarem ali. Essas ordens tinham sido dadas pelo Representante Imperial, com instruções para que fossem abatidos todos quantos tentassem fugir. Mas a polícia local e os homens do Corpo conheciam-se multo bem e os Etlanos tinham feito fogo bem para o ar...
Isto está a tornar-se cada vez mais sujo — disse subitamente Stillman. — Creio que vamos ser acusados do que aconteceu em volta da nave de Lonvellin — de todas as vítimas havidas nessa área. Tudo quanto fizemos aqui vai ser deformado de modo que seremos os vilões. E aposto em que muitas doenças serão introduzidas imediatamente depois da nossa partida, e que nos acusarão delas
Stillman praguejou e prosseguiu: — Sabem o que a gente do Império pensa deste planeta. Etla é o seu irmão pobre, fraco, inutilizado, e nós vamos ser os malditos alienígenas que o agredimos a sangue-frio...
Enquanto o major falava, Conway começara novamente a suar. As suas deduções sobre a maneira como Etla tratava o Império tinham sido deduzidas dos índicos módicos, e fora o aspecto médico que mais o preocupara, de modo que as maiores implicações de tudo aquilo não lhe tinham ocorrido ainda. Subitamente explodiu: — Mas isso pode significar a guerra!
— Sim, e provavelmente é o que o Governo Imperial quer! — disse Stillman num tom selvagem. — Ele tornou-se demasiado grande e gordo, e está podre até ao caroço, peio que vimos aqui. Dentro de décadas tombará provavelmente por si próprio, e isso é também uma boa coisa. Mas não «há nada como uma boa guerra, uma Causa que toda a gente defenda fortemente, para reunir novamente um Império. Se eles puderem fazer um bom jogo com esta guerra, o Império poderá durar outros cem anos.
Conway abanou a cabeça e disse: —? Devia ter compreendido o que estava a acontecer, antes de as coisas chegarem a este ponto. Se tivéssemos tido tempo para dizermos a verdade aos Etlanos...
—? Você viu-a mais depressa que qualquer outra pessoa — disse secamente o comandante. — E dizer aos nativos o que se passava não os ajudaria nem a nós, a menos que o povo do Império também viesse a saber disso. Não tem razão para se culpar...
— Armamento — disse urna voz de um dos vinte e tantos altifalantes da sala, — Temos um rastro no nosso Doze Vinte e Um Verde que vou ligar ao vosso visor Cinco. O rastro está a difundir interferências contra mísseis e muito folhelho perturbador de radar, sugerindo que a consciência dele se! sente culpada e que ele é mais pequeno que nós. Instruções, senhor?
Williamson olhou de relance para o visor repetidor. — Não faça nada, a menos que ele faça — disse ele, depois que se voltou de noivo para Stillman e Conway. Quando ele falou, fê-lo no tom calmo, inspirador de confiança de um oficial superior que assume e aceita a responsabilidade completa, um tom que insistia «m que não tinham razão para se preocuparem porque ele estava ali.
— Disse: — Não estejam tão preocupados, cavalheiros. Esta situação, esta ameaça de guerra interstelar, tinha de surgir em qualquer momento e foram estabelecidos planos para a enfrentar. Felizmente, temos muito tempo para pôr esses planos em acção.
«Espacialmente, o Império é uma pequena e densa associação de mundos, de outro modo não poderemos ter estabelecido contacto com eles tão depressa. A Federação, no entanto, está muito espalhada por metade da Galáxia. Nós tínhamos de explorar um grupo de estrelas em que um sol em calda cinco possui um planeta habitado. O problema deles não é de modo algum tão simples. Se eles tiverem, muita sorte, poderão encontrar-nos dentro de três anos, mas o meu próprio cálculo indica que devem demorar uns vinte. Portanto podem ver que temos muito tempo.»
Conway não se sentia reconfortado e devia tê-lo mostrado, mas o comandante tentava responder às suas Observações antes que ele as pudesse fazer.
— O agente que fez o relatório poderá ajudá-los — disse apressadamente Wlliamson. — De boa vontade, porque ainda não sabe a verdade sobre o Império, ele poderá dar informações sobre a Federação e a organização e força do Corpo de Monitores. Mas porque ele é um médico essa informação não devei ser completa ou precisa, e será de fato inútil, a menos que o Império saiba onde estamos. Não descobrirão isso a menos que capturem um astrogador ou uma nave com as suas cartas intactas, isso é uma contingência contra a qual tomaremos grandes precauções a partir deste momento.
«Os agentes estão a ser treinados em línguas, medicina ou ciências sociais — terminou Williamson, confiantemente. — O conhecimento que eles têm da navegação interstelar é nula. A nave exploradora que os desembarca volta imediatamente à base. Ê uma precaução normal em operações dessa espécie. Portanto compreende que ternos um problema .sério, mas de modo algum imediato.»
— Não é? — disse Conway.
Viu Williamson e Stillman a olharem para ele intensa e cautelosamente como se ele fosse alguma espécie de bomba que, tendo explodido meia hora antes, estava prestes a explodir de novo. De certo modo, Conway lamentava que ele tivesse de explodir de novo e levá-los a compartilhar o medo e a horrível mordente ansiedade que até então fora unicamente sua. Molhou os lábios e tentou dizer o que tinha que dizer, tão suavemente quanto possível.
— Falando pessoalmente — disse ele num tom calmo — não tenho a mais pequena ideia das coordenadas de Traltha, ou Ilensa, ou da Terra, ou mesmo o planeta colonizado pela Terra onde eu nasci. Mas há um conjunto de elementos que conheço, e que qualquer outro médico em serviço neste Sector também conhece: são as coordenadas do Geral do Sector.
«Não creio que tenhamos tempo algum.»
A única coisa construtiva que Conway fez durante a viagem de regresso ao Geral do Sector foi pôr era ordem o sono atrasado, mas o sono foi tantas vezes tornado horrível pelos pesadelos da guerra próxima que era mais agradável permanecer acordado, e o tempo durante o qual não dormia era despendido em discussões com Williamson, Stillman e os outros oficiais superiores da Vespasian. Como ele previra tudo perfeitamente durante aquela última meia hora em Etla, Williamson parecia dar valor a quaisquer ideias que ele pudesse ter, mesmo pensando que os problemas de espionagem, logística e manobras da Armada dificilmente oferecessem algum interesse a um Médico-Chefe.
As discussões eram interessantes, informativas e, como os sonhos dele, nada agradáveis.
Segundo o coronel Williamson, uma guerra interstelar de conquista era logisticamente impossível, mas uma simples guerra de extermino podia ser travada por quem quer que tivesse a força suficiente e o estômago bastante forte para suportar o pensamento de abater outros seres inteligentes, aos planetas de cada vez. O Império tinha uma força mais que bastante, e a resistência do seu estômago colectivo dependia de factores sobre os quais 0 Corpo de Monitores ainda não tinha qualquer domínio.
Dado um tempo bastante, os agentes do Corpo poderiam infiltrar o Império. Conheciam já a posição de um dos seus mundos habitados e, por causa do tráfego entre ele e os outros planetas do Império, não tardariam a conhecer as posições dos outros. O primeiro passo, portanto, seria o de conseguir informações e depois... Bem, o Corpo não era um miau propagandista e numa situação como aquela em que o inimigo baseava a sua campanha numa série de Grandes Mentiras, algum método para atingir esse ponto fraco tinha dei ser imaginado. O Corpo era principalmente uma organização policial, uma força preparada não tanto para fazer a guerra corno para manter a paz. E como qualquer boa força de policia as suas acções eram constrangidas pelos possíveis efeitos nos espectadores inocentes - que nesse caso eram tanto os cidadãos do Império como a gente da Federação.
Era por isso que o plano para minar oi Império tinha de ser posto em movimento, ainda que possivelmente não conduzisse a qualquer efeito antes de se dar o primeiro choque. A esperança em que Williamson tinha mais orgulho, era a de que o homem do Corpo que estava agora nas mãos do Império não soubesse, ou não divulgasse, as coordenadas do Geral do Sector. O coronel era suficientemente realista para saber que se o agente soubesse de alguma coisa o inimigo a extrairia de uma maneira ou outra. Mas se falhasse essa solução ideal o Hospital teria de ser defendido de uma maneira que o tomasse na única posição da Federação que o inimigo pudesse conhecer — a menos que eles divertissem uma grande proporção das suas forças para perderem tempo a procurar o corpo principal da Galáxia, que era exactamente o que o Corpo pretendia.
Conway procurou não pensar no que aconteceria no Geral do Sector quando todas as forças móveis do Império se concentrassem ali...
Poucas horas antes de sarem do ultra-voo receberam outro relatório do agente que estava agora no Mundo Central do Império. O primeiro demorara nove dias a chegar a Etla, o segundo fora retransmitido com codificação, em prioridade absoluta, e demorara apenas dezoito horas.
O relatório dizia que o Munido Central não parecia hostil à presença dos extraterrestres em Etla e nos outros mundos ido Império. O polvo, ali, parecia muito mais cosmopolita, e de vez em quando podiam ver-se extra-terrestres nas ruas. No entanto, havia indícios subtis de que essas criaturas pertenciam ao corpo diplomático e eram nativas de mundos comi os quais o Império fizera tratados com o objectivo de mais tarde os anexar individualmente. Pelo que, até então, dizia respeito ao agente, as coisas não poderiam ter sido melhores, e dentro de poucos dias teria uma audiência com o próprio Imperador. No entanto, começava a sentir-se inquieto.
Não havia nada que ele pudesse indicar em especial — era um médico arrancado do serviço da Exploração e Pré-colonização, e não um daqueles ases do Contacto Cultural. Tinha a impressão de que em certas ocasiões e perante certas pessoas se procurava impedir qualquer alusão sua aos objectivos e à Constituição da Federação, enquanto noutras ocasiões, em geral quando se encontravam poucas pessoas presentes, elas animavam-no a falar muito. Outro pormenor que o preocupava era o facto de que nenhum dos noticiários que ele Vira tinham mencionado a sua chegada. Se tivesse acontecido o contrário — se um cidadão do Império houvesse estabelecido contacto com a Federação, o acontecimento teria sido uma notícia de primeira página durante semanas.
Perguntava a si próprio se estaria a falar demasiado e fazia votos para que pudessem construir um receptor de sub-rádio tão pequeno como um emissor, para que ele pudesse pedir instruções...
Não tiveram mais notícias do agente.
O regresso ao Geral do Sector não foi tão agradável como ele pensara que poderia ser, semanas antes. Então imaginara regressar como uma personagem quase heróica com a maior missão da sua carreira satisfatoriamente cumprida, os aplausos dos seus colegas a ecoarem-lhe nos ouvidos e a Murchison à espera dele de braços abertos. A última possibilidade fora muito fraca, mas Conway gostava de sonhar, por vezes. Em vez disso, ele voltava com um trabalho que estoirara horrivelmente na cara dele, com a esperança de que os seus colegas não o detivessem para lhe perguntar o que estivera a fazer, e com a Murchison dentro da escotilha com um sorriso amigo nos lábios, mas com os dois braços pendentes de uma maneira muito correcta.
Conway pensou amargamente que, depois de toda aquela longa ausência, aquilo era a espécie de coisa que um amigo faria por outro — não faria mais que isso. Ela disse que estava muito satisfeita por o ver de volta e ele disse que estava muito satisfeito por voltar, e quando ela começou a fazer perguntas ele disse que tinha muito que fazer mas que teria muito prazer em falar com ela depois, e sorriu como se isso fosse a coisa mais importante do mundo. Mas o sorriso dele enferrujara e ela devia ter visto que ele não estava a ser sincero. Tornou-se toda doutor-e-enfermeira, disse que também tinha coisas mais importantes a tratar e voltou-lhe as costas.
A Murchison mostrara-se tão bela e desejável corno sempre e ele magoara-a por certo, mas de certo modo nada disso preocupava Conway de momento. Não podia pensar noutra coisa excepto no seu próximo encontro com O’Mara. E quando se apresentou no gabinete do Psicólogo-Chefe, pareceu-lhe que as suas piores previsões estavam a cumprir-se.
- Sente-se, Doutor — disse O’Mara. — Portanto conseguiu finalmente envolver-nos numa guerra interstelar...
- Isso não temi graça nenhuma — disse Conway.
O’Mara olhou-o longamente. Era um olhar que não só notava a expressão no rosto de Conway mas também outros factores como a sua posição na cadeira e a posição e movimentos das mãos. O’Mara não dava muita atenção à maneira como os outros se lhe dirigiam, mas o facto de Conway não ter dito: «Senhor...» foi também notado e colocado no seu lugar próprio para a análise da situação. O processo demorou talvez dois minutos e durante esse tempo o Psicólogo-Chefe não moveu uma pálpebra. O’Mara não tinha hábitos irritantes. As suas mãos fortes e obtusas nunca se contorciam ou brincavam com coisas, e quando ele queria as suas feições podiam ser tão expressivas como um penedo.
Naquela ocasião ele deixou o seu rosto cair numa expressão de desfavor quase benigno e por fim falou.
— Concordo em que não tem nada de engraçado. Mas você sabe também que há sempre a possibilidade de um médico bem-intencionado num lugar como este gerar problemas em grande escala. Temos tido aqui muitas vezes criaturas de espécies estranhas que exigem tratamento urgente, sem que haja tempo para procurarmos os amigos delas e sabermos se o procedimento adoptado é o correcto para as circunstâncias. Um caso a apontar é o da crisálida de Ian, há meses. Isso aconteceu antes de podermos estabelecer contacto formal com os Ians, e se você não tivesse diagnosticado correctamente o estado do paciente como sendo o de uma crisálida em crescimento, em vez de um tumor maligno necessitando de extracção imediata, teríamos tido graves problemas com os Ians.
— Sim, senhor — disse Conway.
O’Mara prosseguiu: — O meu comentário tinha a intenção de lhe agradar e tinha uma certa razão de ser, considerando a sua recente experiência com esse Ian. Talvez fosse de um gosto discutível, mas se pensa que vou pedir-lhe desculpa, então é evidente que acredita em milagres. Agora fale-me de Etla.
«E a minha secretária e o meu cesto dos papéis estão cheios, de relatórios pormenorizando as implicações e as consequências prováveis e terríveis da questão de Etla. O que quero saber é como você cuidou da sua missão, tal como ela originalmente lhe havia sido designada.»
Conway respondeu de uma maneira tão breve quanto possível. Enquanto falava começou a sentir-se acalmar. Tinha ainda uma confusa e muito assustadora imagem no fundo do espírito do que a guerra poderia significar para incontáveis milhões de criaturas, para o Hospital e para ele próprio, mas já não sentia que tivesse sido ele, em parte, quem tivesse trazido a lume esse problema. O’Mara começara a entrevista acusando-o exactamente daquilo que ele se sentia culpado. Mas enquanto ele se aproximava do ponto em que a nave de Lonvellin fora destruída, a sensação voltara com toda a intensidade. Se ele tivesse unido mais depressa todas as peças do quebra-cabeças, Lonvellin não teria morrido...
O’Mara devia ter notado a mudança de sentimentos, mas deixou-o terminar e só depois disse: — Surpreende-me que Lonvellin não tivesse visto isso antes de si, pois ele era o cérebro da operação. E já que falámos de miolos, não me parece que estejam a ser lançados em completa desordem por problemas envolvendo grandes números de pessoas exigindo diferentes formas de tratamento. Portanto tenho outro trabalho para si. Não é tão grande corno o de Etla, não terá de sair do Hospital e, se tiver sorte;, não desabará em cima de si.
«Quero que você organize a evacuação do Geral do Sector.»
Conway engoliu em seco e depois engoliu novamente.
— Deixe-se de olhar para mim! — disse O’Mara. — Senão atiro-lhe com uma coisa à cabeça! Deve ter pensado o bastante para compreender que não podemos ter doentes aqui quando a força do Império chegar. Ou qualquer pessoal não militar que não tenha sido voluntário para ficar. Ou qualquer pessoa, independentemente da posição ou grau hierárquico, que possua informações pormenorizadas sobre a posição dos planetas da Federação. E por certo que não o assustará ter de dar ordens àqueles que nominalmente são seus superiores — depois de dar ordens a um coronel do Corpo...
Conway sentiu a nuca a escaldar. Ignorou o remoque sobre Williamson e disse: — Pensei que íamos deixar isto vazio
— Não — responde u O’Mara, secamente — Isto tem um valor demasiado sentimental, monetário e estratégico. Esperamos poder manter alguns pisos a trabalhar, para o tratamento das vítimas sofridas péla força defensora. O coronel Skempton já está a trabalhar no problema da evacuação e ajudá-lo-á tanto quanto possa. Que horas são para si, Doutor?
Conway disse-lhe que sara da Vespasian duas horas depois do pequeno-almoço.
— Bom — disse O’Mara. — Pode contactar Skempton e ir trabalhar imediatamente. Para mim, há muito tempo que são horas de me deitar, mas dormirei aqui, para o caso de você ou o Coronel precisarem: de alguma coisa. Boa noite, Doutor,
Ao dizer aquilo tirou e dobrou o casaco descalçou-se e recostou-se. Dentro de segundos a sua respiração tornou-se profunda e regular.
Sete horas depois, Conway olhou para a secretária desarrumada, fatigado, mas com uma medida de triunfo, esfregou os olhos e fitou a secretária em frente da sua. Durante um momento sentiu que voltara a Etla e que um major Stillman, de olhos vermelhos, podia olhar para cima e perguntar o que ele queria. Mas quando ele falou quem olhou para cima foi um coronel Skempton, de olhos vermelhos.
— O detalhei dos pacientes a ser evacuados está pronto — disse Conway, exausto.: — Estão divididos por espécies, em primeiro lugar, o que indicará o número de naves necessário para os transportar e as condições de vida que deverão ser reproduzidas em cada nave. Para alguns dos tipos menos vulgares isso implicará alterações estruturais nas naves, o que demorará tempo. Depois, cada espécie está subdividida segundo os graus de gravidade do estado do paciente, o que determinará a ordem da sua partida...
Conway pensou amargamente que havia uma excepção: os doentes em estado demasiado grave para poderem ser transportados sem perigo de vida. Teriam de ser
evacuados em último lugar para que o tratamento pudesse ser prolongado tanto quanto possível, o que significava que o pessoal médico especializado, que então deveria já ter sido evacuado, teria de ser retido para o tratar, e então a sua vida seria posta em perigo pelos mísseis das naves do império. Nada parecia acontecer de uma maneira correcta e consecutiva.
—... Depois serão necessários alguns dias para que o departamento do major O’Mara processe o pessoal médico e de manutenção, mesmo que ele precise apenas de lhe fazer algumas perguntas. Quando cheguei, esperava que o Hospital já estivesse a ser atacado. De momento, não sei se devo adoptar um plano para uma evacuação em pânico, dentro de quarenta e oito horas, que é o tempo mínimo absoluto necessário e que talvez mate mais pacientes do que os que pode salvar, ou proceder a uma simples evacuação apressada.
— Eu não posso preparar os transportes em quarenta e oito horas - disse secamente Skempton e voltou a baixar a cabeça. Coimo chefe da Manutenção e principal oficial dos Monitores, no Hospital, o trabalho de reunir, modificar e encaminhar os transportes competia-lhe, e ele tinha um trabalho tremendo a fazer.
— O que estou a tentar saber — insistiu Conway — é quanto tempo pensa de que dispomos?
O coronel Olhou para cima de novo e disse: — Desculpe, Doutor j — Tenho uma estimativa que me chegou há algumas horas... — Levantou um dos papéis de cima da secretária e começou a ler.
Submetendo todos os factores conhecidos a uma análise rígida, parecia provável que tivesse decorrido pouco tempo entre o ponto em que o Império descobrira a posição exacta do Geral do Sector e o momento em que actuara segundo essa informação. A acção inicial devia provavelmente ser urna investigação por uma nave de observação, ou uma pequena força exploradora. Às unidades dos Monitores, estacionadas presentemente em torno do Geral do Sector, deviam tentar destruir essa força. Quer tivessem sucesso ou não, a jogada seguinte do Império seria provavelmente uma ofensiva em grande escala, que demoraria muitos dias a montar. Nessa altura já as unidades adicionais do Corpo de Monitores deviam ter chegado ali...
«... Digamos oito dias ou três semanas, se tivermos sorte. Mas não creio que a tenhamos.»
— Obrigado — disse Conway. E voltou ao trabalho.
Primeiro preparou um relato geral da situação para ser distribuído ao pessoal médico dentro das próximas seis horas. Sublinhou tanto quanto possível a necessidade de uma evacuação rápida e ordeira sem excessos que pudessem conduzir ao pânico, e recomendou que os pacientes fossem informados através dos seus médicos, para lhes reduzir a angústia ao mínimo. No caso dos doentes em estado grave, os médicos responsáveis deviam decidir se era possível informar o doente ou era melhor colocá-lo sob a acção de sedativos. Acrescentou que um número não especificado de membros do pessoal médico seria evacuado com os doentes, e que toda a gente devia estar preparada para deixar o Hospital com um aviso de poucas horas. Enviou o documento para as Publicações para ser copiado e gravado, de modo que toda a gente tivesse conhecimento dele mais ou menos ao mesmo tempo.
Pelo menos essa era a teoria, pensou Conway secamente. Mas se ele conhecia bem como funcionavam as coisas no Hospital, os dados essenciais estariam em circulação dez minutos depois de o papel ter saído da sua secretária.
A seguir ele preparou instruções mais pormenorizadas sobre os pacientes. As formas de vida que respiravam oxigénio e tinham sangue quente podiam! sair por qualquer dos pisos, mas as espécies de alta gravidade e altas pressões deviam conduzir a problemas especiais, sem falar nos tipos de gravidade ligeira MSVK e LSVO, os gigantescos respiradores de água AUGL, os tipos ultra- frígidos e a dúzia ide criaturas no piso Trinta e Oito que respiravam vapor sobreaquecido. Conway estava a planear a operação de modo que demorasse cinco dias para os pacientes e mais dois para o pessoal, e para essa rápida evacuação das enfermarias ele teria de fazer passar pessoas através de pisos estranhos a elas, para alcançarem os pontos de embarque. Havia possibilidade de os ambienteis de cloro serem contaminados por oxigénio, perigo de o cloro se infiltrar nas enfermarias AUGL ou de a água inundar tudo: Tinham de ser tomadas precauções contra as falhas dos refrigeradores das formas de vida de metana, do equipamento antigravitacional dos frágeis LSVO, e dos invólucros de pressão dos Illensanos.
A contaminação era o maior perigo de um hospital multi-ambiental — contaminação pelo oxigénio, cloro, metana, água, frio, calor ou radiação. Durante a evacuação, os dispositivos de segurança usualmente em serviço — portas estanques, comportas interpisos, os vários sistemas de alarme e detecção — deviam ser postos de parte, para que a evacuação fosse mais rápida.
Depois o pessoal devia ser distribuído de modo a assegurar a inspecção das unidades de transporte e verificar se o seu espaço para passageiros reproduzia exactamente o ambiente dos passageiros que tinha de transportar...
O espírito de Conway recusou-se subitamente a suportar mais aquilo. Ele fechou os olhos, afundou a cabeça nas palmas das mãos e observou a imagem: persistente do tampo da sua secretária a dissolver-se lentamente numa nuvem vermelha. Estava farto de papelada. Desde que fora encarregado da missão de Etla toda a sua vida fora papelada; relatórios, sumários, mapas, instruções.
Era u/m médico a planear uma operação complicada, mas tratava-se do género de operação que competia a um alto funcionário de secretaria e não a um cirurgião. Conway não estudara nem fora treinado para ser um funcionário de secretaria.
Levantou-se, despediu-se do coronel com uma voz rouca e saiu ido gabinete. Sem pensar bem no que fazia, dirigiu-se para as suas enfermarias.
Um novo turno estava a entrar de serviço e para os pacientes faltava meia (hora antes da primeira refeição do dia, o que era uma ocasião muito invulgar para que um Médico-Chefe fizesse as suas rondas. O quase-pânico que ele teria causado, noutras circunstâncias, teria sido divertido. Conway cumprimentou cortesmente o interno de serviço e sentiu-se «um pouco surpreendido ao verificar que era o octopóide Creppeliano que ele conhecera como aluno dois meses antes. Sentiu-se aborrecido ao ver que o AMSL insistia em segui-lo a uma distância respeitosa. Era o procedimento correcto para um interno novato, mas naquele momento Conway queria estar sozinho com os seus pacientes e os seus pensamentos.
Acima de tudo, ele sentia a necessidade de ver e falar com os pacientes extraterrestres, por vezes estranhos mas sempre maravilhosos, que tecnicamente estavam sob os seus cuidados — todas as criaturas que ele conhecera antes de partir para Etla tinham já recebido alta. Não olhou para os seus boletins porque de momento tinha uma alergia aos sumários de informações, através da palavra impressa. Em vez disso interrogou-os profundamente, quase esfomeadamente, sobre os seus sintomas, estado e história. Deixou alguns casos sem importância agradados e lisonjeados por tal atenção da parte de um Médico-Chefe, mas outros podiam ter ficado aborrecidos pela sua coscuvilhice. No entanto Conway tinha de fazer
isso. Enquanto tivesse doentes queria ser um médico...
Um médico extraterrestre...
O Geral do Sector estava a desfazer-se. A vasta e complexa estrutura dedicada ao alívio do sofrimento e ao progresso da medicina xenológica estava a morrer, sucumbindo como qualquer paciente em estado terminal a uma doença demasiado poderosa para que ele pudesse resistir. No dia seguinte ou da a dois dias, aquelas enfermarias começariam a esvaziar-se. Os pacientes com as variações exóticas de fisiologia, metabolismo e queixumes, ir-se-iam embora. Nas enfermarias às escuras, as coisas estranhas e maravilhosas que constituam para os alienígenas a ideia de um leito confortável, seriam como fantasmas surrealistas. E com a partida dos pacientes extraterrestres e do pessoal cessaria a necessidade de manter os ambientes que os abrigavam, os Tradutores que lhes permitiam comunicar, as gravações de fisiologia que tornavam possível a uma espécie tratar outra...
Mas o maior hospital extraterrestre da Galáxia não morreria por completo, pelo menos dentro de alguns dias ou semanas. O Corpo dos Monitores não tinha experiência de guerra interstelar: aquela era a sua primeira, ainda que soubessem o que os esperava. As vítimas, entre as tripulações das naves, seriam pesadas, e uma grande proporção ideias acabaria por morrer, os sobreviventes seriam de três tipos, segundo os efeitos sofridos: descompressão, fracturas e envenenamento por radiação. Esperava-se que dois ou três pisos pudessem, (cuidar deles, porque se a luta fosse travada com armas nucleares — e não havia motivo para pensar outra coisa — a maior parte dos casos de descompressão e fracturas seriam também de radiação, em estado terminal, e não haveria perigo de excesso de ocupação.
Depois, a desintegração interna, começada com a evacuação, continuaria, à medida que as forças do Império atacassem. Conway não era um táctico militar, mas ele não podia ver como poderia ser protegido o Hospital, enorme e quase vazio. Não tardaria que fosse um enorme cemitério de aço semi-desfeito e fundido...
Imediatamente, uma tremenda onda de sentimentos passou através da mente de Conway — amargura, tristeza e um impulso ide cólera que o deixou a tremer. Quando saiu da enfermaria, quase a cambalear, não sábia se queria chorar ou praguejar ou dar um soco em alguém. Mas não teve que se decidir, porque ao voltar ia esquina, na direcção da secção dos PVSJ, chocou com toda a força com a Murchison.
O choque não foi doloroso porque um dos corpos envolvidos nele estava bem protegido por material amortecedor, mas foi bastante para afastar do espírito dele um negro cortejo de pensamentos que foi substituído por outro muito mais agradável. Subitamente teve um desejo tão grande de falar à Murchison corno tivera de visitar os seus doentes, e pela mesma razão. Aquela poderia ser a última vez que a visse,
— Desculpa — gaguejou ele, recuando. Depois, recordando-se do último encontro de ambos, disse: — Esta manhã estava muito apressado; não podia falar muito. Estás de serviço?
— Acabo de sair — disse ela numa voz neutra.
— Ah! Pergunto a mim próprio se... se te importas...
— Não me importaria de ir nadar — disse ela.
— Belo - respondeu ele.
Foram para a praia simulada, mudaram de roupas e encontraram-se na areia. Enquanto se dirigiam para a água, ela disse» subitamente: — Quando me escreveste aquelas cartas recordas-te de as meteres em sobrescritos com o meu nome e o número do meu quarto?
— E deixar que toda a gente soubesse: que estava a escrever-te? Não creio que quisesses isso.
A Murchison fungou. — O sistema que imaginaste não era muito secreto. Thornnastor tem três bocas e não é capaz de calar nenhuma delas. As cartas eram bonitas, mas não creio que fosse correcto da tua parte escrevê-las nas costas dos relatórios das análises de expectoração...
— Peço perdão — disse Conway. — Não voltará a acontecer.
Com as palavras voltaram-lhe as apreensões. Certamente que não voltaria a acontecer; nunca mais aconteceria. Pareceu-lhe que o sol avermelhado não estava a aquecer o seu corpo como era habitual, e que a água não era tão agradavelmente fresca. Mesmo a meio G não parecia que nadar fosse uma sensação muito agradável. Era como se uma fadiga imensa penetrasse 0 seu corpo, embotando todas as sensações. Ao fim de poucos minutos voltou para as águas menos profundas e encaminhou-se para a areia. A Murchison seguiu-o, aparentemente preocupada.
— Estás mais magro — disse ela quando o alcançou.
O primeiro impulso de Conway foi o de dizer: — Tu não, mas mudou de ideias e respondeu rapidamente: — Esqueci-me de que não estás de serviço e ainda não comeste nada. Vamos ao restaurante?
— Sim, por favor.
O restaurante situava-se no alto da falsa falésia, em frente às plataformas de saltos e tinha urna parede de vidro contínua que permitia ver toda a praia. Era o único lugar no piso de recreio onde era possível conversar. Mas isso de pouco serviu porque eles não falaram.
Pelo menos até meio da refeição, quando a Murchison perguntou: — Também não comes muito.
Conway respondeu: — Já alguma vez possuíste, ou comandaste, uma nave espacial?
— Eu? Evidentemente que não!
— Se estivesses numa nave com o astrogador ferido e inconsciente, e o propulsor avariado, poderias dar as coordenadas necessárias para atingir algum planeta da Federação ?
— Não — disse impaciente a Murchison. -Teria de ficar lá até que o astrogador voltasse a si. Que espécie de questionário é esse?
— Aquele que tenho de fazer a todos os meus amigos - respondeu amargamente Conway. — Se tivesses respondido «Sim» a uma das perguntas, eu teria tirado um peso do meu espírito.
A Murchison pousou o garfo e a faca e franziu ligeiramente a testa. Disse: — Há qualquer coisa que te preocupa. — Depois hesitou e acrescentou: — Se precisas de um ombro para chorares, põe-te à vontade. Mas lembra-te de que é somente para chorar.
— Que mais poderia eu fazer?
— Não sei — disse ela com um sorriso. — Mas provavelmente acabaria por sabê-lo.
Conway não retribuiu o sorriso. Em vez disso começou a falar das coisas que o preocupavam — e que eram preocupantes para mais pessoas, incluindo ela. Quando acabou ela manteve-se calada por muito tempo.
— Creio que ficarei — disse ela, por fim, corno Conway Já esperava. -Ficas também, evidentemente?
— Ainda não decidi disse ele, cautelosamente. — De qualquer maneira não sairei antes de a evacuação terminar. E então talvez não haja razão para que eu fique. — Num último esforço para a fazer mudar de ideias, acrescentou: — ... E todo o teu treino dos extraterrestres perder-se-á. Há muitos hospitais onde ficariam satisfeitos por te terem...
A Murchison ergueu-se subitamente. Falou no tom seco e competente de uma enfermeira ordenando um tratamento a um doente recalcitrante. - Pelo que me dizes o dia de amanhã vai ser muito atarefado. Deves dormir tanto quanto possas. Na verdade creio que deves ir imediatamente para o teu quarto...
Depois, num tom completamente diferente acrescentou: — Mas se quiseres acompanhar-me primeiro a casa...
No dia seguinte ao de terem sido dadas ordens para evacuar o Hospital, tudo correu suavemente. Os doentes não causaram qualquer problema. Mais difícil foi a saída do pessoal médico. Para um paciente, o Hospital era apenas um episódio doloroso e não muito agradável de vida. Para o pessoal do Geral do Sector, o Hospital era a sua vida.
No entanto, não houve obstáculos de maior, nesse primeiro dia. Toda a gente cumpriu as ordens recebidas, talvez porque o Choque detivera qualquer reacção. Mas no seguindo dia o choque já se dissipara e começaram a discutir, e a pessoa com quem mais queriam discutir era com o Dr. Conway.
No terceiro dia, Conway teve de telefonar a O’Mara. — O problema está... em levar esses génios a compreender as coisas! E quanto mais inteligente é uma criatura, mais estúpida é toas suas acções. Por exemplo: Prillicla, uma criatura que é feita de casca de ovo e paus de fósforo e que até uma corrente de ar arrastaria, quer ficar. E o Dr. Mannen, que está prestes a ser um, diagnosticador, diz que não faz diferença — afirma que tratar exclusivamente de terrestres será como umas férias. Além de que as razões expostas por outros são simplesmente fantásticas...
«Tem de os levar a ver as coisas como São. Ê o Psicólogo-Chefe; senhor...»
O’Mara respondeu num tom seco: — Três quartos do pessoal médico e de manutenção possuem informações que podem ser úteis ao inimigo no caso da sua captura. Partirão, quer sejam diagnosticadores, operadores de computadores ou aprendizes de serventes. Não têm nada que dizer a esse respeito. O mesmo quanto aos especialistas que tiverem de partir com os seus doentes devido ao estado deles. (Quanto aos restantes, não podemos fazer muita coisa: são criaturas sãs, inteligentes, maduras, capazes de saber o que querem. Antes que diga que os outros são doidos, diga-me uma coisa: Fica?
— Bem...
O’Mara desligou.
Conway olhou para o receptor durante largo tempo, antes de o desligar. A voz ríspida do coronel Skempton interrompeu-lhe os pensamentos.
—» Doutor, chegou a nave-hospital Kellglano. E também um cargueiro illensano. Escotilhas Cinco e Dezassete dentro de dez minutos.
— Muito bem — disse Conway. Saiu do gabinete quase a correr, direito à Recepção.
Os três postos de comando estavam ocupados — dois deles por Nidianos e o outro por um tenente do Corpo. Conway colocou-se entre os Nidianos e atrás deles para que pudesse Observar os dois conjuntos de visores-repetidores e começou a desejar muito fortemente poder resolver os problemas que surgissem.
A nave kelgiana já aportara à Escotilha Cinco. Era uma brutalidade, uma das últimas naves interstelares da carreira que fora parcialmente transformada numa nave-hospital, durante a viagem. As alterações ainda não estavam inteiramente terminadas, mas uma equipa de manutenção e autómatos estavam já a entrar a bordo com pessoal superior de enfermagem, para preparar a recepção dos doentes. Ao mesmo tempo os ocupantes das enfermarias estavam a ser aprontados para a transferência e o equipamento necessário para os tratar estava a ser desmantelado, rapidamente, e com pouca atenção pelo estado subsequente das paredes das enfermarias. Algum do equipamento de menores dimensões, carregado sobre portadores de macas, ia já a caminho da nave.
No todo parecia uma operação relativamente simples. As exigências de atmosfera, pressão e gravidade dos doentes eram exactamente as existentes na nave, de modo que não havia necessidade de complicadas vestes de protecção, e a nave era suficientemente grande para transportar todos os pacientes Keigianos, com espaço de sobra. Assim ele poderia deixar completamente vazios os pisos DBLF e libertar-se também de alguns FGLI Tralthanos. Mas mesmo pensando que a primeira missão era pouco complicada, seriam necessárias pelo menos seis horas para que a nave fosse carregada e partisse. Voltou-se para a outra mesa de comando.
O que via era semelhante sob muitos aspectos. O ambiente do cargueiro illensano correspondia perfeitamente ao das enfermarias dos FVSJ, mas a nave era mais pequena e, considerando o seu objectivo, não tinha uma tripulação muito grande. Os preparativos para receber os doentes não estavam, portanto, tão adiantados. Conway ordenou que uma equipa de pessoal suplementar de manutenção seguisse para o cargueiro, pensando que seria uma felicidade se pudessem evacuar sessenta PVSJ no mesmo tempo em que a outra nave evacuaria três pisos inteiros.
Ainda estava a procurai uma maneira acelerar as coisas quando o visor do tenente se acendeu.
— Uma nave -ambulância Tralthana, Doutor — disse o tenente — Com o pessoal completo e com capacidade para seis FROB e um Chalder, assim como para vinte criaturas da sua própria espécie. Dizem que è só carregar.
Os cidadãos AUGL de Chaderescol tinham doze metros de comprimento e eram uma espécie de peixes couraçados, que não podiam viver noutro meio ambiente durante mais que alguns segundos. Por outro lado, os FROB eram atarracados, imensamente maciços e tinham uma pele espessa, habituados como estavam à tremenda pressão e à fortíssima gravidade de Hudlar. Por assim dizer não respiravam e portanto a água na secção da AUGL não os perturbaria...
Conway disse apressadamente: — Escotilha vinte e oito para o Chalder. Enquanto o estiverem a carregar, enviem os FROB através da secção ELNT para o tanque principal AUGL e façam-nos sair pela mesma Escotilha. Depois ligam-lhes para passarem à Escotilha Cinco, onde os outros pacientes estarão à espera...
— Mais duas naves ilensanas, Doutor — disse subitamente o tenente. - Pequenas, com urna capacidade de vinte doentes cada uma.
— A Escotilha Dezassete ainda esta ocupada — disse Conway. — Que fiquem em órbita.
A seguir chegou uma pequena nave de passageiros do mundo humano-terrestre de Gregory, e ao mesmo tempo apareceram as bandejas do almoço. Havia apenas alguns pacientes humanoterrestres no Geral do Sector mas com um pouco de esforço a nave gregoriana poderia transportar qualquer respirador de oxigénio, de sangue quente, com uma massa inferior à de um Tralthano. Conway tratou das duas coisas ao mesmo tempo — o almoço
e a nave — sem se preocupar se tinha de falar ou mesmo de gritar com a boca cheia...
Então, subitamente, o rosto suado do coronel Skempton apareceu no visor interno. O coronel disse numa voz seca: - Doutor, temos duas naves illensanas em órbita. Não tem trabalho para elas?
— Sim! — disse Conway, irritado pelo tom do outro. — Mas neste momento há urna nave a carregar respiradores de cloro na Dezassete e não existe outra escotilha adequada nesse piso. Terão de esperar a sua vez...
— Não terão — interrompeu-o Skempton, num tom duro. — Enquanto andam por a em órbita estão em perigo, caso o inimigo ataque subitamente. Ou começam a carregar imediatamente, ou voltam para trás e aparecem depois. Provavelmente muito depois. Desculpe.
Conway abriu a boca e fechou-a imediatamente com um estalo em vez de dizer o que queria dizer. Dominando os nervos, tentou pensar.
Sabia que a preparação da Armada de defesa se iniciara havia dias e que os oficiais de astrogação responsáveis péla vinda dessas unidades partiriam logo que possível nas suas naves de exploração ou com os pacientes que saiam do Geral do Sector. O plano idealizado pelo Corpo de Monitores exigia que nenhuma informação sobre a localização da Federação estivesse disponível nos cérebros das forças defensoras ou dos não combatentes que ficassem no Hospital. A Armada de defesa tornara posições e as naves tinham ficado ligadas ao Hospital, de modo que a ideia da presença dessas outras duas naves a girarem, livres — naves que continham astrogadores qualificados — devia ter posto o comandante da Armada dos Monitores a roer as unhas.
— Muito bem, Coronel — disse Conway. — As naves atracarão à Quinze e à Vinte e Um. Isso significa que os respiradores de cloro terão de passar através da maternidade DKLF e de uma parte da secção AUGL. Apesar dessas complicações, teremos os pacientes a bordo dentro de três horas...
Complicações! Pensou lugubremente Conway enquanto dava as ordens necessárias. Felizmente tanto a enfermaria DBLF como essa parte do piso AUGL estariam vazias quando os Illensanos, respiradores de cloro, as atravessassem com as suas tendas de pressão. Mas a nave de Gregory estava numa escotilha próxima a receber ELNT que eram acompanhados por enfermeiros DBLF com fatos protectores. E também ali estavam algumas das criaturas de baixa gravidade, semelhantes a aves, como os MSVK, que tinham de passar através da enfermaria de cloro que ele tinha esperanças de deixar vazia...
Não havia bastantes visores na Recepção para manter o contacto com tudo o que estava a acontecer. Teve o horrível pressentimento de que haveria coisas terríveis se ele não tivesse cuidado. Mas não poderia ser cuidadoso se não soubesse qual o caminho a seguir. A única coisa a fazer era ir lá abaixo e dirigir o tráfego pessoalmente.
Telefonou a O’Mara, explicou apressadamente a situação e pediu um substituto.
Dr. Mannen chegou, gemeu piedosamente perante a bateria de visores e luzes intermitentes e depois, suavemente, tomou a seu cargo a direcção da evacuação. Conway não poderia ter desejado melhor substituto. Estava a preparar-se para se retirar quando Mannen aproximou o rosto de um dos visores e disse: — Hummf!
Conway deteve-se e perguntou: — Que é?
— Nada, nada — disse Mannen, sem se voltar. — Acontece apenas que começo a perceber porque é que quer ir lá abaixo.
— Mas eu disse-lhe porquê! — Explodiu Conway. Saiu furioso, a dizer a si próprio que Mannen estava a dizer coisas sem sentido num momento em que as conversas desnecessárias eram um crime. Depois perguntou a si próprio se o velho Dr. Mannen estava fatigado ou estava sob a acção dei qualquer gravação que o confundisse, e sentiu-se subitamente envergonhado. Mas não tardou a ter muito que fazer para sentir qualquer vergonha.
Três horas depois, o estado de confusão à sua volta parecia ter dobrado, ainda que na verdade acontecesse que se estava a trabalhar a dobrar, ao dobro da velocidade. Mas o trabalho estava a ser feito, e multo mais rapidamente do que Conway alguma vez pensara ser possível.
No corredor, atrás dele, avançava urna lenta procissão de Mensanos, alguns com roupas protectoras e os mais gravemente doentes em tendas de pressão que cobriam os seus leitos. Eram cuidados por enfermeiros humano-terrestres e Kelgianos. A transferência decorria agora ordeiramente, mas meia hora antes Conway duvidara de que isso fosse possível...
Quando as grandes tendas de pressão passavam através da secção AUGL, cheia de água, tinham inchado como grandes bolhas dei cloro, pegando-se ao tecto. Fora impossível arrastá-las porque as excrescências do tecto e as canalizações teriam rasgado os invólucros, e não teria sido prático levar cinco ou seis enfermeiros a servirem de contrapeso, para as fazerem descer. E quando ele trouxera um transportador de macas do piso superior — os veículos podiam teoricamente mover-se debaixo de água — com a ideia de segurar os doentes que flutuavam e, simultaneamente, deslocá-los mais depressa, a caixa de uma bateria rebentara e o transportador tornara-se no centro de uma massa de água sibilante e borbulhante que rapidamente se tornara negra.
Conway não ficou - surpreendido ao ouvir que o doente que estava a ser transportado nesse veículo tivera uma recaída.
Finalmente resolvera o problema com um magnífico relâmpago de inspiração, que devia ter surgido dois segundos depois de o problema ter começado, mas não surgira. Regulou rapidamente as grelhas de gravidade artificial, passando-as a atracção zero, e então as tendas perderam a sua flutuabilidade. Isso obrigou os enfermeiros a nadarem em vez de caminharem com os pacientes, mas era uma coisa sem importância.
Foi durante a transferência desses FVSJ que Conway compreendeu a razão do «hummf» de Mannen: a Murchison era uma das enfermeiras de serviço. Ela não o reconhecera, mas ele sabia que só havia uma pessoa que pudesse encher daquela maneira um fato ligeiro de pressão. No entanto não lhe falou — não era o momento nem o lugar adequado.
O tempo passou apressadamente sem quaisquer outras crises graves. Na Escotilha Cinco, a nave-hospital kelgiana estava pronta a partir, aguardando apenas que uma parte do pessoal superior do Hospital entrasse a bordo, e que uma nave dos Monitores a escoltasse até uma distância segura para o «salto». Recordando-se de que algumas das criaturas que; iam partir eram suas amigas, Conway decidiu aproveitar aquele momento de acalmia para se despedir delas. Telefonou a Mannen para lhe dizer para onde ia e dirigiu-se para a Escotilha Cinco.
Quando lá chegou, a nave kelgiana já partira. E o corredor estava quase obstruído por uma esfera de gelo que aumentava constantemente de diâmetro.
A nave de Gregory continha, um compartimento especial, refrigerado, para as criaturas SNLU, que eram frágeis, cristalinas, baseadas na metana, e que teriam ficado cremadas se a temperatura subisse a menos cento e oitenta. O Geral do Sector estava a tratar sete dessas criaturas e elas tinham sido encerradas numa esfera refrigerada, de três metros de diâmetro, para a transferência. Por causa das dificuldades previstas no transporte tinham sido os últimos pacientes enviados para a nave gregoriana.
O’Mara isso era necessário que atravessassem catorze pisos, desde a enfermaria !de metana até ao ponto de embarque na Escotilha Dezasseis. Em todos os outros pisos os corredores eram largos e cheios de ar ou cloro, de modo que a esfera apenas adquirira uma camada de geada dia atmosfera circundante. Mas na AUGL está. a cobrir-se de gelo. Rapidamente.
Conway sabia que aquilo tinha de acontecer, mas não o considerara importante porque a esfera não estaria no corredor cheio de água o tempo suficiente para causar um problema. Mas um dos cabos (de reboque quebrara-se e embaraçara-se em qualquer conduta, de modo que poucos segundos depois tinham ficado soldados com gelo. Agora a esfera estava envolvida numa camada de gelo de mais de um metro de espessura e mal havia espaço para passar por cima ou por baixo dela.
— Tragam maçaricos de corte, depressa! — berrou Conway a Mannen.
Três homens do Corpo chegaram um momento antes de o corredor ficar completamente bloqueado. Com as chamas dos maçaricos na dispersão máxima lançaram-se sobre a massa de gelo. No espaço confinado do corredor a água começou a aumentar de temperatura, e os fatos deles, tal como o de Conway, não tinham unidades» refrigeradoras. Conway começou a compreender o que sentiam as lagostas, quando cozidas vivas. E a grande massa de gelo eira um perigo para a vida e para a integridade física — era possível ser esmagado entre ela e a parede do corredor, e naquela água escaldante e quase opaca era também demasiado fácil colocar um braço ou uma perna entre o gelo e um maçarico» de corte.
Mas por fim o trabalho foi feito. O contentor com os seus ocupantes SNLU foi manobrado através da escotilha inter-pisos até outra secção cheia de ar. Conway esfregou a mão no exterior do capacete, numa tentativa inconsciente para limpar o suor da testa e perguntou a si próprio que mais dificuldades iriam surgir. A resposta» segundo o Dr. Mannen, na Recepção, foi a de que tudo estava a decorrer em ordem.
Os pacientes dos três pisos DBLF tinham partido na nave kelgiana, disse Mannen, entusiasmado. As únicas lagartas que permaneciam no Hospital pertenciam ao pessoal de enfermagem. Entretanto os três cargueiros illensanos tinham evacuado os respiradores de cloro das enfermarias PVSJ. Dos respiradores ide água, os AUGL e os ELNT já tinham saído e os SNLU no seu pequeno icebergue estavam exactamente a embarcar. Catorze pisos tinham sido evacuados e ninguém diria que houvesse sido um mau dia de trabalho.
Conway estava a nadar, fatigado, para a escotilha inter-pisos, a pensar num bom bife e num bom sono, quando aquilo aconteceu.
Qualquer coisa que ele não viu, bateu-lhe de uma maneira selvagem. Atingiu-o simultaneamente no abdómen, no peito e nas pernas — os lugares onde o fato era mais apertado. Dentro dele surgiu uma agonia que era como uma explosão vermelha, contida apenas pelo seu corpo. Dobrou-se sobre si próprio e começou a perder os sentidos. Quis morrer e quis desesperadamente vomitar, mas qualquer pequena porção do seu corpo que não fora afectada pela dor e pela náusea, insistiu em que ele não devia vomitar, que vomitar dentro do capacete era uma maneira horrível de morrer...
A pouco e pouco, a dor diminuiu e tornou-se suportável. Conway continuava a sentir-se Como se um Tralthano lhe houvesse dado um coice com as Seis patas, nas virilhas, mas outras coisas começavam a tornar-se notadas. Ruídos fortes, borbulhantes, e a visão extremamente estranha de um Kelgiano a flutuar na água sem as suas vestes protectoras. Um segundo olhar mostrou-lhe que a criatura tinha um fato, mas ele fora rasgado e estava cheio de água.
Mais em baixa, no tanque AUGL dais outros Kelgianas flutuavam, os seus longos, macios e peludos corpos abertos da cabeça à cauda, com os pormenores mais horríveis escondidos piedosamente por uma névoa vermelha que ia aumentando. E sobre a parede oposta do tanque havia uma área de turbulência em torno de um buraco escuro e irregular, através do qual a água parecia estar a sair...
Conway praguejou, Pensou que sabia o que acontecera. O que quer que tivesse feito aquele buraco expendera também, por causa da não-compressibilidade da água, a sua força nos infortunados ocupantes do tanque. Mas porque ele e o outro Kelgiano estavam, em cima, no corredor, tinham escapada aos piores efeitos.
Ou talvez só um tivesse escacado...
Demorou três minutos a arrastar o enfermeiro Kelgiano até à escotilha, a dez metros de distância. Uma vez dentro, pôs as bambas a trabalhar para esgotar a água, abrindo simultaneamente uma válvula de ar. Mas quando a água se esgotou Conway verificou que na criatura não havia sinais de pulso ou respiração. Conway deitou-a no chão, abriu o terceiro e quarto par de pernas de modo a poder colocar o ombro no espaço entre elas, e depois, com os pés bem apoiados na parede aposta, começou a empurrar ritmicamente. Ao fim de alguns segundos começou a escorrer um fio de água da boca do DBLF.
Parou subitamente quando ouviu alguém a tentar abrir a escotilha do lado do corredor AUGL. Conway tentou a rádio mas os seus aparelhos não funcionavam. Tirou o capacete, encostou a boca à junta estanque e gritou: — Está aqui um respirador de ar sem junta estanque; não abra a porta, senão morreremos afogados! Venha pelo outro lado!
Poucos minutos depois, abriu-se a escotilha do lado do ar e a Murchison apareceu a olhar do alto para baixo. Ela disse: — D... Dr. Conway...— num tom peculiar.
Conway levantou-se subitamente, batendo com o ombro no ventre do Kelgiano, perto dos pulmões dele, e disse: — Que há?
— Eu... Tu... A explosão...— Depois, o tom dela tornou-se mais firme. — Houve uma explosão. Doutor. Um dos enfermeiros DBLF está ferido, tem lacerações severas devido a um pedaço de chapa do pavimento que foi bater contra ele. Coagulámos o sangue imediatamente mas não creio que aguente. E o corredor onde ele se encontra está a ser inundado; a explosão deve ter aberto caminho até à secção AUGL. A pressão do ar está também a baixar um pouco e devemos ter uma abertura para o espaço em qualquer lado. Além disso há um cheiro forte a cloro...
Conway gemeu e deixou de se esforçar com o Kelgiano, mas antes que ele pudesse falar, a Murchison acrescentou apressadamente: — Todos os médicos Kelgianos foram evacuadas e os únicos DBLF que restam é este e um par que deve andar por a por qualquer parte, mas pertencem à enfermagem...
Que problema! pensou Conway. Contaminação e ameaça de descompressão. A criatura ferida tinha de ser retirada rapidamente, porque se a pressão baixasse demasiado as portas estanques baixariam e se o paciente estivesse do lado «inconveniente» delas isso seria multo mau. Além do que a ausência de um Kelgiano qualificado Significava que ele teria de absorver uma gravação fisiológica Kelgiana e fazer ele próprio o trabalho, o que implicava uma visita rápida ao gabinete de O’Mara. Mas primeiro teria de ver o paciente.
— Trata deste, por favor — disse ele, apontando para o corpo encharcado, no chão. — Creio que está a começar a respirar por si próprio, mas dá-lhe mais uns dez minutos...— Apesar de tudo, o facto de a ver ali, naquelas roupas desmoralizantemente justas ao corpo, fez com que se reduzisse por um instante a preocupação com os pacientes, as evacuações e as gravações de fisiologia. Mas a humidade que cobria o fato dela recordou-lhe que a Murchison estivera no tanque AUGL também, poucos minutos antes da explosão, e ele teve uma visão terrível daquele corpo adorável estoirado como os dos dois pobres DBLF...
— Entre o terceiro e o quarto par de pernas, e não entre o quinto e o sexto! — Disse ele, numa voz rouca, quando se voltou para sair.
Mas não fora isso o que ele quisera dizer.
Por qualquer razão, O cérebro de Conway preocupara-se mais com os efeitos da explosão do que com a sua causa. Ou talvez ele tivesse tentado propositadamente não pensar nisso, para se convencer a si próprio de que houvera qualquer acidente e que o Hospital não estava a ser atacado. Mas o sistema de Comunicações Gerais lembrava-lhe a verdade em todos os cruzamentos e no caminho para o gabinete de O’Mara toda a gente se movia duas vezes mais depressa do que o habitual e, como sempre acontecia, numa direcção oposta à de Conway. Teve de se obrigar a entrar devagar no gabinete do Psicólogo-Chefe, dizer o que pretendia e perguntar o que acontecera.
— Sete naves — respondeu O’Mara, fazendo sinal a Conway para se deitar, enquanto baixava o capacete do Educador. — Parecem ser pequenas, sem quaisquer armas ou defesas invulgares. Houve uma boa escaramuça. Três fugiram e urna que não o fez lançou contra nós um míssil antes de rebentarmos com ela. Um míssil pequeno, com uma ogiva química.
O’Mara prosseguiu, pensativo. — Isso é muito estranho, porque se tivesse sida uma ogiva nuclear não haveria agora Hospital Não estávamos à espera deles tão depressa e fomos apanhados um pouco de surpresa. Você tem mesmo de tratar desse paciente?
— O quê ? Oh, sim — disse Conway. — Sabe como são os DBLF. Qualquer ferida incisa é muito grave neles. Não há tempo para chamar outro módico.
O’Mara resmungou. Verificou se o capacete estava bem colocado e depois disse: — A maneira maldosa como actuaram é uma indicação clara das intenções deles. No entanto usaram uma carga química, quando podiam ter-nos destruído por completo. É estranho. No entanto, isso fez com que os recalcitrantes se decidissem. Agora cada um já sabe se de facto quer ficar ou não. E os que não querem estão ansiosos por partir, o que é uma boa coisa na opinião de Dermod...
Dermod era o comandante da Armada.
—... E agora esvazie a cabeça — disse O’Mara. — Ou esvazie-a pouco mais do que é habitual.
Conway pensou que o leito parecia mais confortável do que era habitual. Dir-se-ia que se afundava nele... mas uma pancada no ombro fê-lo saltar. O’Mara disse causticamente: — Não durma! Quando acabar com o seu paciente vá deitar-se. Mannen poderá tratar das coisas na Recepção e o Hospital não se desintegrará... a menos que seja atingido por uma bomba atómica.
Conway saiu do gabinete com os primeiros indícios de uma dupla consciência. Mas os DBLF não eram tão alienígenas como algumas das criaturas com as quais Conway tivera de partilhar o seu espírito. Ainda que fisicamente fossem semelhantes a lagartas prateadas e gigantescas, tinham muito em comum com os terrestres. As suas reacções emocionais a estímulos como a música, as belas paisagens e os DBLF do sexo oposto eram quase idênticas. Aquela até gostava de carne, de modo que
Conway não teria necessidade de passar fome comendo saladas, se tivesse de manter a gravação durante mais tempo. Mesmo assim, não gostou que, quando chegou à pequena sala de operações para onde fora levado o DBLF, uma parte do seu cérebro olhasse a Murchison como um daqueles magrizelas DBDG, da Terra...
Ainda que a Murchison tivesse tudo pronto, Conway não começou imediatamente. Sabia que não podia trabalhar, fatigado como estava, sem correr o perigo de matar o ferido.
— Arranja-me uma injecção estimulante, sim? — Disse ele, reprimindo um bocejo.
Durante um instante, ela pareceu estar disposta a discutir a ordem. Os estimulantes não eram vistos com bons olhos no Hospital — o seu uso só era autorizado em casos muito graves e por muito boas razões. Mas ela injectou-o sem dizer nada, usando uma agulha romba e uma força desnecessária. Ainda que metade do seu espírito não fosse seu, Conway compreendeu que ela estava furiosa.
Depois, subitamente, a injecção fez efeito. Conway sentiu-se tão repousado como se tivesse dormido dez horas e tomado um bom duche. Perguntou subitamente: — Como está o outro?
— A respiração artificial fê-lo voltar a si — respondeu ela, e acrescentou com um entusiasmo maior: — Mas ele encontra-se em estado de choque. Mandei-o para a secção Traithana; eles ainda têm lá algum pessoal superior.
— Bom — disse Conway. Queria dizer mais coisas mas sabia que não havia tempo. — Vamos começar, sim?
Além da pequena carapaça, de paredes finas, onde o cérebro estava alojado, os DBLF não possuam ossos. Os seus corpos eram formados por um cilindro exterior de tecido muscular que, para além de ser o seu meio de locomoção primário, servia para proteger os órgãos vitais no seu interior. Além disso tinham um sistema circulatório complexo e extremamente vulnerável: a rede sanguínea que alimentava as tremendas cintas musculares situava-se muito junto à pele. A espessa camada de pêlos dava-lhe uma protecção razoável, mas não contra pedaços de metal, de contornos irregulares, voando pelo ar. Um ferimento que muitas outras espécies considerariam superficial podia levar um DBLF a sangrar até à morte em poucos minutos.
Conway trabalhou lenta e cuidadosamente. Sentiu-se preocupado não porque a vida do paciente estivesse em perigo, mas porque sabia que aquele belo pêlo prateado não voltaria a crescer devidamente sobre as áreas afectadas, e se crescesse seria amarelado e repelente para qualquer macho Kelgiano. A enfermeira ferida era uma jovem notavelmente bela e uma desfiguração dessas seria uma verdadeira tragédia. Fez votos para que ela não fosse tão orgulhosa que não» quisesse usar pêlo artificial. Sem dúvida que ele não tinha o mesmo lustro dos pêlos vivos e seria imediatamente reconhecido, mas de modo algum seria tão visualmente ofensivo...
Conway pensou que uma hora antes a Kelgiana seria para ele apenas uma lagarta como outra qualquer. Agora até se preocupava com as perspectivas de casamento da paciente. As gravações fisiológicas levavam as pessoas a ter sentimentos para com os extraterrestres...
Quando acabou, telefonou à Recepção e disse que a paciente tinha de ser evacuada tão depressa quanto possível. Mannen respondeu-lhe que havia meia dúzia de pacientes em estado crítico, todos os pacientes das classificações A a G ou tinham partido ou estavam a partir, juntamente com o pessoal das mesmas classificações que recebera ordem de partir por razões de segurança.
Alguns deles tinham mostrado extrema relutância em partir. Um em particular, um diagnosticador Tralthano, que tinha a infelicidade de possuir um iate espacial — uma coisa que em condições normais não seria considerada um infortúnio — tivera de ser formalmente acusado de tentativa de traição, perturbação da ordem e incitamento a motim, e fora preso, tendo essa sido a única maneira de o fazer embarcar.
A Kelgiana ferida teve de ser metida numa tenda de pressão para a fase inicial da sua passagem através da enfermaria AUGL que agora estava aberta para o espaço. A visão do grande tanque, vazio, com as suas paredes secas pelo vácuo e a vegetação submarina tornada em pedaços de pergaminho descolorido, suscitou uma depressão horrível em Conway. A depressão manteve-se enquanto atravessavam os três pisos vazios, da ala do cloro, por baixo daquele, até chegarem a outra secção cheia de ar.
Ali tiveram que esperar que passasse um cortejo de TLTU. Foi uma coisa boa porque, ainda que Conway se sentisse artificialmente cheio de vigor, a Murchison começava a estar abatida. Assim que o seu paciente estivesse a bordo, ela teria de ir para a cama.
Sete TLTU passaram lentamente, as suas esferas protectoras presas a portadores de macas conduzidos por serventes de rosto tenso. Ao contrário das formas de vida que tinham a metana por base, aquelas esferas não se recobriam de geada. Em vez disso emitiam um silvo muito agudo enquanto os seus geradores trabalhavam para manter a temperatura interna confortável para os seus ocupantes: duzentos e oitenta graus centígrados. Com cada um deles passava uma onda de calor que Conway podia sentir, a seis metros de distância.
Se outro míssil explodisse ali, naquele momento, e um daqueles globos se abrisse... Conway não pensava que houvesse uma maneira pior de morrer que ter a carne fervida dos ossos por um sopro de vapor sobreaquecido.
Quando entregaram! o paciente ao médico da nave, na Escotilha, Conway estava a sentir dificuldade em focar os olhos e as pernas pareciam ser de (borracha. Ou se deitava ou tomava outra injecção. Estava a decidir-se pela primeira forma de tratamento quando se aproximou dele um oficial dos Monitores, usando um fato pesado de protecção que ainda irradiava o frio do espaço.
— Os feridos estão aqui, senhor — disse apressadamente o oficial. — Trouxemo-los numa nave de abastecimentos porque a Recepção está ocupada com a evacuação. Atracámos à secção DBLF mas está tudo vazio é o senhor foi o primeiro médico que vi. Pode tomar conta deles?
Conway quase perguntou que vítimas eram, mas conteve-se. Recordou-se subitamente de que houvera um ataque. Se o oficial soubesse que ele tivera demasiado que fazer para se lembrar do ataque e das vítimas...
— Onde é que os meteu? — Perguntou Conway.
— Ainda estão na nave. Pensámos que seria melhor que alguém os visse antes de os transportarmos. Alguns estão... Bem, quer fazer o favor de me seguir?
Eram dezoito, os destroços de homens extraídos dos destroços de uma nave, cujos fatos ainda estavam demasiado frios para serem tocados. Só os capacetes tinham sido retirados e isso fora para saber se ainda viviam. Conway contou três descompressões; o resto eram fracturas com vários graus de complicação, um dos quais era sem dúvida uma fractura do crânio por depressão. Não havia casos de radiação. Até então tinha sido uma guerra «limpa», se alguma guerra podia ser limpa...
Conway sentiu-se furioso mas dominou-se. Endireitou-se e disse à Murchison:
— Temos de usar mais estimulante. Vai ser urna longa sessão. Mas primeiro preciso de apagar esta gravação DBLF e tentar arranjar alguma ajuda. Enquanto trato disso, vê se tiras esses homens dos seus fatos e se consegues que os levem para a sala das operações Número Cinco dos DBLF, depois do que poderás cuidar de dormir.
«E obrigado» — disse ele, acanhadamente, sem poder dizer mais porque o oficial continuava junto dele. E o oficial não estivera a trabalhar ao lado da Murchison durante as últimas três horas, com um estimulante a despertar-lhe todos os sentidos...
- Se isso lhe for útil, tomarei também uma injecção estimulante — disse subitamente a Murchison.
Agradecido, Conway disse: - Eis uma pequena muito curiosa, mas tinha esperanças de que dissesses isso...
No oitavo dia, todos os pacientes extraterrestres tinham sido evacuados e com eles tinham partido quase quatro quintos do pessoal do Hospital. Nos pisos onde havia extremos de temperatura, a energia fora cortada, levando os sólidos ultra-frios a derreterem-se e a gaseificarem-se e as atmosferas densas ou sobreaquecidas a condensarem-se nos pavimentos, numa massa lamacenta. À medida que os dias passavam, era cada vez maior o número de homens da Divisão de Engenharia do Corpo que transformavam as enfermarias em quartéis e rasgavam grandes secções do casco exterior para montarem bases de projectores e plataformas de lançamento. A ideia de Dermod era a de que o Geral do Sector se defendesse a si próprio, em vez de confiar em absoluto na Armada, que mostrara já não ser capaz de deter tudo. No vigésimo quinto dia o Geral do Sector deixara de ser um hospital inofensivo para se tornar numa base militar fortemente armada.
Por causa das suas tremendas dimensões e das vastas reservas de energia - várias vezes maiores que as das forças móveis que a defendiam — as armas eram multas e verdadeiramente formidáveis. O que se viu ser conveniente, quando no vigésimo nono dia elas foram postas à prova até ao último grau pelo primeiro grande ataque do inimigo.
Durou três dias.
Conway sabia que havia boas razões para que o Corpo tivesse fortificado o Hospital daquela maneira, mas não gostaria disso. Mesmo depois desse fantástico ataque de três dias, em que o Hospital fora atingido quatro vezes — de novo com explosivos químicos, felizmente — ele continuava a não gostar disso. Cada vez que pensava que a tremenda estrutura que fora dedicada aos mais altos ideais da humanidade e da medicina fora tornada numa máquina de destruição, sentia-se furioso e triste e não inteiramente chocado por todos os seus trágicos efeitos. Por vezes tinha oportunidade de dizer o que pensava...
Foi o que aconteceu cinco semanas depois do começo da evacuação, quando almoçava com Mannen e Prilicla. O refeitório principal já não estava repleto, às horas das refeições, e os homens do Corpo, de uniforme verde eram muito mais numerosos que os extraterrestres sentados às mesas, mas havia ainda cerca de duzentos não-terrenos ali e era com isso que Conway não concordava.
Furioso, disse: — Afirmo que isto é um desperdício — um desperdício de vidas, de talentos médicos, de tudo! Todas as vítimas são, e continuarão a ser, dos Monitores. Todos humano-terrestres. Portanto não há aqui casos para os extraterrestres trabalharem. Ê preciso mandá-los para casa!
«Incluindo a presente companhia!» — concluiu ele, fitando Prilicla, antes de se voltar para olhar Mannen.
O Dr. Mannen replicou: — E que dirão eles de nós?
— Está a desviar a questão — disse Conway. — Aquilo com que eu não concordo é com os heroísmos insensatos.
Mannen ergueu as sobrancelhas e disse secamente: — Mas os heroísmos são quase sempre insensatos e altamente contagiosos. Neste caso direi que o Corpo começou por querer defender esta coisa, e por causa disso sentimo-nos na obrigação de ficar para tratarmos dos feridos. Pelo menos alguns de nós sentiram! isso, ou pensamos que alguns sentiram.
«O procedimento correcto, lógico, teria sido o de nos irmos embora enquanto isso era fácil e nem uma palavra seria dita em relação aos que partissem» — Continuou Mannen, sem fitar Conway, — Mas essa gente sã e lógica tem colegas ou... amigos que, segundo eles suspeitam, poderão estar na verdadeira categoria de herói, e não partem porque imaginam que os amigos poderão pensar que eles fugiram. Portanto, é mais provável que se deixem morrer que deixarem que os seus amigos pensem que são cobardes, e por isso vão ficando.
Conway sentiu o rosto a arder, e disse apenas: — Compreendo. — Era muito provável que Mannen soubesse que a única razão pela qual ele ficara no Hospital era a Murchison. O’Mara e o próprio Mannen poderiam ficar desapontados se ele partisse. E do outro lado da mesa, Prilicla, o sensitivo das emoções, devia estar a lê-lo como um livro. Conway pensou que nunca se sentira tão embaraçado em toda a sua vida.
Subitamente, Priliclla, enfiando o garfo no esparguete disse: — Você tem razão., se não tivesse sido o exemplo heróico dos DBDG eu teria partido na segunda nave.
— A segunda?
— Ainda tenho algum valor — disse Prilicla, agitando o esparguete, para sublinhar o que dissera.
Conway pensou que a coisa honesta seria confessar a Sua cobardia, mas sabia que isso só causaria embaraços a todos. De qualquer modo, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, Mannen mudou subitamente de assunto.
Queria saber onde Conway e a Murchison tinham estado no quarto, quinto e sexto dias da evacuação. Disse que era altamente sugestivo que ambos tivessem, estado fora da circulação exactamente ao mesmo tempo e começou a descrever algumas das sugestões que lhe tinham ocorrido — e que eram coloridas, surpreendentes e quase que fisicamente impossíveis. Não tardou que Prilicla se lhe juntasse, ainda que as atitudes sexuais de dois DBDG humano-terrestres pudessem quanto muito ter um interesse académico para um ASNO assexuado, e Conway teve de se defender afanosamente de ambos os lados.
Tanto Prilicla corno Mannen sabiam que a Murchison e ele, juntamente com quarenta outros membros do pessoal, tinham trabalhado com o máximo de eficiência operatória durante quase sessenta horas, graças aos estimulantes. Depois, e como os estimulantes não dão nada por um lado sem tirar por outro, Conway e os outros tinham sido obrigados a manter-se na posição horizontal durante três dias até sarem de um estado avançado de exaustão. Alguns deles tinham caído enquanto trabalhavam — com os músculos involuntários do coração e dos pulmões tão fracos que ameaçavam parar, como o resto. Tinham sido levados para enfermarias especiais onde autómatos lhes tinham massajado os corações, dando-lhes respiração artificial e alimentação intravenosa.
Mesmo assim, parecia estranho que Conway e a Murchison não tivessem sido vistos, juntos ou separados, durante três dias inteiros...
A sereia de alarme salivou Conway exactamente quando os advogados de acusação estavam em plena ofensiva. Conway correu para a porta, com Mannen a segui-lo com dificuldade e Prilicla, com as suas não muito atrofiadas asas ajudadas pelos dispositivos antigravitacionais, a zumbir em frente.
Quando Conway chegou à sua enfermaria, a sereia calou-se.
Passou-se uma hora sem que nada de especial acontecesse; o Hospital não foi atingido e não houve indício algum de que o seu armamento pesado tivesse sido utilizado. Os enfermeiros de serviço foram substituídos pelo turno seguinte — três Tralthanos e três humano-terrestres, chefiados pela Murchison. Conway iniciara urna conversa muito interessante quando a sereia voltou a tocar, num tom mais baixo, que se diria de desprezo.
Conway estava a ajudar a Murchison a despir o fato de pressão — que todos tinham envergado durante o alarme — quando o sistema de Comunicações Gerais começou a funcionar.
— Atenção por favor - disse o altifalante. — Dr. Conway compareça na Escotilha Cinco, imediatamente!
Provavelmente uma vítima, pensou Conway. Uma que não sabem como transportar... Mas o altifalante transmitiu logo de seguida outra mensagem:
— Dr. Mannen e Major O’Mara, compareçam na Escotilha Cinco, imediatamente...
Que haveria ma Escotilha Cinco que exigiria os serviços de dois médicos-chefes e do psicólogo-chefe? Começou a correr.
O’Mara e Mannen estavam mais perto da Escotilha Cinco e chegaram alguns segundos antes dele. Havia uma outra pessoa na antecâmara da escotilha, com um fato pesado de pressão, o capacete voltado para trás. Era um homem grisalho, com um rosto magro, enrugado, e uma boca que parecia um traço cinzento, fatigado, mas a dureza geral era compensada pelos olhos castanhos mais suaves que Conway vira até então num homem. As insígnias que usava eram as mais ornamentadas que Conway tivera oportunidade de ver, uma vez que nunca falara com um oficial de patente superior a coronel.
Soube instintivamente que se tratava de Dermod, o comandante da Armada.
O’Mara fez uma continência que foi retribuída com tanta correcção como fora prestada, e Mannen e Conway receberam apertos de mão com desculpas pelo uso das luvas. Depois, Dermod foi direito ao assunto.
— Não acredito em segredos quando eles não servem a qualquer fim útil — disse ele, num tom seco. — Vocês resolveram ficar aqui para tratar dos nossos feridos, portanto têm o direito de saber o que está a acontecer, quer as notícias sejam boas, quer sejam más. Uma vez que são os mais qualificados membros do pessoal médico que ainda permanecem no Hospital, e uma vez que têm uma ideia do comportamento provável dos vossos subordinados em Várias contingências, deixo ao vosso cuidado a decisão de que esta informação deva ou não ser tornada pública.
Estivera a fitar O’Mara. Os seus olhos moveram-se rapidamente para Mannen e depois para Conway e por fim novamente para O’Mara. Prosseguiu: — Houve um ataque, completamente desconcertante pelo facto de ter abortado por inteiro. Não perdemos um único homem e a força inimiga foi inteiramente aniquilada. Pareciam nada saber sobre a disposição de forças... ou qualquer outra coisa. Nós esperávamos um ataque normal, maldoso, lançado sobre o objectivo sem olhar ao custo, corno os que anteriormente nos levaram a utilizar todos os meios de defesa de que dispúnhamos. Isto foi um massacre...
Conway notou que a voz de Dermod e o olhar não reflectiam qualquer alegria pela vitória.
—... Consequentemente pudemos investigar os destroços com uma rapidez que nos permitiu pensar na possibilidade de encontrarmos sobreviventes. Não os encontrámos, mas...
Calou-se quando dois Monitores entraram pela porta interior transportando uma maca coberta. Dermod estava a fitar Conway quando prosseguiu.
Disse: — Você esteve em Etla, Doutor, e compreenderá o que isto significa. Ao mesmo tempo poderá pensar no facto de estarmos a ser atacados por um inimigo que recusa comunicar ou negociar, que luta como se fosse impulsionada por um ódio fanático e que, no entanto, recorre a uma guerra ilimitada, contra nós. Mas será melhor que veja isto primeiro.
Quando a coberta foi retirada da maca, ninguém disse nada por longo tempo. Aquilo eram os restos desfeitos de uma criatura que vivera, sentira e pensara e que agora se encontrava num estado tal que era impossível classificá-la com qualquer grau de precisão. Mas ficara o bastante para mostrar que aquilo não era e nunca fora um ser humano.
Conway pensou, subitamente adoentado, que a guerra estava a alastrar.
Desde que a Vespasiam saiu de Etla que estamos a tentar infiltrar o Império com os nossos agentes — disse Dermod, calmamente. — Conseguimos implantar oito grupos, incluindo um no próprio Mundo Central. As nossas informações sobrei a opinião pública e a máquina de propaganda usada para a manipular são razoavelmente correctas.
«Sabemos que o ódio contra nós é grande, por Causa da questão de Etla, ou antes, por causa do que supõem termos feito em Etla, mas falaremos disso depois. O que acaba de acontecer torna as coisas ainda piores para nós...»
Segundo o Governo Imperial, segundo Dermod explicou, Etla fora Invadida pelo Corpo de Monitores. Os seus nativos, sob o disfarce da oferta de assistência médica, tinham sido usados como cobaias para o ensaio de Vários tipos de armas bacteriológicas. Não era uma prova disso o facto de os Etlanos terem sofrido uma série de epidemias devastadoras que tinham começado poucos dias depois da partida dós monitores? Esse comportamento cínico e desumano não podia deixar de ser punido, e o
Imperador tinha a certeza de que todos os cidadãos o apoiavam na decisão que tO’Mara.
Mas as informações recebidas — sempre segundo as fontes Imperiais — através de um agente dos invasores que fora capturado, tornara evidente que o comportamento deles em Etla não fora um caso isolado de brutalidade insensata. Nesse infeliz planeta os invasores tinham sido precedidos por um extraterrestre? uma criatura estúpida e inofensiva que fora enviada para sondar as defesas do planeta antes de eles pousarem, um simples instrumento em relação ao qual tinham negado qualquer ligação ou conhecimento quando mais tarde haviam entrado em contacto com as autoridades Etlanas. Era evidente agora que eles tinham feito um largo uso de criaturas alienígenas... Usavam-nas como servos, como animais experimentais e provavelmente como alimento...
Havia uma estrutura tremenda mantida pelos invasores, uma combinação de base militar e laboratório em que atrocidades semelhantes às praticadas em Etla eram realizadas como se fossem absolutamente normais. O agente invasor, que através de um estratagema indicara as coordenadas espaciais dessa base, confessara o que acontecia nela. Parecia que os invasores dominavam um grande número de espécies extraterrestres diferentes e que era ali que se estudavam os métodos e as armas pelos quais elas eram dominadas.
O Imperador afirmara que estava muito disposto e considerava até ser seu dever usar das suas forças para esmagar aquela maldita tirania. Sentia também que devia usar apenas forças Imperiais, porque tinha de confessar com vergonha que as relações entre o Império e os extraterrestres nunca tinham sido tão calorosas como deviam ter sido. Mas se qualquer dessas espécies desprezadas no passado quisesse oferecer o seu auxílio ele não o recusaria...
— E isso explica muitos dos aspectos estranhos desses ataques inimigos — prosseguiu Dermod. — Estão a restringir-se a armas vibratórias e químicas e no espaço confinado da nossa esfera de defesa temos de fazer o mesmo porque este lugar deve ser capturado em vez de destruído. O Imperador precisa de descobrir as posições dos planetas da Federação para fazer prosseguir a guerra. O facto de combaterem de tal modo, e até à morte, pode ser explicado pelo receio da captura, porque para eles o Hospital não passa de uma câmara de torturas em pleno espaço.
«E este ataque completamente malogrado deve ter sido organizado por algum dos amigos alienígenas do Império, que provavelmente foram levados a vir para aqui sem qualquer treino adequado e sem informações sobre as nossas defesas. Foram aniquilados e isso fará pender para o lado do Império aqueles que ainda estão hesitantes.»
Quando o comandante da Armada se calou, Conway nada disse: tinha lido os relatórios sobre o Império enviados a Williamson e sabia que Dermod não exagerava a situação. O’Mara tivera informações semelhantes e manteve o mesmo silêncio lúgubre. Mas o Dr. Mannen não estava habituado ao silêncio.
— isso é ridículo! — explodiu ele. — Estão a deformar as coisas! Isto é um hospital, não é uma câmara de tortura. E acusam-nos de coisas que eles fazem!
Dermod ignorou os protestos, mas de uma maneira não ofensiva. Disse num tom sóbrio: — O Império é politicamente instável. Se tivermos tempo suficiente poderemos substituir o seu governa actual com qualquer coisa mais desejável. Os cidadãos Imperiais farão isso evidentemente. Mas precisamos de tempo. E teremos também de evitar que a guerra alastre demasiado e ganhe demasiado ímpeto. Se houver um número excessivo de aliados alienígenas junto do Império, a situação tornar-se-á demasiado complexa e as razoes originais para a luta, ou a verdade ou a falsidade dias acusações deixarão de ter qualquer importância.
«Poderemos ganhar tempo se nos aguentarmos tanto quanto possível, mas não podemos fazer muita coisa para restringir a guerra. Tudo quanto nos resta é a esperança.»
Puxou o capacete para a frente e começou a apertá-lo, ainda que mantivesse o visor aberto para conversar. Foi então que Mannen fez a pergunta que Conway queria fazer havia muito tempo, mas tivera sempre receio de fazer.
— Na verdade teremos alguma possibilidade de aguentar isto?
Dermod hesitou um momento. Depois disse: — Um globo defensivo bem apoiado e abastecido é a posição táctica ideal, Mas se os efectivos inimigos forem bastantes, é urna ratoeira perfeita...
Quando Dermod partiu, o espécime que ele trouxera consigo foi reclamado por Thornnastor, o Tralthano que era o diagnosticador encarregado da Patologia, e que sem dúvida iria sentir-se feliz com ele durante alguns dias. O’Mara voltou para o seu posto e Mannen e Conway voltaram para as suas enfermarias. As reacções do pessoal sobre a possibilidade de os extraterrestres participarem nos ataques. Dividiram-se em partes iguais, entre a preocupação pelo alargamento da guerra e o interesse pelas técnicas necessárias para tratar vítimas pertencentes a espécies absolutamente novas.
Mas passaram-se duas semanas sem, que o esperado ataque surgisse. As naves de guerra do Corpo de Monitores continuaram a chegar, despachando os seus astrogadores em salva-vidas, e tomavam as suas posições. Das vigias do Hospital elas pareciam cobrir o céu, corno se o Geral do Sector fosse o centro de uma vasta e ténue nebulosa formada por naves de combate. Era uma visão espantosa e reconfortante, e Conway procurava visitar uma das vigias pelo menos uma vez por dia.
No regresso de uma dessas visitas, encontrou um grupo de Kelgianos,
Durante um momento não quis crer no que vira. Todos os DBLF Kelgianos tinham sido evacuados e ele próprio vira o último partir, mas estavam ali cerca de vinte dessas lagartas grandes, todas aos pulos, formando uma fila. Ao vê-las mais de perto notou que não usavam a cinta habitual, com emblemas médicos ou de engenharia: o seu pêlo prateado estava pintado com círculos e losangos vermelhos, azuis e negros. Era a insígnia militar kelgiana. Conway correu para O’Mara.
—?... Ia fazer a mesma pergunta, Doutor, mas numa linguagem muito mais respeitosa — disse o Psicólogo-Chefe numa voz rouca, apontando para o visor. — Estou a tentar comunicar com o comandante da Armada portanto deixe-se de gritos e sente-se
O rosto de Dermod surgiu alguns momentos depois.
0 seu tom era cortês mas apressado quando disse: — Isto não é o Império, cavalheiros. Tínhamos a obrigação de informar o governo da Federação, e através dele o povo, do verdadeiro estado da situação tal como a vemos, ainda que a notícia sobre o ataque da força alienígena inimiga ainda não tenha sido tomado público.
«Mas podem crer que os extraterrestres dentro da nossa Federação sentem o mesmo que nós. Houve extraterrestres que ficaram no Geral do Sector, e nos seus mundos natais os seus amigos começam a sentir que devem vir aqui, ajudar-nos a defendê-los,. Ê apenas isso.»
— Mas disse-nos que não queria que a guerra alastrasse! — Protestou Conway.
— Não lhes pedi para virem aqui, Doutor — disse secamente Dermod. — Mas agoira que estão aqui, por certo que poderei fazer bom uso deles. Os últimos relatórios indicam que o ataque seguinte será decisivo...
O ataque começou três semanas depois, ao fim de um período durante o qual nada acontecera além da chegada de Uma força de voluntários Tralthanos e uma nave solitária cuja tripulação e planeta de origem não eram conhecidos de Conway e cuja classificação era QUGL. Soube que o Geral do Sector nunca tivera oportunidade de receber essas criaturas porque eram membros recentes — e muito entusiásticos - da Federação. Conway preparou uma pequena enfermaria para receber as possíveis vítimas dessa espécie, enchendo-a com! a névoa horrivelmente corrosiva que eles usavam como atmosfera e intensificando a luz até ao azul duro, actnico, que os QLCL consideravam repousante.
O ataque começou de uma maneira quase preguiçosa. O principal globo de defesa mal pareceu perturbado pelos três ataques sem importância, lançados em pontos largamente separados da sua superfície. Tudo quanto era possível ver eram três pequenos e confusos torvelinhos — pontos de luz em movimento que eram naves, mísseis, antimísseis e explosões — que pareciam demasiado lentos para serem perigosos. Mas a lentidão era apenas aparente porque as naves manobravam a um mínimo de 5 G com os dispositivos automáticos antigravitacionais a evitarem que as tripulações fossem reduzidas a polpa pelas tremendas acelerações, e os mísseis deslocavam-se a qualquer coisa como 50 G. Os largos campos de repulsão que por vezes desviavam os mísseis eram invisíveis, tal como os pressores e os matraqueadores que quase sempre detinham o que os campos não podiam conter. Mesmo assim» aquilo era apenas uma sondagem inicial das defesas do Hospital, unia série de patrulhas ofensivas o subir do piano...
Conway retirou-se da vigia e dirigiu-se para o seu posto. Mesmo as escaramuças sem importância produziam vítimas e não tinha o direito de estar ali, como um simples espectador.
Durante as doze horas seguintes, as vítimas chegaram pouco a pouco, mas sem interrupção. Então os pequenos ataques de sondagem tornaram-se em: arremetidas brutais e os feridos começaram a aumentar, de uma maneira irregular. Quando o ataquei se iniciou verdadeiramente, tornaram-se numa torrente.
Conway perdeu o sentido do tempo, de quem eram os seus assistentes, e do número de casos que tratou. Houve muitas vezes que necessitou de estimulantes!, mas eles agora eram proibidos em todas as circunstâncias — o pessoal médico já tinha muito que fazer e mais teria se alguns dos seus membros se tornassem doentes. Por vezes tinha a seu lado o enorme corpanzil de um Tralthano, por vezes o de um servente de enfermagem do Corpo, e por vezes a Murchison. As mais das vezes a Murchison. Ou ela não precisava de dormir ou dormitava ao mesmo tempo que ele, e mesmo num momento como aquele sentia-se ainda mais inclinado a notar a presença dela. Em geral era a Murchison que lhe metia comida pela boca abaixo e lhe dizia quando ele na verdade se devia deitar.
No quarto dia o ataque não dava qualquer sinal de diminuir de intensidade. Os matraqueadores montados no casco exterior trabalhavam quase continuamente; e a energia que consumiam obrigava as luzes a variarem de intensidade. Eram armas baseadas nas grelhas antigravitacionais e ora puxavam ora empurravam — vibravam como matracas — e, seguindo a maneira como eram focadas, podiam imprimir acelerações de 80 G, ora num sentido, ora noutro, muitas vezes por minuto. Naturalmente nem sempre estavam perfeitamente focadas, mas mesmo assim eram capazes de arrancar chapas do casco das naves ou, no caso das mais pequenas, agitá-las como uma roca nas mãos de uma criança.
Os matraqueadores tinham muito que fazer. As forças do Império atacavam de uma maneira selvagem, comprimindo o globo exterior de defesa dos Monitores contra o casco exterior do Hospital. A luta próxima era somente travada com os matraqueadores, porque o espaço se tornara demasiado congestionado para que pudessem ser lançados indiscriminadamente mísseis. Isso no que dizia respeito às naves em luta, pois que continuavam a ser lançados mísseis contra o Hospital, provavelmente centenas deles, e alguns conseguiam alcançar o alvo. Pelo menos cinco vezes Conway sentiu o choque indicador, sob as solas dos seus sapatos presos ao pavimento da sala das operações.
Acabara de tratar de um caso particularmente mau, com a assistência da Murchison e de um enfermeiro Tralthano, quando deu conta da presença de um DBLF na sala. Conway familiarizara-se com as cores usadas pelos militares Kelgianos para indicar a sua hierarquia, e viu que aquele usava um símbolo adicional que o identificava como médico.
— Venho substitui-lo, Doutor — disse o DBLF numa voz que, através do Tradutor, pareceu átona e calma. — Tenho experiência do tratamento da vossa espécie. O Major O’Mara o quer imediatamente na Escotilha Doze
Conway apresentou-lhe apressadamente a Murchison e o Tralthano — havia outro ferido a ser transportado para ali e teriam de trabalhar dentro de momentos — e perguntou: — Porquê ?
— O Dr. Thornnastor ficou ferido quando fomos atingidos pelo último míssil — respondeu o Kelgiano, pulverizando os seus manipuladores com o plástico que eles usavam em vez de luvas. — É necessário alguém com experiência de extraterrestres para tomar conta dos pacientes de Thornnastor e dos FGLI que estão a surgir agora na Escotilha Doze. O Major O’Mara que os observe tão depressa quanto possível para saber quais as gravações de que precisa
«E leve um fato de pressão, Doutor — acrescentou o DBLF quando Conway se voltou para sair. — O piso acima deste está a perder ar...»
Houvera pouco que fazer na Patologia desde a evacuação, mas o diagnosticador encarregado desse departamento demonstrara a sua versatilidade, tomando a seu cargo a principal secção de tratamento de feridos. Além dos FGLI da sua própria espécie Thornnastor encarregara-se de DBLF e humano-terrestres, e os pacientes que tinham tido a tratá-los o enorme irascível mas incrivelmente brilhante Tralthano a cuidar deles podiam considerar-se muito afortunados. Conway perguntou a si próprio qual seria a gravidade dos ferimentos uma vez que o médico Kelgiano não lho pudera dizer.
Passou por uma vigia e olhou rapidamente para fora. Pareceu-lhe ver -uma nuvem de pirilampos furiosos. O corrimão a que ele estava agarrado bateu-lhe na mão, indicando que outro míssil atingira o seu alvo não muito longe dali.
Havia na antecâmara dois Tralthanos, um Indiano e um QLCL com fatos de pressão, assim corno os habituais Monitores. O Indiano explicou que uma nave Tralthanos fora quase despedaçada por matraqueadores inimigos mas que muitos dos seus tripulantes tinham sobrevivido. Os raios tractores montados no próprio Geral do Sector tinham trazida a nave danificada até à escotilha e...
O Indiano começou! a berrar para ele.
— Pare com isso! — gritou Conway, irritado.
O Indiano mostrou-se estupefacto e voltou a berrar. Poucos segundos depois os enfermeiros Tralthanos chegaram e começaram a ensurdecê-lo com os seus roncos de sereia, enquanto o QLCL lhe assobiava através do rádio do fato. Os Monitores, ocupados em transportar os feridos através do tubo de abordagem, limitavam-se a olhar, estupefactos. Subitamente Conway começou a suar.
Tinham sido atingidos de novo, mas como as grelhas não estavam a funcionar e ele flutuava, sem se encontrar agarrado a qualquer ponto de apoio, não sentira o impacte. No entanto sabia o que acontecera. Mexeu no seu Tradutor, deu-lhe uma pancada com os nós dos dedos — um gesto inteiramente fútil — e impeliu o corpo com os pés na direcção do intercomunicador.
Em todos os circuitos que ele tentou usar havia coisas que uivavam;, trombeteavam e soltavam gritos guturais, uma cacofonia louca que fez ranger os dentes a Conway. Passou-lhe pelo espírito uma imagem da sala de operações de onde acabara de sair, com a Murchison, o Tralthano e o doutor Kelgiano a operarem o ferido sem que qualquer deles soubesse o que os outros diziam. Instruções, ordens vitais, pedidos de instrumentos informações sobre o estado do paciente — tudo se tornaria numa estranha e incompreensível algaraviada. Viu essa imagem repetida por todo o Hospital. Só os seres da mesma espécie se podiam entender uns aos outros e mesmo isso nem sempre era verdade. Havia humano-terrestres que não falavam Universal — que falavam linguagens nativas de cartas regiões nos seus planetas natais e que dependiam dos Tradutores, mesmo quando falavam com outros humano-terrestres...
No meio de todo aquele barulho Conway conseguiu ouvir com dificuldade palavras isoladas e uma voz que ele podia compreender. Imediatamente, os seus ouvidos pareceram eliminar os ruídos parasitas e ouvir apenas a voz que dizia: — Três mísseis em fila, senhor. Abriram caminho até ao interior. Não podemos improvisar um Tradutor nem há nada com que o fazer. O último míssil explodiu exactamente no interior da sala do computador...
Fora do nicho do intercomunicador, os enfermeiros extraterrestres assobiavam, rosnavam e gemiam para ele e uns para os outros. Tinha de dai instruções para o exame prévio dos; feridos, de tratar da sua acomodação nas enfermarias e de verificar se a sala de operações FGLI estava pronta. Mas não podia fazer nada disso porque o seu pessoal de enfermagem não compreendia uma palavra do que ele dizia.
Durante longo tempo, ainda que pudesse ter sido apenas alguns segundos, Conway não foi capaz de deixar a alcova que continha o intercomunicador e o Psicólogo-Chefe teria ficado clinicamente preocupado com os pensamentos que lhe passaram pela cabeça. Mas conseguiu a pouco e pouco dominar o pânico recordando-se de que não tinha lugar algum para onde fugir e obrigando-se a olhar para os FGLI que flutuavam na antecâmara. Aquilo já estava literalmente cheio deles.
Conway sabia apenas os rudimentos da fisiologia Tralthana, mas isso era o último dos seus aborrecimentos porque poderia tornar facilmente uma gravação FGLI. O que tinha a fazer era pôr as coisas em movimento imediatamente. Subitamente, berrou para o chefe dos maqueiros dos Monitores: — Sargento! Enfermaria Quatro-B, Piso Duzentos e Sete. Sabe onde é?
O sargento moveu a cabeça afirmativamente e Conway voltou-se para os enfermeiros.
Não conseguiu nada com o Indiano e o QLCL apesar dos seus esforços para usar uma linguagem de sinais, e só conseguiu alguma coisa depois de ter dobrado as pernas em volta de um dos membros dianteiros de um FGLI e através de força bruta torceu o apêndice que continha o seu equipamento visual até que o grupo dos olhos apontou para os feridos. Então — pelo que lhe pareceu — os Tralthanos compreenderam que tinham de acompanhar os feridos e fazer tudo quanto podiam, quando eles chegassem.
A Quatro-B fora ocupada quase completamente pelos feridos FGLI e a maior parte do pessoal também era Tralthano o que significava que alguns dos feridos poderiam ser confortados por enfermeiros que falavam a sua própria língua. Conway recusou-se a pensar nos outros feridos, que não tinham essa vantagem.
Quando chegou ao gabinete de O’Mara, o major não estava lá. Carrington, um dos seus assistentes explicou que O’Mara estava muito atarefado, a reunir os pacientes e o pessoal segundo as respectivas espécies, sempre que possível e que ele queria ver Conway logo que o trabalho das enfermarias trathanas estivesse pronto. Carrington informou ainda que as Comunicações ou estavam interrompidas; ou obstruídas com os extraterrestres a berrarem todos uns para os outros, pelo que o melhor seria voltar para trás ou permanecer num lugar onde o major o pudesse encontrar facilmente. Dez minutos depois, Conway tinha a gravação de que necessitava e estava a caminho da Quatro-B.
Já tO’Mara gravações FGLl e não eram muito más. Sentia urna certa estranheza em ter de andar sobre dois pés em vez de seis e queria mover a cabeça e o pescoço para seguir os objectos em movimento, em vez de mover apenas os olhos. Mas só quando chegou à enfermaria é que compreendeu quanto era completa a absorção do espírito do extraterrestre. As filhas de pacientes Tralthanos tornaram-se a sua preocupação mais imediata e premente, enquanto só uma pequena parte do seu cérebro se interessava pelos enfermeiros Tralthanos, que estavam Obviamente perto do pânico e cujas palavras, por qualquer razão estranha, ele não podia compreender. Em relação aos enfermeiros humano-terrestres — frágeis, informes e desagradáveis sacos cheios de carne - apenas podia sentir impaciência.
Conway dirigiu-se a esse grupo de sacas informes ainda que à porção humana do seu cérebro um par delas parecesse na verdade ter muito boas formas — e disse: — Dêem-me atenção, por favor. Tenho uma gravação Tralthana que me permite tratar destes FGLI, mas a avaria do Tradutor significa que não posso falar com eles ou com o pessoal Tralthanos. Vocês terão de me ajudar nos exames preliminares e na sala de operações
Ficaram todos a olhar para ele e perderam o medo ao receberem ordens de alguém com autoridade, mesmo pensando que lhes ordenavam que fizessem o impossível. Havia quarenta e sete pacientes FGLI na enfermaria, que inclua oito recém-chegados precisando de atenção imediata. E só se encontravam ali três enfermeiras humano-terrestres-
— O pessoal FGLI e vocês não podem falar agora mas usam o mesmo sistema de notação médica — lembrou ele. — Temos de arranjar qualquer sistema de comunicação. Será lento, evidentemente, mas há que lhes fazer saber o que estamos a fazer © conseguir o auxílio deles.
«Acenem com os braços, façam desenhos. Acima de tudo usem essas cabecinhas bonitas.
Palavrinhas doces num momento daqueles, pensou ele, desgostado. Estava longe de ser um psicólogo, corno O’Mara... Mas tratara já de quatro dos casos mais urgentes quando Mannen chegara com outro FGLI numa maca presa ao pavimento por ímanes. O paciente era Thornnastor e tomou-se logo evidente que o diagnosticador ficaria imobilizado por muito tempo.
Mannen deu-lhe pormenores sobre os ferimentos de Thornnastor e o que fizera já em relação a eles, e depois prosseguiu: —... Uma vez que tens o monopólio dos Tralthanos será melhor tratares do seu cuidado pós-operatório. E esta é a mais ordenada e calma enfermaria no Hospital, com mil demónios! Qual é O teu segredo? Encanto juvenil, ideias brilhantes ou um Tradutor de contrabando?
Conway explicou o que estava a tentar fazer com o pessoal de enfermagem de espécies diversas.
— Ordinariamente não admito que os médicos e os enfermeiros passem bilhetinhos durante as operações — disse Mannen. — Mas parece-me que está a resultar. Vou transmitir a ideia.
Levaram o corpo de Thornnastor para uma das estruturas acolchoadas que usavam como leitos para os FGLI em condições de ausência de peso. Depois, Mannen disse: — Tenho também uma gravação FGLI. Recebia-a para cuidar deste nosso amigo. Agora tenho dois QLGL à minha espera. Até hoje não sabia que havia bichos como esses, mas O’Mara dispõe da gravação. Terei de trabalhar com escafandro, pois essa porcaria que eles respiram é capaz de matar tudo quanto anda, rasteja ou voa, excepto eles. Estão ambos conscientes e eu não posso falar com eles. Estás a ver que brincadeira vai ser...
Subitamente deixou cair os ombros. Disse num tom sombrio: — Seria bom que pensasses em qualquer coisa, Conway. Nas enfermarias como esta, em que os pacientes e alguns enfermeiros são da mesma espécie, as coisas não vão muito mal. Relativamente... Mas existem outros lugares onde as vítimas e o pessoal estão completamente confundidos, e onde os espertalhões, entre o pessoal extraterrestre, foram atingidos pelo bombardeamento, as coisas vão muito mal.
— Imagino — disse Conway, lugubremente. — Mas com as enfermarias de Thornnastor a meu cargo tenho muito que fazer...
— Toda a gente tem muito que fazer! — disse secamente Mannen. — Mas, seja corno for, é necessário que alguém resolva alguma coisa bem depressa!
Que queres que eu faça? pensou Conway, furioso perante as costas que Mannen lhe voltara. - Depois, voltou-se para o doente seguinte.
Durante as horas antecedentes, qualquer coisa muito estranha acontecera no espírito de Conway. Começara a ter uma impressão cada vez mais forte de que quase sabia o que os enfermeiros Tralthanos estavam a dizer. Quando tinha de falar a um enfermeiro ou paciente humano-terrestre tinha de se concentrar duramente para entender as primeiras palavras que eles dissessem.
E agora começava a compreender a fala dos Tralthanos.
Estava longe de ser perfeito, evidentemente. Os ruídos de trombeta, elefantinos, eram filtrados através de ouvidos humanos e não Tralthanos, e sofriam deformações e mudanças de tom. As palavras tendiam a ser abafadas e roucas: mas ele compreendia algumas, o que significava que ele possua uma espécie de Tradutor. De resto, actuava num só sentido. Mas seria assim?
Quando preparava o caso seguinte resolveu falar em resposta.
O seu alter-ego FGLI sabia como as palavras deviam soar, sabia como fazer trabalhar as suas cordas vocais, e a voz humano-terrestre era considerada como sendo um dos mais versáteis instrumentos da Galáxia. Conway encheu os pulmões de ar e começou.
A primeira tentativa foi um desastre. Acabou com um valente ataque de tosse da sua parte e espalhou o alarme e a consternação a todo o comprimento e largura da enfermaria. Mas à terceira tentativa conseguiu fazer-se compreender — um dos enfermeiros Tralthanos respondeu-lhe! Depois, foi apenas uma questão de tempo até que pôde dar as ordens mais importantes e as operações subsequentes fizeram-se mais depressa, com maior eficiência e com probabilidades multo maiores para o paciente.
As enfermeiras humano-terrestres ficaram muito impressionadas perante os estranhos sons que saíam da esforçada garganta de Conway. Ao mesmo tempo, pareciam olhar com humor a situação... Até que uma voz familiar, irascível, se fez ouvir atrás dele:
— Bem, bem, uma enfermaria cheia de pacientes felizes e sorridentes, com Um Bom Doutor a manter o moral fazendo imitações de animais. O que é que pensa que está a fazer?
Conway viu, chocado, que O’Mara estava verdadeiramente furioso. Nas circunstâncias seria melhor responder A pergunta e ignorar a retórica.
— Estou a cuidar dos pacientes de Thornnastor, mais alguns recém-chegados — disse ele, calmamente. — Os homens do Corpo e os FGLI já receberam os cuidados necessários e ia pedir-lhe uma gravação DBLF para tratar dos Kelgianos que acabam de aparecer.
O’Mara teve um riso de escárnio. — Vou mandar um médico Kelgiano tratar deles. Parece que não compreende que este é um piso entre trezentos e oitenta e quatro, Doutor Conway. Há por aí pacientes nas enfermarias, necessitados desesperadamente de simples tratamentos ou medicações, e não conseguem isso porque o pessoal encarregado assobia enquanto eles guincham. E há feridos aos montes nas escotilhas, alguns deles em corredores que estão agora abertos para o espaço. Essas tendas de pressão não fornecem ar eternamente, como sabe, e a gente que está nelas não se pode sentir muito feliz...
— Que quer que eu faça? — perguntou Conway.
O’Mara ainda ficou mais furioso. — Não sei. Doutor
Conway. Sou um psicólogo. Já não posso trabalhar com eficiência porque a maior parte dos meus pacientes já não fala a mesma língua. Tenho procurado levar aqueles que a falam a pensarem em qualquer coisa que nos tire desta trapalhada. Mas eles estão todos demasiado ocupados a tratar os seus doentes, e não pensam no Hospital no seu todo. Querem deixar tudo aos Grandes Cérebros...
Conway observou: — Nessas circunstâncias, um diagnosticador parece ser a pessoa lógica para surgir com uma ideia brilhante.
— Thornnastor está fora do quadro — disse O’Mara, baixando ligeiramente a voz. — Provavelmente você tem estado tão atarefado que não sabe que os outros dois diagnosticadores que ficaram foram mortos hoje, ao começo do dia. E entre os Médico-Chefe, temos as baixas de Harkness, Irkuiltis, Mannen...
— Mannen!
— Pensei que você sabia — disse O’Mara num tom quase suave. — Aconteceu apenas a dois pisos daqui. Estava a trabalhar dois QDCL quando a sala recebeu um rombo. Um estilhaço de metal rompeu o fato dele Descomprimiu-se e, antes que esse veneno que eles usam em vez de ar se escapasse por completo, ele respirou um pouco dele. Mas viverá.
Conway notou que suspendera a respiração. Disse: — Ainda bem.
— Digo o mesmo — observou O’Mara. — Mas o que eu tinha começado a dizer era que não restam diagnosticadores e não há outro Médico-Chefe além de você, e tudo isto está numa confusão tremenda. Sendo o médico sobrevivente de mais alto grau hierárquico neste Hospital, que pensa você fazer a esse respeito?
Ficou a olhar Conway — e a esperar.
Conway pensara que nada o poderia fazer sentir-se pior que a compreensão de que poucas horas antes o sistema do Tradutor deixara de funcionar. Não queria aquela responsabilidade — só de pensar nela sentia um medo de morte. No entanto houvera ocasiões em que sonhara ser o director do Geral do Sector. Mas nesses sonhos o Hospital nunca fora um monstro moribundo., despedaçado pela guerra e paralisado pela falta de comunicações, nem se apresentara eriçado de armas mortíferas, nem estivera criminosamente falto de pessoal e sobrecarregado de pacientes.
Provavelmente, só em circunstâncias como aquelas alguém como ele poderia ser director de um hospital como aquele. Não era o melhor homem; era apenas o único disponível.
Olhou em volta, para a enfermaria ordenada, com as suas filas de leitos Tralthanos e humano-terrestres. Subitamente, disse a O’Mara: — Tenho uma ideia. Não é boa e creio que devamos falar sobre ela no seu gabinete, porque, provavelmente, levantará objecções contra ela, em voz alta, e perturbará os meus pacientes.
O’Mara fitou-o com dureza, mas quando falou a fúria sara da sua voz, que se tornara normalmente sarcástica. — Todas as suas ideias são discutíveis, Doutor.
Quando se dirigiam para o gabinete de O’Mara passaram por um grupo de oficiais de alta patente, dos Monitores, e o major disse-lhe que faziam parte do Estado-Maior de Dermod, o qual se preparava para instalar o comando táctico no Hospital. De momento, Dermod comandava a partir da Vespasiam. Mas até as naves de batalha estavam a passar um mau bocado, e o comandante da Armada já vira a Domitian quase desaparecer sob os seus pés...
Quando chegaram, Conway disse: — A ideia não é grande coisa e ao ver aqui estes oficiais tive uma melhor. E se pedíssemos a Dermod para nos deixar usar os Tradutores da sua nave?
O’Mara abanou a cabeça e disse: — Não resultará. Também tive essa ideia. Parece que os únicos Tradutores cujos computadores nos poderiam ser úteis estão nas naves grandes e fazem parte integral da estrutura, de modo que seria necessário desmantelar as naves para os retirar. Além disso, para as nossas necessidades mínimas, precisamos de vinte computadores de naves de batalha. Não nos restam vinte naves de batalha e Dermod diz que tem um uso muito melhor para os que ainda temos.
«Agora qual era a sua ideia não muito boa?»
Conway disse-lhe qual era.
Quando acabou, O’Mara olhou para ele firmemente durante quase um minuto. Por fim disse: — Considere que apresento também objecções às suas ideias — e fortemente. Considere, se quiser, que eu me pus aos pulos o a dar socos na secretária, porque seria isso que eu faria se não estivesse terrivelmente fatigado. Não compreende onde que se está a meter?
De baixo veio o ruído de um choque e de metal a rasgar-se, com sons ridículos, ressoantes. Conway estremeceu involuntariamente e disse: — Também tenho receio. Haverá muita confusão e incómodo mental, mas espero evitar o pior deixando que a entidade gravada me domine completamente até que eu tenha o que pretendo. Depois suprimi-la-ei e farei a tradução. Foi assim que as coisas resultaram com a gravação Tralthana e não há razão para que não resulte com a DBLF ou quaisquer outras. A linguagem DBLF deve ser fácil — é mais fácil gemer como um Kelgiano que trombetear como um Tralthana...
Continuou a expor pormenores do seu plano até que O’Mara disse: — Um momento. Você não faz outra coisa senão falar de deixar uma personalidade emergir, e depois suprimi-la para destacar duas em conjunto, e assim por diante. Talvez acabe por verificar que não tem muito domínio. Ê difícil trabalhar com múltiplas gravações fisiológicas, e você nunca trabalhou com mais de duas ao mesmo tempo. Tenho os seus registos.
O’Mara hesitou por um momento e depois prosseguiu, num tom grave: — O que você receberá são as memórias registadas de um extraterrestre comi alta posição na profissão médica, no seu planeta natal. Não é uma entidade alienígena lutando pela posse do seu cérebro, mas porque a memória e a personalidade dele estão impressas ao longo da sua, você poderá ser levado a pensar, em pânico, que ela está a tentar dominá-la. Algumas das gravações foram obtidas de indivíduos muito agressivos...
«Acontecem coisas estranhas aos médicos que tornam um certo número de gravações a longo prazo, pela primeira vez. Dores, afecções de pele, talvez deficiências do funcionamento orgânico. Tudo isso tem uma base psicossomática, mas para as pessoas afectadas os males são muito reais. Essas perturbações podem ser dominadas, e até anuladas, por um espírito forte. No entanto um espírito apenas forte acabará por sucumbir ao fim de algum tempo, é necessária flexibilidade aliada à força, qualquer coisa que actue como uma âncora mental, qualquer coisa que você terá de descobrir por si próprio...
«Supondo que concordo com isso, quantas gravações precisaria? — concluiu ele, abruptamente.
Conway pensou rapidamente. Tralthano, Kelgiano, Melfano, Indiano — as plantas ambulatórias que ele encontrara antes de ir para Etla e que tinham também permanecido, e os monstros que Mannen estivera a tratar antes de ser abatido. Disse: — FGLI, DBLF, ELNT, DBDG-Nidiano, AACP e QOLCL. Seis...
O’Mara comprimiu os lábios. — Não me importaria se fosse um diagnosticador a fazer isso porque eles estão habituados a partir os miolos em seis pedaços. Mas você é apenas...
— O médico mais graduado do Hospital — concluiu Conway, com um sorriso.
— Hum — disse O’Mara.
No silêncio puderam ouvir vozes humanas e um ruído estranho, alienígena, no corredor, lá fora. Quem estava a fazer o barulho devia estar a gritar muito alto porque o gabinete do major era, segundo se supunha, anti-ruídos.
— Muito bem — disse O’Mara, subitamente. — Pode tentar isso. Mas eu não quero tratar do assunto na minha capacidade profissional, e há uma possibilidade muito mais forte do que você parece pensar. Estamos demasiado precisados de médicos para o termos a si imobilizado numa camisa-de-forças, de modo que vou pôr um cão de guarda a seu lado. Acrescentaremos um GLNO A sua lista.
— Prilicla!
— Sim. Sendo um empata, tem passado um mau bocado com a espécie de radiação emocional que apareceu por a nos últimos dias, e tive de o colocar sob a acção de sedativos. Mas ele poderá vigiá-lo mentalmente, e ajudá-lo também. Deite-se para o sofá.
Conway deitou-se e O’Mara colocou o capacete. Depois, o major começou a falar suavemente, fazendo por vezes perguntas, outras vezes falando, simplesmente. Conway, procurando manter os olhos abertos, disse: — Não será muito difícil. Picarei em qualquer parte apenas o tempo bastante para aprender algumas palavras básicas e frases que eu possa ensinar ao pessoal de enfermagem. O bastante para que compreendam quando um cirurgião alienígena disser: «escalpelo», ou «fórceps», ou outras coisas...
Despertou num compartimento que era demasiado grande e demasiado pequeno de seis maneiras diferentes e ao mesmo tempo inteiramente familiar. Não se sentia repousado. Agarrado ao tecto por seis pernas muito finas havia uma criatura pequena, enorme, frágil, bela, nojenta, que parecia um insecto e que lhe lembrava os seus piores pesadelos e os cllels anfíbios que ele costumava caçar no fundo do seu lago privado para o pequeno-almoço, e muitas outras coisas, incluindo um GLNO Cinrusskino perfeitamente vulgar, que começava a tremer ligeiramente perante a radiação emocional que ele estava a produzir. Todo ele sabia que os GLNO de Cinruss eram empatas.
Lutando para subir até à superfície de um turbilhão de pensamentos, memórias e impressões alienígenas, Conway decidiu que era tempo de trabalhar. Prilicla estava ali, imediatamente disponível para o primeiro ensaio da sua ideia. Começou a procurar entre uma imensidade de dados alienígenas o conhecimento da língua Cinrusskina.
Não, não era a linguagem Cinrusskina — era a sua língua. Tinha de pensar, sentir e escutar como um GLNO. A pouco e pouco começou a fazê-lo...
0 não foi nada agradável.
Ele era um Cinrusskino, um membro de uma espécie de empatas, de baixa gravidade, frágil, semelhante a um insecto. O belo exosqueleto, com as suas marcas delicadas, e o brilho jovem, irisado», das asas nada atrofiadas de Prilicla eram agora coisas que ele podia apreciar devidamente, assim como a maneira como as mandíbulas de Prilicla tremiam numa súbita preocupação pelos seus problemas. Porque ele recordava-se de ter um contacto empático, recordava-se de o ter tido durante toda a sua vida, mas agora era pouco mais que um surdo-mudo.
O seu cérebro humano não possuía a faculdade empática e não se sentia melhor enchendo o espírito com memórias de a ter tido.
Prilicla emitiu uma série de estalidos e zumbidos. Conway, que nunca falara com o GLNO senão por meio do processo átomo e filtrador de emoções que era o «Tradutor», ouviu-o dizer: — Lamento muito — numa voz cheia de preocupação e piedade.
Em troca, Conway tentou imitar a suave combinação de trinados e estalidos que era o nome de Prilicla. A quinta tentativa conseguiu fazer qualquer coisa próxima do ruído que ele pretendia imitar.
— Isso é muito bom, amigo Conway — disse Prilicla, num tom caloroso. — Não tinha considerado possível esta tua ideia. Entendes o que eu digo?
Conway procurou as palavras-sons de que necessitava e depois, cuidadosamente, começou a formá-las. Disse: Obrigado — e — Sim.
Tentaram frases mais difíceis — desde palavras técnicas até obtusos pormenores médicos e fisiológicos. Na melhor das hipóteses era uma grosseira deformação do Cinrusskino, mas ele perseverou. Depois, subitamente, houve uma interrupção.
Uma voz falou do comunicador da sala. — Fala O’Mara. Você já deve ter acordado, Doutor, portanto aqui estão as últimas. Continuamos a ser atacados, mas isto melhorou um pouco porque chegaram mais voluntários extraterrestres para nas reforçarem. São Melfanos, mais alguns Tralthanos e uma força de Ilhensanos, respiradores de cloro. Portanto você vai ter também PVSJ para se preocupar. E dentro do Hospital...
Deu-lhe uma lista detalhada dos feridos e do pessoal disponível, com os problemas peculiares a cada secção e o seu grau de urgência.
—... Você é que sabe por onde deve começar, e quanto mais depressa o fizer, melhor será — disse O’Mara. — Mas no caso de ainda se sentir confundido repita...
— Não é preciso. Entendi tudo.
— Muito bem. Como se sente?
— Terrível. Horrível. E muito peculiar.
— Isso é sob todos os aspectos uma reacção normal — disse O’Mara, secamente.
Conway desapertou as correias que o prendiam ao leito. Algumas das criaturas que habitavam o seu cérebro sentiram-se aterrorizadas perante a ausência de peso e a sua reacção foi instintiva. Teve um momento de pânico quando verificou que os seus pés não se pegavam ao tecto, como os de Prilicla. E quando largou a borda do leito notou que estivera agarrado a ele com um apêndice pálido, flácido, horrivelmente diferente dos elegantes e duros contornos da mandíbula que ele esperara ver. Mas, fosse como fosse, ele conseguiu atravessar a sala até ao corredor e avançar nele uns cinquenta metros.
Depois foi detido.
Um maqueiro furioso, com o uniforme verde do Corpo, queria saber de que enfermaria viera ele e porque estava fora da cama. A linguagem do homem era colorida e nada respeitosa
Conway teve então consciência do seu corpo enorme, gordo, frágil, nojento e rosado. Um corpo perfeito, mas também uma monstruosidade informe, que, no lugar de onde saíam os dois apêndices inferiores, estava rodeado por um pedaço de pano branco que, aparentemente, não servia para nada. O corpo parecia ridículo e alienígena.
Demónio!, pensou Conway, lutando contra um asfixiante conjunta de impressões alheias. Esqueci-me de vestir.
O primeiro acto de Conway foi o de instalar um representante de cada espécie na sala d)e Comunicações. Uma espécie de ordem fora conseguida colocando homens do Corpo junto de cada intercomunicador, para proibir o seu uso aos extraterrestres. Isso significava que só o pessoal humano-terrestre podia comunicar entre si. Mas com os extraterrestres na central, as chamadas das outras espécies podiam; ser respondidas e orientadas. Conway passou quase duas horas a estabelecer ligação com os operadores dos intercomunicadores e a imaginar urna lista de sinónimos que lhes permitisse trocar mensagens simples — muito simples. Tinha dois peritos de línguas, dos Monitores, com ele, e foram eles quem lhe sugeriu que fizesse uma gravação da sua «pedra de Rosetta» de sete faces, e preparasse outras segundo as condições que ele encontrasse nas enfermarias.
Para onde quer que ele fosse, era acompanhado por Prilicla, pelos peritos linguísticos, por um técnico de rádio do Corpo e pelo pessoal de enfermagem que acumulava de tempos a tempos. Era uma procissão impressionante, mas Conway não estava em condições de a apreciar.
A falta de enfermeiros de todas as espécies era «irónica. Quanto aos médicos, a posição era desesperada, inalou O’Mara:
-Não temos médicos suficientes. Creio que os enfermeiros podem actuar com mais liberdade no diagnóstico o tratamento dos ferimentos. Devem fazer o que pensam ser o melhor, sem esperar pela autorização de um médico que, de resto, está por norma demasiado atarefado para exercer qualquer vigilância. Os feridos continuam a chegar e eu não vejo outra maneira...
— Faça isso. Você é que é o patrão — disse-lhe O’Mara, num tom duro.
— Muito bem. Outra coisa: tenho tido ofertas de uma porção de médicos para tomarem duas ou três gravações para fins de tradução, além da que eles estão a usar para as operações correntes. E alguma das garotas apresentaram-se como voluntárias...
— Não! — berrou O’Mara, — Tive aqui alguns desses voluntários e não servem. Os médicos que nos ficaram ou são internos muito novos ou médicos do Corpo e extraterrestres que vieram com as forças voluntárias. Nenhum deles tem experiência de gravações fisiológicas múltiplas. Ficariam loucos, logo na primeira hora.
«Quanto às garotas, você deve ter notado que as fêmeas DBDG humano-terrestres têm um espírito muito peculiar - disse ele com um tom sardónico. Uma das suas peculiaridades é uma profunda fastigfosidade, baseada no sexo. Digam elas o que disserem, nunca deixarão que seres estranhos dominem aparentemente os seus miolinhos. Se isso» acontecesse, haveria severos danos mentais. Não!»
Conway continuou a sua visita de inspecção. Começava a sentir-se fatigado. Ainda que a sua técnica se fosse aperfeiçoando, a Tradução era cada vez mais penosa. E nos períodos relativamente calmos em que não se ocupava disso sentia-se como se sete pessoas diferentes discutissem e gritassem dentro do seu cérebro e a sua voz raras vezes era a que gritava mais. Além do que se sentia rouco por fazer sons para os quais a sua garganta não fora concebida. E estava esfomeado.
As sete criaturas que ele era tinham ideias diferentes para matar a fome. Como os serviços de cozinha do Hospital tinham sofrido tanto como os outros, não era possível arranjar uma ementa neutra, ou que peio menos não repugnasse por completo aos seus alter-egos. Teve de comer sanduíches com os olhos fechados para não ver o que elas continham, e beber água e glicose. A água era a única coisa que todos aceitavam.
Conway pensou que, agora que já se estabelecera de novo uma organização para a recepção e tratamento dos feridos, havia que pôr em movimento aqueles que enchiam as áreas em torno das escotilhas. Segundo lhe haviam dito, até havia macas de pressão presas ao exterior do casco.
Prilicla protestou.
Uma das objecções era a de que Conway estava demasiada fatigado — mas isso acontecia com toda a gente no Hospital. As outras eram muito fracas ou subtis para serem entendidas por aquele meio de comunicação. Conway ignorou-as e dirigiu-se para a escotilha mais próxima. Uma vez ali, descobriu que se podia mover muito mais rapidamente: os homens dos raios tractores que tratavam dos destroços acumulados em torno do Hospital podiam transferir todo o seu grupo de um ponto para outro em poucos segundos.
Mas então notou também que a parte Melfana do seu espírito, que ficara perturbada pela ausência de peso dentro do Hospital se sentia inteiramente aterrorizada fora dele. O ELNT melfano que produzira a gravação era uma criatura anfíbia, semelhante a um caranguejo, que vivera a maior parte do tempo debaixo de água e não tinha experiência alguma do espaço. Conway teve que lutar contra o pânico que ameaçava todo o seu cérebro, assim corno contra o medo da batalha que se travava por cima da sua cabeça.
O’Mara dissera-lhe que o ataque estava a diminuir de Intensidade, mas Conway não podia imaginar nada mais selvagem do que aquilo que via.
Entre as naves não eram usados mísseis — atacantes e defensores estavam demasiado próximos, inextrincavelmente misturados. Como pequenos modelos, muito rápidos, tão visíveis que lhe parecia poder estender a mão o agarrar um, as naves giravam numa dança louca, caótica. Entre elas, os raios tractores e pressores estendiam-se como dedos sólidos, invisíveis, detendo ou desviando as naves alvos, para que um matraqueador pudesse ser focado sobre elas. Por vezes, três ou mais naves convergiam sobre um alvo único e despedaçavam-no em segundos. Outras vezes, um matraqueador bem apontado inutilizava o sistema de gravidade artificial um momento antes de estoirar com o propulsor. Com a tripulação agoniada pela alta aceleração, a nave trambolhava no espaço, fora de combate, até alguém apontar outro matraqueador sobre ela ou um raio tractor, no casco de Hospital do Sector, o puxar para baixo em busca de sobreviventes.
E quer houvesse ou não sobreviventes, o casco podia vir a ser usado... A superfície externa do Hospital, outrora lisa e brilhante, era uma massa de crateras profundas, rebordos irregulares e chapas retorcidas. E como os mísseis batiam duas e até três vezes no mesmo lugar fora assim que o computador do Tradutor fora destruído — as crateras estavam a ser obturadas com destroços num esforço para impedir que os mísseis explodissem mais profundamente, no interior do Hospital. Qualquer tipo de destroços servia e os homens dos raios tractores não se preocupavam com escolhas.
Conway estava numa posição de raios tractores quando um dos destroços foi atracado. Viu a equipa de socorro sair da escotilha, dar volta ao casco comi muito cuidado e depois entrar. Cerca de dez minutos depois saram a rebocar... qualquer coisa.
— Doutor — disse o sargento encarregado da instalação. — Creio que fiz um disparate. Os meus homens dizem que o monstro que tiraram dos destroços é novo para eles e querem que o senhor o veja. Lamento muito, mas os destroços são todos iguais. Não creio que seja um dos nossos...
Era de facto uma espécie nova para o Hospital. O’Mara não tinha por certo qualquer gravação da sua fisiologia e mesmo que o paciente recuperasse a consciência não poderia cooperar porque os Tradutores não funcionavam. Conway tinha de se encarregar daquele caso e ninguém o convenceria do contrário.
A Enfermaria Sete situava-se perto da secção em que um médico militar Kelgiano e a Murchison estavam a fazer maravilhas com uma mistura de pacientes FGLI, QLOL e humano-terrestres; portanto pediu-lhes que o ajudassem,. Conway definiu a classificação do recém-chegado como TELHA, e foi ajudado nisso pelo facto de o fato de pressão do paciente ser transparente e flexível. Se o fato fosse menos flexível os ferimentos da criatura teriam sido menos severos, mas então o fato teria estalado, em vez de se dobrar com a força a que fora submetido.
Conway abriu um pequeno furo no fato, retirou uma amostra da atmosfera interior e depois obturou o buraco. Colocou a amostra no analisador.
E pensava eu que a dos QLCL era má — disse a Murchison quando ele lhe mostrou o resultado. — Mas tentemos reproduzi-la aqui.
Vestiram os fatos operatórios de tipo ligeiro, com os braços e as mãos cobertos por uma película que era como uma secunda pele, O ar foi substituído pela atmosfera do paciente e eles começaram a cortar o fato dele.
O TELHA tinha uma carapaça fina que lhe cobria as costas e curvava para baixo e para dentro, de modo a proteger a área central da sua parte inferior. Quatro grossas pernas com uma só junta projectavam-se das suas secções não cobertas e uma grande cabeça, também com poucos ossos, continha quatro apêndices manipulatórios, dois olhos recolhidos mas extensíveis, e duas bocas, de uma das quais escorria sangue. A criatura devia ter ido atirada contra várias saliências metálicas. A carapaça estava quebrada em seis pedaços e numa zona fora quase estilhaçada. Os estilhaços tinham-se enterrado na carne. O sangue corria abundantemente dessa zona. Conway começou a analisar as lesões internas com o explorador de raios X e poucos minutos depois disse que estava pronto a começar.
Na verdade não estava, mas o paciente sangrava de tal modo que não tardaria a morrer.
O arranjo interno dos órgãos era diferente de tudo quanto ele até então vira, e diferente de tudo quanto constava da experiência das seis personalidades que partilhavam o seu espírito. Mas ele recebeu indicações do QLCL dó metabolismo provável das criaturas que respiravam essa atmosfera tão corrosiva. O Mel fano forneceu-lhe dados sobre os possíveis métodos de exploração da carapaça danificada, e os FGLI, DBLF, GLNO e ASCO também foram úteis. Mas os gritos mentais, impondo cuidado na operação, tornavam trémulas as mãos de Conway, impedindo-o de prosseguir. Os pesadelos e as neuroses dós indivíduos que compartilhavam o seu espírito tornavam-se maiores a cada momento. Nem todas as criaturas que tinham fornecido as gravações tinham experiência hospitalar com alienígenas. Não estavam habituadas a pontos de vista que não fossem os da sua espécie. O que Conway tinha a fazer era recordar-se de que não se tratava de personalidades separadas, mas sim de uma massa de dados alienígenas e de tipos diferentes. Mas sentia-se horrível e estupidamente fatigado e começava a perder o domínio do que acontecia no seu espírito. Mesmo assim, as suas memórias mergulhavam: numa torrente negra. Memórias maliciosas, vergonhosas, secretas, principalmente ligadas ao sexo — e isso em circunstâncias tão alienígenas que ele queria gritar. Subitamente, deu conta de que se dobrara sobre si próprio, a suar, como se houvesse um enorme peso sobre as suas costas.
Sentiu que a Murchison lhe pegara no braço. — Que aconteceu? — Disse ela, aflita. — Precisas de alguma coisa?
Ele abanou a cabeça, porque, por um momento, não soube formar palavras na sua própria língua, mas ficou a olhar para ela durante dez segundos. Agarrou-se aos seus pensamentos humanos sobre a Murchison e durante algum tempo manteve de novo o domínio sobre si próprio. O tempo bastante para acabar de operar o paciente.
Então, subitamente, o seu cérebro foi rasgado em sete pedaços e ele caiu nos abismos mais profundos e negros de sete diferentes infernos. Não soube que os seus membros se tornaram hirtos, dobraram-se ou torceram-se, como se qualquer coisa estranha tivesse tomado posse, em separado, de cada um. Ou que a Murchison o arrastara para fora e o segurara, enquanto Prilicla, com grande perigo da sua vida e os seus frágeis e aracnídeos membros, lhe deu a injecção que o fez adormecer.
0 besouro do intercomunicador despertou Conway, instantaneamente mas sem confusão no agradável e familiar ambiente dos seus aposentos. Mas depois teve consciência de que havia algo de estranho e isso fê-lo hesitar por um momento. Ali havia... silêncio!
— Para que você não pergunte «onde estou?», fique sabendo que está inconsciente há dois dias — disse a voz fatigada de O’Mara. Durante esse tempo, no começo do dia de ontem, o ataque cessou e ainda não recomeçou, e eu trabalhei muito em si. Dei-lhe um tratamento hipnótico para que esquecesse tudo, mas não fique eternamente grato pelo que fiz por si. Como é que se sente?
— Muito bem. Não sinto nada... Quero dizer, parece-me que tenho muito espaço dentro da cabeça...
O’Mara resmungou: — A conclusão óbvia é a de que a sua cabeça está vazia, mas não direi isso...
Embora o Psicólogo-Chefe quisesse manter a sua maneira de ser usual, seca e sardónica, a sua voz mostrava-se terrivelmente fatigada. Mas O’Mara prosseguiu: - O comandante da Armada quer reunir-se connosco dentro de quatro horas portanto não tome quaisquer casos à sua conta. De qualquer maneira as coisas não correm agora muito mal, de modo que pode acalmar-se um pouco. Eu vou dormir.
Mas Conway verificou que era difícil passar quatro horas sem fazer nada. A sala de jantar principal estava cheia de homens do Corpo. Toda a gente conversava em voz alta, de uma maneira demasiado nervosa e alegre, e girava em torno dos passados e futuros aspectos do ataque.
Aparentemente, a força, dos Monitores fora praticamente empurrada de encontro à superfície exterior do Hospital, mas então uma força extraterrestre de voluntários Mensanos surgira do hiperespaço mesmo no exterior do globo inimigo. As naves illensanas eram grandes e mal desenhadas; pareciam unidades pesadas de batalha, ainda que tivessem apenas o armamento de cruzadores ordinários, e a visão de dez delas a surgirem do nada assustara o inimigo. A força atacante retirara-se por algum tempo para se reagrupar e os Monitores, que não tinham nada para reagrupar, tinham-se concentrado no reforço do armamento da sua última linha de defesa: o próprio Hospital. Mas, mesmo pensando que o assunto dizia tanto respeito a ele como a qualquer outra pessoa naquela sala, Conway não quis juntar-se àquela conversa tão mórbida.
Comeu rapidamente, sentindo que tinha de melhorar o seu moral. Isso fê-lo perguntar a si próprio se a Murchinson estaria de serviço, de folga ou a dormir. Se ela estivesse a dormir não poderia fazer nada; se ela estivesse de serviço não tardaria a tirá-la dele, e quando ela estivesse livre...
Por estranho que parecesse, quase não sentia peso na consciência por esse vergonhoso abuso de autoridade, com fins absolutamente egoístas. Mas a Murchison estava exactamente a sair de serviço, de modo que ele não teve de cometer o crime que pensara em cometer. No mesmo tom alto e demasiado alegre que considerara artificial quando o ouvira na sala de jantar, perguntou se ela tinha algum compromisso, sugeriu um encontro e murmurou qualquer coisa horrível sobre só se pensar em trabalho e nada em divertimentos...
— Compromisso...? Divertimento..! Mas eu quero é dormir! — protestou ela. Depois, num tom mais razoável, acrescentou: — Não pode ser... Quero dizer: para onde iríamos, que faríamos? Isto está tudo destroçado. Bem, tenho de mudar de roupa?
— O piso de recreio continua no seu lugar e parece estar em perfeitas condições.
O uniforme das enfermeiras era constituído por uma blusa azul e calças, tudo muito apertado para facilitar a entrada e saída dos fatos de pressão. Ficava bem à Murchison, mas ela parecia esgotada. Quando ela desapertou o largo cinto branco, com as bolsas dos instrumentos e retirou a touca e a rede do cabelo, Conway rosnou e teve imediatamente um ataque de tosse porque a sua garganta ainda estava magoada de fazer ruídos alienígenas.
A Murchison riu-se, abanou os cabelos e esfregou o rosto para trazer às faces um pouco de cor. Disse: — Prometes que não me demoras até muito tarde?
No caminho para o piso de recreio foi difícil não falar do trabalho. Muitas secções do Hospital tinham perdido pressão e os pisos habitáveis estavam cheios de gente. Era uma situação que ninguém previra. Não tinham esperado que o inimigo recorresse a uma guerra limitada. Se tivessem sido usadas armas atómicas não havia acumulação de pessoas, nem hospital, provavelmente. A maior parte do tempo, Conway não escutou o que a Murchison dizia, mas ela pareceu não dar por isso. Talvez porque também não o escutava.
O piso de recreio estava na mesma, mas os pormenores tinham sido alterados de uma maneira dramática. O centro» de gravidade do Hospital estava acima do piso, a pouca atracção que havia ali exercia-se de baixo para cima, e tudo quanto normalmente assentava no chão ou na baía estava agora no tecto, formando um caos translúcido de água com veios de areia, bolsas de ar e globos de água através do qual o sol submerso brilhava com uma luz roxa, forte.
- - Oh, que belo! — exclamou a Murchison. - E calmo!
A luz dava à pele dela uma cor quente, escura, que era absolutamente indescritível, mas bela. Os lábios dela - de um roxo suave, quase negro — estavam ligeiramente entreabertos, mostrando dentes que pareciam, quase irisados, os olhos dela eram grandes, misteriosos, luminosos.
— Não é calmo. E romântico!
Lançaram-se suavemente na direcção do restaurante. Passaram sobre a copa das árvores e atravessaram uma pequena cortina de nevoeiro — vapor produzido pelo sol submerso — que cobriu de gotas os seus rostos e os seus braços. Conway pegou na mão dela e agarrou-a suavemente, mas as velocidades de ambos não eram exactamente iguais e começaram a girar em torno do seu centro de gravidade. Conway dobrou o cotovelo um pouco, puxando-a para ele, e a rapidez com que giravam aumentou. Depois ele passou o braço pela cintura dela e puxou-a para si.
Ela começou a protestar e depois, subitamente, gloriosamente, começou a beijá-lo e a agarrar-se a ele com tanto ardor como ele se agarrava a ela, e a baía vazia, as arribas e o céu roxo e aguado giraram loucamente à volta deles.
Num canto calmo e impessoal do seu espírito, Conway pousou que a sua cabeça estaria de qualquer maneira a andar à roda mesmo que o seu corpo não estivesse — o beijo era dessa espécie. Deslizaram suavemente até ao cimo da arriba, do outro lado da baía, e separaram-se a, rindo.
Usaram os arbustos artificiais para se impelirem na direcção do que fora o restaurante. Lá dentro estava escuro e juntara-se muita água sob o tecto transparente e as partes interiores dos chapéus junto das mesas. A água pendia em esferas que pareciam frutos frágeis, estranhos, e que se agitavam ligeiramente à passagem deles ou explodiam em centenas de pequenos glóbulos prateados quando eles chocaram contra uma mesa. Era corno um mundo de sonho — e um sonho em que os desejos se realizavam inteiramente. O corpo escuro, adorável, da Murchison, a flutuar a seu lado, não deixava dúvidas quanto a isso.
Sentaram-se junto a uma das mesas, mas com muito cuidado para não deslocarem! a água do chapéu que a cobria. Conway pegou na mão dela, enquanto se seguravam às cadeiras com as outras mãos. Disse: — Preciso de falar contigo.
Ela sorriu-se, um pouco desconfiada.
Conway tentou falar. Tentou dizer as coisas que ensaiara muitas vezes, mas o que surgiu foram palavras soltas. Era bela. Ele amava-a e teria passado meses a colocá-la numa situação onde ela não pudesse dizer outra coisa senão sim. Mas agora não havia tempo para fazer as coisas como era devido. Pensava constantemente nela e mesmo durante a operação do TELHA fora a pensar nela que se conseguira aguentar até ao fim. E durante todo o bombardeamento preocupara-se...
— E eu preocupei-me contigo — disse ela, suavemente. — Estavas em toda a parte, e cada vez que éramos atingidos... Sabias sempre exactamente o que se devia fazer... e eu tinha medo que morresses...
O rosto dela estava na sombra, o uniforme húmido prendia-se à carne. Conway sentiu a boca seca.
Ela disse num tom caloroso: — Foste maravilhoso naquele dia com o TELHA. Foi como se trabalhasse com um diagnosticador. Sete gravações, disse O’Mara. Eu... pedi-lhe para me dar uma, primeiro, para te ajudar.
Mas ele disse que não porque… -Ela hesitou e desviou
o olhar —... porque segundo afirmou, as mulheres são muito esquisitas, quanto a quem toma posse delas. Dos espíritos delas, quero dizer...
— Esquisitas até que ponto? — Perguntou Conway. — Com os amigos também?
Ele inclinou-se para a frente, quando falou, largando a cadeira a outra mão subiu subitamente e bateu contra o chapéu e tocou com a testa num dos globos flutuantes. Quando a tensão superficial o quebrou, ele abateu-se li timidamente sobre todo o seu rosto. Afastou a água, tornando-a numa nuvem de pequenas gotas luminosas. Foi então que viu aquilo.
Foi a única nota discordante no seu sonho — um monte de mísseis desarmados, num canto da sala. Estavam presos ao chão por cintas e seguros por uma rede, para o caso das cintas serem abaladas por uma explosão. A rede estava solta. Sempre agarrado à Murchison, procurou o bordo da rede e levantou-a do chão.
— Não podemos falar devidamente a flutuar, no ar — Disse ele com toda a calma. — Queres entrar?
Talvez a rede fosse demasiado semelhante a uma teia de aranha. Ele sentiu que ela hesitava. A mão que jurava estava a tremer.
— Eu... sei o que senti — disse ela sem olhar para ele. — Também gosto de ti. Talvez até mais do que isso. Mas não está certo. Não temos tempo nenhum. Isto é egoísmo. Não posso deixar de pensar em todos esses homens nos corredores, e nas vítimas que estão sempre a chegar. Temos de pensar nos outros. E por isso...
— Obrigado — disse Conway, furioso. — Obrigado por me recordares o meu dever.
— Por favor! — Gritou ela, e subitamente agarrou-se de novo a ele, a cabeça contra o peito. — Não quero magoar-te nem quero que me odeies. Nunca pensei que a guerra fosse tão horrível. Estou assustada. Não quero que morras e me deixes sozinha. Por favor, agarra-me bem e... e diz-me o que devo fazer...
Os olhos dela brilhavam e foi só quando os pequenos pontos de luz começaram a subir dela, que ele compreendeu que ela estava a chorar, silenciosamente. Nunca Imaginara ver a Murchison a chorar. Agarrou-a com força, durante longo tempo», e depois, suavemente, afastou-a de si.
Num tom duro, disse: — Não te odeio, mas também não quero discutir os meus sentimentos neste momento. Vamos, vou-te acompanhar a casa.
Mas não foi. A sereia de alarme começou a funcionar alguns minutos depois e quando ela parou uma voz nas Comunicações Gerais começou a pedir ao Dr. Conway que fosse ao Intercomunicador.
Em tempos aquilo fora a Recepção. Agora era o Quartel-General e vinte oficiais dos Monitores murmuravam tensamente nos seus microfones de garganta, os olhos colados a visores que mostravam o inimigo em todos os graus de aumento, desde nada a quinhentos. Dois dos três visores principais mostravam secções da armada inimiga, as imagens parcialmente obliteradas pelas linhas e figuras geométricas fantasmas com que um oficial táctico tentava predizer o que fariam a seguir, o outro visor dava-lhe uma imagem de grande angular da superfície externa do Hospital.
Dermod disse: - Eles retiraram-se do alcance das armas pesadas instaladas no Hospital e estão a enviar mísseis. É um processo de amolecimento concebido para nos desgastar antes do ataque principal. Um contra-ataque da nossa restante força móvel resultaria na sua destruição — São tão inferiores em número que só podem operar efectivamente quando apoiados pelas defesas do hospital. Portanto não podemos fazer mais nada do que aguentar isto o melhor que pudermos e poupar as nossas forças para...
— Que forças? — perguntou Conway, furioso. A seu lado, O’Mara emitiu um ruído de reprovação, e através da secretária o comandante da Armada olhou-o friamente. Dermod falou a Conway, mas não respondeu à sua pergunta,
— Podemos também esperar pequenos assaltos de unidades rápidas, facilmente! Manobráveis com o objectivo de nos perturbarem ainda mais — disse ele. — Haverá vítimas entre os homens do Corpo empenhados na defesa, no próprio Hospital, pessoal das naves defensoras, e talvez do inimigo. O que me leva a um ponto que gostaria de ver esclarecido. Tem estado a tratar de feridos inimigos, Doutor, e disse-me que as suas instalações já não podem aguentar mais...
— Como é que pode dizer isso? — explodiu Conway. Dessa vez Dermod respondeu à sua pergunta.
— Tenho relatos de feridos que notam que outros, do mesmo tipo fisiológico, instalados a seu lado, falam de uma maneira absolutamente incompreensível. Que medidas está a tomar…
— Nenhuma! — disse Conway como se quisesse deitar as mãos ao pescoço daquele patife. A princípio gostara de Dermod. Pensara que ele não fosse apenas competente, mas também sensato. No entanto, nos últimos dias tornara-se na personificação das forças cegas e friamente implacáveis que haviam encurralado Conway e toda a gente no Hospital.
Apesar de tudo, quando Conway falara desabridamente, o comandante da Armada nada retorquira. Olhara-o apenas de uma maneira tão vaga e distante que Conway compreendeu que o comandante nem o via. Nem notou que O’Mara aconselhara Conway a dominar a sua língua — porque Dermod tinha uma guerra a travar e ele estava a fazer tudo quanto podia, e que as pressões a que» era submetido desculpavam uma certa falta de encanto na sua personalidade.
Dermod disse friamente: — Por certo que não está a tratar os feridos inimigos da mesma maneira que os nossos...
Conway respondeu tão calmamente que O’Mara mostrou-se subitamente preocupado. — Ê difícil diferençá-los. As variações subtis no desenho dos fatos espaciais não representam nada para o pessoal de enfermagem ou para mim. E quando, como muitas vezes acontece, o fato e o uniforme subjacente são cortados, o uniforme pode ser impossível de identificar, devido ao sangue derramado. Entre a injecção de anti-dor e a inconsciência, os ruídos por eles emitidos não são facilmente traduzíveis. E se houvesse alguma diferença entre os gritos de um homem do Corpo e os de um inimigo, eu não queria saber de tal coisa...
Começara Calmamente, mas quando terminou quase gritava.
—... Não farei quaisquer distinções entre feridos, nem o meu pessoal! Isto é um hospital, raios o partam! É ou não é?
— Calma, filho. Ainda é um hospital — disse O’Mara, numa voz suave.
— Também é uma base militar! — ripostou Dermod.
O’Mara, tentando deitar azeite nas vagas, disse apressadamente: — O que não compreendo é por que diabo não acabam connosco com ogivas nucleares...
Outro impacte, mais distante daquela vez, fez ressoar pequenos ecos pela sala.
Dermod respondeu, sempre com os olhos fitos em Conway: — A razão por que eles não acabam connosco cora uma bomba atómica, Major, é a de que eles têm de fazer uma conquista. As forças politicas envolvidas exigem-no. o Império tem de tornar e ocupar este posto avançado do odioso inimigo, o general do Imperador tem de conseguir um triunfo e não uma vitória pírrica, e a subjugação do inimigo, a captura do seu território, seja aquele muito pouco numeroso ou este muito pequeno, pode ser tornada num triunfo perante os cidadãos do Império.
«As nossas baixas são pesadas. Uma batalha espacial, sendo o que é, permite somente que dez por cento dos feridos sejam hospitalizados, e ternos muita sorte em dispor de instalações médicas imediatamente disponíveis e ocupando uma posição defensiva muito forte! O número de vítimas inimigas é multo maior que o nosso, creio que vinte vezes maior, de modo que se nos destruíssem agora com um míssil nuclear, quando o poderiam ter feito logo de inicio sem perderem um homem, serão feitas perguntas muito embaraçosas no Império. Se o Imperador não lhes puder responder, ele poderá descobrir que a guerra, e todo o belo fervor marcial por ele construído, são como um tiro saído pela culatra...»
Conway interrompeu-o num tom duro: — Porque é que não tenta comunicar com eles? Diga-lhes a verdade sobre nós e conte-lhes o que se passa com os feridos, aqui. Por certo não espera vencer esta batalha, agora. Porque é que não nos rendemos...?
— Não podemos comunicar com eles». Doutor, porque eles não nos escutam — disse o comandante num tom mordente.- E sei nos escutassem não acreditariam no que disséssemos. Sabem, ou julgam saber, o que teríamos feito em Etla e o que estaríamos a fazer aqui. Dizer-lhes que na verdade tentámos ajudar os nativos de Etla e que fomos obrigados a defender o nosso Hospital não nos servirá de nada. Uma série de epidemias varreu Etla logo que de lá saímos e este estabelecimento já não se comporta exteriormente como um hospital. O que dissermos não terá importância, o que conta é o que estamos a fazer. E o que estamos a fazer é exactamente o que o Imperador deles os levou a esperar de nós.
«Se eles estivessem de facto a pensar, poderiam surpreender-se com o grande número de extraterrestres que nos estão a ajudar. Segundo eles, os nossos extraterrestres são espécies secundarizadas que tratamos com pouco mais que escravas. Os voluntários que nos vieram ajudar não combatem como escravos, mas na presente fase a diferença é demasiado subtil para causar qualquer impressão. Eles estão a pensar de uma maneira emocional, e não lógica...»
— E eu estou também a pensar emocionalmente! — Interrompeu Conway. — Penso nos meus pacientes. As enfermarias estão cheias. Eles andam a pelos cantos e pelos corredores, com uma protecção inadequada contra as perdas de pressão…
— Você perdeu a capacidade de pensar em tudo quanto não sejam os seus pacientes), Doutor! — respondeu Dermod — Poderá ficar surpreendido por saber que também penso neles, mas tento não ser muito obstinado nisso. Se eu pensasse dessa maneira, começaria a sentir-me furioso, principiaria a odiar o inimigo. Antes que desse por Isso quereria vingar-me…
Outro impacte ressoou pelo Hospital tornando-o num enorme gongue. O comandante ergueu a voz e continuou a erguê-la.
—... Deve saber que o Corpo de Monitores é a força de polícia da maior parte da Galáxia habitada, e mantém a paz dentro da Federação através de uma constante aplicação das ciências psicológicas e sociais. Em poucas palavras, guiando e moldando as opiniões, tanto no nível Individual como no das populações planetárias. Portanto é a situação que temos, um bando valente de Monitores e Doutores a aguentar os ataques selvagens, incessantes, de um inimigo esmagadoramente superior. Demorará muito tempo até que a Federação se possa encolerizar o bastante para mobilizar para a guerra, muito mais tempo que o necessário para nos servir pessoalmente de alguma coisa, mas creio que seremos vingados, Doutor!...
A voz dele tremia agora, o rosto branco de cólera. Gritava:
— Numa guerra interpelar os planetas não podem ser capturados, Doutor. Apenas podem ser detonados. Esse maldito Império, com os seus quarenta planetas, deve ser esmagado, destruído, completamente obliterado...!!
O’Mara não disse nada. Conway não pôde afastar os olhos de Dermod. Nunca pensara que o comandante pudesse ter uma explosão daquelas e sentiu-se subitamente aterrorizado
Dermod prosseguiu: — Mas o Corpo é uma força de polícia, lembrem-se! Estamos a tentar pensar nisto como uma perturbação, uma desordem numa escala interstelar onde como de costume as vítimas entre os desordeiros excedam as da polícia. Pessoalmente creio que passou o momento em que qualquer coisa podia fazê-los ver a verdade. Agora é inevitável uma guerra em grande escala, mas eu recuso-me a odiá-los. Doutor, essa é a diferença entre manter a paz e promover a guerra.
«E não quero que os médicos de miolos estreitos, que não têm nada a preocupar-se senão com os seus pacientes, me recordem de todas as maneiras horríveis pelas quais os meus homens estão a morrer. Nem quero saber se os meus homens e os do inimigo são tratados da mesma maneira. Mas tenho de ser escutado quando dou ordens a respeito deles. Isto é uma base militar e eles são baixas inimigas. Aqueles que estiverem em condições de se mover têm de ser guardados por causa da possibilidade de cometerem actos de sabotagem. Compreende agora, Doutor?»
— Sim, senhor — disse Conway em voz baixa.
Quando saiu da Recepção, momentos depois, com O’Mara, Conway teve a impressão de que estava a arder. Era evidente que se enganara gravemente na apreciação do comandante da Armada. Dermod era um bom homem.
A seu lado, O’Mara disse subitamente: — Gosto de ver estes tipos frios, bem senhores de si, perderem a cabeça de vez em quando. Psicologicamente isso é desejável, considerando as pressões a que ele está submetido. Estou satisfeito por você, finalmente, o ter encolerizado.
— E eu? — perguntou Conway.
- Você, Doutor, nunca sabe ser senhor de si — respondeu O’Mara, num tom severo. — Apesar da sua nova autoridade, que devia torná-lo num exemplo de tolerância o bom comportamento, para dizer o menos, está a tornar-se rapidamente num garoto mal-humorado. Cuidado, Doutor.
Quando O’Mara se afastou em direcção ao seu gabinete, Conway ainda estava demasiado furioso para poder falar.
No dia seguinte, Conway não teve oportunidade de apresentar desculpas ao comandante da Armada — os atacantes lançaram a pior ofensiva de sempre. A força inimiga aproximou-se, aumentando o ritmo do bombardeamento de uma maneira fantástica e cercando o Hospital tão estreitamente que por vezes se aproximavam a dezenas de metros da superfície exterior. As naves de Dermod — a Vespasian, uma nave pesada de batalha Tralthana e as outras pequenas unidades que lhe restavam — recuaram para se ancorarem com raios tractores ao Hospital, porque não havia espaço para manobrarem sem obstruírem o armamento pesado que se encontrava atrás delas. Passaram a reforçar com as suas armas mais ligeiras as defesas fixas, sempre que possível.
Mas essa devia ter sido a reacção que o inimigo esperava. Com uma rapidez apenas possível por uma manobra muito bem planeada, as filas do globo constituído pelas naves atacantes alargaram-se, destroçaram e reuniram-se sobre uma pequena área da superfície externa do Hospital. Nessa área foi concentrado o poder total de fogo de três quartos de toda a força inimiga.
Uma tempestade de mísseis rasgou as chapas espessas, lançando no espaço os destroços que enchiam os rombos abertos pelos bombardeamentos anteriores, e abrindo caminho até às estruturas internas, mais frágeis. Tractores e matraqueadores agarravam os destroços ainda não assentes e abanavam-nos maldosamente, puxando-os para fora, para que os mísseis pudessem aprofundar-se ainda mais. As defesas dos Monitores sofreram horrivelmente perante as naves extremamente concentradas, mas apenas durante minutos. A tremenda concentração de fogo esmagou-as, martelou-as e não as deixou enquanto elas não se confundiram com as outras massas de homens e metais destroçados. Deixaram uma secção do Hospital sem defesa alguma e subitamente tornou-se óbvio que aquilo não eira apenas um ataque, mas uma invasão.
Sob a cobertura do fogo dos atacantes, três naves gigantescas, desarmadas, começaram a descer pesadamente sobre a secção indefesa. Transportes...
A Vespasian foi imediatamente dirigida para preencher a brecha. Avançou para o ponto onde o primeiro transporte ia tocar, passando por entre o fogo do inimigo e dos próprios Monitores e lançando tudo quanto podia sobre o alvo», assim que ele surgiu por trás do Hospital...
Houve várias explicações para o que então aconteceu. Um erro do piloto, o impacte de um míssil inimigo — ou mesmo amigo. Mas ninguém sugeriu que o comandante Williamson tivesse abalroado propositadamente a nave Inimiga. A Vespasian chocou contra o transporte, muito maior mas de construção muito mais ligeira. Embateu junto da popa e pareceu ser capaz de atravessá-lo, até que parou, silenciosamente. Dentro dos destroços, uma pequena explosão iluminou o nevoeiro causado pelo ar que se escapava, mas as duas naves continuaram encravadas uma na outra, a girarem lentamente.
Durante um segundo tudo pareceu parar. Depois as defesas fixas dos Monitores lançaram-se sobre o segundo transporte, ignorando todos os outros alvos. Momentos depois, os matraqueadores tinham arrancado chapas de três secções do casco e estavam a morder mais abaixo. O transporte afastou-se lentamente, perdendo ar. O terceiro já se retirara. Toda a força inimiga estava a recuar, mas não para muito longe. O bombardeamento continuou, apenas ligeiramente diminuído na intensidade.
Não fora de modo algum uma vitória para os Monitores. Acontecera apenas que o inimigo cometera um erro; fora um pouco prematuro. Raios tractores detiveram suavemente o movimento giratório dos destroços das duas grandes naves e puxaram-nos para o Hospital. Homens do Corpo saram em busca de sobreviventes e não tardou que os feridos começassem a aparecer. O Dr. Prilicla acompanhou as equipas de socorro. O GLNO era a forma de vida mais frágil conhecida da Federação e a cobardia era a sua principal característica de sobrevivência. Mas Prilicla guiava a sua bolha de pressão, de paredes finas, sobre chapas contorcidas e destroços que se moviam por todos os lados à sua volta. Procurava vida. Os seres vivos irradiavam, mesmo quando inconscientes, e o pequeno GLNO apontava sem errar quem estava vivo e quem estava morto. Prilicla salvava muitas e muitas vidas. Mas para um empata, para um sensitivo às emoções, era um trabalho infernal sob todos os aspectos horríveis e dolorosos da palavra...
O major O’Mara estava em toda a parte. A sua extrema fadiga revelava-se apenas pela maneira como ele, flutuando através do espaço, se enganava na avaliação das distâncias e embatia contra portas e pessoas. Quando falava com os pacientes humano-terrestres as enfermeiras e os homens do Corpo, a sua voz nunca se mostrava fatigada. A sua simples presença tinha também um efeito calmante no pessoal extraterrestre porque, ainda que o não pudessem entender, todos se lembravam de como, quando os Tradutores funcionavam, ele lhes podia arrancar a pele apenas com algumas palavras.
O pessoal extraterrestre — os maciços PGLI Tralthanos, os caranguejos ELNT Melfanos e todos os outros — estavam em toda a parte, em alguns pisos dirigindo o pessoal humano-terrestre e noutros ajudando o pessoal de enfermagem e os maqueiros do Corpo. Estavam fatigados e tinham imenso que fazer e a maior parte das vezes nem sequer compreendiam o que lhes diziam, mas mesmo assim salvavam muitas vidas.
E de cada vez que um míssil atingia o Hospital, perdiam um pouco de espaço.
O Dr. Conway nunca saía da sala de jantar. Tinha comunicação com a maior parte dos outros pisos, mas os corredores que levavam a eles estavam cortados em muitos casos, ou pela falta de ar ou por destroços, e a opinião geral era a de que o último Médico-Chefe que restava no Hospital se devia manter num lugar razoavelmente seguro. Tinha muitos feridos humano-terrestres para tratar e os casos difíceis com extraterrestres, fossem combatentes ou membros do pessoal, eram-lhe levados ali.
De certo modo, ele tinha a maior e mais compacta enfermaria do Hospital. Como ninguém tinha já tempo para as refeições e comia as rações enviadas para as enfermarias, a sala de jantar principal fora tornada numa enfermaria. Havia camas por todos os lados: no chão, nas paredes e no tecto. Os pacientes, estando habituados ao espaço, não se sentiam perturbados pela ausência de peso ou pela visão dos outros pacientes suspensos a poucos metros acima deles.
Conway chegara àquele estado de fadiga em que já nem sequer se sente o cansaço. O ruído dos mísseis a chocarem e a explodirem tornara-se monótono. Sabia que o bombardeamento ia lentamente penetrando através das superfícies externas e internas, uma erosão mortal que não tardaria a abrir para o espaço todos os corredores e todas as enfermarias, mas o seu cérebro deixara de reagir perante o ruído. Quando os feridos chegavam, ele fazia o que lhe era indicado, mas as suas reacções eram apenas os reflexos condicionados de um médico. Perdera muito da sua capacidade de pensar, sentir ou recordar, e quando se recordava não tinha noção do tempo. O último caso extraterrestre — que lhe exigira a absorção de quatro gravações de fisiologia — destacava-se entre a monotonia sangrenta e ruidosa. Mas Conway não sabia se isso acontecera três dias ou três semanas antes, ou se isso acontecera antes da chegada dos feridos da Vespasian.
Recordava-se com frequência do incidente da Vespasian. Tivera de cortar o fato do major Stillman e de empurrar os pedaços que tinham persistido a flutuar à volta do leito. Stillman tinha duas costelas quebradas, um úmero estilhaçado e uma pequena descompressão que afectava temporariamente a sua vista. Até o hipo produzir os seus efeitos, ele não deixou de fazer perguntas sobre o comandante.
E o comandante Wiiliamson não deixou de fazer perguntas sobre os seus homens. Williamson estava metido num molde da cabeça aos pés, tinha poucas dores e lembrara-se imediatamente de Conway. Tivera muitos homens sob o seu comando e devia conhecer todos pelos nomes. Conway não.
— Stillman está a três camas à sua direita — disse Conway. — Os outros estão a, por toda a parte.
Os olhos de Williamson moveram-se sobre os pacientes que estavam suspensos sobre ele. Não podia mover nada mais. — Não reconheço alguns deles — disse ele.
Olhando para as manchas negras no olho direito, na têmpora e no queixo nos lugares onde o seu rosto batera no interior do capacete — Conway procurou sorrir e disse: — Alguns deles não o reconheceriam...
Recordou-se do segundo TELHA...
Chegara amarrado a urna maca de pressão cuja atmosfera já era constituída pelo veneno a que o ocupante chamava ar. Através das duas transparências da cobertura da maca e do fato do alienígena, os ferimentos eram bem visíveis — uma grande fractura deprimida da carapaça, que cortara os vasos sanguíneos subjacentes. Não havia tempo para tomar as gravações que usara durante o anterior caso TELHA, porque era óbvio que o paciente estava a morrer devido à hemorragia. Conway ordenou que a maca fosse colocada no centro da sala e calçou imediatamente luvas, Dos leitos agarrados ao tecto, olhos vigiavam todos os seus movimentos.
Carregou as luvas e encostou-as ao tecido transparente da tenda da maca. Imediatamente, o material fino mas forte tornou-se maleável sem perder a sua resistência. Manteve-se pegado às luvas carregadas, se não como uma segunda pele, pelo menos como outro par de luvas finas. Cuidadosamente, para não esforçar em excesso o tecido que separava as duas atmosferas mutuamente venenosas, Conway retirou o fato do paciente com instrumentos contidos no interior da maca.
Era possível fazer coisas complicadas enquanto se operava numa tenda flexível — Conway tinha um par de PVSJ e um QLCL a poucos leitos de distância, a prová-lo - mas havia limites impostos pelos instrumentos e medicamentos disponíveis no interior da tenda, e pelo ligeiro obstáculo do tecido.
Estava a retirar os estilhaços da carapaça da área atingida quando um míssil, explodindo perto, fizera o pavimento saltar. Poucos momentos depois a campainha de alarme indicou uma perda de pressão, e a Murchison e o médico militar Kelgiano — que eram todo o pessoal da enfermaria — tinham corrido a fechar as tendas dos pacientes que não eram capazes de fazer isso por si próprios. A queda era ligeira, talvez causada por uma pequena fuga devida a chaparia empenada, mas podia ser mortal para o paciente de Conway, dentro da tendia. Teve de passar a trabalhar com uma velocidade frenética.
Mas enquanto tentava laquear os vasos seccionados, o tecido da tenda de pressão começara a inchar. Tornara-se difícil segurar os instrumentos — virtualmente impossível guiá-los com precisão, e ias suas mãos acabaram por ser empurradas para fora do campo operatório. A diferença de pressão entre o interior da tenda e a da enfermaria era mínima, mas o tecido da tenda continuara a inchar como um balão. Retirara-se impotente, e meia hora depois, quando a fuga fora obturada e a pressão normal restaurada, começara de novo. Mas já fora tarde.
Recordava-se de ter então sentido a vista perturbada e, com surpresa sua, ter compreendido que estava a chorar. As lágrimas não eram um reflexo médico condicionado, porque os médicos não choram os pacientes. Provavelmente fora uma combinação de cólera por não o ter podido salvar, e da sua extrema fadiga. E quando ele vira as expressões de todos os pacientes que o observavam sentira-se extremamente embaraçado.
Agora os acontecimentos à sua volta decorriam de uma maneira sacudida, errática. Os seus olhos fechavam-se e passavam-se segundos ou minutos antes que ele os pudesse abrir de novo. Os pacientes que podiam mover-se passavam de cama em cama fazendo os pequenos trabalhos indispensáveis ou tagarelavam com aqueles que não se podiam deslocar. Mas Conway tinha sempre muito que fazer com os feridos acabados de chegar, ou estava demasiado confundido pelos gravações para falar com os que estavam ali há mais tempo. No entanto, a maior parte do tempo os seus olhos estavam fixos sobre as figuras adormecidas da Murgatroyd e do Kelgiano que flutuavam perto da entrada da enfermaria. Ele também queria dormir, mas era o seu período de serviço e não seria substituído senão dai a longo tempo — talvez cinco minutos ou talvez cinco horas, mas uma eternidade em qualquer caso. Tinha de fazer qualquer coisa.
Sem dar por isso, entrou no armazém vazio onde colocara os casos terminais ou provavelmente terminais. E foi só então que ele notou que os feridos que podiam caminhar o haviam seguido, juntamente com outros que não deviam estar fora das suas tendas mas que haviam sido rebocados. Juntaram-se lentamente à sua volta, com uma expressão grave, determinada e respeitosa. O major Stillman avançou, a certo custo, porque na sua mão útil havia uma arma.
— A matança tem de acabar, Doutor — disse calmamente Stillman. — Discutimos o problema e decidimos Isso. E temos de a parar imediatamente. — Inverteu subitamente a arma e ofereceu-a a Conway. — Talvez precise disto para evitar que Dermod faça algum disparate quando eu lhe disser o que está a acontecer...
Perto de Stillman estava a forma mumificada do comandante Williamson e o homem que o rebocara. Falavam um ao outro em vozes baixas e a linguagem era simultaneamente estranha e familiar a Conway. Antes que a identificasse, todos começaram a mover-se de novo e ele notou quantos? estavam armados. As armas tinham feito parte dos fatos espaciais que eles tinham vestido e Conway nem sequer pensara nelas quando as colocara numa arrecadação. Dermod ia ficar furioso com ele. De qualquer modo seguiu os pacientes até à entrada principal da enfermaria e da pelo corredor, até à Recepção.
Stillman falou durante quase todo o tempo, contando o que acontecera, quando estavam prestes a chegar ao seu destino, ele disse, angustiado: — Pensa que sou... Sou um traidor por fazer isto, Doutor?
Havia tantas emoções diferentes a revolverem-se dentro de Conway que tudo quanto ele pôde dizer foi: — Não!
Sentiu-se ridículo, ao apontar a arma ao comandante da Armada, mas isso era, pelos vistos, a única maneira de fazer aquilo. Conway entrara na Recepção, abrira caminho através dos oficiais que se encontravam dm volta das mesas de comando, até que alcançara Dermod. Depois apontara-lhe a arma enquanto os outros entravam. Tentara também explicar as coisas mas não fizera um trabalho muito bom.
—... Portanto quer que me renda. Doutor — disse Dermod fatigadamente, sem olhar para a arma. Os olhos dele passaram do rosto de Conway para os de alguns dos pacientes do Corpo que continuavam a flutuar na sala. Pareceu magoado e desapontado, como se um amigo lhe tivesse feito uma coisa muito vergonhosa.
Conway tentou de novo
— Não é uma rendição, senhor — disse ele, apontando para o homem que continuava a guiar a maca de Williamson. — Nós... Quero dizer, este homem precisa de um comunicador. Quer ordenar um cessar-fogo...
Gaguejando na sua ânsia de explicar o que acontecera. Conway começou por descrever o influxo de vítimas depois da colisão entre a Vespasian e o transporte inimigo. Os interiores de ambas as naves tinham ficado destroçados e, ainda que se soubesse que havia feridos inimigos e dos Monitores, não houvera tempo nem pessoal bastante para os separar. Depois, quando os em estado menos grave tinham começado a mover-se, falando ou ajudando a tratar dos outros pacientes, tornara-se evidente que quase metade das vítimas viera do outro lado. Por estranho que parecesse isso não incomodara muito os pacientes, e o pessoal estivera demasiado ocupado para o notar. Portanto os pacientes tinham continuado a fazer uns aos outros os trabalhos mais simples, necessários e não multo agradáveis trabalhos que tinham de ser feitos numa enfermaria com tanta falta de pessoal. E tinham conversado...
Porque esses homens do Corpo eram da Vespasiam e a Vespasian estivera em Etla. O que significava que eles sabiam mais ou menos falar a linguagem de Etla e os Etlanos falavam a mesma língua que era falada em todo o Império — tal como o Universal era falada em toda a Federação. Tinham falado uns com os outros e uma das coisas que tinham aprendido, depois de o cuidado inicial e de a desconfiança terem passado, fora a de que o transporte contivera oficiais de muito alta patente. Um dos que sobrevivera ao choque fora o terceiro na hierarquia do comando das forças do Império, em volta do Geral do Sector...
—... E durante os últimos dias os meus pacientes têm mantido conversações de paz — terminou Conway, com a respiração a faltar-lhe, — Não oficiais, talvez, mas creio que o coronel Williamson e Heraltnor têm patentes bem altas para as tornarem num compromisso.
Haraltnor, o oficial inimigo, falou breve e veemente a Williamson em Etlano, e depois virou vagarosamente o corpo encapsulado de Williamson até que ele pudesse olhar para Dermod. Heraltnor fitou também o comandante da Armada, com uma expressão de angústia.
Muito a custo, Williamson disse: — Ele não é doido, senhor. Através dos sons do bombardeamento e dos olhares de Relance aos Visores, ele sabe que as nossas defesas estão esmagadas. Diz que a gente dele pode descer agora e nós não poderemos fazer nada para evitar isso. É verdade e sabemos ambos disso. Diz que o seu chefe ordenará possivelmente o desembarque dentro de horas, mas mesmo assim ele pretende um cessar-fogo, e não uma rendição
Numa Voz fraca, Williamson terminou: — Ele não quer que o seu lado vença. Quer apenas que a luta pare. Há certas coisas que lhe disseram sobre esta guerra e nós que têm de ser esclarecidas, afirma ele...
Furioso, Dermod disse: — Ele tem estado a falar muito. — O rosto dele tinha uma expressão torturada, como se ele quisesse desesperadamente agarrar-se a uma esperança mas não se atrevesse a isso. Prosseguiu: — E vocês têm também falado muito! Porque foi que não me disseram nada?
— Não foi o que dissemos — interrompeu-o subitamente Stillman. — Foi o que fizemos! A princípio eles não acreditavam numa palavra nossa. Mas isto aqui não era de modo algum aquilo que eles esperavam. Parecia-lhes um hospital e não uma câmara de torturas. As aparências podem ser enganadoras, e eles eram muito desconfiados, mas viram médicos e enfermeiros humanos e extraterrestres a matarem-se com trabalho por causa deles, e viram-no. Falar não valeu de nada, senão mais tarde. Foi o que fizemos, foi o que ele fez...!
Conway sentiu as orelhas a escaldarem. Protestou: — Mas acontecia a mesma coisa em todas as enfermarias!
— Cale-se, Doutor — disse Stillman num tom respeitoso, depois do que continuou: — Ele nunca parecia dormir. Mal nos falava uma vez que estivéssemos fora de perigo, mas nunca deixava os pacientes na enfermaria anexa, ainda que fossem casos perdidos. Dois deles mostraram que, no fim, não estavam perdidos e ele trouxe-os para junto de nós, na enfermaria principal. Não lhe importava qual o lado a que pertenciam — ele trabalhava com igual esforço para toda a gente...
Conway disse numa voz seca: — Stillman, está a dramatizar as coisas!
Stillman não lhe deu atenção. — Mas foi o caso do TELHA que decidiu tudo. Os TELHA são alienígenas inimigos, voluntários, e normalmente a gente do Império não quer saber muito dos extraterrestres. Esperavam, portanto, que nós pensássemos do mesmo modo. Especialmente em relação a um que estava do outro lado. Mas ele trabalhou nele com o mesmo esforço, e quando a queda de pressão tornou impossível que ele continuasse a operá-lo e o extraterrestre morreu... Eles viram a reacção dele...
— Stillman! — exclamou Conway, furioso.
Mas Stillman não entrou em pormenores. Manteve-se silencioso, a fitar Dermod, angustiado. Toda a gente observava Dermod. Excepto Conway, que olhava para Heraltnor.
O oficial do Império não parecia muito impressionante nesse momento, pensou Conway. Parecia um homem de meia idade, grisalho, muito vulgar, com um queixo maciço e rugas em volta dos olhos. Em, comparação com o uniforme verde de Dermod e a sua impressionante carga de medalhas, a roupa branca, uniforme fornecida aos pacientes DBDG punha Heraltnor em desvantagem. Enquanto o silêncio se prolongava, Conway perguntou a si próprio se eles fariam continência um ao outro ou se limitariam a um cumprimento com a cabeça.
Mas eles fizeram melhor que isso: apertaram as mãos.
Houve um período inicial de suspeita e desconfiança, naturalmente. O comandante-chefe do Império convenceu-se de que Heraltnor fora hipnotizado, mas o grupo de investigação dos oficiais do Império que viera ao Geral do Sector depois do cessar-fogo reduzira rapidamente a zero a desconfiança. Para Conway, a única coisa que se reduzira tinham sido as suas preocupações sobre a possibilidade de as enfermarias serem abertas para o espaço. O seu pessoal e ele próprio ainda tinham muito que fazer, ainda que os engenheiros e oficiais médicos da Armada do Império estivessem a fazer tudo para reparar o Sector Geral, Enquanto trabalhavam tinham começado a aparecer os primeiros membros do pessoal que fora evacuada — tanto de medicina como de manutenção — e o computador do Tradutor voltara a funcionar. Depois, cinco semanas e seis dias depois do cessar-fogo, a Armada do Império deixara as vizinhanças do Hospital. Deixaram os feridos, porque eles estavam a receber o melhor tratamento possível e a Armada podia ter de lutar ainda mais.
Numa das reuniões diárias com as autoridades do Hospital — que continuavam a ser O’Mara e Conway visto que ninguém, com graus hierárquicos superiores Chegara com os retomados — Dermod tentou explicar uma situação complexa em termos multo simples:
—... Agora que os cidadãos Imperiais sabem a verdade sobre Etla, entre outras coisas, o Imperador e a sua Administração estão virtualmente extintos. Mas as coisas são ainda muito confusas em alguns sectores e uma demonstração de força ajudará a estabilizar as coisas. Ainda bem que será apenas uma demonstração de força, porque fui eu quem convenceu o comandante deles a levar com ele algum do nosso pessoal de contacto cultural e sociológico. Queremos ver-nos livres do Imperador, mas não pelo preço de uma guerra civil.
«Heraltnor quer que vá também, Doutor. Mas eu disse-lhe que...»
A seu lado, O’Mara gemeu e disse: — Além de salvar centenas de Vidas e evitar uma guerra inter-galáctica, nosso jovem e brilhante doutor faz-milagres está a ser convocado para...
— Deixe-se de o ridicularizar, O’Mara! — disse Dermod num tom ríspido - — O que disse é a verdade, ou perto disso. Se ele não tivesse...
— É apenas a força de hábito — confessou O’Mara. — Como é minha obrigação fazer as pessoas pequeninas não gosto de as ver inchadas...
Nesse momento, o visor principal, atrás da secretária de Dermod, manejado agora por um recepcionista Indiano em vez de um Monitor, iluminou-se com a imagem de uma cabeça peluda, Kelgiana. Acontecia que um grande transporte DBLF estava a chegar com pessoal FGLI e ELNT a bordo, além dos Kelgianos, dezoito dos quais eram Médico-Chefes. Tendo em consciência o estado do Hospital e o facto de apenas três escotilhas estarem a funcionar, o Kelgiano que estava no Visor queria discutir com o Diagnosticador-chefe alojamentos e missões antes de descer...
— Tornnastor ainda não está em condições e não há outro...— começou a dizer Conway. Mas O’Mara tocou-lhe no braço.
— Sete gravações, lembre-se disso — observou ele numa voz rouca. — Não discuta, Doutor.
Conway olhou firmemente O’Mara — um olhar que foi mais profundo que as feições duras e carrancudas, e a voz sarcástica e dominadora. Conway não era um diagnosticador — aquilo que fora obrigado a fazer dois meses antes quase o matara. Mas o que O’Mara dizia com o toque da sua anão e a expressão dos seus olhos, e não com a carranca do seu rosto ou o tom da sua voz — era que seria apenas uma questão de tempo.
Corando com prazer, o que Dermod atribuiu provavelmente ao embaraço perante os comentários de O’Mara, ele tratou rapidamente dos alojamentos e dos deveres do pessoal no transporte Kelgiano e depois pediu desculpa e retirou-se. Tinha de se encontrar com a Murchison no piso de recreio dentro de dez minutos e fora ela quem o pedira...
Quando ia sair, ouviu O’Mara a dizer num tom preguiçoso: — E além de ter salvo milhares de milhões dos horrores da guerra, aposto que ele ainda ganha a garota...
James White
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